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A TERCEIRA MOÇA / Agatha Christie
A TERCEIRA MOÇA / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TERCEIRA MOÇA

                       

Hercule Poirot gostava de coisas doces. Estava sen­tado à mesa do café, tendo à sua frente uma xícara de cho­colate fumegante, à qual um brioche fazia boa companhia. Poirot mastigava com ar de aprovação: o brioche era o re­sultado de uma busca que o levara a quatro padarias. Este era de uma patisserie dinamarquesa; apesar disso, infinita­mente superior ao de outro estabelecimento, que se intitulava francês e não passava de uma impostora.

Ele estava gastronomicamente satisfeito, com o estômago em paz. Também o cérebro estava em paz, talvez um pouco mais do que convinha. Concluíra sua magnum opus, uma aná­lise dos grandes escritores de ficção criminal. Tivera a ousa­dia de falar com desprezo de Edgar Allan Poe, lamentara a falta de método ou ordem nas efusões românticas de Wilkie Collins1, elogiara desmedidamente dois autores norte-ameri­canos praticamente desconhecidos — enfim, desta ou daquela maneira, rendera homenagens onde homenagens eram devi­das e severamente as negara quando achara não ser o caso. Acompanhará a impressão do livro, examinará o produto final e, fora um número incrível de erros de impressão, declarara-o bom. A aventura literária lhe dera prazer, assim como a enorme quantidade de livros que tivera de ler. Tanto lhe dera prazer bufar com repugnância ao jogar um livro ao chão (embora sempre se lembrasse de levantar-se, apanhá-lo e cuidadosa mente sepultá-lo na cesta de papéis), como balançar a cabe­ça com satisfação nas raras ocasiões em que ela se justificava.

 

1 William Wilkie Collins, escritor inglês (1824-1889), um dos precur­sores, como Poe, da moderna história policial. Por sua forte tendência ao melodrama, não é apreciado — e, portanto, conhecido — hoje em dia.

 

E agora? Já gozara um agradável interlúdio de descan­so, indispensável após o esforço intelectual. Mas não é pos­sível descansar indefinidamente, é preciso seguir adiante. La­mentavelmente, Poirot não tinha a menor idéia do que fazer. Uma outra obra literária? Achava que não. Uma vez um trabalho feito, e bem feito, não se deve insistir, acreditava ele. A verdade é que estava enfarado. A extenuante atividade mental tivera o defeito de habituá-lo mal: estava incapacita­do para o ócio.

Merde! — sacudiu a cabeça e tomou novo gole do cho­colate.

A porta se abriu e entrou George, bem treinado criado. Seus modos eram respeitosos e já o tom de voz parecia um pedido de desculpas. Limpou a garganta e murmurou: — Uma... — fez uma pausa, — ... uma... jovem senhora está aí.

Poirot o encarou com surpresa e leve reprovação.

— Não recebo ninguém a esta hora — lembrou com se­veridade.

— Sim senhor — concordou George.

Patrão e criado se entreolharam. Às vezes, a comunica­ção entre ambos era meio nebulosa. Pela inflexão de voz, por palavras que não chegavam a ser ditas, ou por outras cuidadosamente escolhidas, George costumava dar a entender que alguma informação adicional poderia ser obtida, desde, é claro, que fosse feita a pergunta certa.

— Essa jovem senhora é atraente? — Poirot indagou, cautelosamente.

— Em minha opinião... não, senhor; mas tudo é uma questão de gosto.

Poirot sopesou a resposta. Lembrou-se da breve pausa com que George antecedera a expressão "jovem senhora". O criado tinha a preocupação de colocar cada pessoa em sua ca­tegoria social exata. E não estava certo quanto ao status da visitante; na dúvida, optara pela classificação mais generosa.

— Na sua opinião, ela é mesmo uma jovem senhora, e não, digamos, uma jovem... pessoa.

— Acho que sim, senhor, mas hoje em dia não é fácil ter certeza — o tom indicava o quanto George lamentava esse estado de coisas.

— Disse por que queria me ver?

— Ela disse... — a resposta vinha relutante, patente mais uma vez o prévio pedido de desculpas — que queria consultá-lo sobre um homicídio que pode ter cometido.

Hercule Poirot arregalou os olhos, elevando as sobran­celhas. — Pode ter cometido? Ela não tem certeza?

— Foi o que ela disse, senhor.

— Insuficiente, mas possivelmente interessante — diagnosticou Poirot.

— Pode ser... uma brincadeira, senhor — disse George, sem se comprometer.

— Tudo é possível — concordou Poirot, — mas é difícil acreditar... — ergueu a xícara. — Mande-a entrar daqui a cinco minutos.

— Sim, senhor — e George saiu.

Poirot tomou o último gole do chocolate. Empurrou a xícara para um lado e se levantou. Aproximou-se da lareira, olhou-se no espelho preso à parede; as pontas dos bigodes es­tavam em alturas diferentes, situação que corrigiu cuidado­samente, com um ajuste milimétrico. Satisfeito, voltou à ca­deira e esperou a entrada da visitante, embora não soubesse exatamente o que esperar.

Talvez aguardasse algo que se aproximasse de sua pró­pria definição da beleza feminina. "Uma bela mulher em pe­rigo ..." A expressão desgastada pelo muito uso veio-lhe ao pensamento. E logo se afastou, à entrada de George com a visitante. Intimamente, Poirot suspirou e balançou a cabe­ça. Certamente não era uma bela mulher — muito menos apa­rentemente estar em perigo. Talvez um tanto perplexa, mas decididamente não apavorada.

"Bolas!" — pensou Poirot com desgosto — "Essas moças! Nem ao menos tentam melhorar um pouco! Bem pin­tada, bem vestida, o cabelo penteado por um profissional competente... ela ainda poderia passar. Mas, assim!"

A visitante era uma moça de uns vinte anos. Os cabe­los, compridos, despenteados, de uma cor indefinida, escor­riam-lhe pelos ombros. Os olhos, de um azul esverdeado, eram grandes e não exprimiam coisa alguma. Vestia o que presumivelmente seriam as roupas de sua geração: botas altas de couro preto, meias brancas de lã, não muito limpas, uma mí­nima saia e um suéter grosso e grande demais para ela.

Em qualquer pessoa da idade de Poirot, a jovem só des­pertaria um impulso: o de fazê-la tomar um banho o mais de­pressa possível. Ele já tivera essa reação antes, na rua, em relação a centenas de moças exatamente iguais. Todas pa­reciam sujas. No entanto — uma contradição em termos — esta também parecia ter sido recentemente retirada das águas de um rio caudaloso. Essas meninas, filosofou Poirot, talvez não sejam realmente sujas: apenas fazem o possível para dar essa impressão.

Levantou-se com sua costumeira polidez, apertou-lhe a mão e puxou uma cadeira.

— Queria me ver, mademoiselle? Sente-se, por favor.

— Oh — disse a moça, um tanto sem fôlego, encarando-o sem piscar.

— Eh bien? — continuou Poirot.

Ela hesitou — Eu prefiro... acho melhor ficar em pé — os grandes olhos continuavam a fitá-lo, carregados de dú­vidas .

— Como quiser — Poirot voltou.à sua cadeira e olhou-a esperando. A moça arrastou os pés, baixando a vista para logo voltar a encarar Poirot.

— O senhor... o senhor é Hercule Poirot?

— Indubitavelmente. Em que posso servi-la?

— Ah, bem, é meio complicado. Quer dizer...

Poirot sentiu que ela precisava de ajuda. E colaborou: — Meu criado disse-me que a senhora desejava consultar-me porque "pode ter cometido um homicídio". É exato?

A moça concordou — É.

— Mas decerto não é uma questão que permita dúvidas. A senhora deve saber se cometeu ou não um crime.

— Bem, eu não sei explicar. Quer dizer...

— Vamos — disse Poirot com bondade. — Sente-se. Relaxe os músculos. Conte-me tudo.

— Não sei... ah, meu Deus, não sei como... O senhor não vê, é tão difícil. Eu... eu mudei de idéia. Não leve a mal, mas... acho que vou embora.

— Vamos. Coragem.

— Não. Não posso. Pensei que pudesse chegar e. .. e lhe perguntar, perguntar o que devo fazer... mas não posso... o senhor não percebe? É tão diferente do que eu pensava...

— Diferente, como?

— Por favor, desculpe, eu não quero ser grosseira, mas...

Ela respirou com força, olhou para Poirot, desviou o olhar, e por fim as palavras irromperam: — O senhor é velho demais. Não me disseram que era tão velho. Não quero parecer mal-educada, mas é isso: O senhor é velho demais. Desculpe, por favor..

Voltou-se abruptamente e saiu, agitada e tonta como uma mariposa à volta de uma lâmpada.

Poirot, ainda de boca aberta, ouviu bater a porta da frente.

Desabafou:

— Nom d'un nom d'un nom...

 

O TELEFONE TOCOU.

Hercule Poirot não deu sinal de vida. Tocou, e tocou, e tocou, numa insistência irritante. George entrou e se aproximou do aparelho, dirigindo uma muda interrogação ao patrão. Poirot fez um gesto:

— Deixe tocar — disse.

George obedeceu, saindo. O telefone continuou a tocar. O ruído penetrante e desagradável da campainha ocupou o silêncio da sala por mais alguns instantes, até cessar subita­mente. Mas, um ou dois minutos depois, soou novamente.

— Ah, Sapristi! Só pode ser uma mulher, só pode ser. Poirot suspirou, ergueu-se e tirou o fone do gancho.

— Alô.

— É o senhor... é Monsieur Poirot?

— O próprio.

— É a Sra. Oliver... mas sua voz está diferente. Nem a reconheci.

— Bonjour, madame. Como está passando?

— Ah, otimamente — a voz de Ariadne Oliver tinha o seu habitual tom alegre. A famosa autora de histórias poli­ciais e Poirot mantinham boas relações.

— É um pouco cedo para telefonar, mas quero lhe pedir um favor.

— Pois não.

— É o jantar anual do clube de escritores policiais; pensei que pudesse ser o nosso orador convidado deste ano. Seria muita gentileza sua, se viesse.

— Quando será?

— Mês que vem, dia 23. Um profundo suspiro:

— Alas! Eu sou velho demais!

— Velho? Que história é essa? O senhor não está velho coisíssima alguma.

— A senhora acha?

— Claro! Será formidável. Poderá nos contar uma porção de histórias lindas sobre crimes de verdade.

— E quem vai querer ouvir?

— Todo o mundo. O pessoal... Monsieur Poirot, acon­teceu alguma coisa? O senhor parece aborrecido.

— Estou mesmo aborrecido. Meus sentimentos,.. enfim, não importa.

— Mas, conte o que houve.

— Para que incomodá-la?

— Incômodo nenhum. O melhor é vir me contar tudo. Quando pode ser? Venha tomar chá hoje de tarde.

— Eu não tomo chá à tarde.

— Então, café.

— Não é a hora do dia em que costumo tomar café.

— Chocolate? Com creme chantilly por cima? Ou um chá de ervas? O senhor adora um chazinho de ervas. Ou uma limonada. Quem sabe uma laranjada? Se preferir esse café sem cafeína que apareceu agora, posso tentar conseguir...

— Ah, ça non, par example! É detestável!

— Então, um refresco, daqueles que o senhor gosta tanto. Acho que ainda tenho meia garrafa de Ribena.

— O que é Ribena?

— Sabor de groselha.

— É mesmo impossível resistir-lhe, madame! A senhora realmente não aceita recusas, e sou-lhe grato pela amabilidade. Aceito, então, tomar uma xícara de chocolate hoje à tarde.

— Ótimo. E vai me contar tudo sobre o que o aborreceu tanto.

Ela desligou.

Poirot pensou por um momento. Discou um número e pouco depois dizia: — Senhor Goby? Aqui Hercule Poirot.

Está muito ocupado? — Mais ou menos — veio a resposta do Sr. Goby. — Mais para mais do que para menos. Mas, para servi-lo, Monsieur Poirot, se tem pressa, como de cos­tume. .. ora, eu não diria que os meus rapazes não poderiam tomar conta de tudo o que temos no momento. É verdade que bons rapazes não são fáceis de conseguir, como antiga­mente. São muito presunçosos, hoje em dia, já pensam que sabem tudo, antes de começar a aprender. Mas, muito bem! Não se pode esperar cabeças experientes em cima de ombros jovens. Terei prazer em ficar pessoalmente às suas ordens, Monsieur Poirot. Talvez possa também usar um ou dois dos meninos para o serviço. Imagino que seja o de costume... conseguir informações, não?

Ouviu com atenção enquanto Poirot pormenorizava exa­tamente o que queria. Terminando com o Sr. Goby, Poirot ligou para a Scotland Yard, onde, depois de algum tempo, con­seguiu falar com um amigo. Este respondeu, após ouvir os seus pedidos:

— Você não quer muita coisa, não? Qualquer homicídio, em qualquer lugar. Hora, vítima e local desconhecidos. Se quer a minha opinião, acho que é maluquice, meu caro —- e acrescentou, com desaprovação: — Você não tem nem mesmo um ponto de partida!

 

Às 4h15m daquela tarde, Poirot estava sentado na sala de visitas da Sra. Oliver, tomando com prazer uma xícara de chocolate, generosamente encimada por uma coroa de creme chantilly, que a dona da casa colocara à sua frente, juntamente com um pratinho cheio de biscoitos língua-de-gato.

— Tanta gentileza, chère madame — olhando por cima da beira da xícara, ele examinava com algum espanto o pen­teado de sua amiga e o novo papel de parede que via por trás. Ambos eram novidade para ele. Na última vez que vira a Sra. Oliver, o estilo de seu penteado era simples e severo. Agora, apresentava uma profusão de rolos e espirais, intrin­cadamente dispostos à volta da cabeça. Suspeitava que boa parte daquela riqueza capilar fosse artificial. Tentou calcular quantas madeixas se desprenderiam quando a Sra. Oliver entrasse no estado de agitação que lhe era peculiar. E, quanto ao papel de parede...

— Estas cerejas... são novas, não? — apontou com a colher. Sentia-se quase afogado no meio de um denso pomar de cerejeiras.

— Acha que são cerejas demais? — perguntou a Sra. Oliver. —- É tão difícil saber, antes, como vai ficar ò papel na parede. Quem sabe o desenho antigo não seria- melhor?

Poirot. esforçou-se para visualizar o que havia antes. Lembrava-se vagamente de uma multidão de pássaros tropi­cais, de cores vivas, numa floresta. Pensou em comentar que plus ça change, plus cest Ia même chose, mas conteve-se.

— E agora — disse a Sra. Oliver, quando o seu convi­dado finalmente pousou a xícara e se refestelou na cadeira com um suspiro de satisfação, limpando o bigode de uns restos de creme, — o que aconteceu?

— É uma história muito simples. Hoje de manhã, uma jovem veio me ver. Sugeri que marcasse uma hora; é preciso manter um pouco de rotina, a senhora sabe. Mas ela mandou dizer que precisava ver-me imediatamente, porque pensava que podia ter cometido um homicídio.

— Que coisa esquisita. Ela não tinha certeza?

-— Exatamente. C'est inoui! Por isso, disse a George que a mandasse entrar. Ela ficou parada na minha frente! Não quis se sentar, e ficou ali mesmo, encarando-me. Parecia uma retardada mental. Tentei encorajá-la. O único resultado for que, de repente, disse que tinha mudado de idéia: que não queria ser grosseira, mas que — imagine só! — eu era velho demais.

A Sra. Oliver acorreu com palavras de consolo — Ora, essas meninas são assim mesmo. Acham que qualquer pessoa com mais de 35 está com um pé na sepultura. O senhor pre­cisa compreender que são todas umas louquinhas.

— Fiquei extremamente magoado —- disse Poirot.

— Ah, eu não me aborreceria por tão pouco. É claro que foi grosseria, mas... .

— Isso não importa... não é um problema apenas dos meus sentimentos. Acontece que estou preocupado. Muito preocupado...

— Eu nem. pensaria mais no assunto, se fosse o senhor — aconselhou a Sra. Oliver, decisiva.

— A senhora não está entendendo. Estou preocupado com a moça. Ela me procurou porque precisava de auxílio...

mas decidiu que eu era velho, velho demais para poder aju­dá-la. É claro que estava errada, mas o caso é que saiu cor­rendo sem dizer mais nada. E estou lhe dizendo que aquela moça precisa de ajuda.

— Não sei, não — interveio a Sra. Oliver, ainda tran­qüila. — Essas meninas costumam criar tempestades em copos dágua.

— A senhora está erradíssima. Ela precisa de ajuda.

— Não está pensando que ela matou alguém, não é mesmo?

— Por que não? Disse que tinha matado, não disse?

— Disse, mas... — e a Sra. Oliver fez uma pausa. — Ela afirmou que talvez tivesse cometido um crime — conti­nuou. — O que queria dizer?

— Exatamente; não faz sentido.

— Quem será que ela matou, ou que pensa que matou? Poirot encolheu os ombros.

— E por que matou alguém?

Poirot novamente encolheu os ombros, sem responder.

— Pode ter sido uma porção de coisas — a Sra. Oliver começou a se animar, colocando em funcionamento sua prolí­fica imaginação. — Ela pode ter atropelado alguém e segui­do em frente sem parar. Ou ter sido atacada por um homem, no alto de um penhasco e, na luta, tê-lo jogado no espaço. Ou, quem sabe, ter dado o remédio errado a um doente. Pode ter ido a uma dessas festas malucas, e ter lutado com alguém, e ter acordado sem se lembrar de nada, ao lado de um homem apunhalado, ou, talvez...

— Assez, madame, assez!

Mas a Sra. Oliver já tinha partido em todas as direções.

— Pode ser que ela seja enfermeira e tenha errado a dose da anestesia no meio de uma operação, ou ainda... — interrompeu-se subitamente ansiosa por melhores informações. — Como era o jeito dela?

Poirot pensou um pouco.

— Uma Ofélia sem graça.

— Meu Deus — espantou-se a Sra. Oliver. — Eu quase posso vê-la. Que esquisito.

— Ela não é competente, — continuou Poirot. — É assim que eu a vejo. Não é capaz de enfrentar dificuldades, de prever a aproximação do perigo. É o tipo que outras pessoas podem apontar e dizer: Se precisarmos de um bode expiatório ela é ideal.

A Sra. Oliver tinha deixado de prestar atenção. Reme­xia com os dedos os luxuriantes redemoinhos do penteado, num gesto que Poirot bem conhecia.

— Espere um instante — ela gritou, num quase deses­pero. — Espere!

Poirot, sobrolho erguido, esperou.

— O senhor não disse o seu nome — reclamou a Sra. Oliver.

— Ela não se identificou. É uma pena.

— Espere — implorou a Sra. Oliver, ainda mostrando sinais de autêntico desespero. Súbito, baixou as mãos da ca­beça e suspirou profundamente. O penteado lentamente se desmoronou sobre seus ombros; um majestoso cacho despe­diu-se para sempre do conjunto, caindo ao chão. Poirot o apanhou, colocando-o discretamente sobre a mesa.

— Muito bem — prosseguiu a Sra. Oliver, inesperada­mente tranqüila. Ajustou um ou dois grampos e balançou a cabeça (sem que nada mais se abalasse) enquanto pensava.

— Quem falou a essa moça sobre o senhor, Monsieur Poirot?

— Ninguém, que eu saiba. Naturalmente, ela ouviu falar de mim. Lógico.

A Sra. Oliver pensou que não era nada "lógico". Era natural que Poirot acreditasse que todo o mundo o conhe­cesse. Na verdade, existia um grande número de pessoas para as quais o nome de Hercule Poirot não significava coisa al­guma, especialmente na geração mais jovem. "Como vou lhe dizer isso?" pensou ela, "sem lhe magoar os sentimentos?"

— Acho que não tem razão — afirmou. — As moças de hoje... e os rapazes, também, não entendem muito de dete­tives, e coisas assim. Não é assunto para eles.

— Todo o mundo já deve ter ouvido falar em Hercule Poirot — disse o próprio, sobranceiro.

Para Hercule Poirot, isso era uma questão de dogma, que a Sra. Oliver tentou contornar:

— Mas eles são tão mal-educados, hoje em dia... Na verdade, só conhecem nomes de cantores e disc-jockeys, esse tipo de gente. Quando a gente precisa de um especialista, quero dizer, um médico, um detetive ou um dentista... bem, o certo, eu acho, é perguntar se alguém conhece uma pessoa indicada. Há sempre um amigo para aconselhar — "querida, você precisa ir naquele homem maravilhoso na Queen Anne's Street; ele enrosca a sua perna três vezes em volta da cabeça e num instante você fica boa" — ou então: "Roubaram todos os meus diamantes, e o Henry ia ficar uma fera, por isso eu não podia chamar a polícia, e aí eu descobri um detetive sim­plesmente fabuloso, que conseguiu recuperar as jóias e o Henry não precisou saber de nada". É assim que acontece, sempre. Alguém o recomendou àquela moça.

— Não sei, não.

— Mas vai saber... agora. Porque fui eu quem lhe mandou a moça.

Poirot estacou — A senhora? Mas por que não disse antes?

— Porque foi só agora que descobri. .. quando o senhor descreveu a sua Ofélia sem graça. Fiquei com a impressão de que era alguém que eu tinha conhecido, e não há muito tempo. E, de repente, tive um estalo.

— Quem é ela?

— O nome exatamente eu não sei, mas posso descobrir. Estávamos conversando sobre detetives e investigadores par­ticulares... e eu falei do senhor e das coisas maravilhosas que tem feito.

— E lhe deu o meu endereço?

— Não, claro que não. Não tinha a menor idéia de que ela precisava de um detetive. Estava só conversando. Mas mencionei o seu nome uma porção de vezes, e naturalmente seria muito fácil procurar na lista de telefones.

— Conversaram sobre homicídios?

— Não que me lembre. Nem sei como começamos a falar de detetives... a não ser... é, pode ter sido ela quem puxou o assunto...

— Conte-me, então, conte-me o que puder... mesmo que não se lembre do nome, diga tudo o que se lembra.

— Bem, foi no último fim de semana. Eu estava hospe­dada com os Lorrimers, que não entram na história, a não ser porque foram eles que me levaram à casa de uns amigos para uma festinha. Havia muita gente lá... e não me diverti muito porque, o senhor sabe, eu não gosto de beber, os donos da casa têm de arranjar um refrigerante para mim, e detesto dar trabalho aos outros. E ainda há as pessoas que me vêm dizer coisas — que adoraram meus livros, que estavam loucas de vontade de me conhecer — eu fico logo encabulada, sentindo-me tão boba... Mas ainda agüento. O pior é quando vêm me dizer que gostam do Sven Hjerson, o meu detetive. Se soubesse como eu o detesto! Mas meu editor me proibiu de confessar isso. Acho que a conversa sobre detetives de verdade começou daí, e falei um pouco sobre o senhor. A nossa menina estava por perto, prestando atenção. Quando o ouvi descrever agora a sua Ofélia sem charme, comecei a me lembrar. Pensei: "Quem eu conheço que é assim?" E tive o estalo: "Claro. Àquela moça, aquele dia na festa". Tenho quase certeza — a não ser que esteja fazendo confusão com outra pessoa.

Poirot suspirou, armando-se da dose de paciência sempre necessária com a Sra. Oliver.

— Quem eram os donos da casa, na tal festinha?

— O nome dele acho que era Trefusis, ou então Treherne. Um nome assim; ele é um grande homem de negócios, muito rico. Faz alguma coisa na City1 mas passou quase toda, a vida na África do Sul...

1 A City é o grande centro de negócios de Londres. (N. da T.)

 

— Casado?

— É. Uma mulher muito bonita, louríssima, muito mais moça do que ele. É a sua segunda mulher. A filha era da primeira mulher. Tinha também um tio, verdadeira peça de museu, surdíssimo. É importantíssimo — tem uma fieira de títulos. É almirante, marechal-do-ar ou coisa parecida. Também é astrônomo, eu acho. Pelo menos tem um telescópio enorme no telhado. Mas pode ser que seja só um passatempo. Havia uma moça estrangeira, também, que é uma espécie de acom­panhante do velhote. Vai com ele a Londres para lhe dar a mão na hora de atravessar a rua, e coisas assim. Bem bonitinha.

Poirot tinha de selecionar e catalogar as informações for­necidas pela Sra. Oliver. Sentia-se como um computador hu­mano.

— Quer dizer então que vivem na casa: o casal Tre­fusis...

— Não é Trefusis. Eu me lembro agora... é Restarick.

— Dois nomes inteiramente diferentes,

— Não sei por quê. Os dois são de Cornway2, não são?

2 Uma região da Inglaterra. (N. da T.)

 

— Então vamos lá: moram na casa o casal Restarick, o tio importantíssimo. Também se chama Restarick?

— É Sir Roderick qualquer coisa.

— E temos a acompanhante e a filha do casal... há outros filhos?

— Acho que não... mas realmente não sei. A filha não mora lá, por falar nisso; só estava passando o fim de semana. Tenho a impressão de que não se dá muito bem com a ma­drasta. Tem um emprego em Londres e arranjou um namora­do de que eles não gostam muito, segundo ouvi dizer.

— A senhora parece saber muita coisa sobre a família.

— A gente sempre ouve umas coisas, e os Lorrimers são muito linguarudos. Falam da vida alheia o tempo todo, e acabei sabendo uma porção de histórias. Só que é tanta coisa que dá para uma pessoa ficar tonta — eu posso ter misturado tudo. Queria me lembrar do primeiro nome daquela moça. Alguma coisa ligada a uma canção... Thora? Fale comigo, Thora... Thora, Thora... Algo assim — ou será Myra?, Myra, oh, Myra meu amor é todo pata ti.. . Estou chegando perto. Sonhei que morava em um castelo de mármore... Norma? Ou será que é Maritana? Norma... Norma Restarick. É isso mesmo, tenho certeza — e acrescentou um detalhe: — Ela é uma terceira moça.

— Pensei que a senhora pensasse que ela é filha única.

— E é... ou acho que é.

— E o que quer dizer essa história de terceira moça?

— Pelo amor de Deus, o senhor não sabe? Nunca leu o Times?

— Leio... nascimentos, mortes e casamentos. E alguns artigos que me chamem a atenção.

— Não, eu estou falando dos anúncios da primeira pá­gina. Só que não são mais na primeira página. Estou até pen­sando em mudar de jornal 3. Mas vou lhe mostrar.

3 Recentemente, num esforço de modernização, The Times passou seus tradicionais anúncios pessoais para páginas internas. (N. da T.)

 

A Sra. Oliver levantou-se e apanhou um exemplar do jornal numa mesinha. Abriu-o e lhe mostrou: — Aqui está — veja só. "Terceira moça — precisa-se, para confortável apartamento de segundo andar, quarto próprio, aquecimento central" "Terceira moça, precisa-se para dividir apartamento; 5 guinéus por semana, quarto próprio." "Quarta maça, precisasse. Regents Park, quarto própró”' É assim que essas moças estão vivendo hoje em dia. Melhor do que numa pensão ou casa de família. A moça principal aluga um apartamento mobiliado e depois divide o aluguel. Geralmente, a segunda moça é uma amiga. E a terceira elas encontram com anúncios de jornal, se não conhecem alguém. E, como está vendo, muitas vezes ainda arranjam lugar para uma quarta. A moça principal fica com o melhor quarto, a segunda paga uma parte menor, a terceira menos ainda, mas dorme num armário, pra­ticamente. E cada dia da semana uma tem o direito de usar a sala para receber seus amigos, em rodízio — ou coisa seme­lhante. Dizem que dá muito certo.

— E em que parte de Londres vive essa moça que talvez se chame Norma?

— Como já disse, na verdade sei muito pouco sobre ela.

— Mas poderia descobrir?

— Ah, sim, acho que seria fácil.

— Tem certeza de que ninguém fal©u nada sobre algu­ma morte inesperada, nenhuma menção sobre isso?

— O senhor diz... uma morte em Londres, ou na casa dos Restaricks?

— Qualquer lugar serve.

— Não sei, não. Vamos ver o que eu consigo descobrir? Os olhos da Sra. Oliver brilhavam de excitação — es­tava inteiramente embalada na aventura.

— Seria muita bondade sua.

— Vou telefonar para os Lorrimers. Está numa boa hora para pegá-los em casa — dirigiu-se para o telefone. — Tenho de dar uma desculpa qualquer... é preciso inventar uma boa.

Incerta olhou para Poirot.

— Naturalmente. A senhora tem bastante imaginação

— duvido que não consiga alguma coisa. Mas, nada de muito fantástico, por favor. Moderação.

A Sra. Oliver prometeu, e empunhou o fone. Ao pedir o número que desejava, virou-se para Poirot e sussurrou: — O senhor tem papel e lápis — ou um caderno de notas — para anotar nomes e endereços?

Poirot já estava com seu bloco de apontamento a postos e sacudiu afirmativamente a cabeça,

A escritora voltou sua atenção para o telefone e come­çou a trabalhar. Poirot ouviu com atenção uma das metades de uma longa conversa.

— Alô. Quer fazer o favor de chamar... ah, é você, Naomi. Ariadne Oliver. Ah, sim, uma festa e tanto... Você quer dizer... o velhote? Não, não sei... Praticamente cego?. .. Pensei que ele fosse a Londres com aquela mocinha estrangeira... É, deve ser uma preocupação para eles, às vezes — mas achei que ela toma conta dele muito bem... Uma das razões porque estou telefonando é para lhe pedir o endereço dela — não, o da menina dos Restaricks — é perto de South Ken, não? Ou em Knightsbridge? Imagine, eu lhe prometi um livro, tomei nota do endereço e, como sempre, perdi o papel. Nem me lembro do nome dela. É Thora ou Norma? Bem que eu pensei que fosse Norma mesmo. Um ins­tante, vou pegar um lápis. Pronto. .. Borodene Mansions, sessenta e sete... eu sei, aquele conjunto enorme que parece a prisão de Wormwood Scrubs... É, já me disseram que os apartamentos são muito confortáveis, com aquecimento central e tudo.. Quem são as outras moças que moram com ela?... Amigas dela? ou foi por anúncio?.. . Claudia Reece-Holland.. . filha do deputado, não?... E a outra, quem é?... Ah, você não sabe... Deve ser uma boa moça também, claro. . . O que elas fazem?. .. Hoje em dia, todas são secre­tárias, não?. . . Ah, ela é decoradora, . . você não tem certeza, sei... pode ser que trabalhe numa galeria de arte. Não, Naomi, claro que não faço questão de saber... a gente só fica pensando o que fazem essas moças de hoje; é sempre bom estar atualizada, para os meus livros, você sabe.. . Não foi você quem me falou sobre um namorado?... É, eu sei, mas é tão difícil resistir, você não acha? Quero dizer as mulheres acabam sempre fazendo o que eles querem... Ele é muito esquisito? Do tipo sujo e barbudo?. . . Ah, conheço o gênero — colete de brocado, cabelo comprido, encacheado. . . até o ombro, eu sei... pois é, difícil dizer se é homem ou mulher. .. Isso é verdade, quando são bonitinhos parecem personagens de Vandyke4... Que que você disse? Andrew Restarick tem ódio dele?... Eu sei, os outros homens costumam detestar... E Mary Restarick?. . . Claro, é comum não se dar bem com uma madrasta. Imagino que ela tenha ficado contente com o emprego que a menina arranjou em Londres. Que histórias que andam .contando?... Por que não conseguiam descobrir o que havia com ela?... Quem contou?... Sei, mas o que foi que eles conseguiram abafar? Ah... a enfermeira, e ela contou para a governante dos Jenners? Você quer dizer, o marido? Ah, sei, sei... os médicos não atinavam com o que era... Não, mas.as pessoas falam tanto... concordo inteira­mente. Geralmente, é tudo mentira.. . Alguma coisa gástri­ca, então? Mas, que ridículo! Então, diziam que ele.. . como é mesmo o nome. . . Andrew, sei. Era fácil, porque tinha o veneno à mão... É, mas por quê?. .. Quer dizer, não é como se fosse uma mulher que ele detestasse há anos... ela é a segunda mulher, afinal de contas.. . e tão mais moça que ele, e bonitinha... Bom, isso poderia ser... mas será que a es­trangeira ia fazer uma coisa dessas?. .. Por causa de algu­ma coisa que a Sra. Restarick teria dito a ela... Ela é uma belezinha, e o Andrew pode ter tido uma paixonite.. . nada de muito sério, é claro. .. Mas a Mary pode não ter gostado e caído na,pele da moça, e então. ..

4 Vandyke — Anthony Van Dyck (ou Vandyke) — O mais importante pintor flamengo do século XVII, depois de Rubens; famoso por seus inúmeros retratos. (N. da T.)

 

Pelo canto do olho, a Sra. Oliver percebeu que Poirot tentava chamar sua atenção com gestos frenéticos.

— Um minuto só, meu bem — disse ela ao telefone. — É o padeiro — Poirot considerou-se ofendido. — Volto já.

Largou o fone, atravessou a sala correndo e puxou Poirot para um canto.

— Que é? — perguntou ofegante.

— Eu, um padeiro! — protestou energicamente o detetive.

— Desculpe, tive de dizer qualquer coisa. O que é? O senhor estava entendendo o que ela...

Poirot a interrompeu.

— A senhora me contará mais tarde. Já ouvi o bastante. O que quero são os serviços de sua imaginação, arranjando um bom pretexto para que eu visite os Restaricks... quem sabe um velho amigo seu, que passará uns dias perto deles... A senhora poderia dizer...

— Deixe comigo. Eu imagino alguma coisa. O senhor vai usar um nome falso?

— Claro que não. Não vamos complicar as coisas mais do que o necessário.

A Sra. Oliver concordou e correu para o telefone.

— Naomi? Nem me lembro mais o que estávamos fa­lando; alguém sempre interrompe a gente no melhor da con­versa, não é? Por que foi mesmo que eu liguei para você?... Ah, bom... o endereço da Thora, quer dizer, da Norma. .. e você já me deu. Mas tinha uma outra coisa... ah, me lembrei. Um velho amigo meu. Um homenzinho fascinante — eu estava falando nele, outro dia, na festa. Hercule Poirot. Ele vai passar uns dias perto da casa dos Restaricks, e tem a maior vontade de conhecer o velho Sir Roderick. Já ouviu falar muito dele, e o admira muito — por alguma descoberta que ele fez no tempo da guerra — ou alguma outra coisa científica. .. seja o que for, gostaria muito de visitá-lo e apre­sentar-lhe suas homenagens, como ele diz. Você acha que ha­veria problema? Pode avisá-los? É, ele aparecerá a qualquer hora. Diga-lhes que o façam cantar suas maravilhas históri­cas de espionagem... Ele... o quê? Estão no fogo? Claro, claro, vá ver se queimaram. Até logo.

Recolocou o fone e afundou-se na cadeira — Meu Deus estou exausta. Foi tudo bem, o senhor acha?

— Bastante bem — disse Poirot.

— Achei melhor jogar com o nome do velho. Assim o senhor acaba conhecendo a família toda, e é o que o senhor quer, acho eu. E uma mulher sempre pode dizer coisas meio idiotas sobre assuntos científicos; e o senhor vai pensando uma abordagem mais concreta, até chegar lá. Agora, quer saber o que ela me contou?

— Houve falatório, eu imagino. Sobre o estado de saúde da Sra. Restarick, não?

— Isso mesmo. Parece que ela teve uma doença meio misteriosa — de estômago — e os médicos ficaram intriga­dos. Mandaram-na para o hospital e ficou logo boa, mas sem qualquer motivo aparente. E, quando foi para casa, voltou tudo de novo — e os médicos ficaram na mesma. E as pessoas começaram a falar. Tudo começou com uma enfermeira irresponsável, e a irmã dela contou a uma vizinha, e a vizinha foi trabalhar fora e contou para outra pessoa, achando a história meio esquisita, e tudo o mais. E todo o mundo começou a dizer que o marido estava querendo envenená-la. Isso sempre acontece — só que desta vez não parece haver razão alguma. E então Naomi e eu pensamos na acompanhante do velho — ela é uma espécie de secretária dele — mas também não existe nenhuma razão para que ela estivesse dando veneno à Sra. Restarick.

— Ouvi a senhora mencionar alguns motivos.

— Bem, sempre é possível...

— Hum, homicídio previsto.. . — disse Poirot, pensativo, — mas ainda não cometido...

 

A Sra. Oliver entrou no pátio de estacionamento de Borodene Mansions. Seis outros carros já ocupavam todo o espaço disponível, mas, naquele momento, um deles deu marcha-à-ré e saiu; apressadamente, ela entrou na vaga.

Desceu, batendo a porta, e ficou por alguns instantes olhando para cima. Era um conjunto residencial recente, ocupando o espaço criado pela explosão de uma mina terres­tre na última guerra. Maciço, parecia extremamente funcio­nal, e quem quer que o tivesse construído obviamente despre­zara qualquer ornamentação adicional.

Era uma hora de movimento. Carros e pessoas entravam e saíam do pátio, cada vez em maior número à medida que findava o trabalho diário,

A Sra. Oliver olhou para o relógio de pulso: dez para as sete. A hora ideal, pensou; quando as moças que traba­lham já devem ter voltado para casa e estão renovando a pin­tura dos olhos e trocando de roupa, para sair novamente, apertadas em exóticas calças compridas ou outra extravagân­cia semelhante; ou se preparam para um serão doméstico, la­vando sua lingerie e suas meias. Fosse como fosse, uma oca­sião adequada para abordagem.

O conjunto era simétrico em suas duas alas, com grandes portas de vaivém, no centro. A Sra. Oliver tentou a porta da esquerda e, como sempre acontece, estava errada: era a ala dos apartamentos entre 100 e 200. Teve de sair e entrar novamente. O número 67 ficava no sexto andar. A escritora chamou o elevador, cujas portas se abriram com um ruído

metálico assustador. Ela entrou rapidamente; os elevadores modernos não a tranqüilizavam muito.

Crash. As portas se fecharam e o bólido partiu. Parou quase que imediatamente (o que também era assustador) e a Sra. Oliver escapuliu como um coelho assustado.

Orientando-se, seguiu pelo corredor da direita, até chegar a uma porta com um "67" de metal pendurado ao" alto. Na­quele preciso momento, o "7" se desprendeu e caiu ao chão.

 "Há algo aqui que não gosta de mim," ela resmungou, fazendo uma careta de~dor ao se abaixar para apanhá-lo e, com dedos nervosos, afixá-lo novamente. Mas a porta se abriu em seguida, pela mão de uma jovem alta e bonita. Usava um cos­tume escuro bem cortado, com a saia bem curta, uma blusa de seda branca e sapatos extremamente elegantes. Seu .cabelo escuro estava penteado para trás e sua pintura era discreta. Por alguma razão obscura, assustava um pouco a Sra. Oliver. Apertou a campainha. Com a sua sorte, não haveria nin­guém em casa.

— Oh — disse ela, esforçando-se para encontrar a l* abertura certa, — por acaso a Srta. Restarick está?

— Desculpe, ela saiu. Posso dar algum recado? Antes de continuar, a Sra. Oliver repetiu o seu Oh.. . ganhador de tempo. Canhestramente exibiu um pacote mal embrulhado em papel pardo. — Eu lhe prometi um livro — explicou. — Um dos meus que ela não tinha lido ainda. Espero ter me lembrado certo de qual era. Ela vai demorar, por acaso?

— Para falar a verdade, não sei. Não conheço os seus planos para hoje.

— Oh. Por acaso estou falando com a Srta. Reece-Holland?

A moça mostrou surpresa.

— Sou eu mesma.

— Conheci seu pai — disse a Sra. Oliver, continuando: — Sou a Sra. Oliver, escritora — no tom envergonhado em que costumava anunciar o fato.

— Não quer entrar? "

A Sra. Oliver aceitou o convite, e Claudia Reece-Holland a fez entrar na sala de estar. Todos os cômodos do aparta­mento tinham o mesmo papel de parede, imitando madeira, o que fornecia um fundo adequado para os quadros modernos dos inquilinos, ou qualquer outra forma de decoração que preferissem. Parte da mobília era do tipo moderno, embutido: prateleiras, estantes etc; havia também um grande sofá e uma mesa desmontável. Outras contribuições pessoais dos in­quilinos eram um gigantesco arlequim colado a uma parede e o desenho de um macaco se balançando numa palmeira, ra­biscado numa das paredes.

— Estou certa de que Norma vai ficar emocionada de receber o seu livro Sra. Oliver. Não quer tomar alguma coisa? Sherry? Gim?

A maneira de falar, correta e despachada, era a~ de uma secretária realmente eficiente. Mas a Sra. Oliver recusou.

— Que vista linda vocês têm aqui — disse,, olhando por uma das janelas e fechando os olhos ante os raios horizontais do sol que se punha.

— Temos, sim. Só não é muito engraçado quando o ele­vador enguiça;

— Não imaginava que esse elevador se desse ao luxo de enguiçar. Parece tão... tão automático.

— É bastante novo, mas nem por isso melhor que os outros — disse Claudia. — Toda a hora está precisando de revisão.

Outra moça entrou.

— Cláudia, você tem idéia de onde eu botei... — parou encarando a Sra. Oliver. Claudia fez rápidas apresentações.

— Frances Cary. Sra. Oliver. Sra. Ariadne Oliver.

— Oh, que prazer — disse Francês.

Era alta e magra, com longos cabelos negros. A maquilagem pesada dava ao seu rosto um tom branco cadavérico, destacando os olhos, um pouco puxados para cima e forte­mente pintados, de maneira a acentuar a inclinação. Usava calças de veludo, muito apertadas, e um suéter pesado. Fazia um enorme contraste com a aparência eficiente de Claudia.

— Vim trazer um livro que prometi a Norma Restarick — disse a Sra. Oliver.

— Oh!... Que pena que ela ainda está fora.

— Ainda não voltou?

A pausa que se seguiu era indisfarçável. Pareceu à Sra. Oliver que as duas moças se entreolharam.

— Pensei que ela trabalhasse em Londres — comentou, esforçando-se para mostrar um ar de surpresa inocente.

— Trabalha, sim — interveio Claudia. — Está numa firma de decoração, e às vezes tem de visitar clientes fora de Londres — sorriu. — Nós vivemos muito independentes aqui — explicou. — Entramos e saímos à vontade, e não é^sempre que avisamos às outras aonde vamos. Mas não vou me esque­cer de lhe dar o seu livro, quando ela voltar.

A explicação fluiu fácil, impossível de ser contestada.

— Então, muito obrigada — disse a Sra. Oliver, levantando-se.

Claudia a levou até a porta — Direi a meu pai que co­nheci a senhora. Ele é um grande leitor de histórias policiais. Fechando a porta, voltou à sala. Francês estava encostada à janela.

— Desculpe — disse ela. — Dei alguma rata?

— Eu estava acabando de dizer que Norma tinha saído. Francês encolheu os ombros.

— Como eu ia saber? Claudia, onde anda essa menina? Por que não voltou segunda-feira? Onde é que ela foi?

— Não tenho a menor idéia.

— Ela não ficou na casa dos pais? Foi lá que passou o fim de semana.

— Não. Eu telefonei para saber.

— Acho que não tem importância... Mesmo assim, ela é.. bom, ela tem alguma coisa de esquisito.

— No fundo ela não é mais esquisita do que qualquer outra — a opinião carregava menos segurança no tom de voz do que nas palavras.

— Ah, é sim senhora — disse Francês. — Às vezes me dá arrepios. Não é uma pessoa normal, aposto.

Riu, inesperadamente:

— Norma não é normal! Você sabe disso, Claudia, só não quer dizer. Por lealdade ao patrão, não será?

 

Hercule Poirot caminhava pela rua principal de Long Basing. Isto é, se se pode chamar de principal a única rua, o que, praticamente, era o que acontecia em Long Basing. Era um desses vilarejos com uma tendência para muito com­primento e pouca largura. Tinha uma igreja imponente, com uma alta torre e um teixo, dignificado pelos anos, no adro. Tinha a quantidade usual de lojinhas variadas. Dois antiquários, um vendendo quase exclusivamente adornos de pinho para lareira, e o outro exibindo diversas pilhas de mapas an­tigos, uma boa quantidade de peças de porcelana (quase todas lascadas), alguns baús de carvalho comidos de cupim, armá­rios de vidro, alguns objetos de prata vitoriana — tudo um tanto prejudicado pela falta de espaço.- Tinha dois cafés, ambos péssimos; uma loja de cestos, muito simpática, reple­ta de produtos de artesanato caseiro. Tinha uma quitanda e agência dos correios; um armarinho com grande movimento em matéria de chapéus, um departamento de sapatos infantis e um grande estoque de miudezas de todos os tipos. A papela­ria também vendia jornais, sem falar em fumo e balas. A loja de fazendas, por seu turno, representava a aristocracia do co­mércio local. Duas senhoras de cabelos brancos e ar severo montavam guarda a infindáveis prateleiras, nas quais se en­contravam materiais de costura para todos os gostos e necessi­dades, enquanto moldes para vestidos e tricô ocupavam um balcão à parte. O armazém recentemente florescera, por auto-definição, em um supermercado completo, abundante em car­rinhos de compras e uma infinidade de materiais de limpeza e produtos alimentícios, religiosamente acondicionados em exuberantes caixas de papelão. Mais adiante, uma lojinha oferecia apenas uma pequena vitrina, onde se lia "Lillah" em elegante caligrafia, exibindo uma blusa francesa (epigrafada "a última moda") uma saia azul-marinho e uma jaqueta listrada de ver­melho ("peças separadas"), tudo exposto com estudadíssima negligência.

Poirot observava a cidade com interesse imparcial. Tam­bém dentro dos limites do vilarejo e de frente para a rua, havia diversas casas modestas, de estilo antigo, algumas man­tendo a sua pureza georgiana, a maioria mostrando sinais de melhoramentos vitorianos, como uma varanda ou uma janela oitavada. Uma ou duas haviam passado por uma plástica facial completa, e pareciam proclamar orgulhosamente a sua modernização. Havia também alguns chalés simpáticos e de­crépitos, uns fingindo ser uns cem anos mais velhos do que na realidade e outros inteiramente genuínos — pelo menos, quaisquer concessões ao conforto não eram visíveis ao pas­sante descuidado.

Digerindo tudo o que via, Poirot seguia caminho lenta­mente. Se a sua impaciente amiga, a Sra. Oliver, estivesse com ele, há muito já teria perguntado por que perdia tanto tempo, já que a casa para a qual se dirigia ficava uns 500 metros além dos limites do vilarejo. Poirot ter-lhe-ia respon­dido que estava absorvendo a atmosfera local; que essas coisas às vezes são importantes. Ao terminar a cidadezinha, depa­rava-se com uma abrupta transição. De um lado, afastada da estrada, uma ala de casas recém-construídas, com um peque­no gramado à frente de cada uma; as portas eram todas de cores diferentes, o que dava ao conjunto um ar alegre. Mais além, campos e sebes se alternavam, num panorama aqui e ali pontilhado pelo que os agentes imobiliários costumam chamar de "residências atraentes", com suas árvores e seus jardins particulares, aparentando discrição e um jeito de quem não se mete na vida alheia. Estrada abaixo, Poirot descorti­nou uma casa, cujo andar superior ostentava uma estranha construção esférica, com toda a aparência de ter sido adicio­nada há alguns anos. Era, sem dúvida, a Meca de sua pere­grinação. Atingiu um portão ao qual estava afixada uma placa com o nome "Crosshedges". Inspecionou a casa. Uma mansão convencional, provavelmente do começo do século. Nem bo­nita nem feia — comum era o adjetivo adequado. O jardim era mais atraente do que a casa e obviamente tivera o seu tempo de muita atenção e bom tratamento, embora estivesse agora a caminho da decadência. Mas ainda tinha gramados suaves, muitos canteiros, diversos arbustos plantados com o cuidado de formar um panorama agradável. Tudo estava em ordem, e Poirot deduziu que havia um jardineiro em serviço, sem falar no interesse pessoal dos donos demonstrado pela presença de uma mulher que, num canteiro próximo à casa, entretia-se em arrumar umas dálias. Era alta e magra, embora seus ombros fossem retos. Abrindo o portão, ele entrou no jardim e aproximou-se. A mulher voltou a cabeça, para logo depois erguer-se e voltar-se para ele, inquisitivamente.

Ficou parada, esperando que Poirot falasse primeiro; tinha numa das mãos uma tesoura de jardineiro. Estava in­trigada, pensou o detetive.

— Pois não? — ela perguntou.

Mostrando a sua educação continental, Poirot tirou o chapéu com um floreio e curvou-se. Ela parecia fascinada com os seus bigodes, dos quais não tirava os olhos.

— A Sra. Restarick?

— Sou eu...

— Espero não incomodá-la, madame.

Um leve sorriso lhe aflorou aos lábios — De modo algum. O senhor.. .

— Tomei a liberdade de vir importuná-los. Uma amiga minha, a Sra. Ariadne Oliver...

— Ah, sim, claro. O senhor deve ser o Sr. Poirot.

— Monsieur Poirot — ele corrigiu, com ênfase na últi­ma sílaba, — Hercule Poirot, às suas ordens. Estou pas­sando uns dias perto, e aventurei-me a vir, na esperança de prestar minhas homenagens a Sir Roderick Horsefield.

— Eu sei, Naomi Lorrimer avisou que o senhor ia apa­recer.

— Espero não incomodar...

----Oh, de maneira alguma. Ariadne Oliver esteve co­nosco no último fim de semana; veio com os Lorrimers. Os seus livros são muito divertidos, não? Mas talvez o senhor não se distraia com histórias de detetives — já que é um de­tetive de verdade.

— Se alguém pode ser chamado de um detetive de ver­dade, sou eu, madame — afirmou Hercule Poirot.

Percebeu que ela escondia um sorriso. Estudou-a com maior atenção: era atraente, de uma maneira um tanto artifi­cial. Um penteado bem armado compunha os seus cabelos dourados. Poirot se perguntou se ela não seria secretamente insegura, se não estaria cuidadosamente desempenhando o papel de uma lady inglesa absorta em seu jardim. Tentou es­pecular sobre quais seriam os seus antecedentes sociais.

— A senhora tem um belo jardim aqui — disse.

— O senhor gosta de jardins?

— Não à maneira inglesa: os britânicos têm um talento todo especial para jardins, e lhes dão muito maior importân­cia do que nós.

— O senhor se refere aos franceses, não?

— Sou belga e não francês, madame.

— É verdade; creio que a Sra. Oliver contou que o senhor fez parte da polícia belga.

— Realmente. A senhora está conversando com um velho cão policial belga — deu uma pequena risada bem-educada e continuou, gesticulando. — Mas, os seus jardins ingleses, eu os admiro! Prostro-me aos seus pés! As raças latinas pre­ferem os jardins formais, jardins de castelo, sempre Versailles em miniatura. E, naturalmente, foram elas que inventaram o potager,1Muito importante, o potager. Os ingleses também o têm, importado da França, mas não o amam tanto quanto às suas flores, hein? Não é assim?

1 Potager - horta, quintal.

 

— O senhor deve ter razão — disse Mary Restarick. — Mas, venha, entre. Vamos procurar o meu tio.

— É verdade que vim render as minhas homenagens a Sir Roderick, mas também à senhora, madame. Sempre rendo minhas homenagens à beleza, quando a encontro — ele se inclinou.

— Ora, não deve me lisonjear assim — ela riu, um pouco encabulada, fazendo-o entrar por uma porta de vidro.

— Conheci o seu tio superficialmente, em 1944.

— Coitado, está bem velho agora. E lamento dizer que muito surdo.

— Foi há muito tempo que nos conhecemos; talvez ele tenha esquecido. Era um caso de espionagem ligado ao desen­volvimento científico de uma certa invenção, que ficamos devendo ao talento de Sir Roderick. Espero que ele aceite me receber.

— Ah, tenho certeza de que adorará -r- disse a Sra. Restarick. — Leva uma vida tão aborrecida, hoje em dia. Eu passo muito tempo em Londres... estamos procurando uma casa na cidade — suspirou e prosseguiu. — Pessoas idosas são tão difíceis de lidar, às vezes.

— Eu sei — disse Poirot. — Também sou difícil de lidar, com muita freqüência.

Ela riu — Ah, não, Monsieur Poirot, que é isso? Não deve fingir que é velho!

— Já ouvi dizer que sou — lamentou-se Poirot, suspi­rando, — Dos lábios de jovens — completou, resignado.

— Pois foi uma injustiça. É o tipo de coisa que a nossa filha diria — ela acrescentou.

— Ah, têm uma filha?

— Temos. Isto é, ela é minha,enteada.

— Terei muito prazer em conhecê-la — disse Poirot gen­tilmente.

—Ah, ela não está conosco. Vive em Londres: trabalha lá,

— Essas moças de hoje... todas trabalham.

— É o costume — comentou a Sra. Restarick, distraída. — Mesmo quando se casam, acabam voltando a trabalhar em escritórios, ou a ensinar em colégios.

— E a senhora, não? .

— Não. Fui criada na África do Sul; só vim com meu marido, há pouco tempo. Ainda... ainda estranho muitas coisas.

Olhou em volta de si com o que pareceu a Poirot uma absoluta falta de entusiasmo. Era uma sala bem mobiliada, mas convencional — sem personalidade. O único toque pessoal eram dois grandes retratos pendurados às paredes. Um era de uma mulher de lábios finos, num vestido de noite de veludo cinza. A sua frente, na parede oposta, um homem de uns trinta anos, transbordando mal contida energia.

— Aposto que sua filha acha aborrecido viver no campo, não?

