Biblio "SEBO"
Numa manhã de 1945, um rapaz é conduzido pelo pai a um lugar misterioso, oculto no coração da cidade velha: o Cemitério dos Livros Esquecidos. Aí, Daniel Sempere encontra um livro maldito que muda o rumo da sua vida e o arrasta para um labirinto de intrigas e segredos enterrados na alma obscura de Barcelona.
Juntando as técnicas do relato de intriga e suspense, o romance histórico e a comédia de costumes, A Sombra do Vento é sobretudo uma trágica história de amor cujo eco se projecta através do tempo. Com uma grande força narrativa, o autor entrelaça tramas e enigmas ao modo de bonecas russas num inesquecível relato sobre os segredos do coração e o feitiço dos livros, numa intriga que se mantém até à última página.
A Sombra do Vento é um mistério literário passado na Barcelona da primeira metade do século XX, desde os últimos esplendores do Modernismo até às trevas do pós-guerra. Um inesquecível relato sobre os segredos do coração e o feitiço dos livros, num crescendo de suspense que se mantém até à última página.
O Cemitério dos Livros Esquecidos.
Ainda me lembro daquele amanhecer em que o meu pai me levou pela primeira vez a visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos. Desfiavam-se os primeiros dias do Verão de 1945 e caminhávamos pelas ruas de uma Barcelona apanhada sob céus de cinza e um sol de vapor que se derramava sobre a Rambla de Santa Mónica numa grinalda de cobre líquido.
- Não podes contar a ninguém aquilo que vais ver hoje, Daniel - advertiu o meu pai. - Nem ao teu amigo Tomás. A ninguém.
- Nem sequer à mamã? - inquiri eu, a meia-voz.
O meu pai suspirou, amparado naquele sorriso triste que o perseguia como uma sombra pela vida.
- Claro que sim - respondeu, cabisbaixo. - Para ela não temos segredos. A ela podes contar tudo.
Pouco depois da guerra civil, um surto de cólera tinha levado a minha mãe. Enterráramo-la em Montjuic no dia do meu quarto aniversário. Só me lembro de que choveu todo o dia e toda a noite e que quando perguntei ao meu pai se o céu chorava lhe faltou a voz para me responder. Seis anos depois, a ausência da minha mãe era para mim ainda uma miragem, um silêncio gritante que até então não tinha aprendido a emudecer com palavras. O meu pai e eu vivíamos num pequeno andar da Rua Santa Ana, junto da praça da igreja. O andar ficava situado mesmo por cima da livraria especializada em edições de coleccionador e livros usados herdada do meu avô, um bazar encantado que o meu pai contava que um dia passasse para as minhas mãos. Criei-me entre livros, fazendo amigos invisíveis em páginas que se desfaziam em pó e cujo cheiro ainda conservo nas mãos. Em criança aprendi a conciliar o sono enquanto explicava à minha mãe na penumbra do meu quarto as incidências da jornada, as minhas andanças no colégio, o que tinha aprendido nesse dia... Não podia ouvir a sua voz ou sentir o seu contacto, mas a sua luz e o seu calor ardiam em cada recanto daquela casa e eu, com a fé dos que ainda podem contar os seus anos pelos dedos das mãos, acreditava que, se fechasse os olhos e falasse com ela, ela me poderia ouvir de onde estivesse. Às vezes, o meu pai ouvia-me da sala de jantar e chorava às escondidas.
Lembro-me de que naquele alvorecer de Junho acordei a gritar. O coração batia-me no peito como se a alma quisesse abrir caminho e desatar a correr pelas escadas abaixo. O meu pai acorreu alvoroçado ao meu quarto e tomou-me nos braços, tentando acalmar-me.
- Não consigo lembrar-me da cara dela. Não consigo lembrar-me da cara da mamã - murmurei ofegante.
O meu pai abraçou-me com força.
- Não te preocupes, Daniel. Eu lembrar-me-ei pelos dois. Olhámo-nos na penumbra, procurando palavras que não existiam. Foi a
primeira vez que me apercebi de que o meu pai envelhecia e de que os seus olhos, olhos de névoa e de perda, olhavam sempre para trás. Pôs-se de pé e abriu as cortinas para deixar entrar a tíbia luz do alvorecer.
- Anda, Daniel, veste-te. Quero mostrar-te uma coisa - disse ele.
- Agora? Às cinco da manhã?
- Há coisas que só se podem ver no meio das trevas - insinuou o meu pai brandindo um sorriso enigmático que provavelmente tinha tomado de empréstimo de algum volume de Alexandre Dumas.
As ruas ainda languesciam entre neblinas e guardas-nocturnos quando chegámos à porta da rua. Os candeeiros das Ramblas desenhavam uma avenida de vapor, pestanejando ao mesmo tempo que a cidade se espreguiçava e se desfazia do seu disfarce de aguarela. Ao chegar à Rua Arco del Teatro aventurámo-nos rumo ao Raval sob a arcada que prometia uma abóbada de bruma azul. Segui o meu pai através daquele caminho estreito, mais cicatriz que rua, até que o relume das Ramblas se perdeu atrás de nós. A claridade do amanhecer filtrava-se das varandas e cornijas em sopros de luz enviesada que não chegavam a roçar o solo. Finalmente, o meu pai deteve-se defronte de um portão de madeira trabalhada enegrecido pelo tempo e pela humidade. Diante de nós erguia-se o que me pareceu o cadáver abandonado de um palácio, ou um museu de ecos e sombras.
- Daniel, não podes contar a ninguém o que vais ver hoje. Nem ao teu amigo Tomás. A ninguém.
Um homenzinho com traços de ave de rapina e cabeleira prateada abriu-nos a porta. O seu olhar aquilino poisou em mim, impenetrável.
- Bom dia, Isaac. Este é o meu filho Daniel - anunciou o meu pai. - Está quase a fazer onze anos, e um dia ficará ele a tomar conta da loja. Já tem idade para conhecer este lugar.
O tal Isaac convidou-nos a entrar com um leve gesto de assentimento. Uma penumbra azulada cobria tudo, insinuando apenas traços de uma escadaria de mármore e uma galeria de frescos povoados de figuras de anjos e criaturas fabulosas. Seguimos o guardião através daquele corredor palaciano e chegámos a uma grande sala circular onde uma autêntica basílica de trevas jazia sob uma cúpula retalhada por feixes de luz que pendiam lá do alto. Um labirinto de corredores e estantes repletas de livros subia da base até à cúspide, desenhando uma colmeia tecida de túneis, escadarias, plataformas e pontes que deixavam adivinhar uma gigantesca biblioteca de geometria impossível. Olhei para o meu pai, boquiaberto. Ele sorriu-me, piscando-me o olho.
- Bem-vindo ao Cemitério dos Livros Esquecidos, Daniel.
Salpicando os corredores e plataformas da biblioteca perfilava-se uma dúzia de figuras. Algumas delas voltaram-se para cumprimentar de longe, e reconheci os rostos de diversos colegas do meu pai do grémio de alfarrabistas. Aos meus olhos de dez anos, aqueles indivíduos afiguravam-se uma confraria secreta de alquimistas a conspirar nas costas do mundo. O meu pai ajoelhou-se ao pé de mim e, sustendo-me o olhar, falou-me com aquela voz leve das promessas e das confidências.
- Este lugar é um mistério, Daniel, um santuário. Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte. Há já muitos anos, quando o meu pai me trouxe pela primeira vez aqui, este lugar já era velho. Talvez tão velho como a própria cidade. Ninguém sabe de ciência certa desde quando existe, ou quem o criou. Dir-te-ei o que o meu pai me disse a mim. Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, os que conhecemos este lugar, os guardiães, asseguramo-nos de que chegue aqui. Neste lugar, os livros de que já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, vivem para sempre, esperando chegar um dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito. Na loja nós vendemo-los e compramo-los, mas na realidade os livros não têm dono. Cada livro que aqui vês foi o melhor amigo de alguém. Agora só nos têm a nós, Daniel. Achas que vais poder guardar este segredo?
O meu olhar perdeu-se na imensidade daquele lugar, na sua luz encantada. Fiz um sinal de assentimento e o meu pai sorriu.
- E sabes o melhor? - perguntou. Abanei a cabeça em silêncio.
- O costume é que a primeira vez que alguém visita este lugar tem de escolher um livro, aquele que preferir, e adoptá-lo, assegurando-se de que ele nunca desapareça, de que permaneça sempre vivo. É uma promessa muito importante. Para toda a vida - explicou o meu pai.
- Hoje é a tua vez.
Pelo espaço de quase meia hora deambulei entre os meandros daquele labirinto que cheirava a papel velho, a pó e a magia. Deixei que a minha mão roçasse as avenidas de lombadas expostas, tentando a minha escolha. Avistei, entre os títulos sumidos pelo tempo, palavras em línguas que reconhecia e dezenas de outras que era incapaz de catalogar. Percorri corredores e galerias em espiral povoadas de centenas, milhares de volumes que pareciam saber mais acerca de mim do que eu deles. Daí a pouco, assaltou-me a ideia de que atrás da capa de um daqueles livros se abria um universo infinito por explorar e de que, para além daqueles muros, o mundo deixava passar a vida em tardes de futebol e folhetins radiofónicos, contentando-se em ver até onde alcança o seu umbigo e pouco mais. Talvez fosse aquele pensamento, talvez o acaso ou o seu parente de gala, o destino, mas naquele mesmo instante soube que já tinha escolhido o livro que ia adoptar. Ou talvez devesse dizer o livro que me ia adoptar a mim. Assomava timidamente no extremo de uma estante, encadernado a pele cor de vinho e sussurrando o seu título em letras douradas que ardiam à luz que a cúpula destilava lá do alto. Aproximei-me dele e acariciei as palavras com a ponta dos dedos, lendo em silêncio.
A Sombra do Vento Julián Carax
Nunca tinha ouvido mencionar aquele título ou o seu autor, mas não me importou. A decisão estava tomada. Por ambas as partes. Peguei no livro com extremo cuidado e folheei-o, deixando esvoaçar as suas páginas. Libertado da sua cela na estante, o livro exalou uma nuvem de pó dourado. Satisfeito com a minha escolha, voltei pelo mesmo caminho ao longo do labirinto levando o meu livro debaixo do braço com um sorriso impresso nos lábios. Talvez a atmosfera feiticeira daquele lugar tivesse levado a melhor sobre mim, mas tive a certeza de que aquele livro tinha estado ali à minha espera durante anos, provavelmente desde antes de eu nascer.
Naquela tarde, de volta ao andar da Rua Santa Ana, refugiei-me no meu quarto e decidi ler as primeiras linhas do meu novo amigo. Antes que me apercebesse, tinha caído dentro dele sem remédio. O romance relatava a história de um homem em busca do seu verdadeiro pai, que nunca tinha chegado a conhecer e cuja existência só descobriria graças às últimas palavras que a mãe pronunciava no seu leito de morte. A história daquela busca transformava-se numa odisseia fantasmagórica na qual o protagonista lutava por recuperar uma infância e uma juventude perdidas, e na qual, lentamente, descobríamos a sombra de um amor maldito cuja lembrança o havia de perseguir até ao fim dos seus dias. À medida que avançava, a estrutura do relato começou a lembrar-me uma daquelas bonecas russas que contêm inumeráveis miniaturas de si mesmas no interior. Passo a passo, a narração decompunha-se em mil histórias, como se o relato tivesse penetrado numa galeria de espelhos e a sua identidade se cindisse em dúzias de reflexos diferentes e ao mesmo tempo um só. Os minutos e as horas deslizaram como uma miragem. Horas mais tarde, aprisionado pelo relato, mal dei pelas badaladas da meia-noite na catedral a repicar ao longe. Enterrado na luz de cobre que o candeeiro flexível projectava, mergulhei num mundo de imagens e sensações como nunca as tinha conhecido. Personagens que se me afiguraram tão reais como o ar que respirava arrastaram-me para um túnel de aventura e mistério do qual não queria escapar. Página a página, deixei-me envolver pelo sortilégio da história e pelo seu mundo até que o sopro do amanhecer acariciou a minha janela e os meus olhos cansados deslizaram pela última página. Deitei-me na penumbra azulada do alvorecer com o livro sobre o peito e escutei o rumor da cidade adormecida a gotejar sobre os telhados salpicados de púrpura. O sonho e a fadiga batiam à minha porta, mas resisti a render-me. Não queria perder o feitiço da história nem dizer adeus ainda às suas personagens.
Numa ocasião ouvi um cliente habitual comentar na livraria do meu pai que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho até ao seu coração. Aquelas primeiras imagens, o eco dessas palavras que julgamos ter deixado para trás, acompanham-nos toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória ao qual, mais tarde ou mais cedo - não importa quantos livros leiamos, quantos mundos descubramos, tudo quanto aprendamos ou esqueçamos -, vamos regressar. Para mim aquelas páginas enfeitiçadas serão sempre as que encontrei entre os corredores do Cemitério dos Livros Esquecidos.
Dias de Cinza - 1945-1949.
Um segredo vale o que valem aqueles de quem temos de guardá-lo. Ao acordar, o meu primeiro impulso foi dar parte da existência do Cemitério dos Livros Esquecidos ao meu melhor amigo. Tomás Aguilar era um colega de estudos que dedicava o tempo livre e o talento à descoberta de geringonças engenhosíssimas mas de escassa aplicação prática, como o dardo aerostático ou o pião-dínamo. Ninguém melhor que Tomás para compartilhar aquele segredo. Sonhando acordado, imaginava o meu amigo Tomás e eu próprio apetrechados ambos de lanternas e bússola, prestes a desvendar os segredos daquela catacumba bibliográfica. Depois, recordando a minha promessa, decidi que as circunstâncias aconselhavam o que nos romances de intriga policial se denominava outro modus opemndi. Ao meio-dia abordei o meu pai para o questionar acerca daquele livro e de Julián Carax, que no meu entusiasmo tinha imaginado célebres em todo o mundo. O meu plano era deitar mão a todas as suas obras e lê-las de fio a pavio em menos de uma semana. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o meu pai, livreiro de raça e bom conhecedor dos catálogos editoriais, nunca tinha ouvido falar de A Sombra do Vento ou de Julián Carax. Intrigado, o meu pai inspeccionou a página com os dados da edição.
- Segundo isto, este exemplar faz parte de uma edição de dois mil e quinhentos exemplares impressa em Barcelona, por Cabestany Editores, em Dezembro de 1935.
- Conheces essa editora?
- Fechou há anos. Mas a edição original não é esta, e sim outra de Novembro do mesmo ano, mas impressa em Paris... A editora é Galliano & Neuval. Não me diz nada.
- Então o livro é uma tradução? - perguntei, desconcertado.
- Não refere que o seja. Pelo que aqui se vê, o texto é original.
Um livro em castelhano, editado primeiro em França?
- Não será a primeira vez, com os tempos que correm - aduziu o meu pai. - Se calhar o Barceló pode-nos ajudar...
Gustavo Barceló era um velho colega do meu pai, dono de uma livraria cavernosa na rua Fernando, que capitaneava a fina-flor do grémio de alfarrabistas. Vivia perpetuamente agarrado a um cachimbo apagado que desprendia eflúvios de mercado persa e descrevia-se a si próprio como o último romântico. Barceló sustentava que na sua linhagem havia um parentesco distante com lorde Byron, apesar de ser natural de Caldas de Montbuy. Talvez no intuito de evidenciar esta ligação, Barceló vestia invariavelmente à maneira de um dândi do século dezanove, usando lenço de pescoço, sapatos de verniz brancos e um monóculo sem graduação que segundo as más-línguas não tirava nem na intimidade da retrete. Na realidade, o parentesco mais significativo a seu crédito era o do progenitor, um industrial que tinha enriquecido por meios mais ou menos turvos em finais do século XIX. Segundo me explicou o meu pai, Gustavo Barceló, tecnicamente, nadava em dinheiro, e a livraria era mais paixão que negócio. Amava os livros sem reserva e, embora ele o negasse rotundamente, se alguém entrava na sua livraria e se apaixonava por um exemplar cujo preço não podia comportar, ele fazia um abatimento até onde fosse necessário, ou inclusivamente oferecia-lho se calculasse que o comprador era um leitor de categoria e não um diletante borboleteador. À margem destas peculiaridades, Barceló possuía uma memória de elefante e uma pedantaria que não lhe ficava atrás em porte ou sonoridade, mas se alguém sabia de livros estranhos, era ele. Naquela tarde, depois de fechar a loja, o meu pai sugeriu que fôssemos até ao café Els Quatre Gats, na Rua Montsió, onde Barceló e os seus compinchas mantinham uma tertúlia bibliófila sobre poetas malditos, línguas mortas e obras-primas abandonadas à mercê da traça.
Els Quatre Gats ficava a um pulo de casa e era um dos meus recantos predilectos de toda a Barcelona. Era ali que os meus pais se tinham conhecido no ano de 32, e eu atribuía em parte o meu bilhete de ida para a vida ao encanto daquele velho café. Dragões de pedra custodiavam a fachada encravada num cruzamento de sombras e os seus candeeiros de gás congelavam o tempo e as lembranças. No interior, as pessoas fundiam-se com os ecos de outras épocas. Guarda-livros, sonhadores e aprendizes de génio compartilhavam mesa com a miragem de Pablo Picasso, Isaac Albéniz, Federico Garcia Lorca ou Salvador Dali. Ali, qualquer pobre diabo se podia sentir por uns instantes figura histórica pelo preço de um garoto.
- Ena, Sempere - proclamou Barceló ao ver entrar o meu pai -, o filho pródigo. A que se deve a honra?
- A honra deve-a ao meu filho Daniel, don Gustavo, que acaba de fazer uma descoberta.
- Então venham sentar-se ao pé de nós, que há que celebrar esta efeméride - proclamou Barceló.
- Efeméride? - sussurrei ao meu pai.
- O Barceló só se expressa em esdrúxulas - respondeu o meu pai a meia voz. - Tu não digas nada, que ele ganha coragem.
Os companheiros de tertúlia abriram lugar para nós no seu círculo e Barceló, que gostava de se mostrar liberal em público, insistiu em convidar-nos.
- Que idade tem o moço? - inquiriu Barceló, olhando-me de soslaio.
- Quase onze anos - declarei.
Barceló sorriu-me, velhaco.
- Ou seja, dez. Não ponhas anos a mais, mariola, que a vida lá tos porá. Vários dos companheiros de tertúlia murmuraram o seu assentimento.
Barceló fez sinais a um criado com aspecto iminente de ser declarado monumento histórico para que se aproximasse a fim de tomar nota.
- Um conhaque para o meu amigo Sempere, do bom, e para o rebento um batido de leite, que tem de crescer. Ah, e traga umas lasquinhas de presunto, mas que não sejam como as de antes, hem?, que para borracha já temos a casa Pirelli - rugiu o livreiro.
O criado assentiu e partiu, arrastando os pés e a alma.
- É o que eu digo - comentou o livreiro. - Como é que há-de haver trabalho, se neste país as pessoas não se reformam nem depois de mortas? Veja o Cid. É que não há remédio.
Barceló saboreou o seu cachimbo apagado, com o olhar aquilino a perscrutar com interesse o livro que eu segurava nas mãos. Apesar da sua fachada brincalhona e de tanto palavreado, Barceló era capaz de farejar uma boa presa como um lobo fareja o sangue.
- Ora vejamos - disse Barceló, fingindo desinteresse. - Que me trazem vocês?
Dirigi um olhar ao meu pai. Ele assentiu. Sem mais preâmbulos, estendi o livro a Barceló. O livreiro pegou-lhe com mão conhecedora. Os seus dedos de pianista exploraram rapidamente textura, consistência e estado. Exibindo o seu sorriso florentino, Barceló localizou a página de edição e inspeccionou-a com intensidade policial pelo espaço de um minuto. Os outros observavam-no em silêncio, como se esperassem um milagre ou autorização para respirar de novo.
- Carax. Interessante - murmurou num tom impenetrável.
Estendi de novo a mão para recuperar o livro. Barceló arqueou as sobrancelhas, mas devolveu-mo com um sorriso glacial.
- Onde é que o encontraste, garoto?
- É um segredo - repliquei, sabendo que o meu pai devia estar a sorrir por dentro.
Barceló franziu o cenho e desviou o olhar para o meu pai.
- Amigo Sempere, porque é o senhor e por todo o apreço que lhe tenho e em honra à amizade que nos une como a dois irmãos, fiquemo-nos por quarenta duros(1) e não se fala mais nisso.
- Isso vai ter de o discutir com o meu filho - aduziu o meu pai. - O livro é dele.
Barceló ofereceu-me um sorriso lupino.
- Que dizes, pequenote? Quarenta duros não é mau para uma primeira venda... Sempere, este seu miúdo há-de fazer carreira neste negócio.
Os companheiros de tertúlia riram-se da graça. Barceló olhou para mim satisfeito, puxando da sua carteira de pele. Contou os quarenta duros, que naquela época eram uma verdadeira fortuna, e estendeu-mos. Eu limitei-me a recusar em silêncio. Barceló franziu o cenho.
- Olha que a cobiça é inevitavelmente um pecado mortal, hem? - aduziu. - Vamos, sessenta duros e abres uma caderneta de aforro, que na tua idade há que pensar no futuro.
Recusei de novo. Barceló lançou um olhar irado ao meu pai através do monóculo.
- Não olhe para mim - disse o meu pai. - Eu aqui venho só como acompanhante.
Barceló suspirou e observou-me detidamente.
- Vamos lá a ver, menino; mas o que é que tu queres?
- O que eu quero é saber quem é Julián Carax, e onde posso encontrar outros livros que ele tenha escrito.
Barceló riu dissimuladamente e meteu de novo a carteira ao bolso.
- Ena, um académico. Mas o que dá você a comer a este miúdo, Sempere? - gracejou.
O livreiro inclinou-se para mim com tom confidencial e, por um instante, pareceu-me entrever no seu olhar um certo respeito que lá não estava momentos atrás.
- Vamos fazer um negócio - disse ele. - Amanhã, domingo, à tarde, passas pela biblioteca do Ateneo e perguntas por mim. Tu trazes o teu livro para que eu o possa examinar bem, e eu conto-te o que sei de Julián Carax. Quidpro quo.
*1. O duro equivale a cinco pesetas. A designação é uma reminiscência da antiga moeda espanhola chamada peso duro ou, abreviadamente, duro, que tinha esse valor. (N. T.)
- Quid pro quê?
- Latim, rapaz. Não há línguas mortas, mas sim cérebros amodorrados. Parafraseando, significa que não há duros a quatro pesetas, mas que simpatizei contigo e te vou fazer um favor.
Aquele homem destilava uma oratória capaz de aniquilar moscas em voo, mas suspeitei de que, se queria averiguar alguma coisa sobre Julián Carax, mais me valeria ficar de boas relações com ele. Sorri-lhe beatificamente, mostrando o meu deleite com os latinórios e o seu verbo fácil.
- Não te esqueças, amanhã, no Ateneo - sentenciou o livreiro. - Mas leva o livro, ou não há negócio.
- De acordo.
A conversa desvaneceu-se lentamente no murmúrio dos restantes companheiros de tertúlia, derivando para a discussão de uns documentos encontrados nas caves do Escorial que sugeriam a possibilidade de don Miguel de Cervantes não ter sido senão o pseudónimo literário de uma peluda mulheraça toledana. Barceló, ausente, não participou no debate bizantino e limitou-se a observar-me do seu monóculo com um sorriso velado. Ou talvez olhasse somente para o livro que eu segurava nas mãos.
Naquele domingo, as nuvens tinham resvalado do céu e as ruas jaziam submergidas sob uma lagoa de neblina ardente que fazia suar os termómetros nas paredes. A meio da tarde, rondando já os trinta graus, parti rumo à rua Canuda para o meu encontro com Barceló no Ateneo levando o meu livro debaixo do braço e uma cortina de suor na testa. O Ateneo era - e ainda é - um dos muitos recantos de Barcelona onde o século XIX ainda não recebeu notícia da sua reforma. A escadaria de pedra subia de um pátio palaciano até uma retícula fantasmagórica de galerias e salões de leitura onde invenções como o telefone, a pressa ou o relógio de pulso eram anacronismos futuristas. O porteiro, ou talvez fosse tão-só uma estátua de uniforme, mal pestanejou à minha chegada. Deslizei até ao primeiro andar, bendizendo as pás de uma ventoinha que sussurrava entre leitores adormecidos a derreterem-se como cubos de gelo sobre os seus livros e jornais.
A silhueta de don Gustavo Barceló recortava-se junto das vidraças de uma galeria que dava para o jardim interior do edifício. Apesar da atmosfera quase tropical, o livreiro vestia a sua habitual roupa de cerimónia de figurino e o seu monóculo brilhava na penumbra como uma moeda no fundo de um poço. Junto dele distingui uma figura enfiada num vestido de alpaca branca que se me afigurou como um anjo esculpido em brumas. Ao eco dos meus passos,
Barceló semicerrou os olhos e fez-me um sinal para que me aproximasse.
- Daniel, não é? - perguntou o livreiro. - Trouxeste o livro?
Assenti em duplicado e aceitei a cadeira que Barceló me oferecia junto dele e da sua misteriosa acompanhante. Durante vários minutos, o livreiro limitou-se a sorrir placidamente, alheio à minha presença. Não tardou que abandonasse toda a esperança de que ele me apresentasse a quem quer que fosse a dama de branco. Barceló comportava-se como se ela não estivesse ali e nenhum dos dois pudesse vê-la. Observei-a de soslaio, receoso de encontrar o seu olhar, que continuava perdido em nenhum sítio. O rosto e os braços vestiam uma pele pálida, quase translúcida. Tinha as feições afiladas, desenhadas a traço firme sob uma cabeleira negra que brilhava como pedra humedecida. Calculei-lhe uns vinte anos, no máximo, mas havia qualquer coisa no seu porte e no modo como a alma parecia cair-lhe aos pés, como os ramos de um salgueiro, que me fez pensar que não tinha idade. Parecia presa naquele estado de perpétua juventude reservado aos manequins das montras de aparato. Estava a tentar ler-lhe a pulsação por baixo daquela garganta de cisne quando me apercebi de que Barceló me observava fixamente.
- Então, vais-me dizer onde encontraste esse livro? - perguntou.
- Fá-lo-ia, mas prometi ao meu pai guardar o segredo - aduzi.
- Estou a ver. O Sempere e os seus mistérios - disse Barceló. - Já imagino onde. Tiveste uma bela vaca, garoto. A isso é que eu chamo encontrar uma agulha num campo de açucenas. Vamos lá a ver, deixas-mo ver?
Estendi-lhe o livro, e Barceló tomou-o nas mãos com infinita delicadeza.
- Leste-o, suponho.
- Sim, senhor.
- Invejo-te. Sempre me pareceu que o momento para ler Carax é quando ainda se tem o coração jovem e a mente limpa. Sabias que este foi o último romance que escreveu?
Abanei silenciosamente a cabeça.
- Sabes quantos exemplares como este há no mercado, Daniel?
- Milhares, suponho.
- Nenhum - precisou Barceló. - Excepto o teu. Os restantes foram queimados.
- Queimados?
Barceló limitou-se a oferecer um sorriso hermético, passando folhas do livro e acariciando o papel como se fosse uma seda única no universo. A dama de branco voltou-se lentamente. Os seus lábios esboçaram um sorriso tímido e trémulo. Os seus olhos apalpavam o vazio, pupilas brancas como o mármore. Engoli em seco. Era cega.
- Não conheces a minha sobrinha Clara, pois não? - perguntou Barceló.
Limitei-me a dizer com a cabeça que não, incapaz de despregar os olhos daquela criatura com tez de boneca de porcelana e olhos brancos, os olhos mais tristes que alguma vez vi.
- Na realidade, a especialista em Julián Carax é a Clara, foi por isso que a trouxe - disse Barceló. - Mais ainda, pensando bem, acho que com vossa licença me vou retirar para outra sala a fim de inspeccionar este volume enquanto vocês falam das vossas coisas. Acham bem?
Olhei para ela, atónito. O livreiro, pirata até à sepultura e alheio às minhas reservas, limitou-se a dar-me uma palmadinha nas costas e partiu com o meu livro debaixo do braço.
- Impressionaste-o, sabes? - disse a voz atrás de mim.
Voltei-me para descobrir o sorriso leve da sobrinha do livreiro, tenteando no vazio. Tinha uma voz de cristal, transparente e tão frágil que me pareceu que as suas palavras se quebrariam se a interrompesse a meio da frase.
- O meu tio disse-me que te ofereceu uma boa quantia pelo livro de Carax, mas que tu a recusaste - acrescentou Clara. - Conquistaste o seu respeito.
- Qualquer um o diria - suspirei.
Observei que Clara inclinava a cabeça ao sorrir e que os seus dedos brincavam com um anel que parecia uma grinalda de safiras.
- Que idade tens? - perguntou.
- Quase onze anos - respondi. - E a menina? Clara riu perante a minha insolente inocência.
- Quase o dobro, mas também não é caso para me tratares por você.
- Parece mais nova - assinalei, pressentindo que aquilo podia ser uma boa saída para a minha indiscrição.
- Então vou confiar em ti, porque não sei que aspecto tenho - retorquiu, sem abandonar o seu sorriso a meia haste. - Mas, se te pareço mais nova, tanto mais razão para me tratares por tu.
- Como queira, menina Clara.
Observei detidamente as suas mãos abertas como asas sobre o regaço, a cintura frágil a insinuar-se sob as pregas de alpaca, o desenho dos ombros, a extrema palidez da garganta e o desenho dos lábios, que teria querido acariciar com as pontas dos dedos. Nunca até aí tinha tido a oportunidade de examinar uma mulher tão de perto e com tanta precisão sem receio de me encontrar com o seu olhar.
- Para onde é que estás a olhar? - perguntou Clara, não sem uma certa malícia.
- O seu tio diz que a menina é uma especialista em Julián Carax - improvisei, com a boca seca.
- O meu tio seria capaz de dizer o que quer que fosse para passar um bocado a sós com um livro que o fascine - aduziu Clara. - Mas tu deves perguntar a ti mesmo como alguém que é cego pode ser especialista em livros se não os pode ler.
- Não me tinha ocorrido, para dizer a verdade.
- Para quem tem quase onze anos não mentes mal. Tem cuidado, senão ainda acabas como o meu tio.
Receando meter água pela enésima vez, limitei-me a permanecer sentado em silêncio, contemplando-a aparvalhado.
- Anda, aproxima-te - disse ela.
- Desculpe?
- Aproxima-te sem medo. Não te vou comer.
Levantei-me da cadeira e aproximei-me até onde Clara estava sentada. A sobrinha do livreiro levantou a mão direita, procurando-me às apalpadelas. Sem saber bem como devia proceder, fiz outro tanto e ofereci-lhe a minha mão. Tomou-a na sua mão esquerda, e Clara ofereceu-me em silêncio a sua direita. Compreendi instintivamente o que me pedia, e guiei-a até ao meu rosto. O seu tacto era ao mesmo tempo firme e delicado. Os dedos dela percorreram-me as faces e as maçãs do rosto. Permaneci imóvel, quase sem me atrever a respirar enquanto Clara lia as minhas feições com as mãos. Enquanto o fazia, sorria para si e pude reparar que os seus lábios se semicerravam, como que murmurando em silêncio. Senti o roçar das suas mãos na testa, no cabelo e nas pálpebras. Deteve-se sobre os meus lábios, desenhando-os em silêncio com o indicador e o anular. Os dedos cheiravam a canela. Engoli em seco, notando que a pulsação me disparava à doida e agradecendo à divina providência que não houvesse testemunhas oculares para presenciar o meu rubor, que teria bastado para acender um charuto a um palmo de distância.
Naquela tarde de brumas e chuva miúda, Clara Barceló roubou-me o coração, a respiração e o sono. Ao abrigo da luz enfeitiçada do Ateneo, as suas mãos escreveram na minha pele uma maldição que havia de me perseguir durante anos. Enquanto eu a contemplava arrebatado, a sobrinha do livreiro explicou-me a sua história e como ela tinha tropeçado, também por casualidade, nas páginas de Julián Carax. O acidente tivera lugar numa aldeia da Provença. O seu pai, advogado de prestígio ligado ao gabinete do presidente Companys(1),
*1. Lluís Companys i Jover (1882-1940) proclamou o Estado catalão e foi presidente do Parlamento catalão e da Generalitat, em 1934 e novamente entre 1936 e 1939. Quando as tropas do general Franco ocuparam a Catalunha, foi para França, onde a Gestapo o entregou às autoridades espanholas, para ser condenado à morte e executado. (N. T.)
tinha tido a clarividência de mandar a filha e a mulher para casa da irmã do outro lado da fronteira no início da guerra civil. Não faltou quem opinasse que aquilo era um exagero, que em Barcelona não ia acontecer nada e que em Espanha, berço e pináculo da civilização cristã, a barbárie era coisa dos anarquistas, e estes, de bicicleta e com remendos nas peúgas, não podiam ir muito longe. Os povos nunca se vêem ao espelho, dizia sempre o pai de Clara, e muito menos com uma guerra à frente do nariz. O advogado era um bom leitor da história e sabia que o futuro se lia nas ruas, nas fábricas e nos quartéis com mais clareza do que na imprensa da manhã. Durante meses escreveu-lhes todas as semanas. Ao princípio fazia-o do escritório da rua Diputación, mais tarde sem remetente e, finalmente, às escondidas, de uma cela no castelo de Montjuic onde, como a tantos, ninguém o viu entrar e de onde nunca voltou a sair.
A mãe de Clara lia as cartas em voz alta, dissimulando mal o pranto e saltando os parágrafos que a filha depreendia sem necessidade de os ler. Mais tarde, à meia-noite, Clara convencia a sua prima Claudette a ler-lhe de novo as cartas do pai na íntegra. Era assim que Clara lia, com olhos de empréstimo. Nunca ninguém a viu derramar uma lágrima, nem quando deixaram de receber correspondência do advogado nem quando as notícias da guerra fizeram supor o pior.
- O meu pai sabia desde o princípio o que se ia passar - explicou Clara. - Permaneceu ao lado dos amigos porque pensava que era essa a sua obrigação. O que o matou foi a lealdade a pessoas que, quando lhes chegou a hora, o atraiçoaram. Nunca confies em ninguém, Daniel, especialmente nas pessoas que admiras. São essas que te cravarão as maiores punhaladas.
Clara pronunciava estas palavras com uma dureza que parecia forjada em anos de segredo e sombra. Perdi-me no seu olhar de porcelana, olhos sem lágrimas nem mentiras, ouvindo-a falar de coisas que na altura eu não percebia. Clara descrevia pessoas, cenários e objectos que nunca vira com os seus próprios olhos com um pormenor e uma precisão de mestre da escola flamenga. O seu idioma eram as texturas e os ecos, a cor das vozes, o ritmo dos passos. Explicou-me que, durante os anos do exílio em França, ela e a sua prima Claudette tinham compartilhado um tutor e professor particular, um cinquentão borracho com filáucias de literato que alardeava ser capaz de recitar a Eneida de Virgílio em latim sem sotaque e que tinham apodado de Monsieur Roquefort em virtude do peculiar aroma que a sua pessoa destilava apesar dos banhos romanos de água-de-colónia com que temperava a sua pantagruélica pessoa. Monsieur Roquefort, apesar das suas notáveis peculiaridades (entre as quais avultava uma firme e militante convicção de que o chouriço e em particular as morcelas que Clara e a mãe recebiam dos parentes de Espanha eram remédio santo para a circulação e o mal da gota), era homem de gostos refinados. Desde jovem ia a Paris uma vez por mês para enriquecer o seu acervo cultural com as últimas novidades literárias, visitar museus e, murmurava-se, passar uma noite de folga nos braços de uma ninfeta que tinha baptizado de Madame Bovary apesar de se chamar Hortense e que possuía uma certa propensão para a penugem facial. Nas suas excursões culturais, Monsieur Roquefort costumava frequentar uma banca de livros usados postada defronte de Notre-Dame e fora ali que, por casualidade, tropeçara uma tarde de 1929 num romance de um autor desconhecido, um tal Julián Carax. Sempre aberto às novidades, Monsieur Roquefort adquirira o livro mais que qualquer outra coisa porque o título se lhe revelava sugestivo e ele costumava sempre ler qualquer coisa ligeira no comboio de regresso. O romance tinha por título A Casa Vermelha, e na contracapa aparecia uma imagem esfumada do autor, talvez uma fotografia ou um apontamento a carvão. Segundo o texto biográfico, Julián Carax era um jovem de vinte e sete anos que nascera com o século na cidade de Barcelona e agora vivia em Paris, escrevia em francês e actuava profissionalmente como pianista nocturno numa casa de alterne. O texto da sobrecapa, pomposo e bafiento ao gosto da época, proclamava em prosa prussiana que aquela era a primeira obra de um valor deslumbrante, um talento proteico e insigne, promessa de futuro para as letras europeias sem paralelo no mundo dos vivos. Contudo, a sinopse seguidamente referida dava a entender que a história continha elementos vagamente sinistros e de tom folhetinesco, o que aos olhos de Monsieur Roquefort era sempre um ponto a favor, porque a ele, a seguir aos clássicos, o que mais agradava eram as intrigas de crime e alcova.
A Casa Vermelha relatava a atormentada vida de um misterioso indivíduo que assaltava casas de brinquedos e museus para roubar bonecos e fantoches, aos quais posteriormente arrancava os olhos e que levava para a sua residência, um fantasmagórico invernadouro abandonado nas margens do Sena. Ao irromper uma noite numa mansão sumptuosa da avenue Foix para dizimar a colecção privada de bonecos de um magnate enriquecido através de turvas artimanhas durante a revolução industrial, a sua filha, uma menina da boa sociedade parisiense, muito fina e lida, apaixonava-se pelo ladrão. À medida que o tortuoso romance avançava, enxameado de incidências escabrosas e episódios à meia-luz, a heroína deslindava o mistério que levava o enigmático protagonista, que nunca revelava o seu nome, a cegar os bonecos, descobria um horrível segredo sobre o seu próprio pai e a sua colecção de figuras de porcelana e mergulhava inevitavelmente num final de tragédia gótica sem conta.
Monsieur Roquefort, que era um corredor de fundo nas lides literárias e que se orgulhava de possuir uma ampla colecção de cartas assinadas por todos os editores de Paris recusando os volumes de verso e prosa que ele lhes enviava sem trégua, identificou a editora que tinha publicado o romance como uma casa de vão de escada, conhecida, quando muito, pelos seus volumes de cozinha, costura e outras artes do lar. O dono da banca de livros usados contou-lhe que o romance tinha acabado de sair e que conseguira arrancar um par de resenhas em dois jornais de província, junto das notas necrológicas. Em poucas linhas, os críticos tinham-se desbocado a seu bel-prazer e haviam recomendado ao novel Carax que não deixasse o seu emprego de pianista, porque na literatura era evidente que não ia chamar a atenção. Monsieur Roquefort, a quem o coração e a bolsa amoleciam diante das causas perdidas, decidira investir meio franco e levara o romance do tal Carax juntamente com uma edição requintada do grande mestre, de quem se sentia herdeiro não reconhecido, Gustave Flaubert.
O comboio para Lyon ia repleto até mais não poder ser e Monsieur Roquefort não teve outro remédio senão compartilhar o seu compartimento da segunda classe com um par de religiosas que, mal deixaram a estação de Austerlitz, não pararam de lhe lançar olhares de reprovação, murmurando disfarçadamente. Perante semelhante escrutínio, o mestre optou por resgatar aquele romance da pasta e entrincheirar-se atrás das suas páginas. Qual não foi a sua surpresa quando, centenas de quilómetros mais tarde, descobriu que tinha esquecido as irmãs, o vaivém do comboio e a paisagem que deslizava como um sonho mau dos irmãos Lumière através das janelas do comboio. Leu toda a noite, alheio aos roncos das religiosas e às estações fugazes na névoa. Ao voltar a última página, despontava o alvorecer, Monsieur Roquefort descobriu que tinha lágrimas nos olhos e o coração envenenado de inveja e espanto.
Naquela mesma segunda-feira, Monsieur Roquefort telefonou para a editora de Paris a fim de solicitar informações sobre o tal Julián Carax. Depois de muita insistência, uma telefonista de tom asmático e disposição virulenta respondeu-lhe que o senhor Carax não tinha direcção conhecida, que fosse como fosse já não estava relacionado com a editora em questão e que o romance A Casa Vermelha tinha vendido exactamente setenta e sete exemplares desde o dia da sua publicação, presumivelmente adquiridos na sua maioria pelas meninas de virtude fácil e outros frequentadores habituais do local onde o autor desfiava nocturnos e polacas a troco de umas moedas. O resto dos exemplares tinha sido devolvido e transformado em pasta de papel para imprimir missais, multas e bilhetes de lotaria. A mísera sorte do misterioso autor acabou por conquistar as simpatias de Monsieur Roquefort. Durante os dez anos seguintes, em cada uma das suas visitas a Paris, percorreria alfarrabistas em busca de mais obras de Julián Carax. Nunca encontrara nenhuma. Quase ninguém tinha ouvido falar do autor, e aqueles a quem o nome dizia alguma coisa pouco sabiam. Havia quem afirmasse que tinha publicado mais alguns livros, sempre em editoras de pequena monta e com tiragens irrisórias. Esses livros, se realmente existiam, eram impossíveis de encontrar. Um livreiro afirmou uma vez ter tido nas mãos um exemplar de um romance de Julián Carax chamado O Ladrão de Catedrais, mas já lá ia muito tempo e não estava totalmente seguro. Em finais de 1935 chegaram-lhe notícias de que um novo romance de Julián Carax, A Sombra do Vento, tinha sido publicado por uma pequena editora de Paris. Escreveu para a editora a fim de adquirir vários exemplares. Nunca recebeu resposta. No ano seguinte, na Primavera de 36, o seu antigo amigo da banca de livros da margem do Sena perguntara-lhe se continuava interessado em Carax. Monsieur Roquefort afirmara que nunca se rendia. Era já uma questão de teimosia: se o mundo se empenhava em enterrar Carax no esquecimento, a ele não lhe apetecia ir na onda. O amigo explicara-lhe que semanas atrás tinha circulado um rumor acerca de Carax. Parecia que por fim a sorte mudara. Ia contrair matrimónio com uma dama de boa posição e tinha publicado um novo romance depois de vários anos de silêncio que, pela primeira vez, recebera uma resenha favorável no Le Monde. Mas precisamente quando parecia que os ventos iam mudar de rumo, explicara o livreiro, Carax tinha-se visto implicado num duelo no cemitério de Père Lachaise. As circunstâncias que rodearam este acontecimento não eram claras. Tudo o que se sabia era que o duelo tivera lugar no alvorecer do dia em que Carax tinha de contrair matrimónio, e que o noivo não chegara a comparecer na igreja.
Havia opiniões para todos os gostos: uns faziam-no morto naquele duelo e o seu cadáver abandonado numa sepultura anónima; outros, mais optimistas, preferiam acreditar que Carax, implicado em algum assunto turvo, tivera de abandonar a sua noiva no altar e fugir de Paris para regressar a Barcelona.
A sepultura sem nome nunca foi encontrada e pouco depois circulara outra versão: Julián Carax, perseguido pela desgraça, morrera na sua cidade natal na mais absoluta das misérias. As raparigas do bordel onde tocava piano tinham feito uma colecta para lhe pagarem um enterro decente. Quando chegou o vale, o cadáver já tinha sido enterrado numa vala comum, juntamente com os corpos de mendigos e gente sem nome que aparecia a flutuar no porto ou que morria de frio nas escadas do metro.
Mesmo que fosse só por espírito de contradição, Monsieur Roquefort não esqueceu Carax. Onze anos depois de ter descoberto A Casa Vermelha, decidiu emprestar o romance às suas duas alunas com a esperança de que talvez aquele estranho livro as entusiasmasse a adquirirem o hábito da leitura. Clara e Claudette eram à data duas meninas de quinze anos com as veias a arder de hormonas e com o mundo a piscar-lhes o olho das janelas da sala de estudo. Apesar dos esforços do tutor, até ao momento tinham demonstrado ser imunes ao encanto dos clássicos, às fábulas de Esopo ou ao verso imortal de Dante Alighieri. Monsieur Roquefort, receando que o seu contrato fosse rescindido quando a mãe de Clara descobrisse que os seus labores docentes estavam a formar duas analfabetas com a cabeça cheia de caraminholas, optou por lhes passar o romance de Carax com o pretexto de que era uma história de amor das que faziam chorar baba e ranho, o que era uma meia verdade.
- Nunca me tinha sentido agarrada, seduzida e envolvida por uma história como a que aquele livro narrava - explicou Clara. - Até então para mini as leituras eram uma obrigação, uma espécie de multa a pagar a professores e tutores sem saber muito bem para quê. Não conhecia o prazer de ler, de explorar portas que se nos abrem na alma, de nos abandonarmos à imaginação, à beleza e ao mistério da ficção e da linguagem. Tudo isso para mim nasceu com aquele romance. Já beijaste alguma vez uma rapariga, Daniel?
Engasgou-se-me o cerebelo e a saliva transformou-se-me em serradura.
- Bem, ainda és muito novo. Mas é essa mesma sensação, essa faísca da primeira vez que não se esquece. Este mundo é um mundo de sombras, Daniel, e a magia é um bem escasso. Aquele livro mostrou-me que ler me podia fazer viver mais e mais intensamente, que me podia devolver a vista que tinha perdido. Só por isso, aquele livro que não importava a ninguém mudou a minha vida.
Chegado a este ponto, eu tinha ficado reduzido a um basbaque, à mercê daquela criatura a cujas palavras e a cujos encantos eu não tinha maneira, nem vontade, de resistir. Desejei que nunca deixasse de falar, que a sua voz me envolvesse para sempre e que o seu tio nunca mais regressasse para quebrar aquele instante que me pertencia só a mim.
- Durante anos procurei outros livros de Julián Carax - continuou Clara. - Perguntava em bibliotecas, em livrarias, em escolas... sempre em vão. Ninguém tinha ouvido falar dele ou dos seus livros. Não conseguia perceber. Mais tarde chegou aos ouvidos de Monsieur Roquefort uma estranha história acerca de um indivíduo que se dedicava a percorrer livrarias e bibliotecas em busca de obras de Julián Carax e que, se as encontrasse, as comprava, roubava ou conseguia por qualquer meio; logo a seguir deitava-lhes fogo. Ninguém sabia quem era, nem por que o fazia. Um mistério mais a somar ao próprio enigma de Carax. Com o tempo, a minha mãe decidiu que queria regressar a Espanha. Estava doente, e o seu lar e o seu mundo tinham sido sempre Barcelona. Secretamente, eu albergava a esperança de conseguir averiguar alguma coisa sobre Carax aqui, visto que ao fim e ao cabo Barcelona tinha sido a cidade onde ele nascera e onde tinha desaparecido para sempre no princípio da guerra. A única coisa que encontrei foram becos sem saída, mesmo contando com a ajuda do meu tio. À minha mãe, na sua própria busca, aconteceu outro tanto. A Barcelona que encontrou no seu regresso já não era a que tinha deixado. Deparou com uma cidade de trevas, na qual o meu pai já não vivia, mas que continuava enfeitiçada pela sua recordação e pela sua lembrança em cada recanto. Como se não lhe bastasse aquela desolação, empenhou-se em contratar um indivíduo para averiguar o que tinha sido exactamente feito do meu pai. Após meses de investigações, tudo o que o investigador conseguiu recuperar foi um relógio de pulso partido e o nome do homem que tinha matado o meu pai nos fossos do castelo de Montjuic. Chamava-se Fumero, Javier Fumero. Disseram-nos que este indivíduo, e não era o único, começara como pistoleiro a soldo da FAI e tinha namoriscado com anarquistas, comunistas e fascistas, enganando-os a todos, vendendo os seus serviços ao melhor licitador e que, após a queda de Barcelona, se passara para a facção vencedora e entrara na corporação da polícia. Hoje é um inspector famoso e condecorado. Do meu pai ninguém se lembra. Como podes imaginar, a minha mãe apagou-se nuns meses apenas. Os médicos disseram que era o coração, e eu acho que por uma vez acertaram. Por morte da minha mãe fui viver com o meu tio Gustavo, que era o único parente que restava à minha mãe em Barcelona. Eu adorava-o, porque me trazia sempre livros de presente quando nos vinha visitar. Foi ele a minha única família, e o meu melhor amigo, todos estes anos. Embora o vejas assim, um pouco arrogante, na realidade tem uma alma boa como o pão.
Todas as noites sem falta, mesmo que esteja morto de sono, me lê um bocadinho.
- Se quiser, eu poderia ler para si - assinalei solícito, arrependendo-me imediatamente da minha ousadia, convencido de que para Clara a minha companhia só podia constituir um estorvo, quando não uma piada.
- Obrigada, Daniel - retorquiu ela. - Gostaria imenso.
- Quando quiser.
Assentiu lentamente, procurando-me com o seu sorriso.
- Lamentavelmente, não conservo esse exemplar de A Casa Vermelha - disse ela. - Monsieur Roquefort recusou-se a desfazer-se dele. Poderia tentar contar-te o argumento, mas seria como descrever uma catedral dizendo que é um monte de pedras que terminam em bico.
- Estou certo de que o contaria muito melhor do que isso - murmurei. As mulheres têm um instinto infalível para saber quando um homem se
apaixonou perdidamente por elas, especialmente se o indivíduo em questão tiver falta de juízo e for menor de idade. Eu satisfazia todos os requisitos para que Clara Barceló me mandasse passear, mas preferi acreditar que a sua condição de invisual me garantia uma certa margem de segurança e que o meu crime, a minha total e patética devoção por uma mulher que tinha o dobro da minha idade, da minha inteligência e da minha estatura, permaneceria na sombra. Perguntava a mim mesmo o que poderia ela ver em mim para me oferecer a sua amizade, se não porventura um pálido reflexo dela própria, um eco de solidão e perda. Nos meus sonhos de colegial seríamos sempre dois fugitivos a cavalo na lombada de um livro, dispostos a escaparem-se através de mundos de ficção e sonhos em segunda mão.
Quando Barceló regressou arrastando um sorriso felino tinham passado duas horas que a mim me haviam sabido a dois minutos. O livreiro estendeu-me o livro e piscou-me o olho.
- Olha bem para ele, sacripanta, que depois não quero que me venhas dizer que te fiz alguma troca, hem?
- Eu confio no senhor - assinalei.
- Valente parvoíce. Ao último sujeito que me veio com essa (um turista ianque, convencido de que quem tinha inventado a feijoada era o Hemingway nas festas de San Fermín), vendi-lhe um Fuenteovejuna assinado por Lope de Vega a esferográfica, imagina lá tu, de modo que o melhor é teres os olhos abertos, que neste negócio dos livros não se pode confiar nem no índice.
Anoitecia quando saímos de novo para a Rua Canuda. Uma brisa fresca penteava a cidade, e Barceló tirou o gabão para o colocar sobre os ombros de Clara.
Não vendo oportunidade mais propícia em potência, deixei cair como quem não quer a coisa que, se achassem bem, podia passar no dia seguinte pelo seu domicílio para ler em voz alta alguns capítulos de A Sombra do Vento a Clara. Barceló olhou-me de soslaio e soltou uma gargalhada seca à minha custa.
- Olha, miúdo, que estás a ganhar embalagem - resmungou, embora o seu tom denunciasse o seu beneplácito.
- Bom, se não lhes calha bem, talvez outro dia ou...
- Quem tem a palavra é a Clara - disse o livreiro. - No andar já temos sete gatos e duas catatuas. Não virá mal nenhum de termos uma alimária a mais ou a menos.
- Espero-te então amanhã por volta das sete - concluiu Clara. – Sabes a direcção?
Houve um tempo, em criança, em que, talvez por ter crescido rodeado de livros e livreiros, decidi que queria ser romancista e levar uma vida de melodrama. A origem do meu sonho literário, além daquela maravilhosa simplicidade com que se vê tudo aos cinco anos, era uma prodigiosa peça de artesanato e precisão que estava exposta numa loja de canetas de tinta permanente na Rua de Anselmo Clave, mesmo atrás do Governo Militar. O objecto da minha devoção, uma sumptuosa caneta negra debruada com sabia Deus quantos requintes e rubricas, dominava a montra como se se tratasse de uma das jóias da coroa. O aparo, um prodígio em si mesmo, era um delírio barroco de prata, ouro e mil pregas que reluzia como o farol de Alexandria. Quando o meu pai me levava a passear, eu não me calava enquanto ele não me levava a ver a caneta. O meu pai dizia que aquela devia ser, pelo menos, a caneta de um imperador. Eu, secretamente, estava convencido de que com semelhante maravilha se podia escrever o que quer que fosse, desde romances até enciclopédias, e inclusivamente cartas cujo poder tinha de estar acima de qualquer limitação postal. Na minha ingenuidade, achava que o que eu pudesse escrever com aquela caneta chegaria a todo o lado, inclusivamente àquele sítio incompreensível para onde o meu pai dizia que a minha mãe tinha ido e do qual nunca voltava.
Um dia ocorreu-nos entrar na loja e perguntar pela famigerada engenhoca. Calhou ser aquela que era a rainha das canetas de tinta permanente, uma Montblanc Meisterstiick de série numerada, que tinha pertencido, ou assim assegurava o empregado com solenidade, nada menos que a Victor Hugo. Daquele aparo de ouro, fomos informados, tinha brotado o manuscrito de Os Miseráveis.
- Tal como o Vichy Catalán brota da nascente de Caldas - testemunhou o empregado.
Segundo nos disse, tinha-a adquirido pessoalmente a um coleccionador vindo de Paris e certificara-se da autenticidade da peça.
- E que preço tem este caudal de prodígios, se não é indiscrição? - inquiriu o meu pai.
A simples menção da cifra fez-lhe fugir as cores da cara, mas eu estava já irremediavelmente entusiasmado. O empregado, tomando-nos talvez por catedráticos de física, pôs-se a endossar-nos um aranzel incompreensível sobre as ligas de metais preciosos, esmaltes do Extremo Oriente e uma revolucionária teoria sobre êmbolos e vasos comunicantes, tudo isso parte da ignota ciência teutónica que sustentava o traço glorioso daquela figura de proa da tecnologia gráfica. Em seu favor tenho de dizer que, apesar de devermos ter aspecto de pelintras, o empregado nos deixou manusear a caneta quanto quisemos, a encheu de tinta para nós e me ofereceu um pergaminho para que eu pudesse anotar o meu nome e assim iniciar a minha carreira literária na esteira de Victor Hugo. A seguir, depois de lhe dar com um pano para lhe puxar de novo o brilho, devolveu-a ao seu trono de honra.
- Talvez outro dia - cochichou o meu pai.
Uma vez na rua, disse-me com voz mansa que não nos podíamos permitir o seu preço. A livraria dava à conta para nos sustentar e ter-me num bom colégio. A caneta Montblanc do augusto Victor Hugo teria de esperar. Eu não disse nada, mas o meu pai deve ter lido a decepção no meu rosto.
- Faremos uma coisa - propôs. - Quando tiveres idade para começar a escrever, voltamos lá e compramo-la.
- E se a levarem antes?
- Esta ninguém a leva, podes crer. E, se não, pedimos a don Federico que nos faça uma, que o homem tem umas mãos de ouro.
Don Federico era o relojoeiro do bairro, cliente ocasional da livraria e provavelmente o homem mais educado e cortês de todo o hemisfério ocidental. A sua reputação de habilidoso ia do bairro da Ribera até ao mercado do Ninot. Outra reputação o perseguia, esta de índole menos decorosa e relativa à sua predilecção erótica por efebos musculosos do lúmpen mais viril e a uma certa afeição por se vestir de Estrellka Castro(1).
- E se don Federico não tiver queda para as canetas? - inquiri com divina inocência.
*1. Cançonetista, bailarina e actriz espanhola, conhecida por Tonadillem, nascida em Sevilha em 1912 e falecida em Madrid em 1983, protagonista de uma série de filmes de tema folclórico e patriótico no pós-guerra espanhol. (N. T.)
O meu pai arqueou uma sobrancelha, talvez receando que aqueles rumores maledicentes me tivessem corrompido a inocência.
