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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A SUL DA FRONTEIRA, A OESTE DO SOL / H. Murakami
A SUL DA FRONTEIRA, A OESTE DO SOL / H. Murakami

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Na primeira semana do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do século XX, ao protagonista, que também faz as vezes de narrador, é dado o nome de Hajime, que significa "início". Filho único de uma normal família japonesa, Hajime vive numa província um pouco sonolenta, como normalmente todas as províncias o são. Nos seus tempos de rapazinho faz amizade com Shimamoto, também ela filha única e rapariga brilhante na escola, com quem reparte interesses pela leitura e pela música. Juntos, têm por hábito escutar a colecção de discos do pai dela, sobretudo "South of the Border, West of the Sun", tema de Nat King Cole que dá título ao romance.
Mas o destino faz com que os dois companheiros de escola sejam obrigados a separar-se. Os anos passam, Hajime segue a sua vida. A lembrança de Shimamoto, porém, permanece viva, tanto como aquilo que poderia ter sido como aquilo que não foi. De um dia para o outro, vinte anos mais tarde, Shimamoto reaparece certa noite na vida de Hajime. Para além de ser uma mulher de grande beleza e rara intensidade, a sua simples presença encontra-se envolta em mistério. Da noite para o dia, Hajime vê-se catapultado para o passado, colocando tudo o que tem, todo o seu presente em risco.

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Nasci a 4 de Janeiro de 1951. Que é como quem diz: na primeira semana do primeiro mês da segunda metade do século XX. Uma coisa, imagino, digna de ser comemorada, razão pela qual os meus pais me deram o nome de Hajime - que, em japonês, significa "princípio". Fora isso, porém, tratou-se de um nascimento cem por cento normal, sem nada digno de nota. O meu pai trabalhava numa grande empresa de valores mobiliários, a minha mãe era uma vulgar dona de casa. Durante a guerra, o meu pai tinha sido enviado em combate para Singapura, juntamente com outros estudantes; após a rendição, permanecera durante algum tempo internado num campo de prisioneiros. A casa onde morava a minha mãe foi bombardeada pelos B-29 e ficou reduzida a cinzas na sequência de um raide aéreo, corria o ano de 1945. A dos meus pais foi uma geração que conheceu na pele as feridas provocadas por uma longa guerra.
Na época em que eu nasci, contudo, quase não se podia dizer que tinha havido uma guerra. Não existiam nem vestígios de ruínas calcinadas nem rasto das tropas de ocupação. Vivíamos numa pequena e tranquila cidade, numa shataku(1) posta à
(1) As casas onde os Japoneses moram vão desde as mansion (construção e renda mais caras) aos apart (apato, abreviatura de apartment), passando pelas habitações funcionais, as tais shataku, normalmente concedidas aos funcionários casados. (N. da T.)
disposição do meu pai pela empresa. Era uma moradia mandada construir antes da guerra, como tal um tanto ou quanto velha, mas bastante espaçosa. Tinha um jardim onde crescia um grande pinheiro e nem sequer faltava um pequeno tanque e várias lanternas votivas de pedra.
O nosso bairro era o perfeito protótipo de uma zona residencial da classe média, localizada na periferia das grandes cidades. Os companheiros de escola com quem eu mantinha uma relação de amizade viviam em casinhas bonitas e arejadas com terraço; quando muito, algumas eram um pouco maiores do que a minha, mas, de resto, todas tinham as mesmas salas de entrada e pinheiros no jardim. No que ao trabalho dizia respeito, os pais dos meus amigos estavam empregados nesta ou naquela empresa ou então desempenhavam alguma profissão técnica especializada. Contavam-se pelos dedos as mães de família que trabalhavam. Quase todas as famílias tinham um gato ou um cão. Na altura, confesso que não conhecia ninguém que vivesse num apartamento ou num andar. Mais tarde, fui morar para outro bairro da cidade, mas que possuía as mesmas características. Em consequência disso, até ao dia em que me mudei de armas e bagagens para Tóquio a fim de frequentar a universidade, estava convencido de que toda a gente habitava numa casa de família com jardim, tinha um animal doméstico e iam todos para o trabalho de fato e gravata. A data, era a única imagem real que aos meus olhos se desenhava.
No ambiente em que cresci, uma família típica tinha dois ou três filhos. Os meus amigos de brincadeiras eram todos, sem excepção, feitos do mesmo barro, nascidos e criados em lares que tinham por regra dois filhos, no máximo três. Se não eram dois irmãos, eram três; se não eram três, eram dois. Poucas famílias tinham seis ou sete filhos, e com um só filho ainda menos havia.
Eu fazia parte da minoria, pelo facto de ser filho único. Desde pequeno que isso sempre provocara em mim um certo complexo de inferioridade. Sentia que era, por assim dizer, um ser à parte, a quem faltava qualquer coisa que a todos os outros pertencia por direito próprio.
Detestava a expressão "filho único". Sempre que a ouvia, tinha a impressão de que me faltava qualquer coisa - era como se não fosse um ser humano completo. Aquelas palavrinhas juntas tinham o efeito de um dedo acusador apontado na minha direcção, quase como se significassem: "Tu és uma criatura imperfeita."
No mundo em que cresci, ser filho único era sinónimo de uma criança a quem os pais faziam as vontades, tudo crianças enfermiças e egoístas. Era por assim dizer um dado adquirido, tão certo como a descida da pressão atmosférica no barómetro quando se sobe a uma montanha ou o facto de as vacas darem leite. Detestava com toda a força da minha alma que me perguntassem quantos irmãos e irmãs tinha. Mal ouviam a minha resposta a dizer que não tinha, pensavam, acto contínuo: "Com que então, filho único? Estragado pelos pais, fraco e egoísta até dizer chega, quase aposto." Aquele tipo de reacção automática irritava-me e, pior do que isso, ofendia-me. Mas confesso que mais deprimido e ofendido ficava pelo facto de as ditas palavras corresponderem à verdade: com efeito, durante toda a minha infância essas ideias feitas revelaram-se absolutamente certeiras.
Ao longo dos seis anos que frequentei a escola primária, só encontrei uma outra criança que também era filha única. Não é por isso de estranhar que me lembre perfeitamente dela (sim, era uma rapariga). Tornámo-nos bons amigos e falávamos de tudo e mais alguma coisa. Entendíamo-nos às mil maravilhas. Podia até dizer-se que estava apaixonado por ela.
O seu último nome era Shimamoto. Arrastava ligeiramente a perna esquerda em resultado de ter contraído poliomielite à nascença. Vinha, além do mais, de outra escola, tendo sido transferida para a nossa turma no final do quinto ano do ensino elementar. Comparada comigo, era caso para dizer que ela tinha às costas uma carga psicológica incomparavelmente mais pesada. Apesar disso, e quem sabe se porventura pelas mesmas razões, dava mostras de ser uma filha única dotada de personalidade bastante mais forte e mais autónoma. Para começar, nunca se lamentava, nem por palavras nem deixando transparecer na sua expressão o desagrado que por vezes devia sentir. Independentemente do que lhe acontecia, arranjava sempre maneira de sorrir. De facto, quanto pior era a situação, maior era o sorriso. Tinha um sorriso maravilhoso, que eu adorava e que tinha o condão de me consolar e de me dar coragem. Não te preocupes, parecia querer dizer-me. Vai correr tudo bem. Aguenta-te no balanço que as coisas acabarão por se compor. Anos mais tarde, sempre que pensava nela, a primeira coisa que me vinha à memória era aquele seu sorriso.
Shimamoto tinha boas notas na escola e mostrava-se sempre correcta e amável para toda a gente, sem olhar a quem. Nesse sentido, e apesar de ser também filha única como eu, era muito diferente de mim. O que não quer dizer que toda a gente na nossa aula gostasse dela. Ninguém se metia no seu caminho, da mesma forma que não procuravam passar-lhe a perna, mas, tirando eu, não tinha qualquer verdadeiro amigo.
Talvez isso se verificasse por ser demasiado controlada, demasiado senhora de si para o gosto deles. É possível que alguns dos meus colegas tomassem o comportamento dela por frieza e arrogância. Pela minha parte, interpretava aqueles sinais como outra coisa, captava o calor e a fragilidade que se escondiam por trás das aparências. Era como uma criança pequena a brincar às escondidas: passava a vida a desaparecer nos ângulos mais recônditos, na esperança de vir a ser descoberta, mais cedo ou mais tarde.
Por causa do emprego que o seu pai tinha, Shimamoto fartara-se de mudar de escola. O que fazia o pai, não me lembro ao certo. Uma vez, ela dera-se ao trabalho de me explicar em que consistia o trabalho dele, tintim por tintim, mas, como acontece com a maior parte dos miúdos, aquilo entrou-me por um ouvido e saiu por outro. Recordo-me de que se tratava de uma actividade profissional que tinha que ver com bancos, repartições de impostos ou uma coisa do género (se não era, andava lá perto). Ela morava numa habitação cedida pela empresa do pai, mas estamos a falar de uma casa maior do que o normal, ao estilo ocidental, com um sólido muro baixinho de pedra a toda a volta. Acima do muro erguia-se uma sebe de arbustos de folha perene e, pelos intervalos, dava para ver um jardim com um relvado enorme.
Shimamoto era uma menina bem-constituída, de feições marcadas e quase tão alta como eu. Com o passar dos anos, o mais certo era converter-se numa verdadeira beldade, daquelas que fazem virar as cabeças à sua passagem. Na altura em que a conheci, há que dizê-lo, o seu aspecto exterior não reflectia ainda de forma perfeitamente harmonizada as suas qualidades interiores. Havia nela um certo desequilíbrio, e isso tornava-a pouco atraente aos olhos de muito boa gente. Creio que tal se devia ao facto de o seu lado adulto e a faceta mais infantil não se mostrarem em sintonia. Em resultado dessa falta de harmonia, criava nos outros um sentimento de inquietude.
Visto que éramos vizinhos e a sua casa ficava literalmente ao alcance de quem se dignasse lançar uma pedra, durante o primeiro mês de aulas mandaram-na sentar-se na carteira ao lado da minha. Fui eu que a pus a par dos manuais, bem como do restante material escolar que era preciso comprar, do conteúdo dos testes semanais, do sítio onde íamos na matéria dada, dos turnos de limpeza e do horário da cantina. Uma das regras básicas da escola mandava que fosse o companheiro de turma que morava mais perto a ficar encarregado do aluno recém-chegado; além disso, como ela coxeava, o meu professor chamou-me à parte e pediu-me que lhe dedicasse especial atenção durante o período de adaptação.
Como acontece com quase todos os miúdos de dez e onze anos que acabam de travar conhecimento com um representante do sexo oposto, durante os primeiros dias a relação conheceu momentos de tensão e embaraço. Porém, depois de termos descoberto que éramos ambos filhos únicos, a conversa entre nós tornou-se mais espontânea, para não dizer intimista. Era a primeira vez que tanto ela como eu encontrávamos pela frente outro filho único. Como tal, começámos a falar com entusiasmo acerca do que representava não ter irmãos. Muitas vezes, acontecia regressarmos a casa juntos. Devagarinho, por causa da perna dela, percorríamos aquele trajecto de pouco mais de um quilómetro, entretidos a falar de tudo e mais alguma coisa. Quanto mais conversávamos, mais interesses descobríamos em comum: amávamos os livros e gostávamos de ouvir música, sem esquecer a paixão por gatos. Sentíamos ambos uma certa dificuldade em transmitir aos outros as nossas emoções. A lista de pratos por nós banidos era bastante grande. No que dizia respeito às matérias que estudávamos na escola, cada um se aplicava com gosto nas disciplinas preferidas e odiava de morte tudo o que não interessava. A grande diferença entre nós era que Shimamoto, de uma forma consciente, soubera criar à sua volta uma carapaça a fim de se proteger do mundo. Ao contrário do que acontecia comigo, ela esforçava-se por estudar de forma aplicada as disciplinas que detestava e, graças a um empenho constante, lograva obter boas notas. Caso lhe servissem na cantina qualquer coisa que não fosse do seu agrado, mesmo assim esforçava-se por comer tudo. Por outras palavras, o muro de defesa que ela construíra em redor de si revelava-se muito mais alto e mais sólido. O mundo que se escondia por detrás desse muro, contudo, era espantosamente parecido com o meu.
Ao contrário do que acontecia com as outras raparigas, habituei-me a apreciar a sua companhia. Confesso que era para mim uma experiência nova. Ao seu lado, sentia-me calmo e descontraído. Gostava imenso de regressar a casa na companhia dela. Shimamoto coxeava ligeiramente da perna esquerda. Por vezes, acontecia fazermos uma paragem a meio do caminho, altura em que nos sentávamos a descansar um pouco num dos bancos do parque, mas tal nunca constituiu aos meus olhos um obstáculo. Antes pelo contrário - era para mim motivo de contentamento, aqueles minutos a mais que passávamos juntos.
Não demorou muito que começássemos a conviver mais tempo os dois sozinhos, mas não me recordo de termos alguma vez sido alvo de troça. Na altura nem sequer me dei conta disso, mas, passados todos estes anos, não deixo de pensar no assunto com uma certa estranheza. Afinal, a tendência dos miúdos daquela idade é gozarem quando encontram pela frente um rapaz e uma rapariga que se dão bem. Talvez isso ficasse a dever-se ao temperamento de Shimamoto. Havia qualquer coisa na maneira de ser dela que produzia uma ligeira tensão. Até parecia que as pessoas à sua volta pensavam: "Tenho de ver se me ponho a pau e não digo qualquer estupidez em frente desta." Até mesmo os nossos professores tinham todo o ar de se sentirem pouco à vontade na presença dela. Talvez por causa do defeito na perna. Seria? Em todo o caso, era como se toda a gente achasse que não ficava bem fazer troça de Shimamoto e, pela minha parte, a coisa não me desagradava.
Durante as aulas de educação física, Shimamoto permanecia quase sempre sentada a assistir e, nos dias em que estavam previstas excursões a pé ou escaladas na montanha, ficava em casa. A cena repetia-se todos os Verões, quando chegava a altura do acampamento de natação. No dia em que organizávamos o festival de desporto anual, ela dava mostras de se sentir mal na sua pele. A parte isso, porém, levava uma vida escolar perfeitamente vulgar. Era raríssimo fazer referência à perna. Que me lembre, isso não aconteceu uma única vez. De resto, quando voltávamos para casa juntos, nunca me lembro de a ter ouvido dizer qualquer frase do género: "Desculpa se te obrigo a ir mais devagar", nem tão-pouco deixava transparecer no rosto essa preocupação. Contudo, eu sabia que era precisamente por se importar com a história da perna que não tocava nesse tema. Também não gostava de ir a casa dos outros meninos porque aí era obrigada a tirar os sapatos e a deixá-los ficar na entrada, de acordo com os costumes japoneses. Os seus sapatos esquerdo e direito eram ligeiramente diferentes na forma e na espessura da sola, e via-se que era uma coisa que procurava a todo o custo esconder dos outros. Devia tratar-se de calçado especial, feito por medida. Apercebi-me disso ao ver que chegava a sua casa e a primeira coisa que fazia era descalçar-se e guardar os sapatos à pressa no móvel-sapateira da entrada.
Na sala de estar de Shimamoto havia uma aparelhagem estereofónica de último modelo e eu tinha por hábito aparecer lá em casa para ouvir música. Uma aparelhagem magnífica, diga-se de passagem. Infelizmente, a colecção de discos do seu pai não era nada de especial. No máximo, teria quinze discos, quase todos integrados em colectâneas ligeiras de música clássica.
Mesmo assim, escutámos aqueles discos vezes sem conta e ainda hoje consigo lembrar-me na perfeição de cada nota.
Shimamoto era quem tinha os discos a seu cargo. Tirava-os da sua capa, um a um, colocava cada disco com todo o cuidado em cima do prato do gira-discos sem tocar nas espiras e, depois de escovar a cabeça da agulha com uma escovinha própria para o efeito, fazia-a descer muito devagar sobre o disco. Quando o disco chegava ao fim, pulverizava-o com um líquido para tirar o pó e limpava-o com um paninho de feltro. Por fim, tornava a enfiar o disco dentro da respectiva capa e devolvia-o ao lugar reservado na estante. Tinha sido o pai que lhe ensinara aquele ritual, e ela procedia àquela série de operações com uma expressão terrivelmente séria, semi-cerrando os olhos e chegando mesmo a conter a respiração. Enquanto aquilo durava, eu deixava-me estar repimpado no sofá, a observar os seus mais pequenos gestos. A partir do momento em que o disco se encontrava posto em seu sossego, ela então virava-se para mim e esboçava um breve sorriso. E de todas as vezes que a cena se repetia, eu pensava o mesmo: não era um disco que Shimamoto tinha entre as suas mãos, mas sim uma frágil alma humana encerrada num recipiente de vidro.
Em minha casa não havia aparelhagem nem discos. Os meus pais não eram o tipo de pessoas que apreciasse especialmente música. Por isso, a única forma que eu tinha de ouvir música era através de um pequeno rádio de plástico que captava apenas os canais em AM. Rock and roll, acima de tudo, mas aos poucos aprendi a gostar da música clássica que me era dado escutar em casa de Shimamoto. Aos meus ouvidos, era como se fosse música do outro mundo, e muito provavelmente o que me atraía nesse mundo era saber que Shimamoto fazia parte integrante dele. Uma ou duas vezes por semana, eu e ela tínhamos por hábito sentar-nos no sofá e ali passávamos a tarde a beber o chá que a sua mãe nos preparava e a ouvir a abertura das sinfonias de Rossini, a "Pastoral" de Beethoven e a suite de Peer Gynt. Era com visível gosto que a mãe dela me recebia lá em casa. Via-se que ficava satisfeita por saber que a filha fizera um amigo, passado tão pouco tempo de ter sido transferida de escola, e em particular, imagino, pelo facto de eu ser um rapaz discreto e sempre vestido como deve ser. Contudo, o sentimento não era recíproco. Para ser franco, não se pode dizer que eu gostasse por aí além da senhora. Isto sem que houvesse uma razão concreta para tal, uma vez que ela era sempre muito simpática comigo. Ainda assim, notava-se no seu discurso uma certa crispação que me deixava inquieto.
Da colecção inteira de discos do pai de Shimamoto, o meu preferido era o dos concertos para piano e orquestra de Liszt: o número 1 de um lado e o número 2 do outro. Gostava por duas razões: porque a capa do disco era lindíssima, primeiro, e, segundo, porque não conhecia ninguém - tirando Shimamoto, claro - que tivesse alguma vez escutado esses concertos. Confesso que só essa ideia produzia em mim uma viva emoção. Queria dizer que eu conhecia um mundo que os outros ignoravam - uma espécie de jardim secreto a que só eu tinha acesso. Para mim, escutar Liszt significava aceder a um plano superior da existência humana.
Além do mais, tratava-se de uma música extremamente bela. A princípio, achava-a exagerada, artificial, e não conseguia encontrar nela um desenho coerente. A força de a escutar, porém, a verdade é que aquela imagem desconexa começou a adquirir uma certa coesão dentro da minha cabeça, ao ponto de formar uma imagem definida. Sempre que fechava os olhos e prestava atenção, a música chegava até mim riuma série de ressonâncias em turbilhão. Formava-se uma espiral e, a partir dessa espiral, formava-se uma outra, e depois a segunda fluía para a terceira. Esses redemoinhos, compreendo-o agora, possuíam uma qualidade conceptual e abstracta. Mais do que tudo, desejava ser capaz de transmitir por palavras esse sentimento a Shimamoto, mas não era o género de coisa que eu pudesse expor a outra pessoa com base no vocabulário que tinha nesse tempo à minha disposição. Mais, nem sequer sabia se o que eu então sentia era digno de ser traduzido em palavras. Para mal dos meus pecados, não me lembro do nome do pianista que interpretava os concertos de Liszt. Recordo apenas a vivacidade das cores estampadas na capa e o peso do disco, cuja grossura e espessura faziam dele um objecto com o seu quê de enigmático.
Além da música clássica, a colecção de discos em casa de Shimamoto incluía ainda vozes como as de Nat King Cole e Bing Crosby. Fartávamo-nos de ouvir os discos desses dois. O de Crosby era de canções de Natal, mas que nós púnhamos a tocar independentemente da estação do ano. Não deixa de ser estranho como éramos capazes de escutar aqueles discos vezes sem conta.
Um dia do mês de Dezembro, já próximo do Natal, encontrava-me com Shimamoto na sala de estar de sua casa, os dois sentados a ouvir música. A mãe dela tinha saído por qualquer razão e ficáramos os dois sozinhos em casa. Era uma tarde de Inverno escura e o céu estava coberto de nuvens cinzentas. Os raios de sol faziam sobressair as partículas microscópicas de poeira, mal conseguindo abrir caminho por entre a densa camada de nuvens. Tudo em redor se mostrava esbatido e preso na imobilidade que se respirava. Aproximava-se a hora do crepúsculo e a sala estava tão escura como se fosse de noite. Só a placa da estufa de gás projectava nas paredes um ténue clarão de luz. Nat King Cole cantava "Pretend" em inglês. Nós, claro está, não entendíamos uma palavra. Aos meus ouvidos, aquilo mais parecia uma cantilena melódica e melancólica, mas a verdade é que gostava tanto daquela canção, e tinha-a ouvido tantas vezes, que sabia os primeiros versos de cor e salteado:
Pretend you're happy when you're blue
It isn't very hard to do
Nos dias que correm, escusado será dizer, já sei o que significa, sobretudo pelo facto de, no meu espírito, aquelas palavras surgirem sempre associadas ao encantador sorriso de Shimamoto. "Fingir que se está feliz quando se está triste, não é uma coisa assim tão difícil." A letra da canção parecia expressar uma certa forma de encarar a vida,, se bem que por vezes a coisa não fosse assim tão fácil quanto isso.
Nesse dia, Shimamoto apareceu vestida com uma camisola azul de decote redondo. Ela tinha várias camisolas parecidas, todas azuis. Pelos vistos, devia ser a cor preferida. Ou então era porque combinavam com o casaco azul-marinho que usava sempre para ir à escola. Por debaixo da camisola espreitava o colarinho branco da blusa. Trazia ainda uma saia aos quadrados e soquetes brancas de algodão. A camisola, suave ao toque e justa ao corpo, deixava antever as suas formas que começavam a desenvolver-se. Ela estava no sofá, sentada em cima das pernas. Com um cotovelo apoiado nas costas do sofá, abandonava-se à música com o olhar perdido numa paisagem imaginária.
- Achas que é verdade o que dizem? - perguntou-me ela nesse dia. - Que os pais que só têm um filho não se dão bem?
Pensei um bocadinho antes de responder. A verdade, porém, é que não consegui encontrar relação de causa-efeito entre uma coisa e outra.
 - Quem é que te disse isso?
- Alguém me disse, há tempos. Quando os casais não se entendem, acabam por não arriscar e ficam só com um filho. Fiquei muito triste quando ouvi dizer isso.
- Ah, sim? - comentei.!
- A tua mãe e o teu pai dão-se bem?
Não fui capaz de responder logo, uma vez que nunca se me tinha colocado a questão.
- No meu caso, a minha mãe não é fisicamente muito forte - referi. - Não posso afirmar isto com toda a certeza, mas julgo que o nascimento de outro filho teria sido um esforço demasiado grande para ela. Daí que tenham ficado só comigo.
- Alguma vez imaginaste como seria a tua vida se tivesses um irmão ou uma irmã?
- Não, nunca.
- E porquê? Porque não?
Peguei na capa do disco que estava em cima da mesa e pus-me a olhar para ela, mas estava demasiado escuro para conseguir decifrar o que lá vinha escrito. Voltei a colocá-la sobre a mesa e esfreguei várias vezes os olhos com as costas da mão. Já a minha mãe em tempos me tinha perguntado o mesmo. Diga-se de passagem que a minha resposta não a deixou feliz nem triste. Quando muito, causou-lhe estranheza. Para mim, contudo, a resposta não podia ter sido mais honesta e sincera.
As coisas que eu tinha para dizer eram tantas que falei durante muito tempo, e a minha explicação, algo atabalhoada, reconheço, prolongou-se por muito tempo. Mas o que eu pretendia dizer era o seguinte: a pessoa que ela tinha à sua frente crescera sem irmãos. No caso de eles terem existido, eu seria decerto uma pessoa diferente do que era. Logo, pôr-me a imaginar como seria ter irmãos afigurava-se antinatural e ia contra a realidade das coisas. Posto de outro modo, a pergunta da minha mãe não fazia qualquer sentido, isto no meu entender.
Dei precisamente a mesma resposta a Shimamoto. Ela deixou-se estar a olhar fixamente para mim. Havia qualquer coisa na sua expressão que atraía toda a gente. Possuía uma sensualidade que se revelava capaz de - isto foi um pensamento que só me ocorreu mais tarde, naturalmente - ir tirando, docemente, uma a uma, as finas membranas que davam forma aos corações humanos. Ainda me lembro do movimento subtil dos seus lábios finos que acompanhava a mais pequena mudança de expressão, bem como aquela ténue luz que aparecia e desaparecia no fundo das suas pupilas, e que me lembrava uma pequena vela vacilante num quarto escuro e estreito.
- Acho que entendo o que queres dizer - comentou ela com toda a calma num tom adulto.
- A sério?
- A-hã - concordou ela. - Há coisas neste mundo que podem ser mudadas e outras que não. O tempo, por exemplo, é um processo irreversível. Chegando a um certo ponto, já não se pode voltar atrás. Não estás de acordo?
Fiz sinal que sim com a cabeça.
- Com o tempo, certas coisas adquirem uma forma mais rígida, como o cimento dentro de um balde. E acontece que nessa altura já não podemos voltar atrás. Se bem percebo, o que tu queres dizer é que o cimento de que tu és feito solidificou e não pode existir outro Hajime diferente da pessoa que tu és presentemente.
- Sim, deve ser isso - respondi pouco convencido. Durante um bom bocado, Shimamoto ficou absorta a olhar
para as mãos.
- Sabes, às vezes ponho-me a pensar - acrescentou por fim. - A imaginar como serão as coisas quando for mais velha e me casar. Em que casa irei morar, as coisas que farei. Também costumo pensar quantos filhos quero ter.
- Não me digas - exclamei. ; - Nunca pensas nisso?
Fiz um gesto negativo com a cabeça. Alguma vez um rapaz de doze anos pensa nessas coisas?
- E quantos filhos queres ter?
Ela levantou a mão, que até aí estivera pousada nas costas do sofá, e colocou-a sobre o meu joelho. Contemplei distrai-damente os seus dedos que percorriam o traçado aos quadrados da saia. Havia qualquer coisa de misterioso naquele gesto, era como se da ponta dos seus dedos brotassem fios invisíveis capazes de tecer um tempo novo. Fechei os olhos e, na escuridão, vi formarem-se remoinhos, uns atrás dos outros, que apareciam e desapareciam silenciosamente. Ao longe, Nat King Cole cantava "South of the Border". A canção referia-se ao México, é bom de ver, mas na época eu não tinha maneira de o saber. As palavras "a sul da fronteira" possuíam aos meus ouvidos uma estranha ressonância, com o seu quê de enigmático. Cada vez que as ouvia, perguntava a mim próprio o que poderia haver de maravilhoso, a sul da fronteira. Quando abri os olhos, Shimamoto ainda estava entretida a brincar com os dedos e a fazer desenhos na saia'. No fundo do meu corpo, experimentei uma sensação de dor estranhamente doce.
- É estranho - afirmou ela. - Não sei porquê, mas quando penso em filhos só me imagino a ter um. Consigo ver-me mãe de família, com um filho, até aí tudo bem. No entanto, também o meu é filho único, sem irmãos nem irmãs.
Shimamoto era, sem sombra de dúvida, uma menina precoce. Estava plenamente convencido de que ela se sentia atraída por mim, enquanto membro do sexo oposto. Também eu, pela parte que me tocava, me sentia atraído por ela, mas não sabia o que fazer com os meus sentimentos. E o mesmo devia acontecer com ela, palpitava-me. Apenas uma única vez demos as mãos. Foi um dia que ela me levava para qualquer lado e agarrou na minha mão, num gesto que dizia: "Despacha-te, por aqui." As nossas mãos permaneceram unidas uns dez segundos, se tanto, mas a mim pareceram-me trinta minutos. Quando ela largou a minha mão, senti-me perdido e desejei prolongar o contacto. Tinha sido um gesto espontâneo, o dela, se bem que eu suspeitasse de que ela andava mortinha por fazê-lo.
O toque da sua mão permaneceu sempre vivo na minha memória. Era uma sensação diferente de tudo o que eu até então experimentara, e mesmo depois disso. Tratava-se, pura e simplesmente, da mão pequena e quente de uma rapariguinha de doze anos. E, contudo, aqueles cinco dedos e a palma daquela mão continham, tal como uma caixinha de amostras, tudo o que eu queria saber acerca da vida - e tudo o que havia a saber. E ela, ao pegar na minha mão, teve o condão de me ensinar todos os segredos. Ajudou-me a compreender que no mundo real existia um lugar como aquele. Durante dez segundos, tive a sensação de me ter transformado num passarinho perfeito, capaz de voar no céu, ao sabor dos ventos. Lá do alto, alcançava as paisagens longínquas, tão distantes que não era capaz de distinguir com nitidez as coisas que havia para ver, apesar de saber que existiam. Ao mesmo tempo, sabia que um dia viajaria até essas paragens. Uma tal certeza deixou-me sem fôlego e provocou um tremor no meu peito.
De regresso a casa, sentei-me à secretária e ali me deixei estar, durante muito tempo, a olhar fixamente para a mão que Shimamoto tinha agarrado. Sentia uma felicidade transbordante pelo facto de ela ter conservado a minha mão nas suas. Aquela doce sensação aqueceu-me o coração durante dias a fio.
Ao mesmo tempo, porém, deixou-me confuso, para não dizer triste e, até certo ponto, angustiado. No fundo, não sabia o que fazer com aquela cálida sensação de felicidade.
No fim da escola primária, Shimamoto e eu prosseguimos os nossos estudos em escolas diferentes. Por diversas circunstâncias que não vêm ao caso, abandonei a minha antiga casa e mudei-me para outra cidade, o que é uma maneira de dizer, visto que ficava apenas a duas estações de comboio do lugar onde eu crescera. Nos primeiros meses após a mudança, ainda a fui visitar três ou quatro vezes. Mas a coisa ficou por aí, até que deixei de aparecer. Atravessávamos ambos um período delicado, em que o simples facto de frequentarmos escolas distintas e vivermos a duas estações de distância era quanto bastava para eu sentir que vivíamos em mundos diferentes. Tínhamos mudado de amigos, de uniforme, de manuais escolares; no fundo, tudo nos separava. O meu corpo, a minha voz, a minha maneira de pensar conheciam mudanças aceleradas, e uma inesperada sensação de estranheza ameaçava o clima de cumplicidade que entre nós existira. Escusado será dizer que também Shimamoto apresentava sinais de ter crescido, tanto física como mentalmente, e esses sinais de mudança eram ainda mais evidentes do que os meus. E isso deixava-me pouco à vontade. Além do mais, tinha a impressão de que a mãe dela começara a olhar para mim de um modo estranho. Porque será que este rapaz continua a aparecer cá em casa?, parecia ela perguntar. Pois se já não mora aqui perto e até mudou de escola. Se calhar, era tudo fruto da minha imaginação.
Isto para dizer que me fui afastando cada vez mais dela até que deixei de a ver. E isso talvez tenha sido (sou obrigado a usar a palavra talvez, uma vez que não é minha função esquadrinhar essa enorme amálgama de recordações que dá pelo nome de passado e avaliar o que foi correcto e o que não foi) um erro. Deveria ter-me mantido em estreito contacto com ela. Precisava dela e ela, por sua vez, precisava de mim. A verdade, porém, é que eu estava demasiado consciente de mim mesmo, tinha demasiado medo que me ferissem. E foi por isso que não voltei a vê-la. Quer dizer, a não ser muitos anos mais tarde.
Mesmo depois de termos deixado de nos dar, continuei sempre a pensar nela com enorme ternura. Durante todo aquele período confuso e doloroso que foi a adolescência, a lembrança calorosa de Shimamoto acompanhou-me e confortou-me inúmeras vezes. E durante muito tempo, ela ocupou um lugar especial no meu coração. Um cantinho reservado a ela, da mesma forma que se vê um aviso a dizer "Reservado" em cima da mesa mais recatada, ao fundo do restaurante. E isso apesar de acreditar piamente que nunca mais a iria voltar a ver.
Quando travei conhecimento com ela, eu tinha apenas doze anos e ainda não sabia o que era o desejo sexual. Quando muito, um vago interesse pelas formas redondas dos seus seios e pelo que se escondia debaixo da sua saia, mas sem saber ao certo o que significava isso, nem tão-pouco onde me levaria o meu desejo.
Limitava-me a efabular, apurando o ouvido e de olhos bem fechados, o que poderia existir ali, naquele lugar que eu adivinhava um cenário incompleto, onde tudo se afigurava vago e envolto numa ligeira névoa, de contornos imprecisos. Porém, tinha a certeza de que, no coração daquela paisagem, se escondia qualquer coisa de absolutamente vital para mim. E uma coisa sabia: Shimamoto deveria por certo ver-se confrontada com um quadro semelhante.
Éramos, tanto um como outro, seres incompletos, ao mesmo tempo que começávamos a pressentir a existência de uma nova realidade de que não nos tardaríamos a apropriar a fim de preencher o vazio da nossa existência. Encontrávamo-nos os dois sozinhos diante de uma porta fechada, que dava acesso ao desconhecido. Debaixo de uma luz mortiça, com as mãos estreitamente unidas, durante dez breves segundos.
Durante o liceu transformei-me num adolescente como tantos outros. Essa foi a segunda fase da minha existência, um novo estádio no meu processo evolutivo. Abandonei a ideia de vir a ser diferente e contentei-me com o estatuto de pessoa normal. Claro que aos olhos de uma pessoa observadora os meus problemas não teriam escapado. Mas também qual é o rapaz de dezasseis anos que não passa por isso? Pode dizer-se que, aos poucos, comecei a aproximar-me do mundo, ao mesmo tempo que o mundo vinha ao meu encontro.
Aos dezasseis anos, deixara de ser o filho único e rapazinho insignificante de antigamente. A coincidir com o início das aulas, comecei a frequentar aulas de natação numa piscina do bairro que ficava perto de casa. Ali aprendi a dominar o crawl e, duas vezes por semana, comecei a fazer séries de piscinas. Graças a esse esforço, os meus ombros e os peitorais alargaram e ficaram mais fortes enquanto o diabo esfregava um olho. Já não se podia dizer que fosse o rapazinho franzino, sempre febril e de cama. Passava horas à frente do espelho da casa de banho, nu, a examinar o meu corpo escrupulosamente. Tinha diante de mim, à vista desarmada, as mudanças verificadas no plano físico. E gostava do que via. Sentia-me contente pela mudança, mas não porque isso significasse que tinha crescido e entrara na idade adulta. Mais do que as rápidas mudanças físicas, era a própria ideia da metamorfose que eu apreciava. Dava-me gozo assistir ao desaparecimento do meu velho eu.
Lia desalmadamente e ouvia imensa música. A leitura e a música sempre haviam sido duas paixões minhas, mas tinha de reconhecer que a minha amizade com Shimamoto contribuíra para estimular e apurar esse gosto. Comecei a frequentar a biblioteca, a devorar tudo quanto me vinha ter às mãos. Cada vez que começava um livro, não conseguia deixar de o ler. Era como uma droga. Lia enquanto comia, no comboio, na cama pela noite dentro até ser dia, na escola, onde aprendi a esconder o livro para ler às escondidas nas aulas. Entretanto, comprara uma pequena aparelhagem estereofónica e passava todos os meus tempos livres fechado no quarto, a ouvir discos de jazz. Confesso, no entanto, que não sentia o mínimo desejo de partilhar com ninguém as minhas experiências com livros e música. Estava feliz da vida por ser eu próprio e não outro. Nesse sentido, talvez pudesse ser considerado um adolescente solitário e arrogante, incapaz de dar confiança a quem quer que fosse. Não apreciava desportos de equipa. Detestava entrar em competição com alguém só para ganhar pontos. Preferia mil vezes ir nadar sozinho, mergulhado no silêncio total.
Contudo, não se podia dizer que estivesse sempre completamente sozinho. Pelo menos na escola tinha conseguido fazer bons amigos, ainda que em número reduzido. Para dizer a verdade, sempre odiei a escola. Sentia-me como se os meus companheiros estivessem sempre a tentar passar por cima de mim e passava o tempo na defensiva. Isso, por um lado, tornou-me mais rijo. Sem aquele punhado de amigos, sem dúvida que as feridas deixadas pelos anos instáveis da adolescência teriam sido mais profundas.
Depois de ter começado a fazer desporto e a nadar, tornei-me menos esquisito em relação à comida e a lista dos pratos riscados diminuiu sensivelmente. Além disso, também deixei de corar sempre que entabulava conversa com uma rapariga. Mesmo que, por força das circunstâncias, continuasse a ser filho único, as pessoas que me rodeavam já não faziam disso um bicho-de-sete-cabeças. Visto assim de fora, pelo menos, tudo indicava que me libertara de vez da maldição que representava ser filho único.
Além disso, arranjara uma namorada.
Não era particularmente bonita. De certeza que não era o género de rapariga que leva as mães, ao verem a fotografia no álbum da turma, a dizer com um suspiro: "Que rapariga tão bonita. Como se chama?" Quanto a mim, achei-a logo muito engraçada assim que lhe pus a vista em cima. Pelas fotos não dava para perceber, mas possuía uma doçura natural que cativava facilmente toda a gente. Não era daquelas belezas de cortar a respiração, mas, vendo bem, também não se podia dizer que eu fosse alguma coisa de especial.
Desde o segundo ano do secundário que andávamos na mesma turma e saímos juntos umas quantas vezes. A princípio, juntamente com outro parzinho, e só depois os dois sozinhos. Não me peçam para explicar porquê, mas, a seu lado, sentia-me estranhamente à vontade. Podia falar de tudo e mais alguma coisa, que ela escutava sempre o que eu dizia com visível interesse e agrado. Mesmo que eu abrisse a boca e não dissesse nada de interessante, a sua expressão atenta indicava que ela seguia as minhas palavras como se eu estivesse a revelar ao mundo uma grande descoberta capaz de mudar o curso da História. Desde os tempos de Shimamoto, era a primeira vez que uma rapariga se mostrava tão fascinada pela minha pessoa. Quanto a mim, também eu queria saber tudo o que havia para saber acerca dela, incluindo os pormenores insignificantes. O que comia todos os dias, como era o seu quarto, o que via da janela.
Chamava-se Izumi. "Gosto imenso do teu nome", disse-lhe da primeira vez que nos encontrámos. O que significa "nascente da montanha" em japonês(2). "Uma pessoa só tem de atirar um machado e eis que de dentro da nascente sai uma fada", disse eu, fazendo referência ao conto de encantar(3). Ela desatou a rir. Tinha uma irmã três anos mais nova, e um irmão com menos cinco anos. O pai era dentista, a família morava - grande surpresa! - numa casa independente e tinham um cão. Um pastor alemão que respondia à chamada pelo nome de Karl. Por mais incrível que pareça, o cão chamava-se assim por causa de Karl Marx. O pai de Izumi estava inscrito no Partido Comunista japonês. Espalhados pelo mundo, devem existir mais dentistas que pertençam ao partido comunista, mas, todos juntos, não é de crer que encham mais do que quatro ou cinco autocarros grandes. Agora, que o pai da minha amiga fosse precisamente um deles, isso constituía aos meus olhos um estado de coisas deveras bizarro. Os pais dela eram loucos por ténis e todos os domingos pegavam nas suas raquetas e lá iam eles, a caminho do court. Um dentista de profissão, comunista e fanático do ténis, decididamente, que estranha combinação! Izumi, no entanto, parecia achar o facto normalíssimo. Apesar de não demonstrar qualquer interesse por política, tinha um bom relacionamento com os pais e, volta e meia, ia jogar com eles. Ainda tentou convencer-me a aprender, mas o ténis não figurava entre os meus desportos de eleição.
(2) E também fonte, origem, causa, manancial, Primavera. (N. da T.)
(3) Nas Fábulas de Esopo, em vez da fada surge Mercúrio. Referência à fábula do lenhador pobre que deixa cair por engano o machado numa nascente da qual aparece uma fada que lhe dá em troca um machado de ouro. (N. da T.)
Izumi invejava o meu estatuto de filho único. Não se dava lá muito bem nem com o irmão nem com a irmã. Na opinião dela, tanto um como outro eram umas bestas quadradas, uns imbecis sem ponta de sensibilidade. "Se eles desaparecessem do mapa", costumava ela dizer, "não me importava rigorosamente nada. Tens cá uma destas sortes por seres filho único. Quem me dera, poder fazer o que me apetece sem ter ninguém à perna."
No nosso terceiro encontro, dei-lhe um beijo. Naquele dia, aconteceu ela aparecer de surpresa para me ver. A minha mãe tinha saído para fazer compras e a casa estava por nossa conta. Quando aproximei o rosto do dela e pousei os meus lábios nos seus, fechou os olhos e ficou em silêncio. Tinha uma dúzia de desculpas engatilhadas no caso de ela se zangar comigo, mas não foi necessário usá-las. Sempre com os meus lábios colados aos dela, rodeei-a com o braço e atraí-a para mim. Estávamos no fim do Verão e ela trazia um vestido de algodão indiano às riscas azuis e brancas. Era apertado na cintura com um laço e as pontas caíam-lhe pelas costas, formando uma espécie de cauda. Toquei com a mão no fecho metálico do sutiã. Sentia a sua respiração no meu pescoço. Estava de tal forma excitado que, de tanto bater, o coração parecia querer saltar-me do peito. Quando sentiu o meu pénis, duro, a ponto de rebentar, ela afastou-se ligeiramente. Mas isso foi tudo. A situação não parecia chocá-la nem desagradar-lhe.
Permanecemos nos braços um do outro, imóveis, no sofá da sala de estar. Tínhamos como única testemunha um gato, na cadeira à nossa frente. Depois de ter aberto os olhos por instantes, olhou para nós, ali abraçados, espreguiçou-se em silêncio e voltou a adormecer. Acariciei os cabelos de Izumi e encostei os lábios às suas orelhas minúsculas. Ainda pensei em abrir a boca, mas não me ocorreu nada. Mal conseguia respirar, quanto mais encontrar palavras para lhe dizer. Peguei na mão dela e voltei a beijá-la nos lábios. Durante muito tempo, não dissemos nada, nem ela nem eu.
Depois de a ter acompanhado à estação de comboios, fiquei num estado de grande desassossego. Assim que regressei a casa, deitei-me no sofá e deixei-me ficar a olhar para o tecto, incapaz de pensar fosse no que fosse. Passado um bocado chegou a minha mãe e anunciou que ia tratar do jantar. Estava sem fome e comida era a última coisa em que me apetecia pensar. Sem dizer água vai, peguei em mim, calcei os sapatos e fui dar uma volta. Andei pelas ruas da cidade durante umas duas boas horas. Era uma sensação estranha. Já não estava sozinho, mas, ao mesmo tempo, experimentava na pele o sentimento de solidão mais intenso que alguma vez conhecera. Era como se estivesse a usar óculos pela primeira vez na vida e não conseguisse calcular bem as distâncias. Podia tocar nas coisas que estavam longe, sem no entanto distinguir com nitidez os objectos que se encontravam perto.
A despedida, Izumi tinha-me agradecido e dito que estava muito feliz. Não era a única. Também eu mal podia acreditar que uma rapariga se tivesse deixado beijar por mim. Estava nas nuvens, como seria de esperar. E, contudo, aquela felicidade conhecia ao mesmo tempo algumas reservas. Sentia-me como uma torre que tivesse perdido a sua base de sustentação. Quanto mais alto me encontrava e mais longe o meu olhar chegava, mais o meu coração começava a vacilar. "Porquê ela?", perguntei a mim mesmo. "Que sei eu, na realidade, desta rapariga?" Tínhamo-nos encontrado duas ou três vezes, trocado meia dúzia de impressões soltas, mais nada. Aqueles pensamentos deixaram-me muito nervoso e inquieto. Completamente fora de mim.
Se a coisa tivesse acontecido com Shimamoto, talvez não me assaltassem tantas dúvidas. Tanto eu como ela nos aceitávamos de uma maneira tácita, total, sem espaço para sentimentos confusos nem dúvidas. Simplesmente, acontecia que Shimamoto já não se encontrava ali, habitava outro mundo distinto, um mundo novo. Tal como eu, de resto. Por isso, colocar Izumi e Shimamoto no mesmo plano e compará-las não fazia sentido. A porta que dava acesso ao mundo de Shimamoto tinha-se fechado com estrépito nas minhas costas e eu não tinha outro remédio senão encontrar o meu espaço naquela nova realidade.
Fiquei a pé até que a leste o céu começou a clarear. Dormi um par de horas, tomei duche e pus-me a caminho das aulas. Tinha de encontrar Izumi e falar com ela acerca do que acontecera entre nós. Queria ouvir da sua boca que os seus sentimentos por mim não tinham mudado. Antes de sair de ao pé de mim, ela havia dito que se sentia muito contente e tinha-me agradecido, mas, à luz fria da manhã, tudo aquilo me parecia uma ilusão criada pela minha mente. Na escola, não tive ocasião de falar a sós com Izumi. Durante o recreio ela esteve sempre na companhia das amigas e, assim que as aulas chegaram ao fim, foi sozinha para casa. Cruzámo-nos uma única vez, no corredor, quando trocávamos de sala de aula. Ela virou-se para mim, dirigiu-me um sorriso rápido e eu fiz a mesma coisa. Mais nada. Aos meus olhos, porém, aquele sorriso funcionou como a confirmação dos acontecimentos do dia anterior. Era como se quisesse dizer-me: "Não te preocupes. O que aconteceu ontem foi verdade." Quando apanhei o comboio de volta para casa, a minha inquietude desvanecera-se quase por completo. Era desejo, o que eu sentia por ela, e esse sentimento prevalecia sobre todas as dúvidas da véspera.
Sabia claramente o que queria. Despir Izumi, tirar-lhe a roupa toda e ter relações sexuais com ela. Havia, no entanto, um longo caminho a percorrer, e só podia avançar desde que seguisse toda uma série de etapas concretas, uma após a outra.
Para chegar ao sexo, é preciso começar por correr o fecho do vestido. E entre o sexo e o fecho de correr devem existir para aí umas vinte ou trinta pequenas decisões e cálculos a fazer.
Primeiro que tudo, precisava de arranjar preservativos. Verdade seja dita que ainda faltava muito até atingir a altura em que fosse possível utilizá-los na cadeia de acontecimentos; todavia, mais valia estar prevenido. A verdade é que não podia entrar numa farmácia, colocar o dinheiro em cima do balcão e sair de lá com uma caixa de preservativos na mão. Toda a gente ia perceber que eu era um jovem estudante do preparatório, além de que me faltava coragem para tal. No meu bairro havia algumas máquinas distribuidoras automáticas, mas não queria correr o risco de ser apanhado com as calças na mão, podia arranjar problemas. E foi assim que durante três ou quatro dias andei sempre às voltas com aquele quebra-cabeças.
Afinal, as coisas acabaram por se revelar mais simples do que eu pensava. Tinha um amigo bem mais experiente do que eu e decidi confiar-lhe o meu dilema. "Olha, estou com um problema, preciso de arranjar preservativos, mas não sei o que fazer", confidenciei-lhe. "Preservativos?", ripostou ele, "nada mais fácil, se quiseres dispenso-te uma caixa inteira. O meu irmão mais velho comprou uma tonelada deles por catálogo. Não faço ideia para que lhe servirão tantos preservativos, mas tem um armário cheio. Mais caixa menos caixa, não lhe fará diferença." A minha resposta foi qualquer coisa como: "És a minha salvação." No dia seguinte, lá apareceu ele na escola com a caixa de preservativos enfiada dentro de um saco de papel. Convidei-o para almoçar e pedi-lhe que não dissesse uma palavra a ninguém. "Claro que não", prometeu ele. Obviamente que não foi capaz de manter a boca calada e tratou de contar a história a alguns camaradas que, por seu turno, passaram palavra até a coisa chegar aos ouvidos de Izumi. No fim das aulas, ela veio ter comigo ao terraço da escola.
- Diz-me uma coisa, Hajime. É verdade que Nishida te arranjou uma caixa de preservativos? - perguntou ela, pronunciando com alguma dificuldade a palavra "preservativos". Até parecia que estava a referir-se a uma doença infecciosa.
- Ah, pois foi... - confessei. Procurava as palavras adequadas, mas não encontrei nem uma para amostra. - Não quer dizer nada, sabes, pensei que talvez fosse melhor estar prevenido, só isso.
- Fizeste isso por minha causa?
- Não, não se pode dizer que tenha sido por isso - disse eu. - Acontece que tinha uma certa curiosidade para ver como eram. Agora, se a ideia te incomoda, peço desculpa. Posso devolvê-los, ou então deitá-los fora.
Estávamos sentados ao lado um do outro, num pequeno banco de pedra que ficava a um canto. Parecia que estava para chover a todo o momento. Encontrávamo-nos completamente sozinhos. O silêncio era total. Nunca tinha imaginado que o terraço pudesse ser um sítio tão tranquilo.
