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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SORTE DE McNALLY / Lawrence Sanders
A SORTE DE McNALLY / Lawrence Sanders

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Era uma gata persa, chamava-se Peaches e era um animal gordo com muito mau humor. Eu sabia-o, porque uma vez o miserável animal vomitara nos meus sapatos. Tinha a certeza de que não fora por a Peaches estar a sofrer de indigestão: fora um acto de hostilidade. Por qualquer motivo ridículo, o felino de mau temperamento levantara objecções ao meu calçado, que por acaso era um belo par de sapatos de camurça. Ficaram arruinados, é claro. 
Assim, quando o meu pai me disse que a Peaches fora raptada e só seria entregue em troca de um resgate, fiquei deliciado e comecei a pensar em retribuição divina. Porém, infelizmente, o proprietário da gata era um cliente de McNally & Filho, Advogado (o meu pai era o Advogado e eu o Filho), pelo que se esperava que fosse eu a recuperar a besta, incólume. A minha alegria, que fora prematura, evaporou-se imediatamente.
- Porque não se queixam à Polícia? - perguntei.
- Porque - explicou o amo e senhor com toda a paciência - o bilhete de pedido de resgate afirma claramente que o animal será destruído se a Polícia se meter no assunto. Vê o que consegues fazer, Archy.
Não sou advogado porque fui expulso da Faculdade de Direito de Yale, e sou o único funcionário de um departamento de McNally & Filho que se dedica a inquéritos discretos. Devem compreender que representamos alguns dos ricos residentes da cidade de Palm Beach, e que é frequente que os problemas dos nossos clientes requeiram investigações privadas em vez do auxílio da Polícia. A maior parte dos cidadãos de Palm Beach foge à publicidade, em parte quando esta pode revelar que são tão estúpidos e pecadores como as pessoas de menor calibre, que nem sequer têm fundos de maneio.
Os donos da Peaches eram Mr. e Mrs. Harry Willigan, com uma propriedade no Ocean Boulevard a cerca de um quilómetro a sul da Mansão McNally. Willigan fizera fortuna comprando e construindo em terrenos dos condados de Palm Beach e Martin, e especializara-se na construção de casas na gama dos cinquenta a cem mil dólares. Dizia-se que era melhor não tirar os andaimes antes de o papel das paredes ter sido colado, mas isso deveria ser uma atoarda posta a correr pelos concorrentes invejosos.

 


 


Com a riqueza, viera a vida de luxo: uma mansão, quatro carros, um iate de quinze metros e três criados. O dinheiro também lhe permitira a compra de uma segunda esposa, quarenta anos mais nova do que ele.
Os McNally já tinham, de vez em quando, jantado em sua casa - no fim de contas, não deixava de ser um cliente -, mas eu achava que o homem era rude e estava enamorado pelo frenesim do consumo. Parecia acreditar que bastava servir caviar em torradinhas para provar a sua superioridade sobre os seus vizinhos com dinheiro antigo, muitos dos quais serviam anchovas sobre bolachas. Laverne, a jovem esposa, não era tão saloia, mas mesmo assim ostentava unhas cobertas com um verniz verde-amarelado.
Willigan tinha filhos do primeiro casamento, mas ele e Laverne não possuíam descendência e muito provavelmente, se fôssemos a acreditar nas suas declarações públicas sobre o tema, iriam continuar assim. Em vez de filhos tinham a Peaches, e Harry despejava sobre o mal-
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-humorado quadrúpede toda a devoção e indulgência que estão em geral reservadas para os filhos únicos. Laverne tinha a seu crédito o facto de tolerar a gata, mas nunca, que eu soubesse, lhe chamava "doçura", tal como fazia Harry com frequência.
Foi assim que toda a história começou, com o rapto de uma gata misantropa... e por pouco não terminava com o falecimento deste vosso, com todo o respeito e consideração, Archibald McNally, bon vivant, detective diletante e o único homem em Palm Beach que jamais vestiu um fraque, com gravata branca, para ir comer uma pizza.
Saí do gabinete de meu pai, no Edifício McNally, e apontei o meu Miata cor de carro de bombeiros, para leste, em direcção ao oceano. Constatar que os meus talentos, que são únicos, estavam a ser utilizados para salvar uma besta traiçoeira cujo ódio por mim só era suplantado pelo ódio que eu tinha por ela, provocou-me um ligeiro ataque da úlcera. Todavia, sou um tipo optimista, mais inclinado a dar destaque às facetas positivas, e a má disposição não durou muito. Por acaso, estávamos a 21 de Junho, e quando Aristóteles comentou que uma andorinha não faz a Primavera é óbvio que não estava a pensar em daiquiris gelados. Era esse o meu combustível preferido desde o solstício de Junho até ao equinócio de Setembro, e já estava ansioso pelo primeiro da época.
Para além disso, o meu ressuscitado romance com Consuelo Garcia decorria esplendidamente. Connie não fizera referências alarmantes a laços matrimoniais - que tinham sido a causa do nosso anterior afastamento - e havíamos jurado conceder uma liberdade completa ao outro para se casar com quem quisesse. No entanto, estávamos tão satisfeitos com a companhia que tínhamos que essa declaração de relação aberta nunca fora posta à prova, pelo menos até àquela manhã.
Para terminar a explicação, a minha boa disposição foi incentivada por um dia de espantar: sol quente, céu
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limpo, baixa humidade e uma fresca brisa marítima tão bem-vinda como um beijo. Achei que Deus havia feito um trabalho maravilhoso e agradeci-lhe. Como a minha mãe costuma dizer, ser bem-educado nunca prejudicou ninguém.
A mansão dos Willigan era uma falsa fazenda espanhola com telhas vermelhas, vigas de carvalho nos tectos e uma enorme profusão de potes de barro. Chamava-se Casa Blanco, e quando se puxava pelo batente de latão na porta de frente ficava-se à espera de ver aparecer um mordomo de sombrero e poncho.
Na verdade, o mordomo que abriu a porta usava um casaco de alpaca preta sobre umas calças brancas. Era um australiano chamado Leon Medallion, o qual quando começara a trabalhar para os Willigan tivera de ser persuadido a não tratar todos os convidados por "parceiro".
- bom dia, Leon - disse-lhe. - Como vai você, neste dia maravilhoso?
- Estou óptimo, Mr. McNally - declarou, entusiástico. - Não poderia estar melhor.
Para mim, foi um choque. Leon adoptara uma visão amarga da existência em geral e da vida na Costa do Ouro em particular. Já o ouvira murmurar, mais de uma vez: "A Florida é uma merda."
- E como vão essas alergias? - inquiri.
Olhou em volta com cuidado e depois aproximou-se mais de mim.
- Nem vai acreditar - disse, num sussurro rouco -, mas desde que desapareceu o estupor da gata, não espirrei uma única vez!
- Ainda bem - retorqui -, mas lamento informá-lo que é por isso que estou aqui. Recebi ordens para procurar a Peaches.
Leon grunhiu.
- Por favor, Mr. McNally - pediu -, não se esforce muito. Suponho que quer falar com a dona da casa...
- Se estiver disponível.
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- Está, mas tenho de passar por todas as tretas da etiqueta e ir perguntar-lhe se recebe visitas.
Deixou-me de pé no vestíbulo de mosaicos e desapareceu. Regressou momentos depois.
- Está na piscina e quer que o senhor vá ter com ela - informou. - Também perguntou se deseja uma bebida.
Olhei para o relógio. Eram quase onze e meia. Já estava suficientemente perto da hora.
- Sim, obrigado, Leon - respondi. - Pode trazer-me um daiquiri gelado?
- com certeza - retorquiu. - É a minha bebida favorita. É como o leite da mãe.
Caminhei ao longo do comprido corredor da entrada, com as paredes inexplicavelmente decoradas com espadas, maças de guerra e alguns velhos mosquetes. O corredor dava para um pátio fechado cuja porta das traseiras se abria para um relvado e para a piscina.
Laverne Willigan repousava junto de uma mesa com chapéu-de-sol, com o rosto protegido por um chapéu de grandes abas. Talvez não usasse o biquini mais pequenino do mundo, mas de certeza que aquele não daria uma refeição decente para uma traça esfomeada. Cruzara as pernas bronzeadas e um pé nu oscilava para baixo e para cima ao ritmo da música que saía de um rádio portátil pousado sobre a mesa. Música rock, é claro.
Teve a decência de baixar o volume do som quando me aproximei, pelo que lhe fiquei grato. Não sou um aficionado do rock. Prefiro os clássicos, coisas como Wish I Could Shimmy Like My Sister Kate.
- Olá, Archy - disse Laverne, jovial. - Puxa uma cadeira. Pediste uma bebida?
- Pedi, sim, obrigado - respondi, tirando o meu boné de golfe em linho cor-de-rosa. Desloquei uma cadeira de lona para ficar defronte dela. - Tens um aspecto perfeitamente esplêndido e um bronzeado esplendoroso.
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- Obrigada - respondeu. - Bem faço por isso. Que mais tenho eu para fazer?
Tinha a esperança de que não estivesse à espera de uma resposta e felizmente fui salvo a tempo pela chegada de Leon, que trazia o meu daiquiri numa salva de prata, num balão para brande que era suficientemente grande para acomodar o bolbo de um jacinto.
- Deus do Céu! - comentei. - Deve ser uma dose tripla.
- Na - replicou Leon -, é quase tudo gelo.
- bom, se eu começar a cantar, arranje alguém que me leve a casa. Não bebes, Laverne?
- Estou a beber - declarou, pegando num cálice tão grande como o meu, que tinha pousado na relva a seu lado. - Um Bloody Mary feito com rábano picante. Gosto de coisas escaldantes.
Era frequente dizer coisas como aquela. Não eram demasiado sugestivas, nem com duplo sentido, mas faziam-nos perguntar a nós mesmos onde quereria chegar. Tinha a sensação de que estava constantemente a desafiar os homens, mas que se um mais afoito ou ansioso pensasse que aquilo era com ele e respondesse, Laverne ficaria ofendida. No entanto, duvidava que alguma vez passasse para além dos namoricos de alta intensidade. Como senhora da Casa Blanco tinha o seu futuro assegurado e eu esperava que fosse suficientemente esperta para o saber.
Erguemos os copos um ao outro e bebemos.
- Pelos lábios e para lá dos dentes. Tem cuidado, estômago, que aí vai disto - disse Laverne.
É verdade, disse-o mesmo, não estou a inventar. Limito-me a ser o escriba.
De súbito ganhei consciência de que havia actividade na piscina olímpica que se encontrava por detrás de mim e virei-me para olhar. Uma jovem delgada, com um elegante fato de banho preto, dava voltas à piscina, com os braços morenos a agitarem-se-lhe por cima da cabeça e as compridas pernas a baterem com um ritmo perfeito.
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Fiquei a olhar, espantado, vendo-a percorrer todo um comprimento da piscina, dar meia volta e nadar para o outro lado. Não agitava muito a água e tinha uma velocidade impressionante.
- Quem é aquela? - perguntei, espantado.
- A minha irmã - explicou Laverne -, Margaret Trumble. Podes chamar-lhe Meg, se quiseres, mas não a trates por Maggie ou é capaz de te partir um braço. É muito forte.
- Estou a ver! Que nadadora!
- E, além disso, corre, levanta pesos, faz esqui, alpinismo e pratica f ai chi. Está aqui connosco até decidir o que quer fazer.
Olhei para Laverne e pestanejei.
- O que quer fazer... a respeito de quê? - perguntei.
- Neste momento, ensina aeróbica no Rei da Prússia. É na Pênsilvânia.
- Eu sei - retorqui. - Uma vez, conheci a rainha da Prússia.
Laverne mirou-me desconfiado, mas continuou.
- De qualquer modo, Meg está a pensar em mudar-se para a Florida. Diz que há por aqui gente suficientemente rica para ela se governar bem como treinadora particular. Sabes como é, ir a casa das pessoas, ensinar-lhes como fazer exercícios, preparar-lhes dietas, planear-lhes programas de treino. Meg diz que todas as grandes estrelas do cinema e da televisão têm treinadores particulares, tal como os tubarões dos negócios. Acredita que conseguirá arranjar o número suficiente de clientes apenas em Palm Beach.
- É provável que sim - afirmei, vendo Miss Trumble a nadar para um lado e para o outro na água esverdeada. - Parece ser um jovem muito disciplinada e decidida.
- Não é assim tão jovem - disse Laverne. - É três anos mais velha do que eu.
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- Para mim, ainda é jovem... mas também é verdade que já nasci velho. De qualquer modo, deve ser bom teres aqui a tua irmã para te fazer companhia.
- Pois... - replicou, tomando um gole da bebida. De súbito, arrancou o chapéu da cabeça e atirou-o
para cima da relva. Sacudiu a cabeça várias vezes até libertar os longos cabelos louros. Não tinham sido descorados quimicamente, mas sim um pouco pintados, com reflexos avermelhados. Achei-os muito atraentes.
O corpo, mal contido naquele minúsculo biquini, era diferente. Seria pouco cavalheiresco designá-lo por vulgar, mas havia algo de excessivo nas suas carnes. Eram demasiadas. Estava indiscutivelmente bem bronzeado, com um tom de pêssego, e era por certo bem proporcionado, mas tanto... era de mais. Era enjoativo como natas batidas misturadas com mousse de chocolate.
- Escuta, Archy - disse, fechando os olhos contra o clarão do Sol -, achas que vou reaver a Peaches?
- vou tentar. Podes mostrar-me o pedido de resgate?
- É Harry quem o tem. Guardou-o no cofre do escritório, no armazém.
Era provável que estivesse segura do que estava a dizer, porque eu sabia que trabalhara um ano como recepcionista no escritório de Harry Willigan. Depois, ao descobrir que o filho do patrão era casado e feliz, que tinha filhos e vivia em Denver, adoptara a alternativa lógica: casara com o patrão.
- Está bem - respondi -, falarei com ele mais tarde. De quanto é o pedido de resgate?
Abriu os olhos e fitou-me.
- Cinquenta mil - murmurou, em voz baixa.
- Deus do Céu! - exclamei. - É muito dinheiro por uma gata!
- Harry pagará, se tiver de o fazer. Por vezes penso que gosta mais daquele estúpido bicho do que de mim.
- Duvido - contrapus, mas sem ter a certeza. Quando foi que a Peaches desapareceu?
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Na tarde de quarta-feira. Harry estava a trabalhar,
eu fora ao salão de beleza e Rubi Jackson, a nossa governanta e cozinheira, tinha o dia de folga. Só cá estavam Leon e Julie Blessington, a criada.
- E a tua irmã?
- Fora à cidade à procura de um sítio para viver. Quer um apartamento próprio. Devia ser uma da tarde quando Leon e Julie se aperceberam de que a gata se sumira. Procuraram por todo o lado e não conseguiram encontrá-la.
- Talvez fosse apenas dar uma volta, ou à caça de ratos e lagartos.
Laverne sacudiu a cabeça.
- A P caches é uma gata caseira. Nunca a deixávamos sair porque lhe cortaram as unhas e não se pode defender. Por vezes ia até ao pátio interior apanhar ar ou dormir sobre as pedras, mas nunca ia lá para fora. A porta traseira do pátio está sempre fechada.
- À chave?
- Não, mas à noite a porta que dá do corredor para o pátio está fechada à chave e segura com uma corrente. Assim, se alguém entrasse no pátio, o que é que poderia roubar? As cadeiras de alumínio?
- Porém, durante o dia, se a Peaches estivesse no pátio e não houvesse ninguém à vista, um espertalhão poderia entrar, meter o bicho num saco de serapilheira e levá-lo, não é verdade?
- Isso mesmo. Harry ficou como louco. Gritou com Leon e Julie, mas a culpa não foi deles. Não podiam vigiar a gata minuto a minuto. Quem iria pensar que a raptariam?
- Leon e Julie têm a certeza que a porta das traseiras do pátio estava fechada?
- Juram-no a pés juntos.
- Não havia buracos nas vedações por onde a gata se escapulisse?
- Nenhum, tu próprio podes verificá-lo.
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- Não é preciso, aceito a tua palavra. Quando foi que chegou o pedido de resgate?
- Na quinta de manhã. Leon encontrou-o debaixo da porta da frente.
- Irei vê-lo ao escritório de Harry, mas poderás dizer-me o que vinha no bilhete?
Apanhou o chapéu que atirara para a relva, meteu-o na cabeça, e puxou-o bem para a frente para colocar os olhos na sombra. Remexeu-se, para procurar uma posição mais confortável na cadeira de lona. Desejei que não o tivesse feito. Respirou fundo e espreguiçou-se, arqueando as costas. Desejei que não o tivesse feito.
- O bilhete dizia que tinham levado a Peaches e que a devolveriam de boa saúde em troca de cinquenta mil dólares. Se fôssemos à Polícia, eles sabê-lo-iam e nunca mais veríamos a gata com vida.
- Explicava como fazer o pagamento?
- Não. Apenas que voltariam a entrar em contacto.
- Estás sempre a usar o plural. O bilhete dizia nós temos o gato e terão mais notícias nossas"?
- Exactamente.
- Hum... O bilhete vinha nalgum sobrescrito?
- Sim, num vulgar sobrescrito branco.
- Escrito à mão ou à máquina?
- Pensei que tinha sido escrito à máquina, mas Harry disse que foi feito num processador de texto.
- Isso é interessante. A Peaches tem alguma dieta especial?
- Come comida de gente, tal como fígados de galinha fritos ou salmão cozido. Coisas assim...
- Que sorte, a dessa gata... - comentei. - bom, de momento não me lembro de mais nenhuma pergunta.
- Que vais fazer agora, Archy?
- Provavelmente vou ao escritório de Harry para dar uma vista de olhos ao pedido de resgate. Pode ter...
Calei-me e pus-me de pé quando reparei que Margaret Trumble se aproximava, vinda da piscina, a secar o
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cabelo com uma toalha. Não havia muito para secar. Tinha um cabelo mais claro que o da irmã, quase prateado, e cortado muito curto. De facto, usava um corte "à Florida", com o cabelo quase rapado nos lados e atrás, e com o cimo cortado a direito como se fosse uma vassoura.
Tenho de admitir que usava aquele cabelo esquisito com muito à-vontade, como se as opiniões das outras pessoas não valessem um tostão furado. De qualquer modo, achei que o penteado era encantador, uma vez que possuía um rosto suficientemente forte para o poder usar. Tinha boas maçãs do rosto e um queixo decidido sem ser agressivo.
Laverne apresentou-nos, dizendo que eu era um dos seus mais queridos amigos, o que era novidade para mim. O aperto de mão de Meg Trumble foi firme mas curto. Fez um aceno frio, reconhecendo a minha presença - tornando-a numa requintada alegria para ela -, e começou a secar os braços e as pernas.
- Que tal acha o Sul da Florida, Miss Trumble? perguntei num tom polido.
Imobilizou-se para olhar para o céu azul, para a relva verde, para as palmeiras e para uma sumptuosa poinciana.
- Neste momento, é magnífico - retorquiu. Tinha uma voz profunda e ressonante, totalmente diferente do pipilar infantil de Laverne.
- Oh, sim - respondi. - O que é que é tão raro como um dia de Junho?
Olhou de frente para mim pela primeira vez.
- Keats? - inquiriu.
- Lowell - corrigi-a, reflectindo que poderia não saber de poesia mas que tinha uns peitorais excelentes. E uma óptima nadadora - continuei. - Entra em competições?
- Não - disse, com secura. - Não há dinheiro nas competições. E o senhor, pratica natação?
- Para mim, chafurdar na água será o termo mais apropriado.
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Fez novo aceno, como se chafurdar fosse o que seria de esperar de um tipo que usava um pólo e umas calças de algodão indiano. Virou-se para a irmã.
- Laverne, gostaria de me servir do Porsche esta tarde. O Leon pode levar-me lá?
A irmã protestou.
- Preciso que Leon me trate das pratas. Estão a ficar muito manchadas. - Virou-se para mim. - Archy, o Porsche está numa oficina em West Palm, para afinações. Telefonaram a dizer que está pronto. Podes levar Meg, para o ir buscar?
- Claro que sim - concordei. - com todo o gosto.
- És um bom rapaz. Meg, Archy leva-te à oficina e podes servir-te do carro toda a tarde. Está bem assim?
- Óptimo - disse a outra mulher, sem me expressar qualquer gratidão. - vou vestir-me. Não me demoro, Mr. McNally.
- Escutem, vocês os dois - interveio Laverne. Chega dessa conversa de "Miss Trumble" e "Mr. McNally". Sejam simpáticos. Tratem-se por Archy e Meg. Está bem?
- Uma sugestão brilhante - comentei.
A irmã lançou um olhar gelado e dirigiu-se para a casa.
- Não lhe ligues - aconselhou-me Laverne. - Acabou de sair de um caso de amor que terminou mal.
- Sim? Que aconteceu?
- Descobriu que o tipo era casado. Agora está com uma disposição típica, a de que "todos os homens deveriam cair mortos". Trata-a bem, Archy.
- Trato sempre bem as mulheres que fazem levantamento de pesos - respondi. - Obrigado pela bebida, Laverne. Por favor, telefona-me para casa, ou para o escritório, se tiveres notícias dos raptores. Avisar-te-ei imediatamente se descobrir alguma coisa a respeito da Peaches.
- Não estou muito preocupada com ela - afirmou -,
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mas quando o Harry se sente infeliz, certifica-se de que toda a gente à sua volta também o é, se é que compreendes o que quero dizer. Por isso, vê se descobres o diabo do gato, sim?
Despedi-me dela e estava de pé ao lado do Miata, acendendo o meu primeiro cigarro do dia, quando Meg Trumble saiu de casa com grandes passadas. Usava um vestido ligeiro de linho cor de açafrão e verifiquei mais uma vez como era elegante e musculada. As pernas e os braços estavam ligeiramente bronzeados e tinha o porte de uma duquesa... De uma duquesa núbil.
Lancei-lhe o meu sorriso de cem watts, a que chamo de "Super-encantador". O sorriso "Jumbo" atinge os cento e cinquenta, mas não queria enervá-la.
- Estás absolutamente encantadora - declarei.
- Preferia que não fumasses - retorquiu.
Podia ter-lhe dado uma resposta mordaz que deitasse abaixo aquela arrogante dama, mas preferi não perder a famosa calma dos McNally.
- com certeza - respondi, atirando com a beata a uma palmeira-anã e perguntando a mim mesmo porque fora que concordara em servir de motorista a Miss Cacto.
Dirigimo-nos para norte, pelo Ocean Boulevard, e quando passámos pela residência dos McNally apontei-a com o polegar.
- A minha toca - expliquei.
- E grande - comentou, depois de se virar para a olhar.
- Vivo com os meus pais - esclareci - e há espaço suficiente para a minha irmã e para os filhos, quando nos vêm visitar. Laverne disse-me que se quer mudar para aqui.
- Possivelmente - afirmou.
Esta foi toda a nossa conversa. Em geral, sou um fulano falador, apreciando o toma-lá-dá-cá das respostas prontas, em especial com alguém do género feminino. Todavia, Meg Trumble não parecia estar com uma dispo-
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sição comunicativa. Talvez acreditasse que o silêncio é de ouro. Bah! O silêncio é para os mudos.
Estávamos em Palm Beach West, já perto do nosso destino final, quando falou repentinamente, mas sempre a olhar em frente.
- Peço desculpa - disse.
Para mim, foi um choque! Não só era capaz de pronunciar uma frase com duas palavras, como ainda por cima pedia desculpa. A Dama de Gelo começara a derreter.
- Pedes desculpas de quê? - inquiri.
- Por estar tão mal-humorada - respondeu. - Não é motivo para te fazer sofrer. Peço que me perdoes.
Se tivesse aceite, apenas com um aceno, aquele pedido de desculpas, teria poupado um certo número de pessoas (incluindo este vosso humilde servidor) a um grande número de problemas. Porém, aquele degelo súbito intrigou-me e reagi como um Adão a quem oferecessem uma maçã: "Ena, uma golden"
- Escuta, Meg - comecei -, depois de te deixar estou a pensar ir almoçar a qualquer lado, para depois regressar ao escritório. Porque não fazemos ao contrário? Começas por almoçar comigo e depois levo-te à oficina.
Hesitou, mas não durante muito tempo.
- Está bem.
Fomos para o Clube Pelicano. Trata-se principalmente de um estabelecimento de comidas e bebidas, mas está organizado como clube social privado. Sou um dos seus membros fundadores e é a minha manjedoura favorita em todo o Sul da Florida. As bebidas são óptimas e a comida, apesar de não ser de alta cozinha, é saborosa e repleta de calorias e colesterol.
O local estava cheio e tive de acenar a diversos conhecidos e amigos. Todos eles miraram Meg. Os homens não lhe tiravam os olhos das pernas, e as mulheres só lhe olhavam para o penteado. O mundo é assim...
Apresentei-a a Simon Pettibone, um cavalheiro de cor
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que é simultaneamente o gerente do clube e o empregado do bar. A mulher, Jas (de Jasmine), é a governanta e a mãe de serviço a todos nós, enquanto o filho, Leroy, é o cozinheiro-chefe e a filha, Priscilla, trabalha como empregada de mesa. O Pelicano podia muito bem ser denominado Clube Pettibone, pois aquela talentosa família é a principal razão para o seu sucesso. Temos uma lista de espera de solteiros e casados desejosos de serem membros do clube e de terem direito a usar o emblema nos blusões: um pelicano erguido sobre um campo de salmões mortos.
Priscilla arranjou-nos uma mesa a um canto, perto das traseiras da sala.
- Adoro o seu cabelo - disse.
- Obrigado - respondi-lhe.
- Não é o teu, parvo - corrigiu-me Priscilla, rindo-se. - Estava a falar com a senhora. Sou capaz de cortar o meu assim. Querem hamburgers?
- Meg? - perguntei.
- Pode ser qualquer coisa mais leve? Talvez uma salada?
- Claro, querida - retorquiu Priscilla. - com camarões ou sardinhas?
- Camarões, por favor.
- Archy?
- Um hamburger com uma rodela de cebola e batatas fritas.
- E para beber?
- Meg?
- Têm coca-cola de dieta?
- com esse corpo?! - admirou-se Priscilla. - Devia estar a beber cerveja preta. Claro que temos. Archy?
- Um daiquiri gelado, por favor.
- Ah! - fez Priscilla. - Agora já tenho a certeza de que estamos no Verão.
Afastou-se com os nossos pedidos. Meg olhou em volta, para a sala.
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- Que sítio esquisito - comentou. ;
- Sim, o seu ar decrépito tem um certo encanto -:' admiti. - Porque não quiseste hamburger? És vegetariana?
- Não, mas não como carne em sangue. t"
- Já sei que não fumas. E álcool?
- Não.
- Então deves ter um vício secreto - declarei, com demasiada leviandade. - Coleccionas frascos de biscoitos ou sacos de plástico?
Subitamente, começou a chorar. Foi uma das coisas mais estranhas que jamais vi. Num momento estava ali sentada, muito composta, e no momento seguinte as lágrimas corriam-lhe pelas faces numa verdadeira torrente.
Não sei lidar com mulheres a chorar. Fico sem saber o que fazer. Fiquei impotente enquanto a via soluçar em silêncio. Priscilla trouxe-nos as bebidas, olhou para Meg e depois lançou-me uma mirada furiosa. Sabia que ela pensava que fora eu a causa daquela inundação, porque Priscilla estava convencida de que o meu passatempo preferido era despedaçar corações. É ridículo, claro. Posso ser um mulherengo, mas se herdei alguma coisa do meu avô (um cómico do burlesco) foi uma regra inflexível: devemos sempre deixá-las a rirem-se quando nos despedimos.
- Escuta, Meg - comecei, incomodado -, disse alguma coisa errada?
Abanou a cabeça e limpou a cara ao guardanapo de papel.
- Desculpa - respondeu, num tom abafado. - Foi uma coisa estúpida.
- Mas o que foi? - perguntei. - Uma má recordação?
Acenou e tentou sorrir. Foi uma bela tentativa, mas não resultou.
- Pensei que já tinha chorado tudo... mas parece que não.
- Queres falar no assunto? - inquiri.
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- É uma história tão banal... - murmurou. - Vais rir-te.
- Não me rirei - retorqui. - Prometo-o. Priscilla serviu-nos a comida, olhou para Meg, fez
uma careta e foi-se embora. Enquanto comíamos, Meg contou-me a história do seu romance destruído. Tivera razão, era banal.
Fora um caso de alta voltagem, com um patife muito encantador. Jurara-lhe um amor imortal e propusera-lhe casamento, mas fora adiando a data: queria aumentar a conta bancária, a mãe estava doente, o negócio estava a ser reorganizado, etc. As desculpas mantiveram-se durante quase dois anos.
Depois, uma amiga levara a Meg um jornal proveniente da cidade do prometido. Ganhara um chorudo prémio na lotaria estatal. A fotografia, na primeira página, mostrava-o a sorrir para a câmara, com o braço em volta da cintura de uma mulher que era identificada como a esposa. E fora tudo.
- Fui uma parva - disse Meg, lamentando. - A culpa foi mais minha do que dele... por ter sido tão estúpida. Penso que o que me magoou mais foi o ter-me deixado enganar com tanta facilidade.
- Apreciaste essa relação?
Brincou por momentos com a salada, de cabeça baixa.
- Oh, sim - acabou por afirmar. - Apreciei-a, sim. Gostava dele e passámos muitos bons momentos juntos.
- Então, o que te faz chorar é o teu ego magoado.
- Suponho - disse, suspirando - que sempre tive uma opinião exagerada a respeito da minha inteligência. Agora tive uma lição...
- Ora - disse eu -, a inteligência nada tem a ver com o assunto. O que está envolvido são as tuas emoções. Estavas demasiado confiante, o que te tornou vulnerável e acabou por te magoar. É um risco constante para os bem-intencionados. Preferias ser uma cínica mal-humo-
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rada, sempre a negar toda a possibilidade de concretização das esperanças?
- Não - respondeu -, não queria ser assim.
- Claro que não - retorqui. - Meg, quando caímos do cavalo, a sabedoria tradicional diz que devemos montar outra vez, o mais depressa possível.
- Não me parece que esteja preparada.
- Mas irás gostar... - garanti-lhe. - És demasiado jovem e atraente para acabares assim.
Terminámos o almoço em silêncio. Fiquei satisfeito por ver que, apesar de toda a sua tristeza, a jovem tinha um bom apetite. Esvaziou o prato, que era na verdade enorme.
- Manjericão - disse.
- Peço desculpa - respondi -, mas chamo-me Archy1.
Soltou uma gargalhada.
- Era o que estava na salada, parvo! Era deliciosa. Archy, és realmente um dos queridos amigos de Laverne?
Tentei levantar uma sobrancelha (imitando a mania do meu pai), mas falhei.
- Nem por isso - expliquei. - A tua irmã tem uma certa propensão para as hipérboles.
- Queres dizer que mente?
- Claro que não. Ocasionalmente, exagera um pouco as coisas para dar mais condimento à vida. Não há nada de mal nisso. Não, a minha relação com a tua irmã e cunhado é mais profissional do que pessoal.
Entreguei-lhe um cartão-de-visita profissional e expliquei-lhe que fora encarregado, pela McNally & Filho, de tentar localizar o felino desaparecido, e que fora esse o motivo da minha presença na Casa Blanco. Perguntei-lhe quando vira a Peaches pela última vez e confirmou o que Laverne me dissera. Andava à procura de um apartamento no dia em que a gata levara sumiço.
1 Trocadilho intraduzível. Basil, em inglês, tem dois significados diferentes: pode ser "manjericão" e "Basílio". (N. do T.)
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- Meg, achas que alguém do pessoal pode ter dado uma ajuda ao rapto?
- Não faço ideia - respondeu. - Nenhum deles gostava da Peaches... e eu também não.
- Fico mais satisfeito - retorqui, contando-lhe a história dos meus sapatos de camurça.
Voltou a rir-se e inclinou-se para a frente para pousar levemente a mão sobre o meu braço.
- Obrigado por me fazeres rir, Archy. Receava que já me tivesse esquecido como fazê-lo.
- Rir é um bom remédio - pontifiquei. - É ainda melhor do que a canja de galinha. Tens de prometer-me pelo menos uma boa gargalhada por dia, de preferência antes de ires para a cama.
- vou tentar, doutor - afirmou.
Café era outra das coisas que ela não bebia. Como nenhum de nós queria sobremesa, assinei a conta e saímos para o Miata. Conduzi Meg até à oficina. Antes de sair do carro, agradeceu-me o almoço.
- E também por teres sido um ouvinte tão compreensivo - acrescentou. - Sinto-me melhor. Espero que nos voltemos a ver.
- Veremos, com certeza - respondi, querendo dizer que ia provavelmente continuar a meter o nariz na Casa Blanco por causa da minha missão de busca da Peaches.
Porém, Meg fitou-me intensamente nos olhos e repetiu:
- Quero mesmo ver-te outra vez - declarou, antes de se afastar.
Não podia haver engano possível. Era evidente que Miss Trumble estava de novo disposta a trepar para o cavalo, e que era eu a montada escolhida. Não sabia se devia ficar satisfeito ou assustado... mas tinha a certeza de que não iria actuar com sensatez. Tal como acontece com a maior parte dos homens, a minha vida é frequentemente uma competição entre o cérebro e as glândulas. Podem apostar que a massa cinzenta perde a corrida.
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Regressei ao Edifício McNally, na Royal Palm Way, estacionei na garagem subterrânea e acenei para Herb, o guarda da segurança. Apanhei o elevador até ao meu minúsculo gabinete e, zás!, estava uma mensagem em cima da minha secretária. Devia telefonar a Consuelo Garcia o mais depressa possível. Foi o que fiz.
- Olá, Connie - disse. - Que se passa?
- Quem era aquela careca que almoçou contigo no Clube Pelicano? - inquiriu, exigindo uma resposta.
Creio que foi o senhor Einstein quem afirmou que nada se pode deslocar mais depressa do que a velocidade da luz. É óbvio que Albert não conhecia a má-língua de Palm Beach.
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Passei pelo menos quinze minutos a tentar aplacar Connie. Expliquei-lhe que o almoço fora profissional, parte da investigação sobre o rapto de um gato. Disse-lhe que Margaret Trumble, irmã de Mrs. Laverne Willigan, tinha um valioso testemunho a prestar e que necessitaria de a interrogar longe da cena do crime.
- Está a viver com os Willigan? - perguntou Connie.
- Está de visita.
- Por quanto tempo?
- Não faço ideia.
- Vais voltar a vê-la?
- Sim, se a minha investigação o requerer - retorqui. - Connie, sinto-me chocado, verdadeiramente chocadol, com o teu tom desconfiado. Só conheci Meg esta manhã e...
- Oh, oh - fez ela, num tom amargo. - Já a tratas por Meg?
- Santo Deus! - explodi. - Laverne insistiu em que tratasse a irmã por Meg, e fiz-lhe a vontade por uma questão de cortesia. Connie, essa atitude nem parece tua. O que aconteceu à nossa decisão de termos uma relação aberta, com ambos livres para nos encontrarmos com quem quiséssemos?
- Então vais vê-la outra vez!
- Apenas por motivos profissionais.
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- Certifica-te que não passa disso, patife! - declarou Connie com um tom ameaçador. - Tem cuidado, tenho espiões por todo o lado!
Connie desligou.
Não encarei com ligeireza o seu aviso a respeito dos "espiões". Consuelo Garcia era a secretária de Lady Cynthia Horowitz, uma das nossas mais ricas e socialmente mais activas matriarcas. Connie conhecia toda a gente de Palm Beach que valia a pena conhecer, bem como muitas outras pessoas que não valiam a pena. Não tinha dúvidas de que era capaz de se manter a par das minhas idas e vindas. No fim de contas, Palm Beach é uma cidade pequena, especialmente na época baixa.
Era uma situação incómoda, mas, reflecti, há mais do que uma maneira de matar pulgas. Recordar esse velho ditado trouxe-me de volta ao assunto principal. Tinha a esperança de que os raptores da gata também se lembras-r sem do ditado. ;
Telefonei para o escritório de Harry Willigan, e respondeu-me um recepcionista. Calculei que o homem devesse o emprego a Laverne. Depois de casar com o patrão, queria o escritório do marido livre de novas tentações. Era uma senhora esperta. Harry tinha a reputação de ser vítima, de boa vontade, de ataques de "satiríase".
Identifiquei-me e pedi um encontro pessoal com Mr. Willigan, logo que isso lhe fosse possível. O recepcionista desapareceu por instantes, regressando depois à linha para me perguntar se poderia ir imediatamente. Teria uma audiência que não poderia durar mais de meia hora. Disse-Ihe que já ia a caminho.
O escritório de Willigan era apenas a um quarteirão de distância do Edifício McNally. Dez minutos depois, encontrava-me sentado ao lado da atulhada secretária do tubarão da construção civil, tentando desesperadamente ocultar o meu desprezo por um homem que, aparentemente, pensava que uma camisa de cowboy em seda, com um cordão com fecho de diamantes a servir de gravata,
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uma pulseira de identificação em prata, um relógio Piaget de ouro e um anel com uma pedra cor-de-rosa de cinco carates eram provas de mérito e distinção.
O seu corpo era como um cepo de mogno. Para levar a analogia ainda mais longe, a sua voz era áspera corno a casca de uma árvore. Calculei que talvez tivesse sido um jovem atraente, mas uma vida inteira de cerveja amarga e costeletas de porco havia cobrado dividendos e o seu rosto era agora um amachucado mapa das estradas de capilares rebentados. O nariz tinha o tom e a forma de um grande tomate maduro.
- Que vai fazer quanto à minha "doçura"? - gritou-me.
Expliquei-lhe calmamente que ainda mal começara a investigar, mas que já estivera na casa dele para saber dos pormenores por intermédio da esposa. Pretendia lá voltar, para interrogar o pessoal e fazer uma busca mais pormenorizada.
- Nada de chuis! - berrou. - Aqueles patifes dizem que matam a Peaches se a polícia for chamada!
Garanti-lhe que não iria chamar a polícia e pedi-lhe para ver o bilhete do pedido de resgate. Tirara-o do cofre antes da minha chegada e atirou-mo por cima da mesa. Perguntei-lhe quantas pessoas lhe tinham tocado. Resposta: ele, Laverne, o recepcionista, Leon Medallion e talvez o restante pessoal da Casa Blanco. Estava posta de parte a possibilidade de se conseguirem impressões digitais úteis.
O bilhete estava muito bem escrito, numa folha de bom papel, e, na verdade, parecia ter sido impresso num processador de texto, tal como Willigan dissera à mulher. O que me chamou a atenção foi a margem direita. O espaço entre as palavras fora ajustado de modo a que todas as linhas tivessem o mesmo comprimento. Uma coisa invulgar, num pedido de resgate, não acham?
Perguntei-lhe se tinha recebido mais alguma comunicação dos raptores e Willigan respondeu que não. A se-
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guir quis saber se existia alguém que ele pensasse que pudesse ter raptado o gato. Tinha inimigos? Lançou-me uma mirada incendiária.
- Tenho mais inimigos do que você tem amigos! gritou. (Foi uma comparação de que não gostei.) - E claro que tenho inimigos. Não se pode arranjar massa, como eu fiz, sem arranjar inimigos. No entanto, todos eles são tipos duros. Eram capazes de me dar um tiro nas costas, mas não iriam roubar um gato por uma porcaria de cinquenta mil dólares. Para essa malta, são tostões.
Não fui capaz de me lembrar de perguntas adicionais, e por isso agradeci a Willigan o tempo que me dispensara e pus-me de pé, para me ir embora. Acompanhou-me à porta, com uma mão carnuda em cima do meu ombro.
- Escute, Archy - disse, com a sua voz normal, mais do que áspera -, traga-me a Peaches de volta, sã e salva, e haverá um belo maço de notas para si.
- Obrigado - respondi, contraído -, mas o meu pai paga-me um salário perfeitamente adequado.
- Oh, claro - retorquiu, tentando ser jovial -, mas um jovem garanhão como você pode sempre arranjar utilidade para mais uns trocos, não é verdade?
Que tipo desagradável! Não conseguia compreender como Laverne conseguia aguentar a sua total ausência de maneiras... mas desconfiava que os Bloody Mary com rábano picante lhe davam um boa ajuda.
Regressei ao Edifício McNally, atirei-me para dentro do Miata e fui para casa. A minha velha medulla oblongata já tinha que chegasse, naquele dia, das desventuras de uma gata chamada Peaches. Dei um petisco a todos os meus fatigados neurónios virando os pensamentos para Meg Trumble e Laverne Willigan.
Achava espantoso que fossem irmãs. Podia ver ligeiras semelhanças nas feições, mas as carcaças eram completamente diferentes. Se as colocassem lado a lado, parecer-se-iam com o número 18.
As personalidades eram também totalmente díspares.
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Laverne era uma extrovertida cheia de vivacidade, e Meg era introspectiva, uma mulher séria. Além disso, fora tecida com um fio mais fino e menos embaraçado. Naquele momento, não me sentia enamorado, mas a mulher intrigava-me. Havia à sua volta um mistério que era um desafio, enquanto Laverne era tão misteriosa como uma batata cozida.
Entrei no caminho de acesso ao Castelo McNally, uma alta pilha de tijolos à Tudor, com uma cobertura de cobre que deixava escorrer a água. Estacionei no caminho de cascalho, em frente da nossa garagem para três carros, certificando-me de que não bloqueava a entrada do lado esquerdo, onde o meu pai guardava o seu enorme Lexus. O espaço central era ocupado por uma velha carrinha Ford com carroçaria de madeira, utilizada principalmente para as compras e para transportar as flores da minha mãe para as exposições de plantas.
Descobri-a na pequena estufa, conversando com as begónias, como de costume. Chamava-se Madelaine e era membro remunerado do Sindicato das Mamãs de Cabeça no Ar. Todavia, era uma mulher esplêndida, calorosa e cheia de amor. Já vira as suas fotografias de casamento, de quando passara a ser Mrs. Prescott McNally, e nessa época era uma personagem radiante. Agora, quase nos setenta, era ainda mais bonita... e garanto-lhes que não estou a falar como filho respeitoso, mas sim como um interessado estudante de pulcritude. (Trago na carteira uma pequena fotografia de Kay Kendall.)
Os óculos tinham-lhe escorregado para a ponta do nariz, pelo que não me viu aproximar-me em silêncio. Beijei-lhe a face aveludada e ela fechou os olhos.
- Ronald Colman? - perguntou. - John Barrymore?
- Tyrone Power - respondi-lhe.
- Ah, o meu favorito - retorquiu, abrindo os olhos. Foi maravilhoso, em O Carteiro Toca sempre Duas Vezes.
- Mãe, esse era o John Garfield.
- Também gostava dele. Para onde foram todos eles, Archy?
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- Para o Grande Éden do Céu - respondi. - No entanto, eu ainda aqui estou.
- E amo-te mais do que a todos eles - declarou prontamente, fazendo-me festinhas na cara. - A Ursi está a preparar escalopes para esta noite. Não foi boa ideia?
- Prefeita - concordei -, pois estou com disposição para escalopes. Pede ao pai que abra uma daquelas garrafas de muscadet que tem mantido escondidas, está bem?
- Porque não lho pedes tu, Archy?
- Porque me responderia que o tinto do garrafão serve muito bem. Se fores tu a pedir-lho, abrirá mão do que é bom. Faz tudo o que tu queres.
- Ah, faz? - perguntou. - Desde quando?
Voltei a beijá-la e fui para a minha suite, a fim de mudar de roupa. Suite é uma palavra grandiloquente para descrever uma pequena sala, um quarto atulhado e uma casa de banho claustrofóbica, no terceiro andar. A renda, porém, era imbatível (nicles) e aquela era a minha toca privada. Não tinha a menor razão para queixas.
Enfiei uns recatados calções de banho (em rosa-eléctrico), uma camisola e sandálias. Depois agarrei numa toalha e fui até à praia. O Atlântico ficava praticamente à nossa porta. Bastava atravessar o Ocean Boulevard e ali estava ele, a brilhar sob o sol do fim de tarde. A ondulação não era suficientemente forte para me fazer pensar duas vezes.
Tento nadar duas milhas por dia. Não para o largo, pois isso é para idiotas, mas sim paralelo à costa, a cerca de quinze metros. Faço uma milha para norte ou para sul e depois volto para trás. Não chafurdo na água, como disse a Meg, mas lá vou nadando. Contudo, como é o único exercício físico que pratico - para além de um ocasional jogo de setas no Clube Pelicano - faz-me sentir virtuoso e é uma maravilha para o apetite... e para a sede.
O meu pai tem um grande respeito pelas tradições. Uma das cerimónias que insiste em honrar é a da hora do
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cocktail, uma reunião pré-prandial que em geral dura trinta minutos, durante a qual despejamos martinis que ele mistura de acordo com a fórmula tradicional de três partes de gim para uma de vermute. Não é suficientemente seco para vocês? Queixem-se a Prescott McNally, mas preparem-se para verem um sobrolho a erguer-se... e trata-se de um sobrolho bastante peludo.
- Vais sair esta noite, Archy? - perguntou o meu pai nessa tarde, durante a reunião familiar.
- Não senhor - respondi -, não estou a pensar fazê-lo.
- Óptimo - retorquiu. - Roderick Gillsworth telefonou-me esta tarde e quer aparecer por aqui às nove horas. Tem um assunto qualquer que não quis discutir no escritório.
- E quer que eu esteja presente? - inquiri, um pouco surpreendido.
O governador da mansão mastigou a azeitona que, afastando-se um pouco das suas preferidas, fora recheada com um tirinha de jalapeno.
- Sim - confirmou. - Gillsworth pediu que estivesses presente.
- Como está Lydia? - perguntou a minha mãe, referindo-se à mulher do cliente.
O pai contraiu as sobrancelhas, o que, dada a sua pilosidade, quase lhe escondia os olhos.
- Perguntei-lho - disse -, mas não me quis dar uma resposta directa. E muito estranho. Descemos para o jantar?
Os escalopes estavam superbons, com o sabor posto em relevo por um muscadet que o lorde da mansão consentira em desrolhar. Tem tendência para ser um pouco avarento no que se refere aos seus vinhos de boa colheita. A minha mãe não se incomoda com isso, porque só bebe Sauterne ao jantar, um terrível hábito que nem meu pai nem eu tentámos corrigir. Porém, eu gosto de um bom vinho de vez em quando. Um vinho que não venha numa garrafa com rolha de plástico.
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Para a sobremesa, Ursi Olson, a nossa cozinheira-governanta, serviu grandes fatias de melão temperadas com uma gotas de lima fresca. Empanturrado, trepei para a minha caverna e trabalhei um bocado antes da chegada de Roderick Gillsworth.
Durante os meus inquéritos discretos do passado aprendi a registar as investigações num livro. Tenho tendência para me esquecer de coisas que podem vir a ser importantes... ou talvez não.
Por isso, escrevinhava sempre alguns apontamentos curtos sobre os casos em que estava envolvido. Nessa noite, abri um novo capítulo, sobre o rapto da malévola Peaches.
Anotei tudo o que soubera durante o dia, e que não era muito. Quando terminei, pus os apontamentos de lado e olhei para o meu relógio Mickey Mouse (original, e não uma reprodução). Verifiquei que ainda tinha um quarto de hora antes de a minha presença ser requerida no gabinete do meu pai para ser informado sobre o que perturbava o nosso cliente. Passei o tempo a recordar-me do que sabia de Roderick Gillsworth.
Era um poeta autoproclamado. O seu primeiro livro, A Alegria da Flatulência, era tão obscuro e prolixo que os críticos tinham ficado convencidos de que o homem era um génio, e fora graças ao êxtase dessas críticas que o livro vendera quinhentos e vinte e sete exemplares. Porém, os subsequentes livros de Gillsworth não se tinham vendido tão bem, pelo que aceitara trabalho como poeta-residente numa muito exclusiva e liberal universidade artística para mulheres, em New Hampshire.
Fora aí que casara com uma das estudantes, Lydia Barkham. Era a herdeira de uma fortuna em dinheiro antigo, acumulado por uma família de Rhode Island que começara por fabricar guitas, graduara-se para as cordas e passara para os cabos de aço, e que tinha acabado por vender a fábrica a uma companhia japonesa por um preço tão ofensivo que um comentador financeiro dissera tra-
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tar-se da "vingança parcial pelo que se passou em Pearl Harbour".
Lydia e Roderick Gillsworth haviam-se mudado para Palm Beach em finais dos anos setenta e, apesar da sua riqueza, tinham comprado uma residência relativamente modesta na Via Del Lago, a cerca de um quarteirão da praia. A sua vida era tranquila, recebiam com pouca frequência, e tinham, aparentemente, muito pouco interesse pelo ténis, golfe ou pólo. Isso não os transformava em párias, é claro, mas eram considerados como um pouco esquisitos. De acordo com as más-línguas de Palm Beach (toda a população), os Gillsworth tinham aquilo que os franceses designam por marriage blanc, a que os nossos avós chamariam "casamento só de nome". Como é natural, não posso apostar que assim fosse.
Roderick continuava a escrever poesia, mas os seus finos volumes eram impressos a título privado, muito bem encadernados a pele de bezerro e oferecidos, como prendas de Natal, a amigos pessoais. A família McNally tinha oito dos seus livros, com as páginas ainda por abrir. A mais recente compilação de poemas denominava-se O Ateu de Olhos em Bico.
Quando entrei no estúdio do meu pai, no rés-do-chão, Gillsworth encontrava-se já instalado no sofá de orelhas, de couro. Aproximei-me para lhe apertar a mão e nem sequer se levantou. Sei que sou um simples empregado, cerca de dez anos mais novo do que ele, mas mesmo assim pensei que se tratava de má educação. O meu pai encontrava-se por detrás da grande secretária com tampo de couro e eu puxei por uma cadeira direita e coloquei-a de modo a poder ver os dois homens sem ter de virar a cabeça para um lado e para outro.
- Archy - disse o patrão. - Mr. Gillsworth tem, aparentemente, um problema pessoal que deseja discutir connosco. Está consciente das tuas responsabilidades nos inquéritos discretos, e dos êxitos que alcançaste em várias investigações, com um mínimo de publicidade.
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- Nenhuma publicidade - declarou o poeta, com secura. - Tenho de insistir: absolutamente nenhuma publicidade. Lydia nunca me perdoaria se isto se viesse a saber.
O meu pai alisou o bigode com o nó de um dedo. O bigode era tão peludo como as sobrancelhas, mas muito maior. Era um bigode do tipo "Guarda Real" que lhe ocupava toda a largura da cara, um maciço que constituía um verdadeiro espectáculo quando tentava comer costeletas grelhadas.
- Serão feitos todos os esforços para que o assunto se mantenha confidencial, Mr. Gillsworth - afirmou. Mais exactamente, qual é o problema?
O nosso cliente aspirou o ar com força.
- Há cerca de três semanas - começou -, chegou a nossa casa uma carta dirigida à minha mulher. Vinha num sobrescrito branco, sem remetente. Na altura, Lydia encontrava-se no Norte, de visita a uns primos em Pawtucket. Felizmente, deixara instruções para que lhe abríssemos o correio e enviássemos para Rhode Island tudo o que considerássemos importante e pudesse requerer a sua atenção imediata. Digo "felizmente", porque essa carta era uma viciosa ameaça contra a vida de Lydia. Descrevia o seu assassínio com pormenores tão horríveis e nojentos que se tratava obviamente do produto de uma mente desequilibrada.
- Que horror! - manifestou-se o meu pai.
- A carta indicava algum motivo para a ameaça? perguntei.
- Apenas em termos vagos - declarou Gillsworth. Dizia que ela tinha de pagar pelo que estava a fazer. Era essa a frase usada: "pelo que estava a fazer". Uma insanidade completa, claro. Lydia é a mais inocente das mulheres. A sua conduta está para além de todas as censuras.
- Tem a carta consigo, Mr. Gillsworth? - inquiriu o meu pai.
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O poeta grunhiu.
- Destruí-a - explicou -, bem como ao sobrescrito. Pensei que se tratava de um incidente isolado e não queria que Lydia a encontrasse e lesse aquelas porcarias. Por isso, queimei-a.
Ficámos em silêncio. Gillsworth desviara a cara e pu-
, t,de estudá-lo por instantes. Era um homem alto e extre-
. mamente magro, com uma cara ossuda dividida ao meio
por um nariz que devia ser um meio termo entre o de
Cyrano e o de Jimmy Durante.
Usava um fato desportivo, de mangas curtas, em linho preto. com aquele poderoso bico, os braços magricelas e os gestos largos, parecia-se mais com uma ave do que com um poeta. Perguntei a mim mesmo o que uma jovem poderia ter visto no poeta que a persuadisse a comprometer-se com ele para toda a vida. De qualquer modo, é inútil tentar imaginar o que os esposos vêem um no outro. É melhor aceitar a filosofia de Ursi. Limita-se a encolher os ombros e a dizer: "Todos os tachos têm uma tampa."
O silêncio prolongou-se, e como o senhor da casa não fez a pergunta que devia ser feita, fi-la eu.
- Recebeu uma segunda carta, não é verdade? - incitei-o.
Acenou uma confirmação e o olhar que me lançou pareceu-me confuso, como se não conseguisse compreender a inexplicável infelicidade que caíra sobre ele e sobre a esposa.
- Sim - confirmou, numa voz a que faltava firmeza. - Há dois dias. Lydia já estava em casa, abriu a carta, leu-a e mostrou-ma. Achei-a ainda mais nojenta e assustadora do que a primeira. Dizia mais uma vez que teria de morrer pelo que estava a fazer, e descrevia o assassínio com pormenores horrendos e obscenos. Deve ser obra de um maníaco homicida.
- Como foi que a sua esposa reagiu à carta? - perguntou o meu pai, com gentileza.
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Incomodado, Gillsworth agitou-se no sofá de orelhas.
- Em primeiro lugar, tenho de vos dar algumas explicações prévias. A minha mulher sempre esteve interessada no oculto e nos fenómenos psíquicos. Acredita em forças sobrenaturais, na existência de espíritos, na percepção extra-sensorial e nesse tipo de coisas.
O homem fez uma pausa e eu, que me sentia curioso, perguntei:
- O senhor também acredita nisso? Fez um dos seus largos gestos.
- Não acredito nem deixo de acreditar. Muito francamente, o sobrenatural tem muito pouco interesse para mim. O meu trabalho diz respeito ao conflito entre a expressão finita da psique humana e a não realidade oculta no seu interior. Chamo-lhe Dicotomia Divina.
O meu pai e eu acenámos, muito sérios. Que mais poderíamos fazer?
- Respondendo à sua pergunta, Mr. McNally - prosseguiu Gillsworth, dirigindo-se ao mein papa -, a minha mulher reagiu à carta com uma serenidade total. Poderá achar extraordinário - como é o meu caso -, mas ela não tem qualquer medo da morte, por muito dolorosa ou horrível que possa vir a ser. Acredita que a morte é apenas outra forma de existência, e que passamos de um estado para o outro sem qualquer perda ou diminuição dos nossos poderes, e que, antes pelo contrário, ganhamos mais sabedoria e força. Essa crença - que é muito sincera, posso garantir-lhes - permite-a encarar a sua própria morte com tranquilidade. Foi por isso que a carta não a assustou, se era essa a finalidade. Porém, assustou-me a mim, e não me importo de o dizer. Sugeri a Lydia que talvez fosse sensato regressar a Rhode Island para uma visita mais prolongada, até este assunto estar esclarecido.
- Sim - disse o pai -, creio que seria prudente.
- Recusou-se - acrescentou Gillsworth. - A seguir, sugeri-lhe que fôssemos ambos fazer uma viagem, talvez dar uma longa volta pelo estrangeiro. Também re-
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cusou, dizendo que não permitiria que as manifestações de um lunático lhe alterassem a vida. Insiste em que o assunto não seja levado à Polícia, e aceita toda a situação com um sangue-frio que me deixa espantado. Quanto a mim, não sou capaz de aceitar o assunto com tanta ligeireza. Acabei por conseguir a sua autorização para vos consultar, com a condição de que não revelem este aborrecido caso à Polícia ou a outra pessoa qualquer.
- Pode ficar descansado a esse respeito - prometeu o meu pai com gravidade.
- bom - disse o poeta. - Querem ver a segunda carta?
- Sem dúvida.
Gillsworth levantou-se e tirou um sobrescrito branco do bolso exterior do casaco. Atravessou o gabinete e entregou-o ao meu pai.
- Só um momento, por favor - intervim. - Mr. Gillsworth, presumo que só o senhor e a sua esposa tocaram nessa carta desde que a receberam.
- É verdade.
- Pai - continuei -, sugiro que a segure com cuidado, talvez pelos cantos. Pode chegar uma altura em que seja necessário procurar impressões digitais.
Acenou uma confirmação e abriu o sobrescrito com a ponta de uma faca para papel que tinha sobre a secretária. Serviu-se da mesma faca para extrair a carta e para a abrir em cima da mesa. Ajustou o abat-jour de vidro verde do seu candeeiro de latão e começou a ler. Desloquei-me para trás dele, para espreitar por cima do ombro, mas como não tinha os óculos de leitura distingui apenas uma mancha.
O pai terminou a leitura e levantou os olhos para o homem, que se mantinha de pé do outro lado da secretária.
- O senhor não exagerou, Mr. Gillsworth - disse, numa voz tensa.
- Pai, podes lê-la em voz alta? - pedi. - Esqueci-me dos óculos lá em cima.
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Leu-a com tons frios que nada fizeram para diminuir e choque provocado pelas palavras. Não repetirei aqui a car-íi ta, porque não quero ofender a sensibilidade de ninguémji Bastará dizer que era tão odiosa como Gillsworth afirmara, e constituía uma clara ameaça de assassínio. A carta era puro ódio, triplamente destilado.
Terminada a leitura, o cliente e eu regressámos aos nossos lugares. Ficámos os três sentados em silêncio, abalados com as desprezíveis palavras que tínhamos acabado de ouvir em voz alta. O pater olhou para mim e percebi o que pensava. Todavia, nunca o diria. Nunca rebaixaria o meu ego na presença de uma terceira pessoa. Era por isso que eu adorava aquela velha raposa. Assim, fui eu quem o disse:
- Mr. Gillsworth - comecei, com a maior das sinceridades -, devo dizer-lhe, com toda a honestidade, que apesar de apreciar a sua confiança em mim me sinto ultrapassado por este assunto. Requer uma investigação pela polícia local, pelos inspectores dos Correios, e possivelmente pelo FBI. Enviar uma ameaça de danos físicos pelo correio é um crime federal. A carta deve ser analisada por especialistas: o tipo de máquina utilizada, o papel, o perfil psicológico de quem a escreveu, etc. É possível que outros residentes de Palm Beach tenham recebido cartas semelhantes, e a sua poderá fornecer uma pista vital para a descoberta do responsável. Incito-o a levar o caso às autoridades competentes o mais depressa que puder.
O meu pai olhou-me com um ar de aprovação.
- Concordo inteiramente com a opinião de Archy disse para Gillsworth. - É um assunto para a Polícia.
- Não - retorquiu o poeta, com um rosto de pedra. - Impossível. Lydia proibiu-o expressamente e não posso contrariar os seus desejos.
Agora, a mirada que meu pai me lançava era de desespero. Percebi que se encontrava à beira de recusar ajuda a Gillsworth, mesmo que isso significasse perder um cliente.
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- Mr. Gillsworth - declarei, inclinando-me para ele -, estará disposto a concordar com uma proposta? Permita-me que me encontre e converse com a sua mulher. Deixe-me tentar convencê-la de que eu e o meu pai consideramos a questão como muito séria. Talvez a consiga persuadir que o melhor é pedir ajuda às autoridades.
Ficou a olhar-me durante um tempo excessivamente longo.
- Muito bem - acabou finalmente por murmurar. Não me parece que sirva para alguma coisa, mas vale a pena tentar.
- Archy consegue ser muito persuasivo - disse o meu pai com secura. - Podemos ficar com a carta, Mr. Gillsworth?
O poeta acenou e levantou-se para se retirar. Houve apertos de mão a toda a volta. O meu pai guardou a carta, ainda aberta, num sobrescrito castanho e entregou-ma. A seguir, acompanhou Roderick Gillsworth ao carro. Levei o sobrescrito para o meu quarto e liguei o candeeiro da secretária.
Pus os óculos e li a carta. Era terrível, sem dúvida... mas isso era o que menos me surpreendia. Vi que fora escrita num papel de boa qualidade, impressa num processador de texto... e que tinha a margem direita justificada.
Que acham disto?
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Nessa noite, fui dormir com a convicção de que a carta da Peaches e de Gillsworth tinham sido escritas na mesma máquina, e talvez até pelo mesmo vilão. Porém, que tinha o roubo de um gato mal-humorado a ver com uma ameaça de assassínio feita à mulher de um poeta era coisa que eu não sabia.
Acordei na manhã seguinte cheio de genica, ansioso por dedicar o dia à investigação, lamentando não possuir um cachimbo encurvado e um boné à Sherlock. Infelizmente, também acordei uma hora mais tarde do que deveria e quando desci as escadas já o meu pai partira para o escritório no seu Lexus, e minha mãe e Ursi tinham saído no Ford, para fazerem compras. Jamie Olson estava sentado na cozinha, bebericando uma caneca de café.
Trocámos os nossos cumprimentos matinais e Jamie, nosso empregado e marido de Ursi, perguntou-me se queria um pequeno-almoço "sólido". Jamie é um septuagenário com o apetite de um adolescente. A sua ideia de um pequeno-almoço "sólido" são quatro ovos, batatas fritas, salsichas de porco, torradas de centeio e um quartilho de café bem preto... talvez com um pouco de aguardente para lhe dar sabor. Contentei-me com um copo de sumo de laranja, um pãozinho com manteiga e urna chávena do seu café, suficientemente forte para nos insensibilizar as amígdalas.
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- Jamie - disse-lhe, sentado do outro lado da mesa, na sua frente -, conheces Leon Medallion, o mordomo dos Willigan?
- Hum, hum - respondeu.
O nosso empregado, de origem sueca, é tão lacónico que faz com que Gary Cooper pareça uma gralha. Porém, Jamie tem um conhecimento enciclopédico dos escândalos locais, tanto passados e presentes como até de ilguns que ainda irão ter lugar. A maior parte das suas nformações provêm do exército de empregados domésticos de Palm Beach, que apreciam muito trocar entre si pequenas informações sobre os seus patrões. Era uma recompensa parcial pelas horas de aborrecimento a dar brilho às botas de pólo dos amos e a polir as jóias das damas.
- Alguma vez ouviste alguma coisa esquisita a respeito de Leon? - inquiri. - Do género de ir buscar umas moedas à bolsa da patroa, ou receber luvas do homem do talho?
- "Na"!
- E sobre a cozinheira e a criada? Também são honestas?
Jamie acenou uma confirmação.
- Sei que Harry Willigan tem os seus devaneios continuei. - Toda a gente o sabe. E a respeito da mulher? Também se diverte, por aí?
Jamie encheu lentamente o seu velho cachimbo desbotado, com a boquilha segura com um adesivo, e acendeu-o.
- Talvez - replicou. - Contam-se umas coisas.
- bom, se souberes alguma coisa de definitivo, passa-a para mim, por favor. Houve alguém que lhes fanou o gato.
- Eu sei.
- Ouviste dizer alguma coisa a respeito dos Gillsworth, o poeta e a mulher?
- O dinheiro é dela - informou-me Jamie.
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- Isso já eu sei.
- E é avarenta. Ele tem uma mesada. f l
- E quanto às suas vidas pessoais? Algum deles proy cura consolo em qualquer outro lado?
- Não ouvi falar nisso.
- Pergunta, está bem? - incitei-o. - Não dês nas vistas.
- Hum, hum - fez Jamie. - O Miata precisa de ser lavado, para tirar o salitre. Vai ficar em casa de manhã?
- Não - respondi -, tenho de sair, mas estarei de volta ao fim da tarde. Agradeceria que tratasses disso na altura.
- Está bem - disse, aceitando com um aceno a nota de dez que lhe passei. Não o deveria fazer e o meu pai ficaria furioso se o soubesse. Todavia, Jamie e eu compreendíamos que o pourboire era pelas informações fornecidas e que nada tinha a ver com os trabalhos domésticos. Os Olson eram bem pagos para gerirem o lar dos McNally.
Conduzi para sul, em direcção à hacienda dos Willigan. A agourenta mensagem enviada a Lydia Gillsworth dera uma nova urgência à minha busca dos raptores da Peaches. Não me parecia incrível que os dois casos estivessem ligados, pois já aprendera a aceitar as incongruências da vida.
Foi Leon Medallion quem me abriu a porta quando toquei a campainha, e se não fosse ainda tão cedo seria capaz de jurar que o homem estava bem aviado. Os claros olhos azuis mostravam-se avermelhados e a fala era confusa, como se tivesse tomado o pequeno-almoço directamente de um garrafão.
Deve ter-se apercebido do meu espanto, porque declarou:
- Não consegui pregar olho, Mr. McNally. As alergias voltaram. Estou farto de espirrar e de engolir anti-histamínicos.
- Então, a culpa não era da gata?
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- Parece que não - afirmou, tristonho. - No entanto, nesta terra há fungos e pólenes suficientes para me manterem o nariz a pingar durante o resto da vida. Encontrou a Peaches?
- Ainda não, Leon. Foi por isso que passei por aqui, para conversar consigo e com o resto do pessoal. Mrs. Willigan está em casa?
- Não, saiu há cerca de meia hora.
- E Miss Trumble?
- Está na piscina a nadar. Aquela mulher parece um peixe. Quer falar com os empregados todos ao mesmo tempo?
- Pode ser - concordei. - Não vale a pena estar a repetir todas as perguntas três vezes.
