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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TENTAÇÃO / L. J. Smith
A TENTAÇÃO / L. J. Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Era uma noite fria e púrpura e as velas ainda ardiam, bruxuleando em laranja e amarelo nas paredes da caverna. Porém, os caçadores não murmuravam mais seu encantamento suave. Tinham se calado. Seus corpos rígidos espalhavam-se pelo chão, os rostos petrificados em um grito eterno e mudo.
Cassie olhou as próprias mãos, sujas e trêmulas. O que ela havia feito?
Olhou para Adam. Ele estava pálido e parecia nauseado, desequilibrado, como se fosse desmaiar.
Diana parecia estupefata, incapaz de entender o que havia acabado de acontecer.
O cheiro de morte era denso no ar. Ao respirá-lo, a boca de Cassie se encheu do sabor metálico e poderoso da culpa.
E então a voz de Max trovejou.
— Você acabou de matar o meu pai. Ele morreu! Consegue entender isso?

 


 


Lentamente, os amigos de Cassie a cercaram, mas não eram mais eles mesmos — os rostos tinham se alterado, assumindo formas distorcidas e feias. Adam tinha um sorriso de escárnio, os olhos escurecidos e estreitos, e falou numa voz que não era a dele.

— Entregue-nos o livro, minha cara — disse ele. — Ou morra.

Diana enroscou os dedos e os torceu.

— Melhor ainda, entregue-nos o livro e depois morra.

Tanta morte, pensou Cassie. Quando isso vai parar? O medo a atravessou.

Cassie tentou recuar, mas se viu presa contra a parede rochosa da caverna. Não havia para onde fugir.

Melanie estendeu o braço e segurou Cassie pelo pescoço. Apertou com força os dedos compridos na garganta dela, impedindo sua respiração.

Laurel bateu palmas e gritou uma cantiga penetrante e mórbida: “Morra, morra, morra!”

Não estou preparada para morrer!, Cassie tentou gritar.

Mas não conseguia encontrar a própria voz e não conseguia respirar, e logo as paredes bruxuleantes da caverna escureceram...

Ela acordou assustada, ofegante em busca de ar.

Cassie olhou seu quarto escuro, confusa a respeito de onde estava. Mentalmente repassou as últimas 24 horas, separando o que era real do que tinha imaginado. Aos poucos, a verdade se insinuou por suas entranhas.

O pesadelo era sua realidade.

Aquela noite nas cavernas, depois de realizar a maldição que destruiu os caçadores de bruxas, o garoto que ela amava e todos os seus amigos mais íntimos se transformaram em monstros diante de seus olhos. Essa verdade penetrou seu peito como uma lâmina escorregadia e continuou ali, presa — não se soltou.

O despertador na mesa de cabeceira lhe dizia que era quase manhã, mas o céu pela janela estava nublado num cinza carvão. Devia estar chegando uma tempestade. Ela puxou o cordão de contas da luminária e a acendeu. Espalhadas pelo chão do quarto, Cassie viu páginas e mais páginas de sua própria letra — traduções, anotações, rabiscos —, tudo escrito na noite anterior quando ela trabalhava com o Livro das Sombras de Black John. Havia adormecido tentando encontrar um jeito de salvar os amigos possuídos.

Agora, sob o brilho amarelado e suave da luminária, Cassie voltou a examinar suas anotações em cada página. Traduziu muitos feitiços e encantamentos de magia negra, mas até agora não teve sorte na busca de uma só palavra referente à possessão demoníaca.

Cassie pegou o Livro das Sombras do pai, que estava no chão. Colocou no colo e olhou a capa envelhecida. Era parecido com qualquer livro antigo, mas ela sabia do poder contido em suas páginas. Abri-lo já não queimava mais seus dedos como antes. Porque ele agora fazia parte dela, e ela fazia parte dele — para o bem ou para o mal.

Um trovão fez Cassie se retrair. Depois o céu se abriu, liberando uma chuva violenta no vidro das janelas.

Ela ruborizou do próprio nervosismo. Seu feitiço tinha prendido os amigos na caverna, Cassie se lembrava, e assim ela estava em segurança, pelo menos por enquanto. Porém, passando os dedos pelas páginas desgastadas do livro, Cassie refletiu que segurança estava longe de descrever o que sentia no momento. Determinação era mais apropriado.

***

Cassie acordou pela segunda vez naquela manhã em um quarto ensolarado e luminoso. Saiu da cama, agradecida por ter passado a tempestade, e foi à janela cumprimentar o mar. Admirar como o mar resolvia e cintilava nunca deixava de acalmá-la — mas hoje a praia lhe pareceu solitária e abandonada. Não se via ninguém por quilômetros.

Cassie se vestiu rapidamente e desceu para encontrar a mãe, que preparava panquecas suficientes para alimentar um exército.

— Ah, não — disse ela em voz alta.

A mãe ergueu a cabeça da manteiga que fervilhava na frigideira.

— O que há de errado?

— Tudo — respondeu Cassie. — Mas, no momento, há o pequeno problema de que não tem ninguém aqui para comer isto.

Cassie pegou uma panqueca do alto de uma pilha, enrolou nas mãos e mordeu como um pedaço de alcaçuz. Sentando-se à mesa da cozinha, tentou pensar no melhor jeito de explicar à mãe os acontecimentos da noite anterior. Mas não havia um jeito melhor. Simplesmente teria de ser direta: eles foram às cavernas, fizeram a maldição do caçador e Scarlett os traiu.

— Os caçadores morreram — contou Cassie, ainda incapaz de acreditar ela mesma. — O feitiço matou todos, até o pai de Max.

A pele naturalmente clara da mãe ficou ainda mais branca. Ela se jogou para a frente, ignorando a panqueca que agora chiava e fazia fumaça na frigideira, e gesticulou para a filha continuar.

— Agora todo o Círculo está possuído. Para realizar a maldição, tivemos de invocar os ancestrais de Black John e eles se apossaram de todos e não saíram. Eu estive estudando o livro de Black John, tentando encontrar um jeito de salvá-los, mas não consegui achar nada nem remotamente útil.

— Eu lhe falei para deixar aquele livro em paz. — A voz da mãe era severa, como uma repreensão. Ela apagou o fogo e abandonou a batedeira de panqueca, pegou um pano de prato e limpou as mãos. Ficou em silêncio por alguns segundos, torcendo o pano nos dedos, entristecida.

Cassie sabia que devia ter lhe dado ouvidos e não tocado no livro do pai. Talvez a mãe pensasse que ela teve o que merecia.

Mas quando enfim ergueu os olhos, a única emoção no rosto da mãe era preocupação.

— Não é terrível que a única coisa em que eu consigo pensar agora é como estou feliz por você estar bem? — disse ela. Seu cabelo preto e comprido emoldurava o rosto como uma mortalha.

— É uma forma de ver a questão — respondeu Cassie, mas o olhar que lançou à mãe traía sua verdadeira preocupação.

— Possessão é grave, Cassie. Se houver um jeito de salvar seus amigos, não será fácil e você certamente não poderá fazer isso sozinha.

O coração de Cassie afundou no peito como uma pedra pesada.

Uma estranha expressão cruzou o rosto da mãe, um lampejo de desconforto, de dor.

— Tem um homem — disse ela. — No continente. Em Concord. Ele morou em New Salem muito tempo atrás.

Cassie esperou que a mãe falasse mais, porém ela se calou.

— Quem é ele? — Pelo que Cassie sabia, a mãe tinha rompido os laços com todos de seu passado em New Salem.

— Da última vez que soube, ele era bibliotecário-chefe em um instituto de pesquisa especializado em ocultismo. — A mãe começou a limpeza, algo que sempre fazia quando estava pouco à vontade. — Talvez ele saiba de alguma coisa.

— Por que você nunca me falou nele?

A mãe evitou os olhos da filha.

— Nós não nos separamos exatamente em bons termos.

— Mas você acha que ele pode ajudar?

— Se existe um homem vivo que sabe fazer um exorcismo, é ele.

Exorcismo, pensou Cassie. Só a palavra lhe provocava um arrepio na espinha. Ela imaginou cabeças rodando como piões, disparos de vômito. O que estava reservado para as pessoas que ela mais amava?

— Ele é um erudito, um acadêmico — disse a mãe. — Não é padre nem nada parecido. Seu nome é Timothy Dent.

Ela se concentrou na tarefa de recolher as cascas de ovo na bancada e jogá-las na lixeira.

— Precisamos procurá-lo imediatamente. Quanto mais tempo se passar, pior será para os seus amigos.

Cassie bebeu um gole da xícara de café da mãe e descobriu que já havia esfriado.

— Coma um pouco mais. — A mãe colocou um prato de panquecas e um frasco de xarope de bordo na mesa à frente de Cassie e lhe entregou garfo e faca. — Não pode ajudar ninguém se primeiro não cuidar de si mesma.

Cassie concordou com a cabeça, mas a última pessoa em quem pensava no momento era ela própria.


2

A mãe esperou no carro enquanto Cassie corria até a Cup para comprar dois cappuccinos para viagem e alguns biscoitos. Ela abriu a porta da cafeteria com um tremor que não conseguia definir — era parte cansaço, parte medo. Por que a mãe era tão fechada a respeito deste homem que elas iam ver? Seu estômago estava embrulhado demais para os biscoitos.

Dentro da loja, ela respirou fundo o ar com aroma de café e tentou conduzir seus sentimentos para a esperança. A Cup estava lotada, como sempre, o que lhe deu alguns minutos para se recompor. Ela observou a fila de gente esperando junto do balcão: uma garota de vinte e poucos anos tagarelando ao celular, uma mulher mais velha e mais alta decidindo entre a torta de maçã ou de morango com ruibarbo. E então Cassie viu ombros largos embaixo de uma camiseta preta que reconheceu de imediato: Max. Sua respiração ficou presa na garganta.

Com tudo que aconteceu, era difícil para Cassie acreditar que só algumas horas antes ela havia visto Max nas cavernas, onde ele havia assistido a seus companheiros caçadores morrerem nas mãos do Círculo. Cassie sabia que jamais poderia esquecer o jeito como Max passou os olhos por cada integrante do Círculo enquanto seu pai dava o último suspiro nos braços do filho. Como ele fitou Diana com raiva, ameaçando-a para não ir atrás dele, antes de correr da caverna e desaparecer na noite.

Como se sentisse o olhar dela, Max se virou e fixou os olhos em Cassie. Ficou petrificado, a cara vermelha, depois rapidamente se afastou da fila em direção à saída.

— Max, espere — chamou Cassie, indo atrás dele sem saber o que realmente diria se o alcançasse.

Max disparou pelas pessoas que obstruíam o caminho para a porta, tentando uma fuga rápida. Na pressa, esbarrou em um carrinho de bebê de dois lugares. Era o bloqueio de que Cassie precisava. Ela estendeu o braço e o segurou pelo bíceps.

— Por favor — pediu ela, na esperança de que Max visse o quanto ela lamentava.

Ele se desvencilhou dela com agressividade, chamando a atenção de todos na fila.

— Você é a última pessoa que quero ver — disse ele.

— Eu sei. — Cassie deu um passo para trás e baixou a voz a um sussurro. Toda a cafeteria parecia ter se calado. — Nenhum de nós sabia o que ia acontecer. Sei que isso não muda nada, mas...

Max olhou com raiva e virou a cara. Falou entre os dentes.

— O corpo do meu pai ainda nem esfriou. Tenha algum respeito. — Seus olhos ficaram marejados.

Cassie percebeu a dor intensa que transparecia no rosto de Max e a sentiu como se fosse dela. Seu rosto deve ter ficado assim depois da morte de Suzan — aquela máscara inabalável que Cassie pensava ser força, mas ainda traía seus verdadeiros sentimentos.

Não havia nada que Cassie pudesse dizer para aliviar a dor de Max. Nada do que aconteceu podia ser desfeito.

— Eu confiei em Diana — falou Max. — E confiei em você também. Agora meu pai está morto. Por favor, não torne isso ainda pior.

Ele se soltou da mão de Cassie e ela entendeu que ele tinha razão. Não era justo tentar explicar o que o Círculo havia feito, nem envolver Max ainda mais no drama. Esta era sua chance de ter uma saída limpa, de não fazer mais parte dessa vida.

Cassie assentiu para Max, uma concordância quase imperceptível com tudo que ele disse. Ele correu para a saída, esbarrando com os quadris e os ombros em tudo e todos pelo caminho, mas quando chegou à porta, virou-se. Seus olhos se fixaram nos de Cassie.

Será que ele estava mudando de ideia? Ele considerava ouvir Cassie? Ela esperou que ele dissesse alguma coisa, qualquer coisa.

Ele hesitou só por alguns segundos antes de desviar os olhos e continuar pela porta.

Cassie o viu ir embora. Antes ela se sentia só, agora se sentia... Não havia palavras para isso.

— A senhorita está bem? — perguntou o gerente atrás do balcão. Ele franziu a testa em solidariedade à Cassie, como se ela fosse a vítima de um namorado temperamental.

— Estou ótima, obrigada — respondeu Cassie, mas não estava nada bem. Ela se apressou a fazer o pedido e escapar dos olhares de pena dos clientes. Precisava sair dali o quanto antes.

O destino da viagem de Cassie com a mãe era Concord, Massachusetts, cidade que ficou famosa graças a alguns dos escritores preferidos de Cassie: Louisa May Alcott, Nathaniel Hawthorne, Henry David Thoreau.

— É tão bonito aqui — disse Cassie. — Queria que a gente pudesse explorar o lugar. — Ela absorveu os carvalhos em flor, os olmos frondosos e os bordos vermelhos e pretos. Não admirava que todos aqueles escritores encontrassem inspiração ali.

— Estamos nos aproximando. Com sorte teremos boas notícias em breve — respondeu a mãe. Seu polegar havia começado a roçar de um lado a outro o couro do volante enquanto ela dirigia; um tique nervoso revelador. No momento ela não estava com muita vontade de conversar.

Cassie tentou se concentrar na arquitetura colonial e nas estradas rurais bucólicas, mas o suspense a estava matando.

— Então, por que esse bibliotecário? O que você pode me dizer a respeito dele? — perguntou.

A mãe tirou os óculos escuros, prendendo-os no alto da cabeça, e olhou fixamente à frente.

— Você mesma vai conhecê-lo em breve — disse ela.

— Mas como vou reconhecê-lo?

— Ele conheceu a sua avó. É um idoso, meio excêntrico.

Cassie notou que a mãe apertava com mais firmeza as mãos no volante.

— O que você não está me contando? — perguntou Cassie.

A mãe abriu um sorriso forçado. Olhou a estrada sinuosa e mal pavimentada que se estendia adiante.

— Timothy Dent teve uma desavença com Black John 16 anos atrás — disse ela.

Cassie sabia que devia haver mais. Esperou e segundos depois a mãe acrescentou:

— Como consequência disso, ele perdeu seu poder e foi banido de New Salem.

— Então, eram inimigos — disse Cassie. — Ele e meu pai. Por que eles brigaram?

— No fim, estavam brigando por tudo. Na época, Timothy era extremamente poderoso. Mas não era um bruxo da Crowhaven. Não fazia parte de Círculo nenhum. Por isso seu pai fez o que fez com ele.

— Mas ele era amigo da vovó Howard.

— Você precisa entender, Cassie, foi uma época louca. As pessoas começaram a se dividir em facções. Amigos viraram inimigos, antigos inimigos se tornaram aliados. Todos estavam brigando com alguém.

— Pela magia negra? — perguntou Cassie. — Foi por isso que todos brigaram?

Mas a mãe não respondeu a esta pergunta, talvez porque a resposta fosse óbvia demais.

— Digamos apenas que Timothy talvez não fique feliz em nos ver.

Ela recolocou os óculos escuros e continuou dirigindo em silêncio.


3

A biblioteca ficava em uma estrada sem placa metida em um terreno longo, rochoso e árido. A fachada cinza da construção de dois andares, de reboco esfarelado, se inclinava um pouco para a frente, como se fizesse uma mesura. Cassie distinguia muito mal os dizeres gravados em uma placa acima da porta: biblioteca timothy dent de ocultismo.

Cassie saiu do carro primeiro e a mãe a acompanhou. Ficaram lado a lado por alguns segundos, absorvendo tudo antes de avançar. Pela aparência do exterior do prédio, Cassie pensou que talvez elas tivessem feito essa viagem toda à toa. A biblioteca parecia vazia, possivelmente até abandonada. Mas a mãe lhe garantiu que Timothy estaria ali, provavelmente sozinho, mas estaria.

Elas abriram a pesada porta de madeira e entraram.

Os olhos de Cassie levaram alguns segundos para se adaptar do sol forte para o saguão mal iluminado e ladeado de estantes altas de madeira. O piso era um tabuleiro de xadrez de quadrados de pedra cinza que levava a um balcão elevado e marrom. De pé atrás dele estava um homem baixo, recurvado sobre um enorme manuscrito. Ele não ergueu os olhos.

A mãe de Cassie a levou para o balcão.

— É ele — cochichou ela.

À medida que se aproximavam, o homem entrou em foco. Cassie viu suas rugas e a verruga na face. A poeira raiava a camisa preta de manga curta e suas unhas eram amarelas. Ainda com os olhos no volume diante de si, ele falou numa voz áspera.

— Alexandra.

A mãe de Cassie continuou em silêncio até que ele enfim ergueu a cabeça. Seus olhos combinavam com o piso cinza.

— Depois de todos esses anos, você aparece aqui assim, de repente — disse ele. — Só posso imaginar os horrores que a trouxeram para cá. Uma pena eu não me importar.

A dureza em sua voz disparou pelo saguão, ricocheteando entre as frágeis colunas que demarcavam o perímetro da sala como soldados. Cassie notou que prendia a respiração.

A mãe avançou, apesar da rejeição de Timothy, e Cassie teve o impulso de puxá-la para trás.

— Tem razão, temos problemas. — Sua mãe falava em um tom que mal era audível. — Por favor, só me escute.

— É cansativo ter razão a respeito de tudo. — Timothy fechou o livro e encarou a mãe de Cassie com uma expressão curiosa.

— Esta é minha filha, Cassie — disse a mãe.

Timothy estreitou os olhos e se virou lentamente para ver Cassie melhor. A sensação foi parecida com estar em um palco, debaixo de um refletor forte.

— A filha de Black John, quer dizer — disse ele. — Coitada, pobrezinha. — Mas não era solidariedade que ele oferecia a ela; era pena. Eram condolências.

Timothy cambaleou em volta do balcão. Só então Cassie reconheceu como seu corpo era frágil.

— Você. — Ele apontou uma unha suja para a mãe de Cassie. — Não se aproxime mais. Não confio em seus motivos.

Ele se virou de novo para olhar Cassie enquanto ainda se dirigia à mãe.

— Esta vítima de sua tolice e das trevas daquele homem cruel pode vir comigo.

Ele foi em direção a duas portas de vidro, que Cassie entendeu dar para o escritório, sem ter o trabalho de ver se ela o acompanhava.

Ela só se mexeu quando a mãe lhe deu um cutucão firme.

— Vá — disse ela. — Não deixe que ele a assuste. Escute atentamente o que ele tem a dizer.

Cassie obedeceu e seguiu Timothy até seu escritório. Ele fechou as portas de vidro depois de entrar e gesticulou para que ela se sentasse na cadeira de vinil laranja de frente para sua mesa. Hesitante, ela se acomodou ali.

O aposento era muito parecido com o resto da biblioteca: empoeirado, barato e meio arrepiante. A parede atrás da mesa de Timothy era composta de uma fileira de armários escuros protegidos por volumosos cadeados de bronze. Ele destrancou um deles e pegou um livro enorme, com páginas cobertas de plástico.

— Você sempre soube o que você é? — perguntou ele, largando o livro de couro marrom-claro na mesa diante dela.

O que, e não quem você é.

— Não — respondeu Cassie, olhando para o livro. Gravados na capa, estavam os caracteres B-L-A-K.

— Trabalhei intimamente com sua avó, sabe — disse Timothy. — Para tentar salvar sua mãe daquele homem medonho. Mas o vínculo deles era forte demais. Ela era uma causa perdida.

— Não sei se o senhor soube — falou Cassie —, mas minha avó faleceu no início deste ano.

O rosto de Timothy se enrugou de tristeza. Ele se sentou.

— Ah — disse ele, olhando as próprias mãos. — Não, eu não soube.

Cassie observou a reação dele. Ele se abrandou diante de seus olhos.

— Ela era uma mulher incrível — disse ele. — Mas estou certo de que você sabe disso.

Cassie fez que sim com a cabeça.

— Ela e eu unimos forças contra seu pai — continuou Timothy. — Sabíamos que aquele homem horrível fazia sua mãe de tola. Mas ela ficou encantada com ele, como todos os outros. Jamais vou esquecer como sua avó chorou em meu ombro no dia em que John Blake traiu sua mãe.

Timothy tocou o ombro com os dedos ossudos como se as lágrimas da avó de Cassie ainda estivessem úmidas na camisa.

— Ela ficou arrasada quando sua mãe partiu de New Salem. Não se passou nem um dia em que não perguntasse sobre você, Cassie, a neta que ela nunca conheceu.

Cassie sentiu um nó se formar na garganta. Teve muito pouco tempo com a avó antes de sua morte. Quem dera a tivesse conhecido tão bem quanto Timothy.

— Mas suspeito de que você veio me visitar hoje por motivos mais prementes — disse Timothy — do que recordar o passado.

— Sim. — A voz de Cassie pareceu complacente aos próprios ouvidos. — Meu Círculo realizou um feitiço de magia negra do Livro das Sombras do meu pai. Uma maldição de caça-bruxas que os deixou possuídos por... — Ela se interrompeu.

— Por espíritos malignos? — perguntou Timothy.

Cassie baixou os olhos para uma mancha no chão, uma poça de café ou refrigerante que nunca limparam muito bem.

— Seus ancestrais — disse Timothy.

Por algum motivo, o alívio desceu nos ombros de Cassie. Este homem podia ser meio estranho, mas parecia compreender.

— Como o senhor sabe? — perguntou ela.

Timothy apontou o livro de couro que havia baixado na mesa.

— Por décadas estudei a família Blak... (era como se escrevia Black em inglês medieval, sem o C). Toda a magia negra pode remontar aos primeiros dias da família Blak.

Toda a magia negra, pensou Cassie. Era praticamente o mesmo que dizer todo o mal do mundo teve origem em seus ancestrais. Ela começava a entender por que a mãe havia escondido este homem dela por tanto tempo. Ele não tinha nada de bom para lhe dizer.

— Suponho que você tenha aprendido sobre a peste negra na escola — disse Timothy. — A peste bubônica?

— Sim — respondeu Cassie, mas do que ela realmente se lembrava? Uns ratos, milhares de pessoas adoecendo e morrendo. Ela não reteve grande coisa.

— Você só aprendeu metade da história — disse Timothy. — O povo medieval deu a essa mesma catástrofe muitos nomes diferentes... A Grande Pestilência ou a Grande Peste. Foi só muito mais tarde que as pessoas começaram a descrever os acontecimentos como negros.

Timothy parou para deixar sua intenção ser compreendida.

— Os historiadores de hoje concordam que a expressão peste negra refere-se a negro no sentido de sombrio, denotando o terror dos acontecimentos, assim como o modo como a doença levava a pele a enegrecer de gangrena. Mas a verdade é que no século XV as pessoas começaram a entender o que realmente acontecia.

— O que realmente estava acontecendo? — perguntou Cassie.

— Uma linhagem de bruxos que atendia pelo nome de Blak estava espalhando o caos no mundo — disse Timothy. — Eles odiavam os Forasteiros por persegui-los e não tiveram escrúpulos em se vingar.

O estômago de Cassie se revirou.

— Esta foi a minha família?

Timothy assentiu severamente.

— A mente científica argumentou que a peste se espalhou por intermédio de ratos e suas pulgas. Isso é verdade... mas os ratos foram enfeitiçados por seus ancestrais. Levou anos, enquanto o número de mortos subia e a histeria crescia, para que cada vez mais pessoas acreditassem haver uma causa sobrenatural para a doença. Aqueles bruxos sinistros foram os culpados.

As pernas de Cassie ficaram bambas, embora ela estivesse sentada.

— Foi uma época terrível para bruxos e magos que não eram da linhagem sanguínea dos Blak — continuou Timothy. — Houve perseguições e massacres. Mas os verdadeiros bruxos responsáveis, os Blak, eram mais inteligentes e muito mais poderosos do que os milhares de bruxos inocentes que foram perseguidos.

— Mas o que deu início a tudo isso? O que os Blak queriam?

Timothy sorriu.

— Este é o mistério que venho tentando solucionar há mais de trinta anos.

— E? — perguntou Cassie. — O senhor encontrou a resposta?

— Parece que bem no início dos tempos, o homem que começou o Livro das Sombras de sua família estava decidido a obter a vida eterna. Ele fez um pacto com o diabo. Vendeu a alma a fim de viver para sempre, mas o tiro saiu pela culatra. Quando ele morreu, sua linhagem sanguínea estava amaldiçoada. E também seu livro.

— Amaldiçoada — repetiu Cassie.

Timothy deu a ela alguns segundos para processar esta nova informação.

— Você vem de uma linhagem de ancestrais amaldiçoada com magia negra e todos os impulsos incontroláveis que a acompanham.

— Estou ligada ao livro do meu pai — disse ela. — Não fui possuída como meus amigos porque tenho o sangue dele nas veias. Então, devo mesmo ser um deles. É o que está me dizendo, que estou destinada a ser cruel também?

Timothy balançou a cabeça.

— Você é uma criança inocente. Não pode evitar sua origem. Pode apenas controlar o que faz com ela... embora este controle nem sempre seja fácil para você.

Timothy voltou a atenção ao álbum de couro na mesa.

— O Livro das Sombras a que você está vinculada foi composto ao longo de séculos e transmitido pela família Blak, das pessoas de quem acabei de lhe falar até os julgamentos das bruxas de Salem, onde a irmã mais nova de Black John foi vítima da Inquisição, e por fim Black John, quando ele reapareceu em New Salem como John Blake. Foi assim que o livro terminou nas mãos de sua mãe, imagino.

Cassie empacou no meio da explicação de Timothy. Black John tinha uma irmã? Esta não era uma ideia impossível, só que Cassie nunca a havia considerado. Isso significava que Cassie tinha outros familiares por aí além de Scarlett?

— Como era ela? A irmã de Black John.

Timothy folheou o álbum de couro. Quando encontrou a página que procurava, ele a virou para que Cassie visse de perto. Era uma representação artística, o desenho de uma garota mais ou menos da idade de Cassie.

— Esta era Alice Black — disse Timothy. — Foi enforcada em 1693.

Cassie olhou o desenho, tão detalhado que parecia uma foto em preto e branco. O cabelo de Alice estava bem puxado numa espécie de coque ou trança. Seu rosto era fino e magro, quase perdido dentro do enorme colarinho. Mas foi a expressão que mais a impressionou. Ela não estava fazendo beicinho, mas seus lábios ainda assim se projetavam como em uma insatisfação natural. E os olhos... embora fosse apenas uma representação, Cassie sentia os olhos enormes de Alice a observando. Eles eram cheios de desejo e tristeza. Não, tristeza não, percebeu Cassie. Raiva. Raiva dirigida para fora, certamente, mas também brutalmente para si mesma.

Timothy continuou a falar antes que Cassie conseguisse digerir inteiramente o rosto trágico da jovem tia.

— Aqueles espíritos que possuíram seu Círculo são as almas de seus ancestrais que conseguiram voltar quando o feitiço de seu pai foi canalizado. Só o mais forte teria suportado.

— Mas Alice era tão nova e tão bonita — disse Cassie, quase consigo mesma.

Timothy fechou o livro para recuperar toda a atenção de Cassie.

— Esta garota aí foi uma das mais nefastas de todas. Não se deixe enganar pela aparência. Há quem diga que ela era mais cruel do que o próprio Black John.

Cassie queria reabrir o álbum e olhar a imagem novamente, mas sabia que precisava se concentrar no motivo para ter procurado Timothy.

— O que posso fazer para salvar meus amigos desses espíritos? — perguntou ela. — Existe um jeito?

— Deve haver um feitiço de exorcismo no Livro das Sombras de seu pai. De um de seus ancestrais do século XVI.

Timothy abriu o álbum novamente e virou em outra página coberta de plástico.

— Este homem. — Ele apontou outro desenho, mais ralo e claro do que o outro. Era um esboço de linhas desbotadas, mal podia ser reconhecido como um rosto.

— Absolom Blak — disse Timothy. — Viveu como padre, mas corrompeu a Igreja. Diziam os boatos que ele havia copiado o texto proibido do rito de exorcismo para seu próprio livro. O Livro das Sombras que depois se tornou o de seu pai.

Cassie não conseguia digerir a ideia de que a alma sombria deste padre cruel agora podia estar no corpo de um de seus amigos mais íntimos. A náusea foi tanta que ela teve de virar a cara.

— O exorcismo é o feitiço que você precisa encontrar — disse Timothy. — Mas pode ser perigoso. Absolom era um homem perverso que só teria copiado o rito de exorcismo por motivos malignos. Ele pode ter alterado o texto, feito modificações. E isto pode ter consequências. Mas você precisa encontrá-lo, Cassie. É um risco que você terá de correr. Você ficará chocada ao ver com que rapidez estes espíritos malignos se adaptam aos corpos de seus amigos e ao mundo moderno. Você não tem muito tempo.

— Mas o que estou procurando? Como vou saber quando encontrar?

— Foi sem dúvida Absolom que o colocou no livro — disse Timothy. — Assim, procure deduzir em que partes ele pode ter contribuído.

Ele virou outra página do álbum.

— Aqui está outro ancestral em quem você deve ficar de olho. Outra que morreu jovem, como Alice.

Timothy direcionou a atenção de Cassie a um folheto desbotado em preto e branco ou o que pode ter sido o recorte de um desenho de jornal antigo. Estava tão puído e suave nas bordas que quase parecia feltro. Cassie teve de forçar a vista para distinguir a imagem.

Era o retrato de uma perseguição, não de uma pessoa, mas muitas.

— É um julgamento de bruxa — explicou Timothy.

Os dizeres abaixo da imagem estavam em alemão e uma legenda quase ilegível declarava o ano: 1594.

— Beatrix Blak foi queimada viva no Massacre de Tréveris — disse Timothy. — A acusação foi feitiçaria. Disseram que suas últimas palavras foram “Vocês não viram meu fim”. Assim, pode ter certeza de que ela é um dos espíritos que voltaram... e atualmente está destruindo o interior de um de seus amigos.

Timothy fechou o livro de novo e o empurrou para Cassie.

— Leve-o para casa com você — disse ele. — Estude-o.

Cassie colocou o livro no colo.

— Você precisa ter muito cuidado — continuou Timothy. — Esses espíritos tentarão enganá-la. Alguns amigos seus às vezes poderão parecer normais, como eles mesmos, mas não se deixe enganar. O único jeito de ter certeza se estão possuídos ou não é pelo batimento cardíaco. O coração não consegue mentir. O coração de um corpo possuído baterá quatro vezes mais rápido do que um coração normal. Lembre-se disto.

— Então é possível — concluiu Cassie. — Alguns deles podem se livrar da possessão.

— É possível, mas não provável. — As sobrancelhas de Timothy se enrugaram de tristeza acima dos olhos. — Muito em breve, Cassie, seus amigos estarão perdidos. Se a possessão durar até a próxima lua cheia, passará a ser permanente.

— Permanente? — Cassie sentiu que ruborizava. — Mas a próxima lua cheia será daqui a menos de duas semanas.

— Como eu lhe disse, você não tem muito tempo — disse Timothy.

O frio na barriga de Cassie se agravou. Esta era uma má ideia; ela não era forte o bastante para ouvir mais nada.

— Preciso ir. — Ela se levantou abruptamente. — Obrigada pela ajuda.

Cassie se virou para a porta, mas Timothy a segurou firmemente pelo pulso e a puxou de volta à cadeira.

— Espere. Uma última coisa.

Sua mão era quente na pele de Cassie. Ela esperava que fosse fria, como os olhos dele.

— Sou um homem simples — disse ele. — Um homem solitário e sem poder. Me perdoe se assusto você.

Ele ainda segurava o pulso de Cassie.

— Mas, em você, eu posso ver luz — disse ele.

Aos poucos, Timothy foi soltando a mão depois de ter certeza de que Cassie não ia fugir. Ele olhou profundamente nos olhos dela.

— Há força dentro de você — continuou ele. — E o amor que você tem por seus amigos. Este amor pode ser o feitiço mais poderoso de todos.

Cassie não sabia o que responder, ou se devia dar alguma resposta.

— Você entendeu? — perguntou ele.

— Acho que sim. — Cassie assentiu, no início hesitante, depois com mais segurança. — Sim.

Timothy contornou a mesa e abriu a porta do escritório para o saguão.

— Então não há mais nada de que vá precisar além da sorte.

Com o álbum debaixo do braço, Cassie correu de volta pela sala principal da biblioteca, embora não soubesse por que estava correndo. Timothy era estranho, mas ela não achava que fosse perigoso. De certo modo, sentia pena dele.

Ao se juntar à mãe no carro, Cassie não conseguia tirar da cabeça as últimas palavras de Timothy — que o amor era mais poderoso do que tudo isso.

Em silêncio, Cassie começou a forjar um plano. Precisava visitar Adam na caverna. Se Timothy tivesse razão a respeito do poder do amor, talvez Cassie afinal conseguisse uma brecha para Adam. Que amor era mais forte do que o deles? E quem melhor para ajudá-la a pesquisar o feitiço de exorcismo do que Adam?

Cassie foi acalmada por essa ideia. Mentalmente, estava decidida. Ela traria Adam esta noite e, juntos, eles salvariam os outros amigos.


4

As cavernas eram gélidas no escuro da noite, embora a temperatura estivesse em torno de agradáveis 26 graus. Cassie se viu tremendo enquanto remava pelo trecho final até a terra. Não sabia o que esperar, viajando até ali sozinha. Imaginava o furioso grupo de amigos esperando por ela, salivando, ansioso para retribuir a dor que ela lhes causou ao aprisioná-los ali.

Com a boca seca, ela puxou os remos e esperou pelo pior. Ficou aliviada ao notar que só havia uma pessoa visível na entrada da caverna. Uma sombra escura de um corpo alto e forte que ela conhecia bem. Adam. Ele estava sentado perto da saída, com os joelhos abraçados ao peito, parecia solitário. Os outros deviam estar mais no fundo da caverna, dormindo.

Cassie atracou o barco a remo e foi até Adam com uma determinação cautelosa. Seu coração batia nas costelas enquanto ela dava passos silenciosos, pé ante pé, até se colocar na frente dele — um pouco fora de seu alcance, para além da barreira na caverna. No início ela não disse nada, só o olhou e tentou localizar o verdadeiro Adam em algum lugar dentro daquela fachada do garoto que ela amava.

— Cassie — disse, soando como se fosse o verdadeiro Adam. Ele se levantou com alegria. — Eu estava agora mesmo olhando a água, desejando que você aparecesse, e agora você está aqui.

Ele parecia bem, pensou ela. Meio sujo, mas, tirando isso, não havia nada nele que parecesse diferente. O cabelo ainda brilhava com mechas multicoloridas de castanho-arruivado à luz da lua, e os olhos eram do lindo azul natural. Havia uma vulnerabilidade em suas profundezas que não podia ser fingida.

— Como está se sentindo? — perguntou ela.

— Melhor agora que você está aqui. — Adam estendeu a mão, mas ela não conseguiu passar pela entrada selada da caverna. — Queria tanto tocar em você — disse ele, de cenho franzido.

Cassie teve o cuidado de não se aproximar demais.

— Como vou saber que é realmente você? — perguntou ela. — E não o demônio.

Adam estendeu a mão de novo, desta vez com a palma aberta e os dedos esticados.

— Sou eu — disse ele. — Juro. Deixe-me provar a você. Levante sua mão até a minha.

O feitiço de encadeamento lançado por Cassie na caverna aprisionava todos os bruxos ali dentro. Se ela entrasse ali, não conseguiria sair. Mas ela podia simplesmente levar sua mão à de Adam, como ele estava pedindo.

Cassie olhou em seus olhos. Não havia nada de estranho nem distorcido neles.

— Não posso — disse Cassie, embora quisesse.

— Só toque a ponta dos meus dedos. Você ainda estará a salvo. — Ele tateou a fronteira invisível, fazendo-a chiar contra sua pele. — Está vendo? Não consigo atravessar.

A verdade era que Cassie ansiava pelo toque de Adam, mesmo que ele ainda estivesse possuído. Valeria a pena senti-lo só por um segundo e depois afastar a mão.

— Nosso vínculo é mais forte do que tudo isso — disse Adam. — Nem mesmo um demônio pode rompê-lo. — Ele estendeu os dedos para Cassie de novo. — Acredite em mim.

Só por um segundo, pensou Cassie, enquanto levantava devagar a mão. Foi só o que se permitiu fazer. Ela guiou os dedos para os de Adam, precisamente na fronteira entre o interior e o exterior da caverna.

A sensação foi eletrizante. Da ponta dos dedos de Cassie, descendo pela coluna, até os pés, acenderam-se faíscas. Sua pele formigou. Parecia a primeira vez que ela fez magia.

Ela olhou o ponto de encontro entre sua mão e a de Adam, onde o cordão prateado se manifestou e zumbiu. Enrolava-se em volta deles, trançava-se em seus braços, envolvia os dois por todo o corpo em uma faixa de luz.

Esta foi toda a persuasão de que Cassie precisava. Adam ainda estava ali e Cassie tinha certeza de que agora era ele que estava com ela. O cordão que ligava um coração a outro, puxando-os para mais perto, não mente. Não pode mentir.

Adam não tentou agarrar o pulso de Cassie, nem puxá-la para si, nenhuma das coisas que poderia ter feito tranquilamente para dominá-la, se estivesse possuído por um demônio maligno. Simplesmente desfrutou da sensação da ponta de seus dedos unindo-se aos dela e o cordão reforçando o vínculo dos dois.

Cassie pensou no que Timothy havia dito, que o amor é a mais forte de todas as magias. Era o que ela sentia correr por suas veias agora: amor. E o amor de Adam por ela era tão forte que se provava mais poderoso que o demônio batalhando por seu corpo.

— Quero abraçar você — disse Adam. — Eu preciso.

Cassie puxou a mão para junto do corpo.

— Mas se eu deixar você sair, os demais também estarão livres.