A nossa escola ficava situada no cimo de uma colina e dali tinha-se uma vista panorâmica sobre a cidade e o porto de mar. Uma vez, eu e os meus amigos tínhamos surripiado uma dezena de discos da sala de audiovisual que depois nos entretivemos a atirar do telhado como se estivéssemos a jogar ao disco. Era vê-los a voar, descrevendo uma curva perfeita no ar. Transportados pelo vento, como que soprados por um alento de vida, por breves instantes eles voaram alegremente na direcção do porto. Um disco, porém, perdeu altitude e, em desequilíbrio, aterrou, ondulando de forma desastrada, num campo de ténis, pregando um valente susto a umas rapariguinhas do quinto ano que aprendiam a manejar as suas raquetas. Escusado será dizer que fomos devidamente castigados. Tinha passado mais de um ano e lá estava eu, no mesmíssimo lugar, a ser alvo de um severo interrogatório por parte da minha amiga por causa de uns preservativos. Levantei os olhos e vi um pássaro que descrevia lentamente um círculo por cima da nossa cabeça. "Ser pássaro", pensei para comigo, "que coisa fantástica. Basta-lhes voar. A contracepção é a última das suas preocupações."
- Gostas de mim a sério? - perguntou-me Izumi baixinho.
- É evidente - respondi. - Claro que gosto de ti.
Ela olhou-me bem de frente, nos olhos, com os lábios cerrados com força. Aquele olhar demorou tanto tempo que às tantas comecei a sentir-me pouco à vontade.
- Eu também gosto de ti - afirmou ela ao fim de um certo tempo.
"Agora deve vir aí um mas...", pensei eu.
- Mas - disse ela, tal como eu tinha previsto - não vás tão depressa.
Concordei com a cabeça.
- Não sejas impaciente. Eu tenho o meu próprio ritmo. Não sou tão despachada, preciso de tempo a fim de me preparar para as coisas. Podes esperar?
Em silêncio, acenei uma vez mais afirmativamente com a cabeça.
- Prometes? - perguntou ela.
- Prometo.
- Nunca me farás mal?
- Nunca.
Izumi baixou os olhos e fixou os sapatos durante um grande bocado. Uns mocassins pretos, vulgaríssimos. Ao lado dos meus, pareciam sapatinhos de boneca.
- Tenho medo - admitiu ela. - Ultimamente, não sei porquê, sinto-me como um caracol que perdeu a sua concha.
- Também eu sei o que é ter medo - confessei. - Sinto-me como uma rã sem membranas entre os dedos. - Ela levantou a cabeça e lançou-me um breve sorriso.
Sem mais palavras, encaminhámo-nos para a parte recatada do edifício e ali ficámos abraçados, aos beijos. Éramos um caracol sem concha e uma rã que tinha perdido a sua membrana. Apertei-a com força contra o meu peito. As nossas línguas tocaram-se ao de leve. Acariciei-lhe os seios por cima da blusa. Ela não ofereceu resistência. Limitou-se a fechar os olhos e a suspirar. Os seus pequenos seios moldavam-se na perfeição à minha mão. Ela pousou a palma da mão sobre o meu coração e aquele toque fundiu-se com o bater do coração. "É diferente de Shimamoto", pensei. "Não me dá o que Shimamoto me dava. Mas é minha e está disposta a oferecer-me tudo o que puder. Como é que poderia alguma vez magoá-la?"
Na altura não tinha maneira de o saber. Não sabia que estava para vir o dia em que a magoaria profundamente e de um modo irreparável. Às vezes, as pessoas estão condenadas a fazer mal a outros seres humanos pelo simples facto de existirem.
A minha relação com Izumi durou mais de um ano. Encontrávamo-nos uma vez por semana e íamos ao cinema, rever a matéria das aulas na biblioteca ou, se não tínhamos mais nada para fazer, vagueávamos sem rumo pela cidade. No que toca ao sexo, porém, nunca fomos até ao fim. Aproveitando a ausência dos meus pais, o que acontecia uma ou duas vezes por mês, convidava-a a aparecer e ficávamos os dois abraçados em cima da cama. Contudo, mesmo que ficássemos sozinhos, ela não se despia por completo. "Nunca se sabe, os teus pais podem chegar de repente", teimava. Nesse aspecto, Izumi era uma rapariga muito, para não dizer demasiado, precavida. Não se podia dizer que tivesse medo; acontece pura e simplesmente que detestava ser surpreendida numa situação que às tantas pudesse revelar-se embaraçosa.
Daí que eu não tivesse outro remédio senão ficar agarrado a ela toda vestida, entretido a meter os dedos no meio da roupa e acariciar o seu corpo o melhor que podia e sabia.
- Não tenhas pressa - dizia ela sempre que reparava na minha cara desiludida. - Preciso de mais tempo. Peço-te.
Para dizer a verdade, eu não tinha pressa alguma. Estava apenas confuso e desapontado por várias razões, e não era pouco.
Naturalmente que gostava de Izumi, além de que me sentia grato por tê-la como minha namorada. Sem ela, os anos da minha adolescência teriam sido muito mais aborrecidos e descoloridos. Izumi era boa rapariga, dotada na sua essência de uma natureza franca e honesta. Toda a gente gostava dela. No entanto, dificilmente se poderia dizer que os nossos interesses fossem os mesmos. Julgo que ela não compreendia os livros que eu lia ou a música que eu costumava escutar. Por isso, vendo bem, não estávamos numa posição de igualdade para abordar esses temas. Desse ponto de vista, a minha relação com ela era bastante diferente da que mantivera com Shimamoto.
No entanto, bastava eu sentar-me ao pé dela e tocar-lhe nos dedos para experimentar na pele uma sensação de calor. Com ela, podia falar de tudo o que me ia na alma. Adorava beijar-lhe as pálpebras e os lábios. Também gostava de levantar os seus cabelos e pousar os lábios sobre as suas pequenas orelhas. Quando fazia isso, ela tinha inevitavelmente um ataque de riso. Ainda agora, quando penso em Izumi, imagino logo uma tranquila manhã de domingo. Um domingo tranquilo, desanuviado, acabado de começar e pleno de promessas. Um domingo sem deveres, livre para uma pessoa fazer o que lhe der na gana. Era assim que ela me fazia sentir, mergulhado nos pequenos prazeres dessas manhãs de domingo.
Naturalmente que também tinha os seus defeitos. Levava demasiado a peito certas coisas sem importância, e não faltaria à verdade se dissesse que tinha pouca imaginação. Não se esforçava por sair do pequeno e confortável mundo onde crescera. Nunca tinha havido nada que a apaixonasse ao ponto de se esquecer de comer ou de dormir. Amava os seus pais e nutria por eles grande respeito. As suas opiniões - claro que compreendo agora que isso é típico de uma rapariga de dezasseis ou dezassete anos, mas na altura confesso que me irritava, eram banais e desprovidas de profundidade. Em contrapartida, nunca a ouvi dizer mal de ninguém. Nem, de resto, me lembro de a ver dar-se ares de importância. Via-se que gostava de mim e mostrava-se muito atenta à minha pessoa. Levava a sério tudo o que eu dizia e encorajava-me sempre. Eu costumava falar-lhe a torto e a direito acerca dos meus projectos futuros, do que pretendia fazer mais tarde e do tipo de pessoa que gostaria de vir a ser. Enfim, o discurso típico e irrealista dos rapazes daquela idade. Ela, contudo, escutava com toda a atenção. Mais, encorajava-me, dizendo coisas do género: "Tenho a certeza de que serás uma pessoa maravilhosa. Tens qualquer coisa de especial dentro de ti." E estava a falar a sério. Era a primeira vez que alguém me fazia um elogio daquele género.
Além do mais, o simples facto de poder abraçá-la - mesmo por cima da roupa - era maravilhoso. O que me causava alguma perturbação e me desgostava era o facto de, por mais tempo que passasse na sua companhia, não ser capaz de descobrir nela qualquer coisa especial que me estivesse especialmente destinada. A lista das suas qualidades ultrapassava em muito a dos seus defeitos, e, como pessoa, Izumi era certamente melhor do que eu. Ainda assim, sentia que lhe faltava qualquer coisa de fundamental. Caso tivesse sido capaz de descobrir essa tal "coisa", podia ser que tivesse chegado a fazer amor com ela. Que é como quem diz, não teria continuado a reprimir os meus impulsos. Mesmo que isso implicasse mais tempo, teria feito os possíveis e os impossíveis para a convencer da necessidade de ir para a cama comigo. A verdade, porém, é que nem sequer eu estava lá muito convencido. Não passava de um rapazinho de dezassete anos com a cabeça a rebentar de desejo sexual e curiosidade. E, no entanto, qualquer coisa me dizia que se ela não queria fazer amor, eu não podia obrigá-la. Devia esperar pacientemente pelo momento certo.
Tive ocasião de apertar Izumi nos meus braços uma única vez. Lembro-me de lhe ter dito muito claramente que não podia continuar a abraçá-la assim vestida. Que se ela não queria ter relações sexuais, por mim tudo bem, mas que precisava de a ver nua. Desejava abraçá-la, tinha absoluta necessidade disso.
- Está bem - acedeu ela, depois de reflectir por momentos -, mas promete-me que não passas daí, que não farás nada que eu não queira.
Ela apareceu em minha casa num domingo, em princípios de Novembro. Estava um dia bonito e desanuviado, mas começava a ficar frio. Os meus pais tinham ido assistir a uma cerimónia fúnebre em honra de um parente qualquer do meu pai. Normalmente, eu deveria ter ido com eles, mas safei-me dizendo que precisava de estudar para um teste e lá consegui ficar sozinho em casa. Como eles só deveriam regressar ao fim da tarde, arranjei as coisas de forma a Izumi aparecer por lá ao início da tarde. Deitámo-nos abraçados em cima da cama e eu comecei a despi-la. Ela fechou os olhos e deixou-me tirar-lhe a roupa sem uma palavra. Devo dizer que não foi tarefa fácil. Para começar, sou pouco jeitoso de mãos, a que se soma o facto de as roupas das raparigas serem complicadas por natureza. Resultado: às tantas, Izumi não teve outro remédio senão abrir os olhos e acabou por ser ela a encarregar-se da tarefa. Usava umas cuequinhas azul-claras e sutiã a condizer. Devia ter comprado aquele conjunto especialmente para a ocasião. Digo isto porque, até aí, a roupa interior dela era o género que as mães compram para as filhas adolescentes. Depois, foi a minha vez de despir o que tinha vestido.
Envolvi o seu corpo nu, beijei-lhe o pescoço e os seios. Acariciei a sua pele macia e aspirei o perfume. Era fantástico podermos estar os dois nus, assim abraçados. Estava louco de desejo e só pensava em penetrá-la, mas ela manteve-me à distância.
- Desculpa - foi tudo o que disse.
Em troca, agarrou no meu pénis e começou a lambê-lo.
" Era a primeira vez que fazia aquilo. A sua língua passou por
cima da glande uma vez e outra até que não fui capaz de me
conter e ejaculei na boca dela antes que me desse conta do que
estava a acontecer.
A seguir, continuei a apertá-la de encontro a mim e acariciei lenta e demoradamente todos os recantos do seu corpo, cada centímetro da sua pele. Contemplei o seu magnífico corpo iluminado pela luz do sol de Outono que penetrava pela janela e cobri-o de beijos. Foi uma tarde realmente maravilhosa. Despidos, abraçámo-nos com força por diversas vezes e eu continuei a vir-me. De cada vez que ejaculava, ela ia à casa de banho passar a boca por água.
- Que sensação estranha - disse ela a rir-se.
Izumi e eu andávamos juntos havia mais de um ano, mas aquele constituiu sem dúvida o momento mais feliz que passámos juntos. Ali despidos, não tínhamos nada a esconder. Pela parte que me tocava, tinha a impressão de a conhecer melhor do que nunca, e quero acreditar que ela deve ter sentido o mesmo. Não bastavam as palavras nem as promessas, tudo o que precisávamos era de pequenas experiências concretas que gradualmente nos permitissem ganhar terreno.
Izumi deixou-se ficar deitada durante muito tempo, com a cabeça apoiada no meu peito, como se estivesse a escutar os batimentos do meu coração. Acariciei os cabelos dela. Tinha dezassete anos, uma saúde rija, estava à beira de me tornar adulto. E isso era, sem sombra de dúvida, uma coisa maravilhosa.
Por volta das quatro da tarde, quando Izumi principiara a vestir-se para regressar a casa, tocaram à campainha da porta.
A princípio fingi que não era nada comigo. Não fazia ideia de quem pudesse ser e, às tantas, se não abrisse, a pessoa acabaria por desistir e ir-se embora. Contudo, a campainha continuou a tocar de forma insistente e desagradável. "Que gaita", pensei.
- Não serão os teus pais que estão de volta? - perguntou Izumi, mais pálida do que sei lá o quê. Tinha saltado da cama e começara a recolher as suas roupas à pressa.
- Não te preocupes, é impossível que os meus pais tenham conseguido regressar tão cedo. Além de que eles levaram chave, por isso não se iriam pôr a tocar à campainha.
- Os meus sapatos! - lembrou ela.
- Os teus sapatos?
- Deixei ficar os sapatos na entrada.
Vesti-me a correr, corri lá para baixo, escondi os sapatos de Izumi na sapateira e só depois abri a porta. Era a minha tia. Concretamente, a irmã mais nova da minha mãe, que morava sozinha a cerca de uma hora de comboio e que volta e meia costumava aparecer de surpresa a fim de nos fazer uma visita.
- Que diabo estavas tu a fazer? Há uma hora que estou a tocar à porta - disse ela.
- Estava com os auscultadores postos e a música alta, foi por isso que não ouvi - repliquei. - Os meus pais não estão em casa, foram a uma cerimónia religiosa. Só devem regressar mais lá para a noite. Pensava que a tia estava a par disso.
- Claro que sabia, eles contaram-me. Mas tinha umas voltas a dar para estas bandas e, sabendo que ficavas em casa a estudar, achei por bem vir e fazer-te o jantar. Como podes ver, fiz compras e tudo.
- Posso perfeitamente tratar do meu jantar sozinho. Já não sou nenhum bebé, não sei se sabe...
- Pois se já venho aviada e tudo, que diferença é que me faz? Além disso, assim podes continuar a estudar tranquilamente enquanto eu faço o jantar.
"Céus", pensei eu para comigo. Só me apetecia morrer, e, agora, como é que Izumi havia de sair dali e regressar? Em minha casa, para ter acesso ao vestíbulo, é obrigatório atravessar a sala, e para sair pelo portão há que passar diante da janela da cozinha. Claro que podia sempre apresentar Izumi como uma amiga que tinha aparecido para me ver, mas em teoria eu devia estar a estudar afincadamente para um exame. Caso viesse a saber-se que tinha convidado uma rapariga lá para casa, de certeza que ia ser o cabo dos trabalhos. Ao mesmo tempo, pedir à minha tia que não contasse nada era impensável. Não se podia dizer que fosse má pessoa, mas guardar segredos não era com ela.
Enquanto a minha tia estava na cozinha a pôr em ordem as coisas que tinha trazido, peguei nos sapatos de Izumi e levei-os para o andar de cima. Quando lá cheguei, já ela estava completamente vestida. Passei então a explicar a situação.
Izumi ficou mais branca que sei lá o quê.
- O que é que vou fazer à minha vida, se não conseguir regressar a casa? Tenho de lá estar a horas do jantar, senão arma-se uma grande confusão.
- Não te preocupes. Cá nos havemos de arranjar. Vai correr tudo bem - disse-lhe eu, para ver se a acalmava. Porém, verdade seja dita, não tinha a mais remota ideia de como sair daquele imbróglio.
- Ainda por cima, não consigo encontrar uma peça das minhas ligas. Já procurei por tudo quanto era sítio.
- Das tuas ligas? - perguntei eu.
- Uma coisa pequena, metálica, assim deste tamanho. Pus-me à procura no chão e por cima da cama, mas nada.
- Tenho muita pena, mas não podes voltar para casa sem meias, só desta vez? - sugeri.
Fui até à cozinha, onde a minha tia estava a cortar legumes em cima de uma tábua.
- Precisamos de azeite para a salada - disse ela, pedindo-me que fosse comprar mais.
Não tinha qualquer pretexto para recusar, por isso tratei de pegar na bicicleta e dirigi-me à mercearia mais próxima. Começava a escurecer. A minha preocupação crescia a olhos vistos. Se não encontrássemos uma solução, Izumi arriscava-se a ficar fechada em minha casa eternamente. Era preciso fazer qualquer coisa antes de os meus pais chegarem.
- Creio que a única solução é tu saíres de casa enquanto a minha tia estiver na casa de banho - disse eu a Izumi.
- Achas que vai resultar?
- Vamos experimentar. Assim de braços cruzados é que não podemos ficar.
Elaborámos a nossa estratégia. Eu ficaria lá em baixo e, quando a minha tia fosse à casa de banho, bateria as palmas com força, por duas vezes. Nessa altura, Izumi deslizaria pelas escadas abaixo a correr e depois só tinha de calçar os sapatos e sair. Se conseguisse escapar com êxito, combinámos que ela me telefonaria da cabina que havia ali perto.
A minha tia estava na cozinha a cantarolar despreocupadamente, enquanto cortava os legumes, preparava a sopa de miso(4) e fazia uma omeleta. O tempo passava e ela nunca mais se decidia a ir à casa de banho. Aquela história começava a deixar-me bastante nervoso. Decididamente, a mulher devia ter uma bexiga anormalmente grande, com direito a figurar no livro
(4) Sopa de soja fermentada, base de muitos pratos da cozinha japonesa. (N. da T.)
de recordes do Guinness. Estava quase a entrar em parafuso quando ela despiu o avental e saiu da cozinha. Assim que tive a certeza de que ela tinha entrado na casa de banho, corri para a sala de estar e bati as mãos uma na outra duas vezes, com toda a força, ezumi desceu as escadas nas pontas dos pés, com os sapatos nas mãos, e esgueirou-se porta fora o mais silenciosamente possível. Fui à cozinha para comprovar que ela tinha saído pelo portão da frente sem qualquer problema. Nesse preciso momento, a minha tia saiu da casa de banho. Deixei escapar um suspiro de alívio. Cinco minutos mais tarde, Izumi telefonou-me. Disse à minha tia que estaria de volta daí a um quarto de hora. Izumi encontrava-se à minha espera diante da cabina telefónica.
- Detesto este género de situações - disse ela antes que eu pudesse abrir a boca. - É a última vez que faço uma coisa assim.
Via-se que estava confusa e enervada, e eu não a podia censurar. Levei-a até ao parque que havia nas imediações da estação e fi-la sentar num banco. Peguei-lhe delicadamente na mão. Trazia um casaco bege vestido por cima da camisola vermelha. Recordei com nostalgia o que tinha por baixo.
- Não podemos esquecer que hoje foi um dia maravilhoso, isto é, até a minha tia entrar em cena. Não achaste? - perguntei.
- É evidente que também gostei do nosso dia. Quando estou na tua companhia, sinto-me sempre lindamente. Mas depois, quando fico sozinha, há muitas coisas que não entendo.
- Quais, por exemplo?
- Por exemplo, o que o futuro me reserva. Depois de terminar o bacharelato, tu provavelmente irás para a universidade, em Tóquio, ao passo que eu devo continuar os meus estudos aqui. O que será de nós? Que pensas fazer comigo?
Falo por mim quando digo que já tinha decidido ir estudar para Tóquio após terminar o secundário. Estava desejoso de sair de casa, de me afastar não só daquela cidade como de conquistar a independência dos meus pais e de viver sozinho. A minha média final não era brilhante, mas em meia dúzia de disciplinas de que gostava conseguira bons resultados sem me esforçar por aí além, pelo que a entrada numa universidade privada estava mais ou menos garantida, uma vez que os exames se debruçavam apenas sobre duas ou três matérias. Porém, as hipóteses de Izumi me seguir até Tóquio eram escassas, para não dizer nulas. Os pais faziam questão de a ter por perto e a ela não lhe passava pela cabeça armar-se em rebelde. Portanto, como era natural, ela gostaria que eu ficasse na cidade. "Aqui também existe uma boa universidade. Que necessidade tens de ir para Tóquio?", perguntava ela. Caso eu tivesse prometido que afinal não sairia dali, tenho a certeza de que teria ido para a cama comigo.
- Escuta uma coisa - disse-lhe eu -, não vou partir para um país distante. Tóquio fica apenas a três horas de distância. Além disso, a universidade tem muitos períodos de férias, o que significa que estarei por cá três ou quatro meses por ano. -Aquela discussão repetira-se dezenas de vezes.
- Pois, mas se te fores embora, sei que acabarás por me esquecer e arranjarás outra namorada - dizia ela. Também ela já me tinha atirado com aquelas palavras pelo menos uma dúzia de vezes.
De cada vez que isso acontecia, eu repetia que não, que não iria acontecer nada do género. Que a amava e que não me esqueceria dela assim tão facilmente. Mas, para ser honesto, não tinha assim tanta certeza disso. Uma simples mudança de ambiente pode alterar o curso do tempo e dos sentimentos: exactamente o que acontecera comigo quando me separara de Shimamoto. Apesar da profunda amizade que nos unia, bastara a mudança de bairro e a passagem para a escola secundária para seguirmos por caminhos separados. Eu gostava muito dela, e ela bem insistira comigo para ir visitá-la, mas, no fim, acabara por nunca mais lhe pôr a vista em cima.
- Há uma coisa que não entendo - disse Izumi. - Tu dizes que gostas de mim. E que sou importante para ti. Até aí, tudo bem. O que por vezes não sei é o que estás na verdade a pensar.
Ao dizer aquelas palavras, Izumi tirou um lencinho do bolso do casaco e limpou as lágrimas. Para grande espanto meu, confesso, que não me tinha dado conta de que ela estava a chorar. Como não sabia o que dizer, calei-me e fiquei à espera de que ela prosseguisse.
- Tu preferes reflectir nas coisas sozinho e não suportas que os outros saibam o que te vai na cabeça. Talvez isso aconteça por seres filho único. Habituaste-te a pensar e a decidir por ti mesmo. Desde que tu compreendas, é quanto basta. -Nesse ponto, ela abanou a cabeça. - E isso é o que por vezes me deixa angustiada. Sinto-me abandonada.
Filho único. Há uma quantidade de tempo que não ouvia aquelas palavras. Lembrei-me de como a expressão me magoava quando andava na primária. Mas o certo é que Izumi lhe dera um sentido bastante diferente. Na boca dela, "filho único" não significava forçosamente um rapazinho mimado e caprichoso, mas sim um ego solitário por natureza, habituado a manter o mundo à distância. As suas não eram palavras de recriminação, exprimiam tão-só tristeza.
- Não imaginas a felicidade que senti, enquanto estivemos os dois abraçados. Deu-me esperança e cheguei a pensar que, daí em diante, talvez as coisas entre nós tivessem condições para funcionar - disse ela à despedida. - Mas nem tudo na vida é assim tão fácil.
No caminho de regresso a casa, vindo da estação, fartei-me de pensar naquelas palavras. Tudo aquilo fazia sentido.
Não tinha por hábito abrir o meu coração aos outros, da maneira que ela fizera comigo. A verdade é que não era capaz. Gostava muito dela, mas havia qualquer coisa que me impedia de a aceitar.
Tinha percorrido aquele mesmo trajecto milhares de vezes. Contudo, naquele dia dava-me a impressão de estar numa cidade desconhecida. Não conseguia afastar a imagem do corpo desnudo de Izumi: via os seus mamilos rijos, o pequeno tufo de pêlos púbicos, as coxas macias. Aos poucos, um sentimento de impotência foi crescendo dentro de mim. Comprei tabaco numa máquina de distribuição automática, regressei ao parque onde havia pouco estivera sentado na companhia dela e acendi um cigarro para ver se acalmava.
Se a minha tia não tivesse imposto a sua presença, as coisas poderiam ter corrido melhor. O mais provável era termo-nos despedido calmamente e sentido mais felizes. No entanto, mesmo que a minha tia não tivesse aparecido de improviso, mais cedo ou mais tarde teria acontecido qualquer coisa do género. O problema maior era eu não ser capaz de a convencer disso, uma vez que nem eu próprio estava convencido disso.
Ao anoitecer, levantou-se um vento frio. O Inverno aproximava-se a passos largos. Quando entrasse o novo ano, haveria exames de admissão à universidade, o que significava para mim uma nova vida. Apesar de inseguro, ansiava de corpo e alma por essa nova situação num lugar também ele completa-mente novo, uma lufada de ar fresco. Naquele ano, as universidades japonesas estavam a ser ocupadas por estudantes e Tóquio foi varrida por um vento de revolta semeado de manifestações. O mundo estava em vias de se transformar radicalmente diante dos meus olhos e eu estava mortinho por deixar essa febre apoderar-se de mim. Mesmo que Izumi me pedisse a pés juntos para ficar, oferecendo-se para dormir comigo em jeito de compensação, eu não tinha a mínima intenção de ficar um dia mais naquela pequena e sonolenta cidade de província. Se isso significasse o fim do nosso relacionamento, paciência. Ficar por lá significaria perder alguma coisa de vital - qualquer coisa a que eu não podia em circunstância alguma dar-me ao luxo de perder. Era um sonho vago, uma febre galopante, um desejo tão forte ao ponto de fazer doer. O tipo de sonho que só existe quando se tem dezassete ou dezoito anos.
Izumi não estava em condições de compreender esse meu sonho. Ela tinha os seus próprios sonhos, de natureza muito diferente, representando um mundo bastante diferente do meu.
Afinal de contas, antes de a minha nova vida começar realmente, uma crise abalou os alicerces da nossa relação, que chegou assim ao fim de uma maneira brusca e inesperada.
A primeira rapariga com quem fiz amor era filha única. Tal como Izumi, também ela não era exactamente o tipo de mulher capaz de fazer virar a cabeça a um homem; pelo contrário, podia dizer-se que passava quase despercebida. Apesar de tudo, desde o nosso primeiro encontro que me senti atraído por ela com uma violência que a mim próprio me espantou. Foi como se, ao andar pela rua em pleno dia, de repente fosse atingido por um raio invisível e silencioso. Sem razão de ser nem explicação. Não havia ali "mas" nem meio "mas" - estava apanhado.
Com pouquíssimas excepções, nunca me senti atraído pelas mulheres que por regra todos consideram belas. Por vezes acontecia ir pela rua com um amigo que me interpelava dizendo: "Carambal Já viste o espanto daquela rapariga?" Por estranho que pareça, não consigo nunca lembrar-me do aspecto da tal beldade, tal como nunca me senti atraído por actrizes bonitas e modelos. Não sei explicar porquê, mas é assim. Aos meus olhos, a fronteira entre o mundo real e o mundo dos sonhos sempre foi extraordinariamente vaga e nem sequer durante os primeiros anos da adolescência, quando as mais diversas aspirações exercem um poder extraordinário sobre as pessoas, nunca a beleza de uma rapariga bastou para me seduzir.
Sentia-me atraído por qualquer coisa que ia para além da beleza quantificável e superficial, por algo de mais profundo e absoluto. Da mesma maneira que há quem idolatre secretamente os dilúvios, os abalos de terra ou os apagões, também eu preferia aquele indefinível não-sei-quê dirigido à minha pessoa pelas representantes do sexo oposto. A esses sinais, vou chamar "magnetismo", à falta de uma palavra melhor. Uma força de atracção que, goste-se ou não, nos atrai sem apelo nem agravo e toma conta de nós.
Como o aroma de um perfume, seria porventura a comparação mais aproximada. Talvez nem mesmo o mestre perfumista consiga explicar por que motivo uma combinação de fragrâncias em concreto possui um determinado poder de sedução. Ainda que, cientificamente, seja difícil de explicar, a verdade é que a combinação de certas fragrâncias logram atrair o sexo oposto, como acontece com o odor dos animais durante o período do cio. Um determinado aroma pode exercer um forte domínio sobre cinquenta pessoas, num total de cem. Um outro odor agradará às cinquenta restantes. Contudo, existem igualmente essências capazes de excitar loucamente os sentidos de apenas uma ou duas pessoas. E eu sou um dos que tem a percepção de reconhecer automaticamente esse aroma especial. Quando tal acontece, sentia o desejo de me aproximar das mulheres que exalavam o dito perfume e dizer-lhes: "Olha que eu compreendo, sabes? Os outros não se deram conta, mas eu, sim."
Desde a primeira vez que a vi, soube que queria ir para a cama com ela. Para ser mais exacto, soube que tinha de dormir com ela. E, instintivamente, soube que também ela o desejava. Na sua presença, todo eu, o meu corpo, como se costuma dizer, tremia literalmente. Quando estávamos juntos, soube o que era ter uma erecção tão violenta que mal podia dar um passo à frente. Era a primeira vez na minha vida que sentia uma atracção daquelas do género que experimentara em relação a Shimamoto, mas na altura era demasiado jovem para lhe poder dar esse nome. Quando conheci esta rapariga, tinha dezassete anos e estava no último ano do secundário; ela tinha vinte anos e andava no segundo ano da faculdade. Para mais, calhava ser prima de Izumi. Também já tinha namorado, mas isso não constituía obstáculos aos nossos olhos. Podia ter quarenta e dois anos, três filhos e uma cauda bifurcada a sair-lhe das costas que eu não me teria importado, tal era a força do seu magnetismo. Sabia, isso sim, que não podia deixar escapar aquela rapariga. Caso contrário, passaria a vida a arrepender-me de não o ter feito.
Isto para concluir que a pessoa com quem tive relações sexuais pela primeira vez era prima da minha namorada. E não se tratava de uma prima qualquer, visto serem as duas amigas do peito e, desde pequenas, passarem a vida em casa uma da outra. A prima andava a estudar na Universidade de Quioto e morava num apartamento que ficava próximo do portão ocidental do Gosho, o antigo Palácio Imperial. Izumi e eu fomos a Quioto um dia, telefonámos-lhe e fomos almoçar todos juntos. Tinham passado duas semanas desde aquele famoso domingo, quando a minha tia aparecera de surpresa lá em casa.
Aproveitando um momento em que Izumi se levantara da mesa, pedi-lhe o número de telefone, com a desculpa de ter algumas dúvidas a tirar acerca da universidade. Passados dois dias, liguei-lhe e propus que nos encontrássemos no domingo seguinte. Depois de um silêncio, ela disse que sim, que tinha o dia livre. Havia qualquer coisa no seu tom de voz que me levou a pensar que também ela desejava ir para a cama comigo. No domingo seguinte, fui sozinho até Quioto, encontrei-me com ela e foi quanto bastou para me deitar com ela nessa mesma tarde.
Passei os dois meses seguintes a fazer amor com a prima de Izumi tão apaixonadamente que mais parecia que os nossos cérebros ameaçavam fundir-se. Não íamos ao cinema, nem dávamos grandes passeios. Não perdíamos tempo em conversas sobre livros, nem falávamos de música, nem da vida, nem da guerra ou da revolução. A única coisa que sabíamos era fazer amor. Bom, devemos ter trocado algumas ideias, mas confesso que não me lembro do assunto nem do que dissemos. Só guardo na memória imagens concretas - o relógio despertador junto à almofada, as cortinas na janela, o telefone preto sobre a mesa, as fotografias do calendário, as suas roupas, atiradas de qualquer maneira para o chão. E o odor da sua pele, a sua voz. Nunca lhe perguntei nada e ela também nunca me fez perguntas. Apenas uma vez, quando estávamos deitados na cama, me passou pela cabeça que ela pudesse ser filha única e comentei isso com ela.
- Sim - respondeu ela, pondo uma expressão de espanto. -Como é que adivinhaste?
- Por nenhuma razão especial. Deu-me essa impressão, mais nada.
Ela ficou a olhar para mim.
- E tu, por acaso, não serás também filho único?
- Sim - respondi.
Foi a única conversa que me lembro de termos tido.
Quando estávamos juntos, não tínhamos vontade de interromper o que estávamos a fazer para comer ou beber qualquer coisa. Assim que púnhamos os olhos um no outro, despíamo-nos, praticamente sem trocar palavra, saltávamos para dentro da cama e íamos direito ao que interessava. Eu limitava-me a devorar avidamente o que tinha diante de mim, e ela a mesma coisa. De cada vez que nos encontrávamos, fazíamos amor quatro e cinco vezes seguidas. Era caso para dizer que copulava até esgotar a minha reserva de sémen, ao ponto de sentir a glande inchada e a fazer-me doer. No entanto, apesar da violência dessa paixão, apesar dessa atracção irresistível, nunca nos passou pela cabeça que pudéssemos andar juntos e que a nossa relação pudesse durar eternamente. O que sentíamos era que estávamos os dois no olho de um furacão que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por passar. Tendo consciência disso, o facto de sabermos que cada vez que nos víamos podia ser a última mais não fazia do que atiçar o nosso desejo.
Para ser franco, eu não estava apaixonado por ela. E ela não estava apaixonada por mim, escusado será dizer. De resto, a questão do amor nem sequer vinha ao caso. O importante era a noção de estar apaixonadamente no meio de uma força devastadora que era superior a mim e que no coração desse tornado existia uma coisa que se revelara vital. Precisava a todo o custo de saber o que era. Só me apetecia mergulhar a mão no corpo dela a fim de poder tocar directamente nessa tal coisa.
Gostava sinceramente de Izumi, mas com ela nunca conhecera aquela força transcendental. Da outra rapariga, a tal prima, pouco ou nada sabia, a não ser que ela possuía sobre mim um efeito profundo. E se nunca tínhamos tido uma conversa digna desse nome, a verdade é que não sentíamos necessidade disso. No caso de termos energia para falar, preferíamos dar-lhe outro uso dentro dos lençóis e fazer amor.
Pelo curso natural das coisas, depois de mantermos durante meses a fio uma relação tão absorvente como aquela, sem tempo para recuperar o fôlego, um ou outro acabaria fatalmente por se afastar. Porque o que nós fazíamos era um acto necessário, natural e espontâneo, que não admitia ser posto em causa. Desde o início que tínhamos banido da nossa história a possibilidade de coisas como o amor, o sentimento de culpa ou o futuro.
Por consequência, se o nosso relacionamento não tivesse sido descoberto (o que era altamente provável, dado o meu total envolvimento no acto de fazer sexo com ela conduzir à total imprudência), Izumi e eu poderíamos ter continuado namorados, assim como estávamos, durante muito tempo. O mais certo era termos continuado a ver-nos e a sair juntos uns meses por ano, durante as férias universitárias. Não posso dizer ao certo quanto tempo essa situação poderia ter-se prolongado, mas sempre pensei que, ao fim de alguns anos, a separação aconteceria de forma natural. Éramos demasiado diferentes, e o tempo encarregar-se-ia de acentuar as nossas divergências. Olhando para trás, tudo isso me parece demasiado óbvio. Contudo, mesmo que chegasse aquele dia em que cada um tivesse de seguir o seu caminho, a verdade é que se eu não tivesse ido para a cama com a prima dela, possivelmente ter-nos-íamos despedido como amigos, de forma mais serena, e encarado a fase seguinte das nossas vidas com uma atitude mais positiva.
As coisas, porém, não se desenrolaram assim.
Acontece que, na realidade, feri Izumi de uma forma profundamente cruel. E posso mesmo imaginar com uma certa precisão até que ponto a magoei e o mal que lhe fiz. Com as suas notas, ela teria podido entrar facilmente numa boa universidade, mas acabou por falhar o exame de admissão e apenas conseguiu lugar numa pequena universidade não sei onde, só para mulheres. Depois de o meu caso com a prima dela ter vindo a lume, apenas voltei a encontrar-me com Izumi uma única vez. Tivemos uma longa conversa na cafetaria onde costumávamos marcar encontro. Procurei explicar-lhe a situação, o mais honestamente que me foi possível, escolhendo com todo o cuidado cada palavrinha, ao mesmo tempo que tentava exprimir os meus sentimentos com sinceridade. Que a história entre a prima dela e eu fora um acidente de percurso, afirmei; que era um caso de pura atracção física e que nunca tivera consciência de estar a traí-la. Que nada daquilo tivera a mínima influência na relação que existia entre nós.
Como seria de esperar, Izumi não entendeu as minhas razões. Chamou-me mentiroso e traidor. Estava com a razão do lado dela. Sem lhe dizer nada, tinha dormido com a prima nas suas costas. Não uma nem duas vezes, mas para aí umas vinte. Traíra a sua confiança desde o começo. Se eu acreditasse que estava a actuar correctamente, nesse caso que necessidade tinha de lhe mentir? Bastava que tivesse confessado desde o início: "Quero ir para a cama com a tua prima, quero ter sexo com ela até ficar com os miolos esturricados; fazer amor com ela milhares de vezes, em todas as posições possíveis e imagináveis, mas isso não afecta em nada a nossa relação." Devia ter dito isso a Izumi, mas a verdade é que não fui capaz. Como tal, menti, não uma vez mas centenas de vezes. Inventava uma desculpa qualquer para cancelar os nossos encontros e ia a correr até Quioto fazer amor com a prima dela. Não tinha justificação alguma e não podia fazer mais nada senão assumir a responsabilidade pelo que acontecera.
Izumi descobriu a minha história com a sua prima no fim de Janeiro, pouco depois de eu ter feito dezoito anos. Em Fevereiro, passei com êxito os meus exames de acesso à universidade e, no final de Março, abandonei a cidade e fui para Tóquio. Antes de partir, tentei por mais de uma vez telefonar-lhe, mas Izumi recusou-se sempre a atender as minhas chamadas. Também lhe escrevi longas cartas, que ficaram sem resposta. "Não posso ir-me embora assim", pensava eu. "Não posso deixá-la sozinha naquele estado." Na realidade, porém, nada pude fazer. Izumi não queria rigorosamente qualquer contacto comigo.
No shinkansen, o comboio-bala a caminho de Tóquio, enquanto observava distraidamente a paisagem pela janela, pus-me a reflectir sobre mim mesmo - a pessoa que eu era. Fixei as minhas mãos pousadas sobre os joelhos e o meu rosto reflectido na vidraça. Quem é este tipo, afinal? Sempre gostava de saber. Pela primeira vez na minha vida, senti por mim uma profunda aversão. "Como pudeste fazer uma coisa destas?" Mas conhecia a resposta bem de mais. E sabia que se me voltasse a encontrar nas mesmas circunstâncias, voltaria a fazer o mesmo. Que é como quem diz, mentiria a Izumi e voltaria a ir para a cama com a prima dela. Mesmo que isso significasse feri-la cruelmente. Apesar de ser duro reconhecê-lo, era a pura verdade.
Izumi não foi a única a sair magoada. Também eu infligi a mim mesmo uma ferida profunda - bem mais profunda do que alguma vez podia imaginar. Devia ter extraído várias lições daquela experiência, mas, passados todos estes anos, um único facto inegável ressalta. Afinal de contas, eu era um ser humano capaz de cometer o mal. Nunca em toda a minha vida tivera intenção de magoar ninguém, mas, se a necessidade a isso obrigasse, podia converter-me numa pessoa egoísta e cruel. Vendo bem, inventando desculpas aos meus olhos plausíveis, eu tinha ferido de modo irreparável e definitivo a pessoa que me era mais querida.
A entrada na universidade abriu-me as portas de uma nova cidade, onde procurei, uma vez mais, adquirir uma nova consciência de mim mesmo e dar início à nova vida. Pensava eu que, ao tornar-me um novo Hajime, poderia corrigir os erros do meu passado. A princípio, a coisa pareceu resultar, mas acabei por me dar conta de que, desse as voltas que desse, não deixaria de ser quem era. Continuava sempre a repetir os mesmos erros, uma vez e outra, a fazer outras pessoas sofrer e a fazer mal também a mim mesmo.
Tinha acabado de fazer vinte anos quando cheguei à conclusão de que, se calhar, nunca teria oportunidade de me tornar uma pessoa decente. Os erros cometidos - e que podiam muito bem nem sequer o ser - faziam sem dúvida parte integrante do meu carácter. Essa ideia deixou-me terrivelmente deprimido.
Sobre os meus quatro anos de universidade, não tenho grande coisa para contar.
No primeiro ano participei em várias manifestações e cheguei a confrontar-me com as forças da Polícia. Estava do mesmo lado da barricada em que se encontravam os que faziam greve estudantil e assisti a várias assembleias políticas. Por esse meio travei conhecimento com muitas pessoas interessantes, mas confesso que a luta política nunca me apaixonou por aí além. Sentia-me pouco à vontade de braço dado com a pessoa que estivesse ao meu lado nas manifestações e, quando chegava a hora de atirar pedras aos polícias das forças antimotim, tinha a impressão de não ser eu. Era realmente aquilo que eu queria?, perguntava-me. Não havia maneira de me sentir solidário com as pessoas à minha volta5. A atmosfera violenta que se respirava nas ruas, as palavras de ordem contundentes gritadas a plenos pulmões, tudo isso acabou por ir perdendo pouco a pouco o fascínio que inicialmente exercia sobre mim. Ao mesmo tempo,
(5) "Era um indivíduo solitário", conta Haruki Murakami numa entrevista, a propósito da sua passagem pela universidade de Waseda e enquanto testemunha directa da rebelião estudantil, "por isso não pertencia a qualquer organização política nem nada que se parecesse. (-.) Queria ser eu. E quando uma pessoa quer ser ela própria, não pode, em abono da verdade, ter uma costela "política"." (N. da T.)
comecei a recordar com nostalgia os dias passados na companhia de Izumi. Mas era impossível voltar atrás. Tinha voltado as costas àquele mundo e fechado a porta atrás de mim.
Por outro lado, não me interessava rigorosamente nada o que me ensinavam na universidade. A maior parte das aulas eram inúteis e maçadoras até dizer chega. Pus-me então a fazer pequenos trabalhos em tempo parcial e, às tantas, quando dei por mim já quase não punha os pés na faculdade; ainda hoje estou para saber como é que acabei o curso em quatro anos. Quando andava no primeiro ano, saí com várias raparigas; no terceiro, arranjei uma namorada e vivi com ela durante seis meses, mas a coisa não resultou. Naquela época, não tinha a mais remota ideia do que queria da vida.
Um belo dia, apercebi-me de que o tempo da política passara à história. Tal como uma bandeira num céu sem vento, também a onda de choque gigantesca que durante um tempo contribuíra para agitar a sociedade perdera força e acabara por ser engolida pela cinzenta banalidade da vida quotidiana.
Graças a um amigo, assim que acabei a universidade consegui entrar para uma editora especializada em livros escolares. Dei um corte no cabelo, engraxei os sapatos e passei a andar vestido de fato completo. Não se podia dizer que fosse uma empresa muito importante, mas à data as perspectivas de trabalho não eram particularmente lá muito boas para uma pessoa licenciada em literatura. Sem esquecer que, com os meus resultados medíocres e a falta de contactos, podia dar-me por feliz de ter arranjado qualquer coisinha para fazer.
O trabalho era uma seca descomunal. Quanto ao ambiente que se respirava dentro da empresa, não se podia dizer que fosse mau de todo; acontecia, porém, que corrigir provas e trabalhar na redacção de livros escolares não era tarefa que me entusiasmasse. De início, pensei para comigo: "Tudo bem, vou esforçar-me ao máximo, pode ser que consiga encontrar qualquer coisa de aliciante", e assim foi: durante seis meses mergulhei com entusiasmo no meu mister. Às tantas, desisti. Cheguei à conclusão de que aquele trabalho não era para mim. Sentia-me mal na minha pele, espectador de mim mesmo a ver-me acabar os meus dias assim. Passariam por mim os meses e os anos, e eu sempre ali enfiado, farto até à medula. Mais trinta e três anos pela frente, a matar a cabeça com aqueles aborrecidos livros de texto, sempre a calcular o número e a correcção dos caracteres chineses por página. Encontraria uma boa rapariga e casava-me com ela, teria vários filhos e viveria a contar os dias para receber os dois meses de subsídio extraordinário por ano. Lembrava-me do que Izumi em tempos me dissera: "Tenho a certeza de que serás uma pessoa maravilhosa. Tens qualquer coisa de maravilhoso dentro de ti." Cada vez que pensava naquelas palavras, sentia crescer em mim um sentimento de amargura. Alguma coisa de especial em mim? Esquece, Izumi. Claro que tu própria por esta altura já te deverás ter dado conta disso. O que é que havemos de fazer? Toda a gente se pode enganar.
No emprego, cumpria mecanicamente as tarefas que me eram confiadas e, nas horas vagas, entretinha-me sozinho, a ler e a escutar música. Chegara à conclusão de que o trabalho não passava de uma obrigação mecânica e entediante e que a única coisa a fazer era desfrutar ao máximo da vida-empregando o tempo livre da melhor forma possível. Como tal, evitava as saídas com os meus colegas para ir beber um copo fora das horas de trabalho. Não que pudesse ser considerado uma pessoa insociável ou que me sentisse afastado dos outros. Acontecia, isso sim, que não estava interessado em fazer o mínimo esforço com vista a alimentar relações sociais com os meus companheiros de trabalho. Na medida do possível, queria que o meu tempo livre fosse isso mesmo, que é como quem diz, meu.
E assim se passaram, num abrir e fechar de olhos, quatro ou cinco anos. Durante esse período, andei com várias raparigas, mas foi sol de pouca dura. Saía com uma durante meia dúzia de meses e depois punha-me a pensar: "Não, não é isto que eu quero!" Em nenhuma dessas raparigas lograva descortinar qualquer coisa que me estivesse destinada, só a mim. Fui para a cama com duas ou três, mas nada de muito excitante. Considerei os doze anos que decorreram desde a minha entrada para a universidade como sendo a terceira etapa da minha vida. Quanto aos meus trinta anos, foram para mim anos gélidos, e passei-os mergulhado na solidão, no silêncio e no descontentamento.
Encerrei-me cada vez mais no meu próprio mundo. Habituei-me a comer sozinho, a passear sozinho, a ir nadar sozinho e até aos concertos e ao cinema ia sozinho. Isso não me fazia sentir particularmente triste nem tão-pouco me custava. Pensava muitas vezes em Shimamoto e em Izumi. Interrogava-me onde estariam, o que seria feito delas. Tanto quanto sabia, podiam muito bem ter casado, talvez tivessem filhos. De qualquer modo, teria gostado muito de as ver e de falar com elas, nem que fosse só por um bocadinho. Na companhia de Shimamoto e Izumi, podia dar-me ao luxo de ser honesto. Dava voltas à cabeça a congeminar a forma de me reconciliar com Izumi ou a hipótese de reencontrar Shimamoto. Pensava como isso seria maravilhoso, se bem que nada fizesse de concreto para que tal pudesse tornar-se realidade. Afinal, tratava-se de duas pessoas que tinham desaparecido da minha vida. Não se pode obrigar os ponteiros do relógio a andar em sentido contrário. Comecei a falar comigo mesmo e a beber sem companhia quando saía à noite. Foi também nessa época que me convenci de que nunca daria o nó.
Ao fim de dois anos de ter começado a trabalhar, comecei a sair com uma rapariga que tinha uma deficiência na perna. Aconteceu depois de um daqueles "encontros a quatro", organizado por um colega de trabalho.
- Coxeia um bocadinho - disse-me ele, vagamente embaraçado. - Mas é bonita e muito boa rapariga. Tenho a certeza de que vais gostar dela. Além disso, quase não se dá pelo defeito. Arrasta um bocadinho a perna, mais nada.
- Isso não me causa qualquer problema - respondi. Para ser franco, se não fosse ele mencionar o facto de ela
ter aquele defeito na perna, o mais certo era ter declinado o convite. Estava mais do que farto de encontros duplos, encontros às cegas e o diabo a sete. Mas assim que ouvi aquela história da perna, não pude deixar de comparecer.
Quase não se dá pelo defeito. Arrasta um bocadinho a perna, só isso.
A rapariga era amiga da namorada do outro rapaz. Creio que tinham sido colegas de liceu. Era baixinha e tinha uma cara engraçada, de feições correctas. Possuía uma beleza discreta, a um tempo doce e serena, que me fazia lembrar um animal cativo no coração da floresta e que raramente se deixa ver. Não era uma beleza espectacular, do outro mundo. Fomos os quatro ao cinema um domingo de manhã e depois almoçámos juntos. Ela mal abriu a boca. De todas as vezes que eu tentei meter conversa, limitou-se a sorrir sem dizer nada. Depois separámo-nos do outro casal e fomos dar um passeio pelo parque de Hibiya, onde parámos para tomar qualquer coisa. Ela arrastava a perna direita, e não a esquerda, como Shimamoto. Além disso, coxeava de maneira diferente. Shimamoto avançava fazendo uma ligeira rotação com a perna, ao passo que esta esticava a ponta do pé um pouco para o lado e arrastava a perna a direito. Contudo, a maneira de andar que as duas tinham era parecida. Vestia uma camisola vermelha de gola alta, calças de ganga e calçava botas normais. Quase não usava maquilhagem e tinha o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo. Andava no quarto ano da faculdade, mas parecia mais jovem. Não consegui perceber se era calada por natureza, ou se não falava porque estava nervosa, visto ser aquele o nosso primeiro encontro. Também podia dar-se o caso de não ter nada para dizer. De início, tudo o que consegui arrancar dela foi que estudava farmácia numa universidade privada.
- É interessante, o curso de farmácia? - perguntei. Estávamos sentados no café que havia na cafetaria do parque, a tomar café.
Ela corou.
- Não fiques alarmada - atalhei eu. - Editar livros escolares não é propriamente a actividade mais excitante do mundo. De coisas pouco interessantes está o mundo cheio. Se nos fôssemos preocupar por causa disso...
Ela ficou a pensar naquilo durante um bocado e finalmente decidiu-se a abrir a boca.
- Não é particularmente interessante, mas acontece que os meus pais são donos de uma farmácia.
- Nesse caso, pode ser que me ensines algumas noções de farmacologia. Confesso que não sei nada sobre esse tema. Lamento informar-te, mas acho que nestes últimos seis anos não tomei um único medicamento.
- Deves ter uma saúde de ferro, imagino...
- Não me posso queixar. Nem sequer costumo ficar de ressaca quando bebo um copo a mais - disse eu. - Isto apesar de, quando era pequeno, passar a vida doente. Nessa altura, fartei-me de tomar remédios. Como era filho único, os meus pais protegiam-me em excesso.
Ela assentiu e ficou por instantes a olhar para o fundo da sua chávena de café. Passou bastante tempo até que ela se decidisse a falar de novo.
