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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TATUAGEM MISTERIOSA / Ellery Parker
A TATUAGEM MISTERIOSA / Ellery Parker

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                   O PEQUENO EDEN

Esta história foi-me contada por meu avô, que por seu turno a ouvira muitas vezes da boca do avô dele. Este fora testemunha ocular da maior parte dos episódios e seguira de perto os acontecimentos, por isso os podia contar com toda a minúcia, que meu avô fixara e me transmitira, com tanta frescura e exactidão, que parecia-me estar sentado numa poltrona de uma sala de cinema, a assistir ao desenrolar de um filme de um colorido maravilhoso.

Não tenho evidentemente a pretensão de dar aos jovens leitores uma impressão de realidade tão viva de tudo o que ouvi como aquela que o meu avô dava, quando ajeitava os óculos de grossas lentes no nariz de adunco e me dizia na sua voz velada:

- Tudo isto aconteceu há muitos, muitos anos, há mais de um século, na Califórnia, que é, como sabes, um Estado da América do Norte.

Estas palavras despertavam na minha imaginação quadros esfumados dé amplas paisagens: altas montanhas azuis e roxas ao longe; encostas escalvadas, erguidas a pique ao lado de caminhos sinuosos, que serpeavam interminavelmente através de regiões solitárias; rios de águas irrequietas, saltando sobre penhascos ou correndo para largas planícies, onde se espraiavam mansamente, reflectindo a verdura dos imensos prados, fofos como tapetes incomensuráveis; ou florestas misteriosas, profundas, onde uma pessoa que nelas penetrasse se perderia para nunca mais encontrar uma saída. E via também índios peles-vermelhas a assomarem bruscamente ao topo das colinas, cabeças emplumadas, carabina a tiracolo, a observarem atentamente toda a região em redor.

Mas, enquanto a minha imaginação tentava escapar-se para essas paragens de fantasia, a voz de meu avô chamava-me à realidade.

- Artur Everton - dizia-me ele - era proprietário de um rancho no Estado de Califórnia. Mas, nesse tempo ainda não existiam caminhos de ferro, nem automóveis, nem as boas e lisas estradas asfaltadas, que hoje sulcam toda aquela região.

E então, meu avô explicava-me que Artur Everton para ir à cidade de São Francisco, capital do Estado, tratar de algum assunto importante, precisava de gastar duas semanas de viagem, uma para lá, outra para a volta, utilizando a diligência ou seguindo a cavalo, ou incorporando-se em alguma caravana das que frequentemente cruzavam aquelas paragens, transportando mercadorias pesadas para locais mais remotos ou menos acessíveis.

Apesar de grande parte das tribos de índios hostis já estar pacificada, ainda por vezes, alguns mais rebeldes, atacavam de surpresa as caravanas ou as deligências, pilhando-as e até matando os viajantes que tinham de se defender a tiro. Mas, no tempo de Artur Everton, já as relações com os peles-vermelhas decorriam mais brandas, sendo raros os conflitos entre eles e os brancos que, pouco a pouco, iam edificando as suas pequenas cidades e desenvolvendo os seus ranchos, que prosperavam.

O rancho de Artur Everton, por exemplo, próximo da pequena cidade de Fuenton, nome que recorda vagamente algum remoto colono espanhol, era considerado modelar por muitas e muitas léguas em redor. Fora o pai de Everton, Tomás Everton, aliás ainda vivo, mas muito velho, à data em que esta história começa, quem o fundara. Gastara o melhor das suas energias, durante anos, a desbravar densas matas, a arrotear terrenos virgens e até a desviar, por canais inteligentemente concebidos, as águas do pequeno rio que cruzava a propriedade. E acabara por fazer daquelas terras selváticas um recanto paradisíaco. Tom, como familiarmente designavam Tomás Everton, tinha-lhe mesmo posto o nome de "Little Eden", Pequeno Eden. Contudo, não era pequeno. Estendia-se por muitos e muitos hectares. Havia um pouco de tudo dentro do Pequeno Eden: planície, colinas, floresta e um rio, com seus braços de água, que irrigavam terrenos propícios a todos os géneros de cultura.

A base de riqueza do Pequeno Eden era o gado bovino e cavalar, que se criava com exuberância e à vontade em duas ou três pradarias que se incluiam na vasta propriedade. Outra fonte de receita eram as madeiras do bosque, cortadas e aparelhadas dentro do rancho, que vendia para várias pequenas cidades das redondezas, a crescerem, a desenvolverem-se cada vez mais, de ano para ano, nessa época de acentuado progresso e de povoamento das vastas regiões até então desertas, ou só habitadas por índios.

Quem tivesse conhecido a residência dos Everton quando Tom, ainda um homem novo e vigoroso de trinta e poucos anos, ali se estabelecera e a visse, vinte e poucos anos depois, à data em que esta história começou, não a reconheceria. Principiara por uma frágil e acanhada barraca de madeira, interiormente dividida em três compartimentos: cozinha e sala de estar, quarto do casal e um compartimento mais pequenino, onde era o quarto de Artur, então uma criança de quatro ou cinco anos. Era assim, quando os Everton ali se estabeleceram. Mas agora, que Artur Everton já era, por seu turno, pai de uma graciosa menina chamada Alice, a residência assemelhava-se a um palacete, todo de madeira, evidentemente, saída da densa mata do rancho, muito bem construído, com primeiro andar airosamente erguido, um vasto alpendre a proteger a entrada e, por cima deste, uma larga varanda coberta e protegida por um toldo nas quentes tardes de Verão. Era ali que o velho Tom costumava fazer as suas boas sestas, quando o calor apertava e só uma leve aragem agitava levemente a lona que projectava uma penumbra fresca.

O rés-do-chão, meia dúzia de degraus acima do nível do solo, para evitar a humidade do terreno, era ocupado por uma vasta sala de estar, um verdadeiro salão, num topo do qual ficava a cozinha, em que a chaminé grande constituia uma sala, onde poderiam acomodar-se três ou quatro pessoas, se quisessem. Mas não era preciso. Havia a sala de jantar e de estar, onde se via a ampla mesa, à qual podiam sentar-se, além das quatro pessoas da família, ainda mais uma dezena de convidados. E ficava espaço para se dançar. No topo oposto ao da cozinha, Artur Everton estabelecera o seu escritório, formado por uma secretária, um armário com livros e papéis das suas contas e duas cadeiras, onde se sentavam às vezes visitantes que iam tratar de negócios. Na parede, em frente da cozinha, que se via ao longe, no lado oposto, havia um bonito fogão de sala, que bem necessário era nas noites de Inverno, e sobre o mármore do qual se alinhavam os cachimbos, cachimbos de todos os tamanhos e feitios, do velho Tomás Everton, que tinha a mania de os coleccionar, pois ele era muito mais coleccionador do que fumador.

Por uma porta da cozinha passava-se à casa de banho bastante cómoda. Uma ampla escada de madeira, de corrimão largo e bem feito, levava, em dois lances de degraus baixos e fáceis de subir, ao primeiro andar, onde se encontravam os quartos do casal Everton, da pequena Alice, que já contava então oito anos muito vivos, e do velho Tom. Todas as portas dos quartos abriam para um longo corredor, iluminado por duas janelas, uma a cada extremidade, ao passo que os quartos tinham janelas para a comprida varanda, que percorria toda a fachada da casa. A tal varanda onde Tom gostava de dormir a sua sesta.

Esta edificação de bom aspecto era, por assim dizer, o coração do Pequeno Eden. Quase não vale a pena mencionar os anexos que lhe ficavam próximos, como a cavalariça, em que se abrigavam sempre quatro ou cinco cavalos de boa raça e um velho jumento, já cego, que ninguém tinha coragem de mandar abater e que passava tranquilamente, como um reformado, o resto dos dias que ainda lhe faltava viver. Essa cavalariça encontrava-se a cerca de cinquenta metros da casa grande, e não muito longe dela erguia-se outro edifício, de um só piso, que constituía a habitação de MacGregor, o braço direito de Artur Everton na gerência do grande rancho.

MacGregor era o homem mais mal encarado e mais taciturno do mundo. Ainda não teria cinquenta anos e achava-se ao serviço do Pequeno Eden, desde o tempo em que o velho Tom ainda era novo. Enviuvara uns dez anos antes, não tinha filhos, não quisera voltar a casar-se e vivia sozinho naquela casa que Tomás Everton lhe mandara construir quando ele se casou com Edith, uma jovem de tez fresca, delicada, que tão grande contraste fazia com o rosto carrancudo e fechado do marido. A jovem era de compleição fraca e, apesar de todos os cuidados do marido, que, assim, taciturno e reservado, não via outra coisa no mundo, a jovem veio a falecer meia dúzia de anos após o matrimónio.

MacGregor fechou-se numa reserva ainda mais cerrada do que anteriormente. Passava dias inteiros sem proferir meia dúzia de palavras, evitava todo o convívio. Rejeitou a oferta de Artur Everton de passar a comer na casa grande. Preferia cozinhar na sua própria casa; era uma distracção para ele.

MacGregor sabia de tudo: de búfalos, cavalos, asnos, galinhas e perus, de armas e armadilhas, de doenças de pessoas e de animais, de carpintaria, de mecânica. Qualquer problema que surgia no rancho era MacGregor quem o resolvia, não sem primeiro arredar para a nuca o chapéu desabado de "cow-boy" e coçar demoradamente a cabeça, onde agora já começavam a luzir alguns fios prateados.

Do pessoal mais íntimo da família Everton talvez só valha mencionar mais duas personagens embora o rancho fosse habitado por muita gente, que irão aparecer no decurso da história. Seria imperdoável esquecer o cozinheiro, Samuel, ou Sam, como toda a gente o tratava. Era de raça negra e ele próprio não sabia com precisão a idade que tinha. Não seria certamente muito jovem, porque tinha o cabelo grisalho; mas movia-se com desenvoltura e tinha pela sua profissão verdadeiro amor de artista. A fama da sua habilidade chegara até Fuenton-City. E não era raro, as famílias mais distintas da cidade, pedirem a Mr. Everton que lhe cedesse Sam para orientar todas as complicadas operações de culinária em dia de festa excepcional, quase sempre casamento ou baptizado. Uma vez, um rico comerciante de São Francisco, que viera a Fuenton para assistir a um baptizado, propôs a Sam um ordenado principesco, se ele quisesse ser cozinheiro num grande restaurante e hotel que tinha naquela capital. Sam recusou. Não havia no mundo dinheiro que pagasse a sua felicidade no Pequeno Eden, onde o estimavam como uma pessoa de família. É que ele anteriormente fora escravo e sabia o que era receber agressões em vez de carinho e amizade, as melhores moedas com que os Everton lhe pagavam. E a pequena Alice tinha por Sam uma autêntica adoração; amá-lo-ia, mesmo nque ele não lhe preparasse guloseimas que lhe dava muitas vezes à socapa.

Mas ainda havia na intimidade da casa uma pessoa a quem Alice votava tanta estima como ao cozinheiro Sam, era a Maria, a mulher deste, criada para todo o serviço. Fazia tudo: varria, esfregava, lavava a roupa no grande tanque cheio de água que ela tirava a pulso do profundo poço, arrumava os quartos de dormir e até ajudava, por vezes, o marido na cozinha, quando havia alguma refeição mais complicada. Maria, negra como o carvão, belos dentes muito brancos sempre a reluzirem na boca sorridente, ajudara a criar Alice, embalara-a nos seus braços, ensinara-a a andar e a papaguear as primeiras palavras, aliviando dos trabalhos mais pesados a senhora Helena Everton, a esposa de Artur, por quem toda a gente mostrava o maior respeito.

A felicidade seria completa naquela família, se Alice tivesse um irmãozinho. Artur Everton e sua mulher Helena amavam muito a Alicinha, consideravam-na o maior tesouro da sua vida. Mas este tesouro parecia-Lhes incompleto, se não nascesse um irmãozinho à pequena Alice. Os anos, porém, iam correndo e o irmãozinho nunca chegava.

Quanto mais tempo decorria, mais Helena Everton se tornava apreensiva e triste, principalmente por ver a preocupação do marido. Fazia muita falta um descendente varão, um moço forte e sadio como o pai, e trabalhador enérgico e inteligente como o avô, o fundador daquela grande obra, dia a dia mais bela e próspera.

Mas, um dia, sucedeu algo de imprevisto, tal qual como nos romances.

 

 

 

 

                 APREENSÕES NO PEQUENO EDEN

Artur Everton costumava fazer duas ou três visitas por ano à cidade de São Francisco na Califórnia; não para se divertir, como tantos outros que iam lá para gastar futilmente o dinheiro que tinham ganho e juntado durante longos meses de trabalho árduo, mas para tratar de negócios referentes ao seu rancho e, principalmente, para fazer compras de melhor qualidade.

Fazia a sua viagem no pesado carroção, geralmente acompanhado de MacGregor e mais algum empregado do rancho. O veículo, puxado por duas parelhas de cavalos possantes, cruzava os longos caminhos, por vezes através de léguas e léguas de regiões solitárias ou de matas espessas, propícias a assaltos e ciladas. Mas, à parte duas ou três escaramuças com bandidos, que os três viajantes, bons atiradores, sempre puseram em debandada, Artur Everton realizava as suas viagens sem problemas.

Sua mulher, Helena, ficava com o coração em sobressalto durante a ausência do marido. De cada viagem que ele fazia, a imaginação povoava-se-lhe de cenas sinistras; via bandos de índios ferozes descerem vertiginosamente alguma encosta, montados nos seus cavalos, brandindo carabinas, varejando o carroção a tiro certeiro. Ouvia-lhes o terrivel grito de guerra - Uhu Uhu - no momento em que se arremessavam sobre os viajantes moribundos já incapazes de se defenderem, e depois atiravam-se às mercadorias, com a voracidade de corvos para as saquearem e levarem com eles os objectos que mais os seduzissem.

O velho Tom ria-se dos seus temores. Havia mais de dez anos que os peles-vermelhas viviam em paz com os brancos. Habitavam nos seus redutos; lá nas montanhas, e só desciam aos povoados para fazer alguma compra ou realizar algum negócio.

Índios ferozes houvera sim, na sua mocidade.

Nesse tempo é que um homem não podia aventurar-se a atravessar certas regiões senão em caravanas fortemente guardadas. Travavam-se autênticas batalhas, com muitos mortos e feridos e nem sempre os brancos levavam a melhor sobre um inimigo tão combativo. Mas, pouco a poucoà custa de sucessivos desaires, os peles-vermelhas foram-se convencendo da inutilidade dos seus esforços para expulsarem os brancos daqueles territórios. Concentraram-se nas suas aldeias e só guerreavam, quando eram atacados ou se consideravam ofendidos por qualquer dos brancos, que para eles não passavam de intrusos naquelas regiões.

- Tenho agora mais medo dos homens da minha raça - costumava dizer o velho Tom, para tranquilizar a sua nora, conseguindo exactamente o contrário: amedrontá-la ainda mais.

Tomás Everton queria referir-se a quadrilhas de bandidos constituídas por brancos, que se dedicavam à sinistra tarefa de assaltar viajantes, saquear diligências, levando, por vezes, a sua audácia até ao ponto de atacarem os ranchos; e houve alguns casos, também, de roubos em Bancos de pequenas cidades, em pleno dia, a coberto do pânico estabelecido por meia dúzia de malandrins que disparavam ruidosamente as suas armas, enquanto dois ou três cúmplices entravam no Banco e se apoderavam do dinheiro.

Os xerifes das pequenas cidades, com todos os seus auxiliares e alguns voluntários, apesar da sua boa vontade, revelavam-se insuficientes para dar caça a essas quadrilhas, cada vez mais ousadas. Os crimes sucediam-se e iam ficando impunes. As diligências eram frequentemente detidas pelos salteadores, que dominavam os passageiros com as armas apontadas e os despojavam de todos os valores que traziam com eles. Não era raro, por malvadez ou por sinistro gracejo, dispararem contra algum viajante mais exaltado que fizesse menção de defender-se.

Mas a última grande quadrilha que operara naquelas paragens acabou por ser desmantelada pelas autoridades. A sua última grande proeza fora o assalto ao Banco de Fuenton-City, durante o qual morreu Charles Brown, gerente da casa, muito conhecido e estimado naquelas paragens. Resolveu-se então mover uma tenaz perseguição à quadrilha. O próprio Banco custeou a maior parte das despesas das operações em que entrou uma força do exército, comandada por um tenente decidido, que prestou valiosa colaboração ao xerife da cidade. O Banco ofereceu, também, dois mil dólares pela cabeça de Big Dick, o chefe da quadrilha, de quem se contavam um sem número de crimes e atrocidades.

Fizeram-se batidas por montes e vales. A quadrilha teve de dividir-se para não ser tão facilmente localizada. Contudo, pessoas honestas enviavam informações às autoridades, quando reconheciam algum dos bandidos. Apesar de perseguido, Big Dick ainda se atrevia, por vezes, a aparecer em pequenas localidades, mostrando-se ostensivamente, com alguns companheiros, nos bares, onde ninguém ousava enfrentá-los, com receio de perder a vida.

Acontecia, com frequência, Big Dick, sempre seguido de três ou quatro guarda-costas, aparecer em locais muito distantes do lugar onde as autoridades andavam à sua procura. Espiões da sua confiança informavam-no do movimento do exército; por isso ele surgia em locais que sabia perfeitamente não poderem ser socorridos com eficácia. O que, porém, não se esperava, era que ele se atrevesse a voltar a Fuenton-City, onde tão recentemente roubara o Banco e matara um homem. Pois, Big Dick cometera essa afronta à população da cidade.

O caso ocorrera uns dez anos antes; por isso Helena Everton sentia-se percorrida por um calafrio quando o sogro lho recordava. O herói da aventura fora precisamente MacGregor, o homem taciturno, de poucas falas, e não o sinistramente famoso Big Dick. A justificar a alcunha, Big era realmente grande, digamos enorme, fisicamente. De compleição atlética, contavam-se façanhas da sua formidável força muscular. Uma delas, certamente a mais assombrosa, não havia ninguém que não a repetisse: montando um cavalo, que enlaçava com as suas longas pernas robustas, Big Dick suspendia-se pelas mãos numa ramada forte de uma grande árvore e, elevando-se encurvando os braços, levantava simultaneamente do chão a sua montada. Um bruto assim impunha respeito não só aos homens do seu bando, que lhe obedeciam como a um ídolo terrível, mas também a toda a gente honesta, que receava cair no seu desagrado.

Uma tarde, MacGregor, precisando de tratar de qualquer assunto do rancho, montou o seu cavalo e dirigiu-se à cidade. Depois de realizar as suas tarefas, como estava bastante calor, resolveu entrar no bar mais importante da terra para se refrescar com uma boa cerveja. Quando entrou, a sala do estabelecimento não teria mais de uma dezena de clientes, quatro dos quais jogavam tranquilamente às cartas, a um canto. A atmosfera de suave penumbra era bastante fresca, a contrastar com o calor abafado que se sentia na rua. MacGregor pediu a Green, o dono da casa, que lhe servisse uma boa caneca, que logo lhe trouxeram a transbordar de espuma muito branca.

Seriam talvez umas quatro horas da tarde. MacGregor, visivelmente bem disposto, apesar da expressão do seu rosto habitualmente carrancudo parecer o contrário, desfrutava, com regalo, aquele sossego e aquela frescura. Uma vez por outra, exclamações dos jogadores rompiam o silêncio, mas depressa a paz voltava a reinar na sala, onde mais dois ou três clientes permaneciam sonolentos e dispersos.

De súbito, a tranquilidade da casa foi alterada pela entrada de um grupo de cinco homens, com aparência de "cow-boys". MacGregor lançou-lhes um olhar distraído. Mas, logo esse olhar reparou num pormenor: vinham todos armados, como se fossem para um combate. Além da carabina a tiracolo traziam à cinta, não um revólver e uma faca, como era de uso vulgar entre "cow-boys", mas dois revólveres, o que se afigurou um tanto estranho ao nosso observador e talvez alarmante aos outros clientes, que os olhavam com extrema desconfiança.

O grupo mostrava-se muito alegre. Um homem de compleição atlética parecia o chefe, pois os outros quatro que o rodeavam mostravam-se respeitosos ou mesmo servis quando se lhe dirigiam. Detiveram-se a meio da vasta sala, como que a habituar a vista ainda ofuscada da claridade exterior à meia-luz do ambiente. No olhar que passaram em redor, a observar os circunstantes, havia um certo desdém.

MacGregor não gostava que o olhassem daquela maneira insolente; mas sentia-se tão bem disposto nessa tarde, que não lhes ligou importância. Viu que se tratava de forasteiros, pois não se lembrava de ter visto alguma vez aquelas caras em Fuenton-City. Pensou que se tratasse de homens contratados pelo xerife para o auxiliarem na caça à quadrilha de Big Dick. Entretanto, os recém-chegados que pareciam procurar sítio para se alojarem, avançaram decididamente para a mesa onde MacGregor se encontrava. Um deles arredou uma cadeira e já ia sentar-se, quando MacGregor lhe bradou bruscamente:

- Alto!

Os homens entreolharam-se, trocando sorrisos manhosos, enquanto MacGregor, prosseguiu:

- Aqui, ninguém se senta sem minha autorização.

O homem forte, que parecia o chefe, soltou uma risada e, aproximando-se, replicou com insolência:

- Tu é que vais sair daqui imediatamente. Esta mesa é minha.

Ia lançar-lhe a mão à camisa para o puxar, mas, MacGregor esquivou-se muito rápido e, ainda mais rápido, empunhando a caneca que tinha na sua frente, arremessou-lhe o líquido aos olhos. O gigante soltou um urro e fez menção de puxar de um revólver. Não passou, porém, da menção, porque, primeiro, já recebia no queixo o maior murro que o atingira em toda a sua vida. O hércules caiu hirto, como uma árvore arrancada pela raiz.

Os seus companheiros não ficaram inactivos. Um deles visou MacGregor com o seu revólver, mas este saltou-lhe das mãos ainda antes de disparar, porque o visado, adiantara-se com rapidez incrível e, disparando primeiro a sua arma, desarmara-o prontamente ferindo a mão agressiva.

Gerou-se no estabelecimento uma confusão indescritível. Animados pelo exemplo de MacGregor os outros clientes até então calmos e sonolentos puxaram de suas armas. Soaram mais tiros. Um dos recém-chegados rolou no chão, os outros dois ainda tentaram alcançar a porta disparando tiros para o tecto. À porta, porém, surgiram o xerife e mais quatro auxiliares.

- Mãos ao ar! - bradou o chefe da autoridade local. - Ninguém se mexe.

Rapidamente, os desordeiros viram-se desarmados e algemados. O gigante, ao erguer-se ainda aturdido do solo onde o prostrava o tremendo soco de MacGregor, viu-se algemado, abrindo uns grandes olhos assombrados.

- Big Dick! - bradou o xerife. - Considera-te preso em nome da lei!

- Big Dick! - exclamou MacGregor, ainda mais assombrado do que o hércules. - O famoso bandido de quem toda a gente tinha medo?

Já MacGregor se via rodeado por uma autêntica multidão que o vitoriava. Ele derrotara aquele terrível criminoso, para a captura do qual se mobilizara o exército e um sem número de voluntários resolutos. Derrotara-o com um simples murro nos queixos. O xerife explicou depois a razão pela qual aparecera no bar num momento tão oportuno. Os malandrins tinham deixado na rua, a vigiar o estabelecimento, dois cúmplices, igualmente bem armados, prontos para o que desse e viesse. Sucedera, porém, que um dos auxiliares, reconhecendo um desses homens como fazendo parte da quadrilha, fora avisar rapidamente a autoridade. Dois jovens decididos aproximaram-se então disfarçadamente dos vigias e agarraram-nos de surpresa, enquanto o xerife e mais outros dois os algemaram e levaram para a prisão próxima, onde os fecharam a sete chaves. Vinham de regresso ao bar, quando ouviram um tiro. Fora no momento em que MacGregor disparara com tão boa pontaria, que desarmara o bandido que o visara. E tudo acabara em bem. Só um componente do grupo fora mais gravemente atingido num antebraço.