Reunimo-nos na grande cozinha: Leon, Ruby Jackson, a cozinheira-governanta, Julie Blessington, a criada, e eu. Ruby era uma mulher pequenina e envelhecida que parecia demasiado frágil para ser capaz de martelar os bifes. Julie era mais jovem, maior e excessivamente lisa de peito. Laverne tivera o cuidado de não empregar uma rechonchuda que pudesse fazer saltar os fusíveis do marido.
Interroguei os três durante cerca de vinte minutos e não cheguei a lado nenhum. Só Julie e Leon estavam em casa quando a Peaches desaparecera. Juraram que a porta das traseiras do pátio estava fechada. Não havia buracos na vedação por onde o bicho se pudesse ter escapado.
Nenhum dos três vira estranhos em volta da casa nos últimos tempos. Ninguém andara a espreitar no meio dos arbustos, nem nada que se parecesse. Nenhum deles era capaz de dar um palpite sobre quem levara a gata. Todos confirmaram o exagerado interesse que Harry Willigan tinha pelo seu animal doméstico, para além de deixarem no ar a sugestão de que ficariam muito satisfeitos se tivessem de se habituar à perda, permanente, do irascível felino. Era uma coisa que não me custava a compreender.
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Não estava à espera de descobrir fosse o que fosse, e não descobri. Agradeci-lhes a cooperação e dirigi-me para o relvado das traseiras. Meg Trumble continuava a cortar as águas da piscina para um lado e para o outro, usando o brilhante fato de banho preto que mais se parecia com uma pintura corporal. Viu-me aproximar, parou para me acenar e depois prosseguiu com a disciplinada atenção. Puxei uma cadeira para a sombra e esperei.
Cerca de cinco minutos mais tarde, deu o exercício por terminado. Adorei a maneira como saiu da piscina. Para ela, não eram precisas escadas. Limitou-se a colocar as mãos nos ladrilhos da beira da piscina e dar um único impulso para cima, com uma perna levantada e dobrada para se firmar. Ver uma coisa daquelas era uma verdadeira alegria. Pessoalmente, nunca o conseguiria fazer, nem num milhão de anos.
Avançou pela relva, na minha direcção, pingando e servindo-se das mãos para escorrer a água dos cabelos, cara e braços.
- bom dia, Archy - disse, sorrindo. - Não está um belo dia?
- Esplêndido - afirmei, olhando-a com admiração. Era na verdade uma jovem construída com arte. - Queres jantar comigo esta noite?
- O quê? - exclamou, espantada.
- Jantar. Esta noite. Tu e eu.
- Não sei... - murmurou, confusa. - Não devia... Será melhor... Talvez...
Aguardei pacientemente.
- Posso pagar a minha parte? - perguntou finalmente.
- Continua a falar assim - comentei - e alguém acabará por te pedir que resignes do sexo feminino. Não, não podes pagar a tua parte. Estou a convidar-te para jantar comigo... ergo... és minha convidada.
- Está bem - disse, com uma voz fraca. - Que devo vestir?
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Consegui reprimir a primeira resposta que me veio à cabeça.
- Algo informal - respondi. - Um caicai de flanela com uma saia escocesa seria simpático.
- O quê?! Estás louco?
- Completamene - garanti-lhe. - Venho buscar-te às sete.
Fui-me embora apressadamente antes que tivesse tempo para pensar. Atravessei a casa pelo comprido corredor decorado com armas antigas. Fizeram-me pensar se alguém estaria, naquele mesmo momento, a erguer uma cimitarra por cima do pescoço da Peaches. Creio que os sofrimentos da ofensiva bestiola me começavam a preocupar.
Saí e fechei a porta atrás de mim. Dei dois passos para o carro e parei. Fiz meia volta e voltei a tocar à campainha. O mordomo reapareceu.
- Desculpe incomodá-lo, Leon - disse -, mas lembrei-me de uma coisa que não cheguei a perguntar. A Peaches costumava ir ao veterinário?
- Oh, claro que sim - respondeu. - Uma vez por ano para as vacinas, mas mais frequentemente para tomar banho e para limpar os dentes e orelhas. Também lá ficou uma vez, por causa das lombrigas.
- Como a transportavam? Têm uma caixa? Uma daquelas coisas parecidas com uma mala, com buracos para entrar o ar e uma rede de um dos lados?
- Sim, temos uma dessas caixas.
- Pode procurá-la, por favor?
- Está bem, vou ver se a encontro - declarou, desaparecendo e deixando-me de pé à entrada.
Esperei. Esperei... e esperei. Passaram-se pelo menos dez minutos até Leon voltar. Parecia intrigado.
- Não consigo encontrar aquela porcaria - comunicou-me. - Sempre esteve no quarto das arrumações, mas não a encontrei. Se calhar, deixaram-na noutro lado qualquer.
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- Deve ter sido isso - respondi, sabendo que mentia. - Telefone-me se a encontrar, está bem?
Segui para o escritório perguntando a mim mesmo o que fora que me levara a perguntar pela caixa da gata, e sem pensar muito no significado do seu desaparecimento. No decorrer das minhas investigações é frequente que eu tenha estas ideias completamente disparatadas. Na maior parte dos casos, não me levam a lado nenhum, mas de vez em quando acabam por se demonstrar importantes. Tinha a sub-reptícia sensação de que aquela faísca cerebral acabaria por me dar a vitória.
O meu gabinete no Edifício McNally possuía o espaço e o ambiente de uma urna funerária. Desconfiava que meu pai me condenara àquele armário para provar aos outros empregados que não havia nepotismo na sua organização. No entanto, ter-me concedido o privilégio de uma janela não poderia ser considerado como favoritismo filial, pois não? O único arejamento era o do ar condicionado.
Por isso mesmo, era compreensível que eu raramente ocupasse o cubículo e me servisse dele apenas como caixa para a introdução de recados. Nas raras ocasiões em que necessitava de escrever uma carta de negócios era a secretária pessoal do meu pai, Mrs. Trelawney, quem a batia na máquina e fornecia o selo. Para além disso, a querida senhora também me comunicava o momento em que o cheque do salário estava disponível.
Nessa manhã, um recado telefónico colocado precisamente ao centro do mata-borrão da secretária pedia-me para telefonar para Mrs. Lydia Gillsworth. Acendi e fumei o meu primeiro cigarro do dia enquanto planeava o que dizer a uma mulher que acabara de receber uma assustadora previsão de como viria a ser a sua morte.
Na verdade, quando lhe telefonei, a mulher não poderia ter-se revelado mais graciosa e bem-dísposta. Informou-se sobre a minha saúde e a dos meus pais, exprimiu a sua tristeza por não poder ver os McNally com mais fre-
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quência. Disse que trouxera de Rhode Island uma pequena begónia eyelash para a minha mãe, e que a enviaria logo que recuperasse das diferenças de fusos horários. Agradeci-lhe a amabilidade.
- Ag;ora vejamos, Archy - prosseguiu. - Roderick disse-me que querias falar comigo por causa daquela estúpida carta que recebi...
- Sim, se mo permitir... - respondi. - Não me parece que o caso possa ser encarado com ligeireza...
- Estão a fazer uma tempestade num copo de água declarou com firmeza. - As pessoas que escrevem cartas como aquela esgotam a sua hostilidade na escrita. Nunca fazem nada.
- Gostaria que assim fosse, Mrs. Gillsworth - repliquei -, mas não haverá mal nenhum em discutirmos o assunto.
- Rod disse que pensas que a Polícia deve ser informada. Não o permitirei. Não quero que o assunto seja do conhecimento público e acabe talvez por aparecer nas páginas dos jornais.
Falou de uma maneira tão decidida que soube que seria inútil insistir naquele momento, mas achei que lhe podia dar uma volta. Por vezes, dizem que sou tortuoso. Prefiro a designação de "hábil". Provoca-me a imagem mental de um esgrimista de génio e de um touché apenas murmurado.
- Está bem, nada de polícia - concordei. - Apenas uma investigação privada e que não dê nas vistas.
- Muito bem - respondeu. - Podes cá vir às duas da tarde?
- com todo o prazer. Muito obrigado.
- Entretanto, darei outra olhadela à begónia acrescentou. - Se me parecer pronta para a deslocação, talvez possas levá-la à tua mãe.
- Ficarei encantado - afirmei, intrepidamente. Depois de desligar, peguei no maço de cigarros do bolso do casaco, olhei para ele por instantes e voltei a guardá-
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-Io sem o abrir. Tentava renunciar àquelas coisas e enr contrava-me no ponto em que resistir a um cigarro dava quase a mesma satisfação como fumá-lo. Quase... mas não tanta.
Telefonei ao sargento Al Rogoff, do Departamento da Polícia de Palm Beach. Era um "compadre" de muitos anos e já tínhamos trabalhado juntos em vários casos, em geral com benefícios mútuos.
- Sargento Rogoff - respondeu.
- Archy McNally - disse-lhe. - Que tal as férias?
- Óptimas - declarou. - Passei a semana à pesca, em Keys.
- Mentiroso - repliquei. - Passaste a semana em Manhattan e foste ver o ballet todas as noites.
- Chiuu... - fez o sargento. - Não fales tão alto. Se isso se soubesse, imaginas o que iriam pensar de mim aqui?
- O teu segredo está a salvo comigo - garanti. Que tal um almoço, dentro de uma hora?
- Nem pensar - afirmou imediatamente. - Podia ir ter contigo, mas não quero.
- Al! - exclamei, chocado. - Desde quando recusas um bom almoço? Sou eu quem paga!
- Sim, pagas o valor da comida - retorquiu -, mas de cada vez que almoço contigo, acabo sempre por pagar muito mais... Mais trabalho, mais tensão, mais dores de cabeça. Não, obrigado. Resolve os teus próprios problemas.
- Não tenho problemas - protestei. - Não estou a trabalhar num caso. Pensei apenas num agradável encontro social...
- Oh, claro... quando os camarões voarem! Agradeço o convite, mas recuso.
- bom, responderás, pelo menos, a uma pequena pergunta?
- Despeja-a cá para fora e veremos.
- A Polícia registou ultimamente algumas queixas
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de pessoas que tenham recebido cartas venenosas? Cartas mesmo muito más, com ameaças de morte?
- Eu sabia! - berrou Rogoff. - Sabia que nunca me darias de comer sem me envolveres numa das tuas investigações malucas. Quem foi que recebeu a carta?
- Não to posso dizer - respondi. - Os clientes exigem confidencialidade... e não estou a tentar envolver-te. Só queria saber se a carta faz parte de algum padrão local.
- Não, que eu saiba. Posso perguntar por aí, mas não ouvi falar em queixas dessas.
- Al - insisti -, os malucos que escrevem cartas como essas... cumprem as ameaças que fazem?
- Umas vezes sim... e outras vezes não.
- Obrigado, Al, foste uma grande ajuda.
- Estamos aqui para servir - declarou. Depois resmungou: - Mantém-me a par, Archy. Esse tipo de coisas não me agrada...
- Nem a mim... - respondi, desligando.
Dirigi-me a casa, para almoçar, pensando que o sargento Rogoff tinha razão. Mais tarde ou mais cedo seria obrigado a envolvê-lo no asssunto. Precisava de ajuda profissional no que se referia às cartas de Willigan e Gillsworth, tal como a análise do papel e da impressora utilizada, e talvez um perfil psicológico do seu autor.
Soltei uma gargalhada ao pensar em qual seria a reacção de Al quando lhe dissesse que precisava de ajuda para recuperar uma gata raptada!
No fim de contas, não se tratava de um grande crime. Na verdade, e considerando a personalidade da Peaches, nem sequer considerava o acto como um crime. Recordei-me de O Resgate do Chefe Vermelho e interroguei-me sobre se o caso não terminaria com os raptores a pagarem a Harry Willigan para que este recebesse de volta o seu desagradável animal de estimação.
A minha mãe saíra para ir à reunião mensal do seu clube de jardinagem, pelo que almocei na cozinha com
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Ursi e Jamie Olson. Comemos uma grande travessa de carnes frias, uma tigela de salada de batatas à alemã e o maravilhoso pão de centeio que Ursi prepara uma vez por semana. Todos nós fizemos sanduíches, é claro, com uma mostarda bem puxada, e garrafas de St. Pauli Girl, bem frescas, para apagarem o fogo.
Fiquei tão consolado que subi para a minha toca, a fim de uma pequena soneca. Tive um sonho louco, que envolvia a Peaches usando um pijama com riscas de presidiário. A seguir, o pijama transformou-se num elegante fato de banho preto. Será capaz de me dar uma ajuda, Dr. Freud?
Acordei a tempo de me refrescar, fumar um cigarro (o número dois) e saltei para o Miata lavado de fresco, para a minha deslocação até à residência dos Gillsworth. Estava ansioso pela conversa com Lydia, uma mulher encantadora.
Era cerca de dez anos mais nova do que o marido, o que a punha dentro do meu escalão de idade. Contudo, sempre a encarei como uma mulher casada, o que a fazia parecer mais velha. Não o posso explicar. Porque é que as pessoas casadas nos parecem mais velhas do que as solteiras com a mesma idade? Um dia destes, vou ter de meditar sobre isso.
Fisionomicamente, Lydia Gillsworth era única, pelo menos na minha experiência. Tinha uns dentes tão salientes que uma vez ouvira comentar, de um modo muito cruel, que se tratava da única mulher de Palm Beach que conseguia comer grãos de milho da própria espiga... através de uma vedação. Porém, para compensar essa anomalia, tinha os mais maravilhosos olhos de todo o condado. São os chamados olhos de gazela: grandes, profundos e luminosos. Era quase impossível desviar os nossos olhos daquelas duas chamas sedutoras.
E o encanto? Era demasiado! Possuía a rara faculdade de conseguir fazer-nos acreditar que nos considerava a mais maravilhosa criatura existente na verdejante terra de
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Deus. Escutava com atenção, fazia as perguntas pertinentes, expressava simpatia quando esta era necessária. Sempre com integridade e dignidade. Poderemos dizer que uma mulher, é mensch ou será que o termo está reservado para os homens de honra? Se podemos, então ela era uma menschess.
Sabia que os Gillsworth não tinham pessoal interno, e que empregavam uma governanta haitiana que trabalhava três vezes por semana. Por isso, não fiquei surpreendido quando foi a própria dona da casa a abrir-me a porta. Puxou-me para dentro com um meio abraço e beijou-me na face.
- Archy! - exclamou -, que bom teres vindo. Adivinha o que tenho para ti?
- Uma fotografia autografada de Thelma Todd?
- Não - respondeu, rindo-se -, um jarro de limonada, rosada e fresca! Vamos para o pátio! Está um dia formidável!
Indicou o caminho através da casa. Estava decorada ao estilo de uma casa de campo francesa: tudo muito luminoso, arejado, e em cores suaves. As flores frescas eram abundantes, e as divisões, com os seus tectos altos, pareciam flutuar na luz da tarde. Por cima das nossas cabeças, as ventoinhas abanavam as ligeiras cortinas, enquanto o soalho, feito de tábuas irregulares, sem alcatifas e encerado até ficar a brilhar, reflectia as gravuras antigas, representando animais, emolduradas nas paredes caiadas.
O pátio era pequeno mas agradável. Estava virado para ocidente, mas um toldo às riscas protegia-o do clarão do sol-poente. Sentámo-nos a uma mesa com tampo de vidro e bebemos limonada cor-de-rosa, bem gelada, por taças decoradas com um desenho de videiras.
Não perdeu tempo com conversa fiada.
- Archy - disse -, preferia que Roderick não vos tivesse consultado, ao teu pai e a ti, sobre aquela carta. Estava muito mais perto da irritabilidade do que eu jamais a vira. - É embaraçante.
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- Embaraçante? Mrs. Gillsworth, não foi por sua culpa que recebeu uma mensagem tão venenosa. compreenderia se me dissesse que estava preocupada, mas porque é que se sente embaraçada?
- Porque pareço estar a provocar uma grande salgaIhada. É uma palavra bonita, não é? Há anos que a queria usar. A carta não me preocupa, não passa de uma coisa estúpida. O que me preocupa é a agitação que está a provocar. O pobre Rod não conseguiu escrever uma única linha desde que a recebi, e agora vocês foram convencidos a tentarem descobrir quem a enviou, quando tenho a certeza de que há pelo menos uma dúzia de coisas que prefeririam fazer. É por isso que estou embaraçada... por estar a incomodar tanta gente.
- Em primeiro lugar - respondi - não fui convencido, apresentei-me como voluntário. Em segundo lugar, o que eu mais gostaria de fazer era chegar até ao fundo deste assunto. Em terceiro lugar, o seu bem-estar é importante para o seu marido e para a McNally & Filho. Nenhum de nós encarou o caso a brincar. Falando pelo meu pai e por mim, digo-lhe que estaríamos a negligenciar as nossas obrigações se não fizéssemos todos os esforços possíveis para identificar o remetente da carta... e só a senhora nos pode ajudar.
- Não vejo como, Archy - disse, servindo mais limonada. - Não tenho a menor ideia sobre quem me quererá assassinar.
- Alguma vez foi ameaçada pessoalmente?
- Não.
- Teve alguma discussão recente com alguém?
- Não.
- E um qualquer acontecimento do passado? Recorda-se de alguém que possa ter ressentimentos, mesmo que de há muitos anos?
- Não.
- Deu a alguém, mesmo que não intencionalmente, motivos para que ele ou ela se considerasse prejudicado, ofendido, insultado ou até diminuído?
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- Não.
- Mrs. Gillsworth - continuei, com um suspiro -, é óbvio que o autor daquelas palavras não tem todos os parafusos. Por favor, pense bem. Entre os seus conhecidos ou amigos há alguém que a senhora possa ter considerado, apenas uma vez ou com frequência, ser emocional ou mentalmente desequilibrado?
Ficou silenciosa por momentos e esperei que estivesse a obedecer ao meu pedido para que pensasse bem.
- Não - declarou finalmente. - Não conheço ninguém.
- E um encontro casual com alguém que não conhecesse? Uma empregada de uma loja, por exemplo? Um criado de mesa? Teve alguns problemas com pessoas que atendam o público? Quaisquer desentendimentos, por muito triviais que fossem? Queixou-se de alguém?
- Não, não me lembro de nada disso.
Não podia acreditar que a mulher estivesse a mentir deliberadamente, mas também me custava a acreditar que não tivesse discutido com ninguém, nem com um empregado ou funcionário burocrata. Como o mundo é o que é, todos nós temos disputas ocasionais com os que são pagos para nos servirem.
Acabei a limonada. Estava um pouco doce de mais para o meu gosto. Lydia tentou voltar a encher-me o copo, mas abanei a cabeça e tapei-o com a palma da mão.
- Está deliciosa - disse-lhe -, mas eu combato uma guerra, perdida de antemão, com as calorias em excesso. Mrs. Gillsworth, conhece alguém que tenha inveja de si?
Ficou espantada e depois olhou-me com um sorriso contorcido.
- Que pergunta tão estranha - declarou.
- Não é assim tão estranha - objectei. - A senhora é atraente e encantadora. Toda a gente de Palm Beach sabe que está bem instalada na vida, e que até talvez seja rica. Tem um casamento feliz com um homem inteligen-
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te e criativo. Parece ter uma vida serena e tranquila. Tem uma casa maravilhosa e veste-se bem. A meu ver, tem muitas razões para ser invejada.
Aquilo deixou-a um pouco descomposta e revelou a sua perturbação ao baixar um pouco mais a lona do toldo, para que ficássemos na sombra.
- Sabes, Archy - disse, franzindo a testa -, nunca me ocorreu que pudesse ser invejada, mas ao escutar desse modo a minha lista das bênçãos recebidas compreendo que o possa ser. Garanto que nunca encontrei ninguém que expressasse algo que pudesse ser encarado como inveja. Claro que já fui cumprimentada pelos vestidos, ou pela casa, mas tratou-se apenas de comentários sociais convencionais. Não houve nada neles que sugerisse inveja.
Ficámos alguns momentos em silêncio. Sentia-me deprimido com todas as suas reacções negativas às perguntas. Não me dera nada de novo, nem sequer uma pista que apontasse uma direcção para os meus inquéritos discretos. Apercebeu-se da minha disposição, porque se inclinou para a frente e pousou a mão com leveza, no meu braço.
- Lamento muito, Archy - disse baixinho. - Acho melhor esqueceres o assunto.
- Não, senhora - declarei, teimoso. - Não o farei. A carta que recebeu assusta-me.
Lançou-me um sorriso que me surpreendeu. Era um sorriso divertido, como se estivesse grata pela minha preocupação mas a achasse excessiva.
- Deixa-me tentar explicar o que sinto - disse - e indicar-te a razão para não me assustar com a carta. Não sei se o meu marido vos falou da minha fé, mas acredito profundamente que a vida é apenas uma forma de existência, e que aquilo a que chamamos morte é uma outra. Creio que, quando morremos, passamos para um outro mundo tão viável como este, mas que é muito mais maravilhoso, porque é habitado por todos aqueles que para lá
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foram antes de nós. A alma nunca morre. Nunca! Por isso, a existência corporal é apenas um estado temporário. Quando desistimos dela, voluntariamente ou não, passamos para um plano espiritual mais elevado, tal como quando as borboletas emergem de um casulo. Não estou a tentar converter-te, Archy, palavra que não! Estou apenas a tentar explicar porque é que a morte não me aterroriza.
Abstive-me de lhe recordar que a morte prometida pela carta venenosa envolvia tortura e agonia, e que a sua passagem para um plano espiritual mais elevado não iria ser pacífica. Todavia, sentia-me curioso.
- Diga-me, Mrs. Gillsworth, acha que há muitas pessoas a compartilharem essas suas crenças?
Soltou uma gargalhada.
- Muitas mais do que se pensa, posso garanti-lo. Chamo-lhes "almas irmãs". Uma frase simpática mas fora de moda, não é? Sim, há muita gente que pensa como eu... mesmo aqui, em Palm Beach. Um certo número de nós reúne-se frequentemente para discutirmos as nossas experiências extracorporais e para tentarmos comunicar com os que já passaram para o outro lado.
Esperei que não tivesse reparado, mas fiquei atento como um perdigueiro a apontar a caça.
- Ah, sim? - disse, tão casualmente quanto possível. - Essas reuniões... são uma espécie de clube, não são? Reúnem-se em casa uns dos outros?
- Não é bem assim - respondeu, parecendo satisfeita com o meu interesse. - São organizadas pela nossa conselheira psíquica, Mrs. Gloriana, e têm lugar na sua casa. É uma mulher maravilhosa, muito sensível.
- Isso é fascinante - declarei, e era, porque já tinha um nome por onde começar. - É uma médium? Ou uma vidente?
- Não é uma vidente - explicou Lydia com firmeza. - Hertha não tenta prever o futuro, ler a sina, ou qualquer outra dessas aldrabices. Suponho que lhe pode-
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ríamos chamar médium. Nós preferimos encará-la como um canal, como o nosso meio de comunicação para o Grande Além...
Falou de um modo tão simples e sincero que não me senti inclinado a troçar. Pessoalmente, sou uma espécie de infiel, mas nunca troço das crenças dos outros. Se estão convencidos de que a Terra é plana, pois muito bem, desde que isso os satisfaça.
- É essa a profissão de Mrs. Gloriana? - perguntei. - Quero dizer, trabalha nisso para ganhar a vida?
- Oh, sim, mas não fiques com a ideia de que se trata de uma vigarista. Hertha tem uma licença oficial.
- Leva dinheiro pelos seus serviços? - inquiri, com muito cuidado.
- Claro que leva - disse Mrs. Gillsworth. - Porque não haveria de levar, se os seus talentos são tão especiais? Todavia, os preços são muito razoáveis e aceita cartões de crédito.
- Hum, hum - fiz eu. - E essas reuniões... são uma espécie de sessões espíritas, não são?
- Bem... - murmurou, hesitante -, mais ou menos. No entanto, não há bolhas de protoplasma a flutuar no espaço, nem ruídos estranhos. Reunimo-nos numa sala bem iluminada, sentamo-nos em círculo em volta de uma mesa e damos as mãos. Serve para aumentar o nosso poder psíquico, sabes? Depois, Mrs. Gloriana tenta comunicar com o outro mundo. O seu contacto é um xamã maia que morreu há centenas de anos. Chama-se Xatyl. Através dele, Hertha tenta alcançar as pessoas que os seus clientes pretendem interrogar. Por vezes, são pessoas famosas, mas o mais frequente é tratar-se de familiares. Já falei muitas vezes com a minha bisavó.
- E essa... hum... comunicação com os mortos é feita através de Xatyl, por intermédio de Mrs. Gloriana?
- Nem sempre - disse Lydia com secura. - O contacto falha quase tantas vezes quantas as que têm êxito. Por vezes, a pessoa falecida que foi pedida não está aces-
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sível, ou então a linha de comunicação é demasiado fraca para produzir resultados, porque nessa noite, em particular, os nossos poderes psíquicos combinados não são suficientemente fortes para permitir a Mrs. Gloriana o contacto com Xatyl.
- Incrível... comentei - e muito interessante. Mrs. Gloriana também concede... hum... consultas privadas?
- Claro que sim. No entanto, avisa imediatamente que as possibilidades de um contacto com êxito são muito menores para um indivíduo do que para um grupo. O poder psíquico em geral não é suficiente, compreendes? Um grupo de crentes com as mãos dadas gera muito mais energia do que uma única pessoa.
Pareceu-me lógico... Ou seja, se se aceitasse a premissa original, isso até parecia lógico.
- Diga-me outra coisa - prossegui -, mas trata-se apenas de curiosidade da minha parte. O seu marido alguma vez participou nas reuniões com Mrs. Gloriana?
- Oh, Rod foi a três ou quatro - explicou calmamente -, mas depois afastou-se. Não troçou de nós, mas nunca aceitou o conceito. Os interesses de Rod são mais intelectuais do que espirituais. Para além disso, não se sente bem em grupos. Precisa de solidão para poder criar.
- Compreendo-o perfeitamente - declarei. - Tem trabalho para fazer, e é um trabalho importante. - Levantei-me. - Mrs. Gillsworth, obrigado pelo seu tempo e pela hospitalidade.
- Pretendes continuar a investigação? Acenei uma confirmação.
- Não posso prometer o êxito, mas tenho de tentar.
- Não fui uma grande ajuda, pois não?
- Estou certo de que me forneceu todas as informações de que dispõe.
- Prometes-me não levar este ridículo assunto à Polícia? Não é nada de importante...
Não respondi. Voltou a conduzir-me através da casa, mas de repente parou e pousou a mão no meu braço.
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- Espera um instante, Archy - disse. - Quero mostrar-te uma coisa que trouxe de Rhode Island, para a colecção de Rod. Encontrei-a numa pequena loja, no campo, perto de Woonsocket.
Roderick Gillsworth coleccionava bengalas antigas.
Na verdade, coleccionar era o frenesim na moda em Palm Beach, e quanto mais exóticos fossem os objectos coleccionados mais forte era a paixão. Eu próprio sucumbira àquela loucura e comprava todos os cristais soprados que conseguia encontrar. A estrela da minha colecção era um copo Lalique, gravado.
Já anteriormente vira a colecção de Gillsworth. Tinha algumas belas peças, incluindo várias bengalas-espadas, uma bengala que escondia uma adaga, outra que podia levar um quartilho de uísque, e uma bengala de cerimónia, para trajo de noite que, quando se espreitava por um pequeno orifício, revelava uma minúscula fotografia de uma donzela muito dotada, vestida apenas com meias pretas e um grande sorriso.
A bengala que Lydia comprara para o marido em Rhode Island era de freixo polido, muito delgada, encimada por um punho de prata com a forma de um unicórnio. Era na verdade uma peça impressionante, provavelmente velha de duzentos anos, e estava desejoso de saber quanto custara, mas é óbvio que não o perguntei.
Cumprimentei Mrs. Gillsworth pela sua compra e agradeci-lhe mais uma vez a limonada. Todavia, não me iria conseguir escapar com tanta facilidade.
Entregou-me a begónia eyelash que se destinava à minha mãe. Pensei para mim mesmo que a deveriam ter baptizado de "begónia Godzilla", mas agradeci à mesma e encaixei-a no Miata. Conduzi lentamente em direcção a casa, matutando em tudo o que acabara de saber. Sou um "matutante" amador. Saio ao meu pai, que é o campeão do mundo, e reconhecido como tal por numa certa ocasião ter matutado durante mais de dois minutos sobre se deveria ou não pôr o sal no rábano.
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A minha mãe continuava ausente quando cheguei a casa. Por isso, deixei a monstruosa planta na bancada de trabalho, na estufa. Tinha ainda muito tempo para a minha natação no mar antes da hora do cocktail familiar. Foi enquanto nadava nas águas sombrias que tive uma ideia absolutamente louca. E se Mrs. Gillsworth tivesse escrito a carta venenosa e a tivesse metido no correio endereçada a ela própria?
Conseguia lembrar-me de vários motivos possíveis:
1) Queria provocar a simpatia dos amigos; 2) Desejava a atenção do marido, que aparentemente passava a maior parte do seu tempo abraçado às musas; 3) Ansiava por um pouco de drama numa vida que se tornara infindavelmente maçadora; 4) Tinha alguns parafusos desapertados e estava sujeita a impulsos irracionais.
Era possível construir um caso tendo Lydia como suspeita de culpada, mas tudo se desfez quando me recordei da similaridade com o bilhete de resgate entregue aos Willigan. Duvidava que Mrs. Gillsworth os conhecesse e era absurdo acreditar que fosse culpada de raptar uma gata.
Tomei um duche e vesti-me com cuidado para o meu encontro com Meg Trumble. Estava com uma disposição do tipo existencialista e cobri-me de preto de alto a baixo: um blusão de seda preta, jeans, camisola de gola alta, peúgas e sapatos. O meu pai olhou para mim, levantou uma sobrancelha e comentou: "Pareces uma sombra." É claro que o seu gosto em roupas de homem é um bocado ridículo. Pensa que os meus sapatos com borlas são... esquisitos. Eu penso que ele é o Príncipe dos Caretas.
Bebericámos os nossos martinis e a minha mãe contou-nos como ficara deliciada com o presente de Lydia Gillsworth. O pater perguntou, nada a propósito, se tinha feito alguns progressos no "assunto Gillsworth". Disse-Ihe que não.
- E a respeito do gato desaparecido? - acrescentou.
- Negativo - respondi, e senti-me tentado a dizer-
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-lhe que estava convencido de que os casos se encontravam relacionados. Não o fiz, porque era capaz de me mandar examinar por uma junta psiquiátrica.
Terminámos as bebidas e os meus pais desceram para jantar. Saí e instalei-me no Miaía o tempo suficiente para fumar o meu terceiro cigarro do dia, sabendo que quando estivesse na companhia de Meg Trumble teria de renunciar à nicotina.
A seguir, dirigi-me para a casa dos Willigan, ruminando sobre onde poderia levar Meg a jantar. Tinha de ser num local tão distante que a minha presença com outra mulher pudesse escapar aos olhos do corpo de informadores de Consuelo Garcia. Decidi-me a fazer a viagem até Fort Lauderdale.
Conhecia bem o aviso de W. Scott a respeito de teias misturadas, mas na verdade não estava a querer enganar Connie.
Ou estaria?
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Sugerira a Meg que se vestisse de modo informal, e ela assim fizera: bermudas de seda azul, um top da cor da espuma do mar e um pequeno casaco de um tecido que parecia uma manta de pastor e que usava sobre os ombros como se fosse uma capa. Tudo sem dúvida muito informal, mas a sua figura era tão elegante e o porte tão direito que faziam com que até os trapos mais vulgares parecessem um vestido de baile de Givenchy.
- Espantosa! - disse-lhe. - Alguma vez serviste de modelo?
- Tentei uma vez - confirmou, mas as fotografias não saem bem. Fico toda cheia de sombras angulosas. O fotógrafo disse que eu parecia um monte de ardósias.
- Era um fotógrafo estúpido - resmunguei. - Provavelmente preferia hamburgers a vitela piccata.
Meg riu-se.
- É isso o que pensas de mim? Faço-te lembrar vitela piccata?
- É um esplêndido prato clássico - retorqui. Virei para sul e Meg perguntou-me para onde íamos.
Disse-lhe que conhecia um bom restaurante em Fort Lauderdale. Importar-se-ia com uma viagem de uma hora?
- Não me importo nada - afirmou. - Fico feliz só por sair daquela casa.
- Ah! - fiz eu. - Há problemas?
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- É o meu cunhado - explicou. - Não suporto a maneira como trata Laverne. O homem é um bruto, não percebo como a minha irmã o atura.
- Talvez ela o ame - respondi baixinho. Meg explodiu.
- Laverne só gosta das vantagens de ser Mrs. Harry Willigan... mas isso sai-lhe caro. Eu nunca aceitaria tal coisa. Se um homem me gritasse como Harry lhe grita, dava cabo dele!
- Tentarei lembrar-me disso.
- É melhor que o faças - declarou, com tanta solenidade que não consegui perceber se falava a sério ou se brincava comigo.
Tivera a esperança de deparar com uma noite pura, de ar cristalino, com as estrelas a brilharem como um Cartier numa revista elegante. Não iria ser assim. O tom sombrio do oceano devia ter sido o suficiente para me avisar. Havia chuva a formar-se ao largo e as nuvens tornavam-se mais espessas.
- Creio que vai chover - disse Meg.
- O tempo não ousaria fazer-me uma coisa dessas afirmei. - Planeei uma noite romântica e é difícil ser-se romântico quando se está encharcado.
- Oh, não sei... - respondeu, pensativa, o que me convenceu que aquela mulher era profunda.
A previsão estava certa: a chuva começou a salpicar-nos quando chegámos a Deerfield Beach, a sul de Boca Raton. Não me pareceu que durasse muito tempo. Tratava-se apenas de uma chuvada de Verão... mas também podia transformar-se numa tempestade a sério.
- Podemos parar e levantar a capota - disse para Meg -, e prosseguirmos para Lauderdale. Por outro lado, podemos arriscar a sorte e parar no primeiro restaurante que tenha abrigo para carros. Qual das duas hipóteses irá ser?
- Escolhe tu - retorquiu.
Decidi continuar, com o Miata sem cobertura e com
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a chuva a cair com mais determinação. Então, em Lighthouse Point, avistei um restaurante Tex-Mex com um pórtico em frente. Parámos debaixo dele mesmo a tempo de evitarmos um Niágara que nos deixaria a flutuar dentro de uma banheira cheia de água.
- Boa escolha - disse Meg. - Adoro chili.
Que mulher maravilhosa! Não fazia a mínima queixa por ter o casaco meio ensopado, ou por o cabelo curto lhe estar colado ao crânio. Corremos para o interior do restaurante, rindo, e nesse momento até nem me preocupava que o Miata desaparecesse a boiar durante a nossa ausência.
Não era a Sala dos Carvalhos do Plaza. Era mais uma Sala de Fórmica, com rosas de papel enfiadas em velhos frascos de azeitonas em cada mesa. Estava cheio, o que considerei como um bom sinal. Descobrimos a última mesa vazia e instalámo-nos. Havia guardanapos de papel numa caixa de aço e os talheres pareciam sobras do exército. Porém, os copos estavam limpos, e havia uma taça com picles, tomate, cogumelos e pimentos jalapenos, para irmos mastigando até chegar o jantar.
A lista, pregada à parede, era um sonho tornado realidade. Estudámos as propostas com gemidos de delícia. Os pratos variavam entre o picante e o incendiário, e pensei cá para mim que teria sido melhor ter envergado uma camisola própria para suar.
O empregado pesadão que se precipitou para nos atender tinha um longo avental branco amarrado debaixo dos braços, para além de um bigode capaz de provocar inveja a Pancho Villa.
- A especialidade da noite - anunciou, orgulhoso são os lombinhos de porco com molho vermelho, servidos com feijões pretos condimentados, numa tortilha com tomate assado e molho de chili. Está muito boa.
- Pouco picante? - perguntei-lhe.
- Está louco? - retorquiu.
Preferimos escolher outras coisas. Meg pôs de parte a
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sua relutância à carne em sangue para encomendar uma entrada de chili de veado intitulado de "pontapé-no-cu". Não estou a inventar, era assim que lhe chamavam. A seguir, pediu uma jambalaia de mariscos à Cajun, num molho crioulo picante com arroz de salsichas e alho.
Quanto a mim, fui por uma entrada de "asas do pântano" (pernas de rã fritas com molho de pimenta), e lombo à Fajita. Na lista, este prato vinha descrito como sendo um bife marinado, grelhado, temperado com uísque e servido com pimentos e cebolas sautée, bem como com um montão de outras coisas boas, todas elas muito inflamáveis. Meg pediu uma coca-cola de dieta e eu uma cerveja Carona.
Estive tentado a acrescentar que nos fornecessem também bombas estomacais para dois, mas não o fiz.
Nem sequer tentarei descrever como consumimos uma refeição tão combustível. Basta dizer que foi acompanhada por faltas de ar, abanadelas, exclamações e muitos goles de coca-cola e de cerveja mexicana. As nossas amígdalas não gritaram o seu protesto, mas o meu estômago começou a brilhar com um calor incandescente, avisando-me que iria ter uma noite de insónias.
Para esta narrativa, teve muito mais importância a nossa conversa dessa noite, pois incluiu pequenas informações que me poderiam ter ajudado na minha investigação... se eu tivesse tido a esperteza de reconhecer as pistas nos comentários casuais de Meg. Todavia, estava demasiado ocupado a devorar pernas de rãs e a engolir a cerveja para lhe prestar uma grande atenção. Acham que S. Holmes alguma vez negligenciou um caso apenas porque Mrs. Hudson lhe levou uma boa costeleta de carneiro?
- Tenho boas notícias - disse Meg, atarefada com o chili. - Encontrei um apartamento. Já tenho as chaves. vou mudar-me amanhã.
- Maravilhoso! - exclamei. - Onde é?
- Em Riviera Beach. É pequeno e só posso dispor dele até Outubro. Como estamos fora da estação, a renda
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é razoável. vou voar de volta à Pensilvânia, emalar mais roupas e coisas, e depois regresso no meu Toyota. Já não preciso de viver à conta da minha irmã.
- Nem de aturar o Harry - acrescentei.
- Essa é a parte melhor - confirmou Meg. - Continuarei a encontrar-me com Laverne, é claro, mas não naquela casa.
Discutimos o seu plano de vir a ser treinadora pessoal dos residentes de Palm Beach que procuram a juventude eterna por meio de dietas e exercícios. Ofereci-me para lhe fornecer uma lista de conhecidos e amigos que poderiam ser clientes potenciais.
- Seria uma grande ajuda, Archy - disse, grata. Laverne já me indicou alguns nomes, mas preciso de mais clientes em perspectiva. Que tal tu mesmo?
Ri-me e repliquei:
- Não sou um desses tipos disciplinados, a grunhirem com os esforços físicos. Tento nadar todos os dias, como te disse, e de vez em quando jogo ténis ou golfe. Admito que não estou em forma, mas os exercícios regulares não são para mim. Sou demasiado preguiçoso, suponho. Admira-me que queiras aceitar homens como clientes. Pensei que limitarias os teus esforços à redução das gorduras femininas.
- Oh, não! Terei muito prazer em treinar homens. Na realidade, Harry Willigan já se ofereceu para ser o meu primeiro cliente... mas não está interessado em melhorar a sua saúde, ou a forma física...
- Ah, não? - perguntei. - O que é que lhe interessa?
Sabia qual era a resposta, que foi precisamente a que esperava.
- Eu - respondeu Meg Trumble.
Naquele momento, chegaram os nossos pratos principais e atirámo-nos a eles.
- Espero que a tua irmã não tenha notado esse interesse por parte do marido.
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- Claro que notou. Confia em mim, mas, lá no fun"; do, irá provavelmente ficar alivivada quando me vir fora! de sua casa. ;
Aquilo divertiu-me.
- Se houvesse alguma coisa entre ti e o Harry, o fac-; to de saíres de casa não a faria terminar. Até a facilitaria, í
- Não há nada entre nós - declarou, irritada -, nem nunca haverá. Já te disse o que penso do homem.
- E eu partilho da mesma opinião - garanti-lhe, -.?, Harry é uma pessoa desagradável. Espanta-me que La-i verne o ature.
- Ora, ela ignora-o tanto quanto pode, e para além disso tem outros interesses. Tem lições de ténis, é muito activa em vários clubes locais e vai a reuniões duas ou três vezes por semana. Mas... deixemos Harry e Laverne. Fizeste progressos na tentativa de encontrar Peachest
- Nem por isso - afirmei. - Não fiz qualquer progresso, excepto quanto a um pormenor estranho que precisa de ser esclarecido.
Pensei que não havia mal em falar-lhe da desaparecida caixa de transporte do gato. Achei que ficaria surpreendida e que chegaria imediatamente à mesma conclusão a que eu chegara: que fora alguém da casa de Willigan que apanhara a gata, a metera na caixa e a levara.
Porém, Meg manteve a cabeça baixa, à procura de camarões dentro do molho, e limitou-se a responder:
- Oh, tenho a certeza que acabará por aparecer em qualquer lado, lá em casa.
Terminámos o jantar com gelados de limão, que ajudaram a diminuir a conflagração estomacal, mas não o suficiente.
- Está tudo bem? - perguntou o empregado do bigode.
- Perfeito - respondi - para quem não se preocupar com uma garganta em carne viva.
Paguei a conta com o cartão de crédito e saímos para o Miata. Levara comigo uma mão-cheia de guardanapos
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de papel, de que me servi para deixar os assentos razoavelmente secos. A chuvada passara, o ar da noite estava a refrescar e até se conseguiam ver algumas estrelas a espreitarem por entre as nuvens.
- Um belo jantar - disse Meg. - Muito obrigada, gostei muito.
- Temos de voltar a jantar ali - respondi. - Talvez lá para o virar do século.
A viagem de regresso a casa foi uma delícia. Cantámos It Ain't Gonna Rain No Mo' e várias outras coisas de colheitas mais recentes. Meg cantava num tom alto, de garganta, e pensei que harmonizávamos na perfeição. Depois, como um idiota, sugeri que cantássemos Always e ela começou outra vez a chorar. Não havia soluços, apenas um choro silencioso.
- Desculpa - disse-lhe.
- A culpa não é tua - murmurou, fungando. São as recordações. Acabarão por passar.
Conseguiu libertar-se daquele breve instante de tristeza e, com uma melhor disposição, começou a descrever o seu novo apartamento. De repente, deteve-se.
- Eh, Archy... Queres ir vê-lo? Não é muito tarde, pois não?
- De modo nenhum - respondi. - Sim, gostaria de o ver.
Precisámos de uma boa hora para chegarmos a Riviera Beach, mas o tempo foi melhorando à medida que avançávamos. Tornou-se doce, com uma ligeira brisa a cheirar a sal, com as palmeiras a murmurarem, e com o mar a fornecer um ambiente de fundo de ondas a sussurrar. No fim de contas, ali tinha a tal noite pura que tanto desejara. Quem me dera poder dizer o mesmo dos meus pensamentos...
Meg tinha agora uma toca própria. Era uma provocação. Ainda mais estimulante era o facto de ser em Riviera Beach, tão distante da rede de espionagem de Connie Garcia quanto seria razoável esperar. A sorte dos McNally parecia manter-se e resolvi não a desperdiçar. É um bem
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demasiado valioso, em particular numa noite voluptuosa e na companhia de uma jovem mulher cujas clavículas me punham louco de desejo...
Menti com habilidade e disse a Meg que o seu apartamento era muito agradável. Na verdade, achei que não tinha qualquer espécie de encanto. Fora obviamente mobilado de propósito para ser alugado, e tudo era utilitário e desenhado para suportar maus tratos. Os quadros, impossíveis de descrever, estavam aparaiusados às paredes, e a louça, nos armários da cozinha, sem portas, era de plástico branco e parecia poder ressaltar no chão se a deixassem cair.
- Claro que ainda está um pouco nu - admitiu Meg. - Precisa de alguns objectos pessoais espalhados por aí. Todavia, o ar condicionado funciona bem e até há uma máquina de lavar louça. Posso aguentar até Outubro. Nessa altura, já devo conseguir uma coisa melhor.
- Tenho a certeza que sim - respondi. - O telefone já está ligado?
- Ainda não. Mando-o ligar quando regressar. Depois de me instalar e encher o frigorífico, espero que venhas jantar comigo.
- Adoraria - declarei. - Será uma inauguração da casa.
Olhou para mim com um ar especulativo.
- Podemos inaugurá-la agora mesmo - disse. Tem uma cama kingsize.
- Formidável, gosto de ser tratado como um rei! Receava que Meg pudesse ser uma amante insonsa. ,
Sabem, uma daquelas esponjosas e moles. Os homens e as mulheres que devotam todas as suas energias aos músculos e à disciplina do não fumar e não beber são, por j vezes, incapazes de outras artes mais suaves e delicadas, como a do amor.
Não precisava de me ter preocupado com Meg Trumble. Em vez de ser insonsa, era bem condimentada, robusta e ousada. Nunca se servia da sua força para dominar,
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mas estive sempre consciente de que essa complacência era voluntária. Por outro lado, as suas reacções aos meus esforços eram tão vigorosas que estou certo que seria capaz de me torcer num 8.
Em geral, considera-se que as comidas picantes funcionam como afrodisíacos, mas não creio que o nosso comportamento dessa noite, em lençóis ásperos como os de um motel, pudessem ser creditados aos efeitos do chili e das pernas de rã. Penso que o fervor de Meg foi em parte inspirado pelo seu desejo de esquecer desgostos passados, e que a minha excitação se alimentou da sua paixão.
Esgotados (temporariamente), olhámos um para o outro com agrado: éramos dois estranhos que acabavam de descobrir que falavam a mesma linguagem.
- E disseste tu que não estavas em forma! - troçou Meg.
- A ti o devo - disse-lhe. - Foi a tua beleza e joie de vime que me fizeram levantar à altura da ocasião. com a tua ajuda, creio que o poderei fazer outra vez.
- É para já - declarou, aproximando-se mais de mim.
Passava um pouco da meia-noite quando abandonámos Riviera Beach e nos dirigimos para casa. Tínhamo-nos demorado no seu apartamento o tempo suficiente para tomarmos um banho juntos, num chuveiro deliciosamente pequeno, servindo-nos de uma lasca de sabão quase tão fina como uma batata frita de pacote. As toalhas em que nos secámos eram tão absorventes como plástico, mas por essa altura já nada poderia diminuir a nossa satisfação.
Parei à entrada da propriedade dos Willigan, gatinhei para fora do carro e dei a volta para abrir a porta a Meg. Estendi a mão para a ajudar.
- Obrigado por uma noite maravilhosa, Miss Trumble - disse-lhe, com uma cara completamente derreada. - O prazer que tive na sua companhia ao jantar só foi ultrapassado pelo prazer da sua hospitalidade.
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- Muito obrigada também, Mr. McNally - respondeu, com um rosto igual ao meu. - Confio em que os nossos caminhos se voltem a cruzar.
- Um acontecimento que será muito desejado - retribuí. Desmanchámo-nos os dois e beijámo-nos. Sem nenhuma pressa.
A ciência define um beijo como sendo a apertada justaposição de dois ou mais músculos orbiculares num estado de contracção. Na verdade, a ciência ainda tem muito para aprender.
Conduzi para casa em êxtase, sabendo que nessa noite não teria insónias ou pesadelos. Foi verdade. Dormi o sono dos justos.
Dos justos exaustos e satisfeitos.
Acordei na manhã seguinte infectado por um caso galopante de joie de vivre. Era óbvio que o contraíra com a minha companheira da noite anterior. Ao pequeno-almoço, a minha mãe comentou o meu bom-humor e quis saber a causa.
- Tiveste um jantar agradável, Archy? - perguntou.
- Muito.
- Connie?
- Não - expliquei. - Margaret Trumble, irmã de Laverne Willigan. Creio que estou apaixonado.
O meu pai emitiu uma única sílaba que se pareceu com um "Humm...!"
Disse-lhe que naquela manhã não iria para o escritório com ele, como às vezes fazia, porque ia ocupar-me com os meus inquéritos discretos.
- Ah? - exclamou. - A gata?
- Não, senhor. A carta dos Gillsworth.
- E o mais importante dos dois - afirmou, acenando. - Tens alguma pista?
- Anoréxica... mas é o que tenho.
O meu pai partiu para o escritório, a minha mãe saiu para a estufa para dar os bons-dias às begónias, e eu subi para o meu covil. Pus o diário em dia, o que não foi demorado, e depois fiz um telefonema.
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- Residência de Lady Cynthia Horowitz - recitou quem me atendeu. - Fala Consuelo Garcia.
- Olá, Connie, é o Archy. Queres almoçar hoje comigo?
- Gostaria - respondeu -, mas não posso. Estou a preparar a festa do Quatro de Julho da madame e tenho de almoçar com o pessoal do fogo-de-artifício.
O seu tom agradável era gratificante. Era claro que não fora informada do meu encontro para o jantar da noite anterior. Uma vez que tínhamos concordado com uma relação aberta, não via motivos para me sentir culpado.
- Então, fica para outra altura - disse-lhe, alegremente.
- Para quando? - perguntou.
Meg Trumble dissera que ia voar de volta para o Rei da Prússia, pelo que esse romance estava suspenso até ao seu regresso. Parecia-me o momento ideal para tranquilizar Connie, fazendo-lhe ver que a nossa ligação permanecia intacta.
- Que tal jantarmos esta noite? - sugeri.
- Combinado. E se fôssemos a um restaurante Tex-Mex? - Por um breve instante, o meu mundo vacilou, mas Connie prosseguiu: - Há um sítio novo em Lantana que dizem que tem um chili estupendo. Experimentamos?
- Acho boa ideia - declarei, com bravura. - vou buscar-te às sete?
- Estarei pronta.
- Ah, Connie, outra coisa. Alguma vez ouviste falar de uma mulher chamada Mrs. Hertha Gloriana?
- A das sessões espíritas? Claro que ouvi falar! Há muita gente a jurar que a mulher é bruxa!
- Por acaso não conheces a morada ou o número do telefone?
- Não, mas penso que vem nas Páginas Amarelas.
- Nas Páginas Amarelas?!
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- Sim, em "Conselheiros Psíquicos". Porque é que te ris?
- Não sei... - respondi. - Parece-me esquisito que haja conselheiros psíquicos listados nas Páginas Amarelas! Quando se tem um tumor, não vamos às Páginas Amarelas procurar um cirurgião cerebral, pois não?
- Sabes, Archy, tens um retorcido senso de humor.
- Suponho que sim - respondi, suspirando. - Obrigado, Connie. Até logo à noite.
Desci ao gabinete do meu pai. Todas as suas listas telefónicas são encadernadas a couro. Exagero? Estou de acordo. No entanto, têm de compreender que o meu pai, tanto quanto eu saiba, é o único homem da Florida do Sul que usa sapatos de borracha quando chove.
Sim, lá estava ela, nas Páginas Amarelas, em "Conselheiros Psíquicos": um anúncio a duas colunas, dizendo que Mrs. Hertha Gloriana tinha uma licença, fora ajuramentada, que fornecia "conselhos e indicações", e que aceitava todos os principais cartões de crédito. Não dizia se era freudiana, junguiana ou fieldsdiana.
Decidi que o encontro pessoal era preferível ao telefonema, pelo que saltei para o Miata e me dirigi para West Palm Beach. Essa cidade tinha sete vezes a população de Palm Beach, e está escrito que se prepara para se libertar da imagem de vizinha pobre para começar a gozar do há muito merecido rejuvenescimento.
A residência de Mrs. Hertha Gloriana era em Clematis Street, numa área agora repleta de novos edifícios de escritórios, boutiques caras e lojas elegantes de todos os tipos. Nunca viria a ser uma Worth Avenue, é claro, mas qual a pode ser?
Imaginara que a casa de uma médium se deveria parecer com um daqueles castelos de Drácula nos desenhos de Charles Addams. Todavia, Mrs. Gloriana tinha um apartamento no terceiro andar de um dos novos edifícios de vidro e aço inoxidável.
O "escritório" era impressionante, com uma grande e
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arejada sala de espera, decorada a cor de malva e azul-claro. Havia um homem sentado por detrás de uma secretária de recepção. Folheava, distraído, um exemplar da Vanity Fair e não olhou para cima quando entrei. Tinha mais ou menos a minha idade e era um tipo moreno e muito bem-encarado, mas com um ar sombrio à sua volta. Vestia-se impecavelmente. Como já devem ter calculado, eu próprio me considero como uma espécie de Beau Brummel, mas aquele fulano fazia com que me parecesse com Bozó, o Palhaço.
Usava um fato de flanela cinzento-claro que não saíra dos expositores do pronto-a-vestir. A camisa tinha punhos franceses e um colarinho suficientemente grande para acomodar uma gravata de seda preta com um nó Windsor. A camisa tinha riscas verticais num tom de alfazema. Que elegância!
Acabou finalmente por olhar para cima.
- Em que posso ajudá-lo, senhor? - perguntou, com um ar suficientemente agradável.
- Posso falar com Mrs. Gloriana, por favor?
- Tem marcação? - inquiriu, com um sorriso.
- Receio que não.
- Mrs. Gloriana prefere marcações. Importa-se de indicar uma data?
- Não há possibilidade de lhe falar agora?
Fez beicinho e pareceu estudar o meu pedido com grande seriedade.
- Neste momento, Mrs. Gloriana está ocupada com um cliente. Pode dizer-me como soube da nossa existência?
Explicar que procurara nas Páginas Amarelas não deveria ser o suficiente para quebrar o gelo. Uma recomendação pessoal seria, provavelmente, muito mais eficaz.
- Mrs. Lydia Gillsworth sugeriu-me que consultasse Mrs. Gloriana.
O homem ficou radiante.
- Mrs. Gillsworth, claro! É uma senhora encantadora.
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Levantou-se e saiu de detrás da secretária. Era alto e delgado como um poste. Reparei que usava um grande anel de prata com uma enorme turquesa de um dispendioso tom azul-celeste.
- Sou Frank Gloriana - declarou. - O marido de Hertha.
Trocámos um aperto de mão. A dele era forte e ossuda.
- Archibald McNally - respondi. - Muito prazer em conhecê-lo.
Ficou a olhar-me por instantes.
- McNally? - repetiu. - Da firma de advogados do outro lado do lago?
- É verdade - retorqui. - McNally & Filho. Eu sou o filho.
- Temos excelentes informações a vosso respeito informou-me, com um sorriso frio. - Na verdade, poderei necessitar de conselhos legais muito em breve, e-a MacNally & Filho encabeça a pequena lista de firmas possíveis que já preparei.
- Teremos todo o gosto em ajudá-lo. Possuímos um certo número de serviços especializados e estou certo de que poderemos fornecer a assistência de que necessitarem.
- Também penso que sim. A sua visita aqui, hoje... diz respeito a algum problema legal da vossa firma?
- Oh, não! - respondi apressadamente. - Nada disso. É uma coisa pessoal, que provavelmente vão achar muito estúpida!
- Pode ser que não. De que se trata?
- Um amigo meu perdeu uma gata - declarei, com toda a franqueza. - Perdeu-a, ou foi-lhe roubada. Adora o animal e quase ficou doente de desgosto. Tem posto anúncios, mas sem resultado. Ocorreu-me que Mrs. Gloriana pudesse dar-nos uma sugestão a respeito do paradeiro do bicho...
- É possível - respondeu o homem imediatamente. - Hertha tem tido êxitos notáveis na visualização do
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local onde se encontram objectos ou pessoas desaparecidas. Não me parece que alguma vez tenha procurado um animal, mas não vejo razões para que não o consiga fazer. Uma vez, ajudou um construtor de Atlanta a descobrir um bulldozer desaparecido.
- Formidável! - comentei. - Onde estava a máquina?
- Na garagem do capataz da obra - declarou o homem com um sorriso sardónico. - Escute, instale-se confortavelmente enquanto vou ver se Hertha ainda demora. Talvez tenha tempo para o receber antes da próxima marcação.
- Ficaria muito grato.
Desapareceu por uma porta interior que fechou cuidadosamente atrás de si. Deixei-me cair num sofá malva e azul, ao lado de uma mesa de tampo de vidro. Havia ali uma colecção de finos livros e de revistas, quase tudo lidando com astrologia, contactos com o Além, cristais, misticismo e filosofias do oculto do Extremo Oriente.
Havia também um monte de folhetos de propaganda que pareciam concebidos para serem enviados pelo correio. Uma pequena tabuleta dizia: LEVE UM. Peguei num deles. Informava que Mrs. Gloriana, conselheira licenciada e autorizada, prepararia um "perfil psíquico" a quem lhe indicasse com exactidão a hora, data e local de nascimento, os nomes dos pais e dos avós, e que enviasse uma fotografia ou um pequeno objecto pessoal.
O custo de cada um desses perfis psíquicos era de cem dólares americanos, pagos adiantadamente.
Guardava no bolso um exemplar daquela intrigante proposta quando Frank Gloriana regressou. Viu imediatamente o que eu estava a fazer.
- E o nosso novo projecto - disse. - Que pensa disso?
- Não faz qualquer promessa - comentei.
- Oh, não - concordou rapidamente. - Nada de promessas. O perfil limita-se a fazer uma análise e a su-
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gerir às pessoas determinados caminhos que talvez enriqueçam as suas vidas. É uma tentativa séria para fornecer conselhos psíquicos. Garanto-lhe que não se trata de nenhuma aldrabice.
- Nem pensei que o fosse - respondi.
- Começámos há pouco - continuou -, e a reacção aos anúncios nos jornais e revistas encorajou-me a planear uma campanha directa pelo correio. Creio que poderá vir a ser um empreendimento de grande êxito, e é por causa disso que pretendo aconselhamento legal para a formação de uma empresa separada. - Fez uma pausa e riu-se. Foi um "Ah! Ah!" agudo e sem tonalidades. No entanto, não veio aqui para escutar os meus problemas comerciais. Hertha está disponível. Siga-me, por favor.
Seguiu à minha frente pela tal porta interior e por um curto corredor, em direcção a uma sala. A porta encontrava-se aberta e pude verificar que o compartimento estava mobilado mais como uma sala particular do que como escritório comercial. Uma mulher jovem - calculei que era pelo menos cinco anos mais nova do que Frank Gloriana - levantou-se de um grande cadeirão de orelhas quando nos viu entrar.
- Querida, este cavalheiro é Archibald McNally. Mr. McNally, apresento-lhe a minha mulher, Hertha. Agora, vou deixá-los sozinhos.
Saiu, fechando a porta com suavidade.
A mulher flutuou na minha direcção e estendeu-me a mão, tão macia e frágil que tive medo de a esmagar na minha vigorosa pata.
- Mrs. Gloriana - disse-lhe -, tenho muito prazer em conhecê-la.
Sempre pensara que as médiuns eram senhoras de idade, de seios e ancas pesadas, com cabelos pintados e encaracolados, várias camadas de maquilhagem, um aspecto desmazelado e a nadar em perfumes enjoativos. Hertha Gloriana era completamente diferente.
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Tinha, sem qualquer espécie de dúvidas, um tipo pré-rafaelita, com um halo de cabelos castanhos, pele branca e macia como cera, e feições tão clássicas que dariam para cunhar uma moeda. Pensei que havia algo de etéreo na sua beleza, e qualquer coisa de delicado e não deste mundo nas suas maneiras. Movia-se devagar, com uma facilidade lânguida, e não me surpreenderia se a visse levitar subitamente em direcção ao tecto. Era uma mulher... insubstancial, compreendem?
- Mr. McNally - murmurou, numa voz baixa e aspirada -, Frank disse-me por que razão aqui veio. Talvez o possa ajudar. Talvez... mas não lho posso prometer. Compreende, não é verdade?
- Claro que sim - respondi, tentando determinar a cor exacta dos olhos da mulher. Azul de pervinca, concluí. - Agradecer-lhe-ia que tentasse.
- Como se chama o gato?
- P caches.
- É uma fêmea?
- Sim.
- De que raça?
- Persa, creio.
- Descreva-a, por favor.
- Gorda. Cinzento-prateada com marcas brancas.
- Que idade tem?
- Não sei - confessei. - Talvez cinco anos.
- É afectuosa?
- Nem por isso, pelo menos para com os estranhos. Fez um aceno de compreensão.
- Por favor - pediu -, deixe o seu telefone e endereço ao meu marido. Contactarei consigo, se vier a conseguir qualquer coisa.
Aparentemente, a consulta terminara, mas a mulher continuava a olhar para mim. Os nossos olhos não se desviavam e a mirada da mulher era tão intensa e sem pestanejar que eu queria olhar para outro lado mas não conseguia.
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Gloriana aproximou-se mais. Tinha um ligeiro perfume a flores. Pousou a mão no meu braço.
- Está preocupado - afirmou.
- A respeito da gata? bom, sim, é verdade. Esse meu amigo está muito...
- Não - interrompeu-me. - Não é por causa da gata. É o senhor, pessoalmente, que está preocupado.
- Nem por isso - retorqui, com uma gargalhada que me soou nervosa. - Não há nada que não possa resolver..
Continuava a olhar para mim.
- Duas mulheres, dois amores - disse. - Estão a preocupá-lo.
Não me deixei impressionar: era algo demasiado parecido com uma leitura da sina, num dia de Carnaval. São muitos os homens - pelo menos entre os que conheço - que se vêem frequentemente envolvidos com mais do que uma mulher. Não é nenhuma raridade, pois não? Mrs. Gloriana não demonstrava nenhum talento especial.
Recuou e sorriu. Foi um sorriso trémulo, muito vulnerável.
- Não se preocupe - declarou. - O problema acabará por ser resolvido.
- Ainda bem - afirmei.
- Mas não por si - acrescentou. - Foi um prazer conhecê-lo, Mr. McNally. Farei o que puder para conseguir uma mensagem sobre a P caches.
- Obrigado - respondi. Virei-me para sair e já me encontrava à porta quando olhei para trás. Não a ouvira mexer-se, mas estava outra vez sentada no cadeirão, olhando-me com gravidade. Tomei uma decisão.
- Mrs. Gloriana - comecei -, Lydia Gillsworth falou-me das reuniões a que comparece, durante as quais a senhora consegue, às vezes, contactar com os que estão...
- Mortos - concluiu Mrs. Gloriana.
- Sim - confirmei. - Perguntava a mim mesmo se
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seria possível assistir a uma dessas reuniões. Acho o conceito... fascinante...
Os olhos da mulher não vacilaram.
- Está bem - declarou, baixinho. - Peça a Lydia para o trazer para a nossa próxima sessão. Ela sabe quando e onde.
- Muito obrigado - repeti, deixando-a sentada, distante e tranquila.
Havia um casal de meia-idade na sala de espera, de mãos dadas. Frank Gloriana estava sentado por detrás da secretária, impassível, sem fazer nada.
- A sua esposa disse-me que me contactaria se me pudesse ajudar - expliquei-lhe, estendendo-lhe um cartão profissional.
- Quer que lhe mandemos a conta para o escritório, Mr. McNally - perguntou, depois de uma olhadela ao cartão.
Era todo eficiente para os negócios, pensei.
- Se fizer favor - concordei. - Obrigado pela vossa ajuda.
Saí para o corredor. Passara por muitas impressões diferentes, que precisava de esclarecer, mas em primeiro lugar tinha outra coisa para fazer.
Quando entrara no escritório, Frank Gloriana deixara-me à espera, dizendo que a médium estava ocupada com um cliente. A seguir, depois de algum tempo, informara-me que se encontrava disponível... mas eu não dera pela saída de nenhum cliente.
Esse facto seria compreensível se o apartamento de Gloriana tivesse outra saída. E frequente os psiquiatras terem esse tipo de instalações, a fim de protegerem a privacidade dos seus pacientes. Seria embaraçoso se entrássemos no gabinete do psiquiatra e déssemos de caras com a esposa, com a amante ou com o patrão que estivessem de saída.
Assim, antes de carregar no botão do elevador, percorri o corredor do terceiro andar em busca de outra en-
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trada para o apartamento de Gloriana. Não havia nenhuma... o que significava que Hertha não estivera ocupada com qualquer cliente quando eu ali chegara.
Havia várias explicações possíveis, todas inocentes. A prevaricação de Frank Gloriana podia não ter significado.
Por outro lado, também podia significar qualquer coisa.
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No regresso ao Edifício McNally, passei pelo escritório de Harry Willigan. Exibia a sua má disposição habitual e perguntei a mim mesmo se teria contraído o mau humor da Peaches, ou se fora a gata que aprendera com ele a ser desagradável.
Exigiu saber que progressos eu fizera na busca do seu amado animal de estimação. Muito poucos, respondi-lhe, mas a minha investigação poderia receber uma boa ajuda se me fornecesse uma fotocópia do pedido de resgate.
- Para que diabo a quer? - gritou.
Expliquei, com toda a minha paciência, que pretendia que a cana fosse analisada por um especialista. O vocabulário e gramática talvez fornecessem alguns dados inteligentes sobre a educação, ocupação, nacionalidade e estatuto social do seu autor. Não era apenas conversa fiada, é claro. Há analistas que conseguem tirar essas informações a partir da linguagem de um documento.
Por fim, Willigan mandou que o recepcionista me fizesse uma fotocópia. Dobrei-a com cuidado e meti-a no bolso do casaco, junta com o folheto de Gloriana. A seguir, fugi dali o mais depressa possível, deixando Willigan a gritar ameaças obscenas, referindo-se aos pescoços que partiria se alguma vez pusesse as mãos nos raptores da gata. Acreditei nele.
De volta ao escritório, encontrei um recado na minha
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secretária, pedindo-me para telefonar a Connie Garcia logo que me fosse possível.
- Archy - exclamou -, é a respeito desta noite. Lady Horowitz quer que eu volte para aqui depois do jantar e reveja com ela o orçamento para a festa do Quatro de Julho.
- Oh... - fiz eu -, isso é mau. Queres adiar o encontro?