- Estudar farmácia não é particularmente interessante -começou por dizer. - Imagino que haverá no mundo milhões de coisas bem mais excitantes e divertidas do que aprender de cor a composição dos medicamentos. Não é tão romântica como a astronomia, isto para citar outra ciência, nem tão dramática como a medicina. Contudo, tem qualquer coisa de intimista que me toca, qualquer coisa de familiar. Como se tudo se passasse à escala humana, percebes?
- Percebo - disse eu. Aquela miúda, quando queria, explicava-se às mil maravilhas. O que acontecia era que demorava mais tempo do que a maioria das pessoas a encontrar as palavras certas.
- Tens irmãos ou irmãs? - perguntei.
- Dois irmãos mais velhos. Um já está casado.
- Quer dizer que seguiste farmácia para depois continuares com o negócio dos teus pais?
Ela voltou a corar. A seguir permaneceu calada durante um bom bocado.
- Não sei. Os meus irmãos têm cada um o seu emprego, por isso talvez seja eu a dar seguimento à actividade. Mas nada está ainda decidido. O meu pai diz que se eu não quiser, não faz mal. Ele e a minha mãe continuarão a trabalhar enquanto for possível e depois têm sempre a hipótese de vender a farmácia.
Fiz sinal de concordar com a cabeça e esperei que ela continuasse.
- Muito embora confesse que me sinto tentada a prosseguir com a actividade do meu pai. Com esta perna assim, terei sempre dificuldade em encontrar outro trabalho.
E assim passámos toda a tarde juntos, a conversar, com numerosos momentos de silêncio pelo meio e longas pausas, visto que ela demorava a encontrar o seu ritmo. Sempre que eu lhe fazia uma pergunta, ficava logo vermelha. Pela minha parte, não exagero se disser que gostei de estar ali e que a conversa com ela não se revelou nem aborrecida nem me deixou pouco à vontade. O que não era muito frequente em mim. Depois de termos estado à conversa na cafetaria, senti-me invadido por um sentimento de nostalgia e quase fiquei com a impressão de a ter conhecido desde sempre.
Para ser sincero, não me sentia atraído por ela. Tratava-se de uma rapariga simpática e dava-me gozo estar na sua companhia. Estamos a falar de uma rapariga bonita e, como dizia o meu colega, com uma personalidade cativante. A parte isso, se me perguntassem se consegui descobrir nela alguma coisa capaz de me tocar fundo, a resposta, infelizmente, era não. Nada de nada.
A única pessoa que produzia esse efeito em mim era Shimamoto. E ali estava eu, a ouvir aquela rapariga e sempre a pensar na minha amiga de infância. Só de me lembrar de Shimamoto, estremecia com uma espécie de excitação febril, como se uma porta no mais profundo do meu coração se abrisse. No entanto, ao passear na companhia daquela bonita rapariga pelo parque de Hibiya, não experimentei na pele aquele tipo de excitação uma única vez, nem nada que se parecesse. A única coisa que sentia por ela era uma vaga simpatia e um bocadinho de ternura, só isso.
A sua casa - quero dizer, a farmácia - ficava em Kobinata, no distrito de Bunkyo. Acompanhei-a até lá de autocarro. Durante o trajecto, sentada ao meu lado, ela mal abriu a boca.
Dias mais tarde, o meu colega veio ter comigo e disse-me que a rapariga, pelos vistos, engraçara comigo. Propôs-me que voltássemos a sair os quatro juntos no próximo dia festivo. Arranjei uma desculpa qualquer e recusei. Não tinha qualquer problema em voltar a vê-la e em falar com ela. De facto, para ser franco, até teria gostado que isso acontecesse. Se nos tivéssemos encontrado em circunstâncias diferentes, o mais certo era ficarmos grandes amigos. Mas a verdade é que a coisa começou por ser um encontro a quatro e o objectivo último desse tipo de jogo é encontrar um parceiro amoroso. Caso fôssemos sair juntos outra vez, isso significaria que eu estava a assumir um certo compromisso. E a última coisa que eu queria era ferir os seus sentimentos. Como tal, não tinha outro remédio senão recusar.
Nunca mais voltei a pôr-lhe a vista em cima.
Durante este período aconteceu-me uma experiência muito estranha com outra mulher que também coxeava. Tinha então vinte e oito anos. De tão misteriosa, ainda não consigo encontrar explicação para ela nos dias que correm.
Encontrava-me em Shibuya(6), por altura do fim do ano. Andava misturado com a multidão quando descobri uma mulher que arrastava a perna exactamente da mesma maneira que Shimamoto. Estava vestida com um casaco comprido vermelho e debaixo do braço trazia uma mala de verniz preta. No pulso esquerdo exibia um relógio prateado que mais parecia uma pulseira. Tudo na sua pessoa tinha aspecto de ter custado uma pipa de massa. Eu estava do lado oposto da rua, mas, assim que reparei nela, apressei-me a atravessar. As ruas estavam tão apinhadas que uma pessoa ficava a pensar de onde poderia ter surgido toda aquela gente. Apesar disso, não tardei a alcançá-la. Por causa do defeito na perna, ela não podia andar muito depressa. Coxeava de uma maneira incrivelmente parecida com a recordação que eu tinha de Shimamoto, arrastando a perna esquerda ao mesmo tempo que a fazia rodar ligeiramente. Enquanto seguia atrás dela, não pude impedir-me
(6) Zona de Tóquio afamada pelos restaurantes, lojas, cinemas e locais de divertimento para a juventude. (N. da T.)
de apreciar o círculo gracioso que descrevia a sua bonita perna envolta pelos collants. Era o tipo de elegância que só poderia resultar de uma técnica complexa adquirida ao longo de muitos anos de prática.
Continuei sempre a segui-la. Não era fácil andar ao ritmo dela, que contrastava com o das restantes pessoas à nossa volta. Procurei ajustar a minha passada, parando a fim de olhar para uma montra ou fingindo procurar qualquer coisa nos bolsos do casaco. Ela usava luvas de pele pretas e numa das mãos trazia um saco vermelho de uns grandes armazéns. Apesar de o dia de Inverno se apresentar nublado, usava óculos escuros. Vista de trás, a única coisa que eu podia ver era a sua bela melena pelos ombros, cuidadosamente penteada com as pontas para fora, bem como as costas do seu casaco vermelho com aspecto de ser quente e macio. Claro está que se eu estivesse verdadeiramente interessado em descobrir se era Shimamoto ou não, bastar-me-ia ultrapassá-la, ter-me virado e olhá-la bem de frente. E se não fosse ela? Nesse caso, que lhe diria? Que comportamento haveria de adoptar? Para começar, ela podia muito bem nem sequer se lembrar de mim. Precisava de tempo para reflectir no assunto. Respirei fundo várias vezes para ver se reorganizava as ideias e controlava as minhas emoções.
Segui um grande bocado sempre atrás dela, tendo o cuidado de não a ultrapassar. Durante todo aquele tempo, ela nunca se virou para trás nem tão-pouco afrouxou o passo. Do mesmo modo, parecia não ver nada do que à sua volta se passava, apostada que estava em chegar ao seu destino. Andava com as costas direitas e a cabeça erguida. Quem olhasse para ela da cintura para cima, sem ver a perna esquerda, não teria suspeitado que coxeava. Quando muito, a única diferença era o facto de caminhar mais devagar do que as outras pessoas. A força de olhar para ela, a sua maneira de andar lembrava-me cada vez mais a de Shimamoto. Se não era Shimamoto, só podia ser a sua irmã gémea. Eram parecidas como duas gotas de água.
A mulher atravessou por entre a multidão em frente da estação de Shibuya e começou a subir a encosta na direcção de Aoyama(7). À medida que subia, a sua marcha tornou-se mais lenta. Ainda assim, o certo é que percorrera uma distância considerável - de tal forma que não seria de estranhar se tivesse mandado parar um táxi. Mesmo para alguém com boas pernas, tratava-se de um trajecto penoso, mas a desconhecida lá continuava sempre a avançar como se não fosse nada, coxeando ligeiramente, comigo sempre atrás, procurando manter uma distância prudente. Ela seguiu o seu caminho sem se virar nunca. Nem uma única vez se deteve a olhar para as montras. De tempos a tempos mudava a bolsa e o saco de compras de mão, mas, tirando isso, continuou a caminhar sempre sem mudar de postura nem de ritmo.
Por fim, abandonou a artéria principal, para evitar a barafunda, e entrou numa ruela transversal. Parecia conhecer muito bem o traçado da zona. A um passo das concorridas ruas cheias de comércio ficava uma tranquila zona residencial. Continuei sempre atrás dela, mas tratando de aumentar a distância entre nós, visto que os transeuntes eram em menor número, pelo que a operação se revelava mais delicada.
Devo tê-la seguido durante uns quarenta minutos. Continuámos sempre por ruazinhas pouco frequentadas, dobrámos várias esquinas e, finalmente, encontrámo-nos de novo na buliçosa Avenida Aoyama. No entanto, ela teve o cuidado de não se misturar com a turba. Em vez disso, sem vacilar, como se já soubesse de antemão o que ia fazer, entrou directamente num
(7) Zona em redor da avenida com o mesmo nome, conhecida pelas lojas e restaurantes de luxo. Parte do bairro alberga também uma pacata zona residencial. (N. da T.)
café, um local não muito grande que tinha um balcão de pastelaria que vendia bolos e doces. Para evitar suspeitas, deixei-me ficar uns bons dez minutos a percorrer a avenida para cima e para baixo, e só depois entrei na loja.
Descobri-a logo. Fazia um calor sufocante, mas ela, sentada de costas para a porta, continuava com o pesado casacão vestido. Era impossível não reparar naquele casaco vermelho. Fui sentar-me na mesa do fundo e pedi um café. Peguei num jornal que estava ali à mão e, enquanto fingia estar a ler, pus-me a observá-la. Tinha uma chávena de café em cima da mesa, mas, pelo que me foi dado ver, nunca lhe tocou. A dada altura, tirou um maço de tabaco da carteira e acendeu o cigarro com um isqueiro dourado, mas, fora isso, limitou-se a ficar ali sentada, imóvel, a olhar pela janela. Podia pensar-se que estava apenas a descansar, ou talvez estivesse a reflectir em qualquer coisa de muito importante. Enquanto bebia o meu café, devo ter lido o mesmo artigo de jornal uma dúzia de vezes.
Passado um grande bocado, a mulher levantou-se de repente, como se tivesse acabado de tomar uma decisão, e encaminhou-se para a minha mesa. Aconteceu tudo tão bruscamente que, de tanto bater, o meu coração quase parou. Porém, não era sua intenção dirigir-se a mim, uma vez que passou pela minha mesa e continuou sempre a andar, na direcção do telefone. Meteu algumas moedas e marcou um número.
O telefone não estava longe do sítio onde eu me encontrava sentado, mas o tom gritante das conversas em redor e a estridente música natalícia que saía dos altifalantes não me deixaram ouvir o que ela disse. Só sei que esteve ao telefone durante muito tempo. Em cima da mesa, o café, ainda por beber, esfriava. Ao passar por mim, tive oportunidade de a ver de frente, mas nem assim podia afirmar de forma categórica que fosse Shimamoto. Usava uma maquilhagem carregada e tinha metade da cara tapada por uns grandes óculos de sol. As sobrancelhas estavam redesenhadas com lápis e mantinha apertados os lábios finos, pintados de um vermelho-vivo. As suas feições lembravam-me vagamente as de Shimamoto em jovem, mas se alguém me dissesse que não era ela, seria incapaz de jurar. Vendo bem, a última vez que eu tinha visto Shimamoto, tínhamos ambos doze anos, e entretanto sempre se haviam passado quinze anos. A única certeza que eu tinha era de que se tratava de uma mulher atraente, na casa dos vinte e tal anos, que vestia roupa cara. E que coxeava.
Sentado no meu lugar, transpirava abundantemente e tinha a T-shirt colada ao corpo. Despi o casaco e mandei vir mais um café. "Mas que diabo andas tu a fazer aqui?", perguntei a mim mesmo. Tinha saído de casa e ido até Shibuya para comprar umas luvas, visto que perdera as minhas num sítio qualquer. E, pelo caminho, encontrara aquela mulher e desatara a persegui-la como se estivesse possuído por um espírito do mal. Devia ter feito como a maioria das pessoas e ido ter com ela para lhe perguntar directamente: "Desculpe, mas estou a falar com a menina Shimamoto?" A verdade, porém, é que não o fiz. Em vez disso, preferi calar-me bem calado e segui-la sem dizer nada. E chegado àquele ponto via-me numa situação em que já não podia voltar atrás.
Depois do telefonema, ela regressou à sua mesa. Tal como antes, voltou a ficar sentada de costas para mim, continuando a olhar pela janela. A empregada aproximou-se e perguntou se podia levantar a chávena de café frio. Não consegui ouvir a conversa, mas calculo que tenha sido isso. A mulher virou a cabeça, acenou com a cabeça em sinal de concordância e, pelos vistos, pediu que lhe fosse servido outro café. Café esse em que também não tocou. Eu continuava a fingir que lia e, de vez em quando, levantava os olhos do jornal para a observar. Reparei que levantou o braço mais do que uma vez a fim de consultar o relógio prateado. Parecia estar à espera de alguém. "É a tua última oportunidade", disse para comigo. Se entretanto aparecesse outra pessoa, perderia definitivamente a oportunidade de falar com ela. No entanto, a verdade é que continuei ali amarrado à cadeira. "Ainda tens tempo", justificava-me. "Ainda tens tempo. Não há pressa."
Passaram uns quinze ou vinte minutos sem que acontecesse nada de novo. Durante todo aquele tempo, ela deixou-se ficar ali a olhar pela janela. De repente, sem que nada o fizesse prever, levantou-se em silêncio, enfiou a bolsa debaixo do braço e, com a outra mão, pegou no saco de papel dos grandes armazéns. Pelos vistos, cansara-se de esperar. Ou então, vendo bem, nunca estivera à espera de ninguém. Depois de me ter certificado de que ela pagava junto à caixa e abandonava o café, levantei-me rapidamente, paguei a minha despesa e recomecei a segui-la. O seu casaco vermelho destacava-se no meio daquela gente toda. Segui na mesma direcção que ela, abrindo caminho por entre a multidão.
Ela levantou a mão na tentativa de chamar um táxi. Por fim lá houve um que desligou a luz do tejadilho e parou junto à curva. "Vai falar com ela", pensei eu. "Se a deixas entrar para o táxi, está tudo perdido." Porém, quando me dispunha a dar um passo em frente, houve alguém que me agarrou no cotovelo com uma força incrível. Não que me fizesse doer, mas o certo é que me senti à beira de sufocar. Quando me virei, dei de caras com um homem de meia-idade que olhava para mim fixamente.
Era um indivíduo uns cinco centímetros mais baixo do que eu, se bem que bastante robusto. Devia ter os seus quarenta e muitos anos. Trazia vestido um sobretudo cinzento-escuro e um cachecol de caxemira à volta do pescoço, as duas peças com aspecto de muito caras. Tinha os cabelos bem divididos ao meio e usava óculos com armação de tartaruga. Parecia ser uma pessoa que praticava muito desporto, a julgar pelo tom bronzeado que exibia. Esqui, talvez. Ou se calhar ténis. Fez-me pensar no pai de Izumi, amante do ténis, que costumava andar sempre com um belo bronze. Aquele homem tinha todo o ar de ser um executivo numa grande empresa. Ou então um alto funcionário estatal. Via-se pelo olhar dele. Os olhos eram os de um homem acostumado a dar ordens aos outros.
- E se fôssemos beber um café? - sugeriu ele em voz baixa. Segui com os olhos a mulher do casaco vermelho. Ao
mesmo tempo que se inclinava para entrar no táxi, lançou um olhar na minha direcção por detrás dos óculos. Pelo menos quis-me parecer que era para mim que ela olhava. Logo a seguir, a porta do táxi fechou-se e a sua figura desapareceu do meu campo de visão, deixando-me sozinho com aquele estranho de meia-idade.
- Não lhe vou roubar muito tempo - disse ele num tom sereno. Não parecia aborrecido nem irritado. Continuava a agarrar-me firmemente pelo cotovelo, impassível, como se estivesse a segurar a porta para deixar entrar alguém. - Vamos beber um café e trocar impressões.
Eu poderia ter-me recusado e ido embora dali, bem entendido. "Não tenho vontade de tomar café e nada tenho para lhe dizer. Para começar, nem sequer sei quem o senhor é, além de que estou com pressa, por isso queira desculpar-me", poderia ter-lhe dito, ou coisa parecida. Em vez disso, fiquei ali, pregado ao chão, embatucado, a olhar fixamente para ele sem abrir a boca. Depois lá assenti e, tal como ele sugerira, entrei na cafetaria atrás dele. Talvez aquela sua maneira de agarrar no meu cotovelo com tanta força me infundisse um certo receio. Notava naquele gesto uma estranha determinação. Mais parecia o braço mecânico de uma máquina, mantendo uma pressão que não aumentava nem diminuía. Qual teria sido a sua reacção, caso eu tivesse recusado a sua oferta? Confesso que não faço ideia.
No entanto, diga-se em abono da verdade, para além do medo também sentia uma certa curiosidade. Interessava-me saber a que propósito queria aquele homem falar comigo a todo o custo. Podia ser que me fornecesse informações que me levassem até àquela mulher. Agora que ela desaparecera, podia ser o único elo de ligação. E, depois, não era muito provável que ele usasse de violência comigo no meio de uma cafetaria, pois não?
Sentámo-nos frente a frente. Até aparecer a empregada, não dissemos uma palavra. Separados pela mesa, limitámo-nos a olhar fixamente um para o outro. O homem mandou vir dois cafés.
- Posso saber por que razão tem andado a seguir aquela senhora? - perguntou ele educadamente.
Não lhe dei resposta.
Sempre com o mesmo olhar inexpressivo, ele continuou a fitar-me.
- Sei que anda a segui-la desde Shibuya - disse ele. - Qualquer pessoa daria por isso, pelo facto de estar a ser seguida desde tão longe.
Eu não disse nada. Pelos vistos, ela tinha dado conta de que eu a seguia e entrara no café a fim de telefonar àquele sujeito a pedir ajuda.
- Se não quer falar, não fale. Deixe estar, sei perfeitamente do que se trata. - Podia até ser que o homem estivesse em pulgas por dentro, mas a verdade é que isso não transparecia no seu tom de voz, educado e sereno.
- Temos aqui várias opções - prosseguiu ele. - Estou a falar a sério. Se lhe digo que posso fazer o que quiser, acredite na minha palavra.
A seguir calou-se e deixou-se ficar em silêncio, de olhos cravados em mim, com uma expressão que significava: "Não vale a pena acrescentar mais nada, sei que compreendeu a mensagem."
Pela minha parte, continuei mudo e quedo.
- Por esta vez, não quero que as coisas se compliquem mais do que estão. Não é minha intenção fazer uma cena. Entende? Só desta vez, atenção - sublinhou ele.
Em seguida, levantou a mão esquerda, que tinha estado sempre pousada na mesa, enfiou-a no bolso do casaco e tirou lá de dentro um envelope branco. Enquanto isso, manteve a mão esquerda sobre a mesa. Tratava-se de um sobrescrito branco, vulgar de Lineu, daqueles que se usam nas repartições públicas.
- Aceite isto e não comente o caso com ninguém. Bem sei que se limita a fazer o que lhe pediram, por isso prefiro resolver o assunto de forma amigável. E nem uma palavra acerca do assunto. Você não viu nada e nós nunca nos encontrámos, compreendido? Se me chega aos ouvidos que deu com a língua nos dentes, pode ter a certeza de que arranjarei maneira de o encontrar e resolver a coisa à minha maneira, dê lá por onde der. Por isso, deixe mas é de perseguir a senhora. Nem eu nem o senhor queremos problemas, correcto?
O homem empurrou o envelope na minha direcção e levantou-se. Agarrou na conta com um gesto brusco, pagou na caixa e saiu do local em grandes passadas. Completamente estupefacto, fiquei ali sentado. Por fim, agarrei no envelope que estava em cima da mesa e examinei o seu conteúdo: lá dentro havia dez notas de dez mil ienes. Dez-notas-dez, novinhas em folha, sem uma ruga e estaladiças. De repente fiquei com a boca seca. Tratei de enfiar o envelope no bolso do casaco e abandonei por minha vez o estabelecimento. Depois de ter olhado em redor para ter a certeza de que o homem já não se encontrava naquelas paragens, apanhei o primeiro táxi que vi e regressei a Shibuya, onde toda a aventura (ou seria desventura?) tinha começado.
Passados todos estes anos, conservo ainda o envelope com os cem mil ienes em notas. Guardei-o bem guardado numa gaveta do meu escritório sem me ter sequer dado ao trabalho de o abrir de novo. Nas noites em que não consigo dormir, vem-me muitas vezes à memória o rosto daquele homem, ressuscitando em mim um mau presságio. Quem diabo poderia ser aquele indivíduo? E a mulher? Tratar-se-ia de Shimamoto?
Com o passar do tempo, elaborei várias conjecturas. Era como um quebra-cabeças sem solução possível. Construía uma teoria para logo a seguir a desmontar. O homem era seu amante e os dois tinham-me tomado por algum detective privado contratado pelo marido a fim de investigar as actividades extraconjugais dela (essa foi a primeira hipótese plausível que me ocorreu), e o homem quisera comprar o meu silêncio. Era possível que os dois tivessem pensado que eu os tinha visto a sair de um hotel onde se haviam encontrado. Sim, fazia sentido. Ainda assim, não estava convencido. Era uma equação com demasiadas incógnitas.
O homem tinha dito que, em querendo, havia várias coisas que ele podia fazer. A que tipo de coisas se estaria a referir? Porque me teria ele agarrado no braço daquela maneira tão estranha? Por que razão a mulher, sabendo que eu a seguia, não apanhou logo um táxi? Era quanto bastaria para me despistar. E por que é que o homem, sem se dar ao trabalho de saber quem eu era, me tinha passado para as mãos uma soma tão importante de dinheiro?
Por mais voltas que desse, o enigma permanecia insondável. Às vezes chegava a perguntar a mim mesmo se tudo aquilo não teria sido à partida produto da minha imaginação. Ou então um prolongado sonho, de tal forma realista que tinha acabado por se confundir na minha mente, adquirindo os contornos da realidade. Mas o facto é que aconteceu mesmo. Dentro de uma gaveta da minha secretária existe, com efeito, um envelope branco e, lá dentro, estão dez notas de dez mil ienes. Essa é a prova de que não foi apenas um sonho, de que tudo aconteceu realmente. Às vezes pego no envelope, coloco-o em cima da mesa e ponho-me a olhar para ele. Sim, aquilo aconteceu realmente.
Quando fiz trinta anos, casei-me. Com uma mulher cinco anos mais nova do que eu. Conheci a minha mulher no decorrer de uma viagem solitária, durante as férias de Verão. Andava a passear pelo campo quando de repente começou a chover. Por mero acaso, corri a abrigar-me e foi então que encontrei aquela que viria a ser a minha futura mulher, na companhia de uma amiga. Estávamos os três encharcados da cabeça aos pés, facto que contribuiu para quebrar o gelo. Começámos a falar e ficámos amigos enquanto esperávamos que parasse de chover. Se naquele dia não tivesse chovido, ou eu tivesse levado comigo o guarda-chuva (o que era perfeitamente possível, uma vez que tinha hesitado em fazê-lo antes de sair do hotel), não nos teríamos conhecido. E se isso não tivesse acontecido, ainda estaria a trabalhar na editora de livros escolares, passando as noites a roçar as costas pelas paredes da minha casa, a falar e a beber sozinho. Quando penso nisso, dou-me conta de como vivemos num mundo que nos oferece um leque de possibilidades muito reduzidas. Yukiko(8) e eu sentimo-nos atraídos desde o princípio. A sua amiga era bem mais bonita, mas eu só tive olhos para ela. Falo
(8) Neve em japonês; que é como quem diz, água, logo, Izumi. (N. da T.)
de uma atracção fortíssima, a roçar os limites do irracional. Depois de tanto tempo, voltava a experimentar na pele aquela espécie de magnetismo. Como também ela vivia em Tóquio, voltámos a encontrar-nos depois daquela viagem de férias. Quanto mais a via, mais ela me agradava. Se tivesse de a descrever, diria que tinha feições perfeitamente vulgares. Pelo menos, não se tratava do género de mulher que fazia virar a cabeça aos homens na rua. E, no entanto, qualquer coisa no seu rosto fazia que a sentisse como parte integrante de mim. Cada vez que nos encontrávamos, passava muito tempo a contemplá-la. Havia qualquer coisa nela que me fazia amá-la profundamente.
- Porque me olhas assim fixamente? - perguntava-me ela.
- Porque és bonita - respondia eu.
- És a primeira pessoa que me diz isso.
- É uma coisa que só eu vejo - dizia eu então. - E acredita, sei do que falo.
A princípio, ela não acreditava em mim, mas aos poucos lá se deixou convencer.
Quando nos encontrávamos, íamos para um lugar tranquilo e ficávamos à conversa. A ela podia falar sinceramente e com naturalidade, de tudo e mais alguma coisa. Quando estava a seu lado, o peso de tudo o que havia perdido naqueles últimos dez anos oprimia-me o coração. Antes que fosse demasiado tarde, dizia de mim para mim, sabia que tinha de recuperar o tempo perdido. Sempre que abraçava Yukiko, invadia-me um sentimento profundo, misto de inquietude e nostalgia. Quando nos separávamos, a solidão fazia-me doer. Uma semana antes do meu trigésimo aniversário, andávamos juntos há três meses, pedi-a em casamento.
O seu pai era dono de uma empresa de construção nem muito grande nem muito pequena. Tratava-se de um sujeito bastante interessante que, apesar de não ter recebido uma educação formal, se desenvencilhava bastante bem no seu trabalho e criara a sua própria filosofia de vida. Um nadinha agressivo de mais para o meu gosto, quando muito. Ainda assim, admirava a sua forma de estar na vida. Nunca tinha conhecido ninguém como ele. Andava por toda a parte em Tóquio num Mercedes com motorista, mas não tinha nada de convencido. Quando fui ter com ele para lhe pedir a mão da filha, limitou-se a dizer: "Vocês já não são crianças nenhumas, se é isso que querem, casem-se à vontade." O facto de eu, aos olhos da sociedade, não passar de um vulgar empregado de uma empresa medíocre, e estar longe de ser um partido por aí além, não parecia importar-lhe.
Yukiko tinha um irmão mais velho e uma irmã mais nova. O irmão ocupava o cargo de vice-presidente na empresa da família e deveria suceder ao pai. Não era má pessoa, mas, em comparação com o patriarca do clã, não tinha a personalidade carismática deste último; era caso para dizer que lhe faltava qualquer coisa. Dos três irmãos, a mais nova, estudante universitária, era a mais extrovertida, e via-se que estava habituada a levar a sua avante. Na minha opinião, afigurava-se a mais indicada para suceder ao pai à frente dos destinos da empresa.
Seis meses depois de termos casado, o pai de Yukiko chamou-me para me perguntar se eu não tinha intenção de abandonar a editora. Sabia, através da minha mulher, que eu não gostava particularmente de lá trabalhar.
- Deixar o emprego não é problema - disse-lhe eu. -O problema seria encontrar outra coisa para fazer.
- E que tal se viesses trabalhar comigo? - perguntou ele. -Ver-te-ias obrigado a trabalhar no duro, mas ganha-se bem.
- Bom, verdade seja dita que não nasci para editar manuais escolares, mas também não se pode dizer que trabalhar numa empresa de construção seja propriamente a minha especialidade - respondi com sinceridade. - Agradeço muito a sua proposta, mas quer-me parecer que se uma pessoa não estiver talhada para um determinado trabalho, às tantas acaba sempre por arranjar problemas.
- Tens razão. Não se deve obrigar uma pessoa a fazer o que não quer - disse ele. Até parecia que antecipara a minha resposta. A nossa conversa decorreu enquanto tomávamos um copo. O seu filho quase não tocava em álcool, por isso às vezes ele convidava-me para tomar uma bebida. - A propósito, a nossa empresa é dona de um edifício em Aoyama. Está ainda em fase de construção, mas no mês que vem deverá ficar pronto. A localização é muito boa e o prédio também não é mau. Por enquanto fica ainda um pouco isolado, mas a zona está em vias de expansão. Estava a pensar que, em querendo, podias montar ali um negócio teu. Uma vez que se trata de propriedade da empresa, terias de pagar entrada e uma renda simbólica. No entanto, se estiveres interessado, estou em condições de te emprestar o dinheiro necessário para o investimento inicial.
Reflecti por momentos. As possibilidades que se me ofereciam tinham o seu quê de intrigante.
Finalmente, tomei a decisão de abrir um clube de jazz na cave do tal edifício acabado de construir em Aoyama. Quando andava a estudar na universidade, trabalhara em regime de tempo parcial num sítio daquele género e por isso conhecia mais ou menos os ossos do ofício. Que é como quem diz, tinha ideia do tipo de bebida e pratos a servir, a que tipo de clientela me dirigir, a música e a decoração do ambiente e por aí fora. A empresa do meu sogro encarregou-se da decoração. Mandou vir um arquitecto e um desenhador de interiores, ambos de primeira categoria, fiz obras por um preço bastante inferior ao de mercado, e o resultado revelou-se espectacular.
O clube teve um êxito que ultrapassou em muito as minhas expectativas e, passados dois anos, abri um segundo bar, também no bairro de Aoyama. O novo estabelecimento era maior e contava com a presença de um trio de jazz ao vivo. Foi preciso um considerável investimento de esforço da minha parte, já para não falar em capital, mas o certo é que consegui pôr de pé um barzinho de jazz muito interessante que não tardou a conquistar numerosa clientela. Pude finalmente respirar de alívio. Tinha sabido aproveitar a oportunidade que me havia sido dada. Naquele período, fui pai pela primeira vez. De uma rapariga. A princípio, eu mesmo trabalhava atrás do balcão, a preparar cocktails, mas, com a abertura do segundo bar, passei a não dispor de tempo, ocupado como estava na gestão e com a contabilidade dos dois estabelecimentos comerciais. Recaía sobre mim a tarefa de me certificar de que tudo corria sobre rodas - dos negócios com os fornecedores à contratação do pessoal, passando pela contabilidade. Ideias não me faltavam e, como tal, procurava pô-las em prática quanto antes. Até sobre os pratos na ementa metia a minha colherada. Espantosamente, manifestava uma razoável aptidão para aquele tipo de trabalho. Adorava a ideia de começar do zero e sentir que, graças ao meu empenho, as coisas iam melhorando à medida que o tempo passava. Estamos a falar dos meus bares, do meu pequeno mundo. Será que alguma vez sentira uma emoção semelhante quando me dedicava à tarefa de rever manuais escolares na editora? Nem pensar.
Durante o dia, ocupava-me de mil e uma tarefas burocráticas e, chegando à noite, fazia a ronda pelos dois bares, sentava-me ao balcão e provava os cocktails, observava as reacções dos clientes, controlava o trabalho dos meus funcionários.
E ouvia música. Todos os meses restituía ao meu sogro uma parte do empréstimo; apesar disso, ainda assim conseguia uma margem de lucro muito confortável. Yukiko e eu havíamos adquirido um apartamento de quatro assoalhadas em Aoyama e um BMW 320. E tivemos um segundo filho. Outra rapariga. Passara a ser pai de duas meninas.
Ao fazer trinta e seis anos, comprei uma casinha de férias em Hakone. A minha mulher comprou um jipe Cherokee vermelho para ir às compras e levar as miúdas à escola. Graças ao lucro obtido com a exploração dos bares podia perfeitamente ter aberto um terceiro, mas tal não se verificou. Contentava-me em dedicar a minha atenção à gestão, em todos os seus pormenores; além disso, o novo investimento representaria um cansaço enorme. Não estava nos meus planos sacrificar ainda mais o meu tempo livre. Discuti a questão com o meu sogro e ele aconselhou-me a investir os lucros suplementares na Bolsa ou no sector imobiliário. Não representava esforço nem exigia tempo, assegurou-me ele. Na verdade, porém, eu não sabia rigorosamente nada acerca de acções nem de bens imobiliários. "Deixa que me ocupe de tudo", sugeriu ele. "Se fizeres o que te digo, vais ver que não há razão de queixa. Estas coisas têm os seus quês." E foi assim que investi o meu dinheiro, seguindo sempre as suas indicações. E o certo é que passado pouco tempo obtive um lucro considerável.
- Estás a ver? - comentou ele. - Como em tudo na vida, há que possuir a chave certa. Podes andar cem anos a trabalhar numa empresa e nunca ganhar nada que se compare. Para triunfar, é preciso contar à partida com duas coisas: sorte e inteligência. Mas não chega. É preciso ter capital para investir. Sem isso, nada se consegue. Mais importante ainda, na minha opinião, é estar por dentro do segredo. Sem a tal chave certa, mesmo que possuas tudo o resto, nunca chegarás a parte alguma.
- Tem toda a razão - retorqui. Compreendia perfeitamente onde o meu sogro queria chegar. O "segredo" de que ele falava era um sistema engendrado por ele. Um sistema complexo e infalível que permitia obter enormes benefícios materiais através de uma vasta rede de contactos, desde que uma pessoa estivesse disposta a fazer novos investimentos. Benefícios esses que, por seu turno, poderiam às tantas ser multiplicados, desde que uma pessoa fosse capaz de iludir habilmente as malhas da lei e o sistema de impostos, mudando de nome ou alterando o método.
Se eu não tivesse conhecido o meu sogro, o mais provável era estar ainda a corrigir provas em manuais escolares, a viver num modesto apartamento em Nishiogikubo e a conduzir o meu Toyota Corona em segunda mão com o ar condicionado estragado. Podemos dizer que tinha sabido jogar a minha cartada. Abrira dois estabelecimentos comerciais num curto espaço de tempo, ainda por cima numa das zonas nobres da cidade, dera emprego a trinta pessoas e conseguia fazer muito mais dinheiro do que alguma vez sonhara. O negócio corria de tal maneira bem que até o meu contabilista ficava admirado: o certo é que os bares gozavam de boa reputação. Contudo, não era a única pessoa a possuir tais capacidades. Verdade seja dita que, sem o capital e o tal "segredo" do meu sogro, nunca teria passado da cepa torta.
Só de pensar nisso, confesso que sentia um certo mal-estar. Dava-me a impressão de ter chegado onde chegara de forma desonesta, por ter percorrido um atalho ilícito. Afinal de contas, fazia parte da geração que estivera envolvida nos movimentos radicais de estudantes da última metade dos anos 60 e princípios dos anos 70. Tínhamos sido nós os primeiros a gritar um rotundo "não" à lógica do neocapitalismo avançado que devorara por completo os ideais surgidos nos dias do pós-guerra. Pelo menos, era assim que eu via as coisas: enquanto movimento estudantil, tínhamos provocado uma crise violenta que abalara a sociedade, precisamente numa altura crucial em que o país atravessava um processo de transformação. E, sem que tivesse dado por isso, também eu fora completamente absorvido por esse mundo baseado na lógica capitalista. Ao volante do meu BMW, parado num semáforo em plena e luxuosa Avenida Aoyama, enquanto escutava a Winterreise de Schubert, dei por mim a pensar: "E se aquela não fosse a minha vida? Se eu estivesse a viver a existência de outra pessoa? Até que ponto é que a pessoa chamada eu era verdadeiramente, ou não era, eu? Aquelas mãos enclavinhadas no volante, seriam as minhas? A paisagem em redor - até que ponto era real?" Quanto mais pensava naquilo, menos resposta tinha para as minhas perguntas.
E, no entanto, levava uma vida bastante feliz, sem grandes motivos de queixa. Nem sequer se podia dizer que fosse infeliz-. Amava Yukiko, uma mulher doce e ponderada. Depois de ter dado à luz, começara a engordar e as suas grandes preocupações tornaram-se as dietas e a ginástica. Aos meus olhos, porém, ela continuava tão bonita como sempre, e não me ralava com um bocadinho de peso a mais. Gostava de estar na sua companhia e de fazer amor com ela. Possuía qualquer coisa que me fazia sentir tranquilo. Por nada deste mundo estaria interessado em voltar àquele período da minha vida, entre os vinte e os trinta anos - dias marcados pela solidão e pela tristeza. "Este é o meu lugar", pensava. Ali, sentia-me amado e protegido. E, ao mesmo tempo, sabia que podia amar e, mais importante, proteger os outros, que é como quem diz, a minha mulher e as minhas filhas. Representava para mim uma experiência totalmente nova, descobrir-me naquela situação.
Todas as manhãs levava a minha filha mais velha a uma escola particular. Durante o trajecto, punha a tocar uma cassete e íamos os dois a cantar em coro canções infantis. Depois regressava a casa e, antes de voltar a sair para me dirigir ao pequeno escritório que alugara ali perto, entretinha-me a brincar com a minha filha pequena. No Verão, passávamos os fins-de-semana na casa de campo, em Hakone, onde víamos o fogo-de-artifício, passeávamos de barco e dávamos longos passeios pela montanha.
Enquanto a minha mulher estava grávida, tive algumas aventuras, mas nada sério. Nunca fui para a cama com uma mulher mais do que uma ou duas vezes. Pronto, confesso, três vezes. Para dizer a verdade, nem sequer tinha consciência clara de estar a ser infiel a Yukiko. Só queria fazer sexo com alguém, sem consequências, e com as minhas parceiras passava-se a mesmíssima coisa. A fim de evitar envolver-me mais do que o necessário, escolhia a dedo as outras mulheres. Ao fazer amor com elas, procurava saber o que podia descobrir nelas e, ao mesmo tempo, o que podiam elas descobrir em mim.
Pouco depois do nascimento da minha primeira filha, recebi uma carta enviada para a minha antiga morada, em casa dos meus pais. Tratava-se da participação de um funeral, no qual figurava o nome de uma mulher, que morrera aos trinta e seis anos de idade. Não fazia a mínima ideia de quem se pudesse tratar. A carta tinha o código postal de Nagoya. Ora, eu não conhecia ninguém ali. Depois de pensar um bocado, dei-me conta de que a mulher não podia ser outra senão a prima de Izumi que vivia em Quioto. Esquecera-me por completo do seu nome, mas sabia que a família dela era de Nagoya.
Não tive de pensar muito para compreender que tinha sido Izumi quem me enviara a missiva. Mais ninguém o poderia ter feito. A princípio, confesso que tive dificuldade em compreender as razões que lhe haviam assistido. Porém, depois de ter lido o bilhete várias vezes, logrei detectar o tom frio e duro contido no seu gesto. Izumi não esquecera o que eu lhe tinha feito, nem tão-pouco perdoara a minha conduta, e aquela era a sua maneira de mo atirar à cara. A sua vida não devia ser muito feliz, palpitava-me, visto que uma mulher satisfeita nunca teria enviado semelhante mensagem. Ou então teria acrescentado uma ou duas linhas, algumas palavras de explicação.
Veio-me à memória a sua prima, bem como tudo o que se relacionava com ela. O quarto onde nos encontrávamos, o seu corpo, as nossas apaixonadas relações sexuais. Aquilo acontecera, de facto, mas, por mais vívidas que fossem as recordações, não faziam o menor sentido no presente, tinham-se desvanecido como fumo levado pelo vento. Não conseguia imaginar qual a causa da sua morte. Trinta e seis anos não era idade para se morrer. O seu apelido continuava a ser o mesmo, o que significava que não estava casada, ou então que se encontrava divorciada.
Tive notícias de Izumi por um antigo colega de liceu. Acontece que ele tinha visto a minha fotografia numa reportagem intitulada "Guia dos Bares de Tóquio" publicada pela revista Brutus, e não só se deparara com a minha fotografia como ficara a saber que eu era dono de dois clubes de jazz em Aoyama. Uma noite, aproximou-se do balcão onde eu estava sentado e disse: "Ora viva, há quanto tempo! Como é que passas?" Não se deslocara de propósito ao bar para me ver. Tinha ido tomar um copo com uns colegas de trabalho, vira-me por mero acaso e aproveitara para me cumprimentar.
- Já cá estive muitas vezes, neste bar, sabes? - disse ele. -Fica perto da empresa em que trabalho, mas não imaginava que fosses tu o dono. Como o mundo é pequeno.
Na escola secundária, eu era a ovelha negra, ao passo que ele não só tinha boas notas como se destacava nas actividades desportivas. O tipo de aluno que todos queriam como representante da turma. Um indivíduo calmo e reservado, nada controlador. Bom rapaz, por assim dizer. Fazia parte da equipa de futebol, e já na altura era bem-constituído, mas via-se que tinha engordado bastante. Exibia duplo queixo e o casaco do seu fato de três peças parecia prestes a rebentar pelas costuras.
- É por causa dos almoços e jantares de negócios - explicou ele. - Não te aconselho a trabalhar para uma empresa. Muitas horas extraordinárias, saídas com os clientes que nunca mais acabam, transferências a torto e a direito... Se os resultados são maus, dão-te um pontapé no traseiro; se forem bons, colocam a fasquia mais alta. Decididamente, não é trabalho para pessoas decentes.
A empresa para a qual trabalhava encontrava-se em Aoyama  -chome(9), mesmo ao virar da esquina.
Falámos acerca daquelas coisas de que costumam falar os antigos colegas de escola quando já não se vêem há dezoito anos. De como corria a vida profissional, do casamento, do número de filhos, das pessoas conhecidas que se tinha encontrado pelo caminho. Foi a esse propósito que referi o nome de Izumi.
- Lembro-me daquela rapariga com quem costumavas sair. Andavam sempre juntos, os dois. Uma tal Ohara.
- Izumi Ohara - corrigi eu.
- Exacto. Izumi Ohara. Encontrei-a no outro dia.
- Em Tóquio? - perguntei, admirado.
- Não, em Tóquio não. Em Toyohashi.
(9) No Japão os bairros, ku, estão divididos em quarteirões, chome, reagrupando várias casas e formando um bloco. As casas são numeradas segundo o bloco a que pertencem e não em função da rua. (N. da T.)
- Em Toyohashi? - disse, cada vez mais espantado. - Na prefeitura de Aichi, queres tu dizer?
- Sim, isso mesmo.
- Não percebo por que carga de água a foste encontrar nesse sítio. Que diabo estaria a fazer aí?
O meu amigo deve ter sentido uma certa tensão na minha voz.
- Não sei - achou ele por bem referir. - Só sei que a vi, mais não te posso dizer. Nem sequer tenho a certeza de que fosse ela.
Ele mandou vir outro Wild Turkey com gelo. Eu estava a beber uma vodca gimlet.
- Mesmo que não valha a pena, conta. Interessa-me saber.
- Bom... - hesitou ele. - Acontece que às vezes fico com a impressão de que não aconteceu realmente. É uma sensação estranhíssima, como se estivesse a sonhar mas, ao mesmo tempo, como se esse sonho fosse muito real, estás a ver? É difícil explicar.
- Mas aconteceu mesmo, não aconteceu?
- Aconteceu.
- Nesse caso, conta lá.
Ele assentiu com um ar resignado e bebeu um gole do seu uísque.
- Fui até Toyohashi, porque é aí que vive a minha irmã mais nova. Tinha passado por Nagoya em viagem de negócios e, como era sexta-feira, decidi passar a noite em casa dela, antes de regressar a Tóquio. E foi então que encontrei Izumi. Subi no elevador do prédio onde a minha irmã mora e lá estava ela. Ao princípio, ainda pensei que fosse uma pessoa muito parecida, mas depois dei comigo a pensar: "Não, não pode ser. Como se explica encontrar alguém conhecido no elevador da casa da minha irmã, e logo em Toyohashi?" Além do mais, tinha mudado bastante. Nem sei como fui capaz de a reconhecer tão facilmente. Deve ter sido uma espécie de intuição, acho eu.
- Mas tratava-se de Izumi, não é verdade? Ele acenou e respondeu:
( - Vivia no mesmo andar que a minha irmã, por mero acaso. Saímos do elevador ao mesmo tempo e seguimos pelo corredor na mesma direcção. Ela entrou num apartamento que ficava duas portas antes do da minha irmã. Como tinha curiosidade, fui espreitar a placa na porta. Dizia "Ohara".
- E ela? Não te reconheceu?
Negou com um movimento de cabeça.
- É verdade que andávamos os dois na mesma turma, mas não éramos unha com carne. Sem esquecer que eu devo ter engordado vinte quilos desde aquela época. Não havia razão para que ela me reconhecesse.
- E será que se tratava verdadeiramente de Izumi, agora pergunto eu? Ohara é um apelido bastante vulgar, além de que pode haver muitas mulheres parecidas.
- Precisamente por isso é que perguntei à minha irmã se havia alguma hipótese de aquela Ohara ser quem eu pensava. Nessa altura, a minha irmã mostrou-me o registo dos inquilinos do prédio. Sabes, aquelas listas feitas para facilitar a repartição das despesas e coisas desse género. E lá vinha escrito com todas as letras: Izumi Ohara. Izumi em katakana(10), não em caracteres chineses. Ora, não deve haver muitas pessoas que se chamem Ohara de apelido e que escrevam Izumi em katakana, não te parece?
(10) Os nomes e apelidos japoneses costumam ser escritos em kanji (caracteres chineses). Contudo, alguns nomes femininos podem escrever-se eventualmente em katakana, um silabário que, juntamente com outro chamado hiragana e os caracteres chineses, compõem a escrita japonesa. (N. da T.)
- O que significa que ainda deve estar solteira.
- Isso já a minha irmã não sabia - respondeu ele. - Disse-me, isso sim, que Izumi Ohara constituía uma espécie de enigma do prédio. Nunca houve quem tenha chegado à fala com ela. Se alguém a cumprimenta ao cruzar-se no corredor, finge que não é nada com ela. Se lhe tocam à porta, não responde. Pode dizer-se que não é muito popular lá no burgo, por assim dizer.
- Nesse caso, não pode ser ela - comentei com uma risada, abanando a cabeça. - Izumi não é assim. É o género de pessoa que cumprimenta toda a gente e anda sempre com um sorriso.
- De acordo. Admito que se possa tratar de outra pessoa -concordou ele. - Alguém com o mesmo nome. Bom, acho melhor mudarmos de assunto.
- E essa tal Izumi? Vivia sozinha?
- Assim parece. Ninguém viu nenhum homem entrar ou sair nunca do seu apartamento. Também não se sabe como ganha a vida. É um completo mistério.
- E a ti, que te pareceu?
- Que me pareceu? O quê?
- Ela. Essa tal Izumi que pode ou não ser alguém com o mesmo nome.(11) Quando a encontraste no elevador, por exemplo, quando lhe viste a cara, pensaste o quê? Tinha aspecto de estar bem?
Ele pensou um pouco antes de responder.
- Parecia estar bem.
- O que entendes por "bem"?
Ele agitou o copo de uísque fazendo tilintar o gelo.
- Com mais idade em cima, naturalmente. É bom não esquecer que já tem trinta e seis anos. Como tu e como eu,
(11) No Japão, com o casamento a mulher perde o apelido e adquire o do marido. (N. da T.)
de resto. O metabolismo torna-se mais lento, ganha-se alguns quilos. Não se pode ser estudante de liceu para sempre.
- Obviamente - disse eu.
- Bom, vamos falar de outra coisa, pode ser? Afinal, talvez se trate de outra pessoa.
Suspirei. Apoiei as mãos sobre o balcão e olhei-o de frente.
- Escuta o que te digo, quero saber. Tenho de saber. Para ser franco, a verdade é que Izumi e eu acabámos pouco antes de deixarmos a escola secundária. E não foi um espectáculo bonito de se ver. Eu portei-me como um canalha e feri os sentimentos dela. Desde então nunca mais consegui saber notícias. Não tenho ideia de onde se encontra nem do que faz. Fiquei sempre com esse peso na consciência. Por isso, preciso que me digas a verdade, seja ela boa ou má. Tu acreditas que se trata da mesma Izumi, não é?
Ele fez sinal que sim com a cabeça.
- Se pões as coisas assim... nesse caso, sim, de certeza que era ela. Lamento dizer-te.
- E como a achaste? Sê sincero.
Ele calou-se por momentos antes de prosseguir. "
- Primeiro que tudo, quero que saibas uma coisa. Eu andava na mesma turma e tinha uma paixoneta por ela. Para além de ser bonita, era uma miúda simpática e com bom feitio. Uma rapariga doce, ainda por cima, que, sem ser uma beldade, tinha o seu encanto. Não é essa a tua opinião?
Fiz que sim com a cabeça.
- Queres saber uma coisa?
- Sim.
- Olha que podes não gostar do que te vou dizer.
- Não faz mal. Quero saber a verdade.
Bebeu mais um trago de uísque e depois continuou:
- Tinha inveja de ti, sempre de roda dela. Também eu gostaria de sair com uma rapariga como ela. Agora posso finalmente confessar-to, passado todo este tempo. Por essa razão é que me lembrava tão bem da sua cara. Tinha-a gravada na minha cabeça. Daí que, ao encontrar-me com ela no elevador, ainda que se tivessem passado dezoito anos, a reconheci de imediato. Isto para dizer que não tenho qualquer motivo para falar mal dela. Foi um choque também para mim, podes crer. E, sabes, o mais engraçado é que queria reconhecê-lo. Dito de outro modo: o que se passa é que ela perdeu toda a graça que tinha.
- Em que sentido? - perguntei, mordendo o lábio.
- A maioria das crianças que vivem lá no prédio tem medo dela.
- Medo? - repeti. Olhava fixamente para ele, sem conseguir entendê-lo. Era como se ele tivesse escolhido mal as palavras. - Que queres dizer com isso, de terem medo?
- Olha, sabes que mais? Por que é que não ficamos por aqui? Estou a falar a sério. Nem sequer devia ter puxado o assunto.
- Espera aí. Dizes tu que ela fala com os miúdos?
- Ela não fala com ninguém. Disse-te logo isso ao princípio.
- Nesse caso, é a cara dela que lhes mete medo?
- Isso mesmo.
- Tem alguma cicatriz ou isso?