Preso o chefe, o resto da quadrilha, que andava a monte, foi caindo pouco a pouco na rede que as

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autoridades haviam estendido por toda a região. O Banco entregou o prémio dos dois mil dólares a MacGregor, o que foi aplaudido por toda a população. Efectivamente, ele derrotara o temível Big Dick com um simples murro. O herói de Fuenton-City achava que toda aquela gente que o aclamava exagerara na apreciação do seu acto. Um soco por dois mil dólares era excessivamente bem pago. Mas aceitou o dinheiro, para o deixar depositado no mesmo Banco que lho oferecera.

Já tinham decorrido cerca de dez anos sobre estes acontecimentos e ainda MacGregor, de cada vez que ia à cidade, se via rodeado de amigos e admiradores, que queriam manifestar-lhe o seu apreço, convidando-o a tomar uma bebida ou jantar com eles. MacGregor até tinha medo de ir a Fuenton-City. Dizia que, se fosse aceitar todos os jantares e todas as bebidas que lhe ofereciam, morreria de indigestão ou regressaria a casa sempre embriagado. Mas ele nunca deixara de manter-se sóbrio como anteriormente. Não queria modificar os seus hábitos.

Depois de desmantelada a quadrilha de Big Dick, nunca mais houve notícias de assaltos naquelas paragens. Por isso, o velho Tom ria-se dos receios da sua nora, quando Artur Everton fazia alguma viagem a São Francisco.

Contudo, houve um dia, precisamente o tal dia em que sucedeu alguma coisa de imprevisto, que Tom mal conseguia disfarçar a sua inquietação. Calculava-se que Artur não deveria demorar-se mais de duas semanas. Não aparecera na data que ele próprio marcara para o seu regresso, o que poderia admitir-se se acaso tivesse ficado mais vinte e quatro horas em São Francisco, retido por algum negócio. Mas, no dia seguinte, não o viram surgir ao princípio da tarde, como era seu costume. Passaram uma, duas, três horas, e do carroção não se via nem sombra. Já o velho Tom pensava em mandar quatro ou cinco homens armados ao encontro do filho, quando, finalmente, apareceu, a galope, um "cow-boy" do rancho. Ao deter-se no terreiro diante da casa grande, correram todos ao seu encontro. O homem tranquilizou-os logo, bradando:

- Vêm aí. Dentro de meia hora mais ou menos, estão cá.

- Sucedeu alguma coisa? - perguntou Helena Everton, que não podia disfarçar mais a sua ansiedade.

- Não, pelo contrário! - exclamou o "cow-boy". - O nosso patrão vai fazer-lhes uma grande, uma enorme surpresa.

Com efeito, o carroção não tardou muito a mostrar-se na curva da estrada. Helena foi ao seu encontro, ainda antes de o ver parar no terreiro, a perguntar cheia de ansiedade:

- Que sucedeu? Que surpresa é essa?

Artur, com os dentes todos à mostra num alegre riso, respondeu:

- Vais ver, mulher, que linda prenda te trouxe nesta viagem. Vais ver.

- Céus, não me deixes tão impaciente! Gostas tanto de me arreliar.

- Não, tens de ter calma. Verás que a espera valeu a pena.

Apesar de se sentir ansiosa por abraçar o marido, Helena observava os seus movimentos com enorme curiosidade.

Enquanto MacGregor e Johnson, um "cow-boy" de muita confiança e muito decidido que gostava de acompanhar sempre o patrão nas suas viagens a São Francisco ou a Los Angeles, saltavam para o chão e começavam a desatrelar e a tratar dos cavalos, Artur Everton, ainda sentado, voltou-se para o interior do carroção e retirou um volume, que surgiu embrulhado numa manta aos olhos que se encontravam perto, cheios de curiosidade.

O cozinheiro Sam e Maria, sua mulher, encontravam-se junto da patroa, tão ansiosos como esta.

Pelos cuidados que Artur lhe dispensava, o objecto oculto na manta, que ele agora segurava nos braços, com muito cuidado, devia ser bastante frágil.

- Chega-te aqui, Helena - pediu Artur a sua mulher. - Atenção, não deixes cair - recomendou ele. - Segura-o bem, não se quebre...

E, debruçando-se do alto do seu assento, depositou nos braços de sua esposa, que estavam estendidos, a prenda misteriosa.

- Uma criança! - exclamou Helena, soerguendo uma ponta da manta.

- Sim, um menino - confirmou Artur Everton, com um brilho de alegria e de triunfo no olhar.

- É esta a grande surpresa que há pouco te anunciei por Clarck.

Helena Everton quedara-se num assombro. Era de facto uma grande surpresa.

- Mas. mas... - indagou ela, titubeando, muito nervosa. - Mas... mas... de quem é este menino?

- É teu. é nosso. - replicou o marido. E acrescentou, ligeiramente apreensivo: - Se acaso não no-lo vierem buscar.

- Mas a gente já não o larga! - exclamou Maria, a mulher do cozinheiro, que se aproximara mais, para espreitar melhor o rosto da criança, que dormia serenamente, apesar do alvoroço que a cercava. - É um lindo menino. Se a senhora não o quiser, ofereça-mo. Eu e o meu Sam ficamos com ele.

Helena apertou mais contra o peito aquele embrulho informe, como se já o considerasse seu e temesse que lho tirassem.

- Não, não, o menino é meu! - replicou ela. E, muito nervosa, dirigiu-se apressadamente para dentro de casa, seguida do marido e do casal enquanto MacGregor e mais pessoal iam já descarregando as mercadorias de que o carroção vinha a abarrotar.

Com a criança muito bem protegida nos braços, como se temesse que lha levassem, Helena foi sentar-se numa cadeirinha baixa, no salão, perto da secretária onde seu marido costumava fazer as contas dos seus negócios. Não muito longe ardiam algumas achas no fogão da sala. E como era Primavera e a temperatura baixava sensivelmente no declinar da tarde, o calor brando do lume tornava a casa mais confortável.

Artur, seu pai, Sam e a mulher postaram-se silenciosos, em volta de Helena a observá-la. Ela parecia proceder como uma sonâmbula, de tal modo se alheara da presença de todas as outras pessoas. Só tinha olhos para o bebé, que continuava a dormir um soninho descansado. Com ele deitado sobre os joelhos que, com a ajuda da saia, serviam de leito, Helena ficou a contemplar o menino. Era bonito: faces redondas, boca pequena de lábios bem recortados, que se entreabriam ligeiramente para deixar mais livre uma respiração sossegada, cabelinho em largos anéis de um castanho claro, quase louro, fazia lembrar um anjo. Muito ao de leve, Helena, passou-lhe a mão pela cabecita, numa suave carícia.

Depois, erguendo para o marido um olhar cheio de ternura, perguntou-lhe:

- Como se chama o menino?

Artur Everton esboçou um melancólico sorriso e encolheu os ombros antes de responder:

- Sabe-se lá.

- Então, a criança não tem nome? - estranhou o velho Tom, que permanecera até ali em muda contemplação. E acrescentou, resmungando - Há-de ter um nome, com certeza; até os bichos têm um nome.

- Sim, deve ter um nome. - murmurou Artur.

- Mas que coisa tão esquisita! - comentou Maria, rolando os grandes olhos na face escura.

- Realmente, é esquisito - concordou Artur Everton. - Mas a verdade é que não sei como ele se chama. Por mais que me esforçasse não consegui que ele mo dissesse.

- Ainda não fala? - indagou Sam.

- Balbucia umas palavras - explicou o marido de Helena. - Pronuncia uma só com nitidez: mamã.

- Mas as pessoas com quem ele estava deviam saber o nome - observou o velho Everton.

- Com certeza - acudiu o filho. - Mas nós não conhecemos as pessoas com quem ele estava. A criança achava-se sozinha.

- Abandonada?! - exclamou Helena, interrompendo a embevecida contemplação do bebé, para erguer para seu esposo um olhar interrogativo.

- Tudo me leva a supor que sim.

- Quem vai ficar louca de contentamento é a Alicinha quando vier - lembrou Maria.

- É verdade; onde está Alice? - indagou Artur.

Maria explicou-lhe que a menina tinha ido na "charrette" a Fuenton-City na companhia dos Sommers, um casal de empregados da confiança do rancho.

- Não devem tardar - acrescentou Maria.

- Que idade terá este menino? - interrogou Sam.

- Não sei ao certo - respondeu Artur. Creio que não terá mais de sete ou oito meses.

- Vê-se que é uma criança forte - declarou Helena, ao mesmo tempo que lhe apalpava o peito sobre a roupa enxovalhada que o cobria. - Está a precisar de um bom banho e provavelmente de alimentar-se.

- Alimento não Lhe faltou - acudiu o marido.

- Demos quanto leite lhe apetecia. Quanto a uma boa ensaboadela, concordo que está mesmo a precisar.

- Eu vou já aquecer água e limpar a banheira que servia à menina, quando ela era mais pequena - disse Maria, afastando-se a toda a pressa.

- Deixemo-lo acordar primeiro - aconselhou Helena Everton. - Já dorme há muito tempo?

- Adormeceu talvez uma hora antes de chegarmos. Costuma fazer uns bons sonos e não é rabugento senão quando tem fome - informou Artur.

33

- Então deve dormir por mais uma ou duas horas - calculou a mãe de Alice.

- Deixem-no repousar - aconselhou o velho Tom, afagando as suíças brancas que lhe ornavam as faces enrugadas. - Não se deve interromper o sono às crianças.

- Gostava de lhe ver os olhos - murmurou Helena, envolvendo-o no seu olhar enternecido.

- São bonitos! - exclamou Artur. - Muito bonitos. Castanhos, mas bastante escuros, quase pretos. Não te impacientes; logo que ele acorde, verás que não estou a exagerar.

- Tudo isto me parece muito estranho - disse Helena, no seu ar de sonâmbula. - Tenho a impressão de que estou a viver um sonho e não a realidade. - Deteve-se um instante, a circunvagar a vista, como se realmente quisesse certificar-se de que não sonhava, e acrescentou:

- Afinal, quem é este menino, com o seu ar de anjo, que aparece assim, inesperadamente, nos meus braços? Qual a sua proveniência? Será uma dádiva do Céu?

- Bem parece que desceu dos Céus! - exclamou Sam, que concebia a corte celeste, como um vago país existente sobre as nuvens, povoado de anjinhos rosados, rechonchudos, de asas alvas, esvoaçando em torno de Pai do Céu, como grandes e maravilhosas borboletas. - Só lhe faltam umas asas para nos tirar as dúvidas de se desceu do Céu ou não.

- Mas pressinto em tudo isto um mistério, insistiu Helena, volvendo de novo um olhar interrogativo para seu marido. - Que significa a presença desta criança em nossa casa? Trouxeste-a para ficar connosco. Não compreendo ao certo se está abandonada, se foi esquecida se...

Interrompeu-a o ruído de um veículo lá fora, que se detinha em frente da casa.

- Aí vem a Alicinha! - exclamou o cozinheiro, saindo a correr.

- Não lhe digas nada! - gritou-lhe Artur, ainda a tempo de se fazer ouvir. - Quero fazer-lhe a surpresa.

Instantes depois, Alice entrava ao colo de Sam; depressa passou dos braços deste para os do pai, que a apertou enternecidamente ao coração, cobrindo-lhe o rosto de beijos, aos quais a garota correspondia, ao mesmo tempo que o assediava com perguntas. Se se lembrava muito da sua Alicinha, se vira muitas coisas bonitas em São Francisco, se lhe trouxera prendas.

- Sim, meu amorzinho, trouxe lindos tecidos para ti... Vais ficar muito contente.

- E onde estão eles?

- MacGregor não tarda a transportar para aqui o fardo que contém todas essas belas coisas. Mas a prenda que vais apreciar mais é aquela. Olha.

E apontou para o colo de Helena, em quem a menina ainda não reparara. Saltou logo para o chão, desprendendo-se dos braços do pai, e correu para junto da mãe. Ao ver o rosto do menino, que dormia serenamente o seu soninho angelical, quedou-se um momento atónita, para exclamar em seguida, juntando as mãos num ar extasiado:

- Querido pai! Trouxeste-me um irmãozinho.

E voltou a abraçar Artur e a beijá-lo, agora com redobrado entusiasmo.

- Era o que eu mais desejava! Um irmãozinho. E que lindo que é.

Tornou a desprender-se de Artur e a correr de novo para junto da mãe. E, debruçando-se, desatou a beijar o bébé, com tanto entusiasmo, que este acordou, sobressaltado.

- Deixe-me pegar-lhe, mãezinha! Deixe-o vir ao meu colo.

E antes que sua mãe pudesse impedi-lo, arrebatou-lhe a criança dos joelhos e ergueu-a muito apertada, para a beijar novamente.

- Tenho um irmãozinho! - exclamou ela chorando de alegria. - E que lindo ele é!...

O menino não chorou. Fitava Alice com grandes olhos negros, muito sérios, como se quisesse reconhecer o rosto da pessoa, que lhe pegava. E de súbito, mostrando uns dentinhos muito certos, soltou uma risada e passou os braçitos em volta do pescoço de Alice.

 

       A PEQUENA ALICE DESCOBRE UM IRMÃO

Formavam um belo e tocante quadro aquelas duas crianças abraçadas. Em torno, os adultos contemplavam-nas em silêncio, envolvendo-as num enternecido olhar.

Alice era uma menina encantadora estimada por toda a gente no rancho, desde o mais rude trabalhador até ao pessoal mais íntimo da família como MacGregor, que, na ausência do patrão ficava muitas vezes gerindo tudo, e com muito acerto, até ao casal, Sam e a mulher que, apesar de terem nascido escravos, nunca foram considerados como tal pelos Everton, pelo contrário, eram estimados como se fossem do mesmo sangue.

Apesar de muito mimada, Alice nunca se mostrara insolente. De índole alegre, mas meiga, tinha o dom de cativar as pessoas, logo nos primeiros contactos. Completara, dias antes, oito anos. Seu rosto rosadinho e oblongo parecia iluminado pelos olhos muito azuis e doces, risonhos. Narizinho gracioso e lábios vermelhos, como pétalas frescas de uma flor, tudo no seu rosto encantava, logo à primeira vista. O cabelo louro, dourado, caía pelas costas abaixo numa trança rematada num lacinho. Mas essa trança parecia animada de vida, pois nunca se mantinha quieta, tão irrequieta era a sua pequena possuidora. Alice não podia estar parada un só instante, a não ser quando dormia e, mesmo durante o sono, mudava não se sabe quantas vezes ne posição, motivo porque a sua caminha ainda ostentava resguardos, apesar de já ter o seu quarto preparado no primeiro andar, mesmo ao lado do do avô Tom.

O velho Everton não via outra coisa no mundo senão aquela neta loura que, nos olhos azuis, saía ao lado paterno, pois ambos tinham - avô e pai - o mesmo tom celeste nas pupilas.

Fisicamente, Alice pouco tinha de sua mãe. Era magrita e espigada para a idade. Helena, porém, recordava que, na idade que sua filha contava agora, era rechonchuda, parecendo descender de povos latinos, talvez de velhos emigrantes italianos, espanhóis ou portugueses, porque a sua tez levemente morena, os olhos muito escuros, de longos cílios negros, faziam lembrar o tipo de mulher proveniente desses povos. O que Alice herdara de sua mãe era o temperamento: alegre e dócil, amiga de trabalhar (as suas brincadeiras preferidas consistiam quase sempre em imitações do trabalho dos adultos), muito meiga e amiga de praticar o bem. Gostava de ser prestável, mesmo a pessoas desconhecidas. Não fazia, nem podia ver fazer mal aos animais. Os cavalos pareciam conhecê-la e saudavam-na com um relincho jovial, quando deles se aproximava.

       O maior divertimento de Alice era agasalhar os pintos recém-nascidos, que já corriam para o seu regaço como para sob a asa protectora da mãe. E as galinhas, geralmente receosas de que lhes furtem os filhos pequeninos, deixavam a menina pegar-lhes, afagá-los brandamente na palma da mão e beijá-los com doçura. Dir-se-ia adivinharem que daquele contacto não podia vir mal algum aos seus filhotes.

Nero, o cão de guarda, tão feroz que o mantinham todo o dia preso, para só o soltarem à noite, tinha requebros de ternura quando Alicinha se aproximava dele e deixava, deliciado, que ela lhe acariciasse a cabeçorra. As próprias plantas dir-se-ia receberem da linda menina uma emanação, um fluido benéfico. A um recanto do terreiro, Alice tinha o seu jardinzinho particular cercado de uma pequena paliçada de cana, que MacGregor fazia e renovava quando o tempo a destruía. Pois, nesse pequeno recinto, que Alice regava e sachava com um pequeno sacho de cabo longo que o pai lhe trouxera de Fuenton-City, as plantas floresciam primeiro do que em qualquer outro jardim.

- Pudera - dizia o avô, cheio de orgulho na sua netinha -, são tratadas por mãos de fada!...

A espontaneidade com que o bebé desconhecido se abraçara alegremente à pequena Alice não surpreendeu ninguém. O que impressionou foi ela supor que o pai lhe trouxera um irmão.

Helena, que entretanto se levantara e se aproximara do marido e enfiara o braço no dele, indagou, quase segredando:

- Que dizes ao parentesco que Alice arranjou?

Artur mostrou-se um pouco embaraçado, antes de responder:

- Digo que me agradaria muito. Mas não sei se teríamos esse direito.

- Quem sabe se não foi Deus que no-lo enviou?

O marido quedou-se absorto a contemplar as duas crianças. Desembaraçado da manta que o embrulhara, o menino mostrava agora as roupas enxovalhadas, uma camisola amarela, de lã, umas calcinhas de flanela azul muito manchadas, umas botinhas de lã que deviam ter sido brancas mas aparentavam agora uma cor indefenida. Entreviam-se, porém umas pernas robustas. Via-se que era uma criança forte, embora sem cuidados.

- Do que este menino precisa é de limpeza - disse Helena, depois de o observar por uns instantes.

Como se lhe adivinhasse os pensamentos, surgiu Maria, carregada com a pequena banheira em que Alice costumava banhar-se. Abrindo passagem entre os circunstantes, colocou-a diante da cadeirinha baixa onde a patroa estivera sentada com o menino nos joelhos.

- A água está quente. Posso trazê-la quando a senhora quiser - anunciou ela.

       - Já não é sem tempo - concordou Helena.

- Estava precisamente a dizer isso. O menino necessita de limpeza. Hás-de trazer-me a toalha de linho grande, para o esfregar bem, depois do banho - acrescentou ela.

Mas antes que Maria se retirasse, para executar a ordem, a entrada de MacGregor reteve-a. É que o homem vinha ajoujado com um volumoso embrulho, que largou pesadamente no chão, junto da mesa de jantar, e ela sabia que era num volume assim que Artur Everton costumava trazer da grande cidade as prendas de que nunca se esquecia para familiares assim como para todo o pessoal doméstico.

- Ora, vamos ver, primeiro, essas lembranças! - exclamou Artur, baixando-se sobre o fardo e ajudando MacGregor a desatá-lo.

       - Paizinho - pronunciou Alice, com certa ansiedade -, não te esqueceste de trazer uma prenda para o meu irmãozinho?

- Minha filha - replicou Artur -, como querias tu que lhe trouxesse prendas, se no momento em que fiz as compras, nem sequer sabia que ele existia?

- Ah! Ainda não tinha nascido? - exclamou a pequena, com tristeza.

- O menino já deve ter nascido há uns sete ou oito meses - acudiu a mãe. - Mas dá-mo para o meu colo; ele já é muito pesado para o teres tanto tempo nos braços.

- Eu posso bem com ele, mamã! - recusou-se a menina, querendo retê-lo.

Mas Helena tirou-lho, tornando a embrulhá-lo na pequena manta. Nesse momento, o menino, ao sentir-se no regaço da mulher, abraçou-se ao pescoço dela, como fizera ao de Alice, mas pronunciou distintamente:

- Mamã. mamã. mamã.

- Oh Que encanto - exclamou Helena empolgada por uma alegria súbita. - Chamou-me mamã!... Artur, não ouviste?

- Sim, foi a única palavra que lhe ouvimos pronunciar, uma vez por outra, durante o caminho - disse Artur Everton. - Creio que não sabe dizer mais nada.

- E não sabe dizer papá? - indagou Helena.

- Se sabe, nunca o disse.

- Nós ensinamo-lo! - exclamou Maria, aproximando-se para lhe fazer uma festa no queixo.

A criança repetiu:

- Mamã. mamã.

Doida de alegria, Helena apertou-a muito contra o peito e proferiu irresistivelmente:

- Meu filho, meu querido filho.

- Mamã. mamã. mamã - tornava o bebé a proferir, mostrando os dentinhos pequeninos, no seu riso infantil.

- Quem me dera que fosses meu filho - murmurou Helena, muito comovida.

- Talvez ainda o venha a ser - disse MacGregor no seu tom grave, sério, agora revestido de alguma coisa de enigmático.

Enquanto dizia isto, ia sacando as prendas de dentro do fardo e passando-as para as mãos de Artur, que, por sua vez, as depunha em cima da vasta mesa de refeições.

- Eis a primeira. Creio que é para a senhora Everton - disse MacGregor.

Tratava-se de um corte de vestido, de fazenda azul com florinhas brancas.

- Gostas? - indagou Artur, mostrando-o a sua mulher.

- Muito - disse ela, sorrindo. - Parece lã...

É talvez um bocadinho forte para o Verão que se aproxima.

- Mas tens aqui outro para o calor. Olha!

O marido mostrava-lhe agora um tecido muito leve, numa tonalidade de pêssego rosado, todo liso.

- É lindo - exclamou ela, estendendo a mão.

- Deixa-mo apalpar. Parece seda! - estranhou Helena, amarrotando-o entre os dedos.

- Não parece, é mesmo seda...

- Ai Artur, foste gastar um dinheirão nestes luxos. A, seda é o tecido mais caro que existe!

- Mereces isto e muito mais - redarguiu o pai- também meias da mesma qualidade, para estreares com o vestido.

- Que loucura! Que loucura! - comentava Helena, entre lisonjeada e receosa da imensa despesa que seu esposo fizera por sua causa. E indagou: - Para a menina, não trouxeste nada?

Trouxera. Artur podia lá esquecer-se de Alice! Foram surgindo diversos cortes de vestidos para a pequena, meias, e até umas lindas botinas.

E o velho Tom também foi contemplado. Um boné, daqueles de orelhas, que se abotoavam debaixo do queixo, para lhe resguardar as faces, quando o atormentassem as dores e o frio. Cortes de tecido de lã, aos quadrados, para camisas, e um cachimbo, sim, um cachimbo. Mas não coisa vulgar... Um cachimbo monumental, de pipo recurvo de marfim e o depósito de raiz de cerejeira, esculpido em forma de uma garra de ave de rapina a segurar meia casca de coco. Uma maravilha.

Sam e Maria não tiravam os olhos do volume. Sabiam que o patrão nunca se esquecia deles. Aguardavam, silenciosos, a sua vez, que não tardou. Sentiam mais curiosidade do que cobiça.

- O senhor esquece-se da prenda que comprou para si próprio - disse MacGregor, entregando ao patrão um par de esporas reluzentas como prata.

- Enganas-te - replicou Artur. - Não comprei essas esporas para mim, mas para um velho amigo chamado MacGregor.

- Para mim? - estranhou este último. - Mas quando as comprou, disse-me que eram para si.

- Disse-te isso para fazer-te esta surpresa.

- E de facto, conseguiu convencer-me - repliicou MacGregor. - O que o senhor, porém, não sabe é que eu também consegui enganá-lo. Ora aceite agora esta prenda que lhe ofereço eu.