— Ê verdade, para ela é muito melhor em Londres. Ela não gosta daqui — interrompeu-se bruscamente e continuou, como se as palavras lhe tivessem sendo arrancadas dos lá­bios: — ... e não gosta de mim...

— Impossível — disse Hercule Poirot, com polidez gaulesa.

— Muito pelo contrário! Mas acho que é comum. Ima­gino que seja sempre difícil para uma filha aceitar a madrasta.

— Sua enteada era muito ligada à mãe?

— Acho que era. Ê uma moça difícil... quase todas elas são, não?

Poirot suspirou — Os pais têm muito menos controle sobre os filhos hoje em dia. Era muito diferente, nos bons tempos.

— Ê verdade.

— Talvez não deva dizê-lo, mas confesso que lamento a falta de cuidado com que elas escolhem os seus... como se diz?... os seus namorados, não?

— O pai de Norma tem tido muitas preocupações com ela nesse ponto. Mas acho que não adianta reclamar. As pessoas precisam aprender à própria custa. Mas vamos ver o tio Roddy... seu escritório fica lá em cima.

Ela saiu à sua frente. Seguindo-a, Poirot olhou para trás, por cima do ombro. Uma sala monótona, sem personali­dade — exceto pelos dois retratos. Pelo estilo do vestido da mulher, calculou que fossem de vários anos atrás. Se aquela era a primeira Sra. Restarick, pensou, não teria simpatizado com ela.

— São belos retratos, madame —disse.

— Sim. São de Lansberger.

Era um pintor de retratos que estivera cm moda vinte anos antes; fora famoso e extremamente caro. O seu meticulo­so naturalismo não era mais apreciado e pouco se ouvia falar dele desde que morrera. Seus modelos às vezes eram chamados com desprezo» de "cabides de roupas", mas Poirot não pen­sava assim. Suspeitava da existência de uma ironia cuidado­samente oculta atrás da superfície dos trabalhos que Lansber­ger executava aparentemente sem grandes esforços.

Mary Restarick continuou, subindo a escada à sua frente:

— Estavam guardados até há pouca tempo... manda-mo» limpá-los e..,

Interrompeu-se, subitamente, estacando com a mão apoia­da no corrimão.

À sua frente, uma pessoa acabara de aparecer na curva da escada, descendo. Era uma figura estranha: à primeira vista parecia estar fantasiado, alguém que certamente não combinava com aquela casa.

Para Poirot, era um tipo familiar em outras situações, que já vira muitas vezes em ruas de Londres e até mesmo em reuniões sociais. Um representante da juventude de hoje. Usava um paletó preto, um enfeitado colete de veludo e calças muito justas. O seu cabelo castanho descia em ondas pela nuca. Era exótico e belo — e era preciso olhar duas vezes para saber-lhe o sexo.

— David — Mary Restarick falou com aspereza. — O que faz você aqui?

O jovem não se abalou — Assustei-a? — perguntou. — Lamento muito.

— O que você está fazendo aqui. . . nesta casa? Você. . . você veio com Norma?

— Norma? Não. Esperava encontrá-la aqui.

— Aqui? Como assim? Ela está em Londres.

— Pois é, minha cara, mas não está. Pelo menos, não em Borodene Mansions, sessenta e sete.

— O que está você querendo dizer. .. ela não está lá?

— Bom, como ela não voltou desde domingo, pensei que poderia estar aqui com vocês. Vim saber o que anda fazendo.

— Ela foi embora domingo à noite, como sempre — e acrescentou, num tom zangado. — Por que você não tocou a campainha para avisar que estava aqui? Por que está andan­do pela casa dessa maneira?

— Francamente, minha cara, está com medo de que eu afane as colheres de prata, ou coisa semelhante? Não vejo nada esquisito em entrar numa casa, em plena luz do dia. Por que não?

— Porque nós somos antiquados... e não gostamos disso.

— Ora, ora, ora — David suspirou. — Todo mundo tem a mania de criar problemas para tudo. Muito bem, se não vou ser bem recebido, e como você não está com jeito de saber onde anda a sua enteada, é melhor ir andando. Quer que revire os bolsos antes de sair?

— Não seja ridículo, David.

— Bye bye, então — o jovem passou por eles, acenou displicentemente e saiu pela porta da frente.

— Criatura detestável — disse Mary Restarick, com um tom de rancor que surpreendeu Poirot. — Não o suporto; sim­plesmente não consigo aturá-lo. Por que será que a Inglater­ra anda tão cheia de gente desse tipo?

— Ah, madame, não se preocupe. É tudo uma questão de moda. Aqui eles não são muito comuns, mas em Londres. .. é a moda.

— Horrível — disse Mary. — Horrível. Efeminados, es­quisitos.

— Por outro lado, lembram um pouco os retratos de Vandyke não acha, madame? Numa moldura dourada, com um colarinho rendado, a senhora não diria que ele seria efeminado ou exótico.

— A ousadia de vir aqui. Andrew ficaria furioso. Ele se preocupa tanto! Uma filha sempre dá dores de cabeça... e o pior que é que Andrew não conhece Norma a fundo. Foi educada inteiramente pela mãe, enquanto ele viajava, e agora não consegue entendê-la. Nem eu, para falar a verdade. Não posso deixar de achar que é muito esquisita. É impossível ter qualquer autoridade sobre ela, e parece ser atraída pelos piores tipos de rapazes. Está inteiramente fascinada por esse David Baker. Não se pode fazer nada. Andrew proibiu que ele viesse aqui... e o senhor viu como é que ele apareceu, na maior tranqüilidade. Acho... acho melhor não dizer a Andrew; não quero que ele se preocupe sem necessidade. Acho que esse espécime não é o único com quem ela anda em Londres; há outros muito piores. O tipo que não toma banho, usa barbicha estranha e roupas gordurentas.

Poirot tentou animá-la — Ora, madame, não se aflija. As loucuras da juventude sempre passam.

— Gostaria muito de ter certeza. Norma é uma moça muito difícil. Às vezes, penso que talvez seja um pouco dese­quilibrada. É tão estranha... há ocasiões em que fica intei­ramente alheia a tudo que se passa. E as suas antipatias, tão violentas...

— Antipatias?

— Ela me detesta. Realmente, odeia-me. Não entendo a razão. Sei que deve ter sido muito afeiçoada à mãe, mas, afinal de contas, por que o seu pai não deveria se casar novamente?

— Acredita mesmo que ela a odeie?

— Ah, tenho certeza absoluta. Já tive diversas provas. Nem sabe como fiquei aliviada quando ela se mudou para Londres. Eu não queria criar problemas... — calou-se de súbito, como se pela primeira vez percebesse que estava falan­do a um desconhecido.

Poirot tinha o dom de atrair confidencias. Era como se as pessoas, falando com ele, não se apercebessem de que tinham um interlocutor, Ela deu uma breve risada.

— Meu Deus — disse. — Por que será que estou dizen­do tudo isso ao senhor? Todas as famílias têm seus proble­mas, acho eu. E nós, pobres madrastas, sofremos um boca­do... Ah, chegamos.

Bateu a uma porta.

— Entre, entre — era um rugido estentóreo.

— Uma visita para o senhor, titio — disse Mary Restarick, entrando, seguida por Poirot.

Um homem idoso, de ombros largos e rosto quadrado e rosado, com um ar zangado, estava em pé no meio do cômodo; aproximou-se deles com passadas fortes. Atrás, sentada a uma mesa, uma moça arrumava papéis e documentos. Sua cabeça estava abaixada e viam-se apenas o cabelo, lisos e escuros.

— Este é Monsieur Hercule Poirot, tio Roddy — disse Mary Restarick.

Poirot adiantou-se — Ah, Sir Roderick, fazem tantos anos... tantos anos desde que tive o prazer de conhecê-lo. Acredito que a última vez que nos vimos foi na Normandia. Lembro-me muito bem, também estavam lá o General Abercromby, o Coronel Race e o Marechal-do-Ar Sir Edmund Collingsby. Que decisões Unhamos de tomar! E os problemas com a segurança. Ah, hoje não é mais preciso segredo. Lem­bro-me de quando desmascaramos aquele agente secreto que nos enganou por tanto tempo — o senhor deve se lembrar, o Capitão Henderson.

— Ah, sim, o Capitão Henderson, claro! Deus do Céu, aquele porco maldito!

—Talvez não se lembre de mim, Hercule Poirot.

— Mas claro que sim, lembro-me do senhor. Foi um tempo duro, aquele, não? O senhor era o representante fran­cês, não? Havia dois, e eu não suportava um deles... não consigo lembrar o nome. Mas, ora essa, sente-se, sente-se. Nada como uma boa conversa sobre os velhos tempos.

— Estava com medo que não se recordasse de mim, ou do meu colega, Monsieur Giraud.

—  Mas evidentemente que me lembro, de ambos. Ah, aqueles tempos é que eram bons, não há dúvida.

A moça sentada á mesa levantou-se e aproximou uma cadeira para Poirot.

— Isso mesmo, Sônia, isso mesmo — disse Sir Roderick,— Permita que apresente minha secretária. Encantado­ra, não? Ê indispensável. Uma grande ajuda, o senhor sabe: arquiva todos os meus papéis. Não sei onde estaria sem ela.

Poirot se inclinou polidamente —Enchanté, mademoíasele — murmurou.

A moça sussurrou alguma coisa em resposta. Era peque­na, morena, parecia tímida — seus escuros olhos azuis passa­vam a maior parte do tempo modestamente voltados para o chão, embora tivesse sorrido com doçura e humildade para o patrão, recebendo em troca uma palmadinha nas costas.

— Não sei o que seria de mim sem ela — disse ele, — Não sei.

— Ah, não diga isso — ela protestou. — Não sou tão boa assim. Nem sei bater a máquina muito depressa.

— Depressa bastante para mim, minha cara. E você também é a minha memória. Meus olhos, meus ouvidos e muitas outras coisas.

Ela sorriu novamente.

— Recordo-me — murmurou Poirot — de algumas das boas histórias que o pessoal costumava .contar. Não sei se eram exageradas ou não. Por exemplo, o dia em que alguém roubou o seu carro e... — e narrou a anedota.

Sir Roderick estava encantado — Ha, ha, vamos, ora essa! Não vamos exagerar... Mas, no fundo, foi isso mesmo que aconteceu. Imagine, alguém se lembrar depois de todo esse tempo. Mas eu me lembro de outra melhor ainda — disse, mergulhando na reminiscência.

Poirot ouviu, e aplaudiu. Pouco depois, olhou para o re­lógio e se levantou.

— Mas não quero ocupar mais o seu tempo — disse. — Vejo que está ocupado com algum trabalho importante. Eu estava na vizinhança, e não queria deixar passar a oportuni­dade de fazer-lhe uma visita. Os anos passam, mas estou vendo que o senhor não perdeu sua força, seu apetite para a vida.

— Bem, bem, talvez seja verdade. De qualquer maneira, não deve ficar aí me elogiando... mas tem de ficar para o chá. Mary se encarregará disso — olhou em volta. — Ora, ela saiu. Uma ótima moça.

— De certo, e muito atraente; imagino que venha sendo boa companhia para o senhor há muitos anos.

— Oh, não, eles estão casados há pouco tempo. É a se­gunda mulher do meu sobrinho. Para ser franco, nunca me entusiasmei muito por este meu sobrinho, Andrew — não é um sujeito muito firme, sempre inquieto. Simon, seu irmão mais velho, era o meu favorito. Mas também nunca o conhe­ci direito. Quanto a Andrew, portou-se muito mal com a pri­meira esposa. Saiu de casa, o senhor sabe. Abandonou-a por uma mulher da pior categoria. Essa não enganava ninguém, mas ele estava fascinado, e a coisa ainda durou um ou dois anos; uma bobagem da parte dele. Mas está moça com quem se casou agora parece decente. Que eu saiba, é muito direita. Simon era um sujeito correto — embora muito chato. Não posso dizer que tenha ficado contente quando minha filha se casou com um Restarick. Gente do comércio, o senhor sabe. Ricos, é claro, mas o dinheiro não é tudo — em nossa famí­lia, o costume sempre foi de casamentos com militares. Seja como for, nunca tive muito contato com eles.

— Creio que têm uma filha. Uma amiga minha a conhe­ceu na última semana.

— Ah, Norma. Menina tola. Anda por aí numas roupas horríveis, e arranjou um namorado esquisitíssimo. Mas o que se vai fazer, são todas iguais nos tempos de hoje. Rapazes cabeludos, beatniks, Beatles, uns nomes inventados não sei onde. Não consigo entendê-los; falam praticamente uma língua estrangeira. E ninguém quer ouvir as opiniões de um velho; logo, não há nada a fazer. Mesmo Mary — sempre pensei que fosse do tipo sensato, mas já vi que é capaz de ficar quase histérica — principalmente por questões de saúde. Criou uma complicação dos diabos há pouco tempo e acabou se internando numa casa de saúde, para observação ou coisa seme­lhante. E que tal uma bebida? Uísque? Não? Mas, com certe­za vai tomar uma xícara de chá.

— Muito obrigado; estou na casa de amigos.

— Bem, a verdade é que esta nossa conversinha me dis­traiu bastante. É sempre bom relembrar os velhos tempos. Sônia, minha filha, acompanhe Monsieur... desculpe, como é o seu nome, escapou-me de novo... ah, sim, Poirot. Leve-o até Mary, por favor.

— Não, não — disse Poirot, apressadamente recusando a oferta. — Não quero nem pensar em incomodar Madame novamente. Não se preocupe comigo, por favor. Não se preo­cupe: eu sei onde é a saída. Foi um enorme prazer vê-lo novamente.

Saiu.

— Não tenho a menor idéia de quem seja esse sujeito — disse Sir Roderick, após a partida de Poirot.

— O senhor não o conhece? — perguntou Sônia, olhando-o espantada.

— Pessoalmente, não me lembro de metade das pessoas que me têm procurado ultimamente. Tenho de atirar no escuro, e a gente acaba ficando treinado nisso. É a mesma coisa em festas. Aparece um sujeito e diz: "O senhor não deve se lembrar, mas nós nos conhecemos em 1939." E eu tenho de dizer que claro que me lembro, mas não é verdade. É um pro­blema, uma pessoa ser quase cega e surda. Mas fizemos ami­zade com uma porção de franceses, nos últimos tempos da guerra. Não me recordo da metade. Mas ele andou por lá, disso não há dúvida. Conhecia-me e eu conheci muitos dos sujeitos que ele citou. Aquele caso do meu carro roubado é bem verdadeiro. Um pouco exagerada, mas era uma história famosa naquele tempo. Bom, acho que ele não percebeu que eu não me lembrava dele. Sujeitinho esperto, acho eu, mas um francesinho completo, não acha? Todo afetado, andando na ponta dos pés, fazendo reverências... Muito bem, onde é que estávamos?

Sônia apanhou uma carta e lhe entregou. Tentou oferecer também um par de óculos, que ele imediatamente rejeitou.

— Não preciso dessas besteiras... posso ver perfeita­mente.

Apertou os olhos e tentou ler a carta. Finalmente» capi­tulou e a empurrou de volta.

— Bom, é melhor que você leia para mim Ela começou a ler, numa voz clara e macia.

 

Hercule Poirot parou no patamar por um instante» com a cabeça um pouco inclinada, como se esperasse ouvir alguma coisa. Nenhum ruído vinha do andar de baixo. Apro­ximou-se da janela e viu Mary Restarick embaixo» novamente entretida com a jardinagem. Poirot esboçou um sorriso de sa­tisfação. Caminhou silenciosamente pelo corredor. Abriu as portas, uma a uma. Um banheiro» um armário para roupas de cama» um quarto de hóspedes com duas camas, um quarto de solteiro ocupado. Depois, um quarto de mulher com cama de casal (de Mary Restarick?). A porta a seguir, ao lado, de­veria ser do quarto de Andrew Restarick. Voltou-se para a outra ala do corredor. A primeira porta era de um quarto de solteiro. Não parecia estar ocupado no momento, mas possi­velmente o era nos fins de semana. Duas escovas de cabelo estavam sobre o toucador. Aguçou o ouvido e entrou na ponta dos pês. Abriu o armário. Sim ali havia algumas roupas, roupas de campo.

Encostada á parede, uma escrivaninha, mas nada havia nela. Abriu suas gavetas silenciosamente. Algumas miudezas e uma ou duas cartas, mas triviais e antigas. Fechou as ga­vetas e retirou-se. Desceu a escada e, ao sair, despediu-se da dona da casa, recusando um convite para o chá. Tinha pro­metido voltar logo, disse, e precisava pegar um trem ainda naquele dia.

— Não quer um táxi? Podemos chamar um, ou posso levá-lo no nosso carro.

— Não, não, madame, muita bondade sua.

Poirot caminhou de volta ao vilarejo, descendo por uma alameda ao lado da igreja. Atravessou uma pontezinha sobre um riacho. Logo chegou ao lugar onde um automóvel e seu chofer esperavam, discretamente, à sombra de uma faia. O motorista abriu a porta do carro e Poirot entrou. Ao se sentar, a primeira providência foi retirar os sapatos grossos, soltando um suspiro de alívio.

— Agora, de volta a Londres — disse.

O motorista fechou a porta, voltou ao seu lugar e o carro partiu suavemente, logo tomando a estrada de volta. Pouco adiante, passaram por um rapaz acenando furiosamente, na esperança de uma carona. Os olhos de Poirot mal se' deti­veram sobre a figura vestida com espalhafato, de longos ca­belos. Mas, quase imediatamente, inclinou-se para a frente e disse ao motorista:

— Pare, por favor. Dê marcha-à-ré um pouquinho... isso. Há uma pessoa precisando de condução.

O motorista olhou incredulamente por cima do ombro. Era a última coisa que esperava ouvir. Entretanto, Poirot in­sistia com um gesto de cabeça, e ele teve de obedecer.

O jovem chamado David aproximou-se -— Pensei que não fosse parar — disse com alívio. — Muitíssimo obrigado.

Entrou, deixando escorregar para o chão uma pequena mochila que levava aos ombros, e passou os dedos pela cabe­leira cor de cobre. — Então, o senhor me reconheceu.

— Não se pode negar que sua maneira de vestir chama um pouco de atenção.

— Ah, o senhor acha? Não está falando sério. Sou apenas um membro de uma enorme irmandade.

— A fraternidade de Vandyke, certamente. Muito próprio.

— Ora, isso nunca me ocorreu. É bem bolado.

— Os senhores deveriam usar chapéus emplumados — disse Poirot. — E colarinhos rendados, se me permite a su­gestão.

— Bom, não sei se nos atreveríamos a tanto — riu o rapaz. — Mas, como a Sra. Restarick me detesta, não? Na verdade, é recíproco. E também não vou muito com a cara do Sr. Restarick. Existe alguma coisa de especialmente antipá­tico nos tubarões bem sucedidos, não acha?

— Uma questão de ponto de vista. O senhor tem dedi­cado suas atenções à filha do casal, segundo ouvi dizer.

— Uma expressão caprichada, sem dúvida — comentou David. — Dedicar atenções à filha do casal. . . é, pode-se dizer que sim. Mas saiba que é tudo recíproco. Ela também tem dedicado muitas atenções à minha pessoa.

— Onde está Mademoiselle agora?

David encarou-o bruscamente — E por que essa per­gunta?

— Gostaria de conhecê-la, só isso — e encolheu os ombros.

— Não acho que ela seja o seu tipo, assim como eu também não sou. Norma está em Londres.

— Mas o senhor disse à sua madrasta. . .

— Ah, nem tudo se deve contar às madrastas.

— E onde ela está em Londres?

— Trabalha numa firma de decoração em King's Road, em algum lugar de Chelsea. Não consigo me lembrar do nome. Susan Phelps, acho.

— Mas não deve ser lá que ela mora; o senhor tem o seu endereço?

— Ah, sim, ela mora num conjunto residencial enorme mas não consigo entender o seu interesse.

— Estou interessado em muitas coisas?

— Como assim?

— O que o fez ir àquela casa (como é.o nome?.. . ah, Crosshedges) hoje? O que o fez entrar sorrateiramente e o levou ao segundo andar?

— Bom, admito que entrei pela porta dos fundos.

— E o que estava procurando lá em cima?

— Isso é problema meu. Não quero ser grosseiro... mas o senhor não estará metendo o nariz onde não é cha­mado?

— Confesso que estou sendo curioso. Gostaria de saber exatamente onde está aquela jovem.

— Entendo. O prezado Andrew e a querida Mary — que podiam muito bem ir para o inferno — contrataram o senhor, não é? Estão querendo descobrir onde ela anda?

— Por enquanto — disse Poirot, —- acredito que eles não sabem que ela desapareceu.

— Alguém deve ter contratado o senhor.

— O meu jovem amigo é extremamente perspicaz — disse Poirot* reclinando-se no assento.

— Fiquei intrigado com o senhor — afirmou David, — e por isso é que pedi carona. Queria que parasse e acabasse me contando alguma coisa. Ela é minha namorada. Já sabia disso, não sabia?

— Pelo que sei, a situação é mais ou menos essa — re­plicou Poirot, cautelosamente. — E, nesse caso, o senhor deve saber onde ela está. Se não for esse o caso, Sr. Desculpe, sei apenas que o seu nome de batismo é David.

— Baker.

— Talvez, Sr. Baker, tenha havido uma briga de namo­rados.

— Não, nós nunca brigamos. O que lhe deu essa idéia?

— A Srta. Norma Restarick deixou Crosshedges na noite de domingo ou na manhã de segunda-feira?

— Depende. Pode-se tomar um ônibus de manhã cedo. Chega-se a Londres pouco depois das dez. Ela ficaria um pouco atrasada para o trabalho, mas não muito. Normalmen­te, ela volta domingo de noite.

— Então, partiu na noite de domingo, e até agora não chegou a Londres.

— Parece que não, pelo que Claudia diz.

— Essa Srta. Reece-Holland — é esse o nome, não — ficou surpresa, ou preocupada?

— Ora essa, nem uma coisa nem outra! Elas não tomam conta umas das outras.

— Mas esperava que ela voltasse para o apartamento?

— Pois é... e também não apareceu no trabalho. Ga­ranto que eles estão por conta com ela.

— Está preocupado, Sr. Baker?

— Não. Naturalmente... quer dizer, sei lá! Não vejo razão para ficar preocupado, só que o tempo está passando. Que dia é hoje... quinta-feira?

— Ela não teve qualquer briga com o senhor?

— Não, não. Nós nunca discutimos.

— Mas está preocupado, não estát Sr. Baker?

— E por acaso isso é da sua conta?

— Não, não é. Por outro lado, não ia tudo bem ei não? Soube que ela não gosta da madrasta.

— E com toda a razão. Aquela mulher é uma peste. Dura como pedra. Ela também não gosta de Norma.

— Esteve doente, não foi? Ouvi dizer que foi internada numa casa de saúde.

— Quem, Norma?

— Não, não estou falando da Srta. Restarick, mas da Sra. Restarick.

— Pelo que sei, esteve internada, sim. Mas sem razão alguma. Para mim, ela é forte como um cavalo.

— E a Srta. Restarick odeia a madrasta.

— Norma é um pouco desequilibrada, ás vezes. Sabe como é: fica no mundo da lua. Mas todas as filhas detestam suas madrastas.

— E as madrastas sempre ficam doentes por causa disso? A ponto de terem de ir para um hospital?

— Onde diabo o senhor está querendo chegar?

— A jardinagem... ou, mais precisamente! ao uso de veneno contra ervas daninhas.

— Que história é essa de veneno? Está insinuando que Norma... que passaria pela cabeça dela... uma coisa dessas...

 — As pessoas falam muito — disse Poirot. — E o fa­la tório se espalha.

— Então, alguém andou dizendo que Norma tentou enve­nenar a madrasta? É ridículo. Inteiramente absurdo.

— Concordo que não seja muito provável — admitiu Poirot. — Na verdade, ninguém falou nada disso.

— Ah. Desculpe. Entendi mal. Mas então... o que o senhor estava querendo dizer?

— Meu caro rapaz — continuou Poirot, — saiba que existem boatos á solta, e esse tipo de boatos visa sempre uma pessoa — o marido.

— O que, o coitado do Andrew? Duvido muito.

— Concordo. Também não acho muito viável.

— Então, o que estava fazendo lá o senhor? Ê um de­tetive, não é?

— Sou.

— E então?

— Estamos conversando em linhas cruzadas — esclare­ceu Poirot. — Não fui lá para investigar caso algum, possí­vel ou duvidoso, de envenenamento. Perdoe se não explico melhor: é uma história muito confidencial entende?

— Mas, que história é essa?

— Fui lá — afirmou Poirot — procurando Sir Roderick Horsefield.

— O velhote? Ele está praticamente gagá, não está?

— Trata-se de um cavalheiro que guarda um grande nú­mero de segredos. Não estou dizendo que hoje em dia ele tome parte ativa nesses negócios, mas sabe de muita coisa. Esteve metido em uma porção de operações na última guerra. Conheceu muita gente.

— Mas isso foi há uma porção de anos.

— É verdade, sua participação terminou há muito tempo. Mas, não percebe que há muitas coisas que não podem ser esquecidas?

— Que tipo de coisas?

— Rostos — disse Poirot. — Um rosto que Sir Ro­derick poderia reconhecer. Um rosto, um maneirismo, um jeito de andar ou de falar, um gesto. As pessoas não esque­cem, especialmente as pessoas idosas. Talvez não se recordem do que aconteceu na semana passada, no mês ou no ano an­terior, mas se lembram de fatos que ocorreram há vinte anos. E podem se lembrar de pessoas que não desejem ser lembra­das. E podem revelar detalhes sobre um certo homem, ou uma certa mulher, ou um determinado assunto em que estiveram metidos na época... estou falando muito por alto, compreen­da, por favor. Fui procurá-lo atrás de informações.

— Informações? Aquele velho gagá? E ele deu alguma informação que prestasse?

— Digamos que estou bastante satisfeito.

— Agora estou na dúvida — David encarava Poirot fi­xamente. — O senhor foi ver o velho ou a menina, hein? Não terá, por acaso, ido saber o que ela faz naquela casa? Eu mesmo já pensei sobre isso. O senhor não acha que ela pegou aquele emprego para arrancar alguma coisa do velho?

— Não creio — sentenciou Poirot — que valha a pena discutir o assunto. Ela me pareceu muito devotada e atencio­sa como... como direi?... secretária, não?

— Uma mistura de enfermeira, secretária, ajudante, acompanhante e mais uma porção de coisas. É só escolher a classificação que quiser. Ele é fascinado por ela, não notou?

— Não é de se estranhar, dadas as circunstâncias.

— Posso citar alguém que não gosta dela — a nossa prezada Mary.

— E talvez ela também não morra de amores por Mary Restarick.

— Ah, o senhor acha? — perguntou David. — Então Sônia não gosta de Mary Restarick. Quem sabe ela não andou procurando saber onde é que guardavam o veneno usado no jardim, hein? Ora, isso tudo é ridículo. Muito bem, obrigado pela carona. Acho que vou saltar aqui.

— Mas, aqui? Estamos a mais de dez quilômetros de Londres.

— Eu salto aqui. Adeus, Sr. Poirot.

— Adeus.

Poirot recostou-se no assento, enquanto David batia a porta do carro.

A Sra. Oliver andava de um lado para outro, em sua sala de estar. Estava agitadíssima. Uma hora antes, tinha empacotado um maço de provas que acabara de corrigir. Tinha de mandá-las para o seu editor, que as esperava ansio­samente, já tendo reclamado mais de uma vez pela demora.

— Aí está — disse a Sra. Oliver, como se, por um passe de mágica, o editor tivesse repentinamente aparecido à sua frente. — Aí está, e espero que goste! Eu não gosto. Acho uma porcaria! Não acredito que o senhor saiba se al­guma coisa que eu escrevo é boa ou ruim. De qualquer manei­ra, eu lhe avisei. Eu lhe disse que era horrível. O senhor disse que "não, impossível, impossível".

— Agora, espere só, e verá — continuou ela, com um tom vingativo. — Espere, e verá.

Abriu a porta, chamando por Edith, sua criada; deu-lhe o pacote e disse que o colocasse no correio imediatamente.

— E agora — lamentou-se, uma ver sozinha, — o que vou fazer?

Recomeçou a andar em círculos. "Ê" pensou, "bem que aqueles pássaros tropicais ficavam melhor na parede do que essas cerejas idiotas. Faziam-me sentir como se fizesse parte da selva tropical: um leão, um tigre, um leopardo, uma onça! Agora, nesse pomar de cerejas, a única coisa que posso me sentir é um espantalho!"

Olhou em torno. "Eu devia estar trinando como um pas­sarinho, isso sim" — disse, lugubremente. "Ou comendo ce­rejas. .. ah, que bom se fosse tempo de cerejas. Seria tão bom! Agora, fico pensando..." apanhou o telefone. — Vou verificar madame — disse a voz de George, em resposta à sua pergunta. Pouco mais tarde, ouviu-se outra voz no apa­relho.

— Hercule Poirot, às suas ordens, madame — disse ele.

— Onde é que o senhor andou? — perguntou a Sra. Oliver. — Não esteve em casa o dia todo. Imagino que tenha ido dar uma olhadela nos Restaricks. Foi isso, não foi? Es­teve com Sir Roderick? Descobriu alguma coisa?

— Nada — disse Poirot.

— Ah, que caceteação — disse a Sra. Oliver.

— Não, não acho tão aborrecido assim. Na verdade, é surpreendente que eu não tenha descoberto coisa alguma.

— Por que, surpreendente? Não entendo.

— Porque — explicou Poirot — significa que não havia nada para se descobrir -— e isso posso lhe garantir que não está de acordo com os fatos — ou então que algo está sendo oculto com muita inteligência. E isso, a senhora vai concordar, seria extremamente interessante. A Sra. Restarick, por exem­plo, não sabia que a jovem está desaparecida.

— O senhor quer dizer que.. . que ela não tem nada a ver com o desaparecimento?

— Assim parece. Encontrei lá o rapaz, também.

— O tal rapaz desagradável de que ninguém gosta?

— Isso mesmo. O rapaz desagradável.

— O senhor o achou desagradável?

— Sob qual ponto de vista?

— Não do ponto de vista da nossa jovem, creio eu.

— A jovem que veio me procurar, essa tenho certeza de que não teria razão alguma de queixa dele.

— Achou-o muito esquisito?

— Um rapaz bastante bonito — disse Hercule Poirot.

— Bonito? — perguntou a Sra. Oliver. — Acho que não gosto muito de rapazinhos bonitos.

— Mas as moças gostam — frisou Poirot.

—  É, acho que sim. Gostam de rapazes lindos. Não dos rapazes bem apessoados, ou elegantes, ou bem vestidos, ou limpos e saudáveis, nada disso Elas preferem uns mocinhos parecidos com os dandies do século passado; ou, então, uns sujeitinhos muito sujos, com jeito de vagabundos.

— Parece que também ele não sabe onde está «a moça.

— Ou diz que não sabe.

— Talvez. Por que foi ele a Crosshedges? Estava dentro da casa, e se deu ao trabalho de entrar sem ser visto. Por quê? Estaria procurando pela moça... ou por alguma outra coisa.

— Acha que ele estava procurando alguma coisa?

— Estava. E no quarto dela — disse Poirot.

— Como sabe? O senhor o viu lá?

— Não, só o encontrei quando descia a escada, mas achei no quarto de Norma um pedacinho de barro que só poderia ter vindo do seu sapato. Pode ser que ela mesma lhe tenha pedido para buscar alguma coisa no seu quarto — há muitas explicações diferentes. Também existe uma outra moça na casa, e bem bonita. Ele pode ter ido encontrar-se com ela. É... são muitas explicações.

— E o que o senhor vai fazer agora — perguntou a Sra. Oliver.

— Nada — disse Poirot.

— Que falta de imaginação... — comentou, em tom de crítica, a Sra. Oliver.

— Talvez receba algumas informações de pessoas que contratei para obtê-las; mas é muito possível que não receba coisa alguma.

— Mas o senhor não vai fazer nada?

— Não, enquanto não chegar a hora certa.

— Muito bem, eu vou — anunciou a Sra. Oliver.

— Por favor, tenha cuidado, por favor — implorou ele.

— Que bobagem! O que poderia me acontecer?

— Quando há um homicídio no ar, tudo pode aconte­cer. Sou eu quem a está prevenindo. Eu, Hercule Poirot.

 

O Sr. Goby estava sentado. Era um homenzinho pe­queno, encolhido, de aparência tão insignificante que dava a impressão de quase não existir. Olhava com grande atenção

0 pé torneado de uma mesa antiga, e a ele dirigia seus co­mentários. Nunca falava diretamente com os seus interlo­cutores.

— Ainda bem que o senhor obteve esses nomes para mim, Sr. Poirot — disse ele. — Sem isso, levaria muito mais tempo. Mas, agora, tenho os fatos principais... e alguns me­xericos para completar... são sempre úteis. Comecemos com Borodene Mansions, está bem?

Poirot gentilmente concordou.

— Muitos porteiros — disse o Sr. Goby ao relógio em cima da lareira. — Comecei aí, usando dois rapazes. Fica mais caro, mas vale a pena, Não é bom que se suspeite que está havendo uma investigação. Devo usar nomes, ou iniciais?

— Aqui, pode usar nomes — sentenciou Poirot.

— A Srta. Claudia Reece-Holland é considerada muito simpática. O pai é deputado — homem ambicioso, consegue aparecer nos jornais com muita freqüência. Ela é filha única. Trabalha como secretária. Uma pessoa séria — nada de orgias, bebidas, nem beatniks. Divide o apartamento com duas outras. A número dois trabalha para a Galeria Wedderburn, em Bond Street. Tipo artístico: vive metida com o pessoal de Chelsea."1 Vive viajando, sempre organizando exposições.

1 Chelsea - bairro boêmio de Londres. (N. da T.)

 

— A número três é a sua. Vive lá há pouco tempo. A opinião geral é a de que é um tanto deficiente. Uma telha de menos. No entanto, nada de objetivo. Um dos porteiros é meio tagarela. Basta pagar-lhe uma ou duas bebidas e não pára mais de falar! Quem bebe, quem toma drogas, quem não pagou imposto de renda, quem guarda dinheiro no colchão — mas é claro que não se pode acreditar em tudo. De qual­quer maneira, há a história de uns tiros de revólver que foram ouvidos numa certa noite.

— Tiros? Alguém ferido?

— É tudo um pouco confuso. Ele conta que ouviu um tiro, correu para ver — e lá estava a moça, a sua moça, para­da, com um revólver na mão. Parecia tonta, ou coisa pareci­da. Então, uma das outras duas — ambas, na verdade — chegam correndo. E a Srta. Cary (a artista) diz: "Norma, que diabo você fez?" e a Sta. Reece-Holland manda que ela cale a boca e "não seja boba". Tira o revólver da mão da sua moça — "Dá isso aqui!" — e o guarda na bolsa. Só então percebe o nosso amigo Micky, vai até ele e lhe diz rindo: "Você deve ter ficado assustado, não?" e ele diz que real­mente levou um susto, e ela diz: "Não se preocupe; para falar a verdade, nem sabíamos que essa coisa estava carre­gada. Estávamos só brincando." E lhe diz, também, que, se alguém perguntar alguma coisa, que explique que não houve nada. E chama a outra — "Vamos embora, Norma" — pega-a pelo braço e sobem todas pelo elevador.

— Mas Micky afirma que ficou com uma pulga atrás da orelha e deu uma boa olhada pelo pátio.

O Sr. Goby baixou os olhos e citou, textualmente, o que estava anotado:

"Eu juro que encontrei alguma coisa. Ora se encontrei! Umas manchas úmidas — garanto! Eram maíichas de sangue, eu passei o dedo e vi. Quer saber a minha opinião? Alguém levou um tiro — um homem que estava fugindo... Subi lá .em cima e fui falar com a Srta. Reece-Holland. "Acho que alguém levou um tiro, Dona", eu disse para ela. "Há manchas de sangue no pátio." E ela respondeu: "Que bobagem, deve ter sido um pombo." E disse mais: "Desculpe se nós o assus­tamos. Esqueça o que houve," e me passou uma nota de cinco libras. Cinco libras! É claro que eu não abri mais a boca."

E, depois de mais uns uísques, ele ainda contou mais. "Para mim, ela deu um tiro naquele cara que anda com ela. Devem ter tido uma briga, e ela tentou matar o sujeito. Pelo menos, é o que eu acho. Mas o silêncio é de ouro, e não digo nada a ninguém. Se alguém me perguntar, digo que não sei de nada." O Sr. Goby fez uma pausa.

— Muito interessante — disse Poirot.

— Pode ser, mas tanto pode ser verdade como mentira. Ninguém mais sabe dessa história. Só ouvi falar de uma noite em que um bando de transviados teve uma briga dentro do pátio... com facas e coisas assim.

— Entendo — disse Poirot. — Poderia explicar as man­chas de sangue.

— Talvez a moça tenha tido uma briga com o namora­do, e quem sabe ameaçou dar um tiro nele. E o Micky ouviu essa conversa e misturou a história toda — ainda mais se na­quela hora ouviu o estampido de descarga de algum carro.

— É.— suspirou Poirot. — Poderia ser apenas isso.

O Sr. Goby virou outra página de seu caderno e esco­lheu um novo interlocutor. Decidiu-se pelo aquecedor elétrico.

"Joshua Restarick Ltda. Pertence à família há mais de cem anos. Tem bom nome na City. Nada de espetacular, mas sempre muito sólida. Fundada por Joshua Restarick em 1850. Teve grande impulso depois da Primeira Guerra, com muitos investimentos no exterior, principalmente na África do Sul, África Ocidental e Austrália. Simon e Andrew Restarick — este é o último da família. Simon, o irmão mais velho, morreu há um ano, sem filhos. Era viúvo há algum tempo. Andrew Restarick parece ter sido um sujeito meio agitado. Nunca se prendeu muito aos negócios, embora todo o mundo diga que tinha muito jeito. Acabou fugindo com uma mulher, abando­nando a esposa e uma filha de cinco anos. Andou pela África do Sul, Quênia e diversos outros lugares. Nunca se divorciou. A esposa morreu há dois anos, depois de longa doença. Ele viajou muito e, por onde andou, sempre ganhou dinheiro. Concessões para exploração de minérios, na maior parte. Tudo em que ele se metia prosperava.

"Depois da morte do irmão, parece ter decidido que era hora de voltar, para que a filha tivesse um lar. No momento, estão vivendo com um tio, Sir Roderick Horsefield — tio por afinidade. Mas isso é temporário. A mulher está procurando uma casa em Londres, sem olhar o preço. Estão cheios de dinheiro."

Poirot suspirou — Eu sei — disse. — O que o senhor descreve é uma história feliz. Todo o mundo ganha dinheiro. Todos são de boa família, muito respeitados. Com boas ami­zades, boa reputação no comércio. Há apenas uma nuvem no céu. Uma moça que dizem ser "um tanto deficiente", que anda com um namorado meio esquisito, o qual já teve suas compli­cações com a polícia. Uma moça que pode ter tentado enve­nenar a madrasta e que ou sofre de alucinações ou cometeu um homicídio! Nada disso combina com a história feliz que o senhor me trouxe.

O Sr. .Goby sacudiu a cabeça e fez um comentário obscuro: — Toda família tem a sua.

— Esta Sra. Restarick é muito jovem. Não poderá ser a mulher com quem ele fugiu da primeira esposa?

— Não, não, isso esclarecemos de saída. A outra era uma vagabunda completa, e completamente intratável. Ele foi um tolo em se deixar enganar — o Sr. Goby fechou o cader­no e perguntou: — Há mais alguma coisa que eu possa fazer?

— Sim, quero saber mais um pouco sobre a falecida Sra. Restarick. Se era uma doente, deve ter estado em casas de saúde. Que tipo de casas de saúde? Para doentes mentais?

— Estou entendendo, Sr. Poirot.

— E algum caso de insanidade na família — em qual­quer ramo.

— Vou providenciar — o Sr. Goby levantou-se. — Creio que posso ir andando. Boa noite, Sr. Poirot.

Poirot quedou-se pensativo após a saída do Sr. Goby. Franzia e desfranzia a testa. Estava em dúvida, extremamente em dúvida. Acabou por telefonar à Sra. Oliver.

— Eu lhe disse antes; aconselhei-a a ter muito cuidado. Pois estou dizendo de novo.. . tenha muito cuidado

— Cuidado com o quê? — perguntou a Sra. Oliver.

— Consigo mesma; creio que há perigo. Perigo para qualquer pessoa que se meta onde não querem. Há homicídio no ar — e não quero que seja o seu.

— O senhor conseguiu as informações que estava esperando?

— Consegui — disse Poirot — algumas informações. Quase tudo boatos e conversa fiada, mas parece que alguma coisa aconteceu em Borodene Mansions.

— Que tipo de coisa?

— Manchas de sangue no pátio.

— Não diga! — exclamou a Sra. Oliver. — Parece o título de um romance policial de antigamente. "Sangue na Escadaria". Hoje em dia, "Ela Pediu para Morrer" é que está em moda. Parece mais psicológico.

— Talvez não tenha havido realmente sangue no pátio, Talvez seja apenas a imaginação de um porteiro irlandês.

— Quem sabe, uma garrafa de leite derramada — ajuntou a Sra. Oliver. — No escuro, ele não viu a diferença. O que aconteceu?

Poirot preferiu mudar de assunto.

— A jovem pensava que "poderia ter cometido um ho­micídio" . Seria esse o seu homicídio?

— Ah, então ela atirou em alguém?

— Pode-se dizer que ela tentou atirar em alguém, mas, ao que se sabe, errou. Umas gotas de sangue, nada mais. Nenhum cadáver.

— Meu Deus — disse a Sra.- Oliver, — é tudo tão con­fuso. Naturalmente, se a pessoa ainda conseguiu fugir cor­rendo do pátio, ninguém poderia pensar que a tinha matado, não?

— Cest difficile, — disse Poirot, desligando.

— Estou preocupada — disse Claudia Reece-Holland. Ela se serviu mais uma vez de café. Francês Cary deu um enorme bocejo. Estavam as duas tomando café na peque­na cozinha do apartamento. Claudia estava vestida e pronta para sair; Francês ainda estava de pijama e roupão. O ca­belo despenteado lhe caía sobre um dos olhos.

— Estou preocupada com Norma — continuou Claudia. Francês bocejou.

— Acho que não vale a pena preocupar-se. Mais cedo ou mais tarde ela telefona, ou aparece.

— Será, mesmo? Sabe, Fran, tenho as minhas dúvidas...

— Não sei por quê — disse Francês, enchendo mais uma vez a sua xícara e tomando um pequeno gole. — Quer dizer... não temos nada a ver com isso, não é? Nós não estamos tomando conta dela, não temos de lhe dar comidinha na boca ou coisa parecida. Ela mora aqui, só isso. Por que essa preocupação maternal? Eu nem penso no assunto.

— Disso sei eu...  você não se preocupa com coisa al­guma. Mas, para mim é bem diferente, você sabe.

— E por que diferente? Só porque você é quem aluga o apartamento?

— Ora, eu estou numa posição muito especial. Novamente Francês deu um bocejo gigante.

— Fui dormir tardíssimo, ontem — confessou. — Festa na casa do Basil. Estou me sentido péssima. Ah, espero que bastante café resolva o meu problema. Não quer mais um pouco, antes que eu liquide o bule? Basil insistiu para que todo o mundo experimentasse umas bolinhas novas — "Sonhos de Esmeralda". Francamente, não acho que valha a pena provar todas essas bobagens que aparecem por aí.

 — Você vai chegar atrasada na galeria — disse Claudia. — Ah, acho que não faz diferença. Ninguém repara.

— Vi David ontem à noite — ela continuou. — Uma camisa bárbara... estava lindo.

— Não vai me dizer que você também está caindo por ele, Fran. Um sujeito horroroso!

— Eu sei que você acha isso. Você é tão quadrada, Claudia.

— Não sou, não senhora. Mas também não vou muito com essa sua turma de artistas. Essa mania de tomar bolinhas — ou ficam como uns zumbis ou acabam todos se atracando como uns malucos.

Francês não pareceu levá-la a sério.

— Não sou uma viciada em drogas, meu bem... só gosto de experimentar as novidades. E tem muita gente boa na turma. David pinta muito bem, quando quer, você sabe.

— Só que quase nunca ele quer pintar, não é?

— Você sempre teve uma ponta com ele, Claudia. Sempre torceu o nariz quando ele vinha buscar a Norma. Por falar em ponta, preciso falar a você sobre uma faca...

— Faca? O que houve?

— Estava na dúvida — disse Francês, pausadamente, — se lhe contava ou não.

Claudia olhou para o relógio de pulso.

— Agora não tenho tempo — disse* — Você me conta hoje de noite, se fizer questão. De qualquer maneira, não estou com humor para saber de novas complicações. Ah, meu Deus — ela suspirou, — não sei o que fazer.

— Sobre Norma?

— É, não sei se não devíamos contar aos pais dela que não sabemos onde ela está...

— Isso seria uma sujeira. Coitada da Norma, então ela não pode sumir de vez em quando?

— Mas Norma não é bem... — Claudia não prosseguiu. — Claro que não é. Non compos mentis 2 Por que você não diz logo? Já telefonou para aquele lugar pavoroso onde ela trabalha, sei lá como se chama? Ah, agora me lembro — você já telefonou.

2 Non compos mentis — expressão jurídica, usada para designar a insa­nidade mental. (N. da T.)

 

— Pois é... e onde é que ela se meteu? — perguntou Claudia. — O David disse alguma coisa ontem?

— Parece que ele também não sabe. Francamente, não acho que seja tão importante assim.

— Para mim, é importante — insistiu Claudia. — Afinal, eu trabalho para o pai dela. Mais cedo ou mais tarde, se acon­teceu alguma coisa a ela, vão me perguntar por que não contei que não tinha voltado para casa.

— Isso é verdade: podem implicar com você. Mas não há mesmo motivo pára que a Norma nos avise quando quiser passar uns dias fora. Ela não nos deve nada. Você não tem de tomar conta dela.

— Não, mas o Sr. Restarick já me disse que ficava mais tranqüilo sabendo que ela morava conosco.

— E isso por acaso lhe dá o direito de ir correndo contar, toda a vez que ela estiver ausente sem permissão? Vai ver, está de paixonite nova.

— A paixão dela é o David — disse Claudia. — Tem certeza de que ela não está no apartamento dele?

— Acho que não. No fundo, ele não lhe dá muita bola, você sabe.

— Você bem que gostaria que não desse — replicou Claudia. — Sei muito bem que você tem a sua queda por ele.

—  Claro que não — respondeu Francês com rispidez.

—  De maneira alguma.

—  O David gosta mesmo dela — continuou Claudia. —

Se não gostasse não teria vindo aqui procurá-la outro dia.

—  Para ser praticamente expulso por você — Frances se levantou e foi-se mirar num espelhinho preso à parede da cozinha. — Ele pode muito bem ter vindo por minha causa.

—  Não seja boba! Estava procurando pela Norma.

—  Ah, aquela garota é débil — disse Frances.

—  Às vezes eu penso que é mesmo!

—  Bom, eu tenho certeza. Olhe aqui, Claudia. Vou lhe contar uma história. Acho que você deveria saber. Noutro dia, eu estava com pressa, e arrebentou a alça do meu soutien; sei que você não gosta de ninguém mexendo nas suas coisas...

— Claro que não.

— ... mas a Norma não repara, ou não liga. Seja como for, fui ao quarto dela e estava mexendo numa gaveta quan­do. .. achei uma coisa. Uma faca,

— Uma faca! — exclamou Claudia, surpresa. — Que tipo de faca?

— Lembra-se daquela confusão no •pátio, uma noite dessas? Aqueles transviados que entraram aqui e tiveram aquela briga, com facas e tudo? A Norma chegou pouco depois.

— Sei, sei, eu me lembro.

— Um dos rapazes levou uma facada — um repórter me contou — e fugiu. Pois a faca na gaveta dela era uma faca de mola, como as que eles usam, e tinha uma mancha... parecia uma mancha de sangue.

— Francês! Você está dramatizando!

— Pode ser. Mas tenho certeza de que era sangue. E o que estaria fazendo aquela faca na gaveta dela? Isso é que eu queria saber.

— Pode ser que ela tenha achado...

— Ah, é? Um souvenir? Que ela escondeu e nunca nos mostrou?

— O que você fez com a faca?

— Deixei lá mesmo — disse Francês, pausadamente. — Eu... eu não sabia o que fazer... Fiquei na dúvida, se con­tava a você ou não. Ontem, fui olhar de novo, e tinha desa­parecido. Nem sinal.

— Você acha que ela mandou o David aqui para apanhá-la?

— Pode ser... Sabe de uma coisa, Claudia? De agora em diante, vou dormir com a porta do meu quarto bem tran­cada .

 

A Sra. Oliver acordou aborrecida: tinha pela frente um dia inteiro sem nada para fazer. O último manuscrito, visto e revisto, já estava a caminho do editor; com a sensa­ção virtuosa do dever cumprido, ela não tinha trabalho algum pela frente. Como já acontecera antes, muitas vezes, cabia-lhe agora descansar, divertir-se — preencher de alguma forma o vazio, até que novamente se manifestasse o impulso criador.

Começou a andar sem rumo pelo apartamento — tocan­do em objetos, apanhando-os e recolocando-os no lugar; abrin­do e fechando gavetas. Descobriu diversas cartas a serem res­pondidas. Entretanto, em seu estado atual de bem-aventurança, sentiu que tinha o direito de se poupar de tarefa tão can­sativa como escrever cartas. Queria fazer algo interessante. Queria... queria o que, mesmo?

Pensou em sua última conversa com Hercule Poirot e na advertência que ouvira. Ridículo! Afinal, por que não de­veria participar de um problema que era propriedade de ambos? Poirot podia sentar-se, de dedos cruzados, e pôr a trabalhar suas pequenas células cinzentas, enquanto seu corpo descansava confortavelmente, sem sair do lugar. Isso não servia para Ariadne Oliver. Tinha afirmado, com bastante convicção, que iria fazer alguma coisa — descobrir um pouco mais sobre aquela misteriosa jovem. Onde estava Norma Restarick? O que andava fazendo? O que poderia Ariadne Oliver apurar a seu respeito?

Cada vez mais desanimada, a Sra. Oliver vagueou entre as quatro paredes de sua jaula. Não era fácil decidir o que fazer. Ir a algum lugar, fazer perguntas? A Long Basing, por exemplo? Mas Poirot já estivera lá — e descobrira, presumivelmente, tudo o que havia para se descobrir. E ela não tinha desculpa alguma para se meter na casa de Sir Roderick Horsefield.

Pensou em outra visita a Borodene Mansions. Talvez alguma coisa pudesse ser apurada lá, quem sabe? Teria de pensar em uma nova desculpa — ainda não sabia qual mas, de qualquer maneira, era o único lugar onde novos dados po­deriam ser colhidos. Que horas eram? Dez da manhã. Havia uma chance...

No caminho, ela arranjou uma desculpa, não muito original. Na verdade, a Sra. Oliver teria preferido algo mais complicado, mas um inesperado senso de prudência aconse­lhou-a a ficar com um pretexto bem comum e plausível. Ainda pensando no problema, chegou ao conjunto imponente e pouco simpático de Borodene Mansions, e atravessou lentamente o pátio de estacionamento.

Um porteiro conversava com c motorista de um caminhão de mudanças. Um leiteiro, empurrando seu carrinho, aproxi­mou-se da Sra. Oliver, na entrada para o elevador de servi­ço. Começou a mexer em suas garrafas, assoviando alegre­mente, enquanto a Sra. Oliver olhava distraída para o ca­minhão.

— O número setenta e seis está de mudança — ele ex­plicou, pensando que estivesse interessada, enquanto trans­feria algumas garrafas do carrinho para o elevador.

— Primeiro foi a moradora, agora vão os móveis — acrescentou, no tom de quem diz algo extremamente humo­rístico.

Apontou com o polegar para cima.

— Não faz nem uma semana, atirou-se pela janela... do sétimo andar. Às cinco horas da manhã. Hora engraçada para uma pessoa se matar, não acha?

A Sra. Oliver não conseguiu achar muito engraçado.

— Por quê?

— Por que ela se jogou? Não se sabe. Disseram que foi distúrbio nervoso.

— Era... moça?

— Que nada! Uma velhota. Cinqüenta anos, pelo menos. Dois homens lutavam para colocar uma cômoda no ca­minhão. O móvel resistia bravamente, e duas gavetas caíram ao chão, Um pedaço de papel flutuou para perto da Sra. Oliver, que o apanhou..

—  Cuidado para não quebrar nada, Charlie — disse o leiteiro, severamente, ao embarcar no elevador com suas gar­rafas.

Uma discussão irrompeu entre os dois carregadores, que nem olharam para a Sra. Oliver quando esta lhes estendeu o pedaço de papel.

Tomando uma decisão, ela entrou no prédio e se dirigiu para o apartamento 67. Ouviu-se um barulho no interior, e a porta foi aberta por uma mulher de meia-idade, vassoura em punho, obviamente interrompida em meio à limpeza.

— Oh, — disse a Sra. Oliver, usando o seu monossílabo predileto. — Bom dia. Ninguém... ninguém em casa?

— Não senhora, ninguém. Saíram todas. Estão no tra­balho.

— Ah, é mesmo... Acontece que esqueci minha agenda na última vez que estive aqui. Faz uma falta... Deve estar na sala, em algum lugar.

