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A TABERNA DA ÍNDIA / António Sarabia
A TABERNA DA ÍNDIA / António Sarabia

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

 

Vem comigo irmão livro, cochichou Alonso Álvarez, pegando no volumoso exemplar de Tirante el Blanco, impresso em Valência dez anos antes por Nicolás Spindeler e conservado com primoroso esmero numa prateleira alta da tipografia onde trabalhava. Foi dali que o tirou naquela manhã, depois de limpar a tinta das mãos ao avental de trabalho manchado, e pôs-se a acariciar a capa com prazer. Era uma edição datada de 20 de Novembro de 1490, da qual se tinha feito a formidável tiragem de setecentos e quinze exemplares. Era impossível armar-se de melhor companhia para ir ter com o seu amigo Bartolomé, que tinha marcado encontro com ele no atracadouro do Arenal a fim de juntos admirarem as caravelas que chegavam das índias. Desde que se tinham avistado defronte de Sanlúcar de Barrameda, tinham começado a chegar a Sevilha ginetes procedentes de Horcadas, El Puntal, Borrego, Coria e San Juan de Aznalfarache com notícias do seu laborioso progresso pelo rio. A Alonso, na verdade, importavam-lhe muito menos as curiosidades trazidas do outro lado do mar Oceano do que o romance que trazia consigo. Ainda que aguardasse as naus como toda a gente, com a ilusão de as ver atestadas de ouro, ressentia-se pelo facto de as ter visto atracar sempre com a mesma carga de colares de contas, pulseiras de conchas, cinturões de osso de peixe, papagaios e escravos. Alonso tinha adquirido o hábito de as esperar, acompanhando o seu inseparável companheiro de jogos e de andanças quando o pai deste se encontrava nas índias. Bartolomé, órfão de mãe, tinha ficado a viver com a irmã, Isabel de Sosa, enquanto o pai, don Pedro de Ias Casas, e o tio, don Francisco de Penalosa, ambos funcionários de sua majestade, levantavam ferro rumo às costas da Especiaria na segunda viagem empreendida pelo Almirante Cristóvão Colombo. Desde então, ao anunciar-se a chegada de um navio, Bartolomé dirigia-se apressadamente para o cais, espreitando uma missiva ou, ainda que nunca o dissesse com franqueza, o sempre possível retorno do seu progenitor. Esse esporádico ir e vir atrás dos barcos, a maior parte dos quais nem sequer vinha das índias, durou o mesmo que a ausência do pai: mais de cinco anos. Contudo, depois de regressado don Pedro, eles continuaram com o costume de assistir à chegada das caravelas, ainda que Alonso entendesse cada vez menos o interesse que semelhante espectáculo despertava ainda no seu amigo. O que veria ele nessa ocasional azáfama de embarcações que todos os anos iam e vinham sobre as águas? Não estariam já a esgotar a sua aparentemente incalculável capacidade de surpresa? Alonso não o compreendia. Encolheu os ombros com displicência. Enfim, se o novo desembarque se prolongasse, se não trouxesse nada de diferente, pensou ele, a leitura servir-lhe-ia de refúgio contra o aborrecimento.

Os seus companheiros de trabalho tinham tirado o resto do dia para receber as naus e Alonso, que passava as noites sobre um velho catre estendido a um canto da oficina, foi o último a abandonar o estabelecimento. Saiu, trancando a porta, e começou a andar com o seu romance debaixo do braço pelas lamacentas e intricadas vielas de Sevilha. Caminhava com passo vivo e coração alegre, andar inequívoco de quem se compraz no seu trabalho e é capaz de dormir sem nada se censurar. Sentia-se, com efeito, feliz por ser o mais jovem aprendiz na oficina de Melchior Goricio, um antigo livreiro de Novara, que tinha decidido tentar fortuna instalando uma tipografia na vila. Sob a sua tutela, Alonso aprendeu a ler e a escrever, afeiçoando-se rapidamente ao odor da tinta nas almofadas de couro com que se untavam os tipos, e que emanava depois do metal das chapas, antes de aderir ao papel recém-impresso. Maravilhava-o a minuciosa arte das letras, cujos moldes se trabalhavam com a mesma delicadeza com que se grava um baixo-relevo de filigrana; o golpe seco do martelo sobre o aço do punção ao penetrar o metal pouco resistente das matrizes nas quais se vazariam depois os caracteres desejados; o rotundo peso da prensa à qual frequentemente deitava mão tingindo as formas, girando a barra do torno, ou substituindo o papel. Cativavam-no as histórias e a companhia do velho Ahmed, o sábio mouro encarregue de compor as caixas, rever provas e fazer correcções. Agradecia a sempiterna afabilidade do patrão, que tratava todos com igual humor, afecto e justiça, e que a ele, para além de lhe ter dado um ofício, ao sabê-lo órfão lhe ofereceu um tecto fixo sob o qual dormir. Enchia-o de orgulho participar numa empresa tão jovem, ainda que, na opinião de Gori-cio, no seu caso ainda não tão próspera. Mas isso, a Alonso, não lhe importava. Fazer livros, pensou, com um procedimento que os punha, por fim, ao alcance de todos — ninguém poderia convencê-lo de que no mundo existisse uma indústria melhor.

Saiu para a Praça de San Francisco e encaminhou-se pela Rua de Génova rumo à igreja matriz. As lojas dos ourives estavam fechadas, assim como as livrarias, pelo que Alonso não pôde desfrutar, como desejaria, da mostra das mais recentes edições nos portais das lojas. Passou, mesmo assim, em frente às portas fechadas da célebre tipografia dos "companheiros alemães", Juan Pegnitzer, Magnus Herbst, Tomás Glockner e Paul de Colónia, mandados vir de Veneza pela própria Rainha Isabel para imprimir o Vocabulário Universal, e que instalaram o seu negócio a poucos passos da não menos famosa casa de Estanislao Polono e da do recentemente falecido Meinardo Ungut, ambos imigrados de Nápoles.

Alonso reflectiu que embora o seu patrão, muito bem informado das exigências do mercado devido à sua anterior ocupação como livreiro, tentasse com grande dificuldade abrir caminho no negócio, imprimindo as obras de Aristóteles e de Cícero, sem contar com uma nada desprezível quantidade de missais, compêndios de orações e outros textos sagrados, o seu maior problema consistia na concorrência cerrada dos herdeiros directos do inventor daquela nova técnica que se espalhava pelo mundo: França, Inglaterra, Flandres, Polónia, Génova, Veneza e a própria Espanha estavam a ser irremissivelmente invadidas por uma geração de impressores alemães que, no seu país, tinham deixado de ser simples artesãos para adquirir o direito de usar as vestimentas bordadas a ouro e prata até então reservadas aos nobres.

Ao aproximar-se das tendinhas de venda que cercavam a igreja matriz virou à direita pela Rua do Mar até à Porta do Arenal. As tipografias e as livrarias que acabava de deixar na Rua de Génova fizeram recair os seus pensamentos no romance de cavalaria que levava consigo. Apertou-o com ternura, protegendo-o do vento, e pensou que talvez dentro de alguns anos poderia encarregar-se da sua impressão em castelhano. Não porque lhe desse trabalho lê-lo escrito como estava, na vulgar língua valenciana, mas sim porque sonhava em reeditá-lo a seu inteiro gosto. Era a sua gesta favorita e equivaleria a engendrá-la outra vez, a participar juntamente com o autor na tarefa da criação. Ele próprio examinaria as provas e faria as correcções para que ficasse impecável. Imaginava-a impressa em papel de primeira, não nos caracteres góticos usuais, mas sim nessa clara letra redonda, tão fácil de ler, que acabava de desenhar o italiano Aldo Manucio, e ilustrada com gravuras a cores. Veio-lhe à cabeça uma gravura mostrando Tirante el Blanco nos momentos de aceitar o desafio com Kirieleyson de Montalbán, outra quebrando lanças na corte do rei de Inglaterra, batendo-se de noite com o senhor de Villas Yermas, ou naufragando no norte de África com a escrava Placer de mi Vida. Também não podia faltar uma, imaginou Alonso com incipiente luxúria, revelando o príncipe Filipe, filho mais novo do rei de França, desfrutando da herdeira do reino da Sicília, a infanta Ricomana, da cintura para cima tal como ela lho tinha permitido e, por que não? outra do mesmíssimo Tirante el Blanco, escondido dentro de um baú no toucador da princesa Carmesina, filha do imperador da Grécia, olhando-a a entrar e sair do banho em toda a sua maravilhosa nudez. As gravuras seriam iluminadas pelos mestres do género. Nada ficaria ao acaso. O primeiro volume seria, obviamente, para ele. Levá-lo-ia para sua casa para o conservar como um íntimo tesouro, colocá-lo-ia junto à maltratada edição que acariciava debaixo do braço, e poderia lê-lo e relê-lo quantas vezes lhe desse na real gana.

Saiu para o Arenal, pela porta do mesmo nome, ao mesmo tempo que as recém-chegadas mãos, ostentando ao alto os estandartes de Castela e Aragão, obsequiavam os presentes com duas estrondosas salvas das suas peças de artilharia. O canhão montado na torre do Ouro respondeu com outra, dando-lhes as boas-vindas. O folguedo apenas começava, no meio de um revolutear de pombas espavoridas. A margem do Guadalquivir cheirava a festa e a pólvora. Entre exclamações de alegria, trombetas, charamelas e uma nova descarga de canhões a sotavento, a oficiosa comitiva de governadores, alcaides, regedores e notáveis da cidade subiu a uma barca para ir a bordo da nau capita. Alonso, com o livro bem resguardado debaixo do braço, demorou vários minutos a divisar o seu amigo entre a variegada multidão de curiosos que tinham marcado encontro na margem do rio. Ao aproximar-se dele, viu com satisfação, porque nas últimas semanas tinha-lhe ganho um verdadeiro afecto, que Bartolomé não estava só. Acompanhava-o Cristobalillo, o jovem e silencioso escravo índio que o seu pai lhe acabara de trazer da viagem.

Se o mundo tem cu este deve ser o cu do mundo, reflectiu Cristobalillo no porto de Sevilha, naquela manhã de meados do ano de 1500. Vivia há pouco tempo na urbe andaluza e na sua cabeça ainda buliam os mitos dos seus antepassados. Estava convencido de que tudo à sua volta, inclusive essa estranha cidade que pouco a pouco descobria, tinha vida própria. Portanto, era natural que possuísse em algum lado, ainda que não se tornasse evidente encontrá-los, boca, olhos, ouvidos, barriga, ânus.

Também não lhe era difícil imaginar como ânus — yarima, chamava ele na sua língua — aqueles montículos de esterco ao lado da parte exterior das muralhas da vila, crescendo juntamente com casotas miseráveis, postos de venda de roupas velhas e barracas de vasilhas de barro, entre os que nesse momento abriam passagem aos gritos e aos empurrões, para apreciar melhor a chegada dos barcos, marinheiros, fidalgos, comerciantes, estivadores, curiosos, putas e mendigos.

Um grupo de índios que, como sempre, causaram uma certa agitação admirativa entre a multidão, foram desembarcados com as mãos atadas atrás das costas, presos uns aos outros por uma corda que lhes rodeava o pescoço e conduzidos através do gentio rumo à Porta de Carbón. Viam-se decaídos, assustados e doentes. Cristobalillo compreendia na perfeição a sua conturbação, o seu desânimo, o seu aturdimento perante a ruidosa multidão, o seu temor aos estampidos e o seu pasmo ao contemplar pela primeira vez os altos e maciços baluartes da vila ou um sumptuoso perfil da Torre do Ouro, levantada como solitária vigia no extremo oposto do Arenal. Meses antes ele tinha sofrido, na própria carne, esse mesmo aturdimento depois dos malsãos efeitos da viagem. O incessante bamboleio naquela flutuante prisão a céu aberto em que se tinha convertido o barco. A intempérie entre tábuas, amarras e calabrotes de uma coberta onde nunca recebiam água suficiente para acalmar a sede, apenas a necessária para os manter vivos. Aí, amontoado com os outros sobre a ponte cem vezes vomitada pelos doentes, entre solavancos, pestilências, pulgas, baratas e ratazanas, comeu biscoito podre e passou pelas brasas, tiritando de frio estivesse bom ou mau tempo. Assim decorreram várias semanas. Cristobalillo nunca tinha visto antes muitos dos cativos que o acompanharam e nunca mais os voltaria a ver depois. Caraíbas na sua maior parte, comedores de carne humana, a quem os tímidos tainos e a tripulação da nau olhavam com asco e desconfiança, horrorizados pelos seus costumes antropófagos. Apesar da sua suposta dureza e ferocidade, muito poucos resistiram à viagem. O frio, a sede e a comida má deram conta de uma boa parte deles. Ao morrerem, os tripulantes atiravam-nos ao mar sem quaisquer outros remorsos do que a perda do seu preço no mercado de escravos. Devido a uma boa ou má sorte, isso ainda estava por se demonstrar, Cristobalillo meditou, olhando com amargura a imundície e a desordem que o rodeavam no Arenal, ele tinha sobrevivido graças a uma mulher, uma jovem caraíba, precisamente, filha, segundo pôde entender, de um dos tantos ferozes reizinhos - caciques, chamava-lhes ele — dizimados pelos invasores, e que apesar de ser sua inimiga natural o abrigou no seu regaço durante várias noites, na coberta, para que não o gelassem as baixas temperaturas. Cristobalillo deixava que lhe fizesse tudo, morto de medo, julgando primeiro que a canibal o atraía para o seu lado para o devorar cru, enquanto dormisse, e cedendo depois à necessidade de cuidados e de calor. Demorou algum tempo a compreender que, no meio do total desamparo e da confusão das coisas novas, ela necessitava tanto como ele da companhia de algo ou de alguém familiar a quem se agarrar.

Também tinha contado, para a sua sobrevivência, a nobreza do homem que o levava como prisioneiro. Um bondoso cavaleiro de nome Pedro de Ias Casas. O próprio que ordenou, quando ainda estava em terra, que lhe atirassem um pouco de água sobre a cabeça, enquanto se fazia o sinal da cruz. Depois começou a chamar-lhe Cristobalillo em homenagem àquele outro homem de elevada estatura, cabelo prematuramente branco, meigos olhos azuis e nariz aquilino, que tinha ficado na ilha, impondo a sua vontade com indisputável dom de comando e a quem quase todos tratavam com obsequiosa deferência, denominando-o Almirante. Essa turva cortesia nunca enganou o jovem taino: ele conhecia-o como Guamiquina, chefe único, e pôde precatar-se de que muitos dos que tanto o adulavam teriam dado qualquer coisa para lhe cravar uma adaga no pescoço.

Ao chegar ao seu destino desembarcaram-no primeiro no cais das Muelas, onde se pagou um imposto por cada cativo vindo no barco, e onde o seu dono se opôs a que lhe marcassem a face com o sinal que o identificava como escravo. Depois levou-o para sua casa para o pôr ao serviço do seu filho, um mocinho da sua idade chamado Bartolomé que, depois de dominada a surpresa inicial, começou a tratá-lo com a mesma cordialidade e benevolência que o seu pai.

Agora ambos se encontravam ali, observando os barcos procedentes de umas terras para a maioria longínquas e alheias, para ele ainda próximas e suas. Comparou com pesar essa saturada e suja franja de terra estendida entre as muralhas e o rio, a que davam o nome de Arenal, com aquela outra, imensa, de fina areia branquíssima, deixada no outro lado do mar. Ali, teve por cidade umas quantas casotas redondas de telhado em palha, cabanas, como lhes chamava, onde decorrera a sua existência, vivendo nu e comendo iguanas, ostras, mariscos e peixe, além dos frutos que as árvores tinham ao alcance da sua mão, até à chegada daqueles barcos, muito maiores que a choça em que vivia, que apareceram empurrados pelo que então se pensou serem nuvens atadas aos seus mastros. Chegou inclusive a pensar, ainda que essa sua ideia já o fizesse sorrir, que os botes lançados à água para o desembarque fossem filhos das naus e que estas se dispusessem a amamentá-los. Que outra coisa poderia ter discorrido então? E quem eram aqueles seres capazes de arribar nessas embarcações prodigiosas senão seres portentosos, talvez deuses? Maguacochíos, homens vestidos, com armas capazes de separar qualquer coisa de um só corte, chamaram-lhes eles. Agora, meses mais tarde, na Sevilha para onde o tinham trazido como escravo, estava ainda a adquirir a lenta e dolorosa consciência da magnitude do seu equívoco e do seu acerto.

Na sua ilha ele podia entender a linguagem das plantas, o zumbir dos insectos, as cantilenas dos pássaros, os gritos dos papagaios, a súbita barafunda dos macacos. Falava com as árvores se necessitava da sua madeira e pedia-lhes autorização para cortá-las. Só elas podiam determinar se desejavam fazer parte das paredes, dos suportes ou da fachada de sua casa. Ali, tudo tinha sentido para ele. Pelo contrário, nessa cidade sombria de ruelas estreitas e lamacentas, muitas das quais não desembocavam em lado nenhum, flanqueadas todas por casas de pedra, onde senhoreavam homens corpulentos que cobriam de roupagens a sua pele peluda e branca e cujas mulheres se envergonhavam de exibir o sexo e os seios, sentia-se perdido. Não só a flora, mas também a fauna era diferente nesse outro extremo do mundo: os animais de penas que não voavam, os altos cavalos sobre cuja garupa se percorriam grandes distâncias, os cães, os gatos, os burros, as mulas, as vacas, os porcos, todos eram tão estranhos como os seus comportamentos e ele era incapaz de antecipar as suas reacções ou comunicar com eles. No entanto, compreendia na perfeição porque é que, nessa ameaçadora comarca, a qual ele acabava de considerar o cu do mundo, os cães ladravam e as aves fugiam espavoridas perante a proximidade dos seres humanos.

O jovem Bartolomé de Ias Casas tinha ido ao Arenal nessa manhã, levado pela sua insaciável curiosidade e arrastando consigo o seu silencioso pajem índio. Tinha tonturas, vertigens, ao imaginar essas ilhas misteriosas do Mar Tenebroso por onde tinham navegado as naus ancoradas no porto: a de Ofir, tão mencionada na Bíblia, onde se encontravam as fabulosas minas do Rei Salomão e onde tinham posto pé o seu pai e o seu tio, seguindo o Almirante Colombo; a da Taprobana, infestada de serpentes, residência dos gigantes mencionados assim mesmo nas Sagradas Escrituras como rebentos dos anjos prevaricadores e das filhas dos homens; a de Antilha, também conhecida como das Sete Cidades, lugar de outros tantos reinos estabelecidos pelos bispos que se viram forçados a abandonar as suas dioceses durante a invasão dos árabes e cujos esplêndidos palácios tinham portas e tectos de esmeraldas; a de San Borondón, tão próxima do Paraíso Terreno, onde moravam, sem que dele se pudessem aproximar, os anjos caídos e onde Judas, atormentado pelos remorsos, se mortificava sobre uma escarpada rocha batida pelas ondas; a de Bímini, ou Florida, onde fluíam as águas da eterna juventude; aí, extenuados e envelhecidos pela prolongada expedição, tinham-se banhado os guerreiros de Alexandre para recuperar o vigor e a juventude perdida; a de Brasil, tão procurada pelas suas madeiras avermelhadas e preciosas; a de Califórnia, habitada pelas amazonas, essas mulheres ferozes, imbatíveis, que amputavam um seio para melhor usarem o arco e, segundo diziam os persas, custodiavam o caminho para a Montanha da Fortuna; a da Mão de Satanás, sempre mergulhada numa densa bruma, delatada só pelos gritos dos demónios que a habitavam. Os desprevenidos marinheiros que, sem se dar conta, se aproximavam das suas costas, viam surgir das águas, de repente, a negra mão do demónio para os arrastar para o inferno.

Preocupado pela ausência do pai e do tio, o pequeno Bartolo-mé tinha-se dedicado com afinco e seriedade a investigar as particularidades e perigos das estranhas paragens por onde andavam. Primeiro interrogando sem parar os seus preceptores e, mais tarde, lendo quanto testemunho caía nas suas mãos sobre o assunto. Desde o declarado nas Sagradas Escrituras ou o sustentado pelos doutores da Igreja como San Isidoro de Sevilha, o bispo Adão de Bremen ou o mesmíssimo Santo Agostinho, até às narrações de Marco Polo, Orderico de Pordenone, Roger Bacon e Pedro de Ailly, sem esquecer os clássicos: Plínio, o velho, Aristóteles, Ovídio, Homero e Lucano. A sua fonte favorita de investigação era a História, sobretudo os livros escritos por quem tinha sido testemunha presencial dos acontecimentos. Os seus mestres, encantados por vê-lo interessado nessa antiga e erudita disciplina, congratulavam-no sem cessar pelos seus conhecimentos, facilitando-lhe os textos ao seu alcance. Não lhe faltou uma História do Mundo nem o Fascículus Temporum, de Werner Rolewinck, primeiro livro ilustrado, que se encarregou de conseguir o mais jovem aprendiz da tipografia de Melchor Goricio, o seu grande amigo Alonso Álvarez que, nesse momento, depois de observar durante uns instantes as manobras de desembarque, tinha decidido retirar-se para ler num canto menos buliçoso do Arenal.

Foi assim que Bartolomé se foi informando da existência de homens sem cabeça ou com cabeça de cão, e de outros, que nascem com o lábio inferior tão proeminente que, para dormirem e se defenderem dos ardores do sol, cobrem com ele toda a cara. Soube dos Panocios de Citia, que tinham orelhas tão grandes que podiam usá-las como cobertor; dos Artabatitas da Etiópia que andam de quatro patas da mesma maneira que as bestas e não chegam a velhos; dos Antípodas, que habitam na Líbia e têm as plantas dos pés volteadas com oito dedos em vez de cinco; dos sátiros, homenzinhos de nariz curvo, cornos na testa e pernas de cabra que Santo António descobriu enquanto fazia penitência no deserto, para além de seres menos estranhos como amazonas, gigantes, pigmeus, sereias, ciclopes, unicórnios, grifos e basiliscos.

O seu pai tinha regressado finalmente das índias, daquele estranho mundo de monstros e de criaturas fantásticas, no Natal anterior. Regressou com escassa fortuna. Não trouxe consigo as fabulosas riquezas que imaginou ao partir. Disse-lhe que não tinha tido sorte. Que aquelas terras eram muito mais agrestes e extensas do que ao princípio tinha suposto, que as suas ilhas eram numerosas e que se necessitava de mais tempo e recursos para explorá-las completamente. Ali, numa qualquer região daquelas vastas paragens situava-se a fabulosa Catay, mas ele não soube encontrá-la. A carta que o rei tinha dado ao seu Almirante para entregar ao Grande Khan ficou, pela segunda vez, sem chegar ao seu imperial destinatário. Também não regressava com as mãos vazias. Entre as suas exíguas pertenças tinha trazido aquele jovenzinho taino como prenda para o seu filho. Poderia servir-lhe de criado, de pajem, do que quisesse, disse-lhe, era um rapaz esperto que pertencia a uma tribo pacífica e dócil, da qual tinha recebido verdadeiras provas de obediência e lealdade.

Bartolomé mitigava a sua parcial decepção olhando para aquele bronzeado súbdito do rei da índia que, segundo lhe tinha contado o seu pai, passava a vida despido e dormia suspenso no ar, numa rede pendurada entre dois esteios. Porque andaria tão sem abrigo, perguntava-se Bartolomé desconcertado, enquanto o seu amo e senhor, o Grande Khan, usava roupagens tecidas a ouro quando não peles de marta-zibelina e sedas finíssimas? O rapaz chegou balbuciando umas quantas palavras em castelhano, aprendidas durante o seu cativeiro, e Bartolomé decidiu ensinar-lhe mais. Desejava interrogá-lo a fundo sobre os homens com cabeça de cão, e os sem língua, que usavam só sinais para comunicarem entre si, e os que têm olhos nos ombros, e os de cara chata e sem nariz, ou os que possuem a boca tão pequena que, para ingerir comida, utilizavam uma delgada cana de aveia.

O índio ainda não falava disso, mas revelou-lhe, por outro lado, um sem número de coisas que Bartolomé não teria podido imaginar e que não deixaram de o surpreender. Maravilhava-o, por exemplo, que apesar de não possuir nada, ou quase nada, o seu novo pajem não demonstrasse nem ambição nem cobiça alguma a respeito dos bens alheios. Conformava-se com o pouco que recebia dele ou de Pedro de Ias Casas e se, daquilo que se lhe dava, algo lhe parecia supérfluo, partilhava-o sem pena com o resto da criadagem. Uma das primeiras coisas que Cristobalillo lhe contou foi que, no seu país, a acumulação de bens era mal vista. Era considerada, além do mais, uma solene patetice, já que despertar inveja nos outros não poderia trazer senão desgraças. Por isso, entre os seus os ladrões não existiam, e se algum tivesse caído na tentação de furtar alguma coisa, teria sido seguramente condenado a uma morte atroz.

Outra coisa que o escravo não entendia e que ao próprio Bartolomé custou muito explicar, foram as enormes diferenças entre os distintos membros da sociedade. Cristobalillo não concebia a existência de miseráveis, mendigos, malfeitores ou putas. Aos seus esclarecimentos também não ajudou o facto de o escravo taino possuir tão pouca consciência de propriedade, como se na vida não tivesse possuído nada que valesse a pena conservar.

Estas atitudes, interpretadas por Bartolomé como atributos, rapidamente fizeram ganhar ao pajem índio a confiança e a amizade do seu novo amo, a quem cada vez custava mais privar-se da sua companhia, da sua discrição, da sua sã inteligência e da sua curiosa, e muito frequentemente sábia, percepção das coisas. Mas nada lhe fazia tirar da cabeça que aquele calado jovenzinho, quase da sua idade, conhecia o caminho secreto que conduzia à milenar capital do reino de Catay e que poderia fazer com que ele o revelasse.

Cubanacán soava a terra do Grande Khan, e por ali, muito próximo, devia rondar o imperador da China. Cada vez que tocava no assunto o outro parecia não entender ou respondia com rodeios, mas era tudo questão de tempo antes de que se decidisse a confiá-lo. Se assim fosse, algum dia, quando fosse mais velho, pensava Bartolomé, talvez ele próprio pudesse ir para a índia e encontrar o evasivo império que tinha sido negado ao seu pai.

Um pouco mais além, mal reparando na presença dos três rapazes que se distraíam, observando o desembarque, um homem de meia idade anotava num registo os bens descarregados das naus acabadas de chegar das índias. Ainda que não acreditasse nos deuses infernais da terra — ou cernis, como lhes chamava Cristobalillo —, muito provavelmente teria estado de acordo com o taino na sua descrição de Sevilha. Também para ele aquela cidade começava a parecer-lhe o cu do mundo. Especialmente nesse dia, de regresso da expedição que o tinha levado ao outro extremo do Mar Tenebroso, muito próximo das ilhas de onde era originário o delgado escravo que não perdia pormenor das manobras de desembarque. Sim, essa viagem à índia tinha-o marcado como nenhuma outra na vida. Mais ainda que aquela realizada a França, na sua juventude, na companhia do seu tio Guido António, embaixador plenipotenciário de sua senhoria Lorenzo, o Magnífico, tirano de Florença, perante a corte de sua majestade o rei Luís XI.

Aquele indivíduo reunia em si mesmo as qualidades de homem de negócios, cosmógrafo, marinheiro e mercador. Era, na realidade, originário de outro país, de outra vila, Florença, verdadeira mãe do refinamento, entre cujos habitantes e os desse porto fluvial, cujo único mérito era ter-se convertido no centro comercial da nova rota para Oriente, havia quase tanta diferença como entre os seus povoadores e os selvagens semidespidos que eram trazidos como escravos. Aquele homem vinha de uma família distinta, a qual Doménico Ghirlandaio tinha julgado digna de perpetuar num óleo. O rosto do seu avô, Amerigo Vespucci, de quem herdara o nome, tinha sido imortalizado numa tela por Leonardo da Vinci. Outro dos seus queridíssimos tios, o seu mentor, frei Giorgio António Vespucci, colocou uma vez em competição Boticelli e o próprio Ghirlandaio durante a decoração da igreja de Todos os Santos. Este último tinha sido escolhido para o pintar juntamente com a sua prima, Simoneta Vespucci, elogiada por todos pela sua incomparável beleza, entre as personagens do fresco em honra de Santa Isabel de Portugal. A bela Simoneta posou, além disso, para Piero de Cosimo e para alguns outros célebres mestres florentinos. Ainda estremece, com pesar, ao reviver a inapagável perturbação que o invadiu naquele dia distante em que lhe foi dado contemplar o gracioso corpo nu de sua prima, ao vê-la convertida, primeiro, na Primavera de Sandro Boticelli e, depois, na sua incomparável Vénus, surgida das águas.

O homem, sem que com isso perdesse a conta às mercadorias desembarcadas, recorda os anos da sua juventude na saudosa Florença, onde o apelido Vespucci esteve sempre ligado ao dos duques de Médicis. Recorda o seu tio Piero, a cavalo, batendo-se com a sua armadura de gala na Praça da Santa Croce, ao tomar parte nos torneios que animaram a visita do Papa Pio II à vila. Ou, noutra ocasião, anos mais tarde, antes de cair em desgraça, vendo-o cavalgar com o elmo levantado junto a Lorenzo, o Magnífico, com uma capa de veludo alexandrino colocada sobre o brilhante metal da couraça e um manto de pele de marta-zibelina bordado a pérolas, adornando a sua montada. No entanto, do que aquele homem sentia mais saudades no seu exílio espanhol era o inteligente rumor das conversas, sob a ténue vigilância dos círios, em salões principescos, onde se comia com garfos e onde o sensual requinte da música e da poesia, que acompanhavam sem falta os festejos, promoviam paixões subtis e discretas, como o irrealizável amor entre Giuliano de Médicis e a esposa de Marco Vespucci, a inalcançável Simoneta, que iria morrer na flor da juventude, poucos anos antes do assassinato, na mesmíssima catedral, do seu amante impossível.

Em contradição, neste áspero reino para onde o tinha arrastado o acaso, encontrava na gente uma atitude bárbara que o cansava. No seu modo de levar a religião na ponta da espada que lembrava a sanguinária fé dos seus próprios inimigos, os fanáticos muçulmanos que acabavam de expulsar dos seus últimos domínios. A sua doutrina tinha algo de feroz, de desapiedado. Como a do prior do convento de San Marcos na sua querida Florença, Gerónimo Savonarola, que predicou o advento de uma nova idade, levando a sua ousadia até ao ponto de criticar Sua Santidade, Alexandre VI, que não considerava nem papa nem cristão. Não soube valorizar o homem que censurava. Aquele temível pontífice, nascido em Valência com o nome de Bórgia, era da mesma estirpe belicosa que agora tomava de assalto a Terra das Especiarias e o tinha mandado enforcar e depois queimar na Piazza da Signoría, atirando em seguida as suas cinzas para o Arno.

Ele emigrou para Sevilha por instruções do outro Lorenzo de Médicis, o Popolano, primo do Magnífico, para tomar conta dos interesses da sua nobre e lucrativa casa na Península Ibérica. Essa comissão levou a que acabasse por se distanciar da sua saudosa pátria toscana, a qual, talvez, não voltasse a ver jamais pois o seu benfeitor caíra em desgraça pouco depois da sua chegada e ele, membro proeminente da sua facção, tinha-se visto na impossibilidade de regressar. Alguns anos mais tarde, quando o Popolano recuperou de novo cargos e prestígio, Vespucci tinha assentado já na Península Ibérica, encarrilando os seus próprios negócios e era-lhe impossível abandoná-los. Muito menos agora quando estes o tinham obrigado a experimentar a excitação da aventura, fazendo-o cair sob o feitiço do mar Oceano e no inquietante assombro dos Descobrimentos.

Ao chegar a Sevilha entrou primeiro em contacto com um banqueiro seu conterrâneo, o florentino Joanoto Berardi, que viria a morrer na ruína não muitos anos depois devido às suas especulações nas índias. Berardi teve a audácia de investir duzentos e cinquenta mil maravedis para financiar, juntamente com as suas católicas majestades e vários outros sócios genoveses e florentinos, a primeira viagem de Cristóvão Colombo. Só que, desde aquela aventura inicial, o Oriente demonstrou ser menos rentável do que o tinham imaginado. Não só perderam um barco, o Santa Maria, encalhado entre recifes e bancos de areia numa das ilhas recém-descobertas na noite de Natal de 1492, como nunca descobriram as fabulosas riquezas que tanto haviam prometido a si próprios. Mais tarde, o próprio Berardi arrendou dois navios para traficar por sua conta, mas ambos naufragaram, deixando-o numa péssima situação económica.

Com o tempo, Vespucci viu-se na obrigação de fazer o mesmo: fretar novas naus e lançá-las com as velas abertas, como se fossem insignificantes dados de madeira, sobre o imenso tapete do mar, em busca da muita ou pouca fortuna que o acaso lhes reservasse. Só que ele não pôde resistir à tentação de embarcar nelas e supervisionar por si mesmo o curso da aventura. A curiosidade tinha sido sempre uma das suas fraquezas. O resultado final foi, para ele, estranhamente contraditório. Proveitoso e infortunado ao mesmo tempo. Regressou com as embarcações intactas, o que numa travessia de tamanha envergadura não era lucro desprezável, sobretudo quando em mais de uma ocasião, durante a tempestade, lhe tocou ouvir missa a seco, sem consagrar o vinho por temor que se derramasse com os terríveis solavancos das naus. Regressou, pois, com a sua pequena frota intacta, sim, mas com um mesquinho carregamento de escravos e curiosidades de escasso valor. A ele, aquela viagem só o tinha tornado mais rico em experiência e no que, pensava, seria uma mais justa avaliação do que no futuro poderiam reportar-lhe outras tentativas parecidas. Ficava-lhe a sensação de ter navegado ao longo de um imponderável jazigo de riquezas, de cujo filão só tinham sido capazes de extrair uns quantos fragmentos. Os barcos tinham atracado antes em Cádiz, para esvaziar no seu mercado uma boa parte dos porões, e Vespucci apresentava-se em Sevilha, onde o esperavam impacientes alguns dos sócios que com ele tinham especulado na empresa, com o pouco carregamento que restava daquela primeira escala. Enquanto anotava no seu caderno esses últimos remanescentes, uma pergunta girava sem cessar na sua cabeça: como é que uma aventura tão prodigiosa naquelas paragens que, à distância, começavam a parecer-lhe inconcebíveis, tinha podido deixar-lhe como prémio tão míseros despojos?

Uma vez concluído o desembarque, não restava grande coisa para fazer no Arenal. Vespucci tinha-se ido, atrás dos seus escravos e perseguido pelas suas recordações. As tendinhas do Barato, como se costumava chamar ao mercado próprio do lugar, ficaram pouco a pouco desertas, enquanto que os instalados à última hora com o propósito de aproveitar os eventuais compradores, atraídos pela chegada das naus, desmantelaram as suas rapidamente e empreenderam o caminho de regresso à vila juntamente com os últimos curiosos. Em busca de diversões noutro sítio, pensou Bartolomé, algumas nos bairros marítimos da Magdalena e de Triana, outras nas praças das Gradas e de San Francisco. Alonso estava sentado à parte há uns instantes, concentrado na sua leitura, sem dar por nada. O grosso livro, aberto entre as suas mãos, parecia um saboroso prato que os seus olhos absortos devoravam com avidez. Cristoba-lillo estava já há algum tempo a observá-lo intrigado, chamava-lhe a atenção esse absoluto desprendimento do mundo, essa misteriosa actividade que permitia ao aprendiz de impressor desligar-se de tudo quanto o rodeava. Aproximou-se de repente e tocou-lhe no ombro, como se fosse assegurar-se de que ainda estava vivo, e fê-lo sair com um sobressalto do seu ensimesmamento. Então, com respeito, quase com temor, estendeu a mão, pedindo-lhe aquele livro que lia e relia sem se fatigar, esse espírito de papel impresso que detinha o dom de o abstrair para o seu próprio interior. Alonso entregou-o, entre curioso e admirado. Bartolomé tinha-lhe dito que taino significava prudente, nobre, judicioso e era assim que Alonso entendia o silencioso pajem índio. Apreciava a calada generosidade das suas maneiras e possuía perspicácia suficiente para não confundir a sua ingenuidade com estupidez nem a bondade com cobardia. O jovem taino sopesou por instantes o romance como se estivesse a estimar a magnitude do poder, da força, da bondade ou da maldade do cerni que continha. Depois, tranquilizado pela sua intuição, abriu o volume e pôs-se a folhear com impensada solenidade as primeiras páginas. Bartolomé estava a ensinar-lhe o abecedário e ele tinha feito progressos suficientes para soletrar com alguma dificuldade certos vocábulos, mas nesse texto o sentido da maior parte das palavras escapava-se-lhe e rapidamente fez um gesto de desalento. Era uma divindade diferente das suas, como tantas outras que proliferam nessa estranha terra e com as quais ele se sentia incapaz de se relacionar. Está escrito numa língua diferente da nossa, explicou Alonso com simplicidade, no entanto não era assim tão difícil de entender, se se desse atenção. Cristobalillo assentiu, como se compreendesse, antes de prosseguir o seu grave trabalho de escrutínio. O que na realidade lhe interessava era o espírito que tinha tomado o aspecto de livro. Já tinha visto outros, parecidos com aquele, na pequena biblioteca de don Pedro de Ias Casas ou ao acompanhar o seu amo à tipografia onde vivia e trabalhava Alonso. De entre todas as coisas surpreendentes que a cada passo descobria nesse mundo novo, aquela era uma das que mais o impressionavam. Ainda mais do que as bestas de tiro, os veículos de rodas ou os fortes materiais com que se forjavam as armas. A sua fina percepção permitia-lhe compreender que nas deidades tutelares dos objectos como aquele que manuseava escondia-se o grande segredo da civilização que se estava a impor à sua, e podia dar-se conta de que tanto o jovem Bartolomé como o seu bom amigo Alonso lhes guardavam especial veneração. Esse poder, essa capacidade de armazenar palavras permitia-lhes transmitir memórias e conhecimentos intactos, apesar da distância e da morte e, inclusive, penetrar nos de outras raças de línguas e costumes diferentes, como o demonstrava o volume que segurava entre as mãos. Na sua ilha as tradições transmitiam-se oralmente, de pais para filhos e depois aos netos e aos netos dos netos. Os anais da tribo e as façanhas dos seus heróis ficavam assim consignados em versos e cantos, areitos, como ele lhes chamava, que os jovens cantavam em coro durante as festividades. Bastava que algum elo dessa frágil cadeia se quebrasse para que se esfumasse o conhecimento e tivessem que começar de novo. A forma de escrita que eles conheciam era muito limitada. Reduzia-se a uns quantos signos sagrados e, desde logo, não contavam com esses engenhosos artefactos de papel ou pergaminho para preservar a memória. O seu próprio pai, seguindo os contos populares que escutava dos mais velhos da aldeia, tinha-lhe falado de cidades longínquas, situadas do outro lado do mar, onde o sol se põe. Talvez se tratasse, inclusive, das que tanto procuravam os cristãos porque lhe tinha falado de grandes templos de pedra, onde os seus habitantes registavam em enormes lajes de granito os movimentos dos astros e os pormenores da sua história. Mas Cristobalillo suspeitava, bem no fundo de si mesmo, que seriam menos úteis e poderosas que os seres que ali chamavam livros. Quando finalmente o fechou para o devolver a Alonso, teve a sensação de que um vivo pedaço da memória alheia passava das suas mãos para as do amigo do seu amo.

Era a crónica do mais valente e esforçado cavaleiro que tinha existido no mundo, afirmou Alonso, recebendo o romance e, ao surpreender a estranheza nos olhos de Cristobalillo, continuou: teria a ideia do que significaria ser um cavaleiro andante? Existiriam também forçosamente, no seu país, entre os muitos que rodeavam o Grande Khan, que, dizia-se, sustentava uma faustosa corte de doze mil barões a quem chamava "os seus mais fiéis parentes". Entre esses experimentados homens de armas que, segundo contava Marco Polo, vestiam cinturões de ouro e calçavam babuchas com ornamentos de prata, não faltaria algum de nobre ascendência que consagrasse vida e energias a proteger donzelas, damas, viúvas e órfãos desamparados e até uma ou outra mulher casada se esta o pedisse. O punho da sua espada representava o mundo e a cruz, a verdadeira cruz que todo o bom cristão se obriga a venerar e a defender acima de todas as coisas. Era nisso que consistia ser um cavaleiro andante.

Bartolomé apressou-se a interromper as explicações do seu amigo. Por experiência sabia que, ao lançar-se naquele tema, as considerações corriam o risco de continuarem pelo resto da tarde. Distraídos pela azáfama das naus não tinham comido nada desde manhã e a ele a fome já lhe apertava, disse-lhes, desviando o rumo da conversa. Alonso, detido em pleno voo, propôs visitar o seu irmão Diego, proprietário de uma conhecida taberna no bairro de Triana, e a quem há já muito tempo não via. A conjuntura prestava-se a que fosse cumprimentá-lo. Se viessem com ele, ofereceu, encontrariam certamente na taberna alguma coisa com que enganar o estômago. Bartolomé concordou em acompanhá-lo. Não tinha mais nada para fazer e servir-lhes-ia de passeio, disse. Por outro lado, Cristobalillo ainda não tinha posto o pé no outro lado do rio, e aquela era uma ocasião para lho mostrar.

Dirigiram-se à ponte de Barcas para atravessar para a Praça de Altozano. A estreita passagem de madeira erigida, desde o tempo dos mouros, sobre uma série de barcaças amarradas sobre o Gua-dalquivir, o que lhe dava a curiosa peculiaridade de subir e baixar com a maré, encontrava-se deserta àquela hora da tarde. Não tinham avançado muitos passos sobre ela quando, ante a consternação de Bartolomé, Alonso voltou à carga retomando o assunto dos cavaleiros andantes e tentando explicar a Cristobalillo em que assentava o seu nobre ministério. Uma das suas façanhas favoritas era a seguinte, disse, adiantando-se de repente aos seus camaradas e pondo-se em frente deles para lhes barrar o caminho: o herói, armado até aos dentes, posicionava-se no meio de uma ponte como aquela. O objectivo era convertê-la num Passo de Armas e mantê-la fechada de um lado ao outro. Só poderia atravessá-la aquele que fosse capaz de o vencer numa boa disputa. Cristobalillo mostrou nada captar do móbil da manobra. O cavaleiro costumava fazê-lo para demonstrar a toda a gente que era o melhor, o mais audaz, o mais valente, insistiu Alonso, percebendo o desconcerto do índio, mas ainda sem permitir que avançassem. Quem desejasse chegar ao outro lado do rio via-se obrigado a bater-se com ele, a matá-lo ou a morrer nessa tentativa. O que sucedia se quem chegasse fosse um homem de paz e não desejasse nenhum pleito? interrogou Bartolomé, um pouco picado pela brusca viragem dos acontecimentos. Devia então confessar que o principal cavaleiro era o mais bravo paladino que tinha encontrado na sua vida e que ninguém era capaz de vencê-lo. Confessaremos que és o mais bravo de todos, declarou Bartolomé impaciente, e agora já poderemos continuar o nosso caminho. Não bastava isso, acrescentou Alonso, ficavam também obrigados a prestar-lhe um serviço, como ir apresentar cortesia à sua dama ou acompanhá-lo em qualquer aventura arriscada que decidisse empreender. Tu não tens dama, objectou Bartolomé cada vez mais zangado. Acompanhar-me-ão, então, na empresa que eu escolher, por muito perigosa que pareça, disse Alonso com voz grave. Fá-lo-emos, aceitou Bartolomé, a quem parecia que a brincadeira já durava há demasiado tempo. Prometam-no solenemente: pela duração dos vossos dias, que serão amigos do amigo e inimigos do inimigo e cumprirão com todas as outras coisas que numa sã irmandade se requerem, assim disse Tirante el Blanco. Prometemos, respondeu Bartolomé, quase arrependido de ter aceitado aquele passeio a Triana. Tu também, porfiou Alonso, apontando o indicador ameaçadoramente na direcção de Cristobalillo que presenciava a cena sem intervir. Prometes? O índio disse que sim com um dócil movimento de cabeça. Alonso, satisfeito, franqueou-lhes, então, a passagem e todos continuaram o caminho.

Desembocaram na Praça do Altozano, ao pé do sinistro castelo de São Jorge, sede da Santa Inquisição. A Bartolomé o lugar alterava-lhe os nervos e procurava evitá-lo sempre que podia, desde que o seu pai lhe contara que um parente, Juan de Ias Casas, tinha sido condenado à morte pelo Santo Ofício apenas há dez anos, terminando os seus dias no alto de uma pira no queimadouro da planície de Tablada. Ao recordá-lo, algo na sua velha estirpe de judeu convertido lhe fazia correr um prudente calafrio pela coluna vertebral, advertindo-o que se afastasse. Benzeu-se discretamente, virando as costas à sombria mole de pedra e estugou o passo. Pretendia unicamente chegar quanto antes à taberna do irmão de Alonso porque a fome lhe apertava as tripas.

Diego Álvarez não tinha nem relação nem parentesco algum com o célebre doutor Diego Álvarez Chanca, antigo médico da casa real e companheiro de Colombo na sua segunda viagem ao Oriente, da qual regressou cheio de recordações gloriosas, mas sem um adarme no bolso, para se instalar numa modesta casa de San Andrés, junto ao hospital Amor de Dios. Este outro Diego Álvarez era o irmão mais velho de Alonso Álvarez e não possuía, com efeito, mais do que um antro de má vida e pior morte no popular bairro de Triana. O seu tugúrio, mais conhecido como a Taberna do Cão Vermelho por causa do leonado mastim que guardava a sua entrada, apesar da boa fama dos seus guisados, não era tão concorrido como os que estavam mais próximos das portas do Arenal, mas tinha a vantagem de ser menos ruidoso e de estar pouco exposto aos estragos que a marinhagem provocava continuamente nas tabernas daquele lado do rio. Não é que escasseasse a gente do mar entre a sua clientela: ficava muito próximo do cais das Muelas, onde atracavam os barcos carregados de escravos para pagar os seus impostos antes de enviar o seu triste carregamento para os mercados de Sevilha, mas a maioria dos fregueses eram vizinhos daquele lugar. Talvez isso os tornasse menos propensos a ventilar os seus assuntos com zaragatas e escândalos. Também não faltavam os comerciantes experimentados que, ao informarem-se da chegada de alguma nau procedente das índias, acorriam apressadamente para aquele local porque, com um pouco de sorte, conhecimentos e dinheiro contado e tilintando nos bolsos, se realizavam, por vezes, bons negócios antes de os cativos serem levados a hasta pública nos mercados em redor da igreja matriz.

Foi assim que Diego Álvarez adquirira, meses antes, uma jovem índia de encher o olho, pagando por ela a nada desprezável quantia de nove mil maravedis, mas profundamente convencido que, na Praça das Gradas, lhe teria custado mais uns dois ou três mil.