Tirando rapidamente do bolso interior do casaco uma linda carteira de fina pele, entregou-lha, ao mesmo tempo que acrescentava:

- Disse-lhe que a comprava para mim, não é verdade? Pois, menti-lhe; a minha intenção era oferecer-lha.

- Amor com amor se paga - comentou Helena, alegremente, enquanto os dois amigos se abraçavam.

Alice correra para ambos, a abraçá-los e a beijá-los. Contudo, na sua infantilidade, teve uma observação que os circunstantes aplaudiram, por muito justa:

- Todos a pensarem nas prendas e esquecem-se do banho do menino!

       - Tens toda a razão, filha - aprovou Helena - Somos uns egoístas. Maria, a água provavelmente já está fria...

- Ainda está ao lume - informou a criada. - Vou já buscá-la. Pode ir despindo o bebé, que eu não tardo.

Helena Everton deitou o pequeno atravessado sobre os seus joelhos e começou a tirar-lhe as suas roupinhas sujas.

 

     DEPOIS DE UMA SURPRESA OUTRA SURPRESA

Habitualmente, o regresso de Artur Everton de uma viagem a São Francisco constituía o motiv de maior interesse no seio daquela família. Nesse dia, não se falava de outra coisa. E sobre as prendas incidiam as atenções gerais. Cada um não se cansava de admirar os objectos com que o dono da casa o brindara. Discutiam-se qualidades e preços, projectavam-se feitios, se eram elementos de vestuário a confeccionar, escutavam-se episódios da viagem, porque os viajantes traziam sempre muita coisa que contar.

Desta vez, Artur não deixaria de ter coisas a narrar, sobretudo acerca daquele menino, que parecia envolto em mistério. Mas, momentaneamente, pelo menos, a curiosidade concentrara-se toda no próprio menino, a quem Helena ia retirando as roupinhas sujas, enquanto Maria, ajoelhada junto da banheira que trouxera, ia temperando a água para o banho.

Retirada, por fim, a camisinha suja, o bebé ficou nu. Era robusto, bem constituído, agitava umas pernas como que torneadas a capricho. Mas uma exclamação de surpresa soltou-se quase ao mesmo tempo de todas as bocas. Que era aquilo que se via no corpo da criança? Um sinal? Não! uma marca.

- Parece que o marcaram, como se faz aos animais, para se lhes conhecer o dono! - aclamou Helena.

Artur baixou-se, a fim de observar mnlhor. Viu, detidamente, uma mancha escura no ventre do menino, no lado direito, um pouco abaixo da última costela. À meia-luz do entardecer, os circunstantes debruçaram-se para distinguir o que representava aquilo que lhes parecia um desenho gravado com uma tinta azul escura, quase preta.

É uma tatuagem! - descobriu finalmente Maria.

- Sim, é uma tatuagem - confirmou Artur.

- Representa uma âncora, por sinal, não muito bem feita - descobriu MacGregor, que também se aproximara um pouco mais.

- Para que diabo teriam feito isto à criança? - interrogou o velho Tom, em tom de desaprovação.

- Não se pode apagar? - indagou Alicinha.

- Só fazendo-lhe uma ferida muito profunda - esclareceu MacGregor.

- Foi uma estupidez marcar com uma tatuagem uma criança tão pequena - pronunciou Artur, em tom de censura.

       - Tanto mais - acrescentou MacGregor, carregando ainda mais a sua habitual expressão de severidade -, que a operação de tatuagem costuma ser dolorosa mesmo para adultos. Esta pequena âncora que a gente aí vê foi feita com dezenas e dezenas de picadas de agulha.

- Pobre anjinho! - lamentou Helena, começando a lavar o bebé na água tépida.

Ele parecia gostar do banho. Mas quando lhe passaram a água pela cabeça desatou a chorar desabaladamente, sem fazer caso das momices que Alice lhe fazia para o distrair. Estendia aflitivamente os bracinhos para Helena, como que a pedir-lhe socorro, ao mesmo tempo que repetia:

- Mamã... mamã... mamã!. .

      Helena tentava acalmá-lo.

       - Vê-se que o menino não está habituado à limpeza - comentou ela. - Com a continuaçãohá-de acabar por gostar.

- Eu não chorava quando era pequenina, pois não, mamã? - perguntava Alice, a cuja mão o menino se agarrara com muita força, procurando apoio para se levantar.

Artur, que o observava, vaticinou:

- Não tarda um mês que este menino não comece a andar. Tens as pernas robustas.

- Eu quero ensiná-lo a andar - declarou Alice, decidida.

- Pois sim, mas com muito cuidado - recomendou a mãe.

O banho foi um pouco mais rápido do que o devido porque Helena tinha pressa de sossegar pequeno. Envolveu-o na toalha de linho, esfregou-o bem, para o secar, e ele, gostando da fricção, calou-se. Em seguida, vestiu-lhe roupinhas limpas a cheirarem a lavado, que tinham servido à Alicinha quando esta era pequenina. Sam, com um jarro de leite morno numa mão e um fino copo vazio na outra, aguardava que a sua patroa ajustasse uma touca cor-de-rosa na cabeça do bebé, para se proceder à necessária alimentação.

       - Ele gostará de leite? - indagou Helena, antes de mandar encher o copo.

- Há dois dias que não bebe outra coisa - respondeu-lhe o marido.

- Dois dias? - estranhou ela. - Isso quer dizer que já o tens contigo há dois dias?

       - Exactamente. Desde anteontem que esse menino se encontra em nosso poder.

- E a primeira coisa que fizemos - acrescenntou MacGregor -, foi dar-lhe leite.

- Se visses a sofreguidão com que ele o bebeu! - exclamou Artur. - Devia ter passado alguma fome...

- Pobre criança!. . - condoeu-se a mãe de Alice lançando à filha um olhar de afliçãocomo se fosse esta que tivesse passado aquele tormento.

- Nós podíamos dar-lhe sopinhas, não é verdade, mamã? - lembrou a pequena.

- podemos. Mas, por agora, bebe este leite e vai repousar... - dirigindo-se à criada: - Maria arruma estas coisas e trata de preparar o berço da Alicinnnha, para lá deitarmos o menino, logo que ele acabe de beber o leite.

- Estávamos a guardar o berço, na esperança de que nascesse um menino... Ora, aí o teriam quando menos o esperava... - comentou Maria.

- Vai tratar de tudo e depressa!       - Impacientou-se a patroa, a fingir que se zangava com ela, o que nunca sucedia, porque mais serviçal, mais carinhosa, mais perfeita e rápida do que Maria, não havia.

O menino acabara por adormecer ao colo de Helena. Maria não demorou em anunciar que o berço estava preparado, junto da cama do casal.

As duas mulheres, seguidas de Alice, subiram ao primeiro andar, a fim de acomodarem o inocente num leito tão confortável como talvez ele nunca tivesse experimentado em sua vida.

 

     AS CONDIÇÕES EM QUE O MENINO FOI ENCONTRADO

Entretanto, descera a noite e Betty, uma criadita que dava ajuda a Maria, pusera a mesa para a ceia, com mais um talher, pois MacGregor, a instâncias de Artur, quebrara nesse dia o seu isolamento e acedera em comer com os Everton.

Quando Helena, Maria e Alicinha, abandonando a contemplação do menino, desceram à vasta sala de refeições, encontraram todos a comer.

       Havia quinze dias que Artur não desfrutava da companhia da família nessa hora de confraternização que é a das refeições. Confessou que já andava saudoso daquele convívio e mostrava-se muito alegre.

Maria apressou-se em servi-los. Os viajantes

fizeram demonstração de um voraz apetite, de modo que os primeiros momentos decorreram em silêncio, não pensando cada um senão em apaziguar qualquer coisa que se parecia bastante com a fóme. Mas, terminado o primeiro prato, a conversação teve o seu início, incidindo logo sobre o tema que a todos mais preocupava: o bebé, que nesse momento dormia tranquilamente no berço que fora de Alice.

- Paizinho - disse a pequena, rompendo o silêncio que pairava -, o menino ainda não tem nome; é preciso baptizá-lo. Eu não quero ter um irmãozinho sem nome.

Artur Everton evidenciou um certo embaraço.

Olhou para MacGregor, que manteve o seu rosto fechado do costume, e em seguida fixou em sua mulher um olhar ansioso. Esta pronunciou lentamente:

- Eu sempre pensei, se Deus me desse um filho, pôr-lhe o nome de Eduardo, pois era assim que meu pai se chamava.

- Eduardo é um nome lindo! - exclamou Alice, batendo as palmas. - Quem me dera que o meu irmãozinho se chamasse Eduardo!

       - O pior é que eu ainda não sei se aquela criança poderá ser teu irmão - disse Artur, em tom enigmático.

Tornou a trocar um olhar com MacGregor, que continuou impenetrável.

O velho Tom interveio. Estava sentado num cadeirão de espaldar alto, ornado de um amplo almofadão ao qual se encostava.

- Há em tudo isto - disse ele - um mistério que é preciso esclarecer. Enquanto esse mistério subsistir, ficamos sem saber que atitude tomar perante esta criança. Ela é muito bonita. Estimamo-la logo à primeira vista. Eu confesso que gostaria de ter um neto assim. E o nome Eduardo agrada-me muito. Mas, poderei eu chamar-lhe neto? Terei esse direito? Não surgirá alguém a contestar-mo?

- Isso depende de circunstâncias que eu próprio não estou habilitado a profundar, não é verdade, MacGregor? - pronunciou Artur.

       - E eu muito menos - acudiu prontamente o velho Tom. - Vocês é que trouxeram o pequeno; sabem do caso muito mais do que eu.

       - Não tanto como supõe - murmurou o filho pensativo.

      - Nada sabemos desse menino - declarou MacGregor, laconicamente.

- Então, como o puderam trazer para casa? - indagou Helena. - Acharam-no, como quem apanha do chão uma moeda perdida que não se sabe a quem pertence.

      - Quase acertaste - proferiu o marido.

- O melhor é contarem-nos o caso em todos os seus pormenores, para ficarmos fazendo uma ideia do que se passou e podermos tomar uma resolução - alvitrou o velho Tom.

- É isso o que me proponho fazer - anuiu Artur Everton. - Peço que me escutem e digam depois o que se deve fazer.

       - E como lhe fizeram aquele desenho na barriguinha? - inquiriu Alice.

- Cala-te, filha, deixa ouvir - ordenou Helena. - Sinto-me morrer de impaciência.

- Pois então, lá vai - começou Artur Everton.

Mas não prosseguiu. Foi logo interrompido. A porta de entrada abriu-se nesse momento e um homem surgiu no limiar, onde se deteve.

- Olá, Craigh! - exclamou Artur. - Entra, entra. Ainda vens a tempo de cear connosco.

O homem avançou uns passos e, tirando o seu amplo chapéu desabado de "cow-boy", agitou-o, numa saudação geral.

- Muito boas noites a todos!

- Senta-te e come connosco. Ainda vens a tempo - insistiu o pai de Alicinha.

- Não aceito, porque já comi - respondeu o recém-chegado. - Acabei de cear e meti pernas ao caminho, ou melhor, fiz com que o cavalo metesse pernas a caminho.

- Senta-te aqui a meu lado - insistiu Artur.

- Não comes, mas bebes.

- Sabes que não sou homem de muitas bebidas - lembrou Jaime Craigh.

- Mas gostas de beber um "whisky", uma vez por outra.

- Pois aceito de boa vontade.

Ainda não acabara de condescender, já Maria colocara na sua frente um copo, no qual vertera algum líquido, e lhe deixara a garrafa à sua frente em cima da mesa.

- Vens em serviço oficial? - perguntou-lhe o velho Tom, gracejando.

- Oh, não! - exclamou o visitante. - Parece que não estão habituados a que eu os visite por simples amizade.

- Como te vejo a estrela de xerife pregada no peito... - insinuou o ancião.

- Às vezes, esqueço-me de a retirar... - disse Jaime Craigh.

Despregou a insígnia da sua autoridade e meteu-a no bolso.

- Conheci-te ao colo da tua mãe - declarou Tomás Everton. - Quem me havia de dizer, nesse tempo, quando acariciava as faces gorduchas daquele menino, que havia de ver-te agora xerife de Fuenton-City e senhor de uns bigodes ruivos tão imponentes.

Todos se riram daquela evocação. E foi Craigh quem lhe achou mais graça. Com efeito, ele era possuidor de um espesso bigode ruivo, retorcido nas pontas, a formar dois anéis. Fronte alta, cabelo um pouco ralo da cor do bigode e olhos esverdeados, contaria uns trinta e cinco anos. Havia dez que o tinham nomeado xerife e, por vezes, com bastante coragem. Pouco mais velho do que Artur, ligara-os sempre uma sólida amizade.

- Não adivinhas o motivo da minha vinda aqui, mal te danda tempo para descansares da viagem? - disse ele, dirigindo-se a Artur.

- Apeteceu-te vires tomar uma bebida com o teu velho amigo? - indagou Artur, deitando-se a adivinhar.

- Sim, para te felicitar. Constou-me que tu e tua mulher realizaram, finalmente, um velho

sonho. Tens um filho, um rapaz, não é verdade?

- Ainda não sabemos se lhe poderemos chamar filho - declarou Artur Everton. , num ar preocupado.

- Consta em Fuenton-City que tomaste conta de uma criança abandonada - proferiu o xerifelimpando o farto bigode às costas da mão, depois de beber alguns goles.

- O caso não é tão simples, como à primeira vista se nos apresenta - observou o pai de Alicinha. - Não temos a certeza de que a criança foi abandonada pelos pais, nem sequer sabemos se tem ou não tem pais.

- Que diz o menino? - indagou Craigh.

       - O menino não diz nada. Ainda não sabe falar. Não terá mais de sete ou oito meses. A única palavra que pronuncia é "mamã". Ainda não lhe ouvimos outra...

- Realmente isso é muito pouco para o idenimtificar - concordou o xerife. - E não haverá pessoas que o conheçam? Alguém que lhe conheça a família?

       - O local onde o encontrámos é perfeitamente deserto - informou Artur. - Fica a dois dias de viagem daqui. Tu conhece-lo. A cavalo e a corta-mato podemos alcançá-lo em cinco ou seis horas    ou talvez mais. Sabes onde é o Passo das Vacas?

- Perfeitamente.

- Quando passamos perto desse desfiladeiro, como quem vem do lado da costa para cá, encontramos umas duas léguas de deserto árido, onde até os cactos tem dificuldade em crescer. A região não é absolutamente plana, como deves estar lembrado, possui pequenos acidentes. O caminho estende-se em torcicolos, como uma cobra, por entre esses pequenos acidentes, desde o desfiladeiro, chamado Passo das Vacas, até aos primeiros sinais, as primeiras árvores isoladas, que se vão tornando a espessa floresta dos Desencaminhados.

- Chamam-lhe dos Desencaminhados, porque muitos que nela se meteram, nunca mais acertaram com a saída - informou Jaime Craigh. - Tenho por lá passado muita vez.

- Pois, agora, na viagem de regresso - prosseguiu Artur -, pouco depois de termos cruzado o Passo das Vacas, quando começámos a trilhar o deserto, avistámos ao longe, na nossa frente, uma coluna de fumo não muito espessa, que nos despertou a atenção, precisamente por estarmos num deserto onde a ninguém apetece acampar. A coisa intrigou-nos de sobremaneira. Talvez índios se detivessem ali.

- Índios nunca fariam isso num descampado! - pronunciou MacGregor.

- Pois, não. Foi o que MacGregor disse e eu concordei. Apressei um pouco o andamento dos cavalos. Estava impaciente por descobrir a causa daquele fumo.

- Não há fumo sem fogo. - sentenciou o xerife.

- E o ditado veio a confirmar-se - apoiou Artur, continuando o seu relato, que todos escutavam com ávida atenção. - Simplesmente, esse fumo ia-se tornando menos denso, conforme nos aproximávamos. Como não corria vento, lembrava uma grossa corda a erguer-se serenamente até se desfazer lá nas alturas do céu muito azul.

- Foram ver de que se tratava, é claro - calculou o xerife.

- A certa altura do caminho, o fumo levantava-se do local mesmo à nossa esquerda. Parámos o carro e eu e MacGregor resolvemos ir averiguar o que se passava. Já não estávamos muito longe da floresta. Pelo sim, pelo não, cada um de nós levou a sua espingarda. Avançámos para o interior do deserto, que ali subia em ligeiro declive, a partir da estrada. Quando atingimos o topo e julgávamos ir descortinar imediatamente a origem do fumo, sofremos uma pequena desilusão. O terreno que tínhamos à nossa frente continuava em leves acidentes, uns mais altos, outros mais baixos, ocasionando uma série de depressões. Cortamos a direito, subindo e descendo sucessivos acidentes. A coluna de fumaça parecia-nos agora mais larga. pela proximidade, e já nos chegava ao nariz o cheiro forte a madeira e a trapo queimado. Por fim, já distantes do caminho cerca de duzentos metros em linha recta.

- Talvez mais - ponderou MacGregor.

- Sim, talvez mais... - concordou Artur, prosseguindo: -Descobrimos uma coisa que muito nos surpreendeu.

- Uma cabana - arriscou Craigh.

       - Não! - emendou Everton. - Cabana, se existiu, devia ter ardido completamente. O que nos surpreendeu foi a existência de uma pequena horta muito mal tratada, o que se justificava pela existência de um poço nas proximidades das ruínas ainda quentes de uma casa de madeira que devia ter ardido completamente. Alguns materiais ainda estavam a ser consumidos pelo fogo; eram eles que expeliam o fumo que atraía a nossa atenção.

- E não se via ninguém perto? - indagou o xerife.

- Nem vivalma! - exclamou MacGregor.

- Aquelas ruínas apresentavam um aspecto confrangedor - continuou Artur Everton. - Indicavam-nos que, pouco tempo antes, existira ali um lar, talvez o começo de uma existência duracom perspectivas de progresso e de felicidade. E um fogo destruíra, calcinara tudo, tudo, não deixando senão vagos vestígios do que talvez apenas umas horas antes era motivo de alegria de dois ou três seres.

- Tratava-se de fogo posto - afirmou MacGregor, convicto.

- O que restava era tão pouco - continuou o narrador - que nos leva a crer que o incêndio foi criminosamente provocado, no intuito de destruir tudo por completo. Estava aquela habitação reduzida a nada. Mal se distinguia que fora constituída por dois compartimentos. O que era madeira, aliás quase tudo, como paredes e móveis, transformara-se em cinza e restos de barrotes calcinados que pareciam carvão. Não descobrimos existência de animais. A horta era muito pobre. Mal daria para alimentar duas, o máximo três pessoas. O fumo que ainda se elevava no ar provinha de uns restos de madeiras que provavelmente constituíam o depósito de achas com que se alimentava a lareira daquela casa. Depois de passarmos um olhar desolado pelas ruínas ainda fumegantes, resolvemos voltar à estrada e continuarmos a nossa viagem.

- E o menino! - exclamou Alicinha. - Como encontraram o menino?

Esta pergunta expressava o sentir de todos os circunstantes, com excepção de MacGregor, evidentemente.

- Foi na altura em que nos encaminhávamos para a saída da horta, que uma paliçada tosca circundava, que se me afigurou ouvir algo parecido com um choro de criança. Voltámo-nos instintivamente para as ruínas fumegantes, pois o som parecia vir de entre elas. Mas era impossível que ali pudesse existir um ser vivo. O choro tornou-se mais forte e insistente e notámos então que provinha do lado esquerdo da horta, onde havia uma espécie de pequeno outeiro com uns arbustos. Atrás deste, vimos uma barraquinha, espécie de casota de cão.

Lá dentro chorava um bebé. Abrimos uma portinha e vimos deitado sobre umas palhas e embrulhado naquela mesma manta em que o trouxemos o menino que se encontra agora à nossa guarda.

- Coisa estranha. - murmurou o xerife, pensativo. - Fica a gente sem saber o que imaginar de tudo isso.

- Tencionava procurar-te amanhã para me dizeres o que pensas a este respeito e o que devo fazer.

Jaime Craigh retorceu, por momentos, o seu farto bigode ruivo, voltou a beber umas gotas do seu "whisky", tornou a ajeitar o bigode e disse, por fim:

- Isso é tudo muito misterioso.

- E ainda mais adensa o mistério a tatuagem que o menino tem no ventre - lembrou o velho Tom.

 

     O XERIFE PROPÕE QUE SE FAÇAM INVESTIGAÇÕES

Houve um longo momento de silêncio, durante o qual dir-se-ia cada um procurar na sua imaginação o significado daquela misteriosa tatuagem. Os grandes olhos de Maria rolavam na sua face cheia de um para outro circunstante, como que a querer adivinhar-lhes o pensamento.

- A tatuagem é como a dos índios? - perguntou bruscamente o xerife.

- Não! - respondeu Artur. - Conheço bem as tatuagens dos peles-vermelhas. Vê-se que deve ter sido feita por um branco.

- Sim, um marinheiro branco - confirmou MacGregor. - Só os homens do mar sabem fazer tatuagens daquele género.

       - É uma pequenina âncora azul sobre o ventre, um pouco abaixo da última costela - acrescentou o marido de Helena.

       - Não há a menor dúvida - disse Craigh. -     Fizeram-lhe essa tatuagem no deliberado propósito de o marcar. Quiseram pôr-lhe um sinal, para mais facilmente o reconhecerem. Há-de ser velho e ainda o poderão distinguir entre mil por essa marca que nunca mais se apagará, a não ser que lhe fizessem um ferimento e, então, seria pelo ferimento que o identificariam.

Helena não se pronunciava, mas, seguindo a conversa com a maior atenção, de vez em quando soltava um profundo suspiro. Alicinha não percebia bem o motivo de apreensão das pessoas que a rodeavam, mas a sua intuição levou-a a tocar quase o fundo do problema.

- Por causa desse desenho na barriguinha do menino, já não posso chamar-lhe irmão? - interrogou ela, abrindo muito os seus olhinhos azuis.

- Parece que deve ser por isso - pronunciou a mãe, com patente tristeza. E acrescentou, voltando-se para Jaime Craigh: - Não pode calcular a alegria que senti, quando meu marido me entregou o menino. Disse para os meus botões: "Finalmente, Deus féz-me a vontade! Mandou-me o rapazinho que eu tanto ambicionava". Afinal, vejo tudo. muito complicado.

O velho Tom interveio:

- Também eu desejava que vocês tivessem um rapaz para fazer do Pequeno Eden um Grande Eden. Ainda não tinha perdido essa esperança. O menino surgia como se fosse enviado pelo Céu. Este foi o meu primeiro pensamento. Adoptava-se a criança, educava-se à nossa maneira e teríamos um Everton a continuar a obra de duas gerações. Mas essa marca, esse sinal coloca-nos na contingência de nos aparecerem os verdadeiros pais e levarem-no, depois de lhe termos dedicado todo o nosso amor. Não, o melhor é não alimentarmos ilusões.

- Talvez os verdadeiros pais já não sejam vivos - aventurou Helena, como se quisesse agarrar-se a uma última esperança.

- Aquele incêndio denuncia uma tragédia -    disse Artur. - A verdade, porém, é que não descobrimos quaisquer cadáveres. Teriam os pais morrido? E qual teria sido a verdadeira origem daquele fogo?

       - E porque razão foi encontrado o menino nessa capoeira? - proferiu o xerife, como se raciocinasse em voz alta. - Teria alguém corrido a ocultar a criança nessa casota, para a salvar do incêndio que lavrava na casa? A criança não iria esconder-se ali por sua iniciativa, porque nem sequer sabe andar, nem teria raciocínio para tanto. Foi uma pessoa, um adulto que ali a escondeu.

- Talvez na intenção de ir procurá-la mais tarde - admitiu MacGregor.

- Provavelmente, foi a mãe quem a ocultou! - lembrou Helena. - Quem sabe se essa pobre mulher não andará para aí, como louca, à procura do filho que esperava recuperar?