- Não, nada disso.
- Então de que é que as crianças têm medo?
Ele acabou de beber o seu uísque e pousou o copo em cima do balcão. A seguir fitou-me longamente. Parecia sentir-se embaraçado e confuso, mas, para além disso, o seu rosto espelhava qualquer coisa de intrigante. Reconheci nele a sombra do antigo estudante de liceu. Levantou a cabeça e permaneceu alguns instantes a olhar para o vazio, como se estivesse a seguir com os olhos o curso de um rio. Por fim, disse de sua justiça.
- Eu próprio não sei como te explicar; de resto, nem sequer estou para aí virado. Não me perguntes mais nada, está bem? Terias de a ver com os teus próprios olhos para compreender. De facto, é qualquer coisa impossível de explicar a quem não a tenha visto.
Pela minha parte, não disse mais nada. Limitei-me a ir bebendo a minha vodca gimlet. Ele expressara-se num tom de voz calmo, mas categórico. Algo me dizia que se recusaria a qualquer outra tentativa da minha parte para saber mais.
A seguir começou a contar-me coisas relacionadas com os dois anos que tinha passado no Brasil.
- Não vais acreditar, mas em São Paulo dei de caras com um antigo colega do secundário. Trabalhava como engenheiro para a Toyota.
As suas palavras entraram-me por um ouvido e saíram pelo outro. A despedida, deu-me pancadinhas no ombro e disse:
- Sabes, as pessoas evoluem de maneira diferente com o passar dos anos. Ignoro o que se terá passado entre vocês os dois, mas, seja como for, a culpa não é tua. Toda a gente já teve uma experiência do género, em maior ou menor grau. Falo por mim, e olha que não estou a brincar. Juro-te que já passei por uma história parecida. Não há nada a fazer. Cada um tem a vida que tem. Não podes ser responsável pela vida das outras pessoas. Este mundo é como um deserto: não temos outro remédio senão habituarmo-nos a essa ideia. Viste aquele filme de Walt Disney chamado O Deserto Maravilhoso(12) quando andavas na primária?
(12) The Living Desert, documentário produzido pelos estúdios Walt Disney em  953. Realizado por James Algar e narrado por Winston Hibler, retrata a vida dos animais nas áreas desérticas do Sudoeste americano. Premiado com um Oscar na categoria de Melhor Filme Documental. (N. da T.)
- Sim - respondi.
- Pois bem, é a mesma cena. Se chove, as plantas florescem; se não há chuva, secam e morrem. Os insectos são comidos pelas lagartixas, por sua vez devoradas pelos pássaros. Todos acabam por morrer e, depois de mortos, ficam ressequidos. Uma geração desaparece, outra toma o seu lugar. É assim que as coisas se passam. Há muitas maneiras de viver. Há muitas maneiras de morrer. Isso, porém, não tem qualquer importância. No fim, fica apenas o deserto. Só o deserto permanece verdadeiramente vivo.
Quando ele se foi embora, deixei-me ficar sentado ao balcão, a beber. Mesmo depois de o bar ter encerrado as suas portas, de os últimos clientes terem saído e de os empregados terem acabado de limpar e arrumar tudo, permaneci ali sozinho. Não me apetecia ir para casa, de modo que telefonei à minha mulher e disse-lhe que tinha de tratar de um assunto relacionado com trabalho e, como tal, chegaria mais tarde. Em seguida apaguei as luzes e continuei sentado no escuro, a beber uísque. Como dava demasiado trabalho levantar-me para ir buscar gelo, bebi-o liso.
"Todos acabaremos por desaparecer, mais dia menos dia", pensei para comigo. Algumas coisas desaparecem de repente, como se tivessem sido cortadas cerce de um só golpe seco. Outras vão-se dissolvendo vagarosamente com o tempo. "E a única coisa que fica é o deserto."
Quando abandonei o bar, pouco antes do amanhecer, uma chuva fina caía sobre a Avenida Aoyama. Estava de rastos. A chuva empapava os blocos de arranha-céus que se erguiam, silenciosos como pedras tumulares. Deixei o carro no parque de estacionamento do bar e voltei para casa a pé. A meio caminho, sentei-me num parapeito e pus-me a observar um grande corvo preto que grasnava, pousado num semáforo. Às quatro da manhã, as ruas da cidade tinham um aspecto miserável e sujo. A decadência e a putrefacção pairavam por toda a parte, e eu fazia parte integrante dessa paisagem. Como uma sombra gravada a fogo na parede.
Durante os dez dias que se seguiram ao aparecimento do artigo com o meu nome e a minha fotografia na revista Brutus, passaram pelo bar para me cumprimentar uma quantidade de velhos conhecidos meus. Falo de antigos companheiros de escola e de liceu. Até essa altura, sempre que entrava numa livraria e via aquela pilha de revistas, perguntava-me quem seria capaz de as ler de uma ponta à outra. Mas quando foi publicado o dito artigo acerca de mim, descobri que eram mais do que muitas as pessoas que devoram tais publicações, mais do que eu alguma vez imaginara. Após ter adquirido consciência desse facto, apercebi-me de que em toda a parte, do cabeleireiro ao banco, passando pelas cafetarias e pelos comboios, não havia quem não andasse com uma revista daquelas atrás, como que sob o efeito de uma espécie de possessão. Também podia dar-se o caso de terem medo de matar o tempo sem fazer nada, daí que deitassem a mão à primeira coisa que vissem.
Isto para dizer que o reencontro com velhos conhecidos não se revelou uma experiência tão estimulante quando isso. Não era que eu não gostasse de falar com eles; pelo contrário, confesso que o facto despertava em mim um agradável sentimento de nostalgia. Além de que também eles pareciam contentes por me ver. Acontecia, no entanto, que só falavam de coisas que não interessavam rigorosamente nada. Ficar a saber como a nossa cidade tinha mudado e que era feito dos nossos companheiros de classe? Para falar bem e claro, estava-me nas tintas. Tudo aquilo estava demasiado longe de mim, no tempo e no espaço. Além do mais, a presença deles tinha o condão de me fazer inevitavelmente pensar em Izumi. Cada vez que algum deles mencionava a minha cidade natal, via diante de mim a imagem de Izumi, abandonada naquela pequena casa de Toyo-hashi. "O que se passa é que ela perdeu toda a graça que tinha", dissera o meu amigo. "As crianças do prédio têm medo dela." Não conseguia tirar aquelas duas frases da minha cabeça. E também o facto de Izumi nunca me ter perdoado.
Logo após a publicação da revista, e pese a publicidade acrescida, dei por mim a lamentar seriamente ter deixado com tanta ligeireza que a revista fizesse aquela reportagem. A última coisa que eu queria era que Izumi lesse o artigo. Como se sentiria ela, sabendo que eu andava feliz da vida, aparentemente livre das cicatrizes do passado?
Contudo, passado um mês, a peregrinação organizada por alguns desses velhos amigos chegou ao fim. Calculo que isso seja uma coisa boa que essas revistas têm: ajudam a tornar uma pessoa famosa da noite para o dia e depois, puf., com a mesma facilidade, cai-se no esquecimento. Suspirei aliviado. Pelo menos, não tivera notícias de Izumi. Pelos vistos, ela não tinha por hábito ler a revista Brutus.
Duas ou três semanas mais tarde, porém, quando já quase me esquecera por completo que a revista existia, recebi uma última visita.
Shimamoto.
Aconteceu numa segunda-feira à noite, em início de Novembro, encontrava-me eu sentado ao balcão do Robin's Nest (dera ao meu clube de jazz o nome de uma velha peça que me agradava muito(13), a leste de tudo. Nem me tinha dado conta de que, no mesmo balcão, a três lugares de mim, se encontrava ela, a beber tranquilamente um daiquiri. Só tinha reparado que uma mulher, por sinal extremamente bonita, entrara no bar, mais nada. Uma nova cliente, lembro-me de ter tomado nota mentalmente. Se a tivesse visto antes, lembrar-me-ia dela, de tal forma a sua beleza era chamativa. Por certo a pessoa com quem ela tinha encontro marcado iria chegar a qualquer momento. Também acontecia aparecerem mulheres sozinhas no meu bar. Algumas com a esperança de que os homens ali lhes dirigissem a palavra, outras nitidamente apostadas em serem abordadas. Com base na minha experiência, não só já conseguia distinguir umas e outras como estava farto de saber que uma mulher bonita nunca aparecia sozinha para beber um copo. Isto porque as mulheres bonitas não eram do género de acharem graça a que os homens lhes fizessem avanços. Quando muito, isso apenas constituía um motivo de aborrecimento.
Essa a razão pela qual não lhe havia prestado grande atenção. Ao princípio olhei para ela de relance, e depois limitei-me a deitar-lhe um breve olhar. Usava uma maquilhagem muito discreta e estava vestida com elegância: uma saia azul de seda e, por cima, uma camisola de caxemira bege-clara. Uma camisola tão fina que assentava como uma pele de cebola. Em cima do balcão tinha pousado uma bolsa dos mesmos tons, que combinava às mil maravilhas com a vestimenta. Tornava-se impossível adivinhar a sua idade. Tinha a idade ideal, não sei como dizer de outra maneira.
(13) À letra, o ninho do rouxinol, nome inspirado no tema de jazz homónimo, da autoria de Sir Charles Thompson tocado primorosamente por Illinois Jacquet (saxofone) com a Orquestra de Count Basie. (N. da T.)
A sua beleza cortava a respiração de qualquer um, mas não tinha ar de ser actriz nem modelo. Mulheres desse tipo apareciam muitas vezes no meu estaminé, e em torno delas existia sempre como que uma aura particular que advinha de elas se saberem expostas aos olhares dos demais. Aquela mulher, porém, era diferente. Via-se que estava descontraída, perfeitamente enquadrada no ambiente em redor. Encostada ao balcão com o queixo entre as mãos, escutava a música executada pelo trio de jazz e dava pequenos goles no seu cocktail como se estivesse a deleitar-se com uma passagem especialmente sonante. De tempos a tempos, lançava-me uma olhadela rápida, e eu sentia fisicamente o peso desse olhar. Se bem que, no fundo, não acreditasse ser eu o objecto dos olhares daquela mulher.
Estava vestido com o meu uniforme de sempre. Que é como quem diz, fato completo Luciano Soprani Uomo, camisa e gravata Armani. Acreditem ou não, mas não sou daquelas pessoas que se preocupam com o que vestem. Tenho para mim que gastar em roupa mais dinheiro que o necessário é uma estupidez. Na vida de todos os dias, umas calças de ganga, uma camisola e está a andar. Mas também tinha a minha pequena filosofia de vida no que toca aos negócios. A saber: uma pessoa que tem um negócio para gerir deve apresentar-se no local de trabalho vestida como gostaria que a sua clientela se vestisse, a fim de dar o exemplo. Só assim consegue criar, tanto junto dos empregados como dos clientes, aquele toque de classe que se impõe. Por isso aparecia sempre no bar com um elegante fato de marca e de gravata.
Ali sentado, ia provando os cocktails, mantinha os clientes debaixo de olho e ouvia jazz. Ao princípio, o bar estava cheio, mas depois das nove começou a chover torrencialmente e o número de clientes diminuiu. Por volta das dez, podiam contar-se pelos dedos da mão as mesas ocupadas, mas a desconhecida permanecia ao balcão, sozinha, a beber o seu daiquiri. A sua presença começava a deixar-me curioso. Vendo bem, talvez não estivesse à espera de ninguém. Não a apanhei uma única vez a olhar para o relógio nem a vigiar a porta.
Pouco depois, vi-a pegar na bolsa e descer do tamborete. O relógio marcava quase onze da noite. Se ela fazia tenções de regressar a casa de metro, estava na hora. Como se não fosse nada com ela, porém, a verdade é que se dirigiu lentamente na minha direcção e se sentou ao meu lado. Um ténue rasto de perfume chegou até mim. Uma vez bem instalada, tirou da mala um maço de Salem e levou um cigarro à boca. Pelo canto do olho, eu seguia todos os seus gestos.
- Que bar tão agradável - disse-me ela.
Levantei os olhos do livro que estava a ler e olhei para a mulher sem compreender. Acto contínuo, fui atingido por qualquer coisa, atingido em cheio. Tive a sensação de que o ar nos meus pulmões se tinha tornado mais pesado.
- Obrigado - respondi. Ela devia ter adivinhado que era eu o proprietário do local. - Ainda bem que gosta.
- Sim, agrada-me e muito. - Ela olhou-me nos olhos e sorriu. Tinha um sorriso maravilhoso. Os lábios entreabriram-se e, ao canto do olho, formaram-se pequenas rugas de expressão encantadoras. Aquele sorriso lembrou-me vagamente qualquer coisa.
- Também gosto da música - acrescentou ela, indicando o piano trio de jazz. - Por acaso tem lume?
Eu não tinha comigo nem fósforos nem um isqueiro. Chamei o empregado do bar e pedi-lhe que me arranjasse uma caixa de fósforos da casa. Fui eu mesmo que lhe acendi o cigarro.
- Obrigada - disse ela.
Olhei-a de frente e foi quando caí em mim.
- Shimamoto! - murmurei com a garganta seca.
- Demoraste um certo tempo a reconhecer-me - disse ela passado um bocado, com um brilhozinho estranho nos olhos. -Pensava que nunca mais ias descobrir.
Deixei-me ficar ali sentado, mudo e quedo. Mantive os olhos cravados no seu rosto, como se estivesse na presença de um mecanismo de alta precisão extremamente raro do qual apenas tivesse ouvido falar. Era realmente ela, Shimamoto, quem tinha diante de mim. Ao mesmo tempo, porém, era incapaz de aceitar essa realidade. Tantas e tantas vezes que pensara nela. Além disso, estava convencido de que nunca mais a voltaria a ver.
- Tens um fato muito bonito - referiu ela. - Assenta-te mesmo bem.
Anuí sem dizer palavra. As palavras não me ocorriam.
- Sabes uma coisa, Hajime? Estás muito mais bonito do que antes. E vejo que arranjaste uns belos músculos.
- Faço muitas vezes natação - lá consegui finalmente articular. - Comecei no secundário e continuei sempre a praticar.
- Sempre pensei que nadar deve ser divertido.
- E é. Sem esquecer que está ao alcance de qualquer um -acrescentei. - Assim que me saíram as palavras da boca, lembrei-me da perna dela. "Mas que diabo estás tu para aí a dizer", perguntei a mim mesmo. Embaraçado, tentei remediar a situação, mas não conseguia arranjar as palavras certas. Meti as mãos nos bolsos do casaco, à procura dos meus cigarros. E foi então que me lembrei. Deixara de fumar desde há coisa de cinco anos.
Shimamoto observava em silêncio todo aquele desenrolar de gestos. Depois ergueu a mão para chamar o barman e, com um grande sorriso, pediu outro daiquiri. Tinha por hábito sorrir abertamente, sempre que pedia qualquer coisa a alguém.
Um sorriso radioso, daqueles que dava vontade de mandar embrulhar tudo o que estava à vista e oferecer-lho de bandeja.
- Estou a ver que continuas a gostar de azul - constatei.
- Sim, o azul foi sempre a minha cor. Tens boa memória.
- Lembro-me de quase tudo no que toca à tua pessoa. De como afiavas os lápis, do número de quadradinhos de açúcar que punhas no chá...
- E quantos eram?
- Dois.
Ela semicerrou ligeiramente os olhos para melhor me observar.
- Diz-me uma coisa, Hajime - começou ela. - Por que me seguiste daquela vez? Há cerca de oito anos, se não estou em erro.
Suspirei.
- Não tinha a certeza de seres tu. A maneira de andar era exactamente igual, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa me dizia que se tratava de outra pessoa. Na dúvida, comecei a seguir-te. Enfim, seguir é capaz de não ser a palavra adequada. Procurava a melhor oportunidade para te dirigir a palavra.
- Nesse caso, porque não o fizeste? Porque não me chamaste para saber se era mesmo eu? Teria sido muito mais fácil.
- Nem eu sei - disse eu honestamente. - Só te posso dizer que naquele momento houve qualquer coisa que me impediu de o fazer. As palavras não me saíam da boca.
Ela mordeu o lábio ao de leve.
- Na altura nunca imaginei que fosses tu. Só pensava numa coisa: que havia um homem que andava no meu encalço, e confesso que tive medo. Para ser franca, fiquei aterrorizada. Mas assim que entrei no táxi e recuperei o sangue-frio, passou-me pela cabeça que só podias ser tu.
- Sabes, Shimamoto-san(14), conservo ainda hoje na minha posse uma coisa que me foi dada naquele dia. Desconheço qual a relação que poderás ter com aquele homem, mas...
Ela levantou o dedo indicador e pousou-o sobre os meus lábios. A seguir abanou ligeiramente a cabeça, como que a dizer: "Não vamos falar mais disso, pode ser? Por favor, nunca mais tornes a abordar o assunto."
- Estás casado? - perguntou ela, para ver se mudava de assunto.
- Sim, casado e pai de duas meninas - respondi. - Ainda são pequenas.
- Mas que bem. Se queres que te diga, acho que raparigas é o mais aconselhado no teu caso. Não me perguntes porquê. Vejo-te mais com filhas.
- Pode ser que sim.
- Não sei porquê, mas de certa maneira sinto isso - disse Shimamoto com um sorriso dos dela. - Pelo menos não ficaste só com um filho.
- Não se pode dizer que tenha sido planeado. Aconteceu assim.
- Qual é a sensação? De ter duas filhas, quero dizer?
- Um bocado estranha, para ser franco. Se queres que te diga, na creche onde anda a minha filha mais velha, para cima de metade das crianças são filhos únicos. O mundo mudou, e de que maneira, desde o nosso tempo. Na grande cidade, ser filho único é a regra, e não a excepção.
(14) O sufixo san funciona como uma fórmula educada de tratamento usado por quase toda a gente. "Uma espécie de Senhor, Menina ou Senhora unissexo", como diz Jay Rubin no seu livro Haruki Murakami and The Music of Words (2003, Vintage). Shimamoto-san era o que deviam chamar à personagem nos dias da primária, daí que a expressão contenha uma acentuada nota de nostalgia, evocando os bons velhos tempos. (N. da T.)
- Tu e eu nascemos antes do tempo.
- É provável - admiti. - Talvez o mundo se tenha vindo a aproximar de nós. Às vezes, olho para as minhas duas filhas a brincar juntas e tenho uma sensação estranha. Quando eu era pequeno, brincava sempre sozinho. Pensava que isso também acontecia com as outras crianças.
O trio de jazz acabou de tocar a sua versão do tema "Corcovado" e os clientes aplaudiram. Como sempre, à volta da meia-noite, os músicos conferiam à sua interpretação um tom envolvente, capaz de criar uma atmosfera mais íntima. O pianista, entre uma peça e outra, bebia um copo de vinho tinto, enquanto o baixista acendia o seu cigarro de quando em quando.
Shimamoto deu um gole no seu cocktail.
- Sabes, Hajime, para ser sincera, reflecti muito antes de vir. Durante quase um mês, andei indecisa. Descobri por acaso, ao folhear uma revista, que eras dono deste bar. De início, pensei que se tratava de um engano. Confesso que não te via nada à frente de um bar como este! Mas aparecia o teu nome, a tua fotografia. O Hajime, vizinho do meu velho e querido bairro. Fiquei feliz da vida só de olhar para a tua fotografia. Ao mesmo tempo, porém, não tinha a certeza de que fosse uma boa ideia encontrar-me contigo pessoalmente. Se calhar o melhor, para ambos, era não nos voltarmos a ver. Sabia que estavas bem na vida, e era quanto me bastava.
Eu escutava a história dela em silêncio.
- Mas o certo é que sabia onde poderia encontrar-te. Era uma pena não aproveitar a oportunidade, por isso aqui me tens. Sentei-me naquele tamborete e tenho estado a observar-te. "Se ele não me reconhecer", pensei para comigo, "vou-me embora sem dizer nada." Mas foi mais forte do que eu. Eram tantas as saudades que tinha de vir falar contigo.
- Mas porquê? - quis eu saber. - Isto é, por que razão é que pensaste que seria melhor não me tornares a ver?
Perdida nos seus pensamentos, passou um dedo pela borda do copo.
- Imaginei que se me visses, provavelmente quererias saber uma quantidade de coisas acerca de mim. Por exemplo, se estava casada, onde morava, o que tinha feito até à data, esse tipo de coisas. Engano-me?
- Bom, é possível que isso calhasse em conversa.
- Sim, também me parece.
- Mas tu, pelos vistos, preferes não falar desses assuntos, é isso?
Ela fez um sorriso meio embaraçado e acenou com a cabeça. Shimamoto possuía uma variedade de sorrisos que nunca mais acabava.
- Com efeito, assim é. Não quero falar acerca disso, mas não me obrigues a explicar porquê. Só sei que não quero falar acerca da minha pessoa. Bem sei que pode parecer estranho, até parece que me estou a dar ares, a armar-me em importante ou assim. Por essa razão é que, às tantas, achei que o melhor seria não te ver. Não queria que pensasses que tinhas diante de ti uma mulher estranha e convencida. Este era um dos motivos pelos quais eu não queria vir.
- E o outro?
- Tinha medo de ficar decepcionada.
Olhei para o copo que ela tinha na mão. Em seguida percorri com os olhos os cabelos que lhe caíam pela altura dos ombros e contemplei os seus lábios finos e bem desenhados. Admirei os seus olhos, tão negros que pareciam não ter fundo. Uma pequena linha por cima das pálpebras, sinal de intensa reflexão, fez-me pensar na longínqua linha do horizonte.
- Temia ficar decepcionada ao ver alguém que em tempos amei tanto.
- E por acaso decepcionei-te? Ela abanou a cabeça ligeiramente.
- Tenho estado a observar-te de longe. Ao princípio, tinha a impressão de que tu eras outra pessoa. Estás mais forte, além de te apresentares de fato e gravata. Mas quando olhei melhor, percebi que eras o velho Hajime que eu conhecia. Sabes que mais? Os teus gestos não mudaram. Continuas a fazer os mesmos gestos de quando tinhas doze anos.
- Não sabia - disse eu esforçando-me por sorrir, mas sem o conseguir.
- A maneira como mexes as mãos, a maneira de olhar, aquele hábito que tens de estar sempre a tamborilar com a ponta dos dedos, o modo como franzes as sobrancelhas quando alguma coisa não te agrada, nada disso mudou. Por baixo do fato Armani, continuas a ser o mesmo Hajime de sempre.
- Não é Armani - corrigi. - A camisa e a gravata são, mas o fato não.
Ela sorriu.
- Sabes uma coisa, Shimamoto-san - comecei eu -, alimentei sempre o desejo de te voltar a encontrar. Queria ver-te e falar contigo. Tinha tantas coisas para te contar.
- Também eu tinha vontade de te ver - referiu ela. - A verdade, porém, é que nunca mais deste sinal de vida. Tens consciência disso, não tens? Quando foste transferido para outra cidade a fim de acabares o secundário, esperei durante muito tempo que me viesses visitar. Por que é que nunca o fizeste? Fiquei muito triste. Pensava que tivesses feito novos amigos e que por isso te tinhas esquecido completamente de mim.
Shimamoto apagou o cigarro no cinzeiro. Usava as unhas pintadas com verniz transparente. Eram tão brilhantes e perfeitamente lisas que mais pareciam objectos de arte trabalhados com esmero por algum artesão.
- Tinha medo.
- Medo? - perguntou Shimamoto. - Medo de quê? De mim?
- Não, tu não me metias medo. Tinha medo da rejeição. Era apenas um miúdo. Não podia imaginar que tu estivesses à minha espera. Ficava aterrado só de pensar que podias rejeitar-me. Temia que ficasses aborrecida no caso de eu te ir visitar. Por isso deixei de aparecer. Pensava: se é para ficar magoado, então mais vale continuar a viver com as recordações dos dias felizes, do tempo em que andávamos juntos.
Ela inclinou ao de leve a cabeça e fez rolar uma castanha de caju na mão.
- As coisas não são fáceis, pois não?
- Tu o disseste.
- E pensar que poderíamos ter continuado amigos durante muito mais tempo. Para te dizer a verdade, passei o resto do ensino preparatório, a escola secundária e até a universidade sem um amigo digno desse nome. Estava constantemente sozinha. Pensava sempre como seria maravilhoso que a nossa relação tivesse continuado. Ou então, se não pudesse ter-te a meu lado, poderíamos escrever cartas um ao outro. As coisas poderiam ter sido muito diferentes, creio eu. Pela parte que me toca, talvez tudo se tornasse mais fácil de aguentar.
Ela fez uma pequena pausa antes de prosseguir:
- Não sei porquê, mas depois de ter entrado para o liceu começou a correr tudo mal. E esse estado de coisas só contribuiu para me fechar cada vez mais na minha concha. Era como um círculo vicioso, se quiseres.
Assenti.
- Até acabar a escola primária - disse -, correra tudo bem, mas depois foi um desastre. Senti-me como se estivesse a viver enterrada no fundo de um poço.
O sentimento era-me familiar. Tinha sido o mesmo que eu sentira ao longo dos dez anos que iam desde a entrada na universidade até ao meu casamento com Yukiko. Se acontece uma coisa nascer torta, aparece logo outra que também não se endireita e o castelo de cartas acaba por desabar. E não há maneira de uma pessoa remediar isso. A menos que apareça alguém e nos tire dali.
- Como eu era coxa, o que para os outros era normal, para mim era impossível. Não fazia mais nada senão ler, sem tentar sequer abrir-me ao mundo. Além do mais, como é que hei-de dizer, o meu aspecto dava nas vistas. O que fazia com que a maior parte das pessoas fosse levada a pensar que eu era uma mulher arrogante e complicada. E, vendo bem, talvez me tenha tornado nessa pessoa.
- Para começar, és demasiado bonita - disse eu. -.;;" Ela levou outro cigarro à boca e eu peguei num fósforo
para lho acender.
- Achas-me realmente bonita? - perguntou ela.
- É evidente que sim, mas de certeza que toda a gente passa a vida a dizer-te o mesmo.
Shimamoto desatou a rir.
- Olha que não. Para te ser sincera, não gosto lá muito da minha cara. Ainda bem que me dizes isso. Infelizmente, as outras mulheres, de uma forma geral, não me têm em grande conta. Pensei muitas vezes: "Tomara que as pessoas não se pusessem a fazer-me elogios e a dizer que eu sou bonita. Quem me dera ser uma mulher normal e ter amigos como toda a gente."
Ela estendeu a mão e tocou ao de leve na minha, pousada no balcão.
- Mas fico contente por te saber feliz da vida.
Eu permaneci em silêncio.
- Porque estás feliz, não é verdade?
- Não te sei dizer. Pelo menos não sou infeliz, nem se pode dizer que me sinta sozinho - confidenciei, acrescentando pouco depois: - De tempos a tempos, porém, acontece-me pensar que as horas que passámos juntos na sala de estar da tua casa, entretidos a ouvir música, foram as mais felizes da minha vida.
- Sabes, ainda os tenho comigo, esses discos. Nat King Cole, Bing Crosby, Rossini, Peer Gynt e os outros. Conservo-os todos, em memória do meu pai, que mos deixou quando morreu. Sempre tive muito cuidado quando os punha a tocar, de modo que não têm um risco. Lembras-te de como eu era cuidadosa com os discos?
- Quer então dizer que o teu pai morreu.
- Faz agora cinco anos, de um cancro no cólon. Uma morte horrível. E pensar que ele era um homem tão saudável...
Tinha-me encontrado com o pai de Shimamoto por diversas vezes. Aparentemente, tratava-se de um homem forte e sólido como o carvalho que crescia no seu jardim.
- E a tua mãe? Está bem?
- A-hã. Acho que sim.
Houve qualquer coisa no seu tom de voz que me perturbou.
- Não te dás bem com a tua mãe?
Shimamoto acabou de beber o seu daiquiri, pousou o copo e chamou o barman. A seguir perguntou-me:
- Tens algum cocktail da casa que recomendes?
- Temos vários cocktails originais - disse eu. - O mais popular é um que se chama Robin's Nest, como o bar. Uma invenção minha, à base de rum e vodca. Bebe-se muito bem, mas sobe depressa à cabeça.
- Especialmente indicado para seduzir mulheres.
- Caso não saibas, Shimamoto, foi para isso que se inventaram os cocktails.
Ela riu-se.
- Bom, nesse caso vou experimentar.
Quando lhe puseram a bebida à frente, ela examinou a cor e em seguida deu um primeiro gole. Fechou os olhos, como que para saborear melhor.
- Tem um gosto muito subtil - observou ela. - Nem doce nem amargo. Leve e simples, com um travo característico. Não fazia ideia que tivesses tanto jeito.
- Não sou capaz de montar uma simples prateleira. Não sei mudar o filtro do óleo do carro. Nem sequer um selo numa carta consigo colar direito. Engano-me amiúde sempre que tenho de marcar um número de telefone. Ao menos tenho-me revelado capaz de criar uns quantos cocktails originais. Por sinal muito apreciados pelos meus clientes, deixa-me que te diga.
Ela pousou a bebida sobre a base e deixou-se ficar a olhar lá para dentro. Ao inclinar o copo, o reflexo das luzes do tecto oscilou levemente.
- Há muito que não estou com a minha mãe. Dez anos atrás tivemos os nossos desentendimentos e, desde então, mal nos vemos. Encontrámo-nos no funeral do meu pai, escusado será dizer.
O trio havia terminado um número original e atacara a introdução de "Star-Crossed Lovers". Sempre que eu me encontrava no bar, o pianista tinha o hábito de tocar esta balada, sabendo que era uma das minhas favoritas. Não se podia dizer que fosse um dos temas mais conhecidos de Ellington nem táo-pouco estava associado a alguma recordação especial; acontecia apenas que, desde que a ouvira por acaso pela primeira vez, comoveu-me de uma maneira especial. Tanto nos tempos da faculdade como quando trabalhava como revisor de provas na editora, costumava pôr a tocar o álbum Such Sweet Thunder e passar as noites a escutar vezes sem conta o tema "Star-Crossed Lovers". Nele, Johnny Hodges executava um solo que combinava sensibilidade e elegância. Sempre que ouvia aquele lânguido e maravilhoso tema, as recordações daquela época voltavam à minha mente. Não tinham sido uns anos felizes, vivendo então, como vivia, cheio de desejos por satisfazer. Era muito mais novo, mais ávido, estava mais sozinho. Contudo, não deixara por isso de ser eu mesmo, dono e senhor de uma personalidade mais sensível e emotiva. Naquela época, sentia como o meu corpo absorvia cada nota de música que ouvia, cada palavra que lia. Os meus nervos estavam afiados como punhais e nos meus olhos brilhava uma luz que parecia querer penetrar em quem se atravessava à minha frente. De cada vez que escutava "Star-Crossed Lovers", recordava os meus olhos, como se observasse o meu reflexo num espelho.
- Para dizer a verdade - expliquei -, uma ocasião, quando andava no último ano do preparatório, fui ter contigo. Sentia-me tão sozinho que não podia suportar. Tentei ligar-te mas ninguém respondeu. Apanhei o comboio e dirigi-me a tua casa, mas na porta havia uma placa com outro nome.
- O meu pai foi transferido e mudámo-nos para Fujisawa, perto de Enoshima. E aí ficámos até eu entrar para a universidade. Enviei-te um postal com a minha nova direcção. Não te chegou às mãos?
Neguei com a cabeça.
- Se o tivesse recebido, teria respondido na volta do correio. O que não deixa de ser estranho.
- Ou então somos nós que temos azar - alvitrou ela. - Não estamos a falar de um contratempo, mas sim de uma quantidade deles. Os nossos caminhos cruzaram-se e acabámos sempre por nos desencontrarmos. Agora, quero que me fales de ti. Conta-me como tem sido a tua vida até à data.
- Olha que não é assim tão interessante quanto isso.
- Não faz mal, quero ouvi-la na mesma.
Fiz-lhe um resumo do que havia sido a minha vida até então. Contei-lhe que nos anos de liceu tinha tido uma namorada, com a qual não me portara lá muito bem. Sem entrar em pormenores, expliquei que tinha acontecido uma coisa e que, algures no percurso, acabara por ferir os sentimentos dela e que também eu saíra ferido daquela história. Falei-lhe da minha ida para a universidade, em Tóquio, bem como da entrada no mundo do trabalho, a trabalhar numa editora de manuais escolares. Confessei que os meus vinte anos tinham sido um tempo de solidão, sem saber o que era ter amigos dignos desse nome. Saíra com meia dúzia de mulheres, sem que isso contribuísse para a minha felicidade. Desde que acabara o secundário até que encontrei Yukiko e me casei com ela, nunca soubera o que era amar alguém. Disse-lhe que costumava pensar muito nela e ainda que passava a vida a pensar como seria maravilhoso se nos pudéssemos encontrar e conversar, nem que fosse só durante uma hora.
- Pensavas muito em mim?
- Todo o tempo.
- Também eu pensei muitas vezes em ti - confessou Shimamoto. - Sempre que passava por um período mais difícil. Foste o único amigo que tive em toda a minha vida, Hajime.
Ela permaneceu por momentos com o queixo apoiado na mão e fechou os olhos, como se as forças a tivessem abandonado. Notei que não usava anéis. De tempos a tempos, as suas pestanas eram percorridas por um ligeiro tremor. Por fim, abriu os olhos devagar e olhou para o relógio. Fiz o mesmo. Era quase meia-noite.
Ela pegou na mala de mão e desceu do tamborete com o mínimo de movimentos.
- Boa noite. Gostei muito de te voltar a ver. Acompanhei-a até à porta.
- Queres que te chame um táxi? Deve ser difícil arranjar transporte com esta chuva. Isto é, partindo do princípio de que vais para casa de táxi.
Shimamoto abanou a cabeça.
- Deixa estar. Não te preocupes comigo. Posso tomar conta de mim sozinha.
- De certeza que não ficaste desiludida? - perguntei.
- Contigo?
- Sim.
- Não, não fiquei desiludida - disse ela com um sorriso. -Não te preocupes com isso. Mas quanto a esse teu fato, tens a certeza de que não é Armani?
Dei-me conta de que ela já não coxeava como antes. Os seus passos não eram muito rápidos e, olhando com atenção, dava para notar que havia qualquer coisa de artificial na sua maneira de andar, porém, de resto mal se notava.
- Fui operada há quatro anos - explicou Shimamoto como se estivesse a desculpar-se. - Não direi que tenha ficado totalmente bem, mas a situação melhorou muito. Tratou-se de uma operação muito complicada, viram-se obrigados a cortar osso num lado e a acrescentar no outro, mas correu tudo bem.
- Isso é fantástico. Já não se nota o defeito na tua perna -observei.
- É verdade - concordou ela. - Foi uma boa decisão, quer-me parecer. Não devia ter esperado tanto tempo.
Fui ao bengaleiro buscar o casaco dela e ajudei-a a vesti-lo. Ali de pé, ao meu lado, não era muito alta. Que sensação estranha. Aos doze anos, tínhamos mais ou menos a mesma altura.
- Diz-me, Shimamoto-san. Poderei voltar a ver-te?
- Talvez - disse ela, esboçando um leve sorriso. Um sorriso que parecia uma pequena coluna de fumo a afastar-se calmamente num dia sem vento. - Quem sabe?
Ela abriu a porta e foi-se embora. Passados cinco minutos, subi as escadas que conduziam à rua. Preocupava-me que ela não tivesse conseguido arranjar um táxi. A chuva continuava a cair. E Shimamoto já não se encontrava ali. A rua estava deserta. As luzes dos faróis dos carros projectavam uma mancha vagamente esborratada no pavimento molhado.
"Talvez tudo não tivesse passado de uma ilusão", pensei. Deixei-me ficar ali durante muito tempo, a olhar para a chuva que fustigava as ruas. Dava-me a sensação de ter voltado a ser um menino de quatro anos. Quando era pequeno, nos dias chuvosos costumava ficar imóvel, sem mexer um músculo, a ver cair a chuva. Lembro-me de sentir o meu corpo descontrair-se pouco a pouco; ao mesmo tempo que me ia separando do mundo real. A chuva, é sabido, tem esse poder capaz de hipnotizar as pessoas.
Mas não se tratara de uma ilusão. Quando regressei ao bar, no sítio onde Shimamoto estivera sentada, lá estavam o seu copo e o cinzeiro. E dentro do cinzeiro viam-se duas beatas cuidadosamente apagadas e manchadas de batom vermelho. Sentei-me e fechei os olhos. O eco da música afastou-se pouco a pouco, deixando-me sozinho; entregue a mim próprio. A chuva continuava a cair em silêncio através da doce obscuridade.
Não tornei a ver Shimamoto durante muito tempo. Pela minha parte, todas as noites estava caído no Robin's Nest e ali passava várias horas, sentado ao balcão. Lia os meus livros e, de quando em quando, lançava uma olhadela à porta. Mas ela não havia meio de aparecer. Começou a preocupar-me a ideia de ter dito qualquer coisa que não lhe tivesse caído bem. Examinei, uma a uma, todas as palavras que havíamos trocado, mas não encontrei nada que me chamasse a atenção. Talvez Shimamoto tivesse ficado decepcionada. Não deixava de ser uma possibilidade. Que poderia uma mulher ver em mim?
O ano estava quase no fim, o Natal passou a correr e chegou o Ano Novo. O mês de Janeiro desapareceu num abrir e fechar de olhos e encontrei-me com trinta e sete anos. Desisti de esperar por Shimamoto e comecei a espaçar as minhas visitas ao Robin's Nest. Cada vez que lá punha os pés, lembrava-me dela e dava por mim à procura do seu rosto entre os clientes. Sentava-me ao balcão, a folhear as páginas de um livro, perdido em pensamentos errantes. Juro que sentia dificuldade em concentrar-me.
Ela tinha-me dito que eu era o seu único amigo. Havia-me feito sentir a alegria, ao ouvir aquelas palavras, de acreditar que poderíamos reatar a nossa velha amizade. Havia tantas coisas que tinha para lhe dizer. Queria pedir-lhe a opinião acerca deste mundo e do outro. Não fazia mal que ela não quisesse contar-me nada acerca da sua pessoa. Contentava-me em vê-la e falar com ela.
Porém, ela não voltou. Se calhar estava demasiado ocupada e não podia dar um salto até ao bar para me ver. E, pensando bem, três meses era muito tempo. Mesmo partindo do princípio de que, por estar muito ocupada, não lhe fosse possível aparecer, podia sempre pegar no telefone e ligar. As tantas, achei que me devia ter esquecido. "Afinal, não devo ser assim tão importante aos seus olhos." A ideia atormentava-me, ao ponto de abrir uma pequena brecha no meu coração. Ela nunca deveria ter falado comigo daquela forma. As promessas - mesmo uma promessa vaga como aquela - ficam para sempre gravadas no nosso coração.
Nos primeiros dias de Fevereiro, contudo, voltou a aparecer, também numa noite de chuva. Uma chuva silenciosa e gélida. Precisara de resolver um assunto qualquer de trabalho e lembrara-se, em boa hora, de passar pelo Robin's Nest, por sinal mais cedo do que era costume. Os guarda-chuvas dos presentes traziam com eles o odor da chuva gelada. Naquela noite, um sax tenor juntara-se ao piano trio do costume para tocar com eles alguns números. Estamos a falar de um saxofonista bastante famoso, e o público vibrou com a presença dele. Para não variar, eu estava no meu canto, a ler um livro, quando Shimamoto veio sentar-se ao pé de mim, sem fazer barulho.
- Boa noite - saudou ela.
Abandonei a leitura e olhei para ela. Nem queria acreditar nos meus olhos.
- Pensava que não voltarias mais.
- Desculpa - disse ela. - Estás zangado?
- Não estou zangado. Não me zango por coisas dessas. Afinal, estamos num bar. Aqui, as pessoas vêm quando lhes apetece e vão-se embora quando lhes dá na gana. A minha função é esperar que apareçam.
- Mesmo assim, peço desculpa. Não sei como te explicar, mas foi-me impossível aparecer.
- Tens estado muito ocupada?
- Não, não é isso - replicou ela num tom calmo. - Acontece apenas que me foi impossível vir antes.
Tinha os cabelos molhados da chuva. Duas ou três madeixas colavam-se-lhe à testa. Pedi ao empregado que lhe arranjasse uma toalha.
- Obrigada - disse ela, pegando na toalha e secando a cabeça. Em seguida, tirou um cigarro do maço e acendeu-o com o seu isqueiro. Os seus dedos frios e húmidos tremiam ligeiramente.
- Estava apenas a chuviscar e, como pensava apanhar um táxi, saí para a rua só com o impermeável. Mas depois comecei a andar e acabei por percorrer uma grande distância.
- Que tal uma bebida quente, apetece-te? - perguntei.
Ela olhou-me nos olhos e sorriu.
- Obrigada, mas não, estou bem assim.
Como que por magia, aquele sorriso fez-me esquecer os três meses de espera.
- Estás a ler o quê? - perguntou ela, apontando para o livro. Mostrei-lhe. Tratava-se de uma obra que falava do conflito
armado entre o Vietname e a China na sequência da guerra do Vietname. Ela passou algumas páginas e devolveu-mo.
- Deixaste de ler romances?
- Leio, mas menos. Por exemplo, sei muito pouco acerca dos romances que saíram mais recentemente, leio quase exclusivamente os clássicos, sobretudo os que foram escritos no século XIX. Quase sempre os que já li em tempos.
- Qual é o mal dos romances modernos?
- Acho que, no fundo, tenho medo de ficar desapontado. De todas as vezes que leio um livro mau, tenho a sensação de ter desperdiçado o meu tempo. E esse pensamento deixa-me deprimido. Antes não me acontecia isso. Lembro-me de que costumava ter tempo de sobra e, mesmo sabendo que não passava de lixo, ficava com a impressão de que alguma coisa de bom haveria de retirar dali. Agora é diferente. Se calhar, tem que ver com o facto de estar a envelhecer.
- Deve ser isso. A verdade é que estás a caminhar para velho - afirmou ela fazendo um sorriso travesso.
- E tu, continuas a ler muito?
- Sim, sempre. Livros antigos, coisas modernas. Romances e não só, de tudo um pouco. Literatura que não presta e boa literatura. Ao contrário de ti, gosto de matar tempo, dá-me gozo ler só pelo prazer de ler.
Shimamoto pediu ao barman para lhe preparar um Robin's Nest. Eu pedi a mesma coisa. Ela bebeu um gole, fez um ligeiro aceno com a cabeça e pousou o copo em cima do balcão.
- Hajime, diz-me uma coisa. Por que razão os cocktails aqui neste bar sabem melhor do que noutros sítios?
- Porque nos esforçamos para que assim seja - repliquei. -Sem esforço, não se chega a parte alguma.
- Que tipo de esforço, concretamente?
- Tens o caso dele, por exemplo - referi eu, indicando o jovem e bem-apessoado barman que estava a picar um mata-cão de gelo com uma expressão séria. - Pago-lhe um ordenado acima da média. Os outros empregados nem imaginam o valor de que estamos a falar, está no segredo dos deuses. A razão para isso é o talento muito especial que ele tem para fazer cocktails. Talvez a maioria das pessoas não saiba, mas não é qualquer um que sabe preparar bons cocktails. Claro que com um bocado de esforço, toda a gente consegue alcançar um nível aceitável. Bastam alguns meses de prática para saber preparar cocktails dignos desse nome, do género que são servidos nos bares. Mas se a ideia for alcançar um patamar superior, nesse caso há que possuir um talento especial. O mesmo que é exigido para tocar piano, pintar um quadro, correr os cem metros. Por exemplo, e falo por mim, considero-me capaz de preparar cocktails bastante bons. Estudei o assunto, pratiquei durante muitas horas. E, no entanto, não chego aos calcanhares dele. Mesmo que utilize a mesma quantidade de álcool e agite o shaker o mesmo número de vezes, o sabor é diferente. Vá lá saber-se porquê. É uma questão de talento, como na arte. Existe uma linha que alguns conseguem superar e outros não. Por isso, uma vez na presença de uma pessoa que tem talento, o que há a fazer é tratá-la bem e não a deixar escapar. Além de lhe pagar um bom ordenado.
O empregado de bar era homossexual e, por essa razão, às vezes acontecia os seus amigos gay encontrarem-se todos aqui. Era um grupo de malta discreta e aquilo não me perturbava minimamente. A personalidade do rapaz agradava-me e ele, por seu turno, confiava em mim e trabalhava no duro.
- Talvez afinal tenhas mais jeito para dirigir um negócio do que poderia parecer - comentou Shimamoto.
- Receio bem que isso não corresponda à verdade - confessei. - Não me considero de modo algum um homem de negócios. Sou dono de dois barzinhos, mais nada. E não tenho intenção de abrir mais nenhum nem de ganhar mais dinheiro do que actualmente. A isso não se pode chamar talento. A única coisa que faço, quando tenho um momento, é deixar correr a imaginação. Imagino que sou um cliente e pergunto a mim mesmo: "Se fosse um rapaz solteiro de vinte anos e tivesse de sair com uma rapariga, a que tipo de bar iria e com quem? Quanto dinheiro poderia gastar? Até que horas poderia lá ficar,  em função do sítio onde vivo?" Enfim, todo o género de cenários. Quanto mais imagino em pormenor cada situação, mais concreta na minha cabeça se torna a imagem do bar.
Shimamoto trazia uma camisola de gola alta azul-celeste e uma saia azul-marinho. Usava nas orelhas uns brincos pequenos que cintilavam. A malha fina e colada ao corpo punha em relevo a bonita forma dos seios. Senti que me faltava o ar.
- Continua o que estavas a dizer - disse ela, e no seu rosto voltou a brilhar aquele seu sorriso contagiante.
- Acerca de quê?
- Da tua filosofia empresarial - acrescentou ela. - Adoro ouvir-te falar assim.
Corei ligeiramente, o que não me acontecia há muito tempo.
- Não lhe chamaria filosofia empresarial. Acontece simplesmente que estou acostumado desde pequeno a este tipo de exercício mental. Refiro-me a pensar seriamente nas coisas, dar asas à imaginação. Consigo criar um espaço imaginário na minha cabeça e, a pouco e pouco, vou-lhe dando corpo e fazendo experiências. Aqui é preciso fazer isto, ali deveria mudar aquilo. Como te disse, ao sair da universidade trabalhei durante muito tempo numa editora especializada em livros de texto. O trabalho em si era uma seca monumental, uma vez que não podia dar largas à imaginação. Mais farto não podia estar. Aborrecia-me de morte. Odiava ter de ir trabalhar. Sentia-me sufocar, ali dentro. Tinha a impressão de estar a encolher todos os dias, correndo o risco de desaparecer de vez.
Bebi uma golada de uísque e passei os olhos pelo local. Ainda assim, a sala apresentava-se bastante composta, apesar da chuva. O sax tenor que ali se apresentava tinha guardado o seu instrumento no estojo. Chamei o empregado e pedi-lhe que levasse uma garrafa de uísque ao músico e lhe perguntasse se queria comer qualquer coisa.
- Aqui, porém, as coisas são diferentes - continuei. - Neste trabalho é preciso usar a imaginação. Além de que me é permitido pôr em prática todas as ideias que me passam pela cabeça. Aqui não há reuniões nem instâncias superiores. Precedentes é coisa que não existe, e o mesmo no que respeita a todas e quaisquer directivas do Ministério da Educação. Acredita em mim, Shimamoto, é uma sensação fantástica. Alguma vez trabalhaste numa empresa?
Ela negou com a cabeça sem deixar de sorrir.
- Não.
- Sorte a tua. Falo por mim quando digo que não fui feito para trabalhar encerrado numa empresa. E não creio que o teu caso seja diferente. Os oito anos que lá trabalhei encarregaram-se de me convencer disso mesmo. Oito-anos-oito pelo cano abaixo. Estava eu na casa dos vinte - os melhores anos da minha vida desperdiçados. Por vezes dou por mim a pensar como foi possível aguentar. Se bem que, caso esse período da minha vida não tivesse existido, talvez não estivesse onde estou hoje e os meus bares não tivessem tido tanto êxito. Adoro o meu trabalho, nos tempos que correm. Às vezes penso neles como tratando-se de uma construção mental. Uma espécie de jardim imaginário, onde me dou ao luxo de plantar flores, mandar construir uma fonte, tudo delineado e preparado com grande cuidado e de molde a oferecer o maior realismo. As pessoas vêm aqui para tomar uma bebida, ouvir música, trocam dois dedos de conversa e depois regressam a casa. Tudo pessoas dispostas a gastar o seu dinheiro para se deslocarem até aqui só para beber um copo - e sabes porquê? Porque toda a gente, em maior ou menor grau, anda em busca da mesma coisa: um lugar imaginário, o seu próprio castelo no ar, um lugar que lhes garanta uma atmosfera de sonho e fantasia.
Shimamoto tirou um Salem da mala. Antes que ela tivesse tempo para sacar do seu isqueiro, acendi um fósforo e acendi-lho. Dava-me prazer acender-lhe os cigarros. Gostava de a ver semicerrar os olhos e de observar a chama a dançar nas suas pupilas.
- Confesso que nunca trabalhei na vida - disse ela.
- Nunca?
- Nunca. Não sei o que é ter um emprego fixo nem sequer estive empregada em tempo parcial. Trabalhar é uma experiência que me é totalmente estranha. É por isso que te invejo quando te oiço falar assim. Nunca fiz mais nada a não ser estar sozinha a ler. Da mesma forma que nunca me aconteceu pensar em ganhar dinheiro, mas sim em como gastá-lo.
Ao dizer aquilo, ela esticou os braços na minha direcção. No braço direito usava duas finas pulseiras de ouro, no pulso esquerdo, um luxuoso relógio também de ouro. Manteve os braços estendidos como se estivesse a exibir mercadoria para vender. Peguei-lhe na mão direita e contemplei por momentos as pulseiras. Lembrava-me de quando lhe costumava dar a mão, tinha ela doze anos. Ainda me recordava da sensação com uma nitidez espantosa. E do meu coração a bater desalmadamente.