— Juntos podemos lidar com eles, Cassie. Não dá para saber o que vão fazer comigo se eu ficar preso aqui e os outros deduzirem que não sou um deles. Por que você acha que estive sentado aqui, tão distante deles quanto possível?

Cassie não tinha pensado nisso. Adam podia estar em perigo se ela o deixasse ali por mais uma noite. Ela jamais se perdoaria se algo acontecesse com ele.

E ela estava tão solitária. Tão sozinha. Como essa batalha seria diferente com Adam a seu lado. Por que não libertar Adam e depois rapidamente relançar o feitiço para manter os outros na caverna?

— Tudo bem — disse Cassie. — Chegue para trás.

Sem pensar duas vezes, ela levantou as mãos e invocou em sua voz mais imperiosa:

— Hoc captionem est levavi.

As paredes de pedra da caverna estremeceram e se sacudiram. Cassie concentrou todo o poder na entrada até romper o feitiço de contenção que havia lançado.

Adam sorriu e respirou fundo. Deu um passo à frente para testar sua liberdade.

Cassie ficou tonta ao observá-lo. Não conseguia tirar os olhos dele enquanto corria para seus braços estendidos.

O abraço dos dois foi tudo que ela esperava e ainda mais. Ele não conteve nada, beijando sua boca, seu pescoço. Ela fechou os olhos para desfrutá-lo melhor — a sensação de seu cabelo, o cheiro da pele, o som da respiração pesada em seu ouvido. O coração dele estava acelerado, em disparada. O aviso de Timothy ecoou em sua mente.

Cassie saiu do abraço e deu um passo para trás. Mesmo no escuro, de imediato notou a mudança. Primeiro se revelou na curva dos lábios de Adam, depois na inclinação da cabeça. Como ele enroscava os dedos cruelmente na palma das mãos.

— Adam — disse ela, como se a invocação familiar de seu nome pudesse impedir que ele se voltasse contra ela. Mas então lesões serpenteantes se formaram na testa e no rosto dele, e seus olhos escureceram.

— Ah, Cassie — disse ele numa voz gerações mais malévolas que a dele. — Você é uma menina muito meiga, mas tão fácil de tapear.

E de súbito ele não era mais o Adam dela. Era um monstro de muitas faces, exatamente como em seu pesadelo. Cassie estava posicionada para lançar novamente o feitiço de guarda na caverna, mas com um estalar dos dedos de Adam, suas pernas se deixaram cair.


5

Diana surgiu da sombra da caverna, seguida por Melanie e Laurel. Faye, Deborah e os outros vieram atrás. Todos ainda estavam visivelmente possuídos, porém mais sutilmente do que antes. As íris dos olhos estavam menos tingidas de preto e as lesões rastejantes, que deterioravam seus rostos, eram menos pronunciadas. Mas era evidente para Cassie que não eram seus amigos.

Scarlett ficou nas sombras — a única além de Cassie que não estava possuída. Satisfeita, ela observou Cassie se contorcer no chão, lutando para recuperar as forças.

— Ela trouxe o livro? — perguntou Melanie.

Diana se torceu, desajeitada.

— Revistem-na — ordenou ela.

Faye se ajoelhou, a boca enviesada e ameaçadora. Deborah se agachou ao lado de Cassie e apalpou rudemente seu corpo de cima a baixo, revistando-a em busca do livro.

Cassie correu os olhos por todos os rostos que pairavam acima dela. Mesmo fraca e flácida no chão, ela se esforçou para decifrar que ancestrais tinham invadido os amigos. Achava que se prestasse muita atenção, talvez pudesse reconhecer alguns, com base no que Timothy havia lhe contado naquele mesmo dia. Se eles se revelassem, talvez ela pudesse usar isso contra eles.

Deborah se levantou e virou bruscamente para os outros.

— Nada de livro — disse ela.

Sean e os irmãos Henderson fizeram uma careta. Adam chutou uma pedra, frustrado.

— Paciência — disse Diana. — Vamos tirar dela, de um jeito ou de outro.

Scarlett passou o braço pela cintura de Adam e sorriu para Cassie. Seu cabelo ruivo estava embaraçado e rebelde, empoeirado da caverna. Adam a puxou e lhe deu um beijo na testa.

— Agora não vai demorar muito — disse ele.

Cassie se retraiu. Adam e Scarlett? Eles estavam... juntos?

Adam a abraçava perto demais. Passou o polegar pela base das costas de Scarlett e agora Cassie pôde sentir o cordão prateado deles, zumbindo e ligando os dois. Mesmo com Adam possuído, o cordão permanecia.

Cassie se sentia como se tivessem apunhalado seu coração. Ela tossiu, sem saber se era o feitiço de Adam ou puramente seu coração partido que lhe provocava a contorção de dor.

Diana cruzou os braços finos. Cassie se concentrou nas conhecidas maçãs do rosto e no cabelo comprido e dourado, procurando algum sinal de quem habitava o corpo dela. Poderia ser a irmã de Black John, Alice?

Cassie olhou para Sean, furtivo e de olhos de conta, depois os rostos idênticos de feições agudas de Chris e Doug. Perguntou-se se cada ancestral teve algum motivo para escolher seu hospedeiro. Faria sentido, pensou ela, que os espíritos identificassem o corpo mais confortável para sua invasão. Porém, no momento, nenhum dos espíritos era imediatamente reconhecível.

Adam avançou um passo e estendeu as mãos abertas — mãos de padre, pensou Cassie — por cima do corpo dela. Ele a olhou de cima com os olhos negros e duros e ela ficou ainda mais fraca. Sentia sua força vital sendo escoada das veias, derramando-se em uma poça abaixo de seu corpo.

— Deixe-a, Absolom — falou Diana. — É um desperdício de energia. Precisamos recuperar nossas forças.

Absolom?

— Ela tem razão. — Scarlett puxou Adam pelo braço. — Enfim estamos livres. Vamos sair daqui. — Ela se virou para o grupo. — Venham comigo.

Diana e os outros foram para os barcos atrás dela. No escuro, parecia que sumiam no ar só a alguns passos dali.

Faye gritou do vazio para Cassie.

— Não se preocupe — disse ela em sua voz rouca, que era ao mesmo tempo estranha e familiar. — Não será a última vez que você nos verá.

Aquelas últimas palavras tiveram eco dentro da caverna como um alerta, ressoando com verdade.

***

Ainda deitada no chão na entrada da caverna, Cassie tremia de medo. Olhou em volta para averiguar se estava sozinha, se — pelo menos no momento — todos os ancestrais tinham saído.

Mas não estava só. Alguém se mexeu atrás dela e disse seu nome lentamente.

— Nick? — perguntou ela.

Não havia ocorrido a Cassie que não o tinha visto antes; ele deve ter ficado dentro da caverna o tempo todo.

Ele deu um passo para a luz da lua e ficou plenamente visível.

Fraco e transpirando, em pé desconfortavelmente, ele parecia padecer de uma gripe.

— Não tenha medo — disse ele com a voz fraca. Mas Cassie via a escuridão em seus olhos e as coisas que rastejavam por baixo da pele de seu rosto.

Com a partida de Diana e dos outros, Cassie sentia suas forças retornando. Conseguiu se colocar de pé e se afastar de Nick, olhando-o com cautela.

— Não chegue mais perto! — gritou ela.

Ele se aproximou um pouco, apesar do alerta.

— Por favor, me ajude — disse ele. — Está exigindo cada grama de força que tenho, mas estou contendo essa coisa que está dentro de mim.

— Fique onde está. — Cassie levantou a mão e procurou mentalmente por um feitiço.

— Não quero te machucar — disse Nick. Ele caiu de joelhos. — Você precisa acreditar em mim. Pergunte qualquer coisa, eu juro que sou eu.

Cassie sabia que as perguntas não adiantariam de nada, mas se lembrou do aviso de Timothy e da sensação do coração acelerado de Adam em seu peito. Os corações não podem mentir, disse ela a si mesma.

— Coloque as mãos na cabeça, onde eu possa vê-las — falou Cassie. — E deixe-as aí.

Nick obedeceu e Cassie avançou um passo cauteloso.

— Fique parado — ordenou Cassie, enquanto levava lentamente a palma da mão ao peito dele.

Era um tambor ensandecido. Acelerado como o de Adam, o coração de Nick batia como se tentasse escapar do corpo.

Cassie estava prestes a retirar a mão e correr quando notou os ombros de Nick cederem suavemente. Ele fechou os olhos, deleitando-se com o toque de Cassie. O contato dela parecia tranquilizá-lo. Sua respiração ficou mais lenta, depois o coração também.

Ele não se mexeu. Cassie manteve a mão no lugar e sentiu que o coração dele voltava a um ritmo uniforme e normal.

— É mais fácil quando você está perto de mim — disse Nick.

Timothy havia dito a Cassie que o amor era o feitiço mais poderoso de todos — foi o que a fez vir às cavernas, antes de tudo. Seu plano era procurar Adam. Mas isto, isto ela não havia planejado.

Cassie tirou a mão do peito de Nick.

— Pode relaxar — disse ela.

Ele estava doente e suando, mal conseguindo conter o demônio dentro de si. Mas estava conseguindo. Estava vencendo.

Cassie estendeu a mão novamente, desta vez para roçar os dedos em seu cabelo molhado. Seu amor pode não ter sido forte o bastante para salvar Adam, mas o amor de Nick por ela se mostrava forte o bastante para salvá-lo. Ele conseguiu o que ninguém mais no Círculo havia conseguido. Ele rompeu a possessão.

Por que o amor de Adam não era forte assim?

— Você vai ficar bem — disse Cassie.

Os olhos de Nick se encheram de lágrimas. Ele abraçou Cassie com toda a energia que lhe restava. Ela enterrou o rosto no ombro dele, como costumava fazer com Adam, e percebeu o quanto precisava sentir o calor de outro corpo humano. Ela se agarrou a isso, a ele. Nick tremia e ela se sentia tremendo com ele.


6

Cassie estava deitada, olhando fixamente o teto vazio do quarto. A essa altura, assim ela esperava, Nick estava dormindo na sala secreta. Até agora, ele havia conseguido manter o demônio a distância, mas na volta de barco até sua casa tinha dito a ela que ainda o sentia dentro de si. Disse isso com uma sinceridade calma, tão aberto e desprotegido, enquanto eles remavam pela noite negra como breu, que Cassie não ficou com tanto medo da confissão como talvez devesse ficar.

Mas agora, no silêncio do quarto, Cassie receava que Nick fosse uma bomba-relógio. Não havia garantias de que o demônio não levaria a melhor sobre ele. Quanto tempo ele poderia lutar sem ser dominado?

Cassie se sentou, resignada, e acendeu a luminária ao lado da cama. Não conseguia dormir; seu corpo insistia que ela continuasse acordada e preparada para qualquer coisa, pelo menos esta noite.

Na mesa de cabeceira, estava a calcedônia rosa que Adam lhe deu no dia em que se conheceram. Ela a pegou e admirou suas espirais pretas e minúsculas. Virou-a para ver os redemoinhos azuis e cinza faiscando sob a lâmpada, depois a apertou na palma. O choque de eletricidade que correu por sua mão e subiu pelo braço foi exatamente como o toque de Adam na caverna. A sensação era tão real e verdadeira — quisera ela poder dizer o mesmo do próprio Adam.

Cassie devolveu a calcedônia rosa à mesa de cabeceira e se virou de lado. Como se não bastasse o elo entre Adam e Scarlett. Como se não bastasse que ele não conseguisse romper a possessão. Ele e Scarlett ficaram juntos?

Cassie engoliu o impulso de chorar. Evidentemente ela é que teria de trazer Adam de volta, uma vez que ele não conseguia fazer isso sozinho. E não havia tempo a perder.

Ela pegou o Livro das Sombras do pai em seu esconderijo embaixo da cama e o abriu na colcha, junto com um bloco de notas. Encontrar o feitiço de exorcismo era o único jeito de dar um fim a toda essa dor — e no momento a dor era quase insuportável.

Os olhos de Cassie se deslocaram com rapidez pelas páginas do livro, procurando pela parte que pode ter sido contribuição de Absolom. Porém, a cada poucos minutos, ela se sentia desligar, pensando em sua reunião com Timothy. Ele havia dito que o feitiço de exorcismo era perigoso, que Absolom pode ter feito alterações.

Perigoso como?, perguntou-se ela. Mas se tivesse sucesso, bom... Cassie era motivada por essa possibilidade. Ela podia fazer isso, pensou. Ela faria — mas de repente uma rajada de vento abriu as cortinas e fez seus papéis rodarem no ar.

Cassie se jogou para trás, desorientada por um momento. Antes que conseguisse entender o que acontecia ali, Faye estava dentro do quarto, o cabelo preto soprando rebelde. Não ficou claro para Cassie se Faye entrou pela janela ou se simplesmente apareceu.

Os olhos de Faye eram carvões pretos e acesos e ela estendia as unhas como garras. Seu vestido preto se agitava pelo corpo em ondas sedosas.

Só o que ela fez foi menear despreocupadamente os dedos e Cassie perdeu o senso de espaço. O quarto parecia entortar sob a energia dominadora da presença de Faye.

A visão de Cassie ficou turva e as paredes começaram a rodar como que num carrossel. Ela não sabia se Faye ficava maior diante de seus olhos, se ela própria encolhia, ou se tudo aquilo era uma alucinação. Isso não era nada parecido com a magia que Cassie estava acostumada a ver. Faye usava o poder das trevas, que não obedecia a nenhuma regra da natureza. Nem mesmo precisava invocar feitiços. Só o que fazia era concentrar a mente e os olhos negros em suas intenções, e elas se manifestavam.

Cassie se concentrou ao máximo e invocou um feitiço.

— I protegat ipse a veneficia!

Faye parou para sorrir com malícia da fraca tentativa de Cassie antes de lançar outro feitiço que a jogou no chão. Depois mirou no Livro das Sombras de Black John. Um simples gesto de cabeça e o livro começou a tremer. Levitou da cama ao lado de Cassie, aparentemente leve como uma pluma.

Foi isso que ela veio procurar, percebeu Cassie. O livro. Cassie se atirou nele, pegando-o no ar, e o apertou no peito com os braços.

Faye estreitou os olhos em brasa e novamente reuniu energia. Agora parecia imensa para Cassie, pairando acima dela, uma força do mal tão sinistra que não podia ser contida.

Cassie gritou.

Aos próprios ouvidos, seu grito parecia fraco como o guincho de um camundongo, um gemido perdido no vento. Mas de algum modo o livro a ouviu. Ela o sentiu esquentar no peito como um ser vivo. Agarrou-se a ela, desesperado como uma criança.

Faye tremeu de irritação, mas não desistiria. Expirou fundo, provocando um vento pelo quarto, depois puxou o ar. Uma sombra escura emitida de seus olhos cercou o livro. Ela levantou as mãos estendidas, enfim recorrendo a um feitiço.

— Obedire me!

A voz dela estalou como um trovão, deixando Cassie nervosa. Todo o quarto se sacudiu e o cabelo de Cassie voou de seu rosto, mas o livro continuou imóvel.

O livro estava vinculado a Cassie. Era dela e talvez fosse a única coisa no mundo que Faye não conseguia sujeitar a sua vontade.

Faye reconheceu este fato e isto a impeliu a uma fúria ainda mais violenta. Ela urrou no quarto, como um furacão humano, fazendo as luminárias se chocarem na parede e a mesa de cabeceira de Cassie virar de lado. As paredes sacudiram e tudo que não estava pregado caiu incontrolavelmente com a força da ira de Faye.

Cassie gritou um feitiço de proteção para não ser esmagada, mas a magia de Faye era poderosa demais.

Houve um clarão de raio e um vento frio, e depois água — projéteis gelados de chuva caindo de... onde? Do teto? Eram despejados rapidamente e com força nos ensopados lençóis cinza.

Em segundos, Cassie tinha água até os tornozelos, depois até os joelhos. Ela olhou para baixo e viu o peito dos pés turvo, tingidos de verde e submersos.

Mas ela ainda segurava o livro com força. As coisas rastejantes surgiram na pele de Faye, em seu rosto e pescoço, pelas mãos até os cotovelos. Contorciam-se como larvas famintas por carne.

A água ainda subia pelas coxas trêmulas de Cassie. Sem conseguir mais se escorar, ela começou a deslizar pela água — levada por uma corrente. Os móveis mais leves do quarto flutuaram e giraram junto com ela, como galhos em um rio caudaloso.

Por fim, a cabeça de Cassie ficou submersa. Ela lutou, batendo braços e pernas e se esforçando para respirar, ofegando na superfície, até que se lembrou de relaxar — como teria feito no mar, se apanhada em uma correnteza. Boiou com o livro, deixando a água fluir livremente ao redor, e logo conseguiu se endireitar e começar a flutuar.

O livro lhe deu uma frase: non magis pulvia, non magis aqua.

Ela pronunciou as palavras em voz baixa, mas foram suficientes.

A chuva parou de cair. Cassie repetiu as palavras e a água enfurecida, que havia ameaçado sua vida um instante antes, começou a baixar, como se um ralo tivesse sido destampado.

Cassie segurava o livro com força enquanto o dilúvio desaparecia. O livro sussurrou algo mais a ela: reformidant et regredi.

De algum modo Cassie sabia que devia apontar o feitiço diretamente para Faye. Gritou o mais alto que pôde.

— Reformidant et regredi!

Faye berrou com o que pareceu a Cassie uma dor sincera enquanto voltava ao tamanho normal. Não irradiava mais aquela iridescência ofuscante no quarto.

Cassie repetiu o feitiço e Faye começou a recuar. A tempestade que ela havia conjurado agora não passava de uma lembrança úmida e seu poder claramente estava esgotado. Foi só então que Cassie teve consciência de alguém batendo na porta do quarto. Nick girava freneticamente a maçaneta e sacudia a tranca, gritando por Cassie, perguntando se ela estava bem.

Faye olhou para a porta e de novo para Cassie. E então, com a mesma rapidez com que apareceu, ela se foi. Se não fossem pelos danos que deixou, Cassie teria acreditado que imaginou todo o encontro.

Um instante depois, Nick arrombou a porta.

— Eu estou bem — disse Cassie.

Nick estava sem fôlego, a respiração pesada.

— Quem foi? — perguntou ele.

— Faye — disse Cassie, depois se corrigiu. — Beatrix.

Nick olhou o quarto ensopado e desordenado de Cassie, depois o livro que ela ainda abraçava junto ao peito.

— Você precisa encontrar um lugar melhor para esconder essa coisa — disse ele. — E não faria mal se tentássemos um feitiço de proteção na casa.

Cassie passou por cima de uma luminária quebrada e colocou a mão no coração de Nick. Esperou até sentir que ele reduzia a um ritmo normal.

— Você veio me resgatar — disse ela. — De novo.

Nick ficou vermelho e se dirigiu à cama de Cassie.

— Venha se sentar comigo por um minuto.

Ele fechou os olhos para centrar sua energia e invocou um feitiço simples.

— Poder do Ar, seque o ambiente. Que o dano da água se ausente.

As superfícies de madeira da mobília de Cassie clarearam conforme secavam. Sua colcha enrugou como se tivesse acabado de sair da secadora.

Satisfeito com o próprio sucesso, Nick desabou e esperou que Cassie se juntasse a ele, mas ela ainda não conseguia relaxar. Foi arrumar o quarto no maior silêncio possível. Endireitou as mesas de cabeceira e pegou os papéis de cada canto do chão.

— Faye não conseguiu comandar o livro — contou Cassie enquanto arrumava. — Mas, com todo aquele poder, ela poderia facilmente ter me matado para consegui-lo. Podia ter destruído toda a casa e todos dentro dela só piscando o olho.

— Mas ela não fez isso — disse Nick. — Então é óbvio que não era atrás do livro que ela estava.

— Ela deve me querer viva por algum motivo. Talvez os ancestrais até precisem de mim viva.

Enfim ela se juntou a Nick na cama.

— Acha que é só uma fantasia minha? Que eles não me queiram morta?

Nick a envolveu com os braços fortes.

— Acho que você é especial, Cassie, e eles sabem disso.

— Mas eles podem vir atrás de você. Ou da minha mãe. Por sorte ela tomou um comprimido para dormir esta noite. Dá para imaginar a reação dela, se fosse ela a arrombar minha porta, em vez de você? Só o choque poderia tê-la matado.

Ela pensou por mais um minuto.

— Provavelmente eles vão atrás de Max também. Ele é o último caçador que resta em New Salem.

— Max é durão — disse Nick. — Ele pode se cuidar. Mas se estiver preocupada, deveria avisá-lo. Vá falar com ele amanhã. Eu fico vigiando sua mãe e pesquiso um feitiço de proteção.

A presença de Nick acalmou a solidão dolorosa de Cassie. Sua amizade, naquele momento, significava tudo para ela.

— Não quero que você volte lá para baixo — disse ela.

Nick apontou a poltrona no canto do quarto.

— Por que não durmo aqui hoje? — perguntou ele. — Quanto mais perto estivermos, melhor para nós dois.

— Mas você vai ficar muito desconfortável — disse Cassie.

Nick pegou um travesseiro e outro cobertor na beira da cama de Cassie.

— Eu vou ficar bem.

Cassie sentia os olhos se fechando.

— Se tem certeza — disse ela, já cochilando. Ao menos ela conseguiria dormir um pouco.


7

Na manhã seguinte, Cassie andava pela Crowhaven Road atenta ao que a cercava, preparada para qualquer coisa. Se os ancestrais a estivessem seguindo e sentissem o livro escondido no fundo da bolsa — se eles a emboscassem e atacassem —, ela estava preparada para lutar.

Ela bateu suavemente na porta de madeira vermelha da qual não achava que um dia se aproximaria mais do que três metros. Os nós dos dedos na superfície da porta produziram um som abafado e denso, e não oco, como Cassie pensou que seria. Era carvalho maciço.

Ela olhou em volta, apreensiva, e esperou.

Max abriu um pouco a porta e colocou a cabeça para fora. E de imediato ia fechar na cara de Cassie. Ela esperava por esta reação, e assim estava pronta com um feitiço para manter a porta aberta.

— Aperire non clausa — disse ela em voz baixa, mas com firmeza.

Por mais que Max tentasse, não conseguia forçar a porta a se fechar. Ele ficou furioso.

— Vim lhe dar um aviso — disse Cassie. — Você pode estar em sério perigo.

— Não tenho nada a perder — disse Max.

Cassie olhou para além da porta e viu um homem e uma mulher mais velhos na cozinha.

— Quem são eles? — perguntou Cassie.

— Amigos da família — respondeu Max. — Meus novos guardiões, agora que não tenho pais.

— Eles podem estar em perigo também — disse Cassie. — Por favor, Max. Precisa me ouvir, depois vou deixar você em paz. Eu prometo.

Talvez fosse o pesar em seus olhos ou o desespero na voz. Era impossível ter certeza do que o convenceu, mas Max deu um passo de lado e deixou Cassie entrar.

Dentro da casa, ela fechou a porta.

A casa em si era modesta, porém limpa, menos extravagante do que Cassie havia imaginado. Era a casa de uma família que se mudava muito, cheia de móveis que não combinavam, muito provavelmente vindos de um brechó ou das lojas baratas do bairro. Algumas coisas ainda estavam em caixas marrons empilhadas no canto da sala de estar e não havia quase nada pendurado nas paredes bege. A casa era toda funcional, sem decoração.

Cassie acompanhou Max por uma escada acarpetada e estreita até o quarto dele. No momento em que ele abriu a porta, Cassie sentiu o quanto era diferente da monotonia do resto da casa.

Max tinha pintado o espaço em um tom de azul-claro tranquilizador e teve muito trabalho para enfeitar as paredes com fotos. Uma parede era uma grade de prateleiras repletas de troféus e prêmios esportivos reluzentes. Era arrumado e limpo, não havia um grão de poeira em lugar nenhum.

Cassie sabia que Max teve todo esse trabalho para deixar seu quarto confortável — para que o sentisse dele, como um lar.

Em uma cômoda retangular e comprida havia uma variedade de fotografias em porta-retratos. Cassie foi até lá. A maior delas era dos pais de Max, segurando suas mãos, um de cada lado, quando ele aprendia a andar. Parecia que estavam no parque. Cercando esta foto havia retratos dele com vários amigos em diferentes idades, e paisagens de outros lugares onde morou. Outros países. Max certa vez acariciou um filhote de tigre-de-bengala. Pulou do alto de uma cachoeira. Escalou montanhas. Cassie pegou a foto da montanha mais majestosa, aquela com Max de cara vermelha, bem agasalhado no pico de um cume nevado.

— Isso é no alto do monte Kilimanjaro — contou ele. — É a montanha mais alta da África.

Cassie colocou o porta-retrato no lugar e olhou para Max de um jeito novo.

— Que vida você teve — disse ela.

Havia muito mais por baixo da superfície de Max do que ela imaginava. Não admirava que Diana se apaixonasse tão desesperadamente por ele.

— Posso me sentar? — perguntou ela.

Max concordou com a cabeça, mas continuou de pé. Cassie explicou, da melhor forma que pôde, o que realmente aconteceu naquela noite nas cavernas. Descreveu como Scarlett havia enganado o Círculo e contou a Max que nada pelo qual ele responsabilizava Diana era culpa dela. Por fim, deu a notícia de que agora Diana e o resto do Círculo estavam possuídos.

— O espírito que controla Diana pode tentar usar o amor dela por você como uma arma — explicou Cassie. — Foi o que vim avisar.

Max por fim se permitiu sentar de frente para Cassie. Respirou fundo.

— Não quero ter nenhuma relação com isso — disse ele. — Prefiro esquecer tudo o que aconteceu.

— Eu entendo, acredite. Lamento que você tenha sido arrastado para tudo isso.

Os olhos de Max se encheram de uma tristeza que Cassie não conseguiu identificar. Não era pelo pai nem por Diana. Era mais antigo do que isso: uma tristeza duradoura que ele guardava, tingida de um senso de responsabilidade.

— O que os espíritos estão procurando? — perguntou ele.

— Não tenho muita certeza. Meu palpite seria vingança. A maioria deles foi morta por Forasteiros devido à bruxaria. E eu sei que eles querem o Livro das Sombras do meu pai.

Cassie carregava o livro com ela, pensando que era mais seguro do que em casa, desprotegido. Ela o tirou da bolsa.

Max olhou o livro com apreensão.

— Para que eles precisam disso?

Cassie considerou o que poderia acontecer se os espíritos se apoderassem do livro.

— Sinceramente, não sei do que eles são capazes. O que eu sei é que toda magia negra remonta aos primeiros tempos deste livro. E a esses espíritos ancestrais.

— Magia negra — repetiu Max.

Cassie assentiu.

— A magia que a linhagem de sua família dedicou a vida a combater.

Com cautela, Max pegou o livro das mãos de Cassie e o examinou.

— Se você precisa manter este livro escondido dos espíritos, deveria deixá-lo aqui. — Ele fez uma pausa. — Se você acha que vai manter New Salem mais segura, quero dizer.

— Max, eles virão atrás de você. É o que estou tentando lhe dizer. Vão querer destruir qualquer ameaça e você é o último caçador na cidade.

— Mas não virão atrás de mim pelo livro. — Um meio sorriso se abriu em seu rosto. — Eles não iam esperar que você o entregasse à guarda de um caçador de bruxas.

Cassie percebeu que ele tinha razão. Os ancestrais jamais pensariam em procurar o livro na casa de Max. Ela também percebeu que o senso de dever dele, o juramento que ele fez como caçador de proteger da magia negra os não bruxos, agora fazia dele um aliado — apesar de tudo.

— Esta é uma oferta corajosa. — Cassie tentou transmitir com os olhos o apreço que sentia e sua confiança nele. Não era uma proeza pequena ter uma bruxa e um caçador unindo forças. — O único problema é que preciso continuar a estudar o livro, para descobrir um feitiço que vá salvar meus amigos. Se eu não encontrar um jeito de expulsar os demônios do corpo deles até a próxima lua cheia, suas almas estarão perdidas para sempre.

O leve sorriso de Max desapareceu com a rapidez com que havia surgido. Cassie sabia que seu coração sofria pela ideia de Diana estar perdida desse jeito.

— Você precisa fazer um exorcismo — disse ele. — Posso ajudar nisso.

Um lampejo do sol pareceu encher o quarto. É claro. Como caçador, Max talvez soubesse mais sobre o combate aos espíritos malignos do que Cassie jamais conseguiria.

— Obrigada. Diana ficaria...

— Não agradeça a mim — disse Max abruptamente. — E nem mesmo pronuncie o nome dela comigo. Estou fazendo isso pela segurança desta cidade e de seu povo inocente. Não por você ou por Diana.

Cassie ficou perplexa, mas compreendeu. Max tinha todo o direito de ainda estar zangado. Ela concordou com a cabeça, sabendo que não devia agradecer a ele de novo.

— Vou dar uma olhada nisso — Max jogou o livro em sua mesa — e direi a você o que descobrir.

Cassie reconheceu que era a deixa para ir embora.

— Tudo bem — foi só o que ela disse antes de sair sozinha do quarto dele.

Ela desceu a escada acarpetada em silêncio. O homem e a mulher ainda estavam na cozinha, sentados à mesa, tomando o café da manhã. Não notaram a presença de Cassie quando ela passou pela porta. Como reagiriam se soubessem que o dono da casa em que estavam morreu nas mãos dela? Acidente ou não, Cassie teria de conviver com esse fato pelo resto da vida. E Max também.


8

Nick pegou Cassie olhando para ele e sorriu. Mostrou a língua e ficou vesgo como um palhaço.

— Foi mal — disse Cassie. — Eu não pretendia encarar.

— Está tudo bem. Não culpo você. Mas pode acreditar, vou lhe dizer se eu sentir alguma coisa estranha surgindo. — Ele riu e pôs o braço em volta dela. — Além disso, quanto mais tempo fico com você, melhor eu me sinto.

Cassie e Nick andavam pela Crowhaven Road. Nick puxou um punhado de folhas verdes e brilhantes de um sumagre que pendia baixo. Rasgou em pedacinhos enquanto os dois caminhavam, deixando uma trilha irregular atrás de si. Até agora Nick permaneceu forte o bastante para perseverar durante a possessão.

Desde que Cassie retirou Nick da caverna, havia momentos em que ela podia sentir o cansaço dele e era doloroso para ela ver o quanto ele se esforçava. E então, havia momentos assim. Tranquilos, confortáveis, aconchegantes. Eles conseguiam desfrutar de uma brisa agradável e do sol quente da manhã nas costas.

Isso dava a Cassie a esperança de que as coisas com os outros amigos ainda melhorariam. Se Nick podia ser salvo, todos também poderiam.

O vento se agitou e o rosto de Nick assumiu uma suavidade à luz do sol que Cassie não via há um bom tempo. Ela ficou tão comovida com isso que estendeu a mão, sem pensar, para acariciar a bochecha dele.

Ele se inclinou para os dedos dela.

Ambos ficaram tão envolvidos no momento que não perceberam Scarlett e Adam aparecerem na calçada diante deles, bloqueando seu avanço.

— Espero não estar interrompendo nada. — Scarlett cruzou os braços. — Tem um minuto para conversar?

— Não, não temos — disse Nick.

Scarlett não se abalou. Parecia saudável, o que significava que havia recuperado toda sua força. Adam se mantinha bem perto dela, protetor, dominador. Cassie não suportava olhar para ele.

— O livro não está comigo — disse ela. — Agora, se nos derem licença, vamos chegar atrasados na escola.

— Esqueça a escola. — Scarlett deu uma gargalhada. — Tenho uma proposta muito mais atraente.

— Não estamos interessados. — Cassie fez uma tentativa de forçar a passagem por eles, puxando Nick, mas Scarlett bloqueou o caminho dos dois mais uma vez.

— Apenas nos ouça — disse Scarlett. Ela torceu no indicador uma mecha do cabelo ruivo. — Caso contrário, terei de ficar má, e nós duas sabemos como isso costuma acabar.

Cassie examinou a área ao redor. Não havia ninguém na rua, só alguns pombos desgarrados arrulhando acima num cabo de eletricidade. Se Scarlett e Adam quisessem, podiam usar a magia contra Cassie e Nick sem grandes consequências.

Cassie notou os dentes de Nick trincados e seu peito subia e descia a cada respiração esforçada.

Adam olhava para ele. Procurando algum sinal do demônio levando a melhor sobre ele, supôs Cassie. Ele parecia chamá-lo, invocando-o.

— O que você quer? — disse Cassie, morta de medo de que Adam empurrasse Nick para além dos limites. — Não temos o dia todo.

— Você está quase lá — sussurrou Adam para Nick. — Posso sentir o quanto está perto de atravessar. Você não sente?

— Deixe Nick fora disso! — protestou Cassie.

Adam a olhou com ironia. Mas Scarlett continuou séria.

— Venha conosco ao armazém abandonado na State Street — disse ela. — Onde o Círculo está.

— Por quê? — perguntou Cassie.

O sorriso de Scarlett ficou maior.

— Não é óbvio? Nós queremos você, Cassie. Que seja parte de nosso Círculo.

— Vocês querem o livro — disse Cassie. — Faye deixou isso muito claro quando atacou o meu quarto ontem à noite e tentou roubá-lo. O que há nele que vocês querem com tanto desespero?

— Tudo — respondeu Adam, inexpressivo.

— Mas é você que significa algo para nós — acrescentou Scarlett num tom de voz mais inocente. — Vocês dois. O livro seria apenas um bônus.

— Não insulte minha inteligência — disse Cassie.

— É verdade, mana. E você sabe que é verdade, porque todos nós nos beneficiamos quando temos um Círculo completo. Você pode entender isso tão bem quanto qualquer um.

— Seu Círculo não é o nosso — gritou Nick tão alto que Cassie deu um salto.

Cassie olhou para Nick e viu a tensão evidente em seu rosto. Ele estava perdendo o controle, lutando para manter as defesas contra o demônio. O suor escorria da testa e as mãos tremiam. Cassie teve medo de perdê-lo.

Adam olhou com satisfação para Nick.

— Qual é o problema, Nicholas? Não se sente bem?

Cassie colocou a mão nas costas de Nick para acalmá-lo.

— Ele está ótimo — disse ela. — E ele tem razão. Seu Círculo não é o nosso e jamais será.

Scarlett soltou um suspiro.

— Nunca diga jamais, Cassie.

— Jamais — disse Cassie, mais alto. Ao falar, ela sentia Nick tremendo. Distinguia a batida acelerada do coração dele. Ela o confortou com seu toque e desejou em silêncio que o demônio dentro dele fosse embora. Mas o coração dele ficava cada vez mais acelerado.

— Esse é um bom garoto — disse Adam.

As íris dos olhos de Nick escureceram e Cassie notou uma ondulação em seu pescoço, algo que parecia uma veia abrindo caminho para o rosto dele.

— Guarde minhas palavras — disse Scarlett a Cassie. — Você vai mudar de ideia. É só uma questão de tempo.

Cassie abraçou Nick com força enquanto ele se acalmava e voltava ao normal.

Scarlett segurou a mão de Adam e o puxou para ela.

— Ele é mais forte do que parece, não é? — disse ela a Adam. — Está mesmo louco por ela.

Adam estreitou os olhos e livrou o braço da mão de Scarlett.

— Não vai durar para sempre — disse ele. — Nada dura. — Juntos, eles atravessaram a rua, próximos como um casal, o cabelo ruivo de Scarlett balançando atrás dela como um cúmplice.

— Você devia ter aceitado meu convite amistoso enquanto teve essa oportunidade, Cassie — gritou Scarlett por sobre o ombro.

Cassie não tinha tempo para lidar com a ameaça de Scarlett ou seus jogos mentais de manipulação. Virou-se para Nick e procurou outros sinais da possessão em seu rosto e pelo corpo.

O último comentário de Adam o deixou abalado. Seus olhos eram alfinetes pretos e a pele do rosto se contorcia.

— Nick — disse Cassie, passando a mão em suas costas. — Fique comigo.

Ele gemeu baixinho e subconscientemente ao toque de Cassie.

— Você é Nick Armstrong — disse Cassie. — Seus pais se chamavam Nicholas e Sharon.

O rosto de Nick se abrandou de um jeito que fez Cassie acreditar estar alcançando o verdadeiro Nick ali dentro.

— Sua música preferida é “Beast of Burden”, dos Rolling Stones — continuou ela.

— Eu me lembro. — Nick falou sem olhar para ela. — Você se lembra do nosso primeiro beijo? Eu estava ouvindo essa música.

Cassie continuou a acariciar as costas dele com uma das mãos. Com a outra, monitorava o batimento de seu coração.

— Foi na noite em que você e as meninas fizeram aquela cerimônia da vela — disse Nick. — E você foi sozinha enterrar aquela caixa da confiança, e Black John atacou você.

Ele parecia se perder na recordação.

— Você ficou com muito medo, mas ainda estava linda na luz da lua. E sua boca era tão macia...

Cassie sentiu o ritmo do coração de Nick se reduzir sob sua mão.

— Que tal uma das lembranças mais nítidas da minha vida? — perguntou Nick. — A vez em que fomos ao penhasco e os caçadores nos atacaram com fogo. Um raio caiu naquela árvore e...

— E você pulou na frente dela e salvou a minha vida — completou Cassie. — Como poderia esquecer?

— E quando estávamos no baile de primavera — disse Nick. — Éramos só nós dois quando Scarlett apareceu.

Cassie concluiu a frase de Nick por ele.

— E você arriscou a vida fazendo magia em público, sendo marcado para me salvar.

Nick concordou com a cabeça e sorriu.

Ocorreu a Cassie que Nick tinha essas recordações para se prender ao que ele realmente era, mas na realidade eram provas de seu amor persistente por ela desde que o conhecia. O amor dele.

— Agora está tudo bem — disse Nick. — Ainda estou com você.

Seu coração batia firme e regular, quase tranquilo. Cassie retirou a mão do peito de Nick.

Nick estava tão visivelmente esgotado e dolorido que Cassie teve o impulso de chorar. Mas não podia perder a coragem e deixar que ele a visse fraquejar agora.

— Você foi muito bem — disse ela. — Conseguiu trazer a si mesmo de volta.

Ela o abraçou e eles continuaram a caminhada até a escola.

— Você é o cara mais forte que conheço — disse ela.


9

Cassie chegou ao armário e o encontrou escancarado e esvaziado. Saqueado, era mais exato. Todos os livros estavam espalhados no chão, rasgados pela lombada. Ela estava na escola havia menos de uma hora e o Círculo possuído já havia começado a espalhar o caos.