- Não vimos ninguém nas imediações, que são como sabem, desabitadas - declarou Artur.

- Nem tentaram ver se descobriam alguém? - indagou Jaime Craigh.

       - Naquelas léguas áridas que a vista abarcava - respondeu MacGregor - não havia vivalma por mais que perscrutássemos em todos os sentidos.

       - Só não penetrámos na floresta - acrescentou Artur. - Não nos íamos arriscar a ficar por lá. Achámos preferível trazer o menino connosco.

- Talvez no momento em que vocês se retiravam, estivessem os pais a sofrer dentro da floresta - admitiu o xerife.

       - Suspeita de algum assalto dos índios? - perguntou Artur.

       Craigh retorceu o bigode ruivo.

- Os índios têm-se mantido em paz connosco há meia dúzia de anos - disse ele. - Mesmo antes não se registavam mais do que escaramuças sem importância. Águia Negra, o chefe, visita frequenmtemente Fuenton-City onde faz os seus negócios. Tem-se mostrado honesto. Não estou muito inclinnado para uma proeza de índios. Talvez estejamos na presença dos primeiros sintomas de banditismo branco, quadrilha nova ou coisa que o valha.

Helena meneava gravemente a cabeça, num ar de lástima. O marido, depreendendo que ela desejava dizer alguma coisa, perguntou-lhe:

- Em que é que tu estás a matutar?

       - Nem o sei bem... - respondeu ela, hesitante.

- Está a pensar no meu irmãozinho, não é verdade, mamã? - tentou Alice adivinhar.

- Sim, gostava muito de poder chamar-lhe filho, para tu poderes ser irmã dele a valer - acrescentou, volvendo-se para Artur: - Faz-me uma grande confusão tudo isto. Pergunto á mim própria como serão o pai e a mãe da criança. Estarão vivos? Terão morrido? Ter-lhes-ão raptado o bebé? Como apareceu ele, assim, oculto nessa espécie de casota de cão? Quem o teria lá metido? O pai, para o salvar do perigo do incêndio? Algum criminoso, no intuito de ali deixar morrer a criança? Sinto-me confusa e, ao mesmo tempo, aflita, como se se tratasse de um filho meu ameaçado por forças terríveis e ocultas.

E, ao mesmo tempo que proferia estas palavras, passava em redor um olhar amedrontado, como se receasse ver surgir das sombras dos recantos algum monstro horrendo.

E ajuntou ainda, após um curto silêncio de todos:

- Este mistério intriga-me, mas também me assusta muito.

A criada Maria, a quem eram permitidas todas as familiariedades, deu a sua opinião:

- Eu também tenho medo, senhora. Mas, se estivesse no seu lugar, agarrava no menino e íamos todos amanhã baptizá-lo a Fuenton-City como filho do casal Everton. E já ninguém mo arrancava dos braços.

- E se alguém o descobrisse por causa da tatuagem? - lembrou o velho Tom.

- Eu queria lá saber do sinal na barriga! - exclamou a criada, exaltando-se. - Não haverá mais nenhum menino no Mundo a quem tivessem feito uma tatuagem igual?

- Não é muito fácil que exista outro bebé da mesma idade, a quem tivessem tatuado exactamente da mesma maneira. Puseram-lhe aquela marca para o distinguir entre mil.

Fora Jaime Craigh quem pronunciara estas palavras, que caíram no ânimo exaltado de Maria, como um balde de água num fogareiro.

- Maldita ideia a de marcar um menino como quem marca um animal! - exclamou ela. - É aquela âncora azul que está a estragar os nossos planos.

- Se o pudesse adoptar como filho, havia de pôr-lhe o nome de Eduardo - proferiu Helena.

- Sempre sonhei, se tivesse um filho, dar-lhe o nome de Eduardo. Era assim que se chamava o meu avô.

- Eduardo é um nome muito bonito - exclamou Alicinha, batendo as palmas. - Vamos passar a chamar-lhe Eduardo, sim, mamã?

- Pois, sim, se por algum nome o havemos de tratar, que seja por Eduardo - anuiu Helena, em tom melancólico. - Mas só Deus sabe qual é o verdadeiro nome que lhe puseram.

- De certo, ter-lhe-iam posto um nome muito diferente - disse Artur. - Contudo, também me agrada chamar-lhe Eduardo.

- E quem sabe se não será exactamente o non dele? Há neste Mundo coincidências tão estranhas - proferiu o xerife.

- Também estamos sujeitos a que, de un momento para o outro, se descubra toda a verdade - disse o velho Tom. - Pode aparecer a mãe, e o pai, e saber-se que o menino se chama João, por exemplo. O pior é que todo o edifício de felicidade que nos propomos construir sobre a hipótese de ficar esta criança a pertencer à nossa família está sujeito a que um pequeno nada, uma revelação imprevista, o lance por terra. E lá se vai a nossa felicidade!

- Credo, o pai só vê as coisas pelo lado pior - lamentou a nora, numa triste censura. - Pois apesar de sentir muito medo do que se possa descobrir, parece-me que me arrisco a adoptar Eduardo. Que dizes a isto Artur?

O marido dirigiu-lhe um sorriso acolhedor.

- Tens o dom de me adivinhar os pensamentos - disse ele. - Amanhã, vou a Fuenton-City tratar rapidamente do baptizado. E fazemos uma festa de arromba, como se fosse um autêntico filho nosso.

- Esperem! - interrompeu Craigh. - Não se precipitem. Vocês não devem adoptar o menino sem que primeiramente se empenhem todos os nossos esforços em descobrir os verdadeiros pais. Se as nossas pesquisas se revelarem infrutíferas, então façam o que entenderem.

- Podemos adoptá-lo? - perguntou Helena, como que receosa de ver o seu sonho prematuramente frustrado.

       - Podem, e entendo que fazem muito bem - aprovou o xerife. - Digo-lhe mais: em vosso lugar, começava já a tratá-lo como filho...

- E se aparecem os pais? - temeu-se Maria.

- Vou fazer todo o possível por encontrá-los - replicou Craigh. - É mesmo essa a minha obrigação. Mas se na minha carreira de xerife tem havido pesquisas em que não deposite a mínima fé, esta é uma delas. Há uma probabilidade contra mil de se descobrir a verdadeira identidade da criança.

- Então, o Eduardo é meu irmãozinho? - indagou Alicinha, a quem esta ideia obcecava.

       - É, sim - sossegou-a a mãe -, podes

chamar-lhe irmão à tua vontade.

O xerife acabou de beber o seu "whisky", preparando-se para se retirar.

       - Amanhã, muito cedo vou iniciar as minhas pesquisas - declarou ele.

 

       CAMINHANDO NO SILÊNCIO DA MADRUGADA

Artur Everton pediu a Jaime Craigh que o deixasse colaborar nas investigações a que ia proceder sobre a proveniência daquele menino a quem já chamavam Eduardo. O xerife opôs-lhe que tais pesquisas lhe competiam só a ele, como autoridade, e a mais dois auxiliares a quem ainda falaria essa noite. O pai de Alice, porém, insistiu, apresentando razões plausíveis: ninguém mais interessado do que ele, Artur, na descoberta da verdade, visto que do que se chegasse a desvendar dependia a decisão que deviam tomar em relação à criança. Craigh deu-se por vencido. Declarou que partiria de Fuenton-City por volta das três horas da madrugada. Convinha-lhe estar já bastante longe, quando o sol rompesse.

- Eu também vou - declarou MacGregor, com a sua concisão habitual.

O xerife quis dissuadi-lo.

- Já disse: também vou - repetiu o homem. Todos sabiam que era muito difícil demovê-lo de qualquer atitude que tomasse. A Artur até agradava a sua companhia, e gostou de que ele se oferecesse. Ficou então combinado que ambos iriam juntar-se a Craigh e aos dois auxiliares, em Fuenton-City, por volta das quatro horas da madrugada.

Pelas três horas, estavam a pé Helena e o marido e Maria, que, madrugando mais do que os outros, já tinha preparado dois sacos com mantimentos e os respectivos cantis com água fresca. Não tardou MacGregor em aparecer, vindo da sua casa, onde teimava em viver solitário, desde que enviuvara. Ao ver que também lhe tinham preparado mantimentos, lançou um olhar de censura a Maria e interpelou-a:

- Para quem é isto?

- Para você, seu rezingão - respondeu ela, com a sem-cerimónia que lhe era peculiar.

- Mas eu já trago aqui um bom farnel; não preciso de sobrecarregar o patrão com mais despesas - replicou ele, no seu mal-humorado tom habitual.

Com efeito, via-se-lhe a tiracolo a mochila pouco cheia e o cantil da água, além da indispensável carabina.

- Toda a gente sabe que você é rico e não precisa das sopas do patrão! - retorquiu-lhe Maria, desabrida. - Se lhe preparei o farnel não foi para lhe matar a fome, mas somente para lhe fazer uma gentileza... E lá por ser rico, não lhe custava agradecer, em lugar de se abespinhar.

MacGregor resmungou qualquer coisa que poderia ser um agradecimento. Trocou lentamente a mochila que trazia pela que estava em cima da mesa. Maria, muito lesta, abriu o saco que ele acabava de abandonar e retirou de dentro um bocado de presunto, um naco de pão duro como pedra, um pedaço de queijo e um frasquinho de "whisky".

- Ora, imaginem! - comentou ela. - É tão soberbo que preferia esta miséria à galinha assada, ao bom queijo, ao óptimo presunto e ao esplêndido empadão que lhe meti na mochila.

MacGregor esboçou uma careta. Era aquela a sua maneira de sorrir com agrado, e comentou, olhando para Artur:

- Nunca se consegue levar a melhor com esta mulher.

- Não conheço melhor alma do que a de Maria - disse Helena.

       Entretanto, Artur ultimara os seus preparativos. Também levava, como MacGregor, a sua carabina, o revólver e a faca de mato, que é para um "cow-boy" ferramenta e arma de defesa. Ao abraçar o marido, Helena não pôde reter as lágrimas, ao mesmo tempo que lhe recomendava:

- Cuidado, não te arrisques muito!

- Não deve haver perigo - sossegou-a Artur.

- Deus queira que nada descubram - disse ela, ainda.

- É isso o que eu desejo e espero - replicou-lhe o esposo, a rir.

       MacGregor já tinha os cavalos preparados diante da porta. Os dois homens montaram rapidamente.

       - Deus os acompanhe! - gritou-lhes Helena no momento em que eles se afastavam.

       Ficou parada no limiar a ouvir o tropel cada vez mais distante até se sumir ao longe. Estava uma noite serena e profunda, com um céu todo recamado de estrelas. Maria, que ficara à retaguarda da patroa, murmurou, erguendo o olhar:

- Minha senhora, disseram-me que cada estrela é uma alma santa que nos vê lá de cima. Será verdade?

- Olha, se não é verdade, devia ser, Maria. E devia lá estar uma dessas almas bondosas a pedir ao Senhor que o Eduardinho ficasse connosco para sempre.

- Eu acredito que sim - declarou Maria, convicta. - E a senhora vai ver que o xerife não descobre nada. e depois...

- Depois, baptizamos o menino como meu filho e do meu Artur.

- Amen - pronunciou Maria, como de costume nos momentos que lhe pareciam solenes.

Artur Everton e MacGregor não precisaram de entrar na cidade. Jaime Craigh e os seus dois auxiliares vieram ao seu encontro, a meio caminho. Apesar da escuridão, reconheceram-se logo.

- Vocês adiantaram-se à hora marcada - observou Everton.

- Viemos andando, visto que teriam de voltar para trás - respondeu o xerife. - Foi bem um quilómetro que lhes poupámos, assim como tempo. Creio que ninguém deu pela nossa saída da cidade. Esta investigação deve fazer-se o mais discreta possível.

- Sou da mesma opinião - declarou Artur.

- Se descobrirmos a família da criança, o caso pode considerar-se arrumado e nós ficamos esclarecidos. Se não se descobrir, podem adoptá-la ou criá-la simplesmente da forma que entenderem.

Tinham dado meia volta e seguiam agora a pequeno trote.

- Trouxe comigo os meus auxiliares Carlos José - disse Craigh.

- Já os tinha reconhecido, apesar da noite estar escura - disse o pai de Alicinha.

- Escolhi-os a eles para esta diligência, porql são ambos de inteira confiança - foi dizendo xerife. - Haja o que houver as suas bocas não se abrem.

- E também sei que em caso de perigo - acrescentou Artur - são homens para vender cara a vida e fazer a vida cara ao inimigo.

Um dos homens soltou uma risada na escuridão. O seu vulto mal se distinguia.

- O senhor Everton está a envaidecer-nos - proferiu José, o que se rira. - Mas fazer-nos esses elogios diante de um verdadeiro herói que vai a seu lado, parece troça.

- MacGregor teria razão para protestar -      pronunciou o outro auxiliar, que dava pelo nome de Carlos. - Se o senhor nos está a pôr nos pínncaros da Lua, onde havia de colocar MacGregor, o homem que prendeu Big Dick, dominando-o só com um murro?

- Nunca estive de acordo com a importância que atribuiram ao episódio - interveio MacGregor, num tom de enfado, como sempre que recordava a sua façanha. - Foi um simples acaso! Calhou acertar-lhe em cheio na ponta do queixo! Podia ter sido ao contrário, se fosse ele o primeiro a esmurrar-me... E chamar-lhe-iam herói só por isso?

- E o tiro certeiro que desarmou o outro bandido, mesmo no momento em que ele ia disparar e decerto abatê-lo? Também foi acaso? - lembrou José.

- Fui mais rápido do que ele, nada mais - replicou MacGregor.

- A verdade é que nos livrou de uma quadrilha, que, sem a sua intervenção, talvez ainda hoje nos estivesse a dar água pelas barbas - comentou Jaime Craigh. - Só tenho pena de nessa altura ainda não ser o xerife, para partilhar da glória desse feito.

- O seu antecessor é que decidiu da questão - afirmou MacGregor. - Se ele não aparece a tempo, os outros teriam dado cabo de mim, sem dúvida nenhuma!

- E lá fugia o prémio dos dois mil dólares! - exclamou José.

- Nunca houve prémio mais mal ganho do que esse - resmungou MacGregor.

Não tardaram em abandonar a estrada para meterem a corta-mato. Achavam-se em território que todos eles conheciam a palmos e a olhos fechados. Na ampla noite estrelada, o tropel dos cinco cavalos soava surdamente. Ao longe, ouvia-se por vezes algum cão a latir. Como penetraram num pequeno vale muito apertado, os cinco homens seguiam agora em fila indiana e silenciosos. A quietação da natureza parecia expressar alguma coisa de solena que influia nos seus espíritos. Não avançavam apenas calados, mas pensativos, também. A travessia do vale teria durado meia hora, se tanto. Pouco a pouco, emergiram da estreita passagem, até que atingiram uma lomba, na qual puderam abandonar a fila indiana e agruparem-se por forma a poder conversar de novo, o que se torna mais agradável em regiões solitárias.

Jaime Craigh, Artur Everton e MacGregor achavam-se agora à frente; os dois auxiliares seguiam-nos de muito perto. Em torno, no dorso do pequeno monte que estavam cruzando, enxergavam eles, como sombras na sombra, vultos de árvores dispersas, que não chegavam a constituir uma mata. Mas nas ramagens já se sentiam rumores de vida. Não eram os pios sinistros das aves nocturnas, que geralmente se dedicam à caça dos inocentes passarinhos durante o seu sono desprevenido, mas certos pipilos, um ou outro chilreio, denunciando um lento despertar, que em regra antecede de pouco tempo as primeiras claridades de um novo dia.

O ar tornara-se muito fresco, durante a madrugada, não chegando, porém, a considerar-se frio. Contudo, caíra um orvalho que humedecia as roupas e parecia tornar mais branda e fofa a relva que os cavalos pisavam.

- Cortámos bastante caminho - disse o xerife, rompendo o silêncio. - Neste corta-mato devemos ter poupado bem umas seis milhas.

- Para mais e não para menos - aprovou Artur.

- Devemos alcançar a pradaria do Ferreiro, já com o nascer do Sol - calculou Craigh. - Podemos fazer aí o primeiro descanso. O pasto é muito bom para os cavalos e há ali umas árvores talvez com mais de cem anos, que nos darão boa sombra. E enquanto descansamos, comemos alguma coisa.

- Apetite não me falta! - exclamou José, era o mais novo e o mais jovial do grupo.

 

         AS CONFIDÊNCIAS DE MACGREGOR

Jaime Craigh não se enganara nos seus cálculos. Com efeito, pelas seis horas da manhã, já com sol, tinham atingido a pradaria do Ferreiro.

- Porque demónio chamam a isto do Ferreiro? - estranhou José. - Não me consta que tenha existido por estas léguas mais próximas algum ferreiro ou um simples ferrador.

- Também desconheço a razão deste nome - confessou Artur.

- Já ouvi dizer - explicou Craigh - que o primeiro branco que tentou fixar-se nestas paragens era um ferreiro, e daí o ter-se ficado a chamar a este belo prado "do Ferreiro", embora o homem tivesse tido pouca sorte. Parece que foi chacinado pelos índios, ainda muito poderosos nesses tempos.

A imensa planície verde ondulava até perder-se numa névoa confusa, da qual emergia o vulto de uma serra. Ao longe, mas bastante longe, moviam-se uns pontinhos negros, que pessoas inexperientes confundiriam com cordeirinhos pretos, mas que, na realidade, eram corpulentos búfalos, que a distância reduzia a minúsculos brinquedos.

Deixaram os cavalos saborear, deliciados, aquela erva alta, viçosa, a que a luz da manhã emprestava tons de esmeralda, e trataram de abrigar-se à sombra de um grupo de árvores que se erguiam como sentinelas à beira da imensa planicie. No tronco de algumas dessas árvores podia cavar-se uma ampla vivenda, em que se abrigaria numerosa família. Sob as ramagens, havia uma sombra fresca, talvez demasiado fresca, onde os homens se acomodaram para tomar a primeira refeição do dia. A caminhada abrira-lhes o apetite. E durante alguns minutos, estirados na relva que lhes oferecia cómoda cama, foram comendo e bebericando.

Limpando os seus encaracolados bigodes ruivos às costas da mão, Craigh fez os seus cálculos para o resto da viagem.

- Se partirmos dentro de uma hora, lá para as onze e meia, mais ou menos estaremos no local onde você descobriu o tal incêndio - disse ele dirigindo-se a Everton.

- Talvez gastemos mais tempo - ponderou este.

- Não, não levamos - replicou o xerife. - E a razão é simples: aquela serra que se vê além, nós vamos transpô-la, seguindo daqui direitos ao Passo das Vacas. Mas quando se viaja de carroção, como vocês o fizeram, tem-se de se sujeitar aos torcicolos da estrada, que, mesmo assim, obriga a tornejar a serra toda.

- Realmente, a cavalo, vamos quase em linha recta - concordou Artur.

Tinham acabado de comer. Prepararam-se para passar uns momentos pelo sono, enquanto os cavalos pastavam e repousavam. Homens habituados à vida ao ar livre, em qualquer parte dormiam. Embrulhando-se na manta, faziam da bagagem travesseiro. Entretanto, iam tagarelando até que o sono os vencesse. Ao lado de cada um repousava a espingarda, mesmo à mão, para prevenir as más surpresas.

- É curioso - disse MacGregor, em voz lenta - mas já estive aqui, neste mesmo sítio onde nos encontramos agora, quando vim, pela primeira vez, para esta região. Eram estas mesmas grandes árvores a darem esta mesma sombra fresca.

- Julguei que era natural destes lugares - confessou Carlos, soerguendo-se sobre um cotovelo e virando-se para ele.

- Pessoas nascidas aqui havia poucas no tempo em que era um rapaz - explicou MacGregor. - Agora é que existe toda uma geração de vários pontos da América, outros de países europeus. Ao número destes últimos pertencia euu.

- É inglês? - indagou José.

- Inglês, eu? - repetiu MacGregor, franzindo o cenho. - Não, não sou inglês. Nasci no mais belo país do Mundo.

- Na Irlanda! - exclamou Carlos, julgando adular aquele homem sempre carrancudo.

- Dizem que a Irlanda é um país bonito - condescendeu ele. - Mas como a Escócia não há nenhum.

- Ah, é escocês! - exclamou o xerife. - Não sabia. Imaginava-o de Fuenton-City ou arredores.

- Agora, sou mais americano do que escocês - declarou MacGregor. - Mais de metade da minha vida decorreu na América, e quase todo o meu tempo da América passei-o nestes sítios. Gosto muito da Escócia, mas não gosto menos da Califórnia.

- E de todos os lugares da Califórnia - ajuntou Artur - o seu preferido é o Pequeno Eden.

- Diz uma grande verdade - anuiu MacGregor. - Raramente os nomes condizem com as coisas. Mas no que se refere ao seu rancho, notamos uma excepção: é um Pequeno Paraíso. Felicito-o por isso.

- As felicitações vão todas para meu pai - acudiu Artur, com entusiasmo. - Ele não se limitou a desbravar a terra e a torná-la produtiva; desbravou a alma de muita gente rude, nela plantando a bondade, a tolerância, o dever de nos ajudarmos uns aos outros. O senhor sabe, como ninguém, que no nosso rancho até os animais são tratados humanamente.

- Sim, sei-o, toda a gente o sabe por estas redondezas - disse Jaime Craigh. – Desejariam muitas pessoas deste mundo serem tratadas pelo seu semelhante como os animais são tratados no Pequeno Eden.

- Pois fiquem sabendo - revelou MacGregor - que foi a humanidade e a simpatia de Tom Everton que me prenderam a este território para sempre. Se não tivesse encontrado essa boa alma no meu caminho, eu teria passado estes últimos vinte e cinco anos como um autêntico vagabundo ou teria regressado à Escócia, mais pobre, mais desanimado, mais desesperado do que vim. Aquele homem, habitualmente tão reservado, estava a surpreender os companheiros com a sua loquacidade, essa manhã. Mais do que loquaz, mostrava-seveemente.

- Nasci numa aldeia à beira do lago conhecida pelo nome de Loch Ness - disse ele, decorridos uns momentos, durante os quais o seu pensamento teria mergulhado no seu remoto passado. - Não existe em parte alguma do Mundo um lago tão bonito como aquele. Entre colinas verdejantes as suas águas mudam de cor. Fazem inveja ao arco-íris. Há ocasiões que parece que alguém nele entornou tinta cor-de-rosa, agora um cor-de-rosa muito vivo, logo muito pálido. Mostra-nos durante o dia todos os tons de azul, umas vezes um transparente e luminoso como um céu de Primavera, outras muito leve, quase branco, outras um azul escuro, quase negro. Mas também houve momentos em que as vi castanhas. O lilás aparece tão frequentemente como o azul; um lilás que, em certos dias, começa a tornar-se mais carregado até ficar roxo. E em certas noites de Verão, aquelas águas tranquilas, vistas do alto das colinas em redor, dão-nos a imagem perfeita do céu repleto de estrelas, um segundo céu, profundo, em que apetece mergulhar. Ai, das coisas que sinto mais saudades, é do lago da minha terra!

- Porque não vai até lá matar essas saudades? - perguntou Craigh.

- Para não sofrer uma desilusão - redarguiu MacGregor prontamente.

- Ainda lá tem família? - indagou Carlos.

- Talvez sim e talvez não - proferiu o escocês sombriamente. - Quando abandonei a aldeia, há vinte e sete anos, meus pais eram vivos e relativamente novos. Eu era o mais velho de três irmãos. Contava dezassete anos; os outros tinham catorze e oito, cada um. Mais tarde, quando já me encontrava no Pequeno Eden, tive notícia de que me nascera uma irmã, a quem puseram o nome de Catarina. Se for viva, deve ter talvez uns vinte e dois anos. É uma mulher, provavelmente já casada e com filhos.

- E não continuou a ter notícias da família? - inquiriu José, cheio de curiosidade.