- Não - declarou, decidida. - Não te vejo há séculos. Em vez de irmos a Lantana para comer o chili, porque não jantamos qualquer coisa no Clube Pelicano? Depois trazes-me de regresso aqui por volta das oito e meia. Está bem?
- De acordo - respondi, muito aliviado por não ter de incendiar a minha úvula em duas noites consecutivas. - Mas isso quer dizer que, a seguir, não nos poderemos divertir um puco. Fico desapontado...
- Também eu - confessou. - Já lá vai tanto tempo que cada vez que espirro me sai poeira das orelhas...
- Temos de fazer qualquer coisa a esse respeito. Seguiu-se uma longa pausa. A seguir, Connie perguntou, desconfiada:
- Não tens andado agarrado a essa tal Meg Trumble, pois não, Archy?
- A quem?
- Olha, agora estão coisas a sair das tuas orelhas, e não se trata de poeira - retorquiu, com um suspiro. Se descobrir que me estás a enganar, sabes o que te acontece, não sabes?
- Terei de cantar o hino?
- Isso mesmo, meu filho. Até logo!
Desligou e eu deixei-me ficar vários minutos a recordar que o seu temperamento latino não era coisa com que se brincasse. Uma vez, durante a nossa ligação inicial, apanhara-me a jantar com outra jovem dama e despejara-me uma travessa de linguini à bolonhesa em cima da cabeça. Precisei de uma semana de champôs para fazer desaparecer todos aqueles malditos fígados de galinha.
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Estava a jogar um jogo perigoso, reflecti com tristeza, interrogando-me sobre se a resposta poderia ser um voto de celibato. Porém, logo a seguir, lembrei-me da previsão de Hertha Gloriana: o problema seria eventualmente resolvido, mas não por mim. Foi uma recordação bem-vinda. Já tinha suficientes maus hábitos, e não queria adicionar-lhes mais um, o da castidade.
Tirei do bolso o folheto de Gloriana e voltei a lê-lo. A minha mãezinha não teve tanto trabalho a criar-me para eu acabar um idiota, e a minha primeira reacção foi a de que a oferta de perfis psíquicos individualizados era uma aldrabice. Pensei que os Gloriana haviam impresso um perfil-tipo, semelhante aos horóscopos enlatados que se compram nos quiosques, que enviariam a todos os palermas que lhes escrevessem.
Por outro lado, apesar do meu cinismo, era-me difícil acreditar que Gloriana fosse uma vigarista. Frank, o marido, podia muito bem ser um trapaceiro capaz de levar a cabo toda a espécie de negócios escuros... mas não Hertha, não aquela suave e vulnerável donzela. Os seus olhos eram demasiado azuis. Que tal, como exemplo de uma dedução lógica?
Havia uma maneira de testar a bona fides de Hertha e resolvi iniciar a minha miniconjura naquela mesma noite. Estava seguro de que Connie Garcia iria cooperar. Ia achar divertido.
Matutando a respeito dos Gloriana e do seu negócio, aparentemente florescente, compreendi de repente que sabia muito pouco a respeito de parapsicologia. Decidi que estava na altura de aprender mais sobre o que andava a investigar. Telefonei a Lydia Gillsworth. Era quase meio-dia.
- Oh, Archy - disse, depois de uma troca de cordiais cumprimentos -, espero que não estejas a telefonar por causa daquela estúpida carta.
- De maneira nenhuma - respondi, mentindo com todos os dentes. - Este telefonema inclui uma confissão
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e um pedido. Fiquei tão interessado no que me disse sobre Hertha Gloriana, no outro dia, que fui visitá-la esta manhã. Fui um descarado e servi-me do seu nome sem qualquer espécie de vergonha. Espero que não se importe...
- Claro que não! Não é uma mulher notável?
- Sem dúvida... e muito bonita.
- Tem cuidado, Archy - disse Mrs. Gillsworth, rindo-se -, Hertha tem um casamento feliz e Frank anda sempre armado.
- Armado? Para quê? - perguntei, chocado.
- Diz que é apenas uma precaução, porque, por vezes, têm de lidar com pessoas irracionais ou profundamente perturbadas.
- Imagino! - comentei. - Por todo o lado há lunáticos...
- Exactamente. Não te importas que te pergunte porque foste consultar Hertha?
Contei-lhe a história do amigo íntimo cuja gata desaparecera, deixando-o de coração despedaçado, e em como pedira a Mrs. Gloriana para tentar visualizar o paradeiro do bichano. Lydia não pareceu ficar a pensar que se tratara de um estranho pedido.
- Tenho a certeza de que Hertha te poderá ajudar afirmou. - É muito boa a encontrar coisas perdidas. Disse a Laverne Willigan onde poderia encontrar os brincos de pérolas.
Desconfio que, se usasse dentes postiços, me teriam caído da boca naquele preciso momento. Sei que o meu queixo se abriu de repente e que olhei em volta como um louco, para confirmar que o mundo ainda existia.
- E onde estavam os brincos? - inquiri, numa voz rouca.
- Por detrás da gaveta da cómoda. Tinham ficado presos na moldura interior.
- Conheço Mrs. Willigan - afirmei, tão casualmente quanto possível. - O marido é nosso cliente. Laverne frequenta as sessões de Mrs. Gloriana?
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- Oh, sim, não falha nenhuma!
Não quis aprofundar mais aquele assunto.
- Essa é outra parte da minha confissão - disse-Ihe. - Perguntei a Hertha se podia assistir a uma das vossas reuniões. Disse que sim, e que a senhora me poderia levar consigo da próxima vez.
- Sem dúvida - declarou. - Na verdade, há uma hoje, às sete horas.
- Oh, que pena! - exclamei. - Combinei um jantar a que não posso faltar. bom, tratarei de estar presente na próxima reunião, com a sua amável ajuda. Agora, o pedido: gostaria de aprender mais a respeito de espiritualismo e perguntei a mim mesmo se teria livros sobre o tema, que me pudesse emprestar. Garanto a devolução. Estou especialmente intrigado com a possibilidade de contactar aqueles que... hum... já abandonaram esta vida, para existirem num outro plano.
- Ora, Archy, tenho uma biblioteca inteira de livros a esse respeito. Tenho a certeza de que os irás achar fascinantes. Posso escolher três ou quatro, que te darão informações básicas sobre as nossas crenças.
- Ficaria muito agradecido. Quando posso ir buscá-los?
- Deixa-me ver... Tenho de ir fazer unias compras, mas devo estar de volta cerca das duas horas. Podes passar por aqui a essa hora?
- Está combinado... e muito obrigado pela sua ajuda. Dirigi-me a casa, para almoçar, e descobri que tinha a
mansão McNally só para mim. A minha mãe e os Olson haviam partido num safari para reabastecerem a nossa despensa, mas um bilhete deixado em cima da mesa da cozinha informava-me de que me haviam preparado uma salada "César", com muito alho, que se encontrava a arrefecer no frigorífico.
Tomei um copo de chablis da Califórnia a acompanhar a salada, e escolhi morangos frescos para sobremesa. A seguir, trepei para a minha toca, encavalitei os óculos
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de leitura no nariz e coloquei a fotocópia do pedido de resgate ao lado da carta venenosa enviada a Lydia Gillsworth. Comparei os dois papéis com cuidado. Apesar de não ter os olhos de um especialista, pareciam-me terem sido escritos na mesma máquina.
O que era ainda mais esclarecedor era o facto de ambos os documentos incluírem a palavra "horrenda". Não é um adjectivo que seja usado com frequência na comunicação escrita. Não podia deixar de pensar que as duas cartas tinham sido obra da mesma pessoa. Não se tratava de uma prova concreta, admito-o, mas estava cada vez mais convencido de que o rapto da gata e as ameaças contra Mrs. Gillsworth estavam de algum modo ligados.
Comecei a escrevinhar apontamentos no meu diário, a respeito do encontro da manhã com Hertha e Frank Gloriana, mas atirei com a Mont Blanc para um lado porque não me conseguia concentrar.
O que me confundia era o aparente interesse de Laverne pelo espiritismo. Sempre a vira como uma mulher muito física, particularmente interessada em bombons de chocolate, em bronzear a pele e em amontoar bugigangas dispendiosas. Era um choque descobrir que frequentava sessões de espiritismo.
Era óbvio que me enganara a respeito de Laverne. Não se tratava apenas de uma cabeça no ar com um corpo zoftiq. Fiquei a pensar se as minhas opiniões sobre os restantes actores daquele drama não estariam também erradas. Talvez Harry Willigan fosse, por debaixo de todo aquele barulho, um devoto do macramé, e Frank Gloriana um dedicado estudante do alaúde francês. Tudo era possível, concluí com alguma tristeza.
A má disposição desapareceu enquanto guiava para sul, a fim de me encontrar com Lydia Gillsworth. Ali estava uma mulher que não tinha paixões ou culpas ocultas. Estava disposto a jurá-lo. Era uma pessoa completa e sem artifícios.
Estava à minha espera numa sala que era um aquário
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de luz. Comprara vários cestos com flores secas e a sua presença fazia com que a sala parecesse um jardim campestre. Tirava tanto prazer das hortênsias, pimenteiros e damas-entre-verdes que se tornava contagioso. Pedi, e recebi, uma flor rosada para colocar na lapela do meu casaco em tecnicolor.
Tinha três livros prontos para mim, muito bem arrumados num pequeno saco de compras da Saks.
- Archy - disse -, tens de me prometer lê-los devagar e até ao fim.
- Está prometido - respondi.
- A tua primeira reacção - continuou - será de gargalhadas. Dirás para ti mesmo: "Que grande estupidez!" No entanto, se abrires a tua mente e o teu coração a essas ideias, acabarás por te interrogar se o conceito não poderá ser verdadeiro. Tenta fazer essa pergunta a ti mesmo, Archy.
- Assim farei.
- Não deves pensar no espiritismo de uma maneira lógica - afirmou com severidade. - Não é uma filosofia, é uma fé. Por isso, não tentes fazer análises. Deixa que a crença penetre em ti e verás que responde a muitas das perguntas que sempre fizeste.
Mostrava-se tão sincera e franca que fiquei mais impressionado com ela do que com as suas palavras. Mr. Webster define a palavra inglesa nice como significando, entre outras, "bem-educado, virtuoso, respeitável". Lydia era tudo isso, pensei, e senti um grande afecto por ela ao observar os seus esforços para me colocar no bom caminho.
Entre um enilião de outros problemas, um que nunca fui capaz de resolver é o de saber se será ou não possível uma amizade verdadeira entre um homem e uma mulher quando exista uma completa ausência de atracção sexual. Continuo a não ter certezas a esse respeito, mas naquele momento, no meio do ensolarado jardim campestre de Mrs. Gillsworth, escutando a sua voz tranquila e fitando-Ihe os olhos límpidos, senti uma atracção que deveria estar muito perto do puro amor.
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Agradeci-lhe os livros e levantei-me para sair. Lydia aproximou-se e segurou-me pelos ombros. Lançou-me um sorriso com um calor humano inultrapassável.
- "íens de estar preparado, Archy - disse, com um ar quase malicioso. - Esses livros podem mudar a tua vida.
- Qualquer mudança só pode ser para melhor respondi, e ela riu-se e esticou-se para me beijar o rosto.
Voltei para casa a pensar que se tratava de uma mulher maravilhosa. Sentia empatia com o terror que as assustadoras cartas haviam provocado em Roderick Gillsworth. Poderá parecer-lhes estranho, mas naquele momento já considerava as ameaças contra a vida de Lydia como sendo um acto de blasfémia, tal era o meu convencimento da sua bondade.
De volta a casa, pouco mais fiz do que dar uma olhadela aos livros que me emprestara. Li as introduções e dei uma vista de olhos aos títulos dos capítulos, mas depois coloquei-os de lado. Oh, descansem, planeava lê-los de uma ponta à outra, mas sabia que não iria ser fácil.
Fui tomar o meu banho de mar, cumpri a obrigação de estar presente ao cocklail familiar e, às sete horas dessa noite, estava à espera na alameda de acesso à propriedade de Lady Cynthia Horowitz, depois de me ter anunciado à governanta. Dez minutos depois, Consuelo Garcia apareceu a correr, meteu-se no Miata e arrancámos.
Não sei até que ponto serão exigentes os vossos padrões, mas posso garantir a todos, homens ou mulheres, que se um dia conhecerem Connie vão dizer que sou um tolo por andar a lançar olhares libidinosos para outras mulheres. Não é bela, no sentido convencional do termo, mas é certamente atraente e tão cheia de vivacidade que seria capaz de pôr um golem a dançar a gavota.
É um pouco baixa e rechonchuda, mas exibe um bronzeado natural durante todo o ano, e, em geral, deixa o seu cabelo negro e brilhante a flutuar em liberdade. Penso que já mencionei que, uma vez, a vi com um bi-
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quini minúsculo. Garanto-lhes que era mais impressionante do que o monte Rushmoore.
Naquela noite, Connie vestia uma camisa de seda branca e jeans brancas. No alto da cabeça exibia um vistoso chapéu de palha com uma fita cor de cereja. O chapéu já fora meu e continuava a não gostar de ver que lhe ficava melhor do que ficara a mim. Bem vistas as coisas, tinha um ar tão encantador que lamentei mais uma vez a minha pequena traição. Suspeito que devo ter um gene defeituoso.
Fiquei satisfeito ao verificar que o Clube Pelicano não estava, quando lá chegámos, demasiado cheio. Priscilla conseguiu arranjar-nos lugar numa mesa de canto, na área do restaurante.
- E a mesa mais apropriada para pombinhos - disse, mas depois olhou para mim. - Ou deverei dizer uma pombinha e um cuco?
- Que empregada mais faladora! - comentei. Nos nossos dias, é difícil arranjar bom pessoal.
- Tem cuidado, Simon Legree - declarou Priscilla -, ou digo ao meu pai para te envenenar a margarita.
- Nesse caso, quero uma vodca gimlet - afirmei. Connie?
- O mesmo - respondeu. - Pris, o que anda o Leroy a impingir esta noite?
- Savelha com arroz de açafrão e salada de endivas.
Foi o que ambos encomendámos. Depois de nos trazerem as bebidas, não perdi tempo a pôr em prática o meu nefando plano. Entreguei a Connie o folheto de Gloriana, anunciando os perfis psíquicos individualizados. Leu-o rapidamente e depois olhou para mim.
- Uma vigarice? - perguntou.
- Penso que sim. Gostaria de o poder provar e talvez me possas ajudar. Alguma vez conheceste Hertha ou Frank Gloriana?
- Não.
- Achas que poderão ter ouvido falar em ti?
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- Duvido.
- Belo! Eis o que gostaria que fizesses: responde ao anúncio com o teu próprio nome e dando o teu endereço... mas inventa uma mulher completamente falsa. Falsifica a data e o local do nascimento. Inventa nomes de pais e avós. Compra uma bugiganga barata e envia-a, como se fosse um objecto pessoal pertencente a essa mulher não existente. Quero ver que espécie de perfil psíquico receberás para essa pessoa imaginária.
Connie soltou uma gargalhada.
- És um malandro cheio de truques, sabias? Estás convencido de que os Gloriana fornecerão um perfil para uma mulher inventada?
- Por cem dólares... claro que o farão. Aposto contigo. Envia um cheque pessoal juntamente com o pedido e farei com que sejas reembolsada. De acordo?
- Está bem - concordou Connie. - Será divertido. Por que motivo estás com todo este trabalho, Archy?
Já tinha uma história preparada.
- Há um cavalheiro idoso que se deixou viciar na conversa fiada que os Gloriana andam a propagandear. Gasta uma fortuna em sessões espiritas privadas, em falsas demonstrações de telepatia e psicoquinese, e noutras coisas do mesmo género. Os filhos, já adultos, são nossos clientes e estão furiosos, pois receiam que o velho lhes dê cabo da herança. Pensam que os Gloriana são uma fraude e o meu pai pediu-me para investigar.
Connie acreditou em tudo.
- Está bem - concordou -, pedirei um perfil psicológico para uma mulher que não existe. Ah, aí vem a nossa comida. Agora, cala-te e deixa-me comer.
- Sim, senhora - repliquei.
Terminámos o jantar num tempo recorde, passámos pelo bar para uns cálices de Frangelico e a seguir levei Connie à Mansão Horowitz.
- Lamento teres de trabalhar até tão tarde - disse-Ihe. - Para a próxima, aproveitaremos melhor a noite.
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- Espero que sim - respondeu. - Archy, diz-me a verdade. Não me tens andado a enganar?
Evitei uma mentira directa, pois não me agradam. Subterfúgio... é o nome do jogo.
- Connie - expliquei, com um ar muito sério -, para ser honesto, devo confessar-te que a semana passada folheei um Playboy no barbeiro e fiquei com o coração cheio de luxúria.
Connie tentou não se rir mas falhou.
- Certifica-te que só a tens no coração - replicou -, e que essa luxúria não emigra para o Sul. Obrigada pelo jantar, amor.
Deu-me um beijo muito agradável, deslizou do Miata e encaminhou-se para o seu gabinete. Esperei até a ver a salvo no interior e depois segui para casa cantarolando You Knew Susie Like I Know Susie. Na realidade, nunca conheci qualquer mulher chamada Susie, mas nunca se sabe, pois não?
Quando penetrei no caminho de acesso a nossa casa, vi o Bentley cinzento de Roderick Gillsworth estacionado à entrada. As luzes do estúdio do meu pai estavam acesas. Foi ter comigo ao vestíbulo quando me ouviu-entrar.
- Archy - disse -, Gillsworth acabou de chegar, com más notícias. Por favor, faz-nos companhia.
O poeta estava enfiado num cadeirão de couro, mordendo a unha de um polegar. O patrão instalou-se por detrás da sua enorme secretária e eu puxei por uma cadeira de costas direitas.
- Hoje... chegou outra carta - declarou o meu pai com ar sombrio, fazendo um gesto na direcção da folha de papel que jazia no tampo da secretária. - Ainda é mais desprezível do que as outras... e mais assustadora.
Quase não escutei os seus comentários finais. Pensava na frase "Hoje... chegou outra carta" e perguntava a mim mesmo porque fora que Lydia Gillsworth não a mencionara. Ou então... talvez o tivesse feito. Recordava-me que, durante a conversa telefónica, me dissera: "Espero
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que não seja por causa da estúpida carta que recebi." Partira do princípio de que se referia à carta anterior e não a uma nova.
- Então, Archy? - disse o meu pai, impaciente, e só então compreendi que me perguntara qualquer coisa que eu não ouvira.
- Peço desculpa - disse-lhe. - Importa-se de repetir a pergunta?
Fitou-me, obviamente entristecido por ter criado um tão grande imbecil.
- Perguntei-te se fizeste alguns progressos para a identificação do autor destas porcarias.
- Não, senhor - respondi, sem acrescentar mais nada.
Gillsworth soltou um gemido.
- Que vamos nós fazer? - inquiriu, com a última palavra a erguer-se num guincho.
Nunca vira o homem tão perturbado. Para além de roer as unhas, pestanejava com fúria e parecia incapaz de controlar um curioso tremor nos queixos. Era como se mastigasse muito depressa.
- Mr. Gillsworth - intervim -, acho que deve chamar a Polícia. Se a sua mulher continuar a proibi-lo, então deve contratar guardas de segurança privados para a protegerem vinte e quatro horas por dia. Será dispendioso, mas considero-o necessário até encontrarmos o autor das ameaças.
O senhor da mansão mergulhou num dos seus semitranses, o que significava que pensava e repensava na minha proposta, examinando os prós e os contras e considerando todas as opções.
- Sim - declarou, finalmente. - Creio que será o mais sensato, Mr. Gillsworth. No passado, já lidámos várias vezes com um serviço de segurança que fornece guardas pessoais, e sempre considerámos que possuem gente de confiança. Tenho a sua autorização para contratar guardas para a sua esposa vinte e quatro horas por dia?
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- Oh, meu Deus, sem dúvida! - gritou Gillsworth, com os braços magrizelas e agitarem-se no ar. - É isso mesmo! Porque foi que não me lembrei?
- Onde se encontra Mrs. Gillsworth neste momento? - perguntei.
- Foi a uma sessão espírita - respondeu -, mas já deve estar em casa. Posso servir-me do vosso telefone?
- Claro que sim - declarou o meu pai. Gillsworth levantou-se, avançou, um pouco trémulo,
para o telefone da secretária e marcou um número. Mantinha o auscultador muito apertado de encontro à cabeça. Enquanto esperava, notei que o homem estava a suar. Tinha o rosto brilhante de humidade e havia até uma gota de suor pendente no seu nariz de pássaro. Pobre diabo, pensei. Compreendia muito bem o que o homem estava a passar.
Por fim, desligou.
- Não está em casa - afirmou, com uma voz vazia.
- Não é motivo para alarme - disse o meu pai. Pode ter ficado mais uns minutos nessa reunião. Conduzia o seu próprio carro?
- Sim - declarou o poeta. - Um Caprice. Não percebo porque é que não está em casa. É raro atrasar-se.
- Pode ter tido problemas com o trânsito. Tente outra vez daqui a cinco ou dez minutos. Entretanto, sugiro que tomemos um brande. Archy, fazes as honras?
Foi uma missão muito bem-vinda. Na verdade, deixara-me contagiar pelo medo de Gillsworth e precisava de um pouco de coragem engarrafada. Dirigi-me ao armário de tampo de mármore e despejei três doses generosas para os balões. Servi o poeta e o meu pai.
Gillsworth engoliu metade da bebida de uma só vez e ofegou.
- Sim... - disse -, isto ajuda. Obrigado.
- Pai - comecei -, quando falar ao serviço de segurança a respeito dos guardas pessoais, penso que seria mais sensato pedir que sejam elementos femininos. Creio
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que Mrs. Gillsworth estará mais inclinada a aceitar a presença constante de mulheres.
- Sim, sim! - exclamou Gillsworth, animado pelo brande e agitando mais uma vez os braços. - Tem razão! É uma boa ideia!
O McNally mais velho confirmou com um aceno.
- Bem pensado, Archy - disse, e achei que tinha sido perdoado pela minha anterior falta de atenção. Mr. Gillsworth, tem alguma objecção a que essas guardas se mudem para sua casa? Temporariamente, é claro.
- Nenhuma - afirmou o poeta. - Temos quartos suficientes. Receberei com o maior prazer qualquer pessoa que vigie Lydia nos momentos em que não estou presente. Posso servir-me do telefone outra vez?
- com certeza - respondeu o pai.
Ligou e um momento depois verifiquei que todo o corpo se lhe descontraía e que até conseguia sorrir.
- Já chegaste, Lydia - declarou, aliviado. - Sã e salva? bom. Fechaste as portas e as janelas? Ainda bem. Estou em casa dos McNally, querida, e devo estar de volta dentro de cerca de quinze minutos. Até já.
Desligou e esfregou as palmas das mãos com força.
- Está tudo bem - afirmou. - Ficarei junto dela até chegar o pessoal da segurança. Quando pensam que poderá ser?
- Provavelmente, logo ao princípio da manhã - disse-lhe o meu pai. - Chamarei o supervisor da noite, que porá as coisas em andamento. Pedirei que enviem uma guarda o mais cedo possível. Está bem assim?
- Perfeitamente - concordou Gillsworth, terminando o brande. - Já me sinto muito melhor. vou dizer a Lydia que insisto em que a vigilância se mantenha até este assunto horrível ter sido esclarecido. Obrigado pela sua ajuda, Mr. McNally... e a ti também, Archy. É melhor ir andando.
- vou acompanhá-lo ao carro - disse o meu pai. Por favor, espera por mim, Archy.
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Saiu com o cliente e eu servi-me rapidamente de um pouco mais de brande. Só umas gotas.
O meu pai regressou e voltou a instalar-se no trono.
- Os guardas pessoais foram uma excelente ideia, Archy. Espero que Mrs. Gillsworth não as recuse.
- Não creio, pai - respondi -, especialmente se lhe explicarem que a sua presença não será tornada pública. Mesmo assim, continuo a pensar que a Polícia deveria ser informada das cartas. É evidente que não podem fornecer uma segurança de vinte e quatro horas, mas podem tentar localizar a origem do papel de carta e identificar o tipo de máquina em que foi impressa.
O meu pai olhou-me com firmeza.
- Então, estás a dizer a verdade? Não fizeste qualquer progresso?
- Não é inteiramente verdade - admiti -, mas o que tenho é tão pouco que não valia a pena mencioná-lo na presença de Gillsworth.
Falei-lhe então de Hertha e Frank Gloriana, que podiam ser ou não ser uma fraude, e de como Lydia frequentava as suas sessões espíritas. Não o informei da ligação entre Laverne Willigan e os Gloriana, nem mencionei a' minha crença de que as cartas venenosas e o pedido de resgate pela Peaches tinham sido feitos pelo mesmo processador de texto e pela mesma pessoa.
Porque foi que não disse essas coisas ao meu pai? Porque eram pouco consistentes, apenas vagas hipóteses que só para mim faziam algum sentido. Para além disso, tenho de admitir que não queria comunicar ao pater tudo o que sabia, porque ele era muito mais sábio, sensato, e intelectualmente superior. "Sei uma coisa que tu não sabes" era o que se encontrava implícito nas minhas reticências. Uma infantilidade? Sem dúvida!
Olhou para mim com um rosto um pouco espantado.
- Pensas que os Gloriana são responsáveis pelas cartas ameaçadoras?
- Não sei, mas Mrs. Gillsworth não me deu outros
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nomes. Aparentemente, está convencida de que ninguém, no seu círculo social (entre familiares amigos e conhecidos) seria capaz de fazer uma coisa destas. Por isso, Hertha Gloriana é a minha única pista.
- Não é grande coisa - declarou.
- Pois não - concordei... - mas dizem que o médium é a mensagem...
Esboçou um sorriso amargo.
- bom, continua - ordenou -, e mantém-me informado. Agora, tenho de telefonar para os serviços de segurança...
Nesse preciso momento, o telefone começou a tocar. O meu pai interrompeu o que ia dizer e ficou a olhar para o aparelho.
- Quem poderá ser, a esta hora? - perguntou, atendendo.
- Prescott McNally - declarou para o microfone. Depois exclamou: - Como?! O quê? Oh, meu Deus! Sim, sim, claro! Vamos imediatamente.
Desligou lentamente e virou-se para mim com um rosto muito pálido.
- Lydia Gillsworth está morta - disse. - Foi assassinada.
Não choro com frequência, mas foi isso o que me aconteceu naquela noite.
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Viemos a saber, mais tarde, que Roderick Gillsworth ligara para o 115 antes de telefonar para o meu pai. Quando chegámos a casa do poeta, a Polícia já lá se encontrava e não nos permitiu a entrada. Fiquei satisfeito ao ver que o sargento Al Rogoff era o oficial mais graduado entre os polícias presentes e que, aparentemente, era ele o responsável pela investigação.
O meu pai e eu ficámos sentados no Lexus e aguardámos tão pacientemente quanto possível. Não creio que tenhamos trocado mais de uma dúzia de palavras, pois estávamos ambos petrificados com aquela tragédia. O meu pai tinha o rosto fechado e eu olhava, sem ver, para o céu estrelado, e esperava que Lydia Gillsworth tivesse passado para um plano superior de existência.
Finalmente, perto da meia-noite, Rogoff saiu da casa e aproximou-se do carro. Al fingia que era um homem da velha cepa, porque pensava que isso lhe daria mais hipótese de carreira. Todavia, eu sabia que se tratava de um intelectual e de um apaixonado pelo ballet. Os outros polícias da Florida gostavam de discutir os métodos de Fred Bunty... mas o sargento preferia conversar sobre a técnica de Rudolf Nureyev.
- Mr. McNally - disse, dirigindo-se ao meu pai -, vamos gravar uma declaração voluntária da parte de Roderick Gillsworth. Ele gostaria que o senhor estivesse
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presente, e eu também, para termos a certeza de que tudo é feito como deve ser.
- Sem dúvida - disse o meu pai, saindo do carro. Obrigado por o ter sugerido.
- Al - comecei...
- Tu ficas aqui, Archy - ordenou o sargento, com a sua voz oficial. - Já temos uma verdadeira multidão lá dentro.
- Tenho uma coisa importante para te dizer - acrescentei, desesperado.
- Fica para depois - retorquiu, e ele e o meu pai afastaram-se para a casa de Gillsworth.
Fiquei sentado, sozinho, durante mais uma hora, observando os polícias e os técnicos de uma viatura dos bombeiros a revistarem o terreno com lanternas e grandes projectores. Por fim, Rogoff saiu da casa sozinho e parou junto da minha janela, retirando o invólucro de um dos seus grandes charutos.
- O teu pai - comunicou-me - vai cá passar a noite com o Gillsworth. Disse para levares o carro e ires-te embora. Telefonará quando quiser que o venham buscar.
Fiquei chocado.
- Quer dizer que Gillsworth quer passar a noite nesta casa?! Podemos recebê-lo na nossa, ou pode ir para um hotel...
- O teu pai sugeriu-o, mas Gillsworth diz que quer ficar aqui. Por mim, estou de acordo. Deixarei cá dois homens.
Ficámos em silêncio, vendo a maca a ser empurrada para fora da casa. O corpo estava coberto com um lençol de borracha negra. A maca deslizou para a traseira de uma ambulância da Polícia e as portas bateram. O veículo avançou lentamente, com as sirenas a começarem a gemer.
- Al - disse eu, fazendo o possível por ter uma voz firme -, como foi que a mataram?
- Bateram-lhe repetidamente na cabeça com uma bengala. Tinha um pesado punho em prata e perfurou-Ihe o crânio.
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- Não me digas que tinha a forma de um unicórnio!
- Como é que sabes? - perguntou, mirando-me.
- Ela mostrou-ma. Comprou-a no Norte, para a dar de presente ao marido, que colecciona bengalas antigas.
- Sim, eu vi a colecção. Era isso o que me querias dizer?
- Não, era outra coisa. Lembras-te de te ter interrogado sobre cartas malévolas? Lydia Gillsworth era a pessoa que as estava a receber.
- Grande sacana! - exclamou o sargento, com amargura. - Porque não me disseste?
- Porque ela se recusou a que informássemos a Polícia. Mesmo que to tivesse dito, a Polícia iria fornecer-lhe protecção vinte e quatro horas por dia?
- É provável que não - admitiu. - Onde estão essas cartas?
- Em minha casa.
- Que tal se me levasses lá e mas entregasses? Depois podes trazer-me aqui outra vez. Está bem? Não estavas a pensar ir cedo para a cama, pois não?
- Não esta noite. Vamos.
Conduzi com Al sentado a meu lado, mordendo o charuto.
- Diz-me o que se passou - pedi-lhe.
- Não há muito para contar - respondeu. - Gillsworth esteve em vossa casa, falou com a mulher pelo telefone, disse-lhe que estaria de volta em breve. Afirma que foi directamente para casa, e que encontrou a porta aberta, apesar de ela lhe ter dito que todas as portas e janelas estavam fechadas. Encontrou-a caída de barriga para baixo, na sala. Havia sinais de uma luta violenta... e salpicos de sangue por todo o lado. Encontrei cestos de flores caídos pelo chão e um relógio antigo deitado abaixo. Parou cerca de dez minutos antes da chegada de Gillsworth.
- Meu Deus! - exclamei. - O homem por pouco não entrava no momento do crime!
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- Hum, hum...
- Viu alguém, quando chegou a casa?
- Diz que não.
- Roubaram alguma coisa?
- Não, aparentemente. Gillsworth não deu por falta de nada.
- Que tal se tem comportado?
- Mal. Está a fazer o possível por se mostrar corajoso, mas não o consegue.
- Era uma mulher encantadora, Al.
- Pois agora já não o é - declarou Al com a voz sem tonalidades que utilizava quando queria esconder as emoções.
Quando entrámos em casa, a minha mãe esperava-nos no vestíbulo. Usava uma camisa de dormir por debaixo de um velho roupão de flanela e tinha os pés enfiados em fofas chinelas cor-de-rosa. Deu uma olhadela ao sargento Rogoff, de uniforme, e pousou uma das mãos na parede para se firmar.
- Archy - perguntou -, que se passa? Onde está o teu pai? Aconteceu-lhe alguma coisa?
- O pai está bem - respondi. - Ficou em casa de Gillsworth. Mãe, lamento dizer-te que Lydia Gillsworth morreu.
Fechou os olhos e oscilou. Aproximei-me para a segurar pelo braço.
- Um acidente de automóvel? - inquiriu, em voz baixa.
Não respondi à pergunta. Seria melhor que só recebesse um choque de cada vez.
- O pai vai passar a noite com Gillsworth - expliquei-lhe. - Vim aqui com o sargento para lhe entregar uns papéis.
Não reagiu. Continuava com os olhos fechados e sentia-a tremer debaixo da minha mão.
- Mãe - continuei -, foi uma noite muito má e o sargento e eu apreciaríamos uma boa chávena de café. Podes fazê-lo?
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Tinha a esperança de que se sentisse melhor se tivesse alguma coisa para fazer. Assim foi. Abriu os olhos e endireitou-se.
- com certeza - afirmou. - vou pôr a cafeteira ao lume. Quer uma sanduíche, sargento?
- Não, muito obrigado, minha senhora - disse Al com delicadeza. - Um café será o suficiente.
Precipitou-se para a cozinha e eu conduzi Rogoff ao gabinete de meu pai. A carta continuava em cima da secretária.
- Aqui a tens. Os Gillsworth mexeram-lhe, mas eu e o meu pai não lhe tocámos. Talvez consigas algumas impressões utilizáveis.
- Duvido muito - resmungou Al, sentando-se atrás da secretária e inclinando-se para a frente, para ler a carta.
- Essa foi a terceira carta recebida - expliquei. A primeira foi destruída por Gillsworth. A segunda está lá em cima, no meu quarto. vou buscá-la.
Regressei instantes depois, com a segunda carta, ainda metida no sobrescrito castanho. Não levei comigo a fotocópia do pedido de resgate pela Peaches. Willigan gritara-nos: "Nada de polícia!", e era ele quem pagava a conta... à hora.
Rogoff acendera o charuto e estava recostado na cadeira do meu pai. Leu a segunda carta e atirou o sobrescrito castanho para cima da secretária,
- Que coisa mais feia... - comentou.
- Um louco? - sugeri.
- Pode ser - respondeu. - Mas também pode ter sido escrita por alguém que nos queira levar a pensar isso.
- Que vais fazer com as cartas?
- vou enviá-las para o laboratório do FBI, para tentarmos saber a marca da máquina utilizada, qual a tinta, e assim por diante. Eles que vejam se têm cartas semelhantes nos seus arquivos.
- As margens direitas estão justificadas - salientei.
- Ah, também deste por isso? Foram escritas num
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processador de texto ou numa máquina de escrever electrónica. Veremos. Então, aquele café?
Quando entrámos na cozinha, a minha mãe enchia as chávenas e, além disso, fora buscar um prato com os bolinhos de chocolate de Ursi Olson. Abençoada ideia!
- O café é instantâneo - disse para Rogoff, algo ansiosa. - Não faz mal?
- É o único que bebo - respondeu o sargento, sorrindo-lhe. - Muito obrigado por todo este incómodo, Mrs. McNally.
- Não foi nenhum incómodo - garantiu-lhe. - Agora, vou deixá-los sozinhos.
Sentámo-nos na frente um do outro, na mesa da cozinha, debruçados sobre o café e mordiscando os bolinhos.
- Suspeitas do marido, não é, Al? - perguntei. O sargento encolheu os ombros.
- Tenho de suspeitar, Archy. Setenta e cinco por cento dos crimes são cometidos por um esposo, um parente, um amigo ou familiar. Estes bolinhos são óptimos!
- Estava viva quando ele saiu daqui, Al - recordei-Ihe. - Falou com ela pelo telefone. Pensas que a matou quando chegou a casa?
- Não parece provável, pois não? - acrescentou, devagar. - Todavia, o que na verdade o ajuda é o facto de não ter manchas de sangue nas roupas. Já te disse que a casa se parecia com um matadouro? Havia sangue por todo o lado. O assassino teve de ficar salpicado. Que roupas usava Gillsworth quando saiu daqui?
- Um casaco desportivo de linho - respondi, depois de pensar um bocado -, uma camisa azul e umas calças de flanela cinzento-claras.
- Sim, era o que tinha vestido quando lá chegámos confirmou Rogoff, com um aceno. - Parecia fresco como uma flor... Refiro-me às roupas, que não tinham uma única mancha. De certeza que não teve tempo de se vestir com roupas iguais. Além disso, revistámos toda a casa. Não havia roupas sujas de sangue em lado nenhum.
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Bebericámos os cafés e comemos mais bolinhos. O sargento voltou a acender o velho charuto.
- Quer dizer que Gillsworth está livre de suspeitas? perguntei.
- Não disse isso. Sim, provavelmente está, mas primeiro temos de confirmar os tempos. Há muita coisa a depender disso. De quanto tempo precisou para ir daqui para sua casa? Há quanto tempo saíra a mulher da sessão espírita? De quanto precisou para chegar a casa? A que horas chegou? Estaria alguém à sua espera? Há muita coisa que não sei. Depois de esclarecer tudo isso, talvez Gillsworth fique livre de suspeitas. De momento, só o temos a ele.
Mirei-o com atenção.
- Al, estás a esconder-me alguma coisa?
- Achas-me capaz disso?
- Claro que acho - retorqui. - Escuta, sei que o caso é teu. És tu quem usa o distintivo, és tu a lei. Podes mandar-me dar uma volta. Tens esse direito. Todavia, aviso-te, neste preciso instante, que não o farei. Aquela mulher significava muito para mim. Portanto, digas o que disseres, vou continuar a bisbilhotar.
Al lançou-me um olhar estranho.
- De acordo - declarou. - Investiga à vontade... mas mantém-me informado... está bem?
Terminámos os cafés e fomos ao estúdio, onde Rogoff guardou as cartas no bolso. Quando saímos para o vestíbulo, a minha mãe esperava-nos, com um pequeno saco na mão.
- Meti aqui o pijama do teu pai, o roupão, as chinelas... - disse. - Também aí estão as coisas de barbear e uma camisa lavada para amanhã de manhã.
Nunca deixo de me surpreender ao verificar até que ponto as mulheres podem ser práticas, mesmo quando estão sob tensão. Aposto que quando veio o dilúvio e Noé conduzia toda a bicharada para dentro da arca, a senhora Noé lhe puxou pela manga e perguntou: "Lem-
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braste-te de despejar o reservatório da água, por baixo da caixa do gelo?"
Rogoff pegou no pequeno saco e prometeu entregá-lo ao meu pai. Daquela vez, levei-o no Miata descapotável. Depois de inalar o fumo do charuto de Al, queria respirar ar fresco, montes dele.
Não falámos durante a viagem de regresso a casa de Gillsworth. Quando chegámos e o sargento desceu, ficou parado por momentos.
- Archy, sei que Roderick Gillsworth era cliente do teu pai. E Mrs. Gillsworth?
- Também.
- Ouvi dizer que ela tinha muito dinheiro. Foi o teu pai quem redigiu o testamento?
- Não sei, Al. E provável.
- Quem vai herdar?
- Não faço ideia. Pergunta ao meu pai.
Conduzi de volta, pela última vez nessa noite, ao domínio dos McNally. Receava vir a ter problemas para adormecer, mas não tive. Antes, contudo, recitei uma breve oração por uma nobre senhora. Considero-me um agnóstico... mas nunca se sabe, pois não?
O fim-de-semana começara mal e não melhorou. O tempo não ajudou. A manhã de sábado foi sombria e pesada... tal como eu me senti quando acordei. Tomei um sumo de laranja, um café e um pão doce ao pequeno-almoço, na companhia de Jamie Olson, na cozinha. Estava a colocar um novo adesivo em volta do pipo partido do seu velho cachimbo. No Natal, oferecera-lhe um Dupont com uma anilha em ouro, mas guardava-o para fumar aos domingos.
- Ouvi o que aconteceu a Mrs. Gillsworth - disse, em voz baixa. - Foi uma pena.
- Sim - confirmei. - Já veio nos jornais?
- Hum, hum... e na televisão.
- Jamie, se ouvires alguma coisa a respeito de possíveis inimigos que ela pudesse ter, ou sobre uma discussão com alguém, gostaria que mo dissesses.
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- Está bem - respondeu. - Queria saber coisas de Mrs. Willigan?
- É verdade. Que descobriste?
- Tem um tipo.
- Ah? - fiz eu, tomando um gole do café. - Onde foi que ouviste isso?
- Por aí.
- Sabes quem ele é?
- Não. Ninguém sabe.
- Então, como sabem que tem um tipo? Levantou os olhos para mim.
- As mulheres sabem - disse, acrescentando, com toda a sabedoria: - Elas sabem sempre.
- Pois é... - murmurei, suspirando.
Voltei para cima para trabalhar no meu diário. Aquela foi uma manhã lenta e sombria, e não conseguia engrenar. Estava preso no ponto-morto e só conseguia pensar em limonada rosada e em flores secas em cestos de verga. Não era a primeira vez que me morria um amigo, mas tal nunca acontecera de um modo tão súbito e violento. Dava-me vontade de telefonar a todos os meus amigos para lhes dizer "Amo-te". Sabia que era estúpido, mas era assim que me sentia.
O telefone tocou por volta das dez e meia e pensei que fosse o meu pai, pedindo-me para o ir buscar. Era Leon Medallion, o empregado dos Willigan.
- Olá, Mr. McNally - declarou alegremente. - Que tempo, hem?
- E verdade - respondi. - Que há de novo?
- Lembra-se de me ter perguntado pela caixa do gato? Pois bem, encontrei-a. Estava no quarto das arrumações, onde deveria estar. Não a devo ter visto quando a procurei pela primeira vez.
- Sim, foi provavelmente o que aconteceu - afirmei. - Obrigado por ter telefonado, Leon.
Desliguei e o meu velho cérebro resolveu engrenar. Não acreditava, nem por um instante, que Medallion não
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tivesse visto a caixa durante a sua primeira revista ao quarto das arrumações. Na altura, não estava lá... e agora fora devolvida. Era intrigante. Outro facto ainda mais intrigante era o de que eu mencionara o desaparecimento a Meg Trumble.
Estava ainda entretido com aquilo quando o telefone voltou a tocar. Dessa vez era o meu pai, anunciando que se encontrava pronto para voltar para casa. Pediu, especificamente, que levasse o Lexus. Não precisava de mo ter dito. Sabia muito bem que ele não gostava de andar no meu dois lugares vermelho, uma vez que isso lhe dava uma dentada na dignidade.
Estava à minha espera no exterior quando cheguei a casa de Gillsworth. Colocou o saco no banco traseiro e fez-me sinal para me mudar para o banco do passageiro para que ele se pudesse instalar ao volante. Pensa que guio demasiado depressa. Não admira, é uma pessoa que acha que as cadeiras de rodas andam demasiado depressa.
- vou deixar-te em casa, Archy - declarou -, e depois sigo para o escritório. Gillsworth quer que eu informe os familiares da mulher.
- Não devia ser ele a fazê-lo?
- Devia, mas ainda está muito abalado e pediu-me para tratar do assunto. Não é uma tarefa agradável. Por outro lado, também quero rever o testamento de Lydia.
- O sargento Rogoff falou-lhe a esse respeito?
- Falou, e Gillsworth não levantou objecções a que o conteúdo do testamento seja revelado. Se bem me lembro, Lydia faz várias doações específicas a sobrinhas, primos, uma tia e à sua universidade. Porém, a maior parte dos bens vão para o marido.
- É uma herança gorda? - perguntei.
- Bastante - declarou. - Informei o sargento a esse respeito e ele pediu-me os nomes e moradas dos beneficiários. É um homem muito cuidadoso.
- Sim - concordei -, leva as coisas a sério. Quer que eu continue a minha investigação a respeito das cartas.
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- Já mo disse. Também eu quero que o faças, Archy. Lydia era uma boa pessoa e não desejo que o crime fique por solucionar e o criminoso por punir.
- Nem eu, pai. Sabe onde está Rogoff neste momento?
- Foi a casa de Gillsworth hoje de manhã. Conduzia uma carrinha e pediu autorização a Roderick para levar o relógio de sala.
- Aquele que foi derrubado durante a luta?
- Sim.
- Para que o quer?
- Não disse. bom, chegámos. Por favor, leva o meu saco para dentro e diz à mãe que estarei no escritório. Telefono-lhe mais tarde.
Segui as suas instruções, mas depois dirigi-me ao estúdio para telefonar a Gloriana. Não tinha a certeza de os médiuns trabalharem ao sábado, mas Frank Gloriana atendeu e eu identifiquei-me.
- Ah, sim, Mr. McNally - disse. - A respeito da gata desaparecida... estava a pensar contactar consigo na segunda-feira.
- Então, tem novidades para mim?
- A minha mulher tem novidades - corrigiu-me. Quando poderá passar por aqui?
- Agora - retorqui -, se estiver de acordo.
- Deixe-me verificar o livro das marcações - murmurou, com um tom tão delicado que fiquei convencido que estava mais uma vez a enganar-me. - Olhe, vejo que vamos ter uma tarde muito atarefada pela nossa frente, mas se vier nesta próxima hora, tenho a certeza de que poderá ser atendido.
- Muito obrigado - retorqui, entrando no jogo. vou imediatamente.
A minha mãe queria que eu ficasse para o almoço, mas não me sentia com apetite. Por outro lado, verificara que os cós das minhas calças estavam a encolher de um modo alarmante. Por isso, subi ao meu quarto e vesti um
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casaco de camurça cinzento-prateado por cima da camisola violeta. Depois saí e saltei para o Miata para a deslocação até West Palm Beach.
Como já antes disse, sou um tipo com uma predisposição para a alegria. A nuvem negra que pairara sobre a minha cabeça desde que soubera da morte de Lydia Gillsworth começava a dissipar-se à medida que avançava para oeste. Isso não queria dizer que deixasse de estar desgostoso, ou que estivesse menos decidido a vingá-la. Todavia, o mundo continua a girar e temos de continuar a girar com ele ou então desembarcar. Ainda não me sentia pronto para desembarcar.
Na realidade, não telefonara aos Gloriana para inquirir a respeito da Peaches. O destino do miserável felino era de somenos quando comparado com a descoberta do assassino de Lydia Gillsworth. No entanto, a gata desaparecida era uma boa desculpa para voltar a falar com a médium. Não só queria saber mais a respeito da sua relação com Lydia, como também me sentia fascinado pela própria mulher.
Quando entrei no apartamento de Gloriana não vi o amontoado de clientes que Frank previra durante a nossa conversa telefónica. De facto, o homem estava sozinho no escritório malva e azul, folheando as páginas de uma revista e parecendo mais do que aborrecido. Olhou para cima quando entrei, pôs a revista de lado e levantou-se para me cumprimentar.
Usava um fato Armani, de paletó, num tecido de gabardina cinzento-acastanhado, e exibia uma gravata com cores regimentais. Por acaso, tinhas as cores do Royal Glasgow Yeomanry, um regimento a que duvidava que o homem tivesse pertencido. Trocámos um aperto de mão e ergueu depois a mesma mão para apalpar a manga do meu casaco de camurça.
- Magnífico - comentou. - Importa-se de me dizer quanto lhe custou?
Fiquei imediatamente a saber que não era um cavalheiro.
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- Não sei - respondi. - Foi um presente. - Suponho que adivinhou que estava a mentir, mas não me importei.
Fez um aceno e regressou à sua secretária.
- vou dizer a Hertha que está aqui - declarou, mas deteve-se, com a mão pousada no telefone. - Soubemos o que aconteceu a Lydia Gillsworth - acrescentou. Que coisa terrível...
- Sim, é verdade...
Carregou num botão, falou baixinho para o bocal e desligou.
- Está pronta para o receber - comunicou-me. Por aqui, por favor.
Conduziu-me mais uma vez ao longo do corredor, para a sala da mulher. Havia duas outras portas naquele corredor, sem quaisquer indicações, pelo que não fazia ideia do que se encontraria para lá delas. Frank Gloriana introduziu-me no santuário da médium e retirou-se.
Hertha estava de pé ao lado do seu grande cadeirão. Quando a porta se fechou, aproximou-se a flutuar para colocar as mãos nos meus ombros. Maravilhei-me com as suas pequenas dimensões. Era na verdade uma aparição pequena e com um ar aparentemente frágil.
- Lydia passou para o outro lado - declarou, numa voz abafada -, e você sente-se desolado.
- Sim, foi um choque - concordei. - Ainda me custa a acreditar.
Acenou, conduziu-me para o seu cadeirão e insistiu em que me sentasse nele. Ficou de pé na minha frente. Pensei que se tratava de uma posição desajeitada para uma conversa, mas não parecia incomodá-la.
- Lydia explicou-lhe o que pensava a respeito da morte física? - perguntou-me.
- Sim, explicou.
- Então tem de acreditar que o espírito que ambos conhecemos ainda existe. Este mundo não é o único, sabe?
Disse-o com tanta convicção que não podia duvidar
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da sua sinceridade. Todavia, considerava-a como sendo uma tresloucada de primeira classe. Por estranho que possa parecer, isso, para mim, tornava-a ainda mais atraente. Sou um hedonista confesso, mas sempre me senti intrigado pelos tipos que "não são deste mundo". Vivem sempre como se estivessem a coleccionar pontos para uma viagem, só de ida, para o outro mundo.
- Mrs. Gloriana... - comecei, mas ela ergueu uma palma macia.
- Por favor - disse -, trate-me por Hertha. Sinto uma grande afinidade consigo. Posso tratá-lo por Archy?
- Sem dúvida - retorqui, muito agradado. - Hertha, Lydia prometeu trazer-me a uma das vossas sessões. De facto, sugeriu a da noite passada, mas não me foi possível. Talvez as coisas tivessem acontecido de outro modo se eu a tivesse acompanhado.
- Não - declarou, fitando-me. - Nada se teria modificado. Não te censures a ti mesmo.
Eu não estava a censurar-me, mas era simpático estar a tentar reconfortar-me.
- Continuo interessado em participar numa das reuniões. Será possível?
Ficou em silêncio durante longos instantes e perguntei a mim mesmo se iria ser rejeitado.
- Não haverá mais sessões até Outubro, Archy acabou por dizer. - Muitas pessoas foram passar o Verão para o Norte.
O facto de estarmos "fora da época" parecia-me uma razão curiosa para interromper a comunicação com os espíritos, mas se a médium cobrava por cada pessoa presente, então havia boas razões comerciais para o fazer.
- Costumas fazer sessões privadas? - inquiri. Será possível arranjar uma?
Virou-se e começou a andar de um lado para o outro, agarrada aos cotovelos. Usava um vestido às flores de um qualquer tecido brilhante que adejava com os seus movimentos.
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- Talvez, mas as possibilidades de êxito são menores. O poder psíquico de um círculo de crentes é naturalmente mais forte do que o de um indivíduo. Posso pedir a Frank e à mãe dele para se nos juntarem. Seria aceitável?
- Claro que sim.
- Terás um ou dois amigos que possas trazer? Indivíduos que sejam compreensivos para o espiritismo, mesmo que ainda não sejam crentes?
- Sim, creio que posso arranjar pelo menos uma pessoa dessas.
- Muito bem - declarou. - Planearei uma sessão e dir-te-ei quando tudo estiver preparado.
Aquela linguagem surpreendeu-me. Falara como se estivesse a preparar uma teleconferência para uma multinacional.
- Óptimo - concordei. - Fico ansiosamente à espera. Agora, a respeito da Peaches... Recebeste alguma mensagem sobre o paradeiro da gata?
Deixou de andar de um lado para o outro e virou-separa me encarar. Porém, em vez do olhar intenso que aguardava, vi-a fechar os olhos lentamente.
- Fraca e indistinta - afirmou, com uma voz que adquirira o que só posso descrever como uma qualidade musical. - A gata está viva e de boa saúde. Vejo-a num quarto muito simples. É um quarto de solteiro, com uma cama, uma cómoda, uma pequena secretária e um sofá... - Abriu os olhos. - Lamento muito, Archy, mas é tudo o que tenho. Não consigo ver a localização desse quarto. Se quiseres, posso continuar a tentar.
- Continua, por favor - incitei-a. - Creio que já conseguiste fazer maravilhas.
Não respondeu e eu não tinha mais perguntas sobre a Peaches. Levantei-me, avancei para a porta, mas parei.
- Hertha - perguntei -, quando fizermos a nossa sessão, achas que poderemos contactar Lydia Gillsworth?
- Pode vir a ser possível - afirmou, com um ar muito grave.
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- E podemos perguntar-lhe quem a assassinou?
- Sim, podemos.
- Obrigado. Por favor, informa-me quando irá ser essa sessão.
Acenou e aproximou-se de mim. Aproximou-se muito. Ergueu-se nas pontas dos pés e beijou-me em plena boca. Não foi um beijo de comiseração entre duas pessoas pesarosas. Foi um beijo físico, sensual e excitante. Tinha uns lábios muito macios e quentes. Lá se ia a minha ideia de que a mulher era como uma aparição. Os fantasmas não beijam, pois não?
Afastou-se e deve ter-se apercebido do meu choque. Sorriu, abriu a porta e empurrou-me com suavidade para o exterior.
Não havia ninguém na recepção. O lugar parecia deserto.
Conduzi de volta a casa num estado de "Totalmente". Totalmente espantado, totalmente confuso e totalmente desconcertado. Confesso que não me sentia assim por causa do rapto da gata ou assassínio. Era o resultado do beijo carnal que Mrs. Gloriana me concedera. Que queria dizer com aquilo? Os beijos em geral têm um significado, não é verdade? Podem sinalizar uma promessa, servir de isca, demonstrar paixão... e muitas outras coisas boas.
O beijo de Herta era um enigma que não conseguia resolver. Tinha de ser significativo, mas não conseguia interpretar-lhe o significado. Como já devem ter compreendido, o meu ego não é frágil, mas mesmo assim não acreditava que a dama tivesse ficado, de um momento para o outro, subjugada pela minha beleza e brio. Não sou nenhum Godzilla, mas também já não sou um jovem Tyrone Power. O que quero dizer é isto: as mulheres não se sentem repelidas pela minha aparência, mas também não desmaiam na minha presença, nem sentem um desejo irresistível de mordiscar os meus lábios.
Continuava intrigado com o mistério do beijo inexplicável quando cheguei a casa, no exacto momento em que o
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meu pai metia o Lexus na garagem. Passeámos de um lado para o outro, em frente da porta, antes de entrarmos.
- Tiveste notícias do sargento Rogoff? - inquiriu.
- Não, pai. Deve andar muito ocupado.
- Fizeste alguns progressos?
Senti-me tentado a responder: "Sim, levei um chocho de uma médium", mas disse:
- Não, nada de especial. O testamento de Lydia era como julgavas?
- Roderick é o principal beneficiário - concordou, com um aceno -, o que nos levanta um problema. Também fomos nós quem redigiu o testamento dele. É um documento simples, pois os seus bens eram reduzidos. Deixava todo o seu pouco dinheiro e bens pessoais à mulher. Doava os manuscritos originais dos seus poemas à Biblioteca do Congresso.
- Vão ficar deliciados! - comentei.
- Archy, não sejas maldoso! - censurou-me, com secura. - Tu e eu podemos pensar que não têm pés nem cabeça, mas há outros que os podem ver como obras de grande mérito literário.
Não fiz comentários.
- O problema - continuou - está em que Roderick é agora um homem rico. É importante que reformule o seu testamento o mais depressa possível. Tal como as coisas estão, a maior parte dos bens de Lydia encontra-se numa espécie de limbo legal. Se Gillsworth morrer antes de ditar um novo testamento, os bens poderão ficar imobilizados durante muitos anos. Gostaria de lhe sugerir que é necessário um novo testamento, mas o homem está tão perturbado emocionalmente que me custa tocar no assunto. Convidei-o para jantar connosco esta noite, mas recusou. Disse que estava demasiado perturbado. É compreensível.
- Sim - respondi. - Talvez ainda não tenha ganho verdadeira consciência da enormidde do que aconteceu. Acha que ele conhece o testamento da mulher?
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- Conhece, estava presente quando discuti os termos com Lydia. bom, é melhor entrarmos. Tendo em conta os acontecimentos recentes, talvez seja melhor adiantar um pouco a hora do nosso cocktail familiar.
- Apoio a moção - declarei.
Todavia, apesar da bebida e de um belo jantar (pato com molho de cerejas), a noite foi lúgubre. As conversas não pegavam. A morte da nossa vizinha parecia troçar da boa comida e do excelente vinho. Pensei que todos nos sentíamos culpados, como se devêssemos permanecer de jejum, numa demonstração de respeito. Ridículo, claro. As vigílias à irlandesa fazem muito mais sentido.
Depois do jantar, retirei-me para o meu ninho e trabalhei um bocado no diário. A seguir, tentei ler os livros sobre espiritualismo que Mrs. Gillsworth me emprestara. Era difícil, mas comecei a compreender o apelo básico daquela fé. Promete uma espécie de imortalidade, não é verdade? Todavia, todas as outras religiões o fazem, propondo-nos o céu, o paraíso, o nirvana... ou qualquer om tro nome que lhe queiram chamar. ,
Era uma matéria muito séria e já em mais de uma ocasião afirmei que não sou um tipo sério. Na realidade, a minha noção da beatitude final é a de um lugar parecido com o Clube Pelicano, com todas as bebidas por conta da casa.
Por isso, atirei os livros para um lado e voltei a interrogar-me sobre as razões ocultas por detrás do beijo de Hertha. Não cheguei a qualquer conclusão, excepto uma: decidi que se se verificasse uma repetição iria corresponder de um modo mais viril e determinado.
Só para aprofundar a investigação, é claro!
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No domingo seguinte, o acontecimento mais notável foi ter acompanhado os meus pais à igreja. Não sou um ávido frequentador de igrejas. Na realidade, não ia à missa desde que uma rechonchuda contralto do coro, com quem andava a namoriscar, casou com um aviador da marinha e se mudou para Pensacola. A partir daí, a minha fé esmoreceu muito.
No entanto, nessa manhã, sentei-me no banco dos McNally, cantei hinos e mantive-me acordado durante todo o sermão, que se baseou no ditado de que é mais abençoado aquele que dá do que aquele que recebe. Suponho que isso também se aplica ao que dá um bom murro no focinho do outro. Todavia, a oração final foi dedicada a Lydia Gillsworth, que fora membro da congregação. O curto elogio foi tocante e fiquei contente por lá ter estado para o ouvir.
Voltámos a casa e descobrimos um carro da Polícia parado junto à nossa porta das traseiras. O sargento Al Rogoff, à civil, estava na cozinha a beber café com os Olson. Levantou-se quando entrámos e pediu desculpa pela sua presença a um domingo.
- Há coisas que é preciso tratar - acrescentou, falando para o meu pai -, incluindo os arranjos funerários. O médico legista entregará o corpo... - Olhou para a minha mãe e calou-se.
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- com certeza, sargento - declarou o père McNally. - Venha para o meu estúdio. Telefonarei a Gillsworth cara saber quais são os seus desejos...
- Óptimo - disse Al. Fitou-me antes de ir atrás do meu pai. - Vais ficar por aqui? - perguntou.
- Posso ficar - respondi.
- Tenta ficar, Archy - prosseguiu Rogoff com o pesado tom sarcástico que usa de vez em quando. - Quero falar contigo.
- Estarei lá em cima. Sobe quando terminares a conversa com o meu pai.
Trotei para a minha toca, despi as roupas de domingo e enfiei umas calças de flanela e uma Laçaste vermelha. Perguntava a mim mesmo se teria tempo de descer para ir procurar um balde de cubos de gelo quando ouvi uma batida na porta.
Era a primeira vez que o sargento entrava nas minhas instalações e olhou em volta com interesse.
- Não está mal - comentou.
- O melhor de tudo é a renda - retorqui. Soltou uma gargalhada.
- Zero, não é? - perguntou.
- Adivinhaste. Al, queres provar uma gota de veneno?
- O que tens?
- M are.
- Que diabo é isso?
- Brande feito de bagaço de uvas.
- Posso experimentar. Só umas gotas.
Servi dois cálices e Al provou o dele. Ofegou e fechou os olhos com força.
- Isto vai fazer-me cair o tártaro dos dentes! - exclamou.
Possuía poucas acomodações para visitas, pelo que Rogoff teve de se sentar na cadeira giratória da minha secretária enquando eu puxava por uma pequena e vacilante otomana de couro.
- Como correram as coisas com Gillsworth? - perguntei-lhe.
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- Bem. Vai levar o caixão para o Norte. Aparentemente, a família tem um jazigo num cemitério de Rhode Island. Será aí depositada.
Bebericámos, devagar, as nossas minúsculas bebidas. Não há outra maneira de as ingerir e sobreviver.
- Al - disse-lhe -, sei que levaste o relógio da cena do crime.
- É verdade. É uma bela peça antiga.
- Porque foi que o levaste?
- Queria saber se estaria a funcionar bem antes de ter sido derrubado.
- E estava?
- Sim, de acordo com o especialista que o examinou. Quando caiu, uma das rodas soltou-se e o relógio parou.
- Então, a hora indicada foi a hora do crime?
- Assim parece.
- Não queres falar, pois não? Já concluíste que Gillsworth está inocente?
- Parece estar - retorquiu Al, num resmungo. Confirmei o tempo necessário para ir daqui até sua casa a uma velocidade legal. Em geral, a mulher costumava chegar mais cedo das tais reuniões, mas ficou lá mais um bocado, a conversar com uma outra mulher.
- Quem to disse?
- A outra mulher.
- Isto está a ser tão difícil como arrancar dentes comentei. - Importas-te de me dizer o nome da outra mulher, sargento?
- Mrs. Irma Gloriana, a sogra da médium. Conhece-la?
- Mrs. Irma Gloriana? - perguntei, com todo o cuidado. - Não, nunca a vi. Como é ela?
- Uma tipa das duras - disse Al, fazendo uma pausa e levantando os olhos ao céu. - Perdoem-me - acrescentou. - Queria dizer que se trata de um indivíduo do sexo feminino com uma personalidade muito forte.
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- Ah, assim é melhor - afirmei, aprovando. - De outro modo teria de te acusar de IP - (incorrecção policial). - Viste a médium?
- Na! Ela e o marido não estavam em casa. vou ver se os apanho amanhã, bem como a todos os outros que estiveram na sessão. Tenho os nomes.
- Onde foi a sessão?
- No apartamento de Gloriana, num prédio alto, perto de Currie Park.
- Um prédio de luxo?
- Nem por isso - respondeu Rogoff. - Na verdade, até o achei miserável. Comunicar com os queridos falecidos não deve dar tanto dinheiro como vender pizzas.
- Suponho que não. Como é que descobriste essa tal Mrs. Irma Gloriana?
- Foi Gillsworth quem me deu o seu nome. Esteve presente em três ou quatro sessões, juntamente com a mulher, e sabia que se realizavam. Depois deixou de lá ir. Explicou que toda aquela história do espiritismo não lhe interessava.
- Hum... Verificaste de quanto tempo necessitaria Lydia para regressar a casa, depois da sessão?
- Era essa a questão principal, não era? Se Lydia saiu quando a sogra da outra diz que saiu, então deve ter chegado a casa mais ou menos na altura em que o marido telefonou do estúdio do teu pai.
- Nesse caso, tudo se encaixa e Gillsworth está inocente?
- Penso que sim - declarou Rogoff com um ar pesaroso. - Posso beber um pouco mais desse teu ácido para baterias? Só uma gota, o suficiente para molhar o copo.
Servi-o e inquiri:
- Al, o que te está a preocupar? Não me pareces muito convencido.
Aspirou o ar com força e depois soprou-o.
- Tal como tu disseste, "tudo se encaixa". Sempre
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que isso me acontece, fico nervoso e começo a interrogar-me se não deixei escapar qualquer coisa. O que me incomoda é só ter as afirmações de uma testemunha quanto à hora a que a vítima foi para casa. Preferia ter várias testemunhas, mas todos os outros que participaram na sessão já se tinham ido embora, e a médium e o marido tinham ido jantar. Assim, só Mrs. Irma Gloriana pode dizer quando foi que Lydia seguiu para casa.
- Pensas que pode estar a mentir? Agitou-se nervosamente na cadeira giratória.
- Porque diabo mentiria? Qual seria o motivo para a mentira? Não, provavelmente está a dizer a verdade. E tu? Que tens andado a fazer?
- Nada de especial - respondi com toda a inocência. Havia já um bocado que pensava no que lhe deveria dizer. Não tudo, é claro, porque também estava certo que Al não me contara tudo. No passado, havíamos cooperado em várias investigações, para benefício mútuo, mas eu sempre considerara - e creio que Rogoff também - que parte do nosso êxito se devia ao facto de sermos parceiros e também competidores. Estou convencido de que ambos gostávamos disso. Não há nada como um pouco de rivalidade para condimentar as coisas. Têm mais gosto, n'est-ce pás?
Foi nesse preciso momento que o talento dos McNally para a improvisação mostrou o que valia.
- Al - disse-lhe -, acabei de ter uma ideia de que és capaz de gostar.
- Pode ser...
- Até teres o relatório do FBI, a respeito das cartas, a sessão espírita e toda a gente com ela relacionada constituem a nossa melhor pista, não é assim?
- Não necessariamente - argumentou. - Archy, ainda agora começámos. Temos de identificar e interrogar os vizinhos da vítima, os amigos e conhecidos, e definir os seus paradeiros no momento do homicídio.
- De acordo - repliquei. - Vai ser preciso gastar
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muitas solas. Porém, enquanto o fazes, porque é que eu não aponto directamente para os Gloriana? vou ter com eles, apresento-me como estando interessado no espiritismo e marco uma sessão com a médium. Não estou a sugerir que os ignores, mas a que me deixes abordá-los do ponto de vista de um cliente ansioso. Olhou para mim, pensativo.