Ela olhou para os dois lados e começou a pegar os livros. O corredor estava lotado de alunos, mas ninguém prestava muita atenção nela. Foi só quando empilhou o último livro didático no armário que Deborah, Sean e Doug vieram com gritaria pelo corredor.

Andavam ombro a ombro. Os três estavam vestidos de preto. Cassie podia ver o brilho nos olhos deles. Estavam fazendo magia à vista de todos.

Como Faye, eles podiam fazer magia sem ter de invocar feitiços. Apenas com o poder da mente, eles miravam as pessoas no corredor. Sean se concentrou no Sr. Tanner, um professor que Cassie sabia que já o havia castigado injustamente. A pasta do Sr. Tanner voou de sua mão, caindo aberta no chão do corredor. Seu conteúdo — provas e folhas de frequência, passes para atraso e lápis — voaram em volta dele como em um tornado.

Cassie não tinha mais dúvida nenhuma de que os espíritos de algum modo absorviam os sentimentos dos amigos e os usavam para seus próprios fins. A possessão se tornava cada vez mais integrada e, muito provavelmente, aproximava-se da permanência.

O rosto e o pescoço do Sr. Tanner se avermelharam enquanto ele tentava recolher suas coisas. Ele tremia, olhando em volta, constrangido e apavorado, incapaz de entender de onde viera aquela ventania.

Sean se colocou na frente dele, olhando em seus olhos. Abriu um sorriso maldoso, depois estalou os dedos. Os pertences do Sr. Tanner caíram no chão.

Deborah lançou a Cassie um olhar ameaçador, fazendo-a entender que o perigo que se desdobrava na escola esta manhã era só o começo. Cassie queria virar a cara, mas descobriu que não conseguia. Deborah a obrigava a assistir o que ia acontecer, como se tivesse puxado à força as pálpebras de Cassie e as mantivesse abertas com prendedores de roupa.

Sally Waltman teve o azar de entrar no corredor naquele momento. O sorriso ameaçador de Deborah se torceu em algo mais assustador. Ela olhou para cima e Cassie acompanhou sua linha de visão, sabendo que tinha apenas alguns segundos para reagir.

Cassie deu um salto antes de entender inteiramente por que e derrubou Sally, tirando-a do caminho, pouco antes de uma lâmpada fluorescente cair do teto. Espatifou-se no chão onde Sally estivera um minuto antes.

Todos em volta procuraram proteção. Cacos de vidro cortaram o ar. Uma única lasca beliscou o pescoço de Cassie.

O Sr. Humphries veio apressado pelo corredor, ordenando que todos saíssem do caminho. Cassie, deitada no chão, se levantou, mas Sally continuou estendida, de cara para baixo.

Deborah deu uma piscadela para Cassie e um cutucão em Sean e Doug. Eles se mexeram, saindo do caminho, misturando-se com os outros alunos. Cassie não teve energia para ir atrás deles.

O Sr. Humphries virou Sally, ordenando ao grupo de espectadores que se afastasse. Os olhos dela estavam fechados e Cassie não sabia se a menina respirava. Cacos de vidro brilhante pontilhavam seu cardigã cor-de-rosa.

O Sr. Humphries apertou o pulso de Sally e procurou a pulsação em seu pescoço enquanto a multidão de alunos que os cercavam se aproximava cada vez mais do corpo imóvel.

— Alguém chame uma ambulância! — gritou o Sr. Humphries, mas no segundo seguinte os olhos de Sally se abriram e se aguçaram com uma consciência gradual da situação. Ela tentou se sentar.

Cassie soltou o ar, só então percebendo que estivera prendendo a respiração. Ela e Sally se olharam antes de Sally procurar algum ferimento no corpo.

— Eu estou bem — disse ela ao Sr. Humphries.

Cassie via que apenas as mãos dela estavam salpicadas de pontos mínimos de sangue. O resto do corpo foi poupado, felizmente.

A cara do Sr. Humphries estava branca feito papel.

— Cassie, pode levá-la à enfermaria? — perguntou. — Preciso encontrar o chefe da manutenção. Esta lâmpada evidentemente não foi instalada direito. Ela podia ter sido morta!

Sally estava visivelmente bem — só abalada —, mas o Sr. Humphries talvez estivesse ainda mais perturbado do que ela. Para acalmá-lo, Cassie concordou em levar Sally à enfermaria.

Depois que ele saiu e ficou fora de alcance, Cassie passou o braço por Sally.

— Agora você está em segurança — disse ela.

A multidão se dispersou e Sally olhou preocupada para Cassie.

— Você acha que a queda da lâmpada foi mesmo culpa da manutenção?

Cassie meneou a cabeça em negativa. De todos os Forasteiros na escola, Sally era a única que sabia a verdade sobre o Círculo e sua magia — e ela já havia se provado uma aliada. Não merecia ser apaziguada nem ouvir mentiras.

— Não — disse Cassie. — Não foi um acidente.

Sally ainda tremia.

— Mas estou trabalhando nisso — acrescentou Cassie.

— Vamos logo para a assembleia — disse Sally. — Eu estou bem.

O auditório estava cheio quando Cassie e Sally chegaram, mas nenhum dos amigos possuídos estava à vista. Cassie tentou respirar com tranquilidade. Esperava que a tivessem provocado o bastante por um dia e voltado ao armazém.

Sally viu Nick na multidão e elas se juntaram a ele.

— Por que você tem vidro no cabelo? — perguntou Nick, retirando um caco mínimo e cintilante dos cachos cor de ferrugem de Sally. Parecia um brinco de diamante.

— É uma longa história — disse Cassie. — Vou te contar depois.

O Sr. Lanning apareceu no palco e bateu no microfone. Depois que todos se calaram, ele passou a dizer algumas palavras sobre o diretor Boylan.

— Estamos aqui reunidos em luto ao falecimento de um homem gentil e generoso — disse ele. — Um homem que infelizmente não tivemos o prazer de conhecer por mais tempo.

Ele parou para que as palavras penetrassem em ondas pela multidão.

— A essa altura todos vocês já souberam do terrível acidente de carro que tirou a vida do diretor Boylan. E tenho certeza de que ainda estão processando a dor e a confusão que acompanham esta tragédia. Por este motivo, haverá psicólogos disponíveis logo depois da assembleia. Porém, primeiro, é com o coração pesado que gostaria de chamar ao palco o filho do diretor Boylan, Max.

Ninguém parecia saber se era para aplaudir enquanto Max assumia seu lugar no pódio. Alguns tossiram. Todos os olhos examinavam atentamente cada movimento dele.

Que horror, pensou Cassie, vendo Max ajeitar o microfone e engolir o bolo na garganta, ele ser obrigado a dizer algumas palavras sobre o “acidente” do pai. Mas Max se portou com a maior dignidade durante sua fala. A voz dele ecoou pelo auditório.

— Meu pai era um líder — disse Max. — Um homem com um forte código moral, que jamais abandonou o que acreditava ser o certo.

Cassie reconheceu muitas das mesmas características em Max também. Observando-o e ouvindo, e pensando em todas as fotografias no quarto dele, Cassie verdadeiramente compreendia sua bondade.

— Ele se importava muito com esta escola e com esta cidade — continuou Max. — Queria o melhor para todos nós e trabalhou por isso em cada dia de sua vida.

Max parecia estar encerrando, chegando ao final destes minutos traiçoeiros sob os holofotes, quando as portas do auditório se abriram, batendo ruidosamente na parede.

Todas as cabeças se viraram para testemunhar a perturbação. Cada músculo do corpo de Cassie enrijeceu.

Era o Círculo possuído. Cinco em uma porta, cinco na outra. Formavam uma linha que bloqueava a saída.

A postura de Diana era sinistra. O cabelo preto de Faye caía pelos ombros como uma sombra escura. Os olhos de Adam estavam eletrizados de vingança.

Nesta hora, o único lugar vago no auditório, aquele na primeira fila, onde Max estivera sentado, irrompeu em chamas.

O Sr. Lanning correu para o extintor de incêndio, mas foi atirado para trás — voou e bateu com força no chão —, quando o extintor também explodiu em chamas. O fogo se espalhou rapidamente: subiu pela parede, atravessou o piso de madeira do auditório, queimou como gravetos secos.

Professores e alunos se empurravam, tentando escapar pelas estreitas portas de saída. O salão se transformou em uma desordem de gritos e cotovelos; os fracos e menores eram pisoteados pelos sapatos maiores dos fortes. Cassie perdeu os ancestrais de vista na fumaça e no pânico.

Ela se virou para Sally.

— Saia daqui. Nick e eu faremos o que for possível.

Outras poltronas explodiram e o fogo cresceu nos corredores. Sally se agachou abaixo da nuvem pesada de fumaça e se arrastou de bruços para a segurança.

Nick levantou os braços e invocou:

— Nenhum ar para o fogo! Nenhum ar para o fogo, nenhum ar para o fogo!

Por um momento as chamas ficaram imóveis, depois se curvaram para ele, encolhendo aos poucos, sufocadas.

Max estava imóvel no palco, com os braços junto do corpo. Olhava diretamente para Cassie, boquiaberto.

Nick ainda baixava as chamas, dominando o fogo com a sua vontade. Através da fumaça preta cada vez menos densa, Cassie contava os corpos que rolavam e tossiam, ou estavam inconscientes no chão. Ela correu para Max, mas foi distraída por um rumor baixo, depois um estalo alto.

Cassie parou de súbito.

O teto começou a desabar em pedaços a sua volta — no início lentamente, depois em uma rápida avalanche de reboco rachado e vigas de madeira estilhaçadas.

Cassie cobriu a cabeça com as mãos e se virou bem a tempo de ver Nick derrubado pela queda do entulho. Max também ficou soterrado, fora de vista. Ninguém fazia barulho.

Cassie levantou a cabeça, pensando que poderia de fato acabar vendo o céu azul pelo tanto do teto que desabou. E lá estavam eles: Adam, Diana, Faye e os demais amigos, pairando no ar. Levitavam, a salvo, em meio às únicas vigas que restaram do teto do auditório.

Cassie fechou os olhos e procurou mentalmente um feitiço. Estabilizou a respiração e apelou ao poço escuro que residia em seu ventre.

Sentiu-se ruborizar de calor de dentro para fora, e aquela sensação sinistra de seu íntimo veio à tona. Sabia que era sua magia negra — a única magia com força suficiente para superar os ancestrais. Cassie se entregou a ela, permitindo que o feitiço lhe viesse: cadens obruta, consurget.

Como um vômito, as palavras foram derramadas de sua boca.

— Cadens obruta, consurget!

Enquanto Cassie levantava os braços, os destroços caídos se erguiam.

— Consurget! — gritou ela.

Toda a madeira, as vigas e os pedaços quebrados de reboco que tinham caído na cabeça de Cassie voaram do chão para o teto.

Seus amigos se abaixaram e se esquivaram da onda de entulho que lhes chegava. Flechas de compensado e metal dispararam para eles como projéteis.

— Duratus! — exclamou Cassie, e eles foram incapazes de se mexer. Estavam rapidamente sendo soterrados do chão para cima, presos ao teto por uma quantidade cada vez maior de entulho.

Livre dos destroços, Nick se levantou. Limpou a sombra de reboco e cinza dos olhos.

— Veja como Max está — disse Cassie.

Porém, Max também tinha voltado a ficar de pé. Seu rosto estava machucado e o lábio sangrava, mas, tirando isso, parecia ileso. Ele espanou a poeira branca e a terra das roupas.

Nick tocou um hematoma que inchava acima da sobrancelha.

— Quanto tempo você acha que eles vão ficar presos ali? — perguntou ele.

Em algum lugar ao longe, fora do prédio da escola, Cassie ouvia uma sirene se aproximar.

— O suficiente para darmos o fora daqui. — Ela se virou para Max. — O que você me diz de irmos agora trabalhar no feitiço de exorcismo?

— Eu diria que já passamos da hora — disse Max, andando pelo auditório arruinado em direção à saída.


10

Max apoiou os cotovelos ralados no tampo da mesa ao se recurvar sobre a página do Livro das Sombras de Black John que eles tentavam traduzir. Ele e Nick estavam quebrados do auditório, tinham a boca inchada e hematomas intumescidos arroxeando o rosto, mas nenhum dos dois demonstrou nenhuma dor — os caras durões que eles eram.

Max apontou uma estranha forma triangular.

— Este símbolo é um tríscele dentro de um círculo — disse ele. — Eu o reconheço de algum lugar.

Cassie e Nick foram diretamente à casa de Max depois de saírem do auditório para estudar o livro juntos. Ficaram trancados no quarto dele com o livro de Black John aberto entre os três.

Cassie desviou os olhos do símbolo por um momento para ver Max retirar algumas caixas de papelão de baixo da cama. Havia muitas caixas ali embaixo, ela percebeu. As visíveis pareciam cheias de mapas antigos e papéis amarelados, moedas e amuletos. Uma estava até a boca de diários de couro. Era esta caixa que Max vasculhava.

Ele pegou um livro de aparência antiga.

— É o seu próprio Livro das Sombras? — perguntou Nick.

— Mais ou menos. Bom, a versão do caçador — respondeu Max. — A mesma ideia.

O livro tinha uma encadernação delicada e quando foi aberto por ele, a poeira caiu da lombada. Pela escrita e as marcações que cobriam as páginas, Cassie sabia que tinha sido passado por gerações.

Em alguns minutos, Max encontrou a página que procurava.

— Aqui — disse ele.

Nick pegou o livro das mãos de Max.

— Nem acredito. É a mesma forma triangular. — Ele colocou os dois livros lado a lado.

Os símbolos eram idênticos.

— Meus ancestrais experimentaram o exorcismo como um meio de combater os bruxos — disse Max. — É disso que fala esta página em meu livro.

O texto que Max apontou era parcialmente escrito no que Cassie reconheceu como latim. O resto era composto de uma língua antiga que ela não conseguiu identificar.

— Não deu certo para eles — disse Max. — Mas eles sabiam a respeito deste símbolo.

— O que significa que esta página do livro do meu pai deve conter informações sobre a realização de um exorcismo — concluiu Cassie, enfim acompanhando a linha de raciocínio de Max. — Se não, por que este círculo estaria impresso nela?

— Exatamente. Ainda levará algum tempo para traduzir — disse Max. — Mas é bom saber que estamos no rumo certo. É sem dúvida nesta parte do livro do seu pai que devemos nos concentrar. O feitiço completo de exorcismo pode estar bem aqui, nesta página.

A pulsação de Cassie acelerou. Parecia que tinha sido acordada com uma sacudida.

— Você é o máximo — disse ela a Max. — Sabia disso?

Max virou o rosto, sem querer olhar nos olhos dela.

— Só estou fazendo o que posso para garantir que outras pessoas não se machuquem.

— É um motivo tão bom quanto qualquer outro — disse Nick, parecendo valorizar Max de um jeito todo novo. Ele lhe deu um tapa fraternal nas costas.

Cassie copiou a página com o símbolo do livro de seu pai em uma nova folha de papel. Max ainda guardava o livro por segurança, mas agora Cassie tinha uma cópia do que precisava para continuar o trabalho.

Os papéis se amassaram quando elas os colocou no fundo da bolsa.

— Foi a melhor coisa que me aconteceu o dia todo — falou Cassie.

Max estreitou os olhos para ela e se permitiu um meio sorriso.

— Em um dia como o de hoje, você não está dizendo grande coisa.

— Bom argumento. — Cassie riu.

Desfrutando de um senso de realização, Cassie e Nick entraram pela porta da frente da casa dela. Cada um deles carregava um saco de papel pardo do mercadinho cheio de sorvete, batata frita e um estoque de outros mantimentos para abastecer o trabalho noturno de tradução do feitiço. Então Cassie ouviu os sapatos esmagando algo.

— Cacos de vidro — disse Nick. — Só pode significar uma coisa.

Os dois deixaram os sacos no chão e notaram a trilha de cadeiras viradas que levava à mãe de Cassie. Ela estava amarrada numa cadeira na cozinha, amordaçada e incapaz de falar.

— Desamarre minha mãe — disse Cassie. — Vou olhar lá em cima.

Cassie ouviu Diana, Adam e Faye revirando seu quarto antes de vê-los. Tudo que tocavam, deixavam quebrado e rasgado.

— Estão perdendo tempo — disse Cassie da porta. — O livro não está aqui.

Diana foi a primeira a olhar para ela.

— Diga-nos onde está, ou queimaremos esta casa toda.

— Somos bons em queimar coisas — disse Faye. — Como você sabe.

— E eu sou boa em apagar fogo — retrucou Cassie. — Como você sabe.

Adam estreitou os olhos.

— Ela está ficando menos temerosa — disse ele. — Vamos mostrar por que isto é um erro.

Juntos, Adam e Faye encararam Cassie. Ela caiu de joelhos, ofegante — mas tinha previsto esse ataque. Desta vez estava preparada.

Naquele mesmo dia, quando tinha recorrido à magia negra, ficou uma ressonância. Um formigamento de que aquele poder permanecia na ponta da língua e dos dedos. Ela o conjurou para voltar, desta vez com mais facilidade. As palavras se pronunciaram sozinhas: audire sonum malum.

De súbito Adam, Faye e Diana taparam as orelhas com as mãos. Eles gemeram. O feitiço que chegou a Cassie, fosse qual fosse, atingiu os espíritos como um alarme estridente.

Cassie sentiu suas forças aumentarem. Levantou-se o máximo que pôde e repetiu o feitiço.

Os amigos recuaram, agacharam-se, tentaram escapar do som que explodia dentro da cabeça. Mal conseguiram se arrastar para a porta.

Cassie deu um passo de lado, permitindo que eles passassem trôpegos por ela e descessem a escada. Ela os seguiu, guiando-os com o feitiço, passando por Nick e a mãe na cozinha e indo porta afora.

Cassie os perseguiu até que o borrão de seus corpos recurvados desapareceu no quarteirão, perdidos para a luz do sol. Depois correu até a mãe, que estava desamarrada, porém sentada na mesma cadeira, bebendo um copo de água.

— Eu estou bem — disse ela. — Só queria poder ter impedido os três.

Nick avaliou os danos que os visitantes causaram na porta da frente e nas janelas.

— Posso substituir o vidro e consertar a porta — disse ele. — Mas provavelmente eles vão invadir de novo.

A mãe de Cassie se encontrava numa calma irracional, considerando o que havia acabado de vivenciar. Ela passou a mão nas queimaduras sensíveis de corda nos braços e nos pulsos, mas falou num tom alto e claro.

— Precisamos tomar precauções mais fortes.

— Nick e eu estivemos pesquisando um feitiço de proteção para a casa — disse Cassie. — Mas não conseguimos encontrar nenhum que funcione com um demônio.

— Eu conheço um — disse a mãe prontamente. — Ainda me lembro do feitiço que sua avó usou quando construiu a sala secreta.

Ela lançou um olhar sério a Cassie.

— Já faz muito tempo que não temos que nos preocupar com espíritos demoníacos entrando na casa.

Nick estava empurrando parte dos cacos de vidro em uma pilha pequena perto da porta. Quando levantou a cabeça, perguntou:

— Isso inclui a mim? Eu conto como um demônio ou um humano?

A mãe de Cassie ficou vermelha, envergonhando-se por Nick.

— Você ficará bem aqui, desde que o espírito não tome a posse completa de seu corpo.

Nick voltou a se concentrar na pilha de cacos de vidro.

— Então isso não deve ser um problema — disse ele. — Desde que eu tenha Cassie torcendo por mim, não tem jeito de isso acontecer.

Cassie olhou para o rosto de Nick e viu exaustão ali, mas também uma força extraordinária. Não tinha certeza do que teria feito sem ele.


11

Cassie e Nick estavam esparramados no sofá, vendo um filme, para espairecer. Deram a si mesmos um dia sem escola, assim ela e Nick podiam fazer os reparos necessários na casa depois do ataque da véspera. Mas terminaram o trabalho em tempo recorde, deixando o resto da tarde só para os dois. O filme era uma comédia romântica, que Cassie já havia visto e adorava — entretanto ela não pôde deixar de olhar para Nick tanto quanto olhava para o filme.

Não procurava nele algum sinal do demônio. Era diferente, mais parecia que procurava o conforto que o rosto de Nick lhe dava. Seus olhos escuros e o maxilar forte, o jeito como ele conseguia se concentrar nela de tal modo que fazia com que Cassie se sentisse a única pessoa no mundo, ou pelo menos a única que importava. E ele era quente. Sempre, como uma pedra aquecida onde se enroscar.

Olhando para a tela, Nick passava subconscientemente os dedos pelo braço de Cassie, do pulso ao cotovelo, e voltando.

Ou talvez não fosse subconsciente.

A sensação se espalhou por todo o corpo de Cassie. Ela sabia que devia afastar o braço, mas em vez disso se viu fechando os olhos para desfrutar melhor.

Só pelo som do filme, ela reconheceu a cena do herói conseguindo beijar a garota de seus sonhos pela primeira vez. Quando voltou a abrir os olhos, encontrou Nick olhando para ela enquanto ainda acariciava seu braço.

Por fim, ela se afastou dele.

Nick desligou a TV e se inclinou para mais perto.

Cassie sentiu o rosto esquentar. Ele ia beijá-la? Ela sabia que ele queria. Sua respiração era pesada, carente, próxima de seu ouvido.

— Nick, não — disse Cassie.

Ele suspirou de frustração e baixou os olhos.

— Por causa de Adam?

Cassie fez que sim com a cabeça.

— Mas esses últimos dias foram... E você sabe o que sinto por você, Cassie.

Quem dera Adam fosse tão forte quanto Nick, pensou Cassie. Por que o amor dele não era suficiente para romper a possessão?

— Sabe o que eu sinto por você também — disse Cassie.

Nick balançou a cabeça.

— Sinceramente, não.

Ele tentou segurar a mão de Cassie de novo, mas ela não o deixou.

— Acho que devemos voltar a trabalhar na tradução do feitiço.

Ela se levantou e foi para a escada sem olhar nos olhos de Nick.

Ele foi atrás dela, zangado.

No quarto, Cassie se dirigiu à primeira gaveta da mesa. Abriu-a rudemente e empurrou de lado o chamariz de cadernos e pastas empilhados ali para esconder as páginas que ela havia copiado do livro de seu pai.

Cassie abriu as páginas cuidadosamente na mesa, endireitando as bordas. A olho nu, pareciam estar em branco, devido ao feitiço de proteção que ela havia lançado sobre o papel.

Nick se jogou na cama enquanto ela colocava as palmas das mãos sobre as folhas de papel. Ela sussurrou o encantamento secreto para revelar o texto:

Palavras ocultas, as trevas ilumino

Eu que as ocultei, seu véu descortino

Aos poucos, reapareceram os conhecidos volteios em tinta preta da letra de Cassie.

Ela se sentou à mesa, curvada sobre as páginas, examinando o estranho símbolo triangular que não conseguia tirar da cabeça desde que Max o apontou. Um tríscele dentro de um círculo, como Max o chamou. Antigamente acreditavam que ele exorcizava espíritos malignos. Além daquele símbolo, o texto na página não fazia sentido nenhum para Cassie, um amontoado de tinta sem qualquer significado.

Ela olhou fixamente a série de caracteres até que as linhas ficaram borradas. Havia alguns que ela compreendia, algumas dezenas de palavras antigas, alguns símbolos. Mas eram sempre os mesmos caracteres e palavras que ela entendia e os mesmos que ela não entendia, repetidamente. Não estava descobrindo nada de novo.

Nick se deitou na cama de Cassie, jogando um game no telefone.

— Nick — disse ela, tentando recuperar a atenção dele. — Não entendo por que traduzir essas páginas tem sido tão difícil.

Nick largou o telefone e se juntou a Cassie à mesa, de pé atrás dela, com as mãos no encosto da cadeira.

— Bom, se você não consegue traduzir, ninguém vai conseguir — disse ele, parecendo irritado. — Você é a única que tem vínculo com o livro. E isto nem mesmo é uma língua. — Ele bateu os dedos nos papéis. — Suas habilidades de tradução não vêm de dentro de você? De seu sangue?

— É exatamente isso — disse Cassie. — Timothy falou que Absolom pode ter alterado o exorcismo, o que significa que provavelmente ele o transformou em um feitiço de magia negra. Mas deve haver um nível de trevas que nem eu consigo alcançar. Eu me esforcei muito, mas simplesmente não consigo.

— Então, estamos condenados — exclamou Nick, jogando os papéis para fora da mesa de Cassie.

Ele transpirava e seu peito subia e descia com a respiração.

Será que a conversa dos dois no térreo o deixou aborrecido o suficiente para incitar o demônio?

Ele se virou para que Cassie não pudesse ver seu rosto.

— Nick, chegue mais perto. — Cassie pôs a mão em suas costas, mas ele a afugentou e se abaixou para pegar os papéis no chão.

— Ele está sob controle. — Nick sacudiu os papéis para ela. — É só este feitiço...

Ele olhou a escrita na página amassada em sua mão.

— Ele é...

De repente seus olhos ficaram pretos. O lábio superior se torceu estranhamente para a esquerda. Ele começou a murmurar: discedere, malum spiritus. Exi, seductor. Relinquere haec innocens corpora.

Cassie arrancou os papéis dele e pressionou a mão em seu coração. Batia mais acelerado até do que o de Adam naquela noite nas cavernas.

— Se acalme! — gritou ela. — Fique comigo, Nick.

Ele respirou fundo algumas vezes e seu batimento cardíaco se reduziu, felizmente, mas os olhos ainda estavam mais escuros do que o castanho-mogno normal.

— Consegui ler — disse ele, com um tremor na voz. — Por alguns segundos, consegui entender o feitiço.

Cassie olhou para o texto indecifrável no papel em sua mão e depois para Nick. Tudo ficou muito claro.

— Você não — disse ela. — O demônio dentro de você.

Nick enxugou o suor da testa.

— Eu consegui ler porque estou possuído?

Cassie concordou com a cabeça.

— Este meu ancestral Blak que tenta possuir você pode decifrar o feitiço.

Os dois ficaram em silêncio enquanto permitiam que esta nova possibilidade fosse absorvida: Nick teria de ceder ao demônio para traduzir o feitiço.

— Não — disse Cassie antes mesmo que Nick abrisse a boca para falar. — É perigoso demais.

— É nossa única esperança — insistiu Nick. — Tenho de entregar o controle ao demônio. Depois eu voltarei.

— Mas e se você não conseguir voltar?

Nick tirou os papéis da mão de Cassie e foi até a mesa dela. Deixou que os olhos passassem rapidamente pelo texto.

— Sou forte o bastante — disse ele. — E depois que o feitiço for traduzido, você poderá se livrar de todo o Círculo de demônios.

Cassie queria acreditar que Nick conseguiria voltar, que ela seria capaz de trazê-lo de volta, mas na realidade não tinha certeza.

— Não quero fazer isso — disse ela.

Mas Nick já havia aberto o caderno de Cassie em uma página em branco e pegado uma caneta.

Cassie estava apavorada com o que eles iam tentar, porém Nick se recusava a ser dissuadido. Ele fechou os olhos por um momento, com a caneta na mão e o feitiço diante dele.

— Sei que posso fazer. — Quando Nick reabriu os olhos, estavam pretos como bolas de gude.

Cassie recuou um passo.

Nick ficou sentado numa rigidez incomum. Por alguns segundos, não produziu som nem qualquer movimento. Depois começou a falar numa voz que não era a dele, em uma língua que talvez ele jamais conhecesse — um murmúrio gutural e grave. Em seguida passou a escrever.

Cassie observava por cima do ombro dele.

Todo o corpo de Nick tremia, o pescoço se torcia de um jeito impossível, mas ele continuava a movimentar a caneta pelo papel.

Sua letra era trêmula, mas claramente legível. No alto de uma página em branco do bloco, ele escreveu:

R i t o

P a r a

E x o r c i s m o

Ele estava conseguindo. Cassie mal acreditava no que via.

As veias por dentro dos braços de Nick se contorciam abaixo da pele. Um som agudo e perturbador escapou de sua boca, um guincho de algo pecaminoso e faminto.

As letras brotavam da caneta numa velocidade cada vez maior. Ele trabalhou por cerca de dois minutos sem parar. Depois, com um movimento súbito, bateu a caneta na mesa e olhou para Cassie. Seu rosto borbulhava; os lábios efervesciam.

— Cassandra — disse ele. Sua voz era insondável, uma caverna sem fundo. — Deixe-me sair daqui.

Cassie estremeceu. Deixar quem sair de onde?

— Nick? É você?

Os olhos de Nick rolaram para trás. Todo seu corpo se sacudiu e ele caiu no chão, convulso.

Cassie se curvou sobre ele, batendo em sua face, pressionando o coração disparado.

— Nick, volte para mim — gritou ela. — É Cassie, volte para mim, por favor.

Um gorgolejo saiu da boca de Nick e ela percebeu que ele se asfixiava com a própria língua.

— Nick! — gritou ela, puxando-o para cima e o abraçando junto de seu peito. Ela o abraçou desse jeito até que os dois ficaram coração com coração.

— Por favor, não me abandone — disse ela no ouvido dele. — Não posso continuar sem você.

O gorgolejo medonho parou, mas o corpo de Nick ainda estava convulsionando.

— Peguei você — disse Cassie. — Estou aqui e não deixarei que se vá.

Ela beijou sua cabeça e o rosto ensopados de suor. Envolveu o tronco dele com tanta força que os dois podiam se fundir em um só.

Aos poucos, o tremor diminuiu.

Cassie ainda o abraçava, balançando-o de um lado a outro, enquanto seu coração começava a se estabilizar.

Naqueles poucos minutos, o feitiço deixou de ser importante. Nick, pesado em seus braços, era tudo o que importava para Cassie.

Levou algum tempo para que ele tossisse e despertasse sobressaltado. Ela redespertou com ele. Nick piscou as pálpebras rapidamente e olhou o quarto. Quando olhou nos olhos de Cassie, ela viu que tinham voltado à cor normal.

— O que aconteceu agora? — perguntou Nick.

Cassie pegou o bloco que agora continha o texto completo do feitiço de exorcismo.

— Aconteceu isto — disse ela. — Você conseguiu.

— E consegui voltar?

— Sim — disse Cassie, jogando os braços em volta dele de novo. — Você conseguiu.

Nick estava exausto pela possessão. Cassie teve de ajudá-lo a deitar-se na cama e lhe dar água para beber. Ela vigiou seu sono por quase uma hora, acompanhando o peito subir e descer, ouvindo até sua respiração. Queria tocar nele, mas não se atrevia a perturbar seu sono. Ele tinha dado tudo de si e agora precisava de repouso.

Enquanto Nick dormia, Cassie examinou o feitiço. Era misterioso a seus olhos, todas as frases em tinta espremidas, começos e paradas abruptos. A aflição de Nick era visível em cada golpe da caneta. Cassie leu repetidas vezes.

Nick acordou com ela ainda analisando o conteúdo, absorvendo cada detalhe.

— O que é que diz aí? — perguntou ele, grogue, esfregando os olhos para se livrar do sono.

— Precisamos de um objeto pessoal de cada um de nossos amigos — disse Cassie, se virando para ele. — Algo que contenha parte da energia ou essência deles.

Ela olhou seu quarto enquanto Nick virava as cobertas e se levantava. No armário, encontrou o moletom de capuz que Adam deixara em sua casa e na caixa de joias estavam dois brincos de ouro em argola que Diana recentemente havia emprestado a ela.

— Isto já é um começo — disse ela, colocando os dois itens lado a lado na cama, no meio da marca com o formato de Nick que ainda estava nos lençóis. — Mas como vamos encontrar coisas de todos os outros?

E então ela se lembrou de tudo que tinha ficado no porão quando os amigos ainda estavam dormindo ali.

— A sala secreta — disse Nick, partilhando a ideia com ela.

Os dois desceram às pressas para procurar os pertences dos amigos. Vasculharam a sala, puxando cada gaveta e abrindo cada armário, jogando os achados inúteis de lado para tirá-los do caminho.

Nick encontrou um par de tênis de Sean, o skate de Doug e o boné de baseball de Chris. Cassie pegou o capacete de moto de Deborah, o cachecol preferido de Laurel e os óculos de Melanie.

Então Nick ergueu uma calcinha vermelha de cetim.

— Tenho certeza de que isto é de Faye — disse ele.

Cassie tirou da mão dele, rindo. Não conseguia evitar. Ela estava exultante. Seus amigos seriam salvos.

Eles ficaram junto à grande pilha de coisas que acumularam, admirando-a.

— Onde devemos fazer o feitiço? — perguntou Nick.

Cassie tirou do bolso a tradução dele e abriu o papel.

— Diz aqui que deve ser realizado no ponto de origem. O que acha que isto significa?

— Talvez onde aconteceu a possessão — disse Nick. — Isto seria nas cavernas.

Cassie concordou. As cavernas remotas, onde tudo isto começou, pareciam um local adequado.

— Acha que devemos levar Max? — perguntou Cassie. — Alguém além de nós deve estar lá, caso alguma coisa dê errado. Mas provavelmente o último lugar que ele queira ver de novo sejam as cavernas.

— Ele pode dizer não, mas devemos perguntar. — Nick reuniu os pertences dos amigos nos braços para carregar para cima. — Vou até a casa dele para falar sobre isso enquanto você junta o resto do material.

Cassie sentiu o peito se encher de esperança.

— Formamos uma dupla e tanto — disse ela.

— A filha de um bruxo do mal — disse Nick, sorrindo. — E um ferrado meio possuído.

— A equipe dos sonhos. — Cassie riu.

Naquela noite, Cassie, Nick e Max remaram no escuro, para as cavernas. Max quis ir. Havia dito a Nick que era seu dever ver a destruição dos demônios — afinal, eles foram os verdadeiros assassinos de seu pai.

Nick atracou o barco, amarrando-o com uma corda grossa a um toco de árvore que se projetava do chão. Ele e Cassie entraram na caverna, com Max bem atrás. Passaram direto ao trabalho, preparando solenemente o feitiço. Mas a energia estranha do espaço não passou despercebida. Tanta coisa aconteceu ali. Max ficou no local onde seu pai morreu. Seus ombros pareciam se dobrar sobre si mesmos: a cabeça pendia, desatenta.

Cassie se aproximou dele.

— Você pode esperar lá fora, no barco — disse ela. — Significa muito que você esteja aqui, mas sei que isto deve ser doloroso para você.

— Não é só isso. — Max arrastou os pés com ruído na terra dura do chão da caverna. — Acha realmente que eles serão salvos?

— Espero que sim. — Como Max continuou em silêncio, ela acrescentou: — Você não acha?

— É claro que sim — disse ele de imediato. — Quero que Diana fique bem. — Depois ele baixou a voz. — Não sei se estou pronto para vê-la de novo, para tê-la de volta para valer.

Cassie viu Nick preparando o feitiço.

— Com toda sinceridade, eu sinto o mesmo a respeito de Adam. Estou nervosa para encará-lo depois de... — Ela se interrompeu. — Depois de tudo que aconteceu.

Max ficou surpreso com isso.

— Nenhuma relação é perfeita — esclareceu Cassie. — Não importa como pareça quando vista de fora.

— Mas o cordão — disse Max. — Devia ser este vínculo que supera tudo. Devíamos ser almas gêmeas. Mas ainda estou muito... — Ele se calou.

— Furioso — disse Cassie. — Magoado, confuso. Tem sentido você estar assim.

Ela segurou a mão de Max e a apertou.

— Adam é minha alma gêmea, mas o amor dele por mim não foi forte para romper a possessão. Na verdade, ele esteve com Scarlett o tempo todo. Sabe como eu me sinto com isso?

Max balançou a cabeça.

— Nem consigo imaginar.

— O cordão dá início ao vínculo, Max. Mas é algo que a gente precisa trabalhar.

— Está tudo no lugar — interrompeu Nick, soprando um fósforo.

Max ainda segurava a mão de Cassie.

— Sabe de uma coisa, Cassie? — disse ele. — Você é ótima.

— O sentimento é mútuo — disse ela.

Nick trouxe para Cassie as Chaves Mestras — o bracelete, a liga e o diadema — e ela as colocou. Max deu um passo para trás e Nick entrou no círculo com os objetos de todos.

Cassie acendeu as últimas quatro velas, uma para cada ponto cardeal, e fechou o círculo com a adaga. Colocou-se na extremidade norte. O único som além de sua respiração era o assovio do vento na entrada da caverna.

Cassie fechou os olhos e começou a entoar. Quando sentiu que sua energia estava equilibrada, passou a recitar as palavras do exorcismo.

Mando vobis, spiritus, quicumque es, et omnes clientes tui inferri haec corpora migrare.

Ela abriu os olhos e deixou que corressem por Nick e pelos pertences dos amigos. Podia ver o espírito e a energia contidos em cada objeto como uma cor suspensa. Todos os objetos juntos criavam uma nuvem multicolorida.

Litteris mando tibi me servire. Minister sum bonorum.

Cassie levantou as mãos sobre a pilha e invocou:

— Recesserimus adverse potentiae.

Então mergulhou a mão em uma tigela de sal preparada por Nick. Encheu o punho com os grãos finos e transparentes, espalhando-os nos pertences dos amigos e na cabeça de Nick.

Eicio a daemone amici. Purgátae sis salis per salutem corporis et animae sanitatem. Omne malum quod te colit omnis malitia et astutia, qua te longe repellantur.

Em seguida Cassie mergulhou as mãos em uma tigela de água. Borrifou as gotas na pilha, assim como fez com o sal.

Eicio a daemone amici. Mundata sitis aqua vi fugant potestatem hostium excidere ex animo amoveas malis.

Levantou os braços em V e invocou com uma voz confiante:

— Discedere, malum spiritus. Exi, seductor. Relinquere haec innocens corpora. Abire!

Cassie se curvou, fechando os olhos. Uma onda de energia cresceu no peito. Transbordou e correu pelas veias com uma velocidade quente e gelada. Ela lutou para manter o equilíbrio, para não gritar. Mas este jorro de energia era mais do que conseguia suportar — precisava sucumbir a ela, caindo de joelhos com um arquejar desesperado.

Quando abriu os olhos, ela se sentia melhor, fortalecida, quase feliz. Pensou ter percebido uma mudança no ar, mas só Nick teria certeza disso.

— Como você se sente? — Ela perguntou a ele, levantando-se.

Ele olhou para Cassie e Max, que o observavam atentamente.

— Não sei bem.