— Olhe, madame, que eu me lembre não vi nada disso por aqui. Só se não reparei. Não quer entrar? — abriu a porta hospitaleiramente, deixando de lado a vassoura e acom­panhou a Sra. Oliver até a sala.

Decidida a estabelecer relações amistosas, a Sra. Oliver comentou:

— Ah, aqui está... aqui está o livro que deixei para a Srta. Restarick, Norma. Ela já voltou de fora?

— Acho que ela não está dormindo aqui esses dias. Pelo menos não tem dormido na cama. Vai ver que está morando com a família, no campo. Sei que ela ia para lá no fim de semana.

— É, deve ser isso — disse a Sra. Oliver. — Trouxe este livro para ela — é um dos meus livros.

O adjetivo possessivo pareceu não despertar qualquer in­teresse na arrumadeira.

— Eu estava sentada aqui — continuou a escritora, ba­tendo numa cadeira de balanço, — acho que estava. Depois cheguei perto da janela e fui sentar no sofá.

Meteu a mão atrás da almofada da cadeira, enquanto a arrumadeira prestativamente fazia o mesmo no sofá.

— Não sabe como atrapalha perder uma coisa dessas — prosseguiu tagarelando a Sra. Oliver. — Todos os meus com­promissos estão anotados nessa agenda. Tenho certeza de que marquei um almoço importantíssimo para hoje, e não con­sigo me lembrar com quem, nem onde. Ou será amanhã? Então tenho outra coisa para fazer hoje. Ah, meu Deus.

— Um problema e tanto, madame — consolou a em­pregada.

— São tão simpáticos estes apartamentos — disse a Sra. Oliver, olhando em volta.

— São muito altos.

— Por isso é que a vista é tão boa, não é?

— Pode ser, mas os que dão para o leste pegam um vento muito frio no inverno. Essas esquadrias de metal deixam passar o frio todo. Muita gente manda botar janelas duplas. Eu, por mim, não queria um apartamento assim no inverno. Prefiro morar no térreo. Muito melhor — então, quando se têm filhos. . . por causa dos carrinhos e tudo o mais, a se­nhora sabe. Imagine se houver um incêndio.

— Seria horrível, mesmo — concordou a Sra. Oliver. — Mas não há saídas de incêndio?

— Haver, há, mas nem sempre dá tempo. Eu sou apa­vorada com incêndios. Sempre fui. E estes apartamentos são caríssimos! A senhora não ia acreditar, se soubesse o preço do aluguel. É por isso que a Srta. Holland arranjou mais duas moças para morar com ela.

— Eu sei, conheci as duas. A Srta. Cary é uma artista, não é?

— Trabalha numa galeria de arte. Mas parece que não faz muita força. Também pinta — umas vacas e umas árvores que é preciso dizer o que são, para alguém reconhecer. É muito desorganizada; a senhora precisa só ver o estado em que ela deixa o quarto. A Srta. Holland não, deixa tudo arrumadinho. Ela já trabalhou na Junta do Carvão, mas agora é secretária particular na City. Diz que prefere. Trabalha para um senhor muito rico, que veio há pouco tempo da América do Sul ou um lugar parecido. É o pai da Srta. Norma, e foi ele quem pediu à Srta. Holland para aceitá-la aqui, quando a outra moça se casou e foi embora. Ela contou que estava procurando alguém, e ele pediu. Ela não podia recusar, podia? Ele, sendo patrão dela, e tudo...

— Ela queria recusar?

—  Acho que ela ia querer... se soubesse.

—  Soubesse o quê? — a pergunta era muito direta.

—  Eu não tenho nada com isso. Não é da minha conta.

A Sra. Oliver manteve valentemente a expressão de dis­creta curiosidade, e a interlocutora caiu na armadilha.

—  Não é que ela não seja uma boa moça. Maluquinha — mas quase todas elas são maluquinhas, não são? Mas essa, eu acho que devia se tratar. As vezes parece que não sabe o que está fazendo, nem onde está. Dá para assustar a gente — fica igual ao sobrinho do meu marido, depois dos ataques que ele tem (tem cada ataque terrível, a senhora nem ima­gina). Só que ela não tem ataques, que eu saiba. Vai ver, é viciada. Tem tantos assim, hoje em dia.

—  Já ouvi dizer que também há um rapaz de que a fa­mília dela não gosta.

É, também ouvi. Sei que ele já esteve aqui atrás dela umas vezes — só que nunca o vi. Dizem que é um desses ra­pazes modernos. A Srta. Holland não gosta nada da histó­ria, mas o que ela pode fazer? Essas moças fazem o que querem.

— E dão tantas preocupações... — completou a Sra. Oliver, esforçando-se por transmitir a sua própria preocupação com o mundo moderno.

— Eu sempre digo: é tudo porque não tem bom exemplo em casa.

— Nem sempre; nem sempre. Por exemplo, uma moça como a Norma estaria muito melhor morando com os pais do que vindo para Londres sozinha para trabalhar.

— Ela não gosta de casa.

— Ah, não?

— Tem uma madrasta... e as filhas geralmente não gostam das madrastas. Que eu saiba, a madrasta fez o que pôde; tentou aconselhá-la, procurou lhe arranjar boas com­panhias, fez tudo. A pior coisa para uma moça é andar com rapazes que não prestam. Às vezes ... — a arrumadeira adotou um tom solene — ... às vezes dou graças a Deus por não ter tido filhas.

— Mas filhos, tem?

— Temos dois meninos. Um está indo muito bem no co­légio, e o outro está trabalhando numa oficina, e vai muito bem, também: Ah, são meninos ótimos. Olhe que filhos tam­bém dão problemas. Mas filhas preocupam mais, eu acho. A gente sente que devia fazer alguma coisa — mas é sempre tão difícil...

— Não há dúvida, é isso mesmo — concordou, com sin­ceridade, a Sra. Oliver.

Notou que a empregada dava sinais de querer voltar à sua limpeza.

— Acho que perdi mesmo a minha agenda — disse. — Mas muito obrigado, e desculpe se atrapalhei o seu ser­viço.

— Quem sabe a senhora ainda encontra o seu caderninho — disse a outra, tentando animá-la.

A Sra. Oliver deixou o apartamento pensando no passo seguinte. Não descobriu nada que pudesse fazer naquele mesmo dia, mas um plano para o dia seguinte começou a ganhar forma em seu cérebro.

Ao chegar em casa, sentindo-se muito importante, fez várias anotações em um caderno, sob o título "Fatos que Des­cobri". Não eram muitos, mas a escritora, fiel à sua vocação, procurou esticá-los ao máximo. Talvez o mais importante fosse o de que Claudia Reece-Holland trabalhava para o pai de Norma. Era novidade para ela, e duvidava que Hercule Poirot soubesse. Pensou em telefonar-lhe mas preferiu guardar a informação para si, em face do seu plano para o dia seguinte. Na verdade, a Sra. Oliver estava se sentindo mais como um excitado cão de caça do que como uma escritora policial. Es­tava na pista, com o nariz farejando o solo e, na manhã se­guinte... bem, na manhã seguinte aconteceria o que havia de acontecer.

Fiel ao seu plano, acordou cedo, engoliu uma xícara de chá e um ovo quente, e partiu em sua missão. Mais uma vez encaminhou-se para Borodene Mansions. Suspeitou de que talvez já a conhecessem nas vizinhanças, e não entrou no pátio. Ficou apenas rondando as entradas, observando as diversas pessoas que surgiam na manhã garoenta e partiam para um dia de trabalho. Eram moças, na maioria, todas ilusoriamente parecidas. Como eram curiosos os seres humanos, quando vistos assim, surgindo de edifícios monolíticos e se dispersando cada qual para suas obrigações. Fazia lembrar um formigueiro, pensou a Sra. Oliver, refletindo que ninguém dá a devida importância aos formigueiros. Todos aqueles seres minúsculos carregando pedaços de folhas na boca, correndo de um lado para outro atarefadamente, parecendo aflitos e preocupados, como se não soubessem o que fazer. No entanto, eram pro­vavelmente tão organizados quanto os homens e mulheres que ela agora observava. Por exemplo, aquele homem que acaba­ra de passar ao seu lado — apressado, resmungando para si mesmo. "O que o poderá estar preocupando tanto?" pensou a Sra. Oliver. Continuou a vaguear nas imediações; de re­pente, estacou.

Claudia Reece-Holland saíra do prédio, andando com passadas rápidas e seguras. Como anteriormente, sua aparên­cia era de discreta elegância. A Sra. Oliver voltou o rosto, para não ser reconhecida, e deixou que ela se afastasse um pouco; então rodou nos calcanhares e começou a segui-la. Claudia chegou ao fim da rua e dobrou para uma larga ave­nida. Pouco adiante, juntou-se a uma fila de ônibus. A Sra. Oliver, que ainda a seguia, sentiu-se nervosa de repente: e se a outra olhasse em sua direção, e a reconhecesse? A única precaução que lhe ocorreu foi a de levar o lenço ao nariz e assoar-se repetidamente, sem fazer qualquer barulho. Mas Claudia Reece-Holland parecia inteiramente absorta em seus pensamentos. Não olhou para nenhum de seus companheiros de fila. A Sra. Oliver era a terceira depois dela. Finalmente, um ônibus chegou, e a fila avançou. Claudia entrou, dirigin­do-se imediatamente para a parte de cima enquanto a Sra. Oliver ficou embaixo, arranjando um lugar inconfortável perto da porta. Quando o condutor se aproximou, foi forçada a es­banjar o preço de uma passagem até o final da linha — não tinha a menor idéia do percurso daquele ônibus, nem de onde saltaria a sua presa. Sabia apenas, por uma frase vaga da arrumadeira do apartamento, tratar-se de "um desses novos prédios perto da Catedral de St. Paul". Assim, estava alerta quando apareceu ao longe a venerável cúpula do templo. É agora, pensou, e examinou com atenção as pessoas que des­ciam do segundo andar. Afinal, apareceu a silhueta elegante de Claudia num costume muito chique. A moça desceu e logo atrás a Sra. Oliver a imitou, seguindo-a a uma distância cuidadosamente calculada.

"Mas, que interessante", pensou a escritora. "Estou mesmo seguindo alguém! Exatamente como nos meus livros. E devo estar fazendo tudo certinho, porque ela não percebeu nada!"

Na verdade, Claudia Reece-Holland parecia inteiramen­te desligada do mundo à sua volta. "Parece uma moça com­petente", refletiu a Sra. Oliver, como já fizera antes. "Se tivesse de escolher um assassino, mas um assassino realmente eficiente, acho que pagaria alguém como ela."

Lamentavelmente, nenhum assassinato ocorrera ainda; isto é, a não ser que Norma estivesse correta em sua impressão de que matara alguém.

Estavam numa parte de Londres recentemente beneficia­da (ou prejudicada) por um intenso surto de construção imo­biliária. Enormes arranha-céus, a maioria muito feios, na opi­nião da Sra. Oliver, erguiam para o alto suas estruturas se­melhantes a caixas de fósforos.

Claudia entrou num prédio. "Estamos perto", pensou a Sra. Oliver, acompanhando-a. No saguão, quatro elevado­res subiam e desciam freneticamente. Agora vai ser um pro­blema, pensou a escritora. No entanto, os elevadores eram grandes e ela, entrando no que Claudia escolhera no último instante, conseguiu manter entre ambas uma sólida barreira «humana. A moça ia para o quarto andar. Desceu por um cor­redor, e a Sra. Oliver, marcando passo atrás de dois homens, tomou nota da porta em que entrara; a terceira antes do fim do corredor. Aproximou-se devagar e leu: "Joshua Restarick Ltda."

Nessa altura, a Sra. Oliver constatou não ter a menor idéia do que deveria fazer. Descobrira onde ficava a empresa do pai de Norma e onde Claudia trabalhava. Entretanto, sen­tindo-se meio ludibriada, percebeu que não se tratava de uma descoberta. Sinceramente, ajudaria em alguma coisa? Prova­velmente não.

Ainda esperou alguns minutos, andando de uma ponta a outra do corredor, para ver se alguma pessoa interessante en­trava no escritório de Restarick. Duas ou três moças o fizeram, mas não pareciam muito promissoras. A Sra. Oliver tomou novamente o elevador e saiu do prédio, desconsolada. Não tinha idéia do que fazer. Começou a andar pelas ruas pró­ximas, e pensou em visitar a Catedral de St. Paul.

"Eu podia ir à Galeria dos Sussurros, para sussurrar um pouco", pensou. "Talvez seja bom lugar para cena de um crime, quem sabe."

"Não", acabou por decidir. "Podem achar sacrilégio. Não ficaria bem." Imersa em meditações do gênero, encaminhou-se na direção do Teatro Mermaid. Ali sim, podia-se encenar um bom homicídio.

Continuou a caminhada, agora aproximando-se de um bloco de edifícios. Então, sentindo que precisava acrescen­tar algo substancial ao seu frugal café da manhã, entrou num pequeno restaurante. O lugar estava com uma boa freguesia, dividida entre retardatários que tomavam o primeiro café do dia, e os que já haviam descido de seus escritórios para a primeira pausa no trabalho. A Sra. Oliver, olhando em volta à procura de uma mesa, teve um sobressalto. Numa mesa junto à parede, Norma estava sentada; à sua frente, um rapaz de abundante cabeleira castanha caindo até o ombro, vestin­do um colete de veludo vermelho e um casaco menos discreto ainda que o colete.

"David", disse a Sra. Oliver para si mesma. "Só pode ser o tal David." Norma e ele conversavam agitadamente.

A Sra. Oliver elaborou um plano de ação, decidiu-se e, triunfante, atravessou o salão em direção a uma porta onde se lia em letras discretas: "Senhoras."

Não tinha certeza se Norma a reconheceria ou não. Nem sempre as pessoas que parecem viver no mundo da lua são realmente pouco observadoras. Norma parecia estar com os olhos grudados no namorado, mas nunca se sabe.

"Sempre posso mudar alguma coisa na minha fachada", pensou a Sra. Oliver. Examinou-se no pequeno espelho posto à disposição das freqüentadoras, estudando particularmente o cabelo — em sua opinião o ponto focai da aparência de uma mulher. Sabia disso melhor do que ninguém: mais de uma vez mudara de penteado e deixara de ser reconhecida por seus amigos. Avaliando atentamente o seu panorama capilar, meteu mãos à obra. Grampos foram descartados em profusão, e mechas artificiais foram guardadas na bolsa, dobradas num lenço. O restante foi repartido ao meio, penteado para trás sem piedade e enrolado em um coque na nuca. Da bolsa tam­bém saiu um par de óculos, que foram cuidadosamente encarapitados no nariz. O resultado foi um ar de grande sobriedade — “quase intelectual", como ela constatou com aprovação. Ainda alterou as linhas da boca com batom, antes de reapa­recer no restaurante; tinha de andar com grande cautela, já que os óculos serviam apenas para ler, e tudo à sua volta estava um tanto fora de foco. Atravessou a sala em direção a uma mesa próxima à ocupada por Norma e David, sentando-se de frente para o rapaz. Norma estava de costas para ela, e só a veria caso se voltasse inteiramente na cadeira. A garçonete se aproximou e a Sra. Oliver pediu apenas um café e um brioche. Daí em diante, fez o possível para passar desaper­cebida.

Norma e David não lhe haviam dado a menor atenção. Estavam mergulhados em profunda e apaixonada discussão, que a Sra. Oliver levou uns dois minutos até sintonizar sa­tisfatoriamente.

— ... mas é tudo imaginação sua — David dizia. — Você imagina as coisas. É tudo completa fantasia, meu bem.

— Não sei. Não consigo ter certeza — a voz de Norma tinha um tom estranho, frio e distante.

A Sra. Oliver não a ouvia tão bem como David, já que a moça estava de costas, mas o seu timbre despido de perso­nalidade a impressionou desagradavelmente. Havia alguma coisa de errado naquilo, pensou. Algo extremamente errado. Lembrou-se das palavras de Poirot quando pela primeira vez lhe falara no caso. "Ela pensa que pode ter cometido um homi­cídio" O que estaria acontecendo com aquela moça? Alucinações? O seu cérebro estaria realmente um pouco abalado, ou o que ela temia acontecera realmente, e a moça estaria so­frendo os efeitos de um traumatismo violento?

— Para mim, tudo é culpa de Mary.. Ê uma imbecil, e toda essa doença dela deve ser invenção.

— Ela esteve mesmo doente.

— Está bem — esteve doente. Qualquer mulher de bom senso simplesmente pediria um antibiótico ou coisa parecida ao médico, em vez de ficar apavorada daquele jeito.

— Ela pensou que fosse minha culpa. Meu pai também.

— Mas Norma, você está imaginando isso tudo.

— Você está falando só para me acalmar, David. E se eu dei mesmo o veneno a ela?

—  O que você quer dizer com isso — se deu o veneno?

Ou deu ou não deu, você tem de saber. Você não pode ser tão tonta assim, Norma.

— Mas eu não sei.

—  Você só sabe dizer isso. Vira e mexe, vai e volta, acaba sempre nessa história: Eu não sei. Eu não sei. ..

—  Você não compreende — não tem idéia do que seja ódio. Eu odeio aquela mulher desde o primeiro momento em que a vi. O ódio faz uma pessoa perder a cabeça.

—  Eu sei. Já me disse isso.

—  Isso é que é esquisito. Eu já lhe disse, mas nem ao menos me lembro de ter dito. Não entende? A toda hora isso acontece. Eu... eu digo coisas às pessoas. Conto coisas que quero fazer, que fiz, que vou fazer. E nem ao menos me lembro de ter dito nada. É como se estivesse pesando em certas coisas e às vezes elas saíssem da minha cabeça e os outros ficassem sabendo. Eu lhe disse mesmo isso, então?

—  Bom... quer dizer... não vamos começar tudo de novo, está bem?

— Mas eu disse? Disse ou não disse?

—  Está bom, está bom! São coisas que as pessoas dizem.

"Eu odeio aquela mulher; tenho vontade de matá-la. Vou lhe dar veneno!" Mas é tudo coisa de criança, você não percebe? Falta de maturidade. É muito natural. As crianças vivem di­zendo coisas assim. "Eu detesto fulano. Vou esganar ele!" Nos colégios se ouve isso a toda hora. Principalmente sobre as professoras.

— Você acha que é só isso? Mas então... então você acha que eu sou tão infantil assim?

— Bem, talvez não seja. Mas você podia fazer um es­forço para se controlar, compreender a tolice disso tudo. Que importa se você a odeia? Você já saiu de casa, não precisa viver junto dela.

— E por que eu não posso morar em minha própria casa... com o meu próprio pai? — perguntou Norma. — Não é justo. Não é justo. Primeiro, ele foi embora e abandonou mamãe, e agora, quando volta para perto de mim, está casado com uma mulher como Mary. Claro que eu a odeio — e ela me odeia também. Cansei de pensar em matá-la, ficava ima­ginando maneiras de dar cabo. dela. Gostava de pensar nisso. Mas, depois, quando... quando ela ficou realmente doente...

— Você não pensa que é feiticeira ou coisa parecida? — perguntou David, um tanto intranqüilo. — Não tem mania de espetar alfinetes em figurinhas de cera, tem?

— Oh, não. Isso são bobagens. O que eu fiz foi de verdade. De verdade, mesmo.

— Olhe aqui, Norma, o que você quer dizer com essa história de ter feito algo de verdade?

— O vidro estava lá, na minha gaveta. Abri a gaveta e ele estava lá.

— Que vidro?

— O Exterminador Dragão, Especial para Ervas Da­ninhas. Ê o que estava escrito no rótulo. Vinha num vidro verde-escuro, para ser borrifado nas plantas. E também tinha escrito Cuidado e Veneno.

— Você comprou? Ou apenas achou?

— Onde arranjei, não sei, mas estava lá, na minha ga­veta, e estava pela metade.

— E então, você... você.. . se lembrou...

— Foi — disse Norma. — Foi... — sua voz estava distante, quase sonhadora. — Foi. . . e acho que então me lembrei de tudo. Você também acredita, não acredita, David?

— Não sei o que pensar de você, Norma. Não sei, mesmo. Acho que você pode estar inventando tudo, tentando se convencer de que é verdade.

— Mas ela teve de ir para a casa de saúde, em observa­ção; eles disseram que não sabiam o que era. E, depois, não conseguiram descobrir nada de errado e ela voltou para casa — e ficou doente de novo. Foi então que comecei a ficar as­sustada. Papai passou a me olhar de maneira esquisita, e um dia o médico apareceu e se trancou com papai na biblioteca. Dei a volta pelo lado de fora e tentei ouvir pela janela. Queria saber o que eles estavam conversando. Os dois estavam pla­nejando... internar-me! Num lugar onde eu faria uma espécie de um tratamento. Você entende? Achavam que eu estava maluca, e fiquei apavorada... porque, porque não sabia di­reito o que tinha feito e o que não tinha feito.

— Foi então que você fugiu?

— Não... foi depois...

— Conte.

— Não quero mais falar sobre isso.

— Mais cedo ou mais tarde você terá de lhes dizer onde está.

— Nunca! Eu os odeio. Odeio meu pai tanto quanto Mary. Queria que os dois morressem... os dois. Só assim.. . só assim eu poderia ser feliz de novo.

— Não comece a ficar excitada! Olhe aqui, Norma... — ele fez uma pausa encabulada, — ... não sou muito dessa história de casamento... pelo menos não tão cedo. Ninguém gosta de se amarrar, você sabe, mas acho que é a melhor coisa que nós dois podíamos fazer, agora. Casar. Podemos ir Jium cartório, e pronto. Você vai ter de dizer que é maior de 21 anos, mas basta parecer um pouco mais velha. Mude o penteado, bote uns óculos, qualquer coisa assim. Depois de casados, seu pai não pode fazer nada! Não pode mandar você para lugar nenhum! Perde todos os poderes,

— Eu o odeio.

— Você parece que odeia todo o mundo.

— Só meu pai e Mary.

— Bom, afinal de contas, não há mal nenhum em um homem casar pela segunda vez.

— Não esqueça o que ele fez com mamãe.

— Mas isso foi há muitos anos.

— Foi. Eu era uma criança, mas me lembro. Ele saiu de casa e nunca mais voltou. Mandava-me presentes no Natal, mas nunca veio em pessoa. Quando apareceu de novo, eu não o reconheceria se passasse por ele na rua. E também já não representava nada para mim. Acho que mamãe também foi internada; ela costumava sair de casa quando ficava doente. Não sei para onde ia. Às vezes, fico pensando... David, acho que tem alguma coisa errada comigo e que algum dia acabo fazendo uma loucura. A história da faca...

— Que faca?

— Não interessa. Uma faca qualquer

— Você não pode, pelo menos, dizer de que está fa­lando?

— Acho que tinha manchas de sangue... estava escon­dida lá... embaixo das minhas meias.

— Você se lembra de ter escondido essa faca?

— Acho que sim. Mas não consigo me lembrar do que fiz com ela, antes. Não me lembro de onde estive... Há uma

hora inteira, naquela noite, que está faltando na minha me­mória. Uma hora inteira, e não tenho a menor idéia de onde andei. Mas estive em algum lugar, e fiz alguma coisa.

— Cale a boca! — ele sussurrou, vendo que a garçonete se aproximava da mesa. — Vai dar tudo certo. Eu tomo conta de você. Vamos comer mais alguma coisa — disse para a garçonete, em voz alta, apanhando o cardápio.. — Duas tor­radas com queijo.

 

 “Embora aprecie sobremaneira a honra de seu convite, lamento informar-lhe..."

Hercule Poirot estava ditando para sua secretária, Srta. Lemon, quando o telefone tocou. Ela estendeu o braço para o fone. — Alô? Quem quer falar, por favor — tapou o bocal com a mão e avisou Poirot: — A Sra. Oliver.

— Ah... a Sra. Oliver — disse Poirot, que não sentia desejo algum de ser interrompido naquele momento; entretan­to, apanhou o fone das mãos da secretária. — Alô — disse. — Hercule Poirot falando.

— Ah, Monsieur Poirot, que bom que o encontrei! Eu a achei!

— Perdão?

— Encontrei-a para o senhor. A sua moça! O senhor sabe, a que matou alguém, ou pensa que matou. Ela está fa­lando exatamente sobre isso, agora. Acho que está inteira­mente transtornada. Mas isso não tem importância. O senhor não quer vir apanhá-la? —

— Onde está senhora, chère madame?

— Fica entre a Catedral de St. Paul e o Teatro Mermaid. Rua Calthorpe — acrescentou, após uma rápida olha­da para fora da cabina telefônica. — O senhor pode vir de­pressa? Eles estão num restaurante.

— Eles?

— Ah, ela e um rapaz, acho que é aquele namorado que não presta. Só que não tive essa impressão, e ele parece que gosta bastante dela. Mas as pessoas são tão esquisitas, nunca se sabe. Mas não posso ficar falando, tenho de voltar para lá. Entrei num restaurante e vi os dois. Eu os estou seguindo o senhor sabe.

— Ah, está? Uma bela proeza madame.

— Para falar a verdade, foi por acaso. Eu entrei no res­taurante e ela estava lá, sentada.

— Ah, então foi uma questão de sorte! A sorte é tão importante quanto a inteligência minha senhora.

— E me sentei na mesa ao lado, dando um jeito para que ela ficasse de costas para mim. De qualquer modo, acho que não me reconheceria: mudei completamente o penteado. Eles estavam conversando como se estivessem sozinhos no mundo, e quando pediram umas torradas com queijo (eu de­testo torradas com queijo, não entendo como há quem goste)...

— Não se preocupe com as torradas. Continue. A se­nhora os deixou lá e veio telefonar. Certo?

— Certo. Porque as torradas me deram tempo. E vou voltar para lá. Ficarei numa mesa perto ou do lado de fora, na calçada. De qualquer maneira, tente chegar o mais depressa possível.

— Qual é o nome do restaurante.

— É o Trevo Alegre. Só que não tem ar muito alegre, não. Para falar a verdade, é um lugarzinho um tanto melan­cólico, mas o café é bom.

— Não diga mais nada. Pode voltar; eu chegarei dentro em pouco.

A sempre eficiente Srta. Lemon se antecipara a Poirot, e já o esperava na calçada, à porta de um táxi. Não fizera qualquer pergunta nem demonstrara curiosidade; muito menos perguntou a Poirot o que deveria fazer enquanto ele não vol­tasse. Seria desnecessário: ela sempre sabia o que devia fazer, e não errava nunca.

Pouco depois, Poirot chegava à esquina da Rua Calthorpe. Pagando o táxi, olhou em volta. Viu o Trevo Alegre, mas não havia nas proximidades pessoa alguma que se asse­melhasse à Sra. Oliver, fosse qual fosse o seu disfarce. Ca­minhou até o final da rua e voltou — nada da Sra. Oliver. Logo, o casal em que estavam interessados saíra, e a Sra. Oliver partira em seu rastro — ou então... Para investigar esse "ou então", aproximou-se da porta do restaurante. Pelo vidro, bastante embaçado, não era possível examinar adequa­damente o interior, e ele teve de entrar. Olhou em torno.

Logo viu a moça que o procurara em sua casa. Estava sentada, sozinha, numa mesa encostada à parede. Fumava um cigarro e tinha os olhos perdidos no infinito; parecia imersa em meditação. Mas não, pensou Poirot, não era isso: ela realmente não pensava em coisa alguma. Estava perdida no seu limbo particular, inteiramente alheia ao lugar e circunstân­cias.

Atravessou a sala silenciosamente e sentou-se na ca­deira à sua frente. Ela levantou o olhar e Poirot teve a sa­tisfação de verificar que, pelo menos, a moça o reconhecia.

— Então, encontramo-nos de novo, mademoiselle — disse, cordialmente. — Vejo que se lembra de mim.

— Lembro-me. Lembro-me, sim.

— É sempre reconfortante sermos reconhecidos por uma mulher jovem que nos viu apenas uma vez, e por muito pouco tempo.

Ela continuou a olhá-lo, sem falar.

— Posso perguntar como se lembrou de mim? Como me reconheceu?

— O seu bigode — disse Norma, imediatamente. — Não poderia ser outra pessoa.

Ele se sentiu contente com a observação, e acariciou o ornamento com o orgulho e a vaidade que sempre demonstra­va nessas ocasiões.

— Ah, de fato, de fato. Não existem muitos .bigodes como o meu. É muito elegante, não?

— É... deve ser... acho que é.

— Ah, estou vendo que não é grande conhecedora de bigodes, Srta. Restarick — Srta. Norma Restarick, não é mesmo? — mas posso lhe garantir que se trata de um esplên­dido bigode.

Frisara deliberadamente o seu nome. No entanto, ela pa­recia tão alheia a tudo que se passava à sua volta, que não chegou a esperar que notasse. Mas ela notou. E teve um so­bressalto.

— Como sabe o meu nome? — perguntou.

— Realmente, a senhorita não deu o seu nome ao meu empregado, quando me visitou naquela manhã.

— Como é que o senhor sabe meu nome? Como conse­guiu saber? Quem lhe disse?

Ele sentiu em sua voz a preocupação, o medo.

— Uma pessoa amiga me contou, disse. — Os amigos sempre servem para alguma coisa...

— Quem foi?

— Mademoiselle, a senhorita tem os seus segredos; eu também prefiro não lhe cantar os meus.

— Não entendo como o senhor pode ter sabido quem eu sou.

— É porque eu sou Hercule Poirot — afirmou o detetive, com a sua costumeira modéstia; daí por diante, achou melhor não tomar qualquer iniciativa na conversa; calou-se e perma­neceu quieto, sorrindo-lhe com polidez.

— Eu... — ela começou, sem prosseguir. — Será... — tentou novamente, também sem êxito.

— Não fomos muito longe naquela manhã, eu sei — disse Poirot. — Só chegamos ao ponto em que a senhorita me contou que talvez tivesse cometido um homicídio.

— Ah, aquilo!

— Exatamente, mademoiselle. Aquilo.

— Ora... é claro que eu não estava falando sério. Ima­gine. .. quer dizer, era uma brincadeira.

— Vraiment? A senhorita foi à minha casa de manhã cedo, na hora do café. Disse que era urgente — urgente porque a senhorita podia ter matado alguém. Será isso uma brincadeira?

Uma garçonete que rondava por perto, olhando atenta­mente para Poirot, subitamente decidiu-se e se aproximou, entregando-lhe o que parecia ser um .barquinho de papel como os que as crianças costumam fazer navegar em poças dágua.

— Isso não será para o senhor? — perguntou. — Senhor Poirot, não? Uma senhora pediu para lhe entregar,

— Ah, obrigado — disse Poirot. — Como soube quem eu era?

— Ela mandou que «eu reparasse no bigode. Disse para procurar um bigode que eu nunca tivesse visto antes. E acer­tou direitinho — acrescentou, mirando-o fascinada.

— Bem, muito obrigado — repetiu Poirot, apanhando o barquinho, desfazendo-o e alisando o papel. Leu algumas palavras rabiscadas às pressas: "Ele está saindo, e ela vai ficar. Vou atrás dele; tome conta dela". Estava assinado por Ariadne.

—  Muito bem — disse Poirot, dobrando o pedaço de papel e guardando-o no bolso. — De que estávamos falando mesmo? Acho que do seu senso de humor, Srta. Restarick.

—  O senhor só sabe o meu nome... ou conhece a minha história toda?

— Sei algumas coisas a seu respeito. Chama-se Norma Restarick, mora em Londres, em Borodene Mansions, 67; sua casa fica em Long Basing; tem o nome de Crosshedges. Vive lá com seu pai, sua madrasta, um tio-avô e... ah, sim, uma acompanhante. Como vê, estou muito bem informado.

— O senhor andou me seguindo.

— Não, não — disse Poirot. — Nada disso, dou-lhe minha palavra de honra.

— Mas o senhor não é da polícia, é? Disseram-me que  era.

— Não, não sou da polícia.

A afirmativa desfez o ar de suspeita e desafio da moça.

— Não sei o que vou fazer — disse.

— Não lhe estou pedindo para utilizar os meus serviços — declarou Poirot, —- porque já me disse que sou velho demais. Talvez tenha razão. Mas, já que sei quem a senhori­ta é, e conheço uns fatos a seu respeito, não haverá mal algum em que discutamos juntos, amigavelmente, os seus pro­blemas. Lembre-se de que os mais velhos, mesmo que não tenham muita capacidade para a ação, sempre podem contri­buir com os frutos de sua experiência.

Norma ainda o olhava em dúvida, com os mesmos olhos espantados e vagos que já o tinham preocupado antes. Mas estava num beco sem saída, e, naquele exato momento (se­gundo sentiu Poirot) tinha necessidade de falar. Por alguma estranha razão, o pequeno detetive parecia ser um bom alvo para confidencias.

— Eles pensam que eu estou maluca — disse, sem ro­deios. — E... eu também acho. Estou ficando louca.

— Isso é muito interessante — declarou Poirot, entu­siasmado. — Há nomes diferentes para essas coisas. Nomes pomposos, que fazem a alegria de psicólogos, psiquiatras e outros do gênero. Mas, quando usamos palavras como maluca ou louca, dizemos exatamente o que pensam as pessoas comuns. Eh bien, então a senhorita está maluca, ou parece que está, ou, ainda, pensa que está. É bem possível que esteja real­mente louca. Mas, mesmo assim, o seu estado não é obrigatoriamente grave. É algo que às vezes acontece com muita gente, e quase sempre se resolve com tratamento adequado. Acon­tece porque as pessoas passaram por uma grande tensão, preocupação em excesso, estudaram demais ou se deixaram levar muito facilmente pelas emoções; por excesso de reli­gião — ou por falta de religião. Também, porque tiveram boas razões para odiar seus pais ou suas mães! Ou, ainda, de­vido a um amor infeliz.

— Eu tenho uma madrasta. Odeio-a, e acho que odeio meu pai, também. O senhor acha que isso não basta?

— O mais comum é odiar ou um ou outro — disse Poirot. — A senhorita gostava muito de sua mãe, acho eu. Ela morreu, ou se divorciou?

— Morreu. Há dois anos, mais ou menos.

— E gostava muito dela?

— Acho que sim. Isto é, claro que gostava. Era muito doente, o senhor sabe, e passava quase todo o tempo em casas de saúde.

— E o seu pai?

— Papai tinha saído do país muito antes. Eu tinha uns cinco anos quando ele foi para a África do Sul. Acho que ele queria se divorciar, mas mamãe recusou. Foi para a África do Sul, e se meteu num negócio de minas, ou coisa parecida. Costumava me escrever no Natal e mandar-me presentes, ou pedir a alguém que mandasse. E mais nada. Por isso, não era muito real para mim. Voltou para casa há um ano, porque tinha de tomar conta dos negócios de meu tio e resolver uma porção de problemas. E, quando veio para casa, ele... ele trouxe aquela mulher. Já estavam casados.

— E a senhorita não gostou disso?

— Não.

— Mas a sua mãe já tinha morrido. Não é fora do co­mum, sabe, um homem casar-se de novo. Especialmente quan­do já não vivia com a primeira esposa há muitos anos. Essa nova mulher era a mesma com quem ele quisera se casar, antes, quando pediu o divórcio à sua mãe?

—  Não, esta é bem mais moça. É muito bonita, e age como se papai fosse propriedade dela!

Após uma pausa, ela prosseguiu — e sua voz soava di­ferente, quase infantil. — Pensei que quando ele voltasse para casa, desta vez gostasse de mim e reparasse em mim — mas ela não deixou. Ela é contra mim, e me expulsou da vida dele.

—  Mas isso não tem a menor importância, na sua idade.

Foi bom. A senhorita agora não precisa de que alguém tome conta de si. Pode fazer o que quiser, gozar a vida, escolher as suas amizades...

—  Do jeito que me tratam em casa, não parece! E eu quero mesmo escolher os meus amigos.

—  A maioria das jovens de hoje tem de enfrentar opo­sição da família às suas amizades — disse Poirot.

— Foi tudo tão diferente do que eu imaginava — disse Norma. — Meu pai não é nada parecido com a imagem que eu fazia dele, quando tinha cinco anos. Costumava brincar comigo o tempo todo, e era tão alegre! Hoje é tão sério... vive preocupado, de cara fechada... tão diferente!

— As pessoas mudam muito — especialmente quando se passam quinze anos. Foi esse tempo todo, não?

— Mas era preciso mudar tanto?

— A sua aparência física também mudou?

— Oh, não, isso não. Basta olhar para o seu retrato; embora tenha sido pintado quando era muito mais moço, é parecidíssimo com o que ele é hoje. Mas não é como eu me lembro dele.

— Mas, minha cara — argumentou Poirot pacientemente, — as pessoas nunca se parecem com as lembranças que temos delas. Com o passar dos anos, fazemos com que os outros se pareçam, cada vez mais, com o que gostaríamos que fossem — e nossa imaginação se confunde com nossas recordações. Se queremos que as pessoas tenham sido agradáveis, alegres e simpáticas, é assim que nos lembraremos delas.

— O senhor acha? Acredita mesmo nisso — ela fez uma pausa antes de perguntar, abruptamente: — Mas, por que eu tenho vontade de matar os outros? — a pergunta brotou de seus lábios com naturalidade, e permaneceu no ar. Final­mente, pensou Poirot, haviam atingido um momento crucial.

— Esta pergunta pode ser bastante interessante — res­pondeu, — e por uma razão também muito curiosa. Quem lhe poderá responder terá de ser um médico. O tipo de médico que realmente possa responder.

A reação foi imediata.

— A um médico eu não vou. Não chegarei nem perto! Eles queriam me levar a um médico para depois me tranca-fiar num sanatório, e eu nunca mais poderia sair. Isso eu não deixo! — com as últimas palavras, ela já se mexia na ca­deira para ficar de pé.

— Mas eu não posso obrigá-la a ir a um médico! Não precisa se alarmar. Mas se quiser, a senhorita pode procurar um por conta própria, e lhe contar o que me contou, e talvez perguntar-lhe a razão disso tudo — e, quem sabe, ele po­derá explicar.

— Isso é o que diz o David. Ele diz que é isso que eu devo fazer, mas acho... acho que ele não compreende. Eu teria de dizer ao médico que eu... que eu tentei fazer certas coisas...

— Tem certeza que tentou?

— Não sei... às vezes não me lembro do que fiz... nem onde estive. Perco uma hora inteira, ou até duas horas... e não me recordo do que aconteceu. Uma vez, eu estava num corredor... do lado de fora de uma porta, a porta do quarto dela. Tinha alguma coisa na mão... nem sei onde apanhei essa coisa. Ela veio vindo na minha direção... mas, quando chegou perto, o seu rosto estava diferente. Não era mais ela. Tinha-se transformado em outra pessoa.

— Isso talvez seja apenas a recordação de um pesadelo. Geralmente, é nos pesadelos que as pessoas mudam de rosto.

— Não era pesadelo. Eu apanhei o revólver... estava no chão, na minha frente.. .

— No corredor?

— Não, isso foi num pátio. Ela veio e o tirou da minha mão.

— Quem fez isso?

— Claudia. Levou-me para cima e me deu uma bebida amarga.

— Nessa hora, onde estava a sua madrasta?

—  Estava lá, também... Não, não estava. Estava em Crosshedges.  Ou no hospital. Foi lá que descobriram que ela estava envenenada... envenenada por mim.

—  Pode não ter sido a senhorita. . . Pode ter sido outra pessoa.

— Quem poderia ser?

— Quem sabe... o marido.

— Papai? E por que papai quereria envenenar Mary? Ele a adora. É louco por ela.

— Mas existem outras pessoas na casa, não?

— O tio Roderick, naquela idade? Ridículo!

— Nunca se sabe — lembrou Poirot. —Ele pode estar com a saúde mental abalada. Pode estar pensando que tem a obrigação de envenenar uma mulher que acredite seja, diga­mos, uma espiã. Uma coisa assim, por exemplo.

— Isso seria muito, engraçado — disse Norma, momen­taneamente distraída e falando em seu tom normal. — É ver­dade que o tio Roderick esteve metido em casos de espiona-bem na guerra. E quem mais poderia ser? Sônia? Pode ser que ela dê uma boa espiã, mas não faço muita fé.

— De fato, e não é fácil imaginar um motivo para que ela quisesse envenenar a sua madrasta. E não existem criados, jardineiros?

— Não creio; nenhum deles mora na casa. Afinal de contas... bem, que razão poderiam eles ter?

— E ainda poderia ser tudo obra dela própria.

— O senhor quer dizer suicídio?

— É sempre uma possibilidade.

— Não posso acreditar em Mary querendo se matar. Ela é muito sensata. Ela é muito sensata, li, por quê?

— Não sei. Por outro lado, seria mais provável, caso ela pensasse nisso, que pusesse a cabeça dentro do forno de gás, ou que tomasse uma dose exagerada de pílulas para dormir. Não concorda?

— Bem, pelo menos seria mais natural. Portanto — acres­centou enfaticamente, — tem de ter sido eu.

— Ah — disse Poirot; -— isto é muito interessante. A senhorita quase parece preferir essa hipótese. Sente fascínio pela idéia de que tenha sido sua a mão-que serviu a dose fatal. É isso: a senhorita gosta da idéia.

— Como se atreve a dizer uma coisa dessas? Como?

— Porque acho que é a verdade — replicou Poirot. — Acredito que a idéia de que possa cometer um homicídio a excite, dá-lhe prazer.

— Não é verdade.

— Quem sabe? — divagou Poirot.

Ela apanhou a bolsa e começou a remexer em seu inte­rior com dedos que tremiam de nervosismo.

— Não vou ficar ouvindo essas coisas — fez sinal à garçonete, que veio e colocou, ao lado do prato de Norma, um pedaço de papel onde rabiscara a conta.

— Com licença — disse Hercule Poirot. Apossou-se do papelzinho e começou a tirar a carteira do bolso, mas a moça o arrebatou para si.

— Não quero que pague nada para mim.

— Como quiser — acedeu Poirot.

Já vira o que queria. A conta era de duas pessoas. Es­tava demonstrado, portanto, que o belo David não fazia qualquer objeção a ter despesas pagas por suas admiradoras.

— Pelo que vejo, a senhorita paga as despesas dos seus amigos.

— Como. o senhor sabe que eu estava com alguém?

— Já lhe disse... eu sei de muitas coisas.

Ela colocou algumas moedas na mesa e se levantou. — Vou embora — anunciou, — e proíbo que me siga.

— Nem que quisesse, minha cara — disse Poirot. — Lembre-se da minha avançada idade. Se a senhorita saísse correndo pela rua, jamais conseguiria alcançá-la.

Ela se dirigiu para a porta.

— Não me siga, está ouvindo?

— Permita-me ao menos abrir a porta — ele o fez ga­lantemente. — Au revoir, mademoiselle.

Lançando-lhe um olhar cheio de suspeita, ela se afastou em passos rápidos; mais de uma vez, olhou por cima do ombro. Poirot permaneceu onde estava, acompanhando-a com os olhos, mas sem fazer qualquer tentativa de segui-la. Quan­do a perdeu de vista, voltou para dentro do restaurante.

— O que quererá dizer tudo isso? — disse para si mesmo. A garçonete se aproximou, com cara de poucos amigos.

Poirot voltou à mesa e, para acalmá-la, pediu uma xícara de café  —  Existe algo bastante curioso — murmurou. — Ora se existe.

Uma xícara contendo um líquido de cor beje-pálido foi colocada à sua frente. Poirot tomou um gole e fez uma careta.

Pensou em onde estaria a Sra. Oliver naquele momento.

 

A Sra . Oliver estava num ônibus, um pouco ofegante, mas, nem por isso, empenhada com menor zelo na caçada. O Pavão — nome de guerra que inventara para a sua presa — andava com passos muito rápidos, um tipo de marcha a que ela não estava acostumada. Descendo pelo Embankment, seguira-o a uns vinte metros de distância. Em Charing Cross, ele tomara o subterrâneo, e a Sra. Oliver o imitara. Salta­ram ambos em Sloane Square. Numa fila de ônibus, ela fi­cara três ou quatro pessoas depois dele, mas conseguiu pegar o mesmo ônibus.

Ele saltou em World's End, e ela também. A presa, a seguir, mergulhou num complicado emaranhado de ruas, entre King's Road e o rio, para finalmente entrar no pátio de uma firma de construções. A Sra. Oliver refugiou-se à sombra de um portal e o observou. Viu-o logo depois entrar num beco. Esperou um pouco e seguiu-o — tinha desaparecido, A escritora fez um rápido reconhecimento do terreno. O am­biente à sua volta era de uma exuberante decrepitude. Não teve outra solução senão descer pelo beco, que se ramificava cm outras ruelas, algumas sem saída. Ela estava inteiramen­te desorientada; de repente, viu-se novamente no pátio da construtora — e uma voz soou às suas costas, assustando-a consideravelmente, embora dissesse apenas, em tom polido: — Espero não ter andado depressa demais para a senhora.

Voltou-se rapidamente. Subitamente, o que até há poucos instantes era quase divertido, uma caçada empreendida com grande entusiasmo e animação, agora era algo bem diferente.

Sentia apenas uma inesperada golfada de medo. Na verdade, estava apavorada. De um momento para o outro, a atmosfe­ra se carregara de perigo. No entanto, a voz era suave, bem educada; mas, atrás da polidez, ela pressentiu agressividade — o tipo de raiva mal contida que a fez lembrar-se, numa confusão de manchetes, daquilo que habitualmente se lê nos jornais: Mulher Idosa Atacada por Quadrilha de Transviados —  adolescentes implacáveis, cruéis, dominados pelo ódio e pelo desejo de causar sofrimento.

Este era o rapaz que ela vinha seguindo. Sabia que ela estava em suas pegadas, despistara-a e depois a seguira pelo beco; agora barrava-lhe os passos. Londres é assim, inespe­rada: num minuto, há gente por todo os lados; logo depois, ninguém à vista. Devia haver alguém na rua seguinte, nas casas próximas — mas, mais perto do que qualquer outro, ali estava aquela figura dominadora, com suas mãos, fortes e cruéis. Teve certeza de que, naquele preciso momento, ele pensava em usar aquelas mãos... o Pavão. Um orgulhoso pavão. Vestido de veludo, som suas calças apertadas e ele­gantes, falando em voz suave, irônica, atrás dela escondendo a sua agressividade. A Sra. Oliver por três vezes engoliu em seco, sofregamente. E então, numa inspiração que lhe veio como um relâmpago, tentou uma defesa apressadamente di­tada pela imaginação. Com firmeza, mas sem perda de tempo, sentou-se sobre uma lata de lixo que estava encostada à parede ao seu lado.

— Meu Deus, o senhor me assustou — disse. — Não pensei que estivesse aqui. Espero que não esteja zangado.

— Estava mesmo me seguindo, então?

— Estava, sim. Desculpe se lhe causei algum aborreci­mento. Mas, sabe, achei que era uma excelente oportunidade. Não se zangue, por favor... não há motivo algum. Realmen­te não há. Ouça... — a Sra. Oliver refestelou-se mais co­modamente na lata de lixo, — ... acontece que eu sou es­critora. Escrevo histórias policiais, e hoje de manhã, estava muito preocupada. Entrei num restaurante para tomar um café e pensar no meu problema: no meu livro, cheguei num ponto em que estou seguindo alguém. Quer dizer, o meu herói está seguindo alguém, e eu pensei: "francamente, não enten­do nada dessa história de seguir as pessoas". Sabe como é sempre'usei isso nos meus livros, e toda. a hora estou lendo em outros livros histórias assim... mas fiquei na dúvida: em alguns livros, seguir uma pessoa é a coisa mais fácil do mundo; em outros, é dificílimo. Pensei: "A única solução é tentar eu mesma..." Porque nunca se conhece uma coisa direito antes de experimentar, não é mesmo? É preciso saber como a gente se sente, se temos medo de perder a pista, etc. Estava com esse problema quando levantei os olhos e vi o senhor sentado na mesa ao meu lado. Pensei — por favor, não se aborreça — pensei que seria a pessoa ideal para ser se­guida.

Ele ainda a olhava com seus estranhos e frios olhos azuis, mas mesmo assim ela sentiu que a tensão estava dimi­nuindo.

— E por que eu seria ideal?

— Ora, o senhor é tão decorativo — explicou a Sra. Oliver. — Suas roupas são muito vistosas — parecem de an­tigamente, sabe? — e pensei que seria mais fácil seguir alguém que se destacasse numa multidão. E foi por isso que, quando o senhor saiu, saí atrás. E saiba que não foi nada fácil — encarou-o. — Pode me dizer se descobriu há muito tempo?

— Não. Pelo menos, não imediatamente.

— Entendo — disse a Sra. Oliver, pensativamente. — Mas, também, eu não sou muito fácil de identificar. Quer dizer, não sou muito diferente de uma porção de mulheres da minha idade. Não me destaco muito pela aparência, não?

— Seus livros são publicados? Será que conheço algum?

— Bem, não sei... pode ser. Escrevi quarenta e três até hoje. Meu nome é Oliver.

— Ariadne Oliver?

— Ah, então sabe o meu nome! — exclamou a Sra. Oliver. — Naturalmente isso é muito confortador... mas não acho que goste muito dos meus livros. Devem ser meio an­tiquados para o senhor... quase não têm violência.

— A senhora não me conhecia pessoalmente, antes?

A Sra. Oliver balançou a cabeça enfaticamente — Não não, não. Tenho certeza que não.

— E a moça que estava comigo?

— A que estava com o senhor no restaurante... comen­do torradas, não? Acho que não. Mas, também, só a vi de costas. Achei parecida... ora, essas moças de hoje são tão parecidas umas com as outras, não acha?

—  Ela já esteve com a senhora — disse o rapaz rispidamente. Inesperadamente, sua voz soava cortante; ácida. — Disse-me que a conheceu, não faz muito tempo. Acho que uma semana atrás.

— Onde? Alguma festa? Pode ser. Como se chama ela? Se eu souber o nome..

Pareceu-lhe que ele estava em dúvida se dizia ou não o nome, mas acabou se decidindo, enquanto observava com grande atenção a expressão da Sra. Oliver.

— Chama-se Norma Restarick.

— Norma Restarick. Ora. claro que sim, foi numa festa. Perto duma cidadezinha chamada um minuto só... cha­mada Long Norton, não era? Não me recordo o nome da casa. Fui lá com uns amigos. Acho que não a reconheceria mesmo se a visse de frente, mas lembro-me de uma moça que comen­tou os meus livros. Até lhe prometi mandar um. Não é engra­çado, que eu tenha decidido seguir alguém, e escolher uma pessoa que estava com outra que eu já conhecia? Engraça­do. .. Mas acho que não poderia aproveitar num livro: pa­receria uma coincidência muito forçada, não?

A Sra. Oliver levantou-se.

— Meu Deus, onde eu estava sentada! Uma lata de lixo! Imagine... e das mais fedorentas.. . — ela fungou e per­guntou: — Onde é que estamos, afinal?

David a olhava, fazendo-a sentir que seus temores haviam sido inteiramente infundados. "Que bobagem", ela pensou, "acreditar que ele fosse perigoso, que me pudesse fazer al­guma coisa." Ele sorria com toda a força do seu charme. Um leve movimento de sua cabeça fez sacudir, com imensa graça, as madeixas castanhas que lhe atingiam os ombros. Esses ra­pazes de hoje... que criaturas fantásticas!

— O mínimo que posso fazer — ele disse, — é mos­trar-lhe onde veio parar, só porque quis me seguir. Vamos por ali — apontou uma escada que precariamente subia pela parede externa do que parecia ser um depósito.

— Essa escada aí? — A Sra. Oliver voltou a sentir-se inquieta. Ele poderia estar querendo levá-la lá para cima, atraindo-a com seu belo sorriso, para poder nocauteá-la com maior tranqüilidade. "Não adianta, Ariadne", disse para si mesma, "você se meteu nesta confusão e agora tem de ir até o fim e descobrir tudo o que puder."

— Acha que os degraus agüentam o meu peso? — per­guntou. — Parecem tão frágeis.

— Não, estão firmes. Vou na frente — ele disse, — para mostrar o caminho.

A Sra. Oliver subiu atrás do rapaz o que não era gran­de consolo. No fundo, ainda estava com medo. Não tanto do Pavão, como do lugar para onde o Pavão a estava levando. Bem, logo saberia. Ele empurrou a porta no alto da escada e entrou num cômodo, grande e quase vazio. Era um atelier improvisado. Havia uns colchões espalhados pelo chão, telas empilhadas junto às paredes, um par de cavaletes, um forte cheiro de tinta. E duas pessoas. Um rapaz barbudo estava em frente a um dos cavaletes, pintando. Virou a cabeça em sua direção...

— Alô, David — disse. — Trouxe visitas?

Na opinião da Sra. Oliver, tratava-se do mais sujo rapaz que já vira. Os cabelos, pretos e oleosos, faziam cachos em sua nuca e sobre os olhos. Usava barba. Suas roupas eram de couro das botas ao blusão. O olhar da Sra. Oliver passou para a moça que lhe servia de modelo. Estava sentada em uma cadeira numa plataforma, meio inclinada, com a cabeça deitada e os cabelos negros derramados para trás. A Sra. Oliver a reconheceu imediatamente. Era a segunda das três moças de Borodene Mansions. Não se lembrava de seu últi­mo nome, mas do primeiro: era Francês, a jovem lânguida e extremamente decorativa.

— Este é Peter — disse David, indicando o artista de aparência um tanto repugnante. — Um de nossos gênios in-justiçados. E Francês, que está tentando imitar uma jovem de­sesperada à procura de quem lhe faça um aborto.

— Cale a boca, seu macaco — disse Peter.