Pelo mesmo preço ofereciam-lhe também um robusto moço negro da Guiné. Preferiu a mulher de aspecto altivo pelo desdém com que a viu olhar para os seus captores e pensando que poderia ajudá-lo a atender os fregueses na taberna, mas nisso falharam-lhe os cálculos. Como é que essa selvagem iria servir a uma mesa à qual nem sequer sabia como se sentar, acostumada que estava a comer no vil chão sem toalhas e a quem, como se já fosse pouco, lhe revolvia o estômago o cheiro a queijos, alhos e chouriços? Não só abominava o pão com cebola e as sopas de lentilhas e de grão como também era, não demoraram a perceber, insensível à boa cozinha do dono. Por outro lado, apesar do tempo transcorrido, não dava sinais de poder, nem mesmo de desejar, expressar-se em castelhano, coisa que a incapacitava ainda mais para o emprego previsto. O seu arrogante mutismo enfurecia Diego Álvarez que se exasperava sobremaneira ao pensar no dinheiro mal gasto. Via-a vaguear por ali como se fosse praticamente uma surda-muda, inútil para o trabalho na taberna, apenas apta para o serviço doméstico mínimo. Tinha, por outro lado, os seios duros e bem proporcionados, umas nádegas amplas, de uma redonda e maciça generosidade, ainda que em harmonia com a sua figura, e umas coxas largas e firmes que suportavam sem esforço o peso do homem mais valente. Cómoda de montar, uma vez em cima podia-se cavalgá-la infinitamente num fofo e lúbrico galope que qualquer um desejaria que nunca mais acabasse.

Começou a servir-se dela e depois a emprestá-la aos amigos que a solicitavam. A índia não parecia importar-lhe o assunto. Submetia-se sem dificuldade, ainda que sem se ufanar ou sorrir, às exigências dos homens que o seu patrão encaminhava com discrição para o sótão. A docilidade da índia não surpreendeu demasiadamente Diego. Já tinha ouvido falar antes da promiscuidade dessas selvagens que não se negavam a ninguém e, no seu país, andavam completamente nuas e passavam sem vergonha pelo leito dos homens de tal maneira que, nas terras recém-descobertas, os cristãos tinham adoptado o costume dos mouros de coabitar com cinco ou seis mulheres ao mesmo tempo. O seu amigo, o basco Pedro Zuni-ga, um dos marinheiros que acompanharam don Cristóvão Colombo até à ilha de Santa Cruz, contou-lhe que tinha visto as índias servirem-se da picadela de um insecto peçonhento para desfrutarem de uma erecção desmesurada dos seus companheiros. Nessa mesma viagem, Zuniga fez uma boa amizade com Miguel de Cúneo, compincha do Almirante desde a infância em Savona, e referiu-lhe também como este tinha obsequiado uma belíssima canibal ao seu conterrâneo e companheiro de infância. Ele levou-a de imediato para a sua cabina, onde ela, no entanto, se mostrou renitente a submeter-se aos seus caprichos. Com efeito, defendeu-se como pôde até que Cúneo decidiu pegar numa corda e dar-lhe uma sova. Remédio santo. Depois do consciencioso açoitamento, a selvagem entregou-se-lhe com tal furor que nem a mais hábil prostituta de Sevilha a teria igualado. Nisso as índias eram todas parecidas. Mais putas que as cristianíssimas vadias que faziam aumentar a clientela ao entardecer entre a Porta do Arenal e a de Triana. Uma vez ouviu um vizinho falar sobre uma mesquita de Damasco, onde estava enterrada a própria irmã de Maomé, mulher que tinha fama de receber no seu leito, por caridade, quem quer que lho solicitasse. Podia com um ou vários ao mesmo tempo. Os maometanos, como reconhecimento da sua inigualável hospitalidade, esculpiram um órgão sexual para adornar o seu túmulo.

Assim era a sua índia: limpa e silenciosa, obediente e receptiva. Tão digna e hospitaleira como a mais próxima parente do profeta. Além disso comia pouco, quase nada, verduras e frutas com evidente predilecção por laranjas, as quais parecia nunca ter provado antes e que nunca a fartavam. Durante um tempo meditou no negócio que poderia fazer alugando-a. Era a maneira mais rápida, sem qualquer dúvida, de recuperar o seu investimento inicial, e, porque não, tirar até um justo benefício, mas o medo de ser descoberto conteve-o. Por certo iria arranjar problemas com a comissão encarregue de velar pelos direitos dos índios cativos em terras espanholas, tão caros a sua majestade, a rainha. Fá-lo-iam comparecer nas escadarias de San Miguel, onde sentenciava o tribunal, com o risco de perder a escrava e, inclusive, ir parar à prisão ou pagar uma multa por desacato. Até então ele tinha cumprido publicamente com todos os requisitos que se lhe solicitaram ao comprá-la. Quando se viu obrigado a baptizá-la, fê-lo em honra da infanta Catalina, segunda filha de D. Fernando e de dona Isabel. A única coisa à qual se opôs foi que lhe marcassem o rosto com o consabido S com o cravo atravessado, não tanto porque o procedimento o irritasse, mas porque isso iria desfigurar a beleza da sua nova possessão, diminuindo o seu preço no mercado se alguma vez lhe passasse pela cabeça revendê-la. O facto é que a mulher, fosse pela sua beleza, pela sua agreste altivez ou pelo seu inalterável mutismo, converteu-se rapidamente numa das atracções do tugúrio. Foi assim que este começou a ser conhecido entre alguns fregueses como a Taberna do Cão Vermelho, ou Taberna da índia.

Mal tinham posto o pé no umbral da taberna quando a presença dos jovens foi descoberta pela índia Catalina cujo patrão, por essa altura, se esmerava a mostrar-lhe como atender os vários recém-chegados do Arenal que tinham decidido continuar a festa na sua taberna. Ao ver Cristobalillo os seus olhos iluminaram-se e a expressão do seu rosto moreno transformou-se completamente. Ela, a mulher silenciosa, inexpressiva e solitária, que parecia estar sempre noutro lugar, pôs de lado o jarro de vinho e desatou imediatamente a falar sem parar. Dirigia-se ao escravo índio, falando sem reservas na sua língua natal, primeiro com expressão de súplica, como se lhe fizesse a amarga relação de todos os vexames e suplícios padecidos desde a sua chegada, até que, pouco a pouco, o tom de desespero mudou para o de exigência. Tinham-lhe dito que o taino recém-chegado era um ser humano de classe social inferior que lhe devia obediência e que estava nas suas mãos tirá-la daquela aflição. Cristobalillo reconheceu-a sem dificuldade. Tratava-se da mesma caraíba que o tinha acolhido no seu regaço durante a sua longa peregrinação por aquilo a que os seus captores chamavam indistintamente o Mar Tenebroso ou o mar Oceano. Respondeu-lhe no seu idioma, com uma suavidade impossível de expressar em castelhano, pensou Alonso ao ouvi-los, boquiaberto. Bartolo-mé, por seu lado, à semelhança dos surpreendidos fregueses, sentiu que a taberna se enchia rapidamente de gorjeios de pássaros, do chapinhar de águas cristalinas, do profundo silvar do vento entre os matagais. De modo que aquele era o idioma do Grande Khan, pensou estupefacto. Não se parecia com nada que tivesse ouvido até então.

Tinha chegado a pensar que ela era muda, confessou o taberneiro desconcertado, presenciando a cena da outra extremidade da sala onde o tinha abandonado a índia. Era a primeira vez que a via, ou melhor, a ouvia, abrir a boca, acrescentou aturdido, compartindo a sua admiração e fascínio com quem o rodeava. Alonso e Bartolomé, por seu lado, não se atreviam a pronunciar uma única palavra para não os interromper, com os olhos e os ouvidos atentos, embevecidos, como se assistissem à realização de um prodígio. Enquanto Cristobalillo e Catalina prosseguiam o seu diálogo sem ligar ao que se passava à sua volta, como se a natureza do seu encontro e a magia própria da linguagem os remetesse de volta para as regiões silvestres de onde os tinham subtraído, o taberneiro fez um sinal ao seu irmão mais novo e, juntamente com Bartolomé, sentaram-se numa mesa à parte. A pedido de Alonso, Diego serviu uns pedaços de toucinho e outros cozinhados de carne picada, meio pão e um jarro de água. Como sobremesa serviu um pouco de fruta cozida com mel. Depois juntou-se a eles sem afastar os olhos dos dois índios que continuavam a sua conversa, alheios aos seus movimentos. Atreveu-se por fim a perguntar, com a sua voz quase abafada pelos ruídos das conversas que recomeçavam, se o escravo falaria também o castelhano, ao que Bartolomé respondeu com um gesto de afirmação. Uma vez que tão bem parecia entender-se com ela talvez pudesse ensiná-la a falar como os cristãos, propôs imediatamente o taberneiro. A ele faziam-lhe um favor e muito provavelmente a ela também. Não havia maneira de recuperar o dinheiro investido nela e estava a pensar vendê-la, disse-lhes, mas tinha-se-lhe afeiçoado, preocupava-se com ela. Talvez o novo amo não fosse tão tolerante e compreensivo como ele tinha sido até então. Só Deus sabe ao que a obrigará para recuperar o seu investimento. Se ela fosse capaz de comunicar com os outros tudo seria diferente. Coisa de entender e fazer-se entender. Não muito. Apenas o suficiente para receber ordens ou falar com a clientela. Via-se que o jovem índio era esperto e que seguramente falava suficientemente o castelhano para lhe encomendar essa tarefa. Obviamente que Bartolomé poderia esperar alguma retribuição económica pelo esforço do seu criado. Pouca, naturalmente, não devia ter muitas ilusões a esse respeito. O negócio andava frouxo, a caraíba tinha-lhe custado uma fortuna e, como lhes tinha dito, não tinha sido ainda ressarcido do desembolso, mas alguma coisa poderiam combinar. Se ambos demonstrassem boa vontade não haveria nenhuma razão para não chegarem a acordo. Ao fim e ao cabo, eles não teriam que realizar nenhum trabalho. Para isso estava o escravo índio.

Cristobalillo, entretanto, sem deixar de escutar as queixas da infeliz Catalina nessa linguagem que a todos parecia uma mistura de trinados e gorjeios, tentava perceber o sentido oculto do seu inesperado encontro com ela. Para ele não existia, na vida quotidiana, uma diferença manifesta entre o sobrenatural e o puramente humano. Todos os acontecimentos, mesmo os mais triviais, tinham a sua origem nas actividades dos cernis, esses espíritos malignos ou benéficos que regiam o imponderável curso dos acontecimentos. Aquelas eram as crenças que lhe tinham sido inculcadas em criança e em nada se tinham alterado desde a sua chegada a Sevilha. Se acaso aprendeu a dissimulá-las foi para não arranjar complicações com esse culto cristão, tão cruel, ao qual tinha fingido aderir, nem ofender a fé e os sentimentos de quem agora tinha preponderância ou domínio sobre a sua pessoa.

Por mais de uma vez desde o seu cativeiro, quando a sua vida tomou o caminho inusitado que o conduziu contra a sua vontade a essa nova margem daquilo a que os seus captores chamavam o Mar Tenebroso, Cristobalillo tinha-se perguntado se o seu cerni protector o teria abandonado ou se ele estava simplesmente sob a influência de uma outra deidade caprichosa e terrível que não o via com bons olhos. Esse era, talvez, também o problema da escrava Catalina. Os seus espíritos tutelares eram menos poderosos ou tinham ficado lá, na velha margem, e eles encontravam-se agora num mundo povoado somente por divindades inimigas que se tinham conluiado para os aniquilar.

Como podia ser amigo de uma antropófaga? interrogava-se Bartolomé surpreendido, dirigindo-se a Cristobalillo, enquanto os três amigos passavam junto ao bairro das putas, o Lugar da Mancebia, denominado também como a Laguna, para entrarem no bairro da Magdalena pela Porta de Triana, deixando atrás de si o Guadal-quivir com o Arenal envolto em sombras. Ao passar, a mastreação dos barcos ancorados no cais tinha-lhe parecido um sinistro bosque do qual lhe dava a sensação de que iria surgir uma tribo de canibais vinda do lado de lá das brumas do Mar Tenebroso. O seu pai tinha-lhe dito que era uma casta maligna, continuou escandalizado, que se nutriam entre os tainos, sequestrando os seus pequenos, os quais castravam para engordá-los como porcos e comê-los mais tarde. Que levavam também as mulheres jovens para as ter como concubinas e devorar sem piedade a prole que com elas engendrassem. Eram tão perversos como os cinocéfalos, os monstros com cabeça de cão de que falava Pedro de Ailly, e havia mesmo quem assegurasse que se tratavam dos seus próprios descendentes. Ele próprio lembrava-se de ter visto três quando era ainda uma criança. O Almirante Colombo trouxe alguns consigo da sua primeira viagem às índias, e durante uns tempos mantiveram-nos encerrados na casa de provisões que se encontra perto do velho alcácer. Ele foi até lá para os observar cheio de morbidez e espanto.

Cristobalillo tinha usado a palavra caraíba, que para ele significava simplesmente "mais forte", ao referir-se a Catalina, enquanto que para Bartolomé tinha alguma coisa que ver com calibe, ou ca-nibe, ou seja, com cão e canibal, o que lhe trouxe de repente à memória tudo o que sabia sobre essa raça sanguinária. Se o soubesse antes não teria aceitado o negócio com Diego, insistiu, enfadado. Só o poder do grande Alexandre e o lendário ímpeto das suas tropas tinham conseguido reduzi-los e afastá-los para esse sítio remoto onde o Almirante Colombo os tinha encontrado agora. Dali nunca havia de escapar essa miserável ralé de pecadores. Ainda que se tratasse de uma mulher, como era o caso da índia Catalina, não podia evitar a repugnância ao evocar o seu passado atroz.

Alonso não acreditava numa só palavra do que estava a escutar. Não duvidava que uma tribo com esses costumes habitasse em alguma recôndita zona da Ásia — de facto ele também tinha lido alguma coisa a esse respeito —, mas parecia-lhe impossível situar uma jovem como a que acabavam de ver entre semelhante casta de selvagens. Ainda por cima, ele tinha percebido que os cinocéfalos possuíam uns caninos mais desenvolvidos que os dos humanos e muito mais parecido com os dos cães, o que lhes facilitaria a tarefa de despedaçar as suas vítimas. Pois bem, ele não se tinha apercebido de nenhuma anomalia na boca ou na dentadura de Catalina. Pelo contrário, tinha-as encontrado singularmente bem proporcionadas.

Cristobalillo guardava silêncio, mergulhado nas suas próprias reflexões. Também para ele a situação era paradoxal e chocante. Mas o que é que não era paradoxal e chocante nesse novo mundo, nessa insólita situação para que a vida o tinha atirado de repente? Apesar das reservas de Alonso, o que Bartolomé dizia sobre Catalina e os canibais era absolutamente verdade. Tinha crescido com pânico e horror deles. Recordava toda a sua família, toda a sua aldeia, entrando pelos montes dentro mal divisavam sobre o mar as primeiras embarcações caraíbas, aquelas pirogas, por vezes tão grandes e a que na sua língua chamavam canoas, capazes de transportar até sessenta guerreiros cada uma, com a aterradora efígie de Maboya, o deus do mal, bem assente na proa. Duravam dias, até semanas, escondidos no mais profundo da selva, angustiados ao imaginar a ocupação das suas casas e o despojo das suas magras pertenças, enquanto espantavam o sono para que não fossem surpreendidos pelos destacamentos canibais que constantemente saíam à procura deles. Uma vez viu-os passar muito próximo, contendo a respiração, paralisado de terror atrás das grossas folhas dos matagais. Pôde observar a ferocidade dos seus rostos, os negros desenhos sobre a pele untada de almagre vermelho-sangue, as longas cabeleiras adornadas com penas de papagaio. Estremeceu perante o tamanho dos macanás e dos enormes arcos armados de flechas que ele sabia estarem envenenadas. Não tinha qualquer dúvida do que se passaria com ele se fosse descoberto. Desmembrado e posto ao fogo ou cozido com pedaços de aves. O que não conseguissem comer dele seria salgado e estendido a secar sobre uma estaca. Por isso, nunca imaginou aproximar-se de uma fêmea que, noutras circunstâncias, o teria cozinhado para que o devorassem os homens de sua casa. No entanto, e para sua surpresa, o novo mundo em que ambos se encontravam fazia-o perder todo o seu medo e muita da aversão que noutros tempos lhe teria inspirado Catalina. A caraíba vestida, cobrindo os peitos como qualquer criada sevilhana, sem a pintura escarlate e oleosa com a qual costumavam homens e mulheres da sua tribo untar os seus corpos despidos, perdia toda a sua ferocidade. Ali, naquela sombria taberna do bairro de Triana, longe do poder ou da influência do seu pai, não era mais do que uma mulher só, extraviada, como ele próprio, num universo para o qual não tinha nascido. Teria passado por uma taina qualquer, pensou Cristobalillo, recordando algumas mulheres da sua raça que serviam como criadas em diferentes lares da vila. Os seus pensamentos faziam eco das palavras de Alonso, que naquele momento evocava a gesta de Tirante el Blanco e o primeiro preceito de cavalaria. Amparar e defender damas e cortesãs em apuros onde quer que se encontrassem. A índia encaixava dentro do género, proclamava Alonso, tentando mesmo pacificar Bartolomé, e ainda mais se tinha sangue nobre como acabara de explicar Cristobalillo, porque o código não estipulava nada sobre a procedência, raça ou cor da donzela. O facto de ser cativa apesar do seu nobre nascimento impunha, logo de entrada, certas obrigações para com ela. E uma mulher jovem e bela como Catalina, por muito escrava e caraíba que fosse, merecia tanta consideração e respeito como qualquer outra princesa.

Vespucci, sentado à sua mesa de trabalho, garatujava alguns números com um inequívoco gesto de aborrecimento. À frente dos seus olhos espalhava-se uma série de papéis com os lucros finais da sua recém-concluída viagem às índias. Cerca de quinhentos ducados, não mais, pensou, deitando uma rápida olhadela às contas que já tinha feitas. Uma magra utilidade que de nenhuma maneira compensa os riscos corridos durante a extensa travessia e que, além do mais, se verá obrigado a compartilhar com os outros cinquenta e cinco participantes que, juntamente com ele, financiaram a empresa.

Para Vespucci, no entanto, a aventura excedeu amplamente as suas premissas pecuniárias iniciais e chegou a transformar-se numa inolvidável odisseia vivida com inesperada veemência numa das caravelas que tinham levantado âncora no ano anterior, sob o comando de Alonso de Ojeda e levando como co-piloto Juan de Ia Cosa, ambos companheiros de Colombo nas suas primeiras expedições às índias. Ojeda era célebre pelas suas proezas. Ainda criança, numa concorrida romaria, fez equilíbrios e piruetas sobre uma vara estendida no vazio e apoiada na cúspide do minarete almóada que serve de campanário à igreja matriz. Já adulto, capturou sozinho o terrível cacique Caonabó, a quem Colombo culpava da matança no forte Navidad. O chefe índio sentia um irresistível fascínio pelos metais que cantavam, os sinos, e Ojeda ofereceu-se para lhe dar um. Obsequiou-o também com umas estranhas pulseiras que Caonabó colocou, admirado. Eram, na realidade, um par de algemas. Ojeda levou-o totalmente indefeso ao surpreendido Almirante.

Foi uma boa decisão, pensa agora Vespucci, o facto de não se contentar somente em investir dinheiro na expedição, mas também ceder ao impulso de se fazer ao mar, participando ele próprio como acompanhante para vigiar melhor os seus interesses e conhecer o outro extremo do Mar Tenebroso. Não vinha, ao fim e ao cabo, o seu nome, Vespucci, de vespa? Não consistia o seu escudo num enxame de vespas douradas voando sobre uma faixa azul em campo vermelho? Não se identificava com as características do animal que a sua família tinha adoptado como insígnia: a vivacidade, a impetuosidade, o aéreo e, ao mesmo tempo, o diligente e laborioso? Como podia então ficar estático, insensível, indiferente perante a extraordinária conjuntura que lhe proporcionava o acaso? Foram treze perigosos meses de navegação. Treze meses de inumeráveis aventuras em que frequentemente se viram obrigados a barlaventear ventos adversos, sem encontrar uma corrente de ar favorável aos seus propósitos, o que os empurrou, inclusive, para uma breve e imprevista navegação junto à costa da ilha dos Gigantes com todos os riscos implicados. Como justificar tantas peripécias para regressar, finalmente, a Cádiz antes de lançar âncora em Sevilha com aquele mísero carregamento de pérolas e escravos que a muito custo davam para cobrir os gastos da viagem? Desde logo, não cessava de o repetir, o longo périplo tinha-lhe deixado, a nível pessoal, uma insubstituível quantidade de conhecimentos e experiências, mas estas dificilmente convenceriam alguém, e muito menos ainda os seus associados na península, do proveito da viagem e da necessidade de empreender outra o mais brevemente possível.

O Almirante don Cristóvão Colombo tinha-se encontrado, no início das suas expedições, na mesma posição. Já nessa altura, para contentar os reis, reconciliar-se com os seus sócios florentinos e fazer-se perdoar pelos seus escassos envios de ouro e pedraria, propôs organizar o tráfico de escravos em grande escala desde as terras recém-descobertas. A ele, Vespucci, não lhe pareceu má a ideia. Consideráveis fortunas sevilhanas tinham sido amontoadas com cativos búlgaros, russos e africanos. Porque não fazê-lo também com todos aqueles que Colombo pudesse enviar? Até ao momento, os escravos constituíam a principal, para não dizer a única, riqueza encontrada naquelas dificultosas paragens. De facto, se não tivesse sido pelos duzentos selvagens que ele próprio acabara de trazer das índias, a sua aventura teria resultado num fracasso económico. E só sobreviveram metade dos que embarcaram: outros duzentos tinham morrido de fome ou de frio durante o trajecto e tiveram que ser atirados pela borda fora juntamente com um ou outro ainda vivo, mas já demasiado doente, com quem se considerava ser inaceitável desperdiçar mais rações de comida.

Os índios - ele tinha-se dado bem conta disso durante aquela última viagem - eram presa fácil. Mal equipados, com armas que por serem tão primitivas pareciam brinquedos. Indefesos contra as espessas couraças e as cortantes espadas espanholas. De carácter, além do mais, obediente e dócil, convencendo-os ou usando da força, podia-se obrigá-los a fazer o que quer que fosse. É certo que não se podiam comparar com os escravos trazidos da Europa de Leste, nem sequer com os de África. Estes eram mais altos, robustos e resistentes, e adaptavam-se rapidamente ao trabalho pesado, enquanto que os índios eram de constituição débil, doentia, e pareciam estar sempre tomados por uma mortal melancolia. Mas era tudo uma questão de se adequar o preço. Nunca faltariam compradores para o produto barato ainda que este fosse de menor qualidade. A sua pele oleosa e, geralmente, as suas formas airosas, ajudavam. Infelizmente, os soberanos, sobretudo dona Isabel, não viam com bons olhos o projecto. A culpa tinha-a em parte o próprio Colombo que tinha errado de uma maneira lamentável ao abordar o negócio, pensou Vespucci com amargura: primeiro fez a apologia dos índios que encontrava à sua passagem, elogiando a sua inocência, enaltecendo a sua bondade. Assegurou que não havia melhores pessoas no mundo, que talvez a sua bondade viesse porque moravam muito próximo do Paraíso Terreno. Disse aos reis que sorriam sempre, que eram afectuosos e serviçais, que não conheciam nem a inveja nem a maldade, que a sua linguagem era a mais doce e sossegada do mundo. Apreciou a sua simplicidade e inocência, as suas boas maneiras, a sua pureza, a sua generosidade, a sua docilidade e até a sua beleza. Referiu que eram como animais monteses, ou aves a quem o ar favorece mais os cabelos ou plumas do que aos mansos, porque os seus corpos são tão limpos, tão gordos e tão belos que nem se pode imaginar. Como quereria agora convencer suas majestades das vantagens que representava vendemos como bestas em praça pública? O assunto feria profundamente a susceptibilidade da rainha, por mais que a sua católica majestade não se abstivesse de comprar alguns para consolação de sua filha Joana nem que, amparados entre a ambiguidade real e a falta de uma ordenança clara e definitiva a esse respeito, os comerciantes de escravos continuassem a apresentar cativos índios nos mercados de Cádiz e de Sevilha.

O que Alonso não se atrevia a confessar a si mesmo era que o encontro com Catalina tinha-o comovido mais do que se podia, ou se devia, supor. índias já tinha visto muitas, desde as primeiras trazidas por Colombo a quem examinara com olhos curiosos, expostas como gado no átrio de San Nicolás num Domingo de Ramos. Não obstante, nenhuma lhe pareceu nunca tão agradável à vista nem tão bem proporcionada como a escrava do seu irmão. A sua nobre linhagem e o rosto infeliz, a recordação do argentino gorjear que tinha por língua mexeram com a sua compaixão e não lhe saiu da cabeça durante todo o dia seguinte, enquanto que com uma bolsa de couro em cada mão untava de tinta as pranchas que se deviam imprimir na oficina de Melchor Goricio e deitava, de quando em quando, uma mão à prensa se o torneiro afrouxava. Por isso, apressou-se a concluir o trabalho para se escapulir da tipografia à hora em que, segundo tinha combinado na véspera, Bartolomé e Cristo-balillo regressariam ao Cão Vermelho para que o escravo taino desse a primeira lição de castelhano à índia Catalina.

Divisou os seus amigos caminhando por uma rua do bairro de Triana. Ao vê-los apressou o passo e alcançou-os justamente à entrada da taberna do seu irmão.

Desta vez a mulher não se encontrava à vista. Diego Álvarez, no entanto, falava ruidosamente com um grupo de compinchas seus que costumavam reunir-se todas as tardes na taberna para comer bem, se possível, já que a boa mesa do hospedeiro era proverbial nessa margem do rio, e discutir longa e minuciosamente os assuntos do dia antes de matar o que restasse da noite com um jogo de cartas. Diego, ao vê-los, convidou-os a aproximarem-se e a sentarem-se junto deles. Alonso e Bartolomé obedeceram, cedendo a uma sensação que raiava o orgulho e o incómodo, enquanto Cristoba-lillo se retirava em direcção ao sótão de Catalina para cumprir com a sua obrigação. Ambos, Alonso e Bartolomé, tinham chegado àquela idade em que ainda se partilham as diversões de crianças, mas em que também começam a ser aceites nas actividades dos mais velhos. Diego serviu-lhes com naturalidade um copo de vinho e eles levantaram-no, à maneira de um tímido brinde aos presentes, antes de beber um trago. Os outros agradeceram o gesto com uma leve inclinação de cabeça ou dirigiram-lhes um sorriso de boas-vindas, O vinho, forte e seco, arranhava na garganta. Alonso teria gostado de o diluir em água, mas absteve-se de o fazer. Olhou para Bartolomé, que também não fez caretas nem deu sinais de ficar surpreendido com alguma coisa. A conversa, brevemente interrompida pela chegada dos jovens, continuou o seu curso. Um dos comensais, Martin de Monroy, um homem de armas bem constituído, natural da Estremadura e muito devoto da Virgem de Guadalupe, cuja imagem tinha cosida debaixo da roupa, membro, na sua terra, da pequena nobreza sem importância e, além disso, veterano das guerras de Nápoles, onde tinha combatido sob as ordens do Grande Capitão, don Gonzalo Fernandez de Córdoba, queixava-se perante os seus amigos da pouca sorte que tinha tido na sua tentativa de embarcar para as índias. Encontrava-se já há algum tempo à espera, disposto a aproveitar a primeira conjuntura favorável que se lhe apresentasse, mas a coisa não parecia ser assim tão simples. Até há uns poucos anos atrás ninguém queria zarpar rumo ao Oriente. Suas majestades católicas viram-se obrigadas a indultar de todos os delitos menores, inclusive o assassínio sem premeditação, a qualquer um que aceitasse deixar a península pelo menos durante um ano e instalar-se nas terras recém-descobertas. Mesmo assim escassearam voluntários. Desde então as coisas tinham mudado. A cobiça pareceu espalhar-se pelo reino e os desocupados de todos os cantos emigraram para Sevilha decididos a embarcar nas naus que cruzavam o mar Oceano. Cada qual disposto a enriquecer com o trabalho alheio. Viam-se a si mesmos a fazer o mínimo de esforço, ou a aproveitar o dos habitantes daquelas regiões, para regressarem com os bolsos repletos de ouro, ou de pérolas, ou de pedras preciosas, ou de todas essas coisas ao mesmo tempo. Dizia-se que não era preciso mais do que ir, apanhar o nobre metal e as gemas às pazadas e regressar a casa imensamente ricos. Infelizmente, isso proporcionava aos patrões e aos capitães das naus um maior número de aspirantes entre os quais podiam recrutar as suas tripulações. Isso dificultava-lhe, a ele, já mais velho que jovem, ignorante das coisas do mar e sem outro ofício que a espada, encontrar um lugar que lhe permitisse empreender a grande aventura.

Alonso interveio. Quis dizer algo inteligente apenas para participar na conversa e apercebeu-se de que, sem o pretender, expunha uma preocupação que o incomodava desde há uns tempos, mas que, pela primeira vez, se atrevia a expressar em voz alta: haveria, realmente, assim tanto ouro nas índias? Independentemente do que dissesse Marco Polo, cujo livro ele só conhecia de ouvir falar, até ao momento a única coisa que tinham trazido do lado de lá do Mar Tenebroso eram umas quantas pepitas de ouro de tamanho normal, que os especialistas consideraram, além do mais, de qualidade menor, e uns poucos adornos, braceletes, colares e argolas para pendurar no nariz, arrancados aos nativos. Tudo o que se tinha obtido não chegava para encher uma arca de sua majestade, a rainha dona Isabel, que com tão grandes sacrifícios e ilusões tinha patrocinado as viagens.

Fez-se um silêncio incómodo à sua volta, os comensais olharam uns para os outros desconcertados. Alonso surpreendeu um enérgico gesto de reprovação no semblante de Bartolomé. Começava a arrepender-se de ter tocado no assunto, diz quem sabe que quem muita fala incomoda e quem muito se coça fere-se, pensava nesse momento, quando João Almada tomou a palavra para o apoiar. Alonso conhecia-o de vista. Almada era um português desconfiado, de meia idade, acostumado a beber em silêncio e a falar pouco, mas, ao fazê-lo, evidenciava-se nas suas razões a convicção de pessoa instruída, exercitada na discussão e, sobretudo, em convencer, juntando provas e testemunhos eruditos. Não só era o único dos amigos de Diego Álvarez que sabia ler e escrever, o que lhe concedia uma inquestionável autoridade entre os frequentadores habituais do Cão Vermelho, como também passava por ser um dos cartógrafos mais notáveis de Sevilha. Ia frequentemente à taberna com o ostensivo propósito de obter entre os marinheiros a informação necessária para a feitura dos seus mapas e portulanos. Alonso já o tinha encontrado outras vezes falando douta e amistosamente com don Melchor Goricio, o proprietário da tipografia onde trabalhava. O seu castelhano era correcto e elegante. Para além de uma certa inclinação para os ditos na sua língua nativa, só a ligeireza dos seus "erres" e o suave arrastar dos "esses" denunciavam a sua origem estrangeira.

É verdade, o rapaz tem razão, afirmou com voz irónica e com os olhos faiscantes de álcool e malícia. Explica-nos lá tu, Zuniga, como é que te arranjaste para navegares com o Colombo até essas terras tão ricas e tão férteis e regressaste ainda mais pobre diabo do que quando partiste.

O aludido, Pedro Zuniga, a quem o característico gorro de lã carmesim identificava com o grémio marinheiro, era um basco nativo de Bermeo, servidor desde há anos na frota mercante que don Luís de Ia Cerda, duque de Medinaceli, fundeara no porto de Santa Maria. Homem prático, bem constituído e sem complicações, cuja aparência delgada encobria uma gula proverbial, estava acostumado ao mar e à aventura. Não era pessoa de se atemorizar perante as espicaçadelas de ninguém, ainda que estas viessem de um homem tão entendido como João Almada. Nas suas frases curtas e eloquentes desejava mostrar também o seu próprio tom irónico, pelo que tomou a palavra com firmeza para pôr as coisas no seu lugar: ouro havia, aos montes, confirmou com profundo convencimento. Obviamente ele ignorava tudo o que se referisse a Marco Polo e aos seus escritos, já que nunca aprendera a ler para além do rumo do barco na agulha da bússola ou da sua posição face à luz das estrelas, mas, pelo contrário, poucos anos antes tinha tido o privilégio de pisar várias ilhas no arquipélago de Catay ou de Cipango, nunca soube com certeza qual dos dois, embora para o caso fosse o mesmo, e em todas elas se encontravam rastos indiscutíveis de ouro.

Tinha embarcado num dos dezassete navios aparelhados por don Juan de Fonseca para a segunda viagem de don Cristóvão Colombo ao Oriente, rememorou Zuniga. Ele fazia parte da expedição, juntamente com outros funcionários da casa de Medinaceli, a bordo de uma caravela fretada pelo próprio duque e colocada sob as ordens de don Alonso de Ojeda, um gentil-homem castelhano de toda a sua confiança. Zarparam de Cádiz, juntamente com a restante frota, a 25 de Setembro de 1493.

Na mesma data que o meu pai, murmurou Bartolomé com mágoa, reflectindo em voz muito baixa, mas não tanto que o fino ouvido do narrador não captasse.

Já imaginava, ao ouvir o nome, que um rapagão tão forte e sagaz seria descendente de Las Casas, declarou Zuniga, arqueando uma sobrancelha com aprovação. O seu pai era um dos mais nobres e perfeitos cavalheiros que conhecia. E com o seu tio, Penalosa, capitão na viagem das forças armadas de sua majestade, só Ojeda podia competir em audácia e coragem, ainda que, infelizmente, nunca em bom senso, acrescentou o basco, bebendo um trago de vinho como se necessitasse de humedecer a garganta antes de continuar a história.

Depois da obrigatória escala em San Sebastián de Gomera navegaram com o mar tão calmo e com tão bom tempo que em apenas três semanas atravessaram o Mar Tenebroso e tiveram terra à vista. Uma ilha alta e montanhosa que o almirante Colombo, em memória de seu pai, baptizou com o nome de Dominica. A essa seguiram-se outras mais, nas quais foram acostando durante um par de meses, procurando a mais apropriada para se estabelecerem. Foi depois da obrigatória escala na Hispaniola1 que, finalmente, se decidiram por uma, à qual se deu o nome de Isabel em honra de sua graciosa majestade, a rainha. Todos os homens, animais e provisões foram desembarcados nela. Escolheu-se para povoado um lugar a sudoeste de um rio cuja fonte, segundo averiguaram, emanava ouro puro. Organizou-se de imediato um grupo de uma vintena de homens, sob o comando de Alonso Ojeda e Ginés de Gorbalán, que subiu o seu curso em busca do bendito metal. Encontraram algumas pepitas, para além de um desprevenido artesão índio que aí se encontrava a trabalhar, a quem tiraram tudo quanto tinha antes de regressar com a notícia.

Este foi o primeiro dos sinais que denunciavam por toda a parte a presença de ouro. Não somente em mananciais ou ribeiras, mas sim por todo o lado. Todos o tinham vislumbrado, acariciado, alguns quase posto as mãos nele. O próprio Almirante Colombo avistou um rio, em cujas praias os grãos de ouro, brilhantes, eram

 

1 Nome à época atribuído à ilha do Haiti. (N. do E.)

 

tão grandes como lentilhas. Muitos falavam de um outro em que bastava cavar na areia para que, ao brotar, a água cristalina trouxesse com ela pepitas de um dracma de peso, ou meter, à beira rio, o braço até ao cotovelo para extrair, misturadas com o limo da terra, pepitas do tamanho de grãos. Houve quem contasse que, ao bater com um maço numa rocha do monte, o ouro se derramou por toda a parte, no meio de cintilações douradas de um resplendor inenarrável. Mencionava-se um certo cacique que se ofereceu, para levantar ao Almirante Colombo uma estátua em ouro maciço, de tamanho natural. Um amigo comunicou-lhe em segredo as confidências que, por sua vez, lhe tinha feito um velho taino: existia uma ilha que era, toda ela, de ouro puro.

Todos na mesa sustinham a respiração ao imaginar essa riqueza fabulosa tão ao alcance da mão. Mas essas contundentes asseverações não fizeram mais que sublinhar a pergunta feita pelo incrédulo cartógrafo português. Pedro Zuriiga encontrou-a a flutuar em todos os olhares e soube que não se poderia escapulir: como é que era possível que, tendo tido a fortuna ao seu alcance, se encontrasse tão escasso de recursos?

É, em essência, a mesma história de Esaú, Jacó e o prato de lentilhas, explicou ele, encolhendo os ombros, como se não desse qualquer importância ao assunto. Depois, ao notar a perplexidade dos seus interlocutores, continuou: a situação na colónia deteriorou-se rapidamente. Metade da população ficou doente, os medicamentos foram insuficientes para travar todos os males. As provisões também se esgotaram antes que pudessem fazer as colheitas do que se tinha plantado. Em suma, tiveram que se arranjar como Deus lhes deu a entender com o pouco que a natureza, naquele lugar, lhes proporcionava. Aprenderam a viver alimentando-se de raízes, frutos silvestres e baldroegas, que cresciam nas margens do rio, de caranguejos, que por aquelas bandas se chamam jaibas, para além de peixe, cutias, que são uns roedores grandes como coelhos, e iguanas, que são como lagartos pequenos de tenra carne branca. Também não havia pão, usava-se como tal uma raiz a que os índios chamavam yuca, que se corta muito fina e se espreme até formar uma massa bastante delgada em forma de torta e que se come seca e à qual chamam cassabe. Um regime que o debilitava e o deprimia. Passava as noites sonhando com um bom pedaço de toucinho ou de qualquer outra iguaria acompanhada por um grande copo de vinho de Málaga. Não o pôde suportar. Por isso, antes que se materializassem os achados de ouro, quando doze dos dezassete barcos içaram velas para regressar a Espanha, ele encontrava-se a bordo no primeiro deles. Estava disposto a dar o resto da sua vida, as índias inteiras, se fosse preciso, com toda a sua grandiosa riqueza, por uma garrafa de vinho e uma suculenta fatia de presunto.

O curioso final da aventura provocou gargalhadas entre os comensais. Diego fez um sinal para que uma criada se aproximasse. Pediu-lhe que lhes servisse úberes de vaca, empadas de lebre e meio cabrito assado, que colocou imediatamente ao alcance de Zuniga, o qual pegou numa perna, saboreando-a com displicência, como se se tratasse de uma modesta recompensa pelo prodigioso tesouro que, devido à gula, lhe tinha escorrido por entre os dedos.

Talvez quando o jovem escravo de Las Casas ensinasse castelhano a Catalina, disse Diego Alvares, dirigindo-se a Martin de Monroy e lançando, ao mesmo tempo, uma piscadela de olho maliciosa aos restantes convidados, ele pudesse interrogá-la sobre a situação geográfica dessa ilha portentosa a que o velho taino se referira antes, onde praias e palmeiras seriam feitas de ouro. Assim, para além de averiguar a sua posição, coisa que seria, além do mais, útil se chegasse a embarcar, poderia perder o medo ao selvagem, o que não seria pouco, finalizou Diego entre as gargalhadas dos seus amigos e a curiosidade do seu irmão Alonso, que não conseguia entender o sentido da graça.

Se a escrava fosse arménia ou circassiana, porque as havia no mercado, respondeu o estremenho, cofiando incómodo o bigode grisalho, ele não diria que não. Mas essa índia de pele acobreada, que não ainda há muito tempo devorava crianças assadas e depois fazia colares com os seus ossos, não lhe apetecia lá muito.

Mas por essas bandas também as havia de pele branca, interrompeu Pedro Zuniga, engasgando-se com a boca cheia de empada. Ele próprio encontrou algumas ao norte da Hispaniola. Bastante mais claras que as guanches das Canárias e tão brancas como muitas sevilhanas. Se lhes fosse dado a contemplar aquelas índias vestidas, ou as andaluzas despidas, pelo menos pela cor da pele não saberiam distinguir umas das outras.

Mas se a Monroy não lhe apetecia, ele, pelo menos, não desejaria passar a noite sem lhe apresentar os seus respeitos, declarou João Almada, levantando-se pesadamente da mesa.

Depois do vício vem a fornicação, sentenciou o estalajadeiro, olhando-o.

E tempo de folgar, respondeu o português, apoiando-se na parede para não cair. Notava-se claramente que tinha bebido de mais e que todas essas questões sobre as viagens às índias o aborreciam. Incomodava-o, reflectiu Bartolomé, ter caído na armadilha ao evocar o assunto e, incapaz de desviar o rumo da conversa, decidia fugir com o pretexto de ir cumprimentar Catalina. Pareceu bem a Alonso que se referisse à mulher com tanta deferência e esteve quase a pôr-se de pé e a acompanhá-lo, porque também ele desejava cumprimentá-la, se o seu irmão não o agarrasse pelo braço e o obrigasse a sentar-se de novo entre cotoveladas cúmplices e os risos dos assistentes.

Retiveram-no, assim, obrigando-o, juntamente com Bartolomé, a prestar atenção à história do homem que subia com passos inseguros de bêbado pelas escadas que conduziam ao sótão da es-i crava caraíba. Contaram-na entre todos, numa atitude de confidência, cortando frequentemente a palavra uns aos outros, de modo que cada um ilustrava com situações da sua própria imaginação os pormenores que consideravam dignos de menção. Alonso, com o rabinho do olho, olhou para Cristobalillo que descia as escadas e que os esperava, silencioso e imóvel, no canto oposto da taberna. Ao que parecia a lição tinha terminado.

Apesar do seu aspecto caduco e desastrado, começaram por lhes contar, Almada tinha sido conselheiro de D. João II, então rei de Portugal, antes de vir para Salamanca como preceptor e ganhar também a confiança de gente muito próxima de sua majestade católica, D. Fernando de Aragão. A sua tragédia começou ao participar, durante a sua época portuguesa, nas reuniões presididas pelo bispo de Ceuta para avaliar os projectos de Cristóvão Colombo que, nessa altura, se tinha mudado para Lisboa com a esperança de convencer aquele soberano da viabilidade de chegar às índias através do Mar Tenebroso. Após ponderadas deliberações, a junta, na qual participavam para além de Almada e de don Diego Ortiz de Vilhegas, bispo de Ceuta, sábios da excelência de Joseph Vizino, o famoso médico judeu, ou do célebre mestre Rodrigo, que aperfeiçoou o astrolábio, decidiu recusar a proposta porque parecera a todos absurda. Empregariam melhor os seus recursos, aconselharam, continuando pelo caminho no qual já estavam empenhados, ou seja, procurar o limite de África, bordejando pela costa em direcção ao sul e virar depois para oriente para transpor o oceano Índico e alcançar as costas da índia.

Nada teria sucedido se Almada, procurando uma melhor colocação, e com o apoio do seu protector, o bispo de Ceuta, castelhano de nascimento, não emigrasse para Espanha para ensinar em Salamanca, ou se don Cristóvão Colombo ficasse tranquilo onde estava sem vir propor a suas católicas majestades o mesmo que lhe tinha sido negado pelo rei D. João II. Fernando de Aragão convocou, por sua vez, através de frei Hernando de Talavera, as audiências do colégio de San Esteban para analisar minuciosamente a questão. Entre os congregados encontrava-se de novo João Almada, a quem os planos de Colombo pareciam seguir para todo o lado. Pois bem, aquela segunda assembleia de físicos, geógrafos e matemáticos aconselhou o rei D. Fernando o mesmo que na reunião anterior tinham recomendado ao monarca português: pô-los de parte por serem impraticáveis. Não havia maneira de chegar à Ásia navegando pelo Ocidente, enunciaram. Os cálculos do genovês eram toscos e errónea a sua apreciação das distâncias. De nada serviu que o agora Almirante lhe mostrasse uma carta escrita pelo sábio florentino Pablo de Pozo Toscanelli, animando-o no seu empenho. Não fizeram caso. Sustentaram que Toscanelli e Colombo se enganavam, que havia à volta de duas mil e quinhentas léguas entre as costas da Europa e as da Terra das Especiarias e que, portanto, seriam necessários demasiados meses de navegação para a elas arribar. Nenhuma caravela, mesmo que encontrasse bom tempo e ventos favoráveis, seria capaz de fazer a viagem, por ser impossível armazenar água e comida suficientes para sustentar a tripulação. E se o mar Oceano era de facto navegável, era o que ainda estava por demonstrar.

O veredicto da comissão pesou muito no espírito do rei, que, mesmo assim, ainda deu algum tempo a Colombo antes de o despedir definitivamente durante os festejos que se seguiram à tomada de Granada, prosseguiu Pedro Zuniga. Quando ia já a caminho de Córdova, à garupa de uma mula, a rainha intrometeu-se, empenhando as suas jóias para financiar a viagem.

O que aconteceu depois foi um verdadeiro milagre, disse Martin de Monroy, mas que para ninguém foi tão grande como para o amigo Almada: após um escasso mês de navegação, as caravelas alcançaram terra, onde ele e os outros sábios prognosticaram que não haveria mais do que água.

Ainda que alguns digam que têm tanto valor Isabel como Fernando, interveio Diego Álvares tomando de novo a palavra, o rei não digeriu bem esta derrota conjugal nem a pouca perspicácia dos seus conselheiros. A maioria livrou-se de qualquer outra repri-menda que não fosse apenas um real puxão de orelhas, mas Almada caiu em desgraça. Um erro, mesmo sendo grande, pode-se desculpar, mas cometer o mesmo duas vezes e negar-se depois a reconhecê-lo torna-se imperdoável. Perante os soberanos, e mesmo nas suas aulas, o bispo Talavera perdeu rapidamente o crédito que o tinha precedido e, sem mais, foi retirado do cargo. A sua condição de estrangeiro e a sua teimosia em aceitar as provas trazidas pelas viagens de Colombo agravaram o assunto. Teve que abandonar Salamanca e, impedido de regressar a Portugal, instalar-se em Sevilha, onde ganhava a vida fazendo mapas e cartas de marear para os navegadores que lhas solicitavam.

Nem mesmo agora, nos seus planisférios, se resigna a que Espanha e Catay apareçam separadas por um estreito mar, no qual, não muito longe, se encontra o arquipélago de Cipango, assinalou com evidente má-fé Pedro Zuniga.

Nunca se repôs do fiasco. De facto, não aceita ter-se enganado, acrescentou Diego Álvarez. Uma vez, naquele mesmo lugar, na Taberna do Cão Vermelho, completamente bêbado, o português confessou-lhe ter feito e refeito mil vezes o cálculo para chegar sempre ao mesmo resultado: o espaço entre as costas da Europa e da Ásia deveria ser infranqueável.