- Don Federico percebe alguma coisa de tudo quanto é alemão e é capaz de fazer um Volkswagen, se preciso for. Além disso, seria preciso ver se as canetas de tinta permanente já existiam no tempo de Victor Hugo. Há por aí muito espertalhão.
A mim, o cepticismo historicista do meu pai não me impressionava. Eu acreditava na lenda a pés juntos, embora não visse com maus olhos que don Federico me fabricasse um sucedâneo. Lá viria o tempo de me pôr à altura de Victor Hugo. Para meu consolo, e tal como o meu pai tinha predito, a caneta Montblanc permaneceu durante anos naquela montra, que visitávamos religiosamente todos os sábados de manhã.
- Ainda lá está - dizia eu, maravilhado.
- Está à tua espera - dizia o meu pai. - Sabe que um dia será tua e que escreverás uma obra-prima com ela.
- Eu quero escrever uma carta. À mamã. Para não se sentir sozinha. O meu pai observou-me sem pestanejar.
- A tua mãe não está sozinha, Daniel. Está com Deus. E connosco, embora não a possamos ver.
Essa mesma teoria tinha-me sido exposta no colégio pelo padre Vicente, um jesuíta veterano que era um mãos rotas para explicar todos os mistérios do universo - desde o gramofone até à dor de queixais - citando o Evangelho segundo São Mateus, mas na boca do meu pai soava a que nem as pedras acreditavam naquilo.
- E para que é que Deus a quer?
- Não sei. Se algum dia o virmos, perguntar-lho-emos.
Com o tempo abandonei a ideia da carta e supus que, já agora, seria mais prático começar com a obra-prima. À falta da caneta, o meu pai emprestou-me um lápis Staedtler número dois com o qual garatujava num caderno. A minha história, casualmente, girava à volta de uma prodigiosa caneta de tinta permanente de espantosa parecença com a da loja e que, além disso, estava enfeitiçada. Mais concretamente, a caneta estava possuída pela alma torturada de um romancista que tinha morrido de fome e frio, e que fora o seu dono. Ao cair nas mãos de um aprendiz, a caneta empenhava-se em plasmar no papel a última obra que o autor não pudera terminar em vida. Não me lembro de de onde a copiei ou de onde veio, mas a verdade é que nunca voltei a ter uma ideia semelhante. As minhas tentativas de plasmá-la na página, porém, revelaram-se desastrosas. Uma anemia de invenção assolava a minha sintaxe e os meus voos metafóricos recordavam-me os dos anúncios de banhos efervescentes para os pés que costumava ler nas paragens dos eléctricos. Eu culpava o lapis e ansiava pela caneta que havia de me converter num mestre. O meu pai seguia os meus acidentados progressos com um misto de orgulho e preocupação.
- Que tal a tua história, Daniel?
- Não sei. Suponho que se tivesse a caneta tudo seria diferente. Segundo o meu pai, aquele era um raciocínio que só poderia ter ocorrido a um literato em embrião.
- Continua a dar-lhe, que, antes de terminares a tua obra-prima, eu compro-ta.
- Prometes?
Respondia sempre com um sorriso. Para sorte do meu pai, as minhas aspirações literárias não tardaram a desvanecer-se e ficaram relegadas para o terreno da oratória. Para isso contribuiu a descoberta dos brinquedos mecânicos e de todo o tipo de engenhocas de latão que se podiam encontrar no mercado de Los Encantes a preços mais conformes com a nossa economia familiar. A devoção infantil é amante infiel e caprichosa, e daí a pouco eu só tinha olhos para os mecanos e barcos de corda. Não voltei a pedir ao meu pai que me levasse a visitar a caneta de Victor Hugo, e ele não voltou a mencioná-la. Aquele mundo parecia ter-se esfumado para mim, mas durante muito tempo a imagem que tive do meu pai, e que ainda hoje conservo, foi a daquele homem magro enfiado num fato velho que lhe ficava grande e com um chapéu em segunda mão que tinha comprado na Rua Condal por sete pesetas, um homem que não se podia permitir oferecer ao filho uma famigerada caneta que não servia para nada mas que parecia significar tudo. Naquela noite, no meu regresso do Ateneo, encontrei-o à minha espera na sala de jantar, mostrando aquela mesma cara de derrota e anseio.
- Já pensava que te tinhas perdido por aí - disse. - Telefonou o Tomás Aguilar. Disse que tinham combinado encontrar-se. Esqueceste-te?
- Foi o Barceló, que se enrola como uma persiana - disse eu, fazendo um sinal afirmativo. - Já não sabia como me havia de livrar dele.
- É bom homem, mas um pouco chato. Deves ter fome. A Merceditas trouxe-nos um pouco de sopa que tinha feito para a mãe. Aquela rapariga é uma jóia.
Sentámo-nos à mesa a degustar a esmola de Merceditas, a filha da vizinha do terceiro, que segundo todos ia para freira e santa, mas que eu já tinha visto um par de vezes asfixiando de beijos um marinheiro de mãos hábeis que às vezes a acompanhava até à porta do prédio.
- Esta noite estás com um ar meditabundo - disse o meu pai, procurando conversa.
- É capaz de ser a humidade, que dilata o cérebro. É o que diz o Barceló.
- Há-de ser mais qualquer coisa. Estás preocupado com alguma coisa, Daniel?
- Não. Estava só a pensar.
- Em quê?
- Na guerra.
O meu pai assentiu com ar sombrio e sorveu a sua sopa em silêncio. Era um homem reservado e, embora vivesse no passado, quase nunca o mencionava. Eu tinha crescido na convicção de que aquela lenta procissão do pós-guerra, um mundo de quietude, miséria e rancores velados, era tão natural como a água da torneira, e que aquela tristeza muda que sangrava pelas paredes da cidade ferida era o verdadeiro rosto da sua alma. Uma das armadilhas da infância é que não é preciso compreender para sentir. Na altura em que a razão é capaz de compreender o sucedido, as feridas no coração já são demasiado profundas. Naquela noite primitiva de Verão, caminhando por aquele anoitecer escuro e traiçoeiro de Barcelona, não conseguia apagar do pensamento o relato de Clara à volta do desaparecimento do pai. No meu mundo, a morte era uma mão anónima e incompreensível, um vendedor a domicílio que levava mães, mendigos ou vizinhos nonagenários como se se tratasse de uma lotaria do inferno. A ideia de que a morte pudesse caminhar ao meu lado, com rosto humano e coração envenenado de ódio, envergando uniforme ou gabardina, que fizesse bicha no cinema, risse nos bares ou levasse as crianças a passear ao parque da Ciudadela de manhã e à tarde fizesse desaparecer alguém nas masmorras do castelo de Montjuic, ou numa vala comum sem nome nem cerimonial, não me entrava na cabeça. Dando voltas àquilo, ocorreu-me que talvez aquele universo de cartão-pedra que eu dava por bom não fosse mais que uma decoração. Naqueles anos roubados, o fim da infância, como os comboios espanhóis, chegava quando chegava.
Compartilhámos aquela sopa de caldo de sobras com pão, rodeados pelo murmúrio pegajoso dos folhetins radiofónicos que se infiltravam pelas janelas abertas para a praça da igreja.
- Então, que tal tudo hoje com don Gustavo?
- Conheci a sobrinha dele, a Clara.
- A cega? Dizem que é uma beldade.
- Não sei. Eu não reparo.
- É o melhor que tens a fazer.
- Disse-lhes que se calhar passava amanhã lá por casa, ao sair do colégio, para ler qualquer coisa à pobrezinha, que está muito sozinha. Se tu me deres
licença.
O meu pai examinou-me de soslaio, como se perguntasse a si mesmo se era ele que estava a envelhecer prematuramente ou eu a crescer depressa de mais.
Decidi mudar de assunto, e a única coisa que pude encontrar foi o que me consumia as entranhas.
- Na guerra, é verdade que levavam as pessoas para o castelo de Montjuic e nunca mais ninguém as via?
O meu pai esvaziou a colherada de sopa sem se perturbar e olhou-me detidamente, com o sorriso breve a escorregar-lhe dos lábios.
- Quem te disse isso? O Barceló?
- Não. O Tomás Aguilar, que às vezes conta histórias no colégio. O meu pai disse lentamente que sim.
- Em tempo de guerra acontecem coisas que são muito difíceis de explicar, Daniel. Muitas vezes, nem eu sei o que realmente significam. Às vezes é melhor deixar as coisas como estão.
Suspirou e sorveu a sopa sem vontade. Eu observava-o, calado.
- Antes de morrer, a tua mãe fez-me prometer que nunca te falaria da guerra, que não deixaria que recordasses nada do que aconteceu.
Não soube o que responder. O meu pai semicerrou os olhos, como se procurasse alguma coisa no ar. Olhares ou silêncios, ou talvez a minha mãe para que corroborasse as suas palavras.
- Às vezes penso que me enganei ao ligar ao que ela disse. Não sei.
- É a mesma coisa, papá...
- Não, não é a mesma coisa, Daniel. Nada é a mesma coisa depois de uma guerra. E sim, é verdade que houve muita gente que entrou naquele castelo e nunca saiu.
Os nossos olhares encontraram-se brevemente. Daí a pouco, o meu pai levantou-se e refugiou-se no seu quarto, ferido de silêncio. Levantei os pratos e depositei-os na pequena pia de mármore da cozinha para os lavar. Ao voltar ao salão, apaguei a luz e sentei-me no velho cadeirão do meu pai. O sopor da rua adejava nas cortinas. Não tinha sono, nem vontade de o tentar. Aproximei-me da varanda e assomei até ver o relume vaporoso que os candeeiros da Puerta del Angel vertiam. A figura recortava-se num retalho de sombra deitado sobre o empedrado da rua, inerte. O ténue pestanejar âmbar da brasa de um cigarro reflectia-se nos seus olhos. Vestia de escuro, uma mão enfiada no bolso do casaco, a outra a acompanhar o charuto que tecia uma teia de aranha de fumo azul em torno do seu perfil. Observava-me em silêncio, com o rosto velado a contraluz da iluminação da rua. Permaneceu ali pelo espaço de quase um minuto a fumar com abandono, o olhar fixo no meu. Depois, ao ouvirem-se as badaladas da meia-noite na catedral, a figura fez um leve aceno com a cabeça, um cumprimento por detrás do qual depreendi um sorriso que não podia ver. Quis corresponder, mas tinha ficado paralisado. A figura voltou-se e vi-a afastar-se coxeando ligeiramente. Noutra noite qualquer talvez mal tivesse reparado na presença daquele estranho, mas assim que o perdi de vista na neblina senti um suor frio na fronte e faltou-me a respiração. Tinha lido uma descrição idêntica daquela cena em A Sombra do Vento. No relato, o protagonista assomava todas as noites à varanda à meia-noite e descobria que um estranho o observava das sombras, fumando com abandono. O seu rosto ficava sempre velado na escuridão e só os seus olhos se insinuavam na noite, ardendo como brasas. O estranho permanecia ali, com a mão direita enfiada no bolso de um casaco preto, para depois se afastar, coxeando. Na cena que eu acabava de presenciar, aquele estranho poderia ser qualquer noctívago, uma figura sem rosto nem identidade. No romance de Carax, aquele estranho era o diabo.
Um sono espesso de esquecimento e a perspectiva de que naquela tarde voltaria a ver Clara persuadiram-me de que a visão não tinha passado de uma casualidade. Talvez aquele inesperado surto de imaginação febril fosse apenas presságio do prometido e ansiado salto que, segundo todas as vizinhas da escada, ia fazer de mim um homem, se não de proveito, pelo menos de boa presença. Às sete em ponto, vestindo a minha roupa de ver a Deus e destilando vapores de água-de-colónia Varón Dandy que tinha tomado de empréstimo ao meu pai, postei-me na residência de don Gustavo Barceló disposto a estrear-me como leitor a domicílio e peganhento de salão. O livreiro e a sobrinha compartilhavam um andar palaciano na praça Real. Uma criada de uniforme, touca e uma vaga expressão de legionário abriu-me a porta com reverência teatral.
- O menino deve ser o menino Daniel - disse. - Eu sou a Bernarda, às suas ordens.
Bernarda afectava um tom cerimonioso que navegava com sotaque de Cáceres cerrado a sete chaves. Com pompa e circunstância, Bernarda guiou-me através da residência dos Barceló. O andar, um primeiro piso, rodeava o prédio e descrevia um círculo de galerias, salões e corredores que para mim, habituado à modesta residência familiar na Rua Santa Ana, se assemelhava a uma miniatura do Escorial. Estava bem de ver que don Gustavo, além de livros, incunábulos e todo o tipo de arcana bibliografia, coleccionava estátuas, quadros e retábulos, para não falar em abundante fauna e flora. Segui Bernarda através de uma galeria a abarrotar de folhagem e espécimes dos trópicos que constituíam um verdadeiro jardim de inverno. As vidraças da galeria tamisavam uma luz dourada de pó e vapor. O sopro de um piano flutuava no ar, lânguido e arrastando as notas com desamparo. Bernarda abria caminho por entre a vegetação brandindo os seus braços de estivador portuário à guisa de machetes.
Eu seguia-a de perto, estudando o ambiente e reparando na presença de meia dúzia de felinos e um par de catatuas de cor raivosa e tamanho enciclopédico que, segundo me explicou a criada, Barceló tinha baptizado como Ortega e Gasset, respectivamente. Clara esperava-me num salão do outro lado deste bosque que dava para a praça. Enfiada num vaporoso vestido de algodão azul-turquesa, o objecto dos meus turvos anseios tocava piano ao abrigo de um sopro de luz que se coava pela rosácea. Clara tocava mal, fora de tempo e enganando-se em metade das notas, mas a mim a sua serenata soava-me a glória e o vê-la erguida em frente do teclado, com um meio sorriso e a cabeça de lado, inspirava-me uma visão celestial. Ia pigarrear para assinalar a minha presença, mas os eflúvios de Varón Dandy denuciaram-me. Clara parou de súbito o seu concerto e um sorriso envergonhado salpicou-lhe o rosto.
- Por um momento pensei que eras o meu tio - disse. - Ele proibiu-me de tocar Mompou, porque diz que o que eu faço com ele é um sacrilégio.
O único Mompou que eu conhecia era um padre macilento e de propensão flatulenta que nos dava aulas de física e química, e a associação de ideias afigurou-se-me grotesca, quando não improvável.
- Pois eu acho que tocas às mil maravilhas - assinalei.
- Ora, ora. O meu tio, que é um melómano de proveito, até me arranjou um professor de música para me emendar. É um compositor jovem que promete muito. Chama-se Adrián Neri e estudou em Paris e Viena. Tenho de to apresentar. Está a compor uma sinfonia que a orquestra Ciudad de Barcelona vai estrear, porque o tio dele está na junta directiva. É um génio.
- O tio ou o sobrinho?
- Não sejas malicioso, Daniel. Tenho a certeza de que o Adrián te vai cair divinalmente.
Como um piano de cauda de um sétimo andar, pensei.
- Apetece-te lanchar qualquer coisa? - ofereceu Clara. - A Bernarda faz uns biscoitos de canela de comer e chorar por mais.
Lanchámos como a realeza, devorando tudo quanto a criada nos punha ao alcance. Eu ignorava o protocolo destas ocasiões e não sabia muito bem como proceder. Clara, que parecia ler sempre os meus pensamentos, sugeriu-me que quando quisesse podia ler A Sombra do Vento e que, já agora, podia começar pelo princípio. Deste modo, emulando aquelas vozes da Rádio Nacional que recitavam vinhetas de recorte patriótico pouco depois da hora das ave-marias com exemplar prosopopeia, lancei-me a revisitar o texto do romance uma vez mais. A minha voz, um tanto entorpecida ao princípio, foi-se relaxando paulatinamente e depressa me esqueci de que estava a recitar para voltar a mergulhar na narração, descobrindo cadências e rodeios na prosa que fluíam como motivos musicais, enigmas de timbre e pausa em que não reparara na minha primeira leitura.
Novos pormenores, fiapos de imagens e miragens despontaram entre linhas, como a tessitura de um edifício que se contempla de diferentes ângulos. Li pelo espaço de uma hora, atravessando cinco capítulos até que senti a voz seca e meia dúzia de relógios de parede ressoaram em todo o andar recordando-me que já se me estava a fazer tarde. Fechei o livro e observei Clara, que me sorria serenamente.
- Lembra-me um pouco A Casa Vermelha - disse. - Mas esta parece uma história menos sombria.
- Não te fies nisso - disse eu. - É só o princípio. Depois as coisas complicam-se.
- Tens de ir já embora, não é? - perguntou Clara.
- Receio bem que sim. Não é que queira, mas...
- Se não tens mais nada que fazer, podes voltar amanhã - sugeriu Clara. - Mas não quero abusar da...
- Às seis? - propus. - Digo isso porque assim teremos mais tempo. Aquele encontro na sala de música no andar da Praça Real foi o primeiro
de muitos mais ao longo daquele Verão de 1945 e dos anos que se seguiram. Não tardou que as minhas visitas ao andar dos Barceló se tornassem quase diárias, menos às terça e quintas, dias em que Clara tinha aulas de música com o tal Adrián Neri. Passava lá horas e com o tempo aprendi de cor cada sala, cada corredor e cada planta do bosque de don Gustavo. A Sombra do Vento durou-nos um par de semanas, mas não nos custou nada encontrar sucessores com os quais preencher as nossas horas de leitura. Barceló dispunha de uma fabulosa biblioteca e, à falta de mais títulos de Julián Carax, passeámo-nos por dúzias de clássicos menores e de frivolidades maiores. Algumas tardes quase não líamos, e dedicávamo-nos só a conversar ou inclusivamente a ir dar um passeio pela praça ou a caminhar até à catedral. Clara gostava imenso de se sentar a ouvir os murmúrios das pessoas no claustro e adivinhar o eco dos passos nas vielas de pedra. Pedia-me que descrevesse as fachadas, as pessoas, os carros, as lojas, os candeeiros e as montras à nossa passagem. Amiudadas vezes, dava-me o braço e eu guiava-a pela nossa Barcelona particular, uma que só ela e eu podíamos ver. Acabávamos sempre numa leitaria da rua Petritxol, compartilhando um prato de natas ou um batido de chocolate com melindres. Às vezes as pessoas olhavam-nos de esguelha, e não era um nem dois empregados de mesa espertalhões que se referiam a ela como «a tua irmã mais velha», mas eu não fazia caso de piadas e insinuações. Outras vezes, não sei se por malícia ou por prazer mórbido, Clara fazia-me confidências extravagantes que eu não sabia como encaixar. Um dos seus temas favoritos era o de um estranho, um indivíduo que se aproximava dela às vezes quando estava sozinha na rua, e lhe falava com voz entrecortada. O misterioso indivíduo, que nunca mencionava o seu nome, fazia-lhe perguntas sobre don Gustavo, e inclusivamente sobre mim. Numa ocasião tinha-lhe acariciado a garganta. A mim estas histórias martirizavam-me sem piedade. Noutra ocasião, Clara assegurou que tinha implorado ao suposto estranho que lhe deixasse ler o rosto com as mãos. Ele guardara silêncio, o que ela interpretara como um sim. Quando erguera as mãos para a cara do estranho, ele detivera-a de chofre, não sem antes dar oportunidade a Clara de apalpar o que lhe parecera couro.
- Como se tivesse uma máscara de pele - dizia.
- Isso és tu que estás a inventar, Clara.
Clara jurava e trejurava que era verdade, e eu rendia-me, atormentado pela imagem daquele desconhecido de duvidosa existência que se comprazia em acariciar aquele pescoço de cisne, e vá lá saber-se que mais, enquanto a mim só me era permitido desejá-lo. Se tivesse parado a pensar, teria compreendido que a minha devoção por Clara não era mais que uma fonte de sofrimento. Talvez fosse por isso que a adorava mais, por essa estupidez eterna de perseguir aqueles que nos fazem sofrer. Ao longo daquele Verão, eu só temia o dia em que voltassem a começar as aulas e não dispusesse de todo o dia para o passar com Clara.
Bernarda, que ocultava uma natureza de mãe-galinha debaixo do seu semblante severo, acabou por se afeiçoar a mim à força de tanto me ver e, à sua maneira, decidiu adoptar-me.
- Nota-se que este rapaz não tem mãe, o senhor repare bem - costumava dizer a Barceló. - Cá a mim faz-me imensa pena, pobrezinho.
Bernarda tinha chegado a Barcelona pouco depois da guerra, fugindo da pobreza e de um pai que quando estava de bem lhe pregava tareias e a tratava por pateta, feia e porca, e quando estava de mal a encurralava nas pocilgas, bêbado, para a apalpar até ela chorar de terror e ele deixá-la ir, dando-lhe roda de hipócrita e estúpida, como a mãe. Barceló tinha tropeçado nela por casualidade quando Bernarda trabalhava num lugar de hortaliça do mercado do Borne e, seguindo uma intuição, oferecera-lhe emprego ao seu serviço.
- Entre nós há-de ser como no Pigmalião - anunciou. - Você será a minha Eliza e eu o seu professor Higgins.
Bernarda, cujo apetite literário se saciava com a Folha Dominical, olhou-o de esguelha.
- Oiça, eu posso ser pobre e ignorante, mas sou muito honesta.
Barceló não era exactamente George Bernard Shaw, mas, embora não tivesse conseguido dotar a sua pupila da dicção e da graça de don Manuel Azana, os seus esforços haviam acabado por refinar Bernarda e ensinar-lhe maneiras e falares de donzela de província. Tinha vinte e oito anos, mas a mim sempre me pareceu que arrastava mais dez, ainda que fosse só no olhar. Era muito misseira e devota da virgem de Lurdes até ao ponto do delírio. Ia diariamente à basílica de Santa Maria del Mar para ouvir o ofício das oito e confessava-se no mínimo três vezes por semana. Don Gustavo, que se declarava agnóstico (coisa que Bernarda suspeitava ser uma afecção respiratória, como a asma, mas de patrões), opinava que era matematicamente impossível que a criada pecasse o suficiente para manter semelhante ritmo de confissões.
- Pois se tu és a bondade em pessoa - dizia, indignado. - Essa gente que vê pecado em toda a parte é doente da alma e, se queres que te diga, dos intestinos. A condição básica do beato ibérico é a prisão de ventre crónica.
Ao ouvir semelhantes blasfémias, Bernarda persignava-se em quintuplicado. Mais tarde, de noite, dizia uma oração extra pela alma poluta do senhor Barceló, que tinha bom coração, mas a quem, de tanto ler, os miolos tinham apodrecido, como a Sancho Pança. Volta não volta, Bernarda arranjava namorados que lhe batiam, lhe sacavam o pouco dinheiro que tinha numa caderneta de aforro, e mais tarde ou mais cedo a deixavam a ver navios. De cada vez que se dava uma destas crises, Bernarda fechava-se no quarto que tinha na parte de trás do andar a chorar durante dias e jurava que se ia matar com veneno para os ratos ou beber uma garrafa de lixívia. Barceló, depois de esgotar todas as suas artimanhas de persuasão, assustava-se a valer e tinha de mandar chamar o serralheiro de serviço para que abrisse a porta do quarto e o seu médico de família para que administrasse a Bernarda um sedativo de cavalo. Quando a desgraçada acordava dois dias depois, o livreiro comprava-lhe rosas e levava-a ao cinema a ver um filme de Cary Grant, que segundo ela, depois de José António, era o homem mais bonito da história.
- Oiça, e dizem que o Cary Grant tem gostos esquisitos - murmurava ela, empanturrando-se de quadradinhos de chocolate. - Será possível?
- Tolices - sentenciava Barceló. - O bronco e o tapado vivem em estado de permanente inveja.
- Que bem que o senhor fala. Vê-se que andou naquela tal universidade do sorvete.
- Sorbonne - corrigia Barceló, sem acrimónia.
Era muito difícil não gostar de Bernarda. Sem ninguém lho ter pedido, cozinhava e cosia para mim. Arranjava-me a roupa, os sapatos, penteava-me, cortava-me o cabelo, comprava-me vitaminas e pasta de dentes, e chegou até a oferecer-me uma medalhinha com um frasco de vidro que continha água benta trazida de Lourdes de autocarro por uma irmã sua que vivia em San Adrián del Besós. Às vezes, enquanto se empenhava em me examinar o cabelo à procura de lêndeas e outros parasitas, falava-me em voz baixa.
- A menina Clara é a melhor coisinha que há no mundo, e queira Deus que eu caia morta se algum dia me vier à cabeça criticá-la, mas não está certo o menino obcecar-se muito com ela, se é que percebe o que eu quero dizer.
- Não te preocupes, Bernarda, porque somos só amigos.
- Pois é isso mesmo que eu digo.
Para ilustrar os seus argumentos, Bernarda passava então a relatar-me alguma história que tinha ouvido na rádio em redor de um rapaz que se apaixonara indevidamente pela professora e ao qual, por obra de algum sortilégio justiceiro, tinham caído o cabelo e os dentes ao mesmo tempo que a cara e as mãos se lhe recobriam de fungos recriminatórios, uma espécie de lepra do libidinoso.
- A luxúria é uma coisa muito má - concluía Bernarda. - Digo-lho eu.
Don Gustavo, apesar das piadas que dizia à minha custa, via com bons olhos a minha devoção por Clara e a minha entusiástica entrega de acompanhante. Eu atribuía a sua tolerância ao facto de que provavelmente me considerava inofensivo. De vez em quando continuava a deixar-me cair suculentas ofertas para adquirir o romance de Carax. Dizia-me que tinha comentado o assunto com alguns colegas do grémio de alfarrabistas e todos eram unânimes em que um Carax agora podia valer uma fortuna, especialmente em França. Eu dizia sempre que não e ele limitava-se a sorrir, ladino. Tinha-me entregado uma cópia das chaves do andar para eu entrar e sair sem estar dependente de ele ou Bernarda estarem em casa para me abrirem a porta. O meu pai era farinha de outro saco. Com o passar dos anos tinha ultrapassado o seu escrúpulo inato em abordar qualquer tema que o preocupasse a valer. Uma das primeiras consequências deste progresso foi ter começado a mostrar a sua clara desaprovação relativamente à minha relação com Clara.
- Devias andar com amigos da tua idade, como o Tomás Aguilar, ao qual já não ligas nenhuma e é um óptimo rapaz, e não com uma mulher que já tem idade para se casar.
- Que importância há-de ter a idade de cada um, se somos bons amigos?
O que mais me doeu foi a alusão a Tomás, porque era verdade. Havia meses que não ia sair com ele, quando dantes éramos inseparáveis. O meu pai observou-me com reprovação.
- Daniel, tu não sabes nada de mulheres, e essa brinca contigo como um gato com um canário.
- Quem não sabe nada de mulheres és tu - replicava eu, ofendido. - E muito menos da Clara.
As nossas conversas sobre o assunto raramente iam além de um intercâmbio de censuras e olhares. Quando não estava no colégio ou com Clara, dedicava todo o meu tempo a ajudar o meu pai na livraria. A arrumar o armazém das traseiras da loja, a levar encomendas, a fazer recados ou a atender os clientes habituais. O meu pai queixava-se de que eu não punha a cabeça nem o coração no trabalho. Eu, por minha vez, replicava que passava a vida inteira ali e que não percebia que razão de queixa tinha ele. Muitas noites, sem conseguir conciliar o sono, recordava aquela intimidade, aquele pequeno mundo que ambos tínhamos compartilhado nos anos que se seguiram à morte da minha mãe, os anos da caneta de Victor Hugo e das locomotivas de latão. Recordava-os como anos de paz e tristeza, um mundo que se desvanecia, que se tinha vindo a evaporar desde aquele amanhecer em que o meu pai me levara a visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos. Um dia o meu pai descobriu que eu tinha oferecido o livro de Carax a Clara e encolerizou-se.
- Decepcionaste-me, Daniel - disse. - Quando te levei àquele lugar secreto, disse-te que o livro que escolhesses era uma coisa especial, que tu o ias adoptar e que devias responsabilizar-te por ele.
- Nessa altura tinha dez anos, papá, e isso era uma brincadeira de crianças. O meu pai olhou-me como se eu o tivesse apunhalado.
- E agora tens catorze e não só continuas a ser uma criança, como és uma criança que se julga um homem. Vais ter muitos desgostos na vida, Daniel. E não há-de tardar nada.
Naqueles dias eu queria crer que o meu pai se ressentia por eu passar tanto tempo com os Barceló. O livreiro e a sobrinha viviam num mundo de luxos que o meu pai mal podia farejar. Pensava que o aborrecia que a criada de don Gustavo se comportasse comigo como se fosse minha mãe e que o ofendia que eu aceitasse que alguém pudesse desempenhar esse papel. Às vezes, enquanto eu andava pelas traseiras da loja a fazer embrulhos ou a preparar uma remessa, ouvia um ou outro cliente gracejar com o meu pai.
- O que o senhor tem a fazer, Sempere, é procurar uma boa rapariga, que agora o que mais por aí há são viúvas jeitosas e na flor da vida, o senhor bem me entende. Uma boa moça ajeita a vida a uma pessoa, meu amigo, e tira-lhe vinte anos de cima. O que um par de mamas não conseguir...
O meu pai nunca respondia a estas insinuações, mas a mim pareciam-me cada vez mais sensatas. Numa ocasião, num dos nossos jantares que se tinham transformado em combates de silêncios e olhares roubados, eu trouxe o assunto à baila. Julgava que, se fosse eu a sugeri-lo, facilitaria as coisas. O meu pai era um homem bem parecido, de aspecto limpo e cuidado, e constava que mais de uma mulher do bairro o via com bons olhos.
- Para ti foi muito fácil encontrar uma substituta para a tua mãe - replicou ele com amargura. - Mas para mim não existe e não tenho qualquer interesse em procurá-la.
À medida que o tempo passava, as insinuações do meu pai e de Bernarda, e inclusivamente de Barceló, começaram a afectar-me. Havia qualquer coisa dentro de mim que me dizia que me estava a meter num caminho sem saída, que não podia esperar que Clara visse em mim mais do que um rapaz ao qual levava dez anos de vantagem. Sentia que cada dia se me tornava mais difícil estar junto dela, sentir o contacto das suas mãos ou dar-lhe o braço quando passeávamos. Chegou um ponto em que a mera proximidade dela se traduzia quase numa dor física. Este facto não escapava a ninguém, e a Clara menos do que a qualquer outra pessoa.
- Creio que temos de falar, Daniel - dizia ela. - Acho que não me portei bem contigo...
Nunca a deixava acabar as suas frases. Saía da sala com qualquer desculpa e fugia. Eram dias em que julguei estar a confrontar-me com o calendário numa corrida impossível. Receava que o mundo de miragens que tinha construído em redor de Clara se aproximasse do fim. Estava longe de imaginar que os meus problemas mal tinham começado.
MISÉRIA E COMPANHIA. - 1950-1952.
No dia em que fiz dezasseis anos conjurei a pior de todas as ideias funestas que tinha concebido ao longo da minha curta existência.
Por minha conta e risco, tinha decidido organizar um jantar de aniversário e convidar Barceló, Bernarda e Clara. O meu pai opinava que isso era um erro.
- São os meus anos - repliquei cruelmente. - Trabalho para ti todos os demais dias do ano. Ao menos por uma vez, faz-me a vontade.
- Faz o que quiseres.
Os meses precedentes tinham sido os mais confusos da minha estranha amizade com Clara. Já quase nunca lia para ela. Clara evitava sistematicamente qualquer ocasião que implicasse ficar a sós comigo. Sempre que a visitava, o tio estava presente fingindo ler o jornal, ou Bernarda materializava-se azafamando-se à socapa e lançando-me olhares de soslaio. Outras vezes, a companhia vinha na forma de uma ou várias das amigas de Clara, sempre armadas de um recato e de um semblante virginal, patrulhando as proximidades de Clara com um missal na mão e um olhar policial que mostrava sem rebuços que eu estava a mais, que a minha presença envergonhava Clara e o mundo. O pior de todos, porém, era o maestro Neri, cuja infausta sinfonia permanecia inconclusa. Era um fulano bem posto, um rapazola de San Gervasio que, apesar de se armar em Mozart, a mim, ressumando brilhantina, me fazia lembrar mais Carlos Gardel. De génio eu só lhe encontrava o mau feitio. Fazia tagatés a don Gustavo sem dignidade nem decoro e namoriscava com Bernarda na cozinha, fazendo-a rir com os seus ridículos presentes de sacos de amêndoas doces e beliscões no rabo. Eu, em poucas palavras, tinha-lhe um ódio de morte. A antipatia era mútua. Neri aparecia sempre por lá com as suas partituras e o seu porte arrogante, olhando-me como se eu fosse um criadito indesejável e fazendo todo o género de reparos à minha presença.
- Olha, menino, não tens de ir fazer os trabalhos de casa?
- E o senhor, maestro, não tinha uma sinfonia para acabar?
No final, entre todos levavam a melhor sobre mim e eu ia-me embora cabisbaixo e derrotado, desejando ter tido a lábia de don Gustavo para pôr aquele presunçoso no seu lugar.
No dia dos meus anos, o meu pai desceu à padaria da esquina e comprou-me o melhor bolo que encontrou. Pôs a mesa em silêncio, colocando as pratas e o serviço bom. Acendeu velas e preparou um jantar com os pratos que supunha serem os meus favoritos. Não trocámos palavra durante toda a tarde. Ao anoitecer, o meu pai retirou-se para o seu quarto, enfiou o seu melhor fato e regressou com um embrulho envolvido em papel celofane que colocou na mesinha da sala de jantar. O meu presente. Sentou-se à mesa, serviu-se de um copo de vinho branco e esperou. O convite dizia que o jantar era às oito e meia. Às nove e meia estávamos ainda à espera. O meu pai observava-me com tristeza, sem dizer nada. A mim ardia-me a alma de raiva.
- Deves estar contente - disse eu. - Era isto que querias?
- Não.
Bernarda apareceu meia hora mais tarde. Vinha com cara de enterro e um recado da menina Clara. Desejava-me muitas felicidades, mas lamentava não poder comparecer ao meu jantar de aniversário. O senhor Barceló tivera de se ausentar da cidade durante uns dias por questões de negócios e Clara vira-se obrigada a alterar a hora da sua aula de música com o maestro Neri. Ela tinha vindo porque era a sua tarde de folga.
- A Clara não pode vir porque tem uma aula de música? - perguntei, atónito.
Bernarda baixou a vista. Estava quase a chorar quando me estendeu um pequeno embrulho que continha a sua prenda e me beijou ambas as faces.
- Se não gostar, pode-se trocar - disse.
Fiquei a sós com o meu pai, contemplando o serviço bom, as pratas e as velas a consumirem-se em silêncio.
- Lamento, Daniel - disse o meu pai. Assenti, em silêncio, encolhendo os ombros.
- Não vais abrir a tua prenda? - perguntou.
A minha única resposta foi o bater da porta com força ao sair. Desci as escadas com fúria, sentindo os olhos marejados de lágrimas de ira ao sair para a rua desolada, banhada de luz azul e de frio. Tinha o coração envenenado e tremia-me o olhar. Comecei a caminhar sem rumo, ignorando o estranho que me observava imóvel da Puerta del Ángel. Vestia o mesmo fato escuro, com a mão direita enfiada no bolso do casaco.
Os seus olhos desenhavam fiapos de luz ao clarão de um charuto. Coxeando levemente, começou a seguir-me.
Andei a calcorrear as ruas sem rumo durante mais de uma hora até chegar à base do monumento a Cristóvão Colombo. Caminhei até aos molhes e sentei-me nos degraus que mergulhavam nas águas tenebrosas junto ao molhe das gaivotas. Alguém tinha fretado uma excursão nocturna e podiam-se ouvir os risos e a música que vinham a flutuar da procissão de luzes e reflexos na doca do porto. Recordei os dias em que o meu pai e eu fazíamos a travessia nos barcos até à ponta do esporão. Dali podia ver-se a ladeira do cemitério na montanha de Montjuic e a cidade dos mortos, infinita. Às vezes eu acenava com a mão, julgando que a minha mãe continuava ali e nos via passar. O meu pai repetia o meu aceno. Havia já anos que não embarcávamos num barco, embora eu soubesse que ele às vezes ia sozinho.
- Uma boa noite para o remorso, Daniel - disse-me a voz das sombras. - Um cigarro?
Pus-me em pé de um salto, com um frio súbito no corpo. Uma mão oferecia-me um cigarro do meio da escuridão.
- Quem é o senhor?
O estranho adiantou-se até ao umbral da escuridão, deixando o rosto velado. Um sopro de fumo azul brotava do seu cigarro. Reconheci de imediato o fato negro e aquela mão oculta no bolso do casaco. Os olhos brilhavam-lhe como contas de vidro.
- Um amigo - disse. - Ou isso aspiro a ser. Cigarro?
- Não fumo.
- Ainda bem. Lamentavelmente, não tenho mais nada para te oferecer, Daniel.
A sua voz era arenosa, ferida. Arrastava as palavras e soava apagada e distante, como os discos de setenta e oito rotações por minuto que Barceló coleccionava.
- Como sabe o meu nome?
- Sei muitas coisas de ti. O nome é o menos.
- Que mais sabe?
- Podia envergonhar-te, mas não tenho tempo nem vontade. Bastará dizer que sei que tens uma coisa que me interessa. E estou disposto a pagar-te bem por isso.
- Parece-me que o senhor se enganou na pessoa.
- Não; eu nunca me engano na pessoa. Para outras coisas, sim, mas na pessoa nunca. Quanto queres por ele?
- Por quê?
- A Sombra do Vento.
- O que é que o faz pensar que o tenho?
- Isso está fora de discussão, Daniel. É apenas uma questão de preço. Há muito tempo que sei que o tens. As pessoas falam. Eu escuto.
- Então deve ter ouvido mal. Eu não tenho esse livro. E se o tivesse, não o venderia.
- A tua integridade é admirável, sobretudo nesta época de fala-baratos e lambe-botas, mas comigo escusas de fazer comédia. Diz-me quanto. Mil duros? A mim o dinheiro não me preocupa. O preço faze-lo tu.
- Já lhe disse: não está à venda, não o tenho - repliquei. - Enganou-se, bem vê.
O estranho permaneceu em silêncio, imóvel, envolto no fumo azul daquele cigarro que parecia nunca acabar. Notei que não cheirava a tabaco, mas sim a papel queimado. Papel bom, de livro.
- Talvez sejas tu que te estás a enganar agora - sugeriu.
- Está-me a ameaçar?
- Provavelmente.
Engoli em seco. Apesar da minha bravata, aquele indivíduo deixava-me completamente aterrorizado.
- E posso saber por que está o senhor tão interessado?
- Isso é comigo.
- E comigo também, se o senhor me ameaça para eu lhe vender um livro
que não tenho.
- Simpatizo contigo, Daniel. Tens fibra e pareces esperto. Mil duros? Com isso podes comprar muitíssimos livros. Livros bons, e não essa porcaria que guardas tão ciosamente. Anda lá, mil duros e amigos como dantes.
- O senhor e eu não somos amigos.
- Somos, sim, mas tu ainda não deste por isso. Não te culpo, com tantas coisas na cabeça. Por uma mulher assim, qualquer um perde o senso comum.
A referência a Clara gelou-me o sangue.
- Que sabe o senhor da Clara?
- Atrever-me-ia a dizer que sei mais do que tu, e que o melhor para ti seria esquecê-la, embora já saiba que não o farás. Eu também já tive dezasseis
anos...
Uma terrível certeza atingiu-me de súbito. Aquele homem era o estranho que abordava Clara na rua, incógnito. Era real. Clara não tinha mentido. O indivíduo deu um passo em frente. Eu recuei. Nunca tinha sentido tanto medo na vida.
- A Clara não tem o livro, mais vale que o saiba. Não se atreva a tocar-lhe
outra vez.
- A tua amiga não me preocupa, Daniel, e um dia hás-de compartilhar o meu sentir.
O que eu quero é o livro. Prefiro obtê-lo às boas e que ninguém saia prejudicado. Faço-me entender?
À falta de melhores ideias, desatei a mentir como um velhaco.
- Quem o tem é um tal Adrián Neri. Músico. Se calhar o nome diz-lhe qualquer coisa.
- Não me diz coisa nenhuma, e isso é o pior que se pode dizer de um músico. Tens a certeza que não inventaste esse tal Adrián Neri?
- Quem me dera.
- Então, já que parece que são tão bons amigos, se calhar tu podes persuadi-lo a devolver-to. Estas coisas, entre amigos, resolvem-se sem problemas. Ou preferes que o peça à tua amiga Clara?
Abanei a cabeça.
- Eu falarei com o Neri, mas não acredito que mo devolva, ou que ainda o tenha - improvisei. - E para que quer o senhor o livro? Não me diga que é para o ler.
- Não. Sei-o de cor.
- É coleccionador?
- Uma coisa parecida.
- Tem mais livros de Carax?
- Tive-os a certa altura. Julián Carax é a minha especialidade, Daniel. Percorro o mundo à procura dos livros dele.
- E que faz com eles se não os lê?
O estranho emitiu um som surdo, agónico. Demorei uns segundos a perceber que estava a rir.
- A única coisa que se deve fazer com eles, Daniel - replicou.
Extraiu então uma caixa de fósforos do bolso. Pegou num e acendeu-o. A chama iluminou pela primeira vez o seu semblante. Gelou-se-me a alma. Aquela personagem não tinha nariz, nem lábios, nem pálpebras. O seu rosto era apenas uma máscara de pele negra e cicatrizada, devorada pelo fogo. Aquela era a tez morta que tinha roçado por Clara.
- Queimá-los - sussurrou, com a voz e o olhar envenenados de ódio. Um sopro de brisa apagou o fósforo que segurava nos dedos, e o seu rosto
ficou de novo oculto na escuridão.
- Voltaremos a ver-nos, Daniel. Eu nunca esqueço uma cara e creio que a ti, desde hoje, tão-pouco - disse pausadamente. - Para teu bem, e para o da tua amiga Clara, espero que tomes a decisão certa e esclareças este assunto com o tal senhor Neri, que por sinal tem nome de fala-barato. Eu não confiaria nem um bocadinho nele.
Sem mais, o estranho fez meia-volta e partiu na direcção dos molhes, uma silhueta a evaporar-se na escuridão envolta no seu riso de trapo.
Um manto de nuvens faiscando electricidade cavalgava do lado do mar. Teria largado a correr para me refugiar do aguaceiro que se avizinhava, mas as palavras daquele indivíduo começavam a fazer o seu efeito. Tremiam-me as mãos e as ideias. Levantei a vista e vi o temporal derramar-se como manchas de sangue negro entre as nuvens, cegando a lua e estendendo um manto de trevas sobre os telhados e as fachadas da cidade. Tentei apertar o passo, mas a inquietude carcomia-me por dentro e caminhava perseguido pelo aguaceiro com pés e pernas de chumbo. Abriguei-me debaixo do toldo de um quiosque de imprensa, tentando ordenar os pensamentos e decidir como proceder. Um trovão descarregou perto, rugindo como um dragão a enfiar pela embocadura do porto, e senti o solo tremer debaixo dos pés. A pulsação frágil da iluminação eléctrica que desenhava fachadas e janelas desvaneceu-se uns segundos mais tarde. Nos passeios encharcados, os candeeiros pestanejavam, extinguindo-se como velas ao vento. Não se via uma alma nas ruas e o negrume da falta de luz espargiu-se como um hálito fétido que ascendia das condutas que vertiam para os canos de esgoto. A noite fez-se opaca e impenetrável, a chuva uma mortalha de vapor. «Por uma mulher assim, qualquer um perde o senso comum...» Comecei a correr Ramblas acima com um único pensamento na cabeça: Clara.
Bernarda tinha dito que Barceló estava fora da cidade por questões de negócios. Aquele era o seu dia de folga, e tinha por costume ir passar a noite a casa da sua tia Reme e das suas primas de San Adrián del Besós. Isso deixava Clara sozinha no andar cavernoso da Praça Real e aquele indivíduo sem rosto e as suas ameaças soltos na tempestade sabe Deus com que ideias. Enquanto me apressava sob o aguaceiro em direcção à Praça Real, não conseguia arredar do pensamento a ideia de que tinha posto Clara em perigo ao oferecer-lhe o livro de Carax. Cheguei à entrada da praça ensopado até aos ossos. Corri a abrigar-me debaixo dos arcos da Rua Fernando. Pareceu-me ver contornos de sombra a rastejar atrás de mim. Mendigos. A porta da rua estava fechada. Procurei no meu molho de chaves o jogo que Barceló me tinha dado. Trazia comigo as chaves da loja, do andar de Santa Ana e da residência dos Barceló. Um dos vagabundos aproximou-se de mim, murmurando se eu o podia deixar passar a noite no vestíbulo. Fechei a porta antes que ele pudesse acabar a frase.
A escada era um poço de sombra. O hálito dos relâmpagos filtrava-se entre as comissuras do portão e salpicava os contornos dos degraus. Avancei às apalpadelas e encontrei o primeiro degrau com um tropeção. Agarrei-me ao corrimão e subi lentamente as escadas. Daí a pouco, os degraus desfizeram-se numa planície e compreendi que tinha chegado ao patamar do andar principal. Apalpei as paredes de mármore frio, hostil, e encontrei os relevos da porta de carvalho e as aldrabas de alumínio. Procurei o orifício da fechadura e introduzi a chave às apalpadelas. Quando a porta do andar se abriu, uma franja de claridade azul cegou-me momentaneamente e um sopro de ar cálido acariciou-me a pele. O quarto de Bernarda ficava situado na parte posterior do andar, junto da cozinha. Dirigi-me lá primeiro, embora tivesse a certeza de que a criada estava ausente. Bati com os nós dos dedos à porta dela e, como não obtivesse resposta, permiti-me abrir a alcova. Era um quarto simples, com uma cama grande, um armário escuro com espelhos fumados e uma cómoda sobre a qual Bernarda tinha colocado suficientes santos, virgens e estampas para abrir um santuário. Fechei a porta e, ao voltar-me, quase me parou o coração ao vislumbrar uma dezena de olhos azuis e escarlate a avançar do fundo do corredor. Os gatos de Barceló já me conheciam de sobra e toleravam a minha presença. Rodearam-me, miando suavemente, e, ao comprovarem que as minhas roupas ensopadas de chuva não desprendiam o calor desejado, abandonaram-me com indiferença.
O quarto de Clara estava situado no outro extremo do andar, junto da biblioteca e da sala de música. Os passos invisíveis dos gatos seguiam-me através do corredor, expectantes. Na penumbra intermitente da tempestade, o andar de Barceló afigurava-se-me cavernoso e sinistro, diferente do que tinha aprendido a considerar a minha segunda casa. Alcancei a parte dianteira do andar que dava para a praça. O jardim-de-inverno de Barceló abriu-se diante de mim, denso e impenetrável. Internei-me na mata de folhas e ramos. Por um instante assaltou-me a ideia de que, se o estranho sem rosto se tinha infiltrado no edifício, provavelmente era aquele o lugar que escolhera para se ocultar. Para me esperar. Quase me pareceu perceber aquele cheiro a papel queimado que soltava no ar, mas compreendi que aquilo que o meu olfacto tinha detectado era simplesmente tabaco. Assaltou-me um ameaço de pânico. Naquela casa ninguém fumava, e o cachimbo de Barceló, sempre apagado, era puro atrezzo.
Cheguei à sala de música e o esplendor de um relâmpago incendiou as volutas de fumo que flutuavam no ar como grinaldas de vapor. O teclado do piano formava um sorriso interminável junto da galeria. Atravessei a sala de música e cheguei até à porta da biblioteca. Estava fechada. Abri-a e a claridade da praceta que rodeava a biblioteca principal do livreiro ofereceu-me um cálido acolhimento. As paredes forradas de estantes repletas formavam uma oval em cujo centro repousava uma mesa de leitura e duas poltronas de marechal-de-campo. Sabia que Clara guardava o livro de Carax numa vitrina junto do arco da praceta. Dirigi-me sigilosamente até lá. O meu plano, ou ausência dele, tinha sido apropriar-me do livro, tirá-lo de lá, entregá-lo àquele lunático e perdê-lo de vista para sempre. Ninguém daria pela ausência do livro, excepto eu. O livro de Julián Carax esperava-me como sempre, a lombada a assomar ao fundo de uma prateleira. Tomei-o nas mãos e apertei-o contra o peito, como se abraçasse um velho amigo que estivesse a ponto de atraiçoar. Judas, pensei. Dispus-me a sair dali sem dar a conhecer a minha presença a Clara. Levaria o livro e desapareceria para sempre da vida de Clara Barceló. Saí da biblioteca com passo leve. A porta do quarto de Clara adivinhava-se ao fundo do corredor. Imaginei-a deitada na sua cama, adormecida. Imaginei os meus dedos a acariciarem-lhe a garganta, a explorarem um corpo que tinha memorizado de pura ignorância. Voltei-me, disposto a abandonar seis anos de quimeras, mas houve qualquer coisa que me deteve os passos antes de alcançar a sala de música. Uma voz assobiando atrás de mim, atrás da porta. Uma voz profunda, que sussurrava e ria. No quarto de Clara. Avancei lentamente na direcção da porta. Pousei os dedos na maçaneta da porta. Tremiam-me os dedos. Tinha chegado tarde. Engoli em seco e abri a porta.
O corpo nu de Clara jazia sobre os lençóis brancos que brilhavam como seda lavada. As mãos do maestro Neri deslizavam sobre os seus lábios, o pescoço e o peito. Os seus olhos brancos levantavam-se para o tecto, estremecendo sob as investidas com que aquele professor de música a penetrava entre as coxas pálidas e trémulas. As mesmas mãos que me tinham lido o rosto seis anos atrás nas trevas do Ateneo aferravam agora as nádegas do maestro, reluzentes de suor, cravando-lhe as unhas e guiando-o até às suas entranhas com uma ânsia animal, desesperada. Senti que me faltava o ar. Devo ter permanecido ali, paralisado, a observá-los pelo espaço de quase meio minuto, até que o olhar de Neri, incrédulo ao princípio, incendiado de ira a seguir, deu pela minha presença. Ainda a ofegar, atónito, deteve-se. Clara aferrou-o sem compreender, esfregando o corpo contra o dele, lambendo-lhe o pescoço.
- Que foi? - gemeu. - Por que é que paras? Os olhos de Adrián Neri ardiam de fúria.
- Nada - murmurou. - Já volto.
Neri pôs-se de pé e lançou-se na minha direcção como um obus, apertando os punhos. Nem o vi aproximar-se. Não conseguia despregar os olhos de Clara, envolvida em suor, esbaforida, com as costelas a desenharem-se sob a pele e os seios a tremer de desejo. O professor de música agarrou-me pelo pescoço e arrastou-me para fora do quarto. Senti que os meus pés mal roçavam o solo e, por muito que o tentasse, não consegui libertar-me do aperto de Neri, que me levava como um fardo através do jardim-de-inverno.
- A alma vou-ta eu despedaçar a ti, desgraçado - murmurava entre dentes.
Levou-me de rastos até à porta do andar e, uma vez ali, abriu-a e lançou-me com força ao patamar. O livro de Carax tinha-me caído das mãos. Apanhou-o e atirou-mo à cara com raiva.
- Se te volto a ver por aqui, ou sei que te aproximaste da Clara na rua, juro que te mando para o hospital com a tareia que te prego, sem me importar a ponta dum corno a idade que tens - disse friamente. - Entendidos?
Pus-me laboriosamente de pé e descobri que no meio do esforço Neri me tinha rasgado o casaco e o orgulho.
- Como é que entraste?
Não respondi. Neri suspirou, abanando a cabeça.
- Vamos, dá-me as chaves - atirou Neri, contendo a fúria.
- Que chaves?
Da bofetada que me aplicou, caí ao chão. Levantei-me com sangue na boca e um zumbido no ouvido esquerdo que me perfurava a cabeça como o assobio de um eléctrico. Apalpei a cara e senti o corte que me tinha rachado os lábios a arder debaixo dos dedos. Um anel de sinete brilhava no dedo anular do professor de música, ensanguentado.
- As chaves, já te disse.
- Vá à merda - cuspi.
Não vi o murro vir. Tive apenas uma sensação como se um martelo pilão me tivesse arrancado o estômago pela raiz. Dobrei-me em dois como um fantoche quebrado, sem respiração, cambaleando contra a parede. Neri agarrou-me de um puxão pelos cabelos e escarafunchou-me nos bolsos até dar com as chaves. Deslizei para o chão, agarrado ao estômago, a choramingar de agonia, ou de raiva.
- Diga à Clara que...
Fechou-me a porta na cara e eu fiquei na escuridão absoluta. Procurei o livro às apalpadelas no negrume. Encontrei-o e escapuli-me com ele pelas escadas abaixo, apoiando-me às paredes, arquejando. Saí para o exterior cuspindo sangue e respirando pela boca às golfadas. O frio e o vento cingiram-me a roupa ensopada, mordentes. O lanho na cara queimava-me.
- Sente-se bem? - perguntou-me uma voz na sombra.
Era o mendigo ao qual tinha recusado a minha ajuda um pedaço antes. Assenti, evitando o seu olhar, envergonhado. Comecei a andar.
- Espere um bocado, pelo menos até a chuva abrandar - sugeriu o mendigo.
Pegou-me pelo braço e guiou-me até um recanto por baixo dos arcos onde guardava um fardo e um saco com roupa velha e suja.
- Tenho um pouco de vinho. Não é mau. Beba um pouco. Há-de assentar-lhe bem para aquecer. E para desinfectar isso...
Bebi um gole da garrafa que me oferecia. Sabia a gasóleo clarificado com vinagre, mas o seu calor acalmou-me o estômago e os nervos. Umas gotas salpicaram-me a ferida e vi estrelas na noite mais negra da minha vida.
- Bom, hem? - sorriu o mendigo. - Força, chegue-lhe mais um golinho, que isto até levanta um morto.
- Não, obrigado. Para si - murmurei.
O mendigo bebeu um longo gole. Observei-o detidamente. Parecia um guarda-livros cinzento de ministério que não mudasse de fato há quinze anos. Ofereceu-me a mão e eu apertei-lha.
- Fermín Romero de Torres, aposentado. Muito prazer em conhecê-lo.
- Daniel Sempere, doido rematado. O prazer é todo meu.
- Não se rebaixe, que em noites destas tudo parece pior do que é. Aqui onde me vê, sou um optimista nato. Não tenho a menor dúvida de que o regime tem os dias contados. Segundo todos os indícios, os americanos vão-nos invadir quando menos esperarmos e hão-de pôr o Franco num lugar de faz-de-conta em Melilla. E eu recuperarei o meu lugar, a reputação e a honra perdida.
- A que se dedicava o senhor?
- Serviço de informações. Alta espionagem - disse Fermín Romero de Torres. - Só lhe direi que era o homem de Macia(1) em Havana.
Acenei afirmativamente. Outro doido. A noite de Barcelona coleccionava-os às mãos cheias. E aos idiotas como eu, também.
- Oiça, esse lanho tem mau aspecto. Deram-lhe uma tareia de três em pipa, hem?
Levei os dedos à boca. Ainda sangrava.
*1. Francesc Macia (1859-1933), militar de carreira, fundou em 1922 o partido nacionalista radical Estat Català. Exilado durante a ditadura de Primo de Rivera, regressou a Espanha em 1931 e integrou o seu partido na Esquerda Republicana de Cataluna. Depois do triunfo nas eleições de Abril de 1931, proclamou unilateralmente a República Catalã, embora três dias depois aceitasse a sua transformação em Generalitat. Foi o primeiro presidente eleito desta instituição de autogoverno, em 1932. (N. T.)
- Assunto de saias? - inquiriu. - Bem podia tê-lo evitado. As mulheres deste país, digo-lho eu que já corri mundo, são umas beatonas e umas frígidas. É como lhe digo. Eu cá lembro-me de uma mulatinha que deixei em Cuba. Oiça, é outro mundo, hem?, outro mundo. É que as gajas caribenhas se nos arrimam ao corpo com aquele ritmo ilhéu e nos sussurram «ai queridinho, faz-me gozar, faz-me gozar», e um homem como deve ser, com sangue nas veias, não lhe digo nada...