- Porque será que tenho a sensação de estar a ser enrolado?
- Não estás a ser enrolado - afirmei, com calor. Quanto mais penso no assunto, melhor ele me parece. Posso ser o "Senhor Lá Dentro" e tu o "Senhor Cá Fora". Os Gloriana nunca saberão que estamos a trabalhar em conjunto. Nem sequer saberão que nos conhecemos. Porém, entre os dois, poderemos ficar com uma imagem completa a respeito das suas actividades.
Ficou silencioso durante muito tempo e receei que não o tivesse convencido. Por fim suspirou, terminou a bebida e levantou-se.
- Está bem - concordou. - Não vejo que mal possa vir daí. Combina essa tal sessão e vê se consegues aproximar-te da médium.
- vou tentar - respondi.
- Manténs-me informado de tudo o que se passar?
- Absolutamente - afirmei. - E tu, informas-me dos teus progressos?
- Sem qualquer dúvida! - retorquiu, e sorrimo-nos um para o outro.
Depois de Al sair, sentei-me na cadeira giratória, terminei a minha bebida e fiquei a lamber o rebordo do cálice. Estava muito satisfeito com a conjura que engendrara. Bem vistas as coisas, não enganara Rogoff e tinha agora a chancela oficial para algo que já começara a fazer. Chama-se a isto manipulação.
Tomei alguns apontamentos no meu diário, tentando recordar-me de tudo o que o sargento me contara. Uma das contradições imediatamente aparentes era a descrição
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do apartamento de Gloriaria como sendo "miserável", enquanto o "escritório", moderno num edifício novo, indicava um empreendimento com êxito. Porém, concluí, o apartamento malva e azul podia não passar de uma fachada. Durante as minhas duas visitas, não vira hordas de clientes a clamar por aconselhamentos psíquicos, e, apesar das fatiotas elegantes de Frank, sempre o achara inconsistente.
O tempo continuava desagradável, mas como sou um tipo teimosamente disciplinado decidi, mesmo assim, ir tomar o meu banho de mar.
Surpreendentemente, o mar estava calmo como o proverbial lago e por isso, enquanto nadava, pude ir pensando na sessão espírita e num plano de acção.
Quando Hertha Gloriana sugerira que fornecesse um amigo que pudesse juntar-se ao círculo dos crentes e aumentar os seus poderes psíquicos, tencionara pedir a Consuelo Garcia para me acompanhar. Connie gosta de se aventurar e consideraria aquilo como uma aventura de que se poderia gabar durante semanas a fio.
Porém, depois, recordara-me que pedira a Connie para responder ao anúncio dos Gloriana, pedindo um "perfil psíquico personalizado". O risco de lhe reconhecerem o nome era demasiado grande, e isso eliminaria qualquer hipótese de provar que o projecto dos perfis psíquicos pelo correio era uma fraude. Decidi que, em vez de Conme, pediria a Meg Trumble para ir à sessão comigo.
Mais tarde, verificaria que fora uma decisão fatídica!
Terminei a natação a tempo de participar no cocktail familiar. Era a minha terceira mudança de roupas naquele dia. Foi quando servia o primeiro martini que o meu pai comunicou uma notícia inesperada.
- Roderick Gillsworth quer falar contigo, Archy declarou.
- Para quê? - pestanejei, surpreendido.
- Não disse. Sugeriu que aparecesses esta noite, depois do jantar. Acho melhor que lhe telefones antes de ires.
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- Está bem - assenti, desconfiado. - É um pedido estranho, não lhe parece?
- Também acho, mas gostaria que aproveitasses esse encontro, se pensas que a ocasião é oportuna, para mencionares a necessidade de redigir um novo testamento. Fala no assunto casualmente, é claro. Pode bastar para o fazer pensar nas suas responsabilidades financeiras.
- Farei o que puder... mas não consigo perceber porque quer falar comigo.
A minha mãe levantou a cabeça. -
- Talvez se sinta solitário - disse, baixinho.
O jantar de domingo foi mais descontraído do que o da noite anterior. Creio que os meus pais e eu estávamos decididos a não permitir que o desgosto pela morte de Lydia Gillsworth afectasse a serenidade do nosso lar. É uma frase feita dizer que a vida continua, mas vou dizê-la: "A vida continua." Para além disso, os grelhados mistos de Uri Olson (costeletas de cordeiro, tornedós, medalhões de vitela) foram esplêndidos para nos recordarem desse facto.
Terminámos com uma mousse de lima e um café quando já passava um pouco das oito e meia. Telefonei a Gillsworth, que me perguntou se poderia lá ir pelas nove horas. A sua voz pareceu-me suficientemente firme. Disse-lhe que sim e perguntei-lhe se precisava que lhe levasse alguma coisa. Começou por agradecer e depois disse que não. No entanto, após uma pausa, perguntou timidamente se os McNally lhe podiam dispensar uma garrafa de vodca. O seu fornecimento acabara e devolveria a garrafa logo que pudesse ir a uma loja.
Não vi nada de invulgar no pedido, mas receei que pudesse preocupar o meu pai. (Título de jornal: "Marido Desgostoso Embebeda-se com Álcool do Advogado".) Assim, surripiei uma garrafa de litro da nossa reserva e levei-a para o Miata sem ser descoberto.
As fitas que a Polícia utiliza para isolar o local de um crime ainda se encontravam em volta da casa de Gills-
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worth, mas não se viam carros a policiar. Foi o próprio Roderick quem me abriu a porta e cumprimentou com um sorriso abatido. Disse-me que finalmente o tinham deixado sozinho e agradeceu-me ter-lhe levado a garrafa de plasma.
- Os jornalistas foram muito incómodos? - inquiri, quando me levou para o seu gabinete de trabalho. (Ainda bem que não escolheu a sala onde o corpo fora encontrado.)
- Não muito - disse. - O teu pai lidou com a maior parte deles e recusei-me a dar entrevistas à televisão. Instala-te confortavelmente enquanto vou buscar cubos de gelo. Queres a bebida simples ou com água?
- com água está muito bem - respondi. Sentei-me num cadeirão muito coçado e olhei em volta com interesse.
Nunca antes estivera no gabinete de trabalho de um poeta, e foi um desapontamento. Não passava de uma pequena divisão forrada a livros, com uma secretária muito usada, um armário velho e uma bancada de trabalho cheia de livros de referência e uma máquina de escrever. Era uma velha Remington. Não era nem electrónica nem era um processador de texto. Não sei o que esperava encontrar naquele sanctum sanctorum de um poeta. Talvez uma fotografia emoldurada de Longfellow ou um busto de Joyce Kilmer, em esferovite. Não havia ali quaisquer toques decorativos. Podia ser o gabinete de um cidadão vulgar, um pouco atulhado de mais e suficientemente deprimente para se preencherem os impressos do IRS.
Gillsworth regressou com um balde com gelo, uma garrafa de água e dois copos altos. Pousou tudo na mesa, ao lado da garrafa de vodca.
- Sou um péssimo barman - confessou. - Queres servir a tua bebida?
- com todo o prazer, Mr. Gillsworth - respondi.
- Outra coisa... - acrescentou -, não é necessário tratares-me por "senhor" ou por "Mr. Gillsworth". Sem-
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pré te tratei apenas por Archy. Se me chamares Rod, o meu ego não sofrerá danos permanentes.
- É a força do hábito - retorqui. - Ou antes, é a força do treino. Em toda a América, devo ser o último filho a tratar o pai por "senhor".
- O teu pai é diferente.
- Sim - concordei, suspirando. - Não há dúvida que é.
Preparei a minha própria bebida: um pouco de vodca e muita água. Ele preparou a dele: muita vodca, pouca água. Instalei-me outra vez no cadeirão enquanto Gillsworth se sentava na decrépita cadeira rotativa, por detrás da secretária.
- Rod - comecei, recitando o curto discurso que ensaiara -, ainda não tive oportunidade de lhe expressar as minhas condolências pela morte da sua esposa. Foi uma tragédia terrível, que nos entristeceu, aos meus pais e a mim. Lydia permanecerá sempre nas nossas recordações como uma boa vizinha e uma mulher maravilhosa.
- Sim, ela era isso tudo. Muito obrigado.
Tomei um golinho da bebida, mas ele despejou meio copo. Perguntei a mim mesmo se não estaria a beber para ter a certeza de que dormiria bem naquela noite.
- Os meus poemas passaram a ser tão sem significado - murmurou, olhando para o copo. - Tão fúteis...
- O efeito não devia ser esse - respondi. - Decerto que a morte trágica da sua mulher lhe pode fornecer inspiração para uma poesia de ambiente elegíaco...
- Talvez - concordou -, mas só com o tempo. De momento, tenho a cabeça vazia de tudo, excepto o desgosto. Espero que tenhas razão... e que eventualmente venha a ser capaz de exprimir a minha tristeza, e que através da escrita venha a conseguir exorcizar a dor e recuperar um pouco de tranquilidade emocional.
Pensei que aquilo era um exagero. De facto, a frase soava como um discurso que ele tivesse ensaiado. Porém, talvez os poetas falem assim... ou pelo menos aquele poeta.
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Engoliu mais uma boa dose da sua bebida e descontraiu-se na cadeira. Tinha os olhos avermelhados, como se tivesse chorado, e um rosto abatido. Imaginei que até o comprido nariz ficara um pouco descaído desde que o vira pela última vez. Agora, era realmente um pássaro muito tristonho.
- Archy - disse -, segundo sei, vais continuar a investigar aquelas cartas...
- É verdade.
- Trabalharás em conjunto com o sargento Rogoff? Acenei uma confirmação.
- Que pensas dele? É competente?
- Mais do que competente - declarei. - Al é um bom polícia, com muito talento.
Gillsworth emitiu um pequeno som, que julgo pretendia ser uma gargalhada.
- Tenho a impressão de que suspeita de mim murmurou.
- E o trabalho dele, Rod - expliquei. - A investigação ainda vai no princípio. O sargento tem de suspeitar de toda a gente ligada a Mrs. Gillsworth, até que o paradeiro das pessoas, no momento do crime, possa ser definitivamente estabelecido.
- bom, o meu paradeiro foi estabelecido. Estava contigo e com o teu pai.
- Rogoff sabe disso - admiti, tão tranquilizador quanto me foi possível. - Todavia, para ele, todos os álibis têm de ser confirmados.
Gillsworth terminou a bebida e serviu-se de outra, tão forte como a primeira.
- O que mais me irrita - prosseguiu - é o facto de não me querer dar qualquer informação. Pergunto-lhe o que está a ser feito para encontrar o maníaco que matou a minha mulher e limita-se a murmurar: "Estamos a trabalhar no assunto." Não me parece uma resposta adequada.
- Neste momento, duvido que ele tenha alguma coisa de concreto para lhe dizer. Mesmo que faça alguns
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progressos, a Polícia é sempre muito cautelosa no que se refere a revelá-los. Não quer arriscar-se a dar origem a falsas esperanças e não gosta de dizer que uma pessoa é suspeita antes que a sua responsabilidade possa ser provada.
Gillsworth sacudiu a cabeça.
- É de enlouquecer. Agora, tenho de acompanhar o caixão de Lydia até ao Norte, para o funeral. De certeza que a família me irá perguntar o que está a ser feito para encontrar o assassino, e só poderei dizer que a Polícia está a trabalhar no assunto.
- Sei que é frustrante - afirmei, compreensivo. E difícil ser-se paciente, mas tem de se recordar que a Polícia ainda só teve quarenta e oito horas.
- De quanto tempo precisarão para solucionar o caso?
- Rod, não há maneira de prever uma coisa dessas. Podem ser dias, semanas, meses ou anos. - Gillsworth gemeu. - Não há qualquer limitação de tempo no que se refere aos assassínios - continuei. - A Polícia continuará a trabalhar todo o tempo que for necessário... e eu também.
- Muito obrigado por isso. Vejo que tens o copo vazio. Por favor, serve-te à vontade. - Enquanto o fazia, Gillsworth perguntou: - Archy, vais trocar informações com Rogoff?
- Espero que sim.
- Enquanto estiver no Norte, para o funeral de Lydia, posso telefonar-te para te perguntar se já sabem alguma coisa? Não quero telefonar a Rogoff. Não me diria nada.
- Claro que me pode telefonar - retorqui. Estive quase a acrescentar que não lhe poderia revelar fosse o que fosse sem autorização do sargento, mas a animosidade de Gillsworth contra Rogoff parecia-me evidente e não a queria exacerbar ainda mais.
- Ficaria realmente grato se me mantivesses informado - insistiu.
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- Quanto tempo vai estar fora, Rod?
- Dois ou três dias. Gostava de te dar um jogo das chaves da casa, ainda esta noite, antes de saíres. Importas-te de vir cá dar uma olhadela de vez em quando, enquanto estiver fora?
- Fá-lo-ei com todo o gosto.
- Obrigado. Dei duas semanas de férias à nossa mulher da limpeza, Marita, pelo que não a irás encontrar. Também entreguei um jogo de chaves à Polícia. Não sei para que as queriam, mas o sargento resmungou qualquer coisa a respeito de segurança. Oh meu Deus, que confusão isto foi!
- Rod, não desejo sobrecarregar ainda mais as suas preocupações, mas o meu pai pediu-me para lhe falar numa coisa. É imperativo que redija um novo testamento. Infelizmente, as circunstâncias mudaram e o testamento actual é inadequado.
A cabeça de Gillsworth deu um salto, como se o tivesse esbofeteado.
- Espero que não o tenha ofendido por ter falado no assunto - acrescentei apressadamente.
- Não, não... - retorquiu. - Fiquei chocado por não me ter lembrado disso. O teu pai tem razão, como de costume. Como deves saber, Lydia herdou uma grande soma em dinheiro, que suponho que agora me pertence. Que triste maneira de enriquecer...
- Foi a vontade dela... - recordei-lhe.
- Pois foi, mas mesmo assim... Muito bem, podes dizer ao teu pai que irei pensar nisso, e que entrarei em contacto com ele depois de regressar do funeral.
- Óptimo - declarei. - Um testamento não é coisa que se possa adiar durante muito tempo.
Olhou para mim com um sorriso contorcido.
- É o reconhecimento legal de que somos mortais comentou. - Não é esse o significado de um testamento?
- Suponho que sim - afirmei. - Porém, para um homem na sua posição, é também uma necessidade.
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Serviu-se de mais uma bebida com mãos que tremiam ligeiramente. Perguntei a mim mesmo quantas mais "bombas" como aquelas conseguiria engolir antes de cair de borco no chão. Queria poder avisá-lo, mas achei que não seria próprio.
Deve ter percebido o que eu estava a pensar, porque esboçou um sorriso idiota e declarou:
- vou dormir bem esta noite.
- Tenho a certeza que sim.
- Sabes, estas são as primeiras bebidas que tomo desde a morte de Lydia. Ansiei desesperadamente por uma bebida enquanto estive à espera da Polícia, mas pareceu-me vergonhoso recorrer ao álcool para ter coragem para enfrentar tudo aquilo. Agora... não me ralo. Preciso de paz mesmo que tenha de a tirar de uma garrafa. Mesmo assim, será apenas temporária. Consegues compreender o que quero dizer?
- Claro que sim - disse-lhe. - E estou de acordo, desde que não tenha a intenção de sair de casa esta noite.
- Nenhuma intenção - murmurou, com uma voz que começava a tornar-se indistinta. - Mesmo nenhuma...
- Ainda bem - respondi. - Terminei a bebida e levantei-me. Não tinha o desejo de ver o colapso daquele homem repleto de desgosto. - Então, se me der as chaves da casa, vou andando...
Abriu a gaveta de cima da sua secretária, remexeu no seu interior e acabou por me entregar três chaves penduradas num enorme clip para papéis.
- Porta da frente, porta das traseiras e garagem explicou.
- Passarei por aqui enquanto estiver fora - prometi. - Posso dizer ao meu pai que irá consultá-lo a respeito do novo testamento, logo que regressar?
- Sim - disse. - O novo testamento. vou pensar nisso.
Não cambaleou quando me acompanhou à porta da frente, mas caminhou muito devagar, e houve uma vez
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que apoiou a palma da mão na parede, para se firmar. À porta, virou-se para me encarar. Não lhe consegui interpretar a expressão.
- Archy - inquiriu -, gostas de mim? Gostas mesmo de mim?
- Claro que gosto de si - respondi.
Pegou-me numa das mãos e apertou-a com força entre as suas.
- bom rapaz - declarou, com um tom pesado. bom rapaz.
Retirei a minha mão com todo o cuidado.
- Rod, certifique-se de que fecha a porta e coloca a corrente de segurança.
Já na rua, e com a porta fechada, fiquei à espera até ouvir o barulho da chave a rodar na fechadura e o tilintar da corrente. Aspirei profundamente o frio ar da noite e fui-me embora para casa.
Meti o Miata na garagem e vi luzes no estúdio do meu pai. Tinha a porta aberta, o que considerei como um convite para entrar. Estava sentado no cadeirão de couro, com um cálice de porto junto ao cotovelo. Lia um dos seus volumes de Dickens, encadernados a couro. O livro era espesso e calculei que se tratasse de Dombey e Filho. Andava a ler, teimosamente, as obras completas de Dickens. Admirava-lhe a perseverança. O mais espantoso era o facto de se lembrar de todas as intrigas. Creio que nem Dickens o conseguiria fazer.
Olhou para cima quando entrei.
- Ah, Archy, já estás em casa. Viste Gillsworth?
- Vi. Deu-me as chaves de casa e pediu para passar uma ou duas vezes por lá enquanto estiver no Norte para o funeral.
Estava à espera que me convidasse para sentar e para tomar um copo de qualquer coisa, mas não o fez.
- Falaste-lhe no testamento?
- Falei. Respondeu que ia pensar no assunto e o consultaria quando regressasse.
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- Suponho que é o máximo que seria de esperar. Como é que ele está?
- Quando o deixei, já se apoiava às paredes e continuava a beber.
O meu pai ergueu uma das sobrancelhas.
- Isso nem parece dele... Nunca o vi beber de mais...
- É da tensão emocional... - sugeri.
- Não é desculpa - declarou o senhor da mansão, regressando ao seu Dickens.
Trepei as escadas até ao meu poleiro, pensando que o meu pai era um homem que não aceitava cedências. Além disso, como eu muito bem sabia, mordia mais do que ladrava.
Despi-me, tomei um duche e lavei os dentes. A seguir, enfiei um roupão de seda que comprara havia pouco tempo numa elegante boutique para homens, na Worth Avenue. Ostentava um desenho de papagaios multicolores a divertirem-se num fundo de selva. Um dos passarocos tinha espantosas semelhanças com Roderick Gillsworth.
Ofered a mim mesmo uma gota de Marc e acendi um cigarro. Era o meu primeiro cigarro do dia! Deixei-me cair sobre os estofos da cadeira giratória, coloquei os pés nus em cima da secretária e fiquei a ruminar. Porque fora que o poeta me perguntara se gostava dele? Fora uma pergunta tão intrigante como o beijo de Hertha Gloriana.
Não me parecia que tivesse sido a vodca a falar. Gillsworth procurava tranquilizar-se a ele mesmo. Mas porquê...? E porquê eu...? Só me era possível concluir que a morte da mulher o deixara tão perturbado que tentara estabelecer contacto com outro ser humano. Por acaso, fora eu o que estivera mais à mão.
Porém, essa explicação não era completamente satisfatória. O sargento Rogoff já mais de uma vez me acusara de eu ter um certo gosto pela complexidade, e de estar sempre à procura de motivos ocultos e desejos inconscientes, em vez de aceitar o que era óbvio. Al talvez ti-
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vesse razão e minha mãe acertara ao sugerir que Gillsworth se sentia solitário... mas não estava totalmente convencido.
Tomem como exemplo o recente comportamento deste vosso servidor, com todo o respeito e consideração: quando o poeta perguntara "Gostas de mim?", responder automaticamente "É claro que gosto" era a resposta mais educada e apropriada para uma pergunta íntima feita por um homem aparentemente sofredor, que necessitava, por qualquer razão, de um apoio moral. Fornecera-lho, tal como era minha obrigação.
Todavia, se tivesse de dizer a verdade, teria respondido que não gostava dele. Também não "desgostava". Era-me completamente indiferente. Era esse o meu segredo, que de maneira nenhuma lhe iria revelar. Estou apenas a dar um exemplo em como o óbvio é, com frequência, uma máscara a cobrir a realidade.
Ainda meditava, com tristeza, na estranheza da natureza humana, quando o meu telefone tocou. Era quase meia-noite e um telefonema a essa hora não costumava dar boa disposição a nenhum dos McNally. A minha primeira ideia foi: quem terá morrido desta vez?
- Sim? - respondi, desconfiado.
- Archy? - Era uma voz de mulher que não identifiquei imediatamente.
- Sim. com quem estou a falar?
- Que resposta tão elegante! Meg Trumble!
O alívio conseguiu ser mais saboroso do que um cálice de porto.
- Meg! - quase gritei. - Como estás?
- Bem, muito obrigada. Não te acordei, pois não?
- Claro que não. A noite ainda agora começou.
- bom, telefonei-te antes, mas creio que não estavas. Andas a portar-te bem, espero...
- Infelizmente. Estás a telefonar do Rei da Prússia?
- Sim, mas parto amanhã de manhã, muito cedo. Devo chegar à Florida na terça-feira.
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- Mal posso esperar - retorqui. - Escuta, se chegares a tempo, telefona-me e vamos jantar. Deves querer descontrair-te, depois de tantas horas ao volante.
- Estava à espera que o propusesses - afirmou. Nem sequer disse a Laverne quando vou chegar aí, mas telefonar-te-ei logo que entre em casa. Até terça à noite!
- Formidável! - exclamei. Meg desligou e eu fiquei a sorrir, como um tolo, para o telefone agora silencioso.
Foi incrível o que aquele telefonema fez pela minha disposição. Fiquei imediatamente convencido de que iria salvar a Peaches, que descobriria o assassino de Lydia Gillsworth, que no dia seguinte o sol iria brilhar com toda a força e que emagreceria pelo menos dois quilos.
Quando A. Pope escreveu a respeito de as esperanças nunca morrerem, devia estar a pensar em A. McNally.
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Não creio que já tivesse mencionado a minha peculiar mania dos chapéus. Quando frequentei a Faculdade de Direito de Yale (por pouco tempo), usei bonés de camurça e de tweed, chapéus de coco, chapéus à diplomata, e uma vez, num momento de loucura, um fez. Porém, todas essas coberturas para a cabeça eram um pouco pesadas de mais para o clima da Florida do Sul, pelo que quando regressei a Palm Beach optei por chapéus de rede, panamás e até por um maravilhoso sombrero com uma aba de quinze centímetros.
Escrevera recentemente a um fabricante de chapéus por encomenda, em Danbury, Connecticut, e pedira três boinas de linho, em verde, castanho-arroxeado e branco. Chegaram na segunda-feira de manhã e deixaram-me muito satisfeito. Eram suficientemente finas para se enrolarem e meterem no bolso traseiro das calças, mas quando eram enfiadas na cabeça e puxadas para um lado, à malandro, davam-me um certo ar de... malandro.
Quando desci para um pequeno-almoço atrasado, já usava a minha nova boina castanha. Felizmente, o meu pai já saíra para o trabalho, o que evitou ter de me submeter aos seus olhares incrédulos. A minha mãe olhou para mim, riu-se deliciada e bateu as palmas.
- Archy - disse -, essa boina... és lul
Fiquei tão feliz com a sua reacção que usei a boina
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enquanto tomava um pequeno-almoço de sumo de toranja fresca, três fatias das maravilhosas torradas francesas de Ursi Olson, barradas com doce de mel e pêssego, e uma cafeteira de café preto. Terminava a segunda chávena quando a minha mãe comentou casualmente:
- Ah, a propósito, Archy, Harry Willigan telefonou momentos antes de desceres. Quer que lhe telefones o mais depressa possível. Parecia muito maldisposto.
Querida mãe! Certificara-se de que comia um bom pequeno-almoço antes de me transmitir as más notícias. Dirigi-me ao estúdio de meu pai e liguei para casa dos Willigan. Foi Julie Blessington, a criada, quem atendeu o telefone. Identifiquei-me e pedi para falar com o patrão. Momentos depois, o nosso irritável cliente apareceu na linha e começou a gritar comigo.
Gaguejava e berrava tão alto que era difícil compreender o motivo daquela explosão rancorosa. Por fim, entendi que naquela manhã fora encontrado outro pedido de resgate, metido por debaixo da porta da frente.
- Quando foi que o encontraram? - perguntei.
- Já to disse! Esta manhã!
- Esta manhã, a que horas?
- Muito cedo. Quando Ruby Jackson desceu para preparar o pequeno-almoço.
- Acha que foi entregue durante a noite?
- Como diabo queres que o saiba? És tu o detective, não és?
- Um sobrescrito branco?
- Sim, como o anterior.
- Quem foi que lhe tocou, em sua casa?
- Ruby mexeu no sobrescrito. Eu mexi no sobrescrito e na carta que lá estava dentro.
- Não deixe que mais ninguém lhe toque, Mr. Willigan. Que diz a carta?
- Que a Peaches chora muito! Pobre doçura! Sente a minha falta.
- Hum, hum... - comentei. - E que mais?
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- Querem que faça um embrulho com cinquenta mil dólares. Notas usadas, não marcadas, sem números seguidos, e nenhuma de mais de cem dólares.
- E instruções para o pagamento?
- Nada. Só dizem para ter o dinheiro pronto. Depois informar-me-ão quando e como o devo entregar.
- É melhor ir aí buscar a carta - declarei. - O senhor vai estar em casa?
- Não, não vou - replicou, ofendido. - Tenho uma reunião e já estou atrasado. vou entregar a carta a Laverne. Pede-lha.
- Por favor diga-lhe para não lhe tocar.
- Está bem, está bem - declarou, irritado. - Eu digo-lhe. Escuta, Archy, tens de te esforçar mais neste assunto. Tanto quanto eu saiba, não tens feito nada!
- Não é exacto - protestei. - Tenho uma pista importante que não posso discutir pelo telefone.
- Ah, sim? Pois olha, é melhor que consigas qualquer coisa ou terei de contratar um detective privado profissional. Se não tiver resultados, até posso cancelar os meus negócios com a McNally & Filho!
Após aquela ameaça descarada, bateu com o telefone antes que tivesse tempo para lhe responder. A resposta que tinha em mente deixaria o meu pai muito chocado. Ainda é dos que pensam que uma resposta delicada acalma todas as iras. Às vezes, acalma... mas há alturas em que é melhor não se ser delicado.
Subi ao meu quarto para trocar a boina castanha pela branca, porque receava que a castanha não ficasse bem com o vermelho do carro. (O génio está nos pormenores.) A seguir, conduzi para a propriedade dos Willigan. Os espasmos de fúria provocados pelo tratamento insultuoso do cliente foram abrandando à medida que reparava que o sol brilhava com força e o céu parecia ter acabado de passar pelo ciclo de enxaguar-e-secar. Estava um dia esplêndido!
Foi Leon Medallion, com uma expressão sombria e
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olhos lacrimosos, por causa da alergia que o afectava naquela manhã, fosse ela qual fosse, quem me abriu a porta da hacienda de Willigan.
- Mais um pedido de resgate, Leon - disse-lhe. Acenou com um ar infeliz.
- O velho tem estado com uma disposição feroz. Quando começa a gritar assim, desapareço das vistas. Chega a ser perigoso.
- Venho buscar a carta. Mrs. Willigan está em casa?
- Está na piscina a tostar as nádegas. Sabe o caminho, não sabe? Ainda estou a polir as pratas, tentando tirar as manchas escuras. Este clima é terrível para as pratas, latões e cobres.
- Talvez devêssemos usar só plásticos - sugeri.
- Boa ideia, "parceiro" - replicou Leon, mais animado.
Não fora um exagero dizer que Laverne estava a tostar as nádegas. Encontrei-a deitada de barriga para baixo, em cima de uma cadeira almofadada, colocada em pleno sol. Usava apenas um biquini de fio. Levantou a cabeça quando me aproximei. Fez bem em não erguer mais nada porque desapertara a fita da parte superior do biquini.
- Olá, Archy - disse alegremente. - Adoro esse boné.
- É uma boina - corrigi-a. - De qualquer modo, obrigado. Espero que estejas a usar um creme de protecção solar.
- Óleo para bebé - explicou.
- Não ficarás assada - comentei -, mas ficarás frita. Posso puxar uma cadeira?
- Claro, e se fores bom rapazinho deixo-te pôr-me óleo nas costas.
Lá estava ela de novo. Não havia dúvida que gostava de provocar. Há um nome feio para as mulheres desse tipo... mas não quero ofender ninguém.
Coloquei uma cadeira de lona ao lado da dela, sufi-
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cientemente longe para não ter de a olear, e onde lhe pudesse ver a cara.
- Outra carta dos raptores da gata, não é verdade?
- É verdade. Harry disse-me que a vinhas buscar. Está em cima do tamborete, no vestíbulo. Querem que prepare o dinheiro.
- Foi o que compreendi. Suponho que a próxima carta trará instruções para a entrega.
- Archy, tens alguma ideia sobre quem poderá ter levado a Peachest
- Tenho algumas pistas - declarei -, mas nada de definido. Laverne, tive uma ideia fantástica que gostaria de experimentar contigo. Sabes o que é um médium?
Tinha o rosto meio enterrado no almofadado e não consegui observar a sua reacção.
- Evidentemente - respondeu, numa voz abafada. São pessoas que se diz terem uma segunda visão. Afirmam que podem prever o futuro, e outras coisas do género.
- Tal como localizar pessoas e objectos desaparecidos - acrescentei. - A minha ideia foi a de contactar um qualquer médium local e ver se ele, ou ela, conseguem ver onde se encontra a Peaches neste momento.
Laverne levantou a cabeça para me olhar com uma expressão que não consegui decifrar.
- É a ideia mais maluca que já ouvi - declarou. Não me digas que acreditas nessas tretas!
- Não acredito nem deixo de acreditar. Vale a pena tentar, ou não?
- Eu diria que não - afirmou, com o que me pareceu ser um excesso de veemência. - É loucura. Não o faças, Archy. Se Harry descobre que foste ter com alguém que lê nas folhas de chá, se é isso o que eles fazem, despede-te a ti e ao teu pai.
- Sim - concordei, abatido. - Penso que tens razão. Como disse, era apenas uma ideia. É melhor esquecê-la.
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- É a atitude mais inteligente - disse Laverne, voltando a pousar a cabeça. - A propósito, tive notícias de Meg. Vai regressar um dia desta semana. Já tem um apartamento próprio, em Ri viera Beach. Vais gostar de voltar a vê-la, Archy?
- Claro que sim, é uma jovem muito atraente. Levantou mais uma vez a cabeça, mas agora para me
sorrir.
- Penso que devias avançar - murmurou. - Creio que Meg está pronta para isso.
Fiquei muito satisfeito por saber que Meg não contava tudo a Laverne.
- Laverne! - exclamei, como se me sentisse chocado. - É a tua irmã!
- E por isso que quero que se divirta. Dá-lhe uma oportunidade, querido. Não precisas de ir muito longe. Basta que a faças rir.
- Não sei... - respondi, duvidoso. - Não me parece que ela olhe para mim desse modo.
- Experimenta - incitou-me Laverne. - Fazia-lhe bem. Sei que é magrinha, mas tem temperamento. Além disso, quanto mais perto a carne estiver do osso, melhor é o gosto.
E verdade, Laverne disse isso. Haverá uma mulher mais vulgar em toda Palm Beach? Se há, ainda não a encontrei e não desejo encontrá-la.
- vou pensar no teu conselho - retorqui, levantando-me. - Agora, é melhor ir buscar a carta e ver se me poderá ajudar a encontrar os raptores.
- E vais desistir da ideia do médium?
As primeiras duas regras para uma aldrabice são não a fazer muito complicada e não insistir. A esse respeito podem perguntar-me o que quiserem, porque sei. Laverne era obviamente uma amadora.
- Já a esqueci - garanti-lhe. - Não apanhes demasiado sol ou acaba por te cair a pele.
Não posso transcrever a resposta porque é possível
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que viesse a ser lida por adolescentes impressionáveis e por velhinhos inocentes.
Encontrei a segunda carta de pedido de resgate no tamborete, à entrada. Peguei-lhe com cuidado, pelos cantos, e meti-a na algibeira. Não havia por ali ninguém, pelo que saí sozinho e fui para casa, ainda a sorrir com o último comentário de Laverne e perguntando a mim mesmo por que motivo achava necessário esconder a sua relação com os Gloriana.
Quando cheguei a casa, fui imediatamente para o meu quarto, sentei-me à secretária e pus os óculos de leitura. Abri o segundo pedido de resgate com cuidado e examinei-o. Parecia ser semelhante ao primeiro e às cartas enviadas a Lydia Gillsworth. A margem direita estava justificada. A tinta e o papel também eram iguais em todas as cartas.
A mensagem propriamente dita dizia o que Harry Willingan me comunicara. Fiquei divertido pela menção casual ao facto de a Peaches estar de boa saúde mas chorar muito. Era óbvio que a referência pretendia ferir o coração do proprietário da gata, que poderia ter a personalidade de um dragão mas era um baboso de amor no que dizia respeito ao seu irritante animal de estimação.
Juntei o segundo pedido de resgate à minha fotocópia do primeiro, meti os dois num sobrescrito castanho e voltei a sair. Dessa vez, deixei a boina nova em casa, mas levei os óculos de leitura num bonito estojo em peiit point que minha mãe me fizera e oferecera no meu trigésimo sexto aniversário.
Antes de partir, telefonei a Mrs. Trelawney, a secretária particular do meu pai. Perguntei-lhe se conseguiria persuadir o patrão a conceder-me pelo menos quinze minutos do seu tempo, que era rigidamente programado. Fiquei à espera enquanto Mrs. Trelawney ia perguntar. Momentos depois, regressava à linha para me informar que Sua Majestade acederia graciosamente ao meu pedido, desde que lá chegasse às onze e meia em ponto.
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- vou a caminho - garanti.
O Edifício McNally, na Royal Palm Way, é um edifício formal de vidro e aço, tão moderno que me faz doer os dentes. Todavia, é indiscutivelmente impressionante, e foi isso o que levou o meu pai a aprovar o desenho do arquitecto, apesar de eu saber que ele teria preferido uma falsa mansão georgiana.
Todavia, o grande senhor impusera a sua vontade em relação ao seu gabinete privado. Esse era apainelado a carvalho e mobilado num estilo que teria merecido a aprovação de Oliver Wendell Holmes. A maior atracção era uma enorme secretária de tampo de enrolar - original, e não uma reprodução - que tinha, depois de contagem, trinta e seis compartimentos e quatro secretos... que eu soubesse.
Quando entrei, o meu pai estava de pé na frente dessa bela antiguidade, parecendo-se ele próprio com uma bela antiguidade. Lançou-me um olhar feroz e fiquei satisfeito por ter deixado a boina de linho em casa.
- Isto não podia ter esperado? - inquiriu com secura.
- Não, senhor - respondi. - Na minha opinião, trata-se de um assunto que não permite adiamentos.
Não me perguntem porquê, mas por vezes, quando me encontro na sua presença, começo a falar como uma personagem de Dickens. Sabia-o, mas não o podia evitar. Parecíamos um par de advogados discutindo Jarndyce contra Jamdyce.
- Harry Willigan recebeu um segundo pedido de resgate dos raptores da gata - informei-o.
- Já sabia - replicou, irritado. - Willigan telefonou-me esta manhã, com uma péssima disposição, como de costume.
- Sim - concordei -, mas não me parece que tenha visto as duas cartas. Trouxe-as comigo. A primeira é uma fotocópia, a segunda é a original. Por favor, observe-as bem, pai.
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Coloquei-as em cima da secretária. Ainda de pé, dobrou-se para as examinar. Não precisou de muito tempo para compreender. Ouvi-o respirar fundo e depois endireitou-se para me fitar.
- Parecem-se com as venenosas cartas recebidas pela falecida Lydia Gillsworth - declarou, de rosto cerrado.
- São mais do que parecidas. Têm o mesmo tipo de letra e as margens direitas justificadas. Aparentemente, a tinta e o papel também são iguais.
Voltou a respirar fundo e meteu as mãos nos bolsos das calças.
- Onde estão as cartas de Gillsworth? - perguntou.
- É o sargento Al Rogoff quem as tem. Vai enviá-las ao laboratório do FBI para análise.
- O sargento está a par destas cartas?
- Não, que eu saiba. Não lhe falei no desaparecimento da Peaches.
Começou a percorrer o gabinete de um lado para o outro, sempre com as mãos nos bolsos.
- Estou a ver qual é o problema - disse. - O cliente proibiu-nos, especificamente, de que contactássemos a Polícia por causa do rapto da gata.
- E somos obrigados a respeitar os desejos do nosso cliente e a seguir as suas instruções - acrescentei. - Porém, ao fazê-lo, não estaremos a obstruir a investigação oficial de um assassínio? Isto, no caso de todas as cartas haverem sido produzidas pelo mesmo processador de texto ou máquina de escrever electrónica, tal como penso que foram.
Deteve-se para me encarar.
- E também acreditas que foram redigidas pela mesma pessoa?
- Penso que é muito possível.
Ficou silencioso por instantes. Depois declarou:
- Não gosto disto, Archy. Não gosto nada disto. Como advogado, não me agrada sentir-me numa posição em que possa vir a ser acusado de ocultação de provas.
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- Provas possivelmente vitais para a investigação de um crime particularmente hediondo.
Tirou uma das mãos do bolso e começou a puxar pelo espesso bigode, um claro sinal de perturbação. Quando está bem disposto, limita-se a afagá-lo.
- Posso fazer uma sugestão, pai?
- Podes.
- Penso que, neste caso, os deveres cívicos e morais se sobrepõem às considerações éticas. Acho que a Polícia deve ser informada das cartas de Willigan. Talvez não tenham nada a ver com o assassínio de Lydia Gillsworth, mas não nos podemos arriscar. Deixe-me mostrá-las ao sargento Rogoff. Só ele as verá. Tentarei convencê-lo da necessidade absoluta de discrição da sua parte. Al não é um linguareiro. Creio que podemos partir do princípio de que Willigan nunca saberá que falámos à Polícia do rapto da sua gata.
- Não é com Willigan que estou preocupado - retorquiu o meu pai -, é com os raptores. Se descobrirem que a Polícia foi informada, é muito possível que levem por diante a ameaça de matar a Peaches. Nesse caso, a McNally & Filho poderá ser alvo de um processo por parte do nosso conflituoso cliente. Será difícil defender a nossa imagem, porque se trata de um caso claro de quebra da confidencialidade.
Ficámos ambos silenciosos, ponderando todas as ramificações do problema. A decisão não competia a mim, claro. Era o meu pai quem teria de arcar com as consequências e seria presunção minha incitá-lo a seguir uma determinada linha de conduta.
- Muito bem - acabou finalmente por dizer. Mostra as cartas de Willigan ao sargento Rogoff, explica-Ihe as circunstâncias do rapto da gata, e tenta convencê-lo de que o futuro do animal depende da sua circunspecção. - Deteve-se para me lançar um sorriso sombrio e acrescentou. - Isto já para não falar no futuro da McNally & Filho.
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- Convencê-lo-ei - afirmei, guardando as cartas. Penso que tomou a melhor decisão, pai.
- Obrigado, Archy - disse, muito sério. - Ainda bem que a aprovas.
Estou certo de que falava a sério. A ironia não é um dos pontos fortes do Senhor Governador.
Saía para o gabinete exterior quando Mrs. Trelawney me fez sinal para me aproximar. A secretária de meu pai é uma das minhas pessoas favoritas, uma encantadora dama com uma peruca grisalha que lhe fica mal e uma grande tendência para as anedotas picantes. Foi a primeira a contar-me a anedota do americano, do inglês e do francês que visitam uma... bom, estou a fugir ao assunto.
- Que tem andado por aí a fazer, jovem McNally? perguntou, acusadora. - A namorar com mulheres casadas, não? Se anda a fazê-lo, porque é que não fui a primeira da lista?
- Não ando - garanti-lhe -, e se andasse seria a primeira e a única, para sempre. Agora, minha querida, de que me quer falar?
Olhou para o apontamento que escrevera no bloco dos recados telefónicos.
- Enquanto esteve com o seu pai, recebi um telefonema de uma tal Mrs. Irma Gloriana, que exigiu falar pessoalmente consigo. Pela voz, calculei que se tratava de uma pessoa de "uma certa idade". Insiste em que lhe telefone imediatamente. Que se passa, Archy?
- É uma relação profissional - esclareci, à pressa. A senhora é acupuncturista.
Mrs. Trelawney riu-se e entregou-me a mensagem.
- Finalmente, há alguém que o anda a espicaçar com agulhas! - comentou.
Pretendera telefonar ao sargento Rogoff logo que chegasse ao meu gabinete, mas a chamada de Mrs. Irma Gloriana pareceu-me mais imperiosa e intrigante. Sentei-me na secretária e marquei o número. Não era, reparei, o número dos Gloriana, na Clematis Street.
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Responderam-me ao segundo toque.
- Residência Gloriana - disse uma voz de mulher, num tom seco. Era uma voz profunda, muito forte e áspera. Quase podia ser uma voz de estivador.
- Archibald McNally - retorqui. - Estou a falar com Mrs. Irma Gloriana?
- Está, sim, Mr. McNally - afirmou a mulher, num tom mais suavizado. - Obrigada por ter correspondido tão depressa à minha chamada. Hertha informou-me que pretende organizar uma sessão privada.
- É verdade. Segundo compreendi, será com a participação de Hertha, do marido, da senhora, de mim e de uma pessoa minha amiga. Estará bem assim?
- Mr. McNally - respondeu a mulher, maravilhando-me com uma voz tão profunda que era quase um rumor -, gosto de falar pessoalmente com os novos clientes antes de fazer planos. Deve compreender que muitas das pessoas que se nos dirigem não podem ser auxiliadas pelos talentos, únicos, de Hertha. Poupávamos muito tempo (e os eventuais clientes poupam muito dinheiro, é claro) se nos pudéssemos encontrar para lhe poder descrever o que acontece nas nossas sessões, o que procuramos conseguir, e o que não podemos fazer. Preciso de saber o que o senhor pretende. Espero que este... exame preliminar não o ofenda, Mr. McNally.
- De modo nenhum - declarei. - Compreendo perfeitamente que...
- Sabe - continuou a mulher, interrompendo-me -, por vezes somos abordados por pessoas que pretendem o impossível, ou que são apenas motivadas pela curiosidade e não têm qualquer interesse em partilhar a verdade do espiritismo...
- Parece-me ser...
- E há aquelas que vêm apenas para troçar - insistiu, num tom feroz. - A minha nora é demasiado sensível e vulnerável para ser obrigada a lidar com descrentes estúpidos e arrogantes...
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- Garanto-lhe que...
- Quando posso esperar a sua visita, Mr. McNally?
- Posso ir agora, Mrs. Gloriana. - Levarei cerca de meia hora.
- Será muito satisfatório. Por favor, tome nota da morada. Além disso, tem de saber que na nossa casa não é permitido fumar.
Tomei nota da morada, desliguei e acendi imediatamente um cigarro. Fumei-o até ao fim antes de me aventurar a ir ao encontro da megera, que tinha uma voz que parecia uma sirena de nevoeiro.
Enquanto atravessava a ponte para West Palm Beach, tentei extrair algum sentido do que Mrs. Irma Gloriana me dissera. A insistência num encontro preliminar com os novos clientes em perspectiva parecia-me suspeita. Para que era que a médium e os que a rodeavam se interessavam pelos motivos dos clientes potenciais? A capacidade económica para pagar a conta deveria ser, a meu ver, a única exigência obrigatória.
Depois apercebi-me que podia haver um método por trás daquela maluqueira. Mrs. Gloriana queria saber o que eu pretendia da sessão. Suponhamos que desejava contactar com o espírito de Sir Thomas Crapper. Avisados de antemão, Irma, Frank e Hertha descobririam com facilidade que o cavalheiro em questão fora o inventor da retrete com autoclismo, e poderiam invocar um fantasma familiarizado com esse justificadamente famoso engenho.
Por outro lado, os encontros preliminares talvez lhes fornecessem datas e até pormenores pessoais íntimos, que seriam de grande valor para uma sessão espírita. Depois, todos diriam que a médium possuía extraordinários poderes psíquicos.
Era, admito-o uma visão muito deformada dos poderes extra-sensoriais. Porém, naquela fase da investigação acreditava na utilidade de uma saudável dose de cinismo. "Inocente até se demonstrar culpado" é a pedra básica da
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nossa lei. Todavia, a maior parte dos detectives, incluindo eu próprio, prefere uma outra norma: "Culpado até se demonstrar inocente." É assim que os crimes são solucionados.
O edifício onde se localizava o apartamento dos Gloriana não era "miserável", como dissera Rogoff, mas também não era uma torre de luxo. Tinha um ar de elegância desbotada, com cheiro a cozinhados nos corredores e passadeiras coçadas.
A matrona que me abriu a porta do apartamento 1102 era tal como a imaginara: alta, pesada de coxas, mas mais musculosa do que gorda. Havia nela um ar de solidez maciça, com uma grande cabeça bem levantada sobre um forte pescoço. Era, decididamente, uma mulher dominadora.
Todavia, não me preparara para a sua sensualidade, tão declarada que era quase um perfume. Era transmitida, pensei, pelos lábios vermelhos e cheios, pelos cabelos brilhantes e pretos, tão emaranhados como um cesto de sobras, pelos seios amplos, e pelos movimentos soltos com que se deslocava. Era fácil fantasiar que estava nua por debaixo do volumoso vestido de nylon às flores.
Apertou a minha mão com firmeza, e fez-me sentar numa cadeira de braços forrada com um brocado já gasto. Perguntou-me se queria um chá gelado. Respondi-lhe que seria bem-vindo. Quando desapareceu para o ir buscar, tive oportunidade de inspeccionar o apartamento, ou pelo menos a sala em que me encontrava.
Era um lugar feio, de cores mortiças e móveis informes. Custava-me a acreditar que fosse aquela a casa da dominadora Irma, do elegante Frank e da delicada Hertha. Não havia ali um único toque de luxo, nem sequer de conforto. Tratava-se de pessoas ambiciosas, pelo que o apartamento deveria ser uma residência temporária que tinham de suportar até arranjarem coisa melhor.
Mrs. Gloriana regressou com o chá gelado, não trazendo nada para ela, e sentou-se no meio de um sofá ver-
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melho, virada para mim. Não perdeu tempo com preliminares.
- Acredita no espiritismo, Mr. McNally? - perguntou de chofre.
Tomei um gole de chá. Tinha uma sugestão de menta e era muito bom.
- Sou uma espécie de estudante do assunto - confessei. - Ando a ler tudo o que consigo arranjar.
- Ah, sim? E o que está a ler?
Mencionei os títulos de dois dos livros que Mrs. Gillsworth me emprestara.
- Muito bem - declarou Irma Gloriana, aprovadora. - No entanto, tem de compreender que esses livros são pouco mais do que instrutivos. A verdadeira crença deve provir do coração e da alma.
- Compreendo perfeitamente - declarei, receoso de que me quisesse dar lições e temeroso da perspectiva. No entanto, a mulher mudou de assunto.
- Hertha disse-me que lhe pediu ajuda para encontrar o seu gato desaparecido.
- Uma gata, e é de um amigo.
- Talvez ela o possa ajudar. A minha nora tem espantosos poderes psíquicos. Quer saber alguma coisa da gata, durante a sessão?
- Não - expliquei. - Trata-se de outra coisa. Espero receber uma mensagem de Lydia Gillsworth. Tenho a certeza de que a conheceu e de que sabe o que lhe aconteceu.
A expressão da mulher não se modificou.
- Claro que conheci Lydia. Era uma alma sensível. Esteve aqui numa sessão, na noite em que a mataram. Foi uma morte brutal e sem sentido.
- Sim, é verdade. Pensa que há a possibilidade de Hertha conseguir contactar o espírito de Lydia Gillsworth?
- Há sempre uma possibilidade - afirmou, acrescentando com firmeza: - No entanto, como é natural,
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não podemos dar garantias. Quer pedir a Lydia para identificar o seu assassino?
- Sim, era essa a minha intenção?
- Vale a pena tentar - disse, pensativa. - No passado, Hertha ajudou a muitas investigações policiais, e com alguns êxitos, devo acrescentar. Mr. McNally, o custo normal para uma sessão é de quinhentos dólares. Em geral, são divididos entre os vários participantes. Como será apenas o senhor e a pessoa sua amiga, penso que duzentos dólares será mais justo. Acha satisfatório?
- Completamente - respondi. - Aceita cartões de crédito?
- Oh, claro. Essa pessoa amiga... será homem ou mulher?
- Mulher.
- Pode dizer-me o nome dela, por favor? A numerologia é um dos meus interesses e gosto de converter os nomes das pessoas nos seus equivalentes numéricos e de estabelecer perfis psíquicos.
- Chama-se Margaret Trumble.
- É residente nesta área?
Fiquei com a certeza de que estava, sem qualquer dúvida, a tentar tirar nabos da púcara.
- Sim, é uma nova residente.
- Temos tantos refugiados vindos do Norte, não é verdade?
Se esperava que divulgasse a terra de origem de Meg, deve ter ficado desapontada. Limitei-me a acenar.
- O meu filho disse-me que trabalha numa firma de advogados, Mr. McNally.
- Sim, a McNally & Filho. O meu pai é o advogado.
- E o senhor, não é?
- Infelizmente, não - respondi, incapaz de tirar os olhos do pescoço nu da mulher, que tinha uma pele tão impecável e macia que era capaz de ficar magoada com um simples beijo.
- Qual é o seu trabalho na firma?
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Não era um interrogatório de terceiro grau. Era apenas de segundo.
- Principalmente investigações. É, em geral, um trabalho maçador.
Acabei de beber o chá gelado, mas não me ofereceu segunda dose.
- Conhecia Lydia Gillsworth há muito tempo? perguntou.
- Há vários anos. Ela e o marido eram nossos clientes, para além de serem vizinhos.
- Conheci Roderick Gillsworth - disse Mrs. Irma. Veio a algumas das nossas sessões com a esposa. Ou antes, com a falecida esposa. Achei-o um homem muito inteligente e criativo. E um poeta, sabe?
- Sim, eu sei.
- Foi suficientemente simpático para me oferecer os volumes autografados dos seus poemas. Leu esses trabalhos, Mr. McNally?
- Alguns - afirmei, com toda a cautela.
- Qual é sua opinião sobre a poesia de Mr. Gillsworth?
- Hum... - respondi -, é muito cerebral.
- Sim, sem dúvida - concordou, com a voz profunda e ressonante. - No entanto, creio que é mais do que um intelectual. Pressinto, nos seus poemas, um espírito selvagem e primitivo que luta por se libertar.
- Pode ter razão - assenti, diplomaticamente, pensando que nunca ouvira uma tolice tão grande. Roderick Gillsworth, um espírito selvagem e primitivo? Pode ser... mas nesse caso eu sou Vlad, o Empalador.
Pôs-se de pé como uma coisa sem ossos que se desdobrasse.
- Tentarei organizar a sessão para um dia desta semana, Mr. McNally. Avisá-lo-ei com, pelo menos, um dia de antecedência. Será suficiente?
- Claro que sim. Posso ter de falar com a sua nora antes disso, se ela conseguir mais informações sobre a Peaches.
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- A Peaches?
- A gata desaparecida.
Sorriu inesperadamente. Foi um sorriso malandro que a fez parecer mais nova. E também mais sedutora, devo confessá-lo.
Hesito sempre em utilizar o termo "sedutora" para descrever qualquer mulher, mas não encontro palavra mais apropriada do que essa para definir Irma Gloriana. Não estou a querer dizer que os seus modos eram deliberadamente estudados para seduzirem, mas não acreditava que não tivesse alguma consciência da sua atracção física. Ou talvez não tivesse. De qualquer modo, projectava uma forte e avassaladora sexualidade, que era impossível de ignorar.
- A Peaches - repetiu. - É um nome encantador. - E a gata é encantadora?
- A gata é um horror - declarei, e desta vez a mulher riu-se alto, com uma gargalhada estrondosa. No entanto, o meu amigo tem por ela um verdadeiro amor - acrescentei.
- Amor - murmurou, repentinamente séria. - E uma emoção tão inexplicável, não é, Mr. McNally?
- E é mesmo - concordei. O aperto de mão final foi quente e suave, muito diferente do duro e frio cumprimento com que me recebera.
Regressei ao escritório tentando pôr em ordem as minhas impressões a respeito de Mrs. Irma Gloriana. Al Rogoff designara-a inicialmente por "uma tipa dura", e compreendia a sua reacção. Todavia, a mulher era bastante mais do que isso: era uma senhora profunda, com contradições que não conseguia entender à primeira. Tinha a sensação de que ela estava a desempenhar um papel, mas eu não tinha nenhuma ideia sobre o guião.
Quando cheguei ao Edifício McNally, a primeira coisa que fiz foi telefonar ao sargento Al Rogoff. Não estava, pelo que deixei o nome e o número do telefone, pedindo para que me ligasse logo que possível.
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A seguir, trotei pela escada abaixo em direcção ao departamento de imobiliário, no primeiro andar. Esse sector do nosso supermercado legal aconselhava os clientes sobre a compra e venda de propriedades comerciais e terrenos. Também auxiliava nas negociações respeitantes a habitações privadas, ajudava a conseguir hipotecas e representava clientes em reuniões.
A chefe do departamento era Mrs. Evelyn Sharif, uma senhora jovial, casada com um libanês que vendia tapetes orientais na Worth Avenue. Porém, Evelyn estava ausente, em licença de parto (esperava gémeos!), pelo que falei com o seu assistente, Timothy Hogan, um irlandês que usava fatos italianos, camisas inglesas, gravatas francesas e sapatos espanhóis. O homem era uma espécie de Nações Unidas andantes!
Expliquei-lhe o que precisava: tudo o que conseguisse descobrir sobre o escritório dos Gloriana na Clematis Street e sobre o apartamento perto de Currie Park. As informações deveriam incluir rendas, prazos de aluguer, manutenção, preço de compra do apartamento no caso de ter sido comprado e não alugado, bem como as referências que tivessem fornecido.
- Tens a certeza de que não queres saber o nome do dentista a que vão? - perguntou Hogan.
- Sei que é muito trabalho, Tim - respondi-lhe -, mas vê o que podes fazer, está bem?
- Que me irás dar em troca?
- Em troca, não direi ao velho que andas a vender lotaria irlandesa durante as horas de trabalho.
- Chama-se a isso extorsão - protestou.
- Ah sim? - retorqui. - Pois olha, era capaz de jurar que se chamava chantagem. Seja como for, faz o que puderes, Tim.
De volta ao armário que me servia de gabinete, atarefei-me ao telefone, ligando para um certo número de contactos em bancos, casas de corretagem e agências de crédito. A maior parte das pessoas com quem falei era sócia do
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Clube Pelicano, e o único preço que tive de pagar pelas informações confidenciais sobre a situação financeira dos Gloriana foi a promessa de um jantar no clube.
A tarde ia já adiantada quando terminei os telefonemas. Um ruído abafado proveniente das tripas recordou-me que, para além do pequeno-almoço, tudo o que ingerira naquele dia fora um copo de chá gelado e o fumo de um cigarro. Caminhava para a porta para uma paragem de emergência na manjedoura mais próxima quando o som tilintante do telefone me fez regressar à secretária. Era o sargento Rogoff.
- Estou a telefonar-te do aeroporto - declarou. Liguei para a sede e informaram-me que me tinhas procurado.
- Que estás a fazer no aeroporto? - inquiri. - Vais fugir para Pago Pago?
- Quem me dera... Vim apenas certificar-me que Roderick Gillsworth se metia no avião. Vai levar o caixão para o Norte.
- E meteu-se?
- Sim, já partiu. Estou um pouco nervoso por o deixar ir, mas jurou-me que voltaria dentro de um par de dias. É melhor que o faça... ou serei considerado um parvo de primeira classe por tê-lo deixado partir.
- Al, não me digas que ainda suspeitas dele?!
- Não... mas é uma testemunha material, não é?
- Como era que ele estava?
- Deu-me a sensação de estar a curtir uma ressaca.
- Acertaste em cheio - confirmei. - A noite passada, quando o deixei, emborcava a garrafa como se houvesse uma nova lei seca ao virar da esquina. Escuta, Al, preciso de falar contigo.
- E o que estás a fazer.
- Queres que seja mais preciso? - perguntei, com um suspiro. - Pois bem, aqui vai: sargento Al Rogoff, é extremamente importante que me encontre consigo pessoalmente, uma vez que quero mostrar-lhe certas cartas
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que podem ter alguma importância para a sua actual investigação de um homicídio. Então, que tal?
- Quais cartas? - inquiriu.
- Al - queixei-me -, ainda acabas por me matar!
- com todo o gosto - afirmou.
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Al informou-me que queria voltar a casa dos Gillsworth para se certificar que o poeta a deixara bem fechada quando saíra. Disse-lhe que iria ter com ele dentro de uma hora.
- Não há pressa - respondeu. - vou lá ficar um bocado.
Pensei que se tratava de uma afirmação estranha, mas não fiz comentários. Peguei no sobrescrito com as cartas de Willigan e desci pelo elevador até à garagem subterrânea. Acenei ao homem da segurança e saltei para o Miata, a fim de ir a casa.
Não havia ninguém no castelo dos McNally, pelo que me precipitei para a cozinha e preparei uma espessa sanduíche de pão de centeio, com muito salame, coberto por uma mostarda capaz de nos pôr os cabelos em pé. Arrefeci o fogo com uma lata de cerveja sem álcool e corri depois em busca das chaves de Gillsworth, não fosse dar-se o caso de lá chegar antes de Rogoff.
Porém, quando cheguei, havia um carro da Polícia estacionado à entrada e a porta da frente estava aberta. Entrei e chamei:
- Al?
- Estou aqui! - gritou, e encontrei-o reclinado num cadeirão florido, na "sala onde Lydia Gillsworth fora assassinada. Tirara o boné e fumava um dos seus grandes charutos.
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- Faz de conta que estás em tua casa - disse-lhe.
- Já o fiz - retorquiu. - Deixa-me ver essas cartas de que me falaste.
Atirei-lhe o sobrescrito.
- A fotocópia é da primeira carta recebida por Harry Willigan. A segunda é o original. Mexe-lhes com cuidado, podem ter impressões digitais.
Leu as duas cartas lentamente enquanto me refastelava numa cadeira de verga e fumava um cigarro. No fim, ergueu o olhar para mim.
- O mesmo papel - comentou. - Parece a mesma tinta, o mesmo tipo de letra e até as mesmas margens justificadas.
- É verdade - concordei. - Não tas mostrei antes porque o nosso cliente o proibiu. Conheces Willigan?
- Conheço - respondeu, com uma careta. - É um estupor insuportável.
- Estou de acordo. Se descobrir que te comuniquei o rapto da gata, passará a ser um ex-cliente nosso e provavelmente processará a McNally & Filho por quebra de confidencialidade. Al, és capaz de te manter calado a esse respeito? O meu pai sabe que te estou a mostrar as cartas. A decisão foi dele. Tudo o que pedimos em troca... é a tua discrição.
- Está bem - declarou. - Sou bom a guardar segredos. Que fizeste até agora para encontrares a maldita gata?
- Não muito - expliquei. - Houve uma coisa que fiz... e provavelmente vais rir-te. Fui ter com Hertha Gloriana, a médium, e pedi-lhe ajuda para localizar a gata.
Al não se riu.
- Foi boa ideia - afirmou. - A Polícia não gosta de o admitir, mas os médiuns são consultados mais vezes do que podes imaginar, quase sempre por causa de pessoas desaparecidas. Que te disse ela?
Repeti a descrição que Hertha fizera do quarto em que a Peaches era mantida prisioneira.
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- Não foi capaz de me dar uma localização definida, mas prometeu continuar a tentar. Achas que esses pedidos de resgate têm alguma coisa a ver com o homicídio da Gillsworth?
- com toda a certeza - admitiu. - As cartas são demasiado semelhantes para podermos falar em coincidências. vou mandá-las para o FBI e pedir uma comparação. Aposto que foram todas impressas na mesma máquina.
- Então, que fazemos agora?
- Nada, até chegar o relatório do FBI. Se Willigan receber instruções para entregar os cinquenta mil dólares, avisa-me e tentaremos montar uma armadilha. Haverá alguma coisa para beber nesta casa?
- Deixa-me procurar - pedi. - Sou um vizinho: Gillsworth não se importará que tome um copo ou dois.
Fui à cozinha e encontrei a minha garrafa de vodca, no frigorífico. Ainda tinha um terço do líquido. Levei a garrafa e dois copos para a sala, e depois fiz nova viagem à cozinha para ir buscar um balde com cubos de gelo e um jarro de água.
- Serve-te - disse-lhe. - É uma garrafa dos McNally, que emprestei ao Gillsworth a noite passada.
Preparámos as bebidas e instalámo-nos. Era na verdade uma sala muito atraente e confortável, se não se olhasse para as manchas de sangue que ainda não tinham sido raspadas ou pintadas.
- Disseste-me que Mrs. Gillsworth te mostrou a bengala que a matou? - inquiriu o sargento.
- É verdade.
- Tocaste-lhe?
- Não, ela segurou-a enquanto ma mostrava.
- O punho tem muitas impressões digitais - declarou Al. - As dela, de Gillsworth, e outras.
- Provavelmente do negociante de antiguidades que lha vendeu.
- Sim, e de outros clientes que lhe tenham mexido,
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na loja. Mas havia outras, apenas parciais. O nosso especialista em impressões digitais diz que foram feitas por alguém que usava luvas de látex.
- O assassino?
- Parece provável, não achas? As impressões do látex encontravam-se por cima das outras, mais antigas, pelo que devem ter sido as últimas a serem feitas.
- Aonde é que isso te teva?
- A lado nenhum... a não ser que vejas um tipo, no Clube Pelicano, a usar luvas de látex.
- Os cirurgiões usam-nas.
- Tal como os pintores, os lavadores de janelas, as pessoas que esfregam os soalhos, os dentistas, e o proctologista da vizinhança; Como te correm as coisas com os Gloriana?
- Vão preparar uma sessão privada para mim, esta semana.
- Então encontraste a tal tipa. Atirou-se a ti?
. - Não me parece que seja uma tipa, Al, e não se atirou a mim.
Olhou para mim com um ar interrogativo.
- Pois, mas não ficaste com a impressão de que não se sentiria ofendida se te atirasses?
- Talvez - respondi, com todo o cuidado. - Penso que se trata de uma mulher muito complexa.
- Tu e as tuas complexidades! - exclamou, num tom de desprezo. - Para ti, uma pá não é uma pá. É um instrumento de bordos afiados, usado para escavar, e que pode ser introduzido na terra com a ajuda da pressão do pé. Para mim, Gloriana é uma tipa com uma mentalidade retorcida.
Deixei passar. Al pensa como um polícia. Eu penso como um intelectual idoso.
- Calculo que tenhas investigado os Gloriana. Descobriste alguma coisa?
- Nada de especial - informou. - Mandei fazer muitas perguntas e estou à espera das respostas. Podem
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surgir novidades... mas não vale a pena conteres a respiração.
Falei-lhe nos inquéritos que levara a cabo para determinar a situação financeira dos Gloriana.
- Boa ideia - disse Al. - Aposto que estão por baixo, mas não passa de um pressentimento. Boa vodca, Archy.
- É toda tua - declarei, terminando a minha bebida e levantando-me. - Tenho de voltar para casa, por causa da hora do cocktail familiar, ou então o papá e a mamã mandam os cães à minha procura. Há uma coisa que precisas de saber, Al. Não és o polícia favorito de Gillsworth.
- Diz-me outra que eu não saiba. Descansa, que não perco o sono por causa disso.
- Perguntou-me se me podia telefonar do Norte, para que eu lhe fizesse um relatório sobre a investigação. Pensa que lhe estás a esconder coisas.
- E estou - afirmou Rogoff com um sorriso duro. Fazes-me um favor? Se ele telefonar, diz-lhe que estou a actuar de um modo muito misterioso e que pensas que tenho uma boa pista de que não quero falar.
- Ah! E tens uma pista?
- Não.
- Então por que motivo devo dizer-lhe isso?
- Apenas para o agitar, para o manter em desequilíbrio.
- O teu nome do meio é Maquiavel ou Borgia?
- Por acaso é Irving, mas não digas nada a ninguém. Ri-me e ia a sair, mas parei.
- Vais ficar aqui? - perguntei-lhe.
- Durante um bocado. Pensei em dar uma vista de olhos pela casa.
- Para quê?
- Nunca se sabe, pois não?
- Eh! - protestei. - Essa frase é minha.
- Pois é - confirmou Al -, e podes ficar com ela.
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Estava a servir-se de nova dose de vodca quando o deixei.
Pus o carro em andamento e segui pela Via Del Lago em direcção à praia. Pouco depois, saía um carro do Ocean Boulevard e virava na minha direcção. Reconheci a chocolateira, um velho Chevy que estava bem precisado de uma reparação geral. Quando passou por mim, identifiquei a condutora pelo seu cabelo cor de cenoura. Era Marita, a mulher-a-dias haitiana dos Gillsworth, que, de acordo com Roderick, recebera duas semanas de férias. Encostei ao passeio, parei e fiquei a olhar pelo espelho lateral.
Marita parou junto do carro da Polícia, nada admirada por o ver, saiu e dirigiu-se para a casa. Era uma mulher pequenina e rechonchuda que caminhava de um modo ondulante. Não havia engano possível por causa da cor do seu cabelo.
