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A TAÇA DE OURO / John Steinbeck
A TAÇA DE OURO / John Steinbeck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TAÇA DE OURO

 

TODA a tarde o vento soprou das escuras gargantas do País de Gales, anunciando que o Inverno deslizara do pólo para o mundo e, ao longo do rio, auscultava-se o desfalecido lamento do gelo novo. Era um dia triste, um dia de cinzenta inquietação, de descontentamento. A suave ondulação da brisa parecia celebrar com uma branda, terna elegia a perda de qualquer coisa alegre. Mas nas pastagens os fogosos cavalos de tiro Latiam nervosamente os cascos e, através de toda a região, passarinhos castanhos, em pequenos bandos de quatro ou cinco, voavam pipilando de árvore em árvore, num vaivém, em busca de companheiros para a viagem rumo ao Sul. Algumas cabras saltavam para as cristas das solitárias rochas e, fitando no céu os olhos amarelados, farejavam o ar frio.

A tarde escoava-se vagarosamente, como uma procissão ao crepúsculo, e, no seu rasto, um vento excitado impelia as sombras, roçagava as ervas, escapulia-se, rabujando, através dos campos. A noite descia como um capuz negro e o Sagrado Inverno enviava o seu mensageiro ao País de Gales.

Junto da estrada principal que cortava o vale e subia através de uma abertura nas colinas, longe do mundo, erguia-se uma velha casa de lavoura, com telhado de colmo e paredes de pedra tosca. Os Morgan, que a haviam edificado, tinham desafiado o tempo e quase conseguido sair vitoriosos.

Dentro da casa ardia o fogo na lareira; uma caldeira de ferro pendia sobre o lume, e um forno escurecido quase desaparecia diante das chamas. A viva luz do fogo iluminava as lâminas dos chuços de compridos cabos, alinhados em cabides nas paredes, armas paradas há cem anos, desde a época em que os Morgan lançavam o seu grito de guerra nas fileiras de Glendower, e tremiam de cólera diante das linhas inflexíveis de lolo Goch.

As amplas fechaduras de cobre de um enorme cofre colocado a um canto absorviam a luz e resplendiam. Havia papéis nele, pergaminhos, rígidas peles por curtir, escritas em inglês e latim, e na velha língua gaélica: um Morgan nascera, um Morgan se casara, um Morgan fora armado cavaleiro, um Morgan tinha sido enforcado. Estava ali a história da casa, rica de glória e de opróbrio. Mas a família achava-se agora reduzida e, de acordo com as melhores probabilidades, não acrescentaria nada de novo aos arquivos do cofre e à simples crónica: Morgan nasceu - e morreu.

Havia, por exemplo, o Velho Robert, sentado no seu cadeirão, sorrindo para o lume. O seu sorriso era perplexo e estranho, com um trejeito de passivo desafio. Dir-se-ia que procurava envergonhar com tal sorriso o Destino responsável pelo seu ser. Considerava muitas vezes, detidamente, a sua existência, marcada de pequenas derrotas que zombavam dele como as crianças da rua atormentam um coxo. Achava deveras estranho que embora soubesse muito mais do que os vizinhos, e meditasse infinitamente mais do que eles, não conseguisse sequer ser um bom lavrador. Por vezes imaginava que conhecia demasiadas coisas para poder fazer bem feito fosse o que fosse.

E assim o Velho Robert beberricava a cerveja amarga que ele próprio fabricava, e sorria para o fogo. Sua mulher, ele o sabia, estaria balbuciando desculpas por ele e os jornaleiros tirarem o chapéu a Morgan e não a Robert.

A sua velha mãe, Gwenliana, sentada a seu lado, tiritando junto do lume, como se o bravo rumor do vento em volta da casa bastasse para forçar o frio a penetrar nela, era considerada mais competente do que ele. Nas choupanas dos camponeses havia um certo temor por ela e também um grande respeito. Não havia dia em que ela não reunisse a sua corte necromântica no jardim, debitando as suas predições a alguns altos moços de lavoura, que, corando e apertando o chapéu contra o peito, prestavam atenção à magia de Gwenliana. Há muitos anos já que ela praticava a vidência e disso se orgulhava. E embora a família soubesse que as suas profecias eram simples conjecturas, cuja sagacidade se ia embotando com os anos, prestava-lhe atenção com certo respeito, fingindo um receio admirado e consultando-a até sobre o sítio onde estavam as coisas desaparecidas. Quando, após uma das suas místicas recitações, as tesouras não apareciam debaixo da segunda tábua do soalho do alpendre, fingiam, apesar de tudo, tê-las encontrado lá; pois, se ela perdesse o manto augural, ficaria apenas uma velhinha enrugada, pronta para morrer.

Esta obrigação de servir de apoio a uma pobre de espírito era uma dura taxa imposta às convicções da Mãe Morgan. Violentava a sua natureza, porque, a julgar pelas aparências, ela tinha vindo ao mundo para ser um castigo de todas as loucuras. Tais matérias, como é óbvio, não tinham qualquer conexão nem com a Igreja nem com o preço das utilidades, que era simplesmente absurdo.

O Velho Robert amara a mulher tanto e tão longamente que podia pensar coisas mordazes a seu respeito, sem que tais pensamentos ofendessem de qualquer modo o afecto que lhe votava. Quando ela regressou a casa, nessa tarde, protestando contra o preço de um par de sapatos, de que aliás não necessitava, pensou:

«A sua vida é como um livro povoado de importantes acontecimentos. Todos os dias se eleva até ao extremo de algum tremendo clímax, criado por simples ninharias. Penso que quando a verdadeira tragédia desabar sobre ela, não chegará a vê-la, metida como está na sua cadeia de pequenas coisas. Talvez isso lhe seja benéfico.» Pouco depois continuou: «Gostaria de saber o que conta mais a seus olhos: se a morte do rei ou a perda de um dos vermelhuscos leitões da nossa porca.»

A Mãe Morgan sentia-se demasiado preocupada com o estado do tempo nesse dia para se incomodar com a loucura destas abstracções. Era necessário que alguém na família possuísse um pouco de espírito prático, ou então o colmo do telhado seria arrastado pelo vento; e que poderia esperar-se de uma turba de sonhadores como Robert e Gwenliana e seu filho Henry? Ela amava seu marido com um amor em que se misturavam a piedade e o desprezo originado pelos seus desaires e pelas suas virtudes.

Mas adorava o filho, o jovem Henry, embora não fosse capaz de conceber, naturalmente, que ele pudesse ter a menor ideia do que lhe era prejudicial ou salutar. E todos os membros da família, aliás, adoravam a Mãe Morgan, a temiam e se adaptavam à sua maneira de ser.

Ela preparara o jantar e cortara a mecha do candeeiro. O pequeno-almoço estava ao lume. Agora procurava alguma coisa para coser, embora não cosesse coisa alguma no momento em que as roupas precisavam de ser arranjadas. No meio da sua procura de ocupações, deteve-se e olhou agudamente para o jovem Henry, um desses duros e afectuosos olhares que pareciam dizer: «É capaz de apanhar frio, assim deitado no soalho.» O filho assumiu um ar preocupado, procurando descobrir o que se teria esquecido de fazer durante a tarde; mas ela apoderou-se imediatamente de um trapo e começou a limpar o pó, o que tranquilizou o rapazinho.

D’eitado de barriga para baixo, apoiado nos cotovelos, pôs-se a examinar os seus pensamentos para além do fogo. A longa tarde cinzenta suscitara-lhe ardentes aspirações cujos germes tinham sido semeados havia meses. Sentia o desejo de uma coisa que não era capaz de designar. Talvez estivesse a ser dilacerado pela mesma força que reunia os pássaros em bandos de reconhecimento, e forçava os animais a fungar com inquietação para descobrir no vento o cheiro do Inverno.

Nessa tarde, o jovem Henry tinha a consciência de haver vivido quinze anos fastidiosos sem conseguir realizar nenhum acto importante. Se a mãe pudesse saber o que ele pensava, teria declarado: «Este rapaz está a crescer.» E o pai teria repetido: «É verdade, está a crescer.»

Mas nenhum deles haveria compreendido o que pretendia dizer o outro.

Para quem lhe examinasse o rosto, Henry era parecido tanto com o pai como com a mãe. Tinha, como ela, as maçãs muito pronunciadas, um queixo firme, um lábio superior breve e fino. Mas o lábio inferior sensual, o nariz delgado, os olhos perdidos em sonhos, pertenciam ao Velho Robert, do mesmo modo que os espessos cabelos ondulados. Contudo, se o rosto de Robert exprimia a irresolução total, no do filho havia uma firme decisão em busca de um objecto sobre o qual se pudesse exercer. Os olhos destes três entes -Robert, Gwenliana e o jovem Henry- trespassavam as paredes e viam criaturas descarnadas, os espectros que povoavam a noite.

Era uma noite sobrenatural, em que era possível encontrar brandões fúnebres caminhando ao longo da estrada, ou ainda uma fantasmática legião romana regressando a passo de marcha ao abrigo da cidade de Caerleon antes de a tempestade estourar em todo o seu furor. E os anões disformes que visitavam as colinas deviam procurar as luras dos texugos para ali se refugiarem, enquanto o vento os perseguia através dos campos com as suas assuadas.

O silêncio da casa só era interrompido pelo crepitar do fogo e pelos silvos do vento no tecto de colmo. Fendeu-se uma acha na lareira; pelo interstício assim aberto infiltrou-se uma chama, que se enrolou em torno da chaleira escurecida como uma flor escarlate. A Mãe Morgan precipitou-se para a chaminé, exclamando: l O

- Robert, tu não dás atenção nenhuma ao lume. Devias atiçá-lo de vez em quando.

Era esse o seu método: atiçava um grande fogo para o diminuir e depois, no momento em que estava em risco de se apagar, remexia vivamente as brasas para reavivá-las.

Um leve rumor de passos ressoou na estrada principal - podia ser o vento ou esses seres que se deslocam sem que os vejamos. Os passos tornaram-se mais fortes, e pararam finalmente defronte da porta, à qual alguém bateu timidamente.

- Entre! - gritou Robert. A porta abriu-se suavemente, e eis que surgiu recortado na luz contra o fundo negro da noite, um homem descarnado e curvo, cujos olhos claros luziam como duas chamas frágeis. Pareceu hesitar um instante na soleira, mas penetrou quase imediatamente no compartimento, inquirindo com uma estranha voz que rangia:

- Ainda será capaz de me reconhecer, Robert Morgan? Será capaz de me reconhecer, a mim que deixei o país há já tanto tempo?

Ouvindo esta pergunta feita num tom suplicante, Robert perscrutou o rosto enrugado.

- Reconhecer-te? Cos diabos, julgo que não serei capaz... Mas de facto, sim!... Serás tu o Daffydd? O nosso criadinho Daffydd que seguiu o caminho do mar há tantos anos?

Uma expressão de completa tranquilidade transpareceu nos traços do viajante. Ter-se-ia podido acreditar que acabara de submeter Robert Morgan a uma prova perigosa e subtil.

- Decerto que sou Daffydd - declarou com uma risadinha-, Daffydd que está rico... e que tem muito frio - acrescentou num tom marcado por uma nostalgia dolorosa.

Tinha os cabelos grisalhos, e o seu corpo enrijecido fazia pensar em couro resseco. A pele do rosto era tão espessa, tão rígida, que só podia mudar de expressão graças a um lento esforço de vontade.

- Tenho frio, Robert - prosseguiu ele numa estranha voz rangente. - Tenho a impressão de que nunca mais poderei voltar a aquecer-me. Mas isso pouco importa, estou rico... tão rico como aquele que se chama Pierre le Grand

O jovem Henry, que se levantara, exclamou nesse momento:

- Onde é que estiveste? Diz-me, por favor, onde é que estiveste ?

- Onde? Bem, fui até às índias e depois fui, também, até à Gonave e à Tortuga - o que quer dizer tartaruga -, e à Jamaica e aos hosques espessos de Hispaníola (2), onde estive a caçar bois bravos. Sim, estive em todos estes lugares.

- Senta-te então, Daffydd - interveio a Mãe Morgan como se o seu antigo criado de lavoura nunca tivesse saído da casa. - Vou-te arranjar uma bebida quente. Já reparaste como o Henry te devora com os olhos? Muito provavelmente vai partir também para as índias! (Para ela, esta última frase não passava de uma brincadeira tola.)

Daffydd manteve-se em silêncio, embora parecesse lutar com todas as suas forças contra o desejo de falar. A Mãe Morgan inspirava-lhe um receio tão grancle como outrora, quando não passava de um rapazinho com uma cabeleira de estopa. O Velho Robert compreendeu o seu embaraço, e

 

(1) Em francês, no original.

(2) Antiga designação do Haiti.

 

também a Mãe o adivinhou, porque, depois de ter metido uma xícara fumegante nas mãos de Daffydd, se retirou.

Gwenliana, sentada defronte do lume, perdia-se no vertiginoso abismo do futuro. O véu do amanhã cobria-lhe os olhos obscurecidos. Acantonados atrás da superfície de um azul esborratado, pareciam amontoar-se todos os acontecimentos futuros do mundo. Deixara o compartimento para mergulhar na abstracção do Tempo que se estendia diante dela.

O Velho Robert olhou a porta que se fechava atrás de sua mulher, depois instalou-se no seu lugar, virando-se e revirando-se como fazem os cães.

- Agora podes falar, Daffydd - comentou ele, contemplando o fogo sem abandonar o sorriso, enquanto Henry, ajoelhado no soalho, com um receio respeitoso estampado no rosto, não tirava os olhos desse mortal que detinha o espaço nas suas mãos.

- Bem, Robert, em primeiro lugar é da floresta verde que quero falar, dos índios de pele castanha que lá vivem, e daquele a quem chamam Pierre le Grand. Mas, Robert, há qualquer coisa que se apagou em mim, como uma luzinha que se apaga e acende. Passei noites e noites, estendido na ponte de um barco, a pensar infinitamente nas bazófias que havia de vomitar quando regressasse à terra - se alguma vez conseguisse voltar. E regressei como uma criança, como uma criança que volta a casa para se deitar a chorar. Compreende isto, Robert? Pode compreender isto? - E inclinou-se para diante com avidez.

- Eis o que tenho a dizer-lhe - prosseguiu ele. - Tomámos um desses navios de alto bordo a que chamam galeões, e só estávamos armados com pistolas e essas facas compridas
de que nos servimos para abrir caminho na floresta. Éramos apenas vinte e quatro - sim, não éramos mais de vinte e quatro, todos esfarrapados -. mas. Robert, que tarefa horrível realizámos com aquelas vinte e quatro facas compridas. Não é bom para um antigo criado de lavoura fazer semelhante tarefa e voltar a pensar nela. Tinha um esplêndido capitão - e pendurámo-lo pelos polegares antes de o matar. Não sei porque fizemos isso: participei nessa infâmia, e não sei porquê. Alguns disseram que era um abominável papista; mas também Pierre le Grand o era, ao que me parece.

Deitámos alguns ao mar: eram magníficos soldados espanhóis; e a sua couraça brilhava com uma lucilação tremente enquanto se afundavam, e bolhas de ar saíam-lhe da boca... Porque, nesses mares, pode ver-se a água até ao fundo.

Daffydd interrompeu-se um momento para fixar o soalho antes de continuar:

- Repare, Robert, que não quero fazer-lhe mal ao contar-lhe tudo isto, mas é como um animal vivo escondido no meu peito, que me morde e arranha para sair de lá. Decerto enriqueci no decurso destas aventuras, mas isso não me parece suficiente. Talvez eu seja mais rico do que o seu próprio irmão. Sir Edward.

Robert continuava a sorrir com os lábios cerrados. Algumas vezes os seus olhos detinham-se no filho ajoelhado. Henry escutava com toda a atenção, todos os músculos tensos, e absorvia gulosamente a menor palavra de Daffydd. :

- É o peso da tua alma -disse enfim o Velho Robert, evitando olhar Daffydd. - Mais vale que te entendas amanhã com o cura, mas de que assunto, não sei bem.

- Não, não é a minha alma. A alma abandona o homerç»

logo no começo, lá nas índias, deixando-lhe uma sensação de vazio e de secura. Não, não é a minha alma; é o veneno que está dentro de mim, no meu sangue e no meu juízo. Robert, esse veneno me resseca como uma velha laranja. As coisas rastejantes que lá existem, os animálculos alados que invadem o acampamento durante a noite, e as grandes flores pálidas, tudo está carregado de veneno. Infligem ao homem tormentos terríveis. Mesmo neste momento, o meu sangue é feito de arestas geladas que me correm nas veias, apesar do esplêndido fogo que tenho diante de mim. Tudo isto, sim, tudo isto vem do hálito húmido da floresta. Lá não nos podemos deitar, não podemos viver: mas ela atira-nos para o rosto o seu bafo e murcha-nos para sempre.

«E depois há ainda os índios com a sua pele castanha. Olhe, veja I»-Enrolou a manga e Robert, nauseado, fez-lhe sinal para que voltasse a tapar a horrorosa cicatriz esbranquiçada que lhe roía o braço.

- Não passa de uma arranhadura que mal se vê, provocada por uma flecha, mas julguei que havia de morrer disso dentro de poucos anos. Aliás, há ainda outras coisas dentro de mim, Robert. Os próprios homens são venenosos, como se diz numa canção de marinheiros.

Nesse momento Henry levantou-se de um salto, completamente excitado.

- Mas os índios - exclamou.- Esses índios e as suas flechas. Fale-me deles Como são eles? É verdade que estão sempre a combater?

- Combater? Por certo que sim, lutam incessantemente, apenas por amor do perigo. Quando não guerreiam contra os homens de Espanha, matam-se uns aos outros. São ágeis


como serpentes, rápidos, silenciosos e acastanhados como furões. Não conhecem rival na arte de desaparecer à nossa vista antes de podermos disparar sobre eles. Mas são corajosos e fortes, e só receiam duas coisas no mundo: a escravidão e os cães.

Daffydd deteve-se, dominado pela sua própria narrativa.

- Serás capaz de imaginar, meu rapaz, o que eles fazem a um homem que tenham capturado no decurso de uma escaramuça? Pois bem Enterram-lhe grandes espinhos na carne dos pés à cabeça, e na extremidade de cada espinho colocam um novelo de penugem vegetal parecida com lã. Depois pegam fogo a esses novelos e põem-se em volta do pobre cativo que arde no meio dos guerreiros nus. E o índio que não cantar enquanto a vítima arde como uma tocha é amaldiçoado e os carrascos chamam-lhe cobarde. Acreditas que um branco seja capaz de fazer qualquer coisa parecida?

«Contudo, têm um medo horrível dos cães, porque os Espanhóis os caçam com enormes mastins quando precisam de escravos para trabalhar nas minas, e a escravidão horroriza-os. Prefeririam trabalhar na terra húmida, os corpos colados uns aos outros por correntes, durante anos e anos, até morrerem de febre, a cantar debaixo dos espinhos ardentes e sucumbir no meio das chamas.»

Fez uma pausa e estendeu as mãos descarnadas na lareira, até quase tocar nas brasas. O fulgor que se tinha acendido nos seus olhos, enquanto falava, voltara a apagar-se.

- Ah! Estou cansado, Robert, muito fatigado - continuou -, mas ainda quero dizer uma coisa antes de ir dormir. Talvez isso me alivie e talvez que, depois de o dizer, consiga esquecê-lo durante uma noite. Tenho de voltar a esse lugar

amaldiçoado. Não posso já viver longe da floresta, pois o seu bafo ardente está sobre mim.. Aqui, na minha terra natal, tremo e o meu sangue gela-se. Morreria em menos de um mês. Este vale onde brinquei, cresci, trabalhei, repele-me como a uma criatura imunda. A sua purificação é feita com o frio. Agora dê-me, por favor, um canto para dormir, com grossos cobertores para que o meu pobre sangue possa circular. Amanhã de manhã voltarei a pôr-me a caminho. Deteve-se, fazendo uma careta dolorosa. - Gostava tanto do Inverno, outrora.

O Velho Robert ajudou-o a deixar o compartimento dando-lhe o braço. Seguidamente voltou a sentar-se junto do lume e examinou o filho que continuava imóvel, estendido no soalho.

- Em que pensas tu, meu filho? - perguntou com voz doce decorridos alguns instantes. Henry desviou o olhar do país que contemplava para além das chamas, e respondeu:

- Penso que dentro em breve também quererei partir, pai.

- Bem sei, Henry. Durante um ano inteiro vi esse desejo crescer dentro de ti como uma árvore robusta. Londres, a Guiné ou a Jamaica. Isso deve-se a tu seres um vigoroso rapaz de quinze anos que tem a paixão das coisas novas. Também eu, no passado, vi o vale encolher-se cada vez mais, e creio que acabou por me abafar um pouco. Mas não receias as facas, meu filho, nem os venenos, nem os índios? Não te inspira tudo isso um certo terror?

- Nããão...-replicou Henry lentamente.

- Decerto que não, e como não seria assim? Essas palavras não têm qualquer sentido para ti. Mas a tristeza de Daffydd, a sua alma atormentada, o seu pobre corpo doente,


não receias tudo isso? Queres errar então pelo mundo com semelhante peso no coração?

O jovem Henry reflectiu durante muito tempo.

- Não agirei como ele - acabou por declarar. - E virei muitas vezes por causa do meu sangue.

O pai continuou, sem deixar de sorrir com coragem:

- Quando irás então partir, Henry? Vamo-nos sentir aqui muito sós, sem ti.

-Bem, irei logo que me for possível - redarguiu Henry; e poder-se-ia pensar que era ele o Velho Rohert a falar a um rapazinho.

- Henry, queres fazer duas coisas por mim antes de te ires embora? Peço-te primeiro que penses, esta noite, nas longas vigílias que me vais causar, e no vazio dos meus dias. Pensa também nas horas em que tua mãe se inquietará a propósito da tua roupa ou dos teus sentimentos religiosos. Peço-te ainda que vás falar amanhã com o velho Merlin, no alto do rochedo, anunciar-lhe a tua partida e ouvir as suas palavras. É mais prudente do que nós, e dedica-se a uma espécie de magia que muito te poderá ajudar. Queres fazer essas duas coisas por mim. filho?

- Bem gostaria de ficar, pai - disse o rapaz com melancolia-, mas bem sabe que...

- Sim, meu rapaz - anuiu Robert. - Sei, com efeito, e isso esmaga-me de tristeza. Não posso encolerizar-me nem proibir-te de partir porque te compreendo. Bem gostaria de te chicotear e dizer-te que não, julgando que te seria útil. Mas vai-te deitar, Henry, e medita profundamente quando o silêncio e a escuridão te envolverem.

Depois de o rapaz se ter retirado, o Velho Robert continuou sentado na cadeira, mergulhado nos seus pensamentos. «Porque será que pessoas como eu desejam filhos?»-indagava ele. - «Sem dúvida porque esperam, na sua pobre alma vencida, que esses homens novos, esses homens do seu sangue, executem o que eles não foram bastante fortes, sábios e ousados para realizar. É uma nova ocasião oferecida pela vida, um novo saco de dinheiro atirado para a mesa de jogo onde acabamos de perder toda a nossa fortuna. Talvez esse filho vá realizar aquilo que eu teria podido fazer se tivesse mais coragem há uns anos. Sim, o vale abafou-me, e sinto-me feliz por meu filho possuir a força de ultrapassar as montanhas para correr mundo... Mas como me vou sentir só aqui, sem ele.»

Na manhã do dia seguinte, o Velho Robert regressou bastante tarde do seu roseiral e penetrou no compartimento onde a mulher estava a varrer. Olhou com desagrado para as mãos do marido, cobertas de terra.

- Ele quer partir, Mulher - disse Robert com uma voz perturbada.

  • -• Quem, para onde? - perguntou ela, sem deixar de manejar com viva presteza a sua vassoura inquisidora que ia arrancar a poeira aos cantos da sala e às frinchas do soalho, para a empurrar para fora com golpes rápidos.

- quem há-de ser senão o Henry? Quer partir para as índias.

Ela interrompeu o trabalho e fitou-o com os olhos muito abertos.


- As índias? Mas, Robert, isso é uma estupidez! exclamou, regressando ao trabalho com um ardor ainda maior.

- Há já muito tempo que vejo este desejo crescer dentro dele. E ainda por cima o Daffydd veio com as suas histórias. Ontem à noite Henry disse-me que devia partir,

- Mas não passa de um rapazinho - declarou a Mãe Morgan num tom seco. - Ele não pode ir para as índias.

- Quando Daffydd se foi embora, há pouco tempo, vi na cara do nosso filho uma cobiça que nunca poderá satisfazer-se, mesmo se for para as índias. Nunca te deste conta. Mulher, de que os seus olhos fixam para além das montanhas uma coisa que deseja ardentemente?

- Mas não o deixo partir! Proíbo-lho!

- É inútil, Mulher. Há um abismo enorme entre ti e mím, mas ele não existe entre mim e o meu filho. Se não conhecesse tão bem a fome que o devora, então poderia proibi-lo de se lançar em aventuras... e ele fugiria com a raiva no coração; porque não compreende como eu tenho necessidade da sua presença. Assim, vê tu, o resultado seria o mesmo.

As palavras de Robert ressumavam convicção. -Há uma diferença cruel entre o meu filho e eu. Via-a crescer à medida que ia ganhando idade. Com efeito, enquanto ele não cessa de meter o dedo numa série de potes de papa fria, certo de encontrar em cada um o caldo fervente dos seus sonhos, eu não posso levantar a tampa de nenhuma marmita porque estou persuadido de que todas as papas estão frias. É por isso que me contento em imaginar taças de caldo púrpura, regado com leite de dragão, a que adicionaram um açúcar tão delicioso que só existe nas minhas visões. Ele pôs os seus sonhos à prova, Mãe, e eu -Deus me ajude!- sou muito cobarde para isso.

- Robert - interveio a mulher com um tom impaciente de cada vez que um mau presságio nos ameaça, que estamos em frente de uma necessidade ou de um desgosto, procuras refúgio em palavras vãs. Nesta circunstância, tens um dever a cumprir! Esse rapaz é muito jovem. Existem paragens aterradoras para além dos mares, e já temos o Inverno a desabar sobre nós. O frio afligi-lo-ia com uma tosse que não deixaria de o matar. Tu sabes como fica doente logo que molha os pés. Ele não deve deixar esta quinta, nem sequer ir a Londres, ainda que fosse obrigado a sofrer eternamente a fome que o devora - a acreditar em ti.

«Como nos seria possível saber com que indivíduos ele vai conviver, e que loucuras, que iniquidades, eles lhe meteriam na cabeça? Sei bem como o mundo é mau. O cura diz-nos quase todos os domingos: «as ciladas e as armadilhas» - são as palavras que ele emprega, e tem toda a razão. E tu, tu contentas-te em contar asneiras a propósito de caldo púrpura em vez de fazer qualquer coisa. Deves proibi-lo de partir.»

Mas Robert respondeu com impaciência:

- Para ti, Henry não passa de um rapazinho para obrigar a rezar todas as noites as suas orações, a abrigar-se bem quando vai para o campo. Tu não sentiste, como eu, a qualidade do metal polido de que ele é feito. Sim, aos teus olhos, esse arranque decidido do queixo duro revela apenas a teimosia passageira de uma criança rebelde. Eu sei com o que devo contar; e declaro-te sem alegria que o nosso filho será

um grande homem, porque - bem - porque não é muito inteligente. Ele só pode encarar um desejo de cada vez. Disse que punha os seus sonhos à prova: matará todos os sonhos com as implacáveis setas da sua vontade. Este rapaz alcançará todos os objectivos que visar, porque não pode conceber pensamento ou razão que sejam diferentes da sua. E desolo-me pensando na sua grandeza futura, por causa de uma coisa que Merlin me disse um dia. Repara bem nas suas maxilas de granito, e nessa maneira que ele tem de pôr em relevo os músculos das faces sem cerrar os dentes.

- É preciso que ele não parta - declarou ela num tom firme, estreitando os lábios.

- Eu sei, Mãe - continuou Robert -, que, em certo sentido, és muito parecida com Henry, porque te recusas a admitir a existência de quaisquer outras ideias que não sejam as tuas. Mas não quero proibi-lo de partir, porque é necessário evitar a todo o custo que ele se vá embora à noite, só, com um pedaço de pão e de queijo escondido debaixo da camisa, alimentando um sentimento de injustiça no seu coração. Dou-lhe licença para partir. Mais ainda, ajudá-lo-ei, se assim o desejar. Mais tarde, se julguei mal o meu filho, ele voltará furtivamente para o lar, com a tímida esperança de que ninguém faça alusão à sua cobardia.

- Tolice - comentou a Mãe Morgan enquanto regressava ao seu trabalho. Ia aniquilar essa coisa insensata recusando-se a acreditar nela, tal como o fizera já tantas vezes. Durante muitos anos, ela destruíra todas as ideias loucas de Robert com o ataque de uma pesada legião de bom senso: a sua tropa contentava-se em atacar e esmagar. Ele nunca deixava de retirar com um ar lasso, para se ir sentar e descansar, sorrindo. Nesta altura, como em todas as demais, ele chegaria à razão.

Robert arranjava a terra em volta das raízes de uma roseira com as suas grandes mãos bronzeadas. Os dedos levantavam o húmus escuro, negro, depois colocavam-no no seu lugar batendo-lhe levemente. De tempos a tempos, acariciava com carinho o caule acinzentado; dir-se-ia que arranjava cuidadosamente um cobertor para um ser prestes a adormecer, e que lhe tocava no braço para se assegurar da sua segurança.

O dia estava luminoso, porque o Inverno tinha recuado um pouco e devolvido ao mundo o frio sol que retinha como refém. O jovem Henry apareceu e imobilizou-se contra a parede, perto de um olmo desfolhado que tinha emagrecido a alimentar os ventos do Outono.

- Pensaste naquilo que te pedi? - perguntou Robert com voz calma.

Henry estremeceu. Não sabia que esse homem ajoelhado como se estivesse a adorar a terra tinha reciado pela sua presença; e contudo tinha vindo expressamente para que reparassem nele.

- Sim, pai - respondeu. - Como poderia agir de outra maneira?

- E o teu pensamento prendeu-te aqui? Permanecerás junto de nós?

-Não, pai; não posso ficar.

A tristeza de Robert acabara por torná-lo também triste.

Desprezava-se por ser a causa de tal tristeza, mas a sua fome de aventuras continuava a roer-lhe o coração.

- Vais então falar com Merlin no alto do Rochedo? -suplicou Robert. - Ouvirás com todo o cuidado aquilo que ele te dirá?

- Vou lá agora mesmo.

- Mas, Henry, fica muito longe e estamos quase a meio do dia. Espera até amanhã.

- Amanhã, pai, já devo ter partido.

As mãos do Velho Rohert deslizaram lentamente até à terra e pousaram, entreabertas, no húmus negro que cobria as raízes da roseira.

O jovem Henry depressa deixou a estrada para percorrer uma larga pista que subia até ao cimo do Rochedo, antes de vencer as bárbaras montanhas. De baixo distinguiam-se os seus meandros quase até à grande garganta onde desapareciam. Merlin escolhera o ponto mais alto da vereda para instalar a sua casa; Merlin, que os rapazinhos teriam lapidado durante as suas pouco frequentes saídas, ou esmagado com dichotes se o tivessem julgado inofensivo. Mas um enxame enorme de pequenas lendas cercava o velho. Era um facto bem estabelecido que Tyfwuth Teg lhe obedecia e levava as suas mensagens fendendo o ar com as asas silenciosas. As crianças falavam em voz baixa das suas relações com certas doninhas malhadas, capazes de exercer a sua vingança em caso de ser necessário. E mais ainda, tinha um cão com orelhas vermelhas. Tudo isto formava um conjunto bastante aterrador, e aqueles que não conheciam os sinais protectores não podiam dar-se ao luxo de tratar Merlin desconsideradamente.

A acreditar nos velhos da povoação, Merlin tinha sido outrora um grande poeta e poderia ter sido ainda maior: para darem base àquilo que se dizia, trauteavam o Canto da Tristeza ou a Canção da Lança. Conquistara muitas vezes o primeiro prémio de Eisteddfod, e tê-lo-iam escolhido sem qualquer dúvida como Primeiro Bardo se um concorrente que pertencia à Casa de Rhys não houvesse entrado na liça contra ele. Então, sem que se soubesse porquê, Merlin, ainda muito jovem, encerrara o seu canto na casa de pedra do Rochedo; tinha-o fechado rigorosamente enquanto avançava em idade, e aqueles que tinham outrora cantado os seus versos iam-nos esquecendo pouco a pouco ou morriam.

A casa do alto do Rochedo, que se parecia com uma torre redonda, baixa e acinzentada, estava guarnecida de janelas que davam para o vale e para as montanhas. Muitos diziam que essa casa tinha sido construída, séculos antes, por um gigante, para ali esconder as virgens de quem iria fazer concubinas; outros afirmavam que ali se havia refugiado o rei Haroldo, depois de Hastings e que ali passara o resto dos seus dias a espreitar a vinda dos Normandos, observando incessantemente o vale e as montanhas.

Agora, Merlin estava velho, tal como o atestavam os seus cabelos e a sua longa barba, tão brancos, tão macios,

 

Nota: Cidade onde Guilherme, o Conquistador, venceu Haroldo, em 1066.

 

como nuvens primaveris. Parecia-se muito com um antigo Druida (2), com os seus olhos claros e agudos contemplando as estrelas.

Bem depressa o caminho se estreitou diante do jovem Henry. Do lado da montanha levantava-se uma muralha rochosa que cortava o céu como uma lâmina de punhal; as vagas imagens disformes que ostentava davam-lhe o aspecto de um templo consagrado a deuses primitivos adorados pelos macacos.

Primitivamente havia ali erva, arbustos e algumas árvores corajosas e mirradas. Mas, lá no alto, tudo o que fosse vivo morria na solidão dos rochedos. Muito ao longe, as quintas comprimiam-se umas contra as outras e o vale encarquilhava-se sobre si mesmo.

De súbito, uma montanha levantou-se do outro lado do caminho, ocultando totalmente o céu que só surgia no cume de um grande abismo. Um vento rabioso precipitou-se da curva azulada e desceu para o vale, urrando. No mais alto, os rochedos esparsos pareciam maiores, mais pretos, mais temíveis, sentinelas agachadas que vigiavam o caminho.

Henry continuava a subir sem se queixar. Mas que seria então que o velho Merlin lhe poderia dizer ou, mesmo, dar-lhe Uma loção para lhe enrijar a pele e torná-la impenetrável às flechas? Um amuleto? Palavras mágicas que o iriam proteger contra os pequenos e inúmeros servidores do Diabo? Aliás, Merlin falaria e ele limitar-se-ia a ouvir; ora o que Merlin dissesse poderia acaso curá-lo da sua sede de aventuras, retê-lo no País de Gales para todo o sempre? Mas não, era impossível, porque forças estranhas, fantasmas sem nome, chamavam-no fazendo-lhe sinais do outro lado dos mares misteriosos.

Não ambicionava uma situação determinada, nem imaginava o que lhe sucederia depois de ceder ao seu desejo. Só havia nele uma chama devoradora: a vontade tirânica de se pôr a caminho do estrangeiro quando se levantasse a primeira estrela da manhã.

A vereda desembocava numa massa rochosa compacta e semiesférica, no cimo da qual ficava a casa baixa de Merlin, construída com pedras irregulares e coberta com um telhado cónico em forma de apagador.

O ancião abriu a porta antes de o adolescente ter batido.

- Sou Henry Morgan, senhor, e vou para o estrangeiro, para as índias.

- De verdade, meu filho? Não queres entrar para me falar dessa viagem?

A voz, clara e baixa, tinha a sedução de uma brisa primaveril que sussurra nas ramagens de um prado. Sentia-se nela a música do canto tranquilo de um artífice empenhado no seu trabalho; e, atrás desse canto, ouviam-se em surdina - ou julgavam-se ouvir - as longas vibrações das cordas mal afloradas de uma harpa fantasmagórica.

Um espesso tapete preto cobria o soalho do único compartimento. Nas paredes de pedras rugosas, estava pendurada uma grande profusão de pequenas harpas galesas e os grandes ferros de lança em forma de folha dos antigos bretões. Mais abaixo abriam-se as janelas de onde se podiam contemplar três vales e uma formidável cadeia de montanhas.


Um único banco circular alongava-se em torno da sala. No centro erguia-se uma mesa coberta de livros em pedaços, e ao lado uma braseira de cobre em cima de um tripé grego de ferro enegrecido.

O grande mastim veio cheirar Henry quando este entrou, e o rapaz afastou-se cheio de medo, porque não há nada de mais temível no mundo do que atrair a atenção de um cão de orelhas vermelhas.

- Com que então, vais partir para as índias? Senta-te aí, meu rapaz. Estás a ver, podes observar o teu vale natal e ter a certeza de que ele não vai até à ilha de Avalon.

As harpas ressoaram ao som da sua voz e vibraram ligeiramente.

- O meu pai aconselhou-me a vir informá-lo da minha partida e ouvir as suas palavras. Está convencido de que elas terão o poder de evitar que eu parta.

- Partir para as índias - repetiu Merlin. - E não irás antes visitar Elizabeth e fazer-lhe promessas capazes de perturbar-lhe o coração, levando-a, após a tua partida, a pensar naquilo que lhe trarás?

Henry corou até à raiz dos cabelos:

- Quem lhe disse que eu pensava nessa tipa? Quem se atreve a afirmar que penso nela?

- Oh! O vento. E, além disso, depreendi-o do teu espanto e das tuas fanfarronices. Acho que devias falar com Elizabeth e não comigo. Teu pai devia mostrar-se um pouco mais perspicaz.

A sua voz extinguiu-se durante alguns momentos; e depois continuou com melancolia

- Será necessário deixares o teu pai, meu rapaz, isolado neste vale onde os homens são tão diferentes dele? Sim, penso que deves partir. Os projectos da mocidade são coisas muito sérias para serem alterados. Mas que poderei eu contar-te para te reter aqui, Henry? O teu pai confiou-me uma tarefa bem difícil.

«Há imensos anos que embarquei num grande navio espanhol. Mas teria de facto embarcado ou seria apenas um sonho? Por fim, chegámos a essas Índias, que eram esplêndidas mas sempre iguais. Ali, o ciclo das estações é de uma verde monotonia. Se lá fores, terás de renunciar às estações do ano, perder o medo aos rigores que o Inverno te apresentará. Porque esse mundo não paga tributo ao Sol que se perde pelo espaço solitário. Não, não poderás contar com a Primavera. Desaparecerá em ti esse alvoroço de sentir despertar o astro do dia, a alegria de vê-lo brilhar por sobre a tua cabeça, como essa tépida vaga que tudo inunda de satisfação e alívio. Nessas terras nada muda. O passado e o futuro confundem-se num odioso, eterno agora.»

- Mas também aqui não há variações. Ano após ano, sucedem-se as colheitas e as vacas aleitam os novos bezerros: ano após ano, se mata o porco e se defumam os presuntos. A Primavera vai e volta e nada acontece, afinal.

- Também isso é verdade, rapaz. Mas vejo que estamos a falar de coisas diferentes.

Merlin olhou através das janelas para as montanhas e vales e nos seus olhos brilhava um grande amor pela terra; apesar disso, quando se virou para Henry, havia no seu rosto uma expressão de tristeza. A sua voz tornou-se cadenciada como uma canção:

- Vou defender junto de ti a causa da nossa pátria onde o tempo se acumula como uma alta montanha ao pé da qual se esboroam os dias remotos! - gritou apaixonadamente. - Já não te resta nenhum amor por este selvagem País de Gales, para que assim o queiras abandonar, esquecido de que os teus milhares de antepassados regaram esta terra com o seu sangue a fim de lhe manter a integridade para todo o sempre? Terás esquecido que pertences à raça dos Troianos? Ah, sim, mas eles também partiram à aventura- não é verdade?-depois da queda de Pérgamo...

- Continuo a amar a minha pátria, senhor, mas penso ir para além dos mares para países desconhecidos. Conheço demasiado o meu.

- Mas, rapaz, pensaste já que o Rei Artur viveu aqui? Artur o Grande que levou os seus estandartes até Roma, Artur o imortal que se refugiou na ilha santa de Avalon? E a própria Avalon está ao largo das nossas costas, em qualquer parte para além das cidades submersas, no seio das vagas onde ela flutua eternamente. Nunca ouviste, Henry, os espectros de todos esses valentes e virtuosos batalhadores: LIew LIaw Giffes e Belerius e Artur e Cadawalío e Brute? Erram através do país, como as nuvens, e estão de guarda nos lugares mais elevados. Não há espectros nas índias, como não há Tylwyth Teg.

«E, além disso, nas escuras colinas escondem-se milhares de mistérios. Descobriste acaso o Trono de Artur ou o sentido das pedras circulares? Ouviste as vozes que lançam gritos de triunfo no coração da noite, e os caçadores de almas com as suas trompas sonorosas e as suas matilhas de sabujos que se abatem sobre as aldeias durante as tempestades?

- Sim, ouvi - respondeu Henry, estremecendo. Lançou um olhar tímido ao mastim adormecido no chão e prosseguiu em voz mais baixa: - O cura afirma que tudo isso é mentira. Diz ele que o Livro Vermelho serve apenas para as crianças, e que as pessoas adultas deviam ter vergonha de lhe conceder qualquer crédito. Garantiu na escola da igreja que tudo isso são invencionices contrárias ao espírito cristão. Disse ainda que Artur era um chefe sem importância, e Merlin, cujo nome é igual ao seu, não passa de uma lenda criada pelo cérebro doentio de Geoffrey de Monmouth. Chegou até a falar mal do Tylwyth Teg, dos brandões fúnebres e de criaturas tais como Sua Honra e o seu cão, aqui presente.

- Oh! Que grande louco! - exclamou Merlin com desgosto.- Que loucura destruir tudo isso! E oferece-nos em vez disso uma história contada por doze homens que tinham convicções tão pouco firmes em certos pontos. Que necessidade tens tu de partir, rapaz? Não vês que os inimigos do País de Gales deixaram de combater com o sabre para passarem a usar pequenas e aceradas línguas?

As harpas repercutiram a sua pergunta; depois as suas vibrações apaziguaram-se lentamente, e o silêncio reinou na casa redonda.

Henry examinava o soalho, com os sobrolhos franzidos, e acabou por dizer:

- Sinto em mim tamanha inquietação que não consigo falar de tudo isso, Merlin. Voltarei; voltarei certamente quando a minha sede devoradora de coisas novas estiver apagada. Mas não compreende que devo partir? Parece-me, com efeito, que estou cortado em dois e que está aqui apenas uma metade de mim. A outra metade anda para além dos mares e chama-me em altos gritos para que eu possa voltar a estar de novo inteiro. Amo o País de Gales; para aqui voltarei quando as minhas duas partes formarem um todo. Merlin examinou o rosto do rapaz, depois lançou às suas harpas um olhar triste.

- Parece-me que te compreendo - disse com uma voz suave. Tu és um rapazito. Tu desejas a Lua para beber por ela como se fosse uma taça de ouro. Por isso é muito provável que venhas a ser um grande homem - desde que continues criança. Todas as pessoas importantes do mundo foram crianças que desejaram a Lua; correndo e saltando apanhavam, às vezes, um pirilampo. Mas, uma vez atingida a mentalidade de homem, vêem que jamais aterão; e como já nem sequer a desejam, limitam-se a apanhar pirilampos.

- Mas, nunca desejou a Lua?-perguntou Henry com uma voz estrangulada.

- Desejei-a mais do que tudo no mundo. Estendi as mãos para a apanhar e depois - depois tornei-me num homem e falhei. Mas aquele que falha recebe um dom em compensação; as pessoas, dando-se conta do seu fracasso, lamentam-no e mostram-se muito generosas para com ele. O universo inteiro está com ele; estabelece-se uma ponte entre ele e os da sua raça quando enverga o uniforme da mediocridade. Mas, pelo contrário, quando esconde nas suas mãos o pirilampo que apanhou ao tentar alcançar a Lua, é atingido por uma dupla solidão; só ele se pode dar inteira conta do seu desaire, da sua mesquinhez, dos seus receios, dos seus subterfúgios.

«Tu chegarás à grandeza, e talvez um dia fiques só no seio da tua glória, sem um amigo, sem ninguém à tua volta além daqueles que te recearão. Lamento-te, Henry, a ti cujos olhos claros olham tão avidamente para o céu. Lamento-te -Mãe Divinal - como te invejo»

O crepúsculo descia furtivamente pelas concavidades das montanhas que enchia de bruma arroxeada. O sol feriu-se num cume agudo e começou a sangrar pelos vales. As longas sombras dos picos rastejaram através dos campos como gatos cinzentos na pista da caça. Merlin voltou a falar, sorridente:

-- Não examines muito profundamente as minhas palavras, porque eu próprio não estou muito certo delas. Podem-se reconhecer os sonhos por esta qualidade a que se chama incoerência, mas como classificar o raio?

Henry, vendo cair a noite, levantou-se de um salto.

- Tenho de me ir embora! Olha como a noite desce!

- Sim, deves ir, mas não reflictas muito nas minhas palavras. Talvez tenha tentado impressionar-te com elas. Os velhos necessitam de uma adulação silenciosa quando já chegaram à idade de desconfiar dos discursos. Lembra-te apenas de que Merlin falou contigo. E, se encontrares em qualquer parte galeses cantando as canções que compus há tanto tempo, diz-lhes que me conheces, que sou uma criatura de glória com asas azuis. Não quero que me esqueçam, Henry. Cair no esquecimento é, para um velho, pior do que a morte.

- Agora é realmente necessário que me vá embora, porque já está escuro. Agradeço-lhe, senhor, tudo aquilo que me disse, mas bem vê que tenho de partir para as índias.

- Certamente que sim - respondeu Merlin, rindo suavemente. - Parte e apanha um grande pirilampo. Adeus, meu rapaz.


Henry virou-se uma única vez para ver o negro volume da casa antes de mergulhar atrás do contraforte do rochedo; mas nenhuma luz trilhou nas janelas. O velho Merlin, sentado no Banco, discorria a sós com as suas harpas que lhe devolviam um eco trocista.

O rapaz desceu a vereda a passos apressados. Por baixo dele estendia-se um lago negro onde as luzes das quintas se reflectiam como estrelas. Tinha desaparecido o vento, que cedera lugar a um silêncio opaco. Por toda a parte erravam fantasmas tristes e silenciosos em busca daqueles que deviam aterrorizar. Henry avançava cautelosamente, com os olhos colados no caminho azulado que luzia fracamente diante dele.

Enquanto caminhava assim nas trevas, pensou na primeira recomendação de Merlin. Devia visitar Elizabeth antes de embarcar? Ela desagradava-lhe; às vezes imaginava ter descoberto no seu coração um certo ódio por ela, mas quando tentava manter este sentimento via-o transformar-se num ardente desejo de ver a rapariga.

Era uma criatura misteriosa. Todas as raparigas e todas as mulheres entesouram alguma coisa de que nunca falam. A sua mãe conhecia segredos formidáveis para fazer biscoitos, e às vezes chorava sem razão aparente. Algumas mulheres tinham duas vidas, uma das quais se desenvolvia paralelamente à sua vida exterior, sem nunca se cruzar com esta última.

Há um ano, Elizabeth era uma criança encantadora que trocava observações em voz baixa com as raparigas da sua idade, e troçava quando Henry estava perto dela. Depois, bruscamente, mudara. Não que Henry pudesse discernir uma transformação precisa; mas sentia que Elizabeth tinha adquirido uma sabedoria serena, uma compreensão profunda, com a qual não deixava de se assustar.

Havia também o corpo dela, de certa maneira diferente do seu, e capaz - sussurrava ele - de uma estranha alquimia de prazeres. Ela dissimulava também esse corpo em flor. Alguns meses atrás, as duas crianças iam banhar-se no rio, sem que ela se desse conta da sua nudez; agora escondia-se cuidadosamente do seu companheiro, e parecia recear que ele a pudesse ver. Esta nova atitude alarmava e embaraçava Henry.

Às vezes sonhava com ela e acordava dominado pelas mais atrozes agonias com a ideia de que ela pudesse conhecer o seu sonho. Era uma estranha criatura, misto de Elizabeth e sua mãe, que vinha até ele através da noite. Depois de semelhante sonho, experimentava uma violenta repugnância em relação a Elizabeth e a ele próprio. Considerava-se um monstro, via nela uma espécie de súcubo. Não podia contar isso a ninguém, pois as pessoas teriam fugido dele como de um pestífero.

No entanto, gostaria muito de a ver antes de partir. Nessa altura, ela possuía um estranho poder, uma força de atracção e de repulsa que fazia oscilar o seu desejo como uma cana ao vento. Talvez outros rapazes a procurassem à noite e até a beijassem; mas esses não sonhavam com ela como ele; não a imaginavam, como às vezes lhe acontecia, de uma maneira odiosa. Tinha decerto qualquer coisa de estranho, monstruoso dentro de si, pois não conseguia estabelecer distinção entre o desejo e a repugnância. E depois ela constrangia-o tão facilmente!

Não, por certo não a iria ver. Onde teria ido Merlin desencantar esta ideia de que ele se preocupava de qualquer modo com a filha de um pobre caseiro? Ela não merecia que lhe concedesse um único pensamento!

Atrás dele, no caminho, ressoaram passos Barulhentos na noite silenciosa. Bem depressa uma figura frágil o alcançou,

- É William? - perguntou delicadamente Henry, enquanto o cantoneiro parava e passava a picareta de um ombro para o outro.

- Sim, sou realmente eu. Mas que faz por aqui, depois de ter anoitecido?

- Fui visitar Merlin e falar-lhe.

- Que o leve o Diabo. Falar é tudo o que ele sabe fazer agora. Outrora compunha canções, belas canções que eu lhe repetiria se tivesse vontade; mas, agora, empoleirou-se no alto do seu rochedo como uma velha águia depenada. Um dia, passei por lá e, como sou curioso, disse-lhe umas coisas, que posso provar apelando para o seu testemunho. «Porque deixou de compor canções?», perguntei-lhe com um tom trusco. Ele respondeu: «Transformei-me num homem, e num homem deixa de haver canções. Só as crianças as compõem, as crianças e os loucos.» Diabos o levem Ele próprio é um louco. Mas que lhe contou ele, esse velho passarão?

- Bem vê, vou partir para as índias e...

- Ah! Vai para as índias? Eu, uma vez, fui até Londres. Todos os moradores de Londres são ladrões, uns ladrões sujos. Foi lá que encontrei um homem com um prato onde estavam pedacinhos rectangulares de madeira. «Experimente a sua sorte, amigo», disse-me ele. «Qual destes pedaços de madeira tem uma marca negra por baixo?» «Este», respondi-lhe; e não me tinha enganado. Mas na vez seguinte... Era um ladrão, ele também, como todos os outros.

«Há pessoas em Londres que passam o tempo a passear de carruagem, de rua para rua, trocando cumprimentos, enquanto os bons trabalhadores gastam a vida a suar nos campos e nas minas para que eles possam viver assim. Que possibilidades quer você que tenhamos, quando todos os lugares interessantes estão ocupados por ladrões? E sabe quanto custa um ovo em Londres?»

- Tenho de seguir por este caminho agora. Vou para casa - declarou Henry.

- As índias! - exclamou o cantoneiro, suspirando de inveja. Depois cuspiu para a estrada e concluiu:-Ora! Aposto que lá para esses lados também há ladrões.

Era já noite escura quando Henry chegou à miserável cabana onde vivia Elizabeth. O lume ardia no meio do compartimento, e o fumo tentava sair por um pequeno buraco feito no colmo. Não havia soalho; o chão de terra batida estava coberto de juncos. Para dormir, os membros da família embrulhavam-se em peles de carneiro e deitavam-se em círculo, com os pés virados para a fogueira.

As janelas não tinham vidros nem cortinas. Henry podia ver o velho Twym de sobrancelhas pretas, assim como sua mulher, magra e inquieta, mover-se no compartimento. Esperou que Elizabeth passasse diante da janela e nesse momento o seu assobio imitou o de um pássaro. A rapariga deteve-se e olhou para fora, mas o rapaz manteve-se quieto no escuro.

Então Elizabeth abriu a porta e a sua silhueta negra recortou-se contra o fulgor do lume. Através do vestido, Henry deu-se conta dos contornos do seu corpo, da bela linha das suas pernas, da curva das suas ancas. Bruscamente sentiu-se cheio de vergonha em relação a ela e a si próprio. Sem reflectir, sem raciocinar, fugiu através da noite, ofegante, com a garganta estrangulada por soluços abafados.