Pareceu-me que Fermín Romero de Torres, ou fosse qual fosse o seu verdadeiro nome, ansiava quase tanto pela conversa anódina como por um banho quente, um prato de lentilhas com chouriço e uma muda de roupa lavada. Dei-lhe trela durante um pedaço, à espera de que me acalmasse a dor. Não me custou grandemente, porque aquele homenzinho só precisava de um ou outro aceno pontual de alguém que fizesse de conta que o ouvia. Estava o mendigo para me relatar os pormenores de um plano secreto para raptar dona Carmen Polo de Franco quando reparei que já chovia com menos força e que a tempestade parecia afastar-se lentamente para norte.
- Faz-se-me tarde - murmurei, pondo-me de pé.
Fermín Romero de Torres fez um sinal afirmativo com uma certa tristeza e ajudou-me a levantar, fazendo menção de me limpar o pó da roupa ensopada.
- Ficará então para outro dia - disse, resignado. - É que eu cá perco pela boca. Começo a falar e... oiça, aquilo do sequestro fica aqui entre nós, hem?
- Não se preocupe. Sou um túmulo. E obrigado pelo vinho.
Afastei-me na direcção das Ramblas. Detive-me no umbral da praça e dirigi a vista para o andar dos Barceló. As janelas permaneciam às escuras. Quis odiar Clara, mas não fui capaz. Odiar de verdade é um talento que se aprende com os anos.
Jurei a mim mesmo que não voltaria a mencionar o seu nome, ou a recordar o tempo que tinha perdido ao seu lado. Por alguma estranha razão, senti-me em paz. A ira que me tinha feito perder as estribeiras evaporara-se. Receei que voltasse, e com sanha redobrada, no dia seguinte. Receei que os ciúmes e a vergonha me consumissem lentamente, uma vez caídas pelo seu próprio peso as peças de tudo quanto tinha vivido naquela noite. Faltavam várias horas para o alvorecer e ainda me faltava fazer uma coisa antes de voltar a casa com a consciência tranquila.
A Rua Arco del Teatro continuava ali, apenas uma brecha de penumbra. Um riacho de água negra tinha-se formado no centro da viela e internava-se em procissão funerária direito ao coração do Raval. Reconheci o velho portão de Madeira e a fachada barroca à qual o meu pai me tinha conduzido num amanhecer seis anos atrás. Subi os degraus e resguardei-me da chuva debaixo da arcada da porta da rua que cheirava a urina e a madeira podre. O Cemitério dos Livros Esquecidos cheirava mais a morto que nunca. Não me lembrava de que a aldraba era um rosto de diabinho. Peguei-lhe pelos cornos e bati três vezes à porta. O eco cavernoso espalhou-se no interior. Daí a pouco voltei a bater, desta vez seis batidas, mais fortes, até me doer o punho. Passaram outros tantos minutos e comecei a pensar que não devia haver já ninguém naquele lugar. Enrodilhei-me contra a porta e tirei o livro de Carax do interior do casaco. Abri-o e li de novo aquela primeira frase que me tinha capturado anos atrás.
Naquele Verão choveu todos os dias e, embora muitos dissessem que era castigo de Deus porque tinham aberto na aldeia um casino junto à igreja, eu sabia que a culpa era minha e só minha porque aprendera a mentir e guardava ainda nos lábios as últimas palavras da minha mãe no seu leito de morte: nunca gostei do homem com quem me casei, mas sim de outro que me disseram que tinha morrido na guerra; procura-o e diz-lhe que morri a pensar nele, porque é ele o teu verdadeiro pai.
Sorri, recordando aquela primeira noite de leitura febril seis anos atrás. Fechei o livro e dispus-me a tocar pela terceira e última vez. Antes que pudesse roçar a aldraba com os dedos, o portão abriu-se o suficiente para insinuar o perfil do guarda trazendo uma candeia de azeite.
- Boa noite - murmurei. - Isaac, não é verdade?
O guarda observou-me sem pestanejar. O brilho da candeia esculpia os seus traços angulosos em âmbar e escarlate, e conferia-lhe uma inequívoca semelhança com o diabinho da aldraba.
- Você é o Sempere filho - murmurou com voz fatigada.
- O senhor tem uma memória excelente.
- E você um sentido de oportunidade que mete nojo. Sabe que horas são? O seu olhar cáustico tinha detectado o livro debaixo do meu casaco. Isaac fez um gesto inquisitivo com a cabeça. Extraí o livro e mostrei-lho.
- Carax - disse ele. - Deve haver quando muito dez pessoas nesta cidade que saibam quem é ou que tenham lido esse livro.
- Pois uma delas anda empenhada em deitar-lhe fogo. Não me ocorre melhor esconderijo do que este.
- Isto é um cemitério, não uma caixa-forte.
- Precisamente. Do que este livro precisa é de que o enterrem onde ninguém o possa encontrar.
Isaac lançou um olhar receoso à viela. Abriu um pouco a porta e fez-me sinais para que me enfiasse lá dentro. O vestíbulo escuro e insondável cheirava a cera queimada e a humidade. Podia-se ouvir um gotejar intermitente na escuridão. Isaac estendeu-me a candeia para que eu a segurasse enquanto ele extraía do sobretudo um molho de chaves que teria sido a inveja de um carcereiro. Conjurando alguma ciência ignota, descobriu a que procurava e introduziu-a numa fechadura protegida por uma carcaça de vidro repleta de relês e rodas dentadas que sugeria uma caixa de música à escala industrial. A uma volta de pulso, o mecanismo estalou como as entranhas de um autómato e vi as alavancas e os fulcros deslizarem num bailado mecânico assombroso até travarem o portão com um emaranhado de barras de aço que mergulhou numa estrela de orifícios nas paredes de pedra.
- Nem o Banco de Espanha - comentei impressionado. - Parece uma coisa tirada de Júlio Verne.
- Kafka - clarificou Isaac, recuperando a candeia e encaminhando-se para as profundezas do edifício. - No dia em que você compreender que o negócio dos livros é uma miséria pegada e decidir aprender a roubar um banco, ou a criar um, que vem a dar no mesmo, venha ter comigo e eu explico-lhe umas coisas sobre fechaduras.
Segui-o através dos corredores que recordava com frescos de anjos e quimeras. Isaac segurava a candeia ao alto, projectando uma bolha intermitente de luz vermelhusca e evanescente. Coxeava vagamente, e o sobretudo de flanela esfiapado que vestia assemelhava-se a um manto fúnebre. Ocorreu-me que aquele indivíduo, a meio caminho entre Caronte e o bibliotecário de Alexandria, se sentiria a seu bel-prazer nas páginas de Julián Carax.
- Sabe alguma coisa de Carax? - perguntei.
Isaac deteve-se no fim de uma galeria e olhou para mim, indiferente.
- Não muito. O que me contaram.
- Quem?
- Alguém que o conheceu bem, ou assim julgava. O coração deu-me um baque.
- Quando foi isso?
- Quando ainda me penteava. Você devia andar de fraldas, e não parece que tenha evoluído muito, para dizer a verdade. Olhe para si: está a tremer - disse.
- É por causa da roupa molhada, e do frio que faz aqui dentro.
- Para a próxima há-de avisar-me e eu acendo o aquecimento central para o receber em braços, seu anjinho. Venha, siga-me. Aqui é o meu escritório, que tem fogão-de-sala e qualquer coisa para lhe pôr por cima enquanto lhe secamos a roupa. E um pouco de mercurocromo e água oxigenada também não lhe calhavam mal, que vem com uma cara que parece saído da esquadra da Via Layetana.
- Não se incomode, palavra.
- Não me incomodo nada. Faço-o por mim, não por si. Passada essa porta, sou eu que dito as regras e aqui os únicos mortos são os livros. Vamos a ver se não me apanha uma pneumonia e tenho de chamar o pessoal da morgue. Depois já nos encarregamos desse livro. Em trinta e oito anos ainda nunca vi nenhum que desatasse a correr.
- Não sabe como lho agradeço...
- Deixe-se de parvoíces. Se o deixei entrar, é por respeito ao seu pai, de contrário deixá-lo-ia na rua. Faça o favor de me seguir. E, se se portar bem, se calhar conto-lhe o que sei do seu amigo Carax.
De esguelha, quando se convenceu de que eu não o podia ver, reparei que se lhe escapava um sorriso de espertalhão consumado. Isaac estava claramente a divertir-se com o seu papel de sinistro cérbero. Eu também sorri para mim mesmo. Já não me restava a menor dúvida sobre a quem pertencia o rosto do diabinho da aldraba.
Isaac pôs-me um par de mantas finas pelos ombros e ofereceu-me uma taça com uma mistela fumegante que cheirava a chocolate quente com ratafia.
- Estava-me o senhor a contar de Carax...
- Não há muito que contar. A primeira pessoa a quem ouvi falar de Carax foi a Toni Cabestany, o editor. Falo-lhe de há vinte anos, quando ainda não existia a editora. Sempre que voltava das suas viagens a Londres, Paris ou Viena, Cabestany aparecia por cá e conversávamos um bocado. Tínhamos ficado ambos viúvos e ele lamentava-se de que agora éramos casados com os livros, eu com os velhos e ele com os de contabilidade. Éramos bons amigos. Numa das suas visitas contou-me que acabava de adquirir por dez réis de mel coado os direitos em castelhano dos romances de um tal Julián Carax, um barcelonês que vivia em Paris. Isso deve ter sido no ano de 28 ou 29. Ao que parece, Carax trabalhava como pianista num bordel de pouca monta em Pigal-le à noite e escrevia de dia num sótão miserável no bairro de Saint Germain. Paris é a única cidade no mundo onde morrer de fome ainda é considerado uma arte. Carax publicara um par de romances em França que se tinham revelado um absoluto fracasso de vendas. Ninguém dava um chavo por ele em Paris, e Cabestany sempre gostou de comprar barato.
- Então, Carax escrevia em castelhano ou em francês?
- Vá-se lá saber. Provavelmente as duas coisas. A mãe era francesa, professora de música, creio eu, e ele tinha vivido em Paris desde os dezanove ou vinte anos de idade. Cabestany dizia que recebiam de Carax os manuscritos em castelhano. Se eram uma tradução ou o original, para ele tanto fazia. O idioma favorito de Cabestany era o da peseta, o resto não lhe fazia qualquer diferença. Cabestany tinha pensado que talvez, com um golpe de sorte, conseguisse colocar uns milhares de exemplares de Carax no mercado espanhol.
- E conseguiu?
Isaac franziu o cenho, escanceando-me um pouco mais da sua beberagem reparadora.
- Parece-me que o que teve mais saída, A Casa Vermelha, vendeu uns noventa.
- Mas continuou a publicar Carax, embora perdesse dinheiro - observei.
- Assim é. Para dizer a verdade, não sei porquê. O Cabestany não era propriamente um romântico. Mas talvez todo o homem tenha os seus segredos... Entre 28 e 36 publicou-lhe oito romances. Onde o Cabestany fazia realmente dinheiro era nos catecismos e numa série de folhetins cor-de-rosa protagonizados por uma heroína da província, Violeta LaFleur, que se vendiam muito bem em quiosques. Quanto aos romances de Carax, suponho eu, editava-os por gosto e para contrariar Darwin.
- Que foi feito do senhor Cabestany? Isaac suspirou, levantando o olhar.
- A idade, que a todos nós cobra a factura. Adoeceu e teve alguns problemas de dinheiro. Em 1936, o filho mais velho tomou a editora a seu cargo, mas era daqueles que não sabem ler nem o tamanho das cuecas. A empresa foi por água abaixo em menos de um ano. Felizmente, o Cabestany não chegou a ver o que os seus herdeiros faziam ao fruto de uma vida de trabalho nem o que a guerra fazia ao país. Levou-o uma embolia na noite de Todos os Santos, com um Cohíba na boca e uma menina de vinte e cinco anos nos joelhos. O filho era feito doutra massa. Arrogante como só os imbecis podem ser. A sua primeira grande ideia foi tentar vender as existências de livros do catálogo da editora, o legado do pai, para os transformar em pasta de papel ou coisa assim. Um amigo, outro franganote com casa em Caldetas e um Bugatti, tinha-o convencido de que as fotonovelas de amor e o Mein Kampfsc iam vender à grande e que seria preciso celulose às mancheias para satisfazer a procura.
- Chegou a fazê-lo?
- Não teve tempo. Pouco depois de tomar as rédeas da editora, apareceu-lhe um indivíduo em casa e fez-lhe uma oferta muito generosa. Queria adquirir toda a existência de romances de Julián Carax que ainda restasse em armazém e oferecia-se para os pagar ao triplo do seu preço de mercado.
- Não me diga mais. Para os queimar - murmurei. Isaac sorriu, surpreendido.
- É verdade. E você que parecia pateta, com tanta pergunta e sem saber nada.
- Quem era esse indivíduo? - perguntei.
- Um tal Aubert ou Coubert, não me lembro bem.
- Laín Coubert?
- O nome diz-lhe alguma coisa?
- É o nome de uma personagem de A Sombra do Vento, o último romance de Carax.
Isaac franziu o cenho.
- Uma personagem de ficção?
- No romance, Laín Coubert é o nome que o diabo emprega.
- Um tanto teatral, se quer que lhe diga. Mas seja quem for, pelo menos tinha sentido de humor - avaliou Isaac.
Eu, que ainda tinha fresca a recordação do meu encontro com aquela personagem, não lhe achava graça nem por sombras, mas reservei a minha opinião para melhor oportunidade.
- Esse indivíduo, Coubert, ou lá como se chame, tinha a cara queimada, desfigurada?
Isaac observou-me com um sorriso a meio caminho entre a troça e a preocupação.
- Não faço a menor ideia. A pessoa que me contou tudo isto não o chegou a ver, e soube-o porque o Cabestany filho o contou à secretária no dia seguinte. De caras queimadas não referiu nada. Quer dizer que não foi buscar isso a nenhum folhetim?
Sacudi a cabeça, retirando importância ao assunto.
- Como acabou o caso? O filho do editor vendeu os livros ao Coubert? - perguntei.
- O pateta alegre do franganote quis-se armar em esperto. Pediu mais dinheiro do que o Coubert lhe oferecia, e este retirou a proposta. Dias mais tarde, o armazém da editora Cabestany em Pueblo Nuevo ardeu até aos alicerces pouco depois da meia-noite. E de graça.
Suspirei.
- Que aconteceu aos livros de Carax? Perderam-se?
- Quase todos. Felizmente, a secretária do Cabestany, ao saber da oferta, teve um pressentimento e, por sua conta e risco, foi ao armazém e levou para casa um exemplar de cada título de Carax. Era ela que mantinha toda a correspondência com Carax e, ao longo dos anos, tinham entabulado uma certa amizade. Chamava-se Nuria, e parece-me que era ela a única pessoa na editora, e provavelmente em toda a Barcelona, que lia os romances de Carax. A Nuria tem um fraquinho pelas causas perdidas. Em pequena recolhia animaizinhos da rua e levava-os para casa. Com o tempo passou a adoptar romancistas malditos, se calhar porque o pai quis sê-lo e nunca o conseguiu.
- Parece-me que o senhor a conhece muito bem. Isaac brandiu o seu sorriso de diabrete.
- Mais do que ela julga. É minha filha.
Assolaram-me o silêncio e a dúvida. Quanto mais ouvia daquela história, mais perdido me sentia.
- Consta-me que Carax voltou a Barcelona em 1936. Há quem diga que morreu cá. Ainda tinha família na cidade? Alguém que pudesse saber dele?
Isaac suspirou.
- Vá-se lá saber. Os pais de Carax tinham-se separado havia uns tempos, creio eu. A mãe fora para a América do Sul, onde se voltou a casar. Com o pai, que eu saiba, não falava desde que partiu para Paris.
- Porquê?
- Sei lá eu! As pessoas complicam a vida, como se ela não fosse suficientemente complicada.
- Sabe se ainda é vivo?
- Espero que sim. Era mais novo do que eu, mas eu já saio pouco e há anos que não leio a necrologia porque os conhecidos caem como tordos e uma pessoa fica acagaçada. Por sinal, Carax era o apelido da mãe. O pai apelidava-se Fortuny. Tinha uma chapelaria na Ronda de San António, e tanto quanto sei não se dava muito com o filho.
- Será possível então que ao voltar a Barcelona Carax se tivesse sentido tentado a ir ver a sua filha Nuria, dado que tinham uma certa amizade, mesmo que não estivesse de boas relações com o pai?
Isaac riu amargamente.
- Provavelmente sou a pessoa menos indicada para o saber. No fim de contas, sou pai dela. Sei que uma vez, em 32 ou 33, a Nuria foi a Paris por causa de assuntos do Cabestany, e que ficou alojada em casa de Julián Carax um par de semanas. Quem me contou isso foi o Cabestany, porque segundo ela esteve num hotel. A minha filha na altura era solteira e a mim cheirava-me que Carax andava um pouco embeiçado por ela. A minha Nuria é das que despedaçam corações simplesmente ao entrar numa loja.
- Quer dizer que eram amantes?
- Você gosta mesmo de folhetins, hem? Olhe, eu na vida privada da Nuria nunca me meti, porque a minha também não é propriamente para emoldurar. Se um dia você tiver uma filha, bênção que eu não desejo a ninguém, porque a lei da vida é que mais tarde ou mais cedo nos despedace o coração, enfim, como ia dizendo, se algum dia tiver uma filha começará sem dar por isso a dividir os homens em duas categorias: os que suspeita que dormem com ela e os que não. Quem disser que não, mente com quantos dentes tem na boca. A mim cheirava-me que Carax era dos primeiros, pelo que para mim vinha a dar no mesmo se era um génio ou um pobre desgraçado, e sempre o tive por um desavergonhado.
- Se calhar o senhor estava enganado.
- Não se ofenda, mas você ainda é muito novo e de mulheres sabe tanto como eu de lagares de azeite.
- Isso também é verdade - convim. - Que aconteceu aos livros que a sua filha levou do armazém?
- Estão aqui.
- Aqui?
- Donde pensa que saiu este livro que você encontrou no dia em que o seu pai o trouxe cá?
- Não percebo.
- Pois é bem simples. Uma noite, dias depois do incêndio do armazém do Cabestany, a minha filha Nuria apareceu aqui. Estava nervosa. Dizia que havia alguém que a tinha andado a seguir e que receava que o tal Coubert quisesse apoderar-se dos livros para os destruir. A Nuria disse-me que vinha esconder os livros de Carax. Enfiou-se na sala grande e escondeu-os no labirinto de estantes, como quem enterra tesouros. Não lhe perguntei onde os tinha posto, nem ela mo disse. Antes de se ir embora disse-me que, mal conseguisse encontrar Carax, viria buscá-los. Pareceu-me que ainda continuava apaixonada por Carax, mas não disse nada. Perguntei-lhe se o tinha visto recentemente, se sabia alguma coisa dele. Disse-me que havia meses que não tinha notícias suas, praticamente desde que ele tinha enviado as suas últimas correcções do manuscrito do seu último livro de Paris. Se me mentiu, não lhe posso dizer. O que sei é que, depois desse dia, a Nuria nunca mais voltou a saber de Carax e aqueles livros ficaram aqui, a criar pó.
- Acha que a sua filha acederia a falar comigo de tudo isto?
- Bem, a minha filha, para tudo o que seja falar, está sempre pronta, mas não sei se poderá dizer-lhe alguma coisa que este seu criado não lhe tenha contado já. Repare que isto se passou já há muito tempo. E a verdade é que não nos damos tão bem como eu quereria. Vemo-nos uma vez por mês. Vamos comer por aqui perto e logo a seguir ela vai-se embora como veio. Sei que há uns anos se casou com um bom rapaz: jornalista e um pouco apatetado, para dizer a verdade, daqueles que andam sempre metidos em sarilhos políticos, mas de bom coração. Casou-se pelo civil, sem convidados. Eu soube um mês mais tarde. Nunca me apresentou o marido. Miquel, chama-se ele.
Ou coisa parecida. Suponho que não está lá muito orgulhosa do pai, e não a culpo. Agora é outra mulher. Olhe que até aprendeu a fazer malha e dizem-me que já não se veste à Simone de Beauvoir. Um destes dias virei a saber que passei a ser avô. Há anos que trabalha em casa como tradutora de francês e italiano. Não sei onde foi ela buscar o talento, para dizer a verdade. Ao pai é claro que não foi. Deixe que lhe escreva a direcção dela, embora não saiba se é grande ideia dizer-lhe que vai da minha parte.
Isaac anotou umas garatujas no canto de um jornal velho e estendeu-me o recorte.
- Agradeço-lho. Nunca se sabe, se calhar ela lembra-se de alguma coisa... Isaac sorriu com uma certa tristeza.
- Em criança lembrava-se de tudo. De tudo. Depois os filhos crescem e a pessoa já não sabe o que pensam nem o que sentem. E é assim que tem de ser, suponho eu. Não conte à Nuria o que eu lhe expliquei, hem? O que aqui dissemos fica entre nós.
- Não se preocupe. Acha que ela ainda pensa em Carax? Isaac suspirou longamente, baixando o olhar.
- Sei lá eu! Não sei se gostou dele a sério. Estas coisas ficam no coração de cada um, e ela agora é uma mulher casada. Eu na sua idade tive uma namoradinha, Teresita Boadas, chamava-se ela, que cosia aventais na têxtil Santamaría da Rua Comercio. Ela tinha dezasseis anos, menos dois do que eu, e foi a primeira mulher por quem me apaixonei. Não faça essa cara, que eu bem sei que vocês, os jovens, julgam que nós, os velhos, nunca nos apaixonámos. O pai da Teresita tinha uma carroça de gelo no mercado do Borne e era mudo de nascença. Não imagina o medo que tive no dia em que lhe pedi autorização para me casar com a filha e ele passou cinco minutos a olhar-me fixamente, sem se descoser e com o picador do gelo na mão. Andava eu a juntar dinheiro há dois anos para comprar uma aliança quando a Teresita adoeceu. Qualquer coisa que tinha apanhado na oficina, disse ela. Em seis meses morria-me de tuberculose. Ainda me recordo de como o mudo gemia no dia em que a enterrámos no cemitério de Pueblo Nuevo.
Isaac sumiu-se num profundo silêncio. Não me atrevi nem a respirar. Daí a pouco ergueu a vista e sorriu-me.
- Estou-lhe a falar de há cinquenta e cinco anos, não é brincadeira nenhuma. Mas, para lhe ser sincero, não passa um dia que não me recorde dela, dos passeios que dávamos até às ruínas da Exposição Universal de 1888 e de como ela se ria de mim quando lhe lia os poemas que escrevia nas traseiras da mercearia do meu tio Leopoldo. Lembro-me até da cara de uma cigana que nos leu a sina na praia do Bogatell e nos disse que ficaríamos toda a vida juntos. À sua maneira, não mentia. Que lhe posso dizer?
Sim, acho que a Nuria ainda se lembra desse homem, embora não o diga. E, para dizer a verdade, isso não sei se alguma vez perdoarei a Carax. Você ainda é muito novo, mas eu sei o que essas coisas doem. Se quer saber a minha opinião, Carax era um ladrão de corações, e levou o da minha filha para a sepultura ou para o inferno. Só lhe peço uma coisa, se por acaso a vir e falar com ela: que me diga como está. Que averigue se é feliz. E se perdoou ao pai.
Pouco antes do alvorecer, levando somente uma candeia de azeite, penetrei uma vez mais no Cemitério dos Livros Esquecidos. Ao fazê-lo, imaginava a filha de Isaac a percorrer aqueles mesmos corredores escuros e intermináveis com determinação idêntica à que me guiava a mim: salvar o livro. A princípio julguei que recordava a rota seguida na minha primeira visita àquele lugar pela mão do meu pai, mas depressa compreendi que os meandros do labirinto arqueavam os corredores em volutas que era impossível recordar. Três vezes tentei seguir uma rota que julgara memorizar, e três vezes o labirinto me devolveu ao mesmo ponto do qual tinha partido. Isaac esperava-me ali, sorridente.
- Pensa voltar algum dia por ele? - perguntou.
- Claro que sim.
- Nesse caso, talvez quisesse montar uma pequena armadilha,
- Armadilha?
- É um pouco duro de entendimento, jovem, não é? Lembre-se do Minotauro.
Levei uns segundos a perceber a sua sugestão. Isaac extraiu um velho canivete do bolso e estendeu-mo.
- Faça uma pequena marca em cada esquina que dobre, um sinal que só você conheça. É madeira velha e tem tantos riscos e estrias que ninguém dará por isso, a menos que saiba do que está à procura...
Segui o seu conselho e penetrei de novo no coração da estrutura. De cada vez que mudava de rumo detinha-me para marcar as estantes com um C e um X do lado do corredor pelo qual me decidia. Vinte minutos mais tarde tinha-me perdido completamente nas entranhas da torre e o lugar onde ia enterrar o romance revelou-se por acaso. À minha direita vislumbrei uma fileira de tomos sobre a desamortização devidos à pena do insigne Jovellanos. Aos meus olhos de adolescente, semelhante camuflagem teria dissuadido até as mentes mais tortuosas. Extraí uns quantos e inspeccionei a segunda fileira oculta atrás daquelas paredes de prosa granítica. Entre nuvenzinhas de pó, várias comédias de Moratín e um flamante Curialy Guelfa alternavam com o Tractatus Theo-logico-politicus de Espinosa. Como toque de graça, optei por confinar o Carax entre um anuário de sentenças judiciais dos tribunais civis de Gerona de 1901 e uma colecção de romances de Juan Valera. Para ganhar espaço, decidi levar o livro de poesia do Século de Ouro que os separava e no seu lugar enfiei A Sombra do Vento. Despedi-me do romance com uma piscadela de olho e voltei a colocar no seu lugar a antologia de Jovellanos, amuralhando a primeira fila. Sem mais cerimonial afastei-me dali, guiando-me pelos sinais que tinha ido deixando no caminho. Enquanto percorria túneis e túneis de livros na penumbra, não pude evitar que uma sensação de tristeza e desalento me embargasse. Não podia evitar pensar que se eu, por puro acaso, tinha descoberto todo um universo num só livro desconhecido no meio da infinidade daquela necrópole, dezenas de milhar mais ficariam inexplorados, esquecidos para sempre. Senti-me rodeado de milhões de páginas abandonadas, de universos e almas sem dono, que se afundavam num oceano de escuridão enquanto o mundo que palpitava fora daqueles muros perdia a memória sem disso se aperceber dia após dia, sentindo-se tanto mais sábio quanto mais esquecia.
Despontavam as primeiras luzes do alvorecer quando regressei ao andar da Rua Santa Ana. Abri silenciosamente a porta e enfiei-me pelo umbral sem acender a luz. Da sala de visitas podia ver-se a casa de jantar ao fim do corredor, com a mesa ainda ataviada de festa. O bolo continuava lá, intacto, e os talheres permaneciam à espera do jantar. A silhueta do meu pai recortava-se imóvel no cadeirão, observando da janela. Estava acordado e ainda vestia o seu fato de sair. Volutas de fumo erguiam-se preguiçosamente de um cigarro que segurava entre o indicador e o anular, como se fosse uma caneta. Havia anos que não via o meu pai fumar.
- Bom dia - murmurou, apagando o cigarro num cinzeiro quase repleto de beatas meio fumadas.
Olhei para ele sem saber o que dizer. O seu olhar ficava velado a contraluz.
- A Clara telefonou várias vezes esta noite, um par de horas depois de saíres - disse. - Parecia muito preocupada. Deixou recado para lhe ligares, fosse às horas que fosse.
- Não penso voltar a ver a Clara, nem a falar com ela - disse eu.
O meu pai limitou-se a acenar afirmativamente em silêncio. Deixei-me cair numa das cadeiras da casa de jantar. O olhar caiu-me ao chão.
- Vais dizer-me onde estiveste?
- Por aí.
- Pregaste-me um susto de morte.
Não havia cólera na sua voz, nem praticamente censura, apenas cansaço.
- Bem sei. E lamento-o - respondi.
- Que foi que fizeste na cara?
- Escorreguei na chuva e caí.
- Essa chuva devia ter uma boa direita. Põe qualquer coisa.
- Não é nada. Nem noto - menti. - Do que preciso é de ir dormir. Não me tenho em pé.
- Pelo menos abre o teu presente antes de ires para a cama - disse o meu pai.
Apontou para o embrulho envolvido em papel celofane que tinha depositado na noite anterior em cima da mesa da casa de jantar. Hesitei um instante. O meu pai assentiu. Peguei no embrulho e sopesei-o. Estendi-o ao meu pai sem abrir.
- O melhor é que o devolvas. Não mereço nenhum presente.
- Os presentes dão-se por prazer de quem oferece, não por mérito de quem recebe - disse o meu pai. - Além disso, já não se pode devolver. Abre-o.
Desfiz o cuidadoso envoltório na penumbra do alvorecer. O embrulho continha uma caixa de madeira trabalhada, reluzente, debruada com rebites dourados. Iluminou-se-me o sorriso antes de a abrir. O som do fecho a abrir-se era requintado, de mecanismo de relojoaria. O interior do estojo era forrado de veludo azul-escuro. A fabulosa caneta Montblanc Meisterstiick de Victor Hugo repousava no centro, deslumbrante. Tomei-a nas mãos e contemplei-a à luz da varanda. Sobre a mola de ouro da tampa estava gravada uma inscrição.
GÉNIO E FIGURA 1953
Daniel Sempere, 1953
Olhei para o meu pai, boquiaberto. Acho que nunca o vi tão feliz como me pareceu naquele instante. Sem uma palavra, levantou-se da sua poltrona e abraçou-me com força. Senti que se me apertava a garganta e, à falta de palavras, mordi a voz.
Génio e Figura - 1953.
Naquele ano, o Outono cobriu Barcelona com um manto de folhas caídas que rodopiava nas ruas como pele de serpente. A lembrança daquela longínqua noite de aniversário tinha-me arrefecido os ânimos, ou talvez fosse a vida que tivesse decidido conceder-me um ano sabático das minhas desgraças de folhetim para que começasse a amadurecer. Surpreendi-me a mim mesmo quase não pensando em Clara Barceló, ou em Julián Carax, ou naquele fantoche sem rosto que cheirava a papel queimado e se declarava uma personagem fugida das páginas de um livro. Ao chegar a Novembro tinha completado um mês de sobriedade, sem me aproximar uma única vez da Praça Real para mendigar um vislumbre de Clara na janela. O mérito, devo confessar, não foi totalmente meu. As coisas na livraria estavam a animar e o meu pai e eu não sabíamos para onde nos virarmos com o trabalho.
- Por este andar vamos ter de arranjar outra pessoa para nos ajudar na pesquisa das encomendas - comentava o meu pai. - Do que precisávamos era de alguém muito especial, meio detective meio poeta, que leve barato e não se assuste com as missões impossíveis.
- Acho que tenho o candidato adequado - disse eu.
Encontrei Fermín Romero de Torres no seu lugar habitual debaixo dos arcos da Rua Fernando. O mendigo estava a recompor a primeira folha da Hoja del Lunes a partir de pedaços recolhidos num cesto de papéis. A ilustração do dia era sobre obras públicas e desenvolvimento.
- Valha-me Deus! Outro pântano? - ouvi-o exclamar. - Esta gente do fascio ainda acaba por nos transformar a todos numa raça de beatas e batráquios.
- Viva - disse eu suavemente. - Lembra-se de mim?
O mendigo ergueu a vista, e o rosto iluminou-se-lhe de repente com um sorriso escancarado.
- Bons olhos o vejam! Que é feito de si, meu amigo? Aceita um golinho de tinto, não é verdade?
- Hoje sou eu que ofereço - disse eu. - Tem apetite?
- Homem, não diria que não a uma boa mariscada, mas estou por tudo. No caminho para a livraria, Fermín Romero de Torres relatou-me toda a
sorte de correrias que tinha vivido naquelas semanas a fim de se evadir às forças de segurança do Estado, e mais particularmente à sua Némesis, um tal inspector Fumero, com o qual aparentemente tinha um longo historial de conflitos.
- Fumero? - perguntei, recordando-me de que era esse o nome do soldado que tinha assassinado o pai de Clara Barceló no castelo de Montjuíc no princípio da guerra.
O homenzinho acenou afirmativamente, pálido e aterrado. Tinha um ar famélico, sujo, e tresandava a meses de vida na rua. O desgraçado não fazia ideia de para onde o conduzia, e percebi no seu olhar um certo susto e uma crescente angústia que se esforçava por mascarar de verborreia incessante. Quando chegámos à loja, o mendigo lançou-me um olhar de preocupação.
- Ande, entre. Esta é a livraria do meu pai, ao qual quero apresentá-lo. O mendigo encolheu-se num molho de cascão e nervos.
- Não, não, de maneira nenhuma, que eu não estou apresentável e este é um estabelecimento de categoria; vou envergonhá-lo...
O meu pai assomou à porta, deu uma rápida olhadela ao mendigo e a seguir olhou-me de soslaio.
- Papá, apresento-te Fermín Romero de Torres.
- Para o servir - disse o mendigo quase a tremer.
O meu pai sorriu-lhe serenamente e estendeu-lhe a mão. O mendigo não se atrevia a apertá-la, envergonhado pelo seu aspecto e pela sujidade que lhe cobria a pele.
- Oiça, é melhor eu ir-me embora e deixá-los aos dois - tartamudeou. O meu pai agarrou-o suavemente pelo braço.
- Nada disso, que o meu filho disse-me que o senhor vem almoçar connosco.
O mendigo olhou-nos, atónito, aterrado.
- Por que é que não vai lá acima a casa e toma um bom banho quente? - disse o meu pai. - Depois, se lhe apetecer, descemos a pé até Can Sole.
Fermín Romero de Torres balbuciou qualquer coisa ininteligível. O meu pai, sem esmorecer o sorriso, guiou-o rumo à porta da rua e teve praticamente de o arrastar pela escada acima até ao andar enquanto eu fechava a loja.
Com muita oratória e tácticas sub-reptícias conseguimos enfiá-lo na banheira e despojá-lo dos seus andrajos. Nu parecia uma fotografia de guerra e tremia como um frango depenado. Tinha marcas profundas nos pulsos e nos tornozelos, e o torso e as costas estavam cobertos de terríveis cicatrizes que só de ver faziam doer. O meu pai e eu trocámos um olhar de horror, mas não dissemos nada.
O mendigo deixou-se levar como uma criança, assustado e a tremer. Enquanto eu procurava roupa lavada no arcaz para o vestir, escutava a voz do meu pai a falar com ele sem parar. Encontrei um fato que o meu pai já nunca vestia, uma camisa velha e alguma roupa interior. Da muda que o mendigo trazia nem os sapatos se podiam aproveitar. Escolhi-lhe uns que o meu pai quase nunca calçava porque lhe ficavam apertados. Embrulhei os andrajos em papel de jornal, incluindo umas cuecas que exibiam a cor e a consistência do presunto serrano, e meti-os no caixote do lixo. Quando voltei à casa de banho, o meu pai estava a fazer a barba a Fermín Romero de Torres na banheira. Pálido e a cheirar a sabonete, parecia um homem vinte anos mais novo. Pelo que vi, tinham-se tornado amigos. Fermín Romero de Torres, talvez sob o efeito dos sais de banho, tinha embalado.
- Tome nota do que lhe digo, senhor Sempere, se a vida não tivesse querido que a minha carreira fosse no mundo da intriga internacional, aquilo de que eu gostava, do coração, eram as humanidades. Em criança senti o apelo do verso e quis ser Sófocles ou Virgílio, porque a mim a tragédia e as línguas mortas deixam-me arrepiado, mas o meu pai, que Deus tenha, era um casmurro de pouca visão e sempre quis que um dos seus filhos entrasse na Guarda Civil, e nenhuma das minhas sete irmãs teria sido admitida na Benemérita, apesar do problema de pêlo facial que sempre caracterizou as mulheres da minha família por parte da mãe. No seu leito de morte, o meu progenitor fez-me jurar que, se não chegasse a envergar o tricórnio, pelo menos me tornaria funcionário público e abandonaria toda e qualquer pretensão de seguir a minha vocação para a lírica. Eu sou dos de antigamente, e a um pai, mesmo que seja burro, há que obedecer, compreende o senhor? Mesmo assim, não julgue que desdenhei o cultivo do intelecto nos meus anos de aventura. Li alguma coisa e poder-lhe-ia recitar de cor fragmentos escolhidos da A Vida É Sonho.
- Vamos, chefe, vista esta roupa, faça favor, que aqui a sua erudição está completamente fora de dúvida - disse eu, acorrendo em auxílio do meu pai. O olhar de Fermín Romero de Torres derretia-se de gratidão. Saiu da banheira, reluzente. O meu pai envolveu-o num toalhão. O mendigo ria-se de puro prazer ao sentir o tecido lavado sobre a pele. Ajudei-o a enfiar a muda, que lhe ficava uns dez tamanhos acima. O meu pai desfez-se do cinto e estendeu-mo para que o pusesse ao mendigo.
- O senhor está uma verdadeira estampa - dizia o meu pai. - Não é verdade, Daniel?
- Qualquer pessoa o tomaria por um artista de cinema.
- Deixe-se disso, que eu já não sou o que era. Perdi a minha musculatura hercúlea na prisão e desde então...
- Pois a mim, o senhor parece-me o Charles Boyer, pela pinta - objectou o meu pai. - O que me lembra que queria propor-lhe uma coisa.
- Eu por si, se preciso for, senhor Sempere, até mato. Basta-lhe dizer-me o nome e eu liquido o tipo sem dor.
- Não será preciso tanto. O que eu lhe queria oferecer é um emprego na livraria. Trata-se de procurar livros raros para os nossos clientes. É quase um lugar de arqueologia literária, para o qual é tão preciso conhecer os clássicos como as técnicas básicas do preço exorbitante. Não lhe posso pagar muito, de momento, mas comerá à nossa mesa e, até lhe arranjarmos uma boa pensão, ficará hospedado aqui em casa, se achar bem.
O mendigo olhou-nos a ambos, mudo.
- Que me diz? - perguntou o meu pai. - Junta-se à equipa? Pareceu-me que ia dizer qualquer coisa, mas nesse preciso momento Fermín Romero de Torres desatou a chorar.
Com o seu primeiro ordenado, Fermín Romero de Torres comprou um chapéu cinéfilo, uns sapatos de chuva e empenhou-se em oferecer-nos ao meu pai e a mim um prato de rabo de touro, que preparavam às segundas-feiras num restaurante a um par de ruas da Praça Monumental. O meu pai tinha-lhe arranjado um quarto numa pensão da rua Joaquín Costa onde, graças à amizade da nossa vizinha Merceditas com a patroa, se pôde obviar a formalidade de preencher a folha de informações sobre o hóspede para a polícia e assim manter Fermín Romero de Torres longe do olfacto do inspector Fumero e dos seus sequazes. Às vezes vinha-me à memória a imagem das tremendas cicatrizes que lhe cobriam o corpo. Sentia-me tentado a perguntar-lhe por elas, receando talvez que o inspector Fumero tivesse alguma coisa que ver com o assunto, mas havia qualquer coisa no olhar do pobre homem que sugeria que era melhor não mencionar o assunto. Ele no-lo contaria um dia, quando lhe parecesse oportuno. Todas as manhãs, às sete em ponto, Fermín esperava-nos à porta da livraria, com um aspecto impecável e sempre com um sorriso nos' lábios, disposto a trabalhar uma jornada de doze ou mais horas sem descanso. Tinha descoberto uma paixão pelo chocolate e pelos brazos de gitano que não ficava atrás do seu entusiasmo pelos grandes da tragédia grega, com o que tinha ganho algum peso. Usava um escanhoado de menino bem, penteava o cabelo para trás com brilhantina e andava a deixar crescer um bigode fininho para estar na moda. Trinta dias depois de emergir daquela banheira, o ex-mendigo estava irreconhecível. Porém, apesar da espectacularidade da sua transformação, onde realmente Fermín Romero de Torres nos tinha deixado boquiabertos era no campo de batalha. Os seus instintos detectivescos, que eu tinha atribuído a efabulações febris, eram de uma precisão cirúrgica. Nas suas mãos, as encomendas mais estranhas solucionavam-se em dias, quando não em horas. Não havia título que não conhecesse, nem argúcia para o conseguir que não lhe ocorresse para o adquirir a bom preço. Introduzia-se nas bibliotecas particulares de duquesas da Avenida Pearson e diletantes do círculo equestre a golpe de lábia, assumindo sempre identidades fictícias, e conseguia que lhe oferecessem os livros ou lhos vendessem por tuta e meia.
A transformação do mendigo em cidadão exemplar parecia milagrosa, uma daquelas histórias que os padres de paróquia se compraziam em contar para ilustrar a infinita misericórdia do Senhor, mas que se afiguravam sempre demasiado perfeitas para serem verdadeiras, como os anúncios de elixir para fazer crescer o cabelo nas paredes dos eléctricos. Três meses e meio depois de Fermín ter começado a trabalhar na livraria, o telefone do andar da Rua Santa Ana acordou-nos às duas da manhã de um domingo. Era a dona da pensão onde Fermín Romero de Torres estava hospedado. Com a voz entrecortada explicou-nos que o senhor Fermín Romero de Torres se tinha fechado no quarto por dentro, estava a gritar como um louco, a dar murros nas paredes e a jurar que, se alguém entrasse, se mataria ali mesmo cortando a garganta com uma garrafa partida.
- Não chame a polícia, por favor. Vamos imediatamente.
Saímos a toda a pressa rumo à Rua Joaquín Costa. Estava uma noite fria, de vento cortante e um céu de breu. Passámos a correr diante da Casa de La Misericórdia e da Casa de La Piedad, fazendo orelhas moucas a olhares e sussurros que sibilavam de portais escuros que cheiravam a esterco e a carvão. Chegámos à esquina da rua Ferlandina. Joaquín Costa caía como uma brecha de colmeias enegrecidas a fundirem-se nas trevas do Raval. O filho mais velho da dona da pensão esperava-nos na rua.
- Chamaram a polícia? - perguntou o meu pai.
- Ainda não - respondeu o filho.
Corremos escada acima. A pensão ficava no segundo andar, e a escada era uma espiral de suj idade que mal se adivinhava sob o brilho ocre de lâmpadas nuas e cansadas que pendiam de um fio descarnado. Dona Encarna, viúva de um cabo da Guarda Civil e dona da pensão, recebeu-nos à porta do andar embrulhada num roupão azul-celeste e ostentando uma cabeça de rolos a condizer.
- Olhe, senhor Sempere, isto é uma casa séria e de categoria. Sobram-me as ofertas e não tenho nada que tolerar estas cenas - disse enquanto nos guiava através de um corredor escuro que cheirava a humidade e a amoníaco.
- Eu compreendo - murmurava o meu pai.
Ouviam-se os gritos de Fermín Romero de Torres a dilacerar as paredes ao fundo do corredor. Das portas entreabertas assomavam várias caras chupadas e assustadas, caras de pensão e sopa aguada.
- Vamos embora, e os outros toca a dormir, porra, que isto não é nenhuma revista do Molino - exclamou dona Encarna com fúria.
Detivemo-nos diante da porta do quarto de Fermín. O meu pai bateu suavemente com os nós dos dedos.
- Fermín? Está aí? Sou o Sempere.
O uivo que atravessou a parede gelou-me o coração. Até dona Encarna perdeu a compostura de governanta e levou as mãos ao coração, oculto sob as pregas abundantes da sua frondosa peitaça.
O meu pai tornou a bater.
- Fermín? Vamos, abra.
Fermín uivou de novo, atirando-se contra as paredes, gritando obscenidades até enrouquecer. O meu pai suspirou.
- A senhora tem a chave deste quarto?
- Claro que sim.
- Dê-ma.
Dona Encarna hesitou. Os outros inquilinos tinham voltado a assomar ao corredor, brancos de terror. Aqueles gritos haviam de se ouvir desde a Capitania.
- E tu, Daniel, vai a correr chamar o doutor Baró, que mora aqui ao lado, no 12 de Riera Alta.
- Oiça, não seria melhor chamar um padre? Porque a mim este parece-me endemoninhado - propôs dona Encarna.
- Não. Com um médico já vai muito bem. Vamos, Daniel. Corre. E a senhora dê-me essa chave, se faz favor.
O doutor Baró era um solteirão insone que passava as noites a ler Zola e a ver estereogramas de raparigas em trajes menores para combater o tédio. Era cliente habitual da loja do meu pai e ele mesmo se qualificava de mata-sanos de segunda categoria, mas tinha mais olho para fazer diagnósticos certos que metade dos médicos com presunções que tinham consultório na Rua Muntaner. Grande parte da sua clientela era composta por rameiras velhas do bairro e desgraçados que mal lhe podiam pagar, mas que ele atendia igualmente.
Eu tinha-o ouvido dizer mais de uma vez que o mundo era um urinol e que estava à espera de que o Barcelona ganhasse o campeonato do caraças de uma vez para morrer em paz. Abriu-me a porta de roupão, a cheirar a vinho e com um cigarro apagado nos lábios.
- Daniel?
- Venho da parte do meu pai. É uma emergência.
Quando regressámos à pensão deparámos com dona Encarna a soluçar de puro susto, o resto dos inquilinos com cor de círio gasto e o meu pai segurando nos braços Fermín Romero de Torres a um canto do quarto. Fermín estava nu, a chorar e a tremer de terror. O quarto estava espatifado, as paredes manchadas daquilo que não saberia dizer se era sangue ou excrementos. O doutor Baró deu uma rápida vista de olhos à situação e, com um gesto, indicou ao meu pai que tinham de deitar Fermín na cama. O filho de dona Encarna, que aspirava a pugilista, ajudou-os. Fermín gemia e revolvia-se como se um verme lhe estivesse a devorar as entranhas.
- Mas o que é que tem este pobre homem, por Deus? O que é que tem? - gemia dona Encarna da porta, sacudindo a cabeça.
O médico tomou-lhe o pulso, inspeccionou-lhe as pupilas com uma lanterna e, sem proferir palavra, pôs-se a preparar-lhe uma injecção de um frasco que trazia na maleta.
- Segurem-no. Isto vai pô-lo a dormir. Daniel, ajuda-nos.
Entre os quatro imobilizámos Fermín, que se sacudiu violentamente quando sentiu a picada da agulha na coxa. Retesaram-se-lhe os músculos como cabos de aço, mas daí a segundos os olhos turvaram-se-lhe e o corpo tombou inerte.
- Oiça, tenha cuidado, que este homem é muito fraquinho e qualquer coisa que lhe dê o mata - disse dona Encarna.
- Não se preocupe. Está só adormecido - disse o médico, examinando as cicatrizes que cobriam o corpo famélico de Fermín.
Vi-o abanar a cabeça em silêncio.
- Fills de puta - murmurou.
- De que são essas cicatrizes? - perguntei. - Cortes?
O doutor Baró disse com a cabeça que não, sem erguer a vista. Procurou um cobertor entre os despojos e cobriu o seu paciente.
- Queimaduras. Este homem foi torturado - explicou. - Essas marcas foram feitas por um ferro de soldar.
Fermín dormiu durante dois dias. Ao acordar não se lembrava de nada, excepto que julgava ter acordado numa cela escura e depois nada mais. Sentiu-se tão envergonhado pela sua conduta que se pôs de joelhos a pedir perdão a dona Encarna. Jurou-lhe que lhe ia pintar a pensão e, como sabia que ela era muito devota, mandar dizer dez missas por ela na igreja de Belén.
- O senhor o que tem a fazer é pôr-se bom, e não me pregar mais sustos destes, que eu já estou velha para isto.
O meu pai pagou os estragos e rogou a dona Encarna que desse outra oportunidade a Fermín. Ela assentiu de bom grado. A maioria dos seus inquilinos eram deserdados e gente sozinha no mundo como ela. Passado o susto, criou ainda mais afecto a Fermín e fez-lhe prometer que tomaria umas pastilhas que o doutor Baró lhe tinha receitado.
- Eu por si, dona Encarna, até engulo um tijolo, se preciso for. Com o tempo todos fizemos de conta que tínhamos esquecido o sucedido, mas nunca mais voltei a levar de brincadeira as histórias do inspector Fumero. Depois daquele episódio, para não o deixar só, levávamos quase todos os domingos Fermín Romero de Torres a lanchar ao café Novedades. Depois subíamos a pé até ao cinema Fémina, na esquina da Diputación com o Paseo de Gracia. Um dos arrumadores era amigo do meu pai e deixava-nos introduzir-mo-nos pela saída de incêndio da plateia a meio No-Do(1), sempre no momento em que o Generalíssimo cortava a fita inaugural de algum novo pântano, o que dava cabo dos nervos a Fermín Romero de Torres.
- Que vergonha - dizia, indignado.
- Não gosta de cinema, Fermín?
- Aqui para nós, esta coisa da sétima arte não me diz nada. No meu entender não passa de pasto para atordoar a plebe embrutecida, pior que o futebol ou os touros. O cinematógrafo nasceu como invenção para entreter as massas analfabetas, e cinquenta anos mais tarde não mudou grande coisa.
Toda aquela reticência mudou radicalmente no dia em que Fermín Romero de Torres descobriu Carole Lombard.
- Que busto, Jesus, Maria e José, que busto! - exclamou em plena projecção, possuído. - Aquilo não são mamas, são duas caravelas!
- Cale-se, seu grosseirão, ou chamo imediatamente o empregado - resmungou uma voz de confessionário situada um par de filas atrás de nós. - Não querem lá ver a pouca-vergonha? Que país de porcalhões!
- O melhor é baixar a voz, Fermín - aconselhei.
Fermín Romero de Torres não me ouvia. Estava perdido no suave vaivém daquele decote milagroso, com o sorriso arroubado e os olhos envenenados de tecnicolor. Mais tarde, caminhando de volta pelo Paseo de Gracia, observei que o nosso detective bibliográfico continuava em transe.
*1. Apócope de Noticiário Documental, organismo cinematográfico documental criado em 1942 como órgão de propaganda do regime franquista, que produzia um semanário semanal de actualidades cuja projecção era obrigatória em todas as salas de cinema antes do filme programado. (N. T.)
- Acho que vamos ter de lhe arranjar uma mulher - disse eu. - Uma mulher há-de alegrar-lhe a vida, vai ver.
Fermín Romero de Torres suspirou, com a mente a rebobinar ainda as delícias da lei da gravidade.
- Fala por experiência própria, Daniel? - perguntou inocentemente. Limitei-me a sorrir, sabendo que o meu pai me observava de soslaio. Depois daquele dia, Fermín Romero de Torres habituou-se a ir todos os
domingos ao cinema. O meu pai preferia ficar em casa a ler, mas Fermín Romero de Torres não perdia uma sessão. Comprava uma data de quadradinhos de chocolate e sentava-se na fila dezassete a devorá-los, esperando a aparição estelar da diva de turno. O argumento não lhe interessava nada, e não parava de falar até uma senhora de consideráveis atributos encher a tela.
- Estive a pensar no que o Daniel disse no outro dia sobre arranjar-me uma mulher - disse Fermín Romero de Torres. - Se calhar tem razão. Na pensão há um novo inquilino, um ex-seminarista sevilhano muito divertido que de vez em quando leva lá umas gajas imponentes. Oiça, como a raça melhorou! Não sei como é que o faz, porque o rapaz é uma fraca figura, mas se calhar atordoa-as a padre-nossos. Como está no quarto ao lado, eu ouço tudo e, a julgar pelo que se ouve, o frade deve ser um artista. O que um uniforme faz! Como é que gosta das mulheres, Daniel?
- Não sei muito de mulheres, para dizer a verdade.
- Saber, ninguém sabe, nem Freud nem elas próprias, mas isto é como a electricidade, não é preciso saber como funciona para apanhar um choque nos dedos. Vamos, conte lá. Como é que lhe agradam? A mim que me desculpem, mas uma mulher tem de ter forma de fêmea e onde uma pessoa se agarre, mas você tem cara de quem gosta delas magras, que é um ponto de vista que eu respeito muitíssimo, hem?, não me interprete mal.
- Para lhe ser sincero, não tenho muita experiência com as mulheres. Melhor, nenhuma.
Fermín Romero de Torres olhou para mim detidamente, intrigado perante esta manifestação de ascetismo.
- Eu julgava que aquilo daquela noite, sabe, a tareia...
- Se tudo doesse como uma bofetada...
Fermín pareceu ler-me o pensamento, e sorriu solidariamente.
- Pois olhe, pode estar descansadinho que o melhor das mulheres é descobri-las. Não há nada que chegue à primeira vez. Uma pessoa não sabe o que é a vida enquanto não despe pela primeira vez uma mulher. Botão a botão, como se estivesse a descascar uma batata-doce bem quentinha numa noite de Inverno. Ahhhhh...
Daí a poucos segundos, Verónica Lake fazia a sua entrada em cena, e Fermín tinha saltado de dimensão. Aproveitando uma cena em que Verónica Lake descansava, Fermín anunciou que ia fazer uma visita ao quiosque de venda de guloseimas do vestíbulo para repor existências. Depois de passar meses de fome, o meu amigo tinha perdido o sentido da medida, mas graças ao seu metabolismo de relâmpago nunca chegava a perder aquele ar esfomeado e esquálido do pós-guerra. Fiquei sozinho, quase sem seguir a acção na tela. Mentiria se dissesse que pensava em Clara. Pensava só no seu corpo, a tremer sob as investidas do professor de música, reluzente de suor e de prazer. Desviou-se-me o olhar da tela e só então reparei no espectador que acabava de entrar. Vi a sua silhueta avançar até ao centro da plateia, seis filas mais adiante, e sentar-se. Os cinemas estavam cheios de gente só, pensei. Como eu.
Procurei concentrar-me em retomar o fio da acção. O galã, um detective cínico mas de bom coração, explicava a uma personagem secundária por que razão as mulheres como Verónica Lake eram a perdição de todo o homem que se preza e, mesmo assim, não havia outro remédio senão amá-las com desespero e perecer atraiçoado pela sua perfídia. Fermín Romero de Torres, que se estava a converter em crítico especializado, denominava este género de histórias «a história da louva-a-deus». Segundo ele não eram senão fantasias misóginas para empregados de escritório com problemas de obstipação e beatas fanadas de aborrecimento que sonhavam entregar-se ao vício e levar uma vida de puta imunda. Sorri ao imaginar os comentários de pé de página que teria feito o meu amigo crítico caso não tivesse comparecido ao seu encontro com o quiosque de guloseimas. Gelou-se-me o sorriso em menos de um segundo. O espectador sentado seis filas à frente tinha-se voltado e estava a olhar-me fixamente. O feixe nebuloso do projector perfurava as trevas da sala, um sopro de luz pestanejante que mal desenhava linhas e manchas de cor. Reconheci instantaneamente o homem sem rosto, Coubert. O seu olhar sem pálpebras brilhava, afiado. O seu sorriso sem lábios derretia-se na escuridão. Senti dedos frios a cerrarem-se sobre o meu coração. Duzentos violinos deflagraram na tela, houve tiros, gritos e a cena fundiu-se a negro. Por um instante, a plateia mergulhou na escuridão absoluta e só consegui ouvir as pulsações que me martelavam nas têmporas. Lentamente, iluminou-se uma nova cena na tela, desfazendo a escuridão da sala em vapores de penumbra azul e púrpura. O homem sem rosto tinha desaparecido. Voltei-me e consegui ver uma silhueta a afastar-se pela coxia da plateia e cruzar-se com Fermín Romero de Torres, que voltava do seu safari gastronómico. Enfiou pela fila dentro e retomou a sua cadeira. Estendeu-me um quadradinho de pralina e observou-me com uma certa reserva. - Está branco como uma nádega de freira, Daniel. Sente-se bem? Um hálito invisível varria a plateia.
- Está aqui um cheiro esquisito - comentou Fermín Romero de Torres. - Parece de peido rançoso, de notário ou procurador.
- Não. Cheira a papel queimado.
- Tome lá um Sugus de limão, ande, que cura tudo.
- Não me apetece.
- Então guarde-o, nunca se sabe quando um Sugus nos vai livrar dum apuro.