Arranquei outra vez e dirigi-me a casa. Não duvidei, nem por um momento, que Marita fora convocada pelo sargento Rogoff. O encontro fora combinado e nem valia a pena tentar adivinhar para quê. Era óbvio que Al não me contava tudo a respeito daquela investigação. Por outro lado, eu também não lhe contava tudo a respeito da minha, tal como a relação entre Laverne Willigan e os Gloriana.
Havia outra coisa que não lhe dissera, e que na verdade também não dissera a mim mesmo, uma vez que não se tratava nem de um facto, nem de uma ideia, mas apenas de uma vaga noção. Também não tenho a intenção de vos dizer o que era, pelo menos neste momento. Eram capazes de se rirem.
Nessa noite, o cocktail familiar e o jantar decorreram sem incidentes. Depois do café, a minha mãe foi para a sua televisão na sala do primeiro andar, o meu pai retirou-se para se agarrar ao Dickens, no seu estúdio, e eu trotei mais para cima para ir trabalhar no diário.
Nessa noite fui interrompido por dois telefonemas. O primeiro foi de Connie Garcia.
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- Patife! - começou. - Porque não me telefonaste?
- Estive muito ocupado - respondi. - Tenho um emprego, sabes, e farto-me de trabalhar. Não sou apenas mais uma cara bonita.
- Quanto a isso, posso testemunhá-lo em tribunal declarou, com um risinho. - Tens visto Meg Trumble ultimamente?
- Não a vejo há alguns dias - afirmei, sentindo-me muito virtuoso por poder ser honesto. - É capaz de ter voltado para o Norte.
- Espero que fique por lá - retorquiu Connie. Escuta, tenho uma coisa de família para amanhã, a festa de noivado de um dos meus primos... mas estou livre para o almoço. Faz-me uma proposta.
- Connie, queres ir almoçar comigo amanhã?
- Que excelente ideia! Adoraria. Vai buscar-me por volta do meio-dia, está bem?
- Podes apostar. Tenho uma coisa nova para te mostrar. Uma boina castanha.
- Oh, céus! - exclamou.
Regressei ao diário, escrevinhando rapidamente até iniciar o relato do encontro com Irma Gloriana. Fiz uma pausa, para me recostar e para olhar para o tecto manchado, tentando focar melhor as minhas impressões.
Pensara que Frank Gloriana funcionava como gestor dos negócios de Hertha, mas o papel de Irma nos preparativos para a sessão e as suas maneiras autoritárias levavam-me a admitir que talvez fosse ela o comandante-chefe da organização dos Gloriana.
Se estes estavam envolvidos em vigarices, tal como começava a pensar, então Irma era a Mãe Barker do bando, uma chefe muito robusta e atraente. Isso daria a Frank o lugar de ajudante vaidoso. Qual era o papel desempenhado por Hertha? Não acreditava que aquela doce e límpida inocente pudesse ser culpada de qualquer ilegalidade. Tinha lábios demasiado macios e quentes para ser uma criminosa. (Sei que se trata de um non sequitur muito ridículo. Não precisam de mo dizer.)
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As minhas ruminações foram interrompidas pelo segundo telefonema, desta vez de Roderick Gillsworth, em Rhode Island.
- Que tal têm corrido as coisas, Rod? - perguntei-lhe.
- Tão bem quanto seria de esperar - respondeu. Não é o que os médicos dizem quando o paciente está in extremis? O funeral está marcado para amanhã, depois de um serviço religioso, ao meio-dia. A seguir, tenho de estar presente a um jantar volante, em casa de uma velha tia. Tenho medo que me sirvam vinhos caseiros ou chá de camomila, pelo que será melhor fortificar-me com antecedência. Devo conseguir sobreviver.
- Claro que sobreviverá. Quando volta?
- O voo está marcado para quarta-feira de manhã. Diz-me, Archy, há alguma novidade na investigação?
Hesitei durante o tempo suficiente para o levar a insistir.
- Então?
- Não há nada de definitivo... mas falei hoje com o sargento Rogoff e fiquei intrigado. Parecia muito satisfeito consigo mesmo, como se tivesse descoberto qualquer coisa importante. Porém, quando o interroguei, limitou-se a encolher os ombros.
- É um homem horroroso - declarou Gillsworth. Se na quarta-feira, quando regressar, não conseguir saber o que se passa por seu intermédio, irei directamente ao seu superior e exigirei saber qual é a situação.
Achei que a frase não precisava de resposta.
- Passei esta tarde por sua casa, Rod, só para me certificar de que estava fechada. Está tudo bem.
- Obrigado, Archy. Posso telefonar-te de novo, amanhã, para saber se há novidades?
- Claro que sim.
- Agradeço o que tu e o teu pai têm feito por mim. Podes dizer-lhe que tenho estado a pensar no testamento. Quando voltar, já o devo ter esboçado em termos gerais.
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- Óptimo. Vai ficar satisfeito por o saber. ?& Desliguei o aparelho. Mentira, tal como Al Rogoff
me pedira. Perguntei a mim mesmo porque seria que o sargento dava a Gillsworth a falsa noção de que o assassínio da mulher se encontrava perto da solução. Por vezes, Al segue por caminhos misteriosos.
Era quase meia-noite quando terminei os apontamentos no diário. Decidi que não queria fumar, beber, ou ouvir Robert Johnson a cantar Kindhearted Woman Blues. Por isso, fui para a cama com pensamentos felizes porque Meg Trumble iria chegar no dia seguinte. Tinha a esperança de que ela fosse kindhearted para que eu não precisasse de cantar blues.
Na terça-feira de manhã acordei com o rugido do que me pareceu ser uma brigada de cortadores de relva. Cambaleei até à janela, olhei para o exterior e deparei com a nossa equipa de jardineiros a trabalhar a todo o vapor. Apareciam periodicamente para cortar a relva, aparar os arbustos e pulverizar tudo o que estivesse à vista.
Faziam tanto barulho que concluí ser inútil tentar voltar ao meu sono sem sonhos, o que explica por que motivo fiquei lavado, barbeado e vestido a tempo de tomar o pequeno-almoço com os meus pais. Era uma ocorrência tão rara que olharam para mim, espantados, e a minha mãe perguntou:
- Estás doente, Archy?
Provei-lhe que estava em perfeita forma devorando uma dose hercúlea de ovos mexidos com cebolas e salmão fumado. Ao café, falei ao meu pai do telefonema que Gillsworth me fizera na noite anterior e disse-lhe que o poeta regressaria na quarta-feira, pronto para redigir um novo testamento.
Levantou os olhos do Wall Street Journal apenas o tempo suficiente para me fazer um aceno. A seguir, informei-o que estava à espera de ir ter um dia muito agitado e que por isso preferia seguir para o escritório no meu
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carro, em vez de lhe fazer companhia no Lexus. Consegui um segundo aceno. O patrão não gosta de ser interrompido quando verifica o valor dos seus certificados do Tesouro.
Corri ao segundo andar para ir buscar um maço de tabaco, os óculos de leitura e a boina castanha, que dobrei e meti no bolso do casaco. O casaco daquele dia era de algodão indiano e ostentava um colorido suficientemente berrante para enraivecer qualquer touro que passasse junto de mim.
Cheguei ao meu gabinete em miniatura a tempo de receber um telefonema de Mrs. Irma Gloriana.
- bom dia, Mr. McNally - disse, seca, e nem sequer esperou que retribuísse o cumprimento. - Preparei uma sessão privada para si, e para a sua companheira, para amanhã à noite, às nove horas. Acha satisfatório?
- Inteiramente - respondi. - Podemos...
- A sessão será aqui, no apartamento - continuou. Concluímos que um ambiente caseiro e informal permite uma sessão com mais probabilidades de êxito do que num escritório.
- Eu posso...
- Por favor, seja pontual - prosseguiu, enquanto eu desesperava por contribuir para a conversa. - Como deve imaginar, estas sessões são um grande esforço para Hertha, e se se atrasarem só servem para acentuar a sua tensão espiritual.
- Chegaremos a horas - disse apressadamente, conseguindo fazê-lo antes da mulher desligar.
Que mulher mais peremptória! Interroguei-me sobre o que teria acontecido ao marido. Morrera de frustração por não ter tido oportunidade para pronunciar uma palavra? Ou divorciara-se por causa de uma mulher mais dócil que gostasse de conversar e com quem pudesse desabafar, durante horas, queixando-se da gastrite e dos joanetes? Quanto a mim, o marido de Irma saíra de casa para ir comprar pão, desaparecera, e estava agora empregado como leiloeiro em qualquer parte.
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Naquela manhã, trabalhei abnegadamente na minha folha de despesas, uma tarefa mensal que constituía um verdadeiro desafio à imaginação. Os meus labores foram interrompidos por três telefonemas de informadores que questionara sobre a situação financeira e de crédito dos Gloriana.
Quando chegou à altura de sair para ir almoçar com Connie Garcia já me encontrava convencido de que Al Rogoff tivera razão. Financeiramente, os Gloriana estavam muito em baixo. Não eram candidatos ao subsídio de desemprego - longe disso -, mas as contas bancárias eram preocupantemente baixas e tinham uma pouco invejável reputação de cheques devolvidos. Acabavam sempre por os cobrir, mas os cheques carecas costumam provocar alergias aos banqueiros, que em geral sugerem aos clientes para irem fazer negócios para outro lado.
Segui para a praia a fim de ir buscar Connie, pensando no enfraquecido estado pecuniário dos Gloriana e sonhando com toda a espécie de esquemas mirabolantes que os relacionassem com o rapto da Peaches. A ligação parecia-me óbvia... o que provavelmente queria dizer que estava enganado.
Quando Miss Garcia saiu, saltitante, do seu gabinete na mansão de Lady Horowitz, encontrou-me elegantemente encostado ao Miata com a boina nova no alto da tola, toda inclinada para um lado. Connie olhou-a durante muito tempo, de boca aberta, e depois dobrou-se ao meio num paroxismo de riso.
- Por favor! - ofegou. - Archy, por favor, tira isso! Não a suporto! Até me faz doer as costelas!
Muito ofendido, voltei a meter a boina no bolso. Ud quod ali cibus est allis fuat acre venenum. Tradução: a boina castanha de um é a dor de costelas do outro.
Porém, a generosidade de espírito deste vosso herói é suficiente para perdoar uma falta de gosto, pelo que o insulto de Connie ao meu ornamento de cabeça foi rapida-
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mente perdoado enquanto seguíamos para o Clube Pelicano.
Havia uma boa multidão em volta do bar, mas verificámos que eram poucos os sócios sentados na área do restaurante. Sentámo-nos na nossa mesa favorita e Priscilla acorreu para saber o que queríamos.
- Archy - disse Connie -, mostra o teu novo chapéu à Pr is.
Obediente, extraí a boina do bolso do casaco e coloquei-a na cabeça, puxando-a. Priscilla ficou a olhar, sem fala.
- Sabes, Connie - acabou por se manifestar -, esse homem devia ser internado. É óbvio que o seu elevador não sobe até ao último andar.
- O que é óbvio - retorqui - é que vocês as duas são escravas da moda, mas não fazem ideia nenhuma do que é ter estilo. Acreditem no que lhes vou dizer: as boinas de linho vêm aí, e vão ser o máximo.
- Se elas aí vierem - comentou Priscilla -, sou eu quem se vai embora. Querem ficar a discutir chapéus idiotas ou encomendam alguma coisa?
Connie e eu encomendámos vodcas gimlet, para começar, e a seguir optámos os dois pelo prato especial de Leroy para aquele dia: sanduíche de garoupa grelhada com batatas fritas à francesa, bem condimentadas, servida com salada de alface, cebolas vermelhas e molho vinaigrette. Uma beleza!
Connie atacou a comida com entusiasmo e não fez qualquer referência e proteínas, colesterol ou gorduras, o que me deixou muito grato. Os maluquinhos da nutrição são uns companheiros de refeição muito aborrecidos. Fazem com que cada dentada seja um gesto carregado de culpas, o que por sua vez me leva a encher-me de comida para provar o meu desdém pelas calorias. Se Deus quisesse que fizéssemos dieta, não teria criado a vitela cordon b leu.
- A propósito - disse Connie, levantando os olhos
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da salada -, enviei o pedido aos Gloriana, pedindo um perfil psíquico.
- Óptimo - respondi. - Obrigado, Connie. Espero que o pedido não fosse demasiado ridículo.
- Nada disso. Limitei-me a inventar todas as estatísticas vitais, local de nascimento, nome dos pais, etc. Depois comprei um pequeno coração em plástico e enviei-o, dizendo que se tratava de um objecto pessoal muito querido. Estás convencido de que os Gloriana me enviarão um perfil psíquico falso?
.- Será tão falso como o teu pedido - garanti-lhe. Informa-me logo que receberes uma resposta. Entretanto, mando-te um cheque da McNally & Filho por serviços prestados.
- Não há pressa - declarou Connie -, mas não te atrevas a sair da cidade.
Rimo-nos os dois. Connie era na verdade uma mulher alegre e sem facetas ocultas. O que se via era o que se tinha. Penso que o nosso problema - ou antes, o meu problema - estava em nos termos tornado tão familiares ao longo dos anos que desaparecera o mistério. Conhecíamo-nos muito bem um ao outro. Éramos mais companheiros do que amantes, mais acomodados do que apaixonados. Contudo, a acomodação não é o suficiente, pois não? Suponho que é por isso que os homens e as mulheres se enganam uns aos outros.
Pensamentos como estes entristeciam-me e resolvi comprar uma pulseira de ténis com diamantes para oferecer a Connie. Os remorsos são dispendiosos, não são?
Assinei o recibo do almoço e Connie saiu do restaurante à minha frente e dirigiu-se para o bar. Era gratificante ver quantas cabeças masculinas se viravam para ela s e reparar nos olhares de desejo. Connie conseguiu até alguns olhares apreciativos de várias outras damas presentes, pois era uma mulher muito atraente, que irradiava uma verdadeira alegria de viver, a alegria de ser jovem e estar repleta de fogo.
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Percebia que as minhas infidelidades eram estúpidas. Porém, esse conhecimento não me detinha. Consolava-me com a ideia de que se todos actuássemos de uma maneira inteligente e disciplinada, este mundo seria um aborrecimento. Tenho a certeza de que Napoleão pensou o mesmo quando cambaleou de regresso a casa, vindo de Moscovo.
Voltámos para a propriedade de Horowitz e sentámo-nos no carro durante alguns momentos, antes de Connie ter de voltar para o trabalho. Virou-se de lado, para olhar directamente para mim com uma expressão preocupada.
- Archy - disse, num tom firme -, não queres romper comigo outra vez, pois não?
- Romper? - exclamei. - Claro que não! A que propósito vem isso?
- Tens andado muito estranho ultimamente. Muito distante.
- Já te disse que ando muito ocupado. Deves ter sabido do assassínio de Lydia Gillsworth. Pois bem, era nossa cliente e o meu pai quer que eu ajude a Polícia a encontrar o criminoso. Ficámos ambos muito afectados
com a sua morte.
- Compreendo perfeitamente, mas é impossível que estejas ocupado vinte e quatro horas por dia. Não passamos uma noite juntos há séculos!
- A culpa não é minha - repliquei. - Tivemos um pequeno bacanal planeado, mas foste obrigada a trabalhar até mais tarde. Recordas-te?
Connie respondeu com um aceno e acrescentou:
- Isso não impede que planeemos outra pequena orgia. Archy, lembras-te de quando íamos tomar banho nus, no mar, à meia-noite?
- É uma das recordações que guardarei para sempre. Fui picado por uma alforreca venenosa!
- Ora, não foi uma grande picadela.
- Pois não... mas atingiu uma das zonas mais sensíveis da minha anatomia. No entanto, tens razão, Connie. Há muito tempo que nós dois não somos um.
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- Amanhã à noite? - sugeriu.
- Ah! - fiz eu, com os velhos neurónios e dendrites a funcionarem a uma velocidade vertiginosa. - Infelizmente, não posso. Tenho uma reunião com o sargento Al Rogoff para o ajudar a preparar uma declaração para a imprensa a propósito da investigação. Que tal no fim-de-semana? Talvez no sábado à noite?
- Está bem - concordou. - Planearei as coisas. Não me desapontes, Archy.
- Alguma vez te desapontei? Lançou-me um sorriso triste.
- É melhor não responder a isso. - Inclinou-se para a frente para me beijar a face. - Obrigada pelo almoço, amor. Até sábado à noite... mas vê se entretanto me telefonas, está bem?
- Sem dúvida - afirmei. - Absolutamente. Connie regressou ao seu gabinete e eu voltei para casa
aterrorizado com a possibilidade de que, numa data futura, todas as mulheres que enganei se reunam num congresso, comparem queixas e concluam que o linchamento deste vosso amigo seria plenamente justificado. Cheguei a imaginar-me pendurado numa palmeira, vestido apenas com as minhas cuecas de seda estampadas com uma imagem de Pa tocando flauta para um grupo de dríades nuas.
Como não fazia ideia quando era que Meg Trumble me iria telefonar anunciando a sua chegada, decidi não me afastar muito do telefone. Nem sequer fui tomar o meu banho de mar, para não a perder. Dirigi-me directamente para o meu alojamento e liguei o ar condicionado no máximo de frio. O calor não era assim tanto, mas a humidade era opressiva e despi-me até à roupa interior antes de me lançar ao trabalho.
Recordava-me que prometera entregar a Meg uma lista de amigos e conhecidos que poderiam estar interessados em terem uma treinadora pessoal. Consultando o livro de moradas, compilei uma lista seleccionada de ho-
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mens e mulheres que não perderiam nada se suassem um bocado. No fim, e só por graça, acrescentei o nome de Al Roggof.
Chegou a hora de me vestir para o cocktail familiar e ainda não recebera notícias de Meg. Era possível que se tivesse atrasado na estrada por qualquer razão, pelo que pensei que talvez fosse melhor jantar em casa, com os meus pais. Se Meg telefonasse depois de já ter comido, ainda podia levá-la a jantar, mas limitar-me-ia a ingerir fruta fresca. Por exemplo, podia pedir uma rodela de lima colocada por cima de um daiquiri gelado.
Na verdade, só me telefonou um pouco depois das nove horas. Toda ela se desfez em desculpas: o trânsito intenso e as obras nas estradas tinham-lhe dado cabo dos horários.
- Espero que já tenhas jantado, Archy - disse. Detesto pensar que estás a morrer de fome por minha causa.
- Para falar verdade, já jantei - confessei-lhe -, mas isso não quer dizer que tenhamos de cancelar o nosso jantar.
- Não precisas de o fazer - protestou. - vou lá fora comer qualquer coisa e mudamos o nosso jantar para outra altura. Talvez amanhã à noite, se estiveres livre.
- Era disso que te queria falar. Escuta, supõe que fazemos isto: vou procurar uma pizza e qualquer coisa para beber e corro para tua casa enquanto a pizza está quente. Ou então, podes aquecê-la no forno. Que tal?
- Seria óptimo... se realmente o quiseres fazer.
- Quero - repliquei. - Estarei aí dentro em pouco. Na auto-estrada federal, a sul do porto de Palm
Beach, abrira recentemente uma nova pizzeria. Oferecia pizza ao gosto do cliente, para serem consumidas no local ou levadas em caixas isoladas. Já as experimentara várias vezes e achara-as demasiado exóticas... mas a verdade é que só aprecio as de pepperoni.
Fui até lá e escolhi uma pizza para Meg. Era compos-
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ta por beringela, tomates secos ao sol e uma fina camada de gorgonzola. Recordei-me de ocasião em que a Peaches vomitara sobre os meus sapatos, mas estava certo de que a vegetariana Miss Trumble a iria adorar. Adquiri também uma embalagem de seis Diet Pepsi e lá se foi o meu sonho de um daiquiri gelado.
Meg abriu-me a porta com um grande sorriso e um beijo na face, no sítio utilizado por Connie havia poucas horas antes. Tal como disse Willie Loman, é importante sentir que gostam de nós.
Meg tinha um aspecto de espantar. Era óbvio que acabara de tomar um duche. O seu cabelo espetado ainda estava húmido e tinha o rosto a brilhar. Vestia uns calções brancos muito curtos e uma espécie de camisola que lhe deixava a zona central à vista. Podia jurar que aquelas costelas tinham sido desenhadas por Brancusi.
Ale disso, cheirava bem.
O apartamento estava replecto de malas por abrir, caixas de cartão e enormes sacos de plástico a abarrotar. Arranjou espaço em cima de uma mesa baixa para lá colocar a caixa da pizza e abriu latas de Pepsi geladas para os dois. Não se preocupou em aquecer a pizza e começou imediatamente a devorá-la, rolando os olhos de vez em quando e soltando ruídos de delícia.
- Deus do Céu! - exclamei. - Não comeste nada em todo o dia?
- Um pequeno-almoço campestre às sete da manhã respondeu. - Estou realmente esfomeada.
- Nem precisas de o dizer. Meg, telefonaste-me daqui de casa?
Abanou a cabeça.
- De uma bomba de gasolina, mas prometeram-me que irão ligar o telefone amanhã de manhã.
- Óptimo - retorqui -, posso necessitar de te telefonar. A propósito de amanhã à noite, Meg... que pensas de ires a uma sessão espírita comigo?
Receava que fosse capaz de recusar, ou que pensasse
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que a ideia fosse demasiado maluca, o que me impediria de a apresentar aos Gloriana como sendo uma estudante do espiritismo. Todavia, Meg surpreendeu-me.
- Adoraria - respondeu imediatamente. - Laverne e eu costumávamos ir constantemente a sessões dessas. Não sabia que estavas interessado nas coisas da Nova Era.
- Oh, estou, sim - menti, com todo o descaramento. - Ando metido com os cristais, a percepção extra-sensorial, a telepatia, e tudo o mais. Combinei uma sessão privada para amanhã à noite, com uma médium local, o marido e a sogra. Diz-se que a médium é muito dotada. Nunca participei numa sessão dessas e estou ansioso por o fazer. Vais comigo?
- com certeza. A que horas?
- Às nove. Pensei que poderíamos jantar primeiro. Venho buscar-te às sete?
- Estarei pronta - declarou. Lambeu os dedos, cruzou as pernas elegantes e recostou-se, segurando na bebida. Conseguira fazer desaparecer toda a pizza, que, é claro, era apenas de vinte centímetros de diâmetro.
- Deliciosa - afirmou. - Obrigada, Archy, salvaste-me a vida. Quem me dera ter uma bebida mais forte para te oferecer. Amanhã tratarei de encher o frigorífico e de arrumar esta casa, e depois começarei à procura de clientes.
- Ah, ainda bem que falaste nisso - disse, entregando-lhe a lista de clientes potenciais que lhe preparara.
- Formidável - declarou, lendo os nomes. - Ainda bem que não te esqueceste. Como poderei agradecer-te?
Fiz-lhe uma careta à Groucho Marx.
- Pensarei numa maneira - respondi.
- Oh, Archy - exclamou, rindo-se -, és um palhaço! Ficas muito desapontado se ficar para outra altura? Agora, tudo o que desejo é desfazer as malas e pôr o sono em dia.
- com certeza - afirmei, apesar de contrariado. -
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Deves estar exausta depois de tantas horas de condução. - Levantei-me para sair. - Venho buscar-te amanhã às sete, Meg.
Aproximou-se de mim e abraçou-me com toda a força, cortando-me a respiração e fazendo-me recordar os seus braços musculados.
- Amanhã será diferente - sussurrou. - Prometo-te.
- Dorme bem - respondi, com o maior à-vontade de que fui capaz. Fui para casa a pensar que deveria haver um remédio que curasse as esperanças desiludidas.
Roderick Gillsworth não me telefonou nessa noite e fiquei-lhe muito agradecido.
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Porque é que os botões dos casacos e camisas dos homens fecham o lado esquerdo sobre o direito, enquanto nas mulheres fecham o lado direito sobre o esquerdo? Tenho feito esta pergunta às pessoas, nas festas, e lançam-me sempre um sorriso gelado para depois me virarem as costas.
No entanto, tenho a certeza de haver uma explicação para este problema de abotoamento, solução que seja simultaneamente profunda e simples. Sentia o mesmo a respeito do desaparecimento da Peaches e do assassínio de Lydia Gillsworth. Eram mistérios gémeos que deveriam ter uma explicação lógica e satisfatória, que eu não conseguia encontrar.
Passei a quarta-feira a rever lentamente o meu diário, lendo duas vezes cada alínea. Nada encontrei que sugerisse uma conjura diabólica capaz de justificar o desaparecimento de um Felis domestica e a morte da esposa de um poeta. Tudo o que o diário continha era uma confusão de factos e impressões. Não tinha outra solução senão a de rezar para que a sessão daquela noite revelasse uma sugestão espectral que me pudesse inspirar.
Conduzi até ao escritório e encontrei, em cima da secretária e fechado num sobrescrito, um memorando de Tim Hogan, o chefe temporário do nosso departamento de imobiliário. Dizia respeito ao escritório e ao apartamento dos Gloriana.
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O escritório comercial na Clematis Street fora alugado por um ano. Os Gloriana tinham pago dois meses de caução, como garantia, mas estavam com um mês de atraso nos pagamentos das rendas. Do mesmo modo, o apartamento onde viviam não fora comprado, mas sim alugado com um contrato mensal renovável. De momento, os Gloriana tinham a renda em dia.
Em ambos os casos, as referências que haviam dado eram provenientes de um banco e de particulares de Atlanta. Muito eficientemente, Hogan fornecera nomes e moradas, e acrescentava que aparentemente aquelas referências nunca tinham sido confirmadas. Era um facto invulgar mas não extraordinário no mundo do negócio imobiliário da Florida do Sul.
Telefonei ao sargento Rogoff e disse-lhe o que ali tinha.
- Porque não fazes essa verificação, Al? - sugeri. Só pelo divertimento.
- Pois - resmungou. - Está bem. Mas em primeiro lugar, pelo sim, pelo não, entrarei em contacto com os chuis de Atlanta.
- Boa ideia - disse, incitando-o. - É a primeira pista que temos sobre por onde andaram os Gloriana antes de virem para aqui.
Dei-lhe os nomes e moradas das referências dos Gloriana e Al prometeu entrar em contacto comigo logo que tivesse alguma informação. Nesse momento, não fazia ideia sobre qual seria o próximo passo nos meus inquéritos discretos, pelo que decidi ir até à Worth Avenue para ver se podia comprar uma pulseira de ténis para Connie por um preço que não me atirasse para a prisão por dívidas.
O destino resolveu dar uma ajuda benévola à minha investigação... o que prova que, se tivermos um coração puro e comermos a sopa toda, só nos acontecem coisas boas.
Desci até à garagem, para o carro, a fim de fazer a pequena deslocação até à Worth Avenue. Herb, o nosso pesado homem da segurança, saíra do seu cubículo de vi-
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dro e baixara-se para afagar a cabeça de um gato que se lhe esfregava nas canelas. Aproximei-me dele.
- Tens um novo amigo, Herb? - perguntei. Levantou os olhos para mim.
- É um vadio, Mr. McNally - respondeu. - Entrou agora mesmo, pela rampa.
Era o gato mais comprido e magrizela que jamais vira, de um preto empoeirado e com uma malha branca no peito. Tinha uma orelha caída, que parecia ensanguentada. Era óbvio que havia semanas que o pobre animal não tivera uma refeição decente. As costelas e os ossos pélvicos eram perfeitamente visíveis.
Todavia, apesar da situação miserável, o animal demonstrava a sua boa disposição. Ronronava sob as carícias de Herb e depois aproximou-se para me cheirar os sapatos. Baixei-me para o coçar debaixo do queixo. Gostou muito.
- Está esfomeado, Herb - disse.
- Claro que está. Talvez seja melhor dar um salto à cafetaria e arranjar-lhe qualquer coisa para comer.
- À nossa cafetaria? - perguntei. - Arriscas-te a ir preso por crueldade para com os animais. Vais adoptá-lo?
- Talvez - respondeu Herb -, mas se o levo para casa ainda se atira aos aquários dos meus peixes tropicais. Acha que poderia deixá-lo ficar por aqu? Provavelmente é um bom caçador de ratos.
- Por mim, acho bem... se estiveres disposto a tomar conta dele.
- Acho melhor começar por o levar ao veterinário declarou Herb, preocupado. - Trataremos de lhe curar a orelha e de lhe dar um banho.
Fiquei a olhar para baixo, para o gato, e juro que o bichano me sorriu. Era um animalejo despreocupado. Parecia-se com Errol Flynn em A Carga da Brigada Ligeira.
- Vais ficar bem - disse o guarda, dirigindo-se para o seu novo amigo. - O veterinário irá deixar-te como novo.
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Foi então que o relâmpago me atingiu. Dei uma palmada no ombro de Herb.
- Deus te abençoe - disse-lhe, com uma voz rouca. Provavelmente, pensou que estava a aprovar a sua bondade para com um animal ferido e sem casa.
Voltei imediatamente ao escritório e fui buscar as Páginas Amarelas do que a Companhia dos Telefones denominou Greater West Palm Beach. Virei-me para a lista dos veterinários.
Eis o meu raciocínio: e se a Peaches tivesse adoecido enquanto sob custodia dos raptores? Era possível, não era? De facto, até era provável quando o irascível animal se visse aprisionado por estranhos e num ambiente pouco familiar. Os ladrões não teriam qualquer desejo de pôr em risco a vida do seu refém de cinquenta mil dólares e iriam a correr a um veterinário. Tudo o que tinha a fazer era contactar os veterinários locais e perguntar se haviam tratado recentemente um gordo e mal-humorado gato persa cinzento-prateado.
Admito que era um tiro no escuro, mas na altura não tinha nenhuma zona iluminada para onde disparar.
Porém, a tempestade cerebral que me fizera ter aquela ideia sofreu um rude golpe quando dei uma vista de olhos à lista de veterinários nas Páginas Amarelas. Cobria páginas e páginas e pareciam ser muitas centenas. Seria preciso um S. Holmes e todo um regimento de irregulares de Baker Street, para além de um mês só de domingos, para verificar todos aqueles nomes e moradas. Fora um boa ideia, pensei, mas impossível de pôr em prática.
Porém, a seguir, os meus olhos caíram sobre uma curta secção intitulada "Serviços Veterinários de Emergência", onde constavam clínicas e hospitais abertos vinte e quatro horas por dia. Ali só havia quinze nomes e moradas, algumas delas tão distantes como em Boynton Beach. Parecia-me razoável supor que, se a Peaches tivesse adoecido, os seus raptores a levariam ao serviço de emergência mais próximo.
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Estava de novo em actividade!
Cortei à tesoura o vital segmento de folha e marquei, com a minha velha Mont Blanc, todos os serviços de emergência na áreas de West Palm Beach. Eram sete. Calculei que os poderia visitar a todos em dois dias, ou talvez um pouco mais se me aborrecesse com a bisbilhotice rotineira.
Agora, o único problema era o de inventar um cenário que garantisse a cooperação dessas enfermarias da fauna doméstica. O que quero dizer é isto: não podia entrar de rompante, descrever a Peaches e exigir que me informassem se nos últimos tempos haviam tratado uma gata nessas condições. Era certo e sabido que os médicos chamariam a Polícia e lhe diriam para trazer uma grande rede para apanhar borboletas.
Não, o que me fazia falta era uma história imaginária que despertasse o interesse e evocasse respostas. Por outras palavras: uma vigarice de cinco estrelas! Eis o que me veio à cabeça:
"bom dia! Chamo-me Archibald McNally e aqui está o meu cartão-de-visita! Tenho um problema e espero que me possam ajudar. Regressei a noite passada de uma viagem de negócios e descobri no meu gravador de mensagens o recado de uma senhora minha amiga que aparentemente chegou a Palm Beach enquanto estive fora. O recado era frenético. A sua gata - viaja sempre com a Peaches adoecera de repente e ia levá-la a uma clínica veterinária de urgência. A pobre senhora estava tão histérica que se esqueceu de me indicar onde está a morar ou qual a clínica para onde ia levar o animal doente. Gostaria de saber se trataram uma gata desse género recentemente, e se têm o endereço da proprietária. Seria uma enorme ajuda."
A seguir, faria uma descrição da Peaches.
Parecia-me um pedido a que deveria ser difícil resistir. Como era natural, não sabia se o raptor fora homem ou mulher, mas metera a frase da "senhora minha amiga" para sugerir uma ligação romântica que evocasse simpa-
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tia. Emerson disse que todos amam os amantes... mas é claro que nunca conheceu Fatty Arbuckle.
De qualquer modo, foi assim que passei a tarde de quarta-feira. Dirigi-me a quatro diferentes hospitais para animais e representei o meu papel. Em todos eles a recepcionista era uma jovem, sobre a qual atirava com o meu mais brilhante sorriso de cem watts, carregado de encanto. Resultados? Zero.
Todavia, não fiquei desencorajado. De facto, quando me dirigi à praia para a minha natação diária, senti-me deliciado por o meu monólogo ter sido facilmente aceite em todas as clínicas que visitara. Apesar de nenhuma delas ter tratado um felino que correspondesse à descrição da Peaches, todas se tinham mostrado cooperantes, haviam consultado os registos e manifestado a sua pena por não poderem fornecer a ajuda pedida.
Nadei e voltei para casa a fim de me preparar para a hora do cocktail familiar, para o jantar com Meg Trumble e para a sessão espírita que se seguiria, com os Gloriana. Decidi vestir-me de uma maneira sóbria, se não sombria: fato tropical azul-marinho, camisa branca, gravata castanha. Ao examinar-me no espelho de corpo inteiro, achei que estava demasiado parecido com um gato-pingado, pelo que troquei a gravata castanha por uma outra de seda, com desenhos, pintados à mão, de lírios orientais. Ficava muito melhor.
Nessa tarde, durante os martinis, a minha mãe comentou que eu estava "muito elegante". O meu pai lançou uma olhadela aos lírios e a sua sobrancelha levantou-se num movimento reflexo. Porém, tudo o que disse foi:
- Gillsworth já voltou. Telefonou-me esta tarde.
- Está pronto para redigir o testamento? - perguntei.
O patriarca franziu a testa.
- Disse que me telefonava na próxima semana para marcar um encontro. Pessoalmente, preferia que fosse mais cedo - amanhã mesmo, se possível - e disse-lho.
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No entanto, respondeu que ainda não se decidira sobre algumas doações específicas e que precisava de mais tempo. Creio que o homem está a adiar as coisas de propósito, mas não compreendo com que fím.
- Prescott - disse a minha mãe, com delicadeza -, algumas pessoas têm dificuldade em fazer os seus testamentos. Pode ser uma experiência emocional muito dura.
- Ora! - comentou o pai. - Todos nós temos de morrer e a prudência manda que nos preparemos. Redigi o meu primeiro testamento quando tinha nove anos.
- E que bens querias deixar com essa idade, pai? inquiri, rindo-me.
- Todos os meus berlindes - respondeu.
Era óbvio que aquela confissão merecia um comentário trocista, mas não tive coragem para o fazer.
Mais tarde, enquanto conduzia para norte, em direcção a Riviera Beach, o problema do testamento de Roderick Gillsworth eclipsou-se por detrás de uma dificuldade mais imediata. Onde iria levar Meg Trumble a jantar?
Tinha de ser suficientemente perto para poder chegar a tempo à sessão espírita, tal como fora exigido por Mrs. Irma Gloriana. Por outro lado, tinha de ser num lugar suficientemente longe e isolado para ter a possibilidade de não ser visto na companhia de Meg por alguém do corpo de espiões de Connie.
Por fim, decidi-me por um restaurante do Médio Oriente, na Rua 45, não muito longe de uma área conhecida por Mangonia Park. Tratava-se de um pequeno bistro, apenas com seis compartimentos, mas já lá estivera antes e achara que a comida era soberba para quem gostasse de folhas de videira. Tinha um inconveniente: não havia bar e só serviam vinho e cerveja. Porém, parafraseando o Livro, consolei-me com a ideia de que nem só de vodca vive o homem.
Meg estava pronta quando cheguei, o que foi a primeira surpresa agradável. A segunda foi a sua aparência. Usava um vestido de crepe de seda, de mangas curtas,
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dividido em duas zonas de cores sólidas, fúcsia e laranja. Sei que parece uma combinação terrível... mas era formidável. Tinha um pescoço óptimo para jóias, mas usava apenas brincos de ouro com a forma de cavalos-marinhos. Meg conservava ainda a maior parte do bronzeado da Florida e parecia tão elegante, vibrante e saudável que resolvi imediatamente começar a perder peso, a fazer crescer os músculos e a beber apenas gasosa.
Levei-a até ao Café Istambul, garantindo-lhe que, apesar de parecer um sítio ordinário, se tornara no local da moda para os gourmets requintados. Não era uma grande mentira, mas apenas um pequeno exagero para a ajudar a apreciar o jantar numa espécie de tasca onde só havia músicas da "dança do ventre".
A verdade foi que Meg se mostrou fascinada pelo local e até pôs de parte a sua disciplina vegetariana para encomendar moussaka. Eu preferi cordeiro assado com arroz de caril. Partilhámos uma grande salada que deveria ser quase toda de azeitonas pretas, mas que na verdade era de caroços e de botões de couve-flor em picles. Pedi também uma garrafa de retsina gelado. Meg tentou provar o vinho e optou logo por uma coca, pelo que fui forçado, forçado, a beber toda a garrafa.
Foi durante a baklava encharcada em mel que abordei a questão da sessão em que iríamos participar.
- Não sabia que tu e a tua irmã se interessavam por espiritismo - declarei, tão casualmente quanto possível.
- Laverne está mais interessada do que eu - afirmou Meg. - Anda sempre metida nessas coisas. Já pediu o seu horóscopo a uma dúzia de astrólogos e dorme sempre com um cristal debaixo da almofada.
- Pergunto a mim mesmo se conhecerá Hertha Gloriana, a médium que vamos visitar esta noite.
- Nunca a ouvi mencionar esse nome, mas não me admira. Harry entra em órbita sempre que alguém se refere à parapsicologia. Afirma que se trata apenas de uma grande aldrabice. E tu, que pensas, Archy?
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A pergunta incomodou-me, por ter sido feita de um modo tão directo.
- Na realidade... não sei - confessei. - É uma das razões por que estou tão ansioso pela sessão desta noite. Meg, pensas que é possível comunicar com fantasmas?
- Claro que é - retorquiu imediatamente. - Fui uma vez a uma sessão e falei com a minha avó. Nunca a conheci, morreu há mais de cinquenta anos... mas o seu espírito sabia coisas sobre a nossa família que eram verdadeiras e que a médium não teria possibilidade de conhecer.
- O espírito da tua avó disse-te onde se encontrava?
- No céu - respondeu Meg com toda a simplicidade, enquanto eu acabava com o vinho.
Chegámos à residência dos Gloriana dez minutos antes da hora marcada. A família encontrava-se reunida na muito modesta sala e eu apresentei Meg. Os cumprimentos de Irma e Frank fora suficientemente corteses, mas sem demonstrarem muita cordialidade. Porém, Hertha recebeu Meg com calor, segurou-lhe na mão por instantes e fitou-a nos olhos.
- Um Carneiro - declarou. - Não é verdade?
- É, sim - disse Meg. - Como foi que soube? Hertha limitou-se a sorrir e virou-se para mim:
- E como estás esta noite, Peixes?
Acertara, mais uma vez. Claro que lhe teria sido fácil descobrir a minha data de aniversário. com toda a modéstia, tenho de admitir que os meus dados biográficos estão incluídos num livrinho intitulado Os Solteirões mais Apetecidos de Palm Beach.
Hertha usava um longo e flutuante vestido de georgette cor de alfazema que achei mais apropriado para uma festa num jardim do que para uma sessão de espiritismo. Irma Gloriana vestira um fato de saia e casaco preto com um camiseiro de corte masculino, com um laço. O filho Frank, o vaidoso, ostentava um blusão Burberry de lã branca com botões dourados. Maldito fosse, pois fazia com que me parecesse com um inspector das Finanças.
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Não nos ofereceram bebidas, nem houve instruções ou explicações introdutórias. Mudámo-nos todos para uma sala de jantar fracamente iluminada. Tinham removido placas de uma mesa de carvalho, oval, convertendo-a numa mesa redonda onde nós cinco cabíamos confortavelmente. As cadeiras eram de costas direitas e os assentos exibiam um fino almofadado.
Fui colocado entre Irma e Frank. Este segurava na mão esquerda de Hertha, enquanto Meg lhe segurava na direita. Estávamos dispostos como se segue, seguindo os ponteiros de um relógio: Hertha, Frank, eu, Irma e Meg. Pensei que se tratava de um estranho arranjo, porque havia dois homens de um lado e três mulheres do outro. Talvez houvesse uma razão para isso.
Hertha olhou em volta do círculo, devagar, com aquele seu olhar profundo e sem pestanejar. Também falou devagar, na sua voz baixa e profunda.
- Por favor - disse -, apertem as mãos com força. Fechem os olhos e virem os vossos pensamentos para Xatyl, o sacerdote maia que é o meu canal para o outro lado. Tentem convencer Xatyl, com toda a vossa força espiritual, a entrar em contacto comigo.
Ao princípio, de olhos fechados com força, só tinha consciência do musculoso aperto de mão de Frank e do outro, mais macio e húmido, da mãe. Porém, a seguir, tentei pensar em Xatyl. Não fazia ideia de como seria um sacerdote maia - de certeza não seria parecido com os sócios do Clube Pelicano -, pelo que me concentrei no seu nome, repetindo silenciosamente: Xatyl, Xatyl, Xatyl, como se fosse uma mantra.
Pensei que se tinham escoado cinco silenciosos minutos antes de ouvir Hertha voltar a falar numa voz que perdera todas as entoações.
- Xatyl está a aparecer - comunicou. - Muito indistinto... no nevoeiro... Saudações, Xatyl, dos teus suplicantes.
As palavras que escutei a seguir foram um verdadeiro
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choque, não inteiramente por causa do significado, mas sim pelo tom em que foram pronunciadas. Era a voz frágil e esganiçada de um velho, uma voz gasta, que vacilava e por vezes sofria pausas.
- Saudações do Além - disse Xatyl. - Trago-vos o amor de um alto-sacerdote do povo Maia.
Abri os olhos para olhar para Hertha. As palavras saíam-lhe da boca, não havia qualquer dúvida, mas não podia crer que aquela voz antiga e trémula fosse sua. Voltei a fechar os olhos, grato pelos apertos de mão de Irma e Frank, que me mantinham ancorado à realidade.
- Quem deseja contactar um dos falecidos? - perguntou Hertha, na sua voz normal.
- Eu - declarou Meg Trumble imediatamente. Gostaria de falar com o meu pai, John Trumble, que faleceu há oito anos...
- Escutei - disse a voz de Xatyl. - Sê paciente, minha filha.
Aguardámos longos momentos em silêncio. com toda a honestidade, devo dizer-lhes que não sabia o que pensar de tudo aquilo. Confesso que me sentia comovido com os acontecimentos e não tinha qualquer vontade de rir.
- Meg - disse a voz de um homem -, és tu?
A voz era agora viril, quase ressonante, e abri os olhos o suficiente para verificar que as palavras eram proferidas por Hertha.
Ouvi Meg a aspirar o ar de repente e com força.
- Sim, pai - disse. - Estou aqui. Está bem?
- Estou satisfeito, desde que a tua mãe se juntou a mim o ano passado. Agora estamos de novo juntos, tal como tínhamos pedido. Meg, ainda continuas com os teus exercícios?
- Oh, sim, pai - respondeu, com uma gargalhada soluçada. - Continuo. Como está a tua artrite?
- Aqui não há dor, minha filha - declarou John Trumble. - Estamos livres dos sofrimentos do mundo. Meg, já te casaste?
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- Não, pai, ainda não.
- Tens de te casar - afirmou, com gentileza. A tua mãe e eu queremos que sejas tão feliz como nós o fomos. Agora, tenho de ir, Meg. Se precisares de mim, estou aqui... Estou aqui...
A voz afastou-se e pude escutar o choro de Meg.
- Por favor - sussurrou Hertha -, não deixem que o vosso poder psíquico enfraqueça. Apertem as mãos com força e pensem apenas no outro mundo.
Houve silêncio por alguns instantes e depois voltei a escutar a voz trémula de Xatyl.
- Entre vós, há um que está muito perturbado disse. - Deixem-no falar agora.
- Sim - declarei, impulsivamente, escondido por detrás dos meus olhos fechados. - Chamo-me Archibald McNally e desejo contactar Lydia Gillsworth, uma amiga que faleceu há poucos dias.
- vou chamá-la - afirmou Xatyl. - Tem paciência, meu filho.
Tivemos mais uma vez de esperar vários minutos. Descobri-me a apertar as mãos a Irma e Frank com tanta força que me doíam, e tinha a consciência de que respirava muito fundo.
- Archy? - perguntou uma voz de mulher. - És tu?
Logo que ouvi o meu nome, abri os olhos para verificar se era Hertha quem falava, mas juro, juro, que se tratava da calma e pacífica voz de Lydia Gillsworth. Uma voz tão doce...
- Sou eu, Lydia - ouvi-me dizer, quase me engasgando com as palavras. - Estás bem?
- Oh, sim, Archy - respondeu, com uma sugestão de riso na voz. - É tudo como te disse que seria. Já leste os livros que te emprestei?
- Parte, não tudo.
- Tens de ler tudo, querido. A verdade está lá, Archy.
- Lydia - intervim, ansioso por fazer a tal pergunta -, tens de me dizer uma outra verdade. Quem foi que te matou?
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Não houve resposta. Apenas silêncio. Tentei outra vez.
- Por favor, diz-me - implorei. - Não terei paz enquanto não o souber. Quem te assassinou, Lydia?
O que sucedeu a seguir deixou-nos chocados e galvanizados.
- Capricel - guinchou a voz de Lydia Gillsworth. Capricel
As nossas mãos soltaram-se, quatro de nós levantaram-se e ficaram a olhar para Hertha. Permanecia sentada, de cabeça atirada para trás e a garganta nua a agitar-se. Continuava a gritar:
- Caprice! Capricel - Porém, agora fazia-o com a sua própria voz e não com a de Lydia.
Meg Trumble foi a primeira a chegar junto dela. Segurou-a nos braços e murmurou-lhe palavras tranquilizadoras. Amontoámo-nos todos à sua volta. Gradualmente, os gritos agudos foram diminuindo. Hertha abriu as pálpebras e olhou em volta como louca. Estava da cor da cinza e tremia de um modo incontrolável.
Frank saiu apressadamente e apareceu instantes depois com um copo do que parecia ser brande. Meg tirou-Iho das mãos e levou-o, com cuidado, aos lábios da médium. Hertha bebeu um pouco, tossiu, e olhou para nós e para o que a rodeava como se compreendesse finalmente onde se encontrava. Tirou o copo das mãos de Meg e bebeu o resto, ansiosa.
Permanecemos na sala de jantar até Hertha recuperar as cores e conseguir levantar-se, com um equilíbrio algo incerto. Esboçou um pequeno sorriso comprometido e passámos para a sala.
Frank teve a decência de servir brande a todos. Como Meg não tocou no dela, tive direito a um duplo. Bastante falta me fazia. Sentei-me a um canto com Irma e Frank. Do outro lado da sala, no sofá, Meg Trumble reconfortava a médium, com o seu braço musculado em volta dos ombros da outra mulher. Falava-lhe e afagava-lhe o cabelo.
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- Que foi que aconteceu? - perguntei a Irma.
- Hertha - respondeu, com um encolher de ombros - viu ou ouviu qualquer coisa que a aterrorizou. Ficou histérica. Já aconteceu isto algumas vezes. Avisei-o de que se tratava de um espírito muito sensível e vulnerável.
- Caprice - disse Frank, olhando para mim. - Era o que estava a gritar. Tem algum significado para si, Mr. McNally?
Abanei a cabeça.
- Caprice é um capricho, um impulso súbito, uma acção não planeada. Talvez Lydia Gillsworth nos estivesse a dizer que o assassino agiu por impulso súbito e que a sua morte foi inteiramente não premeditada.
- Sim - confirmou Irma. - Deve ter sido isso.
- Agora, estou arrependido de ter feito aquela pergunta - afirmei. - Não pretendia assustar Hertha. No entanto, informei-os do que pretendia perguntar...
- Ninguém o está a acusar - declarou Irma. - Há muitas coisas, neste mundo e no outro, que estão para lá da nossa compreensão.
Hamlet tinha dito aquilo de uma maneira melhor, mas não lho recordei,
- Tem toda a razão, Mrs. Gloriana - confirmei. Respondeu com um aceno e perguntou:
- Trouxe o seu cartão de crédito consigo, Mr. McNally? Entreguei-lho. Ela e Frank saíram da sala para me
irem preparar a conta. Continuei sentado, terminando o brande de Meg e observando as duas mulheres no sofá. Hertha parecia completamente recuperada. Estavam as duas muito juntas, de mãos dadas, soltando risadinhas de colegiais. Achei um bocado descabido...
Irma regressou com a conta. Assinei-a, fiquei com uma cópia e reclamei o cartão.
- Lamento que a sessão tenha terminado como terminou - disse Irma. - No entanto, não foi um falhanço total, pois não?
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- Longe disso - respondi. - Meg conseguiu falar com o pai e eu estabeleci contacto com Mrs. Gillsworth. Estou perfeitamente satisfeito.
- Óptimo. Então talvez queira combinar uma nova sessão privada...?
- Claro que quero. Deixe-me confirmar os meus horários e falar com Meg, para combinarmos uma data apropriada. Ainda estarão aqui no Verão?
- Oh, sim. Temos muita actividade para nos manter ocupados.
- Então terão notícias minhas.
- Quando? - perguntou Irma. Não perdia tempo, a mulher.
- Para breve - disse-lhe, levantando-me e fazendo sinal a Meg.
Troquei um aperto de mão com todos os Gloriana antes de sair. Meg fez o mesmo, mas Hertha abraçou-a, beijou-a nos lábios e ficou agarrada a ela por momentos. Era a gratidão por a ter reconfortado. Não duvido que o fosse.
No percurso de regresso a Riviera Beach, Meg revelou-se tão volúvel que mal conseguia acreditar que aquela fosse a mulher que se mostrara tão reticente durante a nossa primeira deslocação juntos.
- É uma médium maravilhosa, Archy! - repetiu. Tão dotada... Sabia tanta coisa a meu respeito... Foi óptimo poder falar com o meu pai! Não foi incrível ouvir todas aquelas vozes a saírem dela"? E agora, imagina: disse-lhe que queria ser treinadora pessoal e ela insistiu em ser a minha primeira cliente. Não é maravilhoso'?
- Sim.
- Vai fazer o meu horóscopo... gratuitamente! Deve ser assustador ter o dom de ver o Além. Disse-me que em geral se recusa a predizer o futuro, mas que depois de fazer o meu horóscopo me dirá o que vê no futuro, para mim. Não é fantástico'?
Não queria arrefecer-lhe o entusiasmo, e por isso não
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manifestei as minhas dúvidas, nem a acautelei contra confiar demasiado nas previsões de uma vidente. Parecia-me desnecessariamente cruel descrever-lhe as minhas próprias reacções ao que tínhamos acabado de experimentar. Sou uma pessoa essencialmente sem fé, mas acho desprezível troçar das fés dos outros.
Quando parámos em frente da casa de Meg, já a sua efervescência inicial se apagara e falava, de um modo calmo e sério, da espiritualidade e de como negligenciara essa faceta da sua natureza. Dizia que devia começar a procurar as respostas ao que denominava de "grandes perguntas". Presumi que se referia à Vida, à Morte, e ao motivo por que as lavandarias só perdem uma peúga.
Não sabia porquê, mas não me pareceu o momento apropriado para lhe recordar a promessa carnal da noite anterior. Assim, em vez de me arriscar a uma rejeição, disse-lhe:
- Meg, importas-te que não entre? Sinto-me desfeito pelo que se passou esta noite... Por ter ouvido a voz de Lydia Gillsworth e tudo o mais. Penso que é melhor ir para casa e tentar pôr as ideias em ordem.
Concordou prontamente. Concordou tão prontamente que magoou severamente o ego de A. McNally, que pode, ou não, estar a sofrer de um complexo de Don Juan.
Por isso, voltei sozinho para casa, uivando pragas à lua cheia e perguntando a mim mesmo porque fora que Hertha Gloriana concedera a Meg um beijo de despedida, e não fizera o mesmo com o risonho cavaleiro que pagara a conta. Seria que a médium concedia os seus ósculos livremente, sem ter em conta sexos, idades, cores ou origens nacionais? Seria, de facto, a beijoqueira das Oportunidades Iguais?
Quando cheguei a casa, fui directamente para os meus aposentos. Libertei-me das sombrias roupas que usava e enfiei o meu quimono favorito, uma vistosa coisa de seda pintada com um padrão de gazelas saltitantes. A seguir, pus os óculos de leitura, sentei-me à secretária e lancei-me ao trabalho.
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Estava decidido a desempenhar o papel de advogado do Diabo, a encarar os acontecimentos da noite como um cínico que fosse totalmente descrente nas aparições do oculto e tivesse uma explicação perfeitamente racional para o que os outros poderiam considerar como provas do sobrenatural.
Escrevinhei com fúria e eis o que saiu:
O que Hertha sabia de Meg Trumble:
A irmã de Meg, Laverne, era cliente dos Gloriana e provavelmente pedira à médium para lhe preparar um horóscopo. Hertha podia facilmente estar a par da data de nascimento de Meg, da morte dos pais, do interesse de Meg pelos exercícios físicos.
As vozes:
Era claro que ninguém podia conhecer a voz de Xatyl, o sacerdote maia, e que imitar a voz de um velho alquebrado seria relativamente fácil para uma actriz com alguns dotes.
A voz de John Trumble poderia constituir um problema, mas o homem morrera havia oito anos e era duvidoso que Meg se recordasse do som exacto da sua voz. Mais importante ainda era o facto de ela querer acreditar e estar ansiosa por aceitar qualquer voz masculina como sendo a do falecido pai.
A voz de Lydia Gillsworth seria de reprodução fácil para Hertha, uma vez que Lydia estivera presente em várias sessões e a médium a conhecia bem.
Os conhecimentos de Hertha sobre Archy McNally:
Já anteriormente especulei sobre o modo como os Gloriana podiam ter-se informado sobre a minha data de nascimento. Mencionara a Irma, no nosso primeiro encontro, que estava a ler livros sobre espiritualismo. Não revelara que me tinham sido emprestados por Lydia Gillsworth, mas esta fora à última sessão depois de mós ter emprestado e podia ter referido casualmente que me estava a ajudar.
Voltei a ler o que escrevera. Não clamava que as minhas
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explicações e suposições estivessem cem por cento certas. Todavia, podiam estar... e eram uma explicação muito melhor do que a de afirmar que as revelações feitas pela médium se deviam a poderes paranormais. Se tivessem de apostar, de que lado punham o vosso dinheiro?
Porém, a minha actuação descrente e a aplicação da lógica fria aos acontecimentos da sessão falhavam num caso, o mais vital e surpreendente. Refiro-me aos gritos da médium, Caprice!, Capricel, em resposta à minha pergunta sobre a identificação do assassino de Lydia Gillsworth. Esses gritos, que nos tinham chocado a todos, haviam sido proferidos Apelas vozes de Lydia e Hertha.
Afirmara a Irma e Frank Gloriana que essa explosão queria provavelmente significar que o assassino actuara por capricho, num impulso súbito, e que o assassínio não fora premeditado. Era pura conversa fiada, claro. Julgava saber o significado verdadeiro daquele grito.
Tratava-se do carro em que Lydia Gillsworth seguira para casa ao encontro da morte.
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Na quinta-feira de manhã, saí para ir ao meu trabalho de investigação, sem levar a boina... o que de certeza era socialmente mais aceitável do que sair sans culotte. Era minha intenção visitar as três restantes clínicas para animais que faziam parte da lista e receava que o vistoso ornamento de cabeça manchasse a imagem que queria projectar: a de um rústico enamorado à procura do amor perdido e da respectiva gata.
Todavia, tinha primeiro uma pequena tarefa a cumprir e telefonei a Roderick Gillsworth.
- bom dia, Rod - disse-lhe. - Fala Archy McNally. Bem-vindo.
- Obrigado, Archy - respondeu. - Não fazes ideia de como é bom estar em casa.
- Passou um mau bocado?
- Bastante mau - explicou. - Era para te telefonar na terça à noite, depois do funeral, mas tive um duelo com uma garrafa de brande da Califórnia. A garrafa saiu vencedora.
- Não faz mal - retorqui. - De qualquer modo, não havia nada de novo para lhe comunicar. Rod, gostaria de devolver as chaves de sua casa. Vai ficar aí, esta manhã?
Houve uma curta pausa. Depois:
- Só por mais meia hora. Tenho coisas para fazer...
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Ir às compras ao supermercado, e outras do género, incluindo uma visita a uma loja de bebidas, para te poder devolver a garrafa.
- Não se preocupe com isso. Posso passar por aí agora? Será apenas por um minuto, não me demorarei.
- Está bem, podes vir.
Quando cheguei a casa de Gillsworth, vi o seu Bentley estacionado à entrada. Admirava aquele veículo. Tinha uma elegância contida. Era um pouco conservador para o meu gosto, mas indiscutivelmente bonito.
Toquei à campainha, Rod abriu a porta e deixou-me a pestanejar. Em geral, usava cores discretas, azuis, brancos e pretos, nada de berrante. Todavia, naquela manhã, vestia umas calças verdes com uns sapatos de couro amarelo, com franjas. Por cima de uma camisola de manga curta, cor-de-rosa, usava um casaco desportivo de Lilly Pulitzer.
Não sei se conhecem essa peça de vestuário, mas há cerca de vinte anos era obrigatória para todos os jovens de sangue na guelra de Palm Beach. Mrs. Pulitzer especializara-se em estampados de flores, e cada casaco que saía das suas mãos fazia com que o seu proprietário parecesse uma estufa ambulante. Rod era um verdadeiro ramo de margaridas, cravos e rosas.
Viu a minha surpresa e esboçou um sorriso embaraçado.
- Uma verdadeira transformação, não é? - perguntou.
- Sem dúvida - respondi.
- Lydia encontrou este casaco numa lojeca - explicou. - Serve-me perfeitamente, mas nunca tive coragem para o usar. Vesti-o agora... por causa dela. Percebes?
Acenei, pensando que aquele casaco berrante era o mais estranho memorial do mundo.
- Entra, Archy. É demasiado cedo para te oferecer um estimulante, suponho...
- Sim, é duas horas cedo de mais - retorqui -, mas de qualquer modo agradeço a ideia.
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Entrei e ficámos a conversar no vestíbulo.
- Aqui tem as chaves, Rod - disse, entregando-Ihas. - Estava tudo bem na casa quando voltou?
- Tudo óptimo. Obrigado por te teres preocupado. Soubeste alguma coisa de novo sobre a investigação do sargento Rogoff?
- Nem uma palavra. As cartas que Lydia recebeu foram enviadas para o laboratório do FBI, para análise. Rogoff deve receber um relatório em breve.
- Achas que te comunicará o conteúdo do relatório?
- Muito provavelmente.
- Então, gostaria que mo transmitisses - declarou, mas depois acrescentou: - O homem recusa-se a dizer-me o que se está a passar.
Não me apetecia ouvir outra vez as suas queixas contra Al, pelo que mudei de assunto.
- A propósito, Rod - comentei -, tive uma experiência estranha durante a noite passada. Fui a uma sessão dos Gloriana.
O rosto contorceu-se-lhe num sorriso rígido.
- Ah, foste? Deus do Céu, há que tempos que não vou a uma coisa dessas! Não sabia que estavas interessado no espiritismo.
- Quase só por curiosidade - expliquei. - Os Gloriana são umas pessoas fascinantes.
- Sim - declarou, depois de pensar por instantes. Suponho que podemos chamar-lhes fascinantes. Lydia sempre afirmou que a médium tinha um genuíno dom psíquico. Hertha disse-te alguma coisa?
- Nada que eu não soubesse - retorqui. A seguir, lembrei-me de uma pergunta. - Rod, por acaso sabe se Irma, a sogra, é viúva, divorciada... ou o quê? Interroguei-me sobre isso, mas não lho quis perguntar directamente. Pensariam que andava a bisbilhotar.
Fez uma nova pausa antes de responder.
- Creio que Lydia mencionou, uma vez, que Irma era viúva. Sim, já me lembro! O marido era oficial do Exército e foi morto na Guerra da Coreia.
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- É uma mulher forte - comentei. - Dominadora.
- Achas que sim? - inquiriu. - Não será um exagero? Talvez dominante, mas não dominadora.
- Vocês, poetas - retorqui, sorrindo -, fazem belas distinções entre adjectivos.
- Odeio adjectivos e advérbios. São tão fracos, tão vazios... Não concordas?
- Sem dúvida - afirmei, e rimo-nos os dois. Aqui o vosso herói meteu-se no carro, muito satisfeito
e a fazer perguntas a si mesmo. Interrogava-me por que motivo o pássaro se transformara de corvo em pavão, e estava satisfeito por ter mais um elemento para o meu diário: Mrs. Gloriana era viúva.
Dirigi-me para West Palm Beach e iniciei a minha busca. Seria uma grande ajuda para o impacte dramático desta narrativa se vos pudesse fornecer pormenores das visitas infrutíferas a duas clínicas veterinárias de emergência, para depois concluir, triunfalmente, que acertara em cheio na última. Todavia, como decidi que esta narrativa deveria ser tão honesta quanto possível, devo confessar que tive sorte na primeira clínica em que entrei.
Cantei a minha canção à recepcionista, uma jovem muito atraente. Mostrou-se compreensiva e falou para um intercomunicador. Momentos depois, surgiu um veterinário, de um gabinete interior, que se dirigiu a mim. Usava uma comprida bata branca, de médico, com cinco - contei-as, eram cinco! - esferográficas metidas num estojo de plástico, no bolso do peito. Era um tipo baixo e nervoso, que parecia de origem nórdica.
Repeti o meu problema imaginário enquanto o homem pestanejava furiosamente para mim por detrás de óculos de lentes sujas. Devolvi-lhe as pestanejadelas com um olhar que esperava que fosse o mais honesto e sincero possível.
Aparentemente, a coisa resultou, porque o homem declarou, com uma voz esganiçada:
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- Tratei recentemente uma gata semelhante à que me descreveu, mas foi-me trazida por um homem e não por uma mulher.
- Um homem? - perguntei, pensativo. - Então, devia ser o tio. Acompanha-a frequentemente nas viagens para a proteger das abordagens dos estranhos. Trata-se de uma mulher jovem e muito bonita. Pode descrever o homem, por favor, doutor?
- Alto - respondeu. - Cabelos avermelhados, ombros largos. Muito bem vestido, de uma maneira conservadora. Talvez com sessenta e cinco anos.
- Não há dúvida, é o tio - exclamei. - Sinto-me muito mais aliviado. A Peaches estava gravemente doente?
- Não lhe posso divulgar essa informação - protestou, muito sério. - A ética médica não o permite.
- Claro - concordei, à pressa. - Compreendo perfeitamente. Quererá fazer o favor de me dar a morada, doutor? Quero oferecer-lhe toda a assistência que puder.
Regressou ao gabinete e voltou poucos minutos depois para me entregar uma folha autocolante de bloco de apontamentos.
- O homem chama-se Charles Girard - informou. Reside na Federal Highway. É uma estranha morada para alguém com um ar tão próspero como ele tinha.
- É uma residência temporária, tenho a certeza afirmei. - Segundo sei, Mr. Girard e a sobrinha vão a caminho das Pequenas Antilhas. Muito obrigado pela sua cooperação, doutor.
Quando chegara, reparara num frasco de vidro em cima do balcão da recepcionista. Tinha um rótulo pedindo contribuições para a alimentação e reabilitação de felinos vadios. O frasco estava meio cheio de moedas. Extraí uma nota de vinte dólares da carteira e meti-a lá dentro.
- Para os gatinhos esfomeados - acrescentei, com um ar muito beato.
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O veterinário pestanejou ainda mais depressa.
- É muito generoso - comentou. - Obrigado.
- O prazer foi todo meu - retorqui, e era verdade. Precipitei-me para o Miata quase a passo de dança. Ia
muito, muito satisfeito com o triunfo da minha jogada. Devem estar todos recordados da receita de Danton para atingir a vitória: "Audácia, mais audácia e sempre audácia!" O homem tinha razão.
O veterinário falara verdade a respeito do endereço dado por Charles Girard. Era uma estranha vizinhança. Os edifícios da zona pareciam ter sido construídos cinquenta anos antes e nunca mais terem sido pintados. Era quase tudo estruturas comerciais de um e dois pisos, abrigando uma grande variedade de negócios: tabernas, venda de carros usados, tascas de comida rápida, e uma deprimente colecção de lojas que vendiam equipamento e fornecimentos para quartos de enfermos.
Havia também muitas lojas vazias, ostentando tabuletas de PARA VENDA nas janelas empoeiradas. Toda a área tinha um aspecto esquecido e vencido, como se a Florida dos brilhantes centros comerciais e belas praças tivesse passado por ali sem parar, deixando a zona a degradar-se sob o sol e sob o vento salgado.
Encontrei o endereço que o veterinário me fornecera. Tratava-se de um motel, e quando lhes disser que era composto por uma dúzia de cabinas individuais, poderão calcular a data da sua construção. Devia ser de finais dos anos quarenta. Segui em frente e deixei o Miata numa pequena área de estacionamento ao lado de uma empresa aparentemente deserta que vendia relva de plástico e mobiliário para jardim.
Caminhei lentamente de volta ao Jo-Jean Motel e entrei na recepção. Não tinha ar condicionado, mas havia uma ventoinha de tecto que girava preguiçosamente. Por detrás do balcão havia uma grande e florida senhora empoleirada num banco, debruçada sobre um daqueles jornais baratos e de má qualidade que toda a gente se
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recusa a ler, mas que vende cerca de cinco milhões de exemplares por semana. Nem levantou os olhos quando entrei.
