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Devia a vida a um total desconhecido...
A forma tão estranha em que Cameron a salvou de uma morte segura fez com que Summer se desse conta de muitas coisas... coisas que a assustavam e nas quais preferia não pensar.
Mas resultava inevitável. Cameron era distinto, não se parecia com ninguém que tivesse conhecido e, entretanto, algo nele lhe resultava familiar... E, sobre tudo, era um amante perfeito, que se adiantava a todos seus desejos. Mas também podia ser tão imprevisível como o mar. Tinha algo misterioso, que raiava ao sobrenatural...
A tormenta se aproximava pelo sul. Tinha ouvido o prognóstico no rádio, mas embora não fosse assim, Summer VanVorn teria sentido sua chegada. Não sabia qual era o motivo. Talvez a baixa repentina da pressão atmosférica a afetasse, em qualquer caso, sempre lhe ocorria o mesmo. Quando se aproximava a tormenta, não podia evitar sentir-se indisposta.
Segundo seu rádio portátil, a tempestade chegaria até a costa do Atlântico. Não tocaria a terra durante tempo suficiente para provocar estragos sérios, mas causaria alguns problemas na maioria das ilhas da baía.
Aquilo pegou Summer de surpresa. Havia sentido que se aproximava a tormenta, mas estava convencida de que aquele temporal, como quase todos, dirigia-se ao oceano e se extinguiria antes de chegar ao Maine.
Não obstante, talvez estivesse convencida daquilo porque era o que desejava acreditar. Sempre navegava para VanVornland em agosto. VanVornland era uma ilha como Pride, mas estava desabitada. Nem sequer existia nela um caminho de terra nem um muro de pedra; nem sequer uma cabana. Não aparecia em nenhum mapa que tivesse visto Summer. Tratava-se quase de um segredo de família. Seu segredo, dado que ela era a única VanVorn que seguia com vida. As duas semanas que passava ali cada ano.
Aquela vez deveria ter partido antes. Deu-se conta em menos de uma hora depois de embarcar rumo a sua casa. O céu se escurecia por momentos. Normalmente, a viagem de VanVornland até a ilha de Pride durava oito horas. Esperava chegar em seis, que era o tempo do qual dispunha antes de que a alcançasse a tormenta.
Ao cabo de uma hora, deu-se conta de que tinha pecado por otimismo. Encontrava-se no meio da tormenta. Cobriu-se o pulôver e a calça curta com um impermeável, arrumou o comprido cabelo loiro e amarrou fortemente tudo que se encontrava no barco. Transcorreu outra hora. Estava molhada até os ossos. Também estava aterrorizada. Não era a primeira vez que navegava em meio de um temporal, mas nunca se encontrou com um como aquele. Tudo o que podia fazer era aferrar-se ao leme e mantê-lo firmemente seguro rumo ao oeste.
Quando começou a chover não teve mais remédio que baixar as velas. Encolheu-se debaixo delas, enquanto tentava fugir da tempestade.
Não sabia quanto tempo tinha passado ali, molhada e gelada ao pé do mastro, enquanto o barco balançava fortemente. Quando as ondas ultrapassaram a amurada e o interior começou a alagar, tentou esvaziá-lo com uma mão, enquanto se segurava no corrimão com a outra.
De repente, com um rangido ensurdecedor, o mastro se partiu em dois. Seu medo se converteu em pânico. O barco se inclinou para o lado do mastro quebrado, enchendo-se de água com tanta rapidez que parecia inútil tentar esvaziá-lo. Colocou o colete salva-vidas, e apenas prendeu as correias, quando uma forte onda a jogou contra o chão. Sentiu uma pontada de dor, mas a esqueceu imediatamente, quando o barco se inclinou fortemente e acabou virando.
Summer saiu escorregando. Afundou-se nas águas geladas do oceano Atlântico, e uns segundos mais tarde se alçava ofegante. O casco do barco se balançava entre as ondas a uns poucos metros dela. Tentou alcançá-lo, mas o mar a arrastava em direção contrária. Então, os elementos pareceram compadecer-se e a empurraram para os restos da embarcação.
Chocou totalmente contra o casco de madeira. A pesar da dor cortante, subiu ao destroço. Ficou imóvel, segurando com todas suas forças a madeira molhada, enquanto a chuva a açoitava e as ondas ameaçavam lhe tirar o pedaço de madeira a qualquer momento. Aquilo era tudo o que podia fazer, pensou amargamente.
Segure-se, Summer. Segure-se. Pensou nos pôneis da pradaria. Pensou na pequena cabana onde sua mãe a educou e que agora era seu lar. Pensou no clavicórdio (um instrumento da Grécia antiga, muito parecido com o piano, porém mais leve) e na flauta, e tocou as doces melodias em sua mente para esquecer o rugir do vento e as ondas.
Suas forças se esgotavam. Seus membros deixavam de responder, a causa do frio e do esforço, e sua dor de cabeça e do lado do corpo aumentou até que a respiração constituía um esforço. O destroço lhe escapou das mãos. Conseguiu alcançá-lo, mas logo que conseguiu subir começou a escorregar de novo. O mundo ficou branco e silencioso.
Quando voltou em si, o colete tinha desaparecido. Olhou a seu redor, mas não pôde ver o barco. Abriu a boca para gritar, mas lhe encheu de água antes que pudesse articular nenhum som. Afundou-se e voltou para a superfície, lutando por fazer chegar o ar a seus pulmões.
Sentiu que algo a tocava.
-Respire - ordenou uma voz.
Debateu-se contra o braço que a sujeitava até que comprovou que não a arrastava de novo ao fundo.
-Muito bem. Pouco a pouco. Não vai lhe passar nada. Está a salvo.
O proprietário daquela forte voz mantinha sua cabeça sobre as ondas.
-Meu barco! - gritou Summer.
-Perdeu-se - agarrou seus braços e os passou ao redor do pescoço. -Terá que segurar-se. Acredita que pode?
Summer assentiu. Mais que ser capaz de segurar-se, era incapaz de mover os braços do lugar onde ele os tinha colocado. Quase perdeu o conhecimento enquanto ele começava a nadar.
Logo começaram a aparecer as perguntas: Como era aquele homem capaz de manter-se flutuando? Como podia avançar contra as ondas? Como sabia para onde dirigir-se? Onde estava o barco no qual tinha chegado?
Sabia que tremia, mas se tratava de uma sensação longínqua. De fato, tudo parecia distante, inclusive o perigo. Seu salvador seguia nadando sem cansar-se. Summer não tinha mais remédio que pôr sua vida em suas mãos.
Em um estado de semiconsciência, gemeu enquanto mudava o rumo. Esforçou-se para despertar. Através da chuva conseguiu ver algumas rochas na frente deles. Um instante depois, o nadador a levantou com seus braços e a tirou da água.
-Estamos em Pride! - conseguiu dizer, atônita.
Não entendia nada. Estava segura de que se encontrava a várias horas de distância quando o barco virou.
-Não estávamos tão longe como acreditava - disse com voz profunda.
Levou-a até a borda, e a deixou sentada na areia úmida, apoiada nas rochas de granito. Chovia fortemente, mas ele a protegia da intempérie com seus largos ombros. Inclinou-se para ela.
-Como se encontra?
-Aturdida - respondeu.
Passou uma mão atrás do cabelo de Summer e lhe sujeitou a cabeça.
-Sofreu uma forte impressão. Precisa secar-se e descansar. Onde vive?
Summer estava tremendo embora não era consciente de sentir frio. Mas era consciente de que não conhecia aquele homem, e nunca permitiria que um homem, nem sequer um conhecido, entrasse em sua casa.
Mas o que estava na sua frente lhe tinha salvado a vida. Não podia ser mau de tudo. Além disso, não estava segura de poder chegar sozinha até a casa.
-Vivo a um quarto de hora daqui. Ao final da praia há um caminho que conduz a uma estrada.
Quando acabou de pronunciar aquelas palavras, ele voltou a levantá-la nos braços. Devia estar terrivelmente cansado. Summer se perguntava de onde tirava energia. Encontrou o caminho rapidamente e, apertando-a fortemente contra seu peito para protegê-la da tormenta, começou a descer.
Pela primeira vez em sua vida, Summer desejou que passasse um dos habitantes da ilha com um carro. Mas não era muito provável. Teriam se encerrado em suas casas para esperar que passasse a tormenta. Não tinham por que preocupar-se. Afinal de contas, não se preocupavam com as árvores da pradaria onde pastavam os pôneis. No que a eles respeitava, tratava-se simplesmente de árvores. Mas Summer sabia que suas folhas continham substâncias nutritivas. Se as árvores se perdessem, perder-se-iam os pôneis.
Incapaz de considerar aquela possibilidade fechou os olhos e pensou no homem que a levava nos braços. Curiosamente, sentia-se a gosto junto a ele. Conhecia a paisagem de Pride como a palma de sua mão, e seguiu mentalmente o caminho.
-Agora verá uma estrada - conseguiu dizer, apesar do trabalho que lhe custava fazer-se ouvir por cima da tormenta. - Siga-a até o final, e vire à esquerda.
Rugiam os trovões. Aquele homem se abria passo, incansável, cruzando o vento. Summer sabia que devia lhe pedir que a deixasse no chão, lhe dar obrigado e despedir-se dele. Mas não se sentia capaz de caminhar. Doía-lhe todo o corpo, especialmente o joelho.
Quando chegaram ao caminho que conduzia a sua casa, esforçou-se para recuperar a consciência.
-Pare! Tenho que ver como está a pradaria.
-Agora não.
-Mas podem ter caído algumas árvores.
-Não poderá fazer nada até que o temporal melhore. Além disso, não está em condições.
Subiu os degraus da cabana e a conduziu ao interior. Depositou-a cuidadosamente no sofá.
-Terá que acender o fogo - disse, voltando-se para a chaminé.
Summer se incorporou e tentou levantar-se. Seu joelho gritou de dor, transmitindo o som por todo seu corpo até sair por sua garganta. O homem correu junto a ela. Falava com suavidade, mas a empurrava fortemente contra o sofá.
-Por favor, não se mova até que vejamos o que tem.
Desdobrou a manta de lã do sofá e começou a pôr por cima, mas ela a apartou.
-Estou molhada. Tenho que tirar a roupa.
Voltou a incorporar-se. Tentou tirar a roupa, mas seus dedos tremiam muito. Ele fez um gesto para ajudá-la.
-Não! - protestou Summer.
-Você não pode tirar isso sozinha.
-Mas você não pode tirar minha roupa.
-Por que não?
Antes que pudesse lhe dizer que tinha medo, viu-se possuída por uma onda de debilidade. Não tinha forças para discutir.
O desconhecido lhe tirou o impermeável com supremo cuidado. Depois lhe tirou o pulôver, e Summer se cobriu rapidamente com a manta afegã. Não gostava de levar sutiã, e embora aquele homem tivesse lhe salvado a vida, era um estranho. Quão único sabia dele era que seu conceito de férias consistia em atravessar a nado o oceano em meio de uma tempestade para salvar a uma moça em apuros e depois seduzi-la.
O homem estendeu a mão para o interruptor.
-Não funciona - disse envolvendo-se mais na manta. - Quando há tormenta, se corta a luz. Há um abajur de petróleo na cozinha.
Fechou os olhos e se concentrou para controlar a dor. Um segundo mais tarde percebeu uma luz através das pálpebras e abriu os olhos. O desconhecido a olhava fixamente, com o rosto iluminado pelo abajur. O cabelo escuro e úmido lhe cobria a testa. Seus traços eram agradáveis. Tinha o nariz reto, a mandíbula quadrada, e os olhos, de uma estranha cor azul marinho, cheios de preocupação.
-O que dói? - perguntou.
-Todo o corpo - gemeu Summer.
O homem dirigiu o olhar para a escada, de onde se via o quarto.
-É essa a única cama?
-Sim.
-Ficará melhor aqui.
Levantou-se para dirigir-se à lareira. Quando o fogo ardia sem problemas, voltou a sentar-se junto a ela. Acariciou-lhe a testa com delicadeza.
-Dói-lhe? - perguntou.
Ela assentiu.
-Estou sangrando?
-Temo que sim.
Levantou-se. Summer ouviu seus passos sobre o chão de madeira. Abriu e fechou uns quantos armários, primeiro na cozinha e depois no banheiro. Não o conhece, disse uma voz no interior de sua cabeça. Pode se cuidar sozinha. Sempre o fez. Diga-lhe que se vá. Mas aquela voz era muito fraca para escutá-la. Afundou o rosto entre as almofadas. Só desejava dormir. De repente, as almofadas se afundaram e as suaves mãos que lhe tinham acariciado a cabeça lhe desinfetavam o corte que tinha na testa.
Deduziu que devia tratar-se de um médico. Nunca tinha visitado nenhum, mas tinha ouvido falar deles. Não sabia como tinha ido parar no oceano junto a ela, mas parecia saber o que fazia.
-Só quero ajudar - disse em uma voz muito baixa que parecia introduzir-se em seu corpo e acalmá-la.
Mentira, dizia a voz. Mas não queria escutá-la. Sua voz era agradável, seus olhos eram sinceros, e tinha tanta razão que acabou por não resistir quando ele apartou a manta que a cobria e a deixou a um lado. Voltou a cabeça, incapaz de olhar, mas sentiu tudo o que fazia. Suas mãos eram grandes, cálidas e hábeis. Tocava-a com suavidade, mas com firmeza. Cada vez que gemia de dor, detinha seus movimentos e esperava um momento antes de prosseguir a inspeção.
-Parece-me que tem várias costelas danificadas - disse ao fim.
Centrou sua atenção em seu quadril. Summer só pôde articular um ligeiro som de protesto antes que lhe descesse as calças.
-Deve haver-se golpeado contra algo duro.
Aplicou-lhe anti-séptico sobre a ferida e a deixou um momento para procurar uma gaze. Quando voltou, Summer havia coberto o peito com a manta.
Passou um momento lhe curando o quadril. Quando, por fim baixou ao joelho, Summer não pôde conter o grito de dor. Incorporou-se, esforçando-se para respirar.
Empurrou-a brandamente contra o sofá e lhe massageou as têmporas. Falava em voz baixa, com palavras incompreensíveis, mas tranqüilizadoras. Quando voltou a lhe tocar o joelho, a dor já resultava suportável.
Quando despertou era de noite. O vento seguia soprando com força, e a água golpeava os cristais. Mas no interior da cabana, a lareira crepitava, lhe enviando uma cálida bem-vinda.
O desconhecido estava sentado no chão, com as costas apoiada na poltrona. Só vestia uns jeans. As chamas iluminavam seu semblante, mas Summer só pôde examinar seu perfil durante uns segundos antes que ele virasse a cabeça.
-Como se encontra? - perguntou.
Sua voz e seus olhos resultavam tão tranqüilizadores como antes, mas seu corpo a assustou. Era alto e forte, e só a idéia de tê-lo em casa a colocava nervosa. Seu peito musculoso lhe recordava que ela era uma mulher, e naquele momento, encontrava-se bastante debilitada.
-Não lhe vou fazer mal - disse franzindo o cenho. - De verdade.
Como a desconfiança não abandonava o olhar de Summer, acrescentou:
-Minha roupa também estava molhada. Tinha frio.
Sentia-se confusa. Aquele homem tinha lhe salvado a vida da forma mais heróica, tinha-a levado para casa e tinha curado suas feridas. Seria capaz de lhe fazer dano? Além disso, havia algo em sua expressão que lhe resultava conhecida...
-Como se encontra? - perguntou de novo.
-Como se um elefante tivesse me pisado. Mas não posso me queixar - acrescentou ao recordar o pânico que tinha sofrido no mar. - Tenho sorte de estar aqui. Obrigado por me salvar.
Respondeu a aquelas palavras com uma leve inclinação de cabeça, mas não fez gesto de mover-se.
-Continua doendo a cabeça?
-Um pouco menos.
-As costelas a incomodarão durante um tempo. Que tal o joelho?
-Quebrei? - perguntou, recordando o muito que lhe tinha doído.
-Não; é só uma torção.
Estava segura de que tinha uma fratura. Nunca havia sentido uma dor tão aguda e penetrante. Tentou mover a perna para assegurar-se. Ainda lhe doía, mas muito menos que antes. Levou-se a mão à articulação, para examiná-la, e em efeito não parecia quebrada.
De repente advertiu, desconcertada, que só usava uma camisola. Aquilo significava que aquele homem que tinha salvado sua vida, aquele homem que possuía uma força física maior que a sua, tinha-a despido. Nenhum homem a havia visto nua até então.
Em uma ocasião, alguém esteve a ponto de ver. Ocorreu há vários anos atrás, em um dia nublado de novembro. Voltava para casa carregada de pacotes quando se viu atacada. Naquela ocasião, o homem também era mais alto e forte que ela, mas seus olhos estavam cheios de desejo. Tentou lhe arrancar a roupa, mas ela conseguiu deixá-lo fora de combate com um pau de macarrão. Correu para casa e passou toda a noite na porta, apontando com uma pistola. Mas ele não foi procurá-la e uma semana mais tarde morreu no mar. Não sentiu nada. Tinha desejado sua morte; estava convencida de que o mundo seria melhor se não existisse pessoas como ele.
E o homem que se encontrava junto a ela? Tinha-lhe salvado a vida e apesar de havê-la despido, não tinha se comportado com crueldade.
-Quem é você? - perguntou com voz tremente.
-Meu nome é Cameron - respondeu. - Cameron Divine.
Aquele nome não lhe dizia nada, mas seu rosto seguia lhe parecendo familiar.
-Onde vive?
-Vamos, no norte.
Assim era canadense. Era bastante normal encontrar canadenses no Maine, sobre tudo no verão. Em caso de que visitasse a ilha com regularidade, talvez lhe resultasse conhecido porque se cruzou com ele em alguma ocasião.
-É a primeira vez que vem?
-Sim.
De modo que não o tinha visto antes.
-Que fazia no mar?
-O mesmo você. Parece que a tormenta estava empenhada em devorar barcos.
-Vinha de outra ilha navegando? - havia centenas delas ao longo da costa.
Ele assentiu.
-Sozinho?
Voltou a assentir.
Estudou seu rosto. Não tinha nenhum machucado. Tampouco no corpo. Percorreu com o olhar os músculos que começavam em seus ombros e terminavam em seus pulsos. Perguntou-se como podia ter uma constituição tão perfeita, e como as tinha arrumado para não resultar ferido.
-Tive sorte - respondeu como se lesse sua mente. - Uma onda me atirou do barco antes que se afundasse.
Summer recordou que tinha percorrido vários quilômetros com ela às costas. Por mais forte que fosse o que tinha feito era sobre-humano.
-Como conseguiu?
-Estou em forma.
Aquilo resultava evidente, e ela tinha dados de sobra. O fato de que nenhum homem a houvesse visto nua não significava que ela não tivesse visto nunca a um homem nu. Quando em Pride alguém ficava doente e a medicina convencional não ajudava, chamavam-na para que fizesse o que pudesse com seus bálsamos. Normalmente, tudo transcorria em segredo, de noite, para evitar que o resto da cidade se inteirasse. Mesmo assim, tinha visto tudo o que teria para ver em muitos ilhéus. Conhecia a fundo o corpo masculino, bastante para saber que o de Cameron Divine era o mais perfeito que tinha visto em sua vida.
-Tanto como para nadar apesar do furacão?
-Não nadei tanto como acredita. As ondas me empurraram para a costa.
-Mas não nos afundaram - insistiu. - A verdade é que poderíamos ter nos afogado dez vezes.
Virou a cabeça lentamente e a olhou nos olhos.
Mas não nos afogamos, disse em tom firme com seu olhar e isso é o que conta. Depois, em voz alta, disse:
-Quer um pouco de caldo?
A eloqüência de seus olhos a tinha surpreendido tanto, que demorou um minuto para assimilar a pergunta. Olhou para a cozinha, onde fervia uma chaleira.
-Estive cozinhando enquanto dormia - explicou. - Não sei como está. Tem coisas muito estranhas no armário.
Aquilo era certo, mas a ironia de suas palavras a incomodou. Os caldos medicinais eram sua especialidade, e esse era o motivo pelo qual tinha todas aquelas coisas estranhas. Sabia perfeitamente o que devia mesclar para recuperar as forças, mas se sentia muito fraca para levantar-se fazê-lo. Toda sua sabedoria resultava inútil no momento em que mais a necessitava.
Não estava disposta a contar a Cameron. Normalmente, algumas pessoas pensavam que, se tinha aquelas crenças, devia ser muito liberal; enquanto que outras opinavam que estava louca. Não sabia a qual dos dois tipos pertencia Cameron, mas não estava disposta a indagar antes de encontrar-se em disposição de defender-se.
Contemplou-o em silêncio enquanto se levantava e se dirigia à cozinha. Encheu uma taça com um líquido fumegante, voltou junto a ela e a ajudou a incorporar-se. Cheirou a bebida antes de tomá-la, para identificar as coisas estranhas que tinha colocado no caldo. Com certas combinações poderia perder o sentido, desmaiar ou vomitar; até poderiam lhe crescer cabelos no peito.
Mas não detectou nada que pudesse lhe fazer dano.
-Fiz bem? - perguntou. De novo parecia ler seu pensamento.
-Muito bem - disse, esboçando um sorriso.
-Então, beba. Disse, dirigindo a vista ao fogo.
Fez pensando no olhar que tinha falado com tanta claridade momentos antes. Os olhos de Cameron Divine eram espetaculares. Como seu corpo. Aquelas observações eram bastante estranhas vindas de Summer VanVorn. Não conhecia os homens no plano sexual. Quando os tocava, era para examiná-los como pacientes. Mas nunca tinha sido tocada por eles. E Cameron Divine tampouco o tinha feito. Mas estava o estranho calor que indicava que o via como um homem. Aquilo a intranqüilizava.
Mais inquietante ainda era a certeza de que aquele homem ia passar a noite em sua casa e não sabia nada dele. Decidiu averiguar quanto pudesse.
-É você médico?
Encontrava-se sentado enfrente ao fogo, com as longas pernas estiradas.
-Não.
-A que se dedica?
Aquilo soava muito oficial e complexo; sobre tudo naquele momento. De novo se sentia sonolenta.
-Onde trabalha?
-Em um laboratório.
-Onde?
-Acima, no norte.
Era o mesmo que tinha respondido antes. Desejava que fosse mais explícito. Sua ambigüidade lhe inspirava desconfiança. Perguntava-se o que ocultava, embora não soubesse muito sobre o Canadá, de todas formas.
-Tem família?
Ele negou com a cabeça.
-Não tem nenhum parente? - insistiu.
Queria pensar que tinha uma amante ou esposa e um montão de meninos esperando-o em casa. Ao menos, aquilo lhe proporcionaria uma referência sobre sua forma de ser. Ao ver que voltava a negar, perguntou:
-Ninguém que se possa preocupar pensando que se afogou?
-Demorariam bastante para preocupar-se.
Fechou os olhos. Se aquele homem tinha más intenções, estava perdida. A cabana estava completamente isolada, e ele não parecia ter intenção de partir. Não podia expulsá-lo; sobre tudo naquele momento. Sentia-se estranha, como se estivesse drogada.
-Quero subir para o quarto - conseguiu dizer. Conseguiu com grande esforço pôr os pés no chão e sentar-se. De repente, Cameron estava de pé enfrente a ela, lhe fechando o passo.
-Estará melhor junto à lareira.
-Tenho que subir - disse com dificuldade.
Deve ter captado sua necessidade, porque deixou de insistir, levantou-a nos braços e se dirigiu à escada.
-Posso subir sozinha - sussurrou contra seu peito.
Mas estava a ponto de deprimir-se, e não podia evitá-lo. Estava segura de que aquele homem tinha posto algo no caldo. Se não, não lhe custaria tanto trabalho manter-se acordada. Lutando para conservar a pouca consciência que ficava, deixou que a colocasse na cama.
-Bem? - perguntou, lhe tirando com delicadeza o cabelo do rosto.
-Bem - respondeu ela.
Esperou a que desse a volta. Não podia esperar mais. Abriu a gaveta da mesinha, tomou uma pequena pistola negra e, com o dedo no gatilho, deslizou-a sob o travesseiro. Só então se permitiu cair em um profundo sonho.
A pistola tinha desaparecido. Summer se deu conta imediatamente depois de despertar. Estava segura de ter dormido com ela na mão, embora não recordava muito bem por que a tinha pegado. Procurou sob o travesseiro e entre os lençóis, quando uma voz profunda disse:
-Está comigo. Fiquei com medo de que disparasse enquanto dormia.
Virou a cabeça rapidamente, enfocou o olhar com certo esforço no proprietário daquela voz que lhe atravessava o coração levando a sua memória lembranças desconexas. Cameron estava sentado no chão, não muito longe de sua cama, com os dedos apoiados nos joelhos dobrados. Ainda levava o peito descoberto, e parecia ainda mais alto no pequeno quarto. A pistola pendurada em sua mão.
-Por que acha que queria te machucar? - perguntou perplexo.
Summer tentou encontrar uma resposta, mas se encontrava muito confundida para pensar. Os acontecimentos da noite anterior ainda não tinham tomado forma em sua mente.
-Tirei-te do mar e te trouxe para casa - disse. - Por que ia querer te fazer dano?
Não sabia. Não entendia os homens.
-Aqui tem - disse Cameron, lhe estendendo a pistola. – Pegue-a se com ela vai se sentir mais segura.
Agarrou rapidamente a arma, sem desculpar-se, e a apertou contra seu peito. Fechou os olhos e tentou acalmar-se. Ao fim de um momento, ele perguntou: - Usou-a alguma vez?
Claro que sim, queria responder. Sou muito boa atiradora. Se aproxime de mim, e é um homem morto. Mas não era muito boa mentindo e, além disso, Cameron tinha algo que a freava. Como podia explicar que era uma solitária, e que sua experiência com seus semelhantes, tanto de um sexo como do outro, alguma vez tinha resultado positiva?
-Não - confessou. - Nunca a usei.
-Então para que a tem?
Olhou-o com uma expressão que tentava ser uma sutil advertência.
-Porque sempre há uma primeira vez.
Não respondeu. Limitou-se a fixar nela o azul escuro de seu olhar.
-Como se encontra? - perguntou brandamente.
-Tensa - respondeu.
-Dói algum lugar?
-Não.
Ao menos, não sofria nenhuma dor aguda. Mas sentia uma ligeira debilidade, e seus membros pareciam pesados. Recordou que na noite anterior dormiu muito rapidamente. Voltou a ficar em guarda, e perguntou:
-O que pôs na sopa? Havia algo que me deixou fraca.
-Estava fraca porque teve um dia bastante agitado. Precisava dormir.
-Que horas são?
-Onze.
Incorporou-se rapidamente, sem emprestar atenção às cãibras que percorreram seu corpo.
-Nunca acordei tão tarde. Foi a sopa - ficou muito quieta, escutando em silêncio. - Passou a tormenta?
-Diminuiu. Agora só chove.
Devia havê-lo notado. Sua pele não era tão sensível como no dia anterior, sua temperatura era normal, e apesar da presença desconcertante de Cameron, sentia-se mais tranqüila. Empurrou a colcha a um lado e ficou de pé, mas seu joelho fraquejou e teve que sentar-se.
Cameron não se moveu.
-Aonde vai tão depressa?
-Ao banheiro - respondeu, evitando seu olhar.
Era muito alto, muito forte. Em comparação, sentia-se fraca e pequena.
-Depois, irei à pradaria a ver os pôneis - acrescentou.
-São teus?
-Mais ou menos. Não pertencem a ninguém mais, e eu sou a única que se preocupa com eles.
Massageava-se a consciência o joelho, procurando os pontos que lhe doíam e alivia-os com seu tato. Ainda estava surpreendida de comprovar que não tinha nada quebrado. Os músculos estavam ressentidos, mas aquilo era tudo.
-Então, os pôneis são selvagens - constatou Cameron.
-Sim.
-Que estranho - comentou depois de uma pausa. – Me estranha que uma ilha que se encontra tão ao norte possa manter uma manada de pôneis selvagens.
O desafio que encerrava sua voz atraiu o olhar de Summer. Seus olhos eram profundos e a expressão de seu rosto, inocente. Era um rosto extraordinariamente atrativo, mais do que tinha pensado na noite anterior. Confia em mim, dizia seu olhar. Fala comigo. Apesar de sua resistência, captou aquelas palavras e tentou as combater.
Não estava acostumada a ter homens a seu redor. Disse-se que aquilo era tudo. Não estava acostumada a ver um homem em sua cabana, e a presença de Cameron não podia ser evitada. Tinha que vestir-se, sair e comprovar se as ilhas de Pride eram transitáveis. Queria que Cameron Divine partisse da ilha quanto antes. Queria encontrar-se a salvo. Queria que tudo voltasse a ser como antes. Queria estar sozinha.
Descansando o peso de seu corpo sobre a perna sã, levantou-se para comprovar o estado da outra. Apenas o fez, Cameron correu a seu lado e a sujeitou pelo cotovelo.
-Encontro-me bem - assegurou-lhe, embora tivesse certas dúvidas.
-Ainda não - replicou-. O joelho não está bem. Se te apoiar nele, demorará mais em se curar.
Separou-se dele, com o fim de assegurar sua independência.
-Posso andar - insistiu.
Conseguiu descer a escada e chegar ao banheiro. Nada mais fechar a porta, sentou-se na borda da banheira.
-A obstinação não vai curar seu joelho - gritou Cameron atrás da porta.
-Não é obstinação - respondeu.
-Então, é cabeça dura.
-Tampouco. Estou bem.
-De acordo - declarou depois de um minuto de silêncio. - Se quer atirar pedras contra seu próprio telhado, adiante.
Quinze minutos depois, Summer saiu do banheiro sentindo-se mais proprietária de si mesma. Usava jeans limpos e uma camiseta grande. Depois de prender o cabelo, curou-se as feridas, surpreendendo-se ao comprovar a rapidez com que cicatrizavam. Tinha que reconhecer que, apesar de lhe haver posto na sopa algo que a fez dormir, Cameron Divine se deu bem.
Além disso, o sonho lhe tinha sentado bem. A falha era que lhe tinha sido imposto, e estava acostumada a decidir o que devia fazer e quando. Não acreditava que ninguém pudesse saber melhor que ela mesma o que lhe convinha.
Repetindo-se aquilo, cruzou o salão. Fazendo caso omisso da presença de Cameron, colocou umas botas de borracha, agarrou o impermeável que estava pendurado no cabideiro e saiu. Em efeito, doía-lhe o joelho. Também as costelas e a cabeça. Sabia que o melhor que podia fazer era ficar na cama, mas não podia permitir-se aquele luxo. Precisava recuperar a tranqüilidade, e para isso devia visitar a pradaria.
Cobriu a cabeça com o capuz do impermeável, para proteger-se da forte chuva. Subiu a costa que havia detrás da cabana. A erva estava alta e escorregadia. Perdeu várias vezes o equilíbrio, mas sempre conseguiu pôr uma mão no chão antes de cair. No topo da colina o caminho se voltava plano. Seguiu-o, sob um guarda-chuva de pinheiros e sobre um tapete de agulhas de conífera muito mais densa que antes da tormenta.
Logo se encontrou na pradaria, e pela primeira vez em mais de um dia sentiu verdadeira esperança. Quando seus olhos se adaptaram à névoa começou a divisar algumas formas, e quando aquelas silhuetas sentiram sua presença e se aproximaram uma a uma, em seus lábios se desenhou um sorriso. Abraçou ao primeiro dos pôneis, e afundou o rosto em sua crina, empapando-se da doce mescla do animal e o bosque. Seu capuz caiu para trás, mas tinha deixado de chover tão fortemente. Alargou a mão para tocar a outro pônei, e logo a outro mais, até que acariciou a todos. Seus olhos brilhavam com lágrimas de felicidade.
Os pôneis estavam bem. Não faltava nenhum, e nenhum estava ferido. As árvores também seguiam em pé, só tinham perdido umas poucas folhas, mas as recuperariam rapidamente.
Um nariz úmido roçou sua mão. Tratava-se de Pumpkin, o menor e carinhoso dos pôneis.
-Olá, carinho - saudou, acariciando sua cabeça aveludada. - Está bem verdade? Estava tão preocupada - sussurrou chorosa.
Apertou-se fortemente contra ele durante um momento, antes de lhe beijar o pescoço. Quando se afastou para seguir inspecionando a pradaria, o animal se manteve a seu lado. Percebeu que estava observando suas feridas e estava preocupado.
Respirou profundamente, embora com precaução, para não fatigar suas costelas. Aquele era seu mundo. Sentia-se segura e querida. Lentamente, enquanto a chuva caía sobre a paisagem, a névoa dava forma ao ar e os pôneis pastavam, sua tensão começou a desaparecer.
Tirou a flauta e começou a tocar. As notas eram suaves e lentas, melosas, quase mágicas. Transmitiam suas vivências, seus sentimentos passados e presente. Cada uma das notas era nova, não tinha sido escutada antes e não seria escutada depois. Aquilo a entristecia, porque, inclusive para seus ouvidos, aquela música possuía uma beleza deliciosa. Tranqüilizavam seu corpo e sua alma mais que nenhuma outra coisa.
Estava tão embebida com o som da flauta que não ouviu Cameron aproximar-se. De repente, sentiu sua presença e se virou para encontrá-lo a menos de um metro de distância.
-Não pare - disse. - É precioso.
Mas Summer nunca tocava para as pessoas, de modo que foi incapaz de voltar a colocar a flauta na boca. Chovia, e o homem usava jeans e uma camisa. Se sua roupa se secou durante a noite, já estava molhada de novo, mas não parecia dar-se conta. Parecia completamente cômodo.
Tratava-se de um demônio ou de um anjo. Summer não sabia qual das duas possibilidades era a certa. Confundida e insegura, virou-se para os pôneis. Pumpkin se aproximou deles.
-Assim que estes são seus pôneis - disse Cameron.
Summer assentiu.
-São selvagens de verdade?
Voltou a assentir. Não queria falar, não queria animá-lo para que ficasse. Além disso, resultava-lhe mais fácil não olhá-lo. Seus olhos falavam com ela de uma estranha maneira.
-Disse que só estão aqui durante o verão. Onde passam o resto do ano?
-Não sei.
-Como é possível que não saiba?
-Não os sigo quando se vão.
-Pensava que, já que se preocupava tanto por eles, quereria saber tudo o que fazem.