— Acho que a conheço, não? — perguntou com falso en­tusiasmo a Sra. Oliver — Tenho certeza de que já a vi, em algum lugar! E não foi há muito tempo.

— A senhora não é a Sra. Oliver? — disse Francês.

— Foi o nome que ela disse — explicou David. — E então era verdade?

— Mas onde é que nos vimos? — continuou a Sra. Oliver. — Não foi numa festa? Não. Deixe-me pensar. Já sei: em Borodene Mansions.

Francês abandonara a pose reclinada; sua voz era can­sada, mas elegante. Peter soltou um grunhido, alto e deses­perado.

— Você estragou a pose. Precisava ficar se mexendo toda? Não pode ficar quieta?

— Não, não posso. E era uma pose horrível. Acho que dei um jeito no ombro.

— Estou fazendo umas experiências na arte de seguir pessoas — disse a Sra. Oliver. — É muito mais difícil do que eu pensava. Aqui é um atelier não? — perguntou com uma expressão inteligente.

— E não é dos piores que existem hoje em dia —- disse Peter. — Com um pouco de sorte o soalho se agüenta e as pessoas não caem no andar de baixo.

— Mas tem tudo que você precisa — interferiu David.

— Uma boa luz do norte, bastante espaço, um lugar para dormir, direito a usar o banheiro lá embaixo e ainda o que eles chamam de "facilidades para cozinhar". É capaz de haver também uma ou duas garrafas — voltando-se para a Sra. Oliver, num tom inteiramente diferente, de extrema polidez, acrescentou: — E o que lhe posso oferecer para beber?

— Não bebo — disse a Sra. Oliver.

— A dama não bebe -— anunciou David. — Quem ha­veria de pensar!

— Isso não é muito delicado de sua parte, mas é bem verdadeiro — replicou a Sra. Oliver. — Quase todo mundo me diz que pensava que eu bebesse como uma esponja.

Abriu a bolsa — e imediatamente três rolos de cabelo postiço caíram ao chão. David os apanhou e lhe entregou.

— Oh, obrigada — a escritora disse. — Nem me arrumei direito, hoje de manhã. Se tiver uns grampos por aqui... — remexeu na bolsa e começou a prender os rolos à cabeça.

Peter se dobrava de rir — A senhora é extraordinária! — exclamou.

"Imagine", pensou a escritora, "eu achar que estava em perigo. Perigo — da parte dessa gente? As aparências não querem dizer nada; são tão bons, tão amistosos. Bem que já me haviam dito: eu tenho imaginação demais."

Pouco depois, anunciou que precisava ir andando, e David, galante como um jovem de tempos passados, ajudou-a a descer os instáveis degraus e lhe ensinou como chegar a King's Road pelo caminho mais curto.

— E lá — ele explicou, — a senhora pode pegar um ônibus, ou um táxi, se preferir.

— Um táxi — disse a Sra. Oliver. — Meus pés estão me matando. Quanto mais cedo pegar um táxi, melhor. Muito obrigada — acrescentou, — por ter sido tão compreensivo com a minha ousadia, seguindo o senhor daquela maneira. Afinal de contas, acho que não tenho mesmo jeito de detetive.

— Talvez não — disse David, sério. — À esquerda, depois à direita, e depois à esquerda de novo. Já estará perto do rio; basta ir em sua direção, dobrando à direita e seguindo em frente.

Estranhamente, à medida em que ela se afastava, voltou a sensação de mal-estar e ansiedade. "Lá vem a minha imagi­nação de novo" pensou. Olhou para trás, na direção da es­cada que levava ao atelier. David ainda estava lá, acompanhando-a com o olhar. "Três jovens muito simpáticos", ela disse para si mesma. "E bonzinhos, também. Aqui, dobrar à direita, depois à esquerda. Só porque são meio esquisitos, ninguém tem o direito de achar que são perigosos. Aqui é à direita de novo — ou à esquerda? Esquerda, eu acho. Ah, os meus pés! E vai chover." A caminhada parecia não ter fim, e King's Road um objetivo inatingível. Ela mal podia ouvir os ruídos do trânsito — e onde é que estava o bendito rio? Começou a desconfiar de que tivesse seguido errado as ins­truções.

"Ora essa" pensou. "A algum lugar eu acabo chegan­do — o rio, Putney, Wandsworth, algum lugar!" Perguntou o caminho a um passante, que respondeu ser estrangeiro e não falar inglês.

A Sra. Oliver, exausta, dobrou mais uma esquina. Pouco adiante, viu o brilho das águas. Quase correndo, seguiu por uma estreita passagem. Ouviu passos atrás de si, começou a virar a cabeça, mas o golpe no crânio veio antes. O mundo explodiu em milhares de centelhas.

 

— Beba isto — disse uma voz. Norma sentia calafrios; seus olhos pareciam estar em­baçados. Ela se encolheu na cadeira, mas a ordem foi repe­tida: — Beba — obedeceu para engasgar depois do primeiro gole.

— É muito forte — conseguiu dizer.

— Mas vai lhe fazer bem; vai se sentir melhor num ins­tante. Fique calma e espere um pouco.

O enjôo e a tonteira que a atormentavam foram passan­do. Um pouco de cor voltou ao seu rosto, e os calafrios di­minuíram. Pela primeira vez, olhou em volta, tentando desco­brir onde estava. Tudo lentamente voltava ao normal — o medo e a preocupação que a dominavam até então começaram a se desfazer. Era uma sala de tamanho médio, mobiliada de uma maneira que lhe parecia familiar. Uma niesa, um sofá; uma cadeira de balanço e uma cadeira comum; numa mesinha, um estetoscópio e um aparelho que ela sabia ser para examinar os olhos. A sua atenção passou do geral para o particular: o homem que lhe ordenara que bebesse.

Um homem de uns trinta anos, de cabelos ruivos e um rosto feio mas atraente: o tipo que, sem ser bonito, é interes­sante. Ele procurou tranqüilizá-la com o olhar.

— Está-se sentindo melhor?

— Acho... acho que estou. Eu... o senhor... o que aconteceu?

— Não se lembra?

— Na rua... os carros... vinham para cima de mim... — ela o encarou. — Fui atropelada.

— Não, não foi — ele sacudiu a cabeça. — Eu não deixei.

— O senhor?

— Bem, você estava no meio da rua. Um carro estava vindo em sua direção, e mal tive tempo de puxá-la dali. Por que fez aquilo — andar feito tonta no meio do trânsito?

— Não me lembro. Acho... eu devia estar distraída.

— Era um Jaguar que vinha disparado, e ainda havia um ônibus correndo no sentido oposto. O carro talvez quises­se atropelá-la de propósito — ou não?

— Acho que não. Quer dizer... tenho certeza que não.

— Bem, foi só uma hipótese. Pode ter sido outra coisa, então.

— O quê?

— Pode ter sido mesmo proposital... mas não da parte do motorista.

— Proposital, como?

— Para falar a verdade, estava imaginando se você não se quis matar — ele acrescentou com simplicidade: — Quis?

— Eu... não... ora, é claro que não.

— Se quisesse, seria um modo muito bobo de morrer — seu tom ficou um pouco mais sério. — Vamos, deve se lembrar de alguma coisa.

Os calafrios voltaram — Pensei... pensei que tivesse livre de tudo. Pensei...

— Então foi isso — queria mesmo se matar/ Qual é o problema? Pode me contar. Briga .com namorado? Geralmen­te, dá para sofrer bastante. Além disso, há sempre a esperan­ça de que ele também sofra com a nossa morte, não é? Em­bora não se possa contar muito com isso — as pessoas não gostam de sofrer, nem de sentir que são culpadas por alguma coisa. É bem possível que o namorado diga apenas: "Sempre a achei um pouco desequilibrada. Foi melhor assim." É bom se lembrar disso, na próxima vez que tiver vontade de se jogar jia frente de um Jaguar. E não se esqueça de que também é preciso pensar nos sentimentos dos Jaguares. Mas, qual foi o problema? Foi mesmo um fora do namorado?

— Não — disse Norma, — Não... pelo contrário... — sem saber por que, acrescentou: — Ele quis se casar comigo.

—  E isso é motivo para ser atropelada?

—  Mas há motivo. Foi porque... — ela não continuou.

—  É melhor me contar, não acha?

— Como vim parar aqui? — perguntou a moça.

—  Eu a trouxe, num táxi. Você não parecia ferida — talvez uns arranhões. Mas estava muito abalada, em estado de choque. Perguntei onde morava, mas você me olhou como se não entendesse nada. Como começou a se juntar uma mul­tidão, achei melhor pegar um táxi e vir para cá.

— Aqui... é uma enfermaria?

— Não. Um consultório médico, e o médico sou eu. Chamo-me Stillingfeet.

— Eu não quero um médico! Não quero, falar com o senhor! Não quero...

— Calma, calma. Há dez minutos que você está falando com um médico. Qual é o problema com os médicos, afinal de contas?

— Estou com medo. Tenho medo de que um médico diga que...

— Ora vamos,, menina, isto não é uma consulta profis­sional. Olhe-me apenas como um transeunte que se meteu na sua vida para salvá-la de morrer — ou de quebrar um braço ou a cabeça, o que seria mais provável e bem mais desagra­dável: você poderia ficar aleijada, sem falar nos outros abor­recimentos. Antigamente, quem tentasse suicídio podia ser pro­cessado; hoje, isso ainda pode acontecer, em casos de pactos de suicídio. Como você vê, estou sendo completamente franco. Pode me pagar na mesma moeda e explicar por que tem medo de médicos. O que eles já lhe fizeram de mau?

— Nada. Ninguém me fez nada. Mas tenho medo de que possam...

— Possam... o quê?

— Internar-me.

O Dr. Stillingfeet arqueou as sobrancelhas ruivas e a encarou de frente.

— Ora, ora — disse. — Você tem mesmo umas idéias esquisitas sobre os médicos. Por que eu ia querer interná-la? Quer uma xícara de chá? — acrescentou. ;— Ou prefere uma bolinha, ou um tranqüilizante? É o tipo de coisa que as pessoas da sua idade costumam preferir, não? Você certamente já andou experimentando, não andou?

Ela sacudiu a cabeça — Não... praticamente, não.

— Não acredito. Seja como for, por que o medo e esse abatimento todo? Você não é desequilibrada... não creio que seja. Os médicos não vivem pensando em internar os outros. Os sanatórios já estão cheios demais, e é difícil con­seguir uma vaga. Para falar a verdade, ultimamente, eles têm deixado sair uma porção de gente — como último recurso, quase expulsando o pessoal — uma porção de gente que fi­caria melhor lá dentro. Este país, minha cara, está superlota­do em mais de um setor.

— Muito bem — ele continuou. — o que prefere? Algo do meu armário de remédios, ou uma xícara de chá... uma sensata, antiquada e bem inglesa xícara de chá?

— Eu... eu gostaria de um pouco de chá.

— Indiano ou chinês? É assim que se pergunta, não? Em­bora eu tenha a impressão de que da China nós não temos no momento.

— Prefiro indiano.

— Ótimo.

Foi até a porta e gritou para fora: — Annie, chá para dois!

Voltando, sentou-se — Agora, vamos esclarecer as coisas minha cara. Como se chama, por falar nisso?

— Norma Res... — ela parou.

— Como?

— Norma West.

— Muito bem, Srta. West. Vamos deixar claro que eu não a estou tratando, nem você está me consultando. Você é apenas a vítima de um acidente de rua — é assim que vamos encarar o que houve. Imagino que fosse isso que você queria que parecesse, o que não seria nada bom para aquele sujeito no Jaguar.

— Antes, eu pensei em me jogar de uma ponte.

— É mesmo? Iria descobrir que não é tão fácil assim. O pessoal constrói pontes com muito cuidado hoje em dia. Você teria de subir no parapeito, o que não é fácil, e alguém poderia segurá-la. Muito bem, continuando a minha disserta­ção:, como você estava cm estado de choque e era impossível saber o seu endereço, eu a trouxe para casa. Por falar nisso, qual é o endereço?

—  Não tenho endereço. Eu... eu não moro em lugar nenhum.

— Muito interessante — disse o Dr. Stillingfeet. — É o que a polícia chama de "sem residência fixa", Como você faz. .. dorme num banco de praça?

Ela o olhou com desconfiança.

— Eu poderia ter dado parte do acidente à polícia, mas não tinha obrigação de fazê-lo. Preferi a versão de que, mer­gulhada em meditações juvenis, você apenas atravessou a rua sem olhar para o lado.

— Nunca pensei que existissem médicos como o senhor — disse Norma.

— É mesmo? Pois saiba que ando desiludido com a minha profissão nesse país. Na verdade, vou largar minha clínica aqui e devo embarcar para a Austrália dentro de uns quinze dias. Portanto, não represento perigo algum para você. Se quiser, pode me contar que vê elefantes cor-de-rosa saindo das paredes, ou que os galhos das árvores costumam tentar estrangulá-la, ou ainda que você vê ò diabo olhando atrás dos olhos das pessoas — ou qualquer outra fantasia agradável que quiser. Não tomarei a menor providência! Mas ainda acho que você me parece bastante equilibrada.

— Mas eu não me acho equilibrada.

— Pode ser que tenha razão — concordou educadamen­te o Dr. Stillingfeet. — Vejamos os seus motivos.

— Eu faço coisas que depois esqueço. Falo às pessoas sobre coisas que fiz e não me lembro de ter contado...

— Pelo jeito, você não tem muito boa memória.

— O senhor não compreende. Todas essas coisas... são coisas más. .

— Mania de religião, então? Isso, agora, seria bastante interessante.

— Não é nada de religião. É só... só ódio.

Após juma batida discreta na porta, uma mulher idosa entrou com uma bandeja de chá, que colocou sobre a mesa, saindo em seguida.

— Açúcar? — perguntou o Dr. Stillingfeet.

— Sim, por favor.

— Muito sensato. Açúcar faz bem.a quem sofreu um choque — serviu duas xícaras de chá e colocou uma ao lado de Norma, juntamente com o açucareiro. — Muito bem — sentou-se. — De que estávamos falando, mesmo? Ah, sim, de ódio,

— É possível odiar uma pessoa a ponto de querer ma­tá-la, não é?

— Claro que é — respondeu Stillingfeet, animadamente.

— Perfeitamente possível. Na verdade, bastante natural. Mas, mesmo querendo matar alguém nem sempre se consegue ter forças para o ato, percebe? O ser humano é equipado com um sistema automático de freios, que funcionam sempre no mo­mento exato.

— O senhor fala como se fosse a coisa mais comum...

— comentou Norma, deixando claro que isso a aborrecia.

— Ora, mas é realmente comum. Com crianças, acon­tece todos os dias. Quando ficam zangadas, dizem aos pais que eles são maus, que os odeiam, que querem que eles morram. Uma mãe sensata não dá a menor importância. Quando crescemos, ainda odiamos os outros, mas quase nunca vale a pena o trabalho de matá-los. E, se mesmo assim o fa­zemos, então vamos para a cadeia — e olhe que não é fácil matar alguém: geralmente, é dificílimo, muito complicado. Você não estará, por acaso, inventando tudo isso? — pergun­tou em tom casual.

— Claro que não — Norma se espigou na cadeira, os olhos brilhando de raiva. — Claro que não. Acha que eu diria essas coisas horríveis, se não fossem verdade?

— Mas, sabe, as pessoas também fazem isso — replicou o Dr. Stillingfeet. — Há pessoas que gostam de dizer as piores coisas sobre si mesmas — tirou-lhe a xícara vazia das mãos. — Então, vamos Já. É melhor me contar tudo. Quem você odeia, por que odeia, o que tem vontade de fazer.

— O amor pode se transformar em ódio.

— Parece verso de uma canção meio melodramática. Mas lembre-se de que o ódio também pode se transformar em amor. O negócio funciona nos dois sentidos. E você diz que não é problema com namorado. A pobre moça o amava e ele lhe fez mal — não é nada desse gênero, não?

— Não, nada disso. É... é a minha madrasta.

— O velho tema da madrasta cruel. Mas isso é boba­gem. Na sua idade, você pode resistir a qualquer madrasta. O que ela lhe fez, fora casar-se com seu pai? Você também o odeia, ou lhe é tão devotada que não quer dividi-lo com ninguém?

—  Não é nada disso. Tudo errado. Eu já gostei muito dele... muito, mesmo. Ele era... era... eu achava que ele era maravilhoso.

—  Muito bem — disse o Dr. Stillingfeet, — preste atenção. Vou fazer uma sugestão. Está vendo aquela porta?

Norma voltou a cabeça e olhou, sem entender coisa al­guma, para a porta.

—  Uma porta comum, não é? Destrancada. Abre e fecha como qualquer outra. Pode experimentar — você viu a minha empregada entrar e sair por ela, não viu? Portanto, não há truque, Vamos... levante-se. Experimente, vamos.

Norma se pôs de pé e, hesitante, dirigiu-se para a porta e a abriu. Parou na soleira, olhando-o com curiosidade.

— Certo. E o que está vendo? Uma saleta inteiramente normal, que poderia levar umas duas mãos de tinta, só que não vale a pena devido à minha viagem para a Austrália. Agora, vá até a porta de entrada e a abra — também não há truques. Saia e vá até a calçada. Isso lhe provará que está inteiramente livre, que ninguém está querendo prendê-la em lugar algum. Depois de estar bem certa de que pode sair daqui no momento que quiser, volte, sente-se naquela confortável cadeira e conte-me tudo a seu respeito. Em seguida, ouvirá os meus valiosos conselhos. Não precisará segui-los — acres­centou para tranqüilizá-la. — As pessoas raramente obede­cem a conselhos, mas não custa nada ouvi-los. Certo? De acordo?

Devagar, e tremendo um pouco, Norma saiu do consul­tório, passando pela saleta — que era exatamente como o mé­dico a descrevera — e cruzando a porta de > entrada. Desceu para a calçada, que fazia parte de uma rua de casas sóbrias e pouco atraentes. Ficou parada um instante, sem saber que estava sendo observada, por trás de uma veneziana, pelo Dr. Stillingfeet. Passado algum tempo, com ar mais tranqüilo, ela voltou, subindo as escadas, atravessando a saleta e entrando no consultório.

— Tudo certo? — perguntou o Dr. Stillingfeet. — Con­vencida de que não existe armadilha alguma? De que estou agindo com franqueza?

A moça concordou com a cabeça.

— Muito bem. Sente-se e procure ficar confortável. Fuma?

— Bem, eu...

— Ou só maconha... alguma coisa do gênero? Não, por favor, não me diga.

— É claro que eu não fumo nada disso.

— Eu não diria que isso é claro, de forma alguma, mas é preciso acreditar nas pacientes. Muito bem, fale-me de você.

— Eu... não sei. Não há nada para contar. Não quer que eu me deite no sofá?

— Ah, você está pensando em memórias inconscientes e essa trapalhada toda? Não, não precisamos disso. Só quero um pouco da sua vida. Sabe como é: você nasceu, morou no campo ou na cidade, tem irmãos ou irmãs — ou é filha única, etc. Quando sua mãe morreu, ficou muito abalada?

— Claro que sim — afirmou Norma, indignada.

— Estou vendo que tem mania de dizer que tudo é claro minha cara Srta. West. Por falar nisso, seu nome não é West, é? Mas não importa: não faço questão de outro nome. Pode-se chamar West, North, South, o que quiser. Vamos em frente. O que aconteceu depois da morte de sua mãe?

— Muito antes de morrer ela já estava doente, e passa­va muito tempo em casas de saúde, e eu ficava com uma tia, em Devonshire. Não era tia de verdade, mas prima-irmã de mamãe. Papai voltou para casa, há uns seis meses. Foi. . . foi uma maravilha — o seu rosto se iluminou subitamente, e ela não percebeu que o jovem médico, aparentemente relaxa­do, lhe dirigia um olhar rápido e arguto. — Eu mal me lem­brava dele, sabe, porque, quando saiu de casa, eu tinha cinco anos. Nem esperava vê-lo de novo. Mamãe raramente fala­va nele. Mas acho que, no começo, tinha a esperança de que ele largasse aquela mulher e voltasse para casa.

— Outra mulher?

— É. Ele tinha saído de casa por causa de outra. Uma mulher ordinária, mamãe dizia. Sempre falava dela com raiva, e de papai também, embora eu pensasse que talvez... talvez papai não fosse tão' mau quanto ela dizia, e que podia ser tudo culpa da outra mulher.

— Eles se casaram?

— Não, mamãe jurou que nunca se divorciaria. Ela era anglicana, muito religiosa... quase como os católicos. Não acreditava em divórcio.

— Eles viveram juntos muito tempo? Como se chamava a tal mulher? Ou isso também é segredo?

— Não me lembro do último nome — disse Norma. — Acho que não ficaram juntos muito tempo, mas não conhe­ço direito o caso. Foram para a África do Sul, mas parece que logo brigaram e se separaram. Foi nessa época que mamãe pensou que ele pudesse voltar para casa... mas não voltou Nem mesmo escreveu, para ela ou para mim. Mas me mandava coisas no Natal. Sempre presentes.

— Gostava de você, então?

— Não sei. Como poderia saber? Ninguém falava sobre ele, a não ser o tio Simon, seu irmão, que trabalhava na City, e sempre reclamava por papai ter abandonado tudo. Dizia que ele sempre fora assim, que nunca se fixava em coisa al­guma, mas que no fundo não era mau sujeito. Só um pouco instável, dizia o tio Simon. Eu não o via muito. Era mais comum visitarmos os amigos de mamãe... quase todos uns chatos. Toda a minha vida tem sido chata.

— Ah, era tão bom que papai estivesse realmente vol­tando para casa. Tentei me lembrar dele melhor... sabe, as coisas que ele dizia, as brincadeiras que fazia comigo. Cos­tumava me fazer rir muito. Procurei descobrir seus velhos re­tratos, mas não achei um só. Mamãe deve ter rasgado todos.

— Parece que ela nunca o perdoou, não?

— Acho que foi Louise quem ela nunca perdoou.

— Louise?

Sentiu que a moça se retesava, em guarda.

— Não me lembro... já lhe disse... não me lembro de nome nenhum.

— Não importa. Era a mulher com quem seu pai havia fugido. Certo?

— Certo. Mamãe dizia que ela bebia demais e tomava drogas. . . e não acabaria bem.

— Mas você não sabe o que aconteceu com ela?

— Não sei de nada — a tensão voltava, a galope. — Não me pergunte mais nada! Não sei nada sobre ela! Nunca mais ouvi falar dela! Só me lembrei quando o senhor come­çou a perguntar. Mas não sei de nada!

— Ora, ora — disse o Dr. Stillingfeet. — Não fique agitada. Não precisa se preocupar com o passado.". . vamos pensar no futuro. O que vai fazer agora?

— Não sei — Norma suspirou. —- Não tenho para onde ir. Não posso... seria muito melhor... muito melhor acabar com tudo duma vez. .. só que...

— Só que" você não conseguirá tentar uma segunda vez, não é isso? Seria uma grande tolice, posso lhe garantir, minha cara. Vejamos: não tem para onde ir, ninguém em quem confiar. Tem algum dinheiro?

— Tenho. Tenho uma conta no banco, e papai faz um depósito grande de três em três meses, mas não tenho certe­za... agora, que devem estar me procurando, não quero ir ao banco. Não quero que me encontrem.

— Não precisam encontrar. Eu posso dar um jeito. Um lugar chamado Kenway Court. Não é tão bom quanto pare­ce pelo nome; apenas uma casa de saúde para convalescentes e curas de repouso. Não tem médicos nem sofás, e prometo que você não ficará trancafiada lá dentro. Pode sair quando quiser. Se preferir, pode tomar café na cama e não se le­vantar o dia todo. Descansará bastante e, daqui a uns dias irei lhe fazer uma visita, para conversarmos e resolver alguns problemas juntos. Isso lhe serve? Está disposta a tentar?

Norma o encarou. Olhava-o, tensa, sem qualquer expres­são no rosto. Lentamente, baixou a cabeça, assentindo.

Na noite do mesmo dia, o Dr. Stillingfeet fez uma li­gação telefônica.

— Um seqüestro perfeito — disse. — Ela está em Kenway Court. Mansa como um cordeiro; mas ainda não posso lhe dizer muita coisa. A menina está cheia de drogas. Umas duas ou três variedades, e provavelmente LSD também. E isso já vem de algum tempo. Jura que não é viciada mas não confio muito no que ela diz.

Ouviu por um momento — Não me pergunte! É preci­so ir com muito cuidado. Ela perde a cabeça Com muita faci­lidade. .. Ah, sim, tem medo de alguma coisa, ou finge ter...

— Não sei ainda, difícil dizer. Lembre-se que pessoas que tomam drogas são imprevisíveis. Nem sempre se pode acreditar no que dizem. Não estamos apressando as coisas, e não quero assustá-la...

— Quando era criança tinha um complexo em relação ao pai. Para mim, não tinha muita atração pela mãe, que pa­rece ter sido uma mulher difícil sob todos os pontos de vista —  cheia de virtudes, com vocação de mártir. Acho que o pai era um sujeito alegre, que não agüentou a seriedade da vida de casado. .. Conhece alguém chamada Louise?... O nome parece que a assusta... foi o primeiro ódio da sua vida, na minha opinião. Foi a mulher que levou o pai embora, quando a menina tinha cinco anos. Não é uma idade em que as crian­ças entendem muita coisa, mas não deixam de ter raiva de quem acharem que é responsável pelo seu sofrimento. Nunca mais viu o pai, até meses atrás. Acredito que sonhasse em ser a companheira do pai, sua menina dos olhos. E, pelo visto, teve uma desilusão. O pai voltou com uma nova es­posa, jovem e bonita. Não se chama Louise, por acaso?.. . Bem, eu só perguntei. Entenda: estou apenas lhe pintando mais ou menos o quadro... isto é, o panorama geral.

Do outro lado, a voz o interrompeu bruscamente: — O que disse? Repita.

— Eu disse que estou descrevendo o quadro, em linhas gerais.

Houve uma pausa.

— A propósito, um detalhe que lhe pode interessar. Nossa paciente fez uma tentativa, bastante amadorística, de se matar. Isso não o surpreende?...

— ...ah, já esperava... não, não tomou pílulas nem botou a cabeça no forno. Correu na frente de um Jaguar que vinha em excesso de velocidade...por pouco eu não conseguia segurá-la... acredito que tenha sido um impulso genuíno... ela confessou. A frase clássica — queria "acabar com tudo isto".

Ouviu uma catadupa de palavras do seu interlocutor, e respondeu: — Não sei. Neste estágio, não posso ter certe­za. .. o quadro é bastante claro. Uma moça nervosa, neuró­tica e ultra tensa devido a um excesso de drogas. Não posso saber quais as drogas. Existem dezenas de tipos diferentes por aí, cada um produzindo um efeito peculiar. Podem provocar tonteiras, perda de memória, agressividade, desorientação — ou confusão mental, pura e simples! O problema é separar as suas reações autênticas das causadas pelas drogas. Existem duas alternativas. Ela se mostra neurótica, com o sistema ner­voso abalado, tenta o suicídio, etc. Ou é verdade, ou se trata de um punhado de mentiras. Ela pode estar inventando tudo, por algum motivo oculto que só ela saiba — que justifique dar uma impressão inteiramente falsa de si mesma. Se for isso, ela o está fazendo com grande habilidade, embora, aqui e ali, existam algumas notas falsas. Será que é uma atriz de muito talento, representando um papel? Ou uma quase débil mental de verdade, com tendência para o suicídio? Pode ser uma das duas coisas... O quê?... Ah, o Jaguar!... Esta­va mesmo correndo muito. Acha que poderia não ser uma tentativa de suicídio? Que o Jaguar queria deliberadamente atropelá-la?

Pensou por alguns instantes — Não sei dizer — respon­deu pausadamente. — É possível. Realmente, é possível, mas não me tinha ocorrido a hipótese. O problema é que tudo é possível, não? Seja como for, não demorarei muito a arrancar mais alguma coisa dela. Consegui que ela confiasse um pouco em mim, desde que eu não tente andar muito depressa e a faça suspeitar de alguma coisa. A que confiança deve au­mentar, e ela me contará cada vez mais. Se for um caso ge­nuíno, acabará por soltar a história toda — no final fará questão de contar. Por enquanto, está atemorizada com al­guma coisa...

— Por outro lado, se estiver inventando tudo, teremos de descobrir o motivo. Está em Kenway Court, e acredito que não sairá. Sugiro que coloque alguém de olho por uns dois dias. Se ela tentar sair, é melhor que seja seguida por alguém que ela não conheça de vista.

 

Com uma careta de desagrado, Andrew Restarick es­tava assinando um cheque.

O seu escritório era grande, mobiliado com elegância, no estilo convencional do homem de negócios bem sucedido. Os móveis e objetos haviam sido de Simom Restarick, e Andrew os aceitara com indiferença. Mudara pouca coisa, exceto pela retirada de alguns quadros e a colocação, no lugar, do seu próprio retrato, que trouxera da casa de campo.

Era um senhor de meia-idade, começando a engordar; entretanto, pouco mudara em relação ao homem, quinze anos mais moço, que se via no quadro às suas costas. O queixo proeminente era o mesmo, assim como os lábios firmemente apertados e as sobrancelhas arqueadas. Não tinha feições marcantes — um tipo comum, que no momento se mostrava bastante carrancudo. Sua secretária entrou e ele levantou os olhos à sua aproximação.

— Está aí um Monsieur Hercule Poirot. Diz que tem um encontro marcado com o senhor... mas não encontrei nenhuma anotação disso.

— Hercule Poirot? — O nome era vagamente familiar, não conseguia lembrar-se em que contexto. Sacudiu a cabeça. — Não tenho a menor idéia do que seja, mas 'o nome não me é estranho. Como é ele?

— Baixo... estrangeiro — acho que francês — com um enorme bigode..,

— Ah, sim! Lembro-me de que Mary o descreveu. Es­teve visitando o velho Rody. Mas, que historia é essa' de um encontro comigo?

— Diz que o senhor lhe escreveu uma carta?

— Não me lembro... pode ser, mas não me lembro. Talvez Mary... ora, não importa, mande-o entrar. É melhor saber o que é de uma vez.

Pouco depois, Claudia Reece-Holland fez entrar um homenzinho de cabeça ovalada, grandes bigodes, sapatos de bico fino envernizados e um ar tranqüilo que em tudo con­cordavam com a descrição que ele ouvira da esposa.

— Monsieur Hercule Poirot — anunciou Claudia, reti­rando-se, enquanto Poirot se aproximava da mesa e Restarick se punha de pé.

— Monsieur Restarick? Hercule Poirot, às suas ordens.

— Ah, sim. Minha esposa me contou que o senhor nos visitou; ou melhor, visitou o meu tio. Em que lhe posso ser útil?

— Aqui estou em resposta à sua carta.

— Que carta? Eu não lhe escrevi, Monsieur Poirot. Poirot mostrou espanto. Retirou do bolso uma carta, abriu-a e, curvando-se levemente, estendeu-a para Restarick.

— Veja o senhor mesmo.

Restarick baixou os olhos para o documento. Estava batido a máquina no papel timbrado da firma, com a sua as­sinatura, a tinta, embaixo.

 

Prezado Monsieur Poirot:

Agradecer-lhe-ia muito se pudesse comparecer ao meu escritório com a maior urgência. Soube, por minha esposa e também por informações colhidas em diversas fontes, em Londres, que o senhor é um homem no qual se pode confiar, em missões de caráter sigiloso.

Cordialmente, Andrew Restarick

 

— Quando recebeu isto? — perguntou, bruscamente.

— Esta manhã. Estava desocupado e resolvi vir hoje mesmo.

— É extraordinário, Monsieur Poirot. Não escrevi esta carta.

— Não escreveu?

—  Não, minha assinatura é inteiramente diferente. Veja o senhor mesmo — estendeu a mão para a mesa, como se pro­curasse algum exemplo de sua caligrafia e, sem pensar, exi­biu-lhe o livro de cheques onde acabara de apor sua assinatura — Vê? A assinatura da carta não se parece em nada com a minha.

— É realmente extraordinário — disse Poirot. — Real­mente. Quem poderia ter escrito esta carta?

— É o que eu pergunto.

— Não poderia ter sido — desculpe — sua esposa?

— Não, não; Mary jamais faria uma coisa dessas. E, ainda por cima, por que iria ela assinar o meu nome? Não, se tivesse feito algo assim, ela me avisaria, não se esqueceria de me prevenir de sua visita.

— Então, não faz qualquer idéia de quem possa ter man­dado esta carta.

— Francamente, não.

— Não tem idéia, Sr. Restarick de qual poderia ser o assunto a que ela se refere?

— Como poderia saber?

— Desculpe-me — disse Poirot. — O senhor não leu tudo. Veja: há um pequeno pós-escrito abaixo da assinatura.

Restarick leu, ao pé da página:

O assunto sobre o qual desejo consultá-lo refere-se à minha filha, Norma.

A atitude de Restarick mudou. Uma sombra desceu sobre seu rosto.

— Então é isso! Mas, quem poderia saber. . . quem iria se meter nesse assunto? Quem saberia?

— Não poderia ser uma forma de levá-lo a consultar-me? Algum amigo bem intencionado? O senhor realmente não tem qualquer idéia de quem possa ter sido?

— Não, não sei quem poderá ter escrito isso.

— E não há problema algum com uma filha sua. . . cha­mada Norma?

— Tenho uma filha chamada Norma — Restarick res­pondeu, lentamente. — Minha filha única.— sua voz se al­terou levemente ao dizer as últimas palavras.

— Ela teria algum problema, estaria em alguma difi­culdade?

— Não que eu saiba — ele hesitara antes de responder.

Poirot se inclinou para a frente.

— Não creio que isso seja inteiramente verdadeiro, Sr. Restarick. Acredito que exista mesmo algum problema ou dificuldade com sua filha.

— Por que acredita nisso? Alguém lhe falou no assunto?

— Eu me oriento apenas pelo seu tom de voz, Monsieur. Muitas pessoas —acrescentou — têm problemas com suas filhas, nos dias de hoje. Jovens senhoritas têm um talento todo especial para se meter em dezenas de complicações dife­rentes. É possível que isso aconteça neste caso,

Restarick permaneceu em silêncio alguns instantes, tamborilando com os dedos na mesa. Finalmente, disse:

— É verdade... estou preocupado com Norma. É uma moça difícil. Neurótica, com tendência à histeria. Eu... in­felizmente, eu não a conheço tanto quanto deveria.

— Certamente, um problema causado por algum rapaz não?

— De certa forma,, sim, mas isso não é tudo o que me preocupa. Acho.. —ele mediu Poirot com os olhos. — Posso confiar em sua discrição?

— Se não pudesse, eu jamais teria tido êxito em minha profissão.

— O problema consiste em localizar a minha filha.

— Ah?

— Ela passou o último fim' de semana em nossa casa de campo, como d'è costume. Voltou para Londres domingo à noite, aparentemente indo para o apartamento que divide com duas outras moças. Mas descobri que não apareceu lá. Deve ter ido... para outro lugar,

— Na verdade, então, desapareceu?

— Dito assim, parece um tanto melodramático, mas foi o que realmente aconteceu. Imagino que exista uma explica­ção inteiramente natural, mas... bem, suponho que qualquer pai ficaria preocupado. Ela não telefonou,, entende, nem deu qualquer explicação às outras que moram com ela.

— Elas também estão preocupadas?

— Não, creio que não/ Acho. .. bem, acho que não levam o caso muito a sério. Essas moças são muito independentes, bem mais do que na época em que saí da Inglaterra, há quinze anos.

—  E quanto ao rapaz que o senhor parece que não aprova? Não terão fugido juntos?

— Espero ardentemente que não. Pode ser, mas eu não... minha esposa não acredita. O senhor o viu, creio, quando foi à nossa casa visitar o meu tio...

— Ah, sim, acho que conheci o rapaz de quem o senhor está falando. Um jovem muito atraente, embora não seja, se permite que o diga, o tipo que um pai aprovaria. Notei que sua esposa também não estava satisfeita.

— Minha esposa está convencida de que naquele dia ele tentou entrar em nossa casa sem ser visto.

— Talvez soubesse que não era bem-vindo lá, não?

— Certamente que sabe — disse Restarick, carrancudo.

— Não acha possível, então, que sua filha esteja com ele?

— Não sei o que pensar. Não achei que fosse isso... a princípio, pelo menos.

— Foi à polícia?

— Não.

— Em casos de pessoas desaparecidas, normalmente é muito melhor apelar para a polícia. Eles também são discre­tos, e contam com recursos de que pessoas como eu não dispõem. /

— Mas não quero ir à polícia. É a minha filha, homem de Deus, não compreende? Minha filha. Se ela quis... ir em­bora por uns tempos sem nos avisar, bem, isso é um problema dela. Não há motivo para pensar que esteja em perigo, ou qualquer outra coisa do gênero. Eu... eu, quero apenas saber onde está, para minha tranqüilidade.

— Não quero ser intrometido, Sr. Restarick, mas será esse o seu único motivo de preocupação com sua filha?

— O que o faz pensar que exista algo mais?

— Porque, hoje em dia, não é muito estranho que uma moça se ausente por alguns dias, sem contar à família ou aos amigos para onde vai. Pressinto que tenha sido esse fato, mas conjugado com alguma outra coisa, o motivo de sua preo­cupação.

— Bem, pode ser que tenha vazão. É"... — olhou des­confiado para Poirot — ... é muito difícil falar de certos assuntos com estranhos.

—- Pelo contrário — argumentou Poirot. — É infinita­mente mais fácil abordar certos assuntos com estranhos do que com amigos ou conhecidos. Não concorda?

— Talvez. Talvez. Sei onde quer chegar. Bem, admito que estou preocupado com minha filha. Compreenda, ela... ela não é exatamente igual às outras, e há certos anteceden­tes quê já me deixaram bastante aflito — a nós dois, na verdade.

— Imagino— disse Poirot — que sua filha esteja na fase difícil da mocidade, naquela adolescência emocional que — permita a franqueza — pode levá-la a cometer atos pelos quais seria um erro responsabilizá-la. Não se aborreça se eu estabelecer uma premissa: talvez a sua filha não goste de ter uma madrasta. Certo?

— Infelizmente, sim. Mas sem a menor razão, Monsieur Poirot. Afinal, minha primeira mulher e eu não nos separa­mos recentemente, e sim há muitos anos — fez uma pausa e continuou. — Vou ser inteiramente franco... na verdade, não há nenhum segredo a esconder. Não adianta disfarçar os fatos: minha esposa e eu nos separamos quando encontrei uma outra, por quem me apaixonei. Saí da Inglaterra e fui com ela para a África do Sul. Minha esposa era contra o di­vórcio, e não lhe pedi isso. Tomei providências para que ela e minha filha ficassem amparadas financeiramente... a me­nina tinha apenas cinco anos na época...

Calou-se por um momento e depois prosseguiu: lem­bro-me de que a vida que eu levava não me satisfazia. Queria viajar e odiava ficar preso a uma mesa de escritório. Meu irmão costumava se queixar de que eu não me interessava pelos negócios da família, que não fazia a minha parte. Mas não era o tipo de vida que eu desejava. Eu era agitado, queria ter aventuras. Sonhava em conhecer o mundo e seus lugares selvagens...

Parou bruscamente.

— Bem, não é a história da minha vida que lhe inte­ressa. Fui para a África do Sul, levando Louise. Tenho de confessar que não foi um sucesso. Eu a amava, mas brigáva­mos o tempo todo. Ela detestava a África do Sul... queria voltar a Londres, Paris, à civilização. Separamo-nos mais ou menos um ano depois de chegarmos.

Suspirou.

—  Talvez fosse aquele o momento de voltar, de regres­sar à vida doméstica que detestava tanto. Mas não voltei. Não sei se minha esposa me receberia de volta, ou não. Talvez achasse que era seu dever aceitar-me novamente. Era uma mulher muito consciente de seus deveres.

Poirot percebeu o traço de amargura que sublinhava essa frase.

— Eu deveria ter pensado em Norma. Mas sabia que estava em segurança com a mãe, e que não havia problemas financeiros. Escrevia-lhe de vez em quando e lhe mandava presentes, mas nunca me ocorreu a idéia de vir à Inglaterra para vê-la. Não me sinto inteiramente culpado por isso. Tinha adotado uma forma de vida inteiramente diferente, e acredi­tava que não seria conveniente para a menina ter um pai cuja presença fosse irregular, entremeada de longos intervalos; po­deria prejudicar a sua paz de espírito. De qualquer maneira, digamos que tive as melhores intenções.

Agora, Restarick falava com maior desembaraço, como se sentisse um alívio cm poder despejar sua história para um ouvinte compreensivo. Era uma reação que Poirot notava com freqüência, e costumava encorajar.

— Nunca teve motivos pessoais para voltar?

Restarick sacudiu a cabeça com convicção — Não. En­tenda: eu tinha o tipo de vida de que gostava, sob medida para mim. Fui da África do Sul para a África Oriental. Financeira­mente, ia muito bem: tudo em que me metia prosperava; todos os projetos, fossem só meus ou em sociedade com outras pessoas, iam sempre bem. Às vezes, metia-me no mato... era o que toda a minha vida tivera vontade de fazer. Sou por natureza um homem dos espaços abertos. Talvez fosse por isso que me sentisse preso, tolhido, durante o meu primeiro casamento. Não, eu gostava da liberdade e não sentia o menor desejo de voltar para a vida convencional que tinha tido aqui.

— Mas, finalmente, acabou voltando?

— Voltei — Restarick suspirou. — É a idade, acho eu. Além disso, tinha feito um excelente negócio com um outro homem. Conseguimos uma concessão que poderia ter resulta­dos espetaculares, mas que exigia negociações em Londres. Meu irmão poderia ter agido por mim, mas ele já havia mor­rido. Eu ainda era sócio da firma, e poderia voltar e fazer eu mesmo os contatos necessários. Sabe, foi a primeira vez, em todos aqueles anos, que me ocorreu a idéia — a idéia de voltar à vida na City.

— Talvez a sua esposa... a segunda esposa...

— Tem razão: isso também pode ter influído. Quando meu irmão morreu, estava casado com Mary há menos de dois meses. Ela nasceu na África, do Sul, mas já estivera muitas vezes na Inglaterra, e gostaria de viver aqui. Sempre sonhou em ter um jardim como os ingleses.

— E eu? Ora, pela primeira vez talvez me atraísse um pouco a vida na Inglaterra. E também pensei em Norma. Sua mãe morrera há dois anos. Conversei com Mary sobre tudo isso, e ela aceitou muito bem a idéia de ajudar-me a fazer um lar para minha filha. Todas as perspectivas eram boas, e assim... — ele sorriu — ... assim voltei para casa.

Poirot olhou para o retrato pendurado atrás de Restarick. Estava mais bem iluminado do que na casa de campo. Refletia com nitidez o homem sentado à mesa; ali estavam os seus traços característicos, o queixo obstinado, as sobrancelhas arqueadas, a maneira de olhar. Apenas um elemento estava no retrato e faltava ao homem: juventude.

Outro pensamento ocorreu" a Poirot. Por que Andrew Restarick trouxera o quadro para o seu escritório em Londres? Os dois retratos, o da sua mulher e o seu, formavam um par, ambos feitos na mesma época e pelo mesmo artista, o retra­tista que estava na moda. Seria mais natural, pensou Poirot, deixá-los juntos, como fora a intenção original. Mas Resta­rick trouxera um dos retratos — o seu — para o escritório. Seria por uma espécie de vaidade — um desejo de se mostrar como um homem da City, importante no mundo dos negócios? No entanto, este era um homem que passara grande parte da vida longe da civilização, que afirmava preferir lugares sel­vagens. Ou, quem sabe, ele o fizera para ter presente, em seu próprio benefício, a sua personalidade de habitante da City? Sentiria, talvez, a necessidade de se fortalecer?

“E, evidentemente" pensou ainda Poirot, pode ser vai­dade comum, pura e simplesmente! Até eu mesmo", confes­sou intimamente o detetive, num ataque raro de modéstia, “estou sujeito a ter gestos de vaidade, ocasionalmente".

Não durou muito o curto silêncio, cuja passagem ambos pareceram não perceber. Restarick desculpou-se:

—  Peço que me desculpe, Monsieur Poirot. Devo estar aborrecendo-o com a história da minha vida.

—  Não há de que se desculpar. Na verdade, o senhor tem falado de sua vida apenas naquilo que pode ter afetado sua filha. Sei que está muito aflito com ela, mas não creio que, até agora,, tenha me revelado o motivo real. Quer en­contrá-la, não?

— Quero. Quero localizá-la.

—  Isto já sabemos, mas quer que eu a encontre? Por favor, não hesite, La politesse... é muito necessária na vida, mas não aqui. Preste atenção, eu lhe peço: se quiser que sua filha seja encontrada, eu... eu, Hercule Poirot... aconse­lho-o a procurar a polícia, que tem os recursos necessários. E posso lhe garantir, com a minha experiência, a discrição das autoridades.

— Não quero procurar a polícia, a não ser... bem, a não ser em último recurso.

— Prefere, então, um investigador particular?

— Claro. O problema é que não entendo nada disso. Não sei quem... quem seria de confiança. Ou quem...

— E o que sabe a meu respeito?

— Alguma coisa, pelo menos. Sei, por exemplo, que teve uma posição importante na contra-espionagem durante a guer­ra... na verdade, o meu tio é seu fiador. E isso é um dado concreto.

Restarick não percebeu a expressão um pouco cínica que Poirot não conseguiu esconder. O dado concreto, como ele bem sabia, era uma completa ilusão — embora Restarick de­vesse saber que não deveria depender muito de Sir Roderick, em matéria de memória e visão; ainda assim, engolira tudo que Poirot quisera que acreditasse. O detetive não o desiludiu. Mas o episódio serviu para lembrá-lo, mais uma vez, de sua velha convicção de que não se deve acreditar em nada que alguém diga, antes de verificar com exatidão. Suspeitar de todos, sempre fora um de seus axiomas prediletos.

— Permita que lhe assegure — disse Poirot — que, em toda a minha vida, tenho conhecido um sucesso sem prece­dentes. Quase posso dizer que tenho sido inigualável.

A modesta confissão teve efeito contrário ao que ele po­deria desejar: para um inglês, era fácil desconfiar de alguém que se referisse, nesses termos, a si próprio.

— Qual é a sua opinião, Monsieur Poirot? Acha que pode localizar a minha filha?

— Acho... embora não tão rapidamente quanto a polí­cia o faria. Mas eu a encontrarei.

— E... se a encontrar...

— Um momento. Se quer me entregar a tarefa, Sr. Res­tarick, tem de me contar todos os fatos.

— Mas, já lhe contei. O lugar, a ocasião, onde ela de­veria estar. Posso lhe dar uma lista de seus amigos...

Poirot sacudiu energicamente a cabeça. — Não, não. Su­giro que me conte a verdade.

— Está querendo dizer que lhe menti?

— Não... apenas que não me disse toda a verdade; disso tenho certeza. De que o senhor tem medo? Quais são os fatos desconhecidos — aqueles que preciso saber, para ter êxito? Sua filha não gosta da madrasta — isto é óbvio. Não há nada de esquisito nessa atitude. Uma reação muito natu­ral. Deve saber que ela, secretamente, construiu uma imagem ideal do senhor durante muitos anos. Isso ocorre em casos de casamentos desfeitos, quando os filhos sofrem um choque emocional. Não me interrompa: sei do que estou falando. É verdade que as crianças esquecem. A sua filha poderia ter-se esquecido do senhor, mas apenas no sentido de que, quando o reencontrou, não mais se lembrava de sua voz ou de suas feições. Ela já havia construído a sua própria imagem do pai. O senhor foi embora; ela o queria de volta. A mãe, certamen­te, não a encorajava a falar do pai, o que a levava, cada vez mais, a pensar no senhor. O senhor foi ficando mais e mais importante para ela. E, como não podia falar disso com a mãe, tinha a reação mais natural em uma criança -— culpar o que ficou pela ausência do que partiu. Para si mesma, ela dizia algo parecido com “Papai gostava de mim; era de mamãe que ele não gostava", e daí nasceu uma espécie de idealiza­ção, um secreto traço de união entre o senhor e ela. O que havia acontecido não era culpa do pai — ela se recusava a aceitar isso!

— Posso garantir-lhe que isto acontece com muita fre­qüência. Entendo um pouco de psicologia. Então, quando sabe que o senhor está de volta, que vão ficar juntos novamente, muitas recordações que ela escondera no fundo da mente voltam à tona. O pai vai voltar! Serão felizes juntos! Ela mal admite a existência da madrasta, até que a vê. Sente, então, um ciúme profundo. Fique descansado: é a coisa mais natu­ral do mundo. Ela sente ciúme, em parte, porque a sua es­posa é atraente, sofisticada, qualidades que costumam irritar as jovens, que freqüentemente sofrem de falta de confiança em si próprias. Possivelmente, ela se sente desajeitada, talvez tenha um complexo de inferioridade. Logo, ao se de­frontar com uma madrasta senhora de si, bonita, ela a odeia. Mas a odeia à sua maneira, como uma adolescente que é ainda metade criança.

— Bem... — Restarick hesitou. — Isso realmente é mais ou menos o que o médico disse, quando o consultamos. Quero dizer...

— Ah! — intercalou Poirot. — Então o senhor consultou um médico? Deve ter tido alguma razão para isso, não?

— Nada de importante.

— Não, não. Não diga isso a Hercule Poirot. Não pode ter sido sem importância. Foi algo sério, e é melhor que me conte, porque só poderei fazer progressos quando souber o que tem acontecido dentro do cérebro dessa moça. Será muito mais fácil.

Restarick permaneceu em silêncio por alguns momentos. Mas se decidiu:

— Isso permanecerá estritamente confidencial, Monsieur Poirot? Tenho a sua palavra?

— Evidentemente. Qual foi o problema?

— Não posso... ter certeza.

— Sua filha tentou alguma coisa contra sua esposa? Cer­tamente, algo mais sério do que insultá-la ou ser mal-educa­da. Algo pior do que isso... algo bem mais grave. Talvez ela a tenha agredido fisicamente?

— Não, não foi um ataque... não fisicamente, quero dizer... mas nada ficou provado.

— Certamente.

— Minha esposa teve uma doença séria... — ele hesitou.

— Ah! — disse Poirot. — Entendo.. . E qual a natu­reza de sua doença? Talvez do aparelho digestivo?

— O senhor é esperto, Monsieur Poirot. Muito esperto. Sim, era do aparelho digestivo. Era esquisito, porque ela sempre teve excelente saúde. Acabaram por mandá-la para

uma casa de saúde, em observação, como dizem os médicos. Um check-up.

— E o resultado?

— Não creio que tenham ficado inteiramente satisfeitos. Aparentemente, ela recobrou a saúde completamente, e foi mandada para casa. Mas a doença voltou. Tivemos o maior cuidado com as suas refeições. Mas voltou a sofrer o que parecia ser uma forma de envenenamento intestinal, para o qual não parecia haver motivo. Tomamos outras providências, testando os pratos que ela comia. Tirando amostras de tudo, provamos definitivamente que uma determinada substância havia sido adicionada a certos pratos. Em todos os casos, era um prato que apenas ela comera.

— Em outras palavras alguém lhe estava dando arsêni­co. Certo?

— Certo. Em doses pequenas que,, a longo prazo, teriam efeito cumulativo.

— O senhor suspeitou de sua filha?

— Não.

— Mas acho que sim. Quem mais poderia ser? O senhor realmente suspeitou de sua filha.

Restarick suspirou fundo.

— Para ser franco, suspeitei.

Quando Poirot chegou em casa, George o esperava.

— Uma mulher chamada Edith telefonou, senhor...

— Edith? —-Poirot franziu as sobrancelhas.

— Acredito que seja empregada da Sra. Oliver. Pe­diu-me que lhe informasse que a Sra. Oliver está no Hospi­tal St. Giles.

— O que houve com ela?

— Creio que foi, hum, agredida — George não deu todo o recado, que dizia: — E não se esqueça de lhe dizer que foi tudo por culpa dele.

Poirot deu um suspiro — Eu a avisei. Ontem à noite, quando lhe telefonei e não atenderam, tive um pressentimento. Les femmes!

 

— Vamos comprar um pavão — disse a Sra. Oliver inesperadamente. Falou sem abrir os olhos, e sua voz, embo­ra fraca, era indignada.

Os olhares espantados de três pessoas convergiram para ela, que fez nova declaração.

— Quebrem-lhe a cabeça.

Só então abriu os olhos, que se revelaram inteiramente fora de foco, e tentou descobrir onde estava.

A primeira coisa que viu foi um rosto inteiramente des­conhecido, que pertencia a um rapaz que tomava notas em um caderninho. Ele olhou para ela, de lápis em punho.

— Polícia — diagnosticou a Sra. Oliver.

— Como, minha senhora?

— Disse que você é da polícia — explicou a Sra. Oliver. — Não é?

— Sim senhora.

— Crime de agressão — disse a Sra. Oliver, e, satis­feita, fechou os olhos. Quando os reabriu, pôde orientar-se com maior segurança. Estava numa cama, uma dessas camas de hospital, altas e limpas. Do tipo que sobe e desce e gira em todas as direções, ela pensou. Certamente não estava em casa. Olhou em torno e chegou a uma conclusão.

— Hospital... ou, então, uma casa de saúde — disse. Uma irmã de caridade de ar autoritário .estava na porta,

e uma enfermeira ao pé da cama. — Ninguém — disse a Sra. Oliver — poderia se enganar com esses bigodes. O que está fazendo aqui, Monsieur Poirot?