Guardei o caramelo no bolso do casaco e naveguei pelo resto do filme sem prestar atenção nem a Verónica Lake nem às vítimas dos seus fatais encantos. Fermín Romero de Torres tinha-se perdido no espectáculo e nos seus quadradinhos de chocolate. Quando as luzes se acenderam no final da sessão, pareceu-me ter acordado de um sonho mau e senti-me tentado a tomar a presença daquele indivíduo na plateia por uma ilusão, um truque da memória, mas o seu breve olhar na escuridão tinha bastado para me fazer chegar a mensagem. Não se esquecera de mim, nem do nosso pacto.
O primeiro efeito da chegada de Fermín depressa se fez notar: descobri que tinha muito mais tempo livre. Quando Fermín não andava à caça e captura de algum volume exótico para satisfazer as encomendas dos clientes, ocupava-se em organizar as existências da loja, idealizar estratagemas de promoção comercial no bairro, puxar o lustro à tabuleta e às vidraças ou deixar as lombadas dos livros reluzentes com um pano e álcool. Dada a conjuntura, optei por investir o meu tempo de lazer em dois aspectos que tinha deixado descurados nos últimos tempos: continuar a dar voltas ao enigma de Carax e, sobretudo, tentar passar mais tempo com o meu amigo Tomás Aguilar, do qual tinha saudades.
Tomás era um rapaz meditabundo e reservado que as pessoas temiam pelo seu aspecto de ferrabrás, sério e ameaçador. Tinha uma constituição de lutador, ombros de gladiador e um olhar duro e penetrante. Tínhamo-nos conhecido muitos anos antes numa briga durante a minha primeira semana nos jesuítas de Caspe. O pai fora buscá-lo a seguir às aulas, acompanhado de uma menina presumida que se revelou ser a irmã de Tomás. Ocorreu-me fazer uma piada imbecil sobre ela e, antes que pudesse pestanejar, Tomás Aguilar caiu sobre mim com um dilúvio de murros que me deixou várias semanas combalido. Tomás fazia dois de mim em tamanho, força e ferocidade. Naquele duelo de pátio, rodeado por um coro de miúdos sedentos de combate sangrento, perdi um dente e ganhei um novo sentido das proporções.
Não quis dizer ao meu pai nem aos padres quem me tinha sovado daquela maneira, nem explicar-lhes que o pai do meu adversário contemplava a tareia comprazido com o espectáculo e fazendo coro com os restantes alunos.
- Foi por minha culpa - disse, dando por encerrado o assunto.
Três semanas mais tarde, Tomás aproximou-se de mim durante o recreio. Eu, morto de medo, fiquei paralisado. Este vem acabar comigo, pensei. Começou a balbuciar, e daí a pouco percebi que a única coisa que queria era desculpar-se pela sova, porque sabia que tinha sido um combate desigual e injusto.
- Quem tem de te pedir desculpa sou eu por me ter metido com a tua irmã - disse eu. - Tê-lo-ia feito no outro dia, mas partiste-me a boca antes que eu pudesse falar.
Tomás baixou o olhar, envergonhado. Observei aquele gigante tímido e silencioso que vagueava pelas aulas e corredores do colégio como uma alma sem dono. Todos os restantes rapazes - comigo à frente - tinham medo dele, e ninguém lhe falava ou ousava cruzar o olhar com ele. Com os olhos baixos, quase a tremer, perguntou-me se queria ser seu amigo. Disse-lhe que sim. Ofereceu-me a mão e eu apertei-a. O seu aperto doía, mas aguentei-me. Nessa mesma tarde, Tomás convidou-me para lanchar em sua casa e mostrou-me a colecção de estranhas engenhocas feitas a partir de peças de sucata que guardava no seu quarto.
- Fui eu que as fiz - explicou-me, orgulhoso.
Eu era incapaz de perceber o que eram ou pretendiam ser, mas calei-me e assenti com admiração. Parecia-me que aquele matulão solitário tinha construído os seus próprios amigos de latão e que eu era o primeiro a quem os apresentara. Era o seu segredo. Eu falei-lhe da minha mãe e do muito que sentia a sua falta. Quando se me embargou a voz, Tomás abraçou-me em silêncio. Tínhamos dez anos. Desde aquele dia, Tomás Aguilar converteu-se no meu melhor - e eu no seu único - amigo.
Apesar da sua aparência beligerante, Tomás era uma alma pacífica e bondosa a quem o aspecto evitava toda e qualquer confrontação. Gaguejava bastante, especialmente quando falava com alguma pessoa que não fosse a mãe, a irmã ou eu, o que era muitíssimo raro. Fascinavam-no as invenções extravagantes e os engenhos mecânicos, e não tardei a descobrir que levava a cabo autópsias em todo o tipo de engenhocas, desde gramofones até máquinas de somar, a fim de averiguar os seus segredos. Quando não estava comigo ou a trabalhar para o pai, Tomás passava a maior parte do tempo encerrado no quarto, a construir artefactos incompreensíveis. Tudo o que lhe sobrava de inteligência faltava-lhe em sentido prático. O seu interesse pelo mundo real concentrava-se em aspectos como o sincronismo dos semáforos da Gran Via, os mistérios das fontes luminosas de Montjuíc ou os autómatos do parque de atracções do Tibidabo.
Tomás trabalhava todas as tardes no escritório do pai e às vezes, ao sair, passava pela livraria. O meu pai interessava-se sempre pelos seus inventos e obsequiava-o com manuais de mecânica ou biografias de engenheiros como Eiffel e Edison, que Tomás idolatrava. Com os anos, Tomás criara um grande afecto pelo meu pai e andava havia uma eternidade a procurar inventar para ele um sistema automático para arquivar fichas bibliográficas a partir das peças de uma velha ventoinha. Havia quatro anos que estava a trabalhar no projecto, mas o meu pai continuava a mostrar entusiasmo pelo progresso do mesmo para que Tomás não perdesse o entusiasmo. A princípio preocupava-me como iria Fermín reagir perante o meu amigo.
- O menino deve ser o amigo inventor do Daniel. Tenho muitíssimo prazer em cumprimentá-lo. Fermín Romero de Torres, assessor bibliográfico da livraria Sempere, às suas ordens.
- Tomás Aguilar - gaguejou o meu amigo, sorrindo e apertando a mão a Fermín.
- Cuidado, que isso que o menino tem não é uma mão, mas sim uma prensa hidráulica, e eu preciso de manter dedos de violinista para os meus labores na empresa.
Tomás largou-o, desculpando-se.
- E, entretanto, como se manifesta o menino em face do teorema de Fermat? - perguntou Fermín, esfregando os dedos.
Acto contínuo começaram a enredar-se numa incompreensível discussão sobre matemática arcana que a mim me parecia mandarim. Fermín tratava-o sempre por o menino, ou por doutor, e fazia de contas que não dava pelo gaguejar do rapaz. Tomás, para corresponder à infinita paciência que Fermín mostrava para com ele, trazia-lhe caixas de quadradinhos de chocolate suíço envolvidos com fotografias de lagos de um azul impossível, vacas em pastos verde-tecnicolor e relógios de cuco.
- O seu amigo Tomás tem talento, mas falta-lhe direcção na vida e um pouco de descaramento, que é o que faz carreira - opinava Fermín Romero de Torres. - A mente científica tem destas coisas. Senão, veja Albert Einstein. Tanta invenção de prodígios e o primeiro para o qual encontram aplicação prática é a bomba atómica, e ainda por cima sem sua autorização. Além disso, com aquele aspecto de pugilista que o Tomás tem, vão levantar-lhe muitas dificuldades nos círculos académicos, porque nesta vida a única coisa que fala de cátedra é o preconceito.
Motivado para salvar Tomás de uma vida de penúrias e incompreensão, Fermín tinha decidido que o que era preciso era fazê-lo exercitar a sua oratória latente e a sua sociabilidade.
- O homem, como bom símio, é um animal social e imperam nele o amiguismo, o nepotismo, a trapaça e a mexeriquice como norma intrínseca de conduta ética - argumentava. - É pura biologia.
- Não será tanto assim.
- Que anjinho que é às vezes, Daniel!
Tomás tinha herdado o aspecto de duro do pai, um próspero administrador de propriedades que tinha escritório na Rua Pelayo junto aos armazéns El Siglo. O senhor Aguilar pertencia àquela raça de mentes privilegiadas que têm sempre razão. Homem de convicções profundas, estava seguro, entre outras coisas, de que o filho era um espírito pusilânime e um deficiente mental. Para compensar essas vergonhosas taras, contratava toda a espécie de professores particulares com o objectivo de normalizar o seu primogénito. «Quero que trate o meu filho como se fosse um imbecil, entendidos?», tinha-o ouvido dizer em numerosas ocasiões. Os professores tentavam tudo, inclusivamente a súplica, mas Tomás tinha por costume dirigir-se a eles apenas em latim, língua que dominava com fluidez papal e na qual não gaguejava. Mais tarde ou mais cedo, os tutores a domicílio demitiam-se por desespero e medo de que o rapaz estivesse possuído e lhes estivesse a dirigir consignas demoníacas em aramaico. A única esperança do senhor Aguilar era que o serviço militar fizesse do filho um homem de proveito.
Tomás tinha uma irmã um ano mais velha do que nós, Beatriz. Era a ela que se devia a nossa amizade, porque, se não a tivesse visto naquela longínqua tarde pela mão do pai, à espera do fim das aulas, e não me tivesse decidido a fazer um gracejo de péssimo gosto sobre ela, o meu amigo nunca se teria atirado a mim para me pregar uma coça de pau e eu nunca teria tido a coragem de falar com ele. Bea Aguilar era o vivo retrato da mãe, e a menina dos olhos do pai. Ruiva e de uma palidez de morte, andava sempre enfiada em caríssimos vestidos de seda ou lã fresca. Tinha uma figura de manequim e caminhava direita como um fuso, satisfeita consigo mesma e julgando-se a princesa da sua própria história. Tinha os olhos azuis esverdeados, mas ela insistia em dizer que eram cor de «esmeralda e safira». Apesar de ter passado uma data de anos nas teresianas, ou talvez por isso mesmo, quando o pai não estava a ver, Bea bebia anis em copo alto, usava meias de seda da La Perla Gris e maquilhava-se como as vampes cinematográficas que perturbavam o sono do meu amigo Fermín. Eu não a podia ver nem pintada, e ela correspondia à minha franca hostilidade com lânguidos olhares de desdém e indiferença. Bea tinha um namorado a fazer o serviço militar como alferes em Múrcia, um falangista empertigado chamado Pablo Cascos Buendía, que pertencia a uma família antiquíssima e proprietária de numerosos estaleiros nas rias. O alferes Cascos Buendía, que passava metade da vida de licença graças a um tio seu no Governo Militar, andava sempre a vomitar prelecções sobre a superioridade genética e espiritual da raça espanhola e a iminente decadência do Império bolchevique.
- Marx morreu - dizia solenemente.
- Em 1883, concretamente - dizia eu.
- Tu cala-te, desgraçado, olha que ainda te prego uma murraça que te mando para La Rioja.
Mais de uma vez tinha visto Bea a sorrir de si para si perante as tolices que o seu namorado alferes proferia. Nessa altura erguia o olhar e observava-me, impenetrável. Eu sorria-lhe com aquela cordialidade débil dos inimigos de trégua indefinida, mas afastava rapidamente os olhos. Antes queria morrer do que admiti-lo, mas no fundo do meu ser tinha medo dela.
No princípio desse ano, Tomás e Fermín Romero de Torres decidiram unir os respectivos engenhos num novo projecto que, segundo eles, haveria de nos livrar, ao meu amigo e a mim, de fazermos o serviço militar. Fermín, em particular, não compartilhava o entusiasmo do senhor Aguilar pela experiência castrense.
- O serviço militar só serve para descobrir a percentagem de broncos que contam para o censo - opinava ele. - E isso descobre-se nas duas primeiras semanas, não são precisos dois anos. Exército, casamento, Igreja e banca: os quatro cavaleiros do Apocalipse. Sim, sim, ria-se.
O pensamento anarco-libertário de Fermín Romero de Torres havia de perigar uma tarde de Outubro em que, por acasos do destino, recebemos na loja a visita de uma velha amiga. O meu pai tinha ido fazer uma avaliação de uma colecção de livros a Argentona e não voltaria antes do anoitecer. Eu fiquei a atender ao balcão da loja enquanto Fermín, com as suas habituais manobras de equilibrista, se empenhou em encarrapitar-se na escada e arrumar a última estante de livros que ficava apenas a um palmo do tecto. Pouco antes de fechar, quando o sol já se pusera, a silhueta de Bernarda recortou-se atrás do balcão. Estava vestida de quinta-feira, o seu dia livre, e cumprimentou-me com a mão. Iluminou-se-me a alma só de a ver e fiz-lhe sinal para entrar.
- Ai, que grande que o menino está! - disse ela do umbral. - É que quase nem o conhecia... Já está um homem!
Abraçou-me, soltando umas lagrimazinhas e apalpando-me a cabeça, os ombros e a cara, para ver se eu me teria desfeito na sua ausência.
- Sente-se a sua falta lá em casa, menino - disse, baixando o olhar.
- E eu senti a tua falta, Bernarda. Anda, dá-me um beijo.
Beijou-me timidamente e eu preguei-lhe um par de sonoros beijos em cada face. Riu-se. Vi nos seus olhos que estava à espera de que lhe perguntasse por Clara, mas eu não pensava fazê-lo.
- Estás hoje muito bonita, e muito elegante. Como foi que te decidiste a
vir-nos visitar?
- Bem, a verdade é que já há tempos que queria vir vê-lo, mas bem sabe como as coisas são, e eu cá ando sempre muito ocupada, que o senhor Barceló, embora seja muito sábio, é como uma criança, e eu cá tenho de fazer das tripas coração. Mas o que me traz é que, já vê, amanhã é o dia do aniversário da minha sobrinha, a de San Adrián, e eu gostaria de lhe dar uma prenda. Tinha pensado em oferecer-lhe um livro, com muita letra e poucos bonecos, mas como sou burra e não percebo...
Antes que eu pudesse responder, a loja foi sacudida por um estrondo balístico ao precipitarem-se das alturas umas obras completas de Blasco Ibanez de capa dura. Bernarda e eu erguemos a vista, sobressaltados. Fermín escorregava pelas escadas abaixo como um trapezista, um sorriso florentino estampado no rosto e os olhos impregnados de luxúria e arrebatamento.
- Bernarda, este é...
- Fermín Romero de Torres, assessor bibliográfico de Sempere e filho, aos seus pés, minha senhora - proclamou Fermín, pegando na mão de Bernarda e beijando-a cerimoniosamente.
Em questão de segundos, Bernarda ficou como um pimentão.
- Ai, que o senhor está enganado, eu de senhora...
- No mínimo marquesa - atalhou Fermín. - Eu tenho obrigação de saber, que calcorreio o mais fino da Avenida Pearson. Permita-me a honra de a escoltar até esta nossa secção de clássicos juvenis e infantis onde providencialmente observo que temos um compêndio com o melhor de Emílio Salgari e da épica narração de Sandokan.
- Ai, não sei, vidas de santos faz-me espécie, porque o pai da menina era muito da CNT, sabe?
- Não se preocupe, porque tenho aqui nada mais, nada menos que A Ilha Misteriosa de Júlio Verne, relato de alta aventura e grande conteúdo educativo, devido aos avanços tecnológicos.
- Se o senhor acha bem...
Eu ia-os seguindo em silêncio, observando como Fermín se babava e como Bernarda se perturbava com as atenções daquele homenzinho com pinta de charutanga e lábia de feirante que a olhava com o ímpeto que reservava para as tabletes de chocolate Nestlé.
- E o menino Daniel, o que é que diz?
- Aqui o especialista é o senhor Romero de Torres; podes confiar nele.
- Pois então levo esse da ilha, se os senhores mo embrulharem. Quanto devo?
- Oferta da casa - disse eu.
- Ah, não, de maneira nenhuma...
- Minha senhora, se mo permite e assim me torna o homem mais ditoso de Barcelona, quem oferece é Fermín Romero de Torres.
Bernarda olhou-nos a ambos, sem palavras.
- Oiça, é que eu pago o que compro e isto é um presente que quero dar à minha sobrinha...
- Então permitir-me-á, à guisa de moeda de troca, que a convide para lanchar - lançou Fermín, alisando o cabelo.
- Anda, mulher - encorajei-a eu. - Vais ver como se divertem. Olha, eu embrulho-te isto enquanto o Fermín vai buscar o casaco.
Fermín apressou-se a ir às traseiras da loja pentear-se, perfumar-se e vestir o casaco. Passei-lhe uns quantos duros da caixa para que convidasse Bernarda.
- Onde a levo? - sussurrou-me, nervoso como um miúdo.
- Eu levá-la-ia ao Els Quatre Gats - disse eu. - Que me conste dá sorte para assuntos do coração.
Estendi o embrulho com o livro a Bernarda e pisquei-lhe o olho.
- Quanto lhe devo então, menino Daniel?
- Não sei. Depois digo-te. O livro não tinha o preço marcado e tenho de perguntar ao meu pai - menti.
Vi-os saírem de braço dado, perdendo-se na Rua Santa Ana, pensando que se calhar alguém no céu estava de serviço e por uma vez concedia àquele par umas gotas de felicidade. Pendurei a tabuleta de FECHADO na montra. Passei por um momento às traseiras da loja para rever o livro onde o meu pai apontava as encomendas e ouvi a campainha da porta ao abrir-se. Pensei que seria Fermín, que tivesse deixado alguma coisa, ou talvez o meu pai que já tinha voltado de Argentona.
- Faz favor?
Passaram vários segundos sem que chegasse uma resposta. Eu continuei a dar uma vista de olhos ao livro de encomendas. Ouvi uns passos na loja, lentos.
- Fermín? Papá?
Não obtive resposta. Pareceu-me distinguir um riso abafado e fechei o livro de encomendas. Talvez algum cliente tivesse ignorado a tabuleta de FECHADO. Dispunha-me a atendê-lo quando ouvi o som de vários livros a caírem das estantes da loja. Engoli em seco. Peguei num corta-papel e aproximei-me lentamente da porta da parte de trás da loja. Não me atrevi a chamar de novo.
Daí a pouco ouvi novamente os passos, a afastarem-se. A campainha da porta soou de novo e senti uma baforada de ar da rua. Assomei à loja. Não havia ninguém. Corri até à porta da rua e fechei-a a sete chaves. Respirei fundo, sentindo-me ridículo e cobarde. Dirigia-me de novo à parte de trás da loja quando vi aquele pedaço de papel em cima do balcão. Ao aproximar-me verifiquei que se tratava de uma fotografia, uma velha estampa de estúdio das que se costumavam imprimir numa placa de cartão grosso. Os bordos estavam queimados e a imagem, esfumada, parecia sulcada pelo rasto de dedos sujos de carvão. Examinei-a debaixo de um candeeiro. Na fotografia podia ver-se um par de jovens, a sorrir para a câmara. Ele não parecia ter mais de dezassete ou dezoito anos, com o cabelo claro e traços aristocráticos, frágeis. Ela afigurava-se talvez um pouco mais nova do que ele, um ou dois anos, no máximo. Tinha a tez pálida e um rosto cinzelado, cingido por um cabelo negro, curto, que acentuava um olhar enfeitiçado, envenenado de alegria. Ele passava-lhe o braço pela cintura e ela parecia sussurrar qualquer coisa, trocista. A imagem transmitia uma calidez que me arrebatou um sorriso, como se naqueles dois desconhecidos tivesse reconhecido velhos amigos. Atrás deles podia ver-se a montra de uma loja, repleta de chapéus passados de moda. Concentrei-me no par. A roupa parecia indicar que a imagem tinha pelo menos vinte e cinco ou trinta anos. Era uma imagem de luz e de esperança que prometia coisas que só existem nos olhares de pouca idade. As chamas tinham devorado quase todo o contorno da fotografia, mas ainda se podia adivinhar um rosto severo atrás daquele balcão vetusto, uma silhueta espectral a insinuar-se por trás das letras gravadas no vidro.
Filhos de António Fortuny Casa fundada em 1888.
Na noite em que tinha regressado ao Cemitério dos Livros Esquecidos, Isaac contara-me que Carax usava o apelido da mãe, e não o do pai: Fortuny. O pai de Carax tinha uma chapelaria na Ronda de San António. Observei de novo o retrato daquele par e tive a certeza de que aquele rapaz era Julián Carax, a sorrir-me do passado, incapaz de ver as chamas que se cerravam sobre ele.
CIDADE DE SOMBRAS - 1954.
Na manhã seguinte, Fermín compareceu ao trabalho nas asas de Cupido, sorridente e a assobiar boleros. Noutras circunstâncias tê-lo-ia interrogado acerca do seu lanche com Bernarda, mas nesse dia não estava com disposição para a lírica. O meu pai tinha ficado de entregar uma encomenda às onze da manhã ao professor Javier Velázquez no seu gabinete da faculdade, na Praça Universidad. A Fermín, a simples menção do académico inspirava urticária, e com essa desculpa ofereci-me eu para lhe levar os livros.
- Esse indivíduo é um pedante, um crápula e um lambe-botas fascista - proclamou Fermín, levantando o punho no ar ao modo inequívoco de quando lhe dava o prurido justiceiro. - Com a treta da cadeira e do exame final, o tipo até a Passionária era capaz de papar, caso se proporcionasse.
- Não se exceda, Fermín. O Velázquez paga muito bem, sempre adiantado, e recomenda-nos aos quatro ventos - recordou-lhe o meu pai.
- É dinheiro manchado do sangue de virgens inocentes - protestou Fermín. - Deus sabe que nunca fui para a cama com uma mulher menor de idade, e não foi por falta de vontade ou oportunidades; que hoje os senhores vêem-me já acabado, mas houve tempo em que tive presença e galhardia como os que as tinham, e mesmo assim, por causa das dúvidas e se me cheirava que eram um pouco galdérias, exigia a cédula de identificação ou, na sua falta, autorização paterna por escrito para não faltar à ética.
O meu pai pôs os olhos em alvo.
- Consigo é impossível discutir, Fermín.
- É que, se tenho razão, tenho razão.
Peguei no embrulho que eu mesmo tinha preparado na noite anterior, um par de Rilkes e um ensaio apócrifo atribuído a Ortega em torno das tapas e da profundidade do sentir nacional, e deixei Fermín e o meu pai entregues ao seu debate de usos e costumes.
Estava um dia esplêndido, com um céu azul espectacular e uma brisa limpa e fresca que cheirava a Outono e a mar. A minha Barcelona favorita foi sempre a de Outubro, quando a alma lhe sai a passear e a pessoa se torna mais sábia só de beber da fonte de Canaletas, que durante esses dias, por puro milagre, não sabe nem a cloro. Avançava a passo ligeiro, evitando engraxadores, mangas-de-alpaca que voltavam do cafezinho de meio da manhã, cauteleiros e um bailado de varredores que pareciam estar a polir a cidade a pincel, sem pressa e com traço pontilhista. Já nessa época, Barcelona começava a encher-se de automóveis, e por alturas do semáforo da Rua Balmes observei postadas em ambos os passeios quadrigas de empregados de escritório de gabardina cinzenta e olhar esfomeado, a comer um Studebaker com os olhos como se se tratasse de uma cançonetista em roupão de quarto. Subi pela Balmes até à Gran Via, vendo-me e desejando-me com semáforos, eléctricos, automóveis e até motocicletas com sidecar. Numa montra vi um cartaz da casa Phillips que anunciava a chegada de um novo messias, a televisão, que se dizia que ia mudar a nossa vida e nos ia transformar a todos em seres do futuro, como os americanos. Fermín Romero de Torres, que estava sempre ao corrente de todas as invenções, tinha já profetizado o que ia acontecer.
- A televisão, amigo Daniel, é o Anticristo, e digo-lhe que bastarão três ou quatro gerações para que as pessoas não saibam nem dar peidos por sua conta e o ser humano regresse às cavernas, à barbárie medieval e a estados de imbecilidade que a lesma já ultrapassou lá para o pleistoceno. Este mundo não morrerá de uma bomba atómica, como dizem os jornais, morrerá de riso, de banalidade, fazendo uma piada de tudo, e aliás uma piada sem graça.
O professor Velázquez tinha o gabinete no segundo andar da Faculdade de Letras, ao fundo de uma galeria com um pavimento ladrilhado xadrezístico e luz em pó que dava para o claustro sul. Encontrei o professor à porta de uma aula, fazendo de conta que ouvia uma aluna de figura espectacular que envergava um vestido grená que lhe cingia a figura e deixava assomar umas barrigas das pernas helénicas reluzentes em meias de seda fina. O professor Velázquez tinha fama de dom-joão e não faltava quem dissesse que a educação sentimental de toda a menina de bom nome não estava completa sem um proverbial fim-de-semana num hotelzinho no Paseo de Sitges a recitar alexandrinos tête-à-tête com o distinto catedrático. Eu, com instinto comercial, cuidei de não interromper a sua conversa e decidi matar o tempo fazendo uma radiografia à pupila avantajada. Talvez fosse a caminhada a passo ligeiro que me tinha levantado o ânimo, talvez fossem os meus dezoito anos e o facto de passar mais tempo entre as musas aprisionadas em tomos velhos do que na companhia de raparigas de carne e osso, que me pareciam sempre a anos-luz do fantasma de Clara Barceló, mas naquele momento, lendo cada dobra da anatomia daquela aluna que unicamente podia ver de costas mas que imaginava a três dimensões e em perspectiva alexandrina, os dentes puseram-se-me tão compridos como palmatórias.
- Ora esta, então não é que é o Daniel? - exclamou o professor Velázquez. - Pois olha, ainda bem que vens tu e não aquele mastronço da última vez, aquele com nome de toureiro, que me pareceu que ou estava bebido ou estava bom para ser fechado à chave e deitar a chave fora. Imagina que teve a ideia de me perguntar a etimologia da palavra banabóia, com um tom de troça mais que deslocado.
- É que o médico o tem sob uma medicação fortíssima. Qualquer coisa do fígado.
- Não admira, se anda todo o dia entornado - resmungou Velázquez. - Eu se fosse a vocês chamava a polícia. De certeza que esse fulano tem ficha. E o cheiro que deita dos pés, louvado seja Deus, que há muito vermelho de merda à solta por aí que não se lava desde que a República caiu.
Dispunha-me a inventar qualquer desculpa decorosa para escusar Fermín quando a estudante que tinha estado a conversar com o professor Velázquez se voltou e caiu-me a alma aos pés.
Vi-a sorrir-me e fiquei com as orelhas a arder.
- Olá, Daniel - disse Beatriz Aguilar.
Cumprimentei-a com a cabeça, mudo ao ter-me descoberto a mim mesmo babado sem saber pela irmã do meu melhor amigo, a Bea dos meus temores.
- Ah, mas vocês já se conhecem? - perguntou Velázquez, intrigado.
- O Daniel é um velho amigo da família - explicou Bea. - E o único que teve a coragem de me dizer alguma vez que sou uma pirosa e uma convencida.
Velázquez olhou para mim, atónito.
- Já lá vão dez anos - matizei eu. - E não o disse a sério.
- Pois eu ainda estou à espera de que me peças desculpa. Velázquez riu de boa vontade e tirou-me o embrulho das mãos.
- Parece-me que estou aqui a mais - disse, abrindo o embrulho. - Ah, estupendo. Ouve, Daniel, diz ao teu pai que ando à procura de um livro intitulado Matamoros: Cartas da Juventude de Ceuta, de Francisco Franco Bahamonde, com prólogo e anotações de Pemán.
- Pode contar com ele. Dizemos-lhe alguma coisa num par de semanas.
- Aceito-te a palavra e vou a correr, que estão trinta e duas mentes em branco à minha espera.
O professor Velázquez piscou-me o olho e desapareceu no interior da aula, deixando-me a sós com Bea. Eu não sabia para onde olhar.
- Ouve, Bea, sobre aquilo do insulto, palavra que...
- Estava a brincar contigo, Daniel. Bem sei que aquilo era coisa de miúdos e o Tomás bateu-te que chegasse.
- Ainda me dói.
Bea sorria no que parecia espírito de paz, ou pelo menos de trégua.
- Além disso, tinhas razão, sou um bocado pirosa e às vezes um pouco convencida - disse Bea. - Não simpatizas muito comigo, não é verdade, Daniel?
A pergunta colheu-me totalmente de surpresa, desarmado e assustado com a facilidade com que se perde a antipatia a quem se tem por inimigo mal deixa de se comportar como tal.
- Não, isso não é verdade.
- O Tomás diz que, na realidade, não é que antipatizes comigo, é que não vais à bola com o meu pai e fazes-mo pagar a mim, porque com ele não te atreves. E não te culpo. Com o meu pai ninguém se atreve.
Fiquei branco, mas daí a uns segundos dei por mim a sorrir e a assentir.
- Vai-se a ver e o Tomás conhece-me melhor que eu próprio.
- Não te admires. O meu irmão topa-nos a todos, o que acontece é que nunca diz nada. Mas se algum dia lhe der na cabeça abrir a boca, vem a casa abaixo. Ele aprecia-te muito, sabes?
Encolhi os ombros, baixando o olhar.
- Está sempre a falar de ti, e do teu pai e da livraria e daquele amigo que vocês têm a trabalhar convosco, que o Tomás diz que é um génio por descobrir. Às vezes parece que pensa que vocês são mais a sua verdadeira família do que aquela que tem em casa.
Encontrei-lhe o olhar, duro, aberto, sem medo. Não soube o que dizer-lhe e limitei-me a sorrir. Senti que me encurralava com a sua sinceridade e lancei os olhos ao pátio.
- Não sabia que estudavas aqui.
- Este é o meu primeiro ano.
- Letras?
- O meu pai acha que as ciências não são para o sexo fraco.
- Sim. Muito número.
- Não me importo, porque do que eu gosto é de ler, e além disso aqui conhece-se gente interessante.
- Como o professor Velázquez? Bea sorriu de lado.
- Posso estar no primeiro ano, mas sei o suficiente para os topar à légua, Daniel. Especialmente os da categoria dele.
Perguntei a mim mesmo em que categoria devia classificar-me a mim.
- Além disso, o professor Velázquez é amigo do meu pai. Estão os dois no Conselho da Associação para a Protecção e Fomento da Zarzuela e da Lírica Espanhola.
Adoptei uma expressão de estar muito impressionado.
- E que tal o teu namorado, o alferes Cascos Buendía? Sumiu-se-lhe o sorriso.
- O Pablo vem de licença daqui a três semanas.
- Deves estar contente.
- Muito. É um rapaz estupendo, embora eu imagine o que deves pensar dele.
Duvido, pensei. Bea observava-me, vagamente tensa. Ia mudar de assunto, mas a língua antecipou-se-me.
- O Tomás diz que vocês se vão casar e que vão viver para El Ferrol. Ela assentiu sem pestanejar.
- Assim que o Pablo terminar o serviço militar.
- Deves estar impaciente - disse eu, sentindo o travo a mau humor na minha própria voz, uma voz insolente que não sabia de onde vinha.
- Não me importo, na verdade. A família dele tem propriedades lá, um par de estaleiros, e o Pablo vai ficar à frente de um. Tem muito talento para a liderança.
- Nota-se.
Bea apertou o sorriso.
- Além disso, de Barcelona já eu vi tudo o que havia para ver, depois de tantos anos...
Vi-lhe o olhar cansado, triste.
- Consta-me que El Ferrol é uma cidade fascinante. Cheia de vida. E o marisco, dizem que é fabuloso, especialmente a santola.
Bea suspirou, sacudindo a cabeça. Pareceu-me que queria chorar de raiva, mas era demasiado orgulhosa. Riu-se tranquilamente.
- Dez anos e ainda não perdeste o prazer de me insultar, não é verdade, Daniel? Vá lá, então, desabafa à tua vontade. A culpa é minha, por achar que se calhar podíamos ser amigos, ou fazer de conta que o éramos, mas suponho que não chego aos calcanhares do meu irmão. Desculpa ter-te feito perder tempo.
Fez meia volta e começou a andar pelo corredor que conduzia à biblioteca. Vi-a afastar-se através dos ladrilhos brancos e pretos, a sua sombra a cortar as cortinas de luz que caíam das vidraças.
- Espera, Bea.
Amaldiçoei-me e desatei a correr atrás dela. Detive-a a meio do corredor, segurando-a pelo braço. Lançou-me um olhar que queimava.
- Desculpa. Mas estás enganada: a culpa não é tua. Quem não chega aos calcanhares do teu irmão ou dos teus sou eu. E se te insultei foi por inveja daquele imbecil que tens por namorado e por raiva de pensar que alguém como tu partiria para El Ferrol ou para o Congo a fim de ir atrás dele.
- Daniel...
- Estás enganada comigo, porque podemos mesmo ser amigos se tu me deixares tentar, agora que sabes o pouco que valho. E também estás enganada acerca de Barcelona, porque, embora julgues que já viste tudo o que havia para ver, garanto-te que não é assim, e que, se me deixares, to demonstrarei.
Vi que se lhe iluminava o sorriso e uma lágrima lenta, de silêncio, lhe caía pela face.
- É bom que estejas a falar verdade - disse ela. - Porque senão, digo ao meu irmão e ele arranca-te a cabeça como se fosse uma rolha.
Estendi-lhe a mão.
- Acho justo. Amigos? Ofereceu-me a sua.
- A que horas sais das aulas na sexta-feira? - perguntei. Ela hesitou um instante.
- Às cinco.
- Estarei à tua espera no claustro às cinco em ponto, e antes que anoiteça demonstrar-te-ei que há uma coisa em Barcelona que ainda não viste e que não podes ir para El Ferrol com aquele idiota que não posso acreditar que ames, porque se o fizeres a cidade perseguir-te-á e morrerás de desgosto.
- Pareces muito seguro de ti mesmo, Daniel.
Eu, que nunca estava seguro nem das horas que eram, assenti com a convicção do ignorante. Fiquei a vê-la afastar-se por aquela galeria infinita até que a sua silhueta se fundiu na penumbra e perguntei a mim mesmo o que é que tinha feito.
A chapelaria Fortuny, ou o que dela restava, languescia ao pé de um estreito edifício enegrecido de fuligem e de aspecto miserável na Ronda de San António, junto da Praça de Goya. Ainda se conseguiam ler as letras gravadas sobre os vidros embaciados de sujidade, e uma tabuleta em forma de chapéu de feltro continuava a ondular na fachada, prometendo desenhos à medida e as últimas novidades de Paris. A porta estava trancada com um cadeado que parecia estar lá havia pelo menos dez anos. Colei a testa ao vidro, procurando penetrar com o olhar o interior nas trevas.
- Se vem por causa do aluguer, chega tarde - disse uma voz atrás de mim. - O administrador do prédio já se foi embora.
A mulher que me tinha falado devia rondar os sessenta anos e vestia o uniforme nacional de viúva devota. Um par de rolos assomava por baixo de um lenço cor-de-rosa que lhe cobria o cabelo, e as pantufas de tecido acolchoado faziam jogo com umas meias cor de carne de meio cano. Parti do princípio que era a porteira do prédio.
- Ai a loja está para alugar? - perguntei.
- Não vinha por isso?
- Em princípio não, mas nunca se sabe, se calhar estou interessado.
A porteira franziu o cenho, pensando se me havia de catalogar de pantomineiro ou conceder-me o benefício da dúvida. Adoptei o mais angelical dos meus sorrisos.
- A loja fechou há muito tempo?
- Há pelo menos doze anos, quando o velho morreu.
- O senhor Fortuny? Conhecia-o?
- Há quarenta e oito anos que estou nesta escada, rapaz.
- Então se calhar conheceu também o filho do senhor Fortuny.
- O Julián? Pois claro.
Tirei do bolso a fotografia queimada e mostrei-lha.
- Acha que me poderia dizer se o jovem que aparece na fotografia é Julián Carax?
A porteira olhou-me com uma certa desconfiança. Tomou a fotografia nas mãos e cravou o olhar nela.
- Reconhece-o?
- Carax era o apelido de solteira da mãe - clarificou a porteira, com uma certa reprovação. - Este é o Julián, sim. Lembro-me dele muito loirinho, embora aqui na fotografia pareça que tem o cabelo mais escuro.
- Poderia dizer-me quem é a rapariga que está com ele?
- E quem é que pergunta?
- Desculpe, o meu nome é Daniel Sempere. Estou a tentar averiguar alguma coisa sobre o senhor Carax, sobre o Julián.
- O Julián foi para Paris, aí pelo ano de 18 ou 19. O pai queria metê-lo no Exército, sabe? Eu acho que a mãe o levou para livrar o pobrezinho. Aqui ficou só o senhor Fortuny, no andar lá de cima.
- Sabe se o Julián alguma vez regressou a Barcelona? A porteira olhou-me em silêncio.
- O senhor não sabe? O Julián morreu nesse mesmo ano, em Paris.
- Perdão?
- Digo eu que o Julián faleceu. Em Paris. Pouco tempo depois de ter lá chegado. Mais lhe valia ter ido para o Exército.
- Posso perguntar como é que a senhora sabe isso?
- Como é que havia de ser? Porque o pai dele me disse. Assenti lentamente.
- Compreendo. Disse-lhe de que morreu ele?
- O velho não dava muitos pormenores, para dizer a verdade. Um dia, pouco tempo depois de o Julián ter partido, chegou uma carta para ele e, quando perguntei ao pai, ele disse-me que o filho tinha morrido e que, se chegasse mais alguma coisa para ele, a deitasse fora. Por que é que faz essa cara?
- O senhor Fortuny mentiu-lhe. O Julián não morreu em 1919.
- Que me diz?
- O Julián viveu em Paris, pelo menos até ao ano de 35, e depois regressou a Barcelona.
O rosto da porteira iluminou-se.
- Então o Julián está aqui, em Barcelona? Onde?
Assenti, convencido de que deste modo a porteira se entusiasmaria a contar-me mais.
- Mãe de Deus... Pois olhe que me dá uma alegria, bem, se é que está vivo, porque era um miúdo muito meigo, um bocado esquisito e fantasioso, isso é verdade, mas tinha qualquer coisa que conquistava o coração de uma pessoa. Não havia de servir para soldado, isso via-se à légua. A minha Isabelita gostava imenso dele. Olhe que durante uma temporada julguei que acabariam por se casar e tudo, coisas de miúdos... Deixa-me ver outra vez essa fotografia?
Estendi-lhe novamente a fotografia. A porteira contemplava-a como se fosse um talismã, um bilhete de volta à sua juventude.
- Parece mentira, olhe, como se o estivesse a ver agora mesmo... e aquele desgraçado a dizer que ele tinha morrido. Não há dúvida que há gente no mundo que existe para que haja de tudo. E que foi feito do Julián em Paris? De certeza que enriqueceu. A mim sempre me pareceu que o Julián ia para rico.
- Não exactamente. Tornou-se escritor.
- De histórias?
- Uma coisa parecida. Escrevia novelas.
- Para a rádio? Ai, que bonito. Pois não me espanta nada, sabe o senhor? Em pequenito passava a vida a contar histórias aos miúdos daqui do bairro. No Verão, às vezes a minha Isabelita e as primas subiam ao terraço de noite para o ouvirem. Diziam que nunca contava duas vezes a mesma história. Lá que eram todas de mortos e almas, isso eram. Bem lhe digo que era um miúdo um bocado estranho. Se bem que, com aquele pai, o que é de estranhar é que não tenha saído chanfrado. Não me espanta que no fim a mulher o tenha deixado, porque era um desgraçado. Note que eu não me meto em coisa nenhuma, hem? Eu acho tudo muito bem, mas aquele homem não era bom.
Numa escada, no fim de contas tudo se sabe. Ele batia-lhe, sabe? Ouviam-se sempre gritos na escada, e não foi uma nem duas vezes que a polícia teve de cá vir. Eu percebo que às vezes o marido tem que bater na mulher para que ela o respeite, não digo que não, que há muita galdéria e as raparigas já não são como antigamente, mas é que este gostava de a surrar porque sim, compreende? A única amiga que aquela pobre mulher tinha era uma rapariga nova, a VIçenteta, que vivia no quarto segunda. Às vezes a coitada refugiava-se em casa da Viçenteta para que o marido não a surrasse mais. E contava-lhe coisas...
- Como por exemplo?
A porteira adoptou um ar confidencial, arqueando uma sobrancelha e olhando para os lados de soslaio.
- Como por exemplo o miúdo não ser do chapeleiro.
- O Julián? Quer dizer que o Julián não era filho do senhor Fortuny?
- Foi o que a francesa disse à Viçenteta, não sei se por despeito ou vá-se lá saber porquê. A mim quem mo contou foi a rapariga anos depois, quando eles já não moravam aqui.
- E então quem era o verdadeiro pai do Julián?
- A francesa nunca quis dizer. Se calhar nem sabia. Bem sabe como são os estrangeiros.
- E acha que era por isso que o marido lhe batia?
- Vá-se lá saber. Três vezes tiveram que a levar para o hospital, repare bem, três. E o grande porco tinha a desfaçatez de contar a toda a gente que a culpa era dela, que era uma bêbada e dava trambolhões pela casa simplesmente por se meter nos copos. A mim não me venham com essas. Arranjava sempre sarilhos com todos os vizinhos. Ao meu falecido marido, que Deus tenha, acusou-o uma vez de o ter roubado na loja, porque segundo ele todos os murcianos eram uns vadios e uns ladrões, e repare bem que nós somos de Úbeda...
- Dizia a senhora que reconhecia a rapariga que aparece ao lado do Julián na fotografia?
A porteira concentrou-se de novo na imagem.
- Nunca a tinha visto. Muito gira.
- Pela fotografia dir-se-ia que eram namorados - sugeri, para ver se lhe espicaçava a memória.
Estendeu-ma, abanando a cabeça.
- Eu de fotografias não percebo nada. E, que eu saiba, o Julián não tinha namorada, mas imagino eu que se a tivesse não mo teria dito. Vi-me e desejei-me para saber que a minha Isabelita tinha andado metida com ele... Vocês, os jovens, nunca contam nada. Quem não consegue parar de falar somos nós, os velhos.
- Lembra-se dos amigos dele, alguém em especial que aparecesse por cá?
A porteira encolheu os ombros.
- Ai, já lá vai tanto tempo! Além disso, nos últimos anos o Julián já parava pouco por aqui, sabe? Tinha arranjado um amigo no colégio, um menino de muito boas famílias, os Aldaya, não lhe digo nada. Agora já não se fala deles, mas nessa altura eram como se fosse a família real. Muito dinheiro. Eu sei porque às vezes mandavam um carro para vir buscar o Julián. Só queria que o senhor visse que carro. Nem o Franco, oiça. Com chofer, todo reluzente. O meu Paço, que percebia disso, disse-me que era um rolsroi, ou coisa que o valha. Não é brincadeira nenhuma.
- Lembra-se do nome desse amigo do Julián?
- Olhe, com um apelido como Aldaya, não são precisos nomes, não sei se me entende. Também me lembro doutro rapaz, um pouco apatetado, um tal Miquel. Não me pergunte nem que apelido nem que cara tinha.
Parecia que tínhamos chegado a um ponto morto e receei começar a perder o interesse da porteira. Decidi seguir um pressentimento.
- Mora alguém agora no andar dos Fortuny?
- Não. O velho morreu sem fazer testamento e a mulher, que eu saiba, ainda está em Buenos Aires e nem ao enterro veio.
- Porquê Buenos Aires?
- Porque não conseguiu encontrar um sítio mais longe dele, digo eu. Não a culpo, para dizer a verdade. Deixou tudo nas mãos de um advogado, um tipo muito esquisito. Eu nunca o vi, mas a minha filha Isabelita, que vive no quinto primeira, mesmo por baixo, diz que às vezes, como tem a chave, vem de noite e passa horas a passear pelo andar e depois vai-se embora. Uma vez até me disse que parecia que se ouviam saltos de mulher. Imagine.
- Se calhar eram andas - sugeri.
Olhou-me sem compreender. Obviamente, para a porteira o assunto era muito sério.
- E ninguém mais visitou o andar em todos estes anos?
- Uma vez apareceu aqui um tipo muito sinistro, daqueles que estão constantemente a sorrir, uma cara de páscoa, mas que não engana ninguém. Disse que era da Brigada Criminal. Queria ver o andar.
- Disse porquê?
A porteira abanou a cabeça.
- Lembra-se do nome dele?
- Inspector não-sei-quê. Nem acreditei que fosse polícia. O assunto cheirava a esturro, não sei se me entende. A coisa pessoal. Despachei-o com vento fresco e disse-lhe que não tinha as chaves do andar e que, se queria alguma coisa, telefonasse ao advogado. Disse-me que voltava, mas nunca mais o tornei a ver por aqui. Nem quero.
- Não terá por acaso o nome e a direcção do advogado, pois não?
- Teria de o perguntar ao administrador do prédio, o senhor Molins. Tem o escritório aqui perto, no 28 da Floridablanca, sobreloja. Diga que vai da parte da senhora Aurora, uma sua criada.
- Agradeço-lhe muito. E diga-me, dona Aurora, então o andar dos Fortuny está vazio?
- Vazio, não, porque ninguém levou nada de lá em todos os anos desde que o velho morreu. Olhe que às vezes até cheira mal. Eu diria que há ratazanas e tudo, repare bem.
- Acha que seria possível dar-lhe uma vista de olhos? Se calhar encontramos alguma coisa que nos indique o que foi feito realmente do Julián...
- Ai, eu não posso fazer isso. Tem que falar com o senhor Molins, que é quem o leva lá.
Sorri-lhe com malícia.
- Mas a senhora há-de ter a chave mestra, imagino eu. Embora dissesse a esse indivíduo que não... Não me diga que não morre de curiosidade por saber o que há lá dentro.
Dona Aurora olhou-me de esguelha.
- Você é um demónio.
A porta cedeu como a laje de um sepulcro, com um gemido brusco, exalando o hálito fétido e viciado do interior. Empurrei o portão para o interior, desvendando um corredor que mergulhava no negrume. O ar tresandava a fechado e a humidade. Volutas de sujidade e pó coroavam as esquinas do tecto, pendendo como cabelos brancos. As lajes quebradas do chão estavam recobertas pelo que parecia um manto de cinzas. Reparei naquilo que pareciam marcas de pegadas a internarem-se no andar.
- Santa Mãe de Deus - murmurou a porteira. - Há aqui mais merda que no poleiro dum galinheiro.
- Se prefere, entro eu sozinho - sugeri.
- Isso era o que você queria. Vamos, ande para a frente, que eu vou atrás. Fechámos a porta atrás de nós. Por um instante, até o olhar se nos habituar
à penumbra, permanecemos imóveis no umbral do andar. Ouvi a respiração nervosa da porteira e apercebi-me do acre bafo a suor que ela exalava. Senti-me como um ladrão de sepulturas, com a alma envenenada de cobiça e ânsia.
- Oiça, o que será aquele barulho? - perguntou a porteira, inquieta. Havia qualquer coisa que adejava nas trevas, alertada pela nossa presença.
Pareceu-me entrever uma forma pálida a revolutear no extremo do corredor.
- Pombos - disse eu. - Devem ter-se enfiado por uma janela quebrada e feito ninho aqui.
- Pois olhe que esses passarocos metem-me um nojo tremendo - disse a porteira. - Com o que chegam a cagar.
- Esteja descansada, dona Aurora, que só atacam quando têm fome. Avançámos uns passos até ao fim do corredor. Chegámos a uma sala de
jantar que dava para a varanda. Apreciava-se o contorno de uma mesa desengonçada coberta por uma toalha esfiapada que parecia uma mortalha. Velavam-na quatro cadeiras e um par de cristaleiras veladas de sujidade que custodiavam a loiça, uma colecção de copos e um serviço de chá. A uma esquina permanecia o velho piano vertical da mãe de Carax. As teclas tinham enegrecido e mal se viam as juntas debaixo do manto de pó. Diante da varanda empalidecia uma poltrona de saia coçada. Junto dela havia uma mesa de café sobre a qual repousavam umas lentes de leitura e uma Bíblia encadernada a pele pálida e debruada com filetes dourados, das que se ofereciam então pela primeira comunhão. Ainda conservava o fitilho, uma fita de cordão escarlate.
- Olhe, foi nessa poltrona que encontraram o velho morto. O médico disse que estava lá há dois dias. Que triste morrer assim, sozinho como um cão! E olhe que foi ele que o procurou, mas mesmo assim, olhe que me faz pena.
Aproximei-me da poltrona mortuária do senhor Fortuny. Junto da Bíblia estava uma pequena caixa com fotografias a preto e branco, retratos velhos de estúdio. Ajoelhei-me a examiná-las, quase hesitando em roçá-las com os dedos. Pensei que estava a profanar as recordações de um pobre homem, mas a curiosidade foi mais forte. A primeira imagem mostrava um casal jovem com uma criança que não teria mais de quatro anos. Reconheci-a pelos olhos.
- Aí os tem. O senhor Fortuny em novo, e ela...
- O Julián não tinha irmãos ou irmãs?
A porteira encolheu os ombros, suspirando.
- Diziam por aí que ela tinha abortado uma gravidez por causa de uma das tareias do marido, mas eu não sei. As pessoas gostam muito da mexeriquice, é o que é. Uma vez, o Julián contou aos miúdos da escada que tinha uma irmã que só ele podia ver, que saía dos espelhos como se fosse de vapor e que vivia com o próprio Satanás num palácio debaixo dum lago. A minha Isabelita teve pesadelos para um mês inteiro. Olhe que às vezes aquele miúdo era mórbido.
Lancei uma olhadela à cozinha. A vidraça de uma pequena janela que dava para um pátio interior estava quebrada, e podia ouvir-se o esvoaçar nervoso e hostil de pombos do outro lado.
- Todos os andares têm a mesma distribuição? - perguntei.
- Os que dão para a rua, quer-se dizer os da segunda porta, sim, mas este, sendo o andar de cima, é um bocado diferente - explicou a porteira. - Aí tem a cozinha e um lavadouro que dá para a clarabóia. Por este corredor há três quartos e ao fundo uma casa de banho. Bem mobilados são muito jeitosos, não julgue lá. Este é parecido com o da minha Isabelita, claro que agora parece um túmulo.
- Sabe qual era o quarto do Julián?
- A primeira porta é o quarto principal. A segunda dá para um quarto mais pequeno. Se calhar era esse, digo eu.
Entrei no corredor. A tinta das paredes soltava-se às tiras. Ao fundo do corredor, a porta da casa de banho estava entreaberta. Um rosto observava-me do espelho. Poderia ser o meu ou o da irmã que vivia nos espelhos daquele andar. Tentei abrir a segunda porta.
- Está fechada à chave - disse. A porteira olhou-me, atónita.
- Essas portas não têm fechadura - murmurou.
- Esta, tem.
- Então deve ter sido o velho que a mandou pôr, porque nos outros andares...
Baixei o olhar e observei que o rasto de pegadas no pó chegava até à porta fechada.
- Entrou alguém no quarto - disse eu. - Recentemente.
- Não me assuste - disse a porteira.
Abeirei-me da outra porta. Não tinha fechadura. Cedeu ao contacto, deslizando para o interior com um gemido ferrugento. No centro descansava uma velha cama de palanquim, desfeita. Os lençóis amarelejavam como sudários. Um crucifixo dominava sobre a cama. Havia um pequeno espelho sobre uma cómoda, uma bacia, um jarro e uma cadeira. Um armário entreaberto repousava contra a parede. Contornei a cama até uma mesa-de-cabeceira coberta com um vidro que aprisionava estampas de antepassados, recordações de funerais e bilhetes de lotaria. Em cima da mesinha havia uma caixa de música de madeira trabalhada e um relógio de bolso congelado para sempre nas cinco e vinte. Tentei dar corda à caixa de música, mas a melodia encravou ao fim de seis notas. Abri a gaveta da mesa-de-cabeceira. Encontrei um estojo de óculos vazio, um corta-unhas, uma cigarreira e uma medalha de Nossa Senhora de Lourdes. Mais nada.
- Tem de haver uma chave daquele quarto nalgum lado - disse eu.
- Será o administrador que a tem. Olhe, eu cá acho que o melhor é irmos embora e...
Tombaram-me os olhos na caixa de música. Levantei a tampa e encontrei lá, a bloquear o mecanismo, uma chave dourada. Peguei nela, e a caixa de música retomou o seu tilintar. Reconheci uma melodia de Ravel.
- Tem de ser esta a chave - sorri para a porteira.
- Oiça, se o quarto estava fechado, por alguma coisa havia de ser. Mesmo que seja só por respeito pela memória do...
- Se prefere, pode ficar à minha espera na portaria, dona Aurora.
- Você é um demónio. Ande, abra de uma vez.
Um bafo de ar frio assobiou pelo buraco da fechadura, lambendo-me os dedos enquanto eu introduzia a chave. O senhor Fortuny mandara instalar na porta do quarto desocupado do filho uma fechadura que fazia três da que tinha na porta do andar. Dona Aurora olhava-me com apreensão, como se estivéssemos prestes a abrir a caixa de Pandora.
- Este quarto dá para a fachada da rua? - perguntei. A porteira abanou a cabeça.
- Tem uma janela pequena, um respiradouro que dá para a clarabóia.
Empurrei a porta para o interior. Abriu-se diante de nós um poço de escuridão, impenetrável. A ténue claridade atrás de nós precedeu-nos como um hálito que mal conseguia arranhar as sombras. A janela que assomava ao pátio estava tapada com as páginas amarelecidas de um jornal. Arranquei as folhas de jornal e uma agulha de luz vaporosa perfurou as trevas.
- Jesus, Maria e José! - murmurou a porteira junto a mim.
O quarto estava infestado de crucifixos. Pendiam do tecto, ondulando do extremo de cordéis, e cobriam as paredes fixados com pregos. Contavam-se por dezenas. Podiam adivinhar-se nos recantos, gravados a faca nos móveis de madeira, riscados nas lajes, pintados avermelho nos espelhos. As pegadas que chegavam até ao umbral da porta traçavam um rasto no pó em torno de uma cama nua até ao estrado, apenas já um esqueleto de arame e madeira carcomida. No extremo da alcova, debaixo da janela da clarabóia, havia uma escrivaninha de consola fechada e coroada por um trio de crucifixos de metal. Abri-a cuidadosamente. Não havia pó nas juntas do fole de madeira, pelo que supus que a escrivaninha fora aberta não havia muito. A escrivaninha tinha seis gavetas. Os fechos tinham sido forçados. Inspeccionei-as uma a uma. Vazias.
Ajoelhei-me diante da escrivaninha. Apalpei com os dedos os riscos na madeira. Imaginei as mãos de Julián Carax a traçarem aquelas garatujas, hieróglifos cujo sentido o tempo levara. No fundo da escrivaninha adivinhava-se uma pilha de cadernos e uma taça com lápis e canetas. Peguei num dos cadernos e dei-lhe uma olhadela. Desenhos e palavras soltas. Exercícios de cálculo. Frases soltas, citações de livros. Versos inacabados. Todos os cadernos pareciam iguais. Alguns desenhos repetiam-se página após página, com diferentes matizes.
Chamou-me a atenção uma figura de homem que parecia feito de chamas. Outra descrevia aquilo que poderia ser um anjo ou um réptil enroscado numa cruz. Adivinhavam-se esboços de um casarão de aspecto extravagante, sulcado de torreões e arcos catedralescos. O traço mostrava segurança e um certo instinto. O jovem Carax mostrava o traço de um desenhador de certo talento, mas todas as imagens se ficavam por esboços.
Estava para devolver o último caderno ao seu lugar sem o inspeccionar quando alguma coisa deslizou de entre as suas páginas e caiu aos meus pés. Era uma fotografia na qual reconheci a mesma rapariga que aparecia na imagem queimada tirada ao pé daquele edifício. A rapariga posava num sumptuoso jardim e, entre as copas das árvores, adivinhava-se a forma da casa que acabava de ver esboçada nos desenhos de Carax. Reconheci-a de imediato. A torre de «El Frare Blanc», na Avenida del Tibidabo. No verso da fotografia vinha uma inscrição que dizia simplesmente:
Ama-te, Penélope.
Guardei-a no bolso, fechei a escrivaninha e sorri para a porteira.
- Está visto? - perguntou, ansiosa por sair daquele lugar.