-Ninguém sabe o que fazem - disse com tom desafiante. - Aparecem na borda ao redor do solstício do verão e se vão quando começa o outono. Supõe-se que vão de ilha em ilha até chegar ao continente, mas o que fazem uma vez ali é um mistério. Só sei que vêm um ano atrás do outro.
-Para comer estas folhas?
-Têm algo especial.
-Do que se trata?
Duvidou por um momento. As folhas, os pôneis e a pradaria eram assunto dela, e não de Cameron. Mas parecia verdadeiramente interessado. Quase ninguém se interessava, de forma que respondeu.
-Não sei. Tentei averiguá-lo. Levei amostras a muitos laboratórios, mas em nenhum encontraram nada que não exista em qualquer outro lugar - tinham pensado que estava louca por insistir em que tinham algo especial. - Mas os pôneis se negam a comer outras folhas. Trago-lhes folhas do continente, e não as tocam. Estas árvores são distintas.
Olhou a Cameron, esperando ver a incredulidade refletida em seu rosto. Aquela era a reação mais normal, cada vez que falava dos pôneis da pradaria. Mas Cameron se limitava a olhar os pôneis pensativo. Desgraçadamente, não passou muito tempo apanhada por seus olhos. Sob a vista à camisa molhada, que se adaptava a seu corpo como uma segunda pele, desenhando os músculos de seus ombros e braços. Recordou seu peito nu, e sentiu a mesma onda de calor que tinha sentido ao contemplá-lo.
-É este o único lugar onde pastam? - perguntou Cameron.
-Sim - respondeu. - Tentei conduzi-los a outras partes da ilha, mas se negam a comer. Até mesmo quando lhes dou outra classe de erva. Nem sequer o provam.
-Por que vão fazer se tem estas árvores?
-Porque talvez um dia não as tenham.
-Quer dizer que as árvores podem desaparecer de repente? Acredita que poderia ocorrer algo assim?
-É possível. Já viu o que aconteceu ontem. O furacão não provocou danos graves, mas o próximo poderia destruir as árvores - sua mãe sempre tinha estado convencida de que ocorreria. O havia dito em mais de uma ocasião; a última vez, pouco antes de morrer. - As catástrofes naturais existem. Como as artificiais.
-Artificiais?
-Por exemplo, o desenvolvimento industrial. Desde que tenho uso da razão, lembro ter visto gente que examinava a pradaria com a intenção de urbanizá-la. A pessoa queria construir um hotel; outro, um campo de golfe; outro chalé... de qualquer forma, teriam destruído as árvores para ampliar a pradaria, sem preocupar-se com os pôneis. Tanto faz se em algum verão aparecessem aqui e morram de fome.
-Suponho que sim.
-Claro que sim, - anunciou levantando o queixo desafiante.
-Muito bem - comentou sorrindo. - Evidentemente, sempre conseguiu dissuadi-los, posto que não estão aqui agora.
Deu um tapinha nas costa de Pumpkin e o contemplou enquanto se afastava para reunir-se com a manada.
-Não foram meus argumentos os que fizeram que mudassem de opinião.
-Se não foram seus argumentos o que foi?
-Coisas pequenas - respondeu encolhendo os ombros. - O clima, a forma em que se encharca o terreno, as serpentes...
Mencionou-as porque de repente se deu conta de que tinha estado empregando a tática errada. Estava tentando atuar como uma pessoa normal, com o fim de que a respeitasse. Mas queria que partisse, até o ponto de estar disposta a ficar mal diante dele com tal de fazer que se fosse.
-Serpentes? - repetiu Cameron.
-Serpentes grandes, longas e gordas - confirmou. - Às vezes invadem a pradaria por completo. Cameron olhou a seu redor, tentando localizar entre a chuva alguma forma grande longa e gorda.
-Não vejo nenhuma serpente.
Summer não sabia muito bem se estava incômodo. Talvez as serpentes não o incomodassem absolutamente.
-Só vêm quando a pradaria está em perigo. O mesmo com os insetos.
-Insetos? - perguntou levantando uma sobrancelha sem acreditar.
-São como mosquitos descomunais, grandes e negros, com um zumbido que enlouquece a qualquer um. Na hora de picar, são incansáveis.
Cameron colocou as mãos nos bolsos traseiros da calça. Summer seguia sem saber se tinha conseguido convencê-lo, porque naquele momento não havia nem um mosquito.
-Assim há serpentes e insetos - disse pensativo. - Não incomodam os pôneis?
Summer negou com a cabeça.
-Só os especuladores - disse ele.
Summer assentiu.
-Também mencionou os charcos.
-São enormes. Ao final, a pradaria parece uma lacuna.
-Agora não parece.
-Porque não a está ameaçando. Mas acredite; o terreno se enlameia e quando o faz cheira. Às vezes cheira tão mal que resulta insuportável. Os aldeãos juram e perjuram que a zona é seca, mas assim que os possíveis compradores vêem e cheiram os charcos, começam a prever todo tipo de problemas e se assustam.
Cameron levou uma mão à nuca.
-Naturalmente, também chove cada vez que inspecionam a pradaria.
-Ou se não, fica o bastante úmida para atrair os insetos.
-Ou às serpentes.
-Também. Este sítio é muito estranho. A maioria dos habitantes da ilha acredita que está encantado.
-Mas você vive aqui. Você não pensa que está encantado?
Summer fingiu considerar o assunto durante um momento antes de assentir.
-Não te dá medo?
Negou com a cabeça, olhou-o fixamente e disse com solenidade:
-Sou parte do encantamento. Eu sou quem provoca a aparição das serpentes, os mosquitos e os charcos.
Cameron riu.
-Não acredita? - perguntou.
-Se tivesse esses poderes, já teria conjurado algo para me espantar.
-Se ainda não fiz - replicou, molesta ao comprovar a facilidade com que aquele homem lia seu pensamento, - foi porque salvou minha vida.
Guardou a flauta, disposta a partir. Mas assim que percorreu os primeiros passos, seu joelho cedeu. Inclinou-se sobre ela com um grito de desmaio, mas não pôde fazer mais que sujeitar-lhe com as mãos antes que Cameron corresse para tomá-la em braços.
-Me deixe no chão - ordenou, embora estivesse mais preocupada com aliviar sua dor que por fazer-se obedecer.
-Seja razoável - respondeu ele, enquanto se dirigia ao caminho. – Machucou o joelho. Me dá igual que tenha poderes; o caso é que precisa descansar.
Recordou a outra vez que foi arrastada ao bosque contra sua vontade.
-Me deixe no chão! - repetiu.
-Quando chegarmos à cabana.
-Agora! Solte-me!
Conseguiu liberar um braço e disparou contra seu rosto.
-Tranqüila - Cameron tentou esquivar o golpe, e o punho de Summer se descarregou contra sua orelha-. Se acalme.
Sentiu que ele afrouxava os braços. Tombou-a sobre as agulhas de pinheiro que cobriam o chão do bosque como um tapete. Seu corpo se apoiava contra ela. Começou a tremer, mas não de frio, mas sim de terror.
-Tranqüila - repetiu, como se não soubesse o que fazer.
Olhou-o se desesperada, lhe suplicando em silêncio que a soltasse.
Não o fez, mas ao menos se deitou junto a ela e a sujeitou de uma maneira que resultava muito menos ameaçadora. Quando ao fim comprovou que deixava de tremer, perguntou-lhe:
-O que te passou?
Meditou durante um momento, mas estava tão aterrorizada que não lhe pareceu conveniente procurar uma desculpa.
-Eu não te vou violar.
Summer sacudiu ligeiramente a cabeça.
-Tenho aspecto de violador? - perguntou com paciência.
Não precisava olhá-lo. Tinha sua imagem gravada no cérebro.
-É grande e forte - disse.
Apesar daquilo, não tinha a impressão de encontrar-se ante um violador. Sujeitava-a com cuidado, para não lhe machucar, e seu contato resultava mais protetor que ameaçador.
-Todos os violadores são grandes e fortes? - perguntou com o mesmo tom acalmado.
-Não.
-Todos os homens são violadores?
-Têm a capacidade de sê-lo.
-E a inclinação?
-Como quer que saiba? Não tenho nem idéia do que se passa por suas cabeças.
-Acredita que todos os homens pensam em violação?
Recordou os livros que tinha lido e os filmes que tinha visto, e se viu obrigada a transigir.
-Não.
-Então por que acredita que quero te fazer dano?
-Porque a forma em que me tirou do oceano e me trouxe para casa foi muito estranha. Agora fica a meu redor, como se não tivesse nada melhor que fazer, e não estou acostumada a estar rodeada de gente; muito menos, de homens. Tem que ir. Não pode ficar aqui.
-Porque deixo você nervosa?
-Não. Simplesmente porque não quero que ninguém fique aqui. Salvou-me a vida, e lhe agradeço isso. Mas já pode ir, estou perfeitamente bem.
-Tenho certeza - respondeu.
Mas em vez de soltá-la e dirigir-se ao centro da cidade para procurar um quarto de hotel, levantou-se com ela entre os braços e continuou descendo pelo caminho.
-Ouviu-me? - perguntou Summer, inclinando a cabeça para ver seu rosto.
-Sim.
-E?
Continuou caminhando.
-Cameron?
-Salvei sua vida. Você mesma disse, em mais de uma ocasião. O menos que pode fazer é me deixar tomar o café da manhã.
-É muito tarde para tomar o café da manhã.
-Pois para comer.
-Irá depois da comida?
Olhou-a. Seus olhos diziam já veremos. Normalmente, Summer deveria ter se assustado, mas não podia evitar sentir-se cômoda e protegida entre seus braços. O mais estranho de tudo era que também sentia que alguém se preocupava com ela. A única pessoa que tinha cuidado dela em alguma ocasião tinha sido sua mãe. Certo era que antes de morrer havia dito que encontraria um homem algum dia, mas não tinha acreditado. Todos os homens que conhecia eram distantes ou cruéis. Não podia confiar em nenhum; nem sequer em Cameron.
-Já estamos aqui - disse um momento depois, quando se meteu com ela na cabana, a salvo da chuva.
Depositou-a no chão com cuidado e foi procurar toalhas enquanto ela tirava o impermeável e as botas. Summer foi ao banheiro, pegou a toalha que Cameron lhe estendia e fechou a porta. Secou-se o rosto e o cabelo, tirou os jeans e ficou de short. Pendurou a calça para que se secasse e voltou para a cozinha.
Encontrou Cameron sem camisa nem sapatos, cozinhando algo. Não parou para lhe perguntar o que fazia. Não queria saber. Não queria pensar no que podia acontecer se negasse a partir.
Com cuidado para não roçá-lo, escolheu várias ervas, folhas e pós, mesclou tudo em uma panela com uns quantos líquidos e pôs para esquentar. Quando terminou, levou a panela à mesa, sentou-se em uma cadeira, apoiou a perna sobre a outra e aplicou a mescla fumegante sobre o joelho. Depois de envolver-lhe com uma toalha, apoiou-se no respaldo e suspirou.
-Encontra-se melhor? - perguntou Cameron.
Estava apoiado na pia, e parecia mais corpulento que nunca, com os braços cruzados sobre o peito.
-Sim.
Sentia que os vapores atravessavam sua pele, relaxando seus músculos e aliviando a dor.
-Onde aprendeu a fazer isso?
-Ensinou-me minha mãe.
-A que se dedicava?
-Era curandeira - fez uma pausa e continuou - como eu.
Olhou-o, preparada para contemplar sua expressão de desdém. Mas Cameron permaneceu pensativo.
-Curandeira - repetiu. - Não sabia que ainda existissem os curandeiros.
-Já vê. Muita gente toma acha que somos bruxas.
-Utiliza o poder da mente, ou as ervas que mesclas.
-Sobre tudo, as ervas.
Nunca tinha estado muito convencida do contrário.
Os poderes de sua mãe eram maiores, e os de sua avó, mais ainda. Mas a capacidade de curar com a mente tinha se perdido de geração em geração, e Summer só confiava nos ingredientes que colhia no bosque.
-E funcionam?
-Normalmente, sim.
-De quem aprendeu sua mãe? - perguntou intrigado.
-De minha avó.
-E sua avó?
-De minha bisavó.
-Todas eram curandeiras?
-Sim.
-A que se dedicavam os homens de sua família?
-Nem idéia - respondeu olhando-o desafiante. - Nunca ficaram durante bastante tempo para fazer nada. Vinham, faziam um bebê, e iam embora. Sou tão ilegítima como minhas antecessoras.
-Alguma vez conheceu seu pai?
Ao negar pela segunda vez lhe pareceu observar que uma expressão de ira cruzava o rosto do Cameron. Sinto muito, diziam seus olhos. Não devia te perguntar tantas coisas.
-Viro-me muito bem - disse com orgulho.
-É muito bonita para viver sozinha. Muito delicada. Muito vulnerável.
-Eu não sou vulnerável - declarou.
-Sim, é. Vejo-o em seus olhos. E ouço em sua música.
Cameron olhou o clavicórdio que repousava em um canto do salão. Aproximou-se, e colocando uma só mão no teclado, reproduziu a melodia que Summer havia tocado no para os pôneis. As notas fluíram com o mesmo timbre meloso, a mesma ressonância encantada e a mesma sombra de vulnerabilidade que tinha saído de sua flauta. Tocava tão envolvido que não observou a expressão assustada de Summer até que chegou à última nota. Mas já era muito tarde. Summer já se deu conta de que Cameron Divine era especial.
Sua música chegava ao coração, acompanhando seus sentimentos. Summer tinha passado sua vida escutando música, mas nunca tinha falado com sua alma daquela maneira. Como o azul sem fundo de seus olhos, a personalidade de Cameron conectava com algum lugar de seu interior.
-Como conseguiste tocar isso? - perguntou atônita.
-O que? O clavicórdio?
-Minha canção. É a mesma que toquei antes na pradaria, mas não sei como conseguiu recordá-la e reproduzi-la.
Ela mesma não tinha sido capaz de fazê-lo. Além de repetir cada nota, Cameron tinha colocado na melodia a mesma carga emocional que ela. Não conseguia entendê-lo.
-Dá-te medo que tenha posto em seus sanduiches algo que não pus em meus? - perguntou sorridente.
Seu sorriso atraiu a atenção de Summer para sua mandíbula quadrada. Ao subir o olhar e encontrar-se com seus olhos azuis marinho, sentiu um comichão.
Com a esperança de que aquela sensação fosse por causa da fome, respondeu encolhendo os ombros. Afinal de contas, sua sugestão não tinha sido de todo estranha. Não seria o primeiro homem do mundo que desse estupefacientes a uma mulher para vencer sua resistência. Observou-o enquanto comia uma das fatias com tranqüilidade. Suas pálpebras não se fecharam de repente. De verdade acredita que alguém que pode tocar sua música seria capaz de te envenenar?, perguntou-se.
Movendo-se mais pela curiosidade que pela fome, mordeu seu sanduiche e comprovou surpreendida que Cameron tinha razão. A combinação resultava muito boa.
-Onde aprendeste a cozinhar? - perguntou.
-Por aí - respondeu encolhendo os ombros.
-Outro conhecimento irradiado de pai a filho?
Cameron riu, sem incomodar-se em responder. Summer esqueceu a pergunta ao contemplá-lo. Seu olhar a cativava, e quando se via envolta nele esquecia tudo, menos que se tratava do homem mais atrativo que tinha visto na vida.
-Quem é? - perguntou. - De onde vem?
-Acreditaria se te dissesse que venho de outro planeta?
-Não. Por que está aqui, comigo?
-Porque meu barco se afundou na tormenta, e com ele meu dinheiro, meus cartões de crédito e minha roupa. Resumindo: estou totalmente arruinado no momento.
-Os cartões de crédito podem ser substituídos. Só precisa dar um telefonema.
-Mas não tem telefone.
-Na cidade há cabines.
-Seria capaz de me jogar na rua, com toda esta chuva, agora que por fim começo a me secar?
Procurou um olhar de ameaça, algo que sugerisse que tinha intenção de aproveitar-se dela. Mas seus olhos eram sinceros e diretos. «Confia em mim», diziam, como sempre.
-Mas às vezes chove durante vários dias, sobre tudo depois de uma tormenta.
-Amanhã brilhará o sol.
-Como sabe? - perguntou desafiante.
Ela sabia. Sentia em seu sangue que o bom tempo se aproximava. Mas queria saber como tinha averiguado Cameron Divine.
-O último relatório meteorológico que ouvi antes de meu rádio se danificar dizia que a tormenta seria forte, mas de curta duração, o que significa que começaria com rapidez e terminaria da mesma forma. Acredite. Amanhã brilhará o sol.
Acreditava, - e não era só porque seu próprio corpo coincidia com ele. Devia-se também a que aquele homem nunca a tinha enganado. Tinha salvado sua vida, tinha levado ela para casa, tinha levado ela nos braços de um lado a outro para que não lhe doesse o joelho, e inclusive lhe tinha preparado uma comida que, embora pouco convencional, era boa e nutritiva. Além disso, havia tocado sua música.
Depois de tudo aquilo, como podia ser capaz de jogá-lo na rua com aquela chuva?
Sentia-se confusa. Não sabia como permanecer em guarda com um homem tão solícito. Procurou distração na toalha que cobria seu joelho. O calor tinha desaparecido quase por completo. Começou a tirar a vendagem, e antes que pudesse dar-se conta, Cameron a arrebatou e começou a esquentá-la no fogão. Depois, voltou e envolveu com ele o joelho de Summer. Depois de atar os extremos, sentou-se em uma cadeira. Não disse nada. Mas Summer sabia que ele sabia o que pensava.
-Sinto-me incômoda - reconheceu ao fim.
-Sim - disse Cameron com voz tranqüila.
-Não estou acostumada a ter companhia.
-Quanto faz que morreu sua mãe?
-Quase dez anos.
-Que idade tinha?
-Dezoito. Até então, sempre tínhamos vivido as duas sozinhas. É a primeira pessoa que se senta em minha mesa desde que ela morreu. É uma sensação estranha.
Recordou o bem que passava com sua mãe. Às vezes sentia sua falta terrivelmente; outras vezes sua lembrança era tão longínqua que quase lhe parecia irreal. Em qualquer caso, a vida continuava.
-Viro-me bem - prosseguiu. - Vivo como eu quero. Não sei como me comportar com outras pessoas.
-Está se comportando muito bem comigo.
-Porque me salvou a vida - disse sem elevar o olhar. - Mas não sou uma pessoa sociável - ao ver que Cameron não respondia, pensou que talvez não a tivesse entendido. - Não estou acostumada com os homens.
-Esteve com um homem alguma vez? - perguntou de repente.
Elevou os olhos, para encontrar-se com os de Cameron em um instante de consciência sexual. Sentiu que suas bochechas se acendiam. Aquela reação a desconcertou. Tinha estado com homens, sob o mesmo teto, em muitas ocasiões: nas lojas do mercado, em casas particulares quando a chamavam para que realizasse uma cura, e em outros lugares. Mas nunca tinha estado na cama com um homem. Aquilo, dada sua idade e os tempos que corriam, era bastante estranho.
Cameron pensaria que era muito estranha, e aquilo resultava conveniente para a parte de Summer que desconfiava de Cameron e queria que partisse. A outra parte, a parte que pensava que se encontrava ante uma pessoa especial e queria conhecê-la mais a fundo, desejava que a compreendesse.
-Não sou como as demais mulheres. Nunca fui. Nasci e me criei nesta cabana. Minha mãe foi minha babá, professora, médico, companheira de jogos e confidente. Nunca fui ao colégio, porque aqui aprendi tudo o que precisava saber.
-E não jogava com outros meninos?
Sua expressão se endureceu. Queria compreensão; não compaixão.
-Se tivesse vivido alguma vez em uma ilha como esta, não me perguntaria isso. A ilha de Pride tem oitocentos habitantes. A maioria se dedica à pesca, direta ou indiretamente. Há um colégio, uma igreja, uma rua principal e um supermercado. Todo mundo conhece a vida de outros. Os Homesy os Dubay e os Twill são pescadores de lagostas; os Dunkirk são eclesiásticos; os Shaw, encanadores. Os VanVorn são curandeiros, e todo mundo sabe que os curandeiros são gente estranha. Os meninos da ilha fogem dos VanVorn. Não nos ensinam a ser normais, e isso está muito bem. Porque não o sinto absolutamente. Estou muito satisfeita com minha vida. Não me aborreço nunca. Sempre tenho algo que fazer.
-Por exemplo?
-Escutar música, ver a televisão, me sentar na pradaria com os pôneis, lavar a roupa, compilar ervas, folhas e cascas de árvore. Também tenho uma horta. Cultivo quase tudo o que como. A temporada é curta, de modo que tudo deve ser plantado, cultivado e colhido a tempo. Agora mesmo tenho a colheita de verdura para o próximo inverno esperando ser colhida, lavada e envasilhada.
-Eram suas as ervilhas que comemos?
-Do ano passado. Teríamos comida fresca se não tivesse passado fora as duas últimas semanas.
Levou-se a mão à vendagem. Esperava que seu joelho se curasse logo. Tinha muitas coisas que fazer.
-Não respondeu a minha pergunta sobre os homens - disse Cameron.
-Não tenho muitas oportunidades para conhecer forasteiros. Estive no continente, mas solo umas quantas vezes, quando não tinha mais remédio que ir.
-Como quando levou as folhas das árvores ao laboratório?
Summer assentiu.
-Pode conseguir aqui tudo o que necessita?
-Minhas necessidades não são excessivas.
-Como se mantém? Quero dizer como paga as coisas? Qual é sua fonte de ganhos?
Sua desconfiança a punha furiosa. Aquelas perguntas eram bastante indiscretas, sobre tudo tendo em conta que Cameron carecia de recursos próprios, no momento.
-E qual é sua fonte de ganhos? - perguntou Summer.
-Já lhe disse. Sou investigador. Cobra para curar às pessoas?
Summer acreditou perceber certa admiração em suas palavras.
-Às vezes me pagam. Às vezes, dão-me coisas em troca de meus serviços.
-E gratidão? Também lhe dão gratidão?
-Às vezes.
-Só às vezes?
-Como te dizia os curandeiros não são muito populares.
-Não necessita a popularidade para que lhe agradeçam os serviços prestados.
-Bom - respondeu, dirigindo a atenção a seu joelho. - Não vivo da gratidão dos ilhéus - tirou a vendagem, que havia tornado a esfriar-se-. Mostram-se agradecidos, muito bem; se não, também. Eu tenho meu caminho e eles o seu. Quanto menos se cruzem, melhor.
-Deixe que veja isso. - Cameron deixou a atadura sobre a mesa e se inclinou sobre a perna de Summer. - Dói?
-Um pouco.
Resultava difícil concentrar-se em seu joelho com a presença daquele homem tão perto dela.
Cameron moveu a perna de Summer com muito cuidado, para examinar seu joelho. Decididamente, doía-lhe muito menos. De repente, começou a lhe aplicar uma massagem que a deixou boquiaberta.
Suas mãos se moviam com uma agilidade assombrosa para seu tamanho. Summer as observou durante um momento, tentando em vão decifrar seus movimentos.
-O que faz? - perguntou ao fim.
-Alivia?
-Sim - admitiu-. Mas não entendo o que faz.
Sentia que Cameron separava todas as partes de seu joelho, retirando à pele, o músculo, a cartilagem e o osso para voltar a colocar cada elemento em seu lugar.
-Nada, em realidade - murmurou. - Sei como parece um joelho, assim sei onde tocar.
-Eu também sei - replicou, posto que sua habilidade como curandeira dependia disso, - mas não seria capaz de fazer o que você está fazendo.
-Porque você não é.
Summer sentiu que lhe encolhia o coração. Aquela afirmação devolveu a sua mente a lembrança da forma em que a tinha salvado e alimentado, e da forma em que havia tocado o clavicórdio. Cameron Divine tinha algo distinto. Cada vez estava mais convencida de que a atração que sentia por ele estava por cima do fato de que ele fosse um homem e ela uma mulher. Nunca tinha conhecido, nem sequer de ouvido, a um homem como aquele. Se for um artista da fraude, terei que reconhecer que é o melhor. Precisava saber mais coisas sobre ele.
-Diz que é investigador cientista. É assim como aprendeste a fazer coisas como curar joelhos?
-Sim.
-Vive em Montreal?
-Mais ao norte.
-Como chegou até aqui?
-À costa do Maine? Voando. Depois, aluguei um barco. Espero que tenha seguro. Agora pertence à história.
-Quanto tempo leva navegando?
-Três dias, até que me alcançou a tormenta.
-Navega com freqüência?
-Não. É uma afeição recente. Eu gostava muito, inclusive quando as coisas ficaram ruins. Mas quando afundou o barco começou a me gostar menos.
Havia certo tom em suas palavras que revelava mais diversão que aborrecimento.
-Não tem alguém que se preocupe?
-Por mim? - negou com a cabeça. - Em minha casa ninguém se preocupa quando me dá de passar fora umas semanas. Sou o viajante mais contumaz do universo. Assim estão acostumados a que desapareça. Se demorasse vários meses em voltar, começariam a preocupar-se.
-O que vai fazer, então? Alugar outro barco e voltar a navegar?
-E tentar duas vezes ao demônio? Nem pensar.
Concentrou-se no joelho de Summer. Ela estudou seu cabelo escuro, e começou a descer o olhar por seu forte pescoço e os músculos de seus ombros.
-Não sei o que vou fazer - disse ao fim, falando devagar. - Mas seja o que for, ficarei em terra.
Não a olhou por isso Summer se perguntou o que lhe passava pela cabeça. Não havia nenhuma sugestão implícita naquela afirmação. Pareceu-lhe que falava com sinceridade ao afirmar que não sabia o que fazer. Imaginou dirigindo-se à cidade à manhã seguinte, chamando da cabine para pedir dinheiro e cópias dos cartões de crédito e tomando o trem do meio-dia. Imaginou que partia e sentiu uma vaga desilusão.
Não resultava desagradável como homem. Não lhe tinha feito mal, não tinha criticado sua forma de vida, não tinha considerado ridícula sua ocupação nem riu de suas histórias sobre serpentes, insetos e charcos na pradaria. Não zombou de sua debilidade pelos pôneis nem de sua afirmação de que aquelas árvores tinham algo especial. Era atrativo e não exigia nada. Era capaz de preparar comida, e tanto com o clavicórdio como com seu joelho, possuía uma habilidade manual incrível.
As mãos em questão prosseguiram seu trabalho, rodeando seu joelho, empurrando, atirando e acariciando com um movimento rítmico, como o mar na praia. Sentia a perna relaxada e renovada, e o prazer se estendia pelo resto de seu corpo. Consciente de que estava caindo na armadilha, suspirou, encolheu-se os ombros, respirou profundamente e suspirou de novo. Cameron lhe lançou um rápido sorriso, que enviou uma onda de calor de seus olhos a sua boca.
Summer conteve a respiração, mas Cameron não a olhou. Suas mãos seguiram acariciando seu joelho com suavidade crescente, até que se converteram em um sussurro sobre sua pele. Depois se separaram. Uma mão se deslizou pela panturrilha, enquanto que a outra subiu pela coxa. Seguia com a cabeça baixa, seguindo com os olhos o percurso de suas mãos. Summer sentiu que seu pulso se acelerava, e que um sentimento desconhecido surgia em seu interior.
Depois, como se tivesse todo o tempo do mundo, elevou lentamente o olhar. É adorável, disse em silêncio. Suave e feminina. Quero tocar mais, acariciar mais, ver mais.
Summer conteve a respiração e escutou as palavras mudas de Cameron que lhe proporcionavam um estranho calor, quase doloroso. Nunca tinha experimentado nada semelhante, e embora soubesse do que se tratava, não sabia como reagir.
Sua mãe nunca lhe havia descrito um sentimento como aquele. Sabia no que consistia o sexo. Sabia que os homens e as mulheres se atraíam mutuamente, e sabia o que ocorria naqueles casos. Mas o fato de que acontecesse a ela resultava impensável. Tinha sido educada na independência, na auto-suficiência e na desconfiança frente aos homens. Assustava-se ao comprovar que respondia daquela maneira ante o contato de um deles.
Estava a ponto de confessar a Cameron quando bateram na porta. Summer se sobressaltou.
Cameron colocou um dedo sobre seus lábios. Está a salvo, dizia seu olhar. Não vai ocorrer nada que você não deseje. Confia em mim.
Respirou profundamente. O ar estava impregnado do aroma de Cameron, mas em vez de excitar-se mais ainda, tranqüilizou-se. Seu pulso recuperou a normalidade, e a estranha dor que sentia se dissipou. Cameron ficou de pé. Chamaram de novo, com impaciência. Abriu a porta.
-Sim? - perguntou Cameron com uma brutalidade que tomou Summer de surpresa.
Com o fim de evitar atritos com outros habitantes da ilha, o que lhe conduziria problemas, levantou-se e foi junto a ele.
Viu na soleira a Morgan Shutter. Usava um impermeável amarelo de pescador, mas sob o capuz seu semblante aparecia sombrio e desencaixado.
-Morgan! - exclamou Summer com amabilidade. - O que te traz por aqui na metade de uma tormenta?
-O peito de meu filho menor faz um ruído horrível - disse com voz mais brusca que a doe Cameron. - Ginny diz que tem que me dar algo.
-Não tem que lhe dar nada - informou Cameron erguendo-se.
Parecia mais alto que nunca. Summer o sujeitou pelo braço, lhe indicando que se contivera.
-Está bem - disse Summer a Morgan-. É a bronquite, outra vez?
-Sim.
-Tem febre?
Fez um gesto de negação, acompanhado de um som desesperado.
Summer se dirigiu à cozinha, onde começou a selecionar vários botes das prateleiras.
-Um homem encantador - observou Cameron ao unir-se a ela-. É um exemplo da fauna local?
Contente de ter algo com o que distrair-se que não fosse a proximidade de Cameron, Summer explicou:
-Pertence a uma família de pescadores. Morgan e sua mulher têm cinco filhos. O maior tem sete anos.
-Cinco filhos? Esse tipo? Sua mulher deve estar louca por lhe permitir que lhe ponha a mão em cima tão freqüentemente. Cheira mal.
-Se cale.
-É certo. Cheira mau.
Summer se perguntou se Cameron se sentia mais molesto pelo fedor ou pela interrupção.
-É pelo pescado - explicou em voz baixa, embora supusesse que Morgan se encontrava fora, no alpendre. Os ilhéus iam a sua casa quando a necessitavam, mas nunca se atreviam a entrar. - Além disso, ter filhos é algo muito normal por aqui. As pessoas como eles não tem nada mais que fazer quando os meninos dormem.
-Poderiam ler um livro.
Poderiam, mas geralmente não o fazem. Além disso, quem era Summer para criticá-los? Ela tampouco lia muito.
-Ou ver a televisão, como você - acrescentou Cameron.
-Nove de cada dez vezes, a televisão não funciona.
-Por que não a arrumam?
-Porque preferem gastar o dinheiro para alimentar aos meninos que em arrumar a televisão. Os filhos são um investimento. Quando crescerem, serão pescadores e alimentarão a Morgan e a sua esposa quando eles já não puderem trabalhar.
-Não entendo por que os filhos não se vão da ilha quando crescem.
-Alguns o fazem. Por isso necessitam seis ou sete.
-Quer dizer que ainda terão mais? - perguntou atônito.
-Claro. Assim, pelo menos dois ou três se dedicarão ao negócio. Não são normais as famílias numerosas onde você vive?
-Só nos permitem ter dois filhos.
Summer o olhou com estranheza.
-Não sabia que o governo canadense limitasse a natalidade.
-O que quero dizer é que se fomenta a família com dois filhos. Não é tão desatinado, tendo em conta que os recursos naturais de qualquer planeta são limitados.
Summer olhou pela janela. No transcurso de uma curta temporada fértil, o pequeno jardim produzia verdura de sobra para alimentá-la durante um ano.
-Em minha opinião, o problema radica em que as pessoas não aproveitam ao máximo os recursos naturais. Ou são muito vagos, e não se incomodam em tirar partido para a terra, ou muito avaros, e destroem os bosques por completo. As pessoas do continente complicam muito a vida. Aqui, as coisas são mais singelas.
-Qualquer que te ouça diria que você gosta de viver aqui.
-E eu adoro - respondeu surpreendida. - Dei a entender que não é assim?
-Não, mas tem um energúmeno te esperando na porta.
-Se cale!
-Além disso, o mais provável é que nunca te dê obrigado por fazer o que está fazendo. O que está fazendo, por certo?
-Mesclar umas coisas para o menino.
-O único vejo são folhas e pós. O que vem a seguir?
-Continuando, envolverei tudo em um trapo. Quando Morgan chegar em casa, terá que esquentá-lo, cobrir a cabeça do menino e fazer com que aspire os vapores.
-O que acontece se não funciona? Quero dizer o que acontece se o menino estiver realmente doente?
-Virão amanhã a me pedir mais.
-E se continuar sem funcionar?
Fechou o último bote e voltou a deixá-lo na prateleira.
-Levarão ele a um hospital.
-Não é possível que, enquanto estão ali, venham os irmãos a queimar sua casa?
-Não - respondeu sorridente-. Dar-lhes-ia medo entrar em meu bosque com essas intenções. Até no caso de que não conseguisse curar ao menino, curei muita gente, assim não podem duvidar por completo de meus poderes. Talvez você acredite que não tenho nada a ver com o que acontece na pradaria, mas muitos ilhéus acreditam. Como te dizia, muita gente está convencida de que sou uma bruxa.
-Dizem-lhe isso assim?
-Não com essas palavras. Às vezes o sugerem, mas me dá igual. Sou distinta a eles, portanto, ameaçadora.
-Mas cuida de sua saúde.
-É meu trabalho. Estou aqui para isso. Proporciono um serviço, admitam ou não. Eu sei, e isso é o que conta.
-Não é a única coisa que conta. Pensou alguma vez em sair da ilha?
-Não - disse sem pensar-lhe
Agarrou o pacote, dirigiu-se ao alpendre e o entregou a Morgan. Este grunhiu e partiu.
-Não te pagou? - perguntou Cameron quando fechou a porta.
-Não.
-Nem te deu obrigado?
-Deixe, Cameron. É minha vida. Se quisesse que me dessem obrigado, me dedicaria a algo distinto em outro lugar. Uma das vantagens de viver sozinha é que não tenho que dar explicações a ninguém. Se não me importa que não me pague, por que tem que te importar a ti?
Dirigiu-se à lareira e acrescentou uns quantos troncos. Apesar de que acabaram de comer, a tarde tocava a seu final. Não demoraria muito em fazer-se de noite. Aquela idéia a intranqüilizava.