— Tente ter acesso ao demônio — disse Cassie.

Com relutância, Nick fechou os olhos por um momento e se voltou para dentro. Só precisou de alguns segundos para que as coisas rastejantes se mostrassem no pescoço.

— Opa! — gritou Max. — Tudo bem, pare.

Cassie rapidamente passou o braço pelos ombros de Nick.

— Pare — disse ela. — Não conseguimos.

Nick respirou fundo até voltar a si.

— O que pode ter dado errado? — perguntou Max.

Cassie retirou o diadema da cabeça, assim como o bracelete e a liga.

— Não sei — disse ela. — Parecia que estava funcionando, mas eu não conseguia sustentar. Foi demais.

— Você precisa de ajuda — disse Nick. — Este feitiço é poderoso demais para você fazer sozinha.

— E a sua mãe? — sugeriu Max.

Cassie negou com a cabeça.

— Arriscado demais. E a magia da minha mãe não é...

Ela se interrompeu e Nick completou a frase por ela.

— Não é magia dos Blak.

— E assim só resta uma pessoa com força suficiente para me ajudar — disse Cassie.

Max olhou para os dois, sem saber o que eles queriam dizer.

— Scarlett — disse Nick. — Você precisa da magia negra de Scarlett.


12

Passava um pouco do amanhecer e Cassie andava pela praia, pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo. Ela subiu ao penhasco e atravessou as dunas, com pedrinhas entrando nos sapatos, até descobrir um trecho macio de areia sem madeira nem capim. Sentou-se, puxou os joelhos para cima e respirou o ar salgado. O mar rugia na frente dela.

O que poderia ser pior do que precisar de alguém que você não suporta, alguém que você literalmente jamais queria ver de novo? Isto embrulhava o estômago de Cassie. Se todos os seus problemas pudessem ser incorporados em uma pessoa só, seria Scarlett: ela trouxe o caos e a magia negra para o Círculo; ela sabia que os amigos de Cassie ficariam possuídos pela maldição do caçador e deixou que isto acontecesse; e ainda por cima havia conseguido roubar seu namorado — por enquanto. Mas Nick tinha razão. Cassie precisava ter Scarlett a seu lado. Por mais que odiasse admitir, precisava dela.

Se Cassie não conseguisse realizar o exorcismo com sucesso até a lua cheia, os amigos estariam perdidos para sempre. E Adam também.

Cassie deixou que a lembrança de sua tentativa fracassada de exorcismo fosse lavada dela. Foi uma terrível decepção, mas sozinha, ali na praia, podia admitir algo mais — ela sentiu um lampejo de alívio com o fracasso.

É claro que ela queria Adam de volta. Mas como seria realmente recuperá-lo agora? E se ela não sentisse nada?

Primeiro salve Adam, depois pense na situação do namoro, disse a si mesma.

Naquela tarde, Cassie foi ao armazém abandonado onde Scarlett morava. O armazém que ela jurou em que jamais colocaria os pés. Scarlett tinha razão em um ponto: nunca diga jamais.

Era arriscado demais levar Nick a um lugar infestado de espíritos ancestrais. Por mais forte que ela soubesse que ele era, e por mais que ela temesse ir até lá sozinha, seria imprudente entregá-lo a eles daquele jeito. Foi preciso alguma persuasão, mas por fim Nick concordou.

A construção ficava a 15 minutos de caminhada pela orla. Todos na cidade se referiam casualmente a ela como “o armazém”, mas na realidade era uma antiga base naval fechada no final da década de 1980. O andar principal havia sido usado como quartel para abrigar soldados e famílias de militares. Alguns andares superiores foram utilizados para estocar armas. E uma parte mais para o fundo do prédio, no subsolo, era conhecida como a Ala da Bomba. Foi usada para incursões e treinamentos.

Cassie ouvia histórias sobre o lugar desde que se mudou para New Salem — histórias assustadoras, na verdade —, mas jamais acreditou, nem as viveu ela mesma. Havia histórias de que o armazém era assombrado por espíritos do mal, os fantasmas de soldados caídos. As crianças do bairro se desafiavam a bater nas janelas sem correr em fuga. Cassie teve o impulso de fugir, agora que entrava na propriedade. Sabia que o prédio era de fato assombrado, não por soldados fantasmas, mas pelos Blak.

De frente, a construção de vários andares parecia uma fábrica arruinada. A maioria das janelas estava coberta por tábuas e seu exterior era pontilhado de placas de metal enferrujadas que diziam: propriedade do governo dos eua, não ultrapasse. Vândalos tinham pichado muitas placas com caracteres em arco-íris, imagens e a ocasional declaração política.

Cassie se aproximou da porta corrida da entrada principal e Scarlett a abriu antes mesmo que ela tivesse a chance de bater.

— A que devo este prazer? — perguntou Scarlett.

— Precisamos conversar — disse Cassie.

— Eu sabia que você viria. — Scarlett gesticulou para Cassie entrar.

Cautelosamente, Cassie passou dos batentes instáveis que lhe lembravam a porta de um celeiro. Por dentro, o armazém parecia quase um set de cinema, pano de fundo para um filme sobre a Segunda Guerra Mundial ou a Guerra do Vietnã. Casacos de camuflagem pendurados em ganchos, capacetes no alto, botas de selva abaixo. Havia armamento para todo lado e um cheiro de metal e terra. A qualquer momento, acreditava Cassie, um sargento podia entrar intempestivamente no set soprando um apito, pedindo atenção. Depois de quase trinta anos de abandono deste prédio, estar nele agora parecia uma viagem no tempo. Era incrível que nunca tenha sido saqueado, talvez porque todos que foram ali reconheceram seu caráter atemporal raro.

Chris, Sean e Doug apareceram das sombras. Reuniram-se em volta de Cassie, na ponta dos pés, com os dedos abertos. Cassie se preparou para o feitiço que eles estavam prontos a lançar nela.

— Nos deixem sozinhas! — ordenou Scarlett.

E então Diana os chamou de cima, deixando-os atentos. Cassie a viu de pé no alto da escada.

Eles baixaram os braços, murchos, e subiram a escada. Cassie verificou cada sombra e cada canto. Não havia sinal de Adam.

Scarlett esperou que Chris, Sean e Doug — e Diana — desaparecessem completamente antes de convidar Cassie a se juntar a ela em uma sala de estar improvisada. Sentaram-se de frente uma para a outra em camas de armar verdes e banais, diante de uma caixa de metal para munição que servia como mesa de centro. Lampiões a querosene instalados em engradados enferrujados forneciam a única fonte de luz.

Cassie olhou para cima e por toda a vasta sala mofada. A pintura antiga descascava das paredes em lascas quebradas e emboloradas. O ar era abafado e viciado, embora o teto fosse alto. Cassie sentiu um calafrio úmido. Este era um lugar soturno e ela não queria ficar ali nem um minuto além do necessário.

— Vou direto ao que interessa — disse ela, chegando para a frente no canto de sua cama de campanha. — Você venceu, Scarlett. Acabou para mim.

Os lábios de Scarlett se torceram levemente em um sorriso e seus olhos escuros se arregalaram, mas Cassie via que ela fazia o máximo para não revelar muita emoção.

— Continue — disse ela. — Acredito que exista mais.

— Vim fazer uma proposta a você — disse Cassie.

Cassie olhou para cada canto do armazém, procurando espíritos espiões, mas não viu nenhum. Ainda assim, não pôde deixar de sentir que era observada.

— Eu entrego a você o Livro das Sombras de Black John — sussurrou ela — e em troca você me ajuda a exorcizar o Círculo.

A cara de Scarlett se iluminou, mas ela ainda aparentava dúvida.

— Você deve estar brincando.

— A essa altura, traduzi a maior parte do livro — continuou Cassie aos sussurros. — E ele me trouxe problemas demais. Não quero mais nada com ele.

— Mas entregá-lo a mim pode abrir o inferno — disse Scarlett. — Você entende isso. Então, qual é o truque?

— Não tem truque nenhum. Eu só quero salvar meus amigos.

— Deixa eu entender isso direito. Você está disposta a trocar o mundo inteiro pela amizade. — Ela pronunciou a última palavra como se fosse uma doença.

— Sim — respondeu Cassie. Ela sabia que este era um acordo perigoso, mas estava desesperada. E tinha um plano para recuperar o livro depois que os amigos estivessem de novo a seu lado. Por enquanto, precisava dar um passo de cada vez.

— Eu só preciso de sua ajuda para realizar corretamente o exorcismo — disse Cassie. — Não posso fazer isso sem você.

— Você fala sério. — Enfim Scarlett se permitiu dar uma gargalhada. — Você é ainda mais fraca do que eu pensava.

Cassie colocou as mãos na lã verde e áspera do cobertor da cama. Suas fibras ásperas beliscaram a superfície das palmas como cacos de vidro muito pequenos.

— Não admira que Adam estivesse cheio de você — disse Scarlett.

Cassie não teve reação nenhuma. Não daria essa satisfação a Scarlett.

— Você conseguiu um acordo — falou Scarlett por fim.

Cassie a olhou com cautela. Pela primeira vez, parecia que Scarlett não escondia nada. Devia interessar a ela se livrar dos ancestrais.

— Eu disse que vou fazer. — Scarlett elevou a voz. — Estou concordando com o que quer; o mínimo que você pode fazer é agradecer.

— Vou querer fazer isso logo — disse Cassie. — O texto do feitiço afirmava que deve ser realizado no ponto de origem. Assim, precisamos nos encontrar nas cavernas.

Scarlett balançou a cabeça.

— O ponto de origem significaria o lugar de onde os espíritos surgiram. Seria o antigo cemitério, onde muitos corpos foram enterrados. E onde nosso pai está.

Cassie ficou em silêncio por alguns segundos. Este era outro motivo para ela precisar da ajuda de Scarlett. Ela era simplesmente ótima nesse tipo de coisa.

Por um momento, Cassie se perguntou se a localização errada foi o motivo para o feitiço não ter funcionado, mas já era tarde demais para voltar atrás no acordo.

— Vou reunir o Círculo esta noite — disse Scarlett. — À meia-noite, perto da cripta do nosso pai. Vamos precisar reunir o máximo possível da energia da nossa família para que isto funcione. A cripta é o melhor lugar.

— Como vai levá-los ao cemitério? — perguntou Cassie.

— Direi a eles que um de vocês mudou de lado, que faremos um feitiço de vínculo para completar o Círculo. — Scarlett se levantou e gesticulou para Cassie fazer o mesmo.

Ela levou Cassie pelo braço até a porta.

— Tem certeza de que você realmente entendeu o texto do feitiço de exorcismo? — perguntou ela. — É um feitiço difícil de compreender bem.

O que era aquilo que Cassie ouvia no tom de Scarlett? Zombaria? Condescendência?

Não importa. Não havia tempo para se preocupar com os jogos mentais de Scarlett. Depois que seus amigos fossem salvos, ela cuidaria da irmã.

— Já tratei de tudo — disse Cassie.

Ela continuou avançando e saiu pela porta de correr. O forte sol da tarde foi uma surpresa para seus olhos e a lufada de ar fresco era bem-vinda.

— Verei você à meia-noite — disse ela a Scarlett, tentando parecer destemida. Mas não reduziu o passo ao se afastar da sombra do armazém, só quando estava na metade da quadra banhada pelo sol.


13

Faltavam dez minutos para a meia-noite. Cassie, Nick e Max andavam pela Crowhaven Road, rumo ao antigo cemitério. Nick levava uma bolsa de viagem gigantesca pendurada no ombro, com os pertences dos amigos. Cassie carregava o resto dos suprimentos de que iam precisar para realizar novamente o exorcismo.

Max abriu o portão de ferro batido que levava ao terreno do cemitério, mas então hesitou, parecendo não suportar atravessá-lo. Olhou para Cassie, depois para os próprios sapatos.

— Nós o enterramos aqui há pouco tempo — disse ele, referindo-se ao seu pai.

Nick pôs a mão no ombro de Max.

— Por que não deixa Cassie e eu cuidarmos disso sozinhos?

— Porque quero estar presente para ver aqueles ancestrais derrotados — disse Max. — Eles tentaram tacar fogo em mim junto do resto da escola, lembra?

— Eu sei — disse Nick, afastando-se um pouco. — Então, por que não assiste daqui? Será mais seguro, para Cassie e para mim, caso alguma coisa dê errado. Você não poderá ajudar ninguém no meio de tudo.

Max pensou e concordou depois de um momento.

— Boa sorte — disse ele.

Cassie e Nick continuaram pelo portão, mas só andaram alguns passos quando Nick também parou.

— Qual é o problema? — perguntou Cassie. — Esquecemos alguma coisa?

— Não, nós nos lembramos de tudo. — Nick raspou a ponta da bota num arco pelo caminho de cascalho crocante. — Desta vez vai funcionar, eu posso sentir. Tudo isto vai acabar logo — disse ele, sem esclarecer exatamente o que quis dizer por isto.

Cassie sabia onde Nick queria chegar: que ela logo estaria com Adam.

Ela respirou fundo, sem saber o que dizer.

Nick segurou Cassie pelos braços.

— Nem tudo precisa voltar automaticamente ao que era antes — disse ele. — Você tem alternativas.

Cassie via o amor nos olhos dele. Mas o que poderia fazer? Adam era sua alma gêmea.

— Uma coisa de cada vez — disse ela, segurando a mão dele. — Vamos.

Andar pela relva macia e irregular trouxe uma onda imediata de lembranças horríveis. Tantas pessoas que Cassie amava morreram recentemente — sua avó; a tia-avó de Melanie, Constance; Suzan. Seus rostos, vivos e mortos, voltavam todos a ela.

Ela e Nick foram diretamente para a fila do meio, que dividia em dois o terreno do cemitério, ladeada por arcos de pedra. Alguns monumentos estavam rachados como dentes quebrados. Outros eram brancos e sólidos como ossos alvejados. Cassie tentou não olhar aqueles que estavam rudemente gravados com crânios e imagens ameaçadoras. O anjo da morte estava entalhado em mais de um.

Quando eu morrer, pensou Cassie, quero uma figura muito mais agradável em minha lápide. Quando eu morrer. Não se, mas quando. Era isto que ir ao cemitério sempre a lembrava — de que a vida era preciosa, porém finita, que um dia ela estaria morta.

Nick passou o braço livre pelos ombros de Cassie e ela se recostou em seu abraço.

Scarlett e o Círculo esperavam exatamente onde Scarlett disse que estaria. Sob a lua, eles pareciam fantasmas balançando-se no vento em volta da cripta de Black John. Cassie mal conseguia olhar a câmara de pedra colossal de seu sepulcro. Os pelos da nuca se eriçaram enquanto ela e Nick se aproximavam. Ela abraçou o livro do pai ao peito — um momento depois o estaria entregando a Scarlett.

Lampiões a gás proporcionavam uma iluminação a mais, que bruxuleava pelo rosto de Scarlett, não muito diferente de como estava no armazém. Cassie viu que o círculo já havia sido traçado no chão e que os amigos estavam de pé dentro dele, esperando por ela.

Diana, Adam e Faye ficaram atentos ao ver o livro, mas, tirando isso, permaneceram imóveis. Parecia que Scarlett lançara um feitiço para deixá-los petrificados em seu lugar.

Cassie se juntou a Scarlett no meio. Nick esvaziou a bolsa de viagem com os pertences dos amigos no chão e os arrumou em uma pilha organizada ao lado de Cassie e Scarlett. Ele trabalhava rapidamente, acendendo o incenso e as velas necessárias com seu isqueiro Zippo. Quando tudo estava arrumado, ele assumiu seu lugar no círculo com os outros.

Ele fez um gesto de cabeça tranquilizador a Cassie e, por fim, abriu um sorriso.

Scarlett fechou o círculo no chão com sua faca de cabo prateada.

Cassie pegou o livro do pai com as mãos trêmulas e o estendeu para Scarlett.

Deixando a faca cair no chão, Scarlett aceitou o livro.

— Vamos começar — disse ela.

Cassie soltou o ar, aliviada. Scarlett deve ter ficado satisfeita o bastante com a posse do livro para cumprir sua parte no acordo.

Cassie e Scarlett se deram as mãos para fundir sua energia. Cassie passou os olhos pelo rosto de cada um dos amigos. Parecia que eles verdadeiramente acreditavam que iam realizar um feitiço de vínculo para um Círculo completo. O entusiasmo deles era visível.

Juntas, Cassie e Scarlett começaram o feitiço de exorcismo exatamente como Cassie havia feito nas cavernas. Recitaram os encantamentos e fizeram os rituais de purificação com o sal, depois com água. Mas desta vez havia uma empolgação palpitante no peito de Cassie, um formigamento nas pernas. A energia que Cassie sentiu correndo pelo corpo era o dobro da última vez em que realizou o feitiço.

Cassie teve a sensação de que estava subindo, girando, cada vez mais alto. Era uma sensação sombria, não havia dúvida disso; estava densa de poder, dor e felicidade em partes iguais. Sua respiração saía acelerada.

Ela obrigou os olhos a se abrirem para observar o efeito nos amigos. Eles pareciam igualmente dominados pela força incrível do feitiço. Ela via a escuridão saindo de seus olhos como lágrimas e das bocas, como sangue. Escorria pelo queixo, pelo pescoço e pelo peito, descia por dentro das pernas, até penetrar na terra úmida.

Cassie e Scarlett levantaram os braços formando um V e entoaram o encantamento final na voz mais forte que tinham: “Discedere, malum spiritus. Exi, seductor. Relinquere, haec innocens corpora. Abire!”

Cassie viu as sombras negras dentro de seus amigos se elevarem e saírem de seus corpos como fumaça, torcidas, girando. Os espíritos se libertaram, ela estava certa disto. Cassie sentia a energia deles correr por cima da cabeça e passar ao lado dela, fria, escura e rápida, como uma lufada gelada e mortal.

Cassie ouviu a si mesma gritar. Ela voou para trás e se viu no chão.

Ficou estatelada ali, imóvel por um momento, olhando o céu sem estrelas da meia-noite. Sua cabeça girava. Os ossos doíam. Trêmula, ela se sentou e focalizou novamente as vistas.

À medida que a visão se aguçava, ela reconheceu o que tinha diante de si. Estava vendo os olhos de Adam fixos nela. Eram os mais verdadeiros, do mais lindo azul que ela já tinha visto — a cor do mar em seu estado mais radiante. O restante de seu rosto era o mesmo de sempre: impressionante e gentil, com o orgulho aparecendo nas maçãs salientes e na boca decidida.

— Cassie — disse ele, como quem pede desculpas.

Ele a abraçou e seu coração batia com regularidade e firme contra o peito de Cassie. Ela nunca se sentiu tão agradecida por nada em toda a vida.

Desde o momento em que seus olhos se encontraram, nenhum dos dois conseguiu se desviar. O mundo tinha paralisado e só os dois permaneciam. Por mais que ela o apertasse, seu corpo não estava próximo o suficiente.

Ele beijou sua boca trêmula e ela se deixou levar.

Quando voltou ao ambiente, meio tonta, percebeu que todo o grupo tinha se colocado de pé.

As feições de suave compostura de Diana tinham voltado. A força fria de Melanie voltou a entrar nos ângulos agudos de seu rosto. E o ar de fada de Laurel havia se instalado novamente em seu sorriso. Faye passava as mãos pelo pescoço e pelo tronco, sentindo que retornava. Cassie olhou para cada um dos amigos, descobrindo que todos eles tinham voltado a ser as pessoas que ela amava.

Eles estavam salvos.

Cassie olhou para o portão do cemitério e viu Max se afastando. Ele já tinha visto o bastante, supôs Cassie. Era só com isso que conseguia lidar agora.

Adam abraçou Cassie novamente. Ela respirou, nem mesmo percebendo o quanto sentia falta das pequenas coisas nele, como o cheiro de sua pele e a sensação de sua mão nas costas. Agora que ele tinha voltado, ela sentia toda a força da perda dele. Parecia um sonho estar em seus braços de novo, era bom demais para ser verdade.

E então ela olhou para Nick.

Ele tentou forçar um sorriso para ela antes de virar o rosto.

Cassie sentiu uma onda de culpa. Em seu coração, ela sabia que recuperar Adam tinha o custo de perder o que tivera com Nick, mas este momento era poderoso demais para ser estragado, perfeito demais.

Enquanto Nick olhava fixamente o chão, Cassie teve vontade de ir a ele e gritar Conseguimos! Mas não pôde.

Adam agora a abraçava com muita força. Descansou o queixo no alto da cabeça de Cassie, como sempre fazia. Falou numa voz baixa e abatida.

— Eu estava ali o tempo todo — disse ele. — Gritava para aquele espírito parar. Que ele estava magoando você, Cassie...

— Eu sei — disse Cassie. — Não foi culpa sua.

— Estou tão feliz por você estar bem. — Ele abraçou Cassie com mais força. — Eu queria voltar para você, mas não conseguia. O demônio era forte demais.

Diana e os outros então entraram no abraço de Cassie e Adam. Porém Nick ficou de fora. Foi um momento agridoce. Ela o queria perto dela também.

Scarlett, Cassie percebeu, também se mantinha afastada, sem nenhum sinal de júbilo.

Cassie a chamou.

— Entre aqui! Não teríamos conseguido sem você!

Mas Scarlett não fez nenhum movimento para o grupo. Ficou olhando estranhamente para eles, depois olhou para cima.

O céu do cemitério estava tomado de nuvens de tempestade. Corvos voaram das árvores próximas e os gatos vira-latas que moravam ali fugiam. Cassie sentiu o alívio escapulir de mansinho, substituído por um medo sufocante e opressivo.

Houve movimento nas sombras em volta deles e uma agitação na vegetação. Cassie notou que não estavam sozinhos. Passos e formas escuras se aproximavam deles e ela ouvia o som de respiração. E então Cassie notou um sorriso maldoso se esgueirar pelo rosto de Scarlett.


14

Figuras surgiram das sombras em volta do Círculo, saindo furtivamente de trás da cobertura das árvores e lápides. Cassie via que eram corpos. Pessoas. E usavam trajes antigos apodrecidos. Cassie os olhou e estremeceu, entendendo de imediato que estes eram os demônios que haviam possuído os amigos na última semana, devolvidos à forma corpórea. Seus ancestrais agora verdadeiramente ressuscitaram.

Cassie ficou junto do Círculo. Por instinto, eles se espremeram uns nos outros, como se fossem um. Todos entenderam. Adam segurou a mão de Cassie.

Cassie se virou para Scarlett, que sorriu com a satisfação de alguém que teve o prazer de ver seu plano se desenrolar com perfeição.

— Scarlett estava um passo a nossa frente o tempo todo — sussurrou Nick. — Mais uma vez.

— O que podemos fazer? — Deborah soltou a respiração pesada. — Nem mesmo sabemos se eles estão mortos ou vivos.

— Eles parecem bem vivos para mim — disse Laurel.

Enquanto as figuras dos ancestrais de Cassie, mortos há muito tempo, se aproximavam, ela pensou em tudo que Timothy havia lhe dito sobre seus parentes. Reconheceu a irmã de Black John, Alice, de imediato. A queimadura de corda do enforcamento no julgamento das bruxas tinha esfolado e formado um hematoma parecido com uma gargantilha no pescoço. Além disso, ela era idêntica ao desenho, porém mais magra e com olhos ainda mais melancólicos. Sua dor era mais palpável na forma tridimensional do que no papel. Devia ser a garota mais triste que Cassie viu na vida.

— Acho que devemos fugir — disse Sean. — Sair daqui enquanto temos essa chance.

Diana olhava Alice com uma curiosidade temerosa.

— Não — disse ela. — Temos que nos manter firmes.

Cassie perdeu o rastro de Scarlett em meio ao grupo que se aproximava, mas reconheceu outro ancestral — o homem que Timothy tinha dito ter passado a vida como um padre que corrompeu a Igreja. Absolom. Foi ele quem copiou o texto proibido do rito de exorcismo no Livro das Sombras e Cassie sabia que foi o ancestral que possuiu Adam.

Absolom parecia mais novo do que no desenho mostrado por Timothy, mas ela estava certa de que era ele. Usava uma roupa preta e colarinho branco de padre, e tinha a postura de um homem acostumado a uma plateia.

Adam não conseguia desviar os olhos dele. Estava arrebatado pela presença santificada porém demoníaca de Absolom, sua maldade recoberta de retidão.

— Não demonstrem medo nenhum a eles — disse Nick. Mas todos os amigos de Cassie tremiam.

Uma das ancestrais tinha se aproximado de Faye, avaliando-a. Cassie pôde identificar quem era com mais facilidade porque ela foi terrivelmente queimada. Beatrix. A carne de seu rosto e dos braços estava amarronzada e dura, toda manchada e com bolhas. Suas mãos eram horrivelmente calcinadas, cada dedo lembrando para Cassie a carne queimada em um espeto. Mesmo assim, Cassie via que Beatrix era bonita. O formato do nariz e dos lábios chamava a atenção, apesar de estar desfigurada, e ela se portava com confiança e elegância, como uma dançarina. Seus olhos e cabelos eram tão escuros que Cassie imaginou terem sido escurecidos a esse tom deprimente no fogo que a consumira.

Cassie examinou os demais ancestrais, sem os reconhecer. Variavam em idade e aparência, mas nenhum deles era muito velho. Além do fato de a expectativa de vida no passado ter sido mais curta, Cassie entendeu que a maioria dos parentes também foi perseguida e morta por bruxaria. Nenhum deles passava dos quarenta anos, a julgar pela aparência.

Um dos ancestrais mexia os dedos sujos e balançava os braços com crostas de lama para frente e para trás. Trajava roupas de camponês, ou possivelmente um lavrador. Cassie o reconheceu do álbum que recebeu de Timothy. Seu nome era Samuel e ele era da Fazenda Providence — uma das 13 colônias originais —, que se tornou, depois da Revolução Americana, Rhode Island.

A mulher mais próxima dele trajava um vestido da época da Guerra Civil com listras vermelhas e brancas que teria sido encantador se não estivesse meio decomposto. No álbum da família Blak, era descrita como uma beldade sulista: Charlotte Blak de Louisville, Kentucky.

Outro homem, que Cassie reconheceu como Thomas Blak da Inglaterra no século XVII, vestia um traje de equitação cinza e rasgado com calções da mesma cor. Ele tirou o chapéu e o examinou.

Mas foi Alice quem mais cativou Cassie. Ela não conseguia tirar os olhos da carranca de beicinho de Alice. E notou que Alice tinha o mesmo efeito sobre Diana. Timothy havia alertado para não se deixar enganar pela aparência de Alice. Ele tinha dito que Alice era tão obcecada pela magia negra que alguns diziam ter sido mais cruel do que o próprio Black John. Mas agora que Alice aparecia em carne e osso, com seu olhar e anseio dolorosos, Cassie sentia que a compreendia — sabia quem ela realmente era.

— É bom estar de volta — disse Alice. Sua voz era assustadoramente grave. Era uma voz sem qualquer emoção, côncava, como se a própria Alice acreditasse que as palavras pronunciadas não valiam nada mesmo enquanto as dizia.

— Mais do que bom — anunciou Absolom, com uma cadência que trovejou pelo grupo. Ele falava com um sotaque que Cassie não conseguiu decifrar. — Triunfante.

Beatrix concordou com a cabeça. Seu rosto se abriu em um sorriso repugnante.

— Esta cidade está a nossa disposição — disse ela. Ergueu as mãos queimadas e as apontou para Cassie e seus amigos, preparada para lançar um feitiço.

— Ainda não. — Alice se colocou entre Beatrix e o Círculo. Ela deitou os olhos terríveis em Cassie. — Primeiro vamos nos fortalecer.

Nesta hora, Scarlett surgiu de trás do grupo, abrindo caminho para frente aos empurrões.

— Eu posso ajudar — disse ela. — Preparei um lugar para nós.

Beatrix olhou para Scarlett como se ela fosse uma mosca a ser enxotada.

— Posso pelo menos destruir esta? — perguntou ela a Alice.

Alice meneou a cabeça.

— Mostre-nos este lugar — disse ela a Scarlett, depois colocou a mão fina nas costas de Beatrix. — Vamos destruir a todos no momento certo.

Adam deu um passo para a frente, como quem se prepara para lutar com eles.

— Não — disse Cassie, puxando-o de volta.

Ela tentou manter seu Círculo reunido atrás de si enquanto Alice e os outros partiam para onde Scarlett os levava.

— Não podemos deixar eles partirem — disse Adam.

— Conant está certo — concordou Nick. — Agora eles estão fracos; esta pode ser nossa única chance.

— Agora vocês todos também estão fracos — disse Cassie. — E eu também, depois de realizar aquele feitiço.

Ela olhou ao redor para os túmulos e lápides com os crânios e as gravações do anjo da morte, depois para a enorme câmara da cripta do pai. Olhou para o rosto de seus queridos amigos, felizmente devolvidos a ela, e para as costas dos ancestrais ressuscitados, já ao longe.

— Teremos nossa chance de combatê-los — disse Cassie. — Isto é só o começo.


15

O Círculo foi diretamente para a casa de Cassie, quase sem falar. Talvez estivessem traumatizados ou apenas exaustos. Cassie segurava a mão de Adam, mas grande parte da alegria de seu abraço inicial tinha desaparecido. Mais uma vez o triunfo levou imediatamente a um revés, este possivelmente bem pior do que o anterior.

Mas foi uma pequena vitória que não passou despercebida a Cassie quando cada um dos amigos conseguiu cruzar livremente a linha da propriedade para sua casa. Cassie havia duvidado de que um dia veria este desejo realizado. Ela olhou para Nick, querendo partilhar o apreço desta pequena alegria, e ele, em resposta, abriu um meio sorriso.

O grupo se reuniu na sala de estar de Cassie e foi como nos velhos tempos, todo mundo espalhado por ali. Adam ficou perto de Cassie no sofá — mas, para variar, Nick não estava meio afastado no canto. Sentou-se bem ao lado de Cassie, espremendo-a entre ele e Adam.

— Vou mandar uma mensagem de texto para Max — disse Nick. — Ele merece saber o que está acontecendo.

— Vocês dois ficaram amigos? — soltou Diana.

Cassie lançou um olhar tranquilizador a Diana.

— Ele realmente viria aqui? — perguntou Diana. — Eu entenderia se ele nunca mais quisesse me ver.

— Ele foi muito útil nos últimos dias — disse Nick, sem desviar os olhos do telefone.

— Mas talvez ele não esteja pronto para perdoar o resto de nós — disse Diana. — Em particular a mim.

Cassie receava que Diana tivesse razão. Max ainda se sentia dividido. Ela entendia aquele sentimento, com Adam de um lado e Nick do outro.

Mal Cassie tinha chegado a esta conclusão, houve uma batida na porta. Diana endireitou a postura ao ouvir.

— É Max — disse Cassie, reconhecendo o cabelo castanho claro e o casaco de lacrosse pela janela. Ela abriu a porta e o convidou a entrar. Ele ficou parado na soleira, rigidamente, olhando para o grupo antes de dar o primeiro passo até eles. Ninguém falou nada. Todos no Círculo olhavam para Diana e Diana olhava para Max.

— Oi — foi só o que ele disse. Era a palavra mais curta e mais evasiva que ele podia ter dado a Diana, mas era alguma coisa. Diana se levantou, porém teve de se conter para não correr até ele.

Os olhos de Max se encheram de emoção. Agora ele lhe lançava um olhar longo e calculado. A bondade e a pureza que brilhavam dela para ele eram inegáveis.

Max deu outro passo cauteloso para a frente e abriu um pouco os braços.

Diana quase desmaiou em seu abraço. O ar em volta deles crepitou de eletricidade. Cassie sentiu a ligação dos dois como a que ela própria tinha com Adam. Todo o grupo devia senti-la, porque os ombros de todos se acomodaram e seus queixos relaxaram.

Max percebeu que tinha plateia. Ruborizou e olhou para Cassie e Nick.

— Acho que é seguro dizer que os espíritos malignos foram embora de uma vez por todas.

Nick bufou.

— Nada nunca é tão simples para nós, infelizmente.

Diana levou Max a um lugar vago em meio ao grupo.

— Os espíritos saíram de nossos corpos — disse ela. — Mas agora estão nos próprios corpos, andando livremente por New Salem.

— E precisamos pensar num jeito de nos livrar deles — disse Cassie, assumindo a palavra. Olhou especificamente para Nick.

— Enquanto vocês todos estavam possuídos, os ancestrais insistiram em obter o Livro das Sombras — continuou ela. — O livro deve ser a chave para tudo.

Nick concordou.

— Se foi o livro que os convidou a voltar para o mundo — disse ele —, talvez seja o meio de expulsá-los.

Melanie e Laurel se curvaram para a frente. Sean, Chris, Doug e Deborah visivelmente raciocinavam como podiam usar o livro para frustrar a trama sombria dos ancestrais.

— Então, vamos olhar o livro agora — disse Faye. — Analisá-lo até descobrirmos como nos livrar desses cretinos.

Os amigos de Cassie de algum modo deixaram passar o fato de que ela não tinha mais o livro. Todos ainda estavam possuídos quando ela o entregou a Scarlett. O feitiço deve ter ocupado toda a atenção deles.

Só Nick percebeu a verdade.

— Cassie não pode pegar o livro agora — disse ele.

Adam não estava acostumado a ficar para trás, em particular no que dizia respeito a Cassie.

— E por que não? — perguntou ele, frustrado.

Cassie baixou os olhos.

— Eu entreguei o livro a Scarlett. Troquei o livro pela ajuda dela no feitiço de exorcismo.

Um silêncio mortal tomou a sala.

Cassie se encolheu sob ele, por ter participado com tanta facilidade do plano de Scarlett.

— Eu peço desculpas — disse ela. — Mas foi o único jeito que eu sabia de ter todos vocês de volta.

Houve tentativas de encorajamento com a cabeça por toda a sala, mas o moral do grupo tinha afundado.

— Bom, então — disse Max inesperadamente, pegando todo o Círculo desprevenido com seu tom de cooperação. — O primeiro item na lista é recuperar o livro.

— Sim. — Diana segurou a mão de Max. Ela praticamente brilhava. — E é exatamente o que faremos.

Cassie fechou e trancou a porta da frente enquanto o último dos amigos partia naquela noite.

— Enfim sós — disse Adam.

Finalmente estavam só os dois, pela primeira vez desde que ele voltou a si. Cassie o pegou pela mão e levou para seu quarto no segundo andar.

Ela se jogou na cama e Adam se juntou a ela.

De súbito ocorreu a ela o quanto estava cansada. Não conseguia tirar da cabeça a visão daqueles ancestrais perversos. Deixou nela um forte senso de pavor, como se tivesse engolido uma pedra pesada e ela se alojasse em seu peito.

Adam deixou a mão cair na perna de Cassie e a manteve ali.

— Você está feliz por eu ter voltado — perguntou ele —, não está, Cassie?

— Está brincando? Eu jamais quis que você ficasse fora de vista.

Adam olhou a própria mão, que ele ainda não tinha mexido.

— Queria que tivesse sido eu ajudando você nos últimos dias, e não Nick. Devia ter sido eu.

Cassie se perguntou se Adam recordava o quanto ele ficou íntimo de Scarlett. Será que isto contribuía para a vergonha que sentia?

— Não quero que você pense que é porque meu amor não teve força suficiente — continuou Adam. — Não foi isso. Foi que Absolom era forte demais.

Cassie se enroscou perto de Adam, cobrindo os dois com seu edredom de algodão pesado. Ele os protegeu como uma barraca.

— Sei disso — disse ela, mais para si mesma do que para Adam.

O travesseiro abaixo da cabeça de Cassie era macio e os lençóis tinham um cheiro fresco e limpo. Ter Adam com ela tornava tudo melhor.

— Quero que as coisas voltem ao normal — disse Adam. — Entre mim e você. E estou disposto a fazer o que for preciso.

— Eu também quero isso. — Cassie descansou a cabeça no ombro dele. — Já está começando a ficar assim.

Adam a puxou para mais perto.

— Que bom.

Cassie fechou os olhos para aproveitar o momento, para ouvir a respiração e a batida do coração dele. Agora era um ritmo lento e firme, e ela descobriu que seu próprio coração se adaptava ao dele. Os dois tinham o peito subindo e descendo juntos, numa sincronia perfeita e inconsciente.

Eles cochilaram nos braços um do outro, caindo num sono tranquilo e em doces sonhos.


16

– Soube do que aconteceu na prefeitura?

— Ouvi dizer que foi atacada por vândalos. E alguém invadiu o Museu de História.

— O shopping também. A polícia está dizendo que pode ter sido um grupo de pessoas. Eles não sabem se todos os incidentes estão interligados.

Cassie estava na aula de inglês, entreouvindo a conversa de Sally Waltman com sua amiga Tina.

Sally lançou um olhar cúmplice a Cassie quando percebeu que ela estava ouvindo. Cassie retribuiu, depois virou o rosto educadamente.

Essas histórias de roubo e vandalismo não eram singulares, infelizmente. Cassie esteve ouvindo relatos estranhos e semelhantes que aconteceram pela cidade nas últimas horas. Os bruxos ancestrais estavam criando o caos por toda New Salem, agora que tinham seus corpos de volta. Cassie tomou nota mentalmente de tudo e temeu pelo pior: que os ancestrais quisessem represália por tudo que perderam na vida, tudo que foi tirado deles pelos Forasteiros.

Depois do toque do sinal, Cassie abordou Sally, que guardava seus livros.

— Não pude deixar de ouvir — disse ela.

Sally passou os olhos ao redor para ter certeza de que ninguém escutava.

— Soube que estava havendo alguma coisa quando seus amigos me atacaram e cercaram o auditório, mas agora parece que o problema está se espalhando pela cidade. O que está havendo?

— É uma longa história.

— Está relacionada com bruxos, não é?

— Bruxos antigos — disse Cassie enquanto as duas saíam da sala de aula. — Os piores da história.

Elas chegaram ao armário de Cassie. Ela o abriu para trocar o caderno de inglês pelo livro de matemática.

— Receio que eles estejam procurando vingança... de New Salem, do mundo todo.

— Dos Forasteiros — acrescentou Sally.

— Pode ter certeza disso. — Cassie bateu a porta do armário. — Mesmo antes de serem mortos, eles queriam destruir todos que não eram bruxos. Agora têm a própria morte precoce para vingar.

— Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou Sally.

A oferta aqueceu o coração de Cassie. Se os ancestrais dela tivessem encontrado Forasteiros tão dispostos a deixar de lado as diferenças, talvez não fossem tão precipitados em seu julgamento.

