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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TERRA DO ANJO AZUL António Mota
A TERRA DO ANJO AZUL António Mota

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Naquele tempo, todas as casas do Souto fumegavam logo de manhã; e no chão das ruas estreitas e saibrentas havia sempre muitas caganitas de cabra. A bosta das vacas nem sequer chegava a endurecer porque a Olivinha Patalaca, todos os dias, mal as vacas passavam para o pasto, apanhava-a com as duas mãos para dentro de uma lata. Depois, punha a lata à cabeça, entrava no quintal e aí hospedava a bosta.

Por isso ninguém se espantava que as cebolas mais cabeçudas, os tomates mais saborosos, as maiores batatas, as couves mais taludas e repolhudas e as alfaces mais verdes e viçosas do Souto fossem as da Olivinha Patalaca. No quintal, que tinha um tanquezinho sempre cheio de água, também havia uma enorme cerejeira que todos os anos ficava coberta de cerejas vermelhinhas, gordas, rijas e doces. Até a passarada sabia que as cerejas daquela mulher baixinha, pele e osso, eram as melhores do Souto.

Todos os anos, quando vinha o tempo das cerejas, Olivinha Patalaca era sempre a primeira a madrugar no Souto. Ainda com o lusco-fusco, saltava da cama e corria para o quintal com a lata vazia numa mão e um pauzinho na outra. Punha-se por baixo da cerejeira e começava a dar pancadas na lata e a gritar:

- Xô! Xô! Xô! Xô! Xô! Xô! Xô! Xô!

 

 

 

 

 

Os melros e os gaios levantavam voo, armando grande restolhada, e eu acordava com os gritos de meu pai:

- A velha está doida! Seca ficasse a cerejeira! Todos os anos vem esta praga.

Meu irmão Quinzinho, acordava aos gritos dentro do berço, e a minha mãe dizia com voz ensonada:

- Vês o que fizeste, Manuel?   O menino estremunhou!

E eu, deitado na minha cama, puxava o lençol para cima da cabeça, ouvia os passos da minha mãe sobre o soalho e depois voltava a adormecer embalado pelas cantigas que ela sussurrava ao meu irmão, o ranger ritmado do berço e as pancadas que a Olivinha Patalaca malhava na lata da bosta.

Às vezes, sonhava que a Olivinha era uma bruxa horrorosa, com uma cara parecida com as dos morcegos, sem olhos e com asas de penas azuis, igualzinhas às que um dia a minha mãe me pôs quando eu fui vestido de anjinho na procissão do S. Pedro.

Nessa gloriosa tarde em que me transformei em anjinho, com um vestido branco e asas coladas às costas, sofri imenso atrás do andor do S. Pedro, que andava a passo de caracol. O itinerário da procissão tinha mais de um quilómetro e eu, ainda a caminhada nem a meio ia, comecei a ficar aflito e a lançar olhares angustiados para - minha mãe que, muito séria, olhava para mim, levava um dedo aos lábios e sorria-. Atrás de mim, vestido de S. Bartolomeu, com uma faca na mão, feita de cartolina e de papel prateado, vinha o Afonsinho a choramingar, porque o elástico que segurava as barbas encaracoladas, apertava-lhe as orelhas. Eu não gostei nada daquela mimalhice, atrasei o passo e disse-lhe para ele se calar. Mas o Afonsinho não ligou nada à minha conversa, continuou as choraminguices e eu, cansado daquela buzina, avisei-o:

- Ó moço, se não te calares dou-te uma estalada.

A Lurdes, mãe do Afonsinho, ouviu, apressou-se a mostrar-me uma cara feia, um par de olhos esbugalhados e a ponta de um dedo nos lábios fechados. Mas, nessa altura, eu já não me importava que todos os olhos ficassem esbugalhados, que toda a gente pusesse todos os dedos nos lábios, que toda a gente fizesse cara feia; o que eu queria era sair dali o mais depressa possível. Queria levantar o vestido de anjinho e esvaziar a bexiga.