Hercule Poirot se aproximou — Eu lhe disse para tomar cuidado, minha senhora.

— Todo o mundo tem o direito de se perder — replicou a Sra. Oliver, obscuramente, — Minha cabeça está doendo.

— Com muita razão. Como já deve ter deduzido, levou uma pancada na cabeça.

— Foi. Dada pelo Pavão.

O policial se mexeu na cadeira, confuso, e disse: — Des­culpe-me, senhora, mas está dizendo que foi atacada por um pavão?

— A verdade é que eu já estava tendo um pressenti­mento. .. a atmosfera, sabe como é — a Sra. Oliver tentou fazer um gesto para melhor descrever o que queria dizer com atmosfera, e gemeu. — Ai. É melhor ficar quieta.

— A paciente não deve se excitar — reclamou a irmã de caridade.

— A senhora pode me dizer ande se deu o assalto?

— Não tenho a menor idéia. Eu estava perdida. Tinha saído de uma espécie de atelier. Uma bagunça, tudo sujo. O outro rapaz não fazia a barba há uma semana. Um blusão de couro todo engordurado.

— Foi esse o homem que a atacou?

— Não, esse é outro.

— Se ao menos pudesse me dizer...

— Estou dizendo, não estou? Eu o segui, sabe, desde o restaurante... mas acontece que não sou muito boa em seguir pessoas. Não tenho prática. É muito mais difícil do que a gente pensa.

Seus olhos se concentraram no policial — Mas acho que o senhor entende muito bem dessas coisas. Deve ter feito algum curso... na arte de seguir as pessoas, não fez? Ah, deixe para lá, não tem importância. Preste atenção — ela acrescentou, falando com maior rapidez — é bem simples. Saltei em World's End... acho que foi lá... e naturalmente pensei depois que ele tivesse ficado com os outros, no atelier ou tivesse ido para outro lado. Mas ele veio atrás de mim.

— Quem fez isso?

— O Pavão — disse a Sra. Oliver — e ele me surpreen­deu, entende? A gente sempre se surpreende quando as coisas acontecem ao contrário do que se espera. Isto é, ele estar me seguindo em vez de estar sendo seguido por mim... mas isso foi antes— e eu estava com um mau pressentimento. Na ver­dade, estava com medo. Não sei por quê. Ele foi muito amável, mas eu estava com medo. Seja como for, foi assim que aconteceu e ele disse: "Venha conhecer o atelier", e tive de subir uma escada que mal se agüentava em pé. Pior que uma escada de mão. E havia o outro rapaz — o que era sujo — que estava pintando um quadro, e a moça era o seu modelo. Ela estava bem limpinha. Bonita, mesmo. E, então estavam todos lá, como já disse,, e foram muito amáveis e bem-educa­dos, mas eu disse que tinha de ir andando, e me ensinaram a maneira de voltar a King's Road. Mas devem ter ensinado errado. Ou eu posso ter me enganado. Sabem como é, quando alguém diz para dobrar na esquina à esquerda, depois na pri­meira à direita, coisas assim, a gente pode fazer confusão. Eu, pelo menos, costumo fazer. De qualquer maneira, acabei dando numa zona miserável, perto do rio. Nessa altura, já não tinha mais medo. Devia estar inteiramente desprevenida quando o Pavão me atacou.

— Acho que ela está delirando — tentou explicar a en­fermeira.

— Não, não estou — disse a Sra. Oliver — Sei muito bem o que estou dizendo.

A enfermeira abriu a boca, mas um olhar severo da irmã de caridade a fez calar-se.

— Veludos e cetim, e cabelos compridos e encacheados — disse a Sra. Oliver.

— Um pavão vestido de cetim? Um pavão de verdade... A senhora acredita ter visto um pavão perto do rio, em Chelsea?

— Um pavão de verdade? — perguntou a Sra. Oliver.

— Claro que não. Que bobagem. O que poderia estar fa­zendo um pavão naquelas bandas?

Era uma pergunta que ninguém poderia responder.

— Ele vive se pavoneando — a escritora explicou. — Ê por isso que eu o apelidei de pavão. Vive se exibindo, sabem como é. Vaidoso, orgulhoso de ser tão bonito. E talvez de uma porção de outros defeitos, também — ela olhou para Poirot. — David alguma coisa. Sabe quem é.

— Está querendo dizer que esse rapaz chamado David a atacou?

— Isso mesmo.

— A senhora o viu? — perguntou Poirot.

— Não vi. Não vi coisa alguma. Pensei ter ouvido um barulho e, antes que pudesse virar a cabeça, já estava tudo acabado. Como se uma tonelada de tijolos tivesse caído no meu crânio. Agora, acho que vou dormir.

Moveu ligeiramente a cabeça, fez uma careta de dor e caiu no que parecia ser um estado de inconsciência profundo e tranqüilo.

 

Poirot raramente usava sua própria chave quando chegava em casa. Assim, conservador como sempre, apertou a campainha e esperou que o admirável George abrisse a porta. Mas quem o fez foi a Srta. Lemon.

— Duas visitas para o senhor — ela disse, graduando habilmente a voz: nem um sussurro nem o seu tom habitual. — O Sr. Goby e um cavalheiro idoso, Sir Roderick Horsefield. Não sei qual prefere ver primeiro.

— Sir Roderick Horsefield — decidiu Poirot. Intrigado com o que poderia ser, o detetive deitou a cabeça sobre o ombro — a perfeita imagem de um passarinho. O Sr. Goby apareceu ao seu lado, como num passe de mágica, saindo da saleta normalmente consagrada à máquina de escrever da Srta. Lemon.

Poirot tirou o sobretudo, que a Srta. Lemon pendurou no armário da entrada, e o Sr. Goby, como de costume, olhou para uma das paredes, enquanto anunciava:

— Vou tomar uma xícara de chá com George, na cozinha. Não tenho pressa.

Poirot entrou em sua sala de estar, onde Sir Roderick, cheio de vitalidade, andava de um lado para outro.

— Consegui descobri-lo, meu rapaz — ele anunciou com entusiasmo. — É um grande instrumento, o telefone.

— Lembrou-se de meu nome, então? É uma honra.

— Bem, não me lembrei exatamente do seu nome — con­fessou Sir Roderick. — Nomes nunca foram o meu forte.

Mas jamais esqueço um rosto — acrescentou com orgulho. — Na verdade, telefonei para a Scotland Yard.

— Oh, — Poirot mostrou-se um tanto surpreso, embo­ra, pensando bem, fosse exatamente o que se podia esperar de Sir Roderick.

— Perguntaram com quem queria falar. Disse: com o chefão. É assim que se deve fazer na vida, meu rapaz. Nunca aceite os subordinados. Não servem. Vá direto ao topo, é o que lhe digo. É claro que disse quem eu era, e que desejava falar com o chefão, e acabei conseguindo. Sujeito muito gentil. Disse-lhe que precisava do endereço de um homem que tra­balhara na contra-espionagem aliada e que estivera comigo na França, em certa época. O sujeito ficou meio confuso, e expliquei: "Não deve ser difícil. Um francês, ou belga" (você é belga, não?). Disse que era um homem cujo primeiro nome era parecido com Aquiles, mas não era Aquiles. Um homenzinho baixote, eu disse, "com uns bigodes enormes." Com isso ele se lembrou, e lembrou que seria fácil de achar no catá­logo telefônico, mas eu disse: "Preciso saber o segundo nome: como é que vou procurar Aquiles, ou Hercule (ele já tinha dito o nome certo) no catálogo?" O sujeito acabou me dando o seu nome completo... era muito gentil, muito educado.

— Estou encantado em revê-lo — disse Poirot, imagi­nando o que estaria pensando o funcionário que Sir Roderick tanto elogiava. Felizmente, não deveria ser um dos chefes. Provavelmente, alguém que já o conhecia, encarregado de ser amável com figurões ultrapassados:

— E assim — concluiu Sir Roderick — aqui estou.

— Um enorme prazer. Permita que lhe ofereça alguma coisa. Chá, um licor, um uísque, quem sabe um pouco de sirop de cassis...

— Pelo amor de Deus — interrompeu Sir Roderick, es­tremecendo ante a ameaça de sirop de cassis, — Prefiro uísque. Os médicos não me deixam beber — ele acrescentou — mas todo o mundo sabe que os médicos não passam de idiotas. Só pensam em proibir as coisas de que gostamos.

Poirot chamou George e lhe deu instruções. A garrafa de uísque e um sifão de soda foram colocados ao lado de Sir Roderick e George saiu.

— Agora — disse Poirot — em que lhe posso ser útil?

— Tenho um servicinho para você, meu rapaz.

Depois de tanto tempo, ele parecia cada vez mais con­vencido da intimidade que o ligara a Poirot no passado, o que era um fator positivo, segundo Poirot, já que aumentaria o seu conceito junto ao sobrinho.

— Documentos — anunciou Sir Roderick, baixando a voz. — Perdi alguns documentos e tenho de encontrá-los, en­tende? Achei que, como os meus olhos já não são tão bons como antigamente, e com as peças que minha memória me tem pregado, o melhor seria convocar alguém de confiança. Entende? Você apareceu no momento exato, indo lá em casa no outro dia; no momento exato de me prestar um serviço. Tenho de achar esses documentos de qualquer maneira, com­preende?

— Parece muito interessante — disse Poirot. —'Que do­cumentos são esses, se posso perguntar?

— Bem, se tem de encontrá-los, não há mal em pergun­tar, certo? Mas, lembre-se: são sigilosos, confidenciais. Se­gredo, de Estado — pelo menos, já foram segredo de Estado, e podem muito bem voltar a ser. Uma troca de cartas. Nada de importância especial na época, ou assim se pensou. Mas é claro que a política vive mudando. Sabe como é. Dá voltas e mais voltas. Lembra-se certamente, da situação antes de 1939. Ninguém sabia ao certo onde íamos parar. Numa guer­ra, éramos amigos dos italianos; na seguinte, inimigos. E não sei o que foi melhor para nós. Na Primeira Grande Guerra, os japoneses eram nossos queridos aliados; na outra, lá es­tavam eles bombardeando Pearl Harbor! Tudo era muito con­fuso! Começávamos com os. russos de um jeito, termináva­mos de outro. Estou lhe dizendo, Poirot, não há nada mais complicado hoje em dia do que essa questão de aliados. Mudam da noite para o dia.

— Então, o senhor perdeu alguns documentos — disse Poirot, procurando atrair o ancião para o motivo de sua visita.

— Exato. Tenho uma porção de documentos, e os andei desencavando ultimamente. Estavam bem guardados — num banco, para ser exato — mas tirei-os de lá e comecei a exami­ná-los, porque achei que estava na hora de escrever minhas memórias. Todo o mundo está escrevendo suas memórias hoje em dia. Montgomery, Alanbrooke e Auchinleck já puseram a boca no mundo — quase que exclusivamente pára falar dos outros generais. Até mesmo o velho Moran, um médico tão conceituado, anda tagarelando sobre o seu paciente"1. Deus sabe o que ainda vem por aí! Mas são fatos, e pensei que gosta­ria de contar algumas histórias sobre uns sujeitos que conhe­ço! Se os outros estão fazendo, por que não também eu? Tam­bém estive metido naquilo tudo.

1 Os três primeiros nomes citados são de famosos chefes militares cujas memórias causaram algum escândalo por suas revelações indiscretas; o último é o médico particular de Churchill, cujo livro autobiográfico também despertou controvérsias, inclusive de natureza ética. (N. da T.)

— Estou certo de que seria muito interessante — disse Poirot.

— Ah-ha! Mas claro! Conheci muita gente famosa, que todos achavam formidáveis, sem saber que eram uns besta­lhões... mas eu sabia. Meu Deus, as bobagens que faziam aqueles soldadinhos de chumbo — você ficaria surpreso. Por­tanto, mandei buscar os meus papéis, e arranjei aquela moci­nha para me ajudar a selecioná-los. Uma menina excelente e muito inteligente. Não fala bem inglês, mas, fora isso, é muito esperta e prestativa. Já separei muita coisa, mas ainda falta bastante. O que interessa é que esses documentos que eu queria desapareceram.

— Desapareceram?

— Isso. Pensei que tivesse passado por eles sem perce­ber, e procuramos novamente, e posso garantir, Poirot, que muita coisa parece ter sido roubada. Parte não era importante. Na realidade, aquilo que eu procurava não era especialmente importante — isto é, não devem ter achado que fosse, ou não teriam permitido que eu guardasse. Seja como for: as cartas de que estou falando desapareceram.

— É claro que pretendo ser discreto — disse Poirot — mas não pode me dizer coisa alguma sobre a natureza dessas cartas?

— Acho que não, meu velho. O máximo que posso re­velar é que uma certa pessoa anda se vangloriando do que disse e o que fez no passado. Mas está mentindo, e estas cartas provam que é um grande mentiroso! Mas não pense que haja interesse em publicá-las agora. Nós poderíamos apenas mandar-lhe umas cópias, lembrando-o do que ele dizia na época e das provas que temos, por escrito. E não me surpreenderia nada se... bem, se houvesse uma certa mudança de atitude. Percebe? Nem preciso perguntar. Você deve co­nhecer muito bem esse gênero de manobra.

— Perfeitamente, Sir Roderick. Sei muito bem o que quer dizer, mas espero que o senhor também saiba que não é fácil recuperar alguma coisa se não se sabe o que é nem onde pode estar.

— Vamos começar do princípio: antes de mais nada, quero saber quem as roubou — isso é que é importante. Pode haver mais material secreto em minha coleção, e preciso saber quem andou metendo a mão no bolo.

— Não suspeita de ninguém?

— Acha que suspeito, hein?

— Bem, parece-me que a possibilidade mais evidente...

— Entendo. Quer que eu diga que é a mocinha. Bem, não creio que seja. Ela nega, e acredito nela. Percebe?

— Sim — disse Poirot, com um leve suspiro. — Percebo.

— Por um lado, é jovem demais. Não saberia que aque­las cartas são importantes. São de antes do seu tempo.

— Mas poderia ter recebido instruções de alguém a res­peito — lembrou Poirot.

— Sei, sei. Poderia ser isso. Mas é óbvio demais. Poirot suspirou. Duvidava que valesse a pena insistir, dada a evidente parcialidade de Sir Roderick. — Quem mais pode ter tido acesso aos documentos?

— Andrew e Mary, naturalmente, mas duvido que Andrew se interesse por esse gênero de coisas. Além disso, sempre foi um rapaz decente. Tenho certeza disso — embora nunca o tenha conhecido intimamente. Costumava visitar-nos nos feriados, com o irmão, e só. Todo o mundo sabe que abandonou a mulher e fugiu para a África dó Sul com uma rapariga, mas isso pode acontecer com qualquer um, espe­cialmente se for casado com uma mulher como Grace. Também não a conheci muito bem — era do tipo que olha todo o mundo de cima para baixo, sempre ocupada com campanhas beneficentes. De qualquer maneira é impossível imaginar um sujeito como Andrew sendo um espião. Quanto a Mary, pa­rece ser direita. Parece que vive apenas para os seus cantei­ros de rosas. Há um jardineiro, tem 83 anos e viveu toda a sua vida no vilarejo, e há também umas duas mulheres que andara para cima é para baixo pela casa arrastando aspirado­res de pó, mas também não consigo imaginá-las como espiãs. Como está vendo, tem de ser alguém de fora. Mary usa uma peruca, é claro — ele prosseguiu, já divagando — e alguém poderia pensar que isso seria um disfarce de espiã, mas não é o caso. Ela perdeu muito cabelo numa doença, quando tinha dezoito anos. Muito azar, para uma mulher ainda moça. Não tinha percebido que usava peruca, mas um dia o seu cabelo se prendeu numas folhagens, e quase caiu da cabeça. Muito azar, mesmo.

— Realmente, percebi que havia alguma coisa esquisita no seu penteado — disse Poirot.

— Seja como for, os bons agentes secretos nunca usam perucas — informou Sir Roderick. — Os pobres coitados têm de mudar as feições com cirurgia plástica. Mas alguém tem mexido nos meus papéis particulares.

— Não crê que talvez os tenha colocado em um lugar diferente, numa gaveta ou numa pasta errada? Quando os viu pela última vez?

— Tive aquelas cartas nas mãos há um ano. Lembro-me que, já naquela ocasião, pensei na confusão que poderiam pro­vocar. Agora, sumiram. Alguém as apanhou.

— Já sei que não suspeita de seu sobrinho Andrew, de sua esposa, nem dos empregados. E a filha?

— Norma? Bem, Norma na minha opinião tem uma telha de menos. Isto é, pode ser que seja uma dessas cleptomaníacas que tiram as coisas dos outros sem saber o que estão fa­zendo, mas mesmo assim não consigo imaginá-la mexendo em meus documentos.

— Então, o que acha?

— Ora, você esteve em minha casa. Viu como é: qualquer um pode entrar quando quiser. Não trancamos nossas portas, nunca o fizemos.

— O senhor não tranca a porta do seu quarto, nem quando vai a Londres?

— Nunca pensei que fosse necessário. Agora, sei que é, mas de que adianta? É tarde demais. E, de qualquer maneira, a chave é comum, serve em qualquer porta. Alguém deve ter vindo de fora. Hoje em dia, afinal de contas, é assim que acontecem os assaltos: os sujeitos vão entrando, em plena luz do dia, sobem as escadas, entram nos quartos que bem entendem, metem a mão nas caixas de jóias e vão embora, sem que ninguém perceba ou dê importância. Os ladrões são sem­pre iguais a esses beatniks — ou que outro nome tenham esses sujeitos que andam de cabelo comprido e unhas sujas. Já vi mais de um rondando por lá. Não se pode perguntar "Quem diabo é você"? para todos eles. Nem dá para perceber a que sexo pertencem, e poderia ser constrangedor. Aquela região está cheia deles. Imagino que muitos sejam amigos de Norma No meu tempo, não deixaria que chegassem perto. Mas, hoje em dia, enxota-se um espécime desses e depois se descobre que era o Visconde Endersleigh ou Lady Charlotte Marjorybanks. Nunca sabemos a quantas andamos, neste mundo de hoje.

Fez uma pausa e continuou. — Se alguém pode chegar ao fundo dessa história, é você, Poirot.

Engoliu os últimos dois dedos de uísque e se levantou. — Bem, então é isto: depende de você. Vai aceitar, não?

— Farei o possível — prometeu Poirot. A campainha da porta soou.

— É a minha jovem ajudante — disse Sir Roderick. — Pontual como sempre. Maravilhosa, não? Não poderia me mexer em Londres sem ela. Praticamente cego — não consi­go ver o outro lado da rua.

— Não pode usar óculos?

— Tenho um par em algum lugar, mas vivem me caindo do nariz, quando consigo me lembrar de usá-los. E não gosto de óculos. Nunca os tive antes. Até os 65 anos, conseguia ler perfeitamente sem eles, e isso não é para qualquer um.

— Pena — disse Poirot — que nada dure para sempre. George fez Sônia entrar. Ela estava realmente bonita, e sua timidez natural lhe caía bem, na opinião de Poirot. Ele se adiantou, com um empressement bem gaulês.

— Enchanté, mademoiselle — disse, inclinando-se para lhe beijar a mão.

— Não estou atrasada, Sir Roderick? — ela perguntou, mal olhando o pequeno detetive. — Não ficou esperando por mim? Diga, por favor.

— Chegou no momento exato, minha menina — disse Sir Roderick. — Pronto para levantar âncora.,

Sônia parecia assustada.

— Espero que tenha tomado um bom chá — acrescen­tou Sir Roderick. — Lembre-se do que lhe disse: tome um bom chá, encha-se de bombas de chocolate, ou seja lá o que vocês costumam comer hoje em dia. Hein? Espero que tenha obedecido.

— Na verdade, não. Aproveitei para comprar uns sa­patos. Olhe: bonitos, não são? — ela esticou o pé.

Sem dúvida alguma, um belo pé, que provocou em Sir Roderick um largo sorriso.

— Bem, não podemos perder o nosso trem. Posso ser antiquado, mas sou inteiramente favorável aos trens. Saem na hora e chegam na hora; pelo menos, é o que deveriam fazer. Agora, esses automóveis, metem-se num engarrafamen­to na hora do rush e perde-se uma hora, ou mais, sem sair do lugar. Automóveis! Bolas!

— Quer que peça a George para lhe arranjar um táxi?

— perguntou Poirot. — Não será incômodo algum.

— Já tenho um táxi esperando — disse Sônia.

— Está vendo? — retrucou Sir Roderick. — Ela pensa em tudo.

Deu-lhe uma pancadinha no ombro, recebendo em troca um olhar que Poirot interceptou e interpretou adequadamente.

Poirot os acompanhou à saída, despedindo-se com po-lidez. O Sr. Goby tinha saído da cozinha e, parado na en­trada, fazia uma excelente imitação de um empregado da com­panhia de gás .

George fechou a porta assim que o casal entrou no ele­vador, e, quando voltava, Poirot o fez parar.

— E qual a sua opinião desta jovem senhora, George?

— Poirot freqüentemente procurava extrair impressões do criado. Em certos pontos, sempre dizia, George era infalível.

— Bem, senhor — respondeu o criado, — se me permite a expressão, creio que o cavalheiro está fisgado. Completa­mente fisgado.

— Acho que tem razão — concordou Poirot.

— Acontece, com cavalheiros dessa idade. Lembro-me de Lord Mountbryan. Um homem de larga experiência, vivido como poucos. O senhor ficaria surpreendido* Apareceu uma jovem para lhe fazer massagens. Não faz idéia do que ele deu em pagamento. Um vestido de baile e um bracelete: tur­quesas e diamantes, num desenho de flores. Não era um presente caro demais, mas de um bom preço, certamente. Depois, uma estola — não era mink, mas arminho russo, de qualquer maneira— e uma troasse. Depois, o irmãozinho se meteu em complicações, dívidas ou algo parecido, embora não seja muito certo se ela realmente tinha um irmão. Mas Lord Mount­bryan lhe deu dinheiro para acertar tudo — a pobrezinha es­tava tão preocupada! E tudo platônico, veja o senhor. É co­mum que cavalheiros dessa idade percam a cabeça. E sempre são as tímidas que os atraem, nunca as atrevidas.

— Estou convencido de que tem razão, George — respondeu Poirot. — Mesmo assim, não respondeu à minha pergun­ta. Perguntei o que achava da jovem senhora.

— Ah, a jovem senhora... Bem, senhor, não gostaria de apostar, mas o seu tipo é muito característico. Nada que se possa apontar concretamente, claro. Mas eu diria que ela sabe muito bem o que faz.

Poirot entrou em sua sala de estar, seguido, em obe­diência a um gesto seu, pelo Sr. Goby. O visitante sentou-se em uma cadeira de espaldar reto, em sua posição habitual: joelhos colados, pés para dentro. Tirou do bolso um cader­no de notas já muito manuseado, abriu-o cuidadosamente e passou a examinar detidamente a garrafa de uísque e o sifão ao seu lado.

— Com referência aos levantamentos que me pediu: a família Restarick, respeitável, com boa reputação. Nenhum escândalo. O pai, James Patrick Restarick, conhecido como um azougue nos negócios. A firma está na família há três gera­ções. Fundada pelo avô, aumentada pelo pai. Simon Resta­rick a manteve de pé. Mas começou a sofrer das coronárias há dois anos. Morreu de uma trombose há cerca de um ano.

— Andrew Restarick, irmão mais moço, começou a tra­balhar quando saiu de Oxford; casou-se com a Sra. Grace Baldwin. Uma filha, Norma. Deixou a mulher e mudou-se para a África do Sul, levando consigo uma certa Srta. Birell. Não houve divórcio. A Sra. Andrew Restarick morreu há dois anos e meio, mas já há algum tempo estava doente. A Srta. Norma Restarick era interna na escola para moças de Meadowfield. Nada contra ela.

Excepcionalmente permitindo que o olhar repousasse no rosto de Poirot, o Sr. Goby acrescentou: — Na verdade, tudo sobre a família parece estar O.K. e acima de qualquer dúvida.

— Nenhuma ovelha negra, nenhum caso de insanidade?

— Parece que não.

— Desapontador — disse Poirot.

O Sr. Goby não quis comentar. Limpou a garganta, molhou a ponta do dedo e virou uma página de seu caderno.

— David Baker. Ficha insatisfatória. Pagou fiança duas vezes, e a polícia o mantém de olho. Tem estado na tangente de diversos negócios duvidosos. Acredita-se que se tenha me­tido num importante roubo de obras de arte, mas nada ficou provado. Circula nos meios artísticos. Não tem meios visí­veis de subsistência, mas parece que não lhe falta nada. Pre­fere moças com dinheiro. Não tem preconceitos quanto a ser sustentado por jovens apaixonadas, nem quanto a ser pago, pelos pais, para desaparecer. Um mau elemento, se quer a minha opinião, embora bastante esperto para não se com­plicar.

O Sr. Goby olhou inesperadamente para Poirot.

— Já o viu?

— Já — disse Poirot.

— A que conclusão chegou, se posso perguntar?

— A mesma que o senhor — respondeu Poirot. — Uma criatura colorida — acrescentou, pensativo,

— Atraente para as mulheres — prosseguiu o Sr. Goby. — Nos tempos de hoje, o problema é que elas nem olham para os rapazes trabalhadores. Preferem os maus elementos, os parasitas. Costumam dizer que "os coitadinhos nunca ti­veram uma boa oportunidade".

— Exibicionista como um pavão — intercalou Poirot.

— Pode ser — concordou o Sr. Goby com certa relu­tância.

— Acha que seria capaz de atacar alguém?

O Sr. Goby meditou e depois sacudiu lentamente a ca­beça, falando na direção da lareira.

— Nunca foi acusado de nada do gênero. Não digo que não seja capaz, mas creio que não é do seu estilo. É o tipo que fala macio, não. o que apela para a violência.

— De fato, de fato — disse Poirot. — Eu também diria que não. Ele pode ser comprado? O que acha? .

—  Se lhe valesse a pena, fugiria de qualquer moça como o diabo da cruz.

Poirot concordou. Lembrava-se de um detalhe: Andrew Restarick virando um cheque em sua direção, para que pudes­se ver a assinatura. Mas Poirot não lera apenas a assinatura —  também o nome da pessoa para quem estava sendo feito aquele cheque. Era David Baker, e a quantia não era pequena. Hesitaria David em aceitar aquele cheque? Poirot duvidava, e o Sr. Goby era, abertamente, da mesma opinião. Em todos os tempos, jovens cavalheiros indesejáveis sempre foram su­bornados, assim como jovens senhoras desejáveis. Filhos sem­pre protestaram, e filhas sempre choraram, mas dinheiro sempre foi dinheiro. David falara insistentemente em casa­mento com Norma. Seria sincero? Poderia acontecer que real­mente gostasse da moça? Se isso fosse verdade, não seria su­bornado com muita facilidade. Sua insistência parecia ter sido genuína; Norma, certamente, acreditava nisso. Andrew Res­tarick, o Sr. Goby e Hercule Poirot pensavam de maneira di­ferente. E era bem mais provável que a razão estivesse com eles.

O Sr. Goby pigarreou e prosseguiu.

— Srta. Claudia Reece-Holland? Ela é cem por cento. Nada contra o seu nome. Nada duvidoso, quero dizer. O pai é parlamentar, rico. Nenhum escândalo. Bem diferente de alguns deputados que conhecemos. Boa formação, fez um curso de secretariado. Começou como secretária de um mé­dico, depois foi para a Junta do Carvão. Uma secretária de pri­meira classe. Trabalha para o Sr. Restarick há dois meses. Nenhuma ligação especial, fora õ que poderíamos classificar de flertes. Todos solteiros e convenientes, quando ela deseja sair. Nenhum sinal de alguma coisa entre Restarick e ela, e minha opinião é de que não existe nada, mesmo. Tem um apartamento em Borodene Mansions há três anos. Aluguel bem alto. Geralmente divide o apartamento com duas outras moças, que não costumam ser suas amigas íntimas. Elas vêm e vão. A jovem Francês Cary já mora lá há algum tempo. Trabalha na Galeria Wedderburn — uma casa conhecida, em Bond Street. Especializada em promover exposições em Manches-ter, Birmingham, às vezes no exterior. Costuma ir à Suíça e a Portugal Vive metida com artistas e atores.

Fez uma pausa, pigarreou e consultou o caderno.

— Ainda não consegui grande coisa da África do Sul. Nem acho que vá conseguir. Restarick não se fixou em lugar algum: Quênia, Uganda, Costa do Ouro, a América do Sul por uns tempos. Andava para cima e para baixo sem pouso certo. Parece que ninguém chegou a conhecê-lo direito. Tinha bastante dinheiro para as suas andanças, e também ganhou muito. Gostava de lugares remotos. Quase todos os que se lembram dele acham que era um bom sujeito — mas um judeu errante nato. Nunca manteve contato com pessoa al­guma. Foi dado como morto três vezes — tinha sumido no mato e desaparecido — mas sempre acabava voltando. Pas­sados uns cinco ou seis meses, reaparecia em um lugar ou país inteiramente diferente.

— Até que, no ano passado, o irmão morreu de repente, em Londres. Tiveram algum trabalho para localizá-lo. A morte do irmão parece ter-lhe causado um choque. Talvez já esti­vesse cansado daquela vida, ou então encontrara finalmente a mulher certa. Muito mais moça que ele; dizem que era pro­fessora. Seja como for, ele decidiu mudar de vida e voltar para a Inglaterra. Além de já ser um homem bastante rico, é o herdeiro do irmão.

— Uma história de final feliz — comentou Poirot — mas no meio de tudo isso existe uma moça infeliz. Gostaria de conhecê-la melhor. O senhor fez o possível, obteve os fatos de que eu precisava. As pessoas que tiveram contato com ela, que a podem ter influenciado, que talvez o tenham feito, mesmo. Queria saber alguma coisa sobre o pai, a madrasta, o rapaz pelo qual está apaixonada, as pessoas com quem ela vivia e trabalhava em Londres. Tem certeza de que não há morte alguma relacionada com essa menina? Isto é da maior importância...

— Nem cheiro disso — garantiu o Sr. Goby — Traba­lha para uma firma chamada Homebirds... à beira da falência, pagando-lhe muito pouco. A madrasta esteve internada numa casa de saúde recentemente. Surgiram vários boatos, mas não parecem ter dado em coisa alguma.

— Mas ela não morreu — disse Poirot. — E eu preciso — ele acrescentou, em tom sanguinário — é de um cadáver.

O Sr. Goby afirmou que lamentava muito a escassez de cadáveres e se levantou — Mais alguma coisa, no momento?

— No que se refere a informações, não.

— Muito bem — guardando o caderno de notas no bolso, o Sr. Goby pediu desculpas por fazer comentário não solicitado

— .. .mas aquela jovem que saiu daqui há pouco...

— O que tem ela?

— Bem, naturalmente... não creio que tenha coisa alguma a ver com o nosso problema, mas achei que lhe deveria dizer.

— Por favor. Já a viu antes, é isso?

— É. Há uns dois meses.

— Onde?

— Em Kew Gardens.

—  Kew Gardens? — Poirot mostrou-se um tanto sur­preso.

— Eu não a estava seguindo, mas a outra pessoa, que se encontrou com ela.

— E quem era essa pessoa?

— Não creio que faça diferença se lhe disser, senhor. Era um dos jovens adidos da embaixada da Herzegovínia.

Poirot ergueu as sobrancelhas. — Mas isso é muito in­teressante. Realmente interessante. Kew Gardens... lugar aprazível para um encontro. Muito aprazível.

— Foi a minha opinião, na ocasião.

— Os dois se falaram?

— Não senhor. Ninguém diria que se conheciam. A jo­vem levava, um livro; sentou-se num banco e leu por alguns minutos, depois o colocou ao lado quando chegou o meu rapaz, que se sentou no mesmo banco. Não disseram nada um ao outro. Apenas a moça se levantou e se afastou calmamente. Pouco depois, ele também foi embora. E levou o livro que per­tencia à moça. Só isso.

— De fato — disse Poirot. — Muito interessante.

O Sr. Goby olhou para a estante, à qual disse boa noite. Saiu.

— Enfin — disse — isso é demais! Já não é possível! Agora, também temos espionagem e contra-espionagem. E eu só quero um homicídio... um simples homicídio. Já estou acreditando que ele só ocorreu dentro de um cérebro dese­quilibrado!

 

— Chère madame.

Poirot se curvou, entregando à Sra. Oliver um pequeno e elegante ramalhete.

— Monsieur Poirot! Mas que idéia! Só mesmo o senhor teria essa lembrança! Todas as minhas flores estão tão de­sarrumadas!

Ao seu lado, um vaso cheio de mal-humorados crisântemos atestava a veracidade de suas palavras, fazendo violento contraste com o conjunto de obedientes e disciplinados botões de rosa que acabava de ganhar — E também é muito gentil de sua parte vir me visitar.

— Aqui estou, madame, para lhe oferecer minhas con­gratulações por sua rápida recuperação.

— É — disse a Sra. Oliver, — acho que já estou bem melhor.

Timidamente moveu a cabeça de um lado para outro —-Mas tenho uma dor de cabeça... horrível.

— Lembre-se de que a avisei que não fizesse nada pe­rigoso .

— O senhor me disse para não meter o nariz na vida alheia, eu sei. E foi exatamente o que fiz. Naquela hora, senti que havia algo de maléfico no ar — ela acrescentou, baixan­do a voz. — Estava com medo e dizia para mim mesma que era bobagem ter medo. Medo de quê? Quero dizer, estava no meio de Londres, em plena luz do dia, gente por toda a parte Por que ter medo? Não era como se estivesse perdida no meio do mato ou coisa parecida.

Poirot a olhava, pensativo. Teria ela, realmente, sentido aquele medo nervoso, realmente suspeitara a presença do mal, aquela sinistra sensação de que alguém queria atacá-la — ou tudo isso teria sido involuntariamente fabricado, posterior­mente, pelo seu cérebro? Ele sabia que a segunda hipótese bem poderia ser a verdadeira. Já ouvira histórias semelhantes de dezenas de clientes, contadas com palavras idênticas às usadas pela Sra. Oliver. "Eu sabia que alguma coisa estava errada, que havia algo de perverso no ar, que algo estava para acontecer..." — uma velha história, quase sempre in­teiramente diferente da realidade.

Que tipo de pessoa seria a Sra. Oliver? Ele a observou, cheio de incerteza. A escritora se dizia famosa por sua intui­ção. Uma intuição se sucedia à outra em rapidez extraordi­nária, e ela invariavelmente exercia o direito de lembrar, pos­teriormente, a que se revelara exata!

Por outro lado, ele bem sabia que, como os animais, fre­qüentemente sentimos aquela inquietação que precede a tem­pestade inesperada, o conhecimento de que algo está errado — embora não saibamos o que está errado.

— Quando começou a sentir esse medo?

— Quando entrei naquele labirinto de becos e ruazinhas. Até então, era muito normal, um pouco excitante, mesmo... eu estava realmente me divertindo, embora fosse meio humi­lhante descobrir como era difícil seguir uma pessoa.

Fez uma pausa, pensativa — Era como se fosse um jogo. De repente, não parecia mais uma brincadeira, por causa daquelas ruas estranhas, aquele casario caindo aos pedaços, os casebres e os espaços abertos pelas demolições... ah, não sei explicar. Mas tudo era tão diferente; como um pesadelo. Sabe como é, nos sonhos: a gente começa num lugar, numa festa por exemplo, e de repente está numa selva, ou em outro lugar inteiramente diverso... e tudo é sinistro à nossa volta.

— Uma selva? — perguntou Poirot. — É curioso a se­nhora ter essa impressão. Sentiu-se, então, como se estivesse numa selva, com medo de um pavão?

— Não sei se estava particularmente com medo dele. Afinal de contas, não se pode dizer que o pavão seja um animal perigoso. É que... bem, ele me lembrava um pavão porque, acima de tudo, eu via nele um animal decorativo. E um pavão é bastante decorativo, não? E aquele rapaz horrí­vel também é.

— A senhora não sabia que estava sendo seguida, antes de ser atacada?

— Não, não tinha a menor idéia... mas acho que ele me ensinou o caminho errado.

Poirot sacudiu a cabeça, concordando sem grande entu­siasmo.

— É claro que foi o Pavão quem me atacou — disse a Sra. Oliver. — Quem mais poderia ter sido? Aquele rapa­zinho de roupas fedorentas? Ele cheirava mal mas não tinha nada de sinistro. E duvido que pudesse ter sido aquela Francês não-sei-o-que, toda lânguida, derramada em cima de uma ca­deira, com aquele cabelão preto se espalhando para todos os lados. Ela me lembra uma atriz, não sei qual...

— Ela estava posando, não?

— Estava. Não para o Pavão, mas para o rapaz das roupas sujas. Não sei se o senhor já a conhece.

— Ainda não tive o prazer... se é que se trata de um prazer.

— Bem, ela não é nada feia, para quem gosta desse gê­nero artístico, de mulheres mal-arrumadas, de maquilagem pe­sada, brancas como cadáveres, olhos muito pintados, cabelo caindo em cima do rosto. Ela trabalha numa galeria de arte, e acho natural que estivesse no meio dos beatniks, servindo de modelo. Essas moças de hoje. . . Pode ser que ela esteja caída pelo Pavão, mas eu apostaria no outro. De qualquer ma­neira, não consigo imaginá-la dando-me aquela pancada na cabeça.

— Estou pensando em outra possibilidade, madame. Al­guém pode tê-la visto seguindo David — e, por seu turno, ter passado a segui-la.

— Alguém me teria visto seguindo David e então pas­sado a me seguir?

— Ou, talvez, alguém já estivesse escondido nas redon­dezas, vigiando as mesmas pessoas em que a senhora estava interessada.

— É uma hipótese — disse a Sra. Oliver. — Só não imagino quem possa ser.

Poirot rosnou exasperado — Ah, eis o problema! É difí­cil, muito difícil. Gente demais, coisas demais, não consigo ver nada com clareza. Tenho de jogar com um único fato: uma moça que diz que pode ter cometido um homicídio! É tudo o que tenho para começar, e já nisso começam as difi­culdades.

— Que dificuldades?

—  Pense — ordenou Poirot, involuntariamente acertan­do no ponto fraco da Sra. Oliver.

— O senhor sempre me atrapalha — ela se queixou.

— Estamos falando de um homicídio, mas qual homi­cídio?

— O da madrasta, acho eu.

— Mas a madrasta não morreu. Está viva.

— Ah, o senhor é irritante — protestou a escritora. Poirot se empertigou na cadeira. Juntou as pontas dos dedos e se preparou — pelo menos, foi essa a suspeita da Sra. Oliver — para se divertir um pouco.

— A senhora se recusa a pensar — disse. — Mas, para dar um mísero passo à frente, precisamos pensar.

— Não quero pensar. O que quero é saber o que o senhor andou fazendo enquanto estive no hospital. Alguma coisa deve ter feito. O que foi?

Poirot ignorou a pergunta.

— Comecemos pelo princípio. Certo dia, a senhora me telefonou. Eu estava magoado. Sou o primeiro a admitir: es­tava magoado. Haviam-me dito algo extremamente doloroso. A senhora, chère madame, foi a bondade em pessoa, animando-me, encorajando-me. Ofereceu-me uma deliciosa tasse de chocolat. Não apenas me ofereceu ajuda, como de fato me ajudou. Auxiliar-me a encontrar a jovem que me tinha pro­curado para dizer que achava que tinha cometido um homicí­dio! Façamos a nós mesmos a pergunta, madame: que homi­cídio? Quem foi morto? Onde foi? Por que alguém foi morto?

— Pare, pelo amor de Deus.— suplicou a Sra. Oliver. — Minha cabeça está doendo de novo.

Poirot não prestou a menor atenção ao pedido — Tere­mos nós um homicídio? A senhora diz: a madrasta; mas eu respondo: a madrasta não morreu. . . portanto, até agora, não temos um homicídio. Mas deve haver um. Eu faço a primeira pergunta: quem morreu? Alguém veio a mime mencionou um crime. Um crime que de alguma forma foi cometido, em algum lugar. Mas não consigo encontrar esse crime. A senhora deve estar a pique de dizer que a tentativa de homicídio contra Mary Restarick serve muito bem, mas posso garantir-lhe que, para Hercule Poirot, não serve.

— Não posso imaginar o que mais queira o senhor — disse a Sra. Oliver.

— Quero um homicídio! — proclamou Poirot.

— Quem o ouve falar, pensa que está querendo beber sangue!

— Ah, eu procuro um homicídio e não encontro um ho­micídio. É irritante, por isso, peço-lhe que pense comigo.

— Tenho uma excelente idéia — disse a Sra. Oliver — Suponha que Andrew Restarick matou a sua primeira mulher antes de fugir para a África do Sul. Já pensou nessa possi­bilidade?

— Posso lhe garantir que não — afiançou Poirot, indig­nado com a insinuação de que tal pensamento lhe pudesse ocorrer.

— Pois eu pensei — replicou a Sra. Oliver. — É uma hipótese bem interessante. Ele estava apaixonado por outra mulher, doido para fugir com ela, e então matou a primeira e ninguém jamais suspeitou de nada.

Poirot suspirou. Um suspiro fundo, que traduzia o esgo­tamento de suas últimas reservas de paciência — Acontece que a esposa só faleceu mais de dez anos depois de que ele deixou o país. E a filha não poderia estar envolvida, aos cinco anos de idade, no assassinato da própria mãe.

— Pode ter dado à mãe o remédio errado. Talvez Restarick apenas tenha dito que ela morreu. Afinal de contas, não temos certeza de que ela morreu mesmo.

— Eu tenho — garantiu Hercule Poirot. — Investiguei. A primeira Sra. Restarick faleceu no dia quatorze de abril de mil, novecentos e sessenta, e três.

— Como é que o senhor sabe essas coisas?

— Porque encarreguei uma pessoa de verificar os fatos. Suplico, madame: não pule para conclusões impossíveis. Vamos devagar.

— Pensei que fosse uma idéia bastante inteligente — in­sistiu a obstinada Sra. Oliver. — Se estivesse escrevendo um livro, seria assim que eu faria as coisas acontecerem. E faria com que a filha tivesse cometido o crime. Sem querer, mas porque o pai lhe mandou dar à mãe uma bebida misturada com vidro moído.

—  Nom d’un nom d'un nom! — exclamou o detetive.

—  Está bem, está bem — a Sra. Oliver tentou pacifi­cá-lo. — Diga então como foi.

—  Hélas, eu não tenho nada a dizer. Apenas procuro um crime e não o encontro.

— Pois é. Mas Mary Restarick ficou doente e foi para o hospital e voltou para casa e ficou doente de novo; e ga­ranto que, se procurassem direito, iam encontrar arsênico, ou coisa parecida, escondido por Norma em alguma parte.

— É exatamente o que encontraram.

— Ora, francamente, Monsieur Poirot, o que mais o senhor quer?

— Quero, apenas, que a senhora preste atenção ao signi­ficado das palavras. A moça repetiu para mim a mesma frase que dissera antes ao meu criado. Nenhuma das duas vezes ela afirmou: "Eu tentei matar uma pessoa," ou "tentei matar minha madrasta". Falou, ambas as ocasiões, de um fato já acontecido, de algo que já ocorrera. Usou os verbos no pas­sado .

— Desisto — anunciou a Sra. Oliver. — O senhor real­mente jamais acreditará que Norma tentou matar a madrasta.

— Pelo contrário. Acredito ser perfeitamente possível que Norma tenha tentado assassinar sua madrasta. Acho que foi o que provavelmente aconteceu... psicologicamente, en­quadra-se perfeitamente no seu estado de desorientação men­tal. Mas não está provado. Qualquer um, lembre-se, poderia ter escondido um preparado com arsênico no meio das coisas de Norma. O marido pode ter feito isso, inclusive.

— O senhor sempre acha que os maridos são os que tentam matar as esposas.

— Um marido é sempre um excelente suspeito — sen­tenciou Hercule Poirot. — Portanto, deve ser o primeiro a ser levado em consideração. Pode ter sido a nossa moça, Norma, como pode ter sido um dos empregados, ou a jovem acompanhante, ou mesmo o velho Sir Roderick. Ou a própria Sra. Restarick.

— Bobagem. Por quê?

— Pode haver razões. Há motivos que são um tanto improváveis, mas perfeitamente dentro dos limites do possível.

— Francamente, Monsieur Poirot, não pode suspeitar de todo o mundo.

— Mais oui, é exatamente o que posso fazer. Suspeito de todos. Primeiro, eu suspeito; depois, procuro os motivos.

— E que motivos poderia ter aquela pobre mocinha es­trangeira?

— Tudo depende do que esteja ela fazendo naquela casa, e das suas razões para vir para a Inglaterra, e de muitas outras coisas também.

— O senhor está mesmo maluco.

— Ou pode ter sido David. O seu Pavão.

— Pouco provável. David não estava lá. Nunca andou por lá.

— Pelo contrário, estava. Quando estive lá, encontrei-o andando pelos corredores.

— Mas não o viu escondendo veneno no quarto de Norma.

— Como a senhora sabe?

— Afinal de contas, eles estão apaixonados, não estão?

— Parecem estar. Isso eu admito: parecem.

— O senhor sempre dificulta tudo — queixou-se a Sra. Oliver.

— De forma alguma. Tudo é que é sempre difícil para mim. Preciso de informações, existe apenas uma pessoa que me pode dar informações, e essa pessoa desapareceu.

— É de Norma que o senhor está falando?

— Exatamente: Norma.

— Mas ela não desapareceu. Nós a encontramos, o senhor e eu.

— Depois que saiu daquele restaurante, ela desapareceu novamente.

— E o senhor a deixou ir embora?----a voz da Sra.

Oliver tremia de reprovação.

— Hélas!

— Deixou-a ir embora? Aposto que não fez nada para encontrá-la novamente.

— Eu não disse isso.

— Mas até agora não conseguiu nada, Monsieur' Poirot. Desculpe, mas estou desapontada com o senhor.

— Existe uma lógica — disse Poirot, mudando de assun­to e falando para si mesmo. — Existe um quadro, uma seqüência. Mas falta um dado e, sem ele, o quadro não faz sentido. A senhora percebe isso, não?

— Não — disse a Sra. Oliver, cuja dor de cabeça esta­va voltando.

Poirot continuou a falar, mais para si do que para sua ouvinte — se é que se pode dizer que a Sra. Oliver estivesse ouvindo. Extremamente indignada com o detetive, ela come­çou a pensar que a jovem Srta. Restarick tivera toda a razão: Poirot estava velho demais! Ora se estava! Tinha ela en­contrado a moça para ele, tinha-o chamado a tempo, saíra nas pegadas da outra metade do casal. Deixara a moça a cargo de Poirot — e este simplesmente tinha deixado que ela lhe escapasse das mãos! Pensando bem, Poirot até aquele mo­mento não tinha feito coisa alguma de útil. Estava desapontadíssima, e iria dizer isso com todas as letras, assim que ele pa­rasse de falar.

Enquanto isso, inocente quanto à tempestade que o es­perava, Poirot prosseguia no esboço do que chamava de "o quadro"

— Tudo se entrelaça. É isso: tudo entrelaçado e daí toda a dificuldade. Uma coisa se relaciona a outra e logo se des­cobre que esta se liga a uma terceira, que, aparentemente, está fora do quadro. Mas não está, embora atraia mais pes­soas para o círculo de suspeitos. Suspeitos de quê? Mais uma vez, a resposta é: não se sabe. Começamos com a jovem; através de um labirinto de dados que se contradizem, temos de achar a resposta para uma pergunta decisiva. Será aquela menina uma vítima, estará em perigo? Ou se trata de uma moça muito esperta? Não terá, por acaso, os seus motivos para criar a impressão que nos está dando? Ah, pode-se partir em qualquer direção. E eu preciso de alguma coisa parada, imóvel, um ponto de referência que não saia do lugar, e sei que ele existe, em alguma parte.

A Sra. Oliver remexia freneticamente em sua bolsa.

— A gente nunca encontra uma aspirina, quando quer — disse ela, com voz sumida.

— Temos um conjunto de relações que se encadeiam — o pai, a filha, a madrasta. São vidas entrelaçadas. Temos o velho tio, um tanto gagá, com quem vivem os três. E a moça bonita, ligada ao tio, por trabalhar para ele. É bem-educada, de bons modos. Ele está encantado com ela... digamos, um pouco apaixonado, também. Mas, qual será o papel dessa jovem naquela casa?

— Talvez o seu motivo secreto seja a vontade de aper­feiçoar o seu inglês — disse a Sra. Oliver.

— Acontece que ela se encontra com um membro da Embaixada da Herzegovínia, em Kew Gardens. Encontra-se com ele, mas não se falam; apenas, ela deixa para trás um livro, que ele apanha e leva consigo...

— Que história é essa, agora? — perguntou a Sra. Oliver.

— Mas será que isso tem alguma ligação com a outra trama? Até agora, não podemos saber. Não parece possível; no entanto, pode não ser impossível. Será que Mary Restarick involuntariamente descobriu algo que seria perigoso para aquela jovem?

— Não me diga que a história toda tem alguma rela­ção com espionagem...

— Não estou dizendo coisa alguma; imagino, apenas.

— O senhor% mesmo disse que Sir Roderick estava gagá.

— Não importa que ele seja gagá ou não. O fato é que teve alguma importância durante a guerra, e documentos im­portantes passaram por suas mãos; pode ter recebido cartas importantes. E pode ter guardado cartas e documentos que, na época, deixaram de ser importantes.

— Mas isso foi no tempo da guerra, há tantos anos.. .

— Exato. Mas o passado nem sempre deixa de existir, por mais anos que tenham decorrido. Aliados e inimigos trocam de posições. Pessoas fazem pronunciamentos públicos, repudiando isto e negando aquilo, geralmente mentindo sobre diversos assuntos. Suponha que existam cartas ou documen­tos que possam modificar a imagem de algum grande perso­nagem de hoje. Não digo que isso seja verdade. Apenas faço suposições e minha experiência me informa que minhas suposições às vezes são corretas. Pode ser que a destruição de um punhado de cartas e papéis seja de vital importância; ou que haja enorme interesse em entregá-los a um governo estrangeiro. Quem melhor para se incumbir da tarefa do que uma encantadora jovem cujo trabalho consiste em auxiliar um idoso figurão a selecionar material para suas memórias? Hoje em dia, Deus e todo o mundo estão escrevendo suas memó­rias. Parece uma epidemia! Suponha que um tempero muito especial seja colocado na comida da madrasta, num dia em que a prestativa secretária esteja ajudando na cozinha... e não poderia ela fazer com que as suspeitas recaíssem sobre Norma?

—  Ora, suponha que o senhor pare de fazer todas essas suposições! — exasperou-se a Sra. Oliver. —- Nunca vi uma pessoa tão enrolada! Tudo isso não pode ter acontecido.

—  Exatamente. Há tramas demais. Qual será a que nós queremos? A jovem Norma sai de casa e vai viver em Londres. Passa a ser, segundo aprendi com a senhora, uma terceira moça, dividindo um apartamento com duas outras jovens. Pode ser que nisso encontremos uma trama. As duas não a conheciam antes. Mas descobrimos que Claudia Reece-Holland é a secretária particular do pai de Norma Restarick. É um elo que se forma na cadeia... ou será uma coincidên­cia? A outra jovem, segundo suas descobertas, posa como modelo e tem relações com o rapaz que a senhora chama de Pavão, pelo qual Norma está apaixonada. É outro elo, são diversos elos. E o que faz David — o Pavão — nisso tudo? Estará apaixonado por Norma? Parece que sim, mas os pais da moça se opõem, o que também parece ser uma reação pre­visível, natural.

— É bom não esquecer Claudia — disse a Sra. Oliver, pensativa. — Ela me dá a impressão de ser extremamente efi­ciente em tudo o que queira fazer. Não me espantaria nada se tivesse sido ela quem jogou aquela mulher do sétimo andar.

Poirot, lentamente, voltou-se para ela. Olhou-a, fi­xamente.

— O que disse? — perguntou. — O que foi que a se­nhora disse?

— Foi uma moradora do prédio... nem sei o nome... que caiu ou foi jogada de uma janela do sétimo andar, e morreu.

A voz de Poirot se fez severa, indignada.

— E a senhora não me disse nada? A Sra. Oliver caiu das nuvens.

— Dizer o quê?

— O quê? Que houve uma morte, bon Dieu! Que temos uma morte, um cadáver. Pois não era o que nos faltava? Tí­nhamos apenas uma estranhíssima tentativa de envenenamento

— no entanto, existe uma morte. Uma morte que aconteceu em — como é mesmo o nome?

— Borodene Mansions.

— Precisamente. E quando foi isso?

— O suicídio? Ou o crime, sei lá? Foi... deixe-me pensar... foi mais ou menos uma semana antes do dia em que estive lá.

— Perfeito, admirável! Como soube?

— Um leiteiro me contou. — Um leiteiro, bon Dieu.

— Falava pelos cotovelos — esclareceu a Sra. Oliver.

— Fiquei tão impressionada. Parece que o caso aconteceu de manhã, bem cedo.

— Quem era ela?

— Não sei. Acho que o leiteiro também não sabia o seu nome.

— Jovem, meia-idade, velha?

A Sra. Oliver fez um esforço de memória — Ele não disse a idade exata, mas tenho idéia de que falou numa mulher cinqüentona.

— Cinqüentona, hein? Era conhecida das três moças?

— Como é que eu vou saber? Ninguém me disse nada.

— E nunca lhe passou pela cabeça me contar tudo isso...