O Velho Robert ergueu os olhos com um ar cheio de esperança quando o filho entrou no aposento; mas logo o perdeu e voltou a olhar vivamente para o fogo. Mas a Mãe Morgan levantou-se de um salto e encaminhou-se para Henry com um passo encolerizado.

- Que vem a ser esta tolice? - perguntou ela. - Ouvi dizer que querias ir para as índias?

- Mas, Mãe, assim é necessário; na verdade, tenho de ir e o pai compreende-me. Não ouves como as índias me chamam ?

- Certamente que não! O teu projecto é estúpido e perigoso. Tu és apenas um rapazinho que não podemos autorizar a abandonar a casa. Aliás, o teu próprio pai te vai demonstrar como isso é impossível.

A maxila forte do rapaz assumiu uma rigidez de pedra, os músculos sobressaíram no rosto. Subitamente um relâmpago de cólera brilhou-lhe nos olhos.

- Nesse caso, Mãe, se não quer compreender, contento-me em dizer-lhe que amanhã me vou embora, apesar da oposição de todos vós.

Nos traços da Mãe Morgan, a incredulidade deu lugar a um orgulho ferido, depois ao desgosto. O seu rosto contraiu-se sob o efeito de uma dor incrível, e Henry, dando conta do resultado das suas palavras, aproximou-se dela vivamente.

--Lamento muito, Mãe! Muitíssimo! Mas porque não há-de consentir na minha partida, como o fez meu pai? Não gostaria de lhe fazer mal... todavia é necessário que parta. Porque não aceita isto?

Passou-lhe os braços em torno do corpo, mas ela recusou-se a olhá-lo, mantendo os olhos fixos no vazio, a direito e em frente. Ela tinha a certeza absoluta de que o seu ponto de vista era justo. Durante toda a sua vida havia insultado, repreendido, tratado de alto os membros da sua família, e todos compreendiam que esta tirania era a consequência do seu amor por eles. Agora que um, e ainda por cima o mais novo, empregava em relação a ela o tom que ela própria usava durante todas as horas do dia, sentia uma terrível ferida que nunca mais cicatrizaria inteiramente.

- Falaste com Merlin? Que te disse ele? - perguntou Robert, sentado perto da lareira.

Henry pensou rapidamente em Elizabeth, e respondeu:

- Falou-me de coisas em que eu não seria capaz de acreditar.

- Bem, era a única possibilidade que ainda restava murmurou Robert. - Mas tu fizeste muito mal a tua mãe, meu rapaz. Nunca a vi assim tão... tão calma.


Deteve-se um momento, para continuar com uma voz firme:

- Tenho cinco libras para ti, meu filho. Não é muita coisa, bem sei; mas não quero que contes demasiado comigo. Tens aqui também uma carta de recomendação para meu irmão Sir Edward. Partiu antes da morte do rei e, não sei por que razão, talvez porque se deixou estar quieto, o velho Cromwell deixou-o ficar no seu lugar. Se continuar no seu posto quando chegares à Jamaica, poderás apresentar-lhe esta carta; todavia, é um homem estranho e frio, que se orgulha muito dos seus amigos ricos, e a presença de um parente pobre poderia muito bem parecer-lhe inoportuna. É por isso que não sei se a minha missiva será capaz de te valer os seus bons ofícios. Fica sabendo que lhe desagradará se fores capaz de ver qualquer coisa de divertido num homem que se parece comigo, mas que usa sabre com bainha de prata e chapéu de plumas. Um dia ri-me dele; desde então eíe recusou-me a sua amizade. Apesar de tudo, guarda esta carta: poder-te-á ser útil junto de outras pessoas, que não teu tio.

Deitou um olhar de relance à mulher mergulhada na sombra e perguntou:

- Não vamos jantar, Mãe?

Como ela parecesse não o ter ouvido, Robert esvaziou a panela e pôs a comida na mesa.

É uma coisa muito cruel perder um filho que nunca se abandonou desde que nasceu. Ela tinha imaginado que ele se manteria sempre a seu lado, que seria sempre uma criança. Agora pensava nos dias futuros em que Henry deixaria de ali estar; mas o seu pensamento não ia longe. Bem poderia dizer-lhe que era ingrato fugir dela, que lhe tinha vibrado um golpe terrível, mas o seu espírito voltava sempre à mesma ideia: Henry era o seu rapazinho, não podia naturalmente mostrar-se nem mesquinho nem pérfido. Estava certa de que, de uma maneira ou outra, quando todas estas palavras e esta dor fossem esquecidas, ele estaria ainda junto dela, tão agradavelmente submisso como antes.

O seu espírito, que sempre verrumara a realidade como um escalpelo, a sua imaginação, que se aplicava unicamente ao aspecto presente das coisas, não cessavam de evocar ternamente o bebé que tinha rastejado e depois começara a andar com um passo hesitante, antes de aprender a falar. Estava tão profundamente no seu devaneio acerca do passado que conseguiu esquecer-se da partida iminente do filho.

Ela revia o dia do seu baptismo, vestido com um longo vestido branco. Toda a água lustral reunida numa única gota lhe corria ao longo do nariz e ela, na sua paixão pela limpeza, limpara-o com o lenço. Depois perguntou se não seria mais conveniente baptizá-lo segunda vez. O jovem cura transpirava enquanto gaguejava as palavras sacramentais. Acabara de chegar à paróquia e, de qualquer modo, não passava de um rapazinho da aldeia, demasiado jovem, pensava ela, para assumir uma missão tão importante. Talvez não devesse exercê-la; podia dizer as palavras ao contrário, e então... Naturalmente Robert voltara a vestir mal o colete. Nunca conseguia meter os botões nas casas correspondentes. E isso dava-lhe um ar um tanto tortuoso... Era necessárioue ela fosse dizer ao marido para arranjar o fato antes que alguém desse conta do que sucedia: pormenores desse género não deixavam de dar corda às línguas. Mas poderia ela fiar-se nesse Jovem e estúpido cura? Era bem capaz de deixar cair a criança logo que ela virasse costas... ao o jantar, a velha Crwenliana levantou-se da mesa, voltou com passos pesados para a sua cadeira diante do lume e continuou tranquilamente a sua viagem pelo futuro.

- - partes, amanhã? - perguntou Robert.

- Por volta das sete, pai - respondeu Henry com um tom que pretendia ser desenvolto.

A velha senhora deteve-se na sua estrada imaginária, e lançou-lhe um olhar perfurante.

- Para onde vai então o nosso Henry? - indagou.

- Pois ainda não sabe? Henry vai-se embora amanhã. Vai para as índias.

- e não voltará? - inquiriu ela com uma voz ansiosa. ; - e vai demorar muito tempo, porque a distância é grande.

- Então, é necessário que lhe mostre o seu futuro -exclamou - ela com um tom emocionado e satisfeito. - É isso mesmo o que devo fazer, pôr o futuro diante dele como um livro aberto- Deixa-me olhar para ti, meu rapaz.

Henry sentara-se a seus pés enquanto a avó pronunciava estas últimas palavras. Havia verdadeiramente um sortilégio na velha língua gaélica, própria para as profecias.

- certo é que - continuou Gwenliana -, se o tivesse sabido mais cedo, teria mandado procurar a omoplata de um carneiro norto de fresco. É uma maneira muito mais antiga e apreciada do que uma predição improvisada. Aliás, como estou velha, enferrujada, enferma, já não posso ir ao encontro dos espíritos errantes na estrada principal, não podemos conseguir tanto se não estivermos em condições de caminhar entre as almas dos mortos e ouvir os seus pensamentos. Apesar de tudo, vou-te fazer uma profecia completa, meu rapaz, a mais bela que jamais concebi.

Atirou-se para trás, na sua cadeira, e fechou os olhos; mas, se alguém a tivesse examinado de perto, veria filtrar-se entre as suas pálpebras um brilho revelador: perscrutava o rosto impassível do rapaz. Demorou muito tempo neste estado de transe, como se o seu cérebro deslindasse o novelo embrulhado do passado para dali extrair um futuro bem ordenado que ela pudesse exprimir em termos claros. Finalmente ela falou com essa voz baixa, rouca e cantada, própria para os assuntos temerosos:

- Esta é a história de Abred, no tempo em que a terra e a água lutavam. E do choque do seu combate nasceu uma vida frágil destinada a elevar-se lentamente de círculo em círculo até Gwynfyd, a alucinante Pureza. Nesta primeira carne titubeante estão inscritas a História do Mundo e a sua viagem através do Void.

«E tu... muitas vezes Annwn abriu a sua goela recoberta de presas para se apoderar da pequena centelha de vida que carregas, mas soubeste evitar a armadilha. Já viveste durante um milhar de séculos desde que a terra e o mar se enfrentaram para te engendrar, e durante um milhar de anos transportarás por toda a parte a diminuta centelha de vida que te foi dada, desde que a protejas de Annwn, o Caos.»

Começava sempre as suas profecias com estas palavras.


Tinha-lhas ensinado um bardo errante que as aprendera com outros bardos, e remontavam à época dos druidas. Gwenliana parou para as deixar penetrar no cérebro do rapaz, continuando depois:

- Esta é a história das tuas vagabundagens presentes. Tornar-te-ás uma luz da Divindade, prodigalizando os ensinamentos do Senhor.

Vendo a decepção revelar-se nos traços do neto, exclamou:

- Mas espera um pouco! Eu vou muito mais longe. Haverá combates, sangue derramado, e a espada será a tua primeira noiva.

O rosto de Henry iluminou-se de prazer.

- Apenas o som do teu nome será uma ordem de reunião para os guerreiros. Porás a saque as cidades do infiel a quem despojarás do seu espólio. O terror preceder-te-á como uma águia em gritos dilacerantes por cima dos escudos dos homens.

Sabia agora que a sua predição era um sucesso, mas apressou-se a enumerar outros triunfos:

- E)eterás nas tuas mãos o governo das ilhas e dos continentes aos quais levarás a justiça e a paz. Finalmente, quando estiveres coroado de honra e de renome, desposarás uma virgem de nobre família, de alma pura, de grande riqueza.

Depois, abriu os olhos e procurou com o olhar a aprovação dos presentes.

- Teria feito bastante melhor com uma omoplata de carneiro - declarou com voz queixosa - ou ainda se fosse capaz de passear de tempos a tempos pela estrada principal.

Mas a velhice priva-nos dos nossos pequenos prazeres e só nos deixa uma espera tranquila e gelada.

- Palavra de honra, Mãe - afirmou Robert -, que foi a sua melhor profecia. Na minha opinião, está a atingir o cume do seu poder oculto. Tirou-me qualquer receio no que se refere à partida de Henry. Agora experimento apenas um sentimento de orgulho quando penso naquilo que deve vir a ser. Todavia, desejava que não tivesse de matar.

- Estou encantada por a minha predição te parecer realmente boa! Na verdade, tinha a impressão de que o ar era propício e a minha visão particularmente nítida. Apesar disso, gostaria bem de ter usado uma espádua de carneiro.

Com estas palavras voltou a fechar as pálpebras e adormeceu.

Durante toda a noite, o Velho Robert agitou-se nervosamente na cama, enquanto a mulher se mantinha imóvel a seu lado. Finalmente, quando as trevas deram lugar a uma luz cinzenta e prateada, ela levantou-se em silêncio.

- Como? Tu não dormiste? Aonde vais assim tão cedo?

- Vou ter com Henry; tenho de falar-lhe; talvez acabe por me escutar.

Regressou uns instantes depois, voltou ao seu lugar, e descansou a cabeça no braço de Robert.

- Henry já partiu - disse ela, e o corpo inteiro enrijeceu-se-lhe ligeiramente.

- Partiu? Mas como foi capaz de agir assim? É a saâ primeira cobardia: teve medo de se despedir de nós. Mat não lamento este temor, porque testemunha a sinceridade do seu desgosto. Não seria capaz de se ouvir exprimir os seus próprios sentimentos.

Alarmado pelo silêncio glacial da companheira, exclamou com um tom pleno de convicção:

- Vamos, Mãe, ele não tardará a regressar; talvez quando comece a despontar a erva da Primavera. Voltará com certeza, sou eu que to juro. Partiu por uma semana, por alguns dias apenas. Acredita em mim, peço-te!

«Os anos passaram para nós, querida, e agora somos como éramos outrora, lembras-te? Apenas nos encontramos mais perto um do outro, em virtude do que aconteceu, estamos enriquecidos pelas recordações do passado e pelas coisas com que ele brincou. Ninguém no-las poderá tirar enquanto tivermos vida.»

Ela não chorava nem se mexia: nem sequer parecia respirar.

- Oh, minha Elizabeth, diz-me que acreditas no seu regresso próximo, iminente, antes de teres mesmo começado a sofrer com a sua ausência. Não fiques assim a meu lado, perdida no teu silêncio. Ele estará aqui na Primavera. É preciso acreditar em mim, minha querida...-Com muita suavidade, acariciou com, os seus longos e termos dedos a face que estava junto da sua.

Henry deixara a casa ao amanhecer, e pusera-se a caminho de Cardiff num passo rápido. Uma sensação de receio apertava-lhe o coração, e perguntava a si próprio se desejava realmente partir. Esta apreensão demonstrara-lhe que, se esperasse pelas despedidas, não seria capaz de partir, mesmo para as índias.

O céu tornava-se cinzento quando marginou os prados onde se divertira em criança. Passou na pedreira onde havia uma caverna na qual tinha brincado com os seus camaradas ao jogo delicioso dos «Ladrões», e onde era sempre escolhido, por aclamações, para encarnar a personagem de Twym Shone Catti, o Velhaco Astucioso.

A crista das montanhas, circundada por um debrum prateado, desenhava-se diante dele com um traço nítido, como se fosse um cenário de cartão. Um leve vento fresco e doce, precursor da alva, soprava ao longo das encostas e trazia-lhe um odor poderoso de folhas e de terra molhadas. Cavalos relinchavam à sua passagem, depois aproximavam-se e afloravam-no com os focinhos delicados; bandos de pássaros caçavam insectos nocturnos atrasados na penumbra matinal e erguiam à sua aproximação gritos de protesto medroso.

Quando nasceu o Sol já tinha percorrido algumas milhas. No instante de a bola amarela surgir atrás dos cumes, colorindo as nuvens retalhadas pelas montanhas, Henry fez correr uma espessa cortina sobre o passado. Atirou para trás das costas, abandonando-os, o desgosto e a solidão que o haviam escoltado nas trevas. Chegou a paragens que nunca vira até então; Cardiff estava justamente à sua frente e, para além do horizonte, julgava descobrir o vago esplendor da verde coroa das índias.

Atravessou povoações cujos nomes lhe eram desconhecidos, pequenos grupos acolhedores de cabanas grosseiras cujos habitantes o examinavam com curiosidade como se fosse um estrangeiro. Isso enchia-o de alegria porque, até aí, tinha sido ele a olhar os viajantes, entregando-se a muitas conjecturas quanto ao seu destino e o objectivo misterioso que prosseguiam. Essa designação de «estrangeiro» transformava-os em seres magníficos e poderosos. Agora, era um deles; examinavam-no e pensariam nele com um certo respeito. Invadia-o o desejo de gritar àquelas pessoas: «Vou para as índias!», para os ver dilatar os olhos mornos e suscitar a sua admiração. Considerava-os uns ineptos sem vontade, que nenhum sonho conseguiria nunca obrigar a abandonar a sua choupana insalubre.

A paisagem modificou-se. Henry saiu das montanhas para penetrar numa vasta planura levemente ondulada. Viu grandes buracos semelhantes às luras de tremendos ratos dos prados, de onde emergiam homens sujos e negros que carregavam às costas sacos de carvão. Esvaziavam-nos em pilhas no terreno, e depois regressavam aos seus covis. Observou que andavam sempre curvados como se o peso dos sacos os esmagasse ainda.

Chegou o meio-dia e uma longa e luminosa tarde. Ele continuava a caminhar incansavelmente. Havia um novo perfume no ar, o doce e poderoso hálito do oceano. Sentiu o desejo de correr para ele como um cavalo cheio de sede. Pouco tempo antes do crepúsculo, um exército de nuvens negras congregou-se no céu. Um áspero vento anunciador de neve dobrou a erva sob o seu sopro. Henry prosseguiu ao encontro da tempestade, até que o vento e o granizo lhe fustigaram maldosamente a face e o frio lhe trespassou as roupas.

Aqui e além disseminavam-se casas dos dois lados da estrada, mas não quis bater em nenhuma delas para procurar um abrigo e alguma alimentação. Não conhecia os usos da região nem o preço das coisas, e estava empenhado em não gastar as suas cinco libras antes de alcançar Cardiff.

Finalmente, com o rosto castigado pelo granizo e as mãos azuladas pelo frio, penetrou num palheiro cheio de feno. Apreciou a tepidez e a calma, porque os urros do vento glacial lhe ressoavam ainda nos ouvidos. O ar estava perfumado pelo mel seco que aderia ainda aos pedaços de erva. Henry afundou-se na cama mole e adormeceu.

Era noite negra quando acordou. Ainda tonto de sono, lembrou-se do lugar onde estava, e, imediatamente, os pensamentos que tinha afastado na véspera se precipitaram sobre ele gritando-lhe com uma voz estridente:

«Não passas de um tolo», disse um. «Lembra-te da sala grande dos chuços, do fogo luminoso! Onde estão eles agora? Nunca mais os verás. Desaparecem como visões de sonho, e nunca chegas a saber para onde vão os sonhos. És um tolo!» «Não, não, ouve-me! Pensa em mim! Porque não esperaste por Elizabeth? Terias tu medo, por acaso? Sim, é verdade, tinhas medo. Este rapaz é um cobarde, meus irmãos. Tem medo de uma criança de cabelos louros, filha de um pobre caseiro.»

«Pensa em tua mãe, Henry», declarou uma voz lenta e triste. «Ela estava muito direita e muito rígida na sua cadeira quando a viste pela última vez. Mas não te despediste dela. Olhaste-a simplesmente, antes de atravessar a porta. Talvez ela tenha morrido sem mudar de lugar, com essa expressão de dor horrorosa nos olhos. Como poderás saber se está ainda viva? E Roberto, teu pai... Serias capaz de pensar nele neste momento: só, triste, abandonado? Tu és a causa de tudo isso. Henry: como desejavas partir para as índias, não pensaste em mais nada.»

«E que sabes tu do futuro?», perguntou uma vozinha receosa. «Talvez que ainda venhas a morrer de frio. Ou então um estrangeiro acabará contigo para te tirar o pouco dinheiro que tens. Estas coisas acontecem. Houve sempre alguém para cuidar de ti e velar pelo teu bem-estar. Oh, acabarás por morrer de fome e frio! Tenho a certeza disso!»

Depressa os rumores do palheiro se misturaram a estes cruéis pensamentos. A tempestade acabara, mas soprava uma brisa em torno dos cantos, modulando por vezes um lamento espectral de uma tristeza infinita. O feno estalava como se cada palhinha tentasse esquivar-se furtivamente. Morcegos voavam nas trevas, e os ratos chiavam horrivelmente. Tanto uns como outros pareciam fixá-lo no seio da escuridade, com os seus olhinhos trocistas.

Já lhe acontecera encontrar-se só, mas nunca tinha experimentado esta solidão total, entre coisas novas, num lugar que não conhecia. Um pânico ia crescendo incessantemente no seu coração. Parecia-lhe que as horas passavam como nuvens preguiçosas, enquanto ele continuava deitado, estremecendo de pavor. Finalmente um mocho penetrou no palheiro e começou a voar em círculos por cima dele, piando loucamente. Os nervos do jovem, demasiado tensos, cederam; e quando abandonou o seu refúgio, correu para Cardiff tão depressa quanto lhe foi possível.

 

DURANTE mais de um século a Grã-Bretanha tinha desempenhado o papel de espectadora impaciente, enquanto a Espanha e Portugal, com autorização do Papa, partilhavam o Novo Mundo e patrulhavam constantemente o seu domínio para manter os intrusos em respeito. Grande era a amargura da Inglaterra, aprisionada pelo mar. Mas finalmente Drake forçou a barreira e sulcou os oceanos interditos com a sua pequena Golden Hind. Os grandes navios vermelhos da Espanha consideraram-no como uma minúscula mosca que os importunava e que era necessário castigar por causa dos seus zumbidos. Mas depois da mosca ter esventrado os seus castelos flutuantes, incendiado uma ou duas cidades, e chegado mesmo a armar uma cilada ao comboio do tesouro sagrado, foram obrigados a modificar a sua concepção. A nave passou a ser vespão, escorpião, víbora, dragão. Começaram a chamar-lhe El Draque, e o receio pelos Ingleses cresceu no Novo Mundo.

Logo que a Invencível Armada sucumbiu diante da frota britânica e do mar em fúria, a Espanha ficou aterrorizada com esta força gerada por uma ilha tão pequena. Que tristeza pensar nesses magníficos barcos decorados com esculturas douradas, que agora jaziam no fundo do mar ou tinham sido desmantelados na costa da Irlanda!

Então a Inglaterra entrou nas Caraíbas e apoderou-se da Jamaica e de Barbados. Podia vender nas colónias os produtos da metrópole. O seu domínio dava imenso prestígio a um pequeno país, desde que fosse fortemente guarnecido. A Inglaterra empreendeu sem demora o povoamento dos seus novos domínios.

Filhos segundos de grandes famílias, nobres arruinados, foram para as índias. Não havia melhor meio de alguém se desembaraçar de um homem perigoso. Bastava ao Rei outorgar-lhe um domínio nas ilhas, depois exprimir o desejo de que fosse viver para as suas terras, a fim de ali cultivar o solo fértil para maior benefício da Coroa.

Os colonos abandonaram a Inglaterra em barcos repletos: jogadores, engajadores, dissidentes, papistas; todos deviam possuir a terra, mas nenhum devia trabalhá-la. Os negreiros de Portugal e dos Países Baixos não podiam transportar as peças de ébano com rapidez que bastasse às exigências sempre crescentes daqueles que reclamavam trabalhadores em altos gritos.

Então tiraram-se os malfeitores das prisões, e arrebatavam-se todos os vagabundos das ruas de Londres; apanharam-se também os mendigos que estacionavam durante o dia à porta das igrejas, os suspeitos de feitiçaria, lepra e os papistas: todos foram enviados para as plantações das índias.

presos por contratos de trabalho. Era um plano brilhante: fornecia-se a mão-de-obra necessária, e a Coroa recebia bom dinheiro em troca de corpos com valor diferente daquele que até então tinha alimentado, vestido e enforcado. Era necessário explorar ainda mais esta fonte de receita. Maços inteiros de contratos de trabalho em branco, com o selo do Rei, foram vendidos a alguns capitães a quem se recomendou a maior discrição no tocante aos nomes que neles inscrevessem.

Alas de cafeeiros, de laranjeiras, de canas-de-açúcar, de cacaueiros, estendiam-se sempre em maior número através das ilhas. Naturalmente, havia alguns pequenos aborrecimentos quando os contratos expiravam. Mas os bairros excêntricos de Londres engendravam com bastante rapidez novos escravos, e Sua Majestade nunca deixava de ter uma copiosa provisão de inimigos.

A Inglaterra tornava-se uma potência marítima com os seus governadores, os seus palácios e os seus traficantes no Novo Mundo; e barcos carregados de produtos manufacturados deixavam LiverpuI e Bristol em número sempre crescente.

Ao alvorecer, Henry chegou aos arrabaldes de Cardiff. Esquecera todos os terrores; um novo deslumbramento alastrava no seu coração. Na verdade, era uma coisa incrível esta cidade de casas todas desiguais que se alinhavam infinitamente como fileiras de um exército. Nunca tinha imaginado semelhante extensão quando as pessoas lhe falavam de cidades.

Os lojistas abriam as portas, instalavam as suas mercadorias, e Henry examinava-as com olhos arregalados. Desceu uma comprida rua que o levou às docas onde os mastros, inúmeros, se levantavam, como trigais novos, no meio de um caos aparente de aparelhos castanhos semelhantes a teias de aranha. Alguns barcos recolhiam fardos, barris, carne de açougue; outros vomitavam do seu bojo arredondado géneros metidos em esquisitos cofres exóticos e em sacos de palha entrelaçada. Por toda a parte reinava uma actividade febril. O rapaz sentiu uma sensação de exaltação como aquela que o invadia na sua aldeia sempre que ali içavam as bandeiras para uma festa.

Uma vibrante canção rebentou a bordo de um navio que partia; as palavras eram estrangeiras, claras e harmoniosas. A água que marulhava contra os cascos muito lisos causava-lhe uma alegria quase dolorosa à força de ser intensa. Parecia-lhe que tinha acabado de encontrar um país conhecido, extremamente amado, depois de dias e noites de delírio. Agora um coro subia do palhabote cuja âncora emergia lentamente. As velas caíam das vergas e inchavam ao sopro da brisa matinal. Então deixou o ponto de ancoragem e desceu suavemente o canal.

Henry prosseguiu o seu caminho até às docas secas onde querenavam navios de flancos luzentes atapetados de algas e de perceves colectados em diversos oceanos. Ali ressoavam os golpes dos martelos secos e rápidos dos calafates, o ruído das grosas de ferro sobre a madeira, as ordens imperiosas que os porta-vozes transformavam em urros.

Quando o Sol se mostrou bastante alto no céu. Henry começou a sentir fome. Regressou lentamente à cidade para tomar o seu pequeno-almoço, afastando-se das docas com relutância. Agora os engajadores saíam das suas tocas, assim como os jogadores profissionais para quem os marinheiros eram uma presa fácil. De tempos a tempos, uma mulher com os cabelos em desalinho e muito sonolenta, apressava-se a chegar a casa como se temesse ser surpreendida pelo sol. Marinheiros de licença esfregavam os olhos inchados e procuravam discernir no céu o tempo que iria fazer, enquanto se espreguiçavam contra as paredes. Henry imaginava o que poderiam eles ter visto no decursos da viagem. Afastou-se para deixar passar uma fila de carros e de carroças carregados de fardos e de caixas com destino aos navios, e imediatamente teve de furtar-se a uma outra fila que caminhava em sentido contrário, abarrotada de produtos vindos de além-mar.

Acabou por chegar à taberna dos Três Cães: esses animais figuravam na tabuleta e pareciam-se furiosamente com dromedários aterrorizados. Henry entrou numa vasta sala repleta de gente e perguntou a um rapagão de avental se podia almoçar.

- Tens dinheiro? - disse o outro com ar desconfiado.

Henry deixou que a luz incidisse sobre uma moeda de ouro que trazia na mão; diante deste sinal manifesto de poder, o tasqueiro inclinou-se e puxou suavemente o cliente pelo braço. Henry encomendou o almoço, depois manteve-se de pé, percorrendo a sala com o olhar.

Continha uma multidão de homens instalados em mesas compridas, ou encostados contra as paredes; alguns estavam até sentados no chão. Uma criadita girava pelo meio deles, carregando uma bandeja com bebidas diversas. Uns eram italianos vindos de Oénova e de Veneza em barcos carregados de especiarias ou de madeiras raras transportadas em camelos desde o oceano Índico até Bizâneio. Outros, franceses que chegavam de Bordéus ou de Calais em navios repletos de barricas de vinho, e entre os quais se lobrigava às vezes um basco de olhos azuis e face quadrada. Viam-se também suecos, dinamarqueses, finlandeses, membros de equipagens dos baleeiros do Norte, sujos e cheirando a gordura em decomposição. Agrupados em torno de algumas mesas, encontravam-se holandeses cruéis cujo ofício era transportar para o Brasil os escravos negros da Guiné. No meio de todos esses estrangeiros, havia bons lavradores galeses, um pouco aterrados e muito pouco à vontade. Tinham trazido porcos e carneiros do campo para reabastecer os barcos; agora devoravam a comida à pressa para poderem regressar a casa antes de anoitecer. Sentiam-se tranquilizados pela presença de três soldados da Marinha de Guerra, envergando o uniforme do Rei, que conversavam perto da porta.

O jovem Henry perdia-se deliciado no ruidoso clamor que subia da multidão. Ouvia línguas novas, via coisas novas: os brincos nas orelhas dos genoveses; os sabres dos holandeses, curtos como punhais; a cor dos rostos, que iam do vermelho-violáceo ao castanho-escuro. Poderia ficar ali todo o dia sem ter consciência da passagem das horas.

Uma grossa mão calosa agarrou-o pelo cotovelo, e Henry olhou para a cara grande e inocente de um marinheiro irlandês.

- Não se quer sentar aqui, jovem, ao lado de um honesto marinheiro de Corlc, chamado Tim?

Dizendo isto, apertou-se violentamente contra o seu vizinho, empurrou-o para a extremidade do banco, e conseguiu assim um espaço estreito para Henry. Os Irlandeses sabem melhor do que ninguém mostrar-se suaves na sua brutalidade; e, quando o rapaz se sentou, não se havia apercebido de que o marinheiro de Cork lhe tinha visto a moeda de ouro.

- Obrigado - disse ele. - Para que país vai partir?

- Meu Deus! Para todos aqueles aonde vão os navios! Sou um honesto marinheiro de Cork, cujo único defeito é não ter um tostão no bolso. Neste momento, pergunto a mim mesmo como conseguirei pagar o almoço, uma vez que não tenho um tostão...

- Se está sem dinheiro, ofereço-lhe eu o almoço, mas com a condição de me falar do mar e dos navios.

-Ah! Bem sabia que você era um cavalheiro. Compreendi isso desde o instante em que o meu olhar reparou em si... E se bebêssemos um copo para começar?

Pediu a sua bebida sem esperar pelo consentimento de Henry e, quando ela chegou, levou à altura dos olhos o copo cheio do amarelo líquido.

- Os Irlandeses chamam-lhe uisquebaugh, que quer dizer água da vida; os Ingleses chamam-lhe whisky, que significa simplesmente água. Palavra de honra, se a água tivesse a consistência e o forte calor desta beberagem, abandonaria a navegação para viver sempre a nadar! - Estourou numa enorme gargalhada e bebeu o copo de um só trago.

- Vou partir para as índias - declarou Henry, com a intenção de conduzir a conversa para o assunto que o apaixonava.

- As índias? Meu Deus, também vou para lá. Levantamos âncora amanhã de manhã para Barbados com um carregamento de facas, foicinhas e fatos, destinado às plantações. Estou a bordo de um barco muito tom, um barco de Bristol; mas o capitão é um homem duro, praticante de uma religião terrível. Ameaça-nos com todos os caldeirões do Inferno, e chama a isto oração e arrependimento; mas eu creio que ele sente grande prazer com a ideia de que iremos arder durante um bom pedaço de tempo. Não compreendo a sua religião, e como poderá isso ser uma religião se não há nela uma única ave-maria?

- Parece-lhe... parece-lhe que, talvez... eu tivesse possibilidades de embarcar com vocês? - perguntou Henry com voz estrangulada.

As pálpebras de Tim desceram sobre os seus olhos cândidos.

- Se tem dez libras no bolso - começou ele lentamente. Depois, vendo uma dolorosa consternação pintar-se no rosto do rapaz, continuou:-Bem, digamos então cinco...

- Já só tenho quatro libras - informou Henry em tom melancólico.

- Bem, quatro libras talvez cheguem. Dê-mas cá, que eu me encarrego de falar ao capitão. Não é um homem muito mau quando o conhecemos bem, somente tem uma religião esquisita. Não olhe assim para mim. Não seria capaz, por nada deste mundo, de fugir com as quatro libras de um camarada que me pagou o almoço. - A sua face abriu-se num sorriso. - Vamos, bebamos ao seu embarque no Bristol Girl. Uisquebaugh para mim, vinho do Porto para si!

Nesse momento chegou o almoço, e puseram-se a comer com apetite. Depois de terem comido os primeiros pedaços, Henry declarou:

- Chamo-me Henry Morgan. E qual é o seu nome de família?

O marinheiro rebentou numa gargalhada alegre:

- Bem, se alguma vez cheguei a ter outro nome além de Tim, talvez o possam encontrar numa estrebaria de uma rua de Cork. Meu pai e minha mãe não ficaram junto de mim para mo dizer. Tini foi um nome que adquiri sem que ninguém mo tivesse dado. É por assim dizer um nome gratuito, que podemos adoptar sem que ninguém repare nisso, como esses pedacinhos de papel semeados na rua pelos dissidentes que desaparecem logo em seguida para que ninguém os veja.

Acabada a refeição, saíram para a rua onde se afadigavam os carreteiros, os mercadores de laranjas e velhas bufarinheiras. A cidade apregoava os seus mil produtos; dir-se-ia que as mais delicadas coisas, dos cantos mais estranhos e mais longínquos do mundo, tinham sido trazidas pelos navios e amontoadas, como pedaços de terra, nos balcões poeirentos de Cardiff: limões, caixas de chá, de café, de cacau; tapetes do Oriente de cores fulgurantes; drogas mágicas das índias, que vos fazem ver coisas inexistentes e vos provocam prazeres fugidios. Nas ruas levantavam-se barris e cântaros de vinho das margens do Loire e das faldas do Peru.

Regressaram às docas que abrigavam belos navios. Um odor de alcatrão e de cânhamo queimado pelo sol os acolhia, misturado ao perfume do mar. Finalmente, Henry descobriu um grande barco preto que tinha as duas palavras Bristol Girl pintadas em letras douradas na proa. A cidade e todos os cascos lisos se transformavam imediatamente numa porcaria sórdida em comparação com esta maravilha do mar. As suas linhas curvas e fugidias, quase sensuais, cortavam a respiração e enchiam-no de um prazer agudo. Velas brancas completamente novas enrolavam-se nas vergas como longos e frágeis casulos; tinha a ponta coberta de uma fresca demão de tinta amarela. Balançava levemente ao ritmo da vaga, mordendo o freio, pronto a singrar para qualquer país de sonho.

- Oh! Que esplêndido navio, que magnífico navio! exclamou Henry, maravilhado.

- Subamos a bordo - disse Tim com uma voz cheia de orgulho - e verás que a mastreação e o aparelho são completamente novos. Vou falar com o capitão a teu respeito.

Henry imobilizou-se nos passavantes, enquanto o marinheiro se encaminhava para a popa e se descobria diante de um homem de magreza esquelética, que vestia um uniforme muito velho.

- Encontrei um rapaz - disse Tim, sem que Henry o pudesse ouvir - que tem uma vontade danada de ir às índias, e pensei que gostaria de o ter a bordo, capitão.

O outro franziu os sobrolhos e perguntou:

- Trata-se de um rapaz sólido e capaz de ser útil nas ilhas? Há muitos que morrem um mês depois de terem chegado lá, e isso traz-nos aborrecimentos para a viagem seguinte.

- Está atrás de mim, capitão. Pode ver o senhor mesmo como é bem constituído e tão robusto como faz falta.

O oficial apreciou Henry com os olhos, desde as pernas musculadas até ao amplo peito, e fez um sinal de aprovação. - Com efeito é um sólido rapagão. Isso é um bom trabalho, Tim. Vai receber uma gratificação e uma ração suplementar de rum quando estivermos no mar. Está ele ao corrente do que o espera?

- De modo algum.

- Nesse caso, não lhe diga nada. Ponha-o a trabalhar no paiol, e dê-lhe a perceber que é para pagar a viagem. Não quero alertar os homens da vigia. Ele dará conta do que suceder quando estivermos longe.

O capitão afastou-se de sorriso nos lábios, e Tim gritou estas palavras que paralisaram Henry de prazer:

- Podes embarcar connosco! Todavia - prosseguiu ele muito gravemente - as tuas quatro libras não chegam para pagar a viagem. Vais ter de trabalhar um bocado no paiol.

- Farei seja o que for, desde que possa partir convosco.

- Então voltemos para terra, e bebamos a uma feliz travessia; uisqueiaugh para mim, vinho do Porto para ti.

Instalaram-se numa taberna poirenta, com as paredes recobertas de garrafas de todas as formas e tamanhos, desde os frascos bojudos até aos garrafões gigantescos. Passado algum tempo, puseram-se a cantar, acentuando o ritmo com a mão e trocando sorrisos estúpidos. Mas, por fim, o vinho caloroso deu origem a uma doce tristeza no coração do rapaz. Sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos, e experimentou uma certa alegria. Isso mostraria a Tim que tinha desgostos, que não era um simples esmiolado roído pelo «desejo de ir para as índias.

- Olhe, meu caro Tim - começou ele -, deixei atrás de mim uma rapariga chamada Elizabeth. Tem os cabelos dourados como o sol nascente. Na véspera da minha partida, fui ter com ela à noite; chamei-a e ela veio para ao pé de mim. Estávamos cercados pelas trevas como por uma tenda gelada. Suplicou-me que ficasse, derramando lágrimas amargas, mesmo quando lhe enumerei as lindas peças e os esplêndidos tecidos de seda que lhe traria dentro de pouco tempo. Não consegui consolá-la, e o meu coração transborda de tristeza quando penso na minha Elizabeth que está certamente a chorar, lá na terra...

Os seus olhos encheram-se de lágrimas.

- Eu sei - confirmou suavemente Tim. - Eu sei como é duro abandonar uma rapariga para ir correr os mares. Não deixei eu centenas, e todas belas? Mas bebe outro copo, rapaz. O vinho, quando um homem o bebe, é mais lucrativo para as mulheres do que todos os pós e cremes de beleza franceses, porque nos parecem encantadoras. Ah! Se aquelas a quem faltam atractivos instalassem uma pia como as de água-benta cheia de vinho à porta de casa, haveria muito mais casamentos, porque os homens não se dariam conta da sua fealdade. Bebe outro copo, meu rapaz, e será uma princesa que deixarás atrás de ti.

Estavam de partida para as índias, as ilhas longínquas onde viviam os sonhos dos rapazinhos. O grande sol matinal tentava perfurar uma bruma cinzenta. Na ponte os marinheiros agitavam-se como abelhas furiosas em torno de uma colmeia derrubada. Retiniam ordens curtas, e os homens subiam para os ovéns a fim de se alinhar ao longo das vergas. Outros, agrupados em círculo, cantavam a canção do cabrestante.

enquanto as âncoras subiam do mar e se agarravam aos flancos do navio, semelhantes a borboletas castanhas escorrendo água.

A caminho das índias!... As velas brancas sabiam-no, abrindo e inflando as suas delicadas corolas. Todo o navio o sabia, balançando-se orgulhosamente ao sopro da brisa. O Bristol Girl libertou-se cautelosamente dos outros barcos e deslizou ao longo do canal.

A bruma confundia-se lentamente com o céu. A costa foi-se tornando de um azul cada vez mais esborratado e desapareceu no horizonte como uma miragem. As negras montanhas transformaram-se em nuvens, depois em flocos de fumo. Finalmente, o País de Gales desapareceu como se nunca tivesse existido.

Passaram à vista de Porlock, a bombordo, assim como de Ilfracombe e de muitas pequenas povoações anichadas nas dobras das colinas do Devon. O vento favorável conduziu-os depois por Stratton e Camelford. A Cornualha deslizava atrás deles, légua após légua. Apareceu depois Finisterra, ponta do mento da Grã-Bretanha. E, quando dobraram o cabo em direcção ao sul, o Inverno chegou com toda a sua força.

O mar levantou-se contra eles rugindo, enquanto o navio deslizava, cortando as matilhas dos ventos uivantes causadores da borrasca. O vento saíra do seu abrigo do norte, e o Bristol Girl iludiu-o rumando para sudoeste. Estava um frio glacial. Os ovéns gelados ressoavam como imensas cordas de harpas tocadas por um gigante atacado de demência, e as vergas gemiam sob a tensão das velas.

Durante quatro dias tumultuosos, a tempestade persistente empurrou-os para o largo, e o barco suportou a luta com galhardia. Os marinheiros concentravam-se no castelo da proa para elogiar a sua robustez e a sua agilidade. Durante todo esse tempo, Henry esteve dominado por uma imensa exaltação. O furor frenético do furacão era o seu próprio furor. De pé na ponte, abraçado a um mastro, face contra o vento, fendia-o com o queixo como a proa fende as ondas. Um canto triunfal enchia-lhe o peito, enquanto o coração transbordava de uma alegria dolorosa. O frio limpava-lhe os olhos: dava mais claramente conta do horizonte que o cercava. O seu primeiro desejo estava mitigado, mas outro nascia já dentro dele: gostaria de possuir imensas asas capazes de lhe permitir percorrer o espaço infinito do céu. Para ele, que ardia no desejo de assumir o seu voo, o navio era uma prisão movediça e fremente. Ah! Ser um deus e vogar no seio da tempestade, não debaixo dela. Tal era a embriaguez que o vento lhe dispensava: um desejo que o satisfazia, enquanto lhe suscitava aspirações novas. Henry reclamava ombros omnipotentes, e os elementos impregnavam-lhe os músculos de novas forças.

Depois, tão depressa como tinham vindo, os demónios ao serviço das estações desapareceram furtivamente, dando lugar a um mar limpo e claro. O barco deslizou com todas as velas sob o sopro dos alisados, esses ventos eternos exalados pelo Deus da Navegação propícios aos grandes navios. As vergas deixaram de gemer sob a tensão da vela, e os marinheiros começaram a brincar na ponte como crianças turbulentas, porque esses ventos carregavam com eles a alegria da juventude.

Chegou o domingo, dia de morno receio e de sombrios pressentimentos para a tripulação do Bristol Girl. Henry acabou o seu trabalho no paiol e subiu para a ponte. Um velho marinheiro, sentado numa escotilha, tecia uma comprida trança de cordas. Todos os seus dedos pareciam possuir uma inteligência ágil que lhe era própria, porque o seu dono nunca olhava para eles. Os seus olhinhos azuis, como os de todos os marinheiros, contemplavam o invisível para além do horizonte.

- Olha, gostarias de conhecer o segredo das cordagens? - indagou ele. - Por Deus, não tens mais do que observar. Faço isto há tanto tempo que a minha velha cabeça já se esqueceu de como se faz; só os meus dedos se lembram. Se pensar no meu trabalho, enredo tudo. Queres ser marinheiro e subir um dia?

- Gostaria muito de o fazer, se conseguisse aprender as manobras.

- Aprender as manobras não é difícil. Mas primeiro vai-te ser necessário aprender a suportar sofrimentos de que os terrestres não fazem ideia. É um ofício cruel, mas que não conseguimos abandonar depois de termos começado. Há doze anos que tento arrastar para terra a minha velha carcaça e amarrá-la diante de um bom lume, para meditar um pouco antes de morrer. É inútil. Sempre dou comigo a correr com toda a pressa para embarcar num barco qualquer.

Foi interrompido pelo estridente sino do navio.

- Anda daí - disse ele. - O capitão vai-nos falar do fogo eterno.

O oficial de rosto cadavérico estava diante da tripulação, poderoso como o seu Deus. Os homens miravam-no com um olhar receoso como os pássaros contemplam a aproximação de uma serpente, pois a sua fé reluzia-lhe nos olhos e palavras furiosas precipitavam-se dos seus lábios finos.

- O Senhor atingiu-vos servindo-se de uma ínfima parcela do Seu poder esmagador - vociferou ele. - Revelou-vos a força do Seu dedo mínimo para permitir que vos arrependais antes de vos precipitar, aos uivos, nas chamas do Inferno. Ouvi o nome do Senhor no vento terrível, e arrependei-vos dos vossos deboches e das vossas blasfémias! Ah! Ele vos punirá mesmo dos pensamentos ímpios que alimentais nas vossas cabeças.

«O mar oferece-vos uma parábola que vos deveria apertar a garganta como uma mão gelada e estrangular-vos de terror. Mas, agora a tempestade passou, e vocês já a esqueceram. Estais felizes, e não há em vós a menor contrição. Que esta advertência do Senhor vos sirva de lição. Arrependei-vos! Sem isso a Sua ira aniquilar-vos-á!»

Continuou desta maneira, agitando os braços com violência, falou dos pobres mortos solitários que ardiam eternamente para expiar as suas faltas, e acabou por despedir os marinheiros aterrorizados.

- Não é verdade - declarou o velho marinheiro a Henry, num tom bravio. - Não acredito numa única palavra dos seus discursos insensatos. Aquele que criou a tempestade, Deus ou o Diabo, fê-lo unicamente para alegria de criar. O ser capaz de provocar semelhante furacão, não se preocuparia com uma casca de noz perdida na imensidade. Pelo menos eu não lhe daria atenção.

Tini, o quartel-mestre, que tinha chegado nesse momento, tomou Henry pelo braço num gesto protector.

- Tudo isso é verdade - declarou -, mas faz de maneira que o capitão nunca venha a saber que dizes semelhantes coisas, ou até que as ouves; se assim não suceder, ele te dará uma prova da força do Senhor chicoteando-te com um pedaço de corda. Ele e o seu Deus são adversários terríveis para um rapazinho que lava marmitas no paiol.

Os alisados sopravam sem interrupção; Henry, depois de acabar de limpar os utensílios de cozinha e de descascar os legumes, conversava com os homens, manuseava as cordagens, subia aos mastros, aprendia as diversas manobras. Os marinheiros viram nele um rapaz calmo e delicado que os considerava como sábios suficientemente generosos para lhes outorgar o dom preciso das suas palavras; em consequência disso, prodigalizaram-lhe os seus ensinamentos, porque, como era evidente, o rapaz tinha nascido para o mar. Aprendeu as duas canções de alar, uma viva e sacudida, a outra lenta e bem ritmada. Entoou com eles as cantigas lamentosas que falavam de morte, de amotinações e de sangue. Os seus lábios formularam as pragas peculiares dos marinheiros; horríveis expressões obscenas e blasfematórias que ganhavam na sua boca uma grande pureza, porque não tinham qualquer sentido para ele.

No decurso da noite ficava deitado sem dizer palavra, enquanto os homens narravam as maravilhas que tinham visto ou imaginado: serpentes grandes, de meia légua, que se enrolavam em volta dos navios, os trituravam e os devoravam; tartarugas gigantes que traziam às costas árvores, rios, povoações inteiras, e só mergulhavam nas vagas uma vez de quinhentos em quinhentos anos. Sob as luzes oscilantes, contavam que os Finlandeses podiam, para se vingar, suscitar com o assobio uma tempestade mortal; que o mar abrigava no seu seio ratos que alcançavam os navios a nado para lhes roer os cascos até os pôr a pique. Relatavam, estremecendo, que aquele que se dava conta do terrível «kralcen» coberto de limo, nunca mais podia ver terra em virtude da maldição que pesava sobre ele. Apareciam também nas suas narrativas trombas e ciclones; vacas que viviam no mar e aleitavam os seus vitelos como as vacas terrestres; navios-fantasmas que vogavam indefinidamente no oceano, à procura de uma angra perdida, carregando uma tripulação de esqueletos alvacentos. E Henry, retendo a respiração, bebia avidamente estas palavras.

Numa noite semelhante a estas, Tim espreguiçou-se bruscamente e anunciou:

- Não conheço as grandes serpentes de que falais e - Deus abençoado! - nunca vi o «kraken». Mas, se me quiserem ouvir, tenho também a minha historieta a contar.

«Nesse tempo eu era um rapazinho como este aqui, a bordo de um barco livre que percorria os mares à procura de uma presa: umas vezes alguns escravos negros, outras ouro de um navio espanhol que não podia mais; em resumo, tudo o que podíamos apanhar. Nós próprios tínhamos eleito o nosso capitão; não possuíamos qualquer papel, mas diversas bandeiras estavam colocadas na ponte. Quando nos dávamos conta de um navio de guerra no óculo de grande alcance, desaparecíamos o mais depressa possível.

«Uma bela manhã, eis que nos aparece a estibordo um pequeno barco de três mastros; borrifámos as velas para forçar o andamento, e apanhámo-lo. Era um espanhol que transportava sal e peles frescas. Ora, quando entrámos na cabina, encontrámos lá uma grande mulher de cabelos pretos, com uma vasta fronte branca, os dedos mais delgados que até hoje vi. Deixámos tudo o mais, e trouxemo-la para o nosso barco. O capitão apressava-se para a conduzir ao castelo da popa quando vimos o quartel-mestre avançar para ele. ”Somos uma tripulação livre”, disse, e fomos nós que te elegemos capitão. Também queremos a mulher e, se não no-la dás, haverá imediatamente uma sedição. O capitão olhou os homens com um ar ameaçador, e eles responderam ao seu olhar. Então ele atirou os ombros para trás e começou a rir desagradàvelmente.

«”E como iremos decidir?” - foi o que ele perguntou, pensando que haveria uma desordem levada dos diabos para possuir a mulher. Nesse instante o quartel-mestre tirou alguns dados do bolso e atirou-os para a ponte dizendo:

«Vamos usar isto!” - e todos os homens se puseram a seus pés para apanhar os dados. Mas eu olhei para a nossa prisioneira, completamente só a um canto e pensei: ”É uma mulher dura, capaz de fazer coisas terríveis para desagradar àqueles que ela detestar. Não, meu rapaz, não te metas neste jogo.”

«Exactamente nesse instante, eis que ela corre para a amurada, apanha uma bala e salta pela borda fora mantendo-a apertada nos braços. Precipitámo-nos e contemplámos a superfície do mar, mas não vimos mais do que umas poucas bolhas de ar.

«Bem, duas noites mais tarde, eis que o homem de quarto aparece a correr no castelo de proa, com os cabelos eriçados. Há uma coisa branca que nada atrás de nós e dir-se-ia que é a mulher que se atirou ao mar.”

«Naturalmente fomos olhar por cima da armadoira do remate e eu não consegui ver coisa alguma; contudo, os outros diziam que estava ali uma criatura com umas mãos muito compridas e trancas estendidas para o nosso cadaste. Não nadava, mas deslizava atrás de nós como uma limalha de ferro atraída por um íman. Com certeza não duvidam que não conseguimos dormir nessa noite. Aqueles que o conseguiram gemeram e gritaram durante o sono, e não tenho necessidade de vos dizer o que isso significa.

«Na noite seguinte, o quartel-mestre saiu do porão gritando como um louco, os cabelos todos grisalhos. Agarrámo-lo e reconfortámo-lo o melhor que pudemos; por fim, conseguiu murmurar:

«”Vi-a; Oh! Meu Deus, vi-a! Vi duas compridas mãos trancas de dedos delgados, que atravessaram o flanco do navio e começaram a arrancar as tatuas como se fossem pedaços de papel. Oh, meu Deus, salva-me!”

«Nesse momento, sentimos que o navio adornava e começava a afundar.

«Bem, três de nós conseguimos alcançar terra, agarrados a fcotalós, e os meus dois companheiros endoideceram - pobres almas - e agitavam-se como gatos bravos. Nunca cheguei a saber se algum dos outros se tinha salvo, mas não creio. E é isto que vi com os meus olhos que se aproxima mais das coisas que têm estado a contar... Também se diz que, nas noites claras do oceano Índico, se vêem fantasmas dos pobres indianos assassinados perseguir no céu o fantasma de Vasco da Gama. Já ouvi contar, aliás, que os Indianos não são gente muito segura, e que aquele que viver com eles se arrisca a ser assassinado.»

Desde o primeiro dia, o cozinheiro começara a instruir o jovem Henry. Parecia ter um vivo desejo de ensinar, mas fazia-o com uma certa timidez como se receasse ser contraditado a todo o momento. Era um homem de cabelos grisalhos, olhos castanhos e tristes que recordavam os de um cão. Parecia-se ao mesmo tempo com um padre, um conferencista aborrecido e um bandido. Exprimia-se em termos académicos, mas os seus hábitos pouco próprios evocavam as sórdidas ruelas de Londres. Era um homem amável e bom, mas havia nele uma espécie de hipocrisia furtiva. Ninguém lhe dava qualquer possibilidade de se mostrar digno de confiança, porque toda a sua pessoa parecia dizer que saberia mostrar-se pérfido se o jogo valesse a pena.

Nessa altura, o barco, empurrado por um vento tépido, penetrara num mar quente. Henry e o cozinheiro estavam encostados à pavezada, observando as natatórias triangulares dos tubarões que passavam e repassavam através da esteira, esperando que lhes atirassem os restos. Avistavam-se pequenos tufos de algas acastanhadas a flutuar ao grado das vagas, e o piloto de nado firme a deslocar-se lentamente na extremidade da proa. Um dia o cozinheiro apontou-lhe uns pássaros castanhos de longas asas finas que seguiam o navio, planando, mergulhando, ondulando, voando sempre sem

nunca pousarem.