- Não sei... Vendo bem, talvez seja melhor pensar em como gastar dinheiro - alvitrei, largando a mão dela. Acto contínuo, assaltou-me a ilusão de que me encontrava a vogar no espaço infinito. - Quando pensas em fazer dinheiro, a vida con-some-te sem que dês conta disso.
- Não entendes. Não podes saber o vazio que representa uma pessoa não ser capaz de criar nada.
- Tenho a certeza de que criaste mais coisas do que pensas.
- Que tipo de coisas?
- Coisas que não se podem ver - alvitrei. Ao dizer aquilo, examinei as minhas mãos, pousadas em cima dos joelhos.
Ela ficou a olhar para mim durante muito tempo, de copo na mão.
- Referes-te a sentimentos?
- Claro - disse eu. - Mais cedo ou mais tarde, desaparece tudo. Até mesmo este bar, sem ir mais longe, não sei se existirá eternamente. Basta que os gostos das pessoas mudem um bocadinho, que mude a conjuntura económica, e lá vai tudo por água abaixo. Não seria a primeira vez. Tudo o que tem uma forma está condenado a desaparecer, ao passo que certos sentimentos permanecem para sempre.
- Mas sabes uma coisa, Hajime, há sentimentos que nos fazem sofrer precisamente porque perduram. Não te parece?
O sax tenor aproximou-se para me agradecer o uísque. Eu aproveitei para lhe dar os parabéns pela sua actuação.
- Hoje em dia, os músicos de jazz são pessoas extremamente bem-educadas - expliquei a Shimamoto. - Nos meus dias de estudante, não era bem assim. Andavam metidos na droga e pelo menos metade eram uns falhados e não tinham onde cair mortos. Volta e meia, porém, eram capazes de uma interpretação tão fora de série que uma pessoa até ficava de boca aberta.
- Gostas muito do género, não gostas?
- Podes dizê-lo - respondi. - Não há ninguém que não se abalance a uma aventura se não esperar obter resultados francamente positivos. Mesmo que a decepção se faça sentir nove vezes em dez, essa décima vez terá de se revelar uma experiência a todos os títulos excepcional. É isso que faz avançar o mundo. É isso, na minha opinião, a arte.
Voltei a olhar para as minhas mãos, antes de levantar os olhos na direcção de Shimamoto. Ela esperava que eu continuasse o meu discurso.
- Agora as coisas são um bocado diferentes. Estou à frente de um bar e a minha função é investir capital e tratar de obter lucros. Não sou um artista, não crio nada. Nem sequer se pode dizer que esteja a promover as artes. Quer me agrade ou não, num sítio como este não se espera que a arte aconteça. Para o seu proprietário, é muito mais fácil ter de se relacionar com artistas educados e com aspecto limpo do que com um bando de herdeiros de Charlie Parker!
Ela mandou vir outro cocktail. Acendeu outro cigarro. Seguiu-se um longo momento de silêncio. Fiquei ali a ouvir o contrabaixista que entretanto se lançara num longo solo de "Embraceable You". Volta e meia, o pianista juntava-se à festa e acompanhava-o num acorde, enquanto o baterista limpava o suor e tomava uma bebida qualquer. Aproximou-se um cliente habitual e trocámos meia dúzia de palavras.
- Ouve uma coisa, Hajime - disse Shimamoto passado muito tempo. - Conheces algum rio? Um rio que seja bonito e não muito grande, cujas águas se precipitem velozmente em direcção ao mar?
Apanhado de surpresa, fiquei a olhar para ela.
- Um rio? - perguntei. Não percebia onde ela queria chegar. O seu rosto não traduzia emoção alguma. Olhava para mim em silêncio, como se estivesse a contemplar uma paisagem longínqua. Ou talvez fosse eu que me encontrava muito afastado dela - separado do seu mundo por uma distância inimaginável. Ao pensar nisso, não pude deixar de me sentir triste. Nos seus olhos lia-se uma expressão que me fazia sentir essa distância.
- A que propósito é que vem essa história do rio? - perguntei eu.
- Lembrei-me de repente - explicou ela. - Conheces ou não conheces algum rio assim?
Quando andava a estudar, viajara um pouco por todo o país com um saco-cama. Por isso, podia dizer-se que tinha visto muitos rios japoneses. Mas não me lembrava de um que correspondesse à descrição dela.
- Na costa do mar do Japão creio que existe um rio com essas características - disse eu depois de pensar. - Não me lembro do nome, mas tenho a certeza de que fica na prefeitura de Ishikawa(15). Não deve ser difícil de encontrar. Parece-me ser o que mais se aproxima da tua descrição.
Lembrava-me muito bem desse rio, por sinal. Tinha ido lá no Outono, durante as férias, quando andava no segundo ou no terceiro ano da universidade. As folhas vermelhas eram lindíssimas e faziam com que as montanhas em redor parecessem tingidas de sangue. As montanhas acompanhavam a linha da costa, o rio corria, magnífico, e por vezes ouvia-se o bramido de um cervo vindo do interior do bosque. Lembrava-me de ter comido um peixe delicioso.
- Achas que me podes levar até lá? - perguntou Shimamoto.
- Estamos a falar de Ishikawa - referi num tom seco. -Não é bem a mesma coisa que ir até Enoshima. É preciso apanhar o avião e ainda temos pela frente mais de uma hora de carro. Sem esquecer que somos obrigados a passar lá a noite. Tenho a certeza de que entendes as razões por que não posso fazer isso, no momento presente.
Shimamoto mudou lentamente de posição no seu tamborete até ficar virada de frente para mim.
(15) A sul fica o parque nacional de Hakusan, onde nasce o rio Tedorigawa; a norte, a península de Noto, que se estende até ao mar do Japão. A capital, Kanazawa, com o seu castelo em ruínas, é um importante símbolo do Japão antigo, onde os sinais do tempo convivem com as mais modernas infra-estruturas. (N. da T.)
- Ouve, Hajime, bem sei que não deveria pedir-te um favor destes. Acredita quando te digo que tenho perfeita consciência do fardo que representa para ti, mas és a única pessoa com quem posso contar. É imprescindível que vá até lá e não quero ir sozinha.
Olhei-a nos olhos. Pareciam águas profundas que brotassem de uma fonte à sombra entre penhascos abrigados do vento. Nada se movia entre eles, tudo permanecia imóvel, mergulhado num silêncio total. Olhando com atenção, quase dava para ver a imagem reflectida na superfície das águas.
- Desculpa-me - disse ela com um sorriso, como se as forças a tivessem abandonado. - Não quero que penses que foi esta a razão que aqui me trouxe. Queria unicamente ver-te e falar contigo. Não era minha intenção abordar este tema.
Calculei rapidamente o tempo que seria preciso.
- Se partirmos de manhã cedo e apanharmos o avião para fazer a primeira parte do percurso, talvez seja possível estarmos de regresso no mesmo dia, a horas decentes. Claro que vai depender do tempo que nos demorarmos no local.
- Não deve ser muito - disse ela. - A sério que consegues arranjar tempo para ir até lá comigo de avião e regressar?
- Julgo que sim - disse eu depois de ter pensado um momento. - Não te prometo nada, mas acredito que sim. Liga-me amanhã à noite, pode ser? Vou estar aqui por volta desta hora. Até lá, vou ver se me organizo. Como está a tua agenda?
- Não tenho nada programado. Por mim, pode ser a qualquer altura.
Fiz sinal que sim com a cabeça.
- Lamento muito tudo isto - desculpou-se ela. - Se calhar teria sido melhor não ter vindo até aqui para te ver. O mais provável é eu acabar por estragar tudo.
Foi-se embora pouco antes das onze da noite. Ajudei-a com o guarda-chuva a chamar um táxi lá fora. A chuva continuava a cair.
- Adeus. E obrigada por tudo - disse ela.
- Adeus - despedi-me.
Regressei ao bar e sentei-me no meu lugar. O copo do cocktail dela ainda estava no mesmo sítio. Tal como o cinzeiro, com várias beatas dos cigarros esmagadas. Não pedi ao empregado que levasse aquilo para dentro. Deixei-me ficar ali uma eternidade, a olhar fixamente para os pálidos vestígios deixados pelo seu batom no copo e nos cigarros.
Quando cheguei a casa, Yukiko estava à minha espera. Tinha vestido um casaco de malha por cima do pijama e encontrava-se a ver o filme Lawrence da Arábia em vídeo. A cena em que Lawrence, depois de conhecer numerosos perigos e peripécias mil, logra finalmente atravessar o deserto e chega ao canal de Suez. Ela já tinha visto aquele filme três vezes. Dizia-me sempre que era uma grande fita e que nunca se cansava de a visionar. Sentei-me a seu lado e fiquei também eu a ver o filme e a beber um copo de vinho.
- No próximo domingo tenho encontro marcado no clube de natação - disse-lhe eu.
Um membro do clube possuía um iate bastante grande e de vez em quando combinávamos e íamos até ao mar alto. Bebíamos juntos e pescávamos. Fazia demasiado frio para navegar com o iate em Fevereiro mas a minha mulher pouco ou nada sabia acerca de barcos, de modo que não pôs objecções. Era raríssimo sairmos de casa aos domingos, e ela parecia achar que me fazia bem estar com outras pessoas e respirar outros ares.
- Parto de manhã muito cedo. E devo estar de regresso por volta das oito da noite. Janto em casa - anunciei.
- Tudo bem. A minha irmã vem cá visitar-me precisamente este domingo - disse ela. - Se não fizer muito frio, tínhamos pensado fazer um piquenique em Shinjuku Goen(16). As quatro mulheres.
- Parece-me um belo programa.
No dia seguinte, depois de almoço, dirigi-me a uma agência de viagens e reservei dois bilhetes de avião para domingo e um carro de aluguer. Havia um voo de regresso que chegaria a Tóquio por volta das seis e meia da tarde. Dessa forma, poderia estar em casa à hora do jantar. A seguir fui para o clube e fiquei à espera de que ela me telefonasse. Ligou eram dez da noite.
- Consegui arranjar umas horas, apesar de estar muito ocupado - disse-lhe. - Dá-te jeito no domingo que vem?
- Por mim, tudo bem - confirmou ela. Comuniquei-lhe a hora da partida e marquei encontro no aeroporto de Haneda.
- Não sei como te agradecer tanta maçada - acrescentou ela.
Depois de ter desligado, sentei-me ao balcão do bar e ali fiquei um bocado a ler. Porém, o barulho de fundo incomodava-me e não havia maneira de me conseguir concentrar. Fui até aos lavabos, passei água fria pela cara e fiquei durante muito tempo a olhar para a minha imagem reflectida no espelho. "Estás a mentir a Yukiko", pensei de mim para mim. Claro que já não
(16) Para muitos, entre japoneses e cidadãos do mundo, o mais belo parque de Tóquio. Os habitantes da cidade esperam com impaciência a chegada da Primavera, altura em que o parque se enche de gente à volta de um piquenique; no Outono, são as fotografias das folhas mortas que imperam nos sítios da Internet. (N. da T.)
era a primeira vez que lhe mentia. Isso acontecera sempre que tinha ido para a cama com outras mulheres, mas, de certo modo, nunca tivera a impressão de estar a enganá-la. Não passara tudo de escapadelas inocentes. Naquele momento, porém, não estava a ser verdadeiro. Pela primeira vez desde há muito tempo, olhei bem para os meus olhos no espelho, mas não me reconheci nesses olhos. Apoiei ambas as mãos no lavatório e suspirei profundamente.
O rio corria célere por entre os rochedos, formando em certos lugares pequenas cascatas, noutros parecendo repousar, recolhendo-se serenamente em pequenas poças de água que reflectiam a pálida luz do Sol. Na parte mais alta do rio havia uma velha ponte de ferro, tão estreita que mal dava para um carro passar. A sua estrutura de metal, negra e inexpressiva, afundava-se no silêncio gelado de Fevereiro. Os hóspedes dos banhos termais, os empregados das ryokan e os guardas-florestais eram as únicas pessoas que utilizavam a ponte. Quando atravessámos aquela ponte, nunca nos cruzámos com ninguém, e nem sequer olhando por cima do ombro se viu vivalma. Shimamoto tinha um grosso casaco de campanha vestido, com a gola subida, e à volta do pescoço um cachecol enrolado até ao nariz. Por baixo trazia roupa desportiva, apropriada a uma caminhada pela montanha, muito diferente da que costumava usar. Apanhara o cabelo atrás e calçava um par de sólidas botas de trabalho. Usava um pequeno saco de nylon a tiracolo. Assim vestida, parecia mesmo uma colegial. De ambas as margens do rio, divisavam-se brancos blocos de neve endurecida. Viam-se dois corvos imóveis, empoleirados no cimo da ponte, a olhar fixamente para o rio, lançando de vez em quando grasni-dos que soavam como uma reprovação. Os seus gritos agudos ecoavam através da superfície atapetada dos bosques, cruzavam o rio e penetravam desagradavelmente nos nossos tímpanos.
Um caminho estreito e por asfaltar acompanhava o curso do rio. Era impossível saber por onde continuava ou até onde conduzia, mas revelava-se deserto e mergulhado num silêncio terrível e dava a impressão de nunca ter sido pisado. Não se vislumbrava uma casa que fosse, apenas campos de terra desnudada. Os taludes cobertos de neve traçavam linhas brancas e bem distintas nos campos lavrados. Os corvos estavam por toda a parte. A nossa passagem, deixavam escapar breves crocitos, como se estivessem a lançar apelos aos seus congéneres. Quando nos sentiam aproximar, não tentavam fugir. Mais de perto, podíamos vislumbrar os seus bicos afilados, verdadeiras armas mortíferas, bem como as suas garras de cores vivas.
- Ainda temos tempo? - perguntou Shimamoto. - Podemos andar mais um bocado?
Olhei para o relógio e disse:
- Sim, ainda dá tempo. Acho que podemos demorar-nos por aqui mais uma hora.
- Que silêncio - observou ela, olhando demoradamente em redor. De cada vez que abria a boca para falar, a sua respiração formava uma nuvem branca suspensa no ar.
- Era este o rio de que andavas à procura? Ela sorriu na minha direcção.
- Estou a ver que consegues ler os meus pensamentos -retorquiu. Ao dizer aquilo, sorriu e tocou com a sua mão enluvada na minha, também protegida por luvas.
- Ainda bem - disse eu. - Se depois de chegar até aqui me informasses de que não era este o local, sempre gostaria de saber como era...
- Tem mais confiança em ti mesmo. Nunca cometerias esse erro - afirmou ela. - Se queres que te diga, caminhar assim juntinhos, só nós os dois, faz-me lembrar os velhos tempos. Como quando vínhamos da escola, lembras-te?
- Com a diferença de tu já não coxeares...
Ela fez um sorriso de esguelha.
- É caso para dizer que ficaste desapontado.
- Se calhar - disse eu, sorrindo também.
- A sério?
" - Estou a brincar. Fico contente por estares melhor da perna. De repente deu-me uma certa saudade do passado, mais nada.
- Hajime - disse ela -, quero que saibas que te estou muito agradecida por tudo.
- Não foi nada do outro mundo - disse eu. - É como se estivéssemos num piquenique, com a diferença que tivemos de apanhar o avião.
Shimamoto continuou a andar, sempre a olhar em frente. A seguir disse:
- O que não impede que tenhas sido obrigado a mentir à tua mulher, não é verdade?
- De facto, assim aconteceu - reconheci.
- E isso para ti deve ter sido muito difícil, imagino. De certeza que preferias não ser obrigado a mentir-lhe.
Sem saber o que lhe havia de responder, optei pelo silêncio. Do bosque vizinho chegavam de novo até nós os grasnidos lancinantes dos corvos.
- Só vim complicar a tua vida, tenho perfeita consciência disso - disse Shimamoto num fio de voz.
- Olha, vamos acabar com esta conversa - sugeri. - Já que viemos até aqui, falemos de coisas mais alegres.
! - Como por exemplo?
- Sabes que assim vestida pareces uma colegial?
- Obrigada - disse ela. - Quem me dera.
Caminhámos em direcção a montante do rio. Durante algum tempo prosseguimos em silêncio, concentrados apenas nos passos que dávamos. Ela tinha dificuldade em andar muito depressa, mas lá conseguiu imprimir à marcha o seu próprio ritmo, lento e regular, sempre agarrada com força à minha mão. O caminho estava completamente coberto de gelo e as nossas solas de borracha quase não produziam ruído.
Tinha toda a razão, Shimamoto, ao dizer como teria sido maravilhoso poder caminhar assim quando éramos adolescentes, ou até mesmo quando andávamos pelos nossos vinte anos. Ter-me-ia sentido a pessoa mais feliz do mundo só de pensar em nós os dois de mãos dadas, num domingo à tarde, percorrendo juntos um carreiro ao longo do rio... Acontecia, porém, que já não estávamos na escola. Eu tinha mulher e filhos, um trabalho. Além de que fora obrigado a mentir à minha mulher para ali estar. Ainda tinha de me meter no carro, dirigir-me ao aeroporto a fim de apanhar o avião que chegaria a Tóquio às seis e meia da tarde, e ir a correr para casa, onde a minha mulher estaria à minha espera.
Finalmente Shimamoto deteve-se e olhou em volta esfregando as mãos enluvadas. Dirigiu o seu olhar para montante do rio, depois para jusante. Na outra margem erguia-se uma cadeia de montanhas, enquanto do lado esquerdo se via uma floresta de árvores nuas. Encontrávamo-nos completamente sozinhos. O edifício das termas, onde tínhamos parado para descansar as pernas e almoçar, bem como a velha ponte de ferro tinham desaparecido do nosso ângulo de visão e estavam ocultos nas sombras cativas das montanhas. Volta e meia, o Sol rompia por entre as nuvens e mostrava o seu rosto. Ouvia-se apenas a gritaria dos corvos e o murmúrio das águas. Tive a sensação de que um dia tornaria a ver aquela paisagem diante de mim(17). Era o contrário do déjà vu - que é como quem diz, não se tratava
(17) Uma paisagem digna das fotografias de Masahisa Fukase, sobretudo no seu livro In the Solitude of Ravens (Na Solidão dos Corvos) (www.photobookguide.com/ aut-hor/masahisa-fukase/). (N. da T.)
da sensação de ter visto aquela cena antes, mas sim do pressentimento de que um dia isso aconteceria. Essa premonição estendeu os seus longos braços e tomou conta de mim, agarrando com força a minha consciência. Conseguia sentir o forte aperto. E eu encontrava-me na ponta dos seus dedos. Eu, projectado no futuro, com muitos mais anos em cima. Obviamente que não pude ver qual seria então o meu aspecto.
- Aqui é um bom lugar - disse Shimamoto.
- Para fazer o quê? - perguntei.
Ela olhou para mim com o seu eterno sorriso.
- Para fazer aquilo que aqui me trouxe.
A seguir descemos até à beira do rio. Naquele ponto formara-se uma pequena piscina de água coberta por uma fina capa de gelo. No fundo, depositadas, viam-se algumas folhas caídas com aspecto de peixes mortos, de barriga para o ar. Peguei num seixo redondo e fi-lo rolar na palma da minha mão. Shimamoto tirou as luvas e guardou-as no bolso do casaco, depois abriu o saco que trazia a tiracolo e tirou lá de dentro uma espécie de bolsa feita de um tecido espesso de boa qualidade. No interior do saquinho havia uma pequena urna. Ela desatou os cordões que a prendiam e abriu-a. Ficou por instantes a olhar fixamente para o seu interior.
Ao seu lado, eu observava a cena em silêncio.
A urna continha cinzas brancas, que Shimamoto foi deitando lentamente na palma da mão esquerda, tendo o cuidado de não as derramar por terra. O conteúdo da urna mal dava para encher a mão. Deviam ser cinzas da cremação de alguém, lembro-me de pensar. Estava uma tarde tranquila, sem vento, e as cinzas permaneceram imóveis na palma da sua mão. Shimamoto voltou a guardar a urna vazia dentro da bolsa em tecido, pousou o dedo indicador sobre as cinzas, levou-o à boca e lambèu-o. Olhou para mim e tentou sorrir, mas não foi capaz. Continuava a manter o indicador sobre os lábios.
Junto dela, de pé, vi como Shimamoto se debruçou à beira do rio para deitar as cinzas na água. Num abrir e fechar de olhos, aquele punhado de cinzas que ela trouxera desapareceu, arrastado pela corrente. Shimamoto e eu observámos imóveis as águas torrenciais do rio. Ela mantinha os olhos cravados na palma da sua mão, até que por fim lá se decidiu a lavar com água o que restava das cinzas, antes de voltar a pôr as luvas.
- Achas que chegarão até ao mar? - perguntou ela.
- Creio que sim - respondi, mas sem estar convencido disso. O oceano ainda ficava a grande distância, além de que era possível que as cinzas ficassem depositadas algures numa enseada amena. Ainda assim, seria de esperar que uma parte chegasse porventura ao seu destino.
Com a ajuda de um pedaço de madeira caído ali perto, Shimamoto começou a cavar numa zona em que a terra era bastante mole. Dei-lhe uma mãozinha. Assim que conseguimos abrir um pequeno buraco, Shimamoto enterrou a urna envolta em tecido. A distância ouvia-se os corvos a grasnar, talvez por terem observado as nossas acções desde o princípio. "Não importa, se quiserem olhar, que olhem", pensei. "Não fizemos nada de mal. Limitámo-nos a deitar cinzas ao rio."
- Achas que vai chover? - perguntou Shimamoto, esforçando-se por alisar o terreno com a ponta da bota.
Levantei os olhos para o céu.
- Quer-me parecer que o tempo ainda se vai aguentar -observei.
- Não, não me refiro a isso. O que quero saber é se as cinzas do bebé, uma vez chegadas ao mar, se evaporarão misturadas com a água, para depois se transformarem em nuvens e caírem sobre a terra em forma de chuva.
Voltei a levantar a cabeça para o céu. Depois baixei o olhar para o rio que corria. - Nunca se sabe.
Dirigimo-nos para o aeroporto no carro de aluguer. O tempo começara a mudar bruscamente. O céu estava coberto de grossas nuvens densas, escondendo por completo os pedaços de azul que antes se mostravam visíveis. Tudo indicava que iria começar a nevar de um momento para o outro.
- Eram as cinzas do meu bebé - declarou Shimamoto como se estivesse a falar para si mesma. - O meu único filho.
Olhei para ela e depois voltei a concentrar a minha atenção na estrada. A nossa frente, os camiões salpicavam-nos com a neve suja do degelo, obrigando-me a ligar o limpa-pára-brisas com frequência.
- Morreu logo a seguir a ter nascido - disse ela. - Viveu apenas um dia. Só o pude ter nos braços duas ou três vezes. Era um bebé maravilhoso. Tinha uma pele tão doce... Não conseguiram descobrir ao certo a causa da morte, mas parece que não conseguia respirar bem. Quando morreu, já estava com uma cor diferente.
Não soube o que dizer. Estendi a mão esquerda e pousei-a na sua.
- Era uma menina. Ainda não lhe tinha dado nome.
- Quando aconteceu isso?
- No ano passado, por esta altura. Em Fevereiro.
- Tenho muita pena.
- Não quis que ela fosse enterrada. Não podia imaginá-la enfiada num lugar escuro. Preferi conservá-la junto de mim durante algum tempo até poder deixá-la flutuar em direcção ao mar arrastada pela corrente e transformar-se em chuva.
A seguir Shimamoto deixou-se ficar calada durante muito tempo. Eu continuei sempre a conduzir, sem dizer palavra. Pensei que talvez ela não tivesse vontade de conversar e achei por bem deixá-la em paz. Não tardei, porém, a dar-me conta de que alguma coisa de errado se passava com ela - a sua respiração produzia um som estranho, parecido com o ruído mecânico de uma máquina. A primeira coisa que pensei foi que se tratava de algum problema com o motor do carro, até perceber que provinha do assento ao meu lado. Era como se Shimamoto tivesse um buraco na traqueia e o ar conseguisse escapar-se por ali de cada vez que ela respirava.
Enquanto esperava num semáforo que o sinal abrisse, observei-a de perfil. Estava branca como uma folha de papel e estranhamente rígida. Encostara a cabeça ao assento e olhava fixamente o vazio à sua frente. Não movia um músculo; de tempos a tempos lá mexia as pálpebras, como que por reflexo condicionado. Continuei a guiar até encontrar um sítio onde parar - mais concretamente, o parque de estacionamento deserto de um centro de bowling abandonado. No telhado do edifício, que mais parecia um hangar de aeroporto, erguia-se um cartaz encimado por uma gigantesca bola de bowling. Não se via mais nenhum carro estacionado. A paisagem revelava-se tão desoladora, que dir-se-ia que tínhamos chegado aos confins da Terra.
- Shimamoto-san - chamei. - Estás bem?
Ela não respondeu. Enterrada no assento, continuava a fazer aquele bizarro som que não parecia deste mundo. Toquei-lhe na face. Estava pálida e gelada, à imagem e semelhança da paisagem que nos rodeava. Também a sua testa se caracterizava pela ausência de calor. Senti-me sufocar. Pensei que ela fosse morrer ali mesmo. Os seus olhos careciam de expressão. Olhei-a bem no fundo das pupilas. Não conseguia ver rigorosamente nada: nelas adivinhava-se, fria e escura, a presença da morte.
- Shimamoto - tornei a chamar bem alto. Ela não me deu resposta nem esboçou a mínima reacção. Tinha o olhar perdido no vazio. Nem sequer sabia se ela estava consciente. Precisava de a transportar até às urgências de um hospital o quanto antes. Iríamos certamente perder o avião, mas não era altura para me preocupar com isso. Se calhar, Shimamoto estava a morrer e eu não podia de maneira alguma deixá-la morrer ali.
Mal acabara de pôr o motor em marcha, dei-me conta de que Shimamoto se esforçava por falar. Desliguei o motor, encostei o ouvido aos seus lábios, mas não fui capaz de entender o que ela dizia. Mais do que palavras, pareciam sons que reproduziam o ar a escapar-se por uma fresta na parede. Reunindo todas as suas forças, ela repetiu a mesma ladainha, uma vez e outra. Finalmente, consegui perceber a palavra "medicamento".
- Queres tomar algum medicamento? - perguntei.
Ela acenou ao de leve com a cabeça, um aceno quase imperceptível. Pelos vistos, era o movimento mais amplo que podia permitir-se fazer. Vasculhei os bolsos do seu casaco. Tinha um porta-moedas, um lenço e um molho de chaves, mas nenhum medicamento. Abri o saco que trouxera ao ombro. Lá dentro, num bolso interior, havia um pacotinho com quatro cápsulas pequenas. Mostrei-lhas. "É isto?", perguntei.
Ela fez que sim com a cabeça sem mexer os olhos.
Inclinei o assento dela para trás, abri-lhe a boca e introduzi uma cápsula. Porém, não consegui que ela engolisse o medicamento, visto que tinha a boca muito seca. Olhei em redor à procura de uma máquina automática de bebidas, mas não descobri nem uma para amostra. O único líquido que encontrei à mão de semear foi a neve. E neve, por sorte, era coisa que não faltava. Saltei do carro, procurei arranjar neve gelada e limpa por debaixo de um algeroz do edifício e recolhi-a com a ajuda do gorro de lã de Shimamoto. Depois tratei de a ir introduzindo, pouco a pouco, aos pedacinhos na minha boca, para derreter. Demorou muito tempo até ficar líquida e acabei por perder a sensibilidade na ponta da língua, mas não me lembrei de nada melhor. Abri a boca de Shimamoto e passei a água da minha boca para a dela. Terminada a operação, tapei-lhe o nariz e fi-la engolir à força. Ela ainda se engasgou um bocadinho, mas, depois de repetir a operação duas ou três vezes, lá conseguiu finalmente engolir a dita cápsula.
Analisei o envelope onde vinham as tais cápsulas. Não tinha nada escrito. Nem o nome do medicamento, nem o de Shimamoto, nem a posologia, nada. Estranho, pensei eu, considerando que as informações desse género costumavam ser dadas, a fim de evitar que uma pessoa tome um remédio por engano, ou então para que os outros saibam o que fazer quando isso acontece. Voltei a guardar o envelope no bolso interior da mala e fiquei ali a observá-la, atento ao evoluir da situação. Não fazia ideia de que medicamento se tratava, nem quais os sintomas dela, mas se era verdade que andava sempre consigo, nesse caso deveria produzir efeito. No mínimo, eram sintomas que ela já previa.
Dez minutos mais tarde, as faces começaram a recuperar a sua cor. Experimentei encostar suavemente a minha cara de encontro à sua. Ainda que de forma imperceptível, dava para sentir algum calor. Soltei um suspiro de alívio e deixei-me cair no assento. Pus os meus braços à volta dos seus ombros e encostei de novo a minha face na dela. Afinal, Shimamoto regressava, se bem que lentamente, ao mundo dos vivos.
- Hajime - murmurou ela numa vozinha seca.
- Não será melhor irmos a um hospital? - perguntei. - Se quiseres, podemos ir à procura do posto de saúde mais próximo...
- Deixa estar, não é preciso - respondeu. - Já me sinto melhor. Logo que tomo este remédio fico bem. Daqui a nada estarei completamente refeita. Temos de nos preocupar é com as horas. Se não formos depressa para o aeroporto, perdemos o avião.
- Deixa lá isso agora. Ficamos aqui até que te sintas perfeitamente recomposta.
Limpei-lhe a boca com o meu lenço. Ela tirou-mo da mão e olhou para ele.
- És sempre assim tão bondoso com todas as pessoas?
- Não, com todas as pessoas não - referi. - Contigo, sim. Não poderia ser amável com toda e qualquer pessoa. E mesmo pela parte que te toca, há limites para a minha bondade. Quem me dera que não houvesse, pois então poderia fazer mais por ti, mas infelizmente não é isso que acontece.
Shimamoto virou-se e olhou para mim de frente.
- Hajime, quero que saibas que não fiz tudo isto de propósito para perdermos o avião - disse ela baixinho.
Olhei para ela com surpresa.
- É óbvio que não! Nem é preciso que mo digas, sei disso. Sentiste-te indisposta. Ninguém tem culpa
- Desculpa.
- Não precisas de pedir desculpa, a culpa não foi tua.
- Sim, mas estraguei os teus planos.
Acariciei os seus cabelos, inclinei-me e pousei os lábios na sua face. Teria dado tudo para a apertar nos meus braços e sentir na minha pele o calor do seu corpo. Mas não podia. Limitei-me a dar-lhe um beijo na cara, que estava quente, suave e húmida.
- Não te deves preocupar com nada - afirmei. - Vais ver que corre tudo bem.
Chegados ao aeroporto, devolvemos o carro e verificámos que passava, e muito, da hora de embarque. Por sorte, o nosso voo estava atrasado. O avião com destino a Tóquio ainda se encontrava na pista e os passageiros, à espera no terminal, ainda não haviam embarcado. Na posse daquela informação, suspirámos os dois de alívio. "Estão ainda a verificar os motores", foi-nos dito no balcão das informações. "Por enquanto não podemos adiantar mais nada." Estava a começar a nevar quando chegámos ao aeroporto; naquele momento, caía um nevão que não era brinquedo. Era muito possível que o voo fosse cancelado.
- Que vais fazer se não pudermos regressar hoje a Tóquio? -perguntou-me Shimamoto.
- Não te preocupes. O avião acabará por descolar - respondi. A bem dizer, nada me garantia que isso acontecesse. Só de pensar que o voo fosse cancelado, caía-me o coração aos pés. Nesse caso, lá teria eu que inventar uma boa desculpa, a fim de explicar a minha presença no aeroporto de Ishikawa. "Bom, logo pensarei nisso quando chegar a altura", disse para comigo mesmo. Primeiro estava Shimamoto.
- E tu? - perguntei. - Que acontece se não conseguires regressar hoje a Tóquio?
Ela abanou a cabeça.
- Não te preocupes comigo - disse. - O problema é teu. Tu é que podes arranjar problemas.
- Talvez, mas não há motivos para preocupação: ainda não confirmaram que o voo foi cancelado.
- Já sabia que ia acontecer algo do género - disse ela em voz baixa, como se estivesse a falar consigo mesma. - Quando estou por perto, não há nada de bom a esperar. Coisas que funcionavam sem problema, basta eu entrar em cena e bum!, desata logo tudo a correr mal.
Sentei-me num banco da sala de embarque, a pensar na chamada telefónica que teria de fazer para Yukiko no caso de o voo ser de facto cancelado. Vieram-me à cabeça diversas frases que poderia inventar, mas não passavam de desculpas esfarrapadas.
Tinha saído de casa num domingo de manhã dizendo que ia ter com uns amigos ao clube de natação e naquele momento encontrava-me retido por causa da neve em pleno aeroporto de Ishikawa. Não havia justificação possível. "Ao sair de casa, deu-me uma vontade louca de ver o mar do Japão e vai daí dirigi-me ao aeroporto de Haneda." Tratava-se de uma explicação absurda, que não cabia na cabeça de ninguém. Nesse caso, era preferível ficar calado. Ou, melhor ainda, confessar-lhe a verdade. Para minha grande surpresa, dei-me conta de que, no fundo, tinha esperança de que o voo fosse cancelado. Desejava que o avião não levantasse voo, que ficássemos ali bloqueados pela neve. No meu subconsciente, desejava que a minha mulher descobrisse que eu tinha ido até tão longe na companhia de Shimamoto. Queria pôr um ponto final a todas as desculpas, acabar de vez com as mentiras. Mais do que tudo, queria ficar exactamente onde me encontrava, com Shimamoto a meu lado, e deixar que os acontecimentos seguissem o seu curso.
O voo saiu finalmente com uma hora e meia de atraso.
No avião, Shimamoto permaneceu o tempo todo a dormir, encostada a mim. Ou talvez só tivesse os olhos fechados. Pus o meu braço à volta dos seus ombros e apertei-a contra mim. De vez em quando, parecia chorar no seu sono. Nem ela nem eu pronunciámos uma palavra. Só abrimos a boca quando o avião iniciou as manobras de aterragem.
- Shimamoto-san, de certeza que estás bem? Aninhada em mim, ela respondeu que sim com a cabeça.
- Estou bem. Desde que tome o remédio, passa-me. Não te preocupes - ao dizer aquilo, encostou a cabeça ao meu ombro. -Não me faças perguntas, pode ser? Por que razão aconteceu o que aconteceu.
- De acordo. Nada de perguntas - concordei.
- Obrigada pelo dia de hoje.
- Que parte do dia de hoje?
- Por me teres levado até ao rio. Por me teres ajudado a beber água passando-a da tua boca para a minha. Por me teres aturado.
Olhei para ela. Os seus lábios estavam ao alcance dos meus. Os lábios que eu tinha beijado ao dar-lhe a beber água da minha boca. E uma vez mais aqueles lábios pareciam procurar os meus. Levemente entreabertos, deixavam entrever uns bonitos dentes brancos. Ainda recordava o toque da sua língua suave que roçara ao de leve por breves instantes quando lhe dava água a beber. Experimentei uma terrível sensação de asfixia e não era capaz de pensar em nada. O corpo ardia-me. "Ela deseja-me", pensei. E também eu a desejava. No entanto, lá me contive. Tinha de parar naquele ponto. Mais um passo e não poderia voltar atrás.
Quando cheguei ao aeroporto de Haneda, liguei para casa. Já eram oito e meia.
- Desculpa se me atrasei - disse à minha mulher -, não foi possível ligar mais cedo. Dentro de uma hora estou em casa.
- Ainda esperei por ti, mas às tantas achei que era melhor jantarmos. Fiz nabemono(18).
Dei boleia a Shimamoto no meu BMW, que deixara estacionado no aeroporto.
- Onde queres que te leve?
- Se não te fizer diferença, podes deixar-me em Aoyama. A partir daí posso perfeitamente regressar sozinha para casa.
(18) Um prato estufado preparado num fogãozinho colocado sobre a mesa e servido na própria panela de barro, donabe. Os ingredientes podem ser variados, da carne ao peixe, passando pelas verduras. (N. da T.)
- De certeza?
Ela sorriu e acenou que sim.
Fizemos a viagem de carro em silêncio até eu virar para a estrada principal, em Gaien. Tinha posto a tocar baixinho na aparelhagem do carro um concerto para órgão de Haendel. Shimamoto mantinha ambas as mãos sobre os joelhos e olhava fixamente pela janela. Era domingo à noite e nos carros com que nos cruzávamos só viajavam famílias que regressavam a casa depois de passar o dia fora. Eu metia as mudanças e mudava de velocidade com mais brusquidão do que era costume.
- Ouve-me uma coisa, Hajime - disse ela ao chegarmos ao bairro de Aoyama. - Há bocado dei por mim a desejar que o avião não tivesse levantado voo.
Gostaria de lhe ter dito que também eu pensara a mesma coisa, mas não fui capaz e calei-me. Tinha a boca seca e as palavras pareciam não querer sair. Limitei-me a acenar com a cabeça e a apertar-lhe suavemente a mão. Na esquina de Ayoamachome, ela pediu-me que parasse e eu deixei-a sair do carro.
- Posso tornar a ver-te? - perguntou-me ela em voz baixa no momento em que abria a porta. - Ainda não estás farto de mim?
- Fico à tua espera. Até breve - disse eu. Shimamoto acenou afirmativamente.
Enquanto me afastava e percorria a Avenida Aoyama, pensava no seguinte: "Se não voltar nunca mais a vê-la, enlouquecerei." No momento em que ela saíra do carro, o meu mundo tinha perdido, de repente, todo o sentido.
Quatro dias depois de Shimamoto e eu termos viajado até Ishikawa, recebi um telefonema inesperado do meu sogro. Disse que tinha um favor para me pedir e convidou-me para almoçar no dia seguinte. Aceitei, se bem que a coisa me tenha surpreendido bastante. O meu sogro era uma pessoa bastante ocupada e só costumava sair para almoçar fora quando se tratava de assuntos de trabalho.
Seis meses antes, a sua empresa de construção tinha sido transferida da zona de Yoyogi para um novo edifício de sete andares, em Yotsuya. Os seus escritórios ocupavam os dois últimos pisos, e, do quinto andar para baixo, ele tinha-os alugado a outras firmas, restaurantes e lojas. Era a primeira vez que eu visitava o edifício, que brilhava e respirava como acabado de estrear. O piso do vestíbulo era todo em mármore, com um pé-direito altíssimo, e via-se um enorme jarrão de cerâmica repleto de flores. Quando saí do elevador, no sexto andar, fui recebido por uma jovem recepcionista com um cabelo tão bonito que parecia saída do anúncio a um qualquer champô. Foi ela que se encarregou de anunciar a minha presença ao meu sogro utilizando para o efeito um telefone cinzento-escuro ultramoderno em forma de espátula e equipado com uma calculadora.
Dirigindo-me um largo sorriso, disse: "Faça favor de entrar. O senhor presidente está à sua espera no gabinete." Tinha um sorriso deslumbrante, mas nada que se comparasse com o de Shimamoto.
O gabinete do senhor presidente situava-se no último andar. Uma grande janela panorâmica permitia admirar a cidade de Tóquio. Não se podia dizer que a vista tivesse propriamente o efeito de apaziguar o espírito, mas a divisão revelava-se luminosa e ampla. Na parede estava pendurado um quadro impressionista. Representava um barco e um farol. Parecia um Seurat, muito possivelmente um original.
- Os negócios continuam de vento em popa, não é verdade? - disse eu ao meu sogro.
- Não vão mal - admitiu ele. Foi até à janela e apontou lá para fora. - Não me posso queixar, de facto. E com a perspectiva de melhorarem. Esta é uma boa altura para fazer dinheiro. No caso das pessoas que trabalham no meu ramo, uma oportunidade assim aparece em cada vinte ou trinta anos. Se não ganharmos dinheiro agora, nunca mais ganharemos. Sabes porquê?
- Não faço ideia. O negócio da construção civil não é exactamente o meu campo.
- Aproxima-te da janela e olha bem para Tóquio. Estás a ver todos aqueles lotes de terreno vazios que parecem bocas desdentadas? Aqui de cima, estão à vista de toda a gente, mas quem anda pelas ruas nem dá por eles. Antigamente naqueles lugares havia casas e edifícios velhos que foram demolidos. O preço dos terrenos por metro quadrado disparou em flecha e as construções antigas são cada vez menos rendíveis. Num prédio velho não se pode exigir uma renda elevada e o número de hipotéticos inquilinos é diminuto. O que faz falta são edifícios novos e grandes. Quanto aos andares particulares no centro da cidade... bom, verdade seja dita que com o aumento do preço dos terrenos e entre impostos sobre bens imobiliários e impostos sucessórios, o preço a pagar torna-se incomportável para a maioria das pessoas e quase toda a gente acaba por vender. Resultado, abandonam as suas casas no coração da cidade e vão viver para a periferia. Essas habitações são depois adquiridas pelas empresas imobiliárias. As ditas empresas especializadas compram esses velhos edifícios, deitam-nos abaixo e no seu lugar constróem novos, muito mais funcionais a todos os níveis. Quer isto dizer que naqueles espaços em aberto que vês diante de ti irão ser construídos novos edifícios enquanto o diabo esfrega um olho. No espaço de dois ou três anos, a cidade de Tóquio ficará irreconhecível. A economia japonesa atravessa um momento de grande actividade, além de que a Bolsa continua em alta. Quem for dono de um terreno facilmente obtém uma hipoteca e consegue que lhe emprestem todo o dinheiro que quer. Por isso é que, como podes ver, os edifícios crescem como cogumelos, um atrás do outro. E quem é que pensas que constrói esses edifícios? Homens como eu, escusado será dizer.
- Estou a ver - disse eu. - Mas se continuarem a construir prédios por Tóquio inteiro, que acontecerá a esta cidade?
- Que acontecerá? Ora essa, tornar-se-á uma cidade mais dinâmica, muito mais bonita e muito mais funcional. Afinal de contas, o aspecto de uma cidade reflecte o estado da economia de um país.
- Isso é tudo muito bonito, mas as ruas de Tóquio já se encontram invadidas por carros. Se aumenta o número de edifícios, deixará de ser possível circular e as estradas correm o risco de se transformar num gigantesco parque de estacionamento. Já para não falar no abastecimento de água: basta que não chova, para faltar a água. E no Verão, quando toda a gente ligar os aparelhos de ar condicionado, haverá energia suficiente, pergunto eu? É bom não esquecer que as nossas fábricas estão em funcionamento graças ao petróleo do Médio Oriente. Que acontece se houver outra crise do petróleo? Sim, que faremos nesse caso?
- Deixa que seja o governo japonês e quem administra os destinos da cidade de Tóquio a preocupar-se com essas questões. Não é para isso que pagamos impostos tão elevados? Deixa lá que sejam os funcionários públicos saídos da Universidade de Tóquio a preocuparem-se com isso. Eles, que passam a vida armados em importantes, como se fossem os responsáveis pelo facto de o país andar para a frente. Eles que dêem uso às suas cabecinhas para esse efeito. Pela parte que me toca, não passo de um simples construtor, limito-me a receber ordens e a pôr de pé os edifícios que me são encomendados. Chama-se a isso lei de mercado, certo?
Não lhe dei troco. Vendo bem, não tinha ido até ali para discutir com o meu sogro a situação da economia japonesa.
- Bom - retomou ele o fio à meada -, deixemo-nos destas questões assaz complicadas e vamos lá comer qualquer coisa. Estou com uma fome de lobo.
Metemo-nos no seu bruto Mercedes negro com telefone incorporado e dirigimo-nos a um restaurante de Akasaka(19) especializado em enguias. Conduziram-nos a uma sala reservada nas traseiras e ficámos sentados um diante do outro. Comemos enguias e bebemos saquê. Como ainda era cedo, só molhei os lábios, mas o meu sogro tratou de esvaziar uma taça atrás de outra.
- De que assunto é que me queria falar? - ataquei. Caso se tratasse de alguma coisa desagradável, mais valia ser eu a desencadear a ofensiva.
(19) Zona central de Tóquio, caracterizada por grandes hotéis e escritórios das empresas importantes. (N. da T.)
- Tenho um favor para te pedir - replicou ele. - Nada do outro mundo. Preciso de me servir do teu nome para uma coisa.
- O meu nome?
- Estou a pensar em fundar uma nova empresa e preciso de um testa-de-ferro. Não é preciso ter qualquer requisito especial, basta que o teu nome possa figurar nos estatutos. Prometo que não te causará qualquer tipo de problema, além de que serás devidamente recompensado.
- Não precisa de se preocupar com isso - ripostei. - Pode usar o meu nome as vezes que precisar. Mas, já agora, de que género de empresa é que estamos a falar? Se o meu nome vai figurar como sócio fundador, gostaria ao menos de saber do que se trata.
- Para ser honesto contigo, não é propriamente uma empresa - respondeu o meu sogro. - A ti, posso dizer a verdade. É uma empresa apenas de nome, e não de facto.
- Uma empresa-fantasma, por outras palavras? Que é como quem diz, fictícia?
- Sim, num certo sentido podemos dizer que sim.
- E qual o objectivo de tudo isto? Fugir aos impostos?
- Hmm... Não exactamente - respondeu o meu sogro com um certo embaraço.
- Trata-se de dinheiro para pagar luvas a alguém? - atrevi-me a perguntar.
- Uma coisa desse género - admitiu ele. - Sou o primeiro a confessar que não me agrada lá muito ver-me metido nesse género de coisas, mas na nossa profissão às vezes tem de ser.
- E se alguma vez surgir um problema? Nesse caso, qual seria a minha posição?
- Fundar uma empresa, em si, não é ilegal.
- Refiro-me às actividades da empresa.
O meu sogro tirou o maço de tabaco do bolso e acendeu um cigarro com um fósforo. Depois lançou o fumo todo para o ar.
- Não haverá qualquer problema. E, mesmo que haja, toda a gente com dois dedos de testa compreenderia que tinhas sido obrigado a deixar-me usar o teu nome, por uma questão de dever familiar. Ninguém te acusaria pelo facto de fazeres um favor ao teu sogro.
Aquilo deu-me que pensar.
- E onde vai parar todo esse capital oculto?
- É melhor que não saibas.
- Gostaria de conhecer melhor os mecanismos da chamada "lei de mercado" - referi. - Quer isso dizer que o dinheiro vai parar aos bolsos de algum político?
- Em parte - disse ele.
- Burocratas?
O meu sogro esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro.
- Atenção, estás a falar de subornos. Isso é coisa que pode levar à prisão.
- E, contudo, no mundo dos negócios toda a gente o faz, ou estou enganado?
- Pode ser que sim - reconheceu ele. Ao reconhecer aquilo, exibia uma expressão contrita. - Mas não ao ponto de uma pessoa ir dentro.
- E os membros da yakuzal Devem ser muito úteis quando se trata de compra e venda de terrenos, não?
- Nada disso, nunca tive nada que ver com eles. De qualquer forma, não ando para aí a monopolizar o mercado. É lucrativo, reconheço, mas não faço essas coisas. Tal como te disse, sou um simples construtor.
Soltei um suspiro profundo.
- Já calculava que a corrversa não ia ser do teu agrado.
- Não vem ao caso se eu gosto ou não, uma vez que já me incluiu nos seus planos, não é verdade? Partiu do princípio de que eu diria que sim.
- Receio bem que tenhas razão - disse ele com um sorriso pouco natural.
Voltei a suspirar.
- Olhe, pai, para lhe dizer a verdade, este tipo de coisas desagrada-me. E não digo isto por se tratar de uma ilegalidade. Como o senhor sabe, sou um homem vulgar, que leva a sua vida normalmente. E, na medida do possível, preferia não me ver envolvido em negócios escuros.
- Compreendo perfeitamente a tua posição, acredita -replicou ele. - Por isso é que deves deixar que seja eu a tratar de tudo. Podes ter a certeza de que nada farei passível de te causar problemas. A seres prejudicado, em última instância também Yukiko e as minhas netas pagariam as consequências. E isso jamais o permitiria. Sabes bem como elas são importantes para mim.
Assenti. Não estava propriamente em condições de recusar a proposta dele. Só de pensar nisso, ficava angustiado. Aos poucos, acabaria por criar elos de ligação e ficar cada vez mais preso a esse mundo. Aquele era apenas o primeiro passo; primeiro dizia que sim àquilo; a seguir, surgiria outro compromisso do género.
Continuámos a nossa refeição. Eu tomei chá a acompanhar, o meu sogro continuava a emborcar álcool em quantidades impressionantes.
- Quantos anos tens agora? - perguntou ele de repente.
- Trinta e sete - respondi.
Ele olhou para mim fixamente.
- Uma bela idade para se tirar o melhor partido da vida -disse ele. - O trabalho corre bem, uma pessoa tem confiança nas suas próprias capacidades. E isso são tudo coisas que atraem as mulheres, não é assim?
- No meu caso, não muitas, infelizmente - disse eu com um sorriso, ao mesmo tempo que observava atentamente a sua expressão. Por um momento entrei em pânico, acreditando que o meu sogro sabia da minha história com Shimamoto e que me tinha chamado ali para falar disso. Mas não, estava apenas a fazer conversa de circunstância.
- Lembro-me de me ter divertido muito, quando tinha a tua idade. Por isso não te vou dizer que não saias com outras mulheres. É estranho estar com este discurso, sendo tu o marido da minha filha, mas a verdade é que penso que uma ou outra facadinha no matrimónio não faz mal algum ao casamento. Antes pelo contrário, até pode revelar-se refrescante. Funciona como um escape e faz com que as coisas corram melhor em família, além de que uma pessoa até se concentra melhor no trabalho. Por isso longe de mim apontar-te o dedo e criticar-te se andares a ir para a cama com outras mulheres. Só te peço que tenhas cuidado com quem o fazes. Se te envolveres com a mulher errada, ficas com a vida arruinada. Já vi isso acontecer milhões de vezes.