- A última carta que recebi de meu pai - disse MacGregor - foi precisamente aquela em que ele me dava a novidade de que tinha uma irmã recém-nascida. Já anteriormente a nossa correspondência era muito espaçada. Decorriam meses e sem escrevermos um ao outro, cartas muito lacónicas. Ainda lhe enviei uma carta a pedir-lhe que desse a minha mãe os parabéns por ter uma menina, como ela tanto ambicionava. Não me respondeu. Ainda durante dois ou três anos escrevi a meu pai, a pedir notícias. Depois, escrevi a minha mãe a perguntar-lhe a razão de tão prolongado silêncio. Nunca mais soube nada deles. Foi como se um alçapão os engolisse.

- Mas, afinal, o senhor não chegou a contar-nos como encontrou o velho Tom e como veio parar precisamente a este sítio onde nos achamos agora.

- Eu saí da minha terra, quando contava dezassete anos - respondeu MacGregor. - Se me perguntar a razão por que abandonei o sossego da Escócia para me meter em trabalhos na América, talvez não lho saiba explicar. Eu estava naquela idade em que os rapazes, julgando-se mais sábios do que os pais, em regra, não cometem senão asneiras. Metera-se-me na cabeça que, se viesse para a América, arranjaria uma grande fortuna que, meia dúzia de anos decorridos, voltaria à terra, opulento como um nababo.

- A sua família era pobre? - indagou Jaime Craigh.

- Éramos modestos. Possuíamos uma pequena propriedade, um dos limites da qual era o lago. O que cultivávamos, chegava e sobrava para nos alimentarmos e para vender. Além disso, as águas do lago constituíam uma riqueza em peixe. Tínhamos um barquinho. Da nossa casa à margem do lago gastávamos nem dez minutos a pé e com vagar.

- Por isso, o senhor se fez tão bom pescador - observou Artur.

- Sim, posso dizer que me nasceram os dentes a pescar e a caçar também. A caça aos patos nas margens do Loch Nesse foi a minha granden diversão.

- Boa pontaria não lhe falta - lembrou José, aludindo ao caso da quadrilha de Big Dick, em que MacGregor, com um tiro, fizera saltar o revólver da mão de um bandido.

- Quando cheguei à América, já atirava como um "cow-boy" - disse MacGregor. - Não sou como muitos europeus que vieram para cá aprender.

- E afinal, como se deu o seu encontro com Tomás Everton? - indagou o xerife.

- Já lhes conto. Mas o melhor será irmos andando - respondeu o escocês. - Acho que os cavalos já pastaram e descansaram bastante.

Poucos minutos depois, os cinco homens retomavam o seu caminho, agora através da imensa pradaria, direitos à montanha que se avistava ao longe.

 

   COMO MACGREGOR FOI PARAR À AMÉRICA

Estavam tão interessados na história de MacGregor, que recomeçaram a viagem a passo. Ninguém conhecia a sua vida antes da sua chegada a Fuenton-City, ou melhor, ao Pequeno Eden. O próprio Artur não conhecia senão um ou outro pormenor. Seu pai é que fora seu confidente, mas era tão discreto que nem à família revelava o que poderia ser segredo alheio. Não era, realmente, segredo, mas todos respeitavam a reserva com que aquele homem revestia o seu passado.

MacGregor dir-se-ia estar nessa manhã em maré de confidências. Sentiria talvez uma necessidade imperiosa de comunicar com o seu semelhante, desnudando-lhe a sua alma. Não há ninguém que não tenha experimentado momentos assim na sua vida. Uma força muito íntima obriga-nos a narrar a outrem as particularidades, mesmo as mais recatadas da nossa vida. Há até quem procure desabafar de preferência com pessoas inteiramente desconhecidas. E quase poderíamos dizer que as quatro pessoas, que nessa manhã acompanhavam o escocês, mal o conheciam, devido à sua habitual reserva, embora lidassem com ele havia muito tempo.

Artur Everton, sobretudo, que passava dias inteiros a seu lado, bem podia afirmar que não o conhecia. Pelo menos, aquele MacGregor que estava agora a seu lado, dava-lhe a sensação de o ver pela primeira vez. Até a maneira de falar lhe parecia outra. Abandonara o tom sacudido e seco, que era uma das suas características, para se expressar de uma forma mais branda e dolent e como que embalado nas suas próprias recordações nostálgicas.

       Dados os primeiros passos através da pradaria, MacGregor retomou o fio à sua narrativa.

       - Meu pai, Heitor MacGregor, era e talvez ainda seja, se acaso não morreu, um homem ríspido - disse ele. - Em casa, todos lhe obedeciam como se ele fosse uma divindade terrível. Minha mãe e meus irmãos, na sua presença, mal se atreviam a falar e até tinham receio de levantar os olhos do chão. E eu procedia como os outros. Confesso que, durante a minha infância, só o som da sua voz já me fazia tremer como varas verdes. Se me ralhava, nem eu sabia onde esconder-me. Vivia num terror permanente.

       - Comparado com o seu - observou Artur -, o meu pai é um santo.

       - Acredite que encontrei no velho Tom um verdadeiro pai - corroborou MacGregor. E prosseguiu: - Mas Heitor (eu também sou Heitor, mas prefiro ser tratado pelo apelido de familia) era considerado o homem mais casmurro da nossa aldeia! Não havia outro mais valente do que ele. Nem mais teimoso. Nem mais honrado. Nem mais amigo da verdade ou daquilo que ele considerava a verdade...

- Parece que o filho lhe herdou todas essas qualidades - disse o xerife, meio risonho, meio sério.

       MacGregor não o ouviu ou simulou não ouvir, para continuar.

- Apesar do medo que ele me inspirava, admirava-o. Levei toda a minha infância a admirá-lo. Parecia-me que Heitor MacGregor era um homem superior a todos os homens. Mas, por volta dos meus dezasseis anos, a minha admiração por ele começou a decrescer. Era uma crise pela que passam quase todos os rapazes quando atingem aquela idade. Só mais tarde, quando ultrapassam os trinta, principiam a reconhecer a injustiça com que apreciaram os seus progenitores e se arrependem do mau juízo que fizeram deles. Não me apercebia então de que a severidade de meu pai visava ser-me o mais útil possível. Se me ralhava era para meu bem; se me sovava com umas correias, o que aconteceu algumas vezes, era para corrigir e evitar que repetisse algum erro. Mas eu não via nos seus ralhos senão rancor e nos seus castigos senão crueldade. Sentia-me revoltado, e foi então que se me meteu na cabeça emigrar para América, da qual ouvia mil maravilhas. Planeava

arranjar uma grande fortuna e voltar uns anos mais tarde, livre, independente e fazer gala da minha riqueza diante dos meus pais. Como estas coisas se metem na cabeça dos rapazes é que eu não sei!

- E que disse o seu pai à ideia de emigrar? - inquiriu José, que seguia a narrativa com muita impaciência.

- Durante algum tempo trazia essa ideia bem guardada no fundo do meu pensamento - proferiu o escocês. - Não ousava fitar meu pai, pois tinha a impressão de que os seus olhos viam tudo o que trazia dentro de mim. Contudo, o desejo de partir tornou-se uma obsessão tão forte no meu espírito que um dia, enchendo-me de coragem,       disse-lhe abruptamente: "Pai, eu quero ir para a América!". Lançou-me, primeiro, um olhar muito sério, que pareceu remexer-me as próprias entranhas. Depois, os seus lábios contorceram-se num sorriso de troça, sob o farto bigode desalinhado que lhe ocultava a boca quase por completo. "Com que então - replicou ele por fim - o menino não se sente bem em casa de seu pai? Já cresceu tanto que não cabe cá na aldeia?" Ainda tive coragem para declarar: "Quero viver independente, ganhar muito dinheiro. Na América fazem-se grandes fortunas"... Não tive tempo de continuar. Uma bofetada, que me arremessou a três metros de distânncia, pôs ponto final na discussão. "Toma lá a independência!" Corri para o meu quarto e atirei-me para cima da cama, a soluçar convulsivamente e, enraivecido que me sentia, mordi os punhos até fazer sangue.

- Livra! O seu "velho" não era para brincadeiras! - exclamou Carlos, meio risonho.

- "Velho", não! - emendou MacGregor. Ele nesse tempo andaria pelos seus trinta e oito. Ainda não teria quarenta anos, com certeza. Enquanto me contorcia de raiva impotente, ouvia-o comentar para minha mãe: "Ora vejam lá, o fedelho! Queria abalar por esse Mundo, sem conhecer nada da vida, para servir de capacho dos outros e estoirar de fome, longe da família". Hoje, compreendo claramente que a sua intenção era desviar-me de sofrimentos e trabalhos. Naquela altura afigurou-se-me um tirano intolerável e então outro projecto começou a formar-se na minha mente: fugir de casa.

- Também eu - confessou José - andei com a mania de ir para a Europa, quando tinha uns dezassete anos. Agora, já me passou.

- Que idade tens? - indagou o xerife.

- Vinte e três - respondeu o jovem.

- Tomaste juízo muito a tempo - comentou Craigh, sorrindo.

- Não há nada que se compare à terra onde nascemos e nos criámos - declarou MacGregor, em tom nostálgico. - Só depois de a abandonarmos e de andarmos aos trambolhões pelo Mundo é que geralmente o reconhecemos.

- Parece que você não se tem dado bem no Pequeno Eden - observou Artur, a dissimular um certo despeito.

- Engana-se - redarguiu MacGregor. - Tenho sido muito feliz no Pequeno Eden. Encontrei na família Everton uma segunda família. No entanto, a nostalgia, as saudades da minha Escócia ainda me enchem muitas vezes de tristeza. Que querem? É um sentimento mais forte do que a vontade humana. Mas, naquele tempo, a ânsia de evasão foi uma espécie de doença que eu supunha só poder curar fugindo para a América.

- E como fugiu? - perguntou Carlos.

- Comecei a juntar dinheiro à socapa - explicou o escocês. - Ao que ganhava no campo, do que o meu pai, afinal bastante generoso, me exigia apenas uma pequena parte, ia juntando o produto de boas pescarias que fazia no lago e, por vezes, também vendia caça. Ao fim de um ano, julgava eu ter acumulado o bastante para pagar a minha viagem até este lado do Atlântico. E uma noite, parti para Glasgow, de onde sabia que seguiam frequentemente navios para Nova Iorque.

MacGregor calou-se, como se mão invisível lhe tapasse subitamente a boca. Como o seu silêncio se prolongasse em demasia, José, o mais impaciente, incitou-o:

- E depois? Que sucedeu depois?

- Depois? - repetiu MacGregor, encolhendo os ombros. - Depois, o resto da história não tem interesse senão na medida em que ela significa o merecido castigo da minha rebeldia contra o meu pai e do muito que devo ter feito sofrer minha mãe com o meu desaparecimento. Ele chegou a supor que eu me teria afogado no lago. Meu pai fez pesquisas desesperadas no fundo do Loch Ness. Correu o boato de que fora devorado pelo monstro. Sim, porque muita gente acredita que sob aquelas águas vive um monstro temível. E só uma carta que mandei à minha mãe, muitos meses depois de ter chegado à América, a convenceu de que não me encontrava sepultado sob as águas ou no estômago do lendário monstro aquático. Fiz sofrer muito a minha pobre mãe.

Tornou a calar-se, pensativo e triste.

- E como fugiu? - indagou Craigh. - Você ainda não nos contou essa aventura.

- A aventura nada tem de extraordinário - declarou o interpelado. - Deve ser igual à de tantos outros que vieram, como eu, atrás da miragem da América do Norte. Quando cheguei a Glasgow, não encontrei logo ali um navio pronto a satisfazer os meus desejos, tive de esperar uns dias, durante os quais as minhas economias se iam escoando só na comida e na dormida. Por fim, informaram-me de que estava um lugre prestes a largar para portos americanos. Esperava-me, porém, uma desilusão: o dinheiro que possuía já não me chegava para pagar a passagem. Aguardei mais uns dias na esperança de que surgisse outro que me trouxesse por uma quantia mais modesta. Com efeito, assim sucedeu; mas como fora gastando durante os dias de espera, vi-me novamente sem fundos bastantes para a passagem. Consegui, porém, embarcar como tripulante. Mas a disciplina a bordo era muito mais severa do que a de meu pai, da qual eu me queixava tanto. O contramestre era um carrasco. Resolveu embirrar comigo e agrediu-me. Revoltei-me e esmurrei-lhe o nariz. Para me punirem, amarraram-me a um mastro e aplicaram-me uma dúzia de vergastadas. Fiquei com as costas em sangue. Ainda cá tenho as cicatrizes para não me esquecer. Ai, como eram leves os castigos do meu pai! Na América esperavam-me novos sofrimentos. Tive de lançar mão a tudo, para sobreviver. Até abri estradas nas Montanhas Rochosas, de picareta em punho, e ainda me via obrigado a defender-me dos índios, para que eles não me escalpassem, como sucedera a alguns companheiros de martírio, que lhes caíram nas garras. Depois de andar uns dois anos aos baldões da sorte, vim parar ao Oeste. Trabalhei num Rancho, nas proximidades de Los Angeles. O patrão era tão feroz que uma vez, irado contra um "cow-boy", pegou num machado e fendeu-lhe o crânio mesmo à minha frente. Antes de que me sucedesse o mesmo, fugi e viim parar a São Francisco. Quando já principiava a passar fome, por falta de dinheiro, travei conhecimento com Tomás Everton, num "bar" onde entrara a perguntar se sabiam de alguma tarefa para dar a um homem que não queria senão trabalhar. O seu pai - acrescentou o escocês, dirigindo-se a Artur - ouviu-me. Interrogou-me. Simpatizei logo com ele. Trouxe-me para o Pequeno Eden. Foi nessa viagem, que fizemos ambos a cavalo desde São Francisco, que estivemos no local onde repousámos há pouco. Nunca mais esquecerei aquelas árvores amigas, nem aquela sombra que se estendia sobre nós, nem a longa conversa que ali tivemos, durante a qual lhe contei a minha vida.

MacGregor calou-se e olhou em redor.

- Com a conversa atrasámos a andadura dos animais - observou ele.

- Mas já vamos recuperar o atraso - disse Jaime Craigh.

E, esporeando o seu cavalo, lançou-se a galope, seguido dos companheiros, na direcção da montanha.

 

       JAIME CRAIGH PROCEDE ÀS PRIMEIRAS INVESTIGAÇÕES

Só abrandaram a velocidade em que se tinham lançado, quando atingiram os primeiros declives do sopé da montanha. As ladeiras iam-se tornando mais íngremes, à medida que avançavam, subindo sempre.

Ao chegarem a uma lomba mais arredondada, flectiram à direita, aproximando-se obliquamente de uma parte da montanha, que constituía uma autêntica parede erguida a pique, contra a qual dir-se-ia não tardarem em esbarrar, sem possibilidades de seguirem mais além.

Já mesmo junto do imenso paredão, levantaram instintivamente o olhar e viram o rebordo do monte recortado no azul luminoso do céu. Tudo era aparentemente ermo, em volta. Agora, voltando a cabeça para o caminho percorrido, viam a extensa pradaria alongar-se quase indefenidamente, como um tapete verde e interminável. As árvores que lhes tinham servido de abrigo perdiam-se na névoa da distância e já nem se conseguiam avistar.

- Como tudo isto é só, isolado! - exclamou José. - Não se enxerga um único ser humano!

- Realmente, não vemos ninguém - concordou o xerife. - Mas isso não quer dizer que o território seja completamente desabitado.

- E onde se metem os habitantes? - estranhou José, voltando a passear a vista pelo imenso panorama.

Craigh ergueu o dedo indicador e respondeu:

- Lá em cima! O alto da montanha é habitado por índios. Tenho a certeza de que neste momento alguns pares de olhos, bem dissimulados no topo deste paredão, estão seguindo atentamente a nossa marcha.

José voltou a erguer o olhar.

- Se um deles quisesse, atirava-se lá de cima e, com um pequeno salto, esmagava-nos - disse ele, gracejando.

- Só um louco tentaria esmagar-nos por esse processo - replicou o xerife. - Mas conta-se que nos tempos em que os peles-vermelhas andavam em guerra com os brancos, despenhavam enormes pedregulhos do topo, chegando a matar simultaneamente o cavaleiro e o cavalo.

- Era uma maneira de pouparem munições - comentou Carlos, o outro auxiliar, que contava apenas mais dois anos do que o José.

- Eram estupendos atiradores de flecha - explicou Jaime Craigh. - Acertavam a grandes distâncias. Mais tarde aprenderam a manejar as espingardas e a sua pontaria ainda hoje rivaliza com a dos "rostos pálidos", como eles chamam aos brancos.

- E lá de cima eram capazes de acertar com uma flecha numa pessoa que passasse cá em baixo? - duvidou José.

- Que te respondam os brancos que morreram por esse processo, se puderem - foi a resposta irónica do xerife.

Não tardaram em descobrir o desfiladeiro, que não era visível da planície. Tratava-se de uma fenda aberta na muralha. Corredor sinuoso e longo, era como se tivessem aberto um caminho para evitar ao viajante, que quisesse galgar a serra, o trabalho de a subir penosamente, trepando pelas paredes a pique, ou então circundando-a toda pela estrada por onde transitam os carroções pesados, ou mesmo os cavaleiros prudentes, que temem uma cilada naquela garganta sombria e erma. O Passo das Vacas, como lhe chamavam, não media mais de cinco metros na sua largura máxima e, em certos pontos, estreitando, chegava a uns dois metros apenas

Retomaram a fila indiana, com o xerife na vanguarda, quando se esgueiraram pelo sombrio corredor. Respirava-se uma atmosfera húmida e densa de aromas bravios irradiados por ervas altas, que se desenvolviam naquele ambiente penumbroso e fresco, onde o sol parecia ter medo de penetrar. Muito atravancado de calhaus de vários tamanho o avanço tornava-se, por vezes, moroso, os animais desviavam-se instintivamente dos obstáculos.

Havia pedregulhos enormes, que emergiam do meio daquela vegetação luxuriante e obrigavam os cavaleiros a passar por nesgas ainda mais estreitas. Apesar de tudo, os criadores de gado, quando levavam os seus rebanhos para os mercados mais

ricos da costa oeste, utilizavam sempre aquele caminho que, embora percorrido devagar, assim mesmo lhes poupava tempo e a longa caminhada em torno da serra. Por isso lhe chamavam o Passa das Vacas, nome que certamente lhe fora posto por algum colono espanhol.

       - Algumas destas pedras grandes foram arrmessadas pelos peles-vermelhas, quando por aqui passavam esquadrões do exército - informou Jaime Craigh. - Podemos fazer uma ideia dos estragos que faziam, pois seria muito difícil fugirem dentro destas paredes tão estreitas.

- Este desfiladeiro é uma autêntica ratoeira - disse Artur. - Meu pai contou-me que só de uma vez um destes blocos, impelido lá de cima, matou cinco soldados.

- Ainda bem que estamos em paz - disse Carlos -, de contrário, corríamos agora o risco de ficar aqui todos debaixo de um calhau destes, nem sequer se salvava um para contar como as coisas sucederam.

- Os índios que vivem agora na serra - proferiu o xerife - constituem os restos de uma grande tribo, que a longa guerra que sustentou com os brancos foi reduzindo rapidamente. Não devem poder reunir sequer uma centena de combatentes. O seu chefe actual, o Águia Negra, já não é novo e tem-se mostrado muito prudente. Ele sabe que, se rompesse hostilidades com os brancos, isso representaria a extinção total da sua gente. Mostra-se sensato e sente-se feliz pela relativa liberdade de que desfruta na montanha. Aliás, aquelas terras são relativamente férteis e as suas culturas bastam à sua alimentação. E, além disso, eles têm aprendido alguma coisa com os brancos em assuntos agrícolas, o que lhes trouxe um certo progresso. Águia Negra é o primeiro a reconhecê-lo, motivo por que não nos recusa a sua colaboração, sempre que lha pedimos.

Conversando despreocupadamente, percorreram todo o desfiladeiro, que terminava no lado oeste da montanha. Saíram da penumbra para a claridade do dia. E começaram então a descer o declive suave da vertente no fim do qual se via a estrada, que Artur e MacGregor vinham percorrendo, quando avistaram ao longe a coluna de fumo que os intrigou.

Em contraste com o território verde que tinham cruzado, antes de atingirem o desfiladeiro, as terras que se enxergavam agora eram amarelentas e áridas, aridez limitada ao longe pela mancha negra da mata - que, vista daquela distância, se assemelhava a um traço escuro a barrar o horizonte.

- Agora resta-nos seguir a estrada e, num galope, estaremos no local em que encontrámos as ruínas incendiadas - disse Artur Everton.

Desceram rapidamente o resto da encosta e não tardaram a pisar o caminho principal. Galoparam durantte alguns minutos até que MacGregor bradou

- Alto!

Os cinco cavaleiros detiveram-se bruscamente.

       - Parece-me que avançámos um pouco mais do que o necessário - disse Artur, deitando um olhar hesitante.

- Não, não ultrapassámos - opôs MacGregor. - Estamos exactamente no sítio em que cortámos direitos ao fumo. Se não, sigam-me e verão que não me engano.

Meteram a trote pelo terreno, traçando uma linha perpendicular à estrada que abandonaram à retaguarda. Após uns minutos de trote, descobriram a pequena horta que ficava numa depressão do deserto.

- Não sei como puderam cultivar alguma coisa nesta terra seca como palha - admirou-se Jaime Craigh.

- Vê-se que devia ter dado muito trabalho ao cultivador - observou Carlos. - Onde iria ele buscar água? Sim, porque tudo isto é de rega.

Penetraram no recinto que uma tosca sebe vedava e aproximaram-se cheios de curiosidade do lugar onde se viam os restos calcinados da habitação de madeira. Ainda pairava na atmosfera um cheiro acre a incêndio. O fogo estava completamente extinto.

O xerife saltou para o chão e começou a andar vagarosamente em torno dos destroços carbonizados. Seus olhos observavam atentamente o solo. Os companheiros quedaram-se a vê-lo, cheios de curiosidade. Ele dir-se-ia procurar cuidadosamente algum objecto perdido. De vez em quando, detinha-se e passava a vista em sua volta. O que restava da casa incendiada pouco interesse parecia merecer-lhe. Depois de dar uma volta completa ao local, veio juntar-se aos companheiros, a resmungar e sempre com os olhos pousados no solo.

De súbito, ergueu a cabeça e perguntou:

- Onde estava a criança?

- Ali! - respondeu MacGregor, estendendo o braço para um dos lados da horta.

Craigh cruzou o recinto a passo largo. O casinhoto dissimulava-se por detrás de uns arbustos. A pequena porta entreaberta revelava um leito de palha, que bem poderia ter servido a um animal, talvez a um cão, como Artur supusera. Após um rápido exame, o xerife voltou para junto dos companheiros. Vinha vagarosamente, examinando o terreno como se procurasse uma pista. Chegando junto deles, pronunciou:

- Este terreno é muito solto, quase areia, e as pegadas não ficam nítidas. No entanto, julgo que esteve uma mulher junto da casota. Também há pegadas de homem, que devem ser as que vocês deixaram há três dias.

- E que se deduz daí? - indagou Artur.

- Que deve ter sido uma mulher quem lá meteu a criança. E isso teria sido horas antes de vocês a a descobrirem. Quer dizer, o incêndio seria provocado ou pouco antes ou pouco depois de terem guardado ou ocultado, talvez, o menino na casota.

- Acha que teria havido crime? - perguntou Everton.

- Se não houve crime, houve com certéza uma tragédia - disse Craigh pensativo. - É o que se depreende destas ruínas. Mas, por mais que nos esforcemos por adivinhar os factos, o nosso pensamento esbarra sempre contra uma muralha inabalável de mistério.

- O senhor andou em volta da casa incendiada

- disse MacGregor. - Não descobriu nenhu indício?