Contemplou o fogo durante um momento. As lenhas novas crepitaram um último protesto antes de submeter-se às chamas. Mas era inevitável. Aquela madeira estava destinada a arder, como os curandeiros estavam destinados a curar. Summer podia dizer que, se quisesse que lhe dessem obrigado, dedicar-se-ia a outra coisa, mas o fato era que não sabia fazer nada mais nem podia ir a nenhum outro lugar. Aquela era a única vida que conhecia.
-E bem? - perguntou Cameron, com um cotovelo apoiado sobre a lareira. - Qual é o veredicto? Tenho que me vestir e ir à cidade, ou posso ficar até que deixe de chover?
Com a vista fixa nas chamas, Summer tentou imaginar-se só na cabana, como sempre tinha estado, mas não podia apagar a presença de Cameron de seu entorno. Tinha salvado sua vida, e lhe tinha dado obrigado. Mas não sabia se tinha agradecido o bastante. Seria capaz de enviá-lo à tormenta? O que tinha de ruim em que passasse outra noite ali?
-Parece-me que deveria ir - disse brandamente.
-Mas não quer que vá.
-Estou em dívida contigo.
-Sabe que não. Não me custou nenhum trabalho nadar contigo nas costas. O oceano fez todo o trabalho.
-Mas me trouxe nos braços até aqui.
-Não pesa nada. Além disso, eu gosto de te ter entre meus braços.
-Por isso deveria ir - replicou.
Com um dedo em seu queixo, levantou seu rosto, obrigando-a a olhá-lo.
-Por que te dou medo? - perguntou.
-Porque está aqui. E porque é distinto.
-E porque me deseja.
Sacudiu fortemente a cabeça, mas não pôde fugir do calor que se formava em seu interior.
-Não desejo a nenhum homem - disse com a esperança de que seu corpo a escutasse. Mas começou a tremer.
Cameron tomou suas mãos, as levou aos lábios e as beijou. Depois, enquanto seus olhos diziam Não resista, levou-as até seu peito.
Summer podia respirar com muita dificuldade, de forma que lhe resultava impossível resistir. Sob seus dedos, o peito nu de Cameron era firme, quente e tão vivo que não era capaz de retirar as mãos.
-Isto não está bem - disse Summer apartando-se. -Eu não estou destinada a fazer algo assim.
-Como que não? - replicou Cameron bruscamente.
Virou-se contra a chaminé e apoiava a testa sobre seu braço. Summer se aventurou a olhar a parte dianteira de suas calças. Desejava-a. Nenhum homem a tinha desejado antes. O que a arrastou ao bosque tinha intenção de perpetrar uma violação. Não tinha desejado a ela, concretamente. Mas Cameron sim.
Tinha sido aquilo o que seu pai sentiu por sua mãe, e seu avô por sua avó? Teria experimentado elas a mesma dor? Teriam tremido, também?
-Tem que partir - disse. - Não quero desejar a ninguém.
Cameron riu secamente.
-E acredita que eu sim? Isto não tinha que tenha que acontecer - respirou aguadamente e se incorporou flexionando os ombros.
Aquele movimento atraiu a atenção de Summer. Fechou fortemente as mãos para vencer a tentação de tocá-lo.
Sem olhá-la, Cameron se dirigiu ao clavicórdio, e apoiando-se no banco com um joelho, começou a tocar com uma só mão. Aquela vez, a melodia lhe resultava desconhecida a Summer. Era mais rápida, mais cálida, mais apaixonada que a que tinha interpretado antes. A música descrevia as emoções encontradas de Summer. Cameron começou a tocar com as duas mãos, como se uma fosse insuficiente para exorcizar toda sua frustração.
Summer se afundou no sofá, apertou a bochecha contra o respaldo e fechou os olhos com força. Mas a pressão não era capaz de distorcer as imagens que via. Tratava-se de cenas eróticas, tão excitantes que sua respiração foi voltando-se mais agitada por momentos. Viu as mãos de Cameron sobre seu corpo nu. Viu-as rodear seu peito. Sentiu uma pressão entre suas pernas. A sensação foi tão nova e o prazer tão intenso, que uns segundos depois emitia um prolongado gemido com a pulsação rítmica do orgasmo.
Quando Summer despertou, à manhã seguinte, estava em sua cama. O pálido resplendor das cortinas indicava que o sol já tinha saído. Não recordava muito da noite anterior, à exceção da música. Então recordou a Cameron e se incorporou de um salto.
Não estava na água-furtada, como na manhã anterior. Olhou para baixo e o viu estendido no sofá. Encontrava-se completamente nu, embora uma toalha cobrisse seus quadris.
Voltou a incorporar-se. Algo tinha passado. Recordou o calor e a excitação que havia sentido na noite anterior. Mas não conseguia recordar nenhum detalhe. De novo, era como se estivesse drogada.
Levantou-se em silêncio, desceu a escada e foi nas pontas dos pés até o lugar onde descansava Cameron. Não se movia. Suas costas eram simétricas, e sua pele tersa. Tinha os braços estendidos à altura dos ombros. Aproximou-se mais para ver seu rosto e se deu conta de que se barbeou. Seu cabelo também parecia mais limpo. Devia ter tomado um banho, o que explicava a toalha que cobria seus quadris. Aquilo a tranqüilizava até certo ponto. Se tinha ocorrido algo antes que tomasse banho, tinha sérios problemas. Podia despedir-se da tranqüilidade.
Correu para o banheiro para defender-se. Deu-se uma longa ducha, e comprovou com alívio que já tinha eletricidade. Ao menos, algo tinha voltado para a normalidade. O sol tinha saído e a tormenta tinha terminado. Aquilo significava que se iria e a vida voltaria a ser o que era antes.
Olhou-se no espelho. Seu cabelo comprido e loiro caía como um xale por seus ombros. A cor de suas bochechas estava mais acesa que de costume. Disse a seu reflexo que, gostasse ou não, Cameron teria que partir. A vida devia seguir seu curso.
Ouviu que Cameron golpeava a porta com os dedos.
-Summer? Está bem?
-Sim - respondeu. - Agora mesmo saio.
Deu-se pressa. Sabia que seria melhor que partisse quanto antes. Mas quando abriu a porta lhe encolheu o coração de uma forma que começava a resultar muito freqüente. Cameron estava sentado no sofá, com a cabeça apoiada no respaldo e os olhos fechados. Pôs as calças mas não tinha abotoado. Não o culpava por isso. Os jeans estavam cheios de rugas, e pareciam terrivelmente incômodos.
-Como dormiu?
-Como um tronco.
Cameron assentiu, e se inclinou para diante.
-Respeito a ontem à noite...
-O que passou ontem à noite? - estava decidida a conservar a calma.
-O que é que recorda? - perguntou com precaução.
-Lembro que começou a tocar o clavicórdio - juraria que o rosto do Cameron se obscurecia pela culpa. - Depois, devo ter dormido. Passou algo?
-Não. Só estive tocando música, mas me deixei levar muito. Quando terminei, tentei te despertar para jantar, mas disse que queria dormir. Supus que ainda estava superando o trauma do naufrágio.
-Certamente.
Rezou para que fosse verdade, mas não tinha gostado daquela expressão de culpa.
Algo tinha ocorrido. Estava totalmente segura, mas não sabia muito bem do que se tratava, e lhe dava vergonha recordar a Cameron, de modo que optou por se fazer de boba.
Jogou o cabelo para trás, prendeu-o com um elástico e disse:
-Estou morta de fome. Eu gostaria me comer uns ovos com bacon, mas não tenho nem um nem o outro. Por que não vamos à cidade? Pode fazer suas chamadas, e depois te convidarei para tomar o café da manhã antes que se vá.
-Não tem por que me convidar - disse franzindo o cenho.
-Claro que tenho que te convidar. Salvou-me a vida. Além disso, recorda que não tem dinheiro?
-Com uma chamada me darão o número do cartão de crédito e poderei pagar o café da manhã.
-Na ilha de Pride? Impossível. Só aceitam dinheiro.
Cameron a olhou perplexo.
-Morgan Shutter não te pagou. De onde vai tirar o dinheiro?
Sempre voltava para aquele tema. Summer não sabia muito bem por que, mas já que Cameron ia sair logo de sua vida, não via inconveniente em lhe revelar a verdade. Não se tratava de nada extraordinário.
-Quando morreu minha mãe, herdei um pouco de dinheiro. Tenho no banco, e vivo dos interesses.
-Mas sua mãe também era curandeira - disse ainda mais perplexo. - De onde tirou o dinheiro?
-De minha avó.
-Que também era curandeira. Está segura de que não houve algum homem importante em sua família?
-Não. Não houve nenhum homem importante.
Surpreendeu-se ante a conclusão a que Cameron tinha chegado. Seus antepassados tinham sido mulheres liberadas, muito antes que se ouvisse falar da liberação da mulher.
-Em algum momento - explicou, - na época de minha tataravó, começaram a economizar. Era uma pequena quantidade, e foi crescendo depois. O segredo consiste em gastar menos do que gera.
-Já vejo - disse.
Não obstante, não parecia convencido. Summer não entendia por que. Parecia-lhe perfeitamente lógico.
Mas não tinha por que preocupar-se com o assunto. Afinal de contas, dava-lhe igual o que Cameron opinasse, posto que se iria em umas horas.
Encolheu-lhe o coração, mas não se deu por vencida.
-Vou à cidade - disse. - Vem comigo?
Demoraram um quarto de hora em chegar. Summer se sentia melhor a cada passo. O sol esquentava, e o ar estava carregado com a essência da terra úmida. Seu joelho funcionava perfeitamente. Caminhava com passos rápidos, e Cameron a seguia sem dificuldade.
-Se não estivesse aqui - perguntou, - o que estaria fazendo agora?
-O mesmo. Passei duas semanas fora. Tenho que recolher o correio e comprar comida.
-E o que fará quando voltar para casa?
-Irei à pradaria jogar com os pôneis, e talvez recolha os ramos que caíram com a tempestade.
-E depois?
-Trabalharei na horta. Se não recolher logo as verduras, algumas se estragarão.
-E depois?
-Não sei. Farei o que goste.
Cameron meditou durante um momento, e ao fim disse:
-Não está mau.
-É o que tentava te explicar. Talvez minha vida seja distinta à tua ou a de outra pessoa, mas eu gosto.
Repetiu a última frase em silêncio. Não considerou necessário recordar-se aquilo com muita força. Summer VanVorn não cometia tolices, como deixar-se arrastar por um bate-papo suave, um corpo viril e uns olhos azuis marinho. Percorria seu próprio caminho, mantendo intacta sua independência.
Caminharam em silêncio. De vez enquando passavam junto a uma pequena casa com vigas de madeira. As moradias se foram fazendo mais freqüentes, até que se encontraram no centro da cidade.
-Isto é tudo? - perguntou Cameron, olhando a seu redor.
-Sim. Supermercado, agência de correios, restaurante e pensão.
-Quantos quartos têm o hotel?
-Quatro. Não alojamos os turistas. O embarcadouro está ao final da rua principal. Os pescadores vivem nas ruelas adjacentes. As casas de entrevistas e os fornecedores de gasolina estão junto ao embarcadouro - deteve-se enfrente à agência de correios. - Tenho que recolher umas coisas. Enquanto isso pode ir à loja. Tem um telefone público. Passarei para te pegar quando tiver terminado.
Com a esperança de que tivesse ficado claro que queria ir sozinha, entrou com passo firme no correio. Não se atreveu a olhar até que não teve transpassado a soleira. Sentiu-se aliviada ao ver que Cameron desaparecia pela porta da loja.
Com um pequeno suspiro, girou-se para a mulher que, sentada depois do guichê, lia envolvida uma novela. Millie Osgood era a distribuidora do correio da ilha de Pride. Era uma octogenária com um halo de cachos azuis que rodeava sua cabeça. Tratava-se do mais parecido a uma amiga que tinha Summer.
-Millie?
-Olá, Summer! - deixou a novela sobre o escritório e se incorporou com esforços. - Já voltou de sua viagem?
-Pois sim - respondeu Summer, assentindo para dar mais ênfase a suas palavras.
-Perdeu uma boa tormenta. Ainda não foi a que predisse sua mãe, mas te asseguro que foi bastante forte.
-Já sei. Perdi meu barco.
-Sabia?
Summer assentiu. Millie gostava dela como tinha gostado de sua mãe. Aquela mulher, a diferença do resto da cidade, não pretendia julgar a ninguém.
-Não parece ferida - disse examinando-a. - Pode que tenha as cores um pouco subidas, mas, pelo resto, parece que está bem.
-Estou bem - assegurou Summer. - Que tal se encontra você? A chuva deve te haver afetado os ossos - Tirou um pacote de sua bolsa e o estendeu. - Aqui tem um pouco mais de infusão. Não deve tomar muita.
-Muito obrigado - disse a anciã, colocando o pacote no bolso de sua saia. - É muito amável ao se lembrar de mim. Sua mãe também se lembrava sempre - voltou-se para os fichários e tirou um montão de papéis. - Publicidade, publicidade, publicidade - disse, deixando as três primeiras cartas de lado-. Suponho que não quer jaquetas de couro, revelação de carretéis nem enciclopédias, verdade?
Summer sorriu e negou com a cabeça.
Millie lhe estendeu dois envelopes.
-Faturas.
Summer tomou. Franziu o cenho ao ver o resto da correspondência.
-Mais catálogos? Não param de me enviar isso embora nunca compre nada. Pergunto-me de onde tiraram meu nome.
-Perdão? - perguntou Millie, rodeando-a orelha com a mão.
-De onde terão tirado meu nome? - repetiu Summer em voz mais alta.
-Daqui - respondeu Millie, levantando um pacote.
Seus olhos se acenderam ao reconhecer a embalagem. Summer se apressou para abrir. Millie foi lendo o nome de cada linha à medida que saíam.
-Aqui tem uma Breve historia do tempo, A guerra civil, Jurassic Park, Buffalo Girls e Dazzle. É o que encomendou?
Summer assentiu e levantou outro pacote.
-E aqui estão os vídeos - disse Millie. - Dançando com lobos, Grandes cidades da América, Ghost, A volta ao mundo em oitenta dias. Está bem?
-Perfeitamente - disse Summer. Sempre sentia a mesma excitação ao receber aqueles pacotes. Se os dosava bem, proporcionar-lhe-iam entretenimento para todo o mês.
-Temo-me que isto também é para ti - disse Millie, quase envergonhada.
Estendeu-lhe um envelope sem selo nem carimbo. Só aparecia o nome de Summer.
-Quer que lhe leia isso? - perguntou Millie.
-Sim, por favor.
Estava segura de que se tratava de uma comunicação da prefeitura de Pride. Summer podia imaginar a mensagem que continha.
Millie subiu os óculos.
-Senhorita VanVorn - leu. - Pela presente lhe comunicamos que a empresa OSAY visitará a ilha de Pride nos dia vinte e oito de agosto com o fim de examinar a possibilidade de construir uma estação de seguimento de satélites na pradaria próxima a sua casa. Mencionada a estação constituiria numa importante fonte de ganhos para a comunidade, e não alteraria absolutamente a vida cotidiana da ilha. Dado que nos sentiríamos enormemente incômodos se ocasionasse algum problema em presença dos representantes da OSAY, rogamos-lhe que, se tiver alguma objeção, comunique-nos isso de antemão. Se desejar reunir-se conosco, não tem mais que solicitar uma entrevista. Assim mesmo nos permitimos lhe sugerir que permaneça em sua moradia durante o transcurso da visita.
-Uma estação de seguimento de satélites! A ver com o que saem na próxima vez.
-O que não entendo é por que lhe comunicam isso de antemão. Se não soubesse que iriam vir, não poderia fazer nada na pradaria.
-Não sou eu quem faz essas coisas - explicou Summer. - Meu poder não é tão grande.
-Diga a eles.
-Já disse, mas não me querem acreditar - tomou a carta e a meteu na bolsa de linho, junto com o resto das cartas. - Vinte e oito - murmurou. - Ainda faltam cinco dias.
-Voltará antes?
Summer fez um gesto de negação. Teria que reunir-se com os vereadores, que fariam todo o possível para convencê-la de que o projeto interessava à comunidade. Ela advogaria pelos pôneis, mas sabia por experiência que seus argumentos cairiam em saco quebrado. Depois, mostrariam a pradaria aos visitantes e, enquanto isso, ela rezaria para que ocorresse algo desagradável.
Não obstante, não tinha por que incomodar Millie com seus problemas, e, além disso, tinha outras coisas para fazer. Agradeceu com um cálido sorriso, saiu do correio e se dirigiu à loja. Quando quase tinha chegado, viu sair os irmãos Mundy. Tinham menos de vinte anos, e uma acne que Summer lhes teria curado encantada se fossem um pouco mais amáveis. Mas se tratava de um par de bocas grandes que não se detinham ante nada.
-Olhe quem temos aqui - disse um deles. - A Senhora da Chuva. Miúda tormenta nos preparou. A quem tentava afogar esta vez? Esta semana ninguém foi à pradaria.
-Está atordoada - disse o outro. - Deve estar menstruada.
-As bruxas não menstruam como as mulheres normais. Não são mulheres normais. Tem as vísceras de palha.
-Está cheia de palha? - perguntou o segundo ao Summer. - Palha com insetos que correm de um lado a outro?
-Permitem-me? - disse Summer tranqüilamente.
Se tivesse podido, teria dado um rodeio para evitar passar junto a eles. Eram mais altos que ela, e gostavam muito de armar animação. Mas estavam enfrente à porta, de forma que passou entre eles.
-Que desperdício de cabelo loiro - disse o primeiro.
-Não tem insetos aí acima? - perguntou o segundo.
-Algum problema? - disse uma voz distinta.
Summer elevou a vista. Cameron saía da loja naquele momento.
-Não - disse Summer brandamente. - Já se foram.
-O que lhe disseram?
-Nada.
-É verdade? - perguntou-lhes, elevando uma sobrancelha.
-Eu disse algo - proclamou o maior.
Mas antes que pudesse repetir se viu assaltado por um ataque de tosse.
Cameron olhou para o outro.
-Tem algo a acrescentar?
-Quem é você?
-Uma pessoa que respeita às damas mais que vocês.
-Ela não é uma...
Sua voz se quebrou antes de terminar a frase. Levou-se uma mão à garganta, tentando esclarecê-la. Pigarreou e voltou a tentá-lo em vão.
-Deve ser o pó - disse Cameron a Summer, que olhava os meninos afastarem-se com curiosidade.
-Foi você?
Não havia nem rastro de pó. A chuva tinha varrido por completo.
-Eu? Acreditava que tinha sido você.
-Não. Eu estava desejando que tivessem um ataque de soluço. Mas o único que posso fazer é desejar. Não tenho poder para provocar nada.
Imaginou que a família Mundy estava resfriada. Aquilo explicava os problemas de garganta dos moços.
-Soluço - comentou Cameron sorridente. - Não está mau.
Usava jeans, um pulôver e umas botas. Tudo novo.
-Tampouco você está mau - disse Summer. - Já vejo que não teve problemas com o cartão de crédito.
Uma voz saiu da soleira da loja.
-Está incomodando-o essa mulher, cavalheiro?
Summer reconheceu a Ezra Whittle, a proprietária do pequeno supermercado. Era a antítese de Millie.
-É obvio que não. Por que teria que me incomodar?
-É a curandeira - explicou Ezra. - As curandeiras sempre são estranhas.
-A verdade é que esses dois meninos me parecera muito mais estranhos - replicou Cameron. - Além disso, ela é imensamente mais bonita.
Voltou-se para Summer e lhe perguntou em voz baixa:
-Podem esperar suas compras? Necessito um pouco de ar. Essa loja é asfixiante.
Puxou-a pelo braço e desceu com ela a rua em direção ao restaurante.
Summer não estava acostumada que a defendessem. Normalmente, limitava-se a não dar importância aos comentários enquanto recolhia o que necessitava na cidade. O fato de ter a alguém de sua parte constituía uma experiência nova e bastante agradável. Sabia que todo mundo a olhava enquanto desciam junhos pela rua. Provavelmente, os aldeãos passariam várias semanas falando daquilo.
-Tem sorte de partir logo. Não ganhará nenhum amigo nesta ilha se me acompanhar em público.
-Ainda não vi ninguém cuja amizade possa me interessar. Que problema tem esta gente? Como podem ser tão desagradáveis? Não se param para pensar nos sentimentos de seus semelhantes?
-No que a eles respeita, eu não tenho sentimentos. Sou uma bruxa. Não sou normal.
-É a única pessoa normal em toda a ilha. O que não entendo é que fique de sua parte.
-Não me ponho de sua parte. Simplesmente, explico-te seus motivos. Sempre foi assim. Nada do que diga ou faça vai mudar sua opinião, assim não tenho por que me incomodar. Sou amável e pago o que compro. Se me chamarem para que cure, curo. Dou-lhes motivos para que se formem uma boa opinião de mim. Se decidirem não fazê-lo, não servirá de nada que me em frente a eles. Além disso - acrescentou em tom mais áspero, - vou ter que enfrentar à cidade muito em breve. Acabam de comunicar que vai vir outro grupo a examinar a pradaria.
-Outro grupo?
-Uma empresa que quer instalar uma estação de seguimento de satélites.
-Parece interessante.
-Interessante? É horrível!
-Desde seu ponto de vista, seguro que é. Mas deve admitir que uma estação de seguimento de satélites seja mais importante que um campo de golfe.
-Mas eu não quero que instalem nada na pradaria - gritou. - Acreditava que entendia.
-Entendo - disse com calma enquanto entravam no restaurante.
Summer também se tranqüilizou. Os poucos clientes do estabelecimento se calaram quando Cameron e ela entraram.
-A omelete não está ruim - informou em voz baixa. - Também podemos comer uma torrada ou umas batatas fritas. Sem incomodar-se em olhar a carta.
Cameron disse: - Não param de me olhar. Pareço um inseto estranho, ou é que lhes surpreende nos ver juntos?
-Estão surpreendidos. Não venho muito freqüentemente, e quando venho me sento sozinha.
-Sigo sem entender. De acordo em que é curandeira e se sentem receosos. Mas tem um aspecto completamente normal, atua como uma pessoa normal e estou convencido de que é muito mais bonita que a mulher de qualquer um deles. Não entendo por que não se aproximam os homens - virou a cabeça e perguntou-: A quantas pessoas das presentes aqui você tratou ao longo dos anos?
-Tratei a algum familiar de quase todos.
-E seguem comportando-se assim? - olhou a um deles, que dava claras amostras de desdém. - Qual é seu problema?
-Deixe, Cameron. Não importa.
-Claro que sim. Esse homem é um grosseiro. Seria capaz…
Um ruído interrompeu suas palavras. O assento daquele homem se quebrou, e ele tinha caído no chão. Summer o contemplou fascinada durante um momento. Depois, piscou e olhou Cameron nos olhos.
-Foi você - sussurrou, movendo os lábios o menos possível, apesar de que a queda daquele homem tinha desviado a atenção dos paroquianos.
-Eu? Foi ele sozinho. O que não entendo é como não caiu muito antes. Não sabe que o sobrepeso pode provocar deficiência cardíaca e hipertensão?
-Como fez isso? - perguntou atônita.
Supunha que, se era um mago, devia ter tocado algum ponto próximo ao lugar onde aquele homem se sentava, mas não tinha sido assim. Talvez se tratasse de telequinesia.
Tinha ouvido falar disso. Se Cameron possuía aquele dom, podia ter dobrado a barra metálica do tamborete com a força de sua mente.
-Foi seu peso - disse Cameron olhando à garçonete que se aproximava. - Já decidiu o que vai tomar?
-Sim - voltou-se para a garçonete, que olhava nervosa ao homem que se levantava. - Me traga uma omelete de queijo com bacon e bolachas, umas batatas fritas e um copo grande de suco.
-Eu quero o mesmo - disse Cameron.
A mulher tomou nota rapidamente e se afastou.
-Vê? - disse Summer-. Aterrorizou a mulher. Se pensa que sou uma bruxa, dará por sentado que você é um bruxo. Terá pesadelos durante vários dias.
-Muito bem. Se for isso o que necessita para aprender uma lição de respeito, que assim seja. Mas vamos deixar isso, o meu cérebro não funciona corretamente quando estou zangado.
Summer tinha o mesmo problema, e aquele era um dos motivos pelos quais procurava não zangar-se nunca. Não obstante, ocorria-lhe de vez em quando, de modo que sabia o que fazer.
-Respira profundamente - disse a Cameron, que a olhava sem acreditar. - Adiante. Respira profundamente. Aspira todo o ar que puder. Muito bem. Agora deixe escapar o ar muito devagar, e enquanto isso tente se relaxar. Se concentre em esquecer o que te irritou. Pense em algo que te tranqüilize - deteve-se durante um momento. - Melhor?
-Sim.
-Já tem o bilhete para o trem?
-Ainda não.
-Será melhor que volte para a loja para comprar um.
-A que vem essa pressa?
-O trem não é sempre pontual. Em um dia tranqüilo como este, pode chegar ao embarcadouro às onze e meia, e se irá imediatamente se não vendeu nenhuma passagem.
Cameron olhou o relógio de parede.
-Ainda não são nove. Há tempo de sobra - colocou os cotovelos sobre a mesa. - Me diga algo mais da estação de seguimento de satélites.
Tirou a carta da bolsa e a estendeu. Enquanto Cameron a lia, Summer não pôde evitar contemplá-lo. Por um momento se perguntou o que aconteceria ela fosse como as demais mulheres. Perguntou-se o que seria sentir a excitação até o final. Intuía que, com um homem como Cameron, a experiência seria inesquecível.
-Sempre lhe enviam cartas como esta? - Summer assentiu.
-Vai se reunir com eles?
-Não sei. Não vale a pena. Nunca conseguimos resolver nossas diferenças. Até agora, tive sorte. Sempre acontece algo que espanta o comprador. Mas alguma vez falhará.
Cameron deixou a carta sobre a mesa e olhou Summer nos olhos.
-Me diga a verdade. É você que provoca essas coisas que passam na pradaria?
-Pode que minha mãe fosse capaz, mas o poder foi debilitando-se com o passar das gerações. Eu não tenho tanta força.
-Então, qual é a explicação?
-Não sei. Qual é a explicação do que ocorreu no Mar Vermelho?
-Não sei. Naquele momento, eu não estava sobre a terra.
-Um capricho da natureza. O Mar Vermelho, minhas serpentes, charcos e mosquitos... Caprichos da natureza.
-Os crentes não estariam de acordo. Chamarão de blasfêmia.
-Já pensam, assim dá igual - suspirou. - Acredite; eu gostaria que não fosse assim. Eu gostaria de me poder atribuir o mérito do que ocorre na pradaria, porque então planejaria algo novo.
-Como o que? - perguntou Cameron. - Se fosse capaz de fazer algo o que desejaria?
-Não sei. Deixe que o pense.
A garçonete apareceu com o café da manhã. Summer começou a comer, enquanto meditava sobre a pergunta de Cameron. Por fim, com um brilho nos olhos, proclamou:
-Esterco.
Cameron se engasgou. Bebeu um gole de suco e se golpeou o peito.
-Esterco?
-Esterco.
-É muito mau.
-Posso ignorá-lo. Chegam os vereadores com suas calças e camisas de poliéster, e os representantes da empresa com seus trajes impecáveis, e de repente, um deles pisa em um montão de esterco, e logo outro e outro. Surgiriam de um nada. E depois, para o caso de que alguém pensasse que era culpa de meus pôneis, colocaria esterco por todo o caminho de volta à cidade. Então, os compradores, com seus sapatos de estilo inglês, só pensariam em sair da ilha e não voltar nunca mais.
-É muito mau - repetiu Cameron, sorridente. - O que sabe uma garota de campo de trajes impecáveis e sapatos de estilo inglês?
-Mencionam nos livros. Não leu A fogueira das vaidades?
-Não - respondeu Cameron. - Temo que não.
-Pode ver o filme. Tenho o vídeo em... na cabana - deteve-se. - Mas vai embora hoje. Tenta consegui-lo quando voltar para casa.
Baixou a vista para o café da manhã. Já não parecia tão apetitoso como antes.
Comeram em silêncio durante um momento. Enquanto isso, a garçonete apareceu com dois cafés e voltou a sumir. Desde que tinham chegado, a barra tinha ficado deserta. As pessoas saiam para trabalhar. O tempo passava.
-Estava pensando - disse Cameron, - que poderia ficar mais uns dias, se não te incomodar. Não tenho pressa para voltar para casa.
O coração de Summer começou a palpitar com força.
-Não pode ficar aqui - respondeu de forma automática.
-É obvio, não ficaria em sua casa. Posso ir para o hotel.
-Impossível. Não lhe dariam quarto.
-Por quê?
-Porque lhe viram comigo - explicou. - Os Mundy estarão fofocando como loucos, o mesmo que Ezra e todos os que viram o que acaba de acontecer aqui.
-Mas acabo de gastar um montão de dinheiro na loja de Ezra.
-Não importa. Estragou sua reputação ao me defender.
-Se o dano já está feito, dará igual que fique um pouco mais.
-Não dá igual. Levo dez anos vivendo sozinha. Se ficar é possível que acostume a sua presença. Não posso permitir que isso ocorra.
-Uma semana. Nada mais. Ajudar-te-ei a fazer as coisas, não deveria fazer nada antes que seu joelho melhore.
-Já tenho o joelho curado.
-Pretende me fazer acreditar que não te incomoda de vez enquando?
A verdade era que ainda sentia dores.
-Posso dar um jeito nisso perfeitamente.
-Vamos, Summer. Estive olhando sua horta. É enorme e disse que queria envasilhar as verduras para o inverno por que não deixa que te ajude? Terminará na metade tempo e o joelho se curará com mais rapidez.
Doía-lhe a perna. Não entendia por que. Certamente a caminhada não lhe tinha ido muito bem.
-Posso fazê-lo sozinha - afirmou.
Não obstante, sentia a tentação de aceitar a oferta. Talvez o trabalho no pomar não fosse muito conveniente para seu joelho.
Ao menos, tinha uma desculpa para permitir que ficasse.
-Além disso, está o assunto dos vereadores - disse Cameron, lhe proporcionando outra desculpa. É possível que se formos juntos a reunião nos façam mais caso que se for você sozinha.
Summer duvidava. Suas reuniões eram pura formalidade. Os três vereadores ouviam seus argumentos e os rebatiam. Depois, sorriam, ficavam de pé e lhe diziam que se alegravam enormemente de ter chegado a um acordo. Nunca a escutavam de verdade. Nunca acreditavam que os pôneis de Pride fossem únicos.
-Deixa que fique - insistiu Cameron. - Se não me derem um quarto, dormirei no sofá de sua cabana. Posso te facilitar as coisas. Eu gostaria. Eu gostaria muito. Sobre tudo, eu gostaria que confiasse em mim.
Não deixava de insistir que confiasse nele. Não obstante, a Summer resultava difícil fazê-lo. Se permitisse que Cameron ficasse e ocorresse algo entre eles, ficaria difícil sobrepor-se.
A sua mãe custou sobrepor-se à partida de seu pai. Tinha chegado de trem, para passar uma noite na ilha, e tinha se apaixonado por ele. Summer foi o fruto daquele amor. Não podia esquecer a sensação de desamparo de sua mãe quando relia a nota de despedida e chorava.
Mas seu pai só tinha passado uma noite ali. O mesmo seu avô, seu bisavô e seu tataravô. Talvez Cameron fosse diferente.
-Uma semana? - perguntou vacilante.
-Se quiser. Ficarei até que termine a colheita. Se você se sentir cômoda, mais tempo. Não tenho pressa.
Diga-lhe que não, implorava a voz em seu interior. Faça com que se vá. Vai causar problemas.
Desceu o olhar e disse:
-Se acontecer algo que me faça mudar de opinião; se precisar ficar sozinha e te pedir que vá, você irá?
-Primeiro tentarei te convencer de que não me mande embora.
Olhou-a nos olhos, ao princípio em silêncio. Depois, disse sem falar o que não podia expressar com palavras. Summer soube que iria se ela desejasse que se fosse.
Só esperava ser capaz de desejar sua partida quando chegasse o momento em que, de forma inevitável, teria que ser assim.
Na quarta-feira se ocuparam dos feijões. Cameron os colheu e os levou para a cabana, enquanto Summer os metia em potes, inundava-os em água fervendo e os fechava hermeticamente. Tinha a esperança de que Cameron cometesse um engano e aquilo lhe proporcionasse uma desculpa para lhe pedir que partisse. Mas era um modelo de obediência e tudo o fazia bem. A Summer não teve mais remédio que reconhecer que, nesse sentido, Cameron lhe prestava uma grande ajuda.
Em outro sentido não a ajudava absolutamente. Ao meio-dia tirou o pulôver. Como podia criticá-lo por isso? O suor escorria por seu rosto. Seu peito e suas costas brilhavam sob o sol. Summer se sentia atormentada. Quando Cameron se aproximava dela, seu corpo estremecia. Disse a si mesma que não devia olhá-lo, mas seus olhos a traíam. Disse a si mesma que não devia aproximar-se dele, mas suas pernas desobedeciam. Disse a si mesma que não devia tocá-lo, e conseguia, mas suas mãos estavam em tensão.
Ao cair da noite, prometeu-se que não tocaria Cameron, nem permitiria que ele a tocasse. Não permitiria, sob nenhum conceito, que dormisse com ela.
Estavam sentados no alpendre, bebendo chá gelado sob a lua, quando Cameron perguntou:
-Que espera da vida, Summer? Quero dizer, quais são suas expectativas a longo prazo?
Meditou a pergunta, tentando pensar nas expectativas, mas não se deixava apanhar.
-Não existe o longo prazo - disse por fim. - Não no sentido de anos e anos. As coisas ocorrem. Coisas imprevisíveis às vezes, e as expectativas mudam. O objetivo que hoje nos parece desejável, amanhã pode resultar completamente absurdo, segundo o que aconteça - sorriu. - Ao menos, é o que dizia minha mãe. Estava convencida de que chegaria uma grande tormenta. Tão grande que apagaria a ilha do mapa.
-Você acredita?
-Não. A história não recolhe cataclismos dessa índole. Inclusive se o pólo derretesse, a terra se inundaria de forma gradual.
-Sabe algo disso?
-Quem não ouviu falar da possibilidade de que o pólo derreta?
-Muita gente.
Seus olhos se encontraram na escuridão. O quarto crescente não era bastante para iluminá-los, mas, mesmo assim, Summer podia adivinhar a curiosidade de Cameron. Este prosseguiu:
-É uma pessoa excepcional. Vive em uma ilha abandonada, e, entretanto seus conhecimentos abrangem todas as matérias. Além disso, nem sequer compra jornal.
