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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TAMPA / José Luís Peixoto
A TAMPA / José Luís Peixoto

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TAMPA

 

Para onde quer que vá, carrego sempre comigo a tampa de uma esferográfica. É uma tampa de plástico, é azul e não há nada que a distinga das outras tampas de esferográficas. Quem olha para ela, reconhece imediatamente que é a tampa de uma esferográfica. Encontrei-a na rua, há sete anos, em Paris. Foi numa tarde em que tinha chovido de manhã. O passeio estava molhado e a tampa estava molhada. Ninguém a tinha pisado, estava intacta, como se alguém a tivesse deixado cair no momento em que precisasse de anotar um pensamento.

Como se essa pessoa estivesse tão envolvida por esse pensamento que tentava não esquecer, que deixasse cair a tampa da esferográfica e continuasse o seu caminho a escrever palavras tortas numa pequena folha de papel. Não foram poucas as vezes que tentei imaginar que pensamento poderia ser esse que tinha de ser escrito, que não podia ficar à deriva nas marés da memória, esse pensamento que não podia correr o risco de se perder.

Quando seguro a tampa da esferográfica, quando brinco com ela entre os dedos, penso muitas vezes que posso estar enganado. Se calhar não foi alguém que precisava de anotar um pensamento. Se calhar foi um turista de Paris que trouxe a esferográfica dos Estados Unidos, ou do Japão, ou de Itália. Se calhar foi um turista que procurava uma esplanada para escrever um postal.

Se calhar foi um turista que tinha um buraco no bolso das calças e que não sentiu quando a tampa da esferográfica lhe atravessou a pele da perna, quando lhe desceu pela perna e caiu na calçada com o som frágil de uma tampa de esferográfica que cai no chão, um som breve e indistinto dos outros sons da cidade. Algumas vezes, com menos frequência, penso que pode ter sido alguém que viu a tampa a cair e, pura e simplesmente, a deixou ficar, olhou sem interesse para ela, sem parar de caminhar, alguém que já tinha perdido a esferográfica antes e que não se importou de deixar a tampa caída e abandonada numa calçada de Paris.

Com menos frequência ainda, penso que pode ter sido alguém que enfiou a mão no bolso, encontrou a tampa, olhou para ela e atirou-a de propósito para o chão. Ao longo do tempo, aprendi a fazer um certo número de habilidades com a tampa da esferográfica. Uso-a como apito, brinco com ela nos dedos. Consigo tocar algumas músicas apenas a apitar com a tampa. Consigo mover a tampa pelos dedos de maneiras insólitas. Durante algumas semanas tentei equilibrar a tampa da esferográfica na ponta do dedo, mas isso nunca consegui fazer.

Durante estes sete anos, passei por muitas coisas com a tampa da esferográfica. Hoje, quando olho para ela, quando a descrevo nestas linhas, já não é apenas a tampa de uma esferográfica. Lembro-me de senti-la no bolso no momento em que a minha filha nasceu e eu estava lá, segurava a mão da minha ex-mulher. A tampa da esferográfica estava lá. Vi a minha filha acabada de nascer. Tinha no bolso a tampa da esferográfica.

Quando a minha mãe foi operada, quando o médico me chamou para falar comigo, tinha a tampa no bolso. Nunca me esqueço da tampa. Antes de sair de casa, vejo sempre se tenho as chaves, os cigarros, a carteira e a tampa da esferográfica. Estive com ela em muitos países. Muitas vezes a coloquei nos pequenos tabuleiros onde se colocam os objectos que se tem no bolso, antes de passar na máquina que apita, antes de entrar num avião. Aconteceu esquecer-me da tampa da esferográfica em casa de amigos, em cafés, em restaurantes. Passadas algumas horas, quando voltei atrás, um dos empregados disse “nós aqui nunca deitamos nada fora”. O empregado abriu uma gaveta atrás do balcão, ergueu a tampa na palma da mão e disse “foi isto que perdeu?” De cada vez que isso aconteceu, agradeci e fui-me embora envergonhado sob olhares e comentários sussurrados. Com os meus amigos, telefonei-lhes e, aqueles que não me conhecem bem, ficaram admirados. “A tampa de uma esferográfica?” Não foi apenas uma vez que tive de andar a mudar móveis em casa dos meus amigos até encontrar a tampa caída em qualquer canto de pó, ou enfiada dentro de um sofá.