— Ora, francamente, Monsieur Poirot, o que tem esse caso a ver com o nosso problema? Bom, pode ser que tenha, mas ninguém comentou coisa alguma, e eu não pensei...

— Mas, claro, é um elo a mais. Temos esta jovem, Norma, que mora no edifício, no qual alguém, um certo dia, suicida-se (ou, pelo menos, é o que todos acreditam). Por­tanto, alguém cai ou é jogado de uma janela do sétimo andar, e morre. E então? Alguns dias depois, a nossa jovem, Norma, depois de ter ouvido a senhora falar de mim, numa festa, pro­cura-me para dizer que acha que pode ter cometido um homi­cídio. Não percebe? Uma morte — e poucos dias depois, alguém pensa que pode ter cometido um crime. É claro — deve ser esse o nosso cadáver.

Ora, que amontoado de bobagens! O comentário esteve dançando nos lábios da Sra. Oliver, mas faltou-lhe coragem para fazê-lo em voz alta.

— Era este, então, o elemento de informação que me faltava. O elo que fecha a corrente! Ainda não sei como, mas tem de ser isso. Preciso pensar. Ê indispensável — tenho de ir para casa e pensar, pensar, até que todas as partes se juntem E esta deve ser a peça-chave, que mostra como todas as outras devem ser ligadas... Ah, finalmente! Finalmente começo a encontrar o caminho.

—  Adieu, chère madame.

Poirot se levantou e saiu apressadamente. Depois de algum tempo, a Sra. Oliver se recuperou da surpresa.

—  Um amontoado de bobagens — ela disse, para a sala vazia. — Só bobagens. Será que faz mal tomar quatro aspi­rinas de uma vez?

 

preparara um chá de ervas, e a xícara fumegante estava ao alcance da mão de Poirot. Ele tomava peque­nos goles, e pensava. Era uma forma peculiar, muito pessoal, de pensar. Sua técnica era a de selecionar pensamentos, separando-os como alguém separa as peças de quebra-cabeças. Mais tarde, começaria a organizá-los, para formar um quadro nítido e coerente. Mas, no momento, o importante era a sele­ção, a separação. Tomou um gole de chá, afastou a xícara e deixou que as diferentes peças do quebra-cabeças se apresen­tassem em seu cérebro, para inspeção. Uma vez todas identi­ficadas, ele as selecionaria. Como num quebra-cabeças, de um lado as azuis, que devem ser do céu, do outro as verdes, para o gramado, e assim por diante.

A dor que sentira nos pés, presos nos sapatos de verniz. Ele começou daí. A caminhada por uma estrada aberta à sua frente pela Sra. Oliver, sua boa amiga. A madrasta. Ele viu a si mesmo, empurrando um portão. Uma mulher que se virava para vê-lo, uma mulher que estava inclinada, aparando uma roseira e que se voltara em sua direção. O que haveria ali para ser guardado? Nada. Uma cabeleira dourada, brilhando como um trigal, com cachos e ondas que lembravam um pouco os penteados da Sra. Oliver. Ele se permitiu um breve sor­riso. Mary Restarick mantinha sua cabeça em muito melhor ordem do que a Sra. Oliver. Uma moldura dourada para o seu rosto, que apenas parecia ser um pouco grande demais para ele. Lembrou-se de que Sir Roderick dissera que ela tinha de usar uma peruca, devido a uma doença. Uma tristeza, para uma mulher ainda tão jovem. Pensando bem, havia algo de estranho, de pesado, em sua cabeça. Uma perfeição estática, artificial. Deteve-se mais um pouco na peruca de Mary Restarick — se é que se tratava realmente de uma peruca, já que não era prudente confiar inteiramente nas observações de Sir Roderick. A existência da peruca — teria alguma significação? Repassou em revista a conversa que tiver com a Sra. Restarick. Teriam dito algo importante? Achava que não. Pensou na sala em que haviam entrado. Uma sal sem personalidade, com pouco uso, numa casa alheia. Dois quadros nas paredes. Uma mulher, num vestido cinzento. Um boca estreita, de lábios apertados; cabelos castanhos com tons acinzentados. A primeira Sra. Restarick. Parecia ter sido mais velha que o marido. O retrato deste estava na parede oposta. Dois bons retratos. Lansberger fora um excelente retratista. Pensou no retrato do marido. Não o observara bem da primeira vez, não tanto quanto o fizera mais tarde, no escritório de Restarick.

Andrew Restarick e Claudia Reece-Holland. O que poderia haver ali? Uma relação mais íntima do que a de trabalho? Não necessariamente. Um homem que voltava ao sei país depois de anos de ausência, sem amigos íntimos nem parentes, que estava perplexo e preocupado com a personalidade e o comportamento da filha. Seria bastante natural que se voltasse para sua competente secretária e lhe pedisse a sugestão de um lugar para a filha morar em Londres. Da parti dela, seria um favor oferecer acomodações, já que estava pro curando uma terceira moça. Uma Terceira Moça... a expressão que aprendera com a Sra. Oliver não lhe saía da cabeça — como se tivesse uma importância mais profunda, que, por alguma razão, escapava-lhe.

O criado George entrou na sala, fechando a porta, discretamente, atrás de si.

— Está aí uma jovem senhora. A mesma que veio no outro dia.

A frase causou um choque em Poirot, que se aprumou na cadeira.

— A jovem que veio na hora do café, aquele dia?

— Não, senhor. A que esteve aqui com Sir Roderick Horsefield.

— Ah, é mesmo — Poirot ergueu as sobrancelhas. — Faça-a entrar. Onde está ela?

— Eu a coloquei na sala de Srta. Lemon.

— Ah, sim. Faça-a entrar.

Sônia não esperou que George a anunciasse. Entrou à sua frente, em passadas rápidas e agressivas.

— Não foi fácil vir aqui, mas tinha de vir lhe dizer que não apanhei aqueles documentos. Não roubei nada. Está en­tendendo?

— Alguém disse que tinha roubado alguma coisa? — Poirot perguntou. — Sente-se, mademoiselle.

— Não quero me sentar. Não tenho tempo. Só vim para lhe dizer que é tudo mentira. Sou uma moça honesta e só faço o que me mandam.

— Entendo. Já havia entendido há algum tempo. O que a senhorita quer dizer é que não tirou, da casa de Sir Roderick Horsefield, quaisquer documentos, informações, cartas ou papéis de qualquer espécie. É isso, não?

— É isso mesmo que eu vim lhe dizer. Ele acredita em mim. Ele sabe que eu não faria uma coisa dessas.

— Muito bem. A sua declaração está registrada.

— O senhor acha que vai encontrar os tais documentos?

— No momento, tenho outras investigações nas mãos — disse Poirot. — Os documentos de Sir Roderick terão de es­perar a sua vez.

— Ele está preocupado, muito preocupado. Existe uma coisa que não posso lhe dizer, mas que contarei ao senhor. Éle perde tudo. Coisas que não estão guardadas onde ele pensa que estão. Ele as guarda em — como é que se diz? — em lugares esquisitos. Eu sei, eu sei que o senhor suspeita de mim. Todos suspeitam de mim porque sou estrangeira. Porque eu vim de um outro país, todo o mundo pensa que eu roubo papéis secretos, como nessas novelas cretinas de espionagem. Eu não faço essas coisas. Sou uma intelectual, compreende?

— Ah! — exclamou Poirot. — Fico contente em saber disso. E existe algo mais que me queira dizer?

— Por quê?

— Nunca se sabe.

— Que outras investigações são essas de que o senhor falou?

—  Ora, ora, não quero fazê-la perder o seu tempo. É seu dia de folga, não?

— É. Tenho um dia na semana para fazer o que quiser. Posso vir a Londres. Visitar o Museu Britânico.

— Também o Vitória e Alberto, sem dúvida.

— Isso mesmo.

— E também ir ver os quadros na Galeria Nacional. Ou quando faz bom tempo, pode ir a Kensington Gardens.., quem sabe, passear em Kew Gardens.

Repentinamente tensa, ela lhe dirigiu um olhar inquisitivo e raivoso.

— Por que o senhor fala em Kew Gardens?

—  Porque lá existem lindas plantas e árvores. Ah, não deve deixar de ir a Kew Gardens. O preço de entrada é muito pequeno. Um pêni, acho eu, ou dois, no máximo. Vale '< pena, para admirar as árvores tropicais, ou apenas sentar-si num banco e ler um bom livro.

Ele sorriu para ela com enorme candura, notando cor interesse que o seu mal-estar crescia cada vez mais.

— Mas não quero prendê-la mais, mademoiselle. Talvez tenha visitas a fazer, quem sabe algum amigo do Corpo Diplomático.

— Por que diz isso?

— Nenhum motivo especial. A senhorita mesma diz qu é estrangeira; logo, é natural que tenha amizades no pessoa da Embaixada de seu país.

— Alguém andou lhe dizendo alguma coisa. Alguém andou me acusando! Estou lhe dizendo que ele é um velho tolo, que vive perdendo tudo. Mais nada!. Além disso, não sabe coisa alguma de importante. Não tem nenhum papel o documento secreto. Nunca teve.

— Ah, a senhorita não sabe do que está falando. (tempo passa, não se esqueça. Ele já foi, um dia, um homem importante, que guardou segredos importantes.

— O senhor está querendo me assustar.

— Não, não estou. Detesto melodramas.

— A Sra. Restarick. Deve ser ela quem está me acusar do. Ela não gosta de mim.

— Ela não me disse nada disso.

— Bem, eu não gosto dela. É o tipo de mulher em que eu não confio. Acho que ela tem segredos.

— De fato?

— Acho que ela tem segredos do marido, Tenho certe­za de que vai a Londres, ou outros lugares, para se encontrar com outros homens. Com um outro homem, pelo menos.

— Realmente — disse Poirot — isso é muito interessan­te. Acredita mesmo que ela tenha encontros com um outro homem?

— Acredito. Ela vai a Londres muitas vezes, e não acre-dito que conte ao marido sobre todas as vezes. Ou, então, inventa que tem de fazer compras e outras desculpas assim. Ele vive ocupado no escritório e hão sabe o que ela anda fa­zendo. Ela passa mais tempo em Londres do que em casa. E ainda finge que adora cuidar do jardim.

— Não tem idéia de quem seja esse homem com quem ela se encontra?

— Como eu poderia saber? Não ando seguindo aquela mulher. O Sr. Restarick não suspeita de nada. Acredita em tudo que ela diz. Só pensa nos negócios. E ainda tem as suas preocupações com a filha.

— É verdade — disse Poirot — ele certamente está preocupado com a filha. O que sabe a senhorita sobre a filha? Conhece-a bem?

— Não, não conheço. Se quer saber a minha opinião, eu digo. Acho que ela é doida.

— Acha, realmente? E por quê?

— Ela, às vezes, diz coisas estranhas. Vê coisas que não existem.

— Coisas que não existem?

— Pessoas que não existem. Às vezes, está muito exci­tada; outras, parece no mundo da lua. As pessoas falam com ela e ela não ouve, não responde. E eu acho que tem vontade de matar certas pessoas.

— A Sra. Restarick, por acaso?

— Ela e o Sr. Restarick, também. Acho que ela o odeia.

— Será por que eles não querem permitir o seu casa­mento?

— Isso mesmo. Eles não querem' o casamento. E têm toda a razão, é claro, mas ela não se conforma. Algum dia — Sônia prosseguiu, parecendo entusiasmada com a hipótese — ela vai se matar. Espero que não faça uma bobagem dessas,

mas é o que as pessoas muito apaixonadas acabam fazendo — ela encolheu os ombros. — Bem... eu vou embora.

— Mais uma coisa, apenas. A Sra. Restarick usa pe­ruca?

— Peruca? Como eu vou saber — pensou por um mo­mento. — Pode ser que use — admitiu. — É muito prático para viajar. E está na moda. Eu às vezes uso uma peruca também. Uma peruca verde! Isto é, já usei. Agora, vou em­bora .

E foi.

 

Tenho muito trabalho pela frente, hoje — anun­ciou Poirot no dia seguinte, ao se levantar da mesa do café, dirigindo-se à Srta. Lemon. — Grandes investigações. A se­nhora fez as pesquisas que lhe pedi, e todos os contatos?

— Sim, senhor — assegurou a Srta. Lemon. — Está tudo aqui.

Ela lhe entregou uma pequena pasta. Poirot examinou rapidamente o seu conteúdo e manifestou sua aprovação.

— Sempre posso contar com a senhora — ele disse. — Cest fantastique.

— Francamente, Monsieur Poirot, não vejo o que possa ser fantástico. O senhor me deu instruções e eu as obedeci. Naturalmente.

— Ora, não há nada de natural nisso. Por acaso não dou instruções aos eletricistas, aos bombeiros, ao homem que vem consertar coisas por aqui? E por acaso eles obedecem às instruções? Raramente, raramente.

Saiu para o corredor.

— George, meu sobretudo um pouco mais pesado. Acho que o frio do outono está chegando.

Meteu a cabeça para dentro da sala de sua secretária. — A propósito, Srta. Lemon, o que achou da jovem que es­teve aqui ontem?

A secretária, surpreendida quando estava prestes a mer­gulhar na máquina de escrever, respondeu laconicamente — Estrangeira.

— Sei, sei.

— Obviamente estrangeira.

—  Não tem outro julgamento, além desse?

A Srta. Lemon pesou o assunto. — Não estava ao meu alcance chegar a qualquer conclusão sobre sua personalidade. Parecia aborrecida com alguma coisa — acrescentou, sem muita segurança.

— Mas, claro. Ela está sob suspeita de roubo, percebe? Não é dinheiro, mas documentos, do seu patrão.

— Ora essa — comentou a Srta. Lemon. — Documentos importantes?

— É muito provável que sim. Mas também pode ser que não esteja faltando coisa alguma.

— Muito bem — concluiu a secretária, dirigindo-lhe o seu olhar especial que costumava empregar para anunciar que gostaria de se ver livre dele para poder trabalhar com o ne­cessário fervor. — Muito bem. Eu sempre digo que é bom saber a quantas se anda quando se emprega alguém. E é sempre melhor que esse alguém seja inglês.

Hercule Poirot saiu. Sua primeira visita foi a Borodene Mansions. Tomou um táxi. Ao saltar, no pátio interno, olhou em torno. Um porteiro uniformizado estava parado em uma das entradas; assoviava uma melodia melancólica. Ao ver Poirot se aproximar, disse:

— Senhor?

— Não sei — afirmou Poirot — se o amigo pode me dizer alguma coisa sobre uma triste ocorrência que se passou aqui recentemente.

— Triste ocorrência? — indagou o porteiro. — Não tenho idéia do que seja.

— Uma senhora que se atirou... digamos, que caiu de um dos andares superiores, morrendo.

— Ah, isso. Não sei de nada; o senhor entende, só tra­balho aqui há uma semana. Alô, Joe.

Um porteiro que saía da parte fronteira do bloco de apartamentos aproximou-se.

— Você deve saber de uma mulher que caiu do sétimo andar. Já faz um mês, não é?

— Nem tanto — respondeu Joe. Era um homem idoso, que falava devagar. — Um caso aborrecido, aquele.

— Ela morreu instantaneamente?

— Morreu.

— Como se chamava? Pode ser, entende, uma parenta minha — explicou Poirot, que não tinha quaisquer escrúpu­los em se afastar da verdade.

— De fato, senhor? Lamento muito. Era a Sra. Charpentier.

— Morava há muito tempo no apartamento?

— Bem, deixe-me pensar. Mais ou menos um ano — talvez um ano e meio. Não, não, acho que há dois anos. Nú­mero setenta e seis, no sétimo andar.

— É o último andar?

— Sim, senhor. Era a Sra. Charpentier, ela mesma.

Poirot não procurou extrair informações de caráter des­critivo, já que, tratando-se de uma parenta sua, deveria co­nhecê-la. Mas perguntou: — O caso provocou muita confusão, correrias? A que horas foi?

— Cinco ou seis da manhã, eu acho. Foi de repente. Nenhum aviso; ela caiu lá de cima e pronto. Apesar da hora, juntou-se uma multidão num instante — uma porção de gente se acotovelando naquela grade ali adiante. O senhor sabe como são as pessoas.

— E a polícia também apareceu, naturalmente.

— Ah, sim, a polícia veio bem depressa. Também um médico e uma ambulância. As coisas de sempre — completou o porteiro, no tom cansado de quem está acostumado a ver pessoas caírem de sétimos andares pelo menos umas duas vezes por mês.

— Imagino que os moradores tenham descido dos apar­tamentos, quando ouviram o que tinha acontecido.

— Muito poucos, senhor, porque, com o barulho do trá­fego, quase ninguém ficou sabendo na hora. Disseram que ela chegou a dar um grito quando caiu, mas não deve ter sido muito alto. Só correram mesmo as pessoas que estavam passando na rua e viram tudo. E o senhor sabe como é: juntam-se uns dois ou três na grade, esticando o pescoço para olhar, e .num instante outros vêm ver o que é e formam uma multidão. É sempre a mesma coisa, quando acontece um acidente.

Poirot lhe assegurou que sabia exatamente o que aconte­cia quando havia um acidente.

— Ela vivia sozinha? — ele perguntou, num tom de quem apenas pedia confirmação.

—  Sim, senhor.

—  Mas devia ter amigos, entre os outros moradores, não?

Joe encolheu os ombros, sacudindo a cabeça — Pode ser, eu não sei. Nunca a vi no restaurante com gente daqui. Mas às vezes vinham pessoas de fora jantar com ela. Olhe, eu diria que ela não tinha muitas amizades com os vizinhos. Seria melhor — ele acrescentou, um pouco inquieto — que o senhor fosse conversar com o Sr. McFarlane, que é o encar­regado, se quiser saber mais coisas sobre ela.

— Muito obrigado. É exatamente o que vou fazer.

— O escritório dele é naquele bloco ali. No andar térreo. Está escrito na porta.

Poirot seguiu as indicações. Tirou da pasta a primeira carta que lhe havia sido fornecida pela Srta. Lemon, e 'que estava assinalada "Sr. McFarlane". Este era um quarentão bem apessoado, de ar inteligente. Poirot lhe entregou a carta, que ele abriu e leu.

— Ah, sim — disse. — Entendo. Colocou-a sobre a mesa e encarou Poirot.

— Os parentes me pedem que o ajude no que puder, com relação à morte da Sra. Louise Charpentier. Portanto, exatamente o que desejava saber, Monsieur... — ele olhou de relance para a carta — ... Monsieur Poirot?

— O assunto, naturalmente, é confidencial — disse Poirot. — Os parentes receberam informações da polícia e de um advogado, mas estão ansiosos para obter mais alguns detalhes pessoais, como o senhor deve compreender. Como eu vinha para a Inglaterra, prontifiquei-me a colaborar. Na verdade, relatórios oficiais nunca satisfazem uma família enlutada.

— Claro, compreendo. Bem, estou pronto a dizer tudo o que souber.

— Há quanto tempo ela morava aqui, e como alugou o apartamento?

— Morava aqui.. posso obter a data exata... há cerca de dois anos. Havia um apartamento que ia ficar desocupado, e a senhora que ia sair, sendo sua amiga, avisou-a com an­tecedência. Era uma Sra. Wilder. Trabalhava na BBC e vivia em Londres há algum tempo, mas estava de mudança para o Canadá. Uma senhora muito distinta — e não creio que fosse amiga íntima da falecida. Apenas lhe disse que ia sair do apartamento, e a Sra. Charpentier quis alugá-lo.

—  Era uma inquilina satisfatória?

O Sr. McFarlane respondeu, depois de uma breve he­sitação. — Era satisfatória, sim.

— Não precisa me esconder coisa alguma — preveniu Poirot. — Dava festas muito barulhentas, por acaso? Ou seria... digamos, animada demais na sua maneira de se di­vertir?

O Sr. McFarlane desistiu de ser discreto.

—  Umas reclamações de vez em quando, a maioria de moradores idosos.

Poirot fez um gesto significativo.

—  Exatamente, senhor; um pouco dada à bebida — e numa companhia bastante alegre.  Deu-nos algum trabalho, algumas vezes.

—  E não seria, por acaso, apreciadora em excesso de amizades masculinas?

—  Bem, eu não diria tanto...

—  Claro que não diria, mas eu entendo a sua posição.

—  É preciso também não esquecer que ela não era jovem.

—  As aparências freqüentemente enganam. Que idade lhe daria o senhor?

—  É difícil dizer. Quarenta... quarenta e cinco. E não tinha boa saúde — ele acrescentou.

—  Entendo.

—  Bebia demais — quanto a isso, não há dúvida. E sempre ficava muito deprimida. Nervosa em conseqüência do seu próprio comportamento. Sempre indo a médicos, eu ouvi dizer, e nunca acreditando no que eles diziam.   Tinha as manias comuns em mulheres de sua idade — inclusive, pensou que estava com câncer, tinha certeza absoluta. Um médico lhe garantiu que não tinha câncer algum, mas não se conven­ceu. Ele depôs no inquérito e disse que ela não sofria de nada. Bem, o que acabou acontecendo não é tão raro assim. Ela foi ficando cada vez mais tensa, e um belo dia.

—  Um caso muito triste — disse Poirot. — Ela tinha amigos entre os moradores?

—  Que eu saiba, não. Não é comum surgirem amizades entre vizinhos, aqui no prédio. Quase todos os moradores tra­balham fora, muitos vivera viajando.

—  Eu pensava particularmente na Srta. Claudia Reece-Holland. Talvez se conhecessem.

__ A Srta. Reece-Holland? Não, não creio. Quer dizer,

provavelmente se conheciam, cumprimentavam-se quando se encontravam no elevador, e coisas assim. Mas não creio que existissem realmente contatos sociais entre ambas. O senhor compreende, duas gerações diferentes...  Quer dizer...

O Sr. McFarlane parecia um pouco perturbado. Poirot não podia imaginar a razão.

__ Uma das moças que dividem o apartamento com a Srta. Holland — ele disse — conhecia a Sra. Charpentier, eu creio... a Srta. Norma Restarick.

—  Conhecia? Eu não sei — ela se mudou para cá há pouco tempo. Praticamente só a conheço de vista. Uma mo­cinha com ar assustado. Imagino que seja uma recém-saída do colégio. Algo mais em que possa ajudá-lo? —? ele acres­centou.

—  Não, obrigado. Já foi muito gentil. Mas eu gostaria de mais um favor: ver o apartamento. É para que eu possa descrever... — ele parou, não especificando o que preten­deria descrever e a quem.

—  Muito bem, vejamos. Mora lá, agora, um certo Sr. Travers:  Passa o dia todo na City. É, creio que podemos subir, senhor.

Foram ao sétimo andar. Quando o Sr. McFarlane in­troduziu a chave na porta, um dos algarismos de metal se desprendeu e caiu, por pouco não acertando o sapato envernizado de Poirot. Este. se desviou com agilidade e se abaixou para apanhá-lo. Recolocou-o cuidadosamente no pequeno prego preso à porta.

—  Estes números estão frouxos — anunciou.

—  Lamento muito. Vou tomar uma providência. Eles vivem se soltando, com o uso. Muito bem, aqui estamos.

Poirot entrou na sala de estar. Um aposento sem qual­quer personalidade. As paredes eram cobertas de papel imi­tando madeira. Os móveis eram convencionais, embora con­fortáveis, e os únicos toques pessoais era um receptor de te­levisão e alguns livros.

—  Todos os apartamentos são parcialmente mobiliados — explicou o Sr. McFarlane. — Os inquilinos não precisam trazer coisa alguma, a não ser que queiram. A maioria só fica conosco por pouco tempo.

— E a decoração, é sempre igual?

— Não inteiramente. Quase todos gostam desse papel de parede — ajuda a realçar os quadros. As únicas coisas que variam são os quadros, na parede em frente da porta. Temos um conjunto de gravuras, e os moradores escolhem as que gostam.

— São dez gravuras diferentes — ele acrescentou, com indisfarçável orgulho. — Há uma japonesa, muito artística, não acha? E um jardim inglês; outra, de pássaros, e assim por diante. O Arlequim, por exemplo é muito popular: um efeito abstrato muito curioso, de linhas e cubos em cores vivas, con­trastantes. Todas são criações de bons artistas. Quanto aos móveis, são sempre iguais, embora em duas cores diferentes. Os moradores podem trazer outros, mas geralmente não se dão ao trabalho.

— Creio que a maioria não é de pessoas, como direi, do­mésticas, não? — sugeriu Poirot.

— Exato. O tipo nômade é mais comum, ou, então, pes­soas muito ocupadas, que querem um pouco de conforto e en­canamentos que funcionem, mas não se interessam especial­mente pela decoração. Já tivemos alguns preocupados em me­lhorar a decoração, a ponto de sermos forçados a incluir uma cláusula, no contrato, exigindo que os apartamentos sejam de­volvidos exatamente como estavam ao serem alugados.

A conversa se afastara da morte da Sra. Charpentier, Poirot se aproximou da janela.

— Foi daqui? — perguntou, com muito tato.

— Foi. É essa a janela, a da esquerda. Há um balcão. Poirot olhou para baixo. — Sete andares — observou.

— Uma longa distância.

— É, a morte foi instantânea — felizmente, por sinal. É claro que pode ter sido um acidente.

— O senhor não pode estar falando sério, Sr. McFarlane. Só pode ter sido proposital.

— Ora, a gente sempre prefere pensar na hipótese mais favorável. Tenho a impressão de que ela não era uma mulher muito feliz.

—  Estou imensamente grato — disse Poirot — por sua gentileza. Creio que estou em condições de transmitir à sua família, na França, um retrato fiel do que aconteceu.

Entretanto, o seu próprio retrato do que acontecera não estava tão nítido quanto ele desejava. Até agora, nada con­tribuía para ajudar a sua teoria de que a morte de Louise Charpentier fora importante. Pensativo, ele repetiu o primeiro nome. Louise... que estranha recordação aquele nome lhe trazia? Sacudiu a cabeça, sem chegar a uma conclusão.

Agradecendo ao Sr. McFarlane, saiu.

 

Dentado atrás de sua mesa, o Inspetor-Chefe Neele mantinha um ar oficial, formal. Cumprimentou Poirot polida­mente e lhe indicou uma cadeira. Mas, logo que saiu da sala o jovem auxiliar que fizera o detetive entrar, as suas maneiras mudaram.

— E o que anda caçando agora? Ou está fazendo mis­tério, como sempre?

— Você já sabe exatamente o que quero.

— É verdade. Consegui arranjar alguma coisa, mas tenho a impressão de que se trata de um buraco vazio.

— Por que diz que é um buraco?

— Porque você me lembra um gato caçador de ratos. Um velho gatão, que espera pacientemente que o* rato saia do buraco. Pois, se quer saber a minha opinião, acho que não há rato algum neste buraco. Não estou dizendo que não se possa descobrir algumas negociatas. Você conhece esses fi­nancistas. Imagino que exista uma porção de negócios escusos, em torno de jazidas, concessões e coisas do gênero. Mas Joshua Restarick Ltda. tem uma boa reputação. Um negócio de família — pelo menos, era, mas não se pode dizer que continue a ser. Simon Restarick não deixou filhos, e o irmão, Andrew, tem apenas uma filha. Havia uma velha tia, do lado da mãe. A filha de Andrew Restarick viveu com ela quando deixou o colégio e a mãe morreu. A tia morreu de um colapso há seis meses. Levemente amalucada, creio — pertencia a umas organizações religiosas meio esquisitas, embora inofen­sivas. Simon Restarick era o tipo acabado do negociante esperto. Fez um casamento de conveniência, quando já não era jovem.

— E Andrew?

— Andrew parece ter sofrido de um complexo de judeu errante. Não se conhece coisa alguma contra ele. Nunca ficou muito tempo no mesmo lugar. Andou pela África do Sul, América do Sul, Quênia e muitos outros lugares. O irmão insistiu para que voltasse, mais de uma vez, mas sem resul­tado. Não gostava nem de Londres nem de negócios, embora tivesse o dom dos Restaricks para ganhar dinheiro. Meteu-se em concessões de jazidas e coisas do gênero. Não era ca­çador de elefantes, botânico, arqueólogo nem nada parecido. Tudo em que se metia era para ganhar dinheiro — e sempre ganhava.

— Então, à sua maneira* também "ele era convencional?

— Pode-se dizer que sim. Não sei o que o fez voltar à Inglaterra após a morte do irmão. Talvez a nova esposa — ele se casou pela segunda vez. Uma mulher bonita e muito mais moça do que ele. Estão morando com o velho Sir Roderick Horsefield, cuja irmã era casada com o tio de Andrew Restarick. Acredito que seja um arranjo provisório. Alguma coisa disso é novidade para você? Ou já sabia de tudo?

— Quase tudo — disse Poirot. — Há casos de insani­dade na família, dos dois lados?

— Creio que não, exceto pela velha tia e suas manias religiosas. Mas isso é comum com mulheres que vivem so­zinhas.

— Então, tudo o que me pode dizer, na realidade, é que há muito dinheiro na família — sumarizou Poirot.

— Muito dinheiro — concordou o Inspetor-Chefe Neele. — E tudo inteiramente respeitável. Uma parte, tome nota, foi trazida para a firma por Andrew Restarick. Concessões na África do Sul, minas, jazidas minerais. Creio que, quando essa parte começar a se desenvolver, ou for colocada nó mer­cado, o montante de dinheiro envolvido será realmente co­lossal.

— E quem herdará tudo isso?

— Depende do testamento de Andrew Restarick. É um problema dele, mas creio que, aparentemente, só existem a esposa e a filha.

— Então, ambas deverão, algum dia, receber uma enorme herança?

— Ah, certamente. Com os arranjos costumeiros na City: instituição de fundações e coisas do gênero.

— Não haveria, por acaso, alguma outra mulher em quem éle pudesse estar interessado?

— Ninguém ouviu falar coisa alguma a respeito. Nem acho provável. Ele tem uma esposa nova, bonita.

— Seria fácil para um certo rapaz — continuou Poirot, pensativamente — ficar sabendo de todas essas perspectivas?

— Você se refere a um caçador de dotes? Nada impe­diria, nem mesmo se ela fosse colocada sob a tutela de um juiz ou coisa semelhante. É claro que o pai poderia deser­dá-la, se quisesse.

Poirot examinou uma lista cuidadosamente datilografada.

— E o que me diz da Galeria Wedderburn?

— Estava só esperando que chegasse a ela. Algum clien­te o consultou sobre falsificações?

— Eles trabalham com falsificações?

— Ninguém trabalha com falsificações — corrigiu o Inspetor-Chefe, severamente. — Para falar a verdade, houve um caso bastante desagradável. Apareceu por aí um milionário texano, comprando quadros e pagando fortunas por eles. Ven­deram-lhe um Renoir e um Van Gogh. O Renoir era uma pe­quena cabeça de menina, e surgiram dúvidas sobre sua au­tenticidade. Mais não havia razão para acreditar que a Ga­leria Wedderburn não o tivesse comprado de boa-fé. Criou-se um grande caso, e uma porção de peritos foi chamada a opinar. Como sempre acontece, acabaram por se contradizer uns aos outros. A galeria se ofereceu para aceitar o quadro de volta, mas o milionário não quis, já que o perito mais em moda no, momento tinha jurado que era uma obra genuína. E ele ficou com a tela. Seja como for, daí em diante a galeria sempre es­teve sob suspeita.

Poirot novamente examinou sua lista.

— E a propósito do Sr. David Baker,? Mandou inves­tigá-lo para mim?

— Bem, esse é um tipo bastante comum, desses que andam em bandos, fazendo confusão em boates. Vive cheio de bolinhas: heroína, coca... e despedaçando jovens corações femininos. Elas sempre os defendem, cheias de lamúrias, dizendo que os pobres coitados tiveram uma vida tão dura, e que têm um talento maravilhoso, etc. e tal. Ele pinta, sem grande sucesso. Para mim, seu grande talento é exclusiva­mente sexual.

Poirot mais uma vez consultou a folha de papel.

— Sabe alguma coisa sobre Mr. Reece-Holland, o mem­bro do Parlamento?

Politicamente, vai muito bem. Tem jeito para a coisa, sem dúvida alguma. Uma ou duas transações um tanto es­tranhas na City, mas se livrou das conseqüências com muita classe. Bastante escorregadio, na minha opinião. Tem ganho um bom dinheiro, de vez em quando, de maneira um tanto duvidosa.

Poirot chegou ao último item. —- E sobre Sir Roderick Horsefield?

— Um bom velhote, embora gagá. Mas que nariz você tem, Poirot; fareja todas as embrulhadas, hein? Realmente, tem havido muita confusão no Special Branch.1É essa mania de autobiografias. Ninguém sabe de que lado vão surgir novas revelações indiscretas. Todos os velhos, militares e civis, estão competindo para ver quem publica primeiro as suas memórias sobre as indiscrições dos outros! Normalmente, não fazem grande diferença, mas, às vezes... ora, você sabe como é, os Gabinetes mudam suas políticas e não interessa entrar em choque com as suscetibilidades de ninguém, nem permitir qualquer publicidade negativa. Por isso, temos de tentar pôr uma mordaça nos velhotes, o que nem sempre é fácil. Mas, se você quiser meter o nariz a fundo nessa história, terá de re­correr ao pessoal do Special Branch. Mas não creio que haja nada demais. O problema é que os velhos se esquecem de destruir os documentos que deveriam ter queimado. Guardam tudo. Repito que não acho que haja coisa alguma de impor­tante com relação a Sir Roderick, mas temos indicações de que uma determinada potência está rondando por perto dele.

1 Special Branch - Uma das muitas organizações oficiais de espionagem e contra-espionagem na Inglaterra. O Special Branch é um departamento da Scotland Yard. (N. da T.)

Poirot soltou um longo suspiro.

— Não ajudei em nada? — perguntou o Inspetor-Chefe.

— Ê sempre útil conhecer o que se sabe no mundo oficial. Mas é verdade: não creio que o que me contou tenha ajudado.

Novamente suspirou, e continuou: — Qual seria a sua opinião se alguém lhe dissesse, no meio de uma conversa, que uma mulher — uma mulher jovem e atraente — usa uma peruca?

— Não pensaria nada de mais — respondeu Neele, acrescentando, com certa aspereza: — Minha mulher sempre usa perucas quando viajamos. É muito prático.

— Não me leve a mal — pediu Poirot.

Ao se despedirem, o Inspetor-Chefe perguntou: — Con­seguiu tudo o que queria com relação àquele caso de suicídio no prédio de apartamentos? Mandei-lhe o que tínhamos a respeito.

— Recebi, muito obrigado. Os dados oficiais, pelo menos. Pouco mais que um simples registro.

— Lembrei-me disso devido a alguma coisa que você disse há pouco. Deixe-me pensar. Foi um caso bastante comum, uma história bem triste. Uma mulher alegre, gostando de companhia masculina, com dinheiro suficiente para viver, sem maiores problemas, começa a beber demais e a decair. E fica com mania das doenças — sabe como é, convence-se de que tem câncer ou uma outra doença grave. Vai a médico, que lhe diz que ela não tem nada; mas volta para casa sem acre­ditar no médico. Por mim, acho que o motivo é sempre a des­coberta de que não atrai os homens como antes. É isso que a deprime. Acontece com muita freqüência. É a solidão, pobres coitadas. A Sra. Charpentier era assim. Não creio que... — ele parou. — Ah, sim, lembro-me agora. Você me perguntou sobre um membro do Parlamento, Reece-Holland. Ele é um bom malandro, embora muito discreto. De qualquer maneira, Louise Charpentier foi sua amante por uns tempos. Era isso.

— Foi uma ligação séria?

— Eu diria que não. Foram vistos juntos nuns clubes de reputação duvidosa, e coisas assim. Você sabe que observa­mos de longe essas situações. Mas nunca saiu nada publica­do sobre os dois. Nenhum escândalo.

— Entendo.

— Mas durou.bastante tempo. Andaram juntos uns seis meses, embora eu não creia que ela fosse a única — nem que ele fosse o único, também. Portanto, não há qualquer conclu­são a ser tirada, certo?

— Creio que não — concordou Poirot.

— Mesmo assim — ele disse paira si próprio, saindo — mesmo assim é mais um elo. Explica a encabulação do Sr. McFarlane. E é uma ligação, uma pequena ligação, entre a filha de Emlyn Reece-Holland, membro do Parlamento, e Louise Charpentier. Provavelmente, não significa coisa alguma. Por que significaria? No entanto...

Irritado, Poirot prosseguiu no monólogo íntimo: — Ora, eu sei coisas demais. Demais. Sei um pouco sobre tudo e sobre todos, mas isso não me ajuda a completar o quadro. Metade de todos esses fatos é irrelevante. E eu quero a seqüência, o quadro... Meu reino por um pouco de lógica! — exclamou, em voz alta.

— O que foi, senhor? — perguntou o cabineiro, olhando-o assustado.

— Não foi nada — respondeu Poirot.

 

Poirot parou na entrada da Galeria Wedderburn, para examinar uma tela que mostrava três vacas de semblantes agressivos, cujos corpos alongados se estendiam à sombra de um complexo conjunto de moinhos de vento. Os animais nada pareciam ter a ver um com o outro; muito menos, com o curio­so tom de púrpura do colorido.

— Interessante, não? — perguntou uma voz suave e felina.

Pertencia a um homem que surgira a seu lado; de meia-idade, exibia um vasto sorriso de dentes muito brancos. A impressão era a de que tinha duas vezes mais dentes do que a quota normal.

— Dá uma sensação de grande frescor, não acha? Suas mãos eram grandes, gordas e brancas; ele as agi­tava como se estivesse compondo um arabesco.

— Uma mostra muito inteligente. Terminou na semana passada. Agora estamos mostrando trabalhos de Claude Raphael, desde anteontem. Vai ter boa recepção. Muito boa, mesmo.

— Ah — comentou Poirot com grande sabedoria, per­mitindo que ele o fizesse entrar, passando por cortinas de veludo cinza, em uma sala comprida.

Poirot arriscou algumas opiniões cautelosas. O homenzinho o orientou com a tranqüilidade de uma longa prática. Tratava-se de um possível cliente que era necessário não afu­gentar. Sua experiência na arte de vender era grande; fazia com que as pessoas se sentissem à vontade para passar um dia inteiro na galeria sem comprar coisa alguma. Apenas admirando aqueles quadros belíssimos — embora, ao entrar, não tivessem parecido tão belos assim, Mas, ao sair, qualquer um estaria convencido de que "belíssimos" era o único superlativo adequado para descrevê-los.

O Sr. Boscombe geralmente começava por alguns comen­tários instrutivos. Esperava até que o visitante dissesse que "até que gosto daquele ali", para então lançar-se à ofensiva.

— É muito interessante essa sua opinião. Revela, se me dá licença, grande perspicácia. Não é uma reação comum. Quase todo o mundo prefere algo... digamos, mais óbvio, como aquilo ali — e apontava para uma tela coberta por listras verdes e azuis — mas isto aqui, realmente, o senhor soube ver a qualidade deste quadro. Eu diria... é claro que é uma opinião pessoal... eu diria que é uma das obras-primas de Raphael.

Poirot e ele inspecionaram juntos, de frente e de viés um losango irregular alaranjado, do qual pendiam, por um fio finíssimo, dois olhos humanos.

A essa altura, relações amistosas já estavam cimentadas e ninguém parecia ter pressa de ir a parte alguma. Poirot perguntou: — Creio que uma Jovem chamada Francês Cary trabalha aqui, não?

— Ah, sim. Francês. Uma menina inteligente. Tempe­ramento muito artístico, e muito competente, também. Voltou há pouco de Portugal, onde montou uma exposição para nós. Com muito sucesso. Ela própria é uma boa artista, mas não chega a ser realmente um espírito criador, compreende? Mas é realmente eficiente na parte administrativa. Ela reconhece isso inclusive.

— Pelo que sei, ela também é uma patronnesse des arts, não?

— Ah, certamente. Muito interessada em les jeunes. Vive estimulando os jovens artistas. Na última primavera, conven­ceu-me a montar uma exposição para um grupinho deles. Chegou a ter algum sucesso — a imprensa noticiou, inclusive — tudo muito modestamente, entende? De fato, ela tem os seus proteges.

— Eu sou um tanto antiquado. Alguns desses moços... vraiment! — e Poirot ergueu os braços para os céus.

— Ah, — disse o Sr. Boscombe, complacente — não deve se impressionar pelas aparências. Ê tudo uma questão de moda, percebe? Tudo isso de barbas, calças de zuarte, ca­belos compridos, camisas de brocado... tudo passa.

— Um certo David qualquer-coisa... — disse Poirot.

— Não me lembro o nome; a Srta. Cary parece que o con­sidera muito, não?

— Tem certeza de não estar confundindo com Peter Cardiff? É o seu protegido atual. Note bem que não chego a ter sobre ele a mesma opinião de Francês. Muitas preten­sões de avant-garde, mas, no fundo, um reacionário autêntico. Em certos quadros chega a lembrar... sem exagero... chega a lembrar Burne-Jones!1 É difícil ter certeza, é claro, mas é a minha impressão. Ela posa para ele, às vezes.

1 Burne-Jones - pintor inglês do século XIX, mais conhecido por seus trabalhos de inspiração romântica e neomedieval, muitos sob a forma de vitrais. (N. da T.)

— David Baker — era esse o nome que eu estava ten­tando lembrar — interrompeu Poirot.

— Não é mau — sentenciou o Sr. Boscombe, sem muito entusiasmo. — Sem muita originalidade, na minha opinião. Fez parte do grupinho de que falei, mas sem grande sucesso. Um bom pintor, entenda, mas nada de espetacular. Secundário!

Poirot voltou para casa. Miss Lemon lhe deu algumas cartas para assinar e ele obedeceu. George lhe serviu uma omelette fines herbes, acompanhada de sua silenciosa simpa­tia. Depois do almoço, quando Poirot já se instalava em sua cadeira de braços, com o café ao lado, o telefone soou.

— A Sra. Oliver, senhor — disse George, colocando o fone ao alcance de sua mão, sobre a mesinha.

Poirot o apanhou com relutância. A última coisa que de­sejava era falar com a Sra. Oliver. Temia que ela o levasse a fazer algo contra a sua vontade.

— Monsieur Poirot?

— Cest moi.

— Muito bem, o que está fazendo? O que anda fazendo?

— Estou sentado em uma cadeira — esclareceu Poirot.

— Pensando — acrescentou.

— Só isso?— espantou-se a Sra. Oliver.

— É o que poderia fazer de mais importante — disse Poirot. — Resta saber se serei bem sucedido. Ainda não sei.

— Mas é preciso encontrar aquela moça. Deve ter sido raptada.

— Realmente, é o que as aparências indicam — concor­dou Poirot. — E tenho aqui uma carta do pai, que chegou pelo correio da manhã, pedindo que vá vê-lo com urgência e perguntando se já fiz algum progresso.

— Exatamente: que progresso o senhor já fez, até agora?

— Até o momento — disse Poirot, com relutância — nenhum.

— Francamente, Monsieur Poirot, o senhor precisa dar um jeito na vida!

— Até a senhora...

— Até eu, o quê?

— Querendo me apressar.

— O senhor devia ir àquele lugar em Chelsea onde me atacaram.

— Para ser agredido também?

— Ah, eu simplesmente não o compreendo — desabafou a Sra. Oliver. — Eu lhe arranjei uma pista, quando encon­trei a moça no restaurante. O senhor mesmo disse isso.

— Eu sei, eu sei.

— E, então, o senhor vai e perde a moça!

— Eu sei, eu sei.

— E sobre aquela mulher que se atirou da janela? Não conseguiu tirar coisa alguma daquilo?

— Eu fiz umas investigações.

— E então?

— Nada. Um caso como outro qualquer. Uma mulher que foi bonita quando jovem, teve muitos romances, um tem­peramento passional. Continuou a ter romances, perdeu os atrativos, sentiu-se infeliz, começou a beber demais. Pensou que estivesse com câncer ou outra doença fatal qualquer — finalmente, mergulhada em solidão e desespero, atirou-se de uma janela! Um caso comum.

— O senhor disse que era uma morte importante — que significava alguma coisa.

— Pelo menos, deveria significar.

— Ora, francamente — à falta de outros comentários, a Sra. Oliver desligou.

Poirot se recostou na cadeira, tanto quanto possível, por se tratar de uma cadeira de espaldar reto. Com um gesto, determinou que George removesse o café e o telefone — e passou a refletir sobre o que sabia e o que não sabia. Para melhor esclarecer seus pensamentos, falou em voz alta, co­meçando por recordar três indagações filosóficas:

— O que sei? O que posso esperar? O que devo fazer? Não tinha muita certeza se as perguntas estavam na ordem correta; nem mesmo se eram as perguntas certas. Mas se dedicou a elas de qualquer maneira.

— Talvez esteja velho demais — disse, atingindo o de­sespero mais profundo. — O que sei?

Depois de uns momentos de reflexão, chegou à conclusão de que sabia demais! Portanto, deixou a pergunta de lado.

— O que posso esperar? — Bem, sempre se pode espe­rar por alguma coisa. Podia esperar que o seu maravilhoso cérebro, tão superior a qualquer outro, produzisse, mais cedo ou mais tarde, a resposta a um problema que, com certo mal-estar, ele sentia que realmente não compreendia.

— O que devo fazer? Bem, isto era bem claro. O que devia fazer era visitar o Sr. Andrew Restarick, que obvia­mente estava ansioso por notícias da filha, e que sem dúvi­da culparia Poirot por ainda não tê-la devolvido em pessoa. O detetive compreendia isso, e simpatizava com o ponto de vista do pai, mas não tinha qualquer interesse em ser visto sob luz tão desfavorável. A única outra coisa que lhe resta­va fazer era telefonar para um certo número e perguntar se havia alguma novidade.

Mas, antes que fizesse isso, deveria voltar à indagação que pusera de lado anteriormente.

— O que sei?

Sabia que a Galeria Wedderburn estava sob suspeita — até então, tinha-se mantido a salvo da lei, mas certamente não estaria acima de enganar milionários ignorantes, vendendo-lhes  quadros de origem duvidosa.

Recordou a figura do Sr. Boscombe, com suas mãos gordinhas e brancas, e seus dentes exuberantes, e decidiu que não gostava dele. Era o tipo de homem que fatalmente co­meteria suas trapalhadas, embora sempre se protegesse muito bem. Esse dado poderia ser útil, já que poderia revelar uma ligação com David Baker. E a propósito de David Baker, o Pavão? O que sabia sobre ele? Encontrara-o e conversaram; tinha algumas opiniões formadas sobre o rapaz. Faria qualquer sujeira por dinheiro; casar-se-ia com uma rica herdeira por dinheiro e não por amor; poderia, talvez, ser comprado. Cer­tamente poderia ser comprado. Andrew Restarick acreditava nisso, pelo menos, e deveria ter razão. A não ser que...

Refletiu sobre Andrew Restarick, pensando menos no homem do que no seu retrato, pendurado na parede atrás de sua cadeira. Lembrou-se das feições firmes, do queixo proe­minente, do ar resoluto, decidido. E pensou na falecida Sra. Restarick, nas linhas amargas de seus lábios... Talvez de­vesse voltar a Crosshedges e examinar aquele retrato com maior atenção: ali poderia haver uma pista para a compreen­são de Norma. Norma..., não, não deveria pensar em Norma, ainda. O que mais haveria?

Havia Mary Restarick, que, segundo Sônia, deveria ter um amante, devido às suas freqüentes idas a Londres. Pensou no assunto e concluiu que Sônia não tinha razão. Era muito mais provável, em sua opinião, que as viagens da Sra. Res­tarick a Londres fossem para examinar possíveis aquisições — apartamentos de luxo, casas em Mayfair, objetos de de­coração... enfim, tudo o que o dinheiro poderia comprar na metrópole .

Dinheiro... tinha a impressão de que tudo em que pen­sava acabava por chegar a esse mesmo ponto, sempre. Dinhei­ro. A importância do dinheiro. Havia muito dinheiro envolvi­do no caso. De alguma forma, não muito clara, o dinheiro era importante. Desempenhava um papel. Até então, nada justificara sua suspeita de que a morte da Sra. Charpentier poderia ter sido provocada por Norma. Nenhum sinal de prova, nenhum motivo. Entretanto, sentia que existia um elo, inso­fismável. A moça dissera que "poderia ter cometido um ho­micídio". E ocorrera uma morte, apenas um ou dois dias antes

— e no prédio em que ela morava. Não havia dúvida de que seria uma coincidência exagerada se não houvesse qualquer ligação com aquela morte. Pensou novamente na misteriosa doença que atacara a Sra. Restarick. Um caso tão simples a ponto de ser considerado, em suas linhas gerais, um clás­sico. Um envenenamento no qual o envenenador era — tinha de ser — alguém da casa. Teria Mary Restarick se envenenado, teria o marido tentado envenená-la, ou seria Sônia a culpada? Ou Norma? Tudo apontava — Poirot tinha de admitir— para Norma. Era a escolha mais lógica.

— Tout de même — ele disse — desde que não consi­go descobrir coisa alguma — eh bien — lá se vai a lógica para o lixo.

Suspirou. Levantou-se e pediu a George que lhe conse­guisse um táxi. Tinha de atender ao chamado de Andrew Restarick.

 

Naquele dia Claudia Reece-Holland não estava no escritório. Foi uma mulher de meia-idade que recebeu Poirot. Disse que o Sr. Restarick o estava esperando e fê-lo entrar.

— Então? — Restarick mal esperou que ele tivesse pas­sado da porta. — E minha filha?

Poirot abriu os braços

— Até agora... nada.

— Mas, francamente, meu caro, deve haver alguma coisa... alguma pista. Uma moça não pode desaparecer assim de uma hora para outra.

— Pode. Elas já o fizeram antes e sempre o farão.

— Eu não lhe disse para não poupar despesas, para gastar o que precisasse? Eu... eu não agüento mais esta si­tuação.

Ele parecia extremamente tenso. Mais magro, e os olhos, inchados, traíam noites em claro.

— Eu compreendo a sua ansiedade, mas asseguro que fiz todo o possível para localizá-la. Essas coisas, hélas, não podem ser apressadas.

— Ela pode estar com amnésia, ou... ela pode... quero dizer, pode estar doente.

Poirot intimamente deduziu o significado daquela inde­cisão no meio da frase. Restarick estivera a pique de dizer que "ela pode estar morta".

Sentou-se ao lado da mesa e disse:

— Acredite, por favor: compreendo muito bem o seu estado de espírito. Tenho a obrigação de lhe dizer, mais uma vez, que poderíamos obter resultados com muito maior rapidez se consultássemos a polícia.

— Não! — A palavra soou como um estampido.

— Eles têm maiores facilidades, mais linhas de investi­gação. Asseguro-lhe que não é apenas uma questão de dinhei­ro. O dinheiro não lhe pode dar os mesmos resultados que uma organização altamente eficiente.

— Meu caro, não adianta tentar me acalmar. Norma é minha filha — minha única filha, sangue do meu sangue...

— Tem certeza de que já me contou tudo — absoluta­mente tudo — sobre a sua filha?

— O que mais lhe posso contar?

— O senhor é quem sabe, não eu. Já houve, pôr exemplo, outros casos, no passado?

— Que casos? De que está falando, homem de Deus?

— Qualquer caso concreto de instabilidade mental.

— O senhor acredita... está pensando que...

— Não penso em nada. Como poderia pensar?

— E eu? — perguntou Restarick, com súbita amargu­ra. — O que sei eu sobre minha filha? Estes anos todos... Grace era uma mulher dura, que não perdoava nem esquecia com facilidade. Às vezes... às vezes penso que não tenha sido a pessoa certa para educar Norma.

Levantou-se, andou de um lado para o outro. Acabou por se sentar novamente.

— É claro que sei que não deveria ter abandonado minha esposa. Eu sei disso. Deixei que ela criasse a nossa filha. Acontece que, naquela época, consegui convencer-me de que estava certo. Grace tinha excelente formação, era devotada a Norma. Parecia, por todos os motivos, ser a pessoa certa. Mas... terá sido, mesmo? Algumas das cartas que me escreveu pareciam transpirar ódio, desejo de vingança. Acho que era uma reação natural A verdade é que passei muitos anos longe daqui. Devia ter voltado, ter vindo muitas vezes, para ver como ia a minha filha Sempre tive remorsos, acho eu. Ah, não adianta procurar desculpas, agora.

Encarou Poirot com firmeza.

— Quando nos reencontramos, é verdade que achei ás atitudes de Norma um tanto neuróticas, rebeldes. Tive a es­perança de que ela e Mary, depois de algum tempo... con­seguissem se dar bem. Mas confesso que minha impressão era de que ela não era inteiramente normal. Pensei que fosse melhor para ela ter um emprego em Londres e ir passar apenas os fins-de-semana em casa, para não ser forçada a viver ao lado de Mary todo o tempo. Ah, provavelmente devo ter contribuído para complicar tudo. Mas., onde está ela, Monsieur Poirot? Onde estará? Acredita que possa ter perdido a memória? Já ouvi falar de casos assim

— É verdade — disse Poirot, — é sempre uma possibi­lidade. No estado em que se encontra, pode estar vagando por aí sem saber quem é. Ou pode ter sofrido um acidente. Isso não é muito provável. Pode ficar descansado de que fiz uma investigação completa em hospitais e outros lugares pos­síveis.

— O senhor não pensa... não acredita que esteja morta?

