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A SOMBRA DO VENTO - P.2 / Carlos Ruiz Zafón
A SOMBRA DO VENTO - P.2 / Carlos Ruiz Zafón

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SOMBRA DO VENTO

Segunda Parte

 

Um portão de madeira apodrecida conduziu-nos ao interior de um pátio custodiado por candeeiros de gás que salpicavam gárgulas e anjos cujas feições se desfaziam na pedra envelhecida. Uma escadaria subia até ao primeiro andar, onde um rectângulo de claridade vaporosa desenhava a entrada principal do asilo. A luz de gás que emanava desta abertura tingia de ocre a neblina de miasmas que se desprendia do interior. Uma silhueta angulosa e rapace observava-nos do arco da porta. Na penumbra conseguia-se distinguir o seu olhar penetrante, da mesma cor que o hábito. Segurava um balde de madeira que fumegava e deitava um fedor indescritível.

- AveMariaPuríssimaConcebidaSemPecado - declarou Fermín a correr e com entusiasmo.

- E o caixão? - replicou a voz lá no alto, grave e reticente.

- Caixão? - perguntámos Fermín e eu em uníssono.

- Não vêm da agência funerária? - perguntou a freira com voz fatigada.

Perguntei a mim mesmo se aquilo era um comentário sobre o nosso aspecto ou uma pergunta genuína. O rosto de Fermín iluminou-se diante de tão providencial oportunidade.

- O caixão está na furgoneta. Primeiro queríamos reconhecer o cliente. Simples tecnicismo.

Senti que a náusea me devorava.

- Julguei que vinha o senhor Collbató em pessoa - disse a freira.

- O senhor Collbató pede-lhe que o desculpe, mas apareceu-lhe um embalsamamento de última hora muito complicado. Um homem das forças de circo.

- Os senhores trabalham com o senhor Collbató na agência funerária?

- Somos os seus braços direito e esquerdo, respectivamente. Wilfredo Velludo, e aqui à minha beira o meu aprendiz, o bacharel Sansón Carrasco.

- Muito prazer - completei.

A freira procedeu a uma verificação sumária das nossas pessoas e assentiu, indiferente ao par de espantalhos que se reflectiam no seu olhar.

- Bem-vindos a Santa Lucía. Eu sou a soror Hortênsia, a que lhes telefonou. Sigam-me.

Seguimos soror Hortênsia sem descerrar os lábios através de um corredor cavernoso cujo cheiro me lembrou o dos túneis do metro. O corredor estava flanqueado por armações sem portas atrás das quais se adivinhavam salas iluminadas com velas, ocupadas por fiadas de camas empilhadas contra a parede e cobertas por mosquiteiros que ondulavam como sudários. Ouviam-se lamentos e adivinhavam-se silhuetas por entre a rede dos cortinados.

- Por aqui - indiciou soror Hortênsia, que levava a dianteira uns metros à frente.

Entrámos numa abóbada ampla na qual não me custou grandemente localizar o palco do Tenebrarium que Fermín me descrevera. A penumbra velava o que à primeira vista me pareceu uma colecção de figuras de cera, sentadas e abandonadas aos cantos, com olhos mortos e vítreos que brilhavam como moedas de latão à luz das velas. Pensei que talvez fossem bonecos ou restos do velho museu. Depois verifiquei que se mexiam, embora muito lentamente e com discrição. Não tinham idade ou sexo discerníveis. Os farrapos que os cobriam tinham a cor da cinza.

- O senhor Collbató disse que não tocássemos nem limpássemos nada - disse soror Hortênsia com um certo tom de desculpa. - Limitámo-nos a pôr o desgraçado num dos caixotes que havia por aqui, porque estava a começar a pingar, mas já está.

- Fizeram bem. Todo o cuidado é pouco - conveio Fermín.

Lancei-lhe um olhar desesperado. Ele abanou serenamente a cabeça, dando-me a entender que deixasse a situação por sua conta. Soror Hortênsia conduziu-nos até àquilo que parecia uma cela sem ventilação nem luz ao fim de um corredor apertado. Pegou num dos candeeiros de gás que pendiam da parede e estendeu-no-lo.

- Demorarão muito? Tenho que fazer.

- Por nós não se empate. Vá à sua vida, que nós já o levamos. Não se preocupe.

- Bem. Se precisarem de alguma coisa estou na cave, na galeria de acamados. Se não for pedir de mais, levem-no pelas traseiras. Para os outros não o verem. É mau para o moral dos internos.

- Nós percebemos - disse eu, com a voz entrecortada.

Soror Hortênsia contemplou-me com uma vaga curiosidade por um instante. Ao observá-la de perto apercebi-me de que era uma mulher de certa idade, quase velha. Poucos anos a separavam do resto dos inquilinos da casa.

- Oiça, o aprendiz não é um bocado novo para este ofício?

- As verdades da vida não conhecem idade, irmã - ofereceu Fermín.

A freira sorriu-me docemente, assentindo. Não havia desconfiança naquele olhar, apenas tristeza.

- Mesmo assim - murmurou.

Afastou-se nas trevas, levando o seu balde e arrastando a sua sombra como um véu nupcial. Fermín empurrou-me para o interior da cela. Era um cubículo miserável cortado entre paredes de gruta supurantes de humidade, de cujo tecto pendiam correntes terminadas por ganchos e cujo solo quebrado era dividido por um ralo de esgoto. No centro, em cima de uma mesa de mármore acinzentado, repousava um caixote de madeira de embalagem industrial. Fermín ergueu o candeeiro e adivinhámos a silhueta do defunto a assomar por entre o enchimento de palha. Traços de pergaminho, impossíveis, recortados e sem vida. A pele intumescida era de cor roxa. Os olhos, brancos como cascas de ovo quebradas, estavam abertos.

Revolveu-se-me o estômago e afastei a vista.

- Venha, mãos à obra - indicou Fermín.

- Está doido?

- Refiro-me a que temos de encontrar a tal Jacinta antes que o nosso ardil seja descoberto.

- Como?

- Como é que há-de ser? Perguntando.

Assomámos ao corredor para nos certificarmos de que soror Hortênsia desaparecera. Depois, discretamente, deslizámos até ao salão que tínhamos atravessado. As figuras miseráveis continuavam a observar-nos, com olhares que iam da curiosidade ao temor e, num ou noutro caso, à cobiça.

- Esteja atento, que alguns destes, se pudessem chupar-lhe o sangue para voltarem a ser jovens, atiravam-se-lhe ao pescoço - disse Fermín. - A idade fá-los parecer todos bons como cordeirinhos, mas aqui há tanto filho da puta como lá fora, ou mais. Porque estes são dos que cá ficaram e enterraram os outros. Não tenha pena. Ande, comece por esses do canto, que parece que não têm dentes.

Se estas palavras tinham por objectivo encorajar-me para a missão, fracassaram miseravelmente. Observei aquele grupo de despojos humanos que languescia ao canto e sorri-lhes. A sua mera presença afigurou-se-me um estratagema propagandístico em favor do vazio moral do universo e da brutalidade mecânica com que este destruía os que já não se lhe revelavam úteis. Fermín pareceu ler-me tão profundos pensamentos e assentiu gravemente.

- A mãe natureza é uma grandessíssima pega, essa é que é a triste realidade - disse. - Coragem e vamos ao touro.

A minha primeira ronda de interrogatórios não me granjeou mais que olhares vazios, gemidos, arrotos e desvarios por parte de todos os sujeitos que questionei sobre o paradeiro de Jacinta Coronado. Quinze minutos mais tarde colhi as velas e juntei-me a Fermín para ver se ele tinha tido mais sorte. Transbordava de desalento.

- Como é que vamos encontrar Jacinta Coronado neste buraco?

- Não sei. Isto é uma caterva de tarados. Tentei os Sugus, mas eles tomam-nos por supositórios.

- E se perguntarmos à soror Hortênsia? Dizemos-lhe a verdade e pronto.

- A verdade só se diz como último recurso, Daniel, e ainda mais a uma freira. Antes disso esgotemos os cartuchos. Olhe esse grupinho dali, que parece muito animado. De certeza sabem latim. Vá e interrogue-os.

- E o Fermín que pensa fazer?

- Eu vigiarei a retaguarda, não vá o pinguim voltar. O Daniel vá à sua vida. Com pouca ou nenhuma esperança de êxito, aproximei-me de um grupo de internos que ocupava uma esquina do salão.

- Boa noite - disse, compreendendo no mesmo instante o absurdo da minha saudação, pois ali era sempre de noite. - Procuro dona Jacinta Coronado. Co-ro-na-do. Algum dos senhores a conhece ou me pode dizer onde a encontrar?

Em frente, quatro olhares envilecidos de avidez. Aqui há uma pulsação, disse eu para comigo. Talvez nem tudo esteja perdido.

- Jacinta Coronado? - insisti.

Os quatro internos trocaram olhares e assentiram entre si. Um deles, gorducho e sem um único pêlo em todo o corpo, parecia o cabecilha. O seu semblante e a sua galhardia à vista daquele terrário de escatologias fez-me pensar num Nero feliz, a dedilhar a sua harpa enquanto Roma apodrecia aos seus pés. Com atitude majestosa, o césar Nero sorriu-me, brincalhão. Devolvi-lhe o gesto, esperançado.

O sujeito fez-me sinal para me aproximar, como se quisesse sussurrar-me ao ouvido. Hesitei, mas ajustei-me às suas condições.

- Pode dizer-me onde encontrar dona Jacinta Coronado? - perguntei pela última vez.

Aproximei o ouvido dos lábios do interno, tanto que consegui sentir o seu hálito fétido e tépido na pele. Receei que me mordesse, mas inesperadamente pôs-se a soltar uma ventosidade de formidável contundência. Os seus companheiros desataram a rir e a dar palmas. Recuei uns passos, mas o eflúvio flatulento já me tinha apanhado sem remédio. Foi então que avistei junto de mim um ancião encolhido sobre si mesmo, armado de barbas de profeta, cabelo ralo e olhos de fogo, que se sustinha com uma bengala e os contemplava com desprezo.

- Perde o seu tempo, meu rapaz. O Juanito só sabe dar peidos e esses a única coisa que sabem é rir-se deles e aspirá-los. Como vê, aqui a estrutura social não é muito diferente da do mundo exterior.

O velho filósofo falava com voz grave e dicção perfeita. Olhou-me de alto a baixo, avaliando-me.

- Procura a Jacinta, pareceu-me ouvir?

Assenti, atónito ante a aparição de vida inteligente naquele antro de horrores.

- E porquê?

- Sou neto dela.

- E eu o marquês de Matoimel. Um reles mentiroso, é o que você é. Diga-me para que é que a procura ou faço-me maluco. Aqui é fácil. E se pensa andar por aí a perguntar a estes desgraçados um por um, não tardará a perceber porquê.

Juanito e a sua camarilha de inaladores continuavam a rir-se a bandeiras despregadas. O solista emitiu então um bis, mais amortecido e prolongado que o primeiro, em forma de cicio, que emulava um furo num pneu e deixava claro que Juanito possuía um controlo do esfíncter que roçava o virtuosismo. Rendi-me à evidência.

- Tem razão. Não sou familiar da senhora Coronado, mas preciso de falar com ela. É um assunto de extrema importância.

O ancião aproximou-se de mim. Tinha um sorriso pícaro e felino, de menino gasto, e o olhar ardia-lhe de astúcia.

- Pode ajudar-me? - supliquei.

- Isso depende daquilo em que você me puder ajudar a mim.

- Se estiver na minha mão, terei o maior prazer em o ajudar. Quer que faça chegar uma mensagem à sua família?

O ancião começou a rir amargamente.

- Foi a minha família que me confinou a este poço. Uma rica matilha de sanguessugas, capazes de roubar até as cuecas a uma pessoa enquanto ainda estão mornas. Esses pode o Inferno ou a Câmara ficar com eles. Já os aguentei e mantive anos suficientes. O que eu quero é uma mulher.

- Perdão?

O ancião olhou-me com impaciência.

- Os poucos anos não lhe desculpam a opacidade de entendimento, rapaz. Digo-lhe que quero uma mulher. Uma fêmea, gaja ou mula de boa raça. Jovem, isto é, com menos de cinquenta e cinco anos, e saudável, sem chagas nem fracturas.

- Não estou certo de compreender...

- Compreende-me às mil maravilhas. Quero papar uma mulher que tenha dentes e não se mije nas cuecas antes de ir para o outro mundo. Não importa se for muito bonita ou não; eu estou meio cego, e na minha idade qualquer tipa que tenha onde a pessoa se agarrar é uma Vénus. Faço-me entender?

- Como um livro aberto. Mas não vejo como lhe vou eu encontrar uma mulher...

- Quando eu tinha a sua idade, havia qualquer coisa no sector de serviços chamada mulheres de virtude fácil. Bem sei que o mundo muda, mas nunca no essencial. Arranje-me uma, cheiinha e viciosa, e faremos negócio. E, caso se esteja a interrogar sobre a minha capacidade para gozar com uma mulher, pense que me contento em beliscar-lhe o traseiro e sopesar-lhe as beldades. Vantagens da experiência.

- Os tecnicismos são lá consigo, mas agora não lhe posso trazer uma mulher aqui.

- Posso ser um velho entesoado, mas imbecil, não. Isso bem eu sei. Basta-me que mo prometa.

- E como sabe que não lhe direi que sim só para que me diga onde está Jacinta Coronado?

O velhote sorriu-me, ladino.

- Dê-me a sua palavra, e deixe os problemas de consciência para mim. Olhei em meu redor. Juanito iniciava a segunda parte do seu recital. A vida extinguia-se por momentos.

A petição daquele velhote malandreco era a única coisa que me parecia ter sentido naquele purgatório.

- Dou-lhe a minha palavra. Farei o que puder.

O ancião sorriu de orelha a orelha. Contei três dentes.

- Loira, mesmo que seja oxigenada. Com um par de bons marmelos e com voz de ordinária, se for possível, que, de todos os sentidos, o que melhor conservo é o do ouvido.

- Verei o que posso fazer. Agora diga-me onde encontrar Jacinta Coronado.

 

- Prometeu àquele matusalém o quê?

- Bem me ouviu.

- Deve tê-lo dito de brincadeira, espero eu.

- Eu não minto a um velhadas nas últimas, por mais atrevido que ele seja.

- E isso só o enobrece, Daniel, mas como pensa enfiar uma galdéria nesta santa casa?

- Pagando a triplicar, suponho eu. Deixo-lhe a si os pormenores específicos. Fermín encolheu os ombros, resignado.

- Enfim, um acordo é um acordo. Logo pensaremos nalguma coisa. Agora muito bem, da próxima vez que se apresente um negócio desta natureza, deixe-me ser eu a falar.

- Concedido.

Tal como me tinha indicado o ancião vivaço, encontrámos Jacinta Coronado num sótão ao qual só se podia aceder por uma escadaria no terceiro andar. Segundo o velhadas luxurioso, o sótão era o refúgio dos escassos internos que a parca não tivera a decência de privar de entendimento, estado por outro lado de escassa longevidade. Ao que parecia, aquela ala oculta tinha albergado em tempos os aposentos de Baltasar Deulofeu, aliás Laszlo de Vicherny, dos quais presidia às actividades do Tenebrarium e cultivava as artes amatórias recém-chegadas do Oriente entre vapores e óleos perfumados. Tudo o que restava daquele duvidoso esplendor eram os vapores e perfumes, se bem que de outra natureza. Jacinta Coronado languescia submissa numa cadeira de verga, embrulhada num cobertor.

- Senhora Coronado? - perguntei levantando a voz, receando que a desgraçada estivesse surda, tarada ou ambas as coisas.

A anciã examinou-nos com detença e uma certa reserva. Tinha um olhar arenoso, e apenas umas mechas de cabelo esbranquiçado lhe cobriam a cabeça. Reparei que me olhava com estranheza, como se me tivesse visto antes não se lembrasse de onde. Receei que Fermín se apressasse a apresentar-me como o filho de Carax ou algum ardil semelhante, mas limitou-se a ajoelhar à beira da anciã e a pegar-lhe na mão trémula e fanada.

- Jacinta, eu sou o Fermín e este garoto é o meu amigo Daniel. Quem nos mandou cá foi o seu amigo padre Fernando Ramos, que hoje não pôde vir porque tinha doze missas para dizer, bem sabe como é esta coisa do santoral, mas manda-lhe muitíssimos cumprimentos. Como está a senhora?

A anciã sorriu docemente a Fermín. O meu amigo acariciou-lhe o rosto e a testa. A anciã agradecia o contacto de outra pele como um gato fraldiqueiro. Senti que se me apertava a garganta.

- Que pergunta tão parva, não é verdade? - continuou Fermín. - O que a senhora gostaria era de andar por aí, a dançar um cbotis(1). Porque a senhora tem pinta de bailarina, toda a gente o deve dizer.

Nunca o tinha visto tratar ninguém com tanta delicadeza, nem sequer Bernarda. As palavras eram pura bajulação, mas o tom e a expressão do seu rosto eram sinceros.

 

*1. Música e dança popular em Madrid no início do século xx, em que os pares bailam abraçados, deslocando-se normalmente muito pouco e dando três passos à esquerda, três à direita e voltas. (N. T.)

 

- Que coisas tão bonitas que o senhor diz - murmurou com uma voz entrecortada, de não ter com quem falar ou nada que dizer.

- Não têm nem metade da sua boniteza, Jacinta. Acha que lhe poderíamos fazer umas perguntas? Como nos concursos da rádio, sabe?

Como única resposta, a anciã pestanejou.

- Eu diria que isso é um sim. Lembra-se da Penélope, Jacinta? Penélope Aldaya? É por ela que lhe queríamos perguntar.

Jacinta assentiu, o olhar de súbito iluminado.

- A minha menina - murmurou, e pareceu que nos ia desatar a chorar ali mesmo.

- A própria. Lembra-se, hem? Nós somos amigos do Julián. Julián Carax. O das histórias de terror, também se lembra, não é verdade?

Os olhos da anciã brilhavam, como se as palavras e o toque na pele lhe devolvessem a vida por momentos.

- O padre Fernando, do colégio de San Gabriel, disse-nos que a senhora gostava muito da Penélope. Ele também gosta muito de si e lembra-se de si todos os dias, sabe? Se não vem mais amiúde é porque o novo bispo, que é um oportunista, o trama com uma tal porção de missas que ele até anda afónico.

- O senhor já come bem? - perguntou de súbito a anciã, inquieta.

- Como que nem um abade, Jacinta, o que acontece é que tenho um metabolismo muito masculino e queimo tudo. Mas aqui onde me vê, debaixo desta roupa é tudo puro músculo. Toque, toque. Como o Charles Atlas, mas mais peludo.

Jacinta assentiu, mais sossegada. Só tinha olhos para Fermín. A mim, tinha-me esquecido completamente.

- O que é que nos pode dizer da Penélope e do Julián?

- Tiraram-ma, entre todos - disse ela. - A minha menina. Adiantei-me para dizer qualquer coisa, mas Fermín lançou-me um olhar que dizia: cala-te.

- Quem foi que lhe tirou a Penélope, Jacinta? Lembra-se?

- O senhor - disse ela, erguendo os olhos com medo, como se temesse que alguém nos pudesse ouvir.

Fermín pareceu avaliar a ênfase do gesto da anciã e seguiu o seu olhar até às alturas, cotejando possibilidades.

- Refere-se a Deus Todo-poderoso, imperador dos céus, ou ao senhor pai da menina Penélope, don Ricardo?

- Como está o Fernando? - perguntou a anciã.

- O padre? Fresco como uma alface. Qualquer dia fazem-no Papa e ele instala-a à senhora na Capela Sistina. Manda-lhe muitas lembranças.

- É o único que me vem ver, sabe? Vem porque sabe que eu não tenho mais ninguém.

Fermín lançou-me um olhar de soslaio, como se estivesse a pensar o mesmo que eu. Jacinta Coronado estava bastante mais lúcida do que a sua aparência sugeria. O corpo apagava-se, mas a mente e a alma continuavam a consumir-se naquele poço de miséria. Perguntei a mim mesmo quantos mais como ela, e como o velhinho licencioso que nos tinha indicado onde a encontrar, haveria ali presos.

- Vem porque gosta muito de si, Jacinta. Porque se lembra como o mantinha bem tratado e alimentado em garoto, que ele contou-nos tudo. Lembra-se, Jacinta? Lembra-se dessa altura, de quando ia buscar o Jorge ao colégio, do Fernando e do Julián?

- Julián...

A sua voz era um sussurro arrastado, mas o sorriso traía-a.

- Lembra-se do Julián Carax, Jacinta?

- Lembro-me do dia em que a Penélope me disse que se ia casar com ele... Fermín e eu olhámo-nos, atónitos.

- Casar-se? Quando foi isso, Jacinta?

- No dia que a viu pela primeira vez. Tinha treze anos e não sabia quem era nem como se chamava.

- Como sabia então que se ia casar com ele?

- Porque o tinha visto. Em sonhos.

Em criança, Maria Jacinta Coronado estava convencida de que o mundo acabava nos arrabaldes de Toledo e de que para além dos confins da cidade não havia senão trevas e oceanos de fogo. Jacinta fora buscar aquela ideia a um sonho que tivera durante uma febre que quase acabara com ela aos quatro anos. Os sonhos começaram com aquela febre misteriosa, que alguns atribuíam à mordedura de um enorme lacrau vermelho que um dia aparecera na casa e que nunca mais se voltara a ver, e outros aos maus ofícios de uma freira louca que se introduzia de noite nas casas para envenenar as crianças e que anos mais tarde morreria no garrote vil, declamando o pai-nosso ao contrário e com os olhos saídos das órbitas ao mesmo tempo que uma nuvem vermelha se estendia sobre a cidade e descarregava uma tempestade de escaravelhos mortos. Nos seus sonhos, Jacinta via o passado, o futuro e, às vezes, vislumbrava segredos e mistérios das velhas ruas de Toledo. Uma das personagens habituais que via nos seus sonhos era Zacarias, um anjo que vestia sempre de preto e que andava acompanhado de um gato escuro de olhos amarelos cujo hálito cheirava a enxofre. Zacarias sabia tudo: tinha-lhe vaticinado o dia e a hora em que ia morrer o seu tio Benancio, o bufarinheiro de unguentos e águas bentas.

Desvendara-lhe o lugar em que a mãe, beata de respeito, escondia um molho de cartas de um ardoroso estudante de medicina de poucos recursos económicos mas sólidos conhecimentos de anatomia em cuja alcova na viela de Santa Maria descobrira antecipadamente as portas do paraíso. Tinha-lhe anunciado que havia qualquer coisa má cravada no seu ventre, um espírito morto que lhe queria mal, e que só conheceria o amor de um homem, um amor vazio e egoísta que lhe partiria a alma ao meio. Augurara-lhe que veria perecer em vida tudo aquilo que amava e que antes de chegar ao céu visitaria o inferno. No dia da sua primeira menstruação, Zacarias e o seu gato sulfúrico desapareceram dos seus sonhos, mas anos mais tarde Jacinta havia de recordar as visitas do anjo de preto com lágrimas nos olhos, pois todas as suas profecias se tinham cumprido.

Assim, quando os médicos diagnosticaram que nunca poderia ter filhos, Jacinta não se admirou. Tão-pouco se admirou, embora quase tenha morrido de desgosto, quando o seu marido de três anos lhe anunciou que a abandonava por outra porque ela era como um campo ermo e baldio que não dava fruto, porque não era mulher. Na ausência de Zacarias (a quem tomava por emissário dos céus, pois, de preto ou não, era um anjo luminoso - e o homem mais bonito que alguma vez vira ou sonhara -), a Jacinta falava com Deus a sós, pelos cantos, sem o ver e sem esperar que ele se incomodasse a responder porque havia muita mágoa no mundo e as suas ao fim e ao cabo eram minudências. Todos os seus monólogos com Deus versavam sobre o mesmo tema: só desejava uma coisa na vida, ser mãe, ser mulher. Um dia de tantos, rezando na catedral, aproximou-se dela um homem que reconheceu como Zacarias. Vestia como sempre e tinha o seu gato preto no regaço. Não tinha envelhecido um único dia e continuava a ostentar aquelas unhas magníficas, de duquesa, compridas e afiladas. O anjo confessou-lhe que aparecia ele porque Deus não pensava responder às suas preces. Zacarias disse-lhe que não se preocupasse porque, de uma maneira ou doutra, ele lhe enviaria uma criança. Inclinou-se sobre ela, sussurrou a palavra Tibidabo, e beijou-a muito ternamente nos lábios. Ao contacto daqueles lábios finos, de rebuçado, a Jacinta teve uma visão: teria uma menina sem necessidade de conhecer varão (o que, a julgar pela experiência de três anos de alcova com o marido que insistia em fazer as suas coisas em cima dela enquanto lhe tapava a cabeça com uma almofada e lhe murmurava «não olhes, rameira», representou para ela um alívio). Essa menina viria a ela numa cidade muito distante, presa entre uma lua de montanhas e um mar de luz, uma cidade feita de edifícios que só podiam existir em sonhos. Mais tarde Jacinta não soube dizer se a visita de Zacarias tinha sido outro dos seus sonhos ou se realmente o anjo lhe aparecera na catedral de Toledo, com o seu gato e as suas unhas escarlates recém-manicuradas. Do que não duvidou um instante foi da veracidade daquelas predições. Naquela mesma tarde consultou um homem lido que tinha visto mundo (dizia-se que tinha chegado até Andorra e que arranhava o vasconço).

O diácono, que alegou desconhecer o anjo Zacarias de entre as legiões aladas do céu, ouviu com atenção a visão dajacinta e, depois de muito sopesar o assunto, e atendo-se à descrição de uma espécie de catedral que, nas palavras da vidente, parecia uma grande travessa de cabelo feita de chocolate fundido, o sábio disse-lhe: «Jacinta, isso que viste é Barcelona, a grande feiticeira, e o templo expiatório da Sagrada Família...» Duas semanas mais tarde, armada de uma trouxa, um missal e o seu primeiro sorriso em cinco anos, Jacinta partia rumo a Barcelona, convencida de que tudo o que o anjo lhe tinha descrito se tornaria realidade.

Passariam meses de árduas vicissitudes antes que jacinta encontrasse um emprego fixo num dos armazéns de Aldaya e filhos, junto aos pavilhões da velha Exposição Universal da Cidadela. A Barcelona dos seus sonhos tinha-se transformado numa cidade hostil e tenebrosa, de palácios fechados e fábricas que sopravam um hálito de névoa que envenenava apele de carvão e enxofre. Jacinta soube desde o primeiro dia que aquela cidade era mulher, vaidosa e cruel, e aprendeu a temê-la e a nunca a olhar nos olhos. Vivia sozinha numa pensão do bairro da Ribera, onde o seu salário mal lhe permitia pagar um quarto miserável, sem janelas nem mais luz que as velas que roubava na catedral e que deixava toda a noite acesas para assustar as ratazanas que tinham comido as orelhas e os dedos do bebé de seis meses da Ramoneta, uma prostituta que alugava o quarto contíguo e a única amiga que tinha conseguido fazer em onze meses em Barcelona. Nesse Inverno choveu quase todos os dias, uma chuva negra, de fuligem e arsénico. Jacinta depressa começou a recear que Zacarias a tivesse enganado, que tivesse vindo para aquela cidade terrível para morrer de frio, de miséria e de esquecimento.

Disposta a sobreviver, Jacinta comparecia todos os dias no armazém e não saía até bem entrada a noite. Ali a encontraria por acaso don Ricardo Aldaya a cuidar da filha de um dos capatazes, que adoecera de consumição, e, ao ver o zelo e a ternura que a rapariga transpirava, decidira levá-la para casa a fim de cuidar da mulher, que estava grávida daquele que viria ser o seu primogénito. As suas preces haviam sido escutadas. Naquela noite Jacinta viu novamente Zacarias em sonhos. O anjo já não vestia de preto. Estava nu, e tinha a pele coberta de escamas. Já não era acompanhado pelo gato, mas sim por uma serpente branca enroscada no torso. O cabelo tinha-lhe crescido até à cintura e o seu sorriso, o sorriso de rebuçado que ela tinha beijado na catedral de Toledo, aparecia sulcado de dentes triangulares e serrilhados como os que tinha visto em alguns peixes do alto mar a agitarem a cauda na lota dos pescadores. Anos mais tarde, a rapariga descreveria esta visão a um Julián Carax de dezoito anos, lembrando-se de que no dia em que Jacinta ia deixar a pensão da Ribera afim de se mudar para o palacete Aldaya, soubera que a sua amiga Ramoneta tinha sido assassinada à facada à porta de entrada naquela mesma noite e que o seu bebé morrera de frio nos braços do cadáver. Ao saber-se A notícia, os inquilinos da pensão envolveram-se numa altercação aos gritos, murros, e arranhões para disputarem entre si os escassos pertences da morta. A única coisa que lhe deixaram era o seu tesouro mais precioso: um livro. Jacinta reconhecera-o, porque muitas noites a Ramoneta lhe tinha pedido se lhe podia ler uma ou duas páginas. Ela nunca aprendera a ler.

Quatro meses mais tarde nascia Jorge Aldaya e, embora Jacinta lhe dispensasse todo o carinho que a mãe, uma dama etérea que lhe pareceu sempre aprisionada na sua própria imagem no espelho, nunca soube ou quis dar-lhe, a aia compreendeu que não era aquela a criança que Zacarias lhe tinha prometido. Naqueles anos, Jacinta disse adeus à sua juventude e converteu-se noutra mulher que apenas conservava o mesmo nome e o mesmo rosto. A outra Jacinta tinha ficado naquela pensão do bairro de La Ribera, tão morta como a Ramoneta. Agora vivia à sombra dos luxos dos Aldaya, longe daquela cidade tenebrosa que tanto acabara por odiar e na qual não se aventurava nem no dia que tinha livre para si uma vez por mês. Aprendeu a viver através de outros, daquela família que cavalgava uma fortuna que ela mal conseguia chegar a compreender. Vivia à espera daquela criança, que seria uma menina, como a cidade, e à qual entregaria todo o amor com que Deus lhe envenenara a alma. Às vezes Jacinta perguntava a si mesma se aquela paz sonolenta que devorava os seus dias, aquela noite da consciência, seria aquilo a que alguns chamam felicidade, e queria acreditar que Deus, no seu infinito silêncio, tinha, à sua maneira, respondido às suas preces.

Penélope Aldaya nasceu na Primavera de 1903. Por essa altura don Ricardo Aldaya já tinha adquirido a casa da Avenida del Tibidabo, aquele casarão que os seus colegas da criadagem estavam convencidos de que jazia sob o influxo de algum poderoso feitiço, mas que Jacinta não temia, pois sabia que aquilo que os outros tomavam por encantamento não era mais que uma presença que só ela podia ver em sonhos: a sombra de Zacarias, que já quase nada se parecia com o homem que ela recordava e que agora só se manifestava como um lobo que caminhava sobre as duas patas posteriores.

Penélope foi uma menina frágil, pálida e ligeira. Jacinta via-a crescer como uma flor rodeada de Inverno. Durante anos velou-a todas as noites, preparou pessoalmente todas e cada uma das suas refeições, coseu as suas roupas, esteve ao seu lado quando passou mil e uma doenças, quando disse as primeiras palavras, quando se fez mulher. A senhora Aldaya era mais uma figura na decoração, uma peça que entrava e saía de cena segundo os ditames do decoro. Antes de se deitar, ia despedir-se da filha e dizia-lhe que a amava mais do que qualquer outra coisa no mundo, que era a coisa mais importante do universo para ela. Jacinta nunca disse a Penélope que a amava. A aia sabia que quem ama de verdade ama em silêncio, com actos e nunca com palavras. Em segredo, Jacinta desprezava a senhora Aldaya, aquela criatura vaidosa e vazia que envelhecia pelos corredores do casarão sob o peso das jóias com que o marido, que atracava em portos alheios, desde havia anos, a calava. Odiava-a porque, de entre todas as mulheres, Deus a tinha escolhido a ela para dar à luz Penélope ao passo que o seu ventre, o ventre da verdadeira mãe, permanecia ermo e baldio. Com o tempo, como se as palavras do marido tivessem sido proféticas, Jacinta perdeu até as formas de mulher. Tinha perdido peso e a sua figura fazia lembrar o semblante adusto que a pele cansada e o osso conferem. Os seus seios tinham minguado até se converterem em sopros de pele, as suas ancas pareciam as de um rapaz e as suas carnes, duras e angulosas, resvalavam até na vista de don Ricardo Aldaya, ao qual bastava intuir um assomo de exuberância para investir com fúria, como bem sabiam todas as criadas da casa e as das casas dos seus parentes. Antes assim, dizia Jacinta consigo mesma. Não tinha tempo para parvoíces.

Todo o seu tempo era para Penélope. Lia para ela, acompanhava-a a todo o lado, dava-lhe banho, vestia-a, despia-a, penteava-a, levava-a a passear, deitava-a e acordava-a. Mas sobretudo falava com ela. Todos a tomavam por uma aia lunática, uma solteirona sem mais vida que o seu emprego na casa, mas ninguém sabia a verdade: Jacinta não só era a mãe de Penélope, como a sua melhor amiga. Desde que a menina começou a falar e a articular pensamentos, o que aconteceu muito mais depressa do que Jacinta recordava em qualquer outra criança, ambas compartilhavam os seus segredos, os seus sonhos e as suas vidas.

A passagem do tempo só aumentou esta união. Quando Penélope atingiu a adolescência, ambas eram já companheiras inseparáveis. Jacinta viu Penélope florescer numa mulher cuja beleza e luminosidade não eram só visíveis aos seus olhos apaixonados. Penélope era luz. Quando aquele enigmático rapaz chamado Julián chegou lá a casa, Jacinta apercebeu-se desde o primeiro momento que circulava uma corrente entre ele e Penélope. Havia um vínculo que os unia, similar ao que a unia a ela a Penélope, e ao mesmo tempo diferente. Mais intenso. Perigoso. Ao princípio julgou que viria a odiar o rapaz, mas depressa verificou que não odiava Julián Carax, nem poderia odiá-lo nunca. À medida que Penélope ia caindo sob o encanto de Julián, também ela se deixou arrastar e com o tempo acabou por só desejar o que Penélope desejasse. Ninguém tinha dado por isso, ninguém tinha prestado atenção, mas, como sempre, o essencial da questão fora decidido antes que a história começasse e, nessa altura, já era tarde.

Haviam de passar muitos meses de olhares e anseios vãos antes que Julián Carax e Penélope pudessem estar a sós. Viviam do acaso. Encontravam-se nos corredores, observavam-se de extremos opostos da mesa, roçavam-se em silêncio, sentiam-se na ausência. Trocaram as primeiras palavras na biblioteca da casa da Avenida del Tibidabo numa tarde de tempestade em que a «Villa Penélope» se inundou do esplendor de círios, apenas uns segundos roubados àpenumbra em que Julián julgou ver nos olhos da rapariga a certeza de que ambos sentiam o mesmo, que os devorava o mesmo segredo. Ninguém pareceu reparar nisso.

Ninguém excepto Jacinta, que via com crescente inquietude o jogo de olhares que Penélope e Julián teciam à sombra dos Aldaya. Receava por eles.

Já então Julián tinha começado a passar as noites em branco, a escrever relatos desde a meia-noite até ao amanhecer, onde esvaziava a sua alma para Penélope. Depois, visitando a casa da avenida del Tibidabo com qualquer desculpa, procurava o momento de se introduzir às escondidas no quarto de Jacinta e entregava-lhe as folhas de papel para que ela as desse à rapariga. Às vezes, Jacinta entregava-lhe uma nota que Penélope escrevera para ele e passava os dias a relê-la. Aquele jogo havia de durar meses. Enquanto o tempo lhes roubava a sorte, Julián fazia tudo o que era preciso para estar junto de Penélope. Jacinta ajudava-o, para ver Penélope feliz, para manter viva aquela luz. Julián, por seu lado, sentia que a inocência casual do início se desvanecia, e era preciso começar a sacrificar terreno. Assim começou a mentir a don Ricardo sobre os seus planos de futuro, a exibir um entusiasmo de papelão por um porvir na banca e nas finanças, a fingir um afecto e um apego por Jorge Aldaya que não sentia para justificar a sua presença quase constante na casa da Avenida del Tibidabo, a dizer só aquilo que sabia que os outros desejavam ouvi-lo dizer, a ler os seus olhares e os seus anseios, a encerrar a honestidade e a sinceridade no calabouço das imprudências, a sentir que vendia a alma aos bocados e a recear que, se um dia chegasse a merecer Penélope, já não restasse nada do Julián que a tinha visto pela primeira vez. Às vezes Julián acordava ao alvorecer, a arder de raiva, desejoso de declarar ao mundo os seus verdadeiros sentimentos, de encarar don Ricardo Aldaya e dizer-lhe que não sentia interesse algum pela sua fortuna, pelas suas hipóteses de futuro e pela sua companhia, que somente desejava a sua filha Penélope e que pensava levá-la para o mais longe que pudesse daquele mundo vazio e amortalhado em que ele a tinha aprisionado. A luz do dia dissipava-lhe a coragem.

Em certas ocasiões Julián abria-se com Jacinta, que começava a gostar muito mais do rapaz do que desejara. Amiudadas vezes, Jacinta separava-se momentaneamente de Penélope e, com a desculpa de ir buscar Jorge ao colégio de San Gabriel, visitava Julián e entregava-lhe mensagens de Penélope. Foi assim que conheceu Fernando, que muitos anos mais tarde havia de ser o único amigo que lhe restaria enquanto esperava a morte no inferno de Santa Lucía que o anjo Zacarias lhe tinha profetizado. Às vezes, com malícia, a aia levava Penélope com ela e facilitava um breve encontro entre os dois jovens, vendo crescer entre eles um amor que ela nunca tinha conhecido, que lhe fora negado. Foi também por essa altura que Jacinta deu pela presença sombria e perturbante daquele rapaz silencioso a que todos chamavam Francisco Javier, o filho do porteiro de San Gabriel. Surpreendia-o a espiá-los, lendo os seus gestos de longe e devorando Penélope com os olhos. Jacinta conservava uma fotografia que o retratista oficial dos Aldaya, Recasens, tinha tirado a Julián e Penélope à porta da chapelaria da Ronda de San António.

Era uma imagem, inocente, tirada ao meio-dia na presença de don Ricardo e de Sophie Carax. Jacinta trazia-a sempre consigo.

Um dia, enquanto esperava Jorge à saída do colégio de San Gabriel, a aia esqueceu-se da mala ao pé da fonte e ao voltar por ela verificou que o jovem Fumero deambulava por ali, olhando-a nervosamente. Naquela noite, quando procurou o retrato não o encontrou e teve a certeza de que o rapaz o tinha roubado. Noutra ocasião, semanas mais tarde, Francisco Javier Fumero aproximou-se da aia e perguntou-lhe se podia fazer chegar uma coisa a Penélope da sua parte. Quando Jacinta perguntou do que se tratava, o rapaz extraiu um pano com o qual tinha envolvido o que parecia uma figura talhada em madeira de pinho. Jacinta reconheceu nela Penélope e sentiu um calafrio. Antes de que pudesse dizer fosse o que fosse, o rapaz afastou-se. De caminho para a casa da Avenida del Tibidabo, Jacinta atirou a figura pela janela do carro, como se se tratasse de carniça mal-cheirosa. Mais de uma vez, Jacinta havia de acordar de madrugada, coberta de suor, perseguida por pesadelos nos quais aquele rapaz de olhar turvo se lançava sobre Penélope com a fria e indiferente brutalidade de um insecto.

Algumas tardes, quando Jacinta ia buscar Jorge, se este se atrasava, a aia d versava com Julián. Também ele começava a gostar daquela mulher de semblante duro e a confiar mais nela do que confiava em si mesmo. Não tardou que, quando algum problema ou alguma sombra pairavam sobre a sua vida, ela e Miquel Moliner fossem os primeiros, e às vezes os últimos, a sabê-lo. Numa ocasião, Julián contou a Jacinta que tinha encontrado a mãe e don Ricardo Aldaya no pátio das fontes a conversar enquanto esperavam pela saída dos alunos. Don Ricardo parecia estar a deleitar-se com a companhia de Sophie e Julián sentiu uma certa inquietação, pois estava ao corrente da reputação dom-juanesca do industrial e do seu voraz apetite pelas delícias do género feminino sem distinção de casta ou condição, ao qual só a sua esposa parecia imune.

- Estava a comentar com a tua mãe o muito que gostas do teu novo colégio.

Ao despedir-se deles, don Ricardo piscou-lhe o olho e afastou-se com uma risadinha. A mãe fez todo o trajecto de regresso em silêncio, claramente ofendida pelos comentários que don Ricardo Aldaya lhe tinha estado afazer.

Não era só Sophie que via com receio a sua crescente vinculação aos Aldaya e o abandono a que Julián relegara os seus antigos amigos do bairro e a família. Onde a mãe mostrava tristeza e silêncio, o chapeleiro mostrava rancor de despeito. O entusiasmo inicial de ampliar a sua clientela à fina-flor da sociedade barcelonesa tinha-se evaporado rapidamente. Já quase não via o filho e teve de contratar Quimet, um rapaz do bairro, como ajudante e aprendiz na loja. Antoni Fortuny era um homem que só se sentia capaz de falar abertamente entre chapeleiros. Encerrava os sentimentos no calabouço da alma até eles se empeçonharem sem remédio. Cada dia parecia mais mal-humorado e irritável. Tudo lhe parecia mal, desde os esforços do pobre Quimet, que se desalmava a aprender o ofício, às menções da sua mulher Sophie para suavizar o aparente esquecimento a que Julián os tinha condenado.

- O teu filho julga que é alguém porque os ricaços o têm como macaco de circo - dizia com ar sombrio, envenenado de rancor.

Um belo dia, quando se iam perfazer três anos desde a primeira visita de don Ricardo Aldaya à chapelaria de Fortuny e filhos, o chapeleiro deixou Quimet à frente da loja e disse-lhe que voltaria ao meio-dia. Sem mais aquelas, compareceu nos escritórios que o consórcio Aldaya tinha no Paseo de Gracia e pediu para se avistar com don Ricardo.

- E quem tenho a honra de anunciar? - perguntou um lacaio de atitude altiva.

- O seu chapeleiro pessoal.

Don Ricardo recebeu-o, vagamente surpreendido, mas de boa disposição, julgando que talvez Fortuny lhe trouxesse uma factura. Os pequenos comerciantes nunca chegam a compreender o protocolo do dinheiro.

- E diga-me, que posso fazer por si, amigo Fortunato?

Sem mais delongas, Antoni Fortuny passou a explicar a don Ricardo que estava muito enganado relativamente ao seu filho Julián.

- O meu filho, don Ricardo, não é o que o senhor pensa. Muito pelo contrário, é um rapaz ignorante, calaceiro e sem mais talento que as filáucias que a mãe lhe meteu na cabeça. Nunca chegará a ser nada, pode crer. Falta-lhe ambição, carácter. O senhor não o conhece e ele pode ser muito hábil para cativar os estranhos, para lhes fazer crer que sabe de tudo, mas não sabe nada de nada. É um medíocre. Mas eu conheço-o melhor que ninguém e parecia-me necessário adverti-lo.

Don Ricardo Aldaya tinha escutado este discurso em silêncio, quase sem pestanejar.

- É tudo, Fortunato?

O industrial passou a premir um botão da secretária e daí a poucos instantes apareceu à porta do gabinete o secretário que o recebera.

- O amigo Fortunato está de saída, Balcells - anunciou. - Tenha a bondade de o acompanhar à porta.

O tom gélido do industrial não foi do agrado do chapeleiro.

- Com sua licença, don Ricardo: é Fortuny, não é Fortunato.

- Seja o que for. O senhor é um homem muito triste, Fortuny. Agradeço-lhe que não volte por cá.

Quando Fortuny se encontrou de novo na rua, sentiu-se mais só que nunca, convencido de que todos estavam contra ele. Apenas dias mais tarde, os clientes de luxo que a sua relação com Aldaya tinha granjeado começaram a enviar mensagens a cancelar as encomendas e a saldar contas. Em semanas apenas, teve de despedir Quimet, porque não havia trabalho para ambos na loja. Ao fim e ao cabo, o rapaz tão-pouco servia para nada. Era medíocre e calaceiro, como todos.

Foi por essa altura que as pessoas do bairro começaram a comentar que o senhor Fortuny parecia mais velho, mais só, mais azedo. Já quase não falava com ninguém e passava longas horas encafuado na loja, sem nada que fazer, a ver passar as pessoas do outro lado do balcão com um sentimento de desprezo e, ao mesmo tempo, de anseio. Depois disse para consigo mesmo que as modas mudavam, que a gente nova já não usava chapéu e aqueles que o faziam preferiam ir a outros estabelecimentos em que os vendiam já feitos por tamanhos, com desenhos mais actuais e mais baratos. A chapelaria de Fortuny e filhos afundou-se lentamente num letargo de sombras e silêncios.

- Estais à espera de que eu morra - dizia para consigo. - Pois se calhar vou-vos dar esse prazer.

Ele não sabia, mas tinha começado a morrer havia já muito tempo.

Depois daquele incidente, Julián embrenhou-se completamente no mundo dos Aldaya, em Penélope e no único futuro que podia conceber. Assim passaram quase dois anos na corda bamba, vivendo em segredo. Zacarias, à sua maneira, tinha-o notado muito tempo atrás. Espargiam-se sombras em seu redor e não tardariam a apertar o cerco. O primeiro sinal chegou um dia de Abril de 1918. Jorge Aldaya fazia dezoito anos e don Ricardo, fazendo de grande patriarca, decidira organizar (ou melhor, dar ordens de que se organizasse) uma monumental festa de aniversário que o filho não desejava e da qual ele, argumentando razões de alta empresa, estaria ausente para se encontrar na suite azul do hotel Colón com uma deliciosa mulher de porta aberta recém-chegada de São Petersburgo. A casa da avenida del Tibidabo ficou convertida num pavilhão circense para o evento: centenas de candeeiros, bandeirolas e barracas dispostos nos jardins para atender os convidados.

Quase todos os colegas de Jorge Aldaya do colégio de San Gabriel tinham sido convidados. Por sugestão de Julián, Jorge incluíra Francisco Javier Fumero. Miquel Moliner advertiu-os de que o filho do porteiro de San Gabriel se ia sentir deslocado naquele ambiente fátuo e pomposo de meninos bem. Francisco Javier recebeu o seu convite mas, intuindo a mesma coisa que Miquel Moliner vaticinava, decidiu declinar o oferecimento. Quando dona Yvonne, a sua mãe, soube que o filho pretendia recusar um convite para a sumptuosa mansão dos Aldaya, ficou aponto de lhe arrancar a pele. Que era aquilo senão o sinal de que depressa ela entraria na sociedade? O próximo passo só podia ser um convite para tomar chá e bolos com a senhora Aldaya e outras damas de infatigável distinção. Assim, dona Yvonne pegou nas poupanças que vinha debicando do salário do marido e foi comprar um fatinho de marinheiro ao filho.

Francisco Javier tinha já nessa altura dezassete anos e aquele fato, azul, de cal' ções e decididamente ajustado à refinada sensibilidade de dona Yvonne, ficava-lhe grotesco e humilhante. Pressionado pela mãe, Francisco Javier aceitou e passou uma semana a talhar um abre-cartas com o qual pensava obsequiar Jorge. No dia da festa, dona Yvonne empenhou-se em escoltar o filho até às portas da casa dos Aldaya. Queria sentir o cheiro a realeza e aspirar a glória de ver o filho franquear portas que em breve se abririam para ela. À hora de enfiar a sua estapafúrdia indumentária de marinheiro, Francisco Javier descobriu que lhe ficava apertada. Yvonne decidiu fazer um arranjo imediato. Chegaram tarde. Entretanto, e aproveitando o alvoroço da festa e a ausência de don Ricardo, que com toda a certeza estava naquele momento a saborear o melhor da raça eslava e a celebrar à sua maneira, Julián escapulira-se da festa. Penélope e ele tinham combinado encontrar-se na biblioteca, onde não havia perigo de tropeçar em nenhum membro da ilustre e requintada alta sociedade. Demasiado ocupados a devorarem os lábios um ao outro, nem Julián nem Penélope viram o delirante par que se aproximava das portas da casa. Francisco Javier, ataviado de marinheiro na sua primeira comunhão e roxo de humilhação, caminhava quase arrastado por dona Yvonne, que para a ocasião tinha resolvido tirar o pó a um chapéu de palha de abas largas a condizer com um vestido de plissados e grinaldas que a fazia parecer uma banca de doces ou, nas palavras de Miquel Moliner, que a avistou de longe, um bisonte disfarçado de Madame Recamier. Dois elementos da criadagem guardavam a porta. Não pareceram muito impressionados com os visitantes. Dona Yvonne anunciou que o filho, don Francisco Javier Fumero de Sotoceballos, fazia a sua entrada. Os dois criados replicaram, com malícia, que o nome não lhes dizia nada. Irritada, mas mantendo a compostura de grande senhora, Yvonne intimou o filho a mostrar o cartão do convite. Infelizmente, ao fazer o arranjo da confecção, o cartão tinha ficado na mesa de costura de dona Yvonne.

Francisco Javier tentou explicar as circunstâncias, mas gaguejava e o riso dos dois criados não ajudava a esclarecer o mal-entendido. Foram convidados a desaparecer com vento fresco. Dona Yvonne, afogueada de raiva, anunciou-lhes que não sabiam com quem se estavam a meter. Os criados retorquiram-lhe que o lugar de sopeira já estava preenchido. Da janela do seu quarto, Jacinta viu que Francisco Javier já se afastava quando, de repente, parou. O rapaz voltou-se e, para lÁ do espectáculo da mãe a esganiçar-se aos gritos com os arrogantes criados, viu-os. Julián beijava Penélope no janelão da biblioteca. Beijavam-se com a intensidade de quem se pertence, alheios ao mundo.

No dia seguinte, durante o recreio do meio-dia, Francisco Javier apareceu de repente. A notícia do escândalo do dia anterior já tinha corrido entre os alunos e as risadas não se fizeram esperar, nem as perguntas acerca do que ele tinha feito ao seufato de marujo. As risadas interromperam-se de chofre quando os alunos se aperceberam de que o rapaz tinha a escopeta do pai na mão. Fez-se silêncio, e muitos afastaram-se. Só o círculo de Aldaya, Moliner, Fernando e Julián se voltou e ficou a olhar para o rapaz, sem compreender. Sem uma palavra, Francisco Javier ergueu a espingarda e apontou. As testemunhas disseram depois que não havia raiva nem ira no seu rosto. Francisco Javier mostrava a mesma frialdade automática com que desempenhava as tarefas de limpeza no jardim. A primeira bala passou a roçar a cabeça de Julián. A segunda teria atravessado a garganta se Miquel Moliner não se tivesse atirado ao filho do porteiro e arrancado a escopeta a murro. Julián Carax contemplara a cena atónito, paralisado. Todos julgaram que os disparos eram dirigidos a Jorge Aldaya como vingança pela humilhação sofrida na tarde anterior. Só mais tarde, quando a Guarda Civil já levava o rapaz e o casal de porteiros era desalojado da sua morada quase a pontapé, Miquel Moliner se aproximou de Julián e lhe disse, sem orgulho, que lhe salvara a vida. Mal imaginava Julián que essa vida, ou parte do que ele queria viver dela, se estava a aproximar do final.

Aquele era o último ano para Julián e para os seus colegas no colégio de San Gabriel. Uns mais e outros menos, todos comentavam já os seus planos, ou os planos que as respectivas famílias tinham feito por eles para o ano seguinte. Jorge Aldaya já sabia que o pai o ia pôr a estudar em Inglaterra e Miquel Moliner tinha como facto consumado a sua entrada na Universidade de Barcelona. Fernando Ramos mencionara mais de uma vez que talvez entrasse para o seminário da Companhia, perspectiva que os professores consideravam a mais sábia na sua situação particular. Quanto a Francisco Javier Fumero, tudo o que se sabia era que, por intercessão de don Ricardo Aldaya, o rapaz tinha ido para um reformatório perdido no Valle de Arán, onde o esperava um longo Inverno. Vendo os seus companheiros encaminhados em alguma direcção, Julián perguntava a si mesmo o que ia ser dele. Os seus sonhos e ambições literárias pareciam-lhe mais distantes e inviáveis que nunca. Ansiava tão-somente por estar junto de Penélope.

Enquanto ele se interrogava acerca do seu futuro, outros o planeavam por ele. Don Ricardo Aldaya estava já a preparar-lhe um lugar na sua empresa para o iniciar no negócio. O chapeleiro, por seu lado, decidira que, se o filho não quisesse seguir o negócio familiar, podia tirar da ideia medrar à sua custa. Com tal fim, tinha iniciado em segredo as diligências tendentes a enviar Julián para o Exército, onde uns quantos anos de vida castrense o curariam dos delírios de grandeza. Julián ignorava esses planos e, quando averiguasse o que uns e outros tinham preparado para ele, já seria tarde. Só Penélope ocupava o seu pensamento e a distância fingida e os encontros furtivos de antanho já não o satisfaziam. Insistia em vê-la mais amiúde, arriscando-se cada vez mais a que a sua relação com a rapariga fosse descoberta. Jacinta fazia tudo quanto podia para os cobrir: mentia com quantos dentes tinha na boca, tramava reuniões secretas e urdia mil e um estratagemas para lhes conceder uns instantes a sós. Até ela compreendia que aquilo não bastava, que cada minuto que Penélope e Julián passavam juntos os unia mais. Havia tempo que a aia tinha aprendido a reconhecer nos seus olhares o desafio e a arrogância do desejo: uma vontade cega de serem descobertos, de que o seu segredo fosse um escândalo apregoado e deixassem de ter de se esconder nos cantos e desvãos para se amarem às apalpadelas. Às vezes, quando Jacinta ia ajeitar a roupa a Penélope, a rapariga desfazia-se em lágrimas e confessava-lhe os seus desejos de fugir com Julián, de apanhar o primeiro comboio e escapar para onde ninguém os conhecesse. Jacinta, que se lembrava do género de mundo que se estendia para além do palacete Aldaya, estremecia e dissuadia-a. Penélope era um espírito dócil, e o temor que via no rosto de Jacinta bastava para a sossegar. Julián era outra questão.

Durante aquela última Primavera em San Gabriel, Julián descobriu com inquietude que don Ricardo Aldaya e sua mãe Sophie se encontravam às vezes em segredo. Ao princípio receou que o industrial tivesse decidido que Sophie era uma conquista apetecível para juntar à sua colecção, mas depressa compreendeu que os encontros, que tinham sempre lugar em cafés do centro e se desenrolavam dentro do mais estrito decoro, se limitavam à conversa. Sophie mantinha estes encontros em segredo. Quando finalmente Julián decidiu abordar don Ricardo e perguntar-lhe o que estava a suceder entre ele e a mãe, o industrial riu-se.

- Não te escapa nada, hem, Julián? A verdade é que já tencionava falar-te do assunto. A tua mãe e eu estamos a discutir acerca do teu futuro. Ela veio ver-me há umas semanas, preocupada porque o teu pai está a planear mandar-te para o Exército no próximo ano. A tua mãe, como é natural, quer o melhor para ti e recorreu a mim para ver se entre os dois podíamos fazer alguma coisa. Não te preocupes, palavra de Ricardo Aldaya que tu não serás carne para canhão. A tua mãe e eu temos grandes planos para ti. Confia em nós.

Julián queria confiar, mas don Ricardo inspirava tudo menos confiança. Falando com Miquel Moliner, o rapaz concordou com Julián.

- Se o que queres é fugir com a Penélope, Deus te ponha a virtude, o que precisas é de dinheiro.

Dinheiro era aquilo que Julián não tinha.

- Isso tem arranjo - informou-o Miquel -, épara isso que servem os amigos ricos.

Foi assim que Miquel e Julián começaram a planear a fuga dos amantes. O destino, por sugestão de Moliner, seria Paris. Moliner opinava que, resolvido a ser um artista boémio e morto de fome, pelo menos o cenário de Paris era inultrapassável. Penélope falava alguma coisa de francês e para Julián, graças aos ensinamentos da mãe, era uma segunda língua.

- Além disso, Paris é suficientemente grande para uma pessoa se perder, mas eficientemente pequena para encontrar oportunidades - calculava Miquel.

O amigo reuniu uma pequena fortuna, juntando as suas poupanças pessoais ao que conseguiu extorquir ao pai com as mais peregrinas desculpas. Só Miquel saberia para onde iam.

- E eu penso emudecer mal vocês embarquem nesse comboio.

Nessa mesma tarde, depois de ultimar os pormenores com Moliner, Julián compareceu na casa da Avenida del Tibidabo para explicar o plano a Penélope.

- Não podes contar a ninguém aquilo que te vou dizer. A ninguém. Nem sequer àjacinta - começou Julián.

A rapariga escutou-o atónita e enfeitiçada. O plano de Moliner era impecável. Miquel compraria os bilhetes utilizando um nome falso e contratando um desconhecido para que os levantasse no guichê da estação. Se a polícia, porventura, desse com ele, tudo o que lhes podia oferecer era a descrição de uma personagem que não se parecia com Julián. Julián e Penélope encontrar-se-iam no comboio. Não haveria espera na plataforma para não dar oportunidade de serem vistos. A fuga seria num domingo ao meio-dia. Julián compareceria por sua conta na estação de Francia. Miquel estaria lá à sua espera com os bilhetes e o dinheiro.

A parte mais delicada era a que concernia a Penélope. Tinha de enganar Jacinta e pedir à aia que inventasse uma desculpa para a tirar da missa das onze e levá-la a casa. De caminho, Penélope pedir-lhe-ia que a deixasse ir ao encontro de Julián, prometendo estar de volta antes que a família regressasse ao casarão. Penélope aproveitaria então para se dirigir à estação. Ambos sabiam que, se ela dissesse a verdade, Jacinta não os deixaria partir. Gostava demasiado deles.

- É um plano perfeito, Miquel - tinha dito Julián ao ouvir a estratégia idealizada pelo amigo.

Miquel assentiu tristemente.

- Excepto por um pormenor. A mágoa que vão causar a muita gente ao irem-se embora para sempre.

Julián tinha assentido, pensando na mãe e em Jacinta. Não lhe ocorreu pensar que Miquel Moliner estava a falar de si mesmo.