— Obrigada — disse Cassie. — Eu direi a você. Por enquanto, fique de olhos abertos e tenha cuidado.

Cassie se virou para ir à próxima aula e ficou cara a cara com Alice.

Ela ofegou.

— Sally, vejo você depois — disse Cassie, e Sally teve o bom senso de se afastar.

A irmã de Black John ainda tinha aquela tristeza, mas parecia diferente desde a última vez que Cassie a tinha visto. Soltou o cabelo castanho-escuro e Cassie notou que ele foi cortado em camadas. Os olhos cinza-azulados estavam sutilmente marcados com delineador e as sobrancelhas foram tiradas, formando um arco limpo e fino. Vestia jeans apertados, uma blusa preta transparente e cerca de 12 colares de tamanhos e estilos variados, provavelmente para cobrir a marca no pescoço. Ela estava bem, pensou Cassie, e um segundo depois a verdade mais profunda lhe ocorreu: ela parecia moderna.

Então era isso que os ancestrais estavam fazendo no shopping. Foram a uma farra de compras e deram uma repaginada.

Espreitando atrás de Alice estava outra ancestral jovem o suficiente para passar facilmente por estudante: Beatrix. Também tinha atualizado o visual para se misturar na escola, porém o que era mais chocante, não parecia mais queimada. Deve ter feito um feitiço para curar a pele manchada, porque ela reluzia de um jeito que Cassie só podia descrever como mágico. Seu rosto era branco, liso e novo, intocado por sua vida difícil.

Alice piscou os olhos melancólicos para Cassie.

— Sobrinha — ela disse.

Sua voz assustou Cassie como na primeira vez em que a ouviu. Lembrou Cassie de como sua própria voz ficou quando ela teve uma faringite. Ela se lembrou de como parecia que alguém a apunhalava nas amídalas sempre que ela tentava pronunciar uma palavra.

Inconscientemente, Cassie levou a mão ao próprio pescoço. E engoliu com cuidado.

Alice estendeu a mão para ela, mas Cassie deu um passo para trás, com súbita repulsa da ideia deste corpo — praticamente um cadáver vivo — tocando nela.

Alice enrugou os olhos, parecendo magoada com a aversão de Cassie.

— Não quero nenhuma relação com você — disse Cassie, a voz falhando. Antes até que percebesse o que fazia, ela se concentrou em Alice e Beatrix e invocou um feitiço: — Infirmitate super vos!

Alice desviou a magia de Cassie com um gesto despreocupado de mão.

— Está vendo? — disse ela. — Este é o espírito dos Blak.

A surpresa da própria Cassie ao lançar o feitiço não passou despercebida por Alice.

— Esses seus instintos — disse ela. — Não sente? Você está conosco. Você é uma dos grandes.

Ela trocou um olhar de soslaio com Beatrix.

— Precisamos de um 12º membro para nosso Círculo, Cassie. E queremos que este membro seja você.

Cassie pensou nisto. Será que ela era um deles, por mais que se esforçasse para não ser? Tantas pessoas, entes queridos, morreram debaixo de seus olhos enquanto ela tentava ser boa. E foi ela que realizou o feitiço que os soltou no mundo, antes de tudo. Ela ressuscitou sua maldade, querendo ou não.

Essa ideia deixou Cassie nauseada. O impulso de lançar nelas outro feitiço negro era dominador.

— Vocês nunca me terão — disse Cassie, reprimindo seu ímpeto mais primitivo.

Um rubor de fúria cruzou o rosto de Alice e Cassie ficou chocada com a rapidez com que sua expressão podia mudar da mágoa para a fúria.

— Você se tem em alta conta, não é? Ótimo. Deve ser assim. Mas não pode resistir a seu destino.

— Meu Círculo é meu destino — disse Cassie. Mas sua autoconfiança de pronto foi maculada por outro pensamento: e o resto de seus amigos? Os ancestrais queriam Cassie, mas, se não conseguissem, tentariam com outra pessoa. E continuariam tentando até...

— Esqueça-se dela — disse Beatrix a Alice. — Toda família tem um elo fraco.

— Ela não é fraca — rebateu Alice.

Ocorreu a Cassie que os outros ancestrais talvez já estivessem procurando membros de seu Círculo — neste exato momento. Ela não tinha tempo para este impasse com Alice e Beatrix.

Cassie girou nos calcanhares e as deixou paradas ali. Elas que a julgassem uma covarde, se assim quisessem. Cassie não se importava. Precisava encontrar os amigos e rápido.

***

Cassie mandou uma mensagem de texto para todo o Círculo: Reunião de emergência. Encontro no Colony Diner agora!

O Colony Diner ficava fora do terreno da escola. Perto o bastante para chegar a pé em alguns minutos, mas longe o suficiente para ter privacidade e proteção. Cassie chegou primeiro e se sentou sozinha por alguns minutos, batendo as unhas na mesa de madeira falsa amarelo-alaranjada. Pediu um milk-shake de morango para ocupar a garçonete. A cada segundo que passava, apertava-se o nó em seu estômago. E se nenhum deles viesse? E se ela já os tivesse perdido?

Mas Adam chegou minutos depois, em seguida Diana e por fim Cassie se acalmou o bastante para tomar um gole do milk-shake. Nick, Deborah e Faye estavam no meio da educação física juntos, a matéria de que menos gostavam, e assim rapidamente saíram e foram para o bar.

Melanie e Laurel apareceram em seguida, vindas da sala de estudos na biblioteca, com bolsas de livros abarrotadas pesando nos ombros.

— Qual é a emergência? — perguntou Melanie.

— Alguém tem notícias de Sean, Chris ou Doug? — perguntou Cassie. Não era segredo que aqueles três eram o lado impressionável. Alguns até podiam chamá-los de imprudentes.

Logo depois de pedir a comida à garçonete, Cassie viu o Jeep de Chris zunir para o estacionamento. Parou em uma vaga e Sean e Doug pularam da traseira. Todo o corpo de Cassie relaxou quando ela os viu correr para a entrada do bar.

— Foi mal pelo atraso — disse Sean, espremendo-se à mesa ao lado de Nick, com Chris e Doug atrás dele. — Estávamos no parque.

— No meio de um dia de aula? — Melanie ergueu as sobrancelhas.

— Deixa isso pra lá — disse Doug. — O que perdemos?

Cassie empurrou o milk-shake de lado e pigarreou.

— Alice e Beatrix apareceram na escola hoje. Eles precisam de um 12º membro para o Círculo negro. O que significa que eles vão procurar cada um de vocês.

Cassie se concentrou em Sean, Chris, Doug e, por fim, em Faye.

— Eles vão encurralar vocês, tentar manipular seus pontos fracos.

A garçonete chegou com o pedido deles justo quando as últimas palavras de Cassie escoavam no ar. Ela baixou um prato gorduroso depois de outro e copos transbordando, sem deixar nenhuma parte da mesa descoberta. Isso deu ao grupo o momento muito necessário para processar o que Cassie tinha acabado de dizer.

Depois que a garçonete se afastou, Diana falou.

— Precisamos permanecer fortes. Temos que ser uma frente unida.

— Acho que isto é óbvio — disse Deborah, estendendo a mão para beliscar o prato de Melanie. — Quem aqui quer ficar junto de demônios? — Ela esperou atentamente que alguém levantasse a mão. Como ninguém o fez, ela falou: — Encerro minhas alegações.

— Você está deixando escapar o essencial — disse Adam. — Talvez não queira isso agora, mas esses espíritos estiveram em nossos corpos. Eles sabem de cada um de nossos pontos fracos, cada sonho e desejo nossos. São especialistas em manipulação.

Sean colocou uma batata frita na boca.

— Poder fazer magia negra seria bem legal.

Nick lhe deu um tapa no ombro, fazendo-o engasgar.

— Eu estava brincando — disse Sean, tossindo. — Meu Deus.

— Não tem graça — disse Laurel. — Todo mundo precisa prometer não ter contato com nenhum dos ancestrais. Não podemos dar a eles a oportunidade de nos tentar.

— Por que você está olhando para mim? — perguntou Faye.

Era evidente que Laurel dirigia sua declaração a Faye, mas ela negou isso.

— Eu disse todo mundo — insistiu Laurel.

— A essa altura — falou Melanie, colocando a mão por cima da mão de Laurel —, acho que é seguro dizer que todos estamos comprometidos em evitar os ancestrais. Só temos de cuidar um do outro para que continue assim, é só isso.

Faye deu uma garfada em sua salada Caesar sem levantar os olhos.

— Tudo bem — disse ela. — Desde que a santinha puritana do nosso grupo não use isso como desculpa para se meter na minha vida particular.

Laurel abriu a boca para se defender, mas não saiu som nenhum.

— Concordo — disse Diana. — Vamos vigiar um ao outro enquanto respeitamos a privacidade de todos. — Ela lançou um olhar severo por todo o grupo até que todos pareceram concordar.

— Me parece um bom plano — disse Cassie. Mas ela estava mais preocupada do que transparecia. O rosto de Faye tinha se alterado à menção da magia negra. Não era segredo que ela sempre teve inveja dos poderes de Cassie.

Depois que eles terminaram de comer e o grupo se dispersou a caminho das aulas seguintes, Cassie puxou Adam e Diana de lado.

— Acho que nós três devíamos roubar aquele livro de volta de Scarlett esta noite — sussurrou ela. — Só nós três. Estou com medo de expor os outros aos ancestrais.

Adam concordou com a cabeça e o temor passou pelo rosto de Diana.

— E como faremos isso? — questionou ela.

— Do jeito que for necessário — respondeu Cassie.


17

Era fato conhecido em New Salem que o antigo armazém onde Scarlett estava morando tinha uma janela nos fundos grande o suficiente para passar uma pessoa. Durante anos, serviu de entrada a encontros secretos e festas de menores de idade com cerveja. Esta noite seria o caminho de Cassie, Adam e Diana para o livro.

Adam foi na frente de Cassie e de Diana para averiguar se a janela ainda podia ser penetrada e se estava desprotegida. Cassie o observou mexer na tábua de madeira apodrecida e puxá-la. O buraco aberto na fachada do prédio lembrou a ela um dente faltando.

— Você já está praticamente dentro — disse Adam. — Só espere pela distração para agir.

Adam e Diana deixaram-na ali e deram a volta furtivamente para a frente do armazém. Cassie só devia trepar pela janela quando recebesse sua deixa, mas não conseguiu se conter. Estava desesperada por alguns minutos a mais para olhar o ambiente.

Ela passou para dentro em silêncio e olhou o espaço, chamando mentalmente o livro, alertando de que ela havia chegado — que veio para levá-lo para casa. Ela sabia que o livro responderia a seu chamado.

Cassie só precisou de alguns segundos para ouvir as vozes que vinham da sala de jantar improvisada do armazém. Reconheceu o tom estridente e alto de Scarlett e a monotonia opressiva de Alice, assim como uma mistura de sons ambientes de garfos batendo em pratos e copos de água se mexendo.

Cassie avançou um pouco na direção dos sons e se abaixou atrás de antigos contêineres de metal, para observar por alguns segundos. Ficou surpresa com o retrato que se abria diante de seus olhos. Scarlett e todos os ancestrais estavam reunidos em volta de uma mesa circular coberta de iguarias: frango assado, batatas assadas, salada verde e legumes. Desfrutavam de uma refeição juntos, sorrindo, rindo, conversando. Pareciam uma família, uma família feliz.

Charlotte cortava uma fatia de pão de milho em quadrados grossos enquanto Samuel distribuía espigas de milho verde que pareciam frescas.

— Aqueles caçadores que você matou — disse Alice — eram da mesma linhagem sanguínea daqueles que me enforcaram em Salem. Assim como sua linhagem é igual a nossa, Scarlett. — Ela ergueu o copo. — Justiça feita.

— É para isso que serve a família — disse Scarlett, batendo seu copo no de Alice.

Eles pareciam muito à vontade na companhia uns dos outros. Testemunhando sua interação, Cassie se perguntou se era o que Scarlett desejava o tempo todo — a ligação de uma família. A ideia fez o próprio coração de Cassie bater mais pesado.

— Quanto a Cassie, é uma pena — disse Beatrix a Alice. — Ela é uma garota teimosa e não acredito que haja algum jeito de convencê-la.

— Mas ainda precisamos de um 12º integrante — disse Absolom. — Na lua cheia. Caso contrário, teremos de esperar outro mês inteiro para fazer o feitiço.

Que feitiço?, perguntou-se Cassie.

Alice baixou melancolicamente o copo de água.

— Eu sinceramente queria que fosse Cassie — disse ela.

Cassie sentiu um bolo se formar na garganta e foi dominada por uma tristeza que não conseguia identificar. Pelo álbum da família Blak, ela soube que Alice havia tentado ser boa no início da vida. Foi apenas quando completou 15 anos que tomou posse de todo seu poder e foi dominada pela própria magia negra. Depois a maldição de que falou Timothy levou a melhor sobre ela — impeliu a garota a cometer atos medonhos contra os não bruxos de Salem. Um ano depois, foi enforcada.

Cassie não conseguiu deixar de ver um pouco de si mesma na jovem tia; as duas possuíam a mesma idade quando descobriram a magia. E ela sentia que Alice também via algo disso em Cassie.

— Eu simplesmente não conseguiria suportar — disse Scarlett — se tivéssemos de esperar mais um mês inteiro para fazer o feitiço.

Cassie apurou os ouvidos para pegar mais informações. Precisava saber sobre este feitiço que eles preparavam — mas nesta hora o tumulto de Adam e Diana do lado de fora ficou audível.

— Shh — disse Thomas. — O que foi isso?

Todos os ancestrais pararam de falar e escutaram. Scarlett correu para a frente do armazém e Alice foi logo atrás dela.

Scarlett abriu a porta enferrujada. Os ancestrais se reuniram em volta dela para um espetáculo inesperado. Diana e Adam tinham conjurado no céu uma esfera de luz brilhante, como um planeta ou um globo espelhado de discoteca. Recitavam um encantamento:

Espíritos das trevas, olhai a luminosidade, sem desviar os olhos, não crieis dificuldade.

Os ancestrais ficaram perplexos, apanhados desprevenidos. Seus olhos se arregalaram para o globo reluzente e hipnótico diante deles. Estavam hipnotizados pela esfera.

Cassie sabia que esta era sua deixa para pegar o livro. Ela ergueu os braços e sussurrou seu chamado:

— Liber, libri exaudi me venire ad me.

Ela ouviu movimento do outro lado do armazém e depois o som de uma tranca sendo aberta. Repetiu o chamado e esperou de mãos estendidas.

O livro apareceu para ela. Livre de seu esconderijo, pairava acima de um baú de metal aberto.

— Venire ad me — disse Cassie e o livro rapidamente voou para suas mãos.

Cassie viu que Alice, Beatrix e alguns dos ancestrais mais fortes começavam a resistir à conjuração de Adam e Diana. Não demoraria muito e eles reuniriam energia suficiente para romper o feitiço.

Com o livro em segurança na mão, Cassie correu de volta à janela. Quase estava passando por ela quando Absolom caiu a sua frente, como um morcego do teto. Trajava as roupas pretas e a gola de padre, e o rosto estava torcido em um esgar cruel. Ele se preparou para lançar um feitiço e Cassie ficou petrificada de pavor.

— Entregue-me o livro — disse ele.

Ele se virou então e apontou para Adam e Diana, explodindo a bola de luz que eles criaram em uma densa fumaça preta.

Alice voltou a si com um solavanco. Agora atenta ao que a cercava, ela encarou Cassie e viu o livro em seu poder.

Ela e Absolom lançaram simultaneamente um feitiço em Cassie, ou no livro — era difícil saber —, porque o livro de imediato esquentou nos braços de Cassie. Mas não a estava queimando. Ele reagia. E o feitiço que eles lançaram não teve nenhum outro efeito.

O livro se atraiu para o peito de Cassie. Ela o segurou bem perto e sentiu sua ligação, sua energia. O livro, ela sentiu, dava-lhe poder como uma bateria.

A testa de Absolom se enrugou de confusão. Ele inclinou a cabeça, incapaz de entender como seu poder estava sendo desviado.

Alice e os outros ancestrais estavam parados, numa incredulidade semelhante.

— Fujam! — gritou Cassie para Adam e Diana, de repente entendendo que o livro queria ficar com ela — que ela seria capaz de fugir a salvo com ele nos braços, mas eles podiam ser feitos reféns.

Adam e Diana obedeceram. Mas os ancestrais não estavam preocupados com eles ou com sua fuga. Avançaram para Cassie com os olhos escurecidos. Samuel tinha as mãos erguidas e a encarava, inexpressivo. Charlotte e Thomas sussurravam encantamentos malignos à meia voz. Mas nada conseguia tocá-la. O livro agia como um escudo para Cassie.

— Deixem que ela vá — urgiu Scarlett para eles. — Ela pode ficar com o livro idiota. Ele não importa mais. Temos o que precisamos.

Os ancestrais ignoraram Scarlett. Absolom tentou o mesmo feitiço que Cassie usou para trazer o livro a seus braços, mas, partindo dele, eram apenas palavras vazias.

O livro não ia abandonar Cassie.

Beatrix gritou para os outros, “Não deixem que ela saia daqui!”

Mas Cassie foi rápida ao se virar e pular pela janela, depois correr para a estrada. Alguns passos à frente, na distância escura, ela via Adam e Diana correndo a salvo pela noite, indo para casa.

De volta à Crowhaven Road, Cassie, Adam e Diana enfim pararam de correr.

— Estamos bem — disse Cassie, tentando se acalmar, assim como eles. — Estamos a salvo.

— Graças ao livro. — Adam tentava recuperar o fôlego. — Caso contrário, estaríamos acabados.

Diana se curvou com as mãos nos joelhos, ofegante.

— Mas você conseguiu, Cassie, você o pegou de volta!

Cassie colocou o livro ainda quente embaixo da blusa, prendendo-o no cinto que usava. Queria se sentir vitoriosa, mas a voz de Scarlett ainda tinha eco em seus ouvidos. Os ancestrais já conseguiram o que precisavam do livro: aquele feitiço que Absolom mencionou durante o jantar.

— Mas eles estão planejando alguma coisa — disse Cassie. — Para a próxima lua cheia. Com ou sem o livro.

Adam passou o braço por Cassie e ela não resistiu a ele.

— Devia se sentir orgulhosa — disse ele, tentando manter o moral dela o mais alto que podia. — Pelo menos hoje nós vencemos.

Ainda assim, enquanto os três continuavam a caminhada para casa, caiu sobre eles um senso de derrota. Adam ficou perdido em pensamentos, chutando pedrinhas a cada passo. Diana observava sem esperança o céu tranquilo da noite. Para Cassie, nunca era bom fugir de uma batalha. Mesmo que fosse a única alternativa e mesmo que ela tenha conseguido o que queria — ainda não parecia digno.

Covarde. Assim Alice ou Beatrix teriam descrito sua retirada. Vergonhosa.

Diana parou quando eles chegaram à saída que levava à casa de Max.

— Eu vou por aqui — disse ela.

Cassie lhe abriu um sorriso. Pelo menos Diana tinha Max de volta a sua vida, sua única e exclusiva alma gêmea. Esta era uma alegria em que Cassie podia se concentrar.

— Você mereceu — disse Cassie. — Vamos nos reagrupar amanhã e pensar no próximo passo.

Diana se afastou sozinha, acelerando um pouco a caminhada, Cassie notou, mas ainda olhava o céu.

Adam segurou a mão de Cassie e andou com ela pelo resto do caminho até sua casa. Quando eles subiram a escada da varanda, Cassie o convidou para entrar, embora não precisasse fazer isso. Nenhum dos dois precisava verbalizar que também não queria ficar só.

Cassie levou Adam diretamente a seu quarto, fechou a porta e se deitou na cama.

— Nunca vi Diana tão apaixonada por um garoto — disse Adam.

Cassie sorriu com malícia.

— Nem mesmo por você?

— Nem mesmo por mim. — Ele riu, puxando Cassie para um beijo.

Por algum motivo o cordão prateado faiscou pela mente de Cassie — não o cordão entre ela e Adam, mas aquele entre Adam e Scarlett. O medo que instilava em Cassie ultimamente tinha sido encoberto por todas as outras ameaças mais imediatas que ela enfrentava, mas nunca deixou de existir em algum lugar ao fundo.

Adam ainda a beijava e Cassie correspondia, mas sua mente vagou para Nick, e as perguntas incessantes começaram a surgir: como você pode saber com toda certeza que encontrou o verdadeiro amor? Existe uma coisa assim, deixando os cordões prateados de lado? Será possível ter mais de uma alma gêmea?

Adam se afastou por um momento.

— Tudo bem com você? — perguntou ele.

Cassie segurou o rosto dele nas mãos.

Por esta noite, ela precisava tirar todas essas perguntas e a ansiedade da cabeça. Nem sempre haveria respostas claras. Ela precisava aceitar isso.

Com delicadeza, ela puxou o rosto de Adam para o dela.

Às vezes os corpos podem se comunicar de um jeito que não é possível para a linguagem. A boca de Adam na de Cassie dizia tudo que havia para ser dito.


18

Na manhã seguinte, Cassie entrou no carro de Adam desejando que ele os levasse a qualquer lugar, menos à escola. Ela acordou exausta, como se pudesse dormir o dia todo e ainda continuar cansada.

Adam procurou carinhosamente sua mão.

— Eu sei — disse ele. — Também estou com certo medo deste dia. Provavelmente haverá uma retaliação para o nosso lado.

Cassie mal tinha energia para responder. Mas era exatamente o que estava pensando. O livro estava escondido e em segurança em sua casa, nenhum demônio podia atravessar e entrar na propriedade, porém ela e os amigos eram um alvo — especialmente na escola. E após terem sido ridicularizados na véspera, Cassie tinha certeza de que os ancestrais estavam preparados para exibir seu poder.

Adam deixou Cassie se desligar por alguns minutos e se concentrou na rua, mas quando estavam se aproximando da Cup, ele reduziu o carro.

— Quer parar para um café rápido?

— Já tomei um hoje de manhã — disse Cassie.

— Parece que você precisa de outro — replicou Adam e imediatamente recuou. — No melhor sentido possível. — Ele abriu um sorriso amarelo.

Cassie suspirou e olhou pela janela.

— Tudo bem — disse ela. — Acho que não vai fazer mal.

E então ela viu algo que a fez despertar num estalo.

— Espere — disse ela. — Aquela é Faye? Com Beatrix?

Adam estreitou os olhos até conseguir vê-las.

— Precisamos segui-la. — Ele girou o volante rapidamente para a direita.

Adam estacionou o carro e eles foram para a entrada alternativa da cafeteria, uma porta lateral da qual observaram Faye e Beatrix pegando suas bebidas e procurando um lugar para se sentar.

Cassie se esforçou para ouvir a conversa das duas, mas o lugar estava barulhento e agitado com o movimento da manhã. Faye e Beatrix encontraram uma mesa vaga perto da frente, longe demais de Adam e Cassie para que eles distinguissem qualquer coisa que estivessem discutindo. Lentamente, ela e Adam se aproximaram, mas era inútil.

Adam refletiu por um momento.

— Tive uma ideia — disse ele. — Um feitiço para entreouvir.

Cassie detestou a ideia de fazer feitiço em público, mesmo o mais simples, mas concordou.

Adam segurou a mão dela, fechou os olhos e sussurrou um encantamento:

Eco e zumbido, confusão e barulho,

Clamor e tumulto, por dentro e por fora

Caiam em silêncio, atentem ao chamado

Que venham a paz e o silêncio agora

Adam abriu os olhos e recitou o último verso:

— Vozes que buscamos, ergam-se sobre tudo.

A sensação foi parecida com o minuto pouco antes do desmaio, ou do mergulho na água. Cada som se misturou em um murmúrio baixo. Depois duas vozes distintas surgiram claras como cristal.

Faye perguntava:

— Você me quer?

Justo o que Cassie suspeitava. Beatrix tentava Faye a se juntar ao Círculo das trevas e Faye estava mordendo a isca.

— É claro. — A pele de Beatrix reluzia, clara, lisa e nova. Sua voz era igualmente suave, porém envelhecida pela experiência.

Ela focalizou os olhos inexpressivos em Faye.

— Temos uma missão muito específica para você. Precisamos que roube o Livro das Sombras de Cassandra. Agora que Scarlett foi idiota o bastante para deixá-lo escapar.

Faye não deu nenhuma resposta imediata, mas parecia estar refletindo sobre o desafio.

Beatrix continuou a falar num tom baixo e firme.

— Se ela não fosse tão patética — disse ela. — Entende o que quero dizer, não é, Faye? No fundo, você não sentiu sempre que é mais inteligente do que todos os outros a sua volta? Você jamais vai alcançar todo o seu potencial naquele Círculo. Todos são covardes, menos você.

Beatrix foi a ancestral que possuiu o corpo de Faye, isso significava que conhecia a melhor maneira de ganhar Faye para o lado dela. Ela sabia das insatisfações de Faye e de cada atrito dela com o Círculo.

Faye tinha os olhos baixos, assentindo de leve.

— Você não se sentiu sempre diferente, como a ovelha negra de seu próprio Círculo? — perguntou Beatrix.

A concordância de Faye com a cabeça ficou menos contida. Ela olhou Beatrix de frente, incapaz de resistir a seu olhar fixo.

— Foi exatamente assim que me senti a vida toda — disse Faye.

— Ela está enfraquecendo a cada segundo — cochichou Adam.

— Isto porque você é diferente — disse Beatrix. — Você é muito mais inteligente do que Scarlett ou Cassie.

— Então, isso é um teste? — perguntou Faye. Sua voz saiu trêmula. — Se eu pegar o livro, serei escolhida como seu 12º integrante?

Beatrix sorriu e nem uma única ruga apareceu em torno da boca ou dos olhos.

— Você já foi escolhida. Agora cabe a você escolher a nós e provar sua lealdade.

— E então terei a magia negra — disse Faye.

— Não suporto mais assistir a isso. — Adam se ergueu. — Precisamos impedi-la.

Antes que Cassie conseguisse dizer o contrário, Adam intrometeu-se intempestivamente na conversa de Faye com Beatrix, interrompendo-as no meio de uma frase.

— Faye, que surpresa ver você — disse ele, alto demais.

Faye se sentou reta com um solavanco e a expressão de Beatrix ficou azeda.

— Que bom que te encontrei, ou você chegaria atrasada na escola. — Adam pegou Faye pelo braço e tentou puxá-la da cadeira. — Vamos.

Beatrix se levantou rapidamente, o cabelo caindo às costas. Ela segurou o outro braço de Faye.

Cassie continuou imóvel e reta.

— Vocês dois, soltem Faye — disse ela.

Agora Faye estava de pé entre Adam e Beatrix, cada um deles relutando em soltar o braço.

Faye olhou para Cassie e libertou seus pulsos com uma torcida.

— Preciso ir andando — disse ela a Beatrix. — Não quero chegar atrasada para a preparação.

— Podemos continuar de onde paramos. — Beatrix ignorava inteiramente a presença de Adam e Cassie. — Você sabe onde me encontrar.

Faye girou nos calcanhares, deixando os três parados ali, e foi para a porta. Cassie e Adam a seguiram.

— Ei! — gritou Adam. — Precisamos conversar sobre o que acabou de acontecer. Precisa ser mais forte do que isso, Faye. Você estava comendo na mão de Beatrix.

Faye se dirigiu a seu carro e, ignorando Adam, procurou a chave na bolsa.

— Faye, nós vimos você. — Adam ainda gritava, apesar da indiferença de Faye. — Nós ouvimos.

Faye se sentou no banco da frente do carro e bateu a porta. Ligou o motor e saiu do estacionamento cantando pneu.

Adam franziu os lábios e olhou para Cassie.

— Ela é impossível.

— Talvez a gente não deva saltar para conclusões precipitadas — disse Cassie meio desanimada, tentando acalmar Adam.

— Está de brincadeira comigo? Se não tivéssemos interrompido aquela conversa, como acha que teria terminado? Ela teria caído na isca de Beatrix, direto ao inferno.

Cassie sabia que Adam tinha razão.

— Vamos ficar de olho nela — disse Cassie. Mas ela sabia que o verdadeiro desafio seria manter Beatrix afastada. E entender que chave o livro de Black John continha para destruir os ancestrais de uma vez por todas.


19

Enquanto a Sra. Walker andava pela frente da sala, dando uma aula sobre a peste bubônica, Cassie pensou em sua família. Era difícil se concentrar quando os fatos históricos brutais que ela aprendia na escola podiam ser levados para o lado pessoal. O papel de seus ancestrais na disseminação da peste não era uma associação de que ela se orgulhasse, para dizer o mínimo. Porém, a Sra. Walker persistia, apesar de tudo, em sua aula.

— Disseminada por roedores e suas pulgas — disse ela —, a peste bubônica, também conhecida como peste negra, matou aproximadamente 25 milhões de pessoas.

Ela mexia em uma caneta marca-texto enquanto andava em círculos pela frente da sala.

— Depois da mordida — disse ela —, os sintomas apareciam rapidamente. Convulsões. Delírio. O escurecimento dos dedos e dos lábios. Vômito de sangue e, em alguns casos, sangramento pelos ouvidos.

Cassie se retraiu. Era uma imagem horrenda, agravada pelo conhecimento de que a peste negra, a Black Death, era na realidade a peste dos Blak. A mente científica argumentou que a peste foi espalhada por ratos, Timothy havia lhe dito. Isto é verdade — mas os ratos foram enfeitiçados por seus ancestrais.

— Foi o pior desastre humano na história — continuou a Sra. Walker. — A sociedade ficou cada vez mais violenta à medida que morria mais gente. A criminalidade se alastrou; houve revolta e perseguição.

Mas o que deu início a tudo isso?, Cassie havia perguntado a Timothy. O que os Blak queriam?

A resposta de Timothy foi vaga. Desde bem o início, o homem que começou o Livro das Sombras de sua família estava decidido a obter a vida eterna. Ele vendeu sua alma, mas o tiro saiu pela culatra. Quando ele morreu, sua linhagem sanguínea estava amaldiçoada. E também o livro.

A Sra. Walker parou de andar por um momento.

— Algumas pessoas colocaram a culpa de toda a degeneração em causas sobrenaturais. Entalhavam cruzes nas portas de entrada de suas casas para afastar os maus espíritos. Mas hoje sabemos a verdade.

Cassie se remexeu na cadeira, pouco à vontade. Tentava encaixar as peças de formatos diferentes desta história.

— Tenho uma pergunta — disse ela ao disparar a mão para cima. — Como tudo isso começou?

A Sra. Walker franziu o cenho com a interrupção.

— Os ratos — disse ela. — Você não estava prestando atenção?

— Mas quem e onde? — gaguejou Cassie. — A origem. Quem foi o primeiro?

A Sra. Walker jogou na mesa a caneta que estivera segurando.

— A primeira epidemia registrada remonta ao século VI, no Império Bizantino. Na época chamaram de peste de Justiniano, devido ao imperador, Justino I, comumente conhecido como Justiniano o Grande. Os registros mostram que ele foi infectado, mas sobreviveu por milagre. Sua mulher sucumbiu, assim como a maioria de seus filhos, mas ele viveu por algum tempo em perfeita saúde.

— Então ele começou a peste? — disse Cassie.

A Sra. Walker fechou a cara.

— Cassandra, o que deu em você? Você sabe muito bem. Uma pandemia não pode ser imputada a um homem só. — Ela riu com condescendência. — A peste de Justiniano simplesmente foi o primeiro surto de uma doença que voltaria por gerações, em ondas. Mas provavelmente foi levada à cidade de Constantinopla por roedores infectados nas embarcações de grãos que chegavam do Egito. Esta foi a fonte do contágio... e não uma pessoa.

Cassie batia o lápis na superfície do caderno.

Será que Justiniano o Grande foi o homem responsável não só pela peste negra, mas pela maldição de sua linhagem sanguínea?

O Livro das Sombras de seu pai foi o livro iniciado por Justiniano?

Será que o desejo dele pela vida eterna ainda o impelia, mesmo agora?

Algumas peças se encaixavam na mente de Cassie. Mas o resto exigiria um especialista.

Cassie voltou a sintonizar na aula bem a tempo de pegar sua conclusão.

— Foi uma época de retrocesso sem precedentes — declarou a Sra. Walker. — Uma parada no progresso que é improvável que vejamos de novo.

Vai sonhando, pensou Cassie. Se Faye passasse para o outro lado e as suposições de Cassie sobre seus ancestrais estivessem corretas, eles se tornariam indestrutíveis. Não haveria como saber o quanto os dias à frente seriam sombrios — para sempre.

A sineta tocou, assustando Cassie e a arrancando desta última reflexão. Ela disparou para a porta, sentindo que literalmente corria contra o tempo. Precisava encontrar Adam e Diana, e eles tinham de partir imediatamente em uma rápida viagem de carro — para ver Timothy Dent. Ele podia ser a última esperança do grupo.

Adam, Diana e Max ficaram em silêncio ao ver o reboco cinza e esfarelado da biblioteca.

— Nós vamos entrar aí? — perguntou Adam, engrenando o carro para estacionar.

— Este prédio parece prestes a desmoronar — disse Max.

Cassie saiu do carro e os outros a seguiram com relutância.

— Tem certeza de que este lugar não está abandonado? — perguntou Diana, lutando para atravessar o terreno irregular com as sapatilhas finas de balé. Ela procurou apoio na mão de Max. — Não parece que tem alguém aí.

— Ele está aqui — falou Cassie. Ela abriu a porta rangente, revelando o saguão mal iluminado e as pilastras de madeira de que se lembrava da última visita.

Timothy estava de pé atrás do mesmo balcão elevado, porém, ao contrário da ocasião anterior, sua cabeça se levantou prontamente.

Cassie entendeu que ele estivera esperando por ela.

— Sr. Dent — disse ela do outro lado do hall de quadrados de pedra cinza.

— Quem é este estranho? — perguntou ele, na defensiva.

— Dois membros do meu Círculo — disse Cassie. — Adam Conant e Diana Meade.

— Não. Ele! — gritou Timothy, interrompendo Cassie. Apontava o dedo comprido e enrugado para Max.

Max prendeu a respiração. Recuou para a porta por onde haviam entrado. Cassie compreendeu que Timothy de algum modo havia sentido que Max era um caçador de bruxas.

Ela estendeu a mão e segurou o pulso de Max para impedir que ele voltasse ao carro.

— Ele é um de nós — disse ela a Timothy. — É um ex-caçador, mas provou sua lealdade a nosso Círculo. Sem ele, não teria sido possível resgatar meus amigos dos demônios.

Timothy olhou Max por alguns segundos, depois os três coletivamente.

— Bem, fico feliz por saber que o feitiço de exorcismo funcionou — afirmou, deixando-se baixar a guarda pela primeira vez desde que eles chegaram. — Por que motivo estão aqui?

Cassie deu um passo adiante e os outros a seguiram. Timothy estava com a mesma camisa preta de mangas curtas que Cassie vira da última vez. Novamente, estava raiada de poeira. Será que ele nunca lava as roupas?, perguntou-se ela.

— Precisamos de sua ajuda — disse Cassie.

Timothy bufou.

— Isso eu imaginei.

— Eu consegui realizar o exorcismo — respondeu Cassie. — Mas os espíritos ancestrais retornaram à forma corpórea. Agora estão livres em New Salem e tentam obter o 12º membro para fechar seu Círculo.

Os olhos cinza de Timothy se paralisaram, mas não revelaram nenhuma surpresa. Ele se virou para seu escritório.

Cassie supôs que eles deveriam segui-lo. Os quatro entraram pelas portas de vidro em uma fila única e encontraram onde se sentar.

Timothy mexeu em vários armários e gavetas de arquivo, empilhando alguns livros e pastas na mesa antes de se deixar cair em sua poltrona de couro marrom.

— Como eu temia, Absolom deve ter alterado o exorcismo — disse ele. — Ele o refez para uma ressurreição.

— Então, fizemos exatamente o que ele queria de nós — falou Adam.

Timothy acenou com a cabeça na direção de Cassie.

— Sim, ela fez.

— Eu fiz o que o senhor me disse para fazer! — rebateu Cassie.

Timothy estreitou os olhos e apertou a ponte do nariz.

— Por favor, sem gritaria. Sua voz passa por dentro de mim.

— Por que não me contou sobre Justiniano o Grande? — disse Cassie.

Os olhos de Timothy se arregalaram. Sua boca se abriu em um sorriso torto e cheio de dente.

— Esteve fazendo o dever de casa. Muito bem.

— Ele foi o homem que começou o Livro das Sombras da minha família — disse Cassie. — Aquele que o senhor me contou que estava decidido a obter a vida eterna.

— Sim, eu lhe disse que ele vendeu sua alma. Disse que quando ele morreu, sua linhagem sanguínea e seu livro foram amaldiçoados.

— O senhor não me contou o nome dele — disse Cassie. — Por quê?

— O nome dele não tem importância.

— Por que não teria importância? — insistiu Cassie.

O rosto de Timothy se avermelhou.

— Não pode me contar só metade da história — disse Cassie. — Ou o senhor está disposto a nos ajudar, ou não está. Se seu ódio por meu pai é o que o está impedindo de...

— O nome dele mudou! — gritou Timothy.

Cassie ficou assustada com a raiva dele. Todos ficaram.

Timothy apontou o retrato na parede atrás de sua mesa.

— Justiniano I — disse ele. — Ele foi a fonte. Está satisfeita?

Cassie fitou o homem coroado, enfeitado com a riqueza de um imperador. Um círculo envolvia sua cabeça como um halo de santo.

— Ele estava decidido a obter a vida eterna — disse Timothy. — Porém, ainda assim morreu. E quando conseguiu ressurgir da morte, morreu novamente. E na última vez que ressuscitou, você e seu Círculo o mataram.

O coração de Cassie parou.

— Quer dizer que...

Timothy abaixou alguns fios de cabelo branco erguidos durante sua breve fúria.

— Seu pai foi a fonte, Cassie — disse ele com mais calma. — Mas tudo que seus ancestrais deixaram deve estar naquele livro. Seu impulso pela vida eterna vive neles. É a busca deles agora.

Cassie se permitiu ter alguns segundos para raciocinar, para fazer ajustes. Ela podia ver o choque de seu próprio rosto refletido na cara dos amigos.

— Minha mãe sabe disso? — perguntou ela.

Timothy meneou a cabeça em negativa.