É demasiado orgulhoso para se inclinar perante a evidência, recalcou Pedro Zuniga; como negar que as naus dos reis necessitem apenas de um escasso mês de navegação para chegar muito próximo da índia e da China e fundear nas costas de Cipango?

Não, de modo nenhum, anotou uma voz pastosa nas suas costas, nada demonstrava ainda a inexactidão dos seus cálculos, baseados nos de Erastótenes e de Ptolomeu. João de Almada, terminados os seus assuntos com a índia, tinha descido as escadas sem que eles o notassem e irrompia no fim da conversa, tudo foi sabido e consabido a seu tempo, balbuciou: o que quase ninguém sabe é que D. João II, desconfiando da reunião que ele mesmo tinha convocado, enviou em segredo uma caravela seguir a rota sugerida por Colombo. A nau regressou semanas mais tarde sem encontrar nada, o que confirmou as suposições da assembleia. Foi assim: nem a intriga nem a ciência puderam fazer nada contra um genovês intruso, no fundo um aventureiro ignorante, que teve a boa sorte de dar com umas quantas ilhas a meio do mar Oceano, as quais quis fazer passar pelas índias.

Nem são umas quantas ilhas nem foi sequer uma questão de sorte, interveio pela primeira vez Bartolomé, incomodado porque o cartógrafo ousava criticar a figura do Almirante do mar Oceano, tão admirado por ele e tão amigo de seu pai. Houve, na devida altura, outras provas da proximidade da Ásia para além daquelas que eram puramente matemáticas, acrescentou. Todos tinham ouvido falar de canas e de restos de madeiras lavradas que apareciam de quando em quando nas costas de Espanha e de Portugal, e de cadáveres com rasgos mongólicos, flutuando nas ilhas dos Açores. De onde vinham senão da China? Por outro lado, como explicar a presença de elefantes em África se se descartasse a proximidade da índia?

Muito bem, respondeu João Almada, deitando a mão a uma garrafa de vinho e deixando-se cair pesadamente na cadeira: por falar nisso, seria interessante mencionar que até esse momento nem o Almirante Colombo nem nenhum dos marinheiros que o seguiram tinham encontrado elefantes nas terras descobertas, apesar de as terem explorado durante muito tempo. Inclusive, há vários anos, em Roma, Sua Eminência Bernardino de Carvajal, numa alocução a Sua Santidade o Papa Alexandre VI, ao referir-se aos recentes achamentos denominou-os como "umas ilhas desconhecidas a caminho da índia". Mas não se tratava de nada disso, acrescentou, bebendo de um trago o licor que acabava de verter no copo: ele, particularmente, sentia uma reticência inabalável ao conceber o mar menos vasto do que sempre tinha imaginado. Colombo estimava-o com apenas mil cento e vinte e cinco léguas de largura, em vez das duas mil quatrocentas e noventa e cinco que ele tinha calculado. De facto, se aceitava como válidas as suposições do genovês, o mundo perderia aos seus olhos uma terça parte do tamanho. E ele próprio se sentiria diminuído, brutalmente diminuído.

A pedido de Bartolomé, numa manhã de domingo, os dois amigos foram ouvir missa na igreja matriz, fazendo-se acompanhar pelo incondicional escravo taino. Bartolomé desejava que Cristoba-lillo presenciasse um serviço religioso que lhe permitisse apreciar o misticismo, a magnificência e solenidade do rito católico. A catedral, com a sua enorme nave de arcos imponentes e o elevado minarete almóada que os cristãos transformaram num soberbo campanário, pareceu-lhe o sítio mais conveniente para causar uma impressão inapagável no jovem índio. No entanto, o escravo permaneceu im-| passível durante o rito. Só o constante movimento dos seus olhos que, sem sequer mexer minimamente o rosto, pareciam abarcar com olhares rápidos e inapeláveis o conjunto do santuário, delatava o que Bartolomé interpretou como concentrada admiração. Cristobalillo, suspenso, pensava que nunca tinha estado antes num sítio tão povoado de espíritos e criaturas sobrenaturais. Esse centro cerimonial correspondia, embora numa dimensão muito maior, ao construído na sua própria aldeia para render culto aos seus deuses e antepassados. Compreendia que para Bartolomé, e para todos os que com ele abarrotavam a igreja, o lugar estivesse tão pleno de magia. Sem dúvida os cernis que o habitavam eram muito poderosos, mas nem todos lhe inspiravam confiança.

Chamava-lhe também a atenção que os cristãos, sem se aperceberem, se comportavam de uma maneira tão semelhante à do seu próprio povo taino. Fabricavam os seus cernis de barro, de pedra ou de madeira como eles faziam, e juntavam-nos dentro de certos lugares sagrados, como aquele, a que na sua terra teriam chamado batey. Não viu que lhes oferecessem de comer, mas também não se limitavam a conservá-los lá dentro. Podiam levá-los para suas casas ou pendurá-los ao pescoço como fazia a gente da sua tribo. Inclusive, tal como eles, prendiam-nos por vezes à roupa ou colocavam-nos em cima da cabeça quando iam para a guerra. Tinha observado também como cada aldeia tinha o seu próprio cerni protector. Justamente como eles. Mas, no caso dos cristãos, estes preferiam as deidades femininas, às quais chamavam virgens, ou santas padroeiras, que tinham a missão de auxiliar e proteger os seus seguidores. Não tinha visto ainda que as enterrassem nos campos lavrados para depois urinar ou defecar sobre elas para assegurarem uma boa colheita, mas não duvidava que também tivessem o costume de o fazer.

Ao terminar a cerimónia, dedicaram-se a matar o tempo, bisbilhotando entre as barracas de lona da concorrida feira instalada à volta do templo. Alonso aborrecia-se. A missa tinha sido especialmente longa e, embora ele estivesse muito longe de ser um descrente ou um cínico, os serviços religiosos acabam sempre por o enfadar. Tinha pena de não partilhar o fervor juvenil do seu inseparável Bartolomé que, apesar da sua desmedida admiração pelas façanhas do seu tio Penalosa e pelas conquistas de Alexandre Magno, frequentemente deixava escapar uma exalação beatífica, pensou, mexendo a cabeça, dubitativo. Alonso estava de acordo com a nobre devoção de Tirante el Blanco. Concordava em que a fidelidade a Deus, ao rei e à dama, por essa ordem, deveriam ser as pedras angulares que sustentavam o ideal cavalheiresco. Mas a persistente ambiguidade nas inclinações de Bartolomé perturbava-o. No fundo, temia vê-lo acabar a dar catequese numa qualquer igreja, trocando por um hábito e por uma tonsura o esplendoroso futuro que a carreira de armas lhe poderia dar. Porque a isso, para além do seu ofício de impressor, pensava Alonso consagrar a sua vida e desde sempre tinha imaginado que ele e Bartolomé cavalgariam lado a lado, empunhando a lança, como o fizeram Tirante el Blanco e o Delfim de França.

Alonso tentava em vão fazer-se escutar pelo seu amigo entre as vozes dos vendedores que apregoavam aos gritos a sua mercadoria numa heterogénea multidão, mistura de possíveis compradores, desocupados, gente de má vida, pícaros, carregadores de alcofas, ciganos, mouros, guanches das Canárias, negros de África e um ou outro índio acobreado que, como Cristobalillo, acabava de chegar da Terra das Especiarias.

Evitando o tumulto, os dois companheiros dirigiram-se para um canto mais tranquilo onde lhes fosse possível alinhavar uma conversa sem interferências. O escravo taino seguia-os a poucos passos de distância, maravilhado como sempre pela quase infinita variedade de artigos que se exibiam à sua volta. Desde panos e vestidos, frutas e legumes, doces e guloseimas, coelhos e perdizes até aos leilões de seres humanos que juntavam grupos de mirones à volta das fileiras de cativos presos pelo pescoço que observavam, resignados, os possíveis donos que lhes tocaria em sorte. Era, no entanto, a abundante oferta culinária o que nesse momento produzia um agudo mal-estar na barriga de Cristobalillo. Ao contrário de Catalina, que apesar da sua antiga prática canibal abominava guisados e cozidos, ovos, queijos ou leite, para se nutrir somente de frutas e verduras, Cristobalillo tinha-se imposto a si mesmo a obrigação de comer o que se servisse na casa de don Pedro de Ias Casas. Para não ofender os seus amos, pensava ele, que tanta consideração lhe mostravam. No entanto, o seu organismo tardava em habituar-se a certos manjares e a certos caldos, cujo aroma ou sabor repugnavam o seu olfacto ou ofendiam o seu paladar. A marmelada com aguardente, o cozido de carne podre, a sopa dos pobres ou de hortaliças, como chamavam àquele prato à base de couves e toucinho rançoso, o grão, os alhos e as cebolas, o azeite e a manteiga, toda essa gastronómica anarquia que, agora, ao tê-la junta no mercado, entre as ofertas de carne, peixe cru e a furtiva passagem de uma ou outra ratazana aos seus pés, lhe dava voltas ao estômago até lhe provocar náuseas.

Talvez esse mal-estar se tivesse originado muito antes, pensou Cristobalillo, provocado em parte pelo tumulto dominical e pela falta de ar no interior da igreja. As pesadas vestimentas do sacerdote que oficiava a missa angustiavam-no como se fosse ele próprio que as levasse vestidas. O fumo denso e perfumado do incenso chegava a sufocá-lo, recordando-lhe ao mesmo tempo o odor às fogueiras apagadas na sua aldeia natal, com cuja cinza besuntava a pele para afugentar os mosquitos. A inquietante e confusa presença dos espíritos inacessíveis e obscuros que dominavam o interior da nave. A própria imagem manchada de sangue daquele homem imolado na cruz trazia-lhe à memória uma certa história escutada da boca dos velhos da sua tribo a respeito dos Caraíbas. Dizia-se que o guerreiro inimigo que tivesse demonstrado maior bravura no combate seria devorado vivo. Amarravam-no a um tronco de árvore, com os braços atados aos ramos numa posição muito similar ao do personagem da cruz, e dedicavam-se a cortar o seu corpo em fatias e a comê-las à sua frente. Começavam a seccionar as partes mais tenras e carnosas, os braços, as coxas, as barrigas das pernas e as nádegas, por exemplo, e continuavam por aí fora até o deglutirem por completo. Não se davam ao incómodo de o cozinharem. Devoravam-no cru enquanto o cativo testemunhava aterrado a mutilação do seu organismo. Via-se a si mesmo a transformar-se numa massa sanguinolenta que desaparecia pedaço a pedaço ante a feroz voracidade dos seus captores. Cada vez que Cristobalillo observava uma imagem de Cristo recordava aquela história dos velhos da sua tribo. Parecia-lhe que o chamado Jesus estava assim, cativo da horda de cristãos, e que estes se juntavam à sua volta para o comer. Inclusivamente, Bartolomé explicou-lhe que, de facto, um pouco dele se comia no final do ritual a que eles chamavam o Santo Sacrifício da Missa, quando os fiéis se punham de joelhos perante o sacerdote e este lhes introduzia na boca o que Cristobalillo pensou que seriam simples fatias de pão. Bartolomé esclareceu-o que se chamavam hóstias e que no instante da consagração, quando o sacerdote as elevava no ar dentro do seu cálice de ouro, se transformavam realmente no corpo e no sangue de Cristo. Alonso quis objectar o que de repente também a ele lhe pareceu um rito canibal, alegando que se tratava de uma cerimónia simbólica, mas Bartolomé não o consentiu. Mais experiente nessas coisas, e dissimulando a decepção que lhe provocava a ignorância do seu amigo, refutou-o afirmando que estavam, na verdade, a comer Deus. Tomai e comei, este é o meu corpo, tinha proferido Jesus perante os seus discípulos durante a Ultima Ceia, e era isso exactamente o que se repetia na cerimónia da missa. Como se realizava era um mistério, mas acreditar a pés juntos nesse milagre quotidiano era parte das obrigações que a religião cristã impunha aos seus fiéis. A Cristobalillo não lhe escapava o paralelo entre ambas as situações. O ser comido vivo era a sorte que os caraíbas reservavam aos guerreiros mais valentes porque acreditavam que assim adquiriam parte da coragem e do arrojo da sua vítima. Os cristãos faziam da mesma maneira, incorporando no seu ser a divindade através da comunhão. O homem da cruz também deveria ter sido muito corajoso, mas o seu destino, da mesma maneira que os homens sacrificados nos faustos canibais para além do Mar Tenebroso, não deixava de o horrorizar.

Os três adolescentes desembocaram, finalmente, diante do muro ameado do Pátio das Laranjeiras, ao longo do qual se encontravam os degraus, que davam nome ao mercado e em cujo extremo se dispunham também os postos dos banqueiros e notários. Via-se menos gente por ali, com a escassa clientela abstraída, combinando negócios ou empréstimos, ou ocupada em redigir contratos com os diferentes escrivães. Alonso e Bartolomé aproximaram-se de uma clareira onde acabavam os postos e puderam, por fim, entabular uma conversa sem serem estorvados. O aprendiz de impressor, tentando emendar o seu equívoco anterior a respeito do sagrado mistério da eucaristia, dizia ao seu amigo que, no romance de Tirante el Blanco, se mencionava um espinho da coroa de Cristo que todas as Sextas-Feiras Santas se expunha ante os fiéis na ilha de Rodhes. Consideravam-no mais santo e milagroso porque era feito de junco marinho e era mais duro, longo e pontiagudo do que todos os outros, sem contar que tinha penetrado na sagrada cabeça até tocar nos benditos miolos do Salvador. Alonso não pôde prosseguir com a sua história. Cristobalillo, ao ouvi-lo, tinha-se afastado para o muro do antigo minarete almóada transformado em campanário e, apoiando a cabeça contra as veneráveis pedras, contorcia-se com vómitos bruscos que faziam estremecer todo o seu corpo. Os dois amigos observaram o pajem índio, agarrando com ambas as mãos as ilhargas e vomitando com violência, como se quisesse lançar para fora de si, naquela ânsia espasmódica e interminável que lhe saía pela boca e pelo nariz, a mistura informe dos guisados cristãos, mitos canibais e dogmas da santa religião.

Por esses mesmos dias, uma notícia vinda sabe-se lá de onde veio perturbar a inalterável monotonia da vila, tomou conta da imaginação dos seus habitantes e chegou a transformar-se, da noite para o dia, no tema de todas as conversas, desde as mais ou menos graves e sisudas nas rodas de nobres e notáveis na Praça de San Francisco até aos mais ordinários murmúrios de gente comum e normal nos degraus da catedral. Setenta grandes naus, trazendo a bordo mais de dez mil amazonas, atravessavam o Mar Tenebroso a todo o pano. Ao aproximarem-se das Ilhas Afortunadas, tinham virado para norte, dividindo-se em dois grupos de idêntica importância. Um continuava o seu caminho, supostamente rumo aos portos de Laredo e de Santander, enquanto o outro metia proa a Cádiz e Sevilha. O propósito do belicoso mulherio era desembarcar na península para se fazer emprenhar pela linhagem de valentes e corajosos que tinham conquistado o mar Oceano, submetendo os povos que encontravam à sua passagem. Cada amazona oferecia ao seu par um presente de quinze ducados pelos trabalhos que tivesse com ela. Permaneceriam em Espanha os nove meses da gestação e, depois de dar à luz, voltariam às suas ilhas, levando consigo apenas as fêmeas recém-nascidas. Os filhos varões ficariam na península a cargo dos seus pais.

A notícia teve como primeira consequência a subida do preço da carne e de outros bens comestíveis devido à derrama económica que o acontecimento supunha. Os homens, sobretudo os solteiros, prepararam-se, a um tempo inquietos e orgulhosos, para enfrentar essa insólita prova com que o destino os surpreendia. As mulheres, por seu lado, tinham opiniões opostas: enquanto algumas estavam determinadas a esconder os seus maridos, ou, pelo menos, a enviá-los uns dias para qualquer aldeia do interior, outras não temiam expô-los ao perigo que representavam as atacantes. Já era tempo de as suas bolsas servirem para alguma coisa, cochichavam entre elas, pensando no proveito que lhes traria tão peregrino acontecimento. Também não faltaram outras, com uma visão não menos prudente do assunto, que se propunham formar um comité para exigir um acordo monetário com as amazonas. Estava em jogo a amamentação e posterior manutenção dos indesejáveis filhos varões que planeavam deixar para trás porque, aduziam elas, os pais, geralmente imprestáveis, jamais tomariam conta deles e, ainda por cima, como sempre, toda a responsabilidade recairia sobre as suas sofridas esposas.

As autoridades, como medida de precaução, exigiram que estivesse pronta a barreira de troncos e correntes que unia debaixo de água a Torre do Ouro à ribeira de Triana. Içá-la impediria, se se considerasse necessário, a passagem das hostes inimigas pela ponte de Barcas e pelo ancoradouro do Arenal. Decidiram, além disso, duplicar as guarnições e manter-se vigilantes até conhecer realmente as verdadeiras intenções das possíveis assaltantes.

Durante esses dias, a Estalagem do Cão Vermelho esteve mais concorrida do que era costume e a iminente invasão era discutida de todos os ângulos pela marinhagem que a frequentava — não só por aquela que estava sempre de passagem por este e outros tugúrios limítrofes, mas também pelos próprios moradores do bairro de Triana que agora marcavam ali encontro para comentarem a notícia. Diego Álvarez, brandindo a enorme colher de madeira com que provava os guisados e batia nos empregados, falava em voz alta com a sua clientela para que esta se sentisse em casa e ficasse a beber por mais tempo, mas apressava-se também a estar presente na mesa dos seus convidados para analisar juntamente com eles os últimos acontecimentos.

Numa dessas tardes, e como consequência da agitação na cidade, Alonso e Bartolomé foram convocados à pousada pelo proprietário e seus compinchas. Pensava-se ser de interesse comum que o jovem Ias Casas consentisse que o seu pajem, Cristobalillo, que na opinião de todos dominava a língua das amazonas, fosse utilizado como tradutor em caso de necessidade, e fosse para junto deles assim que se avistasse no horizonte a mastreação dos navios da frota invasora. Encontravam-se todos nervosos e excitados pelos possíveis acontecimentos. Todos menos João Almada, que bebia imperturbável o seu acostumado copo de vinho com um sorriso de irónico cepticismo.

Os amigos não faziam caso das suas objecções. Se no seu tempo ele tivesse tido a última palavra, don Cristóvão Colombo teria chegado à Terra das Especiarias a bordo de uma caravela de França ou de Portugal, assinalou Martin de Monroy com má-fé, ferindo sem piedade, profundamente, os sentimentos do antigo preceptor de Salamanca.

Uma proposta inaceitável, respondeu Almada rancoroso, Carlos VIII em Paris, demasiado concentrado nas suas campanhas de Itália, nunca teve interesse na empresa. Em Lisboa, as suas perspectivas eram ainda piores porque ali também não foi capaz de convencer o grupo de especialistas convocados por D. João II. Ele próprio tinha participado nela, acrescentou como se todos os que estavam na mesa não o soubessem, e naquele momento apresentaram-se as mesmas razões que se invocariam depois em Salamanca. Mas nada disso vinha ao caso, continuou franzindo as sobrancelhas, não duvidava das necessidades dessas hordas guerreiras femininas, mencionadas já por Heródoto, Plínio e Ptolomeu, sem contar com o Papa Pio II que tinha corroborado a sua existência anos antes, fundando-se na autoridade de Diodoro da Sicília. O que na verdade o irritava, com o devido respeito, era o cretinismo e a falta de lógica no que se discutia à sua volta: porque é que eles pensariam que as amazonas se interessariam pelas suas qualidades de sementais? E, se assim fosse, onde é que elas teriam ido buscar essas naus em quantidade e calado suficientes para virem até estas terras e levar a cabo tão insensato projecto?

As embarcações teriam sido construídas propositadamente para a viagem, interveio Pedro Zuniga, que nessa ocasião demonstrava que o seu apetite andava a par da sua luxúria, a verdade era que as amazonas andavam já há algum tempo sem acasalar e agora far-lhes-ia falta, com urgência, uma nova geração para preservar a sua espécie.

A discussão continuou, com todos tentando expressar o seu parecer ao mesmo tempo e sem que o português encontrasse maneira de fazer prevalecer as suas convicções. Alonso e Bartolomé assistiam espantados àquela caótica troca de juízos e conceitos. Diego Álvarez imaginava já a frota amazónica franqueando o Cabo de São Vicente. Martin de Monroy fazia apostas sobre quantas ficariam em Cádiz e quantas subiriam o Guadalquivir. A Pedro Zuniga, como bom marinheiro que era, inquietava-o que algumas, sem um piloto experimentado que conhecesse a fundo os meandros do rio, pudessem encalhar nos traidores baixios da barra de Sanlúcar. Mas, uma vez ultrapassados aqueles obstáculos, todos faziam cálculos sobre quantas naus poderiam na realidade atracar nos desembarcadouros de ambas as margens e quantas fêmeas trariam a bordo. Os rapazes dos quartéis e demais encarregados da vigilância da vila teriam vantagem sobre os restantes moradores, precisou Diego Álvares, fazendo sinais a uma criada para que se apressasse a atender uma mesa vizinha: a primeira vaga de mulheres lançar-se-ia sobre eles sem esgrimir mais armas do que aquelas com que a mãe natureza as tinha dotado, todos teriam assegurada uma recompensa. Por outro lado, acrescentou desalentado, os que permanecessem na rectaguarda, ou seja, eles em particular, ficariam com as que chegassem depois, se é que vinham suficientes e os primeiros deixassem algumas.

Quem sabe, assinalou Martin de Monroy, acariciando pensativo o bigode: forçar um cavalheiro não era a mesma coisa que violentar uma dama, e muito menos por um aguerrido mulherão a quem lhe faltava o peito esquerdo. Nem todos os que estivessem na linha de fogo estariam à altura das circunstâncias.

Não, quanto a isso faltava-lhes, provavelmente, o direito, objectou João Almada, queimavam-no até o consumir porque as incomodava na utilização do arco.

Seja qual for, esquerdo ou direito, essa carência tornava-as definitivamente menos excitantes, reconheceu Pedro Zufíiga com um suspiro de contrariedade. No entanto, o Almirante Colombo tinha visto à volta de uma dezena delas na ilha de Guadalupe e, embora mais altas que as mulheres comuns, nem por isso as achou mal proporcionadas.

Também não se devia esquecer que eram terrivelmente beligerantes, inquietou-se Martin de Monroy: não seria uma coisa fácil confrontar-se com elas embravecidas pelo cio, não permitindo ao seu par os calores da concupiscência. O que aconteceria se o escolhido não estivesse à altura, se fosse incapaz de satisfazer as suas exigências? Ao que parece não só manejavam os arcos com singular pontaria como também eram destras em distribuir cutiladas, e quem não conseguisse satisfazê-las arriscava um golpe certeiro, nas preciosas partes.

Na verdade, segundo os escritos de Heródoto, persistiu João Almada, estava-lhes vedado conhecer homem antes de matarem um inimigo. Oxalá todas elas tivessem já cumprido tal requisito. De outro modo, o primeiro galã desprevenido corria o perigo de ser trespassado por uma espada muito diferente daquela que contava utilizar para fazer frente à fêmea que dela se aproximasse.

É melhor enfrentar amazonas do que gigantes ou ciclopes, replicou Pedro Zufiiga, ajustando filosoficamente os fios da braguilha, de qualquer maneira estavam mais bem dotados para se defenderem delas.

Certo. Se se apresentassem invasores vindos do outro lado do Mar Tenebroso, então seria melhor que fossem amazonas que oclistos, interveio, perante a surpresa de todos, Bartolomé de Ias Casas que, ao ouvir a referência aos ciclopes, se sentiu, de repente, como peixe na água, evocando as façanhas de Alexandre e os bárbaros costumes dos oclistos. Quando Alexandre, o Grande, se confrontou na Ásia com aqueles gigantes ruivos, acrescentou, estes defenderam-se não com espadas nem com lanças, mas sim brandindo troncos de árvores com os quais, de um só golpe, causavam enormes estragos entre as tropas gregas.

E de mais a mais, proferiu João Almada, deixando cair os braços como a dar-se por vencido, também não deviam esquecer que no seu pedaço de terra as amazonas possuíam minas riquíssimas onde se escondiam quando se aproximava um exército que pudesse vencê-las. No tom da sua voz misturavam-se, ao mesmo tempo, a ironia e a erudição, mas ninguém pareceu aperceber-se disso. Não havia que descartar a possibilidade, acrescentou, de que alguma delas ficasse cativada pelo seu par e lhe dissesse onde se encontrariam aqueles prodigiosos filões.

Se não, pelo menos gratificaria com ouro os serviços prestados, expôs Martin de Monroy, recordando que a interminável demora em embarcar tinha praticamente liquidado as suas poupanças. Que mais se lhes podia exigir?, acrescentou; tratava-se de se comportar à altura das circunstâncias, realizar um pequeno esforço e cumprir com o resto.

Pois mais lhe valeria praticar se queria ganhar os quinze ducados da recompensa, aconselhou-o Pedro Zuniga, olhando com malícia para Catalina que, nesse momento, lhes trazia um novo jarro de vinho.

Bem dito, e melhor ainda com uma que tivesse ambos os peitos, e os dois bem no seu sítio, interveio João Almada, agarrando de surpresa a escrava pelo punho. Venha cá, exigiu, forçando-a a sentar-se entre eles.

Alonso escandalizou-se perante a atitude pouco cavalheiresca do cartógrafo português e pela brutal complacência dos seus companheiros de mesa. Olhou para o seu irmão, que parecia mais divertido do que qualquer outro com a rusticidade e a descompostura. Estão ébrios, pensou, refreando o seu desejo de intervir. O vinho e as amazonas subiram-lhes à cabeça, de outra maneira envergonhar-se-iam das suas acções. Essa era a conduta menos adequada para tratar uma jovem, e ainda por cima da qualidade da índia Catalina, nobre, ainda que passasse por escrava. Tirante el Blanco teria bofe-teado Almada ali mesmo antes de desafiar todos os outros. Incluindo-o a ele, pensou envergonhado, já que ninguém nesse momento teria sabido diferenciá-lo dos outros. Não podia suportar a situação mais tempo, mas também não desejava criar um problema a Diego e muito menos à frente dos seus amigos. Decidiu então que o melhor era ir-se embora. Fez a Bartolomé sinal de que iria retirar-se, este disse que sim com a cabeça, e ambos se despediram dos presentes, prometendo que o escravo taino estaria à disposição do grupo mal as amazonas aparecessem. Ao atravessar a ombreira da porta, juntou-se-lhes Cristobalillo, que tinha estado fielmente à espera deles, com a sua delgada silhueta quase desvanecida entre as sombras do portal.

Por sorte saíram nesse momento, porque assim não se aperceberam de nada. Alonso já não teve que se perguntar, ou executar, o que Tirante el Blanco teria feito ao presenciar a cena, embora esta tivesse ocorrido com uma discrição favorecida pelos ruídos, pelo cansaço e pela penumbra do lugar. Almada segurou Catalina pelo tronco e, encostando-a à mesa, levantou-lhe a saia e obrigou Monroy a colocar-lhe a sua mão calosa entre as pernas.

O veterano das guerras de Itália estremeceu ao sentir a penugem entre os seus dedos e ao olhar o belo, ainda que imperturbável, rosto da índia. De repente, nesses olhos, não havia nem medo, nem emoção, nem ansiedade, nem desejo, só o selvagem e impenetrável mistério da selva em que nasceu. Monroy pensou reconhecer nela a fêmea primordial na sua manifestação mais obscura e primitiva, e essa descoberta lembrou-o a primeira mulher com quem se tinha juntado na vida. Uma jovem puta de Cáceres que o iniciou nas intemperanças do sexo quando ele era ainda um rapazinho. Pôs-se de pé, excitado, e dirigiu-se sem vacilar para as escadas que conduziam aos aposentos de Catalina. A índia pareceu compreender o que o estremenho esperava dela, porque também se levantou da mesa e, entre as piscadelas de olho e as risotas dos comensais, seguiu-o sem dizer palavra.

Vespucci, fechado nessa noite na sua modesta casa do bairro de Santa Maria, semicerra os olhos, sonha acordado, é a única coisa que lhe resta por agora, medita contrariado. Está doente. Recupera com esforço da viagem que acaba de fazer às índias. Desde o seu regresso padece das famosas quartas, violentos acessos de febre que vão e voltam, sem falta, de quatro em quatro dias. O médico não lhes dá importância. Como lhe duram pouco e não sofre de calafrios, recomenda-lhe somente descanso. Ao navegante, o parecer do médico, as febres e até a inquietude que despertam na sua amante, a fiel Maria Cerezo, trazem-no pouco inquieto. Também não é a saudade da sua nativa Florença o que motiva, desta vez, a sua vigília sonhadora. O que ele queria era fazer-se de novo ao mar. Recuperar essa vastidão de percepções antes que o ténue vestígio que delas ainda conservam os seus sentidos se desvaneça completamente. Por isso fecha os olhos, procurando ali, em imagens e sensações ainda frescas, o infalível remédio para os seus males. Vê-se a si mesmo partindo de madrugada para se meter pelo mar Oceano. Zarpa da Gomera, nas Ilhas Afortunadas, que alguns insistem em chamar Canárias, às quais chegou navegando ao longo do litoral africano. Passou vários dias aprovisionando-se neste último troço de terra conhecida antes de se lançar para a grande aventura: atravessar o Mar Tenebroso. Agora, sob o borbulhar das recordações, vê-se de novo sobre a coberta do barco, cheira pela última vez o familiar aroma do porto, esse aroma íntimo e caseiro que todos os portos do mundo partilham, enquanto ouve o ranger dos cabrestantes e observa o gotejar das âncoras ao emergir das águas. A brisa sopra de sotavento, as velas incham e a caravela inclina-se para a frente, firme a alavanca do leme, dando proa ao mar aberto. Alguns marinheiros surgem à vista, agitando as mãos ao alto, despedindo-se de quem deixam no cais. Outros, mais piedosos, entoam um Salve Regina Mater Misericordiosa. Do alto dos campanários os sinos tocam gravemente em sinal de adeus. A nau distancia-se, deixando uma esteira de espuma e prata entre os barcos ancorados nas proximidades. Outra caravela segue-a para se pôr de capa. O porto desliza por detrás da embarcação e não tardará em desaparecer nas suas costas. Algumas horas mais e desvanecer-se-ão também os tranquilizadores contornos da costa sem que, por isso, se desviem da rota mar adentro, para o poente, navegando através de um oceano na sua maior parte ainda desconhecido, tendo como única guia a bússola e os pálidos brilhos nocturnos da Estrela Polar.

Eles, pelo menos, podem partir com a certeza que, para além dessa imensidade oceânica, existem costas férteis onde ancorar para se reabastecerem de água e provisões. Quando o seu velho amigo e associado, Cristóvão Colombo, se lançou pela primeira vez à aventura nada disso se considerava como certo. Só a sua coragem, perícia e teimosia lhe permitiram realizar o milagre de alcançar a Especiaria navegando para ocidente.

Vespucci, esticado de costas na sua cama, passa a mão pela testa suada. Sente um calor gordurento e húmido que parece vir-lhe do cérebro. Estarão a voltar-lhe as quartas? Terão passado já os quatro dias de trégua? Submerge-se novamente no sonho e sente um golpe de brisa marítima a refrescar-lhe o semblante. Aprendeu a antecipar o rumo do vento por esse rápido roçar na face ainda antes que o atraiçoe o rolar das ondas ou o drapejar dos panos. Ali vão, a agulha aponta oeste quarta do sudoeste, o roteiro recomendado pelo próprio Almirante Colombo.

Já só há mar e céu e ninguém repousa a bordo. A tripulação é um formigueiro em constante movimento. Os que não estão em manobras sobem às gáveas e observam o horizonte, recolhem aparelhos, ajudam na estiva, arejam velas, limpam, esvaziam e filtram as águas ou ocupam-se do fogão.

Um grumete faz-se responsável do ininterrupto virar do relógio de areia que assinala a passagem do tempo. Vigia-o sem descanso, cantarolando em voz alta uma velha canção de marinheiros para que os seus companheiros saibam que não adormeceu, convencido de que no minúsculo discorrer dos grãos de pó está implícito o único horário da nau. Cada volta da ampulheta assinala meia hora. Ao cair a última partícula da oitava volta avisa com um grito o contramestre que, com sonora voz de comando, ordena que se renove a guarda. O guarda entoa:

Bendita la hora En que Dios nació Santa Maria que loparió San Juan que Io bautizó. La guardiã es tomada, La ampolleta muele, Buen viaje haremos Si Dios quiere.1

O florentino recorda aquele prolongado navegar durante o qual mais de uma vez viram terra. O mar Oceano usa e abusa dessas partidas cruéis a quem se atreve a atravessá-lo. Basta um pouco de bruma, uma nuvem pousada no horizonte ao fim da tarde, para que até o mais experimentado marinheiro imagine os contornos de uma ilha, o montanhoso perfil de um litoral. E a caravela encaminha-se para o descobrimento. Ultrapassa-o sem o ver. Passam as horas e já não se vê senão a desolada extensão das águas em frente deles. Então pensa-se que se é vítima de um feitiço, ou supõe-se que o mar engoliu a terra, se é que não era uma dessas ilhas encantadas que aparecem e desaparecem sobre a superfície das águas segundo a vontade dos seus magos governantes.

Finalmente, depois de vinte e quatro dias de viagem, divisam uma ilha que não se esfuma quando se aproximarem dela. As suas árvores e plantas exalam aromas desconhecidos, mas não se avista nem uma enseada, nem uma praia e a densa vegetação impede-os de se aproximarem para desembarcar. Apontam então rumo ao sul navegando ao longo da costa até dar com dois rios de água dulcíssima. Como ali também não encontram maneira de chegar a terra, decidem largar os botes e subir a corrente do mais largo dos dois. Assim, vinte homens bem armados e com provisões para quatro dias metem-se na torrente. Vespucci faz parte desse grupo. Recorda as diversas formas dos pássaros, as suas vistosas plumas de cores brilhantes, a harmonia dos seus cantos. O surpreendente esplendor dos papagaios. A variedade e a beleza das árvores que faz a todos pressentir a proximidade do Paraíso Terreno. Um paraíso esquivo e fugidio porque, depois de remar com toda a força durante dois dias com as suas noites, encontram as margens cobertas por uma vegetação tão espessa que ali também não é possível atracar.

Decidem que é perigoso e inútil aventurarem-se a ir mais longe

 

1 Bendita a hora / Em que Deus nasceu / Santa Maria que o pariu / São João que o baptizou. / A guarda está assegurada / A ampulheta labora / Boa viagem faremos / Se Deus quiser. (N. do T.)

 

O melhor é regressar aos barcos e retomar o caminho. Uma vez repletas as reservas de água, mesmo com a proa apontada para o meio-dia, deixam a ilha para trás e navegam durante muitos dias até se depararem com uma corrente marítima tão intensa que os impede de continuar em frente. Foram tanto para sul que, durante as noites, setentrião e Estrela Polar já não estão à vista e os seus olhos descobrem um firmamento diferente. Atravessámos a linha equinocial, pensou então o florentino emocionado, estamos no outro hemisfério da Terra.

Vespucci dá voltas na cama e depois fica durante uns instantes imóvel, a cabeça afundada na almofada, o corpo tenso. Recorda essa zona tórrida onde, segundo as palavras dos sábios, era impossível encontrar vida. Ptolomeu e a maior parte das escolas de cosmógrafos consideram que a terra habitada termina pela zona das Canárias e ele não tardará a desmenti-los, descobrindo uma imensidão de aldeias com gente de tez clara, respirando o ar mais são e puro que se pode imaginar. Sente vertigens, sofre de tonturas, não sabe se é devido à consequência das quartas ou pela recordação daqueles belíssimos sinais e figuras por ele nunca antes observados que iluminam o céu para além do Equador. Descobriu mais de vinte estrelas tão luminosas como Júpiter ou Vénus, mas não houve, por outro lado, Ursa Maior nem Menor que assinalassem aquele pólo, nem estrela fixa alguma que lhes indicasse o rumo.

Depois de encontrar aquela corrente marítima a fechar-lhes a passagem, põem proa para noroeste e, pouco tempo depois, descobrem várias ilhas onde podem, finalmente, saltar para terra e comunicar com os nativos por meio de sinais. Gente fugidia mas de disposição gentil e pele aleonada que não veste qualquer peça de roupa. Homens e mulheres andam tal qual foram lançados do ventre da sua mãe, mostrando com candura as suas vergonhas. Numas encontram tribos amistosas, noutras vêem-se obrigados a combater, levando sempre vantagem e fazendo grandes matanças já que os seus inimigos guerreiam despidos, com paus, arcos e flechas e nunca tinham visto antes um arcabuz ou tinham enfrentado uma espada surpreendendo-os, de forma dolorosa, o como e o quanto esta corta. Numa ocasião lutam dezasseis contra dois mil e conseguem desbaratá-los, matar muitos e roubar as suas posses. Noutra, pelo contrário, arremete-se-lhes tal multidão, lutando com tanto arrojo e lançando tal número de flechas que se sentem perdidos. Fogem já, voltando as costas para saltar para os botes quando um português que os acompanha os incita a dar a cara aos seus inimigos. Deus dar-lhes-á a vitória, afirma com fanática fé, pondo-se de joelhos e fazendo uma breve oração antes de se lançar sozinho contra os selvagens. Fá-lo com tal ferocidade e convicção que os seus companheiros sentem-se obrigados a seguir o seu exemplo. No fim, o Senhor Todo-Poderoso concede-lhes, de facto, a vitória, permitindo-lhes matar uns cento e cinquenta inimigos e incendiar-lhes cerca de duzentas casas. Depois voltam aos navios onde permanecem todo um mês a restabelecerem-se das suas lesões. Todos recuperam menos um, que morre por causa de uma ferida profunda no peito esquerdo.

Vespucci revolve-se, inquieto, ao reviver aquela morte única e abre os olhos para dar de caras com a fosca escuridão da alta madrugada. Parecia-lhe que ainda os tinha fechados. Sente-se incapaz de conciliar o sono. Sabe que nessa noite, como em tantas outras, já não poderá adormecer. Procura às apalpadelas a maneira de acender uma vela e fracassa nessa tentativa. Deixa-se cair exausto sobre a cama e fica uma vez mais à mercê das recordações.

Evoca, muito próxima daquela ilha onde travaram aquela batalha terrível, outra com uma imensa população que tinha as suas casas edificadas sobre o mar, com muita arte, como em Veneza. Os exploradores, maravilhados com a descoberta, decidiram ir a terra e visitar essas magníficas moradas, mas os nativos tentaram impedi-los. Quando sentiram os primeiros cortes das espadas, mudaram imediatamente de opinião e decidiram que seria mais conveniente dar-lhes passagem. Encontraram as casas repletas de pau-brasil e de finíssimo algodão que se apressaram a tirar-lhes antes de regressarem aos barcos.

Ele teria querido continuar as explorações, mas os restantes acusavam a fadiga de quase um ano no mar, e as caravelas metiam tanta água que somente com duas bombas conseguiam despejá-la. Então dirigiram a proa rumo a Hispaniola, a ilha onde tinha estabelecido o seu quartel-general o Almirante Cristóvão Colombo. Aí reabasteceram-se e repararam os navios. Antes de empreender o regresso a Espanha capturaram cerca de quinhentos escravos para financiar a viagem, sabendo de antemão que boa parte iria perecer pelo caminho mas que, quantos mais embarcassem, mais possibilidades teriam de chegar a bom porto.

Assim, teve que abandonar a partida. Em algum lugar remoto, que se escondia das suas ambições como uma arca do tesouro que, escondida, brincara com a cobiça alheia, ficou o canal que conduzia ao fabuloso porto de Quinsay, capital da província de Mangui, a mais rica de Catay, com os seus altos juncos ancorados na enseada e as inumeráveis naus de até seis mastros, vindas de todos os confins da Ásia, passando debaixo das pontes altas de pedra estendidas sobre o rio, para encher os seus porões de perfumes, sedas, ouro, pedras preciosas e quem sabe de quantas outras mercadorias prodigiosas.

Em Sevilha, apesar da beleza e magnificência das suas fortalezas mudéjares, da graça dos seus pátios e do primor dos seus jardins, havia outra coisa, para além da comida e dos dogmas da fé, à qual Cristobalillo sentia que era impossível acostumar-se: a imundície e a hediondez da cidade. O pajem taino tinha crescido ao ar livre, em contacto constante com a água e com o mar. Os piolhos e as pulgas, pequenos inimigos até então desconhecidos, punham-no louco. As apertadíssimas vielas sufocadas num cerco de casas sem varandas e com muito poucas janelas, à maneira mourisca, deprimiam-no ao impedi-lo de ver o horizonte à vontade. A isso acrescentava-se o constante movimento nas praças e nos mercados: a azáfama humana a que a cidade se tinha familiarizado desde há muito devido ao incessante tráfego de barcos a entrar e a sair dos seus ancoradouros. Há séculos que ali ancoravam as galés genovesas, trazendo ouro, trigo, especiarias e tecidos e abastecendo-se de azeite, vinho, lã, tinturas e peixe, no seu caminho para a Inglaterra ou a Flandres. Não obstante, tinha sido o estatuto recém-adquirido de ponto de partida do tráfego para as índias que agravara a afluência de uma desarrei-gada multidão de gente do mar, desde patrões de nau e oficiais até pilotos, marinheiros das gáveas, grumetes e outros tripulantes, para não falar de mercadores, funcionários, testas-de-ferro e emigrados atraídos pela possibilidade de enriquecerem sem esforço. Todos se amontoavam como podiam na urbe já de si sobrepovoada, fazendo proliferar a sujidade e os desperdícios, misturando a magnificência do passado muçulmano com o cristianíssimo esterco de todos os dias.

Também não contribuíam para a limpeza da vila os constantes transbordamentos do rio que, de qualquer forma, era também a fonte da sua prosperidade. O Wad al-Kebir, o rio grande dos mouros e o Guadalquivir dos cristãos, não só trazia para as suas portas as embarcações trazidas do outro lado do Mar Tenebroso, como também trazia consigo frequentes aluviões e inundações que, ao baixarem, deixavam em ambas as margens, e ruas adjacentes, um limo viscoso e nauseabundo do qual emanava um fétido vapor que ofendia o olfacto e contaminava o ambiente.

Assim, a soberba dos sumptuosos palácios, os passeios bordejados de ligeiríssimos arcos de estuque, os muros enfeitados com mosaicos brilhantes e coloridos e até o antigo minarete da alfama almóada que se deixou em pé para servir de orgulhoso campanário à igreja matriz, e a própria igreja, um templo de tal magnificência que levava já quase cem anos de construção e que aqueles que o idealizaram pretendiam, com isso, que os tomassem por loucos, contrastavam com as apertadas, imundas e pestilentas ruelas, para onde os vizinhos atiravam o lixo sem se preocuparem mais com isso, a tal ponto que as autoridades se viram na necessidade de traçar uma cruz sobre as ruas principais para ver se, pelo menos para não manchar o símbolo sacrossanto, os habitantes deixavam de despejar nelas os seus desperdícios.

Bartolomé não compreendia, nem tão-pouco partilhava mesmo nada, essa inclinação para a limpeza, tão peculiar no seu pajem e amigo. Esses costumes, para além de serem incómodos e pouco agradáveis, pareciam-lhe ser coisa de mouros ou de hereges, e nada tinham a ver com os hábitos que a educação pedia a todo o bom cristão. A própria rainha Isabel, murmurava-se, tinha levantado um precedente ao jurar que não mudaria de camisa até poder entrar em Granada, e Bartolomé estava seguro de que tinha cumprido rigorosamente a sua promessa, dando assim o exemplo a seguir por todos os seus vassalos.

Mas havia outra pessoa que, como o próprio Cristobalillo, não estava nada interessado em tomar sua majestade como modelo e recorria à água da vila para algo mais do que beber ou cozinhar: a criada Catalina, para quem o asseio e a limpeza eram também componentes indispensáveis de todos os dias. Ela extasiava-se com aquele límpido elemento, célebre pela sua pureza, que lhes chegava desde seis léguas de distância graças ao admirável aqueduto construído pelos mouros. A caraíba não se importava de se deslocar para tão longe para obter o precioso líquido e passava grande parte dos seus tempos livres a transportá-la em baldes desde a fonte mais próxima.

Era a isso que Catalina dedicava as suas tardes de ócio, para além de acompanhar Cristobalillo com Alonso e Bartolomé, quando aquele não trabalhava na tipografia e este último não tinha aulas no recinto da catedral. Diego Álvarez tinha pensado que a companhia do seu irmão e do seu culto amigo, secundados pelo pagem taino, não podia ser mais do que benéfica para a educação da escrava, para a sua aprendizagem do castelhano e podia, inclusive, servir-lhe de remédio ao seu mutismo, até então incurável. Por isso, não teve qualquer problema em permitir-lhe que saísse com eles quantas vezes a convidassem, sempre e quando, obviamente, essas saídas não interferissem com os mínimos afazeres domésticos que a criada desempenhava. Assim, a figura limpa e airosa de Catalina converteu-se, com frequência, para delícia de Alonso, mortificação de Bartolomé e trabalho de Cristobalillo, em mais um membro do grupo. No entanto, longe de aumentar com a sua chegada a jovialidade do clã de amigos, a índia converteu-se na imitação feminina do escravo taino, agravando com a sua presença o já de si descon-certante sigilo que vulgarmente envolvia o criado. Não se tratava desse laconismo ao expressar-se, ao que Bartolomé mal se acostumava, mas de outro menos verbal, mais orgânico, que o acompanhava como a sua própria sombra. Cristobalillo parecia deslizar por onde quer que andasse sem emitir o menor ruído, como se fosse um espectro. Era impossível perceber o rumor da sua presença ou detectar os passos dos seus pés nus sobre as lajes. Nem a agilidade dos seus movimentos, nem a sua respiração, nem qualquer outro ruído denunciavam as suas idas e vindas. A criada Catalina participava de alguma maneira dessa furtiva elasticidade e, quando estavam juntos, os dois moviam-se em absoluto silêncio, como um casal de jovens felinos na perseguição de uma presa invisível.