— Se estivesse, seria muito mais fácil encontrá-la, isso lhe garanto. Acalme-se, por favor, Sr. Restarick. Lembre-se de que ela pode ter amigos que o senhor desconheça. Amigos em qualquer parte da Inglaterra, que ela pode ter conheci­do quando vivia com a mãe ou com a tia, ou amigas de ami­gas de colégio. Todas essas coisas levam tempo a ser escla­recidas. Pode ser... é melhor o senhor se preparar para isso... que ela esteja com algum namorado.

— David Baker? Se eu tivesse certeza...

— Ela não está com David Baker. Essa — Poirot es­clareceu com secura — foi uma das primeiras coisas que apurei.

— Como vou saber quais são os seus amigos? — Res­tarick suspirou. — Se eu a descobrir, quando eu a descobrir, melhor dizendo, vou afastá-la de tudo isso.

— Tudo isso, o quê?

— Deste país. Não tive um momento de tranqüilidade, Monsieur Poirot, desde que voltei. Sempre odiei a vida na City, essa repetição irritante da rotina do escritório, as eter­nas negociações com advogados e banqueiros. Sempre gostei de um tipo de vida — viajar, andar de um lugar para outro, indo a lugares inóspitos, inacessíveis. Essa é a vida de que eu gosto. Nunca devia tê-la abandonado. Deveria ter mandado buscar Nonna, levá-la para a África. E é o que vou fazer, quando encontrá-la. Já tenho recebido muitas propostas para vender meus negócios. Pois muito bem: podem ficar com tudo e quase de graça. Pegarei o dinheiro e voltarei para uma terra que signifique alguma coisa, que seja real, sólida..

— Ah! E o que dirá sua esposa de tudo isso?

— Mary? Ela está acostumada àquela vida. É de onde ela veio.

— Para les femmes com muito dinheiro — lembrou Poirot — Londres pode ter muitos encantos.

— Ela ficará ao meu lado.

O telefone, sobre sua mesa, tocou. Ele levantou o fone.

— Alô? De Manchester? Está bem. Se for Claudia Reece-Holland, pode ligar.

Esperou por um momento.

— Alô, Claudia. Sim. Fale mais alto... a ligação está ruim. Não consigo ouvir. Concordaram?... Ah, que pena... Não, acho que fez muito bem... Certo... Está bem, então. Volte no trem desta noite. Conversaremos amanhã de manhã.

Devolveu o fone ao aparelho e comentou: — Uma jovem muito competente.

— A Srta. Reece-Holland?

— Ela mesma. Muito competente. É o meu braço direito. Dei-lhe carta branca para resolver esse negócio em Manches­ter como achasse melhor. Não podia mesmo me concentrar no caso. E ela se saiu muito bem. Vale tanto quanto um homem.

Olhando para Poirot, subitamente voltou ao presente.

— Ah, sim, Monsieur Poirot. Desculpe se me excedi. Precisa de algum dinheiro para despesas?

— Não, Monsieur. Prometo-lhe que farei o possível para devolver a sua filha, sã e salva. Tomei todas as precauções necessárias para a sua segurança.

Saiu; ao chegar à calçada, parou um instante, olhando para o céu.

— Uma resposta concreta para apenas uma pergunta — ele disse. — É tudo o que preciso.

 

Até um passado recente, aquela casa respeitável, cm estilo georgiano, repousara numa rua silenciosa de uma pe­quena cidade próxima a Londres. Poirot, parado na calçada, verificou que o progresso já havia começado a desfazer aquela atmosfera de tranqüilidade. O supermercado, as boutiques, os cafés e um banco palacial, todos os escalões avançados da civilização moderna, enfim, haviam se instalado nas vi­zinhanças.

A aldabra de bronze estava polida como um espelho, o que Poirot notou com agrado. Apertou a campainha ao lado.

A porta foi aberta quase instantaneamente por uma mulher alta, de aparência distinta, com cabelos grisalhos pen­teados para trás. Tinha um ar enérgico.

— Monsieur Poirot? O senhor é muito pontual. Entre.

— Srta. Battersby?

— Exatamente — ela lhe deu passagem, e Poirot entrou. Seu chapéu foi depositado numa mesinha do corredor, e ela o levou até uma sala confortável, dando para um pequeno jardim murado.

Indicou-lhe uma cadeira e sentou-se, esperando Era evi­dente que a Srta. Battersby não costumava perder tempo com frases formais.

— A senhora foi diretora da Escola Meadowfield, não?

— Fui. Aposentei-me há um ano. Pelo que entendi, c senhor quer conversar comigo sobre Norma Restarick, uma ex-aluna?

— Isso mesmo.

— Em sua carta — ela continuou — o senhor não deu outros detalhes. Devo dizer que sei quem o senhor é, Monsieur Poirot. Portanto, gostaria de ter mais algumas informa­ções, antes de seguir adiante. Por acaso está pensando em dar um emprego a Norma Restarick

— Não. Não tenho essa intenção.

— Sabendo a sua profissão, preciso de mais detalhes. Por exemplo, o senhor trouxe alguma carta de apresentação dos pais de Norma?

— Outra vez, não — disse Hercule Poirot. — Mas posso explicar.

— Obrigada.

— Na verdade, fui contratado pelo pai da Srta. Restarick, Sr. Andrew Restarick.

— Ah. Ele voltou à Inglaterra há pouco tempo, depois de muitos anos fora segundo soube.

— Exatamente.

— Mas ele não lhe deu uma carta para mim?

— Eu não lhe pedi.

A Srta. Battersby o olhou com curiosidade.

— Ele poderia insistir em vir também — disse Poirot. — Isso prejudicaria certas perguntas que lhe quero fazer, já que as respostas poderiam magoá-lo. Não há motivo para dar-lhe mais aborrecimentos do que os que já tem no mo­mento .

— Aconteceu alguma coisa com Norma?

— Espero que não... Mas há uma possibilidade que sim. A senhora se lembra dela, Srta. Battersby?

— Lembro-me de todas as minhas alunas. Minha me­mória é excelente. De qualquer maneira, Meadowfield não é uma escola grande. Apenas duzentas meninas.

— Por que se aposentou, Srta. Battersby?

— Francamente, Monsieur Poirot, não vejo a razão de seu interesse.

— Nenhuma, na verdade. Apenas uma curiosidade na­tural .

— Tenho setenta anos. Não é um bom motivo?

— Não em seu caso, eu acho. Não me parece que a se­nhora tenha perdido suas energias; acho-a bastante capaz de dirigir um colégio por muitos anos ainda.

— Os tempos mudam, Monsieur Poirot. Às vezes, não gostamos da maneira pela qual eles mudam. Vou satisfazer sua curiosidade — descobri que cada dia que passava tinha menos paciência com os pais. Suas ambições para as filhas me pareciam secundárias; para falar com franqueza, estúpi­das.

Poirot se tinha informado sobre as credenciais da Sra. Battersby: era uma matemática de renome.

— Não pense que levo uma vida ociosa — continuou ela. — Apenas descobri um trabalho que me agrada mais. Dou aulas particulares a estudantes adiantados. E agora, por favor, posso saber o motivo de seu interesse por Norma Res­tarick?

— Temos razões de preocupação. Em duas palavras, ela desapareceu.

A Srta. Battersby não deu mostras de alarma.

— De fato? Imagino que esse desaparecimento signifi­que que ela saiu de casa sem dizer aos pais para onde ia. Ah, lembro-me que a mãe morreu — então, sem dizer ao pai. Isso é bastante comum hoje em dia, Monsieur Poirot. O Sr. Res­tarick não chamou a polícia?

— Ele se recusa, terminantemente. Nem quer falar nisso.

— Bem, eu posso garantir-lhe que não tenho a menor idéia de onde esteja essa menina. Não tenho notícias suas há muito tempo; na verdade, desde que saiu de Meadowfield. Por isso, acho que não posso ajudá-lo.

— Mas não é esse o tipo de informação de que preciso. Quero saber que tipo de moça ela é — como a senhora a des­creveria. Não falo de sua aparência pessoal. Nada disso. O que quero é sua personalidade, seu caráter.

— No colégio, Norma era uma menina inteiramente comum. Não era uma aluna brilhante, mas eficiente.

— Não seria um tipo neurótico?

A Srta. Battersby pensou, antes de responder, falando pausadamente.

— Não, eu diria que não. Pelo menos, não mais do que seria de esperar, em vistas das circunstâncias em sua casa.

-- A senhora se refere à mãe?

— Sim. Ela vinha de lar desfeito. O pai, ao qual acho que era muito devotada, saiu de casa repentinamente, com outra mulher, o que, naturalmente, provocou uma reação negativa em sua mãe. Ela, com certeza, perturbava demais a filha revelando abertamente o seu ressentimento.

— Talvez fosse mais objetivo se eu lhe pedisse sua opi­nião sobre a falecida Sra. Restarick.

— Quer saber a minha opinião pessoal?

— Se não se incomodar...

— Não. Não tenho qualquer problema em responder às suas perguntas. As condições familiares são muito importan­tes na vida de uma menina, e sempre me interessei por elas, através das poucas informações que chegava às minhas mãos. A Sra. Restarick era uma mulher de valor, digna. E também dona da verdade, severa e prejudicada pelo fato de ser ex­tremamente estúpida!

— Ah — disse Poirot, interessando-se.

— Também acredito que tenha sido uma malade imaginaire. O tipo que sempre exagera suas doenças, que vive en­trando e saindo de casas de saúde. Um péssimo ambiente familiar para uma menina — especialmente uma menina que não tenha uma personalidade definida. Norma não tinha am­bições intelectuais marcantes, nenhuma confiança em si mes­ma; não era uma menina a quem eu recomendasse seguir uma carreira. Um bom emprego comum, seguido de casamento e de filhos, é o que seria melhor para ela.

— A senhora nunca percebeu... desculpe perguntar... nenhum sinal de instabilidade mental?

— Instabilidade? — perguntou a Srta. Battersby. — Que bobagem!

— É esta a sua opinião: uma bobagem? Nenhuma neu­rose?

— Qualquer menina, ou quase qualquer uma, pode ser neurótica, principalmente na adolescência, e em seus primei­ros choques com o mundo. Geralmente, é imatura, precisa de orientação em seus primeiros contatos com problemas sexuais. Freqüentemente, interessam-se por rapazes inteiramente ina­dequados, às vezes até perigosos. Hoje em dia, poucos pais têm a força de caráter suficiente para salvá-las disso, e as pobres coitadas muitas vezes atravessam um período neuró­tico quase sempre acabando em casamentos errados e divór­cios rápidos.

— Mas Norma nunca mostrou sinais de instabilidade mental? — Poirot insistia na pergunta.

— Ela é uma moça emotiva, mas normal — disse a Srta. Battersby. Ora instabilidade mental! Repito: uma bobagem! Na certa, ela fugiu com algum rapaz, para se casar — e não há nada mais normal do que isso!

 

Poirot estava sentado em sua cadeira de espaldar reto. Suas mãos repousavam nos braços da cadeira, enquanto os olhos estavam fixos na lareira à sua frente, embora sua aten­ção estivesse muito distante. Ao lado, em uma mesinha, es­tavam diversos documentos, cuidadosamente grampeados. Re­latórios do Sr. Goby, informações obtidas do Inspetor-Chefe Neele, uma série de páginas intituladas "Boatos e rumores", cada qual trazendo anotada a fonte de onde haviam partido as notícias que continha.

No momento, ele não precisava consultar qualquer papel. Já lera todos cuidadosamente; estavam ali apenas porque talvez precisasse refrescar a memória sobre algum item. O que pretendia fazer agora era reunir na mente tudo o que sabia e aprendera — tinha a certeza de que, de tudo aquilo, emergeria um quadro. Tinha de haver um quadro completo. Mas qual seria o ângulo certo para começar? Não era de seu feitio confiar em intuições. Não acreditava nelas — embora não desprezasse suas opiniões. O importante não eram as opiniões — mas os fatos que as tinham feito nascer. Os fatos é que eram interessantes; e, nem sempre, os fatos eram o que pareciam ser. Freqüentemente, o trabalho exigia uma com­binação de lógica, informações e impressões.

O que sentiria ele em relação àquele caso — e que es­pécie de caso era aquele? Era preciso partir do geral para o particular. Quais eram os fatos salientes?

Dinheiro era um deles, pensou, embora não soubesse de que forma. Dinheiro, de uma maneira ou de outra... Também sentia, e a cada momento com maior intensidade, que havia algo de maligno, em alguma parte. Ele conhecia o mal — já o encontrara antes, Conhecia o seu travo e o seu gosto, seus fins e processos. O problema era que, agora, não sabia exa­tamente onde ele estava. Tinha tomado algumas providên­cias para enfrentá-lo, e esperava que fosse o bastante. Algu­ma coisa estava acontecendo, algo se desenvolvia, algo que ainda não estava concluído. Alguém, em alguma parte, estava cm perigo.

Mas acontecia que os fatos apontavam em duas dire­ções. Se a pessoa que ele acreditava estar em perigo realmente estava em perigo, a verdade é que não sabia por quê. Por que estaria aquela pessoa, especialmente ela, em perigo? Não havia razão. E, se não estivesse em perigo, então a abordagem do problema tinha de ser inteiramente revista... Tudo o que apontava em uma direção teria de ser posto ao contrário, e examinado sob um ponto de vista inteiramente oposto.

Deixou esse raciocínio temporariamente em suspenso, e passou para as personalidades. As pessoas. Que quadro for­mariam? Que papéis desempenhavam?

Em primeiro lugar — Andrew Restarick. Já tinha acumu­lado uma boa quantidade de informações sobre Andrew Res­tarick. Um panorama geral de sua vida, antes e depois de viver fora do país. Um homem inquieto, nunca se prendendo a um lugar ou a um objetivo, mas de maneira geral simpati­zado por todos. Não era um gastador, nem parecia ser falso, ou ardiloso. Talvez não tivesse uma personalidade forte. Seria um fraco, sob certos pontos de vista?

Poirot franziu o sobrolho, insatisfeito. Era um quadro que, de alguma forma, não servia para o Andrew Restarick que conhecera em pessoa. Certamente não era um fraco — isso desmentiam o queixo resoluto, os olhos firmes, o ar deci­dido. E tinha sido, aparentemente, um homem de negócios bem sucedido. Eficiente na juventude, vitorioso na África e na América do Sul. Aumentara seus bens, trazendo para casa uma biografia de êxitos, não de malogros. Como, então, po­deria ter uma personalidade fraca? Talvez fosse fraco apenas em relação às mulheres. Seu casamento fora um erro — casa­ra-se com a mulher errada... talvez, pressionado pela famí­lia? E, depois, encontrara aquela outra mulher. Apenas aquela? Ou uma série delas? Era difícil fazer um levantamento, depois de tantos anos. Certamente, não fora um marido notoriamen­te infiel. Tivera um lar normal e, segundo todas as informa­ções, gostava da filha. Mas encontrara uma mulher pela qual se apaixonara a ponto de abandonar a família e o país. Um verdadeiro caso de amor.

Combinado, talvez, com um motivo adicional? Desgosto com o trabalho de escritório, com a City, com a rotina diária de Londres? Poirot acreditava que sim. Combinava com o tipo. O homem também parecia ser um tipo solitário. Todos o apreciavam, na Inglaterra e no exterior, mas não havia amigos íntimos. Na verdade, no exterior ser-lhe-ia bastante difícil conseguir amigos íntimos, já que nunca passara tempo sufi­ciente num só lugar. Sempre arriscando-se numa jogada, ten­tando uma cartada, vencendo, cansando-se de tudo, seguindo adiante... um nômade! Um verdadeiro judeu errante.

Tudo isso ainda não se encaixava bem no quadro que ele' formara do homem... o quadro? A palavra trouxe ao seu pensamento lembranças da tela pendurada no escritório de Restarick, atrás de sua mesa. Um retrato do mesmo homem, com quinze anos de diferença. E, que diferenças tinham ha­vido, em quinze anos, naquele homem? No todo, surpreenden­temente, muito poucas! Uns cabelos grisalhos, os ombros mais caídos —' mas as linhas características do rosto eram as mesmas. Um rosto decidido. Um homem que sabia o que queria, e que não titubearia para consegui-lo. Que correria riscos. Um homem, de certa forma, cruel.

Por que, divagou Poirot, teria Restarick trazido aquele quadro para Londres? Era um par de retratos, de marido e mulher. Do ponto de vista estritamente artístico, deveriam ter ficado juntos. Um psicólogo talvez dissesse que, subconscientemente, Restarick quisera mais uma vez dissociar-se de sua primeira esposa, separar-se definitivamente dela. Estaria <ele, mentalmente, ainda se afastando da mulher, embora ela já estivesse morta? Um ponto interessante...

Certamente, os quadros haviam saído de algum guarda-móveis juntamente com outras peças da família. Mary Res­tarick devia ter escolhido alguns objetos pessoais para com­pletar o mobiliário de Crosshedges, com permissão de Sir Roderick. Pensou se Mary Restarick, à segunda esposa, tivera algum prazer em colocar na parede aquele par de retratos.

Teria sido mais natural que tivesse pendurado o da primeira esposa no sótão! Concluiu que, provavelmente, não haveria, em Crosshedges, um sótão para objetos indesejados. Com certeza Sir Roderick tivera lugar apenas para guardar alguns objetos, enquanto o casal procurava uma casa adequada em Londres. Assim, fora mais prático pendurar os dois retratos. Além disso, Mary Restarick parecia ser uma mulher de bom senso — e não do tipo ciumento, ou emotivo.

— Tout de même — pensou Poirot — les femmes são sempre capazes de ciúmes; muitas vezes, as que menos apa­rentam são as mais ciumentas.

Seus pensamentos passaram para Mary Restarick; ele a analisou. Impressionou-o o fato, realmente estranho, de que tinha muito poucas conclusões a seu respeito! Vira-a apenas uma vez e, de uma forma ou de outra, ela o impressionara pouco. Uma certa eficiência, pensou, e também um certo... como diria?... um certo artificialismo? ("Não se esqueça, meu amigo — disse Poirot, num parênteses — que está pen­sando em sua peruca!").

Era realmente absurdo saber tão pouco sobre uma mulher — uma mulher eficiente, que usava uma peruca, que era atraente, equilibrada e capaz de sentir raiva. Ela se enraive­cera quando encontrara o Pavão vagando, sem ser convidado, em sua casa. Mostrara sua irritação abertamente, sem deixar margem a dúvidas. E o rapaz — que reação tivera? Parecera estar se divertindo, nada mais. Mas ela estava realmente zan­gada por encontrá-lo ali. O que era natural: nenhuma mãe o escolheria para sua filha.

Poirot interrompeu o fluxo de pensamentos, sacudindo a cabeça, com irritação. Mary Restarick não era a mãe de Norma. Não lhe cabiam as preocupações, não lhe pertencia a agonia de ver uma filha fazendo um casamento infeliz, ou anunciando a geração de um filho ilegítimo com um pai ina­dequado! O que sentiria Mary em relação a Norma? Prova­velmente, e antes de mais nada, acharia que se tratava de uma jovem extremamente cansativa, que se ligara a um rapaz que, certamente, traria preocupações e desgosto a Andrew Resta­rick. Mas, além disso? O que pensaria ela, o que sentiria a respeito de uma enteada que aparentemente estava tentando envenená-la?

A sua atitude revelara bom senso. Procurara afastar Norma de casa, removendo, assim, a causa do perigo. E ajudar o marido a evitar um escândalo. Para manter as apa­rências, Norma ainda passava um ou outro fim-de-semana em casa, mas era em Londres que vivia. Mesmo quando os Restaricks se mudassem para a casa que estavam procurando na cidade, certamente não chamariam Norma para morar com eles. A maioria das moças, hoje em dia, não vive com os pais; portanto não haveria problema.

Mas, para Poirot, outro problema ainda existia: quem dera veneno a Mary Restarick? O próprio Sr. Restarick acre­ditava que fora a sua filha... Mas Poirot tinha as suas dú­vidas ...

Pensou em Sônia — seria uma possibilidade a estudar? O que realmente fazia ela naquela casa? Por que estaria lá? Não havia dúvida de que controlava inteiramente Sir Roderick... talvez não pretendesse voltar para sua terra, e seus objetivos fossem estritamente matrimoniais. A todo instante se vêem homens da idade de Sir Roderick casando-se com meninas bonitas. Do ponto de vista material, seria um bom negócio para Sônia. Uma posição social garantida, uma pers­pectiva de viuvez não muito longínqua, com bons rendimen­tos... Ou seriam inteiramente diferentes os seus objetivos? Teria ela ido a Kew Gardens com os documentos desapareci­dos de Sir Roderick escondidos entre as páginas de um livro?

Teria Mary Restarick suspeitado de suas atividades, de sua lealdade? Teria desconfiado do que ela fazia em seus dias de folga, das pessoas com as quais se encontrava? E teria Sônia, em conseqüência, trazido para casa uma substância que, administrada em pequenas doses, cumulativamente, produzisse sintomas idênticos aos de uma doença gástrica?

Muito bem. Provisoriamente, ele afastou do pensamento Crosshedges e seus moradores.

Passou para Londres — como Norma o fizera — e ini­ciou a análise de três moças que dividiam um apartamento.

Claudia Reece-Holland, Francês Cary, Norma Restarick. Claudia Reece-Holland, filha de um conhecido parlamentar, rica, capaz, bem preparada, bonita, uma secretária de primeira classe. Francês Cary, filha de um advogado do interior, de temperamento artístico, estudara teatro durante algum tempo; depois, pintura, que também abandonara; trabalhara ocasionalmente para o Conselho das Artes e, agora, para uma ga­leria. Ganhava um bom salário, vivia em ambiente boêmio. Conhecia David Baker, embora superficialmente, segundo as aparências. Talvez estivesse apaixonada por ele? Era o tipo de rapaz — pensou Poirot — geralmente antipatizado por pais membros do Establishment1e também pela polícia, em­bora sempre atraente para moças bem-nascidas, por motivos fora da compreensão de Poirot. Mas era um fato do qual não se podia fugir. E qual deveria ser a sua opinião de David?

1 The Establishment — a expressão, nascida no tempo em que o sol não se punha no Império Britânico, define o núcleo da sociedade, essen­cialmente estável e conservador, onde se reúnem os setores mais aristo­cráticos da nobreza, do comércio e da indústria, das artes, da política etc.

 

Um bonito rapaz, cujo ar impudente e levemente irôni­co ele conhecera rio patamar da escada de Crosshedges, onde o jovem talvez estivesse em obediência a um pedido de Norma — ou por sua própria conta, quem poderia saber? Vira-o no­vamente quando lhe dera uma carona em seu carro. Um rapaz com bastante personalidade, dando a impressão de que sairia bem na atividade que escolhesse. Com tudo isso, havia algo de insatisfatório a seu respeito. Poirot estudou um dos do­cumentos colocados na mesinha a seu lado. Uma ficha ruim, mas sem coisa alguma de positivamente criminoso. Pequenas fraudes em garagens, vandalismo, duas vezes solto sob fian­ça. Nada de extraordinário, nos dias de hoje, nada que Poirot caracterizasse como maligno. Chegara a ser um pintor pro­missor, mas abandonara a carreira. Não tinha trabalho certo. Era vaidoso e orgulhoso, um pavão apaixonado pela sua pró­pria aparência. Seria algo mais, além disso? Poirot não sabia.

Esticou o braço e apanhou uma folha de papel onde es­tavam anotados os principais tópicos da conversa entre Norma e David no restaurante — com tanta fidelidade quanto a Sra. Oliver fora capaz. E qual seria — pensou Poirot — a eficiên­cia da memória de sua amiga? Sacudiu a cabeça, em dúvida; era sempre impossível determinar o ponto em que a imaginação da Sra. Oliver assumia controle sobre os fatos. O rapaz real­mente gostaria de Norma, queria mesmo casar-se com ela? Não havia dúvidas quanto aos sentimentos dela por ele. E fora ele quem sugerira o casamento. Teria Norma fortuna própria? Era filha de um homem rico, mas isso não era a mesma coisa. Poirot não pôde reprimir uma exclamação de irritação consigo mesmo. Esquecera-se de verificar os termos do testamento da falecida Sra. Restarick. Folheou as folhas ,de anotações. Não, o Sr. Goby não negligenciara um ponto tão óbvio. Aparentemente, a Sra. Restarick, cm vida, fora adequadamente sustentada pelo marido. Tinha uma renda própria, num montante aproximado de mil libras anuais. Dei­xara tudo para a filha — mas, na opinião de Poirot, o total não chegava a justificar um casamento. Provavelmente, como filha única, ela herdaria muito dinheiro com a morte do pai, mas isso era bem diferente. O pai poderia deixar-lhe muito pouco, se não gostasse do homem com quem ela estivesse casada.

Concluiu, assim, que David' realmente gostava da moça, já que estava disposto a se casar com ela. No entanto... Poirot sacudiu a cabeça. Era a quinta vez que o fazia. Todos aqueles fatos não se encaixavam em um quadro satisfatório. Lembrou-se da mesa de Restarick, do cheque que estivera preenchendo — aparentemente para comprar o rapaz — e o rapaz, também aparentemente, mostrava-se disposto a se deixar comprar! Mais uma contradição. Não havia dúvida de que o cheque era para David Baker, e era de uma quantia bastante grande — quase fantástica. Suficiente para tentar qualquer rapaz de poucos recursos e nenhum caráter. No en­tanto, apenas um dia antes, ele a pedira em casamento. Isso, é claro, poderia ser apenas uma hábil jogada, para elevar o preço que estaria exigindo. Poirot lembrou-se da expressão de Restarick, sentado à sua mesa, com os lábios apertados. Devia se preocupar muito com a filha, para estar disposto a pagar tão alta quantia; e devia, também, temer que ela esti­vesse realmente disposta a se casar.

Seus pensamentos seguiram em frente: de Restarick para Claudia. Claudia e Andrew Restarick. Seria por acaso, mero acaso, que ela viera a ser sua secretária? Poderia haver algum elo entre ambos. Claudia. Poirot a examinou. Três moças num apartamento, no apartamento de Claudia Reece-Holland. Era ela a primeira inquilina, que o dividira com uma amiga, uma moça que já conhecia, e depois com outra, com uma terceira moça. A terceira moça, pensou Poirot. Sempre acabava vol­tando a isso: a terceira moça. Suas divagações sempre aca­bavam nela, não podiam deixar de levar a ela. Norma Restarick.

A moça que o viera procurar na hora do café. A moça que ele encontrara num restaurante, onde, momentos antes, ela estivera comendo torradas com o rapaz que amava. (Pa­recia que só a via antes ou depois das refeições!) E qual seria a sua opinião sobre ela? Ou melhor, qual seriam as opiniões das outras pessoas sobre ela? Restarick gostava da filha e era evidente o seu desespero, a sua ansiedade, o seu temor de que algo lhe tivesse acontecido. Ele não suspeitava, apenas — tinha certeza, aparentemente, de que ela tentara envenenar sua nova esposa, Consultara um médico a respeito. Poirot pensou que gostaria muito de conversar com esse mé­dico, embora duvidasse que isso tivesse algum resultado prá­tico. Os médicos costumam relutar muito em fornecer infor­mações sobre pacientes, a não ser a pessoas devidamente cre­denciadas, como os pais. De qualquer forma, ele bem podia imaginar o que teria dito o médico. Certamente teria sido cauteloso — pensou — como os médicos costumam ser.

Depois de muitos volteios, teria mencionado a necessidade de tratamento, sugerindo, indiretamente — embora sem qualquer ênfase — que se tratava de um problema mental. No íntimo, o médico estaria convencido de que não era outra coisa; en­tretanto, já deveria ter visto muitos casos de jovens histéricas, cujas ações muitas vezes não eram conseqüência de distúrbios mentais, mas de estados emocionais, causados por ciúme ou ódio. Esse médico, muito provavelmente, não seria um psiquia­tra ou neurologista, mas um clínico que não se arriscaria a fazer afirmações sem uma base concreta, e que, por prudên­cia, sugeriria algumas providências úteis. Que lhe arranjas­sem um emprego, em algum lugar... em Londres, por ,exemplo, e, mais tarde, que consultasse um especialista.

Que outras opiniões haveria sobre Norma Restarick? A de Claudia Reece-Holland? Ele não sabia qual seria. Conhe­cia-a muito ligeiramente. O bastante para verificar que era uma mulher capaz de esconder qualquer segredo, de não deixar escapar coisa alguma que não quisesse revelar. Não dera sinais de desejar que Norma saísse do apartamento — o que poderia ter feito, caso suspeitasse de seu desequilíbrio mental.

Francês e ela não teriam tido muitas oportunidades de dis­cutir o assunto, desde que a primeira, inocentemente, revela-

ra que Norma não havia voltado para lá desde o seu último fim-de-semana em casa. Claudia não gostara do deslize. Era possível que estivesse mais enfronhada no caso do que pare­cia. Tinha uma boa cabeça, pensou Poirot, e era competen­te... Ele voltou a Norma, uma vez mais retornando à ter­ceira moça. Qual seria o seu lugar, no quadro que ele não conseguia ver por inteiro? Encontrado esse lugar, tudo o mais se arrumaria. Seria uma Ofélia? Mas também sobre Ofélia existiam duas escolas de pensamento, como em rela­ção a Norma. Seria Ofélia louca, ou apenas fingia a loucura? Na interpretação do papel, as atrizes — melhor dizendo, di­retores teatrais — podiam seguir um ou outro caminho. Seria Hamlet louco ou são? É uma questão de gosto. Seria Ofélia louca ou sã?

Restarick não empregaria a palavra louca em relação à filha, nem mesmo em seus pensamentos. A expressão que todo o mundo parecia preferir era "mentalmente desequilibrada". Outra forma de referência ao estado de Norma fora "maluquinha". "Ela é meio maluquinha". "Vive no mundo da lua". "Uma telha de menos, sabe como é?" Qual o valor dos diag­nósticos de empregados domésticos? Algum valor teriam, cer­tamente, na opinião de Poirot. Havia realmente algo de es­tranho naquela moça, pensou Poirot, mas ele não sabia o quê. Lembrou-se da figura de Norma entrando em sua sala de estar. Uma moça de hoje, o tipo moderno, que se encon­tra em toda a parte. Os cabelos escorrendo sobre os ombros, a roupa despersonalizada, os joelhos descarnados — tudo isso, para os seus olhos antiquados, revelava apenas uma jovem adulta tentando parecer uma criança.

— Desculpe, mas o senhor é velho demais.

Talvez fosse verdade. Ele a examinara com os olhos de uma pessoa muito mais velha, sem qualquer admiração; para ele, tratava-se apenas de uma moça sem interesse em agradar, sem coqueteria — uma jovem sem qualquer noção de sua própria feminilidade — sem charme, nem mistério, nem se­dução; enfim, sem nada a oferecer, a não ser, talvez, uma atração sexual de natureza exclusivamente biológica. Talvez ela tivesse razão ao condená-lo. Ele não estaria em condições de ajudá-la, porque não podia compreendê-la, nem mesmo apreciá-la. Fizera o possível, mas até o momento, quanto valera o seu esforço? Em que pudera responder ao seu primeiro apelo? Em sua mente, a resposta veio com rapidez: ele a mantivera em segurança. Ao menos isso. Naturalmente, se fosse verdade que ela precisava ser mantida a salvo de algu­ma coisa. Nisso estava todo o problema — precisava ela de segurança? Aquela confissão absurda! Na verdade, menos uma confissão do que uma declaração: "Acho que cometi um homicídio”

Era necessário se prender a essa frase, que era o núcleo de todo o caso. Era a sua especialidade, não era? Tratar de homicídios, esclarecê-los, impedi-los! Ser o bom cão de fila que rastreia o crime. Há um homicídio anunciado. Em algum lugar, há um homicídio. Ele o procurara, não o encontrara. Seria uma peça do quebra-cabeças o arsênico na sopa? Ou os jovens transviados se agredindo a facadas? Aquela frase sinistra e ridícula — manchas de sangue no pátio... Um tiro disparado de um revólver. Contra quem? Por quê?

Não era como deveria ser, um tipo de crime que se en­quadrasse nas palavras que ela dissera: "Acho que cometi um homicídio." Ele estivera tateando no escuro, procurando com­por um quadro, descobrir um esquema criminoso, procurando localizar onde a terceira moça se encaixava nesse padrão. Fa­talmente, voltava à necessidade de descobrir como era, no fundo, aquela moça.

Com uma frase casual, Ariadne Oliver o colocara, assim pensava Poirot, no caminho certo: o aparente suicídio de uma mulher em Borodene Mansions. Um dado que servia dentro do quadro. Era onde a terceira moça morava. Deveria ser esse o homicídio a que ela se referira. Um outro, cometido na mesma época, seria coincidência demais! Além disso, não existia sinal ou indicação de qualquer outro homicídio naque­les dias. Nenhuma outra morte que a pudesse levar ao impulso de consultá-lo, depois de ouvir, numa festa, a descrição en­tusiástica de seus feitos, na voz da Sra. Oliver. Assim, quando a Sra. Oliver, quase sem querer, falara da mulher que se havia atirado da janela, parecera-lhe que, afinal, tinha en­contrado o que procurava.

Ali deveria estar a pista, a resposta à sua perplexidade. Enfim, encontraria o que precisava — o porquê, o quando, o onde.

— Quelle déception — disse Poirot em voz alta.

Estendeu a mão e pegou o resumo, muito bem datilogra­fado, da vida de uma mulher — os fatos essenciais da exis­tência da Sra. Charpentier. Uma mulher de quarenta e três anos e boa posição social, apesar de dizerem ter sido um tanto agitada na juventude — dois casamentos, dois divór­cios —, uma mulher que gostava dos homens. Uma mulher que, nos últimos anos, bebera mais do que seria normal. Uma mulher que gostava de festas. Que, segundo se dizia, anda­va com homens muito mais moços do que ela. Poirot podia compreender aquele tipo de mulher, vivendo sozinha num apar­tamento de Borodene Mansions. Podia entender por que tal mulher teria vontade de se atirar de uma janela, numa certa manhã, bem cedo, ao acordar para o seu desespero diário.

Porque tinha câncer, ou pensava que tivesse? No inqué­rito post-mortem, o testemunho médico fora definitivo no diagnóstico negativo.

O que ele precisava era de um elo entre aquela mulher e Norma Restarick. Mas não conseguia achá-lo. Mais uma vez, examinou as anotações.

No inquérito, a identificação da falecida fora feita por um advogado. Louise Charpentier, embora ela usasse a versão francesa do sobrenome: Charpentier. Por quê? Talvez, porque combinasse com seu primeiro nome, Louise. Louise. Era um nome familiar. Onde ele o ouvira? Uma menção casual? Uma frase? Folheou cuidadosamente as folhas datilografadas. Ah! Ali estava! Uma única referência. A jovem pela qual Andrew Restarick abandonara sua primeira esposa chamava-se Louise Birell. Uma pessoa que se revelara de pouca importância na vida de Restarick. Brigaram e se separaram depois de um ano. O mesmo molde, pensou Poirot, mas duas Louises. Amar violentamente um homem, até destruir o seu lar para viver com ele, e, pouco depois, a briga e a separação. De repente, Poirot teve certeza, certeza absoluta, de que as duas eram apenas uma Louise.

Mesmo assim, qual a relação com a jovem Norma? Teriam Restarick e Louise Charpentier se unido novamente, após ter ele voltado para a Inglaterra? Poirot duvidava. Tinham-se separado muitos anos atrás. Era praticamente im­possível que tivessem reatado o romance. Fora uma paixão breve e,. no fundo, sem importância. A segunda esposa, por seu turno, dificilmente teria ciúmes do passado do marido a ponto de desejar atirar sua antiga amante por uma janela. Ri­dículo! A única pessoa que, em sua opinião, poderia manter acesa uma chama de ódio por tantos anos, e que poderia de­sejar vingança contra a mulher que desfizera o seu lar, séria a primeira Sra. Restarick. E a hipótese já seria bastante re­mota, mesmo que a Sra. Restarick estivesse viva.

O telefone soou, mas Poirot não se moveu. Naquele mo­mento, não queria ser interrompido. Sentia que estava numa pista... queria segui-la... o telefone parou. Ótimo; a Srta. Lemon devia estar se encarregando do assunto.

A porta se abriu, e a Srta. Lemon entrou.

— A Sra. Oliver deseja falar com o senhor.

Poirot fez um gesto negativo. — Agora não, agora não, pelo amor de Deus! Não posso falar agora com ela.

— Ela diz que há alguma coisa de que só se lembrou agora... algo que havia esquecido de lhe contar. É sobre um pedaço de papel... o rascunho de uma carta que parece ter caído de uma escrivaninha que estava sendo colocada num caminhão de mudanças. Uma história um pouco sem sentido — acrescentou a Srta. Lemon, permitindo que sua voz reve­lasse a sua desaprovação.

Poirot gesticulou mais enfaticamente.

— Agora não — repetiu. — Eu lhe suplico, agora não.

— Vou dizer que o senhor está ocupado. A Srta. Lemon saiu.

A paz novamente desceu sobre a sala, mas Poirot sentiu que o cansaço o atacava, em vagas sucessivas e invencíveis. Trabalhara demais com a cabeça. Era preciso relaxar. Era preciso relaxar, sim; deixar que a tensão se esvaísse — e, re­laxando a mente talvez o quadro se completasse. Fechou os olhos. Todos os elementos, todos os componentes, estavam ali. Disso tinha certeza; de fora, nada mais ele poderia aprender. A resposta tinha de vir de dentro, das pequeninas células cin­zentas de seu cérebro.

E, de repente, quando suas pálpebras estavam se fechan­do sem esforço, no começo do sono, o quadro surgiu.. .

Estava tudo ali -— esperando por ele! Seu único traba­lho seria a arrumação, mas ele não sabia como agir. Todos os pedaços estavam à sua frente, soltos, esperando para serem encaixados uns aos outros. Uma peruca, um retrato, cinco horas da manhã, as mulheres e seus penteados, o Pavão — tudo levando à frase pela qual tudo começara:

— Acho que cometi um homicídio...

A terceira moça — mas, era óbvio!

Uma ridícula canção de ninar lhe veio à cabeça, e ele a repetiu em voz alta:

 

"Esfregue, esfregue, esfregue, três homens numa tina,

E quem você pensa que eles são?

Um açougueiro, um padeiro, um fabricante de velas”

 

Que pena, não conseguiu se lembrar do último verso... Tentou uma paródia feminina:

"Faça um bolo, faça um bolo, três moças mim apartamento,

E quem você pensa que elas são?

Uma secretária e uma artista

E a terceira é..."

 

A Srta. Lemon entrou.

— Ah... agora me lembro... E todos os três saíram de uma batatinha.

A Srta. Lemon o olhou com grande preocupação.

— O Dr. Stillingfeet insiste em falar com o senhor ime­diatamente. Diz que é urgente.

— Diga ao Dr. Stillingfeet que ele pode... A senhora disse Dr. Stillingfeet?

Passou à sua frente e apanhou o fone — Sou eu, Poirot, falando! Aconteceu alguma coisa?

— Ela foi embora.

— O quê?

— O senhor me ouviu. Ela foi embora. Saiu pela porta da frente.

— E o senhor permitiu?

— O que podia fazer?

— Não a deixar sair.

— Não.

— Mas foi uma loucura.

— Não.

— O senhor não compreende.

— O acordo foi esse: ela era livre para sair quando quisesse.

— O senhor não faz idéia das conseqüências.

— Pode ser que não faça. Mas sei muito bem o que eu estou fazendo. E, se não a deixasse sair, desperdiçaria todo o meu trabalho. E já estava obtendo resultados. Os nossos trabalhos são diferentes, Não estamos atrás da mesma coisa. Eu já tinha conseguido muito, garanto-lhe. Tinha certeza de que ela não desistiria.

— Ah, sim. E então, mon ami, ela desistiu.

— Com franqueza, não entendo. Não posso entender essa regressão.

— Algo aconteceu.

— Certo. Mas, o quê?

— Alguém que ela viu, que lhe disse alguma coisa, alguém que descobriu onde estava.

— Não sei como isso possa ter acontecido... Mas o senhor não compreende que ela é uma pessoa independente? Não podíamos prendê-la.

— Alguém chegou até ela. Alguém descobriu onde es­tava. Recebeu alguma carta, telegrama, telefonema?

— Não, nada disso. Tenho certeza absoluta.

— Então, como. Mas, é claro! Os jornais. O senhor tem jornais aí, não?

— Naturalmente; sempre quis que todos tivessem uma vida normal aqui.

— Então, foi assim que chegaram até ela. Pela vida normal. Quais os jornais que o senhor recebe?

— Cinco, — !Ele os enumerou.

— Quando ela saiu?

— Hoje de manhã, às dez e meia.

— Exatamente. Depois de ter lido os jornais. É um bom começo. Quais os jornais que ela lia normalmente?

— Não sei se tinha alguma preferência especial. Às vezes um, às vezes outro. Havia dias em que lia todos.

— Bem, não podemos perder tempo conversando.

— Acha que ela viu algum anúncio pessoal? É isso?

— O que mais poderia ser? Até logo, não posso perder tempo. Tenho de investigar. Descobrir o anúncio e agir ime­diatamente .

Recolocou o fone no gancho.

— Srta. Lemon, traga-me os nossos jornais — e mande George comprar todos os outros.

Poirot examinou cuidadosamente as colunas de anúncios pessoais dos jornais, enquanto pensava sem parar.

Ainda não era tarde demais. Não podia ser... já tinha ocorrido um homicídio. Um segundo estava para vir. Mas ele, Hercule Poirot, não o permitiria... Se ainda houvesse tem­po. . . Ele era Hercule Poirot, o defensor dos inocentes. Não era ele quem dizia (e as pessoas riam quando o ouviam falar): "Eu não sou a favor de homicídios?" Achavam que era ironia. Ma; não era; apenas uma declaração simples sem melodra­ma. Ele não era a favor de homicídios.

George entrou com um monte de jornais.

— São todos os desta manhã, senhor.

Poirot olhou para a Srta. Lemon, que estava a seu lado, esperando uma oportunidade de ser eficiente.

— Procure em todos os que já li, para verificar se não perdi nada.

— Apenas os anúncios pessoais?

— Exato. Pode ser que tenha o nome de David. Ou um nome feminino — um apelido ou diminutivo. Não usariam o nome de Norma. Deve ser um pedido de ajuda, ou um con­vite a um encontro.

A Srta. Lemon apanhou os jornais, obedientemente. Não era exatamente a sua forma preferida de eficiência, mas era o único serviço que ele lhe dera. O detetive se encarregou do Morning Chronicte. Era o campo mais vasto. Três colunas de alto a baixo. Ele mergulhou na página aberta à sua frente.

Uma senhora queria vender um casaco de peles... pre­cisa-se: companheiros de viagem para uma excursão de au­tomóvel ao continente.. . linda casa antiga à venda... acei­tam-se hóspedes. . . crianças retardadas. . . bombons feitos em casa. .. Julia. Jamais te esquecerei. Eternamente teu... De­veria ser algo desse gênero. Ele pensou um pouco, mas passou adiante. Móveis Luís XV. . . senhora de meia-idade para gerente de um hotel... Estou em perigo. Preciso ver você. Venha ao apartamento 4h30m  sem falta. Nosso código. Golias.

Poirot ouviu a campainha da porta tocar no mesmo ins­tante em que gritava: "George, um táxi!" Vestiu rapidamente o sobretudo e chegou à entrada no momento exato em que George abria a porta e se chocava com a Sra. Oliver. No estreito corredor, os três levaram algum tempo para se desvencilhar uns dos outros.

 

Carregando sua bolsa de viagem, Frances Cary descia por Mandeville Road, conversando com uma amiga que aca­bara de encontrar na esquina, enquanto se aproximavam de Borodene Mansions.

— Francamente, Francês, esse edifício parece uma pe­nitenciária .

— Bobagem, Eileen. Estou-lhe dizendo que os aparta­mentos são muito bons. Acho que tive sorte, inclusive porque Claudia é uma excelente pessoa para se morar junto — nunca incomoda. E a arrumadeira é muito boa.

— São só vocês duas? Pensei que tivessem uma terceira moça?

— Pois é, Parece que ela nos abandonou.

— Sem pagar o aluguel?

— Não, acho que não há problemas com o aluguel. Para mim, ela está tendo um caso Com algum namorado.

Eileen perdeu o interesse. Namorados eram assunto muito banal.

— De onde você está vindo?

— Manchester. Uma exposição particular. Espetacular.

— E vai mesmo a Viena no mês que vem?

— Acho que vou. Está quase tudo acertado. Vai ser divertido.

— Você não tem medo que roubem os quadros?

— Estão todos no seguro — respondeu Frances. — Pelo menos os valiosos.

— Que tal foi a exposição do seu amigo Peter?

— Não foi nenhum sucesso. Mas o crítico do The Artist escreveu um artigo muito simpático, e isso já vale alguma coisa.

Francês entrou em Borodene Mansions enquanto a amiga continuava em frente. Desejou boa noite ao porteiro e tomou o elevador para o sexto andar. Seguiu pelo corredor, canta­rolando baixinho.

Abriu a porta com sua chave. A luz da entrada não es­tava acesa; Claudia ainda demoraria uma hora ou mais para chegar do trabalho. Mas, na sala de estar, cuja porta estava aberta, a luz estava acesa.

— Luz acesa. Esquisito — disse Francês, em voz alta. Tirou o casaco e colocou no chão a bolsa de viagem.

Empurrando a porta da sala, entrou...

E parou, estática. Sua boca se abriu e fechou. Imóvel, apenas seus olhos pareciam ter vida, concentrados no vulto estendido no chão. Erguendo a vista, viu, no espelho da pa­rede, a sua própria imagem, onde o horror se estampava.

Francês respirou fundo. Livre da paralisia momentânea, ela atirou a cabeça para trás e gritou. Tropeçando na bolsa e atirando-a para longe com um pontapé, correu para fora do. apartamento e pelo corredor. Bateu freneticamente na porta do apartamento ao lado.

Uma mulher idosa abriu.

— Mas, será possível...

— Um cadáver... um homem morto. Acho que é alguém que eu conheço... David Baker. Está estirado lá no chão. Acho que foi apunhalado... deve ter sido. Tem sangue... sangue por toda a parte.

Começou a soluçar histericamente. A Sra. Jacobs a sa­cudiu, fê-la deitar-se num sofá e disse, autoritariamente:

— Fique quieta aí. Vou lhe dar um pouco de conhaque. Voltou com um copo que a forçou a segurar.

— Beba. E não saia daí.

Francês obedeceu. A Sra. Jacobs percorreu rapidamente os poucos metros entre sua porta e a do outro apartamento, que estava escancarada, entrou, indo direto à sala de estar.

Não era do tipo de mulher que grita. Ficou parada no umbral, com os lábios firmemente apertados. O que via pare­cia cena de pesadelo. Um rapaz estava estirado no chão, com os braços bem abertos o cabelo comprido caindo pelos ombros.

Usava um paletó de veludo vermelho; sua camisa branca es­tava manchada de sangue.

Ela levou um susto ao perceber que havia uma segunda pessoa na sala. Uma moça, colada à parede, abaixo da gra­vura onde um arlequim parecia alçar vôo.

A moça vestia um vestido de lã branca, e seus cabelos castanhos lhe caíam pelos dois lados do rosto. Tinha na mão uma faca de cozinha.

A Sra. Jacobs olhou para ela; ela olhou para a Sra. Jacobs.

E disse, em voz baixa, tranqüila, como se respondesse a uma pergunta: — Eu o matei, sim... Minhas mãos ficaram sujas de sangue, por causa da faca... Tentei lavá-las no ba­nheiro — mas essas coisas a gente nunca consegue tirar, não é mesmo? E voltei para ver se tudo tinha acontecido mesmo... Mas aconteceu... Pobre David... Acho que não havia outro jeito...

O choque fez a Sra. Jacobs falar sem pensar. Ela própria sentiu que suas palavras eram ridículas.

— Foi mesmo? E por que você foi fazer isso?

— Não sei... Quer dizer... acho que sei. Ele estava metido em complicações... Mandou me chamar... e eu vim... Mas queria me livrar dele. Queria fugir dele... Eu não o amava...

Com cuidado, colocou a faca sobre a mesa e se sentou numa cadeira.

— Ê sempre arriscado, não é?... É arriscado odiar al­guém ... porque nunca se sabe o que a gente acaba fazen­do... Como com Louise.,.

Em voz baixa, ela acrescentou: — É melhor a senhora chamar a polícia.

Obediente, a Sra. Jacobs discou 999.

Seis pessoas estavam reunidas na saia que tinha uma das paredes enfeitada pelo arlequim. Já se passara bastante tempo. A polícia viera e já se fora.

Andrew Restarick dava a impressão de ter levado uma paulada na cabeça. Repetiu, mais de uma vez — Não posso acreditar... não posso acreditar...

Avisado pelo telefone, ele viera, trazendo Claudia con­sigo. Sem alarde, ela fora de grande eficiência. Telefonara a advogados e falara com Crosshedges e outros lugares, ten­tando localizar Mary Restarick. Dera um sedativo a Francês Cary e a obrigara a deitar-se.

Hercule Poirot e a Sra. Oliver estavam sentados juntos num sofá. Haviam chegado ao mesmo tempo que a polícia.

O último a aparecer, quando quase todos os outros já tinham ido embora, fora um homem silencioso, de cabelos gri­salhos e maneiras educadas. Era o Inspetor-Chefe Neele, da Scotland Yard, que fora apresentado a Andrew Restarick e cumprimentara Poirot com um gesto de cabeça. Um rapaz alto, de cabelos vermelhos, estava de pé perto da janela, olhando para fora.

"O que esperavam eles?" — pensou a Sra. Oliver. O corpo já tinha sido removido, os fotógrafos e outros funcio­nários da polícia já haviam concluído seu trabalho, e os pre­sentes, depois de serem colocados em quarentena no quarto de Claudia por algum tempo, haviam sido novamente trazidos para a sala de estar, esperando — supôs a Sra. Oliver — pela chegada do homem da Scotland Yard.

— Se o senhor quiser que eu saia... — ela disse, hesi­tante.

— É a Sra. Ariadne Oliver, não? Pelo contrário, se não tiver objeções, gostaria que ficasse. Sei que não é muito agradável...

— Parece um pesadelo...

A Sra. Oliver fechou os olhos — e tudo lhe voltou à memória. O jovem Pavão, caído de maneira tão pitoresca que mais parecia um manequim. E a moça, transfigurada — não mais a insegura Norma de Crosshedges, a Ofélia sem atrativos, segundo a definição de Poirot. Agora, era uma figu­ra tranqüila, de trágica dignidade, aceitando o destino.

Poirot, ao chegar, pedira permissão para dar dois tele­fonemas. Um fora para a Scotland Yard, e o sargento fez ele próprio a ligação, aproveitando para apurar se aquele homenzinho tinha realmente direito a falar com alguém da Scotland Yard. Poirot falou do quarto de Claudia, cuja porta teve o cuidado de fechar.

Ainda em dúvida, o sargento tinha murmurado para um subordinado: — Disseram que ele é OK. Quem será? Sujeitinho esquisito...

— É estrangeiro, não é? Pode ser do Special Branch.

— Acho que não. Queria falar com o Inspetor-Chefe Neele.

O outro levantara as sobrancelhas, reprimindo um assovio de admiração.

Depois de usar o telefone, Poirot abrira a porta e cha­mara a Sra. Oliver, que estava na cozinha, para lhe fazer companhia. Sentaram-se lado a lado, na cama de Claudia Reece-Holland.

— Gostaria tanto que pudéssemos fazer alguma coisa — dissera a Sra. Oliver, sempre ansiosa por ação.

— Paciência, chère madame.

— O senhor não pode fazer nada?

— Já fiz. Telefonei para as pessoas que tínhamos ne­cessidade de avisar. Nada mais podemos fazer enquanto a po­lícia não terminar as investigações preliminares.

— Para quem o senhor ligou, depois de falar com o homem da polícia? Para o pai? Será que ele não pode pagar fiança, qualquer coisa assim?

— Não há fiança em casos de homicídio — informara Poirot com secura. — A polícia já avisou o pai. Frances Cary lhes deu o endereço.

— Onde está ela?

— No apartamento da Sra. Jacobs, aqui ao lado, tendo um ataque histérico. Ela descobriu o corpo, e parece que o choque foi grande. Saiu gritando pelo corredor.

— Essa é a que é metida a artista, não é? Se fosse Claudia, não teria perdido a cabeça.

— Concordo. Uma moça de... de muita pose.

— Mas, para quem o senhor telefonou, então?

— Primeiro, como a senhora já sabe, para o Inspetor-Chefe Neele.

— Os outros não vão protestar, se ele vier se meter?

— Ele não vem se meter. Ele tem mandado fazer certas investigações, a meu pedido, que podem esclarecer este caso.

— Ah, sei... e para quem mais o senhor telefonou?

— Para o Dr. John Stillingfeet.

— Quem é esse? E qual é a idéia? Provar que a coitada da Norma é louca e não tem culpa de andar por aí matando pessoas?

— Bem, se for necessário, ele tem credenciais para pres­tar um depoimento em juízo a esse respeito.

— Mas ele sabe alguma coisa sobre ela?

— Acho que bastante. Tem tomado conta dela desde o dia em que a senhora a encontrou naquele restaurante.

— Quem arranjou isso?

Poirot sorria — Eu. Tomei algumas providências por telefone antes de.atender ao seu chamado, naquele dia.

— O quê! E eu, que estava desapontadíssima com o senhor, exigindo o tempo todo que fizesse alguma, coisa — e já tinha feito? E nem me contou nada! Francamente Monsieur Poirot! Nem uma palavra! Como pôde ser tão... tão malvado?