O mais difícil foi convencer Penélope da necessidade de manter Jacinta às escuras relativamente ao plano. Só Miquel saberia a verdade. O comboio partia à uma da tarde. Quando a ausência de Penélope fosse notada, já teriam atravessado a fronteira. Uma vez em Paris, instalar-se-iam num albergue como marido e mulher, usando nome falso. Enviariam então uma carta a Miquel Moliner dirigida às suas famílias confessando o seu amor, dizendo que estavam bem, que os amavam, anunciando o seu casamento pela igreja e pedindo o seu perdão e compreensão. Miquel Moliner meteria a carta num segundo envelope para eliminar o carimbo de Paris e ele se encarregaria de a enviar de uma localidade das proximidades.

- Quando?-perguntou Penélope.

- Daqui a seis dias - disse Julián. - Domingo que vem.

Miquel era de opinião que, para não levantar suspeitas, o melhor era que durante os dias que faltavam para a fuga Julián não visitasse Penélope. Deviam combinar as coisas e não se voltarem a ver até se encontrarem naquele comboio rumo

a Paris. Seis dias sem a ver, sem lhe tocar, afiguravam-se-lhe infinitos. Selaram o pacto, um casamento secreto, nos lábios.

Foi então que Julián conduziu Penélope até ao quarto de Jacinta no terceiro andar da casa. Naquele piso só se encontravam os quartos da criadagem e Julián quis crer que ninguém os encontraria. Despiram-se à pressa, com raiva e anseio, arranhando a pele e desfazendo-se em silêncios. Aprenderam os corpos um do outro de cor e enterraram aqueles seis dias de separação em suor e saliva. Julián penetrou-a com fúria, cravando-a contra as tábuas do chão. Penélope recebia-o com os olhos abertos, as pernas abraçadas ao seu torso e os lábios entreabertos de ânsia. Não havia vislumbre de fragilidade nem meninice no seu olhar, no seu corpo morno que pedia mais. Depois, com o rosto ainda preso ao seu ventre e as mãos no peito branco que ainda tremia, Julián soube que tinham de se despedir. Mal teve tempo de se levantar quando aporta do quarto se abriu lentamente e a silhueta de uma mulher se perfilou no umbral. Por um segundo, Julián julgou que se tratava de Jacinta, mas logo compreendeu que se tratava da senhora Aldaya, que os observava enfeitiçada num arroubo de fascinação e repugnância. A única coisa que conseguiu balbuciar foi: «Onde está a Jacinta?» Sem mais, voltou-se e afastou-se em silêncio enquanto Penélope se encolhia no solo numa agonia muda e Julián sentia que o mundo se desmoronava à sua volta.

- Agora vai-te embora, Julián. Vai-te embora antes que o meu pai venha.

- Mas...

- Vai-te embora. Julián assentiu.

- Aconteça o que acontecer, domingo espero-te naquele comboio. Penélope conseguiu arrancar um meio sorriso.

- Lá estarei. Agora vai-te embora. Por favor...

Ainda estava nua quando ele a deixou e deslizou pela escada de serviço até às cocheiras e, dali, para a noite mais fria de que se lembrava.

Os dias que se seguiram foram os piores. Julián tinha passado a noite em claro, esperando que a qualquer momento os sicários de don Ricardo o viessem buscar. Nem o sono o visitou. No dia seguinte, no colégio de San Gabriel, não se apercebeu de mudança alguma na atitude de Jorge Aldaya. Julián, devorado pela angústia, confessou a Miquel Moliner o que sucedera. Miquel, com a sua fleuma habitual, abanou a cabeça em silêncio.

- Estás doido, Julián, mas isso não é novidade nenhuma. O estranho é que não tenha havido rebuliço em casa dos Aldaya. O que, pensando bem, não é assim tão surpreendente. Se, como dizes, foi a senhora Aldaya que vos descobriu, há a possibilidade de que nem ela mesma saiba ainda o que fazer. Tive três conversas com ela na minha vida, e delas extraí duas conclusões: um, a senhora Aldaya tem uma idade mental de doze anos; dois, sofre de um narcisismo crónico que a impossibilita de ver ou compreender qualquer coisa que não seja o que quer ver ou crer, especialmente em referência a ela própria.

- Poupa-me o diagnóstico, Miquel.

- O que eu quero dizer é que provavelmente ainda está apensar no que dizer, como, quando e a quem o dizer. Primeiro tem de pensar nas consequências para ela própria: o potencial escândalo, a fúria do marido... O resto, atrevo-me a supor, não a aquece nem arrefece.

- Achas então que não dirá nada?

- Talvez tarde um ou dois dias. Mas não me parece que seja capaz de conservar um segredo assim às escondidas do marido. E quanto ao plano de fuga? Continua de pé?

- Mais que nunca.

- Alegra-me ouvir isso. Porque agora é que me parece que isto não tem volta atrás.

Os dias daquela semana passaram em lenta agonia. Julián aparecia todos os dias no colégio de San Gabriel com a incerteza a pisar-lhe os calcanhares. Passava as horas fingindo estar ali, praticamente incapaz de trocar olhares com Miquel Moliner, que começava a estar tanto ou mais preocupado do que ele. Jorge Aldaya não dizia nada. Mostrava-se tão cortês como sempre. Jacinta não voltara a aparecer para ir buscar Jorge. O motorista de don Ricardo ia lá todas as tardes. Julián sentia-se morrer, quase desejando que acontecesse o que tivesse de acontecer, que aquela espera chegasse ao fim. Na quinta-feira à tarde, ao acabarem as aulas, Julián começou a pensar que a sorte estava do seu lado. A senhora Aldaya não tinha dito nada, talvez por vergonha, por estupidez ou por qualquer das razões que Miquel vislumbrava. Pouco importava. A única coisa que contava era que guardasse o segredo até domingo. Naquela noite, pela primeira vez em vários dias, conseguiu conciliar o sono.

Na sexta-feira de manhã, ao comparecer nas aulas, o padre Romanones esperava-o no gradeamento.

- Tenho de falar contigo, Julián.

- Diga, senhor padre.

- Sempre soube que chegaria este dia e tenho de te confessar que fico satisfeito por ser eu a dar-te a notícia.

- Que notícia, senhor padre?

Julián Caraxjá não era aluno do colégio de San Gabriel. A sua presença no recinto, nas salas de aula e até nos jardins ficava terminantemente proibida. Os seus utensílios, livros de texto e todos os pertences passavam a ser propriedade do colégio.

- O termo técnico é expulsão fulminante - resumiu o padre Romanones.

- Posso perguntar a causa?

- Ocorre-me uma dúzia, mas tenho a certeza de que tu saberás escolher a mais apropriada. Bom dia, Carax. Felicidades na vida. Vais precisar delas.

A uma trintena de metros, no pátio das fontes, um grupo de alunos observava-o. Alguns riam, fazendo um gesto de despedida com a mão. Outros observavam-no com estranheza e compaixão. Só um lhe sorria com tristeza: o seu amigo Miquel Moliner, que se limitou a assentir e a murmurar em silêncio palavras que Julián julgou ler no ar. «Atédomingo.»

Ao regressar ao andar da Ronda de San António, Julián reparou que o Mercedes Benz de don Ricardo Aldaya estava parado em frente da chapelaria. Parou na esquina e esperou. Daí a pouco, don Ricardo saiu da loja do pai e introduziu-se no carro. Julián ocultou-se na entrada de um prédio até ele desaparecer rumo à praça Universidad. Só então se apressou a subir a escada até sua casa. Sua mãe Sophie esperava-o ali, lavada em lágrimas.

- Que fizeste tu, Julián? - murmurou, sem ira.

- Desculpe, mãe...

Sophie abraçou o filho com força. Tinha perdido peso e estava envelhecida, como se entre todos lhe tivessem roubado a vida e a juventude. «Eu mais que ninguém», pensou Julián.

- Ouve-me bem, Julián. O teu pai e don Ricardo Aldaya arranjaram as coisas para te mandar para o Exército dentro de uns dias. Aldaya tem influências... Tens de partir, Julián. Tens de partir para onde nenhum dos dois te possa encontrar...

Julián julgou ver uma sombra no olhar da mãe que a consumia por dentro.

- Há mais alguma coisa, mãe? Alguma coisa que não me tenha contado? Sophie contemplou-o com os lábios trémulos.

- Deves partir. Devemos partir os dois daqui para sempre. Julián abraçou-a com força e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Não se preocupe comigo, mãe. Não se preocupe.

Julián passou o sábado encerrado no quarto, entre os seus livros e os seus cadernos de desenho. O chapeleiro tinha descido à loja quase ao alvorecer e não regressou até bem entrada a madrugada. «Nem sequer tem coragem de mo dizer na cara», pensou Julián. Naquela noite, com os olhos velados de lágrimas, despediu-se dos anos que tinha passado naquele quarto escuro e frio, perdido em sonhos que agora sabia que nunca se chegariam a concretizar. Ao alvorecer de domingo, apetrechado unicamente de um saco com alguma roupa e uns livros, beijou a testa de Sophie, que dormia enroscada entre cobertores na sala de jantar, e partiu. As ruas vestiam uma neblina azulada e despontavam cintilações de cobre sobre os terraços da cidade velha. Caminhou lentamente, despedindo-se de cada porta, de cada esquina, perguntando a si mesmo se a cilada do tempo seria verdadeira e algum dia só seria capaz de recordar as coisas boas, de esquecer a solidão que tantas vezes o tinha perseguido naquelas ruas.

A estação de Francia estava deserta, os cais encurvados em sabres espelhados que flamejavam sob o amanhecer e se fundiam na névoa. Julián sentou-se num banco sob a abóbada e puxou do seu livro. Deixou passar as horas perdido na magia das palavras, mudando a pele e o nome, sentindo-se outro. Deixou-se arrastar pelos sonhos de personagens na sombra, julgando que não lhe restava mais refúgio nem santuário do que aquele. Já sabia que Penélope não compareceria ao encontro. Sabia que embarcaria naquele comboio sem mais companhia que a sua lembrança. Quando, por volta do meio-dia, Miquel Moliner apareceu na estação e lhe entregou a passagem e todo o dinheiro que conseguira reunir, os dois amigos abraçaram-se em silêncio. Julián nunca tinha visto Miquel Moliner chorar. O relógio sitiava-os, contando os minutos em fuga.

- Ainda há tempo - murmurava Miquel com o olhar posto na entrada da estação.

À uma e cinco, o chefe da estação fez a chamada final para os passageiros com destino a Paris. O comboio tinha começado já a deslizar pela plataforma quando Julián se voltou para se despedir do amigo. Miquel Moliner contemplava-o da plataforma, com as mãos enterradas nos bolsos.

- Escreve - disse.

- Assim que chegue, escrevo-te- replicou Julián.

- Não. A mim, não. Escreve livros. Não cartas. Escreve-os por mim. Pela Penélope.

Julián assentiu, só então se apercebendo do muito que ia sentir a falta do amigo.

- E conserva os teus sonhos - disse Miquel. - Nunca se sabe quando irás precisar deles.

- Sempre - murmurou Julián, mas o rugido do comboio já lhe tinha roubado as palavras.

- A Penélope contou-me o que lhe tinha acontecido nessa mesma noite em que a senhora os surpreendeu no meu quarto. No dia seguinte, a senhora mandou-me chamar e perguntou-me o que sabia eu do Julián. Eu disse-lhe que nada, que era um bom rapaz, amigo do Jorge... Deu-me ordens para manter Penélope no quarto até que ela lhe desse autorização para sair. Don Ricardo estava de viagem em Madrid e não regressou senão na sexta-feira. Assim que chegou, a senhora contou-lhe o sucedido. Eu estava lá. Don Ricardo saltou do cadeirão e pregou uma bofetada à senhora que a deitou por terra. Depois, gritando como um louco, disse-lhe que repetisse o que tinha dito. A senhora estava aterrorizada. Nunca tínhamos visto o senhor assim. Nunca. Era como se todos os demónios o tivessem possuído. Vermelho de raiva, subiu ao quarto da Penélope e arrancou-a da cama arrastando-a pelos cabelos.

Eu quis detê-lo e ele afastou-me a pontapé. Nessa mesma noite mandou chamar o médico da família para observar a Penélope. Quando o médico terminou, falou com o senhor. Fecharam a Penélope à chave no quarto e a senhora disse-me que arrumasse as minhas coisas.

«Não me deixaram ver a Penélope, nem despedir-me dela. Don Ricardo ameaçou denunciar-me à polícia se eu revelasse a alguém o sucedido. Correram comigo a pontapé nessa mesma noite, sem ter sítio para onde ir, depois de dezoito anos de serviço ininterrupto na casa. Dois dias mais tarde, numa pensão da rua Muntaner, recebi a visita do Miquel Moliner, que me explicou que o Julián tinha ido para Paris. Queria que lhe contasse o que tinha sucedido com a Penélope e averiguar por que é que ela não tinha comparecido ao encontro na estação. Durante semanas regressei à casa, suplicando que me deixassem ver a Penélope, mas não me permitiram sequer atravessar o gradeamento. Às vezes postava-me na outra esquina durante dias inteiros, à espera de os ver sair. Nunca a vi. Não saía de casa. Mais tarde, o senhor Aldaya chamou a polícia e com os seus amigos de altos voos conseguiu que me metessem no manicómio de Horta, alegando que ninguém me conhecia e que eu era uma louca que espiava a família e os filhos. Passei dois anos lá, encerrada como um animal. A primeira coisa que fiz quando saí foi ir à casa da avenida del Tibidabo ver a Penélope.»

- Conseguiu vê-la? - perguntou Fermín.

- A casa já estava fechada, à venda. Ninguém lá vivia. Disseram-me que os Aldaya tinham ido para a Argentina. Escrevi para a direcção que me tinham dado. As cartas foram-me devolvidas por abrir...

- Que foi feito da Penélope? Sabe? Jacinta abanou a cabeça, desfalecendo.

- Nunca mais a voltei a ver.

A anciã gemia, chorando desabaladamente. Fermín segurou-a nos braços e embalou-a. O corpo de Jacinta Coronado tinha minguado até ficar do tamanho de uma criança, e ao seu lado Fermín parecia um gigante. Fervilhavam-me mil perguntas na cabeça, mas o meu amigo fez um gesto que indicava claramente que a entrevista terminara. Vi-o contemplar aquele buraco sujo e frio onde Jacinta Coronado consumia as suas últimas horas.

- Ande, Daniel. Vamos embora. Vá andando.

Fiz o que me dizia. Ao afastar-me voltei-me um momento e vi que Fermín se ajoelhava diante da anciã e a beijava na testa. Ela exibiu um sorriso desdentado.

- Diga-me cá, Jacinta - ouvi Fermín dizer. - Gosta de Sugus, não gosta?

No nosso périplo em direcção à saída cruzámo-nos com o legítimo agente funerário e dois ajudantes de aspecto simiesco que vinham apetrechados de um caixão de pinho, corda e vários pedaços de lençóis velhos de aplicação incerta. A comitiva exalava um sinistro aroma a formol e a colónia de pacotilha e apresentava uma tez translúcida que emoldurava sorrisos macilentos e caninos. Fermín limitou-se a apontar para a cela onde o defunto esperava e passou a abençoar o trio, que correspondeu ao gesto assentindo e persignando-se respeitosamente.

- Ide em paz - murmurou Fermín, arrastando-me para a saída, onde uma freira, trazendo uma candeia de azeite, me disse adeus com um olhar fúnebre e condenatório.

Uma vez fora do recinto, o lúgubre canhão de pedra e sombra da rua Moncada afigurou-se-me um vale de glória e esperança. Ao meu lado, Fermín respirava fundo, aliviado, e soube que eu não era o único a estar satisfeito por ter deixado atrás aquele bazar de trevas. A história que Jacinta nos relatara pesava-nos mais na consciência do que gostaríamos de admitir.

- Oiça, Daniel. E se enfiássemos uns croquetezinhos de presunto e uns espumosos aqui no Xampanet para tirar o mau sabor da boca?

- Para dizer a verdade, não diria que não.

- Não ficou de se encontrar hoje com a miúda?

- Amanhã.

- Ah, malandreco. Faz-se caro, hem? Como vamos aprendendo...

Não tínhamos dado nem dez passos rumo à ruidosa adega, apenas uns números rua abaixo, quando três silhuetas espectrais se soltaram das sombras e nos saíram ao caminho. Os dois valentões postaram-se atrás de nós, tão próximos que pude sentir o seu hálito na nuca. O terceiro, mais miúdo mas infinitamente mais sinistro, obstruiu-nos a passagem. Vestia a mesma gabardina e o seu sorriso oleoso parecia transbordar de gozo pelas comissuras.

- Ena, pá, mas quem é que temos aqui? Então não é o meu melhor amigo, o homem das mil caras? - disse o inspector Fumero.

Pareceu-me ouvir todos os ossos de Fermín estremecerem de terror ante a aparição. A sua loquacidade ficou reduzida a um gemido abafado. Nessa altura, os dois ferrabrases, que supus não serem senão dois agentes da Brigada Criminal, já nos tinham presos pela nuca e pelo pulso direito, prontos para nos torcerem o braço ao mínimo indício de movimento.

- Vejo pela cara de surpresa que fazes que pensavas que te tinha perdido o rasto há uns tempos, hem? Suponho que não terás acreditado que um pedaço de merda como tu ia poder sair da valeta e fazer-se passar por um cidadão decente, pois não? Tu és chalado, mas não tanto. Além disso contam-me que andas a meter o nariz, que no teu caso é grande, numa data de assuntos que não te dizem respeito. Mau sinal... Em que marosca é que andas metido com as irmãzinhas? Andas a papar alguma? Quanto é que elas levam agora?

- Eu respeito os cus alheios, senhor inspector, especialmente se estão sob clausura. Se calhar, se o senhor se habituasse a fazer a mesma coisa, poupava umas lecas em penicilina e andava melhor da barriga.

Fumero soltou uma risadinha envilecida de ira.

- Assim é que eu gosto. Colhões de touro. É o que eu digo. Se todos os larápios fossem como tu, o meu trabalho era canja. Diz-me cá, como é que te dizes chamar agora, cabrãozinho? Gary Cooper? Anda lá, conta-me o que fazes a meter essa narigueta no asilo de Santa Lucía e se calhar deixo-te ir embora só com um par de beliscaduras. Vamos, vomita lá. O que é que vos traz por aqui?

- Um assunto particular. Viemos visitar uma pessoa de família.

- Sim, a puta da tua mãe. Olha, a tua sorte é que hoje me apanhas de bom humor, caso contrário levava-te já para a esquadra e dava-te outra passagem com o maçarico. Anda lá, sê bom rapaz e conta de verdade ao teu amigo inspector Fumero que raio andavam tu e o teu amigo aqui a fazer. Colabora um pouco, porra, que assim poupas-me fazer uma cara nova aqui ao franganote que arranjaste para mecenas.

- Toque-lhe num cabelo e juro-lhe que...

- Olha só para mim a tremer de medo. Até me borrei nas calças. Fermín engoliu em seco e pareceu conjurar a coragem que se lhe escapava pelos poros.

- Não serão essas as calças à marujo que a sua augusta mãe lhe vestiu, a ilustre sopeira? Seria uma pena, porque me dizem que o figurino lhe assentava que nem uma luva.

O rosto do inspector Fumero empalideceu e toda a expressão se lhe escapou do olhar.

- Que foi que disseste, desgraçado?

- Dizia que me parece que herdou o gosto e a graça de dona Yvonne Sotoceballos, dama da alta sociedade...

Fermín não era um homem corpulento, e o primeiro murro bastou para o derrubar de uma penada. Estava ele ainda feito um novelo sobre o charco onde tinha aterrado quando Fumero lhe pregou uma enfiada de pontapés no estômago, nos rins e na cara. Eu perdi a conta ao quinto. Fermín perdeu o fôlego e a capacidade de mexer um dedo ou de se proteger das pancadas um instante depois. Os dois polícias que me seguravam riam-se por cortesia ou obrigação, agarrando-me com mão férrea.

- Tu não te metas - sussurrou-me um deles. - Não me apetece partir-te o braço.

Tentei em vão libertar-me do seu aperto e ao debater-me vislumbrei por um instante o rosto do agente que tinha falado comigo. Reconheci-o de imediato. Era o homem da gabardina e do jornal do bar da Praça de Sarriá dias antes, o mesmo homem que nos tinha seguido no autocarro, a rir das piadas de Fermín.

- Olha, a mim o que mais me fode no mundo é a gente que escarafuncha na merda e no passado - clamava Fumero, rodeando Fermín. - As coisas passadas são para as deixar estar, percebes? E isso vale para ti e para o pateta do teu amigo. Tu vê bem e aprende, garoto, que depois vais tu.

Contemplei o inspector Fumero a destroçar Fermín aos pontapés sob a luz enviesada de um candeeiro. Durante todo o episódio fui incapaz de abrir a boca. Lembro-me do impacto surdo, terrível, dos golpes a caírem sem piedade sobre o meu amigo. Ainda me doem. Limitei-me a refugiar-me naquela conveniente prisão dos polícias, tremendo e derramando lágrimas de cobardia em silêncio.

Quando Fumero se aborreceu de sacudir um peso morto, abriu a gabardina, correu o fecho ecler e pôs-se a urinar em cima de Fermín. O meu amigo não se mexia, desenhando apenas um fardo de roupa velha num charco. Enquanto Fumero descarregava o seu jorro generoso e vaporoso sobre Fermín, continuei a ser incapaz de abrir a boca. Quando terminou, o inspector apertou a braguilha e acercou-se de mim com o rosto suarento, a arfar. Um dos agentes estendeu-lhe um lenço com o qual enxugou a cara e o pescoço. Fumero aproximou-se de mim até deter o rosto a uns centímetros apenas do meu, e cravou o olhar em mim.

- Tu não valias esta tareia, miúdo. É esse o problema do teu amigo: aposta sempre no lado errado. Da próxima vez fodo-o a valer, como nunca, e tenho a certeza de que a culpa vai ser tua.

Julguei que nessa altura me ia esbofetear, que tinha chegado a minha vez. Por algum motivo congratulei-me por que assim fosse. Quis acreditar que os golpes me curariam da vergonha de ter sido incapaz de mexer um dedo para ajudar Fermín quando a única coisa que estava a fazer, como sempre, era tentar proteger-me.

Mas não caiu golpe algum. Somente a chicotada daqueles olhos cheios de desprezo. Fumero limitou-se a dar-me uma palmadinha na face.

- Sossega, menino. Eu não sujo as mãos com cobardes.

Os dois polícias riram-se da graça, mais descontraídos ao verificar que o espectáculo tinha terminado. Os seus desejos de abandonarem a cena eram palpáveis. Afastaram-se a rir na sombra. Quando acorri em seu auxílio, Fermín lutava em vão para se pôr de pé e encontrar os dentes que perdera na água suja do charco. Tinha a boca, o nariz, os ouvidos e as pálpebras a sangrar. Ao ver-me são e salvo, fez menção de um sorriso e julguei que me ia morrer ali mesmo. Ajoelhei-me ao pé dele e segurei-o nos braços. O primeiro pensamento que me cruzou a cabeça foi que pesava menos do que Bea.

- Fermín, por amor de Deus, é preciso levá-lo ao hospital imediatamente. Fermín abanou energicamente a cabeça.

- Leve-me a ela.

- A quem, Fermín?

- À Bernarda. Se hei-de esticar o pernil, que seja nos braços dela.

 

Naquela noite regressei ao andar da praça Real que anos atrás jurara não voltar a pisar. Um par de residentes que tinham presenciado a tareia da porta do Xampanet ofereceu-se para me ajudar a levar Fermín a uma paragem de táxis na Rua Princesa enquanto um criado do estabelecimento telefonava para o número que eu lhe tinha dado a avisar da nossa chegada. A corrida no táxi pareceu-me infinita. Fermín tinha perdido o conhecimento antes de arrancar. Eu segurava-o nos braços, aferrando-o contra o peito e tentando transmitir-lhe calor. Podia sentir o seu sangue morno a ensopar-me a roupa. Eu murmurava-lhe ao ouvido, dizendo-lhe que já chegávamos, que não havia de ser nada. Tremia-me a voz. O condutor lançava-me olhares furtivos do espelho.

- Oiça, eu não quero sarilhos, hem? Se esse morre, os senhores apeiam-se.

- O senhor acelere e cale-se.

Quando chegámos à Rua Fernando, Gustavo Barceló e Bernarda esperavam à porta do edifício na companhia do doutor Soldevilla. Ao ver-nos cobertos de sangue e sujidade, Bernarda desatou a gritar, num acesso de pânico. O médico tomou rapidamente o pulso a Fermín e assegurou que o paciente estava vivo. Entre os quatro conseguimos transportar Fermín pelas escadas acima e levá-lo até ao quarto de Bernarda, onde uma enfermeira que o médico tinha trazido já estava a preparar tudo. Uma vez colocado o paciente na cama, a enfermeira começou a despi-lo. O doutor Soldevilla insistiu em que saíssemos todos do quarto e o deixássemos actuar. Fechou-nos a porta na cara com um sucinto «viverá».

No corredor, Bernarda chorava desconsoladamente, gemendo que por uma vez que encontrava um homem bom, vinha Deus e arrancava-lho aos murros. Don Gustavo Barceló tomou-a nos braços e levou-a para a cozinha, onde se entregou a enfrascá-la em aguardente até a coitada mal se ter de pé. Uma vez que as palavras da criada começaram a ser ininteligíveis, o livreiro serviu-se de um copo e esvaziou-o de um trago.

- Lamento muito. Não sabia onde ir... - comecei eu.

- Calma. Fizeste bem. O Soldevilla é o melhor traumatologista de Barcelona - disse, sem se dirigir a ninguém em particular.

- Obrigado - murmurei.

Barceló suspirou e serviu-me um bom gole de brande num copo. Declinei o seu oferecimento, que passou às mãos de Bernarda, em cujos lábios desapareceu como por encanto.

- Faz o favor de tomar um duche e vestir qualquer roupa limpa - indicou Barceló. - Se voltas a casa com esse aspecto, matas o teu pai de susto.

- Não é preciso... Estou bem - disse eu.

- Pois então pára de tremer. Anda lá, podes usar a minha casa de banho, que tem termoacumulador. Já sabes o caminho. Eu entretanto vou telefonar ao teu pai e dir-lhe-ei que, bom, não sei o que lhe direi. Alguma coisa me há-de ocorrer.

Assenti.

- Esta continua a ser a tua casa, Daniel - disse Barceló enquanto eu me afastava pelo corredor. - Sentiu-se a tua falta.

Consegui encontrar a casa de banho de Gustavo Barceló, mas não o interruptor da luz. Pensando bem, disse para comigo, prefiro tomar duche na penumbra. Despojei-me da minha roupa suja de sangue e porcaria e empoleirei-me na banheira imperial de Gustavo Barceló. Filtrava-se uma escuridão perlada pela grande janela que dava para o pátio interior do prédio, sugerindo os perfis do aposento e o jogo de azulejos esmaltados do solo e das paredes. A água saía a ferver e com uma pressão que, comparada com a modéstia da nossa casa de banho da rua Santa Ana, me pareceu digna de hotéis de luxo nos quais nunca tinha posto os pés. Permaneci vários minutos debaixo dos feixes de vapor do duche, imóvel.

O eco dos golpes a caírem sobre Fermín continuava a martelar-me os ouvidos. Não conseguia tirar da cabeça as palavras de Fumero, nem o rosto daquele polícia que me tinha agarrado, provavelmente para me proteger. Daí a pouco apercebi-me de que a água começava a arrefecer e supus que estava a esgotar a capacidade do termoacumulador do meu anfitrião. Esgotei até à última gota de água morna e fechei a torneira. O vapor subia da minha pele como fios de seda. Através da cortina do duche adivinhei uma silhueta imóvel diante da porta. O seu olhar vazio brilhava como o de um gato.

- Podes sair sem receio, Daniel. Apesar de todas as minhas maldades, continuo sem te poder ver.

- Olá, Clara.

Estendeu uma toalha limpa na minha direcção. Alonguei o braço e peguei nela. Envolvi-me nela com pudor de menina de colégio e inclusivamente pude ver que Clara sorria, adivinhando os meus movimentos.

- Não te ouvi entrar.

- Não bati. Por que é que tomas duche às escuras?

- Como é que sabes que a luz não está acesa?

- O zumbido da lâmpada - disse ela. - Nunca voltaste para te despedir.

- Vòltei, pois, pensei, mas estavas muito ocupada. As palavras morreram-me nos lábios, distantes o seu rancor e a amargura, de repente ridículos. - Bem sei. Desculpa.

Saí do duche e pus-me em cima do tapete de felpa. O halo de vapor ardia em grãos de prata, a claridade da clarabóia era um manto branco sobre o rosto de Clara. Não tinha mudado nem um pouco em relação ao que eu recordava. Quatro anos de ausência não me tinham servido de quase nada.

- A tua voz mudou - disse ela. - Tu também mudaste, Daniel?

- Continuo tão tolo como dantes, se é isso o que te intriga.

E mais cobarde, acrescentei para mim mesmo. Ela conservava aquele mesmo sorriso quebrado que doía até na penumbra. Estendeu uma mão e, como naquela tarde oito anos atrás na biblioteca do Ateneo, percebi imediatamente. Guiei a sua mão até ao meu rosto húmido e senti os dedos dela descobrirem-me de novo, os lábios dela a desenharem palavras em silêncio.

- Nunca quis fazer-te mal, Daniel. Perdoa-me. Peguei-lhe na mão e beijei-a na escuridão.

- Perdoa-me tu a mim.

Todo e qualquer indício de melodrama se escaqueirou em pedaços quando Bernarda assomou à porta e, apesar de estar praticamente embriagada, me descobriu nu, a pingar, levando a mão de Clara aos lábios e com a luz apagada.

- Por amor de Deus, menino Daniel, que pouca-vergonha. Jesus, Maria e José. É que há gente que não toma ensinamento...

Bernarda bateu em retirada, aflita, e confiei que, quando os efeitos do brande diminuíssem, a lembrança do que tinha visto se desvanecesse da sua mente como um retalho de sonho. Clara recuou uns passos e estendeu-me a roupa que segurava debaixo do braço esquerdo.

- O meu tio deu-me este fato dele para vestires. É de quando ele era novo. Diz que cresceste imenso e que te há-de ficar bem. Deixo-te para te vestires. Não devia ter entrado sem bater.

Peguei na muda que me oferecia e comecei a vestir a roupa interior, tépida e perfumada, a camisa de algodão rosada, as peúgas, o colete, as calças e o casaco. O espelho mostrava um vendedor a domicílio, desarmado de sorriso. Quando regressei à cozinha, o doutor Soldevilla tinha saído um instante do quarto onde estava a tratar de Fermín para informar os presentes do seu estado.

De momento, o pior passou - anunciou. - Não há razão para preocupações. Estas coisas parecem sempre mais graves do que são. O vosso amigo sofreu uma fractura no braço esquerdo e tem duas costelas quebradas, perdeu três dentes e apresenta pisaduras múltiplas, cortes e contusões, mas felizmente não há hemorragia interna nem sintomas de lesão cerebral. Os jornais dobrados que o paciente levava debaixo da roupa à guisa de abafo e realce de corpulência, como ele diz, serviram de armadura para amortecer os golpes. Há uns instantes, ao recobrar a consciência durante uns minutos, o paciente pediu-me para vos dizer que se encontra como um miúdo de vinte anos, que quer uma sanduíche de morcela e alho-porro, um quadrado de chocolate e caramelos Sugus de limão. Em princípio não vejo inconveniente, embora creia que de momento é melhor começar por uns sumos, iogurte e talvez um pouco de arroz branco. Aliás, e como testemunho da sua louçania e presença de espírito, o paciente indicou-me que transmita aos senhores que, quando a enfermeira Amparito lhe deu uns pontos na perna, experimentou uma erecção que parecia um tronco.

- É que ele é muito homem - murmurou Bernarda, em tom de desculpa.

- Quando poderemos vê-lo? - perguntei.

- Agora é melhor não. Talvez ao alvorecer. Far-lhe-á bem um bocado de repouso e amanhã mesmo gostaria de o levar ao hospital del Mar para lhe fazer um electroencefalograma, para ficarmos sossegados, mas creio que não corremos qualquer risco e que o senhor Romero de Torres daqui a uns dias estará como novo. A julgar pelas marcas e cicatrizes que tem no corpo, este homem já saiu de transes piores e é um sobrevivente nato. Se precisarem de uma cópia do diagnóstico para apresentarem queixa na esquadra...

- Não será necessário - interrompi.

- Advirto-o de que isto podia ter sido muito sério, meu jovem. Há que fazer imediatamente a participação à polícia.

Barceló observava-me atentamente. Devolvi-lhe o olhar e ele assentiu.

- Há tempo para essas diligências, doutor, não se preocupe - disse Barceló. - Agora o importante é certificarmo-nos de que o paciente está em bom estado. Eu próprio apresentarei a denúncia pertinente amanhã logo de manhã. Até as autoridades têm direito a um pouco de paz e sossego nocturnos.

Obviamente, o médico não via com bons olhos a minha sugestão de ocultar o incidente à polícia, mas, ao verificar que Barceló se responsabilizava pelo assunto, encolheu os ombros e regressou ao quarto para prosseguir com os cuidados. Mal ele desapareceu, Barceló fez-me sinal para o seguir até ao seu escritório. Bernarda suspirava no seu tamborete, à mercê do brande e do susto.

- Entretenha-se, Bernarda. Faça café. Bem forte.

- Sim, senhor. É para já.

Segui Barceló até ao seu escritório, uma caverna submersa em névoas de tabaco de cachimbo que se perfilava entre colunas de livros e papéis. Os ecos do piano de Clara chegavam-nos em eflúvios descompassados. As lições do professor Neri não lhe tinham obviamente servido de muito, pelo menos no terreno musical. O livreiro indicou-me que me sentasse e pôs-se a preparar uma cachimbada.

- Telefonei ao teu pai e disse que o Fermín teve um pequeno acidente e que tu o tinhas trazido para aqui.

- Ele engoliu isso?

- Não me parece.

- Ah.

O livreiro acendeu o cachimbo e recostou-se no cadeirão da secretária, deleitando-se com o seu aspecto mefistofélico. No outro extremo do andar, Clara humilhava Debussy. Barceló pôs os olhos em alvo.

- Que foi feito do professor de música? - perguntei.

- Despedi-o. Abuso de cátedra.

- Ah.

- De certeza que não te espancaram também a ti? Estás muito dado aos monossílabos. Em rapaz eras mais falador.

A porta do escritório abriu-se e Bernarda entrou trazendo uma bandeja com duas chávenas fumegantes e um açucareiro. À vista do seu andar, temi interpor-me na trajectória de uma chuva de café a ferver.

- Com licença. O senhor toma-o com um golinho de brande?

- Parece-me que a garrafa de Lepanto mereceu bem o seu descanso esta noite, Bernarda. E você também. Ande, vá dormir. O menino Daniel e eu ficamos acordados para o caso de ser preciso alguma coisa. Já que o Fermín está no seu quarto, a Bernarda pode usar o meu.

- Ai, senhor, de maneira nenhuma.

- É uma ordem. E não discuta. Quero-a a dormir dentro de cinco minutos.

- Mas, senhor...

- Olhe que está em jogo o seu subsídio de Natal, Bernarda.

- O senhor manda, senhor Barceló. Embora eu durma em cima da colcha. Era só o que faltava!

Barceló esperou cerimoniosamente que Bernarda se retirasse. Serviu-se de sete torrões de açúcar e pôs-se a mexer a chávena com a colherínha, perfilando um sorriso felino entre nuvarrões de tabaco holandês.

- Estás a ver? Tenho de governar a casa com mão de ferro.

- É verdade, está um verdadeiro ogre, don Gustavo.

- E tu um intrujão. Diz-me lá, Daniel, agora que ninguém nos ouve. Por que é que não é boa ideia darmos parte à polícia do que se passou?

- Por que eles já sabem.

- Queres dizer...? Assenti.

- Em que género de sarilho é que vocês estão metidos, se não é indiscrição? Suspirei.

- Alguma coisa em que eu possa ajudar?

Ergui o olhar. Barceló sorria-me sem malícia, com a fachada de ironia em estranha trégua.

- Não terá tudo isto, por uma daquelas coisas, que ver com aquele livro de Carax que não me quiseste vender quando devias?

A surpresa apanhou-me desprevenido.

- Eu poderia ajudar-vos - ofereceu-se. - A mim sobra-me o que a vocês vos falta: dinheiro e senso comum.

- Acredite, don Gustavo, já impliquei demasiadas pessoas neste assunto.

- Então de mais um não virá mal nenhum. Vamos, em confiança. Imagina que eu sou o teu confessor.

- Há anos que não me confesso.

- Nota-se na tua cara.

 

Gustavo Barceló tinha um ouvir contemplativo e salomónico, de médico ou núncio apostólico. Observava-me com as mãos juntas à guisa de prece sob o queixo e os cotovelos sobre a secretária, mal pestanejando, assentindo aqui e além, como se detectasse sintomas ou pecadilhos no fluxo do meu relato e fosse compondo a sua própria sentença sobre os factos à medida que eu lhos servia em bandeja. Cada vez que eu parava, o livreiro erguia inquisitorialmente as sobrancelhas e fazia um gesto com a mão direita para indicar que continuasse a desenredar o novelo da minha história, que parecia diverti-lo enormemente. Ocasionalmente tomava notas com a mão levantada ou erguia o olhar para o infinito como se quisesse considerar as implicações de tudo o que eu lhe relatava. A maioria das vezes derretia-se num sorriso sardónico que eu não podia deixar de atribuir à minha ingenuidade ou à estupidez das minhas conjecturas.

- Oiça, se isto lhe parece uma parvoíce, eu calo-me.

- Pelo contrário. Falar é de ignorantes; calar é de cobardes; ouvir é de sábios.

- Quem disse isso? Séneca?

- Não. O senhor Braulio Recolons, que é o gerente de uma casa de toucinhos na rua Avinon e possui um dom proverbial tanto para os enchidos como para o aforismo apropriado. Continua, por favor. Estavas-me a falar de uma rapariga vivaça...

- Bea. E isso é cá comigo e não tem nada que ver com tudo o resto.

Barceló ria-se disfarçadamente. Estava para continuar a narração das minhas peripécias quando o doutor Soldevilla assomou à porta do escritório com aspecto cansado e a resfolegar.

- Desculpem. Já estava de saída. O paciente está bem, e, passe a metáfora, cheio de energia. Este cavalheiro há-de enterrar-nos a todos. Aliás afirma que os sedativos lhe subiram à cabeça e está aceleradíssimo. Nega-se a descansar e insiste em que tem de tratar com o senhor Daniel de assuntos sobre cuja natureza não me quis esclarecer alegando que não acredita no juramento de Hipócrates, ou de hipócritas, como ele diz.

- Vamos já vê-lo. E desculpe o pobre Fermín. As suas palavras são sem dúvida consequência do trauma.

- Talvez, mas eu não poria de parte a falta de vergonha, porque não há maneira de deixar de beliscar o traseiro da enfermeira e de recitar versos a glosar a firmeza e o torneado das coxas dela.

Escoltámos o médico e a sua enfermeira até à porta e agradecemos-lhes efusivamente os seus bons ofícios. Ao entrar no quarto descobrimos que, afinal de contas, Bernarda tinha desafiado as ordens de Barceló e se deitara na cama ao lado de Fermín, onde o susto, o brande e o cansaço haviam conseguido finalmente fazê-la conciliar o sono. Fermín segurava-a docemente, acariciando-lhe o cabelo, coberto de vendas, apósitos e braçadeiras. O seu rosto desenhava uma pisadura que doía à vista e da qual emergiam o narigão incólume, duas orelhas como antenas repetidoras e uns olhos de ratinho abatido. O sorriso desdentado e sulcado de cortes era de triunfo e recebeu-nos erguendo a mão direita com o sinal de vitória.

- Como se sente, Fermín? - perguntei.

- Vinte anos mais novo - disse em voz baixa para não acordar Bernarda.

- Não me venha com histórias, que bem se vê que está feito em caca, Fermin. Que rico susto! Tem a certeza de que se sente bem? Não sente a cabeça a andar à roda? Ouve vozes?

- Agora que fala nisso, de vez em quando parecia-me perceber um murmúrio dissonante e arrítmico, como se um macaco estivesse a tentar tocar piano.

Barceló franziu o cenho. Clara continuava a dedilhar ao longe.

- Não se preocupe, Daniel. Já levei tareias piores. Aquele Fumero não sabe bater nem um prego.

- Com que então, quem lhe pregou a coça foi o inspector Fumero em pessoa - disse Barceló. - Já vejo que vocês se movem em altas esferas.

- Ainda não tinha chegado a essa parte da história - disse eu. Fermín lançou-me um olhar de alarme.

- Descanse, Fermín. O Daniel está-me a pôr ao corrente desse folhetim que vocês têm entre mãos. Devo reconhecer que o assunto é interessantíssimo. E o senhor, Fermín, como anda de confissões? Advirto-o de que tenho dois anos de seminário.

- Eu dava-lhe no mínimo três, don Gustavo.

- Tudo se perde, a começar pela vergonha. É a primeira vez que vem a minha casa e acaba na cama com a criada.

- Olhe para ela, pobrezinha, meu anjo. Saiba que as minhas intenções são honestas, don Gustavo.

- As suas intenções são lá consigo e com a Bernarda, que já é crescidinha. E agora, vamos lá a ver. Em que embrulhada se meteram vocês?

- Que foi que lhe contou, Daniel?

- Chegámos até ao segundo acto: entrada da femme fatale - precisou Barceló.

- Nuria Monfort? - perguntou Fermín. Barceló lambeu-se com deleite.

- Mas há mais que uma? Isto parece o rapto do serralho.

- Peço-lhe que baixe a voz, que aqui a minha noiva está presente.

- Descanse, que a sua noiva tem nas veias meia garrafa de brande Lepanto. Não a acordaríamos nem a tiro de canhão. Ande, diga ao Daniel que me conte o resto. Três cabeças pensam melhor que duas, especialmente se a terceira for a minha.

Fermín fez menção de encolher os ombros entre as ligaduras e as tiras de pano.

- Eu não me oponho, Daniel. O Daniel é que decide.

Resignado a ter don Gustavo Barceló a bordo, continuei o meu relato até chegar ao ponto em que Fumero e os seus homens nos tinham surpreendido na Rua Moncada horas antes. Concluída a narração, Barceló levantou-se e começou a percorrer o quarto acima e abaixo, meditando. Fermín e eu observávamo-lo com cautela. Bernarda roncava como um bezerrinho.

- Pequenina - sussurrava Fermín, enfeitiçado.

- Há várias coisas que me chamam a atenção - disse finalmente o livreiro. - Evidentemente, o inspector Fumero está metido nisto até à ponta dos cabelos, embora como e porquê seja uma coisa que me escapa. Por um lado há essa mulher...

- Nuria Monfort.

- Depois temos a questão do regresso de Julián Carax a Barcelona e o seu assassínio nas ruas da cidade passado um mês em que ninguém sabe dele. Obviamente, a sujeita mente com quantos dentes tem na boca e até sobre o tempo.

- Isso é o que eu tenho dito desde o princípio - disse Fermín. - Porque aqui há muita febre juvenil e pouca visão de conjunto.

- Olha quem fala: São João da Cruz.

- Alto. Deixemo-nos de discussões e cinjamo-nos aos factos. Há qualquer coisa no que Daniel contou que me pareceu muito estranho, ainda mais que o resto, e não pelo folhetinesco do enredo, mas sim por um pormenor essencial e aparentemente banal - acrescentou Barceló.

- Deslumbre-nos, don Gustavo.

- Pois ei-lo: aquilo de o pai de Carax se negar a reconhecer o cadáver de Carax alegando que não tinha nenhum filho. Eu acho isso muito esquisito. Quase contra-natura. Não há pai no mundo que faça isso. Não importam os ressentimentos que pudesse haver entre ambos. A morte tem estas coisas: desperta o sentimentalismo a toda a gente. Diante de um caixão, todos vemos só a parte boa ou o que queremos ver.

- Que grande citação, don Gustavo - aduziu Fermín. - Importa-se de que eu a acrescente ao meu repertório?

- Há excepções para tudo - objectei eu. - Pelo que sabemos, o senhor Fortuny era um bocado especial.

- Tudo o que sabemos dele são boatos em terceira mão - disse Barceló. - Quando toda a gente se empenha em pintar alguém como um monstro, de duas uma: ou era um santo ou estão a calar da missa metade.

- É que a si o chapeleiro caiu-lhe em graça por ser corno - disse Fermín.

- Com todo o respeito pela profissão, quando o esboço de um vilão tem por única base o testemunho da porteira do imóvel, o meu primeiro instinto é o da desconfiança.

- Por essa regra de três não podemos ter a certeza de nada. Tudo o que sabemos é, como o senhor diz, em terceira mão, ou quarta. Com porteiras ou não.

- Não te fies no que se fia em todos - apostilou Barceló.

- Que vigília que o senhor tem, don Gustavo! - elogiou Fermín. - Pérolas cultivadas por grosso. Quem tivesse a sua visão preclara...

- Aqui a única coisa clara em tudo isto é que vocês precisam da minha ajuda, logística e provavelmente pecuniária, se pretendem resolver esta embrulhada antes que o inspector Fumero lhes reserve uma suite no presídio de San Sebas. Fermín, presumo que o senhor esteja comigo, não?

- Eu estou às ordens do Daniel. Se ele o ordenar, eu até faço de menino Jesus.

- Que dizes tu, Daniel?

- Vocês é que dizem tudo. Que propõe o senhor?

- O meu plano é este: mal o Fermín esteja restabelecido, tu, Daniel, casualmente, fazes uma visita a dona Nuria Monfort e pões-lhe as cartas na mesa. Dás-lhe a entender que te mentiu e que esconde qualquer coisa, muito ou pouco, logo veremos.

- Para quê? - perguntei.

- Para ver como ela reage. Não te há-de dizer nada, claro. Ou então mente-te outra vez. O importante é cravar a bandarilha, passe a analogia taurina, e ver onde o touro nos conduz, neste caso a vitelinha. E é aí que o senhor entra, Fermín. Enquanto o Daniel dá o corpo ao manifesto, o senhor posta-se discretamente a vigiar a suspeita e espera que ela morda o anzol. Uma vez que ela o faça, segue-a.

- Presume o senhor que ela irá a algum lado - protestei.

- Homem de pouca fé. Fá-lo-á. Mais tarde ou mais cedo. E qualquer coisa me diz que neste caso será mais cedo que tarde. É a base da psicologia feminina.

- E entretanto que pensa o senhor fazer, doutor Freud? - perguntei.

- Isso é cá comigo e a seu tempo o saberás. E hás-de agradecer-mo.

Procurei apoio no olhar de Fermín, mas o coitado já se tinha deixado adormecer abraçado a Bernarda à medida que Barceló formulava o seu discurso triunfal. Fermín pusera a cabeça de lado e caía-lhe a baba no peito de um sorriso bem-aventurado. Bernarda emitia roncos profundos e cavernosos.

- Oxalá este lhe saia bom - murmurou Barceló.

- O Fermín é um tipo em cheio - assegurei.

- Deve ser, porque pelo aspecto não me parece que a tenha conquistado. Anda, vamos.

Apagámos a luz e retirámo-nos silenciosamente do aposento, fechando a porta e deixando os pombinhos à mercê do seu sopor. Pareceu-me que o primeiro sopro do alvorecer despontava nas janelas da galeria ao fundo do corredor.

- Suponhamos que lhe digo que não - disse eu em voz baixa. - Que não pense nisso.

Barceló sorriu.

- Chegas tarde, Daniel. Terias de me ter vendido aquele livro há anos, quando tiveste oportunidade.

Cheguei a casa ao amanhecer, arrastando aquele absurdo fato emprestado e o naufrágio de uma noite interminável por ruas húmidas e reluzentes de escarlate. Encontrei o meu pai a dormir na sua cadeira da sala de jantar com uma manta por cima das pernas e o seu livro favorito aberto nas mãos, um exemplar do Cândido de Voltaire que relia um par de vezes todos os anos, o par de vezes que o ouvia rir-se com alma. Observei-o em silêncio. Tinha o cabelo grisalho, escasso, e a pele do rosto começara a perder a firmeza em volta dos pómulos. Contemplei aquele homem que em tempos tinha imaginado forte, quase invencível, e vi-o frágil, derrotado sem ele saber. Derrotados porventura os dois. Inclinei-me para o abrigar com aquela manta que havia anos prometia doar à beneficência e beijei-lhe a testa como se quisesse protegê-lo assim dos fios invisíveis que o afastavam de mim, daquele andar acanhado e das minhas recordações, como se acreditasse que com aquele beijo podia enganar o tempo e convencê-lo a passar de largo, a voltar outro dia, outra vida.

 

Passei quase toda a manhã a sonhar acordado na parte de trás da loja, conjurando imagens de Bea. Desenhava a sua pele nua sob as minhas mãos e julgava saborear novamente o seu hálito a pão doce. Surpreendia-me a recordar com precisão cartográfica as dobras do seu corpo, o brilho da minha saliva nos seus lábios e naquela linha de pêlo loiro, quase transparente, que lhe descia pelo ventre e à qual o meu amigo Fermín, com as suas improvisadas conferências sobre logística carnal, se referia como «o caminhito de Jerez».

Consultei o relógio e verifiquei com horror que ainda faltavam várias horas até que pudesse ver - e tocar - de novo Bea. Experimentei ordenar os recibos do mês, mas o som dos maços de papel recordava-me o roçagar da roupa interior a deslizar pelas ancas e pelas coxas pálidas de dona Beatriz Aguilar, irmã do meu amigo íntimo de infância.

- Estás nas nuvens, Daniel. Estás preocupado com alguma coisa? É o Fermín? - perguntou o meu pai.

Assenti, envergonhado. O meu melhor amigo tinha deixado várias costelas para me salvar a pele umas horas antes e o meu primeiro pensamento era para o fecho de um soutien.

- Falai no mau...

Ergui a vista e ali estava ele. Fermín Romero de Torres, génio e figura, vestindo o seu melhor fato e com aquele aspecto de charutanga, entrava pela porta com um sorriso triunfal e um cravo fresco na lapela.

- Mas que faz você aqui, infeliz? Não tinha de guardar repouso?

- O repouso guarda-se sozinho. Eu sou um homem de acção. E, se não estiver aqui, os senhores não vendem nem um catecismo.

Fazendo orelhas moucas aos conselhos do médico, Fermín vinha decidido a reocupar o seu posto. Exibia uma tez amarelenta e picada de nódoas negras, coxeava imenso e movia-se como um boneco quebrado.

- O senhor vai agora mesmo para a cama, Fermín, pelo amor de Deus - disse o meu pai, horrorizado.

- Nem pensar. As estatísticas demonstram-no: morre mais gente na cama do que nas trincheiras.

Todos os nossos protestos caíram em saco roto. Daí a pouco, o meu pai cedeu, porque havia qualquer coisa no olhar do pobre Fermín que sugeria que, embora lhe doessem os ossos até à alma, mais lhe doía a perspectiva de estar sozinho no seu quarto da pensão.

- Bom, mas se o vejo levantar alguma coisa que não seja um lápis, vai-me ouvir.

- Às suas ordens. Tem a minha palavra de que hoje não levanto nem suspeita.

Sem tardança, Fermín pôs-se a vestir a sua bata azul e armou-se de um trapo e de uma garrafa de álcool com os quais se instalou atrás do balcão com a intenção de deixar como novas as capas e as lombadas dos quinze exemplares usados que nos tinham chegado nessa manhã de um título muito procurado, O Chapéu de Três Bicos: História da Benemérita em Versos Alexandrinos, pelo bacharel Fulgencio Capón, autor muitíssimo jovem consagrado pela crítica de todo o país. Enquanto se entregava à sua tarefa, Fermín ia lançando olhares furtivos, piscando o olho como o proverbial diabrete.

- O Daniel tem as orelhas vermelhas como pimentos.

- Será de o ouvir dizer parvoíces.

- Ou da excitação que tem no corpo. Quando é que se vai encontrar com a pequena?

- Não tem nada com isso.

- Mas que mau que me saiu! Já evita o picante? Olhe que é um vasodilatador mortífero.

- Vá à merda.

Como vinha sendo costume, tivemos uma tarde entre morta e miserável. Um comprador coberto de cinzento, da gabardina à voz, entrou para perguntar se tínhamos algum livro de Zorrilla, convencido de que se tratava de uma crónica em redor das aventuras de uma rameira de curta idade na Madrid dos Áustrias(1). O meu pai não soube o que lhe dizer, mas Fermín saiu em seu auxílio, comedido por uma vez.

- Está confundido, cavalheiro. Zorrilla é um dramaturgo. Se calhar interessa-lhe o Dom João. Tem muitas complicações de saias e além disso o protagonista envolve-se com uma freira.

- Levo-o.

 

*1. Trocadilho entre o apelido de José Zorrilla, poeta nascido em 1817 e falecido em 1893, um dos mais representativos autores românticos espanhóis, e o diminutivo da palavra zorra, que em espanhol significa rameira, prostituta. (N. T.)

 

Entardecia já quando o metro me deixou no começo da Avenida del Tibidabo. A silhueta do eléctrico azul adivinhava-se entre as dobras de uma neblina violácea, afastando-se. Decidi não esperar o seu regresso e fiz o caminho a pé enquanto anoitecia. Daí a pouco vislumbrei a silhueta da «O Anjo de Bruma». Extraí a chave que Bea me tinha dado e pus-me a abrir a cancela recortada no gradeamento. Entrei no prédio e deixei a porta quase encostada, aparentemente fechada mas preparada para franquear a passagem a Bea. Tinha chegado deliberadamente adiantado. Sabia que Bea tardaria pelo menos meia hora ou quarenta e cinco minutos a chegar. Queria sentir a sós a presença da casa, explorá-la antes que Bea chegasse e a fizesse sua. Detive-me um instante a contemplar a fonte e a mão do anjo a erguer-se das águas tingidas de escarlate. O dedo indicador, acusador, parecia aguçado como um punhal. Aproximei-me da borda do lago. O rosto cinzelado, sem olhar nem alma, tremia sob a superfície.

Subi a escadaria que conduzia à entrada. A porta principal estava entreaberta uns centímetros. Senti uma pontada de inquietude, pois julgava tê-la fechado ao sair dali na outra noite. Examinei a fechadura, que não parecia forçada, e supus que me tivesse esquecido de a fechar. Empurrei-a com suavidade para o interior e senti o hálito da casa a acariciar-me a cara, um bafo a madeira queimada, a humidade e a flores mortas. Extraí a caixa de fósforos de que me tinha munido antes de sair da livraria e ajoelhei-me a acender a primeira das velas que Bea deixara. Uma bolha cor de cobre acendeu-se nas minhas mãos e desvendou os contornos dançantes de paredes sulcadas de lágrimas de humidade, tectos caídos e portas desconjuntadas.

Adiantei-me até à vela seguinte e acendi-a. Lentamente, quase seguindo um ritual, percorri o rasto de velas que Bea deixara e acendi-as uma a uma, conjurando um halo de luz âmbar que flutuava no ar como uma teia de aranha aprisionada entre mantos de negrura impenetrável. O meu passeio terminou junto da lareira da biblioteca, junto dos cobertores que continuavam no chão, sujos de cinza. Sentei-me lá, de frente para o resto da sala. Tinha esperado silêncio, mas a casa respirava mil ruídos. Estalidos da madeira, o roçar do vento nas telhas do telhado, mil e um tamborilares entre as paredes, debaixo do pavimento, deslocando-se atrás das paredes.

Deviam ter transcorrido quase trinta minutos quando reparei que o frio e a penumbra começavam a adormecer-me. Pus-me de pé e comecei a percorrer a sala para me aquecer. Sobravam apenas os restos de um tronco na lareira e supus que, quando Bea chegasse, a temperatura no interior do casarão teria descido o suficiente para me inspirar momentos de pureza e castidade e dissipar todas as miragens febris que tinha albergado durante dias. Tendo encontrado um propósito prático e de menos voo poético do que a contemplação das ruínas do tempo, peguei numa das velas e dispus-me a explorar o casarão em busca de material combustível com o qual tornar habitável a sala e aquele par de cobertores que agora tiritavam diante da lareira, alheios às cálidas memórias que eu deles conservava.

As minhas noções de literatura vitoriana sugeriam-me que o mais razoável era iniciar a busca pela cave, onde com toda a certeza deviam ter estado situadas as cozinhas e uma formidável carvoeira. Com esta ideia em mente, levei quase cinco minutos a localizar uma porta ou escadaria que me conduzisse à cave. Escolhi um portão de madeira lavrada no extremo de um corredor. Parecia uma peça de marcenaria requintada, com relevos em forma de anjos e telas e uma grande cruz ao centro. O fecho situava-se no centro do portão, por baixo da cruz. Tentei forçá-lo, sem êxito. O mecanismo estava provavelmente travado ou simplesmente cheio de óxido. A única maneira de vencer aquela porta seria forçá-la com uma alavanca ou deitá-la abaixo à machadada, alternativas que pus rapidamente de lado. Examinei aquele portão à luz das velas, pensando que inspirava mais a imagem de um sarcófago que de uma porta. Perguntei a mim mesmo o que se esconderia do outro lado.

Uma olhadela mais detida aos anjos lavrados sobre a porta roubou-me a vontade de o averiguar e afastei-me daquele lugar. Estava para desistir da minha busca de um caminho de acesso à cave quando, quase por acaso, dei com uma pequena portinhola no outro extremo do corredor que tomei ao princípio por um armário de vassouras e baldes. Experimentei a maçaneta, que cedeu de imediato. Do outro lado adivinhava-se uma escada que descia a pique até um charco de escuridão. Um intenso fedor a terra esbofeteou-me. Na presença daquele fedor, tão estranhamente familiar, e com o olhar pregado no poço de escuridão em frente, assaltou-me uma imagem que conservava desde a infância, enterrada entre cortinas de temor.