— Nem mesmo sua avó sabia. Levei toda a minha vida para deduzir.

— Faz sentido — disse Cassie. — O jeito como o livro se agarra a mim.

— Sr. Dent — falou Diana —, Cassie ouviu os ancestrais falando de um feitiço. — Mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Timothy a interrompeu.

— É um feitiço da vida eterna. É o que os ancestrais vieram procurar. Mas, para sorte de vocês, eles precisam de um Círculo completo e isto deve ser feito sob uma lua cheia.

— Sei, sorte — disse Max com sarcasmo.

Cassie deu uma última olhada na pintura medonha de Justiniano I.

— E o que vamos fazer agora? — perguntou ela. — Eles podem ser impedidos?

— Não tenho certeza — disse Timothy. — Eu estava tentando identificar este feitiço quando perdi meus poderes 16 anos atrás.

Ele se curvou desagradavelmente para perto de Cassie.

— Quando o seu pai retirou meus poderes 16 anos atrás.

Seu hálito tinha cheiro de cebola frita.

— Se você conseguir queimar o livro de Black John usando este feitiço — continuou ele, felizmente afastando-se —, ele destruirá a magia negra do livro e os demônios que saíram dele. Inclusive o demônio que teve origem em Justiniano o Grande.

Timothy desenrolou um pergaminho na mesa e o prendeu com pesos para evitar que se fechasse. Continha o texto de seu feitiço numa letra mínima e cuidadosa.

— Os espíritos ancestrais estão vinculados ao livro assim como você, Cassie — disse Timothy. — Porém, para eles, o livro é sua força vital.

Cassie examinou o texto meticuloso do pergaminho.

Adam pegou uma lente de aumento na mesa de Timothy e a apontou para alguns detalhes.

— Se o Círculo usar este feitiço para queimar o livro antes que aconteça o feitiço para a vida eterna — perguntou Adam —, estaremos livres daqueles demônios para sempre?

Timothy fechou um olho e assentiu.

— Se vocês fizerem direito, toda a magia negra que saiu do livro será eliminada.

Ele contornou a mesa, murmurando.

— Tive meus poderes roubados pouco antes de ter a oportunidade de fazer este feitiço e ninguém mais queria tentar. Ficaram preocupados demais com as consequências. E nem um só deles me emprestou seu poder também. Nem um só bruxo em toda New Salem.

— Tenho a sensação de que o senhor ainda não está nos contando toda a história — disse Diana. — Por que ninguém experimentaria o feitiço? De que consequências eles tiveram medo?

Os olhos de Timothy faiscaram com o avanço de Diana.

Cassie olhou para ela, pedindo silêncio. A última coisa que eles precisavam era que Timothy os expulsasse dali naquele momento.

— Toda magia tem consequências — disse ele com rispidez. — É a lei simples de causa e efeito.

— É claro — falou Adam. — Nós entendemos isso. — Ele pegou o pergaminho e começou a enrolar dentro de seu recipiente. — É exatamente disto que precisamos.

— Vocês precisam de mais do que só isso, meu jovem. — Timothy pegou um jogo de chaves de metal opacas na gaveta da mesa e arrastou-se para o armário de ferro dentro da parede que parecia um cofre de banco. Destrancou, abriu a porta enorme e por um momento desapareceu ali dentro.

Reapareceu trazendo uma caixa grande de madeira.

— Vocês devem queimar o livro de Black John — disse ele. — Mas precisam de um Círculo completo para fazer isso. Também precisarão de tudo que está aqui.

Ele entregou a caixa a Max.

— É mais pesada do que aparenta — avisou ele. — Mas você tem músculos grandes.

Max abriu um meio sorriso, sem saber o que fazer com a caixa por um momento, antes de decidir colocá-la em sua cadeira.

Estava bem cerrada com fechos de bronze escurecidos, mas não parecia trancada.

— Ande, pode abrir — falou Timothy.

Max levantou a tampa da caixa e a vasculhou. Estava cheia de mantos cerimoniais bem dobrados, cristais, incenso e velas.

Enquanto Cassie, Diana e Adam examinavam seu conteúdo, Timothy desapareceu mais uma vez na câmara. Voltou trazendo uma caixa de madeira menor e parecida, que entregou a Cassie.

Cassie pôs a caixa na mesa de Timothy e dirigiu as mãos aos dois fechos.

— Não, agora não — disse Timothy com urgência. — Só abra esta quando não tiver alternativa. É o único jeito.

Cassie olhou para Adam, depois para Diana e Max.

— Mas o que tem aqui dentro? — perguntou ela a Timothy.

— Espero que você consiga fazer o que eu não consegui anos atrás — disse Timothy. Ou ele não ouviu a pergunta, ou simplesmente preferiu ignorá-la.

Cassie teve uma sensação ruim quanto a isso.


20

Cassie estava cercada pelos rostos dos amigos enquanto o apito do treinador Kaelin ecoava pelo campo de futebol americano. Era o dia seguinte na escola e o Círculo tinha uma reunião embaixo da arquibancada. Max estava entre eles. Ele e Diana se sentaram lado a lado no chão, mexendo nos dedos um do outro, incapazes de conter sorrisos, apesar das circunstâncias sombrias. Se ao menos o Círculo pudesse introduzir Max como seu 12º membro, pensou Cassie. A iniciação de um caçador, imagine só.

Adam olhou para Cassie, esperando que ela desse ao resto do grupo a notícia do que eles aprenderam com Timothy. Ele não tirou os olhos dela desde que eles saíram de Concord, entendendo, sem que ela precisasse dizer a ele, que a nova revelação sobre a história de seu pai pesava nela. Será que ela nunca se livraria verdadeiramente dele? Mas, como disse Timothy, o problema do Círculo eram os ancestrais — eram eles que estavam prestes a obter a imortalidade, mais próximos do que o pai de Cassie jamais havia conseguido chegar, em todas as suas vidas malignas.

Nick estava de óculos escuros e assim Cassie não conseguia ver seus olhos, mas podia senti-los voltados para ela, que fingia não perceber. Verdade seja dita, Cassie o esteve evitando enquanto ela e Adam ficavam cada vez mais inseparáveis. Não era o jeito mais maduro de lidar com seus sentimentos conflitantes, mas por enquanto era o melhor que podia fazer.

— Nós descobrimos que os ancestrais procuram mais do que apenas vingança — contou Cassie ao grupo.

— “Nós” quem? — perguntou Faye.

— Alguns de nós foram ver um homem sobre quem minha mãe me falou — respondeu Cassie. — Ele dedicou a vida a estudar minha família. E ele nos contou que o plano dos ancestrais é realizar um feitiço de vida eterna. Por isso eles precisam de um 12º integrante.

Ela correu os olhos por cada um deles. Cassie tinha toda a fé do mundo em seu Círculo, mas esses ancestrais das trevas tinham muito a oferecer. Poder ilimitado. Vida eterna. E depois de perder tantos entes queridos para os caçadores recentemente, ela não culparia ninguém por ficar tentado.

— Mas se conseguirmos um 12º integrante antes deles — disse Cassie — e fizermos um feitiço para queimar o livro do meu pai, os ancestrais serão destruídos para sempre.

— Não brinca — disse Doug com ironia.

Nick virou o rosto por um momento e baixou os óculos escuros.

— Ouviram isso?

Cassie ouviu. Houve um assovio vindo das árvores.

— Um vento? — perguntou ela. Depois seus ouvidos estalaram como se ela estivesse em queda livre numa montanha-russa.

Todo o Círculo se contraiu, jogando o pescoço para trás. Era uma sensação partilhada, o que quer que estivesse acontecendo.

A visão de Cassie ficou nebulosa; o mundo ao redor, indistinto.

— Não estou enxergando nada — disse Sean. — O que está acontecendo?

Uma imagem apareceu diante dos olhos de Cassie, como que num sonho. Era um salão, um salão de baile elegante, com pilastras de mármore e teto dourado. Estava lotado de pessoas vestidas em roupas finas, dançando e rindo, bebendo champanhe em taças de vidro de haste comprida. Cassie foi dominada por uma sensação de bem-estar, pela suave energia da jovialidade rica dessas pessoas — até o choque de um vidro se quebrando invadir a cena. Todos começaram a gritar. As luzes piscaram e as bordas da imagem escureceram, como uma fotografia envelhecida. Não, percebeu Cassie — como uma fotografia que se queima lentamente sobre uma chama. O salão de baile decorado, os convidados revelados, as pilastras antes fortes, enrugaram-se e escureceram até desaparecer nas cinzas.

E então veio uma voz. A língua trovejante de Absolom.

— Esta noite — falou ele — New Salem arderá.

Cassie despertou de imediato. Seus ouvidos estalaram pela segunda vez e a visão clareou.

Nick entrou em seu campo de visão, olhando em volta com os óculos de sol pendurados nos dedos. Adam e Diana piscaram, adaptando os olhos.

— Acho que isto significa que vamos ao baile beneficente esta noite — disse Faye.

— Aquele lugar era isso? — perguntou Doug.

Melanie assentiu.

— A festa beneficente da Sociedade Histórica de New Salem. Os ancestrais vão incendiá-la completamente.

Então esta era a grande vingança que os ancestrais estiveram tramando. Cassie percebeu que fazia todo sentido do mundo. A festa beneficente era o lugar ideal para se vingar de New Salem. Todo mundo importante estaria lá.

— Por que eles nos dariam este aviso? — perguntou Chris.

— Porque não querem que a gente perca — disse Deborah.

Enfim Nick recolocou os óculos escuros.

— Precisamos tentar impedi-los.

— Como? — disse Melanie, quase consigo mesma. — Eles são muito mais poderosos do que nós. O único jeito de impedi-los é com sua destruição.

— Melanie tem razão — disse Diana. — Mais um motivo para precisarmos completar nosso Círculo. Nossa única esperança é conseguir que Scarlett passe para o nosso lado.

— Até parece que isso vai acontecer — resmungou Faye. — Uma coisa é impedir que os ancestrais destruam a festa beneficente. Outra bem diferente é conseguir que Scarlett venha para o nosso lado.

Cassie pensou na iniciação de Scarlett. Depois que os caçadores mataram Suzan e Scarlett herdou seu lugar no Círculo, foi a pior coisa do mundo. Quisera Cassie saber na época como esta premonição era incorreta. As coisas desde então ficaram muito piores.

— E como vamos conquistar Scarlett? — A voz de Laurel falhava de frustração. — O que temos para tentá-la? Nada que possa competir com ser todo-poderosa e ter a vida eterna.

Cassie examinou o rosto de Adam. De cabeça baixa, ele aparentava estar perdido nos próprios pensamentos, inteiramente despreparado para o que Cassie estava prestes a colocar na mesa.

— Nós temos Adam — disse Cassie e a cabeça dele disparou para cima.

— Scarlett quer Adam — declarou ela. — Ele é nossa melhor aposta para conquistá-la.

Adam gaguejou, incapaz de encontrar as palavras certas. Balançou a cabeça em negativa.

— Não. — Lenta e dolorosamente, disse ele. — Esta não pode ser nossa única opção.

Uma determinação fria corria pelas veias de Cassie.

— Não há como escapar disso — falou ela.

Diana colocou a mão reconfortante no ombro de Cassie.

— Este é um sacrifício corajoso.

No início Cassie pensou que Diana pretendia dizer que era um sacrifício corajoso por parte de Adam, depois percebeu que Diana se referia a ela.

Só depois de reconhecer o elogio de Diana, Cassie voltou a atenção para Adam.

— Você precisa fazer isso — disse Diana a ele. — Pelo Círculo.

Adam olhava bem à frente, para o terreno, como se não conseguisse encarar nenhum deles.

— E como eu... — Ele se interrompeu.

Faye deu uma gargalhada.

— Acho que você sabe exatamente como, Adam. Você já fez.

Adam olhou com tristeza para Cassie e ela se esforçou para retribuir seu olhar com amor. Agora precisava estar calma. Não podia perder o controle.

De olhos marejados e nauseada, ela falou:

— Você tem de usar a festa beneficente para se aproximar de Scarlett. Convencê-la de que está apaixonado por ela, e não por mim. É nossa única esperança de conseguir que ela mude de lado.

— Todos estaremos lá com você — acrescentou Diana.

— Não pode dizer não, cara — disse Nick.

— Tudo bem — falou Adam por fim. — Farei isso pelo Círculo.

E embora fosse nisso que Cassie estivesse insistindo, algo dentro dela se despedaçou.

Sally Waltman era a voadora das líderes de torcida da New Salem High. Cassie observava da arquibancada enquanto ela era jogada, virada e lançada para todo lado, tudo isso enquanto mantinha o sorriso branco e luminoso. Sally é mesmo notável, pensou Cassie, sempre consegue se superar. E vinha de uma longa linhagem de pessoas importantes. O pai era o diretor do conselho da Sociedade Histórica — por isso Cassie viera ver seu treino. Estava na hora de aceitar a oferta de Sally de ajudar o Círculo.

Sally havia visto Cassie no meio do treino, então, quando o grupo se dispersou, foi diretamente na direção dela. Seu rosto estava ruborizado e brilhante e ela o enxugava delicadamente com uma toalha branca.

— E aí?

— Preciso de um favor — disse Cassie. — Mas esta não é a pior parte.

Sally enrolou a toalha em seus ombros mínimos e se sentou ao lado de Cassie.

— Não deixe nada de fora.

Cassie descreveu como os ancestrais pretendiam aprisionar todos dentro da festa beneficente da Sociedade Histórica, depois incendiar completamente o lugar.

Sally manteve os olhos em suas colegas de equipe que atravessavam o campo até o vestiário.

— Depois do que eles fizeram no auditório, duvido que estejam blefando.

Ela parecia repassar o pavor daquele acontecimento em sua mente, quadro a quadro, a cor sumindo de seu rosto.

— Não posso contar a meu pai. Não sem explicar como eu sei.

— E nem devia — disse Cassie. — O Círculo vai impedi-los, mas precisamos estar lá. Consegue nos colocar lá dentro?

— Isto é mole, colocarei vocês todos na lista. Mas como vão impedir os ancestrais, Cassie? Todas aquelas pessoas que estarão na festa... nem consigo imaginar...

— Faremos o que for possível — disse Cassie, com o cuidado de não fazer nenhuma falsa promessa. — Armados com feitiços de defesa, vamos contra-atacar um por um, como Nick e eu fizemos no auditório.

Quase parecia um plano. Mas o que Cassie não falou era que no auditório ela estava lutando contra os amigos possuídos. Os ancestrais eram muito mais fortes e poderosos, agora que tinham os próprios corpos.

Sally tirou uma mecha de cabelo que tinha caído na frente do olho e Cassie notou o tremor na mão dela.

— Não vou deixar que ninguém se machuque — disse Cassie. — Você não tem nada com o que se preocupar.

Era uma falsa promessa que provavelmente ela não deveria ter feito, mas pareceu acalmar Sally. Ela se levantou e desceu a arquibancada na direção do campo.

— Verei você lá — disse ela.

Cassie abriu o zíper do saco de roupa que guardava seu vestido de gala de alcinha e contas. Diana atravessou o quarto para admirá-lo.

— É lindo — disse ela. — É novo?

— Suzan escolheu para mim, um dia, quando fazíamos compras — disse Cassie. — Eu disse a ela que não via utilidade para um vestido de gala, mas ela insistiu que eu comprasse. Disse que era perfeito demais para deixar passar.

Faye virou o rosto e todas as meninas ficaram em silêncio.

Suzan sempre foi a melhor quando o assunto era se arrumar para uma festa elegante, e foi assim com o coração um pouco pesado que Cassie e as outras continuaram a tradição em sua ausência.

— Estive pensando nela a noite toda — disse Deborah.

Laurel se maravilhou com o trabalho complexo das contas no vestido.

— Todas nós estamos — disse ela.

Agora era o quarto de Diana, e não o de Suzan, que servia de cenário para os preparativos. Parecia o camarim de um estúdio de cinema. Havia espelhos iluminados por trás, instalados em cada superfície plana, modeladores de cabelo esquentando na cômoda, perfume no ar.

Melanie orientou Cassie a se sentar na cadeira de frente para o espelho maior.

— Temos de fazer o seu cabelo — disse ela. — Como está se sentindo esta noite, para cima ou para baixo?

— Faça para cima — gritou Laurel de dentro do closet de Diana.

Cassie concordou.

— Para cima — disse ela e Melanie passou a trabalhar, massageando óleo aromatizado de lavanda em seu couro cabeludo.

Cassie fechou os olhos, desfrutando do cheiro tranquilizador do óleo e dos dedos fortes de Melanie aliviando a tensão de suas têmporas. Por um momento tudo parecia normal. Que luxo perdido há tanto tempo era ouvir as amigas debaterem sobre algo tão insignificante quanto qual vestido combinava mais com a cor dos olhos e que sapatos as faziam parecer mais altas, porém não demais.

Faye saiu do banheiro segurando no alto dois vestidos de cetim preto, mínimos e quase idênticos.

— Não consigo decidir — disse ela a Deborah. — Qual deles?

Deborah, que estava recostada na cama de Diana, já vestida com um smoking branco de debrum roxo, de algum modo notou uma diferença entre os vestidos.

— Este — disse ela decidida, apontando aquele da esquerda.

— Foi o que pensei também — concordou Faye.

Diana pediu a Cassie para fechar o zíper de seu vestido perolado. Caía em cascata pelas pernas em uma cauda longa e fluida.

Cassie se viu relaxar. Quase estava feliz. Mas então Diana começou a falar de Max.

— Será nossa primeira festa elegante como namorados — disse ela e foi o que bastou para que a conversa feminina desse uma guinada para o território dos meninos.

Cassie foi ficando mal-humorada e calada. Seu estômago revirou quando se lembrou do fato que esteve se esforçando para afastar — Adam passaria a noite dando em cima de Scarlett.

— Cassie — disse Diana —, volte para nós.

Cassie tentou sorrir.

— Você não tem com que se preocupar — disse Laurel. — O que aconteceu com Scarlett enquanto Adam estava possuído, só aconteceu porque ele estava possuído. Ele era literalmente outra pessoa.

— Seria preciso estar possuído para ficar com aquela garota — acrescentou Deborah.

— Adam não poderia fugir de você, mesmo que quisesse — disse Melanie para o espelho, com um grampo entre os lábios. — Aquele cordão funciona melhor do que uma coleira curta.

Cassie trocou com Diana um olhar nervoso que fez todas as meninas se calarem.

— O que foi isso? — perguntou Faye, se colocando entre as duas. — Uma dessas palavras incomodou você, ou cordão ou coleira, e, de qualquer forma, a gente quer ouvir a história.

Diana evitou os olhos dela, mas Cassie disse que Faye tinha razão. Virou-se na cadeira para ficar de frente para elas e descreveu o cordão que apareceu entre Adam e Scarlett.

— A primeira vez que vi foi quando eu estava semiconsciente, depois de lutar com Scarlett no chalé em ruínas da Hawthorne Street — contou Cassie. — E na segunda vez o cordão pegou Adam desprevenido na noite do baile de primavera.

— Mas como isso é possível? — perguntou Melanie.

— Não entendo como — disse Cassie. — Queria que não fosse real, mas é.

Os lábios de Diana formaram um beicinho. Nem ela sabia o que dizer para tornar a verdade menos dolorosa.

Melanie analisou mentalmente esta nova informação.

— Então, quando Adam estava possuído — disse ela — e ele e Scarlett ficaram íntimos...

— Não foi só a possessão que o fez agir loucamente, como pensávamos — disse Laurel. — Ele e Scarlett têm uma ligação real?

O coração de Cassie despencou.

— Acho que é possível ter mais de uma alma gêmea. Pelo menos se você for o Adam.

Melanie e Laurel olharam para o carpete, de coração partido por Cassie.

E então Deborah deu um pulo da cama de Diana. Colocou a mão no ombro de Faye e a outra no de Cassie.

— Não sei quanto a vocês — disse ela. — Mas eu vou lançar pessoalmente em Scarlett um feitiço de desembelezamento se ela tentar alguma coisa com Adam.

Faye bateu um high five com Deborah.

— Assim é que se fala! Nós a deixaremos tão feia que os bebês vão chorar só de olhar para ela.

Cassie se permitiu rir. Seria uma noite difícil, mas ela estava feliz por ter as amigas a seu lado.


21

O salão de baile da prefeitura, com seu piso de mármore e teto alto, era o cenário para todos os eventos formais em New Salem — e a festa beneficente da Sociedade Histórica era o evento mais elegante de todos. A festa desta noite estaria lotada com a elite da cidade: acadêmicos, políticos e todos que fossem ricos o suficiente para pagar por uma mesa.

Cassie localizou Sally do outro lado da pista de dança, com um vestido pêssego com um laço na cintura. Estava ali com Max.

— Eles já estão aqui — disse Sally, apontando para Scarlett e o grupo de ancestrais reunidos num canto.

Eles pareciam mais sinistros do que nunca em trajes formais. Absolom, cujo cabelo preto estava puxado para trás com um gel brilhante, disse alguma coisa em voz baixa enquanto olhava para Cassie, e o grupo deu uma gargalhada.

— Ainda nenhum sinal de Adam? — perguntou Diana, estendendo a mão para Max. Ele trajava um terno cinza apertado o suficiente para mostrar seu físico.

Melanie correu os olhos pela multidão.

— Nada.

Laurel espiou os cantos do salão e cada saída de emergência.

— Não está acontecendo nada fora do comum — disse ela. — Ainda.

Faye cutucou Deborah.

— Vamos pegar uma bebida.

Cassie deu uma olhada na porta no exato momento em que Nick entrou. Ele estava de terno preto e gravata e pela primeira vez tinha trocado as botas de couro por um par de sapatos reluzentes.

Ele foi diretamente até Cassie.

— Soube que você vinha para cá desacompanhada — disse ele, brincalhão. — Isto significa que tenho a primeira dança?

Melanie ergueu as sobrancelhas e educadamente afastou Laurel. Diana estava em algum lugar com Max.

Cassie se permitiu abrir um sorriso.

— Se conseguirmos impedir o que está para vir esta noite, vou dançar direto até de manhã.

— É uma promessa? — disse Nick. — Porque vou cobrar de você.

Sean, Chris e Doug entraram pela porta e viram de imediato Nick e Cassie. Foram na direção deles, quase irreconhecíveis em ternos sob medida e com o cabelo penteado para trás.

— Algum movimento? — perguntou Chris.

Cassie olhou para o salão enorme. O piso preto e branco lembrava cenas de dança de antigos filmes clássicos. Dava lugar a pilastras de mármore e mesas de banquete cobertas por toalhas. Como era uma festa em benefício da Sociedade Histórica, as paredes e mesas foram decoradas com peças históricas de New Salem, emprestadas do museu — estátuas de figuras importantes, mapas antigos emoldurados em vidro, fotografias das famílias fundadoras.

Os ancestrais miravam tudo isso como abutres se preparando para um banquete. O pai de Sally estava ocupado demais apertando mãos e sorrindo para câmeras para percebê-los. Ele e os membros de seu conselho não tinham a menor ideia do que estava por vir. Igualmente distraídos, os Forasteiros vagavam em volta deles, desfrutando de canapés retirados de bandejas de prata. Cordeiros para o matadouro, pensou Cassie.

Cassie notou que Alice e Beatrix tinham se separado dos outros. Cochichavam uma com a outra, conspirando, no canto.

O vestido de Alice era preto, longo e reto. Podia ser muito antigo, ou apenas desenhado para ter essa aparência. O de Beatrix era semelhante, mas ela usava um xale vermelho nos ombros.

Cassie se aproximou delas.

— Então, você veio — disse Alice em sua monotonia grave.

— Eu disse a você que eles não iam perder — falou Beatrix.

Alice pôs os olhos dolorosos em Cassie.

— Vamos lacrar este lugar como uma tumba — disse ela. — Depois o fogo se alastrará. Sabe como é ser queimada viva, Cassie?

— Eu sei — disse Beatrix. — A pele de seu rosto derrete primeiro. Depois seu pescoço. As mãos, como se pudessem proteger você das chamas implacáveis. Você ficará bem consciente, mais consciente do que jamais esteve, e poderá sentir o cheiro do próprio corpo cozinhando. A carne assa muito lentamente, Cassie. Parece durar uma eternidade.

Cassie se retraiu.

— Ninguém aqui será queimado vivo esta noite — disse ela. — Meu Círculo não permitirá.

Neste momento Adam apareceu na porta, com seu melhor terno cinza-azulado. Lançou a Cassie um rápido olhar de desculpas enquanto ia na direção de Nick, Chris e Doug, que negligentemente avançavam em uma travessa de aperitivos.

Enquanto comia com os rapazes, Adam viu Scarlett e os ancestrais reunidos no canto de trás. Minutos depois, despreocupadamente pegou uma bebida para si e foi andando até eles.

Sentindo os olhos de Alice e Beatrix nela, Cassie fez o máximo para demonstrar aflição com a ideia de Adam indo falar com Scarlett. Não era difícil fazer isso ao notar o cordão fino que os atraía.

Cassie observou Adam atentamente. Seu rosto tinha relaxado na presença de Scarlett.

— Veja este sorriso — disse Beatrix, assentindo para Adam. — Não se pode fingir um sorriso tão luminoso. É evidente que ele está enamorado.

Adam levou Scarlett para a pista. Cassie tentou lembrar a si mesma que ele estava representando um papel, mas seu afeto parecia genuíno.

Scarlett passava os dedos pelo paletó de Adam, acariciando seu braço. Será que ele tremia? Não, era mais uma agitação.

A sedução de Adam precisava ser convincente. Era a única esperança do Círculo de levar Scarlett para o seu lado. Mas com alguns minutos observando os dois, todos no salão sumiram e Cassie começou a transpirar.

Scarlett tinha conseguido a atenção extasiada de Adam. Falava com ele em voz baixa, com o rosto perto do dele, balançando-se com a música. E ele estava um pouco inclinado, olhando a boca de Scarlett, seus lábios vermelhos e cheios se aproximando perigosamente dos dele.

Mas quando Scarlett avançou para um beijo, Adam rapidamente recuou. Foi onde ele traçou o limite. Scarlett tinha se inclinado e deu um beijo no ar.

Cassie respirou. A barreira em sua visão cessou, o salão voltou à vida e todos os outros convidados reapareceram.

Adam, quando era realmente Adam, não podia traí-la.

— Você devia reconsiderar seriamente sua decisão anterior de nos esnobar, Cassandra — disse Beatrix. — Olhe a sua volta.

Ela dirigiu o olhar de Cassie pelo salão.

— Toda essa gente inocente está prestes a morrer.

Alice colocou a mão fria e ossuda no ombro de Cassie.

— Não prefere ficar do nosso lado em vez do deles?

— Não — disse Cassie com firmeza. Ela se livrou da mão de Alice.

— Nosso lado vencerá. — Os olhos de Alice eram ardentes, mas Cassie não se deixaria intimidar.

— Não! — gritou ela de novo, sem se importar que a ouvissem junto com a banda de jazz.

Alice soltou um suspiro exasperado e virou para outro lado.

— Esqueça isso — disse ela a Beatrix. — Vamos destruir este lugar.

Sem perder mais tempo, Alice fez um sinal a Absolom, ordenando que os ancestrais agissem.

Antes que Cassie pudesse sequer levantar a mão em protesto, a peça central do salão de baile, uma estátua de pedra do primeiro prefeito de New Salem, explodiu em um milhão de pedaços que se espalharam pelo piso quadriculado como gotas de chuva endurecidas.

As pessoas gritaram e se abaixaram, cobrindo a cabeça. Os amigos de Cassie procuraram uns aos outros em meio ao pandemônio.

O Sr. Waltman, pai de Sally, agitou os braços.

— Só um acidente estranho — exclamou ele. — Ninguém entre em pânico. Estão todos bem?

Depois outra estátua explodiu, e mais uma. O piso preto e branco ribombou. Placas deslizavam das paredes. O Sr. Waltman cobriu a cabeça careca e começou a correr, junto com o resto da multidão, para a saída.

— Terremoto! — gritavam as pessoas.

Cassie e os amigos tinham previsto isso. Agrupavam-se e reuniam sua energia.

— Poder da Terra — disse Diana, liderando o feitiço de defesa. — Nós vos invocamos para nos proteger, para nos ajudar a defender este salão e as pessoas inocentes de qualquer mal.

Uma calma momentânea varreu o ar, o suficiente para enganar os apavorados Forasteiros a acreditar que o pior já havia passado.

Mas os ancestrais contra-atacaram a defesa do Círculo com uma investida ainda mais potente, rompendo sua barreira protetora.

Todas as pedras quebradas e vidro espatifado caídos no chão rodaram no ar como um tornado. Giraram pela sala, uma tempestade furiosa, destruindo tudo pelo caminho.

Uma moldura de bronze arruinada voou como um bumerangue para a nuca de Sally. Max mergulhou, tirando-a do caminho bem a tempo.

O Círculo lançou outro feitiço. Desta vez Cassie assumiu a liderança.

— Guardiões dos indefesos — apelou ela. — Rogamos a vós! Combatentes das causas justas, uni-vos contra este ataque maligno. Que os inocentes ergam-se contra este mal.

Mas os ancestrais eram poderosos demais. Uma sombra escura desceu sobre o salão, como a noite. Os Forasteiros batiam em cada porta de saída, em vão. Não havia escapatória. Eles estavam lacrados ali, exatamente como Alice havia dito.

A fumaça toldava o ar. Max e Sally tentaram arrombar uma das portas, usando uma mesa como aríete, enquanto os feitiços de defesa do Círculo continuavam a falhar.

Cassie e Adam se olharam. Ele tinha se unido ao Círculo em suas tentativas de bloquear a destruição dos ancestrais, esquecendo a falsa aliança com Scarlett.

— Eles são muito fortes — disse ele. — Temos de fazer alguma coisa, Cassie. Você é a única.

Bem no fundo, Cassie sabia que chegaria a isso. Sua magia negra era a única chance deles. Ela se voltou para dentro, a seu lugar mais sombrio, e procurou pelas palavras certas. Um calor correu por suas veias enquanto o salão de baile se incendiava.

Cassie sentiu os olhos endurecerem como calos. Ergueu os braços e esticou bem os dedos.

Malignis vis intra me, perdere hoc malum.

Purgare eam. Purgare.

Haec entia non gerunt nequam auctoritas!

Todo o corpo de Cassie tremia. As chamas que subiam pelas paredes do salão se aquietaram, como que num medo repentino.

Absolom gritou novas instruções em uma língua que Cassie não entendeu. Os ancestrais levantaram as mãos e o fogo rugiu duas vezes mais alto do que antes.

Foi neste momento que Cassie percebeu que o Círculo ia perder. O tempo todo, os ancestrais estiveram se contendo, apenas brincando com eles — com ela.

Este era o show deles.

Os Forasteiros começaram a desmaiar por todo lado devido à inalação de fumaça. Muitos caíram inconscientes. Max e Sally estavam prostrados no chão entre eles. Aqueles ainda despertos estavam histéricos, caindo um por cima do outro. Gritavam e pediam socorro, batendo insensatamente nas portas trancadas. Para Cassie, parecia o inferno na Terra.

Ela queria correr, mas não podia. E no entanto também não conseguia lutar. Não lhe restava nada. Este salão seria a tumba partilhada e o forno deles. Dela e de seu Círculo, e da cidade. Enfim estava acabado.

Então Absolom bateu palma três vezes e o salão caiu em silêncio. Todo movimento cessou. Só os ancestrais e o Círculo continuaram conscientes.

— Vocês já perderam — disse Alice. — Mas estamos dispostos a fazer uma proposta.

Cassie e Adam se entreolharam com cautela.

— Essas pessoas ainda podem ir para casa esta noite, a salvo — disse Alice. — Se um de vocês estiver disposto a passar para nosso lado agora.

— Esses Forasteiros não se lembrarão de nada — acrescentou Beatrix. — Isso está em suas mãos.

Cassie se virou para os amigos. Eles estavam exaustos, derrotados. Todas as relíquias históricas foram destruídas, reduzidas a carvão e cinzas.

Isto não estava nas mãos deles, pensou Cassie. Porque o resultado ainda seria sofrimento, era só uma questão de quando. Fosse como fosse, ela não havia conseguido proteger New Salem como havia prometido a Sally — como havia prometido a si mesma que faria.

— Eu irei! — gritou Faye.

Cassie sentiu uma torção de pânico no estômago.

— Apaguem o fogo — disse Faye aos ancestrais. — E eu serei de vocês.

Com um gesto de cabeça de Absolom, Alice agitou a mão e as chamas morreram, a fumaça se dissipou.

— Venha — disse Alice.

Faye atravessou o piso preto e branco do salão de baile com um andar confiante.

Alice deitou os olhos magoados em Cassie enquanto Samuel, Charlotte e Thomas se reuniam em volta de Faye, atraindo-a, murmurando aprovação.

— Devíamos fazer alguma coisa — disse Nick.

Melanie concordou.

— Não podemos deixar isto acontecer.

Mas ninguém fez um gesto que fosse para se intrometer. Na realidade, não havia nada a ser feito. O Círculo, e Cassie sozinha, tinha esgotado toda sua energia, que não era nem de longe o bastante.

— Faye só está indo com eles para salvar todas essas pessoas — sussurrou Deborah. — Ela está fazendo o que é certo.

Diana olhou para Cassie.

— Mas não podemos deixar que eles fiquem com ela, não é?

Beatrix envolveu Faye com o braço.

— Você era minha primeira opção o tempo todo — disse ela, levando-a para a porta. Ela a abriu com um feitiço silencioso. — Vamos para casa.

Adam correu para alcançar Cassie, que ia diretamente para a porta, tentando se afastar antes que alguém pudesse vê-la chorar. Era simplesmente demais para ela. Chega uma hora que uma garota desmorona.

Adam a segurou pelo pulso.

— Posso pelo menos acompanhar você até sua casa? — perguntou ele.

Cassie concordou, mas nenhum dos dois falou muito na caminhada pela rua. Cassie olhava para o chão, agora se sentindo tola com suas roupas elegantes e maquiagem no meio de tanta derrota.

— Vai ficar tudo bem — disse Adam. — Vamos pensar num jeito de trazer Faye de volta.

Ele pôs o braço nos ombros expostos de Cassie.

— Não tenho tanta certeza — disse ela. — Parece impossível derrotar os ancestrais.

Adam parou e obrigou Cassie a ficar de frente para ele. As mãos dele tremiam de leve nos braços dela.

— Isto ainda não acabou. E você não vai desistir — disse ele. — Eu não vou deixar.

Cassie ficou admirada de ver como Adam jamais perdia a esperança, jamais se rendia para a derrota ou o desespero. Ele verdadeiramente era único.

— E eu já falei como você está linda esta noite? — acrescentou ele.

— Bom — disse Cassie —, apesar do enorme fracasso da noite, pelo menos você não vai para casa com Scarlett.

— Estava preocupada com isso? — perguntou ele, parecendo sinceramente surpreso. — Eu só fiz tudo aquilo porque você mandou.

— Não estava preocupada — mentiu Cassie. Ela descansou a cabeça no peito de Adam e respirou seu cheiro. — Mas vou aceitar qualquer pequena vitória que possa ter agora.

Depois levantou a cabeça e lhe deu um beijo suave na boca.


22

Reunidos na sala secreta, a linguagem corporal de todos falava por eles. Melanie, Laurel e Deborah estavam recurvadas nas cadeiras. Diana e Max, jogados na cama. Os meninos se esparramavam pelo sofá, largados, como se sustentar a própria cabeça custasse muito esforço. Ninguém queria dizer em voz alta que a próxima lua cheia viria dali a três noites. Não era muito tempo antes de os ancestrais serem uma ameaça eterna.

Cassie desapareceu na cozinha e voltou com um lanche para melhorar o clima. Baixou uma travessa de biscoitos e uma tigela de pipoca que ninguém tocou e depois se sentou ao lado de Adam no sofá.

Deborah assumiu a palavra.

— Nossa magia não tem força suficiente contra eles — disse ela. — Como vamos resgatar Faye?

Sean arregalou os olhos.

— A gente devia botar fogo no armazém.

Chris aprovou, mas Doug negou com a cabeça.

— Isso nunca vai dar certo.

— Só precisamos distrair os ancestrais por tempo suficiente para dar a Faye uma chance de escapar — disse Diana. — Talvez um incêndio servisse.

— Tenho uma ideia melhor. — Laurel se levantou. — Somnus pulvis — disse ela, olhando para Diana. — O pó do sono.

— Sério? — Chris deu uma gargalhada. — Acha que um pouco de pó das fadas pode derrubar os bruxos mais poderosos de todos os tempos?

— Por cerca de dois ou três minutos — disse Laurel, na defensiva. — E é só o que precisamos para tirar Faye de lá.

Ela se virou para Cassie.

— Fiquei acordada a noite toda estudando os ingredientes. Só precisamos colocar nos olhos deles e eles vão cair.

Cassie tentou mostrar apreço.

— Isso parece ótimo, Laurel, mas não acredito que alguma poção ou pó vá funcionar em um demônio.

— Uma poção comum, não — disse Laurel. — Mas se eu a enfeitiçar e misturar com as ervas certas, vai funcionar.

A cara de Diana se abriu em um meio sorriso. Era o primeiro sorriso do dia.

— Acha realmente que pode fazer isso?

— É claro que ela pode — falou Melanie. — Laurel é um gênio!

Laurel tirou uma folha de papel do bolso e leu os ingredientes.

— Vamos precisar de lavanda, camomila, valeriana, eupatório, dedaleira e manjerona.

— E o que estamos esperando? — Adam perguntou. — Vamos até o jardim.

Cassie seguiu o grupo para fora. Era um tiro no escuro, que ela nem tinha certeza se acreditava que daria certo. Mas valia colaborar com a ideia para ver seu Círculo esperançoso.

Assim que escureceu do lado de fora, o Círculo partiu para o armazém. Recolheram todos os ingredientes da lista de Laurel, trituraram em um pó fino e o enfeitiçaram com magia. Cada um deles levava um saquinho de feltro com o pó, para ser jogado nos olhos dos inimigos.

O plano de ação era simples: atordoar os ancestrais, colocá-los para dormir, resgatar Faye. Cada membro do Círculo tinha como alvo um ancestral. Cassie buscaria Scarlett.

Nick verificou a tábua frouxa na janela dos fundos do armazém.

— Esses ancestrais são arrogantes demais — cochichou ele. — Ainda nem se deram ao trabalho de lançar um feitiço de proteção para nos manter de fora.