-Tenho televisão e rádio - assinalou. - Informam melhor que nenhum jornal.
-Tampouco os livros.
Tinha-o averiguado no caminho de volta, quando Summer lhe falou das fitas que tinha recebido.
-Escuto-os.
-Mas abreviados.
-Só um pouco.
Quando era possível, solicitava as versões completas, posto que tinha todo o tempo do mundo para escutá-los, só dois dos cinco que tinha recebido estavam abreviados. É obvio, Cameron tinha visto precisamente aqueles.
-Mas, quando se abrevia um livro, só te chega parte da história.
-Normalmente, a melhor parte. Os livros costumam ser mais compridos do necessário. Já viu os livros que tenho. São enormes.
-Também são antigos - observou. - Pertenciam a sua mãe?
-A maior parte. Em sua época não era fácil conseguir gravações de livros.
-Me fale dela, Summer. Do que morreu?
-Ficou doente.
-Como que ficou doente?
-Não sei. Ficou doente; isso é tudo.
Virou o copo com um rápido movimento do pulso. Não gostava de recordar a morte de sua mãe.
-Não podia comer. Começou a passar a maior parte do tempo dormindo. Foi como se sua energia a tivesse abandonado.
-Lutou para resistir?
-Suponho que sim.
-Como que supõe?
-Não me disse que estivesse lutando, mas não posso acreditar que fosse capaz de se deixar morrer voluntariamente e me abandonar.
-Tentou curá-la?
-É obvio. Tentei-o por todos os meios possíveis. Como não consegui nada, sugeri que fôssemos ao continente a ver um médico, mas ela se negou. Seguiu debilitando-se, até que uma manhã não despertou.
Depois de um breve silêncio, Cameron disse: - Sinto muito.
-Não tanto como eu - disse Summer de forma involuntária.
De repente, começou a gritar.
-Não teve nenhum sentido. Sua saúde sempre foi excelente. Nunca teve um resfriado, nenhuma infecção. Nem sequer uma dor de dente. Além disso, se tivesse tido algo assim, eu teria sabido curá-la. Mas ao final estava muito debilitada para curar-se, e eu não era bastante boa.
-Sente-se culpada? - perguntou Cameron incrédulo.
-É obvio. Não soube fazer uso de seus ensinamentos quando era ela quem as necessitava.
-Ela tampouco pôde. Talvez a matou algo que estava mais à frente do tratamento com remédios naturais. Dá-me a impressão de que desejava morrer.
Summer tinha pensado naquilo algumas vezes.
-Não deixava de dizer que tinha chegado sua hora, mas não tinha sentido. Tinha pouco mais de quarenta anos. Era muito jovem para morrer.
Agitou os cubos de gelo de seu copo, com a vista perdida na escuridão do bosque.
-Acredita que há uma vida depois da morte? - perguntou Cameron.
Summer queria acreditar. A morte a assustava. Por estranha que a considerassem na ilha, naquilo era como qualquer pessoa.
-Não sei.
-Acreditava sua mãe?
-Sim. Às vezes quase parecia esperar a morte com impaciência - sussurrou Summer. - Era o que mais me doía.
-Acreditava que estava impaciente para te abandonar? Não, Summer. Não se tratava disso.
-Como sabe?
-Simplesmente, sei.
-Acredita que há uma vida depois da morte.
-Digamos que não vejo a morte da mesma forma que você. Para mim, trata-se simplesmente de uma mudança de forma. Isso é tudo.
-Uma mudança de forma? - perguntou intrigada.
-Da forma física a espiritual. A alma segue vivendo nos que ficam.
-Isso não é exatamente a vida depois da morte. O afeto que uma pessoa sente por outra pode sobreviver à primeira, mas quando a segunda morre, a primeira se perde por completo.
-Não. A parte da primeira pessoa que ficou na segunda continua vivendo em uma terceira.
-Não tanto como para ser reconhecida.
-Que importância tem? Para ser uma bruxa, é bastante cética. De acordo; pode dar-se outra mudança de forma com a reencarnação.
-Você acredita nisso? - perguntou surpreendida.
Tinha visto filmes sobre a reencarnação, mas nunca tinha levado a sério.
-Acredito que ocorre em alguns casos - afirmou. - Em outros casos, um corpo da terra se converte em um corpo extraterrestre.
-Extraterrestre? O que quer dizer?
Cameron deixou seu copo sobre a mesa.
-Não sei se lhe deveria explicar isso, vai pensar que estou louco.
-Ninguém está mais louco que eu. Adiante.
-De acordo. A terra pertence ao Sistema Solar. Correto?
-Correto.
-E o Sistema Solar forma parte da Via Láctea. Correto?
-Correto.
-E o Universo está composto por milhões de galáxias como a Via Láctea. Correto?
-Isso dizem os cientistas. Nunca comprovei pessoalmente.
-Poucos humanos o comprovaram pessoalmente. Mas em outras galáxias existem formas de vida, e algumas delas estão tão adiantadas com respeito à da Terra que levam milhões de anos visitando este planeta.
-Marcianos? - perguntou Summer divertida.
-Não falo de marcianos de pele verde, olhos de mosca e antenas. Refiro-me a seres humanos que têm alma de extraterrestre. Quando os corpos humanos envelhecem e morrem, às vezes voltam para a forma de vida original.
-Sabe o corpo humano que tem uma alma extraterrestre?
-Normalmente, não. Mas ao voltar para seu planeta, o extraterrestre é consciente de ter vivido como um ser humano.
-Mas não há vida depois da morte para os seres humanos.
-Ou sim, se o ser humano era um extraterrestre.
-Então, o extraterrestre continua vivo, de modo que nunca houve uma morte - Summer ficou de pé. - Está fazendo jogos de palavras. Se me dissesse que, depois da morte, a alma extraterrestre voa com o corpo a outro planeta, então falaria de vida depois da morte.
Cameron se levantou.
-Podemos arrumá-lo.
-Ah, sim? - sorridente, pegou os copos e se dirigiu com eles ao interior. - Sabe uma coisa? Acredito que está tão louco como eu.
Na quinta-feira chegou o turno das ervilhas. Summer ensinou a Cameron a compilá-las e cortá-las, e foi à pradaria a ver os pôneis. Convencida de que lhe tinha proporcionado trabalho para várias horas, tirou a flauta e começou a tocar. O que dizia a música não a tomou de surpresa.
Gostava muito Cameron. Tinha desfrutado enormemente com o bate-papo que tinham mantido no alpendre na noite anterior. Não acreditava em suas teorias de vida depois da morte, mas as tinha exposto com tal seriedade que não tinha mais remédio que as respeitar. Mas sentia algo mais que respeito por ele.
Com um suspiro, deixou a flauta e ficou a meditar. Resultava-lhe fácil tratá-lo, olhá-lo e falar com ele. Tinha a espantosa sensação de que estava se apaixonando por ele. Mas aquele amor não tinha futuro. Cameron não podia ficar em Pride, e ela não podia abandonar a ilha. A história se repetia, e no pior dos casos era que ela não podia fazer nada para evitar. Repetia-se uma e outra vez que devia lhe pedir que partisse antes que o dano fosse inevitável, mas não se sentia capaz de fazê-lo. Despediu-se dos pôneis e voltou para a cabana.
Quando as ervilhas estavam envasilhadas e etiquetadas, Cameron lhe pediu que lhe mostrasse a ilha. Ela aceitou encantada. Havia certos lugares dos quais gostava muito, e queria que Cameron os visse antes de partir.
Desceram pela estrada até uma formação rochosa semicircular. Parecia um anfiteatro natural. Sentaram-se no topo. Apontou a Cameron as ilhas próximas. Ao fundo se via o continente em dias claros.
Cameron rodeou seus ombros com um braço.
-Esteve alguma vez no Bangor?
-O laboratório ao que levei as folhas está no Bangor.
-E Portland?
-Não.
-E em Boston?
-Não.
-Nova Iorque?
Summer negou com a cabeça.
-Seria incapaz de sobreviver em um lugar assim.
-Não poderia sobreviver nem sequer a uma visita?
Olhou para o sul, em direção a aquelas cidades, considerando a pergunta. Depois de uns minutos disse:
-A vida ali é muito estranha. Muito febril e confusa. Ficaria nervosa.
-Mas tem documentários sobre essas cidades.
-Porque me fascinam. Os carros, as luzes, a gente... Quando tenho vontade vê-las, não tenho mais que pôr uma fita de vídeo.
Olhou para cima. O rosto de Cameron se encontrava muito por cima do seu. Tinha os olhos profundos, a pele cálida e os lábios tentadores.
-E você? - perguntou distraída. - Esteve alguma vez em algum desses lugares?
-Não. Normalmente, minhas investigações me levam a lugares mais longes. Mas eu gostaria de visitar essas cidades algum dia.
Summer suspirou e olhou para o outro lado do mar.
-Estou segura de que irá. Tem mais confiança em ti mesmo que eu. Pode ir onde quiser - assinalou com um dedo. - Vê aquela rocha que se sobressai no mar, entre Pride e a outra ilha?
-É uma rocha? Acreditava que era um pão-doce.
-Uma bóia. É. Olhe à direita.
-Ah! Aquela com três proeminências?
-Sim. As três proeminências são típicas dos icebergs. Debaixo há uma ilha inundada. O barco de meu bisavô encalhou aí. O resto da tripulação morreu, mas ele conseguiu chegar até aqui a nado. Como nós no outro dia.
-Resgatou-o sua bisavó?
-Levou-o a sua casa e lhe curou as feridas.
-E depois tiveram um bebê. Não está mau.
-Não sei o que te dizer. Ao dia seguinte, ele tinha ido embora.
-Mas ela teve uma filha. Se não, sua profissão teria morrido com ela. E sua avó? Como teve ela a sua filha?
-Um avião fez uma aterrissagem de emergência na pradaria. Era um desses artefatos antigos, que arrancavam girando a hélice com a mão. Por isso tenho entendido, minha avó correu enfurecida porque tinha posto em perigo os pôneis.
-Já havia pôneis então?
-Chegaram antes que as pessoas. Há teorias que dizem que uma parte de terra da Escandinávia se desprendeu e chegou com os pôneis, mas não se tem sabor de ciência certa, como tampouco se sabe aonde vão ao inverno.
-Mas estavam na pradaria quando aterrissou seu avô, assim deve ser no verão. Feriu algum?
-Não. Minha avó se zangou porque podia lhes haver passado algo.
-E seu avô? Estava ferido?
-Não tanto como para não seduzir a minha avó e partir no dia seguinte.
-Não voltou a vê-lo alguma vez?
-Não.
-Assim que as VanVorn estão especializadas em aventuras de uma noite - comentou rindo.
-Aventuras - corrigiu Summer. - Ao parecer é nossa sina. Ou sua sina. Comigo termina a tradição. Não tenho intenção de ter uma aventura de uma noite.
-Então, como vai ter seu bebê?
-Ao melhor não o terei.
-Mas se o ofício morre contigo, a ilha ficará sem curandeira.
-É algo que tem que ocorrer mais tarde ou mais cedo. Eu não tenho o poder de minha bisavó. Vai debilitando de geração em geração.
-Não estou tão seguro. Curou o filho de Morgan.
-Dei um medicamento a seu pai. Não sei se funcionou.
-Eu sim. Perguntei a Ezra.
-Não! - exclamou Summer. Imaginava o impacto de uma pergunta como aquela. - Supõe-se que só os Shutter deviam saber que recorreram para mim.
-Ninguém sabe - assegurou Cameron. - Mas antes de me ver contigo, parecia bastante falante. Queria averiguar quem era e como tinha chegado, e no transcurso da conversa lhe comentei que tinha ouvido que havia um bebê doente. Disse-me que o menino estava bastante mal a noite, mas que tinha despertado muito melhor, e acrescentou que não tinham necessitado a ajuda da curandeira.
Summer não estranhava que Ezra dissesse algo assim.
-Deve ter morrido de vergonha ao dar-se conta de que me conhecia - disse com certo prazer perverso.
-Pode ser. O caso é que ajudou ao menino. Devia ter mais fé em seus poderes. Por que tem tantas dúvidas?
-Porque não sou capaz de tanto como minhas antepassadas.
-Elas acreditavam em seu poder. Talvez seja esse o segredo.
-Não. Há algo mais. Em algum momento da história das VanVorn havia uma verdadeira fonte de poder. Mas foi diluindo por causa dos homens.
-Está convencida?
-Parece-me razoável.
-Talvez. Mas sigo pensando que tem algo que ver com a convicção. Bombardeavam-lhe os meios de comunicação com notícias sobre os avanços da medicina, os descobrimentos científicos e a tecnologia, Quando ouviu por última vez algo a favor dos curandeiros?
Não recordava ter ouvido nunca nada.
-Vê? - perguntou Cameron. - Lavaram-lhe o cérebro. Têm-lhe feito acreditar que o outro é melhor e mais poderoso. Portanto, tem menos fé em seu próprio poder. Estou seguro de que, se lhe propuser isso, chegará a ser tão capitalista como todas as VanVorn.
Summer gostava do que ouvia, e a forma com que Cameron o dizia. Parecia completamente convencido.
-Se for assim - continuou Cameron, aproximando-se dela até que seus corpos se tocaram, - estará defraudando ao mundo e a suas antecessoras ao permitir que a linha termine. Acredito que deve se expor muito a sério à possibilidade de ter um bebê.
-Não estou segura de querer ser mãe - disse devagar. - Não estou segura de querer assumir a responsabilidade de criar eu sozinha a um menino.
-Outro exemplo de lavagem de cérebro - disse com voz suave. - Em outros tempos, os homens chegavam a passar anos fora de casa, caçando baleias ou transportando mercadorias aos lugares mais afastados. As mulheres criavam sozinhas seus filhos. De repente, na época da liberação da mulher, em que se supõe que são mais fortes e capazes, não se sentem com forças para criar sozinhas a um menino. Você poderia educar a um filho perfeitamente, Summer. É uma questão de confiança em ti mesma.
-É mais que isso - respondeu rindo. - Está o assunto da procriação.
-Eu posso te dar uma mão.
Summer ficou sem respiração durante um minuto. Tudo o que podia fazer era sacudir a cabeça.
-Por que não? - perguntou Cameron.
-Porque me faria mal.
-É virgem?
Sentiu que lhe ardiam as bochechas. Baixou a cabeça para evitar que Cameron visse seu rubor.
-Não me refiro a isso. Quero dizer que me faria mal que você fosse embora depois de algo assim.
Cameron permaneceu calado durante um momento. Summer já começava a pensar que por fim tinha conseguido dizer algo que o empurraria a ir-se, quando de repente murmurou!
-Poderia vir comigo.
Sacudiu a cabeça com mais força.
-Não poderia. Não poderia sobreviver longe deste lugar.
-Com certeza que sim.
-Impossível.
-Como sabe?
-Sei. Não me dá bem tratar com as pessoas.
-Quem fala de pessoas? Eu falo de mim.
-Mas você não vive em uma bola de cristal. Trabalha, tem amigos. Sentir-me-ia perdida em seu mundo.
-Não se tenta te apartar. Poderia fazê-lo. Estou seguro - o braço com que a rodeava a apertou ligeiramente. - Cuidarei de ti.
Mas ninguém cuidava das VanVorn. Eram independentes e auto-suficientes. Além disso, tinham certas responsabilidades. Além da tarefa de curar aos ilhéus, estava a pradaria.
-Não posso ir. Os pôneis me necessitam.
-Sobreviveriam sem ti.
-Se eu não estiver aqui para manter afastados aos compradores?
-Sobreviverão.
Mas negou com a cabeça, e Cameron renunciou a seguir convencendo-a. Ficou acariciando seu braço, aliviando sua tensão. Summer tentou resistir, se dizendo que não podia permitir o luxo de relaxar-se junto a ele, mas não serviu de nada. O contato de Cameron sempre a tinha afetado, e naquele momento mais que nunca.
Uma onda de prazer percorreu suas veias e se estendeu por todo seu corpo. Respirou devagar. De repente se virou para Cameron como se fosse a coisa mais normal do mundo. Repousou a bochecha contra seu pescoço e se sentiu ainda mais relaxada.
Poderia ficar toda a vida como estava naquele momento, apoiada contra o corpo de Cameron. Com uma intensa sensação de paz. Aquele homem seguia lhe parecendo conhecido.
Seus olhos se encontraram, e Summer sentiu que ia ocorrer algo inevitável e destinado. Cameron olhou para sua boca, acariciou-a com seus olhos, e depois com um dedo. Depois, baixou a cabeça e roçou os lábios de Summer com os seus.
O contato da boca de Cameron era estranho, novo, prazeroso e excitante. Ao princípio não fez mais que roçá-la com os lábios, como se não soubesse o que ia encontrar. Depois, abriu a boca e começou a explorar a de Summer com a língua. Ela notava que sua resistência cedia por momentos, e o pior de tudo era que gostava.
Cameron era incrivelmente suave e excitante. Beijou-a até deixá-la tremendo. Summer logo que teve tempo de suspirar antes de conter a respiração. Cameron tinha deslizado uma mão entre seu corpo e lhe tocava o peito. Sentiu-se atemorizada. Seu corpo ardia. Sabia que se aquilo seguisse se consumiria por completo. Tentou dar a entender a Cameron, que pareceu ouvi-la, porque baixou lentamente a mão até rodear sua cintura. Summer se sentiu de uma vez perdida e aliviada ao notar que a mão de Cameron voltava a subir, por debaixo de sua camisa.
-Cameron! - conseguiu exclamar. - Sentia tantos desejos de te tocar - sussurrou, enquanto riscava com seus dedos os contornos do peito de Summer. - Está feita para minha mão. Não o vê?
Não podia ver nada porque tinha os olhos fortemente fechados. Tampouco era capaz de afastar-se nem de lhe pedir que se detivesse. Voltou a beijá-lo apaixonadamente, e se sentiu quase agradecida quando ele deslizou a outra mão por debaixo de sua camisa. Sua pele estava inflamada e só as carícias de Cameron podiam suavizar a dor.
Sentia que estava caindo. Instintivamente, passou as mãos ao redor do pescoço de Cameron como se procurasse amparo. Apenas era consciente de haver-se levantado da rocha para situar-se entre as pernas de Cameron, nem o fato de que seus quadris se encontravam fortemente apertados contra os dele. Seu corpo não respondia a sua mente; deixava-se guiar por algo um pouco mais forte do que tinha conhecido até então.
Cameron continuava beijando-a, continuava tocando-a. Passou uma mão por seus quadris e a atraiu, enquanto com a outra mão desabotoava os botões de sua blusa.
-Cameron? - sussurrou.
Confia em mim, repetiu ele sem mover os lábios.
Sentiu que se abria o último botão. O tecido se separou e o ar quente refrescou sua pele ardente. Ouviu a voz de Cameron.
-Olhe.
Não queria olhar. Não queria ver. Não queria pensar. Não queria ser Summer VanVorn, com os poderes especiais que em realidade não eram e as outras características que a faziam distinta. Queria ser Julia Roberts, Kim Bassinger, e cada uma das mulheres que tinha visto na televisão.
-Olhe - repetiu Cameron. - Olhe que bom casal fazemos.
Sua voz a devolveu à realidade. As mãos de Cameron cobriam seu seio. Tentou afastá-lo de sua cabeça, mas a imagem das palavras de Cameron tinha criado raízes e não se deixava arrancar.
Perguntou-se se realmente faziam um bom casal. Abriu os olhos e viu os dedos longos e bronzeados de Cameron sobre sua pele pálida. Moviam-se em círculos, e cada giro parecia enchê-la. Tentava compreender o porquê quando Cameron começou a pressionar ligeiramente. Apesar da delicadeza de seus movimentos, Summer não foi incapaz de conter um grito.
-O que acontece? - perguntou Cameron.
-Fogo - respondeu com voz entrecortada. - Como se tivesse acendido uma fogueira em meu interior.
-Aqui? - perguntou Cameron deslizando uma mão pelo zíper do jeans de Summer.
Deteve-lhe a mão para evitar que continuasse descendo, e a apertou contra seu estômago. Com a testa apoiada no pescoço de Cameron, respirou de forma entrecortada. Aproximou-se mais dele, para evitar que pudesse voltar a lhe tocar o seio.
Ele a desejava. Ela o desejava. Não sabia o que fazer. Separou as mãos da nuca de Cameron e, afastando-se um pouco, voltou a abotoar a blusa. Depois, deu um passo atrás.
Cameron tomou seu rosto entre as mãos e disse:
-Se acredita que isto teria sido melhor com a Julia Roberts ou Kim Bassinger, está completamente louca.
Então podia ler seus pensamentos. Aquilo não a surpreendia. Era tão irreal em tantos aspectos, que um a mais resultava insignificante. A única coisa real era que não queria que partisse.
-Por que está tão triste? - perguntou Cameron com suavidade. - Ainda não vou embora. - Como o faz? - perguntou.
-O que?
-Ler minha mente.
-É minha faceta extraterrestre - respondeu sorrindo, - você gosta?
-Não. Eu não gosto. É uma invasão de privacidade.
-É sua faceta terrestre a que fala. As pessoas da terra estão obcecadas com os segredos.
Queria lhe dizer que era um demente, mas o azul de meia-noite de seu olho e seu sorriso inclinado o fazia absolutamente irresistível. Sentia-se desconcertada.
-Prometi que te mostraria a ilha - disse. - Aqui perto há uma cova onde, se falar em voz baixa em um extremo, a voz se ouve perfeitamente no outro. Quer tentar?
Seus olhos brilharam. - Uma cova de piratas?
Não sei se foi usada alguma vez por piratas de verdade, mas o que sei é que há morcegos.
Os olhos de Cameron brilharam mais ainda.
-Isso é o que necessita na pradaria. Se esqueça do esterco. Pense nos morcegos. Melhor ainda; eu pensarei nos morcegos e você no esterco. Espantaremos os compradores para sempre.
Na sexta-feira recolheram as cenouras, mas só até as duas da tarde. Era o dia da entrevista na prefeitura.
Foram juntos à cidade. Não tinham comentado a possibilidade de que ele a acompanhasse. Os dois o davam por sentado, e não porque pensassem que Cameron podia ajudar em algo, posto que os vereadores já tinham chegado a uma conclusão de antemão; mas sim porque Summer e Cameron se converteram em um casal.
Summer se sentia um pouco surpreendida ao pensar, posto que estivesse acostumada à solidão. Tinha chegado a apreciar a companhia daquele homem. Sabia que sua ida a destroçaria, mas tinha conseguido esquecer o assunto no momento.
Recordou que Cameron havia lhe dito que era melhor ter perdido o amor que não ter amado nunca.
Os vereadores se reuniam no hotel, na mesma sala que utilizavam alternativamente, a Sociedade Histórica de Pride, o Comitê de Beatificação, as festas de natal patrocinados pela Associação de Pescadores e as leituras de testamentos e outros assuntos legais.
O grupo de vereadores sentado ao redor de uma mesa, com uma garrafa de Bourbon no centro, não tinha mudado nada desde a primeira vez que Summer se reuniu com eles.
Hapgood Pauling estava sentado à esquerda, Keegan Benhue no meio e Oaker Dunn à direita. Os três rondavam os sessenta anos, tinham uma pronunciada calvície e usavam camisas de manga curta abotoadas até o pescoço.
-Summer - disse Keegan, - temos um assunto que discutir antes de falar contigo. Pode esperar fora? Em seguida lhe chamamos.
-Que assunto tem que discutir? - perguntou Cameron quando voltaram para vestíbulo. - Não pareciam muito ocupados.
-Devem estar ocupadíssimos - disse Summer com sarcasmo, - porque se reúnem três vezes por semana.
-Três vezes?
-É uma boa desculpa para ter bebida livre com privacidade. O bar fecha quando se reúnem.
-Muito ardilosos. Têm eleições municipais?
-Sim, mas se trata de uma mera formalidade. Os vereadores sempre pertencem ao grupo de famílias importantes. Decidem entre eles quem vai escolher para o seguinte mandato de três anos. Dizem os nomes na reunião da cidade, e a votação acontece no momento. Sempre saem escolhidos por unanimidade.
-Votou neles? - perguntou Cameron incrédulo.
-Não. Eu não vou às reuniões.
-Por quê?
-Porque minha família nunca foi.
-Por quê? - repetiu.
-Porque não somos daqui.
-Mas sempre viveu nesta ilha.
-Mesmo assim, somos de fora. Suponho que poderia ir se quisesse, mas não acredito que valha a pena. Eu vou por meu canino e me ocupo de meus assuntos. Nada do que ocorra nessas reuniões me concerne muito.
-As coisas relacionadas com a pradaria lhe concernem.
-Mas não as decidem na reunião. Essas reuniões são mais que nada, um acontecimento social. As coisas relacionadas com a pradaria se decidem aqui, e conheço o ponto de vista dos vereadores. Levo vários anos me reunindo com distintos trios, e sempre coincidem em que se pode prescindir dos pôneis.
Por fim os chamaram.
-Que rapidez - comentou Cameron.
-O atraso foi uma demonstração - explicou Summer sem rancor. Tinha aprendido muito tempo atrás que a cólera era um esforço em vão no que se referia prefeitura.
Os vereadores não se moveram. Não obstante deveriam estar planejando sua ofensiva, porque os três se voltaram com curiosidade para Cameron. Kee abriu a conversa do centro.
-Vem este homem contigo?
-Sim.
-Não disse que iria trazer ninguém. É de sua família?
-Não.
-Têm os olhos parecidos - continuou estudando Cameron-. Não será um advogado, verdade?
-De fato - disse Cameron para espanto de Summer- sou. Tem algum inconveniente?
Hapgood se inclinou pela esquerda e Oaker pela direita, e improvisaram um debate em sussurros sobre a garrafa. Quando se endireitaram Keegan disse:
-Não vemos a necessidade de um advogado. Esta é uma reunião amistosa.
-Eu também sou amistoso - disse Cameron sorrindo.
-Com quem? - perguntou Keegan. - Se pensa que pode nos ameaçar com alguma artimanha legal, não é amistoso conosco.
-Não há artimanhas - apressou-se a dizer Summer.
A última coisa que desejava era inimizar-se abertamente com um dos vereadores.
-Ainda não - disse Cameron, - mas lhes advirto que estamos considerando a possibilidade de nos dirigir ao Departamento do Interior para que declarem os pôneis e a pradaria Reserva Nacional. Summer o olhou divertida. Levava vários anos tentando-o, mas o governo sempre recusava a proposta.
-Por quê? - perguntou Keegan levando uma mão ao queixo. - Uma pradaria é uma pradaria.
Aquilo era precisamente o que o governo tinha respondido a Summer.
-Esta é diferente - declarou Cameron.
Hapgood revirou os olhos e murmurou algo inteligível.
Cameron se inclinou para ele.
-Perdoe, importaria falar mais alto? Não entendi o que disse.
-Summer sempre diz que a pradaria é diferente, mas não pode demonstrar. Se não pode demonstrar isso, tampouco poderá demonstrar ao governo dos Estados Unidos, e se não o faz, não declarará nenhuma reserva – esclareceu a garganta. - Agora, falemos da empresa OSAY - tomou um comprido trago para meditar suas palavras. - É uma companhia confiável. São conhecidos em todo o país.
-Por quem? - perguntou Cameron com tom inocente,
Keegan parecia desconcertado. Summer suspeita que preparou o discurso para soltar de um puxão sem contar com que o interrompessem.
-Você falou com o OSAY - disse Keegan ao Hapgoo conte por que são conhecidos.
-Eu falei com eles de Pride. Oaker é o que é melhor informado sobre a empresa.
-Oaker? - disse Keegan, convidando-o a falar.
-Estrelas - afirmou Oaker. - Estudam as estrelas.
-Dedicam-se à astrologia? - perguntou Cameron com educação.
-Como?
-Horóscopos - esclareceu Cameron arqueando as sobrancelhas.
Oaker franziu o cenho e se voltou para Keegan.
-Não me soa. Sabe se fizerem horóscopos?
-Claro que não - murmurou Keegan. - Os insetos estranhos fazem horóscopos.
-Astronomia - disse Hapgood impaciente. - OSAY constrói observatórios para olhar as estrelas. Mas o que nos ocupa não é o que faziam no passado, a não ser o que querem fazer aqui.
-Hap tem razão - disse Keegan. - Querem construir uma estação de seguimento de satélites na ilha de Pride. Dizem que estamos no melhor lugar.
-E não temos contaminação - assinalou Hapgood.
Além disso, uma estação de seguimento de satélites estará bem - continuou Keegan, - porque não vão sujar a pradaria. Somente vão construir um edifício e colocar um par de antenas parabólicas.
-De que tamanho? - perguntou Cameron.
-O que?
-O edifício.
-Muito pequeno - prometeu Keegan.
-E as antenas?
-Menores ainda.
Cameron assentiu com gravidade e colocou as mãos nos bolsos.
-Então não vejo por que não podem instalar a estação no escarpado. Ou no campo que há atrás do cemitério. Ou abaixo, ao final do quebra-mar. Bem pensado, não seria um mau lugar. Assim aproveitariam os barracos para algo útil. Tal e como estão esses barracos podem lhes trazer muitos problemas.
Nenhum dos três homens parecia ter entendido aquela frase. Summer tampouco estava segura, como tampouco sabia se era certo que Cameron conhecia o campo que havia depois do cemitério ou os barracos próximos ao embarcadouro. Não o tinha levado a nenhum daqueles lugares. De todas formas, optou por deixá-lo falar. Parecia bastante convincente.
Keegan não estava tão divertido como ela.
-Problemas? - repetiu perplexo.
-Sim. Esses barracos... Sabem a quais me refiro verdade? - quando os três homens assentiram, prosseguiu. - Esses barracos são perigosos, mas os meninos jogam neles todos os dias. Se um menino caísse por uma janela - deteve-se para olhar ao trio-, pedir-lhes-iam responsabilidade legal.
-Ninguém nos denunciaria - afirmou Keegan.
-Isso diz todo mundo - disse Cameron enquanto percorria o lugar de um lado a outro. - Mas, atualmente, as indenizações por danos e prejuízos são substanciosas. Aceitem meu conselho; nem sequer lhes vou cobrar por isso. Esses barracos podem lhes trazer complicações. Querem instalar uma estação de seguimento satélites na ilha? Ponham-na aí. Deixem que a empresa OSAY os livre desse estorvo.
-A OSAY não interessa esse lugar - disse Oaker-, e os pescadores não querem que se instale aí.
-Pois nós não queremos que se instale na pradaria - respondeu Cameron.
-É o melhor lugar - repôs Keegan.
-E os pôneis? - perguntou Summer.
Apesar de desfrutar com o espetáculo que estava dando Cameron, os pôneis eram sua maior preocupação.
Keegan suspirou.
-Os pôneis irão para outro lugar.
-Não pastarão em outro lugar. Somente comem as folhas da pradaria.
-Não vão destruir todas as árvores - anunciou Keegan orgulhosamente, dissemos-lhes que deviam deixar umas quantas em pé.
-Quantas das trinta que há atualmente?
-Pelo menos, dez.
-Mas quando tiverem instalado a estação não ficarão suficientes para que pastem os pôneis - sacudiu a cabeça. - É inaceitável.
Keegan se apoiou nos cotovelos e cravou o olhar na mesa.
-Olhe o que você pensa é o de menos. Nem sequer teríamos por que te consultar. Fizemos por cortesia, porque pensamos que entraria em razão.
-Teria sido razoável se tivesse ouvido alguma coisa assim. Mas não disseram nada razoável. Os pôneis precisam da pradaria.
-Mas se só passam aqui três meses d ano - gemeu Oaker.
-Três meses que são críticos para sua sobrevivência - repôs Summer.
-E o que passa durante os nove meses restantes? O que comem enquanto isso?
Summer tinha se perguntado o mesmo em muitas ocasiões. Naquele momento, ao não conhecer a resposta resultava particularmente doloroso.
-Comem frutos bunkenberry - proclamou Cameron. - São árvores que tendem a ficar mais verdes no outono que no inverno. Na primavera ficam doces, então quando mais gostam. Mas então – encolheu os ombros-, os bagos deixam de crescer até o outono. Por isso vêm aqui.
Summer queria lhe perguntar aonde foram, mas não se atrevia a revelar sua ignorância diante dos vereadores.
-Aonde vão? - perguntou Keegan, que não tinha esse escrúpulo.
-A qualquer lugar onde tenha arbustos de bunkenberry - respondeu Cameron.
Keegan olhou ao Hapgood.
-Viu alguma vez um arbusto de bunkenberry?
-Não.
Virou-se para Oaker.
-E você?
Oaker negou com a cabeça.
-Onde cresce essa planta? - perguntou a Cameron.
-Certamente, não pode ser aqui. Necessita uma terra totalmente distinta, e muito menos pressão atmosférica.
-A maior altura?
-Poderia dizer-se assim.
-Muito alto para transplantar as árvores?
-Sem dúvida. Elas não sobreviveriam ali, do mesmo modo que os bunkenberry não sobreviveriam aqui.
Keegan se apoiou no respaldo, pensativo. Depois de trocar o copo de mão várias vezes, disse de repente:
-Verão, uns ganham e outros perdem. É indubitável que a estação de seguimento de satélites beneficiará à ilha muito mais que os pôneis. Essa estação nos proporcionará dinheiro e precisamos dele - voltou a adiantar-se e olhou intensamente para Summer. - Essas pessoas vão vir na segunda-feira para ver a pradaria. Sempre que vem alguém, te avisamos antes e então põe-te a rondar por aí, e começam os problemas, assim que esta vez queremos que fique em casa.
-Se eu não estiver aí, os pôneis se encabritarão - advertiu Summer.
-Pois lhes diga antes que se tranqüilizem.
-Não é tão fácil. Tenho que estar ali.
Sua mãe era capaz de comunicar-se telepaticamente com os pôneis, mas Summer não tinha herdado aquela qualidade.
-Esta vez não - ordenou Keegan.
-É uma ameaça? - perguntou Cameron. - A pradaria não é propriedade privada, e Summer tem tanto direito a visitá-la como qualquer outro.
-Não o tem. É uma sabotadora.
Cameron se virou para o Summer.
-O intento deste homem de restringir seus movimentos atenta contra a Primeira Emenda da constituição, que te garante o direito de permanecer fisicamente em terreno público.
-Pacificamente - repetiu Oaker. - Ela não fica pacificamente. Provoca toda classe de desastres.