Mas a minha mãe só sabia olhar para o chão, muito direita e muito séria.

Não podia mais, tinha de sair da procissão, era só um bocadinho, depois eu dava uma corrida para o meu lugar lá atrás do andor e tudo correria lindamente.

- Mãe! - gemi eu. Mas ela não me ouviu, porque foi precisamente nesse instante que a banda voltou a atacar uma marcha e um foguete com muitos tiros fez a festa quase à beira das nuvens.

Então eu fechei os olhos e fiz o que tinha de ser feito sem mais demoras.

Quando a procissão acabou, minha mãe ralhou e bateu num anjo com um vestido branco todo mijado e com duas belas asas azuis que cheiravam a naftalina. E esse anjo envergonhado soluçava e dizia baixinho que os pratos, o enorme bombo da banda da música e os foguetes é que tinham sido os culpados.

Tanto trabalho tinha a Olivinha para guardar as cerejas e poucas provava. Como a cerejeira era muito alta, ela não podia lá subir, e um escadote pouca utilidade tinha porque as cerejas moravam nas pontas dos ramos. Além disso, a Olivinha achava que as cerejas nunca estavam suficientemente maduras e ia adiando o dia de as colher.

Só a doze e treze de Maio é que se fazia o grande desbaste.

A Olivinha ia para Fátima, na excursão que todos os anos o Padre Ramos organizava, levava com ela um cesto de verga coberto com uma toalha de linho que escondia um alguidar de arroz, pedaços de coelho frito embrulhados em folhas de couve e papel de jornal, uma broinha e um garrafãozinho de três litros atestado com vinho branco, comida mais que suficiente para os dias da excursão.

A passarada, logo de manhãzinha, fazia o primeiro ataque à velha cerejeira. E era bonito ver aqueles enormes bandos de melros, pegas e gaios a encherem o papo.

De repente, ouviam-se dois grandes estrondos no Souto.

A passarada ficava desorientada, levantava voo e barafustava. Via-se uma nuvem de penas a desfazer-se e a cair muito lentamente da cerejeira. Os que tinham morte instantânea ou ficavam com as asas partidas, caíam como pedras vindas do céu no quintal da Olivinha Patalaca.

Os cães do Souto ficavam inquietos e ladravam sem parar; as galinhas cacarejavam mesmo sem terem posto ovo, e eu corria para dentro do quintal esperançado em apanhar um pássaro para o levar a minha mãe, que o havia de depenar, temperar, cortar e fritar em banha de porco. Eu havia de regalar-me a comer o pescoço e as coxas, o peito e as asas. E depois lamberia muitas vezes os ossinhos todos e, no fim, a ponta dos meus dedos lambuzados para não se perder nada.

A autora dos estrondos que assustavam o Souto era a caçadeira de dois canos do Armandinho Rebolo, o vizinho mais chegado da Olivinha, que só sabia falar de caçadas, de perdizes e raposas, de coelhos e lebres, cães de caça e furões. Só não falava do javali que, numa tarde de nevoeiro, lhe metera a enorme dentuça na perna esquerda, que depois gangrenou e foi preciso cortar pelo joelho. Armandinho tinha agora meia perna de pau e só dava tiros aos pássaros que se amontoavam nas eiras ou na copa das árvores.

Depois de se ter feito a colheita dos pássaros, os meninos do Souto subiam até ao cocuruto da cerejeira, enchiam a barriga de cerejas, cortavam raminhos e atiravam-nos aos mais pequenos que, no chão, olhavam lá para as alturas com os braços abertos.

Quando a Olivinha voltava ao Souto, nem parecia a mesma. Via as folhas da cerejeira no chão do quintal, via penas e caroços de cereja, e dizia, olhando para o céu:

- Senhor misericordioso, que seja em desconto dos meus pecados!