- Sim, descobri inúmeras pegadas e marcas de ferraduras. Andaram aqui homens, tanto a pé como a cavalo, e noto que um rasto bem marcad indubitavelmente recente, se dirige para os lados da Floresta dos Desencaminhados.

- Isso demonstra que os incendiários, depois de puxarem fogo à barraca, fugiram para a floresta - concluíu, um pouco precipitadamente, contra os seus hábitos, o escocês.

- É o que também me parece - concordou o xerife. - Vamos ver se descubro alguma coisa - acrescentou ele. - Artur e Carlos que me acompanhem, e você, MacGregor, e José rebusquem entre essas cinzas e destroços.

Enquanto falava, Craigh voltava a montar o seu cavalo. Saíu com os companheiros da paliçada que contornaram depois, descobrindo certamente o rasto, começaram a afastar-se lentamente para os lados da floresta que se encontrava relativamente perto.

MacGregor e Carlos, apeando-se e munindo-se de uns paus, ficaram a revolver minuciosamente as ruínas da barraca incendiada.

 

           OS ÍNDIOS FAZEM A SUA APARIÇÃO

Quando o xerife e os dois companheiros regressaram a galope, ao contrário da ida que fora muito lenta, já o escocês e Carlos tinham feito as suas pesquisas, que consideraram infrutíferas.

A expressão de Craigh não era mais optimista agora do que à partida.

- Sempre o mistério impenetrável! - exclamou ele, ao entrar na horta.

- Encontraram alguma coisa? - indagou MacGregor.

- Sim, encontrámos a floresta, o que não constituiu nenhuma surpresa. - E passando um olhar em redor, acrescentou: - O melhor é acomodarmo-nos por aqui e comermos alguma coisa. Estou cheio de fome.

Apearam-se, abriram os seus sacos de mantimentos e cada um tratou de se atirar à sua comida, com apetite devorador.

- Maldito sítio este, que nem sequer tem uma sombra para nos abrigarmos! - praguejou o xerife visivelmente mal humorado.

Mesmo debaixo de sol, iam fazendo as honras às iguarias. MacGregor pensou que afinal não tinha sido má ideia deixar Maria trocar o seu farnel pelo que ela lhe tinha preparado, ao cravar os dentes numa excelente perna de galinha. Estava magnífica. O mesmo disse Artur da sua ao morder aquela carne suculenta.

Depois de mastigar durante algum tempo em silêncio, Craigh perguntou:

- Vocês encontraram por aqui alguma coisa de importante?

- Nada de importante - respondeu Carlos com a boca cheia.

- Contudo, encontrámos alguma coisa - atalhou MacGregor -, que pode ser importante ou pode não valer um tostão furado.

- Ah, sim? - pronunciou o xerife, fixando o escocês. - Que encontraram então?

MacGregor sacou do bolso um pedaço de trapo, meio queimado, muito sujo e chamuscado e passou-o para as mãos de Craigh.

- Que é isto? - perguntou este, dando voltas ao farrapo. - Parece um lenço.

- É mesmo um lenço - corroborou o escocês.

- E de bom linho, como o que se tece na minha terra. Escapou, por um triz, de ser inteiramente devorado pelo fogo. E já reparou? Tem uma letra bordada.

- Exactamente - disse o xerife. - É a letra C bordada a linha azul.

- Quem seria a dona deste lenço? - pronunciou Artur. - Talvez a mãe do bebé, não acham? Podemos concluir, portanto, que tinha um nome que principiava pela letra C.

- Não tiremos conclusões apressadas - atalhou Jaime Craigh. - Quem nos garante que a dona deste lenço era a mãe do menino?

- Há probabilidades. - aventurou José.

- Mas não há a certeza - volveu o xerife. - De uma coisa tenho eu a certeza: esteve aqui recentemente uma mulher. As pegadas não me enganaram. O achado deste lenço parece agora confirmá-lo, se acaso pertence à mesma mulher, o que se afigura muito possível.

- E porque não há-de ser essa a mãe da criança? - insistiu Artur.

- Há nove probabilidades contra uma de o ser - admitiu Craigh, que parecia agora um poucon mais animado. - Resta saber onde estará ela escondida.

Volveu o olhar para o lado da floresta.

- Tenho um pressentimento de que é ali dentro que ela está! - disse Artur, apontando o arvoredo.

- É disso que eu duvido - contrariou Craigh.

- Admito que a floresta tivesse servido de abrigo momentâneo aos incendiários. Mas eles não iam instalar-se tão perto do local do crime. A estas horas onde estarão eles?

- E o rasto não desaparece dentro da floresta? - inquiriu MacGregor.

- Sim, é para lá que ele se dirige e lá dentro que desaparece - confirmou o seu interlocutor.

- E se déssemos uma batida pela floresta? - alvitrou o escocês.

- Não creio que semelhante batida desse qualquer resultado - declarou ele. - Trata-se de uma autêntica floresta virgem. Seria impossível andar lá dentro com os nossos cavalos. Não há caminhos. Só poderiamos avançar a corte de machado. Isso custar-nos-ia, a nós cinco dias de trabalho para penetrarmos alguns metros. Além do mais, equivaleria a metermo-nos incensatamente numa autêntica armadilha. Inimigos emboscados podiam abater-nos, um a um, sem termos qualquer probabilidade de defesa, sem sabermos sequer quem nos visava e abatia. Não, não, todas as nossas pesquisas se detêm na orla daquela floresta como numa barreira impenetrável.

- Creio que fizemos o possível para desvendar o passado do menino - disse Artur. - Ficamos com a nossa consciência sossegada, não acham?

- Você está ansioso por arrumar o assunto e poder perfilhar aquele que, para nós, se chama Eduardo, não será assim?

- Eu só queria evitar qualquer complicação futura - confessou Everton.

- Este lencinho é que me intriga um pouco - declarou MacGregor, agitando o farrapo de linho, que o xerife acabava de lhe devolver.

- Intriga-nos tanto, como tudo o mais - observou Carlos.

- Sim, tudo é enigmático em nossa volta - concordou Craigh. - Este incêndio, quem o ateou? Esta barraca, cuja existência eu ignorava, quem a construiu? Esta miserável horta, quem a lavrou e plantou? Esse lenço de linho, a quem pertencia? Estas pegadas, quem as deixou aqui? E o menino quem o meteu na casota, e com q intenção?

- Quer dizer que foi inútil a nossa vinda - disse José. - Vamos regressar tão adiantados, tão esclarecidos, como viemos.

- Não, não é bem assim! - contrariou Artur. - Regressamos com a consciência de ter feitoque nos foi possível para identificar o menino. Agora, temos a liberdade de proceder como entendermos.

- E eu entendo que o melhor é voltarmos para Fuenton-City - disse Jaime Craigh, começando a arrumar a sua bagagem. - Ainda chegamos a casa com dia.

- Absolutamente de acordo - apoiou Everton. - Já cumprimos o nosso dever. Resta-agora tratar em Fuenton-City do baptizado do menino, como meu filho e de Helena.

Quando acabava de proferir estas palavras, ouviu-se algures um tropel de cavalos. Os cinco homens ergueram-se de um salto e quedaram-se a passar em redor um olhar preocupado.

- Índios! - exclamou José, de súbito, apontando uma elevação do terreno, onde acabavam de assomar três peles-vermelhas montados.

O jovem auxiliar já lançava mão da sua espingarda. O xerife, porém, ordenou-lhe, enérgico, a meia voz:

- Quieto, José! Nada de mostrar nem receio nem hostilidade.

- São só três... - murmurou Carlos.

- Sim, são só três os que vemos daqui, mas podem estar mais alguns a aproximar-se - disse Jaime Craigh, em voz baixa. E acrescentou: - Esperem! Aquele é o chefe Águia Negra...

A ligeira elevação de terreno onde se encontrava não estava a mais de cinquenta metros. Um dos índios distinguia-se dos outros dois que o ladeavam por maior exuberância de penas que lhe formavam um diadema régio. Era um chefe, não havia dúvidas. Todos três traziam carabina a tiracolo. Permaneciam imóveis como estátuas. Deviam observar o que se passava na horta.

- Com mil bombas! - exclamou de chofre o xerife. - O Águia Negra talvez possa dar-nos informações preciosas.

       E destacando-se do grupo e avançando até à paliçada, bradou:

      - Sê bem-vindo, Águia Negra...

       O chefe índio agitou o braço numa saudação.

- Aproxima-te, bom amigo! - gritou o xerife, chamando-o com um gesto.

O índio deve ter trocado quaisquer palavras com os companheiros; em seguida avançaram os três até à paliçada, que os seus cavalos transpuseram de um salto, evitando assim o trabalho de procurarem a abertura de entrada.

Vieram deter-se junto dos brancos que arrumavam rapidamente a sua bagagem e montavam os seus cavalos.

- Sabe Deus quanto prazer sinto em encontrar-te, Águia Negra! - disse Craigh, estendendo a mão ao chefe pele-vermelha.

- O Grande Espírito te proteja! - pronunciou o recém-chegado, correspondendo ao cumprimento do branco. E acrescentou: - De longe não te reconheci; de contrário, teria vindo logo dar a saudação ao "rosto pálido" bom amigo com quem já fumei o cachimbo da paz.

- O grande Águia Negra e os seus companheiros vão comer connosco - disse Craigh. - Tínhamos acabado de jantar, mas ainda há muita comida que chega para os amigos.

O pele-vermelha interrompeu-o, com um gesto quase imperioso.

- Também comemos há poucos instantes. Agradeço-te a boa intenção - pronunciou ele.

Águia Negra era homem, certamente, de mais de cinquenta anos, pela aparência. Constituía um belo exemplar da sua raça: tronco robusto, ornada de tatuagens brancas ou õcres, braços musculosos ostentando braceletes, rosto seco, comprido, enérgico, irradiando austeridade, e um grande diadema de penas, que se alongava pelo dorso. A tiracolo, trazia a sua carabina e à cinta a tão falada machadinha. Os companheiros que o ladeavam eram jovens ainda, mas a expressão do seu rosto não era menos severa que a do chefe, e vinham armados como este.

- Não conhecias os meus sobrinhos? - perguntou ele, diringindo-se a Craigh. - São os que aqui estão.

O xerife cumprimentou-os cordialmente, ao mesmo tempo que dizia:

- Não tinhas um filho?

- Tinha e tenho - respondeu o chefe índio.

- Ficou na aldeia. É bom que ele se vá habituando a governar a sua gente, na minha ausência, até tomar o meu lugar, depois da minha morte.

- Deus permita que ainda falte muito tempo! - exclamou Craigh.

- Depende da vontade do Grande Espírito - murmurou o pele-vermelha, muito grave.

- Creio que foi o Grande Espírito quem te enviou à nossa presença - pronunciou o xerife, com não menor gravidade. - Provavelmente, tu, Águia Negra, és a pessoa que melhor nos poderá esclarecer acerca do mistério que neste momento envolve este local.

- Não compreendo bem o que o chefe "rosto pálido" quer dizer. - pronunciou o pele-vermelha.

- Primeiro - tentou Craigh esclarecer - eu ignorava que existia aqui esta horta e que junto dela se construíra uma barraca, cabana ou coisa semelhante, pois não cheguei a vê-la antes do incêndio. Tu, Águia Negra, sabes alguma coisa a este respeito?

- Sim, Águia Negra sabe muitas coisas - foi a resposta do índio.

O xerife e os companheiros trocaram um olhar cheio de surpresa e curiosidade.

 

       ÁGUIA NEGRA DÁ INFORMAÇÕES PRECIOSAS

Artur Everton mal pôde dissimular um movimento de contrariedade. Quando julgava o problema inteiramente resolvido em favor das suas boas intenções, surgia de súbito aquele índio a declarar que sabia muitas coisas a respeito daquele mistério, que já lhe parecia impossível desvendar.

Jaime Craigh, pelo contrário, sentiu-se animado de uma esperança que já tinha esmorecido no seu espírito. Ele era um investigadór apaixonado. Gostava de fazer pesquisas, deduções, seguir pistas, conjugar elementos aparentemente díspares, até atingir uma verdade oculta. Os índios ofereciam-lhe de repente uma nova pista, abriam um horizonte mais largo às suas investigações. Intimamente, já se censurava de não ter principiado por procurar o Águia Negra. Era ele quem tinha mais probabilidades de levantar, pelo menos, uma ponta do véu da verdade acerca da existência daquele menino que pretendiam identificar.

- Águia Negra - disse ele - tencionava ir visitar-te à tua aldeia. Apareceste aqui e poupaste-me esse trabalho. Ando desconfiado de que se está organizar uma nova quadrilha de brancos para nos meter em sarilhos, como a de Big Dick, lembras-te?

- Big Dick, homem mau para homens pelesn-vermelhas e mau para "rostos pálidos". Big Dick não prestava para outra coisa senão para morrer - pronunciou o chefe índio.

- Tens razão, amigo - aplaudiu-o Craigh. - Pois ando desconfiado de que se está a prepararna sombra uma quadrilha semelhante à de Big Dick. Não notaste alguma coisa de estranho por estas paragens nestes últimos tempos?

- Meus homens notaram e eu próprio vi com meus olhos - respondeu o índio. - Mas a minha autoridade não passa da montanha. A planície é terra onde eu não mando. E nos homens em que tu mandas tão-pouco mando eu.

A última frase do chefe índio intrigou um pouco o xerife.

- Meu filho viu teus homens construir a casa com madeira que foram buscar à orla da Floresta dos Desencaminhados - declarou Águia Negra.

Craigh ficou ainda mais confuso.

- Os meus homens? Quais homens? Foi a vez de o chefe pele-vermelha ficar surpreendido.

- Tu é que os conheces; eu não - disse ele. Não havia dúvida de que estavam ambos desentendidos. MacGregor desviando o chapéu para coçar a cabeça, como era habitual nele quando tinha algum problema a resolver, interveio, dizendo:

- Julgo que estão ambos desentendidos. Parece-me que não estão a falar do mesmo.

- Há, de facto, um mal-entendido - concordou o xerife. - Escuta, amigo, não sei a que homens te referes, quando falas dos meus homens.

- Aqueles que vieram fazer a barraca de madeira - respondeu o índio, sem hesitação.

- Mas eu não mandei fazer barraca nenhuma - exclamou Jaime Craigh, já a pressentir um autêntico ludíbrio. - Quem te disse que fui eu quem os mandou?

- Eles! - pronunciou sobriamente o pele-vermelha.

- Mas quais eles?

- Os teus homens, os "rostos pálidos" que vi com os meus olhos a trabalharem na barraca.

- E quem te disse que eles eram os meus homens?

- Eles! - repetiu laconicamente o índio.

- Pois, se to disseram, mentiram! - proferiu o xerife, a retorcer nervosamente o bigode ruivo, que parecia eriçar-se de cada vez que ele se enfurecia.

- Convém não perder a calma - aconselhou MacGregor -, para ver se conseguimos tirar a limpo. - Águia Negra - acrescentou ele, dirigindo-se ao pele-vermelha -, sabes quem eu sou, não é verdade?

- És o "rosto pálido" que venceu Big Dick -   dissse o índio. - Vi-te algumas vezes em Fuenton-city. Toda a gente te olhava com admiração. Terei muita honra em fumar contigo o cachimbo da paz.

- Também eu - replicou o escocês. - Será a mim uma grande honra ser amigo de um chefe tão prestigioso como tu. Mas, agora, temos urgência em saber tudo o que se refere aos homens que construíram a barraca. Depois, mais descansados, beberemos um trago de "whisky" e fumaremos o cachimbo da paz.

- Pergunta o que quiseres, grande "rosto pálido" - pediu o pele-vermelha.

- Serias capaz de reconhecer os homens que construíram a barraca? - indagou MacGregor.

- Sim, nunca mais os esquecerei.

- E como eram eles? - perguntou Craigh.

- Eram "rostos pálidos", - respondeu o índio. - Nunca os tinha visto antes e depois só os tornei a ver uma única vez.

- Uma única vez? - estranhou o xerife.

- A primeira vez. - Águia Negra deteve-se para observar: - O melhor será contar tudo de princípio, se não não nos entendemos.

- Também me parece - concordou Craigh. E, estendendo-lhe o seu frasco de "whisky", acrescentou: - Molha a garganta para falares com mais facilidade.

Águia Negra sorveu um grande gole, sem cerimónia, e, enquanto o xerife sorvia outro e limpava vagarosamente os bigodes às costas da mão, como era seu hábito, principiou:

- Como este lugar, aqui, fica mais baixo do que o resto da planície deserta, não se avista lá de cima da nossa aldeia. Nunca adivinharíamos o que se passava se não fosse um acaso. Uma tarde, vindo meu filho com dois homens de regresso à montanha, ao cruzarem esta região deserta, ouviram marteladas, como se alguém estivesse a pregar pregos em madeira. Meu filho achou o facto muito estranho. Guiado pelo ruído das marteladas, não lhe foi difícil descobrir alguma coisa que muito o surpreendeu. Ao atingirem aquela iminência onde nos viram há pouco, meu filho e os companheiros descobriram dois homens a trabalhar avidamente na construção de uma barraca. Pouco faltava para a concluírem. De entretidos que estavam nem sequer deram pela presença de pessoas estr nhas. A paliçada em volta já estava feita. Parece que foi mesmo a primeira coisa que eles arranjaram.

- E que disseram eles a teu filho? - inquiriu Craigh.

- Nada.

- Como assim?

- Nada, porque meu filho nada lhes perguntou. Entendeu que não era da competência dele. Silenciosamente afastaram-se. Quando chegou à aldeia, o meu rapaz deu-me conta do seu achado. Não atribui ao caso grande importância. Lembrei-me de que fosse alguma caravana que ali viesse acampar temporariamente. Só o que me parecia estranho era escolherem um terreno tão seco e não preferirem a orla da floresta. Mas talvez receassem como toda a gente, os perigos da Floresta dos Desencaminhados, onde os espíritos ruins procuram abrigo e são ainda mais perigosos do que as feras. Durante uns dias, fiquei a pensar naquilo até que uma tarde, precisamente com estes dois homens, desci até aqui, disposto a averiguar de que se tratava. Ao chegar ao cimo daquele mesmo outeiro, onde me viram há pouco, detive-me a observar. A barraca já estava pronta. Entregavam-se já a outra tarefa: abriam aquele poço que ali vêem. Enquanto um escavava o solo o outro ia espalhando a terra em redor. Eu duvidava de que encontrassem água com facilidade. A coisa despertou-me interesse e fui-me aproximando lentamente da paliçada, seguido dos meus dois companheiros. Pressentindo-nos, interromperam o trabalho. O buraco já teria uns três ou quatro metros de profundidade. O homem que o perfurava, içou-se por uma corda presa por uma estaca até surgir à superfície. "Bons-dias", disse eu, "o Grande Espírito seja vosso amigo". Os dois homens avançaram até junto da paliçada, e disseram: "Bom dia". Para meter conversa, perguntei-lhes se tinham a certeza de encontrar água numa terra tão árida. Não me perceberam bem. Tive de repetir a pergunta, ao mesmo tempo que por sinais lhes dei a entender as minhas dúvidas acerca da probabilidade de se encontrar água neste lugar. Lá me entenderam, por fim. Riram-se e responderam qualquer coisa que eu também não compreendi. Mas, pelos seus gestos, depreendi que tinham a certeza de que em breve encontrariam o desejado líquido.

-Mas, vocês tinham dificuldade em compreendê-los porquê? - indagou o xerife. - Tu falas bem inglês.

- Sim, eu falo inglês; todos os "rostos pálidos" me percebem - respondeu Águia Negra. - Mas aqueles falavam muito mal inglês.

- Não deviam ser britânicos nem americanos - observou MacGregor.

- Disseram-te a que nacionalidade pertenciam?

- Eles não disseram e eu não perguntei - declarou o índio.

- Seriam chineses ou japoneses? - perguntou o xerife, a retorcer o farto bigode ruivo, num ar preocupado.

- Não, não! - exclamou o pele-vermelha. Eu conheço bem os homens dessa raça. Eram "rostos-pálidos", mas não louros.

- Talvez fossem italianos - alvitrou Craigh.

- Tu já viste algum italiano?

- Sim, já vi dois ou três em Fuenton-City. Parecem espanhóis, não é verdade?

- Parecem-se muito - asseverou MacGregor.

- Pois talvez fossem italianos - admitiu o índio. - Mas eles não me disseram nada a esse respeito. Perguntei-lhes então para que era aquela barraca e a quem pertencia. Responderam-me exactamente por estas palavras: "Xerife mandar nós construir".

- Mentira! - exclamou Craigh. - Eu nem sequer os conheço. Mas que grande embrulhada estou a ver em tudo isto! Escuta, Águia Negra, eles tinham cavalos?

- Sim, tinham três cavalos.

- Mas eram só dois homens - observou José.

- Um dos animais seria para carregar a bagagem - deduziu o xerife. E acrescentou: - Mas, para que estiveram eles com tanto trabalho a construir a barraca, para a incendiarem depois? Foram eles que lhe puxaram fogo?

- Não sei - respondeu o chefe pele-vermelha.

- Mas eu vi-os partir para o Oeste há mais de uma semana.

- Uma semana? Não estarás enganado? A barraca só ardeu há três dias. Espera! Há quanto tempo viste tu esses homens aqui, a abrir o poço?

Águia Negra ergueu ó olhar, concentrando-se a fazer cálculos.

- Há umas duas ou três luas - declarou por fim.

- Três luas Três meses, portanto. - pronunciou Jaime Craigh. - Agora, compreendo a existência destes restos de horta, que principiaram a cultivar e que abandonaram há uma semana, pouco mais ou menos. Está tudo a secar por falta de rega. Quer dizer: esses homens, após todo este trabalho, abandonaram o local por qualquer motivo.

MacGregor interpelou o índio.

- Tens a certeza de que não havia senão esses dois homens?

- Só vi dois homens. Meu filho só viu dois homens - foi a resposta.

O escocês insistiu:

- Não estava uma mulher com eles?

- Não vi mulher.

- Nem uma criança, muito pequena, de poucos meses apenas?

- Oh, não! Nada que se parecesse com mulher ou com criança.

- É que o terceiro cavalo podia ser para a mulher e a criança - admitiu MacGregor.

- O terceiro cavalo ia carregado de bagagem, quando eles abalaram para o Poente - afirmou o índio com segurança.

- E quem lançou fogo à barraca? - indagou o xerife.

Águia Negra encolheu os ombros.

- Não viste por aqui mais ninguém depois dos outros terem partido? - inquiriu Craigh.

- Ninguém.

- E viste o incêndio?

- Oh, sim! Via-se bem do alto da montanha. Era um fogo muito grande. De manhã cedo, vim aqui espreitar. Ainda ardia com força. Vendo que nada se podia salvar, resolvi retirar-me com os homens que me acompanhavam. Lembrei-me de que nos podiam acusar a nós, índios, de ter provocado o incêndio. Estava convencido de que era obra mandada fazer pelo xerife e não quis responsabilidades. Não passámos daquele outeiro. Voltámos para a montanha.

- Cada vez percebo menos disto! - exclamou Jaime Craigh. - Nunca em minha vida encontrei um mistério tão cerrado.

- Estamos aqui a perder o nosso tempo - disse Artur. - Não seria melhor voltarmos para casa?

- Sim, o melhor é considerarmos o caso arrumado - concordou o xerife.

 

     DO OPTIMISMO AO PESSIMISMO SÓ VAI UM PASSO

Percorreram parte do caminho do regresso, acompanhados dos índios, que voltavam à sua aldeia. Cruzaram juntos a região deserta até a estrada, que atravessaram, e foram deter-se no ponto em que principiavam os primeiros declives da montanha. Aí detiveram-se para se despedirem. Os três peles-vermelhas flectiram para o sul, subindo sempre obliquamente para atingirem as alturas onde reinava Águia Negra. Os cinco brancos não tardaram a encontrar a estreita fenda do Passo das Vacas, que iria permitir-lhes atravessar a montanha até à vertente leste. Quando se viram livres do acanhado e sombrio desfiladeiro, cuja atmosfera densa de aromas vegetais dir-se-ia pesar sobre a própria alma dos viajantes, os cinco homens soltaram um suspiro de alívio.