Eles ainda nem tinham consertado a janela quebrada, percebeu Cassie. Evidentemente se consideravam poderosos demais para tomar precauções assim.

Nick puxou de lado a tábua solta e, como gatos, o Círculo passou, um de cada vez. Os ancestrais não os ouviram entrar. Estavam sentados na sala principal discutindo, totalmente desprevenidos. Cassie apertou o punhado de pó na mão direita e localizou Scarlett recostada em um engradado, afastada do grupo.

— Vamos — disse Nick, e o Círculo caiu sobre eles, espalhando-se na batalha.

Adam foi o primeiro a jogar seu punhado de pó nos olhos de Absolom.

Absolom piscou rapidamente e cambaleou de pé por alguns segundos, depois cobriu o rosto e gritou. Caiu no chão enquanto um cheiro acre subiu ao ar. Sua pele chiava horrivelmente por baixo das mãos. Cassie não sabia o que estava acontecendo.

Laurel ficou horrorizada, mas ainda assim conseguiu jogar o pó na cara de Charlotte.

Diana pegou Alice. Deborah cuidou de Beatrix. Podia muito bem ser ácido de bateria que eles estavam jogando, queimando tão intensamente os olhos e o rosto dos ancestrais que uma nuvem acre de fumaça encheu a sala. Eles caíram, aos gritos estridentes, um por um.

Cassie olhou nos olhos de Faye, que estava de pé com as mãos junto do corpo, no meio de toda a ação. Ela não se mexeu; parecia perplexa que esta batalha fosse travada por ela — que ela fosse o prêmio.

Scarlett levantou as mãos para se defender, para impedir a aproximação de Cassie com um feitiço, mas só foi preciso um segundo para jogar o punhado de pó tóxico nos olhos dela. Scarlett se abaixou, assim como os outros, contorcendo-se no chão entre Samuel e Thomas.

Logo Faye era a única que continuava de pé. O Círculo se reuniu em volta dela.

— Vem, Faye — disse Cassie. — Vamos tirar você daqui.

— Rápido — acrescentou Melanie. — Só temos alguns minutos.

Faye começou a recuar.

— O que dá a vocês tanta certeza de que quero ir embora?

Os ancestrais já estavam se colocando de pé, mas ainda tinham as mãos no rosto cobrindo os olhos que queimavam.

— Faye — chamou Diana, estendendo a mão para ela, mas Faye a afugentou.

— Não — disse ela. — Gosto daqui. Eles me compreendem. E eles têm poder, poder de verdade.

— Não temos tempo para isso! — gritou Melanie.

— Eu não vou com vocês — disse Faye.

Deborah a segurou pelos braços.

— Você vai, sim. — Ela tentou arrastar Faye para a janela, mas Faye a empurrou, cheia de raiva. Arreganhou as unhas, que eram compridas e pintadas de vermelho sangue.

— Aprendi alguns feitiços novos desde que vim para cá — ameaçou ela. — Não me obriguem a mostrar a vocês.

Cassie concentrou sua energia. Faye não lhe dava alternativa senão usar magia contra ela. Um simples feitiço de cegueira serviria. O bastante para retirar Faye dali.

Porém, antes que Cassie conseguisse pronunciar as palavras, Laurel deu um grito.

Absolom estava firme de pé. Soltou um gemido abafado e balançou a cabeça de um lado a outro. Seus olhos estavam queimados, a pele em torno deles rosada e em carne viva, mas ele conseguia enxergar.

Cassie disparou seu feitiço para Faye, mas ela o desviou.

E então Alice se lançou para a frente.

— Recuar! — gritou Diana.

Faye ainda tinha as mãos em guarda, pronta para se defender contra qualquer feitiço.

Cassie assentiu para Diana.

— Recuar — repetiu ela e todos fugiram para a janela aberta.

Cassie foi a última a pular. Quando o ar fresco atingiu seu rosto, ela ouviu todos os ancestrais resmungando, jurando vingança. O cheiro de carne queimada ainda era forte no ar.

Cassie correu com os outros para o Jeep enferrujado de Chris. Sean agarrou o volante de couro, pronto para pisar no acelerador enquanto Cassie subia na traseira. No geral, o Círculo era uma visão lamentável.

Melanie acariciou as costas de Laurel.

— Sei que o pó não fez o que pensávamos, mas ainda assim ajudou.

A gentil Laurel estava traumatizada demais com a eficácia grotesca de sua poção para conseguir responder.

— Eu não esperava que Faye resistisse tanto — disse Deborah, ofegante.

— Acho que tomamos como certo que ela só mudou de lado para salvar as pessoas na festa — falou Diana. — Lá se foi essa ideia.

Cassie não falou nada. O que poderia dizer? O relógio estava batendo e as chances de o Círculo recuperar a lealdade de Faye não pareciam boas, nada boas.

Era meio da noite quando Cassie acordou de repente. Esteve pensando em Faye ao dormir, repassando as cenas de sua traição e a tentativa fracassada do Círculo de reconquistá-la, em diferentes combinações. Em cada versão os detalhes mudavam, mas o resultado era sempre o mesmo: fracasso. E rápido.

Não adiantava nada tentar voltar a dormir agora. Cassie estava agitada demais. Parecia que duas bolas de tênis tinham se alojado no espaço entre o pescoço e os ombros. Ela saiu da cama, vestiu seu moletom de capuz preferido, calçou tênis e saiu em silêncio.

Ao contrário de Cassie, a Crowhaven Road estava em sono profundo. Ela quase podia ouvir a própria rua ressonando pacificamente, sem ter consciência do horror da vida desperta.

Ela se virou para leste, na direção da água, acompanhando o cheiro de sal no ar, até as rochas que guardavam a praia. A escalada dessas pedras tensionou seus músculos, mas depois que ela pulou para o outro lado da divisória, foi recebida por um trecho de areia branca. A essa hora da noite, a praia estava deserta, um paraíso abandonado. O silêncio era suficiente para ouvir as ondas batendo ininterruptamente na margem.

Cassie olhou para a lua amarelada. Só mais duas noites até que fosse um círculo brilhante e cheio e os ancestrais lançassem o feitiço da vida eterna.

Ela se aproximou um pouco da água. Pelo canto do olho, pensou ter visto uma sombra. Procurou à esquerda, depois à direita. Deve ter sido sua imaginação. E então lá estava de novo — desta vez com toda certeza — um movimento rápido e nítido atrás de uma formação rochosa perto da água.

Cassie disse a si mesma para se virar e correr direto para casa, mas suas pernas continuavam onde estavam, como postes de madeira presos na areia. Seus olhos arregalados se tornaram faróis de busca. Ela queria isso, não queria? Não era o que estava procurando? Que tudo acabasse logo, esta batalha de vontades contra Scarlett e os ancestrais, de uma vez por todas.

Mas no instante seguinte, a sombra saiu das pedras e apareceu à vista. Não era um ancestral, nem Scarlett. Era Nick.

Cassie sentiu um choque ao ver o rosto dele, a forma irregular de seus ombros.

— Que susto você me deu — disse ela.

Nick se ergueu bem e olhou para Cassie com os olhos firmes.

— Você não parece muito assustada — disse ele.

Era verdade. A adrenalina dela estava bombeando e seu coração palpitava no peito, mas ela não estava assustada. Estava desperta.

— Cassie — falou Nick. Ele a surpreendeu segurando-a pelos braços, pouco acima do cotovelo. Suas mãos eram fortes, rudes, enquanto ele a apertava mais. Ele roçou os lábios nos dela. — Sinto sua falta.

Se os ancestrais venceram, pensou Cassie, e ela realmente estava diante do fim de seus tempos, então, por que não?

Os lábios de Nick encontraram o ponto sensível no pescoço de Cassie, pouco abaixo da orelha.

Se ela vai morrer em breve...

Não.

Se ela vai morrer em breve, quer morrer ao lado de Adam. De ninguém mais.

— Eu estava querendo conversar com você, Nick. — Cassie se soltou de suas mãos urgentes, afastando-se um passo

— Sobre o quê?

— Tudo. — Ela se sentou nas pedras úmidas para descansar as pernas trêmulas. — O que não tivemos tempo para falar.

— Não sei o que você quer dizer. — Nick se sentou ao lado dela. Ela se perdeu nos olhos dele de novo.

— O que estava se formando entre nós — disse Cassie em voz baixa. — Enquanto Adam estava perdido.

À luz da lua, Cassie via as feições bonitas e esculpidas de Nick com uma postura defensiva.

— Acho que foi uma época confusa para nós dois — disse Cassie com a maior sinceridade que pôde. — Sempre tivemos uma ligação, Nick, e provavelmente sempre teremos. Mas isso não quer dizer... — Ela não conseguiu terminar a frase.

Cassie não podia ignorar a profundidade dos sentimentos de Nick por ela, não quando o amor dele foi tão forte que lhe permitiu combater sua possessão. Mas estaria mentindo se dissesse que o que sentia por ele era igualmente forte, ou era o mesmo.

— Sei que eu não tenho sido justa com você — continuou ela. — Você esteve presente quando precisei, de um jeito que ninguém mais esteve. Mas Adam é meu verdadeiro amor. Tenho de libertar você, desta vez para valer.

O maxilar de Nick enrijeceu. Ela o pegou completamente de guarda baixa, sendo tão franca. Na verdade, pegou a si mesma de guarda baixa também.

— Acho que talvez estejamos enfrentando o fim, Nick, todos nós. Depois que os ancestrais tiverem a vida eterna, provavelmente vão soltar outra peste bubônica no mundo. É mais importante do que nunca que não fiquemos distraídos.

— Eu realmente amo você — acrescentou ela, depois de alguns segundos de um silêncio desconfortável. — Mas não da forma como amo Adam. E você merece alguém que o ame assim.

Nick concordou com a cabeça, inexpressivo, depois ignorou as palavras de Cassie com seu jeito de sempre.

— Vou superar — disse ele, como se aquele momento dos dois não fosse nada. — Agora a gente deveria pensar em Faye. Olhe para a lua.

Ele apontou o céu.

— É o nosso cronômetro.

Cassie não se permitiu olhar para a lua crescente outra vez. Era uma visão apavorante demais.

— Se conseguíssemos pegar Faye num momento de fraqueza — disse ele. — Mas ela nunca é fraca. Ela é Faye.

Era verdade, pensou Cassie. Da última vez que Faye se permitiu ficar vulnerável foi...

É claro.

Cassie ficou alerta. O barulho do mar era nítido em seus ouvidos. Sussurrava para ela, partilhando seus segredos profundamente escondidos.

— Que foi? — perguntou Nick.

— Eu conheço o lugar — disse Cassie. — Para pegar Faye de coração aberto.


23

Cassie atravessou o córrego tortuoso e contornou umas poças pequenas que levavam ao túmulo de Suzan. Era noite, mas ainda estava claro como dia, mal havia uma sombra no chão.

Mesmo de longe, Cassie via que a lápide de Suzan era mais branca e limpa do que aquelas ao redor. Era mais nova. Da terra em que se erguia, brotava uma grama recém-plantada. Levaria semanas para que os filetes verdes e mínimos crescessem tanto quanto o verdejante gramado adjacente. Como Cassie esperava, Faye estava ali, de pé junto da lápide. Estava enrolada em um xale preto de tricô, embora a noite tivesse uma brisa cálida de verão e a umidade fosse elevada.

Algum tempo atrás, em certa noite, Cassie tinha encontrado Faye neste lugar por acaso, mas não a perturbou. Na época havia entendido que o luto pela morte de Suzan era um processo pelo qual Faye devia passar sozinha. Mas depois daquele encontro, Cassie não demorou muito para perceber que Faye ia ali toda semana no mesmo horário, na hora da morte de Suzan.

Esta noite não era diferente. Cassie se aproximou dela em silêncio e respeito. Faye levou alguns minutos para se virar. Quando o fez, Cassie percebeu que os olhos dela estavam avermelhados e brandos. Rapidamente ela enxugou uma lágrima que escorria no rosto.

— O que está fazendo aqui? — perguntou ela, a voz saindo rouca e áspera.

A brisa cálida farfalhou a folhagem no alto e Cassie começou a falar antes que Faye tivesse a oportunidade de reagir com mais rispidez.

— A morte é uma coisa horrível e assustadora, não é? — disse ela.

Faye olhou para a distância a leste, onde o litoral era visível. Não respondeu, mas também não fez menção de sair dali.

Cassie continuou falando.

— Mas a vida eterna não é a solução para o que aconteceu com Suzan. Os poderes das trevas não a trarão de volta, Faye, você sabe disso. E perder Suzan só prova o quanto precisamos um do outro agora.

Faye começou a balançar a cabeça, assim Cassie falou mais alto e mais rápido.

— Os ancestrais a estão manipulando para que acredite que eles realmente se importam com você, mas não é verdade. Eles só se importam com...

— Já chega — disse Faye, interrompendo Cassie. — Acha realmente que já não sei de tudo isso?

Seu tom era condescendente, mas não ofendido. Para Cassie parecia, bom, quase sensível.

— Por isso eu fui para o outro lado, para começar — disse Faye. — Eu era a única que podia fazer isso sem suspeitas.

— Não entendo — disse Cassie.

A expressão de Faye, emoldurada pelas colinas ondulantes e os penhascos de granito, se alterou completamente. Ela baixou a voz a um sussurro.

— Fui para o outro lado para espioná-los. Eu não podia voltar com vocês porque não tinha informações suficientes e não quero estragar meu disfarce.

Cassie ficou perplexa.

— Quer dizer que...

— Eu fui mais inteligente do que todos vocês — disse Faye. — A essa altura da vida, já não se acostumaram com isso?

Cassie tentou olhar para além da superfície arrogante de Faye, querendo decifrar se ela dizia a verdade.

— Como eu desconfiava, os ancestrais são um bando de traíras — continuou Faye. — Eu achava isso o tempo todo, mas agora tenho provas.

Ela olhou para os dois lados.

— Descobri uma coisa no armazém. Um pequeno frasco de vidro que contém uma mecha do cabelo de Scarlett e outras coisas. Suas unhas, uma gota do sangue e um pedaço de hematita, que é a pedra de trabalho de Scarlett. Está enfeitiçado, Cassie. E se os ancestrais o quebrarem, Scarlett perderá todos os poderes dela.

Cassie ficou em silêncio por alguns segundos, chocada que até os ancestrais se rebaixassem tanto, mas também sentindo certa vergonha. Cassie se precipitou ao esperar o pior de Faye.

— Eu subestimei você — disse ela. — Me desculpe.

— Eu sabia que seria assim. — Faye deixou os olhos caírem no túmulo de Suzan. — Foi o que me deu certeza de que meu plano daria certo.

Cassie teve o impulso de dar um abraço em Faye, mas sabia que nem devia tentar.

— Suzan teria orgulho de você — disse ela em vez disso, colocando a mão na lápide.

Faye virou o rosto, mas Cassie notou que uma única lágrima caía de seu queixo na grama fresca.

— Vou roubar aquele vidro — disse ela — e irei a sua casa esta noite. O tempo está se esgotando.

Faye estava sentada na beira do que costumava ser sua cama na sala secreta, absorvendo toda a atenção. O Círculo escutava espantado sua descrição de cada detalhe dos dias anteriores — como ela havia conseguido enganar a todos.

— Isso pede uma comemoração — disse Chris. — Uma festa na praia. Já faz muito tempo que não vamos nadar à noite.

Até Cassie foi levada pela ideia. Isto era mesmo motivo para comemoração, não? Ela estava prestes a correr para pegar o maiô quando Nick soltou um suspiro profundo e exasperado.

— Sei que ter Faye de volta parece uma grande vitória para o Círculo — disse ele. — E de fato é, mas não resolve automaticamente nenhum dos nossos problemas.

Ele passou os olhos severos sobre cada um deles.

— Ainda não liquidamos as contas. Precisamos destruir aqueles ancestrais e precisamos de Scarlett para fazer isso. Estão lembrados?

Faye disparou da cama e assumiu a palavra.

— Nick tem toda razão — disse ela. — E felizmente eu soube de algumas coisas durante minha atuação digna de um Oscar como agente dupla.

Ela levantou bem a cabeça enquanto esperava que todos a ouvissem atentamente.

— A vida eterna é o que os ancestrais vêm procurando o tempo todo — disse ela. — Primeiro eles precisavam ser ressuscitados. Scarlett fez isso por eles, mas ela também tentou se colocar como líder deles. E este foi seu erro fatal. Eles nem mesmo a consideram digna de ser uma Blak. Era Cassie que eles queriam. Ela é a irmã mais forte.

Faye fez uma pausa para que suas palavras fossem assimiladas.

— Os ancestrais só estão usando Scarlett para ter a vida eterna, mas, assim que conseguirem, pretendem traí-la.

— Quem diria, não dá para confiar em demônios — zombou Sean.

Faye começou a andar pela sala como uma pantera.

— Não agrada a eles a ideia de que Scarlett tente se colocar como chefe deles. Eles a veem como uma jovem gananciosa, uma sabe-tudo.

Faye foi até a bolsa e com cuidado pegou o pequeno frasco de vidro sobre o qual havia falado com Cassie. Estava bem fechado com uma tampa de borracha.

— Depois que os ancestrais realizarem o feitiço da vida eterna, vão quebrar este vidro, tirando os poderes de Scarlett para sempre.

Ela levantou bem o vidro para que todos vissem.

— Colaborei com o plano deles — disse ela. — Não disse nada porque eles se voltariam contra mim também. Mas posso garantir a vocês que Scarlett não sabe o quanto os ancestrais se ressentem dela.

— Ela pediu por isso — disse Deborah.

Chris concordou.

— Devemos deixar que eles a machuquem. É o que ela merece.

Cassie pensou na cena de Scarlett e todos os ancestrais jantando juntos no armazém. Scarlett estava tão satisfeita naquele momento, inocentemente.

— Só o que Scarlett quer é sentir uma ligação — protestou Cassie. — Ter aqueles ancestrais como sua família. Por isso ela está tão cega por esta ilusão... ela quer acreditar no melhor deles.

— Ah, coitadinha da Scarlett. — Doug fingiu enxugar lágrimas.

— Vocês não entendem? — disse Cassie. — Esta é a nossa abertura.

Cassie estendeu a mão para o frasco de vidro.

— Vou conversar com Scarlett e mostrar isso a ela.

Faye entregou o vidro sem discutir.

— Por que não vamos todos? — perguntou Melanie.

Mas Cassie só repetiu para si mesma, examinando o minúsculo mas perigoso frasco na palma de sua mão.

— Vou conversar com ela, de uma irmã para outra.


24

Cassie olhou a hora no celular. Estava sentada em um banco de madeira verde, vendo as crianças brincarem no trepa-trepa. As mães empurravam os filhos pequenos em um balanço que guinchava. Ela marcou de se encontrar com Scarlett ali, no parque público, para conversar, mas já fazia quase uma hora e ainda esperava. Ela olhou a hora no celular mais uma vez e mentalmente ensaiou seu discurso. Mas tudo parecia um desperdício de esforço, se Scarlett não estava ali para ouvir.

O grupo de crianças que Cassie esteve olhando foi levado embora, de imediato substituído por outro — igualmente barulhento e mimado por pais e babás protetores. Às vezes Cassie via crianças como estas, com sua inocência descuidada e seu amor incondicional, e se perguntava, Um dia eu já fui assim?

Mas o caso é que ela não foi. Esta versão de infância nunca esteve disponível para ela.

Assim como uma irmandade, pensou ela. Com ou sem autopiedade, Cassie foi privada das duas coisas. E aqui estava ela, ainda sem ter aprendido a lição, ainda procurando o que nunca pôde ter.

Justo quando Cassie estava a ponto de desistir, Scarlett apareceu ao seu lado. Talvez estivesse observando de fora, testando Cassie para ver quanto tempo ela aguentaria esperando antes de desistir e ir para casa. Vestia jeans azuis, uma camiseta branca e seu chapéu de feltro marrom preferido. Não pediu desculpas por chegar mais de uma hora atrasada.

— Está sentada aqui há algum tempo? — perguntou ela. — Você tem uma queimadura de sol no nariz. Com sua pele clara, Cassie, devia ter mais cuidado com o sol.

A paciência de Cassie estava por um fio. Com Scarlett e sua atitude superior diante dela agora, Cassie teve o impulso de lhe dar uma patada. Toda a preparação mental da última hora havia escapulido, todo o ensaio de cada palavra perfeita foi substituído por um formigamento nas entranhas e a coceira para fazer Scarlett voltar a seu tamanho pequeno na base da pancada.

— Antes de você começar a tagarelar — disse Scarlett —, é bom saber que não vai conseguir me convencer a deixar meu Círculo. Apesar de vocês agora terem Faye, vamos conseguir que outra mude de lado.

Em silêncio, Cassie contou de cem para trás a fim de continuar calma.

Scarlett se juntou a Cassie no banco e observou as crianças brincarem.

— Que bando de pirralhos mimadinhos — disse ela com petulância. — Não quero ter filhos nunca.

— Eu pedi a você que viesse aqui para avisá-la — disse Cassie, sem dar crédito à tentativa de leveza de Scarlett. — Não é o nosso Círculo que está contra você, é o seu próprio.

Scarlett revirou os olhos escuros.

— Lá vem — disse ela.

— Estou te falando a verdade — insistiu Cassie. — Os ancestrais pretendem retirar todo seu poder depois que tiverem a vida eterna.

— E como exatamente você sabe disso? — perguntou Scarlett, eufórica de sarcasmo.

— Eles confidenciaram a Faye. Depois de terem o que precisam, não hesitarão em descartar de você.

— Não. — Scarlett balançou a cabeça. — Não acredito em você. Eles são a minha família. São a nossa família, Cassie. Se você se permitisse enxergar isso.

Cassie pensou mais uma vez no jantar de Scarlett com os ancestrais. O esforço que ela fez para construir um lar naquele armazém arruinado — uma cozinha, uma sala de estar, o tesouro de uma mesa de jantar e cadeiras usadas, jogadas fora e há muito esquecidas. Talvez as duas não fossem tão diferentes. Ambas tinham muito espaço para preencher dentro de si.

— Você e eu somos a família uma da outra — disse Cassie. — Eles não passam de nossos ancestrais malignos e egoístas que não ligam para nós.

Ela via que Scarlett tinha dificuldade para aceitar esta verdade brutal.

— Pense nisso — disse ela. — Eles estiveram mortos durante séculos. Não resta humanidade nenhuma neles. Imagine perder seu poder... ou coisa pior. É este o risco que você quer assumir?

Scarlett abriu a boca, indignada, depois a fechou.

— Você está mentindo.

— Se estou mentindo, por que tenho isto? — Cassie abriu a bolsa e pegou com cuidado o frasco de vidro.

Scarlett ficou petrificada ao vê-lo.

— Faye tirou isso do armazém — disse Cassie. — É o seu cabelo, seu sangue.

Scarlett pegou o vidro na mão de Cassie e o examinou. Suas mechas ruivas e tingidas eram inconfundíveis.

— Eu entendo a importância de formar uma família — disse Cassie. — Mas eles estão usando você, Scarlett, e você merece mais do que isso.

Scarlett segurou o vidro gentilmente com as duas mãos e o colocou no colo. Por um momento o barulho do riso de uma criança abafou qualquer outro som. Foi imediatamente seguido pelo choro de outra criança.

Toda maldade escapou do rosto de Scarlett.

— Mas eles são muito mais poderosos do que nós, Cassie. Mesmo que eu vá para seu lado, não há como impedi-los.

— Sim, há. — Cassie viu a sensação esmagadora de impotência que vinha vivenciando há dias se elevar um pouco, mas foi um momento fugaz. Chega, pensou ela. Não estrague isso agora.

— Eu tenho um feitiço — disse ela — que podemos usar para queimar o Livro das Sombras do nosso pai e destruir tudo que vem dele. Inclusive os ancestrais. Estaremos livres de tudo isso para sempre.

— Onde conseguiu esse feitiço? — perguntou Scarlett na defensiva, porém Cassie sentiu certa esperança em sua voz.

— Com um antigo bruxo — respondeu Cassie. — Nosso pai retirou os poderes dele anos atrás. É um feitiço que ele criou.

— E você confia nele? — perguntou Scarlett.

— Será perigoso; ele me disse isso. Nunca foi realizado. Mas acredito que vá funcionar... com a sua ajuda.

— Você acredita ou torce por isso?

— Acho que as duas coisas — respondeu Cassie.

Por um momento ela se juntou a Scarlett no olhar fixo à frente.

— Timothy sabe muito sobre nossa família. Se este feitiço não fosse algo que nosso pai temesse, ele não teria tirado sua magia.

Juntas, Cassie e Scarlett viram duas crianças pequenas com rabos de cavalo louros idênticos puxar cada uma um braço de uma boneca de plástico. As duas meninas estavam histéricas, lágrimas do tamanho de um granizo caindo dos olhos. Segundos antes, o brinquedo estava jogado na grama, ignorado. O pai delas teve de intervir. Puxou a boneca das mãos das duas, tirou-a de vista, depois distraiu as filhas de sua tristeza guiando as duas, de mãos dadas, para o trepa-trepa de barras. E num instante a angústia das duas foi esquecida. As lágrimas ainda molhavam os rostos enquanto eles se animavam.

Cassie se virou para Scarlett. Não passou despercebido para nenhuma das duas que elas sentiam falta de algo fundamental por não terem um pai de verdade, nem uma irmã.

Scarlett reprimiu as lágrimas e Cassie notou um nó duro se formando também em sua garganta. Ela precisou se esforçar para não chorar.

— Acho que você é tudo que me resta, Cassie — disse Scarlett. — Você é minha única chance de me salvar. Isto não é patético?

Cassie segurou a mão de Scarlett e a apertou.

— Somos a única chance uma da outra, Scarlett. Seja patético ou não.


25

Na escuridão da noite o grupo avançava, passando por todas as outras casas da Crowhaven Road, inclusive a casa de Cassie no número 12. Quando chegaram ao ponto mais alto, estava como Cassie se lembrava. O feitiço de Timothy pedia a realização da queima do livro ao ar livre, num terreno que tivesse alguma importância para Black John, e assim ali estavam eles, no ponto final do promontório, onde antigamente ficava a casa em ruínas de Black John, no número 13. Era o último lugar em que Cassie queria estar. Ela foi à beira do penhasco e olhou as ondas abaixo.

O Círculo se aproximou e cercou os pedaços das fundações que restaram da casa em ruínas. Cassie tinha trazido três coisas: o Livro das Sombras de Black John, um saco contendo as Chaves Mestras e as caixas de madeira que Timothy tinha lhe dado.

Scarlett, Faye, Diana e Adam se ajoelharam mais perto de Cassie enquanto ela abria os fechos de bronze da caixa maior e levantava a tampa pesada.

Cassie retirou seu conteúdo: mantos, cristais, incenso e velas; uma adaga com cabo preto, uma pá e algumas tiras de madeira. Depois encontrou um frasco mínimo com um líquido transparente que podia ser água benta, mas ela entendia que era uma poção. Forrando o fundo da caixa, havia uma folha de papel amarelada que continha instruções pictóricas detalhadas de como preparar o feitiço, mas não palavras. Provavelmente para que qualquer um de qualquer época, falante de qualquer língua, pudesse ler e entender. Timothy havia pensado em tudo.

— Esses mantos são feitos à mão — disse Laurel. — São lindos. — Eram mantos rituais pagãos de variados estilos, de muitos séculos diferentes. Preto, vermelho, verde, roxo. Eram 12 no total, um para cada integrante do Círculo.

Depois que todos os vestiram, sobrou um manto. Era branco com enfeite dourado. Os vincos em seu tecido imaculado eram firmes e elegantes.

— Este é o seu, Cassie — disse Diana. — Vai para o mestre do feitiço que lidera o ritual.

Cassie se sentiu imponente e orgulhosa enquanto passava um braço, depois outro, pelas mangas de algodão macio do manto. Faye estendeu a mão para a adaga de cabo preto.

— Um Athame — disse ela, deslizando a lâmina de sua bainha. — É tão antigo e maciço. E afiado.

— Um o quê? — perguntou Sean.

Laurel tirou a adaga das mãos de Faye e a examinou.

— A faca Athame é reservada para cerimônias e rituais específicos — disse ela. — É usada para invocar ou banir entidades espirituais.

Deborah quis pegar a faca, mas Laurel não a entregou.

— Se for um Athame verdadeiro — continuou ela —, quando é usado para traçar o círculo no início de um ritual, pode afastar energias negativas como um escudo.

— Bom, é melhor então que seja um Athame verdadeiro, porque é exatamente o que vamos precisar — disse Scarlett. Ela examinou os diferentes incensos que saíam da caixa. — Copal dourado, sangue de dragão, pinho e cedro — disse ela. — Esse Timothy não deixou nada de fora.

Melanie reuniu um monte multicolorido de cristais, de formas e tamanhos diferentes. Ela apontou para uma pilha de velas cor de pele.

— Isto é incrivelmente raro — disse ela. — Feita de sebo, a gordura de bois ou ovelhas.

Nick pegou a pá de madeira.

— Vou cavar — disse ele. — O poço da fogueira.

Cassie observou a ferramenta de aparência medieval em sua mão. Parecia um machado, com um cabo em T, afilado na ponta.

Adam pegou as achas, que eram de carvalho temperado, e o frasco de líquido que seria usado como fluido para acender.

— Vou ajudar — disse ele a Nick. Os dois calcularam qual seria o ponto central das fundações.

Diana, Faye e Cassie estavam cada uma com uma Chave Mestra.

Cassie olhou a lua quase cheia. Parecia ter um formato estranho de ovo, uma oval imperfeita. Do topo do penhasco, ela ouviu as ondas se quebrando na base. Em seus braços, segurava o livro. Era quente em sua pele, carente e vivo, como uma criança amorosa.

Isto não é real, disse ela a si mesma. O carinho que ela sentia emitido pelo livro não era amor; eram as trevas, a tentação, a materialização de tudo que ela precisava combater.

Ela baixou o livro dentro da caixa agora vazia de Timothy e se concentrou nos amigos que preparavam o feitiço.

Laurel segurava as instruções com as duas mãos enquanto Melanie dispunha a formação correta dos cristais para aumentar o fluxo de energia do chão para o ar. Sean, Chris e Doug acenderam velas e incenso, purificando o espaço com incensórios.

As mãos e os braços de Nick se sujavam enquanto ele cavava um buraco fundo e circular. Adam e Deborah o cercaram com a lenha cruzada em quadrados.

Diana apareceu, linda e majestosa em seu manto da cor do sol e diadema cintilante. Faye reluzia em vermelho sob a lua, com a liga firme na perna.

Cassie imaginou como estava com seu manto branco e dourado, com o bracelete de prata brilhando no braço. Desejou poder ver a si mesma neste momento crucial, enquanto ela e os amigos estavam à beira de reescrever o curso de sua história — de seu futuro.

Segurou firme o punho frio da adaga e a cravou na terra seca e dura. Traçou um círculo fundo em torno das fundações arruinadas, cercando o local da fogueira com um anel amplo.

Em silêncio, todos foram para o perímetro interno do círculo e Cassie o fechou.

Adam entregou a Cassie o frasco com o fluido transparente. Cassie tirou sua tampa e despejou o conteúdo nas achas de lenha. Em seguida Adam lhe deu um fósforo aceso. Ela o levou aos olhos só por um segundo antes de deixar que escorregasse de seus dedos.

O fogo que ardeu em chamas não era diferente de demônios loucos recém-libertados do chão.

Cassie se virou para o céu a leste e levantou os braços.

— Apelo à Torre de Guarda do Leste — gritou ela. — Poderes do Ar, protegei-nos.

Em alguns segundos uma brisa suave soprou por seu cabelo e em volta do Círculo, abastecendo o fogo com uma nova vida.

Em seguida Cassie se virou para o sul.

— Apelo à Torre de Guarda do Sul — disse ela. — Poderes do Fogo, protegei-nos.

Ela fechou os olhos e sentiu o calor das chamas altas no rosto.

Em seguida se virou novamente.

— Apelo à Torre de Guarda do Oeste — disse ela. — Poderes da Água, protegei-nos.

As ondas bem abaixo deles se quebraram ruidosamente na margem e o cheiro forte de maresia se elevou, enchendo seus pulmões.

Por fim, Cassie se virou para o norte.

— Torre de Guarda do Norte — disse ela. — Poderes da Terra, protegei-nos.

O chão sob seus pés de súbito começou a tremer. O livro retumbou. Cassie sentia que respirava com dificuldade. O círculo que ela traçara na terra com a adaga se separou do resto das fundações, deixando-os em uma ilha de terra irregular.

Depois ela olhou para as chamas que açoitavam do fundo da fogueira e concentrou sua energia. Era agora. Ela fechou os olhos.

Mas então alguém ofegou e outra pessoa se engasgou.

Cassie abriu os olhos e olhou em volta rapidamente. Alice investia para eles e bem atrás dela os outros ancestrais avançavam pelo terreno como um exército de fantasmas.

— Eles devem ter me seguido — disse Scarlett.

Os amigos de Cassie arquejavam, sem ar. Sean, Chris e Doug foram os primeiros a desabar, mas todos, menos Cassie e Scarlett, tinham a mão no pescoço, asfixiados.

Scarlett ergueu as mãos e fez um feitiço para restaurar a respiração de todos. Mas a essa altura os ancestrais tinham alcançado o Círculo, perto o suficiente para derrubar Sean, Chris e Doug com um feitiço ainda mais forte de asfixia.

Adam e Nick partiram para o ataque, um feitiço de contenção para limitar a força dos ancestrais, porém Absolom se protegeu dele facilmente com a ajuda de Thomas e Samuel. Eles retaliaram com um olhar fixo e duro que lançou Adam e Nick violentamente no chão. Adam bateu na terra com um baque e de imediato ficou inconsciente. Nick caiu terrivelmente em uma viga que se projetava das fundações arruinadas da casa. Ela atravessou a parte superior da coxa, empalando a carne como um espeto enferrujado e grosso. Ele gritou de dor. Ver seu sangue enfraqueceu os joelhos de Cassie.

Alice mirou em Diana e Deborah. Melanie e Laurel tentaram protegê-las com um feitiço de defesa, mas as quatro caíram desfalecidas sob a mão aberta de Alice.

Faye levantou as mãos e concentrou sua energia em Alice. Conseguiu jogá-la um pouco para trás, para longe dos amigos, mas só até chamar a atenção de Charlotte.

Charlotte gesticulou para Faye e a fez voar para trás. Cassie e Scarlett eram as únicas do Círculo ainda de pé.

Os ancestrais as cercaram.

— Nossas parentes — disse Alice. — Deixamos vocês por último.

Beatrix pegou Scarlett pelo pescoço e puxou seu rosto para perto do dela.

— Você nós mataremos — disse ela —, enquanto você — ela gesticulou para Cassie — assistirá.

Absolom colocou a palma na testa de Scarlett. Sussurrou palavras que Cassie não reconheceu.

— Depois você será nossa — disse Alice a Cassie. — Finalmente.

— I maledicentibus vobis in mortem — murmurou Absolom na testa de Scarlett. — I maledicentibus vobis in mortem.

Se Beatrix não estivesse mantendo de pé o corpo magro de Scarlett, ela teria escorregado para o chão. Seus olhos arregalados ficaram vidrados e o pescoço tombou. O rosto se tornou uma máscara. Cassie entendeu muito bem o que estava testemunhando: Scarlett começava a morrer.

Cassie ergueu os braços para concentrar sua energia, voltar-se para dentro e encontrar um feitiço, mas o olhar de Alice deixava a mente dela vazia e impotente. Seus feitiços, até a magia negra, estavam fora de alcance.

Ela avaliou a área. Os amigos jaziam espalhados por ali, imóveis. Ela não sabia quem estava vivo, se é que alguém estava.

E então Cassie viu outra coisa. A caixa de madeira que Timothy deu a ela. Aquela que ele disse para abrir só quando não houvesse alternativa.

O momento tinha de ser este.

Cassie disparou para a caixa antes que Alice ou qualquer dos ancestrais pudesse impedi-la. Ajoelhou-se ao lado dela, abriu os fechos e ergueu a tampa.

Cassie recuou ao ver o conteúdo.

Ratos. Ratos mortos, empilhados um por cima do outro, em um túmulo coletivo de pelo emaranhado e rabos dissecados. Uma lufada de cheiro putrefato deu ânsias de vômito em Cassie. Ela se levantou e se afastou da caixa. Era alguma piada de mau gosto? Será que Timothy estava do lado dos ancestrais o tempo todo?

Cassie olhou para trás, onde os ancestrais ainda cercavam Scarlett. Alice observava Cassie, sem medo, sem se sentir ameaçada, confiante de que não havia para onde Cassie fugir.

E então Cassie ouviu um guincho, seguido por um arranhão. Olhou cautelosamente pela borda da caixa de madeira. O que pareciam mil olhos de conta piscavam e a encaravam. Seus corpos começaram a se contorcer e mexer, libertando-se da embolação. Cassie prendeu a respiração enquanto todo o bando deles escapou pela borda da caixa e correu para os ancestrais.

Seus rabos compridos de roedores se arrastavam atrás deles enquanto investiam para qualquer pele exposta que encontrassem — a carne vulnerável dos tornozelos e das panturrilhas. Arranhando e mordendo, o líder do bando saltou para o primeiro alvo mais próximo: Alice. Ela levantou as mãos para se defender, mas seus dedos só proporcionaram um ponto mais fácil de alcançar.

O resto do bando estridente subia pelas pernas dos ancestrais. Mordiam os rostos, mordiam os lóbulos macios e mastigáveis das orelhas.

Absolom gritou e abandonou seu feitiço, debatendo-se. Beatrix soltou Scarlett e lutou para manter braços e pernas livres dos bichos de dentes firmes. Ela se agitava como alguém em chamas.

Samuel cambaleou para pegar uma vara de metal quebrada no chão, resto das fundações da casa. Ele a girou com força em um arco amplo, como um taco de beisebol, mas só conseguiu combater os ratos por um momento antes de ser dominado. Logo caiu sob uma montanha faminta e estridente de pelo e rabos, assim como os outros.

Cassie correu até Scarlett. Ouvia sua respiração e procurou a pulsação. Estava viva, mas por muito pouco. Ela tentou se concentrar, apesar do que a cercava, para se lembrar de um feitiço que restaurasse a energia de Scarlett. Colocou as mãos sobre seu corpo e esperou que as palavras lhe viessem. Quando chegaram, ela as sussurrou:

— Recuperabit, reddere, renovare.