Alonso observava-os com uma mal disfarçada admiração. Sobretudo a mulher, cujo silêncio lhe parecia pleno de mistério e gravidade, e os seus movimentos um modelo de graça e de nobreza. Catalina soava-lhe a Carmesina, filha do imperador da Grécia, a belíssima protagonista de Tirante el Blanco com quem este acaba por se casar. Irritava-o a sua patente incapacidade de conversar com ela mas, pensava em jeito de consolo, os gestos enganam menos do que as palavras e os da escrava índia mostravam, de uma forma transparente, uma inusitada naturalidade, uma diáfana inocência, que o desarmava. Por isso, propôs-se instaurar entre os dois uma linguagem particular feita de olhares, de sinais, de gestos isolados que, ao desembocar em fugazes sorrisos de cumplicidade, ele via carregados de significações ocultas. Que lhe importava então que a criada mal balbuciasse o castelhano ou que tivesse crescido entre os habitantes para além do Mar Tenebroso, se estavam a encontrar a forma, ainda que rudimentar, é verdade, de se comunicarem sem falar? De qualquer forma, a ela não deveria estranhar-lhe muito a situação: Cris-tobalillo tinha-lhes contado que, entre os caraíbas, os homens não falavam a mesma linguagem que as suas mulheres. Entendiam-se, desde logo, mas elas utilizavam um idioma diferente para comunicarem entre si, enquanto os homens possuíam um próprio para conversar entre eles. Desde muito pequenos, os meninos aprendiam a linguagem das suas mães, mas poucos anos depois desprezavam-na para adoptar aquela outra que os ligava só aos homens da tribo. As coisas não eram assim tão diferentes em Sevilha, tinha filosofado Bartolomé ao ouvir tão curiosa notícia: muitos homens que conhecia queixavam-se de não poderem entender-se com as suas esposas apesar de partilharem o mesmo idioma.

Quanto a Cristobalillo, depois dos modos abruptos da caraíba durante aquele primeiro encontro na Taberna do Cão Vermelho, entre os dois tinha-se voltado a restabelecer o silêncio. Um silêncio cúmplice porque, na realidade, a linguagem falada era o que menos necessitavam para se entenderem. Ambos eram, um para o outro, o único laço de união com essas terras ao mesmo tempo tão próximas e distantes, onde a clemência do clima lhes serviu, um dia, de única roupa. Aquela região do mundo onde lhes era possível ir e vir como e quando lhes apetecesse, onde trabalhavam ou descansavam quando queriam, onde comiam quando tinham fome e bebiam quando tinham sede, onde caçavam ou pescavam o necessário para se alimentar, onde o supérfluo era olhado como coisa indigna de ser possuída e a ninguém interessava ser mais rico do que o vizinho. Um lugar, enfim, onde o ouro não era deus e cada família tinha o que lhe cabia por direito, íntimo, doméstico, peculiar, ligado à sua estirpe, aos seus antepassados e à reverência professada a Yucahuguamá, o supremo sustentador dos seres e das coisas. Só eles partilhavam a inextinguível sensação daquele mar tépido, turquesa e transparente, bagua, como lhe chamavam, onde mergulhavam para agarrar pela carapaça a Carey, a tartaruga, e deixar-se arrastar depois por ela até aos esconderijos submarinos de Atabey, a mãe das águas. Mais ninguém à sua volta conhecia a violenta beleza da deusa Guabancex de cujo sopro nasciam as tempestades, denominadas por eles como furacões, e o furioso bater horizontal de Boinayel, a chuva, contra as palmeiras, acompanhada pelo apregoar do trovão, Guataona, juntamente com a ruidosa respiração do vento entre os ramos e o rolar fragoso das ondas. Ela, da mesma maneira que ele, sabia escutar a brisa marítima prevenindo-os da proximidade da tormenta, da mesma maneira que as lagartixas os avisavam da proximidade das serpentes.

A índia tinha-lhe trazido sorte, afirmou Martin de Monroy, referindo-se a Catalina, ao anunciar aos seus compinchas que, finalmente, depois de tanta paciência, tanto empenho, tanta perseverança, tinha conseguido passagem na próxima expedição às índias. Isto aconteceu poucas semanas depois da anunciada invasão das amazonas e daquele primeiro contacto íntimo entre o pertinaz es-tremenho e a belíssima escrava caraíba. As esperadas arqueiras de um só seio não se tinham apresentado ao encontro e ninguém conseguia explicar o atraso. Os mais optimistas conservavam ainda uma ambígua ilusão, mas conforme passavam os dias a confiança geral diminuía a olhos vistos. Malogradas as expectativas de um lucro rápido, o preço da carne e do pão reduziram-se ao nível ordinário e as mulheres que tinham enviado os seus esposos para se refugiarem no campo começaram a chamá-los de volta ao lar. Para elas o perigo tinha passado. A vaidade masculina, um pouco ferida, fez com que se discutisse muito as razões de tamanho desaire. Disse-se que tudo tinha sido culpa do mau tempo que impediu as novéis navegantes a concluir a longa travessia. A invasão ter-se-ia proposto então para uma data ulterior. A intervenção de Cristoba-lillo já não parecia necessária. De todos os modos, o escravo taino continuava a ir à taberna para dar a costumada lição de castelhano à índia Catalina e pôde constatar a paulatina decepção dos assistentes. Numa tarde, os amigos tinham-se reunido como sempre para dizer disparates, beber e comer fiado, quando se apresentou, ao escurecer, o estremenho a dar-lhes a notícia da sua partida. Suas majestades mandavam um comendador, disse-lhes, don Francisco de Bobadilla, para investigar certas irregularidades denunciadas nas suas possessões no ultramar. A frota oficial compunha-se de várias caravelas bem armadas e dotadas, pelo que, nessa ocasião, o seu ofício, a experiência em feitos de armas e a fidelidade à coroa tinham sido, finalmente, levados em conta. Estava contente, e como é que não havia de estar, se a paga diária era de trinta maravedis e já lhe tinham adiantado o seu primeiro salário, repetia sem cessar, fazendo tilintar as moedas no bolso. O seu sorriso jubiloso contrastava com o rosto austero dos outros assistentes que não podiam expressar, como ele, nenhuma boa notícia que mitigasse o logro produzido pela ausência das amazonas. Essa reunião seria para ele uma espécie de despedida, disse-lhes, tentando adoptar finalmente uma expressão circunstancial pouco convincente, já que na manhã seguinte teria que partir com a esquadra incumbida de pôr ordem nos territórios governados por don Cristóvão Colombo, no outro lado do Mar Tenebroso. Sim, era definitivo, ele não tinha dúvidas a esse respeito: a criada caraíba tinha-lhe trazido sorte.

Zufiiga deu de repente uma palmada na testa, como se se lembrasse de qualquer coisa. Ele tinha melhorado de posição na casa de Medinaceli justamente depois de se meter pela primeira vez com a selvagem. Don Luís de Ia Cerda nomeou-o, então, mestre do seu barco principal. Naquele tempo não viu qualquer relação entre os dois acontecimentos. Nesse momento dava conta que Martin de Monroy tinha razão: deve ter sido por causa da índia.

Meu Deus, disse Almada, em todo o caso, para ele, deitar-se com ela era já bastante boa sorte. Não tinha conhecido outra fêmea, nem em Espanha nem em Portugal, com um cu tão prazenteiro. Quanto ao resto, as coisas não tinham mudado para ele. Ou talvez sim: podia considerar-se afortunado pelo facto de os reis resolverem em boa hora meter na ordem o maldito genovês. Bobadilla era um cavaleiro da ordem militar de Calatrava, homem carrancudo e enérgico, oxalá lhe desse finalmente o que ele merecia.

O estalajadeiro, por seu lado, reflectiu em voz alta que, se bem que fosse verdade que a índia produzia pouco e ainda não tinha pago com o seu trabalho o preço da sua compra, desde a sua chegada a taberna estava sempre repleta de clientes e os seus lucros tinham aumentado de uma maneira inesperada. Numerosos clientes iam até lá levados pela curiosidade de olhar de perto uma antiga canibal e outros, menos interessados em pretéritos mórbidos, pelo inofensivo deleite de repousar o olhar sobre uma fêmea garbosa que rondasse pelas suas mesas. Com efeito, podia dizer-se que graças a ela a fortuna chegava por fim à sua porta. Agora vinha-lhe à cabeça a ideia de que, bem vistas as coisas, a índia também lhe tinha trazido a ele boa sorte.

Seja como for, ao cabo de uns dias, e sem que ninguém explicasse como é que se se tinha propagado esta conversa, o rumor de que a índia Catalina era de boa estrela e que propiciava fortuna a quem dela se aproximasse espalhou-se com rapidez pela vizinhança de Triana, atravessou até à margem oposta do Guadalquivir e discutiu-se acaloradamente nos grupos de desocupados e intrometidos que tinham como único ofício estar sempre ao corrente dos assuntos alheios.

Nem todos eles, obviamente, aceitaram a história sem desconfiar da sua veracidade. Como é que podia trazer sorte a alguém o facto de estar junto de uma escrava notoriamente incapaz de servir com mediana qualidade a já de si tosca clientela do Cão Vermelho? Como esperar alguma coisa de bom de uma índia ignorante que não tinha aprendido a falar, muito menos a ler ou a escrever em castelhano, que não calculava o tempo de acordo com as semanas e dias, mas sim segundo as fases da Lua e que não contava quantias superiores ao número de dedos das suas mãos e pés? Como aceitar virtudes numa criada sem fé que se esquivava à convivência dos cristãos, aceitando tão-só a desprezável companhia de um índio tai-no, quase tão grosseiro e inculto como ela, a quem, além do mais, raras vezes dirigia a palavra? E isso numa linguagem obscura e dissonante mais própria dos pássaros e das bestas do que de uma supostamente honrada habitante de Sevilha.

Apesar destas censuras, cépticos e detractores formavam, para o bem e para o mal, uma isolada minoria, já que Diego Álvares começou a ter dificuldade em manter na linha a clientela que marcava encontro na agora chamada Taberna da índia, ficando a divisa de Cão Vermelho definitivamente relegada para o esquecimento, para admirar de perto a prodigiosa criatura que consigo havia trazido, desde o mais além das brumas do Mar Tenebroso, o notável dom de proporcionar ventura a quem tivesse prazer com ela. Ao vê-la, os curiosos concordavam com Almada que bem se poderia considerar agraciado todo aquele a quem uma fêmea tão bela consentisse em dispensar algum favor. Todos procuravam aproximar-se dela e, pelo menos, roçar-se nela, já que possuí-la ficava fora do alcance da maioria porque o estalajadeiro velava com áspera solicitude a sua cobiçada pertença, proclamando a honorabilidade da sua taberna e, repetindo sem cessar, que quem procurasse negócios com putas deveria fazê-lo no Lugar da Mancebia, longe da bem acreditada honradez do seu negócio. Os mais ricos, ousados, menos dispostos a deixarem-se enganar pelos protestos do estalajadeiro, ou que desejavam deitar-se com a índia sem procurar demasiadas complicações nem perder tempo, dirigiam-se em privado ao próprio Diego Álvarez, fazendo soar-lhe os reais nos seus bolsos e dando a entender às claras que estavam dispostos a pagar pelo singular privilégio de copular com uma antiga comedora de crianças para assim atrair a sorte. Para o diabo, clamavam por sua vez os paroquianos da contígua igreja de Santa Ana, para quem esse prazer era já um imperdoável pecado em si mesmo, sem contar que era cometido com um ser nefando cuja alma, condenada desde antes pela sua primitiva condição de canibal, só poderia contaminar a quem ousasse juntar-se com ela. Não proporcionava um benefício, mas sim um malefício, alegavam. Era o demónio, através dela, quem fazia o negócio ao adquirir, a troco de umas quantas migalhas de suspeita boa sorte neste mundo, a eterna ruína das almas no outro.

O taberneiro tentava apaziguar os ânimos, manter o assunto reservado ou fazer-se desentendido de modo a evitar que a sua mal requerida celebridade chegasse aos ouvidos das autoridades encarregues de velar pelo bem-estar dos cativos trazidos das índias ou, pior ainda, que a querela sobre a boa ou a má sorte e o pacto com Deus ou com o Diabo chegasse aos temíveis ouvidos da Santa Inquisição e fosse levada a sério. Não era por acaso que a sombria fortaleza de São Jorge se encontrava nas imediações, apenas do outro lado da Praça de Altozano. Essa cautela não o impedia, desde logo, de aceitar os dinheiros dos mais poderosos ou influentes e, com toda a discrição e prudência do caso, fazê-los subir ao sótão da Pousada da índia, onde a caraíba esperava submissa quem lhe fosse enviado para lhe conceder uma imediata, se não uma outra possível e vindoura, ração de bem-aventurança.

Numa daquelas tardes, em que juntamente com Alonso e Bar-tolomé tinha saído para passear por Sevilha, Cristobalillo pôde apreciar, pela primeira vez, o conjunto de antigas fortalezas construídas pelas distintas dinastias de monarcas muçulmanos que regeram a cidade antes da sua capitulação perante as forças de Fernando III, o Santo, no ano da graça de 1248. Dentro desse mesmo recinto, cerca de um século depois, o rei D. Pedro, chamado por uns o Cruel e por outros o Justiceiro, porque cada um vê mal ou bem conforme os olhos que tem, tinha edificado também um esplêndido palácio, disse Alonso ao mostrar-lho.

O pai de Bartolomé tinha que cumprir certas diligências burocráticas ante as autoridades civis cujos gabinetes de atendimento se situavam num desses belíssimos imóveis e sugeriu aos jovens que o acompanhassem. Desse modo, o pajem índio podia admirar a magnificência dos edifícios, disse-lhes. Enquanto Pedro de Ias Casas tratava dos seus assuntos, os jovens ficaram a passear pelos pátios. Alonso e Bartolomé observavam de soslaio, e com secreta complacência, o rosto de Cristobalillo, atónito perante o esplendor dos mármores, a elegância dos azulejos, a graça e a delicadeza dos ges-sos e toda a sumptuosa policromia da arte islâmica. Os dois sorriram ao aperceberem-se como lhe chamavam particularmente a atenção os numerosos e pequenos canais por onde corriam abundantes fios de água entre pátios e habitações. O que não puderam entender foi que estes constituíram para o pajem índio, de imediato, o motivo que o levou a diferenciar essa morada das outras que conhecia em Sevilha, onde se apreciava bastante menos o líquido primordial. Quem teria podido construir aquelas casas? E habitá-las?, pensava, incomodado. Outros seres anteriores a estes que conhecia, talvez, inclusive, mais poderosos e sofisticados? E quem seriam os seus cernis} Seriam eles próprios semelhantes a deuses?

Um velho de barba grisalha e com aspecto bondoso que se entretinha a observar a majestosa porta de acesso à fortaleza do rei D. Pedro, em cujos azulejos se destaca uma caligrafia árabe com a divisa "Wa Ia galib illa llah", não há outro vencedor que não seja Deus, fez um gesto cortês ao vê-los passar. Alonso levantou uma mão em sinal de reconhecimento e o homem, depois de uns instantes de vacilação, aproximou-se do lugar onde se encontravam. É Ahmed, o sábio mouro encarregue de corrigir provas na tipografia de Melchor Goricio, explicou Alonso aos seus companheiros ao vê-lo aproximar-se.

O recém-chegado cumprimentou-os com duas inclinações de cabeça, a segunda dirigida especialmente ao jovem taino, cujas reacções seguia com evidente curiosidade. Tinha ido visitar os vestígios dos seus antepassados, explicou o homem como se estivesse a desculpar-se, ou como se Alonso ou Bartolomé pudessem, de algum modo, questionar a legitimidade da sua presença ali. Gostava de passear de vez em quando por entre essas velhas paredes, acrescentou, apontando à sua volta, o lugar trazia-lhe, viva, a recordação da sua Granada nativa. Voltou-se para Cristobalillo, perguntando-lhe se tinha estado alguma vez naquela cidade e se Deus lhe tinha concedido o privilégio de pôr os pés em Alhambra. O índio moveu a cabeça, confuso, sem compreender a que se referia o seu interlocutor. Bartolomé negou em seu lugar. Não, desde que chegara das ilhas, que ficam para além do Mar Tenebroso, nem ele nem o seu pajem tinham tido a oportunidade de sair de Sevilha. Alhambra, explicou Ahmed, dirigindo-se de novo a Cristobalillo com um sorriso no qual não havia sombra de ostentação, era com toda a certeza o palácio mais belo que jamais se erguera sobre a Terra. Ainda que ele, obviamente, fosse incapaz de opinar sobre os construídos no Oriente, uma vez que não os conhecia, acrescentou depois de uns momentos de reflexão. Estava informado de que os havia, e magníficos. Em Catay, na índia, em Cipango. Talvez Cristobalillo pudesse contar-lhes alguma coisa sobre eles. O escravo continuou em silêncio, como se não percebesse a pergunta, mas pôs-se a examinar, por sua vez, o ancião, que tinha começado a andar ao seu lado, esperando uma resposta. Nos olhos do índio reflectia-se agora a própria curiosidade com a qual ele era observado. Tinha conseguido obscuramente discernir que aquele ancião estava de algum modo aparentado com os autores das maravilhas que o rodeavam e com os cernis que as regiam.

Diz-se que as telhas dos seus tectos são de ouro puro e as portas e janelas de jade, com as ombreiras cobertas de pedras preciosas, interveio por sua vez Bartolomé, desculpando-se pelo persistente mutismo do seu criado. Cristobalillo tinha-o acostumado a essa teimosa reserva, sobretudo quando vinha à baila o assunto dos tesouros, dos palácios e das cortes dos reinos do ultramar.

Como se chama o rapaz?, perguntou Ahmed sem o perder de vista. A conversa tinha-os aproximado dos jardins do alcácer e os três surpreenderam-se ao ver o pajem índio inspirar a plenos pulmões, extasiado, o perfume, para ele tão novo, de laranjeiras e limoeiros. Cristobalillo, respondeu Bartolomé, assim o tinha baptizado em honra do Almirante Cristóvão Colombo. Almirante, suspirou Ahmed pensativo, é um belo título árabe que significa Senhor do Mar.

Alonso fez, por sua vez, uma tentativa para desculpar o silêncio do seu amigo índio. Era importante compreender que vinha do outro extremo do mundo, explicou, onde os hábitos deveriam ser muito diferentes dos de estas terras. As pessoas eram, com toda a evidência, menos comunicativas. Ahmed disse-lhe que não se preocupasse. Que o entendia muito bem. Ele também não era originário de Sevilha e, de certa maneira, os costumes pareciam-lhe tão alheios como a Cristobalillo. Tinha saído de Granada uns anos antes, ao cair a cidadela em poder de suas majestades católicas. Toda a corte muçulmana, encabeçada pelo seu senhor, Boabdil, viu-se obrigada a abandonar os domínios que são agora pertença dos reis cristãos. A maior parte da nobreza granadina foi parar a África, onde o sultão de Fez lhes concedeu, para se instalarem, as ruínas de Tetuan, uma cidade devastada cinquenta anos antes pela armada portuguesa. Ele estava muito velho para empreender a viagem. Pareceu-lhe impossível reiniciar a sua vida noutro continente. E verdade que era dali que os seus antepassados tinham chegado séculos antes, mas para ele não deixava de ser uma região estranha e inóspita, muito diferente da fértil várzea onde tinha passado a sua infância. Decidiu ficar-se pela península, mas a situação dos vencidos tinha-se deteriorado com rapidez na cidade recém-conquistada e as disposições reais tinham sido muito prontamente convertidas em letra morta. Transgredindo as ordens dos reis que, na sua magnificência, tinham permitido aos habitantes conservar a sua religião e os seus costumes, os sacerdotes forçavam os muçulmanos a receber o baptismo e lançavam raivosamente fogo aos seus exemplares do Corão com a complacência, e frequentemente, a cumplicidade das autoridades civis. Uns e outros confessavam ser incapazes de suportar mais os costumes e as vestimentas dos mouros, e irritavam-lhes sobremaneira os frequentes chamamentos do almuadem para a oração. Por isso decidiu procurar refúgio noutro lado. Num lugar onde os rancores da guerra não fossem tão recentes e o ódio mostrasse uma fisionomia menos perversa. De qualquer modo, estava convencido de que, mais tarde ou mais cedo, era tudo uma questão de tempo, a sua raça padeceria da mesma sorte do povo judeu, expulso já dos reinos de Castela e de Aragão pelos seus soberanos sem quaisquer outras considerações.

Cristobalillo entendia mais ou menos aquela história que Alon-so e Bartolomé seguiam com o rosto arrebatado e os ouvidos atentos. Este último conhecia perfeitamente o ponto de vista cristão, uma vez que o seu tio, don Francisco de Penalosa, se tinha distinguido pelo seu arrojo e coragem durante a tomada de Granada. Alonso, por seu lado, tinha um verdadeiro afecto por Ahmed e esse apreço impedia-o de compreender, e muito menos partilhar, a raiva com que eram perseguidos os da sua raça e religião. Não concebia que no reino de Inglaterra, por exemplo, segundo constava no livro de Tirante el Blanco, se tivesse proclamado uma lei para que todo o mouro que se encontrasse no interior do país, fosse qual fosse o seu negócio, fosse morto imediatamente e sem qualquer perdão.

Foi assim que chegou a Sevilha, Ahmed finalizou a sua história: no momento em que a cidade ganhava um novo auge como principal porto de embarque na rota para as índias. Uma experiência que lhe pareceu, desde o primeiro momento, apaixonante. Na sua opinião, ninguém tinha esclarecido ainda certos pontos obscuros desses recentes contactos entre a Europa e a Ásia. Por isso, o jovem criado, como genuíno habitante daquelas longínquas paragens, intrigava-o sobremaneira. Teria gostado de conversar mais com ele, era uma pena que fosse tão reservado. Se a tal se propusesse, aquele jovem escravo índio teria uma infinidade de coisas para lhes contar. Talvez os descobridores tenham invadido a sua aldeia com a mesma disposição que mostraram nas guerras contra os mouros, seus antigos correligionários: baptizando com o fio de espada e construindo fortes paliçadas para se protegerem daqueles a quem deviam mostrar amor, justiça e fé. Que opinião teria o jovem índio de tudo aquilo? Não lhe pareceria talvez melhor que se enviassem para as índias camponeses em vez de soldados? Não se entenderia melhor a sua gente com aqueles que trabalham a terra em vez de erguerem a cruz ou brandirem a lança? E o que poderia dizer-lhes sobre o seu pensamento, a sua filosofia, as suas crenças? O que pensava, por exemplo, da cidade, que tão à sua vontade se encontrava nela, sendo tão diferente de todas as outras que tinha conhecido? E dos seus habitantes? Que opinião teria forjado sobre eles? Acreditava num só Deus como os cristãos e os muçulmanos? Ou adorava uma multidão de seres impalpáveis que de algum modo tutelavam a sua vida?

Via-se a léguas que a índia gostava dele, cochichou Diego Álvarez numa manhã em que a clientela era escassa e ele e Alonso estavam sentados em frente de uma bancada da cozinha, preparados para partilhar um frugal pequeno-almoço que os ajudasse a suportar melhor o esforço dos afazeres quotidianos. Tinha observado como a olhava, insistiu o estalajadeiro no mesmo tom de confidência, adoptando a quase paternal atitude de irmão mais velho disposto a socorrer o mais novo com um conselho. Imaginava-o sem experiência em certos aspectos da vida, acrescentou, dando a primeira dentada num pedaço de pão que uma criada lhes tinha servido. Quem melhor, então, que Catalina para o ensinar? Iniciar-se em determinados prazeres pela mão de uma fêmea como a índia era uma sorte a que nem todos podiam aspirar. Ela era limpa, belíssima, jovem, bem constituída e talvez não o olhasse com maus olhos. O que esperava, então? Quando o via caminhar a seu lado, admirando-a sem ousar aproximar-se dela, recordava-lhe os asnos da Síria que carregam ouro e comem palha. Porque é que não tentava ficar a sós com ela, num qualquer recanto escuro, para ver o que é que se passava? Ele não necessitava de qualquer autorização para subir até ao sótão se lhe desse na real gana. Era coisa de fechar a porta por dentro e que ninguém os incomodasse. Já estava mais que provado que o convívio com ela podia resultar em algo proveitoso para ele, talvez até bastante lucrativo, e ele sempre veria com bons olhos qualquer coisa que propiciasse a prosperidade do seu irmão mais novo.

Como é que lhe passava pela cabeça sugerir tamanha falta de vergonha, interrompeu Alonso, pondo de lado o pequeno-almoço. Sentia-se surpreendido e indignado pelas propostas do estalajadeiro. Meter-se sem autorização no quarto de uma dama não era coisa de cavalheiros, ainda que era bem verdade que Tirante el Blanco o tivesse feito no aposento da princesa Carmesina. Mais de uma vez e de que maneira, recordou de repente, mudando de assunto, porque seria melhor não se aprofundar em pormenores que comprometessem as suas leituras e o alto conceito que desejava que os outros forjassem do seu herói. Por outro lado, o que é que significava que o seu contacto fosse proveitoso?, continuou em voz alta, já se tinha percebido da chocante notoriedade que Catalina gozava na vizinhança. Quando os acompanhava nos seus passeios, todos se voltavam para olhar para ela e até havia quem a apontasse com o dedo, aproximando os lábios ao ouvido do vizinho para murmurar alguma frase que, infelizmente, ele nunca conseguia ouvir, por muito que prestasse atenção. Não faltou sequer um impertinente que, sem o conhecer, se aproximou dele para o interrogar sobre os supostos benefícios que lhe teria trazido a índia. Respondeu-lhe que nenhum outro senão o prazer da sua companhia, mas a coisa já durava há muito tempo e era para ele urgente compreender de que assunto se tratava.

Rumores, respondeu Diego, baixando de novo a voz e evitando a chuva de perguntas, ao mesmo tempo que esvaziava um copo de xerez previamente enriquecido com um ovo fresco. Falatórios de pessoas que tinham... convivido... de muito perto... com a selvagem... Enfim, não era sua intenção ofendê-lo, pensou que estivesse mais informado sobre determinadas questões difíceis de explicar logo de manhãzinha. Tratariam disso noutra ocasião, mais tarde, quando estivesse um pouco mais sereno. É melhor deixar, por agora, as coisas como estavam.

Alonso abanou a cabeça desencantado. Se era bem verdade que não tinha experiência numa ou noutra matéria, asseverou, era para isso que existiam os livros e ele passava a vida a ler. Sobretudo o de Tirante el Blanco, onde se podiam encontrar as respostas a todas as questões do mundo. O amor, Deus, a religião, a vida, a honra, a concupiscência e a morte, com todas as suas ambiguidades e subtilezas, estavam consignados nas suas páginas. Ali se tratavam também, com toda a naturalidade, os assuntos mais espinhosos. Por isso mesmo surpreendia-o e recusava-se a crer em qualquer insídia que ofendesse a honra de uma nobre princesa índia caída em desgraça. Ele via frequentemente Catalina e, para além de Bartolomé e Cris-tobalillo, não lhe conhecia outros amigos. Quem mais poderia ter-se aproximado dela? Encontrar-se-ia enamorada de alguém que ele não conhecia?

Não eram questões de amor, nem tinham nada a ver com os seus romances de cavaleiros andantes, respondeu Diego, cruzando os braços sobre a mesa, mas antes com o facto de viver a vida fora dos livros, tal como ela se apresentava na realidade, coisa que a ele lhe fazia bastante falta. Tratava-se de desfrutar o pouco que a existência lhe oferecia de agradável e muito melhor seria se, além disso, pudesse obter com isso algum lucro. Independentemente de quem tivesse tratos com a índia, porque entre beleza e castidade há contrariedade, já diz o provérbio, a ele constava-lhe que os ditos tinham muito de verdade. Tinha-o comprovado e voltado a comprovar. A ele próprio o negócio tinha-lhe melhorado desde que ela vivia debaixo do seu tecto. Agora, mais do que nunca, devido a tanto rumor que corria, não tinha mãos a medir para atender tanta clientela. Não tinha sido por acaso que as pessoas tinham rebaptizado a tasca, chamando-lhe, com inquestionável acerto, a Taberna da índia. Mas, voltando ao assunto inicial, já era hora de que a ele lhe saíssem melhor as coisas. Muda a idade e muda a ventura, reza assim outro refrão, e ele queria vê-lo prosperar na vida, da mesma maneira que esse estrangeiro de apelido Cromberger, que tinha chegado a Sevilha sem um adarme no bolso, como ajudante do impressor flamengo Meinardo Ungut, e se estava agora a casar com a sua jovem, bela e rica viúva. E se não lhe bastasse herdar metade do negócio do seu defunto patrão, abriria outro, pois para isso sobrava dinheiro à sua nova mulher. Conhecia de sobra a fidelidade que ao seu irmão inspirava don Melchor Goricio, que o tinha educado e a quem, tinha a certeza, admirava como um pai, mas ele não gostaria também de ter a sua própria tipografia? Então, adiante. Se Comincia de Blanquis, a viúva de Ungut, ficava fora do seu alcance, ali estava a escrava índia. Talvez, a longo prazo, o resultado fosse o mesmo.

Alonso saiu da taberna confuso e contrariado por tudo o que acabava de ouvir. Nas retorcidas propostas de Diego pressentia uma malévola segunda intenção que mal se atrevia a vislumbrar. Também era verdade que gostava da índia, mas até então nunca tinha encarado o assunto de maneira tão franca e contundente. Ela nada lhe tinha insinuado. Também não tinha admitido nada a si mesmo, para além de fantasiar com a sua intocável presença em certas tórridas noites de abandono, sobre o frio e coçado enxergão da tipografia. Mas tinha-se passado a mesma coisa com o príncipe Filipe, o filho mais novo do rei de França, incapaz de manifestar a sua paixão pela infanta Ricomana, filha do rei da Sicília. Nem sequer com Tirante el Blanco segurando-a pelas mãos, no leito, para que o seu amigo, desfrutando de todas as vantagens, obtivesse o bem desejado, soube o melindroso cavaleiro remediar os seus males. Estaria ele destinado a ter a mesma sorte? Precisaria, também ele, outro Tirante el Blanco, de agarrar a índia Catalina pelos punhos para que assim se pudessem transformar em realidade os seus mais ardentes desejos?

Vespucci dobra o papel sobre o qual acaba de colocar a sua assinatura e lacra-o. É uma premente carta dirigida a Lorenzo de Médicis, o Popolano, com uma fidedigna relação da viagem recentemente realizada às índias e com os pormenores das suas descobertas. É indispensável fazer chegar quanto antes esse correio a Florença porque se lhe torna urgente fazer-se de novo ao mar e retomar as suas explorações. Já está em negociações com Juan de Ia Cosa para fretar algumas naus com intenção de atravessar outra vez o mar Oceano, e propôs-se encontrar um mecenas poderoso que o ajude a financiar tal projecto.

Lorenzo de Médicis é uma excelente possibilidade. Sempre se mostrou generoso para com ele e possui o talento e a cultura suficientes para apreciar os seus achados e interessar-se até pelas mais subtis medições astronómicas que se empenhou em realizar durante a travessia. Sobretudo as feitas no outro lado da linha equinocial, onde nenhum outro cosmógrafo antes dele tinha posto os olhos. Na missiva há uma relação pormenorizada das horas sem luz que passou a explorar aquela novíssima abóbada celeste, tentando orientar-se entre constelações que nunca tinha visto, procurando um astro imóvel que lhe servisse de guia, o equivalente à Estrela Polar no outro hemisfério da Terra. No entanto, e apesar da sua tenacidade, o florentino fracassou no seu propósito. Todas aquelas luminárias foram-se indo uma a uma, negando-se a permanecer quietas no céu, seguindo extensas órbitas que as tornavam inúteis para as suas medições ao privá-las da imobilidade desejada. De repente vieram -lhe à mente uns versos de Dante:

Io me volsi a man destra, e puosi mente AU' altro polo, e vidi quattro stelle Non vista maifuor ch'allaprima gente.

Com efeito, lá no alto, sobre esse outro pólo, talvez nunca antes observado por nenhum da sua raça, brilhavam quatro luzeiros em forma de amêndoa nos quais percebeu um movimento limitado. Eles poderiam servir de referência para situar rumo e posição nesse lado do mundo. De onde é que tinha o poeta obtido semelhante informação? Tratava-se da confidência de um atento marinheiro, um pioneiro como ele, que tivesse realizado as observações por si mesmo? Seria um caso extraordinário de premonição literária? Não era por acaso que o seu amigo Cristóvão Colombo citava frequentemente Dante e elevava as suas considerações sobre a esfe-ricidade da Terra ao nível das de Ptolomeu. Seriam ambos vítimas do seu grande apreço pela Divina Comédia} Infelizmente foi-lhe impossível averiguá-lo. Faltou-lhe tempo. Não pôde permanecer abaixo da linha do Equador o tempo suficiente para ratificar os seus cálculos.

Para além das considerações cosmográficas houve que acrescentar certos episódios menos abstractos para contribuir, pelo menos com um sorriso, para o interesse do duque e, com isso, convencê-lo, talvez, da bondade de financiar uma nova viagem. A sua senhoria encantar-lhe-á saber, por exemplo, que entre as ilhas visitadas percorreram uma que seria certamente muito difícil esquecer. Ao saltar para a praia descobriram sobre a areia húmida pegadas humanas gigantescas. Penetraram com cautela por um apertado caminho que os conduzia terra adentro e, ao fim de duas léguas e meia, chegaram a um casario afastado, constituído por uma dezena de choças em forma de sino, no qual se encontrava um grupo de mulheres de tão grande estatura que tinham, pelo menos, um palmo e meio a mais do que ele. Preparavam-se para raptar duas adolescentes de quinze anos para oferecê-las aos reis, quando chegaram os homens da aldeia. Cada um dos recém-chegados era, de joelhos, maior do que qualquer cristão de pé. Tinham arcos, flechas e maças pelo que decidiram manter-se tranquilos e mostrar-lhes por sinais que eram gente pacífica, sem más intenções, que não faziam nada mais do que passar por ali, vendo o mundo. Depois de uns momentos de tensão que a todos pareceram eternos, conseguiram retirar-se discretamente pelo mesmo caminho por onde tinham vindo.

Fez também alusão na carta à riqueza das novas terras e à fortuna que se podia encontrar nelas. Acrescentou um breve inventário do que tinha trazido da sua última viagem para despertar a ambição do Popolano. Encontraram muitas pérolas e ouro nativo em grão, pedras preciosas sem serem lavradas, uma esmeralda e uma ametista duríssimas, de um palmo de comprimento e da grossura de três dedos, que foram parar às mãos de suas católicas majestades juntamente com outras catorze pérolas encarnadas que agradaram muito à rainha. Não tinham trazido grandes quantidades porque não pararam em nenhum lugar, dizia-lhe, pois tinham navegado continuamente. O que mais puderam embarcar foram escravos. Mas dos quase quinhentos que traziam apenas duzentos chegaram com vida ao mercado de Cádiz.

Na missiva mencionou também, de passagem, certos dados que o têm atormentado desde o seu regresso. O ter navegado, por exemplo, quatrocentas léguas ao longo de uma costa sem lhe encontrar um fim. Isto fê-lo concluir que não se encontrava defronte de uma ilha, mas sim a bordejar o litoral de um continente nos confins da Ásia. Ali observou uma serpente que tinha oito braças de comprimento e tão grossa como a cintura de um homem, para além de diversos animais como leões, cervos, corças, porcos selvagens, coelhos e outros animais terrestres, daqueles que só se encontram em terra firme. De acordo com os seus cálculos e medições devia ter chegado muito próximo da ilha da Taprobana, entre a desembocadura do Ganges e o oceano Índico. No entanto, preocupava-o o facto de ter navegado tanto para sul ao longo da costa sem encontrar a esperada passagem que o conduziria às ansiadas margens da índia e da China. Onde é que tinha chegado na realidade? Pertenceria verdadeiramente à Ásia essa enorme massa de terra que não pôde ou soube contornar? Uma Ásia sem elefantes, sem seda nem especiarias conhecidas, habitada por aqueles índios bronzeados e cuja pele nada tinha do amarelo que era suposto encontrar nos asiáticos. Se não era assim, se não se tratava das regiões percorridas por Marco Polo, em que estranha região do mundo se encontrava?

 

O LUGAR DA MANCEBIA

"O que é que temos desta vida miserável senão o tempo em que vivemos?"

Arenga de Tirante el Blanco

A notícia circulava de boca em boca na surpreendida Sevilha, em finais de Outubro. O Almirante do mar Oceano, don Cristóvão Colombo, tinha regressado do seu vice-reinado nas índias não ao comando da caravela que o trazia de volta, La Gorda, mas sim agrilhoado no fundo do porão, "despido de corpo, muito mal tratado, sem ser chamado nem vencido pela justiça", segundo se lamentava pesaroso o próprio genovês. Ordem de suas católicas majestades, que tinha sido cumprida ccom grande zelo pelo seu enviado especial à Hispaniola, don Francisco de Bobadilla. Dizia-se que o capitão da nau se ofereceu a Colombo para despojá-lo das suas grilhetas mal estivesse a bordo, mas este recusou-se com comedida dignidade. Ia acorrentado por ordem dos reis, respondeu, e só eles é que poderiam libertá-lo. Toda a gente se benzia ao comentar o acontecimento. Que um homem da estirpe de don Cristóvão Colombo se encontrasse em semelhantes apertos depois de ter navegado, segundo constava, tão próximo do Paraíso Terreno demonstrava, uma vez mais, quão vãs e passageiras são as glórias deste mundo. Tinham-no desembarcado em Cádiz e trazido à garupa de um cavalo para Sevilha, para o mosteiro cartuxo de Las Cuevas, onde o seu amigo, frei Gaspar Goricio, o acolheu com a lealdade e o afecto de sempre. Dizia-se, no entanto, que o orgulhoso Almirante continuava cheio de correntes, negando-se que lhas tirassem enquanto não se tornasse pública a vontade dos reis. Outros, pelo contrário, asseguravam que não era assim: se continuava manietado era porque o consideravam criminoso. Como prova disso, sublinhavam que tinha um guarda permanente junto dele e que D. Fernando e dona Isabel, distraídos em Granada devido a assuntos que consideravam de maior importância, não se dignavam a responder às suas demandas.

Bartolomé não dava crédito ao que se passava à sua volta. Era impossível comparar esse humilhante retorno com aquela triunfal aparição em Sevilha sete anos antes, no Domingo de Ramos de 1493. Nessa tão distante ocasião, o conquistador do Mar Tenebroso tinha sido recebido como um herói de outros tempos. Assim deve ter sido recebido na Grécia Antiga o próprio Alexandre ao regressar da sua campanha, pensou Bartolomé, admirador incondicional deste ilustre macedónio. As lojas fecharam para que pudessem ir aos festejos e os sinos acompanharam com o seu dobrar ensurdecedor a agitação da entusiasmada multidão que se amontoava para ver passar o audaz navegador e a variedade nunca vista de prodígios que trazia consigo. Ele, o novo Almirante do mar Oceano, consciente da sua recém-adquirida importância e da solenidade do momento, deteve-se uns momentos a posar para o povo que se apinhava à sua volta. Uma imagem que Bartolomé jamais esqueceria: Cristóvão Colombo de pé sob o Arco das Imagens de San Nicolás, o rosto ao alto, o olhar em frente, escoltado por uma comitiva de sete índios armados, únicos sobreviventes da azarenta travessia, vestindo esplêndidos trajes de cerimónia e máscaras com incrustações de concha nácar e ouro. Depois, um pouco mais tarde, no regresso da sua segunda viagem, o Almirante regressaria a Sevilha vestido de frade Franciscano, mas naquela primeira ocasião nada faltou para o considerarem magnífico. A sua atitude e o seu cortejo faziam parte de outros vários e inequívocos sinais de triunfo. Um triunfo ainda mais resplandecente pelo colorido dos papagaios, pelos ornamentos de ouro e pedrarias, pelos cintos feitos de ossos de peixe. A Bartolomé tinha-lhe chamado a atenção o quanto os índios eram bem proporcionados e quão longas eram as suas cabeleiras: à frente chegavam abaixo das sobrancelhas e, nas costas, iam mais além da cintura. Até parecia que nunca as tinham cortado.

Agora as coisas tinham mudado, e Cristóvão Colombo encontrava-se prisioneiro na mesma cidade que noutras ocasiões testemunhara o seu percurso desde a sua enaltecida grandeza até aos seus humildes passos franciscanos. Bartolomé hesitava em atribuir o cativeiro, que ele considerava injusto, do amigo que seu pai tanto admirava a essas cobiçosas majestades cuja avareza era proverbial, ainda que algumas vozes, menos respeitosas que a sua, se atrevessem já a murmurá-lo em voz muito baixa. O verdadeiro mal-estar, diziam, não se encontrava na intranquilidade nem nos distúrbios que era sabido alastrarem pelas colónias do ultramar, mas sim no próprio descontentamento dos reis, que já não se conformavam com vagas promessas de lucro. Endividados pelas campanhas de Itália e pelos dispendiosos casamentos de suas filhas Joana e Isabel, estavam fartos de aguardar por um proveito que de nenhum modo viam materializar-se. Onde estavam os carregamentos de ouro, sedas, pedras preciosas, jóias e perfumes? Onde estavam a canela, a pimenta, o cravinho e a noz-moscada que deviam abarrotar os porões dos seus barcos? Tinham posto a sua esperança na indubitável prosperidade que lhes traria negociar com as riquezas do Oriente e as suas arcas continuavam vazias. Os lucros não conseguiam, nem de perto nem de longe, cobrir os gastos das expedições. O seu manifesto descontentamento levava-os agora a culpar desses magros benefícios o próprio homem que lhes propusera a empresa, apesar de que, se cumprisse com a sua palavra, cedo lhes abriria as portas da Especiaria pela rota prometida. O desgosto real estava a ser muito bem aproveitado por alguns inimigos invejosos de Colombo, que o detestavam e propunham a sua ruína, especialmente o bispo Juan Rodríguez de Fonseca, governador do reino. Este homem, diziam outros, rigoroso guardião das arcas dos reis, estava farto das exigências económicas do insistente navegador e respondia-lhe sempre que, quando chegasse da índia o ouro tantas vezes prometido, lhe daria imediatamente mais dinheiro para continuar com as despesas das expedições. Mas o referido metal não chegava e todos, não só o bispo, tinham começado a desesperar. Almirante de mosquitos que só encontrara terras de vaidade e engano para miséria e sepulcro dos fidalgos castelhanos, gritou a multidão enfurecida perante os seus filhos, em Granada, quando estes desempenhavam os seus cargos de pajens da rainha. A Bartolomé parecia-lhe impossível compreender o porquê de tanto rancor e má-fé nos detractores do Almirante do mar Oceano e vice-rei das índias. Se até então não tinha trazido elefantes daquelas terras, justificou perante si mesmo, era devido ao número reduzido de barcos. Também lhe tinha faltado tempo para apanhar o ouro, apesar de ter visto um rio cujas margens brilhavam com o fulgurante resplendor do precioso metal. Trouxe, por outro lado, máscaras e cintos de osso de peixe e papagaios, para além de alguns índios que, perante a estranheza de todos e o alívio e regozijo de Fonseca e seus sequazes, andavam seminus e não protegidos em finas peles e mantos de seda como seria de esperar dos súbditos do Grande Khan.

Aproveitando o final de uma tarde passada com Bartolomé e Cristobalillo, Alonso arranjou maneira de ficar a sós com a criada Catalina e levá-la a conhecer a tipografia onde trabalhava. O seu amigo e o pajem despediram-se ao escurecer, sob a maciça silhueta da Torre do Ouro, confiando que Alonso acompanharia a jovem caraíba de volta à outrora Taberna do Cão Vermelho, mas o aprendiz de impressor escondia desígnios distintos. A ninguém importava o que ele pudesse ou não fazer com uma escrava índia, nem para onde a levasse ou deixasse de levar àquelas horas da noite, sobretudo contando de antemão com a tácita anuência do seu patrão, pensou, justificando a sua manha. Não obstante, conhecia Bartolomé e tinha a certeza que desaprovaria os seus planos, pelo que, ao separar-se, preferiu esconder-lhe as suas verdadeiras intenções.

Se ele tardou em compreender o que o seu irmão insinuara na manhã em que tomaram o pequeno-almoço juntos foi porque, entre os subentendidos, as piscadelas de olho e as meias-palavras que abundavam à sua volta, era difícil tirar tudo a limpo. No entanto, começou por suspeitar e acabou por adquirir a lacerante certeza de que algum, ou pior ainda, alguns, se podiam vangloriar de ter gozado dos favores da antiga princesa caraíba. Que a isso se seguisse a ventura ou a desventura do, ou dos, felizardos era algo que não o preocupava minimamente. Punha-o fora de si o facto de que ela pudesse ter concedido o seu amor ou que se tivesse entregue fosse a quem fosse, sem que ele o suspeitasse. A súbita aparição de um terceiro, inclusive talvez de um quarto e até de um quinto rival, fê-lo tomar consciência da importância que a jovem caraíba tinha adquirido na sua vida, quanto valorizava os seus passeios e os mudos colóquios em que se sustentava a sua relação, e como teria preferido ser ele a ocupar o lugar do, ou dos, agraciados no coração da belíssima mulher.

Desde a primeira manhã em que ela se juntou ao grupo que formava com Bartolomé e o seu pajem índio, ele tinha desejado levá-la a conhecer o que era, ao mesmo tempo, a sua morada e o seu lugar de trabalho. Esse lugar tão íntimo, tão seu, onde vivia e fabricava os excepcionais objectos que davam sentido à sua vida. No entanto, depois da conversa com o seu irmão, e ainda que também não o tivesse confessado a si mesmo, esse primitivo desejo tinha-se transformado num pretexto para tentar um encontro a sós com ela. Não ousava imaginar o que é que se passaria ao encontrarem-se os dois juntos, numa incerta intimidade que até ali lhes tinha sido negada, mas algumas afirmações do seu irmão ainda lhe davam voltas à cabeça e impulsionavam-no a procurá-la. Por um lado, o facto de que talvez Catalina não o visse com maus olhos; por outro, mais directo e cru, sobretudo agora que desvendava o seu significado, o facto de o ver tão frequentemente com ela fazia-o pensar nos asnos da Síria que carregavam ouro e comiam palha.

Por isso, naquela noite, em vez de se dirigir imediatamente para o bairro de Triana, iniciou uma longa volta que os conduziria até às portas da tipografia de Melchor Goricio. A índia, pouco familiarizada com aquele ou com qualquer outro caminho da cidade, limitou-se a segui-lo docilmente para onde ele a levava. Durante o caminho, Alonso, numa linguagem deliberadamente rudimentar e valendo-se de um grande número de gestos e sinais, tentou antecipar-lhe o sítio para onde se dirigiam e a importância do ofício que desempenhava. Pretendia a todo o custo que, ainda que não soubesse falar, e muito menos ler, em castelhano, intuísse pelo menos a utilidade e a transcendência desses objectos de papel que tanto atraíam a atenção de Cristobalillo. Os livros de molde que elaborava, explicou-lhe, condescendente, como se ela opusesse objecções, não eram tão resistentes como os pergaminhos que se caligrafavam à mão, o papel era mais frágil do que a pele e, seguramente, a longo prazo durariam bastante menos, mas com a nova técnica tinham a vantagem de produzir mais livros com custos menos elevados, o que lhes permitia fazê-los chegar às pessoas que, de outra maneira, estariam impossibilitadas de os adquirir.