-Provoca-os ela? - perguntou Cameron muito devagar. - Tem provas de que provoca desastres?
-Está ali, e os desastres acontecem - disse Papgood. - Necessita mais provas?
-Os tribunais necessitam muito mais. Os tribunais necessitam provas muito concretas, que possam convencer a um jurado de que ela e só ela é a causadora dos desastres. Agora, me permita que lhe pergunte se vocês têm essas provas.
Hapgood o olhou em silencio durante um minuto, depois olhou para Keegan. Este olhava para Oaker, que tinha os olhos cravados em Hapgood.
-Caso resolvido - anunciou Cameron.
Virou-se para Summer e lhe dedicou um sorriso bem-sucedido.
Devolveu-lhe o sorriso.
E eu, bombeiro.
Cameron entrecerrou os olhos.
O que têm a ver os bombeiros com isto?
Você não é advogado. Como te ocorreu dizer isso?
Ocorreu-me que seria divertido fingir.
Parecia um advogado de verdade.
Que esperava? Vi mais de cem episódios da lei dos Anjos.
-Summer VanVorn - Keegan interrompeu sua conversa silenciosa. - Dá-me igual o que diga seu advogado; se acontecer algo na segunda-feira que vem, consideraremos você a responsável direta.
-Por favor, cavalheiros! - disse Cameron. - Basta de ameaças.
-Limite-se a mantê-la afastada da pradaria na segunda-feira.
-De acordo.
-Fará isso? - perguntou Hapgood.
Cameron assentiu.
-Mas... - começou a protestar Summer.
Cameron a deteve com um gesto.
-Fará? - perguntou Keegan.
-Certamente - afirmou. - Vou ficar com ela e vigiá-la. Assim, se acontecer algo, vocês saberão que não foi ela quem o provocou. De acordo?
-Por que temos que confiar em você? - perguntou Oaker.
-Porque sou advogado - respondeu com naturalidade.
Os três homens voltaram a deliberarem em voz baixa, terminando se endireitaram, Hapgood falou.
-De acordo. Você fica com ela e a vigia - elevou a voz-, mas se aparecerem serpentes, insetos ou grandes charcos pestilentos, saberemos que foi ela. Já o fez outras vezes.
-Não haverá serpentes, insetos nem charcos - disse Cameron, tomando ao Summer pelo braço. - Prometo.
-Tenho que estar ali - disse Summer assim que saíram.
-Por quê? Você não é a que faz com que aconteçam coisas.
-Não sou eu - franziu o cenho. - Pelo menos, acredito que não. Não tenho certeza.
-Como não tem certeza?
-Bom; eu quero que essas coisas aconteçam. Penso nelas. Rezo com todas minhas forças para que aconteça, mas quando vejo que é assim, começo a pensar que talvez tenha o poder. Depois, tento fazer com que aconteça outra coisa, e não acontece. Assim não sei se sou eu. Não obstante, há uma possibilidade de que eu tenha algo a ver, e se for assim, não vou arriscar os pôneis ficando fora de pradaria.
-Não se preocupe. Eu me encarregarei disso.
-Não te entendo.
Puxou-a pela mão.
-Em outras ocasiões os possíveis compradores vieram e tiveram problemas. O que aconteceria, para começar, se os da OSAY não pudessem vir?
-Claro que virão. Se não pegarem o trem, alugarão um barco ou um helicóptero. Além disso, é muito provável que uma empresa dessas características tenha um avião de pequeno porte.
-Mas, o que aconteceria não pudesse chegar? O que acontece se tropeçassem com uma barreira invisível que os impedisse de aproximar-se em um raio de dez quilômetros? - Summer suspirou.
-Parece-me que, além Da lei dos Anjos, também viu os sessenta e oito episódios de Star Trek. As barreiras invisíveis não existem na vida real.
-Você e seu cepticismo. É que não tem imaginação?
-Não no que concerne aos pôneis. Tenho que ser realista. O fato é que, para sobreviver, necessitam a pradaria tal como está.
Cameron lhe passou uma mão pelos ombros e a apertou contra seu corpo.
-Eu os salvarei. Por isso estou aqui.
-Isto não é uma brincadeira - disse Summer apartando-se. - Pode que lhe pareça isso, porque logo irá daqui. Afinal de contas, os pôneis não lhe importam.
-Me importam - protestou.
Parecia ferido.
Summer não gostava daquela expressão, parecia muito real. Adiantou-se uns passos e disse:
-São minha responsabilidade. Não tem direito de prometer aos vereadores que me reterá na cabana - olhou-lhe por cima do ombro. - Como pode pedir que fique de braços cruzados?
-Peço-lhe isso porque eu não ficarei de braços cruzados - respondeu, acelerando o passo para alcançá-la-, asseguro-te que não permitirei que os representantes da OSAY cheguem à ilha.
-Mas não pode - lamentou-se-. Não é Superman.
-Quase.
Summer gemeu e voltou a adiantar-se.
-Está louco.
-Não mais que você. Acredita que é a única com poderes?
-Eu não tenho poderes.
-Teria se acreditasse em si mesma. Atravessa uma crise de confiança, isso é tudo. Eu não. Estou preparado para fazer tudo o que for necessário para evitar que esses homens se aproximem da pradaria.
-Está completamente louco - disse incômoda.
Desde que aquele homem a tinha levado a casa uns dias atrás, havia dito coisas estranhas. Também tinha feito coisas estranhas, se queria acreditar que tinha sido o causador dos ataques dos irmãos Mundy e da queda de Jeb Strunk. Fazia coisas muito estranhas, se queria acreditar que lhe tinha curado o que podia ser uma rótula destroçada e várias costelas quebradas. Além disso, estava a forma como tocava o clavicórdio, e a forma como falavam seus olhos, e a forma com que tocava um ponto de seu interior que ninguém tinha alcançado nunca.
De repente, sentiu-se atemorizada pelo que uma pessoa assim podia fazer com sua vida.
-Quero que vá embora.
-Vamos, Summer!
-Digo a sério. Prometeu-me que iria se lhe pedisse isso, e lhe estou pedindo isso. Preciso ficar sozinha.
Agarrou-a pelo braço, obrigando-a a deter-se.
-Não posso ir agora. Há muitas coisas em jogo.
-Estou te pedindo que vá, Cameron - repetiu com os olhos cravados no chão.
-Olhe para mim e me peça que vá.
Summer negou com a cabeça.
-Seus olhos fazem coisas. Só quero que vá.
-Prometi aos vereadores que ficaria.
-Também me prometeu que iria se lhe pedisse isso.
-O que acontece conosco?
-Não há nada entre nós - aquelas palavras destroçavam seu coração, mas continuou. - Sempre lhe disse isso. Não sei de onde vem nem aonde vai, mas minha vida está aqui. Sozinha.
-Não tem por que ser assim.
-Mas é assim.
Cameron ficou em silêncio. Summer sentia seu calor, sobrepondo-se ao do sol. Desejava apoiar-se nele, lhe passar os braços pela cintura e lhe rogar que esquecesse o que havia dito.
-Por favor - sussurrou fechando fortemente os olhos. Vá embora, por favor.
Com os braços rígidos para evitar cometer uma tolice com eles, esperou que falasse. Cameron nunca ficava calado durante muito tempo.
Seguiu esperando. Ao cabo de um minuto, esperou tremer, mas não pela excitação de sua proximidade, repente se sentia gelada, vazia e sozinha. Ao fim entendeu que tinha passado. Abriu os olhos para comprová-lo.
Cameron tinha partido. Olhou a seu redor, mas não o viu em nenhum lugar. Vagou pelos bosques que rodeavam a estrada, gritando seu nome.
Isso era o que queria. Por fim tudo voltaria para a normalidade.
-Mas, e meu bebê? - sussurrou.
Mordeu-se o lábio fortemente.
Estará melhor sem um bebê, disse-lhe uma voz interior. De todas as formas, não seria uma boa mãe. Não seria capaz de ensinar a sua filha nem a metade do que sua mãe ensinou. Foi muito má estudante. Enxugou-se as lágrimas uma e outra vez. Uma vez na cabana, subiu ao quarto, meteu-se na cama, e apesar de ser apenas as quatro da tarde chorou até adormecer.
A cabana parecia desolada sem ele. Via-o por toda parte, tocando o clavicórdio, vendo televisão, sentado no alpendre, cortando cenouras na cozinha e massageando seu joelho. Mais de uma vez lhe pareceu sentir o cheiro de seu aroma que sé então se identificava como dele. Virava-se esperando vê-lo e só encontrava uma estadia vazia. Cameron estava em todas as partes, mas em nenhuma. Sabia que doeria sua marcha, mas não tinha imaginado até que ponto. A dor era contínua, e tão forte que não conseguia manter-se ocupada. Tentou tocar para esquecê-lo; primeiro com a flauta, e logo com o clavicórdio.
Nada funcionou. A maior parte das vezes acabou chorando. Chorava com tão pouca freqüência, que o pranto só acrescentava sua confusão.
No domingo pela manhã estava desesperada. Decidiu que uma mudança de cenário a ajudaria, de modo que encheu sua mochila de comida e se dirigiu ao bosque que se elevava ao outro lado da pradaria. Não tinha levado ali a Cameron. Não tinha levado ali a ninguém, nem sequer sua mãe. Tratava-se de um lugar secreto desde sua infância, uma cavidade protetora feita de árvores cansadas e rochas. Summer queria sentar-se ali para apartar Cameron de sua mente e concentrar-se em pensamentos puros e simples que lhe devolvessem a paz.
Ao chegar, a dor de seu interior começou a ceder, seus olhos se secaram e seus músculos se relaxaram. Ao cair a tarde voltou para a pradaria com os pôneis, e se viu invadida pela mesma dor, de forma que voltou para aquele lugar e passou a noite encolhida sobre o musgo.
Ao chegar a manhã, saiu e se dirigiu a um lugar no qual podia ver sem ser vista. Não obstante, sua presença teria um efeito calmante sobre os pôneis, e, além disso, seria capaz de concentrar sua energia em dissuadir aos homens da OSAY. Não lhe importava o que Cameron tivesse prometido aos vereadores; não podia ficar de braços cruzados. Dado que não tinha um bebê nem um amante, o amparo da pradaria era sua única razão de ser.
Esperou sentada entre os matagais. As oito de amanhã se converteram nas nove; depois, nas dez. Ninguém chegava à pradaria. Concentrou-se no esterco, depois nos morcegos, e depois em Cameron. Sua dor interior apareceu de novo. Tentou deixar de lado para pensar sozinha em provocar um desastre, mas a dor não lhe abandonava. Pensou em voltar para seu esconderijo para recuperar um pouco de paz, mas não se atreveu. Se não estivesse ali quando chegasse a equipe, não teria esperança de salvar a pradaria.
Deram as onze, e depois as doze. A uma e ainda não havia rastro dos compradores. Aquilo indicava que tampouco tinham tomado o trem. Tampouco divisou nem ouviu nenhum avião. Certamente, tinham optado por alugar um barco. Perguntou-se onde estaria Cameron naquele momento. Seus olhos se alagaram em lágrimas. Esqueceu-as e se concentrou em aranhas pegajosas que fizessem com que os representantes da OSAY voltassem para casa enojados. As aranhas não se materializaram. Tampouco os compradores. Deram as duas e as três, aumentando seu desconcerto. Deram as quatro, e a pradaria seguia vazia e silenciosa. Só estavam os pôneis e uma suave brisa.
Mesmo assim, Summer não se moveu. Ante a possibilidade de que os vereadores tivessem tentado enganá-la fixando uma hora da entrevista para a tarde, continuou escondida entre os arbustos. O sol começou a descender, e as sombras se faziam cada vez mais longas. A brisa do oceano foi se esfriando.
Por fim, quando o sol se ocultou e a luz da pradaria tinha desaparecido até o ponto em que só ela era capaz de ver, Summer saiu do esconderijo, não entendia o que podia ter ocorrido. Keegan havia dito que chegariam na segunda-feira. Estava segura de que havia dito na segunda-feira, e mais de uma vez. Mas ninguém tinha chegado.
Confundida, dirigiu-se a sua casa. Na metade de caminho se deteve e deu a volta. Pensou que o único que encontraria na cabana seria a lembrança de Cameron.
Encaminhou-se para a cidade. Caminhou devagar, como se passeasse, mas uma vez ali não soube o que fazer. Passou a rua onde vivia Hapgood Pauling e Oaker Dunn depois, pela rua onde vivia Keegan Benhue. Mas não chamou a nenhuma porta. O que podia dizer? Estava escondida entre os matagais e não vi ninguém. Se forem vir outro dia, façam-me saber. Assim poderei ver se consigo me concentrar em aranhas pegajosas.
Continuou caminhando e chegou aos velhos barracos que Cameron tinha mencionado. A última vez que tinha visitado a cidade, tinha-o feito com ele. Sentou-se segura e protegida. Havia se sentido orgulhosa. Havia se sentido normal.
-Meu deus - murmurou com os olhos cheios de lágrimas.
Abraçou-se a si mesma em um intento de conter a dor. Sentia falta de.
Permaneceu imóvel durante o que pode ter sido uma eternidade. A noite era escura, e os barracos se elevavam ante ela com tenebrosas sombras. A água agitava os botes amarrados. Sentia-se tão desolada como se fosse a única habitante da ilha.
Então, teve a estremecedora sensação de que não estava sozinha. Uns braços a aferraram na escuridão. O primeiro que pensou foi que Cameron havia voltado, mas os braços de Cameron nunca lhe tinham transmitido tanta crueldade.
Começou a debater-se.
-Me deixe!
Os braços que a rodeavam a apertaram mais ainda, imobilizando-a.
-Não tão depressa - disse uma voz junto a sua orelha. Sentiu que a arrastavam para o barraco mais próximo. Não podia fazer nada para resistir. Seu atacante era muito mais forte que ela.
-Acredita ser muito esperta, verdade? Acreditava que não íamos dar conta do que tinha feito você, né?
Summer reconheceu aquela voz. Era a de Hallard Dunn, o irmão de Oaker. Normalmente sempre estava bêbado, mas naquela ocasião parecia mais sereno. Também parecia muito zangado.
-O que fiz? - conseguiu perguntar, enquanto lutava por liberar-se.
-Assustá-los. Não sei o que fez, mas mudaram de opinião sem chegar a ver a pradaria.
-Não sei nada. Eu não...
Empurrou-a contra uma parede. Apertava-a com seu corpo. Agarrou-a pelo queixo e lhe disse:
-Cale-se! As bruxas sempre mentem. Não me vai atar nem vai jogar mal de olho - começou a lhe tocar o peito. Necessitávamos essa estação.
-Não! - gritou em vão.
Cameron! Preciso de você, Cameron. Ajude-me, por favor.
-Necessitávamos os postos de trabalho da construção, e o negócio que traria depois. Jogou tudo a perder - levantou-lhe a camisa, - assim que eu estragarei a ti.
Suas mãos se moviam sobre seu peito nu. Summer gritou.
Tampou-lhe a boca.
-Cale-se!
Enquanto lhe tampava a boca com uma mão, com a outra se desabotoava o botão do jeans.
Cameron, por favor!
-Não virão, bruxa. Disseram que este lugar não lhes dava boa impressão. Disseram que há muitas histórias sobre a ilha estar encantada – desceu o zíper. - Quem lhes contou essas histórias, bruxa Quem?
-Fui eu - rugiu uma voz desde atrás.
Antes que o eco de sua voz se apagasse. Hallard aterrissava no chão.
Summer estava escondida junto à parede, com os joelhos apertados contra o peito e os braços sobre a testa. Tremia dos pés a cabeça, enquanto ouvia aterrorizada o som dos murros.
Parecia não acabar nunca. Precisava escapar dali, mas se sentia incapaz de ficar de pé.
De repente ouviu o último golpe, e tudo ficou em silêncio. Cameron a levantou nos braços e logo alcançaram o centro da cidade. Nenhum dos dois disse uma palavra.
Cameron caminhava com passos longos. Em pouco tempo, deixaram atrás a cidade e entraram no bosque. Summer afundou a cara em seu peito e lhe passou os braços depois da nuca.
Cameron a levou para a cabana e colocou-a diretamente no banheiro e abriu a ducha. Com infinita delicadeza, enxugou-lhe as lágrimas com as mãos, que resultavam imensamente suaves em comparação com sua voz.
-Poderia havê-lo matado, respirou profundamente. - Mas viverá para recordar o que tentou e o que lhe aconteceu por tentá-lo, e o que lhe ocorrerá se atrever a voltar a tentar. Agora, tudo o que quero é tirar esta sujeira de seu corpo.
O vapor da ducha começava a estender-se. Olhou-a e lhe perguntou com voz tranqüila:
-Quer que vá?
-Não! - gritou Summer.
A idéia de ficar só a aterrorizava. Rodeou sua cintura com os braços, apertou-o com toda a força que lhe tinha faltado momentos antes.
-Não vá. Agora não. Não volte a ir. Não o faça outra vez.
Não sabia por que havia voltado. Não sabia o que esteve fazendo, nem como tinha conseguido encontrá-la nem como tinha aparecido entre os barracos quando mais o necessitava, mas tinha aparecido e não permitiria que voltasse a desaparecer.
Cameron lhe beijou a frente, os olhos, o nariz e a bochecha. Summer chorava de novo. Tudo o que queria era apertar-se junto a ele e não separar-se nunca.
Mas Cameron não permitiu. Despiu-a com cuidado. Tirou-lhe primeiro a camisa, e depois as sapatilhas de esporte, o jeans e a roupa interior. Ele também se despiu. Meteu-se com ela na ducha e procurou o sabão. Limpou-lhe a sujeira que tinham deixado as mãos de Hallard. Cobriu de espuma até o último milímetro de seu corpo, enxaguou-a por completo e voltou a ensaboar. Comprovou surpreendida que aquela intimidade não a coibia absolutamente. Seu corpo pertencia a Cameron. Deveria ter-se dado conta antes.
Quando a água começou a esfriar-se, Cameron fechou o grifo. Summer recordou assustada, a solidão que tinha sentido durante sua ausência. Aferrou-se a seu pescoço e sussurrou:
-Não vais voltar a me deixar, verdade?
-Nunca.
Tomou uma toalha e a secou com a mesma delicadeza que a tinha lavado. Depois de secar-se ele também, voltou a levantá-la nos braços e subiu com ela a escada até o quarto. Meteu-a na cama, pôs o abajur ao mínimo e a abraçou fortemente.
-Cameron - sussurrou Summer.
Olhou seu cabelo escuro e molhado, seus olhos azuis marinho, as fortes linhas de suas bochechas, seu nariz e seu queixo. Amava-o loucamente.
-Não devia te pedir que partisse. Não sei por que o fiz. Acredito que estava assustada.
-Assustada por mim?
-De meus sentimentos.
-E agora?
Voltou a recordar a dor provocada por sua ausência e seus olhos brilharam de medo.
-Só me assusta pensar que você não me queira.
Agarrou-lhe a mão e a levou a peito. Não lhe importava que aquele gesto fosse improcedente. A sensação que lhe proporcionava era tão prazerosa que teve que fechar os olhos durante um momento antes de poder falar.
-Necessito-te, Cameron. Nunca necessitei tanto a ninguém. Ame-me, por favor.
Entrelaçando seus dedos com os de Summer, inclinou-se sobre ela e começou a beijá-la como antes: primeiro a testa, logo os olhos, o nariz e as bochechas. Ao chegar à boca a encontrou aberta, disposta a beijá-lo, como o resto de seu corpo.
Summer se negava a permitir que aquilo a incomodasse. A independência e a auto-suficiência estavam muito bem, mas estar com um homem como aquele e amá-lo como o amava estava muito melhor. Se tinha que partir algum dia, teria que deixá-lo ir, mas até então estava disposta a ser amada.
Beijou-a até deixá-la consumida pelo desejo. Depois, abaixou a cabeça até chegar a seu peito.
A pele de Summer começou a arder, consumida por um fogo interior que se estendia por todo seu corpo.
Cameron elevou a cabeça. É preciosa, diziam seus olhos.
Eram do azul mais escuro e aveludado que Summer tinha visto em sua vida. Quero-te.
-Continua. Não pare.
Cameron cobriu seus lábios com um beijo que acelerou sua respiração.
-Em realidade, isto não tinha que ocorrer - disse em tom divertido. - Mas te quero.
Voltou a beijá-la, e deslizou uma mão por seu corpo. Seus dedos jogaram com os cachos loiros de seu monte de vênus, e depois se afundaram um pouco mais.
Summer suspirou.
-A semana passada, isto teria te assustado - sussurrou Cameron contra seus lábios.
-Mmmm.
-Já não te assusta?
-Justamente o contrário.
-Me diga como se sente.
-É como... - tentou pensar, mas o movimento dos dedos de Cameron fazia que a tarefa resultasse difícil. - É como se tocasse todo meu corpo. Sinto seu contato em todas as partes.
-E quando faço isto? - perguntou afundando a mão um pouco mais.
A respiração de Summer se fez entrecortada.
-Você gosta? - sussurrou Cameron.
-Sim.
-E isto? - perguntou deslizando um dedo em seu interior.
-Oooh.
Summer fechou os olhos e afundou a cabeça no travesseiro. Cameron lhe sussurrou ao ouvido:
-Recorda a outra noite?
-Que noite?
Apenas podia pensar; muito menos, recordar.
-Quando comecei a tocar o clavicórdio - seu dedo se movia de forma rítmica, introduzindo-se mais e mais fundo em seu interior. - Fiz amor com você, com minha música. Não tinha intenção de que ocorresse, mas te desejava tanto que não pude evitá-lo.
Summer apenas ouvia suas palavras por cima dos fortes batimentos de coração.
-Summer?
Ela subiu a pélvis, com um murmúrio de prazer.
-Abre os olhos.
Custou-lhe certo trabalho, mas por fim conseguiu contemplar Cameron através de um véu de paixão.
-Quando fizemos amor - disse em voz muito baixa, - foi fisicamente, como agora. Foi algo real, mas não físico, assim, tecnicamente, ainda é virgem. Isso significa que te farei um pouco de dano, mas só será um momento.
-Me faça amor - implorou Summer.
Notou que também ele estava excitado. Levada por uma necessidade que acabou com a pouca inibição que tinha, subiu os quadris e sujeitou os de Cameron entre suas pernas.
-Como aprendeu a fazer isso?
-Nos filmes. Depressa, Cameron. Necessito-te.
-Assim? - perguntou sorridente.
Moveu os quadris um pouco; o suficiente para iniciar penetração.
-Mais - sussurrou Summer, empurrando-o contra ela, embora não o bastante-. Por favor, Cameron - suplicou.
Colocou-a na cama, ficou sobre ela e a penetrou com suavidade. Summer deixou escapar um grito. Arqueou-se contra ele.
Seu orgasmo foi interminável. Os espasmos se estenderam por todo seu corpo, e lhe pareceu que com o grito triunfal de Cameron começava de novo. Nunca havia sentido nada tão intenso e maravilhoso em toda a vida. O último que pensou era que se tivesse um bebê como resultado seria um presente muito precioso.
Mais tarde, Summer se encontrava apoiada sobre ele, com um braço ao redor de seu pescoço e o outro sobre seu peito. Pensava que nunca o deixaria partir. Ele também a rodeava com um braço.
-Cameron.
Seu nome foi pouco mais que uma exalação, uma desculpa para mover a boca sobre sua pele. Tinha uma pele maravilhosa. Era firme e tersa, exceto nos lugares cheios de pêlo. Deslizou a mão sobre seu forte peito, admirando tanto sua suavidade como sua forma.
-Encontra-te bem? - sussurrou ele.
-Sim - respondeu sorridente.
Apenas lhe apagou o sorriso, seus olhos voltaram a encher-se de lágrimas ao recordar o desespero que havia sentido quando Cameron partiu.
-Acreditei que te tinha ido para sempre - disse. - Pensei que não voltaria a lhe ver nunca mais.
-Você acredita que teria sido capaz? Não notou o que sentia por ti?
-Não. Diga-me isso. Diga de novo.
-Quero-te.
-Ninguém me havia isso dito nunca.
-Nem sequer sua mãe?
-Minha mãe não conta. Refiro-me a um homem.
-Pois agora lhe digo isso, e é verdade. É possível que acreditasse que tinha desaparecido?
-Desapareceu! - Recordou que estavam juntos na estrada, fechou os olhos durante um instante e quando os abriu já não estava. - Sumiu.
-Porque me pediu que me fosse. Mas voltei. Estive aqui esta manhã, mas não te encontrei na cabana.
Summer pensou em quão desnecessário tinha sido a dor que sofreu durante todo o dia: Cameron a esperava na cabana.
-Estive escondida entre os arbustos, vigiando a pradaria. Não apareceram. Estive ali todo o dia, e não veio ninguém. Quando se fez de noite, não era capaz de ir à cabana sem ti, assim passeei até chegar à cidade.
-E lhe atacaram.
Já podia recordar o ocorrido sem estremecer-se. Também recordou as palavras de Hallard.
-De verdade lhes contou que a pradaria estava encantada? - perguntou.
-Claro que sim. Já te disse que havia outras formas de mantê-los afastados. Você não gostou de minha idéia de envolver a ilha em uma barreira invisível, e a verdade é que tinha razão. Não entenderiam o que acontecia. Não seriam capazes de compreender por que não podiam chegar até aqui, e seguiriam tentando-o, no melhor dos casos. No pior, começariam a falar de feitos sobrenaturais, e dentro de pouco, todos os meios de comunicação falariam da ilha. Pensei que seria mais fácil convencê-los para que não viessem.
-Como conseguiu fazê-los mudar de opinião?
-Disse-lhes que a pradaria estava encantada.
-Mas, como os convenceu?
-Falei-lhes das serpentes, os insetos e os charcos. Também mencionei os morcegos e o esterco.
-Não tem graça - disse com seriedade. Podia notar que Cameron tentava aliviar a situação mediante risos, mas queria saber a verdade. Entregou-se a ele de corpo e alma, e precisava ver que confiava nela.
-Como disse? Pediu-lhes uma entrevista?
-Não.
-Então, como?
Cameron pôs o travesseiro contra a parede e se sentou na cama. Depois, olhou-a. Ao cabo de um momento, confessou quase envergonhado.
-Telepaticamente. Coloquei a idéia na cabeça deles. Depois, reuniram-se, contrastaram impressões e chegaram à conclusão de que o projeto já era bastante complicado e que não queriam complicá-lo mais com acontecimentos estranhos.
-O comunicou telepaticamente?
-Fiz o mesmo que contigo.
Baixou a vista para evitar que voltasse a fazê-lo.
-Não é normal transmitir pensamentos às mentes de outras pessoas.
-Só para os humanos. Entre outros seres especiais, é a forma de comunicação mais normal.
Olhou-o atentamente, tentando descobrir alguma característica desumana. Mas seu corpo era real. Tinha cabelo humano e pele humana. Comia e respirava como os humanos. Embora aquela tivesse sido a primeira vez, também supunha que fazia amor como os humanos.
-Claro que sim - respondeu Cameron, lendo sua mente. - Minha resposta física a seu estímulo é completamente humana. Com este corpo, sou um homem como qualquer outro deste planeta.
-Mas com outro corpo... - começou a dizer Summer.
-Outra forma - corrigiu ele, alargando a mão.
Mas antes que pudesse alcançá-la, Summer tinha saltado da cama.
Estava de pé em um canto, tremendo.
-É um extraterrestre.
-Não para ti, contigo sou Cameron. Conhece-me muito melhor que ninguém.
-Mas vem de outro lugar.
Ele assentiu.
Tentou assimilar aquela revelação, aceitar a realidade do absurdo, mas sua mente era um torvelinho.
-Não é verdade! - exclamou, sacudindo a cabeça. - Os extraterrestres não vêm à terra; não ficam humanos, e não têm... relações sexuais.
-Não tivemos relações sexuais - disse Cameron, tentando tranqüilizá-la-. Fizemos amor. E os extraterrestres amam, talvez mais que os humanos.
Afastou os lençóis e começou a aproximar-se da cama.
-Não se aproxime! - gritou Summer.
-Quero te ter entre meus braços. Necessito-te.
Summer se afastou mais, mas sua cabeça se chocou contra o teto.
-Dá-me medo. Não se aproxime.
Mas ele já a estava abraçando.
-Por favor - disse em voz tão baixa que Summer se perguntou se falava. - Não te assuste. Sou o mesmo. Quero-te.
Tinha os olhos fechados e se mantinha de pé graças ao abraço de Cameron. Pouco a pouco começou a tranqüilizar-se.
-Tudo isto é muito estranho.
-Não acredita que também é estranho para mim? Vim à terra com uma missão, que não incluía a possibilidade de me apaixonar por ti. Temos umas regras de conduta muito estritas e temo que tenha quebrado mais de uma. Mas te quero, Summer.
-Já vi que havia algo estranho quando me trouxe para a ilha. Não estávamos perto de Pride.
-Teria acreditado então?
-Não. E minhas feridas... O que tinha, em realidade?
-Tinha quebrado várias costelas. Além disso, tinha o crânio fraturado e a rótula esmagada.
Ela tinha suspeitado tudo menos a fratura do crânio.
-Como me curou?
-Concentrei minha mente em recompor todos os elementos quebrados.
-E me fez dormir.
-Precisava descansar.
-Fez tossir os irmãos Mundy e derrubou Jeb Strunk. Até fez com que me doesse o joelho quando tentava me convencer de que te deixasse me ajudar na colheita.
-Nunca tinha colhido nada. Queria prová-lo, e eu gostei muito. De todas as formas, o que mais eu gostava era estar contigo.
Quando ouvia coisas como aquela, seu coração se enchia de amor, e o fato de que Cameron procedesse de outro planeta se voltava insignificante. Desejava-o, fosse quem fosse.
Elevou a cabeça e disse:
-Volta a me fazer amor.
O rosto do Cameron recuperou a vida.
-Continua me desejando?
Summer assentiu e se apartou um pouco, para poder olhar seu corpo. Seguia sendo o corpo masculino mais belo que tinha visto em sua vida.
-Me alegro. Se não, não valeria a pena ir por aí com forma humana. Este corpo é muito incômodo.
-Como é normalmente? - perguntou sorrindo.
-Um resplendor branco.
-Branco?
-Sou dos bons.
-Ah, sim?
-Sim. Eu faço boas ações. Deixe-me demonstrar isso
Levou-a para cama e a deixou sentada na cabeceira. Depois, foi até os pés da cama e ficou frente a ela. Separavam-nos dois metros de lençóis.
-Mas quero fazer o amor contigo - protestou.
-Vamos fazer amor - assegurou Cameron. Seus olhos se obscureceram. - Estamos fazendo o amor.
Estava a ponto de protestar quando ocorreu algo. Cameron estava afastado dela. Estava sentado aos pés da cama, e não movia nenhuma parte de seu corpo. Mas sentia seu contato. Claro como o dia, quente como a carne, doce como a calda de açúcar. Beijou-lhe os lábios e fechou seus olhos com uma carícia. Seus beijos descenderam por sua garganta, até chegar a seus peitos. Continuou descendo por seu abdômen e seus quadris, explorando suas curvas. Desceu mais ainda, até que Summer gritou seu nome. Naquele momento, seu contato a deixou. Abriu os olhos atônita. Então, Cameron se aproximou dela. Percorreu a curta distância que os separava e a beijou na boca. Tinha a pele tão cálida e suada como ela. Além disso, tampouco estava menos excitado.
Penetrou-a com facilidade. Summer, apesar de sua inexperiência, adaptou-se rapidamente a seu ritmo como se estendesse por todo seu corpo os batimentos de seu coração.
Alcançou em uns segundos o topo anterior ao orgasmo, mas Cameron a manteve naquele estado durante um comprido momento, separando-se quando ela estava a ponto de estalar e voltando a enchê-la quando o instante tinha passado. Sentia-se frustrada em certo modo, mas o prazer que experimentava era quase insuportável. Começou a acariciar o corpo de Cameron para intensificá-lo, e encontrou debilidade. Não agüentou muito tempo sob o movimento íntimo da mão de Summer, e quando voltou a aproximar-se do orgasmo, Cameron não se retirou. Alcançaram juntos o clímax.
Nos momentos seguintes, não pensou nele como um extraterrestre. Era um homem dos pés à cabeça. Sua presença era tão consistente como sempre, e sua semente vivia em seu interior.
Não obstante, ao despertar tinha certas dúvidas que não podia evitar.
-Cameron? - sussurrou.
Este respondeu com um som.
-Me diga de onde vem.
No passado, havia dito que do norte em términos bastante ambíguos, de modo que ela tinha deduzido que era canadense. Evidentemente, sua dedução tinha sido errônea.
-Venho de um planeta chamado Cyteron. Está na galáxia de Naquerion.
Summer nunca tinha ouvido falar daquela constelação.
-Está muito longe?
-Não muito. A seis galáxias de distância.
Começou a tremer. Incômoda com aquela reação, perguntou:
-Do que tenho medo?
-Assusta-te a verdade.
-Certamente. Aqui estou na cama de uma criatura do espaço exterior que acaba de fazer amor comigo. Pode inclusive que esteja grávida.
-Em efeito.
Seu tremor se incrementou.
-Como sabe?
Seus olhos eram tão profundos como o mar.
-Simplesmente, sei.
-Pode vê-lo?
-Não. Mas o sinto. Posso ouvi-lo.
-Meu deus - levou-se a mão ao abdômen. - O que vou dar a luz? Um pequeno resplendor branco?
-Depende de onde esteja. Se estiver aqui, terá um menino com seu cabelo e meus olhos.
-Meu deus - repetiu. - Um menino? Está seguro de que não será uma menina?
Cameron assentiu.
Voltou-se a apoiar contra ele. Nunca houve um varão em sua família. Naquele aspecto, a história não se repetia. De repente se deu conta de que a história não se repetia absolutamente. Nenhuma VanVorn tinha tido um filho com um extraterrestre.
-Como chegou até aqui?
-Voando.
Já tinha respondido o mesmo em outra ocasião.
-Em uma espaçonave?
-Exatamente.
-Onde a tem?
-No VanVornland.
Atônita, perguntou:
-Como sabe que existe VanVornland?
-Estive te observando. Eu gostava de verte correr pela praia, com o cabelo flutuando ao vento - passou os dedos entre os fios dourados de seu cabelo. - vi que zarpava pela manhã e soube que iria ter problemas. Assim te segui, e te alcancei quando se afundou o barco.
-Então, você não tinha outro barco.
-Não. É a única mentira que te contei. Senti-me muito mal. Em meu planeta, a verdade é o mais importante.