- Olha para essas criaturas inquietas - disse ele. - Na verdade, julgaríamos estar diante de almas em busca de repouso; e alguns pretendem que se trata na verdade de almas, as almas de marinheiros desaparecidos com tal carga de pecados que têm de voar perpetuamente. Outros, ainda, juram que esses pássaros põem os ovos em ninhos flutuantes instalados em tábuas de navios perdidos; e ainda outros, enfim, garantem que não têm ninho, que nascem já crescidos dos lábios brancos de uma vaga, começando imediatamente o seu voo que dura até à morte.

O navio dispersou um cardume de peixes-voadores que rasavam a crista das vagas, semelhando cintilantes moedas de prata.

- Esses são os fantasmas dos tesouros perdidos no mar - prosseguiu o cozinheiro -, as esmeraldas, os diamantes e o ouro que provocaram tantos crimes. Os pecados dos homens, cometidos para os conquistar infundem-se neles e obrigam-nos a perturbar o oceano. Ah! É pena que estas coisas sejam tão insignificantes para que um marinheiro não faça logo delas o assunto de uma magnífica historial

Henry apontou uma grande tartaruga adormecida à superfície das vagas:

- E qual é a história das tartarugas? - perguntou.

- Nenhuma, pois não passam de um produto alimentar. É muito pouco provável que um homem chegue alguma vez a inventar legendas a propósito das coisas que come. Estão muito perto dele e perdem todo o carácter romanesco. Mas.- esses mesmos animais salvaram vários navios e possibilitaram que vários marinheiros conservassem a sua carne, pois sem eles ter-se-iam tornado esqueletos brancos flutuando na ponte de uma embarcação à deriva. As tartarugas são um acepipe suculento, e às vezes os flibusteiros enchem com elas os porões, quando não conseguem descobrir bois bravos.

O Sol acabava de mergulhar no seio das vagas. Ao longe, uma única nuvem negra dardejava relâmpagos ofuscantes; descontada esta única excepção, o céu inteiro era uma seda azul-negra formigante de estrelas.

- Prometeu-me falar desses mesmos flibusteiros - observou Henry com um tom suplicante -, daqueles a quem chamam os Irmãos da Costa. Diga-me uma coisa: já navegou com eles?

O cozinheiro assumiu um ar constrangido.

-Reina a calma entre a Espanha e a Inglaterra; e não quereria por nada do mundo quebrar a paz do Rei. Não, nunca naveguei com eles, mas ouvi contar a seu respeito coisas talvez verdadeiras. De acordo com o que se conta, os flibusteiros são muito estúpidos. Apoderam-se de uma rica presa e depois disso despejam o seu dinheiro nos bolsos dos taberneiros e dos proprietários de bordéis de Tortuga e de Goaves, como crianças que recusam a areia com que não sabem brincar. Sim, são uns grandes tolos, na minha opinião.

- Mas nunca nenhum deles conseguiu apoderar-se de uma cidade?

- Não têm chefe capaz de os levar a concluir semelhante tarefa; o mais que conseguem, às vezes, é conquistar uma povoação.

- Nunca uma grande cidade que possuísse um tesouro importante?

-Não, nunca. São umas crianças, é o que te digo; crianças corajosas e fortes.

- Mas um homem que estabelecesse um plano maduramente reflectido não poderia apoderar-se de uma cidade espanhola?

- Oh! - comentou o cozinheiro, rindo-se. - Terás acaso intenção de te fazeres flibusteiro?

- Responde lá: se um homem estabelecesse um plano bem reflectido...

- Por Deus! Se existisse um flibusteiro capaz de estabelecer um plano, reflectido ou não, a coisa seria possível; infelizmente, não existe. São rapazotes que se batem como demónios e que morrem como bravos. Afundam um barco por um copo de vinho, quando poderiam vender esse mesmo barco.

- Se um homem reflectisse cuidadosamente, se pesasse bem as possibilidades e os homens de que dispõe, poderia...

- Sim, suponho que seria possível.

- Ouvi falar de um tal Pierre le Grand, que não era estúpido.

- Ah! Mas Pierre conseguiu apoderar-se de um rico navio; e depois disso refugiou-se em França, na sua terra! Era um jogador tímido, e não um sábio. Apesar de tudo, é muito possível que volte à Costa, para ali perder todo o seu dinheiro, e a cabeça, ainda por cima.

- Apesar de tudo - concluiu Henry num tom decisivo -, julgo que isso seria viável, se um homem reflectisse longamente.

Alguns dias mais tarde, chegaram perto de terra. Uma bela manhã, o pálido fantasma de uma montanha desenhou-se na fronteira do círculo do horizonte. De tempos a tempos, troncos de árvores e ramarias flutuavam ao sabor das vagas, e pássaros que não eram já os pássaros do mar vinham poisar no barco.

Tinham chegado à casa do Verão, o lugar que ele abandona todos os anos para visitar os países do norte. Durantt todo o dia o Sol era um címbalo de cobre ofuscante num céu descorado e deslavado; quando a noite caía, grandes peixes nadavam em torno do navio, deixando atrás deles um pálido rasto de fogo. A proa furiosa fazia saltar do alvacus da proa miríades de diamantes cintilantes. O mar era um lago circular percorrido por ondulações tranquilas, coberto por uma película de seda. Lentamente, a água deslizava para a popa, suscitando uma agradável hipnose semelhante à provocada pela contemplação das chamas. Aquele que olhasse a superfície das vagas não veria nada; contudo, só poderia desviar os olhos à custa de um esforço infinito e, de imediato, o seu cérebro entorpecido abandonar-se-ia ao sonho. Há nos oceanos dos trópicos uma paz que transcende qualquer desejo de compreensão. Não se busca já atingir um ponto de chegada, mas procura-se vogar, vogar sem fim, para além do reino do tempo. Os membros da tripulação tinham a impressão de que meses e anos se esgotavam; apesar de tudo, não manifestavam qualquer impaciência. Executavam a sua tarefa, depois deitavam-se na ponte tomados de uma estranha e feliz letargia.

Um dia uma pequena ilha emergiu das vagas, semelhando, na sua forma, uma meda de feno, verde como a cevada nova, atapetada de um espesso emaranhado de vegetação impetuosa: plantas trepadoras, lianas, árvores de sombrias frondes. Aos olhos de Henry tratava-se de um lugar mágico. Passaram diante de ilhas parecidas, até que, por fim, na penumbra da alvorada tropical, o barco chegou a Barbados. As âncoras perfuraram a superfície do mar com uma grande agitação da água, arrastando as espias que deslizaram vivamente atrás delas.

Nas margens estendia-se uma floresta verde-alface e, no interior das terras, as plantações alinhavam os seus longos renques de culturas em torno de casas com tectos cobertos de telhas; um pouco mais longe, nas colinas, manchas de argila vermelha surgiam como feridas no meio da folhagem; finalmente, mesmo no fundo do horizonte, montanhas pontiagudas levantavam-se, semelhantes a poderosos dentes cinzentos.

Pequenas pirogas aproximaram-se do navio, carregadas de frutos magníficos e de aves domésticas aos molhos. Os indígenas vinham para vender os seus produtos, e para comprar ou roubar o que continha o barco. Negros de pele luzidia cantavam canções bem ritmadas enquanto remavam, e Henry, apoiado à armadoira, transbordava de felicidade contemplando esta terra nova, mais esplêndida do que tinha esperado. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas de alegria.

Tim, de pé, próximo dele, tinha o ar triste e abatido. Finalmente colocou-se diante do rapaz e disse:

- Sinto remorsos por fazer mal a um rapaz que me pagou um bom almoço. E isso morde-me de tal maneira que nem sequer durmo.

- Mas tu não me fizeste mal nenhum - contrapôs Henry. - Trouxeste-me para as índias, para onde eu tinha vontade de vir.

- Ah! - continuou o quartel-mestre - se eu ao menos tivesse religião, como o capitão, poderia dizer: «Foi a vontade de Deus», e não pensar mais nisso. Se tivesse um ofício ou um cargo importante, poderia dizer: «Tenho de viver.» Mas

toda a religião que possuo consiste em balbuciar uma ave-maria ou um miserere domine quando aparece uma tempestade. E no que se refere ao cargo, não passo de um pobre marinheiro de Cork. Ah, sim! Dói-me fazer mal a um rapaz que me pagou um bom almoço. - Examinou uma longa piroga que se dirigia para o barco, a bordo da qual remavam seis vigorosos Caraíbas. Na popa estava sentado um inglês de pouca estatura, com ar inquieto, cujo rosto, em vez de crestar ao sol, não tinha cessado de se tornar purpúreo ao longo dos anos, de tal modo que as suas veias minúsculas pareciam correr no exterior da pele. Os seus olhos pálidos exprimiam uma perplexidade e uma indecisão perpétuas. A sua embarcação chocou contra o costado do navio; subiu lentamente para bordo, e foi direito ao capitão.

- Lá está ele! - exclamou Tim.-Não vais ficar com uma má opinião acerca de mim, não é verdade, Henry? Já viste o desgosto que isso me causa?

- Eh! Ó grumete! Eh, Morgan! Vem cá à ré! - gritou o capitão.

Henry foi juntar-se aos dois homens. Com grande espanto seu, o pequeno inglês apalpou-lhe suavemente os braços e os ombros, e depois declarou:

- Irei até às dez libras.

- Doze - opôs o capitão.

- Mas acredita que ele as valha de verdade? Bem vê, não sou rico, e parece-me que dez...

- Bem, vou ceder-lho por onze, mas só Deus que me está a ver sabe que vale mais do que isso. Olhe para estas costas largas, para estes músculos rijos. Este não morrerá

Já como tantos outros. Não, senhor, vale muito mais, mas cedo-lhe por onze.

- Seja, vou acreditar em si - disse o plantador com uma voz hesitante. Dizendo isto, tirou do bolso moedas misturadas a pedaços de fio, bocados de giz, um fragmento de pena de pato, e uma chave partida.

Durante esse tempo, o capitão mostrou ao grumete um contrato de trabalho por cinco anos, passado em nome de Henry Morgan, cuidadosamente caligrafado, e com o selo do rei da Grã-Bretanha.

- Mas eu não quero ser vendido! - exclamou o rapaz.

- Não vim para aqui para isso. Quero ser marinheiro e fazer fortuna.

- Poderás fazê-la dentro de cinco anos - afirmou o capitão com bondade, como se lhe concedesse uma licença.

- Julgas que poderia utilizar o meu barco só para transportar rapazinhos que desejam vir para as índias? Trabalha com vontade, tem confiança em Deus, e esta experiência não deixará de te ser proveitosa.

Empurrou brandamente Henry à sua frente, e o pobre rapaz recuperou de súbito a voz:

- Tim! -gritou ele.--Tim, acode-me! Querem-me vender! Oh! Tim, vem depressa, peço-te!

Não obteve resposta: quando Tim ouviu este apelo, começou a soluçar no seu beliche, como uma criança que acaba de receber algumas chicotadas.

Ao ultrapassar a pavezada, um pouco à frente do seu novo patrão, Henry não experimentava qualquer sentimento preciso. Tinha a garganta um pouco apertada; mas, afora isto, estava submerso num imenso e morno espanto.

Assim Henry Morgan foi viver para Barbados em virtude de um documento que o punha de corpo e alma à disposição do plantador James Flower.

Este não era um homem duro, e também não era de modo algum um espírito brilhante. Desde a sua infância que tinha sentido a sede de criar. Desejava conceber ideias, insuflar-lhes uma vida palpitante e atirá-las seguidamente à cara do mundo estupefacto. Ressaltariam como pedras no flanco de uma alta colina, suscitando uma avalancha de admiração. Infelizmente, nunca lhe tinha ocorrido nenhuma ideia.

Seu pai, bom e grande pastor inglês, escrevia bons e grandes sermões que tinham sido publicados, embora os compradores se mostrassem muito escassos. A mãe escrevia poemas, simples resumos dos sermões, que haviam sido acrescentados ao fim do volume de rebarbativa ortodoxia. Ambos tinham ideias: no seu domínio restrito, eram criadores.

James Flower fora educado numa atmosfera de conversas deste género:

- Tenho de ir ver o meu editor, Helen.

- Oh! William, esta manhã, quando estava a pentear-me, veio-me uma inspiração de tal modo esplêndida que devo atribuí-la a Deus! Penso que este novo poema deve ser composto em estrofes. Uma autêntica beleza! E quadra maravilhosamente com o teu encantador discurso acerca da humildade.

- Assim é que está bem. Mas agora tenho de ir visitar o meu editor para ver como se vendem os meus sermões. Mandei um exemplar ao arcebispo, e talvez ele tenha falado deles. Algumas palavras suas poderiam valer-me um grande número de compradores.

Sim, tanto o marido como a mulher tinham ideias e, muitas vezes, abanavam a cabeça com tristeza pensando no filho muito limitado. James sentia por eles um respeitoso temor: a grandeza deles aterrava-o e enchia-o de vergonha. Por isso, desde muito novo, decidiu ter, também, as suas ideias. A extensão das suas leituras era prodigiosa. No dia em que a Defesa da Feitiçaria do Rei Jaime lhe foi parar às mãos, empreendeu demonstrar a sua exactidão. Por meio de velhíssimas encantações e de uma loção negra composta de haxixe misturado com imundos ingredientes, tentou voar precipitando-se do telhado da casa. Enquanto as duas pernas partidas se soldavam, devorou a Descoberta da Feitiçaria, de Scott.

Quando o sistema de Descartes começou a provocar uma forte sensação entre os homens de ciência, também James Flower decidiu reduzir toda a sua filosofia a um postulado de base. Contudo, apesar de pôr diante de si várias folhas de papel e plumas muito bem aparadas, nunca o conseguiu. «Penso, logo existo», dizia consigo, «ou pelo menos penso que existo.» Mas nem isto o levou a coisa alguma. Então aderiu à nova escola de Bacon. No decurso de experiências teimosamente repetidas, queimou os dedos, tentou cruzar a cevada e o trevo, arrancou as patas de uma multidão de insectos, buscando descobrir qualquer coisa, fosse o que fosse, sem nunca o conseguir. Como recebia um rendimento tranquilizador de uma soma legada por um dos seus tios, as suas tentativas foram numerosas e variadas.

Um separatista fanático tinha escrito um livro muito violento na melhor tradição do tratado científico: Dos Efeitos dos Espirituosos, Momentâneos e Eternos. Esta obra caiu nas mãos de James Flower e, uma certa noite, compenetrou-se da sua obrigação de verificar algumas das suas teorias mais fantásticas. No decurso das pesquisas foi abandonado pelo espírito de educação: sem o menor motivo, atacou imprevistamente, com uma planta envasada, um guarda de Sua Majestade. Nem sequer deu conta de que se tratava da primeira ideia espontânea da sua vida. O caso foi abafado por um arcediago aparentado com sua mãe. Colocaram a pequena fortuna de James Flower numa plantação de Barbados e para ali o expediram para o resto dos seus dias. Era ele, evidentemente, incompatível com a ortodoxia e os pentâmetros.

Envelhecera na ilha, com o coração cheio de desgostos por não ter podido realizar o seu mais caro desejo. A sua biblioteca era a melhor que se podia encontrar nas índias e, do ponto de vista de conhecimentos, ninguém o igualava em toda a região. Mas não possuía qualquer visão de conjunto. Aprendera sem absorver, lembrava-se sem assimilar. O seu espírito era um lamentável caos de factos e de teorias sem qualquer laço entre eles. No seu cérebro, tal como nas suas estantes, os Comentários de César estavam lado a lado com Demócrito e um tratado acerca da geração espontânea. James Flower, que gostaria de ter sido um criador, tornou-se num homem suave e bom, perfeitamente incapaz, com um espírito estéril. Já bastante tarde, chegou a tomar as convicções por ideias. Se um homem formulava uma crença em termos suficientemente vigorosos, aterrorizava o plantador, que dizia consigo: «Eis aqui um desses seres dotados pelo Senhor, que são os detentores deste fogo do qual não possuo a mínima parcela.»

Havia muito poucos brancos na grande plantação, e aqueles que lá trabalhavam eram pobres diabos, taciturnos e vestidos de farrapos, que expiavam qualquer delito esquecido contra a Coroa. No seu corpo emboscava-se a febre, semelhante a um dorminhoco que acorda resmungando, e depois volta a adormecer, com as pálpebras semicerradas. Amassavam a gleba com as mãos e, à medida que os anos de servidão transcorriam lentamente, os seus olhos perdiam qualquer fulgor, o dorso curvava-se, uma estupidez lassa e taciturna tecia-lhes no cérebro teias de aranha que os paralisavam. A sua língua era um calão bastardo de Londres, onde se misturavam alguns vocábulos do dialecto dos negros da Guiné e algumas expressões das Caraíbas. Quando esses homens recuperavam a liberdade, erravam sem objectivo durante algum tempo e olhavam com um sentimento deinveja os seus camaradas que partiam para o trabalho. Bem depressa voltavam a assinar novos contratos, ou então lançavam-se na pilhagem, como tigres escapados da jaula.

O capataz era um deles; agora que estava encarregado de dirigir os seus antigos companheiros de miséria, infligia-lhes o sofrimento em memória daquele que ele próprio tinha suportado.

James Flower levou Henry para a margem e ficou um pouco comovido pelo desalento mudo do rapaz. Nunca, antes, pudera considerar os seus escravos como homens. Na sua maneira de os tratar, tinha-se contentado em seguir cegamente os conselhos de Catão, o Velho. Ora, como era bem evidente, este adolescente era um ser humano que talvez pertencesse a uma nobre família. Proclamara que não podia servir. Os outros, quando desembarcavam em terra, conheciam o seu destino e evidenciavam um rancor moroso que desaparecia à força de chicotadas administradas ao delinquente posto numa cruz.

- Não te entristeças assim, meu rapaz - disse o plantador. - És muito novo para as ilhas, mas dentro de alguns anos serás um homem vigoroso.

- Senhor, eu tinha a intenção de me fazer flibusteiro respondeu Henry com voz taciturna. - Optei pelo mar com o objectivo de realizar uma fortuna e adquirir um grande renome. Como conseguirei isso se sou apenas um escravo que se arrasta pelas plantações?

- Não foi essa a tarefa que decidi destinar-te. Sinto necessidade de ter um rapaz em minha casa, agora que estou a ficar velho, um companheiro com quem possa falar e que me ouça: foi para isso que te comprei. Os outros plantadores visitam-me e bebem o meu vinho; mas, depois de me deixarem, parece-me que fazem troça de mim e dos meus livros bem amados. Tu, assim o espero, sentar-te-ás a meu lado, à noite, e discutiremos assuntos graves. Teu pai era um homem de qualidade, seria capaz de o jurar; isso vê-se no teu aspecto. Por hoje - prosseguiu ele com uma voz suave temos um enforcamento e tenho de me apressar para chegar a tempo. Não sei o que fez esse rapaz, contudo o seu crime merece certamente a forca. E, como diz... bem: esqueci-me do nome, mas li isto em qualquer parte: «O que dá valor à pena capital, é o exemplo que propõe aqueles que nela poderiam incorrer.» Na verdade, julgo que é salutar enforcar um homem de vez em quando. Isso incita os outros a portarem-se bem. O meu capataz encarrega-se dessa tarefa repugnante e, vê tu, parece-me que gosta disso.

Conduziu o companheiro para um enxequetado de choças de taipa com telhado de colmo, construídas muito juntas, e dando para uma espécie de praçazinha no centro da qual se levantava, como um horrível manipanço, uma alta forca de madeira escura esfregada com óleo, que luzia fracamente ao sol. Estava colocada de tal modo que nenhum escravo podia olhar para fora da sua toca sem ver o horroroso objecto que seria talvez o instrumento do seu fim. Era obra do capataz, que tinha oleado a madeira com as suas próprias mãos. Tinha o hábito de contemplar o seu patíbulo, como um artista contempla a sua última produção.

O plantador e o seu companheiro sentaram-se. O rebanho dos escravos foi empurrado para a praça. Henry viu um corpo de ébano torcer-se na ponta de uma corda, enquanto os negros, sentados no chão, se balançavam gemendo, e os- brancos rangiam os dentes e praguejavam para não gritarem. Os caraíbas, apoiados nos calcanhares, contemplavam a cena sem manifestar nem interesse nem receio, como se estivessem a vigiar o cozimento do seu repasto.

Quando tudo acabou, quando a vítima ficou inerte, as vértebras cervicais quebradas, James Flower virou os olhos para Henry e deu-se conta de que ele chorava nervosamente.

- Bem sei que isso parece muito duro à primeira vez -- observou ele com suavidade. - Eu, por exemplo, não dormi durante várias noites. Mas, daqui a algum tempo, depois de teres visto cinco, dez, doze, acabarás do mesmo modo, acabarás por não sentir coisa alguma; isso terá sobre ti o mesmo efeito que ver um frango, a quem torceram o pescoço, bater as asas.

Depois, como Henry continuasse a soluçar em silêncio, prosseguiu:

- Nas obras de Holmaron acerca das práticas da Inquisição, há um estudo acerca do sentimento que experimentas, e que te irei mostrar. «A primeira vez que se contempla o sofrimento humano», escreve ele, «parece-nos monstruoso porque, até então, só conhecemos, regra geral, seres tranquilos e agindo à sua vontade. Contudo, depois de um certo número de experiências, a visão das torturas torna-se coisa normal, e homens normais chegam a tirar delas um prazer maior ou menor.» Lembra-me para te mostrar essa passagem um dia destes; todavia, pela parte que me toca, devo dizer que nunca consegui apreciar tal coisa.

Todas as noites, no decurso dos meses que se seguiram, sentados nas negras profundezas da varanda, James Flower expôs abundantemente ao jovem Henry Morgan os múltiplos factos que conhecia. O rapaz escutava com avidez, porque, muitas vezes, o plantador falava da maneira como tinham decorrido as guerras de antanho.

- E achamos tudo isso nos livros que cobrem as paredes, senhor? - perguntou ele uma morte.

- Tudo isso, meu rapaz, e mil outras coisas mais. Depois de uma pausa, Henry balbuciou:

- Consentiria em ensinar-me as línguas em que estão redigidos esses livros, senhor? Devem conter algumas histórias que eu próprio gostaria de ler.

James Flower ficou encantado. Ensinando a este rapaz aquilo que sabia, tinha conseguido alcançar um estado de satisfação quase total. O seu coração transbordava de ternura em relação ao jovem escravo.

- Vou ensinar-te o latim e o grego! - exclamou ele com entusiasmo. - E até o hebreu, se assim o quiseres.

- Quero ler as obras que tratam da guerra e da navegação. Quero estudar a fundo essas guerras de outrora de que me tem falado, porque, um dia, hei-de ser flibusteiro e tomarei uma cidade espanhola.

Em consequência desta conversa, no decurso dos meses seguintes, aprendeu com grande rapidez o latim e o grego para saciar a sua sede de leitura. James Flower mergulhou mais do que nunca nos seus volumes, de tal modo o seu novo papel de professor era caro ao seu coração.

Algumas semanas depois da chegada de Henry, dizia-lhe:

- Meu rapaz, queres pedir ao capataz que leve o melaço para a margem? O barco que o deve comprar chegou agora mesmo.

Um pouco mais tarde, dizia-lhe:

- Henry, tenho alguma coisa para fazer hoje?

- Por Deus, senhor, um navio dos Países Baixos entrou no porto, e temos grande necessidade de foicinhas. Os caraíbas roubaram quase todas as que possuíamos para fazerem sabres. Vamos ter aborrecimentos com eles um dia destes.

- Bem, trata das foicinhas, Henry. Fico horrorizado com a ideia de ter de me deslocar com o sol a pino. E cuida igualmente de que esses índios sejam castigados pelos seus roubos.

Pouco a pouco, Henry ficava com a direcção da plantação nas mãos.

Uma noite, depois de um ano de estada, conquistou inteiramente o respeito de James Flower, um respeito misturado de inveja, sem perder, todavia, a menor parcela de afeição do plantador.

--Já alguma vez reflectiu nas guerras da Antiguidade?

- perguntou Henry. - Acabei de ler as proezas de Alexandre, de Xenofonte e de César. Ora ocorreu-me que qualquer estratégia vitoriosa não passa de uma pura trapaça aureolada por um prestígio postiço. Sem dúvida que a força das armas é necessária; mas o homem que ganha a guerra é o que esconde as cartas, como um batoteiro, e desconcerta o inimigo com a sua traição. Já alguma vez tinha pensado nisto, senhor? Quem quer que seja capaz de adivinhar as intenções dos generais, como se podem adivinhar as dos escravos, é capaz de ganhar batalhas. Bastar-lhe-á evitar fazer aquilo que se espera dele. Não será este o segredo total da estratégia, senhor?

- Nunca tinha pensado nisso - respondeu James Flower, com uma ponta de ciúme. E experimentou em relação a Henry o receio admirativo que lhe inspiravam os criadores de ideias. Apesar de tudo, consolou-se dizendo para consigo que, no fim de contas, fora ele que suscitara essas mesmas ideias com as suas lições.


Dois anos depois da chegada de Henry, o capataz viu-se livre da sua escravidão por ter expirado o contrato. A liberdade foi uma droga demasiado forte para o seu espírito habituado a um domínio exterior. A razão perturbou-se; invadiu-o um furor cego; pôs-se a correr pelos caminhos urrando e agredindo quantas pessoas encontrava. Quando a noite desceu, a sua loucura tornou-se frenética. Rebolou-se pelo chão debaixo da sua forca, com uma escuma sanguinolenta nos lábios, enquanto os escravos contemplavam a cena, aterrados. Levantou-se finalmente, com os cabelos em desalinho, os olhos chamejantes. Precipitou-se para os campos, com um archote na mão, e Henry Morgan matou-o com um tiro de espingarda no momento em que entrava nas filas das canas-de-açúcar.

- Quem conhece o ofício melhor do que eu, senhor, e em quem poderia ter mais confiança? - perguntou o rapaz ao plantador. - Lendo os seus livros e observando o que se passava em torno de mim, aprendi coisas que me permitem decuplicar a produção.

Foi assim que se tornou mais do que um simples capataz.

Tirou a forca da praçazinha onde estava e, depois, mandou executar os culpados de noite, em grande segredo. Não, de modo algum, por bondade do coração. Mas chegara à conclusão de que uma coisa desconhecida nunca se pode tornar normal; os castigos invisíveis seriam muito mais de recear do que aqueles que eram administrados em pleno dia.

Henry aprendera muito nas suas relações com os escravos. Sabia que nunca devia deixar perceber aquilo que pensava, pois, se assim não fosse, exerceriam sobre ele uma espécie de influência de que dificilmente se poderia libertar.

Era-lhe necessário mostrar-se frio, distante, insultante, em relação aos seus inferiores. Com algumas poucas excepções, eles viam nas suas injúrias uma prova manifesta da sua superioridade. Os outros acreditavam sempre que era o que parecia ser, e ele poderia ser quase tudo.

Se um homem aparecia em público luxuosamente vestido, tinham-no como rico e poderoso, e tratavam-no como tal. Se dizia certas coisas com um acento de verdade firme, toda a gente se comportava como se ele tivesse sido sincero. Finalmente (lição mais particularmente importante), se manifestasse uma honestidade rigorosa em nove transacções sucessivas, então na décima vez podia roubar tudo o que quisesse, pois ninguém seria capaz de suspeitar dele: bastava-lhe ter atraído vigorosamente a atenção de outrem para as nove vezes precedentes.

Um montão de peças de ouro num cofre metido debaixo da cama bem depressa provou magistralmente a validade desta última lição. Seguiu, aliás, todos os seus princípios. Não permitiu nunca a ninguém qualquer domínio sobre ele, nem deixou adivinhar os meios de que dispunha, os motivos, as suas possibilidades ou as suas fraquezas. A maior parte dos homens, não acreditando em si próprios, não poderiam acreditar em alguém que se mostrasse igual a eles.

Criou estas regras pouco a pouco, no decurso da sua existência, até que se tornou o senhor absoluto da plantação. Então, quando James Flower se abandonou completamente aos seus conselhos, os Caraíbas, os negros e os brancos detestaram-no e recearam-no, sem poder influenciar a sua maneira de ser, sem ter sobre ele o menor domínio que lhes permitisse fazerem-lhe mal.


Relativamente ao futuro, James Flower sentia-se deliciosamente feliz, pois Henry o tinha libertado do peso insuportável da plantação. Já não tinha necessidade de se preocupar com a cultura das suas terras, e mergulhava nos livros inteiramente à sua vontade. Agora, que ia envelhecendo, acontecia-lhe ler os mesmos volumes várias vezes sem se dar conta disso; irritava-se muito amiúde contra aquele que se permitia rabiscar notas nas margens e dobrar as folhas.

Assim Henry Morgan adquiriu um grande domínio e um grande poder. Sob a sua direcção, as culturas prosperaram; obteve um rendimento quatro vezes maior. Os escravos trabalhavam febrilmente debaixo dos chicotes que os acompanhavam aos campos. Enquanto o antigo capataz sentia alegria em punir, Henry Morgan não era cruel. Era impiedoso. Contentava-se em acelerar as engrenagens da sua fábrica. Da mesma forma que não poderia pensar em manifestar a sua bondade para com um volante ou uma roda dentada, não pensava em acariciar os seus escravos.

Henry forçava a terra a produzir prata, para aumentar o seu pé-de-meia no cofre metido debaixo da cama: algumas libras descontadas na venda da cana-de-açúcar, uma bagatela tirada da compra do gado. Não era de modo algum um roubo, mas uma espécie de comissão, recompensa do seu triunfo. O pequeno monte de peças de ouro continuou a crescer, na previsão do dia em que Henry Morgan se tornaria flibusteiro e se apoderaria de uma cidade espanhola.

No termo do seu terceiro ano de servidão nos Barbados, Henry, se bem que não tivesse ainda dezoito anos, era um rapagão cheio de força e de saúde. Os seus cabelos negros e ondulados pareciam mais abundantes; os seus lábios tinham-se tornado mais firmes do que nunca. Quando lançava os olhos à sua volta, dava-se conta de que deveria estar satisfeito, mas eles tinham conservado o hábito de olhar para além do espaço que o cercava e do tempo presente. Em vigília como nos sonhos, sentia obscuramente o desejo tirânico de regressar ao mar e aos barcos. O mar era a sua mãe e a sua amante, e também a divindade que o encontraria sempre pronto a servi-la. O seu próprio nome, o nome de Morgan, não significava, em gaélico, aquele que vive perto do mar? Sim, os barcos dirigiam-lhe um apelo insistente. O seu coração vogava ao longe, em cada navio que passava.

Na casa grande de James Flower estudara tudo o que continham os livros acerca da arte de navegar, e tinha efectuado algumas curtas viagens a bordo da pequena chalupa da plantação. Mas considerava esses cruzeiros como simples brincadeiras de crianças, não seria assim que se poderia tornar um bom marinheiro. Ora, era necessário aprender a sê-lo o mais depressa possível, pois, num futuro muito próximo, devia correr os mares na qualidade de flibusteiro e apoderar-se de uma cidade espanhola.

Assim, uma certa noite...

- Queria falar-lhe de um projecto, senhor.

James Flower levantou os olhos do livro e encostou a nuca ao espaldar do cadeirão.


- Se tivéssemos um barco para transportar os nossos produtos para a Jamaica, poderíamos fazer uma grande economia no frete. O preço da compra seria amortizado pelos lucros. Também podíamos transportar os produtos das outras plantações a uma tarifa mais baixa do que a exigida pelos navios mercantes.

--Mas onde iríamos descobrir esse barco, rapaz?

- Neste momento está um no porto; é um dois-mastros, e...

- Está bem! Compra-o e trata de tudo. Estás muito mais ao corrente desse género de coisas do que eu. A propósito, descobri aqui uma conjectura muito interessante quanto aos habitantes da Lua. Diz o meu autor: «Pode acontecer que sejam completamente diferentes dos humanos. O seu pescoço poderá ser...»

- Vai-lhe custar setecentas libras, senhor.

- O que é que me vai custar setecentas libras?... Parece que não me ouves com tanta atenção como outrora, Henry. Dá pois atenção a este parágrafo, que é ao mesmo tempo instrutivo e interessante.

Henry comprou o navio; depois de o ter raspado bem e voltado a pintar, baptizou-o de Elizabeth, e pôs-lhe a vela. Possuía o sentimento muito vivo da personalidade da sua embarcação. Foi-lhe naturalmente necessário aprender as regras da navegação; mas, muito antes de as saber, já um pouco da alma do navio se transferira para ele, e uma parte da sua alma transitou para o barco. Era um amor fiel, uma compreensão constante do mar. Pelo menor frémito da ponte, pelo menor movimento da roda do leme, sabia instintivamente até que ponto poderia navegar mais de perto. Assim, um homem cuja cabeça repousa no regaço da amante, denuncia na sua respiração o fluxo e o refluxo das suas paixões.

Poderia ter fugido de Barbados e lançar-se a sulcar os mares a bordo do Elizabeth, mas assim não sucedeu. O seu pé-de-meia não era ainda bastante importante, achava-se ainda muito novo, e, para mais, sentia em relação a James Flower uma estranha afeição que não ousava confessar.

Durante um certo tempo, Henry esteve satisfeito com a sua sorte. O desejo que sentem todos os homens em escalas diferentes - quer se trate de cartas, de vinho, ou do corpo da mulher - estava saciado, em Flenry Morgan, pelos mergulhos da proa, a inclinação da ponte, o batalar do velame. O vento que soprava de um céu escuro e ameaçador era para ele uma bebida embriagadora, um desafio, uma carícia apaixonada. Conduziu à Jamaica o produto das suas colheitas, e visitou diversas ilhas. O rendimento da plantação aumentou, o cofre de Henry tornou-se mais pesado.

Mas, decorridos alguns meses, um desejo surdo o torturou de novo, o mesmo desejo que conhecera ainda muito criança despertava e mais violento do que nunca. O Elizabeth satisfizera-lhe um desejo para dar origem a outro. Julgou-se atraído pela presa: os belos estofos de seda, os belos objectos de ouro, a admiração dos homens. E sentiu-se empurrado, mais do que nunca, para a sua conquista.

Foi ter com as mulheres de pele negra ou parda nas casas dos escravos, para tentar atenuar a sua fome, na impossibilidade de a dominar; elas acolheram-no passivamente, desejando agradar-lhe antes de mais, esperando que os seus favores lhes valessem um suplemento de alimentação ou uma bilha de rum a título de presente. De cada vez regressou enojado e vagamente apiedado desta miserável prostituição.

Um dia, no cais dos escravos de Port Royal, encontrou a jovem Paulette e levou-a para a plantação, para servir em casa. Era flexível, mau grado a rotundidade dos seus membros e sua voluptuosa gordura. Ao mesmo tempo orgulhosa e meiga, tinha nas veias sangue espanhol, caraíbano, negro e francês. Esta estranha mistura dera-lhe como herança uma catadupa de cabelos pretos, olhos de águia marinha dispostos obliquamente, à chinesa, e uma pele admirável completamente dourada. Possuía uma beleza sensual e apaixonada; os membros luziam-lhe como chamas de ouro; os seus lábios podiam torcer-se como frágeis serpentes ou desabrochar como uma flor rubra. Não passava de uma criança, mas tinha uma grande experiência da vida. Cristã, adorava os espíritos das florestas e salmodiava em voz baixa longas melopeias em honra da Grande Serpente.

Henry considerava-a como uma delicada e perfeita máquina para dar o prazer. Era parecida com essas mulheres de pele fresca que vêm até nós nas asas do sono, corpos sem alma que povoam os nossos sonhos luxuriosos. Mandou-lhe construir uma casinha com paredes revestidas de plantas trepadeiras, com telhado de folhas de bananeira, e ali fez o jogo do amor.

A princípio Paulette estava-lhe apenas agradecida por lhe ter proporcionado uma vida fácil, preguiçosa, confortável, à custa de um trabalho insignificante; mas, com o andar do tempo, acabou por se apaixonar loucamente pelo rapaz. Espiava-lhe o rosto, como um cão inteligente pronto a precipitar-se para a frente ladriscando de prazer ou então a afundar-se na poeira a uma palavra do dono.

Quando Henry estava sério ou preocupado, ela assustava-se. Ia então ajoelhar-se diante da estatueta de ébano de um deus da selva, e pedia à Virgem Santíssima que lhe conservasse o coração do amante. Às vezes punha fora de casa pequenas tigelas de leite em oferenda ao Jun-Jo-Bee alado que torna os homens fiéis. Esforçava-se por conservar Henry junto dela graças a todos os artifícios ternos ou apaixonados legados pelas diversas raças que representava. Do seu corpo, dos seus cabelos, emanava um poderoso perfume oriental, pois se esfregava com sândalo e mirto. Se o seu amo estava de humor sombrio, ela perguntava-lhe com voz meiga:

-Amas a tua Paulette? Tens a certeza de que a amas?

- Naturalmente que a amo. Como seria possível ver a adorável Paulettezinha e tocar-lhe nos lábios, sem a adorar?

E o seu olhar dirigia-se para o mar que estava abaixo dele, perscrutando avidamente a curva da costa.

- Mas tens a certeza absoluta de amar Paulette? Olha, beija os seios da tua Paulettezinha querida...

- Sim, estou absolutamente certo. Olha, beijo-te os seios: o feitiço está feito... E agora deixa-te estar quieta. Ouve as rãs: que barulhão! Gostaria de saber o que foi que assustou o velho macaco barbudo que trepou para aquela árvore; talvez algum escravo que está a roubar frutos.

E os seus olhos regressavam ao mar.

À medida que o ano transcorria, os receios de Paulette aumentaram paralelamente ao seu amor. Ela sabia que, quando Henry a abandonasse, sofreria bem mais do que a solidão. Talvez se visse constrangida a ajoelhar-se nos campos de canas-de-açúcar e a cavar a terra com as mãos como as outras mulheres. Depois, um dia, levá-la-iam para casa de um grande negro de músculos poderosos que lhe maltrataria o corpo com um abraço bestial; depressa estaria prenhe de uma criança negra, uma criança vigorosa capaz de sofrer debaixo do sol quando atingisse essa idade. Todos os escravos da plantação tinham o mesmo destino. Esta ideia fazia tremer a mulher experimentada que ela era e que sabia de certeza, em virtude da sua maturidade espiritual, que Henry não deixaria de a abandonar um dia.

Por outra via, o lado pueril da sua mentalidade mostrava-lhe uma saída tranquilizadora. Se Henry acedesse em casar com ela: (tal parecia impossível, mas já se tinham visto coisas mais extraordinárias), nesse caso já não haveria lugar para mais receios. Porque esses seres estranhos, as mulheres legítimas, estavam, de forma bem curiosa, sem dúvida pela vontade de Deus, ao abrigo de tudo o que é feio ou desagradável. Ela vira-as amiudadamente em Port Royal, cercadas por homens que as protegiam de qualquer contacto sórdido, respirando através dos lenços perfumados para atenuar os odores imundos, trazendo às vezes bolazinhas de algodão metidas nos ouvidos para não ouvir as pragas dos transeuntes. E Paulette sabia (pelo menos era assim que lho tinham dito), que, em sua casa, elas passavam o tempo molemente deitadas em camas enormes, dando ordens aos seus escravos com uma voz lânguida.

Era a esta felicidade que ousava aspirar. Ora ela compreendia que o seu corpo, só, não lha permitiria alcançar. Muitas vezes o seu suave poder fracassava junto de Henry. Se ela o saciava de amor, ele abstinha-se de a visitar durante certo tempo; se ela se lhe recusava para atiçar a sua paixão, ou se ia embora com um aspecto taciturno ou então rebentava a rir e atirava-a brutalmente para a cama de folhas de palmeira. Ela devia tratar de procurar uma força irresistível, um meio poderoso que obrigasse o rapaz a casar com ela.

Quando Henry se dirigia a Port Royal, para lá vender o cacau, ela perdia uma parte da razão. Conhecia o seu amor pelo barco, a sua paixão pelo mar: sentia ciúmes furiosos de qualquer deles. No seu espírito, ela via-o acariciar o leme com os dedos ternos e fortes de um amante: sentia-se capaz de arranhar e arrancar essa roda que lhe seduzia o seu mais caro bem.

Era necessário a todo o custo forçar Henry a amar Paulette mais do que aos barcos, mais do que ao mar, mais do que a qualquer outra coisa no mundo, para que ele acabasse por casar com ela. Então poderia caminhar de cabeça erguida entre as casas, e cuspir em cima dos escravos; então ela não teria de recear vir um dia a cavar a terra com os seus dedos e a engendrar filhos pretos; então vestir-se-ia com tecidos vermelhos e traria uma corrente de prata em volta do pescoço. Talvez até, uma vez por outra, conseguisse que lhe levassem o pequeno-almoço à cama, fingindo-se doente. Os dedos grandes dos pés dobraram-se-lhe de prazer com esta ideia, e formulava já no seu espírito os insultos com que esmagaria uma certa negralhona com língua de víbora, quando fosse finalmente uma esposa legítima. Essa miserável tinha-lhe chamado puta na presença de vários escravos. Paulette tinha-lhe arrancado alguns punhados de cabelos antes que tivessem conseguido dominá-la mantendo-lhe os braços colados ao corpo. Esse farrapo preto havia de ver o que isso lhe custaria um dia: havia de ser chicoteado na cruz.

No decurso de uma das ausências de Henry, um navio mercante entrou no porto. Paulette foi até à praia para ver as mercadorias que ele trazia e ver os marinheiros de rosto tisnado que desciam para terra. Um deles, um grande irlandês de ombros largos, bêbedo de rum, perseguiu-a e apertou-a contra um monte de caixas. Ela debateu-se vigorosamente para lhe escapar, mas ele manteve-a presa com o corpo mal seguro nas pernas oscilantes.

- Apanhei uma fada para me consertar os sapatos! exclamou ele, rindo. - Tenho a certeza de que é uma fada.

Depois, vendo esse corpo delicado, esse rosto admirável, prosseguiu com voz terna:

- És uma fada adorável: os meus olhos nunca contemplaram nada mais belo. Como é que uma criatura tão flexível como tu se havia de preocupar com a minha carcaça podre? Pergunto a mim próprio se... Se consentirias em ir comigo para casarmos, terias tudo o que um marinheiro te pode dar.

-Não! Nãol - protestou ela, deslizando por debaixo do braço e escapando-se.

O marinheiro ficou só na praia, olhando para a frente com um ar estúpido.

- Foi um sonho - murmurou. - Não passou de um sonho enviado pelos espíritos. Semelhante coisa não poderia acontecer a um pobre marinheiro. Não, para os marinheiros há apenas as bonitas megeras de olhos duros que dizem: «Vamos, mostra primeiro o teu dinheiro, meu querido.»

Paulette descobrira o meio de levar Henry a casar com ela. Ia agir de modo que o dominasse pela embriaguez; depois de o ter submetido à armadilha do vinho, chamaria em voz baixa um padre que previamente tinha colocado nas redondezas. Já se tinham visto coisas mais estranhas!

Na noite em que ele regressou, ela dispôs a sua rede: um grande jarro cheio de vinho do Peru, e um padre, aliciado com uma moeda de ouro roubada, emboscado atrás de um tronco de árvore. Henry sentia-se muito cansado. Partira com uma tripulação reduzida, e fora obrigado a tomar parte na manobra do barco. A casinha pareceu-lhe uma angra repousante. A lua cheia, muito branca, polvilhava de prata o mar que vinha morrer na areia, e juncava o solo de fragmentos de luz violácea. Uma brisa leve exalada pela floresta cantava docemente nas palmas das palmeiras.

Paulette encheu um copo de vinho e estendeu-lho:

- Gostas da Paulette?

- Sim, tão verdade como o existir que a amo, a adoro! Um copo mais, e depois, com insistência:

- Tens a certeza de que amas a Paulette?

- Paulette é uma estrelazinha que trago ao peito pendurada numa corrente de prata.

Outro copo.

Regressei cheio do desejo de a voltar a encontrar; a sua presença nunca me abandonou no decurso da viagem.

Os seus braços fecharam-se sobre o delicado busto dourado. Mas, ao quinto copo, deixou a jovem mulher e cerrou os punhos, enquanto o seu rosto ganhava uma expressão taciturna, fria e distante.

- Oh! Tens a certeza de que amas a Paulette? - exclamou ela num tom cheio de temor.

- Vou-te falar de um tempo já distante - começou ele com voz rouca - em que eu era um rapazinho, mas já com a idade bastante para poder amar. Conhecia então uma rapariga chamada Elizabeth, cujo pai era um rico senhor. Ah! Ela era tão adorável como a noite que nos rodeia, de uma beleza tão serena como esta delicada palmeira banhada pelo luar. Amava-a com esse amor que nenhum homem poderia dedicar uma segunda vez. Caminhávamos de mãos dadas. Como me lembro dos magníficos projectos que arquitectávamos, sentados na encosta da colina, de noite! Devíamos viver num vasto solar, cercados de crianças encantadoras. Nunca poderás vir a conhecer um amor parecido com este, Paulette!

«Ah! Deus meu! A nossa felicidade não durou muito. Nada que é bom jamais dura muito tempo. Os deuses ciumentos matam a felicidade dos homens. Um bando de piratas que pilhava o país raptou-me para ser vendido como escravo nas índias. A perda de Elizabeth encheu-me o coração de amargura, uma amargura que os anos não me permitirão esquecer...»

Começou a chorar silenciosamente. Paulette, espantada com a mudança que tinha sobrevindo nele, acariciou os cabelos e os olhos do seu amante, até que a sua respiração se acalmou. Depois ela recomeçou, com uma paciência quase sem esperança, tal um mestre-escola a interrogar uma criança teimosa:

- Mas... será que amas a tua Paulette?

Ele levantou-se, de um salto, e lançou-lhe um olhar ameaçador.

- A ti? Amar-te a ti? Vamos, tu não passas de um animalzinho! Um lindo animalzinho de pele dourada, sem dúvida, com um revestimento de carne e mais nada. Poderemos adorar um deus simplesmente porque é muito alto, ou prezar um país cuja única qualidade é a extensão, ou amar uma mulher que só é carne? Ah! Minha pobre Paulette! Tu não tens alma! Elizabeth tinha uma alma completamente branca. Amo-te, é certo... pelo menos amo em ti a única coisa que é possível amar: o teu corpo. Mas Elizabeth... amava Elizabeth com toda a minha alma.

- O que vem a ser essa alma? - indagou Paulette com ar intrigado. - Como poderei conseguir uma, no caso de a não possuir ainda? E onde está a tua alma, que nunca pude vê-la ou escutá-la? E se não pudemos ver, nem ouvir, nem tocar nas almas, como sabes que a tua Elizabeth tinha uma?

- Silêncio! - gritou ele num tom furioso. - Silêncio! Senão esmago-te a boca e mando-te chicotear na cruz. Falas de coisas incompreensíveis para ti. Que poderás saber de um amor que ultrapassa os teus artifícios carnais?

O Natal chegou, o quarto Natal de Henry nos Trópicos. James Flower entregou-lhe um pequeno pacote atado com uma fita de cor.

- Eis o meu presente - disse ele; e fulguraram-lhe os olhos, enquanto o rapaz desfazia o embrulho. Tratava-se de uma caixinha em madeira de teca, forrada de seda carmesim, que continha o seu contrato de trabalho feito em pedacinhos. Henry pegou nos pedaços de papel, examinou-os com ar espantado, e depois, rebentando num riso pouco firme, tapou a cara com as mãos.

- Agora já não és meu servidor, mas sim meu filho prosseguiu o plantador. - És o meu filho em quem inculquei estranhos conhecimentos, ao qual tenho mil outras coisas para ensinar. Viveremos aqui até à minha morte e passaremos as noites a discorrer sobre inúmeros temas.

Henry levantou a cabeça.

- Não posso ficar aqui de maneira nenhuma, senhor. Tenho de ir correr os mares.

- Como é que não podes ficar aqui? Mas, vejamos, meu filho, já estabeleci o plano da nossa existência. Apesar de tudo, não irias deixar-me só aqui...

- Senhor, tenho de me fazer flibusteiro. É o único objectivo que me persegue desde a infância. Tenho de partir.

- Henry, meu querido Henry, dou-te metade da minha plantação enquanto for vivo e a totalidade depois da minha morte, se consentires em ficar junto de mim.

- É impossível. Tenho de partir para criar um nome. O meu destino não é viver a vida de um plantador. Tenho na cabeça projectos que se tornaram perfeitos à força de reflectir. E não permitirei que ninguém se oponha à sua realização.

James Flower estirou-se no seu cadeirão.

- Vou ficar muito só aqui, sem ti. Não sei bem o que virá a acontecer depois da tua partida.

Henry reportou-se à época longínqua em que Robert tinha pronunciado as mesmas palavras olhando para o lume com um ar sorridente: «Vou-me sentir muito só aqui, sem ti.» E perguntou-se se sua mãe continuaria sempre sentada na sua cadeira, fria, rígida e muda. Devia ter, certamente, vencido o desgosto. As pessoas acabavam sempre por vencer aquilo que mais receavam. Depois pensou na Paulette, que choraria de terror na sua casa quando ele lhe comunicasse a notícia e disse:

- Há na casa uma criada chamada Paulette, a quem dei a minha protecção. Se está satisfeito com os meus serviços, senhor, pode prometer-me uma coisa? Conserve-a sempre junto de si; nunca permita que a mandem para os campos, nem que a chicoteiem, nem que a juntem com um dos escravos negros. É capaz de fazer isso por mim, senhor?

- Mas decerto, meu filho... Mas como me senti feliz por te ter aqui, Henry, e ouvir a tua voz no decurso das nossas reuniões! Que irei agora fazer à noite? Não há ninguém que possa substituir-te, pois tu és realmente meu filho. Vou ficar muito só aqui, sem ti, meu rapaz.

- O esforço que despendi em servi-lo foi-me pago ao cêntuplo pelos conhecimentos que me inculcou durante essas mesmas reuniões. Vai-me fazer falta, senhor, mais do que eu poderia dizê-lo. Mas procure compreender-me: tenho de me fazer flibusteiro, e de me apoderar de uma cidade espanhola. Tenho a certeza de que é possível triunfar estabelecendo um plano maduramente reflectido, pesando as possibilidades e os homens de que se dispõe. Estudei as guerras da Antiguidade; quero fazer um nome e uma fortuna. Logo que tenha conquistado a admiração dos homens, talvez regresse para junto de si, senhor, para recomeçarmos as nossas conversas. Não se esquecerá das minhas recomendações no que se refere à Paulette?

- Quem é a Paulette?
- Mas, senhor, é a criada de que lhe falei. Não consinta que a juntem com um negro, pois tinha afeição por ela.

- Ah, sim! Já me lembro! E para onde vais tu, Henry?

- Para a Jamaica. Meu tio, Sir Edward, é há muito tempo o vice-governador de Port-Royal. Mas nunca o vi até agora porque... era escravo, e ele é um fidalgo. Tenho uma carta para ele, que meu pai me deu. Talvez me ajude a encontrar um navio.

- Também te quero ajudar a comprar esse navio. Quero recompensar os teus bons serviços...

Henry sentiu o coração invadido pela vergonha, pois no cofre metido debaixo da cama empilhavam-se mais de mil libras em moedas de ouro.

- Não, senhor, não. As suas lições e a solicitude paternal que me dispensou constituem uma recompensa maior do que todos os tesouros do mundo.

Henry compreendeu que acabara por amar aquele homenzinho de rosto enrugado, de expressão melancólica.

Negros de músculos poderosos, de pele luzidia, faziam voar a canoa sobre as ondas em direcção a um barco ancorado, que tinha por missão dos Estados Gerais transportar para as ilhas escravos negros da Guiné. James Flower estava sentado à retaguarda, muito vermelho e muito silencioso. Contudo, quando a embarcação se aproximou do navio, levantou a cabeça e disse a Henry num tom suplicante:

- Há na minha biblioteca livros que nunca leste...

- Um dia voltarei para os ler.

- Tenho no espírito muitas coisas que nunca te contei...

- Quando tiver conquistado a admiração dos homens, virei vê-lo e então mas dirá.

---Juras-mo?

- Com certeza... pois bem, sim, juro-o. ;>,

- Quanto tempo te será necessário para realizar os teus projectos, Henry?

- Não sei ao certo: um ano, dez, vinte... tenho de adquirir um nome muito célebre - respondeu o rapaz subindo para o barco.

- Vou estar muito só à noite, meu filho.

- Eu também, senhor! Atenção! Vamos levantar a âncora! Adeus, senhor. Não se esqueça da Paulette.

- Paulette?... Paulette?... Ah, sim! Já me recordo.

Henry Morgan chegou à cidade inglesa de Port-Royal, e deixou as suas bagagens na praia para ir em busca de seu tio.