Uma tarde de chuva na ladeira leste do cemitério de Montjuic, olhando o mar por entre um bosque de mausoléus impossíveis, um bosque de cruzes e lápides talhadas com rostos de caveiras e crianças sem lábios nem olhar, que tresandava a morte, as silhuetas de uma vintena de adultos que só conseguia recordar como fatos pretos ensopados de chuva e a mão do meu pai a segurar a minha com demasiada força, como se quisesse abafar as lágrimas, enquanto as palavras ocas de um sacerdote caíam naquela cova de mármore para onde três coveiros sem rosto empurravam um sarcófago cinzento pelo qual o aguaceiro resvalava como cera derretida e no qual eu julgava ouvir a voz da minha mãe, a chamar-me, a suplicar-me que a libertasse daquela prisão de pedra e negrume enquanto eu só conseguia tremer e murmurar sem voz ao meu pai que não me apertasse tanto a mão, que me estava afazer doer, e aquele cheiro a terra fresca, terra de cinza e de chuva, devorava tudo, cheiro a morte e vazio.

Abri os olhos e desci os degraus quase às cegas, pois a claridade da vela mal conseguia roubar uns centímetros à escuridão. Não descobri cozinha ou despensa repleta de madeiros secos. Diante de mim abria-se um corredor apertado que ia morrer numa sala em forma de semicírculo na qual se erguia uma silhueta com o rosto sulcado de lágrimas de sangue e dois olhos negros e sem fundo, com os braços abertos como asas e uma serpente de espinhos a brotar-lhe das têmporas. Senti uma onda de frio que me apunhalava a nuca. A certa altura recuperei a serenidade e compreendi que estava a contemplar a efígie de um Cristo talhada em madeira sobre a parede de uma capela. Avancei uns metros e vislumbrei uma imagem espectral. A um canto da antiga capela amontoava-se uma dezena de torsos femininos nus. Reparei que lhes faltavam os braços e a cabeça e que se apoiavam sobre um tripé. Cada um deles tinha uma forma claramente diferenciada, e não tive dificuldade em adivinhar o contorno de mulheres de diversas idades e constituições. Sobre o ventre liam-se umas palavras escritas a carvão. «Isabel. Eugenia. Penélope.» Por uma vez, as minhas leituras vitorianas acorreram em meu auxílio e compreendi que aquela visão era a ruína de uma prática já em desuso, um eco de tempos em que as famílias abastadas dispunham de manequins criados à medida dos membros da família para a confecção de vestidos e enxovais. Apesar do olhar severo e ameaçador do Cristo, não consegui resistir à tentação de estender a mão e roçar a cintura do torso que ostentava o nome de Penélope Aldaya.

Pareceu-me então ouvir passos no andar de cima. Pensei que Bea já teria chegado e que estaria a percorrer o casarão, à minha procura. Deixei a capela com alívio e dirigi-me de novo à escada. Estava para subir quando reparei que no extremo oposto do corredor se distinguia uma caldeira e uma instalação de aquecimento em aparente bom estado que se tornava incongruente em relação ao resto da cave. Recordei que Bea tinha comentado que a empresa imobiliária que tentara vender o palacete Aldaya durante anos realizara algumas obras de melhoramento com a intenção de atrair potenciais compradores, sem êxito. Aproximei-me para examinar com mais detença e verifiquei que se tratava de um sistema de radiadores alimentado por uma pequena caldeira. Aos meus pés encontrei vários baldes com carvão, peças de madeira prensada e umas latas que supus deverem ser de querosene. Abri a comporta da caldeira e perscrutei o interior. Tudo parecia em ordem. A perspectiva de conseguir que aquela geringonça funcionasse depois de tantos anos afigurou-se-me desesperada, mas isso não me impediu de me pôr a encher a caldeira de pedaços de carvão e madeira velha e por um instante volvi o olhar atrás. Invadiu-me a visão de espinhos ensanguentados a soltarem-se dos madeiros e, enfrentando a penumbra, receei ver emergir a uns passos apenas de mim a figura daquele Santo Cristo que vinha ao meu encontro brandindo um sorriso lupino.

Ao contacto da vela, a caldeira acendeu-se com uma labareda que arrancou um estrondo metálico. Fechei a comporta e recuei uns passos, cada vez menos seguro da solidez dos meus propósitos. A caldeira parecia puxar com uma certa dificuldade e decidi regressar ao rés-do-chão para verificar se a acção tinha alguma consequência prática. Subi a escada e regressei ao grande salão esperando encontrar Bea, mas não havia rasto dela. Supus que teria já passado quase uma hora desde que chegara, e os meus temores de que o objecto dos meus turvos desejos não chegasse a aparecer adquiriram visos de dolorosa verosimilhança. Para matar a inquietude, decidi prosseguir com as minhas proezas de lampadeiro e parti em busca de radiadores que confirmassem que a minha ressurreição da caldeira fora um êxito. Todos os que encontrei demonstraram resistir aos meus anseios, gelados como blocos de gelo. Todos, excepto um. Num pequeno compartimento que não tinha mais de quatro ou cinco metros quadrados, uma casa de banho, que supus situada mesmo por cima da caldeira, notava-se uma certa calidez. Ajoelhei-me e verifiquei com alegria que os mosaicos do chão estavam mornos. Foi assim que Bea me encontrou, de cócoras no chão, a apalpar os mosaicos de uma casa de banho como um imbecil com o sorriso pateta do asno flautista estampado na cara.

Ao olhar para trás e tentar reconstituir os acontecimentos daquela noite no palacete Aldaya, a única desculpa que me ocorre para justificar o meu comportamento é alegar que aos dezoito anos, à falta de subtileza e maior experiência, um velho lavabo pode fazer as vezes de paraíso. Bastou-me um par de minutos para persuadir Bea a pegarmos nos cobertores do salão e fecharmo-nos naquele compartimento diminuto tendo como única companhia duas velas e uns apliques de casa de banho de museu. O meu argumento principal, climatológico, produziu rapidamente efeito em Bea, à qual o calorzinho que emanava daqueles mosaicos dissuadiu dos primeiros temores de que a minha disparatada invenção fosse pegar fogo ao casarão. Depois, na penumbra avermelhada das velas, enquanto a despia com dedos trémulos, ela sorria, procurando-me o olhar e demonstrando-me que, então e sempre, tudo o que me pudesse ocorrer já lhe tinha ocorrido a ela antes.

Lembro-me dela sentada, de costas contra a porta fechada daquele compartimento, os braços caídos aos lados, as palmas das mãos abertas para mim.

Lembro-me de como mantinha o rosto erguido, desafiador, enquanto eu lhe acariciava a garganta com a ponta dos dedos. Lembro-me de como ela me pegou nas mãos e as poisou nos seus seios, e como lhe tremiam o olhar e os lábios quando lhe tomei os mamilos entre os dedos e os belisquei enfeitiçado, como ela deslizou até ao chão enquanto eu lhe procurava o ventre com os lábios e as suas coxas brancas me recebiam.

- Já tinhas feito isto antes, Daniel?

- Em sonhos.

- A sério.

- Não. E tu?

- Não. Nem sequer com a Clara Barceló? Ri-me, provavelmente de mim mesmo.

- Que sabes tu da Clara Barceló?

- Nada.

- Pois eu ainda menos - disse eu.

- Não acredito.

Inclinei-me sobre ela e olhei-a nos olhos.

- Nunca tinha feito isto com ninguém.

Bea sorriu. Escapou-se-me a mão entre as suas coxas e lancei-me em busca dos seus lábios, convencido já de que o canibalismo era a encarnação suprema da sabedoria.

- Daniel? - disse Bea num fio de voz.

- Que é? - perguntei.

A resposta nunca chegou aos seus lábios. Subitamente, uma língua de ar frio assobiou por baixo da porta e naquele segundo interminável antes de que o vento apagasse as velas, os nossos olhares encontraram-se e sentimos que o encanto daquele momento se fazia em fanicos. Bastou-nos um instante para saber que havia alguém do outro lado da porta. Vi o medo desenhar-se no rosto de Bea e um segundo depois a escuridão cobriu-nos. A pancada na porta veio depois. Brutal, como se um punho de aço tivesse martelado contra a porta, quase a arrancando dos gonzos.

Senti o corpo de Bea a saltar na escuridão e rodeei-a com os braços. Recuámos para o interior do compartimento, precisamente antes de a segunda pancada se abater sobre a porta, lançando-a com uma força tremenda contra a parede. Bea gritou e encolheu-se contra mim. Por um instante só consegui ver as trevas azuis que rastejavam do corredor e as serpentes de fumo das velas apagadas, subindo em espiral. A moldura da porta desenhava fauces de sombra e julguei ver uma silhueta angulosa que se perfilava no umbral da escuridão.

Assomei ao corredor temendo, ou talvez desejando, encontrar só um estranho, um vagabundo que se tivesse aventurado num casarão em ruínas em busca de refúgio numa noite desagradável.

Mas não estava ali ninguém, apenas as línguas de azul que as janelas exalavam. Encolhida a um canto do quarto, a tremer, Bea sussurrou o meu nome.

- Não há ninguém - disse. - Talvez tenha sido um golpe de vento.

- O vento não dá murros nas portas, Daniel. Vamo-nos embora. Regressei ao quarto e recolhi a nossa roupa.

- Toma, veste-te. Vamos dar uma vista de olhos.

- O melhor é irmos já embora.

- Já vamos. Só quero certificar-me de uma coisa.

Vestimo-nos à pressa e às cegas. Em questão de segundos pudemos ver o nosso hálito a desenhar-se no ar. Apanhei uma das velas do chão e acendi-a de novo. Uma corrente de ar frio deslizava pela casa, como se alguém tivesse aberto portas e janelas.

- Vês? É o vento.

Bea limitou-se a abanar a cabeça em silêncio. Dirigimo-nos de volta à sala protegendo a chama com as mãos. Bea seguia-me de perto, quase sem respirar.

- De que é que estamos à procura, Daniel?

- É só um minuto.

- Não, vamos embora já.

- De acordo.

Voltámo-nos para nos encaminharmos para a saída e foi então que dei por ele. O portão de madeira lavrada no extremo do corredor que tinha tentado abrir uma ou duas horas antes sem o conseguir estava entreaberto.

- Que foi? - perguntou Bea.

- Espera-me aqui.

- Daniel, por favor...

Entrei no corredor, segurando a vela que tremia no sopro frio de vento. Bea suspirou e seguiu-me a contragosto. Parei diante do portão. Adivinhavam-se degraus de mármore que desciam para o negrume. Entrei na escadaria. Bea, petrificada, segurava a vela no umbral.

- Por favor, Daniel, vamos embora já...

Desci degrau a degrau até ao fundo da escadaria. O halo espectral da vela ao alto traçava o contorno de uma sala rectangular, de paredes de pedra nuas, cobertas de crucifixos. O frio que reinava naquele compartimento cortava a respiração. À frente adivinhava-se uma laje de mármore e, sobre ela, alinhados um junto ao outro, pareceu-me reconhecer dois objectos semelhantes de diferente tamanho, brancos. Reflectiam a tremura da vela com mais intensidade do que o resto da sala e imaginei que se tratasse de madeira esmaltada. Dei mais um passo em frente e só então o compreendi. Os dois objectos eram dois caixões brancos. Um deles mal media três palmos. Senti um bafo de frio na nuca. Era o sarcófago de uma criança. Estava numa cripta.

Sem me aperceber do que estava a fazer, aproximei-me da laje de mármore até me encontrar à distância suficiente para poder estender a mão e tocá-la. Distingui então que sobre os caixões estavam gravados um nome e uma cruz. O pó, um manto de cinzas, mascarava-os. Poisei a mão sobre um deles, o de maior tamanho. Lentamente, quase em transe, sem me deter a pensar no que fazia, varri as cinzas que cobriam a tampa do caixão. Mal se conseguia ler na escuridão avermelhada das velas.

 

                                       PENÉLOPE ALDAYA 1902-1919

 

Fiquei paralisado. Havia alguma coisa ou alguém que se estava a deslocar proveniente da escuridão. Senti que o ar frio deslizava sobre a minha pele e só então retrocedi uns passos.

- Fora daqui - murmurou a voz das sombras. Reconheci-a imediatamente. Laín Coubert. A voz do diabo. Lancei-me pelas escadas acima e, uma vez chegado ao rés-do-chão, peguei em Bea pelo braço e arrastei-a a toda a pressa para a saída. Tínhamos perdido a vela e corríamos às cegas. Bea, assustada, não compreendia o meu súbito alarme. Não tinha visto nada. Não tinha ouvido nada. Não me detive a dar-lhe explicações. Esperava a qualquer momento que alguma coisa saltasse das sombras e nos barrasse o caminho, mas a porta principal esperava-nos ao fim do corredor, com as frinchas a projectarem um rectângulo de luz. - Está fechada - murmurou Bea.

Apalpei os bolsos, procurando a chave. Volvi os olhos atrás uma fracção de segundo e tive a certeza de que dois pontos brilhantes avançavam lentamente para nós vindos do fundo do corredor. Olhos. Os meus dedos deram com a chave. Introduzi-a desesperadamente na fechadura, abri e empurrei Bea para o exterior com brusquidão. Bea devia ter lido o temor na minha voz, porque se precipitou pelo jardim fora em direcção ao gradeamento e não parou até nos encontrarmos os dois sem fôlego e cobertos de suor frio no passeio da Avenida del Tibidabo.

- Que se passou lá em baixo, Daniel? Havia alguém?

- Não.

- Estás pálido.

- Sou pálido. Anda, vamos.

- E a chave?

Tinha-a deixado lá dentro, metida na fechadura. Não senti vontade de regressar para a ir buscar.

- Acho que a perdi ao sair. Procuramo-la noutro dia.

Afastámo-nos avenida abaixo a passo ligeiro. Atravessámos para o outro passeio e não afrouxámos o passo até nos encontrarmos a uma centena de metros do casarão e a sua silhueta mal se adivinhar na noite. Descobri então que ainda tinha a mão suja de cinzas e dei graças pelo manto de sombra da noite, que ocultava a Bea as lágrimas de terror que me deslizavam pelas faces.

Caminhámos pela rua Balmes abaixo até à praça Nunez de Arce, onde encontrámos um táxi solitário. Descemos pela Balmes até à Consejo de Ciento quase sem dizer palavra. Bea pegou-me na mão e um par de vezes descobri-a a observar-me com olhar vítreo, impenetrável. Inclinei-me para a beijar, mas ela não separou os lábios.

- Quando te volto a ver?

- Telefono-te amanhã ou depois - disse ela.

- Prometes? Assentiu.

- Podes telefonar para casa ou para a livraria. É o mesmo número. Tem-lo, não é verdade?

Assentiu de novo. Pedi ao motorista que parasse um momento na esquina da Muntaner com a Diputación. Ofereci-me para acompanhar Bea até à porta do prédio, mas ela negou-se e afastou-se sem me deixar beijá-la de novo, nem sequer roçar-lhe a mão. Desatou a correr e vi-a afastar-se do táxi. As luzes do andar dos Aguilar estavam acesas e pude ver claramente o meu amigo Tomás a observar-me da janela do seu quarto, onde tínhamos passado tantas tardes juntos a conversar ou a jogar xadrez. Cumprimentei-o com a mão, forçando um sorriso que provavelmente ele não podia ver. Não me retribuiu a saudação. A sua silhueta permaneceu imóvel, colada ao vidro, contemplando-me friamente. Uns segundos mais tarde retirou-se e as janelas obscureceram-se. Estava à nossa espera, pensei.

 

Ao chegar a casa encontrei os restos de um jantar para dois na mesa. O meu pai já se tinha recolhido e perguntei a mim mesmo se, porventura, se teria atrevido a convidar Merceditas para jantar lá em casa. Deslizei até ao meu quarto e entrei sem acender a luz. Mal me sentei na borda do colchão reparei

que havia mais alguém no compartimento, deitado na penumbra na cama como um defunto com as mãos cruzadas sobre o peito. Senti uma chicotada de frio no estômago mas reconheci rapidamente os roncos e o perfil daquele nariz sem paralelo. Acendi a lamparina de noite e encontrei Fermín Romero de Torres perdido num sorriso enfeitiçado e a emitir pequenos ruídos prazenteiros sobre a colcha. Ao ver-me pareceu admirado. Esperava obviamente outra companhia. Esfregou os olhos e olhou em redor, adquirindo uma noção mais ajustada do lugar.

- Espero não o ter assustado. A Bernarda diz que a dormir pareço o Boris Karloff espanhol.

- Que faz na minha cama, Fermín? Semicerrou os olhos com uma certa nostalgia.

- Sonhar com a Carole Lombard. Estávamos em Tânger, nuns banhos turcos, e eu untava-a toda de óleo daquele que se vende para o cuzinho dos bebés. Já alguma vez untou uma mulher de óleo, de cima a baixo, como deve ser?

- Fermín, é meia-noite e meia e não me tenho em pé de sono.

- Desculpe, Daniel. É que o senhor seu pai insistiu para eu subir e jantar qualquer coisa e a seguir deu-me a quebreira, porque a mim a carne de rês produz-me um efeito narcótico. O seu pai sugeriu-me que me deitasse aqui um bocado, alegando que o Daniel não se importaria...

- E não importo, Fermín. É que me apanhou de surpresa. Fique com a cama e volte à Carole Lombard, que deve estar à sua espera. E enfie-se lá dentro, que está uma noite horrível e ainda apanha alguma coisa. Eu vou para a sala de jantar.

Fermín assentiu mansamente. As pisaduras da cara estavam a inflamar e a cabeça, sulcada por uma barba de dois dias e com aquela cabeleira rala, parecia uma fruta madura caída de uma árvore. Tirei um cobertor da cómoda e estendi outro a Fermín. Apaguei a luz e saí para a sala de jantar, onde me esperava o cadeirão predilecto do meu pai. Embrulhei-me no cobertor e aninhei-me como pude, convencido de que não ia pregar olho. A imagem de dois caixões brancos nas trevas não me saía da mente. Fechei os olhos e pus todo o meu empenho em dissipar aquela visão. Em seu lugar, conjurei a visão de Bea nua sobre os cobertores naquela casa de banho à luz das velas. Abandonado a estes felizes pensamentos, pareceu-me ouvir o murmúrio distante do mar e perguntei a mim mesmo se o sonho me teria vencido sem eu saber. Talvez navegasse rumo a Tânger. Daí a pouco compreendi que eram só os roncos de Fermín e um instante depois o mundo apagou-se. Nunca dormi melhor nem mais profundamente em toda a minha vida do que naquela noite.

Amanheceu chovendo a cântaros, com as ruas alagadas e a chuva a fustigar raivosamente as janelas. O telefone tocou às sete e meia. Saltei do cadeirão para responder com o coração na garganta. Fermín, de albornoz e pantufas, e o meu pai, segurando a cafeteira, trocaram aquele olhar que começava a tornar-se habitual.

- Bea? - sussurrei ao auscultador, virando-lhes costas. Pareceu-me ouvir um suspiro na linha.

- És tu, Bea?

Não obtive resposta e, segundos mais tarde, a ligação interrompeu-se. Fiquei a observar o telefone durante um minuto, esperando que voltasse a tocar.

- Já hão-de tornar a telefonar, Daniel. Agora vem tomar o pequeno-almoço.

Telefonará mais tarde, disse para comigo. Alguém devia tê-la surpreendido. Não devia ser fácil iludir o recolher obrigatório do senhor Aguilar. Não havia motivo para alarme. Com estas e outras desculpas arrastei-me até à mesa para fingir que acompanhava o meu pai e Fermín no pequeno-almoço. Talvez fosse a chuva, mas a comida tinha perdido todo o sabor.

Choveu toda a manhã e logo a seguir a abrir a livraria tivemos uma falta de electricidade em todo o bairro que durou até ao meio-dia.

- Era só o que faltava - suspirou o meu pai.

Às três começaram as primeiras infiltrações. Fermín ofereceu-se para subir a casa de Merceditas para pedir emprestados uns baldes, pratos ou qualquer receptáculo côncavo para esse fim. O meu pai proibiu-lho terminantemente. O dilúvio persistia. Para matar a angústia relatei a Fermín o sucedido na noite anterior, guardando para mim, porém, o que tinha visto naquela cripta. Fermín ouviu-me fascinado, mas, apesar da sua titânica insistência, recusei-me a descrever-lhe a consistência, textura e disposição do busto de Bea. O dia consumiu-se no aguaceiro.

Depois de jantar, sob pretexto de dar um passeio para esticar as pernas, deixei o meu pai a ler e dirigi-me até à casa de Bea. Ao chegar detive-me na esquina a contemplar os janelões do andar e perguntei a mim mesmo o que estava a fazer ali. Espiar, bisbilhotar e fazer uma figura ridícula foram alguns dos termos que me cruzaram a mente. Mesmo assim, tão desprovido de dignidade como de abafo apropriado para a gélida temperatura, resguardei-me do vento numa entrada do outro lado da rua e permaneci ali cerca de meia hora, vigiando as janelas e vendo passar as silhuetas do senhor Aguilar e da esposa. Não havia rasto de Bea.

Era quase meia-noite quando regressei a casa, tiritando de frio e com o mundo às costas.

Telefonará amanhã, repeti mil vezes para comigo mesmo enquanto tentava capturar o sonho. Bea não telefonou no dia seguinte. Nem em toda aquela semana, a mais comprida e a última da minha vida.

Daí a sete dias, estaria morto.

 

Só alguém a quem resta apenas uma semana de vida é capaz de desperdiçar o tempo como eu fiz durante aqueles dias. Dedicava-me a velar o telefone e a roer a alma, tão prisioneiro da minha própria cegueira que mal era capaz de adivinhar o que o destino já dava como certo. Na segunda-feira ao meio-dia fui até à Faculdade de Letras, na Praça Universidad, com a intenção de ver Bea. Sabia que ela não ia achar graça nenhuma a que eu aparecesse ali e nos vissem juntos em público, mas preferia enfrentar a sua ira a continuar naquela incerteza. Perguntei na secretaria pela aula do professor Velázquez e dispus-me a esperar a saída dos estudantes. Esperei uns vinte minutos até que as portas se abriram e vi passar o semblante arrogante e apilarado do professor Velázquez, sempre rodeado do seu séquito de admiradoras. Cinco minutos depois não havia rasto de Bea. Decidi aproximar-me das portas da sala de aula para dar uma vista de olhos. Um trio de raparigas com ar de escola paroquial conversava e trocava observações ou confidências. A que parecia a líder da congregação reparou na minha presença e interrompeu o seu monólogo para me crivar com um olhar inquisitivo.

- Desculpe, procurava a Beatriz Aguilar. Sabe se ela assiste a esta aula? As raparigas trocaram um olhar venenoso e puseram-se a fazer-me uma radiografia.

- És o namorado dela? - perguntou uma delas. - O alferes?

Limitei-me a oferecer um sorriso vazio, que elas tomaram por assentimento. Só a terceira rapariga mo devolveu, com timidez e desviando a vista. As outras duas adiantaram-se, desafiadoras.

- Imaginava-te diferente - disse a que parecia a chefe do comando.

- E a farda? - perguntou a segunda oficial, observando-me com desconfiança.

- Estou de licença. Sabem se ela já se foi embora?

- Hoje a Beatriz não veio às aulas - informou a chefe, com ar desafiador.

- Ah, não?

- Não - confirmou a tenente de dúvidas e receios. - Se és o namorado dela, devias saber.

- Sou o namorado dela, não sou guarda civil.

- Anda, vamos embora, este fulano é um pateta alegre - concluiu a chefe. Passaram ambas ao meu lado endereçando-me um olhar de soslaio e um

meio sorriso de repugnância. A terceira, atrasada, deteve-se um instante antes de sair e, assegurando-se de que as outras não a viam, sussurrou-me ao ouvido:

- A Beatriz também não veio na sexta-feira.

- Sabes porquê?

- Tu não és o namorado dela, pois não?

- Não. Sou só um amigo.

- Parece-me que está doente.

- Doente?

- Foi o que disse uma das raparigas que telefonou lá para casa. Agora tenho de me ir embora.

Antes que pudesse agradecer-lhe a sua ajuda, a rapariga partiu ao encontro das outras duas, que a esperavam com olhos fulminantes no outro extremo do claustro.

- Alguma coisa se há-de ter passado, Daniel. Uma tia-avó que morreu, um papagaio com papeira, uma constipação de tanto andar com o traseiro ao léu... sabe Deus o quê. Contra aquilo que o Daniel crê a pés juntos, o universo não gira em torno das apetências do que tem entre as pernas. Há outros factores que influem no devir da humanidade.

- Acha que eu não sei? Parece que não me conhece, Fermín.

- Meu caro, se Deus tivesse querido dar-me ancas muito largas, eu até o podia ter parido, tão bem o conheço. Oiça o que eu lhe digo. Tire isso da cabeça e areje. A espera é o óxido da alma.

- Com que então pareço-lhe ridículo.

- Não. Parece-me preocupante. Bem sei que na sua idade estas coisas parecem o fim do mundo, mas há limites para tudo. Esta noite eu e o Daniel vamos para a farra a um estabelecimento da Rua Platería que segundo parece está a fazer furor. Disseram-me que há umas gajas nórdicas recém-chegadas de Ciudad Real que até a caspa tiram a um homem. A despesa é comigo.

- E que dirá a Bernarda?

- As meninas são para o Daniel. Eu tenciono esperar na salinha, a ler uma revista e a contemplar o material de longe, porque me converti à monogamia, se não in mentis pelo menos de facto.

- Agradeço-lhe, Fermín, mas...

- Um moço de dezoito anos que recusa uma oferta destas não está na plena posse das suas faculdades. É preciso fazer alguma coisa agora mesmo. Tome.

Rebuscou nos bolsos e estendeu-me umas moedas. Perguntei a mim mesmo se aqueles seriam os dobrões com os quais pensava financiar a visita ao sumptuoso harém das ninfas da Meseta.

- Isto não dá para mandar cantar um cego, Fermín.

- O Daniel é dos que caem da árvores e nunca chegam a tocar o chão. Acha realmente que eu o vou levar às putas e devolvê-lo carregado de gonorreia ao senhor seu pai, que é o homem mais santo que conheci? Estava a dizer-lhe aquilo das pequenas para ver se reagia, apelando à única parte da sua pessoa que parece funcionar. Isto é para ir ao telefone da esquina e telefonar à sua namorada com alguma intimidade.

- A Bea disse-me expressamente que não lhe telefonasse.

- Também disse que telefonaria na sexta-feira. Já é segunda. É lá consigo. Uma coisa é acreditar nas mulheres e outra acreditar no que elas dizem.

Convencido pelos seus argumentos, escapuli-me da livraria até ao telefone público da esquina e marquei o número dos Aguilar. Ao quinto toque, alguém levantou o auscultador do outro lado e escutou em silêncio, sem responder. Passaram cinco segundos eternos.

- Bea? - murmurei. - És tu?

A voz que respondeu assentou-me como uma martelada no estômago.

- Filho da puta, juro que te vou arrancar a alma à porrada.

O tom era cortante, de pura raiva contida. Fria e serena. Foi isso o que me meteu mais medo. Podia imaginar o senhor Aguilar a segurar o telefone no vestíbulo da sua casa, o mesmo que eu tinha utilizado muitas vezes para telefonar ao meu pai e dizer-lhe que estava atrasado depois de passar a tarde com Tomás. Fiquei a ouvir a respiração do pai de Bea, mudo, perguntando a mim mesmo se me teria reconhecido pela voz.

- Vejo que não tens colhões nem sequer para falar, desgraçado. Qualquer merdas é capaz de fazer o mesmo que tu, mas pelo menos um homem teria a coragem de dar a cara. Eu cobria a cara de preto de vergonha se soubesse que uma rapariga de dezassete anos tinha mais tomates que eu, porque ela não quis dizer quem tu és e não o dirá. Eu conheço-a. E já que tu não tens tripas de dar a cara pela Beatriz, vai ela pagar pelo que tu fizeste.

Quando pousei o telefone tremiam-me as mãos. Não tive consciência do que acabava de fazer a não ser quando deixei a cabina e arrastei os pés de volta à livraria. Não tinha parado para considerar que a minha chamada só ia piorar a situação em que Bea se encontrasse já. A minha única preocupação fora manter o anonimato e esconder a cara, renegando daqueles que dizia amar e que me limitava a utilizar. Tinha-o feito já quando o inspector Fumero batera em Fermín. Tinha-o feito de novo ao abandonar Bea à sua sorte. Voltaria a fazê-lo desde que as circunstâncias me proporcionassem a oportunidade.

Permaneci na rua dez minutos, tentando acalmar-me, antes de voltar a entrar na livraria. Talvez devesse telefonar outra vez e dizer ao senhor Aguilar que sim, que era eu, que estava caído pela filha e pronto. Se depois lhe apetecesse vir com a sua farda de comandante dar-me cabo da cara, estava no seu direito.

Regressava já à livraria quando reparei que alguém me observava de uma porta de entrada do outro lado da rua. Ao princípio pensei que se tratava de don Federico, o relojoeiro, mas bastou-me uma simples vista de olhos para verificar que se tratava de um indivíduo mais alto e de constituição mais sólida. Detive-me a devolver-lhe o olhar e, para minha surpresa, ele assentiu, como se quisesse cumprimentar-me e indicar-me que não lhe importava absolutamente nada que eu tivesse reparado na sua presença. A luz de um candeeiro incidia-lhe no rosto de perfil. As feições eram-me familiares. Adiantou-se um passo e, abotoando a gabardina até acima, sorriu-me e afastou-se entre os transeuntes em direcção às Ramblas. Reconheci-o então como o agente de polícia que me tinha agarrado enquanto o inspector Fumero atacava Fermín. Ao entrar na livraria, Fermín ergueu a vista e lançou-me um olhar inquisitivo.

- Que cara é essa que traz?

- Fermín, creio que temos um problema.

 

Naquela mesma noite pusemos em marcha o plano de alta intriga e baixa consistência que tínhamos concebido dias atrás com don Gustavo Barceló.

- A primeira coisa é certificarmo-nos de que o Daniel tem razão e somos objecto de vigilância policial. Agora, como quem não quer a coisa, vamos de passeio até Els Quatre Gats para ver se esse indivíduo ainda está lá fora, à espreita. Mas ao seu pai nem uma palavra de tudo isto, ou vai acabar por criar uma pedra no rim.

- E que quer que lhe diga? Já há tempo que anda com a pulga atrás da orelha.

- Diga-lhe que vai à procura de cachimbos ou de pós para fazer um flã.

- E por que é que temos de ir precisamente a Els Quatre Gats?

- Porque é lá que servem as melhores sanduíches de linguiça num raio de cinco quilómetros e nalgum sítio temos de falar. Não seja desmancha-prazeres e faça o que lhe digo, Daniel.

Dando por bem-vinda qualquer actividade que me mantivesse afastado dos meus pensamentos, obedeci docilmente e um par de minutos mais tarde saía à rua após ter assegurado ao meu pai que estaria de volta à hora do jantar. Fermín esperava-me à esquina da Puerta del Angel. Mal me juntei a ele, fez um gesto com as sobrancelhas e indicou-me que começasse a andar.

- Temos a sombra a uns vinte metros. Não se vire.

- É o mesmo da outra vez?

- Não me parece, a menos que tenha encolhido com a humidade. Este parece um papalvo. Anda-me com um jornal desportivo de há seis dias. O Fumero deve andar a recrutar aprendizes no manicómio.

Ao chegar a Els Quatre Gats, o nosso homem incógnito ocupou uma mesa a poucos metros da nossa e fingiu ler pela enésima vez as incidências da jornada da liga da semana anterior. De vinte em vinte segundos lançava-nos um olhar de soslaio.

- Coitadinho, olhe como ele sua - disse Fermín, abanando a cabeça. - Vejo-o um bocado disperso, Daniel. Falou com a miúda ou não?

- Atendeu o pai.

- E tiveram uma conversa amigável e cordial?

- Foi mais um monólogo.

- Estou a ver. Devo então inferir que ainda não o trata por paizinho?

- Disse-me textualmente que me ia arrancar a alma à porrada.

- É capaz de ser um recurso estilístico.

Nessa altura, a silhueta do empregado adejou sobre nós. Fermín pediu comida para um regimento, esfregando as mãos de anseio.

- E o Daniel não quer nada?

Abanei a cabeça. Quando o empregado regressou com duas bandejas repletas de tapas, sanduíches e cervejas várias, Fermín enfiou-lhe um bom dobrão e disse-lhe que podia ficar com a gorjeta.

- Chefe, está a ver aquele indivíduo da mesa ao pé da janela, o que está vestido de Grilo Falante e tem a cabeça enfiada no jornal, em jeito de cartucho?

O empregado assentiu com ar de cumplicidade.

- É capaz de me fazer o favor de lhe ir dizer que o inspector Fumero lhe manda recado urgente para comparecer imediatamente no mercado da Boquería para comprar vinte duros de grão cozido e levá-los à esquadra sem demora (de táxi, se preciso for) ou que se prepare para apresentar o escroto numa bandeja? Quer que lho repita?

- Não é preciso, cavalheiro. Vinte duros de grão cozido ou o escroto. Fermín passou-lhe outra moeda.

- Deus o abençoe.

O empregado assentiu respeitosamente e partiu rumo à mesa do nosso perseguidor para entregar a mensagem. Ao ouvir as ordens, o sentinela ficou com o rosto desfigurado. Permaneceu quinze segundos na sua mesa, debatendo-se entre forças insondáveis, e depois lançou-se a galope para a rua. Fermín não se incomodou nem a pestanejar. Noutras circunstâncias eu teria gozado com o episódio, mas naquela noite era incapaz de tirar Bea do pensamento.

- Desça à terra, Daniel, que temos assuntos a discutir. Amanhã mesmo vai visitar Nuria Monfort, tal como tínhamos dito.

- E, uma vez lá, o que é que lhe digo?

- Assunto não lhe há-de faltar. O plano é fazer o que o senhor Barceló disse com muito tino. O Daniel pespega-lhe que sabe que ela lhe mentiu com perfídia em relação a Carax, que o suposto marido Miquel Moliner não está na prisão como ela pretende, que o Daniel averiguou que ela é a mão negra que tem andado a levantar a correspondência do antigo andar da família Fortuny-Carax usando um apartado de correio em nome de um escritório de advogados inexistente... Diz-lhe o que for necessário e conducente a acender-lhe o fogo debaixo dos pés. Tudo isso com melodrama e semblante bíblico. Depois, com golpe de efeito, vai-se embora e deixa-a macerar um pouco nos sucos da inquietação.

- E entretanto...

- Entretanto eu estarei pronto para a seguir, propósito que tenciono levar a cabo fazendo uso de avançadas técnicas de camuflagem.

- Não vai funcionar, Fermín.

- Homem de pouca fé. Vamos lá a ver: mas o que é que lhe disse o pai dessa rapariga para o pôr assim? É por causa da ameaça? Não lhe ligue importância. Vamos lá a ver: o que é que esse energúmeno lhe disse?

Respondi sem pensar:

- A verdade.

- A verdade segundo São Daniel Mártir?

- Ria-se à vontade. É bem feito.

- Não me rio, Daniel. É que não gosto nada de o ver com esse espírito autoflagelatório. Qualquer pessoa diria que está à beira do cilício. O Daniel não fez nada de mal. A vida já tem suficientes verdugos para que uma pessoa se ponha a fazer dois papéis e a armar em Torquemada consigo própria.

- Fala por experiência? Fermín encolheu os ombros.

- Nunca me contou como se cruzou com o Fumero - notei.

- Quer ouvir uma história com moral?

- Só se o Fermín ma quiser contar.

Fermín serviu-se de um copo de vinho e esvaziou-o de um gole.

- Ámen - disse para si mesmo. - O que eu lhe posso contar do Fumero é voxpopuli. Da primeira vez que ouvi falar dele, o futuro inspector era um pistoleiro ao serviço da FAI. Ganhara imensa fama porque não tinha medo nem escrúpulos. Bastava-lhe um nome e despachava-o com um tiro em plena rua ao meio-dia. Talentos assim são muito cotados em tempos agitados. O que tão-pouco tinha era fidelidade nem credo. Não queria saber para nada da causa que servia, desde que a causa lhe servisse para trepar na hierarquia. Há toneladas de gentalha assim no mundo, mas poucos têm o talento do Fumero.

Dos anarquistas passou a servir os comunistas, e daí aos fascistas era apenas um passo. Espiava e vendia informações de um lado ao outro, aceitava o dinheiro de todos. Eu andava de olho nele havia já algum tempo. Nessa altura, eu trabalhava para o governo da Generalitat. Às vezes confundiam-me com o irmão feio do Companys, o que me enchia de orgulho.

- Que fazia o Fermín?

- Um pouco de tudo. Nas séries de agora chama-se ao que eu fazia espionagem, mas em tempo de guerra somos todos espiões. Parte do meu trabalho era andar em cima dos indivíduos como o Fumero. São os mais perigosos. São como víboras, sem cor nem consciência. Nas guerras brotam de todo o lado. Em tempo de paz põe uma máscara. Mas continuam lá. Aos milhares. O caso é que mais tarde ou mais cedo averiguei qual era o jogo dele. Mais tarde que cedo, diria eu. Barcelona caiu em questão de dias e a coisa deu uma volta completa. Passei a ser um criminoso perseguido e os meus superiores viram-se forçados a esconderem-se como ratos. Claro que o Fumero já estava a comandar a operação de «limpeza». A purga a tiro era levada a cabo em plena rua, ou no castelo de Montjuic. A mim prenderam-me no porto quando tentava conseguir passagem num cargueiro grego para mandar alguns dos meus chefes para França. Levaram-me para Montjuic e mantiveram-me dois dias fechado numa cela completamente escura, sem água e sem ventilação. Quando voltei a ver a luz era a da chama dum maçarico. O Fumero e um tipo que só falava alemão penduraram-me de cabeça para baixo pelos pés. O alemão tirou-me primeiro a roupa com o maçarico, queimando-a. Pareceu-me que tinha prática. Quando fiquei em pelota e com todos os pêlos do corpo chamuscados, o Fumero disse-me que, se não lhe dissesse onde estavam escondidos os meus superiores, o divertimento começaria a sério. Eu não sou um homem valente, Daniel. Nunca o fui, mas a pouca coragem que tenho usei-a para cagar na mãe dele e mandá-lo à merda. A um sinal do Fumero, o alemão injectou-me não sei o quê na coxa e esperou uns minutos. Depois, enquanto o Fumero fumava e me observava sorridente, começou a assar-me conscienciosamente com o maçarico. O Daniel viu as marcas...

Assenti. Fermín falava em tom sereno, sem emoção.

- Estas marcas são o menos. As piores ficam cá dentro. Aguentei uma hora debaixo do maçarico, ou talvez fosse só um minuto. Não sei. Mas acabei por fornecer nomes, apelidos e até o número de camisa de todos os meus superiores e até dos que o não eram. Abandonaram-me numa viela de Pueblo Seco, nu e com a pele queimada. Uma boa mulher levou-me para casa dela e tratou de mim durante dois meses. Os comunistas tinham-lhe matado o marido e os dois filhos a tiro à porta de casa. Não sabia porquê. Quando me pude levantar e ir à rua, soube que todos os meus superiores tinham sido presos e julgados horas depois de eu os ter denunciado.

- Fermín, se não me quiser contar isso...

- Não, não. Mais vale que oiça e saiba com quem está metido. Quando regressei a minha casa, informaram-me de que tinha sido expropriada pelo governo, tal como os meus bens. Tinha-me transformado num mendigo sem saber. Tentei arranjar emprego. Foi-me negado. A única coisa que conseguia arranjar era uma garrafa de vinho a granel por uns cêntimos. É um veneno lento, que come as tripas como o ácido, mas contei que mais tarde ou mais cedo faria o seu efeito. Dizia para comigo que regressaria a Cuba, para junto da minha mulata, um dia. Prenderam-me quando tentava embarcar num cargueiro rumo a Havana. Não me lembro de quanto tempo passei na prisão. Depois do primeiro ano, uma pessoa começa a perder tudo, até a razão. Ao sair passei a viver na rua, onde o Daniel me encontrou uma eternidade depois. Havia muitos como eu, companheiros de galeria ou de amnistia. Os que tinham sorte contavam com alguém de fora, alguém ou alguma coisa para onde regressar. Os restantes juntávamo-nos ao exército dos deserdados. Uma vez que nos dão o cartão desse clube, nunca deixamos de ser sócios. Muitos de nós só saem de noite, quando o mundo não olha. Conheci muitos como eu. Raramente os voltava a ver. A vida na rua é curta. As pessoas olham para nós com nojo, mesmo as que nos dão esmola, mas isso não é nada comparado com a repugnância que a pessoa inspira a si própria. É como viver aprisionado num cadáver que anda, que sente fome, que tresanda e que resiste a morrer. Uma vez por outra, o Fumero e os seus homens detinham-me e acusavam-me de algum furto absurdo, ou de desencaminhar meninas à saída de um colégio de freiras. Mais um mês na Modelo, tareias e rua com ele outra vez. Nunca percebi que sentido tinham aquelas farsas. Ao que parece, a polícia considerava conveniente dispor de um censo de suspeitos aos quais deitar mão quando fosse necessário. Num dos meus encontros com o Fumero, que era já um senhor respeitável, perguntei-lhe por que não me tinha matado, como aos outros. Riu-se e disse-me que havia coisas piores que a morte. Ele nunca matava um bufo, disse-me. Deixava-o apodrecer vivo.

- O senhor não é um bufo, Fermín. Qualquer um no seu lugar teria feito o mesmo. O Fermín é o meu melhor amigo.

- Eu não mereço a sua amizade, Daniel. O Daniel e o seu pai salvaram-me a vida e a minha vida pertence-lhes. O que eu possa fazer por vocês, fá-lo-ei. No dia em que o Daniel me tirou da rua, Fermín Romero de Torres voltou a nascer.

- Esse não é o seu verdadeiro nome, pois não? Fermín abanou a cabeça.

- Vi-o num cartaz na Praça de las Arenas. O outro está enterrado. O homem que antigamente vivia nestes ossos morreu, Daniel. Às vezes volta, em pesadelos.

Mas o Daniel ensinou-me a ser outro homem e deu-me uma razão para viver outra vez, a minha Bernarda.

- Fermín...

- Não diga nada, Daniel. Perdoe-me apenas, se puder.

Abracei-o em silêncio e deixei-o chorar. As pessoas olhavam-nos de esguelha, e eu retribuía-lhes um olhar de fogo. Daí a pouco resolveram ignorar-nos. Depois, enquanto eu acompanhava Fermín à pensão, o meu amigo recuperou a voz.

- Do que eu lhe contei hoje... peço-lhe por tudo que à Bernarda...

- Nem à Bernarda nem a ninguém. Nem uma palavra, Fermín. Despedimo-nos com um aperto de mão.

 

Passei a noite em claro, deitado na cama com a luz acesa a contemplar a minha flamante caneta Montblanc, com a qual não tinha voltado a escrever havia anos e que começava a transformar-se no melhor par de luvas que alguma vez alguém ofereceu a um maneta. Não foi uma nem duas vezes que me senti tentado a ir a casa dos Aguilar e, à falta de melhor termo, entregar-me, mas depois de muita meditação imaginei que irromper de madrugada no domicílio paterno de Bea não ia melhorar muito a situação em que ela se encontrasse. Ao alvorecer, o cansaço e a dispersão ajudaram-me a localizar de novo o meu proverbial egoísmo e não tardei a convencer-me de que o óptimo era deixar correr as águas e, com o tempo, o rio levaria o sangue.

A manhã decorreu com pouca acção na livraria, circunstância que aproveitei para dormitar de pé com a graça e o equilíbrio de um flamingo, na opinião do meu pai. Ao meio-dia, tal como tinha acordado com Fermín na noite anterior, fingi que ia dar uma volta e Fermín alegou que tinha hora marcada no centro de saúde para lhe tirarem uns pontos. Até onde a perspicácia me alcançou, o meu pai engoliu ambas as patranhas até aos tornozelos. A ideia de mentir sistematicamente ao meu pai começava a conspurcar-me o espírito, e assim tinha feito saber a Fermín a meio da manhã num momento em que o meu pai saíra para fazer um recado.

- Daniel, a relação paterno-filial baseia-se em milhares de mentiras piedosas. O Pai Natal, o ratinho dos dentes, quem tem unhas toca guitarra, etc. Esta é mais uma. Não se sinta culpado.

Chegado o momento, menti de novo e dirigi-me ao domicílio de Nuria Monfort, cujo contacto e cheiro conservava gravados no sótão da memória. A praça de San Felipe Neri fora tomada por um bando de pombas que repousavam sobre o empedrado. Tinha esperado encontrar Nuria Monfort em companhia do seu livro, mas a praça estava deserta. Percorri o empedrado sob a atenta vigilância de dúzias de pombas e lancei uma olhadela em redor, procurando em vão a presença de Fermín camuflado de sabe Deus o quê, pois recusara-se a revelar-me o estratagema que tinha em mente. Penetrei na escada e verifiquei que o nome Miquel Moliner continuava na caixa do correio. Perguntei a mim mesmo se aquele seria o primeiro buraco que ia assinalar a Nuria Monfort na sua história. Enquanto subia a escada na penumbra, quase desejei não a encontrar em casa. Ninguém tem tanta compaixão com um trapaceiro como alguém da sua condição. Ao chegar ao patamar do quarto, detive-me a reunir coragem e arquitectar alguma desculpa com a qual justificar a minha visita. O rádio da vizinha continuava a troar do outro lado do patamar, desta vez a transmitir um concurso de conhecimentos religiosos que tinha por título «O santo ao Céu» e mantinha electrizadas as audiências de Espanha inteira todas as terças-feiras ao meio-dia.

E agora, por cinco duros, diga-nos, Bartolomé, sob que forma aparece o maligno aos sábios do tabernáculo na parábola do arcanjo e da cabacinha do livro de Josué?: a) um cabrito; b) um mercador de vasilhas, ou c) um saltimbanco com uma macaca.

Ao estalar dos aplausos da assistência no estúdio da Rádio Nacional, postei-me decidido diante da porta de Nuria Monfort e premi a campainha durante vários segundos. Ouvi o eco perder-se no interior do andar e suspirei de alívio. Estava para me ir embora quando ouvi passos aproximarem-se da porta e o orifício do ralo iluminou-se com uma lágrima de luz. Sorri. Ouvi a chave rodar na fechadura e respirei fundo.

 

- Daniel - murmurou, com um sorriso em contraluz. O fumo azul do cigarro velava-lhe o rosto. Os lábios brilhavam-lhe de batom escuro, húmidos e a deixar marcas no filtro que segurava entre o indicador e o anular.

Há pessoas que se recordam e outras que se sonham. Para mim, Nuria Monfort tinha a consistência e a credibilidade de uma miragem: não questionamos a sua veracidade, seguimo-la simplesmente até que se desvanece ou nos destrói. Segui-a até ao acanhado salão de penumbras onde tinha a sua secretária, os seus livros e aquela colecção de lápis alinhados como um acidente de simetria.

- Julgava que não te voltava a ver.

- Lamento decepcioná-la.

Sentou-se na cadeira da secretária, cruzando as pernas e inclinando-se para trás. Arranquei os olhos da sua garganta e concentrei-me numa mancha de humidade na parede. Aproximei-me até à janela e deitei uma rápida vista de olhos à praça. Nem rasto de Fermín. Conseguia ouvir Nuria a respirar atrás de mim, sentir o seu olhar. Falei sem desviar os olhos da janela.

- Há uns dias, um bom amigo meu averiguou que o administrador de prédios responsável pelo antigo andar da família Fortuny-Carax tinha andado a mandar a correspondência para um apartado de correio em nome de um escritório de advogados que, ao que parece, não existe. Esse mesmo amigo averiguou que a pessoa que tinha andado a receber as encomendas para esse apartado de correio durante anos tinha utilizado o seu nome, senhora Monfort...

- Cala-te.

Voltei-me e deparei com ela a recuar para as sombras.

- Julgas-me sem me conheceres - disse.

- Ajude-me a conhecê-la, então.

- A quem contaste isso? Quem mais sabe o que me disseste?

- Mais gente do que parece. A polícia anda a seguir-me há tempos.

- O Fumero?

Assenti. Pareceu-me que lhe tremiam as mãos.

- Não sabes o que fizeste, Daniel.

- Diga-mo a senhora - repliquei com uma dureza que não sentia.

- Pensas que por teres tropeçado num livro tens o direito de entrar na vida de pessoas que não conheces, em coisas que não podes compreender e que não te pertencem.

- Pertencem-me agora, quer queira quer não.

- Não sabes o que dizes.

- Estive em casa dos Aldaya. Sei que Jorge Aldaya se esconde lá. Sei que foi ele quem assassinou Carax.

Olhou-me longamente, medindo as palavras.

- O Fumero sabe isso?

- Não sei.

- É melhor que saibas. O Fumero seguiu-te até essa casa?

A raiva que ardia nos seus olhos queimava-me. Tinha entrado no papel de acusador e juiz, mas a cada minuto que passava sentia-me o culpado.

- Não me parece. A senhora sabia-o? A senhora sabia que foi Aldaya que matou Julián e que se esconde nessa casa... Por que não mo disse?

Sorriu amargamente.

- Não percebes nada, pois não?

- Percebo que a senhora mentiu para defender o homem que assassinou aquele a que chama seu amigo, que andou a encobrir esse crime durante anos, um homem cujo único propósito é apagar qualquer marca da existência de Julián Carax, que queima os livros dele. Percebo que me mentiu sobre o seu marido, que não está na prisão e evidentemente tão-pouco aqui. Isso é o que eu percebo.

Nuria Monfort abanou lentamente a cabeça.

- Vai-te embora, Daniel. Vai-te embora desta casa e não voltes. Já fizeste o suficiente.

Afastei-me em direcção à porta, deixando-a na sala de jantar. Detive-me a meio caminho e voltei atrás. Nuria Monfort estava sentada no chão, encostada à parede. Todo o artifício da sua presença se tinha desfeito.

Atravessei a Praça de San Felipe Neri varrendo o solo com o olhar. Arrastava a dor que tinha recolhido dos lábios daquela mulher, uma dor da qual me sentia agora cúmplice e instrumento mas sem conseguir compreender como nem porquê. «Não sabes o que fizeste, Daniel.» Só desejava afastar-me dali. Ao passar diante da igreja, mal reparei na presença daquele sacerdote enxuto e narigudo que me abençoava com parcimónia ao pé da entrada, segurando um missal e um rosário.

 

Regressei à livraria com quase quarenta e cinco minutos de atraso. Ao ver-me, o meu pai franziu o cenho com ar de reprovação e olhou para o relógio.

- Lindas horas. Sabem que tenho de sair para visitar um cliente em San Cugat e deixam-me aqui sozinho.

- E o Fermín? Ainda não voltou?

O meu pai abanou a cabeça com aquela pressa que o consumia quando estava de mau humor.

- A propósito, tens uma carta. Deixei-ta ao pé da caixa.

- Desculpa, papá, mas...

Fez-me um gesto para que poupasse as desculpas, armou-se de gabardina e chapéu e saiu pela porta sem se despedir. Conhecendo-o, supus que a zanga se lhe teria evaporado antes de chegar à estação. O que me fazia confusão era a ausência de Fermín. Tinha-o visto ataviado de sacerdote de pacotilha na praça de San Felipe Neri, à espera de que Nuria Monfort saísse à pressa e o guiasse até ao grande segredo da trama. A minha fé naquela estratégia tinha-se reduzido a cinzas e imaginei que, se realmente Nuria Monfort saísse à rua, Fermín ia acabar por a seguir até à farmácia ou à padaria. Rico plano! Aproximei-me da caixa para deitar uma vista de olhos à carta que o meu pai tinha mencionado. O envelope era branco e rectangular, como uma lápide, e em lugar de crucifixo tinha um timbre que conseguiu pulverizar-me o pouco ânimo que conservava para passar o dia.

 

             GOVERNO MILITAR DE BARCELONA

             GABINETE DE RECRUTAMENTO

 

- Aleluia - murmurei.

Sabia o que continha sem necessidade de abrir o envelope, mas mesmo assim fi-lo para me revolver no lodo. A carta era sucinta, dois parágrafos naquela prosa varada entre a proclamação inflamada e a ária de opereta que caracteriza o género epistolar castrense. Era-me anunciado que no prazo de dois meses, eu, Daniel Sempere Martin, teria a honra e o orgulho de me juntar ao dever mais sagrado e edificante que a vida podia oferecer ao varão celtibérico: servir a pátria e vestir o uniforme da cruzada nacional em defesa da reserva espiritual do Ocidente. Esperei que ao menos Fermín fosse capaz de dar a volta ao assunto e fazer-nos rir um bocado com a sua versão em verso de A Queda do Contubérnio Judeo-maçónico. Dois meses. Oito semanas. Sessenta dias. Podia sempre dividir o tempo em segundos e obter assim uma cifra quilométrica. Restavam-me cinco milhões cento e oitenta e quatro mil segundos de liberdade. Se calhar don Federico, que segundo o meu pai era capaz de fabricar um Volkswagen, podia fazer-me um relógio com travões de disco. Se calhar alguém me explicava como ia arranjar maneira de não perder Bea para sempre. Ao ouvir a campainha da porta julguei que se tratava de Fermín que regressava finalmente persuadido de que os nossos empenhos detectivescos não davam nem para uma piada.

- Ena, o herdeiro a vigiar o castelo, como é devido, embora com cara de beringela. Alegra essa cara, miúdo, que pareces o boneco do Netol(1) - disse Gustavo Barceló,

 

*1. Alusão à caricatura de um mordomo que figurava num anúncio de 1920 ao limpa-metais Netol. (N. T.)

 

engalanado com um sobretudo de pêlo de camelo e uma bengala de marfim de que não precisava e que brandia como uma mitra cardinalícia. - O teu pai não está, Daniel?

- Lamento, don Gustavo. Saiu para visitar um cliente e suponho que não regressará antes...

- Perfeito. Porque não é ele quem eu venho ver, e é melhor que ele não oiça o que te tenho a dizer.

Piscou-me o olho, descalçando as luvas e observando a loja com displicência.

- E o nosso colega Fermín? Está por cá?

- Desaparecido em combate.

- Suponho que a aplicar os seus talentos na resolução do caso Carax.

- De corpo e alma. Da última vez que o vi vestia sotaina e distribuía a bênção urbi et orbi.

- Pois... A culpa é minha por vos instigar. Em boa hora me veio à ideia abrir a boca.

- Vejo-o um tanto inquieto. Sucedeu alguma coisa?

- Não exactamente. Ou sim, de certo modo.

- O que é que me queria contar, don Gustavo?

O livreiro sorriu-me mansamente. A sua habitual atitude altaneira e a sua arrogância de salão tinham batido em retirada. Em seu lugar pareceu-me intuir uma certa gravidade, um vislumbre de cautela e não pouca preocupação.

- Esta manhã conheci don Manuel Gutiérrez Fonseca, de cinquenta e nove anos de idade, solteiro e funcionário da morgue municipal em Barcelona desde 1924. Trinta anos de serviço no umbral das trevas. A frase é dele, não minha. Don Manuel é um cavalheiro da velha escola, cortês, agradável e serviçal. Vive num quarto alugado na rua de La Ceniza desde há quinze anos, que compartilha com doze periquitos que aprenderam a trautear a marcha fúnebre. Tem uma assinatura de galinheiro no Liceo. Gosta de Verdi e Donizetti. Disse-me que no trabalho dele o importante é seguir o regulamento. O regulamento tem tudo previsto, especialmente nas ocasiões em que a pessoa não sabe o que fazer. Há quinze anos, don Manuel abriu um saco de lona que a polícia trazia e deparou-se com o seu melhor amigo de infância. O resto do corpo vinha num saco à parte. Don Manuel, fazendo das tripas coração, seguiu o regulamento.

- Quer um café, don Gustavo? Está a ficar amarelo.

- Se fazes favor.

Fui buscar o termos e preparei-lhe uma chávena com oito torrões de açúcar. Bebeu-a de um trago.

- Melhor?

- A arribar. Como ia dizendo, o caso é que don Manuel estava de serviço no dia em que levaram o corpo de Julián Carax para o necrotério, em Setembro de 1936. Claro que don Manuel não se lembrava do nome, mas uma consulta aos arquivos, e uma doação de vinte duros para o seu fundo de reforma, refrescaram-lhe notoriamente a memória. Estás-me a seguir? Assenti, quase em transe.

- Don Manuel lembra-se dos pormenores daquele dia porque, segundo me contou, aquela foi uma das poucas ocasiões em que fechou os olhos ao regulamento. A polícia alegou que o cadáver tinha sido encontrado numa viela do Raval pouco antes do amanhecer. O corpo chegou ao necrotério a meio da manhã. Trazia apenas um livro e um passaporte que o identificava como Julián Fortuny Carax, natural de Barcelona, nascido em 1900. O passaporte tinha um selo da fronteira de La Junquera, indicando que Carax tinha entrado no país um mês antes. A causa da morte, aparentemente, era um ferimento de bala. Don Manuel não é médico, mas com o tempo foi aprendendo o repertório. Na sua opinião, o disparo, mesmo sobre o coração, tinha sido feito à queima-roupa.- Graças ao passaporte foi possível localizar o senhor Fortuny, pai de Carax, que compareceu naquela mesma noite no necrotério para proceder à identificação do corpo.

- Até aí tudo encaixa com o que a Nuria Monfort contou. Barceló assentiu.

- Assim é. O que a Nuria Monfort não te disse foi que ele, o meu amigo don Manuel, ao suspeitar que a polícia não parecia ter muito interesse pelo caso, e ao ter verificado que o livro que tinha sido encontrado nos bolsos do cadáver mostrava o nome do falecido, decidiu tomar a iniciativa e telefonou para a editora naquela mesma tarde, enquanto esperavam a chegada do senhor Fortuny, para informar do sucedido.

- A Nuria Monfort disse-me que o empregado da morgue telefonou para a editora três dias depois, quando o corpo já tinha sido enterrado numa vala comum.

- Segundo don Manuel, ele telefonou no mesmo dia em que o corpo chegou ao necrotério. Diz-me que falou com uma menina que lhe agradeceu ter telefonado. Don Manuel lembra-se de que o chocou um tanto a atitude da referida menina. Segundo as suas próprias palavras, «era como se já o soubesse».

- E o senhor Fortuny? É verdade que se negou a reconhecer o filho?

- Isso era o que mais me intrigava. Don Manuel explica que ao cair da tarde chegou um homenzinho trémulo em companhia duns agentes da polícia. Era o senhor Fortuny. Segundo ele, isso é a única coisa a que uma pessoa nunca se chega a habituar, o momento em que os familiares vêm reconhecer o corpo de um ente querido. Don Manuel diz que é um transe que não deseja a ninguém.