-Por isso disse aos vereadores que era advogado?
-Só foi um jogo - desculpou-se. - depois de ver tantos advogados na televisão, fiquei com vontade de tentar.
-E o que te inspirou para me defender de Hallard.
-Você. Seria capaz de qualquer coisa por ti - depois de uma pausa, confessou-: A técnica quem me ensinou foi Charles Bronson.
Summer resistiu à tentação de rir.
-Foi assim como aprendeu a cultura da Terra. Vendo televisão?
-Também vi muitos filmes. E li um montão livros. Também aprendemos muito de outros cyteronianos que visitaram este planeta.
-Houve outros?
-Claro. Aqui há pessoas que descendem deles.
-Uma espécie de mestiços?
-Por isso vim à Terra. Sou cientista, e estudo os efeitos dos mestiços interplanetários. A Terra é só uma pequena parte do estudo.
-Não siga - interrompeu. Ela também tinha visto Star Trek. - Cyteron se encontra na trajetória de um asteróide que vai destruí-lo, assim estão procurando um lugar para lhes assentar.
-Sinto muito - suspirou. - Não há asteróide. Investigamos por curiosidade. Isso é tudo.
Apoiada sobre ele, e cada vez menos assustada, considerou aquelas palavras. Por um lado, o que dizia era incrível. Por outro lado, parecia completamente lógico.
-E bem? - perguntou Cameron ao fim. - O que opina?
-Quanto mais me explica isso, menos entendo. Tinha forma humana quando viajava em sua espaçonave?
-Impossível. Não caberia.
Assim que vocês são menores. Quando mudou de forma?
-Ao sair da aeronave. Os cyteronianos não podem sobreviver na terra em sua forma normal. O ar é muito denso.
Aquilo lhe recordou algo, mas não sabia o que.
-Então, põem-lhes um corpo humano como os astronautas ficam num traje.
-Mais ou menos.
Voltou a olhá-lo.
-O que é o que determina sua aparência?
-Determinei-a eu. Decidi que queria me parecer com o homem de Marlboro. Parece-me interessante, tão curtido, com suas botas, seu chapéu e seu cigarro.
-Mas você não fuma.
-Não vou danificar meu resplendor - disse indignado.
-E você não está curtido. Bom, pode que sim, mas tem um olhar muito inteligente para te parecer com o homem de Marlboro.
-A quem me pareço?
- A ti.
-Então, consegui domar o cabelo.
-Até certo ponto.
-Como que até certo ponto? Admite que consegui.
-Não. Soube que havia algo estranho quando me falou com o olhar. Podia ouvir suas palavras.
-Não as ouvia; sentia-as.
-Ouvia. Além disso, podia ler minha mente. Por certo, por que não o fez hoje? Por que não leu minha mente para vir me buscar?
-Porque não queria que te encontrasse - respondeu. - Queria estar escondida entre esses estúpidos louros, teria ido te buscar e teria dito que os OSAY não iriam vir, mas não teria acreditado, teria pensado que estava louco.
-Louco não. Diferente.
-Pois diferente. Em qualquer caso, consegui te enganar. Não te passou pela cabeça em nenhum momento que pudesse vir de outro planeta.
É obvio, tinha razão. Inclusive naquele momento depois de tudo o que lhe tinha contado, ainda era capaz de acreditar que ele tinha inventado a história, em cujo caso se achava ante uma nova pessoa de fantasia transbordante e grande facilidade de palavra.
Não sabia se preferia a um extraterrestre ou a um lunático, mas em qualquer caso se separou dele.
-Aonde vai?
-A nenhum lugar.
Agarrou a pistola da mesinha de noite e a ocultou nas costas. Cameron se incorporou de um salto.
-Para que a quer?
-Quantas balas têm? -perguntou Summer para provar seus poderes.
-Nenhuma. Tirei-as no outro dia, quando lhe tirei isso da mão. Estão no fundo da gaveta.
Deixou cair a pistola sobre a cama. Percorreu o quarto com o olhar, e ao fim se deteve no radio cassete. Freqüentemente dormia escutando uma fita.
-O que há aí? O que é que escutei por último?
-Sonatas de Bach para clavicórdio. Estive escutando enquanto esperava que voltasse para casa.
-Não me põe as coisas fáceis - protestou.
-Porque não me faz as perguntas adequadas - replicou Cameron. - Por exemplo, se me pedisse que tocasse essas sonatas, poderia fazê-lo.
Cruzou as pernas como um hindu, apoiou as palmas das mãos nas coxas e fechou os olhos. Parecia um iogue em transe. De repente, ouviu o som inconfundível do clavicórdio, o clavicórdio que ela tinha em um canto do salão, tocando a mesma sonata que tinha na fita. Cobriu-se o rosto com as mãos, e o som cessou imediatamente. Depois de um momento, Summer respirou profundamente e deixou cair os braços.
-Não sei se está jogando comigo a um jogo cruel e sofisticado, ou se de verdade é extraterrestre.
-Você acredita em quê? - perguntou.
Ante a vista de seu olhar, todas suas dúvidas se dissiparam. A verdade era que, à exceção do barco, tudo o que havia lhe dito era verdade; confiava nele. Amava-o. E também acreditava que ele correspondia a seu amor.
-Acredito que não é um jogo.
Tomou a mão que Cameron lhe estendia e voltou para seu lado. Apoiou a bochecha contra seu peito e emitiu um suspiro prolongado.
-O que te passa? - perguntou com tanta delicadeza que lhe fez um nó na garganta.
-Não quero que seja extraterrestre. Quero que seja humano, como eu. Quero estar junto a ti para sempre.
Rodeou-a com seus braços e a beijou na frente.
-Sou humano, como você.
-Agora. Mas em seu interior há um pequeno resplendor branco que se irá em pouco tempo. Então, terei te perdido.
-Não. Se não quiser, não.
-Mas você irá.
Doía-lhe a idéia, mas devia ser realista. Ele mesmo o havia dito: estava investigando, e a terra era só parte do estudo. Algum dia, alguém lhe pediria que lhe apresentasse os resultados, e para isso deveria voltar para Cyteron.
-Poderia vir comigo.
-Não posso. Eu sou humana. Completamente humana.
-Não, Summer. Isso não é certo.
Apartou-se e o olhou atônita.
-Como?
-Não é completamente humana.
Sentia-se mais confusa que nunca. Esclareceu-se garganta.
-Eu nasci aqui. Como minha mãe. E sua mãe. E sua mãe.
-Em efeito. Mas sua mãe, que era sua tataravó nasceu em Cyteron.
-Não pode ser - disse Cameron sacudindo a cabeça.
-Por que não?
-Porque sou humana.
Antes que Cameron pudesse dizer nada mais, tinha saltado da cama e corria para a escada. Cameron se levantou atrás dela.
-O que faz?
-Me vestir.
-Por quê? - seguiu-a até o piso inferior. - É muito tarde.
-Tenho que sair - repôs fechando a porta do banheiro na sua cara - Tenho que pensar.
-Em seu esconderijo secreto?
-Também o conhece? - gritou desolada. Vestiu o jeans a toda pressa. - Não é justo.
-No amor e na guerra, tudo é lícito.
-Ao melhor isso também é mentira - disse abrindo a porta.
-Acreditava que já estávamos de acordo em que sou extraterrestre.
-Você é extraterrestre, mas eu não - cobriu-se as orelhas com as mãos e passou junto a ele. - Não diga nada mais. Não quero te ouvir.
Ao chegar à porta, calçou as sapatilhas e pegou uma jaqueta do cabideiro. Saiu correndo da cabana. Não sabia aonde ia; sozinha, mas não podia aceitar aquilo. Ela era humana, uma mulher de carne e osso, e à medida que entrava no bosque, sentia morrer um pouco mais.
Percorreu vários quilômetros na escuridão. Enquanto caminhava pelos bosques, meditava sobre o ocorrido.
Os acontecimentos daquela noite bastavam para deixá-la traumatizada. Primeiro, tinham tentado violá-la. Depois, fizera amor pela primeira vez em sua vida. Aquilo era bastante para desequilibrar a mais sensata das mulheres. Mas na semana anterior sua prudência já estava sendo minada, e o fim de semana mais ainda. O desespero que tinha sentido ao dar-se conta de que amava Cameron e acreditar que não voltaria a vê-lo nunca, as horas que tinha passado sentada esperando os estranhos que lhe arrebatariam a pradaria...
O pior de tudo tinha sido descobrir a verdade sobre Cameron. Cameron Divine. Agora captava a ironia do nome. Sem dúvida, tinha escolhido com o mesmo senso de humor que tinha empregado ao escolher seu aspecto.
Se por acaso fosse pouco, tinha chegado até o ponto de contar histórias incríveis sobre ela.
Continuou caminhando. Apesar do ocorrido com Hallard Dunn, não estava assustada. Cameron a vigiava. Estava tão segura disso como de que se chamava Summer VanVorn e de que era completamente humana. Cuidaria dela. Amava-a.
Seu corpo se cansou antes que sua mente, mas continuou caminhando. Se sentasse, sentiria plenamente a força de sua confusão, e já tinha o bastante. Acreditava em Cameron no que dizia respeito a sua origem. Aquilo explicava certos feitos que seriam inexplicáveis em outras circunstâncias. Mas, por que afirmava que ela também era extraterrestre? Aquilo não tinha sentido.
Esperaria que o aceitasse mais facilmente se acreditasse que era como ele? Mas ela já o amava. O havia dito.
Esperaria que gostasse mais da criança se pensasse que sua faceta extraterrestre também procedia dela? Mas estava segura de que Cameron sabia que amaria ao menino fosse como fosse.
Talvez houvesse algo que não tinha lhe contado. Talvez fosse ter um filho de aspecto grotesco. Talvez quisesse prepará-la para isso, ou convencê-la de que também ela tinha algo que a ver com isso. Mas então, por que tinha falado do menino loiro de olhos azuis?
Não encontrava nenhuma explicação satisfatória.
Por fim apareceu a primeira luz da aurora no horizonte. Sem pensar conscientemente, cruzou o campo de milho até chegar a um caminho no qual se elevava várias casas de campo. Seguiu o caminho até que chegou à casa do Millie Osgood. Então, com as mãos nos bolsos, escondeu-se depois do olmo a uma distância prudencial e esperou.
Millie se levantava cedo. Summer sabia por que muitas vezes tinha mencionado os pássaros que a visitavam ao amanhecer. Em efeito, antes que nenhum dos vizinhos despertasse, Millie saiu pela porta traseira com uma bolsa de sementes.
Aproximou-se um pouco e a observou enquanto enchia a manjedoura que pendurava em seu alpendre posterior. Summer não sabia por que tinha ido. Talvez fosse porque Millie era uma amiga, e necessitava desesperadamente de um pouco de amizade.
Millie elevou os olhos e a viu. Sorriu e lhe indicou com a mão que se aproximasse. Quando Summer chegou ao alpendre, Millie tinha aberto a porta traseira. Conduziu-a ao interior e a convidou a sentar-se na pequena mesa da cozinha.
Nenhuma delas havia dito uma palavra. Summer sabia que Millie não gostaria que seus vizinhos se inteirassem de que tinha em sua casa à curandeira, e pela primeira vez aquilo a incomodou. Perguntou-se como seria ter amigos de verdade, ser capaz de entrar e sair com normalidade das casas de outras pessoas, como faziam tantos ilhéus, sem necessidade de fazê-lo de noite ou em silêncio.
-Bom Summer - disse Millie ao fim. - Antes de nada, vai tomar ter que tomar uma xícara de chá. Depois, vai explicar-me o que te passa. Parece que está vários dias sem dormir.
O chá a ajudou a recompor-se. Sujeitou a xícara entre as mãos e deixou que o calor se estendesse por elas. Começou a recordar o chá que fazia sua mãe, quando Millie interrompeu seus pensamentos.
-Sabe o que aconteceu ontem à noite nos barracos? - comentava despreocupada enquanto acrescentava leite a seu chá. - Deram uma surra em Hallard Dunn. Ao parecer queria forçar uma garota quando apareceu seu noivo.
Summer se estremeceu e olhou para Millie com uma interrogação nos olhos.
-É obvio, não é que ele dissesse. Negou-se a dar explicações sobre o ocorrido. Mas tinha as calças desabotoadas, e a julgar pela forma em que se dobrava, parece que lhe deram um chute por aí. Se quiser minha opinião, deram-lhe seu castigo. Todo mundo sabe que leva vários anos causando problemas. Se tivesse conseguido forçar à garota, não teria sido a primeira vez. Hallard Dunn não é bom. Não é bom. Diria que eu gostaria que esse chute o tivesse deixado impotente.
O rosto de Summer perdeu a pouca cor que tinha. Perguntou-se se Cameron teria feito aquilo.
-É uma pena que não tenha sido assim - prosseguiu Millie. - Pessoas como ele sempre conseguem sair com uns poucos arranhões e contusões - bebeu um gole de chá e perguntou em voz mais baixa: - O que tem na cabeça, Summer? Importaria me contar isso.
Summer levou a xícara aos lábios. Bebeu um pequeno gole e voltou a deixá-la sobre a mesa. Olhou insegura para Millie e disse:
-Você conheceu minha mãe. E a minha avó.
-Certamente, melhor que nenhuma outra pessoa da cidade. O que recorda delas?
Millie considerou a pergunta.
-Eram muito bonitas. As duas tinham o cabelo loiro, como você, e os olhos azuis - franziu o cenho e se corrigiu. Sua avó tinha os olhos azuis. Os de sua mãe eram marrons, como os teus.
Assim tinha os olhos azuis, Summer se perguntou se seriam escuros como os de Cameron, ou claros como o de milhões de seres humanos.
-E eram muito boas - continuou Millie. - Sempre tinham um sorriso e um pouco de chá para mim. Não, perdoe-me. Sua avó me trazia caramelos. Meu pai era o carteiro, e eu era pequena. Trazia-me caramelos duros, como as fortificações que vende Ezra, mas muito melhores. Summer recordava aqueles caramelos. Nunca os provou, mas sua mãe falava deles com freqüência. Sua avó tinha morrido antes de lhe dar a receita. Recordava que sua mãe tinha tentado fazê-los muitas vezes com muitos ingredientes diferentes, mas nunca conseguiu. Sempre tinha feito caramelos para Summer, mas nunca como aqueles.
-Eram muito espertas. Como você - acrescentou Millie.
Mas Summer não se sentia nada esperta. Quanto mais pensava, mais estúpida se sentia. Havia tantas perguntas... por que não as perguntou para sua mãe? Talvez porque não sentisse curiosidade, e talvez porque mãe preferia que não perguntasse.
Summer baixou a vista ao chá.
-Não vinham muito à cidade, verdade?
-Não se mesclavam com outros - respondeu Millie. - Mas já sabe.
-Sei que minha mãe não o fazia, e por isso eu não o fazia. Mas era igual minha avó?
-Claro.
-E minha bisavó?
-Não sei. Eu não me lembro dela.
-Mas deve ter ouvido falar disso.
-Sim; isso sim.
-Era também diferente dos outros?
-Isso tenho entendido.
-Sabe algo mais? Ouviu alguma vez sobre como chegaram as VanVorn em Pride?
O rosto de Millie parecia animado e distante ao mesmo tempo. Tinha a mesma expressão que a última vez que a tinha visto na agência de correios, quando se encontrava absorta no livro.
-Dizem que foi durante uma tormenta. As ondas a arrastaram à praia. Dizem que sabia seu nome... Acredito que era seu tataravô. Mas não recordava quem era nem de onde vinha. Não queria nem ouvir falar da cidade. Desde o começo disse que queria viver no bosque, assim a deixaram ali, e quando voltaram, ela já tinha a cabana construída e tudo. Assim começaram as histórias.
-Só porque ela construiu a cabana?
-Como pôde uma mulher tão pequena construir sozinha uma cabana? - replicou Millie indignada. - Pelo menos, dizem que era muito baixa e magra, e a julgar por seus descendentes, acredito.
-Talvez a ajudou alguém - sugeriu Summer. - Deve haver uma explicação lógica.
-Em um dia? - Millie negou com a cabeça. - Impossível, precisaria da ajuda de muita gente. Mas não a ajudou ninguém. Construiu-a ela sozinha.
-Talvez não fosse a cabana tal e como a conhecemos agora. Uma mulher baixa também é capaz de amontoar uns quantos troncos.
-Não; era a cabana. A mesma em que vive você, e não é tudo. Dizem que começou a plantar coisas, mas ninguém sabe de onde tirou as sementes. Pelo visto, quando se aproximou do povo tinha dinheiro, mas ninguém sabe como conseguiu. Dizem que era muitíssimo dinheiro, mas quando a encontraram na praia não tinha nada.
-É evidente que alguém lhe deu dinheiro e as sementes - disse Summer encolhendo os ombros. - Pode que fosse alguém do barco, que chegou à borda depois dela.
-Dizem que não havia ninguém. Dizem que sempre vivia sozinha. Além disso, pelo visto alguns se interessaram.
-Como?
-Interessou-se por ela. Dizem que era uma verdadeira beleza e que tinha muitos admiradores.
-Vê? - proclamou Summer triunfante. - Um de seus admiradores deve ter construído a cabana e lhe dado dinheiro.
Mas a resposta de Millie veio imediatamente, como o estribilho de uma canção.
-Dizem que não. Dizem que ninguém podia se aproximar dela.
-O que quer dizer?
-Havia algo ao redor de sua cabana. Algo que pôs para proteger-se e que ninguém podia atravessar. Não viam, mas não podiam avançar até certo ponto. Ela podia entrar e sair. Mas outros não.
-Isso é ridículo. As pessoas sempre vão a minha cabana quando querem algo. Também devessem buscar a minha mãe.
-Mas não à primeira, sua tataravó. Ao melhor, tampouco sua bisavó. Na época em que sua avó fazia as curas, essa coisa invisível tinha desaparecido.
Summer levantou a xícara e se ocultou atrás dela durante um momento. Bebeu um gole. O chá tremia, revelando instabilidade de seu pulso, quando o deixou sobre a mesa.
-Se alguma vez houve um escudo invisível, estou segura de que só existia na mente dos que decidiram que tinha algo estranho.
-Pode ser - admitiu Millie. Depois pareceu recordar algo e suspirou. - Ainda falam de seus olhos. Pelo visto eram de um azul muito escuro, quase azul marinho. Dizem que te olhava com esses olhos e via seu interior. Quando começou a curar às pessoas, dizem que com só o olhar sabia o que lhes passava e como podia curá-los - Millie se estremeceu. - Não me estranha que dissessem que era diferente. Não é normal ver olhos assim. Por certo, ouvi que esse jovem que está contigo tem os olhos da mesma cor. Quem é?
Com muito cuidado para evitar que seu corpo tremesse como tremia sua alma, levou-se aos lábios um pequeno guardanapo de papel. Deixou-o na mesa e se levantou.
-Um amigo. Conheci-o quando estava navegando. Tenho que ir, Millie. Obrigado pelo chá. Veio-me muito bem.
Millie também se levantou e acompanhou a Summer à porta.
-Pode vir sempre que quiser. Dá-me igual o que digam outros. Você me parece uma garota muito simpática. Tentarei recordar mais historia sobre sua família, uma pena que nenhuma delas tivesse um jornal. Teria sido divertido lê-lo - manteve a porta aberta. - É uma idéia. Procure na cabana. Ao melhor alguma delas escreveu algo. Se encontrar algo, traga-me isso. De acordo?
Summer se despediu e saiu com passo rápido. Ao chegar às árvores do outro lado do caminho, começou a correr para o bosque. Atravessou rapidamente o campo de milho e não diminuiu a marcha até que não se encontrou rodeada pelo aroma familiar dos pinheiros.
Seguiu caminhando rapidamente até alcançar um promontório próximo à cabana. Contemplou as quatro pequenas lápides que marcavam as tumbas de quatro gerações de mulheres VanVorn. Nenhuma tinha uma inscrição. A única pessoa para quem tinham importância não necessitava palavras incompreensíveis para saber quem jazia sob a terra da ilha.
-OH, mamãe - sussurrou. - É verdade tudo isso?
Deixou-se cair sobre o chão e se encheu as mãos de erva.
-Se fosse extraterrestre me responderia. Seria capaz de falar da tumba. Seria capaz de me dizer se é certo ou não... Não pode ser - decidiu. - Não pode ser. Tive uma infância normal. Não teve nada de extraordinário... nem de extraterrestre. De acordo em que não fui ao colégio como os outros meninos, mas isso não é tão estranho. Aprendi mais que eles, e não por arte de magia. Passei horas e horas lendo em voz alta. Quando não entendia algo, explicava-me isso. Não acredita que teria aprendido mais rapidamente se tivesse sangue extraterrestre?
Uma suave brisa corria entre os pinheiros.
-Certo que tampouco me eduquei com um pai. Muitos meninos se educam sem pai. Você tampouco teve pai. Não importa. Tivemos uma vida agradável. Tivemos uma vida normal. Eu comi hambúrgueres, pizzas e sorvetes. Como todo mundo. Tínhamos máquina de lavar roupa e secadora, panela de pressão e máquina de pipocas. Além disso, o nosso foi o primeiro vídeo da ilha. Certo que não tínhamos carro. Não necessitávamos carro. Em Pride não há grandes distancias. Além disso, tínhamos todo um rebanho de pôneis. Se precisávamos ir a um lugar muito afastado, os pôneis nos levavam.
Sorriu ao recordar sua infância.
-Sempre adorei nadar em pôneis. Lembra-se? Quando era pequena, sempre te pedia que me deixasse montar. Respondia-me que não estavam feitos para levar cavaleiros, mas como eu era muito pequena e pesava pouco, podia tentá-lo. Só por um momento dizia. Depois me subia e eu me sentia como se estivesse flutuando. Eu adorava.
Seu sorriso se desvaneceu. Olhou fixamente para a tumba de sua mãe.
-É muito estranho gostar dos pôneis como eu gosto? É uma conduta extraterrestre? As pessoas o dizem continuamente. Há muita gente que tem animais, que se comunica com eles através do contato das mãos ou o tom de sua voz. Não tem nada que ver com magia.
Respirou profundamente e olhou para o céu. Via-se retalhos de azul entre os pinheiros. Era um dia ensolarado, como os dias que elas escolhiam para ir recolher frutas silvestres.
-Há um pouco de extraterrestre nisso? - gritou. - E em viver sozinha? E em utilizar ervas para que as pessoas se sintam melhor?
Voltou a baixar a vista.
-Diga-me isso mamãe. Por favor.
Mas não houve resposta. Foi incapaz de conter o pranto.
Na semana anterior se havia sentido só em algumas ocasiões, quando lhe faltava a companhia de Cameron. Às vezes se sentia confusa a respeito de seus sentimentos, e desejava que sua mãe estivesse com ela para tirar as dúvidas. Às vezes se sentia tão terrivelmente desolada como naquele momento.
OH, Summer, por favor, não se atormente assim.
Aquelas palavras atravessaram seus soluços. No princípio pensou que sua mãe tinha decidido por fim falar com ela. Depois se deu conta de que Cameron estava ali. Ao cabo de um momento, sentiu seus braços a seu redor.
Queria empurrá-lo, lhe pedir que a deixasse em paz, acusá-lo de invadir sua intimidade e destroçar sua vida. Mas o necessitava naquele momento. Talvez sempre o tivesse necessitado. Talvez estivessem predestinados a encontrarem-se.
Elevou o olhar e o viu do outro lado do promontório. Tinha as mãos nos bolsos e a olhava com uma expressão desolada que lhe encolheu o coração. O pior era seu ar de incerteza. Nunca tinha visto um olhar tão inseguro. Sabia que ela era a causadora.
Necessito-te, Cameron, pensou. Necessito sua ajuda. Me abrace.
Cameron se aproximou dela. Apertou-a fortemente. Summer deixou de chorar e sua respiração se estabilizou. Rodeou com os braços a cintura de Cameron.
-Por que te assusta tanto a idéia de ter sangue extraterrestre?
Summer suspirou profundamente. Demorou um momento para encontrar a resposta.
-Sempre fui diferente. Em pequenos detalhes insignificantes, mas distinta afinal de contas. Sempre tentei me convencer de que não importava, de que me sentia feliz por isso, de que não necessitava aceitação nem amigos. Mas há uma parte de mim que não está de acordo, essa parte quer ser igual aos outros.
-Mas você é a mesma de sempre. O que acontece é que agora tem a explicação dessas pequenas diferenças que sempre percebeu.
-Não estou dizendo que me pareça uma explicação razoável - repôs rapidamente.
-Claro que sim. O que acontece é que desejaria que não fosse assim, e posso te entender. Passou vinte e oito anos acreditando que foi de uma maneira determinada. É normal que se sinta desconcertada ao descobrir de repente que não é como acreditava.
Summer pensou que Cameron só a entendia em parte.
-Summer, a única coisa que posso fazer é sentir o que você sente agora. Não posso sentir tudo o que sentiu no passado. Não posso saber como lhe afetarão suas experiências anteriores. Tudo o que posso fazer é dizer-lhe que não é o fim do mundo. É justo o contrário. Ao ser extraterrestre...
-Só em parte - corrigiu. - Em todo caso viu-se forçada a acrescentar.
Cameron não terminou a frase. Abraçou-a em silencio durante um momento. Depois beijou sua frente, puxou-a pela mão e disse:
-Vamos?
Summer caminhava junto a ele. Antes de descer lançou um último olhar à tumba de sua mãe.
-Não teria falado comigo se fosse extraterrestre?
-Esta muito longe para fazê-lo.
-Está muito morta para fazê-lo.
-Não. Muito longe. Está em Cyteron.
Summer parou.
Voltou ali quando morreu sua forma humana?
-Exatamente.
-E ela sabia?
-Ao final, sim.
-Se minha mãe estiver em Cyteron, por que você está na terra? Se sua missão consiste em estudar os efeitos da mestiçagem entre cyteronianos e terrestres por que não se limitou a perguntar aos que voltaram? Por que teve que passar anos viajando através do universo para procurar uma informação que tinha em casa?
-Porque você pertence a outra geração. E por que sempre é mais interessante efetuar as observações sobre o terreno.
Summer se deteve e se separou dele.
-Então, eu sozinha sou o resultado de um experimento científico. O que lhes confere o direito de jogar assim com minha vida? Sou mais humana que cyteroniana.
-Por fim reconhece que tem sangue cyteroniano.
-Reconheço que tenho sangue humano. Nem sei sequer se os cyteronianos têm sangue.
Cabisbaixa, começou a andar novamente. Cameron demorou pouco para alcançá-la. Transcorreram mais de cinco minutos antes que voltasse a segurar sua mão, e Summer permitiu só porque sentia frio, e porque os dedos de Cameron eram quentes, e porque aquele contato era completamente humano.
Mais tarde, não sabia muito bem para onde se dirigiam seus passos ou se a tinha guiado o subconsciente, mas não se sentiu surpreendida quando comprovou que se encontravam no caminho que conduzia à praia a que Cameron a tinha levado naquele dia de tormenta. Foram até a beira do mar.
Cameron levou aos lábios a mão de Summer, beijou e a soltou brandamente.
-Aquele dia, quando viu que se afundava, notou algo estranho?
-Pânico - respondeu.
Recordava-o perfeitamente.
-Além disso, não sentiu que uma força em seu interior cobrava vida?
-Só pânico, por quê?
-É uma das coisas que nos perguntamos. Sabemos que quando alguém como sua mãe está a ponto de morrer, sente que uma nova força substitui a antiga. É a energia cyteroniana, que começa a funcionar quando falha a energia humana. O que não sabemos é em que momento se dá. Pode que não estivesse a ponto de morrer.
E pode que não seja cyteroniana, pensou. Pode que esteja investigando a pessoa equivocada.
-Os indícios são inconfundíveis, Summer. Pode se rebelar contra eles, negá-los e me dizer que cometi um engano, mas se parar para considerá-lo, verá que tenho razão.
Queria rebater seu argumento; lhe dizer que utilizava seus poderes sobrenaturais para adivinhar seus pensamentos e adaptá-los ao que ele queria acreditar. Mas Cameron se encontrava afastado dela, e, além disso, sabia que não lhe estava enviando nenhuma mensagem. Sentia-se completamente proprietária de sua mente.
-Fale - disse brandamente.
-Esta a forma em sente que se aproximam as tormentas. Sua temperatura sobe, e sua pele fica muito mais sensível. Está a forma como touca a flauta e o clavicórdio: não sabe nada de música, mas os touca e ouve muito mais que as notas. Está sua capacidade curativa. Já sei que pensa que se trata só de medicina popular, e pode estar certa, mas isso só explica as coisas até certo ponto. Recorda o incêndio na casa dos Sulter, há muitos anos?
-Isso aconteceu antes que minha mãe morresse.
-Ela foi quem nos contou isso. Ela estava ocupada cuidando do pai, e te deixou com o filho. Suas queimaduras eram tão graves que não teria sobrevivido, e o que o salvou não foi o bálsamo que lhe pôs, a não ser seu contato.
Summer recordou as palavras de sua mãe: Se concentre no que faz. Coloque toda sua energia para reparar o está quebrado e curar o doente.
-Exatamente - disse Cameron. - Assim é como o fazemos.
-Sabia minha mãe?
-Que utilizava técnicas cyteronianas? Provavelmente não. Mas as tinha aprendido de sua mãe, que a seu as tinha aprendido da sua.
-E ela te contou sobre o incêndio?
-Não a mim. Contou a um de meus colegas, que me disse isso quando me preparava para a viagem.
-Continue - disse, descendo as mangas do pulôver para cobrir as mãos. - Que outros indícios tem de que sou cyteroniana?
-A forma em que provoca acontecimentos.
-Não sou eu. Não posso.
-Encheu a pradaria de serpentes, de insetos e charcos.
-Não fui eu.
-Não há ninguém mais que pudesse fazer algo parecido e não foram caprichos da natureza. Você os provocou com seu pensamento, como eu provoquei a tosse dos Mundy e a queda de Jeb Strunk. Você tem o mesmo poder.
-Não tenho. Às vezes desejaria ter; pode acreditar. Mas não funciona.
-Claro que sim. Talvez não funcione com mesma efetividade que no caso de sua mãe e sua avó. Com o passar das gerações, o poder se debilita. Mas o maior problema é sua falta de confiança.
-Sigo pensando que está equivocado - disse.
Não obstante, cada vez estava menos convencida. Se a um extraterrestre resultava possível viver com os humanos e mesclar-se com eles, as palavras de Cameron não eram tão desatinadas.
-É muito interessante - disse. - Quando se convence de que não pode fazer uma coisa, é incapaz de fazê-la. Se te pedisse que te metesse no mar e me trouxesse uma parte de madeira de seu barco, não seria capaz de fazê-lo porque está convencida de que não pode. Mas se ficar zangada tanto como para esquecer essas limitações, asseguro-te que seria capaz de fazer qualquer coisa que quisesse. É o que aconteceu aquela vez, pouco depois de sua mãe morrer, quando quase foi violada.
-O que quer dizer? - perguntou Summer, sentindo uma estranha premonição.
-Odiava ao homem que o fez. Desejava-lhe a morte, e assim ocorreu.
-Foi um acidente - apressou-se a dizer.
Ao ver que Cameron continuava olhando as ondas, perguntou nervosa:
-Então, sou uma assassina?
-Claro que não. Não o fez conscientemente.
Summer tremeu. Fechou os punhos sob as mangas de seu pulôver e cruzou os braços.
-E os homens que fecundaram às VanVorn? A verdade Summer, parece-me muita casualidade que todos ficassem só uma noite. Não se dá conta? Foram escolhidos por seu aspecto, sua inteligência e sua destreza física.
-Nós os escolhemos?
Começava a perguntar-se se as mulheres VanVorn tinham poderes inimagináveis.
-Não. Escolhemo-nos. Há cyteronianos especializados em procurar casais.
-Agências matrimoniais! - disse Summer.
Teve que conter a risada. A história se complica mais e mais, e o pior era que não podia rebatê-la. Tampouco podia deixar de fazer perguntas.
-Como chegaram até aqui?
-Foram conduzidos à ilha. Todos eles tinham espírito aventureiro, de forma que não foi difícil.
-Sabiam a que vinham?
-A verdadeira razão? Não. Mas se apaixonaram completamente das VanVorn.
-Então, por que não voltaram?
Não queríamos que interferissem, de forma que apagamos de suas mentes o ocorrido.
Summer, que tinha sofrido na carne própria durante o fim de semana o que era amar e perder o ser amado, disse:
-Isso é uma crueldade.
-É verdade, mas teria sido mais cruel que voltassem e levassem as mulheres de Pride ao continente. Já sei que não era o melhor. Sei o inferno pelo que passaram. Mas tinham que realizar as curas e cuidar dos pôneis.
-O que acontece com os pôneis? São de Cyteron? - ao ver que Cameron assentia, exclamou: - Então, as árvores são distintas às demais! - como voltou a assentir, perguntou: - Aonde vão no inverno? - Cameron lhe dedicou um olhar significativo. - A Cyteron? Está me tirando um sarro? Então, os arbustos de bunkenberry crescem em Cyteron - concluiu rindo ao recordar o que Cameron tinha explicado aos vereadores, - onde a altura é maior, o ar é menos denso e a composição da terra totalmente distinta.
Riu durante um momento, sentindo o calor da alegria compartilhada até que de repente se deu conta das conotações daquela brincadeira. Incômoda, dirigiu a vista à praia. Ele também pareceu dar-se conta do que aquilo significava.
-Quando nos conhecemos pensava que tinha me visto antes. Era o elemento cyteroniano, Summer. Pode que seus olhos não sejam azuis como meus, mas há algo no fundo. É difícil de captar para um humano, mas você o viu. Quando me olhou, reconheceu algo que tinha visto em ti e em sua mãe. E, além disso, está o assunto de nossos problemas.
-Que problemas?
-Eu me confundo com muitas palavras e as confundo, equivoco-me com freqüência.Você tem problemas com a leitura.
-Isso não é um problema.
-Não sabe ler.
-Claro que sei.
-Em realidade, não. Pode reconhecer as palavras por separado, mas tem problemas para uni-las.
-Absolutamente.
-Então, por que não lê nenhum livro?
-Porque prefiro não fazê-lo.
-Por quê?
-Porque ler não é necessário. Ouço vídeos e vejo a televisão - fez uma careta. - Não me olhe assim! O fato de que eu não goste de ler não significa que não seja capaz.
Olhou-a durante um momento e por fim disse:
-Vale. Vamos comprovar isso.