À luz da tarde já em declínio, a Pradaria do Ferreiro, muito verde e de uma amplidão quase ilimitada, deu-lhes uma alegre sensação de liberdade, após uma longa e escura clausura. Os próprios cavalos relincharam alegremente ao atravessarem com relva fresca até ao peito e, em certos pontos, até à cabeça, aquela planície que constituía um verdadeiro tesouro em pastos, quer para equídeos, quer para bovinos. Do topo de pequenos acidentes de terreno, que lhes permitiam abarcar uma perspectiva maior, viam aqueles homens pastar, ao longe, numerosas manadas de gado, que eram uma das maiores riquezas daquela região.

- Era de uma pradaria assim que eu precisava - disse Artur, envolvendo num olhar a imensa planície cor de esmeralda.

- O senhor não pode queixar-se - comentou José. - Possui lá no seu rancho um prado para pastagens muito razoável.

- Sim, não é mau - concordou Everton. - Mas de pouco valeria se meu pai não Lhe abrisse aqueles dois canais de irrigação, desviando a água do ribeiro.

- Chega perfeitamente para o seu herdeiro se entreter - insinuou Craigh, mal dissimulando um sorriso, sob o farto bigode ruivo.

- Refere-se ao pequeno Eduardo? - indagou Artur, dirigindo-lhe um olhar perscrutador.

- Creio que já lhe poderei dar esse lugar na sua vida - replicou o xerife. - Parece-me que, depois do resultado nulo destas investigações, nada o impedirá de perfilhar a criança.

- Não poderão contestar-me esse direito?

- Testemunho da sua boa-fé não o poderá ter melhor do que o xerife e dos seus auxiliares - proferiu Jaime Craigh. - Ninguém poderá negar que você se esforçou por identificar o menino. Procurou-lhe a família, com auxílio das autoridades. Não a encontrou. Adoptando-o, fazendo dele seu filho, só o podem louvar por um acto tão generoso.

Resolveram descansar junto das árvores centenárias, a cujo abrigo fresco se tinham acolhido de manhã. O Sol já em declínio alongava as suas densas sombras sobre a relva, para os lados do Nascente. Os cinco cavalos voltaram a saborear o bom pasto, enquanto os homens se atiravam vorazmente aos restos da comida que ainda era abundante. Iam conversando ao mesmo tempo que comiam e descansavam.

- Você, Craigh, não calcula o bem que me caíram as suas palavras - disse Artur.

- Compreende, agora, porque lhe dizia eu, antes de virmos, para não se precipitar? - proferiu o xerife. - Era para que você pudesse proceder de consciência tranquila.

- Tinha razão, Craigh, não há dúvida - concordou Everton. - Agora, compreendo o motivo por que, apesar de toda a minha vontade, hesitava em perfilhar o menino.

- Não tinha a consciência tranquila - acudiu o xerife, triunfante. - Agora, pode tê-la.

- Sim, mas não poderá impedir que os pais da criança apareçam de um momento para o outro a reclamá-la!

Foi MacGregor quem lançou de súbito algumas gotas de água fria no entusiasmo daqueles dois homens. Carlos lembrou, optimista:

- Eles não podem provar a identidade do menino! Os Everton dirão sempre que é filho do casal.

- Sobretudo, depois de baptizado em nome deles! - apoiou José, precipitadamente.

- Vocês são muito crianças para entenderem destas coisas - pronunciou o escocês, tão carrancudo como se admoestasse os dois jovens "cow-boys". - Fiquem sabendo que nem a água do baptismo consegue apagar a tatuagem que o menino tem no corpo. E se ele viver cem anos, ainda será possível identificá-lo por essa marca.

Ficaram todos pensativos e silenciosos, por longos momentos, após estas palavras de MacGregor.

Foi Carlos, um dos jovens auxiliares, quem quebrou o silêncio.

- Seria um grande sarilho se aparecesse repentinamente alguém a provar que a criança lhe pertencia! - exclamou ele.

- Eu nem quero pensar no que a minha mulher sentiria - disse Artur. - Depois de se dedicar de alma e coração ao menino, de lhe criar afeição de mãe, ver-se impotente para evitar que uns desconhecidos lho arrancassem dos braços! Dava em doida com certeza.

- Estamos a encarar as coisas pelo lado mais feio - pronunciou o xerife, sem muita convicção.

- Há dez probabilidades contra uma de não aparecer ninguém. Talvez os pais tivessem morrido.

- Também me parece - anuiu MacGregor. - Contudo, no meio dos destroços do incêndio nada se viu que levasse a desconfiar disso. Ali não morreu ninguém. Temos, pois, de admitir a hipótese de que o pai ou a mãe do pequeno, um deles está vivo. Possivelmente a mãe.

- Porque há-de ser a mãe e não o pai? - inquiriu Craigh.

- Eu disse um deles - replicou o escocês. - Contudo, inclino-me para a mãe, porque deixou no local um objecto quetalvez lhe pertencesse e que é de uso feminino.

Agitou o farrapo do lenço de linho que tirara da algibeira.

- E poderemos nós afirmar que esse lenço pertencia à mãe do menino? - interrogou o xerife.

- Não podia estar outra mulher a tomar conta da criança?

- Podia - admitiu MacGregor. - O mais natural, porém, era que a criança estivesse com a mãe. Lembremo-nos de que o bebé só sabe pronunciar uma palavra: "mamã". Isto induz-nos a supor que estava habituado a um convívio frequente, se não constante, com a mãe. Trata por "mamã" as pessoas que lhe pegam ao colo. Quando nós o encontrámos, não haveria muitas horas que o teriam separado da mãe. Outro porn menor em que eu reparei: o menino ainda mamava.

Procurava instintivamente o seio de Helena. Isto não quer dizer que também não lhe dessem o biberão; podia estar-se a alimentar pelos dois sistemas.

- Onde quer você chegar com toda essa conversa? - interrompeu Craigh.

- Quero chegar à hipótese muito verosímil de que o menino fora separado da mãe poucas horas antes de nós o encontrarmos. Talvez no momento em que incendiaram a barraca - redarguiu o escocês.

- Que provas tem para o afirmar? - inquiriu o xerife.

- Não há provas de coisa nenhuma - retorquiu MacGregor, com impaciência. - Há indícios. Só indícios. Para desvendar todo este mistério, não dispomos senão de indícios, que tanto nos podem conduzir à verdade como ao vácuo, isto é, a outro mistério mais fechado.

- Indícios, só indícios, não é bem assim - resmungou Craigh, retorcendo nervosamente as guias do seu bigode ruivo. - Creio que o menino não é um indício.

- Engana-se - atalhou o escocês. - O menino para nós não é mais do que um indício. É um indício de que tem progenitores que nós ainda não encontrámos, tal como este farrapo de lenço é indício de que existe ou existiu a sua dona, cujo nome deve principiar por C. Umas pegadas anormalmente pequenas para serem de homem, foram para mim indício de que estivera uma mulher junto da casota onde encontrámos o bebé. Foi você que as notou, mas não pôde por elas identificar as pessoas que as marcou. Podemos deduzir que a mulher que contactava com o menino, se acaso não era a mãe, ainda estava viva há três ou quatro dias. Como não morreu no incêndio, é possível que seja viva e que apareça à procura do filho, pois não podemos pôr de lado a hipótese de que seja realmente filho de quem esteve junto da casota e deixou cair o lenço na barraca que ardeu.

- Basta! - exclamou Artur. - O senhor já estragou a grande alegria que eu começava a sentir. Volto a ter medo de uma resolução, que tomaria com tanto gosto. Falta-me a coragem para dizer a minha mulher que, por enquanto, pelo menos, não é prudente perfilharmos o menino.

- Com efeito - confessou Jaime Craigh -, as objecções de MacGregor assustam-me. Bem sei que não passam de hipóteses. Mas, a verdade é que podem transformar-se em factos. - E depois de se calar, pensativo, por alguns instantes, acrescentou: - Uma das coisas que mais me intriga é Águia Negra me ter dito que os tais italianos, ou o que quer que eles são, terem partido há mais de uma semana, e não se saber quem largou fogo à barraca. Teriam esses homens voltado para trás, sem serem vistos, certamente na noite do incêndio, ou teriam sido outros os incendiários? Teriam vindo somente no propósito de provocar o fogo? Serámesma gente? E quem seria realmente essa mulher de quem não ficaram outros vestígios senão as pegadas e o lencinho que se encontrou meio destruído pelas chamas? Seria a mãe da criança?

- Parece-me inútil ficarmos aqui a dar cabo dos miolos, em busca de uma solução do enigma - disse MacGregor. - O melhor que temos a fazer é regressarmos a casa. Se partirmos imediatamente, ainda lá chegamos com dia.

Tornaram a montar e abalaram num bom trote.

 

           A TATUAGEM, SEMPRE

           A TATUAGEM MISTERIOSA

Já próximo do Pequeno Eden, Artur Everton e MacGregor viraram no caminho vizinho que conduzia ao rancho, enquanto Jaime Craigh e os dois jovens auxiliares continuaram pela estrada principal direitos a Fuenton-City.

Reinava grande ansiedade na casa grande. Aguardava-se o regresso de Artur e do escocês para se decidir acerca do destino do bebé, a quem toda a gente chamava Eduardinho. Este, com a sua inocência e as suas gracinhas pueris, conquistava logo as simpatias de quem o via. Durante o dia, quase todo o pessoal do rancho passara pela casa grande, no propósito de admirar o bebé, e não havia pessoa alguma que não se sentisse encantada.

A Alicinha não queria, nem por um momento, abandonar o mano. Decidira-se irresistivelmente a tomá-lo por irmão. Todas as considerações que preocupavam os adultos eram de nulo valor para o seu espírito infantil. Quem mandava no seu coraçãozinho era o sentimento. Durante os longos sonos do bebé, Alice ia espreitá-lo no seu bercinho mal respirando para não o acordar. Sua mãe acompanhava-a muitas vezes nessas visitas ao seu quarto, onde o menino repousava, e quedava-se a contemplá-lo demoradamente, em silêncio.

- É tão lindo, não acha, mãezinha? - murmurava a criança, embevecida.

- É um autêntico anjo - concordava Helena, no mesmo tom. - Se tivesse umas asinhas acreditava que ele tivesse descido dos céus.

- E, se calhar, veio, não é verdade, mãezinha?

- dizia a pequena, meio crédula. - Olhe aquela covinha no queixo. É tal qual como a que tinha um anjinho que eu vi num livro de histórias, em casa da senhora Wilson, em Fuenton-City.

Helena maneava a cabeça, com certa melancolia.

- A vida não se passa como nos livros de histórias - lamentava ela. - Mas quem sabe se, desta vez, a história deste menino não acabará com felicidade para ele e para todos nós?

- Mas porque é que a mãezinha não fica com o Eduardinho para seu filho? Se calhar não quer.

- Querer queria, mas não sei se posso.

- Faça como eu: já fiz do Eduardinho meu irmão.

- Ainda és muito pequena para compreender - dizia-lhe Helena. - Talvez teu pai já possa dizer-nos logo se poderemos ou não adoptá-lo como filho.

- O paizinho foi buscar a licença?

Helena acabava por se rir das ingénuas interrogações da filha.

Uma das pessoas a quem a expectativa provocava maior nervosismo era o velho Tomás Everton. Ele, que coleccionava cachimbos, mas pouco fumava, nesse dia, com o pretexto de os experimentar, encheu os depósitos de alguns e fumou bastante. Por vezes, passeava ao longo da vasta sala de jantar, soprando espessas baforadas e resmungando qualquer coisa entre dentes. Maria observava-o, ao mesmo tempo que ia fazendo a lida da casa.

Uma das vezes em que o velho passava junto dela a fumegar, ela disse-lhe, no seu habitual tom petulante:

- O senhor Tom está com as entranhas a arder; quer apagar o fogo com um "whisky"?

Everton deteve-se, de mãos afundadas nos bolsos, a fitá-la.

- És levada da breca! - exclamou ele, por fim. - Realmente, o problema da criança parece que me pegou fogo cá dentro. Traz-me lá uma pinga de "whisky", a ver se o apago.

A criada soltou uma das suas gargalhadas, que constituíam a maior alegria daquela casa, e apressou-se a servir o velho patrão, por quem ela experimentava uma ternura quase filial. Tom provou mais do que bebeu umas gotas do líquido ardente, fez uma careta e disse, em tom de confidência:

- Parece-me que foi um erro ao querer conhecer o passado do menino, que eu bem gostaria de considerar meu neto. Imagina que desgosto não será para Helena e para todos nós, se descobrem os pais do Eduardinho.

- E quem terá forças para consolar a Alicinha, se lhe levarem o irmãozinho? - lembrou Maria passando bruscamente, como lhe era peculiar, da hilaridade à sisudez.

- Antes o pequeno nunca tivesse aparecido cá em casa! - exclamou Tom. - Estou ansioso pelo regresso de meu filho. Mas tenho o pressentimento de que não trará boas notícias para nós, se acáso as trouxer para a criança.

- Sabe o que eu tenho estado a pensar? - disse a afectuosa criada. - Se, por qualquer motivo, os senhores não quiserem adoptar o menino, eu e o meu marido talvez o pudéssemos perfilhar.

- Creio que sim, se acaso meu filho e minha nora, por qualquer poderoso motivo, o não puderem fazer - respondeu o velho Everton. - De uma coisa podes ficar certa: mesmo adoptado por vocês, todos continuaríamos a sentir por ele a mesma afeição.

- Não teremos essa sorte... - murmurou ela.

- Foi uma pena o Céu não nos conceder um filho. Gostaríamos de poder criá-lo à nossa maneira. Havíamos de fazer dele um grande homem, corajoso e honesto.

A chegada de Helena veio interromper a conversa, quase confidencial, de Tom e Maria. A mãe de Alicinha acabava de descer do primeiro andar, onde estivera a adormecer o pequeno Eduardo.

- Ficou a dormir como um anjo - disse ela, dirigindo-se ao sogro e à criada. - Quando ele acabar de fazer este soninho, vamos dar-lhe um banho mais a preceito, não achas Maria?

- É preciso habituar este menino à limpeza - concordou a criada. - Em breve ficará a gostar tanto da água como a Alicinha. E a propósito, onde está a menina?

- Ficou com a Betty, junto do berço - respondeu Helena. - Não se cansam de contemplar o bebé. A Betty, que já é uma mulher, mostra-se tão infantil como a Alice.

- O Eduardo conquistou-nos a todos - comentou o velho Tom, voltando a encher o seu cachimbo. - Tenho a certeza de que, se aparecessem agora os pais a reclamá-lo, todos juraríamos que o menino era teu filho.

- Ah! - suspirou Helena. - Se ele não tivesse aquele sinal, aquela marca, nunca mais o reconheceriam.

- É aquela pequenina tatuagem que nos impede de chamar-lhe nosso - resmungou o velhote.

Alice e Betty, uma rapariga de desasseis anos, desenvolta, desceram a larga escada do primeiro andar.

- Mãezinha! - exclamou Alice, correndo num alvoroço para Helena. - Sabe o que me disse a Betty? Que o baptizado de menino é já no sábado. Hoje é terça-feira. Só faltam quatro dias, não é verdade? E faz-se uma grande festa, não é? E há música e danças, com certeza. E assam-se bois no espeto.

- Ih! - exclamou Helena, a rir. - Que grandes planos vocês fizeram!

- Foi a Betty quem mo disse.

Betty sorria, enleada, torcendo uma ponta do seu avental.

- Eu só disse à menina que talvez houvesse tudo isso - pronunciou a criadita, um tanto comprometida.

- Talvez não é certo. - resmungou Tom. Sim, talvez se faça isso e mais alguma coisa. Talvez se elabore o programa das festas. Talvez...

- Talvez, talvez! - repetiu Helena. - Esta incerteza causa-me uma aflição horrível.

Tom envolveu sua nora num olhar de piedade. Ninguém melhor do que ele podia compreender o seu estado de espírito.

- Não deves deixar-te vencer por essa ansiedade doentia - aconselhou ele. - Se, por qualquer motivo, aparecer alguém com direitos sobre esta criança, não será caso para desanimares. É possível que venha a surgir mais tarde outra oportunidade para adoptares outro menino.

- Nada já conseguirá fazer-me esquecer o Eduardinho - declarou Helena. - Em tão poucas horas, afeiçoei-me de tal maneira a este bebé que, se mo tirassem, seria como se me morresse um filho autêntico. Outro, que o viesse substituir, não me causaria tanta satisfação. Este corresponde perfeitamente ao ideal de um filho meu. Mesmo sem o querer, o meu pensamento voa. Sinto-me a construir castelos nas nuvens. Vejo-o crescer, tornar-se um homem, a cavalgar ao lado do pai, a dirigir os trabalhos do rancho. Quero afastar estas visões deliciosas e não o consigo. Ando a sonhar acordada. Ora, imagine que, dentro em breve, Artur volta da expedição e me diz: "Temos de restituir o menino aos seus pais legítimos " E vejo entrar por aqui dentro um casal desconhecido, apoderar-se do menino e levá-lo. Levá-lo para muito longe, para onde nem sequer possa tornar a vê-lo.

O velho Tom não sentia coragem que chegasse,para a transmitir também a sua nora. Ouvia-a e calava-se, sem encontrar palavras que a animassem.

O nervosismo de Tom e Helena dir-se-ia trans mitir-se às outras pessoas da casa. Sam, o cozin nheiro, geralmente tão jovial, andava inquieto. Maria não conseguia encobrir com as suas risadas muito garganteadas a preocupação que tanto a oprimia. Até Alice se mostrava receosa não se sabia de quê.

Quando o tropel dos dois cavalos anunciou aproximação de Artur e de MacGregor correram todos ao terreiro a recebê-los.

- Descobriram alguma coisa? - Foi a primeira pergunta de Helena, dirigida a seu marido.

- Nada! - respondeu este.

Mas a sua expressão era triste e apreensiva.

- Então, não podemos adoptar o menino? - Indagou ela.

Artur tardou a responder, sempre com um ar preocupado:

- Veremos... temos de conversar primeiro. É um passo muito importante, que não podemos dar sem ponderar tudo muito bem.

- Mas - insistiu o velho Tom -, se não conhecemos qualquer parente ao menino, que esperamos ainda para o adoptar?

- E a tatuagem? Aquela tatuagem misteriosa! - exclamou Artur. - É uma ameaça permanente à felicidade que nós queríamos construir, tendo por base esta criança.

 

             AMEAÇA SOBRE A ALEGRIA

O Pequeno Eden estava em festa. Os Everton, depois de muitas hesitações e apreciada que foi a diligência efectuada junto da barraca destruída pelo fogo, resolveram correr o risco e adoptar o menino. Quatro dias depois, precisamente no sábado que Alice previra, na sua infantilidade, celebrava-se o baptizado em Fuenton-City.

O padre, informado pelo xerife acerca das condições em que fora encontrada a criança, não tivera hesitações em registá-la como filho de Artur e Helena Everton. Até felicitou os pais adoptivos pela obra de caridade que acabavam de praticar. Puseram-lhe o nome de Eduardo e o menino, quando chamavam por ele, voltava logo a cabeça, como se nunca o tivessem tratado por outro nome.

Os preparativos da festa fizeram-se com rapidez incrível. A azáfama era enorme. Helena, auxiliada por Maria, que se multiplicava, confeccionara um vestido lindo para o baptizado todo em rendas, fitas e laços azuis a sobressaírem do fino tecido branco. E enquanto as mulheres em casa se entregavam aos delicados lavores, lá fora, no terreiro, Artur e MacGregor, auxiliados pelo casal Sommer, por Clarck Johnson e outros "cow-boys", entregavam-se com afã às ornamentações.

Ergueram-se em volta do vasto recinto altos mastros, no topo dos quais se içaram bandeiras e flâmulas de cores vivas, que logo ficaram a drapejar à brisa doce da Primavera. Mas cada mastro foi todo revestido de emaranhadas trepadeiras, muito viçosas, que tiveram a paciência de enrolar tão espessamente que nem se via a madeira. Depois, de mastro a mastro, colocaram cordas também muito bem forradas de folhagem, que pendiam ligeiramente em arco. A varanda do primeiro andar, que ia de uma ponta à outra da fachada do edifício principal, foi toda ornamentada com festões de verdura e no mesmo sentido, junto do beiral, dispuseram um longo fio de arame do qual suspenderam inúmeros pequenos balões de papel - todos os balões coloridos que fora possível obter em Fuenton-City - para se acenderem na noite da festa, que certamente se prolongaria até de madrugada. De algures, vieram algumas carroçadas de areia vermelha, que, espalhada por todo o terreiro e humedecida por hábeis e oportunas regas, tornava o piso muito brando aos dançarinos e evitava que se levantassem poeiras sempre importunas.

Ainda na sexta-feira, fora Artur, acompanhado de Johnson, a Fuenton-City. Levara o carroção vazio e regressara com ele cheio de variados abastecimentos para a festa, desde barris de cerveja, aguardente e licores finos, aos biscoitos, salames, presuntos e outras iguarias, pois os donos da casa não queriam que faltasse nada aos seus convidados. E o número destes era elevado. Todas as famílias de certa categoria e distinção daquela pequena cidade do Oeste se sentiram honradas com um convite formulado pelos Everton. Sam, o talentoso cozinheiro, havia dois dias que quase não saía da cozinha a confeccionar iguarias e alguns doces maravilhosos, cuja receita constituía segredo que ele guardava ciosamente. Só para provar os seus petiscos valia a pena ir até ao Pequeno Eden.

O pobre criado, apesar de ajudado pela senhora Sommer e, às fugidas, por sua mulher, viu-se tão cheio de trabalho, que não pôde ir à igreja assistir ao baptizado do menino, de quem ele gostava tanto. Para o consolar, a sua Maria prometeu-lhe contar tudo o que visse e ouvisse, sem omitir um único pormenor. E assim, ele lá ficou mais conformado.

A cerimónia do baptismo decorreu com a solenidade habitual. Foram padrinhos do menino, MacGregor, que quase se impôs, e Edite, a esposa de Sommer, um dos empregados mais sabedores do rancho. Maria ficou muito pesarosa por não a terem escolhido para madrinha, mas Helena segredara-lhe que a senhora Sommer sentir-se-ia melindrada se não a convidassem, e era preciso transigir para manter a boa harmonia do rancho.

E a criada, apesar de melancólica, mostrou-se compreensiva.

Terminada a cerimónia religiosa que, diga-se de passagem, fora seguida pelos convidados com certa impaciência, tal era a pressa que tinham de seguir para a festa, formou-se um longo cortejo de trens, "charrettes" carregadas de gente, que percorreu rapidamente a escassa milha que separava o rancho da cidade. O menino, ao colo de Helena, a "mamã", que parecia temer que lho roubassem, parecia um principezinho, no seu vestido branco muito comprido e a cabecita coroada pela touquinha toda tufada de rendas. Muito esperto, volvia para todos os lados os seus olhos negros, como se quisesse compreender o que se passava em redor. Junto dele, Alicinha, lourinha, tranças ornadas de lacinhos cor-de-rosa como o seu vestido, não se cansava de lhe fazer momices, que por vezes lhe provocavam risadinhas.

Na frente do cortejo ia a "charrette" com toda a família Everton, ou seja, os pais de Alicinha e Eduardinho, o velho Tom, os Sommer, Maria e MacGregor, que resolvera empunhar as rédeas com todo o cuidado, como se aquela condução fosse a mais importante da sua vida. Mal este primeiro veículo, seguido da longa fila formada pelos transportes dos convidados, assomou à entrada do Pequeno Eden, a pequena banda de música instalada no coreto deu início a um hino triunfal, com muito barulho de clarinete e pratos, que encheu de alegria e satisfação o coração de todos os convidados. Foi sob uma densa chuva de sons musicais que eles se foram apeando em grupos, espalhando-se pelo vasto terreiro, conversando alegremente, aos gritos, para se fazerem ouvir mais alto do que as retumbantes vibrações sonoras da orquestra.