Catalina esperou sem pestanejar que Alonso retirasse o grosso cadeado e a pesada corrente que fechavam a tipografia e depois seguiu-o com a mesma parcimónia que tinha mostrado lá fora. O aprendiz acendeu um candeeiro e levantou-o ao alto para que Catalina observasse as particularidades daquele espaço. Os vulgares artefactos dos seus afazeres quotidianos apareceram como esqueletos esquecidos de madeira e de metal. A prensa, compacta e silenciosa, mostrou-se à luz do candeeiro como um enorme animal desprovido de vida. A índia passeou-se espantada entre as sombras dilatadas de todos aqueles incongruentes aparelhos cujo uso lhe era completamente alheio. Observou, com evidente indiferença, os tipos, o papel, as fileiras de livros novos que seriam postos à venda na manhã seguinte. Observou também, de passagem, a cama humilde onde Alonso dormia. Este, entretanto, tinha passado do entusiasmo inicial ao desalento absoluto. Goricio tinha-lhe proibido qualquer tipo de braseiro para se aquecer por temor aos incêndios e, lendo nos olhos da índia, deu-se plena conta de quão frio, despido, desolado ou sem interesse lhe parecia o seu lar. De repente, pela primeira vez na sua vida, teve a impressão de habitar entre os destroços de um navio naufragado. Envergonhou-se do enxergão que lhe servia de cama e de tê-la atraído com enganos a ver aqueles objectos incompreensíveis, mas já era demasiado tarde.

Não havia maneira nenhuma no mundo de fazer com que ela se apercebesse do valor desses objectos espalhados à sua volta. Seria muito exigir-lhe isso. Também não era culpa sua, pensou Alonso, representavam talvez o maior passo em frente numa civilização completamente diferente da sua. Sobre uma mesa, em cima de uma pequena pilha de livros que não pertenciam à tipografia, havia um exemplar da obra de don Jorge Manrique saído da tipografia de Meinardo Ungut e de Estanislao Polono. O aprendiz recordava tê-lo visto nessa mesma manhã porque o seu patrão estava a pensar fazer uma edição própria dos trabalhos do ilustre poeta e militar que tanto contribuiu com a sua espada para pôr no trono sua católica majestade, a rainha dona Isabel. Pôs o candeeiro de lado, pegou no pequeno volume de versos e abriu-o numa página ao acaso. Os seus olhos deram com umas rimas que expressavam bem o que ele teria querido dizer a Catalina, ou a Carmesina, ou a qualquer outra quimérica dama que se encontrasse a sós com ele em circunstâncias parecidas. Afinal um livro era isso, pensou consolado. Um navio que os podia conduzir para além das misérias da vida diária. Para além da velha cama e da odiosa servidão que a escravidão impunha. Alonso não estava seguro de quanto ela poderia entendê-lo mas, colocado de pé no centro da sala, começou a ler em voz alta. Não se enganava. Tinha consciência de que, no fundo, recitava unicamente para si mesmo, mas, com o tom e as inflexões de voz, com o ardor no olhar e no gesto, valendo-se da cadência própria do poema e da musicalidade das palavras, quis acreditar que de alguma maneira poderia comunicar com a índia, se não o seu significado, pelo menos a sua emoção e o seu sentido.

Yo soy quien libre me vi, Yo quien pudiera olvidaros, Yo soy el que por amaros Estoy desque os conocí Sin Dios, sin vos y sin mi.

Sin Dios por Io que os adoro, Sin vospues no me quereis; Pues sin míya está de coro Que sois vos quien me tenéis.1

Ela olhava-o sem expressão alguma no seu rosto bronzeado. Alonso jamais saberia se nesse momento as suas palavras estavam a comover ou, pelo menos, a tocar um qualquer nervo no coração da índia, mas ela ouviu-o sem o perder de vista, atraída talvez pela fogosidade dos seus gestos, pelo ritmo dos seus versos ou pela suave melodia das frases.

Asíque triste nací,

Pues que pudiera olvidaros;

Yo soy el que por amaros

 

1 Eu sou quem livre me vi, / Aquele que pôde esquecer-vos, / Eu sou aquele que por vos amar / Estou desde que vos conheci / Sem Deus, sem vós e sem mim. / Sem Deus pelo que vos adoro, / Sem vós pois não me quereis; / Pois sem mim é bem claro / Que sois vós que me tendes. (TV. do T.)

 

Estoy, desque os conocí, Sin Dios, sin vos y sin mi.2

Alonso aproximou o seu rosto do dela até quase o tocar. A índia olhava-o com os olhos bem abertos, entre a surpresa e curiosidade. O aprendiz de impressor limitou-se então a pegar-lhe numa mão e a depositar entre os seus dedos morenos um fogoso beijo de amor.

Quando abriu a porta, Catalina seguiu-o para fora da tipografia com a mesma mansidão com que se tinha deixado conduzir. Ele colocou no seu lugar o cadeado e a corrente que retirara momentos antes. A caminho do bairro de Triana, sentiu repercutir-se no seu desiludido coração a censura que Placer de mi Vida tinha dirigido a Tirante el Blanco quando ele lhe confessou que temia ofender com o seu comportamento luxurioso a sensibilidade da princesa Carme-sina: que lhe agradavam mais as palavras que as obras e procurar do que encontrar.

Bartolomé referiu a Alonso até ao mínimo pormenor como é que don Pedro de Ias Casas, o seu pai, se tinha precipitado para o mosteiro de Las Cuevas para visitar o seu grande amigo, o Almirante don Cristóvão Colombo, para o distrair com a sua companhia das tristezas e infelicidades do cativeiro e colocar-se à sua disposição no caso de ele necessitar.

Don Pedro descreveu ao seu filho o semblante fatigado do nobre marinheiro, as graves feições de pómulos elevados e nariz aquilino ainda queimados pelo sol do Oriente, o cabelo prematuramente grisalho e mais ralo e a sua antiga dificuldade em caminhar acentuada. Apesar do infortúnio, sorria e mostrava-se afável, confiante na justiça dos reis, repetia. Ao vê-lo, o seu pai recordou um dos princípios elementares de chefia: o chefe militar ou o capitão, por maior que seja a adversidade com que se confronte, não deve mostrar o semblante triste para que a sua gente não se vá abaixo. Talvez o Almirante, como bom capitão que era, ostentasse ânimo

 

2 Assim triste nasci, / Antes pudesse esquecer-vos; / Eu sou aquele que por vos amar / Estou, desde que vos conheci, / Sem Deus, sem vós e sem mim. (N. do T.)

 

alegre para não entristecer os amigos que o viam cair tão estrondosamente depois de o terem visto subir tão alto.

Don Cristóvão Colombo correspondeu à sua fidelidade fazendo-lhe uma confidência: naquela manhã de Outubro em que pela primeira vez pisou terra das índias tinha feito a si mesmo uma promessa, e tinha dado sete anos para a cumprir, de armar um exército de cinquenta mil homens a pé e outros cinco mil a cavalo para resgatar o Santo Sepulcro. O prazo tinha vencido meses antes sem que ele realizasse o seu propósito, mas ainda não era muito tarde para o conseguir. Esteve a ponto de descobrir as minas do Rei Salomão e libertar o Templo de Jerusalém com o mesmo ouro que tinha sido destinado para o construir. Só lhe faltou um pouco mais de tempo. A intervenção de Bobadilla e a desconfiança dos reis tinham arruinado o projecto. Por isso, dedicava os dias e noites do seu desterro a procurar nas Sagradas Escrituras profecias dos prodígios que Nosso Senhor ainda esperava dele. Estava seguro, e agora empenhado em demonstrá-lo, que as suas descobertas assinalavam o amanhecer de uma nova era para a religião e para a Santa Madre Igreja porque as suas façanhas e descobertas estavam vaticinadas, desde há séculos, nos livros santos. A prova era que, para a sua consecução, nunca foram necessárias matemáticas ou mapas-múndi, só se cumpriu o que tinham augurado, entre outros, o profeta Isaías no Antigo Testamento e o apóstolo S. João no Apocalipse quando diz "vi um céu novo e uma terra nova, pois o primeiro céu e a primeira terra desapareceram e o mar já lá não está". Preparava um longo escrito com a relação dessas e de muitas outras maravilhas para que suas majestades católicas atentassem nas suas reflexões e avaliassem a enorme responsabilidade que Deus colocara nas suas mãos. Tinha pensado, inclusive, redigi-lo em forma de livro, com a ideia de que mais tarde fosse publicado, obviamente com a aprovação dos reis.

Por exemplo, o seu nome, Cristóvão, não podia ser obra do acaso. Chamava-se Cristóvão, Cristóforo, Cristo Ferens, aquele que leva Cristo, porque São Cristóvão era, nada mais nada menos, do que o padroeiro dos marinheiros, o que velava pelas suas rotas enviando-lhes bom tempo e, se este faltasse, permitindo aos navios sair incólumes das piores tempestades. Era também o santo que tinha transportado o Menino Jesus sobre as águas, levando-o às costas como uma caravela sobre o mar. Cristóvão, Cristóforo, o portador de Cristo. E ele, à semelhança do que o santo fizera antes dele, tinha-o transportado também no seu barco, levando o Santo Evangelho até à margem oposta do Mar Tenebroso, no outro extremo do mundo. Não, o seu nome tinha-lhe sido dado na pia baptismal por inspiração divina, essa mesma inspiração que mais tarde animaria D. Fernando, e em especial dona Isabel, a confiar nele, a apoiá-lo nos seus projectos quando todas as opiniões, inclusive as mais doutas, se pronunciavam contra ele. Louvado seja o Senhor que, como escreveu São Mateus, esconde os segredos aos sábios para os revelar aos inocentes. Porque foi um verdadeiro milagre que eles, e não outros, se tivessem posto do seu lado nessa santa empresa e, depois, a vissem chegar a bom porto quando ainda não tinham terminado os festejos pela tomada de Granada aos infiéis. Esse era um sinal de que a Divina Providência os conduzia juntos por um caminho definido e desejava que continuassem nele até ao fim. "Vai ao encontro de todos os povos", dizem os Salmos, "e saberão que o Deus de Jacó dominará, inclusive, os confins da Terra". E também: "A ti, Deus, é-te devido um hino em Sião, e contigo se cumprirão as promessas em Jerusalém". E outro sinal, que fez tremer a sua voz, ao recordar: "Cumprirei as minhas promessas com o Senhor à vista de todo o seu povo; nos átrios da casa do Senhor, no meio de ti, Jerusalém". Ele, Cristóvão Colombo, tinha-se convertido em espírito e guia de uma nova cruzada: a que levaria a coroa espanhola a chegar por mar até ao Santo Sepulcro e libertá-lo.

Don Pedro de Ias Casas pôs-se de joelhos ao ouvir tão santos propósitos, dignos dessa alma superior, e disse que, caso se encontrasse de boa saúde quando iniciasse a cruzada, o honraria muito acompanhá-lo se ele concordasse em aceitá-lo entre as suas hostes.

O Almirante obrigou-o a pôr-se de pé, agradecendo a sua disponibilidade com um sorriso de bem-aventurança. Os seus olhos brilhavam com uma alegria que, ao seu amigo visitante, lhe pareceu entre o selvagem e o beatífico. Don Pedro compreendeu, ao vê-lo, o quanto o entusiasmava a estóica missão que a si mesmo se impunha. Era, além do mais, um consolo bendito nos árduos momentos por que passava, pensou, encerrado entre as quatro paredes do mosteiro, longe do seu mar e das suas naus, da exuberância virgem da natureza nas terras que tinha descoberto. Ter sido tocado pela Divina Providência para guiar, através das brumas do Mar Tenebroso, uma milícia invencível que arrancasse o Santo Sepulcro aos infiéis era algo a que não poderiam aspirar os Ojedas, os Lepes e os Pinzones que se precipitavam atrás das suas pisadas, procurando fama e fortuna com descobertas alheias. Ele tinha-lhes mostrado a rota. Levou-os nas suas primeiras viagens e agora lucravam com o que tinham visto e aprendido na sua companhia. D. Fernando e dona Isabel, iludidos pelo insidioso bispo Fonseca, que o odiava desde aquela terrível reprimenda que lhe deram os reis por não lhe ter concedido, na altura em que acabara de ser nomeado Almirante do mar Oceano, o que lhe solicitara para a sua segunda viagem, estavam a outorgar licenças, na realidade verdadeiras patentes de corso, a qualquer pirata aventureiro disposto a fazer-se ao mar para usurpar as suas conquistas.

Don Pedro deixou o mosteiro comovido pelo encontro e admirado pelas altas resoluções do Almirante. Ele dedicava-lhe genuína admiração e respeito. Percorreram um longo caminho juntos, resumiu mais tarde ao seu filho Bartolomé, e entristecia-o encontrá-lo naquelas desagradáveis circunstâncias. Tinham visto coisas que ninguém, pelo menos deste lado do mar Oceano, jamais houvera observado antes. Tinha encontrado árvores e pássaros que outros mal podiam imaginar, admirado paisagens e entardeceres para os quais não existiam palavras em língua castelhana e talvez só pudessem descrever-se no doce e melodioso idioma próprio dos nativos daquelas regiões encantadas.

E os monóculos e outros monstros que Pedro Ailly mencionava, os que têm um olho e correm mais rápido que o vento apoiados numa só perna e depois, ao sentarem-se a descansar, fazem sombra levantando a planta do pé ao alto?, perguntou Bartolomé, abrindo uns olhos desmesurados ao recordar as suas leituras: e os que não têm cabeça, com olhos nas costas e cujo nariz e boca são dois buracos no peito. Tinha-los visto? Era verdade que tinham o corpo coberto de pêlos grossos como as bestas? Em algum lado estariam, respondeu don Pedro, movendo a cabeça pesadamente, houve quem confirmasse a sua existência, mas ele não vira nenhum. Talvez as suas marcas, sim, e os seus ossos juntos com outros de seres gigantescos. Sereias, pelo contrário, pôde observar algumas, acrescentou com um olhar sonhador: eram três e surgiram de repente no mar.

O Almirante estava com ele e ambos se maravilharam pela sua existência, ainda que não as achassem tão belas como as descrevem as lendas.

Com a expedição de don Francisco de Bobadilla, voltou a pôr o pé na península, menos obeso e reservado, mas aguerrido como sempre, o estremenho Martin de Monroy. Esperava ficar por pouco tempo, preveniu os seus amigos mal chegou à, agora bem reputada, Taberna da índia. Tinha chegado com o destacamento encarregado de custodiar o Almirante Colombo, mas não tardaria a iniciar os seus preparativos de volta à Terra das Especiarias.

A primeira coisa que fez depois da sua chegada foi obter, num canto à parte, a anuência do patrão para fazer uma breve e discreta visita ao sótão da escrava Catalina. Acompanhado pela selvagem, obviamente, que nesse momento esfregava o chão a uns poucos passos de distância. Não se tinha esquecido que o facto de se ter envolvido com ela lhe servira uma vez para tornar realidade as suas mais caras pretensões e não queria passar por mal-agradecido. Desejava invocar de novo essa sorte para a sua seguinte travessia, como qualquer fiel devoto de uma imagem bendita à qual se vai sempre em demanda de amparo, explicou ao taberneiro, arriscando-se a parecer irreverente e olhando com descaro para as ancas da índia, que estava bem inclinada sobre a sua vassoura. No outro lado do Mar Tenebroso tinha acabado por se acostumar ao relacionamento com as aborígenes, continuou, que remédio, não havia mais fêmeas à vista, mas sempre guardou uma terna recordação daquela que o tinha iniciado nesses amores índios. Além disso, devia confessá-lo, nesse caso João Almada tinha razão, ainda não tinha encontrado outra que igualasse o intenso prazer que a caraíba podia proporcionar.

O estremenho tinha trazido uns pequenos embrulhos que continham ervas picadas envolvidas por um rolo de folhas secas, e com aquilo preparava uns objectos cilíndricos aos quais chamava tabacos que, perante o espanto dos seus camaradas, acendia por um extremo e chupava pelo outro. Deitava, então, umas fumarolas pela boca como se a tivesse em fogo e, depois de exalar, apressava-se a expirar de novo o fumo pelas narinas com manifesto prazer no meio de tosses e protestos de quem o rodeava. Era um antigo costume dos nativos da Especiaria, disse-lhes orgulhoso, e que se estava a popularizar entre os seus novos povoadores. Provocava uma espécie de agradável ebriedade que limpava a mente e excitava os sentidos. Tinha começado a utilizá-los na selva, como uma forma de afastar os mosquitos e, ao fim de algum tempo, deu-se conta de que já não podia passar sem eles.

Ao sentir o fumo, a criada Catalina deixou de lado trapos e vassouras para se aproximar e observar o recém-chegado das índias, aparentemente atraída por aquele denso fumo que o estremenho inalava e exalava com tão ostensiva fruição. O taberneiro imaginou que, à caraíba, a insólita prática lhe recordava um costume ou um rito do seu longínquo país. Devia ser assim porque quando Mon-roy lhe pegou pela mão para a levar escadas acima com tranquila firmeza, como homem agora bem experimentado no convívio com os selvagens, a mulher seguiu-o prontamente e, quase podia dizer-se, de forma solícita.

A situação na Hispaniola não era nada boa, confiou Monroy aos seus camaradas ao descer finalmente do sótão da escrava, aspirando as emanações do seu enorme charuto, enquanto os outros as evitavam inclinando-se sobre a suculenta ração de chouriços, biscoitos, pastéis e outras miudezas que o estalajadeiro costumava pôr à disposição. Só havia uma coisa que alegrava mais os seus residentes que a perspectiva do ouro, continuou Monroy: a vista das caravelas que chegavam de Espanha, aproximando-se do cais com novas provisões. E não era para menos, já que quase tudo escasseava na ilha. Pedro Zufiiga levantou os olhos para fazer um sinal de anuência com a cabeça, meio engasgado com um pastel folhado, como se recordasse uma situação que alguma vez lhe fora aterradoramente familiar. Bartolomeu Colombo, imponente chefe militar das índias, governando o lugar em nome do seu irmão, prosseguiu o estremenho, não conseguiu mais que inimizar-se com os colonos, que nunca o deixaram de ver como um estrangeiro intrometido acabado de chegar. O facto é que o acusavam, a ele e ao Almirante, com ou sem razão, nisto Martin de Monroy não ousava pronunciar-se (e aqui evitou olhar para João Almada) de serem uns tiranos injustos, soberbos e invejosos, habituados a castigar e a degolar por dá cá aquela palha quem melhor ou pior lhes parecesse, desonrando o sangue espanhol. Talvez algo de verdade houvesse nisso, aquiesceu (olhando agora recatadamente de soslaio para o cartógrafo português), porque, mal atracaram, ele avistou os cadáveres de sete infelizes pendendo do alto das forcas e não demorou muito tempo a informar-se de que outros cinco coitados esperavam pela sua vez para serem degolados na manhã seguinte.

O velho soldado colocou de lado o tabaco para trincar um pedaço de pão que engoliu com um longo trago de vinho. E depois?, perguntou João Almada mais interessado na conversa do que nas iguarias dispostas sobre a mesa. Em abono da verdade, retomou a palavra o estremenho, a exasperação, a desordem e a anarquia não eram causadas por nada mais que a ligeireza com que os irmãos Colombo aplicavam a tortura ou sentenciavam a morte. Quase um terço da população tinha sido atacada por um padecimento até então desconhecido que lhes enchia o corpo de furúnculos pestilentos, pústulas e outras erupções cutâneas provocando-lhes terríveis dores no corpo e levando muitos à morte no meio de uma comichão insuportável. Era atribuído ao calor excessivo, ao clima das índias, aos ares impuros, a certo tipo de alimentos, mas muitos alegavam que o contágio vinha do convívio carnal com algumas indígenas e que desse mesmo mal tinha morrido Martin Alonso Pinzón. O certo é que tinham que sofrê-lo com o desespero provocado pela falta de medicamentos, de cuidados e de alimentos, dos quais poderiam beneficiar em Espanha. Por outro lado, poucos tinham atravessado o Mar Tenebroso para irem trabalhar. A maioria eram delinquentes comuns que tinham sido acolhidos sob o perdão concedido pelos reis a quem aceitasse juntar-se à travessia. Criminosos que se haviam resignado à viagem para escapar ao calabouço, levados pela obscura esperança de enriquecerem sem esforço. Só que as condições nas ilhas mostraram-se muito mais severas e penosas do que tinham imaginado. Esta situação criou um consenso em redor do alcaide-mor da ilha, Francisco Roldán, que lhes prometeu o ouro e o mouro para os atrair e depois não vacilou em encabeçar uma revolta. O Almirante, tentando amainar o descontentamento, pôs-se de acordo com Roldán e fez entregar a cada um dos inconformados uma superfície de terra cultivável com pelo menos dez mil plantas de jucá para fazer cassabe3, tornando-se dela

 

3 Espécie de farinha de mandioca. (N. do T.)

 

proprietários, bem como de todos os índios que nela habitassem. Esta decisão não ajudou em nada a melhorar as condições de vida na ilha. Os beneficiados trabalhavam menos e exigiam mais. Os índios eram utilizados nas escavações em busca de metais preciosos, em vez de lavrar a terra, e as suas mulheres passavam a fazer parte do harém particular dos colonos, que guardavam as melhores para si ou as comercializavam como lhes desse na real gana.

Enfim, abreviou o português: que novidades havia da famosa passagem para terra firme, o esquivo canal pelo qual, diz-se, navegou Marco Polo e que devia levá-los das ilhas às costas da índia e de Catay?

Ainda não se tinham encontrado rastos dele, respondeu Mon-roy. Quando eles chegaram à Hispaniola, o Almirante não se encontrava lá. Tinha empreendido uma viagem de exploração com esse objectivo preciso. Ao regressar verificou que Bobadilla e as suas gentes eram donos da ilha e que ele, juntamente com os seus irmãos, regressaria prisioneiro a Espanha para enfrentar a justiça dos reis. Ninguém fez alusão ao estreito que os deveria levar ao império do Grande Khan, sinal de que não tinham dado com ele. O Almirante não era tonto, se o tivesse encontrado tê-lo-ia dito logo: então nenhuma grilheta seria capaz de o prender, nenhuma prisão o teria ameaçado.

Amerigo Vespucci apressou-se também a apresentar-se no mosteiro de Las Cuevas para se encontrar com o seu bom amigo e antigo associado don Cristóvão Colombo. O encontro foi franco e cordial, como seria de esperar de dois velhos companheiros unidos no passado por uma estreita colaboração. O genovês considerava o florentino um homem leal, eficiente e capaz, a quem a sorte não tinha acompanhado nos seus projectos. Não guardava rancor pelas expedições do ultramar que Vespucci subvencionara, nem por aquelas em que o próprio florentino se tinha envolvido, nem o incluía na lista de outros muitos aventureiros que se lançavam no encalço dos seus achamentos, para saquear o que ele considerava serem os seus domínios. Essa indulgência e essa cumplicidade vinham de há muito tempo, quando Colombo, ao chegar a Sevilha pela primeira vez, não encontrou apoio entre a influente colónia genovesa que disputava com os judeus os negócios da banca, mas sim entre um selecto e rico grupo de emigrantes toscanos que o acolheram e apoiaram. Entre eles estava o então representante de Lorenzo de Médicis na península: esse mesmo Amerigo Vespucci que agora se inclinava perante ele, fazendo uma pausada vénia para o cumprimentar.

O Almirante desdenhou com um breve encolhimento de ombros os inconvenientes do cativeiro. Esperava recompor-se profusamente de um momento para o outro, quando os reis o chamassem para desfazer o mal-entendido e o readmitissem nos seus cargos. Eles não eram ingratos e o seu assunto não poderia terminar de outra maneira. Não lhes entregou ele a possessão de uns domínios tão vastos como os que tinham herdado de seus pais? Para além disso contava com o apoio da Divina Providência, que já o tinha tirado de apuros bem piores e que não o desampararia neste momento crítico.

E porque é que estava tão seguro do amparo divino? Deus tinha-lhe dado, desde a sua viagem inicial, indiscutíveis sinais do favor que lhe dispensava. Depois daquele primeiro mês de navegação, por exemplo, durante o qual nada tinham encontrado, a tripulação ficara descontente e nervosa, a ponto de fazer um motim. Ele decidiu jogar uma última cartada, metendo de novo proa para oeste em vez de continuar durante mais tempo para sudoeste como tinha feito nos últimos dias, aconselhado pelo voo dos pássaros. Pois bem, na noite de 11 de Outubro, quando já não se ouviam mais aves voar por cima dos mastros, quando não aparecia ainda no firmamento o disco branco da lua e ainda era impossível avistar terra porque se encontravam bastante afastados dela, ele vislumbrara um ponto luminoso que se acendia e se apagava no horizonte, como se subisse e descesse, lá onde, na tarde seguinte, distinguiram pela primeira vez a costa. A mesma luz foi avistada mais tarde por Pedro Izquierdo, de Lepe, e por alguns outros marinheiros. Depois puderam comprovar que, naquela altura, o litoral ainda estava tão longe que àquela distância era impossível avistá-lo. Desse lugar, inclusivamente, a mais alta fogueira teria passado despercebida. Que outra coisa poderia ser, então, aquela luminosidade, senão um sinal da Divina Providência que lhes indicava o rumo a seguir? Um indício para que se cumprissem as palavras dos Salmos: "envia a tua luz e a tua verdade, com ela me trouxeram e me levaram ao teu monte santo e aos teus tabernáculos".

Depois, durante a viagem de volta, sentiram-se perdidos a bordo do Nina por causa de um tremendo furacão, que é como se chamam as tempestades naquelas regiões do mundo, que os levou a navegar sem panos e à deriva no meio de um pavoroso bambolear. A cada balanceamento da nau todos imaginavam que a proa ficaria submersa sob as altas cristas das ondas e os engoliria para os abismos, mas esta arranjava sempre maneira de se endireitar lá no alto antes de voltar a cair para enfrentar de novo o embate seguinte. O vendaval arrasou com tudo quanto se encontrava na coberta. O Almirante chegou ao extremo de garatujar como pôde, na angustiante agitação do momento e dentro do convulso bambolear do camarote, um breve resumo da expedição e dos seus resultados, dando conta da rota seguida e das terras descobertas. Depois enrolou o pergaminho num tecido impermeável, introduziu-o dentro de um barril de madeira, bem selado, e ordenou que o lançassem ao mar com a esperança de que pelo menos o seu nome e a notícia dos seus achamentos se salvassem do naufrágio. Lá em cima, os homens rezavam aos gritos, quase a delirar, enlouquecidos pelo violento balancear, encomendando as suas vidas à bem-aventurada virgem de Guadalupe, padroeira misericordiosa dos soldados em combate, dos marinheiros nas tormentas e dos regedores no mau governo. A ela lhe prometeram que se saíssem com vida daquela aflição peregrinariam em acção de graças até ao seu bendito santuário. Para isso deitaram sortes. O próprio Colombo meteu dentro do seu gorro de marinheiro um punhado de grãos entre os quais havia um marcado com uma cruz. Quem o tirasse via-se obrigado a cumprir o voto de todos. Ele foi o primeiro a meter a mão e Deus mostrou-lhe a preferência ao colocar-lhe entre os dedos o grão assinalado.

A sua penitência levou-o até aos muros ameados do mosteiro de Guadalupe, no sopé das altas montanhas da Estremadura. Ali, diante da imagem santa talhada pelo próprio S. Lucas, prometeu continuar o que os reis tinham começado com a tomada de Granada e não parar até à recuperação de todas as terras em mãos dos infiéis. Se o Papa Júlio II tinha outorgado a sua majestade católica, o rei D. Fernando, o título de monarca de Jerusalém, ele, Cristóvão Colombo, aproveitaria a rota aberta por ele mesmo no Mar Tenebroso para levar nas suas caravelas um exército capaz de reconquistar o Santo Sepulcro e colocar o rei de Aragão nesse outro trono que também lhe correspondia.

Vespucci ouvia-o em silêncio, com assinalada deferência. Quando o Almirante fez, por fim, uma pausa no seu dilatado monólogo, o florentino tomou a palavra para inquirir o que a ele, na realidade, lhe interessava. Aonde o tinham conduzido as últimas explorações, tinha encontrado rastos de terra firme?

Ao deixar Espanha tinha navegado, como sempre, para sul, mas desta vez foi para além da Gomera e das ilhas de Cabo Verde, até perto da Serra Leoa e do cabo de Santa Ana, na Guiné, antes de meter proa para oeste em busca de um suposto continente do qual se tinha notícia por uma menção do rei D. João II de Portugal. A sua intenção era comprovar a veracidade do que se dizia e realizar o grosso das suas explorações abaixo da linha equinocial onde, como é bem sabido, há mais abundância de ouro e de objectos preciosos. Depois, a uma primeira semana de navegação seguiu-se outra semana de calmia total no mar que os paralisou a meio do oceano sob um calor tal que fez queimar o trigo a bordo, cozer a carne fumada e apodrecer os toucinhos. Ele implorou então o socorro da Santíssima Trindade, prometendo baptizar com o seu nome a primeira terra que se divisasse, e o vento soprou de novo, como que por milagre, e levou-os por um aprazível mar cor de safira até uma bela ilha tão verde e cheia de palmeiras e arvoredos que se comparava, com vantagem, às hortas de Valência em Maio. Navegando na sua direcção podia-se apreciar, de muito longe, o cume de três altas colinas, coroando uma só montanha. Aquela tinha sido a prova de que tudo tinha sido um prodígio do Senhor, Trino e Uno, atento às suas orações.

O genovês cravou o seu olhar azul, de águia, nos olhos não menos claros do florentino e neles viu que as suas palavras não satisfaziam as expectativas do geógrafo. Depois de um suspiro encolheu os ombros e continuou. Mais a oeste, junto à costa, descobriu um imenso lago de água doce que se prolongava até ao mar. A sua volta estendiam-se os mais soberbos jardins que se podiam imaginar. Repletos de árvores maravilhosas, de plantas e frutos nunca antes vistos e favorecidos por uma atmosfera temperada e benéfica que propiciava o melhor clima do mundo. O imenso volume de água fresca não podia vir senão da confluência dos rios que os regavam. Dada a grandeza do lugar e a incalculável força da corrente que com tanta facilidade se impunha à ondulação, não era difícil supor de quais se tratavam: o Nilo, o Eufrates, o Tigre e o Ganges que, nesse sítio, marcam encontro para desembocar no mar. Os quatro rios que banham, segundo todas as tradições cristãs, os Jardins do Éden. Sim, ele tinha lançado as âncoras, por uma graça especial da Divina Providência, junto ao berço dos nossos primeiros pais. Assim estavam demonstradas as suposições de Santo Ambrósio, de Isidoro de Sevilha e de São Pedro de Ailly, segundo as quais o Paraíso Terreno se localizava no extremo mais afastado do Oriente. O preciso lugar onde, no início dos séculos, o primeiro dia viu levantar-se o sol pela primeira vez.

Era terra firme?, inquiriu Vespucci, interessando-se subitamente. Tinha dado com terra firme? Onde se encontrava?

Já lhe tinha dito, respondeu Colombo: abaixo da linha equinocial, nos confins do Oriente, tal como haviam predito os sábios no seu tempo. Num mapa-múndi ele situá-la-ia ao sul ou a sudeste da região de Mangi, na China, se os cálculos não o enganavam.

Quando Alonso cedeu, por fim, à tentação de subir até ao sótão da escrava caraíba, o último freguês tinha partido e já não restava ninguém na estalagem. Diego fechou a porta à chave, deixando o seu irmão no interior do tugúrio, como se adivinhasse a obscura causa que o tinha levado a prolongar a sua permanência até àquela hora tão tardia. Depois deu-lhe as boas-noites e retirou-se, por sua vez, evitando indicar-lhe um canto específico onde se pudesse esticar para dormir. A sua reserva implicava uma tácita cumplicidade. O jovem aprendiz agradeceu-lhe sobremaneira.

Mais tarde, ao subir, sigiloso, a tortuosa escadaria que conduzia ao quarto da criada Catarina, com o coração batendo-lhe fortemente no peito, veio-lhe à cabeça a vez em que Tirante el Blanco foi furtivamente meter-se na cama da princesa Carmesina. Ao herói tremiam-lhe as mãos e os pés e confessou à escrava Placer de mi Vida que preferia antes confrontar-se sozinho num campo de batalha com dez cavaleiros inimigos do que continuar no seu propósito. Alonso sentiu-se numa conjuntura parecida. Pensou, durante uns instantes, se não seria preferível regressar ao andar de baixo e acomodar-se entre as mesas para dormir. Sobretudo porque, em semelhante ocasião, ao próprio Tirante el Blanco não o tinha acompanhado a sorte: para além de um inconsequente manuseio dos peitos e do baixo ventre da adormecida Carmesina, não pôde realizar os seus avessos propósitos. À primeira voz de alarme despertaram as donzelas e Tirante viu-se obrigado a fugir, atando uma corda a uma janela e atirando-se para fora com tão má sorte que lhe faltaram doze varas de corda e, na queda, partiu uma perna. Ainda com a imagem do cavaleiro de Rocha Salgada na cabeça, futuro príncipe e césar do império da Grécia, dorido e incapaz de se mover, Alonso deu de repente com o quarto da índia. Um involuntário estremecimento de pânico fê-lo conter a respiração. Depois, dominando o medo, apoiou a palma da mão na tábua de madeira e empurrou-a. A porta não tinha fechadura e cedeu com um ténue ranger. A clara luz da janela permitiu-o observar Catalina dormindo nua dentro de uma espécie de rede pregada entre duas paredes opostas do minúsculo quartinho, estendida junto a um dos lados do catre. Alonso recordou num breve momento a sua procedência: entre os diferentes objectos que don Pedro de Ias Casas tinha trazido das índias estava um par desses estranhos urdumes de algodão, aos quais chamou cama de baloiço e que, segundo a sua explicação, os naturais daquelas regiões usavam para dormir. Deu uma dessas redes a Cristobalillo, mas o pajem taino, decidido a acostumar-se à cama, emprestou-a a Catalina poucos dias depois de a encontrar, ao perceber que a escrava caraíba amargurava-se por dormir num leito normal.

Deteve-se um momento para contemplar as formas da mulher, a carne exposta e presa entre a malha que a suspendia no ar. Ela então abriu os olhos e observou-o. Não fez nenhum movimento de surpresa, nem de censura, nem de pudor, nem de inquietação. Abriu somente os seus grandes olhos vigilantes, de repente sem sono, talvez com um leve brilho de curiosidade nas pupilas, e olhou para ele. Ele sentiu-se estúpido naquele sótão miserável, sem saber o que fazer perante aquele severo olhar vigilante, como um menino medroso apanhado no meio de uma travessura.

Mas também não estava disposto a retroceder. Pelo menos ainda não. Intuiu que, ao fazê-lo, perderia a coragem necessária para o tentar de novo. Tirante el Blanco não viu repetir-se a ocasião com Carmesina senão, quem sabe, muitos anos mais tarde, depois do seu triunfal regresso de África, quando se introduziu uma segunda vez na câmara real e violentou, agora sim com êxito, a vontade da princesa, utilizando a sua superior força física para a possuir.

Alonso não pensava atrever-se a tanto. Por um instante, ao aproximar-se dela, temeu que a índia despertasse com um grito a restante criadagem e que ele tivesse que se escapulir pela única janela do quarto, e sabe Deus quantos ossos, para além da perna, não partiria. Mas não foi assim. A escrava não se defendeu em vão, como Carmesina no romance. Em vez disso continuou a observá-lo e permitiu que se aproximasse e fizesse tudo à sua vontade sem opor resistência, só que ele, inexperiente e envergonhado, não soube o que fazer. Começou a tocá-la, nervoso, metendo os dedos como melhor pôde entre os orifícios da cama de rede, apalpando a tíbia da criada que o olhava sem reagir, com aqueles olhos grandes e curiosos estranhamente cravados nos seus. Por fim, Alonso, exasperado pela inutilidade dos seus avanços, tomou-a pelas mãos para a tirar da rede e aproximá-la da cama. Ela deixou-se conduzir sem protestar, da mesma maneira que naquela noite em que visitaram a tipografia, e estendeu-se docilmente sobre a cama, sem se rebelar mas sem participar, sem responder às desajeitadas carícias. Exangue, inerte, tão inanimada como um peixe morto.

Perante tamanha renúncia, a paixão que Alonso tinha combatido sem êxito antes de se animar a ir ao seu encontro nessa noite, o desejo que o espicaçou a permanecer à espreita até que todos tivessem partido antes de lhe sobrepor os seus próprios temores e perturbações para se atrever, por fim, a subir a tortuosa escadaria, extinguiu-se pouco a pouco no meio de um desencanto total.

O que se seguiu foi um infrutuoso batalhar com o seu sexo lânguido que o desanimou ainda mais até que, dando-se por vencido, decidiu que o melhor era estender-se ao lado dela e ficar quieto. A imagem de Tirante el Blanco, desfalecido no chão, debaixo da janela de Carmesina, voltou a rondar-lhe o pensamento. Ele acabava de experimentar uma queda ainda mais rotunda que a do seu cavaleiro favorito e, tal como estavam as coisas, teria preferido partir uma perna. Catalina, ao vê-lo mais tranquilo, acomodou-se ao seu lado e, depois de uns momentos, adormeceu profundamente nesse leito estranho no qual tanto lhe custava fechar os olhos e cuja única finalidade no quarto era para que os visitantes se deitassem nela e usassem o seu corpo. Ao fim de algum tempo ele também adormeceu, mas não por muito tempo. Despertou-o uma renovada dureza, mais pujante que nunca, que lhe crescia entre as pernas, exacerbada talvez pelo calor e pela suavidade daquele corpo morno que estava deitado a seu lado. Deitada junto dele, ainda nua, a índia parecia mais delicada, mais pequena e mais frágil do que lhe tinha parecido na rede. Sentiu-se livre e invulnerável junto a essa bela figura inerme abandonada ao sono. Juntou-se mais a ela e fez uma tímida tentativa de a montar. Não teve necessidade de terminar o movimento. A escrava caraíba acordou ao sentir a lança espetada do jovem macho que estava deitado ao seu lado e, talvez pouco disposta a repetir a ansiedade, a frustração e o fracasso da cena inicial, pegou-lhe ela própria com as suas mãos, abriu as pernas e colocou-a no sítio adequado. Alonso, com um leve empurrão que lhe provocou o primeiro grande espasmo de prazer, já não teve dificuldade em penetrá-la.

Na tipografia onde Alonso trabalhava apresentou-se, inesperadamente, o irmão do dono da oficina, o frade cartuxo Gaspar Goricio, sob cujo tecto hospitaleiro carregava as suas penúrias don Cristóvão Colombo até que suas católicas majestades se dignassem a libertá-lo das correntes que o amarravam, recebê-lo no seu palácio mouro do Alhambra, em Granada, e devolver-lhe o domínio das índias. Frei e impressor parlamentaram durante longos momentos em voz muito baixa num canto afastado, enquanto Alonso, fingindo arredondar a lombada de uma Crónica dei Cid antes de lhe colocar as capas e aguçando o ouvido, escutava grande parte da conversa. Ao que parecia, o Almirante tinha decidido escrever um livro pondo a nu, de uma só vez, como é que uma façanha tão notável como a sua teria sido impossível sem a intervenção directa da Divina Providência e rogou ao seu amigo frei Gaspar Goricio que tomasse conta do projecto. A primeira coisa que veio à cabeça do religioso foi recorrer aos conselhos de um especialista de confiança e isso levou-o à tipografia do seu irmão Melchor. Trazia consigo a primeira parte do manuscrito, redigido pelo punho do Almirante, com notas à margem para esclarecer certos pontos, anunciou, tirando com grande cuidado de entre os bolsos interiores do hábito um molho de folhas soltas. As anotações eram suas, explicou. Solicitava-lhe que as integrasse no texto, que pusesse em ordem as folhas e as passasse a limpo. Conforme avançasse o trabalho ia-lhe trazendo o que faltava para elaborar uma primeira cópia em pele que enviaria a suas majestades como obséquio do seu mais atribulado e fiel súbdito, don Cristóvão Colombo, até muito pouco tempo antes vice-rei das índias. Mais tarde, se os monarcas e os autores consentissem, poderia tratar-se de uma possível publicação.

Alonso suspeitou que se tratava do escrito mencionado pelo seu amigo Bartolomé. O mesmo ao qual o Almirante fez alusão durante o encontro que manteve com Pedro de Ias Casas. Durante toda aquela tarde debateu-se entre dar rédea solta à sua curiosidade ou acatar a confiança que nele depositava o seu patrão e protector. Ganhou a curiosidade e a sós, nessa noite, antes de se deitar sobre o desfiado enxergão que lhe servia de cama, vencendo os últimos escrúpulos, dirigiu-se ao esconderijo onde Melchor Goricio guardava a chave da sua desarrumada escrivaninha e pôs-se a examinar as folhas.

Era, com efeito, de acordo com o cabeçalho, "o livro ou a compilação dos textos, ditos, sentenças e profecias acerca do assunto da recuperação da cidade santa e do monte de Deus do Sião, e da descoberta e conversão das Ilhas da índia e de todas as gentes e nações, i dedicado a nossos reis hispanos Fernando e Isabel, etc". Vinha encabeçado por uma cruz e por uma jaculatória que, | Alonso soube depois, acompanhava quase todos os papéis do Almirante: Jesus cum Maria sit nobis in via, amen. Iniciava-se com uma carta do mui magnífico e prudentíssimo senhor don Cristóvão I Colombo, Almirante, vice-rei e governador perpétuo das índias e das terras firmes por ele descobertas, ao padre don frei Gaspar Goricio. Nela fazia referência à busca de citações bíblicas a respeito de Jerusalém. Como as suas outras ocupações o privavam de tempo para prosseguir o trabalho, animava-o a continuar e a concluí-lo a certeza de que o Senhor o iluminaria na empresa. Mais à frente reflectia sobre o sentido das Sagradas Escrituras e invocava a ajuda de Deus na tarefa que se dispunha fazer. "Penetramos no Teu poder, porque bem-aventurado é o homem que instruis, Senhor, e a quem ensinas a Tua lei. Rogamos-Te portanto que faças com que, com o mesmo espírito que foram escritos acerca de Ti e do Teu santo lugar, compreendamos os sermões, livros e profecias, ámen".

Havia outra carta, esta dirigida aos reis em particular, na qual explicava a sua própria inclinação para a marinharia como uma inquietude e uma forma de sondar os mistérios do mundo. Situava também o que se ia analisar dentro de um conveniente marco histórico. Fazia finca-pé em que, segundo os ensinamentos de Santo Agostinho e de outros reconhecidos teólogos, o mundo acabaria sete mil anos depois da sua criação. As tábuas astronómicas de D. Afonso X indicavam que desde a expulsão de Adão do Paraíso até ao advento de Nosso Senhor Jesus Cristo se tinham cumprido já cinco mil trezentos e quarenta e três anos e trezentos e dezoito dias. Acrescentando os mil e quinhentos anos decorridos desde então, resultava que só faltavam cerca de cento e cinquenta anos para o fim do mundo. Por outro lado, o Nosso Redentor tinha assegurado que tudo o que os profetas tinham afirmado haveria de se realizar antes da consumação dos séculos. Era, pois, de vital importância analisá-lo e ver o que já havia tido lugar e o que em tão curto tempo estava ainda por se cumprir. Para isso seria melhor afastar-se de vãs especulações e concentrar-se tão-somente no estabelecido nas Sagradas Escrituras e noutros livros com justa fama de santos. Como aquele do eclesiástico calabrês, Joaquim, onde se profetizava que de Espanha haveria de sair quem reedificasse a casa do monte Sião.

Mas sobretudo havia que ter fé. São Pedro saltou da barca para o mar e caminhou sobre as águas durante o tempo exacto, nem um instante mais, que lhe durou a fé. A quem tenha tanta fé como um grão de mostarda obedecer-lhe-ão as montanhas, se pede ser-lhe-á dado, se bate, a porta ser-lhe-á aberta. Nada deve temer quem enfrenta qualquer repto se o fizer em nome do Senhor. Dizem os Salmos: "eu fui exaltado por Ele como rei sobre Sião, o Seu monte santo, proclamando os Seus mandamentos. O Senhor disse-me: tu és meu filho, eu engendrei-te hoje. Pede-me e eu te darei as gentes como património e os confins da terra como teus domínios".

Nessa primeira parte do texto abundavam as citações dos Salmos. Umas referiam-se, deduziu Alonso, à evangelização dos infiéis no outro lado do Mar Tenebroso: "Meditarão e converter-se-ão ao Senhor os confins inteiros da Terra; e na Sua presença se prostrarão as famílias inteiras de todos os povos, porque o reino é do Senhor e Ele a todos dominará...". "Parai e olhai que eu sou Deus: serei exaltado entre os povos e serei exaltado na Terra." "Proclamar-Te-ei entre os povos, Senhor, e cantar-Te-ei entre as nações." Ou também: "O Deus dos deuses, o Senhor, falou e convocou à Terra desde o nascer do sol até ao ocaso". "Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, todas as terras, anunciai entre as gentes a Sua glória, entre todos os povos as Suas maravilhas." Outras podiam referir-se ao grande exército que, segundo lhe confiara Barto-lomé, cruzaria o mar Oceano com don Cristóvão Colombo à cabeça, à reconquista dos Santos Lugares: "Mostra-Te benigno com Sião na Tua boa vontade e que se levantem as muralhas de Jerusalém". "Proclamar-Te-ei entre os povos, Senhor, e entoarei os salmos em Tua honra, porque até aos céus foi exaltada a Tua misericórdia e até às nuvens a Tua verdade." "Os reis de Tarsis e as ilhas farão as suas oferendas, os reis dos árabes e de Sabá trarão prendas e todos os reis O adorarão e todas as gentes O servirão." "Alegrei-me com o que me disseram: iremos à casa do Senhor. Os nossos pés estavam nos teus átrios, Jerusalém."

Havia muitas mais, mas todas do mesmo teor. Essa primeira parte terminava com uma oração de Salomão retirada do Eclesias-tes: "Recompensa, Senhor, os que Te apoiam, para que se concretizem os ditos de Teus profetas, e escuta a oração dos Teus servos, segundo a benção de Aarão sobre o Teu povo, e guia-nos pelo caminho da justiça para que todos os habitantes da Terra saibam que és o Deus contemplador dos séculos".

Alonso colocou as folhas na ordem em que estavam e arrumou-as depois no seu sítio, dentro da gaveta. Naquela noite não dormiu pensando em como estava próximo o fim do mundo e no reinado do Imperador dos Últimos Dias. Antes, obviamente, preparava-se uma heróica gesta que teria como meta a libertação do Santo Sepulcro. Tirante el Blanco, se existisse, aprová-la-ia e, da mesma maneira que don Pedro de Ias Casas, mostrar-se-ia disponível para entrar na luta por uma causa tão justa.

Havia, não obstante, certas coisas que o enchiam de dúvidas. Não deixava de lhe parecer curioso, ainda que só o fosse pelo tardio da hora, esse súbito ardor religioso que embargava don Cristóvão Colombo, sobretudo se se tomasse em conta que, na sua primeira travessia, não tinha ocorrido ao genovês embarcar nem um só sacerdote.