Segundo ele, o pior é quando o morto é uma pessoa jovem e são os pais, ou um cônjuge recente, que têm de o reconhecer. Don Manuel lembra-se bem do senhor Fortuny. Diz que quando chegou ao necrotério mal se conseguia aguentar de pé, que chorava como uma criança e que os dois polícias o tinham de amparar nos braços. Não parava de gemer: «Que fizeram ao meu filho? Que fizeram ao meu filho?»

- Chegou a ver o corpo?

- Don Manuel contou-me que esteve a ponto de sugerir aos agentes que passassem por cima da diligência. Foi a única vez que lhe passou pela cabeça questionar o regulamento. O cadáver estava em más condições. Provavelmente estava morto havia mais de vinte e quatro horas quando chegou ao necrotério, e não desde o amanhecer como a polícia alegava. Manuel receava que, quando aquele velhote o visse, se desfizesse aos bocados. O senhor Fortuny não parava de dizer que não podia ser, que o seu Julián não podia estar morto... Nessa altura don Manuel retirou o sudário que cobria o corpo e os dois agentes perguntaram-lhe formalmente se aquele era o seu filho Julián.

- E depois?

- O senhor Fortuny ficou mudo, a contemplar o cadáver durante quase um minuto. Nessa altura deu meia-volta e foi-se embora.

- Foi-se embora?

- A toda a pressa.

- E a polícia? Não o impediu? Não estavam lá para identificar o cadáver? Barceló sorriu com malícia.

- Em teoria. Mas don Manuel lembra-se de que havia mais alguém na sala, um terceiro polícia que tinha entrado discretamente enquanto os agentes preparavam o senhor Fortuny e que tinha presenciado a cena em silêncio, encostado à parede com um cigarro nos lábios. Don Manuel lembra-se dele porque quando lhe disse que o regulamento proibia expressamente que se fumasse no necrotério, um dos agentes lhe fez sinal para se calar. Segundo don Manuel, assim que o senhor Fortuny se foi embora, o terceiro polícia aproximou-se dele, deu uma vista de olhos ao corpo e cuspiu-lhe na cara. Depois ficou com o passaporte e deu ordens no sentido de o corpo ser enviado para Can Tunis a fim de ser enterrado numa vala comum nesse mesmo amanhecer.

- Não faz sentido.

- Foi o que don Manuel pensou. Sobretudo porque aquilo não condizia com o regulamento. «Mas nós nem sabemos quem é este homem», dizia ele. Os polícias não disseram nada. Don Manuel, irado, increpou-os: «Ou sabem-no bem de mais? Porque não escapa a ninguém que está morto há pelo menos um dia.» Obviamente, don Manuel remetia-se ao regulamento e não tinha nada de tolo. Segundo ele, ao ouvir os seus protestos, o terceiro polícia abeirou-se dele, olhou-o fixamente nos olhos e perguntou-lhe se lhe apetecia juntar-se ao finado na sua última viagem. Don Manuel contou-me que ficou aterrado. Que aquele homem tinha olhos de louco e que não duvidou um instante de que falava a sério. Murmurou que só procurava cumprir o regulamento, que ninguém sabia quem era aquele homem e que por conseguinte ainda não podia ser enterrado. «Este homem é quem eu digo que é», replicou o polícia. Nessa altura pegou na folha de registo e assinou-a, dando o caso por encerrado. Don Manuel diz que nunca se há-de esquecer daquela assinatura, porque nos anos da guerra, e a seguir durante muito tempo depois, voltaria a encontrá-la em dezenas de folhas de registo e óbito de corpos que chegavam não se sabia de onde e que ninguém conseguia identificar...

- O inspector Francisco Javier Fumero...

- Orgulho e bastião da Direcção Geral da Polícia. Sabes o que isso significa, Daniel?

- Que temos andado a avançar às apalpadelas desde o princípio. Barceló pegou no chapéu e na bengala e dirigiu-se para a porta, abanando disfarçadamente a cabeça.

- Não, que agora é que vamos começar a avançar.

 

Passei a tarde a velar aquela funesta carta que me anunciava a minha incorporação nas fileiras e à espera de sinais de vida de Fermín. Passava já meia hora do horário de fecho e Fermín continuava em paradeiro desconhecido. Peguei no telefone e liguei para a pensão na rua Joaquín Costa. Atendeu dona Encarna, que disse com voz de bagaço que não via Fermín desde essa manhã.

- Se não estiver aqui dentro de meia hora, come o jantar frio, que isto não é o Ritz. Não lhe aconteceu nada, pois não?

- Não se preocupe, dona Encarna. Tinha um recado pendente e deve-se ter atrasado. Em qualquer caso, se o vir antes de se deitar, agradecia-lhe muito que lhe dissesse para me telefonar. Daniel Sempere, o vizinho da sua amiga Merceditas.

- Esteja descansado, mas olhe que já o previno de que às oito e meia me meto em vale de lençóis.

Telefonei de imediato para casa de Barceló, esperando que talvez Fermín tivesse passado por lá para esvaziar a despensa à Bernarda ou arrebanhá-la no quarto de engomar. Não me tinha passado pela cabeça que fosse Clara a atender o telefone.

- Daniel, ora aqui está o que se pode chamar uma surpresa!

O mesmo digo eu, pensei. Fazendo um circunlóquio digno do catedrático don Anacleto, deixei cair o objecto da minha chamada concedendo-lhe apenas uma importância passageira.

- Não, o Fermín hoje não passou por aqui. E a Bernarda esteve toda a tarde comigo, quer dizer, ela havia de saber. Estivemos a falar de ti, sabes?

- Mas que conversa tão aborrecida.

- A Bernarda diz que estás muito bonito, que estás um homem feito.

- Tomo muitas vitaminas. Um longo silêncio.

- Daniel, achas que podemos um dia voltar a ser amigos? Quantos anos serão precisos para que me perdoes?

- Amigos já somos, Clara, e eu não tenho nada a perdoar-te. Tu bem o sabes.

- O meu tio diz que ainda andas a indagar sobre Julián Carax. Vê lá se um dia passas cá por casa para lanchar e me contas novidades. Eu também tenho uma coisa para te contar.

- Um dia destes, sem falta.

- Vou-me casar, Daniel.

Fiquei a olhar para o auscultador. Tive a impressão de que os pés se me afundavam no chão e de que o meu esqueleto encolhia uns centímetros.

- Estás aí, Daniel?

- Estou.

- Surpreendi-te.

Engoli saliva com a consistência de cimento armado.

- Não. O que me surpreende é que não te tenhas casado já. Pretendentes não te hão-de ter faltado. Quem é o feliz contemplado?

- Não o conheces. Chama-se Jacobo. É um amigo do meu tio Gustavo. Quadro dirigente do Banco de Espanha. Conhecemo-nos num recital de ópera que o meu tio organizou. O Jacobo é um apaixonado da ópera. É mais velho que eu, mas somos muito bons amigos e o que interessa é isso, não achas?

Inflamou-se-me a boca de malícia, mas mordi a língua. Sabia a veneno.

- Claro... Ouve, olha, felicidades.

- Nunca me perdoarás, não é verdade, Daniel? Para ti hei-de ser sempre Clara Barceló, a pérfida.

- Para mim hás-de ser sempre a Clara Barceló, ponto final. E isso também o sabes.

Registou-se outro silêncio, daqueles em que crescem cabelos brancos à traição.

- E tu, Daniel? O Fermín diz-me que tens uma namorada lindíssima.

- Agora tenho de te deixar, Clara, está a entrar um cliente. Telefono-te um dia desta semana e combinamos lanchar. Felicidades mais uma vez.

Poisei o telefone e suspirei.

O meu pai regressou da sua visita ao cliente com o semblante abatido e pouca vontade de conversar. Preparou o jantar enquanto eu punha a mesa, quase sem me perguntar por Fermín ou pelo dia na livraria. Jantámos com o olhar mergulhado no prato e entrincheirados na conversa fiada das notícias do rádio. O meu pai mal tocara no prato. Limitava-se a mexer aquela sopa aguada e sem sabor com a colher, como se procurasse ouro no fundo.

- Não comeste nada - disse eu.

O meu pai encolheu os ombros. O rádio continuava a metralhar-nos com patetices. O meu pai levantou-se e apagou-o.

- O que é que dizia a carta do Exército? - perguntou finalmente.

- Sou incorporado daqui a dois meses. Pareceu-me que o olhar o envelhecia dez anos.

- O Barceló diz-me que vai arranjar uma cunha para me transferirem para o Governo Militar de Barcelona depois da recruta. Até vou poder vir dormir a casa - declarei.

O meu pai replicou com um assentimento anémico. Tornou-se-me doloroso sustentar-lhe o olhar e pus-me de pé para levantar a mesa. O meu pai permaneceu sentado, com a vista perdida e as mãos cruzadas sob o queixo. Dispunha-me a lavar os pratos quando ouvi uns passos a ecoar na escada. Passos firmes, apressados, que castigavam o soalho e conjuravam um código funesto. Ergui a vista e cruzei o olhar com o meu pai. As passadas detiveram-se no nosso patamar. O meu pai pôs-se de pé, inquieto. Um segundo mais tarde ouviram-se várias pancadas na porta e uma voz atroadora, raivosa e vagamente familiar.

- Polícia! Abram!

Apunhalaram-me o pensamento mil adagas. Uma nova descarga de batidas fez cambalear a porta. O meu pai dirigiu-se ao umbral e levantou a rede do ralo.

- Que querem os senhores a estas horas?

- Ou abre esta porta ou deitamo-la abaixo a pontapé, senhor Sempere. Não me obrigue a repeti-lo.

Reconheci a voz de Fumero e invadiu-me um sopro gelado. O meu pai lançou-me um olhar inquisitivo. Assenti. Abafando um suspiro, abriu a porta. As silhuetas de Fumero e dos seus dois sequazes recortavam-se no relume amarelado do umbral. Gabardinas cinzentas a arrastar fantoches de cinza.

- Onde está ele? - gritou Fumero, afastando o meu pai com uma palmada e abrindo caminho até à sala de jantar.

O meu pai fez menção de o deter, mas um dos agentes que cobria a retaguarda do inspector aferrou-o pelo braço e empurrou-o contra a parede, segurando-o com a frialdade e a eficácia de uma máquina acostumada à tarefa.

Era o mesmo indivíduo que nos tinha seguido, a Fermín e a mim, o mesmo que me agarrara enquanto Fumero espancava o meu amigo defronte do asilo de Santa Lucía, o mesmo que me tinha vigiado um par de noites atrás. Lançou-me um olhar vazio, inescrutável. Saí ao encontro de Fumero, brandindo toda a calma que era capaz de fingir. O inspector tinha os olhos injectados de sangue. Um arranhão recente sulcava-lhe a face esquerda, cravejado de sangue seco.

- Onde está ele?

- Ele, quem?

Fumero deixou cair os olhos e abanou a cabeça, murmurando de si para si. Quando ergueu o rosto exibia uma careta canina nos lábios e um revólver na mão. Sem afastar os olhos dos meus, Fumero espetou uma coronhada no jarrão de flores murchas sobre a mesa. O jarrão desfez-se em pedaços, entornando a água e os talos fanados sobre a toalha. Contra a minha vontade, estremeci. O meu pai vociferava no vestíbulo sob a prisão dos dois agentes. Mal consegui decifrar as suas palavras. A única coisa que era capaz de absorver era a pressão gelada do cano do revólver enfiado na minha face e o cheiro a pólvora.

- A mim não me fodas, franganote de merda, senão o teu pai vai ter de apanhar os teus miolos do chão. Estás a ouvir?

Assenti, tremendo. Fumero pressionava o cano da arma com força contra o meu pómulo. Senti que me cortava a pele, mas não me atrevi nem a pestanejar.

- É a última vez que to pergunto. Onde está ele?

Vi-me a mim mesmo reflectido nas pupilas negras do inspector, que se contraíam lentamente à medida que ele retesava o cão com o polegar.

- Aqui, não. Não o vejo desde o meio-dia. É a verdade.

Fumero permaneceu imóvel durante quase meio minuto, escarafunchando-me a cara com o revólver e lambendo os lábios.

- Lerma - ordenou. - Dê uma vista de olhos.

Um dos agentes apressou-se a inspeccionar o andar. O meu pai debatia-se em vão com o terceiro polícia.

- Se me mentiste e o encontramos nesta casa, juro que parto as duas pernas ao teu pai - sussurrou Fumero.

- O meu pai não sabe nada. Deixe-o em paz.

- Tu é que não sabes no que te metes. Mas, quando eu filar o teu amigo, acabou-se a brincadeira. Nem juízes, nem hospitais, nem o caraças. Desta vez vou-me encarregar eu mesmo de o retirar da circulação. E vou gozar ao fazer isso, podes crer. Vou fazer render o peixe. Podes-lho dizer se o vires. Porque eu o vou encontrar nem que ele se esconda debaixo das pedras. E tu és o cliente que se segue.

O agente Lerma reapareceu na sala de jantar e trocou um olhar com Fumero, uma leve negativa. Fumero afrouxou o cão e retirou o revólver.

- É pena - disse Fumero.

- De que é que o acusa? Por que é que o procura?

Fumero virou-me as costas e aproximou-se dos dois agentes, que, a um sinal seu, soltaram o meu pai.

- O senhor há-de lembrar-se disto - cuspiu o meu pai.

Os olhos de Fumero poisaram-se sobre ele. Instintivamente, o meu pai deu um passo atrás. Receei que a visita do inspector não tivesse senão começado, mas subitamente Fumero abanou a cabeça, rindo-se disfarçadamente, e abandonou o andar sem mais cerimónia. Lerma seguiu-o. O terceiro polícia, a minha perpétua sentinela, parou um instante no umbral. Olhou-me em silêncio, como se quisesse dizer-me qualquer coisa.

- Palácios! - bramou Fumero, com a voz sumida no eco da escada. Palácios baixou o olhar e desapareceu pela porta. Saí para o patamar. Perfilavam-se cutelos de luz vindos das portas entreabertas de vários vizinhos, cujos rostos atemorizados assomavam na penumbra. As três silhuetas escuras dos polícias perdiam-se pelas escadas abaixo e o martelar furioso dos seus passos batia em retirada como uma maré envenenada, deixando um rasto de medo e negrume.

Rondava a meia-noite quando ouvimos de novo batidas na porta, desta vez mais débeis, quase receosas. O meu pai, que me estava a limpar com água oxigenada a pisadura que o revólver de Fumero me tinha deixado, parou de chofre. Os nossos olhares encontraram-se. Ouviram-se três novas batidas.

Por um instante julguei que se tratava de Fermín, que talvez tivesse presenciado todo o incidente escondido num recanto escuro da escada.

- Quem é? - perguntou o meu pai.

- Don Anacleto, senhor Sempere.

O meu pai suspirou. Abrimos a porta para deparar com o catedrático, mais pálido que nunca.

- Que foi, don Anacleto? Sente-se bem? - perguntou o meu pai, fazendo-o entrar.

O catedrático trazia um jornal dobrado nas mãos. Limitou-se a estender-no-lo, com um olhar de horror. O papel ainda estava morno e a tinta fresca.

- É a edição de amanhã - murmurou don Anacleto. - Página seis.

A primeira coisa que notei foram as duas fotografias que havia por baixo do título. A primeira mostrava um Fermín mais cheio de carnes e cabelo, talvez quinze ou vinte anos mais novo. A segunda revelava o rosto de uma mulher com os olhos cerrados e a pele de mármore. Levei uns segundos a reconhecê-la, porque me tinha habituado a vê-la entre penumbras.

 

                 INDIGENTE ASSASSINA MULHER

               EM PLENA LUZ DO DIA.

 

Barcelona - agências (Redacção)

A polícia procura o indigente que assassinou esta tarde a punhaladas Nuria Monfort Masdedeu, de trinta e sete anos de idade e residente em Barcelona.

O crime teve lugar a meio da tarde no bairro de San Gervasio, onde a vítima foi assaltada sem razão aparente pelo indigente, que, segundo parece, e de acordo com informações da Direcção Geral da Polícia, a andava a seguir por motivos que ainda não foram esclarecidos.

Ao que parece, o assassino, António José Gutiérrez Alcayete, de cinquenta e um anos de idade e natural de Villa Inmunda, província de Cáceres, é um conhecido malfeitor com um largo historial de transtornos mentais fugido da prisão Modelo há seis anos e que conseguiu iludir as autoridades desde então assumindo diferentes identidades. No momento do crime vestia uma sotaina. Está armado e a polícia classifica-o como altamente perigoso. Desconhece-se ainda se a vítima e o seu assassino se conheciam ou qual possa ter sido o móbil do crime, embora fontes da Direcção Geral da Polícia indiquem que tudo parece apontar para tal hipótese. A vítima foi objecto de seis ferimentos de arma branca no ventre, pescoço e peito. O assalto, que teve lugar nas imediações de um colégio, foi presenciado por vários alunos que alertaram o corpo docente da instituição, que por sua vez chamou a polícia e uma ambulância. Segundo o relatório policial, os ferimentos sofridos pela vítima foram mortais. A vítima entrou já cadáver no Hospital Clínico de Barcelona às 18.15.

 

Não tivemos notícias de Fermín em todo o dia. O meu pai insistiu em abrir a livraria como em qualquer outro dia e oferecer uma fachada de normalidade e inocência. A polícia tinha postado um agente defronte da escada e um segundo vigiava a praça de Santa Ana, oculto na entrada da igreja como santo de última hora. Víamo-lo tiritar de frio sob a intensa chuva que tinha chegado com o alvorecer, o hálito de vapor cada vez mais diáfano, as mãos mergulhadas nos bolsos da gabardina. Não era um nem dois vizinhos que passavam de largo, olhando de soslaio através da montra, mas nem um único comprador se aventurou a entrar.

- Já deve ter corrido o rumor - disse eu.

O meu pai limítou-se a assentir. Tinha passado a manhã sem me dirigir a palavra e exprimindo-se por gestos. A página com a notícia do assassínio de Nuria Monfort jazia em cima do balcão. De vinte em vinte minutos aproximava-se e relia com expressão impenetrável. Tinha passado o dia a acumular ira no seu interior, hermético.

- Por mais que leias a notícia uma e outra vez, não passa a ser verdade - disse eu.

O meu pai ergueu a vista e olhou-me com severidade.

- Tu conhecias esta pessoa? Nuria Monfort?

- Tinha falado com ela um par de vezes - disse eu.

O rosto de Nuria Monfort monopolizou-me o pensamento. A minha falta de sinceridade tinha sabor a náusea. Ainda me perseguia o seu cheiro e o roçagar dos seus lábios, a imagem daquela secretária esmeradamente arrumada e o seu olhar triste e sábio. «Um par de vezes.»

- Por que é que tiveste de falar com ela? Que tinha ela que ver contigo?

- Era uma velha amiga de Julián Carax. Fui visitá-la para lhe perguntar o que recordava de Carax. Mais nada. Era filha do Isaac, o guardião. Foi ele que me deu a direcção dela.

- O Fermín conhecia-a?

- Não.

- Como é que podes ter a certeza?

- Como podes tu duvidar dele e dar crédito a essas patranhas? A única coisa que o Fermín sabia dessa mulher foi o que eu lhe contei.

- E era por isso que andava a segui-la?

- Era.

- Porque tu lho tinhas pedido. Guardei silêncio. O meu pai suspirou.

- Não percebes, papá.

- Claro que não. Não te percebo a ti, nem ao Fermín, nem...

- Papá, pelo que sabemos do Fermín, o que diz aí é impossível.

- E que sabemos nós do Fermín, hem? Para começar, está visto que nem sequer sabíamos o verdadeiro nome dele.

- Estás enganado a respeito dele.

- Não, Daniel. Quem está enganado és tu, e em muitas coisas. Quem te manda a ti escarafunchar na vida das pessoas?

- Sou livre de falar com quem quiser.

- Imagino que também te sentes livre das consequências.

- Estás a insinuar que sou responsável pela morte dessa mulher?

- Essa mulher, como tu lhe chamas, tinha nome e apelido, e tu conhecia-la.

- Não preciso que mo lembres - repliquei com lágrimas nos olhos.

O meu pai contemplou-me com tristeza, abanando a cabeça.

- Santo Deus, nem quero pensar em como estará o pobre Isaac - murmurou o meu pai para consigo mesmo.

- Eu não tenho culpa de ela estar morta - disse eu num fio de voz, pensando que talvez se o repetisse suficientes vezes começasse a acreditar nisso.

O meu pai retirou-se para a parte de trás da loja, abanando disfarçadamente a cabeça.

- Tu lá saberás pelo que és responsável ou não, Daniel. Às vezes, já não sei quem és.

Peguei na gabardina e escapei até à rua e à chuva, onde ninguém me conhecia nem me podia ler a alma.

Entreguei-me à chuva gelada sem rumo fixo. Caminhava com o olhar baixo, arrastando a imagem de Nuria Monfort, sem vida, deitada numa fria laje de mármore, o corpo crivado de punhaladas. A cada passo, a cidade desvanecia-se em meu redor. Ao atravessar um cruzamento na rua Fontanella, não parei nem para olhar o semáforo. Quando senti a pancada do vento na cara voltei-me para uma parede de metal e luz que se lançava sobre mim a toda a velocidade. No último instante, um transeunte à minha retaguarda puxou-me para trás e afastou-me da trajectória do autocarro. Contemplei a fuselagem a cintilar a uns centímetros apenas do meu rosto, uma morte certa desfilando a um décimo de segundo. Quando tomei consciência do que havia acontecido, o transeunte que me tinha salvo a vida afastava-se pela passagem para peões, apenas uma silhueta numa gabardina cinzenta. Fiquei ali pregado, sem respiração. Na miragem da chuva pude notar que o meu salvador tinha parado do outro lado da rua e me observava sob a chuva. Era o terceiro polícia, Palácios. Uma muralha de tráfego deslizou entre nós e, quando voltei a olhar, o agente Palácios já lá não estava.

Encaminhei-me para a casa de Bea, incapaz de esperar mais. Precisava de recordar o que de bom havia em mim, o que ela me tinha dado. Precipitei-me escadas acima a toda a pressa e parei diante da porta dos Aguilar, quase sem fôlego. Peguei na aldraba e bati três vezes com força. Enquanto esperava, armei-me de coragem e adquiri consciência do meu aspecto: ensopado até aos ossos. Afastei o cabelo da testa e disse para comigo que já estava. Se aparecesse o senhor Aguilar disposto a partir-me as pernas e a cara, quanto mais depressa, melhor. Bati de novo e daí a pouco ouvi uns passos aproximarem-se da porta. O ralo entreabriu-se. Um olhar escuro e receoso observava-me.

- Quem é?

Reconheci a voz de Cecilia, uma das criadas ao serviço da família Aguilar.

- Sou o Daniel Sempere, Cecilia.

O ralo fechou-se e daí a uns segundos iniciou-se o concerto de fechaduras e trancas que blindavam a entrada no andar, o portão abriu-se lentamente e Cecilia recebeu-me, de touca e farda, com um círio num castiçal. Pela sua expressão de alarme depreendi que devia oferecer um aspecto cadavérico.

- Boa tarde, Cecília. A menina Bea está?

Olhou-me sem compreender. No protocolo conhecido da casa, a minha presença, que nos últimos tempos era um acontecimento invulgar, era associada unicamente a Tomás, o meu antigo colega de escola.

- A menina Beatriz não está...

- Saiu?

Cecília, que não passava de um susto perpetuamente cosido a um avental, assentiu.

- Sabes quando voltará?

A criada encolheu os ombros.

- Foi com os senhores ao médico há-de haver umas duas horas.

- Ao médico? Está doente?

- Não sei, menino.

- A que médico foram?

- Eu isso não sei, menino.

Decidi não martirizar mais a pobre criada. A ausência dos pais de Bea abria-me outros caminhos a explorar.

- E o menino Tomás, está em casa?

- Está, sim, menino. Entre, que eu já o aviso.

Entrei no vestíbulo e esperei. Noutros tempos teria ido directamente ao quarto do meu amigo, mas havia já tanto tempo que não ia àquela casa que me sentia de novo um estranho. Cecília desapareceu corredor abaixo envolta na aura de luz, abandonando-me à escuridão. Pareceu-me ouvir a voz de Tomás ao longe e a seguir uns passos que se aproximavam. Improvisei uma desculpa com a qual justificar perante o meu amigo a minha repentina visita. A figura que apareceu no umbral do vestíbulo era de novo a da criada. Cecília dirigiu-me um olhar compungido e desfez-se-me o sorriso amarelo.

- O menino Tomás diz que está muito ocupado e que não o pode ver agora.

- Disseste-lhe quem sou? Daniel Sempere.

- Disse, sim, menino. Disse-me para dizer ao menino que se vá embora. Nasceu-me um frio no estômago que me decepou a respiração.

- Lamento, menino - disse Cecília.

Assenti, sem saber o que dizer. A criada abriu a porta daquela que, não havia assim tanto tempo, eu tinha considerado a minha segunda casa.

- O menino quer um guarda-chuva?

- Não, obrigado, Cecília.

- Lamento, menino Daniel - reiterou a criada. Sorri-lhe sem força.

- Não te preocupes, Cecília.

A porta fechou-se, encerrando-me na sombra. Permaneci ali uns instantes e depois arrastei-me escadas abaixo. A chuva continuava a recrudescer, implacável. Afastei-me pela rua abaixo. Ao dobrar a esquina parei e voltei-me um instante. Ergui o olhar para o andar dos Aguilar. A silhueta do meu velho amigo Tomás recortava-se na janela do seu quarto. Contemplava-me imóvel. Cumprimentei-o com a mão. Não me retribuiu o gesto. Daí a poucos segundos retirou-se para o interior. Esperei quase cinco minutos na esperança de o ver reaparecer, mas foi em vão. A chuva arrancou-me as lágrimas e eu afastei-me na sua companhia.

 

De regresso à livraria passei defronte do cinema Capitol, onde dois pintores empoleirados num andaime contemplavam desolados o cartaz que não tinha acabado de secar a desfazer-se-lhes sob o aguaceiro. A efígie estóica da sentinela de turno postada diante da livraria distinguia-se ao longe. Ao aproximar-me da relojoaria de don Federico Flaviá reparei que o relojoeiro tinha saído ao umbral para contemplar a bátega de água. Ainda se lhe liam no rosto as cicatrizes da sua estadia na esquadra. Vestia um impecável fato de lã cinzenta e segurava um cigarro que não se incomodara a acender. Cumprimentei-o com a mão e ele sorriu-me.

- Que tens tu contra o guarda-chuva, Daniel?

- Que há de mais bonito que a chuva, don Federico?

- A pneumonia. Anda, entra, que já tenho aquilo teu arranjado.

Olhei-o sem compreender. Don Federico olhava-me fixamente, com o sorriso intacto. Limitei-me a assentir e segui-o até ao interior do seu bazar de maravilhas. Mal nos encontrámos lá dentro, estendeu-me um pequeno saco de papel de embrulho.

- Sai já, que aquele paspalho que está a vigiar a livraria não nos tirava os olhos de cima.

Espreitei o interior do saco. Continha um livrinho encadernado a pele. Um missal. O missal que Fermín tinha nas mãos da última vez que o vira. Don Federico, empurrando-me de volta à rua, selou-me os lábios com um grave gesto de assentimento. Uma vez na rua recuperou o semblante risonho e ergueu a voz.

- E não te esqueças de não forçar a manivela ao dar-lhe corda, senão volta a saltar, de acordo?

- Fique descansado, don Federico, e obrigado.

Afastei-me com um nó no estômago que se apertava a cada passo que me aproximava do agente à paisana que vigiava a livraria. Ao passar diante dele cumprimentei-o com a mesma mão que segurava o saco que don Federico me tinha dado. O agente fitava-me com vago interesse. Introduzi-me na livraria. O meu pai continuava de pé atrás do balcão, como se não se tivesse mexido desde a minha partida. Olhou-me pesaroso.

- Ouve, Daniel, acerca daquilo de há bocado...

- Não te preocupes. Tinhas razão.

- Estás a tiritar...

Assenti vagamente e vi-o partir em busca do termos. Aproveitei a circunstância para me enfiar no pequeno lavabo da parte de trás da loja a fim de examinar o missal. A nota de Fermín deslizou no ar, revoluteando como uma borboleta. Apanhei-a em voo. A mensagem estava escrita numa folha quase transparente de mortalha de cigarro com uma caligrafia diminuta que tive de segurar contra a luz para poder decifrar.

 

               Amigo Daniel

Não acredite numa palavra do que os jornais dizem sobre o assassínio de Nuria Monfort. Como sempre, épura aldrabice. Eu estou são, salvo e oculto em lugar seguro. Não procure encontrar-me ou enviar-me mensagens. Destrua esta nota assim que a tiver lido. Não é preciso engoli-la, basta que a queime ou afaça em fanicos. Eu entrarei em contacto consigo graças ao meu engenho e aos bons ofícios de terceiros em concórdia. Peço-lhe que transmita a essência desta mensagem, em cifra e com toda a discrição, à minha amada. Não faça nada. Seu amigo, o terceiro homem, FRdT.

 

Começava a reler a nota quando alguém bateu à porta da retrete com os nós dos dedos.

- Pode-se? - perguntou uma voz desconhecida.

Senti um baque no coração. Sem saber que outra coisa fazer, fiz um novelo com a folha de mortalha e enfiei-a na boca. Puxei a corrente e aproveitei o estrondo de canalizações e autoclismos para engolir a bolinha de papel. Sabia a cera e a caramelo Sugus. Ao abrir a porta deparei com o sorriso réptil do agente da polícia que segundos antes tinha estado postado defronte da livraria.

- Desculpe. Não sei se será o ouvir chover todo o dia, mas é que me estava quase a urinar, para não dizer outra coisa...

- Era o que faltava - disse, dando-lhe passagem. - É todo seu.

- Agradecido.

O agente, que à luz da lâmpada me pareceu uma pequena doninha, olhou-me de alto a baixo. O seu olhar de esgoto poisou no missal que eu tinha nas mãos.

- É que eu, se não tiver nada para ler, não há maneira - argumentei.

- Comigo acontece o mesmo. E ainda dizem que os espanhóis não lêem. Empresta-mo?

- Aí em cima do autoclismo tem o último Prémio da Crítica - atalhei. - Infalível.

Afastei-me sem perder a compostura e juntei-me ao meu pai, que me estava a preparar uma chávena de café com leite.

- E esse? - perguntei.

- Jurou-me que se cagava. Que havia eu de fazer?

- Deixá-lo na rua, que assim logo se aquecia. O meu pai franziu o cenho.

- Se não te importas, subo já para casa.

- Claro que não. E veste roupa seca, que ainda apanhas uma pneumonia. O andar estava frio e silencioso. Dirigi-me ao meu quarto e espreitei pela

janela. A segunda sentinela continuava lá em baixo, à porta da igreja de Santa Ana. Despi a roupa ensopada e enfiei um pijama grosso e um roupão que tinha sido do meu avô. Deitei-me na cama sem me incomodar a acender a luz e abandonei-me à penumbra e ao som da chuva nos vidros. Fechei os olhos e procurei conciliar a imagem, o toque e o cheiro de Bea. Na noite anterior não tinha pregado olho e não tardou que a fadiga me vencesse. Nos meus sonhos, a silhueta encapuçada de uma parca de vapor cavalgava sobre Barcelona, um vislumbre espectral que pairava sobre torres e telhados, segurando nos seus fios negros centenas de pequenos caixões brancos que deixavam à passagem um rasto de flores negras em cujas pétalas, escrito com sangue, se lia o nome de Nuria Monfort.

Acordei por altura de um alvorecer cinzento, de vidros embaciados. Vesti-me para o frio e calcei umas botas de meio cano. Saí discretamente para o corredor e atravessei o andar quase às apalpadelas. Escapuli-me pela porta e saí para a rua. Os quiosques das Ramblas já mostravam as suas luzes ao longe. Abeirei-me do que navegava defronte da embocadura da Rua Tallers e comprei a primeira edição do dia, que ainda cheirava a tinta morna. Corri as páginas a toda a pressa até encontrar a secção da necrologia. O nome de Nuria Monfort jazia caído sob uma cruz de imprensa e senti que me tremia o olhar.

Afastei-me com o jornal dobrado debaixo do braço, à procura da escuridão. O enterro era nessa tarde, às quatro, no cemitério de Montjuíc. Voltei a casa fazendo um desvio. O meu pai continuava a dormir e regressei ao meu quarto. Sentei-me à secretária e tirei a minha caneta Meisterstiick do estojo. Peguei numa folha em branco e desejei que o aparo me guiasse. Nas minhas mãos, a caneta não tinha nada para dizer. Conjurei em vão as palavras que queria oferecer a Nuria Monfort, mas fui incapaz de escrever ou de sentir fosse o que fosse excepto aquele terror inexplicável da sua ausência, de a saber perdida, arrancada pela raiz. Soube que um dia voltaria para mim, meses ou anos mais tarde, que havia de trazer sempre a sua recordação no contacto de um estranho, de imagens que não me pertenciam, sem saber se era digno de tudo isso. Vais-te em sombras, pensei. Como viveste.

 

Pouco antes das três da tarde apanhei o autocarro, no Paseo de Colón, que havia de me levar até ao cemitério de Montjuic. Através do vidro contemplava o bosque de mastros e bandeiras a adejar na doca do porto. O autocarro, que ia quase vazio, contornou a montanha de Montjuíc e tomou a rota que subia até à entrada leste do grande cemitério da cidade. Eu era o último passageiro.

- A que horas passa o último autocarro? - perguntei ao condutor antes de me apear.

- Às quatro e meia.

O condutor deixou-me às portas do recinto. Erguia-se na bruma uma avenida de ciprestes. Até dali, no sopé da montanha, se entrevia a infinita cidade de mortos que tinha escalado a ladeira até ultrapassar o cume. Avenidas de sepulturas, passeios de lápides e vielas de mausoléus, torres coroadas por anjos ígneos e bosques de sepulcros multiplicavam-se uns contra os outros. A cidade dos mortos era uma vala de palácios, um ossário de mausoléus monumentais custodiados por exércitos de estátuas de pedra putrefacta que se enterravam na lama. Respirei fundo e internei-me no labirinto. A minha mãe jazia enterrada a uma centena de metros daquele caminho flanqueado por galerias intermináveis de morte e desolação. A cada passo podia sentir o frio, o vazio e a fúria daquele lugar, o horror do seu silêncio, dos rostos aprisionados em velhos retratos abandonados à companhia de velas e flores mortas. Daí a pouco consegui ver ao longe os candeeiros de gás acesos em redor da cova. As silhuetas de meia dúzia de pessoas alinhavam-se contra um céu de cinza. Apertei o passo e parei no sítio aonde chegavam as palavras do sacerdote.

O caixão, um cofre de madeira de pinho por polir, repousava no barro. Dois coveiros custodiavam-no, apoiados sobre as pás. Perscrutei os presentes. O velho Isaac, o guardião do Cemitério dos Livros Esquecidos, não tinha comparecido ao enterro da filha. Reconheci a vizinha do patamar da frente, que soluçava sacudindo a cabeça enquanto um homem de aspecto derrotado a consolava acariciando-lhe as costas. O marido, imaginei. Junto a eles havia uma mulher de uns quarenta anos, vestida de cinzento e trazendo um ramo de flores. Chorava em silêncio, desviando a vista da cova e apertando os lábios. Nunca a tinha visto. Separado do grupo, enfiado numa gabardina escura e segurando o guarda-chuva às costas, estava o polícia que me tinha salvo a vida no dia anterior. Palácios. Ergueu o olhar e observou-me sem pestanejar uns segundos. As palavras cegas do sacerdote, desprovidas de sentido, eram tudo o que nos separava do terrível silêncio. Contemplei o caixão, salpicado de argila. Imaginei-a deitada no interior e não me apercebi de que estava a chorar a não ser quando aquela desconhecida de cinzento se abeirou de mim e me ofereceu uma das flores do seu ramo. Permaneci ali até que o grupo se dispersou e, a um sinal do sacerdote, os coveiros dispuseram-se a fazer o seu trabalho à luz dos candeeiros. Guardei a flor no bolso do sobretudo e afastei-me, incapaz de dizer o adeus que me tinha levado até ali.

Começava a anoitecer quando cheguei à porta do cemitério e supus que já tinha perdido o último autocarro. Dispus-me a empreender uma longa caminhada à sombra da necrópole e comecei a caminhar pela estrada que bordejava o porto, de regresso a Barcelona. Um automóvel preto estava estacionado a uma vintena de metros à frente, com as luzes acesas. Ao aproximar-me, Palácios abriu-me a porta do passageiro e indicou-me que entrasse.

- Entra, que eu levo-te a casa. A estas horas não vais encontrar autocarros nem táxis por aqui.

Hesitei um instante.

- Prefiro ir a pé.

- Não digas disparates. Entra.

Falava com o tom cortante de quem está habituado a mandar e a ser imediatamente obedecido.

- Por favor - acrescentou.

Entrei no carro e o polícia pôs o motor a trabalhar.

- Enrique Palácios - disse, oferecendo-me a mão. Não lha apertei.

- Se me deixar em Colón, já me serve.

O carro arrancou com um sacolejão. Perdemo-nos na estrada e percorremos um bom trecho sem abrir a boca.

- Quero que saibas que sinto muito isto da senhora Monfort.

Nos seus lábios, aquelas palavras pareceram-me uma obscenidade, um insulto.

- Agradeço-lhe ter-me salvo a vida no outro dia, mas tenho de lhe dizer que não me importa a ponta dum corno o que sente, senhor Enrique Palácios.

- Eu não sou o que tu pensas, Daniel. Gostaria de te ajudar.

- Se espera que lhe diga onde está o Fermín, pode-me deixar aqui mesmo.

- Não me interessa nem um bocadinho onde está o teu amigo. Agora não estou de serviço.

Eu não disse nada.

- Não confias em mim, e eu não te culpo. Mas pelo menos ouve-me. Isto já foi longe de mais. Aquela mulher não tinha nada que morrer. Peço-te que deixes correr este assunto e que te esqueças para sempre desse homem, de Carax.

- O senhor fala como se o que está a acontecer fosse vontade minha. Eu sou apenas um espectador. Quem monta o espectáculo são o seu chefe e os senhores.

- Estou farto de enterros, Daniel. Não quero ter de assistir ao teu.

- Ainda bem, porque ninguém o convidou.

- Estou a falar a sério.

- E eu também. Faça o favor de parar e de me deixar aqui.

- Em dois minutos estamos em Colón.

- Para mim vem a dar no mesmo. Este carro cheira a morto, como o senhor. Deixe-me sair.

Palácios abrandou a marcha e parou na berma. Apeei-me do carro e fechei a porta com força, evitando o olhar de Palácios. Esperei que ele se afastasse, mas o polícia não se decidia a arrancar de novo. Voltei-me e vi que abria a janela. Pareceu-me ler sinceridade, até mágoa, no seu rosto, mas neguei-me a dar-lhes crédito.

- Nuria Monfort morreu nos meus braços, Daniel - disse. - Creio que as suas últimas palavras foram uma mensagem para ti.

- Que disse ela? - perguntei, com a voz entorpecida de frio. - Mencionou o meu nome?

- Estava a delirar, mas julgo que se referia a ti. A certa altura disse que há prisões piores do que as palavras. Depois, antes de morrer, pediu-me para te dizer que a deixasses partir.

Olhei-o sem compreender.

- Que deixasse partir quem?

- Uma tal Penélope. Imaginei que devia ser a tua namorada.

Palácios baixou o olhar e partiu com o crepúsculo. Fiquei a ver as luzes do carro perderem-se na tenebrosidade azul e escarlate, desconcertado.

Daí a pouco encaminhei-me de regresso ao Paseo de Colón, repetindo para mim mesmo aquelas palavras de Nuria Monfort sem lhes encontrar significado. Ao chegar à praça do Portal de La Paz parei a contemplar os molhes junto ao embarcadouro dos barcos de transporte. Sentei-me nos degraus que se perdiam nas águas turvas, no mesmo sítio onde, uma noite já perdida muitos anos atrás, tinha visto pela primeira vez Laín Coubert, o homem sem rosto.

- Há prisões piores que as palavras - murmurei.

Só então compreendi que a mensagem de Nuria Monfort não era destinada a mim. Não era eu que devia deixar Penélope fugir. As suas últimas palavras não tinham sido para um estranho, mas sim para o homem que amara em silêncio durante quinze anos: Julián Carax.

 

Cheguei à praça de San Felipe Neri ao cair da noite. O banco em que tinha avistado Nuria Monfort pela primeira vez jazia aos pés de um candeeiro, vazio e tatuado a canivete com nomes de apaixonados, insultos e promessas. Ergui a vista para as janelas do lar de Nuria Monfort e no terceiro andar notei um relume mortiço, oscilante. Uma vela.

Internei-me na gruta da portaria escura e subi a escada às apalpadelas. Tremiam-me as mãos quando atingi o patamar do terceiro. Um cutelo de luz avermelhada despontava sob o caixilho da porta entreaberta. Poisei a mão na maçaneta e permaneci ali imóvel, à escuta. Julguei ouvir um sussurro, uma respiração entrecortada que provinha do interior. Por um instante pensei que, se abrisse aquela porta, a encontraria à minha espera do outro lado, a fumar ao pé da varanda com as pernas encolhidas e apoiada contra a parede, ancorada no mesmo sítio em que a deixara. Suavemente, receando incomodá-la, abri a porta e entrei no andar. As cortinas da varanda ondulavam na sala. A silhueta estava sentada junto à janela, o rosto sumido a contraluz, imóvel, segurando um círio aceso entre as mãos. Uma pérola de claridade deslizou-lhe pela pele, brilhante como resina fresca, para lhe cair depois no regaço. Isaac Monfort virou-se com o rosto sulcado de lágrimas.

- Não o vi esta tarde no enterro - disse eu.

Abanou a cabeça em silêncio, enxugando os olhos com o avesso da lapela.

- A Nuria não estava lá - murmurou daí a um bocado. - Os mortos nunca comparecem ao seu próprio enterro.

Lançou um olhar em redor, como se com isso me quisesse indicar que a filha estava naquela sala, sentada ao pé de nós na penumbra, a ouvir-nos.

- Sabe que nunca tinha estado nesta casa? - perguntou. - Sempre que nos víamos era a Nuria que vinha ter comigo. «Para si é mais fácil, pai - dizia ela. - Para que é que há-de subir escadas?» Eu dizia-lhe sempre: «Bem, se não me convidas, não vou», e ela respondia: «Não é preciso que o convide a ir a minha casa, pai, quem se convida são os estranhos. O pai pode vir quando quiser.» Em mais de quinze anos não a vim ver uma única vez. Disse-lhe sempre que tinha escolhido um bairro mau. Pouca luz. Um prédio velho. Ela só assentia. Como quando lhe dizia que tinha escolhido uma vida má. Pouco futuro. Um marido sem ofício nem benefício. É curioso como julgamos os outros e não nos apercebemos do que há de miserável do nosso desdém a não ser quando nos faltam, a não ser quando no-los tiram. Tiram-no-los porque nunca foram nossos...

A voz do ancião, despida do seu véu de ironia, ia-se abaixo e soava quase tão velha como o seu olhar.

- A Nuria gostava muito de si, Isaac. Não duvide disso nem por um instante. E consta-me que ela também se sentia amada por si - improvisei.

O velho Isaac abanou de novo a cabeça. Sorria, mas as lágrimas caíam-lhe sem cessar, caladas.

- Talvez gostasse de mim, à sua maneira, como eu gostei dela, à minha. Mas não nos conhecíamos. Talvez porque eu nunca a tenha deixado conhecer-me, ou nunca tenha dado um passo para a conhecer a ela. Passámos a vida como dois estranhos que todos os dias se viram e se cumprimentam por cortesia. E penso que talvez tenha morrido sem me perdoar.

- Isaac, garanto-lhe...

- O Daniel é jovem e bem se empenha, mas, embora eu tenha bebido e não saiba o que digo, ainda não aprendeu suficientemente a mentir para enganar um velho com o coração podre de misérias.

Baixei o olhar.

- A polícia diz que o homem que a matou é seu amigo - arriscou Isaac.

- A polícia mente. Isaac assentiu.

- Bem sei.

- Garanto-lhe...

- Não é preciso, Daniel. Sei que está a dizer a verdade - disse Isaac, extraindo um envelope do bolso do sobretudo.

- Na tarde antes de morrer, a Nuria veio ver-me, como costumava fazer anos atrás. Lembro-me de que costumávamos ir comer a um café da rua Guardiã, ao qual eu a levava em criança. Falávamos sempre de livros, de livros velhos. Ela contava-me às vezes coisas do seu trabalho, insignificâncias, coisas que se contam a um estranho num autocarro...

Uma vez disse-me que lamentava ter sido uma decepção para mim. Perguntei-lhe onde tinha ido buscar aquela ideia absurda. «Aos seus olhos, pai, aos seus olhos», disse ela. Nem uma única vez me ocorreu que talvez eu tenha sido uma decepção ainda maior para ela. Às vezes julgamos que as pessoas são décimos da lotaria: que estão ali para tornar realidade as nossas ilusões absurdas.

- Isaac, com o devido respeito, bebeu como um cossaco e já não sabe o que diz.

- O vinho transforma o sábio em ignorante, e o ignorante em sábio. Sei o suficiente para compreender que a minha própria filha nunca confiou em mim. Confiava mais em si, Daniel, e só o tinha visto um par de vezes.

- Garanto-lhe que está enganado.

- A última tarde que nos vimos trouxe-me este envelope. Estava muito inquieta, preocupada com qualquer coisa que não me quis contar. Pediu-me que guardasse este envelope e que, se acontecesse alguma coisa, lho entregasse a si.

- Se acontecesse alguma coisa?

- Foram essas as suas palavras. Vi-a tão alterada que lhe propus que fôssemos juntos à polícia, que fosse qual fosse o problema encontraríamos uma solução. Nessa altura ela disse-me que a polícia era o último sítio onde podia ir. Pedi-lhe que me revelasse do que se tratava, mas ela disse que tinha de ir embora e fez-me prometer que lhe entregaria este envelope a si se ela não voltasse para o vir buscar dentro de um par de dias. Pediu-me que não o abrisse.

Isaac estendeu o envelope. Continha um maço de folhas de papel escritas à mão.

- Leu-as? - perguntei.

O ancião assentiu lentamente.

- Que dizem?

O ancião ergueu o rosto. Tremiam-lhe os lábios. Pareceu-me que tinha envelhecido cem anos desde a última vez que o vira.

- É a história que o Daniel procurava. A história de uma mulher que nunca conheci, embora tivesse o meu nome e o meu sangue. Agora pertence-lhe a si.

Guardei o envelope no bolso do sobretudo.

- Vou-lhe pedir que me deixe sozinho, aqui com ela, se não se importa. Há bocado, enquanto lia essas páginas, pareceu-me que a reencontrava. Eu, por mais que me esforce, só me consigo lembrar dela como quando era criança. Em pequena era muito calada, sabe? Olhava para tudo, pensativa, e nunca se ria. Do que mais gostava era das histórias. Pedia-me sempre que lhe lesse histórias e não me parece que tenha havido alguma criança que apreendesse a ler mais cedo. Dizia que queria ser escritora e redigir enciclopédias e tratados de filosofia. A mãe dizia que tudo aquilo era culpa minha, que a Nuria me adorava e, como pensava que o pai só gostava de livros, queria escrever livros para que o pai gostasse dela.

- Isaac, não me parece boa ideia ficar sozinho esta noite. Por que não vem comigo? Fique esta noite lá em casa, e assim faz companhia ao meu pai.

Isac abanou de novo a cabeça.

- Tenho que fazer, Daniel. Vá o Daniel para casa, e leia essas páginas. Pertencem-lhe a si.

O ancião desviou o olhar e eu dirigi-me para a porta. Estava no umbral, quando a voz de Isaac me chamou, apenas um sussurro.

- Daniel?

- Sim.

- Tenha muito cuidado.

Quando saí para a rua pareceu-me que o negrume se arrastava pelo empedrado, pisando-me os calcanhares. Apertei o passo e não afrouxei o ritmo até chegar ao andar de Santa Ana. Ao entrar em casa encontrei o meu pai refugiado no seu cadeirão com um livro aberto no regaço. Era um álbum de fotografias. Ao ver-me, levantou-se com uma expressão de alívio que lhe arrancou o céu de cima.

- Já estava preocupado - disse. - Como foi o enterro?

Encolhi os ombros e o meu pai assentiu gravemente, dando o assunto por encerrado.

- Preparei-te qualquer coisa para o jantar. Se te apetece, volto a aquecer-to e...

- Não tenho fome, obrigado. Petisquei qualquer coisa por aí. Olhou-me nos olhos e assentiu de novo. Voltou-se e começou a levantar os pratos que tinha posto na mesa. Foi então, sem saber bem porquê, que me aproximei dele e o abracei. Senti que o meu pai, surpreendido, me abraçava por sua vez.

- Sentes-te bem, Daniel?

Estreitei o meu pai nos braços com força.

- Gosto muito de ti - murmurei.

Repicavam os sinos da catedral quando comecei a ler o manuscrito de Nuria Monfort. A sua caligrafia miúda e ordenada recordou-me a arrumação da sua secretária, como se tivesse querido procurar nas palavras a paz e a segurança que a vida não quisera conceder-lhe.

 

                 NURIA MONFORT

                 MEMÓRIA DE APARIÇÕES - 1933-1955

 

Não há segundas oportunidades, excepto para o remorso. Julián Carax e eu conhecemo-nos no Outono de 1933. Nessa altura, eu trabalhava para o editor Josep Cabestany. O senhor Cabestany tinha-o descoberto em 1927 durante uma das suas viagens «de prospecção editorial» a Paris. O Julián ganhava a vida tocando piano à tarde numa casa de alterne e escrevia de noite. A dona do estabelecimento, uma tal Irene Marceau, tinha contactos com a maioria dos editores de Paris e, graças aos seus rogos, favores ou ameaças de indiscrição, Julián Carax tinha conseguido publicar vários romances em diferentes editoras com resultados comerciais desastrosos. Cabestany adquirira os direitos exclusivos para editar a obra de Carax em Espanha e na América do Sul por uma quantia irrisória que incluía a tradução dos originais em francês para castelhano por parte do autor. Contava poder vender uns três mil exemplares de cada uma, mas os dois primeiros títulos que publicou em Espanha foram um rotundo fracasso: apenas se vendeu uma centena de exemplares de cada um. Apesar dos maus resultados, de dois em dois anos recebíamos um novo manuscrito do Julián, que Cabestany aceitava sem fazer reparos, alegando que subscrevera um compromisso com o autor, que o lucro não era tudo e que era preciso promover a boa literatura.

Um dia, intrigada, perguntei-lhe por que continuava a publicar romances de Julián Carax e a perder dinheiro no empreendimento. Como única resposta, Cabestany foi até à sua estante, pegou num exemplar de um livro do Julián e convidou-me a lê-lo. Assim fiz. Duas semanas mais tarde tinha-os lido todos. Desta vez a minha pergunta foi como era possível que vendêssemos tão poucos exemplares daqueles romances.

- Não sei - disse Cabestany. - Mas continuaremos a tentar. Pareceu-me um gesto nobre e admirável que não condizia com a imagem fenícia que tinha feito do senhor Cabestany. Talvez o tivesse julgado mal.

A figura de Julián Carax cada vez me intrigava mais. Tudo o que se lhe referia estava envolvido em mistério. Pelo menos uma ou duas vezes por mês alguém telefonava a perguntar a direcção de Julián Carax. Depressa notei que era sempre a mesma pessoa, que se identificava com nomes diferentes. Eu limitava-me a dizer-lhe o que já diziam as contracapas dos livros, que Julián Carax vivia em Paris. Com o tempo, esse homem deixou de telefonar. Eu, por causa das moscas, tinha apagado a direcção de Carax dos arquivos da editora. Eu era a única que lhe escrevia e sabia-a de cor.

Meses mais tarde, por acaso, deparei com as folhas de contabilidade que a casa impressora enviava ao senhor Cabestany. Ao dar-lhes uma vista de olhos reparei que as edições dos livros de Julián Carax eram integralmente custeadas por um indivíduo alheio à empresa do qual eu nunca tinha ouvido falar: Miquel Moliner. Mais, os custos de impressão e distribuição das obras eram substancialmente inferiores à soma facturada ao senhor Moliner. Os números não mentiam: a editora estava a fazer dinheiro imprimindo livros que iam parar directamente a um armazém. Não tive coragem para questionar as indiscrições financeiras do senhor Cabestany. Receava perder o meu lugar. O que fiz foi anotar a direcção para a qual enviávamos as facturas em nome de Miquel Moliner, um palacete da rua Puertaferrisa. Guardei aquela direcção durante meses antes de me atrever a visitá-lo. Finalmente, a minha consciência levou a melhor e fui a casa dele disposta a dizer-lhe que Cabestany o estava a intrujar. Sorriu e disse-me que já sabia.

- Cada qual faz aquilo para que serve.

Perguntei-lhe se fora ele que tinha andado a ligar tantas vezes para averiguar a direcção de Carax. Disse que não e, com ar sombrio, advertiu-me de que não devia dar essa direcção a ninguém. Nunca.

Miquel Moliner era um homem enigmático. Vivia sozinho num palácio cavernoso e quase em ruínas que fazia parte da herança do pai, um industrial que enriquecera com o fabrico de armas e, dizia-se, a promoção de guerras. Longe de viver no meio do luxo, o Miquel levava uma existência quase monástica, decidido a dilapidar aquele dinheiro que considerava ensanguentado no restauro de museus, catedrais, escolas, bibliotecas, hospitais e em assegurar-se de que as obras do seu amigo da juventude, Julián Carax, fossem publicadas na sua cidade natal.

- Dinheiro sobra-me, e amigos como o Julián faltam-me - dizia como única explicação.

Mal mantinha contactos com os irmãos ou com o resto da família, aos quais se referia como estranhos. Não se casara e raramente saía do recinto do palácio, no qual ocupava apenas o andar superior. Era ali que tinha montado o seu escritório, onde trabalhava febrilmente escrevendo artigos e colunas para vários jornais e revistas de Madrid e Barcelona, traduzindo artigos técnicos do alemão e do francês, fazendo a correcção de estilo de enciclopédias e manuais escolares... Miquel Moliner estava possuído por aquela doença da laboriosidade culpada e, embora respeitasse e até invejasse a ociosidade nos outros, fugia dela como da peste. Longe de se gabar da sua ética de trabalho, gracejava sobre a sua compulsão produtiva e descrevia-a como uma forma menor de cobardia.

- Enquanto se trabalha, não se olha a vida nos olhos. Fizemo-nos bons amigos quase sem nos apercebermos. Tínhamos ambos muito em comum, talvez demasiado. O Miquel falava-me de livros, do seu adorado doutor Freud, de música, mas principalmente do seu velho amigo Julián. Víamo-nos quase todas as semanas. O Miquel contava-me histórias dos dias do Julián no colégio de San Gabriel. Conservava uma colecção de antigas fotografias, de relatos escritos por um Julián adolescente. O Miquel adorava o Julián e através das suas palavras e lembranças aprendi a descobri-lo, a inventar uma imagem na ausência. Um ano depois de nos conhecermos, o Miquel Moliner confessou-me que se tinha apaixonado por mim. Não quis feri-lo, mas tão-pouco enganá-lo. Era impossível enganar o Miquel. Disse-lhe que o apreciava imenso, que se tinha convertido no meu melhor amigo, mas que não estava apaixonada por ele. O Miquel disse-me que já sabia. - Estás apaixonada pelo Julián, mas ainda não o sabes. Em Agosto de 1933, o Julián escreveu-me anunciando-me que tinha quase terminado o manuscrito de um novo romance intitulado O Ladrão de Catedrais. Cabestany tinha uns contratos pendentes de renovação em Setembro com a Gallimard. Havia já semanas que estava paralisado com um ataque de gota e, como prémio pela minha dedicação, decidiu que fosse eu a França em seu lugar para tratar dos novos contratos e, de caminho, visitar Julián Carax e trazer a nova obra. Escrevi ao Julián anunciando a minha visita para meados de Setembro e perguntando-lhe se me podia recomendar um hotel modesto e de preço acessível. O Julián respondeu dizendo que me podia instalar em casa dele, um modesto andar no bairro de St. Germain, e eu pouparia o dinheiro do hotel para outros gastos. No dia anterior à partida visitei o Miquel para lhe perguntar se tinha alguma mensagem para o Julián. Hesitou um longo pedaço, e depois disse que não.

A primeira vez que vi o Julián em pessoa foi na estação de Austerlitz. O Outono tinha chegado a Paris à traição e a estação estava inundada de nevoeiro. Fiquei à espera na plataforma, enquanto os passageiros se afastavam rumo à saída. Não tardei a ficar só e vi um homem enfiado num sobretudo preto postado à entrada da plataforma que me observava por entre o fumo de um cigarro. Durante a viagem tinha perguntado a mim mesma como ia reconhecer o Julián.

As fotografias que tinha visto dele tinham pelo menos treze ou catorze anos. Olhei para um lado e outro da plataforma. Não havia mais ninguém a não ser aquela figura e eu. Reparei que o homem me contemplava com uma certa curiosidade, talvez esperando outra pessoa, tal como eu. Não podia ser ele. De acordo com os meus dados, o Julián contava então trinta e dois anos, e aquele homem pareceu-me mais velho. Tinha o cabelo branco e uma expressão de tristeza ou cansaço. Demasiado pálido e demasiado magro, ou talvez fosse só o nevoeiro e o cansaço da viagem. Tinha aprendido a imaginar um Julián adolescente. Aproximei-me daquele desconhecido com cautela e olhei-o nos olhos.

- Julián?

O estranho sorriu-me e assentiu. Carax tinha o sorriso mais bonito do mundo. Era a única coisa que ficava dele.

O Julián ocupava uma água-furtada no bairro de St. Germain. O andar reduzia-se a duas divisões: uma sala com uma cozinha diminuta que dava para uma balaustrada de onde se viam as torres de Notre-Dame emergindo no meio de uma selva de telhados e neblina, e um quarto sem janelas com uma cama de solteiro. A casa de banho ficava ao fundo do corredor do andar de baixo e era compartilhada com o resto dos vizinhos. O conjunto da residência era mais pequeno do que o escritório do senhor Cabestany. O Julián tinha feito uma limpeza conscienciosa e dispusera tudo para me receber com simplicidade e decoro. Fingi estar encantada com a casa, que ainda cheirava ao desinfectante e à cera que o Julián tinha aplicado com mais empenho do que jeito. Via-se que os lençóis da cama estavam por estrear. Pareceu-me que eram de um estampado com desenhos de dragões e castelos. Lençóis de criança. O Julián desculpou-se dizendo que as tinha conseguido a um preço excepcional, mas que eram de primeira qualidade. As que não tinham estampado custavam o dobro, argumentou, e eram mais aborrecidas.