Era uma enlevação que chegava a durar uma semana.

 

Um ano, quando já eu andava na escola, a cerejeira deixou de florir e, pouco depois, ficou carregada de pequenas formigas vermelhas. Numa noite de grande ventania algumas trepas caíram. Viu-se que estavam secas e podres.

Foi a partir desse dia que a Olivinha ficou com os olhos espantados. Nunca mais pegou na lata, meteu-se em casa e com a lenha da cerejeira, que o Armandinho Rebolo cortou em pedacinhos, acendeu uma fogueira que ardeu muitos dias e muitas noites. O fumo, tão negro como graxa preta, saía pelas telhas da cozinha, os dias eram de canícula, e ninguém percebia como é que a velha aguentava tanto calor e o cheiro enjoativo de panos queimados. com falta de água, mirraram as verduras do quintal, um batalhão de gordos escaravelhos roeu as batateiras e as folhas das couves ficaram polvilhadas com milhões de piolhos.

- A pobre da Olivinha ficou com o cérebro roto, coitadinha - dizia minha mãe.

E meu pai, que nunca gostara dela, punha um ponto final na conversa:

- Não te metas onde não és chamada. Ela lá sabe o que está a fazer.

Quando o fumo desapareceu e o cheiro deixou de infestar os ares, a velha Olivinha Patalaca, em vez de voltar a pegar na lata velha, começou a bater às portas das casas do Souto. E quando estas se abriam, ela ria muito, mostrava a boca desdentada, o cabelo ruço e desgrenhado a cair-lhe sobre as costas, babava-se e dizia em solene tom:

- Amanhã vou-me casar. Venho convidá-los para o meu casamento. E agora queria uma malguinha de caldo.

Toda a gente do Souto lhe dava o caldo, pedaços de pão, bocados de carne de porco. Como cheirava muito mal, comia à porta das casas, sentada nas escadas ou aninhada nos alpendres, e barafustava com uma matilha de cães, que nunca a largavam.

Uma tarde, por altura da apanha da azeitona, quando estávamos na escola, aflitos com as palavras difíceis do ditado que a dona Sara ia silabando, ouvimos três suaves pancadinhas na porta. A dona Sara ficou muito corada, muito aflita. Passou as mãos pelo cabelo empastelado com laca, endireitou as abas da bata branca e disse, num inquietante fiozinho de voz:

- E o senhor inspector! Ninguém se mexe, ninguém abre a boca, não há falatório, ouviram?

A dona Sara não era uma professora qualquer. Um aluno de Penafiel, a quem ela ensinara as primeiras letras, até já era um conceituado otorrinolaringologista com frequentadíssimo consultório no centro da cidade do Porto!

E todos nós também sabíamos, por experiência própria, que as mãos da dona Sara, branquíssimas, com dedos finos e unhas compridas e pintadas, não eram nada leves nas modalidades do bofetão e reguada.

Com pezinhos de lã, a dona Sara lá foi abrir a porta e nós ouvíamos os nossos próprios corações a estalar no peito. O senhor inspector era uma coisa que a gente nunca tinha visto, um ser gigantesco, mais feroz que o lobo que ataca os rebanhos indefesos. O senhor inspector era a pior coisa que havia na face da terra, o diabo ao pé dele era uma caganitinha de mosca. E agora, assim de repente, ali estava sua excelência o herodes em carne e osso.

De olhos fechados, o Afonsinho, que era o maior medroso da turma, começou a rezar uma ave-maria e eu, de repente indefeso e aflito com todo aquele silêncio, chamei o meu anjo da guarda, como tinha aprendido nas aulas de catequese, e benzi-me três vezes para reforçar a imunidade contra aquele diabo em corpo de gente.