Assenti. E, de repente, lembrei-me de Yukiko me ter contado que o irmão e a mulher não se entendiam. O irmão dela, um ano mais novo do que eu, tinha uma amante e aparecia em casa cada vez menos. Imaginei que o meu sogro pudesse estar preocupado com o filho mais velho, daí que tivesse trazido o assunto à baila.
- Por isso, não te envolvas com uma mulher estúpida e medíocre, ou acabarás por estupidificar, também tu. O que não é o mesmo que dizer para andares metido com mulheres daquelas que têm classe para dar e vender, porque depois já não podes voltar atrás e custa-te mais a lidar com o que tens à espera em casa. Compreendes o que te digo?
- Acho que sim.
- Basta que tenhas em atenção duas ou três coisas. Primeiro, nunca deves montar apartamento à tua amante. Esse é um erro fatal. Segundo, nunca regresses a casa depois das duas da manhã. As duas da matina funcionam como a hora-limite. Terceiro e último, não recorras aos amigos para encobrir as tuas aventuras. Arriscas-te a ser descoberto. No caso de isso acontecer, paciência, mas não vale a pena perder um amigo por isso.
- Estou a ver que fala com conhecimento de causa.
- Podes crer. Um homem só aprende com a experiência -disse ele. - Claro que também há neste mundo aqueles que nunca aprendem nada de nada, mas não é o teu caso. Tu revelas grande perspicácia e isso é uma coisa que só se adquire com a prática. Estive nos teus bares apenas uma ou duas vezes, mas, à partida, percebi logo que te sabes rodear de gente de talento e que sabes como tratá-los.
Fiquei calado, à espera de que ele continuasse.
- Tiveste bom olho quando se tratou de escolher a mulher com quem casaste. Até ao momento, tens sabido conduzir a tua vida conjugal e Yukiko parece feliz contigo. As tuas duas filhas são umas meninas encantadoras. Estou-te muito agradecido por isso.
"O homem está perdido de bêbado", pensei eu. Contudo, permaneci em silêncio, sem dizer nada.
- Talvez não saibas, mas Yukiko tentou suicidar-se em tempos. Uma vez, tomou comprimidos. Tivemos de a levar de escantilhão para o hospital, ficou em coma e só recuperou a consciência passados dois dias. Pensei que a íamos perder. Tinha o corpo gelado, quase não respirava. Convenci-me de que iria morrer. Senti que o mundo à minha volta se desmoronava.
Levantei a cabeça e encarei-o.
- Quando foi isso?
- Tinha ela vinte e dois anos. Pouco depois de acabar a universidade. Fê-lo por causa de um homem. Um perfeito atraso de vida, por sinal. Yukiko parece ser uma rapariga muito calma, mas no fundo tem uma personalidade forte, é uma rapariga determinada e cheia de carácter, para além de ser inteligente. Nunca percebi como é que pôde alguma vez envolver-se com um tipo daqueles. - Sentado no chão, o meu sogro apoiou-se contra o tokonoma(20) que existia na sala decorada ao estilo tradicional japonês onde nos encontrávamos e acendeu um cigarro. -É verdade que foi ele o primeiro homem da vida dela. Na primeira vez toda a gente comete erros. Para Yukiko, no entanto, tratou-se de um golpe terrível. Daí que tenha tentado suicidar-se. Durante muito tempo, depois disso, não quis voltar a ter nada com outro homem. Ela, que antes disso sempre se mostrara disposta a isso, passou a andar taciturna, sempre fechada em casa. Claro que, ao travar conhecimento contigo, voltou a sair e recuperou a alegria de viver. Mudou por completo. Foi no decorrer de uma viagem que os dois se conheceram, ou estou enganado?
- Exactamente. Em Yatsugatake.
- Quase tive de a empurrar até à porta para ela ir. Disse-lhe que uma viagem daquelas só lhe faria bem.
Fiz um aceno com a cabeça em sinal de concordância.
- Não sabia dessa história do suicídio - confessei.
- Sempre achei que era melhor que não soubesses, por isso não comentei o caso contigo, mas agora acho que é chegado
(20) Uma espécie de nicho que se destina a receber objectos decorativos num espaço decorado com flores, cerâmica e um pergaminho mudado consoante a estação do ano, e que assinala o lugar de honra. (N. da T.)
o momento de conheceres a verdade. Ainda têm muitos anos de vida juntos, mais vale ficares a saber tudo. O bom e o mau. Além do mais, aconteceu há muito tempo e pertence ao passado.
O pai de Yukiko fechou os olhos e lançou o fumo para o ar.
- Pode parecer estranho dizer isto, senão mesmo gabarolice, pelo facto de ser pai dela, mas Yukiko é boa rapariga. Falo com conhecimento de causa, uma vez que dei as minhas voltinhas e sei do que falo quando falo de mulheres. Apesar de ela ser minha filha, pode dizer-se que tenho olho para reconhecer os seus defeitos e qualidades. Por exemplo, a irmã mais nova é mais bonita, mas Yukiko é melhor como pessoa. Tu mostraste ser bom a avaliar pessoas e soubeste escolher. Continuei calado.
- Diz-me uma coisa, não tens irmãos nem irmãs, pois não?
- Não - disse eu.
- Pois eu tenho três filhos. Acreditas se te disser que gosto deles por igual?
- Não faço ideia.
- E tu? Gostas das tuas filhas da mesma maneira?
- Claro que sim.
- Isso é porque elas ainda são pequenas - disse ele. -Quando crescerem, vais ver que começam a aparecer as preferências, primeiro começas a inclinar-te para uma, depois para outra... Um dia vais entender o alcance das minhas palavras.
- A sério?
- Isto só te digo a ti, mas dos meus três filhos é Yukiko a preferida. Bem sei que pode não ser justo para os outros dois, mas é mais forte do que eu. Compreendemo-nos melhor e sei que posso confiar nela.
Assenti.
- Tu sabes avaliar as pessoas que te rodeiam e olha que isso é uma qualidade que deves cultivar. Por mim falo, que nesse aspecto sou um caso perdido, mas pelo menos ajudei a criar qualquer coisa que merece respeito.
Auxiliei o meu sogro, por essa altura já muito embriagado, a entrar para o Mercedes. Ao afundar-se no assento, ele abriu as pernas e fechou os olhos. Quanto a mim, apanhei um táxi e regressei a casa. Assim que cheguei, Yukiko quis logo saber do que tínhamos falado durante o almoço, o pai e eu.
- Nada de importante - expliquei. - O teu pai só queria companhia para beber um copo. No fim da refeição, já estava bastante tocado. Tenho as minhas dúvidas de que estivesse em condições para voltar ao escritório e trabalhar.
- É sempre a mesma história - disse ela a rir-se. - Começa a beber à hora do almoço e depois adormece. Faz uma sesta de uma hora no sofá que tem no escritório. Uma vez que a firma ainda não foi à falência, não é caso para nos preocuparmos por aí além.
- Fiquei com a impressão de que já não aguenta tão bem o álcool.
- Lá isso é verdade. Antes de a minha mãe morrer, podia beber como um desalmado que não se notava. Era rijo como um carvalho. Que havemos de fazer? A idade não perdoa.
Ela fez café e sentámo-nos a bebê-lo frente a frente, à mesa da cozinha. Não lhe contei nada acerca do projecto da empresa-fantasma, comigo na qualidade de testa-de-ferro. Serviria apenas para ela ficar irritada com o pai pelo facto de pensar que ele estava a chatear-me a cabeça. "Sim, é verdade que o meu pai te emprestou dinheiro, mas por que diabo vem isso ao caso?", diria ela. "Ou não será que lhe tens vindo a pagar, e com juros?" Acontecia, porém, que a situação não era assim tão simples.
A minha filha mais nova estava a dormir profundamente no seu quarto. Quando acabei de tomar café, convidei Yukiko a meter-se na cama comigo. Despimo-nos e abraçámo-nos em silêncio à luz clara do dia, naquele princípio de tarde. Procurei excitá-la durante o tempo que foi preciso e depois entrei nela. Mas durante todo o tempo que estive dentro dela, foi sempre em Shimamoto que pensei. Fechei os olhos e era Shimamoto quem eu penetrava. Ejaculei violentamente.
Tomei duche e voltei a deitar-me, apostado em dormir um pouco. Yukiko entretanto já se vestira, mas, quando me enfiei na cama, estendeu-se a meu lado e encostou os lábios às minhas costas. Fiquei ali deitado, em silêncio, com os olhos fechados. Tinha feito amor com ela a pensar numa outra mulher, e fui dominado por um sentimento de culpa.
- Sabes uma coisa? - perguntou Yukiko. - Amo-te de verdade.
- Estamos casados há sete anos e temos duas filhas - disse eu. - Não te parece que está na altura de começares a ficar farta de mim?
- Se calhar. O que não me impede de te amar. Abracei-a e comecei de novo a despi-la. Tirei-lhe a camisola e a saia, depois a roupa interior.
- Não me digas que... outra vez... - exclamou ela, surpreendida.
- Claro, porque não?
- Tenho de assinalar isso no meu diário - observou ela. Dessa vez, esforcei-me por não pensar em Shimamoto.
Apertei Yukiko com força nos meus braços, olhei-a nos olhos e concentrei os meus pensamentos única e exclusivamente nela. Beijei-a na boca, no pescoço, nos seios. Vim-me dentro dela. Depois de ejacular, continuei a abraçá-la com força.
- Estás bem? - perguntou ela, olhos nos olhos. - Aconteceu alguma coisa hoje com o meu pai?
- Não, nada - respondi. - Nada mesmo. Apetece-me ficar assim mais um pouco, só isso.
- Por mim, tudo bem - disse ela, apertando bem, sempre comigo dentro dela. Fechei os olhos e puxei-a de encontro a mim, como se temesse que, se não o fizesse, o meu corpo fugisse sei lá para onde.
Enquanto a abraçava, recordei a história da tentativa de suicídio que me fora contada pelo pai. "Pensei que a íamos perder. Convenci-me de que iria morrer." Teria bastado um pequeno erro e aquele corpo não estaria ali, entre os meus braços. Acariciei docemente os seus ombros, passei-lhe a mão pelos cabelos, pelos seios. Eram reais - quentes e suaves ao toque. Sentia a vida de Yukiko pulsar na palma da minha mão. Ninguém tinha maneira de saber até quando duraria. Tudo o que tem uma forma pode desaparecer de um momento para o outro. Yukiko. Aquele quarto. Aquelas paredes, o tecto, a janela. Tudo aquilo poderia desaparecer para sempre, sem que nos déssemos conta de nada. De repente lembrei-me de Izumi. Tinha-a magoado profundamente, tal como o outro homem fizera com Yukiko. Calhara Yukiko conhecer-me depois, mas podia dar-se o caso de Izumi não ter encontrado alguém.
Beijei o pescoço macio de Yukiko.
- Vou dormir um bocado - murmurei. - E mais logo vou "buscar a menina ao infantário.
- Dorme bem - disse ela.
Foi um sono curto. Quando abri os olhos, passava das três da tarde. Pela janela do quarto via-se o cemitério de Aoyama. Sentei-me numa cadeira ao pé da janela e ali permaneci durante muito tempo, sempre a olhar para os túmulos. Tinha a impressão de que havia muitas coisas que eram diferentes, agora que Shimamoto voltara a aparecer na minha vida. Da cozinha ouvia Yukiko nos seus preparativos para o jantar. O barulho ressoava nos meus ouvidos produzindo como um som oco, como se chegasse até mim através de uma conduta de ar.
Tirei o BMW da garagem subterrânea e pus-me a caminho da escola para ir buscar a minha filha mais velha. Naquele dia devia ter havido uma celebração qualquer e ainda não eram quatro horas quando a menina apareceu no portão. Diante da escola alinhavam-se, como sempre, luxuosas viaturas devidamente polidas com produtos que as deixavam a reluzir. Saab, Jaguar e até um ou outro Alfa Romeo. Jovens mães envoltas nos seus casacos com ar de terem custado os olhos da cara desciam das viaturas, recolhiam os filhos, voltavam a entrar para o carro e regressavam a suas casas. Eu era o único pai ali presente. Quando a vi, chamei-a pelo nome e fiz sinal. Ela, ao ver-me, fez adeus com a mãozinha e encaminhou-se para mim, mas entretanto reparou numa menina sentada num Mercedes 260E azul e correu para ela, ao mesmo tempo que gritava qualquer coisa. A miudinha, que tinha um gorro de lã vermelho, meteu a cabeça e debruçou-se sobre a janela do carro. A mãe da rapariguinha usava um casaco vermelho de caxemira e grandes óculos escuros. Aproximei-me e, quando peguei na mão da minha filha, a mulher virou-se para mim e sorriu. Devolvi-lhe o sorriso. O casaco vermelho e os óculos grandes fizeram-me lembrar Shimamoto. A Shimamoto que eu seguira desde Shibuya até Aoyama.
- Boa tarde - cumprimentei eu.
- Boa tarde - respondeu-me ela.
Era uma mulher lindíssima e não parecia ter mais de vinte e cinco anos. A aparelhagem estereofónica do carro dava a ouvir o tema "Burning Down the House", dos Talking Heads. No assento traseiro estavam dois sacos de papel da Kinokuniya(21). Tinha um sorriso deslumbrante. A minha filha cochichou qualquer coisa com a sua amiguinha e depois despediu-se. "Adeus", disse a outra menina, antes de carregar no botão para fechar o vidro do carro. Peguei na minha filha pela mão e conduzi-a até ao sítio onde deixara o BMW estacionado.
- Como foi o teu dia? Divertiste-te? - perguntei.
Ela respondeu que não com um vigoroso movimento de cabeça.
- Mesmo nada divertido. Foi horrível - disse ela.
- Nesse caso, já somos dois - repliquei. Inclinei-me e dei-lhe um beijo na testa que ela recebeu com a mesma expressão do gerente de um restaurante francês quando recebe das mãos do cliente um cartão American Express. - Tenho a certeza de que amanhã vai correr melhor - acrescentei.
Disse-lhe aquilo quase para me convencer a mim também. Queria acreditar que, ao acordar na manhã seguinte, o mundo teria aos meus olhos cores mais alegres e todas as coisas se revelassem mais fáceis. Ao mesmo tempo, porém, sabia que tal não deveria ser possível, e que na manhã seguinte a situação poderia complicar-se ainda mais. Porque a verdade é que estava apaixonado. E tinha mulher e duas filhas.
- Ouve uma coisa, papá - disse ela. - Quero aprender a montar. Compras-me um cavalo?
- Está bem. Um dia - disse eu.
- Um dia quando?
- Quando o papá tiver juntado dinheiro suficiente. Nessa altura compramos um cavalo.
(21) Importante cadeia de livrarias que existe no Japão. (N. da T.)
- Também tens um mealheiro?
- Sim, um mealheiro gigante, tão grande como este carro. E só quando estiver cheio é que podemos comprar-te o cavalo.
- Se pedir ao avô, achas que ele me dá o cavalo? O avozinho é rico.
- Pois é - respondi. - O teu avô tem um mealheiro do tamanho daquele edifício. O que acontece é que, precisamente por ser tão grande, custa mais a tirar de lá o dinheiro.
A minha filha ficou a pensar naquilo durante um bocado.
- Mas posso pedir-lhe na mesma? Dizer ao avô que me compre um cavalo?
- Pede. Pode ser que ele to compre. , Fomos o caminho todo até casa sempre a falar de cavalos.
De que cor é que ela gostaria de ter um cavalo. Que nome lhe daria. Aonde iria passear com ele. Onde é que ele dormiria. Acompanhei-a ao elevador e fui directamente para o meu bar. "Que diabo me trará o dia de amanhã?", perguntei a mim mesmo. Pousei as mãos no volante e fechei os olhos. Não tinha a sensação de estar dentro do meu próprio corpo; sentia o meu corpo como um recipiente transitório, temporariamente emprestado. Que seria de mim no dia de amanhã? Queria comprar um cavalo à minha filha o mais cedo possível, antes que muitas coisas desaparecessem, antes que o mundo se estilhaçasse.
Durante os dois meses que se seguiram, desde aquele dia até chegar a Primavera, Shimamoto e eu encontrámo-nos quase todas as semanas. Ela tinha por hábito aparecer de improviso no Robin's Nest. Sentava-se ao balcão, tomava dois ou três cock-tails e deixava-se ficar até por volta das onze. Eu sentava-me a seu lado e falávamos. Não faço ideia do que pensavam os meus empregados, mas também não me ralava com isso. Era exactamente como no tempo em que andávamos juntos na escola primária e eu me estava nas tintas para o que os meus companheiros de classe pensavam de nós.
Volta e meia ela telefonava-me para me perguntar se eu queria almoçar. Costumávamos marcar encontro numa cafetaria de Omote-sando(22). Comíamos qualquer coisa e depois íamos dar uma volta. Ficávamos juntos até serem umas duas, no máximo três horas. Quando se aproximava a hora de se ir embora, ela dava uma olhadela ao relógio e dizia-me a sorrir: "Bom, vão sendo horas." Sempre com o seu maravilhoso sorriso, muito embora eu não fosse capaz de decifrar as emoções que se escondiam por detrás dele. Não sabia se ela ficava triste ou não pelo facto de ter de partir ou, quem sabe, aliviada por
(22) Em pleno bairro de Harajuku, junto à estação e perto do cruzamento com a Meiji-dori, onde se encontram espalhadas as boutiques com peças dos designers em voga e as esplanadas das cafetarias. (N. da T.)
se ver livre de mim. Nem sequer podia saber ao certo se precisava mesmo de voltar para casa.
Em todo o caso, durante aquelas duas horas que estávamos juntos, fartávamo-nos de conversar. Nem uma única vez, porém, os nossos corpos se tocaram. Eu nunca passava o braço por cima dos seus ombros, da mesma forma que ela tão-pouco me pegava na mão.
Nas ruas de Tóquio, Shimamoto reencontrava o sorriso fascinante e sedutor de outros tempos. A violenta explosão de sentimentos que a tinham assaltado quando do nosso passeio a Ishikawa, naquele domingo frio de Fevereiro, nunca mais voltara a fazer-se sentir. Do mesmo modo que não recuperámos a cálida e espontânea intimidade que havia nascido entre ambos. Como que por comum acordo, nunca mencionámos o ocorrido durante a nossa estranha jornada.
Enquanto caminhávamos lado a lado, perguntava-me que sentimentos acalentava ela no seu coraçãozinho. Por vezes mergulhava os meus olhos nos seus, mas tudo o que distinguia era um suave silêncio. Aquela pequena linha que se desenhava nas suas pálpebras fazia-me sempre lembrar o longínquo fio do horizonte. Só então conseguia em parte compreender a solidão que ela devia ter sentido quando andávamos a fazer o liceu juntos. Shimamoto albergava dentro de si um pequeno e solitário mundo que era só dela e ao qual mais ninguém podia aceder. Uma vez, uma única vez, a porta desse mundo entreabrira-se por uma fresta, mas tornara logo a fechar-se.
Pensamentos desses deixavam-me desnorteado, sem saber o que era certo e errado. Tinha a sensação de voltar a ser um rapazinho de doze anos, impotente e confuso. Diante dela não sabia o que havia de fazer nem o que havia de dizer. Esforçava-me ao máximo para ficar calmo e raciocinar, mas era inútil. Tudo o que dizia estava errado, nunca acertava uma. Todas as minhas emoções acabavam por se afogar naquele sorriso radiante que ela tinha e que parecia querer dizer-me: "Não te preocupes. Corre tudo bem."
Eu estava completamente às escuras relativamente a Shimamoto. Nem sequer sabia onde é que ela vivia. Ou com quem vivia. Se tinha casado ou não. A única coisa que sabia era que tivera uma filha e que esta morrera um dia depois de ter nascido. E que nunca trabalhara na vida. No entanto, aparecia sempre vestida com roupas caras e acessórios de luxo, o que significava que de algum lado lhe vinha o dinheiro. Era tudo o que sabia acerca dela. Provavelmente estaria casada quando teve a criança, mas não podia afirmá-lo com toda a certeza. O que há mais para aí são bebés que nascem fora do casamento, não é verdade?
À medida que o tempo foi passando, Shimamoto começou a contar-me certas e determinadas coisas acerca dos seus anos de colégio e dos tempos de liceu. Uma vez que essa época não tinha qualquer elo de ligação com o presente, não se importava de falar acerca dela. Foi assim que fiquei a saber até que ponto se sentira terrivelmente sozinha. A medida que crescera, fizera os possíveis por ser justa para com os outros e não admitia desculpas nem justificações de espécie alguma. "Uma vez começando a fazer isso, já não consegues parar", disse-me ela. "E eu não quero viver assim." Contudo, não se pode dizer que essa maneira de pensar tenha resultado, naquela época. Entre as pessoas que a rodeavam, provocou uma série de mal-entendidos estúpidos, que por sinal a deixaram muito em baixo. E ela acabou por se ir fechando cada vez mais na sua concha. De manhã, ao levantar-se, desatava a vomitar porque não queria ir à escola.
Um dia, mostrou-me uma fotografia dos tempos em que começara a frequentar o ensino secundário. Estava sentada numa cadeira, no meio de um jardim repleto de girassóis em flor. Era Verão. Trazia uns calções de ganga e uma T-shirt branca. Estava lindíssima. Sorria de frente para a objectiva. Comparado com o sorriso que eu lhe conhecia, o antigo parecia um tudo-nada forçado. Ainda assim, não deixava de ser maravilhoso. O tipo de sorriso que, ao denunciar a insegurança de uma pessoa, só contribui para deixar o espectador mais comovido. Não parecia o sorriso de uma rapariguinha solitária que levava uma vida infeliz.
- A julgar por esta fotografia - observei -, tinhas todo o aspecto de ser a rapariga mais feliz do mundo.
Ela abanou a cabeça devagar. Nos cantos dos olhos formaram-se umas pequeninas e deliciosas rugas de expressão. Dir-se-ia que estava a recordar uma cena perdida no tempo.
- Sabes, Hajime - disse ela -, a partir de uma fotografia não se pode saber nada, não passa de uma sombra(23). O meu verdadeiro eu encontra-se algures, num sítio que a objectiva não consegue captar.
Confesso que aquela fotografia me deixou profundamente triste. Ao olhar para ela, dava-me conta do tempo que havia perdido. Anos preciosos que não mais voltariam, por mais que eu me esforçasse por recuperá-los. Um tempo que existia unicamente naquele instante e naquele lugar. Mantive os olhos pregados na fotografia durante tempos infinitos.
- Porque te mostras tão interessado? - quis ela saber. )
- Estou a ver se recupero o tempo perdido - respondi. -Passaram-se vinte e cinco anos desde a última vez que nos vimos. Quero preencher esse vazio, nem que seja em parte.
Ela olhou para mim com um sorrisinho estranho, como se a minha cara deixasse transparecer qualquer coisa esquisita.
(23) Ainda e sempre a sombra, um tema recorrente no imaginário japonês, bem como na literatura daquele país. (N. da T.)
- Que estranho - exclamou. - Tu queres preencher o espaço vazio, ao passo que eu quero deixar esses anos em branco.
Dos tempos de colégio até ao fim do secundário, nunca tivera um namorado a sério. Apesar de ser muito bonita e de os rapazes procurarem a sua companhia, ela mal parecia reparar na existência deles. Experimentou sair com um ou outro colega de turma, mas foi sol de pouca dura.
- Era difícil eu conseguir gostar dos rapazes daquela idade. Tu sabes do que falo. Os adolescentes não passam de um punhado de rapazolas ordinários e egoístas, que só pensam em meter a mão por baixo das saias das raparigas. Isso foi uma coisa que me desiludiu muito. O que eu procurava, confesso, era um relacionamento do género do que existira entre nós os dois.
- Sim, mas olha que quando eu tinha dezasseis anos não era muito diferente. Ordinário e egoísta, só pensava em enfiar a mão por baixo da saia das raparigas. Podes ter a certeza de que a carapuça me serve.
- Nesse caso, ainda bem que não nos víamos naquela época - disse ela, a sorrir. - Separámo-nos aos doze anos, voltámos a encontrar-nos aos trinta e sete... talvez tenha sido o que de melhor nos podia ter acontecido.
- Talvez.
- Agora és capaz de pensar noutras coisas, para além do que está por baixo das saias de uma rapariga, imagino eu.
- Umas quantas coisas... - disse eu. - Mas se te preocupa saber o que me vai na cabeça, recomendo que da próxima vez que nos encontrarmos apareças de calças.
Shimamoto apoiou as mãos sobre a mesa, ficou ali a olhar para elas e sorriu. Não usava qualquer anel. Como sempre que nos encontrávamos, trazia uma pulseira e um relógio diferente. Sem esquecer os brincos. Anéis, nunca.
- Além do mais, detestava ser um empecilho aos olhos dos rapazes - continuou. - Tu entendes. Havia muitas coisas que não podia fazer: ir aos piqueniques, nadar, esquiar, patinar, ir dançar à discoteca. Até mesmo o simples facto de andar se tornava difícil. Restava-me ficar sentada, a conversar e a ouvir música, coisa que os rapazes daquela idade não aguentam durante muito tempo. E eu detestava a ideia de ser um peso.
Ela bebeu a sua Perrier com uma rodela de limão. Estava uma tarde quente de meados de Março. Alguns jovens que caminhavam por Omote-sando usavam camisas de manga curta.
- Se eu tivesse andado contigo naquela época, não tenho dúvida de que teria acabado por me tornar um peso para ti. O mais certo era fartares-te de mim. Tu querias uma vida mais activa, nos teus planos estava inscrito o desejo de levantar voo a fim de partires à descoberta de mundos mais vastos. E eu não teria sido capaz de aceitar essa ideia.
- Shimamoto-san - disse eu -, isso é impossível. Seria incapaz de me cansar de ti. Entre nós existia uma ligação muito especial. Não consigo traduzir os meus sentimentos em palavras, mas sei que esse elo existe e também sei como ele é importante e precioso para mim.
Ela não tirava os olhos de mim, sem mudar de expressão.
- Não valho grande coisa como pessoa - continuei. - Não me posso orgulhar de nada em especial. Antigamente era ainda mais bruto, insensível e arrogante. Por isso não se pode dizer que fosse a pessoa certa para ti. Mas uma coisa posso garantir-te: nunca, jamais, em tempo algum, me teria cansado de ti. Nesse sentido, sou diferente das outras pessoas, sou uma pessoa especial para ti.
O olhar de Shimamoto voltou a concentrar-se nas mãos pousadas sobre a mesa. Estavam ligeiramente abertas, como se quisesse estudar a forma dos dedos.
- Escuta, Hajime - começou ela -, é triste, se bem que nem por isso deixe de ser menos verdade, mas há coisas que não podem voltar atrás. Por mais que uma pessoa queira, uma vez dado um passo à frente, deixa de ser possível arrepiar caminho. Se porventura a meio do percurso houve qualquer coisa que deu para o torto, pouco ou nada podemos fazer para remediar o mal e a situação arrastar-se-á para sempre.
Numa ocasião ela telefonou a convidar-me para irmos ouvir os concertos para piano de Liszt. O solista era um famoso pianista de origem sul-americana. Arranjei tempo e fui com ela à sala de concertos que existe no parque de Ueno. Assistimos a uma interpretação magistral. A técnica era impecável, a música revelava-se a um tempo delicada e profunda, e em todos os momentos se sentia a emoção tangível do pianista. No entanto, mesmo de olhos fechados, não fui capaz de me deixar transportar pela música. Era como se entre mim e o pianista existisse uma barreira. Uma barreira fina mas que nem por isso deixava de constituir um obstáculo impossível de transpor. Quando, em conversa com Shimamoto no final do espectáculo, lhe disse isso mesmo, ela concordou comigo.
- Na tua opinião, o que é que falhou? - perguntou-me. -A interpretação pareceu-me excelente.
- Não sei se te lembras - atalhei -, mas no disco que costumávamos escutar, ao fim do segundo movimento, ouvia-se por duas vezes um som arranhado. Uma espécie de crie, crie. Para ser franco, sem isso é como se faltasse qualquer coisa à música.
Shimamoto riu-se.
- Não chamaria a isso uma apreciação artística.
- A arte não é para aqui chamada. Que venha um abutre-careca e devore a arte, para ver se eu me ralo. Não me interessa o que possam dizer. A mim, digam o que digam, faz-me falta aquele arranhar.
- Talvez tenhas razão - admitiu ela. - Mas falaste aí em abutres-carecas, não foi? Conheço os abutres normais, que devoram cadáveres, e as águias-carecas, mas que diabo é um abutre-careca?
No comboio, de regresso a casa, expliquei-lhe as diferenças entre um vulgar abutre e um abutre-careca. Qual era o habitat de cada um, as diferenças entre o chamamento de um e de outro, os distintos períodos de acasalamento.
- O abutre-careca alimenta-se da arte. O abutre normal alimenta-se e destrói os cadáveres anónimos. Como vês, não se comparam.
- Que tipo tão estranho que me saíste - observou Shimamoto com uma risada. E, por um instante, os nossos ombros roçaram um pelo outro naquela carruagem de comboio. Foi a única vez em dois meses que os nossos corpos se tocaram.
Passou o mês de Março e veio Abril. Recomeçaram as aulas e foi a vez de a minha filha mais nova entrar para a escola primária. Sem as meninas para tomar conta, Yukiko entrou para um grupo de voluntárias do bairro que ajudava a encontrar lares para crianças deficientes. Na maior parte das vezes, era eu que levava as miúdas à escola e ia depois buscá-las. Quando eu não tinha tempo, era ela quem se encarregava disso. A medida que as minhas filhas cresciam, sentia que também os anos passavam por mim. As miúdas estavam cada dia mais crescidas, sem dar por isso, independentemente dos planos que pudesse ter para elas. Escusado será dizer que adorava aquelas duas meninas. E vê-las crescer representava sem sombra de dúvida uma das minhas grandes alegrias. Porém, dando-me conta de como elas cresciam tão depressa, mês após mês, sentia por vezes uma terrível angústia. Era como se dentro de mim fosse crescendo uma árvore que deitava as suas raízes e estendia os seus ramos, ao mesmo tempo que expulsava os meus órgãos, os meus músculos, os ossos e a pele. A sensação chegava a ser de tal modo angustiante que me impedia de dormir.
Encontrava-me com Shimamoto uma vez por semana. Todos os dias andava com as minhas filhas de casa para a escola e da escola para casa. Fazia amor com a minha mulher diversas vezes por semana. Desde que via Shimamoto com mais regularidade, tinha relações com a minha mulher mais frequentemente. E não porque me sentisse culpado, atenção. Amá-la e ser amado por ela, era a única forma de me sentir ligado a qualquer coisa.
- O que se passa? - perguntou Yukiko um dia, era de tarde e tínhamos acabado de fazer amor. - Andas estranho, ultimamente. - Nunca tinha ouvido dizer que o desejo sexual aumentava de repente nos homens, a partir dos trinta e sete anos.
- Nada de especial. O normal - disse eu.
Ela olhou para mim e abanou ao de leve a cabeça.
- Sempre gostava de saber o que vai na tua cabeça - observou.
Os meus tempos livres, passava-os a ouvir música clássica e a olhar distraidamente para o cemitério de Aoyama. Já não lia tanto como dantes. Sentia cada vez mais dificuldade em concentrar-me na leitura.
Por mais de uma vez encontrei a dona do Mercedes 260E. Ficávamos à conversa, enquanto esperávamos que as nossas filhas saíssem do portão. Trocávamos impressões sobre isto e sobre aquilo, quase sempre informações práticas que só tinham significado para quem vivia no bairro de Aoyama. As horas a que o parque de estacionamento do supermercado estava mais vazio; o restaurante italiano que mudara de cozinheiro e onde já não se comia tão bem quanto isso; a feira de vinhos de importação a realizar no mês seguinte na loja Meiji-ya(24). "Que diabo", pensava eu. "Aquilo já parecia a típica conversa de comadres." Em todo o caso, eram esses os únicos temas que tínhamos em comum.
Em meados de Abril, Shimamoto voltou a desaparecer do mapa. A última vez que estive com ela, ficámos a conversar, sentados ao balcão do Robin's Nest. Pouco antes das dez, telefonaram-me do outro bar e tive de me ir logo embora para resolver um assunto.
- Estou de volta daqui por meia hora, o mais tardar -disse eu.
- Vai lá à tua vida, não te preocupes - disse ela, a sorrir. -Fico a ler enquanto espero.
Resolvi o outro assunto e voltei a correr, mas ela já não se encontrava ali. Passava pouco das onze. Em cima do balcão, deixara-me ficar uma mensagem, escrita numa caixa de fósforos da casa: "Durante uma temporada, talvez não me seja possível aparecer. Tenho de regressar a casa. Adeus. Fica bem."
Durante uma data de dias, andei perdido. Sem saber o que fazer, punha-me a dar voltas à casa, percorria as ruas sem rumo, ia buscar as minhas filhas à escola muito antes da hora. Continuava a trocar dois dedos de conversa com a mulher do Mercedes 260E. Costumávamos ir ali perto tomar café, enquanto falávamos invariavelmente da qualidade das verduras no mercado internacional de Kinokunya, dos ovos fertilizados
(24) Dedicada ao comércio de produtos alimentares e vinhos de importação. (N. da T.)
vendidos na Natural House ou dos saldos feitos pela Miki House: Fiquei a saber que ela era fã da roupa criada pela estilista Inaba Yoshie e que, antes de cada estação, encomendava por catálogo toda a roupa que lhe agradava. Também aconteceu falarmos de um restaurante nas imediações da esquadra de polícia em Omote-sando, que servia umas deliciosas enguias e fechara entretanto as suas portas. Apreciávamos a companhia um do outro. Ela era muito mais aberta e simpática do que parecia à primeira vista. O que não queria dizer que eu me sentisse sexualmente atraído por ela. Precisava de ter alguém com quem falar, mais nada. Para falar de coisas ligeiras e sem consequências, que afastassem Shimamoto dos meus pensamentos obsessivos.
Quando não arranjava mais nada para fazer, ia às compras. Uma vez, de uma assentada, adquiri seis camisas por puro capricho. Comprava brinquedos e bonecas para as minhas filhas, acessórios para Yukiko. Fui mais do que uma vez ao concessionário da BMW para apreciar um M5 e deixava que o vendedor me fornecesse todas as explicações e mais alguma, se bem que não tivesse a mínima intenção de comprar o dito carro.
Ao fim de várias semanas passadas naquela inquietação interior, lá consegui finalmente voltar a concentrar-me no trabalho. Decidi que não podia continuar assim. Telefonei a um designer e a um decorador de interiores e encomendei-lhes um projecto para renovar a imagem dos clubes de jazz. Parecia-me chegada a altura de mudar a decoração, ao mesmo tempo que aproveitava para repensar o modelo de gestão. Tal como acontece com as pessoas, também os bares conhecem períodos de estagnação e outros de mudança. Uma coisa, qualquer que ela seja, se permanece demasiado tempo igual a si própria, acaba por perder aos poucos a sua própria energia e torna-se letárgica. Até mesmo os castelos no ar só têm a ganhar com uma nova demão de tinta para ficarem com a "cara lavada".
Comecei pelo outro bar, deixando o Robin's Nest para o fim. Precisava de substituir todos os elementos demasiado chiques que, vendo bem, só serviam para complicar o trabalho, a fim de criar um ambiente muito mais funcional. Havia chegado a hora de fazer uma revisão no sistema de som e no ar condicionado. Da mesma forma, também a ementa andava a pedir uma alteração drástica. Consultei cada um dos meus empregados, pedi-lhes que dessem a sua opinião e elaborei uma lista exaustiva de tudo o que podia ser melhorado. Expliquei pormenorizadamente ao designer a minha ideia para o novo bar e pedi-lhe que desenhasse um projecto de acordo com as minhas instruções. Durante o processo, fui acrescentando determinados aspectos que se formavam na minha cabeça, o que o obrigou a refazer os planos. Repeti a operação por diversas vezes. Escolhi pessoalmente cada um dos materiais, exigi orçamentos aos empreiteiros, ajustei a qualidade e o preço. Só para encontrar as saboneteiras perfeitas para os lavabos, passei três semanas a percorrer as lojas de Tóquio. Todas essas diligências contribuíram para me manter muito ocupado, mas era precisamente isso que eu pretendia.
Passou o mês de Maio, chegou Junho. Shimamoto continuou sem aparecer. "Durante uma temporada, talvez não me seja possível aparecer", escrevera ela. O que me deixava angustiado era a ambiguidade daquele "talvez" e da expressão "durante uma temporada". Significava que um dia ela poderia muito bem aparecer de novo em cena, mas o certo é que eu não podia ficar indefinidamente sentado, à espera, depositando as minhas esperanças e os meus sonhos em promessas vagas. "Continua assim", pensei eu, "e ainda acabas por te transformar num perfeito imbecil." Vai daí, procurei manter-me o mais ocupado possível. Comecei a ir todas as manhãs à piscina, onde nadava quase dois mil metros de uma assentada, após o que subia até ao ginásio para fazer pesos. Passada uma semana, os meus músculos lançaram os primeiros sinais de protesto. Certo dia, parado num semáforo, tive uma cãibra tão violenta na perna esquerda que não fui capaz de pisar a embraiagem. Com o tempo, os músculos lá se habituaram ao exercício físico. Aquele treino intensivo não me deixava tempo para pensar, além de que manter o corpo sempre em movimento me ajudava a encontrar a concentração necessária às diversas tarefas quotidianas. Era proibido fazer castelos no ar. Fazia os possíveis por centrar a minha atenção em tudo o que fazia. Sempre que lavava a cara, pensava no que estava a fazer; se estivesse a ouvir música, concentrava-me na música. Sem esse esforço, não conseguiria ter sobrevivido.
Durante o Verão, Yukiko e eu íamos muitas vezes passar o fim-de-semana à nossa casa de campo em Hakone. Longe de Tóquio, em plena natureza, as meninas e Yukiko mostravam-se mais descontraídas e felizes. Entretinham-se a apanhar flores, observavam os pássaros com o binóculo, jogavam à apanhada, tomavam banho no rio. Outras vezes deixavam-se estar pelo jardim, a descansar. Elas, porém, não sabiam a verdade. Que num certo dia de neve, se o meu voo tivesse sido cancelado, eu teria deixado tudo e partido na companhia de Shimamoto. O meu trabalho, a minha família, a minha fortuna - tudo, sem pestanejar. Mesmo depois disso, não conseguia tirar Shimamoto da cabeça. A sensação de a ter abraçado, de a ter beijado na face, não me abandonava nunca. E quando fazia amor com a minha mulher, não era capaz de afastar do meu espírito a imagem de Shimamoto. Da mesma maneira que eu ignorava o que ia no pensamento de Shimamoto, ninguém podia imaginar quais os meus verdadeiros pensamentos.
Decidi fazer coincidir a renovação do bar com o resto das férias. Enquanto Yukiko e às crianças ficavam por Hakone, eu regressei sozinho a Tóquio a fim de inspeccionar as obras e dar as instruções necessárias. Quando apanhava uma aberta, ia nadar ou levantava halteres no ginásio. Ao fim-de-semana, ia até Hakone, nadava com as minhas filhas na piscina do hotel Fujiya e jantávamos todos juntos. Chegada a noite, fazia amor com a minha mulher.
Apesar de caminhar a passos largos para a chamada meia-idade, não engordara nem um grama nem evidenciava sinais de calvície. Além de continuar sem um cabelo branco para amostra. Graças à prática constante de exercício físico, não sentia na pele os inevitáveis sinais de decadência física. Levava uma vida regrada, evitava excessos e estava atento à alimentação. Nunca caíra doente, e ninguém me teria dado mais do que trinta anos.
A minha mulher sentia prazer em tocar no meu corpo nu. Punha a mão sobre os músculos do peito, a barriga lisa, acariciava-me o pénis e os testículos. Também ela ia ao ginásio e fazia exercício regularmente. Contudo, não se podia dizer que isso a ajudasse a libertar-se dos quilos a mais.
- Deve ser da idade - dizia ela, suspirando. - Mesmo quando diminuo de peso, o pneuzinho à volta da cintura mantém-se.
- Gosto do teu corpo tal como está - dizia eu. - Estás bem assim, não vale a pena passares pela tortura do ginásio e das dietas. Nem sequer se pode dizer que estejas gorda.
Não era mentira alguma. Gostava realmente do seu corpo suave e bem fornecido de carne. Adorava acariciar as suas costas nuas.
- Não compreendes - replicava ela, abanando a cabeça. -É fácil dizer que eu estou bem, quando, na verdade, faço um esforço enorme para me manter assim.
Aos olhos de uma pessoa de fora, imagino que a nossa vida parecesse ideal. E a prova disso era que até eu por vezes me sentia convencido disso. O meu trabalho apaixonava-me e ganhava bom dinheiro. Era dono de um apartamento de quatro divisões em Aoyama e de um pequeno chalé nas montanhas de Hakone, possuía um BMW e um jipe Cherokee. Tinha uma família unida e feliz. Amava a minha mulher e as minhas duas filhas. Que mais podia alguém exigir da vida? Se a minha mulher e as meninas viessem ter comigo a perguntar humildemente o que mais poderiam elas fazer para serem melhores e para que eu ainda gostasse mais delas, ficaria sem saber o que lhes responder. Não conseguia imaginar uma vida melhor.
E, no entanto, desde que Shimamoto deixara de aparecer, sentia-me como se estivesse a viver na superfície da Lua, sem oxigénio. No caso de ela desaparecer para sempre, deixaria de ter a quem revelar os meus verdadeiros sentimentos. Naquelas noites em que não conseguia dormir, ficava deitado e rebobinava mentalmente a história que tivera por cenário o aeroporto de Komatsu debaixo de neve. A força de tantas vezes evocar a cena, o normal seria que as recordações começassem pouco a pouco a desvanecer-se. Porém, não foi isso que se verificou. A verdade é que, quanto mais eu trazia os acontecimentos à memória, mais forte se tornavam os seus contornos. A palavra "Adiado" à frente do voo para Tóquio a piscar no painel de informações; a neve caindo com força do lado de fora da janela. Tão espessa que não se via mais de cinquenta metros à frente do nariz. Sentada no banco, muito quieta, Shimamoto com os braços cruzados no peito. Trazia vestido um casaco de fazenda azul-marinho e tinha um cachecol enrolado ao pescoço. O seu corpo exalava um odor de lágrimas e tristeza, que ainda no presente consigo cheirar. Ao meu lado, na cama, a minha mulher respirava tranquilamente. Ela não sabe de nada. Fechei os olhos e abanei a cabeça. Ela não sabe de nada.
No parque de estacionamento do bowling encerrado, eu a derreter neve na boca e a dá-la a beber a Shimamoto. Ela nos meus braços, dentro do avião. Os olhos, que ela mantinha fechados, os seus lábios entreabertos como num suspiro. O seu corpo suave, abandonado. Nesse momento, ela desejava-me. Tinha-me aberto o seu coração, mas eu resistira, escolhendo permanecer naquele mundo sem vida, deserto como a face da Lua. No fim, Shimamoto tinha-se ido embora e a minha vida perdera de novo o rumo.
Por vezes acontecia-me acordar em sendo duas ou três da manhã e, às voltas com a insónia, levantava-me da cama, ia para a cozinha e servia-me de um uísque. De copo na mão, deixava-me ficar a olhar pela janela para o cemitério mergulhado nas trevas e, lá mais ao fundo, seguia com os olhos as luzes dos automóveis que passavam na estrada. Os momentos que separavam a noite da madrugada revelavam-se longos e sombrios. Às vezes pensava que se pudesse chorar me sentiria mais aliviado. Mas não sabia por que chorar. Por quem chorar. Era demasiado egoísta para chorar pelos outros, demasiado velho para chorar por mim.
E finalmente chegou o Outono. Nessa altura, já tinha tomado a minha decisão. As coisas tinham de mudar. Não podia continuar a viver assim.
Uma manhã, depois de ter deixado ficar as miúdas na escola, fui até à piscina e nadei os meus dois mil metros da ordem. Enquanto nadava, imaginava que era peixe. Um simples peixe que não tivesse mais nada em que pensar. Nem sequer de pensar em como nadar. Depois tomei duche, enfiei uma T-shirt e uns calções e comecei a minha sessão de levantamento de pesos.
Em seguida dirigi-me para o pequeno estúdio que alugara para fazer as vezes de escritório. Pus em dia os livros de contabilidade respeitantes aos meus dois clubes de jazz e procedi ao cálculo dos salários dos empregados, após o que concentrei a minha atenção no projecto de remodelação do Robin's Nest, previsto para Fevereiro do ano seguinte. Como era meu costume, voltei para casa à uma da tarde e almocei na companhia da minha mulher.
- Querido, esta manhã recebi uma chamada do meu pai -anunciou ela. - Estava cheio de pressa, para não variar. Queria falar-me de umas acções da Bolsa que vão disparar e que nos fariam ganhar muito dinheiro. Disse que era seguro e que devíamos comprar sem falta. Como sempre, trata-se de informações confidenciais, obtidas por portas e travessas, referiu ele, mas que desta vez são apresentadas com uma certeza incontornável.
- Se é uma coisa para dar a ganhar assim tanto dinheiro, porque é que ele não guarda a informação para ele e se dá ao trabalho de a partilhar connosco? Sempre gostava de saber...
- Diz ele que é a sua maneira de te agradecer um favor. Disse ainda que tu saberias do que ele está a falar. É verdade? Pelos vistos, o meu pai cede-te a parte dele nas acções. Devemos, segundo ele, investir todo o dinheiro que pudermos e não nos preocuparmos, porque os lucros são mais do que certos. Se assim não acontecesse, ele próprio se encarregaria de nos reembolsar por todas as perdas.
Pousei o garfo no prato de massa e levantei a cabeça.
- E então?
- Bom, como ele disse que tínhamos de nos pôr em campo rapidamente, liguei para o banco e cancelei os dois depósitos a prazo e dei ordens para que o dinheiro fosse enviado para o senhor Nakayama, da firma de investimentos. Pedi-lhe que investisse tudo nos títulos indicados pelo paizinho. Claro que só me foi possível investir oito milhões de ienes, no total. Achas que deveria ter comprado mais?
Bebi um pouco de água. Andava à procura das palavras adequadas.
- Antes de fazer tudo isso, por que razão não me consultaste?
- A ti? Pois se tu és o primeiro a seguir à letra os conselhos do meu pai, no que respeita a comprar acções - retorquiu ela com uma expressão incrédula. - De resto, já me pediste que seguisse as instruções do meu pai por mais de uma vez, não foi? Foi precisamente o que eu fiz. Sobretudo depois de o meu pai ter dito que não havia um minuto a perder. Como estavas na piscina, não pude entrar em contacto contigo. Qual é o problema?
- Tudo bem, deixa lá - disse eu. - Só quero que vendas todos os títulos que compraste esta manhã.
- Vender? - repetiu ela, fitando-me com os olhos franzidos, como se tivesse ficado momentaneamente cega por uma luz intensa e muito brilhante.
- Vende tudo o que compraste e devolve o dinheiro ao banco, para ser depositado nas nossas contas.
- Mas se fizer isso, entre a comissão de venda das acções e a comissão do banco, vamos perder muito dinheiro.
- Não faz mal - repliquei. - Só temos de pagar as comissões, não importa que percamos dinheiro. Limita-te a vender todas as acções compradas hoje.
Yukiko suspirou.
- O que foi que se passou no outro dia, entre ti e o meu pai? Aconteceu alguma coisa?
Não respondi.
- O que foi que aconteceu?
- Ouve, Yukiko, para dizer a verdade - confessei -, começo a estar farto deste assunto. Não estou interessado em ganhar mais dinheiro na Bolsa. Só me interessa trabalhar e ganhar com as minhas próprias mãos o dinheiro que nos serve para viver. Foi o que sempre fiz, e estou em crer que me tenho saído bem até à data. Nunca te faltou nada, ou estou enganado?
- Claro que não. Bem sei que sempre fizeste um bom trabalho e que nunca tive razões de queixa. Estou-te muito agradecida e sabes perfeitamente que te respeito. Mas o que é um facto é que o meu pai fez tudo isto com as melhores intenções, só para nos ajudar.
- Tenho consciência disso, Yukiko, mas sabes o que quer dizer a expressão "inside trading"? Por acaso sabes o que significa quando alguém garante que certas e determinadas acções têm um lucro garantido?
- Não.
- Significa que se trata de manipulação da Bolsa - expliquei. - Compreendes? Numa empresa existe alguém que manipula as acções para que dêem lucros artificiais e depois essa pessoa reparte os lucros com os sócios. E esse dinheiro vai direi-tinho parar aos bolsos dos políticos ou é usado para financiar o chamado "saco azul" das empresas. Não se trata aqui do tipo de acções que o teu pai nos costuma aconselhar. Até à data, estávamos a falar de acções que talvez dessem lucro. Eram, quando muito, boas informações. Normalmente, ganhava dinheiro com isso, mas nem sempre. Desta vez, é diferente. Toda esta operação cheira mal. E eu não quero de forma alguma ver-me metido no meio destes assados.
Com o garfo na mão, Yukiko ficou a reflectir no assunto.
- Como é que podes ter a certeza de que se trata de manipulação de acções?
- Se queres mesmo saber, pergunta directamente ao teu pai - respondi. - Mas uma coisa te posso dizer: acções que tenham um benefício garantido é coisa que não existe, o que significa que só podem ser resultado de transacções ilegais. O meu pai trabalhou durante quarenta anos na Bolsa de Valores. Ali no duro, todos os dias, de manhã à noite. E tudo o que deixou de herança foi uma casinha minúscula. Se calhar, não sabia fazer bem as coisas. Lembro-me de ver a minha mãe, todas as noites, debruçada sobre as contas da casa, preocupada com uma diferença de cem ou duzentos ienes. Eu cresci numa família assim, compreendes? Dizes tu que só conseguiste movimentar cerca de oito milhões. Yukiko, minha querida, estamos a falar de dinheiro a sério, e não de notas de Monopólio... As pessoas normais que se levantam cedo para ir trabalhar todos os dias e se deixam transportar de comboio como sardinhas em lata não ganham por ano oito milhões nem nada que se pareça, mesmo que se esmifrem a trabalhar e façam todas as horas extraordinárias que puderem. Foi essa a vida que eu levei durante oito anos, por isso sei do que falo. E olha que nunca estive perto de ganhar semelhante quantidade de dinheiro num ano. Escusado será dizer que não fazes ideia do que é ter uma vida desse género, pois não?