Na sala havia uma secretária de madeira velha virada para a visão das torres da catedral. Sobre ela jazia a máquina Underwood que tinha adquirido com o adiantamento de Cabestany e duas pilhas de folhas de papel, uma em branco e a outra escrita de ambos os lados. O Julián compartilhava o andar com um enorme gato branco ao qual chamava Kurtz. O felino observava-me com receio aos pés do dono, lambendo as garras. Contei duas cadeiras, um cabide e pouco mais. O resto eram livros. Muralhas de livros cobriam as paredes do chão até ao tecto, em duas camadas. Enquanto eu inspeccionava o lugar, o Julián suspirou.

- Há um hotel a duas ruas daqui. Limpo, acessível e respeitável. Permiti-me fazer uma reserva...

Tive as minhas hesitações, mas receava ofendê-lo.

- Aqui ficarei perfeitamente, desde que não seja um incómodo para ti, nem para o Kurtz.

O Kurtz e o Julián trocaram um olhar. O Julián abanou a cabeça, e o gato imitou o seu gesto. Não me tinha apercebido do muito que um e outro se pareciam. O Julián insistiu em ceder-me o quarto. Ele, alegava, dormia muito pouco e instalar-se-ia na sala numa cama de armar que lhe tinha sido emprestada pelo vizinho, monsieur Darcieu, um ancião ilusionista que lia as linhas da mão às meninas a troco de um beijo. Naquela primeira noite dormi de uma assentada, esgotada pela viagem. Acordei ao alvorecer e descobri que o Julián tinha saído. O Kurtz dormia em cima da máquina de escrever do dono. Ressonava como um mastim. Aproximei-me da secretária e vi o manuscrito do novo romance que tinha vindo buscar.

 

         O Ladrão de Catedrais.

 

Na primeira página, tal como em todos os romances do Julián, figurava a legenda, escrita à mão:

 

         Para P.

 

Senti-me tentada a começar a ler. Estava a ponto de pegar na segunda página quando reparei que o Kurtz me olhava de esguelha. Tal como tinha visto o Julián fazer, abanei a cabeça. O gato abanou-a por sua vez, e eu devolvi as páginas ao seu lugar. Daí a pouco, o Julián apareceu trazendo pão acabado de fazer, um termos de café e queijo fresco. Tomámos o pequeno-almoço na balaustrada. O Julián falava sem parar mas evitava o meu olhar. À luz do alvorecer pareceu-me uma criança envelhecida. Tinha feito a barba e vestido aquilo que supus ser a sua única indumentária decente, um fato de algodão de cor creme que parecia coçado mas elegante. Ouvi-o falar-me dos mistérios de Notre-Dame, de uma suposta barcaça fantasma que sulcava o Sena à noite recolhendo as almas dos amantes desesperados que se tinham suicidado atirando-se às águas geladas, de mil e um feitiços que inventava do pé para a mão a fim de que eu não lhe pudesse perguntar nada. Eu contemplava-o em silêncio, assentindo, procurando nele o homem que escrevera os livros que conhecia quase de cor de tanto os reler, o rapaz que o Miquel Moliner me descrevera tantas vezes.

- Quantos dias vais estar em Paris? - perguntou ele.

Os meus assuntos com a Gallimard iam levar-me uns dois ou três dias, imaginava eu. O meu primeiro encontro era nessa mesma tarde. Disse-lhe que tinha pensado tirar um par de dias para conhecer a cidade antes de regressar a Barcelona.

- Paris exige mais de dois dias - disse o Julián. - Não se compadece com razões.

- Não disponho de mais tempo, Julián. O senhor Cabestany é um patrão generoso, mas tudo tem um limite.

- O Cabestany é um pirata, mas até ele sabe que Paris não se vê em dois dias, nem em dois anos.

- Não posso estar dois anos em Paris, Julián.

O Julián fitou-me durante um longo espaço de tempo em silêncio e sorriu-me.

- Porquê? Tens alguém à espera?

As diligências com a Gallimard e as minhas visitas de cortesia a vários editores com os quais Cabestany tinha contratos ocuparam três dias completos, tal como previra. O Julián tinha-me atribuído um guia e protector, um rapaz chamado Hervé que contava apenas treze anos e conhecia perfeitamente a cidade. O Hervé acompanhava-me de porta em porta, tinha o cuidado de me indicar em que cafés comer qualquer coisa, que ruas evitar, que vistas aproveitar. Esperava-me durante horas à porta dos escritórios dos editores sem perder o sorriso e sem aceitar qualquer gorjeta. O Hervé arranhava um espanhol divertido, que misturava com matizes de italiano e português.

- Signore Carax já me ha pagato com tuoda generosidade pos meus serviços...

Segundo consegui deduzir, o Hervé era órfão de uma das damas do estabelecimento de Irene Marceau, em cujo sótão vivia. O Julián tinha-lhe ensinado a ler, escrever e a tocar piano. Aos domingos levava-o ao teatro ou a um concerto. O Hervé idolatrava o Julián e parecia disposto a fazer fosse o que fosse por ele, incluindo guiar-me até ao fim do mundo se fosse necessário. No nosso terceiro dia juntos perguntou-me se eu era namorada do signore Carax. Disse-lhe que não, apenas uma amiga de visita. Pareceu decepcionado.

O Julián passava quase todas as noites em claro, sentado à sua secretária com o Kurtz no regaço, a rever páginas ou simplesmente a olhar para as silhuetas das torres da catedral ao longe. Uma noite em que eu tão-pouco conseguia dormir por causa do ruído da chuva a arranhar o telhado, saí para a sala. Olhá-mo-nos sem dizer nada e o Julián ofereceu-me um cigarro. Contemplámos a chuva em silêncio durante um longo espaço de tempo. Depois, quando a chuva parou, perguntei-lhe quem era P.

- Penélope - respondeu.

Pedi-lhe que me falasse dela, daqueles treze anos de exílio em Paris. A meia-voz, na penumbra, o Julián contou-me que Penélope era a única mulher que amara.

Uma noite de Inverno de 1941(1), Irene Marceau encontrou o Julián Carax a vaguear pelas ruas, incapaz de se lembrar do seu nome e a vomitar sangue. Trazia consigo apenas umas moedas e umas páginas dobradas, escritas à mão. Irene leu-as, e julgou que tinha dado com um autor famoso, perdido de bêbado, e que talvez um editor generoso a recompensasse quando ele recobrasse o conhecimento. Essa era pelo menos a sua versão, mas o Julián sabia que lhe salvara a vida por compaixão. Passara seis meses num quarto no sótão do bordel de Irene, a restabelecer-se. Os médicos advertiram Irene de que, se aquele indivíduo se voltasse a envenenar, não respondiam por ele. Tinha destruído o estômago e o fígado, e ia passar o resto dos seus dias sem se poder alimentar a não ser de leite, queijo fresco e pão mole. Quando o Julián recuperou a fala, Irene perguntou-lhe quem era.

- Ninguém - respondeu o Julián.

- Pois ninguém vive à minha custa. Que sabes tu fazer? O Julián disse que sabia tocar piano.

- Mostra.

O Julián sentou-se ao piano do salão e, perante uma intrigada assistência de quinze putazinhas adolescentes em trajes menores, interpretou um nocturno de Chopin. Todas aplaudiram menos Irene, que disse que aquilo era música de mortos e que elas estavam no negócio dos vivos. O Julián tocou para ela um ragtime e um par de peças de Offenbach.

- Isso é melhor.

O seu novo emprego granjeava-lhe um ordenado, um tecto e duas refeições quentes por dia.

Em Paris sobreviveu graças à caridade de Irene Marceau, que era a única pessoa que o entusiasmava a continuar a escrever. Ela gostava de novelas românticas e das biografias de santos e mártires, que a intrigavam enormemente. Na sua opinião, o problema do Julián era que tinha o coração envenenado e que por isso só conseguia escrever aquelas histórias de espantos e trevas. Apesar dos seus reparos, fora Irene quem conseguira que o Julián encontrasse editor para os seus primeiros romances, quem lhe tinha arranjado aquela água-furtada onde se escondia do mundo, quem o vestia e arrancava de casa para apanhar sol e ar, quem lhe comprava livros e o obrigava a acompanhá-la à missa ao domingo e depois a passear pelas Tulherias. Irene Marceau mantinha-o vivo sem lhe pedir outra coisa em troca a não ser a sua amizade e a promessa de que continuaria a escrever. Com o tempo, Irene permitiu-lhe que levasse uma ou outra das raparigas para a água-furtada, mesmo que fosse só para dormirem abraçados. Irene gracejava dizendo que elas estavam quase todas tão sozinhas como ele e a única coisa que queriam era algum carinho.

 

*1. Provavelmente esta data é 1931 (N. D.)

 

- O meu vizinho, monsieur Darcieu, tem-me pelo homem mais felizardo do universo.

Perguntei-lhe por que razão nunca tinha regressado a Barcelona para reencontrar a Penélope. Mergulhou num longo silêncio e, quando lhe procurei o rosto na escuridão, encontrei-o sulcado de lágrimas. Sem saber bem o que fazia, ajoelhei-me junto dele e abracei-o. Permanecemos assim, abraçados naquela cadeira, até que o alvorecer nos surpreendeu. Já não sei quem beijou primeiro quem, nem se isso tem importância. Sei que encontrei os seus lábios e que me deixei acariciar sem me aperceber de que também eu estava a chorar e não sabia porquê. Naquele amanhecer, e em todos os que se seguiram durante as duas semanas que passei com o Julián, amámo-nos no chão, sempre em silêncio. Depois, sentados num café ou a passear pelas ruas, eu olhava-o nos olhos e sabia sem necessidade de lho perguntar que ele continuava a amar a Penélope. Lembro-me de que nesses dias aprendi a odiar aquela rapariga de dezassete anos (porque para mim a Penélope teve sempre dezassete anos), que nunca conhecera e com a qual começava a sonhar. Inventei mil e uma desculpas para telegrafar a Cabestany e prolongar a minha estadia. Já não me preocupava perder aquele emprego nem a existência cinzenta que deixara em Barcelona. Perguntei muitas vezes a mim mesma se terei chegado a Paris com uma vida tão vazia que caí nos braços do Julián como as raparigas de Irene Marceau, que mendigavam carinho a contragosto. Só sei que aquelas duas semanas que passei com o Julián foram o único momento da minha vida em que senti por uma vez que era eu mesma, em que compreendi com aquela absurda clareza das coisas inexplicáveis que nunca poderia gostar de outro homem como gostava do Julián, mesmo que passasse o resto dos meus dias a tentá-lo.

Um dia o Julián adormeceu nos meus braços, exausto. Na tarde anterior, ao passar defronte da montra de uma loja de penhores, tinha parado para me mostrar uma caneta de tinta permanente que estava exposta na vitrina havia anos e que segundo o lojista tinha pertencido a Victor Hugo. O Julián nunca tivera um cêntimo para a comprar, mas ia vê-la todos os dias. A caneta custava uma fortuna que eu não tinha, mas o lojista disse-me que me aceitaria um cheque em pesetas sobre qualquer banco espanhol com balcão em Paris. Antes de morrer, a minha mãe tinha-me prometido que amealharia durante anos para me comprar um vestido de noiva. A caneta de Victor Hugo levou o meu véu de roldão e, embora soubesse que era uma loucura, nunca gastei dinheiro de melhor vontade. Ao sair da loja com o fabuloso estojo, reparei numa mulher que me seguia. Era uma dama muito elegante, com o cabelo prateado e os olhos mais azuis que alguma vez vi. Aproximou-se de mim e apresentou-se. Era Irene Marceau, a protectora do Julián. O meu moço de cego Hervé tinha-lhe falado de mim.

Só queria conhecer-me e perguntar-me se eu era a mulher de quem o Julián tinha estado à espera todos aqueles anos. Não precisei de responder. Irene limitou-se assentir e beijou-me na face. Vi-a afastar-se pela rua abaixo e soube então que o Julián nunca seria meu, que o tinha perdido antes de começar. Regressei à água-furtada com o estojo da caneta oculto na mala. O Julián esperava-me acordado. Despiu-me sem dizer nada e fizemos amor pela última vez. Quando me perguntou por que chorava, disse-lhe que eram lágrimas de felicidade. Mais tarde, quando o Julián desceu a fim de ir buscar qualquer coisa para comer, fiz a mala e deixei o estojo com a caneta em cima da sua máquina de escrever. Meti o manuscrito do romance na mala e parti antes que o Julián regressasse. No patamar encontrei-me com monsieur Darcieu, o velhote ilusionista que lia a mão das raparigas a troco de um beijo. Pegou-me na mão esquerda e observou-me com tristeza.

- Vous avez poison au coeur, mademoiselle.

Quando quis satisfazer a sua tarifa, abanou suavemente a cabeça e foi ele quem me beijou a mão.

Cheguei à estação de Austerlitz mesmo a tempo de apanhar o comboio do meio-dia para Barcelona. O revisor que me vendeu o bilhete perguntou-me se me sentia bem. Assenti e encerrei-me no compartimento. O comboio partia já quando olhei pela janela e avistei a silhueta do Julián na plataforma, no mesmo sítio onde o tinha visto a primeira vez. Fechei os olhos e não os abri até o comboio deixar para trás a estação e aquela cidade enfeitiçada à qual nunca poderia regressar. Cheguei a Barcelona ao amanhecer do dia seguinte. Nesse dia fiz vinte e quatro anos, sabendo que o melhor da minha vida tinha ficado para trás.

 

No meu regresso a Barcelona deixei passar algum tempo antes de voltar a visitar o Miquel Moliner. Precisava de tirar Julián da cabeça e percebia que, se o Miquel me perguntasse por ele, não ia saber o que dizer. Quando nos encontrámos de novo não foi preciso dizer-lhe nada. O Miquel olhou-me nos olhos e limitou-se a assentir. Pareceu-me mais magro do que antes da minha viagem a Paris, o rosto de uma palidez quase enfermiça, que atribuí ao excesso de trabalho com que se castigava. Confessou-me que estava a passar por dificuldades económicas. Tinha gasto quase todo o dinheiro que herdara nas suas doações filantrópicas e agora os advogados dos irmãos estavam a tratar de o desalojar do palacete alegando que uma cláusula do testamento do velho Moliner especificava que o Miquel só poderia fazer uso daquele lugar desde que o mantivesse em boas condições e pudesse demonstrar solvência para manter o imóvel. Caso contrário, o palácio de Puertaferrisa passaria à custódia dos seus outros irmãos.

- Até antes de morrer, o meu pai teve a intuição de que eu ia gastar o seu dinheiro em tudo aquilo que ele detestava em vida, até ao último cêntimo.

Os seus proventos como colunista e tradutor estavam longe de lhe permitir manter semelhante domicílio.

- O difícil não é ganhar dinheiro do pé para a mão - lamentava-se. - O difícil é ganhá-lo fazendo alguma coisa a que valha a pena dedicar a vida.

Suspeitei que estava a começar a beber às escondidas. Às vezes tremiam-lhe as mãos. Eu visitava-o todos os domingos e obrigava-o a sair à rua e a afastar-se da sua mesa de trabalho e das suas enciclopédias. Sabia que o magoava ver-me. Agia como se não se lembrasse de que me tinha proposto casamento e que eu o tinha rejeitado, mas às vezes surpreendia-o a observar-me com ânsia e desejo, com um olhar de derrota. A minha única desculpa para o submeter àquela crueldade era puramente egoísta: só o Miquel sabia a verdade sobre o Julián e a Penélope Aldaya.

Durante aqueles meses que passei afastada do Julián, a Penélope Aldaya tinha-se convertido num espectro que me devorava o sono e o pensamento. Ainda recordava a expressão de decepção no rosto de Irene Marceau ao verificar que eu não era a mulher de que o Julián estava à espera. A Penélope Aldaya, ausente e à traição, era uma inimiga demasiado poderosa para mim. Invisível, imaginava-a perfeita, uma luz em cuja sombra me perdia, indigna, vulgar, tangível. Nunca julgara possível que pudesse odiar tanto, e tão contra a minha vontade, alguém que nem sequer conhecia, que nunca vira uma única vez. Suponho que julgava que, caso a encontrasse cara a cara, caso verificasse que ela era de carne e osso, o seu feitiço se quebraria e o Julián voltaria a ser livre. E eu com ele. Quis acreditar que era uma questão de tempo, de paciência. Mais tarde ou mais cedo, o Miquel contar-me-ia a verdade. E a verdade far-me-ia livre. Um dia, enquanto passeávamos pelo claustro da catedral, o Miquel voltou a insinuar o seu interesse por mim. Fitei-o e vi um homem só, sem esperanças. Sabia o que fazia quando o levei a casa e me deixei seduzir por ele. Sabia que estava a enganá-lo, e que ele o sabia também, mas não tinha mais nada no mundo. Foi assim que nos convertemos em amantes, por desespero. Eu via nos seus olhos o que teria querido ver nos do Julián. Sentia que, ao entregar-me a ele, me vingava do Julián e da Penélope e de tudo aquilo que me era negado. O Miquel, que estava doente de desejo e de solidão, sabia que o nosso amor era uma farsa, e mesmo assim não conseguia deixar-me ir.

Cada dia bebia mais e muitas vezes mal conseguia possuir-me. Então gracejava amargamente que no fim de contas nos tínhamos transformado num casal exemplar num tempo recorde. Estávamos a fazer mal um ao outro por despeito e cobardia. Uma noite, quando se completava quase um ano sobre o meu regresso de Paris, pedi-lhe que me contasse a verdade sobre a Penélope. O Miquel tinha bebido e tornou-se violento, como nunca o tinha visto antes. Cheio de raiva, insultou-me e acusou-me de nunca ter gostado dele, de ser uma rameira qualquer. Fez-me a roupa em farrapos e, quando me quis forçar, eu deitei-me, oferecendo-me sem resistência e chorando em silêncio. O Miquel foi-se abaixo e suplicou-me que o perdoasse. Quanto teria gostado de tê-lo amado a ele e não ao Julián, de poder optar por ficar ao seu lado! Mas não podia. Abraçámo-nos na escuridão e pedi-lhe perdão por todo o mal que lhe tinha feito. Disse-me então que se isso era realmente o que eu queria, me contaria a verdade sobre a Penélope Aldaya. Até nisso me enganei.

Naquele domingo de 1919 em que o Miquel Moliner tinha ido à estação de Francia entregar o bilhete para Paris e despedir-se do seu amigo Julián, já sabia que a Penélope não compareceria ao encontro. Sabia que dois dias antes, quando don Ricardo Aldaya regressara de Madrid, a mulher lhe tinha confessado que surpreendera o Julián e a sua filha Penélope no quarto da aia Jacinta. O Jorge Aldaya tinha revelado ao Miquel o sucedido no dia anterior, fazendo-o jurar que nunca o contaria a ninguém. O Jorge explicou-lhe que, ao receber a notícia, don Ricardo explodiu de cólera e, gritando como um louco, correu ao quarto da Penélope, que ao ouvir a berraria do pai se fechara à chave e chorava de terror. Don Ricardo deitou a porta abaixo a pontapé e encontrou a Penélope de joelhos, tremendo e suplicando o seu perdão. Don Ricardo pregou-lhe então uma bofetada que a deitou ao chão. Nem o próprio Jorge foi capaz de repetir-lhe as palavras que don Ricardo proferiu, ardendo de raiva. Todos os membros da família e a criadagem esperavam em baixo, atemorizados, sem saber o que fazer. Jorge ocultou-se no seu quarto, às escuras, mas mesmo ali chegavam os gritos de don Ricardo. A Jacinta foi despedida nesse mesmo dia. Don Ricardo nem se dignou vê-la. Ordenou aos criados que a pusessem fora de casa e ameaçou-os com um destino similar se qualquer deles voltasse a ter algum contacto com ela.

Quando don Ricardo desceu à biblioteca era já meia-noite. Deixara a Penélope fechada à chave naquele que tinha sido o quarto da Jacinta e proibiu terminantemente que alguém subisse para a ver, nem membros da criadagem nem da família. Do seu quarto, o Jorge ouviu os pais falarem no andar de baixo. O médico chegou de madrugada. A senhora Aldaya conduziu-o até à alcova onde mantinham a Penélope encerrada e esperou à porta enquanto o médico a observava. Ao sair, o médico limitou-se a assentir e a receber o seu pagamento.

O Jorge ouviu don Ricardo dizer-lhe que, se comentasse com alguém o que ali tinha visto, ele se encarregaria pessoalmente de lhe arruinar a reputação e de impedir que voltasse a exercer medicina. Até o Jorge sabia o que isso significava.

O Jorge confessou estar muito preocupado com a Penélope e com o Julián. Nunca tinha visto o pai possuído por semelhante cólera. Mesmo tendo em conta a ofensa cometida pelos amantes, não compreendia o alcance daquela ira. Tem de haver alguma coisa mais, disse, alguma coisa mais. Don Ricardo dera já ordens para que o Julián fosse expulso do colégio de San Gabriel e entrara em contacto com o pai do rapaz, o chapeleiro, para o meter imediatamente no Exército. O Miquel, ao ouvir aquilo, decidiu que não podia dizer a verdade a Julián. Se lhe revelasse que don Ricardo Aldaya mantinha a Penélope encerrada e que ela trazia nas entranhas o filho de ambos, o Julián nunca apanharia aquele comboio para Paris. Sabia que ficar em Barcelona seria o fim do amigo. Assim, decidiu enganá-lo e deixá-lo partir para Paris sem saber o que tinha sucedido, permitindo-lhe acreditar que a Penélope mais tarde ou mais cedo se lhe reuniria. Ao despedir-se do Julián naquele dia na estação de Francia, queria crer que nem tudo estava perdido.

Dias mais tarde, quando se soube que o Julián tinha desaparecido, abriram-se os infernos. Don Ricardo Aldaya deitava espuma pela boca. Pôs meio departamento da polícia na procura e captura do fugitivo, sem êxito. Acusou então o chapeleiro de ter sabotado o plano que tinham combinado e ameaçou-o com a ruína absoluta. O chapeleiro, que não percebia nada, acusou por sua vez a sua mulher Sophie de ter tramado a fuga daquele filho infame e ameaçou-a de a pôr na rua para sempre. A ninguém ocorreu que era o Miquel Moliner que tinha idealizado todo o assunto. A ninguém excepto ao Jorge Aldaya, que duas semanas mais tarde o foi ver. Já não ressumava o temor e a preocupação que o tinham imobilizado dias atrás. Aquele era outro Jorge Aldaya, adulto e esbulhado de inocência. Fosse o que fosse que se ocultava atrás da raiva de don Ricardo, o Jorge tinha-o descoberto. O motivo da visita era sucinto: disse-lhe que sabia que era ele que tinha ajudado o Julián a fugir. Anunciou-lhe que já não eram amigos, que nunca mais o queria voltar a ver e ameaçou matá-lo se contasse a alguém o que lhe tinha revelado duas semanas antes.

Umas semanas mais tarde, o Miquel recebeu a carta sob nome falso que o Julián enviava de Paris dando-lhe a sua direcção e comunicando-lhe que estava bem e sentia a sua falta e interessando-se pela sua mãe e pela Penélope. Incluía uma carta dirigida à Penélope para que o Miquel a reexpedisse de Barcelona, a primeira de tantas que a Penélope nunca chegaria a ler. O Miquel deixou passar prudentemente uns meses. Escrevia semanalmente ao Julián referindo-lhe apenas aquilo que julgava oportuno, que era quase nada. O Julián, por sua vez, falava-lhe de Paris, de quanto tudo se estava a revelar difícil, de como se sentia só e desesperado. O Miquel enviava-lhe dinheiro, livros e a sua amizade. Juntamente com cada carta, o Julián acompanhava as suas remessas de outra missiva para a Penélope. O Miquel mandava-as por diferentes estafetas, mesmo sabendo que era inútil. Nas suas cartas, o Julián não parava de perguntar pela Penélope. O Miquel não podia contar-lhe nada. Sabia pela Jacinta que a Penélope não saíra de casa desde que o pai a tinha fechado no quarto do terceiro andar.

Uma noite, o Jorge Aldaya saiu-lhe ao caminho no meio das sombras a dois quarteirões de sua casa. «Vens já matar-me?», perguntou o Miquel. O Jorge anunciou que lhe vinha fazer um favor a ele e ao seu amigo Julián. Entregou-lhe uma carta e sugeriu-lhe que a fizesse chegar ao Julián, onde quer que se tivesse ocultado. «Para bem de todos», sentenciou. O envelope continha uma folha de papel escrita pelo punho da Penélope Aldaya.

 

               Caro Julián

Escrevo-te para te anunciar o meu casamento próximo e para te pedir que não me escrevas mais, que me esqueças e que refaças a tua vida. Não te guardo rancor, mas não seria sincera se não te confessasse que nunca te amei e nunca poderei amar-te. Desejo-te o melhor, onde quer que estejas.

                     Penélope.

 

O Miquel leu-a e releu-a mil vezes. O traço era inequívoco, mas não acreditou nem por um momento que Penélope tivesse escrito aquela carta por vontade própria. «Onde quer que estejas...» A Penélope sabia perfeitamente onde o Julián estava: em Paris, à espera dela. Se fingia desconhecer o seu paradeiro, reflectiu o Miquel, era para o proteger. Por esse mesmo motivo, o Miquel não conseguia compreender o que poderia tê-la levado a redigir aquelas linhas. Que mais ameaças podia don Ricardo Aldaya brandir sobre ela do que mantê-la encerrada durante meses naquela alcova como uma prisioneira? Mais do que ninguém, a Penélope sabia que aquela carta constituía uma punhalada envenenada no coração do Julián: um jovem de dezanove anos, perdido numa cidade distante e hostil, abandonado por todos, sobrevivendo com dificuldade graças a vãs esperanças de a voltar a ver. De que queria protegê-lo ao afastá-lo daquela maneira de junto de si? Depois de muito meditar, o Miquel decidiu não enviar a carta. Não sem antes saber a sua causa. Sem uma boa razão, não seria a sua mão que enterraria aquele punhal na alma do amigo.

Dias mais tarde soube que don Ricardo Aldaya, farto de ver a Jacinta Coronado a rondar como uma sentinela as portas de sua casa mendigando notícias da Penélope, tinha recorrido às suas muitas influências e feito encerrar a aia da filha no manicómio de Horta. Quando o Miquel Moliner quis visitá-la, foi-lhe negada autorização. A Jacinta Coronado ia passar os seus três primeiros meses numa cela incomunicável. Depois de três meses no silêncio e na escuridão, explicou-lhe um dos médicos, um indivíduo muito jovem e sorridente, a docilidade da paciente estava garantida. Seguindo um pressentimento, o Miquel decidiu visitar a pensão em que a Jacinta tinha estado a viver durante os meses subsequentes ao seu despedimento. Ao identificar-se, a patroa recordou que a Jacinta deixara uma mensagem em seu nome e três semanas por pagar. Liquidou a dívida e apoderou-se da mensagem em que a aia dizia que tinha conhecimento de que uma das criadas da casa, Laura, fora despedida ao saber-se que tinha enviado em segredo uma carta escrita pela Penélope ao Julián. O Miquel deduziu que a única direcção para a qual a Penélope, do seu cativeiro, teria podido dirigir a missiva era para o andar dos pais do Julián, na Ronda de San António, contando que eles por sua vez a fizessem chegar ao filho, em Paris.

Decidiu, pois, visitar Sophie Carax a fim de recuperar aquela carta para a enviar a Julián. Ao visitar o domicílio da família Fortuny, o Miquel teve uma surpresa de mau agoiro: Sophie Carax já não residia ali. Tinha abandonado o marido uns dias atrás, ou esse era o rumor que circulava na escada. O Miquel tentou então falar com o chapeleiro, que passava os dias encerrado na sua loja carcomido pela raiva e pela humilhação. O Miquel insinuou-lhe que tinha vindo buscar uma carta que devia ter chegado em nome do seu filho Julián havia uns dias.

- Eu não tenho nenhum filho - foi a única resposta que obteve.

O Miquel Moliner saiu dali sem saber que aquela carta tinha ido parar às mãos da porteira do edifício e que muitos anos depois tu, Daniel, a encontrarias e lerias as palavras que a Penélope tinha enviado, desta vez do coração, ao Julián, e que ele nunca chegou a receber.

Ao sair da chapelaria Fortuny, uma vizinha da escada que se identificou como a Viçenteta abeirou-se dele e perguntou-lhe se estava à procura de Sophie. O Miquel assentiu.

- Sou amigo do Julián.

A Viçenteta informou-o de que Sophie estava a viver com dificuldades numa pensão situada numa viela atrás do edifício dos Correios à espera da partida do barco que a levaria para a América. O Miquel foi àquela direcção, uma escada acanhada e miserável que evitava a luz e o ar. No cimo daquela espiral poeirenta de degraus inclinados, o Miquel encontrou Sophie Carax numa divisão do quarto andar, encharcada de sombras e humidade. A mãe do Julián estava de frente para a janela sentada na borda de um catre no qual ainda jaziam duas malas fechadas como caixões encerrando os seus vinte e dois anos em Barcelona.

Ao ler a carta assinada pela Penélope que o Jorge Aldaya tinha entregado ao Miquel, Sophie derramou lágrimas de raiva.

- Ela sabe - murmurou. - Sabe, coitadinha...

- Sabe o quê? - perguntou o Miquel.

- A culpa é minha - disse Sophie. - A culpa é minha.

O Miquel segurava-lhe as mãos, sem compreender. Sophie não se atreveu a enfrentar-lhe o olhar.

- A Penélope e o Julián são irmãos - murmurou.

 

Muitos anos antes de se converter na escrava de Antoni Fortuny, Sophie Carax tinha sido uma mulher que vivia do seu talento. Contava apenas dezanove anos quando chegou a Barcelona em busca de uma promessa de emprego que nunca se viria a materializar. Antes de morrer, o pai tinha-lhe conseguido referências para que entrasse ao serviço dos Benarens, uma próspera família de comerciantes alsacianos estabelecida em Barcelona.

- Quando eu morrer - instou-a -, vai ter com eles, e acolher-te-ão como a uma filha.

O caloroso acolhimento que recebeu foi parte do problema. Monsieur Benarens tinha decidido acolhê-la de braços, e gónadas, abertos e a toda a força. Madame Benarens, não sem se apiedar dela e da sua má sorte, entregou-lhe cem pesetas e pô-la na rua.

- Tu tens toda a vida pela frente, mas eu só tenho este marido miserável e lúbrico.

Uma escola de música da Rua Diputación prestou-se a dar-lhe emprego como professora particular de piano e solfejo. Era à época de bom-tom que as filhas de famílias bem instaladas fossem instruídas nas artes sociais e aspergidas com o dom da música de salão, onde a polaca era menos perigosa do que a conversa ou as leituras questionáveis. Assim, Sophie Carax começou a sua rotina de visitar casarões apalaçados onde criadas engomadas e mudas a conduziam a salões de música nos quais a infância hostil da aristocracia industrial a esperava para fazer troça do seu sotaque, da sua timidez ou da sua condição de serviçal, mais ou menos pentagrama. Com o tempo aprendeu a concentrar-se naquela exígua décima parte dos seus alunos que se elevava acima da condição de vermes perfumados, e a esquecer o resto.

Por essa altura, Sophie conheceu um jovem chapeleiro (pois assim se fazia ele chamar com orgulho corporativo) chamado Antoni Fortuny que parecia decidido a fazer-lhe a corte a qualquer preço. Antoni Fortuny, por quem Sophie sentia uma cordial amizade e nada mais, não tardou a propor-lhe casamento, oferta que Sophie rejeitava uma dúzia de vezes por mês. Cada vez que se despediam, Sophie contava nunca mais voltar a vê-lo, porque não desejava magoá-lo. O chapeleiro, impermeável a toda a negativa, voltava ao ataque, convidando-a para um baile ou para dar um passeio ou para um lanche de biscoitos e chocolate na rua Canuda. Sozinha em Barcelona, Sophie achava difícil resistir ao seu entusiasmo, à sua companhia e à sua devoção. Bastava-lhe olhar para Antoni Fortuny para saber que nunca o poderia amar. Não como ela sonhava vir um dia a amar alguém. Mas custava-lhe rejeitar a imagem de si mesma que via nos olhos enfeitiçados do chapeleiro. Só neles via a Sophie que teria desejado ser.

Assim, por ânsia ou debilidade, Sophie continuava a brincar com a corte do chapeleiro, convencida de que um dia ele conheceria outra rapariga mais pelos ajustes e partiria em rumos mais proveitosos. Entretanto, sentir-se desejada e apreciada bastava para queimar a solidão e a nostalgia de tudo quanto tinha deixado para trás. Via Antoni aos domingos, a seguir à missa. O resto da semana dedicava-o às suas aulas de música. A sua aluna predilecta era uma rapariga de notável talento chamada Ana Valls, filha de um próspero fabricante de maquinaria têxtil que fizera a sua fortuna a partir do nada, à custa de enormes esforços e sacrifícios, mormente alheios. Ana declarava o seu desejo de vir a ser uma grande compositora e interpretava para Sophie pequenas peças que compunha imitando motivos de Grieg e Schumann, não sem um certo engenho. O senhor Valls, convencido de que as mulheres eram incapazes de compor outra coisa que não fossem meias e colchas de renda, via contudo com bons olhos que a sua filha se convertesse numa competente intérprete ao teclado, pois tinha planos de a casar com algum herdeiro de bom apelido, e sabia que as pessoas requintadas gostavam de qualidades extravagantes nas raparigas casadoiras, além da docilidade e da exuberante fertilidade de uma juventude em flor.

Foi em casa dos Valls que Sophie conheceu um dos maiores benfeitores e padrinhos financeiros do senhor Valls: don Ricardo Aldaya, herdeiro do império Aldaya, já então a grande esperança branca da plutocracia catalã dos finais do século. Ricardo Aldaya tinha-se casado meses atrás com uma rica herdeira de beleza ofuscante e nome impronunciável, atributos que as más-línguas davam por verídicos, pois dizia-se que nem o seu recente marido via beleza alguma nela nem se incomodava a mencionar o seu nome. Tinha sido um casamento entre famílias e bancos, não uma criancice romântica, dizia o senhor Valls, para o qual se tornava muito claro que uma coisa eram os leitos e outra os feitos.

Bastou a Sophie cruzar um olhar com don Ricardo para saber que estava perdida para sempre. Aldaya tinha olhos de lobo, famintos e afiados, que abriam caminho e sabiam inevitavelmente onde assestar a dentada mortal. Aldaya beijou-lhe lentamente a mão, acariciando-lhe os nós dos dedos com os lábios. Tudo quanto o chapeleiro destilava de afabilidade e entusiasmo, exalava don Ricardo de crueldade e fortaleza. O seu sorriso canino deixava claro que era capaz de ler os seus pensamentos e os seus desejos e que se ria deles. Sophie sentiu por ele aquele anémico desprezo despertado pelas coisas que mais desejamos sem o saber. Disse a si mesma que não o voltaria a ver, que se fosse necessário deixaria de dar aulas à sua aluna preferida se com isso evitasse voltar a esbarrar em Ricardo Aldaya. Nada a tinha aterrado tanto na vida como pressentir aquele animal sob a pele, e reconhecer o seu predador, vestido de luxos de linho. Todos estes pensamentos lhe perpassaram pela mente em segundos apenas, enquanto forjava uma grosseira desculpa para se ausentar perante a perplexidade do senhor Valls, a gargalhada de Aldaya e o olhar derrotado da pequena Ana, que entendia as pessoas melhor do que a música e sabia que tinha perdido a sua professora sem apelo nem agravo.

Uma semana mais tarde, às portas da escola de música da Rua Diputación, Sophie encontrou-se com don Ricardo Aldaya, que a esperava fumando e passando a vista por um jornal. Trocaram um olhar e, sem dizer uma palavra, ele conduziu-a a um edifício a dois quarteirões dali. Era um imóvel novo, ainda sem inquilinos. Subiram até ao primeiro andar. Don Ricardo abriu a porta e deixou-a entrar. Sophie penetrou no andar, um labirinto de corredores e galerias, de paredes nuas e tectos invisíveis. Não havia móveis nem quadros nem candeeiros nem objecto algum que identificasse aquele espaço como uma residência. Don Ricardo Aldaya fechou a porta e ambos se olharam.

- Durante toda esta semana não parei de pensar em ti. Diz-me que não te aconteceu o mesmo e eu deixo-te partir e nunca mais me voltarás a ver - disse Ricardo.

Sophie abanou a cabeça.

A história dos seus encontros furtivos durou noventa e seis dias. Viam-se ao entardecer, sempre naquele andar vazio na esquina entre a Diputación e a Rambla de Cataluna. Terças e quintas, às três da tarde. Os seus encontros nunca duravam mais de uma hora. Às vezes Sophie ficava a sós, depois de Aldaya ter saído, a chorar ou a tremer a um canto daquela alcova. Depois, ao chegar o domingo, Sophie procurava desesperadamente nos olhos do chapeleiro vestígios da mulher que estava a desaparecer, ansiando pela devoção e pelo engano. O chapeleiro não via as marcas na pele, os cortes ou as queimaduras que lhe salpicavam o corpo. O chapeleiro não via o desespero no seu sorriso. Talvez por isso, aceitou a sua promessa de casamento. Já nessa altura ela pressentia que trazia o filho de Aldaya nas entranhas, mas receava dizer-lho, quase tanto como receava perdê-lo. Uma vez mais, foi Aldaya quem viu nela o que Sophie era incapaz de confessar. Deu-lhe quinhentas pesetas, uma direcção na Rua Platería e a ordem de que se desfizesse da criança. Quando Sophie se recusou, esbofeteou-a até que os ouvidos lhe sangraram e ameaçou mandá-la matar caso se atrevesse a mencionar os seus encontros ou a afirmar que o filho era dele. Quando ela disse ao chapeleiro que uns bandidos a tinham assaltado na Praça del Pino, ele acreditou. Quando lhe disse que queria ser sua mulher, ele acreditou. No dia do casamento, alguém mandou por engano uma grande coroa funerária à igreja. Todos riram nervosamente, perante a confusão do florista. Todos menos Sophie, que sabia perfeitamente que don Ricardo Aldaya continuava a lembrar-se dela no dia do seu casamento.

 

Sophie Carax nunca pensou que anos mais tarde voltaria a ver Ricardo (já um homem maduro à frente do império familiar, pai de dois filhos), nem que Aldaya regressaria para conhecer o filho que tinha querido suprimir por quinhentas pesetas.

- Talvez seja porque estou a ficar velho - deu como única explicação -, mas quero conhecer esse rapaz e dar-lhe as oportunidades na vida que um filho do meu sangue merece. Não me tinha ocorrido pensar nele durante todos estes anos e agora, estranhamente, não consigo pensar noutra coisa.

Ricardo Aldaya concluíra que não se revia no seu primogénito Jorge. O rapaz era débil, reservado e faltava-lhe a presença de espírito do pai. Faltava-lhe tudo, menos o apelido. Um dia, don Ricardo tinha acordado na cama de uma criada sentindo que o seu corpo envelhecia, que Deus lhe tinha retirado a graça. Presa do pânico, correu a ver-se ao espelho, nu, e sentiu que o espelho lhe mentia. Aquele não era ele.

Quis então encontrar de novo o homem que lhe tinham roubado. Havia anos que sabia do filho do chapeleiro. Tão-pouco esquecera Sophie, à sua maneira. Don Ricardo Aldaya nunca esquecia nada. Chegado o momento, decidiu conhecer o rapaz. Era a primeira vez em quinze anos que tropeçava em alguém que não tinha medo dele, que ousava desafiá-lo e inclusivamente fazer troça dele. Reconheceu nele a galhardia, a ambição silenciosa que os ignorantes não vêem mas que consome por dentro. Deus tinha-lhe devolvido de novo a juventude. Sophie, apenas um eco da mulher que ele recordava, não tinha sequer forças para se interpor entre eles. O chapeleiro não passava de um bobo, de um parolo malévolo e rancoroso cuja cumplicidade considerava comprada. Decidiu arrancar o Julián daquele mundo irrespirável de mediocridade e pobreza para lhe abrir as portas do seu paraíso financeiro. Seria educado no colégio de San Gabriel, gozaria de todos os privilégios da sua classe e iniciar-se-ia nos caminhos que o pai tinha escolhido para ele. Don Ricardo queria um sucessor digno de si mesmo. O Jorge viveria sempre à sombra do seu privilégio, num leito de rosas e fracassos. A Penélope, a bela Penélope, era mulher e portanto tesouro, não tesoureiro. O Julián, que tinha alma de poeta, e portanto de assassino, reunia as qualidades. Era só uma questão de tempo. Don Ricardo calculava que em dez anos se teria esculpido a si mesmo naquele rapaz. Nunca, durante todo o tempo que o Julián passou com os Aldaya, como mais um (inclusivamente como o eleito), lhe ocorreu pensar que o Julián não desejava nada dele, excepto a Penélope. Não lhe ocorreu nem por um instante que secretamente o Julián o desprezava e que toda aquela farsa não passava para ele de um pretexto para estar perto da Penélope. Para a possuir total e plenamente. Nisso eram parecidos.

Quando a mulher lhe anunciou que tinha descoberto o Julián e a Penélope nus em circunstâncias inequívocas, o universo inteiro pegou fogo. O horror e a traição, a raiva indizível de se saber ultrajado no que tinha por mais sagrado, enganado no seu próprio jogo, humilhado e apunhalado por aquele que aprendera a adorar como a si mesmo, assaltaram-no com tal fúria que ninguém conseguiu compreender o alcance da sua consternação. Quando o médico que foi examinar a Penélope confirmou que a rapariga tinha sido desflorada e que provavelmente estava grávida, a alma de don Ricardo Aldaya afundou-se no líquido espesso e viscoso do ódio cego. Via a sua própria mão na mão do Julián, a mão que tinha enterrado o punhal no mais profundo do seu coração. Não o sabia ainda, mas o dia em que mandou fechar Penélope à chave na alcova do terceiro andar foi o dia em que principiou a morrer. Tudo quanto fez a partir de então não foram senão os estertores da sua autodestruição.

Em colaboração com o chapeleiro, que tanto tinha desprezado, conspirou para que o Julián desaparecesse da cena e fosse mandado para o Exército, onde daria ordens para que a sua morte fosse declarada acidente. Proibiu que quem quer que fosse, nem médicos, nem criados, nem membros da família, excepto ele e a mulher, visse a Penélope nos meses em que a rapariga permaneceu fechada naquele quarto que cheirava a morte e a doença. Nessa altura já os sócios lhe tinham retirado secretamente o apoio e manobravam nas suas costas para lhe arrebatarem o poder empregando a fortuna que ele lhes tinha proporcionado. Nessa altura já o império Aldaya se desmoronava em silêncio, em assembleias secretas e reuniões de corredor em Madrid e nos bancos de Genebra. O Julián, como devia ter suspeitado, fugira. No fundo sentia-se secretamente orgulhoso do rapaz, mesmo desejando-o morto. Tinha feito o mesmo que ele no seu lugar. Alguém pagaria por ele.

A Penélope Aldaya deu à luz um rapaz que nasceu cadáver a 26 de Setembro de 1919. Se um médico tivesse podido examiná-la, teria declarado que a criança estava já em perigo havia dias e que era preciso intervir e realizar uma cesariana. Se tivesse estado presente um médico, talvez tivesse podido conter a hemorragia que levou a vida de Penélope no meio de gritos, arranhando a porta fechada, do outro lado da qual o seu pai chorava em silêncio e a mãe o fitava tremendo. Se tivesse estado presente um médico, teria acusado don Ricardo Aldaya de assassínio, pois não havia uma palavra que pudesse descrever a visão que aquela cela ensanguentada e escura encerrava. Mas não havia lá ninguém e, quando finalmente abriram a porta e encontraram a Penélope, morta e deitada num charco do seu próprio sangue, a abraçar uma criatura roxa e brilhante, ninguém foi capaz de abrir a boca. Os dois corpos foram enterrados na cripta da cave, sem cerimónia nem testemunhas. Os lençóis e os despojos foram atirados para dentro das caldeiras e o quarto fechado com uma parede de tijolos.

Quando o Jorge Aldaya, bêbado de culpa e vergonha, revelou o sucedido ao Miquel Moliner, este decidiu enviar ao Julián aquela carta assinada pela Penélope em que ela declarava que não o amava e lhe pedia que a esquecesse, anunciando-lhe um casamento fictício. Preferiu que o Julián acreditasse naquela mentira, e refizesse a vida à sombra de uma traição, a confiar-lhe a verdade. Dois anos mais tarde, quando a senhora Aldaya morreu, houve quem quisesse culpar os feitiços do casarão, mas o seu filho Jorge soube que aquilo que a tinha matado era o fogo que a comia por dentro, os gritos da Penélope e as suas pancadas desesperadas naquela porta, que continuavam a ecoar no seu interior sem parar. Por essa altura já a família tinha caído em desgraça e a fortuna dos Aldaya desfazia-se em castelos de areia frente à maré da cobiça mais raivosa, da vingança e da história inevitável. Secretários e tesoureiros urdiram a fuga para a Argentina, o início de um novo negócio, mais modesto. Tudo o que importava era ganhar distância. Distância dos espectros que percorriam os corredores do casarão Aldaya, que sempre os tinham percorrido.

Partiram num alvorecer de 1926 no mais negro dos anonimatos, viajando sob um falso nome a bordo daquele navio que os levaria através do Atlântico até ao porto de La Plata. O Jorge e o pai compartilhavam o camarote. O velho Aldaya, pestilento de morte e doença, mal se tinha de pé. Os médicos aos quais não tinha permitido verem a Penélope temiam-no demasiado para lhe dizerem a verdade, mas ele sabia que a morte embarcara com eles e que aquele corpo que Deus lhe começara a roubar naquela manhã em que decidira procurar o seu filho Julián se consumia. Ao longo daquela comprida travessia, sentado na coberta, a tremer debaixo dos cobertores e enfrentando o infinito vazio do oceano, soube que não chegaria a ver terra. Às vezes, sentado à popa, observava o cardume de tubarões que tinha vindo a seguir o barco pouco depois de fazer escala em Tenerife. Ouviu dizer a um dos oficiais que aquele sinistro séquito era habitual nos cruzeiros transoceânicos. Os animais alimentavam-se da carniça que o barco ia deixando atrás. Mas don Ricardo não acreditava nisso. Tinha a convicção de que aqueles demónios o seguiam a ele. «Estais à minha espera», pensava, vendo neles o verdadeiro rosto de Deus. Foi então que obrigou o seu filho Jorge, que tantas vezes tinha desprezado e a quem agora se via irremediavelmente obrigado a recorrer, a jurar que cumpriria a sua última vontade.

- Encontrarás o Julián Carax e matá-lo-ás. Jura-mo.

Um amanhecer, dois dias antes de chegar a Buenos Aires, o Jorge acordou e verificou que o beliche do pai estava vazio. Saiu a fim de o procurar na coberta, salpicada de nevoeiro e salitre, deserta. Encontrou o roupão do pai abandonado sobre a popa do navio, ainda morno. A esteira do navio perdia-se num bosque de brumas escarlate e o oceano sangrava reluzente de calma. Pôde então ver que o cardume de tubarões já não os seguia, e que uma dança de barbatanas dorsais se agitava em círculo ao longe. Durante a travessia, nenhum passageiro voltou a avistar o cardume de esqualos e, quando o Jorge Aldaya desembarcou em Buenos Aires e o oficial da alfândega lhe perguntou se viajava sozinho, limitou-se a assentir. Havia muito que viajava sozinho.

 

Dez anos depois de desembarcar em Buenos Aires, Jorge Aldaya, ou o despojo humano em que se tinha transformado, regressou a Barcelona. Os infortúnios que tinham começado a corroer a família Aldaya no Velho Mundo não tinham feito mais do que multiplicar-se na Argentina. Ali Jorge tivera de enfrentar sozinho o mundo e o moribundo legado de Ricardo Aldaya, uma luta para a qual nunca tivera as armas nem a serenidade dopai. Chegara a Buenos Aires com o coração vazio e a alma picada de remorsos. A América, diria mais tarde à guisa de desculpa ou epitáfio, é uma miragem, uma terra de depredadores e carniceiros, e ele tinha sido educado para os privilégios e os melindres insensatos da velha Europa, um cadáver que se sustinha por inércia. No curso de poucos anos perdeu tudo, a começar pela reputação e a acabar no relógio de ouro que o pai lhe tinha oferecido por ocasião da sua primeira comunhão. Graças a ele conseguiu comprar a passagem de volta. O homem que regressou a Espanha era apenas um mendigo, um saco de amargura e fracasso que só conservava a lembrança de que tudo o que sentia lhe tinha sido arrebatado e do ódio por quem considerava o culpado da sua ruína: Julián Carax.

Ainda lhe ardia na memória a promessa que fizera ao pai. Mal chegou a Barcelona, farejou o rasto de Julián para descobrir que Carax, tal como ele, também parecia ter-se desvanecido de uma Barcelona que já não era a que tinha deixado ao partir dez anos atrás. Foi por essa altura que se reencontrou com uma velha personagem da sua juventude, com aquele acaso desprendido e calculado do destino. Depois de uma assinalável carreira em reformatórios e prisões do Estado, Francisco Javier Fumero ingressara no Exército, atingindo o posto de tenente. Muitos auguravam-lhe um futuro de general, mas um turvo escândalo que nunca se chegaria a esclarecer originou a sua expulsão do Exército. Mesmo então, a sua reputação excedia o seu posto e as suas atribuições. Diziam muita coisa dele, mas temiam-no ainda mais. Francisco Javier Fumero, aquele rapaz tímido e perturbado que costumava apanhar as folhas caídas no pátio do colégio de San Gabriel, era agora um assassino. Corria o rumor de que Fumero liquidava notórias personagens por dinheiro, que despachava figuras políticas por encomenda de diversas mãos negras e que era a morte personificada.

Aldaya e ele reconheceram-se de imediato nas brumas do café Novedades. Aldaya estava doente, consumido por uma estranha febre da qual culpava os insectos das selvas americanas.

«Lá até os mosquitos são uns filhos da puta», lamentava-se. Fumero ouvia-o com um misto de fascinação e repugnância. Ele sentia veneração pelos mosquitos e pelos insectos em geral. Admirava a sua disciplina, a sua fortaleza e a sua organização. Não existia neles a calaceirice, a irreverência, a sodomia nem a degeneração da raça. Os seus espécimes predilectos eram os aracnídeos, com a sua rara ciência para tecerem uma armadilha em que, com infinita paciência, esperavam as suas presas, que mais tarde ou mais cedo sucumbiam, por estupidez ou preguiça. Na sua opinião, a sociedade civil tinha muito a aprender com os insectos. Aldaya era um caso estranho de ruína moral e física. Tinha envelhecido notavelmente e parecia descuidado, sem tónus muscular. Fumero detestava as pessoas sem tónus muscular. Induziam-lhe vómitos.

- Estou muito mal, Javier - implorou Aldaya. - Podes-me dar uma mão por uns dias?

Intrigado, Fumero decidiu levar Jorge Aldaya para sua casa. Fumero vivia num tenebroso andar no Raval, na rua Cadena, em companhia de numerosos insectos que armazenava em frascos de farmácia e meia dúzia de livros. A Fumero aborreciam tanto os livros como adorava os insectos, mas aqueles não eram volumes correntes: eram os romances de Julián Carax que a editora Cabestany tinha publicado. Fumero pagou às manhosas que ocupavam o andar da frente - um duo de mãe e filha que se deixavam beliscar e queimar com um cigarro quando a clientela fraquejava, sobretudo no fim do mês - para tratarem de Aldaya enquanto ele ia trabalhar. Não tinha interesse algum em vê-lo morrer. Ainda não.

Francisco Javier Fumero tinha ingressado na Brigada Criminal, onde havia sempre trabalho para pessoal qualificado e capaz de afrontar os estuchos mais ingratos que era preciso resolver com discrição para que as pessoas respeitáveis pudessem continuar a viver de ilusões. Era qualquer coisa assim que lhe tinha dito o tenente Durán, um homem dado à prosopopeia contemplativa sob cujo comando se iniciara na corporação.

- Ser polícia não é um emprego, é uma missão -proclamava Durán. -A Espanha precisa de mais colhões e menos tertúlias.

Infelizmente, o tenente Durán não tardaria a perder a vida num aparatoso acidente ocorrido durante uma rusga na Barceloneta.

Na confusão da refrega com uns anarquistas, Durán tinha-se precipitado cinco andares por uma clarabóia, estatelando-se num cravo de vísceras. Todos concordaram que Espanha tinha perdido um grande homem, um prócer com visão de futuro, um pensador que não receava a acção. Fumero assumiu o seu lugar com orgulho, ciente de que tinha feito bem ao empurrá-lo, pois Durán já estava velho para o trabalho. Fumero tinha nojo dos velhos - tal como dos entrevados, dos ciganos e dos maricas -, com tónus muscular ou não. Deus, às vezes, enganava-se. Era dever de todo o homem íntegro corrigir essas pequenas falhas e manter um mundo apresentável.

Umas semanas depois do seu encontro no café Novedades, em Março de 1932, Jorge Aldaya começou a sentir-se melhor e abriu-se com Fumero. Pediu-lhe desculpa pela maneira como o tinha tratado nos seus dias de adolescência e, com lágrimas nos olhos, contou-lhe a sua história inteira, sem deixar nada de fora. Fumero escutou-o em silêncio, assentindo, absorvendo. Enquanto o fazia, perguntou a si mesmo se devia matar Aldaya naquele instante ou esperar. Perguntava a si mesmo se ele estaria tão débil que a lâmina da faca apenas arrancaria uma tíbia agonia na sua carne malcheirosa e amolecida pela indolência. Decidiu protelar a vivissecção. A história intrigava-o, especialmente no que tocava a Julián Carax.

Sabia pelas informações que pudera obter na editora Cabestany que Carax vivia em Paris, mas Paris era uma cidade muito grande e ninguém na editora parecia conhecer a direcção exacta. Ninguém a não ser uma mulher apelidada Monfort que se recusava a divulgá-la. Fumero seguira-a duas ou três vezes ao sair dos escritórios da editora sem que ela desse por isso. Tinha chegado a viajar no eléctrico a meio metro dela. As mulheres nunca reparavam nele e, se o faziam, desviavam o olhar para outro lado, fingindo não o ter visto. Uma noite, depois de a ter seguido até à porta do prédio dela na praça del Pino, Fumero voltou a casa e masturbou-se furiosamente enquanto se imaginava a mergulhar a lâmina da faca no corpo daquela mulher, dois ou três centímetros por facada, lenta e metodicamente, olhando-a nos olhos. Talvez então se dignasse dar-lhe a direcção de Carax e a tratá-lo com o respeito devido a um oficial da polícia.

Julián Carax era a única pessoa que Fumero se tinha proposto matar e não o tinha conseguido. Talvez por ter sido a primeira, e com o tempo tudo se aprende. Ao ouvir aquele nome outra vez, sorriu do modo que tanto espantava as suas vizinhas, as manhosas, sem pestanejar, lambendo lentamente o lábio superior. Ainda se lembrava de Carax a beijar Penélope Aldaya no casarão da Avenida del Tibidabo. A sua Penélope. O seu amor tinha sido puro, a sério, pensava Fumero, como os que se viam no cinema. Fumero gostava muito de cinema e ia pelo menos duas vezes por semana. Tinha sido numa sala de cinema que Fumero compreendera que Penélope fora o amor da sua vida. O resto, especialmente a mãe, tinham sido só putas. Ao ouvir os últimos retalhos do relato de Aldaya, decidiu que ao fim e ao cabo não o ia matar. Aliás, sentiu-se satisfeito por o destino os ter reunido. Teve uma visão, como nos filmes que tanto prazer lhe davam: Aldaya ia-lhe servir os outros de bandeja. Mais tarde ou mais cedo, todos eles acabariam apanhados na sua rede.

 

No Inverno de 1934, os irmãos Moliner conseguiram finalmente despejar o Miquel e expulsá-lo do Palacete de Puertaferrisa, que ainda hoje continua vazio e em estado de ruína. Só desejavam vê-lo na rua, despojado do pouco que lhe restava, dos seus livros e daquela liberdade e isolamento que os ofendia e lhes inflamava as vísceras de ódio. Não me quis dizer nada nem recorrer a mim em busca de ajuda. Só soube que se tinha transformado quase num mendigo quando fui procurá-lo àquele que tinha sido o seu lar e me encontrei com os sicários dos irmãos, que estavam a fazer o inventário do prédio e a liquidar os poucos objectos que lhe tinham pertencido. O Miquel estava havia já várias noites a dormir numa pensão da rua Canuda, um tugúrio lúgubre e húmido que exalava o calor e o cheiro de um ossário. Ao ver o quarto a que estava confinado, uma espécie de caixão sem janelas e com um catre prisional, peguei no Miquel e levei-o para casa. Não parava de tossir e parecia consumido. Ele disse que era uma constipação mal curada, um mal menor de solteirona que não tardaria a ir embora por aborrecimento. Duas semanas mais tarde estava pior.

Como vestia sempre de preto, levei tempo a compreender que aquelas nódoas nas mangas eram de sangue. Chamei um médico que, mal o examinou, me perguntou por que tinha esperado até então para o chamar. O Miquel tinha tuberculose. Arruinado e doente, vivia apenas de recordações e remorsos. Era o homem mais bondoso e frágil que eu tinha conhecido, o meu único amigo. Casámo-nos numa manhã de Fevereiro num juízo municipal. A nossa viagem de núpcias limitou-se a irmos tomar o funicular do Tibidabo e subir para contemplar Barcelona dos terraços do parque, uma miniatura de névoas. Não dissemos a ninguém que nos tínhamos casado, nem a Cabestany, nem ao meu pai, nem à família dele, que o dava como morto. Cheguei a escrever uma carta ao Julián a contar-lho, mas nunca lha enviei. O nosso casamento foi um casamento secreto. Vários meses depois da boda bateu à porta um indivíduo que disse chamar-se Jorge Aldaya. Era um homem demolido, com o rosto velado de suor apesar do frio que mordia até as pedras. Ao reencontrarem-se depois de mais de dez anos, o Aldaya sorriu amargamente e disse: «Estamos todos amaldiçoados, Miquel. Tu, o Julián, o Fumero e eu.» Alegou que o motivo da sua visita era um gesto de reconciliação com o seu velho amigo Miquel na esperança de que este lhe providenciaria agora a maneira de contactar com o Julián Carax, pois tinha uma mensagem muito importante para ele da parte do seu falecido pai, don Ricardo Aldaya. O Miquel disse desconhecer onde se encontrava Carax.