- Peço desculpa - disse, em voz alta -, mas procuro Mr. Charles Girard.
- Fileira sul, cabina quatro - respondeu, sempre a olhar para o jornal. Consegui ler o grande cabeçalho, mesmo de cabeça para baixo. Dizia "Bebé Nasce a Assobiar Dixie".
Voltei para a ofuscante luz do sol e procurei a fileira sul. Então parei, olhei, dei meia volta e caminhei apressadamente de volta ao Miata.
O Bentley cinzento de Roderick Gillsworth estava estacionado em frente da cabina quatro.
Fiz o caminho de regresso ao Edifício McNally, pensando que naquela manhã recusara a oferta de um "estimulante" por parte de Gillsworth, mas que ele acabara por me dar um. Estava completamente baralhado. Não conseguia imaginar um cenário, por mais fantástico que fosse, que explicasse a visita do poeta ao homem que aparentemente raptara o animal que era o orgulho e a alegria de Harry Willigan. Não fazia qualquer espécie de sentido.
Concluí que procurar um sentido era um erro meu. Andava a procurar racionalidade numa conjura que poderia ter sido planeada pelos Três Estarolas.
Virava para a Federal quando de repente me ocorreu que o Clube Pelicano ficava a poucos minutos de distância. com o sol a rastejar em direcção ao alto, decidi que me fazia falta um reabastecimento, líquido e sólido, num fresco e sombrio paraíso, para ver se assentava a lama que se me levantara no cérebro e me punha os velhos gânglios outra vez a vibrarem.
Almocei sozinho, atendido pela bela Priscilla. Em condições normais, teríamos conversado um bocado, mas Pris apercebeu-se da minha disposição, anotou o pedido e deixou-me sozinho com os meus problemas. Bati-me,
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cheio de decisão, com um gigantesco cheeseburger e com uma taça de salada de batatas, e quando iniciei o segundo copo de cerveja já o espírito dos McNally borbulhava outra vez. Terminei o almoço devorando uma fatia de torta de lima, enquanto recitava silenciosamente aquelas tolas linhas do Invictus de Henley, apesar de não estar certo de ser o capitão da minha própria alma. O mais provável era ser um soldado de primeira classe.
Paguei a conta que tinha no bar. Simon Pettibone usava uma camisa às riscas com elásticos nas mangas e um pequeno laço de couro. com os óculos quadrados e o capacete de cabelos cinzentos, irradiava a sabedoria e compreensão de um honesto dono de bar, já familiarizado com todos os enigmas do mundo.
- Mr. Pettibone - disse-lhe -, preciso de um conselho.
- São de borla, Mr. McNally - respondeu.
- Tenho um pequeno enigma que estou a tentar resolver. Suponha que há dois homens com ocupações completamente diferentes, e provavelmente também com educações e fortunas diferentes. Que poderão eles ter em comum?
Mr. Pettibone olhou para mim por instantes.
- Cherchez Ia femme - declarou.
Senti-me capaz de o abraçar! Pensava que o homem tinha acertado em cheio e estava decidido a seguir o seu conselho. Infelizmente, como os acontecimentos iriam demonstrar, "cherchei" a mulher errada.
Passei pelo escritório, pensando que Al Rogoff me pudesse ter deixado recado para lhe telefonar. Queria saber se já recebera o relatório do FBI e qual o seu conteúdo. Também precisava de saber se falara com a polícia de Atlanta a respeito dos Gloriana. Todavia, não existia qualquer mensagem do sargento e por isso fui eu quem lhe telefonou. Não estava disponível e deixei-lhe o meu próprio recado.
Depois, de acordo com o conselho de Mr. Pettibone,
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segui até ao Ocean Boulevard e dirigi-me para sul, para a residência dos Willigan. Concluíra que estava na altura de jogar forte com Laverne, e de a pressionar o suficiente para descobrir qual a sua ligação com Hertha, a médium beijoqueira.
A senhora estava em casa, mas Leon Medallion informou-me que se encontrava a tomar banho e que ia perguntar à criada quando era que Mrs. Willigan me poderia receber. Tudo muito classe alta e muito impressionante... até nos lembrarmos que o senhor da casa era uma besta. Por isso, fiquei a arrefecer os calcanhares nos ladrilhos do vestíbulo, até ao momento em que o mordomo regressou para me informar que milady me concedia a graça de uma audiência.
Encontrei Laverne na suite dos senhores, que parecia ter sido decorada por um especialista em bordéis persas. Nunca vira uma tão grande profusão de cortinas drapejadas, em seda, de bonequinhos de porcelana e de almofadas rendadas. Em vez de Laverne, a pessoa reclinada na chaise-longue de cetim rosado deveria ser Theda Bara, enrolada num roupão de brocado púrpura tão volumoso que parecia dar-lhe três voltas completas.
- Olá, Archy - cantou a sereia. - Que se passa?
- Porque não me disseste que conhecias Hertha Gloriana? - atirei-lhe de repente, pensando que a espantaria.
Ficou na mesma.
- Porque tive medo que o dissesses ao Harry - respondeu calmamente. - Já te expliquei que ele odeia essas coisas. Chama-lhes "tretas de leitoras de sinas". Se soubesse que vou às sessões de Gloriana, dava cabo de mim.
- Foste àquela a que Lydia Gillsworth esteve presente, na noite em que a mataram?
- Não - retorquiu, olhando-me de olhos muito abertos. - Nessa noite tive de ir com Harry a um jantar da associação de construtores. Se não rne acreditas, per-
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gunta aos Gloriana. Dir-te-ão que não estive lá. Porquê este súbito interesse pelo espiritismo?
- Porque pedi a Hertha para me ajudar a encontrar a Peaches.
Pensei que iria ficar furiosa por ter ignorado as suas instruções, mas ficou impávida.
- Ah? - fez ela. - E que disse Hertha?
- Muito pouco. Que viu a Peaches num quarto de solteiro, mas que não conhecia a localização.
Laverne examinou o verniz verde das unhas.
- bom, Hertha é muito dotada, mas não consegue ganhar sempre. Nenhum médium o consegue.
- Alguma vez preparou o teu horóscopo?
- Claro que sim. E então?
- Forneceste-lhe pormenores da tua vida pessoal? Falaste-lhe de Meg e dos teus pais?
- Claro. Hertha precisava de conhecer essas coisas para traçar o meu perfil psíquico.
- Hum... Laverne, conheces um homem chamado Charles Girard?
- Não - retorquiu prontamente. - Nunca ouvi falar nele.
- Pode ser um dos raptores da gata.
- Não me digas?! - exclamou. - Como foi que o descobriste?
- Qualquer génio o poderia ter feito. O teu marido tê-lo-á mencionado alguma vez?
- Que eu me lembre... não. Terás de perguntar a Harry.
- Assim farei. Laverne, há quanto tempo conheces os Gloriana?
- Oh, há meses e meses. Penso que há quase um ano.
- Sabes de onde eles vieram?
- Julgo que são de Chicago.
- Mrs. Irma Gloriana é viúva ou divorciada?
- Divorciada. Afirma que o ex-marido vive algures na Califórnia, com uma filha. Frank ficou com a mãe e a filha ficou com o pai.
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- Há quanto tempo estão casados Frank e Hertha?
- Há quatro anos... Creio que foi isso o que me disseram. Porquê todas estas perguntas a respeito dos Gloriana, Archy?
- Acho-os interessantes - respondi, encolhendo os ombros. - São pessoas... misteriosas.
- Misteriosas? - Laverne riu-se. - Nem por isso. Estão apenas a tentar ganhar a sorte grande, como toda a gente.
- Tu conseguiste-o - comentei, com ousadia. Não ficou ofendida. Olhou em volta, para o quarto
perfumado, com um ar de grande satisfação, e a seguir afagou os desenhos a prata e ouro do seu roupão.
- Podes apostar que sim - afirmou -, mas sai-me caro. A propósito, Meg está de volta à cidade. Telefonou-me esta manhã. Vais encontrar-te com ela outra vez?
Deduzi que Meg não falara com a irmã a respeito da sessão espírita a que fora comigo. Inicialmente, fiquei-lhe grato mas depois compreendi que Laverne provavelmente o saberia por intermédio dos Gloriana.
- Sim, gostaria de voltar a vê-la.
- bom rapaz - comentou Laverne, aprovadora. Meg tem de aprender que nem todos os homens são aldrabões. São-no na sua maioria, mas não todos.
Estivera de pé durante toda esta conversa, porque Laverne não me convidara para me sentar. Estava farto de não sair do mesmo sítio e não me lembrava de mais perguntas para lhe fazer.
- Obrigado pela tua ajuda - disse-lhe. - Telefonarei a Harry para lhe perguntar se conhece o tal Charles Girar d.
- Onde vive esse Girard? - perguntou Laverne casualmente. - Sabes?
Não mo devia ter perguntado. Suspeitara de que mentira quando negara conhecer Charles Girard. Agora, a pergunta convencia-me de que sabia muito bem quem
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o homem era. Tentava descobrir até que ponto eu estava bem informado.
- Não faço a menor ideia - retorqui, franzindo a testa -, mas acabarei por o encontrar, a ele e à Peaches.
- Não te esforces muito, Archy - aconselhou-me. Que diferença faz? O Harry pode muito bem pagar os cinquenta mil que lhe estão a pedir.
- Laverne! - protestei. - Não deixes que o teu marido te ouça dizer uma coisa dessas! Quer a gata de estimação de volta, sem ter de pagar, e deseja ver os raptores pendurados pelos polegares... ou por qualquer outro apêndice corporal que esteja à mão.
- O meu marido... - murmurou, sombria. - O que ele quer e o que tem são duas coisas muito diferentes.
Compreendi que era o momento oportuno para me despedir e assim fiz. Guiei para casa a pensar que Laverne Willigan tinha mais do que ozono entre as orelhas. Mentira com facilidade e astúcia, tinha a certeza disso, mas ainda não estava certo sobre quais seriam os seus motivos.
Para além do caso de Charles Girard, Laverne brindara-me com outro enigma. Roderick Gillsworth dissera que Irma Gloriana era viúva. Laverne acabara de me dizer que era divorciada. Não acreditava que Irma contasse histórias diferentes a pessoas diferentes. Era demasiado esperta para isso.
Nesse caso, ou Gillsworth estava a mentir ou era Laverne quem mentia.
Ou ambos.
Servi-me do telefone do gabinete de meu pai para telefonar a Harry Willigan. Saudou-me com gritos. Tive de esperar que lhe faltasse o fôlego para lhe poder fazer a minha pergunta sobre Charles Girard.
- Nunca ouvi falar nesse palhaço - berrou, continuando com a gritaria.
Desliguei muito devagar, na esperança de que continuasse a gritar durante mais cinco minutos antes de compreender que estava a falar para o boneco.
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Subi para o meu quarto e gastei mais de uma hora a escrevinhar no diário. O caso Peaches - Gillsworth começava a ganhar volume, mas ainda não distinguia nenhum padrão naqueles díspares fragmentos de informações. Onde estava Xatyl, agora que tanto precisava dele?
Regressara da natação no mar e vestia-me para a noite quando Al Rogoff telefonou. Não perdeu tempo com preliminares.
- Tenho novidades para ti - declarou. - Coisas muito interessantes.
- Também tenho uns petiscos para ti - respondi. Quando e onde nos podemos encontrar?
- Estou metido em papelada até ao pescoço. Provavelmente só conseguirei sair muito tarde. E se aparecesses na minha carroça por volta das nove e meia?
- Boa ideia - concordei. - Posso levar alguma coisa para te lubrificar as amígdalas?
- Na! Farei saltar a rolha à garrafa de vinho que aqui tenho. E um inocente borgonha doméstico, sem raça definida, mas creio que ambos nos divertiremos com as suas presunções.
- Obrigado, Mr. Thurber - retorqui. - Até logo. Nessa noite, Ursi Olson serviu um jantar à moda da
Florida, de ensopado de búzios, peixe-espada grelhado, bananas de S. Tomé com molho de mangas e salada de corações de palmeira. O meu pai ficou impressionado e foi buscar um muscadet de boa colheita para substituir o vinho do garrafão.
Voltei aos meus aposentos depois do jantar e acrescentei mais algumas notas ao diário. A seguir, liguei para o serviço de informações e perguntei se tinham o número de telefone de Meg Trumble, em Riviera Beach. Deram-me o número e marquei-o. Deixei-o tocar sete vezes antes de desligar, perguntando a mim mesmo por onde ela andaria. Não sei por que motivo me senti inquieto...
Peguei num casaco desportivo e trotei para o Miata.
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Estava uma noite magnífica, clara, e suficientemente fresca para se poder dormir sem ar condicionado. Todavia, nessa .noite não iria ter grandes hipóteses de o fazer.
Aquilo a que Al Rogoff chamava a sua "carroça" era, na verdade, uma casa móvel instalada sobre fundações bem firmes, num parque de Belvedere Road, no meio de outras habitações semelhantes. Era um sítio agradável, com muitos relvados e palmeiras, uma pequena piscina e uma sala de recreio ainda mais pequena.
A maior parte dos residentes era composta por reformados, e sempre desconfiara que Al tinha um bom desconto na renda porque o proprietário gostava de ter um polícia nas instalações. Ou seja, se um qualquer vilão tivesse a ideia de rebentar com uma das casas - que não ofereciam grande segurança - era capaz de pensar duas vezes se visse um guardião da lei a andar por ali com um canhão pendurado por cima da anca.
A casa de Al estava em bom estado por fora e era acolhedora por dentro. Tinha uma sala, quarto, cozinha e casa de banho, tudo numa única fila, como um apartamento de carruagem de comboio. Fora ele próprio quem a decorara e, apesar de não haver ali nada de caro ou luxuoso, achava que se tratava de uma toca de solteiro muito atraente e confortável. Era o tipo de sítio onde se podiam atirar os sapatos para longe e ficar descansado.
Quando cheguei, a garrafa de vinho já estava gelada e aberta. Porém, não se tratava de um borgonha, mas sim de um cabernet Sterling de 87. Se pensam que é uma blasfémia gelar um tinto tão bom, pois então devo informá-los que os habitantes da Florida arrefecem até o mais caro dos Bordeaux. Jantamos muitas vezes ai fresco, e estaremos a beber uma sopa se o vinho não for bem gelado.
Sentámo-nos em cadeiras almofadadas em volta da pequena mesa de carvalho encaixada num canto da sala. Provei o vinho, que estava óptimo.
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- Quem começa primeiro? - perguntou Al.
- Começa tu - respondi. - As minhas extraordinárias revelações podem esperar.
Al levantou-se para ir buscar o bloco de apontamentos. Vestia jeans castanhas e uma T-shin. Não tinha sapatos, mas enfiara os grandes pés em peúgas de ginástica. Reparei que estava a criar barriga, ainda não muito grande, mas já visível. A maior parte dos chuis não comem bem. Pensam que uma dieta equilibrada é uma pizza de anchovas e uma lata de Dr. Pepper.
- bom - disse o sargento, debruçando-se sobre os apontamentos -, eis o que recebi de Atlanta. As pessoas que os Gloriana deram como referências não existem nos endereços indicados. O banco de Atlanta que referiram era uma caixa de poupanças e empréstimos que se foi abaixo há três anos.
- Que beleza! - exclamei.
- A seguir, consegui contactar um detective de Atlanta, Jerry Weingarter, que sabia tudo sobre os Gloriana. É bom tipo. Fuma charutos tal como eu, foi uma grande ajuda e estou a pensar enviar-lhe uma caixa dos melhores.
- A McNally & Filho pagará a conta - afirmei.
- Foi o que pensei - disse Al, com um sorriso. De qualquer modo, este Weingarter disse-me que Irma Gloriana e o marido eram...
- Espera aí! - interrompi-o. - Queres dizer que Irma é casada?
Al ficou a olhar para mim.
- Claro que é casada. Que estavas tu a pensar?
- Não sei o que estava a pensar - disse, com toda a honestidade. - O marido ainda está vivo?
- Estava vivo há seis meses, quando saiu da grelha. Chama-se Otto. Otto Gloriana. Soa bem, não soa? Bebe o teu vinho, tenho outra garrafa a arrefecer. Irma e Otto dirigiam aquilo que o meu querido avozinho denominaria de uma "casa de má fama". Não era um bordel ordinário.
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Os Gloriana tinham uma casa de alto nível. Todas as raparigas eram jovens e bonitas. Os clientes pagavam entre cem e quinhentos dólares, dependendo do que pretendiam. Irma era a "madama" e Otto o gerente do negócio. Estavam instalados havia quatro ou cinco anos e a vida corria-lhes bem, com uma clientela da alta. A lei meteu-se no assunto quando uma das raparigas morreu com uma dose exagerada de heroína.
Despejei o copo de vinho e voltei a enchê-lo.
- Que bela imagem... - comentei. - Qual era o papel desempenhado por Frank, o filho?
- Era uma espécie de cão de guarda que se servia dos músculos quando algum cliente saía da linha.
- E Hertha?
- Aparentemente, não tinha qualquer ligação ao assunto. Weingarter diz que ela tinha o seu próprio negócio, realizando sessões e fazendo horóscopos. Também disse que se trata de uma médium de verdade, que ajudou os chuis de Atlanta a encontrarem um garoto desaparecido. Nunca percebeu como ela o conseguiu, mas deu-lhes uma pista que acertou em cheio.
Calou-se para voltar a encher o copo e tive uns momentos para reflectir no que me dissera. Acho que fiquei mais entristecido do que chocado.
- Que aconteceu quando a Polícia lhes deu cabo do negócio? - perguntei.
- Otto fez um acordo. Arcava com todas as culpas se o filho e a mulher tivessem as sentenças suspensas e prometessem sair da cidade.
- Foi muito nobre da sua parte. Quanto tempo apanhou?
- Entre três e cinco. Cumpriu ano e meio e foi libertado há seis meses. Não está sob liberdade condicional. O seu actual paradeiro é desconhecido.
Fiquei a olhar para as ventoinhas do tecto.
- Al - murmurei, quase num sonho -, tens uma descrição física desse Otto?
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- Tenho - respondeu, folheando as páginas do bloco de notas. - Está aqui, não sei onde... Ah, encontrei-a!
Interrompi-o e disse:
- É alto, de cabelos avermelhados. Tem ombros largos e veste bem, de uma maneira conservadora. Tem à volta de sessenta e cinco anos.
O sargento fitou-me, espantado.
- Como diabo...? - inquiriu, numa voz rouca. Andas a receber lições de psiquismo de Hertha, ou quê?
- Acertei?
- Acertaste - reconheceu. - Agora diz-me como.
- O homem está na cidade. Usa o nome de Charles Girar d.
Expliquei a Rogoff como pensara que a Peaches poderia ter adoecido e que nesse caso os raptores da gata iriam em busca de assistência médica. Contei-lhe como percorrera as clínicas veterinárias de urgência desculpando-me com uma história inventada, e como acabara por encontrar um veterinário que se lembrava de ter tratado a gata e me dera o nome e morada do homem que lá a levara.
Al olhou para mim e sacudiu a cabeça de espanto.
- Sabes - declarou -, tens os testículos de um macaco descarado... e muito mais sorte do que aquela que mereces. Onde está esse Otto a viver?
- Num motel de pulgas, na Federal Highway. Todavia, ainda não te contei o mais surpreendente. Fui lá esta manhã para fazer uma visita a Mr. Charles Girard ou, se não estivesse presente, para verificar se a Peaches lá se encontrava e podia ser resgatada. Acabei por dar uma olhadela... e fugir a correr. O Bentley cinzento de Roderick Gillsworth estava parado no exterior da cabina de Otto.
O sargento abriu muito os olhos e o seu rosto começou a modificar-se. Pensei ver-lhe um ar de vingança ou até de malevolência.
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- Gillsworth - repetiu, numa palavra que era como um silvo. - Eu sabia que...
Porém, o destino não me iria permitir ficar a conhecer o que o sargento sabia, porque o telefone tocou nesse instante, surpreendentemente alto.
Al esperou até ao terceiro toque e só depois se pôs de pé, com esforço.
- vou atender na extensão do quarto - declarou.
Foi para o quarto e fechou a porta. Não fiquei ofendido. Se se tratasse de um assunto oficial, tinha todo o direito à privacidade. Por outro lado, se fosse a tal professora com quem se encontrava de vez em quando, também tinha todo o direito à privacidade.
Pareceu-me ter ficado lá dentro muito tempo, o que me permitiu dar cabo do resto do cabernet. Por fim, Al apareceu. Calçara um par de sapatos de ténis, com os atacadores ainda soltos, e vestira um blusão de nylon. Vinha a prender o distintivo ao blusão. A seguir, retirou o cinto com a arma e todos os outros acessórios de um armário, e colocou-o em volta da cintura com alguma dificuldade.
Só depois olhou para mim. Não lhe consegui ler a expressão, porque não tinha nenhuma. O seu rosto era de pedra.
- Houve um incêndio em casa de Roderick Gillsworth - declarou, numa voz sem entoação. - Um fogo de gordura, na cozinha. Foram os vizinhos que deram por isso. Os bombeiros tiveram de rebentar com a porta para poderem entrar. Apagaram o fogo e foram à procura de Gillsworth. Encontraram-no na banheira... com os pulsos cortados.
Engoli em seco.
- Morto? - perguntei, ouvindo o tremelicar da minha própria voz.
- Completamente morto - confirmou Al.
- Posso ir contigo?
- Não. Terias de ficar à espera na rua. Telefono-te logo que souber alguma coisa.
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- Al, há uma outra coisa que te queria dizer - comecei, desesperado.
- Terá de esperar. Vai para casa, Archy... e é melhor informares o teu pai.
- Sim... Obrigado pelo vinho.
- O quê? Ah, pois...
Saímos os dois e detivemo-nos enquanto Al fechava a porta à chave. A seguir, meteu-se na carrinha e desapareceu. Deixei-me ficar, fumando um cigarro e olhando para o céu estrelado. Outro espírito que se passara. Mais um fantasma. Nunca antes pensara numa coisa: nós, os vivos, estamos em minoria.
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A porta do estúdio do meu pai estava aberta. Encontrava-se sentado à secretária, trabalhando num monte de correspondência que levara do escritório para casa. Olhou para cima quando entrei.
- Estou ocupado, Archy - declarou, irritado.
- Sim, pai - respondi -, mas tenho notícias que penso que preferirá ouvir imediatamente. Não são boas.
Suspirou e pousou a caneta.
- Tem sido um daqueles dias... - queixou-se. Muito bem, o que é?
Repeti o que Al Rogoff me dissera. Tal como acontecera com o sargento, ficou com uma cara de pedra.
- Sim... - murmurou baixinho. - Ouvi passar os carros dos bombeiros esta noite. Não há dúvidas de que o homem expirou?
- Não, de acordo com Rogoff. Prometeu telefonar-me logo que soubesse mais alguma coisa.
- O sargento pensa que foi suicídio?
- Não disse, pai.
- E tu, pensas que foi?
- Não - respondi, narrando-lhe o encontro que tivera de manhã com o poeta. - Pareceu-me muito animado, como se se sentisse muito satisfeito por o funeral de Lydia já estar despachado e poder retomar a sua vida. Disse que tinha coisas para fazer, tal como ir às compras í
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e outras do género. Um homem que planeia suicidar-se não vai primeiro ao supermercado, pois não?
- Presumo que estava sóbrio...
- Tanto quanto eu pudesse ver. É verdade que me ofereceu um estimulante, mas foi meio a brincar. Sim, diria que estava completamente sóbrio.
O meu pai aspirou o ar com força.
- Agora, todos os meus receios se concretizaram. Tal como as coisas se encontram, deixou os seus bens terrenos, excepto no que toca aos manuscritos, a uma esposa que morreu antes dele. Segundo sei, não tem familiares próximos.
- Nenhum? - perguntei, chocado. - Irmãos? Sobrinhos? Tias? Tios? Ninguém?
- Não, que eu saiba. Serve-nos um porto, Archy, por favor. Creio que nos faz falta.
Fiz as honras e o lorde apontou-me o cadeirão ao lado da sua secretária. Sentei-me enquanto o meu pai bebericava o vinho, pensativo.
- Se uma investigação demonstrar que tenho razão e não há descendentes, então suponho que a tia e os sobrinhos de Lydia poderão reclamar o grosso da herança recebida por Roderick.
- E uma confusão - sugeri.
- Sim, vai ser - concordou. De súbito, ficou irado. - Porque foi que o diabo do idiota não fez testamento logo após a morte da mulher? É uma coisa que nunca conseguirei compreender!
- O pai tentou convencê-lo - declarei, procurando acalmá-lo.
- Devia ter sido mais insistente - afirmou, e compreendi que a sua fúria se dirigia tanto contra ele próprio como contra Gillsworth.
- Não podia ter adivinhado o que iria acontecer salientei.
- Devia tê-lo feito - replicou, recusando-se a ser tranquilizado. - Aprendi, já há muito tempo, que em
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todas as questões legais temos de estar sempre preparados para o pior. Desta vez negligenciei essa regra e aconteceu o pior. Disseste que o sargento Rogoff telefonará quando souber pormenores sobre a morte de Roderick?
- Sim, disse que o faria.
- Por favor, informa-me logo que tiveres notícias.
- Pode ser muito tarde, pai. Depois da meia-noite...
- Então, acorda-me - ordenou, com secura. - compreendeste?
- Sim, senhor - declarei, despejando o cálice de porto e deixando-o só com a sua ira. O velho gosta das coisas bem feitas e aquela era tudo menos isso.
Subi para o meu quarto, mas não me despi, pensando que era possível que Al se quisesse encontrar comigo em qualquer outro lado. Sentei-me na cadeira giratória, pousei os pés na secretária e tentei tirar um sentido, um sentido qualquer, da morte de Gillsworth.
Apesar de o corpo ter os pulsos cortados, ninguém me iria convencer que a morte do poeta fora um suicídio. Se lhes disser por que motivo me recusava a aceitá-lo, pensarão que sou um burro, mas é assim que a minha mente funciona. Não podia crer que um homem com a joie de vivre suficiente para, de manhã, usar um casaco desportivo de Lilly Pulitzer se fosse matar a si mesmo quando chegasse a noite. A não ser, claro, que tivesse sofrido uma derrota cataclísmica durante o dia, mas até ao momento não havia provas disso.
Lembram-se de eu ter dito que tinha uma vaporosa noção do que se passara e continuava a passar? Era tão vaga que não a conseguia traduzir por palavras. Porém, agora, com a morte de Gillsworth, tudo era diferente. Não afirmo que se tivessem levantado todas as neblinas, mas começava a distinguir um vago contorno que tinha formas, se não substância.
É óbvio que adormeci porque quando o telefone tocou a minha cabeça estava pousada na mesa, assente sobre os antebraços. Levantei-me e olhei para o meu relógio Mickey Mouse. Eram quase duas e meia da manhã.
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- Archy - disse ele. - Porque é que estás a dormir e eu não?
- Continuas em casa do Gillsworth, Al?
- Ainda cá estou. vou fazer um intervalo e dar uma saltada a tua casa. Achas que me podes oferecer uma chávena de café?
- Podes apostar. E uma sanduíche?
- Obrigado, mas não. Só café, forte e quente. Não ficarei aí muito tempo.
Desci até ao quarto dos meus pais e bati levemente na porta. O meu pai abriu-a tão depressa que calculei não estar a dormir, apesar de usar um pijama de linho ao estilo irlandês: casaco de mangas compridas e calças presas com um fio.
- O sargento telefonou - disse-lhe, em voz baixa, com a esperança de não incomodar a minha mãe. - Vai aparecer para tomar um café.
- Posso juntar-me a vocês? - perguntou o pater, Era mesmo dele! Estava na sua própria casa, era o patrão e podia ter dito: "vou juntar-me a vocês." Mas não, tinha de fazer um pedido delicado para manter a sua imagem de cavalheiro da corte. Não há dúvida que o meu pai é diferente.
- Claro que sim - retorqui. - Preparo um descafeinado?
Acenou que sim e desci à cozinha. Pus a cafeteira ao lume e preparei três chávenas e três pires, nata, açúcar e colheres. Menos de dez minutos depois, ouvia pneus na gravilha de acesso à casa e espreitei pela janela para ver a carrinha de Rogoff.
Entrou instantes depois, com um ar cansado e derrotado. Deixou-se cair numa das cadeiras sem dizer palavra, deitou uma colher bem cheia de café instantâneo na sua chávena e despejou-lhe a água a ferver por cima.
Nesse momento, entrou o meu pai. Vestira umas calças, uma camisa aberta no pescoço, uma velha camisola e umas chinelas. O sargento levantou-se quando o viu en-
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trar. Admirei-o por isso. Os dois homens trocaram um aperto de mão sem pronunciarem uma palavra e todos nos sentámos. O pai e eu servimo-nos de descafeinado com natas, sem açúcar.
- Gillsworth está morto, sargento? - perguntou o grande patrão.
- Sem qualquer dúvida, Mr. McNally - disse Rogoff. - A causa exacta só será determinada pela autópsia. Não sou médico, mas diria que foi a perda de sangue que acabou com ele.
- "Exanguinação" - comentei. Al olhou para mim.
- Obrigado, senhor dicionário - retorquiu. - Havia muito sangue na banheira.
- Como interpreta o que se passou? - perguntou o meu pai.
- Não interpreto - disse Rogoff -, pelo menos por enquanto. Há demasiadas perguntas para poucas respostas. Deixem-me descrever-lhes a cena. Os vizinhos do lado estavam a fazer grelhados no pátio. Um dos convidados avistou chamas por detrás da janela da cozinha de Gillsworth. Os homens correram para lá, mas a porta estava fechada. Entretanto, as mulheres telefonavam para os bombeiros. Quando estes chegaram, tiveram de arrombar a porta das traseiras. Estava fechada à chave e com a corrente de segurança posta. Também arrombaram a porta da frente. Estava fechada no trinco, mas não à chave, e não tinha corrente.
Calou-se para soprar o café e depois bebeu um gole com muito cuidado. Verificou que não estava demasiado quente para ele e tomou um gole maior. O meu pai e eu provámos os nossos.
- Isso é significativo - intervim. - Não achas? Refiro-me ao facto de a porta da frente estar fechada apenas no trinco.
- Pode ser - disse Rogoff -, e pode não ser. De qualquer modo, o fogo não foi grande. Havia uma gran-
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de frigideira em cima do fogão. A frigideira tinha gordura, manteiga ou óleo, ainda não o sabemos. Incendiou-se e espirrou, pegando fogo aos cortinados da cozinha. A resistência do fogão encontrava-se ligada no máximo quando os bombeiros lá chegaram.
- Então, estava a preparar o jantar - comentou o meu pai. Era uma constatação e não uma pergunta.
- Assim parece. Havia um prato com seis grandes pastéis de caranguejo em cima do balcão, prontos para serem fritos. Encontrámos no frigorífico uma taça de salada, já temperada e misturada.
- Bebida? - inquiri.
- Sim, uma garrafa de gim, aberta, em cima do balcão. Faltava-lhe o equivalente a duas doses. Havia também um copo alto, meio cheio. Parecia gim com água tónica. Tinha uma rodela de lima. Debaixo do balcão, encontrámos seis garrafas de água, uma delas meio vazia.
- Isto não bate certo - declarei, abanando a cabeça. - O homem está a preparar o jantar. Faz uma bebida e mistura uma salada. Prepara-se para fritar os pastéis de caranguejo... e de repente decide cortar os pulsos. Acreditas numa coisa dessas, Al?
- De momento, não acredito nem deixo de acreditar. Posso beber outra chávena de café? Já sei que esta noite não irei poder dormir...
Preparei-lhe outro café normal e outro descafeinado para mim. O meu pai colocou a palma da mão em cima da chávena.
- Por favor, continue, sargento - pediu o meu pai. - Como foi que encontraram Gillsworth?
- Os bombeiros perceberam que havia qualquer coisa que não estava bem e foram à procura dele. Encontraram-no na banheira da casa de banho, a que fica ao lado do gabinete. Havia uma lâmina de barbear de um só gume, suja de sangue, caída no tapete ao lado da banheira. Tinha ambos os pulsos cortados.
- Ambos? - perguntei. - Quando se corta um pul-
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só, ainda se tem força suficiente nessa mão para segurar na lâmina e cortar o outro?
- Não me perguntes - retorquiu Rogoff. - Nunca experimentei. Para este caso, vamos precisar de alguém da medicina legal.
- O corpo tinha mais alguma marca? - inquiriu o meu pai.
O sargento olhou-o com admiração.
- Tinha, sim, senhor - declarou. - Por detrás da cabeça, muito para cima. O cabelo estava sujo de sangue. Porém, depois de ter cortado os pulsos pode ter escorregado na banheira e batido com a cabeça no rebordo. De facto, há uma marca de sangue no rebordo da banheira que parece indicar que foi o que aconteceu. Essa é uma das questões a que a autópsia terá de responder.
- Qual é o teu palpite, Al? - perguntei. - Suicídio ou homicídio? Não estou a perguntar-te se tens certezas. Qual é o palpite?
Hesitou apenas por breves instantes e depois disse:
- Homicídio.
- Claro! - exclamei, triunfante. - Ninguém vai cortar os pulsos quando está no meio da preparação do jantar... a não ser que descubra bichos nos pastéis de caranguejo.
- Não é essa a minha principal razão para dizer que foi um homicídio - declarou Rogoff. - Por vezes, os suicidas fazem coisas estranhas antes de conseguirem a coragem para a fuga final. Não, há outra coisa que me leva a pensar que alguém lhe cortou os pulsos. Archy, faz-me um favor. Mostra-me como cortarias os pulsos se estivesses decidido a ir desta para melhor.
Fiquei a olhar para ele.
- Queres que finja cortar os pulsos?
- Sim - confirmou, com um aceno. - Serve-te da colher.
Peguei na colher que tinha no pires. Segurei-a com a mão direita, de cabo para a frente. Estiquei o antebraço
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esquerdo e virei a palma para cima. Usava uma camisola de mangas curtas e tinha o antebraço nu.
- Estou a sentir-me o maior parvo deste mundo comentei.
- Ninguém é perfeito - replicou Al -, mas tu estás lá perto. Vamos, corta os pulsos.
com o meu pai e o sargento a observarem atentamente, passei o cabo da colher rapidamente pelo pulso, com força suficiente para comprimir a pele. A seguir, transferi a colher para a mão esquerda e fiz o mesmo movimento de corte por cima do pulso direito. Admito que aqueles gestos me arrepiaram.
- Hum, hum... - murmurou Rogoff. - Era o que eu pensava.
- O que foi que pensaste?
- Começas a cortar do lado de fora do pulso, para o lado de dentro. Fizeste o mesmo nos dois pulsos.
Olhei para os antebraços e tentei cortar-me com o cabo da colher, a partir da parte inferior do pulso, avançando para a superior.
- É claro que o fiz.. - Não seria impossível cortar-me na outra direcção, mas não dá jeito e não se pode aplicar tanta força.
- Pois é - concordou Rogoff, acenando. - Já vi outros pulsos cortados, em suicidas e candidatos a suicidas. O corte é sempre feito de cima para baixo. Porém, os cortes nos pulsos de Gillsworth parecem ter sido feitos de baixo para cima. Foi a impressão com que fiquei, mas admito que possa estar enganado. Além disso, havia outra coisa. Os pulsos de Gillsworth não mostravam marcas de hesitações. São os arranhões e pequenos cortes que os suicidas quase sempre fazem antes de se decidirem pelo corte final. Os pulsos de Gillsworth tinham cortes limpos e profundos. bom, tenho de ir andando. Obrigado pelo café, serviu para me espevitar.
- Nós é que agradecemos, sargento - disse o pai -, por ter sido tão franco. Garanto-lhe que eu e Archy man-
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teremos na mais estrita confidência tudo o que acabou de nos dizer.
- Pois... - disse Rogoff -, ficava-lhes grato. Trocaram apertos de mão a acompanhei Al até à carrinha.
- Tens mais um par de minutos? - perguntei-lhe. Olhou-me por instantes e sorriu.
- Queres dizr-me qualquer coisa que preferes que o teu pai não ouça?
- Isso mesmo - retorqui. - Era capaz de me mandar internar.
- Está bem, concedo-te esses minutos. Gillsworth não se irá embora de onde está.
Trepei para a cabina da carrinha com ele. Al puxou de um charuto e eu de um cigarro. Acendemo-los e virei-me para o encarar.
- Lembras-te de te ter dito, quando saíste de casa, que tinha uma coisa importante para te contar? Pois bem, fui a uma sessão espírita dos Gloriana, na quarta-feira à noite.
Não pareceu surpreendido.
- E então? Falaste com o teu velho amigo Epicuro?
- Não, mas falei com Lydia Gillsworth. A médium contactou-a através de Xatyl, um sacerdote maia que é o canal de Hertha para o mundo dos espíritos.
- Hum, hum. Faz sentido...
- Ah, faz? bom, Al, eu ouvi a voz de Lydia. Sei que as palavras estavam a ser proferidas por Hertha, mas era capaz de jurar que se tratava da voz de Lydia. No entanto, Hertha conheceu-a bem, e podia imitá-la, se tivesse essa capacidade. Parece-me óbvio que a tem.
- Sim, faz sentido. De que foi que falaste com Lydia? Perguntaste-lhe quem a mandou para o outro mundo?
- Evidentemente.
- E que respondeu.
- Ficou histérica. Gritou Capríce! Capríce! uma e outra vez.
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Aquilo abalou-o. Virou a cabeça devagar, para olhar para mim com uma expressão intrigada.
- Tens a certeza de que foi o que ela disse?
- Absoluta. Primeiro, a palavra foi gritada na voz de Lydia, mas depois Hertha continuou a gritar Capricel, mas já com a sua própria voz. Sabes a que se referia, não sabes?
- Sei, sim. O carro de Mrs. Gillsworth era um Caprice. Conduziu-o da sessão espírita para casa, na noite em que a mataram.
- Isso mesmo. Que pensas do assunto?
Al ficou em silêncio durante muito tempo. Virou a cara e ficou a olhar através do pára-brisas.
- vou dizer-te uma coisa, Archy: suspeitei que fora Gillsworth quem matara a mulher. Afirmou que tinha falado com ela de vossa casa, que soubera que Lydia acabara de chegar, e que partira imediatamente, para a encontrar morta. Ligou para o cento e quinze e eu cheguei lá cerca de quinze minutos depois, no máximo. Depois de ouvir a história, fui à garagem e apalpei o bloco do motor do Capríce. Pareceu-me que não estava tão quente como deveria estar se tivesse feito o percurso da sessão até casa. No entanto, tratava-se de uma opinião subjectiva. Além disso, Lydia foi assassinada numa noite quente e em Junho, no Sul da Florida, ninguém conduz sem ligar o ar condicionado. O interior do Caprice não estava tão fresco como deveria estar se tivesse acabado de chegar a casa. Foi outra opinião subjectiva. Não eram coisas que pudesse apresentar ao procurador estadual, mas comecei a interrogar-me a respeito de Roderick Gillsworth.
- Então e o relógio, que foi derrubado e parou no momento da morte?
- Não significa nada, Archy. Qualquer pessoa podia ter colocado os ponteiros na hora desejada, para depois o derrubar e parar. Era um álibi fácil de forjar.
- Até agora, tudo bem - declarei. - Todavia, ele telefonou à mulher, do estúdio do meu pai.
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- Sei que o fez - disse Al, quase pesaroso. - Quanto a isso, não temos dúvidas. Esta noite, chegou a vez de Roderick ser despachado... se é que foi homicídio, e penso que foi. O facto ajuda a eliminá-lo como suspeito, não achas? Aparentemente, há alguém que, por qualquer razão, louca ou não, quis fazer desaparecer toda a família Gillsworth, marido e mulher. Agora, chegas tu e dizes-me que a médium, falando com a voz da mulher assassinada, gritou Capricel Capricel Assim, tenho de voltar a pensar na possibilidade de o carro de Lydia nos poder fornecer uma pista para a identificação do assassino. Talvez eu tivesse razão da primeira vez, quando achei que o motor estava demasiado frio e o interior do carro estava demasiado quente. Escuta, Archy, tenho de voltar para casa dos Gillsworth. Ainda há muito que fazer.
- Está bem - respondi, começando a descer da cabina da carrinha, mas Al estendeu a mão e deteve-me.
- vou andar agarrado a este caso pelo menos durante alguns dias. Tratas de verificar o assunto de Otto Gloriana e do rapto do gato?
- Pensava fazê-lo.
- Óptimo. Outra coisa: aquele detective de Atlanta disse que Otto é uma má peça...
- E quem pensas tu que sou? - inquiri, indignado. - Um menino de coro?
- Só quero que tenhas cuidado - avisou.
Voltei para casa, fechei a porta e trepei as escadas para a cama. Tentei adormecer, mas a minha mente era um caleidoscópio de imagens assustadoras, e deviam ser já cinco da manhã quando fechei os olhos. Acordei um pouco antes do meio-dia, e encontrava-me no duche, todo ensaboado, quando, de acordo com a tradição, o meu telefone começou a tocar.
Saí da casa de banho com uma praga inócua e agarrei o telefone, apenas para o deixar cair por ter as mãos escorregadias. Recuperei-o depois de muito esgravatar e consegui finalmente segurá-lo com as duas mãos.
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- Estou? - disse.
- Que diabo se passa aí? - inquiriu Harry Willigan. - Estás bêbado, ou quê?
Comecei a explicar, mas o homem não tinha nem o tempo nem a disposição para escutar. Disse que estava prestes a partir num voo para Chicago, em negócios. Só voltaria na terça-feira e que se eu tivesse novidades a respeito da P caches deveria telefonar para Laverne. Ela sabia onde o poderia contactar. Desligou antes de lhe poder dizer que a pista que me levaria à sua amada gata estava bem quente.
Acabei de tomar o duche, vesti-me e telefonei de novo a Meg Trumble. Continuava a não ter resposta. Era muito frustrante. Desci para um pequeno-almoço que era também um almoço e encontrei Jamie Olson sentado à mesa da cozinha. Mastigava uma espessa sanduíche que aparentemente era composta apenas por rodelas de cebola crua dispostas entre grossas fatias de pão de centeio. Pareceu-me tão boa que fiz uma igual para mim. Empurrei-a para baixo com a ajuda de uma cerveja (não alcoólica, se querem saber).
- Jamie - disse -, lembras-te de te ter perguntado se Laverne Willigan tinha algumas distracções por fora? Disseste-me constar que ela punha os cornos ao velho e querido Harry.
- Hum, hum...
- Terás ouvido alguma coisa sobre quem é o tipo?
- Um boneco.
- Um boneco? É tudo?
- Pois. Veste-se muito bem.
- Na!
- Assim, tudo o que sabes é que o "outro" de Laverne é um tipo elegante?
- Alto.
- Ah, um elegante alto! Já fizemos alguns progressos. Novo? Velho?
- Assim, assim.
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- Mais ou menos da minha idade?
- Pode ser.
- Cada vez melhor. Agora já temos um elegante alto e assim, assim. Gordo ou magro?
- Magro.
- Louro ou moreno?
- Moreno.
- Bem-parecido?
- Talvez. Ele deve pensar que sim.
- Excelente - concluí. Era um tipo elegante, alto, assim, assim, magro, moreno e bem-parecido. Havia muitos homens correspondendo a essa descrição na área de Palm Beach, incluindo vocês-sabem-quem.
Passei uma nota de dez para as mãos de Jamie, pela sua entusiástica cooperação. A seguir, fui para o estúdio do meu pai e procurei o número de telefone do Motel Jo-Jean, na Federal Highway. Marquei-o e fui saudado por uma voz feminina.
- Jo-Jean - disse a mulher, e perguntei a mim mesmo se ela seria a Jo ou a Jean.
- Posso falar com Mr. Charles Girard? - pedi. Fila sul, cabina quatro.
- Sei onde ele está - retorquiu, zangada. Houve um estalido, a ligação foi feita e começaram os
toques. Foram precisos nove - contei-os - antes de o aparelho ser levantado.
- Sim? - perguntou uma voz de homem, grossa e profunda.
- Mr. Charles Girard?
- Sim. Quem fala?
- Mr. Girard, sou o veterinário que tratou recentemente da sua gata. É meu costume telefonar para me certificar de que os animais que tratei estão a recuperar favoravelmente. Não lhe levo nada por isso, é claro. Deixe-me ver, a sua gata chama-se... ah, Gertrudes, não é?
- Peaches - replicou.
- Ah, pois é. Não me vinha à memória. Como está a Peaches, Mr. Girard?
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- Está bem.
- Ainda bem. bom, recorde-se de que estamos aqui para o servir, prontos para oferecer assistência de urgência ao seu animal de estimação sempre que seja necessário. Obrigado, Mr. Girard, e tenha um bom dia.
- Está bem - respondeu, desligando.
Estava muito satisfeito com o resultado dos meus inquéritos discretos daquela manhã. Pensei que se a minha boa sorte continuasse assim, ao cair da noite já teria encontrado o juiz Crater e identificado Jack, o Estripador.
Meti-me no Miata e iniciei a minha viagem para a Federal Highway. Conduzi lentamente porque queria apanhar Otto Gloriana na sua toca, no Motel Jo-Jean, e precisava de uma história convincente para justificar o meu aparecimento. Todavia, não fui capaz de inventar nenhuma que não fosse pura loucura. Decidi confiar nos meus modestos talentos para a improvisação.
Estacionei no mesmo sítio que já utilizara anteriormente e fui a pé até à recepção do Motel Jo-Jean, sob o calor ardente do meio-dia. A mulher com quem já falara encontrava-se empoleirada no mesmo banco, por detrás do balcão, e debruçava-se sobre um jornal. Felizmente, o jornal era diferente. O cabeçalho principal dizia "Chefe de Cozinha Mata Seis com Espátula".
- Peço desculpa - disse. - Mr. Girard está?
- Perdeu-o por pouco - respondeu a mulher, sem olhar para cima. - Ele e a senhora saíram de carro há um par de minutos.
- Bolas! - exclamei. - E ele que me disse que estava aqui! Não o vejo há anos e fiz todo o caminho desde Fort Lauderdale na esperança de o surpreender. Ainda guia um Lincoln Continental?
- Um Chrysler Imperial.
- Ah, deve ter trocado o Lincoln. E a mulher ainda é a mesma, uma loira alta e vistosa?
- Morena. Baixa. com um corpo de buldogue.
- Oh, oh! - exclamei, rindo-me de satisfação. En-
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tão o velho Charlie também trocou de mulher. Disseram quando voltavam?
- Não.
- Talvez dê uma volta por aí, para ver a paisagem, e volte mais tarde. Obrigado pela sua ajuda.
Pensei que tinha sido diabolicamente inteligente, mas de repente, e sempre sem olhar para cima, a mulher afirmou:
- Recebeu um monte de informações de borla, não foi?
Suspirei, tirei uma nota de vinte da carteira e coloquei-a sobre o balcão. Desapareceu tão depressa que sou capaz de jurar que a cara que vem estampada na nota ficou com uma expressão chocada.
Voltei para o calor do sol e fui andando até à cabina quatro, fila sul. Era maior do que imaginara, mas não deixava de ser uma estrutura decrépita, a precisar de uma boa camada de pintura... ou de uma granada de mão. Havia um ar condicionado enferrujado a zumbir numa janela, uma cadeira velha no pórtico oscilante, com o estofo plástico rasgado e a cair aos bocados.
Aproximei-me da porta e bati devagarinho. Ninguém a abriu, mas ouvi um miado de queixume. Coloquei os lábios junto da ombreira e sussurrei:
- Não desesperes, Peaches, a cavalaria já vem a caminho.
Voltei para casa, pensando que os acontecimentos se tinham desenrolado tão depressa que precisava de pôr o diário em dia, para ter a certeza de que não ignorava ou esquecia qualquer coisa, por muito trivial que fosse. Porém, primeiro telefonei a Meg Trumble, e dessa vez tive resposta.
- Meg! - exclamei. - Onde tens andado? Já tentei entrar em contacto contigo várias vezes! Começava a estar preocupado.
- Oh, Archy - respondeu, com uma voz positivamente borbulhante -, tenho andado tão ocupadal Aque-
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Ia lista de nomes que me deste foi uma bênção. Já visitei quatro e dois deles estão realmente interessados em terem um treinador pessoal. Não é maravilhoso'?
- Absolutamente - concordei. - E que tal jantarmos juntos esta noite?
- Adoraria - retorquiu com prontidão. - Na verdade, telefonei a Laverne ainda há minutos para lhe perguntar se queria jantar comigo, mas tinha uma reunião na Sociedade para os Assuntos Correntes. Agora, sinto-me feliz por ela não poder vir. Prefiro jantar contigo.
- Combinado. vou buscar-te às sete?
- Óptimo! Podemos voltar àquele Café Istambul? Adorei-o! Até logo!
Fiquei sentado, somando dois e dois e obtendo cinco. Ou seja: Harry Willigan estava fora da cidade. A mulher tinha um amante a pairar em volta... e Laverne não podia jantar com Meg por causa da reunião na Sociedade para os Assuntos Correntes. Ah!
Essa sociedade é uma associação de homens e mulheres de Palm Beach, na sua maioria idosos, que se reúnem uma vez por mês para ouvirem conferências sobre temas da actualidade, dadas por um congressista, um professor de Ciências Políticas, um comunista arrependido, ou pelo último ditador deposto numa das repúblicas das bananas. As conferências são seguidas por um período de perguntas e respostas, e terminam com a distribuição de café e bolinhos secos. A minha mãe era um membro fiel e já uma vez andara a servir bolinhos.
Galopei para o rés-do-chão e encontrei-a na estufa, pairando para as begónias.
- Sei que está calor - dizia -, mas estamos no Verão e precisam de manter a boa disposição.
- Olá, mãe - disse-lhe, inclinando-me para lhe beijar a face aveludada. - Como está a minha mãezinha hoje?
- Ena... - comentou. - Estás de bom humor, Archy. Apaixonaste-te outra vez?
-4

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- É possível - admiti. - Sinto estranhas agitações em volta do coração, mas também pode ser das cebolas que comi ao almoço. Escute, Mrs. McNally, esta noite há alguma reunião da Sociedade para os Assuntos Correntes?
Deteve-se, de pulverizador na mão, para me olhar intrigada.
- Não - disse. - A próxima reunião é só em quinze de Julho. Porque perguntas?
- Foi confusão minha - expliquei -, como de costume. Vemo-nos outra vez à hora do cocktail, mas esta noite vou jantar fora.
- Que bom para ti! - declarou, radiante. - com uma pessoa simpática, espero.
- Também eu - respondi.
Voltei para cima convicto de que o único assunto corrente a que Laverne Willigan iria estar presente nessa noite era... ela própria. Nos tempos que correm, parece-me que há por aí muito adultério... e desconfio que possa ser contagioso.
Trabalhei no diário durante o resto da tarde, acrescentando-lhe todas as informações que obtivera sobre a morte de Roderick Gillsworth. Acrescentei-lhe a história da família Gloriana, tal como me fora relatada por Rogoff, bem como o que descobrira naquele dia a propósito do provável envolvimento de Otto no rapto da Peaches, aliás Doçura. Terminei com um relato da aparente infidelidade de Laverne Willigan, e com a sua desajeitada tentativa de a ocultar por detrás de mentiras.
Satisfeito com o dia de trabalho e com o modo como o caso Gillsworth-.Peaczes estava lentamente a revelar os seus segredos, fechei a loja e fui à minha natação diária. De regresso, tomei outro duche e vesti-me com um cuidado particular. Pretendia encandear Meg Trumble com o esplendor da minha indumentária, e foi por isso que escolhi uma camisa de malha cor de ameixa, um casaco desportivo de linho verde com calças castanho-claras e sapatos de pele de cabra, sem peúgas.
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Exibi esta fatiota durante o cocktail familiar.
- Meu Deus! - ofegou o meu pai.
Rezei para que Meg ficasse mais favoravelmente impressionada com a minha imitação de um passaroco multicolorido. Estava convicto de que trabalhara no duro e de que precisava de uma noite tranquila para me descontrair, sem mortes violentas, sem raptos de gatos, sem mensagens chocantes vindas do Além. Imaginava que Meg e eu iríamos passar uns momentos inesquecíveis, sorrindo e murmurando um para o outro.
Mais tarde, atestados de moussaka e dominados pela gemutlichkeit, conceder-me-ia uma sessão de ginástica íntima, só para nós dois, sozinhos no mundo.
Toquei à campainha, estremecendo de ansiedade como um perdigueiro a apontar. Meg recebeu-me com um sorriso tremendo... e por detrás dela, sentada na sala, estava Hertha Gloriana, que também me lançou um sorriso tremendo.
- Hertha vai connosco - disse Meg, repleta de felicidade. - Não é maravilhoso"?
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Já anteriormente jantara com duas mulheres, é claro a maior parte dos homens já o fez -, e em geral achara que se tratava de uma experiência agradável. Para ser honesto, dava-me uma sensação de paxá a receber duas damas do seu harém. A auto-estima masculina, sempre a precisar de um empurrãozinho para cima, recebe uma injecção de hélio com a presença e a lisonjeira atenção não de uma mas de duas (sim, duas) jovens atraentes.
Depois de ter explicado tudo isto, devo começar por afirmar imediatamente que aquela noite foi um desastre. Nunca me sentira tão insignificante, tão de fora, ao ponto de começar a perguntar a mim mesmo se os homens e mulheres não serão só dois géneros diferentes, como também duas espécies diferentes.
Tudo começou quando chegámos ao Café Istambul. Escolhi um compartimento, mas Meg e Hertha preferiram outro, isto apesar de, tanto quanto me fosse possível ver, serem idênticos. Esperava sentar-me ao lado de Meg, com Hertha, a terceira roda, instalada do outro lado da mesa, à nossa frente. Todavia, as mulheres insistiram em jantar lado a lado, pelo que fui eu quem ficou sozinho, na frente delas.
Dirão que não há nada melhor para dar cabo da boa disposição a uma pessoa... e têm razão. Porém, isso ia ser apenas o princípio.
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Hertha e Meg pareceram competir uma com a outra nos comentários de esguelha a respeito do conjunto de cores que eu estava a usar. Ainda pior do que isso foi o facto de a médium sugerir que eu faria bem em pedir ao marido alguns conselhos sobre como coordenar tons e tecidos, de modo a apresentar uma aparência agradável.
- É uma ideia - retorqui, com um sorriso vidrado e esperando que o ranger dos dentes não fosse audível. Por onde anda o Frank esta noite?
A minha pergunta inocente provocou uma convulsão de gargalhadas nas duas mulheres, gargalhadas que prosseguiram até a salada ser servida e o vinho desrolhado. Acabei por não chegar a receber uma resposta para a minha questão, não obstante ser óbvio que ambas conheciam a resposta. Haverá alguma coisa mais enfurecedora do que uma graça privada de que não estamos a par e que não nos explicam?
As minhas tentativas para levar a cabo uma conversa ligeira também foram rejeitadas. As duas mulheres ficaram impassíveis quando lhes contei a história, verdadeiramente hilariante, de como Binky Walrous e eu, já com uns copos, roubámos um camião de lixo e o conduzimos até Boca Raton. Também não se mostraram interessadas na minha anedota favorita a respeito de Fredy Attenborough, um membro do Clube Pelicano, a quem os companheiros de folia despiram as calças, empurrando-o a seguir para o meio do salão do The Breakers onde se realizava um baile de cerimónia.
Na realidade, as duas damas não demonstraram qualquer interesse por mim. Passaram uma boa parte do tempo a contar segredinhos uma à outra - numa chocante violação das boas maneiras - e fizeram-me recordar da minha sensação de inquietação quando as vira sentadas lado a lado e de mãos dadas após a sessão espírita de quarta-feira à noite. Comecei a ter uma desconcertante noção sobre quem era, na verdade, a terceira roda.
Por fim, o jantar catastrófico chegou ao fim e nem se-
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quer sugeri que fôssemos a um clube nocturno para um pezinho de dança e uma daquelas garrafas cheias de boIhinhas. Naquele momento, já me sentia biodegradável e pronto para ser atirado para um aterro sanitário.
Regressámos ao apartamento de Meg, com Hertha sentada ao colo de Meg, tal como anteriormente. Não tive qualquer vontade de me demorar por ali, uma vez que era dolorosamente óbvio que a minha presença nada acrescentava às festividades. Assim, argumentando com um compromisso obrigatório com o meu dentista, logo pela manhã, bati em retirada. Os protestos das duas mulheres por causa da minha partida foram apenas para-inglês-ver e as despedidas foram mecânicas.
Afastei-me mais pensativo do que zangado. Podem achar que é difícil de acreditar, mas há alturas, e são muitas, em que as minhas obrigações como chefe do departamento de inquéritos discretos da McNally & Filho ganham precedência sobre o Sturm una Drang dos meus assuntos pessoais.
Por isso mesmo, depois daquela noite incómoda, pensava menos no comportamento ultrajante das minhas duas companheiras de jantar e mais a respeito do paradeiro e actividades de Frank Gloriana. Não precisava de ser um Monsieur C. Auguste Dupin para deduzir que Frank e Laverne tinham aquilo a que Jamie Olson uma vez se referira como sendo uma "ligação".
Para testar a minha teoria, decidi fazer uma viagem rápida até ao Motel Jo-Jean, na Federal Highway. Dessa vez, parei na área do hotel apenas durante o tempo necessário para confirmar que o Porsche cor-de-rosa de Laverne se encontrava estacionado em frente da cabina quatro.
Só depois conduzi para casa, divertindo-me a imaginar qual seria a reacção de Harry Willigan se este viesse a saber que a mulher estava envolvida no rapto da Peaches. Não tinha a intenção de a denunciar, é claro. Um cavalheiro não faz dessas coisas.
Quando cheguei à minha toca, descobri um recado
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enfiado por debaixo da porta. Era de Ursi Olson e informava que o sargento Al Rogoff telefonara ao princípio da noite e pedira que entrasse em contacto com ele.
Tentei primeiro para a sede da Polícia, mas disseram-me que já se fora embora para casa. A seguir, liguei para a sua casa móvel e Al pegou no telefone ao terceiro toque.
- McNally - disse-lhe.
- Estás em casa tão cedo? - perguntou. - Que aconteceu? A tua amiga pôs-te fora da cama?
- Foi quase isso - respondi. - Que se passa, Al?
- Muita coisa. Já recebi o relatório do FBI a respeito das cartas de Gillsworth e de Willigan.
- Foram impressas na mesma máquina?
- Exacto. Tenho também um relatório preliminar da medicina legal, e alguns dados vindos do laboratório. Vão fazer mais testes, mas as coisas começam a esclarecer-se. É melhor que nos encontremos.
- Está bem - afirmei. - Também tenho coisas para te contar. Sei quem fanou o gato.
- Não me digas que foi o Willie Sutton.
- Não - respondi, rindo-me. - A realidade ainda é mais surpreendente. Quando nos encontramos?
- Amanhã de manhã, às dez... em casa de Gillsworth.
- Porquê aí?
- Vamos fazer uma reconstituição do crime. Tu farás o papel da vítima.
- É o meu papel favorito. Estive a ensaiá-lo esta noite.
- O quê?
- Nada, não ligues - disse-lhe. - Até amanhã, às dez.
Servi-me de uma pequena bebida e passei algumas horas a rever o meu diário, dando uma atenção especial às alíneas que se referiam a Laverne Willigan, aos seus sentimentos para com o marido, às reacções a respeito do rapto da Peaches e à má-língua que Jamie me transmitira sobre o alegado amante.
Servi-me de uma segunda bebida e acendi um cigarro.
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Absorvendo álcool e inalando nicotina com um à-vontade descontraído, meditei sobre os motivos que Laverne poderia ter tido para ajudar a raptar a gata, uma vez que tinha a certeza de que estava envolvida no assunto até às bronzeadas nádegas... pelo menos. Escrevinhei alguns apontamentos:
1 - Laverne é uma jovem sensual com um apetite enorme pelas coisas boas da vida.
2 - Está casada com Harry, um burro mal-humorado, muito mais velho do que ela, mas que tem o que é preciso para lhe fornecer as mencionadas delícias.
3 - Conhece um libertino simpático e de baixa moral, Frank Gloriana. Este está casado com uma médium, Hertha, mas não tem escrúpulos em enganar a mulher, em especial quando existe uma probabilidade de lucros. (Talvez a médium tenha consciência dessa infidelidade e não se rale, por ser tão imoral como ele.)
4 - Laverne e Frank tornam-se íntimos, gozando a companhia um do outro, mas sem qualquer intenção de abandonarem os respectivos cônjuges.
5 - Por outro lado, Frank sofre de uma grave falta de fundos (cheques devolvidos, etc.).
6 - Pergunta: quem teria tido a ideia de raptar a Peaches, para conseguir obter uns trocos? Laverne ou Frank?
7 - Resposta: penso que foi ideia de Frank, e que Laverne o secundou alegremente porque isso iria irritar o aborrecido marido. Além disso, Harry pode pagar, e se não ajudasse Frank arriscava-se a perdê-lo.
8 - Laverne esgueira-se com o gato, dentro do cesto de transporte, e entrega-o na cabina quatro.
9 - Frank mete o pedido de resgate por debaixo da porta dos Willigan.
10 - Laverne devolve o cesto de transporte quando sabe, pela irmã, que eu dera pelo seu desaparecimento.
11 - Tudo o que falta é receber o resgate e devolver a Peaches ao seu lar.???
12 - Toda a gente vive feliz para sempre.
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Voltei a ler estes apontamentos e tudo me parecia lógico... e tão banal que dava vontade de chorar. Fui para a cama a pensar que já ninguém consegue inventar novos pecados.
Se descobrirem algum, ficaria muito grato se mo transmitissem.
O sábado de manhã trouxe consigo um sol brilhante e uma ressurgência da habitual confiança dos McNally. A boa disposição durou um total de quarenta e cinco minutos. Ensaboava as faces para me barbear quando recebi um telefonema de Consuelo Garcia.
- Archy - lamentou-se - a nossa orgia desta noite... está cancelada!
O dia, até aí tão brilhante, ficou imediatamente cinzento. Consolara-me a mim mesmo, numa típica reacção masculina, de que, apesar de ter sido rejeitado por Meg Trumble na sexta-feira à noite, ainda tinha Connie à minha espera, no sábado. Imaginara um deboche tão extravagante que poderia até vir a incluir a récita, em uníssono, daquele poema humorístico que fala de "um jovem de Rangum". Aparentemente, tal não iria suceder.
- Connie - perguntei-lhe, com a voz abafada pela frustração -, então porquê?
- Porque - respondeu - recebi um telefonema da minha prima Lola, de Miami. Ela e Max, o marido, vão fazer a viagem de carro até ao Disney World e querem parar aqui e passar a noite em minha casa.
- Ridículo!
- Eu sei, mas não posso recusar, Archy, porque também passei uma semana em casa deles, no Natal.
- Ao menos - continuei, com um suspiro -, podemos jantar todos juntos, ou não?
- Archy, Max usa bermudas com peúgas brancas e sapatos de couro com atacadores.
- Nada de jantares! - declarei, com firmeza.
- Mas eu quero ver-te - gritou Connie. - Não podemos almoçar juntos... mesmo que não haja brincadeiras depois?
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- Claro que podemos - concordei, satisfeito. Encontramo-nos no clube ao meio-dia.
- És um homem admirável - proclamou Connie.
- Concordo contigo - repliquei.
Um valente pequeno-almoço fez maravilhas pela minha moral. Sendo de origem escandinava, os Olson eram grandes apreciadores dos arenques. Ur si tinha sempre à mão um certo número de variedades, e foi esse o meu repasto da manhã: arenques em vinho, em creme de endro, em molho de mostarda, e um arenque fumado. Engoli tudo aquilo com schwarzbrot e manteiga doce. Sei que a vodca é o acompanhamento por excelência para um festim de arenques, mas era ainda muito cedo. Contentei-me com café.
Muito mais recomposto, e satisfeito por ter sido abençoado com umas tripas resistentes, apontei o Miata para sul com o intuito de me encontrar com o sargento Rogoff. Estava um dia esplêndido, claro e suave. Era o tipo de tempo apropriado para reconstituir um crime. A glória do sol, do mar e do céu faziam com que o homicídio parecesse uma anedota. Ninguém seria capaz de morrer num dia como aquele.
Rogoff esperava-me na florida sala da casa dos Gillsworth. Pensei que a sua face carnuda estava abatida de cansaço e emiti alguns ruídos de simpatia pelos seus labores esforçados e pela óbvia falta de uma noite de sono.
- Faz tudo parte da minha música - resmungou, encolhendo os ombros. - Como ser um polícia de sucesso: "Trabalhar até cair para o lado, ser paciente e rezar para que se tenha sorte." Cheiras a peixe. Que foi que comeste ao pequeno-almoço?
- Arenques.
- Não tens razões de queixa - retorquiu. - Eu comi uma sandes de carne fumada. Fala-me dessa gata maluca.
Sentámo-nos frente a frente, em cadeirões, e eu recitei todos os elementos que me haviam feito concluir que
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Laverne Willigan e Frank Gloriana estavam envolvidos no rapto da gata.
Al escutou atentamente e sorriu-se quando terminei.
- Pois é... - comentou. - Acredito. Andam os dois agarradinhos e arranjaram uma maneira de sacar cinquenta mil ao dono do bicho. Pensas que a gata ainda está no motel?
- Está um gato na cabina quatro - afirmei. - Ouvi-o miar. Não juro ser a Peaches... mas arriscava uma aposta.
Ficou a pensar por instantes. Depois declarou:
- Isso é capaz de nos facilitar as coisas quando chegar a altura. Essa cabina quatro parece ser o quartel-general de tudo o que se tem passado por aqui. Otto Gloriana vive lá, e foi aí que viste o Beníley de Gillsworth e o Porche de Laverne.