Yukiko permaneceu calada. Mordeu os lábios, sem tirar os olhos do prato. Quando me dei conta de ter levantado a voz, baixei o tom.
- Afianças tu que, em quinze dias, de certeza que iríamos duplicar o investimento de base. Que os oito milhões se converteriam em dezasseis. E dizes isso com o ar mais normal deste mundo. Porém, na minha maneira de pensar, a tua percepção das coisas está errada. Até eu me deixei arrastar por essa mentalidade distorcida e confesso que tenho vindo a sentir uma crescente sensação de vazio.
Yukiko olhava-me fixamente por cima da mesa. Calei-me e continuei a refeição. Sentia uma espécie de tremor por dentro, mas não saberia dizer se se tratava de simples irritação ou de pura raiva. Fosse o que fosse, não conseguia adiar esse estremecimento interior.
- Peço desculpa, não me devia ter metido num assunto desta natureza - disse Yukiko baixinho, depois de um longo silêncio.
- Não faz mal. Não te estou a acusar. De facto, não estou a acusar ninguém de nada.
- Vou já telefonar e pedir ao banco que venda as acções, até ao último título. Por isso, não vale a pena ficares tão zangado.
- Não estou zangado. Continuámos a comer em silêncio.
- E tu, não tens nada para me dizer? - perguntou Yukiko, olhos nos olhos. - Se alguma coisa te preocupa, podes contar-me.
Mesmo que te custe, garanto que tudo farei para te ajudar. Tenho perfeita noção de ser uma pessoa vulgar, sem grandes qualidades nem grande experiência de vida, incluindo como se deve gerir um negócio, mas não quero saber-te infeliz. Não te quero ver com essa cara triste. O que é que te deixa insatisfeito, na vida que levamos? Diz-me. Abanei a cabeça.
- Não tenho razões de queixa. Gosto do meu trabalho. E amo-te. Às vezes, porém, não posso aceitar o modo como o teu pai faz as coisas. Não me interpretes mal. Pessoalmente, gosto dele. Além de que reconheço que ele só quer o nosso bem e só lhe posso agradecer por isso. Como vês, não estou zangado. Acontece que há alturas em que não me compreendo a mim próprio, dou por mim a não saber se agi correctamente ou não, e isso deixa-me confuso. O que não é o mesmo que zangado.
- Pois olha que pareces zangado. Suspirei.
- E, depois, estás sempre a suspirar assim - acrescentou ela. - De há um tempo a esta parte, parece que há sempre qualquer coisa que te enerva. Vê-se que andas distraído, com o pensamento a milhares de quilómetros de distância.
- Não me dou conta disso.
Yukiko não desviou o seu olhar.
- De certeza que andas com qualquer coisa às voltas na cabeça - disse ela. - Mas não sei do que se trata. Quem me dera poder ajudar-te.
De repente, fui tomado pelo violento impulso de lhe confessar tudo. Como ficaria aliviado! Deixaria de ter necessidade de mentir, de fingir que era outra pessoa. "Sabes, Yukiko, estou apaixonado por outra mulher e não consigo esquecê-la. Tentei resistir por mais de uma vez à tentação de ficar com ela, a fim de preservar o nosso mundo, pensando em ti e nas crianças, mas é superior às minhas forças. Da próxima vez que ela me aparecer à frente, vou para a cama com ela, aconteça o que acontecer. Cheguei ao ponto de fazer amor contigo pensando nela, de me masturbar a pensar nela, Yukiko..."
Porém, não disse nada. Uma confissão daquele género de nada serviria. Só contribuiria para nos fazer mais infelizes a todos.
Depois do almoço, regressei ao escritório e continuei a trabalhar. Contudo, não havia maneira de me concentrar. Sentia-me mal por ter falado com Yukiko naquele tom de voz, desnecessariamente paternalista. O conteúdo do meu discurso, todavia, tinha sido o correcto, mas quem era eu para falar com ela daquela maneira? Vendo bem, mentira à minha mulher, tinha-me encontrado com Shimamoto nas suas costas. Era a última pessoa que podia arrogar-se o direito de lhe dar lições. Yukiko mostrava-se seriamente preocupada comigo. Isso não só era mais do que evidente como estava de acordo com a sua personalidade. E quanto a mim, existiria na minha vida alguma coerência, alguma convicção especial que valesse a pena mencionar? A medida que ia pensando naquilo, abandonava-me a vontade de mudar o que quer que fosse.
Pus os pés em cima da mesa e, de lápis na mão, deixei-me estar durante muito tempo a olhar pela janela. O meu escritório tinha vista para um parque. Fazia bom tempo e viam-se numerosas crianças acompanhadas dos pais. Havia quem brincasse dentro da caixa de areia e quem andasse de escorrega, enquanto as mães, sempre a olhar pelo canto do olho, conversavam entre si em pequenos grupos. Aquelas crianças lembravam-me as minhas filhas. Apetecia-me imenso vê-las, andar com elas pela mão, uma de cada lado. Desejava sentir o calor dos seus corpinhos. Ao pensar nelas, porém, veio-me ao pensamento a lembrança de Shimamoto, com os seus lábios ligeiramente entreabertos. A sua imagem sobrepunha-se à das meninas. Quando começava a pensar nela, não conseguia pensar em mais nada.
Saí do escritório e deambulei pela Avenida Aoyama. Fui ter ao bar onde me costumava encontrar com Shimamoto, tomei um café. Pus-me a ler e, quando me cansei de ler, recomecei a pensar nela. Vieram-me à cabeça fragmentos de conversas que tínhamos mantido naquele mesmo lugar. Imaginei-a a tirar um Salem do bolso e a acendê-lo, a afastar uma madeixa de cabelo com a mão, recordei a maneira que tinha de inclinar ligeiramente a cabeça quando sorria para mim. Passado um bocado, cansei-me de estar ali sentado e decidi ir dar um passeio até Shibuya. Por norma gostava de caminhar pelas ruas da cidade, de observar os prédios e as lojas, as pessoas entregues às suas deambulações de todos os dias. Gostava da sensação de me deslocar assim. Tinha a sensação de calcorrear a cidade pelo meu próprio pé. Naquele dia, porém, tudo em redor me parecia lúgubre e vazio. Tinha a impressão de que os edifícios estavam à beira da ruína, todas as árvores tinham perdido a cor, todos os transeuntes davam mostras de ter perdido as suas emoções e de viverem sem saber o que é o sonho.
Escolhi um cinema pouco frequentado, entrei na sala e ali me deixei ficar com os olhos presos ao ecrã. Quando o filme chegou ao fim e regressei às ruas, caíra entretanto a noite. Enfiei-me no primeiro restaurante que encontrei e comi qualquer coisa. A estação de Shibuya era um mar de gente, trabalhadores e funcionários que regressavam a casa depois de um dia de trabalho. Como num filme em movimento acelerado, os comboios chegavam um atrás do outro e engoliam as pessoas à espera no cais. Tinha sido precisamente ali, dez anos antes, que encontrara Shimamoto, com o seu casaco vermelho e uns grandes óculos escuros. Parecia que tinha sido há um milhão de anos.
Revivi a cena, em todos os seus pormenores. A multidão em tempo de fim de ano, a maneira de andar de Shimamoto, cada uma das esquinas que ela dobrara, o céu coberto de nuvens, o saco dos grandes armazéns que ela trazia na mão, a chávena de café intacta, os cânticos de Natal. Arrependi-me uma vez mais de não ter tido coragem de a abordar. Na altura, eu ainda não me encontrava preso por vínculos de espécie alguma, não tinha nada a perder. Poderia muito bem tê-la abraçado e, juntos, poderíamos ter seguido o nosso caminho para qualquer lado. Qualquer que fosse a situação em que ela se encontrasse, teríamos encontrado maneira de lutar para resolver os problemas. No entanto, era caso para dizer que deixara escapar a oportunidade para sempre, no preciso momento em que um misterioso homem de meia-idade me agarrara pelo cotovelo, ao mesmo tempo que Shimamoto desaparecia no interior de um táxi.
Apanhei uma das carruagens apinhadas de gente e voltei para Aoyama. Enquanto assistia ao filme, o tempo piorara e o céu mostrava-se coberto de nuvens negras carregadas de chuva. Tudo indicava que iria começar a chover de um momento para o outro. Não levava comigo o guarda-chuva e ia vestido como saíra de manhã para ir à piscina, com uma parka, umas calças de ganga e ténis. A verdade é que devia ter voltado a casa para mudar de roupa, mas não me apeteceu. Tanto fazia, pensei com os meus botões. Se por uma vez aparecesse no bar sem gravata, ninguém morreria por causa disso.
Às sete começou a chover. Era uma chuva suave e silenciosa, daquela chuvinha insistente de Outono que parecia ter vindo para ficar. Como era meu costume, passei em primeiro lugar pelo bar acabado de remodelar, para ver em que paravam as modas e quantos clientes havia. As obras tinham corrido às mil maravilhas, graças à minha atenção aos pormenores, e a casa correspondia exactamente às minhas expectativas. O bar transformara-se num lugar mais funcional, onde uma pessoa podia encontrar uma atmosfera descontraída. A iluminação tornara-se mais suave, a música harmonizava-se melhor com o ambiente. Tinha mandado instalar, ao fundo, uma cozinha independente, contratara um cozinheiro profissional e elaborara uma ementa recheada de pratos simples mas refinados. No fundo, pretendia servir meia dúzia de pratos para degustar com as bebidas, tudo coisas simples e sem grandes floreados mas que um principiante não fosse capaz de preparar. Vendo bem, destinavam-se a servir de acompanhamento às bebidas, por isso tinha de ser fácil de comer. Todos os meses mudava a ementa de uma ponta à outra. Não foi fácil encontrar um cozinheiro que correspondesse aos requisitos por mim exigidos. Finalmente, lá consegui dar com um, apesar de me ter visto obrigado a pagar-lhe um ordenado muito mais elevado do que imaginara. Contudo, merecia o dinheiro que ganhava. Pela minha parte estava contente com ele, além de que os clientes pareciam, também eles, satisfeitos.
Passava das nove da noite quando peguei num guarda-chuva emprestado do bar e me dirigi ao Robin's Nest. Eram nove e meia quando Shimamoto apareceu. Que estranho, aparecia sempre em noites de chuva mansa.
Shimamoto apareceu com um vestido branco e um casaco azul-marinho por cima dos ombros. Na lapela do casaco trazia um pequeno alfinete de prata em forma de peixe. O vestido era de uma extrema simplicidade, sem motivos decorativos de espécie alguma, mas, no corpo dela, parecia a peça de vestuário mais elegante e luxuosa do mundo. Estava mais bronzeada do que anteriormente.
- Pensei que nunca mais aparecias - disse eu.
- Cada vez que nos vemos dizes a mesma coisa - respondeu ela a rir. Sentou-se ao meu lado no tamborete e pousou ambas as mãos sobre o balcão. - Deixei-te um bilhetinho a explicar que durante uma temporada não me ia ser possível cá vir, não te lembras?
- "Uma temporada" é uma expressão que não se consegue propriamente medir ao segundo - retorqui. - Pelo menos na perspectiva da pessoa que espera.
- Pois, mas talvez existam situações em que se torna necessário recorrer a essa palavra, sabes? Diria mesmo que há casos em que não se pode utilizar outra - reafirmou ela.
- E "talvez" é uma palavra cujo peso não se pode calcular - ripostei.
- Sim, tens razão - admitiu ela, esboçando o mesmo sorrisinho de sempre. Um sorriso que parecia uma leve brisa soprando de algum lugar distante. - Tens razão, desculpa. Não digo isto para me justificar, mas teve de ser. Não tinha outra maneira de colocar a questão.
- Não tens nada que te desculpar. Tal como já te disse, estamos num bar e tu és uma cliente. És livre de aparecer por cá quando te apetece. Estou habituado. Estava apenas a pensar em voz alta, não faças caso.
Ela chamou o barman e pediu um cocktail. Depois pôs-se a olhar para mim com ar crítico, como se estivesse a inspeccionar-me.
- Hoje estás com um aspecto mais informal, o que é raro em ti.
- Fui nadar esta manhã assim vestido e acontece que ainda não mudei de roupa, por falta de tempo - expliquei. - Mas de vez em quando até gosto de me vestir assim. Dá-me a sensação de voltar a ser eu.
: - Ficas mais novo. Ninguém diria que já tens trinta e sete
anos.
- Também tu não pareces ter trinta e sete.
- Por outro lado, também não se pode dizer que eu pareça ter doze anos.
- Não - concordei -, também não.
O cocktail foi servido e ela bebeu um gole. Depois fechou os olhos, como se estivesse a concentrar a sua atenção num som longínquo, quase imperceptível. Quando fechava os olhos, notava-se mais aquela pequena linha sobre as suas pálpebras.
- Sabes, Hajime - disse ela -, tenho-me lembrado muito dos cocktails deste bar. Apeteceu-me imenso beber um. Por mais que se procure, não se consegue encontrar nada que se compare.
- Andaste por terras distantes?
- O que te leva a pensar isso? - perguntou ela.
- É a impressão com que fico ao olhar para ti - respondi. -Uma certa aura, por assim dizer. Tens todo o ar de ter estado ausente durante bastante tempo.
Levantando os olhos para mim, fez sinal de concordar com a cabeça.
- Durante muito tempo, Hajime - começou ela, mas depois calou-se de repente, como se tivesse acabado de se lembrar de qualquer coisa. Dava para notar que procurava as palavras dentro de si. Palavras essas que pelos vistos não conseguiu encontrar, uma vez que mordeu os lábios e tornou a sorrir. - Tenho muita pena. Devia ter-me mantido em contacto contigo, mas há certas coisas que prefiro deixar como estão. Mantê-las intactas, por assim dizer. Quando apareço, apareço. Quando não apareço, significa que estou noutro lado qualquer.
- E não há um meio-termo?
- É isso - respondeu ela. - Porquê? Como já te disse, comigo não existe lugar para o meio-termo.
- E onde não há lugar para o compromisso, é o tudo ou o nada - repisei eu.
- Exactamente.
- Posto de outro modo: onde não há cães, não há canis.
- Exacto, da mesma maneira que onde não há cães, não há canis - disse Shimamoto, olhando para mim com uma certa estranheza. - Tens um sentido de humor curioso, tu.
Como tantas vezes acontecia, o piano trio começou a tocar "Star-Crossed Lovers". Por momentos, Shimamoto e eu ficámos em silêncio, a escutar aquela música.
- Hajime, posso fazer-te uma pergunta?
- Estás à vontade.
- Qual é a tua relação com este tema? - perguntou ela. -De todas as vezes que cá venho, quer-me parecer que eles o tocam sempre. É alguma' regra da casa ou coisa que o valha?
- Não. É uma questão de pura amabilidade. O que acontece é que eles sabem que eu gosto da melodia, vai daí tocam-na para mim.
- É uma música lindíssima.
Assenti.
- É muito bonita, sim, mas não só. Também é uma melodia muito complexa. Uma pessoa dá-se conta disso, ao ouvi-la muitas vezes. Não é qualquer músico que a consegue tocar -disse eu. - Duke Ellington e Billy Strayhorn compuseram-na há uma quantidade de tempo. Em 1957, se não estou em erro.
- "Star-Crossed Lovers" - referiu Shimamoto - quer dizer o quê?
- Quer dizer amantes nascidos sob uma má estrela. Amantes infelizes, desafortunados. É esse o significado em inglês. Trata-se de uma referência a Romeu e Julieta. Foi escrita por Ellington e Strayhorn para o Shakespeare Festival de Ontário. Na gravação original, o sax alto de Johnny Hodges fazia a parte de Julieta e Paul Gonsalves, no sax tenor, o de Romeu.
- Amantes nascidos sob uma má estrela. Amantes infelizes, desafortunados - repetiu Shimamoto. - Até parece que esta canção foi escrita de propósito para nós os dois.
- Achas que somos amantes?
- Porquê? Tu não achas?
Olhei para Shimamoto. O sorriso desaparecera do seu rosto.
Quanto muito, no fundo das suas pupilas distinguia-se ainda um brilhozinho.
- Shimamoto-san, não sei nada de ti - disse eu. - Sempre que olho para ti, olhos nos olhos, fico com essa impressão. Conheço apenas a rapariguinha de doze anos, aquela Shimamoto que vivia perto de minha casa e que ia à mesma escola que eu. Mas é bom não esquecer que isso foi há mais de vinte e cinco anos, na altura em que estava na moda o twist e as pessoas ainda andavam de carro eléctrico. Uma época em que ainda não existiam cassetes, nem tampões, nem comboios-bala, nem produtos alimentares de baixas calorias. Que é como quem diz: ainda estávamos na pré-história. E a verdade é que pouco mais sei do que sabia acerca de ti na altura.
- É isso que lês nos meus olhos? Que nada sabes acerca de mim?
- Nos teus olhos não vejo nada escrito - retorqui. - É nos meus que isso está escrito. Nos teus, só vejo o reflexo.
- Hajime, bem sei que deveria adiantar-te mais coisas, mas não posso. Por isso não mo peças.
- Tal como te disse, estava apenas a falar sozinho. Não faças caso.
Ela levou a mão à gola do casaco e acariciou o alfinete de peito em forma de peixe. Ao mesmo tempo, escutava em silêncio a música executada pelo piano trio. Quando a peça chegou ao fim, aplaudiu e bebeu um gole do seu cocktail. Por fim, deixou escapar um longo suspiro e virou-se para mim:
- Realmente, seis meses é muito tempo - disse ela. - Mas agora, por uma temporada, talvez consiga aparecer mais.
- Ah, as velhas palavras mágicas! - disse eu.
- As palavras mágicas?
- Talvez e por uma temporada.
Ela sorriu e fitou-me. Depois tirou um cigarro da sua
pequena bolsa de mão e acendeu-o com o isqueiro.
- Quando olho para ti, tenho a sensação de estar diante de uma estrela longínqua - acrescentei. - Uma estrela muito brilhante, mas cujo brilho foi emitido há dezenas de anos-luz. Pode até dar-se o caso de a estrela já nem sequer existir. O que não impede que essa luz me pareça mais real do que qualquer outra coisa.
Shimamoto deixou-se ficar calada.
- Tu estás aqui - continuei -, ou pelo menos pareces estar, se bem que não tenha a certeza, talvez não passe da tua sombra, e a verdadeira Shimamoto se encontre algures noutro sítio. Pode até acontecer que a tal estrela tenha desaparecido há muito, muito tempo. Estendo a mão para me certificar de que és mesmo tu, e tu escondes-te por detrás de uma nuvem formada por palavras como "talvez". Pensas que isto ainda durará muito?
- Possivelmente sim, mais algum tempo.
- Vejo que não sou o único com um estranho sentido de humor - disse eu. Foi a minha vez de sorrir.
Shimamoto também sorriu. Por sinal, um sorriso parecido com o primeiro raio de sol depois da chuva, a abrir caminho em silêncio por entre as nuvens. Pequenas e ternas rugas formaram-se ao canto dos seus olhos, sugerindo a promessa de qualquer coisa de maravilhoso.
- Hajime, tenho um presente para ti - anunciou ela. Acto contínuo, entregou-me um pacote embrulhado em papel lindíssimo e com uma fita vermelha à volta.
- Parece ser um disco - disse eu, sopesando o dito embrulhinho.
- É um disco de Nat King Cole. Aquele que costumávamos ouvir quando éramos mais novos, recordas-te? Ofereço-to.
- Obrigado. Mas de certeza que não queres ficar com ele? Quero dizer, sempre é uma recordação do teu pai.
- Tenho outros discos, não te preocupes. Este é para ti. Contemplei o disco sem tirar o papel de embrulho nem o laço. Por um instante, o bulício do local e a música tocada pelo piano trio desvaneceram-se na distância, como acontece quando a maré se afasta bruscamente. Ficámos apenas nós - eu e ela. O resto mais não é do que uma ilusão, personagens de cartão num cenário feito de papier-mâché. A única coisa que existia, a única coisa real, éramos nós os dois, Shimamoto e eu.
- Shimamoto-san, que me dizes a irmos a qualquer lado para ouvirmos o disco juntos?
- Isso seria fantástico - respondeu.
- Tenho uma casinha em Hakone, que de momento se encontra vazia, além de que podemos contar com uma aparelhagem estereofónica. A esta hora da noite, pomo-nos lá em hora e meia.
Ela olhou para o relógio. E depois para mim.
- Queres ir agora?
- Sim - confirmei.
De olhos semicerrados, ela olhava para mim como se eu fosse uma paisagem distante.
- Passa das dez. Se formos já, depois faz-se muito tarde para regressarmos. Não é um problema para ti?
- Não. E para ti?
Ela deitou nova olhadela ao relógio. Fechou os olhos e assim ficou durante uns bons dez segundos. Quando voltou a abri-los, o seu rosto tinha mudado de expressão. Parecia que viajara até paragens distantes para se libertar de um fardo, e depois regressado.
- Está bem - disse ela. - Vamos embora.
Chamei o gerente e pedi-lhe que me substituísse e tomasse conta do estaminé na minha ausência - era preciso fechar a caixa, organizar os recibos, guardar o dinheiro feito no depósito nocturno do banco. Fui até à garagem subterrânea de casa e tirei o BMW. Telefonei à minha mulher de uma cabina ali perto e disse-lhe que estava a caminho de Hakone.
- A Hakone? - perguntou ela, admirada. - Por que razão é que tens de ir a correr de escantilhão até lá a altas horas da noite?
- Preciso de pensar um bocado - respondi.
- Nesse caso, já não vens a casa hoje?
- Provavelmente não.
- Querido, estive a pensar no que aconteceu e cheguei à conclusão de que fiz mal. Tinhas razão. Já vendi as acções todas. Por isso, volta para casa, peço-te.
- Não estou zangado contigo, Yukiko. De maneira alguma. Não faças caso do que aconteceu. Preciso de tempo para reflectir, mais nada.
Ela ficou em silêncio durante alguns instantes. Depois disse:
- Compreendo. - A sua voz traduzia um grande cansaço. -Vai até Hakone. Mas conduz com cuidado. Está a chover.
- Prometo.
- Há muita coisa que não entendo - confessou ela. - Diz-me uma coisa: sou um fardo para ti?
- De maneira alguma - disse eu. - Esta história nada tem que ver contigo. Tu não tens culpa de nada. O problema sou eu, por isso não te deves preocupar. Preciso de tempo para pensar, só isso.
Desliguei e regressei de carro ao bar. Possivelmente, Yukiko tinha ficado com a nossa conversa da hora do almoço às voltas na cabeça, sempre a pensar e a repensar no que tínhamos dito tanto ela como eu. Percebia-se pelo seu tom de voz que estava cansada e confusa, o que me deixava profundamente triste. A chuva continuava a cair com força. Abri a porta e Shimamoto entrou no carro.
- Não precisas de prevenir alguém? - perguntei.
Ela negou com um movimento de cabeça. E, tal como acontecera na viagem de regresso do aeroporto de Haneda, encostou a cara ao vidro da janela e pôs-se a olhar lá para fora.
Havia pouco trânsito na estrada para Hakone. Saí da auto-estrada Tomei em Atsugi e fui sempre a direito até Odawara. O ponteiro do velocímetro oscilava entre os cento e trinta e os cento e quarenta quilómetros por hora. Volta e meia, a chuva abatia-se sobre nós com uma violência inusitada, mas o percurso era-me familiar. Conhecia de memória cada curva, cada saída. Assim que entrámos na auto-estrada, não voltámos a trocar palavra. Pus a tocar baixinho um quarteto de Mozart e concentrei-me na condução. De tempos a tempos, ela voltava a cabeça e cravava os olhos em mim. Quando isso acontecia, ficava com a boca seca e tinha de engolir a saliva várias vezes para me obrigar a recuperar a calma.
- Hajime - interpelou-me ela, estávamos nós a chegar aos arredores de Kouzu. - Não costumas ouvir música jazz fora do bar, pois não?
- Não. Quase sempre oiço música clássica.
- Porquê?
- Não te sei dizer. Talvez porque o jazz faz parte da minha profissão. Fora do meu local de trabalho, tenho vontade de escutar outro género de música. Às vezes acontece-me ouvir música rock, também, mas jazz, raramente.
- E a tua mulher, que tipo de música é o dela?
- Costuma ouvir o que eu oiço. Pode dizer-se que quase nunca põe a tocar discos por sua iniciativa. Confesso que nem sequer tenho a certeza de que ela sabe usar a aparelhagem.
Shimamoto estendeu o braço na direcção do estojo onde eu guardava as cassetes e tirou duas ou três. No meio delas encontravam-se também as cassetes com canções infantis que as minhas filhas e eu tínhamos por hábito cantar em conjunto a caminho da escola. "O Cão Polícia" e "Túlipa". Pela expressão de estranheza de Shimamoto ao examinar o desenho do Snoopy na capa da cassete, mais parecia que tinha descoberto uma coisa do arco-da-velha.
Em seguida, voltou a concentrar a sua atenção na minha pessoa.
- Sabes, Hajime - disse passado um bocado -, quando olho para ti assim de perfil e te vejo a conduzir, dá-me vontade de agarrar no volante e dar-lhe uma guinada. Morreríamos os dois, não te parece?
- Podes crer. A cento e trinta quilómetros à hora!
- Não gostarias de morrer aqui comigo?
- Não creio que fosse uma morte muito agradável - disse eu a rir. - Além do mais, ainda não ouvimos o disco. E foi por isso que aqui estamos, não é verdade?
- Não te preocupes - replicou ela. - Não vou fazer nada disso. Foi só um pensamento daqueles que volta e meia me passam pela cabeça.
Ainda estávamos no início do Outono, mas a verdade é que as noites em Hakone já estavam muito frias. Ao chegarmos à casa de campo, comecei por ligar a electricidade e acender a estufa de gás na sala de estar. Depois, tirei do armário uma garrafa de conhaque e dois copos. Sentámo-nos no sofá um ao lado do outro, como antigamente, e pus o disco de Nat King Cole a rodar no prato do gira-discos. Os lampejos vermelho-vivos lançados pela estufa de gás reflectiam-se nos nossos copos. Shimamoto sentou-se com as pernas dobradas debaixo do corpo. Apoiou uma das mãos no encosto do sofá, pousou a outra sobre os joelhos. Como nos velhos tempos. Naquela época, o mais provável era ela não querer que lhe vissem as pernas, e o hábito devia ter-lhe ficado até ao presente. Nat King Cole cantava "South of the Border". Era caso para perguntar: há quantos anos eu não ouvia aquela canção?
- Em pequeno, sempre que escutava esta canção, perguntava a mim mesmo o que poderia ficar a sul da fronteira -disse eu.
- Também eu - confessou Shimamoto. - Já crescida, quando fui capaz de traduzir a letra em inglês, apanhei cá uma destas desilusões! Afinal, era apenas uma canção sobre o México, e eu que pensava que ao sul da fronteira só poderia existir qualquer coisa de bem mais espantoso.
- Como por exemplo?
Shimamoto afastou o cabelo da cara com a mão e enroscou a madeixa junto à nuca.
- Não sei, qualquer coisa de muito belo, grande e delicado.
- Muito belo, grande e delicado - repeti. - Comestível? Shimamoto riu-se. Os seus dentes brancos ficaram ligeiramente à vista.
- Talvez.
- Tu e a tua mania do "talvez"!
- O que há mais neste mundo são "talvez".
Estendi a mão e aflorei a sua, que continuava sobre as costas do sofá. Havia muito tempo que eu não tocava nela. Desde o célebre voo de Ishikawa para Tóquio. Ao sentir os meus dedos, levantou a cabeça e olhou para mim, antes de voltar a baixar os olhos.
- Ao sul da fronteira, a oeste do Sol - disse ela.
- "A oeste do Sol"? quer dizer concretamente o quê?
- É um lugar que existe - explicou ela. - Nunca ouviste falar de uma doença chamada "histeria siberiana"?
- Não.
- Li isso em qualquer sítio, há muito tempo. Quando andava no liceu, acho eu. Só não me consigo lembrar em que livro foi. Em todo o caso, é o nome de uma doença que ataca os camponeses que vivem na Sibéria. Experimenta imaginar que és um camponês que vive em plena estepe siberiana. Trabalhas a terra todos os dias, de sol a sol. A tua volta, até onde a vista alcança, nada. Em direcção a norte, a linha do horizonte, a leste, o horizonte, a sul, o horizonte, a oeste, mais do mesmo cenário. Todos os dias, quando o Sol nasce a oriente, sais de casa e vais trabalhar nos campos. Quando o Sol alcança o zénite, aproveitas para descansar e almoças. Quando o astro-rei se põe, a ocidente, regressas a casa e vais dormir.
- Não se pode dizer que seja parecido com a existência do proprietário de um bar de jazz em Aoyama.
- Pois não. - Ao dizer aquilo, ela sorriu e inclinou ao de leve a cabeça. - Muito diferente, com efeito. E isso anos a fio, dia após dia.
- Mas na Sibéria não se podem cultivar os campos, no Inverno.
- De Inverno, os camponeses descansam, como é bom de ver - disse ela. - Durante o Inverno ficam em suas casas e ocupam o tempo com trabalhos domésticos. Quando chega a Primavera, voltam a sair para os campos. Imagina que és um desses camponeses.
- Okay.
- E depois, um belo dia, alguma coisa morre dentro de ti.
- Referes-te concretamente a quê?
Ela abanou a cabeça.
- Não sei. Qualquer coisa. Dia após dia, à força de passares a vida a ver o Sol levantar-se a leste, cruzar os céus e afundar-se a oeste, sentes que qualquer coisa dentro de ti se quebra e morre. Pões de parte o arado e, sem pensar em nada, com a mente vazia de pensamentos, pões-te a caminhar em direcção a oeste. Rumo a uma terra que fica a oeste do Sol. Continuas sempre a andar, dias a fio, sem comer nem beber, até que acabas por cair de bruços e morres. É isso a histeria siberiana.
Tentei imaginar a figura de um camponês da Sibéria caído por terra, à beira da morte.
- Mas o que existe a oeste do Sol? - perguntei. Ela tornou a abanar a cabeça.
- Não sei. Nada, se calhar. Ou alguma coisa, quem sabe? Em todo o caso, é um lugar diferente do que está ao sul da fronteira.
Quando Nat King Cole entoou o tema "Pretend", Shima-moto, como fazia tantas vezes antigamente, começou a cantar baixinho.
Pretend you're happy when you're blue
It isn't very hard to do.
- Escuta, Shimamoto-san - disse eu -, quando te foste embora, pensei muito em ti. Durante seis meses, de manhã à noite, não fiz outra coisa senão pensar em ti. Tentei que isso não acontecesse, mas sem conseguir. E cheguei a uma conclusão. Não posso viver sem ti. Não quero voltar a perder-te. Não quero voltar a ouvir as palavras "uma temporada". Além de detestar a expressão "talvez". Passas a vida a dizer que, durante uma temporada, não nos podemos ver, e a seguir desapareces. Ninguém pode ter a certeza se regressarás ou não. Pelo menos eu não tenho. Pode muito bem acontecer que nunca mais regresses, e eu terei de acabar os meus dias sem ter a possibilidade de te rever. E confesso que esse pensamento é, aos meus olhos, insuportável. Caso isso acontecesse, a vida à minha volta perderia o sentido.
Shimamoto olhou para mim sem dizer nada, limitando-se a sorrir. Nos seus lábios desenhava-se o sorriso do costume, que não me permitia ir para além das aparências. Perante aquele sorriso, tinha a sensação de me perder, de não compreender os meus próprios sentimentos. Por breves momentos fiquei sem saber quem era e perdi a noção do espaço. Por fim, lá consegui encontrar as palavras que me permitiram continuar.
- Amo-te - confessei -, disso estou perfeitamente certo. Ninguém poderá substituir o sentimento que tenho por ti, um sentimento muito especial que não quero voltar a perder. Desapareceste da minha vida por mais de uma vez, mas isso não pode voltar a suceder. Nestes últimos meses, dei-me conta do erro que foi ter-te deixado partir. Gosto sinceramente de ti e não quero que voltes a abandonar-me.
Quando acabei de falar, ela permaneceu de olhos fechados. O fogo ardia na estufa e Nat King Cole continuava a cantar as suas velhas canções. Pensei que deveria ter acrescentado mais alguma coisa, mas não me lembrei de nada.
- Hajime - começou ela -, escuta bem o que te digo. É muito importante. Como já te disse, comigo não há meias-medidas. Por isso, das duas uma: ou ficas comigo como eu sou, por inteiro, ou não levas nada. É um princípio de base. Se estiveres disposto a aceitar que a situação continue assim, por mim tudo bem. Não sei por quanto tempo a coisa poderá durar, mas farei tudo o que estiver nas minhas mãos para que possa continuar. Quando for possível, virei ter contigo. Quando não puder, não me verás. Gostaria que ficasse claro que não me é possível aparecer de todas as vezes que quero. Porém, caso não fiques satisfeito com a proposta, e uma vez que dizes que não queres que eu torne a ir-me embora, então tens de me aceitar por inteiro, com tudo, mas tudo o que trago comigo. Da mesma forma que eu aceitarei tudo o que te diga respeito. Por inteiro. Compreendes? Compreendes bem o que isso significa?
- Sim - disse eu.
- E apesar de tudo queres ficar comigo?
- Já tinha decidido, Shimamoto-san. - Durante a tua ausência, reflecti maduramente no assunto. E tomei a minha decisão.
- Mas, Hajime, tens mulher e duas filhas, de quem gostas. Tens de pensar nelas e procurar fazer o que for melhor para todos.
- Claro que as amo, e muito. E são muito importantes para mim, dou-te razão. Mas falta qualquer coisa. Tenho família e um trabalho interessante, disso não me posso queixar. Pode dizer-se que sou um homem realizado. E, contudo, sei agora que isso não basta. O principal problema é que me falta qualquer coisa. Existe um grande vazio, tanto em mim como na minha vida. Em parte estou sempre esfomeado e sedento, mas nem a minha mulher nem as minhas filhas conseguem preencher esse vazio. Tu és a única pessoa no mundo capaz de o fazer. Só quando estou contigo, e me sinto satisfeito, é que percebo até que ponto tenho andado estes anos todos cheio de fome e de sede. Não posso voltar atrás, ao mundo antigo.
Shimamoto passou os seus braços à volta do meu pescoço e descansou a cabeça no meu ombro. Pude sentir como o seu corpo era macio, encostada a mim e transmitindo-me o seu calor.
- Também eu gosto de ti, Hajime. És a única pessoa que amei em toda a minha vida. Amo-te desde os meus doze anos. Continuei sempre a pensar em ti, mesmo quando estava nos braços de outros homens. Por isso é que não queria voltar a ver-te. Sabia que depois não poderia deixar-te. Ao mesmo tempo, porém, fui incapaz de resistir à tentação. De início pensava dar apenas um salto até ao bar para me certificar de que eras realmente tu, e depois regressar a casa. Mas, quando te vi, não pude deixar de falar contigo - contou Shimamoto com a cabeça apoiada no meu ombro. - Desde os meus doze anos que desejava ser abraçada por ti. Nunca soubeste isso, pois não?
- Não - reconheci.
Puxei-a mais para mim e beijei-a. Ela fechou os olhos e deixou-se ficar, imóvel. As nossas línguas entrelaçaram-se e pude sentir o bater do seu coração dentro do peito. Batimentos a um tempo violentos e quentes. Fechei os olhos e pensei no sangue vermelho que corria dentro das suas veias. Acariciei-lhe os cabelos macios e aspirei o seu perfume. As mãos dela percorriam as minhas costas como se procurassem alguma coisa. O disco chegou ao fim, o prato deixou de girar e o braço do gira-discos regressou à base. Uma vez mais, ficámos envolvidos pelo rumor da chuva. Passado um bocado ela abriu os olhos.
- Hajime - sussurrou baixinho -, tens a certeza? Estás disposto a abandonar tudo por mim?
Respondi que sim com a cabeça.
- Sim, a minha decisão está tomada.
- Mas se não me tivesses reencontrado, não sentirias insatisfação nem dúvidas a respeito da tua vida actual e poderias continuar a desfrutar tranquilamente da tua vida, sem grandes insatisfações. Não te parece?
- Se calhar. Mas a verdade é que te encontrei - respondi eu -, e isso não se pode mudar. Como te disse uma vez, certas coisas não se podem mudar. Não temos outro remédio senão seguir em frente. Shimamoto-san, vamos os dois para um lugar qualquer, nem que seja até ao fim do mundo. O meu único desejo é recomeçar tudo de novo, só nós os dois.
- Hajime - disse ela -, queres despir-te para que eu possa ver o teu corpo?
- Queres que me dispa?
- Sim. Primeiro tira tu a roupa. Quero olhar para ti nu. Desagrada-te a ideia?
- Não. Se é isso o que tu queres. - Despi-me à frente da estufa. Tirei a parka, a camisola, as calças de ganga, a T-shirt e as meias. Shimamoto fez-me pôr de joelhos no chão. Tinha o pénis erecto e isso causava-me um certo embaraço. Ela afastou-se ligeiramente para observar a cena à distância. Continuava com o casaco vestido.
- Não sei, parece que me sinto um pouco estranho por ser o único aqui despido - argumentei eu rindo.
- Que maravilha, Hajime - disse ela. Aproximou-se de mim, envolveu-me o pénis suavemente com os seus dedos e beijou-me nos lábios. Apoiou as mãos sobre o meu peito e, durante muito tempo, lambeu-me os mamilos e acariciou-me os pêlos púbicos. Encostou uma orelha ao meu umbigo e meteu os meus testículos na boca. Beijou-me o corpo todo, até mesmo as plantas dos pés. Dava a sensação de estar a acariciar o próprio tempo, à medida que chupava e lambia.
- E tu, não te despes? - quis eu saber.
- Mais tarde - respondeu. - Quero continuar a ter o prazer de olhar para o teu corpo, quero lamber-te e tocar-te a meu bel-prazer. Se eu me despisse, ias querer tocar-me, não é verdade? Por mais que eu te pedisse para não o fazeres, não te conseguirias controlar.
- Podes crer.
- E eu não quero que isso aconteça. Não quero apressar as coisas. Demorámos tanto tempo a alcançar este ponto! Primeiro quero olhar bem para ti e ver o teu corpo, tocar-te com as minhas mãos, percorrer-te com a minha língua. Quero experimentar tudo e mais alguma coisa, lentamente. Só depois podemos passar à fase seguinte. Hajime, não faças caso, mesmo que estranhes o meu comportamento bizarro, peço-te. Se assim acontece, é porque tem de ser. Não digas nada, deixa-me fazer.
- Não me importo. Faz como quiseres. Acontece apenas que me sinto um bocado esquisito, contigo aí a examinar-me dos pés à cabeça.
- Mas tu pertences-me, não é verdade?
- Sim.
- Nesse caso, não há razão para teres vergonha.
- Lá isso é verdade. Não estou habituado, mais nada.
- Aguenta mais um pouco. Se soubesses há quantos anos sonho com isto...
- Sonhavas com o meu corpo? O teu sonho era ficares assim a olhar para o meu corpo, tocando-me, eu nu enquanto tu ficavas vestida?
- Sim - confessou ela. - Sempre imaginei como seria o teu corpo. Que forma teria o teu pénis, duro e grande, com uma erecção.
- Porquê? O que te levava a pensar nisso?
- Porquê? - disse ela, sem querer acreditar. - Ainda me perguntas porquê? Acabei de te dizer que te amo. Que mal há em pensar no corpo nu do homem que se ama? Tu nunca te puseste a imaginar o meu corpo?"
- Já - admiti.
- Aposto que já te masturbaste a pensar em mim, nua.
- Admito que sim. Quando andava no colégio e, depois, nos tempos de liceu - afirmei, mas depois apressei-me a corrigir: - Bom, para ser franco, ainda recentemente o fiz.
- Comigo passa-se o mesmo. Também eu pensei em ti, imaginei-te todo nu. As mulheres também fazem isso, não sei se sabes.
Apertei-a mais contra mim e beijei-a lentamente. A sua língua deslizou para dentro da minha boca.
- Amo-te, Shimamoto.
- Amo-te, Hajime. Nunca amei outra pessoa que não fosses tu. Posso continuar a olhar para o teu corpo?
- Se é isso que queres.
Ela pegou-me no sexo e nos testículos com as duas mãos.
- Que maravilha. Tenho vontade de os comer!
- E qual é o meu papel no meio disso? - observei.
- Quero comê-los - insistiu ela, sopesando os meus testículos durante um grande bocado na palma da mão, como se estivesse a calcular o seu peso exacto. Só então começou a passar a língua e a chupar o meu pénis lentamente, com extremo cuidado. Depois olhou para mim e disse:
- Deixas que faça primeiro as coisas à minha maneira? Como tenho vontade?
- Está bem, faz como quiseres - disse eu. - Tirando a parte de me comeres, escusado será dizer.
- Vou fazer uma coisa um bocadinho estranha, mas não ligues. E nada de comentários, porque estou com uma certa vergonha.
- Prometo ficar calado.
Tal como estava, de joelhos no chão, ela rodeou-me a cintura com o braço esquerdo. Depois, levantou o vestido e despiu as cuecas e as meias. Pegou no meu pénis e nos testículos com a mão direita e começou a usar a língua. A seguir enfiou a outra mão debaixo do vestido. Começou a movê-la lentamente ao mesmo tempo que chupava o meu sexo.
Eu não disse nada. Pelos vistos, era aquela a sua maneira de fazer a coisa. Observei os movimentos da sua boca, da sua língua, e segui o movimento rítmico da sua mão debaixo da saia. E, de repente, veio-me à cabeça a imagem de Shimamoto dentro do carro, no parque de estacionamento do salão de bowling - rígida e branca como um lençol. Recordava-me com uma clareza impressionante do que vira nesse dia no fundo dos seus olhos. Um espaço sombrio e gelado, como um glaciar no coração do tempo. Um silêncio tão profundo que absorvia todos os sons sem deixar que subissem à superfície. Um silêncio total, absoluto.
Era a primeira vez na vida que eu me defrontava com um cenário de morte, razão pela qual não tinha forma de saber qual era realmente a imagem da morte. Naquele dia, porém, tinha visto a morte de frente, a escassos centímetros. "Com que então, é este o rosto da morte", lembro-me de ter pensado. E alguma coisa me disse que, um dia, também me tocaria a mim. Mais cedo ou mais tarde, todos nós estamos condenados a cair através das trevas, em solidão, e eternamente envoltos nesse silêncio desprovido de ressonância. Diante daquele poço negro sem fundo, experimentei um terror indizível, o medo não me deixava respirar.
Confrontado com a profundeza daquele mundo de trevas, chamei por ela. "Shimamoto-san!", gritei por mais de uma vez. Porém, a minha voz perdia-se naquele vazio sem fim. Por mais que chamasse, aquilo que existia no fundo dos seus olhos não se mexia. Continuava sempre a respirar fazendo um barulho estranho, uma espécie de estertor, como se o ar fosse obrigado a passar pelas fendas de um tubo. A sua respiração regular dizia-me que ela ainda se encontrava no mundo dos vivos, mas no fundo dos seus olhos ela já se entregara por inteiro à morte.
A força de chamar por ela e fixar a treva no fundo dos seus olhos, tive a sensação de que o meu próprio corpo era arrastado, a pouco e pouco, para as profundezas. Como se um vazio tivesse absorvido o ar em redor, aquele outro mundo atraía-me para si. Sentia ainda no tempo presente o poder daquela força real. Era a mim que queria.
Fechei os olhos com força. Expulsei aquelas recordações da minha mente.
Estendi o braço e toquei no cabelo dela. Acariciei-lhe as orelhas, pousei a mão sobre a sua testa. O seu corpo era doce e cálido. Continuava a chupar o meu pénis como se quisesse sugar a própria essência da vida. O movimento da sua mão, com a qual continuava a acariciar o seu sexo por debaixo da saia, parecia querer comunicar uma mensagem qualquer em linguagem cifrada. Pouco depois, ejaculei na sua boca. A sua mão imobilizou-se e ela fechou os olhos. Engoliu o meu esperma até à última gota de sémen.
- Desculpa - disse ela.
- Não tens de pedir desculpa.
- A primeira vez, queria que fosse assim - acrescentou. -Tenho vergonha de confessar, mas tinha de o fazer. Funciona como um ritual de passagem para os dois, acho eu. Compreendes o que eu digo?
Abracei-a e encostei docemente a minha cara à sua, para sentir o calor que se desprendia dela. Levantei-lhe os cabelos e beijei as suas orelhas. Depois, olhei-a nos olhos e vi o meu rosto reflectido nas suas pupilas. No fundo daquele poço profundo que continuava a existir divisava-se uma luzinha. A fonte da vida, quis-me parecer. Um dia extinguir-se-ia, mas naquele momento brilhava ainda. Ela sorriu-me e, como de costume, formaram-se umas pequenas linhas ao canto dos olhos. Beijei aquelas pequeninas rugas.
- Agora é a tua vez de me despir e fazer comigo o que desejas - disse ela.
- Correndo o risco de pecar por falta de imaginação, prefiro fazer da maneira normal. Pode ser? - perguntei.
- Pode - respondeu Shimamoto. - Também gosto assim. Desembaracei-a do vestido e da roupa interior. Depois, fi-la deitar-se na cama e cobri-a de beijos. Explorei o seu corpo com o olhar, tocando e beijando cada centímetro. Queria medir cada ângulo e guardá-lo na memória. Com todo o vagar do mundo. Tínhamos demorado tanto tempo para chegar até àquele ponto. Tal como ela, também eu não estava interessado em apressar as coisas. Contive-me e quando não pude resistir mais, penetrei-a lentamente.
Adormecemos pouco antes do amanhecer. Tínhamos feito amor várias vezes (quantas ao certo, não sei) no chão. Tínhamo-nos amado ora com doçura, ora com paixão. Uma vez, em pleno acto, quando eu estava dentro dela, rompeu aos soluços e desatou a golpear-me nas costas com os punhos, como se o fio das suas emoções se tivesse quebrado. Enquanto aquilo durou, abracei-a com força de encontro a mim. Acariciei-lhe as costas na esperança de a acalmar. Beijei-a na nuca e penteei os seus cabelos com os dedos. Deixara de ser a Shimamoto que eu conhecia, capaz de se controlar, senhora de si e das suas emoções. O núcleo duro, depositado no fundo do seu coração, começava aos poucos a fundir-se e a aflorar à superfície. Conseguia sentir a sua respiração, o palpitar distante da vida. Abracei-a com força e deixei que o seu tremor fosse absorvido pelo meu corpo. Pouco a pouco, ela entregava-se a mim.
- Quero que me contes tudo acerca de ti - disse-lhe. -Como viveste até agora, onde moras e o que fazes, se és casada ou não. Tudo. Não posso continuar a suportar os segredos que te rodeiam.
- Amanhã - pediu ela. - Amanhã digo-te tudo o que queres saber. Até lá, não me faças perguntas. Vamos ficar assim hoje, tal como estamos. Se te contasse a verdade neste momento, já não poderias voltar atrás.
- Em todo o caso não poderei voltar atrás, Shimamoto. E, quem sabe, o amanhã pode nunca chegar. E se isso acontecer, ficarei sem saber os segredos que guardas no fundo de ti.
- Quem me dera que o amanhã nunca chegasse - replicou ela. - Assim, ficarias para sempre na ignorância.
Eu ia a dizer qualquer coisa, mas ela impediu-me com um beijo na boca.
- Oxalá aparecesse um abutre-careca e devorasse o dia de amanhã - disse Shimamoto. - Achas que um abutre-careca poderia fazer isso?
- Faz sentido, aos meus olhos. Os abutres-carecas alimentam-se de arte, mas também são capazes de devorar amanhãs.
- E os abutres normais comem...
- ... corpos sem vida de gente anónima - alvitrei. - Muito diferente do que faz o abutre-careca.
- Nesse caso, o abutre-careca alimenta-se de arte e amanhãs.
- Sim. Isso mesmo.
- Uma combinação sugestiva.
- E à sobremesa, devoram o catálogo das novas publicações da Editorial Iwanami(25).
Shimamoto desatou a rir.
- Amanhã - prometeu ela -, fica para amanhã.
E, bem entendido, o dia seguinte chegou. Acontece, porém, que ao abrir os olhos dei por mim sozinho. Tinha deixado de chover e, pela janela, penetrava a luz clara e transparente do dia. O relógio indicava que passava das nove. Shimamoto não se encontrava na cama, mas uma ligeira depressão na almofada, a meu lado, era sinal de que ali havia estado. Ela parecia ter desaparecido. Saltei da cama e fui ver se estava na sala. Procurei por ela na cozinha, no quarto das crianças, na casa de banho.
(25) Destinada a um público intelectual, porventura a mais prestigiada editora de Tóquio, assim chamada por ter sido fundada em 1938 por Iwanami Shoten. Publica, entre outros, Kenzaburo Oe e Haruki Murakami, bem como importantes nomes da literatura mundial. (N. da T.)
Nada. As suas roupas haviam desaparecido, o mesmo acontecendo com os sapatos no armário da entrada. Respirei fundo e fiz os possíveis por regressar à realidade. Uma realidade que tinha qualquer coisa de novo e de estranho e na qual eu sentia dificuldade em encaixar.
Vesti-me e saí para o exterior. Lá fora estava o BMW, estacionado no mesmo sítio onde o deixara na noite anterior. Era possível que Shimamoto tivesse acordado cedo e ido dar uma volta sozinha. Contornei a casa à procura dela, depois meti-me no carro e percorri a vizinhança até chegar à cidade mais próxima. Shimamoto, porém, continuava sem aparecer. Quando regressei, ainda não havia sinais dela. Na esperança de encontrar algum bilhetinho, passei revista à casa, mas não encontrei rigorosamente nada. Nem sequer vestígios da sua passagem.