- Quase - disse eu. - Há bocado a senhora disse-me que pouco tempo depois de o Julián partir para Paris chegou uma carta para ele, mas que o pai lhe disse que a deitasse fora...
A porteira hesitou um instante, e depois assentiu.
- Meti a carta na gaveta da cómoda da sala de visitas do vestíbulo, para o caso de a francesa algum dia voltar. Ainda lá deve estar...
Avançámos até à cómoda e abrimos a gaveta superior. Um envelope ocre languescia no meio de uma colecção de relógios parados, botões e moedas que tinham deixado de estar em curso vinte anos atrás. Peguei no envelope e examinei-o.
- Leu-a?
- Oiça, por quem me toma?
- Não se ofenda. Seria o mais normal, dadas as circunstâncias, pensando a senhora que o pobre Julián estava morto...
A porteira encolheu os ombros, baixando o olhar e retirando-se na direcção da porta. Aproveitei o momento para guardar a carta no bolso interior do casaco e fechar a gaveta.
- Olhe, não vá fazer uma ideia errada - disse a porteira.
- Pois claro que não. Que dizia a carta?
- Era de amor. Como as da rádio, mas mais triste, isso é verdade, porque aquela parecia ser verdadeira. Olhe que ao lê-la me deu vontade de chorar.
- A senhora é toda coração, dona Aurora.
- E você é um demónio.
Naquela mesma tarde, depois de me despedir de dona Aurora e de lhe prometer que a manteria informada acerca das minhas pesquisas sobre Julián Carax, dirigi-me ao escritório do administrador do imóvel. O senhor Molins tinha visto melhores tempos e agora languescia num escritório imundo sepultado numa sobreloja da Rua Floridablanca. Molins era um indivíduo risonho e rotundo agarrado a um charuto meio fumado que parecia crescer-lhe do bigode. Era difícil determinar se estava a dormir ou acordado, porque respirava como quem ressona. Tinha o cabelo oleoso e espalmado sobre a testa, o olhar porcino e pícaro. Vestia um fato pelo qual não dariam nem dez pesetas no mercado de Los Encantes, mas compensava-o com uma estrepitosa gravata de colorido tropical. A julgar pelo aspecto do gabinete, ali já só se administravam musaranhos e catacumbas de uma Barcelona de antes da Restauração.
- Estamos em remodelação - disse Molins à guisa de desculpa.
Para quebrar o gelo, deixei cair o nome de dona Aurora como se se tratasse de uma velha amiga da família.
- Olhe que a verdade é que em nova não era nada de deitar fora - comentou Molins. - Os anos puseram-na pesadona; claro que eu também não sou o que era. Aqui onde me vê, eu na sua idade era um Adónis. As gajas punham-se de joelhos para eu lhes fazer um favor, quando não um filho. O século vinte é uma merda. Enfim, o que é que se lhe oferece, jovem?
Impingi-lhe uma história mais ou menos plausível sobre um suposto parentesco distante com os Fortuny. Depois de cinco minutos de conversa fiada, Molins arrastou-se até ao seu arquivo e deu-me a direcção do advogado que tratava dos assuntos de Sophie Carax, a mãe de Julián.
- Vamos lá a ver... José Maria Requejo, rua León XIII, 59. Se bem que lhe enviemos todos os semestres a correspondência para um apartado de correios da central da Via Layetana.
- Conhece o doutor Requejo?
- Devo ter falado uma ou outra vez com a secretária pelo telefone. Na verdade, as diligências com ele são todas feitas pelo correio e quem trata delas é a minha secretária, que hoje está no cabeleireiro. Os advogados de hoje não têm tempo para o contacto formal de antigamente. Já não há cavalheiros na profissão.
Ao que parecia, tão-pouco havia direcções fiáveis. Uma simples vista de olhos ao guia de ruas que havia em cima da secretária do administrador confirmou-me o que suspeitava: a direcção do suposto advogado Requejo não existia. Assim fiz saber ao senhor Molins, que absorveu a notícia como uma piada.
- Não me lixe - disse, a rir. - Que lhe dizia eu? Aldrabões.
O administrador reclinou-se no cadeirão e emitiu outro dos seus roncos.
- Terá por acaso o número desse apartado de correio?
- Segundo a ficha é o 2837, embora eu não perceba os números que a minha secretária faz, porque o senhor bem sabe que as mulheres para a matemática não servem; para o que servem, é para...
- Permite-me que veja a ficha?
- Ora essa, era o que faltava. Veja o senhor.
Estendeu-me a ficha e examinei-a. Os números percebiam-se perfeitamente. O apartado de correio era o 2321. Aterrou-me pensar na contabilidade que se devia fazer naquele escritório.
- Teve muitos contactos com o senhor Fortuny em vida? - perguntei.
- Mais ou menos. Um homem muito austero. Lembro-me de que, quando soube que a francesa o tinha deixado, o convidei a ir às putas com uns amigalhaços aqui a um sítio fabuloso que conheço ao lado de La Paloma. Para ele desanuviar, hem?, mais nada. E olhe que deixou de me dirigir a palavra e de me cumprimentar na rua, como se eu fosse invisível. O que é que acha?
- Fico parvo. Que mais me pode contar da família Fortuny? Lembra-se bem deles?
- Eram outros tempos - murmurou com saudade. - A verdade é que eu já conhecia o avô Fortuny, que fundou a chapelaria. Do filho, não sei que lhe conte. Ela, essa, sim, era um portento. Que mulher! E honesta, hem?, apesar de todos os boatos e falatórios que corriam por aí...
- Como o de o Julián não ser filho legítimo do senhor Fortuny?
- E o senhor onde é que ouviu isso?
- Como lhe disse, sou da família. Tudo se sabe.
- Nunca se provou nada disso.
- Mas falou-se - convidei.
- As pessoas para abrir o bico estão sempre prontas. O homem não vem do macaco, vem da galinha.
- E que diziam as pessoas?
- Apetece-lhe um copinho de rum? É de Igualada, mas tem cá um travozinho das Caraíbas... É óptimo.
- Não, obrigado, mas faço-lhe companhia. Entretanto vá-me contando...
Antoni Fortuny, a quem todos chamavam o chapeleiro, tinha conhecido Sophie Carax em 1899 diante dos degraus da catedral de Barcelona. Vinha de fazer uma promessa a Santo Eustáquio, que, de entre todos os santos com capela particular, tinha fama de ser o mais diligente e o menos escrupuloso na hora de fazer milagres de amor. Antoni Fortuny, que já tinha feito trinta anos e transbordava de celibato, queria uma esposa e queria-a já. Sophie era uma jovem francesa que vivia num lar para meninas na rua Riera Alta e dava aulas particulares de solfejo e piano aos rebentos das famílias mais privilegiadas de Barcelona. Não tinha família nem património, apenas a sua juventude e a formação musical que o pai, pianista de um teatro de Nimes, lhe conseguira deixar antes de morrer de tuberculose em 1886. Antoni Fortuny, em contrapartida, era um homem em vias de prosperidade. Tinha herdado recentemente o negócio do pai, uma reputada chapelaria na Ronda de San António na qual aprendera o ofício que um dia sonhava ensinar ao seu próprio filho. Sophie Carax afigurou-se-lhe frágil, bela, jovem, dócil e fértil. Santo Eustáquio tinha cumprido de acordo com a sua reputação. Após quatro meses de cortejo insistente, Sophie aceitou a sua oferta de casamento. O senhor Molins, que tinha sido amigo do avô Fortuny, advertiu Antoni de que se casava com uma desconhecida, que Sophie lhe parecia uma boa rapariga, mas que talvez aquele enlace fosse demasiado conveniente para ela, que esperasse pelo menos um ano... Antoni Fortuny replicou que já sabia o suficiente da sua futura esposa. O resto não interessava. Casaram-se na basílica de El Pino e passaram a lua-de-mel de três dias numas termas de Mongat. Na manhã antes de partir, o chapeleiro perguntou confidencialmente ao senhor Molins como devia proceder nos mistérios de alcova. Molins, sarcástico, disse-lhe que perguntasse à mulher. O casal Fortuny regressou a Barcelona apenas dois dias depois. Os vizinhos disseram que Sophie chorava ao entrar na escada. A Viçenteta juraria anos mais tarde que Sophie lhe dissera que o chapeleiro não lhe tinha posto um dedo em cima e que, quando ela o quisera seduzir, lhe tinha chamado rameira e se sentira repugnado com a obscenidade do que ela propunha. Seis meses mais tarde, Sophie anunciou ao marido que trazia um filho nas entranhas. O filho de outro homem.
Antoni Fortuny tinha visto o seu próprio pai bater na mãe uma infinidade de vezes e fez o que considerava procedente. Só se deteve quando achou que uma só roçadura mais a mataria. Mesmo assim, Sophie negou-se a desvendar a identidade do pai da criança que trazia no ventre. Antoni Fortuny, aplicando a sua lógica particular, decidiu que se tratava do demónio, pois aquele não era senão o filho do pecado, e o pecado só tinha um pai: o maligno. Convencido assim de que o pecado se tinha enfiado no seu lar e entre as coxas da esposa, o chapeleiro habituou-se a pendurar crucifixos por todo o lado: nas paredes, nas portas de todos os quartos e no tecto. Quando Sophie o encontrou a semear de cruzes a alcova a que a tinha confinado, assustou-se e, com lágrimas nos olhos, perguntou-lhe se tinha endoidecido.
Ele, cego de raiva, voltou-se e esbofeteou-a. «Umaputa, como as outras», cuspiu ao expulsá-la a pontapé para o patamar da escada depois de a desancar a golpes de correia. No dia seguinte, quando Antoni Fortuny abriu aporta de casa para descer a fim de abrir a chapelaria, Sophie continuava ali, coberta de sangue seco e a tiritar de frio. Os médicos nunca conseguiram consertar completamente as fracturas da mão direita. Sophie Carax nunca mais voltaria a tocar piano, mas deu à luz um rapaz ao qual viria a chamar Julián em memória do pai que tinha perdido cedo de mais, como tudo na vida. Fortuny pensou em pô-la fora de casa, mas achou que o escândalo não seria bom para o negócio. Ninguém compraria chapéus a um homem com fama de cornudo. Era um contra-senso. Sophie passou a ocupar uma alcova escura e fria na parte de trás do andar. Ali daria à luz o filho com a ajuda de duas vizinhas da escada. Antoni não voltou a casa senão três dias depois. «Este é o filho que Deus te deu - anunciou-lhe Sophie. - Se queres castigar alguém, castiga-me a mim, mas não a uma criança inocente. O menino precisa de um lar e de um pai. Os meus pecados não são dele. Rogo-te que te apiedes de nós.»
Os primeiros meses foram difíceis para ambos. Antoni Fortuny tinha decidido rebaixar a mulher à categoria de criada. Já não compartilhavam nem a cama nem a mesa, e raras vezes trocavam uma palavra a não ser para dirimir alguma questão de ordem doméstica. Uma vez por mês, normalmente coincidindo com a lua cheia, Antoni Fortuny marcava presença na alcova de Sophie de madrugada e, sem dizer palavra, investia a sua antiga esposa com ímpeto mas escasso ofício. Aproveitando estes raros e beligerantes momentos de intimidade, Sophie tentava congraçar-se com ele sussurrando palavras de amor, prodigalizando carícias experientes. O chapeleiro não era homem para futilidades e o soçobro do desejo evaporava-se-lhe em questão de minutos, quando não segundos. Dos ditos assaltos de camisa de noite arregaçada não resultou filho algum. Depois de uns anos, Antoni Fortuny deixou definitivamente de visitar a alcova de Sophie e adquiriu o hábito de ler as Sagradas Escrituras até bem entrada a madrugada, procurando nelas alívio para o seu tormento.
Com a ajuda dos Evangelhos, o chapeleiro fazia um esforço por suscitar no seu coração um amor por aquele menino de olhar profundo que gostava de fazer brincadeiras com tudo e inventar sombras onde não as havia. Apesar do seu empenho, não sentia o pequeno Julián como filho do seu sangue, nem se reconhecia nele. O menino, por seu turno, não parecia interessar-se em demasia pelos chapéus nem pelos ensinamentos do catecismo. Chegado o Natal, Julián entretinha-se a recompor as figuras do presépio e urdir intrigas nas quais o Menino Jesus tinha sido raptado pelos três reis magos do Oriente com fins escabrosos. Depressa adquiriu a mania de desenhar anjos com dentes de lobo e inventar histórias de espíritos encapuçados que saíam das paredes e comiam as ideias das pessoas enquanto dormiam.
Com o tempo, o chapeleiro perdeu toda a esperança de encaminhar aquele rapaz para uma vida de proveito. Aquele menino não era um Fortuny e nunca o seria. Alegava que se aborrecia no colégio e regressava com os cadernos todos repletos de garatujas de seres monstruosos, serpentes aladas e edifícios vivos que andavam e devoravam os incautos. Já nessa altura era claro que a fantasia e a invenção lhe interessavam infinitamente mais do que a realidade quotidiana que o rodeava. De todas as decepções que amealhou na vida, nenhuma doía tanto aAntoni Fortuny como aquele filho que o demónio lhe tinha enviado para zombar dele.
Aos dez anos, Julián anunciou que queria ser pintor, como Velázquez, pois sonhava acometer as telas que o grande mestre não tinha conseguido chegar a pintar em vida, argumentava, por causa de tanto retratar por obrigação os débeis mentais da família real. Para acabar de compor as coisas, Sophie, talvez para matar a solidão e recordar o pai, teve a ideia de lhe dar aulas de piano, Julián, que adorava a música, a pintura e todas as matérias desprovidas de proveito e benefício na sociedade dos homens, depressa aprendeu os rudimentos da harmonia e decidiu que preferia inventar as suas próprias composições a seguir as partituras do livro de solfejo, o que era contranatura. Por essa altura, Antoni Fortuny ainda julgava que parte das deficiências mentais do rapaz se devia à sua dieta, demasiado influenciada pelos hábitos de cozinha francesa da mãe. Era bem sabido que a exuberância de manteigas produzia a ruína moral e aturdia o entendimento. Proibiu Sophie de cozinhar com manteiga para todo o sempre. Os resultados não foram exactamente os esperados.
Aos doze anos, Julián começou a perder o seu febril interesse pela pintura e por Velázquez, mas as esperanças iniciais do chapeleiro foram de pouca dura. Julián abandonava os sonhos do Prado por outro vício muito mais pernicioso. Tinha descoberto a biblioteca da rua del Carmen e devotava todas as tréguas que o pai lhe concedia na chapelaria a ir ao santuário dos livros e devorar volumes de romance, de poesia e de história. Um dia antes de perfazer os treze anos anunciou que queria ser alguém chamado Robert Louis Stevenson, claramente um estrangeiro. O chapeleiro anunciou-lhe que dificilmente chegaria a canteiro. Teve então a certeza de que o filho não passava de um ignorante.
Amiudadas vezes, sem conseguir conciliar o sono, Antoni Fortuny contorcia-se na cama de raiva e frustração. No fundo do coração gostava daquele rapaz, dizia de si para si. E, embora ela não o merecesse, também gostava da mulherzinha que o traíra desde o primeiro dia. Amava-os com toda a sua alma, mas à sua maneira, que era a correcta. Só pedia a Deus que lhe mostrasse o modo como os três podiam ser felizes, preferivelmente também à sua maneira. Implorava ao Senhor que lhe enviasse um sinal, um sussurro, uma migalha da sua presença. Deus, na sua infinita sabedoria e talvez esmagado pela avalancha de petições de tantas almas atormentadas, não respondia. Enquanto Antoni Fortuny se desfazia em remorsos e mágoas, Sophie, do outro lado da parede, apagava-se lentamente, vendo a sua vida naufragar num sopro de enganos, de abandono, de culpa. Não amava o homem ao qual servia, mas sentia-se sua, e a possibilidade de o abandonar e levar o filho para outro lugar afigurava-se-lhe inconcebível. Recordava com amargura o verdadeiro pai de Julián, e com o tempo aprendeu a odiá-lo e a detestar tudo quanto ele representava, que não era senão tudo o que ela desejava. À falta de conversas, o casal começou a trocar gritos. Insultos e recriminações afiadas voavam pelo andar como facas, crivando quem ousasse interpor-se na sua trajectória, habitualmente Julián. Mais tarde, o chapeleiro nunca se lembrava exactamente da razão pela qual tinha batido na mulher. lembrava-se apenas do fogo e da vergonha, jurava então a si mesmo que aquilo nunca mais voltaria a acontecer, que se fosse necessário se entregaria às autoridades para que o confinassem a uma penitenciária.
Com a ajuda de Deus, Antoni Fortuny tinha a certeza de que podia vir a ser um homem melhor do que seu pai tinha sido. Mas, mais tarde ou mais cedo, os punhos encontravam de novo a carne tenra de Sophie e, com o tempo, Fortuny sentiu que, se não podia possuí-la como marido, o faria como verdugo. Deste modo, às escondidas, a família Fortuny deixou passar os anos, silenciando os seus corações e as suas almas, até ao ponto em que, de tanto calar, se esqueceram das palavras para expressar os seus verdadeiros sentimentos e se transformaram em estranhos que conviviam debaixo do mesmo tecto, um de tantos na cidade infinita.
Passava já das duas e meia quando regressei à livraria. Ao entrar, Fermín lançou-me um olhar sarcástico do alto de uma escada, onde puxava o lustro a uma colecção dos Episódios Nacionais(1) do insigne don Benito.
- Bons olhos o vejam. Já o julgávamos a fazer as Américas, Daniel.
- Entretive-me pelo caminho. E o meu pai?
- Como o Daniel não vinha, foi ele fazer o resto das entregas. Encarregou-me de lhe dizer que esta tarde ia a Tiana avaliar a biblioteca privada de uma viúva. O seu pai é daqueles que as fazem pela calada. Disse para o Daniel não esperar por ele para fechar.
- Estava zangado?
Fermín abanou a cabeça, descendo da escada com uma agilidade felina.
- Qual quê! O seu pai é um santo. Aliás estava muito contente por ver que o Daniel tinha arranjado uma namorada.
- O quê?
Fermín piscou-me o olho, derretendo-se.
*1. Refere-se à colecção de romances históricos em 46 volumes de Benito Pérez Galdós. (N. T.)
- Ah, malandreco, que andava tão caladinho. E que menina, oiça, é de fazer parar o trânsito. De uma finura que não lhe digo nada. Vê-se que andou em bons colégios, embora tivesse cá um vício no olhar... Olhe, se eu não tivesse o coração conquistado pela Bernarda, porque ainda não lhe falei do nosso lanche... até fazia faíscas, oiça, faíscas que parecia a noite de São João...
- Fermín - interrompi-o. - De que diabo está você a falar?
- Da sua namorada.
- Eu não tenho namorada, Fermín.
- Bem, hoje em dia vocês, os jovens, chamam a isso qualquer coisa, «guerlifrend», ou...
- Pare lá com isso, Fermín. De que é que está a falar?
Fermín Romero de Torres olhou para mim desconcertado, unindo os dedos de uma mão e gesticulando à maneira siciliana.
- Ora vamos a ver. Esta tarde, há coisa de uma hora ou hora e meia, uma menina toda jeitosa passou por aqui e perguntou por si. O seu pai e este seu criado estávamos de corpo presente e posso-lhe assegurar sem margem para dúvidas que a rapariga não tinha aspecto de ser uma aparição. Poder-lhe-ia descrever até o cheiro. A lavanda, mas mais doce. Como um bolinho acabado de fazer.
- E o bolinho disse porventura que era minha namorada?
- Assim com todas as letras, não, mas sorriu como que de esguelha, bem sabe, e disse que o esperava na sexta-feira à tarde. Nós limitámo-nos a somar dois e dois.
- Bea... - murmurei eu.
- Ergo, existe - observou Fermín, aliviado.
- Sim, mas não é minha namorada - disse eu.
- Pois não sei de que é que o Daniel está à espera.
- É a irmã do Tomás Aguilar.
- O seu amigo inventor? Assenti.
- Mais uma razão. Nem que fosse a irmã de Gil Robles, oiça; porque é boa como o milho. Eu, no seu lugar, já estaria a afiar o dente.
- A Bea já tem namorado. Um alferes que está a fazer o serviço militar. Fermín suspirou, irritado.
- Ah, o Exército, praga e reduto tribal do corporativismo simiesco. Tanto melhor, porque assim o Daniel pode pôr-lhe a armação sem remorsos.
- Está a delirar, Fermín. A Bea vai-se casar quando o alferes acabar o serviço militar.
Fermín sorriu-me, ladino.
- Pois veja lá que a mim cheira-me que aquela rapariga não se casa.
- Você lá sabe.
- De mulheres, e de outros misteres mundanos, bastante mais que o Daniel. Como nos ensina Freud, a mulher deseja o contrário daquilo que pensa ou declara, o que, bem vistas as coisas, não é assim tão terrível, porque o homem, como nos ensina o Calino, obedece em contrapartida aos ditames do seu aparelho genital ou digestivo.
- Não me venha com discursos, Fermín, que a mim não me engana o senhor. Se tem alguma coisa a dizer, sintetize.
- Pois olhe que, em sucinta essência, lhe digo: aquela não tinha cara de se casar com o Cascorro(1).
- Ah, não? E então de que é que tinha cara, diga lá? Fermín aproximou-se de mim com um ar confidencial.
- De prazer mórbido - observou, erguendo as sobrancelhas com ar de mistério. - E que conste que o digo como um elogio.
Como sempre, Fermín tinha razão. Vencido, optei por jogar no seu terreno.
- Por falar em prazer mórbido, conte lá da Bernarda. Houve beijo ou não houve beijo?
- Não me ofenda, Daniel. Recordo-lhe que está a falar com um profissional da sedução, e isso do beijo é para amadores e diletantes de pantufa. A mulher de verdade conquista-se pouco a pouco. É tudo uma questão de psicologia, como uma boa faena na praça.
- Ou seja, deu-lhe tampa.
- A Fermín Romero de Torres nem São Roque dá tampas. O que acontece é que o homem, voltando a Freud e passe a metáfora, aquece como uma lâmpada: ao rubro num ápice e frio outra vez num ai. A fêmea, porém, aquece como um ferro de engomar, está a perceber? Pouco a pouco, a fogo lento, como a boa escudellã(2). Mas lá quando aquece, não há quem pare aquilo. Como os altos-fornos da Biscaia.
Sopesei as teorias termodinâmicas de Fermín.
- É isso que o senhor está a fazer com a Bernarda? - perguntei. - Pôr o ferro ao lume?
Fermín piscou-me o olho.
- Aquela mulher é um vulcão à beira da erupção, com uma libido de magma ígneo e um coração de santa - disse, derretendo-se todo. - Para estabelecer um paralelismo veraz, lembra-me a minha mulatinha lá em Havana, que era uma beata muito devota. Mas, como no fundo sou um cavalheiro dos de antigamente,
*1. Alusão ao soldado espanhol Eloy Gonzalo Garcia, conhecido por Herói de Cascorro, povoação de Cuba, onde deu provas de heroísmo, em 1896. (N. T.)
*2 Sopa típica catalã. (N. T)
não me aproveito, e com um casto beijo na face me conformei. Porque eu não tenho pressa, sabe? Há por aí pategos que acham que se puserem a mão no cu a uma mulher e ela não se queixar, já a têm no papo. Aprendizes. O coração da fêmea é um labirinto de subtilezas que desafia a mente grosseira do macho trapaceiro. Se quiser realmente possuir uma mulher, tem de pensar como ela, e a primeira coisa é conquistar-lhe a alma. O resto, o doce envoltório macio que nos faz perder o sentido e a virtude, vem por acréscimo.
Aplaudi o seu discurso com solenidade.
- O senhor está um verdadeiro poeta, Fermín.
- Não, eu estou com Ortega e sou um pragmático, porque a poesia mente, embora em bonito, e o que eu digo é mais verdade que o pão com tomate. Já lá dizia o mestre, mostre-me um dom-joão e eu mostro-lhe um mariconço disfarçado. Para mim é a permanência, o perene. Tomo-o a si por testemunha de que farei da Bernarda uma mulher, se não honrada, porque isso já ela é, pelo menos feliz.
Sorri-lhe, assentindo. O seu entusiasmo era contagioso e a sua métrica invencível.
- Cuide-me bem dela, Fermín. Que a Bernarda tem demasiado coração e já apanhou demasiadas decepções.
- Pensa que eu não dou por isso? Com franqueza, pois se ela o tem escrito na testa como um atestado do patronato de viúvas de guerra! Digo-lho eu, que nisto de encaixar sacanices tenho muitíssima experiência: eu àquela mulher encho-a de felicidade nem que seja a última coisa que faço neste mundo.
- Palavra?
Estendeu-me a mão com gravidade templária. Apertei-lha.
- Palavra de Fermín Romero de Torres.
Tivemos uma tarde morta na loja, apenas com um par de curiosos. Em vista do panorama, sugeri a Fermín que tirasse o resto da tarde livre.
- Ande, vá procurar a Bernarda e leve-a ao cinema ou a ver montras na rua Puertaferrisa de braço dado, que ela gosta imenso disso.
Fermín apressou-se a pegar-me na palavra e correu a arranjar-se na parte de trás da loja, onde guardava sempre uma muda impecável e toda a sorte de águas-de-colónia e unguentos num estojo que teria feito a inveja de dona Concha Piquer. Quando saiu parecia um galã de grande filme, mas com trinta quilos a menos nos ossos. Vestia um fato que tinha sido do meu pai e um chapéu de feltro que lhe ficava um par de números acima, problema que solucionava colocando bolas de papel de jornal debaixo da copa.
- A propósito, Fermín. Antes de se ir embora... Queria pedir-lhe um favor.
- Com certeza. O senhor mande, que eu cá estou para obedecer.
- Vou-lhe pedir que isto fique entre nós, hem? Ao meu pai nem uma palavra.
Sorriu de orelha a orelha.
- Ah, malandreco. Alguma coisa relacionada com aquela miúda imponente, hem?
- Não. Isto é um assunto de investigação e intriga. Da sua especialidade, digamos.
- Bem, eu de miúdas também sei umas coisas. Digo isto porque, se um dia tiver qualquer consulta técnica a fazer, já sabe. Com toda a confiança, que eu para isso sou como um médico. Sem parvoeiras.
- Tê-lo-ei em conta. Agora, o que precisaria de saber é a quem pertence um apartado de correio na estação central da Via Layetana. O número 2321. E, se for possível, quem levanta o correio que lá vai parar. Acha que poderia dar-me uma mãozinha?
Fermín anotou o número no peito do pé, por baixo da meia, a esferográfica.
- Isso é canja. A mim não há organismo oficial que me resista. Dê-me uns dias e entregar-lhe-ei um relatório completo.
- Combinámos que ao meu pai nem uma palavra, hem?
- Não se preocupe. Faça de contas que eu sou a esfinge de Keops.
- Fico-lhe agradecido. E agora ande, vá-se embora e divirta-se. Despedi-me dele com uma saudação militar e vi-o partir galhardo como
um galo rumo ao galinheiro. Não deviam ter passado nem cinco minutos desde que Fermín saíra quando ouvi as campainhas da porta e ergui a vista das colunas de números e riscos. Um indivíduo abrigado com uma gabardina cinzenta e um chapéu de feltro acabava de entrar. Ostentava um bigode pincelado e uns olhos azuis e vítreos. Exibia um sorriso de vendedor, falso e forçado. Lamentei que Fermín não estivesse ali, porque ele tinha um jeitão para se livrar dos caixeiros-viajantes de cânforas e bugigangas que ocasionalmente entravam pela livraria dentro. O visitante brindou-me com o seu sorriso untuoso e falso, pegando ao acaso no tomo de uma pilha por arrumar e valorizar que havia junto da entrada. Todo ele comunicava desprezo por tudo quanto via. Não me vais vender nem as boas-tardes, pensei eu.
- Tanta letra, hem? - disse ele.
- É um livro; costumam ter bastantes letras. Em que posso ajudá-lo, cavalheiro?
O indivíduo devolveu o livro à pilha, assentindo com displicência e ignorando a minha pergunta.
- É o que eu digo. Ler é para as pessoas que têm muito tempo e nada que fazer. Como as mulheres. Quem tem de trabalhar não tem tempo para histórias. Na vida é preciso mourejar. Não acha?
- É uma opinião. Procurava alguma coisa em especial?
- Não é uma opinião; é um facto. É o que se passa neste país, que as pessoas não querem trabalhar. Muito vadio é o que há, não acha?
- Não sei, cavalheiro. Talvez. Aqui, como vê, só vendemos livros.
O indivíduo aproximou-se do balcão, com o olhar sempre a revolutear pela loja e poisando ocasionalmente no meu. O seu aspecto e a sua postura eram-me vagamente familiares, embora não soubesse dizer de onde. Havia qualquer coisa nele que me fazia pensar numa daquelas figuras que aparecem em cartas de antiquário ou adivinho, uma personagem fugida das gravuras de um incunábulo. Tinha a presença fúnebre e incandescente, como uma maldição com o traje domingueiro.
- Se me disser em que posso servi-lo...
- Quem lhe vinha prestar um serviço a si era eu. O senhor é o proprietário deste estabelecimento?
- Não. O proprietário é o meu pai.
- E o seu nome é?
- O meu ou o do meu pai?
O indivíduo endereçou-me um sorriso zombeteiro. Uma cara de páscoa, pensei.
- Depreendo então que a tabuleta de Sempere e filhos se refere a ambos.
- É muito perspicaz. Posso perguntar-lhe qual é o motivo da sua visita, se não está interessado num livro?
- O motivo da minha visita, que é de cortesia, é avisá-lo de que chegou à minha atenção que os senhores têm relações com gente de má vida, em particular invertidos e meliantes.
Observei-o atónito.
- Perdão?
O indivíduo cravou o olhar em mim.
- Falo de pandeiros e ladrões. Não me diga que não sabe do que falo.
- Lamento dizer que não tenho a mais remota ideia, nem qualquer interesse em continuar a ouvi-lo.
O indivíduo assentiu, adoptando uma atitude hostil e irada.
- Pois vai ter de gramar. Suponho que está ao corrente das actividades do cidadão Federico Flaviá.
- Don Federico é o relojoeiro do bairro, uma excelente pessoa, e duvido muito que seja um meliante.
- Eu falava de pandeiros. Consta-me que essa bichona frequenta o vosso estabelecimento, suponho que para vos comprar romancecos românticos e pornografia.
- E posso perguntar-lhe o que tem o senhor com isso?
Por única resposta extraiu a sua carteira e estendeu-a aberta sobre o balcão. Reconheci um cartão de identificação policial emporcalhado com o semblante do indivíduo, um tanto mais novo. Li até onde dizia «Inspector-chefe Francisco Javier Fumero Almuniz».
- Jovem, fale-me com respeito, senão prego-lhes a si e ao seu pai uma porrada que lhes cai o cabelo por venderem lixo bolchevique. Entendido?
Quis replicar, mas as palavras tinham-me ficado congeladas nos lábios.
- Mas bem, não é esse pandeiro que hoje me traz até aqui. Mais tarde ou mais cedo acabará na esquadra, como todos os da laia dele, e eu o espevitarei. O que me preocupa é que tenho informações de que os senhores empregam um vulgar gatuno, um indesejável da pior espécie.
- Não sei de quem me fala, senhor inspector.
Fumero soltou o seu risinho servil e pegajoso, de camarilha e coscuvilhice.
- Só Deus sabe que nome utilizará agora. Há anos dava pelo nome de Wilfredo Camagúey, ás do mambo, e dizia ser especialista em vudu, professor de dança de D. Juan de Borbón e amante da Mata Hari. Outras vezes adopta nomes de embaixadores, artistas de variedades e toureiros. Já perdemos a conta.
- Lamento não o poder ajudar, mas não conheço ninguém chamado Wilfredo Camagúey.
- Com certeza que não, mas sabe a quem me refiro, não sabe?
- Não.
Fumero riu de novo. Aquele riso forçado e amaneirado definia-o e resumia-o como um índice.
- O senhor gosta de dificultar as coisas, não gosta? Olhe, eu vim aqui como amigo para os avisar e prevenir de que quem mete um indesejável em casa acaba com os dedos escaldados e o senhor trata-me como aldrabão.
- De maneira nenhuma. Agradeço-lhe a sua visita e a sua advertência, mas garanto-lhe que não há...
- Não me venha com essas merdas, porque se me der nos cornos enfio-lhe um par de galhetas e fecho-lhe a chafarica, entendido? Mas hoje estou bem disposto, de maneira que o vou deixar só com a advertência. O senhor lá sabe as companhias que escolhe. Se gosta de pandeiros e de ladrões, lá terá alguma coisa de ambos. Comigo, é pão pão, queijo queijo. Ou está do meu lado ou contra mim. É assim a vida. Em que ficamos?
Eu não disse nada. Fumero assentiu, soltando outra risadinha.
- Muito bem, Sempere. É lá consigo. Começamos mal, o senhor e eu. Se quer problemas, tê-los-á. A vida não é como os romances, sabe? Na vida há que tomar partido. E está à vista aquele que o senhor escolheu. O dos que perdem por serem burros.
- Vou-lhe pedir que saia, por favor.
Afastou-se até à porta arrastando a sua risadinha sibilina.
- Voltaremos a ver-nos. E diga ao seu amigo que o inspector Fumero o tem debaixo de olho e lhe manda muitos cumprimentos.
A visita do infausto inspector e o eco das suas palavras incendiaram-me a tarde. Depois de quinze minutos a correr de um lado para o outro atrás do balcão com um nó nas tripas, decidi fechar a livraria antes da hora e sair à rua para caminhar sem rumo. Não conseguia tirar do pensamento as insinuações e as ameaças que aquele aprendiz de magarefe tinha feito. Perguntava a mim mesmo se devia alertar o meu pai e Fermín sobre aquela visita, mas supus que era essa precisamente a intenção de Fumero, semear a dúvida, a angústia, o medo e a incerteza entre nós. Decidi que não ia fazer o seu jogo. Por outro lado, as insinuações acerca do passado de Fermín alarmavam-me. Envergonhei-me de mim mesmo ao descobrir que por um instante tinha dado crédito às palavras do polícia. Depois de dar muitas voltas ao assunto, decidi selar aquele episódio num canto qualquer da minha memória e ignorar as suas implicações. De regresso a casa, passei defronte da relojoaria do bairro. Don Federico cumprimentou-me do balcão, fazendo-me sinais para entrar no seu estabelecimento. O relojoeiro era uma personagem afável e sorridente que nunca se esquecia de dar as suas felicitações por ocasião das festas e à qual se podia sempre recorrer para resolver qualquer apuro, com a certeza de que ele encontraria a solução. Não pude evitar sentir um calafrio ao sabê-lo na lista negra do inspector Fumero, e perguntei a mim mesmo se devia avisá-lo, embora não imaginasse como, sem me imiscuir em matérias que não eram da minha incumbência. Mais confundido que nunca, entrei na relojoaria e sorri-lhe.
- Como estás, Daniel? Vens cá com uma cara!
- Um dia mau - disse eu. - Como vai tudo, don Federico?
- Sobre rodas. Os relógios cada vez são mais mal feitos e farto-me de trabalhar. Se isto continua assim, vou ter de arranjar um ajudante. O teu amigo, o inventor, não estaria interessado? De certeza que tem boa mão para isto.
Não me custou imaginar o que opinaria o pai de Tomás Aguilar sobre a perspectiva de o filho aceitar um emprego no estabelecimento de don Federico, maricas oficial do bairro.
- Eu depois falo com ele.
- A propósito, Daniel. Tenho aqui o despertador que o teu pai me trouxe há duas semanas. Não sei o que ele fez, mas mais lhe valeria comprar um novo do que arranjá-lo.
Lembrei-me de que às vezes, nas noites de Verão asfixiantes, o meu pai tinha a mania de ir dormir para a varanda.
- Caiu-lhe à rua - disse eu.
- Bem me parecia. Diz-lhe que me diga o que resolve. Eu posso-lhe arranjar um Radiant por muito bom preço. Se quiseres, olha, leva-o e ele que o experimente. Se gostar, depois mo paga. E, se não, devolves-mo.
- Muito obrigado, don Federico.
O relojoeiro pôs-se a embrulhar a engenhoca em questão.
- Alta tecnologia - disse, satisfeito. - A propósito, gostei imenso do livro que no outro dia o Fermín me vendeu. Um de Graham Greene. Aquele Fermín é uma contratação de primeira.
Acenei afirmativamente.
- Sim, é óptimo.
- Reparei que nunca anda de relógio. Diz-lhe que passe por aqui e tratamos disso.
- Assim farei. Obrigado, don Federico.
Ao dar-me o despertador, o relojoeiro observou-me detidamente e arqueou as sobrancelhas.
- De certeza que não se passa nada, Daniel? Só um dia mau? Acenei afirmativamente outra vez, sorrindo.
- Não se passa nada, don Federico. Passe bem.
- Tu também, Daniel.
Ao chegar a casa encontrei o meu pai adormecido no sofá com o jornal sobre o peito. Deixei o despertador em cima da mesa com um recado que dizia «da parte de don Federico: que deites fora o antigo», e deslizei silenciosamente até ao meu quarto. Deitei-me na cama na penumbra e adormeci a pensar no inspector, em Fermín e no relojoeiro. Quando acordei eram já duas da manhã. Assomei ao corredor e vi que o meu pai se tinha retirado para o quarto dele com o despertador novo. O andar estava nas trevas e o mundo parecia-me um lugar mais escuro e sinistro do que se me tinha afigurado na noite anterior. Compreendi que, no fundo, nunca tinha chegado a acreditar que o inspector Fumero fosse real. Agora parecia-me um entre mil. Fui à cozinha e servi-me de um copo de leite frio. Perguntei a mim mesmo se Fermín estaria bem, são e salvo na sua pensão.
De volta ao meu quarto procurei afastar do pensamento a imagem do polícia. Tentei conciliar de novo o sono, mas compreendi que tinha perdido o comboio.
Acendi a luz e decidi examinar o envelope dirigido a Julián Carax que tinha subtraído a dona Aurora naquela manhã e que ainda trazia no bolso do casaco. Coloquei-o sobre a secretária debaixo da luz do candeeiro flexível. Era um envelope apergaminhado, de bordos serrados que amareleciam e toque argiloso. O carimbo, apenas uma sombra, dizia «18 de Outubro de 1919». O selo de lacre tinha-se soltado, provavelmente graças aos bons ofícios de dona Aurora. No seu lugar restava uma mancha vermelhusca como um roçagar de batom que beijava o fecho sobre o qual se podia ler o remetente:
Penélope Aldaya Avenida del Tibidabo, 32, Barcelona.
Abri o envelope e extraí a carta, uma folha de cor ocre nitidamente dobrada ao meio. Um traço de tinta azul deslizava com vigor nervoso, desvanecendo-se paulatinamente e voltando a ganhar intensidade de umas tantas em tantas palavras. Tudo naquela folha falava de outro tempo: o traço escravo do tinteiro, as palavras arranhadas sobre o papel grosso pelo gume do aparo, o toque rugoso do papel. Alisei a carta sobre o tampo e li-a, quase sem respirar.
Querido Julián:
Esta manhã soube pelo Jorge que realmente deixaste Barcelona e partiste em busca dos teus sonhos. Sempre temi que esses sonhos não te deixassem nunca ser meu, nem de ninguém. Teria gostado de te ver uma última vez, poder olhar-te nos olhos e dizer-te coisas que não sei contar a uma carta. Nada correu como tínhamos planeado. Conheço-te bem de mais e sei que não me escreverás, que nem sequer me enviarás a tua direcção, que quererás ser outro. Sei que me odiarás por não ter aparecido como te prometi. Que julgarás que te falhei. Que não tive coragem.
Tantas vezes te imaginei, sozinho naquele comboio, convencido de que te tinha traído(1). Muitas vezes procurei encontrar-te através do Miquel, mas ele disse-me que já não querias saber de mim para nada. Que mentiras te contaram, Julián? Que te disseram de mim? Por que acreditaste neles?
Agora já sei que te perdi, que perdi tudo. E ainda assim não posso deixar que partas para sempre e me esqueças sem que saibas que não te guardo rancor, que o sabia desde o princípio, que sabia que te ia perder e que tu nunca havias de ver em mim o que eu via em ti. Quero que saibas que te amei desde o primeiro dia e que te continuo a amar, agora mais do que nunca, mesmo que te custe.
Escrevo-te às escondidas, sem que ninguém o saiba. O Jorge jurou que se te voltar a ver te matará. Já não me deixam sair de casa, nem assomar à janela. Não me parece que alguma vez me perdoem. Alguém de confiança prometeu-me que te enviará esta carta.
Não menciono o seu nome para não o comprometer. Não sei se as minhas palavras te chegarão. Mas para o caso de assim acontecer e decidires voltar à minha procura, aqui encontrarás a maneira de o fazer. Enquanto escrevo, imagino-te naquele comboio, carregado de sonhos e com a alma despedaçada de traição, fugindo de todos nós e de ti próprio. Há tantas coisas que não te posso contar, Julián! Coisas que nunca soubemos e é melhor que nunca saibas.
Não desejo nada mais no mundo do que a tua felicidade, Julián, que tudo aquilo a que aspiras se torne realidade e que, mesmo que me esqueças com o tempo, um dia venhas a compreender o muito que te amei.
Sempre, Penélope.
As palavras de Penélope Aldaya, que li e reli naquela noite até as saber de cor, dissiparam de uma penada o mau sabor que me tinha deixado a visita do inspector Fumero. Depois de passar a noite em claro, absorto naquela carta e na voz que nela intuía, saí de casa com a madrugada. Vesti-me em silêncio e deixei uma mensagem ao meu pai na mesa do vestíbulo, dizendo-lhe que tinha de fazer alguns recados e que estaria de volta à livraria às nove e meia. Ao assomar à porta, as ruas languesciam ocultas ainda sob um manto azulado que lambia as sombras e os charcos que a chuva miudinha semeara durante a noite. Abotoei o casacão até ao pescoço e encaminhei-me a passo ligeiro rumo à Praça da Catalunha. As escadas do metro exalavam uma cortina de vapor tépido que ardia em luz de cobre. Nas bilheteiras dos caminhos-de-ferro catalães comprei um bilhete de terceira classe até à estação de Tibidabo. Fiz o trajecto num vagão povoado de impedidos, criadas e jornaleiros levando sanduíches do tamanho de um tijolo embrulhadas em folhas de jornal. Refugiei-me no negrume dos túneis e apoiei a cabeça na janela, semicerrando os olhos enquanto o comboio percorria as entranhas da cidade até aos pés do Tibidabo. Ao emergir de novo na rua pareceu-me redescobrir outra Barcelona. Estava a amanhecer e um fio de púrpura rasgava as nuvens e salpicava as fachadas dos palacetes e casarões senhoriais que flanqueavam a Avenida del Tibidabo. O eléctrico azul rastejava preguiçosamente entre neblinas. Corri atrás dele e consegui trepar para a plataforma traseira sob o olhar severo do revisor. A cabina de madeira estava quase vazia. Um par de frades e uma dama enlutada de pele cinzenta embalavam-se adormecidos com o vaivém da carruagem de cavalos invisíveis.
- Só vou até ao número trinta e dois - disse ao revisor, oferecendo o meu melhor sorriso.
- Pois é como se fosse até ao Finisterra - replicou ele, indiferente. - Aqui até os soldados de Cristo pagaram bilhete. Quem não é pagante vai no calcante. E não lhe levo nada pela rima.
O duo de frades, que calçava sandálias e um manto de serapilheira castanha de austeridade franciscana, assentiu, mostrando cada um o seu bilhete cor-de-rosa a título de prova.
- Pois então apeio-me - disse. - Porque não tenho trocado.
- Como queira. Mas espere pela próxima paragem, que eu não quero acidentes.
O eléctrico subia quase a ritmo de passeio, acariciando a sombra do arvoredo e observando sobre os muros e jardins de mansões com alma de castelo que eu imaginava povoadas de estátuas, fontes, cavalariças e capelas secretas. Assomei a um lado da plataforma e distingui a silhueta da torre de «El Frare Blanc» recortando-se entre as árvores. Ao aproximar-se da esquina de Román Macaya, o eléctrico abrandou a marcha até parar quase completamente. O condutor fez soar a sua campainha e o revisor lançou-me um olhar de censura.
- Ande lá, espertalhão. Despache-se, que tem aí mesmo o número trinta e dois.
Apeei-me e ouvi o chocalhar do eléctrico azul perder-se na bruma. A residência da família Aldaya ficava do outro lado da rua. Protegia-a um portão de ferro forjado entrelaçado de hera e folhagem. Recortada entre as barras adivinhava-se uma portinhola fechada a sete chaves. Sobre as grades, ligado em serpentes de ferro preto, lia-se o número 32. Tentei espreitar dali o interior do prédio, mas mal se adivinhavam as arestas e os arcos de um torreão escuro. Um rasto de ferrugem sangrava do buraco da fechadura da portinhola. Ajoelhei e tentei obter dali uma visão do pátio. Vislumbrava-se apenas uma madeixa de ervas selvagens e o contorno do que me pareceu uma fonte ou um lago do qual emergia uma mão estendida, apontando para o céu. Levei uns instantes a perceber que se tratava de uma mão de pedra, e que havia outros membros e silhuetas que não lograva distinguir submergidos na fonte. Mais adiante, entre as cortinas de ervas daninhas, adivinhava-se uma escadaria de mármore quebrada e coberta de escombros e folhagem. A fortuna e a glória dos Aldaya tinham mudado de direcção havia muito tempo. Aquele lugar era um túmulo.
Recuei uns passos, contornando a esquina para deitar uma vista de olhos à ala sul da casa. Dali conseguia obter-se uma visão mais clara de uma das alas do palacete. Naquele instante distingui pelo rabo do olho a silhueta de um indivíduo com ar famélico ataviado com um roupão azul que brandia um vasculho com o qual martirizava a folhagem sobre o passeio. Observava-me com um certo receio e supus que fosse o porteiro de um dos prédios limítrofes. Sorri-lhe como só quem passou muitas horas atrás de um balcão sabe fazer.
- Muito bons dias - entoei cordialmente. - Sabe se a casa dos Aldaya está fechada há muito tempo?
Observou-me como se eu o tivesse interrogado acerca da quadratura do círculo. O homenzinho levou ao queixo uns dedos que amareleciam e permitiam supor uma debilidade pelos Celtas sem filtro. Lamentei não trazer comigo um maço de tabaco para me congraçar com ele. Escarafunchei nos bolsos do casaco, para ver que oferenda se propiciava.
- Vinte ou vinte e cinco anos pelo menos, e que assim continue - disse o porteiro com aquele tom e dócil das pessoas condenadas a servir à força de pancada.
- Há muito tempo que o senhor aqui está? O homenzinho assentiu.
- Este seu criado está aqui ao serviço dos senhores Miravell desde 20.
- Não faz ideia do que foi feito da família Aldaya, pois não?
- Bem, já saberá que perderam muita coisa quando foi da República - disse. - Quem semeia ventos... Eu o pouco que sei foi o que ouvi em casa dos senhores Miravell, que dantes eram amigos da família. Creio que o filho mais velho, Jorge, foi para o estrangeiro, para a Argentina. Está visto que tinham fábricas lá. Gente de muito dinheiro. Não terá por acaso um cigarro?
- Lamento, mas posso oferecer-lhe um caramelo Sugus, que está demonstrado que tem a mesma nicotina que um Montecristo e além disso uma data de vitaminas.
O porteiro franziu o cenho com uma certa incredulidade. Ofereci-lhe o Sugus de limão que Fermín me tinha dado havia uma eternidade e que descobrira dentro da dobra do forro do meu bolso. Contei que não estivesse rançoso.
- É bom - sentenciou o porteiro, saboreando o caramelo gomoso.
- Está a mascar o orgulho da indústria confeiteira nacional. O Generalíssimo mama-os como se fossem amêndoas. E diga-me cá, alguma vez ouviu falar na filha dos Aldaya, a Penélope?
O porteiro apoiou-se no vasculho à maneira de pensador erecto de Rodin.
- Acho que o senhor está enganado. Os Aldaya não tinham filhas. Eram todos rapazes.
- Tem a certeza? Consta-me que aí por 1919 vivia nesta casa uma jovem chamada Penélope Aldaya, que provavelmente era irmã do tal Jorge.
- Pode ser, mas já lhe digo que eu só aqui estou desde 20.
- E o prédio, a quem pertence agora?
- Que eu saiba ainda está à venda, embora se falasse em deitá-lo abaixo e construir um colégio. É o melhor que têm a fazer, para dizer a verdade. Arrasá-lo até aos alicerces.
- Por que diz isso?
O porteiro olhou-me com ar confidencial. Ao sorrir observei que lhe faltavam pelo menos quatro dentes da gengiva superior.
- Essa gente, os Aldaya. Não eram flor que se cheire, o senhor sabe o que se diz.
- Receio bem que não. O que é que se diz?
- O senhor sabe. Os barulhos e o resto. Eu, acreditar nessas histórias, não acredito, hem?, mas dizem que não foi um nem dois que borraram as cuecas ali dentro.
- Não me diga que a casa está assombrada - disse eu, reprimindo um sorriso.
- Ria-se, ria-se. Mas não há fumo sem fogo...
- O senhor viu alguma coisa?
- O que se chama ver, não. Mas ouvi.
- Ouviu? O quê?
- Olhe, uma vez, há-de haver anos, uma noite que acompanhei o Joanet, porque ele insistiu, hem?, que eu ali não era perdido nem achado... dizia eu, que ouvi ali uma coisa estranha. Parecia um choro.
O porteiro ofereceu-me uma imitação de viva voz do som a que se referia. A mim pareceu-me a litania de um tísico a trautear modinhas.
- Era capaz de ser o vento - sugeri.
- Era capaz, mas a mim, para dizer a verdade, caíram-me aos pés. Oiça, não terá outro caramelo desses, não?
- Aceite-me uma pastilha Juanola. Tonificam muitíssimo depois do doce.
- Força - conveio o porteiro, estendendo a mão para recolectar. Entreguei-lhe a caixa inteira. O safanão do alcaçuz pareceu lubrificar-lhe
um pouco mais a língua sobre aquela rocambolesca história do palacete Aldaya.
- Cá para nós que ninguém nos ouve, aqui há gato. Uma vez o Joanet, o filho do senhor Miravell, que é um matulão que faz dois do senhor (basta dizer-lhe que está na selecção nacional de andebol)... pois uns amigalhaços do senhor Joanet tinham ouvido falar da casa dos Aldaya e meteram-se nisso. E ele meteu-me a mim para o acompanhar, porque muita conversa mas não se atrevia a entrar sozinho. O senhor sabe, franganotes. Empenhou-se em enfiar-se lá dentro de noite para armar em galaroz para a namorada e por pouco não se mijou em cima de mim. Porque agora o senhor está a vê-la de dia, mas de noite esta casa é outra, hem? O caso é que o Joanet diz que subiu ao segundo andar (porque eu me recusei a entrar, oiça, que isso não deve ser legal, embora nessa altura a casa já estivesse abandonada há pelo menos dez anos) e disse que havia qualquer coisa lá. Pareceu-lhe ouvir uma espécie de voz num quarto mas, quando quis entrar, fechou-se-lhe a porta na cara. O que é que me diz a isto?
- Digo que deve ter sido uma corrente de ar - disse eu.
- Ou de outra coisa - observou o porteiro, baixando a voz. - No outro dia davam na rádio: o universo está cheio de mistérios. Repare que parece que encontraram o verdadeiro santo sudário em pleno centro de Sardanyola. Tinham-no cosido na tela dum cinema, para o esconder dos muçulmanos, que a querem usar para dizer que Jesus Cristo era negro. Que me diz a isto?
- Não tenho palavras.
- É o que eu lhe digo. Muito mistério. Deviam deitar este prédio abaixo e deitar cal no terreno.
Agradeci ao senhor Remigio a informação e dispus-me a descer a avenida de volta a San Gervasio. Ergui a vista e vi que a montanha do Tibidabo amanhecia entre nuvens de gaze. Apeteceu-me de repente ir até ao funicular e escalar a ladeira até ao antigo parque de atracções que fica lá em cima para me perder entre os seus carrosséis e os seus salões de autómatos, mas tinha prometido estar na livraria a horas. De volta à estação do metro imaginei Julián Carax a descer por aquele mesmo passeio e a contemplar aquelas mesmas fachadas solenes que pouco tinham mudado desde então, com as suas escadarias e jardins de estátuas, talvez à espera daquele eléctrico azul que trepava em pontas dos pés até ao céu. Ao chegar ao princípio da avenida, puxei da fotografia de Penélope Aldaya a sorrir no pátio do palacete familiar. Os seus olhos prometiam a alma lavada e um futuro por escrever. «Ama-te, Penélope.»
Imaginei um Julián Carax com a minha idade a segurar aquela imagem nas mãos, talvez à sombra da mesma árvore que me abrigava a mim. Quase me parecia vê-lo, sorridente, seguro de si, a contemplar um futuro tão amplo e luminoso como aquela avenida, e por um instante pensei que não havia ali mais fantasmas que os da ausência e da perda, e que aquela luz que me sorria era de empréstimo e só valia enquanto a pudesse segurar com o olhar, segundo a segundo.
Ao regressar a casa verifiquei que Fermín ou o meu pai já tinham aberto a livraria. Subi um momento ao andar para comer qualquer coisa rápida.
O meu pai tinha-me deixado torradas, marmelada e um termo de café na mesa da casa de jantar. Dei boa conta de tudo aquilo e voltei a descer em menos de dez minutos. Entrei na livraria pela porta de trás da loja que dava para o vestíbulo do edifício e dirigi-me ao meu armário. Pus o avental que costumava utilizar na loja para proteger a roupa do pó de caixas e estantes. No fundo do armário guardava uma caixa de latão que ainda cheirava a bolachas da Camprodón. Guardava lá todo o tipo de bugigangas inúteis mas das quais era incapaz de me desfazer: relógios e canetas irremediavelmente estragadas, moedas velhas, peças de miniaturas, caricas, cápsulas de bala que tinha encontrado no Parque do Laberinto e postais antigos da Barcelona do princípio do século. No meio de toda aquela misturada flutuava ainda o velho pedaço de jornal onde Isaac Monfort me tinha apontado a direcção da sua filha Nuria na noite em que eu fora ao Cemitério dos Livros Esquecidos para esconder A Sombra do Vento. Estudei-o à luz poeirenta que caía entre as estantes e caixas empilhadas. Fechei a caixa e guardei a direcção no porta-moedas. Assomei à loja, decidido a ocupar a mente e as mãos na tarefa mais banal que aparecesse à mão de semear.
- Bom dia - anunciei.
Fermín classificava o conteúdo de várias caixas que tinham chegado de um coleccionador de Salamanca, e o meu pai via-se e desejava-se para decifrar um catálogo alemão de apócrifa luterana que tinha um nome de enchido fino.
- E melhores tardes nos dê Deus - cantarolou Fermín, em velada alusão ao meu encontro com Bea.
Não lhe dei o prazer de responder e decidi enfrentar o inevitável pincel mensal de pôr o livro de contabilidade em dia, cotejando recibos e guias de remessa, cobranças e pagamentos. A embalar a nossa serena monotonia havia a rádio, que nos obsequiava com uma selecção de momentos escolhidos na carreira de António Machín, muito em voga na época. Ao meu pai os ritmos caribenhos mexiam-lhe um pouco com os nervos, mas tolerava-os porque recordavam a Fermín a sua saudosa Cuba. A cena repetia-se todas as semanas: o meu pai fazia orelhas moucas e Fermín abandonava-se num vago meneio ao compasso do danzón(1) pontuando os interlúdios comerciais com anedotas das suas aventuras em Havana. A porta da loja estava aberta e entrava um aroma doce a pão fresco e a café que convidava ao optimismo. Decorrido um bocado a nossa vizinha, Merceditas, que vinha das compras no mercado da Boquería, parou diante da montra e assomou à porta.
- Boas tardes, senhor Sempere - cantarolou.