-É capaz de me dizer onde possa encontrar o vice-governador? - perguntou a um transeunte.

- O seu palácio é lá em baixo, jovem; talvez esteja lá...

O seu palácio... Esse tio que era bem de um fidalgo britânico ocupando um posto importante longe da sua pátria. Esta ênfase coincidia muito bem com a descrição que Robert Morgan tinha feito de seu irmão, cujas cartas eram datadas do «Palácio do Vice-Governador». Henry achou o tal «palácio», construção baixa com as paredes de argila caiadas, com um telhado coberto de telhas mal moldadas. Diante da porta estava um alatardeiro com um uniforme de cor vistosa, e mantinha rigidamente diante dele uma arma ineficaz, conservando um ar atormentado diante de um enxame de moscas ávidas. Barrou o caminho quando Henry se aproximou.

- Gostaria de me avistar com Sir Edward Morgan.

- E que tem o senhor a fazer junto de Sua Excelência?

- Por Deus, é meu tio, e desejo falar com ele.

O soldado franziu os sobrolhos com um ar de suspeita e apertou mais fortemente a madeira da arma. Então Henry lembrou-se das lições que aprendera na plantação. Talvez esse homem, apesar do seu uniforme escarlate, tivesse uma mentalidade de escravo.

- Sai do meu caminho, cão ordinário! - gritou ele.- Sai do meu caminho ou mando-te enforcar!

O soldado começou a tremer tanto que quase deixou cair a alabarda.

- Decerto, senhor; vou transmitir a sua mensagem, senhor.

Soprou num pequeno apito de prata e disse ao criado que apareceu pouco depois:

- Um jovem fidalgo que pede para ver Sua Excelência. Henry foi introduzido num pequeno compartimento ensombrado por espessas cortinas cinzentas com bordados de ouro. Nas paredes estavam pendurados três retratos de cores esmaecidas, emoldurados de preto: dois cavaleiros de chapéu emplumado, mantendo horizontalmente a espada, e uma bela dama de cabelos empoados, vestida de seda que lhe descobria os ombros e a garganta.

Atrás de uma porta guarnecida de cortinas ressoavam os lentos acordes de uma harpa. O criado recebeu a carta de Henry e deixou-o só.

Na verdade, sentia-se muito só. Compreendia que esta casa estava sujeita a uma etiqueta minuciosa e glacial. Mesmo os rostos pintados nas telas exprimiam um desdém cortês. Nos reposteiros da porta estavam bordadas as armas da Grã-Bretanha; num deles, o leão, no outro, o licórnio, sustentando cada um dos animais a metade de um escudo. Quando os reposteiros estavam corridos, o desenho formava uma unidade. Neste compartimento, Henry começou a recear o tio.

Mas o seu espírito esvaziou-se de todos os pensamentos quando Sir Edward apareceu: era seu pai, tal como dele se lembrava, e contudo o recém-vindo diferia totalmente do Velho Robert. Este nunca teria usado o bigode fino como um traço de carvão, e nenhum acontecimento lhe teria feito contrair os lábios, até os tornar tão delgados como o bigode. Talvez os dois irmãos se parecessem como duas gotas de água quando tinham nascido, mas cada um deles criou a sua própria boca.

Robert tinha dito a verdade: o vice-governador era o seu sósia, mas um sósia repleto de vaidade. Todavia, Sir Edward fazia pensar num destes actores que, vestidos para um papel ridículo, chegam a mostrar-se à sua personagem a uma luz normal e às outras sob uma luz absurda. O seu fato roxo, com cordões na gola e os seus punhos de renda, a sua longa e estreita espada numa bainha de seda cinzenta, as meias também cinzentas, os sapatos ainda da mesma cor enfeitados com um laço de fita, pareceram aos olhos de Henry o fim da elegância. Os seus próprios trajos, todavia de excelente qualidade, pareceram-lhe usados e sórdidos.

 

! Há alguns instantes já que Sir Edward olhava fixamente para o seu visitante, esperando que ele tomasse a palavra:

- Senhor - começou o rapaz -, sou Henry Morgan, o filho de Robert.

- Bem se vê; discerni, logo à primeira olhadela, uma ligeira parecença. Que posso fazer por si, faz o favor de me dizer?

- Bem, eu... não sei. Vim aqui para o visitar e para lhe dar a conhecer a minha existência.

- É na verdade muita gentileza, meu sobrinho, e estou-lhe muito grato por isso.

Era muito difícil aventurar-se mais para diante neste terreno de cortesia quase sarcástica.

- Recebeu notícias dos meus pais, que deixei há cinco longos anos?

- Cinco anos? E que fez então durante tanto tempo, diga-me, por favor?

- Trabalhava numa plantação, senhor. Mas que sabe dos meus pais?

- Sua mãe morreu.

- Minha mãe morreu - repetiu Henry em voz baixa. Perguntou então se tinha morrido pouco depois da sua partida. Não se sentia perturbado pela notícia; apesar de tudo, essas três palavras terríveis, definitivas, marcavam a desaparição de uma coisa que nunca mais existiria.

- Minha mãe morreu - murmurou pela segunda vez. E meu pai?

- Conforme o que me escreveu Squire Rhys, meu irmão porta-se de maneira muito estranha no seu roseiral. Arranca as flores abertas e atira-as para o ar como um homem atingido pelo assombro. O solo está coberto de pétalas; os vizinhos amontoam-se para se rirem dele. Robert nunca foi normal; nunca possuiu, na verdade, toda a sua razão, o que o impediu de obter um posto importante no reinado de Jaime Pessoalmente, sempre pensei que acabaria por se desonrar desta ou daquela maneira. Não respeitava ninguém que merecesse respeito. Que razão haverá para agir assim tão abertamente, expondo-se às troças do povo? Isso cobre de ridículo os seus... hum!... Aqueles que lhe são aparentados.

- Julga que ele é um verdadeiro louco, meu tio?

- Não sei - respondeu Sir Edward num tom levemente impacientado. - Contentei-me em citar a carta do Squire Rhys. O cargo que ocupo não me deixa tempo para me dedicar a conjecturas vãs, nem a sustentar conversas fúteis...

Os acordes da harpa deixaram de ressoar, os reposteiros da porta abriram-se, e uma rapariga frágil penetrou na câmara. Ainda que se não pudesse ver claramente na penumbra, via-se que não era bela, mas de uma lindeza altiva. Envergava um vestido de sóbria elegância, tinha o rosto pálido, os cabelos de um ouro delicado. Toda a sua personalidade parecia um eco frágil da de Sir Edward.

Estremeceu quando se deu conta de Henry, e ele deu-se conta de que lhe inspirava um certo receio, tal como sucedia com seu pai. Ela examinou o rapaz como se fosse uma iguaria repugnante que só as regras de uma polidez formal impediam de repelir.

- O seu primo Henry - disse Sir Edward com uma voz breve. - A minha filha Elizabeth, que é órfã de mãe.

Depois, com um certo nervosismo, como se acreditasse que nada de bom poderia resultar deste encontro, acrescentou:

- Não seria melhor que continuasses os teus exercícios, minha filha?

Ela esboçou um aspecto de reverência em relação a Henry, murmurando um «Bom dia, meu primo», com uma voz exactamente parecida com a de seu pai, a quem ela respondeu:

- Decerto, senhor, que vou tomar à minha harpa. A peça que estou a estudar neste momento é muito bonita, mas deveras difícil.

Com estas palavras desapareceu atrás do reposteiro, e os acordes lentos e precisos voltaram a ressoar.

Apesar do seu receio, Henry decidiu-se a expor o seu pedido:

- Há uma coisa de que lhe quero falar, senhor. Quero correr os mares como flibusteiro, numa grande embarcação armada de canhões. Depois de me ter apoderado de numerosas presas e de a minha reputação ter agrupado à minha volta multidões de homens, apossar-me-ei de uma cidade espanhola que me trará um rico despojo. Sou bom marinheiro, meu tio. Creio poder navegar em qualquer mar e sei que sou capaz de estabelecer um excelente plano de campanha. Li a história das guerras da Antiguidade. A minha intenção é dar aos flibusteiros um poder que até agora não conheceram. Sinto-me mesmo capaz de os reunir em exércitos e em esquadras. Quando chegar o tempo, serei o chefe da Livre Confraria da Costa, transformada pelos meus cuidados numa força armada com a qual será necessário contar.

«Meditei acerca deste ponto durante os meus longos anos de servidão. O meu coração está sedento de realizar estas proezas. Sonho adquirir um grande nome e uma imensa fortuna. Conheço a minha força. Tenho vinte anos, possuo mil libras, e já naveguei muito. O homem que me quiser ajudar, que se tornar meu sócio, hei-de enriquecê-lo. Estou absolutamente certo de alcançar os meus fins.

«Peço-lhe, meu tio, que acrescente às minhas mil libras uma quantia que me permita adquirir um navio completamente armado, e reunir à minha volta os valentes decididos a obedecer-me. Se dobrar o meu capital, juro-lhe que o farei mais rico do que já é.»

A harpa calara-se. Desde as primeiras palavras do rapaz que Sir Edward levantara a mão, como se quisesse impor-lhe silêncio, mas Henry prosseguira o seu discurso. E, quando os acordes da harpa tinham acabado, o vice-governador tinha lançado um olhar aborrecido para a porta. Quando o sobrinho acabou de falar, pareceu conceder-lhe o seu interesse.

- Não tenho dinheiro para arriscar em aventuras pouco seguras - declarou com um tom seco. E também não tenho tempo para continuar esta conversa, porque o governador vai chegar de um momento para o outro, vem trabalhar comigo. Apesar de tudo, deixe-me dizer-lhe que o considero um extravagante, um imprudente, que acabará provavelmente na forca. Parece-se muito com seu pai, mas a extravagância dele não passa do domínio do espírito.

«Para mais, devo informá-lo de que reina a paz entre a Inglaterra e a Espanha; os dois países não se entendem lá muito bem, confesso, mas reina a paz entre eles. Se se entregar à pirataria, será dever meu mandá-lo castigar, embora o deplore vivamente. Os Cabeças Redondas já não estão no poder, e vigiam-se de perto os actos de roubo à mão armada sobre os quais Cromwell fechava os olbos. Lembre-se das minhas palavras, pois me seria muito desagradável enforcar o meu próprio sobrinho. E agora sou realmente obrigado a deixá-lo.»

Os olhos de Henry encheram-se de lágrimas de raiva.

--Estou-lhe agradecido pela visita-concluiu Sir Edward.

- Adeus, meu sobrinho.

E com isto desapareceu atrás dos reposteiros.

Depois de ter dado alguns passos na rua com ar taciturno, Henry viu a prima à sua frente, pouco distante dele, escoltada por um grande escravo negro. Ele diminuiu o passo para continuar à sua retaguarda, mas a rapariga fez o mesmo.

«Talvez ela deseje falar-me», pensou, e apressou o passo para a alcançar. Viu então, com grande espanto, aquilo de que não se pudera dar conta na penumbra do palácio: Elizabeth era uma rapariguinha de catorze anos, no máximo. Ela levantou os olhos quando ele a alcançou.

- Que pensa você das índias?-perguntou ele.-Tem visto coisas interessantes por aqui?

- Tantas quantas podia esperar; há muito tempo que aqui vivemos, como sabe.

Ditas estas palavras, tocou no braço do escravo com a sombrinha e tomou por uma rua transversal, enquanto Henry, que ficara imóvel no mesmo lugar, a acompanhava com os olhos.

Sentia-se cheio de amargura em relação aos seus altivos parentes que pareciam afastar-se dele como de um pária. Não podia sequer tratá-los como estúpidos, pois tinham provocado nele uma forte impressão. Tinham conseguido fazer-lhe sentir a sua solidão, a sua impotência e a sua extrema juventude.

As ruas apertadas de Port-Royal estavam cobertas por uma baba imunda reduzida ao estado de lama líquida pelas rodas das carroças e por inúmeros pés descalços. A cidade parecia-se tanto com uma capital como o «palácio» do vice-governador se assemelhava a Whitehall. Essas ruelas infectas eram marginadas por casas de madeira muito mal-amanhadas, cada uma das quais ostentava uma varanda de onde as pessoas viam passar Henry, sem o mínimo interesse, com um ar lasso, tal o dos doentes que observam moscas no tecto.

Uma das ruas parecia ser habitada só por mulheres, negras, brancas e pardas, com o rosto cavado pela febre. Estavam inclinadas nas varandas, semelhantes a ignóbeis sereias, e chamavam suavemente o rapaz quando passava. Depois, como ele não lhes desse atenção, lançavam gritos de papagaio encolerizado, atiravam insultos, e escarravam nas suas costas.

Perto do porto alcançou uma taberna defronte da qual estava amontoada uma numerosa multidão. No meio da calçada estava um tonel cujo tampo tinha sido arrancado; ao lado pavoneava-se um rapagão bêbedo, coberto de rendas destroçadas, e com um chapéu de plumas. Oferecia taças, bacias e até chapéus cheios de vinho àqueles que lhe estendiam a mão. De vez em quando, pedia que bebessem à sua saúde, e a multidão ululava aclamações.

 

O jovem Henry, mergulhado nas suas sombrias meditações, não quis deter-se, mas o outro interpelou-o:

- Eh, rapaz, vem beber à minha saúde. .

- Não tenho vontade.

- Não tens vontade de beber?...

Num abrir e fechar de olhos o rapagão pareceu estar esmagado por esta inconcebível situação. Seguidamente, a surpresa deu lugar à irritação.

- Por Deus! Vais beber, quer queiras quer não, quando é o capitão Dawes que to pede, depois de se ter apoderado do Sangue de Cristo há oito dias.

Aproximou-se, com ar ameaçador e, tirando bruscamente um grande pistolão da cinta, apontou-o para Henry com mão trémula.

- Vou beber à sua saúde - afirmou o rapaz, olhando para a arma pelo canto do olho.

Depois, tendo-lhe aparecido uma ideia súbita no espírito, acrescentou, enquanto atraía o pirata para dentro da taberna:

- Deixe-me dizer-lhe duas palavras em particular, capitão Dawes, a propósito da sua próxima expedição...

- Que vá para o diabo a minha próxima expedição! rugiu o outro. - Acabo de me apoderar de uma bela presa, não? Tenho dinheiro, não é assim? Então que diabo vens tu buzinar-me aos ouvidos? Espera que tenha gasto o dinheiro e que as minhas feridas cicatrizem. Espera que não haja uma única gota de vinho em todo o Port-Royal. Nesse momento, poderás vir falar-me da minha próxima expedição.

Pronunciadas estas palavras, precipitou-se para a rua berrando:

- Meus rapazes, há muitas horas que não bebeis à minha saúde. Vamos, gritai todos juntos; e, depois disso, vamos cantar.

Henry afastou-se, desesperado. No porto, estavam ancoradas várias embarcações. Aproximou-se de um marinheiro sentado na areia, e observou-lhe à maneira de introdução o assunto que o interessava:

- Aquele parece-me ter um aspecto bastante veloz.

- Sim, não está mal, nada mal mesmo.

- Há alguns flibusteiros de categoria na cidade?

- Nenhum, além de Dawes, e esse está cheio de uma soberba de vento. Apoderou-se de uma pequena embarcação de carga com destino a Campeche e, a julgar pelo barulho que faz, poderíamos acreditar que trouxe a bordo todos os tesouros do Panamá.

- Então não há realmente mais ninguém?

- Por Deus, há ainda aquele a quem chamam Grippo, mas esse ataca apenas barcos sem defesa. Tem medo da própria sombra. Neste momento está no porto, sem um tostão no bolso, e bebe rum a crédito.

- E qual é o barco dele?

- Aquele que está além, o Ganymède. Diz-se que Grippo o roubou em Saint-Malo, num dia em que a tripulação estava embriagada. Ele e nove malandrecos da sua marca deitaram os pobres diabos pela borda fora, e rumaram para as índias. Sim, é um bom barco, mas Grippo é um capitão que não presta para nada. É um milagre que ainda não tenha naufragado. Mansveldt, pelo contrário, ah, esse é um capitão; nesta altura está na Tortuga.

- Com efeito deve ser um esplêndido barco, embora
possa suportar sem dificuldade alguma vela mais. Quantos canhões há a bordo?

- Diz-se que até tem canhões a mais.

Nessa noite, Henry encontrou o flibusteiro a beber numa miserável taberna da praia. Tinha o rosto quase negro; duas espessas rugas cortavam-lhe a face, como se lhe tivessem enterrado na carne um fio de seda esticado até quase partir. Os seus olhos olhavam incessantemente em todas as direcções, tais como sentinelas diante de um campo cheio de pequenos receios.

- Você é aquele a quem chamam Grippo? - perguntou Henry.

- Não me apoderei de nenhuma presa - protestou o outro atirando-se para trás. - Não tenho nada. Não pode acusar-me de nada.

Já uma vez em Saint-Malo o tinham abordado com estas mesmas palavras; e depois disso tinham-no chicoteado na cruz até que cem pequenas bocas sangrentas se abrissem no seu corpo. Desde então Grippo sempre receara tudo o que parecia representar a autoridade.

- Quem é você?

- Parece-me que vou fazer a tua fortuna, Grippo - respondeu Henry com firmeza. Sabia como era necessário falar a este homem que era uma réplica dos escravos da plantação: medroso e talvez ávido. - Que dirias tu se te oferecesse quinhentas libras inglesas?

O homem lambeu os beiços olhando para o copo vazio que tinha à sua frente.

- E que tenho eu a fazer para isso? - murmurou. -Vender-me o comando do Ganymède.

- O meu barco vale muito mais - redarguiu Grippo, que se tornara bruscamente circunspecto.

-Mas não te compro o barco, quero apenas o comando. Ouve, Grippo, eis a minha proposta: dou-te quinhentas libras em troca de metade do que te poderá render o Ganymede, de que passo a ser o único capitão. Depois vamos fazer-nos ao mar. Sei como nos poderemos apossar de um despojo importante, se ninguém contrariar os meus projectos. Estou pronto a assinar um papel especificando que, se falhar em qualquer uma das minhas empresas, te restituirei o barco e tu ficarás com as quinhentas libras.

Grippo ficou um momento espantado, e depois foi invadido por uma viva emoção.

-Dá-me o dinheiro! - gritou ele. - Dá-me o dinheiro

depressa! Oloto! Oloto! Traz-me vinho branco, imediatamente, por amor de Deus!

 


CAPÍTULO III

QUANDO Henry Morgan se fez flibusteiro, havia já inúmeras reputações deslumbrantes acerca da costa de Darian e nas verdes ilhas das Caraíbas. Nas tabernas da Tortuga contavam-se mil histórias de fortunas realizadas e despendidas, de belos navios aprisionados e afundados, de ouro e prata amontoados nos cais.

Os Irmãos da Costa tinham-se transformado numa temível potência desde que Pierre lê Grand e um pequeno grupo de caçadores, depois de ter deixado furtivamente as florestas de Hispaniola, se haviam apoderado do vice-almirante da frota dos galeões. A França, a Inglaterra e a Holanda consideravam estas ilhas como um eremitério para os seus criminosos, pelo que tinham descarregado durante anos nas índias carregações de material humano sem valor. Houve um certo período em que qualquer emigrante destas velhas nações, que não podia dar provas suficientes do seu bom comportamento era mandado para bordo de um navio e tornava-se, por


contrato, escravo de quem quisesse pagar uma pequena quantia para dispor da sua pessoa. Quando o contrato expirava, estes homens roubavam espingardas e guerreavam o Espanhol. Nada de espantoso no facto: o Espanhol católico regurgitava de riquezas, enquanto os huguenotes, os luteranos e os anglicanos eram miseráveis. Faziam uma guerra santa. A Espanha fechara à chave todos os tesouros do mundo. Se uns pobres maltrapilhos podiam pescar uma moeda de ouro através do buraco da fechadura, quem se preocupava com isso além da Espanha? A Inglaterra, a França e a Holanda não davam grande atenção ao facto. Às vezes, até, davam aos piratas cartas de corso contra Aragão e Castela: assim, encontrava-se às vezes um homem que, tendo partido como escravo dez anos antes, ostentava agora o título de «Capitão pela Graça do Rei».

A França, preocupada com o bem-estar dos seus filhos pródigos, mandara mil e duzentas mulheres para a Tortuga para ali se casarem com os piratas. Todas sem excepção adoptaram, desde a sua chegada, um ofício mais lucrativo do que o de esposa legítima; mas a França não tinha nisso qualquer responsabilidade.

Os flibusteiros tinham recebido o nome numa época em que não passavam de caçadores de gado. Havia um processo, a que chamavam flibustagem, que consistia em fumar a carne queimando-a nas brasas com pedacinhos de gordura para lhe dar um melhor sabor. Era por isso que chamavam aos piratas flibusteiros.

Algum tempo depois, os caçadores saíram das florestas em pequenos grupos prudentes. Seguidamente formaram-se bandos e, um pouco mais tarde, frotas completas de oito ou

dez navios. Por fim, milhares de homens reuniram-se na Tortuga e, partindo desta angra de segurança, começaram a atormentar a Espanha atacando-a pelos flancos.

E a Espanha não conseguiu mantê-los em respeito. Se enforcava dez, cem novos recrutas os substituíam nas fileiras. Como consequência, fortificou as suas cidades e mandou os galeões para o mar com uma escolta de vasos de guerra carregados de soldados. Os terríveis flibusteiros expulsaram da superfície dos mares quase todos os barcos espanhóis. A frota dos galeões passou a ir para o mar apenas uma vez por ano.

Havia grandes nomes entre os Irmãos da Costa, e feitos de natureza a suscitar a inveja de Henry Morgan se não tivesse a certeza de os vir a eclipsar um dia ou outro.

Havia, por exemplo, Bartolomeu Português que, depois de se apoderar de uma presa considerável, tinha sido capturado próximo de Campeche, antes de poder transportar o seu despojo para lugar seguro. Do barco que lhe servia de prisão viu levantar-se na praia a forca que lhe era destinada. Na véspera da execução, durante a noite, apunhalou o guarda e evadiu-se a nado, flutuando com o auxílio de um barril. Oito dias depois, regressou com os seus piratas numa grande chalupa e roubou o mesmo barco no porto de Campeche. Perdeu-o durante uma tempestade ao largo de Cuba, mas nem por isso a história deixou de percorrer todas as tabernas no meio de grandes explosões de riso.

Roche Braziliano era um holandês de cara bochechuda. Na juventude fora expulso do Brasil pelos Portugueses, e a sua alcunha vinha-lhe desta colónia. Coisa curiosa, não sentia qualquer rancor por Portugal: o seu ódio só visava a Espanha. Esse capitão, suave e bom quando não havia

 

 


espanhóis naquelas paragens, era adorado pelos seus homens, que só brindavam ao seu nome. Um dia, tendo naufragado à vista de Castilla de Oro, matou a maior parte de um grupo de cavaleiros espanhóis e serviu-se dos seus cavalos para se salvar. Quando os homens de Espanha estavam próximos, Roche transformava-se numa Lesta feroz. Dizia-se que um dia tinha mandado assar prisioneiros espanhóis a fogo lento, espetados em madeira verde.

A medida que os navios ricos desapareciam, os flibusteiros viam-se forçados a pilhar as povoações, e até as cidades fortificadas. Foi assim que Lewis Scott saqueou Campeche, de que só ficou um amontoado de ruínas fumegantes.

O Ollonais, originário de Sables d’OIIone, não tardou em tornar-se o pirata mais receado do oceano ocidental. Foi primeiramente animado por um ódio violento contra a Espanha, que se transformou por fim num furioso amor pela crueldade. Arrancava a língua dos seus prisioneiros, fazia-os em pedaços a golpes de sabre. Os espanhóis teriam preferido encontrar o Diabo sob qualquer forma a encontrar-se em presença de Ollonais. Só o som do seu nome despovoava as povoações, e afirmava-se que os ratos se refugiavam na floresta à sua aproximação. Tomou de assalto Macaraíbo, Nova Gibraltar e São Jaime de Leão. E por toda a parte massacrou os homens pelo prazer de matar.

Um dia em que tinha uma particular sede de sangue, ordenou que fossem dispostos numa fila oitenta e sete prisioneiros, atados de pés e mãos. Depois foi-se deslocando ao longo da fila, com uma pedra de aguçar numa mão e um longo sabre na outra, e cortou oitenta e sete cabeças. » Mas o Ollonais não se contentou em matar espanhóis.

Invadiu os doces países de Yucatan, onde os habitantes viviam em cidades arruinadas, onde as virgens andavam coroadas de flores. Era um povo tranquilo que se extinguia de maneira inexplicável. Quando o Ollonais se retirou, as cidades não passavam de amontoados de pedras e de cinzas, e as coroas tinham desaparecido para sempre.

Os índios da costa de Darien eram, pelo contrário, altivos, intrépidos e implacáveis. Os Espanhóis chamavam-lhes Bravos e afirmavam que ninguém os poderia vencer. Tinham sempre testemunhado uma grande amizade pelos piratas em virtude do seu ódio à Espanha, mas o Ollonais pilhou e massacrou vários deles. Os índios esperaram a vingança durante anos; finalmente o Ollonais naufragou na sua costa, e eles apoderaram-se dele. Acenderam uma grande fogueira em volta da qual dançaram durante horas; depois queimaram o corpo do francês bocado a bocado, debaixo dos seus próprios olhos, um dedo e um pedaço de carne de cada vez.

Uma noite, um fidalgo francês, magro e muito alto, entrou na taberna da Tortuga. Quando lhe perguntaram como se chamava, pegou num barril de rum e atirou-o para o outro canto da sala, respondendo:

- Braço de Ferro. E ninguém mais lhe fez outra pergunta. Não se soube nunca se ocultava o seu verdadeiro nome por vergonha, por desgosto ou por ódio; mas bem depressa adquiriu a reputação de um grande e corajoso capitão.

Esses homens pronunciavam frases que eram repetidas por toda a parte.

O capitão Lawrence, a bordo de uma pequena embarcação, tinha sido atacado por duas fragatas espanholas, e disse à sua tripulação: «Vocês têm muita experiência para não se darem conta do perigo, e muita coragem para o recearem.» Fortalecida por esta bela sentença, a sua equipagem tinha capturado os dois barcos inimigos, conduzindo-os para Goaves.

Nem todos eram cruéis, nem sequer violentos. Alguns manifestavam uma curiosa piedade. O capitão Vatling impusera-se a obrigação de celebrar o serviço divino todos os domingos, perante a sua tripulação de cabeça descoberta. Daniel matou um dia um dos seus marinheiros culpado de blasfémia. Esses flibusteiros rezavam em voz alta durante o combate e, se conseguiam a vitória, metade deles dirigia-se para uma catedral tomada ao inimigo para cantar o Te Deum, enquanto outra metade pilhava o navio capturado.

Os capitães faziam reinar a bordo a mais estrita disciplina, punindo imediatamente qualquer insubordinação e alguma falta susceptível de comprometer o seu êxito. Não se viam nunca no mar essas desordens que posteriormente foram toleradas por Kidd, Blackboard e Laffite.

Mas um nome dominava a história dos Irmãos da Costa, o do holandês Edward Mansveldt. Sobrepunha-se a todos pela sua bravura e pelo conhecimento do ofício das armas, porque tinha conquistado Granada e São Agostinho da Florida, assim como a ilha de Santa Catarina. À frente de uma grande frota, tinha percorrido as costas de Darien e de Castilla de Oro, capturando tudo o que lhe caía debaixo da mão. Um sonho o dominava: com a sua tropa de heróis esfarrapados queria criar uma nova nação na América, uma nação forte, guerreira, duradoira. À medida que os flibusteiros acorriam para se concentrarem à sua volta, o seu projecto

concretizava-se. Consultou os governos de França e da Inglaterra, que se mostraram escandalizados e lhe proibiram a realização de semelhante projecto. Uma raça de piratas que a Coroa não poderia justiçar? Vamos lá! Pilhariam toda a gente.

Apesar disso, continuou a levantar planos. O seu governo nasceria na ilha de Santa Catarina. Ali instalou o grosso dos seus homens, depois lançou-se a percorrer os mares à procura de novos súbditos. O seu navio naufragou ao largo de Havana, e os Espanhóis infligiram a Mansveldt o suplício do garrote.

Tais eram os homens de que Henry Morgan se propunha ser o chefe. Cheio de confiança em si próprio, não via obstáculo ao seu desejo, desde que nele reflectisse maduramente e pesasse bem todas as possibilidades. Todos esses flibusteiros tinham qualidades, mas as suas façanhas continuavam a ser limitadas. Mostravam-se imprevidentes e vaidosos. Talvez lhe fossem úteis um dia.

Mansveldt era ainda deste mundo e Braço de Ferro tinha os cabelos brancos quando Henry Morgan embarcou com Grippo a bordo do Ganymede.

Enquanto Morgan equipava o seu navio antes de se fazer ao mar, os moradores de Port-Royal manifestavam muita curiosidade e uma certa emoção. Estranhos abastecimentos e armas fora do comum foram empilhados no porão. Atraídos pela calma firmeza deste homem novo, vários marinheiros ofereceram-se voluntariamente para membros da sua tripulação. Descobriu no porto cinco artilheiros de nomeada e contratou-os imediatamente. Quando o Ganymède deslizou para fora do porto, um grupo de passeantes concentrou-se na praia para o ver partir.

Vogaram para a costa de Darien à procura de uma presa, mas o mar parecia vazio de qualquer embarcação espanhola. Uma bela manhã, perto do porto de Cartagena, deram conta do alto casco vermelho de um navio mercante. O capitão Morgan escondeu os seus homens e não permitiu que nenhum deles se mostrasse. O próprio timoneiro foi encerrado num minúsculo cubículo, enquanto uma falsa roda do leme girava sem sentido na ponte. Depois cortaram a direito sobre o barco espanhol, cuja tripulação ficou espantada de terror e de receio supersticioso. Aquilo cheirava a feitiçaria, ou então a um destes dramas do mar que os marinheiros se comprazem em contar. Talvez a peste tivesse morto toda a gente de bordo, e em tal caso poderiam apoderar-se do barco para o vender. Mas quando o navio deserto chegou mais perto, três canhões dissimulados cuspiram a sua chama. Atiraram para um único ponto: quando acabaram a sua obra, o leme estava destroçado e o barco não tinha direcção. Então o capitão Morgan, mantendo-se à retaguarda, fora do alcance da abordagem, descarregou uma chuva de tiros no casco, até que o pavilhão foi arriado.

Alguns dias mais tarde, tendo encontrado um outro barco, fingiu preparar-se para a abordagem. A tripulação inimiga concentrou-se na amurada para repelir o ataque. Imediatamente o ar se encheu de potes de barro atacados de pólvora que explodiram no meio de um grupo compacto. Os espanhóis fugiram, aos uivos, para o porão a fim de escapar a esta morte fulgurante.

Quando Henry Morgan regressou por fim à Tortuga, quatro presas vogavam na sua esteira, e não tinha perdido um único homem. Tudo se passara tão facilmente como tinha previsto. Para conseguir a vitória, basta fazer rapidamente o que o adversário não espera de nós.

Mansveldt estava na Tortuga quando Henry Morgan lá chegou, e os seus olhinhos brilharam à vista do despojo. Depressa chamou o jovem junto dele:

--És o capitão Morgan que se apoderou destes navios?

- Sim, senhor.

- Como o conseguiste? Os barcos espanhóis são prudentes e estão fortemente armados.

- Servi-me de estratagemas, senhor. Passei noites inteiras a estabelecer os meus planos. Opero de surpresa, enquanto outros recorrem à força.

Mansveldt olhou-o com admiração.

- Preparo uma expedição para me apoderar da ilha de Santa Catarina - disse ele. - Depois disso fundarei uma república de flibusteiros que combaterão pela sua nova pátria. Gostarias de ser o meu vice-almirante? Tenho a reputação de saber escolher os meus homens.

O nome de Mansveldt era temido nos mares e Henry corou de prazer.

- Tal coisa agradar-me-ia muito, senhor - respondeu vivamente.

A frota fez-se ao mar, e o capitão Morgan era o vice-almirante. O assalto da ilha foi esplêndido: os navios derramaram as suas hordas de mendigos esfarrapados, e a carnagem visitou as muralhas. Santa Catarina não pôde aguentar o furioso ataque dos flibusteiros: a fortaleza rendeu-se. Então o holandês formou o seu governo, cuja direcção confiou a Henry Morgan, enquanto ele próprio ia correr mundo em busca de recrutas. O seu navio naufragou e conta-se que os Espanhóis o enforcaram em Cuba.

O capitão Morgan tinha-se tornado o maior chefe do mar das índias. Numerosos navios se vieram juntar à sua frota, para navegar sob as suas ordens, combater com ele, e partilhar os seus êxitos. Atacou Puerto Bello que pôs a saque. As casas foram queimadas, e os infelizes habitantes despojados de todos os seus bens. Quando os navios do capitão Morgan se afastaram, a floresta começava já a tornar-se em ruínas.

Durante dez anos, percorreu o oceano entre as ilhas, ao longo das costas verdejantes da América dos Trópicos, e nenhum flibusteiro ostentava um nome mais célebre do que o seu. A sua reputação valia-lhe o concurso dos piratas do mundo inteiro. Aclamavam-no nas ruas da Tortuga e da Goaves. Inúmeros voluntários apresentavam-se-lhe antes de qualquer das suas expedições. Todos os Irmãos da Costa esperavam o dia em que o capitão Morgan abriria um barril de vinho numa encruzilhada para se entregar a uma formidável orgia. Esse dia nunca chegou. Henry Morgan percorria a cidade com um ar frio e distante, usando um trajo roxo, com meias de seda cinzenta, e calçando sapatos da mesma cor com laçarotes. Da sua cintura pendia uma espada longa e fina como um lápis, embainhada de seda cinzenta.

Ao princípio os marinheiros tentaram tratá-lo como um camarada, mas ele desencorajou-os com insultos glaciais: as lições aprendidas com os escravos continuavam vivas dentro dele. Não tentava comprar a sua popularidade, e todos os Irmãos da Costa lha prodigalizavam, lançavam a seus pés a sua vida e a sua fortuna para ser admitidos à partilha do êxito.

Dez anos de combates, de pilhagem, de incêndios; tinha trinta anos. Os seus cabelos grisalhos pareciam cobrir mais de perto o seu crânio. Henry Morgan não conhecia um único fracasso; nenhum flibusteiro no mundo fora a tal ponto favorecido pela fortuna, e os homens da sua profissão testemunhavam-lhe esta admiração tão ardentemente desejada. Os seus inimigos - e todo o espanhol bastante rico era seu inimigo - estremeciam ao ouvir o seu nome. No reino dos seus receios, eles colocavam-no ao lado de Drake e do Ollonais.

Quando embarcara com Grippo a bordo do Ganymede, tinha a certeza de chegar a alcançar essa felicidade ardente, que tanto desejara quando os seus canhões trovejantes crivaram de balas um casco espanhol, e o rumor dos sabres entrechocados ressoaram a seu lado. Ora ele tinha conhecido tudo isso sem experimentar a menor satisfação. O seu desejo inexprimível continuava a crescer e mergulhava as garras no seu coração. Acreditara que a adulação dos Irmãos da Costa lhe curaria essa ferida que, quando os piratas se maravilhassem com os resultados dos seus estratagemas, ficaria contente e lisonjeado. Ora todos rastejavam diante dele, mas dava-se conta de que os desprezava pela sua baixeza e os considerava estúpidos por se deixarem apanhar por semelhantes infantilidades.

Henry tinha-se tornado solitário no seio da sua glória. A profecia do velho Merlin revelava-se exacta: se o capitão Morgan conhecia o triunfo, não tinha um único amigo. Era obrigado a fechar no seu coração as suas aspirações ardentes. Os seus receios, as suas penas, as suas pequenas vaidades, as suas fraquezas, era obrigado a escondê-las. Aqueles que se tinham reunido à sua volta ao rumor da sua glória, abandoná-lo-iam se surgisse o mais leve desaire.

Enquanto se ocupava dessa maneira em reunir despojos, um ligeiro rumor tinha atravessado o istmo furtivamente, para flutuar seguidamente entre as ilhas e insinuar-se a bordo dos navios. Os flibusteiros deram-se conta do murmúrio e ouviram-no atentamente:

«Há no Panamá uma mulher tão bela como o Sol. Chamam-lhe a Santa Vermelha. Todos dobram o joelho diante dela.» O rumor inchou de tal modo que os homens nas tabernas acabaram por acreditar na santidade da Santa Roja. Durante o meio quarto, os jovens marinheiros murmuravam entre eles: «Na Taça de Ouro há uma mulher diante da qual todos os homens se prosternam como os pagãos diante do Sol.» Falava-se dela em voz baixa nas ruas da Goaves. Ninguém a tinha visto; ninguém poderia dizer a cor da sua pele ou dos seus cabelos. Apesar disso, decorridos alguns anos, todos os marinheiros do mar das índias tinham bebido à Santa Vermelha, tinham sonhado com ela, tinham-lhe dedicado orações. Ela tornou-se para eles o objecto de uma pesquisa fervente; cada um deles considerou o Panamá como o centro dos seus desejos. Decorrido algum tempo, nenhuma conversa entre homens deixava de acabar sem algumas considerações a propósito da Santa Roja. No espírito destes altivos piratas ela determinava um estranho delírio; ela tinha-se transformado numa nova Virgem a adorar. Muitos afirmavam que se tratava de Maria que voltara a descer à Terra, e acrescentavam o seu nome nas orações.

Ora, quando o capitão Morgan tomou Puerto Bello, o governador do Panamá ficou receoso e maravilhado por uma tropa de maltrapilhos sem disciplina e sem uniforme ser capaz de ocupar tal cidade. Despachou um mensageiro para solicitar uma amostra das armas que tinham tornado possível essa façanha inédita. O capitão Morgan levou o correio até um compartimento poupado pelo incêndio.

- Viste aquela a quem chamam a Santa Vermelha? perguntou ele.

- Não, nunca a vi; mas tenho ouvido falar muito dela. Os jovens adoram-na como se fosse a Virgem Maria. Há quem diga que é formosa como o Sol.

- Qual é o seu nome?

- Não sei. Ouvi simplesmente dizer que era bela como o Sol. No Panamá diz-se que é originária de Cordova e que viveu em Paris. Diz-se igualmente que pertence a uma família nobre, e que galopa escarranchada em cavalos enormes, num prado fechado por uma espessa sebe. Uma espada toma vida na sua mão, e pratica a esgrima como nenhum homem no mundo. Faz tudo isso em segredo para que ninguém a veja pecar assim contra a modéstia.

- Por Deus, se ela é suficientemente bela, que necessidade tem de ser modesta? A modéstia é uma espécie de remendo que se põe sobre a beleza em presença de estrangeiros. Gostaria bem de a ver cavalgar... E que sabes mais a seu respeito?

- Apenas o que se diz nas tabernas: veneram-na como aos bem-aventurados santos.

O capitão Morgan ficou muito tempo mergulhado nos seus devaneios, enquanto o correio aguardava em silêncio. Finalmente Henry abanou a cabeça como para libertar o espírito dos pensamentos que o oprimiam. Tirou uma pistola do cinto, e estendeu-a ao mensageiro:

- Entrega isto a Don Juan Pérez de Guzman e diz-lhe que é uma amostra das armas que utilizámos para tomar Puerto Bello. As minhas outras armas são os corações corajosos dos meus companheiros. Não lhe mandarei um único deles, mas levar-lhe-ei um grande número. Recomenda-lhe que guarde a pistola durante um ano; depois disso irei eu mesmo ao Panamá para a receber das suas próprias mãos. Compreendeste?

- Perfeitamente, capitão.

Alguns dias mais tarde, o mensageiro regressou: trazia de volta o pistolão, e uma grande esmeralda aplicada num anel de ouro.

- O meu amo pede-lhe que aceite esta esmeralda em testemunho da sua estima. Conjura-o a não se incomodar em ir até ao Panamá, porque, nesse caso, o seu sentimento do dever dominaria a sua admiração e obrigá-lo-ia a pregá-lo a uma árvore.

- Cá está ispati mensagem honrada e corajosa. Gostaria de encontrar Don Juan, ainda que fosse na ponta de uma espada. Há muito tempo que ninguém me desafia... Soubeste mais alguma coisa a respeito da Santa Roja?

- Apenas os rumores que correm pelas ruas. Informei-me o melhor que pude pensando em si, capitão. Diz-se que, quando ela percorre a cidade, usa um véu espesso para que ninguém lhe veja a cara. Alguns pretendem que ela procede assim para evitar que os pobres homens que contemplam a sua beleza se matem por seu amor. Foi tudo o que consegui saber. Tem alguma mensagem a confiar-me, capitão?

- Repete simplesmente ao governador que irei à Taça de Ouro antes do fim do ano.

Durante toda a vida, a sua vontade tinha sido parecida com um catavento que aponta firmemente uma direcção, e depois outra, sem nunca se demorar muito tempo numa única. As índias, o mar, as presas, a glória, tinham-no desiludido sucessivamente. Tudo aquilo em que tocara tinha secado debaixo da sua mão. Estava só. Os seus homens consideravam-no com respeito e um taciturno receio. Tinham medo dele, e disso já não extraía qualquer vaidade como outrora.

Perguntava-se se não poderia encontrar um amigo entre os seus companheiros, mas tinha vivido durante tanto tempo na sua cidadela íntima que esta ideia o enchia de um embaraço curioso e pueril. Aliás, quem teria ele escolhido? Pensava nas faces carrancudas dos seus oficiais, nos seus olhos ávidos onde se incendiava uma chama de cupidez no momento ser meu ou uma da partilha dos despojos, e só sentia desprezo a seu respeito. Todavia, tinha distinguido entre eles um jovem francês a quem chamavam Coração de Cinza. O capitão Morgan tinha-o visto amiudadamente no combate, saltando para a ponte como um felino, enquanto a sua espada dardejava flexíveis línguas de fogo prateado. Preferia a longa e frágil lâmina ao facalhão grosseiro. Por outro lado, recebia sorrindo as ordens do seu chefe. Decerto que havia respeito nos seus olhos, mas não se lia neles nem receio, nem ciúme, nem despeito.

«Pergunto-me se Coração de Cinza gostaria de ser meu amigo», meditava Henry Morgan. «Diz-se que deixou uma longa estrada de corações destroçados desde Cuba até Saint-Kit e, por esta razão, tenho algum medo dele.»

Chamou o seu tenente e, uma vez com o jovem na sua presença, experimentou uma certa dificuldade em dirigir-lhe a palavra:

- Ah, bom dia... Como vais tu, Coração de Cinza?

O outro pareceu surpreendido perante esta manifestação de simpatia desusada por parte do seu capitão.

- Meu Deus, capitão, estou muito bem. Tem algumas ordens a dar-me?

-Ordens? Não... Apeteceu-me falar hoje contigo e mais nada.

- Falar comigo, senhor? Mas, a que propósito?

- Bem... Como vão as tuas inúmeras amantes que a fama te atribui? - perguntou o capitão num esforço pouco conseguido para se mostrar jovial.

- A fama é mais bondosa para comigo do que a natureza, senhor.

Henry Morgan decidiu bruscamente em abordar o seu assunto:

- Ouve-me, Coração de Cinza! Nunca te veio à ideia que eu pudesse ter necessidade de um amigo? Que sofria com a minha solidão? Todos os meus oficiais têm medo de mim. Só vêm ter comigo para receber as minhas ordens e nunca para trocar algumas ideias. Sou responsável por este estado de coisas, bem sei, pois tive em primeiro lugar de me fazer respeitar para conseguir que me obedecessem. Mas, agora, há dias em que eu gostaria de exprimir livremente os meus pensamentos, falar de outra coisa além da guerra e das presas. Há dez anos que varro os mares como um lobo solitário, e não tenho um único amigo em qualquer parte.

«Escolhi-te para desempenhar este papel: em primeiro lugar porque me agradas, em segundo porque não possuis nada no mundo e não podes pensar que te quero roubar. Assim, poder-me-ás estimar sem ideias reservadas. Parece-me estranho verificar quanto os meus homens desconfiam de mim. Depois de cada uma das nossas expedições prestei-lhes as mais minuciosas contas; contudo, se eu lhes falasse com afeição, haviam de matar a cabeça para descobrir aquilo que tramo contra eles. Queres ser meu amigo, Coração de Cinza?»

- Não peço melhor do que isso, capitão; já o teria sido há muito tempo se soubesse que tinha essa ideia na cabeça. E em que posso servi-lo, senhor?

- Bastará que me venhas falar de tempos a tempos e tenhas confiança em mim. O meu gesto só tem a solidão como causa... Mas tu portas-te e exprimes-te como fidalgo, Coração de Cinza. Posso perguntar-te de que família és tu oriundo? Ou será que te escondes no teu nome como numa capa, como tantos flibusteiros?

- As minhas origens são as mais simples possíveis. Diz-se que meu pai foi o grande Braço de Ferro; ninguém ignora o que ele foi. Em sua memória deram-me este nome. Minha mãe é uma das mulheres livres de Goaves. Tinha dezasseis anos quando nasci. Pertence a uma família huguenote muito antiga, cujos bens foram confiscados depois do São Bartolomeu. Os seus pais estavam portanto sem recursos quando ela veio ao mundo. Um dia a ronda prendeu-a nas ruas de Paris e mandaram-na para a Goaves com uma carga de vagabundas da sua espécie. Braço de Ferro encontrou-a pouco depois.

- Dizes tu que é uma mulher livre - declarou Henry Morgan, escandalizado pela falta de pudor do rapaz. - Mas ela deve ter renunciado a esse... essa profissão, agora que os teus negócios prosperam. Ganhas mais dinheiro do que vocês dois precisam.

- Decerto, mas isso não a impede de continuar. Nunca lhe disse coisa alguma, pois por que razão devia eu opor-me àquilo que ela considera um trabalho sério? Sente orgulho na sua situação, orgulho por ter como clientes as pessoas mais categorizadas. Agrada-lhe verificar que, embora já tenha mais de quarenta anos, pode rivalizar vitoriosamente com essas jovens criadas que todos os anos chegam até cá. Porque havia eu de modificar o curso de uma vida tranquila, mesmo se o pudesse fazer? É uma mulher encantadora e uma mãe perfeita. A única censura que lhe posso fazer, é manifestar muitos pequenos escrúpulos. Passa a vida a gritar atrás de mim quando estou em casa, e chora amargamente em cada uma das minhas partidas. Receia muito que eu encontre uma mulher capaz de me perder.

- Eis o que me parece estranho, tendo em vista a vida que ela leva...-disse Henry.

-E por que razão, senhor? O cérebro das cortesãs é igual ao de todas as mulheres. Posso garantir-lhe que minha mãe leva uma vida dura: reza três vezes por dia, e não há, em Goaves, uma casa melhor arranjada do que a dela. Imagine, senhor, que na minha última visita lhe levei uma mantilha que me tinha cabido nas partilhas, uma autêntica maravilha de musselina e ouro. Ela não a quis aceitar de maneira nenhuma: essa mantilha tinha sido usada por uma mulher que pertencia à Igreja Católica Romana, e uma boa huguenote não podia decentemente pô-la ao pescoço. E se soubesse como ela se inquieta comigo quando ando no mar! Receia muito que me firam, mas receia ainda mais que suje a minha alma. E isto é tudo o que sei da minha família, senhor.

O capitão Morgan tinha tirado de um armário as estranhas bilbazinhas de vinho do Peru. Cada uma delas estava munida de dois gargalos, e quando o líquido corria por um, um silvo suave irrompia do outro.

- Provêm de um barco espanhol - informou. - Queres beber comigo, Coração de Cinza?

- Ficarei muito honrado, senhor.

Ficaram muito tempo sentados, saboreando o vinho em silêncio. Henry Morgan disse com um ar sonhador:

- Suponho, Coração de Cinza, que dentro em pouco vais apanhar a doença da Santa Vermelha; então todas as abelhas do Panamá se lançarão zumbindo sobre nós. Não duvido que esteja tão zelosamente guardada como Helena de Tróia... Já ouviste falar da Santa Vermelha, não?

O álcool fazia brilhar os olhos do rapaz, que respondeu a meia voz:

- Se já ouvi falar! Sonhei com ela e chamei-a durante o sonho. Quem não fez já o mesmo? Quem, neste canto do globo, não lhe conhece a existência, embora ninguém saiba nada a seu respeito? O sortilégio ocluso no nome desta mulher é uma coisa muito estranha. La Santa Roja! La Santa Roja! Desperta o desejo no coração de todos os homens; não o desejo de uma coisa possível, mas um desejo circunscrito por hipóteses: «se eu fosse rico, se eu fosse príncipe». Os jovens sonham fantásticos projectos: entrar em Panamá disfarçados, fazer saltar a cidade com a ajuda de enormes quantidades de pólvora. Sonham com o rapto da Santa Vermelha. Será capaz de me acreditar, senhor? Ouvi um marinheiro apodrecido pela doença murmurar em voz baixa: «Se estivesse de saúde, iria correr aventuras para ter a Santa Roja.»

«Minha mãe fica furiosa com a ideia de que eu seja capaz de me apaixonar loucamente por esta mulher que a aterroriza. Não te aproximes dela, meu filho”, diz-me. Essa criatura é um demónio perverso; aliás, ela pertence certamente à religião católica.” Ora, tanto quanto podemos saber, nunca ninguém a viu. Nem sequer podemos ter a certeza de existir semelhante mulher na Taça de Ouro. A Santa Vermelha fez nascer sonhos de cobiça que se estendem sobre toda a superfície do mar. Já cheguei a pensar, senhor, que, um dia ou outro, a cidade de Panamá há-de conhecer o destino de Tróia por causa dela.»

Henry Morgan tinha enchido os copos por várias vezes.

Estava derreado na cadeira, e um estranho sorriso torcia-lhe os lábios.

- Sim - anuiu com voz pastosa -, ela põe em perigo a paz dos espíritos e a paz das nações, o que me parece perfeitamente ridículo. Deve ser qualquer megera aureolada pela lenda. Mas como conseguiu nascer essa lenda? À tua saúde, Coração de Cinza. Jura-me que serás um amigo leal e firme.

- Juro-o, capitão.

Voltaram a beber de novo, em silêncio.

--As mulheres causam-nos muito sofrimento - continuou por fim Henry Morgan, como se tivesse acabado de deixar de falar. - Dizem que tu amaste muitas vezes, Coração de Cinza. Nunca sentiste essa dor que elas ocasionam?

- Não, senhor. Aconteceu-me algumas vezes estar de proa a desgostos, a pequenos pesares; mas, na maior parte do tempo, as mulheres só me deram prazer.

- Ah! Tens imensa sorte. A minha vida foi envenenada pelo amor. A existência que levo foi-me imposta por um amor perdido.

- Como foi isso, senhor? Por Deus, nunca teria acreditado que o senhor...

- Eu sei... eu sei até que ponto devo ter mudado, pois nem sequer tu deixas de rir com a ideia de que eu tivesse amado. Seria hoje inteiramente incapaz de conquistar o coração da filha de um conde.

- A filha de um conde, senhor?

- Sim, Coração de Cinza. O nosso amor era demasiado ardente, demasiado perfeito... Uma noite, ela foi encontrar-se comigo num roseiral, e ficámos enlaçados até de madrugada.

 

Pensava em fugir com ela para um belo e novo país, deixando o seu título no fundo do mar, atrás de nós. Talvez que, neste momento mesmo, pudesse viver tranquilamente na Virgínia, rodeado de pequenas alegrias.

- É uma grande pena, senhor - disse Coração de Cinza, que lamentava sinceramente o seu capitão.

- Pois bem, seu pai foi informado do nosso encontro. Uma noite arrancou a minha adorada Elizabeth dos meus braços, e fui embarcado, atado de pés e mãos, a bordo de um navio que me conduziu para Barbados, onde me venderam como escravo. Não serás capaz de ver. Coração de Cinza, a amargura que escondo no meu coração? Durante todos estes anos o rosto da minha bem-amada acompanhou-me no decurso das minhas viagens. Às vezes tenho a impressão de que poderia ter feito uma tentativa para me apoderar dela; mas seu pai era um senhor poderoso...

- Nunca mais se encontrou com ela, depois de ter recuperado a liberdade?

- Não, meu amigo, nunca - respondeu Henry Morgan, baixando os olhos.