Aterrorizada, viu que Cameron se agachava e começava a escrever sobre a areia. Tente agora.
Com voz baixa e insegura, Summer leu:
-Comparar-lhes-ei a um dia de verão? Isto é de Shakespeare. Minha mãe lia para mim estes sonetos quando me colocava na cama - olhou a outra frase que Cameron tinha escrito. Não a entendeu. – É a mesma coisa?
-Palavra por palavra.
-E por que não posso lê-la? A outra sim.
Porque a outra está escrita de uma forma que tem sentido a parte cyteroniana de seu cérebro. É um problema que encontramos freqüentemente. Antes não era tão terrível. Se uma pessoa sabia ler, muito bem. Se não, não acontecia nada. Então, nos colégios começaram a concentrar-se nos problemas de aprendizagem, e nossas dificuldades se fizeram mais notáveis.
-Escreve outra coisa - ordenou Summer. - Algo que possa ler.
Cameron se afastou da primeira frase e escreveu uma tolice.
Summer ria encantada.
-Algo mais!
-Me está cansando o dedo.
-Algo curto.
Com um sorriso indulgente, escreveu com letras grandes e claras Je t' aime.
Passou os braços ao redor do pescoço de Cameron.
-Acreditava que era tola.
-Não é tola - assegurou Cameron. - É cyteroniana.
-E durante todos estes anos acreditei que havia algo que não funcionava em meu cérebro. Minha mãe não tinha problema.
-Nem todos temos. Eu não o tenho, e sua mãe pouco; você sim. Tem algo que ver com a configuração genética. É como a cor dos olhos. Provavelmente, nosso filho será capaz de ler perfeitamente.
-E o que acontecerá se não puder?
-Se não puder fará o mesmo que você.
-Mas não basta. Se sua civilização for tão avançada estou segura de que sabem resolver o problema.
Cameron negou com a cabeça.
-Ainda não.
-Não tem idéia da humilhação que senti. Eu não gostaria que meu filho passasse por algo assim.
-Se viver em Cyteron, não constituirá um problema – disse Cameron lhe passando um braço pelos ombros.
Quem tinha falado de viver em Cyteron? Separou-se dele e deu um passo atrás.
-Nem pensar. Não permitirei que o faça. Uma criança necessita a sua mãe. Não me pode tirar isso.
-Tirar-lhe isso? Perguntou Cameron franzindo o cenho. – Porque iria querer fazer algo assim?
Para levá-lo a Cyteron.
-Comigo? Por favor, Summer, por que acredita que estive te explicando quem é e como chegou aqui? Vou voltar contigo. Não tinha se dado conta?
-Vou voltar contigo. Não se deu conta?
Summer estava atônita. Voltou a colocar as mãos nas mangas e se abraçou enquanto sacudia a cabeça.
-Vou voltar contigo - insistiu.
Tinha os pés plantados firmemente na areia.
-Não fazia parte do plano original, mas às vezes aconteciam estas coisas. Enviaram-me para te observar, simplesmente. Depois, esteve a ponto de se afogar e tive que te levar para superfície. Depois, tive que te curar, e naquele momento já me dava conta de que tinha me metido em uma confusão, porque cada vez que te olhava me sentia incapaz de afastar os olhos. Agora que fizemos amor, não tenho eleição. Não te deixarei partir, Summer. Tem que voltar comigo.
-Não posso ir - protestou. - Sou humana. Não posso ir ao lugar onde vivem os pequenos resplendores brancos.
-Se quiser, pode.
-Mas sou humana.
-Só em parte.
Cada vez lhe parecia mais difícil rebater seus argumentos. Por difícil que resultasse acreditar, resultava-lhe mais difícil não acreditar. Por mais estranho que lhe parecesse, não tinha mais remédio que admitir sua origem cyteroniana.
-Mas minha parte humana é suficiente para me atar à terra. Você mesmo disse: os poderes se diluem de geração em geração.
-Sobre tudo - apontou, - por causa da perda de confiança. Se for obrigada, poderia fazer o que quiser. Sua mãe tinha fé. Essa fé a empurrou a abandonar a terra quando chegou seu momento.
O coração lhe deu um tombo. Daria qualquer coisa para voltar a ver sua mãe. Depois, teve que considerar o aspecto mais prático.
-Não poderia viajar assim, verdade?
Cameron negou com a cabeça.
-Só os resplendores podem viajar?
-Em nossas naves.
-Poderia me converter em um resplendor?
-Se quisesse.
-E iria para sempre?
Cameron assentiu.
-Mas minha vida está aqui.
-De verdade? - perguntou com um olhar de cepticismo.
Olhou para os sólidos blocos de granito. Sobre eles se elevavam os pinheiros, rodeados de erva. Aquele cenário resultava familiar e seguro.
-De verdade. Não posso ir. Nunca me sentei a gosto em nenhum outro lugar.
Cameron cruzou os braços.
-Porque acreditava que era diferente dos outros. Acreditava que não poderia encaixar. Acreditava que se não soubesse ler, era porque algo não funcionava. Mas há um motivo que explica por que é diferente dos outros. Em Cyteron encaixaria perfeitamente.
-Não encaixaria - protestou desolada. - Seria diferente por causa de minha parte humana. Ali seria tão forasteira como aqui.
-Nada disso. A parte cyteroniana é muito mais forte. Até que atravessássemos seis galáxias seria completamente cyteroniana.
Não podia conceber a idéia de atravessar uma galáxia; muito menos, seis. Sua vida em Pride não estava ruim. Tinha sua cabana, sua horta, a recompensa de curar aos doentes e o prazer ocasional de conversar com Millie. E tinha a pradaria.
-Não posso abandonar os pôneis. Pode que só venham três meses ao ano, mas me necessitam.
-Enviaremos outra pessoa para que se encarregue deles.
-Mas ali não saberia o que fazer.
-Estaria comigo. Não parece o bastante?
Não sabia o que responder. Não conseguia imaginar Cyteron. Não sabia que aspecto teria aquele lugar, nem que aspecto teria ela quando se encontrasse ali. Não tinha nem idéia de como era a vida cotidiana, se os cyteronianos comiam, dormiam, trabalhavam e jogavam como os humanos. Não sabia que aspecto teria Cameron em seu planeta, nem o que significaria estar ali com ele.
Só sabia duas coisas: que amava Cameron em sua forma terrestre e que o futuro a aterrorizava.
Cameron se aproximou dela e lhe acariciou a bochecha com delicadeza.
-Muitas novidades de uma vez?
Ela assentiu.
-Pense sobre isso. Passou um braço por seus ombros. - Não temos pressa. Não me esperam até dentro de bastante tempo.
-Como é a vida ali? - perguntou Summer. Tinha passado a maior parte da tarde dormida na pradaria, o qual não era de sentir saudades se tinha em conta que não tinha dormido na noite anterior. Quando despertou tinha a cabeça apoiada sobre a coxa de Cameron.
-É brilhante, agradável e alegre.
-Há ervas?
-Claro que sim. E árvores. E flores. Mas tudo é diferente; menor e delicado. Nós também somos menores e delicados.
-De verdade são como resplendores brancos?
-Não temos uma forma concreta. Somos seres muito complexos, e todos somos diferentes.
-Como os flocos de neve?
-Exatamente.
-Mas não se derretem.
-Não. Duramos muitíssimo.
-Eternamente?
-Não. Até os cyteronianos desaparecem.
-Quanto tempo?
-Uns seiscentos anos.
-Como os vampiros?
-Não! - exclamou. - Nós estamos completamente vivos. Melhoramos com o tempo.
-Quantos anos têm?
-Cronologicamente, ao redor de noventa, o que equivale a uns trinta anos em términos terrestres.
-Como fazem? - perguntou intrigada.
-O segredo está na forma de vida. Nosso organismo é menor, mais singelo e mais eficaz que o humano, de forma que não nos desgastamos tanto. Estamos melhor construídos, de modo que duramos mais. Também somos mais felizes, e a felicidade é um elemento chave da longevidade. Aqui ocorre o mesmo. Uma pessoa infeliz é mais propensa aos acidentes e as enfermidades.
-Por que são mais felizes?
-Para começar, porque não temos tantos problemas como na terra. Não existe a pobreza. Nem a fome. Nem a guerra.
-Vivem em cidades?
-Em pequenas colônias.
-Têm governo?
-Há uma forma de governo representativa, mas se trata mais que nada de um organismo de organização. Somos muito pacíficos.
-Não há brigas? Não há guerra?
-Não temos motivos. Somos sãos e prósperos. Há recursos de sobra.
-Mas é inevitável que uns tenham mais que outros, e isso sempre causa problemas.
-Não em Cyteron. Nossa sociedade é mais cerebral que física. A posse não tem nenhum valor. É um dos motivos pelos quais temos a nossa gente em lugares como Pride. A simplicidade da ilha se aproxima da de nosso planeta.
-Mas eu tenho pertences. Uma vez me perguntou de onde saía o dinheiro. Sabe você?
-Não. É uma informação que me falta. Eu suspeito - disse piscando um olho-, que sua tataravó o roubou ou o falsificou.
-Teria sido incapaz - disse Summer.
-Então, de onde o tirou?
-De onde o tirou você?
-De um cartão de crédito. Agora que por fim estamos computadorizados, as coisas são mais fáceis. Um depósito central serve para todos nós.
Não havia dito de onde procedia o dinheiro daquele depósito central, mas Summer não estava segura de querer sabê-lo.
-Em algumas ocasiões - explicou Cameron, - temos que garantir nossa sobrevivência fazendo coisas que normalmente preferiríamos não fazer. Sua tataravó necessitava recursos para subsistir, de modo que o criou como pôde. Se pagavam seus serviços com a mesma generosidade com que Morgan Shutter pagou os seus, eu diria que não ganhou dinheiro.
-Ainda te incomoda o fato de Morgan não ter pago, verdade?
-É obvio.
-Mas acaba de dizer que os cyteronianos não se deixam levar pela necessidade de posses.
-Mas nos deixamos guiar pela necessidade de um pouco de decência. O que me incomodou não foi o dinheiro, e sim a ingratidão. Nunca te passará algo assim em casa.
Sua utilização do futuro a impulsionou a lhe recordar:
-Não disse que queria ir.
-Irá.
-Vamos, Summer! Tente.
Olhou a lata vazia que havia sobre a grade. Estava a uns centímetros do cubo de lixo de onde Cameron a tinha tirado. Sentia-se completamente incapaz de movê-la.
Era uma quarta-feira calorosa e úmida. Tinham passado toda a manhã compilando os tomates e o milho, e se dirigiam à cidade para ir ao correio. O cubo de lixo estava a um lado da estrada, e não se via ninguém pelos arredores.
-Se concentre - disse Cameron com suavidade. - Não pense em nada mais que na lata e no cubo. Tente atirá-los.
Mas Summer não pôde evitar recordar os exercícios de tiro dos filmes do oeste.
-Necessito uma pistola - murmurou.
-Se concentre.
-Não vai funcionar.
-É sua parte humana a que fala. Escuta sua parte cyteroniana. Diz que pode fazê-lo.
-Não a ouço.
-Porque não deixa de falar. Fecha a boca e se concentre.
-Estou concentrada.
-Esvazia sua mente.
-Está vazia.
-Pense na lata.
-Estou pensando nela.
-Deixa que sua mente a levante.
Pensou em tudo que viu nos filmes de terror, nas coisas que se moviam empurradas por uma força estranha. Mas a lata continuou imóvel.
-Vê? Não tenho nenhum poder.
-Você mesma é sua melhor inimizade.
-Pior inimizade.
-Põe pior nisso.
-Pois a mova você.
A lata se introduziu com limpeza no cubo de lixo. Pegaram na mão um do outro e seguiram caminhando.
-Tem que desejá-lo, Summer.
-Desejo-o.
-É mentira. Tem medo. Assusta-te o que pode significar. Não quer demonstrar que tem esse poder porque te dá medo deixar a terra.
-Não passaria o mesmo com você? Se tivesse passado aqui toda a vida pensando que é humano, não te daria medo pensar em adotar outra forma, deixar tudo e se transladar a um lugar desconhecido?
-Não é completamente desconhecido. Resultar-te-ia tão familiar como lhe resultaram meus olhos. Asseguro-te que Cyteron é um lugar maravilhoso.
-Você pode dizê-lo - murmurou. - É sua casa. O que acontecerá eu não gostar?
-Você gostará.
-E se eu não gostar? - insistiu. - Poderei voltar no próximo avião?
-Sinto muito, querida, mas não há vôos regulares. Talvez voltem a enviar uma nave dentro de mil anos, mas nós não estaremos lá para ver. Talvez o vejam nossos netos.
Apertou sua mão com mais força. Cada vez que mencionava sua descendência sentia que algo se agitava em seu interior. A idéia de ficar na terra sem Cameron se fazia cada vez mais insuportável.
-Olhe! - exclamou Cameron sorridente. – Vê esse cão?
O cachorrinho dos Pinkhey jogava com uma bola de borracha. Antes que Summer pudesse lhe perguntar quais eram suas intenções, a bola se afastou do cachorro. Este a perseguiu e se equilibrou sobre ela, mas voltou a afastar-se em outra direção. Por fim conseguiu apanhá-la e a sujeitou com os dentes, mas ao deixá-la cair lhe voltou a escapar.
-Tente - sugeriu Cameron. - Se concentre na bola. Tente afastá-la do cão.
Mas Summer só era capaz de pensar no muito que gostava de encontrar-se perto de Cameron. Adorava o tamanho de seu corpo, suas proporções e sua virilidade. aproximou-se dele até que seus corpos se tocaram.
O cachorrinho olhava a bola, com as patas dianteiras apoiadas no chão e o rabo em alto, esperando a que se movesse.
-Pense - sussurrou-lhe Cameron ao ouvido.
-Quando está tão perto de mim, só sou capaz de pensar em uma coisa.
Cameron gemeu.
-Bom; funcionou - disse com um suspiro.
Summer olhou a parte dianteira de suas calças. Sorriu satisfeita e lhe voltou a olhar o rosto. Pelo menos, tinha certo poder, e Cameron era quem o tinha despertado. Tinham passado toda a noite fazendo amor. Cada vez era melhor que a anterior.
-Esvazia sua mente - ordenou Cameron.
-Vamos deixar em paz ao pobre cachorro.
-Muito bem, mas não podemos nos mover até que não esvazie sua mente.
-Assim que esse aspecto humano que escolheu te causa problemas.
-É difícil de controlar.
-Existe algo parecido em Cyteron?
-Sim; mas não é tão evidente. Asseguro-te que, comparadas com os homens, as mulheres deste planeta têm sorte.
-Porque temos sorte? - perguntou com sarcasmo. - Recordo-te que nosso aparelho reprodutor nos traz muitas mais complicações que o seu: síndrome pré menstrual, dores de menstruação, e ainda por cima dar a luz, que não é coisa de risada. Além dos nove meses de embaraço.
-Dezoito meses em Cyteron.
-Por que tanto tempo?
-Nós gostamos da gravidez, de forma que prolongamos o prazer. Em nosso caso, dá-nos a possibilidade de estar os dois a sós antes que chegue o bebê.
Summer respirou profundamente e continuou caminhando.
-Poderíamos estar os dois a sós durante nove meses se ficasse aqui. Por que não pode?
-Porque esperam minha volta - disse. - Além disso, as viagens intergalácticas com mudança de forma são perigosas para os recém-nascidos. Não quero me arriscar.
-Então, por que não ficamos? Podemos ter o menino e esperar que tenha idade de viajar. Não estaria mau.
-Poderia me trazer problemas - disse Cameron.
-Por que?
-Sou investigador. Viajei muito, e isso significa que adotei mais de uma forma de vida estranha na minha composição. Se conservar a forma humana durante muito tempo terei problemas para recuperar minha forma original.
-Pois fique para sempre.
-Não demoraria muito para morrer. Tenha em mente que minha composição química é distinta a da terra - olhou para diante. - Parece que vieram nos receber.
Hapgood Pauling, Keegan Benhue, Oaker Dunn esperavam na porta do hotel.
Summer deixou escapar uma risada nervosa.
-Asseguro-te que não entendo por que abotoam as camisas até o final.
De repente, o botão superior da camisa de Keegan se desprendeu. Perplexo, levou-se a mão ao pescoço.
-Foi você - acusou Cameron.
-Nem pensar. Deve ter sido você.
-Impossível. De fizesse algo, teria ajudado Oaker a relaxar-se. Parece muito tenso.
De repente, Oaker tropeçou. Recuperou o equilíbrio e olhou estupefato para a rua, procurando o objeto com o qual tinha chocado.
Summer dedicou um amável sorriso ao trio.
-Quanto me alegro de lhes ver!
Keegan se deteve uns metros e disse:
-Precisamente, íamos lhe ver. Já que vieste à cidade, economizamos a viagem.
-O que posso fazer por vocês?
Keegan lançou um olhar incômodo a Cameron, que com as pernas abertas e as mãos nos quadris parecia a ponto de sacar um revólver. Quando voltou a olhar para Summer parecia mais pálido que antes.
-Tem que abandonar a ilha durante um tempo - disse. - tivemos problemas com o pessoal da OSAY.
-Que tipo de problemas? - perguntou Cameron.
-Ao parecer, alguém lhes disse que o lugar estava encantado - respondeu Hapgood.
-Foi você - disse Oaker.
-Não temos provas de nada - disse Keegan, - mas lhes dá medo vir para pradaria. Agora, parece que alguém contou a seu primo, que trabalha para a revista People, e o primo deve fazer uma reportagem.
-Esse tipo chamou o Keegan por telefone - explicou Hapgood. - Disse que tinha ouvido que aqui há uma bruxa. Keegan lhe disse que não havia nenhuma bruxa, mas diz que vai vir ver.
Keegan elevou a mão, indicando a Hapgood que se calasse.
-O caso é que se vier aqui e fala contigo e lhe ocorre pensar que seu primo pode ter parte de razão, escreverá um montão de coisas e perderemos toda esperança de que venha alguém a desenvolver algo aqui.
-Muito melhor - disse Summer. - Levo vários anos tentando lhes explicar que nas pradarias não deveriam desenvolver nada.
Oaker a assinalou com um dedo.
-É uma bruxa. Não se atrevem a dizê-lo com essas palavras, mas o é.
Keegan lhe afundou discretamente o cotovelo no estômago.
Hapgood aproveitou a oportunidade para dizer:
-Dá-nos igual o que seja ou deixe de ser. Pride é o que importa. Você conhece as razões que temos para não querer que esse tipo escrever sobre nós. Além disso, supomos que tampouco te interessará que venha.
-Por que não? - perguntou.
-Se escrever que a pradaria está encantada, escreverá sobre ti, e se o fizer, virá gente te olhar. Converter-te-ia em um espetáculo, e não acredito que você goste, tendo em conta que está acostumada a viver sozinha - olhou de novo para Cameron e acrescentou: - Antes, quando estávamos na reunião, nos ocorreu que não nos viria nada mal. Se começassem a vir os turistas, ganharíamos muito dinheiro. Mas seria bastante incômodo, na verdade, preferimos promocionarnos outra forma de dinheiro.
Tem razão, pensou Summer. Eu não gostaria nada que as pessoas viessem me olhar. Não acredita que exagera?
Quem sabe.
Talvez só esteja tentando que eu me vá da ilha para trazer outro grupo para ver a pradaria.
Como Cameron não respondia, elevou a vista para ele. Tinha o olhar cravado nos vereadores. Depois de um momento de silêncio, começou a avançar com passos lentos e confiados.
Deteve-se em frente ao trio.
-Senhores - disse com voz profunda, - em nome da senhorita VanVorn, agradeço-lhes a preocupação que mostram por seu bem-estar, em caso de que seja sincera. Francamente, não estou muito seguro. Resulta que podem ter muitas razões para querer afastá-la de Pride, embora só seja durante uns dias.
-Não é verdade - protestou Keegan.
Summer não sabia muito bem se sua expressão era de medo ou de pura indignação. Em qualquer caso, deixou falar Cameron.
-Quando vai vir o jornalista? - perguntou.
-Na sexta-feira pela manhã - respondeu Keegan.
-Como se chama?
-Jonathan Brigham.
Um dos homens da OSAY se chamava Noah Brigham, disse Summer. É possível que isto seja certo.
-Se chamar à revista saberão quem é?
-É obvio, trabalha na revista, têm que conhecê-lo - respondeu Keegan.
-Quanto tempo vai passar aqui?
-Vai dormir no hotel na sexta-feira de noite. Irá embora no sábado pela tarde.
-Na sexta-feira e no sábado. Se a senhorita VanVorn passar fora esses dias não será possível que volte e se encontre com que venderam a pradaria a uma fábrica de espaguetes?
-Espaguetes? - disse Oaker. - Para que queremos uma fábrica de espaguetes?
Cameron seguiu com os olhos cravados em Keegan.
-Ou de chocolate, ou de qualquer outra coisa.
-Asseguro-lhe - disse Keegan, levantando uma mão, - que não temos intenção de fazer algo assim; pelo menos neste fim de semana. De verdade acredita que pode haver algum interessado em vir aqui tão pouco tempo depois de que nos estragasse o negócio com os da estação de satélites?
De repente, Summer se deu conta das intenções de Cameron.
-Não. Suponho que não. E me alegro, porque se meu cliente se inteira de que têm feito algo assim durante sua ausência, posso lhes dizer o que ocorrerá.
-O que quer dizer? - perguntou Oaker.
Cameron o olhou.
-Você tem uma caminhonete nova na qual gastou um montão de dinheiro. Venda a pradaria, e essa caminhonete, assim como qualquer outro veículo que tente conduzir, impregnar-se-á sempre - olhou para Keegan.- Venda a pradaria, e as térmites que se estão comendo a casa de seu vizinho se transladarão à sua - olhou para Hapgood. – Venda a pradaria, e o cabelo de sua esposa ficará verde - franziu o cenho e deu um passo atrás. - Expressei-me com claridade, cavalheiros?
Cameron voltou para o lado de Summer.
-Expressei-me com claridade, cavalheiros?
-Sim.
- Mas não tenho intenção de ir, Cameron.
Cameron não respondeu.
-A que vem esse sorriso? - perguntou Summer.
-Porque me ocorreu uma idéia estupenda enquanto falava com eles, e quanto mais o penso, melhor me parece. Vamos a Nova Iorque.
-Nova Iorque? Morreria em Nova Iorque.
Puxou-a pelos ombros e se agachou até ficar a sua altura.
-Não. Estará comigo. Escute. Nenhum de nós esteve em Nova Iorque. É patético. Não podemos perder isso. Como vamos voltar para Cyteron sem tê-la visto? Seria como ir ao Arizona e não visitar o Grande Canyon, ou ir ao Egito e não visitar as pirâmides. Não podemos estar neste costa e não visitar Nova Iorque.
-Pode ir a Nova Iorque. Eu fico aqui.
-Mas eu quero vê-la contigo. Nova Iorque consiste nisso: duas pessoas juntas no meio do bulício. É interessante. É excitante. É romântico.
-Também é sujo.
-Pois reservaremos uma suíte no Hotel Plaza e tomaremos banho em uma jacuzzi três vezes ao dia. Vamos! Será divertido. Podemos percorrer a Quinta Avenida e subir no Empire State Building. Podemos passear em carro de cavalos, comer no Lutece ou em La Cerque, ir ao cinema, ao teatro ou a um museu, e se nós não gostarmos de nada, ficamos na suíte, pedindo todos os manjares imagináveis e fazendo amor entre comida e comida - tomou seu rosto entre as mãos e sussurrou: - Isso é o que quero! Fazer amor contigo em um sofá, junto a uma janela com vistas ao Central Park. Não seria uma experiência incrível? Não tem por que se assustar, porque vou cuidar de você todo o tempo. Venha, Summer! O que diz?
-Muito caro.
-O dinheiro não importa. Tenho uma conta ilimitada.
-Parece que pode justificar esse gasto como uma viagem de negócios?
-Negócios, prazer... Onde está a diferença? É uma idéia muito boa. Nossa última excursão na terra - levantou-a pelos ares. - Nossa lua de mel.
-Não estamos casados.
-Podemos nos casar em Nova Iorque. Seria divertido contar um dia a nossos netos.
-É impossível - gritou.
Era verdade, era impossível resistir a ele. Antes de conhecê-lo, não sabia quão divertida a vida podia chegar a ser.
-Vai vir comigo?
-Mas se me perco será sua culpa. Se nos atacam será sua culpa.
-Vai te encantar, Summer. Confesse. Sempre quis visitar essa cidade.
-Sempre quis visitá-la - confessou.
Era certo. Nova Iorque a intrigava, mas nunca se atreveu a ir sozinha. Com Cameron a seu lado, a idéia lhe parecia muito atraente.
-Mas quero que me prometa que não acontecerá nada na pradaria enquanto estamos fora.
-Prometo-lhe isso - disse com solenidade.
Quando Cameron visitou Nova Iorque, fez a sua maneira. Summer não esperava algo assim, embora a verdade fosse que não parou para pensar como sairiam as coisas. Sentia-se culpada por abandonar a ilha de Pride. Uma vez no trem, concentrou-se em sobreviver ao vôo desde Portland e à viagem em táxi.
Só levavam uma pequena bolsa de viagem. Summer achava que percorrer Nova Iorque com a mesma roupa que usavam em Pride, mas Cameron tinha outros planos. O primeiro que fez quando chegaram à cidade foi meter-se no Saks Fifth Avenue, onde começou a adquirir a indumentária adequada para o fim de semana.
-Isto é absurdo - protestou Summer quando saiu do vestuário com um vestido curto cuja etiqueta não se atreveu a olhar.
-Absolutamente - respondeu Cameron.
Summer se aproximou mais para evitar que a vendedora a ouvisse.
-Mas não vamos voltar pôr isto na vida - não se imaginava em Pride com um vestido de seda.
-Disse alguma vez que tem umas pernas preciosas?
Ruborizou-se, embora se sentisse enormemente adulada. Nunca tinha se comportado como uma pessoa extravagante. Mas também era certo que nunca tinha estado em Nova Iorque. Olhou-se no espelho, Cameron se encontrava atrás dela. Parecia que vivia um conto de fadas. Tinha sobrevivido ao vôo e à viagem de táxi do aeroporto, e se encontrava em um mundo completamente distinto, com as sensações e a aparência de uma pessoa completamente distinta da que tinha deixado Pride naquele mesmo dia.
-Eu gosto do vestido - sussurrou fascinada pela nova mulher que via.
-Levaremos.
Chamou a vendedora e lhe assinalou aquele e outros três conjuntos que tinha insistido com Summer para levar. Ela esqueceu suas objeções quando se deslocaram à seção de cavalheiros. Era a vez de Cameron. Summer o tinha visto vestido com uns jeans e um pulôver, com uma toalha ao redor da cintura e completamente nu. Nunca o tinha visto com um traje de corte perfeito de um azul marinho igual ao de seus olhos. Era o príncipe ideal para a princesa do conto.
E aquilo era só o princípio. Vestidos com suas novas roupas desceram pela quinta avenida para o hotel. Summer usava calça de linho com camisa e jaqueta combinando e Cameron uma calça verdes, um pulôver de desenho e uma camiseta americana. Cada vez que se viam refletidos em uma vitrine, detinham-se para olhar.
O reflexo de Cameron dirigiu a Summer um sorriso de satisfação. Ofereceu-lhe um cotovelo entre os pacotes, e ela se apressou a entrelaçar seu braço.
No hotel os esperava uma suíte em seu nome. Se Summer tinha a impressão de que aquela cidade era um mundo distinto, o quarto lhe pareceu ainda mais irreal. Quando os botões lhes indicavam onde estava cada coisa, tentou segui-lo, mas cada característica lhe parecia mais esplêndida que a anterior. A habitação era deliciosa, do grosso carpete até a colcha com cortinas combinando, passando pelo elegante conjunto de sofá e poltronas, a mesa e o escritório. E ainda não tinha visto o banheiro.
-Você gosta? - perguntou Cameron, passando as mãos por sua cintura.
Rodeou-lhe o pescoço com os braços.
-É absolutamente incrível. Eu adoro.
-Se parece como esperava?
-Absolutamente. Mas não me dá medo. Sinto-me segura.
-Comigo.
Assentiu sorridente. Cameron podia ler as placas, podia tomar um táxi, podia fazer os trâmites de registro no hotel. Ela teria se sentido absolutamente incapaz de fazê-lo.
-Sabe? - disse Cameron abraçando-a. - Não me importaria não chegar nunca a abrir o resto dos pacotes. Não me importaria que passássemos nus todo o fim de semana.
-A mim sim - obrigou-se a responder, embora aquilo não fosse certo de tudo.
Sentia o desejo de encontrar-se nua na frente dele naquele momento, mas também sentia outro desejo. Sempre tinha dado medo visitar uma grande cidade. Por fim tinha ido a uma, e não se sentia incômoda absolutamente. Justamente o contrário. Sua curiosidade se despertou. Queria conhecer Nova Iorque.
-Já te ouço - murmurou Cameron resignado. - Mas me prometa uma coisa. Prometa-me que quando voltarmos me deixará te olhar, te tocar e te abraçar tudo o que quiser - deu-lhe um beijo eletrizante-. Prometa-me - continuou ao separar-se, - que você também me tocará. Este corpo segue sendo novo para mim. Quero explorá-lo enquanto o tenho. Ajudar-me-á a fazê-lo?
-Eu adoraria - respondeu.
Está tão bonito..., pensou. Embora leve a roupa posta, está muito bonito.
Acariciou todo seu corpo por cima da roupa até que ouviu outras palavras silenciosas.
Dispa-me, por favor. Quero que toque minha pele.
Summer fechou os olhos e se apartou. Rodeou sua cintura com os braços e o sujeitou fortemente até que notou que seus músculos começavam a relaxar-se.
-Depois - prometeu. - Uma das vantagens dos corpos terrestres é que, quanto mais têm que esperar, mais satisfeitos ficam quando chega o momento.
Cameron não parecia muito convencido com a explicação.
-Vi em um filme - explicou Summer afastando-se. - Quero comprovar se é certo.
-É cruel.
-Perdoa-me?
-A que extremos chegamos em nome do amor! - disse lhe passando uma mão pelo cabelo.
-Tem toda a razão - conveio enquanto alargava uma mão em busca dos controles da jacuzzi.
Umas horas mais tarde, depois de sair da banheira, saíram a dar um passeio pela Broadway. Depois voltaram a inundar-se entre as borbulhas, colocaram suas roupas mais elegantes e saíram do hotel. O porteiro lhes abriu a porta do táxi.
-Não sou eu - decidiu Summer ao sentar-se no assento posterior junto a Cameron. - Summer VanVorn não está aqui.
Pride parecia um lugar remoto, e sua preocupação, vaga e distante. Em Nova Iorque, sentia-se como uma estrela de cinema. Ou como um casal. Cameron chamava tanto a atenção que as cabeças se voltavam. Sentia-se cômodo e seguro. Conhecia a perfeição todas as regras de comportamento, tais como a generosidade nas gorjetas.
-Está seguro de que é a primeira vez que vem?
-Não te mentiria em algo assim - comprovou que dizia a verdade ao observar sua cara de assombro ante as estruturas de pedra, vidro e metal. - Os filmes não fazem justiça a esta cidade - observou.
Ela se mostrou de acordo, sobre tudo quando chegaram ao World Trade Center; subiram de elevador ao restaurante do piso superior e se sentaram em uma mesa com vista para o extremo sul de Manhattan. A estátua da Liberdade resplandecia na noite. Apesar de não a ter visto nunca, Summer, como boa americana, viu-se na obrigação de mostrar orgulhosa a Cameron.
O jantar foi o final perfeito para um dia de sonho. Summer se sentia perdida ante o cardápio, mas Cameron pediu pelos dois, escolhendo uma seleção de comidas desacostumadas, todas elas apresentadas de forma artística. Todas eram deliciosas, até mesmo o vinho. Quando desembarcaram do táxi na frente ao hotel, em vez de entrar, Cameron decidiu provar a veracidade da teoria de Summer sobre o corpo humano e subiu com ela a uma charrete de cavalos.
Summer não se fixou muito nas zonas que atravessavam. O romantismo do cenário embotava os detalhes, e a cercania de Cameron ocupava seu pensamento. Apoiou-se em seu ombro. Sentia-se amada e protegida. Elevou o rosto para beijá-lo. Deslizou-lhe a mão pela camisa, e a moveu sobre a textura criada pelo pêlo sob o tecido. Acomodou-se contra ele, com a necessidade imperiosa de ser tocada de uma vez.
Mas em vez de atender a seus desejos, Cameron lhe acariciou o pescoço, o canal entre seus peitos e o interior do pulso. Beijou-a uma e outra vez, excitando-a sem piedade. Quando por fim se encontraram no vestíbulo do Plaza, Summer tinha que sujeitar-se a Cameron para ficar de pé.
Logo que fecharam a porta do quarto, Cameron a abraçou fortemente e a beijou com avidez. Summer não sabia que um beijo pudesse alcançar tantas partes de seu corpo.
Quando terminou de beijá-la, Cameron estava tremendo. Aquele acontecimento era novo, desconcertante e excitante.
-Dispa-se. Prometeu-me isso.
Não necessitava uma promessa para fazê-lo. Despir-se lhe parecia algo natural e prazeroso. Também era necessário. Começava a pensar que, se demorasse muito em sentir as mãos de Cameron sobre sua pele, morreria.
Separaram-se. Summer foi para o sofá, e Cameron perto da mesa do escritório.
Tinham a luz apagada, mas no exterior, a noite resplandecia com luzes de cores. Através dos reflexos de néon divisavam o azul pálido da lua cheia. Não falaram. O ruído do tráfico se mesclava com o som das roupas que caíam ao chão e o ritmo descompassado de suas respirações. Contemplaram-se enquanto se despiam. Quando por fim não tinham nada mais que tirar, admiraram-se mutuamente durante um momento a perfeição de seus corpos.
Olhou-o encantada. Sua mandíbula estava sombreada pelos lugares barbeados. Seu pescoço era forte sem chegar a ser grosso; seus ombros, largos, mas não exagerados. Percorreu seu peito com uma carícia imaginária. Sentiu nas palmas das mãos cada um de seus músculos. Seus quadris eram estreitos, e todas suas linhas conduziam ao lugar onde se concentrava o desejo que sentia por ela.
-E você é a que diz que não tem poderes? - disse Cameron. – Se continuar me tocando assim, terminaremos antes de começar.
Demorou um minuto para compreender que havia dito algo, e outro minuto em dar-se conta de que não o tinha entendido.