O meu pai sorriu-lhe, ruborizado. Eu tinha a impressão de que ele gostava de Merceditas, mas a sua ética de frade cartuxo conferia-lhe um silêncio inquebrantável. Fermín olhava-se de soslaio, lambendo os beiços e seguindo o suave baloiçar das ancas como se acabasse de entrar um brazo de gitano pela
porta. Merceditas abriu um saco de papel e obsequiou-nos com três maçãs reluzentes. Imaginei que ainda lhe andava às voltas na cabeça a ideia de trabalhar na livraria e fazia poucos esforços por esconder a antipatia que Fermín, o usurpador, parecia inspirar-lhe.
- Olhe que lindas. Vi-as e disse cá para mim: estas são para os senhores Sempere - disse em tom obsequioso. - Que eu sei que os senhores, os intelectuais, gostam de maçãs, como Isaac Peral.
- Isaac Newton, anjinha - precisou Fermín, solícito. Merceditas lançou-lhe um olhar assassino.
- Já cá faltava o espertalhão. Agradeça mas é que eu lhe tenha trazido também uma, e não uma toranja, que era o que você merecia.
- Mas, mulher, para mim a oferenda que as suas mãos núbeis me fazem desta, a fruta do pecado original, inflama-me a fibra de...
- Faça-me o favor, Fermín - atalhou o meu pai.
- Sim, senhor Sempere - acatou Fermín, batendo em retirada. Estava Merceditas para ripostar a Fermín quando se ouviu um burburinho.
Ficámos todos em silêncio, expectantes. Na rua erguiam-se vozes de indignação e desencadeava-se uma algaravia de murmurações. Merceditas assomou à porta, prudente. Vimos passar vários comerciantes aturdidos, abanando disfarçadamente a cabeça. Não tardou a aparecer don Anacleto Olmo, inquilino do imóvel e porta-voz oficioso da Real Academia da Língua na escada. Don Anacleto era catedrático de instituto, licenciado em Literatura Espanhola e Humanidades várias, e compartilhava o segundo primeira com sete gatos. Nos momentos que a docência lhe deixava livres fazia um biscate como redactor de textos de contracapa para uma editora de prestígio e, corria o rumor, compunha versos de erótica crepuscular que publicava com o pseudónimo de Rodolfo Pitón. No trato pessoal, don Anacleto era um homem afável e encantador, mas em público sentia-se obrigado a representar o papel de rapsodo e afectava uns falares que lhe tinham granjeado a alcunha de Gongorino.
Naquela manhã, o catedrático vinha com a cara roxa de aflição, e quase lhe tremiam as mãos com que segurava a bengala de marfim. Olhámos os quatro para ele, admirados.
- Que se passa, don Anacleto? - perguntou o meu pai.
- Não me diga que morreu o Franco - observou Fermín, esperançado.
- Você cale-se, seu animal - cortou Merceditas. - E deixe o senhor doutor falar.
Don Anacleto respirou fundo e, recuperando a compostura, passou a dar-nos parte dos acontecimentos com a sua costumada majestosidade.
- Amigos, a vida é drama e até as mais nobres criaturas do Senhor saboreiam o fel de um destino caprichoso e contumaz. Ontem à noite, de madrugada, enquanto a cidade dormia aquele sono tão merecido dos povos laboriosos, don Federico Flaviá i Pujades, estimado vizinho que tanto contribuiu para o enriquecimento e solaz deste bairro no seu mister de relojoeiro lá do seu estabelecimento sito a três portas apenas desta sua livraria, foi detido pelas forças de segurança do Estado.
Senti que me caía a alma aos pés.
- Jesus, Maria e José - apostilou Merceditas.
Fermín bufou, decepcionado, pois estava à vista que o chefe do Estado continuava a gozar de excelente saúde. Don Anacleto, já embalado, tomou fôlego e dispôs-se a continuar.
- Ao que parece, e a fazer fé no relato fidedigno que me foi revelado por fontes próximas da Direcção Geral da Polícia, dois condecorados membros da Brigada Criminal incógnitos surpreenderam don Federico pouco depois da meia-noite ataviado de fúfia e entoando canções de letra picante no palco dum tugúrio da rua Escudillers, para grande gáudio de uma assistência presumivelmente composta por débeis mentais. Estas criaturas esquecidas de Deus, fugidas na mesma tarde do manicómio de uma ordem religiosa, tinham arriado as calças no frenesi do espectáculo e bailaricavam sem decoro, dando palmas com a hombridade erecta e as ventas babeantes.
Merceditas persignou-se, surpreendida pelo cariz escabroso que os factos adquiriam.
- As mães de alguns dos pobres inocentes, ao serem informadas do latrocínio, apresentaram denúncia por escândalo público e atentado à moral mais elementar. A imprensa, ave rapace que medra na desgraça e no opróbrio, não tardou a farejar a carniça e, graças às argúcias de um bufo profissional, não tinham transcorrido nem quarenta minutos da chegada à cena dos dois membros da autoridade quando compareceu no referido local Kiko Calabuig, repórter do jornal El Caso, mais conhecido como Remenamerda(1), disposto a cobrir os factos que fosse mister para que a sua crónica negra chegasse antes do fecho da edição de hoje, onde, escusado será dizer, se qualifica com grosseria sensacionalista o espectáculo registado no local de dantesco e arrepiante em caracteres de corpo vinte e quatro.
- Não pode ser - disse o meu pai. - Mas parecia que don Federico se tinha corrigido.
Don Anacleto assentiu com veemência pastoral.
- Sim, mas não se esqueça do rifoneiro, acervo e voz do nosso sentir mais profundo, que lá diz: a cabra puxa sempre para o monte, e nem só de brometo vive o homem. E ainda os senhores não ouviram o pior.
*1. Equivalente, em catalão, a Remexanamerda. (N. T.)
- Pois vá vossa mercê direita ao assunto, que com tantos voos metafóricos já me está a dar vontade de aliviar o ventre - protestou Fermín.
- Não ligue a este animal, que eu gosto muito da maneira como o senhor fala. E como o No-Do, senhor doutor - intercedeu Merceditas.
- Obrigado, filha, mas sou apenas um humilde professor. Mas voltando ao que dizia, sem mais delongas, preâmbulo nem fioritura. Ao que parece, o relojoeiro, que no momento da detenção dava pelo nome artístico de La Nina er Peine, foi já detido em circunstâncias similares num par de ocasiões que constam nos anais do dia-a-dia criminal dos guardiães da paz.
- Diga antes malfeitores com crachá - atirou Fermín.
- Eu em política não me meto. Mas posso dizer-lhes que, após derrubarem o pobre don Federico do palco com uma garrafada certeira, os dois agentes conduziram-no à esquadra da Via Layetana. Noutra conjuntura, com sorte, a coisa não teria passado de acontecimento burlesco e se calhar um par de bofetadas e/ou vexações menores, mas deu-se a funesta circunstância de ontem à noite andar por ali o célebre inspector Fumero.
- Fumero - murmurou Fermín, ao qual a simples menção da sua némesis tinha causado um estremecimento.
- O próprio. Como ia dizendo, o adail da segurança dos cidadãos, recém-chegado de uma rusga triunfal a um estabelecimento ilegal de apostas e corridas de carochas situado na Rua Vigatans, foi informado do sucedido pela angustiada mãe de um dos rapazes tresmalhados do manicómio e presumível cérebro da fuga, Pepet Guardiola. Nisto, o notável inspector, que ao que parece trazia no bucho doze copinhos de Soberano desde o jantar, decidiu tomar parte no assunto. Após estudar as agravantes em questão, Fumero aprestou-se a indicar ao sargento de serviço que tanta (e cito o vocábulo na sua mais desbragada literalidade apesar da presença de uma menina pelo seu valor documental em relação ao acontecimento) paneleiragem merecia uma lição e aquilo de que o relojoeiro, ou seja don Federico Flaviá i Pujades, solteiro e natural da localidade de Ripollet, precisava, para seu bem e da alma imortal dos rapazinhos mongolóides cuja presença era acessória mas determinante no caso, era passar a noite no calabouço comum da subcave da instituição na companhia de uma selecta plêiade de vadios. Como provavelmente os senhores saberão, a dita cela é célebre no seio do elemento criminoso pelo carácter inóspito e precário das suas condições sanitárias, e a inclusão de um cidadão vulgar na lista de hóspedes é sempre motivo de folguedo, pelo que aporta de lúdico e original à monotonia da vida prisional.
Chegado a este ponto, don Anacleto passou a esboçar um breve mas afectuoso bosquejo do carácter da vítima, aliás de todos bem conhecido.
Escusado será que lhes recorde que o senhor Flaviá i Pujades foi bafejado com uma personalidade frágil e delicada, todo ele bondade e piedade cristã. Se uma mosca se introduz na relojoaria, em vez de a matar à sapatada, abre a porta e as janelas de par em par para que o insecto, criatura do Senhor, seja levado pela corrente de volta ao ecossistema. Don Federico, ao que me consta, é um homem de fé, muito devoto e envolvido nas actividades da paróquia que, não obstante, teve toda a vida de conviver com uma tenebrosa atracção para o vício que, em raríssimas ocasiões, o venceu e o atirou para a rua disfarçado de mulherzinha. A sua habilidade para reparar desde relógios de pulso até máquinas de costura foi sempre proverbial e a sua pessoa apreciada por todos quantos o conhecemos e frequentamos o seu estabelecimento, inclusivamente por aqueles que não viam com bons olhos as suas ocasionais escapadas nocturnas ostentando cabeleira postiça, travessa e vestidos às bolas.
- O senhor fala como se ele estivesse morto - arriscou Fermín, consternado.
- Morto, não, graças a Deus.
Suspirei, aliviado. Don Federico vivia com uma mãe octogenária e totalmente surda, conhecida no bairro como La Pepita e famosa por largar uns traques tempestuosos que faziam cair aturdidos os pardais da sua varanda.
- Mal imaginava La Pepita que o seu Federico - continuou o catedrático - tinha passado a noite numa cela imunda, onde um orfeão de chulos e faquistas o teriam rifado qual puta para depois, uma vez saciados das suas carnes magras, lhe ministrarem uma tareia mestra enquanto os restantes presos cantavam alegremente em coro «paneleiro, paneleirão, come merda panascão».
Apoderou-se de nós um silêncio sepulcral. Merceditas soluçava. Fermín quis consolá-la com um terno abraço, mas ela libertou-se de um salto.
- Imaginem o quadro - concluiu don Anacleto para consternação de todos.
O epílogo da história não melhorava as expectativas. A meio da manhã, um furgão cinzento da esquadra tinha deixado don Federico estendido à porta de sua casa. Estava ensanguentado, com o vestido às tiras, sem a sua peruca nem a sua colecção de bijutaria fina. Tinham-lhe urinado em cima e trazia a cara cheia de equimoses e cortes. O filho da padeira encontrara-o encolhido à porta, chorando como uma criança e tremendo.
- Não há direito, não senhor - comentou Merceditas, postada à porta da livraria, longe das mãos de Fermín. - Pobrezinho, ele que é bom como o pão e não se mete com ninguém!
Gosta de se vestir de fufia e andar por aí a cantar? E que mais dá? A gente sempre é muito má! Don Anacleto mantinha-se calado, com o olhar baixo. - Má, não - objectou Fermín. - Imbecil, o que não é a mesma coisa. O mal pressupõe uma determinação moral, intenção e um certo pensamento. O imbecil ou bruto não pára para pensar nem para raciocinar. Age por instinto, como animal de estábulo, convencido de que está a fazer o bem, de que tem sempre razão, e orgulhoso por andar a lixar, com vossa licença, todo aquele que se lhe afigura diferente dele próprio, seja na cor, na crença, no idioma, na nacionalidade ou, como no caso de don Federico, nos seus hábitos de lazer. O que é preciso no mundo é mais gente verdadeiramente má e menos casmurros limítrofes.
- Não diga disparates. O que é preciso é um pouco mais de caridade cristã e menos mau feitio, que isto parece um país de alimárias - atalhou Merceditas. - Muita ida à missa, mas a Nosso Senhor Jesus Cristo aqui nem Deus liga.
- Não mencionemos a indústria do missal, que é parte do problema e não da solução, Merceditas.
- Já cá faltava o ateu. Que mal é que lhe fez a si o clero, pode-se saber?
- Vamos, não se peguem - interrompeu o meu pai. - E você, Fermín, vá ter com don Federico e veja se ele precisa de alguma coisa, que se vá à farmácia ou que se lhe compre alguma coisa no mercado.
- Sim, senhor Sempere. É para já. É que a mim a oratória perde-me, o senhor bem sabe.
- O que o perde a si é a pouca vergonha e a irreverência que tem no pêlo - apostilou Merceditas. - Blasfemo! Do que precisava era que lhe limpassem a alma com ácido clorídrico.
- Olhe, Merceditas, é só porque me consta que a senhora é uma boa pessoa (se bem que um tanto curta de entendimento e mais ignorante que um lorpa), e neste momento estamos na presença de uma emergência social no bairro perante a qual é preciso dar prioridade a certos esforços, porque senão eu ia esclarecer-lhe um par de pontos cardeais.
- Fermín! - clamou o meu pai.
Fermín fechou o bico e saiu a correr pela porta. Merceditas observava-o com ar reprovador.
- Esse homem vai meter os senhores em sarilhos no dia em que menos esperem, tome atenção ao que eu lhe digo. No mínimo é anarquista, maçon e até judeu. Com aquele narigão...
- Não lhe ligue importância. Ele faz tudo aquilo por espírito de contradição.
Merceditas abanou a cabeça em silêncio, irritada.
- Bom, deixo-vos, visto que estou pluriempregada e me falta o tempo. Bom dia.
Fizemos reverentemente uma inclinação de cabeça e vimo-la partir, empertigada e castigando a rua com os saltos dos sapatos. O meu pai respirou fundo, como se quisesse inspirar a paz recuperada. Don Anacleto languescia ao seu lado, com o rosto branqueado por momentos e o olhar triste e outonal.
- Este país foi-se por água abaixo - disse, desmontando já da sua oratória colossal.
- Vamos, anime-se, don Anacleto. É que as coisas sempre assim foram, aqui e em todo o lado; o que acontece é que há momentos baixos e quando nos tocam de perto vê-se tudo mais negro. Vai ver que don Federico arrebita, que é mais forte do que todos pensamos.
O catedrático abanava dissimuladamente a cabeça.
- É como a maré, sabe? - dizia, absorto. - A barbárie, quero eu dizer. Vai-se e a pessoa julga-se a salvo, mas volta sempre, volta sempre... e afoga-nos. Eu vejo isso todos os dias no instituto. Valha-me Deus. Símios, é o que me aparece nas aulas. Darwin era um sonhador, garanto-lhe. Nem evolução nem coisa que se pareça. Por cada um que raciocina, tenho de lidar com nove orangotangos.
Limitámo-nos a assentir docilmente. O catedrático despediu-se com um cumprimento e partiu, cabisbaixo e cinco anos mais velho do que entrara. O meu pai suspirou. Olhámo-nos brevemente, sem saber o que dizer. Perguntei a mim mesmo se devia referir-lhe a visita do inspector Fumero à livraria. Isto foi um aviso, pensava eu. Uma advertência. Fumero tinha utilizado o pobre don Federico como telegrama.
- Passa-se alguma coisa contigo, Daniel? Estás branco.
Suspirei e baixei o olhar. Passei a relatar-lhe o incidente com o inspector Fumero na outra noite, as suas insinuações. O meu pai escutava-me, engolindo a fúria que lhe ardia nos olhos.
- A culpa é minha- disse eu. - Devia ter dito qualquer coisa... O meu pai abanou a cabeça.
- Não. Tu não podias saber, Daniel.
- Mas...
- Nem te passe pela cabeça pensar nisso. E ao Fermín, nem uma palavra. Sabe Deus como ia reagir se soubesse que esse indivíduo anda outra vez atrás dele.
- Mas alguma coisa teremos de fazer.
- Procurar que não se meta em sarilhos.
Assenti, não muito convencido, e dispus-me a continuar a tarefa que Fermín tinha iniciado enquanto o meu pai voltava à sua correspondência. Entre parágrafo e parágrafo, o meu pai lançava-me um ou outro olhar de soslaio. Fingi não dar por isso.
- Que tal ontem com o professor Velázquez, tudo bem? - perguntou, desejoso de mudar de assunto.
- Sim. Ficou contente com os livros. Comentou comigo que anda à procura de um livro de cartas de Franco.
- O Matamoros. Mas se é apócrifo... Uma piada de Madariaga. Que foi que lhe disseste?
- Que já estávamos a tratar disso e lhe dizíamos alguma coisa dentro de duas semanas, no máximo.
- Bem feito. Poremos o Fermín a tratar disso e cobrar-lho-emos a peso de ouro.
Assenti. Continuámos com a aparente rotina. O meu pai continuava a olhar para mim. Aí vem, pensei.
- Ontem passou por cá uma rapariga muito simpática. Diz o Fermín que é a irmã do Tomás Aguilar?
- Sim.
O meu pai assentiu, ponderando o acaso com uma expressão de ora-vê-lá-tu. Concedeu-me um minuto de trégua antes de voltar ao ataque, desta vez com ar de se lembrar repentinamente de qualquer coisa.
- Ouve, a propósito, Daniel: hoje vamos ter um dia muito morto e estou cá a pensar que se calhar te apetece tirá-lo para ti e para as tuas coisas. Além disso, ultimamente parece-me que trabalhas de mais.
- Estou bem, obrigado.
- Olha que até estava a pensar em deixar o Fermín aqui e ir ao Liceo com o Barceló. Esta tarde levam o Tannhãuser e ele convidou-me, porque tem vários lugares de plateia.
O meu pai fazia de contas que lia a correspondência.
- E desde quando é que gostas de Wagner? Ele encolheu os ombros.
- A cavalo dado... Aliás com o Barceló não interessa qual é a ópera que levam, porque ele passa toda a representação a comentar a jogada e a criticar o vestuário e o ritmo. Pergunta-me muito por ti. Vê lá se um dia o vais ver à loja.
- Um dia destes.
- Então, se achas bem, hoje deixamos o Fermín ao comando e nós vamo-nos divertir um bocado, que já é tempo. E se precisares de algum dinheiro...
- Papá, a Bea não é minha namorada.
- E quem é que fala de namoradas? Nada disso. É lá contigo. Se precisares, tira da caixa, mas deixa uma nota para o Fermín depois não se assustar ao fechar o dia.
Dito isto, fez-se distraído e perdeu-se na parte de trás da loja com um sorriso de orelha a orelha. Consultei o relógio. Eram dez e meia da manhã. Tinha combinado encontro com Bea no claustro da universidade às cinco e, com muita pena minha, o dia ameaçava tornar-se-me mais comprido que Os Irmãos Karamazov.
Daí a pouco regressou Fermín de casa do relojoeiro e informou-nos de que um comando de vizinhas tinha montado guarda permanente para tratar do pobre don Federico, ao qual o médico tinha encontrado três costelas partidas, contusões múltiplas e uma rasgadura rectal de antologia.
- Foi preciso comprar alguma coisa? - perguntou o meu pai.
- Remédios e unguentos já tinham para abrir uma botica, pelo que me permiti levar-lhe umas flores, um frasco de água-de-colónia Nenuco e três boiões de Fruco de pêssego, que é o preferido de don Federico.
- Fez bem. Depois me diz quanto lhe devo - disse o meu pai. - E a ele, como o achou?
- Feito em caca, para quê mentir? Só de o ver encolhido na cama como um novelo, a gemer que queria morrer, deu-me uma ânsia assassina, imagine o senhor. Espetava comigo neste preciso momento armado até aos dentes na Brigada Criminal e limpava o sarampo a meia dúzia de patetas, a começar por aquela pústula supurante do Fumero.
- Isto quer é calma, Fermín. Proíbo-o terminantemente de fazer seja o que for.
- Como queira, senhor Sempere.
- E La Pepita, como está ela a reagir?
- Com uma presença de espírito exemplar. As vizinhas têm-na dopada à base de baldes de brande e quando a vi tinha caído inerme em torpor no sofá, onde ressonava como um varrasco e expelia umas bufas que perfuravam a tapeçaria.
- Génio e figura. Fermín, vou-lhe pedir que fique hoje na loja, que eu vou num instante ver don Federico. Depois fiquei de me encontrar com Barceló. E o Daniel tem coisas a fazer.
Ergui a vista mesmo a tempo para surpreender Fermín e o meu pai a trocarem um olhar de cumplicidade.
- Que belo par de casamenteiras! - disse eu.
Ainda se riam de mim quando saí a porta a deitar faíscas.
Varria as ruas uma brisa fria e cortante que semeava pinceladas de vapor à sua passagem. Um sol incisivo arrancava ecos de cobre ao horizonte de telhados e campanários do bairro gótico. Faltavam ainda várias horas para o meu encontro com Bea no claustro da universidade e decidi tentar a sorte e ir visitar Nuria Monfort, com a esperança de que ainda morasse na direcção que o pai me tinha proporcionado tempos atrás.
A Praça de San Felipe Neri é apenas um respiradouro no labirinto de ruas que tecem o bairro gótico, oculta atrás das antigas muralhas romanas. Os impactos do fogo de metralhadora nos dias da guerra salpicam os muros da igreja. Naquela manhã, um grupo de miúdos brincava aos soldados, alheio à memória das pedras. Uma mulher jovem, com o cabelo sulcado de madeixas prateadas, contemplava-os sentada num banco, com um livro entreaberto nas mãos e um sorriso ausente. De acordo com as indicações, Nuria morava num edifício no umbral da praça. Podia ainda ler-se a data de construção no arco de pedra enegrecida que coroava a porta da rua, 1801. O saguão mal deixava adivinhar um compartimento de sombras pelo qual subia uma escada enrolada numa espécie de espiral. Consultei a colmeia de caixas de correio de latão. Os nomes dos inquilinos podiam ler-se nuns pedaços de cartolina amarelenta inseridos numa ranhura como de costume.
Miquel Moliner I Nuria Monfort 3.°-2.a
Subi lentamente, quase receando que o imóvel se desmoronasse caso me atrevesse a pisar com firmeza aqueles degraus diminutos, de casa de bonecas. Havia duas portas por patamar, sem número nem distinção. Ao chegar ao terceiro escolhi uma ao acaso e bati com os nós dos dedos. A escada cheirava a humidade, a pedra envelhecida e a argila. Bati várias vezes sem obter resposta. Decidi tentar a sorte com a outra porta. Bati três vezes com o punho. Dentro do andar podia ouvir-se um rádio a todo o volume transmitindo o programa «Momentos para a Reflexão com o padre Martin Calzado».
Abriu-me a porta uma senhora de roupão acolchoado aos quadrados azul-turquesa, pantufas e um capacete de rolos. Na penúria de luz pareceu-me um mergulhador. Atrás dela, a voz aveludada do padre Martin Calzado dedicava umas palavras ao patrocinador do programa, os produtos de beleza Aurorín, predilectos dos peregrinos ao santuário de Lourdes e verdadeiro remédio santo para pústulas e verrugas irreverentes.
- Boa tarde. Estava à procura da senhora Monfort.
- A Nurieta? Enganou-se na porta, jovem. É ali em frente.
- Desculpe, minha senhora. É que bati e ninguém estava.
- Não será um credor, pois não? - perguntou de imediato a vizinha, com o receio da experiência.
- Não. Venho da parte do pai da senhora Monfort.
- Ah, bom. A Nurieta deve estar lá em baixo, a ler. Não a viu ao subir? Ao descer à rua verifiquei que a mulher dos cabelos prateados e do livro nas mãos continuava varada no seu banco da praça. Observei-a detidamente. Nuria Monfort era uma mulher mais que atraente, de traços talhados para figurinos de moda e retratos de estúdio, à qual a juventude parecia escapar-se pelo olhar. Havia qualquer coisa do pai naquela figura frágil e pincelada. Imaginei que devia rondar os quarenta e poucos, deixando-me levar, porventura, pelos traços de cabelo prateado e pelas linhas que fanavam um rosto que, à média luz, teria podido passar por dez anos mais novo.
- Senhora Monfort?
Olhou-me como quem desperta de um transe, sem me ver.
- O meu nome é Daniel Sempere. O seu pai deu-me os seus elementos há algum tempo e disse-me que talvez me pudesse falar de Julián Carax.
Ao ouvir estas palavras, toda a expressão de devaneio se desvaneceu do seu rosto. Depreendi que não tinha sido acertado mencionar o pai.
- O que é que quer? - perguntou com receio.
Senti que, se não ganhasse a sua confiança naquele mesmo instante, teria perdido a minha oportunidade. A única cartada que podia jogar era dizer a verdade.
- Permita-me que me explique. Há oito anos, quase por acaso, encontrei no Cemitério dos Livros Esquecidos um romance de Julián Carax que a senhora lá tinha escondido para evitar que um homem que dá pelo nome de Laín Coubert o destruísse - disse eu.
Olhou-me fixamente, imóvel, como se temesse que o mundo se fosse desmoronar à sua volta.
- Só lhe vou roubar uns minutos - acrescentei. - Prometo-lho. Assentiu, abatida.
- Como está o meu pai? - perguntou, evitando o meu olhar.
- Bem. Agora um pouco mais velho. Tem muitas saudades suas. Nuria Monfort deixou escapar um suspiro que não consegui decifrar.
- O melhor é vir lá a casa. Não quero falar disto na rua.
Nuria Monfort vivia em sombras. Um estreito corredor conduzia à sala de jantar que fazia as vezes de cozinha, biblioteca e escritório. De caminho pude entrever um quarto de dormir modesto, sem janelas. Aquilo era tudo. O resto da habitação reduzia-se a uma minúscula casa de banho, sem duche nem lavatório, pela qual penetrava todo o tipo de aromas, desde os cheiros do bar de baixo ao hálito de canalizações e tubagens que rondavam o século. Aquela casa jazia em perpétua penumbra, uma varanda de escuridões sustida entre paredes desbotadas. Cheirava a tabaco negro, a frio e a ausências. Nuria Monfort observava-me enquanto eu fingia não reparar no carácter precário da sua residência.
- Vou à rua ler porque no andar quase não há luz - disse. - O meu marido prometeu oferecer-me um candeeiro flexível quando voltar a casa.
- O seu marido está de viagem?
- O Miquel está na prisão.
- Desculpe, não sabia...
- Não tinha obrigação nenhuma de saber. Não me envergonha dizer-lho, porque o meu marido não é um criminoso. Desta última vez levaram-no por escrever oitavas para o sindicato dos metalúrgicos. Isso já faz dois anos. Os vizinhos julgam que está na América, de viagem. O meu pai também não sabe, e eu não gostaria que ficasse a saber.
- Fique descansada. Por mim não o há-de saber - disse eu.
Urdiu-se um silêncio tenso e imaginei que ela via em mim um espião de Isaac.
- Deve ser difícil governar a casa sozinha - disse eu tontamente, para preencher aquele vazio.
- Não é fácil. Tiro o que posso com as traduções, mas com o meu marido na prisão não dá para grande coisa. Os advogados depenaram-me e estou cheia de dívidas até ao pescoço. Traduzir dá quase tão pouco como escrever.
Observou-me como se esperasse alguma resposta. Limitei-me a sorrir docilmente.
- A senhora traduz livros?
- Já não. Agora comecei a traduzir impressos, contratos e documentos de alfândega, porque são muito mais bem pagos. Traduzir literatura rende uma miséria, embora um pouco mais que escrevê-la, para dizer a verdade. A administração do condomínio já tentou pôr-me um par de vezes na rua. Atrasar-me nos pagamentos das despesas do condomínio é o menos. Imagine você, falando línguas e andando de calças. Não é um nem dois que me acusam de ter neste andar uma casa de encontros. Outro galo me cantaria...
Esperei que a penumbra ocultasse o meu rubor.
- Desculpe. Não sei por que lhe conto tudo isto. Estou a envergonhá-lo.
- A culpa é minha. Eu é que perguntei.
Riu-se, nervosa. A solidão que se soltava daquela mulher queimava.
- Você parece-se um pouco com o Julián - disse de repente. - Na maneira de olhar e nos gestos. Ele fazia como você. Ficava calado, a olhar para a pessoa sem que ela conseguisse saber o que pensava, e a pessoa ia e como uma parva contava-lhe coisas que mais valia estar calada... Posso oferecer-lhe alguma coisa? Café com leite?
- Nada, obrigado. Não se incomode.
- Não é maçada nenhuma. Ia fazer um para mim.
Houve qualquer coisa que me fez desconfiar que aquele café com leite era toda a sua refeição do meio-dia. Declinei novamente o convite e vi-a retirar-se para um canto da casa de jantar onde havia um forno eléctrico.
- Fique à vontade - disse, virando-me as costas.
Olhei em meu redor e perguntei a mim mesmo como Nuria Monfort tinha o escritório numa secretária que ocupava a esquina ao pé da varanda. Uma máquina de escrever Underwood repousava junto de um candeeiro e uma estante repleta de dicionários e manuais. Não havia fotografias de família, mas a parede em frente da secretária estava coberta de postais, todos eles imagens de uma ponte que me lembrava ter visto algures mas que não consegui identificar, talvez Paris ou Roma. Ao pé deste mural, a secretária respirava uma arrumação e uma meticulosidade quase obsessiva. Os lápis estavam afiados e alinhados na perfeição. Os papéis e pastas estavam ordenados e dispostos em três fileiras simétricas. Quando me voltei apercebi-me de que Nuria Monfort me observava do umbral do corredor. Contemplava-me em silêncio, como se olham os estranhos na rua ou no metro. Acendeu um cigarro e permaneceu onde estava, com o rosto velado nas volutas de fumo azul. Pensei que Nuria Monfort destilava, a contragosto, traços de mulher fatal, daquelas que deslumbravam Fermín quando apareciam entre as trevas de uma estação de Berlim envoltas em halos de luz impossível, e que talvez o seu próprio aspecto a aborrecesse.
- Não há muito que contar - começou. - Conheci o Julián há mais de vinte anos, em Paris. Naquela altura eu trabalhava para a editora Cabestany. O senhor Cabestany tinha adquirido os direitos dos romances do Julián por dez pesetas. Eu tinha começado a trabalhar no departamento de administração, mas quando o senhor Cabestany soube que falava francês, italiano e um pouco de alemão, pôs-me a tratar das aquisições e fez-me sua secretária pessoal. Entre as minhas funções contava-se manter a correspondência com autores e editores estrangeiros com quem a editora tinha relações, e foi assim que entrei em contacto com Julián Carax.
- O seu pai contou-me que eram bons amigos.
- O meu pai deve ter-lhe dito que tivemos uma aventura, ou coisa assim. Não é verdade? Segundo ele, eu desato a correr atrás de qualquer par de calças como se fosse uma cadela no cio.
A sinceridade e o desembaraço daquela mulher roubavam-me as palavras. Tardei demasiado a urdir uma resposta aceitável. Por essa altura, Nuria Monfort sorria de si para si e abanava a cabeça.
- Não lhe ligue. O meu pai foi buscar essa ideia a uma viagem que tive de fazer a Paris no ano de 33 para resolver uns assuntos do senhor Cabestany com a Gallimard. Estive uma semana na cidade e hospedei-me no apartamento do Julián pela simples razão de que o senhor Cabestany preferia poupar o dinheiro do hotel. Está a ver que romântico. Até então tinha mantido a minha relação com Julián Carax estritamente por carta, normalmente para tratar de assuntos de direitos de autor, provas tipográficas e questões de edição. O que sabia dele, ou imaginava, tinha-o tirado da leitura dos manuscritos que nos enviava.
- Ele contava-lhe alguma coisa acerca da sua vida em Paris?
- Não. O Julián não gostava de falar dos seus livros ou de si mesmo. Não me pareceu que fosse feliz em Paris, embora me desse a impressão de que era uma daquelas pessoas que não podem ser felizes em lado nenhum. A verdade é que nunca cheguei a conhecê-lo a fundo. Ele não deixava. Era um homem muito reservado e às vezes parecia-me que o mundo e as pessoas tinham deixado de lhe interessar. O senhor Cabestany tinha-o por muito tímido e um tanto lunático, mas a mim pareceu-me que o Julián vivia no passado, encerrado com as suas recordações. O Julián vivia portas adentro, para os seus livros e dentro deles, como um prisioneiro de luxo.
- Diz isso como se o invejasse.
- Há prisões piores que as palavras, Daniel.
Limitei-me a acenar afirmativamente, sem saber muito bem a que se referia ela.
- O Julián falava alguma vez dessas recordações, dos seus anos em Barcelona?
- Muito pouco. Na semana que estive em casa dele, em Paris, contou-me alguma coisa sobre a família. A mãe era francesa, professora de música. O pai tinha uma chapelaria, ou coisa assim. Sei que era um homem muito religioso, muito austero.
- O Julián explicou-lhe o tipo de relação que tinha com ele?
- Sei que se davam como o cão e o gato. A coisa vinha de longe. De facto, a razão de ser da ida do Julián para Paris foi evitar que o pai o pusesse no Exército. A mãe tinha-lhe prometido que, antes que tal sucedesse, o levaria para longe daquele homem.
- Esse homem era o pai dele, no fim de contas.
Nuria Monfort sorriu. Fazia-o apenas com uma insinuação na comissura dos lábios e um brilho triste e fatigado no olhar.
- Mesmo que o fosse, nunca se comportou como tal e o Julián nunca o considerou assim. Numa ocasião confessou-me que, antes de se casar, a mãe tivera uma aventura com um desconhecido cujo nome nunca quis revelar. Esse homem era o verdadeiro pai do Julián.
- Isso parece o começo de A Sombra do Vento. Acha que ele lhe contou a verdade?
Nuria Monfort assentiu.
- O Julián explicou-me que tinha crescido vendo a maneira como o chapeleiro, porque era assim que lhe chamava, insultava e batia na mãe. Depois entrava no quarto do Julián para lhe dizer que era filho do pecado, que tinha herdado o carácter débil e miserável da mãe e que ia ser toda a vida um desgraçado, um falhado em qualquer coisa que se propusesse.
- O Julián sentia rancor em relação ao pai?
- O tempo esfria estas coisas. Nunca me pareceu que o Julián o odiasse. Talvez tivesse sido melhor assim. A minha impressão é que tinha perdido completamente o respeito ao chapeleiro à força de tanta fita. O Julián falava disso como se não lhe importasse, como se fizesse parte de um passado que tinha deixado para trás, mas essas coisas nunca se esquecem. As palavras com que se envenena o coração de um filho, por mesquinhez ou por ignorância, ficam enquistadas na memória e mais tarde ou mais cedo queimam-lhe a alma.
Perguntei a mim mesmo se falaria por experiência própria e veio-me de novo à mente a imagem do meu amigo Tomás Aguilar a ouvir estoicamente as arengas do seu angustiado progenitor.
- Que idade tinha então o Julián?
- Oito ou dez anos, imagino. Suspirei.
- Mal teve idade de entrar para o Exército, a mãe levou-o para Paris. Não me parece que se tenham sequer despedido. O chapeleiro nunca entendeu que a família o abandonasse.
- Ouviu o Julián mencionar alguma vez uma rapariga chamada Penélope?
- Penélope? Acho que não. Havia de me lembrar.
- Era uma namorada dele, de quando ainda vivia em Barcelona.
Extraí uma fotografia de Carax e Penélope Aldaya e estendi-lha. Vi que se lhe iluminava o sorriso ao ver um Julián Carax adolescente. Devoravam-na a nostalgia, a perda.
- Que novinho que ele era aqui... Esta é que é a tal Penélope? Fiz um gesto afirmativo.
- Muito gira. O Julián arranjava sempre maneira de acabar rodeado de mulheres bonitas.
Como a senhora, pensei.
- Sabe se tinha muitas...?
Aquele sorriso de novo, à minha custa.
- Namoradas? Amigas? Não sei. Para dizer a verdade, nunca o ouvi falar de nenhuma mulher na vida. Uma vez, para o espicaçar, perguntei-lhe. Deve saber que ele ganhava a vida tocando piano numa casa de alterne. Perguntei-lhe se não se sentia tentado, todo o dia rodeado de beldades de virtude fácil. Não achou graça à piada. Respondeu-me que ele não tinha direito de amar ninguém, que merecia estar sozinho.
- Disse porquê?
- O Julián nunca dizia o porquê.
- Mesmo assim, pouco antes de regressar a Barcelona em 1936, o Julián Carax ia-se casar.
- Foi o que se disse.
- A senhora duvida? Encolheu os ombros, céptica.
- Como lhe digo, em todos os anos que nos conhecemos, o Julián nunca me tinha mencionado nenhuma mulher em especial, e muito menos uma com a qual se fosse casar. Isso do suposto casamento chegou-me aos ouvidos mais tarde. Neuval, o último editor de Carax, contou a Cabestany que a noiva era uma mulher vinte anos mais velha que o Julián, uma viúva endinheirada e doente. Segundo Neuval, essa mulher tinha andado a mantê-lo durante anos. Os médicos davam-lhe seis meses de vida, quando muito um ano. Segundo Neuval, ela queria casar-se com o Julián para que ele fosse o seu herdeiro.
- Mas a cerimónia nunca chegou a realizar-se.
- Se é que alguma vez existiu tal plano ou tal viúva.
- Ao que me consta, Carax viu-se envolvido num duelo, ao amanhecer do mesmo dia em que ia contrair matrimónio. Sabe com quem ou porquê?
- Neuval supôs que se tratava de alguém relacionado com a viúva. Um parente afastado e cobiçoso que receava ver a herança ir parar às mãos de um adventício. Neuval publicava sobretudo folhetins, e parece-me que o género lhe tinha subido à cabeça.
- Vejo que não dá muito crédito à história do casamento e do duelo.
- Não. Nunca acreditei nela.
- Que acha então que aconteceu? Por que regressou Carax a Barcelona? Sorriu com tristeza.
- Há dezassete anos que faço a mim mesma essa pergunta.
Nuria Monfort acendeu outro cigarro. Ofereceu-me um. Senti-me tentado a aceitar, mas disse que não com a cabeça.
- Mas deve ter alguma suspeita - sugeri.
- Tudo o que sei é que no Verão de 1936, pouco depois de deflagrar a guerra, um funcionário da morgue municipal telefonou para a editora a dizer que tinham recebido três dias antes o cadáver de Julián Carax. Tinham-no encontrado morto numa viela do Raval, andrajosamente vestido e com uma bala no coração. Trazia com ele um livro, um exemplar de A Sombra do Vento, e o passaporte. O carimbo indicava que tinha atravessado a fronteira com a França um mês antes. Onde estivera durante esse tempo, ninguém sabe. A polícia contactou o pai, mas este negou-se a tomar conta do corpo alegando que não tinha nenhum filho. Passados dois dias sem que ninguém reclamasse o cadáver, foi enterrado numa vala comum no cemitério de Montjuic. Não pude sequer levar-lhe umas flores, porque ninguém me soube dizer onde tinha sido enterrado. O funcionário da morgue, que ficara com o livro que encontrara no casaco do Julián, teve a ideia de telefonar dias depois para a editora Cabestany. Foi assim que eu soube do sucedido. Não consegui perceber. Se restava alguém ao Julián a quem recorrer em Barcelona, era eu, ou quando muito o senhor Cabestany. Éramos os seus únicos amigos, mas nunca nos disse que tinha voltado. Apenas soubemos que tinha regressado a Barcelona depois de morto...
- Conseguiu averiguar mais alguma coisa depois de receber a notícia?
- Não. Eram os primeiros meses da guerra e o Julián não era o único que tinha desaparecido sem deixar rasto. Já ninguém fala disso, mas há muitas sepulturas sem nome como a do Julián. Perguntar era como bater com a cabeça na parede. Com a ajuda do senhor Cabestany, que por essa altura já estava muito doente, apresentei queixa à polícia e puxei todos os cordelinhos que pude. A única coisa que consegui foi receber a visita de um inspector jovem, um tipo sinistro e arrogante, que me disse que o melhor era deixar de fazer perguntas e concentrar os meus esforços numa atitude mais positiva, porque o país estava em plena cruzada. Foram estas as suas palavras. Chamava-se Fumero, é tudo o que recordo. Agora parece que é uma grande personagem. Mencionam-no muito nos jornais. Se calhar já ouviu falar dele.
Engoli em seco.
- Vagamente.
- Não voltei a ouvir falar do Julián até que um indivíduo se pôs em contacto com a editora e se interessou por adquirir os exemplares que restassem em armazém dos romances de Carax.
- Laín Coubert.
Nuria Monfort acenou afirmativamente.
- Tem ideia de quem era esse homem?
- Tenho uma suspeita, mas não estou segura. Em Março de 1936, lembro-me porque nessa altura estávamos a preparar a edição de A Sombra do Vento, uma pessoa telefonou para a editora a pedir a direcção dele. Disse que era um velho amigo e que queria visitar o Julián em Paris. Fazer-lhe uma surpresa. Passaram-mo a mim e eu disse que não estava autorizada a dar-lhe essa informação.
- Disse-lhe quem era?
- Um tal Jorge.
- Jorge Aldaya?
- É possível. O Julián tinha-o mencionado em mais de uma ocasião. Parece-me que tinham estudado juntos no colégio de San Gabriel e que às vezes se referia a ele como se tivesse sido o seu melhor amigo.
- Sabia que Jorge Aldaya era o irmão da Penélope? Nuria Monfort franziu o cenho, desconcertada.
- Deu a direcção do Julián em Paris ao Aldaya? - perguntei.
- Não. Fiquei de pé atrás.
- Que disse ele?
- Riu-se de mim, disse-me que logo a arranjaria por outra via e desligou-me o telefone.
Parecia haver qualquer coisa a carcomê-la. Comecei a suspeitar onde nos conduzia a conversa.
- Mas voltou a ouvir falar dele, não é assim? Ela assentiu nervosamente.
- Como lhe dizia, pouco tempo depois do desaparecimento do Julián, aquele homem apareceu na editora Cabestany. Por essa altura, o senhor Cabestany já não podia trabalhar e era o filho mais velho que tinha tomado conta da empresa. O visitante, Laín Coubert, ofereceu-se para comprar todos os restos de existências que houvesse dos romances do Julián. Eu pensei que devia tratar-se de uma piada de mau gosto. Laín Coubert era uma personagem de A Sombra do Vento.
- O diabo.
Nuria Monfort fez um gesto de assentimento.
- Chegou a ver Laín Coubert?
Fez que não e acendeu o seu terceiro cigarro.
- Não. Mas ouvi parte da conversa com o filho no gabinete do senhor Cabestany.
Deixou a frase pendurada, como se receasse completá-la ou não soubesse como fazê-lo. Tremia-lhe o cigarro nos dedos.
- A voz dele - disse. - Era a mesma voz do homem que tinha telefonado dizendo ser Jorge Aldaya. O filho do Cabestany, um imbecil arrogante, quis pedir-lhe mais dinheiro. O tal Coubert disse que tinha de pensar na oferta. Nessa mesma noite, o armazém da editora em Pueblo Nuevo ardeu, e com ele os livros do Julián.
- Menos os que a senhora salvou e escondeu no Cemitério dos Livros Esquecidos.
- Assim é.
- Tem alguma ideia do motivo pelo qual alguém quereria queimar todos os livros de Julián Carax?
- Por que é que se queimam os livros? Por estupidez, por ignorância, por ódio... vá-se lá saber.
- Por que acha a senhora que foi? - insisti.
- O Julián vivia nos seus livros. Aquele corpo que acabou na morgue era apenas uma parte dele. A sua alma está nas suas histórias. Numa ocasião perguntei-lhe em quem se inspirava para criar as suas personagens e ele respondeu-me que em ninguém. Que todas as suas personagens eram ele próprio.
- Então, se alguém quisesse destruí-lo, teria de destruir essas histórias e essas personagens, não é assim?
Aquele sorriso abatido, de derrota e cansaço, aflorou de novo.
- Você faz-me lembrar o Julián - disse. - Antes de perder a fé.
- A fé em quê?
- Em tudo.
Aproximou-se na penumbra e pegou-me na mão. Acariciou-me a palma em silêncio, como se quisesse ler-me as linhas na pele. A mão tremia-me sob o seu contacto. Surpreendi-me a mim mesmo a desenhar mentalmente o contorno do seu corpo sob aquelas roupas envelhecidas, de empréstimo. Desejava tocá-la e sentir a pulsação a arder-lhe debaixo da pele. Os nossos olhares tinham-se encontrado e tive a certeza de que ela sabia o que eu estava a pensar. Senti-a mais sozinha que nunca. Ergui os olhos e encontrei-me com o seu olhar sereno, de abandono.
- O Julián morreu sozinho, convencido de que ninguém se ia lembrar dele nem dos seus livros e de que a sua vida não tinha significado nada - disse ela. - Ele teria gostado de saber que alguém o queria manter vivo, que o recordava. Ele costumava dizer que existimos enquanto alguém nos recorda.
Invadiu-me o desejo quase doloroso de beijar aquela mulher, uma ânsia como nunca tinha experimentado, nem sequer convocando o fantasma de Clara Barceló. Ela leu-me o olhar.
- Faz-se tarde para si, Daniel - murmurou.
Uma parte de mim desejava ficar, perder-se naquela estranha intimidade de penumbras com aquela desconhecida e ouvi-la dizer como os meus gestos e silêncios lhe recordavam Julián Carax.
- Sim - balbuciei.
Acenou afirmativamente sem dizer nada e acompanhou-me até à porta. O corredor afigurou-se-me eterno. Abriu-me a porta e saí para o patamar.
- Se vir o meu pai, diga-lhe que estou bem. Minta-lhe. Despedi-me dela a meia-voz, agradecendo-lhe o seu tempo e oferecendo-lhe cordialmente a mão. Nuria Monfort ignorou o meu gesto formal. Pôs-me as mãos sobre os braços, inclinou-se e beijou-me na face. Olhámo-nos em silêncio e desta vez aventurei-me a procurar os seus lábios, quase a tremer. Pareceu-me que se entreabriam e que os seus dedos procuravam o meu rosto. No último instante, Nuria Monfort recuou e baixou o olhar. - Acho que é melhor ir-se embora, Daniel - sussurrou. Pareceu-me que ia chorar e, antes que eu pudesse dizer fosse o que fosse, fechou-me a porta. Fiquei no patamar e senti a sua presença do outro lado da porta, imóvel, perguntando a mim mesmo o que tinha acontecido ali dentro. Do outro lado do patamar, a vigia da vizinha pestanejava. Enderecei-lhe um cumprimento e lancei-me pelas escadas abaixo. Quando cheguei à rua ainda levava o seu rosto, a sua voz e o seu cheiro cravados na alma. Arrastei o roçar dos seus lábios e do seu hálito sobre a pele por ruas repletas de gente sem rosto que escapava de gabinetes e lojas. Ao meter pela Rua Canuda investiu contra mim uma brisa gelada que cortava o bulício. Agradeci o ar frio no rosto e encaminhei-me para a universidade. Ao atravessar as Ramblas abri caminho até à Rua Tallers e perdi-me no seu estreito canhão de penumbras, pensando que tinha ficado aprisionado naquela casa de jantar escura na qual imaginava agora Nuria Monfort sentada a sós na sombra, a arrumar os seus lápis, as suas pastas e as suas recordações em silêncio, com os olhos envenenados de lágrimas.
Abateu-se a tarde quase à traição, com um hálito frio e um manto púrpura que resvalava entre os resquícios das ruas. Apertei o passo e vinte minutos mais tarde a fachada da universidade emergiu como um navio ocre varado na noite. O porteiro da Faculdade de Letras lia na sua guarita as penas mais influentes da Espanha do momento na edição da tarde de El Mundo Deportivo. Já quase não pareciam restar estudantes no recinto. O eco dos meus passos acompanhou-me através dos corredores e galerias que conduziam ao claustro, onde o rubor das luzes amarelentas mal inquietava a penumbra. Assaltou-me a ideia de que Bea me tinha pregado uma partida e me marcara encontro ali àquela hora de ninguém para se vingar da minha presunção. As folhas das laranjeiras do claustro pestanejavam como lágrimas de prata e o rumor da fonte serpenteava entre os arcos. Auscultei o pátio com o olhar a misturar decepção e, porventura, um certo alívio cobarde. Ali estava. A sua silhueta recortava-se diante da fonte, sentada num dos bancos a escalar com o olhar as abóbadas do claustro.
Detive-me no umbral para a contemplar e, por um instante, pareceu-me ver nela o reflexo de Nuria Monfort a sonhar acordada no seu banco da praça. Reparei que não trazia a pasta nem os livros e suspeitei de que talvez não tivesse tido aulas nessa tarde. Talvez tivesse comparecido ali somente para se encontrar comigo. Engoli em seco e penetrei no claustro. Os meus passos no empedrado denunciaram-me e Bea ergueu a vista, sorrindo surpreendida, como se a minha presença ali fosse um acaso.
- Julguei que não vinhas - disse Bea.
- Isso mesmo pensava eu - retruquei.
Permaneceu sentada, muito direita, com os joelhos apertados e as mãos recolhidas sobre o regaço. Perguntei a mi mesmo como era possível sentir alguém tão longe e, no entanto, poder ler cada prega dos seus lábios.
- Vim porque te quero demonstrar que estavas enganado no que disseste no outro dia, Daniel. Que vou casar com o Pablo e que, seja o que for que me mostres esta noite, vou para El Ferrol assim que ele acabar o serviço militar.
Olhei-a como se olha um comboio que se escapa. Apercebi-me de que tinha passado os dias a caminhar sobre nuvens e caiu-me o mundo das mãos.
- E eu pensava que tinhas vindo porque te apetecia ver-me. - Sorri sem forças.
Observei que se lhe afogueava o rosto de acanhamento.
- Estava a brincar - menti. - O que era a sério era a minha promessa de te mostrar uma faceta da cidade que ainda nunca viste. Pelo menos, assim terás um motivo para te lembrares de mim, ou de Barcelona, para onde quer que vás.
Bea sorriu com uma certa tristeza e evitou o meu olhar.
- Estive vai-não-vai para me enfiar num cinema, sabes? Para não te ver hoje - disse ela.
- Porquê?
Bea observava-me em silêncio. Encolheu os ombros e ergueu os olhos como se quisesse caçar palavras em voo que lhe fugiam.
- Porque tinha medo de que porventura tivesses razão - disse finalmente. Suspirei. Amparava-nos o anoitecer e aquele silêncio de abandono que une
os estranhos, e senti-me com coragem para dizer não importava o quê, mesmo que fosse pela última vez.
- Gostas dele ou não?
Ofereceu-me um sorriso que se desfazia pelas costuras.
- Não tens nada com isso.
- Isso é verdade - disse eu. - Só tu é que tens. Esfriou-se-lhe o olhar.
- E a ti que mais te dá?
- Não tens nada com isso - disse eu. Não sorriu. Tremiam-lhe os lábios.
- As pessoas que me conhecem sabem que aprecio o Pablo. A minha família e...
- Mas eu sou quase um estranho - interrompi. - E gostaria de o ouvir da tua boca.
- Ouvir o quê?
- Que gostas dele a sério. Que não te casas com ele para sair de casa, ou para deixar Barcelona e a tua família longe, onde não te possam fazer mal. Que partes e não que foges.
Brilhavam-lhe os olhos de lágrimas de raiva.
- Não tens o direito de me dizer isso, Daniel. Tu não me conheces.
- Diz-me que estou enganado e vou-me embora. Gostas dele? Olhámo-nos por um longo espaço de tempo em silêncio.
- Não sei - murmurou por fim. - Não sei.
- Alguém disse uma vez que no momento em que paramos a pensar se gostamos de alguém, já deixámos de gostar dessa pessoa para sempre - disse eu.
Bea procurou a ironia no meu rosto.
- Quem disse isso?
- Um tal Julián Carax.
- Amigo teu?
Surpreendi-me a mim mesmo a assentir.
- Mais ou menos.
- Vais ter de mo apresentar.
- Esta noite, se quiseres.
Deixámos a universidade sob um céu incendiado de nódoas negras. Caminhávamos sem rumo fixo, mais para nos acostumarmos ao passo um do outro do que para chegar a qualquer sítio. Refugiámo-nos no único assunto que tínhamos em comum, o seu irmão Tomás. Bea falava dele como de um estranho de quem se gosta, mas se conhece mal. Fugia ao meu olhar e sorria nervosamente. Senti que se arrependia do que me tinha dito no claustro da universidade, que ainda lhe doíam as palavras que a comiam por dentro.
- Ouve, sobre aquilo que te disse há bocado - disse de repente, sem vir a propósito -, não vais contar nada ao Tomás, não é verdade?
- Claro que não. A ninguém. Riu nervosa.
- Não sei o que me deu. Não te ofendas, mas às vezes uma pessoa sente-se mais à vontade para falar com um estranho do que com as pessoas que conhece. Por que será?
Encolhi os ombros.
- Provavelmente porque um estranho nos vê como somos, e não como quer acreditar que somos.
- Isso também é do teu amigo Carax?
- Não, isto acabo eu de inventar para te impressionar.
- E como me vês tu a mim?
- Como um mistério.
- Esse é o elogio mais estranho que alguma vez me fizeram.
- Não é um elogio. É uma ameaça.
- Porquê?
- Os mistérios é preciso resolvê-los, averiguar o que escondem.
- Se calhar decepcionas-te ao ver o que há lá dentro.
- Se calhar surpreendo-me. E tu também.
- O Tomás não me tinha dito que tivesses tanta lata.
- É que a pouca que tenho a reservo toda para ti.
- Porquê?
Porque me metes medo, pensei.
Refugiámo-nos num velho café ao pé do teatro Poliorama. Retirámo-nos para uma mesa junto à janela e pedimos umas sanduíches de presunto serrano e um par de cafés com leite para nos aquecermos. Daí a pouco o empregado, um tipo esquálido com máscara de diabrete, aproximou-se da mesa com ar oficioso.
- Foro os chores que pedira a sande de presunto? Fizemos que sim.
- Sinto munto comunicar-les, em nome da drèção, que já na temos nem uma lasca de presunto. Posso ofrecer-les choriço preto, de carne, misto, almongas ou chitorras(1). Géneros de premeira, fesquíssimos. Tamãe tenho sardinhas descabeche, pró caso de na poderem engerir produtos de carne por motivos de consçência regiosa. Come sexta-feira...
- Eu com o café com leite já fico bem, palavra - respondeu Bea. Eu estava a morrer de fome.
- E se nos arranjasse duas de batatas fritas com molho picante? - disse eu. - E um pouco de pão também, por favor.
- É pa já, cavalheiro. E esculpem lá a falta de géneros. Normalmente tenho de tu, até caviá bolchevique. Mas esta tarde foi a semifinal da Taça Doropa e caiu-nos cá um rô de pessoal. Ca ganda jogo!
*1. Chistorra é um enchido de origem Navarra, com carne de porco e de vaca, entremeada e toucinho, que se come principalmente frito. A queda do «s» corresponde à pronúncia peculiar do indivíduo. (N. T.)
O empregado afastou-se com ar cerimonioso. Bea observava-o, divertida.
- Donde é este sotaque? Jaén?
- Santa Coloma de Gramanet - precisei. - Tu andas pouco de metro, não andas?
- O meu pai diz que o metro anda cheio de gentalha e que, se uma pessoa anda sozinha, os ciganos lhe deitam a mão.
Ia a dizer qualquer coisa, mas calei-me. Bea riu. Mal chegaram os cafés e a comida, pus-me a dar conta de tudo aquilo sem pretensões de delicadeza. Bea não comeu nada. Com ambas as mãos à volta da chávena fumegante, observava-me com um meio sorriso, entre a curiosidade e o espanto.
- E então, o que é que me vais mostrar hoje que eu ainda nunca vi?
- Várias coisas. De facto, o que te vou mostrar faz parte de uma história. Não me disseste no outro dia que do que gostavas era de ler?
Bea fez que sim, arqueando as sobrancelhas.
- Pois bem, esta é uma história de livros.
- De livros?
- De livros malditos, do homem que os escreveu, de uma personagem que se escapou das páginas de um romance para o queimar, de uma traição e de uma amizade perdida. É uma história de amor, de ódio e dos sonhos que vivem na sombra do vento.
- Falas como a badana de um romance barato, Daniel.