A lenda da Santa Vermelha aumentava sem cessar no seu cérebro como uma planta vivaz; uma voz saiu do oeste para amansar e troçar de Henry Morgan, para o enganar e sobrecarregar de sarcasmos. Esqueceu o mar e os seus navios inertes. Bem depressa os flibusteiros ficaram sem tostão em virtude da sua longa inactividade. Deitados nas pontes, amaldiçoavam o seu capitão, esse imbecil perdido nos seus sonhos, enquanto se debatia nas malhas da sua visão e discutia com a voz.

«Que Deus dane La Santa Roja por ter semeado semelhante loucura pelo mundo! Por causa dela, os piores bandidos ladram à Lua como cães. Por causa dela, estou dominado por um desejo fútil. É preciso que faça qualquer coisa, não importa o quê, para escapar à perpétua ideia fixa desta mulher que nunca vi. Tenho de aniquilar este fantasma. Sou muito estúpido por gastar o meu tempo a pensar em me apoderar da Taça de Ouro; dir-se-ia que desejo morrer.»

Lembrava-se dos sonhos que o fizeram deixar o País de Gales, agora muito maiores. Os seus pensamentos impediam-no de dormir. Quando o esgotamento engendrava uma vaga sonolência, La Santa Roja chegava pouco depois.

-Vou tomar Maracaíbo! - exclamou ele, desesperado. - Vou afogar o meu desejo num oceano de horror. Vou pilhar a cidade, fazê-la em bocados, deixá-la na areia banhando-se no seu sangue.

 

(Na Taça de Ouro está uma mulher que é venerada pela sua indizível beleza.)

 

- Concentração na ilha da Vacal. Convocai os corações valentes dos quatro cantos do mar. Vamos atacar uma rica presa!

Os seus navios singraram em direcção a Maracaíbo, e a cidade decidiu defender-se desesperadamente.

- Entrem no porto!

As balas silvaram nos ares e arrancaram às paredes nuvens de poeira, mas os sitiados mantiveram-se firmes.

- Não se quer render? Então vamos tomá-la de assalto!


Potes de pólvora voaram para além das muralhas, ferindo e matando os defensores.

- Quem são estes lobos? - exclamaram eles. - Ah! Irmãos, devemos lutar até à morte sem pedir quartel. Se formos vencidos, a nossa bela cidade...

Foram levantadas escadas contra a fortaleza, e uma vaga de homens ululantes despenhou-se por cima dos muros.

- Ah! San Lorenzo! Esconde-nos! Leva-nos! Não são homens, são demónios. Piedade! Piedade! Misericórdia! Jesus, onde estás tu nesta hora terrível?

-Derrubai as muralhas! Que não fique pedra sobre pedra!

 

(Na Taça de Ouro há uma mulher tão bela como o Sol.)

 

- Nada de quartel! Matem todos esses cães espanhóis sem excepção!

A cidade suplicante jazia a seus pés. Arrancaram as portas das casas, esvaziaram-se os compartimentos de todos os móveis. As mulheres, concentradas em rebanho, foram fechadas numa igreja. Depois arrastaram os prisioneiros para diante de Henry Morgan.

- Capitão, o velho que aqui está tem grandes riquezas, temos a certeza; mas escondeu-as e não conseguimos encontrá-las.

- Queimem-lhe a planta dos pés!... O quê, esse imbecil resiste? Partam-lhe os braços!... Ainda não quer dizer nada? Rebentem-lhe as fontes com uma corda de chicote!... Oh! Matai-o! Matai-o para lhe acabar com os gritos... Talvez ele não tenha dinheiro...

 

(Há no Panamá uma mulher...)

 

- Já recolhemos a mais insignificante parcela de Ouro?

Façam pagar o resgate à cidade! Precisamos de riquezas para sarar as nossas feridas.

Uma frota espanhola veio em socorro da cidade.

- Navios inimigos? Vamos combatê-los! Não, não, vamos tentar fugir-lhes, se pudermos. Os nossos navios estão carregados com os despojos. Matai todos os prisioneiros!

 

(...tão bela como o Sol.)

 

O capitão Morgan deixou Maracaíbo em ruínas. Nos seus porões estavam duas mil e quinhentas moedas de ouro, peças de seda, salvas de prata, sacos de especiarias. Tinha também estátuas de ouro roubadas na catedral, e vestes sacerdotais todas bordadas de pérolas. Quanto à cidade, não era mais do que um amontoado de escombros enegrecidos.

- Estamos muito mais ricos do que contávamos. Reinará uma grande alegria na Tortuga, quando chegarmos. Somos todos heróis! Vamos festejar isto furiosamente!

 

(La Santa Roja está em Panamá.)

 

- Ah! Deus meu! Assim é necessário, assim é necessário. Mas receio bem ir para a morte. É sem dúvida uma empresa temível; apesar de tudo, se esse é o meu desejo, devo satisfazê-lo, ainda que lá devesse deixar os ossos. -Mandou chamar Coração de Cinza e disse-lhe:

- Meu amigo, distinguiste-te particularmente no decurso desta expedição.

- Não fiz mais do que o meu dever, capitão.

-Vi-te em acção: combates magnificamente. Foi por isso que decidi fazer de ti o meu imediato. És corajoso e sagaz, e tu és meu amigo. Só me posso fiar em ti: quem entre os meus homens me ficaria fiel se encontrasse vantagem em trair-me?


- Faz-me uma grande honra, senhor, e pode estar certo, em troca, da minha inteira lealdade. Minha mãe ficará muito contente.

- Na verdade, tu és um jovem estúpido, mas isso é uma virtude do nosso ofício, contanto que se tenha um chefe... Agora os nossos homens têm pressa de regressar para delapidarem o lucro. Se pudessem eram capazes de empurrar os barcos para acelerar a sua marcha. Que vais fazer com o teu dinheiro, Coração de Cinza?

- Por Deus! Vou mandar metade a minha mãe, e vou dividir o resto em duas partes. Vou pôr uma de parte e com a outra vou-me embebedar durante alguns dias. Sabe bem beber depois da batalha.

- A embriaguez nunca me deu o menor prazer; provoca-me uma grande tristeza. Fica sabendo que tenho um novo projecto no espírito. Qual é a mais rica cidade do mundo ocidental? Qual é o lugar que nunca sofreu o menor ataque dos Irmãos da Costa? Onde poderíamos encontrar milhões?

- Mas, senhor, não está a pensar em... Não pode certamente estar a encarar a possibilidade de tomar...

- Quero tomar Panamá... sim, quero apoderar-me da Taça de Ouro.

- Como é que pode conseguir isso? A cidade está cintada por sólidas muralhas e é defendida por numerosos soldados. Além disso, é quase impossível atravessar o istmo e não há outro caminho além de um atalho de almocreves.

- Tenho de tomar a Taça de Ouro - insistiu Henry Morgan, fazendo sobressair os músculos da maxila.

Coração de Cinza sorriu.

- Que aconteceu para estares a fazer troça de mim?

- Pensava numa frase que pronunciei recentemente diante de si: Panamá podia conhecer muito bem o destino de Tróia.

-Ah! Tens sempre presente no espírito essa mulher sem nome! Não penses mais nisso! Talvez nem sequer exista.

- Nesse caso, senhor, a nossa derradeira expedição deu-nos riquezas bastantes.

- Não seria mau enriquecermos mais ainda. Estou cansado de pilhar: gostaria de ter dinheiro bastante para me retirar.

Coração de Cinza hesitou um momento, enquanto se lhe velavam os olhos.

- Estou a pensar, senhor, que quando estivermos em Panamá, os nossos companheiros se vão matar uns aos outros, por causa da Santa Vermelha.

- Nada receies: saberei manter a mais estrita disciplina entre os meus homens, ainda que fosse obrigado a enforcar metade para o conseguir. Há algum tempo dei a saber ao governador da Taça de Ouro que lhe iria fazer uma visita, mas considerei esta mensagem como uma brincadeira. Gostaria agora de saber se ele tomou medidas para me receber. Talvez o governador tenha acreditado também numa brincadeira... Agora vai-te embora, e não digas palavra acerca de tudo isto a ninguém. Sê o meu embaixador. Que os homens desperdicem o seu ouro. Encoraja o jogo, mesmo aqui no barco. Serve-lhes de exemplo dispendioso nas tabernas. Quando não tiverem um tostão, serão obrigados a seguir-me. Tenho necessidade de um verdadeiro exército, desta vez, e mesmo nesse caso poderemos morrer todos. Talvez a maior alegria da vida esteja em arriscá-la. Trabalha bem por mim, mais rico

Coração de Cinza, e pode ser que um dia sejas mais rico do que alguma vez imaginaste.

O jovem Coração de Cinza ficou alguns instantes mergulhado nos seus pensamentos, ao pé do mastro grande.

«O nosso capitão, tão frio, tão distante, sucumbiu ao sortilégio deste imenso e vago rumor. Estranha coisa são os caminhos deste mundo! Tenho a impressão de que a Santa Vermelha me encantou. Violaram o meu sonho. Quando os homens conhecerem este projecto, gostaria de saber se experimentarão também este sentimento de perda cruel, se detestarão o capitão que os terá frustrado do seu desejo.»

Sir Edward Morgan assumira o comando de uma expedição contra Santo Eustáquio. Enquanto a batalha estava no auge, um índio pequeno e acastanhado espetou-lhe uma grande faca no ventre. O vice-governador cerrou os dentes e rolou no solo.

«Os meus calções brancos vão ficar estragados», pensou ele. «Porque seria que este demónio me acertou desta maneira, quando as coisas estavam a correr tão bem? Teria recebido grandes agradecimentos de Sua Majestade... Conceder-nos-á a título póstumo... Por Deusl Escolheu um ponto bem doloroso!»

Depois, dando-se conta da importância do drama: «Um facalhão ordinário em pleno estômago», murmurou ele. «Teria preferido uma espada empunhada por um dos meus pares. Mas uma faca daí E ainda por cima no ventre, o que é pior!

Devo ter um aspecto ignóbil, com todo este sangue e esta poeira em cima de mim. E não sou capaz de me levantar! Ah! Cristo! O miserável feriu-me num ponto bem sensível!» Os seus homens, entristecidos, reconduziram-no para Port-Royal.

- Foi-me impossível evitar o golpe - disse ele ao governador. - Esse demónio deslizou até mim e espetou-me a sua faca no estômago. Suponho que não era suficientemente alto para me atingir mais acima. Ficar-lhe-ei muito reconhecido, senhor, se não mencionar o punhal nem o estômago no seu relatório para a Coroa. Agora será capaz de fazer-me o favor de me deixar só com minha filha? Sinto que vou morrer em breve.

Elizabeth estava à sua cabeceira num compartimento obscuro.

- Está gravemente ferido, meu pai?

- Sim, muito gravemente. Não tardarei a morrer.

- Vamos, papá! Está a brincar para me meter medo!

- Ouviste-me gracejar alguma vez, Elizabeth? Não, nada há mais sério do que isto. Tenho muitas coisas a dizer-te, e os meus momentos estão contados. Que vai ser de ti? Temos muito pouco dinheiro. Temos vivido apenas dos meus vencimentos desde que o rei lançou o seu último empréstimo.

- Mas que está para aí a dizer, papá! Não pode morrer e deixar-me só aqui, nas colónias! Vejamos, papá, é impossível!

- Quer seja impossível ou não, vou morrer em breve. Discutamos este caso enquanto ainda tenho forças. Talvez o teu primo, a quem os seus actos de pirataria valem uma fama tão grande, queira tomar conta de ti, Elizabeth. Esta ideia aborrece-me, mas... mas... tens de viver. E, no fim de contas, é teu primo.

- Não posso acreditar em tal coisa. Recuso-me a acreditar. Não pode morrer!

- Vais viver com o governador até te encontrares com teu primo. Expõe-lhe a situação com muita clareza, sem lisonja e sem arrogância. É um pirata, mas nem por isso deixa de ser teu primo pelo sangue.

A sua respiração rumorosa e oprimida enchia o compartimento. Elizabeth começou a chorar silenciosamente, como uma criança que não sabe muito bem se está doente. Depois de um longo silêncio, Sir Edward retomou a palavra:

- Ouvi dizer que se reconhecia um fidalgo pela sua maneira de morrer, mas... gostaria bem de gemer um pouco. Robert teria gemido se assim lhe apetecesse. É bem certo que Robert foi sempre um pouco bizarro... Apesar disso... é meu irmão... e teria gemido quanto lhe apetecesse. Elizabeth... fazes-me o favor... rogo-te... que deixes o quarto. Estou aborrecido... mas tenho de gemer. Nunca fales, Elizabeth... promete-me... que nunca dirás nada... nunca... nunca...

Quando ela regressou, Sir Edward Morgan estava morto.

Brotando das índias e do coração ardente da África, a Primavera tinha chegado ao País de Gales, a décima quinta Primavera depois da partida de Henry. O Velho Robert divertia-se a pensar, e acabou por acreditar em tal. que seu

filho lhe enviava a Primavera dos Trópicos onde estava. Uma capa verde cobria o flanco das colinas; as árvores expunham ao vento a sua folhagem suave e delicada.

O rosto do Velho Robert tinha endurecido mais. Uma perpétua careta contrai-lhe os cantos da boca, como se um velho sorriso, um pouco angustiado, ali se tivesse fixado. Ah! Esses anos solitários, estéreis, que nada lhe tinham depositado nos braços! Compreendia agora o sentido das palavras de Gwenliana: a velhice não traz mais do que uma espera inquieta e gelada: a espera taciturna de um estado que não é possível imaginar com a menor certeza. Talvez ele aguardasse o regresso de Henry, mas não estava muito certo disso. Tal coisa derrubaria a ordem estabelecida à qual as pessoas tanto se apegam quando são velhas.

Durante muito tempo tinha perguntado a si próprio: «Que fará Henry neste momento? Que estará ele a ver?» Depois a imagem do adolescente tinha-se esborratado para se tornar idêntica à destes heróis dos livros antigos, não de todo real, mas o bastante, contudo, para que se lembrassem dele. Robert pensava muitas vezes nessa personagem abstracta, o seu filho, a respeito do qual lhe chegavam às vezes vagos rumores.

Acordando nessa bela manhã de Primavera, tinha dito consigo: «Vou hoje ver o Merlin. É estranho verificar como esse velho resiste ao peso crescente dos anos: mais de cem, neste momento. Dizem que o seu corpo não passa de uma nonada muito reduzida, verdadeiramente a sombra do que foi. Contudo, William afirma - tanto quanto se pode acreditar nas suas afirmações - que a sua voz de ouro continua a manter-se forte, e que continua a recitar as formidáveis tolices que não seriam de modo algum toleradas em Londres. Na verdade, é espantoso verificar que toda a vida deste homem gira em torno de quatro dias passados na capital... Mas tenho de ir ver Merlin, será provavelmente a minha última visita.»

O caminho abrupto e rochoso infligiu-lhe uma cruel tortura; e tanto mais cruel quanto ele se lembrava da antiga agilidade das suas pernas infatigáveis, da antiga força dos seus pulmões. Tinha sido outrora o mais atrevido dos montanhistas; agora era obrigado a sentar-se numa pedra depois de alguns minutos de marcha. Foi assim que venceu pouco a pouco a garganta e o contraforte da montanha: era meio-dia quando chegou ao alto do Rochedo.

Merlin abriu-lhe a porta sem lhe dar tempo para bater: o ancião não estava mais mudado do que as harpas e os ferros de lanças pendurados nas paredes. Parecia ter virado o tempo do avesso, como um fato usado. Não manifestou a menor surpresa à vista de Robert, como se tivesse tido conhecimento desta peregrinação dez séculos antes de ela se ter realizado.

- Há já muito tempo, Robert, que não subias este caminho, e há já muito que não o descias.

«Descias, descias», cantaram as harpas, pois ele falava a linguagem das cordas que lhe faziam eco, semelhantes a um coro longínquo num maciço de montanhas altaneiras.

- Mas é um velho que vem hoje ter contigo, Merlin, Fui obrigado a lutar contra a pista como se fosse um inimigo cruel. Tu é que não tens envelhecido. Às vezes pergunto a mim mesmo quando morrerás. Não é verdade que os teus anos discutem essa questão contigo?

- Para dizer a verdade, Robert, já muitas vezes a encarei; mas encontrei sempre tantos motivos de reflexão que não consegui descobrir tempo para morrer. Se morresse, talvez fosse incapaz de reflectir mais para diante... Porque, fica sabendo, Robert, aqui, nas alturas, essa tímida esperança que as pessoas do vale chamam fé torna-se muito contestável. Naturalmente, se estivesse cercado de uma multidão de homens recitando sem cessar as palavras seguintes: «Existe um Deus sábio e bom e continuaremos certamente a viver depois da nossa morte», então poder-me-ia preparar para a vida futura. Mas aqui, sozinho, a meio caminho do Céu, receio muito que o trespasse venha interromper as minhas meditações. As montanhas são um bálsamo para as chagas metafísicas. No meio destes picos, um homem ri-se muito mais vezes do que chora.

- Sabes que minha mãe, a velha Gwenliana, fez uma estranha profecia antes de expirar? «Esta noite o mundo chegará ao fim» - foi o que ela disse - «e não haverá mais terra por onde se possa caminhar.»

- Creio que ela disse a verdade, Robert. Sim, as suas últimas palavras pareceram-me exactas, quaisquer que possam ter sido as suas outras predições. Este pensamento devorador apavora-me muitas vezes; inspira-me um horroroso receio da morte. Se, vivendo, dou vida aos meus semelhantes, uma existência nova no mundo verdejante dos campos e das árvores, seria um acto horroroso limpar tudo isso, como um desenho a giz. Não devo morrer, ainda não.

«Mas deixemos essas tristes preocupações. Tu, Robert, viveste muito tempo no vale dos homens. Apesar de a tua boca sorrir, não há ponta de alegria no teu coração. Dispões os teus lábios como virgultas em cima de uma armadilha, para disfarçar perante Deus o teu sofrimento. Outrora tentaste rir com toda a tua alma, mas não fizeste a concessão indispensável: comprar, troçando um pouco de ti próprio, o privilégio de troçares muito dos outros.»

- Sei que estou vencido, Merlin, e nem eu nem ninguém pode seja o que for neste caso. A vitória ou a sorte - designa isto com o nome que quiseres - parecem estar ocultas em raros eleitos, tal como os dentes sob a gengiva do bebé. No decurso destes últimos anos, Deus jogou comigo uma partida muito dura e friamente calculista. Em certos momentos fiquei com a impressão de que estava a fazer batota.

Merlin falou vagarosamente:

- Outrora joguei contra um jovem deus com pés de cabra, e foi isso que me obrigou a vir para aqui. Mas eu fiz a grande concessão e assinei-a rindo melancolicamente. Robert, não me vieram contar há muito tempo que batias no campo? –William deteve-se aqui para me dizer que tinhas enlouquecido. É verdade que cometeste actos repreensíveis no teu roseiral?

- Essa foi uma das partidas que Deus me pregou - respondeu Robert, sorrindo com amargura. - Vou-te explicar o que se passou. Um dia em que estava a arrancar as pétalas murchas, apareceu-me no espírito a ideia de fazer um gesto simbólico. Isto não tem nada de extraordinário; muitas vezes, vemos homens de pé, com os braços estendidos, no cimo de uma colina, e outros que se ajoelham para orar. Arranquei portanto uma rosa, que atirei ao ar, e as pétalas caíram em chuva em torno de mim: isto pareceu-me representar toda a história da minha vida. Depois, absorvido pela beleza das pétalas brancas sobre a terra negra, esqueci inteiramente o meu símbolo e atirei várias rosas para o ar, até que uma neve perfumada cobriu o solo. Subitamente, levantei os olhos e vi-me cercado por uma dúzia de homens que faziam troça de mim. Tinham saído da igreja. «Ah, ah, ah!», exclamaram eles. «Robert perdeu a razão. Oh, oh! A sua razão tresvaria. Voltou à infância, e diverte-se a atirar ao ar as pétalas das rosas.» O deus que permitiu uma coisa destas deve ser ferido pela demência.

Merlin deixava-se sacudir por um riso silencioso.

- Oh! Robert! Robert! Porque censurar o mundo por se defender contra ti? Creio que Deus e o mundo são a mesma coisa a teus olhos. Se houvesse dez pessoas no vale que sentissem prazer em ver pétalas de rosa sobre o solo, passarias apenas por um ente um tanto singular, decerto interessante, em resumo, um fenómeno digno de consideração. No domingo de tarde arrastariam os estranhos a tua casa para te exibirem como uma besta curiosa. Mas, desde o momento em que nenhum dos teus vizinhos aprecia o espectáculo que lhes ofereceste, consideram-te muito naturalmente como um radical pronto para enforcar ou para meter na cadeia. Na verdade, julgar um homem louco, é enforcá-lo em pensamento. Se se espalha o boato de que está a perder o juízo, nunca mais ninguém dará atenção às suas palavras, excepto para rir.

«Não vês isso, Robert? As pessoas foram tantas vezes feridas, torturadas, enredadas por ideias e sistemas que não compreendem, que acabaram por acreditar que tudo o que ultrapassa o seu entendimento é pernicioso e deve ser, por isso, destruído pelo primeiro que aparecer. Agindo desta maneira, procuram apenas proteger-se contra os males horrorosos que lhes podem infligir, na sua expansão, coisas insignificantes no ponto de partida.»

- Sei tudo isso. e não penso de modo algum em lamentar-me. Aquilo contra que me insurjo é possuir como únicos bens um saco repleto de fracassos e de perdas. Não tenho outra riqueza além de recordação de coisas que outrora me pertenceram. Talvez esteja bem assim, porque, agora que deixei de as ter, tenho a impressão de as amar ainda mais. Mas, não posso compreender que a sorte seja apanágio secreto de alguns raros eleitos. Se devo acreditar nos rumores que têm chegado até mim, meu filho toma de assalto e conserva todos os seus desejos.

- É verdade que tinhas um filho, Robert; estou a lembrar-me agora. Julgo ter-lhe predito que reinaria de qualquer maneira se não crescesse.

- E não te enganaste. Chegam-me notícias dele, do sul, carregadas por um vento leve, talvez enganador. A fama tem asas de morcego. Diz-se que é o chefe de altivos piratas, que tomaram e pilharam várias cidades. Os Ingleses, que estão orgulhosos do facto, dão-lhe o nome de herói e de patriota. ÀS vezes ajo da mesma forma, mas, se eu fosse espanhol, não passaria a meus olhos de um bandido a quem a sorte favorece. Ouvi contar, também, que havia torturado prisioneiros; nisso não acredito, não quero acreditar.

- Assim - murmurou Merlin num tom meditativo ter-se-ia tornado no grande homem em que ele acreditava poder transformar-se. Se isso é verdade, continua a ser um rapazinho que deseja a Lua. Suponho que deve sofrer. Aqueles que pretendem que as crianças são felizes, esqueceram a sua própria infância. Pergunto-me às vezes durante quanto tempo poderá ele evitar atingir a idade de homem... Robert, já alguma vez viste essas grandes formigas pretas que são munidas de asas quando nascem? Voam durante um ou dois dias, depois perdem as asas, e são condenadas a rastejar sobre o solo durante o resto da existência. Pergunto-me quando irá o teu filho perder as asas. Não é estranho, Robert, que entre os homens este estado de rastejamento seja tão altamente venerado? Que as crianças se empenhem em dilacerar as suas próprias asas para o atingirem?

- Diz-me uma coisa, Merlin: o que é que transforma os rapazinhos em homens? Que circunstâncias lhes fazem apodrecer as raízes das asas?

 

- Algumas crianças não têm asas, e outras arrancam-nas a si próprias. Quanto às circunstâncias de que falas, umas surgem de imprevisto, outras são extremamente fastidiosas. Não as conheço a todas, mas, no que se me refere, foi o ridículo que provocou a minha queda. Amava uma rapariga do vale; supunha que era bonita, e julgava-me belo. Estava a compor uma canção para ela, e nomeava-a Esposa de Orfeu. Nessa época tinha uma grande tendência para me fazer passar por Orfeu. Ora ela parecia considerar o casamento com um deus como uma espécie de crime contra a Natureza. Admoestou-me: qualquer homem - dizia eladeve qualquer coisa à sua família, à sua comunidade, ou então obter por si próprio o êxito. Ela não precisou a natureza deste êxito, mas deu-me a compreender claramente que as canções não eram um meio de lá chegar. Além disso, ela detestava as divindades pagãs. Conhecia um homem provido de terras e de casas, que era confortàvelmente humano. Ainda hoje penso com rancor que ele era lamentavelmente humano. Casaram-se e o ridículo roeu-me as asas.

«Para lutar contra este pequeno sofrimento, encarei no meu espírito o crime, o suicídio, os campos de batalha. Na minha vergonha, decidi privar o mundo das minhas canções, de maneira que ninguém mais as voltou a ouvir. O mundo nem sequer deu conta da minha desaparição. Ninguém veio ter comigo para me pedir que saísse do meu retiro. Caíram-me as asas: tinha-me tornado homem, já não desejava a Lua. Quando tentei voltar a cantar, dei-me conta de que a minha voz se tinha tornado tão rude como a de um boieiro, e que as minhas canções estavam pesadas de projectos e de previsões.»

- Gostaria de saber como atingi a idade de homem; já não me recordo. Talvez a minha juventude esteja ainda viva nessas regiões com que sonhava outrora. Mas Henry, esse, nada plenamente nos seus sonhos e às vezes sinto uns ciúmes terríveis dele.

«Repara, Merlin, que há uma coisa que sempre achei muito estranha. Minha mãe, Gwenliana, julgava possuir o dom da vidência, e mantivemo-la nesta aldeia que lhe causava uma grande alegria. Na véspera da partida de Henry, ela traçou um quadro do seu futuro. Ora, quase tudo o que ela disse se realizou. Será possível que tais pensamentos lhe tenham aparecido como uma série de imagens de cores gritantes? É uma coisa muito estranha, na verdade.»

- Talvez ela tenha adivinhado o seu desejo, Robert, e a força desse desejo. Ensinei a Gwenliana muitas coisas referentes à magia; ela era muito dotada para decifrar os sinais e os rostos.

O Velho Robert levantou-se e espreguiçou-se:

- Bem, agora tenho de partir. Um velho como eu gasta muito tempo e cansa-se muito para descer até ao vale. Já será noite quando chegar a casa. Aí vem William, com a sua picareta que parece fazer parte do seu corpo. Vou andar algum tempo em sua companhia e instruir-me acerca dos usos e costumes de Londres. Deves amar muito as palavras, Merlin, para falares com tamanha facilidade; e eu devo amar o sofrimento, pois o inflijo a mim mesmo.

«De resto, Merlin, fica sabendo que te considero um louco e um impostor. Sempre que te deixo, estou persuadido de que me disseste coisas de importância capital; contudo, depois de reflectir, não consigo lembrar-me de uma única das tuas palavras. Creio que exerces um subtil sortilégio com a tua voz de ouro e as tuas harpas melodiosas.»

Enquanto ele descia a encosta, as harpas penduradas nas paredes cantaram-lhe suavemente o Adeus do Feiticeiro.

 

PANAMÁ era uma grande e bela cidade em 1670, quando Henry Morgan decidiu destruí-la; uma cidade forte e rica, que bem merecia a designação de Taça de Ouro. Nenhuma das cidades do Novo Mundo podia rivalizar com ela.

Mais de um século antes, Balboa tinha chegado à margem de um oceano desconhecido. Envergou uma armadura bem trabalhada e entrou até às coxas nas águas calmas do Pacífico. Depois dirigiu um firme discurso às vagas, e reinvindicou para a coroa de Espanha todas as terras que elas banhavam. Pediu a este mar que se mostrasse leal e dócil, porque lhe estava destinada a honra de se tornar o lago privado de Castela e de Aragão.

Atrás de Balboa, na praia, comprimiam-se as choças de um aldeamento índio chamado Panamá, nome que, na língua indígena, significava: lugar de pesca frutuosa. Depois dos soldados espanhóis terem destruído as palhotas com o fogo e construído uma cidade nova, conservaram o nome antigo, Panamá, que ressoa no ouvido como uma canção. E a cidade continuou a ser um lugar de pesca frutuosa, pois, uma vez instalada no seu novo domínio, a Espanha lançou as suas redes para os quatro pontos cardeais.

No norte, Pedrarias apanhou nas suas malhas as cidades da antiga raça dos Maias. Essa pescaria permitiu-lhe remeter para Panamá serpentes estranhamente cinzeladas, estátuas aterrorizadoras e minúsculos insectos gravados, tudo em ouro maciço. Quando deixou de haver ornamentos para roubar, quando os templos se tornaram cubos de pedra vazios, então Pedrarias lançou as suas malhas sobre os habitantes e arrastou-os para as minas à chicotada.

Pizarro vogou para o sul com os seus cavaleiros revestidos de armaduras cintilantes, e a poderosa nação dos Inças sucumbiu diante dele. Matou os chefes e arrasou o edifício do governo. Depois, os diamantes, as placas de prata arrancadas às paredes dos templos, as efígies do sol, os escudos de cerimónia de ouro foram enviados para Panamá. E Pizarro arrastou os inças para as minas debaixo do azorrague.

Cem capitães conduziram pequenos grupos de soldados para o leste e para o sudeste, onde os altivos índios de Darien viviam nas árvores e nas cavernas. Ali os homens de Espanha encontraram aros do nariz, braceletes dos tornozelos e penas de águia cheias de pó de ouro. Tudo isto foi metido em sacos e conduzido em mulas para o Panamá. Quando todos os túmulos ficaram despojados dos seus ornamentos de ouro, os selvagens índios tiveram de cavar a terra forçados pela autoridade do chicote.

Os navios de Espanha descobriram a ocidente pequenas ilhas cujas baías pouco profundas pululavam de pérolas que se podiam apanhar mergulhando. Pouco tempo depois, estupefactos, os habitantes das ilhas eram lançados ao mar infestado de tubarões. E sacos de pérolas foram encaminhados para o Panamá.

Todas as obras que tinham requerido uma longa paciência, todos os produtos preciosos dos mais hábeis artesãos acabaram por desaguar em Panamá, onde os cadinhos as receberam com guloseima e os transformaram em grossos lingotes de ouro que foram empilhados nos entrepostos, aguardando a partida dos galeões para Espanha. Às vezes as barras de prata eram empilhadas nas ruas em virtude da falta de lugar, mas o seu próprio peso as defendia do roubo.

Pouco a pouco a cidade tornou-se magnífica. Os tesouros das nações reduzidas à escravatura foram consagrados à construção de milhares de belas casas cobertas de telhas vermelhas, em cujos pátios havia flores raras. Todas as artes, todas as comodidades da velha Europa se encaminharam para o ocidente, correspondendo ao apelo dos lingotes de ouro, para embelezar as habitações do Panamá.

Os primeiros invasores espanhóis eram ladrões ávidos e cruéis, mas eram também soldados a quem nenhuma sangrenta perspectiva intimidava. Tinham conquistado o Novo Mundo em pequenos grupos animados por uma coragem invencível. Todavia, logo que os povos da Nicarágua, do Peru, de Darion se transformaram em hordas gemebundas de escravos, e todo o perigo desapareceu, homens de uma espécie inteiramente diferente foram instalar-se no Panamá. Eram comerciantes que só pensavam no ganho, capazes de uma rápida decisão para arrancar legalmente uma propriedade ao seu dono ou aumentar o preço das mercadorias vendidas aos colonos estrangeiros, mas que se mostravam extremamente cobardes quando retinia o entrechoque das armas.

A classe dos mercadores não tardou a dominar o istmo. Muitos dos antigos soldados tinham morrido; os outros, não podendo suportar a inacção, tinham-se dirigido para novos países férteis em perigos, abandonando a batalha dos produtos alimentares e das prodigalidades nas mãos dos mercadores. Estes distribuíam a farinha e o vinho, amontoando em troca nos seus cofres jóias e lingotes de ouro. Ligavam-se entre eles para exigir todos os mesmos preços muito elevados; com os lucros obtidos, construíam casas de cedro cobertas de telhas rosa. Vestiam as suas mulheres com sedas estrangeiras e faziam-se seguir nas ruas por multidões de servos.

Um grupo de genoveses, traficantes de escravos, veio para Panamá e construiu um vasto entreposto para a sua mercadoria. Encontravam-se ali filas de gaiolas onde os negros ficavam encerrados até que fossem tirados para o ar livre a fim de serem palpados pelos compradores e tornarem-se objecto de demorados regateios.

Panamá era uma cidade realmente magnífica. Duas mil casas espaçosas em madeira de cedro marginavam as suas ruas principais; um pouco mais distante do centro, levantavam-se cinco mil casas mais pequenas que abrigavam os caixeiros, os mensageiros, e os soldados do rei; os escravos eram alojados nos subúrbios, em incontáveis palhotas com telhado de colmo. No centro da cidade havia duas igrejas, seis conventos e uma alta catedral onde todos os objectos do culto eram de ouro maciço, e as vestes sacerdotais estavam carregadas de pedras preciosas. Já dois santos tinham vivido e morrido em Panamá; santos menores, sem dúvida, mas bastante importantes para que os seus despojos tivessem um certo valor.

Um quarteirão inteiro da cidade estava atravancado pelas casas, estrebarias e as casernas do rei. Ali acumulava-se um décimo de todos os produtos da região; logo que os galeões ficavam prontos para se fazer ao mar, essas mercadorias eram carregadas em burros para o istmo a fim de serem embarcadas. Panamá ajudava às necessidades do reino de Espanha, pagava as despesas dos novos palácios e das guerras do rei. Em agradecimento pelo dinheiro líquido que a cidade despejava nos seus cofres, Sua Majestade concedera-lhe uma elevada distinção outorgando-lhe o atributo altivo: «A Mui Nobre e Mui Leal Cidade de Panamá». Estava ao mesmo nível de Cordova e de Sevilha, porque os seus funcionários usavam uma corrente de ouro ao pescoço. Para mais, o rei dera à cidade um esplêndido brasão: à esquerda, um escudo em campo de ouro; à direita, duas caravelas e um punhado de frechas cinzentas; o chefe ostentava a estrela polar da descoberta; os Leões e os Castelos dos dois reinos gémeos espanhóis cercavam o escudo. Na verdade, Panamá era uma das maiores cidades do mundo.

No centro da Taça de Ouro estendia-se uma grande ploza empedrada, onde se erguia um coreto de música. Havia concerto todas as tardes. Enquanto a banda tocava, as pessoas passeavam tranquilamente e revelavam a sua posição social segundo aqueles com quem falavam. A aristocracia comercial mostrava-se muito exigente no seu orgulho. Um homem podia discutir como um judeu a respeito do preço da farinha durante o dia; mas quando chegava a noite, na plaza, endereçava uma saudação altiva aos seus confrades menos ricos que ele e manifestava uma servilidade quase imperceptível para com aqueles que o eram ainda mais.

Tinham amolecido na sua segurança. Considerava-se a cidade como impossível de tomar. De um lado, o mar protegia-a (aliás, não havia nenhum navio estrangeiro no oceano sul); do lado da terra encontravam-se altas muralhas e um vasto pântano que se podia inundar em caso de perigo, que transformava a cidade numa pequena ilha. Para mais, um exército assaltante devia, para poder atacar em massa, abrir caminho através da floresta do istmo e seguir por estreitas passagens sinuosas que um reduzido grupo de homens bastava para defender. Ninguém podia imaginar que um chefe no uso da razão pudesse sonhar em conquistar Panamá. Foi por isso que, quando Campeche, Puerto Bello e Maracaíbo caíram nas mãos dos flibusteiros, os mercadores da Taça de Ouro encolheram os ombros e continuaram a atender as suas ocupações. Era certamente lastimável, deplorável que os seus compatriotas fossem assim maltratados e despojados; para mais, deviam ter esperado isso mesmo. As suas cidades estavam à beira de um oceano perigoso. Panamá devia considerar estes aborrecimentos com piedade, mas sem qualquer inquietação. Deus era infinitamente bom e os negócios... ah! Os negócios iam mal: havia mais dinheiro e os cultivadores agarravam-se aos seus produtos como ladrões.

O governador da Taça de Ouro, Don Juan Pérez de Guzman, era um tranquilo aristocrata que consagrava a sua existência a mostrar-se um perfeito fidalgo e nada mais. Obrigava o seu pequeno exército a fazer exercícios, mudava muitas vezes de uniforme, e cuidava particularmente em casar bem os membros da sua família. Tinha guerreado toda a vida como valente oficial, embora fosse um lastimável estratego. As ordens escritas que dirigia aos seus subordinados eram um autêntico esplendor. Exigia a rendição de uma aldeia índia num estilo irrepreensível. Os habitantes de Panamá gostavam do seu governador: vestia-se muito bem, sabia mostrar-se condescendente, apesar do seu orgulho. Aclamavam-no todos os dias quando percorria a rua principal, seguido por um bando de cavaleiros, num grande rumor de cascos ressoando no solo endurecido. Se o povo tivesse receio de um ataque, a figura marcial de Don Juan teria bastado para o tranquilizar. Tinha o sangue mais nobre e os entrepostos mais ricos da cidade.

Deste modo os burgueses de Panamá viviam muito felizes, partindo para as suas verdes residências campesinas durante a estação quente, regressando para tomar parte nos bailes e nas recepções da cidade na quadra das chuvas.

Um dia chegou-lhes a notícia de que o terrível Morgan se tinha posto a caminho para conquistar a Taça de Ouro. Primeiramente manifestaram uma incredulidade divertida; mas, quando outros mensageiros chegaram, uma actividade febril reinou na cidade. As pessoas precipitaram-se para as igrejas, confessaram-se, beijaram as relíquias e regressaram precipitadamente a casa. Centenas de padres transportando a sagrada hóstia desfilavam pelas ruas em longas procissões. Os penitentes negros flagelaram-se furiosamente e arrastaram por toda a parte a pesada cruz, para que todos a pudessem ver. As brechas das muralhas foram reparadas; os velhos canhões enferrujados não foram substituídos. Don Juan ouviu missa sobre missa, arengou aos cidadãos desnorteados e propôs uma procissão geral.

Começaram a espalhar-se horríveis histórias: os flibusteiros não eram homens, mas criaturas fantásticas com cabeça de crocodilo, garras de leão. Homens graves discutiam as várias probabilidades nas ruas.

- Deus vos bendiga, Don Pedro.

- Deus vos bendiga, Don Guierrmo... ,;; -Que pensais destes bandidos?

- Ah! É horrível, Don Guierrmo; horrível! Dizem que são uns demónios!

- Mas julgais possível que o próprio Morgan tenha três braços e sustente um sabre em cada mão, como ouvi contar?

- Quem vos seria capaz de vos responder, meu amigo? O Diabo tem um grande poder em tudo isto, certamente. O poder do Espírito do Mal não tem limites. É um sacrilégio considerar as coisas desta maneira.

E um pouco mais tarde:

- Diz que ouviu isso a Don Guierrmo? Um homem tão rico não se divertiria a espalhar rumores despojados de qualquer fundamento.

- Limito-me a reproduzir as suas palavras: Morgan pode atirar balas com as pontas dos dedos, e saem-lhe da boca labaredas de enxofre. Don Guierrmo sabe-o de fonte segura.

- Vou contar isso a minha mulher, Don Pedro.

As lendas cresceram de tal modo que os habitantes de Panamá ficaram semiloucos. Recordaram-se os relatos das atrocidades perpetradas pelos flibuteiros nas cidades conquistadas; os mercadores que tinham encolhido os ombros empalideceram de terror. Não podiam acreditar na notícia e, contudo, eram forçados a aceitá-la como verdadeira, porque os piratas se encaminhavam já para Chagres, com o objectivo confessado de tomar e pilhar a Taça de Ouro. Finalmente, sob a pressão das circunstâncias, Don Juan arrancou-se às suas devoções durante tempo bastante para mandar quinhentos homens emboscarem-se na estrada que atravessa o istmo. Um jovem oficial solicitou audiência.

- Então o que temos, jovem? - indagou o governador.

- Que deseja?

- Se tivéssemos touros, senhor, se tivéssemos um grande número de touros bravos - exclamou o oficial num tom deveras excitado.

- Mandem procurá-los! Que se percorra todo o país para encontrar touros! Que se juntem mil!... Mas que vamos nós fazer com eles?

- Devíamos atiçá-los contra o inimigo, senhor.

- Maravilhoso estratagema! Você tem génio, meu rapaz! Mil touros? É uma brincadeira! Que tratem de juntar dez mil dos mais ferozes!

O governador mandou sair os seus dois mil soldados das casernas, passou-lhes revista e voltou a ajoelhar-se na catedral. Don Juan não tinha medo da batalha, mas, como general prudente, reforçava a sua segunda linha de defesa. Para mais, tinha pago tão elevado preço por todas estas missas que por certo deviam ter alguma eficácia.

O primeiro rumor vago que anunciara a aproximação dos flibusteiros empolou e tomou proporções monstruosas. Os trémulos cidadãos começaram a enterrar a sua prataria. Os padres atiraram cálices e candelabros para as cisternas, esconderam as suas relíquias mais preciosas em corredores subterrâneos.

Balboa teria reforçado as muralhas e inundado o pântano vizinho. O exército de Pizarro ter-se-ia posto em marcha pelo istmo ao encontro dos flibusteiros. Mas esses tempos heróicos tinham desaparecido. Os mercadores de Panamá só pensavam nos seus bens, na sua vida e na sua alma - por ordem de importância. Não pensaram de maneira nenhuma em cingir uma espada ou em trabalhar na reparação das muralhas. Isso era com os soldados do rei, que eram pagos com bom dinheiro para proteger os cidadãos. Ao governador incumbia o cuidado de vigiar pela defesa da cidade.

Don Juan passara revista às suas tropas: do seu ponto de vista, um general não podia fazer outra coisa. Os uniformes desafiavam qualquer crítica; os seus soldados teriam podido desfilar com honra em não importa que esplanada da Europa. Enquanto esperavam, uma outra missa só pocíía melhorar as coisas.

Enquanto os flibusteiros delapidavam a sua parte da presa depois do saque de Maracaíbo, Henry Morgan estabelecia com minúcia o plano da sua nova conquista, que exigiria mais homens do que todos aqueles que já alguma vez reunira. Os seus mensageiros partiram para os quatro cantos do mar das Antilhas. O seu convite à pilhagem foi ouvido até Plymouth e Nova Amsterdão, e até nas ilhas forradas de árvores onde os homens viviam como macacos.

«Sereis todos ricos», dizia a mensagem. «Este será o mais formidável golpe que até aqui vibraram os Irmãos da Costa. Levaremos o terror até ao próprio coração da Espanha. A nossa frota reunir-se-á no mês de Outubro no litoral sul da Tortuga.»

Bem depressa homens e navios afluíram ao lugar do encontro; enormes navios novos com velas brancas e a proa esculpida, barcos eriçados de canhões de cobre, velhos cascos apodrecidos com a quilha de tal modo invadida pelas algas que elas se arrastavam pela água como troncos de árvores. Apareceram também as chalupas e as compridas pirogas e os barcos chatos movidos pelos remos da popa. Até as jangadas, com velas de fibras de palma tecidas, chegaram à Tortuga.

Quanto aos homens, havia flibusteiros fanfarrões da ilha; os velhos piratas, peritos da Goaves; franceses, holandeses, ingleses, portugueses; todos os párias do mundo com arneses de combate. Escravos que tinham fugido aos espanhóis chegaram em pirogas repletas. Eram Caraíbas, negros, brancos estremecendo de febre, que se juntavam à expedição, empurrados pela sede do sangue dos seus donos. Pequenos grupos de caçadores apareceram nas praias das ilhas cobertas pela floresta e embarcaram para a Tortuga.

Entre os grandes navios contavam-se altas fragatas e galeões capturados no decurso de antigos combates. Quando chegou o dia da partida, o capitão Morgan dispunha de trinta e sete navios e de dois mil combatentes, sem contar os marinheiros. No número das embarcações estavam três chalupas da Nova Inglaterra, de linhas puras e bem lançadas. Não tinham vindo para combater, mas para fazer permuta: pólvora contra despojos, uísque contra moedas de ouro. A pólvora e o uísque eram as duas grandes armas ofensivas. Para mais, esta gente de Plymouth comprava as velhas balas não utilizáveis para lhes aproveitar o ferro e as cordas que nelas havia.

O capitão Morgan tinha enviado caçadores para os bosques, encarregados de matar búfalos, e navios para o continente, para ali roubarem cereais. Quando regressaram, ficou-se com mantimentos suficientes para uma longa viagem.

À excepção de Coração de Cinza e do seu chefe, mais nenhum homem desta horda poliglota que tinha acorrido para efectuar uma conquista sabia onde tal conquista deveria realizar-se. Ninguém imaginava qual pudesse ser o destino da expedição, nem qual o inimigo que seria necessário combater. Este exército de corajosos bandidos tinha sido atraído pelo nome de Morgan, fiando-se avidamente na sua promessa de despojos ilimitados.

O capitão não tinha ousado revelar o seu destino. Por maior que fosse a sua reputação, os flibusteiros teriam recuado perante um objectivo que consideravam inexpugnável. Se lhes dessem tempo de pensar em Panamá, fugiriam esmagados pelo terror, porque, há mais de meio século, em todas as ilhas que habitavam, se narravam histórias impressionantes acerca do poder e dos meios de defesa da Taça de Ouro. Panamá era uma cidade de nuvens, quase sobrenatural, completamente coroada de raios. Por outro lado, alguns acreditavam que as suas ruas estavam lajeadas de ouro e que cada janela de igreja era talhada numa única esmeralda:

legendas susceptíveis de os atrair desde que não tivessem tempo de pensar no perigo.

Quando os navios ficaram carenados, as velas arranjadas, os canhões polidos e experimentados e os porões repletos de provisões, então Henry Morgan convocou os seus capitães para que assinassem o contrato e para distribuir os comandos.

Reuniram-se na cabina de lambris de carvalho do navio-almirante os trinta valentes que tinham fornecido os navios da expedição. A fragata do capitão Morgan era um belo barco de guerra espanhol, que antes de cair nas mãos dos piratas fora comandado por um duque. A cabina assemelhava-se a um grande salão cujas paredes internas convergiam ligeiramente para o alto. Nas traves do tecto estavam esculpidas vides e leves folhas delicadas. Num dos tabiques tinham estado outrora pintadas na madeira as armas de Espanha, mas quase as haviam feito desaparecer, raspando-as com uma adaga.

O capitão Morgan estava sentado a uma larga mesa de que cada pé representava um leão bizarramente esculpido; à sua volta, em tamboretes, encontravam-se os trinta chefes da sua frota e do seu exército, que aguardavam com impaciência a comunicação.

Via-se ali o capitão Sawkins, de corpo atarracado, rosto sério, em cujos olhos brilhava a chama de um puritanismo fervente, e que justificava os seus assassínios com as Santas Escrituras.

Também ali se via Grippo, com a sua pele acobreada, arruinado pelos anos e pelas suas pequenas infâmias. Tinha acabado por considerar Zeus como um agente de polícia paciente a quem se podia enganar. dissera para consigo, havia pouco, que facilmente se lavaria de qualquer pecado por uma confissão geral e pelo seu regresso ao seio da Igreja: duas coisas que se propunha fazer, depois de uma expedição lhe ter fornecido um candelabro, oferenda propiciatória destinada ao padre que lhe daria a absolvição.

Holbert e Tegna, Sullivan e Meythern estavam sentados muito perto do capitão Morgan. Num recanto sombrio, dois homens que todos os Irmãos da Costa sabiam que eram inseparáveis. Chamavam-lhes muito simplesmente o Borguinhão e o Outro Borguinhão. O primeiro, homenzinho gordo com uma cara de lua cheia, vermelha e balofa, era nervoso e impressionável. A mais insignificante nota de atenção em público embaraçava-o furiosamente. Quando lhe dirigiam a palavra, a face tornava-se-lhe roxa, e fazia pensar num escaravelho que procura desesperadamente dissimular-se debaixo de uma tábua. O seu companheiro, o Outro Borguinhão, considerava-se o seu defensor e o seu guia. Era maior e mais forte, se bem que lhe tivessem amputado o antebraço esquerdo. Só era possível vê-los juntos; falavam raras vezes um com o outro, mas o braço válido do Outro Borguinhão rodeava sempre os ombros do seu amigo com um gesto protector.

O capitão Morgan proferiu a sua alocução com uma voz dura. Fez-se um grande silêncio enquanto lia as cláusulas do contrato. Todo o homem que levasse um barco teria direito a tal foro; um carpinteiro com a sua ferramenta receberia a quantia de tanto; seria constituído um fundo em benefício dos parentes dos mortos. Depois vinham as recompensas: para o primeiro homem que se desse conta de um inimigo, que matasse um espanhol, que penetrasse na cidade... Os artigos chegaram ao fim.

- Agora assinem - ordenou o capitão Morgan. Os seus oficiais dirigiram-se para a mesa com um passo pesado e rabiscaram o seu nome ou uma cruz.

Depois de terem regressado aos seus lugares, Sawkins levantou a voz:

- As recompensas são quatro vezes maiores do que o costume. Por que razão?

Em virtude da sua educação, Sawkins detestava o desperdício.

- Os homens irão precisar de toda a sua bravura - respondeu Henry Morgan num tom calmo. - Terão também necessidade de encorajamento, pois partimos para Panamá.

- Panamá! - exclamaram vozes consternadas.

- Sim, Panamá. Não vos esqueçais de que assinastes, e que enforco os desertores. Olhai pelo moral dos vossos homens. Vós conheceis muito bem a riqueza da Taça de Ouro para lhes fazer crescer água na boca: eu conheço suficientemente os perigos da expedição para saber que podem ser vencidos.

- Mas... Panamá...-balbuciou Sawkins.

- Enforco os desertores - declarou o capitão Morgan num tom seco. E, dito isto, abandonou a cabina. Coração de Cinza manteve-se ali para ouvir as considerações que lhe permitiriam avaliar o estado de espírito dos chefes.

Houve um longo silêncio: todos se lembravam do que tinham ouvido dizer a respeito de Panamá.

- A empresa é perigosa - declarou por fim Sawkins - mas o perigo é compensado pela imensa riqueza. Aliás, capitão jurou que conhecia a planta da cidade e todos os riscos da batalha.

Estas últimas palavras serenaram os outros: se o capitão Morgan sabia tudo isso, não tinham mais nada a recear, pois Morgan era infalível.

Bem cedo se começaram a trocar considerações febris:

- Dinheiro? Pisam-no aos pés. Ouvi dizer que a catedral...

- Mas a floresta é intransponível.

- Há um excelente vinho em Panamá: já o provei muitas vezes.

Depois, bruscamente, todos estes homens pensaram na Santa Vermelha.

- Vejamos, há lá em baixo essa mulher... La Santa Roja.

- Por Deus, é verdade. Qual de nós irá ficar com ela?

- O capitão não se interessa nada por mulheres. Creio que é o Coração de Cinza, aqui presente, o que tem mais possibilidades.

- É possível. Mas Coração de Cinza está destinado a morrer sob o punhal de qualquer ciumento. Pessoalmente, matá-lo-ia sem remorsos, pois se não morresse debaixo da{ minha adaga, morreria sob a de qualquer outro.

- Como te arranjarias para conseguir os favores de semelhante mulher? O chicote não me parece recomendável em semelhante circunstância.

- Por Deus, para dizer a verdade, sempre verifiquei que os dobrões constituíam o meio de sedução mais eficaz.

- Não, não, não concordo contigo; eu sou de opinião que quase todas as mulheres estão prontas a readquirir os seus diamantes pelo preço da sua virtude.

- Que pensa de tudo isto o velho maneta, o Outro Borguinhão? Eh, camarada, terás por acaso intenção de te apoderares da Santa Vermelha para a dar ao teu amigo?

O interpelado levantou-se e inclinou-se.

- Tal não é necessário - disse ele. - O meu amigo é muito capaz de se servir a si próprio. Na verdade, poder-lhes-ia contar uma história... Dás-me licença, Emil? - continuou, virando-se para o seu companheiro.

O Borguinhão pareceu desenvolver os maiores esforços para se meter pela parede, mas acabou por fazer um aceno de cabeça aprovador.

- Nesse caso, senhores, aqui vai a minha história. Havia outrora na Borgonha quatro amigos: três que extraíam um pouco de leite agro das tetas da arte, e um outro que possuía grandes bens. Havia também uma rapariga adorável: bela, perfeita, uma autêntica Circe. E os quatro amigos apaixonaram-se perdidamente por esta esplêndida criatura.