Por outro lado, não se descartava a possibilidade de editar o escrito em forma de livro e isso dar-lhe-ia um grande prazer. O mero renome do autor e os santos propósitos que anunciava destiná-lo-iam a transformar-se num grande êxito entre o público leitor, cada vez mais numeroso e exigente. É verdade que ainda não tinham a autorização para o publicar e que a sua impressão dependeria da vontade dos reis e da anuência do Almirante mas, ao conseguir-se, contribuiria para que a sua tipografia ganhasse fama e lucro, as duas coisas que tanto precisava para subsistir. E já não teriam que imprimir os clássicos latinos que mal davam para ganhar a vida. Deus punha nas suas mãos a arma adequada para quebrar o monopólio que os impressores alemães tinham sobre a produção e o mercado de livros na vila.

Alonso, Bartolomé e o inseparável Cristobalillo desceram pela Rua das Armas e chegaram ao Arenal pela Porta de Goles. As naus ancoradas no porto fundeavam para além da ponte das Barcas e nada perturbava o propósito que os levava até esse extremo da ribeira: contemplar, na outra margem do rio, onde sobressaíam ciprestes e pomares com árvores de frutos, os altos muros em tijolo e o telhado avermelhado do mosteiro cartuxo de Santa Maria das Cuevas, entre cujas paredes morava prisioneiro o Almirante do mar Oceano, don Cristóvão Colombo. O aprendiz de impressor acabava de referir o conteúdo dos papéis que frei Gaspar Goricio levara na véspera à tipografia e Bartolomé ficou extremamente agitado pelas revelações.

Durante longos momentos ambos guardaram um silêncio preocupado, apenas rompido pelo ocasional lançamento de uma pedra à água, que faziam saltar sobre a superfície cintilante antes de a verem afundar-se entre as ondas. Bartolomé rompeu finalmente o silêncio com uma exclamação de enfado, enquanto Cristobalillo, com o rosto impenetrável de sempre, assistia sem se alterar minimamente ao arrebato do seu amo. Preparava-se uma grande aventura, proferiu Bartolomé, uma acção heróica da qual não podiam ficar à margem, sobretudo se, como afirmava o Almirante Colombo no seu maço de papéis, o fim do mundo estava tão perto. Algo poderiam, e deveriam, fazer apesar da sua juventude. Não recordava Alonso aqueles versos do Livro de Alexandre que se referiam ao menino macedónio, dizendo: "...em ti vejo agudeza, a qual para mim queria / de pequeno demonstras já uma muito grande cavalaria"? E depois acrescentou, como se o aprendiz de impressor necessitasse de mais argumentos extraídos da vida do grande conquistador para se convencer: "Não conto a minha vida nem por anos nem por dias / mas por boas acções e por cavalarias.

A ele não tinha que o persuadir de nada, respondeu Alonso, estava, de antemão, de acordo. A questão, em todo o caso, era saber como participariam ambos nos acontecimentos que se avizinhavam. Calou-se por momentos enquanto se inclinava para apanhar outra pedrinha que, com mão segura, atirou contra a límpida crista das ondas. A verdade é que também ele estava inquieto. Ao reflectir a noite inteira sobre o assunto apercebeu-se de uma situação que jamais se atreveria a expressar em voz alta diante do seu amigo, admirador incondicional de don Cristóvão Colombo: em todas as batalhas referidas no livro de Tirante el Blanco, os genoveses lutavam sempre no lado errado, no dos maus, dos falsos e traidores. Cristãos fingidos, era como lhes chamava Martorell, que não têm piedade nem amor a ninguém, nem são mouros nem cristãos. Mencionou, no entanto, outros pormenores que também já andavam há algum tempo a rondar-lhe a cabeça e que não lhe pareciam de todo bem. Fê-lo porque não pensou que com eles ferisse a fina susceptibilidade de Bartolomé de Ias Casas: os reis dividiam as índias com a anuência do papa e enviavam uns barquinhos para as conquistar, começou por lhe dizer. Era claro que os territórios não lhes pertenciam. Mais tarde ou mais cedo, quando os monarcas do Oriente tivessem notícia daqueles intrusos que vagueavam pelos seus domínios, escravizando os seus súbditos, lançariam sobre eles o grosso das suas hostes e esmagá-los-iam sem remédio. Não temiam, Colombo e os seus marinheiros, dar de caras de um momento para o outro com a frota do Grande Khan? O que é que fariam se enfrentassem o vasto exército de que falava Marco Polo? Como é que resistiriam à carga de cavalaria tártara ou mongólica, sobretudo sabendo que a razão não estava do seu lado?

A ele também não lhe parecia muito correcto, reconheceu Bartolomé, mas justificava-o porque o propósito, no fundo, era nobre: convertê-los a todos à verdadeira religião. Para isso havia primeiro que vencê-los em combates como se fez com os mouros, para depois se dedicarem a baptizá-los.

Já que mencionava os mouros, respondeu Alonso, o seu sábio amigo Ahmed, agora convertido ao cristianismo, sustentava que tanto os índios como os muçulmanos eram livres, deviam ser tratados como tal e atraídos à verdadeira religião não pela via da força, mas sim pela bondade e pela justiça que Nosso Senhor Jesus Cristo havia pregado.

Talvez nisso tivesse razão Ahmed, disse Bartolomé pensativo, mas com respeito aos territórios de que falavam era importante considerar que, antes do rei ou do Grande Khan, todas as terras pertenciam a Deus Todo-Poderoso, dono de tudo quanto nos rodeia, e que o seu representante neste mundo, isto é, o Papa Alexandre VI, tinha dado potestade a D. Fernando e a dona Isabel sobre as comarcas para além do Mar Tenebroso. Com a única ressalva de que não se encontrassem sujeitas ao domínio actual de nenhuns senhores cristãos, tinha especificado claramente sua Santidade. Nenhum monarca do Oriente, isso Alonso sabia-o bem, era um senhor cristão. Apesar de tudo, suas majestades católicas tinham entregado uma carta ao seu Almirante para que a apresentasse ao Imperador da China. Cristóvão Colombo levava-a sempre consigo, à espera de a entregar em pessoa ao seu real destinatário. Nela, D. Fernando e dona Isabel talvez lhe explicassem a situação, pedindo o seu consentimento para propagar a fé ou talvez chegassem a acordo com ele sobre esse assunto particular, e quem eram eles, Alonso e Bartolomé, para opinarem sobre o que se acordava nos negócios dos reis. Nem a um nem a outro lhes correspondia julgá-los.

O aprendiz de impressor abanou a cabeça com um ar de dúvida, mas já não se atreveu a dizer nada. A imagem do Almirante vestido de gala, desembarcando em todas as ilhas que encontrava, seguido por timbales e bandeiras, para reclamar essa terra em nome de Castela e Aragão era algo que lhe parecia pouco sério. Também não aprovava, e as suas conversas com Ahmed juntamente com a sua recente intimidade com a criada Catalina tinham muito que ver com o assunto, a investida de uma tropa de homens protegidos com couraças de metal, esgrimindo espadas e lanças e disparando os seus mosquetes contra uma multidão de índios seminus que se defendiam com macanás e lançavam flechas com ponta de espinha de peixe. Honra e Proveito era a divisa que movia os invasores, mas certamente imperava mais neles o amor ao segundo que à primeira. De qualquer modo, essa não tinha sido a postura de Tirante el Blanco, que sempre colocou a honra e a virtude acima do enriquecimento. O que no caso deles urgia, dizia Alonso a si mesmo, era estarem preparados mas, sobretudo, unidos para enfrentarem qualquer contingência que se lhes deparasse no futuro. Não podia permitir que as pequenas discrepâncias que começavam a manifestar-se entre ele e Bartolomé os afastassem nesse momento crucial. Havia que encontrar um laço de união, uma espécie de vínculo permanente que os comprometesse a encarar juntos os perigos que se avizinhavam.

Desejava propor-lhe formar uma confraria, sugeriu em voz alta: "Os Cavaleiros das Esporas de Ouro". Para começar só teriam três membros: eles três, naturalmente. Cristobalillo participaria com o carácter de pajem ou escudeiro, mas não haveria impedimento para que mais tarde, uma vez atingidos os méritos necessários, ingressasse ele também na ordem de cavalaria. Ainda que nenhum deles fosse cavaleiro dos quatro costados, ou seja, por parte de pai e de mãe, de avô e de avó, e tão-pouco houvesse um rei que confirmasse os seus votos com uma espadeirada depois de uma velada de armas durante toda a noite na capela de um castelo, Alonso pensava que isso não tinha a menor importância. O que legitimava os cavaleiros e os tornava grandes era a nobreza dos seus ideais, a generosidade das suas empresas, o seu procedimento sem mácula. Nisso aplicar-se-iam eles, a defender o bem sobre todas as coisas e a menosprezar as riquezas terrenas.

Bartolomé olhou-o com evidente cepticismo. A ideia não lhe parecia má, inclusive respondia às suas inquietudes iniciais, mas ser cavaleiro sem cavalo e sem espada, Cavaleiros das Esporas de Ouro sem esporas de ouro porque não tinham dinheiro para as adquirir nem botas para as calçar parecia-lhe um tanto ou quanto absurdo.

Tratava-se de seguir o exemplo dos heróis da antiguidade e imitar as façanhas e as proezas que lhes tinham dado fama imortal, insistiu Alonso. Não era a isso, acaso, que Bartolomé estava a aludir no princípio da conversa? Assemelhar-se, na medida do possível, a Alexandre, a Aquiles, a Heitor, a César, a Aníbal, a Hércules. Todos tinham sustentado o ideal de cavalaria sem necessidade de pertencer a nenhuma ordem conhecida.

Bartolomé concordou, pensativo. Alonso tinha acertado em cheio ao falar em Alexandre. Ele sempre tinha sonhado em seguir de algum modo as pisadas do ilustre macedónio.

Eles, Bartolomé e Cristobalillo, ofereceram-se uma vez para o acompanhar em qualquer aventura que empreendesse, por muito perigosa que fosse, e quem promete em dívida se mete, acrescentou Alonso, interpretando o prolongado silêncio do seu companheiro como uma nova negativa. Já tinham esquecido aquela tarde, sobre a ponte das Barcas, a caminho de Triana?

Não o tinha esquecido, disse Bartolomé, levantando a cabeça e estendendo uma mão que o seu amigo se apressou a apertar com vigor. Não desejava que Alonso imaginasse que a questão o mortificava demasiado ou que sentia medo, não era o caso. Mas Heitor, o Troiano, em circunstâncias semelhantes pensava: que diriam de mim Palomides, capitão dos gregos, Agamémnon e Diomedes?

Era certo que as suas mãos eram toscas, disse Alonso de si para si, pensando em Catalina, mas ao mesmo tempo pareciam-lhe imbuídas de uma distinta feminilidade que nada tinha a ver com a das habitantes de Sevilha. A sua aspereza tinha-se originado executando quem sabe que tarefas, que outros misteriosos ofícios de mulher para lá das brumas do Mar Tenebroso. Aquelas mãos rudes exerciam um estranho feitiço sobre a sua imaginação. Quase tanto como os seus seios, que costumava comparar aos da princesa Carmesina, para Tirante el Blanco semelhantes às maçãs do paraíso. Contava Martorell que a primeira vez que, por casualidade, o herói pôs os olhos neles foi tão incapaz de os afastar que se enganou na saída do quarto. Ele também não encontrava a saída desse febril arrebatamento que a escrava caraíba despertara nele. Mas essa nova sensação, até então desconhecida, fazia-o tão feliz que nem sequer pensava em encontrá-la. Para quê, e isto também o deixava claro o autor de Tirante el Blanco, se não existe riqueza maior neste mundo do que estar contente? E Alonso estava contente Com o objecto que o inundava e com o novo sujeito do mesmo. Não era estranho que passasse o tempo a pensar nela, nas suas mãos, nos seus seios, nas obrigações que teria tido naquele outro mundo onde era princesa, e em tantas outras coisas que a sua inata moderação Alonso evitava pensar que poderia ser um defeituoso conhecimento da língua, a obrigava a calar. Coisas, pensou, que se ela lhe contasse ele teria escutado tão embevecido como perante os capítulos centrais de um trepidante romance de cavalaria.

Em contraposição a essas mãos descuidadas e encardidas, a caraíba fazia gala espontânea de outros atributos, e "e certas outras atitudes, que mostravam a léguas a sua antiga natureza, o tronco direito, o garbo ao caminhar com a cabeça levantada Que lhe conferia o ar altivo de uma rainha, apesar das suas modestas vestimentas, e esse olhar frequentemente desdenhoso que a todos confundia por vir dos olhos de uma escrava. Para o aprendiz de professor aqueles eram sinais inequívocos de linhagem e comovia-Se ao Pensar nas brutais vicissitudes a que a sorte a condenara. De mulher livre a cativa, de princesa a empregada de estalagem, de ser rocieada por criados e assistida por damas de companhia a ver-se obrigada ela própria a servir. Haveria injustiça mais patente? Maior prova das veleidades e aberrações da mutável fortuna? Por outro lado, como

é que ele a teria conhecido se ela tivesse ficado a viver la longe, ao outro lado do mar Oceano, metida no seu cantinho? No Palacio do Oriente? E que possibilidades teria tido de conseguir o seu amor> vindo ambos de berços tão distintos? A verdade é que a adversidade de Catalina os tinha juntado. O seu infausto cavaleiro fê-los encontrarem-se em igualdade de circunstâncias numa cidade onde, se bem que ele fosse tão somente um humilde aprendiz "e professor ela não era mais do que a última criada da taberna do seu irmão - de facto, ele não tinha que se queixar dos impenetráveis desígnios do destino. O que para ela significou uma desgraça, para ele tinha-lhe aberto de par em par as portas da felicidade. Talvez ele pudesse emendar alguma coisa nas arbitrariedades do fado, pagando-lhe a ela com a mesma moeda que ele tinha recebido. Dedicaria o resto da sua vida a fazê-la tão feliz que já não pudesse prescindir do novo rumo que levara a sua vida nem sentir saudades da que deixara no outro lado do Mar Tenebroso. Porque, ao que não toca o amor.

Alonso recordou as palavras de Marcial, e evocou muito contente os eruditos e os filósofos citados no livro de Tirante el Blanco. Não dizia Séneca que amar traz frutos ao mancebo? E, Ovídio, que a ousadia e a fecundidade eram obras do amor? E, Aristóteles, que cada qual deseja e ama o seu semelhante? E não afirmava o divino Platão que o amor engendra grandes bens e que o enamorado preferiria morrer mil mortes do que desamparar a sua amada? Não há ninguém tão lento e tão frio, acrescentava este último sábio, a quem o amor não inflame e a virtude não desperte. E Alonso não pôde senão recapitular com orgulho o grande número de cavaleiros de sua católica majestade, a rainha Isabel, que por serviço e maior honra de suas damas realizaram feitos de armas que pareciam impossíveis durante a conquista de Granada.

Assim actuaria, seguindo o modelo que ele próprio se tinha imposto na Irmandade das Esporas de Ouro. A falta dos santos, de autênticos cavaleiros e de sábios, Catalina ficava sob a sua tutela e protecção. Ele se encarregaria de que não lhe faltasse nada, de que não sofresse as humilhações que, na sua cruel condição de criada e escrava, a vida lhe podia apresentar pela frente. Isso enquanto reunia a quantia suficiente para a comprar ao seu irmão. Nunca tinha tratado o assunto com Diego, mas estava decidido a adquiri-la fosse a que preço fosse. Não duvidava que o ambicioso taberneiro a libertava se ele oferecesse dinheiro suficiente por ela. Então pô-la-ia em liberdade. Dar-lhe-ia a oportunidade de partir ou de ficar com ele. Mas estava seguro de que a sua proposta não passaria de vã retórica, porque não duvidava que ela escolheria permanecer ao seu lado para sempre.

De momento continuava a visitá-la no desvão da estalagem, com a anuência do seu irmão, e tinha-a levado de novo à tipografia de Melchior Goricio quando a oficina se encontrava deserta para fazer amor sobre o desconjuntado catre no qual tantas vezes se deitou sozinho pensando nela. Catalina tinha-se deixado conduzir sem opor qualquer resistência e depois fruir com o mesmo peculiar abandono com que se lhe tinha entregue da primeira vez no sótão. Alonso não conseguia compreender essa abulia, essa apatia, esse abandono perante o acto carnal. Como se o corpo da mulher estivesse ali presente, mas a sua cabeça, o seu coração e o seu espírito, e teria dito também, se se atrevesse, os seus mais profundos sentimentos, se encontrassem noutro lugar. Alonso dava-se conta de que existia algo mais, lá bem no fundo dela própria, que permanecia intocável pela escravidão, a salvo das indignidades a que a sua nova vida a tinha submetido. E era a esse recôndito enclave da sua alma que Alonso teria querido chegar para a comover. Nesses momentos sentia-se muito capaz de empregar o resto da sua vida nessa terna busca e, se não o conseguisse, pensava, pelo menos morreria nessa tentativa. Mas, então, teria que pôr sobre a sua lápide o mesmo epitáfio que Tirante el Blanco idealizou para si mesmo e que, conta Martorell, com os olhos banhados em lágrimas acompanhadas por dolorosos suspiros, solicitou a Carmesina que se escrevesse sobre a sua tumba: "Aqui jaz Tirante el Blanco, que morreu por muito amar".

Amerigo Vespucci deteve-se, perplexo, no umbral da Taberna da índia. Era assim que lhe tinham dito que se chamava aquele antro do bairro de Triana, mas desconcertava-o o emblema do Cão Vermelho pendurado no dintel. Pestanejou uns instantes enquanto os seus olhos se habituavam à pouca luz interior antes de divisar, numa mesa ao fundo, os três homens com quem tinha marcado encontro. Definitivamente, aquele era o lugar combinado. Olhou de novo o nome na insígnia para se assegurar de o ter visto bem antes de entrar no tugúrio, abanando a cabeça desconcertado. Até ali perseguiam-no as confusões. Pelo menos nessa ocasião não seriam graves se não fossem acompanhadas por péssimas notícias. Uma ordem de suas católicas majestades proibia a presença de estrangeiros em qualquer embarcação que zarpasse para o ultramar e a ele nunca lhe tinha passado pela cabeça solicitar a sua Carta de Naturalidade dos Reinos de Castela. O edital deitava por terra todos os seus projectos e malograva os seus desejos de retomar as suas explorações nos misteriosos confins do Mar Tenebroso. Juan de Ia Cosa, com quem então planeava uma nova viagem à Terra das Especiarias, tinha-lhe marcado encontro naquele lugar para discutir os pormenores da mesma. Disse-lhe que viriam também Rodrigo de Bastias, um rico escrivão do mesmo bairro de Triana interessado em arriscar uma parte do seu património na nova expedição, e o cartógrafo português João Almada, a quem de Ia Cosa tinha solicitado ajuda para a elaboração de um mapa-múndi e de algumas cartas de marear baseadas nas suas próprias observações, realizadas durante as viagens anteriores. Uma questão que de nenhum modo se poderia tratar com ligeireza: um trajecto de apenas uma semana com brisas favoráveis poderia demorar até três meses se se vissem obrigados a barlaventear ventos contrários.

Juan de Ia Cosa tinha nascido num bairro marítimo do porto de Santofía, nas margens do Cantábrico, e os acasos da vida transformaram-no muito cedo num velho lobo do mar Oceano. Para a primeira viagem de Cristóvão Colombo tinha posto ao serviço dos reis uma nau da qual era co-proprietário, a Santa Maria, embarcando ele mesmo na expedição como mestre da sua própria caravela. O barco encalhou nos baixios coralinos da Hispaniola na noite de Natal de 1492 devido à falta de perícia de um jovem grumete que a deixou virar para a costa. Talvez o Almirante Colombo o tenha culpado a ele, como oficial de serviço naquela hora aziaga, do naufrágio da sua nau capita. Talvez levasse a mal que se precipitasse para um bote salva-vidas procurando refúgio na caravela Nina em vez de fazer uma tentativa para salvar a caravela que se afundava, coisa que de nada serviu porque Vicente Yáfíez Pinzón não o quis receber a bordo, e ainda o mandou embora com maus modos, obrigando-o a voltar ao Santa Maria para cooperar no resgate do que dela restasse. Talvez, simplesmente, não tenha tido sorte. O certo é que durante os preparativos da segunda viagem, apesar da sua experiência e do numeroso contigente de barcos aparelhados, ninguém lhe ofereceu trabalho para empunhar a alavanca do leme. De todos os modos, decidiu alistar-se como simples marinheiro e continuar as explorações iniciadas durante a viagem anterior. Depois, juntamente com Alonso de Ojeda e o próprio Amerigo Vespucci, tinha-se feito ao mar naquela expedição que tão magros benefícios tinha trazido, mas que tanta riqueza em experiências e conhecimentos proporcionara ao inquieto navegante florentino.

Agora preparava outra aventura com alguns dos seus antigos associados, mas as más notícias nunca vêm sós e Américo Vespucio, como lhe chamava Juan de Ia Cosa, castelhanizando o seu nome, apressou-se a informá-lo de que a real proibição de embarcar que pesava sobre ele como estrangeiro não era a única má notícia que trazia: também não tinha conseguido a sua parte de dinheiro para investir naquela empresa. O grupo dos Médicis que em Florença era encabeçado pelo seu protector, o Popolano, tinha sido derrotado pelos seus inimigos políticos e já não fazia sentido esperar qualquer ajuda nem financiamento da sua parte.

La Cosa deu um murro sobre a mesa que Diego Álvarez interpretou como um chamamento e virou a cabeça para ver o que era preciso. Aproximou-se, obediente, a propor mais vinho, ou outras iguarias, mas, ao confrontar-se com as caras mal-humoradas dos seus clientes, voltou-lhes as costas, agitando a sua grande colher de madeira, e regressou à cozinha sem dizer uma única palavra.

Peralonso Nino acabava de regressar de uma viagem com o porão do barco repleto de pérolas, exagerou Juan de Ia Cosa enfadado, porque é que a alguns lhes saía sempre bem qualquer negócio que empreendessem enquanto que a outros lhes tocava lidar o tempo todo com calamidades?

Havia que procurar outro sócio, acalmou-o Rodrigo de Bastias, ainda que perdessem mais tempo. Se não, era tudo uma questão de fazer contas: diminuindo custos e reduzindo o número de caravelas, talvez eles pudessem suportar sozinhos os gastos da expedição.

Sobretudo agora, com Colombo na prisão, sugeriu João Almada, os reis estariam mais dispostos a fazer concessões para facilitar outras viagens e veriam com bons olhos esse novo projecto de exploração.

Ele tinha ido visitá-lo uns dias antes ao mosteiro de Las Cue-vas, mencionou Vespucci referindo-se a Colombo, parecia seguro da clemência dos reis e não cessava de dizer que se faria de novo ao mar e muito prontamente.

O que acontece ao Almirante é que o membro genital de asno reduzido a cinza que tanto recomendava que se esfregasse na calva acabada de rapar para acabar com os cabelos brancos estava a infiltrar-se-lhe no cérebro, observou João Almada com velhacaria.

É melhor o pó de corno de cabra misturado com sementes de tamarindo, manteiga e azeite, interveio Rodrigo de Bastidas sem entender o gracejo e levando uma mão à cabeça.

Almada arqueou uma sobrancelha e olhou-o como se o visse pela primeira vez.

Deixou demasiados descontentes na Hispaniola, observou Juan de Ia Cosa; os que por lá se amotinaram interpuseram uma infinidade de querelas contra ele. Acusam-no de prevaricador, de injusto, de ímpio, de inimigo e de desonrar o sangue espanhol. O perdão dos reis não chegará tão cedo, pelo menos enquanto não ouvirem e julgarem todas as reclamações pendentes.

Além do mais, a rainha está desgostosa porque a salvação das almas nos seus novos domínios não avança com a rapidez prometida, acrescentou João Almada.

É acusado, inclusivamente, de se negar a baptizar os índios para continuar a conservá-los como escravos, adiantou Rodrigo de Bastidas ansioso por se mostrar bem informado.

Na realidade não era nada difícil convertê-los, afirmou Vespucci, observando com pesar que nenhum dos presentes tinha grandes simpatias pelo Almirante Colombo. Continuou, então, referindo um curioso incidente que tinha presenciado: em Paria, os indígenas receberam-nos de uma maneira extraordinária. Era uma gente de bom aspecto e disposição, actuavam como se já os conhecessem ou tivessem convivido durante bastante tempo com eles. Tanto assim é que, ali mesmo, no centro da povoação, improvisaram uma pia de baptismo e vieram todos num grande tumulto abraçar a verdadeira religião.

Assim, sem mais nada? Sem qualquer preparação? Sem doutrinação? Interrogou-o João Almada, espantado por um acontecimento tão fora do comum. Como é que se sabia que desejavam, verdadeiramente, serem baptizados?

Quase se fez a seu pedido, respondeu Vespucci, todos se mostravam atentos e disponíveis, como se tivessem sido iluminados por Deus e nada mais esperassem para receber o bendito sacramento.

Almada acariciou a barba, pensativo. O cartógrafo português era pouco inclinado a crer, sem testemunhos contundentes, nas repentinas inspirações do Espírito Santo.

De qualquer forma, vistos os crescentes custos das expedições ao ultramar, haveria que embarcar o mais rapidamente possível, interrompeu Juan de Ia Cosa, tentando conduzir de novo a conversa para o assunto que os tinha levado ali. A Almada, pelo contrário, intrigava-o sobremaneira o relato do navegador florentino e perguntou-lhe se conhecia mais casos, no piedoso pastoreio das almas,

dessas súbitas abjurações de selvagens que abandonavam as suas antigas superstições para virem a toda a pressa acolher-se no regaço da Santa Madre Igreja.

Desde logo, respondeu Vespucci, alguém lhe contou mais tarde que na vizinha região de Cumaná, os aborígenes empregavam cruzes para afastar os maus espíritos e proteger os seus filhos no momento do nascimento. Ao ver o símbolo sagrado, e ao não saber como explicar a sua procedência, não faltou quem deduzisse que tinham tido contacto com algum dos santos apóstolos que até ali teria chegado, cumprindo com o mandato de Nosso Senhor Jesus Cristo quando lhes ordenou: "ide e pregai a todas as gentes".

Era isso precisamente, segundo lhe tinham dito, o que pretendia fazer agora o astuto genovês, disse Juan de La Cosa: persuadir os reis de que o objectivo primordial das suas expedições era, e tinha sido sempre, a conversão dos infiéis.

Pois, com toda a evidência, alguém se lhe tinha adiantado na tarefa, aventurou Rodrigo de Bastidas, coçando a cabeça.

A segunda entrega de frei Gaspar Goricio chegou dias depois à tipografia do seu irmão. Junto com o consebido maço de folhas soltas, o frade cartuxo levava consigo um vistoso volume com capa de couro lavrado. Alonso, por muito que abrisse os olhos, não conseguiu perceber de que livro se tratava. Não obstante, ouviu que o frade cartuxo o encomendava de maneira muito especial a don Melchor. Confiava na sua erudição, disse-lhe, colocando um dedo na capa, para que o ajudasse a anotar à margem do texto os nomes dos lugares, reinos e cidades, juntamente com os de monarcas e governantes contidos no mesmo.

Mal don Gaspar partiu, o dono da oficina chamou à parte o mouro Ahmed para que o assistisse na tarefa. Colocou duas cadeiras em frente da mesa junto da grande janela, onde teriam melhor luz, explicou-lhe o que é que se esperava deles e ambos puseram mãos à obra. Alonso abordou-os com uma artimanha qualquer mas, ao perceber o título da capa, esqueceu o pretexto com o qual se lhes tinha aproximado. Tratava-se de uma edição latina do livro de Marco Polo, talvez um exemplar pertencente ao mesmíssimo Almirante Colombo. Um verdadeiro achado que teria enchido de felicidade

Bartolomé se se encontrasse presente. Retirou-se, balbuciando desculpas, mas com o firme propósito de convidar nessa mesma noite o seu amigo a ir à tipografia para que contemplasse o portento.

Com efeito, nessa noite os dois acendiam uma vela ao entrarem na solitária oficina. Alonso, a quem mortificava estar a atraiçoar a confiança do seu bondoso protector, afastou da sua consciência um último remorso antes de tirar a chave do esconderijo habitual e ambos espalharam os papéis sobre uma mesa. A Bartolomé tanto interessava o livro como o maço de folhas pelo que, depois de admirar a riqueza do forro, puseram-no a um canto para o observar mais tarde.

Primeiro folhearam os papéis. O aprendiz de impressor distinguia já com facilidade a bela, deliberada, fluída, límpida, quase rebuscada caligrafia de Colombo da rápida e nervosa do frade cartuxo. A Alonso ocorreu que o Almirante bem poderia encontrar trabalho desenhando tipos nessa mesma oficina, tão clara e correcta era a sua letra.

Nessa nova entrega don Cristóvão Colombo expressava-se com maior liberdade que na anterior e, pelas numerosas correcções de Gaspar Goricio, Alonso e Bartolomé aperceberam-se de que o Almirante se expressava não em espanhol, nem em português, nem em italiano, mas sim numa peculiar mistura dos três idiomas a que de quando em quando acrescentava expressões tomadas do catalão ou do basco. Bartolomé supôs que, no alto mar, para comunicar com os seus homens, Colombo utilizaria essa híbrida gíria marinheira comum a todos os navegantes do Mediterrâneo.

Colombo percorria de novo a Bíblia, o livro em que, como se sabe, estava contida a totalidade do conhecimento humano e no qual se dava resposta a todas as interrogações. Nele podia-se mergulhar não só no passado do Homem como também no seu futuro e, como tentava fazer o Almirante sustentando-se nos ditos dos profetas, no seu destino final.

Os Salmos, tão mencionados na primeira parte, tinham ficado para trás. Estas últimas folhas apoiavam-se nas alusões a evangelistas como S. Marcos, "E disse-lhes: ide ao mundo inteiro pregando o Evangelho a toda a criatura. O que creia e seja baptizado, será salvo, mas o que não creia será condenado", ou S. Mateus, "Foi-me dado o poder no Céu e na Terra. Ide, portanto, ensinar a todas as gentes, baptizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, dando-lhes a observar tudo o que vos mandei". Além disto, citava Santo Agostinho: "Pregar-se-á este evangelho no mundo inteiro como testemunho a todos os povos, e então chegará o fim", e inclusive "O Senhor impor-se-á contra eles e aniquilará todos os deuses da gente da Terra e adorá-lo-ão, cada um em seu lugar, em todas as ilhas das gentes". Uma observação do mesmo santo servia como exórdio às palavras de quem era na realidade a sustentação de todo a alegação colombiana: o profeta Isaías. Dizia Santo Agostinho nas suas Confissões: "E ele remeteu-me para o profeta Isaías, segundo creio, porque este é um profeta do Evangelho e do chamamento aos gentios mais claro que os outros".

Os restantes papéis estavam repletos das sentenças e predições deste profeta em que uma mesma ideia, "E aqui criou uns novos céus e uma nova terra", repetida depois no Apocalipse: "E vi um céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra desapareceram e o mar já lá não está", era repisada até à saciedade, referindo-se às ilhas de Tarsis, Ofir e Quetim, nas quais o Almirante pensava ter desembarcado para cumprir assim os sagrados vaticínios: "Glorificai o Senhor da doutrinação, Deus de Israel, nas ilhas do mar", "Calem perante mim as ilhas, e mudem as gentes a sua fortaleza", "Escutai, ilhas, e prestai atenção, povos longínquos. O Senhor enviou-me, já desde o seio materno, desde o ventre de minha mãe se lembrou do meu nome. E converteu a minha boca em afiada espada, à sombra da Sua mão me protegeu, e me converteu em magnífica flecha e na Sua aljava me guardou".

Também não faltaram alusões a outros profetas como Jeremias: "Passai às ilhas de Quetim e chegai até Cedar e observai atentamente e vede se as coisas se passaram desta maneira, se as gentes mudaram os seus deuses e estes não são deuses verdadeiros", ou Ezequiel: "Não és enviado a um povo de palavra incompreensível e língua desconhecida à casa de Israel, nem aos muitos povos de palavra incompreensível e língua desconhecida cujas palavras não possas entender, mas se te envio a eles, eles te entenderão", e, inclusive, Daniel: "E dirigirá o seu olhar para as ilhas e se apoderará de muitas".

O Almirante, com efeito, tinha-se apoderado de muitas, pensou Alonso voltando a página. Fazia bem, já que não tinha encontrado ainda a rota para terra firme, a que lhe teria aberto as portas de Sin-guy, de Quinsay, de Ofir e das minas do rei Salomão, em persistir, sobretudo, na descoberta das ilhas profetizadas nas escrituras.

A Bartolomé, entretanto, invadiam-no pensamentos diferentes: recordou que, dois anos antes, don Cristóvão Colombo tinha obsequiado a rainha com uma pepita de ouro com mais de meio quilo de peso que causou, para além das habituais invejas, uma grande admiração na corte. Desta vez, a sua prenda seria, sem dúvida, mais apreciada porque implicaria uma riqueza espiritual que não tinha comparação com a material.

Por fim, fartos de passarem os olhos por citações bíblicas, os dois amigos deixaram de parte as folhas e concentraram-se no volume. Tratava-se de uma edição do livro de Marco Polo impresso em Amberes e datado do ano de 1485. Alonso reconheceu de imediato o traço nítido e seguro do Almirante em muitas das anotações à margem. Devia, pois, como supôs nessa mesma manhã, tratar-se de um exemplar do próprio Cristóvão Colombo.

Junto às anotações do genovês, Alonso reparou noutras feitas com a letra agitada e apressada de frei Gaspar Goricio e várias mais, de tinta mais recente, com a rebuscada escrita do proprietário da tipografia.

Chamou a atenção de Alonso o facto de as anotações estarem quase divididas por temas. Enquanto o frade cartuxo se dedicava a corrigir as erratas e o seu irmão Melchor se aplicava, sem mais comentários, a evidenciar os nomes que lhe tinham sido solicitados, o Almirante Colombo glosava parte do texto com indicações que fizeram as delícias de Bartolomé, apesar de conhecer bem o tema. Alonso, pelo contrário, no seu pouco latim, ajudado pelo seu amigo e pelos vastos conhecimentos que este tinha do livro, leu sobre a existência, na região de Rotbarle, de uns feiticeiros diabólicos conhecidos como caroanas, que, para saquear uma região, faziam com que escurecesse durante uma semana, de modo que ninguém os pudesse ver. Averiguou também que a coluna principal da igreja de São João Baptista, na cidade de Samarcham, se sustenta vários palmos no ar graças a um milagre do santo. Tremeu ao imaginar as serpentes gigantes que, na província de Carayam, habitam nas cavernas debaixo da terra e têm junto à cabeça duas pernas humanas terminadas em garras e que são capazes de engolir um homem inteiro de uma só vez. Soube das pedras enfeitiçadas que alguns guerreiros cosiam entre a pele e a carne para se tornarem imunes às feridas feitas pelos ferros. Descobriu a riqueza do reino de Murfili, cujos vales inacessíveis estavam atapetados de diamantes e aprendeu que os aldeãos os apanham lançando carne fresca sobre eles para que aí adiram as pedras preciosas, de modo que, depois de as águias brancas a devorarem, eles possam recuperar as gemas entre os excrementos. Informou-se da existência de outras aves, tão grandes e poderosas que cada uma, por si mesma, é capaz de capturar um elefante, elevá-lo pelos ares e deixá-lo cair de uma grande altura para depois se nutrir com o seu cadáver. Estas e outras maravilhas estavam ali claramente descritas e frequentemente glosadas pela pluma de don Cristóvão Colombo. Mas Alonso via ainda mais longe que Bartolomé. Com olho infalível, o Almirante anotava, mesmo assim, todas as menções ao ouro, fosse em pepitas, em pó, em brocados ou nas pranchas que revestiam os tectos e as paredes das casas. Também tomava boa nota da prata e da localização das suas minas. Também não lhe escapava a qualidade e a quantidade das pedras preciosas: diamantes, rubis, safiras, turquesas e topázios. Pérolas, panos, sedas, marfins, especiarias, todos os tesouros do Oriente ficavam consignados pela pluma do homem que, nas folhas soltas que tinham visto primeiro, alegava não ter mais interesse nem meta na vida que a recuperação do Santo Sepulcro e a conversão dos infiéis à verdadeira fé.

A índia Catalina estava grávida, murmurou Diego Álvarez, esboçando um sorriso consternado que teria querido parecer risonho. Prontamente daria à luz um filho, acrescentou; oxalá fosse rapaz, porque assim poderia recuperar, finalmente, uns quantos dos muitos maravedis que tinha investido nela. Os seus amigos olharam-se entre si, aturdidos pela notícia. Diego, sem lhes dar tempo para fazer perguntas, apressou-se a esclarecer o seu ponto de vista: segundo a lei, o filho parido por escravas nascia escravo também e pertencia, por direito, ao dono da mulher cativa. Assim, em vez de um teria dois, com o que duplicaria o seu investimento.

Houve uma agitação inquieta entre os comensais. Se a algum lhe passou pela cabeça que o rebento esperada pela criada pudesse ser também seu, bem evitou de o mencionar. Nenhum deles abriu a boca para dizer uma palavra. Martin de Monroy cofiou o bigode, incomodado, enquanto que João Almada e Pedro Zuniga bebiam de um trago o conteúdo dos copos que tinham à mão.

Deviam ter-lhe aplicado a tempo carrapatos de boi preto, assinalou o estremenho, deixando tranquilo o seu bigode para enrolar um dos pestilentos tabacos que provocavam náuseas aos seus companheiros de mesa.

Era algum novo medicamento para impedir a gravidez? perguntou Diego Álvarez interessado.

De modo nenhum, respondeu Martin de Monroy, é um remédio para dissimular o ardor feminino. Diz-se que depois de se capturar um boi preto tiram-se-lhe os carrapatos e com o sangue destes untam-se as ancas da mulher, o que faz diminuir por completo o seu desejo carnal.

Nesse caso, suponho que o do homem também, conjecturou João Almada, imaginando-se metido entre as pernas de uma fêmea com as ancas empapadas em sangue.

Ele tinha ouvido dizer que dar-lhes de beber urina de chibo macho produzia o mesmo efeito, manifestou Diego Álvarez, ignorando a intervenção do português. Talvez eles tivessem tido mais sorte que ele, interveio Pedro Zuniga, mas a verdade era que, à selvagem, não se podia acusá-la de ser uma amante insaciável, nem sequer demasiado fogosa. Seriam antes eles, que não paravam de subir até ao seu sótão, os que teriam necessitado de uma cura de carrapatos de boi preto ou de qualquer beberagem do género.

Não faltava mais nada, disse Almada com indolência, sabiam de alguma outra poção eficaz para diminuir a concupiscência do homem, para além de contemplar o seu par untado com um sangrento xarope ou a cheirar a urina de cabrão?

Se existisse, ele jamais tinha ouvido nomeá-lo, comentou Martin de Monroy, levando-o a sério. Conhecia, muito pelo contrário, uma sopa de testículos de touro aromatizados com canela e noz moscada que aumentava o vigor masculino durante o encontro amoroso e também o prazer. Com a buglossa posta em vinho obtinha-se, certamente, quase o mesmo resultado a um preço bastante menos oneroso.

O quê?, perguntou Pedro Zuíãiga, preparando-se para tomar nota da novidade.

A buglossa é uma raiz, expôs João Almada, também conhecida como Língua de Boi. Mas tudo a seu tempo, de onde tinha tirado tantas mixórdias?, inquiriu dirigindo-se a Martin de Monroy, acaso as tinha trazido das índias como os seus fedorentos tabacos?

De maneira nenhuma, respondeu o estremenho, já os conhecia há muitos anos. O estofado de testículos de touro recomendaram-lhe quando estava na guerra em Itália. As outras eram tão velhas que se lembrava muito bem de as ouvir na sua aldeia natal quando ainda era uma criança.

Muito velhas, para falar a verdade, murmurou Almada, levantando o copo e bebendo de novo. Martin de Monroy aproveitou a pausa para acender o seu tabaco e dar as primeiras baforadas.

Pedro Zuniga quebrou esse instante de silêncio: quando esteve nas índias, relatou, tinha ouvido dizer que as mulheres canibais pariam sem dor e que, não importava quantos filhos deitassem ao mundo, o seu corpo disso não se ressentia nem conservava nenhuma marca das suas concepções.

Dão à luz de cabeça para baixo, de quatro patas, as mãos agarradas ao chão, enquanto outra selvagem que faz de parteira lhes tira o filho por detrás; depois regressam aos seus afazeres como se nada tivesse acontecido, declarou Martin de Monroy, expelindo uma longa baforada de fumo que fez tossir bruscamente o estalajadeiro.

É verdade que se punham logo a trabalhar? perguntou Diego Álvarez, contendo os espasmos e o pigarro, essa sim, é que era uma boa notícia.

Pedro Zuniga voltou-se para o olhar. O que é que ia fazer com o novo escravinho ou escravinha, ou fosse lá o que fosse que a criada caraíba pudesse parir? perguntou. Será que se dava conta de que bem poderia ser um filho seu?

Diego Álvarez encolheu os ombros, como se não desse importância ao comentário. Dele ou de qualquer deles, já teriam tempo de lhe ver a cara ao nascer. Mas não lhe tinha passado pela cabeça vendê-lo, se é que isso o preocupava. Não vinha ao caso. De momento pensava conservá-lo na pousada. Pouco a pouco dar-lhe-ia tarefas de acordo com as suas forças e tamanho. Depois, conforme fosse crescendo, encomendar-lhe-ia responsabilidades mais sérias.

Esperava que o filho fosse de mais luzes e obediência do que a sua mãe.

Já teriam tempo de lhe ver a cara ao nascer, isso não seria má ideia, reflectiu em voz alta Pedro Zuriiga, uma maneira bastante sugestiva de tirar as dúvidas. Poderiam fazer apostas para ver se o filho sairia meio valenciano, meio estremenho, meio português...

Ou meio bruto, interveio João Almada, olhando-o fixamente, pelo lado caraíba, naturalmente, ele sentia um grande respeito pelos bascos, ainda que alguns não honrassem a sua linhagem.

Pedro Zuniga abria a boca para protestar quando Martin de Monroy estabeleceu a paz entre os camaradas com uma oportuna intromissão: o rapaz poderia crescer na estalagem ao abrigo das maldades do mundo e converter-se num verdadeiro cristão, devoto da Virgem de Guadalupe, apesar de ser filho de canibal. A ele parecia-lhe uma feliz solução. No fim de contas, Diego Álvarez estava a demonstrar ser um homem prudente e sensato.

Ali estaria melhor do que em qualquer outro lado, ratificou o estalajadeiro. Um escravo era um escravo, desde logo, mas depois veriam, nenhum teria motivo para se queixar do acordo.

Escrava ou não escrava, a índia Catalina esperava um filho que podia ser seu e, se assim fosse, não tinha nem o sangue nem a qualidade para ser cativo de ninguém, bramiu Alonso ao saber da notícia. O amor é a mais forte obrigação que há no mundo, dizia Tirante el Blanco, e não era ele que ia deixar só a caraíba em semelhante situação.

O filho podia ser seu ou de qualquer outro, tinha-lhe respondido irritado Diego Álvarez, onde é que ele fora buscar a ideia que tinha alguma prioridade sobre os filhos que a selvagem parisse? Era já hora de acordar, de abrir os olhos, de pôr de lado os romances que lhe transtornavam a moleirinha. A mulher era sua escrava, tinha pago por ela nove mil maravedis e, portanto, pertencia-lhe. Seria ele a decidir se ela se casava e com quem. Quando chegasse o momento, escolher-lhe-ia outro da sua condição, jamais consentiria que fosse a esposa do seu irmão.

Que pena que eles não pudessem resolver estas questões segundo as leis de cavalaria, proclamou Alonso, porque ainda que tivessem os dois o mesmo sangue ele representaria as suas armas ao contrário, ou seja, se tivesse escudo de armas, penduraria o seu brasão de cabeça para baixo em sinal de que era um cobarde e um traidor. Estava disposto a defender a sua opinião numa luta leal, entre os quatro cantos do campo de honra onde, seguramente, o mataria porque a razão estava do seu lado e, então, ninguém poderia impedi-lo de reclamar para si a mão da princesa caraíba Catalina.

Estava perdidamente louco, gritou Diego Álvarez cada vez mais enfurecido. Dava graças a Deus por não ter aprendido a ler nem a escrever, assim não correria o risco de ser tomado por judeu ou de perder o juízo como estava a acontecer com o seu irmão, sempre com a cabeça metida entre as páginas de livros que de nada tinham servido para o tirar da situação de pobre diabo e que agora o incitavam a desposar uma vil criada e, ainda por cima, antiga canibal.

Alonso já não quis continuar com a discussão. Voltou desdenhosamente as costas ao estalajadeiro e abandonou aquele lugar disposto a encontrar-se com a escrava. Esta encontrava-se para lá da cozinha, num pátio traseiro da estalagem, agarrando um porco pelas patas enquanto outro criado lhe cortava a garganta com uma faca. O porco ainda se debatia guinchando e emitindo grunhidos horrorosos quando Alonso, brusco e despenteado, apareceu de repente no umbral da porta para se juntar a ela. O moço que a acompanhava observou-o atónito, surpreendido ao vê-lo tão exaltado, e seguiu-o, curioso, com o olhar, sem fazer caso já dos últimos estertores do animal acabado de ser degolado que sangrava a seus pés, enquanto o aprendiz de impressor agarrava a caraíba com violência pelo braço e a levava para um canto da paliçada para conversar com ela.