- Deve ser porque trabalho numa livraria e vi demasiados. Mas esta é uma história real. Tão certa como este pão que nos serviram ter pelo menos três dias. E, como todas as histórias reais, começa e acaba num cemitério, embora não o género de cemitério que imaginas.
Sorriu como fazem as crianças às quais se promete uma adivinha ou um truque de magia.
- Sou toda ouvidos.
Esgotei o último gole de café e contemplei-a uns instantes em silêncio. Pensei no muito que desejava refugiar-me naquele olhar fugidio que se temia transparente, vazio. Pensei na solidão que me ia assaltar nessa noite quando me despedisse dela, sem mais truques nem histórias com que enganar a sua companhia. Pensei no pouco que tinha para lhe oferecer e no muito que queria receber dela.
- Rangem-te os miolos, Daniel - disse ela. - Que estás tu a tramar?
Iniciei o meu relato com aquele alvorecer distante em que acordara sem conseguir recordar o rosto da minha mãe e não parei até recordar o mundo de penumbras que tinha intuído naquela mesma manhã em casa de Nuria Monfort. Bea escutava-me em silêncio com uma atenção que não revelava julgamento ou presunção. Contei-lhe a minha primeira visita ao Cemitério dos Livros Esquecidos e da noite que passara a ler A Sombra do Vento. Contei-lhe do meu encontro com o homem sem rosto e daquela carta assinada por Penélope Aldaya que trazia sempre comigo sem saber porquê. Contei-lhe que nunca tinha chegado a beijar Clara Barceló, nem ninguém, e de como me tinham tremido as mãos ao sentir o roçagar dos lábios de Nuria Monfort na pele apenas umas horas atrás. Contei-lhe que até àquele momento não tinha compreendido que aquela era uma história de gente só, de ausências e de perda, e que por essa razão me tinha refugiado nela até a confundir com a minha própria vida, como quem escapa através das páginas de um romance porque aqueles que precisa de amar são apenas sombras que vivem na alma de um estranho.
- Não digas nada - murmurou Bea. - Leva-me apenas a esse sítio. Era já noite cerrada quando nos detivemos diante do portão do Cemitério dos Livros Esquecidos nas sombras da Rua Arco del Teatro. Segurei na aldraba do diabrete e bati três vezes. Soprava um vento frio impregnado de cheiro a carvão. Abrigávamo-nos debaixo do arco da entrada enquanto esperávamos. Encontrei o olhar de Bea a uns centímetros apenas do meu. Sorria. Daí a pouco ouviram-se uns passos leves a aproximarem-se do portão e chegou-nos a voz fatigada do guardião.
- Quem vem lá? - perguntou Isaac.
- Sou o Daniel Sempere, Isaac.
Pareceu-me ouvi-lo praguejar entre dentes. Seguiram-se os mil rangidos e queixumes da fechadura kafkiana. Finalmente, a porta cedeu uns centímetros, revelando o rosto aquilino de Isaac Monfort à luz de uma candeia. Ao ver-me, o guardião suspirou e pôs os olhos em alvo.
- Eu, também, não sei por que pergunto - disse. - Quem mais poderia ser a estas horas?
Isaac estava enfiado no que me pareceu uma estranha mestiçagem de roupão, albornoz e sobretudo do exército russo. As pantufas acolchoadas combinavam na perfeição com uma boina de lã aos quadrados, com borla e barrete.
- Espero não o ter arrancado da cama - disse eu.
- Nem pensar. Mal tinha começado a oração ao Menino Jesus. Lançou um olhar a Bea como se acabasse de ver um molho de cartuchos de dinamite acesos aos pés.
- Espero para seu bem que isto não seja o que parece - ameaçou.
- Isaac, esta é a minha amiga Beatriz e, com sua licença, gostaria de lhe mostrar este lugar. Não se preocupe, é de toda a confiança.
- Já conheci lactantes com mais senso comum do que você, Sempere.
- É só um instante.
Isaac deixou escapar um resfolego de derrota e examinou Bea com detença e receio policial.
- A menina já sabe que anda em companhia dum débil mental? Bea sorriu cortesmente.
- Começo a ter uma ideia.
- Divina inocência. Sabe as regras?
Bea fez um aceno afirmativo. Isaac abanou dissimuladamente a cabeça e fez-nos passar, auscultando como sempre as sombras da rua.
- Fui ver a sua filha Nuria - deixei cair casualmente. - Está bem. Trabalhando muito, mas bem. Manda-lhe cumprimentos.
- Sim, e dardos envenenados. Que falta de jeito que você tem para aldrabar, Sempere! Mas agradeço-lhe o esforço. Vamos, entrem.
Uma vez lá dentro, estendeu-me a candeia e passou a fechar novamente a fechadura sem nos prestar mais atenção.
- Quando tiverem acabado, já sabem onde me encontrar.
O labirinto dos livros adivinhava-se em ângulos espectrais que despontavam sob o manto de trevas. A candeia projectava uma bolha de claridade vaporosa aos nossos pés. Bea deteve-se no umbral do labirinto, atónita. Sorri, reconhecendo no seu rosto a mesma expressão que o meu pai devia ter visto no meu anos atrás. Penetrámos nos túneis e galerias do labirinto, que rangia à nossa passagem. As marcas que eu tinha deixado na minha última incursão continuavam lá.
- Vem cá, quero-te mostrar uma coisa - disse eu. Mais de uma vez perdi o meu próprio rasto e tivemos de voltar um pouco atrás à procura do último sinal. Bea observava-me com um misto de alarme e fascinação. A minha bússola mental sugeria que a nossa rota se tinha perdido num nó de espirais que subia lentamente até às entranhas do labirinto. Finalmente consegui refazer os meus passos no emaranhado de corredores e túneis até meter por um estreito corredor que parecia uma passarela estendida na direcção do negrume. Ajoelhei-me junto da última estante e procurei o meu velho amigo oculto atrás da fila de volumes sepultados por uma camada de pó que brilhava como geada à luz da candeia. Tomei o livro nas mãos e estendi-o a Bea.
- Apresento-te Julián Carax.
- A Sombra do Vento - leu Bea acariciando as letras esvaídas da capa.
- Posso levá-lo? - perguntou.
- Todos menos esse.
- Mas isso não é justo. Depois do que me contaste, este é justamente o que eu quero.
- Um dia, talvez. Mas não hoje.
Tirei-lho das mãos e voltei a ocultá-lo no lugar.
- Voltarei sem ti e levá-lo-ei sem que tu saibas - disse ela, de brincadeira.
- Não o encontrarias em mil anos.
- Isso é o que tu julgas. Já vi as tuas marcas e eu também conheço a história do Minotauro.
- O Isaac não te deixaria entrar.
- Enganas-te. Simpatiza mais comigo do que contigo.
- Sabes lá?
- Sei ler olhares.
A contragosto, acreditei nela e escondi o meu.
- Escolhe outro qualquer. Olha, este daqui promete. O Porco da Meseta, esse Desconhecido: em Busca das Raízes do Toucinho Ibérico, de Anselmo Torquemada. De certeza que vendeu mais exemplares que qualquer um de Julián Carax. Do porco aproveita-se tudo.
- Este outro atrai-me mais.
- Tess dos Ubervilles. É a versão original. Atreves-te com Thomas Hardy em inglês?
Olhou-me de esguelha.
- Então, está arrematado.
- Não vês? Até parece que estava à minha espera. Como se estivesse aqui escondido para mim desde antes de eu nascer.
Olhei-a, atónito. Bea franziu o sorriso.
- Que disse eu?
Nessa altura, sem pensar, mal lhe roçando os lábios, beijei-a.
Era já quase meia-noite quando chegámos à porta da rua da casa de Bea. Tínhamos feito quase todo o caminho em silêncio, sem nos atrevermos a dizer o que pensávamos. Caminhávamos separados, escondendo-nos um do outro. Bea caminhava direita com o seu Tess debaixo do braço e eu seguia-a a um palmo, com o seu sabor nos lábios. Arrastava ainda o olhar de soslaio com que Isaac me tinha brindado ao deixar o Cemitério dos Livros Esquecidos. Era um olhar que conhecia bem e que tinha visto mil vezes no meu pai, um olhar que me perguntava se fazia a menor ideia do que estava a fazer. As últimas horas tinham transcorrido noutro mundo, um universo de roçagares, de olhares que não entendia e que aniquilavam a razão e a vergonha. Agora, de regresso àquela realidade que estava sempre à espreita nas sombras do Ensanche, o encantamento soltava-se e apenas me restava o desejo doloroso e uma inquietude que não tinha nome. Um simples olhar a Bea bastou-me para compreender que as minhas reservas eram apenas um sopro na ventania que a comia por dentro. Detivemo-nos defronte da porta da rua e olhámo-nos sem fazer sequer menção de fingir. Um guarda-nocturno cantigueiro aproximava-se sem pressa, a cantarolar boleros acompanhando-se a si próprio com o tilintar ritmado dos seus arbustos de chaves.
- Se calhar preferes que não nos voltemos a ver - alvitrei sem convicção.
- Não sei, Daniel. Não sei nada. É isso que tu queres?
- Não. Claro que não. E tu?
Encolheu os ombros, esboçando um sorriso sem força.
- O que é que achas? - perguntou. - Antes menti-te, sabes? No claustro.
- Em quê?
- Em dizer que não te queria ver hoje.
O guarda-nocturno rondava-nos brandindo um sorrisinho de esguelha, obviamente indiferente àquela minha primeira cena de porta da rua e sussurros que a ele, na sua veteranice, se devia afigurar banal e batida.
- Por mim não há pressa - disse ele. - Vou fumar um cigarrinho à esquina e logo me dirão.
Esperei que o guarda-nocturno se tivesse afastado.
- Quando é que te vou ver outra vez?
- Não sei, Daniel.
- Amanhã?
- Por favor, Daniel. Não sei. Assenti. Ela acariciou-me a cara.
- Agora é melhor ires.
- Sabes ao menos onde me podes encontrar, não? Ela assentiu.
- Estarei à espera.
- Eu também.
Afastei-me com o olhar preso no seu. O guarda-nocturno, perito nestes lances, já acorria a abrir-lhe a porta da rua.
- Desavergonhado - sussurrou-me de passagem, não sem uma certa admiração. - Belo borracho.
Esperei até que Bea tivesse entrado no edifício e parti a passo ligeiro, volvendo o olhar atrás a cada passo. Lentamente, invadiu-me a certeza absurda de que tudo era possível e pareceu-me que até aquelas ruas desertas e aquele vento hostil cheiravam a esperança. Ao chegar à Praça de Cataluna reparei que um bando de pombas se tinha congregado no centro da praça. Cobriam-no todo, como um manto de asas brancas que baloiçava em silêncio. Pensei em contornar o recinto, mas nesse preciso momento reparei que o bando me abria passagem sem levantar voo. Avancei às apalpadelas, observando como as pombas se afastavam à minha passagem e voltavam a cerrar fileiras atrás de mim. Ao chegar ao centro da praça ouvi o rumor dos sinos da catedral a repicar a meia-noite.
Detive-me um instante, varado num oceano de aves prateadas, e pensei que aquele tinha sido o dia mais estranho e maravilhoso da minha vida.
Ainda havia luz na livraria quando passei em frente da montra. Pensei que talvez o meu pai tivesse ficado até tarde a pôr a correspondência em dia ou a procurar qualquer desculpa para me esperar acordado e tentar arrancar-me alguma coisa sobre o meu encontro com Bea. Observei uma silhueta a compor uma pilha de livros e reconheci o perfil enxuto e nervoso de Fermín em plena concentração. Bati no vidro com os nós dos dedos. Fermín assomou, gratamente surpreendido, e fez-me sinal para assomar pela entrada para a parte de trás da loja.
- Ainda a trabalhar, Fermín? É que é tardíssimo.
- Na realidade estava a fazer tempo para passar depois por casa do pobre don Federico e velá-lo. Organizámos uns turnos com o Eloy, o da óptica. No fundo, também não durmo muito. Duas, três horas no máximo. Claro que o Daniel também não me fica atrás. Passa da meia-noite, pelo que infiro que o seu encontro com a miúda foi um êxito clamoroso.
Encolhi os ombros.
- A verdade é que não sei - admiti.
- Apalpou-a?
- Não.
- Bom sinal. Nunca se fie nas que deixam que as apalpem às boas à primeira. Mas menos ainda nas que precisam que um padre lhes dê a aprovação. O lombo, passe a analogia carnal, está no meio. Se a coisa se proporcionar, claro está, não seja menino do coro e aproveite. Mas se o que procura é uma coisa séria, como é o meu caso com a Bernarda, recorde-se desta regra de ouro.
- O seu caso é uma coisa séria?
- Mais que séria. Espiritual. E o desta miúda, Beatriz, o que é? Que é aleijadinha de boa salta à vista, mas o busílis da questão é: será das que apaixonam ou das que entontecem as vísceras menores?
- Não faço a menor ideia - retorqui. - As duas coisas, diria eu.
- Olhe, Daniel, isso é como o enfartamento. Nota alguma coisa aqui, na boca do estômago? Como se tivesse engolido um tijolo. Ou é só um calor geral?
- É mais isso do tijolo - disse, embora não pusesse completamente de parte o calor.
- Então é que o assunto é a sério. Deus o leve em bem. Ande, sente-se, que eu faço-lhe um chá de tília.
Acomodámo-nos à volta da mesa que havia na parte de trás da loja, rodeados de livros e de silêncio. A cidade dormia e a livraria parecia um bote à deriva num oceano de paz e sombra. Fermín estendeu-me uma chávena fumegante e sorriu-me com um certo embaraço. Havia qualquer coisa que lhe rondava a cabeça.
- Posso fazer-lhe uma pergunta de índole pessoal, Daniel?
- Com certeza.
- Peço-lhe que responda com toda a sinceridade - disse, e pigarreou.
- Acha que eu poderia vir a ser pai?
Deve ter lido a perplexidade no meu rosto e apressou-se a acrescentar:
- Não quero dizer pai biológico, porque parecerei um tanto ou quanto enfezado, mas graças a Deus a providência quis dotar-me da potência e da fúria viril dum Miura. Refiro-me a outro tipo de pai. Um bom pai, sabe como é.
- Um bom pai?
- Sim. Como o seu. Um homem com cabeça, coração e alma. Um homem que seja capaz de ouvir, guiar e respeitar uma criança, e de não sufocar nela os seus próprios defeitos. Alguém que um filho não só ame por ser seu pai, mas que admire pela pessoa que é. Alguém com quem se queira parecer.
- Por que me pergunta isso, Fermín? Eu pensava que o senhor não acreditava no casamento nem na família. O jugo e tudo isso, lembra-se?
Fermín fez que sim.
- Olhe, tudo isso são caganifâncias. O casamento e a família não são mais do que aquilo que fazemos deles. Sem isso, não são mais que uma caterva de hipocrisias. Ninharias e palavreado. Mas, se há amor de verdade, do qual nunca se fala nem se apregoa aos quatro ventos, do que se nota e se demonstra...
- O senhor parece-me um homem novo, Fermín.
- É o que sou. A Bernarda fez-me desejar ser um homem melhor do que sou.
- Porquê?
- Para a merecer. O Daniel agora não percebe isso, porque é jovem. Mas com o tempo verá que o que conta às vezes não é o que se dá, mas sim o que se cede. A Bernarda e eu estivemos a falar. Ela é uma mãe-galinha, o Daniel bem sabe. Ela não diz, mas parece-me que a maior felicidade que aquela mulher poderia ter nesta vida era ser mãe. E eu gosto mais daquela mulher que do pêssego em calda. Basta dizer que sou capaz de passar por uma igreja dePois de trinta e dois anos de abstinência clerical e recitar os salmos de São Serafim ou o que for preciso por ela.
- Vejo-o muito lançado, Fermín. Pois se ainda agora a conheceu...
- Olhe, Daniel, na minha idade ou se começa a ver a jogada com clareza ou está-se bem lixado. Esta vida vale a pena ser vivida por três ou quatro coisas, e o resto é adubo para o campo. Eu já fiz muita tolice, e agora sei que a única coisa que quero é fazer a Bernarda feliz e morrer um dia nos braços dela. Quero voltar a ser um homem respeitável, sabe? Não por mim, que a mim o respeito deste orfeão de macacos a que chamamos humanidade deixa-me completamente murcho, mas por ela. Porque a Bernarda acredita nestas coisas, nas novelas radiofónicas, nos padres, na respeitabilidade e na virgem de Lourdes. Ela é assim e eu gosto dela como ela é, sem que me mudem nem um pêlo daqueles que lhe aparecem no queixo. E por isso quero ser alguém de quem ela possa estar orgulhosa. Quero que pense: o meu Fermín é um pedaço de homem, como o Cary Grant, o Hemingway ou o Manolete.
Cruzei os braços, sopesando o assunto.
- Falou de tudo isso com ela? De terem um filho os dois?
- Não, valha-me Deus. Por quem me toma? Acha que eu ando por esse mundo fora a dizer às mulheres que tenho vontade de as emprenhar? E não é que me falte a vontade, hem?, porque àquela tonta da Merceditas era capaz de lhe fazer agora mesmo uns trigémeos e ficava nas minhas sete quintas, mas...
- A Bernarda disse-lhe que quer constituir família?
- Essas coisas não precisam de se dizer, Daniel. Vêem-se na cara. Assenti.
- Pois então, valha a minha opinião o que valer, tenho a certeza de que o senhor será um pai e um marido formidável. No entanto, não acredite em todas essas coisas, porque assim não as dará por garantidas.
Derreteu-se-lhe a cara de alegria.
- Está a falar a sério?
- Claro que sim.
- Pois olhe que me tira um peso enorme de cima. Porque só de me lembrar do meu progenitor e pensar que pudesse vir a ser para alguém o que ele foi para mim, dá-me vontade de me esterilizar.
- Não se preocupe, Fermín. Aliás, não há provavelmente tratamento que vergue o seu vigor inseminador.
- Também é verdade - reflectiu. - Vamos, vá lá descansar, que eu não quero empatá-lo mais.
- Não empata nada, Fermín. Tenho a impressão de que não vou pregar olho.
- Quem corre por gosto... A propósito, aquilo de que me falou sobre aquele apartado de correio, lembra-se?
- Já averiguou alguma coisa?
- Já lhe disse que o deixasse por minha conta. Hoje ao meio-dia, à hora de almoço, fui até aos Correios e troquei umas palavras com um velho conhecido que trabalha lá. O apartado de correio 2321 figura em nome de um tal José Maria Requejo, advogado com escritório na Rua León XIII. Permiti-me verificar a direcção do sujeito e não me surpreendeu averiguar que não existe, embora imagine que isso já o Daniel sabe. A correspondência dirigida a esse apartado vem sendo desde há anos levantada por uma pessoa. Sei-o porque algumas das encomendas que são recebidas de uma corretora predial vêm registadas e ao levantá-las é preciso assinar um pequeno recibo e apresentar a documentação.
- Quem é? Um funcionário do doutor Requejo? - perguntei.
- Até aí não consegui chegar, mas duvido. Ou muito me engano ou o tal Requejo existe no mesmo plano que a Virgem de Fátima. Só lhe posso dizer o nome da pessoa que levanta a correspondência: Nuria Monfort.
Fiquei branco.
- Nuria Monfort? Tem a certeza disso, Fermín?
- Eu próprio vi alguns desses recibos. Em todos constava o nome e o número do bilhete de identidade. Deduzo pela cara de vómito com que ficou que esta revelação o surpreende.
- Bastante.
- Posso perguntar quem é essa tal Nuria Monfort? O funcionário com quem falei disse-me que se lembrava perfeitamente dela porque foi há um par de semanas recolher a correspondência e, na sua opinião imparcial, era muito boa, mais que a Vénus de Milo, e mais firme de peito. E eu confio na avaliação dele porque antes da guerra era catedrático de estética, mas como era primo afastado do Largo Caballero, claro, agora lambe selos de uma peseta...
- Hoje mesmo estive com essa mulher, na casa dela - murmurei. Fermín observou-me, atónito.
- Com a Nuria Monfort? Começo a pensar que me enganei a seu respeito, Daniel. Está um autêntico estoura-vergas.
- Não é o que o Fermín pensa.
- Pois quem perde é o Daniel. Eu na sua idade fazia como El Molino, passe de manhã, à tarde e à noite.
Observei aquele homenzinho enxuto e ossudo, todo nariz e tez amarelenta, e apercebi-me de que se estava a tornar o meu melhor amigo.
- Posso contar-lhe uma coisa, Fermín? Uma coisa que me anda às voltas na cabeça desde há uns tempos.
- Claro que sim. Seja o que for. Especialmente se for escabroso e disser respeito a essa sujeita.
Pela segunda vez naquela noite pus-me a relatar para Fermín a história de Julián Carax e do enigma da sua morte. Fermín escutava com extrema atenção, tomando notas num caderno e interrompendo-me ocasionalmente para me perguntar algum pormenor cuja relevância me escapava. Ao ouvir-me a mim mesmo, tornavam-se-me cada vez mais evidentes as lacunas que havia naquela história. Não foi uma nem duas vezes que fiquei em branco, com os pensamentos perdidos em tentar discernir por que motivo Nuria Monfort mentira. Que significado tinha o facto de ela ter andado a levantar durante anos a correspondência dirigida a um escritório de advogados inexistente que supostamente tomava conta do andar da família Fortuny-Carax na Ronda de San António? Não me apercebi de que estava a formular a pergunta em voz alta.
- Não podemos saber ainda por que razão lhe mentiu essa mulher - disse Fermín. - Mas podemo-nos aventurar a supor que, se o fez em relação a esse assunto, pode tê-lo feito, e provavelmente fê-lo, em relação a tantos outros.
Suspirei, perdido.
- Que sugere o Fermín?
Fermín Romero de Torres suspirou com ar de alta filosofia.
- Eu lhe direi o que podemos fazer. Este domingo, se achar bem, aparecemos como quem não quer a coisa no colégio de San Gabriel e fazemos algumas averiguações sobre as origens da amizade entre esse Carax e o outro garoto, o ricaço...
- Aldaya.
- Eu para os padres tenho um jeitão tremendo, vai ver, mesmo que seja por esta pinta de frade desavergonhado que tenho. Quatro lisonjas e meto-os no bolso.
- Quer dizer...?
- Homem! Garanto-lhe que estes vão cantar como a Escolanía de Mont-serrat.
Passei o sábado em transe, ancorado atrás do balcão da livraria com a esperança de ver Bea aparecer pela porta como por encanto. Cada vez que o telefone tocava, largava a correr para o atender, arrebatando o auscultador ao meu pai ou a Fermín. A meio da tarde, depois de uma vintena de chamadas de clientes e sem notícias de Bea, comecei a aceitar que o mundo e a minha miserável existência chegavam ao fim. O meu pai tinha saído para avaliar uma colecção em San Gervasio e Fermín aproveitou a conjuntura para me espetar outra das suas lições magistrais sobre os meandros das intrigas amatórias.
- Sossegue, senão ainda cria uma pedra no fígado - aconselhou Fermín. - Isto da corte é como o tango: absurdo e pura fioritura. Mas o homem é o Daniel e é a si que lhe compete tomar a iniciativa.
Aquilo começava a adquirir um cariz funesto.
- A iniciativa? Eu?
- Que quer? Algum preço tinha de ter o poder mijar de pé.
- Mas é que a Bea deu-me a entender que seria ela a dizer-me qualquer coisa.
- Muito pouco percebe o Daniel de mulheres! Aposto o meu subsídio de Natal em como a franganota está neste momento em casa a ver languidamente à janela armada em Dama das Camélias, à espera de que o Daniel chegue para a salvar do bruto do senhor seu pai a fim de a arrastar numa espiral incontível de luxúria e pecado.
- Tem a certeza?
- Ciência pura.
- E se ela resolveu que não me quer voltar a ver?
- Olhe, Daniel. As mulheres, com notáveis excepções como a sua vizinha Merceditas, são mais inteligentes do que nós, ou no mínimo mais sinceras consigo próprias sobre o que querem ou não. Outra coisa é que o digam a uma pessoa ou ao mundo. O Daniel está confrontado com o enigma da natureza. A fêmea, babel e labirinto. Se a deixa pensar, está perdido. Não se esqueça: coração quente, mente fria. O código do sedutor.
Estava Fermín para me esmiuçar as particularidades e tecnicismos da arte da sedução, quando soou a campainha da porta e vimos entrar o meu amigo Tomás Aguilar. O coração deu-me um salto. A providência negava-me Bea mas enviava-me o irmão. Tomás trazia o rosto sombrio e um ar de certo desalento.
- Mas que ar funerário que nos traz, don Tomás - comentou Fermín. - Aceita-nos ao menos um cafezinho, não é verdade?
- Não digo que não - disse Tomás, com a reserva habitual.
Fermín passou a servir-lhe uma chávena da beberagem que guardava no seu termo e que soltava um suspeito aroma a xerez.
- Algum problema? - perguntei. Tomás encolheu os ombros.
- Nada de novo. O meu pai hoje tem o dia livre e preferi sair para arejar um bocado.
Engoli em seco.
- Porquê?
- Vá-se lá saber. Ontem à noite a minha irmã Bea chegou às tantas. O meu pai estava à espera dela acordado e um tanto ou quanto tocado, como sempre. Ela recusou-se a dizer de onde vinha ou com quem tinha estado e o meu pai ficou numa fúria.
Esteve até às quatro da manhã a barafustar a tratá-la de pega para cima e jurar-lhe que a ia pôr no olho da rua a pontapé.
Fermín lançou-me um olhar de alarme. Senti que as gotas de suor que me corriam pelas costas baixavam vários graus de temperatura.
- Esta manhã - continuou Tomás -, a Bea fechou-se no quarto e não saiu durante todo o dia. O meu pai pespegou-se na sala de jantar a ler o ABC e a ouvir zarzuelas no rádio com o volume no máximo. No entreacto da Luisa Fernanda tive de sair porque estava a dar em doido.
- Bom, com certeza que a sua irmã estaria com o namorado, não? - espicaçou Fermín. - É o mais natural.
Atirei-lhe um pontapé por baixo do balcão, que Fermín driblou com agilidade felina.
- O namorado está a fazer a tropa - precisou Tomás. - Não vem de licença a não ser daqui a um par de semanas. Além disso, quando sai com ele está em casa às oito, o mais tardar.
- E não faz ideia de onde esteve nem com quem?
- Ele já lhe disse que não, Fermín - intervim eu, ansioso por mudar de assunto.
- E o seu pai também não? - insistiu Fermín, que estava a divertir-se à grande.
- Não. Mas jurou averiguá-lo e partir-lhe as pernas e a cara mal saiba quem é.
Fiquei lívido. Fermín serviu-me uma chávena da sua beberagem sem perguntar. Esvaziei-a de um gole. Sabia a gasóleo morno. Tomás observava-me em silêncio, de olhar impenetrável e obscuro.
- Vocês ouviram? - perguntou repentinamente Fermín. - Assim como um rufo de tambor de salto mortal.
- Não.
- As tripas deste vosso criado. Olhem, de repente deu-me cá uma fome... Importam-se que os deixe sozinhos um bocado e vá ali à padaria ver se saco algum bolo? Isto para não falar daquela empregada nova recém-chegada de Réus que é podre de boa e pode ser que vá ao castigo. Chama-se Maria Virtudes, mas a miúda tem cá um vício... De maneira que lhes desejo que falem dos seus assuntos, hem?
Em dez segundos Fermín tinha desaparecido por encanto, rumo ao seu lanche e ao seu encontro com a ninfeta. Tomás e eu ficámos sozinhos rodeados de um silêncio que prometia mais solidez que o franco suíço.
- Tomás - comecei, com a boca seca. - Ontem à noite a tua irmã esteve comigo.
Contemplou-me quase sem pestanejar. Engoli em seco.
- Diz qualquer coisa - disse eu.
- Tu não estás bom da cabeça.
Passou um minuto de murmúrios na rua. Tomás segurava o seu café, intacto.
- Estás a falar a sério? - perguntou.
- Só me encontrei com ela uma vez.
- Isso não é resposta.
- Importavas-te? Encolheu os ombros.
- Tu lá sabes o que fazes. Deixarias de te encontrar com ela só porque eu to pedisse?
- Sim -menti. - Mas não mo peças. Tomás baixou a cabeça.
- Tu não conheces a Bea - murmurou.
Calei-me. Deixámos passar vários minutos sem dizer palavra, vendo as figuras cinzentas a espreitar da montra, pedindo por tudo que alguma se decidisse a entrar e salvar-nos daquele silêncio envenenado. Ao fim de um pedaço, Tomás abandonou a chávena em cima do balcão e dirigiu-se para a porta.
- Vais-te já embora? Assentiu.
- Não nos vemos amanhã um bocado? - perguntei eu. - Poderíamos ir ao cinema, com o Fermín, como antigamente.
Parou junto da saída.
- Só to direi uma vez, Daniel. Não faças mal à minha irmã.
Ao sair cruzou-se com Fermín, que vinha carregado com um saco de bolos fumegantes. Fermín ficou a vê-lo perder-se na noite, sacudindo a cabeça. Deixou os bolos em cima do balcão e ofereceu-me uma ensaimada(1) acabada de fazer. Declinei a oferta. Não seria capaz de engolir nem uma aspirina.
- Aquilo já lhe passa, Daniel. Vai ver. Estas coisas, entre amigos, são normais.
- Não sei - murmurei.
Encontrámo-nos às sete e meia da manhã de domingo no café Canaletas, onde Fermín me ofereceu um café com leite e uns brioches cuja textura, mesmo barrados de manteiga,
*1. Bolo típico catalão, constituído por uma folha de massa folhada enrolada em espiral e coberta de açúcar. (N. T.)
Albergava uma certa similitude com a da pedra-pomes. Quem nos atendeu foi um empregado que exibia um emblema da Falange na lapela e um bigode cortado a lápis. Não parava de cantarolar e, ao perguntarmos-lhe a causa do seu excelente humor, explicou-nos que tinha sido pai no dia anterior. Quando o felicitámos insistiu em oferecer-nos uma Faria a cada um para que a fumássemos durante o dia à saúde do seu primogénito. Dissemos que assim faríamos. Fermín olhava-o de esguelha, com o cenho franzido, e suspeitei que tramava qualquer coisa.
Durante o pequeno-almoço, Fermín deu por inaugurada a jornada detectivesca com um esboço geral do enigma.
- Tudo começa com a amizade sincera entre dois rapazes, Julián Carax e Jorge Aldaya, colegas de turma desde a infância, como o Tomás e o Daniel. Durante anos tudo corre bem. Amigos inseparáveis com uma vida inteira pela frente. No entanto, a certa altura dá-se um conflito que quebra essa amizade. Para parafrasear os dramaturgos de salão, o conflito tem nome de mulher e chama-se Penélope. Muito homérico. Está a seguir-me?
A única coisa que me veio à mente foram as últimas palavras de Tomás Aguilar na noite anterior, na livraria: «Não faças mal à minha irmã.» Senti náuseas.
- Em 1919, Julián Carax parte rumo a Paris qual vulgar Ulisses - continuou Fermín. - A carta assinada por Penélope, que ele nunca chega a receber, estabelece que nessa altura a jovem está em reclusão na sua própria casa, prisioneira da família por motivos pouco claros, e que a amizade entre Aldaya e Carax feneceu. Mais ainda, pelo que Penélope nos conta, o irmão, Jorge, jurou que, se voltar a ver o seu velho amigo Julián, o matará. Palavras pesadas para o fim de uma amizade. Não é preciso ser Pasteur para depreender que o conflito é consequência directa da relação entre Penélope e Carax.
Cobria-me a fronte um suor frio. Senti que o café com leite e os quatro bocados que tinha engolido me subiam pela garganta acima.
- Contudo, temos de supor que Carax nunca chega a saber o sucedido a Penélope, porque a carta não lhe chega às mãos. A sua vida perde-se entre névoas de Paris, onde desenvolverá uma existência fantasmagórica entre o seu emprego de pianista num estabelecimento de variedades e uma desastrosa carreira como romancista de nenhum êxito. Estes anos em Paris são um mistério. Tudo o que deles resta é uma obra literária esquecida e virtualmente desaparecida. Sabemos que em determinado momento decide contrair matrimónio com uma enigmática e abastada dama que tem o dobro da idade dele. A natureza de tal casamento, se havemos de nos ater aos testemunhos, parece mais um acto de caridade ou amizade por parte de uma dama doente do que um lance romântico. Tudo leva a crer que a mecenas, temendo pelo futuro económico do seu protegido, opta por lhe deixar a sua fortuna e despedir-se deste mundo com uma cambalhota para maior glória do protectorado das artes. Os parisienses são assim.
- Talvez fosse um amor genuíno - fiz notar, num fio de voz.
- Oiça, Daniel, sente-se bem? Ficou branquíssimo e está a suar em bica.
- Sinto-me perfeitamente - menti.
- Voltando à vaca fria. O amor é como os enchidos: há paio de lombo e há mortadela. Tudo tem o seu lugar e função. Carax tinha declarado que não se sentia digno de amor algum e, de facto, não sabemos de nenhum romance registado durante os seus anos em Paris. Claro que, trabalhando numa casa de passe, talvez os ardores primários do instinto fossem cobertos através da confraternização entre funcionários da empresa, como se se tratasse de um bónus ou, nunca se disse com maior propriedade, do bodo de Natal. Mas isto é pura especulação: voltemos ao momento em que é anunciado o casamento entre Carax e a sua protectora. É então que volta a aparecer o Jorge Aldaya no mapa deste nebuloso assunto. Sabemos que contacta com o editor de Carax em Barcelona a fim de averiguar o paradeiro do romancista. Pouco tempo depois, na manhã do dia do casamento, Julián Carax bate-se em duelo com um desconhecido no cemitério de Père Lachaise e desaparece. O casamento nunca chega a ter lugar. A partir daí, tudo se confunde.
Fermín deixou cair uma pausa dramática, dirigindo-me o seu olhar de alta intriga.
- Supostamente, Carax atravessa a fronteira e, demonstrando uma vez mais o seu proverbial sentido da oportunidade, regressa a Barcelona em 1936, justamente em pleno deflagrar da guerra civil. As suas actividades e paradeiro em Barcelona durante essas semanas são confusos. Supomos que permanece durante um mês na cidade e que durante esse tempo não contacta com nenhum dos seus conhecidos. Nem com o pai nem com a sua amiga Nuria Monfort. É encontrado morto pouco mais tarde nas ruas, assassinado a tiro. Não tarda a fazer a sua aparição uma funesta personagem que se diz chamar Laín Coubert, nome que toma de empréstimo a uma personagem do último romance do próprio Carax, que para mais ignomínia não é senão o príncipe dos infernos. O suposto diabrete declara-se disposto a apagar do mapa o pouco que resta de Carax e destruir os seus livros para sempre. Para acabar de compor o melodrama, aparece como um homem sem rosto, desfigurado pelo fogo. Um vilão fugido de uma opereta gótica no qual, para confundir mais as coisas, a Nuria Monfort julga reconhecer a voz de Jorge Aldaya.
- Lembro-lhe que Nuria Monfort me mentiu - disse eu.
- Certo, mas se bem que a Nuria Monfort lhe tenha mentido é possível o fizesse mais por omissão e talvez para se desvincular dos factos. Há poucas razões para dizer a verdade, mas para mentir o número é infinito. Oiça, tem a certeza de que se sente bem? Tem a cara duma cor que parece uma tetilla(1) galega.
Abanei a cabeça e saí à pressa rumo aos sanitários.
Vomitei o pequeno-almoço, o jantar e uma boa parte da ira que tinha em cima. Lavei a cara com a água gelada do lavatório e contemplei o meu reflexo no espelho enevoado sobre o qual alguém tinha garatujado com um lápis de cera a legenda «Girón cabrão»(2). Ao voltar à mesa verifiquei que Fermín estava ao balcão, a pagar a conta e a discutir futebol com o empregado que nos tinha atendido.
- Melhor? - perguntou. Assenti.
- Isso é uma baixa de pressão - disse Fermín. - Tome um Sugus, que cura tudo.
Ao sair do café, Fermín insistiu em que tomássemos um táxi até ao colégio de San Gabriel e deixássemos o metro para outro dia, argumentando que estava uma manhã de mural comemorativo e que os túneis eram para as ratazanas.
- Um táxi até Sarriá vai custar uma fortuna - objectei.
- Oferta do montepio dos cretinos - atalhou Fermín -, que aqui o patriota enganou-se no troco e fizemos negócio. E o Daniel não está em condições de viajar debaixo da terra.
Assim apetrechados de fundo ilícitos, postámo-nos numa esquina ao princípio da Rambla de Cataluna e esperámos a chegada de um táxi. Tivemos de deixar passar uns quantos, porque Fermín declarou que, uma vez que entrava num automóvel, queria pelo menos um Studebaker. Levámos um quarto de hora a dar com um veículo do seu agrado, que Fermín mandou parar com grandes gesticulações. Fermín insistiu em ir no banco da frente, o que lhe deu ocasião de se embrenhar numa discussão com o condutor acerca do ouro de Moscovo e de José Estaline, que era o seu ídolo e guia espiritual à distância.
- Houve três grandes figuras neste século: Dolores Ibárruri, Manolete e José Estaline - proclamou o taxista, disposto a obsequiar-nos com uma pormenorizada hagiografia do ilustre camarada.
Eu viajava comodamente no assento de trás, alheio à perorata, com a janela aberta e gozando o ar fresco. Fermín, encantado por se passear num Studebaker, dava trela ao condutor, pontuando de vez em quando o enlevado esboço do líder soviético,
*1. Queijo típico galego, em forma de mama, por isso assim designado. (N. T.)
que o taxista glosava com questões de duvidoso interesse historiográfico.
- Pois consta-me que sofre muitíssimo da próstata desde que engoliu um caroço de nêspera e que agora só consegue urinar quando lhe trauteiam A Internacional - deixou cair Fermín.
- Propaganda fascista - esclareceu o taxista, mais devoto que nunca. - O camarada mija como um touro. Tomara o Vòlga ter tamanho caudal para si.
O debate de alta política acompanhou-nos através de todo o trajecto pela Via Augusta rumo à parte alta da cidade. O dia clareava e uma brisa fresca vestia o céu de azul ardente. Ao chegar à Rua Ganduxer, o condutor guinou à direita e iniciámos a lenta subida até ao Paseo de La Bonanova.
O colégio de San Gabriel erguia-se no centro de um arvoredo ao cimo de uma rua estreita e serpenteante que subia desde a Bonanova. A fachada, salpicada de janelões em forma de punhal, recortava os perfis de um palácio gótico de tijolo vermelho, suspenso em arcos e torreões que assomavam sobre as copas de um bananal em arestas cardinalícias. Mandámos embora o táxi e penetrámos num frondoso jardim juncado de fontes das quais emergiam querubins bafientos e sulcado de carreiros de pedra que rastejavam entre as árvores. De caminho para a entrada principal, Fermín pôs-me a par da instituição com uma das suas habituais lições magistrais de história social.
- Embora neste momento lhe pareça o mausoléu de Rasputine, o colégio de San Gabriel foi no seu tempo uma das mais prestigiosas e exclusivas instituições de Barcelona. No tempo da República degradou-se porque os novos-ricos de então, os novos industriais e banqueiros a cujos rebentos tinham recusado vagas durante anos porque os seus apelidos cheiravam a novo, decidiram criar as suas próprias escolas onde os tratassem com reverência e onde eles pudessem recusar vagas aos filhos dos outros. O dinheiro é como qualquer outro vírus: uma vez podre a alma que o alberga, parte à procura de sangue fresco. Neste mundo, um apelido dura menos que uma amêndoa coberta. Nos seus bons tempos, digamos entre 1880 e 1930, mais ou menos, o colégio de San Gabriel acolhia a fina-flor dos franganotes de linhagem bafienta e bolsa sonante. Os Aldaya e companhia vinham para este sinistro lugar em regime de internato para confraternizarem com os seus semelhantes, ouvirem missa e aprenderem história para assim a poderem repetir ad nauseam.
- Mas Julián Carax não era propriamente um deles - observei.
- Bom, às vezes estas egrégias instituições oferecem uma ou duas bolsas de estudo para os filhos do jardineiro ou de um engraxador para assim mostrarem a sua grandeza de espírito e caridade cristã - expôs Fermín. - A maneira mais eficaz de tornar os pobres inofensivos é ensiná-los a quererem imitar os ricos. É esse o veneno com que o capitalismo cega...
Agora não se embrenhe na doutrina social, Fermín, que se um destes padres o ouve, correm-nos daqui a pontapé - cortei, reparando que um par de sacerdotes nos observava com um misto de curiosidade e reserva do alto da escadaria que subia até ao portão do colégio e perguntando a mim mesmo se teriam ouvido alguma coisa da nossa conversa.
Um deles adiantou-se exibindo um sorriso cortês e as mãos cruzadas sobre o peito com gesto episcopal. Devia rondar os cinquenta anos e a sua magreza e uma cabeleira rala conferiam-lhe um ar de ave de rapina. Tinha um olhar penetrante e desprendia um aroma a água-de-colónia fresca e a naftalina.
- Bom dia. Sou o padre Fernando Ramos - anunciou. - Em que posso servi-los?
Fermín estendeu a mão, que o sacerdote observou brevemente antes de apertar, sempre escudado atrás do seu sorriso glacial.
- Fermín Romero de Torres, assessor bibliográfico de Sempere e filhos, que tem todo o gosto em cumprimentar vossa devotíssima excelência. Aqui à minha beira o meu colaborador, bem como amigo, Daniel, jovem de futuro e reconhecida qualidade cristã.
O padre Fernando observou-nos sem pestanejar. Apeteceu-me que a terra me engolisse.
- O prazer é todo meu, senhor Romero de Torres - replicou cordialmente. - Posso perguntar-lhes o que traz tão extraordinário duo à nossa humilde instituição?
Decidi intervir antes que Fermín largasse outro disparate ao sacerdote e tivéssemos de sair dali a sete pés.
- Senhor padre Fernando, estamos a tentar localizar dois antigos alunos do colégio de San Gabriel: Jorge Aldaya e Julián Carax.
O padre Fernando apertou os lábios e arqueou uma sobrancelha.
- Julián morreu há mais de quinze anos e Aldaya foi para a Argentina - disse secamente.
- O senhor padre conhecia-os? - perguntou Fermín.
O olhar incisivo do sacerdote deteve-se em cada um de nós antes de responder.
- Fomos colegas de turma. Posso perguntar qual é o vosso interesse no assunto?
Estava eu a pensar como responder àquela pergunta, quando Fermín se me antecipou.
- Acontece que nos veio parar à mão uma série de artigos que pertencem ou pertenceram, pois a jurisprudência a este respeito é confusa, aos dois referidos sujeitos.
- E qual é a natureza dos ditos artigos, se não é indiscrição?
- Rogo a Vossa Mercê que aceite o nosso silêncio, pois Deus sabe bem que abundam na matéria motivos de consciência e secretismo que nada têm que ver com a supina confiança que Vossa Excelentíssima e a ordem que com tanta galhardia e piedade representa nos merecem - largou Fermín a toda a velocidade.
O padre Fernando observava-o à beira do pasmo. Optei por retomar de novo a conversa antes que Fermín recuperasse o fôlego.
- Os artigos a que o senhor Romero de Torres faz referência são de índole familiar, recordações e objectos de valor puramente sentimental. O que desejaríamos pedir-lhe, padre, se não for muita maçada, era que nos falasse daquilo que recorda de Julián e Aldaya nos seus tempos de estudantes.
O padre Fernando observava-nos ainda com receio. Tornou-se-me óbvio que não lhe bastavam as explicações que lhe tínhamos dado para justificar o nosso interesse e granjear a sua colaboração. Lancei um olhar de socorro a Fermín, rogando que ele desencantasse alguma argúcia com a qual conquistássemos o padre.
- Sabe que o senhor se parece um pouco com Julián, em novo? - perguntou de repente o padre Fernando.
O olhar de Fermín iluminou-se. Aí vem, pensei. Jogamos tudo nesta cartada.
- Vossa Reverência é um lince - proclamou Fermín, fingindo assombro. - A sua perspicácia desmascarou-nos sem misericórdia. Há-de chegar pelo menos a cardeal ou papa.
- De que está o senhor a falar?
- Não é óbvio e patente, Ilustríssima?
- Para dizer a verdade, não.
- Contamos com o seu segredo de confissão?
- Isto é um jardim, e não um confessionário.
- Basta-nos a sua discrição eclesiástica.
- Têm-na.
Fermín suspirou profundamente e olhou para mim com ar melancólico.
- Daniel, não podemos continuar a mentir a este santo soldado de Cristo.
- Claro que não... - corroborei, completamente perdido.
Fermín aproximou-se do sacerdote e murmurou-lhe em tom confidencial:
- Pater, temos motivos de solidez pétrea para suspeitar que aqui o nosso amigo Daniel não é senão um filho secreto do falecido Julián Carax. Daí o nosso interesse em reconstituir o seu passado e recuperar a memória de uma eminência ausente que a parca quis arrebatar do lado de um pobre rapazinho.
O padre Fernando cravou o olhar em mim, atónito.
- Isso é verdade?
Assenti. Fermín deu-me uma palmada nas costas, compungido.
- Olhe para ele, pobrezinho, à procura de um progenitor perdido nas névoas da memória. Que há de mais triste do que isso? Conte-me vossa santíssima mercê.
- Os senhores têm provas que sustentem as vossas afirmações?
Fermín agarrou-me pelo queixo e ofereceu o meu rosto como moeda de pagamento.
- Que mais prova anseia o senhor padre que esta fronha, testemunha muda e fidedigna do feito paterno em questão?
O sacerdote pareceu hesitar.
- Ajuda-me, senhor padre? - implorei, ladino. - Por favor... O padre Fernando suspirou, incomodado.
- Não vejo mal nisso, suponho - disse finalmente. - Que querem saber?
- Tudo - disse Fermín.
O padre Fernando recapitulava as suas recordações com um certo tom de homilia. Construía as suas frases com esmero e sobriedade magistral, dotando-as de uma cadência que parecia encerrar uma moral por acréscimo que nunca se chegava a materializar. Anos de magistério tinham-lhe deixado aquele tom firme e didáctico de quem está habituado a ser ouvido, mas pergunta a si mesmo se é escutado.
- Se não me falha a memória, Julián Carax entrou como aluno do colégio de San Gabriel no ano de 1914. Simpatizei logo com ele, porque fazíamos ambos parte do grupo de alunos que não provinham de famílias abastadas. Chamavam-nos o comando Mortsdegana(1). Cada um de nós tinha a sua história especial. Eu conseguira uma vaga de bolsa de estudo graças ao meu pai, que durante vinte e cinco anos trabalhou nas cozinhas desta casa. Julián tinha sido aceite graças à intercessão do senhor Aldaya, que era cliente da chapelaria Fortuny, propriedade do pai de Julián. Eram outros tempos, claro está, e nessa altura o poder ainda estava concentrado em famílias e em dinastias. É um mundo desaparecido, os últimos restos levou-os a República, suponho que para bem, e o que dele resta são esses nomes no timbre de empresas, bancos e consórcios sem cara. Como todas as grandes cidades antigas, Barcelona é um somatório de ruínas. As grandes glórias de que muitos se vangloriam, palácios, fábricas e monumentos, insígnias com as quais nos identificamos, não são mais que cadáveres, relíquias de uma civilização extinta.
*1. Mortos de fome, em catalão. (N. T.)
Chegado a este ponto, o padre Fernando deixou uma solene pausa na qual pareceu que esperava a resposta da congregação com algum latinório ou uma réplica do missal.
- Bem pode dizer ámen, reverendo padre. Que grande verdade! - adiantou Fermín para vencer o incómodo silêncio.
- Falava-nos do primeiro ano do meu pai no colégio - fiz notar com suavidade.
O padre Fernando acenou afirmativamente.
- Já nessa altura dava pelo nome de Carax, embora o seu primeiro apelido fosse Fortuny(1). Ao princípio, alguns dos rapazes faziam troça dele por isso, e por ser um dos Mortsdegana, claro. Também faziam troça de mim porque era o filho do cozinheiro. No fundo do seu coração, Deus encheu-os de bondade, mas repetem aquilo que ouvem em casa.
- Anjinhos - pontuou Fermín.
- O que lembra o senhor padre do meu pai?
- Bem, já foi há tanto tempo... O melhor amigo do seu pai nessa altura não era o Jorge Aldaya, mas sim um rapaz chamado Miquel Moliner. O Miquel provinha de uma família quase tão endinheirada como os Aldaya e atrever-me-ia a dizer que era o aluno mais extravagante que vi nesta escola. O reitor tinha-o por endemoninhado porque recitava Marx em alemão durante a missa.
- Sinal inequívoco de possessão - corroborou Fermín.
- O Miquel e o Julián davam-se muito bem. Às vezes reuníamo-nos os três durante a hora do recreio do meio-dia e o Julián explicava-nos histórias. Outras vezes falava-nos da sua família e dos Aldaya...
O sacerdote pareceu hesitar.
- Mesmo depois de abandonar a escola, o Miquel e eu mantivemos o contacto durante uns tempos. Nessa altura o Julián já tinha partido para Paris. Sei que o Miquel tinha saudades dele e amiudadas vezes falava dele e recordava confidências que lhe tinha feito tempos atrás. Depois, quando eu entrei para o seminário, o Miquel disse que eu me tinha passado para o inimigo, de brincadeira, mas a verdade é que nos distanciámos.
- Diz-lhe alguma coisa que o Miquel se tenha casado com uma tal Nuria Monfort?
- O Miquel, casado?
- Acha estranho?
- Suponho que não deveria, mas... Não sei. A verdade é que há muitos anos que não sei do Miquel. Desde antes da guerra.
*1. Como é sabido, em Espanha o apelido do pai antecede o da mãe, ao contrário do que acontece entre nós. (N. T.)
- Ele mencionou-lhe alguma vez o nome de Nuria Monfort?
- Não, nunca. Nem que pensasse casar-se ou que tivesse namorada... Oiçam, não estou totalmente seguro de que deva falar-lhes de tudo isto. São coisas que o Julián e o Miquel me contaram a título pessoal, no entendimento de que ficavam entre nós...
- E vai negar a um filho a possibilidade de recuperar a memória do pai? - perguntou Fermín.
O padre Fernando debatia-se entre a dúvida e, pareceu-me, o desejo de recordar, de recuperar aqueles dias perdidos.
- Suponho que passaram tantos anos que já não faz mal. Ainda me lembro do dia em que o Julián nos explicou como tinha conhecido os Aldaya e como, sem se aperceber, a vida se lhe transformara...
... Em Outubro de 1914, um artefacto que muitos tomaram por um jazigo rolante parou uma tarde diante da chapelaria Fortuny, na Ronda de San António. Dele emergiu afigura altiva, majestosa e arrogante de don Ricardo Aldaya, já então um dos homens mais ricos não só de Barcelona, mas de Espanha, cujo império de indústrias têxteis se estendia a cidadelas e colónias ao longo dos rios de toda a Catalunha. A sua mão direita segurava as rédeas da banca e das propriedades territoriais de meia província. A esquerda, sempre em actividade, puxava os cordelinhos da administração provincial, da câmara municipal, de vários ministérios, do episcopado e do serviço portuário de alfândegas.
Naquela tarde, o rosto de bigodes exuberantes, patilhas régias e testa descoberta que a todos intimidava precisava de um chapéu. Entrou na loja de don Antoni Fortuny e, depois de deitar uma sucinta vista de olhos às instalações, olhou de esguelha o chapeleiro e o seu ajudante, o jovem Julián, e disse o seguinte: «Disseram-me que daqui, apesar das aparências, saem os melhores chapéus de Barcelona. O Outono parece mal-encarado e vou precisar de seis cartolas, uma dúzia de chapéus de feltro, boinas de caça e qualquer coisa para levar para as Cortes de Madrid. Está a tomar nota ou espera que lho repita?» Aquele foi o início de um laborioso, e lucrativo, processo em que pai e filho uniram esforços para satisfazer a encomenda de don Ricardo Aldaya. A Julián, que lia os jornais, não escapava aposição de Aldaya, e disse de si para si que não podia deixar ficar mal o pai naquela altura, no momento mais crucial e decisivo do seu negócio. Desde que o potentado entrara na sua loja, o chapeleiro levitava de gozo. Aldaya tinha-lhe prometido que, se ficasse satisfeito, ia recomendar o seu estabelecimento a todas as suas amizades. Isso significava que a chapelaria Fortuny, de uma loja digna mas modesta, saltaria para as mais altas esferas, vestindo cabeçorras e cabecinhas de deputados, presidentes de câmara, cardeais e ministros. Os dias daquela semana passaram por encanto. Julián não foi às aulas e passou jornadas de dezoito e vinte horas a trabalhar na oficina das traseiras da loja. O pai, rendido de entusiasmo, abraçava-o de vez em quando e até o beijava sem dar por isso. Chegou ao extremo de oferecer à sua mulher Sophie um vestido e um par de sapatos novos pela primeira vez em catorze anos. O chapeleiro não parecia o mesmo. Um domingo esqueceu-se de ir à missa e nessa mesma tarde, transbordante de orgulho, rodeou Julián com os braços e disse-lhe, com lágrimas nos olhos: «O avô ficaria orgulhoso de nós.»
Um dos processos mais complexos na já desaparecida ciência da chapelaria, técnica e politicamente, era tirar medidas. Don Ricardo Aldaya tinha um crânio que, segundo Julián, roçava o terreno do amelonado e agreste. O chapeleiro teve consciência das dificuldades mal avistou a testa daquele homem importante, e nessa mesma noite, quando Julián lhe disse que lhe lembrava certos fragmentos do maciço de Montserrat, Fortuny não pôde deixar de concordar. «Pai, com todo o respeito, sabe que eu tenho melhor mão que o senhor, que se enerva. Deixe-me ser eu afazê-lo.» O chapeleiro acedeu de bom grado e, no dia seguinte, quando Aldaya apareceu no seu Mercedes Benz, Julián recebeu-o e conduziu-o ao ateliê. Aldaya, ao verificar que quem ia tirar as medidas era um rapaz de catorze anos, enfureceu-se: «Mas que é isto? Um garoto? Antes andar em cabelo.» Julián, que tinha consciência do significado público da personagem mas que não se sentia absolutamente nada intimidado por ela, replicou: «Senhor Aldaya, em cabelo não é fácil o senhor andar, que esse cocuruto da cabeça parece a Plaza de Las Arenas, e se não lhe fazemos rapidamente um jogo de chapéus, ainda lhe confundem a cachimónia com o plano Cerda.»(1) Ao ouvir estas palavras, Fortuny julgou que morria. Aldaya, impávido, cravou os olhos em Julián. Então, para surpresa de todos, desatou a rir como há anos não fazia.
«Este seu garoto há-de ir longe, Fortunato», sentenciou Aldaya, que não havia maneira de aprender o nome do chapeleiro.
Foi deste modo que averiguaram que don Ricardo Aldaya estava farto precisamente até à ponta dos poucos cabelos que tinha de que todos o receassem, adulassem e se lançassem por terra à sua passagem, com vocação de capacho. Desprezava os lambe-botas, os medricas e toda a pessoa que demonstrasse qualquer tipo de debilidade física, mental ou moral. Ao deparar com um humilde rapaz, que quase nem aprendiz era, que tinha o descaramento e a ironia de fazer troça dele, Aldaya decidiu que realmente dera com a chapelaria ideal e duplicou a encomenda. Durante aquela semana compareceu todos os dias de boa vontade ao encontro marcado
*1. Ildefonso Cerda (1815-1876) foi o autor do projecto do Ensanche de Barcelona, datado de 1859. (N. T.)
para que Julián lhe tirasse as medidas e lhe provasse modelos. Antoni Fortuny ficava maravilhado ao ver como o líder da sociedade catalã se desmanchava a rir com as piadas e histórias que lhe contava aquele filho que lhe era desconhecido, com o qual nunca falava e que há anos não mostrava indício algum de ter sentido do humor. No final daquela semana, Aldaya puxou o chapeleiro de parte e levou-o para um canto afim de falar confidencialmente.
- Olhe lá, Fortunato, este seu filho é um talento e o senhor tem-no aqui morto de pasmaceira a limpar o pó aos musaranhos de uma loja de três vinténs.