«Cada um deles lhe devotou aquilo a que mais queria. O primeiro derramou a sua alma num soneto que depôs a seus pés; o segundo encheu uma viola com o nome da sua bela; e eu... o terceiro, quero eu dizer... pintou os traços do seu róseo rosto. Eis como estes três artistas disputaram a bela uns atrás dos outros, muito amigavelmente, para lhe conquistar o coração. Mas o quarto mostrou-se mais artista do que nós. Calmo e subtil, conseguiu a vitória graças a um magnífico gesto de actor. Abriu inteiramente a sua vasta mão, como esta, e revelou no escrínio da sua palma carnuda uma pérola rosa de um oriente sem rival. E casaram-se.

«Ora bem depressa, depois do casamento, Delphine manifestou mais virtudes do que aquelas que se lhe conheciam.


Este modelo afirmou-se uma esposa perfeita e, ainda por cima, transformou-se numa estranha e discreta amante não de um só amigo do marido, mas dos três. Emil, o marido, não se deixou perturbar: gostava dos seus três companheiros, esses pobres diabos que eram verdadeiros amigos.

«Pois bem, existirá uma força mais cega, mais estúpida do que a opinião pública? Nesta circunstância, provocou duas mortes e um banimento. Pensem bem nisto, senhores: ela forçou Emil a desafiar em duelo os seus três amigos. Mesmo então, tudo poderia acabar num abraço fraterno - «meu caro, agora a minha honra está salva» - se não fosse o hábito deplorável de Emil deixar a ponta da sua espada na carne em putrefacção. Dois dos homens morreram; eu perdi o meu braço.

«Então voltou a intervir a opinião pública, como um boi pesado e poderoso. Depois de ter imposto os duelos, forçou o vencedor a deixar a França. E aqui está Emil a meu lado: amante, homem de espada, artista, proprietário. A opinião pública... mas afastei-me do meu propósito no fogo do meu ódio a esta força. O que eu lhes queria dizer é que Emil não pede nem consideração nem piedade. Quando olhamos para ele, bem sei, poder-se-ia pensar que um bando de formigas vorazes lhe roeu a alma. Mas coloquem à sua frente um objecto muito belo ou deixem que a imagem da Santa Vermelha se vá reflectir nos seus olhos, e verificarão que tenho estado a dizer a verdade. É calmo; é subtil; é um artista. Enquanto outros gritam: «Virilidade! Força! Violação!», Emil traz na algibeira uma pérola rosa como afrodisíaco.»

 

Uma frota de barcos chatos vogava no rio Chagres e cada embarcação estava de tal modo carregada de Irmãos da Costa, que qualquer sobrecarga, por mais leve que fosse, a teria feito naufragar. Iam ali franceses, de carapuça raiada e largas calças flutuantes, que, vindos um dia de Saint-Malo ou de Calais, não tinham hoje pátria para onde voltar. Alguns lanchões estavam cheios de cockneys de dentes pretos, quase todos muito sujos e, certamente, uns grandes mariolas. Noutros, havia holandeses taciturnos e cabeçudos, pesadamente derreados nos seus bancos, que olhavam para a água da ribeira com um ar meditativo.

Os pesados lanchões quadrados eram puxados à vara por caraíbas e cimarones, guerreiros ferozes e alegres, tão gulosos de combates que consentiam em dobrar os ombros bronzeados sob o fardo do trabalho, desde que lhes oferecessem sangue como recompensa. Uma parte deste desfile de piratas compunha-se de negros recentemente evadidos das prisões espanholas. Bandoleiras vermelhas atravessavam-lhes o peito nu como grandes chagas. O seu chefe, um rapagão enorme com ar bestial, trazia como único trajo uma cinta de couro amarelo e um chapéu de cavaleiro cuja pluma lhe pendia molemente até ao queixo luzidio.

A interminável fila das embarcações seguia ao longo das margens. Os ingleses cantavam em falsete, canções de marinheiros, balançando os corpos para marcar o ritmo; os franceses celebravam em surdina as amantes que tinham tido; os cimarones e os negros empenhavam-se em intermináveis monólogos que não se dirigiam a ninguém em particular.


O Chagres descrevia formidáveis meandros em anéis e em forma de ferradura. A água amarelada aflorava timidamente os cascos. Depois de se ter manejado a vara todo o dia, acontecia que, quando a noite caía, se acampava a uma meia milha em linha recta do ponto de partida. Este rio preguiçoso e apático estava semeado de ínsuas de que a areia brilhava ao sol. Cumpria como amador a eterna tarefa de todos os cursos de água: alcançar o mar com tão poucos esforços e preocupações quanto fosse possível. O Chagres sonhava sinuosando através do campo, e parecia sentir repugnância por se ir perder nas vagas atormentadas.

Ao cabo de algum tempo, os barcos acabaram por chegar a uma região onde a floresta densa se despenhava até à margem do rio e parava num penacho recurvado, como uma onda de esmeralda paralisada. Leopardos mosqueados erravam entre os troncos de árvores e contemplavam curiosamente os homens com os seus olhos tristes. Às vezes uma grande serpente libertava-se da raiz ardente onde tinha estado a dormitar em pleno sol e lançava-se à água, com a cabeça levantada, para ver melhor este desfile inédito. Tribos de macacos sobreexcitados precipitavam-se no meio das lianas, parecendo não gostar que os incomodassem. Lançavam urros indignados e atiravam bocados dos ramos para os barcos. Mil e quatrocentos estrangeiros invadiam a floresta sagrada: o macaco mais sarnento tinha o direito de protestar.

O calor tinha aparecido bruscamente, como um acesso de febre, pesado, morno, bestializante. Nos lanchões, as canções tornaram-se mais lentas e apagaram-se, como se tivessem atirado coberturas quentes em cima dos homens. Os flibusteiros quedaram derreados, inertes, nos seus bancos.

Mas os índios continuaram a manejar a vara com um movimento ágil e regular. Os músculos deslizavam-lhes ao longo dos braços magníficos, enroscavam-se e desenroscavam-se nos seus ombros semelhantes aos anéis de uma serpente. Na cabeça perpassavam-lhes visões de sangue e de morticínio. «Para a frente!», dizia-lhes o cérebro. «Para a frente! A batalha está ao alcance da mão! Para a frente! Para Panamá! As savanas do sangue estão a dois passos de distância!»

O dia longo e ardente chegava ao fim e os flibusteiros não se tinham dado conta de um único ser humano nas margens. Isto era grave, porque as embarcações não carregavam víveres, por falta de espaço. Todo o lugar disponível tinha sido consagrado aos homens e às armas. Na ocorrência, a água aflorava a baixa estrutura das jangadas que levavam as peças de artilharia. Todos sabiam que o rio Chagres estava marginado por várias plantações onde um exército esfomeado se podia sustentar: por isso os piratas tinham embarcado para Panamá sem provisões. Mas, se bem que tivessem perscrutado as margens durante todo o dia, só se tinham dado conta da verde confusão da floresta.

Ao cair da noite, o primeiro barco chegou à altura de um pequeno embarcadouro. Uma espiral de fumo elevava-se preguiçosamente atrás de uma fileira de grandes árvores. Os flibusteiros, lançando gritos de alegria, saltaram dos lanchões e alcançaram a margem chapinhando na água. Pragas desesperadas saíram-lhes da boca: as construções estavam queimadas e abandonadas. O fumo rompia de um amontoado enegrecido que tinha sido um celeiro onde os homens não encontraram a menor parcela de alimentação. Marcas profundas que se enterravam na floresta assinalavam a trilha seguida pelo gado, mas eram já velhas de dois dias.

Os piratas voltaram aos barcos. Muito bem, se assim era teriam de passar sem comida! A fome fazia parte da guerra: deviam esperar isso e aguentá-la. Amanhã, sem nenhuma dúvida, encontrariam casas com adegas repletas de vinhos deliciosamente frescos, currais onde vacas gordas remoíam estupidamente enquanto esperavam ser abatidas. Um flibusteiro digno desse nome devia mostrar-se pronto a vender a vida por um copo de vinho envinagrado ou por uns poucos minutos de relações com uma mestiça de pele bronzeada. Eram as alegrias da existência, e aquele que era apunhalado antes de acabar o vinho ou a conversa não tinha de que se lamentar; pelo contrário, a fome... Mas, para quê recriminações? Amanhã haveria certamente algo para comer.

No dia seguinte, o Sol levantou-se como uma úlcera inflamada no céu lívido. De novo, nas ribas do rio de meandros insensatos, só viram plantações abandonadas e não encontraram o menor traço de alimentação. A notícia da sua invasão tinha-os precedido, tal uma mensagem de espanto anunciando a peste. Não havia ficado um homem nem um animal para os receber.

No terceiro dia, descobriram peles de vacas por curtir, que amoleceram entre duas pedras antes de as comer. Alguns deles tinham já roído uma parte do cinto. De outra vez, conseguiram recuperar algum milho queimado num celeiro que ainda estava em chamas, e vários deles morreram com atrozes sofrimentos depois de se terem saciado vorazmente.

Os homens puseram-se a caçar pela floresta, procurando entre as árvores qualquer criatura viva que servisse para comer. Os próprios gatos e macacos pareciam ter pactuado com Espanha. A floresta estava silenciosa e deserta: sobravam apenas insectos alados. De tempos a tempos uma serpente era apanhada e assada, enquanto o feliz caçador ficava de guarda junto do seu repasto com um ar aborrecido. Alguns ratos caíram nas mãos dos piratas, mas foram engolidos imediatamente para evitar que fossem roubados.

No quarto dia, o rio tornou-se muito pouco profundo para permitir a navegação. Os canhões foram descarregados para a margem e arrastados à força de braços ao longo de um atalho muito apertado. Os flibusteiros espalharam-se numa coluna desordenada, enquanto, à frente deles, grupos de índios, esgotando a energia no seu sonho sanguinário, abriam uma picada na floresta com largos golpes das suas grandes facas. Os aventureiros descobriram pequenos grupos de espanhóis em fuga e, por diversas vezes, alguns índios jorravam dos bosques como bandos de codornizes espantadas; contudo, nenhum inimigo se deteve para travar combate. Num dado momento, ao lado da picada descobriram uma emboscada deserta: uma parede de terra e as cinzas de várias fogueiras de campanha. O terror tinha-se apoderado dos soldados que se tinham posto em fuga sem combater.

À medida que os homens se aproximavam de Panamá o seu entusiasmo diminuía sem cessar. Amaldiçoaram o seu chefe, que era incapaz de lhes fornecer víveres, e só avançavam arrastados pelo seu exemplo.

Desde o início que ele marchava à frente, mas agora, à cabeça das suas tropas esgotadas, o próprio Henry Morgan começava a perguntar-se se desejava verdadeiramente apoderar-se de Panamá. Tentou recuperar a força que o tinha posto em marcha, o íman de uma beleza desconhecida: ora a imagem da Santa Roja tinha-se esfiampado na sua imaginação à medida que a sua fome ia aumentando. Apesar de tudo, mesmo se o seu desejo acabasse por desaparecer inteiramente, devia prosseguir o seu caminho. Uma única fraqueza, um momento de indecisão, dispersaria os seus êxitos como um bando de pombos.

Coração de Cinza, o seu fiel companheiro, não o tinha abandonado um único momento desde o dia da partida. Presentemente, o jovem, macilento e derreado, continuava a caminhar titubeando ao lado do seu capitão. Henry Morgan lançou ao seu amigo um olhar onde havia orgulho e piedade. No fundo dos olhos cavos enterrados nas órbitas, viu brilhar um clarão que parecia anunciar a eminência da loucura. O chefe dos piratas sentiu-se menos só: Coração de Cinza tinha-se tornado parte integrante do seu ser.

O calor descia do céu como uma chuva ardente. Feria o solo de onde depois subia lentamente, carregado de humidade e do odor nauseante das folhas e das raízes em decomposição. Coração de Cinza deixou-se cair de joelhos, mas levantou-se logo para retomar penosamente o seu caminho. Henry Morgan, vendo-o cambalear, lançou um olhar indeciso à picada que se estendia à sua frente.

-Talvez devêssemos parar aqui-disse ele. - Os homens estão esgotados.

- Não, continuemos - replicou Coração de Cinza. - Se fizermos alto, a nossa tropa só conseguirá estar mais fraca quando continuarmos o caminho.

- Pergunto a mim mesmo a razão que te faz estar tão empenhado em continuar esta expedição. Vais sempre para a frente, enquanto eu próprio começo a duvidar do êxito. Que esperas encontrar em Panamá?

- Tanto como os meus camaradas. Estará a tentar, acaso, lançar-me uma armadilha para me obrigar a dizer que não lhe sou leal? Sei que a cidade lhe pertence mesmo antes de lá chegarmos; admito-o sem qualquer restrição, senhor. Quanto a mim, não tenho nenhuma razão especial para ir a Panamá: assemelho-me a uma grande pedra redonda que desaba ao longo de uma encosta depois de se lhe ter dado impulso, e esse foi o senhor que mo deu.

- É na verdade estranho que deseje Panamá tão ardentemente.

Coração de Cinza volveu para o seu chefe um rosto congestionado pela cólera:

- Não deseja Panamá de modo algum. É essa mulher que deseja, não Panamá - declarou, num tom amargo, apertando as têmporas com as palmas das mãos.

- Tens razão - assentiu Henry Morgan, num murmúrio.- É verdade que desejo essa mulher; mas é ainda mais estranho...

- Estranho? - exclamou o jovem com furor. - Porque será estranho desejar uma mulher que sabemos ser bela? Acha então que todos os seus homens são estranhos, assim como todos os animais machos da Terra? O seu desejo é o desejo de um deus, e o seu corpo, o corpo de um Titã? Estranho! Ah! Decerto que sim, capitão: a cópula e a sede de copular são coisas extraordinárias entre os humanos!

Henry Morgan sentiu um espanto imenso a que se misturava o receio, como se acabasse de ver passar um fantasma repugnante. Seria possível que os seus homens sentissem os mesmos sentimentos que ele?

- Há em mim uma coisa diferente do simples apetite sexual, Coração de Cinza. Tu não podes compreender a natureza do meu desejo. Parece-me aspirar a uma paz com que não ouso sonhar. Esta mulher é a angra de tudo o que procuro. Ela não representa para mim uma amante com traços e seios fascinantes, mas um momento de calma depois do tumulto, um perfume depois do odor fétido. Sim, tal coisa parece-me estranha. Quando rememoro os anos passados, a actividade que desenvolvi desconcerta-me. Despendi esforços terríveis para conquistar estúpidas ninharias douradas. Ignorava o segredo que faz de toda a terra um imenso camaleão. As minhas pequenas guerras surgiam-me como a agitação confusa de um estrangeiro, de um desconhecido que não conseguia mudar a cor do mundo. Outrora, estava desesperado por ver cada uma das minhas satisfações morrer-me nos braços. Contudo, não havia qualquer razão para me espantar com elas estarem mortas: desconhecia o segredo. Não, tu não podes compreender a natureza do meu desejo.

Coração de Cinza continuava a apertar as têmporas com as mãos.

--Desse modo, julga-me incapaz de compreender? indagou num tom desprezador. - Bem sei: reputa os seus sentimentos como descobertas de uma importância considerável, e os seus desaires parecem-lhe não terem precedente. A sua monstruosa vaidade não lhe permite encarar que o Kokney que está atrás de si - sim, esse que às vezes se rrebola pelo chão em crises de epilepcia - possa conhecer esper-anças e desesperos iguais aos seus. Não pode acreditar que esses homens sintam com a mesma violência. Sem dúvida me julgará atingido pela loucura se lhe dissesse que desejo essa mulher com a mesma violência, ou que poderia recitar galantarias à Santa Roja bem melhor do que o senhor!

O capitão Morgan tinha corado sob o chicote dessas palavras, mas recusava-se a acreditar nelas: era insensato pensar que esses homens fossem capazes de sensações idênticas às suas. Tal comparação envilecia-o.

- Está a perguntar a si mesmo a razão por que lhe conto tudo isto - continuou Coração de Cinza. - Vou-lho dizer: o sofrimento está a enlouquecer-me e sinto que vou morrer.

Deu ainda alguns passos em silêncio; depois lançou um grito dilacerante e desabou pesadamente em terra.

Morgan esteve a olhá-lo durante um longo minuto, depois uma imensa vaga de desespero invadiu-lhe o peito. Nesse instante compreendeu quanto amava o jovem, e soube de certeza que não poderia suportar a sua perda.

Ajoelhando-se perto do corpo inerte, gritou ao flibusteiro mais próximo:

-Agua, depressa!

Como o homem se contentasse a olhá-lo com olhos espantados, pousou a mão na coronha de uma das pistolas que trazia à cinta, e repetiu com voz ameaçadora:

-Água! Agua, imediatamente!

Trouxeram-lha num chapéu. Todos os piratas viram o seu capitão, tão frio e tão distante, acariciar os cabelos de Coração de Cinza, empapados de suor...

O jovem abriu lentamente os olhos e tentou levantar-se.

- Peço-lhe que faça o favor de me desculpar, senhor.

Mas dói-me tanto a cabeça... O sol encortiçou-me o cérebro... Levante-se, senhor, peço-lhe! Os homens deixarão de lhe ter respeito se o virem assim ajoelhado.

- Não te mexas, rapaz, não te mexas! Por um instante, pensei que estavas morto, e o mundo desmoronou-se à minha volta. Agora sinto-me novamente feliz... Deixa-te estar deitado, não te mexas... Agora tomaremos a Taça de Ouro, que será para nós um cálice de duas asas.

Tomou nos braços Coração de Cinza e levou-o para a sombra de uma grande árvore. Os flibusteiros estenderam-se ao sol enquanto o seu tenente recuperava forças.

Coração de Cinza, encostado ao tronco da árvore, sorria afectuosamente ao seu capitão com uma doçura estranhamente feminina.

- Sou realmente comparável ao cockney? - perguntou Henry Morgan num tom melancólico.-Serei realmente semelhante a esse pobre diabo sujeito a crises de epilepsia?

- Não conhece nada os seus homens - continuou o outro, rindo. - Pode estar orgulhoso de ser parecido com eles. Dê-me licença que lhe fale dele, pois, do seu ponto de vista, não passa de um boneco de pau que só presta para receber ordens. Chama-se Jones. Durante toda a sua vida desejou pregar o Evangelho. Tomou as suas crises como visitas do Espírito Santo, como provas preliminares para uma missão divina. Um dia em que arengava à multidão, em cima de um marco, foi preso pela ronda, encarcerado como vagabundo e expedido para as ilhas. Depois de ter servido o seu tempo, fez-se pirata para poder ganhar o seu pão. No decurso de uma divisão de despojos, a sorte atribuiu-lhe uma escrava, uma espanhola com sangue negro nas veias. Casou com ela para salvar a sua reputação, não sabendo quão pouco lhe restava para salvar. Ora, senhor, sua mulher, católica convicta, não o autoriza a ler a Bíblia quando está em casa. E está persuadido de que circunstâncias adversas o afastaram do êxito; não do êxito como qualquer de nós o entende, mas daquele que Deus dispensa por favor especial. Julga ele que poderia ter sido um Savonarola protestante.

- Mas as suas crises... as suas horríveis crises... vi-as com os meus olhos...

De novo o jovem desatou a rir.

- As suas crises? Meu Deus, elas constituem um dom, uma herança.

- E acreditas que é dotado de sentimento?

- Sim, senhor. Lembre-se disto: casou com uma escrava para salvar a sua reputação e conservou-a em casa depois de ter descoberto o que ela era na realidade. Vai vê-lo reclamar timidamente um crucifixo quando se dividirem os despojos. Vai-lhe trazer um crucifixo de Panamá. Pense nisto, senhor! É um separatista e detesta os crucifixos!

Os flibusteiros forçaram-se a seguir a marcha para a Taça de Ouro. Tinham comido couro e raízes amargas, roedores, macacos e serpentes. As faces encovavam-se-lhes como taças sob as maçãs do rosto, e os olhos brilhavam-lhes de febre. Agora que o seu entusiasmo tinha desaparecido, deixavam-se arrastar para diante pela certeza que tinham do sucesso infalível do capitão. Morgan não podia fracassar porque nunca tinha fracassado. Devia ter certamente um plano que lhe meteria no bolso todo o ouro do Novo Mundo. E a palavra «ouro», se bem que tivesse perdido o sentido concreto, era mais importante que a palavra «fome».

Na manhã do oitavo dia, um batedor veio ter com Henry Morgan.

- O caminho está bloqueado, capitão. Os espanhóis levantaram um parapeito de terra armado de canhões.

Obedecendo à ordem dada, a cabeça da ondulante coluna flectiu para a esquerda e abriu lentamente um caminho através dos bosques mais densos. Ao cair do sol, os flibusteiros chegaram ao cume de uma pequena colina redonda, de onde avistaram Panamá a seus pés, banhada pela luz de ouro do astro que declinava. Todos examinaram o rosto do vizinho para estarem certos de não serem vítimas de uma alucinação.

Um dos piratas caminhou até ao bordo extremo do cume da colina, deteve-se bruscamente e começou a gritar como um louco. Depois os seus camaradas viram-no descer a encosta a correr, de sabre em punho. Um rebanho de gado, abandonado por qualquer espanhol negligente, pastava numa concavidade abaixo deles. Num instante os mil e quatrocentos homens desabavam ao longo da encosta. Mataram os animais com grandes estocadas e machadadas. Depressa o sangue encharcou a barba dos flibusteiros esfomeados, e as suas camisas ficaram manchadas de vermelho. Durante o dia encheram-se de carne, até que o sono os dominou.

Aproveitando a escuridão, os batedores percorreram a planície como lobisomens, infiltraram-se até perto das muralhas e contaram os soldados que estavam diante da cidade.

De madrugada, o capitão Morgan acordou as suas tropas e reuniu-as para lhes dar as suas instruções antes da batalha. Tinha chegado a conhecer bem a alma dos flibusteiros. Exaltou o espírito dos seus homens e preparou-os para o combate.

Primeiramente, falou dos seus receios:

- Daqui ao ancoradouro dos barcos, à embocadura do rio, é preciso contar nove dias de marcha sem comida. Nunca ninguém poderia lá chegar, mesmo se quisésseis fugir. E Panamá está ao alcance da vossa mão. Enquanto dormíeis como porcos, os batedores não ficaram inactivos. Diante desta cidade estão reunidos quatro mil soldados de infantaria, com cavaleiros nas duas extremidades. Não se trata de campónios armados com espingardas e punhais, mas de soldados bem treinados. Para mais, juntaram um certo número de touros que devem ser largados contra vós, vós, os caçadores de gado!

Estas últimas palavras foram seguidas por um imenso estouro de risadas. Muitos destes homens tinham vivido na floresta, e tirado a sua subsistência da caça aos búfalos bravos.

Depois, o capitão dirigiu-se à sua cupidez:

- A cidade encerra mais ouro e jóias do que aquelas que poderíamos contar. Se triunfarmos, ficareis todos ricos.

À sua fome:

- Pensai nas carnes assadas, nos tonéis de vinho nas adegas, nos doces de espécies.

À sua luxúria:

- Encontrareis em Panamá milhares de mulheres, escravas ou livres. Só tereis a dificuldade da escolha na multidão que vos cairá nas mãos. E não se trata de camponesas mal-amanhadas, mas de grandes damas deitadas em leitos de seda. Podeis imaginar o contacto da seda na vossa pele?

Finalmente, porque os conhecia a fundo, brandiu o estandarte da sua vaidade:

- Os nomes daqueles que tomarem parte nesta batalha ocuparão um lugar muito alto na História. Trata-se de uma guerra gloriosa e não de uma simples pilhagem. Imaginai os habitantes da Tortuga, apontando-vos a dedo e dizendo: «Aquele tomou parte na tomada de Panamá. É um homem rico e um herói.» Pensai que todas as mulheres da Goaves correrão atrás de vós quando estiverdes de regresso. A Taça de Ouro está diante de vós. Ireis fugir? Muitos tombarão hoje no campo de batalha; mas os sobreviventes levarão todo o ouro de Panamá nos seus bolsos.

Uma aclamação rouca se elevou. Os franceses enviaram a Henry Morgan beijos com a mão; os caraíbas pairaram rolando os seus grandes olhos; os holandeses olharam a cidade branca com um ar vago.

- Uma última palavra - concluiu o capitão. - Como conheço bem os Espanhóis, sei que as suas tropas serão colocadas numa única linha, porque gostam da parada. Ordeno-vos que façais convergir o vosso fogo para o centro; uma vez enfraquecido esse ponto, carregareis e dividi-los-eis em dois grupos.

Espalharam-se pela planície como uma nuvem espessa. Duzentos atiradores de primeira caminhavam na linha avançada.

Ora Don Juan, governador de Panamá, mantinha-se muito perto da cidade à frente do seu impecável exército: uma longa fileira de infantes agrupados em companhias de

duas filas. Lançou um olhar desprezador para as formações irregulares do inimigo e deu quase alegremente o sinal do primeiro assalto.

Os cavaleiros espanhóis fragmentaram-se, girando e redemoinhando através da planície, desenhando ora um V, ora um quadrado vazio. Deslocando-se a galope, entregaram-se às evoluções complicadas de uma revista, traçaram triângulos e um T. Num dado momento, todos os sabres fulgiam ao sol; depois um girar do punho fazia-os desaparecer. Don Juan soltou um suspiro de admiração.

- Olhem para aquilo, meus amigos; ornem para Rodriguez, o meu capitão favorito. Ah! Rodriguez! Fui realmente eu que te ensinei tudo isso? Serás realmente tu aquele a quem ainda há pouco trazia nos meus braços? Nesse tempo eras um bebé; agora, és um homem e um herói. Reparem na segurança, na precisão das suas manobras. Que magnífico oficial! Pode fazer dos seus homens aquilo que quiser. Como poderiam esses ignóbeis flibusteiros vencer os meus cavaleiros?

Rodriguez, à frente das suas tropas, pareceu ouvir os louvores do governador. Bambeou o torso, levantou-se nos estribos e deu o sinal de carregar. Os clarins fizeram ouvir um toque animado. Os cascos dos cavalos esmagaram o capim com um rumor surdo. Os cavaleiros despenharam-se como uma vaga vermelha coroada de prata. O seu chefe virou-se na sela e contemplou com orgulho os centauros que se precipitavam na sua esteira, executando as suas ordens como membros múltiplos de um único grande corpo dirigido pelo seu cérebro. Cada sabre estava alinhado ao longo do pescoço de um cavalo. Rodriguez virou-se outra vez para lançar um último olhar à sua cidade bem amada, antes do choque... E depois todos esses belos soldados investiram num pântano. Sabiam que estava ali, mas, na exaltação das manobras, tinham-se esquecido da sua existência. Num instante, a cavalaria do Panamá ficou reduzida a uma massa confusa de homens e de animais abatidos.

Don Juan contemplou com ar estupidificado o caos de corpos mutilados que se torciam no solo esponjoso, depois rebentou em soluços como uma criança a quem partiram um brinquedo. O governador não sabia agora que fazer. Um profundo desespero obnubilava-lhe o cérebro. Encaminhou-se para a cidade a passos lentos, com a intenção de ir ouvir uma missa à catedral.

O estado-maior espanhol parecia ter sido atingido pela demência. Uniformes vermelhos e dourados precipitavam-se em todas as direcções. Os oficiais berravam ordens ao mesmo tempo. Finalmente, o jovem tenente que tinha reunido o gado conseguiu fazer-se ouvir:

«Larguem os touros», berrou ele muitas vezes, até que o seu grito foi repetido pelos outros. Os índios que sustinham os animais arrancaram-lhes os anéis dos narizes e empurraram-nos para diante com golpes brutais de aguilhão. Lentamente, a manada desfez-se. Depois um monstro de pêlo ruivo começou a trotar pesadamente, logo imitado pela horda inteira.

- Vão esmagar esses bandidos no capim - observou um oficial espanhol num tom sentencioso. - Nos pontos onde eles passarem, só encontraremos no solo ensanguentado botões e armas partidas.

Os touros galopavam calmamente para a linha irregular dos flibusteiros. Bruscamente os duzentos atiradores de primeira ajoelharam e abriram um fogo rápido. Uma muralha de mugidos e de brutalidades pareceu erigir-se diante dos animais lançados a toda a velocidade. Aqueles que estavam indemnes detiveram-se bruscamente, farejaram o sangue, deram meia volta e, atingidos pelo terror, precipitaram-se para as fileiras espanholas. O oficial tinha razão: nos pontos onde eles passaram não restou nada, além de botões, armas partidas e tufos de erva ensanguentados.

Aproveitando o horror suscitado por esta corrida trágica, os piratas começaram o ataque. Atiraram-se para a brecha aberta pelos touros e empurraram para a direita e para a esquerda os infantes divididos em dois grupos. Retiniram alguns gritos de guerra, mas esses soldados do exército regular não podiam compreender a maneira de combater dos flibusteiros. Esses terríveis vagabundos matavam com ambas as mãos, rindo às gargalhadas. Os espanhóis fizeram-lhes frente durante alguns momentos, depois a coragem abandonou-os e fugiram para a floresta para ali se esconderem. Pequenos grupos de flibusteiros foram em sua perseguição e passaram a fio de espada aqueles que caíram de esgotamento. Bem depressa os defensores de Panamá se dispersaram pelos quatro cantos do horizonte. Alguns treparam para as árvores para se dissimularem entre a folhagem, outros fugiram para as montanhas e nunca mais foram encontrados. A Taça de Ouro estava à mercê de Henry Morgan.

Uma horda ululante ultrapassou a porta desprovida de defensores e subiu a rua principal. Em cada encruzilhada uma parte da coluna mudava de direcção, tal um rio cujas águas tivessem refluído para o leito dos seus afluentes. De tempos a tempos, um grupo destacava-se do grosso da tropa e encaminhava-se para uma das imponentes residências. Vigorosos pontapés eram dados na porta; seguidamente os assaltantes lançavam-se contra o batente, que vergava para dentro como a capa de um enorme livro. Os homens chocavam-se na entrada; ouviam-se alguns gritos; depois reinava o silêncio. Uma velha mulher debruçou-se à janela e examinou os invasores com curiosidade. Os seus traços exprimiram uma viva decepção.

- Eh! - gritou ela, dirigindo-se a uma vizinha. - Olhe para isto! Estes bandidos parecem-se muito com espanhóis: não são demónios, mas homens.

E meteu a cabeça para dentro, como se o facto de serem simples mortais fosse um roubo que lhe fizessem.

No decorrer da tarde, rebentou um incêndio. Grandes labaredas irromperam para o céu. Uma rua inteira começou a arder, e bem depressa metade da cidade foi pasto das chamas.

Henry Morgan dirigiu-se ao palácio do governador para lá estabelecer o seu quartel-general. Ali, na soleira da porta, encontrou Don Juan Pérez de Guzman com uma espada nua

na mão.

- Sou o governador - disse ele com uma voz entrecortada. - Os meus concidadãos contavam comigo para os defender deste flagelo. Não o consegui; talvez consiga matá-lo.

Henry Morgan baixou os olhos. A visão deste homem que já não dominava os nervos perturbava-o profundamente.

- Não dei ordem para lançarem fogo - disse ele. Julgo que alguns dos vossos escravos tomaram esta iniciativa para se vingarem.

Don Juan deu um passo em frente e gritou:

- Defenda-se!

O capitão Morgan não se mexeu.

A espada caiu da mão do governador.

- Sou um abominável cobarde! - exclamou ele. - Porque se recusou a combater? Ah! Como sou cobarde! Esperei muito. Deveria cortar-lhe o pescoço sem proferir uma única palavra. Há bocadinho quis morrer para remir o meu fracasso, morrer e arrastá-lo na morte para apaziguar a minha consciência. Panamá desapareceu, e eu também tenho de desaparecer. Um membro poderá continuar a viver depois da morte do corpo? Mas, agora, já não posso morrer, não tenho coragem para isso. E também já não o quero matar. Ah! Se eu tivesse sabido agir prontamente! Se não tivesse falado...

Ultrapassou a porta, e dirigiu-se para o campo. Henry Morgan viu-o sair da cidade cambaleando como um bêbedo.

Vieram as trevas. Quase toda a cidade ardia, como um jardim de chamas vermelhas. O campanário da catedral desabou no meio de uma imensa girândola de faúlhas. Panamá agonizava num leito de fogo, e os flibusteiros matavam as

pessoas nas ruas.

Durante toda a noite o capitão Morgan manteve-se na sala de audiência, enquanto os piratas acarretavam os despojos que tinham reunido. Empilhavam no soalho barras de ouro tão pesadas que dois homens só com dificuldade conseguiam levantar uma. Pequenos montes de jóias elevavam-se como faiscantes medas de feno; num canto amontoavam-se as preciosas vestes sacerdotais roubadas às igrejas.

Henry Morgan estava sentado num grande cadeirão ornado de esculturas representando serpentes entrelaçadas.

- Descobriu a Santa Roja?

- Não, capitão. As mulheres da cidade parecem-se mais com diabos do que com santas.

Traziam os prisioneiros a fim de os torturar, com cordas para ligar os dedos, que tinham descoberto numa prisão espanhola.

- Ajoelha-te! Onde está o teu pecúlio? (Silêncio.) Torce, Joe!

- Piedade! Piedade! Vou lá levar-vos. Juro que vos digo a verdade. Numa cisterna perto da minha casa...

Outro...

- Ajoelha-te! Onde está o teu pecúlio?... Torce, Joe! -Vou lá levar-vos...

Trabalhavam tão regularmente, tão implacàvelmente, como os magarefes num matadouro.

- Encontraram a Santa Roja? Mando-vos enforcar a todos se lhe acontecer o mais pequeno mal.

- Ninguém a viu, capitão. Quase todos os homens estão bêbedos

Durante toda a noite... Depois de cada confissão de riqueza escondida, a vítima era arrastada por um grupo de investigadores que depressa voltavam, carregados de taças, de baixelas de prata, de jóias, de trajos de seda de cores muito vivas. O tesouro cintilante da sala de audiência tornava-se uma autêntica montanha.

E o capitão Morgan insistia num tom lasso:

- Encontraram a Santa Vermelha?

- Não, capitão, mas estamos a revistar a cidade inteira» Talvez que quando o dia chegar...

-Onde está o Coração de Cinza?

- Parece-me que está bêbedo, capitão, mas... O homem interrompeu-se e virou os olhos.

- Mas o quê? Que queres tu dizer?

- Nada, na verdade, capitão. Estou quase certo de que está bêbedo. Não é necessária uma grande quantidade de vinho para o embriagar, e talvez tenha arranjado companhia enquanto espera...

- Viste-o com alguém?

- Sim, capitão. Vi-o com uma mulher que estava bêbeda e poderia jurar que ele também o estava.

- Julgas que essa mulher era a Santa Roja?

- Oh! Não, capitão, estou certo que não. Não passava de uma das mulheres da cidade.

Ouviu-se um estrondo de baixela de ouro atirada para o monte das riquezas.

Uma alvorada amarelada subiu furtivamente atrás das pequenas colinas do Panamá e fez-se mais ousada à medida que deslizava de viés atravessando a planície. O sol rebentou bruscamente atrás de um pico: os seus raios de ouro procuravam a cidade. Mas Panamá estava morta, tendo sofrido numa única noite a decomposição pelo fogo. Apesar de tudo, os raios do astro inconstante encontraram prazer no novo aspecto da cidade. Iluminaram as lamentáveis ruínas, perscrutaram os rostos mortos voltados para o céu, percorreram as ruas juncadas de destroços, mergulharam nos pátios calcinados. Por fim chegaram ao palácio do governador, saltaram através das janelas da sala de audiência, e acariciaram a montanha refulgente que se levantava em cima do sobrado.

Henry Morgan dormia no cadeirão das serpentes. O seu fato roxo estava manchado pela lama da planície. A sua espada na bainha de seda cinzenta jazia no chão a seu lado. Estava só, porque os homens que tinham passado a noite a amontoar os ossos da cidade tinham ido beber e dormir.

As paredes da alta e vasta câmara estavam ornadas com painéis de cedro luzidio. As traves do tecto eram tão escuras e pesadas como velho ferro. Ali tinha-se feito justiça, celebrado grandes casamentos, festejado ou assassinado embaixadores. Uma das portas dava para a rua; a outra, larga e arqueada, abria para um jardim adorável no centro do qual uma pequena baleia de mármore branco lançava um jacto de água permanente numa taça. Em grandes vasos vermelhos envernizados erguiam-se plantas gigantes com folhas e flores roxas cujas pétalas ostentavam pontas de flechas, corações ou quadrados de um vermelho cardinal. Arbustos traçavam uma redezinha dura e clara no meio das cores loucas da floresta. Um macaco que não era maior do que um coelho caminhava com passos miúdos sobre a areia da álea onde procurava grãos.

Sentada num banco de pedra, uma mulher desfolhava uma flor amarela, enquanto cantava fragmentos de uma canção sentimental: «Ah! Gostaria de apanhar para ti, meu amor, a flor do dia que cresce nos frescos jardins da alvorada.» Os seus olhos eram de um negro opaco, o negro quente e lustroso das asas de uma mosca morta; finas rugas lhe sublinhavam as pálpebras. Podia rir com os olhos, enquanto os lábios se mantinham imóveis e duros. Tinha uma pele muito pálida, cabelos lisos e pretos como obsidiana.

Ora olhava para a luz indiscreta do Sol, ora para a entrada abobadada da sala de audiências. Calou-se por um instante, escutou atentamente, depois continuou a sua doce canção. Não se ouvia nenhum outro ruído, além do longínquo crepitar do fogo que ardia ainda entre as choças dos escravos, nos arrabaldes da cidade. O macaquinho aproximou-se trotando de maneira cómica, deteve-se diante da mulher, e levantou as pequenas patas negras por cima da cabeça num gesto suplicante.

- Aprendeste muito bem a lição, Chico - disse ela numa voz doce. - O teu dono é um castelhano de formidáveis bigodes. Conheço-o muito bem. Bem vês, Chico, ele deseja aquilo a que chama a minha honra. Não estará satisfeito antes de a acrescentar à sua: então a sua arrogância deixará de conhecer limites. Não serias capaz de imaginar o peso e o tamanho da sua honra tal como existe na hora actual. Mas tu, Chico, tu contentar-te-ias com uma noz, não é verdade?

Ela atirou um pedaço da sua flor ao minúsculo animalejo, que a apanhou, a meteu na boca e a cuspiu imediatamente com uma careta de desgosto.

- Chico! Chico! Estás a esquecer as lições do teu dono. Não deverias ter feito esse gesto. Não será assim que obterás a honra de uma mulher. Põe a flor sobre o teu coração e beija-me a mão com barulho; depois afasta-te em largas passadas como um carneiro perseguido pelos lobos.

Ela desatou a rir e voltou a olhar de novo para a porta abobadada. Se bem que continuasse a não haver ali nenhum som, levantou-se e alcançou rapidamente a sala de audiência.

Henry Morgan tinha mexido ligeiramente a cabeça, e os raios do sol tinham-lhe batido nas pálpebras. De súbito endireitou-se e passeou o olhar à sua volta. Contemplou com ar satisfeito o tesouro amontoado no soalho, depois os seus olhos encontraram os da mulher em pé debaixo do arco.

-Já arruinou a nossa pobre cidade o bastante para estar contente? - indagou ela num tom calmo.

- Não sou responsável pelo incêndio - respondeu ele vivamente. - Foram os vossos escravos que o lançaram. Sentia-se constrangido a pronunciar estas palavras, provavelmente sob o efeito da surpresa. - Quem é então a senhora?

- acabou por perguntar.

Ela entrou no vestíbulo e declarou:

- Chamo-me Ysobel. Disseram-me que andava à minha procura.

- Que andava à sua procura?

- Sim. Alguns jovens estúpidos deram-me o nome de Santa Roja...

- Você é... a Santa Vermelha?

Tinha criado no seu espírito a imagem de uma rapariga cujos olhos azuis de olhar puro se baixariam pudicamente para a terra. Ora os olhos que estavam fixos sobre ele não se baixavam. Na sua superfície negra e lisa brilhava um fulgor trocista. Esta mulher parecia considerá-lo um ente negligenciável. Tinha um rosto de traços duros que sugeriam uma ave de rapina. Decerto que era bela, mas a beleza perigosa do raio. E tinha a pele branca, branca e não rósea.

- Você é a Santa Vermelha?

Atingido pelo espanto provocado por semelhante revolução das suas concepções, não conseguia aceitar esta metamorfose... Mais de mil e duzentos homens tinham rasgado uma passagem através da floresta antes de desabar brutalmente sobre a cidade; centenas de seres humanos tinham sido mortos, mergulhados no sofrimento infligido pelos ferimentos; centenas de outros estavam estropiados; a Taça de Ouro não passava agora de um montão de ruínas: tudo isto para permitir que Henry Morgan se apossasse da Santa Roja. Semelhante prelúdio provava categoricamente que ele a amava. Não teria vindo a Panamá se a não tivesse amado. Apesar do choque que tinha provocado o seu aspecto exterior, não podia, em boa lógica, duvidar do seu amor por ela... Todavia, uma estranha sensação penetrava nele, sem qualquer ligação com a lógica, e que se lembrava de já ter experimentado antes. Era ao mesmo tempo atraído e repelido por esta mulher cuja força o intimidava. Henry Morgan fechou os olhos, e na câmara escura do seu cérebro definiu-se a frágil silhueta de uma rapariguinha de cabelos loiros.

- Parece-se com Elizabeth - disse ele com a voz monótona de um homem mergulhado num sonho. - Parecei-vos com ela e não tendes qualquer ponto comum com ela. Talvez possuais plenamente o poder que ela então estava apenas a aprender a manejar. Creio que vos amo, mas não tenho a certeza.

Enquanto falava conservava as pálpebras semicerradas. Quando voltou a abri-las, era uma mulher bem real que estava à sua frente e não o fantasma de Elizabeth. Ela contemplou-o com uma certa curiosidade a que se misturava uma certa simpatia. Pareceu-lhe bizarro que ela o tivesse vindo procurar sem a isso ser obrigada; devia estar fascinada por ele. Procurou na memória as frases que tinha preparado enquanto atravessava o istmo.

- É necessário que caseis comigo, Elizabeth... Ysobel. Creio que vos amo. É necessário que partais comigo para viver em minha casa, sob a protecção do meu nome e da minha mão.

- Mas já sou casada - replicou ela - e não tenho a mínima razão para me lastimar.

Ele tinha previsto até esta eventualidade. Durante as noites de marcha no coração da floresta, estruturara o seu plano de sedução tão cuidadosamente como um plano de batalha.

- Será justo, Ysobel, que dois seres devorados pela mesma chama só se encontrem para se separar? Será justo que cada um de nós leve no seu coração as brasas escurecidas de um fogo que não chegou a consumir-se inteiramente? Haverá qualquer coisa no mundo que nos proíba de arder assim? O Céu deu-nos esta chama imortal. Cada um de nós carrega dentro de si um facho que foi aceso pelo outro. Será em vão que o tentareis negar, Ysobel; será em vão que repelireis esta ideia. Vibrareis debaixo dos meus dedos como violino antigo.

«Creio que tendes medo; temeis o mundo indiscreto, o mundo maldoso. Mas convido-vos a banir todo o receio do vosso espírito, porque o mundo só conhece três paixões: o ciúme, a curiosidade, o ódio. Para o derrotar, basta fazerdes do vosso coração um universo bem fechado onde ele não poderá penetrar.

«Digo-vos tudo isto, Ysobel, porque tenho a certeza de que me compreendeis? De onde me vem esta certeza? Talvez da música suave dos vossos olhos pretos. Talvez das pulsações do vosso coração, que distingo nos vossos lábios. O vosso coração bate como um tambor que me força a lutar contra os vossos receios. Os vossos lábios são as pétalas rubras de um hibisco.

«Se vos acho bela, devo aterrorizar-me com uma triste inconstância? Não poderei exprimir livremente o meu pensamento quando vos respeito quase tanto como a mim mesmo? Não nos separemos, Ysobel, levando no fundo do coração as brasas apagadas de um lume que não morreu inteiramente.»

Ela escutara com atenção o início do seu discurso, depois o seu rosto assumira uma expressão dolorosa. Mas quando ele se calou, apenas ficou nos seus olhos um fulgor malicioso, e o escárnio estava emboscado atrás da sua superfície lisa.

- Vós esqueceis uma coisa, senhor - declarou ela. Eu não ardo de modo algum, e indago se alguma vez voltarei a arder. Não carregais dentro de vós um facho alumiado por mim... como eu esperava. Vim aqui esta manhã para ver se me amáveis verdadeiramente. Pois bem, as palavras que acabais de pronunciar já as ouvi muitas vezes em Cordova e em Paris! Estou realmente nauseada. Haverá então um livro que seja estudado por todos os apaixonados antes de declararem a sua chama? Os espanhóis dizem exactamente a mesma coisa, mas os seus gestos são mais apurados e, por conseguinte, mais convincentes.

Nasceu um silêncio. Henry Morgan baixou os olhos: um imenso torpor lhe obnubilava o cérebro.

- Tomei Panamá por vós - declarou ele numa voz queixosa.

- Ora! Esperei que isso fosse verdade! Ontem ainda julgava que era verdade... Mas não é assim, e estou muito aborrecida.

«Quando ouvi falar de vós e dos vossos barulhentos feitos, considerei-vos, não sei porquê, como o único homem realista num universo povoado de seres irresolutos. Durante meses e meses, sonhei que um dia viríeis ter comigo, armado de uma luxúria sublime e silenciosa, e que me tomaríeis à força. Desejava perdidamente uma brutalidade sem freio. Este pensamento sustinha-me enquanto o meu marido fazia ostentação da sua pessoa. Ele não me amava, sentia-se lisonjeado pela ideia de que eu o amava: isto dava-lhe aos seus próprios olhos uma importância e um encanto que não podia reivindicar como seus. Tinha o hábito de me passear pelas ruas da cidade, e os seus olhos pareciam dizer: «Reparem na mulher com quem casei! Nenhum homem ordinário teria podido casar com uma mulher destas, mas, naturalmente, eu não sou um homem ordinário.» Tinha medo de mim. «Com vossa licença, minha querida», dizia ele, «vou exercer as minhas prerrogativas de esposo.» Ah! Que desprezo sinto por ele!

«Eu desejava a força, uma força cega, brutal; desejava um amor inspirado não por qualquer imaginária beleza do meu espírito, mas pelo branco feitiço do meu corpo. Não tenho necessidade de doçura, porque essa a possuo eu suficientemente. O meu marido impregna as mãos de loções perfumadas antes de me tocar, e o contacto dos seus dedos faz-me pensar em lesmas viscosas. Quero sentir-me maltratada por músculos rijos capazes de me infligir esquisitos pequenos sofrimentos.»

Ela perscrutou-lhe o rosto, como se ali procurasse de novo uma qualidade perdida.

-Vós tínheis-me inspirado miríficos pensamentos; tínheis-vos tornado para mim na encarnação da força. E eis que descubro em vós um falador que recita desajeitadamente lugares-comuns cuidadosamente estudados. Não sois um realista, mas um mau literato. Quereis casar comigo para me protegerdes. Todos os homens que conheci, excepto um, quiseram fazer a mesma coisa. Ora, de todos os pontos de vista, sou bem mais capaz de me proteger do que vós o podeis fazer. Tanto quanto me posso lembrar, fui aborrecida por belas frases. Vestiram-me de epítetos e alimentaram-me de lisonjas. Tal como vós, os outros homens sempre disseram apenas aquilo que queriam. Tal como vós, sentiam a necessidade de justificar a sua paixão aos seus próprios olhos. Tal como vós, deviam convencer-se de que amavam antes de me convencer a mim mesma.

Henry Morgan deu um passo para ela gritando:

- Vou então tomar-vos à força!

- É muito tarde, capitão. Não poderia impedir-me de vos ver tal como éreis há momentos, quando declamáveis o vosso discurso estudado. Enquanto me arrancaríeis os vestidos, imaginar-vos-ia como vos humilhastes diante de mim e, recei-o muito, rebentaria a rir. Poderia ir até ao ponto de me defender; e vós, que sois uma autoridade em violações, vós deveis saber o que disso resultaria. Não, vós falhastes, e estou aborrecida com o vosso fracasso.

- Amo-vos - murmurou ele com uma voz lastimosa.

- Poder-se-ia julgar, ouvindo-vos, que estamos perante um acontecimento prodigioso. Amaram-me muitos homens na minha vida; centenas de outros declararam-me a sua flama... Mas que ides fazer de mim, capitão Morgan? O meu marido está no Peru, tal como a minha fortuna.

- Eu... eu não sei ainda bem.

- Serei uma escrava, uma prisioneira?

--Sim, devo arrastar-vos com os outros; sem o que os homens se ririam de mim e deixaria de ter a menor autoridade sobre eles.

- Se devo ser reduzida à escravidão, se devo deixar o meu país, espero ser vossa cativa ou de um jovem e encantador flibusteiro com quem travei conhecimento a noite passada. Apesar de tudo, não creio que me possais levar, capitão Morgan. Não creio verdadeiramente que possais forçar-me a partir, pois se isso acontecesse revolveria talvez no vosso coração o punhal que já lá enterrei.

A cólera tinha-se incendiado na alma de Henry Morgan.

- Quem é esse jovem flibusteiro? - perguntou de mau humor.

-Ah! Já sentis a mordedura do punhal! Como hei-de conhecer a identidade deste homem? Tudo o que sei é que o achei encantador e que gostaria de o voltar a ver.

Os olhos de Henry Morgan relampejavam de furor.

- Ides ser metida na prisão - declarou ele numa voz dura. - Ficareis numa cela até que nos voltemos a pôr a caminho de Chagres. Veremos então se o punhal de que falais está suficientemente acerado para vos permitir que fiqueis aqui, em Panamá.

Enquanto ela atravessava o jardim para alcançar a sua prisão, rebentou num riso claro:

- Capitão Morgan - disse ela -, veio-me uma ideia ao espírito... começo a ver que homens muito diferentes fazem o mesmo género de marido. -Entrai na vossa cela!

- Mais uma palavra, capitão. Encontrareis uma mulher velha nos degraus do palácio. É a minha duena. Peço-vos o favor de ma mandar. E dito isto, adeus, senhor: tenho de rezar as minhas orações. O pecado a exterminar, é a sinceridade: não há nada pior para a alma.

Lentamente, Henry voltou para se sentar no cadeirão de serpentes. Sentia-se profundamente humilhado na sua virilidade. Era como se esta mulher lhe tivesse arrancado a espada da bainha e lhe tivesse acutilado a face enquanto ele se mantinha de pé, impotente, diante dela. Ela tinha-o derrotado sem o menor esforço aparente. Estremecia ao pensar no riso dos seus homens quando descobrissem a dificuldade do seu chefe. Fariam troça dele pelas costas. Grupos de piratas calar-se-iam a sua passagem, e troçariam quando se tivesse afastado. Esta zombaria dissimulada pareceu lhe aterrorizadora. Os seus ódios levantaram a cabeça: ódio aos flibusteiros que se ririam dele, ódio aos habitantes da Tortuga que divulgariam a história pelas tabernas, ódio por todos os moradores da Costa.

Agora, da pequena prisão na outra extremidade do jardim, elevava-se uma voz aguda invocando a Virgem Santíssima. Henry Morgan, de ouvido à escuta, vãmente tentou descobrir uma troça nas palavras ou no tom. Só ouviu uma ave-maria, incansavelmente repetida num tom receoso de uma pecadora suplicante. Ora pró nobis... Um mundo tinha desabado, a cidade não passava de um esqueleto enegrecido... Ora prónobis... Não, não havia a mais leve zombaria, mas o sincero arrependimento de um coração destroçado rendendo a sua humilde homenagem enquanto desfiava o rosário. Uma voz de mulher, aguda, insistente, que parecia apegar-se a um pecado terrível, imperdoável. Ela tinha declarado que era o pecado de sinceridade. «Fui inteiramente franca, e isso é um negro fardo que pesa sobre a minha alma. Perdoa ao meu corpo a sua humanidade. Perdoa ao meu espírito que conhece os seus limites. Perdoa à minha alma que está ligada a ambos. Ora pró nobis.»

O interminável rosário roía o cérebro de Henry. Finalmente, pegou na espada e no chapéu, e saiu da sala a passos apressados, deixando atrás dele o tesouro que ria debaixo dos raios oblíquos do sol.

O fogo tinha poupado as ruas em torno do palácio do governador. O capitão Morgan percorreu o caminho que levava até às ruínas. As paredes enegrecidas tinham espalhado as suas pedras pela calçada. As casas de madeira de cedro não formavam mais do que pequenos montões de cinzas fumegantes. Aqui e além, cidadãos assassinados viravam para o céu o rosto crispado por uma agonia suprema.