- Há anos que perdemos o contacto - mentiu. - A última coisa que soube dele foi que estava a viver em Itália.

O Aldaya já esperava esta resposta.

- Decepcionas-me, Miquel. Esperava que o tempo e a desgraça te tivessem tornado mais sábio.

- Há decepções que honram quem as inspira.

O Aldaya, minúsculo, raquítico e a ponto de se desmoronar em pedaços de fel, riu-se.

- O Fumero manda-vos as suas mais sinceras felicitações pelo vosso casamento - disse, a caminho da porta.

Aquelas palavras gelaram-me o coração. O Miquel não quis dizer nada, mas nessa noite, enquanto eu o abraçava e fingíamos conciliar um sono impossível, soube que o Aldaya tinha razão. Estávamos amaldiçoados.

Passaram vários meses sem que tivéssemos notícias do Julián ou do Aldaya. O Miquel continuava a manter algumas colaborações fixas nas rotativas de Barcelona e Madrid. Trabalhava sem parar sentado à máquina de escrever, destilando aquilo a que chamava patacoadas e pasto para leitores de eléctrico. Eu mantinha o meu lugar na editora Cabestany, talvez porque era essa a única maneira de me sentir mais próxima do Julián. Ele tinha-me enviado uma breve nota a anunciar-me que estava a trabalhar num novo romance intitulado A Sombra do Vento, que contava acabar daí a uns meses. A carta não fazia qualquer referência ao sucedido em Paris. O tom era mais frio e distante que nunca. As minhas tentativas para o odiar foram vãs. Começava a acreditar que o Julián não era um homem, era uma doença.

O Miquel não se enganava a respeito dos meus sentimentos. Entregava-me o seu afecto e a sua devoção sem nada pedir em troca além da minha companhia e talvez a minha discrição. Não ouvia dos seus lábios uma censura ou uma mágoa. Com o tempo comecei a sentir por ele uma ternura infinita, para além da amizade que nos tinha unido e da compaixão que a seguir nos tinha condenado. O Miquel abrira uma conta de aforro em meu nome na qual depositava quase todos os proventos que obtinha escrevendo para os jornais. Nunca dizia que não a uma colaboração, uma crítica ou uma gazetilha. Escrevia com três pseudónimos, catorze ou dezasseis horas por dia. Quando lhe perguntava por que trabalhava tanto, limitava-se a sorrir, ou dizia-me que sem fazer nada se aborreceria. Nunca houve falsidades entre nós, nem sequer sem palavras. O Miquel sabia que ia morrer em breve, que a doença lhe rondava os meses com cupidez.

- Tens de me prometer que, se acontecer alguma coisa, pegarás nesse dinheiro e voltarás a casar-te, que terás filhos e que nos esquecerás a todos, a mim em primeiro lugar.

- E com quem é que me ia casar, Miquel? Não digas tolices.

Às vezes surpreendia-o a fitar-me de um canto com um sorriso manso, como se a mera contemplação da minha presença fosse o seu maior tesouro. Todas as tardes me ia buscar à saída da editora, o seu único momento de descanso em todo o dia. Eu via-o caminhar curvado, a tossir e a fingir uma fortaleza que se lhe perdia na sombra. Levava-me a lanchar ou a ver as montras da Rua Fernando e depois voltávamos a casa, onde ele continuava a trabalhar até depois da meia-noite. Bendizia em silêncio cada minuto que passávamos juntos e todas as noites adormecia abraçado a mim, e eu tinha de ocultar as lágrimas que me arrancava a cólera de ter sido incapaz de amar aquele homem como ele a mim, incapaz de lhe dar o que tinha abandonado aos pés do Julián para nada. Muitas noites jurei a mim mesma que esqueceria o Julián, que dedicaria o resto da minha vida a fazer aquele pobre homem feliz e a devolver-lhe apenas umas migalhas do que ele me dera. Fui a amante do Julián durante duas semanas, mas seria a mulher do Miquel o resto da minha vida. Se algum dia estas páginas te chegarem às mãos e me julgares, como eu fiz ao escrevê-las e ver-me neste espelho de maldições e remorsos, recorda-me assim, Daniel.

O manuscrito do último romance do Julián chegou em fins de 1935. Não sei se por despeito ou por medo, entreguei-o ao impressor sem sequer o ler. As últimas poupanças do Miquel tinham já financiado adiantadamente a edição meses atrás. Cabestany, já nessa altura com problemas de saúde, não queria saber do resto para nada. Naquela mesma semana, o médico que examinava o Miquel foi ver-me à editora, muito preocupado. Explicou-me que, se o Miquel não abrandasse o ritmo de trabalho e não observasse repouso, o pouco que ele podia fazer para combater a tísica não dava em nada.

- Teria de estar na montanha, não em Barcelona a respirar nuvens de lixívia e carvão. Nem ele é um gato com nove vidas nem eu uma ama-seca. Faça-o a senhora reconsiderar. A mim não me dá ouvidos.

Ao meio-dia resolvi ir até casa para falar com ele. Antes de abrir a porta do andar ouvi vozes lá dentro. O Miquel discutia com alguém. A princípio julguei que se tratava de alguém do jornal, mas pareceu-me ouvir o nome do Julián na conversa. Ouvi passos que se aproximavam da porta e corri a esconder-me no patamar do sótão. Dali pude vislumbrar o visitante.

Um homem de preto, de feições cinzeladas com indiferença e lábios finos como uma cicatriz aberta. Tinha uns olhos pretos e sem expressão, olhos de peixe. Antes de se perder escadas abaixo, parou e ergueu o olhar em direcção à penumbra. Apoiei-me contra a parede, sustendo a respiração. O visitante permaneceu ali durante uns instantes, como se me pudesse cheirar, lambendo-se com um sorriso canino. Esperei que os seus passos se desvanecessem completamente antes de abandonar o meu esconderijo e entrar no andar. Flutuava um cheiro a cânfora no ar. O Miquel estava sentado junto à janela, as mãos caídas de ambos os lados da cadeira. Tremiam-lhe os lábios. Perguntei-lhe quem era aquele homem e o que queria.

- Era o Fumero. Veio trazer notícias do Julián.

- Que sabe ele do Julián?

O Miquel olhou para mim, mais abatido que nunca.

- O Julián vai-se casar.

A notícia deixou-me sem fala. Abati-me numa cadeira e o Miquel pegou-me nas mãos. Falava com dificuldade e cansaço. Antes que eu conseguisse abrir a boca, Miquel pôs-se a resumir-me os factos que o Fumero lhe tinha referido e o que era de imaginar a esse respeito. O Fumero tinha utilizado os seus contactos na polícia de Paris para dar com o paradeiro do Julián Carax e observá-lo. O Miquel supunha que aquilo podia ter sucedido meses ou até anos antes. O que o preocupava não era que o Fumero tivesse encontrado Carax, coisa que era questão de tempo, mas sim o ter decidido revelar-lho agora, juntamente com a peregrina notícia de umas núpcias improváveis. O casamento, pelo que se sabia, deveria ter lugar no princípio do Verão de 1936. Da noiva só se sabia o nome, que neste caso era mais que suficiente: Irene Marceau, a patroa do estabelecimento onde o Julián trabalhara como pianista durante anos.

- Não compreendo - cochichei. - O Julián vai casar com a sua mecenas?

- Precisamente. Não é um casamento. É um contrato.

Irene Marceau tinha mais uns vinte e cinco ou trinta anos do que o Julián. O Miquel suspeitava que Irene decidira acordar naquele enlace com o Julián para lhe trespassar o seu negócio e assegurar-lhe o futuro.

- Mas ela já o ajuda. Tem-no ajudado desde sempre.

- Talvez saiba que não vai estar cá para sempre - sugeriu o Miquel.

O eco daquelas palavras perturbava-nos demasiado de perto. Ajoelhei junto dele e abracei-o. Mordi os lábios para que ele não me visse chorar.

- O Julián não gosta dessa mulher, Nuria - disse-me ele, julgando que era essa a causa da minha aflição.

- O Julián não gosta de ninguém a não ser de si mesmo e dos seus malditos livros - murmurei.

Ergui o olhar e deparei com o sorriso do Miquel, de criança velha e sábia.

- E que pretende o Fumero ao trazer todo este assunto a lume agora? Não tardámos a descobri-lo. Dias mais tarde, um Jorge Aldaya fantasmal e famélico apareceu-nos em casa, inflamado de ira e indignação. O Fumero tinha-lhe contado que o Julián Carax se ia casar com uma mulher rica numa cerimónia de luxo folhetinesco. O Aldaya andava havia dias a carcomer-se com as visões do causador da sua desgraça, trajado de ouropéis e a cavalo numa fortuna que ele tinha visto perder. O Fumero não lhe tinha contado que Irene Marceau, se bem que fosse uma mulher de uma certa posição económica, era dona de um bordel e não uma princesa de fábula vienense. Não lhe tinha contado que a noiva era trinta anos mais velha que Carax e que, mais do que um casamento, aquilo era um acto de caridade para com um homem acabado e sem meios de subsistência. Não lhe tinha contado nem a data nem o local do casamento. Limitara-se a lançar as sementes de uma fantasia que devorava por dentro o pouco que as febres tinham deixado no seu corpo definhado e hediondo.

- O Fumero mentiu-te, Jorge - disse o Miquel.

- E tu, o rei dos mentirosos, ousas acusar o próximo! - delirava o Aldaya. Não foi preciso que o Aldaya revelasse os seus pensamentos, que em tão exíguas carnes se lhe liam no semblante cadavérico como palavras sob a pele macilenta. O Miquel viu claramente o jogo do Fumero. Ele tinha-lhe ensinado a jogar xadrez mais de vinte anos atrás no colégio de San Gabriel. O Fumero tinha a estratégia de uma louva-a-deus e a paciência dos imortais. O Miquel mandou uma nota ao Julián a adverti-lo.

Quando o Fumero considerou oportuno, chamou o Aldaya de parte, envenenou-lhe o coração de rancor e disse-lhe que o Julián se casava daí a três dias. Sendo ele um oficial da polícia, argumentou, não se podia comprometer num assunto assim. O Aldaya, porém, como civil, podia deslocar-se a Paris e assegurar-se de que aquele casamento nunca chegasse a realizar-se. Como?, perguntaria um Aldaya febril, carbonizado de aversão. Desafiando-o para um duelo no próprio dia do casamento. O Fumero chegou até a proporcionar-lhe a arma com que o Jorge estava convencido de que perfuraria aquele coração de fel que arruinara a dinastia dos Aldaya. O relatório da polícia de Paris diria mais tarde que a arma encontrada aos seus pés era defeituosa e que nunca poderia ter feito mais do que fez: rebentar-lhe na cara. O Fumero já o sabia quando lha entregou num estojo na plataforma da estação de Francia. Sabia perfeitamente que a febre, a estupidez e a raiva cega o impediriam de matar o Julián Carax num duelo tresnoitado de honra e amanheceres no cemitério de Père Lachaise. E se por acaso reunisse as forças e faculdades para o fazer, a arma que levava seria a encarregada de o abater. Não era Carax quem devia morrer naquele duelo, mas sim o Aldaya. A sua existência absurda, o seu corpo e alma em suspenso que o Fumero tinha permitido vegetarem pacientemente, cumpririam assim a sua função.

O Fumero sabia também que o Julián nunca aceitaria defrontar-se com o seu antigo colega, moribundo e reduzido a um lamento. Por esse motivo instruiu claramente o Aldaya sobre os passos a seguir. Deveria confessar-lhe que a carta que a Penélope lhe escrevera anos atrás a anunciar-lhe o seu casamento e pedindo-lhe que a esquecesse era uma trapaça. Deveria revelar-lhe que fora ele próprio, o Jorge Aldaya, que tinha obrigado a irmã a redigir aquele rosário de mentiras enquanto ela chorava desesperadamente, proclamando aos quatro ventos o seu amor imortal pelo Julián. Deveria dizer-lhe que ela tinha estado à espera dele, com a alma desfeita e o coração a sangrar, desde então, morta de abandono. Isso bastaria. Bastaria para que Carax premisse o gatilho e a cara fatalmente se lhe desfizesse. Bastaria para que esquecesse todo o plano do casamento e não conseguisse albergar mais nenhum pensamento do que regressar a Barcelona em busca da Penélope e de uma vida derramada. E em Barcelona, aquela grande teia de aranha que ele tinha feito sua, o Fumero estaria à sua espera.

 

O Julián Carax atravessou a fronteira francesa poucos dias antes de deflagrar a guerra civil. A primeira e única edição de A Sombra do Vento tinha saído um par de semanas antes do prelo rumo ao cinzento anonimato e à invisibilidade dos seus antecessores. Nessa altura o Miquel já quase não podia trabalhar e, embora se sentasse duas ou três horas todos os dias à frente da máquina de escrever, a debilidade e a febre impediam-no de arrancar palavras ao papel. Perdera várias das colaborações por causa dos atrasos nas entregas. Outros jornais receavam publicar os seus artigos depois de terem recebido várias ameaças anónimas. Restava-lhe apenas uma coluna diária no Diário de Barcelona que assinava como Adrián Maltês. Sentia-se já no ar o fantasma da guerra. O país tresandava a medo. Sem ocupação e demasiado débil até para se lamentar, o Miquel costumava descer à praça ou ir até à avenida de La Catedral, levando sempre consigo um dos livros do Julián como se fosse um amuleto. Da última vez que o médico o tinha pesado não chegava aos sessenta quilos. Ouvimos a notícia do levantamento em Marrocos pela rádio e poucas horas depois um colega do jornal do Miquel veio ter connosco para nos dizer que o Cansinos, o chefe de redacção, tinha sido assassinado duas horas antes com um tiro na nuca defronte do café Canaletas. Ninguém se atrevia a levar o corpo, que continuava ali, tingindo uma teia de aranha de sangue sobre o passeio.

Os breves mas intensos dias de terror inicial não se fizeram esperar. As tropas do general Goded tomaram a Diagonal e o Paseo de Gracia em direcção ao centro, onde começou o fogo. Era domingo e muitos barceloneses ainda tinham saído à rua julgando que iam passar o dia num restaurante ao ar livre na estrada de Las Planas. Os dias mais negros da guerra em Barcelona, porém, ainda estavam a dois anos de vista. Pouco depois de se iniciar a refrega, as tropas do general Goded renderam-se, por um milagre ou por má informação entre os comandos. O governo de Lluís Companys parecia ter recuperado o controlo, mas o que realmente sucedera tinha muito mais alcance e começaria a ser evidente nas semanas subsequentes.

Barcelona tinha passado a estar em poder dos sindicatos anarquistas. Após dias de distúrbios e combates de rua, correu finalmente o rumor de que os quatro generais rebeldes tinham sido sentenciados no castelo de Montjuic pouco depois da rendição. Um amigo do Miquel, um jornalista britânico que estivera presente, disse que o pelotão de fuzilamento era de sete homens, mas que no último momento dezenas de milicianos se juntaram ao festim. Quando foi aberto fogo, os corpos receberam tantos tiros que se desfizeram em pedaços irreconhecíveis e foi preciso metê-los nos caixões em estado quase líquido. Alguns quiseram crer que aquilo era o fim do conflito, que as tropas fascistas nunca chegariam a Barcelona e que a rebelião se extinguiria pelo caminho. Era só o aperitivo.

Soubemos que o Julián estava em Barcelona no dia da rendição de Goded, ao receber a carta de Irene Marceau, na qual nos contava que o Julián tinha matado o Jorge Aldaya no decurso de um duelo no cemitério de Père Lachai-se. Antes mesmo de o Aldaya expirar, uma chamada anónima tinha alertado a polícia do sucedido. O Julián teve de fugir de Paris de imediato, perseguido pela polícia que o procurava por assassínio. Não tivemos nenhuma dúvida de quem tinha feito aquela chamada. Esperámos ansiosamente saber do Julián para o advertir do perigo que o espreitava e para o proteger de uma cilada pior do que aquela que o Fumero lhe tinha armado: descobrir a verdade. Três dias mais tarde, o Julián continuava sem dar sinal de vida. O Miquel não queria compartilhar comigo a sua preocupação, mas eu sabia perfeitamente o que ele estava a pensar.

O Julián tinha regressado para procurar a Penélope, e não a nós.

- Que sucederá quando ele souber a verdade? - perguntava eu.

- Nós nos encarregaremos de que isso não aconteça - respondia o Miquel.

Para já, a primeira coisa que ia verificar era que a família Aldaya tinha desaparecido sem deixar rasto. Não ia encontrar muitos sítios onde começar a procurar a Penélope. Fizemos uma lista desses sítios e iniciámos o nosso périplo. O casarão da Avenida del Tibidabo não era mais do que um prédio deserto, vedado atrás de correntes e mantos de hera. Uma florista ambulante que vendia molhos de rosas e cravos na esquina oposta disse-nos que só se lembrava de uma pessoa que se tivesse aproximado da casa recentemente, mas era um homem de certa idade, quase velho e ligeiramente coxo.

- Por sinal que tinha bastante mau génio. Quis-lhe vender um cravo para a lapela e mandou-me à merda, dizendo que estávamos em guerra e os tempos não estavam para flores.

Não tinha visto mais ninguém. O Miquel comprou-lhe umas rosas murchas e, em todo o caso, deixou-lhe o telefone da redacção do Diário de Barcelona para ela lhe deixar recado se porventura aparecesse alguém que correspondesse à figura de Carax. Dali, a nossa paragem seguinte foi o colégio de San Gabriel, onde o Miquel se reencontrou com Fernando Ramos, seu antigo companheiro de estudos.

Fernando era agora professor de latim e grego e vestia o hábito. Ao ver o Miquel em tão precário estado de saúde, caiu-lhe a alma aos pés. Disse-nos que não tinha recebido a visita do Julián, mas prometeu entrar em contacto connosco se isso acontecesse, e tentar retê-lo. O Fumero tinha lá estado antes de nós, confessou-nos com temor. Agora dava pelo nome de inspector Fumero e tinha-lhe dito que, em tempos de guerra, o melhor era estar alerta.

- Muita gente ia morrer muito em breve, e os uniformes, de padre ou de soldado, não paravam as balas...

Fernando Ramos confessou-nos que não era claro a que corporação ou grupo pertencia o Fumero, e que não fora ele que se atrevera a perguntar-lho. É-me impossível descrever-te aqueles primeiros dias da guerra em Barcelona, Daniel. O ar parecia envenenado de medo e de ódio. Os olhares eram de receio e as ruas cheiravam a um silêncio que se sentia no estômago. Todos os dias, a toda a hora, corriam novos rumores e murmurações. Lembro-me de uma noite, ao voltar a casa, em que o Miquel e eu descíamos pelas Ramblas. Estavam desertas, sem uma alma à vista. O Miquel fitava as fachadas, os rostos ocultos entre os postigos a esquadrinharem as sombras da rua, e dizia que se podiam sentir as facas a serem afiadas atrás das paredes.

No dia seguinte dirigimo-nos à chapelaria Fortuny, sem grandes esperanças de lá encontrar o Julián. Um vizinho da escada disse-nos que o chapeleiro estava aterrado com os tumultos dos últimos dias e que se tinha fechado dentro da loja. Por mais que batêssemos, não nos quis abrir. Naquela tarde tinha havido um tiroteio a um quarteirão apenas dali e os charcos de sangue ainda estavam frescos na Ronda de San António, onde o cadáver de um cavalo continuava abatido no empedrado à mercê dos cães vadios e que começavam a abrir-lhe o bucho esburacado às dentadas enquanto algumas crianças observavam de perto e lhes atiravam pedras. Tudo o que conseguimos foi ver-lhe o rosto espantado através do ralo da porta. Dissemos-lhe que procurávamos o seu filho Julián. O chapeleiro disse-nos que o filho estava morto e que nos puséssemos a andar ou chamaria a polícia. Fomo-nos embora descoroçoados.

Durante dias percorremos cafés e lojas, perguntando pelo Julián. Indagámos em hotéis e pensões, em estações de comboio, em bancos aos quais pudesse ter ido para trocar moeda... Ninguém se lembrava de um homem que correspondesse à descrição do Julián. Tememos que tivesse porventura caído nas mãos do Fumero, e o Miquel arranjou maneira de um dos seus colegas do jornal, que tinha contactos na esquadra, indagar se o Julián tinha dado entrada na prisão. Não havia indício algum de que assim fosse. Tinham passado duas semanas e parecia que a terra engolira o Julián.

O Miquel mal dormia, à espera de ter notícias do amigo. Um entardecer, o Miquel regressou do seu passeio de todas as tardes com uma garrafa de vinho do Porto, nem mais nem menos. Tinham-lha oferecido no jornal, disse ele, porque o subdirector lhe comunicara que não podiam publicar mais a sua coluna.

- Não querem complicações, e eu percebo-os.

- E que vais fazer?

- Embebedar-me, para já.

Miquel bebeu apenas meio copo, mas eu emborquei a garrafa quase inteira sem me aperceber e com o estômago vazio. Era quase meia-noite quando me assaltou um sopor impossível e me abati sobre o sofá. Sonhei que o Miquel me beijava na testa e me tapava com uma estola. Ao acordar senti terríveis pontadas de dor na cabeça que reconheci como o prelúdio de uma ressaca feroz. Fui à procura do Miquel para amaldiçoar a hora em que lhe tinha ocorrido embebedar-me, mas apercebi-me de que estava sozinha no andar. Abeirei-me da secretária e vi que havia uma nota em cima da máquina de escrever na qual me pedia que não me alarmasse e o esperasse ali. Tinha ido à procura do Julián e depressa o traria para casa. Acabava dizendo-me que me amava. A nota caiu-me das mãos. Reparei então que, antes de sair, o Miquel tinha tirado as suas coisas da secretária, como se não pensasse voltar a utilizá-la, e soube que nunca mais voltaria a vê-lo.

 

Naquela tarde, o vendedor ambulante de flores tinha telefonado para a redacção do Diário de Barcelona e deixado um recado para Miquel informando-o de que vira o homem que tínhamos descrito a vaguear perto do casarão como um espectro. Passava da meia-noite quando Miquel chegou ao número 32 da Avenida del Tibidabo, um vale lúgubre e deserto açoitado por dardos de luar que se filtravam por entre o arvoredo. Embora houvesse dezassete anos que não o via, Miquel reconheceu em Julián aquele andar leve, quase felino. A sua silhueta deslizava por entre a penumbra do jardim, junto à fonte. Julián tinha saltado a sebe e rondava a casa como um animal inquieto. Miquel poderia tê-lo chamado dali, mas preferiu não alertar possíveis testemunhas. Tinha a impressão de que olhares furtivos espiavam a avenida das janelas escuras das mansões confinantes. Contornou o muro do prédio até à parte que dava para os antigos campos de ténis e as cocheiras. Pôde reconhecer os entalhes na pedra que Julián tinha usado como degraus e as lajes soltas sobre o muro. Empoleirou-se quase sem ofegar, sentindo profundas pontadas no peito e chicotadas de cegueira no olhar. Deitou-se sobre o muro, com as mãos a tremer, e chamou Julián num sussurro. A silhueta que cercava a fonte permaneceu imóvel, unindo-se às restantes estátuas. Miquel pôde ver o brilho de uns olhos, cravados sobre ele. Perguntou a si mesmo se Julián o ia reconhecer, após dezassete anos e uma doença que lhe tinha levado até a respiração. A silhueta aproximou-se lentamente dele, brandindo um objecto na mão direita, brilhante e alongado. Um vidro.

- Julián... - murmurou Miquel.

A figura parou de chofre. Miquel ouviu o vidro cair sobre a gravilha. O rosto de Julián emergiu do negrume. Uma barba de duas semanas cobria-lhe as feições, mais afiladas.

- Miquel?

Incapaz de saltar para o outro lado, ou sequer de voltar pelo mesmo caminho até à rua, Miquel estendeu a mão. Julián empoleirou-se no muro e, puxando o punho do amigo com força, poisou-lhe a palma da mão no rosto. Olharam-se em silêncio durante um longo espaço de tempo, pressentindo as feridas que a vida talhara no outro.

- Temos de ir embora daqui, Julián. O Fumero anda à tua procura. Aquilo do Aldaya foi uma armadilha.

- Eu sei - murmurou Carax, sem tom nem inflexão.

- A casa está fechada. Há anos que não vive aqui ninguém - acrescentou Miquel. - Anda, ajuda-me a descer e vamos embora daqui.

Carax trepou de novo o muro. Ao agarrar Miquel com ambas as mãos, sentiu como o corpo do amigo se tinha consumido sob as roupas demasiado folgadas. Mal se pressentia carne ou músculo. Uma vez do outro lado, Carax segurou Miquel por baixo dos ombros e, quase carregando com todo o peso, afastaram-se na escuridão pela rua Román Macaya.

- Que tens? - murmurou Carax.

- Não é nada. Umas febres. Já me estou a restabelecer.

Miquel exalava já o cheiro da doença e Julián não perguntou mais. Desceram pela León XIII até ao Paseo de San Gervasio, onde se vislumbravam as luzes de um café. Refugiaram-se numa mesa ao fundo, longe da entrada e das grandes janelas. Um par de fregueses velava ao balcão em duo com um cigarro e o rumor do rádio. O empregado, um homem com a pele cor de cera e os olhos crucificados no chão, tomou nota do pedido. Brande morno, café e o que ainda houvesse de comer.

Miquel não comeu nada. Carax, aparentemente voraz, comeu por ambos. Os dois amigos olhavam-se à luz pegajosa do café, arrebatados no feitiço do tempo. A última vez que se haviam visto cara a cara tinham metade da idade. Tinham-se separado como rapazes e agora a vida devolvia-lhes um fugitivo a um e um moribundo ao outro. Ambos perguntavam a si mesmos se teriam sido as cartas que a vida lhes tinha dado, ou se teria sido a maneira como as haviam jogado.

- Nunca te agradeci por tudo o que fizeste por mim nestes anos, Miquel.

- Não comeces agora. Fiz o que devia e queria. Não há nada a agradecer.

- Como está a Nuria?

- Como a deixaste. Carax baixou o olhar.

- Casámo-nos há meses. Não sei se ela te escreveu para te contar.

Os lábios de Carax congelaram-se enquanto abanava lentamente a cabeça.

- Não tens o direito de lhe censurar nada, Julián.

- Bem sei. Não tenho direito a nada.

- Por que não recorreste a nós, Julián?

- Não vos queria comprometer.

- Isso já não está nas tuas mãos. Onde estiveste estes dias? Julgámos que a terra te tinha engolido.

- Quase. Estive em casa. Em casa do meu pai.

Miquel olhou-o com espanto. Julián passou a relatar-lhe como, ao chegar a Barcelona, sem saber onde ir, se tinha dirigido à casa onde fora criado, receando que já lá não houvesse ninguém. A chapelaria continuava de pé, aberta, e um homem envelhecido, sem cabelo nem fogo no olhar, languescia atrás do balcão. Não tinha querido entrar, nem dar-lhe a saber que tinha regressado, mas Antoni Fortuny erguera o olhar para o estranho que se erguia do outro lado da montra. Os olhos de ambos tinham-se encontrado e Julián, embora tivesse querido desatar a correr, ficou paralisado. Viu formarem-se lágrimas no rosto do chapeleiro, que se arrastou até à porta e saiu à rua mudo. Sem dizer uma palavra, guiou o filho até ao interior da loja, baixou as persianas e, uma vez fechado o mundo exterior, abraçou-o, tremendo e uivando lágrimas. Mais tarde, o chapeleiro explicara-lhe que a polícia tinha andado havia dois dias a perguntar por ele. Um tal Fumero, um homem de má fama que se dizia que um mês antes tinha estado a soldo dos magarefes do general Goded e que agora se armava em amigo dos anarquistas, tinha-lhe dito que Carax estava a caminho de Barcelona, que tinha assassinado Jorge Aldaya a sangue frio em Paris e que era procurado por outros tantos delitos, cuja enumeração o chapeleiro não se dera ao trabalho de ouvir. Fumero esperava que, a dar-se o remoto e improvável acaso de o filho pródigo aparecer por ali, o chapeleiro houvesse por bem cumprir o seu dever de cidadão e participá-lo. Fortuny dissera-lhe que com certeza podiam contar com ele. Incomodara-o que uma víbora como Fumero desse a sua vileza por garantida, mas, mal o sinistro cortejo da polícia abandonara a loja, o chapeleiro partira rumo à capela da catedral onde tinha conhecido Sophie para pedir ao santo que conduzisse os passos do filho de volta a casa antes que fosse demasiado tarde. Quando Julián foi ter com o pai, o chapeleiro advertiu-o do perigo que pairava sobre ele.

- Seja o que for que te trouxe a Barcelona, meu filho, deixa-me ser eu a fazê-lo por ti enquanto tu te escondes em casa. O teu quarto continua como o deixaste e é teu por todo o tempo que dele precises.

Julián confessou-lhe que tinha regressado para procurar Penélope Aldaya. O chapeleiro jurou-lhe que a descobriria e que, uma vez reunidos, os ajudaria a fugirem juntos para lugar seguro, longe de Fumero, do passado, longe de tudo.

Durante dias Julián manteve-se escondido no andar da Ronda de San António enquanto o chapeleiro percorria a cidade em busca do rasto de Penélope. Passava os dias no seu antigo quarto, que, fiel à promessa do pai, continuava igual, se bem que agora tudo parecesse mais pequeno, como se as casas e os objectos, ou talvez fosse só a vida, encolhessem com o tempo. Muitos dos seus velhos cadernos continuavam ali, lápis que se lembrava de ter afiado na semana em que partira para Paris, livros à espera de serem lidos, roupa lavada de rapaz nos armários. O chapeleiro contou-lhe que Sophie o tinha deixado pouco depois de ele fugir, e, embora durante anos não tivesse sabido dela, finalmente escrevera-lhe de Bogotá, onde vivia há uns tempos com outro homem. Escreviam-se com regularidade, «falando sempre de ti», segundo confessou o chapeleiro, «porque é a única coisa que nos une». Ao pronunciar estas palavras, parecia a Julián que o chapeleiro tinha esperado para se apaixonar pela mulher até depois de a ter perdido.

- Só se ama verdadeiramente uma vez na vida, Julián, mesmo que não nos apercebamos.

O chapeleiro, que parecia apanhado numa corrida com o tempo para desfazer toda uma vida de infortúnios, não tinha dúvida de que Penélope era aquele amor de uma só estação na vida do filho e julgava, sem dar por isso, que se o ajudasse a recuperá-la, talvez também ele recuperasse alguma coisa do que tinha perdido, aquele vazio que lhe pesava na pele e nos ossos com a raiva de uma maldição.

Apesar de todo o seu empenho, e para seu desespero, o chapeleiro não tardou a averiguar que não havia rasto de Penélope Aldaya, nem da família, em toda a Barcelona. Homem de origem humilde, que tivera de trabalhar toda a vida para se manter à tona, o chapeleiro concedera sempre ao dinheiro e à casta a dúvida da imortalidade. Quinze anos de ruína e miséria tinham bastado para varrer da face da terra os palácios, as indústrias e as marcas de uma estirpe. À menção do apelido Aldaya, muitos reconheciam a música da palavra, mas quase ninguém recordava o seu significado. No dia em que Miquel Moliner e Nuria Monfort foram à chapelaria perguntar por Julián, o chapeleiro teve a certeza de que não eram senão esbirros de Fumero. Ninguém lhe ia arrebatar o filho de novo. Desta vez Deus Todo-Poderoso poderia descer dos céus, o mesmo Deus que andava há uma vida inteira a ignorar as suas preces, e ele mesmo, de bom grado, lhe arrancaria os olhos se ousasse afastar Julián uma vez mais do naufrágio da sua vida.

O chapeleiro era o homem que o florista ambulante recordava ter visto dias atrás, a vaguear pelo casarão da Avenida del Tibidabo. O que o florista interpretara como mau génio não era senão a firmeza de espírito que só assiste àqueles que, antes tarde que nunca, encontraram um propósito para as suas vidas e o perseguem com a ferocidade que dá o tempo derramado em vão. Lamentavelmente, não quis o Senhor escutar desta última vez os rogos do chapeleiro, e passado já o umbral do desespero, foi incapaz de encontrar aquilo que procurava, a salvação do filho, de si próprio, no rasto de uma rapariga de que ninguém se lembrava e de quem ninguém sabia nada. De quantas almas perdidas necessitas, Senhor, para saciar o teu apetite?, perguntava o chapeleiro. Deus, no seu infinito silêncio, olhava-o sem pestanejar.

- Não a encontro, Julián... Juro-te que...

- Não se preocupe, pai. Isto é uma coisa que devo ser eu a fazer. O pai ajudou-me tudo o que podia.

Naquela noite, Julián saíra por fim à rua disposto a recuperar o rasto de Penélope.

 

Miquel ouvia o relato do seu amigo, duvidando se se tratava de um milagre ou de uma maldição. Não lhe ocorreu pensar no empregado, que se dirigia ao telefone e murmurava de costas para eles, nem que depois vigiava a porta de esguelha, limpando com demasiado zelo os copos de um estabelecimento do qual a sujidade se assenhoreava com fúria, enquanto Julián referia o sucedido à sua chegada a Barcelona. Não lhe ocorreu que Fumero teria já estado naquele café, em dezenas de cafés como aquele, a dois passos do Palacete Aldaya, e que, mal Carax pusesse o pé num deles, a chamada era questão de segundos. Quando o carro da polícia parou diante do café e o empregado se retirou para a cozinha, Miquel sentiu a calma fria e serena da fatalidade. Carax leu-lhe o olhar e ambos se voltaram ao mesmo tempo. Os traços espectrais de três gabardinas cinzentas a adejarem atrás das janelas. Três rostos a cuspirem vapor no vidro. Nenhum deles era Fumero. Os carniceiros precediam-no.

- Vamos embora daqui, Julián...

- Não há para onde ir - disse Carax, com uma serenidade que levou o amigo a observá-lo com detença.

Reparou então no revólver na mão de Julián, e na fria disposição no seu olhar. A campainha da porta arranhou o murmúrio do rádio. Miquel arrebatou a pistola das mãos de Carax e olhou-o fixamente.

- Dá-me a tua documentação, Julián.

Os três polícias fingiram sentar-se ao balcão. Um deles observava-os de esguelha. Os outros dois apalpavam o interior das gabardinas.

- A documentação, Julián. Agora. Carax abanou a cabeça em silêncio.

- Restam-me um, dois meses, se tiver sorte. Um dos dois tem de sair daqui, Julián. Tu tens mais pontos que eu. Não sei se encontrarás a Penélope. Mas a Nuria espera-te.

- A Nuria é tua mulher.

- Lembra-te do acordo que fizemos. Quando eu morrer, tudo o que é meu será teu...

- ... menos os sonhos.

Sorriram pela última vez. Julián estendeu-lhe o passaporte. Miquel colocou-o juntamente com o exemplar de A Sombra do Vento que trazia no sobretudo desde o dia em que o recebera.

- Até breve - murmurou Julián.

- Não há pressa. Eu esperarei.

Precisamente quando os três polícias se voltavam para eles, Miquel levantou-se da mesa e dirigiu-se para eles. Ao princípio só viram um moribundo pálido e trémulo que lhes sorria enquanto o sangue assomava pelas comissuras dos lábios magros, sem vida. Quando repararam no revólver na sua mão direita, Miquel já estava apenas a três metros deles. Um deles quis gritar, mas o primeiro disparo estoirou-lhe com o maxilar inferior. O corpo caiu inerte, de joelhos, aos pés de Miquel. Os outros dois agentes já tinham sacado as suas armas dos coldres. O segundo disparo atravessou o estômago do que parecia mais velho. A bala partiu-lhe a coluna vertebral em duas e cuspiu um punhado de vísceras contra o balcão. Miquel não chegou a ter tempo de efectuar um terceiro disparo. O polícia restante já o tinha alvejado. Sentiu a arma nas costelas, sobre o coração, e o seu olhar afiado, incendiado de pânico.

- Quieto, filho da puta, ou juro-te que te racho em dois.

Miquel sorriu e ergueu lentamente o revólver até ao rosto do polícia. Não devia ter mais de vinte e cinco anos e tremiam-lhe os lábios.

- Vais dizer ao Fumero, da parte do Carax, que me lembro do seu disfarce de marinheirozinho.

Não sentiu dor, nem fogo. O impacto, com uma martelada surda que sumiu o som e a cor das coisas, arremessou-o contra as vidraças. Ao atravessá-las e reparar que um frio intenso lhe trepava pela garganta e a luz se afastava como pó ao vento, Miquel Moliner volveu o olhar pela última vez e viu o seu amigo Julián correr pela rua abaixo. Tinha trinta e seis anos, mais do que aqueles que tinha esperado viver. Antes de se abater sobre o passeio semeado de vidro ensanguentado, já estava morto.

 

Naquela noite, enquanto o Julián se perdia na noite, um furgão sem identificação respondeu à chamada do homem que tinha matado Miquel. Nunca se soube o seu nome, nem creio que ele soubesse quem tinha assassinado. Como todas as guerras, pessoais ou em grande escala, aquilo era um jogo de marionetas. Dois homens carregaram os corpos dos agentes mortos e encarregaram-se de sugerir ao empregado do bar que se esquecesse do que tinha acontecido ou teria sérios problemas. Nunca subestimes o talento para esquecer que as guerras despertam, Daniel. O cadáver do Miquel foi abandonado numa viela do Raval doze horas mais tarde para que a morte dele não pudesse ser relacionada com a dos agentes. Quando o corpo chegou finalmente à morgue, estava morto havia dois dias. O Miquel tinha deixado toda a sua documentação em casa antes de sair. Tudo o que os funcionários do necrotério encontraram foi um passaporte em nome de Julián Carax, desfigurado, e um exemplar de A Sombra do Vento. A polícia concluiu que o falecido era Carax.

O passaporte ainda referia como residência o andar dos Fortuny na Ronda de San António.

Por essa altura, a notícia já tinha chegado aos ouvidos do Fumero, que foi ao necrotério para se despedir do Julián. Encontrou-se lá com o chapeleiro, que a polícia tinha ido buscar para proceder à identificação do corpo. O senhor Fortuny, que não via o Julián havia dois dias, temia o pior. Ao reconhecer o corpo que apenas uma semana antes lhe tinha batido à porta a perguntar pelo Julián (e que tinha tomado por um esbirro do Fumero), desatou aos gritos e foi-se embora. A polícia pressupôs que aquela reacção era uma admissão de reconhecimento. O Fumero, que tinha presenciado a cena, aproximou-se do corpo e examinou-o em silêncio. Havia dezassete anos que não via o Julián Carax. Quando reconheceu o Miquel Moliner, limitou-se a sorrir e assinou o relatório forense confirmando que aquele corpo pertencia a Julián Carax e ordenando a sua transferência imediata para uma vala comum em Montjuíc.

Durante muito tempo perguntei a mim mesmo por que razão o Fumero haveria de fazer uma coisa assim. Mas aquilo não era mais que a lógica do Fumero. Ao morrer com a identidade do Julián, o Miquel tinha-lhe proporcionado involuntariamente o álibi perfeito. A partir daquele instante, Julián Carax não existia. Não haveria qualquer vínculo legal que permitisse relacionar o Fumero com o homem que, mais tarde ou mais cedo, esperava encontrar e assassinar. Eram dias de guerra e muito poucos pediriam explicações pela morte de alguém que nem sequer tinha nome. Julián tinha perdido a identidade. Era uma sombra. Passei dois dias à espera do Miquel ou do Julián em casa, pensando que enlouquecia. Ao terceiro dia, segunda-feira, voltei a trabalhar na editora. O senhor Cabestany tinha dado entrada no hospital havia umas semanas e já não voltaria ao seu gabinete. O filho mais velho, Álvaro, tinha tomado conta do negócio. Não disse nada a ninguém. Não tinha a quem.

Nessa mesma manhã recebi na editora a chamada de um funcionário da morgue, Manuel Gutiérrez Fonseca. O senhor Gutiérrez Fonseca explicou-me que o corpo de um tal Julián Carax tinha chegado ao necrotério e que, ao confrontar o passaporte do falecido e o nome do autor do livro que trazia quando dera entrada na morgue, e suspeitando, se não de uma clara irregularidade, de um certo fechar de olhos ao regulamento por parte da polícia, tinha sentido o dever moral de telefonar para a editora a fim de dar parte do sucedido. Ao ouvi-lo, julguei que morria. A primeira coisa que pensei foi que se tratava de uma cilada do Fumero. O senhor Gutiérrez Fonseca expressava-se com o esmero do funcionário consciencioso, embora houvesse qualquer coisa mais que gotejava na sua voz, qualquer coisa que nem ele mesmo teria conseguido explicar. Eu tinha atendido a chamada no gabinete do senhor Cabestany. Graças a Deus, Álvaro tinha saído para almoçar e eu estava sozinha, caso contrário ter-me-ia sido difícil explicar as lágrimas e o tremor nas mãos enquanto segurava o telefone. Gutiérrez Fonseca disse-me que tinha achado oportuno informar do sucedido.

Agradeci-lhe a chamada com aquela falsa formalidade das conversas em cifra. Mal desliguei, fechei a porta do gabinete e mordi os punhos para não gritar. Lavei a cara e fui imediatamente para casa, deixando recado para Álvaro de que estava doente e que regressaria no dia seguinte antes da hora para pôr a correspondência em dia. Tive de fazer um esforço para não correr na rua, para caminhar com aquela parcimónia anónima e cinzenta de quem não tem segredos. Ao introduzir a chave na porta do andar compreendi que a fechadura tinha sido forçada. Fiquei paralisada. A maçaneta começou a rodar a partir do interior. Perguntei a mim mesma se ia morrer assim, numa escada escura e sem saber o que tinha sido feito do Miquel. A porta abriu-se e enfrentei o olhar obscuro de Julián Carax. Que Deus me perdoe, mas naquele instante senti que a vida me voltava e dei graças ao céu por me devolver o Julián em vez do Miquel.

Fundimo-nos num abraço interminável, mas, quando lhe procurei os lábios, o Julián afastou-se e baixou os olhos. Fechei a porta e, pegando no Julián pela mão, guiei-o até ao quarto. Deitámo-nos na cama, abraçados em silêncio. Entardecia e as sombras do andar ardiam de púrpura. Ouviam-se disparos isolados ao longe, como todas as noites desde que a guerra começara. O Julián chorava sobre o meu peito e senti que me invadia um cansaço que escapava às palavras. Mais tarde, caída a noite, os nossos lábios encontraram-se, e ao abrigo daquela escuridão urgente desfizemo-nos daquelas roupas que cheiravam a medo e a morte. Quis recordar o Miquel, mas o fogo daquelas mãos no meu ventre roubou-me a vergonha e a mágoa. Quis perder-me nelas e não regressar, mesmo sabendo que ao amanhecer, exaustos e talvez doentes de desprezo, não conseguiríamos olhar-nos nos olhos sem perguntarmos a nós próprios em quem nos tínhamos transformado.

 

Fui acordado pelo tamborilar da chuva ao alvorecer. A cama vazia, o quarto alumiado de uma treva cinzenta.

Encontrei o Julián sentado diante daquilo que fora a secretária do Miquel, a acariciar as teclas da sua máquina de escrever. Ergueu o olhar e brindou-me com aquele sorriso morno, distante, que dizia que ele nunca seria meu. Senti desejos de lhe cuspir a verdade, de o ferir. Teria sido tão fácil! Revelar-lhe que a Penélope estava morta. Que vivia de ilusões. Que eu era tudo quanto tinha agora no mundo.

- Nunca devia ter regressado a Barcelona - murmurou, sacudindo a cabeça.

Ajoelhei-me junto dele.

- O que tu procuras não está aqui, Julián. Partamos. Os dois. Para longe daqui. Enquanto há tempo.

O Julián olhou-me demoradamente, sem pestanejar.

- Tu sabes qualquer coisa que não me disseste, não é verdade? Abanei a cabeça, engolindo em seco. O Julián limitou-se a assentir.

- Esta noite vou voltar lá.

- Julián, por favor...

- Tenho de me certificar.

- Então irei contigo.

- Não.

- Da última vez que fiquei aqui à espera, perdi o Miquel. Se tu vais, eu vou.

- Isto não tem nada que ver contigo, Nuria. É uma coisa que me diz respeito só a mim.

Perguntei a mim mesma se realmente não se apercebia do mal que as suas palavras me faziam, ou se lhe importava sequer.

- Isso é o que tu julgas.

Quis acariciar-me a face mas eu afastei-lhe a mão.

- Deverias odiar-me, Nuria. Dar-te-ia sorte.

- Bem sei.

Passámos o dia fora, longe da treva opressiva do andar que ainda cheirava a lençóis mornos e a pele. O Julián queria ver o mar. Acompanhei-o até à Barceloneta e entrámos na praia quase deserta, uma miragem cor de areia que se fundia na caligem. Sentámo-nos na areia, perto da beira-mar, como fazem as crianças e os velhos. O Julián sorria em silêncio, recordando a sós.

Ao entardecer apanhámos um eléctrico junto ao aquário e subimos a Via Layetana até ao Paseo de Gracia, depois a praça de Lesseps e depois a Avenida de La República Argentina até ao término do trajecto. O Julián observava as ruas em silêncio, como se receasse perder a cidade à medida que a percorria. A meio do caminho pegou-me na mão e beijou-a sem dizer nada. Segurou-a até nos apearmos. Um velho que acompanhava uma menina de branco olhava para nós, sorridente, e perguntou-nos se éramos namorados. Era já noite cerrada quando metemos pela Román Macaya em direcção ao casarão dos Aldaya na Avenida del Tibidabo. Caía uma chuva fina que tingia de prata os paredões de pedra. Trepámos o muro do prédio pela parte de trás, junto aos campos de ténis. O casarão erguia-se na chuva. Reconheci-o imediatamente. Tinha lido a fisionomia daquela casa em mil encarnações e ângulos nas páginas do Julián. Em A Casa Vermelha, o palacete aparecia como um tenebroso casarão, maior por dentro do que por fora, que mudava lentamente de forma, crescia em corredores, galerias e sótãos impossíveis, escadarias infinitas que não conduziam a parte nenhuma e iluminavam quartos escuros que apareciam e desapareciam da noite para o dia, levando consigo os incautos que penetravam neles sem que alguém os voltasse a ver. Parámos defronte do portão, reforçado com correntes e um cadeado do tamanho de um punho. Os janelões do primeiro andar estavam entaipados com tábuas cobertas de hera. O ar cheirava a ervas daninhas mortas e a terra molhada. A pedra, escura e viscosa sob a chuva, reluzia como o esqueleto de um grande réptil.

Quis perguntar-lhe como pensava franquear aquele portão de carvalho, de basílica ou prisão. O Julián extraiu um frasco do sobretudo e desenroscou a tampa. Libertou-se do interior um vapor fétido numa espiral lenta e azulada. Segurou o cadeado pela extremidade e verteu o ácido no interior da fechadura. O metal assobiou como ferro em brasa, envolvido numa cortina de fumo amarelado. Esperámos uns segundos e então ele tirou um paralelepípedo do meio das ervas daninhas e partiu o cadeado com meia dúzia de pancadas. O Julián empurrou a porta com um pontapé. Ela abriu-se lentamente, como um sepulcro, cuspindo um hálito espesso e húmido. Para além do umbral adivinhava-se uma escuridão aveludada. O Julián trazia um isqueiro a gasolina, que acendeu ao adiantar-se uns passos no vestíbulo. Segui-o e semicerrei a porta atrás de nós. O Julián andou uns metros, segurando a chama por cima da cabeça. Estendia-se aos nossos pés uma carpete de pó, sem mais pegadas que as nossas. As paredes, nuas, iluminavam-se ao âmbar da chama. Não havia móveis, nem espelhos ou candeeiros. As portas permaneciam nos gonzos, mas as maçanetas de bronze tinham sido arrancadas. O casarão mostrava apenas o esqueleto nu. Parámos aos pés da escadaria. O olhar do Julián perdeu-se direito ao alto. Voltou-se um instante a fim de olhar para mim e eu quis sorrir-lhe, mas na penumbra mal adivinhávamos o olhar um do outro. Segui-o pelas escadas acima, percorrendo os degraus onde o Julián tinha visto a Penélope pela primeira vez. Sabia onde nos dirigíamos e invadiu-me um frio que nada tinha da atmosfera húmida e mordente daquele lugar.

Subimos até ao terceiro andar, onde um estreito corredor abria caminho em direcção ao flanco sul da casa. O tecto ali era muito mais baixo e as portas mais pequenas. Era o andar que albergava os aposentos da criadagem. O último, soube eu sem necessidade de que o Julián dissesse alguma coisa, tinha sido a alcova da Jacinta Coronado. O Julián aproximou-se lentamente, receoso. Aquele fora o último lugar onde tinha visto a Penélope, onde tinha feito amor com uma rapariga de dezassete anos apenas, que meses mais tarde morreria esvaída em sangue naquela mesma cela. Quis detê-lo, mas o Julián já tinha alcançado o umbral e olhava para o interior, ausente. Assomei ao pé dele. A divisão não era mais que um cubículo, despojado de qualquer ornamentação. Liam-se ainda as marcas de uma antiga cama sob a maré de pó das tábuas do chão. Um emaranhado de manchas negras rastejava pelo centro do quarto. O Julián observou aquele vazio pelo espaço de quase um minuto, desconcertado. Vi no seu olhar que mal conseguia reconhecer o lugar, que tudo se lhe afigurava um truque macabro e cruel. Tomei-o pelo braço e guiei-o de regresso à escada.

- Aqui não há nada, Julián - murmurei. - A família vendeu tudo antes de partir para a Argentina.

O Julián assentiu debilmente. Descemos de novo até ao andar térreo. Uma vez ali, o Julián dirigiu-se à biblioteca. As estantes estavam vazias, a chaminé inundada de escombros. As paredes, pálidas de morte, adejavam sob o hálito da chama. Os credores e usurários tinham conseguido levar até a memória, que devia estar agora perdida no labirinto de algum sucateiro.

- Voltei para nada - murmurava o Julián.

Antes assim, pensei. Contava os segundos que nos separavam da porta. Se conseguisse afastá-lo dali e deixá-lo com aquela punhalada de vazio, talvez ainda tivéssemos uma oportunidade. Deixei que o Julián absorvesse a ruína daquele lugar, que purgasse a sua recordação.

- Tinhas de voltar e vê-la outra vez - disse eu. - Agora já vês que não há nada. É apenas um casarão velho e desabitado, Julián. Vamos para casa.

Olhou para mim, pálido, e assentiu. Peguei-lhe pela mão e metemos pelo corredor que nos conduzia à saída. A brecha de claridade do exterior ficava apenas a meia dúzia de metros. Consegui sentir o cheiro das ervas daninhas e da chuva miúda no ar. Nessa altura senti que perdia a mão do Julián. Parei e virei-me para deparar com ele imóvel, de olhar cravado na escuridão.

- Que foi, Julián?

Não respondeu. Contemplava enfeitiçado a embocadura de um estreito corredor que conduzia às cozinhas. Avancei até lá e perscrutei as trevas que a chama azul do isqueiro a gasolina feria. A porta na extremidade do corredor estava entaipada. Um muro de tijolos vermelhos, toscamente dispostos entre argamassa que sangrava pelas comissuras. Não percebi bem o que significava, mas senti que o frio me roubava a respiração. O Julián aproximava-se lentamente dali. Todas as outras portas, no corredor - em toda a casa -, estavam abertas, desprovidas de fechaduras e maçanetas. Excepto aquela. Uma comporta de tijolos vermelhos oculta ao fundo de um corredor lúgubre e escondido. O Julián poisou as mãos nos paralelepípedos de argila escarlate.

- Julián, por favor, vamo-nos embora já...

O impacto do punho dele sobre a parede de tijolos arrancou um eco oco e cavernoso ao outro lado. Pareceu-me que lhe tremiam as mãos quando poisava o isqueiro no chão e me fazia sinal para me afastar uns passos.

- Julián...

O primeiro pontapé arrancou uma chuva de pó avermelhado. O Julián investiu de novo. Pareceu-me que tinha ouvido os seus ossos ranger. O Julián não se alterou. Batia no muro uma e outra vez, com a raiva de um preso a abrir caminho para a liberdade. Sangravam-lhe os punhos e os braços quando o primeiro tijolo se quebrou e caiu para o outro lado. Com dedos ensanguentados, o Julián começou então a esforçar-se por alargar aquela moldura na escuridão. Ofegava, exausto e possuído por uma fúria que eu nunca teria julgado possível. Um a um, os tijolos foram cedendo e o muro abateu. O Julián parou, coberto de suor frio, com as mãos esfoladas. Pegou no isqueiro e poisou-o sobre a borda de um dos tijolos. Uma porta de madeira trabalhada com motivos de anjos erguia-se do outro lado. O Julián acariciou os relevos da madeira, como se lesse um hieróglifo. A porta abriu-se sob a pressão das suas mãos.

Uma treva azul, espessa e gelatinosa, emanava do outro lado. Mais além pressentia-se uma escadaria. Uns degraus de pedra negra desciam até onde a sombra se perdia. O Julián voltou-se um instante e encontrei o seu olhar. Vi nele medo e desespero, como se pressentisse o negrume. Abanei a cabeça em silêncio, implorando-lhe que não descesse. Voltou-se, abatido, e mergulhou na obscuridade. Assomei à moldura de tijolos e vi-o descer pela escada, quase a cambalear. A chama tremia, não passando já de um sopro de azul transparente.

- Julián?

Só me chegou silêncio. Podia ver a sombra do Julián, imóvel ao fundo da escada. Cruzei o umbral de tijolos e desci os degraus. A sala era uma divisão rectangular, de paredes de mármore. Exalava um frio intenso e penetrante. As duas lápides estavam cobertas por um manto de teias de aranha que se desfez como seda podre à chama do isqueiro. O mármore branco estava sulcado de lágrimas negras de humidade que pareciam sangrar das fendas que o cinzel do gravador tinha deixado. Jaziam junto uma da outra, como maldições encadeadas.

 

             PENÉLOPE ALDAYA 1902-1919

             DAVID ALDAYA 1919

 

Parei muitas vezes a pensar naquele momento de silêncio, tentando imaginar o que o Julián devia ter sentido ao verificar que a mulher da qual tinha estado à espera durante dezassete anos estava morta, que o filho de ambos se fora com eles, que a vida com que tinha sonhado, o seu único alento, nunca existira. A maioria de nós temos a felicidade ou a desgraça de ver a vida desmoronar-se pouco a pouco, quase sem que demos por isso. Para o Julián, aquela certeza acendeu-se em questão de segundos. Por um instante pensei que desataria a correr pelas escadas acima, que fugiria daquele lugar maldito e que nunca mais o voltaria a ver. Talvez tivesse sido melhor assim.

Lembro-me de que a chama do isqueiro se extinguiu lentamente e que perdi a sua silhueta na escuridão. Procurei-o na sombra. Encontrei-o tremendo, mudo. Mal se conseguia ter de pé e arrastou-se até um canto. Abracei-o e beijei-lhe a testa. Não se mexia. Apalpei-lhe o rosto com os dedos, mas não havia lágrimas. Julguei que talvez, inconscientemente, o tivesse sabido durante todos aqueles anos, que talvez aquele encontro fosse necessário para se confrontar com a certeza e libertar-se. Tínhamos chegado ao fim do caminho. O Julián compreendia agora que já nada o retinha em Barcelona e que partiríamos para longe. Quis acreditar que a nossa sorte ia mudar e que a Penélope nos tinha perdoado.

Procurei o isqueiro no chão e acendi-o de novo. O Julián observava o vazio, alheio à chama azul. Tomei-lhe o rosto nas mãos e obriguei-o a olhar para mim. Deparei-me com uns olhos sem vida, vazios, consumidos de raiva e de perda. Senti o veneno do ódio a espalhar-se lentamente pelas suas veias e consegui ler os seus pensamentos. Odiava-me por o ter enganado. Odiava o Miquel por ter querido obsequiá-lo com uma vida que lhe pesava como uma ferida aberta. Mas sobretudo odiava o homem que tinha causado toda aquela desgraça, aquele rasto de morte e miséria: ele mesmo. Odiava aqueles miseráveis livros aos quais tinha dedicado a vida e que não importavam a ninguém. Odiava uma existência entregue ao engano e à mentira. Odiava cada segundo roubado e cada respiração.

Olhava-me sem pestanejar, como se olha um estranho ou um objecto desconhecido. Eu abanava lentamente a cabeça, procurando-lhe as mãos. Afastou-se bruscamente e pôs-se de pé. Tentei pegar-lhe no braço mas ele empurrou-me contra o muro. Vi-o subir a escada em silêncio, um homem que eu já não conhecia. Julián Carax estava morto. Quando saí para o jardim do casarão, já não havia rasto dele. Escalei o muro e saltei para o outro lado. As ruas desoladas sangravam debaixo da chuva. Gritei o nome dele, caminhando pelo meio da avenida deserta. Ninguém respondeu ao meu apelo. Quando regressei a casa eram quase quatro da manhã. O andar estava inundado de fumo e cheirava a queimado. O Julián tinha estado ali. Corri a abrir as janelas. Encontrei um estojo em cima da minha secretária que continha a caneta que lhe tinha comprado anos antes em Paris, a caneta de tinta permanente pela qual tinha pago uma fortuna em virtude da sua suposta pertença a Alexandre Dumas ou Victor Hugo. O fumo provinha da caldeira do aquecimento. Abri a comporta e verifiquei que o Julián tinha atirado para o interior todos os exemplares dos seus romances que faltavam na estante. Apenas se lia o título sobre as lombadas de pele. O resto eram cinzas.