A tampa esteve comigo nos momentos em que recebi as melhores notícias. Rodei-a na mão depois de receber as notícias que, para mim, foram mais terríveis. Por si só, a tampa não me dá sorte ou azar. Por si só, é algo que me acompanha, que vai comigo para os sítios onde eu vou. Considerando as coisas importantes que aconteceram comigo nos últimos sete anos, é algo que partilha a minha história. Olho para ela e sinto que ela entende. Esteve tanto tempo comigo, passámos por tantas coisas juntos que, quando alguma coisa boa ou má acontece, sinto a tampa da esferográfica dentro do bolso e sinto que ela entende.

Ela sabe o que está por trás de cada coisa que acontece. A tampa da esferográfica, como eu, sabe quais foram os acontecimentos passados que fizeram com que aconteçam as coisas que acontecem.

Quando estou à espera de alguém ou de alguma coisa, quando não estou a fazer nada, quando o meu pensamento procura assuntos para pensar, seguro a tampa da esferográfica e, olhando para ela, imagino onde esteve antes de a ter encontrado numa rua de Paris. Imagino quem terá sido a pessoa que lhe deu a forma de tampa de esferográfica. Deve ter existido um momento em que esta tampa esteve entre muitas tampas exactamente com a mesma cor, exactamente com o mesmo formato, muitas tampas acabadas de fazer. Deve ter existido um momento em que esta tampa serviu para tapar uma esferográfica. Imagino se terá sido comprada num supermercado ou numa papelaria. Imagino quanto tempo terá demorado até ter sido comprada. As noites que passou numa prateleira. Imagino a mão da pessoa que a escolheu entre outras esferográficas com tampas todas iguais. Apesar de imaginar e quase ter a certeza que essa foi a sua história antes de mim, nunca vi uma tampa igual a esta. Já a experimentei em muitas esferográficas sem tampa e nunca serviu perfeitamente em nenhuma. Fica demasiado larga ou demasiado apertada. Nunca encontrei nenhuma onde servisse perfeitamente.

Acontece-me pensar também que, inevitavelmente, chegará um dia em que a minha vida e a vida da tampa da esferográfica se irão separar. Poderá ser num dia em que me esqueça dela em casa de amigos, num café ou num restaurante. Chegarei para procurá-la e ninguém entenderá as minhas palavras. “A tampa de uma esferográfica?” Poderá ser no instante em que morrer. A respiração a parar definitivamente nos meus pulmões e as pessoas que me conheceram, a minha família, os meus amigos, a minha filha quando for mais crescida, a mexerem nas coisas que deixei. Entre elas, esta tampa que, um dia, encontrei numa rua de Paris, que guardei no bolso durante anos e que, depois de mim, continuará em algum lugar.

Enquanto escrevo estas palavras, há instantes em que paro e fico a olhar para ela. Seguro-a na palma da mão. É muito leve. Quando está parada na palma da minha mão quase que não a sinto. Por andar há sete anos no meu bolso, a sua superfície está um pouco baça. Sete anos a tocar em chaves, a tocar em todas as coisas que carrego nos bolsos, a tocar no tecido dos bolsos. Encontrei-a numa rua de Paris. Agora, está comigo aqui. Para onde quer que vá, carrego-a sempre comigo. Há sete anos, quando a encontrei no chão, nunca poderia imaginar que nos iríamos tornar tão necessários um ao outro. Eu, que alterei o seu destino, sou a única pessoa que se preocupa com esta tampa de esferográfica e, no mundo, não há nada, ninguém, nenhum amigo que me conheça tão bem, que saiba tão bem quem eu sou como esta tampa de esferográfica.

 

                                                                                José Luís Peixoto  

 

                      

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