«Estarão inteiramente pretos antes do cair da noite», pensou Henry. «Vou ter de os mandar tirar para evitar uma epidemia.»

Nuvens de fumo foliavam ainda por cima da cidade, enchendo o ar com um agoniante cheiro de trapos húmidos a arder. O círculo de verdes colinas em torno da planície pareceu irreal a Henry Morgan. Olhou-as atentamente, depois voltou a contemplar a cidade. A destruição que lhe tinha parecido tão completa, tão terrível, no decurso da noite, era, no fim de contas, piedosamente restringida. Nunca tinha pensado que as colinas iriam subsistir. Este único facto menorizava a sua conquista. Para mais, se bem que tivesse destruído a cidade, a mulher que o tinha atraído para a Taça de Ouro não lhe pertencia. Ela escapava-lhe inteiramente, apesar de estar em seu poder. Henry estremeceu ao verificar a sua impotência e com a ideia de que outros a pudessem conhecer.

Alguns flibusteiros rebuscavam nas cinzas, à procura da baixela de prata fundida que talvez escapasse às pesquisas da noite precedente. Ao virar uma esquina, Henry encontrou-se com Jones, o pequeno cockney, e viu-o meter qualquer coisa no bolso. Um furor súbito se acendeu nele. Coração de Cinza tinha pretendido que não existia diferença nenhuma entre este anão epiléptico e o capitão Morgan. Nenhuma diferença, na verdade! Este homem era um ladrão... A sua cólera tornou-se cobiça, terrível desejo de fazer mal ao cockney, de o insultar, de fazer troça dele, de lhe infligir sofrimentos que ele próprio tinha suportado. Cerrou os lábios pálidos e indagou:

- Que tens tu no bolso?

- Nada, capitão, nada...

- Mostra-me o que tens no bolso - repetiu Henry Morgan apontando uma pesada pistola à sua vítima.

- Não é realmente nada, capitão! Um simples e pequeno crucifixo que encontrei...

Exibiu uma cruz de ouro incrustrada de diamantes, na qual estava fixado um Cristo de marfim:

- Veja bem, é para minha mulher - acrescentou à guisa de explicação.

- Ah, sim, a tua espanhola!

- É uma mulata, capitão.
- Sabes qual é o castigo reservado àqueles que desviam os despojos?

Jones olhou a pistola e o seu rosto tornou-se cinzento.

- Vós não ides... Vejamos, capitão, vós não quereis...

- começou ele com uma voz abafada. Nesse momento pareceu ter sido agarrado por enormes dedos invisíveis. Deixou cair rigidamente os braços ao lado do corpo, entreabriu os lábios, os olhos ganharam uma expressão espantada, um pouco de escuma nasceu-lhe na boca, e todo o seu corpo foi agitado por bruscos estremecimentos como um boneco na ponta de um fio.

O capitão Morgan disparou.

Por um momento, o cockney pareceu encolher-se. Os ombros aproximaram-se até quase lhe cobrirem o peito, como asas curtas. Fechou os punhos, depois toda esta massa contraída desabou para o chão, onde foi agitada por algumas convulsões. Os lábios arreganharam-se e descobriram os dentes numa suprema convulsão.

Henry Morgan empurrou o cadáver com a ponta do pé e uma brusca mudança se operou no seu espírito. Tinha matado este homem. Possuía o direito absoluto de matar, de queimar, de pilhar, não em nome da moral ou da sua inteligência, mas em virtude da sua força. Era o dono de Panamá e de todos os seus habitantes. A sua vontade fazia lei. Se lhe apetecesse, podia exterminar todos os seres vivos da região. Ninguém pensava em negar esta verdade; mas no palácio estava uma mulher que desprezava o seu poder e a sua vontade. Esse desprezo era uma arma mais temível do que o poder de Henry Morgan. Ela batia-se com o constrangimento do seu adversário e tocava-o à sua vontade. Como acontecia tal coisa? Ninguém além dele era o senhor do Panamá, e acabava de matar um homem para o provar a si próprio... Sob os golpes repetidos dos seus argumentos, a força de Ysobel diminuía pouco a pouco até desaparecer. Ia voltar ao palácio, violá-la-ia tal como tinha prometido. Essa mulher tinha sido alvo de uma demasiada consideração. Ela ignorava o verdadeiro sentido da palavra «escravidão» e o metal de que Henry Morgan era feito.

Regressou rapidamente ao seu quarteirão. Chegado à sala da audiência, deitou fora as pistolas mas conservou a espada.

Ysobel estava ajoelhada diante de uma imagem santa, quando Henry Morgan penetrou na cela branca de cal. À sua vista a duena encolheu-se num canto; a jovem mulher, pelo contrário, olhou-o com atenção. Tendo notado o seu rosto vermelho, os olhos altivos semicerrados, a sua respiração ofegante, compreendeu o que se passava com ele e levantou-se vivamente. Depois extraiu um comprido alfinete do seu corpete e brandiu-o de braço estendido, tomando a atitude de um esgrimista.

- Em guarda! - gritou ela. O capitão atirou-se a ela, estreitou-a com toda a força, e começou a rasgar-lhe os vestidos. Ysobel não opôs nenhuma resistência; a sua mão direita, que estava armada com o alfinete, começou a ferir sem descanso. Pequenas gotas de sangue perlaram o rosto de Henry.

- Vou chegar-vos aos olhos, capitão - preveniu ela numa voz calma, picando-lhe as maçãs do rosto. Henry diminuiu o seu abraço e recuou, enxugando o rosto ensanguentado com as costas da mão. Ysobel ria-se dele. Se um homem pode infligir todas as espécies de violência a uma mulher que foge aos gritos, está desarmado diante daquela que resiste às gargalhadas.

- Ouvi um tiro - declarou ela. - Cheguei à conclusão de que tínheis acabado de matar alguém para provar a vós mesmo a vossa virilidade. Mas esta vai sofrer enormemente com o nosso duelo. Não deixarão de falar disso: vós sabeis com que facilidade se propagam os rumores. Contar-se-á em toda a parte que fostes vencido por uma mulher armada com um alfinete!

Henry levou a mão ao lado, e a frágil espada irrompeu da bainha como uma serpente. A luz deslizou maldosamente ao longo da lâmina nua, cuja ponta acerada se virou para o peito de Ysobel.

Esta empalideceu de terror e murmurou: «Sou uma indigna pecadora.» Seguidamente o seu rosto exprimiu um certo alívio. Fez sinal à sua duena para se aproximar e falou-lhe rapidamente em espanhol.

- É verdade - disse a velha -, é verdade.

Quando ela acabou o seu discurso, Ysobel afastou cuidadosamente a fina renda da sua mantilha para evitar que ficasse manchada de sangue, e a duena declarou:

- Senhor, a minha ama diz que um verdadeiro católico que morre à mão de um infiel vai directamente para o Paraíso. Isto é assim mesmo. Ela diz também que uma esposa católica que morre para defender o seu voto sagrado de casamento vai directamente para o Céu. Também isto é exacto. Em terceiro lugar, ela julga que uma mulher poderia, ao fim de um certo tempo, ser canonizada. Também já se viu. Ah! Capitão, suplico-vos que sejais bom! Permiti que lhe beije a mão antes de ferir. Que favor será para mim ter beijado a mão de uma santa viva! Tal coisa poderá ser muito útil à minha alma pecadora.

Ysobel voltou a falar à sua duena.

- A minha ama pede-vos para a ferirdes; ela vo-lo suplica do fundo do coração. Os anjos voam por cima da sua cabeça. Ela vê a luz divina, e a santa música ressoa nos seus ouvidos.

A ponta da sua espada baixou. Henry Morgan girou nos tacões e olhou o jardim ensolarado. O macaco Chico desceu a álea a galope, sentou-se debaixo do arco, juntou as patinhas e levantou-as para o ar num gesto de prece. A frágil espada regressou à bainha, silvando. O capitão baixou-se para apanhar o animalzinho e afastou-se coçando-lhe a cabeça com o indicador.

Henry Morgan tomou uma taça de ouro da montanha dos despojos. Era um frágil e adorável cálice bordado de prata, com longas asas recurvadas. Quatro cordeiros perseguiam-se no exterior e, no interior, uma mulher nua levantava os braços num êxtase sensual. O capitão girou a taça nas mãos, depois, bruscamente, atirou-a para uma pirâmide de diamantes que refulgiam com as suas mil luzes: as pedras espalharam-se com um rumor seco. Henry Morgan voltou a sentar-se na cadeira das serpentes. Pensava em Jones, no pequeno cockney, na mão gelada da epilepsia que o tinha atacado no derradeiro momento da sua existência. Essa mão estava sempre atrás dele, gigantesca, prestes a torcer o corpo do homem, até que a branca espuma do sofrimento veio desaguar-lhe nos lábios. Henry perguntava-se porque teria feito mal a esse infortunado, o insultara e, finalmente, o matara. Jones tinha sido incessantemente perseguido por um carrasco que nunca adormecia. Naturalmente, esse crime não devia ser imputado a Coração de Cinza, que tinha ousado afirmar que Jones se parecia com Morgan. Sim, ele dava-se agora perfeita conta disso, e corava de vergonha pensando na especiosa acusação de roubo. Porque não ter morto sem acusação?

E onde se encontrava Coração de Cinza nesse momento? Tinha visto Ysobel - era quase certo - e ela tinha reparado nele. Talvez amasse o jovem flibusteiro de cabelos louros que sabia tão perfeitamente entender-se com as mulheres. Como poderia ele impedir o seu imediato de conhecer a sua derrota, de conhecer a história do alfinete e toda a vergonha das relações de Henry Morgan com a Santa Roja? A pistola que tinha morto Jones jazia no sobrado. Apanhou-a e voltou a carregá-la metodicamente. Ele não receava que Coração de Cinza troçasse dele, mas que, pelo contrário, lhe testemunhasse uma simpatia compreensiva. O seu imediato olhá-lo-ia com uma compaixão tingida de ironia, com a compaixão de um homem novo e belo que desculpa o fracasso amoroso de um rival menos favorecido pela Natureza. Para mais, Coração de Cinza era dotado de uma intuição muito feminina que lhe permitia tomar conhecimento de certas coisas por um processo misterioso.

Quanto à Santa Vermelha, Henry devia levá-la com ele: não podia agir de outra maneira. Talvez ela acabasse por se apaixonar por ele, mas não seria sem dúvida por causa dos seus méritos pessoais. O desprezo desta mulher tinha-o persuadido de que não possuía nenhum valor, que era um monstro separado do resto dos mortais por uma fealdade indescritível. Sem ter dito isto claramente, tinha-o dado a entender. Não, ele não possuía as qualidades susceptíveis de atrair uma mulher quando havia outros homens nas proximidades. Contudo, se Ysobel apenas o visse a ele, talvez pudesse esquecer as qualidades que lhe faltavam, e construir um sentimento seguro das que possuía.

Pensou no seu último encontro. Agora que tinha recuperado toda a sua calma, julgava ter-se comportado como um rapazinho fanfarrão e brutal. Todavia, como teria podido agir de outra maneira? Ela tinha repelido o seu ataque com um riso cruel que troçava dos motivos do seu acto. Teria podido matá-la, mas que homem poderia matar uma mulher que implorava de joelhos que lhe dessem a morte?... Meteu uma bala no cano da pistola.

Uma silhueta suja e esfarrapada ultrapassou a soleira. Era Coração de Cinza, um Coração de Cinza com olhos avermelhados, o fato coberto de lama, o rosto salpicado pelo sangue da batalha.

Lançou uma olhadela ao tesouro amontoado e disse sem entusiasmo:

- Estamos ricos...

- Donde vens tu?

- Donde venho? Estive a emborrachar-me, claro! É tão agradável estar bêbedo depois do combate!... Pelo contrário, é muito menos agradável deixar de o estar - acrescentou humedecendo os lábios secos. - Isso parece-se com um parto: é um procedimento necessário mas penoso.

-Tinha necessidade da tua presença a meu lado.

- Disseram-me que, pelo contrário, não queria ter ninguém a seu lado, pois a solidão bastava para a sua felicidade: em consequência disso, pus-me a beber ainda mais... Veja, senhor, queria esquecer o motivo que lhe inspirava este desejo de solidão.

Fez uma pausa e depois continuou:

- É verdade que a Santa Vermelha está aqui, senhor? Rebentou a rir para dissimular a sua emoção e, à custa

de um grande esforço de vontade, adoptou um tom gracejador:

- Diga-me a verdade. É prestar um bom serviço a um homem dizer-lhe o bem que ele perdeu. Há muitas pessoas que não recebem outra prenda no curso de toda a sua existência. Diga-me uma coisa, senhor, a doce inimiga sucumbiu? A fortaleza da carne capitulou? O pavilhão de Morgan flutua na torre rósea?

O rosto de Henry tinha corado. A mão que sustinha a pistola elevou-se lentamente, tornada firme por uma inexorável demência. Ouviu-se uma seca detonação e nasceu uma pequena nuvem de fumo.

Coração de Cinza ficou imóvel, como se escutasse atentamente um som longínquo. Depois uma careta de terror deformou-lhe os traços. A mão percorreu freneticamente o peito, e seguiu um fiozinho de sangue até à sua fonte: um buraco no pulmão. O dedo mindinho introduziu-se na chaga, e Coração de Cinza voltou a sorrir. Não tinha medo de certas coisas; agora que sabia ao que devia ater-se, não receava mais nada.

O capitão Morgan olhava com ar estúpido a pistola que segurava na mão. Tinha o ar de estar surpreendido com a sua existência.

Coração de Cinza rebentou num riso nervoso.

- A minha mãe vai odiá-lo! - exclamou numa voz lastimosa. - Ela vai persegui-lo com as suas maldições. Minha mãe... - Foi obrigado a interromper-se para tomar fôlego.- Não lhe diga nada. Arranje uma bela mentira. Eleve a minha pobre vida até à altura de um minarete rutilante. Não permita que ela pare como uma torre inacabada. E até... bastará que lhe forneça os fundamentos: ela se encarregará de elevar um monumento de recordações heróicas.

A boca encheu-se-lhe de sangue.

- Porque me matou, capitão?

- Porquê?...-Viu os lábios sangrentos, o peito perfurado, levantou-se bruscamente do seu cadeirão e voltou a sentar-se quase imediatamente. A dor cavou-lhe rugas em redor dos olhos. - Não sei. Devo tê-lo sabido, mas já não me lembro.

Lentamente, Coração de Cinza caiu de joelhos e apoiou-se nos punhos fechados para não se estender ao comprido.

- As pernas já não me querem aguentar, senhor - disse ele como para se desculpar.

Pareceu voltar a escutar um som longínquo; depois a sua voz levantou-se, queixosa e amarga:

- Pretende-se que os agonizantes pensam naquilo que fizeram na sua vida. É falso. Eu penso naquilo que não fiz, em tudo aquilo que poderia ter feito no curso dos anos que morrem comigo. Penso nos lábios das mulheres que nunca vi, no vinho que dorme nos cachos de uvas, nas ternas carícias de minha mãe. Mas penso sobretudo que nunca mais pisarei a terra, que nunca mais passearei ao sol, que nunca mais sentirei os ricos perfumes que a lua cheia faz subir da terra... Porque me matou, senhor?

- Ignoro-o - repetiu Henry Morgan num tom taciturno.

- Devo tê-lo sabido, mas já não me lembro. Outrora, matei um cão... e, há bocado, matei Jones. Não sei porquê.

- É um grande homem, capitão - disse Coração de Cinza, numa voz surda. - Os grandes homens deixam aos seus apologistas o cuidado de lhes fornecer motivos. Mas eu... bem! Senhor, eu já não sou nada, absolutamente nada. Há alguns instantes era um excelente homem de espada; agora, o meu ser, tudo aquilo que em mim combateu, praguejou, amou, talvez nunca tenha existido, tanto quanto eu posso saber.

Os seus punhos fraquejaram e caiu de lado, tossindo para libertar a garganta. Durante dois ou três minutos, só se ouviu no compartimento o rumor da sua respiração sacudida. De súbito ele ergueu-se apoiando-se num cotovelo e desatou num riso triunfante como se tivesse descoberto a solução de um enigma que lhe parecia agora particularmente simples. Uma vaga de sangue lhe subiu aos lábios; o riso transformou-se num suspiro; Coração de Cinza voltou a cair lentamente de flanco e não se mexeu mais.

Henry Morgan continuava a contemplar a sua pistola. Levantou lentamente os olhos para a janela aberta. Os raios de sol cintilavam sobre o tesouro, que brilhava como uma massa de metal em fusão. Em seguida virou o olhar para o corpo estendido diante dele, e estremeceu. Levantou-se, dirigiu-se para Coração de Cinza, tomou-o nos braços e sentou-o no cadeirão. O corpo flácido desabou de lado. Henry levantou-o, instalou-o solidamente e voltou para a sua cadeira.

- Levantei assim a mão - disse ele, apontando a pistola ao cadáver. - Sim, devo ter levantado assim a mão, e Coração de Cinza está morto... Assim... levantei a mão... desta maneira... apontei... Porque fiz eu isso?

Inclinou a cabeça, depois levantou-a, escarnecendo suavemente :

- Coração de Cinza! Meu querido Coração de Cinza! Queria falar-te da Santa Roja. Ela monta a cavalo, como sabes. Não possui o menor pudor feminino... e a sua beleza não tem nada de extraordinário.

Olhou para a figura imóvel em frente dele. Os olhos do morto tinham ficado entreabertos; de súbito as pálpebras caíram e as órbitas cavaram-se. A careta fixa do seu riso supremo crispava-lhe ainda os traços.

- Coração de Cinza! - gritou o capitão.

Dirigiu-se ao jovem e pousou-lhe uma mão na fronte.

- É um cadáver - disse ele num tom sonhador. - Não passa de um cadáver que vai chamar as moscas e a doença. Tenho de o mandar tirar imediatamente; se não o fizer, vai chamar as moscas para o compartimento... Coração de Cinza, fomos enganados! Essa mulher maneja a espada como um homem, e monta a cavalo escarranchada. Andámos a sofrer para nada! Isso nos ensinará a fazer fé naquilo que contam, hem, Coração de Cinza?... Mas isto é apenas um cadáver, e as moscas vão cair em cima dele...

Foi interrompido por um rumor de passos na escadaria exterior. Um grupo dos seus homens penetrou na sala, arrastando um pobre espanhol aterrado, com as roupas cobertas de lama. Tinham-lhe arrancado os folhos de renda, e um fio de sangue corria-lhe de uma das mangas.

- Capitão - informou o chefe do bando -, aqui temos um rapaz que chegou agora mesmo com uma bandeira branca. Devemos respeitar a bandeira, ou devemos matar este homem? Talvez seja um espião.

Henry Morgan não deu atenção a estas palavras. Apontando com o dedo o corpo do seu imediato, declarou num tom de melopeia:

- Isto não passa de um cadáver. Não é Coração de Cinza. Mandei-o cumprir uma missão, e depressa voltará. Mas isto não é mais do que... vejam, levantei a mão... assim. Sei exactamente como fiz; repeti o meu gesto várias vezes... Mas isto não passa de um cadáver que vai chamar as moscas para aqui...

Calou-se por um breve momento, depois gritou:

- Ah! Tratem de o levar e de o enterrar! Um flibusteiro deu alguns passos em frente.

- Não toque aí! Proíbo-lhe que toque aí! Deixe-o aí. Ele sorri. Não vedes que ele sorri? E contudo... as moscas... Não, deixem-no. Vou eu próprio tratar dele.

- Que vamos fazer deste espanhol, capitão? Vamos matá-lo?

- Que espanhol?

- Este, capitão. O pirata empurrou o homem para a frente. Henry parecéu sair de um sonho, e perguntou com voz dura:

- Que queres tu?

O prisioneiro lutou contra o seu medo.

- É desejo meu e desejo do meu senhor, falar com o capitão Morgan, se ele quiser consentir em ouvir-me. Sou um mensageiro, senhor, e não... um espião, como foi sugerido por estes... estes senhores.

- Qual é a tua mensagem? - continuou Henry Morgan num tom que deu um pouco de confiança ao seu interlocutor.

- Fui enviado por um homem muito rico, senor. Sua mulher está nas vossas mãos.

- Como pode ser isso?

- Tomaste-a ao mesmo tempo que a cidade, senor.

- Como se chama?

- Dona Ysobel Espinosa Valdez y los Gabilanes, senor. A gente simples da cidade dava-lhe o nome de La Santa Roja.

Henry Morgan olhou para o mensageiro durante muito tempo sem dizer palavra. Depois, declarou em voz neutra:

- É exacto. Está nas minhas mãos. Prendi-a numa cela. Que deseja o seu marido?

- Oferece-lhe um resgate, senor, pelo regresso de sua mulher para junto dele.

- E qual é a quantia que ele propõe?

- Qual sugeria Vossa Excelência?

- Vinte mil peças - replicou Henry vivamente. O mensageiro pareceu aturdido.

- Viente mil... - traduziu na sua língua materna para melhor compreender a enormidade do número. - Adivinho que Vossa Excelência pretende conservar a mulher.

- Não - respondeu o corsário, contemplando o cadáver de Coração de Cinza-, só quero o dinheiro.

O mensageiro sentiu-se tranquilizado, pois tinha estado a ponto de considerar este grande homem como um imbecil.


- Farei tudo o que me for possível, senor. Estarei de volta dentro de quatro dias.

- Três!

- E se não tiver tempo de chegar, senor?

- Nesse caso, levarei a Santa Vermelha comigo para a vender no mercado das escravas.

- Farei tudo o que me for possível, senor...

- Tratem este homem com cortesia! - ordenou o capitão. - Que ninguém se atreva a maltratá-lo. Deve trazer-nos ouro.

No momento de deixar a sala, um dos flibusteiros voltou-se, lançou um olhar acariciador à montanha dos despojos e perguntou:

- Quando se fará a divisão, capitão?

- Depois de lermos regressado a Chagres, imbecil! Julgas que vou fazer a divisão imediatamente?

- Mas, bem vê, capitão, que nós gostaríamos de ver algum nas mãos, ainda que só fosse para lhe tocar. Nós batemo-nos duramente, capitão...

- Sai daqui! Não tereis a mais pequena parte dos despojos enquanto não tivermos alcançado os barcos. Não quero que as mulheres do Panamá vos subtraiam: deixo esse cuidado às de Goaves.

Os homens deixaram a sala de audiência resmungando.

Na cidade conquistada os flibusteiros entregavam-se à orgia. Tinham rolado tonéis de vinho até um vasto entreposto e, depois de haverem limpo o sobrado das pilhas de mercadorias que lá estavam, começaram a dançar perdidamente. Encontravam-se com eles várias mulheres que os haviam seguido de boa vontade; agitavam-se ao som agudo das flautas como se os seus pés não pisassem de modo algum o túmulo de Panamá. Como pessoas económicas e avisadas, recuperavam um pouco do tesouro perdido, utilizando para esse efeito uma arma mais lenta mas não menos segura do que a espada.

Num canto do entreposto estavam sentados o Borguinhão e o seu protector maneta.

- Olha para aquela, Emil! Examina-lhe bem as ancas.

- Bem a vejo, Toine, e agradeço-te a solicitude que manifestas a meu respeito. És na verdade muito bondoso para te incomodares em satisfazer os meus prazeres. Mas, bem vês, tenho a estupidez de perseguir um ideal, mesmo em matéria de copulação. Isto prova-me que continuo a ser um artista.

-Vejamos, Emil, reparaste na amplidão do seu busto?

- Na verdade, Toine, não vejo ali nada que ponha em perigo a minha pérola rosa: ainda a poderei guardar algum tempo mais.

- Meu caro amigo, receio bem que percas o teu sentido da beleza. Onde está então esse olho crítico de que outrora tínhamos tanto medo?


- O olho continua comigo, Toine. É a tua imaginação que transforma em ninfas essas poldras de pele parda.

- Nesse caso, Emil, visto que te obstinas na tua cegueira, talvez estejas de acordo em emprestar-me a tua pérola... Obrigado, devolver-ta-ei daqui a pouco...

Grippo, sentado no soalho a meio da sala, contava com ar maçado os botões da manga: «... oito, nove... Mas tinha dez. Algum canalha me arrancou um. Estou cercado de ladrões! Ah! Mas isto é de mais!... Seria capaz de matar fàcilmente para recuperar este botão que apreciava mais do que todos os outros... Um, dois, três... Olha, há realmente dez!... Um, dois, três, quatro...» À sua volta os pares agitavam-se freneticamente, e o ar retinia com as notas agudas das flautas.

O capitão Sawlens contemplava os dançarinos com um ar furioso, pois, para ele, a dança era um dos meios mais seguros de ir para o Inferno. A seu lado, o capitão Zeigler olhava melancolicamente o vinho que corria às golfadas. Chamavam-lhe o Taberneiro do Oceano. Tinha com efeito o costume, depois de uma expedição, de manter os seus homens no mar até que tivessem gasto a sua parte da presa comprando-lhe o rum que ele vendia. Dizia-se que uma vez tinha rebentado a bordo uma amotinação, pela razão seguinte: durante três meses navegara em torno da mesma ilha esperando que se esgotasse o dinheiro dos seus homens e a sua provisão de rum. Nessa noite estava triste por ver beber gratuitamente tantos barris de vinho. Achava esse facto monstruosamente iníquo.

Henry Morgan estava sentado, solitário, na sala de audiência, onde quase se não dava conta do tumulto da orgia. Desde manhã que pequenos grupos de homens entravam sem cessar, trazendo alguns fragmentos de tesouro arrancados à terra ou extraídos das cisternas por meio de ganchos de ferro. Uma mulher velha engolira um diamante para o conservar, mas os piratas tinham conseguido encontrá-lo revistando-lhe o corpo.

A atmosfera cinzenta do crepúsculo invadia o compartimento. Durante todo o dia Henry Morgan tinha-se deixado estar no cadeirão das serpentes, e esse dia fatídico era testemunha de uma grande mudança na sua personalidade. Os seus olhos perfurantes, outrora sempre fixados para além do horizonte, estavam virados para ele mesmo, passando longas horas a contemplar Henry Morgan com uma grande perplexidade. No decurso dos anos precedentes, estivera demasiado absorvido pelo objectivo perseguido, qualquer que fosse, para conceder um único pensamento a tal personagem. Agora, verificava com espanto que Henry Morgan parecia não ter qualquer importância. Os seus desejos e as suas ambições de antanho tornavam-se deveras insignificantes debaixo deste olhar retrospectivo.

Enquanto ele assim meditava na penumbra, a duena enrugada deslizou até junto dele e disse com uma voz rangente:

- A minha senhora deseja falar-vos.

Henry levantou-se e seguiu-a com um passo pesado até à cela.

Ardia um círio diante da imagem da madona pendurada na parede. A Virgem era uma grosseira camponesa espanhola. Sustentava nos braços uma criança de carnes moles, na qual fixava um olhar triste e espantado. O padre que a


pintara tinha-se esforçado por dar ao seu rosto uma expressão respeitosa, mas não devia saber o que era o respeito. Pelo menos conseguira fazer um bom retrato da sua amante e do seu filho.

Ysobel, que estava sentada debaixo do quadro, pôs-se diante de Henry logo que ele apareceu à entrada:

- Disseram-me que ia ser posta em liberdade contra o pagamento de um resgate...

- O vosso marido mandou um mensageiro para esse efeito.

- O meu marido! Estou então destinada a regressar a esse homem, a voltar a encontrar as suas mãos perfumadas?

- Assim é.

Apontando uma cadeira com o dedo, ela obrigou Henry a sentar-se.

- Vós não me compreendestes - disse. - Não podeis compreender-me. Deveis, em primeiro lugar, conhecer alguma coisa da vida que levei; então podereis compreender-me, e...

Ela aguardou, em vão, o mais leve sinal de interesse por parte do seu interlocutor. Henry manteve-se em silêncio.

- Não quereis ouvir a minha história?

- Sim, desejo-o muito.

- É bastante curta, como a minha vida. Mas quero que me compreendais, e seguidamente...

Ela perscrutou-lhe o rosto. Henry cerrava os lábios como se estivesse sob o efeito de um ardente sofrimento; os seus olhos estavam repletos de espanto.

- Nasci aqui, em Panamá - começou ela. - Os meus pais mandaram-me para Espanha, desde a minha mais remota infância, e fui educada em Cordova, num convento. Andava vestida de cinzento; ficava a noite inteira de vigília diante da figura da Virgem, quando chegava a minha vez de a adorar. Às vezes adormecia em vez de orar, o que me valia ser severamente castigada. Decorridos alguns anos, os índios selvagens atacaram a plantação de meu pai, aqui, em Panamá, e mataram todos os membros da minha família. O único parente que me ficou foi um avô muito velho. Senti-me então muito só e muito triste e, durante algum tempo, nunca mais consegui adormecer debaixo da figura da madona.

«Sabia que me tinha tornado bela, porque, um dia, um cardeal de visita ao convento deteve em mim o seu olhar, os seus lábios tremeram e as grossas veias da sua fronte engrossaram como cordas, quando lhe beijei a mão. ”A paz seja contigo, minha filha”, disse-me ele. ”Cometeste algum pecado que desejes confessar-me em particular?”

«Ouvia, do outro lado da cerca, o apelo dos aguadeiros ou o barulho de uma discussão. Um dia, dois homens bateram-se em duelo debaixo dos meus olhos. Via-os por cima da cerca, escarranchada numa vara. Uma noite um rapaz levou uma rapariga para a sombra do arco da portaria e fez amor com ela a dois passos de mim. Ouvia-os falar em voz baixa: ela expunha os seus receios, e ele tranquilizava-a. Dei comigo a passar as mãos ao longo do meu vestido cinzento, enquanto me perguntava se o rapaz me teria feito tais súplicas no caso de me ter conhecido. Quando contei a cena a uma das irmãs, ela disse-me: ”É pecado ouvir semelhantes horrores, e ainda mais pensar neles. Vais fazer penitência para expiar a tua curiosidade. Em que porta se passou isso?

«O peixeiro gritava em voz alta: ”Vinde, meus anjinhos cinzentos! Saí da vossa santa prisão e vinde ver a bela pescaria que trago nos meus cabazes.

«Uma noite, escalei a muralha e deixei a cidade. Não me vou meter em pormenores acerca desta viagem, para falar já na minha chegada a Paris. O rei percorria as ruas da capital com uma soberba equipagem. Pondo-me na ponta dos pés no meio da multidão, via cavalgar os cortesãos. De súbito, um rosto sombrio levantou-se diante de mim, uma mão vigorosa apertou-me o braço e fui arrastada de repelão para uma porta.

«Chicoteou-me com uma dura correia de couro que só lhe servia para isso. O seu rosto tinha uma expressão bestial, mas era um homem livre, um ladrão livre e atrevido. Matava sempre antes de roubar. Dormíamos debaixo das arcadas, nas lajes das igrejas, nos arcos das pontes, e éramos livres, livres de pensamentos, de preocupações e de receios. Um dia deixou-me para não mais voltar. Encontrei-o pendurado pelo pescoço num patíbulo, um imenso patíbulo decorado com guirlandas de enforcados.

«Compreendeis o facto, meu capitão? Estais a ver isso como eu o vi? E isso diz-vos alguma coisa?»

Fulguravam-lhe os olhos.

- Voltei para Cordova a pé. Fiz penitência até que o meu corpo se transformou numa chaga, mas não fui capaz de expulsar o demónio que estava em mim. Fui até ao ponto de me desembaraçar, pensai bem, sem me conseguir desembaraçar. Compreendeis realmente isto, capitão?

Ela olhou fixamente para Henry e verificou que ele não a tinha escutado. De pé ao lado dele, ela acariciou os cabelos que se iam tornando grisalhos.

- Mudastes - disse ela. -Uma luz se extinguiu em vós. Que receio vos aperta o coração?

- Não sei - respondeu ele, arrancando-se ao seu devaneio com esforço.

- Disseram-me que tínheis morto o vosso amigo. É isso que vos deprime?

- É verdade que o matei.

-E deplorais a sua morte?

- Talvez... Não sei. Parece-me que estou a lamentar uma morte que não é a dele. Tenho a impressão de que ele fazia parte de mim e que a sua desaparição me diminui em metade. Hoje, durante todo o dia, fui um escravo atado em cima de uma laje branca, cercado de vivissectores. Julgava estar de boa saúde, mas os escalpelos descobriram em mim uma doença chamada mediocridade.

- Sinto-me desgostosa, capitão.

- Por que razão?

- Porque perdesteis a vossa luz; porque o rapaz corajoso e brutal que vivia em vós está morto. O rapaz arrogante que acreditava que a sua zombaria abalaria o trono de Deus, o rapaz confiante que permitia graciosamente ao mundo que o acompanhasse através do espaço, esse rapaz está morto, e sinto-me desolada. Agora seguir-vos-ia de boa vontade se acreditasse ser possível voltar a chamá-lo à vida.

- A metamorfose que sofri é na verdade muito estranha. Ainda anteontem estava a formar o projecto de arrancar um continente inteiro à ordem estabelecida, e coroá-lo com uma capital de ouro que vos era destinada. No meu espírito, tinha construído um império para vós, cinzelado o diadema que devíeis usar. Agora, mal me recordo daquele que elaborou tais pensamentos. É um misterioso estrangeiro num globo oscilante.

«Quanto a vós, minha senhora, só me inspirais um leve mal-estar. Já não vos receio, já não vos desejo. Estou dominado por uma violenta nostalgia das minhas negras montanhas e do falar das pessoas da minha raça. Sinto-me arrastado a ir sentar-me numa grande varanda para ouvir a conversa de um velho que conheci outrora. Estou cansado de todo este sangue espalhado, estou cansado de me bater para adquirir objectos que não conservam qualquer valor entre as minhas mãos. É horrível! Horrível!... Já não quero mais nada, já não tenho sede de nada. Só me resta um vago desejo de paz, e de recreio suficiente para pesar no meu espírito assuntos imponderáveis.»

- Não voltareis a tomar mais taças de ouro. Não voltareis a transformar mais sonhos orgulhosos em conquistas pouco satisfatórias. Sinto-me desgostosa por vós, capitão Morgan. Quanto ao escravo de que falais, estava doente, com efeito, mas não da doença que mencionastes. Todavia, suponho que os vossos pecados são graves. Todos os que partem as barras da mediocridade cometem pecados horrorosos. Pedirei à Virgem Maria por vós, e ela intercederá em vosso favor junto de Deus Todo-Poderoso. Enquanto espero, o que devo fazer?

- Suponho que ireis ter com o vosso marido.

- Sim, decerto. Vós fizestes-me mais velha, senhor. Destruístes o sonho que suportava a minha alma pesada. E pergunto a mim própria se, dentro de poucos anos, vós não me responsabilizareis pela morte do vosso amigo.

Henry corou violentamente.

- É o que tento fazer agora mesmo -- disse ele. - Considero absolutamente inútil tentar mentir, o que prova, uma vez mais, que a minha juventude está realmente morta... E agora, adeus, Ysobel. Gostaria tanto de vos amar como julgava amar-vos ontem... Ide ter com o vosso esposo das mãos perfumadas.

Ela levantou os olhos, sorrindo para a santa imagem que estava pendurada na parede.

- A paz seja convosco, querido tolo que me sois tão caro - murmurou ela. - Pois bem, também eu perdi a minha juventude. Sinto-me infinitamente velha, porque não me posso consolar com o pensamento de que vós fracassastes.

De pé na soleira da sala de audiência, Henry Morgan olhava um grupo de cavaleiros espanhóis encaminhar-se para o palácio, cercado por uma horda de flibusteiros. À cabeça caminhava o mensageiro, completamente transformado, vestido de seda escarlate. A pluma do seu chapéu e a bainha da sua espada eram brancas, em sinal de paz. Atrás dele cavalgavam seis soldados usando plastrão de prata e trazendo na cabeça um casco espanhol, semelhante à metade de um grão de mostarda. O último deles conduzia pela brida uma burra branca com arnês escarlate e frontal ornado com guizos de ouro. O pano branco que tapava a sela tocava no chão. Depois da burra caminhavam seis mulas carregadas de pesados sacos de couro. Outros seis soldados formavam a retaguarda.

A cavalgada deteve-se diante do palácio. O mensageiro saltou da montada e inclinou-se diante de Henry Morgan, declarando:

- Aqui está o resgate exigido, senor.

Tinha o ar lasso e preocupado de um homem esmagado pelo peso da sua missão. Às suas ordens, os soldados transportaram os sacos para a sala de audiência; o seu rosto só perdeu a expressão ansiosa quando ficaram depositados perto do tesouro amontoado.

- E agora está feito - continuou ele. - Vinte mil moedas... Não perdi uma única; queira contá-las, senor.

Fustigou a bota com a ponta do chicote e acrescentou:

- Se pudésseis mandar servir um refresco aos meus homens - vinho, por exemplo...

- Decerto que sim, decerto que sim - respondeu Henry, que acrescentou, dirigindo-se a um dos seus oficiais: -Dá de comer e de beber a estes homens. E mostrai-vos cordiais com eles, se tendes amor à vida.

Ditas estas palavras, tomou a peito contar o resgate, levantando pequenas pilhas de moedas cintilantes, que depois deslocava através do soalho. «O ouro tem, na verdade, uma bela cor», pensava ele, «e não saberíamos dar-lhe uma forma mais encantadora: um quadrado ou uma elipse não seriam capazes de cumprir esta missão...» Para mais, este dinheiro representava muito mais do que uma certa quantia: era uma coisa na qual se podia fiar completamente. Sabia-se de antemão o que viria a fazer depois de ter começado a girar. O que era capaz de fazer para além desse ponto, pouco importava... Podia-se comprar vinho com o dinheiro: à falta de outra coisa, havia sempre o vinho...

E se o caixeiro do mercador acabasse por matar o seu patrão para se apoderar dessas mesmas moedas, tratava-se, sem dúvida, de um deplorável acaso, mas nem por isso se deixaria de ficar com o vinho.

Este amontoado de recipientes de ouro, estas cruzes, estes candelabros, estas vestes sacerdotais bordadas de pérolas, tudo isso seria transformado em moedas. Estas barras de ouro e de prata seriam cortadas em finos discos batidos por uma efígie. Essa efígie seria mais do que uma simples imagem, pois conferiria a cada disco um estranho poder... Atirou as moedas para o chão e recomeçou pacientemente a construir as suas pilhas: torres bastantes para defender Jerusalém!

De novo Ysobel saiu do pátio e se deteve a seu lado.

- Aí está muito dinheiro - disse ela. - Será por acaso o meu resgate?

- Sim, este ouro está destinado a comprar-vos.

- Mas” trata-se de uma soma enorme! Julga que eu valho tanto como isto?

-- É pelo menos o que pensa o vosso marido, pois ele deu isto por vós.

->E, capitão, que pensais vós? Quantos desses pequenos pedaços de ouro poderei eu valer a vossos olhos?

- Devo ter estimado que valeis esse preço: fui eu que o fixei.

- Podíamos utilizá-los para fazer esplêndidos ricochetes na água! Esplêndidos ricochetes! Sabeis que sou capaz de atirar como um homem, dobrando o braço?

- Foi o que me disseram, com efeito.

-Mas será que, na verdade, valho tanto como isso? -O ouro está aqui; podeis partir, portanto: fostes resgatada. É bem preciso que uma coisa valha aquilo que se paga por ela, pois sem isso não haveria comércio possível.

- É reconfortante saber o que se vale sem erro de um real. Tendes a menor ideia do vosso valor, capitão?

- Se alguma vez fosse capturado e exigissem um resgate para me libertar, não valeria um tostão. Os mariolas de que sou chefe tratariam de encolher os ombros, rindo. Um novo capitão se poria à sua frente; quanto a mim... por Deus, sofreria o que desse na gana dos meus vencedores, e creio poder prever aquilo que me aconteceria. Veja que fiz uma nova avaliação da minha pessoa no decorrer dos últimos dias. Se ainda conservo algum valor, é unicamente aos olhos dos historiadores, porque operei algumas destruições. Já esqueceu o homem que construiu a vossa catedral; mas, durante uma centena de anos, lembrar-se-ão de mim, que a queimei. Isto permite-nos tirar algumas conclusões acerca da Humanidade.

- Que há então em mim que valha todo este ouro? Serão os meus braços? Os meus seios? Os meus cabelos? Ou será muito simplesmente que encarno a vaidade do meu marido?

- Não sei. Desde que procedi à estimativa de mim mesmo, todo o sistema económico das emoções e das pessoas modificou-se completamente a meus olhos. Se fosse hoje obrigado a fixar o montante do vosso resgate, talvez não estivésseis muito lisonjeada.

- Detestais-me então a esse ponto, capitão Morgan?

- Não vos detesto coisa alguma; mas sois uma estrela do meu firmamento que não passou de um meteoro.

- Eis uma resposta bem pouco galante, senhor, e que difere estranhamente das frases que me dissestes há poucos dias - replicou ela com despeito.

- Tendes razão, minha senhora. Ficai sabendo que de agora em diante só me mostrarei galante por duas razões: o dinheiro e o triunfo. Tentei sê-lo convosco a fim de dar a esta aventura um carácter de alegria e de pureza. Era honesto comigo mesmo nesse momento, e sou-o da mesma forma neste instante. Infelizmente, essas duas honestidades são antitéticas.

- Estais amargo, capitão.

- Nem sequer isso. Não resta em mim vestígio do que possa servir de alimento à amargura.

- Vou partir - disse ela com voz doce e nostálgica. Não tendes mais nada a dizer-me, mais nada a pedir-me?

- Absolutamente nada, senhora - replicou ele, voltando a empilhar as moedas de ouro.

O mensageiro penetrou na sala de audiência. Tinha bebido em excesso, na sua alegria de se sentir aliviado da missão. Inclinou-se diante de Ysobel e de Henry Morgan, enquanto procurava manter o equilíbrio.

- Devemos partir, senhor - declarou em voz forte. Temos um longo caminho à nossa frente.

Conduziu a ama até à burra branca, ajudou-a a montar. Depois, a um sinal seu, a cavalgada desceu lentamente a rua, Ysobel virou-se para trás uma única vez no momento da partida, e dir-se-ia que tinha arrancado a Henry Morgan um pouco do seu humor, pois um sorriso intrigado estava desenhado na sua face. Mas, quase imediatamente, ela inclinou a cabeça por cima do cachaço da sua montada como se observasse atentamente a crina branca.

O mensageiro tinha ficado de pé ao lado de Henry, na soleira da porta. Ambos viam afastar-se a fila de cavaleiros. O sol fazia brilhar a armadura dos soldados, e a burra branca, no meio da tropa, parecia uma pérola montada num engaste de prata.

O mensageiro pousou a mão no ombro de Henry e declarou numa voz avinagrada:

- Nós que assumimos graves responsabilidades, somos feitos para nos entender, capitão. Não devemos ter segredos um para o outro, como se fôssemos crianças. Somos homens corajosos e fortes. Podemos acreditar um no outro. Se o desejardes, senor, podeis dizer-me o que mais vos atormenta o coração.

- Não tenho nada a dizer-te - replicou brutalmente Henry, obrigando a mão a saltar-lhe do ombro.

--Pois bem! Vou revelar-vos uma coisa. Sem dúvida, tendes perguntado a vós mesmo a razão que levou o meu amo a consentir em pagar-vos uma soma tão avultada para recuperar a esposa. No fim de contas, deveis vós ter pensado, há muitas outras mulheres que se poderiam ter muito mais baratas: algumas, até, nem sequer vos chegam a custar um real. Por consequência, julgais que esse homem é muito tolo. Mas, como me desagrada que façais uma tão má opinião do meu amo, vou-vos explicar o que acontece. O avô de Dona Ysobel, que ainda está no mundo, possui dez minas de prata e cinquenta léguas de terras férteis no Peru: a neta é a sua única herdeira. Ora, se a matassem ou a reduzissem à escravidão, compreendeis, senor... a fortuna passaria para as mãos do rei!

Desatou a rir pensando na subtileza da sua dedução.

- Nós compreendemo-nos, senor - continuou ele. Temos a cabeça sólida e não um cérebro de pássaro... Vinte mil peças... não são nada, comparadas com dez minas de prata.

Montou e afastou-se, continuando a rir. Henry viu-o juntar-se à cavalgada, e acrescentar um rubi à pérola engastada de prata.

O capitão Morgan regressou ao seu tesouro, sentou-se no sobrado e apanhou dois punhados de moedas. «O traço mais humano da humana natureza é a inconsistência», pensou. «Esta verificação é para o homem um choque tão rude como a revelação da sua humanidade. E por que razão seremos levados a fazê-la em último lugar? No seio desta existência discordante, cheia de um falatório estúpido e grandiloquente, sentia-me, pelo menos, solidamente ligado a mim próprio. Quaisquer que fossem as indecisões dos outros, julgava-me de uma firmeza a toda a prova. Agora, aqui estou prestes a alar uma cordagem completamente gasta, a minha âncora desapareceu, e vogo em torno de uma ilha que não tem ferro.»

Deixou que as moedas de ouro lhe corressem entre os dedos, e continuou o seu monólogo íntimo: «Talvez isto me sirva de ferro para fabricar uma âncora nova. Este metal é duro e pesado. O seu valor pode sofrer certas flutuações, mas, pelo menos, tem um objectivo preciso: constitui uma perfeita garantia de segurança. Sim, talvez esta seja a única âncora verdadeira, em que nos possamos fiar inteiramente. As suas unhas prendem-se solidamente à segurança e ao bem-estar, duas coisas que desejo acima de tudo.»

«Mas outros homens têrn direito a uma parte desse ouro», retorquiu-lhe a consciência.

«Não, minha cara censora. Acabei com os fingimentos.

Pus óculos novos, ou antes, impu-los a mim próprio: devo, por isso, ordenar a minha vida de acordo com a visão do universo que me forneceu estas lentes. Verifico que a honestidade em público pode constituir um meio de cometer uma malfeitoria mais importante, mais lucrativa; que a franqueza pode ser o instrumento de uma dissimulação mais subtil. Não, esses homens não têm qualquer direito que possam fazer respeitar. Tomaram demasiadas liberdades com os direitos alheios para merecer a menor consideração. Roubaram: o seu despojo vai ser-lhes roubado.

«Aliás, já disse que tinha acabado com os subterfúgios da consciência. Que tenho eu a ver com a consciência, o direito, a lógica, a razão? Quero este dinheiro. Desejo a segurança e o bem-estar, e tenho nas mãos o poder de adquirir uma e outro. Não será talvez o ideal da minha juventude, mas creio que este hábito está estabelecido no mundo desde os primeiros tempos, e não é a juventude que governa o mundo. Para mais, estes imbecis não merecem receber a menor parte do tesouro. Iriam desperdiçar a sua parte nos bordéis, logo que regressássemos.»

Os flibusteiros deixaram Panamá em ruínas, levando com eles o seu despojo em mulas. Logo que chegaram a Chagres, estavam completamente esgotados; apesar de tudo, o seu chefe decidiu proceder à partilha no dia seguinte. Para facilitar esta operação, o tesouro foi acumulado num único navio, o grande galeão que outrora tinha sido comandado por um duque antes de ter sido tomado pelos piratas. O capitão Morgan parecia de excelente humor. Declarou aos seus homens que o momento do prazer tinha chegado depois das fadigas da viagem, e mandou levar para a praia quarenta barris de rum.

De madrugada, um flibusteiro ainda sonolento abriu os olhos avermelhados e olhou para o mar: o galeão tinha desaparecido. Chamou os seus camaradas: um instante depois, a margem estava franjada de homens que perscrutavam avidamente o horizonte. O navio-almirante tinha levantado âncora durante a noite, levando toda a riqueza do Panamá.

Os piratas enfureceram-se, juraram que iam perseguir os fugitivos e torturar o capitão Morgan. Mas descobriram que não podiam utilizar os barcos: alguns tinham grandes furos no casco; os mastros dos outros estavam serrados em três quartas partes.

Houve um concerto de blasfémias na praia. Os flibusteiros juraram constituir uma união fraternal em nome da vingança; estabeleceram o plano de um espantoso castigo... Depois disto dispersaram-se. Muitos morreram de fome; outros foram torturados pelos índios; os Espanhóis estrangularam alguns e a virtuosa Inglaterra enforcou outros.

 

UMA multidão muito heterogénea estava concentrada na praia de Port-Royal, para ver o capitão Morgan que tinha tomado e pilhado Panamá. Viam-se ali grandes damas vestidas de preciosas sedas da China, porque, no fim de contas, Henry Morgan pertencia a uma excelente família; não era ele o sobrinho desse pobre Sir Edward, o falecido vice-governador? Estavam também marinheiros, porque ele era um marinheiro; raparigas, porque ele era um herói; homens de negócios, porque era rico; bandos de escravos, porque era feriado. Estavam também prostitutas de lábios vermelhos, com olhos vivos que fitavam o rosto dos homens sós; e rapariguinhas em cujo coração crescia a esperança sagrada de que o grande capitão as olharia e encontraria nelas a alma compreensiva que devia desejar tão ardentemente.

Alguns marinheiros orgulhavam-se de ter ouvido Henry Morgan praguejar; os alfaiates orgulhavam-se de lhe terem tirado as medidas para uns calções. Quem quer que se tivesse aproximado do célebre flibusteiro via-se rodeado por um grupo de admiradores, porque o feliz mortal estava revestido de uma certa grandeza que lhe vinha desse ilustre contacto.

Os escravos negros, libertos do trabalho dos campos nesse grande dia, olhavam com grandes olhos vazios o galeão que entrava no porto. Os proprietários das plantações passeavam em grandes passadas, proclamando em alta voz o que diriam a Henry Morgan quando lhe dessem de jantar, e os conselhos que lhe prodigalizariam. Falavam com desenvoltura, como se tivessem o hábito de receber homens que acabassem de pilhar Panamá. Alguns taberneiros tinham furado tonéis de vinho na praia, e ofereciam de beber gratuitamente a quem o quisesse. Ganhariam dinheiro um pouco mais tarde, quando tivesse aumentado a sede que eles se contentavam em provocar.

Num pequeno paredão estavam os representantes do governador: belos jovens com bofes de rendas, sapatos com fivela de prata, acompanhados por um esquadrão de alabardeiros para ganharem um ar oficial. O mar empurrava pequenas vagas tranquilas para a praia. A manhã estava já avançada e o sol queimava como um cadinho fervente, mas ninguém dava pelo calor: todas estas pessoas só tinham olhos e sentimentos para este navio de alto bordo que se dirigia para eles.

Acabava de dar meio-dia quando Henry Morgan, que tinha observado a margem pela luneta de longo alcance, decidiu fazer a sua entrada na cidade. Esta encenação não era apenas ditada pela vaidade. No decurso da noite, uma pequena canoa tinha-lhe vindo anunciar que poderia muito

bem ser preso por ter combatido os inimigos do rei. Henry julgava que a aprovação do povo faria inclinar a balança em seu favor. Durante toda a manhã tinha visto engrossar essa aprovação à medida que aumentava o entusiasmo da multidão.

Lançaram a sua chalupa ao mar, e os marinheiros pegaram nos remos. Quando a embarcação se aproximou da margem, os espectadores lançaram urros e depois uma aclamação unânime. Atiravam o chapéu para o ar, saltavam, dançavam, trocavam frases ininteligíveis com uma voz superaguda. No paredão estenderam-se mãos para Henry antes de ele ter deixado a chalupa. Logo que assentou pé na plataforma, os alabardeiros colocaram-se em volta das personalidades oficiais e, com a arma apontada para o chão, abriram passagem pelo meio das pessoas que se acotovelavam estendendo o pescoço.

Henry lançou um olhar inquieto para os soldados que o cercavam, e perguntou ao fidalgo mais próximo:

---Estou sob prisão?

- Sob prisão?! - replicou o outro, rindo. - Decerto que não o poderíamos prender mesmo que o quiséssemos: a população far-nos-ia em pedaços. Admitindo que conseguíssemos chegar a encarcerá-lo, ela demoliria a cadeia pedra a pedra para vos libertar; não vos dais conta do que representais para essa gente, senhor. Há vários dias que só falam da vossa chegada. Mas o governador quer ver-vos imediatamente. Não quis vir em pessoa, por motivos evidentes.

Alcançaram sem incómodo a residência de Sir Charles Moddyford. -,

- Capitão Morgan - disse este último quando ficàram sós-, não sei se a minha notícia é boa ou má: o rei teve conhecimento da vossa conquista e recebi ordem de partir convosco para Inglaterra.

- Mas eu tinha uma carta de corso...