Horas depois, quando fui à editora a meio da manhã, Álvaro Cabestany mandou-me chamar ao seu gabinete. O pai já quase não passava pelos escritórios e os médicos haviam-lhe dito que tinha os dias contados, tal como o meu lugar na empresa. O filho de Cabestany anunciou-me que nessa mesma manhã às primeiras horas tinha aparecido lá um cavalheiro chamado Laín Coubert interessado em adquirir todos os exemplares dos romances de Julián Carax que tivéssemos em existência. O filho do editor dissera que tínhamos um armazém cheio deles em Pueblo Nuevo, mas que havia uma grande procura deles e portanto exigira um preço superior ao que Coubert oferecia. Coubert não regateara e fora-se embora com vento fresco. Agora Cabestany filho queria que eu localizasse o tal Laín Coubert e aceitasse a sua oferta. Disse àquele ignorante que Laín Coubert não existia, que era uma personagem de um romance de Carax. Que não tinha qualquer interesse em comprar-lhe os livros; só queria saber onde estavam. O senhor Cabestany tinha por costume guardar um exemplar de cada um dos títulos publicados pela casa na biblioteca do seu gabinete, inclusivamente das obras de Julián Carax. Introduzi-me no gabinete dele e levei-os.

Naquela mesma tarde fui visitar o meu pai ao Cemitério dos Livros Esquecidos e escondi-os onde ninguém, especialmente o Julián, pudesse encontrá-los. Tinha já anoitecido quando saí de lá. Vagueando pelas Ramblas abaixo cheguei até à Barceloneta e entrei na praia, à procura do sítio onde tinha ido contemplar o mar com o Julián. A pira de chamas do armazém de Pueblo Nuevo adivinhava-se ao longe, o rasto âmbar a derramar-se sobre o mar e as espirais de fumo e fogo a subirem ao céu como serpentes de luz. Quando os bombeiros conseguiram extinguir as chamas pouco antes do amanhecer, não restava nada, apenas o esqueleto de tijolos e metal que sustentava a abóbada. Encontrei lá Lluís Carbó, que tinha sido o vigia nocturno durante dez anos. Contemplava os escombros fumegantes, incrédulo. Tinha as sobrancelhas e os pêlos dos braços queimados e a pele brilhava como bronze húmido. Foi ele que me contou que as chamas haviam começado pouco depois da meia-noite e tinham devorado dezenas de milhares de livros até o alvorecer se transformar num rio de cinza. Lluís segurava ainda nas mãos um punhado de livros que conseguira salvar, colecções dos versos de Verdaguer e dois volumes da História da Revolução Francesa. Era tudo o que sobrevivera. Vários membros do sindicato tinham comparecido para ajudar os bombeiros. Um deles contou-me que os bombeiros haviam encontrado um corpo queimado entre os escombros. Tinham-no tomado por morto, mas um deles apercebera-se de que ainda respirava e levaram-no para o Hospital del Mar.

Reconheci-o pelos olhos. O fogo tinha-lhe devorado a pele, as mãos e o cabelo. As chamas haviam-lhe arrancado a roupa à chicotada e todo o seu corpo era uma ferida em carne viva que supurava entre as ligaduras. Tinham-no confinado a um quarto solitário ao fundo de um corredor com vista para a praia, carregado de morfina, à espera de que morresse. Quis segurar-lhe a mão, mas uma das enfermeiras advertiu-me de que quase não havia carne por baixo das ligaduras. O fogo tinha devorado as pálpebras e o seu olhar enfrentava o vazio perpétuo. A enfermeira que me encontrou caída no chão, a chorar, perguntou-me se sabia quem era. Disse-lhe que sim, que era o meu marido. Quando um padre rapace apareceu para ministrar os últimos sacramentos, afugentei-o aos gritos. Três dias mais tarde, o Julián continuava vivo. Os médicos disseram que era um milagre, que a vontade de viver o mantinha vivo com forças que a medicina era incapaz de imitar. Enganavam-se. Não era a vontade de viver. Era o ódio. Uma semana mais tarde, vendo que aquele corpo escarchado de morte se recusava a apagar-se, foi oficialmente internado com o nome Miquel Moliner. Havia de permanecer ali pelo espaço de onze meses. Sempre em silêncio, com o olhar ardente, sem descanso.

Eu ia todos os dias ao hospital. Não tardou que as enfermeiras me começassem a tratar por tu e a convidar-me para comer com elas na sua sala. Eram todas mulheres sozinhas, fortes, que esperavam que os seus homens voltassem da frente. Alguns voltavam. Ensinaram-me a limpar as feridas do Julián, a mudar-lhe as ligaduras, a pôr lençóis lavados e a fazer uma cama com um corpo inerte deitado. Também me ensinaram a perder a esperança de voltar a ver o homem que um dia se sustivera sobre aqueles ossos. Tirámos-lhe as ligaduras da cara ao terceiro mês. O Julián era uma caveira. Não tinha lábios, nem faces. Era um rosto sem traços, apenas um boneco carbonizado. As órbitas dos olhos tinham-se dilatado e agora dominavam a sua expressão. As enfermeiras não mo confessavam, mas sentiam repugnância, quase medo. Os médicos tinham-me dito que uma espécie de pele violácea, réptil, se iria formando lentamente à medida que as feridas sarassem. Ninguém se atrevia a comentar o seu estado mental. Todos davam por garantido que o Julián - o Miquel - tinha perdido a razão no incêndio, que vegetava e sobrevivia graças aos cuidados obsessivos daquela esposa que permanecia firme onde tantas teriam fugido espavoridas. Eu olhava-o nos olhos e sabia que o Julián continuava ali dentro, vivo, consumindo-se lentamente. Esperando.

Perdera os lábios, mas os médicos achavam que as cordas vocais não haviam sofrido dano irreparável e que as queimaduras na língua e na laringe tinham sarado meses atrás. Partiam do princípio de que o Julián não dizia nada porque a sua mente se tinha extinguido. Uma tarde, seis meses depois do incêndio, estando ele e eu a sós no quarto, inclinei-me e beijei-o na testa.

- Amo-te - disse-lhe.

Um som amargo, rouco, emergiu daquela careta canina a que a sua boca se reduzira. Tinha os olhos avermelhados de lágrimas. Quis secar-lhas com um lenço, mas ele repetiu aquele som.

- Deixa-me - tinha dito. «Deixa-me.»

A editora Cabestany tinha falido decorridos dois meses sobre o incêndio do armazém de Pueblo Nuevo. O velho Cabestany, que morreu nesse ano, prognosticara que o filho conseguiria arruinar a empresa em seis meses. Optimista impenitente até à sepultura. Tentei arranjar emprego noutra editora, mas a guerra devorava tudo. Todos me diziam que a guerra acabaria em breve, e que a seguir as coisas melhorariam. A guerra ainda tinha dois anos pela frente, e o que veio depois foi quase pior. Ao completar-se um ano sobre o incêndio, os médicos disseram-me que tudo o que se podia fazer num hospital estava feito. A situação era difícil e precisavam do quarto. Recomendaram-me que pusesse o Julián num sanatório como o asilo de Santa Lucía, mas eu recusei-me. Em Outubro de 1937 levei-o para casa. Não tinha pronunciado uma única palavra desde aquele «Deixa-me».

Eu repetia-lhe todos os dias que o amava. Estava instalado num cadeirão frente à janela, coberto de mantas. Alimentava-o com sumos, pão torrado e, quando encontrava, leite. Lia-lhe todos os dias um par de horas. Balzac, Zola, Dickens... O corpo dele começava a recuperar volume. Pouco tempo depois de regressar a casa começou a mexer as mãos e os braços. Virava o pescoço. Às vezes, ao voltar a casa, deparava com as mantas no chão e objectos derrubados. Um dia encontrei-o no chão, a arrastar-se. Um ano e meio depois do incêndio, numa noite de tempestade, acordei a meio da noite. Alguém se tinha sentado na minha cama e me acariciava o cabelo. Sorri-lhe, ocultando as lágrimas. Tinha conseguido encontrar um dos meus espelhos, embora eu os tivesse escondido todos. Com uma voz entrecortada, disse-me que se tinha transformado num dos seus monstros de ficção, em Laín Coubert. Quis beijá-lo, mostrar-lhe que o aspecto dele não me repugnava, mas ele não me deixou. Não tardou que mal me deixasse tocar-lhe. Ia recobrando forças de dia para dia. Deambulava pela casa enquanto eu saía a fim de procurar alguma coisa para comer. Os aforros que o Miquel tinha deixado mantinham-nos à tona, mas depressa tive de começar a vender jóias e trastes velhos. Quando já não havia outro remédio, peguei na caneta de Victor Hugo e saí para a vender ao melhor licitador. Descobri uma loja atrás do Governo Militar que recebia artigos desse tipo. O empregado não pareceu impressionado pelo meu solene juramento de que aquela caneta tinha pertencido a Victor Hugo, mas reconheceu que era uma peça magistral e conveio em pagar-me o mais que pôde, tendo em conta que os tempos que corriam eram de escassez e miséria.

Quando disse ao Julián que a tinha vendido, receei que se encolerizasse. Limitou-se a dizer que tinha feito bem, que ele nunca a tinha merecido. Um dia, um de tantos em que eu tinha saído à procura de emprego, regressei e deparei com o facto de o Julián não estar. Não regressou até ao alvorecer. Quando lhe perguntei onde tinha ido, limitou-se a esvaziar os bolsos do abafo (que tinha sido do Miquel) e deixar um punhado de dinheiro em cima da mesa. A partir de então começou a sair quase todas as noites. Na escuridão, coberto com um chapéu e um cachecol, com as luvas e a gabardina, era uma sombra mais. Nunca me dizia onde ia. Trazia quase sempre dinheiro ou jóias. Dormia de manhã, sentado direito no seu cadeirão, com os olhos abertos. Numa ocasião encontrei-lhe uma navalha nos bolsos. Era uma arma de dois gumes, de mola automática. A lâmina estava cheia de manchas escuras.

Foi por essa altura que comecei a ouvir pelas ruas as histórias acerca de um indivíduo que quebrava as montras das livrarias de noite e queimava livros. Noutras ocasiões, o estranho vândalo introduzia-se numa biblioteca ou na sala de um coleccionador. Levava sempre dois ou três volumes, que queimava. Em Fevereiro de 1938 fui a um alfarrabista para perguntar se era possível encontrar algum livro de Julián Carax no mercado. O empregado disse-me que era impossível: tinha andado alguém a fazê-los desaparecer. Ele próprio tivera um par e vendera-os a um indivíduo muito estranho, que ocultava o rosto e ao qual dificilmente se conseguia decifrar a voz.

- Até há pouco tempo ainda havia alguns exemplares em colecções particulares, aqui e em França, mas muitos coleccionadores começam a desfazer-se deles. Têm medo - dizia -, e eu não os culpo.

Às vezes o Julián desaparecia durante dias inteiros. Não tardou que as suas ausências fossem de semanas. Saía e voltava sempre de noite. Nunca dava explicações ou, se o fazia, limitava-se a fornecer pormenores sem sentido. Disse-me que tinha estado em França. Paris, Lião, Nice. Ocasionalmente chegavam cartas de França em nome de Laín Coubert. Eram sempre de alfarrabistas, coleccionadores. Alguém tinha localizado um exemplar perdido das obras de Julián Carax. Nessa altura desaparecia vários dias e regressava como um lobo, tresandando a queimado e a rancor.

Foi durante uma dessas ausências que encontrei o chapeleiro Fortuny no claustro da catedral, a vaguear como um iluminado. Ainda me lembrava da vez que tinha ido com o Miquel perguntar pelo seu filho Julián, havia dois anos. Conduziu-me a um recanto e disse-me confidencialmente que sabia que o Julián estava vivo, nalgum sítio, mas que suspeitava que o filho não podia entrar em contacto connosco por algum motivo que não conseguia discernir. «Qualquer coisa relacionada com aquele desalmado do Fumero.» Disse-lhe que eu estava convencida do mesmo. Os anos da guerra estavam a revelar-se muito prósperos para o Fumero. As suas alianças mudavam de mês para mês, dos anarquistas para os comunistas, e dali para o que viesse. Uns e outros acusavam-no de espião, de esbirro, de herói, de assassino, de conspirador, de intriguista, de salvador ou de demiurgo. Pouco importava. Todos o temiam. Todos o queriam do seu lado. Talvez demasiado ocupado com as intrigas da Barcelona da guerra, o Fumero parecia ter esquecido o Julián. Provavelmente, como o chapeleiro, imaginava-o já foragido e longe do seu alcance.

O senhor Fortuny perguntou-me se eu era uma velha amiga do filho e eu disse-lhe que sim. Pediu-me que lhe falasse do Julián, do homem em que se tinha transformado, porque ele, confessou-me entristecido, não o conhecia. «A vida separou-nos, sabe?» Contou-me que tinha percorrido todas as livrarias de Barcelona à procura dos romances do Julián, mas não havia maneira de os encontrar. Alguém lhe contara que um louco recorria o mapa à procura deles para os queimar. Fortuny estava convencido de que o culpado não era senão o Fumero. Não o contradisse. Menti como pude, por piedade ou por despeito, não sei. Disse-lhe que julgava que o Julián tinha regressado de Paris, que estava bem e que me constava que apreciava muito o chapeleiro Fortuny e que, logo que as circunstâncias o tornassem possível, se reuniria de novo a ele. «E esta guerra - lamentava-se ele -, que apodrece tudo.» Antes de nos despedirmos insistiu em dar-me a sua direcção e a da ex-mulher, Sophie, com a qual tinha voltado a reatar o contacto depois de longos anos de «mal-entendidos». Sophie vivia agora em Bogotá com um prestigiado médico, disse-me ele. Geria a sua própria escola de música e escrevia sempre a perguntar pelo Julián.

- Já é a única coisa que nos une, sabe? A lembrança. Uma pessoa comete muitos erros na vida, menina, e só se apercebe quando é velha. Diga-me, a menina tem fé?

Despedi-me prometendo-lhe informá-lo a ele e a Sophie se tivesse notícias do Julián.

- Nada faria a mãe mais feliz do que voltar a saber dele. Vocês, as mulheres, ouvem mais o coração e menos as parvoeiras - concluiu o chapeleiro com tristeza. - Por isso vivem mais.

Apesar de ter ouvido tantas histórias virulentas acerca dele, não pude evitar sentir pena daquele pobre velho que quase não tinha mais que fazer no mundo do que esperar o regresso do filho e parecia viver das esperanças de recuperar o tempo perdido graças a um milagre dos santos que visitava com tanta devoção nas capelas da catedral.

Tinha-o imaginado como um ogre, um ser vil e rancoroso, mas pareceu-me um homem bondoso, talvez ofuscado, perdido como todos. Talvez porque me lembrava o meu próprio pai, que se escondia de todos e de si próprio naquele refúgio de livros e sombras, talvez porque, sem ele o suspeitar, também nos unia a ânsia de recuperar o Julián, afeiçoei-me a ele e transformei-me na sua única amiga. Sem que Julián o soubesse, ia vê-lo amiúde ao andar da Ronda de San António. O chapeleiro já não trabalhava.

- Não tenho nem as mãos, nem a vista, nem os clientes... - dizia. Esperava-me quase todas as quintas-feiras e oferecia-me café, bolachas e doces que ele mal provava. Passava as horas a falar-me da infância do Julián, de como trabalhavam juntos na chapelaria, a mostrar-me fotografias. Conduzia-me ao quarto do Julián, que mantinha imaculado como um museu, e mostrava-me velhos cadernos, objectos insignificantes que ele adorava como relíquias de uma vida que nunca tinha existido, sem se aperceber de que já mos tinha mostrado antes, que já me relatara outro dia todas aquelas histórias. Uma dessas quintas-feiras cruzei-me na escada com um médico que acabava de ir ver o senhor Fortuny. Perguntei-lhe como estava o chapeleiro e ele olhou-me de esguelha.

- A senhora é família dele?

Disse-lhe que era o mais próximo disso que o pobre homem tinha. O médico disse-me então que Fortuny estava muito doente, que era questão de meses.

- O que é que ele tem?

- Poderia dizer à senhora que é o coração, mas o que o mata é a solidão. As recordações são piores que as balas.

Ao ver-me, o chapeleiro ficou contente e confessou-me que aquele médico não lhe merecia confiança. Os médicos são uma espécie de bruxos de pacotilha, dizia. O chapeleiro tinha sido toda a vida um homem de profundas convicções religiosas e a velhice só as acentuara. Explicou-me que via em todo o lado a mão do demónio. O demónio, confessou-me, ofusca a razão e perde os homens.

Era o demónio que tinha levado o Julián de junto dele, acrescentou.

- Deus dá-nos a vida, mas o caseiro do mundo é o demónio... Passávamos a tarde entre teologia e melindres bafientos.

Certa vez disse ao Julián que, se queria voltar a ver o pai vivo, o melhor era apressar-se. Dava-se o caso de que o Julián tinha andado também a visitar o pai sem que ele o soubesse. De longe, ao crepúsculo, sentado no outro extremo de uma praça, a vê-lo envelhecer. O Julián replicou que preferia que o velho ficasse com a recordação do filho que tinha fabricado na sua mente durante aqueles anos e não com a realidade na qual se tinha transformado.

- Essa, guarda-la para mim - disse-lhe eu, arrependendo-me de imediato.

Não disse nada, mas por um instante pareceu-me que lhe voltava a lucidez e se apercebia do inferno no qual nos tínhamos encurralado. Os prognósticos do médico não tardaram a tornar-se realidade. O senhor Fortuny não chegou a ver o fim da guerra. Encontraram-no sentado no seu cadeirão, a ver as fotografias antigas de Sophie e do Julián. Crivado de recordações.

Os últimos dias da guerra foram o prelúdio do inferno. A cidade vivera o combate à distância, como uma ferida que lateja adormecida. Tinham transcorrido meses de escaramuças e lutas, bombardeamentos e fome. O espectro de assassínios, lutas e conspirações andava há anos a corroer a alma da cidade, mas, mesmo assim, muitos queriam acreditar que a guerra continuava longe, que era um temporal que passaria de largo. Se é possível, a espera tornou o inevitável pior. Quando a dor despertou, não houve misericórdia. Nada alimenta o esquecimento como uma guerra, Daniel. Todos nos calamos e as pessoas esforçam-se por nos convencer de que aquilo que vimos, aquilo que fizemos, o que apreendemos de nós próprios e dos outros, é uma ilusão, um pesadelo passageiro. As guerras não têm memória e ninguém se atreve a compreendê-las até não haver vozes para contar o que aconteceu, até chegar o momento em que já ninguém as reconhece e regressam, com outra cara e outro nome, para devorar o que deixaram atrás.

Por essa altura o Julián já quase não tinha livros para queimar. Era um passatempo que já passara para mãos mais importantes. A morte do pai, da qual nunca falaria, tinha-o transformado num inválido no qual já não ardia nem a raiva nem o ódio que o tinham consumido ao princípio. Vivíamos de rumores, em reclusão. Soubemos que o Fumero traíra todos os que o tinham exaltado durante a guerra e que agora estava ao serviço dos vencedores. Dizia-se que ele estava a justiçar pessoalmente - estoirando-lhes a cabeça com um tiro na boca - os seus principais aliados e protectores dos calabouços do castelo de Montjuic. O mecanismo do esquecimento começou a matraquear no mesmo dia em que as armas se calaram. Naqueles dias aprendi que nada mete mais medo do que um herói que vive para contar, para contar o que todos os que caíram ao seu lado nunca poderão contar. As semanas que se seguiram à queda de Barcelona foram indescritíveis. Derramou-se tanto ou mais sangue durante aqueles dias do que durante os combates, só quem em segredo e às escondidas. Quando finalmente a paz chegou, cheirava àquela paz que enfeitiça as prisões e os cemitérios, uma mortalha de silêncio e vergonha que apodrece sobre a alma e nunca se vai. Não havia mãos inocentes nem olhares brancos. Os que lá estivemos, todos sem excepção, ficaremos com o segredo connosco até à morte.

A calma restabelecia-se entre receios e ódios, mas o Julián e eu vivíamos na miséria. Tínhamos gasto todas as poupanças e as presas das andanças nocturnas de Laín Coubert, e não restava nada para vender em casa. Eu procurava desesperadamente emprego como tradutora, mecanógrafa ou como sopeira, mas aparentemente a minha passada afiliação com Cabestany tinha-me marcado como indesejável e alvo de suspeitas indizíveis. Um funcionário de fato reluzente, brilhantina e bigode fininho, um das centenas que pareciam estar a sair de debaixo das pedras, durante aqueles meses, insinuou-me que uma mulher atraente como eu não tinha nada que recorrer a empregos tão mundanos. Os vizinhos, que aceitavam de boa fé a minha história de que vivia a cuidar do meu pobre marido Miquel que ficara inválido e desfigurado na guerra, ofereciam-nos esmolas de leite, queijo ou pão, inclusivamente às vezes peixe salgado ou enchidos que os familiares lhes mandavam da aldeia. Após meses de penúria, convencida de que passaria muito tempo antes que pudesse arranjar emprego, decidi urdir um estratagema que fui buscar emprestado a um dos romances do Julián.

Escrevi à mãe do Julián, em Bogotá, em nome de um suposto advogado de extracção recente com quem o falecido senhor Fortuny se tinha aconselhado nos seus últimos dias para pôr os assuntos em ordem. Informava-a de que, tendo o chapeleiro morrido intestado, o seu património, no qual se incluía o andar da Ronda de San António e a loja sita no mesmo imóvel, era agora propriedade teórica do seu filho Julián, que se supunha a viver no exílio em França. Visto que os direitos de sucessão não haviam sido satisfeitos, e encontrando-se ela no estrangeiro, o advogado, que baptizei como José Maria Requejo em lembrança do primeiro rapaz que me tinha beijado na boca, pedia-lhe autorização para iniciar as diligências pertinentes e solucionar a transferência das propriedades para o nome do seu filho Julián, com quem pensava contactar através da embaixada espanhola em Paris assumindo a titularidade das mesmas a título temporário e transitório, assim como uma certa compensação económica. Solicitava-lhe igualmente que entrasse em contacto com o administrador do prédio para que remetesse a documentação e os pagamentos destinados a satisfazer as despesas do prédio para o escritório do advogado Requejo, em cujo nome abri um apartado de correio e ao qual atribuí uma direcção fictícia, uma velha garagem desocupada a duas ruas do casarão em ruínas dos Aldaya. A minha esperança era que, cega pela possibilidade de ajudar o Julián e de voltar a estabelecer contacto com ele, Sophie não se deteria a questionar todo aquele arrazoado legal e consentiria em nos ajudar dada a sua próspera situação na longínqua Colômbia.

Um par de meses mais tarde, o administrador do prédio começou a receber um vale mensal cobrindo as despesas do andar da Ronda de San António e os emolumentos destinados ao escritório de advogados de José Maria Requejo, que se encarregava de mandar sob a forma de cheque ao portador para o apartado 2321 de Barcelona, tal como lhe indicava Sophie Carax na sua correspondência.

O administrador, reparei, ficava todos os meses com uma percentagem não autorizada, mas eu preferi não dizer nada. Assim ele ficava satisfeito e não fazia perguntas perante tão fácil negócio. Com o resto, o Julián e eu tínhamos o suficiente para sobreviver. Assim passaram anos terríveis, sem esperança. Lentamente, tinha conseguido alguns trabalhos como tradutora. Já ninguém se lembrava de Cabestany e praticava-se uma política de perdão, de esquecer de escantilhão velhas rivalidades e rancores. Eu vivia com a perpétua ameaça de que o Fumero decidisse voltar a escarafunchar no passado e reiniciar a perseguição ao Julián. Às vezes convencia-me de que não, de que já o teria dado como morto, ou o teria esquecido. O Fumero já não era o ferrabrás de anos antes. Agora era uma personalidade pública, um homem de carreira no Regime, que não se podia permitir o luxo do fantasma de Julián Carax. Outras vezes acordava a meio da noite, com o coração a bater e ensopada em suor, julgando que a polícia estava a bater à porta. Receava que algum dos vizinhos suspeitasse daquele marido doente, que nunca saía de casa, que às vezes chorava e batia nas paredes como um louco, e que nos denunciasse à polícia. Receava que Julián fugisse de novo, que decidisse sair à caça dos seus livros para os queimar, para queimar o pouco que restava de si mesmo e apagar definitivamente qualquer sinal de que alguma vez tivesse existido. De tanto recear, esqueci-me de que me fazia velha, que a vida me passava ao lado, que tinha sacrificado a minha juventude amando um homem destruído, sem alma, apenas um espectro.

Mas os anos passaram em paz. O tempo passa tanto mais depressa quanto mais vazio está. As vidas sem significado passam de largo como comboios que não param na nossa estação. Entrementes, as cicatrizes da guerra fechavam-se à força. Encontrei trabalho num par de editoras. Passava a maior parte do dia fora de casa. Tive amantes sem nome, rostos desesperados que encontrava num cinema ou no metro, com os quais trocava a minha solidão. Depois, absurdamente, a culpa devorava-me e ao ver o Julián dava-me vontade de chorar e jurava a mim mesma que nunca mais voltaria a atraiçoá-lo, como se lhe devesse alguma coisa. Nos autocarros ou na rua surpreendia-me a olhar para outras mulheres mais novas do que eu com crianças pela mão. Pareciam felizes, ou em paz, como se aqueles pequenos seres, na sua insuficiência, preenchessem todos os vazios sem resposta. Nessa altura recordava-me dos dias em que, fantasiando, tinha chegado a imaginar-me como uma daquelas mulheres, com um filho nos braços, um filho do Julián. Depois lembrava-me da guerra e de que aqueles que a faziam também tinham sido crianças.

Quando começava a acreditar que o mundo nos tinha esquecido, apareceu-me um dia um indivíduo em casa. Era um tipo jovem, quase imberbe, um aprendiz que se ruborizava quando me olhava nos olhos. Vinha perguntar pelo senhor Miquel Moliner, supostamente procedendo a uma rotineira actualização de um arquivo do colégio de jornalistas. Disse-me que talvez o senhor Moliner pudesse ser beneficiário de uma pensão mensal, mas que para a processar era necessário actualizar uma série de dados. Disse-lhe que o senhor Moliner já não morava ali desde o princípio da guerra, que tinha partido para o estrangeiro. Respondeu-me que lamentava muito e partiu com um sorriso oleoso e o seu acne de aprendiz de bufo. Soube que tinha de fazer desaparecer o Julián de casa nessa mesma noite, sem falta. Por essa altura o Julián tinha-se reduzido a quase nada. Era dócil como uma criança e toda a sua vida parecia depender dos momentos que passávamos juntos algumas noites a ouvir música no rádio, enquanto eu o deixava pegar-me na mão e ele ma acariciava em silêncio.

Nessa mesma noite, utilizando as chaves do andar da Ronda de San António que o administrador do prédio remetera ao inexistente advogado Requejo, acompanhei o Julián de regresso à casa onde tinha crescido. Instalei-o no seu quarto e prometi-lhe que voltaria no dia seguinte e que devíamos ter muito cuidado.

- O Fumero anda outra vez à tua procura - disse-lhe.

Assentiu vagamente, como se não se lembrasse, ou já não lhe importasse quem era Fumero. Assim passámos várias semanas. Eu ia à noite ao andar, depois da meia-noite. Perguntava ao Julián o que tinha feito durante o dia e ele olhava-me sem compreender. Passávamos a noite juntos, abraçados, e eu partia ao amanhecer, prometendo-lhe voltar assim que pudesse. Ao sair, deixava o andar fechado à chave. O Julián não tinha nenhuma cópia. Preferia tê-lo preso a morto.

Ninguém voltou a passar por casa para me perguntar pelo meu marido, mas eu encarreguei-me de fazer correr pelo bairro que o meu marido estava em França. Escrevi um par de cartas para o consulado espanhol em Paris dizendo que me constava que o cidadão espanhol Julián Carax estava na cidade e solicitando a sua ajuda para o localizar. Supus que, mais tarde ou mais cedo, as cartas chegariam às mãos adequadas. Tomei todas as precauções, mas sabia que era tudo uma questão de tempo. As pessoas como o Fumero nunca deixam de odiar. Não há sentido nem razão no seu ódio. Odeiam como respiram.

O andar da Ronda de San António era um andar de cobertura. Descobri que havia uma porta de acesso ao terraço que dava para a escada. Os terraços de todo o quarteirão formavam uma rede de pátios geminados separados por muros de apenas um metro onde os vizinhos vinham estender a roupa. Não tardei a encontrar um edifício do outro lado do quarteirão, com fachada para a Rua Joaquín Costa, do qual se podia ter acesso ao terraço e, uma vez ali, saltar o muro e chegar ao edifício da Ronda de San António sem que ninguém me pudesse ver entrar ou sair do prédio. Numa ocasião recebi uma carta do administrador dizendo-me que alguns vizinhos tinham notado ruídos no andar dos Fortuny. Respondi em nome do advogado Requejo alegando que ocasionalmente um ou outro elemento do escritório tivera de ir buscar papéis ou documentos ao andar e que não havia motivo para alarme, embora os ruídos fossem nocturnos. Acrescentei um certo rodeio para dar a entender que, entre cavalheiros, contabilistas e advogados, uma casa de encontros secreta era mais sagrada do que o Domingo de Ramos. O administrador, mostrando solidariedade corporativa, respondeu que não me preocupasse minimamente, que ele se encarregava da situação.

Naqueles anos, desempenhar o papel do advogado Requejo foi a minha única diversão. Uma vez por mês ia visitar o meu pai ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Ele nunca mostrou interesse em conhecer aquele marido invisível e eu nunca me ofereci para lho apresentar. Contornávamos o assunto na nossa conversa como navegantes experimentados que evitam um escolho ao lume de água, esquivando o olhar. Às vezes, ficava a olhar-me em silêncio e perguntava-me se precisava de ajuda, se havia alguma coisa que ele pudesse fazer. Alguns sábados, ao amanhecer, acompanhava o Julián a ver o mar. Subíamos ao terraço e passávamos para o edifício contíguo para sairmos na Rua Joaquín Costa. Dali descíamos até ao porto através de vielas do Raval. Ninguém nos saía ao caminho. Receavam o Julián, mesmo de longe. Às vezes chegávamos até ao quebra-mar. O Julián gostava de se sentar nas rochas, a olhar para a cidade. Passávamos horas assim, quase sem trocarmos uma palavra. Uma ou outra tarde enfiávamo-nos num cinema, quando a sessão já tinha começado. Na escuridão ninguém reparava no Julián. À medida que os meses passavam aprendi a confundir a rotina com a normalidade, e com o tempo acabei por acreditar que o meu plano fora perfeito. Pobre imbecil!

 

1945, um ano de cinzas. Tinham passado apenas seis anos desde o fim da guerra e, embora se sentissem a cada passo as suas cicatrizes, quase ninguém falava abertamente dela. Agora falava-se da outra guerra, a mundial, que tinha empestado o mundo com um fedor a carniça e baixeza de que nunca voltaria a libertar-se. Eram anos de escassez e miséria, estranhamente abençoados por aquela paz que os mudos e os entrevados inspiram, a meio caminho entre a pena e a repugnância. Após anos de procurar trabalho como tradutora em vão, encontrei finalmente um emprego como revisora de provas numa editora fundada por um empresário de recente extracção chamado Pedro Sanmartí.

O empresário tinha edificado o negócio investindo a fortuna do sogro, que a seguir instalara num asilo em frente do lago de Banolas à espera de receber pelo correio a sua certidão de óbito. Sanmartí, que gostava de cortejar rapariguinhas com metade da sua idade, tinha-se beatificado pelo lema na altura tão em voga do homem que se fez a si mesmo. Arranhava um inglês com sotaque de Vilanova i La Geltrú, convencido de que era o idioma do futuro, e rematava as suas frases com a muleta do «Okey».

A editora (que Sanmartí baptizara com o peregrino nome de «Endymion» porque lhe soava a catedralesco e propício para fazer caixa) publicava catecismos, manuais de boas maneiras e uma colecção de séries romanceadas de leitura edificante protagonizadas por freirinhas de comédia ligeira, pessoal heróico da Cruz Vermelha e funcionários felizes e de alta fibra apostólica. Editávamos também uma série de historietas de soldados americanos intitulada «Comando Coragem», que fazia furor no seio de uma juventude desejosa de heróis com aspecto de comer carne sete dias por semana. Eu tinha feito uma boa amiga na empresa na pessoa da secretária de Sanmartí, uma viúva de guerra chamada Mercedes Prieto com a qual não tardei a sentir uma afinidade completa e com a qual me conseguia entender com um simples olhar ou um sorriso. A Mercedes e eu tínhamos muito em comum: éramos duas mulheres à deriva, rodeadas de homens que estavam mortos ou se tinham escondido do mundo. A Mercedes tinha um filho de sete anos doente de distrofia muscular que criava como podia. Tinha apenas trinta e dois anos, mas lia-se-lhe a vida nos sulcos da pele. Durante todos aqueles anos, a Mercedes foi a única pessoa à qual me senti tentada a contar tudo, a abrir-lhe a minha vida.

Foi ela que me contou que Sanmartí era um grande amigo do cada dia mais condecorado inspector-chefe Francisco Javier Fumero. Faziam ambos parte de uma camarilha de indivíduos surgidos de entre as cinzas da guerra que alastrava como uma teia de aranha pela cidade, inexorável. A nova sociedade. Um belo dia o Fumero apareceu na editora. Ia visitar o seu amigo Sanmartí, com o qual combinara ir almoçar. Eu, com uma desculpa qualquer, escondi-me na sala do arquivo até ambos saírem. Quando voltei à minha secretária, a Mercedes lançou-me um olhar que dizia tudo. Desde então, cada vez que o Fumero aparecia nos escritórios da editora, ela avisava-me para eu me esconder.

Não passava um dia que Sanmartí não tentasse levar-me a jantar, convidar-me para ir ao teatro ou ao cinema com qualquer desculpa. Eu respondia sempre que o meu marido estava à minha espera em casa e que a mulher dele devia estar preocupada, que se fazia tarde. A senhora Sanmartí, que funcionava como móvel ou fardo mutável, cotando-se muito abaixo do obrigatório Bugatti na escala de afectos do marido, parecia ter já perdido o seu papel no sainete daquele casamento, uma vez passada a fortuna do sogro para as mãos de Sanmartí.

A Mercedes já me tinha advertido do que a casa gastava. Sanmartí, dotado de uma capacidade de concentração limitada no espaço e no tempo, tinha apetite pela carne fresca e pouco vista, concentrando as suas bagatelas dom-juanescas na recém-chegada, que neste caso era eu. Sanmartí lançava mão de todos os recursos para iniciar uma conversa comigo.

- Dizem-me que o teu marido, esse talMoliner, é escritor... Se calhar estaria interessado em escrever um livro sobre o meu amigo Fumero, para o qual já tenho título: Fumero, o Terror do Crime ou A Lei das Ruas. Que dizes tu, Nurieta?

- Agradeço-lhe imenso, senhor Sanmartí, mas é que o Miquel está enfronhado num romance e não me parece que neste momento possa...

Sanmartí ria às gargalhadas.

- Um romance! Valha-me Deus, Nurieta... O romance está morto e enterrado. Dizia-mo no outro dia um amigo que acaba de chegar de Nova Iorque. Os americanos estão a inventar uma coisa que se chama televisão e que vai ser como o cinema, mas em casa. Nunca mais serão precisos livros, nem missa, nem nada de nada. Diz ao teu marido que se deixe de romances. Se ao menos tivesse nome, fosse futebolista ou toureiro... Olha, que achas de pegarmos no Bugatti e irmos comer uma paelha a Castelldefels para discutir tudo isto? É que tens de contribuir com um pouco da tua vontade... Bem sabes que eu gostaria de te ajudar. E ao teu maridinho também. Bem sabes que neste país, sem padrinhos, nada feito.

Comecei a vestir-me como uma viúva do Corpo de Deus ou uma daquelas mulheres que parecem confundir a luz do sol com o pecado mortal. Ia trabalhar com o cabelo apanhado num carrapito e sem pintura. Apesar dos meus estratagemas, Sanmartí continuava a polvilhar-me com as suas insinuações, sempre suspensas daquele sorriso untuoso e gangrenado de desprezo que caracteriza os eunucos prepotentes que pendem como morcelas tumefactas dos altos escalões de todas as empresas. Tive duas ou três entrevistas na perspectiva de outros empregos, mas mais tarde ou mais cedo acabava por deparar com outra versão de Sanmartí. Cresciam como uma praga de cogumelos que fazem ninho no esterco com que se semeiam as empresas. Um deles deu-se ao trabalho de telefonar a Sanmartí e dizer-lhe que Nuria Monfort andava à procura de emprego nas suas costas. Sanmartí convocou-me ao seu gabinete, magoado de ingratidão. Pôs-me a mão na face e fez menção de uma carícia. Os dedos cheiravam a tabaco e a suor. Fiquei lívida.

- Mulher, se não estás satisfeita, só tens de mo dizer. Que posso eu fazer para melhorar as tuas condições de trabalho? Bem sabes que te aprecio e magoa-me saber por terceiros que nos queres deixar. Que tal se tu e eu fossemos jantar por aí e fizéssemos as pazes?

Tirei-lhe a mão da minha cara, sem conseguir ocultar mais a repugnância que me causava.

- Desapontas-me, Nuria. Tenho de te confessar que não vejo em ti espírito de equipa nem fé no projecto desta empresa.

A Mercedes já me tinha avisado de que, mais tarde ou mais cedo, havia de acontecer qualquer coisa assim. Dias depois, Sanmartí, que competia em gramática com um orangotango, começou a devolver todos os manuscritos que eu corrigia alegando que estavam cheios de erros. Quase todos os dias ficava no escritório até às dez ou onze da noite, a refazer uma e outra vez páginas e páginas com os riscos e comentários de Sanmartí.

- Demasiados verbos no passado. Soa a morto, sem garra... O infinito não se usa a seguir a ponto e vírgula. Toda a gente sabe isso...

Algumas noites, Sanmartí ficava também até tarde, fechado no seu gabinete. A Mercedes procurava estar lá, mas em mais de uma ocasião Sanmartí mandava-a para casa. Nessa altura, quando ficávamos a sós na editora, Sanmartí saía do seu gabinete e aproximava-se da minha secretária.

- Trabalhas muito, Nurieta. O trabalho não é tudo. Também épreciso a pessoa divertir-se. E tu ainda és nova. Embora a juventude passe e nem sempre saibamos tirar partido dela.

Sentava-se na borda da minha secretária e olhava-me fixamente. Às vezes colocava-se atrás de mim e ficava ali durante um par de minutos e eu podia sentir o seu hálito fétido no cabelo. Outras vezes poisava-me a mão nos ombros.

- Estás tensa, mulher. Descontrai-te.

Eu tremia, queria gritar ou desatar a correr e nunca mais voltar àquele escritório, mas precisava do emprego e do mísero ordenado que ele me proporcionava. Uma noite, Sanmartí começou com a sua rotina da massagem e principiou a apalpar-me com avidez.

- Um dia vais-me fazer perder a cabeça - gemia.

Escapei-me das suas garras de um salto e corri até à saída, arrastando o casaco e a mala. Sanmartí ria-se nas minhas costas. Na escada tropecei numa figura escura que parecia deslizar pelo vestíbulo sem roçar o chão.

- Bons olhos a vejam, senhora Moliner...

O inspector Fumero ofereceu-me o seu sorriso de réptil.

- Não me diga que trabalha para o meu bom amigo Sanmartí. Ele, como eu, é o melhor no seu ofício. E diga-me, como está o seu marido?

Soube que tinha os dias contados. No dia seguinte correu o rumor no escritório de que Nuria Monfort era «fressureira», visto que se mantinha imune aos encantos e ao hálito a alho de don Pedro Sanmartí, e que andava enrolada com Mercedes Prieto. Não foi uma nem duas jovens de futuro na empresa que garantiram ter visto aquele «par de porcas» a beijocar-se no arquivo em determinadas ocasiões. Nessa tarde, ao sair, a Mercedes perguntou-me se podíamos falar um momento. Mal me conseguia olhar nos olhos. Fomos ao café da esquina sem trocar palavra. Ali, a Mercedes contou-me que Sanmartí lhe tinha dito que não via com bons olhos a nossa amizade, que a polícia lhe tinha dado informações sobre mim, sobre o meu suposto passado de activista comunista.

- Nuria, eu não posso perder este emprego. Preciso dele para criar o meu filho...

Abateu-se entre lágrimas, consumida pela vergonha e pela humilhação, envelhecendo a cada segundo.

- Não te preocupes, Mercedes. Eu percebo - disse eu.

- Aquele homem, o Fumero, anda atrás de ti, Nuria. Não sei o que tem ele contra ti, mas vê-se-lhe na cara...

- Bem sei.

Na segunda-feira seguinte, quando cheguei ao escritório, encontrei-me com um indivíduo enxuto e engomado a ocupar a minha secretária. Apresentou-se como Salvador Benades, o novo revisor.

- E quem é o senhor?

Nem uma única pessoa em todo o escritório se atreveu a trocar um olhar ou a palavra comigo enquanto eu juntava as minhas coisas. Ao descer pela escada, a Mercedes correu atrás de mim e entregou-me um envelope que continha um maço de notas e moedas.

- Quase todos contribuíram com o que puderam. Aceita-o, por favor. Não por ti, por nós.

Nessa noite fui ao andar da Ronda de San António. O Julián esperava-me como sempre, sentado na escuridão. Tinha escrito um poema para mim, disse. Era o primeiro que escrevia em nove anos. Quis lê-lo, mas fui-me abaixo nos seus braços. Contei-lhe tudo, porque já não podia mais. Porque receava que o Fumero, mais tarde ou mais cedo, o encontrasse. O Julián ouviu-me em silêncio, segurando-me nos braços e acariciando-me o cabelo. Era a primeira vez em anos que sentia que, por uma vez, me podia apoiar nele. Quis beijá-lo, doente de solidão, mas o Julián não tinha lábios nem pele para me oferecer. Adormeci nos seus braços, encolhida na cama do quarto dele, uma caminha de rapaz. Quando acordei, o Julián não estava lá. Ouvi os seus passos no terraço ao alvorecer e fingi estar ainda a dormir. Mais tarde, nessa manhã, ouvi a notícia no rádio sem me aperceber. Tinha sido encontrado um corpo num banco no Paseo del Borne, contemplando a basílica de Santa Maria del Mar, sentado com as mãos cruzadas sobre o regaço. Um bando de pombas que lhe debicavam os olhos chamou a atenção de um vizinho, que alertou a polícia. O cadáver tinha o pescoço partido. A senhora Sanmartí identificou-o como o seu marido, Pedro Sanmartí Monegal. Quando o sogro do falecido recebeu a notícia no seu asilo de Banolas, deu graças aos céus e disse para consigo que agora podia morrer em paz.

 

O Julián escreveu uma vez que os acasos são as cicatrizes do destino. Não há acasos, Daniel. Somos títeres da nossa inconsciência. Durante anos tinha querido acreditar que o Julián continuava a ser o homem por quem me tinha apaixonado, ou as suas cinzas. Tinha querido acreditar que iríamos avante com sopros de miséria e de esperança. Tinha querido acreditar que Laín Coubert morrera e regressara às páginas de um livro. As pessoas estão dispostas a acreditar no que quer que seja em vez da verdade.

O assassínio de Sanmartí abriu-me os olhos. Compreendi que Laín Coubert continuava vivo e a mexer. Mais do que nunca. Hospedava-se no corpo fanado pelas chamas daquele homem do qual nem a voz restava e se alimentava da sua memória. Descobri que ele tinha encontrado a maneira de entrar e sair do andar da Ronda de San António através de uma janela que dava para a clarabóia central sem necessidade de forçar a porta que eu fechava todas as vezes que de lá saía. Descobri que Laín Coubert, disfarçado de Julián, tinha andado a percorrer a cidade, visitando o casarão dos Aldaya. Descobri que na sua loucura regressara àquela cripta e quebrara as lápides, que tinha extraído os sarcófagos da Penélope e do filho. «Que fizeste tu, Julián?»

A polícia esperava-me em casa para me interrogar sobre a morte do editor Sanmartí. Conduziram-me à esquadra, onde depois de cinco horas de espera num gabinete às escuras, o Fumero compareceu vestido de preto e me ofereceu um cigarro.

- A senhora e eu podíamos ser bons amigos, senhora Moliner. Dizem-me os meus homens que o seu marido não está em casa.

- O meu marido deixou-me. Não sei onde está.

Atirou-me da cadeira abaixo com uma bofetada brutal. Arrastei-me até um canto, presa de pânico. Não me atrevi a levantar a vista. O Fumero ajoelhou-se ao meu lado e agarrou-me pelos cabelos.

- Toma bem nota, galdéria de merda: eu vou encontrá-lo e, quando isso acontecer, matar-vos-ei aos dois. A ti primeiro, para que ele te veja com as tripas ao dependuro. E depois a ele, quando lhe tiver contado que a outra rameira que ele mandou para a cova era irmã dele.

- Primeiro matar-te-á ele a ti, filho da puta.

O Fumero cuspiu-me na cara e soltou-me. Julguei então que ia dar cabo de mim à pancada, mas ouvi os seus passos a afastarem-se pelo corredor. Tremendo, pus-me de pé e limpei o sangue da cara. Conseguia sentir o cheiro da mão daquele homem na pele, mas desta vez reconheci o fedor do medo.

Retiveram-me naquele quarto, às escuras e sem água, durante seis horas. Quando me soltaram já era de noite. Chovia a cântaros e as ruas ardiam de vapor. Ao chegar a casa deparei com um mar de escombros. Os homens do Fumero tinham estado ali. Entre móveis caídos, gavetas e estantes derrubadas, encontrei a minha roupa feita em farrapos e os livros do Miquel desfeitos. Em cima da minha cama encontrei uma pilha de fezes e sobre a parede, escrito com excrementos, lia-se «Puta».

Corri ao andar da Ronda de San António, fazendo mil desvios e certificando-me de que nenhum dos esbirros do Fumero me tinha seguido até à porta da rua Joaquín Costa. Atravessei os telhados alagados de chuva e verifiquei que a porta do andar continuava fechada. Entrei discretamente, mas os ecos dos meus passos denunciava a ausência. O Julián não estava lá. Esperei-o sentada na sala de jantar escura, a ouvir a tempestade, até ao alvorecer. Quando a bruma do amanhecer lambeu os postigos da varanda, subi ao terraço e contemplei a cidade esmagada sob céus de chumbo. Soube que o Julián não voltaria ali. Já o tinha perdido para sempre.

Voltei a vê-lo dois meses depois. Tinha-me enfiado num cinema à noite, sozinha, incapaz de voltar ao andar vazio e frio. A meio do filme, uma estupidez de amoricos entre uma princesa romena desejosa de aventura e um bem-parecido repórter norte-americano imune ao esguedelhamento, sentou-se um indivíduo ao meu lado. Não era a primeira vez. Os cinemas daquela época andavam enxameados de fantoches que tresandavam a solidão, urina e água-de-colónia, brandindo as suas mãos suarentas e trémulas como línguas de carne morta. Dispunha-me a levantar-me e avisar o arrumador quando reconheci o perfil fanado do Julián. Aferrou-me a mão com força e permanecemos assim, a olhar o ecrã sem o ver.

- Foste tu que mataste o Sanmartí? - murmurei.

- Alguém sente a falta dele?

Falávamos em sussurros, sob o olhar atento dos homens solitários semeados pela plateia que se roíam de inveja ante o aparente êxito daquele sombrio competidor. Perguntei-lhe onde tinha andado a esconder-se, mas não me respondeu.

- Existe outro exemplar de A Sombra do Vento - murmurou. - Aqui, em Barcelona.

- Estás enganado, Julián. Destruíste-os todos.

- Todos menos um. Ao que parece, alguém mais astuto do que eu o escondeu num lugar onde nunca o poderia encontrar. Tu.

Foi assim que ouvi falar pela primeira vez de ti. Um livreiro fanfarrão e desbocado chamado Gustavo Barceló tinha estado a gabar-se diante de alguns coleccionadores de ter localizado um exemplar de A Sombra do Vento. O mundo dos livros de alfarrabista é uma câmara de eco. Num par de meses apenas, o Barceló estava a receber ofertas de coleccionadores de Berlim, Paris e Roma para adquirirem o livro. A enigmática fuga do Julián de Paris após um sangrento duelo e a sua propalada morte na guerra civil espanhola tinham conferido às suas obras um valor de mercado com que nunca teriam podido sonhar. A lenda negra de um indivíduo sem rosto que percorria livrarias, bibliotecas e colecções privadas para as queimar só contribuía para multiplicar o interesse e a cotação. «Temos o circo no sangue», dizia Barceló.

O Julián, que continuava a perseguir a sombra das suas próprias palavras, não tardou a ouvir o rumor. Soube assim que Gustavo Barceló não tinha o livro, mas que, segundo parecia, o exemplar era propriedade de um rapaz que o descobrira por acidente e que, fascinado pelo romance e pelo seu enigmático autor, se negava a vendê-lo e o conservava como a sua mais apreciada possessão. Esse rapaz eras tu, Daniel.

- Pelo amor de Deus, Julián, não vais fazer mal a uma criança... - murmurei, não muito segura.

O Julián disse-me então que todos os livros que tinha roubado e destruído haviam sido arrebatados das mãos de quem não sentia nada por eles, de gente que se limitava a comerciar com eles ou que os mantinha como curiosidades de coleccionadores e diletantes bafientos. Tu, que te negavas a vender o livro fosse a que preço fosse e tentavas recuperar Carax dos recantos do passado, inspiravas-lhe uma estranha simpatia, e até respeito. Sem que o soubesses, o Julián observava-te e estudava-te.

- Talvez, se vier a averiguar quem eu sou e o que sou, também ele decida queimar o livro.

O Julián falava com aquela lucidez firme e taxativa dos loucos que se livraram da hipocrisia de se aterem a uma realidade que não encaixa.

- Quem é esse rapaz?

- Chama-se Daniel. E filho dum livreiro que o Miquel costumava frequentar na Rua Santa Ana. Vive com o pai num andar por cima da loja. Perdeu a mãe em muito pequeno.

- Até parece que estás a falar de ti.

- Se calhar. Esse rapaz lembra-me eu próprio.

- Deixa-o em paz, Julián. É apenas uma criança. O seu único crime foi admirar-te.

- Isso não é um crime, é uma ingenuidade. Mas há-de passar-lhe. Talvez então me devolva o livro. Quando deixar de me admirar e começar a compreender-me.

Um minuto antes do desenlace, o Julián levantou-se e afastou-se ao abrigo das sombras. Durante meses vimo-nos sempre assim, às escuras, em cinemas e vielas à meia-noite. O Julián encontrava-me sempre. Eu sentia a sua presença silenciosa sem o ver, sempre vigilante. Às vezes mencionava-te e, ao ouvi-lo falar de ti, parecia-me detectar na sua voz uma estranha ternura que o confundia e que havia muitos anos julgava perdida nele. Soube que tinha regressado ao casarão dos Aldaya e que agora vivia lá, a meio caminho entre espectro e mendigo, percorrendo a ruína da sua vida e velando os restos da Penélope e do filho de ambos. Aquele era o único sítio no mundo que ainda sentia seu. Há piores prisões que as palavras.

Eu ia lá uma vez por mês, para me certificar de que ele estava bem, ou simplesmente vivo. Saltava a sebe meio derrubada da parte de trás, invisível da rua. Às vezes encontrava-o ali, outras vezes Julián tinha desaparecido. Deixava-lhe comida, dinheiro, livros... Esperava-o durante horas, até ao anoitecer. Em certas ocasiões atrevia-me a explorar o casarão. Foi assim que averiguei que ele tinha quebrado as lápides da cripta e extraído os sarcófagos. Já não julgava que o Julián estivesse louco, nem via monstruosidade naquela profanação, mas tão-só uma trágica coerência. Nas vezes que o encontrava lá falávamos durante horas, sentados ao pé do fogo. O Julián confessou-me que tinha tentado voltar a escrever, mas que não era capaz. Lembrava-se vagamente dos seus livros como se os tivesse lido, como se fossem obra de outra pessoa. As cicatrizes da sua tentativa estavam à vista. Descobri que o Julián confiava ao fogo páginas que escrevera febrilmente durante o tempo em que não nos tínhamos visto. Uma vez, aproveitando a sua ausência, recuperei um molho de folhas de entre as cinzas. Falava de ti. O Julián tinha-me dito certa vez que um relato era uma carta que o autor escreve a si próprio para contar coisas a si mesmo que de outro modo não poderia averiguar. Havia tempo que o Julián perguntava a si mesmo se tinha perdido a razão. Saberá o louco que está louco? Ou os loucos são os outros, que se empenham em convencê-lo da sua insanidade para salvaguardarem a sua existência de quimeras? O Julián observava-te, via-te crescer e perguntava a si mesmo quem eras. Perguntava a si mesmo se porventura a tua presença não seria senão um milagre, um perdão que tinha de conquistar ensinando-te a não cometeres os seus próprios erros. Em mais de uma ocasião interroguei-me sobre se o Julián não teria acabado por se convencer de que tu, naquela lógica tortuosa do seu universo, te tinhas transformado no filho que ele perdera, numa nova página em branco para voltar a começar aquela história que não podia inventar, mas que não podia recordar.

Passaram aqueles anos no casarão e o Julián vivia cada vez mais suspenso de ti, dos teus progressos. Falava-me dos teus amigos, de uma mulher chamada Clara pela qual te tinhas apaixonado, do teu pai, um homem que ele admirava e apreciava, do teu amigo Fermín e de uma rapariga em que ele quis ver outra Penélope, a tua Bea. Falava de ti como de um filho. Vocês procuravam-se um ao outro, Daniel. Ele queria crer que a tua inocência o salvaria de si mesmo. Deixara de perseguir os seus livros, de ter vontade de queimar e destruir o seu rasto na vida. Estava a aprender a voltar a memorizar o mundo através dos teus olhos, de recuperar o rapaz que tinha sido em ti. No dia em que foste lá a casa pela primeira vez senti que já te conhecia. Fingi receio para ocultar o temor que me inspiravas. Tinha medo de ti, do que poderias averiguar. Tinha medo de ouvir o Julián e começar a acreditar como ele que todos estávamos realmente ligados numa estranha cadeia de destinos e acasos. Tinha medo de reconhecer o Julián que perdera em ti. Sabia que tu e os teus amigos estavam a fazer investigações sobre o nosso passado. Sabia que mais tarde ou mais cedo descobririas a verdade, mas a seu devido tempo, quando pudesses vir a compreender o seu significado. Sabia que mais tarde ou mais cedo tu e o Julián se encontrariam. Foi esse o meu erro. Porque havia mais alguém que o sabia, alguém que pressentia que, com o tempo, tu o conduzirias ao Julián: o Fumero. Compreendi o que estava a acontecer quando já não havia retorno, mas nunca perdi a esperança de que perdesses o rasto, de que te esquecesses de nós ou de que a vida, a tua e não a nossa, te levasse para longe, a salvo. O tempo ensinou-me a não perder as esperanças, mas a não confiar demasiado nelas. São cruéis e vaidosas, desprovidas de consciência. Há já muito tempo que o Fumero anda no meu encalço. Ele sabe que cairei, mais tarde ou mais cedo. Não tem pressa, e por isso parece incompreensível. Vive para se vingar. De todos e de si mesmo. Sem a vingança, sem a raiva, evaporar-se-ia. O Fumero sabe que tu e os teus amigos me levarão até ao Julián. Sabe que, depois de quase quinze anos, já não me restam forças nem recursos. Viu-me morrer durante anos e só espera o momento de me assestar o último golpe. Nunca duvidei de que morrerei às suas mãos. Agora sei que o momento se aproxima. Entregarei estas páginas ao meu pai com o encargo de tas fazer chegar se me acontecer alguma coisa. Peço a Deus, com quem nunca me cruzei, que nunca chegues a lê-las, mas pressinto que o meu destino, apesar da minha vontade e apesar das minhas vãs esperanças, é confiar-te esta história. O teu, apesar da tua juventude, é libertá-la.

Quando leres estas palavras, esta prisão de recordações, significará que já não poderei despedir-me de ti como quereria, que não te poderei pedir que nos perdoes, sobretudo ao Julián, e que cuides dele quando eu não estiver cá para o fazer. Sei que não te posso pedir nada, salvo que te salves. Talvez tantas páginas me tenham acabado por convencer de que, aconteça o que acontecer, terei sempre em ti um amigo, que tu és a minha única e verdadeira esperança. De todas as coisas que o Julián escreveu, aquela que sempre senti mais próxima é que enquanto nos recordam, continuamos vivos. Como tantas vezes me sucedeu com o Julián, anos antes de me encontrar com ele, sinto que te conheço e que, se posso confiar em alguém, é em ti. Lembra-te de mim, Daniel, mesmo que seja num canto e às escondidas. Não me deixes ir.

           Nuria Monfort.

 

                             A SOMBRA DO VENTO - 1955.

 

Amanhecia já quando acabei de ler o manuscrito de Nuria Monfort. Aquela era a minha história. A nossa história. Nos passos perdidos de Carax reconhecia agora os meus, já irrecuperáveis. Levantei-me, devorado pela ansiedade, e comecei a percorrer o quarto como um animal enjaulado. Todos os meus escrúpulos, os meus receios e temores se desfaziam agora em cinzas, insignificantes. A fadiga, o remorso e o medo venciam-me, mas senti-me incapaz de permanecer ali, a esconder-me do rasto das minhas acções. Envolvi-me no sobretudo, meti o manuscrito dobrado no bolso interior e corri pelas escadas abaixo. Tinha começado a nevar quando saí a porta da rua e o céu desfazia-se em lágrimas preguiçosas de luz que assentavam no bafo e desapareciam. Corri em direcção à Praça Cataluna, deserta. No centro da praça, solitário, erguia-se a silhueta de um velho, ou talvez fosse um anjo desertor, encimada por uma cabeleira branca e enfiado num formidável sobretudo cinzento. Rei do alvorecer, erguia o olhar ao céu e tentava em vão apanhar flocos de neve com as luvas, rindo-se. Ao passar ao lado dele olhou-me e sorriu com gravidade, como se pudesse ler-me a alma numa olhadela. Tinha os olhos dourados como moedas enfeitiçadas no fundo de um lago.

- Felicidades - pareceu-me ouvi-lo dizer.

Tentei agarrar-me àquela bênção e apertei o passo, rezando para que não fosse tarde de mais e que Bea, a Bea da minha história, ainda estivesse à minha espera.