A primeira coisa que passou pela cabeça de Alonso, ainda antes de lhe dirigir a palavra, foi chamar-se a si mesmo idiota. Não podia compreender como é que não tinha reparado na gravidez há mais tempo. Agora que o sabia, notava-se claramente o crescimento do ventre. Acto contínuo desatou a falar-lhe apressadamente, atropelando as palavras, com medo de que o seu irmão aparecesse de repente acompanhado pela restante criadagem para o atirar para fora da estalagem. Ambos eram solteiros e estavam baptizados, assinalou; ela fora-o muito recentemente, obviamente, mas isso não importava. Nada os impedia de se unirem em legítimo matrimónio perante si mesmos e perante Deus. A Igreja permitia-o e, uma vez realizada a cerimónia, ainda que a celebrassem ali mesmo, naquela imunda pocilga, sem testemunhas, já ninguém poderia separá-los. Bastava-lhe a ele pronunciar as palavras rituais ego te recipio in meam e ela responder-lhe et ego in rneum para concluir o acto. Assim o tinha feito Tirante el Blanco ao desposar a princesa Carmesina e ainda que eles não tivessem usado a fórmula latina o seu enlace tornou-se igualmente válido. Quando isso aconteceu, os dois encontravam-se a sós num pomar de laranjeiras, recordou Alonso, que tinha lido o capítulo sabe-se lá quantas vezes. Carmesina disse-lhe, unindo a sua mão direita à de Tirante, "para que isto seja um verdadeiro casamento, digo eu com palavras no presente: eu, Carmesina, a vós dou o meu corpo, Tirante el Blanco, para leal mulher, e tomo o vosso para leal marido". Ele respondeu-lhe com as mesmas palavras ou com outras parecidas. Depois beijaram-se em sinal de verdadeira fé, tendo como testemunhas São Pedro e São Paulo, e ela acrescentou que se dava a si mesma, plena de potestade e em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, para que Tirante usasse dela como esposo e prometeu ser-lhe fiel e não desconsiderar a sua pessoa por nenhum outro homem que no mundo houvesse, e manter-se sempre honesta, fiel e sem mácula. Depois, Tirante teve que partir sem exercer os seus direitos conjugais, o que aconteceria só muitos anos mais tarde, mas isso não vem para o caso. O importante era: quereria Catalina fazer como eles? A criada olhava-o sem responder. Com essa contumaz expressão de curiosidade nos olhos que a ele o desconcertava e o enlouquecia, mas não lhe dera o mais pequeno sinal de o ter compreendido.

Alonso pegou-lhe numa mão e pronunciou a frase latina que lhe correspondia dizer. A criada deixou que fizesse tudo. Et ego in meum, murmurou ele com voz pausada, marcando a diferença entre as sílabas; ela deveria repetir agora et ego in meum para que os esponsais se tornassem legítimos. Entendia-o assim? Devia entendê-lo, já estava há vários meses em Espanha, alguma coisa deveria ter aprendido das lições de Cristobalillo e da linguagem que todo o mundo usava à sua volta. Não desejava, então, converter-se em sua esposa? Então que repetisse et ego in meum e o assunto ficaria concluído, nada nem ninguém se poderia então interpor entre eles.

Foi inútil. A criada permaneceu muda, olhando-o, até que ao cabo de alguns momentos voltou ao seu trabalho como se ele ali não estivesse. Alonso foi-se embora um pouco perturbado e bastante frustrado. Ao sair percebeu que o porco tinha deixado de se mexer, mas um fiozinho de sangue escorria-lhe ainda pela garganta.

Nessa manhã, João Almada recebeu a inesperada visita dos seus amigos Martin de Monroy e Pedro Zuniga na sua casa da rua de Sierpes, vizinha do bairro do Duque de Medina Sidonia, onde o cartógrafo português vivia e despachava os seus assuntos. Uma espaçosa sala no rés-do-chão servia-lhe de bufete e de atelier. A grande parede do fundo estava coberta por um belo mapa que, coisa curiosa, exibia o sul na parte superior e mostrava não só as ilhas e contornos da Ásia, como também as cadeias montanhosas, os rios, as cidades e os lagos do interior do continente. Tudo profusamente ilustrado com as representações dos seus reis e o essencial dos dados trazidos por Marco Polo. Apesar de não saber ler nem escrever, Pedro Zuniga reconheceu sem esforço o desenho de um dos portulanos mais famoso da época: uma cópia em tamanho grande do mapa-múndi catalão de Cresques Abraham, desenhado há mais de um século. Não se voltou a fazer outro como aquele, informou a Monroy, observando com infalível olho de marinheiro o traço das rotas comerciais que teoricamente deviam unir os portos da Europa com os do Golfo Pérsico e os do mar Cáspio através do Mar Tenebroso. Rotas que até então ninguém tinha encontrado, apesar dos esforços do Almirante Colombo e de outros marinheiros tão audazes e experimentados como ele. O resto da sala estava repleta de muitos outros mapas e portulanos com esboços dos litorais, direcções de ventos, anotações sobre diversas correntes marítimas e perfis de costas, inapreciáveis para a navegação à vista, muitos deles enrolados e empilhados, completamente desordenados, em cada um dos cantos daquela sala.

Almada recebeu-os com alguma reserva, admirado de os ver tão longe do seu acostumado lugar de reuniões. Vinham falar-lhe da gravidez da índia, pensou mortificado, longe dos ouvidos interessados de Diego Álvarez. Talvez até lhe tentassem atribuir aquele fiasco. Mas não estaria disposto a aceitar delitos que bem poderiam ser alheios. Todos se tinham metido com ela. Todos eles, e quem sabe quantos outros dos quais só o estalajadeiro sabe a conta.

Os visitantes passearam-se calmamente frente aos documentos com o ar de que eram especialistas, enquanto Almada ponderava com inquietação o carácter inflamável das suas pertenças e o fumo que saía sem parar da boca de Monroy, assim como os ardentes resíduos de tabaco que iam caindo à sua passagem. Para evitar o que poderia ser uma enorme desgraça, o cartógrafo convidou-o a sentar-se em frente de uma mesa mais ou menos afastada dos seus valiosos documentos e apressou-se a perguntar-lhes a razão que os trazia a sua casa e se a sua boa fortuna teria disposto que lhes pudesse ser de alguma utilidade.

Tinham ido ver o que fazia, começou por dizer Monroy sem deixar de sacudir a cinza do gibão, porque ele tinha algo que desejava contar-lhe desde o seu regresso das índias. Àquelas horas, no entanto, a garganta ardia e um bom trago de um qualquer vinho português acompanharia melhor as confidências, sublinhou levantando uma sobrancelha. O seu gesto era uma calculada censura à evidente mesquinhez do cartógrafo, que não se lembrara de oferecer-lhes nada para beber, e encontrou a imediata e incondicional aprovação de Zufiiga, que fez eco das suas palavras com uma entusiasta concordância de cabeça.

Bem, bem, murmurou Almada, afastando-se de má vontade para ir buscar qualquer coisa para beber. O preâmbulo do estreme-nho tinha tido o dom de o apaziguar. Aparentemente não estavam ali para falar da selvagem. Regressou com meia garrafa de vinho. Dos melhores vinhedos do Douro, assinalou, afastando quadrantes, réguas e compassos para a colocar cerimoniosamente com uns copos no meio da mesa. Depois, dispôs-se a ouvir as novidades que traziam os seus indesejados visitantes.

Na Hispaniola tinha travado conhecimento com um grupo de marinheiros, companheiros de algumas aventuras e borgas, com quem costumava beber uns copos num dos diversos tugúrios que florescem no porto, começou a contar Martin de Monroy, aceitando a bebida que lhe oferecia Almada. Vários deles tinham estado com Colombo desde o princípio e contaram-lhe uma história que se tem por verdadeira naquelas terras e que a ele lhe pareceu digna de recordar e de repetir aos seus amigos na taberna do bairro de Triana se Deus lhe concedesse a licença de voltar a vê-los. Esqueceu-se de a mencionar na Taberna da índia na outra noite porque andavam todos distraídos pelo incomodativo acontecimento que ambos conheciam, mas como a sua história tinha especial interesse para o cartógrafo português, pensava ele, tinha decidido visitá-lo no seu atelier para lha contar e suplicou a Pedro Zuniga que o acompanhasse.

O basco concordou de novo com um movimento de cabeça, enquanto cheirava o seu copo de vinho antes de o inspeccionar na contraluz com um invencível ar de dúvida.

Estes amigos asseguraram-lhe, continuou Monroy, que anos antes da primeira viagem de don Cristóvão Colombo ao Oriente, por volta de 1475, quando ainda não era Almirante do mar Oceano nem vice-rei das índias...

Não, não, nem sequer a don chegava, intercalou Almada incapaz de perder a ocasião para censurar o marinheiro genovês.

Pois, nessa mesma altura, prosseguiu Martin de Monroy, fazendo caso omisso da interrupção, diz-se que um náufrago apareceu nas costas da ilha portuguesa da Madeira. Estava doente e meio morto de inanição. O homem fora albergado numa casa do lugar mas, apesar dos imediatos auxílios do médico, só conseguiu sobreviver por poucos dias. No entanto, diz-se que antes de falecer pôde narrar pormenorizadamente ao dono da casa que o tinha acolhido a sua singular aventura. Ao que parece era o piloto de uma caravela espanhola que se tinha feito ao mar rumo a Inglaterra, carregada de abastecimentos, de provisões e outras mercadorias. Este ponto não está bem claro porque outros dos presentes asseguravam que navegava antes entre a Guiné e a Madeira, ou as Canárias, ou a Costa de Ouro. O facto é que durante o trajecto lhes caiu em cima tamanha tempestade que foram incapazes de enfrentar o temporal e viram-se obrigados a passar muitos dias à deriva mar adentro, em direcção ao poente, fora de qualquer rota conhecida. Como a maior parte do carregamento eram víveres, a tripulação pôde sustentar-se durante a sua terrível odisseia sem sofrer uma grande fome. Assim chegaram a umas ilhas que não apareciam em nenhuma das cartas de navegação. Foram a terra e encontraram gente nua. Passaram cinco meses entre eles. O tempo de reparar a nau, de se reabastecerem e de explorar aquelas paragens. Quando tentaram, por fim, o regresso não tiveram a mesma sorte que à ida. Quase toda a tripulação morreu no caminho. Só conseguiu conservar a vida o piloto que encontrou refúgio na Madeira, mas chegou com a sua saúde tão precária que, como já lhes tinha dito ao princípio da história, faleceu pouco tempo depois.

Almada e Zufiiga continham a respiração. O português não afastava os olhos do estremenho e o basco aproveitou a ocasião para esvaziar o seu copo num cesto de papéis ao lado da mesa. Sem saber exactamente como, ambos suspeitavam que aquela história encerrava um segredo. Um segredo bem sublinhado pelo tom confidencial do seu interlocutor, que tinha baixado a voz até se converter quase em sussurro.

Uns asseguraram-lhe, continuou Martin de Monroy, que aquele piloto era andaluz, de Paios ou de Huelva, outros disseram que era galego, outros que era português, sem faltar naquele que jurou pelas chagas de Cristo que se tratava de um timoneiro biscaíno. O certo é que nenhum duvidava da sua existência. Alguém até aventurou o nome: Alonso Sánchez. Os outros não se atreveram a tanto. No que todos estavam de acordo era na personalidade daquele a quem confiou o seu segredo, o do homem que o tinha recolhido e amparado. Inclusive, estavam convencidos de que, antes de morrer, lhe desenhou uns planos com a situação e as coordenadas das ilhas onde tinha estado.

Almada e Zuniga entreolharam-se.

Não adivinhava?, disse então Monroy com um ar de triunfo, olhando directamente para os olhos do surpreendido português, enquanto dava uma última baforada no seu tabaco enrolado. O homem que socorreu o piloto, o que o teve alojado em sua casa, o que recebeu as suas confidências e os seus mapas e o viu morrer nos seus braços, foi um genovês casado com uma portuguesa, dona Filipa Moniz de Perestrelo, cujo irmão, Bartolomeu Perestrelo, era então governador de Porto Santo. Chamava-se Cristóvão Colombo.

A criada Catalina tinha fugido de casa, repetia uma e outra vez Diego Álvarez, puxando os cabelos. Nessa manhã tinha mandado buscá-la porque tardava em iniciar os seus afazeres e já não a encontraram no sótão. Ao que parece, aproveitou que todos estivessem a dormir para se evadir. Talvez saltando pela janela porque, antes de se meter na cama, ele fechava a porta à chave todas as noites, correndo depois uma pesada aldraba e a porta não tinha sinais de ter sido forçada. Ninguém tinha notícias dela, ninguém suspeitava onde seria o seu possível esconderijo, ninguém sabia nada de nada. Os seus empregados eram uma chusma de ignorantes, de parvos e de inúteis. O que diriam do assunto os encarregados de velar pelo bem-estar dos cativos trazidos das índias quando ficassem a saber do acontecido? Por essa única razão ainda não tinha ido prevenir o aguazil. Não desejava dar azo ao escândalo, não fossem culpá-lo de maus tratos e tirarem-na, depois da exorbitância que tinha pago por ela. Mas era urgente fazer alguma coisa, qualquer coisa, desde que a encontrasse rapidamente, onde quer que fosse que se tivesse metido. Porque é que teria fugido assim, dando grandes provas de ingratidão, de perfídia, de mau agradecimento? Quem a trataria melhor do que ele, sempre preocupado com o seu bem-estar, com aquilo que lhe convinha? Para onde é que ela poderia dirigir-se sozinha, grávida, praticamente muda pela sua reconhecida incapacidade de comunicar com os outros? Quem tem boca vai a Roma, rezava assim o ditado, mas a índia, apesar de possuir língua, podia ter ido parar a qualquer lado, menos a Roma. Ao princípio tinha pensado maliciosamente que o seu irmão, Alonso, estivesse envolvido nesse grave e absurdo despropósito até que o viu chegar nessa manhã, tão fresco, tão vaidoso, tão satisfeito, perguntando por ela.

Alonso nunca tinha visto o estalajadeiro tão consternado. Surpreendeu-se ao perceber nele indícios de verdadeira aflição. Não só pelo medo real que lhe inspiravam as autoridades, como também porque, na verdade, parecia profundamente preocupado com os perigos a que nesse momento estaria exposta a escrava.

Ele, ele, ainda que não a tivesse levado consigo como pretendia, reclamou Diego Álvarez fora de si, apontando para o seu irmão enquanto agitava o indicador acusador, ele, ele, mais do que ninguém, tinha culpa de tudo.

A verdade é que ele não tinha voltado a ver a caraíba desde o seu frustrado casamento na pocilga da taberna, recapitulou Alonso para si mesmo, desdenhando o dedo estendido na sua direcção. Nesse dia sentiu o obstinado silêncio da criada como uma rotunda negativa. Ninguém podia convencê-lo de que Catalina fosse incapaz de compreender o que se estava a passar. Que tivesse feito orelhas moucas ao que ele lhe propunha, converter-se em sua esposa perante Deus, e depois logo se arranjariam perante os homens, era mais do que podia suportar. Ela não fez mais do que escudar-se atrás da sua suposta ignorância do castelhano para se fazer de desentendida. Uma atitude que, dada a intimidade que existia entre os dois, ele não esperava dela. Tinha acreditado realmente que a índia lhe lançaria os braços ao pescoço num arrebato de felicidade e de agradecimento. Mas não foi assim que se passou. Era, além disso, uma situação para a qual não tinha respostas porque não se encontrava representada no seu romance favorito. Jamais se passou uma coisa assim com o seu herói, Tirante el Blanco, por quem todas as damas que conhecia desfaleciam de amor e a quem teriam oferecido os seus maiores tesouros, quando não o império dos seus reinos, com o propósito de o prenderem no doce laço conjugal.

E agora, apenas alguns dias depois daquele brutal desengano, Catalina tinha desaparecido. Nem esposa, nem amante, nem escrava. A Alonso alegrava-lhe sabê-la livre desta última tão vil condição, ainda que fosse fácil presumir que o desfrute se acabaria rapidamente. Por outro lado, não tinha esquecido que a índia esperava talvez um filho seu e concordava plenamente com o juízo do seu irmão: as ruas de Sevilha não ofereciam nenhum resguardo a uma mulher desamparada. Sobraria quem tentasse aproveitar-se dela. Ainda que bem no fundo de si mesmo tenha compreendido que a indomável caraíba nunca fosse verdadeiramente sua, havia razões de sobra para que também a ele lhe inquietasse, e muito, o seu paradeiro.

Diego agitava ainda no ar o seu acusador dedo indicador, quando apareceram no tugúrio os seus compinchas habituais. Os três vinham de inquestionável bom humor, rindo e conversando, quando deram de repente com a adusta figura do dono obstruindo-lhes a passagem. A índia Catalina tinha-se esfumado, antecipou-se este à maneira de preâmbulo, já não a viam desde essa manhã e ninguém sabia onde encontrá-la.

Mas como, porquê? Qual tinha sido a causa?, perguntou Martin de Monroy intrigado. O estalajadeiro deixou cair os braços ao longo do corpo com genuíno desespero. Como é que ele ia saber, ele que tinha sido sempre tão compassivo e generoso com ela? Todos o ignoravam. Ali, naquela pousada de estúpidos, ninguém tinha a mais pequena ideia de nada.

Não podia ter ido muito longe, aventurou Pedro Zuniga, não se lhe conheciam vínculos fora da taberna, não saberia para onde ir...

Para ele, isso era precisamente o mais alarmante de tudo, replicou Diego Álvarez: dada a sua simplicidade e inocência só Deus Todo-Poderoso sabia em que indigno sítio poderia acabar.

Talvez o outro escravo, sugeriu João Almada, o taino Cristoba-lillo, estivesse informado dos seus motivos e possuísse indícios sobre o seu paradeiro.

Excelente ideia, exclamou o patrão entusiasmado, talvez estivesse inclusive combinado com ela nesse desagradável incidente. Havia que interrogá-lo o mais rapidamente possível. Alonso devia correr ao domicílio de don Pedro de Ias Casas e abordar o pajem índio de modo a tirar a limpo de imediato toda a verdade, exigiu, apontando a porta ao seu irmão, que aproveitou o pedido para se precipitar para a rua. Ele ficaria na estalagem. Havia que continuar a trabalhar com naturalidade e sigilo, atender a clientela e esperar o favor da Virgem Santíssima num venturoso final para tão infeliz acontecimento. Quanto a Zuniga, Monroy e Almada, deveriam regressar por onde vieram e irem igualmente à procura da criada, acrescentou, empurrando-os para fora. Muito deviam à mulher, era hora de que pagassem as suas dívidas. Os seus amigos tentaram opor-se, mas os seus protestos de nada valeram perante a determinação do estalajadeiro. Que Monroy ficasse a fazer perguntas pelo bairro de Triana, ordenou-lhes, se por acaso alguém a tinha visto passear pela Praça de Altozano ou pela Rua Larga de Santa Ana. Os outros dois deviam ir em direcção a Sevilha. No caso de a escrava se ter atrevido a passar o rio, algo se poderia averiguar entre a gente que frequentava a ponte das Barcas, os patrões dos botes que faziam a viagem de uma para a outra margem ou entre os habituais vadios do Arenal. O essencial era actuar a toda a pressa e, ao mesmo tempo, proceder com uma grande cautela. Se pusessem empenho suficiente não passaria muito tempo até darem com uma pista. Então teriam que o chamar para que fosse buscá-la.

Almada recordou que, numa ocasião, alguém, talvez o basco Pedro Zuniga, lhe tinha mencionado a existência de índias brancas nas terras recém-descobertas. Se isso era verdade, o seu testemunho coincidia de alguma maneira com o relato de Martin de Monroy sobre aquela nau desconhecida, vítima de um vendaval, que o acaso tinha feito com que precedesse Colombo na sua viagem às índias. Um grupo de marinheiros portugueses ou espanhóis, contentes por estarem vivos depois da assombrosa travessia, soltos de repente no meio sabe Deus de quantas selvagens nuas, constituíam os ingredientes mais efectivos, para não dizer mais fecundos, para engendrar uma prole numerosa. Não podia descartar-se a possibilidade de que aquelas nativas de pele branca fossem na realidade as filhas desses involuntários descobridores. Teria que consultar Zuniga quando o encontrasse de novo. Talvez ele pudesse trazer uma nova luz ao assunto.

Ainda que, pensando bem, não fosse provável que o basco viesse assim tão rapidamente, disse de si para si o português, desalentado: desde que a criada Catalina tinha desaparecido da Taberna da índia, como se a terra a tivesse engolido, os amigos deixaram de frequentar o tugúrio de Diego Álvarez. Apesar deste se ter arranjado com as autoridades para que não levantassem poeira sobre o assunto, os seus compinchas acabaram por se fartar dos seus gemidos, choraminguices e lamentações. Desde então, João Almada passava cada vez mais tempo em sua casa. Nessa altura, o trabalho abundava e a ele não lhe calhava nada mal dispor de algumas horas para o terminar. A única coisa de que sentia a falta na antiga Taberna do Cão Vermelho eram as suculentas comidas e o excelente vinho com que o estalajadeiro costumava fazê-las acompanhar. Consolou-o pensar que, se ele tinha saudades disso, quanto mais não sofreria Zuniga ao recordar as almôndegas, os capões, os guisados de carne picada, os salpicões, as cabidelas e os guisados de aves e, desde logo, a ocasional companhia da selvagem no fim do banquete.

A surpreendente resenha de Martin de Monroy sobre o anónimo naufrágio da ilha da Madeira tinha-o afundado num mar de pensamentos. Juntou as palmas das mãos e colocou a barba nelas. Depois fechou os olhos para repassar na sua memória as teorias, as provas e os testemunhos analisados durante as audiências nas quais ele tinha participado tanto em Espanha como em Portugal. Os acontecimentos ligados à sua caída em desgraça desfilaram outra vez perante os seus olhos, mas desta vez sob uma perspectiva diferente. De repente, encontrou o oculto sentido de certos dados que na devida altura não soube explicar claramente. Para começar, a audácia, a segurança, melhor diria, a arrogância daquele marinheiro genovês disposto a apostar tudo, até a sua própria vida, na infalibilidade de certos cálculos duvidosos que a maioria dos homens instruídos da época consideravam erróneos. Era mais fácil compreender a sua atitude se se considerasse que ele conhecia de antemão por um testemunho directo o rumo e a distância da costa a que se encontraria terra firme. Era possível que, com efeito, dispusesse de notas, cálculos de ventos e inclusive, porque não?, de um diário de viagem e de cartas de marear que o misterioso náufrago teria colocado nas suas mãos. Talvez por isso a rainha de Castela tinha mudado tão subitamente de opinião, pensou Almada com o coração atravessado por uma amarga suspeita, talvez por isso se atreveu a desafiar as resoluções do marido e o ditame da comissão de sábios. Sim, muito provavelmente dona Isabel estava também inteirada do segredo. O seu confessor, frei Hermano de Talavera, tão aliado de Colombo, descontente com a decisão da junta, teria resolvido participar a verdade a sua majestade como último recurso para vencer a sua natural reticência. Não foi o encanto do genovês, nem a intuição feminina, nem a Divina Providência iluminando a teimosa cabeça coroada. Foram Colombo e o seu compincha, o bispo Talavera, quem lhe mostrou em privado as provas irrefutáveis da existência de uma terra acessível apenas a umas quantas semanas de navegação. Essa evidência, além do mais, não poderia tornar-se pública sem que corresse o grave risco de o desventurado e anónimo piloto a quem deviam a informação viesse a descobrir-se ser na verdade português com as consequentes reclamações do rei D. João II, reivindicando para si as terras que lhe pertenciam justamente por terem sido descobertas por um dos seus súbditos.

Se as coisas aconteceram na realidade assim, então a apresentação do genovês perante a reunião do colégio de San Esteban teria sido uma farsa e as suas menções a Ptolomeu, a Marco Polo, à cartografia de Toscanelli, uma burla. Meros pretextos, desculpas, nada mais, para justificar com hipóteses pseudo-científicas uma realidade que conhecia de facto. Sabia de antemão que na sua rota para a Ásia encontraria várias ilhas porque, ao fim e ao cabo, ruminou João Almada com íntima satisfação, eram só ilhas, grandes ou pequenas, as que teria encontrado. Umas "ilhas desconhecidas no caminho para a índia", como lhes tinha chamado anos antes o cardeal Bernardino de Carbajal ao mencioná-las ao Papa Alexandre VI. Outro religioso, don Francisco de Cisneros, tinha inclusive aludido à possibilidade de Colombo nem sequer ter navegado pelo oceano Índico. Caso contrário, onde estariam as especiarias do Oriente, as sedas da China, o ouro do Sudão, as gemas da índia? Onde estavam os elefantes e os grifos? Onde estão os pigmeus de apenas dois cotovelos de altura que guerreavam contra as grous, mencionados pelo Cardeal Pedro de Ailly no seu Imago Mundi? Porque é que o genovês não tinha trazido, pelo menos, alguma dessas coisas para se justificar e, ao mesmo tempo, brilhar perante os reis?

E, estando tudo em boa ordem, porque é que teria descido tão a sul antes de virar para as índias, sabendo que a viagem seria mais longa pelo Equador? Pois para aproveitar ventos e correntes marítimas que conhecia de antemão, respondeu a si mesmo João Almada. E o regresso? Fez exactamente o contrário: primeiro deu proa a norte antes de virar o rumo para Espanha. Como é que era possível que um marinheiro sem experiência naquelas latitudes acertasse sem errar nas condições adequadas e nas rotas mais propícias para a navegação?

A não ser que essas ilhas ficassem ainda muito longe da Ásia, e o mundo não fosse tão minúsculo como lhes quis fazer crer Colombo. Ainda que o genovês tivesse encontrado o seu famoso estreito, talvez ainda lhe fizessem falta outras mil e duzentas e poucas léguas para percorrer até à China. Talvez, no fim de contas, ele e os seus colegas não se tenham equivocado nas audiências de Lisboa e de Salamanca. O planeta dilatava-se de novo, pensou com uma nascente e agradável sensação na boca do estômago enquanto examinava os diversos mapas que o rodeavam. Sim, o mundo dilatava-se de novo. Ia ganhando pouco a pouco, lenta mas seguramente, o seu tamanho original.

Cristobalillo parou debaixo de uma cobertura, numa esquina da lôbrega e estreita ruela, protegido pelas sombras arroxeadas da madrugada. A uns quantos passos em frente dele, encontrava-se o sinistro alpendre para o qual tinha sido guiado por essa obscura mescla de olfacto, instinto e intuição que se teria tornado impossível de explicar a Alonso e a Bartolomé se algum dos dois se encontrasse presente. Sobretudo depois de ter saído do seu interrogatório com tão honestas promessas de inocência e o solene e repetido juramento de que não só ignorava o paradeiro, como também nada tivera a ver com a fuga da escrava.

Uma velha repulsiva, deitada à entrada, vigiava o acesso à cabana. Um grande cão famélico, deitado junto dela, acompanhava-a na sua guarda. A tão altas horas da noite já não passaria nenhum cliente. A odiosa anciã sabia-o e encontrava-se meio a dormir, bloqueando a humilde entrada sem porta, apenas coberta por uma discreta cortina de pano que salvaguardava o interior escassamente iluminado de qualquer olhar casual procedente da rua.

O escravo índio considerava que era difícil, senão impossível, ludibriar tais guardas, quando se apercebeu de um ténue miar aos seus pés. Os seus olhos tropeçaram num gato e começaram a examiná-lo com avidez. O felino retrocedia sem o perder de vista e Cristobalillo inclinou-se para fixar o seu olhar num ponto do interior dos brilhantes olhos amarelos de pupilas negras verticais que o observavam com desconfiança. Ao fazê-lo, sentiu o medo instintivo que possuía o animal, o seu sentido de alarme perante esse ser inusitado que se agachava em frente dele, imitando os seus movimentos. Sentiu eriçar-se a sua própria pele ao entrar em contacto com aqueles outros olhos que o olhavam fixamente. Percebeu a elasticidade desse corpo flexível, a enganosa textura das suas patas felpudas providas de garras fortes e retrácteis. Ao mesmo tempo, o seu olfacto tornava-se mais fino e penetrante, os seus ouvidos aguçavam-se, os seus olhos tornavam-se capazes de esquadrinhar a uma distância onde momentos antes não conseguia ver mais do que trevas. Então, deslizou sem produzir qualquer ruído, encostado as paredes das casas em direcção à porta que desejava franquear no outro lado da rua. O cão espetou as orelhas e farejou o ar, inquieto. O movimento do cão não passou despercebido à velha, que suspeitou da presença de um corpo estranho muito próximo dela e levantou a cabeça no preciso momento em que uma rápida sombra se escapulia atrás da cortina, para o interior da casa. É um gato, murmurou entre as gengivas desdentadas antes de se deitar e fechar novamente as pálpebras.

A casa era constituída unicamente por um quartinho sem móveis, mal iluminado por uma única vela metida num buraco da parede. A única comodidade residia num feixe de palha espalhado sobre a terra dura, junto a um canto. Cristobalillo percebeu como seria insuportável para a índia dormir naquele sítio, sem a cama de rede da qual nunca se desacostumou. Ela estava acordada, sentada no chão, com as costas apoiadas no ângulo oposto do aposento e, a julgar pela imperturbável expressão dos seus olhos escuros, dir-se-ia que o esperava.

O pajem desatou um embrulho que levava consigo e aproximou-se dela para lhe oferecer o seu conteúdo. Frutas, entre as quais predominavam laranjas, o manjar favorito de Catalina, bolachas e um tosco idolo zinho de madeira, com forma humana, com a cabeça levantada ainda que estivesse de joelhos, representando um cerni que ele próprio tinha esculpido com a ajuda de uma navalha furtada há algum tempo a don Pedro de Ias Casas. Tinha encontrado uma árvore muito próxima de uma praça a que chamavam de São Francisco, disse-lhe na sua linguagem de folhagem e de pássaros, a árvore pediu-lhe que cortasse um ramo para o fazer e que viesse depois entregar-lho. A mulher concordou, pegou nele com respeito entre as duas mãos e foi remexer o monte de palha na outra ponta do quarto. Dali retirou uma outra figurinha parecida, feita de pano e algodão com um estranho toucado sobre a cabeça e contas de vidro no lugar dos olhos. Ofereceu-a a Cristobalillo, mas ele recusou-a, acompanhando o movimento negativo da cabeça com um gesto das mãos. Que o guardasse ela, pensou, agora que tinha deixado a estalagem de Diego Álvarez para se refugiar naquele sítio necessitava de quanta protecção pudesse encontrar.

Ela voltou para o seu lugar e, com movimentos lentos e deliberados, pôs-se a descascar uma laranja. Cristobalillo sentou-se em frente dela, cruzando as pernas. Olhou-a a levar ao nariz um brilhante pedaço da casca da laranja e inspirar com deleite o perfume da fruta. Depois de separar os gomos, começou a comê-los indolentemente, um a um, tendo todo o tempo deste mundo.

Adeus à brisa marítima fustigando-lhe o rosto, adeus ao branco inchaço das velas sopradas pelo vento, adeus ao horizonte azul sem limites, adeus ao cheiro a resina e a verniz da madeira acabada de calafetar, dizia-se a si mesmo Amerigo Vespucci olhando para o atlas catalão de Cresques Abraham que decorava a parede do ate-lier de João Almada e que semanas antes despertara também a atenção de Martin de Monroy e de Pedro Zufíiga. A esse difícil e múltiplo adeus, ou melhor, a esse inaceitável e múltiplo adeus, corrigiu, o condenaram os reis com a proibição de embarcar. Assim postas as coisas, Castela e Aragão já não tinham grande coisa para lhe oferecer.

Junto a ele, o cartógrafo português olhava-o com prazer. Sentia-se muito contente e honrado pela sua presença. Nada mais natural do que um colega estrangeiro passar a oferecer os seus préstimos a outro colega estrangeiro, pensou na primeira vez que o viu bater à sua porta, mas as visitas tinham-se repetido e Almada apreciava sobremaneira esses encontros casuais com homens da estirpe do ilustre florentino que, para além de o distraírem, sobretudo agora que tinham acabado as suas noitadas na Taberna da índia, eram-lhe extremamente úteis para enriquecer com pormenores cada vez mais precisos as suas bem cotadas cartas de marear. Como se isso fosse pouco, Amerigo Vespucci era, além do mais, um famoso navegador que tinha atravessado o mar Oceano e essa era uma experiência que, sem nunca a ter vivido, dada a sua linha de trabalho, apaixonava profundamente João Almada.

Talvez lhe conviesse emigrar para outro lado, sugeriu prontamente Almada, penetrando sem querer no mais profundo dos pensamentos de Vespucci. Ele ainda tinha alguns amigos na corte de Portugal. O bispo de Ceuta, por exemplo, que o tinha ajudado a conseguir um lugar em Salamanca quando, coisas do passado, acrescentou com um suspiro, ele lá esteve a ensinar. Ainda tinha excelentes relações com ele e trocavam correspondência frequentemente. Ele poderia ajudá-lo a encontrar colocação na corte e, porque não?, talvez até ao comando de uma caravela. Em Portugal os bons marinheiros nunca eram de mais e o rei D. Manuel sabia pagar com generosidade os seus serviços.

Levá-lo-ia em conta, respondeu o florentino sem afastar os olhos do apreciado mapa. Seguiu com o olhar o nascimento do Ganges e o curso do Senegal, a distribuição das cadeias montanhosas e o esplêndido pormenor na ilustração dos reinos no interior da Ásia e de África. Faziam-no sonhar aquelas regiões mágicas e misteriosas que não tinha podido alcançar e que imaginava plenas de riquezas sem conta: o império da China, o reino de Gog e Magog, o território do Mali, no coração do deserto africano...

Tinha-o copiado ele próprio quando era bastante mais jovem, disse o português, contemplando também, com afecto evidente, as primorosas particularidades do plano. Sempre lhe atraiu a sua singular perfeição e o facto de trazer consigo dados tão admiráveis para a época em que se traçou.

Só faltam as descobertas do Almirante Colombo, indicou Ves-pucci: a partir da sua primeira viagem para além do Mar Tenebroso todo o portulano que se respeitasse devia consignar os seus acha-mentos.

Uma descoberta sem consequência, aventurou com malevolên-cia João Almada: umas quantas ilhas perdidas no meio do mar, das quais se diz que teve notícia por outro que as visitou antes dele e que, por um acaso da sorte, veio a morrer nos seus braços.

Ele também tinha ouvido essa história, replicou o florentino, ainda que não pudesse jurar que fosse verdadeira. Mas também não se tratava de umas quantas ilhas no meio do mar. Era uma terra que parecia estender-se ao infinito. Ele tinha navegado muitas semanas ao longo da sua costa sem encontrar o fim.

Estava a colaborar com Juan de Ia Cosa na elaboração de um mapa-múndi, assinalou o português, e, ainda que o cantábrico lhe tivesse insinuado algo, ainda não tinham chegado a essa parte do plano. Até ao momento, a única coisa que lhe tinha pedido para desenhar eram ilhas.

Ambos navegaram mil léguas para oeste das Canárias, respondeu Vespucci, até encontrarem aquela terra a que chamam Paria. Depois meteram proa para noroeste e continuaram dois dias ao longo da costa até que encontraram um sítio seguro onde as naus pudessem ancorar. Assim, fazendo muitas outras escalas e tratando com diferentes povos e gentes, sempre com o mesmo rumo e terra à vista, tinham percorrido várias centenas de léguas sem se desviarem da rota. Quando levavam já treze meses de viagem e os navios e os aparelhos estavam maltratados e os homens cansados, puseram-se de acordo com Ojeda para encostar as naus à margem, de modo a repará-las, calafetá-las e dar-lhes com breu porque já metiam muita água, e poderem então regressar a Espanha. Isso é o que o Juan de Ia Cosa teria que lhe contar quando se propuseram desenhar essa zona do mapa.

Tão grande assim?, perguntou Almada admirado. Tinha alguma ideia clara de onde se encontrava?

Não tinha a certeza, respondeu Vespucci pensativo, ele próprio não o sabia. Essa era uma questão que lhe tinha custado muitas noites de insónia. Talvez nos confins da Ásia pela parte de oriente e no seu início pela parte de ocidente.

E a índia e a China? O português apontou para o portulano na parede. Como explicava ele ter bordejado durante tão longo tempo a costa sem arribar às margens da índia ou da China?

Deveria existir uma passagem um pouco mais a norte daquela terra austral, um braço de mar que desembocaria no oceano Índico, mas ele não o soube encontrar.

E se esse estreito não existisse, ou melhor dizendo, se o litoral se prolongasse sempre para norte e fosse tudo uma só terra e uma só costa?

Já tinha pensado nisso antes, sussurrou Vespucci, ainda que nunca se atrevesse a mencioná-lo a ninguém. A magnitude da ideia aterrava-o. O não ter chegado à Ásia como todos pensavam, mas sim a uma terra insuspeitada na parte mais ocidental do mundo, a meio caminho, talvez, entre a Europa e a Especiaria. Uma ilha enorme, um continente, talvez, do qual ninguém ouviu falar porque até então ninguém tinha atravessado o Mar Tenebroso e regressado para o contar. Estariam frente a um novo mundo, tão vasto que nem Colombo nem os reis poderiam jamais imaginar.

Ele conhecia o paradeiro da índia Catalina, disse-lhe Ahmed em voz baixa, ao apresentar-se numa manhã, bem cedo, para os seus acostumados trabalhos na tipografia de Melchor Goricio. Alon-so, que nesse momento arrumava nas suas respectivas caixas uns tipos recém-usados, ficou a olhá-lo sem o compreender. O mouro fingiu que estava a assistir à tarefa e prosseguiu no mesmo tom de confidência, cuidando de que ninguém os ouvisse: a partir da conquista cristã a gente da sua raça tinha-se visto obrigada a dedicar-se aos piores serviços, explicou-lhe. Muitos deles tinham ficado como escravos e os que não tinham ficado assim eram obrigados a desempenhar os ofícios mais ruins. Isso permitia-lhe a ele, que todos conheciam e em quem todos confiavam, ter ouvidos em qualquer conversa e olhos que espreitavam pelos quatro cantos da cidade. Desde os altos salões do palácio, onde os seus parentes serviam nos jantares dos sábios, dos ricos e dos poderosos, até aos mais humildes e sinistros recantos da vila onde nenhum outro ousaria penetrar. Era assim que estava informado de que uma escrava tinha fugido da antiga Taberna do Cão Vermelho há já algum tempo, de que todos os esforços para a localizar se tornaram vãos, e de que o seu amigo e companheiro de trabalho, o jovem Alonso Álvarez, estava especialmente interessado em encontrá-la.

Alonso ficou a olhar para ele estupefacto. Quando quase tinha perdido as esperanças de encontrar Catalina, confrontava-se com a possibilidade de a ver de novo, e isso graças à pessoa de quem menos teria esperado no mundo. Quando abria a boca para perguntar por alguns pormenores, Ahmed levou um dedo aos lábios pedindo silêncio. Ele levá-lo-ia depois do trabalho, disse-lhe; entretanto não havia nada a fazer excepto continuar com as suas obrigações e não despertar a suspeita ou a ira do patrão, que já se aproximava para indagar que diabo estavam a bisbilhotar.

Durante o resto do dia, o aprendiz de impressor cumpriu maquinalmente com as suas tarefas pensando em Catalina. A caraíba tinha conseguido escapulir-se da estalagem de Triana sem deixar o menor rasto, como se se tivesse desvanecido no ar. As semanas passaram e os esforços de Alonso e de Bartolomé para a localizar tinham-se tornado infrutíferos. Apesar de ter percorrido Sevilha de uma ponta a outra, aproveitando, inclusive, as tardes e os dias livres para indagar nos povoados dos arredores, ninguém soube dar-lhes notícias dela. Ainda que invariavelmente Cristobalillo os acompanhasse nessas excursões, Alonso e Bartolomé deram-se conta, surpreendidos, de que, na realidade, o pajem índio não punha o seu coração nas pesquisas. Como se, para ele, a perda de Catalina fosse definitiva e que isso o desanimasse ao ponto de o mergulhar numa insondável melancolia.

Ao entardecer encontrou-se com Ahmed na esquina das Gradas com a Rua do Mar, a poucos passos da igreja matriz. O mouro fez um gesto em direcção à Porta do Arenal e ambos começaram a caminhar em silêncio. Ao sair fora de portas, Ahmed virou à direita, indo em direcção à Porta de Triana e Alonso não pôde reprimir um sentimento de horror ao vê-lo parar à porta do Lugar da Mancebia.

Ele nunca tinha estado lá dentro e à sua cabeça vieram-lhe os tabus e as proibições que se lhe inculcaram desde criança sobre os perigos infinitos, tanto para a saúde da alma como para a do corpo, que pululavam no interior do pecaminoso arrabalde igualmente denominado Lugar da Laguna pelos imensos charcos que nele deixavam as frequentes subidas do Guadalquivir. Ahmed parou, respeitando o seu titubear, e perguntou-lhe com amabilidade se desejava verdadeiramente seguir em frente. O jovem aprendiz disse que sim e os dois atravessaram a débil cerca de madeira que rodeava o bairro. Alonso compreendeu imediatamente que, na verdade, este não era mais do que um sórdido e tortuoso labirinto de choças miseráveis encostadas ao muro exterior da cidade. As suas intrincadas ruelas davam voltas e reviravoltas entre fileiras de paupérrimas barracas, conhecidas também como boticas, para terminar frequentemente de uma forma abrupta contra um taipal ou desembocar de repente numa ruela sem saída. Apesar de lá dentro não haver nem tabernas nem estalagens, o lugar fervia de marinheiros, artesãos, jornaleiros e curiosos que se moviam de botica em botica, passando os olhos pela mercadoria humana e negociando desavergonhadamente os preços. Gente grosseira, teria dito Tirante el Blanco, pensou Alonso com tristeza, que se resigna a querer, como os asnos que não amam, apenas o que vêem, e tantas quantas apanharem à frente.

Era frequentemente uma ténue cortina, e não uma porta, o que separava a rua do miserável interior das tristes casinhotas. Boa parte das prostitutas, ali chamadas tributárias, entre as quais se viam até rapariguinhas de doze anos, aguardavam os clientes de pé à ombreira da porta. Para os atrair, faziam-lhes gestos obscenos ao passar e convidavam-nos a ir ter com elas com palavras descaradas. Outras vezes, permaneciam dentro das boticas e era um homem ou uma mulher já velha quem se encarregava de apregoar aos gritos entre os transeuntes as virtudes e atributos da fêmea que esperava no interior.

Durante uns bons instantes, ambos abriram passagem com dificuldade por aquele rio humano até que, ao passar em frente a uma choça que Alonso julgou ser exactamente igual às outras, Ahmed deteve-se de repente. Uma velha asquerosa, seguramente uma antiga meretriz, pensou Alonso, com um cão deitado aos seus pés, fazia-lhes sinais da entrada clamando algo que, se não se aproximasse, o aprendiz de impressor jamais teria conseguido entender. Doze quartos, balbuciava custosamente a velha de boca desdentada, somente doze quartos por uma verdadeira selvagem vinda das índias, tem fama de trazer sorte a quem se deita com ela; prazer e fortuna ao alcance da mão somente por doze quartos, ou vinte, se desejam desfrutar da oferta os dois.

Ahmed pôs algumas moedas entre os ávidos dedos da dona e o jovem penetrou a tremer dentro da barraca. O chão era de terra batida e, a um canto, encontrava-se um humilde leito de palha. Colocado ali, imaginou Alonso, para que a inquilina o usasse para exercer a sua obrigação. Catalina observava-o indiferente na outra ponta do quarto. Alonso encontrou-a prematuramente envelhecida, suja, apesar de outrora se ter preocupado tanto com a limpeza, magra, com olheiras, escondendo a barriga para não assustar os clientes. Observou, horrorizado, como ela, sem dar mostras de o reconhecer, ia directamente deitar-se sobre o feno, esperando que ele fosse ter com ela. Não estava ali para isso, disse-lhe com suavidade. Vinha buscá-la de volta para a estalagem. Ali teria tecto e comida sem necessidade de se humilhar daquela maneira. Pegou-lhe na mão e tentou levá-la. Ela evitou-o com violência. Não o reconhecia?, insistiu ele, era Alonso, o seu amigo, dela e de Cris-tobalillo, o pajem índio de Bartolomé de Ias Casas, tinham passado muitos dias felizes juntos, não se lembrava disso? Ela, como única resposta, acomodou-se de novo na palha e abriu as pernas, voltando o rosto para a parede de modo a não se ver obrigada a olhá-lo.

Alonso não perdeu tempo em fugir da barraca. Nesse instante só desejava ir-se embora, desaparecer dali para fora, perder-se, afastar-se o mais rapidamente possível desse lugar de pesadelo. Começou a andar apressadamente, sem olhar para trás, abrindo passagem às cotoveladas no trajecto para a saída do subúrbio. Ahmed alcançou-o no caminho.

Como é que se pôde apaixonar alguma vez por uma mulher tão insensível e desprezível?, ia pensando o aprendiz de impressor ao deixar para trás a porta, como pôde acreditar e até desejar que o filho que esperava fosse seu? Atrever-se-ia a contar ao seu irmão que a tinha visto e como e onde se encontrava?

A maior parte daquelas casotas pertenciam às autoridades municipais ou à Igreja, informou-o Ahmed, tentando distraí-lo. Arrendavam-nas a rufiões escolhidos, homens e mulheres, suficientemente infames para nelas exercerem tal ocupação e a quem as tributárias chamavam, com chocante devoção, "pais" ou "mães", segundo o caso. Por isso, dentro do território, os alguazis punham especial cuidado na protecção das inquilinas e na manutenção da ordem. Alonso, arrancado de repente aos seus negros pensamentos, não podia dar crédito aos seus ouvidos. Deteve-se atónito no meio do Arenal. A Igreja proprietária de uma parte desse depravado e insalubre subúrbio? A santa religião metida em negócios de putas? O Capítulo Catedralício, para ser mais exacto, respondeu Ahmed com um sorriso: o pretexto era manter essas mulheres afastadas do resto da cidade, mas tão pio labor era bem aproveitado para realizar uns negócios extremamente rentáveis. Senão que fizesse contas, cobrando real e meio por botica. Mas que não fossem injustos: também olhavam pela salvação das suas almas: todos os domingos e feriados enviavam-lhes um alguazil que as levava a ouvir missa na igreja da Magdalena.

Alonso e Bartolomé temiam que enquanto durasse o cativeiro de Cristóvão Colombo os tradicionais inimigos de Castela aproveitassem a conjuntura para tomar a dianteira e chegar, antes deles, aos limites da Terra das Especiarias. Lá, onde se vislumbravam a terra prometida e as minas do rei Salomão. Se bem que Luís XII de França perdesse tempo dividindo o reino de Nápoles com Fernando de Aragão, Henrique VII tinha contratado o genovês Giovanni Caboto para se fazer à vela por conta de Inglaterra e, em Portugal, depois de Vasco da Gama ter torneado África e atracado na índia, o sucessor de D. João II, D. Manuel I, que alguns chamavam já o Venturoso, voltava o seu ambicioso olhar para o oeste, tentando chegar ao mesmo sítio por uma rota melhor. Para o conseguir contava com uma nova geração de intrépidos marinheiros como os irmãos Gaspar e Miguel Corte-Real, Duarte Pacheco Pereira e Pedro Alvares Cabral.

  1. Fernando e dona Isabel, sem conhecer os jovens amigos, partilhavam, talvez, dessa mesma opinião e decidiram, por fim, libertar das suas correntes o Almirante do mar Oceano, enviar-lhe dois mil ducados por conta de gastos de trasladação e exigir-lhe que comparecesse perante eles para que ouvissem o que tivesse a alegar a seu favor. Alonso, mais desconfiado do que Bartolomé, cuja especial predilecção por sua majestade a rainha o impedia de pensar mal dela, não estava convencido de que a urgência com que o Almirante tinha sido chamado a Granada tivesse alguma coisa a ver com a real obrigação de fazer justiça. O verdadeiro móbil de suas altezas, o que no fundo lhes interessava, insistia o aprendiz desconfiado, era pôr imediatamente don Cristóvão Colombo a bordo de uma caravela e enviá-lo numa outra viagem de reconhecimento aos confins do Mar Tenebroso, onde tanta falta lhes fazia. Porque era ali, e não em tarefas administrativas na Hispaniola, que o genovês se tornava imprescindível. Mais do que as aptidões de decretar ou governar, Cristóvão Colombo possuía esse dom natural, único e intransmis-sível, que lhe permitia conduzir as suas naus a bom porto no meio da pior das borrascas ou encontrar os ventos favoráveis e a justa rota para sulcar, sem se perder, os mares mais longínquos do mundo.