-O que?
-Estava me tocando com a mente. Podia sentir suas mãos.
As olhou desconcertada. Estavam a mais de três metros de distância.
Sentia-as?
Como se fossem de fogo.
Voltou a olhá-lo divertida, imaginando que entrava os dedos no pêlo de suas pernas, em uma viagem que terminava no ponto em que as coxas se encontravam. Depois imaginou que juntava as mãos no centro.
-Summer... - advertiu.
-Notou?
-Perfeitamente.
Riu encantada. Não estava aquilo mal de poderes.
-E isto?
Imaginou que subia por seu corpo com o dorso de suas mãos, seguindo o caminho do pêlo que subia desde seu umbigo. Ao chegar a seu peito, imaginou que lhe roçava ligeiramente os mamilos.
Cameron jogou os ombros para trás e emitiu um gemido que a assustou por um momento. Correu para ele, passou-lhe as mãos pela cintura e o abraçou fortemente. Podia ouvir os batimentos do coração de seu coração.
-Sinto muito - murmurou. - Não podia me conter mais tempo.
Cameron afundou os dedos em seu cabelo, elevou seu rosto e cobriu sua boca com uma ânsia desconhecida. Explorou até o último milímetro de sua boca. Depois percorreu seu corpo com os lábios e seguiu descendendo até chegar a seu peito.
Naquela ocasião, foi ela que gemeu. Com os braços ao redor de seu pescoço, apertou sua cabeça contra seu corpo. Começou a tremer.
Cameron se endireitou. Abraçou-a durante um momento antes de levantá-la nos braços para levá-la para a cama.
Seus olhos se encontraram. Com a voz áspera pelo desejo, Cameron disse:
-Me toque agora.
Fez isso. Sua excitação crescia como a de Cameron. Tinham chegado ao limite da tentação. Não se sentia capaz de resistir muito mais. Seu interior ardia de desejo.
Agora!, gritou sem abrir a boca. Cameron a levantou pelos quadris e a depositou brandamente sobre seu sexo. Suspiraram aliviados, mas o alívio durou pouco. Os dois tinham a sensação de que ainda não tinham o bastante. Summer se deixou cair de costas sobre a cama e levantou os joelhos. Os fortes movimentos de Cameron fizeram com que o mundo começasse a dar voltas e acabou partindo-se pela metade em uma onda de prazer.
Aquela noite foi uma sucessão constante de sexo, diária e serviço de quarto. Em algumas ocasiões, Summer se sentia como se estivesse em um banquete; em outras, como se estivesse em uma orgia.
Ao chegar o amanhecer, o cansaço se apoderou deles e dormiram abraçados até que passaram das dez. Tomaram banho e se vestiram rapidamente. Se a falta de sonho tinha algum efeito, Summer não o notou. Nunca havia se sentido tão cheia de energia.
Percorreram a pé vários quilômetros, aventurando-se pelo final da Quinta Avenida e explorando Washington Square e Greenwith Village. Voltaram passando pelo Empire State Building, pelo Rockefeller Center, pela Catedral de Saint Patricks e pela Tiffany's. Compraram cachorro quente em uma esquina, e sorvete de iogurte em outra. De vez enquando se detinham para sentar-se em um banco e ver as pessoas.
-Parecem completamente concentrados no que estão pensando - comentou Summer em uma daquelas paradas,
Logo que terminou a frase, a um dos transeuntes, um jovem com aspecto de executivo, deixou cair a carteira.
-Tem sorte de que não tenha aberto - disse Cameron. - Asseguro que deixaria de parecer concentrado se todos os papéis que leva começasse a voar pelos ares.
Seguiram contemplando às pessoas.
-Não posso imaginar a ninguém andando tão depressa em Pride - disse Summer. - Ali a vida é muito mais lenta.
-Fica nervosa com esta agitação? - perguntou Cameron preocupado.
-Absolutamente - respondeu sorrindo. - Só estamos de passagem. Além disso, é excitante. Nova Iorque é o lugar onde ocorrem as coisas. Ainda não posso acreditar que estou aqui.
Cameron se aproximou dela um pouco mais.
-Sente-se intimidada?
O mundo que se estendia além dos limites de Pride sempre a tinha intimidado. Mas não naquela ocasião.
-Em sua presença. Você me confere valor.
-Não refiro a isso. Olhe a essas mulheres. Sente-se menos importante que elas?
Comparou a simplicidade de sua vida em Pride com a complexidade da vida daquelas mulheres.
-Não - disse com uma convicção que surpreendeu a ela mesma. - Não me sinto menos importante. Elas têm seu trabalho e eu tenho o meu. A julgar por suas expressões sombrias, eu desfruto de muito mais que elas.
Naquele momento, uma mulher que caminhava para eles com passos mecânicos olhou a seu redor. Não se deteve, mas ao passar a seu lado tinha uma expressão de curiosidade refletida no rosto. Pouco depois, uma segunda mulher fez o mesmo, e depois uma terceira.
-O que fez?
-Ouviram o uivo de um lobo.
-Cameron!
-Deveriam saber que são atrativas - disse encolhendo os ombros, - mas têm tanta pressa para chegar aonde vão que, se alguém o dissesse, não acredito que se incomodassem em ouvi-lo.
-Parecem-lhe atrativas?
-Sim, embora não tanto como você. Você é um sopro de ar fresco.
Resultava difícil não sorrir em companhia de Cameron. Sentia-se orgulhosa e atrativa. Parecia-lhe estranho que as pessoas não se voltassem para olhá-la. Sentia-se normal, como as demais, e gostava da mudança. Mas sentia algo novo e muito tentador: o poder.
Havia sentido a Cameron sem tocá-lo. Ao menos, aquilo era o que ele afirmava. Perguntava-se se seria certo.
Escolheu a um transeunte e imaginou que lhe colocava uma mão sobre o ombro. Este se voltou, viu que não havia ninguém atrás dele e seguiu caminhando.
Perguntou-se se teria sido uma coincidência. Passou outro homem. Concentrou-se em fazer que lhe soltassem os suspensórios. Naquele momento, dobrou a esquina. Pareceu-lhe advertir que se levava uma mão ao tirante, mas não estava muito segura.
Voltou a tentá-lo. Aquele homem era uma espécie de réplica de Kevin Cotsner. E andava muito depressa, logo estaria fora de seu alcance. De modo que se armou de valor e imaginou que lhe tocava o traseiro.
O homem olhou a seu redor, acusando com o olhar a cada uma das pessoas que se encontravam perto dele. Por fim continuou caminhado com o rosto vermelho como um pimentão.
-Passou bem - disse Cameron.
-Fui eu!
-Podia ter sido um pouco mais discreta.
-Queria estar segura.
-Podia ter escolhido um mais feio.
-Não teria sido tão divertido.
-Exatamente - murmurou. - Terei revelado uma maníaca sexual?
Riram. Não precisava responder. Cameron sabia que o amava. Para recordar-lhe colocou-lhe a mão no bolso traseiro das calças.
-Sabe que o teu é o que mais gosto.
Aquele comentário pareceu satisfazê-lo por completo. Passaram junto ao Plaza e subiram pela Quinta Avenida até chegar ao Museu Metropolitano de Arte. Depois de passar duas horas dentro, foram descansar no Central Park.
Aquele lugar lhe recordou sua casa. Até então, manteve-se muito ocupada para pensar no que podia estar ocorrendo em Pride. Sentou-se junto a Cameron em um dos bancos que rodeavam a lacuna. De repente, não podia evitar preocupar-se com o que pudesse estar ocorrendo.
-Não se preocupe - disse Cameron. - Tudo está perfeitamente. É possível que tenham ido os jornalistas, mas não conseguirão nenhuma informação.
-E se foi alguém mais?
-Os vereadores não se atreveriam a fazer algo assim. Não se arriscariam.
Voltou-se para ele.
-O que sente? Está ocorrendo algo?
-Muito longe. Não alcançam meus poderes.
De repente sorriu e assinalou ao outro lado do rio.
-Não se parece uma gracinha esse menino?
Devia ter uns quatro anos. Estava bronzeado e levava uma camiseta com uma tartaruga ninja desbotada. Colocava um barco de vela feito a mão na água.
-Não há muito vento - observou.
Perto de seu barco havia outros dois, maiores e sofisticados, claramente comprados em uma loja. Os proprietários foram muito bem vestidos.
Cameron se recostou no respaldo e estirou as pernas despreocupadas.
-Acredita que vão apostar uma corrida?
Os meninos falavam entre eles e assinalavam seus barcos. Ao fim de um momento, cada um tomou o seu. Levaram para a borda e lhes deram um empurrão de uma vez.
Os dois navios maiores saíram disparados com o impulso inicial, logo sua velocidade se reduziu, embora seguissem movendo-se lentamente. Seus donos, que tinham descartado o barco feito a mão, começaram a gritar e a animar a seus barcos, como se com isso fossem conseguir encher suas velas.
De repente, o terceiro navio começou a mover-se. Escorou para um lado e logo para o outro. Começou a avançar a tropicões.
-O que faz? - perguntou Cameron a Summer.
-Empurrar esse barco.
-Eu também.
-Parece que nos anulamos mutuamente. Vamos trabalhar em equipe: você o mantém em pé e eu o empurro.
A Summer não importava quem faria o que com tal de que ganhasse aquele menino. Sentia-se identificada com ele. Era diferente dos outros. Sujeitou-o enquanto Cameron enchia sua vela de vento, e o barco feito a mão adiantou rapidamente aos outros dois.
-Mais depressa - disse Summer.
-Não. Se for muito depressa, pode parecer que trapaceou. Será melhor que se adiante só um pouco.
O barco feito a mão alcançou a borda oposta com uns centímetros de vantagem sobre os outros. O menino rodeou o lago com toda a rapidez que lhe permitiram suas pequenas pernas, pegou o barco pelo mastro e correu para o que devia ser seu avô. Este o abraçou, sentou-o em seus ombros e se foram do parque.
Summer suspirou.
-Foi bonito.
Mas também teria sido triste, porque lhe recordou o filho de Cameron que levava em seu ventre. Seria divertido levá-lo ao parque e fazer com que ganhasse as corridas com um barco feito a mão. Mas ainda faltavam quatro ou cinco anos, e Cameron já não estaria na terra, e nunca se atreveria a ir sem ele a Nova Iorque. Além disso, existia a vaga possibilidade de que ela tampouco estivesse ali.
-Vaga? - perguntou Cameron.
-Estou tentando me acostumar à idéia - respondeu encolhendo os ombros.
-Já comprovou que tem poderes. Ainda dúvida de sua ascendência cyteroniana?
-Não. Mas o que me pede é muito.
-Peço-te que venha a casa.
-Minha casa está na Terra - respondeu. - Por muito que me fale de Cyteron, continua me parecendo um lugar estranho. Isto é o único que conheço.
-Não Nova Iorque.
-Sim; Nova Iorque. Durante toda minha vida ouvi falar desta cidade, vi documentários e filmes rodados aqui. Em comparação com seu planeta isto me resulta conhecido.
-Mas não poderia viver aqui.
-Como sei que poderia viver em Cyteron?
Aquela pergunta a atormentava. A resposta de Cameron a tranqüilizou.
-Porque estaria comigo. Seríamos um casal - assinalou com a cabeça a dois patos que nadavam juntos. - Seríamos como eles. Não nos separaríamos nunca. Trabalharíamos juntos, educaríamos juntos os nossos filhos e jogaríamos juntos com eles - levou aos lábios a mão de Summer-. Quero-te.
-Eu também te quero.
-Pois venha comigo.
-Dá-me medo.
-Não tem por que te assustar. Confia em mim.
-Sabe que confio em ti. Mas um planeta distinto, um sistema solar distinto, uma galáxia distinta... É muito estranho.
Cada vez que tinham aquela conversa, terminavam da mesma forma. Summer afirmava algo que Cameron não podia rebater. Tudo o que podia fazer era, como naquele momento, lhe beijar a palma da mão, levantar-se, tomá-la pela cintura e continuar o caminho junto a ela.
Foram ao Museu de História Natural. Depois a um cinema. O que mais gostou foi a pipocas de milho que compartilharam.
Ao voltar para o hotel fizeram amor na jacuzzi. Saíram da banheira, secaram-se e voltaram a fazer amor na cama. A paixão os envolvia em suas redes mágicas, mas não conseguia apagar a imagem do menino com o navio. Parecia o símbolo do dilema a que Summer se enfrentava. Não sabia o que fazer para resolvê-lo.
Cameron se sentia tão intranqüilo como ela. Propôs que se vestissem e fossem jantar em uma delicatessen da Sexta Avenida. Depois, foram de táxi ao Linelight, uma antiga igreja de Village transformada em discoteca. Desgraçadamente, nenhum dos dois sabia dançar. Convieram em que o baile não era algo instintivo, como o sexo. Além disso, as luzes eram muito brilhantes; a música, muito alta e a pista, muito pequena para a quantidade de corpos que continha. De modo que se foram.
-Encontra-se bem? - perguntou Cameron depois de um momento. Estavam no Plaza, tratando de decidir o que fariam a seguir.
-Suponho que sim - respondeu. - Embora não sei... Há algo estranho no ambiente - acrescentou.
-Sim. É como se aproximasse uma tormenta.
De repente, Summer se deu conta de que tinha razão.
-Claro que tenho razão - disse. Entretanto, sua expressão era muito mais insegura. - Acredita que está acontecendo algo?
Não sabia muito bem. Por um lado, a temperatura de sua pele podia dever-se à aglomeração da discoteca. Também sentia uma débil vibração em seu interior que reproduzia o ritmo ensurdecedor da música. Passou um dedo sobre o antebraço de Cameron, mas a sensibilidade que percebeu em sua pele se devia a fatores externos ou à excitação produzida por seu contato.
Entraram no elevador. Ao chegar ao quarto, Cameron pegou o controle remoto e acender a televisão. Debateu-se durante um momento com os botões até que conseguiu acendê-la, e demorou vários minutos para encontrar o canal que procurava. -... ganhando força rapidamente no Atlântico a umas centenas de quilômetros ao leste das Bermuda - dizia o homem do tempo. - Por agora, tem as características de uma tormenta tropical, mas é possível que cresça até converter-se em furacão em umas poucas horas. Teremos que manter os olhos bem abertos. Se não se desviar de seu curso atual, as zonas costeiras do Atlântico, e especialmente o litoral de Maine, podem resultar perigosos.
Cameron olhou para Summer. Seus olhos tinham a mesma cor que a água do mar aquele dia, apenas duas semanas atrás, em que ela tinha estado a ponto de afogar-se, para ser salva pelo homem que tinha mudado sua vida.
-Parece que o círculo se fecha - disse Cameron.
No domingo pegaram o primeiro avião da manhã para Portland, e dali chegaram em um pequeno aeroplano a um campo de aterrissagem do continente próximo a Pride.
-Vem uma tormenta - disse-lhes o piloto. - Mas não nos alcançará. Nunca temos mais de uma por temporada.
Mas Summer sabia que se equivocava. Os sintomas que anunciavam a tempestade apareceram com mais força que nunca.
O céu começava a cobrir-se de nuvens quando alcançaram o barco para Pride.
-Parece que vai chover - comentou o capitão com ar aborrecido.
Será mais que chuva, pensou Cameron.
Quanto demorará para chegar?, perguntou Summer.
Doze horas no máximo. A sensação é muito intensa. Será um furacão descomunal.
Summer sentiu que suas próprias vibrações se acentuavam. Mas sabia que naquela ocasião se deviam ao medo. Sua mãe sempre tinha prognosticado um grande furacão. Falava de uma tormenta que apagaria do mapa a ilha de Pride, mas como não chegava, Summer tinha decidido que se tratava de um exagero, igual ao resto dos ilhéus. Mas talvez sua mãe tivesse sido a única que estava certa. Certamente, Cameron tinha razão ao dizer que seria descomunal. Nunca havia sentido nada parecido.
Quando chegaram em Pride, o sol do meio-dia se ocultava atrás de um manto de nuvens cinzas. O barco golpeou as rochas do embarcadouro. Apenas tinham desembarcado quando um homem chegou correndo ao embarcadouro. Ia vestido com uma camisa branca e umas calças curtas da mesma cor. Levava no ombro uma bolsa de viagem e de seu pescoço penduravam um par de câmaras fotográficas.
-OH, não! - sussurrou Summer. - O repórter ainda não se foi.
Mas passou correndo e entrou no barco.
-Vão cometer um engano - advertiu-lhes o jornalista. - Está a ponto de chegar o furacão. Em seu lugar, não desceria e voltaria para a civilização. A não ser que gostem dos ventos fortes. Se for assim, espero que os desfrutem. É a única coisa interessante que tem esta ilha.
Summer e Cameron saíram do embarcadouro e atravessaram a toda pressa a cidade. Quando passaram junto à agência de correios, Millie saudou da porta.
Summer correu para ela.
-Está formando uma tormenta - avisou Millie.
-Já sei. Vai ser muito forte. Tem um lugar seguro aonde ir?
-Minha casa tem paredes sólidas.
-Não. Mais seguro.
-Não será tão terrível - disse Millie franzindo o cenho. - Cada vez se parece mais a sua mãe.
-Tem um porão, verdade?
-Sim, mas...
-Quando começar a soprar o vento, vá para o porão. Prometa-me que o fará.
-Farei, mas...
Summer lhe deu um abraço rápido e correu junto a Cameron. Não voltou a olhar para trás. Não queria pensar que talvez nunca voltasse a vê-la.
Foram primeiro à pradaria. Summer deixou cair as bolsas e suspirou aliviada ao ver os pôneis. Não faltava nenhum.
-Eles também o sentem - disse Cameron.
-Sim - elevou os olhos para ele, aterrorizada. - O que fazemos?
-Tentaremos reforçar a cabana - respondeu em tom tranqüilo. - Depois, esperaremos.
-Ali?
-Aqui.
Summer assentiu, despediu-se dos pôneis neste momento e agarrou suas bolsas.
A cabana estava exatamente igual a dois dias atrás. Se alguém a tinha registrado, não tinha deixado nenhum rastro. De todas as formas, tampouco lhe importava muito. Sua vida tinha mudado. Parecia que sua antiga forma de ser dava passo à nova. Mas como seria a nova? Não tinha nem idéia.
Cameron captou seu desconcerto. Não disse nada. Limitou-se a apertá-la entre seus braços, deixando que a força de seu corpo falasse por ele.
O vento começou a soprar entre as árvores.
-Tenho umas pranchas. Acredita que deveríamos as cravar nas janelas?
-Poderíamos fazê-lo.
-Mas não servirá de nada, verdade?
Cameron sacudiu a cabeça.
-Se o vento for tão forte como temo, varrerá tudo.
-A cabana? - perguntou Summer com um nó na garganta. Cameron assentiu. As árvores? - voltou a assentir. Os pôneis?
-Tudo.
-E a ti?
Conteve a respiração.
O azul de seus olhos se fez mais escuro. No fundo, aquele olhar que era tão familiar a chamava implorante.
-Eu também. Chegou o momento.
Sua respiração se converteu em um grito desesperado. Começou a tremer.
-Agora?
-Logo.
Rodeou-a com seus braços, mas apesar da força de seu abraço, Summer não deixava de tremer.
-O que farei eu? - gritou.
-Vêem comigo.
-Não posso.
-Claro que pode.
-Pertenço à terra.
-Só em parte.
-Mas essa parte me reterá aqui.
-Não se quer vir.
-Mas não sei como fazê-lo.
Tomou seu rosto entre as mãos. Seus dedos eram prementes, em concordância com a expressão decidida de seus olhos.
-Saberá quando chegar o momento. Tudo o que tem que fazer é desejá-lo.
Desejo-o. Não o desejo. Desejo-o. Não.
Voltou a abraçá-la. Ela se aferrou a sua camisa, a sua nuca, a suas costas. Tentou imaginar a vida sem ele, mas não foi capaz. Nunca poderia sentir-se completa longe de Cameron.
O vento se fez mais forte. Quando a cabana começou a agitar-se, Cameron se afastou e a olhou.
-Tenho que ir à pradaria - disse com voz grave.
Os olhos de Summer se alagaram em lágrimas. Aproximava-se o momento da verdade, mas necessitava mais tempo.
-Agora - disse Cameron com suavidade.
Enxugando as lágrimas com o dorso da mão, pendurou-se de seu braço. Na porta, voltou os olhos atrás e as lágrimas voltaram.
-Nunca perderá isto - disse. - Sempre estarão em sua mente, junto com todas suas lembranças. E terá muito mais.
Queria acreditar. Precisava acreditar com todas suas forças. Mas era humana, como suas dúvidas e seus temores.
-Vamos - sussurrou Cameron.
Saíram para fora.
Subiram a costa com muita dificuldade e entraram pelo caminho do bosque.
Cameron se sentou em um tronco talhado. Summer se aconchegou em seu colo. Com um braço ao redor de seu pescoço, observou os pôneis que foram de árvore em árvore. Não comiam. Era como se estivessem se despedindo das árvores.
Passou o outro braço ao redor do pescoço de Cameron, afundou o rosto em seu cabelo e começou a chorar.
-Não chore - disse com a voz quebrada. - Não lhes passará nada. A ti tampouco.
Mas suas lágrimas não cessavam.
Quero-te.
Então, virá.
Posso ir contigo?
Poderá se tiver fé.
Se tiver fé no quê?
Em mim. Em nós.
Então, pensa em nós dois juntos.
Perguntava-se como fazê-lo quando uma baforada de vento golpeou o corpo de Cameron. Tombou-se no chão e se sujeitou ao tronco, mas logo que sujeitou a Summer, um ruído chamou sua atenção.
Com um movimento tão lento que parecia irreal, uma das árvores começou a inclinar-se. Ao final ficou sobre o chão, com a raiz aparecendo.
-Não! - gritou Summer, apartando o cabelo molhado dos olhos.
Teria deslocado para a pradaria em um intento desesperado de endireitá-la se Cameron não a tivesse segurado rapidamente.
-Tenho que fazer algo - protestou, elevando a voz sobre o vento e a chuva.
-Não há nada que possa fazer. Se o tentar, só conseguirá se machucar.
Ouviram outro ruído e caiu outra das árvores.
Cameron ficou de pé e se dirigiu para os pôneis, que se aproximaram dele. Tinham uma expressão que lhe pareceu de alívio, mas seus olhos estavam cheios de lágrimas.
Quando desapareceu o primeiro pônei, pensou que seus olhos a traíam. Quando desapareceu o segundo, piscou atônita. Mas quando meia manada tinha desaparecido, sentiu-se absolutamente desconcertada. Ao parecer, desapareceriam ao contato de Cameron. Acariciava-os brandamente, e cada vez, o animal que se encontrava sob sua mão se voltava branco e resplandecente, diminuía até converter-se em um ponto brilhante e era varrido pelo vento. Ocorreu uma e outra vez, até que só ficou um.
Era Pumpkin.
Aproximaram-se dela através do vento e a chuva.
-Não me obedece - gritou Cameron. - Tem que dizer-lhe você. Se ficar, morrerá.
Quase todas as árvores tinham sido derrubadas pelo vento. Em pouco tempo, todas teriam caído, e não ficaria alimento nem sequer para um pônei.
-Vá, Pumpkin! - gritou.
-Toca-o - disse Cameron, aproximando-se mais. - Precisa sentir sua convicção.
-Minha convicção. Meu deus!
Um pinheiro caiu a uns metros do lugar onde se encontravam.
Summer alargou uma mão. Queria tocá-lo. Desejava-o com desespero. Mas não se resignava a fazê-lo por última vez.
-Morrerá - recordou-lhe Cameron-. Passou toda a vida cuidando-o. Não lhe falte agora.
Tocou a cabeça do animal.
-Vá, Pumpkin - gritou. - Te una aos outros. Tem que viver.
Seu intento foi sufocado pela tormenta, mas de repente notou um intenso calor em sua mão. Uma luz a cegou. De repente se deu conta, de que tocava o ar.
Voltou-se para Cameron, mais confusa que nunca. Seu cabelo negro caía em mechas sobre sua cara. Era um homem suave e delicado, e o amava por isso. Amava sua lucidez, seu sentido da aventura, seu valor. Amava-o pela vulnerabilidade que captava em seus olhos.
-O que vai fazer? - perguntou, baixando a cabeça para lhe dar um beijo desesperado. - Vêem comigo - rogou. O desespero se estendeu a sua voz e seus olhos. - É um mundo melhor, Summer. Será mais feliz. Estará mais segura. Sei que te dá medo se transformar em algo distinto ao que sempre conheceu, mas se confiar em mim saberá que o que te digo é verdade. É uma mulher valente. Se não, não viveria aqui. Esse valor a acompanhará a onde quer que vá - sacudiu-a brandamente. - Quero que venha comigo. Nunca tinha amado a ninguém, e nunca amarei a ninguém mais. Vêem comigo, Summer.
Summer passou os dedos pelo rosto de Cameron. Queria sentir por última vez o contato de sua forte mandíbula, seu nariz reto e os traços com os quais o tinha conhecido.
-Quero ir contigo - chorou, levou as mãos a seus largos ombros e os desceu por seus largos braços. - Mas não sei como.
Cameron tomou o rosto de Summer entre suas mãos e a contemplou. No fundo de seus olhos azuis marinho havia um estranho brilho. Enquanto falava, surgiu um halo atrás de sua cabeça.
-Pense na confiança. Pense no poder. Pense no amor. Se acreditar nas três coisas, estará comigo.
Sairia da terra. Iria viajar pelo espaço. Iria mudar de forma para sempre.
-Quero acreditar - gritou enquanto contemplava aterrorizada que o halo de Cameron se estendia por seus ombros.
-Pois o faça - continuou. - Agora.
Os lábios de Cameron articulavam as palavras, mas o som procedia de outro lugar, porque uma luz cegadora tinha ocupado seu lugar. No instante seguinte, a luz se reduziu a uma estrela resplandecente e Cameron já não estava.
Desconcertada, Summer começou a dar voltas buscando-o e chamando-o por seu nome. Mas a seu redor só havia árvores caídas sobre o lugar alagado.
Summer!, gritou em silêncio.
Acredita em mim, Summer.
Onde está?
Pense na confiança. Pense no poder. Pense no amor. Feche os olhos e acredite em nós. Vêem comigo. Necessito-te.
-Eu também te necessito - gritou mais consciente que nunca da veracidade daquelas palavras.
Apesar do medo que sentia ante a perspectiva de ir a Cyteron, sentia mais medo ainda ante a idéia de ficar na terra sem Cameron. Ele era seu sol, o centro de seu universo. Sem ele, vagaria pelo mundo, fria e desolada. Mas também queria voltar a ver sua mãe. Queria que seu filho conhecesse seu pai. Queria amar Cameron durante as centenas de anos que lhe tinha prometido.
Se o fato de unir-se a ele significava o fim do passado, não lhe importava. Sem ele, o futuro não existia.
Endireitou-se com a força daquela resolução. Levantou o rosto para o céu e fechou os olhos. A chuva a golpeava.
-Acredito - sussurrou.
Sabia que Cameron a protegeria. Tinha confiança.
-Acredito - disse em voz mais alta, concentrando todo seu poder. - Acredito! -Gritou com ardor, abandonando-se ao amor.
De repente um estranho calor se estendeu por seu corpo. Sentiu que suas preocupações se esfumavam. Estava mais viva que nunca. Durante uma décima de segundo pensou que Cameron fazia amor com ela; a descarga de adrenalina era a mesma. Mas o prazer que sentiu naquele momento era muito mais elementar. Seu corpo se derreteu, alcançando a máxima beleza em um mundo que de repente era suave e luminoso.
Vou contigo, Cameron, pensou com um sorriso vitorioso.
Millie Osgood despertou com o sol, como sempre. Despertou para pôr em movimento suas cansadas articulações, banhou-se e se vestiu. Agarrou uma panela de comida para pássaros do armário da cozinha, caminhou lentamente até o alpendre e encheu o comilão. Ao terminar, um pequeno movimento chamou a atenção. Dirigiu a vista para grande olmo que se elevava ao outro lado do caminho.
Uma figura emergiu depois da árvore. Era uma pessoa baixa e magra, com o cabelo escuro e curto. Mas não pensou nem por um momento que se tratasse de um menino. Tratava-se de uma jovem, vestida com uns jeans e uma camiseta. Parecia agradável e inocente, e talvez um pouco assustada.
Millie a chamou com um gesto. Ao ver que a garota dava um passo e se detinha, voltou a chamá-la. Aproximou-se um pouco mais e se deteve uns metros de distância.
-Estava a ponto de preparar um chá. Gostaria de tomar uma taça?
A desconhecida negou com a cabeça, sorriu timidamente, e com uma voz tão tímida como o sorriso e quase inaudível, disse:
-Não, obrigado.
Millie a contemplou. Tinha um aspecto simpático, e vagamente conhecido.
-Conhecemo-nos? -perguntou.
-Não - disse a mulher, ainda timidamente.
-Recorda-me A... - esforçou-se por localizar na memória daquele rosto em seu cérebro. - Dá igual. Sempre é agradável ver alguém como você por esta zona. Não a vi ontem na cidade. Deve ter chegado muito tarde.
-Acabo de chegar. Vim em meu barco.
-Não me diga! - exclamou Millie com admiração.
Pouca gente se atrevia a aventurar-se no Atlântico Norte antes que saísse o sol. Os ventos que sopravam ao redor de Pride eram muito fortes.
-Como se chama? - perguntou Millie.
-Dahlia.
Pensou que seu nome era tão encantado como ela. Não era normal ver pessoas cultas em Pride, e resultava evidente que aquela mulher o era. Tinha um refinamento inconfundível. Indubitavelmente, estava bem educada.
-Dahlia o que mais?
-Monroe.
-Há muito tempo vivia aqui uma família com esse sobrenome - recordou Millie-. Tem algo que ver com eles?
Dahlia sacudiu a cabeça, desculpando-se com o olhar.
-Não passa nada - disse Millie sorridente. - Eu não gostaria de ser parente desses Monroe. Entende-me?
Não sabia se a entendeu, porque em vez de responder ficou a procurar algo nos bolsos de suas calças.
-Tenho algo para você.
Alargou-lhe uma pequena bolsa de musselina.
Millie reconheceu aquele pacote no instante. Não tinha visto um parecido desde o desaparecimento de Summer VanVorn, e sentia falta dela continuamente.
-Infusão? - perguntou.
Dahlia assentiu.
-Envia Summer. Diz que é boa para sua artrite.
-Sim; é o melhor que conheço. Mas viu a Summer? Não voltei a vê-la depois da tormenta, e já faz quase dois anos. Sabe que aquele dia me salvou a vida? Eu teria ficado em casa, mas ela me fez prometer que ficaria no porão. Afundou-se o telhado e, se tivesse estado aqui acima, teria me matado. Como está Summer?
-Muito bem. Envia-lhe saudações. E isto.
Tirou outro pacote.
Millie olhou o interior e sorriu encantada.
-Lembrou-se! Uns dias antes que partisse, estive-lhe contando o muito que eu gostava destes caramelos. Preparava-os sua avó. Deve ter encontrado a receita. Onde vive?
-Ao norte. Casou-se com o Cameron. Têm um menino precioso. Estão radiantes de alegria.
-Segue trabalhando como curandeira?
-Não muito. Está dedicada por completo a sua família. Vão juntos a todas as partes. Estão esperando uma menina.
-Certamente, como muda a medicina. Em meus tempos, não se sabia o sexo do bebê antes que nascesse. Mas me alegro muitíssimo por ela. Sempre me deu muita pena. Estava tão sozinha... Alegrei-me muito quando encontrou a Cameron - franziu o cenho e olhou atentamente a Dahlia. - Acredito que é isso. Tem os mesmos olhos que ele. Não há muita gente que tenha essa cor azul escura - meditou durante um momento. - Todos sentimos falta dela. É obvio ninguém o reconhece, mas a verdade é que Summer nos prestava uma grande ajuda. Agora, quando alguém fica doente tem que ir ao continente, e às vezes isso não é tão fácil. Pride necessita a alguém como Summer, que saiba de raízes, ervas e coisas assim.
-Eu também sei preparar medicamentos - disse Dahlia brandamente.
-Sim? Mas seguro que só está de passagem.
-A verdade é que estou procurando um lugar tranqüilo para viver. Summer me falou tão bem de Pride que vim a ver se fico.
-Mas as coisas já não são como na época de Summer - disse Millie com tristeza. - O furacão destruiu a pradaria que tanto gostava. Agora não há mais que barro. Parece que nenhuma planta quer crescer ali. Os pôneis não voltaram depois. Suponho que Summer falou deles.
Dahlia assentiu.
-Tinha que tê-los visto - disse Millie com um suspiro. - Eram de uma cor cinza pálida. Com a luz do entardecer pareciam fantasmas - seus olhos se iluminaram. - Isso! Você se parece muito a uma atriz de cinema, Demi Moore, acredito que se chamava assim, com o cabelo curto e esse ar misterioso. Claro que os olhos são diferentes. São uns olhos muito estranhos.
-Toda minha família tem os mesmos olhos.
-E onde está sua família? Se me permitir a pergunta.
-Muito longe - disse assinalando o horizonte com um gesto.
-E você viaja pelo mundo completamente sozinha? É muito bonita para estar sozinha. Eu preferiria não viver sozinha, mas meu Angus morreu faz uns trinta anos.
E a vida naquela ilha resultava às vezes muito aborrecida. Sentia falta de Summer.
-Tem certeza de que não quer tomar uma xícara de chá? - perguntou a Dahlia. - Eu gostaria muitíssimo que me acompanhasse - notou que duvidava. - Entre - insistiu, abrindo a porta da cozinha-. Contarei todas as novidades da ilha, para que as diga a Summer. Ao melhor interessa que lhe fale de uma casa que puseram a venda. É muito pequena, mas está boa. Estou segura de que gostará.
Dahlia seguia vacilando.
-As pessoas por aqui não são muito agradecidas - disse Millie, - mas você me trouxe dois presentes muito especiais, e, além disso, tem notícias de Summer. Permita que, pelo menos, convide-a para um chá.
-Está segura de que quer que entre? - perguntou Dahlia olhando a seu redor.
Os vizinhos estavam dormindo, e, além disso, Millie não importava que a vissem. Desde que Summer VanVorn lhe tinha salvado a vida, deu-se conta de muitas coisas.
-É minha casa e posso receber a quem eu quiser. Venha! Entre e tomaremos uma xícara da infusão de Summer.
Dahlia duvidou um momento mais antes de entrar na cozinha.
Barbara Delinsky
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