Ardia-me a garganta de frio quando cheguei ao edifício onde os Aguilar viviam, ofegando após a corrida. A neve começava a coagular. Tive a sorte de encontrar don Saturno Molleda, porteiro do edifício e (segundo Bea me tinha contado) poeta surrealista às escondidas, postado à entrada. Don Saturno tinha saído para contemplar o espectáculo da neve de vassoura na mão, embrulhado em nada menos que três cachecóis e botas de assalto.

- É a caspa de Deus - disse, maravilhado, estreando o nevão de versos inéditos.

- Vou a casa dos senhores Aguilar - anunciei.

- É sabido que a quem madruga Deus ajuda, mas estas suas horas são como pedir-lhe uma bolsa de estudo, jovem.

- Trata-se de uma emergência. Estão à minha espera.

- Ego te absolvo - recitou, concedendo-me uma bênção.

Corri pelas escadas acima. Enquanto subia, contemplava as minhas possibilidades com uma certa reserva. Com sorte, viria abrir-me uma das criadas, cujo bloqueio me dispunha a franquear sem contemplações. Com pior sorte, talvez fosse o pai de Bea quem me abrisse a porta, dadas as horas. Quis acreditar que na intimidade do seu lar não andaria armado, pelo menos antes do pequeno-almoço. Antes de bater, parei uns instantes para recuperar o fôlego e tentar conjurar umas palavras que não me vieram. Já pouco importava. Bati a aldraba três vezes com força. Quinze segundos depois repeti a operação, e assim sucessivamente, ignorando o suor frio que me cobria a testa e as batidas do meu coração. Quando a porta se abriu, ainda segurava a aldraba nas mãos.

- Que queres?

Os olhos do meu velho amigo Tomás perfuraram-me, sem sobressalto. Frios e supurante de ira.

- Venho ver a Bea. Podes partir-me a cara, se quiseres, mas não vou daqui sem falar com ela.

Tomás observava-me sem pestanejar. Perguntei a mim mesmo se me ia partir em dois ali mesmo, sem contemplações. Engoli em seco.

- A minha irmã não está.

- Tomás...

- A Bea foi-se embora.

Havia abandono e mágoa na sua voz, que a custo conseguia mascarar de raiva.

- Foi-se embora? Para onde?

- Esperava que tu soubesses.

- Eu?

Ignorando os punhos cerrados e o semblante ameaçador de Tomás, introduzi-me no interior do andar.

- Bea? - gritei. - Bea, sou o Daniel...

Parei a meio do corredor. O andar cuspia o eco da minha voz com aquele desprezo dos espaços vazios. Nem o senhor Aguilar, nem a mulher, nem a criadagem apareceram em resposta aos meus bramidos.

- Não está cá ninguém. Já te disse - declarou Tomás à minha retaguarda. - Agora põe-te a andar e não voltes. O meu pai jurou que te matava e não vou ser eu quem o impeça.

- Pelo amor de Deus, Tomás. Diz-me onde está a tua irmã. Contemplava-me como quem não sabe se cuspir ou passar de largo.

- A Bea foi-se embora de casa, Daniel. Os meus pais andam há dois dias à procura dela por todo o lado como doidos e a polícia também.

- Mas...

- Na outra noite, quando voltou de te ver, o meu pai estava à espera dela. Abriu-lhe os lábios à bofetada, mas não te preocupes, que se negou a dar o teu nome. Tu não a mereces.

- Tomás...

- Cala-te. No dia seguinte, os meus pais levaram-na ao médico.

- Porquê? A Bea está doente?

- Doente de ti, imbecil. A minha irmã está grávida. Não me digas que não sabias.

Senti que me tremiam os lábios. Um frio intenso espalhava-se-me pelo corpo, a voz sumida, o olhar aprisionado. Arrastei-me até à saída, mas Tomás agarrou-me pelo braço e arremessou-me contra a parede.

- Que foi que lhe fizeste?

- Tomás, eu...

Descaíram-lhe as pálpebras de impaciência. O primeiro golpe cortou-me a respiração. Resvalei até ao chão com as costas apoiadas contra a parede, os joelhos a fraquejar. Um aperto terrível aferrou-me a garganta e susteve-me de pé, espetado contra a parede.

- Que foi que lhe fizeste, filho da puta?

Tentei libertar-me do aperto, mas Tomás lançou-me por terra com um murro na cara. Caí numa escuridão interminável, com a cabeça envolvida em labaredas de dor. Abati-me sobre as lajes do corredor. Procurei rastejar, mas Tomás agarrou-me pela gola do sobretudo e arrastou-me sem contemplações até ao patamar. Atirou-me para as escadas como um despojo.

- Se aconteceu alguma coisa à Bea, juro que te mato - disse do umbral da porta.

Ergui-me de joelhos, implorando um segundo, uma oportunidade de recuperar a voz. A porta fechou-se abandonando-me na escuridão. Assaltou-me uma pontada no ouvido esquerdo e levei a mão à cabeça, retorcendo-me de dor. Apalpei sangue morno. Pus-me de pé conforme pude. Os músculos do ventre que tinham encaixado o primeiro golpe de Tomás ardiam numa agonia que só agora principiava. Deslizei pelas escadas abaixo, onde don Saturno, ao ver-me, abanou a cabeça.

- Eh lá, entre um momento e recomponha-se...

Fiz um gesto de recusa, agarrando o estômago com as mãos. Latejava-me o lado esquerdo da cabeça, como se os ossos quisessem desprender-se da carne.

- Está a sangrar - disse don Saturno, inquieto.

- Não é a primeira vez.

- Então continue a brincar e não terá oportunidade de sangrar muito mais. Vamos, entre e eu chamo um médico, faça-me o favor.

Consegui chegar à porta da rua e livrar-me da boa vontade do porteiro. Agora nevava com força, velando o passeio com mantos de bruma branca. O vento gelado abria caminho pelo meio da minha roupa, lambendo a ferida que me sangrava na cara. Não sei se chorei de dor, de raiva ou de medo. A neve, indiferente, levou o meu pranto cobarde e afastei-me lentamente no alvorecer de poeira, uma sombra mais a abrir sulcos na caspa de Deus.

 

Quando me aproximava do cruzamento da Rua Balmes reparei que um carro me estava a seguir, bordejando o passeio. A dor de cabeça tinha dado lugar a uma sensação de vertigem que me fazia cambalear e caminhar apoiando-me nas paredes. O carro parou e dois homens apearam-se dele. Um apito estridente tinha-me inundado os ouvidos e não consegui ouvir o motor, nem os apelos daquelas duas silhuetas de preto que me seguravam cada uma de seu lado e me arrastavam com urgência para o carro. Caí no banco de trás, embriagado de náusea. A luz ia e vinha, como uma maré de claridade ofuscante. Senti que o carro se movia. Umas mãos apalpavam-me o rosto, a cabeça e as costelas. Ao dar com o manuscrito de Nuria Monfort oculto no interior do meu sobretudo, uma das figuras arrebatou-mo. Quis detê-lo com braços de gelatina. A outra silhueta debruçou-se sobre mim. Soube que estava a falar comigo ao sentir o seu hálito na cara. Esperei ver o rosto de Fumero e sentir o gume da sua faca na garganta. Um olhar poisou sobre o meu e, enquanto o véu da consciência se soltava, reconheci o sorriso desdentado e obsequioso de Fermín Romero de Torres.

Acordei encharcado num suor que me ardia na pele. Duas mãos seguravam-me com firmeza pelos ombros, acomodando-me sobre um catre que me pareceu rodeado de círios, como num velório. O rosto de Fermín assomou à minha direita. Sorria, mas até em pleno delírio pude perceber a sua inquietude. Ao seu lado, de pé, distingui don Federico Flaviá, o relojoeiro.

- Parece que está a voltar a si, Fermín - disse don Federico. - Acha bem que lhe prepare um pouco de caldo para o reanimar?

- Mal não lhe há-de fazer. Já que está com as mãos na massa, o senhor podia preparar-me uma sanduíche do que encontre, que com estes nervos veio-me uma larica que não lhe digo nada.

Federico retirou-se com louçania e deixou-nos a sós.

- Onde estamos, Fermín?

- Em lugar seguro. Tecnicamente, achamo-nos num andarzinho à esquerda do Ensanche, propriedade de umas amizades de don Federico, ao qual devemos a vida e não só. Os maldizentes qualificá-lo-iam de casa de encontros, mas para nós é um santuário.

Procurei pôr-me de pé. A dor no ouvido fazia-se sentir agora num latejar ardente.

- Vou ficar surdo?

- Surdo, não sei, mas por pouco não ficou meio mongolóide. Esse energúmeno do senhor Aguilar por pouco não lhe liquefez as meninges à porrada.

- Não foi o senhor Aguilar que me bateu. Foi o Tomás.

- O Tomás? O seu amigo inventor? Assenti.

- Alguma coisa o Daniel terá feito.

- A Bea fugiu de casa... - comecei. Fermín franziu o cenho.

- Continue.

- Está grávida.

Fermín observava-me, pasmado. Por uma vez, a sua expressão era impenetrável e severa.

- Não me olhe assim, Fermín, por Deus.

- Que quer que faça? Distribuir charutos?

Tentei levantar-me, mas a dor e as mãos de Fermín detiveram-me.

- Tenho de a encontrar, Fermín.

- Quietinho. O Daniel não está em condições de ir a lado nenhum. Diga-me onde está a rapariga e eu irei à procura dela.

- Não sei onde está.

- Vou-lhe pedir que seja um pouco mais específico.

Don Federico apareceu pela porta trazendo uma taça fumegante de caldo. Sorriu-me calidamente.

- Como te sentes, Daniel?

- Muito melhor, obrigado, don Federico.

- Toma um par destas pastilhas com o caldo. Cruzou um olhar leve com Fermín, que assentiu.

- São para as dores.

Engoli as pastilhas e sorvi a taça de caldo, que sabia a xerez. Don Federico, um prodígio de discrição, abandonou o quarto e fechou a porta. Foi então que reparei que Fermín tinha no regaço o manuscrito de Nuria Monfort. O relógio que tilintava na mesa-de-cabeceira marcava a uma, supus que da tarde.

- Ainda neva?

- Nevar é pouco. Isto é um dilúvio em pó.

- Já o leu? - perguntei. Fermín limitou-se a assentir.

- Tenho de encontrar a Bea antes que seja tarde. Acho que sei onde ela está. Sentei-me na cama, afastando os braços de Fermín. Olhei à minha volta.

As paredes ondulavam como algas sob um lago. O tecto distanciava-se num ápice. Mal me consegui ter de pé. Fermín, sem esforço, devolveu-me de novo ao catre.

- O Daniel não vai a sítio nenhum.

- O que eram aquelas pastilhas?

- O linimento de Morfeu. O Daniel vai dormir como uma pedra.

- Não, agora não posso...

Continuei a balbuciar até que as pálpebras, e o mundo, se me abateram sem apelo nem agravo. Foi um sono negro e vazio, de túnel. O sono dos culpados.

O crepúsculo espreitava quando a laje daquele letargo se evaporou e abri os olhos a um quarto escuro e velado por dois círios cansados que pestanejavam na mesa-de-cabeceira. Fermín, desbaratado sobre a poltrona do canto, ressonava com a fúria de um homem três vezes maior. Aos seus pés, esparramado num pranto de páginas, jazia o manuscrito de Nuria Monfort. A dor de cabeça tinha-se reduzido a um latejar lento e morno. Deslizei com discrição até à porta do quarto e saí para uma pequena sala com uma varanda e uma porta que parecia dar para a escada. O meu sobretudo e os meus sapatos repousavam sobre uma cadeira. Uma luz púrpura penetrava pela janela, mosqueada de reflexos irisados. Aproximei-me até à varanda e vi que continuava a nevar. Os telhados de meia Barcelona vislumbravam-se sarapintados de branco e escarlate. Ao longe distinguiam-se as torres da escola industrial, agulhas entre a bruma acesa nos últimos suspiros do sol. O vidro estava embaciado de geada. Poisei o indicador no vidro e escrevi:

Vou à procura da Bea. Não me siga. Voltarei em breve.

A certeza tinha-me assaltado ao acordar, como se um desconhecido me tivesse sussurrado a verdade em sonhos. Saí para o patamar e lancei-me pelas escadas abaixo até sair a porta da rua. A Rua Urgel era um rio de areia reluzente do qual emergiam candeeiros e árvores, mastros num nevoeiro sólido. O vento cuspia a neve às rajadas. Caminhei até ao metro do Hospital Clínico e mergulhei nos túneis de vapor e calor em segunda mão. Hordas de barceloneses, que costumavam confundir a neve com os milagres, continuavam a comentar o insólito do temporal. Os jornais da tarde traziam a notícia na primeira página, com uma fotografia das Ramblas nevadas e da fonte de Canaletas a sangrar estalactites. «O NEVÃO DO SÉCULO», prometiam os cabeçalhos. Deixei-me cair num banco da plataforma e aspirei aquele perfume a túneis e fuligem que o rumor das composições invisíveis traz. Do outro lado das vias, num cartaz publicitário, proclamando as delícias do parque de atracções do Tibidabo, aparecia o eléctrico azul iluminado como uma verbena, e atrás dele adivinhava-se a silhueta do casarão dos Aldaya. Perguntei a mim mesmo se Bea, perdida naquela Barcelona dos que caíram do mundo, teria visto a mesma imagem e compreendido que não tinha outro sítio para onde ir.

 

Começava a anoitecer quando emergi das escadarias do metro. Deserta, a Avenida del Tibidabo desenhava uma fuga infinita de ciprestes e palácios sepultados numa claridade sepulcral. Vislumbrei a silhueta do eléctrico azul na paragem, com a campainha do revisor a decepar o vento. Apressei-me e apanhei-o quase ao mesmo tempo que ele iniciava o seu trajecto. O revisor, velho conhecido, aceitou as moedas murmurando de si para si. Procurei lugar no interior da cabina, um pouco mais resguardado da neve e do frio. Os casarões sombrios desfilavam lentamente por detrás dos vidros velados de gelo. O revisor observava-me com aquele misto de receio e ousadia que o frio parecia ter-lhe congelado no rosto.

- O número trinta e dois, jovem.

Voltei-me e vi a silhueta espectral do casarão dos Aldaya, avançando em direcção a nós como a proa de um navio escuro no nevoeiro. O eléctrico parou com uma sacudidela. Desci, fugindo do olhar do revisor.

- Felicidades - murmurou ele.

Contemplei o eléctrico a perder-se avenida acima até só se perceber o eco da campainha. Uma penumbra sólida desabou à minha volta. Apressei-me a contornar a vedação em busca da brecha caída na parte posterior. Ao escalar o muro pareceu-me ouvir passos sobre a neve no passeio oposto, a aproximarem-se. Parei um instante, imóvel no cimo do muro. A noite caía já, inexorável. O rumor de passos extinguiu-se no rasto do vento. Saltei para o outro lado e penetrei no jardim. As ervas daninhas tinham congelado em talos de vidro. As estátuas dos anjos derrubados jaziam cobertas por sudários de gelo. A superfície da fonte tinha congelado num espelho negro e reluzente do qual só emergia a garra de pedra do anjo submergido como um sabre de obsidiana. Lágrimas de gelo pendiam do dedo indicador. A mão acusadora do anjo apontava directamente para o portão principal, entreaberto.

Subi os degraus com a esperança de que não fosse demasiado tarde. Não me preocupei a amortecer o eco dos meus passos. Empurrei o portão e entrei no vestíbulo. Uma procissão de círios penetrava até ao interior. Eram as velas de Bea, quase consumidas até ao chão. Segui o seu rasto e detive-me aos pés da escadaria. O carreiro de velas subia pelos degraus até ao primeiro andar. Aventurei-me escada acima, seguindo a minha sombra deformada sobre as paredes. Ao chegar ao patamar do primeiro andar verifiquei que havia mais duas velas que se internavam no corredor. A terceira tremulava defronte daquele que tinha sido o quarto de Penélope. Aproximei-me e bati suavemente com os nós dos dedos na porta.

- Julián? - chegou-me a voz trémula.

Agarrei na maçaneta da porta e dispus-me a entrar, sem saber já quem me esperava do outro lado. Abri lentamente. Bea contemplava-me do canto, embrulhada num cobertor. Corri para o seu lado e abracei-a em silêncio. Senti que se desfazia em lágrimas.

- Não sabia para onde ir. Telefonei-te várias vezes para casa, mas não estava ninguém. Assustei-me...

Bea enxugou as lágrimas com os punhos e cravou o olhar em mim. Assenti, e não foi preciso que dissesse mais.

- Por que foi que me chamaste, Julián?

Bea lançou um olhar na direcção da porta entreaberta.

- Ele está aqui. Nesta casa. Entra e sai. Surpreendeu-me no outro dia, quando tentava entrar na casa. Sem que lhe dissesse nada, soube quem era. Soube o que estava a acontecer. Instalou-me neste quarto e trouxe-me um cobertor, água e comida. Disse-me que esperasse. Que tudo havia de correr bem. Disse-me que tu virias à minha procura. À noite falámos durante horas. Falou-me da Penélope, da Nuria... sobretudo falou-me de ti, de nós os dois. Disse-me que tinha de te ensinar a esquecê-lo...

- Onde está ele agora?

- Lá em baixo. Na biblioteca. Disse-me que estava à espera de alguém, que não me mexesse daqui.

- À espera de quem?

- Não sei. Disse que era alguém que viria contigo, que tu o trarias... Quando assomei ao corredor, as passadas já se ouviam aos pés da escada.

Reconheci a sombra dessangrada nas paredes como uma teia de aranha, a gabardina preta, o chapéu enterrado na cabeça como um capuz e o revólver na mão reluzente como uma foice. Fumero. Sempre me tinha lembrado alguém, ou alguma coisa, mas até àquele instante eu não percebera o quê.

 

Extingui as velas com os dedos e fiz um sinal a Bea para que guardasse silêncio. Ela agarrou-me na mão e olhou-me inquisitivamente. Os passos lentos de Fumero ouviam-se aos nossos pés. Conduzi Bea de novo ao interior do quarto e indiquei-lhe que permanecesse ali oculta atrás da porta.

- Não saias daqui, aconteça o que acontecer - sussurrei.

- Não me deixes agora, Daniel. Por favor.

- Tenho de avisar o Carax.

Bea implorou-me com o olhar, mas eu retirei-me para o corredor antes de me render. Deslizei até ao umbral da escadaria principal. Não havia rasto da sombra de Fumero, nem dos seus passos. Tinha parado em algum ponto da escuridão, imóvel. Paciente. Recuei de novo para o corredor e contornei a galeria de quartos até à fachada principal do casarão. Um janelão embaciado de gelo destilava quatro feixes azuis, turvos como água estagnada. Aproximei-me da janela e pude ver um carro preto postado em frente do gradeamento principal. Reconheci o automóvel do tenente Palácios. Uma brasa de cigarro na escuridão denunciava a sua presença atrás do volante. Regressei lentamente até à escadaria e desci degrau a degrau, poisando os pés com infinita cautela. Parei a meio do trajecto e perscrutei as trevas que inundavam o andar térreo.

Fumero tinha deixado o portão principal aberto à sua passagem. O vento apagara as velas e cuspia remoinhos de neve. A folhagem gelada dançava na abóbada, flutuando no túnel de claridade poeirenta que insinuava as ruínas do casarão. Desci mais quatro degraus, apoiando-me na parede. Captei um vislumbre da porta de vidros da biblioteca. Continuava sem detectar Fumero. Perguntei a mim mesmo se teria descido à cave ou à cripta. O pó de neve que penetrava do exterior estava a dissipar-lhe as pegadas. Deslizei até aos pés da escadaria e lancei uma olhadela ao corredor que conduzia à entrada. O vento gelado cuspiu-me na cara. A garra do anjo mergulhado na fonte entrevia-se nas trevas. Olhei na outra direcção. A entrada da biblioteca ficava a uma dezena de metros dos pés da escadaria. A antecâmara que conduzia até lá ficava velada de escuridão. Compreendi que Fumero podia estar a observar a uns metros apenas do ponto em que eu me encontrava, sem que eu pudesse vê-lo. Perscrutei a sombra, impenetrável como as águas de um poço. Respirei fundo e, quase arrastando os pés, cruzei às cegas a distância que me separava da entrada da biblioteca.

O grande salão oval ficava submergido numa penúria de luz vaporosa, crivada de pontos de sombra projectados pela neve a abater-se gelatinosamente atrás dos janelões.

Um objecto emergia da parede a dois metros apenas à minha direita. Por um instante pareceu-me que se deslocava, mas era só o reflexo da lua sobre o gume. Uma faca, talvez uma navalha de dois gumes, estava cravada na parede. Trespassava um rectângulo de cartão ou papel. Aproximei-me até lá e reconheci a imagem apunhalada sobre a parede. Era uma cópia idêntica da fotografia meio queimada que um estranho tinha abandonado no balcão da livraria. No retrato, Julián e Penélope, apenas uns adolescentes, sorriam a uma vida que se lhes tinha escapado sem o saberem. O fio da navalha atravessava o peito de Julián. Compreendi então que não tinha sido Laín Coubert, ou Julián Carax, quem tinha deixado aquela fotografia como um convite. Fora Fumero. A fotografia havia sido um isco envenenado. Levantei a mão para a arrebatar a faca, mas o contacto gelado do revólver de Fumero na nuca deteve-me.

- Uma imagem vale mais que mil palavras, Daniel. Se o teu pai não tivesse sido um livreiro de merda, já to teria ensinado.

Voltei-me lentamente e enfrentei o cano da arma. Tresandava a pólvora recente. O rosto cadavérico de Fumero sorria numa careta crispada de terror.

- Onde está o Carax?

- Longe daqui. Sabia que você viria à procura dele. Foi-se embora. Fumero observava-me sem pestanejar.

- Vou-te estoirar a cara em pedaços, miúdo.

- De pouco lhe servirá. O Carax não está aqui.

- Abre a boca - ordenou Fumero.

- Para quê?

- Abre a boca ou abro-ta eu com um tiro.

Descerrei os lábios. Fumero introduziu-me o revólver na boca. Senti um vómito a trepar-me pela garganta. O polegar de Fumero retesou-se no cão.

- Agora, desgraçado, pensa se tens alguma razão para continuar a viver. Que dizes?

Assenti lentamente.

- Então diz-me onde está o Carax.

Tentei balbuciar. Fumero afastou lentamente o revólver.

- Onde está?

- Lá em baixo. Na cripta.

- Tu guias-me. Quero que estejas presente quando eu contar a esse filho da puta como a Nuria Monfort gemia quando lhe enfiei a faca no...

A silhueta abriu caminho do nada. Espreitando por cima do ombro de Fumero julguei ver que a escuridão se remexia em cortinados de bruma e uma figura sem rosto, de olhar incandescente, deslizava direita a nós num silêncio absoluto, como se mal roçasse o solo. Fumero leu o reflexo nas minhas pupilas embaciadas de lágrimas e o seu rosto desfigurou-se devagar.

Quando se virou e disparou sobre o manto de negrume que o envolvia, duas garras de couro, sem linhas nem relevo, tinham-lhe atenazado a garganta. Eram as mãos de Julián Carax, crescidas das chamas. Carax afastou-me com um empurrão e esmagou Fumero contra a parede. O inspector aferrou o revólver e tentou colocá-lo debaixo do queixo de Carax. Antes que pudesse accionar o gatilho, Carax agarrou-o pelo pulso e martelou com força uma e outra vez contra a parede, sem conseguir que Fumero largasse o revólver. Um segundo disparo deflagrou na escuridão e estoirou contra a parede, abrindo uma brecha no painel de madeira. Lágrimas de pólvora inflamada e lascas em brasa salpicaram o rosto do inspector. O fedor a carne chamuscada inundou a sala.

Com uma sacudidela, Fumero tentou libertar-se daquelas mãos que lhe mantinham o pescoço imobilizado e a mão que segurava o revólver contra a parede. Carax não afrouxava o aperto. Fumero rugiu de raiva e virou a cabeça até morder o punho de Carax. Possuía-o uma fúria animal. Ouvi o estalido dos seus dentes a rasgar a pele morta e vi os lábios de Fumero a ressumar sangue. Carax, ignorando a dor, ou talvez incapaz de a sentir, agarrou então no punhal. Descravou-o da parede com um puxão e, perante o olhar aterrado de Fumero, trespassou o pulso direito do inspector contra a parede com um golpe brutal que cravou a lâmina no painel de madeira quase até ao cabo. Fumero deixou escapar um terrível bramido de agonia. A mão soltou-se com um espasmo e o revólver caiu aos seus pés. Carax cuspiu-o em direcção às sombras com um pontapé.

O horror daquela cena tinha desfilado diante dos meus olhos nuns segundos apenas. Sentia-me paralisado, incapaz de agir ou de articular um único pensamento. Carax virou-se na minha direcção e cravou o olhar em mim. Contemplando-o, consegui reconstituir as suas feições perdidas que tantas vezes tinha imaginado, ao ver retratos e ouvir velhas histórias.

- Leva a Beatriz daqui, Julián. Ela sabe o que devem fazer. Não te separes dela. Não deixes que ta arrebatem. Nada nem ninguém. Cuida dela. Mais do que da tua vida.

Quis assentir, mas os olhos desviaram-se-me para Fumero, que estava a debater-se com a faca que lhe atravessava o pulso. Arrancou-a com um puxão e abateu-se de joelhos, agarrando no braço ferido que lhe sangrava sobre o flanco.

- Vai - cochichou Carax.

Fumero contemplava-nos do solo, cego de ódio, segurando a faca ensanguentada na mão esquerda. Carax dirigiu-se para ele. Ouvimos uns passos apressados a aproximarem-se e compreendi que Palácios tinha acorrido em auxílio do seu chefe, alertado pelos disparos. Antes que Carax pudesse arrebatar a faca a Fumero, Palácios entrou na biblioteca com a arma em riste.

- Para trás - avisou.

Lançou um rápido olhar a Fumero, que se punha de pé com dificuldade, e depois observou-nos, primeiro a mim e depois a Carax. Percebi o horror e a dúvida naquele olhar.

- Para trás, disse eu.

Carax deteve-se e retrocedeu. Palácios observava-nos friamente, tentando dilucidar como resolver a situação. Os seus olhos poisaram sobre mim.

- Tu põe-te a andar. Isto não é contigo. Vamos. Hesitei um instante. Carax assentiu.

- Daqui ninguém sai - cortou Fumero. - Palácios, entregue-me o seu revólver.

Palácios permaneceu em silêncio.

- Palácios - repetiu Fumero, estendendo a mão totalmente velada de sangue em demanda da arma.

- Não - murmurou Palácios, apertando os dentes.

Os olhos enlouquecidos de Fumero encheram-se de desprezo e de fúria. Agarrou na arma de Palácios e empurrou-o com uma palmada. Cruzei o olhar com Palácios e soube o que ia suceder. Fumero ergueu lentamente a arma. Tremia-lhe a mão e o revólver brilhava, reluzente de sangue. Carax retrocedeu passo a passo, procurando a sombra, mas não havia escapatória. O cano do revólver seguia-o. Senti que os músculos do corpo se me incendiavam de raiva. A careta de morte de Fumero, que se lambia de loucura e rancor, despertou-me de chofre. Palácios olhava para mim, abanando a cabeça em silêncio. Ignorei-o. Carax tinha-se já abandonado, imóvel no centro da sala, à espera da bala.

Fumero não me chegou a ver. Para ele só existia Carax e aquela mão ensanguentada unida a um revólver. Arremessei-me sobre ele de um salto. Senti que os meus pés se erguiam do chão, mas nunca cheguei a recobrar o contacto. O mundo tinha-se congelado no ar. O estrondo do disparo chegou-me distante, como um eco de tempestade que se afasta. Não houve dor. O impacto do disparo atravessou-me as costelas. A primeira labareda foi cega, como se uma barra de metal me tivesse atingido com fúria indizível e me tivesse propulsionado no vazio um par de metros, até me lançar por terra. Não senti a queda, embora me parecesse que as paredes convergiam e o tecto descia a toda a velocidade como se ansiasse por me esmagar.

Uma mão segurou-me a nuca e vi o rosto de Julián Carax a inclinar-se sobre mim. Na minha visão, Carax aparecia exactamente como eu o tinha imaginado, como se as chamas nunca lhe tivessem arrancado o semblante. Distingui o horror no seu olhar, sem compreender. Vi que poisava a mão no meu peito e perguntei a mim mesmo o que era aquele líquido fumegante que brotava entre os seus dedos. Foi então que senti aquele fogo terrível, como um hálito de brasas a devorar-me as entranhas. Um grito quis escapar-me dos lábios, mas aflorou afogado em sangue tépido. Reconheci o rosto de Palácios ao meu lado, derrotado de remorsos. Ergui o olhar e então vi-a. Bea avançava lentamente da porta da biblioteca, o rosto ungido de horror e as mãos trémulas sobre os lábios. Abanava a cabeça em silêncio. Quis adverti-la, mas um frio mordente percorria-me os braços e as pernas, abrindo caminho no meu corpo às facadas. Fumero espreitava oculto atrás da porta. Bea não reparou na sua presença. Quando Carax se pôs de pé de um salto e Bea se voltou, alertada, o revólver do inspector já lhe roçava a testa. Palácios lançou-se para o deter. Chegou tarde. Carax pairava já sobre ele. Ouvi o seu grito, longínquo, levando o nome de Bea. A sala iluminou-se com o resplendor do disparo. A bala atravessou a mão direita de Carax. Um instante mais tarde, o homem sem rosto caía sobre Fumero. Inclinei-me para ver Bea correr até junto de mim, incólume. Procurei Carax com um olhar que se me apagava, mas não o encontrei. Outra figura tinha ocupado o seu lugar. Era Laín Coubert, tal como tinha aprendido a temê-lo lendo as páginas de um livro tantos anos atrás. Desta vez, as garras de Coubert enterraram-se nos olhos de Fumero e arrastaram-no como ganchos. Consegui ver as pernas do inspector a arrastarem-se pela porta da biblioteca, o seu corpo a debater-se aos sacões enquanto Coubert o puxava sem piedade até ao portão, os seus joelhos a baterem nos degraus de mármore e a neve a cuspir-lhe no rosto, o homem sem rosto a aferrá-lo pelo pescoço e, erguendo-o como um fantoche, a lançá-lo contra a fonte gelada, a mão do anjo a atravessar-lhe o peito e a trespassá-lo e a alma maldita a derramar-se em vapor e hálito negro que caía em lágrimas geladas sobre o espelho enquanto as suas pálpebras se agitavam até morrer e os seus olhos pareciam lascar-se com arranhaduras de escarcha.

Abati-me então, incapaz de sustentar o olhar mais um segundo. A escuridão tingia-se de luz branca e o rosto de Bea afastava-se num túnel de névoa. Fechei os olhos e senti a mão de Bea sobre o meu rosto e o sopro da sua voz a suplicar a Deus que não me levasse, a sussurrar-me que me amava e que não me deixaria partir, que não me deixaria partir. Só recordo que me desprendi naquela miragem de luz e frio, que uma estranha paz me envolveu e levou a dor e o fogo lento das minhas entranhas. Vi-me a mim mesmo a caminhar pelas ruas daquela Barcelona enfeitiçada pela mão de Bea, quase velhos. Vi o meu pai e Nuria Monfort a depositarem rosas brancas sobre a minha sepultura. Vi Fermín a chorar nos braços de Bernarda, e o meu velho amigo Tomás, que tinha emudecido para sempre. Vi-os como se vêem os estranhos de um comboio que se afasta demasiado depressa. Foi então, quase sem me aperceber, que recordei o rosto da minha mãe, que tinha perdido tantos anos atrás, como se um recorte perdido tivesse escorregado do meio das páginas de um livro. A sua luz foi tudo quanto me acompanhou no meu descenso.

 

                       27 DE NOVEMBRO DE 1955 - POST MORTEM

 

O quarto era branco, forjado de linhos e cortinados tecidos de vapor e de sol reluzente. Da minha janela via-se um mar azul infinito. Certo dia, alguém quereria convencer-me de que não, que da clínica Corachán não se vê o mar, que os seus quartos não são brancos nem etéreos e que o mar daquele mês de Novembro era uma jangada de chumbo fria e hostil, que continuou a nevar todos os dias daquela semana até sepultar o sol e Barcelona inteira sob um metro de neve e de que até Fermín, o eterno optimista, julgava que eu ia morrer outra vez.

Já tinha morrido antes, na ambulância, nos braços de Bea e do tenente Palácios, que estragou o seu fato oficial com o meu sangue. A bala, diziam os médicos, que falavam de mim julgando que eu não os ouvia, tinha desfeito duas costelas, roçado o coração, cortado uma artéria e saído a galope pelo flanco, arrastando tudo o que encontrou no caminho. O meu coração deixou de bater durante sessenta e quatro segundos. Disseram-me que, ao regressar da minha excursão ao infinito, abri os olhos e sorri antes de perder o conhecimento.

Não recuperei os sentidos a não ser oito dias mais tarde. Por essa altura, os jornais já tinham publicado a notícia do falecimento do insigne inspector-chefe da polícia, Francisco Javier Fumero, numa rixa com um bando armado de malfeitores, e as autoridades andavam demasiado ocupadas a encontrar-lhe uma rua ou passagem para rebaptizar em sua memória. O seu corpo foi o único encontrado no velho casarão dos Aldaya. Os corpos de Penélope e do filho nunca apareceram.

Acordei ao alvorecer. Lembro-me da luz, de ouro líquido, a derramar-se pelos lençóis. Tinha deixado de nevar e alguém tinha trocado o mar atrás da minha janela por uma praça branca da qual emergiam uns baloiços e pouco mais. O meu pai, enterrado numa cadeira junto à minha cama, ergueu a vista e observou-me em silêncio. Sorri-lhe e ele desatou a chorar. Fermín, que dormia a sono solto no corredor, e Bea, que lhe sustinha a cabeça no regaço, ouviram as suas lágrimas, um lamento que se perdia aos gritos, e entraram no quarto. Recordo que Fermín estava branco e magro como uma espinha de peixe. Contaram-me que o sangue que me corria nas minhas veias era dele, que eu tinha perdido o meu todo, e que o meu amigo andava há dias a enfrascar-se em sanduíches de lombo na cafetaria da clínica afim de criar glóbulos vermelhos para o caso de eu precisar de mais. Talvez isso explicasse a razão por que eu me sentia mais sábio e menos Daniel. Recordo que havia um bosque de flores e que naquela tarde, ou talvez dois minutos depois, não sei dizer, desfilaram pelo quarto desde Gustavo Barceló e a sua sobrinha Clara, à Bernarda e ao meu amigo Tomás, que não se atrevia a olhar-me nos olhos e que, quando o abracei, desatou a correr e foi chorar para a rua. Recordo vagamente don Federico, que vinha acompanhado da Merceditas e do catedrático don Anacleto. Sobretudo recordo Bea, que me olhava em silêncio enquanto todos se desfaziam em alegrias e promessas ao céu, e o meu pai, que tinha dormido naquela cadeira durante sete noites, a rezar a um Deus em que não acreditava.

Quando os médicos obrigaram toda a comitiva a evacuar o quarto e abandonar-me a um repouso que eu não queria, o meu pai aproximou-se um momento e disse-me que tinha trazido a minha caneta, a caneta de tinta permanente de Vic-tor Hugo, e um caderno, para o caso de eu querer escrever. Fermín, da porta, anunciava que se informara junto da equipa de médicos da clínica e lhe tinham garantido que eu não ia fazer o serviço militar. Bea beijou-me na testa e levou o meu pai para apanhar ar, porque havia mais de uma semana que não saía daquele quarto. Fiquei a sós, esmagado de cansaço, e rendi-me ao sono, contemplando o estojo da minha caneta em cima da mesa-de-cabeceira.

Acordaram-me uns passos na porta e pareceu-me ver a silhueta do meu pai aos pés da cama, ou talvez fosse o doutor Mendoza que não me tirava os olhos de cima, convencido de que eu era filho de um milagre. O visitante contornou a cama e sentou-se na cadeira do meu pai. Sentia a boca seca e mal conseguia falar. Julián Carax chegou-me um copo de água dos lábios e segurou-me a cabeça enquanto os humedecia. Tinha olhos de despedida, e bastou-me olhá-los para compreender que nunca tinha chegado a averiguar a verdadeira identidade de Penélope. Não recordo bem as suas palavras, nem o som da sua voz. Sei, isso sim, que me pegou na mão e que senti que me pedia que vivesse por ele, e que nunca mais voltaria a vê-lo. Do que não me esqueci foi do que eu lhe disse. Pedi-lhe que levasse aquela caneta, que tinha sido sua desde sempre, e que voltasse a escrever.

Quando acordei, Bea estava a refrescar-me a testa com um pano humedecido em água-de-colónia. Sobressaltado, perguntei-lhe onde estava Carax. Olhou-me, confundida, e disse-me que Carax desaparecera na tempestade oito dias atrás deixando um rasto de sangue na neve e que todos o davam como morto. Eu disse que não, que tinha estado ali mesmo, comigo, havia apenas segundos. Bea sorriu-me, sem dizer nada. A enfermeira que me tomava o pulso abanou lentamente a cabeça e explicou-me que eu estava a dormir havia seis horas, que ela tinha estado sentada à sua secretária frente à porta do meu quarto durante todo esse tempo e que, entretanto, ninguém tinha entrado no meu quarto.

Naquela noite, ao tentar conciliar o sono, voltei a cabeça em cima da almofada e verifiquei que o estojo estava aberto e que a caneta tinha desaparecido.

 

                                             1956 - As Águas de Março

 

Bea e eu casámo-nos na igreja de Santa Ana dois meses mais tarde. O senhor Aguilar, que ainda me falava por monossílabos e continuaria a fazê-lo até ao fim dos tempos, tinha-me concedido a mão da filha perante a impossibilidade de obter a minha cabeça numa bandeja. O desaparecimento de Bea tinha-lhe embolado a fúria, e agora parecia viver em estado de perpétuo susto, resignado a que em breve o seu neto me chamasse papá e que a vida, valendo-se de um desavergonhado remendado de um tiro, lhe roubasse a menina que ele, apesar das bifocais, continuava a ver como no dia da primeira comunhão, nem um dia mais velha. Uma semana antes da cerimónia, o pai de Bea apareceu na livraria para me oferecer um alfinete de gravata de ouro que tinha pertencido ao pai dele e para me apertar a mão.

- A Bea é a única coisa boa que fiz na vida - disse. - Cuida-me dela. O meu pai acompanhou-o até à porta e viu-o afastar-se pela rua Santa Ana com aquela melancolia que amolece os homens que envelhecem ao mesmo tempo sem que ninguém lhes tenha pedido licença.

- Ele não é má pessoa, Daniel - disse. - Cada um ama à sua maneira. O doutor Mendoza, que duvidava da minha capacidade para me ter de pé durante mais de meia hora, tinha-me advertido de que a fadiga de um casamento e dos seus preparativos não eram o melhor remédio para curar um homem que tinha estado a ponto de deixar o coração na sala de operações.

- Não se preocupe - tranquilizei-o. - Não me deixam fazer nada.

Não mentia. Fermín Romero de Torres tinha-se erigido em ditador absoluto e factótum da cerimónia, banquete e miscelânea vária. O pároco da igreja, ao saber que a noiva chegava prenhe ao altar, tinha-se recusado rotundamente a celebrar o casamento e ameaçou conjurar os fados da Santa Inquisição para que impedissem o evento. Fermín encolerizou-se e arrancou-o de rastos da igreja, gritando aos quatro ventos que era indigno do hábito, da paróquia, e jurando-lhe que se lhe ocorresse levantar uma pestana lhe armaria semelhante escândalo no episcopado que no mínimo o desterrariam para o rochedo de Gibraltar para evangelizar as macacas por ser mesquinho e miserável. Vários transeuntes aplaudiram, e o florista da praça ofereceu a Fermín um cravo branco que ele logo passou a ostentar na lapela até as pétalas ficarem da cor do colarinho da camisa. Preparados e sem padre, Fermín dirigiu-se ao colégio de San Gabriel e procedeu ao recrutamento dos serviços do padre Fernando Ramos, que nunca tinha celebrado um casamento na vida e cuja especialidade era o latim, a trigonometria e a ginástica sueca, por esta ordem.

- Eminência, é que o noivo está muito fraco e agora eu não lhe posso dar outro desgosto. Ele vê em si uma reencarnação dos grandes padres da Santa Madre Igreja, lá no alto com São Tomás, Santo Agostinho e Nossa Senhora de Fátima. Ali onde o senhor o vê, o rapaz é como eu, devotíssimo. Um místico. Se agora lhe digo que o senhor me deixa ficar mal, ainda temos que celebrar um funeral em vez de um casamento.

- Se me põe as coisas assim...

Segundo me contaram depois - porque eu não me lembro e quem mais se empenha sempre em lembrar-se dos casamentos são os outros -, antes da cerimónia, a Bernarda e don Gustavo Barceló (seguindo instruções pormenorizadas de Fermín) enfrascaram o pobre sacerdote em moscatel para o descontrair. À hora de oficiar o padre Fernando, armado de um sorriso bem-aventurado e de um tom rosado muito favorecedor, optou, num voo de licença protocolar, por substituir a leitura de não sei que Carta aos Coríntios por um soneto de amor, obra de um tal Pablo Neruda, que alguns dos convidados do senhor Aguilar identificaram como comunista e bolchevique impenitente enquanto outros procuravam no missal aqueles versos de rara beleza pagã, perguntando a si próprios se já se começariam a ver os primeiros efeitos do concílio em preparação.

Na noite anterior ao casamento, Fermín, arquitecto do evento e mestre-de-cerimónias, anunciou-me que me tinha organizado uma despedida de solteiro para a qual só ele e eu tínhamos sido convidados.

- Não sei, Fermín. A mim essas coisas...

- Confie em mim.

Chegada a noite dos acontecimentos segui docilmente Fermín até um tugúrio infecto situado na rua Escudillers onde os fedores a humanidade conviviam com os fritos mais abjectos do litoral mediterrânico. Um plantel de damas com a virtude para alugar e muita quilometragem em cima recebeu-nos com sorrisos que teriam feito as delícias de uma faculdade de ortodontia.

- Vimos à procura da Rociíto - anunciou Fermín a um chulo cujas patilhas tinham uma surpreendente semelhança com o cabo Finisterra.

- Fermín - cochichei, aterrado. - Pelo amor de Deus...

- Tenha fé.

A Rociíto apareceu lesta em toda a sua glória, que calculei confinante com os oitenta quilos sem contar o xaile de poliéster e o vestido de viscose colorido, e fez-me um inventário consciencioso.

- Olá, crido. Eu fazia-te mai velho, vê lá tu.

- Não é este o sujeito - esclareceu Fermín.

Compreendi então a natureza do enredo e os meus receios desvaneceram-se. Fermín nunca se esquecia de uma promessa, especialmente se era ele que a tinha feito. Partimos os três em busca de um táxi que nos conduzisse ao asilo de Santa Lucía. Durante o trajecto, Fermín, que em deferência para com o meu estado de saúde e a minha condição de noivo me tinha cedido o banco da frente, compartilhava o de trás com a Rociíto, sopesando as suas evidências com notável deleite.

- Que boazona que tu estás, Rociíto! Este teu cu serrano é o apocalipse segundo Botticelli.

- Ai, sô Fermín, que dês carranjou namorada esqueceu-se de mim e botou-mó desprezo, sô patife.

- É que tu és muita mulher, Rociíto, eu estou numa de monogamia.

- Qual quê, isso né nada ca Rociíto na cure cumas boas fregas de penicilina.

Chegámos à rua Moncada passava da meia-noite, escoltando o corpo celestial da Rociíto. Introduzimo-la no asilo de Santa Lucía pela porta das traseiras que se utilizava para retirar os defuntos para uma viela que se parecia e cheirava como o esófago dos infernos. Uma vez nas trevas do Tenebrarium, Fermín pôs-se a dar as últimas instruções à Rociíto enquanto eu localizava o velhote a quem tinha prometido um último baile com Eros antes que Tânato lhe saldasse as contas.

- Não te esqueças, Rociíto, de que o velhadas está um bocado taralhoco, de maneira que fala-lhe alto, claro e grosso, com picardia, como tu sabes, mas sem exagerar, que também não é caso para lhe facturar o reino dos céus antes da hora com uma paragem cardíaca.

- Fica sogado, crido, queu cá sou uma profissional.

Encontrei o beneficiário daqueles amores de empréstimo num canto do primeiro andar, um sábio ermitão entrincheirado atrás de paredes de solidão. Ergueu a vista e contemplou-me, desconcertado.

- Estou morto?

- Não. Está vivo. Não se lembra de mim?

- Lembro-me de si como da primeira camisa que vesti, jovem, mas ao vê-lo assim, cadavérico, julguei que era uma visão do além. Não ligue. Aqui uma pessoa perde aquilo a que vocês, os exteriores, chamam o discernimento. Portanto, o senhor não é uma visão?

- Não. A visão tenho-a à espera lá em baixo, se tiver a bondade. Conduzi o velhote até uma cela lúgubre que Fermín e a Rociíto tinham ataviado de festa com umas velas e alguns sopros de perfume. Ao poisar o olhar na abundante beldade da nossa Vénus jerezana, o rosto do velhote iluminou-se de paraísos sonhados.

- Deus os abençoe.

- E o senhor que veja - disse Fermín, indicando à sereia da rua Escudillers que passasse a exercer as suas artes.

Vi-a pegar no velhote com infinita delicadeza e beijar-lhe as lágrimas que lhe caíam pelas faces. Fermín e eu retirámo-nos da cena para lhes conceder a merecida intimidade. No nosso périplo por aquela galeria de desesperos topámos com a irmã Emília, uma das freiras que administravam o asilo. Endereçou-nos um olhar sulfúrico.

- Dizem-me uns internos que os senhores introduziram aqui uma rameira, e que agora eles também querem uma.

- Irmã ilustríssima, por quem nos toma? A nossa presença aqui é estritamente ecuménica. Aqui o infante, que amanhã se faz homem aos olhos da Santa Madre Igreja, e eu vínhamos cá para nos interessarmos pela interna Jacinta Coronado.

A irmã Emília arqueou uma sobrancelha.

- Os senhores são família?

- Espiritualmente.

- A Jacinta faleceu há quinze dias. Veio um cavalheiro visitá-la na noite anterior. É parente dela?

- Refere-se ao padre Fernando?

- Não era um sacerdote. Disse-me que se chamava Julián. Não me lembro do apelido.

Fermín olhou para mim, mudo.

- Julián é um amigo meu - disse eu. A irmã Emília assentiu.

- Esteve várias horas com ela. Havia anos que não a ouvia rir. Quando ele se foi embora, ela disse-me que tinham estado a falar doutros tempos, de quando eram novos. Disse-me que este senhor lhe trazia notícias da sua filha Penélope. Não sabia que a Jacinta tinha tido uma filha. Lembro-me, porque nessa manhã a Jacinta me sorriu e quando lhe perguntei por que estava tão contente disse-me que ia para casa, para o pé da Penélope. Morreu ao alvorecer, enquanto dormia.

A Rociíto concluiu o seu ritual de amor um momento depois, deixando o velhote extenuado e nos braços de Morfeu. Quando saíamos, Fermín pagou-lhe a dobrar, mas ela, que chorava de pena diante do espectáculo daqueles desarranjados da cabeça esquecidos de Deus e do demónio, empenhou-se em doar os seus emolumentos à irmã Emília para que dessem um lanche com churros a todos, porque a ela era uma coisa que lhe tirava sempre as mágoas da vida, essa rainha das putas.

- É queu cá sou uma sintimental. Veja lá, sô Fermín, caquele pobrezinho... só cria queu o abraçasse e lhe fizesse festas. Uma pessoa fica toda rota...

Colocámos a Rociíto num táxi com uma boa gorjeta e metemos pela Rua Princesa, que estava deserta e semeada de mantos de vapor.

- Haveria que ir dormir, por causa de amanhã - disse Fermín.

- Não me parece que consiga.

Começámos a andar rumo à Barceloneta e, quase sem darmos por isso, entrámos pelo quebra-mar dentro até que toda a cidade, reluzente de silêncio, ficou aos nossos pés como a maior miragem do universo a emergir do lago das águas do porto. Sentámo-nos na borda do molhe a contemplar a visão. A uma vintena de metros iniciava-se uma procissão imóvel de automóveis com as janelas veladas de vapor e folhas de jornal.

- Esta cidade é bruxa, sabe, Daniel? Mete-se-nos na pele e rouba-nos a alma sem darmos por isso.

- Fala como a Rociíto, Fermín.

- Não se ria, que são as pessoas como ela que fazem deste mundo cão um sítio que vale a pena visitar.

- As putas?

- Não. Putas todos o somos, mais tarde ou mais cedo. Eu digo as pessoas de bom coração. E não olhe assim para mim. A mim os casamentos põem-se que nem um pudim flan.

Ficámos ali sentados nos braços daquela estranha quietude, a catalogar reflexos sobre a água. Daí a pouco, o alvorecer espargiu o céu de âmbar e Barcelona incendiou-se de luz. Ouviram-se os sinos distantes na basílica de Santa Maria del Mar, que emergia das brumas do outro lado do porto.

- Acha que Carax continua ali, nalgum sítio da cidade?

- Pergunte-me outra coisa.

- Tem as alianças? Fermín sorriu.

- Vamos, ande. Que nos esperam ao Daniel e a mim. Espera-nos a vida.

Vestia de marfim e trazia o mundo no olhar. Mal me lembro das palavras do padre, nem dos rostos perdidos de esperança dos convidados que enchiam a igreja naquela manhã de Março. Permanece apenas em mim o roçagar dos seus lábios e, ao entreabrir os olhos, o juramento secreto que trazia na pele e que recordaria todos os dias da minha vida.

 

                       1966 - DRAMATIS PERSONAE

 

Julián Carax conclui A Sombra do Vento com uma breve memória para alinhavar os destinos das suas personagens anos mais tarde. Li muitos livros desde aquela longínqua noite de 1945, mas o último romance de Carax continua a ser o meu preferido. Hoje, com três décadas atrás de mim, já não tenho esperanças de mudar de opinião.

Enquanto escrevo estas linhas em cima do balcão da livraria, o meu filho Julián, que faz amanhã dez anos, observa-me sorridente e intrigado com aquela pilha de folhas que cresce e cresce, talvez convencido de que o pai contraiu aquela doença dos livros e das palavras. Julián tem os olhos e a inteligência da mãe, e agrada-me acreditar que talvez possua a minha ingenuidade. O meu pai, que tem dificuldade em ler as lombadas dos livros embora não o admita, está lá em cima, em casa. Pergunto muitas vezes a mim mesmo se ele será um homem feliz, em paz, se a nossa companhia o ajuda ou se vive dentro das suas recordações e daquela tristeza que sempre o perseguiu. Agora quem toma conta da livraria somos a Bea e eu. Eu trato das contas e dos números, Bea faz as compras e atende os clientes, que a preferem a mim. Não os culpo.

O tempo fê-la forte e sábia. Quase nunca fala do passado, embora eu a surpreenda amiúde varada num dos seus silêncios, a sós consigo mesma. Julián adora a mãe. Observo-os juntos e vê-se que os une um laço invisível que eu mal consigo começar a compreender. Basta-me sentir-me parte da sua ilha e saber-me afortunado. A livraria dá para viver sem luxos, mas sou incapaz de me imaginar a fazer outra coisa. As vendas reduzem-se de ano para ano. Eu sou optimista e digo que o que sobe desce, e o que desce, um dia há-de subir. Bea diz que a arte de ler está a morrer muito lentamente, que é um ritual íntimo, que um livro é um espelho e que só podemos encontrar nele o que já temos dentro, que ao ler aplicamos a mente e a alma, e que estes são bens cada dia mais escassos. Todos os meses recebemos ofertas para nos comprarem a livraria e transformá-la numa loja de televisores ou de alpergatas. Não nos tiram daqui a não ser com os pés para a frente.

Fermín e a Bernarda deram o nó em 1958 e já vão em quatro crianças, todas elas do sexo masculino e com o nariz e as orelhas do pai. Fermín e eu vemo-nos menos do que antes, embora às vezes ainda repitamos aquele passeio pelo quebra-mar ao alvorecer e componhamos o mundo à martelada. Fermín deixou o emprego na livraria há anos e recebeu o testemunho, por morte de Isaac Monfort, à frente do Cemitério dos Livros Esquecidos. Isaac está enterrado ao pé de Nuria em Montjuíc. Visito-os com frequência. Falamos. Há sempre flores sobre a sepultura de Nuria.

O meu velho amigo Tomás Aguilar foi para a Alemanha, onde trabalha como engenheiro numa empresa de maquinaria industrial a inventar prodígios que nunca cheguei a compreender. Às vezes escreve cartas, sempre em nome da sua irmã Bea. Casou-se há um par de anos e tem uma filha que nunca vimos. Manda sempre lembranças para mim, mas sei que o perdi sem remédio há anos. Gosto de pensar que a vida nos arrebata os amigos de infância porque sim, mas nem sempre acredito nisso.

O bairro continua como sempre, mas há dias em que me parece que a luz se atreve cada vez mais, que volta a Barcelona, como se entre todos a tivéssemos expulsado mas ela no fim nos tivesse perdoado. Don Anacleto deixou a cátedra do instituto e agora dedica-se em exclusividade à poesia erótica e às suas glosas de contracapa, mais monumentais que nunca. Don Federico Flaviá e a Merceditas foram viver juntos quando a mãe do relojoeiro faleceu. Fazem um par flamante, embora não faltem os invejosos que assegurem que a cabra puxa sempre para o monte e que, de vez em quando, don Federico faz uma ou outra escapadela para a farra ataviado de fúfia.

Don Gustavo Barceló fechou a livraria e trespassou-nos o seu fundo. Disse estar farto do grémio até à ponta dos cabelos e desejoso de empreender novos desafios. O primeiro e último deles foi a criação de uma editora dedicada à reedição das obras de Julián Carax. O primeiro volume, contendo os seus três primeiros romances (recuperados de um conjunto de provas de imprensa perdido num armazém de mobílias da família Cabestany), vendeu trezentos e quarenta e dois exemplares, muitas dezenas de milhares abaixo do êxito do ano, uma hagiografia ilustrada de El Cordobés. Don Gustavo dedica-se agora a viajar pela Europa em companhia de damas distintas e a enviar postais de catedrais.

A sua sobrinha Clara casou-se com o banqueiro milionário, mas a sua união durou apenas um ano. A lista dos seus amantes continua a ser prolixa, embora encolha de ano para ano, como a sua beleza. Agora vive sozinha no andar da praça Real, do qual cada dia sai menos. Houve tempos em que a visitava, mais porque Bea me recordava a sua solidão e a sua pouca sorte do que por meu próprio desejo. Com os anos vi brotar nela uma amargura que quer vestir de ironia e desprendimento.

Às vezes julgo que continua à espera que aquele Daniel enfeitiçado de quinze anos apareça para a adorar na sombra. A presença de Bea, ou de qualquer outra mulher, envenena-a. Da última vez que a vi procurava as rugas do rosto com as mãos. Contam-me que às vezes ainda se encontra com o seu antigo professor de música, Adrián Neri, cuja sinfonia continua inacabada e que, segundo parece, fez carreira como gigolô entre as damas do círculo do Liceo, onde as suas acrobacias de alcova lhe mereceram o apodo de A Flauta Mágica.

 

Os anos não foram generosos para com a memória do inspector Fumero. Nem sequer os que o odiavam e temiam parecem recordá-lo já. Há anos topei no Paseo de Gracia com o tenente Palácios, que abandonou a corporação e se dedica agora a dar aulas de educação física num colégio da Bonanova. Contou-me que ainda há uma placa comemorativa em honra de Fumero nas caves da esquadra central da Via Layetana, mas a nova máquina distribuidora de refrescos a moedas tapa-a completamente.

Quanto ao casarão dos Aldaya, continua lá, contra todos os prognósticos. Finalmente, a imobiliária do senhor Aguilar conseguiu vendê-lo. Foi completamente restaurado e as estátuas dos anjos reduzidas a gravilha para cobrir a pista do estacionamento que ocupa aquilo que foi o jardim dos Aldaya. Hoje em dia é uma agência de publicidade, dedicada à criação e promoção daquela estranha poesia das peúgas de malha, pudins flã em pó e carros desportivos para executivos de altos voos. Tenho de confessar que um dia, alegando razões inverosímeis, fui lá e pedi para visitar a casa. A velha biblioteca onde estive a ponto de perder a vida é agora uma sala de reuniões decorada com cartazes de anúncios de desodorizantes e detergentes com poderes milagrosos. O compartimento onde Bea e eu concebemos Julián é agora a casa de banho do director-geral.

Naquele dia, ao regressar a Barcelona depois de visitar o antigo palacete dos Aldaya, deparei com um embrulho no correio que trazia carimbo de Paris. Continha um livro intitulado O Anjo de Brumas, romance de um tal Boris Laurent. Passei as folhas à pressa, sentindo aquele perfume mágico a promessa dos livros novos, e detive a vista no início de uma frase ao acaso. Soube de imediato quem o tinha escrito, e não me surpreendeu regressar à primeira página e encontrar, no traço azul daquela caneta que tanto tinha adorado em criança, a seguinte dedicatória:

 

Para o meu amigo Daniel, que me devolveu a voz e a caneta. E para Beatriz, que nos devolveu a ambos a vida.

Um homem jovem, coroado já de alguns cabelos brancos, caminha pelas ruas de uma Barcelona apanhada sob céus de cinza e um sol de vapor que se derrama sobre a Rambla de Santa Mónica como uma grinalda de cobre líquido.

Leva pela mão um rapaz de uns dez anos, olhar embriagado de mistério perante a promessa que o pai lhe fez ao alvorecer, a promessa do Cemitério dos Livros Esquecidos.

- Julián, não podes contar a ninguém aquilo que vais ver hoje. A ninguém.

- Nem sequer à mamã? - inquire o rapaz a meia-voz.

O pai suspira, amparado naquele sorriso triste que o persegue pela vida.

- Claro que sim - responde. - Para ela não temos segredos. A ela podes contar tudo.

Daí a pouco, figuras de vapor, pai e filho confundem-se entre a multidão das Ramblas, os seus passos para sempre perdidos na sombra do vento.

 

                                                                                Carlos Ruiz Zafón  

 

                      

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