O governador fez um sinal negativo com a cabeça e assumiu um ar entristecido:

- No seu lugar, não falaria dessa carta, capitão, se bem que tivesse sido eu mesmo que lha passei. Contém certas cláusulas que poderiam valer-nos severas reprimendas. Nas circunstâncias presentes, bem poderia acontecer que fôssemos enforcados, embora não esteja muito certo disso. A paz reina entre a Espanha e a Inglaterra, mas as duas nações não estão em muitos bons termos. O rei está muito irritado contra nós, está entendido; contudo, acredito que alguns milhares de libras judiciosamente distribuídas poderiam acalmar a sua cólera, mesmo que fosse das mais violentas. A vossa conquista encheu de alegria o povo inglês. Não vos inquieteis, capitão; por mim, não tenho qualquer preocupação.

Lançou um olhar perscrutador a Henry e acrescentou:

- Espero, senhor, que sejais capaz de encontrar esses milhares de libras quando o momento chegar.

O pirata respondeu no seu tom mais oficial: - Tentei servir o secreto desejo do meu soberano e de modo algum a fachada da sua política. Depois do que prosseguiu:

- Disporei certamente do dinheiro necessário, Sir Charles. Possuo o bastante para comemorar o favor de Sua Majestade, ainda que tivesse que me custar meio milhão. Diz-se que o nosso rei é bastante bom homem e que gosta das mulheres bonitas: todas as pessoas desta natureza precisam de numerário, tanto quanto possam julgar.

- Tenho ainda outra coisa a dizer-vos, capitão - continuou o governador num tom constrangido. - Vosso tio foi morto há algum tempo. A sua filha está aqui, na minha casa. Sir Edward morreu pobre. Bem entendido que gostaríamos de conservar Elizabeth junto de nós, mas receio bem que ela não se acomode de modo algum; irrita-se com uma hospitalidade que apenas atribui à caridade. Naturalmente que vós atendereis às suas necessidades. Sir Edward morreu como um fidalgo e recebeu os elogios do rei a título póstumo; apesar de tudo, os elogios da Coroa não podem transformar-se em moeda.

- Estou certo de que meu tio morreu nobremente declarou Henry, sorrindo. - Devia efectuar o menor gesto da vida quotidiana como se todos os pares do reino tivessem os olhos nele, prontos a formular críticas. Como morreu ele? Pronunciando um discurso de circunstância? Ou então cerrando os seus malditos lábios finos como se achasse que a morte não ocupa um lugar social suficientemente elevado? Ah! Que homem! Durante toda a sua vida desempenhou um papel muito simples, de que nunca se afastou. Repare, Sir Charles, eu detestava meu tio: era um dos raros homens que me inspiravam receio. Dizei-me como morreu.

- Diz-se que lançou um gemido. O boato deve ter-se espalhado através de algum criado escondido atrás de um reposteiro.

- Eis o que devemos deplorar, na verdade! Que aborrecimento estragar uma vida perfeita com um gemido! Agora, já não tenho medo dele. Se gemeu, é que havia nele um pouco de humana fraqueza. Isto inspira-me ao mesmo tempo desprezo e afeição por ele. Quanto à minha prima, ficai certo de que cuidarei dela. Conservei dela uma vaga recordação de rapariguinha muito alta com cabelos loiros, que tocava harpa abominàvelmente; pelo menos pareceu-me que tocava muito mal, mas talvez toque muito bem.

Moddyford passou depois para um assunto que desejava ardentemente abordar desde que começara a conversa:

- Disseram-me que tínheis posto em liberdade a Santa Vermelha contra a entrega de um resgate depois de a terdes feito prisioneira. O que é que vos pode ter levado a tomar semelhante decisão? Consideravam-na uma das maravilhas do mundo.

- Por Deus - declarou Henry, corando violentamente -, tive a impressão de que a lenda a lisonjeava muito. Decerto que era bela e não seria capaz de negar que muitos homens se teriam talvez apaixonado por ela. Mas não pertencia ao género de mulheres que admiro. Tinha considerações que julgo deslocadas na boca de uma pessoa do seu sexo. Para mais, montava a cavalo escarranchada e manejava a espada como um homem. Resumindo, era desprovida dessa pudica reserva que esperamos de uma mulher bem educada.

- Mas vejamos, capitão, como amante...

- Que quereis, Sir Charles, recebi setenta e cinco mil peças de ouro em pagamento da sua liberdade. Na minha opinião, isso vale mais do que qualquer mulher do mundo.

- Como é que ela lhe trouxe semelhante resgate?

- Por Deus, depois de inquérito, descobri que se tratava de uma rica ’herdeira. Para mais, como já vos disse, a lenda concedeu-lhe uma beleza que ela não possuía.

Durante esse tempo, Lady Moddyford conversava seriamente com Elizabeth num outro compartimento da casa:

- Minha querida filha, é absolutamente necessário que lhe fale como uma mãe preocupada com o futuro da sua filha. Henry Morgan vai prover às suas necessidades, estamos certos disso; mas julga que se poderá contentar em viver graças à sua generosidade? Considere-o de outra maneira. É rico e tem boa figura. Bem compreende, minha querida filha, que a delicadeza não é de aconselhar nesta circunstância. Porque não casa com seu primo? Admitindo que não resultasse mais nada desta união, seria pelo menos a única mulher do mundo que não poderia criticar os pais do seu marido.

- Que me sugere com essas palavras, Lady Moddyford?

- perguntou timidamente Elizabeth. - Não será um crime o casamento entre primos?

- De modo nenhum, minha querida filha. Não é proibido pela Igreja nem pelo Estado; pessoalmente sou muito a favor deste casamento. Sir Charles e seu primo receberam ordem de partir para Inglaterra; é possível que o capitão Morgan receba o título de cavaleiro. Nesse caso, não somente seria rica, mas viria também a ser Lady Morgan.

- Só o vi uma vez - disse Elizabeth num tom pensativo.- Julgo lembrar-me que não me agradou muito. Era vermelho e pareceu-me agitado. Todavia, mostrou-se respeitador e cortês. Fiquei com a impressão de que desejava que fôssemos bons amigos, mas meu pai... bem sabe que género de homem era ele, senhora! Talvez o meu primo venha a fazer um bom marido...

- Minha querida filha, qualquer homem faz um bom marido desde que saibamos manejá-lo.

- Por Deus, é sem dúvida a melhor maneira de sair desta dificuldade. Estou cansada de ouvir as pessoas apiedarem-se da minha pobreza. Contudo, dada a sua popularidade actual, julga que será capaz de atentar em mim? Talvez esteja muito orgulhoso para casar com uma rapariga sem tostão.

- Minha querida Elizabeth, ainda não aprendeu que qualquer mulher é capaz de casar com qualquer homem, desde que não apareça outra mulher a barrar-lhe o caminho? Ora, eu me arranjarei para que nenhuma rival lhe crie obstáculos: acredite em mim quanto a este ponto.

- Sei o que devo fazer - declarou a rapariga num tom decidido. - Vou tocar-lhe algumas composições de harpa. Ouvi dizer que a música tinha uma grande influência sobre estes seres brutais. Vou tocar-lhe dois trechos que acabei de aprender: a Dança dos Elfos e Deus Dê o Repouso às Almas Cansadas.

- No seu lugar, não faria nada, minha filha. Pode ser que ele não goste da boa música. Há outros meios mais seguros.

- Mas foi mesmo a senhora que me disse que estes trechos eram muito bonitos, e li não sei onde que a musica encanta o coração dos homens.

- Muito bem, minha filha, faça como quiser. No fim de contas, talvez o amor pela música corra na família... Aliás, não se esqueça de que o deve admirar e ter algum medo dele. Faça-lhe sentir que não passa de uma pobre criatura sem defesa cercada de animais ferozes. Tem um excelente ponto de partida, pois pode, desde o início, suplicar-lhe que lhe conceda a sua protecção... Não sei o que poderíamos fazer, nós as mulheres, se não tivéssemos esta possibilidade. -pergunto-me quando Sir Charles me teria declarado a sua paixão. O pobre querido homem era tão tímido que não sabia como agir. Um dia em que estávamos sentados num banco, procurei desesperadamente em volta de mim qualquer coisa que me pudesse assustar. Tive de esperar três horas antes de uma cobrazinha-de-água atravessar a álea, provocando-me tamanho medo que me lancei nos braços do meu companheiro... Na verdade, ignoro o que faríamos se não pudéssemos implorar auxílio e protecção. Sir Charles encarregou um dos jardineiros de perseguir impiedosamente as serpentes. Ora, trata-se de animais que adoro; criei três no tempo em que era rapariguinha.

No dia seguinte, de manhã, Lady Moddyford pôs frente a frente a sua protegida e o capitão Morgan; depois deixou-os, logo que pôde decentemente retirar-se.

Elizabeth lançou um olhar a seu primo e disse-lhe com voz trémula:

- Realizou grandes e terríveis façanhas no mar, senhor; tão terríveis que se estremece só de pensar nelas.

- Em boa verdade, as minhas proezas não são muito grandes, nem muito terríveis. O rumor público deforma todas as nossas acções para bem ou para mal.

«Estava completamente enganado a seu respeito», pensou ele. «Não tem a menor parcela de arrogância; muito pelo contrário, parece-me ser muito gentil. Devo ter transferido para a filha a má impressão que o pai me tinha provocado.»

- Tenho a certeza de que não deformou as suas. Sabe, senhor, que tremia quando ouvia as narrativas que me contavam a seu respeito? Fazia votos para que não vos sucedesse qualquer infelicidade...


-Na verdade? Por que razão? Nunca imaginaria que fosse capaz de atentar em mim.

- Porque me aconteceu uma grande infelicidade, senhor - respondeu ela enquanto os olhos se lhe enchiam de lágrimas.

- Eu sei. Já me informaram disso e lamentei-a muito, prima Elizabeth. Espero que me dê licença de a ajudar. Posso pedir-lhe para se sentar a meu lado?

- Talvez lhe agrade ouvir um pouco de música? - disse ela, lançando-lhe um olhar tímido.

- Si... sim; certamente que sim...

- Primeiro vou-lhe tocar a Dança dos Elfos. Ouça bem! Parece-nos ouvir o rumor dos seus pèzinhos leves sobre a erva. Toda a gente acha encantadora esta peça.

Começou a dedilhar metodicamente as cordas da harpa, e Henry esqueceu a música contemplando as mãos delicadas que se agitavam como pequenas borboletas brancas. Tinha desejo de as acariciar e, contudo, teria hesitado em tocar-lhes com medo de as abismar.

Quando o trecho chegou ao fim com uma série de harpejos, declarou:

- Toca com muita... precisão, Elizabeth.

- Meu Deus, toco as notas como elas se apresentam. Julgo sempre que o compositor conhecia o seu ofício melhor do que eu.

- É verdadeiramente reconfortante ouvi-la e saber que tudo está no seu lugar, até as notas de música. Algumas jovens executantes permitem-se liberdades deveras desagradáveis na interpretação de um trecho: a sua execução é mais espontânea e mais humana, sem dúvida, mas comporta negligências aborrecidas sob pretexto de exprimir a paixão. Veja, prima, que, à medida que envelheço, me sinto feliz por ver produzir-se exactamente aquilo que esperava. O acaso, o risco, deixaram de ter qualquer atractivo para mim. Até agora não passei de um tolo, Elizabeth. Corri os mares em busca de qualquer coisa que talvez não existisse. Agora que perdi os meus desejos sem objectivo preciso, não me sinto mais feliz, mas a paz reina no meu coração.

- Aí estão considerações cheias de sageza, senhor. Todavia, é uma sageza um pouco cínica, parece-me, e bem ligada às coisas deste mundo... Suponho que deve ter conhecido muitas destas jovens mulheres de que me falou há pouco, não é assim?

- Que jovens mulheres, Elizabeth?

- As que tocavam mal.

- Na verdade, conheci algumas. -E, diga-me, senhor, achava-as... a seu gosto?

-Tolerava-as porque eram as amigas dos meus amigos.

-Aconteceu alguma vez que... uma delas... se tenha apaixonado por si?... Perdoe a minha indiscrição, senhor. Talvez me julgue falha de delicadeza, mas, no fim de contas, é meu primo, quase meu irmão.

- Por Deus, algumas delas pretenderam amar-me; apesar de tudo, suspeito muito que se sentiam sobretudo atraídas pelo meu dinheiro.

- Tenho bem a certeza de que não!... Agora, meu primo, vou tocar-lhe outro trecho de carácter mais grave: Deus Dê o Repouso às Almas Cansadas.

De novo os seus dedos afloraram as cordas.

- É muito belo e muito triste - declarou Henry quando ela acabou. - Na verdade, gosto muito desta música, Elizabeth. Mas não me parece que seria necessário esticar mais a sexta corda da harpa?

- Oh! Não seria capaz disso por nada deste mundo! exclamou ela. - Antes da nossa partida de Inglaterra, o papá mandou afinar esta harpa de fio a pavio. Teria a impressão de trair meu pai, se permitisse que lhe tocassem. Detestava todas as mudanças.

Um longo silêncio seguiu este pequeno discurso, depois do que Elizabeth continuou, lançando um olhar súplice ao companheiro:

- Não me quer mal pelo que lhe disse, não é verdade, primo Henry? Experimento certos sentimentos muito intensos, contra os quais não consigo lutar.

- Não saberia querer-lhe mal, minha prima - respondeu ele, continuando a pensar que ela era, na verdade, uma pobre criatura indefesa.

- E para onde irá agora, senhor, agora que está rico, célebre e coberto de honrarias?

-Não sei. Quero viver numa atmosfera de calma e de certeza.

- Na verdade, tenho exactamente os mesmos desejos! exclamou ela. - Devemos assemelhar-nos muito neste ponto. Pretender sempre que as coisas nos aparecem quando não as procuramos. Pessoalmente, sei quase sempre o que me vai acontecer, porque o desejo e o espero sem me mexer.

- Talvez tenha razão.

- A morte do papá atingiu-me duramente - disse ela, enquanto os olhos se lhe enchiam novamente de lágrimas.- É terrível ficarmos sós no mundo, quase sem parentes nem amigos. Os Moddyford foram encantadores comigo, mas não são membros da minha família. Oh, meu Deus, como me senti só! O seu regresso causou-me grande alegria, primo Henry, ainda que fosse apenas por sermos do mesmo sangue...

- Não é preciso chorar, Elizabeth - respondeu ele num tom tranquilizador. - Não se inquiete mais: estou aqui para a aliviar de qualquer preocupação. Ajudá-la-ei e cuidarei de si. Pergunto-me como pode suportar a infelicidade que caiu sobre si. Você deu prova de uma grande coragem.

- A música ajudou-me muito. Servia-me de refúgio consolador quando sofria demasiado.

- De agora em diante já não terá necessidade desse refúgio. Partirá comigo para Inglaterra, e o seu futuro estará definitivamente assegurado.

Ela levantou-se de súbito, exclamando:

- Mas que sugere com isso? Que me está a propor? Não será um pecado, uma espécie de crime, um casamento entre primos?

- Casar?

- Oh! - exclamou ela corando, e os seus olhos encheram-se de lágrimas pela terceira vez. - Oh! sinto-me cheia de vergonha... Era realmente no casamento que estava a pensar, não é assim?... Oh! morro de vergonha!...

«No fim de contas, porque não?», pensou Henry. «Ela é bonita, e estou certo das suas origens; aliás, encarna bastante bem esta segurança que tanto tenho pregado. Acredito que tenho um real desejo de segurança, e não ousarei jamais nada de temerário se ela se tornasse minha mulher. Para mais, não a posso deixar sofrer assim.»

- Mas, prima, que intenções é que está a atribuir? Na verdade, não pensava noutra coisa que não fosse o casamento. Receio ter-me explicado mal e tê-la ferido: queira desculpar-me. Não, minha querida Elizabeth, semelhante união não tem nada de criminoso. São muito comuns os casamentos entre primos. Conhecemo-nos bem, pertencemos à mesma família: deve casar comigo, Elizabeth, porque lhe dedico um amor sincero.

- Oh! Não posso acreditar nisso... eu... eu sinto-me mal... gira-me a cabeça... Esperava tão pouco esta súbita declaração... Oh! Deixe-me, Henry, suplico-lhe! Tenho de ir consultar Lady Moddyford. Ela saberá dizer-me o que lhe devo responder.

O rei Carlos II e John Evelyn estavam sentados numa pequena biblioteca. Na lareira flamejava um belo lume cujas lucilações iluminavam os livros que cobriam as paredes. Numa mesa colocada entre os dois homens estavam garrafas e copos.

- Concedi-lhe o perdão e o título de cavaleiro esta tarde, contra o pagamento de duas mil libras -- disse o rei.

- Por Deus, duas mil libras não são para desdenhar. Talvez alguns fornecedores de Vossa Majestade abençoem este enobrecimento.

- Não, John, tu não compreendes. Poderia ter-lhe extorquido vinte mil libras, sem dificuldades. Pensa que a tomada do Panamá lhe deu quase um milhão.

- Apesar de tudo, duas mil libras...

- Mandei-o vir ao palácio esta noite. Esses piratas sabem às vezes histórias que merecem ser repetidas. Vai-te desapontar, John. É extremamente pesado. Fica-se com a impressão de termos uma grande massa especada diante de nós.

- Vós podeis criar um novo título, Sire. E um desperdício deixar escapar um milhão sem sequer tentarmos apoderar-nos dele.

Anunciaram Sir Henry Morgan.

- Entrai, senhor, entrai! - disse o rei. - Realizastes uma excelente tarefa no Panamá. Mais vale queimar a cidade agora do que mais tarde, e estou certo de que mais tarde o deveríamos fazer.

- Foi nisso que pensei quando lhe lancei fogo, Sire. Os porcos desses Espanhóis querem invadir o mundo inteiro.

- Bem vê, capitão, que a pirataria - ou, para ser delicado, a flibustaria - foi uma coisa boa para nós e uma coisa má para a Espanha. Contudo, esta instituição tende a tornar-se extremamente perniciosa. Tenho passado metade do meu tempo a apresentar desculpas ao embaixador espanhol. Vou nomear-vos vice-governador da Jamaica.

- Ah! Sire!

- Nada de agradecimentos. Actuo acreditando num velho provérbio. É preciso pôr cobro à pirataria. Essa gentalha já brincou o suficiente às guerras.

- Mas, Sire, vejamos, eu próprio fui flibusteiro. Deseja então que enforque os meus antigos companheiros?

- É efectivamente o que espero de vós. Conhecendo os seus abrigos, estais realmente mais indicado do que ninguém para os apanhar.

- Combateram comigo, Sire.

- Como, senhor, tendes escrúpulos? Cansei-me de ouvir dizer que estáveis muito à vontade com a vossa consciência.

- Não se trata de consciência, Sire, mas de piedade.

- A piedade não cabe de modo nenhum a um funcionário nem a um ladrão. Um homem está autorizado a fazer o que lhe pode aproveitar. Vós próprio vos encarregastes de demonstrar estas duas premissas. Tem azo para nos fazer ver que cumprirá a terceira.

- Pergunto se me poderei desempenhar do meu cargo.

- Podeis, pois vo-lo perguntais - declarou John Evelyn. A atitude do rei modificou-se.

- Vamos beber! - disse num tom jovial. -- E vós, capitão, contai-nos uma história enquanto esvaziais o vosso copo.

- Uma história, Sire?

- Mas sim. Falai-me um pouco das mulheres das índias. Estou certo de que não vos contentastes com pilhar tesouros. Descrevei-nos um intermédio galante entre duas expedições guerreiras. Ouvi dizer que havia no Panamá uma certa beleza que gostaria de conhecer mais pormenorizadamente.

Fez sinal a um criado para que vigiasse de modo a que o copo do capitão nunca ficasse vazio.

Henry, cujo rosto se tornava mais purpúreo sob o efeito do álcool, começou nestes termos:

-- Ela era bela, na verdade, mas era também uma rica herdeira. Confesso que lhe concedi os meus favores. Seu pai devia legar-lhe várias minas de prata. Seu marido ofereceu-me um resgate de cem mil peças, porque desejava apossar-se das minas. Estava diante de um problema que muitos poucos homens saberiam resolver: iria conservar a mulher ou aceitar o dinheiro?

- Diga-nos depressa qual foi a sua opção, senhor ordenou o rei inclinando-se para diante.

- Fiquei em Panamá durante alguns dias. Que teria feito Vossa Majestade no meu lugar? Apoderei-me das duas coisas. Talvez me tenha apoderado ainda mais. Quem sabe se meu filho não virá a herdar as famosas minas de prata?

- Era isso o que eu teria feito - exclamou o rei. Tendes razão, senhor: era isso o que eu teria feito. Bebamos à sua previsão, Sir. Vejo que os vossos talentos de estratego não se limitam ao domínio da guerra. Afirmam-me que nunca perdestes uma batalha; mas, dizei-me, senhor, nunca fostes vencido em amor? É raro um homem admitir que foi derrotado em amor: esta confissão é tão contrária a todos os instintos masculinos! Mais um copo, senhor, e depois contai-nos o vosso desaire.

- Nunca fui vencido por uma mulher, Sire... Contudo, uma vez, fui vencido pela morte. Certos acontecimentos murcham a nossa alma de maneira tão terrível que sofremos toda a vida. Eis a minha história, Sire: à vossa saúde.

«Nasci nas montanhas do País de Gales. Meu pai era fidalgo. Num dia de Verão, no decurso da minha adolescência, uma princesinha de França chegou ao nosso país, acompanhada por um séquito pouco numeroso, para fazer uma cura de ar. Como era dissimulada e nunca estava no mesmo lugar, conseguiu obter uma certa liberdade. Uma manhã descobri-a banhando-se inteiramente nua num ribeiro. Ela não manifestou a menor vergonha e, uma hora depois - tal é o ardor do sangue das pessoas da sua raça! - repousava nos meus braços. Sire, no decurso das minhas vagabundagens, nunca nenhuma mulher seduzida, nenhuma cidade conquistada me deu o prazer que conheci durante esse Verão maravilhoso. De cada vez que conseguia escapar-se, divertiamo-nos nas colinas como jovens deuses. Contudo, isso não nos bastava: queríamos casar. Ela renunciaria à sua casta; iríamos viver para qualquer parte da América.

«O Outono chegou e, um dia, ela disse-me com voz trémula: ”Querem levar-me, mas eu recuso-me a partir.” No dia seguinte ela não apareceu. No decurso da noite pus-me debaixo da sua janela e ela atirou-me um bilhete assim concebido: ”Estou prisioneira. Fustigaram-me.”

«Voltei para casa. Que podia eu fazer além disso? Era-me impossível lutar com os soldados que a guardavam. Já noite alta, ouvi alguém bater à minha porta e gritar: ”Onde se poderá encontrar um médico? Depressa! A princesinha envenenou-se!”»

Henry levantou os olhos. O rei sorria ironicamente, enquanto John Evelyn tamborilava com os dedos em cima da mesa.

- Assim mesmo? - comentou o rei. - E que aconteceu depois?

- Ah! Sinto-me tão velho, tão velho! - gemeu Henry. - Menti-vos. Era uma bonita camponesa, filha de um pobre caseiro.

Levantou-se e encaminhou-se para a porta, cambaleando, com o rosto vermelho de vergonha.

- Capitão Morgan, esquecei-vos, ao que me parece.

- Eu... Sire... esqueço-me?

- O costume exige que me saudeis com cortesia antes de vos retirardes.

- Imploro o vosso perdão, Sire, e peço-vos que consintais em que me retire. Eu... eu não me sinto bem.

Inclinou-se profundamente e saiu da câmara.

- Como pode ser possível, John - perguntou o rei com um sorriso - que um tão grande soldado possa ser tão grande tolo?

- Não podia ser de outra maneira. O mundo teria sido destruído há muito se todos os grandes homens não fossem tolos, A grandeza tem por bases a estupidez e uma visão deformada das coisas.

- Queres tu dizer que a minha visão das coisas é deformada?

- Não. Sire.

- Nesse caso, insinuas...

- Estou a falar de Henry Morgan e não de vós, Sire. Ele tem o génio da pirataria, o que lhe confere uma certa grandeza. Imediatamente vós concluís que é um grande chefe e nomeai-lo vice-governador. E nisso sois semelhante à multidão. Julgais que se um homem faz uma coisa com perfeição, deve fazer tudo com perfeição. Acreditais que pelo facto de serdes um bom rei deveis ser um bom amante... ou vice-versa.

- Vice-versa?

- A minha alternativa é apenas humorística, Sire. É um simples artifício de conversação, destinado a arrancar-vos um sorriso.

- Bem vejo. Mas voltemos a Morgan e à sua estupidez... É bastante evidente que este homem não passa de um tolo; se não fosse isso, trabalharia a gleba da sua terra natal ou trabalharia numa mina. Desejou uma coisa, e foi bastante estúpido para imaginar que podia obtê-la. Em virtude da sua burrice, obteve-a em parte: lembrai-vos da história da princesa.

O rei voltou a sorrir.

- Não consigo compreender por que razão um homem nunca diz a verdade a uma mulher ou a propósito de uma mulher. Porque será assim, John?

- Talvez o compreendais, Sire, se explicardes a origem da minúscula arranhadela que tendes sob o olho direito. Não estava lá a noite passada, e assemelha-se nitidamente a...

- Sim, sim. Foi um criado desajeitado. Falemos de Morgan, John. Tu tens o aborrecido hábito de insultar as pessoas por implicação; às vezes nem chegas a dar conta de tal. É uma coisa que te aconselho a renunciar se quiseres ficar muito tempo na corte de um rei.

Sir Henry Morgan sentava-se como juiz na sala do tribunal de Port-Royal. Diante dele, o sobrado, espalhava-se uma larga mancha de sol semelhante a uma branca laje tumular. Uma orquestra de moscas tocava uma obsidiante sinfonia que servia de fundo sonoro à voz mais forte dos advogados. No aposento reinava uma atmosfera de aborrecimento e de sonolência.

- Foi no dia quinze do mês, meu senhor. VilIiamson dirigiu-se à propriedade de Cartwright para verificar se a árvore estava realmente como se dizia. Foi enquanto se encontrava lá que...

A voz monótona conduziu o caso até à sua conclusão.

Atrás da sua larga mesa, Sir Henry Morgan mexeu-se preguiçosamente. Os guardas trouxeram um vagabundo com ar sombrio, vestido com andrajos muito sujos.

- Acusado de ter roubado quatro biscoitos e um espelho, meu senhor.

- Quais são as provas?

- Foi apanhado em flagrante, meu senhor.

- Reconheces ter roubado quatro biscoitos e um espelho? O rosto do prisioneiro tornou-se ainda mais carrancudo:

- Já o disse.

- Meu senhor - soprou um dos guardas.

- Meu senhor - repetiu o homem.

- Porque roubaste esses objectos?

- Eu desejava-os.

- Diz: meu senhor.

- Meu senhor.

- Que querias fazer com eles?

- Os biscoitos, queria comê-los.

- Meu senhor.

- Meu senhor.

- E o espelho?

- O espelho, queria ver-me a ele.

- Meu senhor.

- Meu senhor.

Levaram o homem para a prisão.

Os guardas fizeram entrar a seguir uma mulher magra de rosto pálido.

- Acusada de prostituição, meu senhor.

- Desde quando é a prostituição punível?-perguntou Sir Henry com um tom irritado.


->Meu senhor, a qualidade desta mulher... A saúde pública exige... Pensávamos que o caso estava decidido...

- Ah! Estou a ver! Que a prendam imediatamente. A mulher começou a chorar.

Sir Henry pousou a cabeça nas mãos e não olhou para os prisioneiros seguintes.

- Acusados de pirataria no alto mar. meu senhor; de ter perturbado a paz do rei; de ter atacado uma nação amiga.

Sir Henry lançou um rápido olhar aos recém-vindos. Um era um homenzinho grande e gordo, com os olhos plenos de terror; o outro, um maneta magro e vigoroso, com os cabelos grisalhos.

- Quais são as provas contra os prisioneiros?

- Cinco testemunhas, meu senhor.

- Na verdade? Que tendes a dizer em vossa defesa?

O maneta pousou o braço válido no ombro do seu companheiro :

- Reconhecemo-nos culpados, meu senhor.

- Reconheceis-vos culpados? - exclamou Sir Henry, estupefacto. - Mas nenhum pirata procede dessa forma. É um caso sem precedentes.

- Consideramo-nos culpados, meu senhor.

- Por que razão?

- Cinquenta pessoas nos viram combater, meu senhor. Para que fazer-vos perder o vosso tempo tentando negar o que cinquenta testemunhas estão prontas a afirmar debaixo de juramento? Não, estamos resignados, meu senhor. Estamos tão satisfeitos com a nossa expedição recente como com a nossa vida inteira.

Sir Henry esteve muito tempo silencioso; depois, erguendo os olhos cansados, declarou num tom taciturno:

- Condeno-vos à forca.

- Enforcados, meu senhor?

- Pendurados pelo pescoço, até que sobrevenha a morte.

- Mudastes, meu senhor.

Sir Henry inclinou-se para a frente e perscrutou o rosto dos prisioneiros. Depois respondeu, sorrindo:

- Sim, mudei. O capitão Morgan que conhecestes não tem nada de comum com Sir Henry Morgan, que vos condena à morte. Deixei de matar ferozmente, como outrora, e passei a matar a sangue-frio, e porque sou obrigado a fazê-lo...

Interrompeu-se um momento, para ordenar em seguida com voz sonora:

- Que evacuem a sala e guardem as portas! Desejo conversar sem testemunhas com os prisioneiros.

Quando os três homens ficaram sós, começou nestes termos:

- Sei muito bem que mudei, mas dizei-me qual foi a mudança que percebestes em mim?

Os Borguinhões entreolharam-se:

- Fala tu, Emil.

- Eis em que mudastes, capitão. Outrora sabíeis o que fazíeis; estáveis seguro de vós...

- E agora - acrescentou o outro flibusteiro - não sabeis já o que fazeis, não estais já seguro de vós. Outrora éreis uma única personagem em quem se podia confiar. Agora sois várias personagens; se devêssemos confiar numa delas, teríamos medo das outras.

- É verdade - anuiu, rindo, Sir Henry. - Não é culpa minha, mas é verdade. A civilização divide sempre um indivíduo em duas ou mais partes; aquele que recusa deixar-se dividir sucumbe fatalmente...

- Nós esquecemos a civilização para pensar na Pátria - disse Antoine.

- Que pena ter de vos enforcar, meus amigos!

- É absolutamente necessário enforcar-nos, capitão? Não poderíamos evadir-nos ou sermos agraciados?

- Não, é necessário que sejais enforcados. Lamento-o, mas não poderia agir de outra maneira.

- Que fazeis dos vossos deveres para com os vossos amigos, capitão? Para com aqueles que combateram às vossas ordens, que misturaram o seu sangue ao vosso?

- Ouve, Outro Borguinhão. Há duas espécies de dever, e sabê-lo-ás claramente se conseguires lembrar-te da tua França. Aquele em que falaste é muito mais fraco. O outro, é tão formidável que ninguém o pode desprezar, poder-se-ia chamar o dever para com as aparências. Se vos enforco, não é por serdes piratas, mas porque é dever meu enforcar os piratas. Estou magoado por vós. Gostaria muito de vos mandar para a vossa cela com uma serra no bolso; infelizmente isso não me é possível. Enquanto conseguir fazer aquilo que se espera de mim, serei o Juiz. Quando mudar, seja por que razão for, poderei ser eu próprio enforcado.

- É exacto, capitão. Lembro-me. - O flibusteiro virou-se para o seu amigo, que tremia de terror, e prosseguiu: Repara, Emil, o caso apresenta-se da seguinte maneira: o capitão não tem qualquer prazer em nos condenar, pois sofre usando para connosco esta linguagem. Talvez seja esta uma forma de ele se punir de um acto que cumpriu ou que não conseguiu cumprir. Talvez se lembre de Chagres, Emil.

- Chagres! - exclamou Sir Henry, projectando-se para diante com um ar animado. - Dizei-me, o que se passou depois da minha partida?

- Fostes amaldiçoado, capitão, como muitos poucos homens o foram no decurso da sua existência. Os nossos companheiros torturaram-vos em imaginação. Devoraram-vos o coração e mandaram a vossa alma para o Inferno. Esta cena agradou-me furiosamente, pois sabia que cada um deles vos invejava enquanto vos enchia de injúrias. Sentia orgulho por vós, senhor.

- E dispersaram-se?

- Dispersaram-se e morreram, os pobres rapazes.

- Não gostaria de ter caído na mão desses «pobres rapazes»! Mas fala-me de Panamá - acrescentou ele num tom melancólico. - Estivemos lá, não é verdade? Tomámos realmente Panamá e pilhámo-la, não é assim? E era eu que vos comandava, não é verdade?

->Mas decerto, capitão. Foi uma batalha magnífica e um despojo colossal... De resto, no que se refere a este ponto, vós sabeis muito mais do que nós!

- Às vezes chego a duvidar que o meu corpo tenha ido alguma vez a Panamá Tenho a certeza de que o meu cérebro nunca lá esteve. Gostaria de me demorar junto de vós e de falar desses velhos tempos. Mas minha mulher espera-me, e esmaga-me com censuras sempre que chego tarde para jantar!... Quando desejais ser enforcados?

Os Borguinhões trocaram algumas palavras em voz baixa.

- Por Deus, senhor - respondeu finalmente Antoine - não temos preferência. Não gostaríamos de vos incomodar por nada deste mundo; apesar de tudo, e já que insistis, mandai-nos enforcar logo que haja um carrasco e uma corda disponíveis.

Aproximou-se da mesa e prosseguiu:

- Emil deseja oferecer-vos um presente para vossa mulher, um presente cuja história basta para o tornar muito precioso. Emil nunca se separou dele até agora, e esse talismã proporcionou-lhe uma ampla colheita de alegrias, pois se trata de um verdadeiro talismã, capitão. Como não voltará a ter, infelizmente, mais ocasiões para se servir dele, Emil apresenta os seus respeitos a Lady Morgan, beija-lhe as mãos e manda-lhe este presente.

Deixou cair uma pérola rosa em cima da mesa, e afastou-se com passo rápido.

Depois de os dois homens terem abandonado a sala. Sir Henry contemplou a pérola durante alguns instantes. Depois meteu-a no bolso e saiu.

Chegou ao palácio do vice-governador, que estava exactamente como Sir Edward o tinha deixado. Lady Morgan teria tido a impressão de insultar a memória do pai se houvesse permitido que tivessem modificado qualquer pormenor. Recebeu Henry no limiar da porta:

- Vamos jantar a casa dos Vaugh, meu caro. Que devo fazer quanto ao cocheiro? Está bêbado. Já lhe repeti mais de cem vezes que tivesse o seu armário fechado à chave, mas não ouve aquilo que lhe digo. Deve ter entrado em casa e conseguiu roubar uma garrafa.

- Abra a sua mão, Elizabeth; tenho um presente para si.

Deixou cair a pérola na palma da mão da mulher.

Ela examinou a esfera rósea durante alguns momentos e o seu rosto corou de prazer; depois olhou os traços do marido com um ar desconfiado.

- Que tolice fez desta vez?

- Eu, minha querida? Mas, bem vê, chego agora mesmo do tribunal.

- E quer-me fazer acreditar que encontrou isto lá! Vamos, sei o que são estas coisas! Suspeitou do desagrado que me causou o seu comportamento ontem à noite. Para dizer a verdade, estava bêbedo; toda a gente olhava para si, cochichando. Não tente protestar] Agora tenta corromper-me para conseguir o meu perdão.

- Para não lhe ocultar nada, suspeitei do seu descontentamento, minha querida Elizabeth. Pensei nisso enquanto voltávamos para casa e durante toda a noite. Sim, suspeitei muito de tal coisa; estive até absolutamente certo de tal! Mas vou dizer-lhe a verdade a respeito desta pérola.

- Vai dizer-me a verdade unicamente porque nunca consegue enganar-me, bem sabe! Por isso, quando é que renunciará a acreditar que ignoro o mais insignificante dos seus pensamentos?

- Bem vê, Elizabeth, que não tentei enganá-la. Apenas não me deu tempo para lhe explicar.

- Não é preciso mais tempo para dizer a verdade do que para...

- Por favor, Elizabeth, ouça-me. Julguei esta manhã dois piratas, deram-me esta pérola.

Ela sorriu com ar superior:

- Foram eles que lha deram? E por que razão? Pô-los em liberdade? Semelhante coisa não me espantaria. Às vezes digo comigo que, sem mim, ainda estaria nas suas fileiras. Parece nunca mais se dar conta, Henry, de que fiz de si aquilo que é: um fidalgo e um cavaleiro. Por si mesmo nunca teria conseguido mais do que ser um flibusteiro. Vamos, seja franco: mandou em liberdade esses piratas?

-Não, condenei-os à morte.

- Ah Nesse caso, porque lhe deram eles a pérola?

- Porque não podiam fazer outra coisa. É evidente que poderiam tê-la oferecido ao carrasco; mas ninguém deve sentir muita propensão para oferecer pérolas a um homem que nos vai pôr a corda ao pescoço. Foi por isso que me ofereceram essa maravilha que deponho nas vossas mãos porque a amo - concluiu ele com um sorriso inocente.

- Farei o meu inquérito a respeito dos piratas; quanto à vossa afeição, só me amais enquanto estou com o olho em vós. Conheço-o, meu caro. Contudo, sinto-me feliz por esses bandidos serem condenados à forca. Lorde Vaugh afirmou que constituem um sério perigo mesmo para nós. Se acreditarmos nele, eles podem deixar de combater os Espanhóis de um momento para o outro para se voltarem contra nós. Não passam de marotos que é necessário exterminar o mais depressa possível. Sinto-me um pouco mais segura cada vez que um deles é posto em condições de não me aborrecer.

- Mas, minha querida, Lorde Vaugh ignora tudo acerca dos flibusteiros, enquanto eu...

- Henry, porque me obriga a perder o meu tempo com o seu falatório, quando sabe que tenho mil coisas a arranjar? Se tem numerosas folgas, eu, pela minha parte, não posso ajudá-lo a vaguear durante todo o dia. Trate então do cocheiro, pois ficaria terrivelmente embaraçada se estivesse incapaz de conduzir: Jacob não poderia vestir a sua libré. Já lhe disse que está bêbedo? Arranje-se para que esteja sóbrio esta noite, ainda que fosse obrigada a afogá-lo para conseguir este resultado. Vamos, faça alguma coisa! Não estarei à minha vontade enquanto não souber que se pode aguentar de pé.

Girou sobre os calcanhares para entrar no palácio; depois regressou junto do marido e beijou-o na face.

- Esta pérola é na verdade muito bela. Agradeço-lhe de todo o meu coração. Naturalmente, vou mandá-la avaliar pelo Sr. Banzet. Depois do que me disse Lorde Vaugh, não tenho muita confiança nestes piratas. Talvez tenham tentado corrompê-lo com uma pérola falsa sem que se tenha dado conta disso.

Sir Henry dirigiu-se para as cavalariças. Nesta circunstância, como em muitas outras, sentia um vago mal-estar. Parecia-lhe às vezes que Elizabeth o conhecia realmente a fundo, tal como o pretendia, o que não deixava de ser inquietante.

Sir Henry Morgan jazia num leito enorme, tão vasto que o seu corpo, debaixo da coberta branca, evocava uma cadeia de montanhas cheias de neve entre duas grandes planícies. Os retratos dos seus antepassados pendurados nas paredes olhavam-no com os seus olhos brilhantes. A expressão irónica do seu rosto significava claramente: «Ah, sim! Um cavaleiro, por certo... mas nós sabemos como obtiveste o título.» O ar do aposento estava pesado e abafadiço, como está sempre num quarto onde vai morrer um homem.

Sir Henry contemplou o tecto cujo aspecto bizarro o intrigava. No meio não estava apoiado por coisa alguma: por que razão não caía? Fazia-se tarde. O silêncio reinava na casa; todos os moradores se deslocavam com passos furtivos como se brincassem aos fantasmas. Tentavam convencê-lo de que já estava morto. Fechou os olhos. Sentia-se muito cansado ou muito indiferente para os ter abertos. Ouviu entrar o médico que lhe tacteou o pulso. Depois a voz grossa ressoou:

- Lamento muito, Lady Morgan, mas não sei fazer mais nada. Não sei sequer qual é o seu mal: talvez uma velha febre da floresta. Podia voltar a sangrá-lo, mas já lhe tirámos muito sangue. Contudo, se continuar a enfraquecer, voltaremos a tentar outra vez.

- Vai então morrer? - indagou Lady Morgan, num tom que pareceu a Henry Morgan mais marcado pela curiosidade do que pelo sofrimento.

- Sim, senhora, vai morrer, a menos que Deus intervenha. Só o Senhor responde pelos seus doentes.

O quarto esvaziou-se de todos os seus ocupantes, e Henry soube que sua mulher se tinha sentado à sua cabeceira, porque ouviu chorar baixinho. «Que pena», pensou ele, «que não possa ir ao encontro da morte num barco, para lhe dar ocasião de me preparar a mala. Ela ficaria tão contente por saber que entraria no Paraíso com uma boa reserva de roupa lavada.»

- Oh! Henry, Henry... meu marido bem amado...

Ele voltou a cabeça e olhou Lady Morgan com curiosidade até ao fundo dos seus olhos inundados de lágrimas. De súbito um violento desespero o invadiu.

«Esta mulher ama-me», disse consigo. «Ama-me e nunca me dei conta disso. Não sei reconhecer esta espécie de amor. Os seus olhos... há qualquer coisa nos seus olhos que ultrapassa a minha compreensão. Será possível que sempre me tenha amado?... Ela está muito próximo de Deus. Creio que as mulheres estão mais perto de Deus do que os homens. Não podem de modo algum falar disso, mas isso vê-se-lhe nos olhos. Sim, ela ama-me. Durante todo este tempo que ela me empurrou, maltratou, desprezou, durante todo esse tempo ela amou-me... e nunca o soube. Aliás, que teria eu feito se o tivesse sabido?»

Virou a cabeça. Esta dor era muito intensa para poder ser contemplada: que há de mais aterrorizador que ver a alma de uma mulher revelar-se no fundo dos seus olhos?

Assim, ele ia morrer. Por Deus, a morte não tinha nada de desagradável. Tinha calor e sentia-se muito fatigado. Depressa adormeceria e a morte tomaria posse dele com uma doçura fraternal.

Deu-se conta de que alguém tinha entrado no compartimento. Sua mulher inclinou-se por cima dele, até colocar o rosto perto dos seus olhos: ficaria muito contrariada se tivesse sabido que podia virar a cabeça à sua vontade.

-’É o pastor, querido. Sê amável com ele: ouve-o com atenção. Isso poder-te-á servir... mais tarde.

Como ela tinha o espírito prático! Se pudesse, cuidaria que um contrato fosse estabelecido entre ele e o Todo-Poderoso. A sua afeição é extremamente eficaz, mas o amor que brilhava nos seus olhos húmidos tinha qualquer coisa de assustador.

Henry sentiu uma mão suave e tépida apossar-se da sua. Uma voz apaziguadora falava-lhe; contudo, só ouvia com dificuldade, pois o tecto oscilava perigosamente.

- Deus é Amor - murmurava a voz. - Deveis pôr toda a vossa fé em Deus.

- Deus é Amor - repetiu Henry maquinalmente.

- Oremos - disse a voz.

Bruscamente, o moribundo recordou-se de um episódio da sua infância. Tinha uma dor horrível num ouvido, e sua mãe embalava-o nos braços. Batia-lhe no pulso com as pontas dos dedos enquanto murmurava:

- Tudo isso não passa de estupidez. Deus é Amor. Ele não quer que os rapazinhos sofram. Repete comigo: «O Eterno é meu pastor. Não tereis miséria.»

Poder-se-ia julgar que ela lhe administrava um remédio... Henry sentia os dedos quentes do pastor acariciarem-lhe o pulso.

- O Eterno é meu pastor; não terei miséria - murmurou ele com voz sonolenta:-Ele me concederá repouso nas verdes pastagens.

A pressão dos dedos tornou-se mais forte e a voz do padre ganhou autoridade, como se a Igreja, depois de longos anos de espera, tivesse enfim Henry Morgan em seu poder.

- Estais arrependido dos vossos pecados, Sir Henry? ---Os meus pecados? Por Deus, não, nem sequer pensei

nisso. Devo arrepender-me de Panamá?

- Não creio - declarou o pastor num tom embaraçado.

- A conquista de Panamá foi um acto patriótico aprovado pelo rei. Aliás, os habitantes da cidade eram papistas.

- Nesse caso, quais são então os meus pecados? Só me lembro dos mais agradáveis e dos mais penosos deles. Ora não me vou arrepender dos mais agradáveis: foram encantadores, e teria a impressão de os trair. Quanto aos mais penosos, cada um deles continha a sua própria expiação como um punhal escondido. Como me poderei então arrepender? Poderia desfolhar toda a minha vida, enumerar todos os meus pecados desde a destruição do meu primeiro brinquedo até à minha primeira visita a um bordel, e arrepender-me. Contudo, se esquecesse um único, a minha contribuição não

seria válida.

- Estais arrependido dos vossos pecados. Sir Henry? Deu-se então conta de que não tinha pronunciado uma palavra. Não podia decidir-se a falar: a sua língua tinha-se tornado muito preguiçosa.

- Não - disse ele. - Não me consigo lembrar.

- Deveis pesquisar dentro de vós para lá procurar a avareza, a luxúria, a iniquidade. Deveis extirpar o mal do vosso coração.

- Não me lembro de alguma vez ter feito mal voluntariamente. Cometi alguns actos que puderam parecer condenáveis depois, mas, no momento em que os realizava, tinha em vista um objectivo louvável.

Teve de novo consciência de que não tinha pronunciado uma palavra.

- Oremos - disse a voz.

Henry fez um violento esforço para mexer a língua:

- Não! - gritou ele.

- Mas vós já orastes.

- Sim, orei... porque isso dava certamente prazer a minha mãe. Ela gostaria que eu rezasse pelo menos uma vez, ainda que não fosse para provar que ela me tinha dado uma boa educação, que ela cumpriria inteiramente o seu dever de boa mãe.

- Quereis morrer como herético. Sir Henry? Não tendes medo da morte?

- Estou muito cansado ou estou muito preguiçoso para meditar acerca das questões da heresia, e não tenho medo da morte. No decurso da minha vida aventurosa nunca encontrei homem digno de admiração que tivesse medo da morte: pelo contrário, quase todos tinham medo de morrer. Vede. se a morte é uma abstracção, morrer implica muito sofrimento. Ora, até agora, não sofri coisa nenhuma: é por isso que nem sequer tenho medo de morrer. Sinto-me muito bem, e ficarei perfeitamente à vontade se me deixarem só. Tenho a impressão de que vou adormecer depois de ter efectuado um grande esforço.

Ouviu de novo a voz do pastor; parecia vir de muito longe, se bem que a mão tépida continuasse a acariciar-lhe o pulso.

- Não me quer responder - dizia o padre. - Começo a duvidar da salvação da sua alma.

Depois, coube a sua mulher a vez de falar:

- É necessário rezar, querido. Como poderás ir para o céu se não rezares?

Ela teimava absolutamente estabelecer um contacto com Deus. Mas Henry forçou-se a não olhar para ela. Por mais ingénua que fosse a filosofia de Elizabeth, os seus olhos estavam tão tristes e profundos como o infinito do céu. Ele teria dito se o pudesse: «Não quero ir para o Céu. Não quero que me aborreçam.» Faziam, na verdade, muito estardalhaço a propósito da sua morte!

O médico voltara para o compartimento.

- Perdeu o conhecimento - declarou a sua voz forte.

- Decididamente vou voltar a sangrá-lo outra vez.

O escalpelo penetrou no braço de Henry, que experimentou uma sensação agradável e desejou que o sangrassem várias vezes. Coisa estranha, em vez de sentir o sangue deixá-lo, tinha a impressão de que um calor vivificante se insinuava em todo o seu ser, e que um vinho velho capitoso lhe cantava no peito.

Depressa uma curiosa modificação começou a produzir-se. Deu-se conta de que podia ver através das pálpebras, sem abrir os olhos, sem mexer a cabeça. O médico, Lady Morgan, o pastor, e até o quarto, afastaram-se dele.

«Vão-se embora», pensou, «e eu não me mexo. Sou o centro de todas as coisas; sou tão pesado como o universo: talvez eu seja o universo.»

Percebeu uma nota de órgão, baixa, suave, vibrante, que irradiava através dele. Parecia-lhe emanar do seu cérebro e invadir todo o seu ser de onde desabaria em seguida para o mundo inteiro. Verificou não sem surpresa que o quarto tinha desaparecido. Estava agora numa imensa gruta sombria onde se levantavam duas alas de colunas baixas e largas, talhadas num verde cristal Faiscante. Continuava deitado, e a caverna deslizava ao longo do seu corpo. De súbito, o movimento deteve-se. Henry viu-se cercado de figuras bizarras, com corpo de criança, a cabeça bolbosa, que tinham, à guisa de rosto, uma superfície de carne plana e sem interstícios. Pairavam numa voz rouca e seca, o que intrigou consideràvelmente Henry, visto que não tinham boca.

Pouco a pouco, compreendeu que se tratava dos seus pensamentos e das suas acções que viviam no reino da Irmã Morte, para onde cada um deles tinha emigrado logo depois de ter nascido. Depois de as ter identificado, as pequenas criaturas sem rosto reuniram-se em torno dele.

- Porque me fizeste? - indagou uma.

- Não sei; não me lembro de ti.

- Porque me pensaste?

- Não sei. Devo tê-lo sabido, mas esqueci-o. A memória abandona-me, aqui, nesta gruta.

Elas continuaram a esmagá-lo com perguntas, e as suas vozes tornaram-se cada vez mais duras e estridentes, até dominar o som da grande nota de órgão.

- Responde-me a mim!   Não, a mim

- Oh! Deixa-me! Deixa-me descansar! - disse Henry num tom cansado. - Estou esmagado de fadiga e, aliás, não posso responder-vos coisa alguma.

Nesse momento viu que as criaturazinhas se encolhiam diante de uma forma que se aproximava lentamente. Viraram-se para ela, trémulas, depois ajoelharam-se, com os braços estendidos num gesto de súplica.

Henry concentrou toda a sua atenção nesta figura tão temível. Era Elizabeth que caminhava para ele, a pequena Elizabeth de cabelos louros, tendo marcada no rosto uma estranha sageza. Trazia um cinto de miosótis, e os seus olhos

brilhavam com um fulgor sobrenatural. À vista de Henry, teve um sobressalto de espanto.

- Sou Elizabeth - disse ela. - Não me foste ver antes da tua partida.

- É verdade... Julgo que tinha medo de te falar. Apesar disso, fiquei de pé debaixo da tua janela, no escuro, e assobiei para te chamar.

- Na verdade? Foste muito gentil. Mas não vejo porque tiveste medo de uma rapariguinha indefesa!

- Também eu não sei porquê. Fugi sob o impulso de uma força irresistível que desaparece agora de todos os mundos. As minhas recordações deixam-me sucessivamente como uma colónia de velhos cisnes que voam para uma ilha solitária para lá morrerem. Mas tu, tornaste-te princesa, não é verdade? - perguntou ele com ansiedade.

- É muito possível e assim o espero. Bem vês, eu também esqueço tudo. Diz-me, estiveste na verdade debaixo da minha janela, no escuro?

Henry tinha notado uma coisa curiosa. Se olhava firmemente uma das criaturas sem rosto, ela desaparecia. Divertiu-se a fixá-las uma após outra até que todas elas se tivessem dissipado.

- Estiveste de verdade debaixo da minha janela?

- Não sei. Talvez tenha simplesmente acreditado que fui lá.

Procurou ver Elizabeth, mas também ela tinha desaparecido. Em seu lugar estava uma brasa ardente que pouco a pouco se extinguia.

- Espera, Elizabeth... Espera um pouco. Diz-me onde está meu pai. Gostaria de lhe falar.

A brasa que ia morrendo respondeu-lhe:

- Teu pai morreu sem sofrimento. Teve medo até ao fim, medo de pôr a morte à experiência.

- E Merlin... Onde está Merlin? Se pudesse encontrá-lo...

- Merlin? Devias saber onde ele está: guarda o rebanho dos seus sonhos na ilha de Avalon.

A brasa extinguiu-se com um rumor seco. A gruta encheu-se de trevas. Por um instante, Henry ouviu ainda as melodiosas vibrações da grande nota de órgão.

 

                                                                                John Steinbeck  

 

                      

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