Scarlett gemeu, depois abriu os olhos e a cor voltou a seu rosto. Ela respirou fundo e se colocou de pé.

— Ah, meu Deus — disse ela diante da visão horrível dos ancestrais.

Eles conseguiram afugentar os ratos, e assim não eram mais devorados, mas os danos já haviam sido feitos. As roupas de Thomas foram roídas aos pedaços. Sua pele aparecia pelo tecido em farrapos, pingando sangue. A pele de todos os ancestrais estava esburacada e cheia de pus. O branco dos olhos tinha amarelado e a respiração era rasa.

Charlotte se recurvou e tossiu, e um lodo preto saiu de sua boca.

Cassie notou que a ponta dos dedos de Alice escurecia, assim como seus lábios.

— O que está acontecendo com eles? — perguntou Scarlett.

Absolom e Beatrix foram os próximos a se recurvar e vomitar um muco pútrido em uma pilha úmida e escura no chão.

— A peste negra — disse Cassie.

Os ratos se agruparam em uma formação estreita, os olhos em brasa, as bocas espumando de sangue. Correram de volta para sua caixa de madeira, contorcendo-se e satisfeitos.

— Não eram ratos quaisquer. — Cassie jogou a tampa de volta na caixa e observou os ancestrais se retorcendo de dor, ofegantes, cuspindo, braços e pernas apodrecendo em cotos mortos.

— A peste bubônica acaba de voltar para mordê-los — disse Cassie a Scarlett. Parecia pior do que ela jamais imaginou.

Porém, os ancestrais não iam desistir com tanta facilidade. Arrastavam-se pela terra para se dar as mãos. Estavam reunindo sua energia.

Cassie não permitiria que eles superassem nem mesmo isso.

— Temos de terminar o feitiço — disse ela. — Reúna todos.

Scarlett ajudou Diana e Faye a se levantarem. Adam, Sean e os Henderson se ergueram sozinhos.

Cassie correu até Nick. Ele havia perdido muito sangue e sua pele era fria ao toque, mas os olhos estavam abertos. Ele tentou falar, porém Cassie o silenciou.

— Relaxe — disse ela. — Você vai ficar bem. — Ela estendeu as mãos sobre seu ferimento e procurou mentalmente o feitiço certo.

— Não preciso de magia. — A voz de Nick era áspera, mas forte. — Só preciso de você. — Ele segurou a mão dela e a apertou.

Cassie sentia que o ferimento na perna era grave. Nick estava em choque. A magia era a única chance de salvá-lo.

Cassie suspendeu a mão livre sobre a lança de metal que empalava a carne e em silêncio lançou um feitiço: periculosum metallic tutum esse liberum.

O buraco na perna de Nick se abriu como uma boca, soltando a viga de metal para o ar. Ela se ergueu e caiu ao lado dele, na poça vermelha de seu sangue.

— Estou bem — insistiu Nick. — Posso me levantar. Não desperdice sua energia comigo. Você tem um feitiço a lançar.

Resanesco, pensou Cassie. Resanesco.

Nick se remexeu enquanto o ferimento se fechava sozinho, limpo. Ainda apertando a mão de Cassie, ele levantou a cabeça alto o bastante para ter um vislumbre da lesão.

— Nem é tão ruim quanto eu pensava — disse ele.

Cassie respirou fundo, agradecida. Nick ficaria bem. Ela estava prestes a ajudá-lo a se levantar quando uma nova série de palavras entrou por sua mente.

Que ele sinta o amor que tenho por ele e que isto baste. Ela disse essas palavras em silêncio, como fez com as outras.

— Obrigado, Cassie — disse Nick, rolando de lado. — Mas eu estou realmente bem.

— Rápido! — Scarlett chamou. Ela conseguira colocar todos os outros em formação. Os ancestrais ainda tentavam recuperar as forças.

Cassie ajudou Nick a se levantar e o levou para o Círculo. Quando estavam em seu lugar, o fogo começou a arder lentamente. Uma fumaça cinza se elevou de sua origem, cada vez mais escura, até que formou uma nuvem preta como carvão no alto.

Cassie pegou o livro do pai, que estava no chão. Levantou bem alto para que todos os amigos vissem. Depois o colocou sobre o fogo e permitiu que o feitiço lhe viesse:

Eu vos expulso, espírito impuro, em nome da bondade.

Todas as fontes de luz e verdade, apelamos a vós e vosso poder ilimitado e sagrado.

Ide, trevas. Deixai-nos um lugar habitado pela luz.

Renunciamos a vós, símbolos das trevas, demônios e todo o mal.

O fogo sibilou e chiou. Brasas vermelhas dispararam para cima como centelhas das chamas.

Por um momento Cassie pensou: e se ela não largasse o livro no fogo? E se os ratos infectados realizaram o suficiente para enfraquecer os ancestrais? Talvez eles logo morressem de qualquer forma. E então Cassie e seu Círculo teriam o melhor dos dois mundos — ela podia ficar com o livro sem que os parentes tentassem controlá-lo.

Um por um, os ancestrais se colocavam de pé e lutavam para se aproximar do perímetro do círculo. Seus olhos doentes estavam furiosos e indefesos ao assistirem e esperarem pelo que Cassie faria agora. O sangue pingava dos narizes e ouvidos.

O livro apelava a Cassie. Gritava seu nome. Ela o afastou um pouco do calor das chamas. Este livro era seu passado, pensou ela. Era sua ligação última e definitiva com o pai e sua linhagem.

Parecia um diamante precioso e vivo em suas mãos. Um poder único. Será que ela poderia realmente jogá-lo fora? Destruí-lo para sempre?

Não. Ela não podia.

Ela deu um passo enorme para longe do fogo e abraçou o livro com força, sobre o coração. Ele também tinha um coração batendo, ela percebeu — um coração próprio. E os dois batiam juntos como um só.

Todos os outros sons diminuíram e desapareceram. Agora só o livro existia para Cassie. E então ele falou com ela.

“Cassandra, minha única e exclusiva”, disse ele. Ele. Seu pai.

A voz dele parecia um veneno que tomava a garganta de Cassie.

“Não decepcione a longa linhagem de bruxos que a trouxe aqui”, disse ele. “Os bruxos que fizeram você. Eles são tudo que você tem.”

A pulsação de Cassie se acelerou. Ela não conseguia respirar.

“Todo o conhecimento deles é seu”, disse ele. “O poder deles é seu. Não jogue isto fora.”

Tudo começou a rodar. Cassie perdeu o senso do que estava em cima e embaixo, não distinguia direita de esquerda. Seu próprio corpo não parecia nada. Uma casca vazia.

“Não dê as costas a seu passado”, disse o pai. “Destruir este livro destruirá quem você realmente é.”

Quem eu sou?, pensou Cassie.

Eu sou Cassandra Blake, filha de Alexandra e John, filha amada, amiga querida.

Eu sou poder.

Mas posso entregar este poder às chamas.

Se eu tiver poder sem amor, então nada tenho.

Algo dentro da mente de Cassie estalou. Se ela na realidade era o mal, sua real identidade, então que fosse. Que o mal fosse destruído. Que a luz triunfe sobre as trevas de uma vez por todas.

Um calor a envolveu como o romper do dia.

Ela gritou as últimas palavras do feitiço:

— Ide, espíritos do mal. Deixai este mundo bom e inocente!

Cassie levantou o livro e o jogou no fogo.

— Vá, pai! — gritou ela. — Vá!

O grito de seu pai soou para que todos ouvissem.

Os ancestrais nada puderam fazer para impedi-la. No momento em que o livro atingiu as chamas, seus corpos enrijeceram e, à medida que o livro queimava, eles queimaram.

As chamas penetraram no peito dos ancestrais como se o fogo começasse em seu coração e se espalhasse para cima e para fora dali. As bocas amoleceram enquanto eles gemiam. Narizes se liquefaziam, olhos se dissolviam. O chão abaixo de seus corpos derretidos ferveu e murchou. Alice mexia a cabeça de um lado a outro nos ombros. Seu rosto assumiu uma expressão pesarosa enquanto ela esticava o pescoço e gritava. O som tomado de tristeza parecia ricochetear na lua.

A fogueira crepitou.

O livro ficou laranja como carvão em brasa. De suas páginas engolfadas pelas chamas, o grito do pai de Cassie foi silenciado. O seu último réquiem. Scarlett, Cassie notou, começara a tremer. Uma escuridão saía de seus olhos e da boca como uma névoa preta e esfumaçada.

O vento se agitou, produzindo um silvo pelo ar. Trazia com ele uma estranha sensação de mudança.

Cassie fitou o fogo e de súbito ele parecia estar em toda parte. Em todo lugar, agora sua voz era a única que gritava. Ecoava do meio das chamas. Estou no fogo, pensou Cassie. Eu sou o fogo.

Quando ele explodiu, uma névoa cheia de cinzas se elevou como uma nuvem em cogumelo, jogando Cassie para o céu.

Ela caiu estatelada e de braços abertos. Havia um calor sobrenatural em seu rosto e um peso no ar. Ela se sentou, piscou os olhos e olhou em volta.

Sobrara apenas seu Círculo. Todo o resto tinha sumido: os ancestrais, o livro, até o fogo.

Eles conseguiram. Em sua alma, Cassie sabia que eles tinham vencido.

O Círculo se reuniu em volta dela, se curvando e se abaixando.

— Cassie? — disse Adam. Ele a encarava de um jeito estranho. Assim como Diana.

— Você está bem? — perguntou um deles, pouco antes de tudo ficar suave e cinzento e só o que Cassie viu foi a escuridão.

Cassie abriu os olhos para o Círculo reunido em volta. Adam segurava sua mão.

Ela se sentou lentamente, fraca e tonta.

— Eu me sinto diferente — disse ela. — Algum de vocês sente o mesmo?

Adam disse a ela para se acalmar, que o feitiço deve ter sido demais para ela.

— Ninguém mais se sente diferente? — perguntou ela. — Scarlett?

O rosto de Scarlett pareceu alegre e franco.

— Eu, sim — disse ela. — Eu me sinto bem.

Mas Cassie não se sentia bem. Havia um novo vácuo dentro de si, um vazio. Ela se sentia sem poder.

Ela se levantou e concentrou a energia em uma pequena pedra redonda no chão. Era o feitiço mais simples em que pôde pensar, tentar fazê-la se erguer. Concentrou cada grama de energia que tinha naquela pedrinha e nada aconteceu. A pedra nem se mexeu.

— Timothy nos avisou que haveria consequências — disse ela.

— Cassie, do que você está falando? — perguntou Adam.

— Era necessário um sacrifício — disse Cassie. — E o sacrifício fui eu. Perdi minha magia.


26

– Vamos levar você para casa, Cassie — disse Adam. — Todos os outros podem cuidar da limpeza.

Cassie não tinha forças para rejeitar, e assim fez um gesto para o penhasco. Adam botou o braço em volta dos ombros dela e a guiou. Cassie não deu muito mais do que uma despedida de cabeça aos amigos, mas eles pareceram entender.

Só Scarlett correu atrás deles.

— Espere — disse ela. — Preciso lhe dizer uma coisa.

Cassie parou e se virou.

Adam ficou tenso.

— Não pode esperar?

— Desculpe, mas não pode. — Scarlett falou quase diretamente para o chão. — O cordão que você viu, Cassie. Aquele entre mim e Adam. Era só um artifício.

Cassie sentiu o coração parar por um segundo.

— Um artifício? — disse Adam pelos dois.

Scarlett assentiu.

— Era um feitiço de visualização que eu lancei. Não era real. Eu só estava tentando destruir Cassie como podia.

Cassie deixou que esta verdade se acomodasse como cinzas. Parecia ao mesmo tempo um momento final de destruição e um renascimento purificador. Scarlett continuou.

— Agora eu sei que eram as trevas me controlando o tempo todo — disse ela. — Eu estava descontrolada. E estou muito envergonhada.

Cassie fechou os olhos por um momento. Não conseguia decifrar se o tremor em seu peito era de felicidade, raiva ou tristeza. Ela teve tantas dúvidas a respeito de Adam nas últimas semanas por causa de algo que era uma mentira.

— Não sei o que dizer — murmurou ela. — Agora preciso de algum espaço, Scarlett.

Cassie se aventurou a ir pela praia. Ouviu Adam dizer a Scarlett que voltasse para ajudar os outros na limpeza. Depois foi atrás de Cassie.

Ele a segurou pela mão, puxou-a para si, mas, ao ver seu rosto, hesitou.

Por que ela não estava sorrindo?

Cassie se virou para a água. Só uma brisa suave soprava, mas para ela parecia uma rajada gélida batendo na pele.

— Eu sabia — disse Adam para sua nuca. — Eu disse a você. Nunca duvidei nem por um segundo que você era minha única alma gêmea.

Mas Cassie teve dúvidas. Foi tão enganada por um cordão falso que quase deixou Adam partir.

Ela queria estar comovida agora, ser acalmada. Mas tudo doía demais.

Ela havia ouvido a voz do pai chamando do livro, avisando-a para não dar as costas a seu passado. Ele disse a ela que destruir o livro destruiria quem ela realmente era. E assim foi.

Seu poder desapareceu. Ela o entregou às chamas — e ela sabia! Sabia, em algum lugar bem no fundo, que isto ia acontecer. Foi uma decisão que ela tomou. Se eu tiver poder sem amor, havia pensado ela, não terei nada. Se ela era o mal, sua real identidade... Ela escolheu sacrificar tudo ao fogo.

Agora teria de conviver com esta decisão para sempre.

Adam abraçou Cassie por trás, pelos ombros.

— Você não está nem um pouquinho aliviada pelo cordão ser apenas um truque?

Ela estava, mas quase parecia irrelevante nessas novas circunstâncias. Amor sem poder, pensou ela. Se eu tenho amor sem poder, ainda não tenho nada?

— Perdi minha magia, Adam — disse ela, virando para ele. — Você não entende isso?

Adam desviou os olhos.

— Agora nosso Círculo está desfeito. — Cassie viu sua preocupação elevar freneticamente sua voz. — E vocês podem precisar me substituir. É provável que uma perda de magia tenha regras diferentes da morte, então talvez não seja necessário haver uma substituição de linhagem sanguínea.

Adam colocou a mão com cautela no ombro de Cassie.

— Calma — disse ele. — Você está se precipitando. Talvez haja um jeito de recuperarmos seus poderes.

Ele puxou Cassie para um abraço quente e firme.

— Eu espero que você saiba que estarei do seu lado, não importa o que aconteça.

É claro que Adam estaria. Cassie não duvidava disso nem por um segundo. Mas ele se recusava a reconhecer determinados fatos. Uma bruxa sem poder era um peso morto.

Ela se afastou do abraço de Adam e olhou o mar que se abria à frente. Pensou em Timothy, só e rancoroso por não conseguir praticar bruxaria. Este era o destino solitário e desesperançado de um bruxo sem poder — eles ficavam melhor sozinhos, melhor o isolamento do que arrastar todos a sua volta para sua frustração.

Cassie não disse isso em voz alta, mas se perguntou se poderia haver um lugar melhor para ela do que New Salem, afinal.

Ela se virou e partiu para casa de novo. Adam a seguiu fielmente, tendo desistido de tentar fazê-la falar, ou ver o lado positivo. Mas foi atrás dela em todo o caminho para casa.

Pela primeira vez desde que eles se conheceram, Cassie sabia que Adam não conseguia compreender o que ela estava passando. Ele jamais entenderia que às vezes o amor, mesmo o amor verdadeiro, não bastava.


27

Cassie estava largada na espreguiçadeira de couro no canto. Nem mesmo queria comparecer a esta reunião, mas parecia mais fácil vir e se desligar do que formular uma desculpa decente para sua ausência. Ela fitava a arte moderna que decorava as paredes da sala de estar de Diana. Linhas abstratas em preto, cinza e bege. Inteiramente desprovida de emoção, como a própria Cassie se sentia naquele momento. Morta por dentro.

O grupo discutia em voz baixa a situação deles — um Círculo desfeito e uma Cassie sem poder. O que Cassie percebeu em seus sussurros não foi tanto compaixão, mas pena. Nenhum deles nem mesmo conseguia olhar para ela.

— Temos de pensar no que diabos fazer agora — disse Scarlett.

Max estava sentado ao lado de Diana no sofá.

— Deve haver um feitiço que vocês todos possam fazer. Não existe um feitiço simplesmente para tudo?

Laurel meneou a cabeça.

— Nem tudo.

— Então, temos um Círculo desfeito — disse Sean. — E daí? Já derrotamos todos os nossos inimigos.

Deborah estalou os nós dos dedos.

— Sempre haverá mais inimigos.

— A questão não é essa — exclamou Adam. — Cassie nunca mais se sentirá ela mesma sem seu poder. E ela merece... — Ele se interrompeu e seu rosto ruborizou. — Bom, ela merece se sentir ela mesma. Se eu pudesse, daria a ela todo meu poder.

— Quem dera — disse Melanie. — Eu também daria.

— É isso. — Diana teve um lampejo de inspiração que a fez ficar reta no sofá.

— Cassie — disse ela, virando para a amiga. — Timothy resmungou alguma coisa daquela vez em que o vimos que eu não consegui tirar da cabeça. Sobre ninguém estar disposto a entregar seu poder depois de ele ter perdido o dele.

— Eu me lembro disso também — falou Adam.

Cassie de fato se lembrava do comentário de Timothy, mas na época não havia pensado muito nisso.

— E daí? — disse ela.

— Isto significa que o poder pode ser transferido de um bruxo para outro. — Diana correu para seu quarto atrás do Livro das Sombras.

Voltou à sala um minuto depois, folheando as páginas com tal rapidez que Cassie teve medo de que o papel antigo e delicado se rasgasse.

— Acho que vi um feitiço assim uma vez.

Diana estava quase frenética com a nova esperança, mas Cassie não sentia nenhuma. Se Timothy, que era brilhante, velho e sábio, não pensou num jeito de recuperar os poderes depois de todos esses anos, como Cassie poderia esperar por isso?

— É isso — disse Diana, enfim encontrando o que procurava. — É uma variação de um feitiço de vínculo.

Todos se curvaram para a frente enquanto Diana lia em silêncio o texto.

— Um grupo de bruxos pode conjugar sua energia e força vital juntos — disse ela, levantando a cabeça. — E oferecer a outro bruxo.

— Então esse é um jeito de Cassie recuperar seu poder? — perguntou Scarlett.

Diana releu o texto.

— Ela receberá uma pequena quantidade de poder de todos dispostos a se vincular a ela.

Diana olhou para Cassie.

— O problema de Timothy era que ninguém estava disposto a dar poder nenhum a ele.

Melanie falou antes que o grupo pudesse comemorar prematuramente.

— É pedir muito — disse ela. — Qualquer um que participar estará decidindo ficar mais fraco para que Cassie possa ficar mais forte.

— Mas é só um pouquinho mais fraco, não é? — perguntou Faye.

— Nós já somos vinculados através do Círculo — respondeu Adam. — Transferir parte disso para Cassie não deve fazer uma grande diferença.

Diana atravessou a sala até a espreguiçadeira de Cassie. Sentou-se no braço de couro largo.

— Estou disposta a tentar — disse ela. — Mas talvez exija mais do que nosso Círculo reunir magia suficiente para que Cassie volte ao normal.

— Podemos pedir aos mais velhos — disse Laurel. — Minha avó Quincey e a avó de Adam, a velha Sra. Franklin. E não se esqueça da mãe de Cassie.

— E temos todos os nossos pais — disse Diana. — Aqueles que ainda estão vivos.

Faye ficou tensa com esta ideia.

— Nossos pais não fazem magia há quase vinte anos. Eles preferem fingir que não têm poderes.

— Chegamos até aqui sem a ajuda deles — disse Sean. — Não precisamos começar a pedir agora.

— Concordo. — Deborah era tão ressentida com a geração dos pais quanto Faye. — Entre nós onze e as anciãs, daremos a Cassie tudo que pudermos. Não podemos contar com a participação dos nossos pais.

A sala enfim ficou em silêncio e todos os olhos se voltaram para Cassie, procurando sua reação.

Mas os sentimentos de Cassie pareciam estar retardados, como se alguém tivesse escavado as partes do cérebro responsáveis pela emoção. Ela não podia se arriscar à decepção que viria com a elevação de suas esperanças.

— Ninguém deve se sentir obrigado a participar deste feitiço. — Cassie se obrigou a ficar na beira do assento. — Não posso pedir isso de vocês, não depois de tudo que já fiz vocês passarem.

Nick, Cassie notou, tinha ficado em silêncio durante toda a discussão. Ela não sabia no que ele estava pensando.

Melanie pigarreou e elevou a voz.

— Acredito que isto pede uma votação — disse ela, assumindo o meio da sala.

— Quem estiver a favor — disse Melanie —, levante a...

— Não! — exclamou Cassie. — Não quero uma votação. Quem quiser fazer isso, simplesmente deve aparecer. E quem não quiser, não será criticado.

Ela se levantou rapidamente e de imediato ficou tonta.

— Até lá, preciso mesmo ir para casa. Me desculpem.

Ela atravessou a sala até a porta de tela e desceu a escada de pedra da varanda de Diana. Ninguém foi atrás dela. Até Adam a deixou partir.

Cassie abriu a porta de sua casa e encontrou todas as luzes apagadas. O interior dos cômodos antigos parecia cavernoso no escuro e o piso de tábua corrida rangia a cada passo que Cassie dava para a escada. Ela foi para a escada estreita, segurando firme o corrimão, até chegar à porta do quarto da mãe. Delicadamente, deu uma batida suave.

Uma voz grogue respondeu.

— Cassie?

— Podemos conversar? — perguntou Cassie, girando a maçaneta.

A mãe se sentou. Cassie subiu na cama com ela, nas dobras de seus lençóis quentes e embolados, como se fosse uma criança. Não conseguia se lembrar da última vez que procurou deliberadamente o carinho da mãe desse jeito.

Talvez por ter sido acordada de um sono profundo, a mãe não fez perguntas, só acariciou o cabelo de Cassie e escutou.

Cassie explicou tudo que tinha acontecido como resultado da destruição do livro do pai, que o Círculo havia derrotado os espíritos ancestrais, mas, no processo, Cassie tinha perdido os poderes. Contou à mãe sobre o feitiço que os amigos iam tentar.

— Eles querem me oferecer parte de seu poder — disse Cassie. — Mas isso parece tão impossível.

— Talvez o feitiço não dê certo — esclareceu a mãe. — Você entende isso, não é?

Cassie não sabia, mas agora, ouvindo a declaração sair tão clara pelos lábios da mãe, seus olhos se encheram de lágrimas.

— Existe uma chance de você ser apenas uma garota comum de agora em diante. — A mão da mãe estava parada em sua nuca. — Normal.

Essa palavra provocou um formigamento curioso pela coluna de Cassie. Quanta carga tinha neste conceito: normal.

— E é um gesto imenso da parte de outros bruxos entregar parte de seu poder a você — continuou a mãe. — Não existe presente mais precioso. Já pensou na possibilidade de que talvez nem seja isso o que você quer?

Cassie se afastou da mãe para olhar bem em seus olhos.

O rosto da mãe parecia sincero e verdadeiro.

— Só estou dizendo que você não deve deixar que seus amigos tomem esta decisão por você. Precisa decidir sozinha como quer que seja seu futuro. Você está em uma posição única, Cassie, para decidir se quer a magia ou não. Na primeira vez, não teve essa escolha.

Cassie devolveu a cabeça ao ombro da mãe e ela voltou aos carinhos.

— Além disso — disse a mãe —, se você não estiver aberta de verdade para aceitar o poder oferecido, por mais que todos se esforcem para dá-lo a você, ele não terá para onde ir.

Cassie refletiu seriamente nas palavras da mãe. Pensou em seu ano anterior. Desde que havia descoberto que era uma bruxa, ela desejava com frequência ser uma garota normal de novo. Às vezes tinha pena de si mesma pelas complicações que vinham com a magia.

Mas agora, mais do que tudo, ela desejava ter valorizado mais suas capacidades — e tinha esperanças de poder voltar a ser a garota forte e poderosa com que havia se acostumado desde que se mudara para New Salem.

Cassie mudou no ano passado. Ela amadureceu. Ser uma bruxa agora era normal para ela, e não havia como voltar atrás.

Uma vida comum nunca mais seria suficiente, mesmo que fosse mais fácil.

— Quero meu poder — disse Cassie. Ela se sentou reta e altiva. — E quero usar esses poderes para o bem. Para criar mudança, para fazer diferença.

A mãe sorriu.

— Então oferecerei a você todo o poder que eu puder.


28

Cassie acordou cedo para tomar banho e já ouviu os movimentos da mãe no andar de baixo. Elas estavam igualmente ansiosas com o dia que tinham pela frente, supôs Cassie. Qualquer coisa podia acontecer.

Cassie abriu a torneira do chuveiro para deixar que a água esquentasse, depois foi ao espelho. Olhou-se enquanto o espelho começava a embaçar. Seu rosto parecia o mesmo de sempre. Com ou sem poder, ela, para o mundo, parecia a mesma. Mas se sentia diferente — nebulosa como o vapor que cobria a superfície do espelho. Até este momento Cassie não havia se permitido realmente ter esperanças demais; o feitiço talvez não desse certo. Mas à medida que tirava o pijama e entrava no jato vaporoso do chuveiro, ela percebeu o quanto queria isso.

Ela jamais quis nada tão intensamente na vida.

Mas e se ninguém aparecesse?

Por que ela não reagiu melhor quando os amigos propuseram a ideia de lhe oferecer seu poder? Ela não mostrou apreço nenhum a eles. Praticamente teve um ataque de birra, se levantando e se afastando do grupo. Seria sua própria culpa se a mãe fosse a única a se juntar a ela na cerimônia de hoje.

Essa ideia perseguiu Cassie pelo resto da manhã, até o momento em que ela e a mãe se aproximavam da praia.

De longe, a areia parecia um manto branco com alguns grupos de pessoas de pé. Cassie não conseguia distinguir rosto nenhum através da neblina. Talvez fosse outro grupo, alguma festa ou reunião de estranhos. À medida que se aproximava, contudo, foi dominada pela visão que se abria, nítida e clara, diante dela.

Faye estava ali, majestosa com seu vestido preto soprando ao vento. O cabelo de Scarlett brilhava vermelho ao sol. Adam e Diana ajudavam todos a se organizarem. Todo seu Círculo tinha vindo. Max, que estava perto de Nick, deu um cutucão nele quando viu Cassie e a mãe se aproximando. Nick sorriu calorosamente e acenou.

E então Cassie começou a olhar mais atentamente a sua volta. Viu a avó de Adam, a Sra. Franklin, ao lado da avó de Laurel, Quincey.

As anciãs vieram, ela pensou consigo mesma. Sua própria avó nem teria acreditado nisso, ver aquelas idosas em público, plenamente preparadas e dispostas a fazer magia. Cassie cumprimentou cada uma delas.

— Obrigada por vir — disse ela, meio sem fôlego.

A avó de Adam apertou sua mão. Sua pele era macia e enrugada, tão velha.

— Sei que você usará bem o meu poder — disse ela.

— Prometo que sim — respondeu Cassie.

E então Cassie notou um homem alto e um tanto sem jeito. Era o Sr. Meade, pai de Diana. Estava ao lado de um homem mais baixo que Cassie reconheceu como o pai de Suzan, o Sr. Whittier. Ela não o via desde o enterro da filha.

Cassie os cumprimentou, agradeceu pela presença, depois se virou para a mãe, incrédula.

— Você convocou os pais?

A mãe deu de ombros, com modéstia.

— Só o que fiz foi ir de porta em porta e explicar a situação. Eles decidiram vir por si mesmos.

Se Cassie não tivesse visto com os próprios olhos, nem teria acreditado. Nervosos ao lado de Cris e Doug, de braços e pernas compridos, estavam os pais deles, que todos sabiam ser radicalmente contra a magia. E a mãe e o pai de Deborah, que sempre negaram até ser bruxos, pediam a ela para explicar mais uma vez como o feitiço funcionaria.

O pai de Sean, o Sr. Dulaney, com sua postura relaxada e olhos de conta, parecia uma versão mais velha do filho. Os dois estavam juntos e ele tinha a mão no ombro ossudo de Sean. E se Cassie não estava enganada, Sean se encostava bem de leve no braço dele. O pai tinha aparecido por Sean. Todos os pais fizeram isso.

Até a mãe de Faye, uma reclusa famosa que nunca punha os pés para fora da cama, tinha vindo à praia esta manhã. Estava pálida, um pouco afastada dos outros, com um moletom cinza volumoso que ela segurava ao corpo como um casulo — mas ela veio.

Cassie deu um salto quando um cachorro veio latindo e correndo para ela. Até Raj apareceu na praia para o feitiço. Ele farejou suas mãos com o focinho molhado enquanto Cassie ria.

Adam veio atrás dele, trazendo uma coleira de náilon néon.

— Ele não queria ficar de fora — disse ele, rindo.

Havia uma centelha nos olhos cinza-azulados de Adam, tanto quanto o sol brilhando no mar.

— Dá para acreditar nessa gente toda? — disse ele. — Há muito amor por você nesta praia agora, Cassie. Espero que você possa sentir isso.

O coração de Cassie inchou no peito. Adam tinha razão. Este pessoal se reuniu por ela — tudo isso era só para ela. A visão de todos esses amigos, todos os entes queridos, de repente deixou seus olhos marejados. Ela percebeu que tinha uma família muito maior do que jamais soube.

Cassie foi para o meio do círculo gigantesco, composto de cada bruxo que ainda estava em New Salem. Diana assumiu a extremidade norte do círculo com seu Livro das Sombras na mão. Ela falou numa voz alta e musical.

— Obrigada por se juntarem a nós hoje — disse ela. — À medida que o feitiço estiver acontecendo, cada bruxo aqui reunido deve oferecer de boa vontade a Cassie uma parte de seu poder, como um presente. Vocês não receberão nada em troca. Deve ser um ato inteiramente altruísta.

Cassie olhou todos os rostos dispostos, velhos, jovens e entre as duas gerações. Nenhum deles guardava rancor de seu passado, nem usava o passado do pai contra ela. Ninguém ali naquele dia a culpava por ser uma Blak.

— Estão todos prontos? — perguntou Diana.

O murmúrio de consentimento foi todo o estímulo necessário.

— Eu vou primeiro — anunciou Diana e deu um passo adiante, erguendo um cristal de quartzo transparente para que todos vissem.

Cassie ficou inteiramente imóvel, de mãos abertas. Colocou as palmas das mãos em concha como se tentasse pegar água de uma fonte.

Diana colocou de forma cerimoniosa o quartzo em suas mãos abertas. E falou:

— Eu lhe dou este cristal, Cassandra Blake, como um símbolo da minha fé em você e da minha aliança com a comunidade de bruxos, do passado, presente e futuro. Use bem este poder.

Seus olhos irradiavam um amor cintilante, por Cassie e por todos que estavam presentes. Depois ela voltou em silêncio a seu lugar no círculo.

Adam foi o seguinte. Estendeu uma safira azul vívida, depois colocou a pedra ao lado do cristal de Diana nas mãos abertas de Cassie, repetindo as mesmas palavras:

— Eu lhe dou este cristal, Cassandra Blake, como um símbolo da minha fé em você e da minha aliança com a comunidade de bruxos, do passado, presente e futuro. Use bem este poder.

Adam deu um beijo de leve no rosto de Cassie antes de voltar a seu lugar no círculo.

Melanie ofereceu a Cassie um jade verde-claro. Laurel deu a ela uma ametista majestosa de um tom profundo. Deborah colocou um citrino amarelo na mão de Cassie que parecia o sol alto da manhã. O pai de Suzan se aproximou estendendo a gema preferida da filha, uma cornalina laranja. Os dois tinham lágrimas nos olhos quando ele a ofereceu a Cassie.

A mãe de Cassie tinha trazido sua pedra homônima, uma alexandrita de cor cambiante. Colocou por cima da pilha de cristal que se formava nas mãos de Cassie com um sorriso orgulhoso e amoroso.

Eram 21 no total. Um por um, cada bruxo presente se aproximou e fez a oferenda.

As mãos em concha de Cassie se encheram de uma pilha de cristais como uma montanha multicolorida de vidro. Em suas palmas estavam danburita rosa, topázio transparente e a preciosa turmalina. Havia olho de tigre sedoso e pirita bronzeada; opala reluzente e jaspe arco-íris matizado. Suas superfícies cintilavam e eram frias em sua pele. A massa de gemas ficava mais pesada a cada pedra, como uma balança que vai arriando.

Nick se aproximou estendendo uma grandiosa pedra de selenita verde, uma pedra da amizade com propriedades metafísicas.

— Só conhecer você — cochichou ele em seu ouvido — basta para mim. Ver você todo dia, estar lá. Serei seu amigo pela vida toda. — Ele lhe deu um beijo carinhoso na testa depois de colocar a pedra em suas mãos.

Cassie sentia o coração cheio até a borda, repleto de amor, transbordando.

Faye se aproximou do meio do círculo logo depois de Nick. Ofereceu a Cassie seu raro rubi estrela vermelho. Foi um gesto grandioso — a pedra mais poderosa que Faye possuía —, mas ela não o fez com soberba; foi com um gesto de cabeça humilde que a colocou na pilha.

— Você merece — disse ela.

Scarlett era a única bruxa que ainda não tinha se aproximado. Cassie esperou, as mãos ficando trêmulas, agora sob o peso de todas aquelas pedras. Já podia sentir seu poder correndo por ela, completando-a. Teve o cuidado de não deixar que nem uma só escapasse pelos dedos.

Scarlett pôs a mão no fundo do bolso e retirou sua oferenda. Ergueu uma rosa de ferro preta e prateada para que todos admirassem. Era uma variação da hematita, o cristal de trabalho de Cassie e Scarlett, com bordas hexagonais planas agrupadas em uma formação que se assemelhava a uma flor. Seu brilho refletia o sol como um espelho enquanto ela se aproximava. Com as duas mãos, ela a colocou por cima da montanha de cristais nas palmas das mãos de Cassie.

Cassie sentiu os olhos se arregalarem ao ver a beleza natural do cristal. Era a pedra perfeita para completar a pilha, um botão de rosa reluzente e extraordinário. Quando Scarlett voltou a seu lugar no círculo, a oferenda estava completa.

Cassie fechou os olhos. A recitação final do feitiço cabia a ela.

Ela respirou fundo, permitindo que o poder de todos os cristais em suas mãos preenchesse seu coração e sua alma.

Pensou bem nas palavras que estavam prestes a deixar sua boca. Ela precisava ser sincera. Tinha de senti-las. Precisava ter certeza.

E Cassie tinha.

— Estou aberta ao poder e ao amor oferecidos a mim no dia de hoje — disse ela. — Eu os aceito com toda gratidão.

Ela repetiu três vezes essas palavras, cada vez mais alto, e no momento em que a última sílaba deixou seus lábios, os cristais esquentaram em suas mãos — todos juntos, como um só. De súbito ela ficou consciente do cheiro de sal no ar e das ondas batendo no píer. Ouviu isso e sentiu a respiração se acalmar. Podia sentir a própria pulsação e a pulsação da terra, e foi imersa neste ritmo. Depois sentiu um fluxo quente vindo das pedras, subindo pelos braços, por seu coração, saindo pelo alto da cabeça. Sentiu uma luz irradiando de sua pele. Ela reluzia.

Cassie abriu os olhos e olhou em volta. Podia ver nos rostos dos amigos e entes queridos que eles também sentiram. Eles também estavam corados — não por terem recebido poder, mas porque o deram livremente. Todo o grupo estava radiante.

De repente Cassie se sentiu inteira de novo, mas sem as trevas lutando com ela por dentro. Ela se sentia parte da terra, do céu e do mar — se sentia ao mesmo tempo mínima e vasta. O feitiço havia funcionado. Ela se sentia Cassie.


29

Cassie segurou a mão de Adam.

— Eu amo tanto você — disse ela.

Ela baixou os olhos para os dedos entrelaçados e lá estava ele: o cordão prateado, envolvendo os dedos dos dois e seus corações, amarrando os troncos como um laço.

Adam pousou os lábios entreabertos em seu cabelo.

— Sempre.

Ele a beijou na boca e todo o corpo de Cassie parecia se aquecer. Ela sentia o cordão puxando-os para mais perto, zumbindo e cintilando, mais vibrante do que nunca.

O sol forte brilhava na vasta água azul. Os olhos de Adam estavam arregalados e amorosos e Cassie sentia que ia desmaiar neles enquanto ele a olhava. O momento era perfeito.

Com um gesto rápido, Adam a pegou nos braços.

— Acho que isto merece um mergulho — disse ele.

— Ao mar! — gritou Cassie para que todos ouvissem.

Nick correu para as ondas. Chris, Doug e Sean o seguiram. Eles entraram na água até os joelhos, totalmente vestidos.

Scarlett correu atrás de Sean, mergulhando a cabeça dele e afundando-a. Melanie, Laurel e Deborah entraram até o queixo. Adam carregou Cassie para dentro do mar o suficiente para a água cobrir a areia e depois correu para se juntar à brincadeira.

Max e Diana ficaram perto, andando pela água juntos. Cassie via os filamentos do cordão entre eles quando beijaram as gotas de água do rosto um do outro.

Em seguida Cassie viu Faye por perto, tirando a cabeça da água rapidamente e sorrindo com o canto da boca. Cassie sorriu para ela e Faye bateu uma onda de água em seu rosto.

Cassie levou o jato de água salgada direto na boca e Faye deu uma gargalhada antes de fugir, jogando mais água ao bater os pés no mar.

Cassie tirou a água que ardia nos olhos. Depois de tudo que eles passaram, Faye continuava sendo Faye — e ela não a queria de nenhum outro jeito.

O Círculo vagou mais para o horizonte, perseguindo e fugindo dos outros, espalhando a água da rebentação.

Os tempos sombrios acabaram, pensou Cassie. Enfim. Ela sentia que podia flutuar ali, olhando os amigos daquele jeito, para sempre — seus amigos incríveis e poderosos, rindo e brincando sob o sol forte.

Este era o seu destino e as coisas pelas quais valia a pena lutar: amigos, família, amor.

Ligação.

Por que um dia ela quis ser diferente do que era? Uma bruxa. Com um Círculo. Eternamente ligados ou ao outro.

Cassie nadou para o centro da ação.

Ela estava em casa e era ela mesma. Tudo estava como devia ser.

 

 

                                                   L. J. Smith         

 

 

 

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