Escusado será dizer-se que a maior preocupação de toda aquela gente que ia chegando, era comer. Parecia que todos tinham jejuado, a fim de reservarem espaço no estômago para os petiscos e gulodices que esperavam saborear. Duas compridas mesas construídas de tábuas pregadas ao longo de cada um dos lados do terreiro, cobertas de belas toalhas e cheias de iguarias de toda a espécie, desde as frutas secas às rodelas e fatias de paios e carnes frias, aguardavam os convidados, que as rodearam sofregamente como enxames de moscas vorazes.

Entretanto, Helena, com o seu precioso fardo, entrava em casa, ansiosa por descansar um pouco. Cercavam-na o marido, o sogro, Alicinha, Edite Sommer e Maria. Ela parecia fatigada. Com o menino sentado nos joelhos, ergueu para Artur um olhar enternecido e murmurou:

- Ainda não tenho a certeza de estar sonhando ou a viver a realidade. Diz-me se é verdade termos o filho que tanto desejávamos!

- Sim, querida, é verdade. Acredita que não estamos a sonhar.

Eduardinho, como se lhe adivinhasse a preocupação, passou-lhe os bracinhos em torno do pescoço e papagueou:

- Mamã. Mamã. Mamã!

Helena apertou-o muito contra o coração e pronunciou, num grito, que vinha bem do fundo da sua alma:

- Filho Meu querido filho!

- Agora, depois do baptizado, é que posso chamar-lhe meu irmão, não é verdade, mãezinha? - indagou Alice.

Helena, de comovida, nem pôde responder-lhe. Entretanto, lá fora, a festa começava a animar-se. Parecia mal os donos da casa não estarem no terreiro a atenderem os convidados, que, aliás, não lhes sentiam muito a falta. Já havia pares a dançar ao som da banda estridente, que Artur contratara para alegrar a festa. Contudo, a maioria ainda permanecia junto das mesas, saboreando os petiscos. Meia dúzia de empregados do rancho, aos quais se juntara, em seguida, a pequena Betty, e depois, Artur, MacGregor e o próprio Tom Everton, apesar de um pouco trôpego, não tinham mãos a medir na distribuição de bebidas. Johnson e Clarck postaram-se cada um junto do seu barril de cerveja, a encher canecas, umas atrás de outras. Faziam-se saúdes, brindes, erguiam-se vivas ao Eduardinho e à família Everton.

Jaime Craigh, que não quisera falar no jubiloso remate de uma linda história da qual se considerava um dos elementos mais activos, chamara o velho Tom, Artur e Helena a um lado, como se quisesse dizer-lhes em segredo, e, erguendo o seu copo de "whisky", pronunciou:

- Bebo à saúde do pequeno Eduardo e da família em que ele teve a boa sorte de entrar! Hip, hip, hip, hurrah!

Os "hurrahs" repercutiram-se por todo o terreiro. O número de pares dançantes ia aumentando. Só as senhoras pesadas e os velhotes, se mantinham sentados nos bancos de tábua corrida que se pregaram em frente da casa para acomodar a assistência e servir de descanso às damas mais fatigadas de bailar.

A meio da tarde, uma rês habilmente esquartejada e suspensa de um espeto sobre labaredas quase cientificamente ateadas, começou a espalhar pelo recinto um excitante cheiro a carne assada. Dir-se-ia que aquele aroma embriagava mais do que as bebidas fortes, que se consumiam largamente. Toda a gente reclamava o seu quinhão, que Sommer anuira em repartir com dois ou três golpes de cutelo. Mas, apesar da sua rapidez, não dava conta do recado; teve de meter ajudante.

Esfusiava a alegria por todos os lados. Os donos da casa, no afã de atender todos os convivas, andavam numa roda-viva. Na cozinha, Sam tinha o alegre rosto tão reluzente de suor que dir-se-ia engraxado. Os seus doces, os seus pitéus obtinham um êxito estrondoso. Um grupo de convivas foi buscá-lo em ombros à cozinha e trouxe-o ao terreiro para receber os aplausos de toda a gente e obrigá-lo a beber ùm copo de vinho do Porto, entre "hurrahs" entusiásticos dos seus admiradores.

Esta homenagem comoveu Sam até as lágrimas. Quando pôde, enfim, regressar ao seu posto junto do imenso fogão, murmurou, limpando as lágrimas dos olhos:

- Esta demonstração de apreço paga bem o que sofri no começo da minha vida, que foi tão atribulada de ofensas e humilhações.

Maria sentia-se vaidosa do triunfo do seu marido. O que lhe fizessem a ele valia mais do que tudo de bom que lhe fizessem a ela.

Mas, no meio do bulício, das danças e das estridências da música, ocorreu um episódio que passou despercebido a quase toda a gente. Chegou um cavaleiro às proximidades do terreiro, apeou-se, prendeu a montada a um tronco de árvore e começou a vaguear entre a turba divertida, procurando alguém com o olhar. Deteve-se junto de Jaime Craigh e tocou-lhe discretamente num ombro. Voltando-se, o xerife, exclamou com surpresa:

- Tu, por aqui, Carlos! Houve alguma novidade?

O jovem auxiliar moveu a cabeça afirmativamente e, puxando-o a um lado, para que ninguém mais o ouvisse, informou:

- Águia Negra mandou à cidade um mensageiro, com um recado para si.

- Alguma coisa de importante?

- Parece que sim - respondeu o jovem, muito grave. - Relaciona-se com o menino que foi hoje baptizado.

- Hem? - surpreendeu-se o xerife. - Apareceu mais algum vestígio?

- Águia Negra pede-lhe que vá à sua aldeia com urgência. Recomenda-lhe que leve MacGregor consigo, mas que evite que Artur Everton o saiba.

- Que coisa estranha! comentou o xerife, retorcendo nervosamente o bigode. - Por acaso teriam aparecido os pais da criança?

Carlos encolheu os ombros.

- O índio que trouxe o recado não soube ou não quis adiantar mais do que isto - disse ele.

- Águia Negra só me mandaria chamar para assunto muito importante - murmurou Craigh, como se falasse com os seus próprios botões. Disse então que se relacionava com o menino?

- Foi esse o recado que o mensageiro trouxe. Ele espera-os a meia milha daqui, no caminho da Pradaria do Ferreiro.

Instantes depois, Craigh transmitia em segredo a MacGregor a mensagem que acabava de receber.

- Os meus pressentimentos não me enganaram - comentou o escocês. - A ameaça de que a tatuagem era indício concretizou-se. E logo havia de ser neste dia! Porque não foi vinte e quatro horas antes?

- A fatalidade tem destes caprichos sinistros - proferiu o xerife, rangendo os dentes, colérico.

Os três homens montaram a cavalo e saíram discretamente do rancho ao encontro do pele-vermelha que, efectivamente, os esperava meia milha mais adiante.

À retaguarda soava, amortecida pela distância, a vozearia da festa do Pequeno Eden.

 

       O SEGREDO DA FLORESTA DOS DESENCAMINHADOS

Já com a tarde muito adiantada, Jaime Craigh, MacGregor e o cavaleiro índio que os guiava cruzaram o Passo das Vacas e, ao saírem para a vertente sul da montanha, voltaram à esquerda e começaram a subir a encosta. A aldeia ficava em cima, numa imensa plataforma, um planalto bastante fértil. Antes, porém, de atingirem a pequena povoação, Águia Negra, seguido de dois peles-vermelhas, desceu a meio caminho para saudar os visitantes.

Terminados os cumprimentos, Jaime Craigh entrou logo no assunto, indagando:

- Tens uma coisa importante para nos dizer, não é verdade?

O chefe índio confirmou com um vagaroso movimento da cabeça emplumada.

- Muito importante - e após uma larga pausa, que encheu de impaciência os visitantes, continuou: - O outro dia, depois de nos separarmos, contei a meu filho a conversa que tivemos junto da casa incendiada. Ficou tão intrigado como nós.

No dia seguinte, acompanhado dos dois homens que tinham lá estado comigo, foi observar o local. Revolveu todos os destroços, com paciência, mas nada encontrou de real interesse. O meu rapaz é muito teimoso e voltou lá no dia imediato.

Iam subindo lentamente a serra, enquanto conversavam. A ladeira ia-se tornando mais íngreme, obrigando-os a avançar a passo.

- Mas chegou a descobrir alguma coisa? - inquiriu o xerife, cada vez mais impaciente.

- Sim - respondeu Águia Negra. - Ontem, ao entardecer, chegaram aqui com uma mulher branca. Desmaiara pelo caminho. Via-se que estava exausta. Devia ter passado grandes provações. Trazia as roupas em farrapos. Viam-se-lhe muitos arranhões na cara, nas mãos e nas pernas. Os sapatos não passavam de bocados de cabedal pendentes dos pés. Deitámo-la na minha tenda. Deixámo-la repousar. Hoje de manhã, conseguimos despertá-la. Demos-lhe leite a beber. Não devia alimentar-se há muitos dias. A sua voz é tão fraca, que mal se pode ouvir.

- E ela disse quem era? - perguntou o xerife.

- Sim, mais ou menos. Deve ser a mulher que os senhores procuravam.

- E onde a encontraram? - indagou MacGregor.

- Na Floresta dos Desencaminhados.

- Então, teu filho atreveu-se a entrar no reduto que todos, brancos e índios, tanto receiam?

- Meu filho é um homem valente. Tem outras ideias; pertence a uma nova geração que começa a ver as coisas de maneira diferente da nossa. Depois de hesitar durante dois dias, decidiu-se a penetrar na Floresta. Raciocinou deste modo: pegadas indicavam que alguém lá entrara antes dele, porque não havia ele de entrar, também? Tomou coragem e entrou, seguindo o rasto que se via desde a barraca incendiada até ao arvoredo denso. Lá dentro, porém, não tardou a perder esse rasto. Vaguearam na escura mata, em busca de saída, durante mais de três horas, até que se orientaram e tomaram o rumo da orla. Tinham-se internado bastante. De súbito, ouviram alguma coisa que lhes pareceu voz humana. Guiados pelo som,não tardaram em descobrir o vulto de uma mulher caído entre o alto capim. Estava semi-inconsciente. Com muito trabalho, arrancaram-na do fundo da floresta e trouxeram-na para aqui.

- Mas quem é ela? Como se chama? - indagou Craigh, muito excitado.

- O seu nome ignoro. Perguntei-lhe se conhecia uma criança que foi encontrada na casota. Teve um grito: "Meu filho! Onde está ele?" Sosseguei-a. Disse-lhe que o filho estava vivo e entregue em boas mãos. Tranquilizou-se um pouco. Muito fraca, não tardou em cair numa apatia. Foi então que resolvi mandar recado. Mas como conhecia o desejo de Artur de ficar com a criança, achei preferível que ele não viesse. E não disse a essa mulher onde se encontrava o filho, nem o nome das pessoas que tinham tomado conta dele.

- Procedeste com a ponderação que todos te gabam, bom Águia Negra - aprovou o xerife. - Conduz-nos quanto antes à presença dessa mulher. Precisamos de interrogá-la.

Enquanto percorriam o resto do caminho, Craigh e o escocês interrogavam-se mentalmente sobre a forma de resolver o problema levantado pela súbita aparição da mãe do pequeno, agora que ele já estava baptizado e registado oficialmente como filho de Helena e Artur Everton.

Passaram por entre as tendas de forma cónica, que constituíam a aldeia indígena, até atingirem a habitação de Águia Negra, muito mais vasta do que qualquer das outras. Tinham alojado a desconhecida a um canto da tenda, resguardada por uma manta a servir de biombo.

O chefe índio desviou a manta e os dois visitantes puderam ver, estendida num leito de palhas no chão è coberto por outra manta listrada, um vulto humano, que pouco volume fazia. Só depois de habituados os olhos à penumbra do ambiente distinguiram, emoldurado por uma espessa massa de cabelo castanho claro, um autêntico "rosto-pálido", de epiderme delicada, sulcada de alguns arranhões, um narizinho petulante, uma boca de lábios finos e descoloridos, contraída num jeito doloroso. Uns belos olhos cor de mel fitavam, entre curiosos e amedrontados, os recém-chegados. Pareciam interrogá-los do fundo das olheiras profundas.

O xerife falou-lhe com bondade.

- Não se assuste. Estamos aqui para ajudá-la, e os índios que a rodeiam são amigos.

Ela moveu ligeiramente a cabeça, em sinal de concordância, e disse:

- Eles tratam-me muito bem. Estou-lhes muito reconhecida.

- Escute - tornou Craigh - diga-nos quem foram os malvados que lhe fizeram mal, e para onde fugiram para os perseguirmos e castigarmos. Eu sou o xerife de Fuenton-City.

- Fuenton-City! - repetiu ela, como que surpreendida.

- Sim. Conhece a cidade? - indagou o xerife.

- Nunca lá fui - respondeu a desconhecida.

- Mas queria lá chegar. Tenho um parente nessas paragens.

Falava com dificuldade, detendo-se por vezes a meio das frases, para descansar.

- Pois, há-de ir ver o seu parente, em recuperando as forças - prometeu Craigh. - Precisa, primeiro, de descansar aqui uns dias. O caminho é mau. Descanse uns dias depois irá a Fuenton-City. Diga-nos, entretanto, como foi parar àquele ermo. Quem a levou para aquela barraca isolada no deserto?

- Foi meu marido. Nós chegámos ali, ao fim da tarde, com o menino. Tínhamos dois cavalos.

Os outros ficaram de ir ter connosco no dia seguinte; levando mantimentos. Eles tinham-nos vendido aquela propriedade por dez libras. Era quase todo o nosso dinheiro. Mas quando eu lá cheguei e vi aquela miséria, voltei-me para meu marido e disse: "Giovanni, estamos desgraçados! Os teus patrícios intrujaram-nos. Isto não vale sequer uma libra; quanto mais dez "

Um pouco de exaltação que pusera nestas palavras deixara-a arquejante e exausta por longos momentos. Águia Negra e os dois "rostos-pálidos" trocaram um olhar. Confirmava-se a presença dos italianos dois meses antes. O próprio marido da pobre jovem também devia ser italiano, visto que ela o tratava por Giovanni.

- Escute - pediu o xerife, com brandura -, seu marido é italiano?

Ela moveu a cabeça num sinal afirmativo.

- E qual era a profissão dele?

- Marinheiro - murmurou a desconhecida.

- Marinheiro? E como veio parar tão longe do mar?

- Queria fazer-se agricultor. Antes de embarcar, já se dedicava à lavoura, na terra dele.

- Em Itália?

- Sim. na Sicília. É siciliano. Foi na Sicília que tomámos esta decisão. Tínhamos vinte libras de economias. Eu própria incitei Giovanni a virmos para a América. Tinha cá um parente... Ele havia de nos ajudar, pelo menos, com o seu conselho. E depois precisávamos de abandonar quanto antes a Sicília, para fugirmos à "vendetta" que nos ameaçava.

- "Vendetta"? Que diabo vem a ser isso? - estranhou Craigh.

- Sim, senhor - corroborou a mulher, arquejando do esforço -, a lei da vingança que na Sicília é mais forte do que em qualquer parte do Mundo. A família de meu marido fora vítima da vingança de uma organização secreta, que tem o nome de Mafia. Mataram-lhe o pai dois dias antes de eu conhecer meu marido em Liverpool. Foi em Liverpool que o conheci e me casei com ele, quando ainda era marinheiro. Seduzia-me ir morar na Sicília, maravilhosa terra de sol. Giovanni propôs-me irmos viver para esse clima admirável, onde tencionava cultivar uma pequena propriedade que herdara do pai recentemente falecido...

Calou-se visivelmente fatigada. Águia Negra baixou-se e deu-lhe uma tijela de leite. MacGregor ajudou-a a soerguer-se para ela beber mais facilmente. Retomando um pouco de coragem, prosseguiu no relato da sua triste história, que tanto comovia os seus ouvintes. Pouco depois de chegarem à Sicília, nasceu o menino, que constituía todo o encanto do casal. Não tardou, porém, que os jovens cônjugues se convencessem da impossibilidade de viverem naquela terra. Choviam ameaças de morte de todos os lados. O pai de Giovanni fora morto pouco tempo antes por ter abandonado a Mafia a que pertencera. A terrível organização jurara tirara a vida a todos os seus descendentes.

- Quando percebi que a vida de meu marido e de meu filho se encontravam em risco - continuou ela - não descansei enquanto não me vi longe da Sicilia, onde tanto desejava viver. Como não podia voltar para junto da minha família em Liverpool, porque casara contra a vontade de meu pai, e, mesmo em Inglaterra, ainda ficaria muito perto da vingança da Mafia, decidi-me pela América. Ouvira contar maravilhas do Oeste, da facilidade com que aqui se fazia fortuna, dos imensos territórios a explorar.

Mas fora precisamente no Oeste que Giovanni veio encontrar a sua desgraça. Tinham chegado a São Francisco da Califórnia cerca de três meses antes da tragédia que a prostrara naquele mísero leito de palhas. A pequena propriedade da Sicília, vendida ao desbarato, rendera-lhe umas dezenas de libras, que poupavam, com vista a instalarem-se com certa solidez e poderem começar a trabalhar para o futuro. Tinham-se alojado numa modesta estalagem de São Francisco, onde se encontravam também alguns italianos, que ao saberem que Giovanni era seu patrício, se relacionaram com muita simpatia, propondo-se ajudá-lo, dado a sua grande experiência do Oeste americano. Todo o empenho dela era procurar o parente e, com a ajuda dele, assentar num sólido começo de vida. Os amigos italianos, porém, riram-se da ingênua confiança que ela depositava num parente que nem sequer conhecia. Tratassem, primeiro, de criar o seu ninho, estabelecer-se numa pequena propriedade; depois quando não precisassem do parente, procurassem-no, e veriam como ele os receberia com toda a consideração.

- Eu estava em desvantagem, porque pouco percebia de italiano - dizia a desconhecida. - Uma voz secreta parecia avisar-me de que alguma coisa estava errada. Mas, ao mesmo tempo, eles eram tão simpáticos, tão prestáveis, tão aliciantes... Giovanni andava entusiasmadíssimo com os projectos deles. E eu acabei por me contagiar também. Esses dois italianos disseram ter notícia de uma propriedade perto de Fuenton-City e partiram com a missão de estudar o local. Pediram algum dinheiro para as despesas. Ficámos ansiosamente à espera de que regressassem. A expectativa era enervante. Giovanni sentia-se impaciente por estabelecer-se definitivamente. Foi durante essa expectativa que ele resolveu tatuar-nos, a mim e a ele no braço esquerdo e ao Eduardinho no ventre.

- Qual Eduardinho? - interrompeu MacGregor, num sobressalto.

- O meu filho. O menino chama-se Eduardo...

O xerife e o escocês entreolharam-se, movidos pelo mesmo pensamento: por coincidência a criança fora baptizada novamente com o mesmo nome que já tinha.

- E você como se chama? - indagou MacGregor.

- Catarina. Mas todos me tratam por Kat - respondeu ela. - Decorridos muitos dias, quase dois meses, regressaram. Traziam os títulos de propriedade de uma pequena fazenda nas proximidades da Floresta dos Desencaminhados, já na região de Fuenton-City. Receberam em troca dez libras. Achámos barato. Partimos imediatamente. Eles acompanharam-nos até Stonville. O resto do caminho fizemo-lo sozinhos, nos dois cavalos que compráramos. Percorremos umas quatro léguas e chegamos ao cair da noite. Ao ver aquela miséria, compreendi que nos tinham ludibriado. Percorremos aquele quintal, não passava de um quintal, aproveitando a luz do dia que nos restava. Nem sequer havia um telheiro para abrigo dos animais. Tive curiosidade de ver o que se ocultava atrás de uma pequena moita, ao fundo do recinto e dirigi-me para lá, com o menino, que me adormecera nos braços. Entretanto, meu marido fora acomodar os cavalos nas traseiras da barraca. Nesse momento ouvi um grito de terror. Pareceu-me a voz de Giovanni. Não me enganava. No lusco-fusco, vi três vultos saltarem a vedação apoderarem-se dele e arrastarem-no para fora do recinto. Quis acudir-lhe e, como o menino me tolhia os movimentos, meti-o na casota, onde ele ficou a dormir sobre as palhas, e corri atrás dos vultos, a gritar por socorro. Um dos homens agarrou-me, amordaçou-me e, amarrando-me os braços, arrastou-me também. Levaram-nos para a floresta.

Novamente se deteve Catarina, a arquejar. Tinha o terror estampado no rosto. Foi com voz entrecortada de soluços que narrou as cenas seguintes. Meteram-se pela floresta. Já noite fechada, à luz de uma candeia, viu o marido morrer. Cada golpe que vibravam, bradavam: "Mafia! Mafia! Mafia! " Não soube se o terror Lhe redobrou as forças, o que sabe é que enquanto os homens procediam à bárbara tarefa, pôde desenvencilhar-se das cordas e da mordaça e fugir. Era sua intenção sair da floresta e tentar obter socorros. Mas a vegetação muito densa mal a deixava caminhar. Contudo, foi avançando sempre, sem parar, durante toda a noite. No dia seguinte teve esperança de encontrar uma saída, mas todos os seus esforços foram vãos. Aterrada, exausta, mal conseguiu dormir a segunda noite, para continuar a procurar salvar-se da profunda selva verde, num dia inteiro de esforços inúteis. Por fim, completamente esgotada, perdeu a noção do tempo, deixou-se cair desesperada e esperou que a morte a vencesse lentamente. Foi então que a salvaram.

- Deve ter escapado, porque os bandidos lhe perderam a pista - deduziu o xerife. - E provavelmente incendiaram a barraca por vingança. Não se lembraram sequer de que o menino estava metido na casota, provavelmente a dormir.

Visivelmente impressionado, MacGregor indagou:

- E como se chama o parente de quem esperava receber auxilio em Fuenton-City?

- Heitor MacGregor - respondeu Kat, com toda a naturalidade.

- MacGregor? - exclamou o escocés.

- E qual é o seu parentesco com ele?

- Sou irmã. mas ele não me conhece. nasci depois de ele ter emigrado.

- Escute! - interrompeu MacGregor, num nervosismo que não lhe era habitual. - Onde nasceu?

- Em Loch Ness.

- Pois o teu irmão sou eu, Catarina! Que pena não terem vindo procurar-me logo que desembarcaram na América.

A pobre Catarina MacGregor ainda durou três dias, depois de a levarem com todas as precauções para o Pequeno Eden. O médico de Fuenton-City, que a auscultara, dissera ao irmão que ela estava por tal forma arruinada que poderia durar uma ou duas semanas, ou apenas umas horas. A doente não ignorava o seu estado. Sabia que a sua vida estava por um fio. Informada de que o seu Eduardo fora perfilhado pelos Everton, ficou contente e encarou o seu fim com resignação. Acusava-se a ela própria de tudo o que sofrera. Não devia ter desobedecido a seu pai, casando com aquele homem. Da desobediência vieram todos os males. Mas os últimos dias da sua vida decorreram extremamente calmos.

Quanto ao pequeno Eduardo cresceu numa atmosfera de ventura e soube compensar em amizade os desvelos dos Everton; e tinha pela sua irmãzinha mais velha, a Alicinha, uma verdadeira adoração. Quando, mais tarde, tomou conta do rancho, soube fazê-lo prosperar e aumentar até ao ponto de lhe mudar o nome. Passou a chamar-lhe o Grande Eden.

Era esta a história que o meu avô me contava, por ouvi-la contar ao seu avô. E eu próprio não me cansava de a ouvir.

 

                                                                                                 Ellery Parker 

 

 

                      

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