- E onde ouvi o gato - recordei-lhe. - Além disso, a mulher da recepção disse-me que Otto tinha saído com uma mulher, que podia ser Irma.
- Provavelmente era ela.
- Vais fazer uma rusga ao motel, Al?
- Não, por enquanto - respondeu. - A gata não é tão importante como os homicídios. Detestaria precipitar-me e fazer com que todas as baratas se escapem de volta para os buracos das paredes. No entanto, talvez ponha um tipo numa das outras cabinas, só para ver como param as modas.
- Está bem - concordei. - Faz as coisas à tua maneira. Fala-me do relatório do FBI.
Puxou pelo bloco de notas e folheou as páginas até encontrar o que procurava. Fez uma pausa para acender um charuto. Aguardei pacientemente até Al o ter a arder a seu gosto. Depois, começou a ler:
- A máquina é um processador de texto pessoal, um Smilh Carona PWP 100C com tipos "pica". O papel é um Southworth Deluxe Four Star. Foi usada uma fita Smith Carona. Todas as cartas provêm da mesma máquina e foram provavelmente escritas pelo mesmo operador.
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- Interessante - comentei. - Mas para que serve? Que fazemos com isso?
Al sorriu-se para mim.
- Archy, tens de começar a pensar como um polícia. Acabaram de me enviar mais um novato. vou pôr o tipo a folhear as Páginas Amarelas e a fazer uma lista de todas as empresas desta área que vendam ou prestem assistência a máquinas de escritório. A seguir, contactará todas elas e fará uma lista das que lidam com a Smith Carona PWP IOOC. Depois, mando-o arranjar uma lista de nomes e moradas de clientes que tenham comprado a máquina ou pedido assistência para a mesma. Vai fartar-se de andar, admito-o, mas é um trabalho que tem de ser feito e que pode dar resultados.
Fiquei a pensar naquilo.
- Essa é uma das maneiras de o fazer - disse-lhe -, mas é a mais difícil.
Al olhou para mim, um pouco irritado.
- Ah, sim? E qual é a maneira mais fácil, Sherlock?
- Agarra nesse teu novato e dá-lhe um curso intensivo de vinte minutos sobre processadores de texto. Arranja-Ihe um cartão de apresentação de uma empresa legítima. Envia-o a fazer uma visita aos escritórios dos Gloriana, na Clematis Street. O novato tem de ir à civil. Diz-lhe para tentar vender uma Smith Carona PWP IOOC a Frank Gloriana. Aposto que este vai responder: "Obrigado, mas já temos uma!"
O sargento rebentou em gargalhadas e deu uma palmada nas coxas.
- Que patife me saíste! Ainda bem que estás do nosso lado, ou acabavas por ser o dono de toda a Florida! Sim, é uma boa ideia, e vou tentá-la antes de pôr o novato a gastar solas. Estás convencido de que as cartas saíram dos escritórios dos Gloriana?
- Há grandes probabilidades - afirmei. - Têm lá salas que não consegui ver porque as portas estavam fechadas. Vale a pena tentar.
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- Sim dúvida que vale - concordou Rogoff. - Obrigado pela sugestão.
- Não tens de agradecer. Al, falavas a sério quanto a reconstituir o assassínio?
- Claro que sim. Olha, já temos alguns fragmentos de provas, apanhados aqui e ali. Nenhum deles é importante, mas todos juntos apontam para um possível homicídio, planeado para parecer um suicídio. Explicar-te-ei tudo à medida que formos avançando. Agora, queria que fosses para a cozinha. vou lá para fora e fingirei que sou o criminoso. Tenta agir tal como pensas que Gillsworth agiu nos últimos minutos antes da sua morte.
Fui para a cozinha, que ainda mostrava as cicatrizes enegrecidas do fogo de gordura. Momentos depois, ouvi tocar a campainha da porta. Parei por instantes e voltei para a entrada da casa. Espreitei pelo postigo. O sargento estava de pé no exterior. Abri a porta.
- Muito bem - disse Rogoff. - A vítima fez provavelmente o mesmo. Espreitou pelo postigo, viu alguém que conhecia e deixou-o entrar.
- Deixou-o? Um ele? - perguntei. - Porque não uma mulher? Ou duas pessoas?
- É possível - declarou Al, que entrou e fechou a porta atrás dele. - Agora, o criminoso já cá está dentro e não sabe que Gillsworth deixou uma frigideira com gordura a aquecer no fogão. Antes que a vítima lho possa dizer, o criminoso faz isto...
Apontou um indicador para mim, com o polegar levantado e os outros dedos dobrados.
- Uma arma? Para quê?
- Porque o assassino quer levar Gillsworth para a banheira, para poder fingir um suicídio. Um convite bem-educado não resultaria. Põe as mãos no ar e dá meia volta.
Obedeci às ordens. Alguns segundos depois sentia uma ligeira pancada no alto da cabeça.
- Que foi isso? - inquiri.
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- O tipo, ou a mulher, se insistes, bate no cocuruto de Gillsworth. Os médicos descobriram-no. Foi um golpe forte com o tradicional instrumento contundente. Pode ter sido a coronha de uma arma, com força suficiente para o deixar inconsciente. Agora, cai para trás. Não te preocupes que eu apanho-te.
Um pouco nervoso, deixei-me cair. Al segurou-me por debaixo dos braços.
- Meu Deus! - exclamou. - Quanto pesas?
- Para aí uns oitenta quilos.
- Tretas!
- bom, pode ser um pouco mais...
- Pois... mais alguns vinte quilos! - comentou. Gillsworth pesava à volta de sessenta e cinco.
- Sim, mas era um passaroco magrizela.
- E muito mais fácil de arrastar do que tu - afirmou Al, recuando ao longo do corredor, em direcção à casa de banho, puxando por mim.
- Sabemos que as coisas se passaram assim - explicou o sargento - porque os calcanhares da vítima deixaram marcas na alcatifa. Foram fotografadas e as fibras foram analisadas. Adivinha o que descobrimos nesses traços paralelos?
- O que foi?
- Pêlos de gato.
- Oh, oh... do motel.
- Exacto. Por isso, fomos lá acima e aspirámos as outras roupas de Gillsworth e os sapatos. Mais pêlos de gato. Deve ter passado muito tempo na cabina quatro. Os pêlos eram cinzento-prateados.
- São da Peaches - respondi. - Não há dúvida.
Não fez comentários, tentando não ofegar e bufar enquanto me puxava para lá do gabinete de trabalho do poeta e para a casa de banho.
- bom - disse -, já te podes levantar. Não vou meter-te na banheira, que ainda não foi limpa. - Ajudou-me a endireitar-me e olhou para o relógio de pulso. - Menos
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de três minutos desde a porta da frente até aqui. A seguir, suponho que o assassino puxou Gillsworth até à borda da banheira e o empurrou lá para dentro. Foi nessa altura que a vítima partiu a cabeça no rebordo. Tinha duas marcas separadas e distintas na traseira do crânio: uma da coronha da arma e outra de quando bateu com a cabeça na banheira. A marca ainda ali está.
Endireitei-me e olhei para a banheira. O sangue secara e amontoara-se no fundo e nas superfícies interiores.
- O ralo estava tapado? - perguntei.
- Não - explicou Rogoff -, mas Gillsworth usava um casaco esquisito e o tecido bloqueou o ralo e não deixou o sangue escorrer livremente. Agora, temos a vítima deitada na banheira, de cara para cima, inconsciente. O assassino pega numa lâmina de um só gume e corta-Ihe ambos os pulsos.
- Na direcção errada?
- Correcto. Depois larga a lâmina sobre o tapete, para fazer crer que foi Gillsworth quem a deixou cair.
- Havia impressões na lâmina?
- Nenhuma aproveitável.
- Onde a terá ido buscar? Gillsworth barbeava-se com lâminas de um só gume?
- Ah, ah! - fez Rogoff. - Essa é a parte mais engraçada. Quis certificar-me de que não se tratara de um roubo com homicídio e pedi a Marita para cá vir e inspeccionar a casa. Disse-me que não faltava nada. Também disse que não tinham lâminas de um só gume e que Gillsworth usava uma máquina de barbear eléctrica. Por isso, o assassino trouxe a lâmina com ele... o que quer dizer que o falso suicídio foi planeado. Dava um rico cabeçalho: "Poeta Desgostoso Suicida-se Após Morte Trágica da Esposa".
- Hum, hum... - fiz eu. - O teres falado em Marita fez-me recordar uma coisa... A última vez que tu e eu nos encontrámos nesta casa - logo depois de Lydia Gillsworth ter sido assassinada - vi Marita a chegar de carro. Que veio ela cá fazer?
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- Não deixas escapar muita coisa, pois não? bom, depois de a mulher ter sido assassinada, pedi a Roderick para revistar a casa e ver se faltava alguma coisa. Assim fez e respondeu que, tanto quanto soubesse, nada desaparecera. Chamei Marita para confirmar, pensando que uma mulher-a-dias podia estar mais a par do que existia
na casa.
- Faltava alguma coisa?
- Sim - disse Al, olhando-me. - Um par de luvas de látex. Marita guardava-as por baixo do lava-louças, e servia-se delas para lavar a louça.
- Luvas de látex... - murmurei. - Lindo! As últimas marcas no bastão da bengala que matou Lydia foram feitas com luvas de látex, não é verdade?
- Isso mesmo. Respirei fundo.
- Como explicas isso, Al?
- Não explico - retorquiu, quase zangado. - Não faz sentido que um estranho entre na casa e vá à procura de luvas de látex antes de matar. Tenho esse mistério de reserva. Entretanto, o que pensas do meu cenário sobre o assassínio de Gillsworth e o falso suicídio?
- É plausível - respondi. - Só tem uma coisa errada.
- Sim? O que é?
- Forneceste uma boa explicação sobre como aconteceu, mas não pronunciaste uma palavra sobre o porquê.
- Porquê?! - exclamou, irritado. - Porque é que as galinhas atravessam a estrada?
- Pela mesma razão que leva os bombeiros a usarem suspensórios vermelhos - retorqui. - Vamos embora daqui, Al. Uma banheira cheia de sangue não é a melhor sobremesa para um pequeno-almoço de arenques.
Porém, Al disse que queria ficar e murmurou qualquer coisa a respeito de fazer medições adicionais. Não acreditei na desculpa. Al Rogoff, apesar de ser um homem prático como todos os polícias, é uma espécie de ro-
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mântico. Pensei que o que desejava era vaguear por aquela casa amaldiçoada durante um bocado, reflectindo nos dois assassínios sanguinários que tinham tido lugar entre as suas paredes, tentando absorver a aura do local, escutando os fantasmas, e talvez imaginando um motivo para duas mortes aparentemente sem sentido.
Tudo o que eu desejava era um céu azul, o calor do sol, e um ar não contaminado que se pudesse respirar. O mal tem um cheiro muito próprio, que não só é agoniativo como é também assustador.
Conduzi directamente para o Clube Pelicano. Era ainda um pouco cedo para o meu encontro com Connie Garcia, mas como passara a manhã a fazer de cadáver estava mesmo precisado de uma transfusão de sangue. Tinha a certeza de que um daiquiri gelado traria as rosas de volta às faces de um pobre McNally.
A multidão do almoço ainda não chegara, mas Simon Pettibone encontrava-se de serviço por detrás do bar, lendo o Barron's através dos seus óculos à Benjamin Franklin. Pôs de lado as páginas financeiras durante o tempo suficiente para me preparar uma bebida, uma verdadeira ambrósia com apenas umas gotas de Cointreau.
Mr. Pettibone voltou para os seus valores na Bolsa e eu entretive-me com a bebida, saboreando o ambiente tranquilo, fresco e sombrio do meu bebedouro favorito. Entraram alguns membros do clube, mas estava uma agradável tarde de sábado e a maior parte dos "pelicanos" encontrava-se nas piscinas ou no oceano, nas auto-estradas e campos de ténis, ou talvez num jogo de pólo em Wellington. A vida é indiscutivelmente injusta e só um parvo não goza ao máximo a sua boa sorte.
Connie apareceu alguns minutos depois do meio-dia. Usava umas jardineiras de ganga por cima de uma T-shirl. Os longos cabelos pretos estavam amarrados com uma fita amarela e trazia os pés calçados com sandálias de tiras de couro. Parecia... bom, parecia ter apenas dezasseis anos, e por isso mesmo disse-lhe que precisava de mos-
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trar o bilhete de identidade para que lhe pudessem servir uma bebida.
Dirigimo-nos para a área do restaurante, quase vazia, e uma bocejante Priscilla levou-nos à nossa mesa preferida. Connie encomendou uma bebida e eu pedi um segundo daiquiri.
- Desculpa o que se passou a noite passada, Archy disse -, mas não podia recusar o pedido de Lola e Max. No fim de contas, são da família.
- Não há problema - respondi. - Depois de irem embora, recuperaremos o tempo perdido.
Inclinou-se sobre a mesa para agarrar a minha mão.
- Juras? - perguntou.
- Juro por Zeus... e um McNally não faz um juramento em nome de Zeus por dá cá aquela palha...
- Quem é Zeus? - inquiriu ela.
- Um grego que tem uma tasca ali para os lados de Júpiter.
Pris apareceu com as nossas bebidas e recitou os pratos do dia, o que me poupou ter de dar mais explicações. Connie e eu optámos por saladas mistas de mariscos (com camarões, gambás e lagostas da Florida), com um toque de alho.
- Tenho novidades para ti - disse Connie, depois de pedirmos o almoço -, e não vais ficar satisfeito.
- Estás grávida?
- Não, infelizmente - retorquiu. - Gostava de ter filhos. E tu, não?
- Não posso, uma vez que pertenço ao género masculino.
- Sabes bem o que quero dizer - protestou, rindo-se. - De qualquer modo, aqui tens a novidade: o meu pedido foi recusado pela tal médium.
- Quê?!
Acenou uma confirmação.
- Recebi uma carta de Hertha Gloriana, uma carta muito fria. Disse que era óbvio que a pessoa que eu des-
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crevera não existia, e que portanto não podia fornecer-me um perfil psíquico e me devolvia o cheque. Também disse que não lhe escrevesse outra vez, a não ser que dissesse a verdade.
- Diabos me levem!
- Archy, como foi que a mulher soube que o pedido era falso? Não escrevi nada que lho pudesse sugerir...
- Não faço ideia - respondi, abanando a cabeça. Porém, o mais intrigante é ter-te devolvido o dinheiro. Se os Gloriana fossem vigaristas, tal como pensei, teriam enviado um perfil fictício e ficado com o cheque.
- Talvez seja na verdade uma clarividente e percebesse imediatamente que a carta era um truque.
- Talvez...
Serviram-nos o almoço e conversámos de outras coisas enquanto devorávamos as saladas. Connie fez-me um longo relato das suas dificuldades e atribulações no planeamento da festa de Lady Horowitz para o 4 de Julho, mas mal a ouvi. Não conseguia deixar de pensar na reacção de Hertha à carta falsa. Como fora que soubera?
Connie não quis sobremesa e disse que tinha de voltar para junto dos seus hóspedes. Respondi-lhe que ainda iria ficar um bocado no clube e que lhe telefonaria no domingo. Escoltei-a até ao seu pequeno Subaru.
- Obrigada pelo almoço, Archy. Desculpa ter-te deixado deprimido com as más notícias a respeito da carta da médium.
- Não me deixaste deprimido.
- Claro que deixei. Quase que não pronunciaste uma palavra desde que to disse, e quando Archy McNally não dá à língua é porque está deprimido.
- Creio que fiquei mais intrigado do que qualquer outra coisa. Connie, por acaso tens aí a carta que recebeste dos Gloriana?
- Tenho... - declarou, pescando-a do bolso das jardineiras.
- Ainda bem que falaste nisso. Pensei que eras ca-
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paz de a querer para os teus arquivos. Não te esqueças de me telefonar amanhã.
Entregou-me um sobrescrito dobrado, beijou-me na face e meteu-se no seu carro de brinquedo. Acenei-lhe quando se afastou. A seguir abri o sobrescrito, tirei a carta e li-a sob a brilhante luz do sol. Fora escrita com frases frias e dizia o que Connie já me explicara. Por esse lado, não havia surpresas.
Porém, o que me chocou foi o facto de a carta ter a margem direita justificada e ter sido obviamente escrita pelo mesmo processador de texto que escrevera as que haviam sido recebidas por Gillsworth, bem como o bilhete de resgate da Peaches.
Regressei ao Clube Pelicano e servi-me do telefone público nas traseiras do bar. Liguei para Rogoff, que não estava no seu gabinete e recusaram-se a dizer-me para onde fora. Num palpite, telefonei para casa de Gillsworth e acertei em cheio.
- Sargento Rogoff - respondeu.
- McNally - disse-lhe. - Ainda aí estás? Que andas a fazer?
- Estou a ler poesia.
- A poesia de Gillsworth? É terrível, não é?
- Olha que não sei - replicou Al. - É muito erótica.
- Deves estar a brincar! A poesia de Gillsworth é tão erótica como a Magna Carta inglesa. Que livro estás a ler?
- Não é um livro. Estou a ler poemas não publicados que encontrei dentro de uma gaveta fechada à chave, na secretária. Forcei a fechadura, foi uma brincadeira. Lá dentro estava um arquivo com poemas. Estão todos datados e parecem ter sido escritos nos últimos seis meses. São escaldantes, como já te disse.
Fiquei sem saber o que pensar.
- Não compreendo - respondi. - Li algumas das coisas que ele publicou e eram chatas, chatas, chatas.
- Pois olha: o que eu estou a ler é suficientemente quente para acrescentar um novo capítulo à Psycopathia Sexualis. Talvez tenha decidido mudar de estilo.
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- Talvez... - concordei. - Depois falamos sobre isso... Neste momento tenho algo mais importante.
Expliquei-lhe que os Gloriana enviavam perfis psíquicos pelo correio, e como eu tentara provar que se tratava de uma vigarice pedindo a Consuelo Garcia que enviasse uma carta em nome de uma mulher não existente. Concluí dizendo que Hertha rejeitara o falso pedido, e que a resposta tinha um formato idêntico às cartas de Gillsworth e Willigan.
- Então, está decidido - afirmou Rogoff. - vou mandar um tipo ao escritório dos Gloriana, para se ver se podemos confirmar que possuem um processador de texto Smith Carona. Em vez de um polícia sozinho, vou meter um casal no Motel Jo-Jean e manter a cabina quatro vigiada de dia e de noite. Se os chefes me concederem mão-de-obra suficiente, vigiarei também o apartamento dos Gloriana.
- Deve ser o suficiente - afirmei. - Al, Frank Gloriana anda armado. Foi Lydia Gillsworth quem mo disse.
- Obrigado pelo aviso. Diz-me, Archy, como foi que a médium percebeu que a carta que lhe enviaste era falsa?
- Não sei - retorqui. - Não faço a menor ideia. Voltei para o bar e assinei a conta do almoço.
- Mr. Pettibone - perguntei de repente -, acredita em fantasmas?
Olhou para mim por instantes, por detrás dos óculos quadrados.
- Ora, com certeza, Mr. McNally - declarou finalmente. - Na verdade, acredito.
- Mas não naqueles do dia das bruxas, pois não? Os que usam lençóis brancos e fazem: "Huuu", "Huuu".
- Não, nesses não acredito - admitiu -, mas creio que alguns dos falecidos regressam como espíritos e são capazes de comunicar com os vivos.
Sempre considerara o mordomo do Clube Pelicano como sendo o mais prático e realista de todos os homens,
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e por isso foi com espanto que descobri que o homem aceitava a existência de seres incorpóreos.
- Alguma vez falou com o espírito de uma pessoa falecida? - inquiri.
- Já, sim, Mr. McNally - respondeu prontamente. - Como sabe, sou um activo investidor no mercado de acções. Em várias ocasiões, apareceu-me o espírito de Mr. Bernard Baruch, o célebre financeiro. Encontramo-nos num banco de jardim e dá-me conselhos sobre quais as acções a vender e quais a comprar.
- Segue os conselhos do fantasma?
- Frequentemente.
- E ganha ou perde?
- Ganho sempre... mas o espírito de Mr. Baruch tem uma certa tendência para vender cedo de mais.
- Obrigado pelas informações, Mr. Pettibone - disse-lhe, muito sério e deixando-lhe uma bela gorjeta.
Fui para casa, meti o Miata na garagem e entrei pela cozinha. Ursi e Jamie Olson trabalhavam na carcaça do cordeiro que iríamos ter para o jantar nessa noite. Olharam para cima quando me sentiram entrar.
- Ursi - perguntei, sem preâmbulos -, acredita em fantasmas?
- Acredito, Mr. Archy - respondeu. - Falo frequentemente com a minha falecida mãe. Sente-se muito feliz.
- Hum... - fiz, virando-me para Jamie. - Então, e tu? Também acreditas em fantasmas?
- Em alguns - declarou.
Nessa tarde, durante o cocktail familiar, fiz a mesma pergunta à minha mãe.
- Oh, sim - disse, com ligeireza. - Eu própria nunca os vi, mas conheço pessoas cujas opiniões respeito, e que me garantiram que existem espíritos. O marido de Mercedes Blair morreu o ano passado, sabes, e ela diz que há fantasmas na casa desde essa altura. Sabe-o porque encontra a tampa da sanita sempre levantada. Por
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muitas vezes que a ponha para baixo, quando lá volta está sempre levantada. Diz que deve ser o espírito do falecido marido.
Olhei para o meu pai. As suas hirsutas sobrancelhas andavam para cima e para baixo, e isso era sinal de que tentava controlar o riso. Porém, quando falou, fê-lo com uma voz gentil e comedida.
- Mãe - disse -, eu não aceitaria o testemunho de Mrs. Blair como prova de existência de espíritos. É o mesmo que dizer: "Vi um fantasma a noite passada. Correu pela rua fora e saltou por cima de uma vedação. Se não acreditas... ali está a vedação."
- Então - perguntei, dirigindo-me ao meu pai -, não acredita que os espíritos dos mortos voltem à Terra e comuniquem com os vivos?
O meu pai respondeu com cuidado.
- Penso que quando as pessoas afirmam ter visto um fantasma ou falado com um espírito, acreditam sinceramente que estão a dizer a verdade. No entanto, julgo que estão a relatar um sonho, ou uma fantasia, e que o espírito que alegadamente vêem é uma recordação, uma memória muito intensa, de uma pessoa que amaram e que já não está entre nós.
- Então... e se o espírito que afirmam ver é uma personagem histórica, alguém que elas não podiam ter conhecido?
- Nesse caso, estão a dizer asneiras - declarou o meu pai com toda a franqueza.
Retirei-me para a toca logo depois do jantar, para ir escrever no diário, que, em dimensões, já começava a rivalizar com a Guerra e Paz, para ver se conseguia pôr em ordem as confusas impressões daquele dia.
Considero-me como sendo um tipo relativamente lúcido. Oh, claro, admito que de vez em quando tenho momentos de pura loucura, mas em geral os McNally têm os cascos bem assentes na terra. Porém, agora, enfrentava um mistério que me confundia. Como fora que
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Hertha Gloriana soubera que a carta de Connie era falsa? Como fora que a médium, falando com a voz de Lydia Gillsworth, conseguira gritar Capricel, apontando uma pista que já intrigara o sargento Rogoff?
Era possível que Hertha possuísse um genuíno poder psíquico. Porém, se admitisse a existência de um talento tão especializado, então também teria de admitir que os espíritos são uma realidade, que é possível uma comunicação com os mortos, e que todos os outros fenómenos do factor psi são viáveis, incluindo a PÉS, a psicoquineses, a telepatia, a precognição, e até a discussão do Fundo Monetário Internacional com um bando de golfinhos.
Nessa tarde, descobrira que vários cidadãos perfeitamente normais acreditavam em fantasmas e que, por extensão, pelo menos assim o supunha, também acreditavam noutras manifestações do sobrenatural. Teriam razão... e seria o meu pai, um descrente convicto, quem estava enganado?
Quando fui para a cama, fechei os olhos com força e invoquei, com todas as minhas forças, o aparecimento do fantasma de Carole Lombard.
Nunca chegou a aparecer.
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Tal como a maior parte das pessoas, considero a segunda-feira como sendo o primeiro dia da semana. É na verdade o segundo, como o próprio nome indica. O domingo é em geral observado como um dia de descanso, como um falso dia santo, umas férias de vinte e quatro horas para ir à missa, comer uma grande refeição a meio do dia e passar a tarde sem fazer nada, a recarregar as baterias.
Porém, aquele domingo iria ser algo de completamente diferente. Aprofundou as minhas confusões e aumentou-me as suspeitas de que os acontecimentos já tinham começado a desenrolar-se a uma velocidade tal que não era possível acompanhá-los. Homens que já estiveram envolvidos em combates descreveram-mos como sendo "uma confusão elevada à potência de n". Quando aquele dia chegou ao fim, pensei que também eu merecia uma condecoração de combate.
Tudo começou quando acordei tarde de mais. Ao descer, verifiquei que os meus pais já tinham saído para a igreja. Os Olson também se tinham ido embora, para a sua igreja. Por isso, tive de ser eu a preparar a refeição matinal. A primeira torrada foi parar ao meio do chão... com a manteiga para baixo, é claro. É um dos tais enigmas que nunca consegui decifrar. Depois entornei uma chávena cheia de café. Aquele pequeno-almoço
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que também era almoço não augurava nada de bom para o sabbalh.
O telefone tocou quando limpava o café derramado. Na verdade, não tinha vontade de o atender porque estava convencido de que se tratava de mais notícias más. No entanto, enchi-me de coragem e levantei-o ao sexto toque.
- Residência McNally - disse.
- Archy? - perguntou Meg Trumble. - bom dia! Foi o mesmo que me darem com um pano encharcado na cara.
- bom dia, Meg - respondi. - Que agradável surpresa!
- Que estás a fazer?
- Se queres saber... estou a limpar o café que derramei.
Meg riu-se.
- Não me parece um trabalho muito divertido. Archy, Hertha Gloriana está aqui comigo e gostaria de te falar.
- Está bem, passa-lhe o telefone.
- Não, não. Não pelo telefone. Podes vir a minha casa?
- Agora?
- Por favor! Vamos fazer um pouco de aeróbica e depois queremos ir à praia. Podes vir em breve, Archy? É importante.
- Está bem - concordei. - Dêem-me cerca de meia hora.
O dia começava agradavelmente mal. Enquanto fazia rodar o Miata em direcção a Riviera Beach, ainda nem sequer imaginava o que ia ter pela frente. Sabia apenas que ia de certeza aumentar a minha "chateação". Se a palavra não existe... deveria existir.
Deparei com uma cena interessante, tendo em conta que estávamos no princípio da tarde de domingo. As duas mulheres usavam equipamentos de ginástica, com
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Meg enfiada numa coisa prateada e pegada à pele, e Hertha com um fato de banho vermelho e calções de ciclista. Aparentemente, haviam terminado os exercícios havia muito pouco tempo, porque estavam ambas suadas e a ofegarem ligeiramente. Bebericavam copos de sumo de cenoura.
- Queres um sumo, Archy? - perguntou Meg. Lutei valentemente contra as náuseas.
- Não, obrigado - repliquei. - Já tenho os olhos bonitos e não estou interessado em ver no escuro.
- E uma cerveja fresca?
- Ah, sim, obrigado.
Hertha deu palmadinhas no sofá, a seu lado. Obedeci e sentei-me, mas devo confessar que me sentia incomodado. Tinha a desagradável sensação de ter entrado num toucador de senhoras. Fora convidado, mas não me libertava da ideia de que era um intruso.
Meg entregou-me uma lata de cerveja, que aceitei com satisfação.
- Hertha... - disse ela, num tom de comando -, conta-lhe.
A médium virou-se para mim. Naquele momento, parecia-me invulgarmente atraente, com a pele corada pelos exercícios e com algo nos olhos que ainda não lhe tinha visto. Era mais do que felicidade, pensei. Era triunfo.
- E a respeito da Peaches - começou. - Tive outra visão. Lembras-te de te ter dito que se encontrava num quarto muito simples? É numa pequena construção, como uma cabina. Penso que se trata de um velho motel.
Tomei um grande gole da minha cerveja.
- Isso é interessante - declarei. - Viste qual a localização desse motel?
- Tenho a certeza de que é na área de Palm Beach.
- Conta-lhe tudo o que viste, Hertha - ordenou Meg.
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A médium hesitou por um segundo.
- Talvez não devesse revelá-lo... - murmurou -, mas o assunto preocupa-me e no fim de contas pediste-me ajuda. Espero que guardes segredo.
- Claro.
- Vi o meu marido, Frank, no mesmo quarto que a gata.
As duas mulheres olharam para mim, na expectativa. Não tinha qualquer dúvida que estavam a tentar manipular-me. A única alternativa era entrar no jogo. Sou muito bom a fazer de parvo - é uma atitude que me sai com naturalidade.
- Isso é... surpreendente - afirmei. - Que pensas que lá estava a fazer?
- Não sei - respondeu, fitando-me com uns olhos muito abertos. - Achas que terá alguma coisa a ver com o rapto da gata?
Era a maior actriz desde os tempos da Duse.
- Porque não lhe perguntas? - sugeri.
- Tenho de ser completamente honesta contigo, Archy - começou, e as minhas antenas endireitaram-se. Quando as pessoas dizem uma coisa destas, está na altura de abotoar o bolso traseiro das calças para termos a certeza de que não nos levam a carteira. - Frank tem um temperamento muito mau - prosseguiu. - Tenho medo de o irritar. Pode tornar-se muito violento.
- O bruto bate-lhe - disse Meg, cheia de ira.
- Não é costume... - explicou Hertha -, mas já me bateu uma ou duas vezes.
Senti-me tentado a comentar que, se ela era de facto uma vidente, podia prever os golpes a tempo de se desviar. É claro que não o fiz.
- Que horror! - comentei.
- É por isso que não posso fazer essa pergunta continuou a médium com um ar de tristeza. - No entanto, espero que isto te ajude a recuperar a gata.
- De certeza que sim - retorqui. - Obrigado por teres sido tão cooperante.
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Terminei a cerveja (infelizmente, a lata era das mais pequenas) e disse adieu às senhoras. Ficaram ambas a olhar-me, pensativas, quando saí do apartamento.
Conduzi lentamente de regresso a casa, reflectindo naquilo que tinham acabado de me dizer. Era óbvio que as duas mulheres tinham comparado os seus apontamentos e que Hertha já sabia que a explicação que lhe dera, para justificar a procura da Peaches, era falsa. Sabia que a gata fora roubada e que eu fora contratado para a descobrir. Quanto a isso, tudo era claro.
Porém, havia uma outra coisa que não era tão clara: como fora que soubera que o felino desaparecido estava encerrado na cabina de um motel?
Todavia, logo a seguir, compreendi que o como sabia não era importante. O factor vital era o de ter a intenção de implicar o marido. A história das violências físicas que sofria às suas mãos podia ser ou não ser verdadeira. Pressentia que Hertha tinha um motivo mais profundo para querer o esposo apanhado e guardado em segurança, na cadeia, por um apreciável período de tempo.
Quando cheguei a casa, ainda pensava sobre quais poderiam ser os motivos da médium. Vi o Lexus na garagem e fiquei a saber que os meus pais haviam regressado da igreja. Quando entrei, o meu pai encontrava-se de pé à porta do estúdio.
- Conheces uma mulher chamada Irma Gloriana? inquiriu, com ares que eram quase de acusação.
- Conheço, sim, senhor - respondi.
Acenou, fez-me sinal para o seguir, entrou no estúdio à minha frente e fechou a porta. Sentou-se por detrás da secretária e apontou para o cadeirão.
- Creio que é melhor falares-me a seu respeito ordenou.
- É uma longa história, pai.
- O jantar só será daqui a uma hora - retorquiu com secura. - Deves ter tempo mais do que suficiente.
Em geral, mein papa não faz perguntas sobre os por-
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menores dos meus inquéritos discretos. Penso que desconfia, no que respeita à ética, meter-me muitas vezes por atalhos, o que é verdade, e que por isso prefere não conhecer o modus operandi. Os resultados positivos são tudo o que lhe interessa.
Porém, como queria saber coisas a respeito de Mrs. Irma Gloriana, contei-lhe tudo. Falei não apenas de Irma, mas também do marido, Otto, do filho, Frank, e da cunhada, Hertha. Fiz-lhe um relato da sessão espírita a que estivera presente e expliquei-lhe como conseguira localizar a Peaches na cabina quatro do Motel Jo-Jean. Concluí com um breve relato do meu mais recente encontro com Hertha Gloriana e Meg Trumble. Na verdade, disse-lhe tudo o que sabia até àquele momento.
Escutou-me atentamente e nunca me interrompeu. Quando terminei, levantou-se e encaminhou-se lentamente para o aparador, pegou num dos seus cachimbos Upshall, montado em prata, e encheu-o com cuidado. Considerei que também estava autorizado a acender um cigarro. O meu pai regressou à sua cadeira giratória e ficou durante algum tempo com o cachimbo na mão, antes de o acender.
- Nesse caso, pressuponho que tu e o sargento Rogoff consideram os Gloriana como culpados de procedimento criminal - anunciou.
- Não posso falar pelo sargento - respondi -, mas estou convencido de que Frank Gloriana se juntou a Laverne Willigan para roubarem o gato e pedirem um resgate. Também penso que Otto Gloriana, provavelmente Irma e possivelmente Frank podem estar envolvidos nos assassínios de Lydia e Roderick Gillsworth. Todavia, não faço a mínima ideia quanto aos motivos.
O meu pai acendeu finalmente o cachimbo. Quando o tabaco pegou, soprou uma nuvem de fumo para o tecto de madeira.
- Talvez os fiquemos a conhecer já amanhã - comentou.
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Olhei-o, espantado.
- Amanhã, pai?
- Pouco depois de regressarmos da igreja - explicou, com um aceno - recebi um telefonema de Mrs. Irma Gloriana. É uma mulher muito... convincente.
- Ah, lá isso é, sem dúvida!
- Quer falar comigo amanhã. Disse que precisa de tratar de um assunto importante relacionado com Roderick Gillsworth. Pensei que era melhor ouvir o que a mulher tem para dizer. Teremos uma reunião no meu gabinete, às dez horas. Gostaria que estivesses presente, Archy.
- com certeza - concordei, sorrindo. - Também estou muito interessado em ouvi-la. Posso informar o sargento Rogoff a respeito dessa reunião?
Considerou o meu pedido durante muito tempo, mas eu já aprendera a esperar pacientemente e sabia que aquela meditação terminaria e que chegaria a uma conclusão.
- Sim - acabou por dizer. - Podes informar o sargento. Transmitir-lhe-emos os resultados da reunião se as circunstâncias e a ética o permitirem. Podem vir a ser uma ajuda para a investigação. Disseste que essa mulher foi a "patroa" de um bordel?
- Sim, senhor, de acordo com a Polícia de Atlanta.
- É ordinária?
- Não, não posso dizer que o seja... mas é provável que Rogoff discorde desta minha opinião. Como já disse, é uma mulher que se impõe. É quase dominadora, muito segura de si e da sua força de vontade. Vejo-a assim como uma espécie de comandante-chefe da família Gloriana. É o dínamo que os mantém em movimento, talvez até com tendência para a tirania. - Hesitei por um segundo. - Mas há mais. Na minha opinião, é uma mulher perturbadora, no sentido físico. Emite uma grande sensualidade. Creio que tem consciência disso e se aproveita do facto. Deve ter perto de sessenta anos, mas a sua atracção física não diminuiu.
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O meu pai levantou uma sobrancelha peluda, mas limitou-se a dizer:
- É interessante.
Porém, quando me levantei para sair, acrescentou:
- Em geral, sempre considerei as tuas reacções às pessoas muito perceptivas, Archy.
Louvores! Que simpático ele estava!
Nessa tarde, telefonei para Al Rogoff, relatei-lhe o meu encontro com Hertha Gloriana e informei-o da reunião que o meu pai iria ter com Mrs. Irma Gloriana, na segunda-feira de manhã.
- Ah... - fez Rogoff. - Tenho o pressentimento de que a senhora vai largar uma bomba. Mantém-me a par do que acontecer, Archy.
- Meteste os teus espiões no Motel Jo-Jean?
- Sim. Um homem e uma mulher, na cabina cinco, mesmo ao lado da toca de Otto. Já comunicaram pela rádio. Até agora, o homem recebeu duas visitas. Penso que foram Frank e Irma. Telefona-me amanhã, depois da reunião com o teu pai.
- Espera um minuto! - gritei-lhe. - Não desligues. Esses poemas eróticos que Gillsworth escreveu referem alguns nomes?
- Nenhum que tu conheças - respondeu Rogoff.
- Ora, vamos, Al! Não brinques comigo. Que nomes mencionam?
- Apenas um: Astarte. Fui ver ao dicionário e é a deusa da fertilidade e do amor sexual.
- Conheço-a bem - retorqui. - Vive em Miami Beach.
Rogoff desligou.
Porém, aquele longo e complicado dia ainda não terminara. Mais tarde, encontrava-me no meu sanctum a trabalhar no diário quando Laverne Willigan me telefonou.
- Mais um bilhete de resgate, Archy - disse. Meteram-no debaixo da porta durante a noite.
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- Hum, hum... - comentei. - Podes ler-mo? Laverne assim fez. A carta ordenava a Harry Willigan
que reunisse cinquenta mil dólares em notas de cinquenta dólares, sem marcas e sem numeração sequencial. Depois, ele ou um seu representante entregaria o dinheiro a um mensageiro. Era esse o termo utilizado: "mensageiro". Este estaria à espera, à meia-noite de segunda-feira, no parque de estacionamento de um supermercado aberto vinte e quatro horas por dia, na Federal Highway. Calculei que o ponto indicado ficaria a cerca de dois quilómetros do Motel Jo-Jean.
Depois de pago o resgaste, o mensageiro ir-se-ia embora, mas Willigan, ou o seu representante, deveria permanecer no parque de estacionamento. Quando os cinquenta mil fossem contados e as notas examinadas e aprovadas, a P caches seria devolvida sã e salva.
Laverne prosseguiu:
- Também diz que se o mensageiro vir a Polícia, ou suspeitar da sua presença, Harry nunca mais voltará a ver o animal vivo.
- Isso não me agrada - retorqui imediatamente. E se entregarem os cinquenta mil dólares ao mensageiro, este desaparecer e não devolverem a Peachesí Parece-me que estão a pedir a Harry que corra muitos riscos.
- Se quiser voltar a esfregar o nariz dele no focinho do gato, não tem grande escolha, pois não? - declarou Laverne. - Telefonei ao Harry, para Chicago, e disse-Ihe o que vem na carta. Praguejou como um louco, mas acabou por concordar. Vai telefonar amanhã de manhã para o banco de Palm Beach, para que lhe arranjem o dinheiro. O banco falará comigo quando estiver tudo pronto. A seguir, ligo para ti, porque Harry quer que sejas tu a entregar o dinheiro e a receber a P caches de volta. Tratas disso, Archy?
- Claro que sim. É o mínimo que posso fazer, depois de não ter conseguido localizar os raptores. Avisa-me quando o banco tiver o dinheiro pronto. Irei lá levantá-
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-Io. Amanhã, não sei bem quando, passarei por tua casa para ir buscar a carta. Se saíres, entrega-a a Leon.
- Obrigada, Archy - respondeu Laverne num tom brusco. - Tenho a certeza de que irá correr tudo bem.
- Também me parece que sim. Harry volta na terça-
-feira?
- Sim, logo de manhã. Por essa altura, já devemos
ter a Peaches connosco.
Depois de Laverne desligar, telefonei para Rogoff, avisando-o a respeito daquele novo desenvolvimento. Todavia, não consegui localizá-lo e concluí que o assunto podia esperar até à manhã seguinte. Nessa altura, imaginaríamos um plano para apanhar os maus da fita.
A segunda-feira anunciava-se como um dia muito interessante. Só esperava ficar vivo para poder ver a terça-feira.
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Na segunda-feira de manhã acordei com a terrível sensação de que me esquecera de fazer qualquer coisa que deveria ter feito. Reconheci o meu lapso no momento em que escanhoava as faces, e fiquei tão mortificado que se não estivesse a utilizar uma lâmina de segurança era capaz de ter cortado a jugular. Esquecera-me de telefonar a Connie Garcia no domingo, tal como prometera. Não pela primeira vez, perguntei a mim mesmo por que motivo tratava a mulher que me era querida com uma tão insensata negligência. Suponho que era por saber que ela estava ali.
Levantara-me a tempo de tomar o pequeno-almoço na sala de jantar, com os meus pais. Enquanto abria caminho por entre um montão de panquecas, informei o governador do telefonema que Laverne Willigan me fizera na noite anterior.
Levantou os olhos do jornal apenas o tempo suficiente para olhar especulativamente para mim.
- Pretendes ser tu mesmo a entregar o dinheiro aos raptores da gata, Archy?
- Sim, e espero que o sargento Rogoff se saia com um plano para uma armadilha.
Acenou uma confirmação.
- Quando receberes os cinquenta mil dólares no banco - aconselhou-me -, conta-os antes de assinares o recibo.
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- Sim, pai - concordei, com um suspiro. Por vezes, tratava-me como se eu fosse o idiota da aldeia. Tenho cérebro, sabem, apesar de, de tempos a tempos, preferir não me servir dele.
Antes de sair para a hacienda de Willigan, telefonei para o gabinete de Al Rogoff, e descobri-o com uma surpreendente boa disposição.
- Porque estás tão contente? - perguntei-lhe.
- As coisas começam a compor-se, rapaz - declarou. - Conto-te tudo mais tarde. O que há de novo?
Repeti o que Laverne Willigan me dissera sobre a carta do raptor da gata e sobre as instruções para o pagamento do resgate.
- Não gosto disso - afirmou Al imediatamente. Corre-se o risto de se ficar sem o dinheiro e sem a gata.
- Foi o que disse a Laverne, mas respondeu-me que Harry não tinha por onde escolher e que está disposto a entrar com os cinquenta mil.
- O que faz com que ela e o amigo fiquem muito felizes, não é verdade? Está bem, Archy. vou preparar qualquer coisa para amanhã à meia-noite.
- Queres marcar as notas, depois de eu ir buscar o dinheiro ao banco?
- Não há tempo - respondeu -, e será demasiado perigoso se tiverem uma lâmpada própria para a leitura das marcas. Faremos uma lista dos números de série. É o bastante para um tribunal. Man têm-te em contacto, vai ser um dia muito agitado.
- A quem o dizes. Al, achas que serás capaz de manter Laverne fora do assunto?
Ficou silencioso durante alguns momentos. Depois disse:
- Depende. - Tive de me satisfazer com a resposta. A seguir, dei uma saltada à mansão Willigan. Leon
disse-me que a senhora da casa estava ocupada com a pedicura, mas entregou-me o pedido de resgate, dentro do sobrescrito branco.
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- A Peaches vai voltar para casa, não é?
- Assim parece - concordei.
- E eu vou outra vez começar a espirrar - murmurou, num lamento.
- Se não te dás com gatos - retorqui -, porque não arranjas um coala ou um canguru? Serviria para te lembrar da terra de onde vieste.
- Vim de uma terra boa para me enfiar noutra que é uma porcaria cheia de laranjais - queixou-se.
Já alguma vez repararam que há algumas pessoas que só estão satisfeitas quando se sentem infelizes?
Precipitei-me de volta para o Edifício McNally, ultrapassando um pouco os limites de velocidade legais. Cheguei a tempo de fumar um cigarro antes de ir ter com o meu pai. Reparei que as minhas mãos não estavam exactamente a tremer, mas não teria escolhido aquele momento para enfiar uma agulha. A simples perspectiva de um encontro com Mrs. Irma Gloriana provocava efeitos espantosos nos meus nervos.
Subi para o escritório do meu pai quando faltavam alguns minutos para as dez horas.
- Creio que será melhor, Archy - disse-me -, que sirvas como testemunha. Uma testemunha silenciosa. Por favor, deixa-me ser eu a fazer as perguntas. É claro que podes responder se a mulher se dirigir directamente a ti, mas preferia que a conversa fosse apenas entre mim e Mrs. Gloriana.
- Serei como uma mosca na parede - garanti-lhe.
- Exactamente - retorquiu, com o seu sorriso frio.
O telefone tocou e o meu pai olhou para o velho relógio que se encontrava na parede por cima da secretária de tampo de enrolar.
- A senhora é pontual - afirmou, pegando no telefone. - Sim, mandem-na entrar, por favor.
Mrs. Trelawney abriu a porta e desviou-se para o lado para deixar entrar Mrs. Irma Gloriana. A seguir, a secretária fechou a porta com delicadeza.
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O meu pai encontrava-se de pé junto à sua secretária e eu estava do outro lado da sala, perto do grande cadeirão de couro verde-garrafa. Irma deu dois passos para o interior do gabinete, com os olhos postos no meu pai. Porém, tomou de seguida consciência da minha presença, mirou-me por um ou dois segundos e voltou-se para encarar o meu pai.
- Que está ele a fazer aqui? - inquiriu com modos abruptos.
- Sou Prescott McNally - retorquiu o meu pai com uma voz calma - e presumo que a senhora seja Mrs. Irma Gloriana. Uma vez que já travou conhecimento com o meu filho, pedi-lhe para estar presente nesta reunião como testemunha e conselheiro. Pode estar tranquila quanto à sua discrição.
Irma sacudiu a cabeça, zangada.
- Não pode ser - declarou. - Não preciso nem de uma testemunha, nem de um conselheiro. Insisto numa conversa confidencial e privada entre o senhor e eu.
- Nesse caso - respondeu o meu pai -, sugiro que dêmos a nossa reunião por terminada. Muito bom dia, minha senhora. - (Acentuou o "senhora" com um tom muito ligeiro.)
Como eu lhe admirava as tácticas! Estava não só a impor o seu domínio sobre a situação como a determinar o nível de ansiedade da mulher. Se esta se fosse embora, era por estar certa de se encontrar na mó de cima. Se ficasse, então o seu papel passava a ser o de uma suplicante, ansiosa por conseguir um acordo.
Ficou parada e em silêncio por instantes, e concluí que era a primeira vez que a via indecisa.
Usava um saia-e-casaco de um linho rosa-pálido, com uma blusa de gola fechada. Era indiscutivelmente um trajo conservador, mas nem sequer um chador iraniano conseguiria esconder a radiação sexual daquela mulher. Perguntei a mim mesmo se o meu pai teria consciência disso. Desconfiei que sim. Pode ser um tipo enfadonho mas não é indiferente.
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Esperámos.
- Muito bem - disse finalmente Mrs. Gloriana. Se assim o desejam...
O pai fez-lhe um gesto, apontando-lhe o cadeirão junto à secretária, e sentou-se na sua cadeira giratória, virado para a visitante. Permaneci de pé, numa posição em que podia observar os dois sem ter de mexer a cabeça como se estivesse num jogo de ténis.
- Mr. McNally - declarou a mulher, num tom seco -, segundo sei, o senhor era o advogado do falecido Roderick Gillsworth.
- É verdade.
- Então, suponho que está encarregado dos seus bens.
O pai inclinou a cabeça e a mulher tomou o gesto como sendo de assentimento. Para além da mala de calfe preto que transportava, trazia também uma pasta de camurça castanha, suficientemente grande para conter documentos legais. Fez correr o fecho em volta da pasta com um movimento rápido e retirou dela duas folhas de papel branco presas com um agrafo.
- Tenho aqui - começou, deixando-me maravilhado com a tranquilidade e concisão da sua voz - uma fotocópia de um testamento escrito pela mão de Roderick Gillsworth há aproximadamente um mês. Foi devidamente redigido, datado e assinado. Junto, encontrará uma fotocópia de uma declaração ajuramentada, assinada pelo testamentário e por ambas as testemunhas, na presença de um notário público. Está devidamente certificada. Creio que essa declaração torna válido o testamento de Mr. Gillsworth, sem a necessidade de posteriores intervenções das testemunhas.
Inclinou-se para a frente para entregar os documentos. O meu pai imitou-lhe o movimento para os aceitar e permaneceu nessa posição por instantes, olhando-a com uma cara sem expressão. A seguir, recostou-se e começou a ler. Leu os dois documentos lentamente. Depois voltou ao princípio e leu-os outra vez. Fez girar um pouco a cadeira para se virar para mim.
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- Archy - disse com uma voz seca -, este documento é aparentemente um testamento manuscrito por Mr. Roderick Gillsworth e testemunhado por Irma Gloriana e Frank Gloriana. Declara que os manuscritos originais dos poemas do testamentário devem ser entregues à Biblioteca do Congresso. Todos os outros bens, por ocasião da sua morte, são legados a Irma Gloriana.
Al Rogoff tivera razão. Acabava de ser largada uma bomba.
O comportamento do meu pai era digno de ser visto. Não dava qualquer sinal da agitação por que devia estar a passar. A cara que virou para Mrs. Gloriana era perfeitamente pacífica e quando falou fê-lo com uma voz e uns modos que eram a personificação da simpatia.
- Era amiga do falecido Mr. Gillsworth? - perguntou.
- Sim, uma amiga pessoal e íntima - respondeu, erguendo o queixo num desafio -, em especial depois do falecimento da sua querida esposa. Creio que eu e a minha família lhe fornecemos conforto espiritual.
- O meu filho disse-me que a sua nora é médium.
- É, sim, e muito dotada, devo acrescentar.
- Mr. Gillsworth frequentou as sessões que, segundo julgo, tiveram lugar em sua casa?
- Ocasionalmente. Ia com a esposa.
O meu pai fez um aceno de cabeça e pareceu descontrair-se. Olhou para baixo, para os papéis que segurava, enrolou-os em tubo e bateu com eles, suavemente, num joelho. Não falou e era óbvio que o seu silêncio perturbava Mrs. Gloriana.
- Há alguma razão para que esse testamento não possa ser executado imediatamente? - perguntou. - É absolutamente autêntico.
- bom, como é natural, isso tem de ser confirmado respondeu calmamente. - A assinatura tem de ser verificada, bem como a do notário público que fez a certificação. Tem de ser feita uma busca para localizar mem-
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bros da família, se existirem. Para além disso, tenho de confirmar as leis do estado da Florida no que respeita aos testamentos manuscritos pelo próprio.
A última afirmação, claro, não fazia sentido. O meu pai conhecia as leis da Florida tão bem ou melhor do que i qualquer outro advogado do estado. Conhecia as músiI cãs, conhecia as letras e era capaz de cantar os versos e os estribilhos. Estava apenas a inventar desculpas para arranjar tempo.
f - De quanto tempo necessitará? - perguntou Irma. - Sei que a execução de um testamento pode levar meses e por isso queria iniciar o processo o mais depressa possível.
- É compreensível - declarou o meu pai. - Tenta' remos acelerar o processo tanto quanto possível. Onde
estão os originais destes documentos?
- No meu cofre, no banco. O pai fez novo aceno.
- Tem algumas provas, Mrs. Gloriana - cartas pessoais, por exemplo -, que posssam comprovar a sua amizade com Mr. Gillsworth?
- Que necessidade há disso? - inquiriu, indignada. - Pode crer na minha palavra, éramos amigos íntimos.
- Oh, eu aceito a sua palavra... mas por vezes os tribunais fazem inquéritos para comprovarem, sem sombras de dúvidas, as relações entre o falecido e o beneficiário.
- bom, sim... - admitiu -, tenho cartas de Rod, bem como poemas não publicados, que me enviou. Tenho também exemplares autografados de dois dos seus livros.
- Excelente. E onde se encontra esse material neste momento?
- Também está no cofre.
- Sugiro que mande fazer fotocópias de tudo o que esteja relacionado com a sua amizade com Mr. Gills-
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worth, e que mande entregar essas cópias nos meus escritórios.
- É preciso tudo isso?
- Sim, e aconselho-a a fazê-lo o mais depressa possível. A minha obrigação é a de me antecipar e estar preparado para quaisquer dúvidas que o tribunal possa levantar. Tem alguma noção do valor dos bens de Mr. Gillsworth, minha senhora?
A última pergunta fora feita de repente e com um tom seco, e pude verificar que a mulher corou por breves instantes.
- Oh, não... - retorquiu. - Pelo menos, não com exactidão. Na altura em que Rod escreveu o testamento, disse-me que não possuía grande coisa.
Ali estava algo que era forçado a reconhecer como sendo verdadeiro.
- Explicou-lhe por que motivo fazia um testamento manuscrito em vez de vir ter comigo, o seu advogado, para rever o seu anterior testamento?
Era óbvio que a mulher estava preparada para aquela questão. A sua resposta foi imediata e fácil.
- Disse-me que, como o senhor também representava a mulher dele, não queria correr o risco de Lydia vir a saber que alterara o testamento.
Isso implicava que Prescott McNally poderia ser culpado de uma conduta não ética, mas o meu pai não fez objecções. Levantou-se e esperou que Irma pegasse na mala de mão e na pasta de camurça.
- Muito obrigado por nos ter visitado, Mrs. Gloriana - disse, com cordialidade. - Se me fornecer cópias da correspondência pessoal que tem no cofre, tratarei de iniciar o processo de execução do testamento, bem como os inquéritos que referi. Por favor, fique à vontade para me telefonar se tiver mais perguntas ou desejar saber como correm as coisas.
Irma Gloriana respondeu com um aceno frio. Perguntei a mim mesmo se trocariam um aperto de mão, de
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despedida. Não o fizeram. O pai abriu-lhe a porta e a mulher saiu, de cabeça bem levantada, indomável.
O meu pai regressou à cadeira giratória e deixou-se cair sobre o assento, cansado de se manter tão direito durante todo aquele tempo.
- Como tinhas dito, Archy - comentou o senhor da casa com um pequeno sorriso -, é uma mulher muito perturbadora.
- Um testamento escrito à mão é legal na Florida? perguntei-lhe.
- Oh, sim - respondeu -, se for devidamente preparado, como este parece ter sido. Para além disso, a certificação notarial serve de prova quanto à autenticidade do testamento.
- E uma testemunha do testamento pode ser beneficiária?
- Sim, de acordo com as leis da Florida, a testemunha de um testamento também pode ser beneficiária. Archy, penso que a dama e Gillsworth tiveram a ajuda de um advogado durante a preparação deste documento e da certificação notarial. Alguma da linguagem que a mulher utilizou foi de certeza aprendida com o advogado que consultaram. Assim, levanta-se uma questão: porque foi que veio ter comigo? O testamento que eu redigi para Gillsworth ficou obsoleto por causa deste. Eu também deixei de ser necessário. Mrs. Gloriana podia ter-se servido do advogado que a ajudou e ter-lhe pedido para executar o testamento. No entanto... veio ter comigo. Porquê?
- Pai, acho que ela pensou que se viesse ter consigo eliminaria a possibilidade de o senhor fazer perguntas embaraçosas, levantar problemas e atrasar o recebimento do que já considera como seu. Se lhe levantar demasiadas objecções, é capaz de lhe oferecer uma fatia da herança.
Olhou-me, pensativo.
- Sim - murmurou -, és capaz de ter razão. A mulher está a servir-se de mim e eu não gosto disso.
Deixámo-nos ficar sentados, num silêncio mal-humo-
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rado, remoendo o assunto, até que o meu pai aspirou o ar com força.
- Archy - disse -, ontem informaste-me que pensavas que os Gloriana estavam envolvidos nos assassínios de Lydia e Roderick Gillsworth, mas que não eras capaz de imaginar o motivo. - Levantou a fotocópia do testamento manuscrito. - Aqui tens o teu motivo.
- É melhor telefonar ao sargento Al Rogoff - respondi, pondo-me de pé. - Foi uma manhã muito interessante.
- Então não foi? - replicou o meu pai. Quando passava pelo gabinete exterior, Mr. Trelaw-
ney deu uma olhadela à minha expressão e decidiu não lançar nenhuma piada nem fazer referências à nossa recente visita. Entregou-me um recado, sem proferir palavra: Mrs. Laverne Willigan telefonara e eu devia entrar em contacto tão depressa quanto possível.
Voltei para o meu gabinete-armário, liguei para casa dos Willigan, falei com Leon e acabei por conseguir ter Laverne na linha. Disse-me que tivera notícias do banco, que os cinquenta mil dólares estavam prontos e que podia ir buscá-los quando quisesse. Agradeci-lhe e desliguei imediatamente, receoso que me fizesse perguntas sobre os planos para entrega do resgate.
A seguir, telefonei ao sargento Rogoff.
- Al - disse-lhe -, estou no escritório e Mrs. Gloriana acabou agora mesmo de sair. Tinhas razão, lançou uma tremenda bomba. Podes cá vir?
- vou já - respondeu. - Devo precisar de uns quinze minutos para chegar aí.
Cumpriu a sua palavra. Entrou apressadamente no meu gabinete e atirou-se para a incómoda cadeira de aço que se encontrava ao lado da minha secretária. Acendeu um charuto e puxou pelo bloco de apontamentos.
- Muito bem - declarou -, vamos a isso. Fiz-lhe um relato completo do que acontecera no gabinete do meu pai. Quando comecei, tentou acompa-
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nhar-me, escrevinhando apontamentos, mas depois ficou tão interessado na história que desistiu, deixou o charuto apagar-se e limitou-se a escutar, inclinado para a frente, muito atento.
Quando acabei, recostou-se, voltou a acender o charuto e olhou para mim. Acendi um cigarro e não foram precisos muitos minutos para o meu minúsculo gabinete ficar cheio de fumo.
- Um testamento manuscrito pelo próprio é legal? inquiriu.
- O meu pai diz que sim, e que uma testemunha pode ser beneficiária.
- Irma fica com tudo?
- Tudo menos os manuscritos originais. Al fez uma careta de desgosto.
- Porque terá o idiota feito uma coisa dessas? perguntou.
- Isso é óbvio - retorqui. - Obsessão sexual.
- Adoro a maneira como te exprimes. Queres dizer que o homem estava doido por ela.
- É exactamente o que queria dizer.
Quando ambos compreendemos as implicações da loucura do poeta, creio que ficámos excitados. Éramos como caçadores atrás de uma pista fresca e não conseguíamos falar suficientemente depressa para expormos todas as ideias.
- Olha, Al - disse-lhe -, Lydia era uma mulher encantadora, mas era também uma espécie de fria intelectual. Em Palm Beach, as más-línguas dizem que o casamento era apenas no papel.
- E foi então que Roderick acompanhou a mulher a uma daquelas sessões espíritas e conheceu Mrs. Irma Gloriana. Pimba, ficou tudo estragado!
- Irma era tudo o que Lydia não era. Voluptuosa, dominadora, e uma devassa quando isso lhe convinha.
- E tão rapace como um falcão.
- Por isso, tiveram um caso amoroso. Rod descobriu
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que há mais coisas na vida do que apenas os pensamentos iâmbicos, e Irma pensou que o idiota podia ser a resposta para os problemas de dinheiro da sua família. Estás de acordo?
- Palavra por palavra - respondeu Rogoff. - Foi por essa razão que começou a escrever aqueles poemas eróticos. O pobre diabo já não conseguia controlar as glândulas. Acontece a todos nós, mais cedo ou mais tarde.
- Mas nem todos nós acabamos mortos por causa disso.
- Graças a Deus!
- Pensas que Gillsworth sabia que Otto era o marido de Irma?
- Duvido muito. Irma deve tê-lo feito passar por irmão, ou por amigo.
- Provavelmente tens razão - concordei. - O cenário pode ter sido este: Irma descobre que Rod não tem um tostão, mas que a esposa está cheia de dinheiro.
- Se ela morresse, o marido herdava a maior parte dos bens.
- Quem pensas que terá feito a sugestão fatal?
- O marido - respondeu Al sem hesitar. - Se fosse esse o preço a pagar para conservar Irma, não se importaria.
- Talvez Irma prometesse casar com ele logo que Lydia tivesse saído da cena... se partirmos do princípio de que não sabia que ela já era casada.
- Aposto que Irma lhe disse que não precisava de ser ele a sujar as mãos. O tal "irmão" ou "amigo" trataria da saúde a Lydia... por um preço, é claro.
- Talvez o preço fosse aquele testamento manuscrito, deixando todos os seus bens a Irma. Uma bela jogada. Mas então, Al, para que foram as cartas ameaçadoras?
- Apenas para fazer com que a Polícia galopasse de um lado para o outro, à procura de um psicopata que não existia. A propósito, mandei o tal tipo ao escritório dos Gloriana, para tentar vender um processador de texto
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Smith Corona. Tinhas razão, Frank disse que já possuía um modelo PWP lOOc.
- Achas que esteve metido na conjura para assassinar os Gillsworth?
Rogoff pensou no assunto durante alguns momentos.
- Duvido - declarou finalmente. - Era óbvio que estava a par, pois foi testemunha do testamento, não é verdade? Todavia, não creio que fosse um dos sócios. Frank tinha a sua própria operação em curso: o rapto da Peaches com a entusiástica cooperação de Laverne Willigan.
- Provavelmente conheceram-se numa sessão espírita. Essas sessões começam a parecer-se muito com o bordel que os Gloriana tinham em Atlanta.
- Archy, pensas que a médium sabia o que se passava?
- Hertha? Não me parece que soubesse do plano de assassínio. Sabia que o marido andava de volta de Laverne Willigan, mas não se ralava. Hertha não é culpada de nenhum crime, Al.
O sargento olhou-me, divertido.
- Nem sequer de uma conduta que viole o código de ética dos psíquicos?
- Ah, sim, é possível que seja culpada de qualquer coisa desse género.
O sargento riu-se.
- Escuta, passemos mais uma vez em revista toda a história, do princípio ao fim, para ver se encontramos alguma falha.
Reconstituímos de novo todo o cenário, começando pelo encontro de Roderick Gillsworth com Irma Gloriana, e pelo facto de se ter apaixonado por ela... ou o que quer que tivesse sido. Parecia-nos um guião razoável com apenas algumas interrogações, pouco importantes, para as quais não tínhamos resposta. Quando fora que Otto chegara a Palm Beach West, onde fora que Irma e Roderick haviam consumado a sua união ilícita, e por que razão Lydia abrira a porta para deixar entrar o seu assassino?
- Acabaremos por esclarecer esses pontos - afir-
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mou o sargento, confiante. - Agora que temos uma hipótese lógica, sabemos quais as provas a procurar e podemos separar o trigo do joio.
- Ah, tem cuidado! - exclamei. - Espero que não vás pôr factos de lado apenas porque não se adaptam à teoria. É ridículo... e perigoso.
- Não se trata de pôr factos de lado - argumentou Al -, mas sim de uma questão de interpretação. Deixa-me dar-te um exemplo. Quanto encontrámos o corpo de Gillsworth, verificámos que estivera na cozinha, a preparar uma enorme refeição: seis grandes pastéis de caranguejo e uma salada gigantesca. Há três interpretações possíveis para tão grande refeição. Primeira: estava esfomeado e ia comer tudo aquilo, sozinho. Segunda: ia fazer comida suficiente para lhe sobrar para uma refeição do dia seguinte. Terceira: esperava um convidado e preparava jantar para duas pessoas. De acordo com a nossa teoria, a terceira hipótese é a mais provável. Estava à espera que Irma Gloriana fosse jantar com ele... Batem-lhe à porta, espreita pelo postigo, vê Irma e abre a porta. Otto estava encostado a um lado, fora das vistas. No momento em que a porta se abre, precipita-se para o interior de lâmina em punho. Não te parece correcto? É a isto que chamo de interpretação dos factos. Só passam a ser provas quando conseguimos estabelecer o seu significado. Se não temos uma suposição razoável, não nos podemos servir dos factos.
- Obrigado, professor - respondi. - Gostei muito da sua lição. Claro que se baseia na crença de que o nosso cenário está correcto.
- Estás convicto disso, não é verdade?
- Estou - afirmei. - Parece-me a única explicação plausível para o que aconteceu.
Todavia, não se tratava de toda a verdade. Lembram-se da tal vaga noção que eu tivera, tão ténue que não a pudera transpor para palavras? Depois, quando já sabíamos um pouco mais a respeito dos homicídios, começara
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a distinguir um contorno. Agora, com as revelações mais recentes, esse contorno enchia-se e ia ganhando substância. Se se demonstrasse válida, a noção iria alterar radicalmente o cenário que Rogoff adoptara com tanto entusiasmo. Todavia, não lho disse.
- Al, o banco já preparou o dinheiro do resgate. Queres ir buscá-lo, comigo? Tu é que és o homem da pistola.
- Está bem - concordou. - Depois, quero que vás à nossa sede comigo. Temos de preparar o programa desta noite para o pagamento do resgate.
- Espero que tenhas imaginado um plano eficiente.
- Deve funcionar - afirmou.
- Não podes ser mais positivo do que isso? - inquiri, com um suspiro. - No fim de contas, o que está em jogo é o meu pescoço.
- bom... - murmurou, com um ar duvidoso -, talvez seja bom não comprares bananas ainda verdes.
Al riu-se... mas eu não.
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Passei toda a tarde com o sargento Rogoff e com uma equipa ad hoc de guardas uniformizados, que lhe fora confiada. Depois de me terem explicado como iria ser a acção da noite, e de me terem dito qual seria o meu papel, compreendi que Al fizera um trabalho notável ao conseguir organizar uma operação tão complexa num prazo tão curto.
E claro que, de acordo com a Lei de Murphy, algumas coisas iriam correr mal, e passámos a maior parte do nosso tempo a pensar em possíveis contingências e a planear as melhores soluções para as enfrentarmos. Fiquei satisfeito por o plano, na generalidade, ser viável. com um pouco de sorte, atingiria os seus objectivos.
Quis deixar o dinheiro do resgate com Rogoff, mas este não aceitou a responsabilidade. Ficou com uma cópia da lista de números de série que o banco tivera a amabilidade de nos fornecer. Porém, quando saí da sede da Polícia de Palm Beach, que se parece com uma grande vivenda mediterrânica, carregava com cinquenta mil dólares em notas de cinquenta. O banco fornecera um saco de compras da K-Mart para o transporte. Porque será que todos os grandes dramas da vida contêm elementos de farsa?