Quando a porta se abriu, uma ventania subiu pela sala, alguns papéis poisados na carcomida secretária da dona Sara voaram, e nós sentimo-nos muito mais insignificantes do que os mosquitos apanhados nas teias que as aranhas construíam nos cantos das quatro paredes daquela sala fria e feia que cheirava a sardinhas fritas, a suor e a mijo de ratos.

E a dona Sara fez-nos abrir os olhos de espanto quando gritou, usando em pleno aqueles possantes pulmões com que Deus a serviu:

- Que é que está aqui a fazer?

Por breves instantes, a perplexidade correu a sala. Então era assim que se tratava o bicho? Depois, um ataque de riso que parecia nunca mais ter fim tomou conta da turma. Mas por baixo daquela manta de gargalhadas estava escondida uma grande decepção. Quem estava à porta da escola do Souto era a Olivinha Patalaca.

- Minha senhora, eu venho despedir-me porque vou sair desta terra, vou servir para casa da D. Teresa.

- D. Teresa? Quem é?

- A senhora está a brincar comigo... Então, a D. Teresa é a mãe do primeiro rei de Portugal. vou ser a cozinheira dela.

- Ai, Olivinha, Olivinha, como anda a sua cabeça...

- A minha cabeça anda muito bem, graças ao Senhor que de todos cuida e a todos ouve e perdoa.

- Vá para sua casa, vá...

- Agora já não posso porque vou abalar para Guimarães. Ali em baixo está um cavalo com arreios muito bonitos que a D. Teresa me mandou. Adeus, dona Sara, adeus, meninos!

Vá tomar um banhinho, que só lhe faz bem - aconselhou a dona Sara. - Aqueça uma panela de água...

- Está a chamar-me porca, minha senhora?

- Não disse isso. Mas um banhinho fazia-lhe muito bem, pode confiar no que lhe digo.

- Se a senhora lavasse essas unhas de raposa velha, também lhe fazia muito bem.

Dona Sara melindrou-se:

- Desapareça, sua malcriada!

Olivinha Patalaca foi-se embora, nós abafámos os risos com muito custo, a dona Sara deu um suspiro fundo e continuou o ditado. A sua voz estilhaçava o silêncio da sala.

Nesse dia, mal caiu a noite, houve uma grande trovoada no Souto. E a Olivinha Patalaca, veio a saber-se mais tarde, não foi bater a nenhuma porta, não anunciou o casamento que nunca teve, nem comeu uma malga de caldo, um pedaço de broa, uma fatia de carne gorda ou um prato de batatas cozidas, com os cães do Souto a fazer-lhe companhia.

Passaram-se   sete   dias   sem ninguém ver a Olivinha Patalaca. Os cães farejavam por todos os cantos e quelhos, e quando caía a noite começavam a uivar, ganidos tristes, que incomodavam. Intrigadas com a ausência tão prolongada, as mulheres do Souto juntaram-se em frente do casebre da Olivinha, abriram a porta que não estava trancada e entraram, contrafeitas, julgando encontrá-la doente ou talvez com o corpo a desfazer-se.

A casa estava vazia. Na cozinha havia duas panelinhas de ferro, o púcaro da água com um rato morto lá dentro, dois pratos, uma faca, garfos, colheres e seis malgas esbotenadas. Sobre o soalho esburacado do quarto estava um colchão, e sobre o colchão duas mantas quase desfeitas.

A Olivinha desaparecera sem deixar rasto, nem sequer um breve sinal, o que muito espantava por não haver memória de mistério tamanho ter acontecido no Souto.

 

Naquele tempo não havia luz eléctrica no Souto. Quando a noite começava a pestanejar, nós víamos lá ao longe, lá ao fundo, uns pontos brilhantes muito maiores do que as estrelas do céu. Era lá, naquele fundão, que ficava a Vila. De noite parecia muito próxima, mas era uma refinada mentira. Do Souto à terra da luz eléctrica havia um caminho serpenteado que parecia nunca mais ter fim.