Sem ela, a casa parecia-me terrivelmente vazia e sufocante. No ar, notava-se a presença de uma espécie de partículas em suspensão que, ao respirar, como que se colavam à minha garganta. Lembrei-me do disco, do velho disco de Nat King Cole que ela me oferecera. Procurei-o por todo o lado, mas não o encontrei. Devia tê-lo levado com ela.
Shimamoto tinha voltado a desaparecer da minha vida(26). E, desta vez, sem deixar nada a que me pudesse agarrar. Sem um "talvez" nem "por uma temporada".
(26) À semelhança de outras personagens nos romances de Murakami {Crónica do Pássaro de Corda, Sputnik, Meu Amor). E não só, veja o elefante - e mascote da cidade - que se evapora misteriosamente na história "The Elephant Vanishes", que dá título a uma colectânea de contos (o livro encontra-se por traduzir em português, se bem que alguns desses contos tenham sido publicados em A Rapariga que Inventou um Sonho, Lisboa, 2008, Casa das Letras). (N. da T.)
Regressei a Tóquio naquele mesmo dia, pouco antes das quatro. Tinha ficado por terras de Hakone até ao princípio da tarde, na vaga esperança de que Shimamoto ainda pudesse voltar lá a casa. Como esperar se revelou uma verdadeira tortura, aproveitei o tempo para limpar a cozinha e arrumar as roupas espalhadas pela casa. O silêncio era qualquer coisa de opressivo; até o canto dos pássaros e o ruído produzido pelos tubos de escape dos carros que se ouvia de vez em quando soavam aos meus ouvidos como qualquer coisa de artificial e de desproporcionado. Era como se todos os sons em redor estivessem deformados ou se revelassem esmagados por alguma força misteriosa. Mergulhado nessa atmosfera, esperava pelo que havia de acontecer. Alguma coisa tinha de acontecer. Não era possível que tudo acabasse assim, daquela maneira.
Porém, não aconteceu nada. Shimamoto não era do género de mudar de ideias. Estava na hora de regressar a Tóquio. No caso de Shimamoto querer entrar em contacto comigo - e por muito pouco provável que o cenário se afigurasse -, marcaria presença num dos meus clubes de jazz. Em todo o caso, não fazia sentido continuar na casa de Hakone.
Na viagem de regresso, tive de fazer um esforço para manter a atenção na estrada. Falhei várias curvas, quase passei os sinais vermelhos, e por mais de uma vez enganei-me na faixa de rodagem. Quando cheguei ao parque de estacionamento do bar, telefonei para casa de um telefone público. Disse a Yukiko que estava de volta e que ia direito para o trabalho.
- É tarde, podias ao menos ter ligado e dito alguma coisa - admoestou-me ela num tom duro e seco.
- Estou bem. Não te preocupes - retorqui. Não fazia ideia de como a minha voz devia soar aos seus ouvidos. - Não tenho muito tempo, por isso vou directamente para o escritório, a fim de dar uma olhadela aos livros de contabilidade e, depois, ainda dou um salto ao clube.
No escritório, sentei-me à secretária e ali me deixei estar, sozinho, sem fazer nada, até cair a noite. Aproveitei para rememorar os acontecimentos do dia anterior. Provavelmente Shimamoto levantara-se da cama depois de eu ter adormecido e fora-se embora ainda de madrugada, incapaz de fechar os olhos durante a noite. Como é que ela se arranjara para regressar a Tóquio era para mim um mistério. A estrada principal ainda ficava bastante longe, além de que, àquela hora da manhã, teria sido quase impossível encontrar um autocarro ou um táxi. Sem esquecer que ela se encontrava de saltos altos.
Estaria Shimamoto condenada a desaparecer assim da minha vida? A pergunta atormentara-me durante toda a viagem de regresso a Tóquio. Tinha-lhe dito que queria ficar com ela, de corpo inteiro, ela tinha dito que queria ficar comigo. Depois fizemos amor sem reservas. E, contudo, ela deixara-me sozinho, sem uma explicação. Mais, levando consigo o disco que me tinha oferecido. Ora, não me parecia que Shimamoto fosse pessoa para agir motivada por um qualquer impulso. Por certo haveria um sentido, uma razão lógica susceptível de explicar o seu comportamento, mas a verdade é que eu não estava em condições de seguir um raciocínio. O fio dos meus pensamentos parecia ter sido cortado. A força de tanto reflectir, fui assaltado por uma dor de cabeça brutal.
Compreendi que estava exausto. Sentei-me no chão, encostei-me à parede, fechei os olhos. Uma vez cerradas as pálpebras, já não fui capaz de as abrir. Só podia recordar. Como se fizesse girar uma velha cassete sem fim, a lembrança dos acontecimentos da véspera desfilou na minha cabeça, uma vez e outra e outra. Via Shimamoto nua. De olhos fechados, imaginava nos seus ínfimos detalhes o seu corpo despido à luz da estufa - o seu pescoço, os seios, os quadris, os pêlos púbicos, o seu sexo, as costas, a cintura, as pernas. As imagens estavam demasiado próximas, demasiado nítidas. Por momentos, pareceram-me mais próximas e mais vívidas do que a própria realidade.
Sozinho no minúsculo cubículo, deixei-me arrebatar pela força daquelas alucinações tão cheias de pormenores gráficos. Abandonei o edifício e pus-me a deambular pelas ruas sem rumo certo. Às tantas lá acabei por ir ter ao bar. Fiz a barba na casa de banho. Desde manhã que nem sequer lavara a cara. Além disso, tinha ainda a mesma parka da véspera vestida. Nenhum dos meus empregados teceu qualquer comentário, apesar de ter notado um ou outro olhar de curiosidade. Não podia voltar para casa. Naquele momento, se me cruzasse com Yukiko, cederia por certo à tentação de lhe confessar. Que estava apaixonado por Shimamoto, que tinha passado a noite com ela e estava a ponto de abandonar tudo, a minha família, a minha mulher, o meu trabalho.
Na verdade, sabia que tinha o dever de desabafar com Yukiko e contar-lhe a história, de fio a pavio. Mas não podia. Naquele momento, era incapaz de distinguir o certo do errado, nem tão-pouco o que estava a acontecer comigo. Isto para dizer que não regressei a casa. Fui directo para o clube e fiquei à espera de Shimamoto. Sabia que era pouco provável que ela aparecesse, mas não podia fazer outra coisa. Fui primeiro ao meu outro bar, depois sentei-me ao balcão do Robin's Nest e deixei-me ficar à espera até chegar a hora de fecho. Estive, como de costume, à conversa com alguns clientes habituais, mas confesso que pouca ou nenhuma atenção prestei ao que se dizia, aos meus ouvidos chegava apenas mero ruído de estática. Limitei-me a fazer os acenos da ordem com a cabeça, ao mesmo tempo que a minha mente estava ocupada com a imagem do corpo de Shimamoto. Recordava a doçura com que a sua vagina me acolhera, enquanto ela pronunciava o meu nome. Sempre que o telefone tocava, o meu coração dava um salto.
Mesmo depois de o bar ter fechado as suas portas e de toda a gente ter ido para casa, deixei-me estar sentado ao balcão, a beber. Apesar da quantidade de álcool emborcado, não havia maneira de ficar bêbado. Pelo contrário, era caso para dizer que quanto mais bebia, mais a minha cabeça ficava desanuviada. Quando cheguei a casa, por volta das duas da manhã, encontrei Yukiko à minha espera. Farto de saber que não conseguiria dormir, fui sentar-me à mesa da cozinha diante de um uísque. Yukiko pegou num copo e fez-me companhia.
- Põe música - pediu ela. Deitei a mão à primeira cassete, enfiei-a na aparelhagem e baixei o volume para não acordar as minhas filhas. Permanecemos os dois ali sentados, sem dizer nada, com a mesa a separar-nos, cada um a beber o seu uísque.
- Há outra mulher, não há? - perguntou Yukiko olhando para mim fixamente.
Fiz que sim com a cabeça. Pensei para comigo que Yukiko devia ter repetido muitas vezes aquelas mesmas palavras para si mesma antes de as pronunciar. As suas palavras tinham peso e contornos precisos. Dava para notar isso no timbre da sua voz.
- E gostas a sério dessa mulher. Não estamos a falar de uma simples escapadela.
- Sim - admiti -, não se trata de uma brincadeira de miúdos. Mas é diferente do que tu possas pensar.
- Como sabes tu aquilo em que eu estou a pensar? - quis ela saber. - Acreditas sinceramente que imaginas o que me vai na cabeça?
Fiquei calado, incapaz de dizer fosse o que fosse. Yukiko também ficou em silêncio. A música tocava baixinho. Era Vivaldi ou Telemann, um dos dois. Não me conseguia lembrar ao certo da peça em questão.
- Duvido seriamente que saibas no que estou a pensar -disse Yukiko. Falava pausadamente, pronunciando cada palavra uma a uma, como acontecia quando dava uma explicação qualquer às miúdas. - Não podes compreender.
Ao ver que eu não lhe dava troco, ela agarrou no copo e bebeu mais um gole. Devagar, muito devagarinho, abanou a cabeça.
- Não sou tão estúpida como possas pensar, sabes? Vivo contigo, durmo contigo. Calculava desde há já algum tempo que existia outra mulher na tua vida.
Continuei a olhar para ela em silêncio.
- Não te estou a acusar de nada, repara - continuou ela. - Se é verdade que estás apaixonado, não há nada a fazer. Estás apaixonado, estás apaixonado. Quando se ama alguém, o coração é que manda. Sempre soube que eu não te bastava. Até à data as coisas correram pelo melhor entre nós, trataste-me sempre bem. Fui muito feliz a teu lado. E acredito que ainda gostes de mim, mas, ao mesmo tempo, tenho plena consciência de já não ser mulher para ti. Sempre soube que isso iria acontecer, mais dia menos dia, por isso não te censuro pelo facto de te teres apaixonado por outra. Para dizer a verdade, nem sequer estou zangada. Pode parecer estranho, mas não estou. Sinto apenas tristeza, uma dor imensa, que vai para além de tudo o que eu poderia imaginar.
- Sinto muito - disse eu.
- As desculpas não são para aqui chamadas. Se te queres separar de mim, és livre de o fazer. Não serei eu a colocar entraves(27). Pretendes deixar-me?
- Não sei - respondi. - Posso ao menos tentar explicar-te a situação?
- Que me expliques coisas acerca de ti e dessa tal mulher?
- Sim.
Ela abanou a cabeça com brusquidão.
- Não quero saber nada acerca dela. Não me faças sofrer mais. Estou-me pura e simplesmente nas tintas para essa história. Não quero nada, nem a casa nem dinheiro. Quanto às meninas, se queres, podes ficar com elas. Olha que é a sério. Se tiveres intenções de te separar, basta que mo digas. Só quero saber. De resto, não quero ouvir falar em mais nada. Responde-me sim ou não.
- Não sei - respondi.
- Não sabes se te queres separar, é isso?
- Não. O que não sei é se estou em posição de responder à tua pergunta.
- E quando é que calculas saber?
Abanei a cabeça.
- Nesse caso, pensa com calma - disse Yukiko com um suspiro. - Posso esperar, não te preocupes. Demora o tempo que quiseres antes de responder.
(27) Até há bem pouco tempo, o divórcio ainda acarretava um forte estigma social no Japão, se bem que os casos extraconjugais fossem olhados com tolerância. Da noite para o dia, o caso mudou de figura, e começou a assistir-se a uma gigantesca onda de separações: só em 1998 foram dissolvidos 200 mil casamentos. Recorde-se que este romance foi originalmente publicado no Japão em 1992. (N. da T.)
A partir daí, comecei a dormir no sofá da sala. Quando calhava as minhas filhas acordarem a meio da noite e virem perguntar-me por que razão me encontrava ali, eu explicava-lhes que o papá ultimamente andava a ressonar tão alto que preferia ficar noutro quarto para deixar a mamã dormir. Volta e meia uma delas enfiava-se debaixo da roupa muito chegada a mim. Nessa altura, apertava-a com força. Também acontecia ouvir Yukiko lá dentro no quarto, a chorar.
Durante as duas semanas que se seguiram, passei os meus dias mergulhado em mil e uma recordações. Revivia mentalmente todos os pormenores da noite passada com Shimamoto, esforçando-me por encontrar um significado oculto, uma mensagem qualquer. Revia-a nos meus braços. Relembrava a sua mão enfiada por baixo do vestido branco. Recordava a canção de Nat King Cole. O fogo na estufa. Reproduzia na minha memória cada uma das palavras ditas na célebre noite.
De entre essas palavras, ganhavam especial significado as dela: "Como te disse, não conheço meio-termo. Comigo não existe lugar para o meio-termo."
"Já estava decidido, Shimamoto-san. Durante a tua ausência, reflecti maduramente no assunto. E tomei a minha decisão", tinha eu dito.
Recordava os olhos de Shimamoto, cravados em mim enquanto eu conduzia. Aquele olhar continha uma espécie de violência que deixara marcas na minha face. Mais do que um simples olhar, era como se a morte estivesse inscrita nos seus olhos. Ela queria morrer de verdade. Por isso é que tinha ido comigo a Hakone, para morrer a meu lado, para que pudéssemos morrer juntos.
"Da mesma forma que eu aceitarei tudo o que te diga respeito. Por inteiro. Compreendes? Compreendes bem o que isso significa"!'"
Com aquelas palavras, Shimamoto referia-se à minha vida, compreendia-o presentemente.
Da mesma forma que eu tomara a minha decisão, também ela tomara a sua. Como podia ter sido tão cego? Depois de ter passado a noite a fazer amor comigo, a intenção dela era agarrar no volante do BMW durante a viagem de regresso e fazer com que morrêssemos os dois. Aos olhos dela, devia ser a única alternativa. Mas, no fim, alguma coisa a tinha impedido de levar o seu projecto por diante. E desaparecera do mapa guardando tudo dentro de si.
Qual será a situação desesperada em que Shimamoto se encontra? E, mais importante, que circunstâncias da sua vida terão ditado que ela não tivesse outra saída? No fundo, por que motivo representava a morte a única saída possível? Passei muito tempo a pensar sobre o assunto, armado em detective, na esperança de encontrar pistas que me conduzissem a resultados concretos, mas encontrei-me num beco sem saída. Ela tinha desaparecido levando o seu segredo consigo. Tudo feito no mais absoluto silêncio, sem um "talvez" nem um "por uma temporada". A ideia era insuportável aos meus olhos. Os nossos corpos tinham-se fundido num só, e, contudo, ela recusava-se a abrir-me o seu coração.
"Hajime, há ocasiões em que, uma vez dado um passo à frente, já não se pode voltar atrás", teria ela sem dúvida dito. Na calada da noite, deitado no sofá, podia ouvir a sua voz e distinguir nitidamente as palavras que lhe saíam da boca. "Como dizias tu, seria maravilhoso se pudéssemos ir os dois juntos para qualquer parte, começar vida nova. Infelizmente, não posso escapar daqui. É-me fisicamente impossível."
Era então que Shimamoto se transformava de novo na rapariguinha de dezasseis anos que se encontrava de pé num jardim, diante dos girassóis, a sorrir para mim. "Não deveria ter ido ver-te. Sabia isso desde o princípio. Podia ter previsto que as coisas se passariam assim, mas o certo é que não pude resistir à tentação. Tinha de te ver, e, quando me encontrei diante de ti, não pude deixar de te dirigir a palavra. Sabes, Hajime, é assim que eu sou. Não é minha intenção, mas acabo sempre por estragar tudo."
Nunca mais tornaria a vê-la, a não ser na minha memória. Ela havia desaparecido do mapa. Tinha marcado presença e depois volatilizara-se. Não existe meio-termo. "Provavelmente" é uma palavra que talvez possa fazer sentido a sul da fronteira. Mas nunca, em tempo algum, a oeste do Sol.
Pela minha parte, todos os dias fazia questão de ler os jornais de uma ponta à outra para ver se aparecia algum artigo sobre uma mulher que se tivesse suicidado na região de Hakone. Eram muitas as pessoas que diariamente se suicidavam por aí, mas, que eu soubesse, não constava que aquela bela mulher de trinta e sete anos com o mais deslumbrante sorriso do mundo tivesse morrido. Acontecia pura e simplesmente que ela desaparecera da minha vida.
Aparentemente, os meus dias continuavam iguais. Levava as crianças à escola e depois ia lá buscá-las. Fazia coro com elas durante a viagem de carro. Por vezes, cruzava-me com a jovem dona do Mercedes 260E diante da escola e ficávamos os dois a falar. Esses eram os momentos em que, confesso, me esquecia de tudo, uma vez que as nossas conversas andavam à volta das lojas de roupa e de comida natural, para não variar.
Na questão que dizia respeito ao trabalho, mantinha-se a mesma rotina de sempre. Todas as noites punha gravata e dava um salto pelos meus clubes de jazz, trocava dois dedos de conversa com os clientes, escutava as sugestões e queixas do pessoal, tratava de aparecer com o presentinho da ordem para quem fizesse anos. Oferecia um copo aos músicos que apareciam pelo bar, provava os cocktails. Verificava se o piano estava bem afinado, mantinha debaixo de olho os clientes para não deixar que um mais entornado incomodasse os demais. Qualquer problema que surgisse, lá estava eu para o resolver na hora. O negócio funcionava às mil maravilhas, mas verdade seja dita que já não sentia o gozo inicial. Contudo, ninguém à minha volta se apercebera da mudança. À superfície, eu continuava a ser o mesmo de sempre. Vendo bem, mostrava-me até mais simpático e cordial, mais falador do que nunca. Porém, quando me apanhava sentado num tamborete e percorria com o olhar o meu estabelecimento, tudo em redor se afigurava aos meus olhos monótono e sem cor. Decididamente, aquele deixara de ser um castelo no ar cuidadosamente arquitectado e projectado com um brilho colorido: o que via diante de mim era um bar-zinho igual aos outros, um local ruidoso, onde todas as coisas possuíam um aspecto ilusório, superficial e deprimente. Não era mais do que um cenário de teatro, construído com o propósito de sacar dinheiro aos bêbados do costume. Todas as ilusões que alimentava se haviam desvanecido. Tudo porque Shimamoto não voltaria a dar um ar da sua graça naquele lugar. Sim, porque ela não viria sentar-se ao balcão, nem tornaria a pedir um cocktail com aquele seu sorriso. Nunca mais.
Em casa, continuava a levar a mesma vida de sempre. Jantava com a família e aos domingos levava as minhas filhas a passear ou ao jardim zoológico. Yukiko, pelo menos em aparência, continuava a tratar-me como dantes. Éramos como velhos amigos de infância que, por um acaso do destino, viviam debaixo do mesmo tecto. Havia palavras que não se podiam pronunciar, verdades que nunca eram ditas. No entanto, não se podia dizer que entre nós houvesse um clima de hostilidade. Acontecia apenas que não nos tocávamos. Quando chegava a noite, ia cada um dormir para seu lado - eu no sofá, Yukiko na cama de casal. Talvez fosse essa a única mudança visível operada na nossa vida familiar.
Às vezes, perguntava a mim mesmo se tudo não passava de uma farsa, como se cada um de nós se limitasse a representar o papel que tinha sido destinado, e esse sentimento era-me insuportável. Qualquer coisa de essencial perdera-se pelo caminho e, apesar disso, continuávamos a funcionar nos mesmos moldes, a levar as coisas automaticamente. Era uma sensação horrível. Essa vida tão vazia, tão falsa, devia ferir profundamente os sentimentos de Yukiko. Verdade seja dita, porém, que eu não me sentia ainda capaz de responder à questão por ela levantada. Naturalmente, desejava não me ver obrigado a separar-me dela, mas quem era eu para dizer isso? Eu - o homem que tinha estado quase a abandonar a família. Não podia voltar atrás e fazer a minha vida de sempre como se nada tivesse acontecido, pelo simples facto de Shimamoto ter desaparecido. As coisas não são assim tão fáceis, nem é justo que o sejam. Além do mais, o meu espírito estava ainda obcecado pelo espírito de Shimamoto. Ao fechar os olhos, recordava ao pormenor cada centímetro do seu corpo. Sentia nas palmas das mãos o contacto com a sua pele e o sussurro da sua voz ecoava nos meus ouvidos. Não podia fazer amor com Yukiko com o fantasma de Shimamoto obsessivamente gravado no meu cérebro.
Só me apetecia estar sozinho. E, à falta de melhor, ia até à piscina nadar todas as manhãs. A seguir dirigia-me ao escritório, onde me deixava ficar a olhar para o tecto, a sonhar acordado com Shimamoto. Sempre com a pergunta formulada por Yukiko em aberto no meu espírito, vivia suspenso numa espécie de vazio. E não podia continuar assim eternamente. Não era justo. Na qualidade de ser humano, de marido, de pai, tinha de assumir as minhas responsabilidades. Na verdade, porém, enquanto estivesse dominado pelo fantasma de Shimamoto, sentia-me paralisado. A coisa tornava-se ainda pior quando chovia, visto que nessa altura era assaltado pela ilusão de que Shimamoto iria aparecer: ela abria a porta em silêncio, trazendo consigo o odor da chuva. Imaginava o sorriso estampado no seu rosto. Eu dizia uma coisa errada e ela negava com a cabeça, em silêncio, sem deixar de sorrir. As minhas palavras perdiam toda a sua força e, à imagem e semelhança de gotas de chuva escorrendo pelos vidros da janela, deslizavam lentamente para fora do domínio da realidade. Nessas noites de chuva tinha a sensação de não conseguir respirar. A chuva deformava o tempo e a realidade.
Quando me fartava de contemplar os meus fantasmas, plantava-me em frente da janela a olhar lá para fora. A sensação era a de ter sido abandonado num território seco e árido, como se as visões sucessivas tivessem absorvido as cores do mundo em redor. Tudo à minha volta - todos os objectos, todas as paisagens - adquiriam contornos planos, improvisados, cor de areia. As palavras de despedida do meu velho companheiro de colégio que trouxera notícias de Izumi não me saíam da cabeça. "Há muitas maneiras de viver. Há muitas maneiras de morrer. Isso, porém, não tem qualquer importância. No fim, fica apenas o deserto. Só o deserto permanece verdadeiramente vivo."
Na semana seguinte, como se estivessem ali deitados à espera, uma série de acontecimentos estranhos, em catadupa, apanhou-me de surpresa. Na segunda-feira de manhã, lembrei-me do envelope com os cem mil ienes e decidi ir à procura dele. Assim de repente, mais por curiosidade do que por qualquer outra razão. Estava fechado à chave no escritório desde há vários anos, numa gaveta da minha secretária, a segunda a contar de cima. Tinha-o guardado ali juntamente com uma série de outros objectos de valor; a não ser para me certificar de que o envelope ainda se encontrava no mesmo sítio, nunca mexia lá. Ora, acontece que não consegui encontrá-lo. Era muito estranho, para não dizer surreal, uma vez que eu não me lembrava de o ter mudado de sítio. Estava cem por cento seguro disso. Ainda assim, só para ficar com a consciência tranquila, abri as outras gavetas e revistei tudo de cima a baixo. Nem sinal do dito sobrescrito.
Procurei lembrar-me da última vez que lhe pusera a vista em cima. Não me lembrava da data precisa. Contudo, não tinha passado muito tempo, se bem que também não se pudesse dizer que acontecera meia dúzia de dias antes. Há coisa de um mês, talvez dois. No máximo, três.
Perplexo e confuso, sentei-me na cadeira e fiquei ali a olhar para a tal gaveta. Podia ter-se dado o caso de alguém ter aproveitado a minha ausência para entrar naquela sala, após o que abrira a gaveta e tirara o envelope. Era muito pouco provável, até porque dentro da gaveta havia mais dinheiro e outros objectos de valor. Contudo, não deixava de estar nos limites do possível. Outra hipótese era eu ter mexido no envelope e apagado o gesto da minha memória. E então, perguntei a mim mesmo: "Qual é o problema? Mais cedo ou mais tarde ias ver-te livre daquilo." Pensando bem, sempre era uma chatice a menos.
Na verdade, porém, acontece que, ao dar-me conta do desaparecimento do envelope, a sua existência e a sua não-existência trocaram de lugar na minha consciência. A força de pesar os prós e os contras, apoderou-se de mim uma estranha sensação vertiginosa que me fez perder rapidamente o sentido da realidade. A convicção de que o envelope nunca existira crescia dentro de mim, reduzindo drasticamente a possibilidade da sua existência, esmagando e devorando com voracidade a minha convicção de que o envelope era real.
Uma vez que a memória e as sensações são por demais incertas e demasiado parciais, a fim de provar a verosimilhança de determinados acontecimentos, baseamo-nos numa certa realidade - chamemos-lhe uma realidade alternativa - que precisa de outra realidade para relativizar a primeira. Por seu turno, é preciso uma terceira realidade para lhe servir de base. Cria-se assim na nossa consciência uma cadeia que continua indefinidamente e, num certo sentido, pode afirmar-se que é através dessa sucessão, através da existência dessa cadeia, que adquirimos consciência da nossa própria existência. Porém, basta que essa cadeia se quebre e ficamos imediatamente perdidos. O que é real? A realidade encontra-se deste lado da cadeia ou do outro?
Naquele momento, foi uma sensação de clivagem parecida que eu tive. Fechei a gaveta, decidido a esquecer a história toda. Deveria ter-me livrado do dinheiro desde o princípio. O meu grande erro fora guardá-lo.
Na quarta-feira à tarde da mesma semana, estava eu a passar de carro pela Avenida Gaien-Higashidori quando vi uma mulher que, de costas, se parecia muito, mesmo muito, com Shima-moto. Vestia calças azuis de algodão, um impermeável bege e nos pés trazia sapatilhas brancas de desporto. Isto sem esquecer que coxeava. Ao vê-la, tive a sensação de que a paisagem à minha volta ficava congelada. Ao mesmo tempo, uma espécie de massa de ar subiu-me do peito até à garganta.
"É Shima-moto", pensei eu. Adiantei-me para confirmar se era ela através do espelho retrovisor, mas a sombra dos outros transeuntes não me deixou ver bem a sua cara. Pus o pé no travão, o que provocou uma buzinadela monumental por parte do condutor atrás de mim. A silhueta da mulher fazia lembrar Shimamoto, sem tirar nem pôr, até o comprimento dos seus cabelos era idêntico. Tentei parar logo o carro, mas não havia sítio para estacionar. Duzentos metros mais adiante lá descobri um espaço e consegui enfiar o carro à justa, após o que voltei atrás em passo acelerado para ver se encontrava a tal mulher. Porém, tinha desaparecido. Procurei-a como um louco por todo o lado. Pelo facto de ela coxear, disse para mim próprio, por certo não poderia ter ido longe. Abrindo caminho por entre a multidão, atravessei a rua, subi a uma passadeira elevada destinada aos peões e, lá de cima, pus-me a observar a cara das pessoas que passavam. Tinha a camisa alagada em suor. Não demorei muito a cair em mim. A mulher que eu vira não podia ser Shima-moto, visto que arrastava a outra perna. Além disso, Shimamoto já não coxeava.
Abanei a cabeça e soltei um profundo suspiro. Decididamente, não devia estar no meu estado normal. Sentia vertigens, como se todas as minhas forças me tivessem abandonado. Encostado a um semáforo, deixei-me estar ali a olhar fixamente para os pés. O semáforo passava do verde para o vermelho, do vermelho para o verde. As pessoas atravessavam a rua, esperavam, atravessavam, e eu sempre imóvel, apoiado ao semáforo, procurando controlar a respiração.
Quando por fim levantei os olhos, vi Izumi à minha frente. Olhava fixamente para mim pela janela de um táxi, parado no sinal vermelho a um metro de distância, no máximo. Já não era aquela rapariguinha com dezassete anos de outros tempos, mas reconheci-a logo. A primeira mulher que, vinte anos atrás, eu tivera nos meus braços, a rapariga que eu beijara. A mulher que eu despira e que, nessa longínqua tarde de Outono, perdera uma liga. Vinte anos transformam uma pessoa, bem sei, mas o seu rosto era inconfundível. "Os miúdos têm medo dela", tinha dito o meu amigo. Na altura, não percebera bem o significado da frase. Não fui capaz de digerir o que ele me estava a tentar dizer. Só naquele momento, ao ver-me diante dela, compreendi tudo. O seu rosto mostrava-se desprovido de qualquer expressão. Não, não me consegui explicar bem. Talvez sejam estas as palavras exactas: "O seu rosto havia sido despojado por completo de qualquer coisa susceptível de ser apelidada de expressão." Tal como um quarto que tivesse sido esvaziado de todo e qualquer mobiliário, sem deixar nada para trás. Na sua cara não transparecia a menor emoção; nela, como sucede nas profundezas dos mares, não existia senão morte e silêncio. E ela observava-me com esse rosto desprovido de emoções. Pelo menos, parecia que estava a fitar-me. Tinha o olhar cravado em mim, apesar de na sua face não se notar o mínimo sinal de reconhecimento. Ou, melhor dizendo, se alguma coisa se podia ler, era apenas um vazio infinito.
Fiquei ali, petrificado, incapaz de articular palavra. Limitei-me a respirar mais devagar, mal me conseguindo aguentar de pé. Tinha perdido, literalmente, o sentido da minha própria existência. Por breves instantes deixara de ser quem era, os contornos da minha pessoa haviam-se esbatido, transformando-me num líquido espesso e viscoso como o lodo. Inconscientemente, incapaz de pensar em qualquer coisa, estendi a mão e toquei na janela. Apalpei a superfície do vidro com a ponta dos dedos. Não me perguntem qual o significado do gesto. Alguns transeuntes pararam no meio do caminho e olharam para mim, com ar intrigado. Mas não o podia evitar, era superior a mim. Através do vidro, acariciei devagarinho o rosto sem expressão de Izumi. Ela não mexeu um músculo, nem sequer pestanejou. Estaria morta? Não, não podia ser. Continuava viva, sem pestanejar. Num mundo silencioso e estático, por detrás do vidro daquela janela. E os seus lábios cerrados falavam de um infinito nada.
O sinal ficou verde e o táxi afastou-se. O rosto de Izumi permaneceu ausente de expressão até ao fim. Parado naquele lugar, fiquei a ver o táxi desaparecer ao longe, engolido pela massa de veículos.
Regressei ao lugar onde tinha deixado o carro e deixei-me cair no assento. "Tenho de sair daqui", pensei para comigo. Quando me preparava para dar a volta à chave na ignição, fui assaltado por um terrível mal-estar; senti uma violenta náusea, como se fosse deitar as tripas pela boca, se bem que não conseguisse vomitar. Apoiei as duas mãos no volante e permaneci assim, hierático, uns bons quinze minutos. O suor escorria-me pelas axilas, e o meu corpo libertava um odor nauseabundo. Decididamente, aquele não era o corpo que Shimamoto tinha acariciado e amado com tanta ternura. Era o corpo de um homem de meia-idade com um desagradável odor acre.
Minutos mais tarde, apareceu um polícia de trânsito que bateu com os nós dos dedos na janela. Baixei o vidro. "É proibido estacionar aqui, meu caro senhor", disse ele, olhando para dentro do carro com um ar inquisidor. "Faça favor de circular imediatamente." Acenei com a cabeça e rodei a chave de contacto.
- Está com péssima cara. Por acaso sente-se mal? - perguntou ele.
Fiz sinal que não, sem lhe dar resposta, e arranquei.
Passaram algumas horas até eu conseguir recuperar o ânimo. Experimentava a sensação de me ter transformado numa carapaça vazia. Tudo o que existia no meu interior tinha-se evaporado, através do meu corpo persistia uma ressonância oca. Estacionei dentro do cemitério de Aoyama e deixei-me ficar a contemplar distraidamente o céu que se via do outro lado do pára-brisas. Izumi devia estar à minha espera. Sempre estivera, algures. Numa esquina qualquer, por detrás de alguma janela, estivera sempre à espera que eu aparecesse, de olhos postos fixamente em mim. Acontece, porém, que eu não tinha podido ver isso.
Durante os dias que se seguiram, fiquei sem conseguir falar com quem quer que fosse. De cada vez que abria a boca, não me saíam as palavras. Como se o vazio que emanava dela se tivesse infiltrado nos meus ossos até à medula.
Depois daquele estranho encontro, porém, as lembranças obsessivas de Shimamoto começaram lentamente a desvanecer-se. A cor regressou ao meu mundo e aos poucos aquela desconcertante sensação de me encontrar a pisar a superfície da Lua foi perdendo força. A gravidade alterou-se estranhamente e tive uma percepção algo vaga, como se estivesse a contemplar todos aqueles fenómenos que aconteciam dentro de mim através de um vidro.
Ao mesmo tempo, qualquer coisa no meu interior se despedaçara e desaparecera. Em silêncio, definitivamente.
Durante o intervalo, aproximei-me do pianista e pedi-lhe para não tocar mais "Star-Crossed Lovers". Disse-lhe aquilo a sorrir e com um ar afável.
- Até agora gostava muito de te ouvir tocar o tema, mas acho que já chega. Está na hora de acabar com essa cena.
Ele olhou para mim, como que a pesar os prós e os contras. Entre nós existia uma boa relação de amizade. Acontecia muitas vezes tomarmos uma bebida juntos e falarmos de assuntos pessoais que iam para além da usual conversa de circunstância.
- Há uma coisa que não percebo bem - disse ele. - Não queres que toque a canção tantas vezes, ou queres que deixe de a tocar de vez? Pergunto isto porque há uma grande diferença entre uma situação e outra, e gostaria que a coisa ficasse devidamente clarificada.
- Não quero que a toques nunca mais.
- Por não gostares da minha interpretação?
- Nada disso, a tua interpretação é excelente. Não deve haver muita gente que consiga tocar esse tema tão bem como tu.
- Nesse caso, é a canção em si que não queres voltar a ouvir?
- Podes dizê-lo.
- Essa história faz-me pensar no filme Casablanca...
- Talvez tenhas razão.
A partir daí, quando me via, o pianista punha-se a tocar os primeiros acordes do tema "As Time Góes By", em tom de brincadeira.
A razão pela qual eu não queria escutar mais aquela melodia não tinha nada que ver com as recordações de Shimamoto. Para dizer a verdade, já não me comovia como antes. Porquê, não sei explicar. Aquela sensação especial que provocara em mim durante tantos anos deixara de existir. Continuava a ser uma bela melodia, mas pouco mais. E a mim não me apetecia escutar vezes sem conta uma bonita canção que, no fundo, não passava de uma coisa morta.
- Estás a pensar em quê? - perguntou-me Yukiko ao entrar no quarto.
Eram duas e meia da madrugada. Eu encontrava-me estendido no sofá, ainda acordado, com os olhos no tecto.
- Pensava no deserto.
- No deserto? - perguntou Yukiko. Tinha acabado de se sentar a meus pés e olhava para mim. - Que deserto?
- Um deserto normal. Um deserto com dunas de areia e alguns cactos. Sem esquecer uma quantidade de outras coisas que também ali vivem.
- E eu faço parte dessa paisagem?
- Claro que sim - disse eu. - Todos nós lá vivemos, mas o que vive verdadeiramente é o próprio deserto. Como acontece no filme.
- Que filme?
- O Deserto Maravilhoso, da Disney. Um documentário sobre o deserto. Não viste o filme quando eras pequena?
- Não.
Confesso que estranhei a resposta dela. Que eu me lembrasse, o professor primário tinha levado toda a gente ao cinema com a escola para ver essa fita. Acontecia, porém, que Yukiko era cinco anos mais nova. Talvez fosse demasiado pequena, à data de estreia.
- Vou ao videoclube alugar o filme e podemos vê-lo todos juntos no próximo domingo, que me dizes? É um bom filme, com belas paisagens, cheio de animais e plantas. Ideal para as crianças pequenas.
Yukiko sorriu. Já passara muito tempo desde a última vez que lhe vira um sorriso.
- Queres separar-te de mim? - perguntou ela.
- Yukiko, eu amo-te.
- Sim, talvez, mas perguntei-te se me querias deixar. A resposta só pode ser sim ou não. Não estou disposta a aceitar outra resposta.
- Não quero separar-me de ti - afirmei, e ao dizer aquilo abanei a cabeça. - Se calhar não tenho direito de o dizer, mas não quero separar-me de ti. Se o fizesse, se te deixasse agora, sentir-me-ia completamente perdido. Preferia morrer a ficar de novo sozinho.
Ela estendeu a mão e tocou-me no peito. Depois olhou-me bem nos olhos.
- Esquece essa história de ter direito ou não. Ninguém possui esse tipo de direitos, acho eu.
Ao sentir sobre o peito o calor da sua mão, pensei na morte. Poderia ter morrido em plena auto-estrada, naquele famoso dia em que seguia viagem com Shimamoto. Nesse caso, o meu corpo já não existiria. E eu teria desaparecido, perdido para sempre. Tal como muitas outras coisas. E, no entanto, ali estava eu, sentindo a mão quente de Yukiko apoiada sobre o meu peito.
- Yukiko - disse eu. - Amo-te muito. Amei-te desde o primeiro dia em que te vi e os meus sentimentos permanecem iguais. Sem ti, a minha vida ter-se-ia revelado triste, difícil de suportar. Acredita quando te digo que as palavras não chegam para traduzir a minha profunda gratidão. E, apesar disso, estou a ferir os teus sentimentos. Porque sou um homem egoísta, um perfeito estúpido, não passo de um ser humano sem valores. Por nenhuma razão aparente, firo os sentimentos dos que me rodeiam e, acto contínuo, acabo também eu por sair magoado. Faço mal aos outros e dou cabo da minha vida. Não o faço deliberadamente, mas é superior às minhas forças.
- Contra factos não há argumentos - observou Yukiko num tom sereno. No canto da boca ainda permaneciam traços de um sorriso. - Tu és egoísta, um estúpido, além de que me magoaste, disso não restam dúvidas.
Olhei para ela por breves instantes. Nas suas palavras não existia qualquer tom acusatório. Também não se podia dizer que estivesse zangada, nem tão-pouco triste. Limitava-se a enunciar um facto óbvio, mais nada.
Demorei um tempo para encontrar as palavras certas.
- Durante toda a minha vida, sempre tive a impressão de que podia ser outra pessoa. Em mudando de poiso e esforçando-me por começar vida nova, iria transformar-me numa pessoa nova, julgava eu. Repeti por mais de uma vez esse processo. Como se, ao converter-me numa pessoa diferente, pudesse amadurecer e, num certo sentido, reinventar-me. Acreditava piamente ser capaz de me libertar dos elementos que até então me identificavam. Lutei nesse sentido, empenhando-me muito a sério, e acreditava que seria possível. Porém, no fim, dei por mim num beco sem saída. Por mais longe que fosse, continuava a ser eu, com os meus defeitos. O cenário bem que podia mudar, o eco das vozes podia ser diferente, mas eu continuava o mesmo ser incompleto de sempre. As mesmas lacunas continuavam a torturar-me, produzindo em mim uma fome e uma sede violentas. Acredito que essa fome e essa sede continuarão a perseguir-me eternamente. Num certo sentido, essas carências, em si mesmas, fazem parte de mim. Agora, por tua causa, quero tornar-me uma pessoa nova. Pode ser que consiga os meus intentos. Ainda que não se adivinhe fácil, esforçando-me, talvez seja capaz de me transformar e passar a ser um novo eu. Sou sincero, mas, se for para voltar a encontrar-me na mesma situação, se calhar voltaria a fazer a mesma coisa. O que significa que poderia muito bem fazer-te mal outra vez. Não posso prometer nada. É a isso que me refiro quando digo que não tenho esse direito. Acontece simplesmente que não tenho suficiente confiança em mim para lutar contra uma força como aquela.
- E dizes tu que até à data sempre tentaste escapar a essa força?
- Sim, creio que sim.
Yukiko continuava com a palma da mão apoiada no meu peito.
- Meu pobre querido - disse ela, no mesmo tom de quem estivesse a ler uma frase escrita em caracteres maiúsculos a toda a largura da parede. ("Se calhar", pensei, "aquelas palavras estavam mesmo inscritas na parede.")
- Já não sei nada de nada - confessei. - Sei que não me quero separar de ti. Ao mesmo tempo, contudo, não sei se é essa a resposta correcta. Nem sequer tenho a certeza de conseguir escolher. Escuta, Yukiko, tu estás aqui. E sofres, bem vejo. Sinto o calor da tua mão. Existem, porém, coisas que não se podem ver nem sentir. Como, por exemplo, as emoções. Ou as possibilidades. Coisas que aparecem vindas do nada e se entrelaçam umas nas outras. E vivem dentro de mim.
Yukiko deixou-se ficar calada durante muito tempo. Volta e meia, passava um camião na estrada por baixo da janela. Olhei lá para fora, mas não vi nada. Ali apenas se estendiam o espaço e o tempo sem nome que ligavam a noite à madrugada.
- Nas últimas semanas - disse ela -, desejei morrer muitas vezes. Não digo isto em tom de ameaça. É a pura verdade. Para veres até que ponto me tenho sentido abandonada e triste. Morrer, em si mesmo, não é assim tão difícil. Tal como o ar que é sugado pouco a pouco num quarto fechado, também a vontade de viver foi diminuindo gradualmente dentro de mim. Nem por uma vez pensei nas meninas, acreditas? No que seria delas caso eu morresse. Só por isso podes ver como me sentia sozinha e triste. Tu nunca te apercebeste disso, pois não? Não acreditaste que eu alguma vez, em tempo algum, pensasse a sério em fazer o que me propunha fazer...
Fiquei em silêncio. Ela tirou a mão do meu peito e pousou-a no colo.
- Em todo o caso, se não morri, se consegui sobreviver, foi porque nunca perdi a esperança de um dia voltares para junto de mim e, nesse caso, eu estaria aqui para te aceitar de novo. Foi por essa razão que não me suicidei. Não é uma questão de direitos ou de saber o que está certo e o que está errado. Podes muito bem ser um caso perdido, um homem sem qualidades. Se calhar corro o risco de ficar novamente magoada, voltarás a fazer-me mal. Porém, não é essa a questão que está aqui em causa. O problema é que tu não entendes nada de nada.
- Talvez tenhas razão - disse eu.
- E além disso nunca me fazes perguntas.
Abri a boca para dizer qualquer coisa, mas faltaram-me as palavras. Ela estava com a razão: nunca me tinha dado ao trabalho de lhe perguntar nada. "Porquê?", pensei. Boa pergunta.
- Os direitos são aqueles que tu próprio, melhor dizendo, nós formos construindo daqui em diante. Talvez seja isso que nos faltava: até à data, parecia que tínhamos construído muitas coisas, mas, na realidade, não era isso que acontecia. Tudo se desenrolou com excessiva facilidade até aqui. Possivelmente, fomos demasiado felizes, não te parece?
Concordei com um aceno de cabeça.
Yukiko cruzou os braços sobre o peito e olhou para mim.
- Também eu alimentava toda a espécie de ilusões e tinha os meus sonhos, sabes? No entanto, desvaneceram-se ao longo dos anos. Aconteceu antes de te conhecer, Matei os meus sonhos, acabei com eles e destruí-os de vez, por minha própria vontade. Abandonei-os como se faz a um órgão do nosso corpo que já não nos faz falta. Não sei se foi o correcto ou não. Sei, isso sim, que naquele momento era a única coisa que podia fazer... Volta e meia tenho um sonho, sempre o mesmo, uma vez e outra. Sonho que aparece alguém, trazendo nas mãos qualquer coisa, e que essa pessoa me diz: "A senhora esqueceu-se disto." É assim que as coisas se passam no meu sonho. Fui muito feliz ao teu lado. Nunca tive razões de queixa nem me faltou nada. E, contudo, houve sempre qualquer coisa que me continuou a atormentar. A meio da noite, acordo em sobressalto, alagada em suor. Sinto-me perseguida pelas coisas que abandonei. Não és tu o único acossado. Desengana-te. Não és o único que abandonou alguma coisa, que perdeu qualquer coisa pelo caminho. Compreendes o que eu quero dizer?
- Julgo que sim.
- Um dia, pode ser que voltes a ferir os meus sentimentos. E não sei como irei reagir nesse momento. Ou, se calhar, da próxima vez posso ser eu a fazer-te mal. Não te prometo nada. Nenhum de nós está em condições de fazer promessas. A única coisa que sei é que te amo.
Abracei-a e acariciei os seus cabelos.
- Ouve, Yukiko - disse eu -, vamos começar amanhã tudo de novo, queres? Hoje é demasiado tarde. Quero começar bem, desde o princípio, no amanhecer de um dia novo.
Yukiko olhou para mim durante muito tempo.
- Sabes - principiou ela - que ainda não me perguntaste nada?
- Gostaria de começar uma nova vida a partir de amanhã. Que pensas disso?
- Penso que é uma boa ideia - respondeu ela com um sorriso.
Quando Yukiko voltou para o quarto, fiquei um grande bocado de papo para o ar, a olhar para o tecto. Era o tecto vulgaríssimo de uma casa normal, sem nada de especialmente interessante. Ainda assim, ali me deixei estar, observando-o com atenção. Por uma questão de ângulo, à passagem de um carro projectava-se de vez em quando o reflexo dos faróis. As visões que me assaltavam tinham desaparecido. Já não conseguia recordar com nitidez o tacto dos seios de Shimamoto, o timbre da sua voz, o cheiro da sua pele - tudo isso se desvanecera. O rosto sem expressão de Izumi voltava de tempos a tempos à minha memória. Recordava o contacto com o vidro da janela do táxi que nos separava. Então fechei os olhos com força e pensei em Yukiko. Repeti várias vezes as palavras que ela pronunciara pouco antes. Sempre de pálpebras cerradas, apurei o ouvido e prestei atenção aos movimentos que se produziam no interior do meu corpo. Tinha a sensação de estar a experimentar na pele uma metamorfose. Mais: tinha forçosamente de mudar.
Não sabia ainda se teria força suficiente para tomar conta de Yukiko e das crianças. As ilusões que alimentara em tempos não me ajudariam, nunca mais serviriam para entretecer os meus sonhos. Tanto quanto me era dado ver, o vazio continuava a ser o vazio. Tinha estado mergulhado nesse vazio durante muito tempo, forçara o meu corpo a familiarizar-se com ele. E uma vez ali chegado, em definitivo, o melhor que tinha a fazer era habituar-me. De futuro, era possível que fosse a minha vez de tecer sonhos para as outras pessoas - e não o contrário. Assim me era pedido. Que poder acabariam por ter esses sonhos, não sabia, mas, se queria encontrar algum significado para a existência que levava, teria de me dedicar com todas as minhas forças a essa tarefa.
Talvez.
Ao aproximar-se a madrugada, desisti de tentar adormecer. Enfiei uma camisola por cima do pijama, fui até à cozinha, preparei um café e bebi-o. Sentei-me à mesa e ali fiquei a contemplar o céu a clarear aos poucos. Há séculos que não assistia ao nascer do dia. Numa das extremidades do céu apareceu uma linha azul que começou a estender-se lentamente pelo horizonte, à imagem e semelhança do que acontece quando uma mancha de tinta azul é derramada sobre uma folha de papel. Parecia que, de entre todos os tons de azul que havia no mundo, apenas tinha sido escolhido aquele que toda e qualquer pessoa reconheceria, unanimemente, por excelência, como a essência do azul. Com os cotovelos em cima da mesa, deixei-me estar a ver aquela cena sem pensar em nada. Quando o Sol apareceu sobre a face da Terra, aquele azul diluiu-se e foi absorvido pela claridade normal do dia. Uma única nuvem planava por cima do cemitério, uma nuvem imaculadamente branca, de contornos precisos. Uma nuvem tão nítida que dava a sensação de que se podia escrever sobre ela. Começara um novo dia, e eu não fazia a mínima ideia do que esse dia me reservava.
Provavelmente levaria as minhas filhas à escola e depois iria nadar. Como de costume. Lembrei-me da piscina que costumava frequentar quando andava no secundário. O cheiro do cloro, o eco das vozes repercutindo-se até ao tecto. Naquela época esforçava-me por ser uma pessoa nova. Em frente do espelho, podia observar as metamorfoses que se iam produzindo no meu corpo. No silêncio da noite, podia até mesmo, quase jurava, ouvir o som da minha carne a rasgar terreno, palmo a palmo. Estava prestes a adquirir uma nova identidade, a um passo de conquistar novos horizontes.
Sentado à mesa da cozinha, segui com os olhos a nuvem que flutuava sobre o cemitério. A nuvem não se tinha mexido um milímetro. Estava parada, como se estivesse pregada no céu. "São horas de acordar as minhas filhas", pensei. Já nasceu o dia, elas têm que se levantar. Elas precisam deste novo dia de uma maneira bem mais intensa do que eu. Devo aproximar-me do quarto delas, puxar as cobertas para trás, pousar a minha mão sobre os seus corpinhos quentes e suaves, e anunciar-lhes que começou um novo dia. Tenho de o fazer, quanto antes." Foi isto que pensei, mas, por qualquer razão, não consegui levantar-me da cadeira onde estava sentado, à mesa da cozinha. Era como se todas as minhas forças me tivessem abandonado, como se alguém tivesse aparecido por trás de mim e puxado o tampão da banheira ou desligado o fio da tomada nas minhas costas. Finquei os cotovelos na mesa e escondi o rosto nas mãos.
No interior daquela escuridão, pensei na chuva que caía sobre o mar. Chovia em segredo no vasto oceano, sem que ninguém soubesse disso. A chuva fustigava em silêncio a superfície das águas e nem sequer os peixes se tinham dado conta.
Até que alguém se aproximou de mim e pousou suavemente a mão sobre o meu ombro, os meus pensamentos pertenceram ao mar.

 

 

                                                                                                    Haruki Murakami

 

 

 

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