Como é natural, a minha mãe não fora informada que o seu querido menino estava metido num empreendi-
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mento perigoso que poderia envolver violência. O meu pai e eu tentámos fazer com que a hora do cocktail familiar e o jantar não fossem diferentes do que tinham sido todos os outros. Conversámos, rimo-nos e cada um de nós devorou uma meia dúzia de deliciosas codornizes. Não creio que minha mãe se tivesse apercebido de que eu estava... não direi que em pânico, mas sim com um nível de trepidação muito elevado.
Depois do jantar, a minha mãe deixou-nos para ir ver o seu programa de televisão, e eu resisti à tentação de lhe dar um beijo de despedida. Não ia partir para a batalha de Blenheim, pois não? Tratava-se apenas de uma pequena questão de aplicação da lei, e tinha a certeza que emergiria dela com todas as minhas limitadas capacidades ainda intactas. Foi o que disse a mim mesmo. Várias vezes.
A minha euforia auto-induzida ficou um pouco abalada quando o meu pai me convidou para o estúdio, para um conhaque. Sabia que era por bem, mas pensei que oferecer-me uma bebida era mais ou menos o mesmo que proporem-me uma venda para os olhos e um último cigarro. Pelo menos, o meu pai teve o bom senso de não dizer: "Tem cuidado." Limitou-se a pedir: "Telefona-me logo que tudo tenha terminado."
Subi ao andar de cima para mudar de roupa. Al Rogoff sugerira que me vestisse de preto, e, quando lhe perguntara por que motivo, respondera: "Serás um alvo mais difícil." Os outros chuis da equipa tinham achado aquilo muito engraçado, mas eu considerara essa leviandade como sendo de muito mau gosto.
Desci cerca das nove horas, vestido inteiramente de preto e trazendo o saco de compras cheio de dinheiro. Dirigi-me para o Miata e fiz uma pausa para olhar à minha volta. Estava uma noite quente, com um céu escuro repleto de nuvens alongadas. Também havia estrelas, uma Lua descorada, e quando olhei mais para cima vi um avião que se dirigia para norte. Desejei seguir a bordo.
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Conduzi directamente para a esquadra da Polícia. O sargento Rogoff e os seus capangas envergavam coletes à prova de bala e inspeccionavam o armamento que, notei, incluía caçadeiras, gás lacrimogéneo, granadas de fumo e os respectivos lançadores. Também experimentavam uma grande variedade de engenhocas electrónicas. Não estava muito certo quanto às suas funções nem o que iam fazer com elas.
Despi-me até à cintura e um dos técnicos colocou-me um emissor, uma experiência desagradável que envolveu o que me pareceu serem metros e metros de fita adesiva. Quando terminou, estava equipado com um microfone, um emissor e uma bateria. Vesti novamente a camisa e o casaco, e saímos para o exterior para verificarmos a minha eficiência como estação de rádio ambulante.
O sargento disse-me para me afastar cerca de trinta metros, ligar o interruptor e dizer qualquer coisa. Fiz o que me era ordenado, liguei-me a mim mesmo e recitei o "Amanhã, e amanhã... de Macbeth. Rogoff acenou-me para que voltasse para junto dele.
- Está perfeito - declarou. - Vamos embora, para darmos início ao espectáculo.
Era uma verdadeira parada. Tratava-se de uma operação conjunta e tínhamos carros dos departamentos da Polícia de Palm Beach, West Palm Beach, e do xerife do condado de Palm Beach. Tudo aquilo por causa de uma gata! As três jurisdições cooperavam umas com as outras sob um velho sistema que o sargento Rogoff descrevia como "partilhar a glória e diluir as responsabilidades".
No meio de toda a procissão ia um carro desportivo descapotável, de um vermelho berrante, habitado por este vosso humilde servidor, Archibald McNally.
Em breve me separava deles para deixar que aquela verdadeira armada seguisse o seu caminho sem mim. O guião dizia que eu deveria chegar ao parque de estacionamento do supermercado da Federal Highway por volta das onze e quarenta e cinco. Cheguei mesmo na hora e
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estacionei num sítio onde tinha uma boa visão da fachada do supermercado. Liguei o emissor.
- McNally em posição - declarei, numa voz normal. Fiquei a olhar e, momentos depois, a mulher-polícia
à civil que fora colocada no supermercado por Rogoff apareceu na montra e começou a remexer num montão de produtos alimentares. Era o sinal de que recebera a minha comunicação e a iria transmitir aos restantes por intermédio do seu próprio rádio, muito mais potente. Instalei-me, acendi um cigarro e perguntei a mim mesmo por que razão não me aliviara antes de partir para aquela aventura. Compreendi que toda a minha intensidade e desconforto se deviam ao facto de estar a tentar ajudar o idiota do Willigan. Tentava recordar-me das linhas de Henrique V, "Para a frente, rapazes, por Harry e por...", quando um velho Chrysler Imperial avançou lentamente para a zona iluminada do estacionamento e parou num espaço a cerca de seis metros de mim.
- Creio que o tipo chegou - disse em voz alta -, num Chrysler Imperial preto. O homem saiu e dirige-se para mim.
Rogoff e eu tínhamos concordado que era improvável que o mensageiro fosse Frank Gloriana, pois não desejaria que o identificasse como sendo o raptor da gata. A escolha lógica seria Otto Gloriana, o papá de Frank.
Quando se aproximou, não tive dúvidas de que aquele homem alto, de cabelos avermelhados, ombros largos e cerca de sessenta e cinco anos era na verdade Otto Gloriana, aliás Charles Girard, antigo proprietário de um bordel e ex-presidiário, que a Polícia de Atlanta dissera não ser uma boa peça. O que me surpreendia era o facto de ter tão boa aparência.
Usava um fato de linho listrado, muito amarrotado, e tinha as mãos enterradas no bolso do casaco. Aproximou-se e quase se encostou à porta do carro. Não me importava, ficava mais perto do microfone escondido.
- Vens da parte do Harry Willigan? - perguntou, num ressonante tom de barítono.
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- É verdade - respondi.
- Tens os cinquenta mil?
- Aqui mesmo - declarei, começando a levantar o saco das compras, que se encontrava no assento ao meu lado. O homem recuou imediatamente um passo.
- Sai do carro - ordenou-me. - Traz o dinheiro. Fiquei espantado.
- Porque haveria de fazer uma coisa dessas? - inquiri.
- Porque se não o fizeres - retorquiu, com um tom muito agradável - mato-te.
Retirou a mão direita do bolso do casaco, apenas o suficiente para me mostrar que empunhava um revólver de cano curto que me pareceu ser um calibre 38 Special. Estava de costas para a montra do supermercado e não havia ninguém por perto. Tive a certeza de que aquele movimento não fora observado.
- Tem uma arma? - perguntei, num tom de incredulidade, rezando para que a conversa estivesse a ser escutada na perfeição pela mulher-polícia que se encontrava no supermercado. - Não é necessária. Leve o dinheiro e traga o gato.
Otto Gloriana suspirou.
- Es de compreensão lenta, não és? vou dizer-to uma vez mais, e se não fizeres o que te mando abro-te um terceiro olho no meio da testa. Sai desse teu carrinho, muito devagar. Traz o dinheiro. Avança para o meu carro. Irei logo atrás de ti.
Fiz o que me mandavam, pensando tristemente que nos havíamos preparado para todas as contingências, excepto para a possibilidade de me levarem como refém. Pelo menos, era o que eu esperava. Não tinha qualquer vontade de ir ao encontro do Criador no parque de estacionamento de um supermercado que vendia Twinkies e cerveja de raízes, sem álcool.
Aproximámo-nos do Chrysler. Estava um homem ao volante, que se esticou para abrir a porta traseira.
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- Entra - ordenou-me Otto.
Entrei e sentei-me, atirando o saco do dinheiro para o chão. Instalei-me a um canto e lancei uma olhadela ao condutor.
- Olha, olha! - exclamei, em voz alta. - Frank Gloriana! Mas que surpresa!
- Cala a boca - disse-me o Gloriana mais velho, que depois se virou para o filho: - Vamos embora!
O carro arrancou e dirigiu-se para sul, pela Federal Highway. Calculei que me encontrasse fora do alcance do receptor, no supermercado, mas mesmo assim resolvi dizer:
- Vamos para o Motel Jo-Jean, não é verdade? Otto tirou o revólver do bolso e bateu-me, num dos
lados da cabeça, com o cano de aço. Que mais lhes posso dizer? Aquilo doeu.
- Disse-te para manteres a boca calada - berrou o meu captor. - Aqui, quem fala sou eu.
Depois de uma resposta daquelas, fiquei calado e tentei calcular as probabilidades, contra mim, de alguma vez conseguir voltar a tocar cravo. Eram muitas, concluí. O facto de me terem permitido testemunhar o envolvimento de Frank Gloriana no golpe não agoirava nada de bom para o meu futuro. Parecia-me altamente improvável que me permitissem viver mesmo que jurasse manter a boca fechada para todo o sempre.
Virámos para a entrada do Motel Jo-Jean. Sabia que se encontravam dois polícias na cabina cinco, e mais dois num quarto, nas traseiras da recepção do motel. Tinham sido ali colocados com a entusiástica colaboração da proprietária, que provavelmente pensara que o Jo-Jean iria rivalizar com o O. K. Corral e que a sua fotografia surgiria na primeira página do seu jornaleco favorito.
Todavia, não vi quaisquer carros da Polícia, nem sinais de que existissem atiradores com as miras apontadas para a cabina quatro. Só me restava ter fé de que o sargento Rogoff estivesse a par da minha provação e revisse
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febrilmente os seus planos, para colocar a minha segurança à frente da da Peaches.
Parámos ao lado da cabina quatro e Otto espetou-me o cano da arma nas costelas.
- Sai - ordenou. - Leva o dinheiro. Dá a volta para a porta da frente. Frank, segue à frente e abre-a.
Momentos depois, estávamos todos lá dentro, com a porta fechada, e um candeeiro aceso. Olhei em volta. Era um quarto simples, tal como Hertha dissera que vira. Havia uma caixa com areia, para um gato, uma tigela com água e outra com comida para gatos.
- Onde está a Peachest - perguntei.
- Foi ao cinema - troçou Frank. Eram as suas primeiras palavras. Não precisava de se ter incomodado a pronunciá-las.
- Conta o dinheiro - ordenou-lhe o pai.
Frank despejou o conteúdo do saco para cima da cama e depois amontoou os maços de notas, presas com cintas de papel. Otto e eu ficámos de pé. Ninguém pronunciou palavra até Frank terminar a contagem.
- Está todo - disse. - As notas parecem boas.
- Ficaram com os números - grunhiu Otto. E depois? Onde as iremos passar ninguém olha para os números.
- Já posso levar a gata? - perguntei, imaginando que nada tinha a perder.
Otto olhou-me com um ar sombrio.
- Já consegui perceber como descobriste Charles Girard - declarou. - Foi pelo veterinário, não foi? Na clínica para animais? Foste esperto.
Durante um minuto ou dois, não compreendi como era possível que o homem soubesse que eu o identificara. Porém, a seguir, recordei-me que mencionara o nome de Charles Girard a Laverne. Esta sem dúvida que o dissera a Frank e este, por sua vez, comunicara ao pai que Archy McNally, um tipo que não sabia manter a boca fechada, lhe andava na pista.
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- Então, agora, já sabes tudo a meu respeito - continuou Otto. - E também sabes de Frank. Não temos grande escolha, pois não?
O significado era claro e provocava-me mais arrepios do que uma ameaça directa.
- Grande coisa! - comentei. - Raptar um gato não é um crime capital. Que condenação julgas que irás apanhar?
- Quando já se esteve lá dentro - retorquiu -, um dia a mais... é demasiado.
Ficou a olhar para mim e percebi que o que o preocupava não era apenas uma acusação de rapto de um gato. Não iria matar só por causa disso. O homem calculava o que eu poderia ou não saber a respeito das suas outras actividades, incluindo os viciosos assassínios dos Gillsworth. Por fim, verifiquei que tomara uma decisão, uma decisão fatal que pareceu descontraí-lo.
- Mete o dinheiro outra vez no saco - disse para o filho. - Esconde o saco debaixo da cama. Depois, vai buscar a gata. Trataremos dos dois ao mesmo tempo. Descobri um bom sítio, um canal deserto.
Estive quase a gritar. "Não sei nadar!" e a soltar gargalhadas histéricas, mas consegui conter-me não sei bem como.
Frank escondeu o dinheiro, foi à casa de banho e apareceu com uma grande caixa que já contivera garrafas de Jim Beam. Estava amarrada com uma corda grossa e tinha buracos para respiração abertos nos lados. Ouvi alguns miados fracos e a caixa agitou-se um bocado quando a Peaches se mexeu no seu interior.
- Vamos - ordenou Otto.
Até àquele momento, a cabina estivera iluminada por um único candeeiro de pé, com uma lâmpada fraca. Porém, de repente, o interior ficou iluminado por uma luz dura, intensa e muito branca. Os feixes dos projectores entravam pelas janelas da frente e dos lados da cabina.
- Que diabo?! - praguejou Frank.
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Otto moveu-se rapidamente. Colocou-se por detrás da porta de madeira e inclinou-se para espreitar com cuidado pelo canto da janela da frente.
- Carros da Polícia - informou, numa voz sem entoação. - Pelo menos quatro ou cinco... e um exército de chuis.
- Oh, Deus! - exclamou Frank, desesperado.
A seguir, ouvi o sargento Rogoff. O amplificador fazia com que a sua voz soasse áspera e metálica, mas não havia confusões possíveis.
- Cabina quatro! - berrou. - Saiam todos pela porta da frente, com as mãos levantadas! Já!
Frank virou-se para o pai.
- E agora, que fazemos? - perguntou, nervoso. Otto foi à casa de banho, subiu para cima da tampa
da sanita e espreitou pela pequena janela. Depois regressou à divisão principal.
- Não vale a pena, as traseiras também estão cobertas - afirmou.
- Por favor - intervim. - Entreguem-se. A acusação é apenas por roubo de um gato. Não vale a pena começarem aos tiros por isso.
- Ele tem razão - disse Frank. - É melhor fazer-
mos o que querem.
O pai olhou para Frank com um ar de desprezo.
- Tu, faz como quiseres. vou fugir daqui. Não quero voltar a pagar por tua causa.
Estendeu o braço para debaixo da cama e puxou o saco do dinheiro. Retirou dele vários maços, que meteu nos bolsos. A seguir apontou o revólver para mim.
- Vira-te - ordenou. - Tu e eu vamos sair daqui juntos. Irás à frente.
- Cabina quatro! - estrondou a voz de Rogoff. Saiam pela porta da frente, de mãos levantadas. Têm exactamente um minuto.
Otto Gloriana colocou-se por detrás das minhas costas e pousou uma pesada mão no meu ombro. Senti o cano da arma encostado por detrás da orelha direita.
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- Nada de espertezas - declarou - ou morres. Compreendeste?
- Sim - respondi.
- Agora, abre a porta. Devagar. Sai... devagar. Avança para o Chrysler. Nada de movimentos rápidos.
Fiz conforme me ordenava. Avançámos para o pórtico quase em uníssono.
- Não disparem! - gritou Al. - Não disparem! Os projectores deixaram-me meio cego. Só conseguia
distinguir os volumes escuros dos carros. Caminhava na
direcção do Chrysler tão lentamente quanto era capaz.
Estávamos ao lado do carro quando o altifalante ladrou:
- Otto! Otto! - Porém, Rogoff não pronunciou "Otto". Dividiu o nome em duas sílabas distintas: "Ot-to! Ot-to!"
Gloriana ficou tão chocado por a Polícia conhecer o seu verdadeiro nome que a sua mão perdeu a força e soltou-se do meu ombro esquerdo. A pressão da arma por detrás da minha orelha abrandou um pouco. Tive a vaga consciência do homem se ter virado ligeiramente para o lado de onde lhe chegara o grito rouco.
Foi então que fiz uma coisa que qualquer pessoa com um QI maior que o diâmetro da cintura também teria feito. Deixei-me cair. Não sou um acrobata, nem um palhaço de circo, treinado para cair sem riscos e sem se magoar. Limitei-me a ir-me abaixo, magoando-me nos joelhos, cotovelos e costas. Esperava que Al Rogoff e os seus homens tivessem a esperteza suficiente para tirarem partido do meu súbito colapso. Tiveram. Eu estava no chão e Otto Gloriana permanecia de pé, espantado, quando soou uma fuzilaria ensurdecedora. Encolhi-me todo.
Ouvi Otto gemer e vi-o ser empurrado para trás. O seu corpo amoleceu e o homem caiu de joelhos. Depois, enquanto o fogo continuava, a cabeça pendeu-lhe e estendeu-se ao comprido, de barriga para baixo, no chão.
- Cessem o fogo! - gritou o sargento. - Cessem o fogo!
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O silêncio foi também ensurdecedor. Deixei-me ficar onde tinha caído, sabendo que estava vivo, mas com medo de mexer os membros, não fossem os ossos partidos começarem a furar-me a pele. Ainda estava abalado pelo tiroteio e tentando determinar a que soavam as balas que me tinham voado por cima da cabeça. Não fora nem um zumbido, nem um assobio. Por fim, decidi que o som era semelhante ao de uma folha de papel a ser rasgada.
Levantei a cabeça com cuidado. O sargento Rogoff e dois outrbs polícias estavam de pé junto de Gloriana. Um deles afastou-lhe o revólver. O outro ajoelhou-se e virou a cabeça de Otto, para lhe ver a cara.
- Este está despachado, sargento - declarou.
- Pois é - comentou Al. - Um caso óbvio de envenenamento pelo chumbo. Chamem a carrinha das carnes-frias. - Virou-se e ajudou-me a pôr-me de pé. Fiquei a tremer em cima das pernas.
- Estás bem? - perguntou, ansioso.
- Preciso de ir à casa de banho - respondi.
O sargento riu-se e encaminhámo-nos para a porta da cabina, de onde saíam dois polícias segurando Frank com firmeza, pelos braços. Estava sem forças e arrastava os pés. Quando passaram por nós, Frank levantou a cabeça e olhou para mim.
- Estou contente por estares vivo - disse. - De verdade.
- Obrigado - retorqui.
Frank nem sequer olhou para o corpo do pai.
Entrámos na cabina. Al começou a guardar no saco o dinheiro que Otto espalhara. Fui direitinho para a casa de banho. Quando saí, o sargento desaparecera. A caixa de cartão continuava no meio do chão.
Inclinei-me e desamarrei a corda. Levantei as abas da tampa, desconfiado. Receava que a Peaches, pensando que eu fosse um dos miseráveis, me saltasse para a garganta e tentasse rasgar-me a maçã-de-adão com os dentes. Porém, a gata saltou para fora da caixa e começou a
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esfregar-se contra as minhas canelas, ronronando como uma maníaca.
- Ah, Peaches - disse-lhe -, sabes distinguir um herói quanto te chega o cheiro, não é verdade?
Quando Rogoff voltou, estava sentado na cama com a gata a meu lado, deitada de barriga para cima e com todas as patas no ar. Coçava-lhe a barriga e o bicho tinha os olhos fechados de êxtase.
- É a cena mais ridícula a que assisti em toda a minha vida - disse Al.
- Tens é ciúmes - retorqui - porque ninguém te faz o mesmo.
- Quem to disse? - perguntou.
- Al, posso devolver a Peaches a Harry Willigan?
- Sim. Diz-lhe que vamos ficar com os seus cinquenta mil dólares por uns tempos. São uma prova. Recebê-los-á de volta, mais tarde ou mais cedo. Vamos, dou-te uma boleia até ao teu carro.
- Primeiro, tenho de telefonar ao meu velhote. Prometi que o faria.
Servi-me do telefone no escritório do motel. O meu pai respondeu tão depressa que fiquei com a certeza de que não dormia. Eram quase duas da manhã.
- Sou eu, Archy - disse-lhe. - Estou bem e a gata foi recuperada.
- Ainda bem - retorquiu. - Amanhã, contas-me tudo. - A seguir corrigiu-se, falando com mais precisão: - Ou antes, logo, contas-me tudo.
Rogoff levou-me de volta ao estacionamento do supermercado num carro da Polícia. Eu deixara a caixa de cartão na cabina e transportava a Peaches ao colo. Estava mais que contente.
- Então e Irma? - perguntei.
- Apanhámo-la à meia-noite. Está a fazer o papel de grande dama, altiva e sentindo-se insultada, e diz que não abre a boca enquanto não falar com um advogado.
- E Hertha?
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- Não estava no apartamento. Os vizinhos dizem que não a vêem há dois ou três dias. Não sabem onde está.
Era capaz de adivinhar, mas não o disse ao sargento. Quando me transferi para o Miata, Rogoff disse, casualmente:
- Fizeste um bom trabalho esta noite, Archy.
- Obrigado. Também te comportaste muito bem. Telefono-te depois de dormir um bocado. Al, não me parece que Frank Gloriana seja um tipo com um carácter muito forte. Aperta com ele.
- É o que tenciono fazer - declarou, sorrindo. Segui de carro para casa com a Peaches enrolada no
assento do passageiro. Quando cheguei a casa, pensei que pudesse ter fome e ofereci-lhe uma fatia de pastrami que fui buscar ao frigorífico. Comeu-a com óbvia delícia. Era uma gata esperta.
Dormiu aos pés da minha cama durante o resto da noite. Quando acordei, por volta das oito horas, descobri que a gata vomitara o pastrami em cima da capa do meu diário.
Não se pode ganhar sempre, não acham?
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Na terça-feira de manhã, tomei o pequeno-almoço com os meus pais. A Peaches sentou-se pacientemente ao lado da mesa da sala de jantar, e quando lhe dei um bocadinho de comida tasquinhou-o com delicadeza, como uma verdadeira senhora. A minha mãe ficou deliciada. Não tínhamos nenhum animal na família desde que morrera Max, o nosso retriever dourado. Perguntei, em voz alta, se poderíamos convidar um cachorrinho, talvez um dandie dinmont, para se juntar aos habitantes do nosso lar. O pai prometeu considerar a sugestão.
Depois do pequeno-almoço, puxei-o para um lado e fiz-lhe um relato abreviado da acção da Polícia na noite anterior.
- Então, Otto está morto? - perguntou, quando terminei.
- Definitivamente morto.
- E o filho está sob custódia?
- É verdade, e também Mrs. Irma Gloriana. Espero que Al Rogoff os vá interrogar hoje.
Respondeu-me com um aceno.
- Gostaria de falar com o sargento - afirmou. Achas que poderá visitar-me esta tarde?
- Tenho a certeza de que deve andar muito ocupado, pai. Talvez lá para a noite...
- Pergunta-lhe. Diz-lhe que se trata do testamento
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manuscrito de Roderick Gillsworth e que o assunto pode afectar a sua investigação.
Sabia que era inútil fazer perguntas, pelo que lhe disse que tentaria contactar com Rogoff. O meu pai foi-se embora para o escritório, no seu Lexus, e eu meti a Peaches no Miata e dirigi-me para casa dos Willigan. A gata conservou-se sentada no lugar do passageiro, farejando o ar da manhã e olhando à sua volta com um ar altivo.
Transportei-a até ao pórtico dos Willigan e, antes de ter oportunidade de tocar a campainha, a porta abriu-se e Harry correu para o exterior, de braços abertos.
- Peachesl - gritou. - A Peaches está de volta! Juro que havia lágrimas nos olhos do pobre idiota.
Estendeu as mãos para o animal, mas a gata tinha outras ideias. Saltou dos meus braços, precipitou-se para a porta aberta e correu ao longo do corredor. Willigan foi atrás dela, gritando:
- Doçura! O papá está aqui! Vem ao papá! Horrível.
Desapareceram os dois e eu entrei na casa, fechando a porta atrás de mim. Percorri o corredor e fui dar ao relvado das traseiras. Laverne jazia de barriga para o ar numa cadeira, usando um biquini francês de um cor-de-rosa-vivo. Tinha também uma protecção em cima dos olhos.
- bom dia, Laverne - disse-lhe quando me aproximei.
Levantou a protecção plástica apenas o suficiente para olhar para mim, e depois voltou a descê-la sobre os olhos.
- Olá, Archy - respondeu, numa voz sem entoação.
- Acabei de devolver a Peaches - expliquei. - Foi recuperada a noite passada.
- Eu sei, ouvi a notícia na rádio, esta manhã.
- Queres fazer o favor de dizer ao Harry que a Polícia tem os seus cinquenta mil dólares? Vão guardá-los temporariamente, como elemento de prova. Acabará por os receber de volta.
- Está bem, eu digo-lhe - afirmou.
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Não sei por que motivo senti pena dela. Neste mundo, acabamos sempre por pagar as asneiras que fazemos perguntem-me, que eu sei! - e não havia dúvidas de que Laverne se portara de uma maneira estúpida. Todavia, suponho que teria as suas razões e que as considerara suficientes.
- Tentarei manter-te fora do assunto - disse-lhe -, mas não sei se será possível.
- Fora de quê? - perguntou.
- Laverne, por favor! A Polícia prendeu Frank Gloriana. Só Deus sabe o que o homem irá contar.
- De que estás tu a falar? - inquiriu, indiferente.
Suspirei e comecei a afastar-me. Estava quase a chegar à porta quando ouvi um grito de "Archy!" e me virei para trás. Laverne estava sentada na cadeira, encolhida, de cabeça baixa. Remexia na protecção plástica com dedos nervosos.
- Achas que conseguirás manter o meu nome de fora? - perguntou, olhando para cima, na minha direcção.
- Laverne - retorqui -, permite-me que seja franco... - Fiz uma pausa súbita e acrescentei: - Oh, Deus, eu não quero ser Frank!1
Laverne sorriu pela primeira vez.
- Olha - continuei -, Frank não é do tipo com quem se possa contar. É provável que diga à Polícia que foste tu que o incitaste, e que aceitou porque estava apaixonado por ti.
Laverne fez uma careta.
- Mas isso é uma loucura! Como poderia dizer uma coisa dessas? Os bilhetes de resgate foram feitos no seu próprio processador de texto.
- A Polícia já sabia disso. No entanto, foste tu quem levou a Peaches daqui, dentro da mala de transporte, não é verdade?
1 Trocadilho intraduzível, em inglês, "Frank" e "franco" escrevem-se da mesma maneira. (N. do T.)
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- Pareceu-me divertido - retorquiu. - Frank precisava de dinheiro e Harry tem muito. Quanto a Frank estar apaixonado por mim... isso são tretas. Era apenas um jogo.
- Um jogo... que deu para o torto, Laverne. Se Harry descobre, sabes o que te irá acontecer, não sabes?
- Pois sei... vou para a rua... e lá se vai o acordo pré-nupcial.
- Correste um risco muito grande...
- Estava a morrer de aborrecimento... - respondeu, encolhendo os ombros. - Escuta, Archy, se fores capaz de me manter fora dessa história, eu compenso-te durante uns tempos.
Colocou as mãos atrás das costas, inclinou-se para trás e cruzou as pernas. Olhou para mim, novamente sorridente. Aquela mulher tinha que se lhe dissesse...
Soltei uma gargalhada.
- Laverne - retorqui -, és incorrigível. Lambeu os lábios brilhantes, sempre a sorrir.
- Pensa no assunto - insistiu.
Fui-me embora dali tão depressa quanto pude. Por muito que um homem se possa considerar "macho", quando uma mulher diz sim daquela maneira, a sua primeira reacção não é de desejo, é de medo.
Afastei-me com a sensação de que aquele ia ser o Dia das Revelações, em que todos os problemas seriam resolvidos e todas as complexidades seriam esclarecidas. As coisas não aconteceriam desse modo, mas estiveram muito perto.
Queria fazer uma pergunta a Hertha Gloriana e pensava saber onde a poderia encontrar. Guiei o Miata para Riviera Beach, e meia hora depois batia à porta do apartamento de Meg Trumble.
- Olá, Archy - disse Meg. - Que surpresa agradável.
A "surpresa" eu aceitava. O "agradável" era conversa fiada. No entanto, deixou-me entrar e, como era de espe-
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rar, Hertha estava enrolada em cima de um sofá. Tinha uma caixa de lenços de papel a seu lado e limpava os olhos. Apesar das lágrimas da médium e das maneiras geladas de Meg, as duas mulheres pareceram-me extraordinariamente atraentes. Usavam calções brancos iguais, com camisas de homem atadas à frente e que revelavam uns centímetros de barriga. Para além disso, exibiam um quarteto de pernas esplendidamente bronzeadas.
- Ouviste as notícias? - perguntou Meg. - Refiro-me ao marido e à sogra de Hertha.
- Ouvi - afirmei, fazendo um aceno. - Já foste à Polícia, Hertha?
Abanou a cabeça.
- Acho que o devias fazer - disse-lhe, com gentileza. - Podem querer interrogar-te. Pede para falar com o sargento Rogoff.
- Hertha nada sabe a respeito do gato - declarou Meg, zangada. - Não vejo por que motivo haveria de se envolver.
- Meg - respondi-lhe, com um suspiro -, Hertha já está envolvida. O marido e a sogra foram presos, e o sogro está morto. Se não for à Polícia, começarão a procurá-la. Mais tarde ou mais cedo, acabam por a encontrar e vão querer saber por que razão não se apresentou.
- Sim, talvez deva falar com eles - disse Hertha, timidamente. - Meg, vais comigo?
Meg sentou-se ao lado de Hertha e passou-lhe um braço por cima dos ombros.
- Claro que vou, querida - murmurou, numa voz tranquilizadora. - Vamos juntas. Disseste para falarmos com quem, Archy?
- com o sargento Al Rogoff. É um meu amigo e sugiro que lhe digam que já conversaram comigo. Irão achá-lo uma pessoa muito compreensiva.
Era a oportunidade perfeita para fazer a minha pergunta.
- É provável que queira saber se Roderick Gillsworth ia frequentemente ao vosso escritório.
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A médium olhou para mim de olhos muito abertos.
- É uma pergunta estranha - comentou.
- bom, ia ou não? - insisti. - Gillsworth ia ao vosso escritório e conversava com Frank?
- Várias vezes - confirmou, acenando. - Metiam-se no quarto onde tratávamos do correio. Não sei de que falavam.
- Diz isso ao sargento Rogoff - aconselhei-a. Tenho a certeza de que se mostrará interessado, Hertha, vais ficar a viver aqui?
- Claro que sim - declarou Meg, decidida. - Todo o tempo que desejar... e espero que seja para sempre.
A médium virou-se e abraçou a outra mulher com força, beijando-a nos lábios.
- Oh, querida - exclamou, chorando -, o que faria eu sem ti?
Quando me fui embora estavam as duas abraçadas e a murmurarem uma para a outra. Segui para o Clube Pelicano na esperança de que um bom copo me ajudasse a restaurar a sanidade. Enquanto conduzia, ia pensando nas estranhas convulsões do comportamento humano.
Compreendia perfeitamente a decisão de Meg. No fim de contas, fora traída por um homem e de uma maneira particularmente cruel e humilhante. Porém, as acções de Hertha intrigavam-me. A médium, casada, que dispensava os seus beijos com tanta generosidade, parecia-me uma contradição: era uma espírita muito física.
A seguir, porém, compreendi que isso não passava de um estereótipo profissional, de que quase todos somos culpados.
Por exemplo, toda a gente pensa que as bibliotecárias são mulheres secas, sem sexo, que usam um pince-nez e calçam umas luvas de borracha antes de apertarem a mão a um homem. Sei, por experiência pessoal, que esta imagem é totalmente, totalmente falsa. (Pergunto a mim mesmo o que andará Nancy a fazer?...)
Por isso mesmo, não era na verdade uma grande sur-
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presa descobrir que o facto de ser uma médium não impedia Hertha de ter impulsos de uma espécie mais corporal. Uma médium cheia de cio? bom, porque não? Para além disso, se sentia tendências ninfomaníacas, quem era eu, um infeliz libertino, para a condenar? Se a sua natureza incluía uma predilecção por relações sáficas, pois que assim fosse.
Quando entrei no Clube Pelicano, o rádio por detrás do bar estava ligado e Vikki Carr cantava It Must Be Him. Era de mais e rebentei em gargalhadas.
- Parece estar muito bem-disposto, Mr. McNally disse Simon Pettibone.
- Tenho andado a ponderar as ironias da vida, Mr. Pettibone - respondi-lhe. - Não há dúvida de que este mundo é completamente louco.
- Sim, mas é o único que temos - recordou-me.
- Um daiquiri gelado, por favor.
Abandonei o bar para me servir do telefone público. É evidente que telefonei para Rogoff, e também é evidente que não me podia atender. Beberiquei lentamente dois daiquiris e liguei para o sargento de dez em dez minutos, sem qualquer resultado. Por fim, ao quinto telefonema, consegui falar com ele. Mostrou-se brusco, porque estava obviamente sob pressão. Gaguejei um convite apressado para que passasse por casa dos McNally nessa noite, às nove horas.
- Está bem - respondeu, desligando abruptamente. Almocei sentado no balcão do bar. Priscilla levou-me
um hamburger gigante, acompanhado por batatas fritas e salada de repolho cru. Engoli todo aquele especial-colesterol com grande delícia e pedi um Galliano gelado para sobremesa. Fiquei a pensar que as minhas artérias iriam precisar muito em breve de serem desentupidas por um canalizador.
Conduzi até à Worth Avenue para reatar um projecto que iniciara dias antes e que não chegara a completar: comprar uma pulseira de ténis para Consuelo Garcia. Anecessi-
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dade de um presente parecia-me agora ainda mais premente do que quando a ideia me ocorrera, pois havia dias que negligenciava, vergonhosamente, aquela mulher maravilhosa. Os encontros matinais com Laverne Willigan, Meg Trumble e Hertha Gloriana tinham-me feito compreender até que ponto Connie era importante para mim. Até talvez pudesse dizer que era vital, e digo-o mesmo.
Visitei quatro joalharias antes de encontrar uma pulseira que me agradasse. Tinha dois carates de diamantes, montados ern ouro de dezoito quilates. Era horrivelmente cara, mas apresentei alegremente o meu cartão de crédito. Limitava-me a seguir a Primeira Lei das Aquisições, dos McNally: se o podes pagar, não vale a pena comprá-lo.
Fui directamente para casa, despi-me até ficar em pêlo e meti-me na cama para uma soneca, porque na noite anterior só gozara de cinco horas de sono. Antes de o sono me levar, pensei mais uma vez nas experiências da manhã e ri-me. Não podia levar aquelas coisas a sério.
Uma das minhas convicções é a de que solenidade é a maldição da civilização. Pensem em todas as pessoas honestas que se sacrificaram por deuses agora esquecidos, ou que perderam a vida por causas de que já ninguém se recorda. O riso é a nossa única salvação. O melhor é rezar com risadinhas e lamentarmo-nos com um sorriso. E se for de vossa crença, tal como é de minha, que as belas damas são o que de mais nobre a natureza criou, pois ficai sabendo que nunca as caras tristes conquistaram donzelas.
Assim terminam as escrituras segundo S. Archy.
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Fora um dia ensolarado, com nuvens dispersas que pareciam pipocas, mas quando acordei da minha soneca, por volta das seis horas, as nuvens escuras tinham-se aproximado vindas de leste e começara a chover. Não havia vento, pelo que a chuva caía verticalmente e breve se transformou numa chuvada que talvez acabasse por nos forçar a ir procurar refúgio em cima dos telhados.
Perguntei a mim mesmo se Al Rogoff apareceria, debaixo de um tal dilúvio. Pelas nove horas, já me encontrava à espera, na cozinha, espreitando pela janela, pronto para sair com um enorme chapéu de chuva se o visse chegar. Apareceu na carrinha apenas um quarto de hora mais tarde, estacionou junto da porta das traseiras e começou a correr ainda antes de eu ter tempo de abrir o chapéu.
Apresentava um aspecto terrível. As suas feições estavam abatidas de cansaço e tinha lagos de sombras por debaixo dos olhos. O que era ainda pior era parecer preocupado e inseguro, como se tivesse de enfrentar decisões importantes e não soubesse para que lado deveria virar-se. Peguei-lhe na capa, que escorria água, pendurei-a para secar e conduzi-o para o estúdio.
O meu pai, que estava à nossa espera, deitou uma olhadela ao sargento e abriu imediatamente a sua garrafa de Rémy Martin XO. Reservava aquele conhaque soberbo,
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dizia, para "ocasiões especiais". Que eu soubesse, tinham-se verificado duas nos últimos dez anos.
Rogoff deixou-se cair num cadeirão, aceitou o cálice com gratidão e tomou um bom gole. A seguir, aspirou o ar com força, expirou-o com ruído e disse:
- Um maná!
- Desculpe fazê-lo vir aqui numa noite como esta, sargento - disse o meu pai. - Talvez pudesse ter esperado.
- Não, senhor - retorquiu Al. - Não me parece. As coisas estão a andar muito depressa, mas neste momento é tudo uma grande confusão e espero que me possam ajudar a tirar algum sentido daquilo que sabemos e do que conseguimos adivinhar.
Eu já servira doses de brande para o meu pai e para mim. O senhor da casa instalou-se no trono por detrás da secretária, como de costume, e eu sentei-me num cadeirão ao lado, virado para os dois homens. Rogoff retirou um charuto de um bolso interior e olhou para o velhote com um ar de interrogação.
- com certeza - disse o meu pai -, fume à vontade. Tem fome? Podemos fornecer-lhe uma ração de combate.
- Não, obrigado - respondeu Al. - Comi uma pizza de anchovas há uma hora. Estou esgotado. O conhaque vai ajudar.
- Como correm as coisas, Al? - perguntei-lhe. Estás a fazer progressos?
Agitou a palma de uma das mãos, para um lado e para o outro.
- Comme ci, amime ca. Neste momento, estou a trabalhar com um ajudante do procurador estadual, um rapaz cheio de miolos. Analisamos as nossas opções e verificamos qual o melhor acordo a que podemos chegar.
- Frank Gloriana falou?
- Alguma coisa. Temo-lo bem agarrado por causa do rapto da gata. Os bilhetes de resgate foram escritos no
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seu processador de texto e o dinheiro encontrava-se em seu poder. Todavia, afirma que se tratou de uma ideia de Laverne Willigan, e que foi ela quem roubou a gata. Diz que alinhou por estar loucamente apaixonado pela mulher.
- Oh, claro! - exclamei. - Já receava que se saísse com uma coisa desse género. Há alguma hipótese de manter o nome de Laverne fora da história?
- Muito fraca - respondeu Al. - Estamos a tentar chegar a um acordo com o advogado de Frank. Se nos contar o que souber sobre a conjura de assassínio por parte dos pais, a acusação será reduzida e poderá safar-se com uma multa e uma pena suspensa.
O meu pai resolveu intervir.
- Como sabe, sargento, represento Harry Willigan e estou tão ansioso como Archy por manter Mrs. Willigan fora dos tribunais. Presumo que tudo o que for dito aqui esta noite fica entre nous.
- Se isso quer dizer que manterei a boca fechada, a resposta é sim.
- bom. Esse Frank Gloriana é um homem de meios?
- Está falido. É provável que o advogado que o defende tenha de lhe vender a mobília do escritório se quiser ver algum dinheiro.
- Compreendo - murmurou o meu pai, pensativo. - Archy, que tenhas conhecimento, Mrs. Laverne possuirá alguns rendimentos líquidos?
- Não estou a par das suas contas bancárias, mas sei que tem uma grande colecção de jóias. Foram ofertas de Harry. São peças dispendiosas.
- Cada vez melhor. Sargento, talvez possa sugerir ao advogado de Frank Gloriana que tenha uma conversa privada com Laverne Willigan. Esta poderá estar interessada em vender ou empenhar algumas das suas pedras preciosas para arranjar fundos para a defesa de Frank. Em troca, é claro, este evitaria mencionar o seu nome. Todavia, este acordo só deve ser feito depois de Frank dizer o que sabe sobre o envolvimento dos pais no assas-
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sínio dos Gillsworth. Frank poderá ter relutância em concordar, mas se explicarem bem o plano ao advogado, creio que recomendará ao seu cliente que o aceite, em especial se as acusações forem reduzidas ao mínimo.
- Pois é... - disse Al, lentamente -, talvez dê resultado. Esquecemo-nos do rapto da gata e, em troca, Frank diz-nos o que sabe sobre os assassínios. Safa-se apenas com uma repreensão, o advogado recebe o seu dinheiro e Laverne não se vê envolvida na história. Toda a gente ganha. Belo plano, Mr. McNally. vou falar nele ao procurador.
Verifiquei que o conhaque de Al desaparecera e que o meu cálice estava muito em baixo. Levantei-me e voltei a enchê-los sem pedir autorização. O meu pai não levantou objecções apesar de mal ter tocado na sua bebida.
- Muito bem, Al - comentei -, o caso da gata está resolvido, mas que há a respeito dos homicídios?
O sargento soltou um suspiro profundo.
- É aí que as coisas estão feias. Primeiro que tudo, e como já sabem, tudo começou com a obsessão de Roderick Gillsworth por Irma Gloriana. Estamos a tentar obter uma ordem do tribunal para podermos abrir o cofre que tem no banco, mas, mesmo sem as cartas que ele lhe escreveu, o testamento manuscrito e os poemas que começou a escrever depois de a conhecer servem como provas. É óbvio que o homem estava doido por Irma. Não estou a dizer que tenha perdido o juízo temporariamente. Digamos que, depois de conhecer Irma, ficou mentalmente desorientado.
- E sem um tostão - acrescentei.
- É verdade - confirmou Rogoff. - Não era a melhor maneira de ganhar o coração de Irma. A senhora quer ser tratada como uma rainha... das vielas. Roderick, sabendo que iria herdar a maior parte dos bens da mulher, sugeriu o afastamento de Lydia. Irma disse que isso era possível se redigisse um testamento a seu favor.
- Espere um momento, por favor - interrompeu-o
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o meu pai. - Isso não bate certo. Porque haveria Roderick de fazer um testamento a favor de Irma? As culpas do assassínio iam cair sobre outra pessoa qualquer.
- Admito que é um pouco confuso - disse o sargento -, mas imagino que Roderick pretendia casar com Irma depois da morte de Lydia. Não sabia que Irma já era casada. Irma terá concordado em casar com ele, quando fosse viúvo, apenas se ele a fizesse beneficiária do testamento. Penso que Roderick redigiu alegremente o seu testamento manuscrito, porque sabia que, se Irma o renegasse, poderia cancelar esse testamento em qualquer momento, fazendo um outro mais recente. Não é assim?
- Sim - declarou o meu pai, muito devagar. - Em geral, é assim. O testamento mais recente toma precedência sobre os anteriores quando o signatário morre.
Ele e eu olhámos um para o outro. Sabia que estávamos ambos pouco satisfeitos com a tortuosa explicação de Rogoff para o facto de Roderick ter feito de Irma a sua beneficiária.
- Sargento, há uma coisa que o senhor precisa saber a respeito do testamento manuscrito - disse o meu pai.
- Foi redigido há cerca de um mês. Nessa altura, Lydia Gillsworth ainda estava viva. As leis da Florida permitem que o cônjuge sobrevivente tenha o direito a trinta por cento dos bens do cônjuge falecido, independentemente do que estiver expresso no testamento deste último.
Rogoff ficou espantado.
- Quer dizer que o testamento manuscrito por Gillsworth não tinha qualquer valor legal quando foi redigido?
- Não necessariamente - replicou o meu pai. Porém, se Roderick falecesse antes de Lydia e tivesse deixado bens apreciáveis, Lydia tinha duas opções: ou deixava executar o testamento manuscrito tal como ele estava, ou podia contestar o testamento e reclamar os trinta por cento a que tinha direito. Porém, esta questão
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não se põe porque Lydia morreu antes de Roderick, e se este tivesse morrido antes dela não tinha bens que pudesse transmitir.
Al e eu trocámos um curto olhar. Sabia o que o sargento estava a pensar. Se a questão não se punha, porque fora que Prescott McNally a mencionara? Podia ter-lhe explicado, dizendo-lhe que, sempre que fosse preciso catar um piolho, o meu pai apresentar-se-ia voluntário para o fazer.
- bom - disse Rogoff, abanando a cabeça -, tudo o que sei é isto: quando Gillsworth assinou aquele testamento manuscrito, assinou a sua sentença de morte. Imagino que Irma e Otto tinham tudo planeado desde o princípio, e que Roderick era demasiado ingénuo para desconfiar. Em primeiro lugar, despacharam Lydia, o que fez de Roderick um homem rico. Depois chegou a vez de Roderick... o que teria feito de Irma uma mulher rica, de acordo com os termos do seu último testamento.
- Provavelmente tem razão, sargento - concordou o meu pai, acenando. - É um cenário possível... mas até que ponto pode ser provado?
- Bem, não tenho provas suficientes para demonstrar que Otto rebentou o crânio de Lydia com uma bengala... mas as coisas são diferentes com o assassínio de Roderick, planeado de modo a parecer um suicídio. A prova mais importante é o pacote de lâminas de um só gume que encontrámos na cabina quatro, no Motel Jo-Jean. Otto Gloriana barbeava-se com elas. Eram da mesma marca da encontrada sobre o tapete da casa de banho, ao lado do corpo de Roderick Gillsworth.
O meu pai ficou obviamente desapontado.
- Não se pode afirmar que se trate de uma prova conclusiva - declarou.
- Concordo. No entanto, temos uma coisa melhor. Irma Gloriana afirma que estava com o marido quando este entrou em casa de Gillsworth para o matar. Declara que não testemunhou o crime, mas que Otto lhe anun-
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ciara antecipadamente a sua intenção de matar o poeta, e que se gabara disso depois de o ter feito.
Tanto eu como o meu pai ficámos de boca aberta.
- Por que diabo admitiu a mulher uma coisa dessas?! - exclamei. - Faz dela uma cúmplice!
- Porquê? - retorquiu Rogoff. - Porque pensa que desse modo se livra do anzol. Otto está morto. Não pode refutar o que ela diz, nem pode defender-se. Agora, a viúva afirma qu o marido foi o único assassino. De acordo com Irma, o motivo para o assassínio foi o facto de o homem estar a ter uma relação com a sua mulher. Irma diz que Otto sabia e jurara vingança. Sabia que ela iria jantar a casa de Gillsworth, encostou-lhe o cano da arma à cabeça e obrigou-a a tocar à campainha para poder entrar e cortar os pulsos a Roderick. A mulher diz que tinha um medo mortal de Otto, que era conhecido pelo seu temperamento violento e que já passara algum tempo na prisão. Todavia, proclama estar totalmente inocente da morte de Gillsworth... e que, como não desempenhou qualquer papel voluntário no homicídio, está livre para se ir embora e reclamar os bens de Roderick. Uma grande trampa, não é? O único problema está em que é possível que se consiga safar. É o tipo de história que um júri pode muito bem aceitar se alguma vez a levarmos a tribunal. Para além disso, arranjou um advogado terrivelmente esperto que, se calhar, vai cobrar os seus serviços com uma boa fatia dos bens dos Gillsworth.
O meu pai e eu ficámos silenciosos. Rogoff tinha razão. Irma Gloriana imaginara uma defesa que era capaz de dar resultado. Se contasse essa história a juizes e jurados com aquele ar de sinceridade que eu sabia que ela conseguia exibir, as suas hipóteses de sair livre do tribunal, sem outras preocupações senão as referentes ao tempo necessário para executar o testamento de Roderick e ficar com os seus milhões, eram de mais de cinquenta por cento.
- É um assunto que cheira mal - declarei, irritado, levantando-me para voltar a encher os copos.
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Rogoff virou-se para o meu pai.
- Não é verdade que, de acordo com as leis da Florida, um assassino não pode herdar da sua vítima?
O meu pai confirmou com um gesto de cabeça.
- Todos os que, de um modo ilegal e intencional, matem ou participem na conjura para matar não têm direito a beneficiar de seja do que for dos bens do morto.
- Então, não sei como... - disse Rogoff com um ar decidido - ... não sei como, mas vou lançar as unhas àquela dama. Todos sabemos que tem culpas no cartório e não quero vê-la a receber nem que seja um tostão!
Enquanto escutava aquela conversa, a minha visão, originalmente enevoada, mas que começara a ganhar contornos e substância, ficou subitamente nítida. Soube que chegara a altura de demonstrar o génio dos McNally. Se, no que se vai seguir, acharem que me comportei com demasiada palhaçada, não se esqueçam que se tratou do meu Grande Momento Dramático. Não podia deixá-lo passar sem exibir os meus dons, que foram sem dúvida herdados do meu avô, o famoso cómico do burlesco.
Continuava de pé e dirigi-me aos dois homens.
- Há uma coisa que precisam de saber - declarei, enfatuado -, e que creio que irá auxiliar a causa da justiça. Otto não matou Lydia Gillsworth. Também não foi Irma quem a matou. Foi Roderick quem matou a mulher.
Não deixaram cair os queixos, mas Rogoff ia-se engasgando com o brande e o pai olhou para mim com tristeza, como se tivesse compreendido finalmente que o seu filho Número Um (e único) perdera definitivamente o juízo.
- Impossível, Archy - declarou, numa voz rouca. Tu e eu estávamos nesta sala e ouvimos Roderick a conversar com a mulher. Lydia estava viva quando ele saiu daqui.
Fiz o gesto grandioso de fingir que olhava para o relógio.
- Bolas! - exclamei. - Está a fazer-se tarde e pro-
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meti telefonar a Binky Watrous. Posso servir-me do seu telefone, pai?
Lançou-me um olhar incendiário.
- Queres fazer um telefonema pessoal neste momento? Não podes esperar?!
- Não, senhor - retorqui. - É importante.
- bom, está bem... - concordou, resmungando -, mas que seja breve.
Servi-me do telefone sobre a secretária, marquei um número e aguardei um momento.
- Binky? - disse. - Fala Archy McNally. Como estás? Ainda bem. Escuta, e se jantássemos amanhã à noite no Clube Pelicano? Sim? Formidável! Por volta das oito? Está bem. Até amanhã, então.
Desliguei e virei-me para os outros.
- com quem foi que falei? - perguntei-lhes. Olharam um para o outro, ficaram silenciosos por
instantes e depois Rogoff declarou:
- Está bem, pronto, alinhamos no teu jogo. Falaste com um tipo chamado Binky.
- Binky Watrous está em Portofino - expliquei. Encontra-se lá há duas semanas e espera ficar mais duas. Estive a falar para um telefone que ninguém atendeu.
Perceberam imediatamente, claro. O sargento deu uma palmada na testa e levantou-se, começando a descrever círculos agitados.
- Fui enganado! - murmurou, com uma voz insegura.
O meu pai grunhiu uma única vez e depois sacudiu a cabeça de espanto... ante a sua própria credulidade, suponho.
- Pai - disse-lhe -, o senhor e eu não ouvimos Roderick falar com a mulher. Ouvimo-lo falar, mais nada. Partimos do princípio de que a mulher estava viva e lhe respondia.
Soltou um suspiro pesado.
- Levei toda a minha vida profissional a tentar nun-
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ca ter como certo fosse o que fosse, e no entanto deixei que Gillsworth me enganasse. O homem era um actor consumado.
- Tinha de ser - salientei. - O seu destino dependia disso. Suponho que terá morto a mulher cerca de uma hora antes de vir para aqui. Assassinou-a deliberadamente para poder herdar a sua fortuna e casar com Irma, tal como sugeriu o sargento. Adiantou o relógio, também em cerca de uma hora, e depois derrubou-o para o fazer parar. Vestiu roupas limpas e veio a nossa casa.
- Espera um minuto - disse Rogoff. - Se tiveres razão, então Lydia chegou a casa uma hora antes do momento indicado por Roderick... mas Irma Gloriana disse que Lydia ficara até mais tarde, depois da sessão.
- Essa é fácil de responder - retorqui. - Irma mentiu. Estava a arranjar um álibi para Roderick. O preço dessa mentira foi o testamento manuscrito. Fê-lo pagar antecipadamente.
- Sim - concordou o meu pai. - É credível. Rogoff soltou um palavrão terrível.
- Suspeitei do tipo desde o princípio - afirmou, irado. - O cônjuge é sempre a primeira escolha num caso de homicídio... mas não conseguia ultrapassar o problema do telefonema feito daqui. Como foi que te apercebeste do truque do telefone, Archy?
- Na verdade, não sei - confessei. - Talvez por também eu ser um aldrabão... quando as condições o exigem, é claro.
- Fomos usados - resmungou o meu pai, zangado. - Roderick Gillsworth serviu-se de nós.
- É verdade, pai - concordei. - Serviu-se do advogado e do filho do advogado... que eram as testemunhas perfeitas para confirmarem o seu álibi. Éramos uma parte importante do seu plano.
Rogoff estivera a reflectir na minha reconstrução do assassínio.
- Espera - disse subitamente. - Dizes que Rode-
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rick matou a mulher e depois mudou de roupas. Aceito, porque as roupas limpas foram uma das coisas que me convenceram da sua inocência. Mas então... que fez ele às roupas manchadas de sangue? Procurámo-las por toda a casa logo que lá chegámos. Não havia roupas sujas de sangue. Não teve tempo nem para as queimar nem para as enterrar em qualquer lado. Que fez com elas?
Na altura, não soube por que razão o disse e mesmo que viva mil anos não creio que venha a descobrir o motivo por que o fiz.
- Capricel - exclamei, quase gritando. - Procuraram no carro de Lydia, Al?
Ficou a olhar para mim.
- Disse-te que apalpei o bloco do motor para testar o calor, e meti a cabeça dentro do carro para ver há quanto tempo estava o ar condicionado desligado. Não verifiquei o porta-bagagens. - Levantou-se de repente. - Creio que vou fazê-lo agora mesmo. Ainda tenho as chaves da casa e da garagem. É possível que...
- vou contigo - declarei.
- Também posso ir convosco? - perguntou o meu pai.
Al vestiu a capa e dirigiu-se para a carrinha. Eu fui buscar o meu grande chapéu-de-chuva multicolorido e o meu pai vestiu uma gabardina. Corremos para o Lexus e seguimos a carrinha de Rogoff na direcção sul, para a casa dos Gillsworth. Fomos devagar porque as rodas iam mergulhadas na água até aos eixos e a chuva não dava mostras de abrandar.
Entrámos na alameda de acesso à casa, desembarcámos e eu abri o chapéu-de-chuva. Antes de ficar encharcado, já o sargento abrira a fechadura da garagem a fizera subir a porta. Entrámos todos e Al acendeu a luz. O Bentley cinzento estava aninhado ao lado do Caprice branco. Havia algo de inefavelmente triste naqueles dois carros silenciosos e vazios, cujos proprietários tinham sido mortos.
Rogoff examinou o fecho do porta-bagagens do Caprice.
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- Não posso abri-lo com gazua - declarou. - Vai ser preciso um pouco de cirurgia.
Foi à sua própria carrinha e regressou com um pé-de-cabra de sessenta centímetros.
- Olhem para o outro lado, cavalheiros - pediu, com uma alegria forçada. - Desse modo não poderão testemunhar contra mim.
Nós, porém, ficámos a observar o modo como, com alguma dificuldade, encaixava a ponta do pé-de-cabra na junta do porta-bagagens e depois fazia força com todo o seu peso. A fechadura saltou com um guincho de metal. Al levantou a tampa e todos nos amontoámos à sua volta.
Estava mesmo à vista, ao lado da roda sobressalente: era um saco para lixo em plástico azul.
- Bingo - disse Rogoff baixinho.
Serviu-se do pé-de-cabra para abrir a boca do saco, e depois pescou o seu conteúdo para o exterior. Vimos umas calças de caqui, uma T-shirt, umas cuecas brancas... e um par de luvas de látex. Estava tudo cheio de manchas escuras de sangue seco.
- Não usava muita roupa - comentei.
- Querias que vestisse um fraque para dar cabo da mulher? - retorquiu Al. - É o bastante. - Voltou a fechar o porta-bagagens, deixando o saco no interior. - vou utilizar o telefone da casa. Preciso de técnicos de laboratório para analisarem estas coisas. Creio que o caso vai ficar resolvido.
- Claro que vai - declarei. - As roupas serão identificadas como sendo de Roderick, por causa das marcas da lavandaria, e o sangue será identificado como sendo de Lydia. O testamento manuscrito e as cartas para Irma estabelecerão o motivo. Hertha Gloriana dirá que Roderick ia frequentemente ao escritório e que ele e Frank se metiam num quarto das traseiras, para conversarem. É possível que Frank testemunhe que Roderick compôs e meteu no correio as cartas com ameaças contra a vida da mulher. Tens um caso bem sólido, Al.
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- Estou de acordo - disse o meu pai. - Creio que, quando for confrontado com as provas que o Archy referiu, o tribunal concluirá que Roderick Gillsworth matou a esposa. Parabéns, sargento. O seu desejo foi satisfeito.
Al ficou intrigado.
- Qual desejo?
- O senhor não queria que Irma Gloriana recebesse nem que fosse um tostão. Se já se concluiu que Roderick matou a mulher, então não tinha qualquer direito a herdar os seus bens. Assim, mesmo que Irma vá em liberdade, não herdará de Roderick.
O sargento saiu da garagem e virou os olhos para o céu, que se desfazia em água.
- Obrigado, meu Deus - disse.
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É frequente ouvir as pessoas do Norte da Florida a denegrirem o Sul do mesmo estado, porque, dizem, não temos estações, o que quer dizer que de Janeiro até Dezembro não há mudanças radicais no clima. Na verdade, em Palm Beach há duas estações: a época balnear e a fora de época. Muitos dos nossos cidadãos residem aqui apenas de Outubro a Maio. Depois, para fugirem ao calor e humidade do Verão e para evitarem os ciclones, espalham-se pelas suas residências em Antibes, Monte Cario, St. Tropez e Costa dei Sol.
Porém, alguns de nós, com ou sem emprego, sentem-se satisfeitos por poderem gozar a ilha durante todo o ano. Não vou afirmar que Palm Beach é um paraíso, mas não há dúvida de que tem alguns encantos únicos. Em que outro lugar do mundo haveria alguém que se lembrasse de atirar ao mar um Rolls-Royce Silver Ghost para servir de abrigo artificial para os peixes?
Assim, a festa do Quatro de Julho de Lady Cynthia Horowitz recebeu mais de cem dos nossos distintos residentes permanentes, que na sua maioria se conheciam uns aos outros e que estavam ligados pelos laços de lealdade com a nossa estação de fora de época, nesta tira de areia que um dia pode desaparecer sob uma tempestade com ondas de nove metros.
Era uma ocasião para laço preto e as senhoras apro-
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veitavam a oportunidade para porem de lado os velhos sapatos de ténis e para se enfiarem em vestidos de noite comprados nas boutiques dos estilistas da Worth Avenue. Nunca antes vira uma tão grande profusão de leves vestidos de Verão em seda, e o arco-íris das lantejoulas fazia empalidecer as estrelas.
Foi uma festa estupenda, de que se falou durante semanas. Na área da piscina, por detrás da Mansão Horowitz, tinham sido instalados três bares, havia uma orquestra de seis músicos e as mesas do buffet estavam tão carregadas de vitualhas exóticas (e escleróticas) que as tábuas não gemiam com o peso... choramingavam.
Esta extravagância fora planeada e organizada por Consuelo Garcia, a secretária social de Lady Cynthia. Pouco depois da chegada da família McNally, abandonei os meus pais, agarrei num Bellini no bar mais próximo e fui à procura de Connie. Levava comigo a pulseira de ténis, enfiada no bolso do smoking. Era, concluí, a noite apropriada para um pedido de desculpas.
Encontrei-a a criar um verdadeiro motim com o fornecedor, que aparentemente se esquecera do bolo com sabor a Amaretto, que prometera. Esperei até Connie completar a sua tirada. O pobre diabo caído em desgraça desapareceu dali com a sua competência profissional muito combalida, para além de umas quantas dúvidas quanto à sua ancestralidade. Só depois me aproximei.
Connie estava com um aspecto de pasmar. Usava um vestido prateado de malha metálica que, em conjunto com os compridos cabelos pretos e o bronzeado glorioso, constituía uma visão que me fez questionar sobre a minha própria sanidade mental. O que era que me fazia olhar para outras mulheres?
A mirada que me lançou só pode ser descrita como fulminante.
- Não quero falar contigo - declarou com frieza.
- Connie, eu...
- Não me telefonaste uma única vez.
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- Connie, eu...
- Não te interessou saber se estava viva ou morta.
- Connie, eu...
- Nunca mais quero pôr-te a vista em cima! Nunca, nunca, nunca!
- Connie, espera! - gritei. Tirei do bolso o embrulho com o presente e estendi-lho, falando com sinceridade e rapidamente para evitar qualquer interrupção. - Nada do que me possas dizer conseguirá ser pior do que já disse a mim mesmo. Agi de um modo cruel e sem coração, e estou envergonhado. Quero oferecer-te um presente. Sei que não compensará a minha conduta atroz, mas é um pequeno símbolo do que na verdade sinto por ti.
Aceitou o presente com muito cuidado, olhando para mim com uma expressão um pouco mais suavizada. Depois declarou:
- Não é isto o que irá repor as coisas como estavam. Compreendes, não é?
- Claro que compreendo. É apenas uma súplica para que me deixes demonstrar, com as minhas acções futuras, até que ponto lamento sinceramente todas as negligências, bem como a decisão que tomei de te tratar, daqui para diante, com todo o respeito e amor que mereces. Abre-o.
Rasgou o papel do embrulho, levantou a tampa e afastou o tecido do estojo. Vi que os seus olhos brilhantes se abriam muito. Ficou tão encantada que passou a falar na sua língua maternal.
- Por Dios - exclamou, - Magnifico! Fui recompensado com um caloroso abraso. Insistiu em usar a pulseira imediatamente. Precisava
de ser ajustada, mas empurrou-a para cima, quase até ao cotovelo, e jurou que nunca mais a tiraria. Nunca, nunca, nunca!
A seguir, discutimos planos. Connie tinha de ficar até depois do fogo-de-artifício, previsto para a meia-noite. De facto, a sua presença era requerida até ao momento em que a maior parte dos convidados se tivesse ido embora e os destroços houvessem sido removidos.
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- Provavelmente, não conseguirei sair daqui antes das duas da manhã - afirmou. - Podes esperar por mim, Archy?
- Posso - respondi -, e com todo o gosto. Porém, receio que não seja capaz de resistir àqueles Bellinis. Pelas duas da manhã já devo estar em coma.
- Não pode ser - protestou. - Esta noite, quero-te alerta, apaixonado e com perfeito domínio sobre todas as tuas capacidades. E se fizéssemos o seguinte: entrego-te as chaves da minha casa, segues para lá quando te apetecer e esperas por mim. Podes até dormir, se quiseres. Irei lá ter logo que esteja despachada.
Foi precisamente o que fizemos. Abandonei a festa, de olhos brilhantes e embandeirado-em-arco, ainda antes de começar o fogo-de-artifício. Conduzi até ao apartamento de Connie, num prédio elevado virado para o lago Worth. A varanda do apartamento, no décimo quarto andar, tinha uma bela vista para o lago, para a Flager Memorial Bridge e para todos os clubes de iates e marinas existentes na costa oposta.
Instalei-me como se se tratasse da minha própria casa, porque anteriormente já ali estivera muitas vezes e sabia onde ela guardava a vodca: no congelador. Saí para a varanda com um pequeno copo de vodca na mão e vi os fogos-de-artifício lançados de West Palm Beach. Sabia que ainda tinha de esperar algumas horas por Connie e jurei beber moderadamente e manter-me sóbrio.
Esta espera solitária deu-me a oportunidade de meditar em tudo o que acontecera nos últimos quinze dias.
Naquela terça-feira chuvosa, depois de meu pai e eu termos seguido para casa, vindos da garagem de Gillsworth, tínhamos ido até ao seu estúdio para uma última bebida. Discutimos o encerramento das investigações sobre o roubo da gata e os assassínios, e trocámos queixumes sobre a imprevisibilidade do comportamento humano.
A seguir, o meu pai olhara para mim com um sorriso de esguelha.
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- Archy - disse -, suponho que acreditas que o fantasma de Lydia regressou à Terra para perseguir Roderick.
- Sim, senhor - respondi. - Qualquer coisa desse género.
- Disparate!
Agora, sentado na varanda, bebericando a vodca e vendo os fogos-de-artifício, perguntava a mim mesmo se poderia realmente existir um mundo sobrenatural, para além da razão e da lógica. Hertha soubera que a carta que recebera de Connie era falsa, e visualizara com precisão o quarto em que a Peaches fora mantida prisioneira. Podiam existir explicações razoáveis para essas duas "visões"... mas não havia nenhuma maneira lógica de justificar o grito de "Capriche! Capricel" que se ouvira durante a sessão espírita, e ainda por cima com a voz de Lydia Gillsworth. E por que razão eu gritara tão prontamente "Capricel" quando Rogoff perguntara onde poderiam estar escondidas as roupas ensanguentadas usadas pelo assassino?
Meditei durante muito tempo, pensando nos dons psíquicos de Hertha, na existência de fantasmas e em todas as outras estranhas manifestações do paranormal que testemunhara recentemente.
A exibição de fogos-de-artifício terminou precisamente quando concluía que provavelmente nunca conhecerei a verdade.
Nem vocês.
Porém, depois, apercebi-me de que o assunto se aproximava perigosamente da fronteira das coisas sérias, e obriguei-me a recordar que a vida não passa de uma taça cheia de kiwis. Assim, quando Connie finalmente chegou, radiante, precipitei-me para a abraçar, ansioso por um agradável interlúdio de gargalhadas e outras delícias.

 

 

                                                                  Lawrence Sanders

 

 

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