- Isto é um bom negócio, don Ricardo, e o rapaz revela uma certa habilidade, embora lhe falte atitude.
- Lérias. Em que colégio é que o senhor o tem?
- Bem, ele anda na escola do...
- Isso são fábricas de jornaleiros. Na juventude, o talento, o génio, se não se lhes der atenção, desvirtuam-se e devoram aquele que os possui. Há que encarreirá-lo. Apoiá-lo. Está a perceber, Fortunato?
- Está enganado em relação ao meu filho. Ele, de génio, não tem nadinha. Pois se até para passar em geografia é um sarilho... Os professores já me dizem que tem a cabeça cheia de caraminholas, e muito má atitude, tal como a mãe, mas aqui ao menos sempre terá um ofício honesto e...
- Fortunato, o senhor aborrece-me. Hoje mesmo vou falar com a Junta Directiva do colégio de San Gabriel e vou-lhes indicar que aceitem o seu filho na mesma turma que o meu primogénito, o Jorge. Menos que isso, é ser miserável.
O chapeleiro ficou de olhos arregalados. O colégio de San Gabriel era o viveiro da nata da alta sociedade.
- Mas, don Ricardo, olhe que eu não poderia custear...
- Ninguém lhe disse que tinha de pagar um real. Da educação do rapaz trato eu. O senhor, como pai, só tem de dizer que sim.
- Pois claro que sim, era o que faltava, mas...
- Então não se fala mais nisso. Desde que o Julián aceite, claro está.
- Ele faz o que eu lhe mandar, era só o que faltava.
Neste ponto da conversa, Julián assomou à porta da parte de trás da loja, com um molde nas mãos.
- Don Ricardo, quando quiser...
- Diz-me, Julián, o que é que tens de fazer esta tarde?-perguntou Aldaya. Julián olhou alternadamente para o pai e para o industrial.
- Bem, ajudar aqui na loja do meu pai.
- Fora isso.
- Pensava ir à biblioteca de...
- Gostas de livros, hem?
- Sim, senhor.
-Já leste Conrad? O Coração das Trevas?
- Três vezes.
O chapeleiro franziu o cenho, completamente perdido.
- E esse Conrad quem é, pode-se saber?
Aldaya silenciou-o com um gesto que parecia forjado para calar assembleias de accionistas.
- Tenho em casa uma biblioteca com catorze mil volumes, Julián. Eu em novo lia muito, mas agora já não tenho tempo. Por falar nisso, tenho três exemplares autografados por Conrad em pessoa. O meu filho Jorge não entra na biblioteca nem de rastos. A única pessoa que pensa lá em casa é a minha filha Penélope, de modo que todos aqueles livros se estão a desperdiçar. Gostarias de os ver?
Julián disse que sim, sem fala. O chapeleiro presenciava a cena com uma inquietude que não conseguia definir. Todos aqueles nomes lhe eram desconhecidos. Os romances, como toda a gente sabia, eram para as mulheres e as pessoas que não tinham nada que fazer. O Coração das Trevas soava-lhe, no mínimo, a pecado mortal.
- Fortunato, o seu filho vem comigo, que lhe quero apresentar o meu Jorge. Sossegue, que logo lho devolvemos. Diz-me cá, rapaz, já entraste alguma vez num Mercedes Benz?
Julián deduziu que aquele era o nome do mastodonte imperial que o industrial utilizava para se deslocar. Abanou a cabeça.
- Pois já não é sem tempo. É como subir ao céu, mas não é preciso morrer.
Antoni Fortuny viu-os partir naquela carruagem de luxo desaforado e, quando procurou no seu coração, só sentiu tristeza. Naquela noite, enquanto jantava com Sophie (que trazia o seu vestido e os sapatos novos e quase não mostrava marcas nem cicatrizes), perguntou a si mesmo em que se tinha enganado desta vez. Precisamente quando Deus lhe devolvia um filho, Aldaya tirava-lho.
- Tira esse vestido, mulher, que pareces uma rameira. E que eu não volte a ver este vinho na mesa. Já chega e sobra dele destemperado com água. A avareza ainda acaba por nos apodrecer.
Julián nunca tinha atravessado para o outro lado da Avenida Diagonal. Aquela linha de arvoredo, terrenos de construção e palácios varados à espera de uma cidade era uma fronteira proibida. Da parte de cima da Diagonal estendiam-se aldeias, colinas e paragens de mistério, de riqueza e lenda. À sua passagem, Aldaya falava-lhe do colégio de San Gabriel, de novos amigos que ele nunca tinha visto, de um futuro que não julgara possível.
- E a que aspiras tu, Julián? Na vida, quero eu dizer.
- Não sei. Às vezes penso que gostaria de ser escritor. Romancista.
- Como Conrad, hem? És muito novo, claro. E diz-me uma coisa: a banca não te tenta?
- Não sei, senhor. A verdade é que nunca me tinha passado pela cabeça. Nunca vi mais de três pesetas juntas. A alta finança é um mistério para mim.
Aldaya riu-se.
- Não há mistério nenhum, Julian. O truque está em não juntar as pesetas de três em três, mas sim de três milhões em três milhões. Nessa altura não há enigma que valha. Nem a Santíssima Trindade.
Naquela tarde, subindo pela Avenida del Tibidabo, Julián julgou que cruzava as portas do paraíso. Mansões que se lhe afiguraram catedrais flanqueavam o caminho. A meio do trajecto, o motorista guinou e atravessaram o gradeamento de uma delas. Um exército de criados pôs-se imediatamente em marcha para receber o senhor. Tudo o que Julián podia ver era um casarão majestoso de três andares. Nunca lhe tinha ocorrido que pessoas reais vivessem num lugar assim. Deixou-se arrastar pelo vestíbulo, atravessou uma sala abobadada onde uma escadaria de mármore subia perfilada por cortinados de veludo, e penetrou numa grande sala cujas paredes estavam forradas de livros desde o chão até ao infinito.
- Que tal? -perguntou Aldaya. Julián mal o ouvia.
- Damián, diga ao menino Jorge que desça agora mesmo à biblioteca.
Os criados, sem rosto nem presença audível, deslizavam à mais pequena ordem do amo com a eficácia e a docilidade de um corpo de insectos bem adestrados.
- Vais precisar doutro guarda-roupa, Julián. Há muito bruto que só repara nas aparências... Direi àjacinta que se encarregue disso, tu não te preocupes. E é quase melhor que não digas nada ao teu pai, não vá ele ficar aborrecido. Olha, aqui vem o Jorge. Jorge, quero que conheças um rapaz estupendo que vai ser o teu novo colega de turma. Julián Fortu...
- Julián Carax - precisou ele.
- Julián Carax - repetiu Aldaya, satisfeito. - Gosto da maneira como soa. Este é o meu filho Jorge.
Julián estendeu a mão e Jorge Aldaya apertou-lha. Tinha um contacto mole, desprovido de vontade. O seu rosto exibia o cinzelado puro e pálido conferido pelo facto de ter crescido naquele mundo de bonecas. Vestia uma roupa e calçava uns sapatos que a Julián se afiguraram romanescos. O seu olhar denunciava um ar de suficiência e arrogância, de desprezo e cortesia adocicada. Julián sorriu-lhe abertamente, lendo insegurança, receio e vazio sob aquela carapaça de pompa e circunstância.
- É verdade que nunca leste nenhum destes livros?
- Os livros são aborrecidos.
- Os livros são espelhos: só se vê neles o que a pessoa tem dentro - replicou Julián.
Don Ricardo Aldaya riu novamente.
- Bem, deixo-os a sós para que se conheçam. Julián, vais ver que o Jorge, debaixo dessa carinha de menino mimado e convencido, não é tão parvo como parece. Tem alguma coisa do pai.
As palavras de Aldaya pareceram cair como punhais no rapaz, embora não abrandasse nem um milímetro o sorriso. Julián arrependeu-se da sua réplica e sentiu pena do rapaz.
- Tu deves ser o filho do chapeleiro - disse Jorge, sem malícia. - Ultimamente o meu pai fala muito de ti.
- É a novidade. Espero que não ligues muita importância a isso. Debaixo desta carinha de intrometido sabichão, não sou tão idiota como pareço.
Jorge sorriu-lhe. Julián pensou que sorria como as pessoas que não têm amigos, com gratidão.
- Anda, vou-te mostrar o resto da casa.
Deixaram para trás a biblioteca e afastaram-se na direcção da porta principal, rumo aos jardins. Ao atravessar a sala na base da escadaria, Julián ergueu a vista e vislumbrou de raspão uma silhueta a subir com a mão sobre o corrimão. Sentiu que se perdia numa visão. A rapariga devia ter doze ou treze anos e ia escoltada por uma mulher madura, miúda e rosada, com todos os traços de uma aia. Exibia um vestido azul acetinado. O seu cabelo era cor de amêndoa e a pele dos ombros e a garganta esbelta pareciam deixar passar a luz. Parou ao cimo das escadas e voltou-se um instante. Por um segundo, os olhares de ambos encontraram-se e ela concedeu-lhe apenas um esboço de sorriso. Depois, a aia rodeou com os braços os ombros da rapariga e guiou-a até ao umbral de um corredor pelo qual desapareceram ambas. Julián baixou a vista e encontrou-se de novo com Jorge.
- Aquela é a Penélope, a minha irmã. Já a hás-de conhecer. É um bocado chanfrada. Passa o dia a ler. Anda, vem, quero-te mostrar a capela da cave. Segundo as cozinheiras, está assombrada.
Julián seguiu docilmente o rapaz, mas o mundo escorregava-lhe debaixo dos pés. Pela primeira vez desde que tinha entrado no Mercedes Benz de don Ricardo Aldaya compreendeu o propósito. Tinha sonhado com ela em inúmeras ocasiões, com aquela mesma escada, aquele vestido azul e aquela expressão no olhar de cinza, sem saber quem era nem por que lhe sorria. Quando saiu para o jardim deixou-se guiar por Jorge até às cocheiras e campos de ténis que se estendiam mais adiante. Só então volveu o olhar atrás e a viu, à janela do segundo andar. Mal distinguia a sua silhueta, mas soube que ela lhe estava a sorrir e que, de alguma maneira, também ela o tinha reconhecido.
Aquele vislumbre efémero de Penélope Aldaya ao cimo das escadas acompanhou-o durante as suas primeiras semanas no colégio de San Gabriel. O seu novo mundo tinha muitas hipocrisias, e nem todas eram do seu agrado. Os alunos de San Gabriel comportavam-se como príncipes altivos e arrogantes e os professores assemelhavam-se a criados dóceis e ilustrados. O primeiro amigo quejulián lá fez, além de Jorge Aldaya, foi um rapaz chamado Fernando Ramos, filho de um dos cozinheiros do colégio, que nunca tinha imaginado que acabaria vestindo sotaina e dando aulas nas mesmas salas onde tinha crescido. Fernando, ao qual os demais chamavam o Cozinhitas e que tratavam como criado, possuía uma inteligência desperta mas quase não tinha amigos entre os alunos. O seu único companheiro era um rapaz extravagante chamado Miquel Moliner, que viria a converter-se com o tempo no melhor amigo que julián alguma vez teve naquela escola. Miquel Moliner, ao qual sobrava cérebro e faltava paciência, comprazia-se em irritar os professores pondo em dúvida todas as suas afirmações por meio da aplicação de jogos dialécticos que denunciavam tanto engenho como sanha viperina. Os outros temiam a sua língua afiada e consideravam-no um membro de outra espécie, o que, de algum modo, não andava muito longe da verdade. Apesar dos seus traços boémios e do pouco tom aristocrático que exibia, Miquel era filho de um industrial que enriquecera até ao absurdo graças ao fabrico de armas.
- É verdade, Carax? Dizem-me que o teu pai faz chapéus - disse-lhe ele, quando Fernando Ramos os apresentou.
- Julián para os amigos. Dizem-me que o teu faz canhões.
- Só os vende. Saber fazer, não sabe fazer senão dinheiro. Os meus amigos, entre os quais só conto Nietzsche e aqui o colega Fernando, chamam-me Miquel.
Miquel Moliner era um rapaz triste. Padecia de uma doentia obsessão com a morte e todos os assuntos de âmbito fúnebre, matéria a cuja consideração dedicava uma boa parte do seu tempo e talento. A mãe tinha morrido três anos antes num estranho acidente doméstico que um qualquer médico insensato se atrevera a qualificar de suicídio. Fora Miquel que encontrara o cadáver reluzente sob as águas do poço do palacete de Verão que a família tinha em Argentona. Quando a içaram com cordas, verificou-se que os bolsos do casaco estavam cheios de pedras. Havia também uma carta escrita em alemão, a língua materna da mãe, mas o senhor Moliner, que nunca se tinha dado ao trabalho de aprender o idioma, queimara-a nessa mesma tarde sem permitir que ninguém a lesse. Miquel Moliner via a morte em todo o lado, nas folhas caídas, nos pássaros tombados dos ninhos, nos velhos e na chuva, que tudo levava. Tinha um talento especial para o desenho, e perdia-se amiúde durante horas em desenhos a carvão onde aparecia sempre uma dama entre brumas e praias desertas que Julián imaginava ser a mãe.
- Que queres tu ser quando fores grande, Miquel?
- Eu nunca vou ser grande - dizia enigmaticamente.
O seu principal entretenimento, afora o desenho e contradizer todo o bicho careta, eram as obras de um enigmático médico austríaco que com os anos viria a ser célebre: Sigmund Freud. Miquel Moliner, que graças à falecida mãe lia e escrevia alemão na perfeição, possuía vários volumes com escritos do médico vienense. O seu terreno favorito era o da interpretação dos sonhos. Costumava perguntar às pessoas o que tinham sonhado, para a seguir proceder a um diagnóstico do paciente. Dizia sempre que ia morrer novo e que não se importava. De tanto pensar na morte, julgava Julián, tinha acabado por lhe encontrar mais sentido do que à vida. - No dia em que eu morrer, tudo o que tenho será teu, Julián – costumava dizer. - Menos os sonhos.
Para além de Fernando Ramos, Moliner e Jorge Aldaya, Julián depressa travou conhecimento com um rapaz tímido e um tanto arisco chamado Javier, filho único dos porteiros de San Gabriel, que viviam num modesto casinhoto postado à entrada dos jardins do colégio. Javier, que, tal como Fernando, o resto dos rapazes consideravam pouco menos que um lacaio indesejável, deambulava sozinho pelos jardins e pátios do recinto, sem entabular contacto com ninguém. De tanto vaguear pelo colégio, tinha acabado por aprender todos os meandros do edifício, os túneis das caves, as passagens que subiam até às torres e toda a sorte de esconderijos labirínticos de que já ninguém se lembrava. Era o seu mundo secreto, e o seu refúgio. Andava sempre com um canivete que tinha subtraído das gavetas do pai e gostava de talhar com ele figuras de madeira que guardava no pombal do colégio. O pai, Ramón, o porteiro, era veterano da guerra de Cuba, onde tinha perdido uma mão e (murmurava-se com uma certa malícia) o testículo direito com uma chumbada disparada pelo próprio Theodore Roosevelt na carga da Baía dos Porcos. Convencido de que a ociosidade era a mãe de todos os vícios, Ramón o Unicolhónio (como os alunos o apodavam) tinha encarregado o filho de recolher as folhas secas do pinhal e do pátio das fontes num saco. Ramón era bom homem, um tanto ou quanto tosco e fatalmente condenado a escolher más companhias. A pior delas era a mulher. O Unicolhónio tinha-se casado com uma mulheraça de escassas luzes e delírios de princesa com traços de criada de servir que gostava de se insinuar ligeira de roupas à vista do filho e dos alunos do colégio, o que era motivo de folguedo e desatino semanal. O seu nome de baptismo era Maria Craponcia, mas ela fazia-se chamar Yvonne, porque lhe parecia de mais bom-tom. Yvonne tinha por costume interrogar o filho a respeito das possibilidades de progresso social que lhe iam granjear as amizades que, julgava ela, o filho estava a entabular com a fina-flor da sociedade barcelonesa. Questionava-o sobre afortuna deste e daquele, imaginando-se engalanada de sedas de macaca e sendo recebida para tomar chá com bolos de massa folhada nos grandes salões da boa sociedade.
Javier procurava passar o mínimo tempo possível em casa e agradecia as tarefas que o pai lhe impunha, por mais duras que fossem. Todas as desculpas serviam para estar sozinho, para se refugiar no seu mundo secreto a talhar as suas figuras de madeira. Quando os alunos do colégio o viam de longe, alguns riam-se ou atiravam-lhe pedras. Um dia Julián sentiu tanta pena ao ver uma pedrada abrir-lhe a testa e derrubá-lo sobre os escombros, que decidiu acorrer em seu auxílio e oferecer-lhe a sua amizade.
Ao princípio, Javier pensou que Julián vinha acabar com ele enquanto os outros se riam às gargalhadas.
- O meu nome é Julián - disse, estendendo a mão. - Os meus amigos e eu íamos jogar umas partidas de xadrez no pinhal e estava cá a pensar se te apeteceria vir connosco.
- Eu não sei jogar xadrez.
- Eu até há duas semanas, também não. Mas o Miquel é um bom professor... O rapaz olhava com receio, à espera da chacota, do ataque escondido a qualquer momento.
- Não sei se os teus amigos quererão que eu esteja convosco...
- Foi ideia deles. Que dizes?
A partir daquele dia, Javier juntava-se-lhes às vezes ao terminar as tarefas que lhe tinham sido atribuídas. Costumava permanecer calado, a escutar e a observar os demais. Aldaya tinha um certo medo dele. Fernando, que tinha vivido na própria carne o desprezo dos outros em consequência da sua origem humilde, desfazia-se em amabilidades com o enigmático rapaz. Miquel Moliner, que lhe ensinava os rudimentos do xadrez e o observava com olho clínico, era o que estava menos convencido de todos.
- O tipo é chanfrado. Caça gatos e pombas e martiriza-os durante horas com a faca. Depois enterra-os no pinhal.
- Quem é que diz isso?
- Ele próprio mo contava no outro dia enquanto eu lhe explicava o salto do cavalo. Também me contava que às vezes a mãe se mete na cama dele à noite e o apalpa.
- Devia estar a entrar contigo.
- Duvido. Aquele gajo não é bom da cabeça, Julián, e provavelmente a culpa não é dele.
Julián fazia um esforço por ignorar as advertências e profecias de Miquel, mas a verdade é que se lhe estava a tornar difícil entabular uma relação amistosa com o filho do porteiro. Yvonne, em especial, não via Julián, nem Fernando Ramos, com bons olhos. De toda a tropa de rapazitos, eles eram os únicos que não tinham cheta. Dizia-se que o pai de Julián era um humilde lojista e que a mãe não tinha ido além de professora de música. «Essa gente não tem dinheiro nem classe nem elegância, querido -preleccionava a mãe -, quem te convém é o Aldaya, que é de uma família muito bem.» «Sim, mãe- respondia ele-, como queira.» Com o tempo, Javier pareceu começar a confiar nos seus novos amigos. Abria ocasionalmente a boca, e estava a talhar um jogo de peças de xadrez para Miquel Moliner, em agradecimento pelas suas lições. Um belo dia, quando ninguém o esperava ou julgava possível, descobriram que Javier sabia sorrir e que tinha um riso bonito e alvo, riso de criança.
- Vês? É um rapaz vulgar de Lineu - argumentava Julián.
Miquel Moliner, porém, não estava completamente sossegado e observava o estranho rapaz com desconfiança, e receio, quase científicos.
- O Javier está obcecado contigo, Julián - disse-lhe um dia. - Faz tudo para conquistar a tua aprovação.
- Que disparate! Para isso já tem um pai e uma mãe; eu sou só um amigo.
- Um inconsciente, é o que tu és. O pai dele é um pobre homem que tomara ele encontrar as nalgas na altura de se espremer, e a dona Yvonne é uma harpia com um cérebro de pulga que passa o dia afazer-se encontrada em trajes menores convencida de que é a dona Maria Guerrero(1), ou qualquer coisa pior que prefiro não mencionar. O rapaz, como é natural, procura um substituto, e tu, anjo salvador, cais do céu e dás-lhe a mão. San Julián de La Fuente, patrono dos deserdados.
- Esse tal doutor Freud está-te a apodrecer a moleirinha, Miquel. Todos nós precisamos de ter amigos. Até tu.
- Aquele rapaz não tem nem nunca terá amigos. Tem alma de aranha. E se não, veremos. Pergunto a mim mesmo o que sonhará ele...
Mal suspeitava Miquel Moliner que os sonhos de Francisco Javier eram mais parecidos com os do seu amigo Julián do que julgaria possível. Numa ocasião, meses antes de Julián entrar para o colégio, o filho do porteiro estava a apanhar as folhas caídas no pátio das fontes quando chegou o faustoso automóvel de don Ricardo Aldaya. Naquela tarde, o industrial trazia companhia. Vinha escoltado por uma aparição, um anjo de luz envolvido em seda que parecia levitar sobre o solo. O anjo, que não era senão a sua filha Penélope, apeou-se do Mercedes e caminhou até à fonte, agitando a sombrinha e parando a chapinhar nas águas do lago com a mão. Como sempre, a sua aia Jacinta seguia-a solícita, atenta ao mais pequeno gesto da rapariga. Pouco teria importado que viesse escoltada por um exército de criados: Javier só tinha olhos para a rapariga. Receou que, se pestanejasse, a visão se esfumaria. Permaneceu ali paralisado, a espiar a miragem, de respiração suspensa. Pouco depois, como se tivesse intuído a sua presença e o seu olhar furtivo, Penélope ergueu a vista para ele. A beleza daquele rosto afigurou-se-lhe dolorosa, insustentável. Pareceu-lhe entrever a menção de um sorriso nos lábios dela. Aterrado, Javier correu a ocultar-se no alto da torre das cisternas junto ao pombal do sótão do colégio, o seu esconderijo predilecto. Ainda lhe tremiam as mãos quando pegou nas suas ferramentas de talhar e começou a trabalhar numa nova peça que queria se assemelhasse ao rosto que acabava de vislumbrar. Quando nessa noite regressou à residência do porteiro, horas mais tarde que o habitual, a mãe esperava-o, meio nua e furiosa. O rapaz baixou os olhos receando que, se a mãe lhe lesse o olhar, visse nele a rapariga do lago e soubesse o que ele tinha estado a pensar.
*1. Famosa actriz de teatro espanhola, nascida em 1868 e falecida em 1928. (N. T)
- E onde é que te metes, ranhoso de merda?
- Desculpe, mãe. Perdi-me.
- Tu estás perdido desde o dia em que nasceste.
Anos mais tarde, cada vez que introduzia o revólver na boca de um prisioneiro e premia o gatilho, o inspector-chefe Francisco Javier Fumero haveria de evocar o dia em que vira o crânio da mãe estoirar como uma melancia madura nas imediações de um restaurante ao ar livre de Las Planas e não sentira nada, apenas o tédio das coisas mortas. A Guarda Civil, alertada pelo empregado do estabelecimento, que tinha ouvido o disparo, encontrara o rapaz sentado numa rocha, segurando a escopeta no regaço, ainda morna. Contemplava impávido o corpo decapitado de Maria Craponcia, aliás Yvonne, coberto de insectos. Ao ver os guardas aproximarem-se, limitara-se a encolher os ombros, com o rosto salpicado de gotas de sangue como se estivesse comido da varíola. Seguindo os soluços, os guardas encontraram Ramón o Unicolhónio encolhido ao pé de uma árvore a trinta metros dali, no meio do mato. Tremia como uma criança e fora incapaz de se fazer entender. O tenente da Guarda Civil, depois de muito meditar, determinara que o acontecimento tinha sido um trágico acidente e assim o fizera constar no atestado, que não na sua consciência. Ao perguntarem ao rapaz se podiam fazer alguma coisa por ele, Francisco Javier Fumero perguntara se podia ficar com aquela velha escopeta, porque quando fosse mais crescido queria ser soldado...
- Sente-se bem, senhor Romero de Torres?
A súbita aparição de Fumero no relato do padre Fernando Ramos deixara-me gelado, mas o efeito sobre Fermín tinha sido fulminante. Estava amarelento e tremiam-lhe as mãos.
- É uma baixa de tensão - improvisou Fermín num fio de voz. - Este clima catalão às vezes atormenta-nos, às pessoas do sul.
- Posso oferecer-lhe um copo de água? - perguntou o sacerdote, consternado.
- Se não for maçada para Vossa Ilustríssima. E talvez um quadradinho de chocolate, por causa daquilo da glucose...
O sacerdote serviu-lhe um copo de água, que Fermín esvaziou avidamente.
- A única coisa que tenho são rebuçados de eucalipto. Serve?
- Deus lhe pague.
Fermín engoliu um punhado de rebuçados e, daí a pouco, pareceu recuperar uma certa palidez.
- Tem a certeza de que aquele rapaz, o filho do porteiro que perdeu heroicamente o escroto defendendo as colónias, se chamava Fumero, Francisco Javier Fumero?
- Sim. Absolutamente. Os senhores conhecem-no, por acaso?
- Não - entoámos os dois em polifonia. O padre Fernando franziu o cenho.
- Não seria de estranhar. Francisco Fumero veio a tornar-se uma personagem tristemente célebre.
- Não estamos certos de o compreender...
- Compreendem-me às mil maravilhas. Francisco Javier Fumero é inspector-chefe da Brigada Criminal de Barcelona e a sua reputação é sobejamente conhecida inclusivamente pelos que não saímos deste recinto. E o senhor ao ouvir o seu nome encolheu vários centímetros, diria eu.
- Agora que vocência o refere, o nome tem uma certa entoação familiar... O padre Fernando olhou-nos de esguelha.
- Este rapaz não é filho de Julián Carax. Estou enganado?
- Filho espiritual, Eminência, o que moralmente tem mais peso.
- Em que género de embrulhada estão os senhores metidos? Quem foi que os mandou cá?
Tive então a certeza de que estávamos a ponto de ser postos fora a pontapé do gabinete do sacerdote e optei por silenciar Fermín e, por uma vez, jogar a cartada da honestidade.
- Tem razão, senhor padre. Julián Carax não é meu pai. Mas ninguém nos mandou cá. Há anos tropecei por acaso num livro de Carax, um livro que se julgava desaparecido, e desde então procurei averiguar mais sobre ele e esclarecer as circunstâncias da sua morte. O senhor Romero de Torres prestou-me a sua ajuda...
- Que livro?
- A Sombra do Vento. O senhor leu-o?
- Eu li todos os romances de Julián.
- Conserva-os?
O sacerdote abanou a cabeça.
- Posso perguntar o que lhes fez?
- Anos atrás alguém entrou no meu quarto e deitou-lhes fogo.
- Suspeita de alguém?
- Claro. De Fumero. Não é por isso que os senhores aqui estão? Fermín e eu trocámos um olhar de perplexidade.
- O inspector Fumero? Por que havia ele de querer queimar esses livros?
- Quem, senão ele? Durante o último ano que passámos juntos no colégio, Francisco Javier tentou matar Julián com a escopeta do pai. Se Miquel não o tivesse detido...
- Por que foi que tentou matá-lo? Julián tinha sido o seu único amigo.
- O Francisco Javier estava obcecado com a Penélope Aldaya. Ninguém o sabia. Não me parece que a própria Penélope tivesse reparado na existência do rapaz. Manteve o segredo durante anos. Ao que parece seguia o Julián sem que ele o soubesse. Acho que um dia o viu beijá-la. Não sei. O que sei é que tentou matá-lo em plena luz do dia. O Miquel Moliner, que nunca tinha confiado no Fumero, lançou-se sobre ele e deteve-o no último momento. Ainda se pode ver o buraco da bala junto da entrada. Cada vez que lá passo recordo-me daquele dia.
- Que aconteceu a Fumero?
- Ele e a família foram expulsos do recinto. Acho que o Francisco Javier foi metido num internato durante uma temporada. Nunca mais soubemos dele a não ser um par de anos mais tarde, quando a mãe morreu num acidente de caça. Não houve tal acidente. O Francisco Javier Fumero é um assassino.
- Se eu lhe contasse... - murmurou Fermín.
- Olhe que não se perdia nada se os senhores me contassem alguma coisa, alguma coisa verídica, para variar.
- Podemos-lhe dizer que não foi Fumero que queimou os seus livros.
- Então quem foi?
- Foi com toda a certeza um homem com o rosto desfigurado pelo fogo que diz chamar-se Laín Coubert.
- Esse não é...? Assenti.
- O nome de uma personagem de Carax. O diabo.
O padre Fernando reclinou-se no seu cadeirão, quase tão perdido como nós.
- O que parece cada vez mais claro é que a Penélope Aldaya é o centro de todo este assunto, e é dela que menos sabemos.
- Não me parece que possa ajudá-los nisso. Mal a vi, de longe, duas ou três vezes. Tudo o que sei dela é o que o Julián me contou, que não era muito. A única pessoa a quem alguma vez ouvi mencionar o nome da Penélope foi a Jacinta Coronado.
- Jacinta Coronado?
- A aia da Penélope. Tinha criado o Jorge e a Penélope. Gostava loucamente deles, especialmente da Penélope. Às vezes ia ao colégio buscar o Jorge, porque don Ricardo Aldaya não gostava que os filhos passassem um segundo sem a vigilância de alguém da casa. Jacinta era um anjo. Tinha ouvido dizer que eu, como Julián, éramos rapazes de recursos modestos e trazia-nos sempre qualquer coisa para lanchar porque julgava que passávamos fome. Eu dizia-lhe que o meu pai era o cozinheiro, que não se preocupasse, que de comer não me faltava. Mas ela insistia. Eu esperava-a às vezes e falava com ela.
Era a mulher mais bondosa que alguma vez conheci. Não tinha filhos, nem namorado conhecido. Estava sozinha no mundo e tinha dado a vida para criar os filhos dos Aldaya. Adorava a Penélope com toda a sua alma. Ainda fala dela...
- O senhor padre ainda está em contacto com Jacinta?
- Vou visitá-la às vezes ao asilo de Santa Lucía. Ela não tem ninguém. O Senhor, por razões que estão vedadas ao nosso entendimento, nem sempre premeia em vida. Jacinta já é uma mulher de muita idade e continua tão sozinha como sempre esteve.
Fermin e eu trocámos um olhar.
- E a Penélope? Nunca a visitou?
O olhar do padre Fernando era um poço de negrume.
- Ninguém sabe o que foi feito da Penélope. Aquela rapariga era a vida da Jacinta. Quando os Aldaya foram para a América e ela a perdeu, perdeu tudo.
- Por que foi que não a levaram com ela? A Penélope foi também para a Argentina, com o resto dos Aldaya? - perguntei.
O sacerdote encolheu os ombros.
- Não sei. Ninguém voltou a ver a Penélope ou a ouvir falar dela a partir de 1919.
- O ano em que Carax foi para Paris - observou Fermín.
- Os senhores têm de me prometer que não vão incomodar aquela pobre velhota para desenterrar recordações dolorosas.
- Por quem nos toma o senhor padre? - perguntou Fermín, abespinhado. Suspeitando que não nos ia arrancar mais nada, o padre Fernando fez-nos jurar-lhe que o manteríamos informado do que averiguássemos. Fermín, para o tranquilizar, empenhou-se em jurar sobre um Novo Testamento que jazia na secretária do sacerdote.
- Deixe os Evangelhos sossegados. Basta-me a sua palavra.
- O senhor não deixa passar nada, hem, padre? Que fera!
- Vamos, eu acompanho-os à saída.
Guiou-nos através do jardim até ao gradeamento de lanças e deteve-se a uma distância prudente da saída, contemplando a rua que serpenteava a descer até ao mundo real, como se receasse evaporar-se caso se aventurasse uns passos mais além. Perguntei a mim mesmo quando teria sido a última vez que o padre Fernando abandonara o recinto do colégio de San Gabriel.
- Tive muita pena quando soube que o Julián tinha falecido - disse com voz serena. - Apesar de tudo o que depois aconteceu e de nos termos distanciado com o tempo, fomos bons amigos: o Miquel, o Aldaya, o Julián e eu. Até o Fumero. Sempre julguei que íamos ser inseparáveis, mas a vida deve saber qualquer coisa que nós não sabemos. Nunca voltei a ter amigos como aqueles, e não me parece que os volte a ter. Espero que encontre o que procura, Daniel.
A manhã ia quase a meio quando chegámos ao Paseo de La Bonanova, cada um absorto nos seus próprios pensamentos. Não me restavam dúvidas de que os de Fermín se concentravam na sinistra aparição do inspector Fumero no assunto. Olhei-o de esguelha e apercebi-me do seu semblante pesaroso, carcomido de inquietude. Um manto de nuvens escuras estendia-se como sangue derramado e destilava estilhas de luz da cor das folhas caídas.
- Se não nos apressamos, levamos com uma das grandes - disse eu.
- Ainda não. Aquelas nuvens têm cara de noite, de nódoa negra. São das que esperam.
- Não me diga que também percebe de nuvens.
- Viver na rua ensina mais à pessoa do que ela desejaria saber. Só de pensar naquilo do Fumero deu-me uma fome horrorosa. Que me diz de irmos até ao bar da praça de Sarriá e abotoarmo-nos com duas sanduíches de tortilha com muitíssima cebola?
Metemos rumo à praça, onde uma horda de velhotes namoriscava o pombal local, reduzindo a vida a um jogo de migalhas e de espera. Arranjámos uma mesa junto à porta do bar, onde Fermín passou a dar boa conta das duas sanduíches, a dele e a minha, uma imperial, dois quadrados de chocolate e um garoto com um cheiro de rum. De sobremesa tomou um Sugus. Na mesa contígua, um homem observava Fermín de soslaio por cima do jornal, provavelmente a pensar o mesmo que eu.
- Não sei onde é que enfia tudo isso, Fermín.
- Na minha família fomos sempre de metabolismo acelerado. A minha irmã Jesusa, que Deus tenha, era capaz de lanchar uma tortilha de morcela e alho francês e seis ovos a meio da tarde e depois portar-se como um cossaco ao jantar. Chamavam-lhe a Fígados, porque sofria de mau hálito. Era igualzinha a mim, sabe? Com esta mesma tromba e este corpo serrano, bastante magro de carnes. Um médico de Cáceres disse-lhe uma vez que nós, os Romero de Torres, éramos do vínculo perdido entre o homem e o peixe-martelo, porque noventa por cento do nosso organismo é cartilagem, maioritariamente concentrado no nariz e no pavilhão auricular. Na aldeia confundiam muito a Jesusa comigo, porque a desgraçada nunca chegou a desenvolver peito e começou a fazer a barba antes de mim. Morreu de tísica aos vinte e dois anos, virgem terminal e apaixonada em segredo por um padre santarrão que quando se cruzava com ela na rua lhe dizia sempre. «Viva, Fermín, estás um homenzinho.» Ironias da vida.
- Tem saudades dela?
- Da família?
Fermín encolheu os ombros, varado num sorriso nostálgico.
- Sei lá! Poucas coisas enganam mais que as recordações. Veja o padre... E o Daniel? Tem saudades da sua mãe?
Baixei o olhar.
- Muito.
- Sabe do que mais me lembro da minha? - perguntou Fermín. - Do cheiro. Cheirava sempre a lavado, a pão doce. Tanto fazia que tivesse passado o dia a trabalhar no campo ou que trouxesse vestidos os mesmos andrajos de toda a semana. Cheirava sempre a tudo o que há de bom neste mundo. E olhe que era bruta. Praguejava como um carroceiro, mas cheirava como as princesas das histórias. Ou pelo menos assim me parecia. E o Daniel? De que mais se lembra da sua mãe?
Hesitei um instante, arranhando as palavras que me fugiam da voz.
- Nada. Há já anos que não me consigo lembrar da minha mãe. Nem como era a cara dela, a voz, ou o cheiro. Perderam-se-me no dia em que descobri Julián Carax e nunca mais voltaram.
Fermín observava-me cautelosamente, medindo a resposta.
- Não tem nenhum retrato dela?
- Nunca quis vê-los - disse eu.
- Porquê?
Nunca tinha contado isto a ninguém, nem sequer ao meu pai ou ao Tomás.
- Porque tenho medo. Tenho medo de procurar um retrato da minha mãe e descobrir nela uma estranha. Isto há-de parecer-lhe uma tolice.
Fermín abanou a cabeça.
- E por isso acha que se conseguir desvendar o mistério de Julián Carax e resgatá-lo do esquecimento, o rosto da sua mãe voltará para si?
Olhei-o em silêncio. Não havia ironia nem julgamento no seu olhar. Por um instante, Fermín Romero de Torres pareceu-me o homem mais lúcido e sábio do universo.
- Talvez - disse, sem pensar.
Por volta do meio-dia metemo-nos num autocarro de volta ao centro. Sentámo-nos à frente, mesmo atrás do condutor, circunstância que Fermín aproveitou para entabular um debate com ele acerca dos muitos progressos, técnicos e cosméticos, que notava nos transportes públicos de superfície em relação à última vez que os tinha utilizado, lá para 1940, particularmente no referente à sinalização, como demonstrava um cartaz que rezava: «É proibido cuspir e dizer palavrões.» Fermín examinou o cartaz de esguelha e optou por lhe prestar vassalagem conjurando com vigor um sonoro escarro, o que bastou para nos granjear os olhares sulfúricos de um trio de beatonas que viajavam em comando na parte de trás, apetrechadas todas elas do seu exemplar de missal.
- Selvagem - murmurou a beata do flanco leste, que revelava uma assombrosa parecença com o retrato oficial do general Yagúe(1).
- Ali vão elas - disse Fermín. - Três santas tem a minha Espanha. Santa Aflição, Santa Carcaça e Santa Melindres. Todos juntos transformámos este país numa anedota.
- Bem pode dizê-lo - conveio o condutor. - Com Azaria estávamos melhor. E do trânsito nem é bom falar. Mete nojo.
Um homem sentado na parte de trás riu-se, desfrutando da troca de pareceres. Reconheci-o como o mesmo que tinha estado sentado ao pé de nós no bar. A sua expressão parecia insinuar que estava do lado de Fermín e que desejava vê-lo assanhar-se com as beatas. Cruzei brevemente o olhar com ele. Sorriu-me cordialmente e regressou ao seu jornal com desinteresse. Ao chegar à Rua Ganduxer reparei que Fermín se tinha encolhido como um novelo debaixo da gabardina e estava a ferrar uma cabeçadita com a boca aberta e o rosto bem-aventurado. O autocarro deslizava pelos cavalheiros engomados do Paseo de San Gervasio quando Fermín acordou de repente.
- Estive a sonhar com o padre Fernando - disse. - Só que no meu sonho estava vestido de avançado-centro do Real Madrid e tinha a taça da Liga ao lado, toda ela a reluzir.
- E depois? - perguntei.
- Se Freud tiver razão, isso significa que talvez o padre nos tenha metido um golo.
- A mim pareceu-me um homem honesto.
- Isso é verdade. Talvez demasiado para o seu próprio bem. Os padres com estofo de santos acabam por ser todos mandados para as missões, para ver se são comidos pelos mosquitos ou pelas piranhas.
- Não será tanto assim.
- Bendita inocência a sua, Daniel. Até acredita no Pai Natal. E, senão, tem para amostra: aquela aldrabice de Miquel Moliner que Nuria Monfort lhe impingiu. Parece-me que essa sujeita lhe enfiou ainda mais patranhas que a página editorial do LOsservatore Romano. Agora vai-se a ver e é casada com um amigo de infância de Aldaya e Carax, imagine lá o Daniel. E ainda por cima temos a história da Jacinta, a aia boa, que talvez seja verídica mas soa de mais a último acto de don Alejandro Casona(2). Isto para já não falar da aparição estelar do Fumero no papel de magarefe.
*1. General franquista que chefiou o Corpo de Exército Marroquino, avançando pela Estremadura espanhola e pelo Vale do Tejo para eliminar a resistência republicana. (N. T.)
- Acha então que o padre Fernando nos mentiu?
- Não. Concordo consigo que parece honesto, mas o uniforme pesa muito e se calhar guardou uma ou outra novena na manga, por assim dizer. Creio que se nos mentiu foi por omissão e decoro, e não por mau fundo ou malícia. Aliás não o vejo capaz de inventar um enredo daqueles. Se soubesse mentir melhor, não andaria a dar aulas de álgebra e latim: estaria já no episcopado, com um gabinete de cardeal e melindres macios para o café.
- Que sugere então que façamos?
- Mais tarde ou mais cedo vamos ter de desenterrar a múmia da velhinha angelical e sacudi-la pelos tornozelos, a ver o que cai. De momento vou puxar alguns cordelinhos, a ver o que averiguo sobre esse tal Miquel Moliner. E não se perderia nada em manter debaixo de olho essa Nuria Monfort, que me parece que se está a revelar aquilo a que a minha falecida mãe chamava uma galdéria.
- Engana-se em relação a ela - aduzi eu.
- A si basta mostrarem-lhe um par de mamas bem feitas e julga logo que viu a Santa Teresa, o que na sua idade tem desculpa, que não remédio. Deixe-a comigo, Daniel, que a fragrância do eterno feminino já não me atordoa como a si. Na minha idade, a irrigação sanguínea para a cabeça adquire preferência à destinada às partes moles.
- Que conversa!
Fermín extraiu o seu porta-moedas e pôs-se a contar o montante.
- Leva aí uma fortuna - disse eu. - Sobrou isso tudo do troco desta manhã?
- Parte. O resto é legítimo. É que hoje vou sair com a minha Bernarda por aí. E eu àquela mulher não posso negar nada. Se for preciso, assalto o Banco de Espanha para lhe satisfazer todos os caprichos. E o Daniel que planos tem para o resto do dia?
- Nada em especial.
- E a tal miúda?
- Que miúda?
- A peneirenta. Que miúda é que havia de ser? A irmã do Aguilar.
- Não sei.
- Saber, sabe; o que não tem, falando bem e depressa, é colhões para pegar o touro pelos cornos.
Nisto aproximou-se de nós o revisor com ar fatigado, fazendo malabarismos com um palito que passeava e rodopiava entre os dentes com destreza circense.
- Os senhores desculpem, mas aquelas senhoras além perguntam se podem utilizar uma linguagem mais decorosa.
- É uma merda - replicou Fermín, em voz alta.
O revisor voltou-se para as três damas e encolheu os ombros, dando-lhes a entender que tinha feito tudo quanto podia e que não estava disposto a andar à bofetada por uma questão de pudor semântico.
- As pessoas que não possuem vida própria têm sempre de se meter na dos outros - resmungou Fermín. - De que é que estávamos a falar?
- Da minha falta de tomates.
- Efectivamente. Um caso crónico. Oiça o que eu lhe digo. Vá procurar a sua pequena, que esta vida são dois dias, especialmente a parte que vale a pena viver. Bem viu o que o padre dizia. Tão depressa me vês como não me vês.
- Mas é que ela não é a minha pequena.
- Pois ganhe-a antes que outro a leve, especialmente um soldadinho de chumbo.
- Fala como se a Bea fosse um troféu.
- Não, como se fosse uma bênção - corrigiu Fermín. - Olhe, Daniel. O destino costuma estar ao virar da esquina. Como se fosse um gatuno, uma rameira ou um vendedor de lotaria: as suas três encarnações mais batidas. Mas o que não faz é visitas ao domicílio. É preciso ir atrás dele.
Dediquei o resto do trajecto a considerar esta pérola filosófica enquanto Fermín empreendia outra cabeçada, mister para o qual tinha um talento napoleónico. Descemos do autocarro na esquina da Gran Via com o Paseo de Gracia sob um céu de cinza que sumia a luz. Abotoando a gabardina até ao gasganete, Fermín anunciou que partia a toda a pressa rumo à sua pensão com a intenção de se arranjar para o encontro com Bernarda.
- Note que com uma presença essencialmente modesta como a minha, a toilette não leva menos de noventa minutos. Não há génio sem figura; é essa a triste realidade destes tempos trapaceiros. Vanitas pecata mundi.
Vi-o afastar-se pela Gran Via, um mero esboço de homenzinho abrigado na sua gabardina cinzenta que esvoaçava como uma bandeira coçada ao vento. Meti rumo a casa, onde planeava recrutar um bom livro e esconder-me do mundo. Ao dobrar a esquina da Puerta del Ángel com a Rua Santa Ana, deu-me o coração um salto. Fermín, como sempre, tivera razão. O destino aguardava-me diante da livraria envergando um vestido de lã cinzenta, sapatos novos e meias de seda, e a estudar o seu reflexo na montra.
- O meu pai julga que eu estou na missa do meio-dia - disse Bea sem erguer a vista da sua própria imagem.
- É como se estivesses. Aqui, a menos de vinte metros, na igreja de Santa Ana estão em sessões contínuas desde as nove da manhã.
Falávamos como dois desconhecidos casualmente parados diante de uma montra, procurando o olhar um do outro no vidro.
- Não é caso para gracejar. Tive de tirar uma folha dominical para saber sobre o que era o sermão. Depois há-de pedir-me que lhe faça uma sinopse pormenorizada.
- O teu pai mete-se em tudo.
- Jurou que te partia as pernas.
- Antes disso terá de averiguar quem eu sou. E, enquanto eu as tiver inteiras, corro mais do que ele.
Bea observava-me tensa, olhando por cima do ombro os transeuntes que deslizavam atrás de nós em sopros de cinzento e de ventania.
- Não sei de que te ris - disse ela. - Ele está a falar a sério.
- Não me estou a rir. Estou morto de medo. Mas é que fico contente por te ver.
Um sorriso a meia haste, nervoso, fugaz.
- Eu também - concedeu Bea.
- Dizes isso como se fosse uma doença.
- É pior que isso. Pensava que, se te voltasse a ver à luz do dia, se calhar ganhava juízo.
Perguntei a mim mesmo se aquilo era um elogio ou uma condenação.
- Não nos podem ver juntos, Daniel. Assim não, em plena rua.
- Se quiseres, podemos entrar na livraria. Na parte de trás há uma cafeteira e...
- Não. Não quero que ninguém me veja entrar ou sair daqui. Se alguém me vê falar agora contigo, posso sempre dizer que tropecei por acaso no melhor amigo do meu irmão. Se nos virem duas vezes juntos, levantaremos suspeitas.
Suspirei.
- E quem é que nos vai ver? A quem é que importa o que façamos?
- As pessoas têm sempre olhos para o que não lhes importa, e o meu pai conhece meia Barcelona.
- Então por que é que vieste até aqui esperar-me?
- Não vim esperar-te. Vim à missa, não te lembras? Tu mesmo o disseste. A vinte metros daqui...
- Metes-me medo, Bea. Ainda mentes melhor do que eu.
- Tu não me conheces, Daniel.
- É o que o teu irmão diz.
Os nossos olhares encontraram-se no reflexo.
- Na outra noite mostraste-me uma coisa que eu nunca tinha visto - murmurou Bea. - Agora é a minha vez.
Franzi o cenho, intrigado. Bea abriu a mala, extraiu de lá um cartão de cartolina dobrado e estendeu-mo.
- Não és o único que conhece mistérios em Barcelona, Daniel. Tenho uma surpresa para ti. Espero-te nesta direcção hoje às quatro. Ninguém deve saber que combinámos encontrar-nos lá.
- Como saberei que dei com o sítio certo?
- Sabê-lo-ás.
Olhei-a de esguelha, rezando para que estivesse a brincar comigo.
- Se não apareceres, eu compreenderei - disse Bea. - Compreenderei que já não me queres voltar a ver.
Sem me conceder um instante para responder, Bea deu meia volta e afastou-se a passo ligeiro na direcção das Ramblas. Fiquei a segurar o cartão na mão e a palavra nos lábios, perseguindo-a com o olhar até que a sua silhueta se fundiu na penumbra cinzenta que precedia a tempestade. Abri o cartão. No interior, em traço azul, lia-se uma direcção que eu conhecia bem.
Avenida del Tibidabo, 32.
A tempestade não esperou pelo anoitecer para deitar os dentes de fora. Os primeiros relâmpagos surpreenderam-me pouco depois de apanhar um autocarro da linha 22. Ao contornar a praça Molina e subir Balmes acima, a cidade já se esbatia sob cortinas de veludo líquido, recordando-me que nem tinha tomado a precaução de trazer um mísero guarda-chuva.
- É preciso coragem - murmurou o condutor quando o mandei parar.
Passavam já dez minutos das quatro quando o autocarro me deixou num elo perdido no final da Rua Balmes à mercê da tempestade. Em frente, a Avenida del Tibidabo desvanecia-se numa miragem aquosa sob um céu de chumbo. Contei até três e desatei a correr debaixo da chuva. Minutos mais tarde, ensopado até à medula e a tiritar de frio, detive-me ao abrigo de uma entrada para recuperar o fôlego. Auscultei o resto do trajecto. O hálito gelado da tempestade arrastava um manto cinzento que mascarava o contorno espectral de palacetes e casarões enterrados na névoa. Entre eles erguia-se o torreão escuro e solitário do Palacete Aldaya, varado no meio do arvoredo ondulante. Afastei o cabelo ensopado que me caía para os olhos e desatei a correr para lá, percorrendo a avenida deserta.
A portinhola do gradeamento abanava ao vento. Mais além abria-se um carreiro ondulante que subia até ao casarão. Introduzi-me pela portinhola e internei-me no prédio. No meio das ervas daninhas adivinhavam-se pedestais de estátuas arrasadas sem piedade. Ao avançar direito ao casarão, reparei que uma das estátuas, a efígie de um anjo purificador, tinha sido abandonada no interior de uma fonte que coroava o jardim. A silhueta de mármore enegrecido brilhava como um espectro sob a lâmina de água que transbordava do lago. A mão do anjo ígneo emergia das águas: um dedo acusador, aguçado como uma baioneta, apontava para a porta principal da casa. O portão de carvalho trabalhado adivinhava-se entreaberto. Empurrei a porta e aventurei-me uns passos até um vestíbulo cavernoso, cujas paredes flutuavam sob a carícia de uma vela.
- Julguei que não vinhas - disse Bea.
A sua silhueta perfilava-se num corredor cravado na penumbra, recortada na claridade mortiça de uma galeria que se abria ao fundo. Estava sentada numa cadeira, contra a parede, com uma vela aos pés.
- Fecha a porta - indicou, sem se levantar. - A chave está na fechadura. Obedeci. A fechadura rangeu com um eco sepulcral. Ouvi os passos de Bea atrás de mim e senti o roçagar da sua roupa ensopada.
- Estás a tremer. É de medo ou de frio?
- Ainda não decidi. Por que é que aqui estamos? Sorriu na penumbra e pegou-me na mão.
- Não sabes? Julgava que terias adivinhado...
- Esta era a casa dos Aldaya, é tudo quanto sei. Como conseguiste aqui entrar e como sabias...?
- Anda, vamos acender uma fogueira para aqueceres.
Guiou-me através do corredor até à galeria que dominava o pátio interior da casa. O salão erguia-se em colunas de mármore e paredes nuas que rastejavam até ao artesoado de um tecto a cair aos bocados. Adivinhavam-se as marcas de quadros e espelhos que tempos atrás tinham coberto as paredes, tal como os rastos de móveis sobre o pavimento de mármore. Num extremo do salão havia uma lareira com uns troncos colocados. Uma pilha de jornais velhos descansava junto ao atiçador. O hálito da chaminé cheirava a fogo recente e a coque. Bea ajoelhou-se diante da lareira e começou a meter várias folhas de jornal entre os troncos. Extraiu um fósforo e incendiou-as, conjurando rapidamente uma coroa de chamas. As mãos de Bea agitavam os madeiros com habilidade e experiência. Imaginei que me supunha morto de curiosidade e impaciência, mas decidi adoptar um ar fleumático que deixasse claro que, se Bea queria brincar aos mistérios comigo, não sairia a ganhar. Ela derretia-se num sorriso triunfante. O meu tremor das mãos não ajudava porventura à minha representação.
- Vens muito por aqui? - perguntei.
- Hoje é a primeira vez. Intrigado?
- Vagamente.
Ajoelhou-se junto do fogo e estendeu uma manta limpa que tirou de um saco de lona. Cheirava a lavanda.
- Anda, senta-te aqui, ao pé do fogo, não vás apanhar uma pneumonia por minha culpa.
O calor da fogueira devolveu-me à vida. Bea contemplava as chamas em silêncio, enfeitiçada.
- Vais-me contar o segredo? - perguntei finalmente.
Bea suspirou e sentou-se numa das cadeiras. Eu permaneci colado ao fogo, a observar o vapor a subir da minha roupa como uma alma em fuga.
- Aquilo a que tu chamas o palacete Aldaya, tem na realidade nome próprio. A casa chama-se «O anjo de bruma», mas quase ninguém o sabe. O escritório do meu pai anda há quinze anos a tentar vender este prédio sem o conseguir. No outro dia, enquanto me explicavas a história do Julián Carax e da Penélope Aldaya, não reparei nisso. Depois, à noite, em casa, juntei as coisas e lembrei-me de que tinha ouvido o meu pai falar uma vez da família Aldaya, e desta casa em particular. Ontem fui ao escritório do meu pai e o secretário dele, Casasús, contou-me a história da casa. Sabias que na realidade esta não era a sua residência oficial, mas sim uma das suas casas de veraneio?
Abanei a cabeça.
- A casa principal dos Aldaya era um palácio que foi demolido em 1925 para erigir um bloco de andares, no que hoje é o cruzamento das Ruas Bruch e Mallorca, desenhado por Puig i Cadafalch por encomenda do avô de Penélope e Jorge, Simón Aldaya, em 1896, quando aquilo não era mais que campos e valas. O filho mais velho do patriarca Simón, don Ricardo Aldaya, tinha-a comprado aí pelos últimos anos do século XIX a uma personagem muito pitoresca por um preço irrisório, porque a casa tinha má fama. Casasús disse-me que estava amaldiçoada e que nem os vendedores se atreviam a vir mostrá-la e fugiam com o rabo à seringa sob qualquer pretexto...
Naquela tarde, enquanto se aquecia novamente, Bea referiu-me a história de como «O anjo da bruma» fora parar às mãos da família Aldaya. O relato era um melodrama escabroso que bem podia ter saído da pena de Julián Carax. A casa fora construída em 1899 pela firma de arquitectos de Naulí, Martorell i Bergadà sob os auspícios de um próspero e extravagante financeiro catalão chamado Salvador Jausà, que só viria a viver nela um ano. O potentado, órfão desde os seis anos e de origens humildes, tinha acumulado a maior parte da sua fortuna em Cuba e Porto Rico. Dizia-se que a sua era uma das muitas mãos negras por detrás da trama da queda de Cuba e da guerra com os Estados Unidos em que se haviam perdido as últimas colónias. Do Novo Mundo trouxera alguma coisa mais que uma fortuna: acompanhavam-no uma esposa norte-americana, damizela pálida e frágil da boa sociedade de Filadélfia que não falava uma palavra de castelhano, e uma criada mulata que havia estado ao seu serviço desde os primeiros anos em Cuba e que viajava com um macaco enjaulado vestido de arlequim e sete baús de bagagem. Temporariamente instalaram-se em vários quartos do hotel Colón na praça de Cataluna, à espera de adquirir a residência adequada aos gostos e apetências de Jausà.
Ninguém tinha a menor dúvida de que a criada - uma beleza de ébano dotada de um olhar e uma figura que segundo as crónicas de sociedade induziam taquicardias - era na realidade sua amante e guia em prazeres ilícitos e indizíveis. A sua qualidade de bruxa e feiticeira pressupunha-se por acréscimo. O seu nome era Marisela, ou assim lhe chamava Jausà, e a sua presença e ares enigmáticos não tardaram a converter-se no escândalo predilecto das reuniões que as damas de bom nascimento propiciavam para degustar melindres e matar o tempo e os sufocos outonais. Nestas tertúlias circulavam rumores por confirmar que sugeriam que a mulher africana, por inspiração directa dos Infernos, fornicava empoleirada no homem, isto é, cavalgando-o qual égua no cio, o que violava necessariamente pelo menos cinco ou seis pecados mortais. Não faltou, pois, quem escrevesse ao episcopado, solicitando uma bênção especial e protecção para a alma impoluta e nívea das famílias de bom nome de Barcelona...
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