— Não se irrite, madame, eu suplico. O que fiz, foi pen­sando no melhor,

— É... é o que todo o mundo diz, principalmente quan­do fazem alguma coisa que irrita a gente. E o que mais o senhor andou fazendo?

— Dei um jeito de ser contratado pelo pai de Norma, a fim de ficar à vontade para providenciar garantias para ela.

— Isto é, para convocar esse Dr. Stillingwater?

— Stillingfeet. Exatamente.

— E como foi que conseguiu isso? Se me perguntassem, eu diria que o senhor era a última pessoa do mundo que o pai dela contrataria para esse gênero de coisas. Ele tem todo o tipo de quem desconfia de estrangeiros, por princípio.

— Bem, eu forcei um pouco a mão. Como um mágico, que nos obriga a escolher a carta que ele quer. Fui procurá-lo, a pretexto de ter recebido uma carta dele, convocando-me.

— E ele acreditou?

— Claro; eu lhe mostrei a carta. Era datilografada no seu próprio papel timbrado e assinado com seu nome — em­bora não fosse a sua letra.

— Quer dizer que o senhor inventou a tal carta?

— Claro. Achei que despertaria a sua curiosidade, e que ele pelo menos aceitaria conversar comigo. Daí em diante, confiei no meu próprio talento.

— Disse-lhe o que pretendia fazer, com esse tal Dr. Stillingfeet?

— Não disse a ninguém. Havia perigo, não percebe?

— Para Norma?

— Ou isso, ou Norma era perigosa para alguém. Desde o começo, sempre houve duas possibilidades; os fatos pode­riam ser interpretados de duas maneiras opostas. A tentativa de envenenamento da Sra. Restarick não era muito convin­cente — muito demorada, não poderia ser uma tentativa séria de homicídio. Além disso, havia uma história, muito vaga, de um tiro de revólver, disparado em Borodene Mansions. E uma outra, de facas e manchas de sangue. Sempre que essas coisas acontecem, Norma não sabe de coisa alguma a respei­to, não se lembra de nada etc. Ela encontra arsênico numa gaveta, mas não se recorda de tê-lo posto lá. Alega ter tido lapsos de memória, de existirem longos períodos durante os quais não sabe o que fez. Assim, temos de fazer uma pergun­ta será verdade o que ela diz, ou, por alguma razão que não conhecemos, tudo é invenção sua? Será a vítima de alguma trama monstruosa — ou será ela quem está tecendo essa trama? O que temos nas mãos? Uma jovem sofrendo de ins­tabilidade mental, ou uma possível assassina, preparando an­tecipadamente a alegação de irresponsabilidade, para a sua defesa no tribunal?

— Ela, hoje, estava diferente — dissera a Sra. Oliver, pausadamente. — Não reparou? Bastante diferente. Não pa­recia... não parecia maluquinha.

Poirot concordou com a cabeça.

— Não era Ofélia. . . mas Iphigenia.

O barulho de uma movimentação inesperada fora do apar­tamento chamara a atenção de ambos.

— Será que... — a Sra. Oliver não completara a frase. Poirot tinha chegado à janela, e olhava para o pátio, embai­xo. Uma ambulância estava estacionada.

— Será que já vão levá-lo embora? — perguntou a Sra. Oliver, com a voz abalada. E acrescentara, com inesperada piedade: — Pobre Pavão.

— Não era o que se poderia chamar de um bom caráter — comentara Poirot, friamente.

— Mar era tão decorativo... e tão jovem — replicara a escritora.

— Isso costuma ser o bastante, pour les femmes. — Poirot entreabrira a porta do quarto, espiando cuidadosamente para fora.

— Com licença — dissera. — Vou sair um instante.

— Para ir aonde? — perguntara, desconfiada, a Sra. Oliver.

— Pensei que, neste país, não fosse delicado fazer esse tipo de pergunta — respondera o pequeno detetive, com ar severo.

— Oh, desculpe.,

Mas, aplicando também um olho à fresta na porta, a Sra. Oliver acrescentara, sotto você: — Desculpe, mas também o senhor não está indo ao banheiro...

Voltara para a janela para observar o que se passava no pátio.

— O Sr. Restarick chegou, num táxi — anunciara, quando Poirot, poucos momentos depois, esgueirara-se nova­mente para dentro do quarto. — E Claudia chegou com ele. Conseguiu entrar no quarto de Norma, ou o senhor estava querendo ir a outro lugar?

— O quarto de Norma está ocupado pela polícia.

— Deve ter ficado desapontado, não? E que negócio é esse que o senhor tem aí, nesse embrulho?

Poirot ripostara com outra pergunta.

— O que a senhora está levando nessa sua bolsa de lona?

— Na minha bolsa de compras? Para falar a verdade, só dois abacates.

— Nesse caso, se me permite, entrego este embrulho à sua guarda. Não o dobre nem o aperte, por favor.

— O que é?

— Alguma coisa que eu tinha a esperança de achar... e que achei. Ah, as coisas começam a se passar.

Poirot se referira aos ruídos de pessoas em atividade no resto do apartamento. A construção afrancesada de sua últi­ma frase parecera à Sra. Oliver propiciar uma descrição mais acurada do que seria possível em inglês correto. Eles ouvi­ram a voz de Restarick, alta e zangada; Claudia, falando ao telefone; viram, num relance, a partida de'um taquígrafo da polícia, a caminho do apartamento vizinho, para tomar decla­rações de Francês Cary e de uma desconhecida Sra. Jacobs.

Idas e vindas de pessoas por todos os lados, organizadamente. Dois fotógrafos recolhendo seu material e indo embora. Realmente, as coisas começavam a se passar, naquele apartamento. Inesperadamente, irrompera no quarto de Claudia um jovem alto e desengonçado, de cabelos ruivos. Sem dar qual­quer atenção à Sra. Oliver, dirigira-se a Poirot:

— O que ela fez? Matou alguém? Quem foi? O namo­rado?

— Ele mesmo.

— Ela confessou?

— Parece que sim.

— Isso não basta. Ela disse que o matou, explicitamente?

— Que eu saiba, não. Ainda não pude falar com ela. Um policial entrara.

— Dr. Stillingfeet? O médico da polícia quer falar com o senhor.

O rapaz concordara e seguira o policial.

— Então, este é o Dr. Stillingfeet — dissera a Sra. Oliver. Pensara por alguns instantes. — Bonitão, hein?

 

O Inspetor-Chefe Neele apanhou uma folha de papel sobre a mesa e fez algumas anotações. Depois, olhou em volta, para cada uma das cinco outras pessoas na sala. Seu tom era formal, frio.

— A Sra. Jacobs? — voltou-se para o policial postado ao lado da porta. — Eu sei que o Sargento Conolly já tomou o seu depoimento. Mas quero fazer-lhe algumas perguntas.

A Sra. Jacobs chegou à sala, devidamente escoltada, poucos minutos depois. Neele polidamente se levantou para cumprimentá-la.

— Sou o Inspetor-Chefe Neele — disse, quando troca­vam um aperto de mão. — Desculpe incomodá-la de novo. Mas desta vez não é nada oficial. Quero apenas ter uma idéia precisa do que a senhora viu e ouviu. Talvez lhe seja penoso...

— Penoso, por quê? — disse a Sra. Jacobs, aceitando a cadeira que lhe era oferecida. — É claro que tive um choque. Mas não tenho qualquer ligação emocional com a história. Pelo que vejo, já deram uma boa arrumação por aqui — ela acrescentou, provavelmente se referindo à remoção do corpo.

Os seus olhos, traindo um espírito observador e com muito senso crítico, passaram em revista os presentes. Em re­lação a Poirot, mostraram um muito sincero espanto ("Que diabo será isso?"); quanto à Sra. Oliver, leve curiosidade. Re­velaram uma certa aprovação quando passaram pelo Dr. Stil­lingfeet, apesar de ele estar de costas, e o'reconhecimento de uma cara conhecida, ao se cruzarem com o olhar de Claudia, que foi obsequiada com um cumprimento de cabeça. Quanto a Andrew Restarick, os olhos da Sra. Jacobs denotaram ge­nuína comiseração. .

— O senhor deve ser o pai da moça — ela lhe disse. — Sei que não adianta grande coisa receber pêsames de gente desconhecida; melhor não dizer nada. Vivemos num mundo muito triste, hoje em dia — eu acho, pelo menos. Essas moças estudam demais, na minha opinião.

Finalmente, voltou-se para Neele.

— Pois não?

— Gostaria de que me contasse, em suas próprias pala­vras, Sra. Jacobs, exatamente o que viu e ouviu.

— Talvez não seja igualzinho ao que eu disse antes — afirmou ela, inesperadamente. — Sempre acontece, o senhor sabe. A gente quer contar tudo muito certinho, e acaba exa­gerando. Sem querer, acrescentamos coisas que pensamos ter visto, ou que devíamos ter visto — ou ouvido. Mas vou fazer o melhor possível.

— Começou com os gritos, que me assustaram. Pensei logo que alguém devia estar ferido. Por isso eu já estava indo para a porta quando alguém começou a bater e a gritar ainda mais. Abri e vi que era uma das minhas vizinhas — as três moças que moram aqui no sessenta e sete. Não sei seu nome; só a conheço de vista.

— Frances Cary — disse Claudia.

— Ela estava falando coisas quase sem sentido, mas deu para perceber que alguém estava morto — alguém que ela conhecia, David qualquer-coisa, não consegui entender o so­brenome. Estava soluçando, tremendo toda. Eu a fiz entrar, dei-lhe um pouco de conhaque e fui ver o que era.

Seu tom deixava bem claro que a Sra. Jacobs tomaria uma atitude decidida em quaisquer circunstâncias, ao longo de toda a sua vida.

— Todo o mundo já sabe o que foi que eu vi. Preciso descrever?

— Sumariamente, apenas.

— Um rapaz, um desses rapazinhos modernos — cabe­ludo, com roupa berrante. Estava estirado no chão, morto. A camisa estava emplastada de sangue.

Stillingfeet se agitou. Voltando-se, passou a acompanhar a narrativa com os olhos presos na Sra. Jacobs.

—  Percebi que havia uma moça na sala. Estava segu­rando uma faca de cozinha; parecia calma, controlada. Muito esquisito.

—  Ela disse alguma coisa? — perguntou Stillingfeet.

—  Disse que tinha tentado lavar o sangue das mãos, no banheiro. E falou: "Mas essas coisas a gente nunca conse­gue tirar, não é?"

—  Fora, mancha maldita — como na peça de Shakespeare, não?

—  Para falar a verdade, ela não me fez lembrar de Lady Macbeth. Estava... como direi... inteiramente tranqüila. Botou a faca em cima da mesa e se sentou numa cadeira.

—  E o que mais ela disse? — perguntou o Inspetor-Chefe Neele, baixando os olhos para uns apontamentos à sua frente.

— Falou alguma coisa sobre ódio. Que é sempre peri­goso odiar alguém.

— Disse algo sobre o "pobre David", não? Pelo menos, segundo o seu depoimento ao Sargento Conolly. E que queria se livrar dele.

— Eu esqueci. Disse, mesmo, e mais que ele a tinha feito vir aqui. . . e alguma coisa sobre Louise, também.

— O que disse ela sobre Louise? — desta vez, a per­gunta vinha de Poirot, que se inclinara para a frente, brusca­mente. A Sra. Jacobs o olhou incerta.

— Não chegou a falar nada — só mencionou o nome. "Como Louise", ela disse, e parou. Foi logo depois de ter dito que é perigoso odiar as pessoas...

— E depois?

— Depois, com toda a calma, disse que era melhor que eu telefonasse para a polícia. E foi o que eu fiz. Depois... ficamos sentadas, sem fazer nada, até eles chegarem... Achei que não devia deixá-la sozinha. Mas não falamos nada. Ela parecia estar pensando em alguma coisa, e eu... bem, fran­camente, eu não sabia o que dizer.

— A senhora não percebeu que ela estava fora de si? — perguntou Andrew Restarick. — Percebeu que ela não sabia o que estava fazendo, nem por quê?

Era menos uma pergunta do que um apelo — um ansio­so apelo.

— Bom, se ficar inteiramente calma e controlada depois de matar alguém for sinal de desequilíbrio mental, eu con­cordo com o senhor.

O tom da Sra. Jacobs indicava que sua opinião repre­sentava exatamente o contrário do que dizia.

— Sra. Jacobs — disse Stillingfeet, — em algum mo­mento ela admitiu que o tinha matado?

— Ah, claro. Eu já devia ter dito isso antes... Foi a primeira coisa que ela disse. Como se estivesse respondendo a uma pergunta que eu tivesse feito. Ela disse: "É verdade. Eu o matei", e depois falou aquela história de lavar as mãos.

Restarick deu um gemido, mergulhando o rosto nas mãos. Claudia colocou a mão em seu braço.

— Sra. Jacobs — disse Poirot, — segundo suas pala­vras, a moça colocou a faca sobre a mesa. A senhora estava próxima? Viu-a de perto? Teve a impressão de que a faca também tinha sido lavada?

A Sra. Jacobs hesitou, olhando para o Inspetor-Chefe Neele. Era claro que, em sua opinião, as intervenções de Poirot representavam uma nota discordante, fora de propó­sito, naquela inquirição oficial.

— Se a senhora tiver a bondade de responder... — es­clareceu Neele.

— Não. Não me parece que a faca tivesse sido lavada; nem que tivesse sido limpa de qualquer forma. Estava man­chada por uma substância grossa, viscosa.

— Ah! — e Poirot se recostou na cadeira.

— Pensei que os senhores já soubessem tudo o que há para saber sobre essa faca — argumentou, em tom acusatório, a Sra. Jacobs, dirigindo-se a Neele. — A polícia não examinou a faca? Se não examinaram, para mim, é o cúmulo da ne­gligência .

— De fato, examinamos a faca — respondeu Neele. — Mas nós. . . hum. .. sempre gostamos de corroborar os fatos.

Ela o olhou com vivacidade. — Acho que o senhor quer, na verdade, é apurar o poder de observação das suas teste­munhas. Verificar quanto elas inventam, ou quanto realmente vêem e quanto pensam que viram.

— Não creio que tenhamos problemas com a senhora — disse Neele, com um breve sorriso. — Estou convencido de que é uma excelente testemunha.

— Não pense que me agrada isso. Mas a gente faz o que tem de fazer, não é verdade?

— Creio que sim. Muito obrigado, Sra. Jacobs — olhou em torno. — Alguém tem mais alguma pergunta?

Poirot fez um gesto mostrando que tinha. A Sra. Jacobs, que já se encaminhava para a porta, parou com certa relu­tância.

— O que é? — perguntou.

—  Sobre a referência a alguém chamada Louise. A se­nhora sabe de quem ela estava falando?

— Como ia saber?

— Pode ser que ela se tenha referido à Sra. Louise Charpentier. A senhora a conheceu, não?

— Não.

— Não sabia que há pouco tempo ela se atirou de uma janela, neste edifício?

— Sabia disso, é claro. Mas não que seu primeiro nome fosse Louise. E não a conhecia pessoalmente.

— Talvez fizesse questão de não a conhecer, certo?

— Eu não disse isso, porque, afinal de contas, a mulher está morta. Mas é verdade, sim. Era uma péssima vizinha. Eu e outros inquilinos também mais de uma vez reclamamos com a administração.

— Reclamaram de quê?

— Para falar com franqueza, ela bebia. O seu aparta­mento ficava no último andar, bem em cima do meu, e ela vivia dando festas barulhentas. Quebravam copos, arrasta­vam móveis, cantavam, gritavam. E... e uma porção de gente, entrando e saindo a toda hora.

— Talvez fosse uma mulher muito solitária — sugeriu Poirot.

— Não era essa a impressão que dava — replicou com acidez a Sra. Jacobs. — No inquérito, disseram que andava deprimida, por causa da saúde. Mas era tudo imaginação. Pa­rece que não tinha doença alguma.

Assim concluindo o necrológio da finada Sra. Charpen­tier, a Sra. Jacobs saiu.

Poirot voltou sua atenção para Andrew Restarick. — Não será verdade — perguntou, com grande delicadeza — que o senhor, há tempos, conheceu a Sra. Charpentier?

Restarick demorou alguns momentos a responder. Depois, com um suspiro fundo, encarou o detetive.

— É verdade, Há muito tempo. Eu a conheci muito inti­mamente... Não se chamava Charpentier. No meu tempo, era Louise Birell.

— O senhor... o senhor não esteve apaixonado por ela?

— Estive. Apaixonado... inteiramente transtornado! Foi por sua causa que abandonei minha esposa. Fomos juntos para a África do Sul. Não chegamos á ficar um ano juntos. Ela voltou para a Inglaterra, e nunca mais soube dela.

— E sua filha? Ela chegou a conhecê-la?

— Não creio que se lembrasse. Tinha só cinco anos, na época. ,

— Mas chegou a conhecê-la? — insistiu Poirot.

— Chegou — disse Restarick, falando com vagar. — Ela conheceu Louise. Quer dizer, Louise ia à nossa casa, e costumava brincar com a menina.

—- Seria possível que Norma se recordasse dela, depois de todos estes anos?

— Não sei; simplesmente, não sei. Não sei como Louise estava, agora; quanto terá mudado. Nunca mais a vi, como lhe disse.

— Mas teve notícias suas, não, Sr. Restarick? — per­guntou Poirot, suavemente. — Quero dizer, depois de ter voltado à Inglaterra?

Novamente, a pausa e o suspiro, fundo e triste.

— É verdade... tive notícias suas... — disse Resta­rick; então, com súbita curiosidade, indagou: — E como sabe disso, Monsieur Poirot?

Poirot sacou do bolso uma folha de papel cuidadosamente dobrada. Desdobrou-a e a entregou a Restarick, que a exa­minou com ar perplexo.

 

Querido Andy:

Vi nos jornais que você voltou para casa. Precisamos nos encontrar, para falarmos do que andamos fazendo, todos estes anos.

O texto terminava aí; mais abaixo recomeçava:

Andy: Adivinhe quem é! Louise! Não vá dizer que se esqueceu de mim...

Querido Andy:

Como você verá pelo cabeçalho, estou morando no mesmo edifício de apartamentos que a sua secretária.

Um mundo pequeno, não? Precisamos nos ver. Você não quer vir tomar um drinque, segunda ou terça-feira da semana que vem?

Andy, querido, preciso vê-lo novamente... Você foi o único de quem gostei — e você também não me esqueceu, não é?

 

— Como conseguiu isso? — Restarick perguntou a Poirot, não escondendo sua curiosidade.

— Por uma amiga, através de um caminhão de mudan­ças — disse Poirot, olhando de esguelha para a Sra. Oliver.

Restarick a olhou, sem muita simpatia.

— Foi sem querer — ela explicou, interpretando correta­mente a expressão de Restarick. — Acho que eram os móveis dela que estavam levando embora, e os homens deixaram cair uma escrivaninha; uma gaveta caiu no chão e uma porção de coisas se espalhou; o vento arrastou uns papéis. Este parou perto de mim, e eu o apanhei e tentei devolvê-lo. Mas os sujeitos estavam meio atrapalhados, e ninguém me deu aten­ção; guardei o papel no bolso sem pensar. Só hoje, quando revistei o casaco para mandá-lo para a tinturaria, é que o des­cobri. Foi sem querer, compreende?

Parou, Iam tanto ofegante com a longa explicação.

— Ela acabou mandando-lhe a carta? — perguntou Poirot.

— Mandou... uma das versões mais cerimoniosas... Não respondi. Achei que seria mais prudente.

— Não queria revê-la?

— Nem que fosse a última mulher do mundo! Era uma pessoa muito difícil — sempre foi. E eu já ouvira falarem a seu respeito — que andava bebendo muito, entre outras coisas. Muitas outras coisas.

— Por acaso guardou a carta?

— Não. Rasguei-a!

Abruptamente, o Dr. Stillingfeet fez uma pergunta:

— Alguma vez sua filha lhe falou sobre ela?

Restarick deu mostras de relutar em responder, c o me­dico insistiu.

— Pode ser importante, se ela tiver falado.

— Ah, vocês médicos! Realmente, ela a mencionou, uma vez.

— Disse o que, exatamente?

— Uma vez, ela comentou, de repente: "Vi Louise, outro dia, papai/' Levei um susto. Perguntei: "Onde?" — "No res­taurante do meu edifício" ela respondeu. Fiquei um pouco constrangido. Não esperava que ela a reconhecesse. Mas ela disse: "Nunca a esqueci. Mesmo que quisesse esquecê-la, ma­mãe não deixaria."

— Realmente — disse o Dr. Stillingfeet, — É um dado importante.

— E a senhorita, mademoiselle? — disse Poirot, voltando-se para Claudia. — Norma alguma vez lhe falou sobre Louise Charpentier?

— Falou; pouco depois do suicídio. Alguma coisa a res­peito de ser uma mulher malvada. Falou num jeito infantil, como se fosse uma criança, entende?

— A senhorita estava aqui no prédio na noite — melhor dizendo, na madrugada — em que ocorreu o suicídio da Sra. Charpentier?

— Não, naquela noite não. Estava viajando. Lembro-me de que cheguei no dia seguinte, quando me contaram tudo.

Voltou-se para Restarick. — Não se recorda? No dia vinte e três, quando tive de ir a Liverpool.

— Claro. Você me representou na reunião do Haver Trust.

— Mas Norma dormiu aqui naquela noite? — pergun­tou Poirot.

— Dormiu — respondeu Claudia, hesitante.

— Claudia? — Restarick colocou a mão em seu braço. — Que sabe você com franqueza, sobre Norma? Tenho certeza de que existe alguma coisa. Algo que você está escondendo.

— Nada! O que poderia ser?

— Acha que ela está louca não acha? — disse calma­mente o Dr. Stillingfeet. — Aquela moça de cabelos pretos também acha. E o senhor também — acrescentou, voltando-se para Restarick. — Todos muito prudentes, evitando o assunto, mas todos pensando a mesma coisa! Exceto, é claro,

o Inspetor-Chefe. Éle não está pensando em nada. Está apenas recolhendo fatos: um caso de loucura, um crime como os outros, que lhe interessa? E a senhora, madame?

— Eu? — a Sra. Oliver deu um pulo. — Eu... não sei.

— Está reservando sua opinião? Não a culpo. É difícil, eu sei. Em geral, as pessoas têm, todas, a mesma opinião. Apenas usam termos diferentes — só isso. Uma telha de menos. . . maluquinha, doida de pedra. . . desequilibrada. Sofre de alucinações. . . tudo quer dizer a mesma coisa. Será que ninguém acredita que ela seja normal?

— A Srta. Battersby — disse Poirot.

— Quem diabo é essa?

— Uma professora.

— Se algum dia tiver uma filha, será sua aluna. .. Eu sei que estou numa categoria à parte — afinal de contas, eu sei tudo sobre essa moça!

O pai de Norma arregalou os olhos em sua direção.

— Quem é esse homem? — perguntou a Neele? — Como pode ele dizer que sabe tudo sobre a minha filha?

— Sei — explicou Stillingfeet — porque ela tem estado sob meus cuidados profissionais nos últimos dez dias.

— O Dr. Stillingfeet — disse o Inspetor-Chefe Neele —-é um psiquiatra de excelente reputação.

— E como foi que ela parou em suas mãos. . . sem o meu consentimento?

— Pergunte ao Moustache — disse Stillingfeet, indican­do Poirot com um gesto.

— O senhor... o senhor... — Restarick mal podia falar, de tanta raiva.

Poirot respondeu sem perder a placidez.

— Eu tinha suas instruções. O senhor desejava que sua filha fosse protegida e bem cuidada, quando fosse encontra­da. Eu a encontrei — e consegui interessar o Dr. Stillingfeet no caso. Ela estava em perigo, Sr. Restarick, grave perigo.

— Não poderia estar em maior perigo do que agora! Presa, acusada de homicídio!

— Tecnicamente, ela ainda não foi acusada de coisa al­guma — murmurou Neele. E acrescentou:

— Dr. Stillingfeet, estará disposto a dar sua opinião profissional sobre o estado mental da Srta. Restarick? Ela tem consciência da natureza e do significado de suas ações?

— Pode guardar o jargão jurídico para o tribunal — disse Stillingfeet. — Em outras palavras, o senhor quer saber simplesmente se a moça é louca ou normal, não? Muito bem, eu posso lhe dizer. Ela é normal — tanto quanto qualquer pessoa sentada aqui nesta sala.

 

Todos os olhares se fixaram nele.

— Não contavam com esta, hein?

—  O senhor está enganado — disse Restarick, com irritação — Essa menina nem sabe o que faz. É inocente, comple­tamente inocente. Não pode ser responsabilizada por algo que não sabe que fez.

— Posso dizer alguma coisa, para variar? Sei do que estou falando. O senhor não sabe. Essa moça é normal, res­ponsável por seus atos. Daqui a pouco vamos chamá-la e deixá-la falar por si. É a única pessoa aqui que não teve chance de falar em sua defesa! Ela ainda está aqui — tran­cada no quarto com uma policial feminina. Antes de lhe fa­zerem perguntas, acho melhor que ouçam umas coisas que tenho a dizer.

— Quando ela me foi entregue, estava cheia de entor­pecentes.

— Foi ele quem lhe deu as drogas! — gritou Restarick — Aquele rapaz miserável, degenerado!

— É possível que isso tenha acontecido, uma vez ou outra.

— Graças a Deus — disse Restarick. — Graças a Deus.

— Por quê?

— Eu o compreendi mal. Quando disse que ela é normal, pensei que a quisesse atirar às feras. Mas não estava enten­dendo onde queria chegar. Foram as drogas. Foram as drogas que a fizeram cometer atos que nunca praticaria por vontade própria. Por isso, sempre se esquecia de tudo.

Stillingfeet elevou a voz. — Talvez pudéssemos ir um pouco mais depressa se o senhor me deixasse explicar em vez de falar sozinho o tempo todo, como se fosse o dono da ver­dade. Em primeiro lugar, ela não é viciada. Não tem qualquer marca de injeção. Não aspirava cocaína. Alguém — o rapaz, pode ser — estava lhe dando drogas sem o seu conhecimento. Não era apenas uma bolinha de vez em quando, como é moda hoje em dia. Mas uma combinação muito interessante de drogas. LSD, para criar sonhos, agradáveis ou pesadelos. Hachiche, para desequilibrar a noção de tempo, fazendo-a acreditar que uma determinada experiência teria durado uma hora, em vez de alguns minutos. E diversas outras substân­cias bem curiosas, sobre as quais não tenho interesse de fazer propaganda. Alguém que entende muito bem de drogas andou fazendo o diabo com essa menina. Sedativos, estimulantes, usaram tudo para controlá-la e para fazê-la parecer uma pessoa inteiramente diferente do que é na realidade.

— Pois é o que eu digo — interrompeu Restarick. — Norma não é responsável. Alguém a andou hipnotizando para fazer aquilo tudo.

— Mas o senhor ainda não entendeu! Ninguém poderia obrigá-la a fazer o que não queria! Apenas podiam fazê-la pensar que tinha feito! Vamos chamá-la aqui para apurar o que lhe tem acontecido.

Olhou significativamente para o Inspetor Neele, que con­cordou com um gesto de cabeça. Saindo da sala, Stillingfeet falou por cima do ombro, dirigindo-se a Claudia: — Onde é que vocês puseram aquela outra moça, a que estava com a Sra. Jacobs? Com certeza, deram-lhe um sedativo e a mete­ram na cama, não? É melhor lhe dar umas sacudidelas e ar­rastá-la para cá. Precisamos concentrar nossas tropas aqui.

Claudia saiu, obedecendo. Pouco depois, Stillingfeet vol­tava, trazendo Norma pelo braço; encorajava-a, embora sem muita delicadeza.

— Isso é que é uma mocinha bem comportada... Vamos, ninguém vai mordê-la. Sente-se aí.

Ela se sentou documente. Sua passividade era um pouco assustadora. A policial feminina seguiu-os até a porta, mostrando-se algo escandalizada.

— Só lhe peço que diga a verdade. Não é tão difícil quanto você pensa.

Claudia retornou com Francês Cary, que dava enormes bocejos. Seus cabelos pretos caíam-lhe sobre o rosto, como uma cortina, enquanto ela bocejava sem parar.

— Você precisa de um estimulante.

— Por favor, eu quero dormir... — murmurou Francês, enrolando as palavras.

— Ninguém dorme enquanto eu não tiver acabado! Agora, Norma, responda... A vizinha do lado diz que você confessou ter matado David Baker. É verdade?

— É. Eu matei David — respondeu ela, documente. .

— Apunhalou-o?

— Foi.

— Como é que você sabe?

Ela se mostrou perplexa — Como assim? Ele estava aqui, no chão... morto.

— Onde estava a faca?

— Eu a apanhei?

— Estava manchada de sangue?

— Estava. A camisa dele também.

— Como era esse sangue na faca? O sangue que passou para a sua mão e você teve de lavar? Úmido ou grosso, como geléia?

— Parecia mais com geléia. Pegajoso — ela estremeceu. — Tive de lavar as mãos.

Muito sensato. Bem, está tudo muito bem arrumado. A vítima, a criminosa — você — e a arma do crime. Você por acaso se lembra de ter realmente cometido o crime?

— Não... não me lembro com certeza. Mas devo ter cometido, não?

— Não me pergunte! Eu não estava aqui. É você quem está dizendo. Mas houve outro crime, antes, não houve? Há mais tempo.

— Está falando de... de Louise?

— Claro. Louise. Qual foi a primeira vez em que você pensou em matá-la?

— Há muito tempo. Há muitos anos, muitos.

— Quando era criança?

— É.

— Esperou um bocado de tempo, hein?

— Eu já tinha esquecido tudo.

— Mas a viu novamente, e a reconheceu, não foi?

— Foi.

— Quando era criança, você a odiava. Por que?

— Porque ela tinha levado papai embora. Meu pai...

— E sua mãe era infeliz por causa dela?

— Mamãe odiava Louise. Dizia que ela era a encarnação do mal.

— Falava muito sobre isso com você, não?

— Muito. Eu não queria ouvir... queria que ela paras­se de falar nisso, o tempo todo...

— É... fica monótono, eu sei. O problema é que o ódio não tem imaginação. Quando você a reencontrou, quis real­mente matá-la?

Norma parou para pensar. Pela primeira vez, parecia interessar-se com algo.

— Realmente, não... tanto tempo já tinha passado. Não conseguia imaginar-me matando alguém. Foi por isso que eu...

— Que você no fundo não tem certeza de que a matou, não é?

— É. Cheguei a pensar que não a matei, que tudo tinha sido um sonho. Que talvez ela se tivesse jogado da janela, como todo o mundo pensou...

— E não terá sido isso mesmo?

— Não. Eu sei que a matei, . . eu disse que a matei.

— Você disse? A quem?

Norma sacudiu a cabeça — Não posso... foi a alguém que tentou me ajudar. .. Ela disse que ia fingir que não sabia de nada. (Ela continuou, subitamente excitada, falando rapi­damente) . — Eu estava na porta do apartamento de Louise, o setenta e seis; estava saindo de lá. Pensei que tivesse tido um ataque de sonambulismo. Eles... ela disse que tinha acon­tecido um acidente. Que havia um corpo no pátio. Que eu não tinha nada com aquilo. Ninguém ia saber... e eu não conseguia me lembrar do que tinha feito... mas havia aquela coisa na minha mão...

— Coisa? Que coisa? Era sangue?

— Não, um pedaço de cortina. Foi quando eu a empur­rei pela janela. . .

— Você se lembra de tê-la empurrado?

— Não, não. Isso é que era horrível. Eu não me lem­brava de nada. Mas tive a esperança... E fui procurá-lo...

Indicou Poirot com um gesto, e logo se voltou para Stillingfeet.

— Eu nunca me lembrava das coisas que tinha feito, nada, Fui ficando cada vez mais assustada. Havia uma porção de tempo em branco — horas em branco, que eu não sábia como se tinham passado; não me lembrava onde estivera, nem o que andara fazendo. Mas vivia encontrando coisas — coisas que só eu podia ter escondido. Mary estava sendo en­venenada, por mim; descobriram no hospital que ela estava sendo envenenada. E eu encontrei o veneno escondido na minha gaveta. Havia uma faca escondida aqui no apartamen­to. E eu tinha um revólver, que nem me lembro de ter com­prado! Matei essas pessoas, mas não me lembro de nada. Acho que não sou uma assassina; o que eu sou ... louca! Custei a compreender isso. Estou louca, e não posso fazer nada. Ninguém pode me culpar, não é? Se eu vim aqui e matei o David, isso mostra que estou louca, não mostra?

— Você gostaria tanto assim de estar maluca?

— Eu... eu, eu acho que sim.

— Então, por que você confessou a alguém que tinha matado uma mulher, que a tinha empurrado pela janela? Para quem você contou?

Norma hesitou, voltando a cabeça. Depois, apontou, er­guendo o braço.

— Para Claudia.

— Más isso não é verdade — Claudia a encarou com severidade. — Você nunca me disse nada disso.

— Eu disse. Eu disse.

— Quando? Onde?

— Eu... não sei.

— Ela me disse que tinha confessado tudo a você — disse Francês, num sussurro. — Pensei que fosse histeria dela, que tivesse inventado tudo.

Stillingfeet se virou para Poirot.

— Ela pode ter inventado tudo — sentenciou. — É uma hipótese — viável. Mas, se for verdade, temos de encontrar um motivo, um motivo forte, para que ela desejasse a morte de duas pessoas — Louise Charpentier e David Baker. Um ódio de infância? Esquecido e sepultado há tantos anos? Não pode ser. E David? Só para se livrar dele? Não é por isso que as mulheres matam! Precisamos de motivos muito melhores. Quem sabe, uma bolada de dinheiro... hein? Por dinhei­ro, por ambição? — o médico olhou em torno antes de pros­seguir, mais calmo.

— Precisamos de mais ajuda. Há uma pessoa faltando. Sua mulher está demorando muito a chegar, Sr. Restarick.

— Não tenho idéia onde possa estar. Já telefonei, e Claudia deixou recados em toda a parte. A esta hora, já deve ter sido avisada.

— Talvez estejamos enganados — disse Hercule Poirot. — Talvez madame esteja parcialmente aqui, se posso me ex­pressar assim.

— Como é essa história? — gritou Restarick, irritado.

— Com sua permissão, chère madame? — Poirot se in­clinou para a Sra. Oliver, que o olhou sem entender coisa alguma.

— Aquele embrulho que lhe confiei...

— Ah! — a Sra. Oliver meteu a mão em sua sacola, retirando o embrulho preto, que lhe entregou.

Ele ouviu .alguém prender a respiração, a seu lado, mas não voltou a cabeça. Estava ocupado desembrulhando e ar­rumando um certo objeto — uma peruca bufante, de cabelos dourados.

— A Sra. Restarick não está entre nós — anunciou — mas a sua peruca, sim. Muito interessante.

— Onde diabo conseguiu isso, Poirot? — perguntou Neele.

— Da sacola da Srta. Francês Cary, de onde ela ainda não chegou a ter oportunidade de removê-la. Vejamos como lhe fica...

Com um único e hábil movimento, afastou os cabelos negros que escondiam o rosto de Francês quase inteiramente. E ela, coroada com uma auréola dourada, antes que pudesse evitá-lo, fuzilou os presentes com olhares furiosos.

— Meu Deus! — exclamou a Sra. Oliver. — É Mary Restarick!

Francês se debatia como uma cobra mordida. Restarick pulou da cadeira em sua direção — mas foi detido pelas mãos fortes de Neele.

— Calma. Não queremos violência. Tudo acabou, ainda não percebeu, Sr. Restarick? Ou devo dizer... Robert Orwell...

Uma catadupa de palavras obscenas jorrou dos lábios do homem. Mais alto, entretanto, soou a voz de Francês Cary: — Cale a boca, seu idiota!

Poirot tinha abandonado o seu troféu — a peruca. Atra­vessara a sala e tomara entre as suas as mãos de Norma.

— Seu martírio acabou, minha filha. A vítima não mais será sacrificada. Você não estava louca — nem matou nin­guém. Eram duas criaturas cruéis, sem coração, que tramaram contra você. Usaram drogas e mentiras, e muita maldade, para levá-la ao suicídio, ou então a se convencer de que era culpada, e louca.

Norma olhava com horror para um dos conspiradores.

— O meu pai. Meu próprio pai. Como ele foi fazer isso comigo? Sua filha. Meu pai, que gostava tanto de mim...

— Não era o seu pai, mon enfant... mas sim um homem que veio para cá 'depois da morte de seu pai, passando-se por ele para pôr as mãos numa grande fortuna. Só uma pessoa poderia reconhecê-lo — ou melhor, reconhecer que este homem não era Andrew Restarick: a mulher que havia sido amante de Andrew Restarick, há quinze anos.

 

 Quatro pessoas estavam sentadas na sala de estar de Poirot. O detetive, em sua cadeira de braços, tomava um sirop de cassis. Norma e a Sra. Oliver ocupavam um sofá. A escritora estava exuberante, num vestido de brocado verde (in­teiramente inadequado), completado por um de seus mais complicados penteados. O Dr. Stillingfeet estava esparra­mado numa poltrona; suas pernas compridas esticadas para a frente, pareciam ocupar metade da sala.

— Muito bem. Tenho uma porção de perguntas a fazer — disse a Sra. Oliver. Seu tom era acusador.

Poirot se apressou em lançar óleo sobre as águas re­voltas.

— Calma, chère madame. Lembre-se de que lhe devo praticamente tudo. Todas — repito, todas — as minhas boas idéias neste caso me foram sugeridas pela senhora.

Ela, ainda em dúvida, começou a amolecer.

— Não foi a senhora que me contou sobre a expressão "terceira moça"? Foi por onde comecei — e, também, onde ter­minei: na terceira moça daquele apartamento. Tecnicamente, Norma sempre foi a Terceira Moça, e precisei olhar a situa­ção de outro ângulo, para que as peças do quebra-cabeças caíssem em seus lugares. A resposta que faltava, a peça per­dida do quebra-cabeças, era sempre a mesma — a terceira moça.

— Era, sempre, se é que me entendem, a pessoa que faltava. Ela era, para mim, apenas um nome.

— Não sei por que nunca a liguei a Mary Restarick — disse a Sra. Oliver. — Eu já tinha visto Mary em Crosshedges, tinha falado com ela. É claro que, quando vi Francesa Cary pela primeira vez, ela estava com o cabelo todo caindo pela cara. Dava para enganar qualquer um!

— E foi a senhora, mais uma vez, quem me chamou a atenção para a facilidade com que uma mulher pode alterar sua aparência modificando o penteado. E não se esqueçam de que Francês Cary tinha alguma experiência de palco. Era muito hábil em truques de maquilagem, podia alterar a voz à vontade. Como Francês, tinha cabelos compridos e pretos, quase escondendo o rosto, e usava pintura muito branca no rosto, contrastando com o preto em volta dos olhos. E a voz era arrastada, rouca. Mary Restarick era o oposto: a peruca dourada muito bem armada, as roupas convencionais, o sota­que colonial, a maneira elegante de falar. O curioso é que, do começo, senti que havia algo de artificial nela. Que espécie de mulher seria aquela? Eu não a conseguia decifrar.

— A verdade é que minha inteligência fracassou, lamen­tavelmente. Eu, Hercule Poirot,. não fui bastante inteligente...

— Ora vejam só! — exclamou o Dr. Stillingfeet. — É a primeira vez que o ouço dizer Isso, Poirot! Que maravilha!

— Não sei por que ela criou essa dupla identidade — queixou-se a Sra. Oliver. — Para que tanta complicação?

— Ah, mas era de grande utilidade para ela. Era a ga­rantia de um álibi permanente, sempre que precisasse. E pensar que estava tudo na frente do meu nariz, o tempo todo, e eu não percebia! Havia a peruca —- um dado que sempre me preocupou, mas era uma preocupação que vinha do subcons­ciente, porque, na verdade, eu não sabia como explicá-la. Duas mulheres — nunca vistas juntas, com suas vidas de tal forma arranjadas que ninguém dava importância aos períodos relativamente grandes em que desapareciam. Mary ia freqüentemente a Londres, para fazer compras e visitar agentes imobiliários, de onde saía com uma porção de endereços de casas para examinar. Aparentemente, era assim que passava o tempo. E Francês vivia viajando, a Birmingham, Manches-ter e mesmo ao exterior. E freqüentava Chelsea com seu grupo de rapazes estranhos, que ela utilizava de diversas maneiras, todas ilegais. Descobrimos que a Galeria Wedderburn fre­qüentemente usava molduras especiais para os jovens artistas que faziam exposições lá. Parece que os seus quadros faziam sucesso acima do normal e eram enviados para outros países, comprados ou para novas exposições, com as molduras re­cheadas de pacotes de heroína. Outras maroteiras eram estri­tamente "artísticas": falsificações de velhos mestres não muito conhecidos. Ela organizava e comandava tudo isso. David Balker era um dos artistas que trabalhavam para ela. A ver­dade é que ele realmente tinha talento: era um maravilhoso copista.

— Pobre David — murmurou Norma. — Eu pensava que ele era fabuloso.

— E aquele retrato... — prosseguiu Poirot, falando mais para si próprio do que para os outros —...nunca me saiu da cabeça. Não sabia por que Restarick o havia levado para o escritório. Que significação especial teria para ele? Enfin, sinto até vergonha de ter sido tão denso.

— Mas o que havia de especial com o tal retrato?

— Era uma idéia extremamente inteligente. Ele funcio­nava como uma espécie de certidão de identidade. Era um par de retratos, marido e mulher executados por um pintor famoso na época. Acontece que, quando foram retirados do depósito, o retrato de Restarick foi substituído por um de Orwell, pintado por David Baker, que apenas o remoçou uns vinte anos. Ninguém suspeitaria de que era uma imitação: o es­tilo, o modo de usar os pincéis, a própria tela, tudo contribuía para a impressão de que se tratava de um Lansberger autên­tico. Restarick o pendurou atrás de sua mesa. Quem quer que conhecesse o verdadeiro Restarick, poderia observar que ele "tinha mudado muito", que "estava muito diferente" etc. Mas, vendo a sua semelhança com o retrato, todos se con­venceriam de que não se lembravam bem de Restarick.

— Mas Restarick — ou melhor, Orwell — arriscou-se muito — disse a Sra. Oliver, pensativa.

— Não tanto. Ele não era um pretendente, precisando provar seus direitos a alguma coisa. Era apenas um sócio de uma firma bem conhecida na City, que estava voltando para casa, após a morte do irmão, para colocar em ordem seus ne­gócios. Sua segunda esposa era uma jovem com quem se ca­sara no estrangeiro; uma desconhecida, portanto. Foi morar com um tio por afinidade, idoso, quase cego, que pouco con­tato tivera com Restarick desde os seus tempos de menino, e que o aceitara sem qualquer dúvida. Não tinha outros parentes próximos, exceto a filha, que tinha cinco anos quando o vira pela última vez. Quando o verdadeiro Restarick partira para a África do Sul, os funcionários do escritório eram dois homens idosos, ambos falecidos há alguns anos. Os outros cargos na firma já tinham mudado de ocupantes mais de uma vez desde a sua partida. O advogado da família também já havia morrido. Pode ter certeza de que tudo isso foi verifi­cado por Francês, quando decidiram dar o golpe.

— Ao que se sabe, eles se conheceram no Quênia há uns dois anos. Eram dois vigaristas, embora com especiali­dades diferentes. A dele eram negócios escusos em torno de jazidas. Orwell conheceu Restarick quando ambos procura­vam depósitos minerais em algum lugar remoto. Na época, correu a notícia de que Restarick morrera, tendo sido des­mentida mais tarde. Provavelmente, era verdade,

— Havia muito dinheiro em jogo, não? — perguntou Stillingfeet.

— Uma fortuna fabulosa. Era uma jogada muito grande, para um prêmio também enorme. E deu certo. Andrew Res­tarick, além de ser muito rico, era herdeiro do irmão. Ninguém pôs em dúvida a sua identidade. Até que, de repente, come­çaram os problemas. Ele recebeu uma carta de uma mulher que, se conseguisse chegar até ele, saberia instantaneamente que não era Andrew Restarick. E, além disso, um outro azar — David Baker começou a fazer chantagem.

— Isso não deve ter sido tão inesperado assim — co­mentou Stillingfeet.

— Pelo contrário — disse Poirot. — David não tinha um passado de chantagista. Mas acredito que o montante de dinheiro em jogo lhe subiu à cabeça. E começou a achar que o pagamento que recebera pelo retrato fora pequeno demais. E quis mais. Restarick começou a lhe dar uma série de cheques, fingindo que era por causa da filha — que estava pagando para impedir um casamento inconveniente. Não sei se o rapaz realmente queria se casar com ela — até pode ser que sim. A verdade é que tentar chantagem contra duas pessoas como Orwell e Francês Cary era arriscado demais.

— Então os dois planejaram assim, a sangue-frio, matar duas pessoas, calmamente? — perguntou, horrorizada,.a Sra. Oliver.

— E talvez acrescentassem a senhora à sua lista — lem­brou Poirot.

— Eu? Acha que foi um dos dois quem me deu aquela pancada na cabeça? Foi Francês, então — e não o Pavão?

— Não creio que tenha sido ele. A senhora já tinha estado em Borodene Mansions. Podia ter seguido Francês até Chelsea; pelo menos ela deve ter pensado isso, já que a sua desculpa era um tanto esfarrapada. Ela se esgueirou atrás da senhora e lhe deu aquela cacetada — apenas para amorte­cer a sua curiosidade. A senhora não quis ouvir, quando eu a preveni...

— Nem posso acreditar! Toda esparramada naquele es­túdio, parecendo uma heroína de novela barata... Mas, por que — e ela indicou Norma com o olhar — eles a usaram daquela maneira, dando-lhe aquelas drogas todas, fazendo-a pensar que tinha assassinado duas pessoas. Por quê?

— Precisavam de uma vítima — explicou Poirot, com toda a paciência.

Ele se levantou, aproximando-se de Norma. — Mon enfant você passou por um sofrimento terrível. Agora, está livre, para sempre. Lembre-se disso: pode confiar em você mesma, sempre. Daqui para a frente, depois de sentir na carne uma tamanha crueldade, você estará mais amadurecida, mais preparada para enfrentar a vida.

— O senhor deve ter razão — disse Norma. — É hor­rível, mesmo, a gente pensar que está louca, ter certeza de que está louca... — ela estremeceu. — Até agora não sei como escapei, como alguém conseguiu acreditar que não matei David. . . nem mesmo quando eu estava convencida de que o tinha matado. ..

— O sangue estava errado — disse o Dr. Stillingfeet, pacientemente. — Já estava começando a coagular. A camisa estava "emplastada de sangue", como disse a Sra. Jacobs. Não estava molhada, mas emplastada. Mas não podiam ter passado mais de cinco minutos, desde que você o apunhalara até Francês apresentar o seu pequeno show de gritinhos his­téricos.

— Como é que ela... — a Sra. Oliver começava a en­tender a trama. — Ela tinha ido a Manchester...

— Voltou mais cedo do que disse. No trem, transfor­mou-se em Mary, colocando a peruca e alterando a maquilagem. Entrou em Borodene Mansions e tomou o elevador sem chamar a atenção de ninguém: era uma loura desconhecida.

Tinha marcado um encontro com David no apartamento, onde o apunhalou sem maiores problemas; ele não suspeitava de coisa alguma. Saiu novamente e esperou até ver Norma se aproximar. Mudou novamente de aparência em um banheiro qualquer e voltou para o prédio, ainda tendo a sorte de en­contrar uma amiga no caminho. Subiu e desempenhou o seu papel — divertindo-se muito, com certeza. Como a polícia ainda levaria um certo tempo a chegar, pensou que ninguém desconfiaria da diferença na hora do crime. Para falar a ver­dade, Norma, você nos deu um trabalhão, aquele dia, insis­tindo sem parar que tinha assassinado todo o mundo. .

— Eu só pensava em confessar e me ver livre daquilo tudo... Então... então você também pensou que eu era culpada?

— Eu? O que você pensa? Eu sei muito bem o que os meus pacientes podem fazer ou deixar de fazer. Mas tive medo de que você fosse nos dificultar tudo. Não sabia que Neele iria dar aquela corda toda a Poirot — não deve ser muito comum uma atitude assim da polícia.

Poirot sorriu. —- Sou velho amigo do Inspetor-Chefe Neele. Além disso, ele já estava trabalhando em certos as­pectos do caso. Por sinal, você nunca esteve no apartamento de Louise. Francês trocou a ordem dos números de metal na porta do seu apartamento, o sete e o seis; são números soltos, pendurados nas portas. Claudia estava viajando, e foi fácil para ela narcotizar você e fazê-la passar por aquele pesadelo.

— Descobri a verdade de repente, quase sem sentir. A única pessoa, sem contar você, que poderia ter assassinado Louise, era a verdadeira "terceira moça", Frances Cary.

— Você quase a reconheceu, mais de uma, vez — ajuntou o Dr. Stillingfeet, — quando falava de uma pessoa que pare­cia se transformar em outra.

Norma o olhava pensativa.

— Você foi muito grosseiro, às vezes — ela disse, e ele pareceu enrubescer levemente.

— Grosseiro?

— As coisas que você dizia. Sua maneira de gritar com as pessoas.

— Ora, é possível... talvez eu... eu me acostumei. Certas pessoas são muito irritantes.

Inesperadamente, ele sorriu para Poirot.

— Ela é uma garota e tanto, hein?

A Sra. Oliver se levantou, com um suspiro. — Preciso ir andando.

Olhou para os dois homens e depois para Norma. — E o que vamos fazer com ela? — perguntou

Os dois pareceram espantados com a pergunta.

— Sei que ela vai ficar morando comigo por enquanto — continuou a escritora. — Ela não está se queixando. Mas há um problema, muito sério. Ela tem um dinheirão, que vai herdar do pai — do pai verdadeiro, é claro. E isso vai lhe trazer dificuldades, milhões de pedidos, etc e tal. Podia ir morar com o velho Sir Roderick, mas não deve ser muito di­vertido para uma moça de sua idade — além de cego, ele já está meio surdo, e é um bocado rabugento. Por falar nisso, como acabou aquela história dos documentos desaparecidos e da moça que ia a Kew Gardens?

— Acabaram aparecendo num lugar onde ele já procura­ra; foi Sônia quem achou — disse Norma, acrescentando: — O tio Roddy e Sônia vão se casar... daqui a uma semana.

— Não há pateta maior do que um velho pateta :— co­mentou Stillingfeet.

— Ah! — exclamou Poirot. — Então a bela jovem pre­fere a boa vida na Inglaterra a se meter na politiqne. Não deve ser muito tola aquela menina!

— Muito bem — disse a Sra. Oliver, enfaticamente. — Mas, voltando ao problema de Norma, precisamos ser prá­ticos, fazer planos. Esta menina não pode decidir sozinha o que quer fazer. Alguém precisa ajudá-la.

Olhou com severidade para os dois cavalheiros. Poirot limitou-se a sorrir.

— Precisa, mesmo? — disse o Dr. Stillingfeet. — Muito bem, então eu me encarrego disso. Norma: daqui a uma se­mana estarei viajando para a Austrália. Quero dar uma olha­da antes — ver se tudo vai dar certo, tomar providências, etc. Depois, passo um telegrama e você vai para lá. Então, casa-mo-nos. Você vai ter que aceitar minha palavra de que não estou atrás do seu dinheiro. Não sou desses médicos que sonham em gastar fortunas em pesquisas e coisas desse gê­nero. Eu só me interesso por pessoas. E também acho que você pode tomar conta dê mim muito bem. Por exemplo, en­sinar-me a não ser grosseiro com as pessoas — eu nunca tinha

notado isso, antes. Vai ser engraçado. Pensar que, depois de estar metida naquela confusão toda — indefesa como uma mosca numa teia de aranha — você vai acabar tomando conta de mim, e não o contrário.

Norma não se alterou. Encarou John Stillingfeet com tranqüilidade, pensativa, como se analisasse uma situação in­teiramente nova, mas não de todo inusitada.

— Está bem — terminou por dizer. Em seguida, aproximou-se de Poirot.

— Também fui muito grosseira — disse — naquele dia em que vim aqui. Disse que o senhor era muito velho para me ajudar. Foi uma estupidez — e nem era verdade...

Colocando as mãos sobre seus ombros, beijou-o, de leve, na face.

— É melhor procurar um táxi para nós — disse a Stillingfeet.

O médico, obedientemente, saiu da sala. A Sra. Oliver apanhou sua bolsa e uma estola enquanto Norma vestia seu casaco; ambas se dirigiram para a porta.

— Madame, um petit moment...

A Sra. Oliver se voltou. Poirot descobrira, no assento do sofá, uma elegante mecha de cabelo grisalhos. A escritora,  envergonhada, exclamou:

— Mas, hoje em dia, não fazem mais nada que preste! Esses grampos! Vivem escorregando, e tudo acaba caindo!

Saiu de cara amarrada. Mas, um segundo depois, sua cabeça apareceu na porta:

— Diga uma coisa — sussurrou, em tom conspiratório. — Pode falar sem susto que eles já saíram. O senhor a mandou para esse médico de propósito?

— Claro que sim. Sua reputação profissional.. .

— Não quero saber da reputação. Não é isso que in­teressa. Ele e ela... entende? Foi de propósito?

— Se faz questão de saber, foi.

— É, foi o que eu imaginei — disse a Sra. Oliver. — O senhor pensa mesmo em tudo, heín?

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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