As novas da partida de Colombo vieram distrair os dois amigos da tristeza causada pelo desaparecimento da escrava caraíba. Bartolomé não sabia nada, porque Alonso preferiu nada mencionar, nem sobre o esconderijo de Catalina nem sobre o infame comércio ao qual tinha dedicado o seu corpo. Referiu-lhe, pelo contrário, que frei Gaspar Goricio tinha passado pela tipografia para levar as últimas folhas e para verificar como ia o trabalho com aquelas que primeiro lhes tinha encomendado. Desejava que os papéis estivessem prontos, e à mão, para fazê-los chegar a Colombo no caso de lhe fazerem falta quando se apresentasse perante suas católicas majestades. O frade regressou à cartuxa satisfeito com os avanços realizados e com a promessa de que seria avisado assim que estivesse tudo terminado.

Poucos dias depois, o Almirante do mar Oceano e vice-rei das índias, don Cristóvão Colombo, ricamente ataviado e encabeçando um numeroso séquito, partiu do mosteiro de Las Cuevas rumo ao antigo sultanato árabe, cujos sumptuosos palácios serviam agora de involuntário albergue às invejas, adulações e intrigas da corte de Castela e Aragão.

Pedro de las Casas, sempre em comunicação com a gente que rodeava o Almirante, relatou-lhes mais tarde que Colombo se tinha apresentado perante suas católicas majestades humilde e contrito. Beijou-lhes as mãos, com lágrimas nos olhos, e assim, prostrado perante eles, desfez-se em longos soluços incapaz de pronunciar | uma palavra. Quando por fim recuperou a fala, pediu-lhes desculpas o melhor que pôde: se cometeu algum erro não foi com má intenção, disse-lhes, mas sim por inexperiência no governo. Apesar disso tinha colocado sob sua senhoria mais de mil e setecentas ilhas para além da Hispaniola, tanta terra como há em África e Europa juntas e, nos últimos cinco anos, para os servir, não tinha dormido nem despido nem em cama alguma e sempre com a morte ao lado, acrescentou pesaroso. Como Alonso suspeitava, o augusto perdão não se fez esperar: os soberanos ouviram-no com clemência e consolaram-no com palavras tais que o Almirante não podia ficar senão muito contente. Ele solicitou-lhes um castigo exemplar para don Francisco de Bobadilla, a quem acusava de graves prejuízos para com a sua pessoa e com as dos seus irmãos. Eles prometeram-lhe a devolução de cargos e honras que estiveram suspensos enquanto esteve preso, ainda que evitassem cuidadosamente referir-se ao posto de governador da Hispaniola.

Infelizmente, a magnanimidade dos reis não esteve a par com a sua presteza em executar o combinado. Assim se passaram as semanas perante a estranheza de Alonso, que se perguntava a si mesmo se, ao fim de contas, não teria considerado suas católicas majestades muito mais calculistas do que na realidade eram, perante o beneplácito e a consternação de Bartolomé, que por um lado via salvar-se a rainha das dissimuladas insinuações do seu amigo e, por outro, desesperava-se ele mesmo pela forçada inactividade do navegante genovês. Entretanto, os monarcas continuavam a espalhar autorizações a quantos desejassem empreender viagens de exploração aos seus domínios do ultramar. Alonso de Ojeda, Diego de Lepe, Juan de Escalante, Pêro Alonso Nino, Vicente Yánez Pinzón, Juan de Ia Cosa e Rodrigo de Bastidas ou navegavam por prazer no Mar Tenebroso ou, como faziam estes dois últimos, guarneciam-se dos fundos, das naus e dos apetrechos necessários para o fazer. Alonso desconfiava de como e quanto mudaria a situação do Almirante se qualquer deles regressasse, certo dia, a Cádiz ou a Sevilha com a maravilhosa novidade de que tinha descoberto o famoso e fugidio estreito cujo canal levaria as caravelas espanholas até às desejadas águas do mar Índico.

Goricio passou certa manhã pela tipografia para recolher os papéis que lhes tinha encomendado. Se não o fez antes foi porque, até então, não tinha tido necessidade deles, disse-lhes, mas o momento tinha chegado e devia enviá-los para o Almirante para que ele os entregasse pessoalmente aos seus régios destinatários e assim apressar a vontade real a seu favor.

O tempo, no entanto, continuou o seu curso sem que se pusessem em marcha os preparativos para uma futura expedição do abatido genovês, e sem que os soberanos cumprissem a promessa de lhe restituir os seus antigos benefícios. Colombo sonhava regressar em triunfo à Hispaniola, dizia-lhes Pedro de Ias Casas, mas dava-se conta de que a sua glória jamais brilharia como antes enquanto não recuperasse os direitos e os privilégios que o silêncio dos reis mantinham em suspenso.

Cristóvão Colombo far-se-ia de novo ao mar, desde logo, quando as referências aos profetas do Apocalipse surtissem em suas majestades católicas o efeito desejado, ou estas se cansassem de esperar que outros descobrissem a desejada passagem para as índias. Levando em conta a idade, talvez aquela fosse a sua última viagem. Entretanto, Alonso e Bartolomé suspeitavam que tinha trocado a sua prisão no mosteiro de Santa Maria de Ias Cuevas por outra mais cortesã e obsequiosa, mas não menos cruel, entre as soberbas fortalezas, entre os incomparáveis pátios e os refinados e aromáticos jardins do Alhambra.

Bartolomé censurava asperamente Catalina, e Alonso tão comovido e horrorizado como ele, não tinha palavras para a defender. A sua consternação era um mero arremedo do espanto que nessa manhã surpreendia toda a Sevilha como um calafrio repentino. Assegurava-se que uma puta infame, uma selvagem das que tinham sido trazidas das índias para servir como escravas nas casas abastadas da vila e que, por deixar o bom caminho, acabou como tributária de uma barraca miserável do Lugar da Laguna, tinha dado à luz um filho que desapareceu misteriosamente poucas horas depois de ter nascido. A velha encarregada da botica onde a mulher estava jurava horrorizada tê-la surpreendido a devorar cruamente a criatura. Saiu para prevenir as vizinhas mas, quando algumas acudiram finalmente ao seu pedido, já era demasiado tarde. Já não havia rastos do tenro corpinho que a canibal acabara de dar à luz. Também não se soube o que tinha feito dos ossos porque não se encontraram restos de nada. Descobriram-lhe, por outro lado, um tosco ídolo de madeira e um estranho boneco de pano e algodão a que, aparentemente, prestava culto. Por isso, deduziu-se que se tinha convertido falsamente ao cristianismo e que em segredo conservava a religião dos seus antigos deuses. Esse aspecto do assunto exigiu a imediata intervenção do Santo Ofício e, como a mulher parecia tonta ou muda e não houve forma de fazer com que respondesse às acusações, foi levada para a prisão secreta da Inquisição, nos subterrâneos do palácio de São Jorge, para que o sacro tribunal realizasse um interrogatório mais rigoroso.

As testemunhas, algumas sem que ninguém lhes tivesse pedido, começaram a desfilar pela Praça de Altozano para testemunhar contra ela. Ao horror do delito cometido acrescentaram-se outros da mesma gravidade, porque a associavam ao emprego de magia negra e conivência com o próprio Satanás. Que tinha feito bruxaria para desaparecer do seu aposento na mal chamada Taberna da índia, que recorreu ao mesmo sortilégio para esconder os despojos do seu crime, que tinha feito um pacto com o Diabo para, com o engano de atrair a sorte, condenar ao inferno quem se juntava com ela, que encaminhava clientes com artimanhas à sua botica do Lugar da Mancebia, e quem sabe quantas outras acusações mais, das que só os seus enigmáticos examinadores estavam ao corrente.

Alonso e Bartolomé sabiam com toda a certeza que a caraíba estava longe de praticar feitiçaria, mas nenhum dos dois encontrava argumentos valiosos para a defender em público, ainda que tentassem, dos outros crimes que se lhe imputavam. Catalina tinha sido sempre um mistério para eles, nunca vislumbraram, na verdade, do que poderia ser capaz. Se bem que o aprendiz de impressor não tivesse mencionado a ninguém o seu último encontro com ela, as suas insónias ainda eram perturbadas pela recordação da abjecção a que a encontrou submetida naquela última vez que a viu.

Ainda que Alonso não encontrasse maneira de desculpar a índia podia, pelo menos, bem aconselhado por Ahmed, dar rédea solta às sua frustração e desgosto criticando asperamente o tribunal do Santo Ofício e os desumanos métodos que os seus esbirros usavam durante as pesquisas. A Inquisição tinha sido criada pelos reis para serviço de si próprios, e não de Deus, repetia. Utilizavam-na sem remorsos para encher as suas arcas com os bens dos novos ricos, que com frequência acusavam falsamente com o propósito de os despojar das suas pertenças. Como é que se podia ter confiança num processo em que o acusado era arrancado violentamente da sua casa e metido numa masmorra sem que soubesse realmente de que é que era acusado? As denúncias não eram, na maioria das vezes, a imitação das feitas pelos soberanos, mas sim mentiras de invejosos ou familiares ingratos, ávidos de enriquecerem com a fortuna de um parente que tardava em morrer. O Santo Ofício encarregava-se então de obter as confissões necessárias através de métodos sobejamente conhecidos. Depois entregavam as suas vítimas às autoridades civis para que estas se encarregassem do trabalho sujo, com a desculpa hipócrita de que o sexto mandamento e os ditames do concílio de Latrão impediam-nos de matar os seus semelhantes. Eles, antes de quaisquer outros, eram merecedores das penas que infligiam. Deviam aniquilá-los a todos como fizeram os aragoneses quando o rei D. Fernando tratou de impor no seu reino o sinistro tribunal. Bartolomé tentava calá-lo ou, pelo menos, que baixasse a voz ao referir-se a don Pedro Arbúes, inquisidor e canónico da catedral aragonesa, cujo assassinato era olhado como martírio por muitíssima gente, asseverando-se que tinha morrido com a reputação de santo. Talvez algum dia fosse elevado aos altares por algum papa menos sensível aos abusos do odioso organismo a que pertenceu.

Mas Alonso não baixava a voz nem se calava. De facto, afundava-se cada vez mais fundo num daqueles irracionais arrebatamentos que tanto impacientavam Bartolomé. Talvez essa fosse uma missão para os Cavaleiros das Esporas de Ouro, disse-lhe prontamente: resgatar uma princesa em perigo e, de passagem, exterminar os juizes venais que, em nome da Igreja, trabalhavam a favor das piores ambições humanas. Nesses momentos parecia-lhe fácil entender o selvagem alvoroço que embargava Tirante el Blanco que, "quando tomou a cidade e matou os reis que lhe eram contrários, foi o mais alegre homem do mundo".

Bartolomé não dava crédito ao que ouvia. A criada Catalina, princesa ou não, e por muito que se tivessem afeiçoado a ela, acusava-se-lhe de um crime muito grande, tão arrepiante e tão real que não se tinha memória de outro parecido. Quem eram eles para se atreverem sequer a pensar em obstruir a justiça tanto de Deus como dos homens?

E se a caraíba fosse inocente? Se em vez de devorar o filho o tivesse entregado a outra pessoa para que cuidasse dele? No fim de contas não se encontraram restos do pequeno. Como é que ela poderia defender-se se era incapaz de se entender com alguém? Em que língua é que poderia explicar a quem a interrogasse o que se tinha passado?

Havia testemunhos, respondeu Bartolomé, a velha que tomava conta dela viu-a cometer o delito. Com toda a confusão levantada pelo caso e o perigo a que estava exposta a mãe, se alguém tivesse, na verdade, o menino em seu poder já o teria manifestado há algum tempo. E, mesmo que assim não fosse, que poderiam eles fazer, dois mocinhos, contra o exército de padres, de funcionários e al-guazis à disposição do Santo Ofício? Pensaria, por acaso, que eles sozinhos pudessem sitiar o castelo de São Jorge? Ou tratava-se somente de provocar um escândalo e deixar-se prender pateticamente para que a Santa Inquisição o queimasse a ele também nas planícies de Tablada, como anos antes se passara com o seu tio?

A morte, dizia Tirante el Blanco, chega mais prontamente aos que a temem do que àqueles que a demandam, respondeu Alonso. De que serviria então terem formado a cavalheiresca confraria se não fossem capazes de combater injustiças tão patentes? Já não havia lugar para a honra, para a rectidão e para a comiseração no mundo? Não existia ninguém que fosse capaz de defender os direitos daqueles a quem a vida privava injustamente de protecção e amparo? O melhor seria desfazê-la. Não mereciam fazer parte dela. Estavam ambos desonrados pela indolência e pela cobardia.

Talvez a forma de o fazer não fosse mais arremeter, lança em riste, contra a autoridade estabelecida, replicou Bartolomé. Talvez se pudesse ajudar os desvalidos mostrando o erro, a falsidade e a falta de justiça de quem os subjuga. Talvez fosse a hora de aprender a esgrimir a verdade como uma espada para julgar, perante Deus e os homens, os opressores e libertar assim os oprimidos da sua odiosa servidão.

O assunto da índia era coisa julgada, explicou Pedro Zuniga, sentado à mesa de sempre na antiga Taberna do Cão Vermelho. O facto de ser um destacado colaborador na casa do poderoso duque de Medinaceli permitia-lhe aceder, por vezes, a certas revelações clandestinas que ou nunca chegavam aos ouvidos da gente comum ou apenas se tornavam públicas muito mais tarde. Foi assim que o basco ficou a saber que o tribunal, se é que houve algum, tinha sido sumaríssimo. Nem sequer haveria tempo para apelar para o supremo ou oferecer dinheiro, ainda que tivessem o suficiente para mover com compaixão a vontade dos juizes.

Os comensais guardaram silêncio, como se cada um avaliasse interiormente as confidências de Zuniga e não desejasse ser o primeiro a abrir a boca para as comentar. Diego Álvarez, com a cabeça baixa e os cotovelos apoiados na mesa, puxava pelos cabelos sem levantar os olhos. Apenas uma garrafa, colocada descuidada-mente sobre a tábua rasa da mesa, sugeria um último vestígio, uma frágil reminiscência do opulento serviço de outras vezes. Ausentes estavam os presuntos e as perdizes que, em melhores ocasiões, tinham feito a delícia dos presentes, dando a essa triste assembleia o enganoso aspecto de um festejo. As notícias do aparecimento e a subsequente prisão de Catalina tinha atraído todos, um a um, sem nada terem combinado antes, ao lugar das suas antigas reuniões.

De qualquer modo, com a Santa Inquisição o melhor era não se meterem, animou-se por fim a dizer João Almada. O menos sensato nestes momentos seria atrair a atenção sobre as suas pessoas. Os inquisidores possuíam meios convincentes para os fazer admitir a sua participação no primeiro crime que lhes passasse pela cabeça.

Se a estavam a torturar nas masmorras do Santo Ofício ninguém estaria a salvo de nada, opinou Martin de Monroy, a quem cada dia que passava pesava mais o facto de o seu regresso à Hispa-niola se ter atrasado tanto. Interrogariam a índia sobre o que acontecera desde a sua chegada a Sevilha, incluindo os pormenores do seu trabalho na taberna, e tudo o que por ali tinha acontecido viria à luz. O resto dependia da boa ou má vontade dos juizes porque ela, sob aquele tormento, como bem asseverava Almada, poderia ser levada a confessar o que lhes desse na real gana. Diego Álvarez estremeceu. O que é que poderia contar-lhes?, balbuciou, e o que é que, na verdade, se lhes podia culpar? Catalina não falava castelhano. Era, inclusive, duvidoso que entendesse as perguntas.

Ele não acreditava que os juizes tivessem perdido muito tempo em interrogatórios, interveio Pedro Zuííiga. Segundo lhe disseram, possuíam provas suficientes para a condenar. O Santo Ofício preparava desde há algumas semanas um grande Auto de Fé e a escrava caía-lhes como anel no dedo para animar o espectáculo. Organizar-se-ia uma grande procissão com a assistência de altos prelados, de nobres e notáveis. Ainda não tinham a certeza se seria na Praça de São Francisco ou nas planícies de Tablada.

A notícia fez eriçar os cabelos aos presentes. Significava, quase com certeza, a fogueira para a caraíba. Almada bebeu um gole. O estalajadeiro voltou a meter a cabeça entre as mãos. Monroy procurou o seu tabaco na algibeira.

Não era justo, gemeu o estalajadeiro, e não se referia apenas aos nove mil maravedis atirados à rua e ao que lhe tinha custado mantê-la. A mulher fazia-lhe falta. Estava habituado a tê-la em casa.

A verdade é que tinha recuperado o dinheiros com juros, afirmou Martin de Monroy, tentando enrolar o seu tabaco picado numa folha seca, mas as mãos tremiam-lhe e decidiu devolvê-lo à algibeira. De qualquer forma, tinha perdido a vontade de fumar. O movimento impediu que se apercebesse do embaraçoso silêncio que se seguiu ao seu comentário e aos olhares assassinos com que o basco e o português o tinham recebido.

Porque teria devorado a criatura?, inquiriu Pedro Zuniga de repente, quebrando com a sua pergunta o renovado mutismo geral, seria coisa de fome? As condições no Lugar da Laguna, ou da Mancebia, como queiram chamar-lhe, nunca foram boas para as tributárias. Elas davam o corpo e suor, e os outros, não dizia quem, embolsavam os lucros.

Não estava convencido, era bastante notório que mesmo os selvagens mais desnaturados respeitavam a vida dos seus filhos, aventurou João Almada, essa mulher andou mal da cabeça desde o princípio.

Não era exactamente o caso dos caraíbas, replicou Monroy fazendo valer a sua experiência nas índias. Se é certo que não tocavam na prole das suas próprias mulheres, durante as suas incursões guerreiras capturavam fêmeas jovens das tribos inimigas, as quais conservavam prisioneiras para as engravidar e cozinhar os seus pequerruchos.

Conheciam-se algumas circunstâncias em que as mães caraíbas comessem os seus próprios filhos?, interrogou Pedro Zuniga.

Isso não, pelo menos que ele soubesse, não, ainda que vindo deles se pudessem esperar as piores coisas, indicou o estremenho. Mesmo entre canibais, o caso de Catalina devia ser muito raro.

A verdade, finalmente, é que ele se tinha afeiçoado a ela, confessou o estalajadeiro. Ainda que nunca falasse nem entendesse a clientela. As suas maneiras tinham qualquer coisa de nobre, a sua presença qualquer coisa de refrescante. Era para ele uma satisfação saber que ela estava por perto. Além disso, tinha trazido sorte a todos. Agora que já não estava com ele, compreendia como a felicidade dependia frequentemente de coisas tão insignificantes. Mas o mais difícil de aceitar era que, no fundo, sempre suspeitara que o filho que ela estava à espera era seu. Por isso tinha desejado conservá-lo, trabalhando perto dele na estalagem. De facto nunca teve a mínima dúvida, confessou Diego Álvarez, puxando de novo pelos cabelos, durante todo este tempo esteve convencido de que o filho era seu.

A procissão saiu do castelo de São Jorge e atravessou a ponte das Barcas em direcção a Sevilha. Os treze pontões que suportavam os pesados toros de carvalho que a compunham oscilaram e gemeram à passagem da severa coluna de homens enlutados e cerimoniosos, com os seus hábitos, capuchos, sotainas e toscos saiotes, os seus fumegantes archotes de luz amarelada, os seus altares e retábulos, as suas graves trombetas e os seus fúnebres cânticos, as suas velas, escapulários, crucifixos e estandartes. A caraíba ia no meio do cortejo acompanhada pelo seu verdugo. Caminhava descalça, vestindo uma túnica parda e levando à cabeça um cartucho de forma cónica ao que chamavam carocha4. Notava-se que a mulher se encontrava muito mais frágil e insignificante do que na realidade era, como se estivesse diminuída perante tanta pompa e solenidade.

Cristobalillo seguiu-a de longe. Misturado entre a multidão que vociferava o seu ódio, injuriando-a de mil maneiras diferentes, índia, selvagem, puta, bruxa, canibal, má mãe, comedora de crianças, assassina de inocentes, era o que gritavam ao vê-la.

Outra multidão, ainda maior, que esperava reunida no Arenal, levantou-se ao passar o ruidoso e lúgubre cortejo. Nobres, juizes, prelados, alcaides e escrivães marchavam misturados com jornaleiros, artesãos, camponeses, soldados de licença, mendigos e outros ociosos que tinham ido presenciar a execução. Todos entraram na cidade em apertado tumulto pela Porta de Triana, benzeram-se com devoção ante o templo de Magdalena e prosseguiram em direcção à Praça de São Francisco, onde se encontrava o queimadoiro.

Nem Alonso nem Bartolomé se encontravam presentes. Também não se via por nenhum lado João Almada ou Diego Álvarez. O pajem taino conseguiu divisar entre os presentes Martin de Mon-roy e Pedro Zuniga, muito juntos, observando os acontecimentos a uma distância prudente, com os olhos esbugalhados.

Uma plataforma com uma grande estaca ao meio, bem rodeada por uma pilha de lenha, tinha sido instalada entre a fonte

 

Mitra ignominiosa que, por castigo, se punha na cabeça de certos condenados. (N.T.)

 

da praça, e os portais que durante o dia albergavam os postos de venda de carne, peixe e hortaliças. Outras armações, à maneira de tribunas, colocaram-se nas proximidades para que os nobres e altos dignatários tivessem uma perspectiva melhor do sinistro espectáculo. Quando todos ocuparam os seus lugares, os gritos, os impropérios e as injúrias do povo subiram de tom ao verem a índia sair do cortejo para subir pelo seu próprio pé para o cadafalso onde já se encontrava preparada a pira. O verdugo atou-a ao poste sem que ela opusesse qualquer resistência. Um frade com o capuz a cobrir-lhe meio rosto aproximou-se para falar pela última vez com ela, exortá-la talvez para um último arrependimento, mas desceu pouco tempo depois abanando a cabeça desalentado. A mulher, aparentemente, não tinha dado sinais de compreender uma só palavra do que lhe tinha sido dito.

Ainda mais cruéis do que os caraíbas, que podiam comer vivos os seus prisioneiros, pensou Cristobalillo no momento em que a tocha a arder cortava o ar para pegar a sua chama aos quatro cantos do enorme amontoado de lascas e ramos secos, eram os maguaco-chíos: não só capazes de cortar em dois de um só golpe o inimigo, como também de amarrá-lo a uma estaca e largar-lhe fogo.

A populaça guardou um instante de supersticioso silêncio enquanto as brasas ganhavam força até se transformarem em labaredas. Foi então que, do alto do molho de lenha que levava até ela os tentáculos de lume acabados de ganhar forma, a índia, desgrenhada e inflamada, disse de repente, em gritos que gelaram de espanto o sangue dos presentes, quanto odiava os cristãos, as suas cidades e costumes, a sua religião e os seus deuses, como se alegrava de ter salvo o seu filho de cair nas suas perversas mãos, devorando-o, e que, com todas as suas forças, se opunha a ir para esse céu que tanto ambicionavam só para não ter que se encontrar com os da sua ralé.

As pessoas benziam-se guardando um silêncio estupefacto. Aterrados perante tanta blasfémia, soberba e revelia no próprio instante da morte, horrorizados por aquele último desafio ao Criador, vindo de uma alma que estava a ponto de se apresentar perante Ele. Era coisa do Diabo, murmuravam alguns aos vizinhos que os escutavam espavoridos, porque a mulher sempre ignorara o castelhano. Nunca ninguém lhe tinha ouvido duas frases seguidas nessa língua. Nem sequer tinha entendido as palavras do bom padre que ali subiu para a confessar e agora, apenas alguns instantes depois disso, indubitavelmente inspirada por Satanás, gritava como qualquer nativa de Sevilha.

A índia ficou finalmente em silêncio e deixou cair a cabeça, talvez vencida pelo fumo ou porque já não tinha mais nada para dizer. Ninguém voltou a ver os seus olhos escuros e rebeldes, cobertos pela negra floresta de cabelo que piedosamente lhe cobria o rosto, enquanto o fogo se propagava até transformar o queimadoiro num archote gigante cuja luz iluminou de lés a lés a noite do porto junto ao Guadalquivir, desde a Torre do Ouro até à Porta de Macarena, enquanto a Praça de São Francisco e as ruas à sua volta se iam impregnando, pouco a pouco, do penetrante odor a carne queimada.

Zuniga e Almada serviram grandes copos de vinho de Málaga de uma garrafa que estava a meio, a terceira ou a quarta que passava essa noite por aquela mesa, e levaram-nos à boca saboreando-o com displicência. Estavam os dois sozinhos na Taberna da índia. Depois da execução, os vizinhos tinham optado por se manter longe do lugar e Diego Álvarez calculava que levaria muito tempo até que a taberna recuperasse a sua clientela. Martin de Monroy, bem recomendado pelo cartógrafo português, estava ocupado nos seus últimos preparativos para regressar às índias nas naus de Rodrigo de Bastidas e de Juan de Ia Cosa, e brevemente deixariam de o ver na taberna. O estalajadeiro, por seu lado, mostrava cada vez menos disposição para conversar com eles. Também já não se aventurava pela cozinha. Tinha perdido o interesse pelos guisados, molhos e condimentos, e confiado os seus tachos e panelas a um moço catalão, bastante jovem, de apelido Nola, que se esmerava em pôr em prática as saborosas receitas do dono. Almada tinha começado a aborrecer-se de estar sozinho no estabelecimento. Não é que o trabalho escasseasse, mas já não tinham lugar as saborosas conversas, às quais tinha chegado a habituar-se. Vespucci, seguindo o seu conselho de ir para Lisboa e colocar-se às ordens de D. Manuel, o Venturoso, tinha partido de um dia para o outro, quase sem se despedir de ninguém. Andaria, por essa altura, pensou o cartógrafo abstraído, atravessando outra vez o Mar Tenebroso, desta vez sob a bandeira portuguesa, com a proa bem apontada para aquela terra desconhecida, da qual não tinha podido encontrar o fim.

De modo que Zuniga e Almada, reunindo-se a sós, contentando-se mais em beber do que em comer porque agora lhes cobravam religiosamente os consumos, eram os únicos que restavam da tertúlia de amigos que, em tempos, havia sido o centro de animação da que, agora por uma causa mais triste, era chamada a Taberna da índia.

O português colocou o copo sobre a mesa e pensou que a ocasião era propícia para interrogar o basco sobre aquelas índias brancas que uma vez mencionou ter visto ao norte da Hispaniola e a sua possível relação com a história que Martin de Monroy lhes contara aos dois, vários meses atrás, no seu atelier de cartografia da Rua de Sierpes.

Zuniga animou-se ao ouvir a pergunta. Era curioso que a fizesse, disse-lhe, porque semanas antes tinha-lhe acontecido um singular incidente que era necessário contar-lhe. Na nau Santa Maria, a que naufragou naquela noite aziaga de fim de ano, em 1492, nas costas da Hispaniola, viajava um tanoeiro de nome Domingo Pé-rez, com quem ele tinha travado uma certa amizade em Bermeo, sua terra natal, começou Pedro Zuniga, embora soubesse depois que, na realidade, o homem fosse natural de Lequitio, mas isso não tinha qualquer importância para a história. Este seu amigo fora abandonado pelo Almirante Colombo no forte que construíram com os restos da caravela encalhada e jamais se voltou a saber dele. Como é bem sabido, quando a frota castelhana regressou, dez meses mais tarde, encontraram o baluarte destruído e todos os seus habitantes mortos. Até agora ninguém tinha podido explicar o que se passou com eles. Pouco tempo antes, no entanto, ele tinha obtido notícias do seu camarada da maneira mais surpreendente que era possível imaginar.

Fez uma pausa, verteu mais vinho no copo e bebeu um longo trago para aclarar a garganta.

Uns meses antes, continuou Zuniga, um religioso recém-che-gado das índias, onde andou uns tempos com a bendita missão de converter selvagens à verdadeira religião, veio dar à casa do seu senhor, don Luís de Ia Cerda, duque de Medinaceli, e começou a servir no seu séquito. Este santo homem disse-lhe que, numa certa ocasião, enquanto habitava na Hispaniola, o seu sagrado ministério levou-o até a uma povoação nas margens do rio Mao, cujos habitantes tinham sofrido muito por causa dos castelhanos, apesar de ter tido muito pouco contacto com eles. Ao princípio mostraram-se abertamente hostis. Quando se convenceram de que era um homem de paz e que não andava em busca de ouro, permitiram-lhe que ficasse durante um curto período de tempo entre eles. A maioria mostrou-se bastante renitente ao baptismo mas, por outro lado, admitiram-no sem reservas nos seus faustos e assembleias. Assim pôde contemplar os objectos sagrados que os índios conservavam no seu centro cerimonial. Para além de diversos ídolos tutelares que na região são chamados cernis e pelos quais todos demonstram uma especial devoção, surpreendeu-se ao encontrar contas de vidro, guizos e outras miudezas com as quais os castelhanos costumam traficar com os índios. Havia, além disso, vários elmos e gibões pertencentes, talvez, a um grupo armado que teria passado por ali mas, no meio daquilo tudo, conservavam também um pequeno cofre de madeira que continha um extenso pergaminho. Pois bem, acrescentou Zuniga com olhos triunfantes, esse maço não era senão uma prolixa carta que, antes de morrer, Domingo Pérez tinha escrito a um irmão seu que ainda vive em Bermeo. Nela contava-lhe o que acontecera no forte, a sua grande paixão por uma bela índia da aldeia e o seu encontro com um português leproso que habitava numa gruta dos arredores e que tinha chegado a estas terras muitos anos antes deles. Infelizmente, os índios olhavam com especial veneração aquela carta, ainda que não entendessem nada do que nela se dizia e não permitiram que a levasse.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, havia alguma relação entre aquele português leproso e o náufrago da Madeira? Seria, talvez, um membro da tripulação que decidira ficar a viver ali em vez de regressar à Europa?

Zuniga encolheu os ombros e bebeu mais um trago. Tanto não tinha chegado a saber, embora o duvidasse, porque lhe parecia recordar que a sua nau tinha ido a pique entre os recifes e que ele, juntamente com outros dois camaradas que conseguiram também chegar à praia a nado, foram os únicos sobreviventes do desastre. Assim, sem barcos para regressarem, nenhum deles pôde ter naufragado de novo na ilha da Madeira. Além de que os seus companheiros tinham acabado os seus dias devorados pelos Caraíbas.

Bem, bem, algum bote ou chalupa, talvez, qualquer coisa assim, uma barca que tivesse sido lançada à água durante o sinistro, com a qual algum dos seus companheiros tivesse podido atravessar mais tarde o mar Oceano...

Zufiiga encolheu outra vez os ombros e deitou pela enésima vez a mão à garrafa para esvaziar as derradeiras gotas no seu copo. Uma incipiente ebriedade fazia-o arrastar as palavras ao expressar-se. Nada disso constava na carta e ele também não acreditava nisso. O misterioso náufrago da Madeira, se é que tinha existido, devia pertencer à tripulação de outro navio. Ele também não simpatizava lá muito com Colombo, mas havia que reconhecer-lhe um certo mérito. Era preciso ter coragem para se lançar às cegas rumo ao desconhecido e aquele aventureiro genovês tinha-o feito. Talvez sustentando hipóteses erradas, como argumentava Almada, talvez seguindo as indicações de outro, mas tinha-se aberto passagem com arrojo e perseverança entre o acaso e o mistério e, o mais importante, o que nem sequer eles poderiam imaginar, tinha regressado para contar.

A partir do momento em que suas majestades católicas decidiram conceder a liberdade aos índios trazidos contra a sua vontade para terras de Castela e ordenado a sua pronta devolução aos seus lugares de origem, ele era um homem livre, ratificou Bartolomé a Cristobalillo, entre o orgulho e a resignação. Uma só frase de dona Isabel tinha bastado para o emancipar. Já não era um escravo, repetiu, agora era um homem livre...

"Quem é o Almirante Colombo para escravizar os meus súbditos?", Alonso imitou uma voz de mulher ao intervir na conversa. Um pouco tardiamente, é verdade, ninguém ousaria contradizê-la, a soberana tinha-se dignado interceder em favor dos seus mais humildes vassalos. Mas isso não o obrigava a partir, acrescentou, dirigindo-se ao criado taino: ser um homem livre significava que tinha o direito de ir ou de ficar, como quisesse. E ele não pensava que a resolução de voltar para as índias fosse muito sábia da sua parte.

Seria melhor que permanecesse em Sevilha, aconselhou-o assim Bartolomé, evitando a defesa da rainha para não enfrentar novas ironias de Alonso: as condições de vida para os nativos na Hispa-niola eram atrozes, segundo tinha dito mais de uma vez Martin de Monroy. Abusava-se dos índios, apropriando-se das suas possessões e obrigando-os a trabalhar como bestas. Apesar da boa vontade dos reis, não havia instância que os defendesse de atropelos e injustiças.

Os três tinham ido até ao Arenal com a intenção de admirar as naves que Juan de Ia Cosa e Rodrigo de Bastidas aparelhavam para irem para as índias, duas caravelas de panos quadrados e cerca de setenta toneladas de deslocação abanavam sossegadamente no rio enquanto os seus estandartes drapejavam ao vento. O cais fervia de gente que desejava alistar-se na expedição. A volta dos patrões apinhava-se todo o tipo de possíveis tripulantes, desde comitres, timoneiros, marinheiros das gáveas, até tanoeiros, calafates, carpinteiros, escrivães, despenseiros e outros ofícios necessários para o prolongado percurso. Em obediência às disposições de sua majestade, a rainha, e mediante uma recomendação muito especial do cartógrafo português João Almada, Cristobalillo, que semanas antes tinha decidido regressar às índias, ia com eles. Combinou-se que desempenharia as funções de intérprete até que pudesse ser desembarcado próximo da sua aldeia natal.

Se ficasse, conservaria o emprego em sua casa se assim o desejasse, insistiu Bartolomé, parando quase à beira das águas. O seu pai estava de acordo. Com eles, sabia-o bem, embora não fossem ricos, nunca lhe faltaria nem comida nem abrigo.

O pajem índio observou em silêncio o airoso perfil das naus. A sua mastreação alta de madeira balanceando-se com o fluxo e refluxo da ressaca. Ao vê-las recordou a viagem que quase dois anos antes o tinha trazido até ali. Viu-se a si mesmo a dormir na coberta de um navio parecido com o que agora observava, porque os porões vinham atestados de escravos e em baixo já não havia mais nenhum lugar. Evocou a cativa caraíba que o acolheu no seu regaço quando lhe faltaram forças para se manter vivo. Rememorou o temor que lhe tinha provocado deitar-se junto dela, tiritando de sono, de fome e de frio, entre velas, cordame, ferramentas e outros aparelhos marítimos que se amontoavam na proa.

De qualquer maneira, se fosse ou se ficasse, ele já não teria a oportunidade de o ver tão frequentemente, disse-lhe Alonso Álvarez com autêntico pesar, pressentindo que seria irrevogável a decisão de Cristobalillo: Melchor Goricio tinha decidido emigrar com a sua tipografia para Toledo, pensando que ali, com menos concorrentes, teria talvez melhor sorte. Ele estava decidido a acompanhá-lo. Não podia viver longe dos livros e o professor, mais do que um patrão, era um pai que lhe tinha ensinado grande parte do pouco que sabia sobre a vida. Além disso, desde há uns tempos que os ares de Sevilha não lhe andavam a fazer bem, nem à saúde nem ao estado de espírito. Havia muitas coisas que só com muita dificuldade conseguia entender, ou assumir, ou fosse o que fosse. O facto de Catalina não se encontrar presente, por exemplo, para aproveitar também a magnanimidade dos reis, parecia-lhe inconcebível. E quando recordava a razão, tinha a impressão de ser vítima de um pesadelo, de ter acordado de um sonho terrífico.

Catalina, pensou Cristobalillo, para além de lhe ter dado calor durante a viagem, tinha transmitido a sua força, a sua indómita vontade, para o encorajar a ir em frente. Talvez fosse necessária a dureza da raça caraíba para sobreviver à crueldade inata, à distintiva violência desse outro povo que os tinha conquistado.

Ele teria que dar assistência durante mais alguns anos no claustro da catedral e completar os seus estudos em Latim, Dialéctica, Metafísica, Ética e Lógica, disse Bartolomé, dando-se igualmente por vencido e aceitando como uma negativa o inapelável mutismo do seu pajem. Uma vez concluída a sua educação, ele também seria livre de fazer o que lhe desse na gana. Quem poderia saber o que o futuro lhe reservava? Talvez pudesse, inclusive, viajar para as índias, encontrar-se de novo com Cristobalillo na sua casa do Mar Tenebroso e este ensinar-lhe-ia, porque não?, o caminho secreto que conduzia ao Grande Khan.

As caravelas estiveram ancoradas uns dias mais no Arenal, como se Juan de Ia Cosa e Rodrigo de Bastidas desejassem satisfazer a curiosidade popular antes de as transferirem para um sítio mais conveniente, rio abaixo, onde começassem a ser consertadas, limpos os seus fundos, calafetadas e breadas conscenciosamente para empreender essa nova aventura em direcção aos inexplorados confins da Especiaria.

Alonso e Bartolomé acompanharam Cristobalillo até à praia do estaleiro onde se davam os últimos retoques às naus, besuntando-as de alcatrão. O odor a madeira acabada de aplainar e a breu inundava o ambiente. A recém-contratada tripulação afanava-se em cumprir esse primeiro dever em terra, preâmbulos de muitos outros que lhes tocaria realizar durante os próximos meses no mar.

Quando finalmente as naus ficaram prontas, lançaram-se à água no meio da excitação, do regozijo, dos vivas, dos aplausos e aclamações dos presentes, tanto dos que ficavam como dos que viam nessa simples cerimónia o iminente sinal da sua partida. As embarcações ficaram ancoradas perto da margem e começou-se a içar a carga: recipientes e tonéis com alimentos e bebidas, velas, cordame, instrumentos, artefactos e apetrechos, para além de várias peças de artilharia, pólvora e munições.

Juan de Ia Cosa passou junto dos três jovens acompanhado por vários grumetes que o ajudavam a carregar, com extremo cuidado, o seu astrolábio, compassos, mapas, barquilha, sondas, agulhas magnetizadas, caixas de ampulhetas e outros utensílios indispensáveis para a navegação em alto mar.

Martin de Monroy subiu para bordo muito orgulhoso, atraindo os olhares tanto sobre a sua robusta pessoa como sobre o fumegante rolo de tabaco. Semanas antes tinha apresentado a Juan de Ia Cosa e a Rodrigo de Bastidas um jovem conterrâneo seu, estremenho também, de Badajoz, de nome Vasco Nunez de Balboa, que também desejava participar na travessia. Os navegantes ficaram favoravelmente impressionados pelo garbo e postura do inexperiente explorador, pelo que determinaram que poderia ser-lhes útil e incluíram-no na viagem.

Quando chegou a vez de Cristobalillo embarcar, Bartolomé despediu-se emocionado com a promessa de que quando acabasse os seus estudos, dois anos mais tarde, iria procurá-lo às índias. Alonso colocou-lhe nas mãos, como prenda de despedida, um grosso embrulho com a recomendação de que não o abrisse até que a nave tivesse zarpado. Era uma patetice, disse, piscando-lhe o olho, um presente para que o tivesse em conta quando se deitasse a repousar, suspenso na sua cama de rede. Cristobalillo procurou no seu bornal alguma coisa para lhe oferecer em troca e ficou triste por não encontrar nada para lhe dar. Alonso tranquilizou-o com um sorriso afectuoso. Que não se preocupasse, disse-lhe, o seu propósito era imitar o seu herói, Tirante el Blanco, tanto nas obras como nas maneiras: desejava viver como cavaleiro, não como mercador, e acostumar-se a dar e não a receber.

Cristobalillo subiu para a nau e encontrou logo um lugar a um canto do castelo de popa. Sabia que esse não era um lugar para ele e que, mal a situação se normalizasse a bordo, mandá-lo-iam ir dormir para o porão, mas dali os seus amigos em terra poderiam vê-lo, com a mão levantada, até que a nau desaparecesse na distância.

As caravelas levantaram âncoras e iniciaram a penosa descida do Guadalquivir. Bartolomé recordou a oração que se dizia ao raiar da alba nos navios que se aventuravam sobre as traidoras águas do mar Oceano. O seu pai tinha-a repetido dezenas de vezes, juntamente com os outros marinheiros, ao reflectirem-se os primeiros raios de sol sobre a ondulante superfície das águas. Ao regressar a Sevilha tinha-a ensinado a Bartolomé. Agora, repetida pelos marinheiros ao romper da aurora, acompanharia Cristobalillo durante toda a viagem:

Bendita seia Ia luz y Ia Santa Vera Cruz y el Senor de Ia Verdad y Ia Santa Trinidad.

Bendita sea el alba y el Senor que nos Ia manda.

Bendito sea el dia y el Senor que nos Io envia,

Amén.5

Ámen, pensou Bartolomé, olhando como as gáveas, inchadas no alto dos mastros, se iam perdendo na distância.

Ele jamais necessitaria, para conservar as suas memórias, das plumas de ganso molhadas no líquido negro e espesso que apenas

 

5 Bendita seja a luz / E a Santa Vera Cruz / E o Senhor da Verdade / E a Santa Trindade. / Bendita seja a alba / E o Senhor que no-la manda. / Bendito seja o dia / E o Senhor que no-lo envia, / Amén. (N. do T.)

 

roçando na superfície do papel o deixavam marcado com um traço indelével, reflectiu Cristobalillo, de pé na coberta do castelo de popa do barco, respirando a plenos pulmões o ar que revolvia os seus cabelos e olhando para as silhuetas de Alonso e Bartolomé a diminuírem pouco a pouco até se desvanecerem no horizonte. Não, ele não precisaria de livros para guardar na memória a relação, com os seus numerosos pormenores, do que lhe tinha tocado viver e presenciar nessa insólita margem do que os cristãos chamavam o Mar Tenebroso. Nem sequer faziam falta as lâminas de pedra, nas quais outras civilizações mais parecidas com a sua, segundo lhe contara o seu pai, consignavam os acontecimentos relevantes da sua história. Esta ficaria para sempre inscrita no seu cérebro com a minuciosidade de uma alta pilha de folhas e a permanência de uma laje de granito. Tão-somente se perguntava se, no futuro, encontraria alguém a quem valesse a pena contá-la embora, no fundo, nem sequer tivesse a certeza de querer partilhá-la com alguém. E sem outra pessoa que a conhecesse para, por sua vez, a contar, sem reuniões à volta do fogo para a repetir, nem festivais nem arautos para a cantar, a memória desses aziagos acontecimentos extinguir-se-ia com ele. Talvez fosse melhor assim.

Pensou que nos tempos futuros sentiria a falta do estonteante idealismo de Alonso e o seu amor pelas proezas heróicas dos protagonistas dos seus livros, mas sobretudo far-lhe-iam falta, onde quer que se encontrasse, a generosidade e o genuíno afecto que sempre lhe deram Bartolomé e Pedro de Ias Casas.

Do gasto surrão que este último lhe cedera para a viagem, tirou o maço que o aprendiz de impressor lhe tinha obsequiado durante a despedida e examinou, entre os restos do pacote, o tomo Tirante el Blanco que uma vez folheara no Arenal. Nas suas páginas, tinha-lhe dito Alonso, estava escrita a história do mais esforçado e bondoso cavaleiro que tinha existido sobre a Terra. Um homem que dedicava a sua vida a lutar por aqueles que eram demasiado fracos ou desvalidos para o fazerem por si próprios. Era difícil crer que, entre os cristãos, existisse pelo menos um que se empenhasse a amparar seres tão indefesos como Catalina, como ele ou como qualquer um dos da sua raça. Se por ventura fosse verdade, seria melhor contar essa história em vez da negra experiência que à escrava caraíba lhe tinha tocado viver.

Rebuscou de novo na bolsa e tirou um estranho ídolo de madeira que levava consigo. Pouco antes de partir tinha caminhado de novo pela Praça de São Francisco. Surpreendeu-lhe a alegria e a animação que reinava naquele lugar. Nada delatava os terríveis eventos nela ocorridos várias semanas atrás. As pessoas entregavam-se às suas ocupações quotidianas como se nada tivesse acontecido, como se a praça jamais tivesse sido palco de um Auto de Fé, no qual um ser humano tinha ardido na fogueira até se consumir. Os postos de venda de peixe, de carnes, de frutas e verduras estavam abertos sob os portais e os seus proprietários apregoavam aos gritos a sua mercadoria para atrair os clientes. As mulheres caminhavam entre eles absortas nas compras do dia, enquanto os homens se juntavam em grupos para trocarem novidades e dar a sua opinião sobre recentes enredos e acontecimentos.

Numa esquina da praça, à sombra de uma árvore, descobriu um pedaço de ramo seco que estava junto ao tronco. Era impossível saber se o tinha partido um vendaval ou se alguém o teria quebrado ao passar. Cristobalillo examinou exactamente o seu aspecto e, do mesmo modo que descobria formas ocultas nas nuvens, encontrou com facilidade alguns rasgos escondidos atrás das sinuosidades e nós da madeira. Uns quantos cortes pacientes com a navalha de Pedro de Ias Casas bastariam para os tornar evidentes, pensou. Levou-a consigo para casa de Bartolomé e durante os dias seguintes, às escondidas dos seus amos, dedicou-se a dar-lhe forma. Pouco a pouco foi surgindo uma vaga semelhança com um corpo de mulher, os braços atados às costas, a cabeça para a frente, os olhos fulminantes, encolerizados, ardendo com o fogo de uma última maldição. Agora trazia-a com ele. A sua intenção era depositá-la na casa grande onde se rendia culto aos antepassados e aos cemis protectores da aldeia. Expô-la junto à imagem de Yucahuguamá, o supremo guardião, senhor do Turey, o reino dos céus. Dessa maneira, durante a cerimónia da destilação, quando os sacerdotes feiticeiros, os behiques, se purificavam, quando introduziam nas suas narinas os diminutos carriços para inalar o pó e o fumo sagrados que os punham em transe, quando através dos seus corpos se estabelecesse a comunhão entre o aqui e o além, quando pelas suas bocas os espíritos falassem aos presentes, então ela própria, melhor que ninguém, narraria a sua história.

 

                                                                                António Sarabia  

 

                      

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