Pelo menos uma vez por ano, meu pai dava-nos a prenda mais apetecida. Num sábado, mal anoitecia, saíamos de casa com uma lanterna acesa para desviarmos os pés dos buracos e dos regos de água e, bem vestidos e bem lavados, andávamos ligeirinhos em direcção à Vila.

Era na Vila que estava o Café Central, cheio de mesinhas quadradas, com tampos de fórmica branca. Cada mesinha tinha quatro cadeiras e numa parede havia uma caixa castanha com uma tampa de vidro na frente que se chamava televisão e um papel que dizia "O empregado que fiava foi-se embora".

A gente puxava uma cadeira, sentava-se e ficava embasbacada com toda aquela iluminação, com o cheiro bom do café, o olhar preso naquele vidro maravilhoso que mostrava homens destemidos a dar tiros nos bandidos guedelhudos e mal barbeados, belos cavalos a correr, e depois os homens que atiravam nos bandidos diziam ailoviú e davam grandes beijos na boca de mulheres muito bonitas. Nessas ocasiões o café ficava silencioso e a minha mãe segredava que aquilo era uma pouca-vergonha, era pecado ver aquelas coisas, o mundo estava perdido, mas continuava a olhar.

Um rapaz, com uma bandeja na mão, vinha ter à nossa mesa e, muito educadamente, perguntava:

- O que desejam?

Que frase tão bonita! A minha mãe nunca desejava nada, mas o meu pai dizia que era preciso fazer despesa. O patrão do Café Central tinha de ganhar dinheiro para pagar toda aquela luz, e a televisão também não devia ter sido nada barata.

O empregado, muito bem penteado, com olheiras e um sorriso trocista, ficava ali plantado, com a mão esquerda a equilibrar a bandeja com copos e chávenas vazias, a direita com um paninho branco, à espera de satisfazer os nossos desejos.

- Traga cinco cafés bem cheiinhos e bem quentinhos - dizia meu pai com solenidade.

O rapaz passava por entre as mesas, muito aprumado, e, antes de chegar ao balcão, fazia uma voz grossa:

- Cinco cafés bem escaldados!

Por trás do balcão, um senhor muito alto e muito pálido pegava nas chávenas e enchia-as com o café que saía de uma torneirinha que estava ao fundo de um cilindro cromado e fumegante.

Cada chávena era colocada sobre o seu pratinho branco, e nesse pratinho também era posta uma minúscula colher e um pacotinho de açúcar.

O empregado, de camisa branca e calças pretas, punha tudo aquilo sobre a bandeja que continuava a segurar apenas com a mão esquerda, e lá vinha ele ter à nossa mesa, muito airoso e muito elegante, satisfazer os nossos desejos.

Depois de o rapaz se retirar, minha mãe dizia:

- Não espalhem o açúcar sobre a mesa, abram o pacote com muito jeitinho.

E a gente assim fazia. A minha irmã Otília, muito mais velha que eu e já namoradeira, com o cabelo a tresandar a perfume de violetas, ajudava o Quinzinho a abrir o pacote de açúcar e a despejá-lo na chávena. Depois mexia muito bem e dava a colher ao Quinzinho, que demorava imenso tempo a despejar a chávena porque, a conselho de minha mãe, tomava o café às colheradas. Eu não, eu sabia muito bem como me comportar. Abria o pacote com os dentes, despejava os grãos de açúcar branco na chávena, mexia o café com a colherzinha e depois punha uma mão à frente da chávena e soprava um bocadinho, sem fazer grande barulho, porque a minha mãe dizia que só se podia soprar em casa, e depois bebia o café aos golinhos. Ai, e era tão bom aquele café assim quente, tão doce, tão pouquinho.

- Isto é uma grande roubalheira - protestava minha mãe em voz muito baixa.

Eu dava-lhe razão, as chávenas bem podiam ser maiorzinhas.

Meu pai, que nunca fumava, pedia ao empregado um macinho de tabaco Português Suave, acendia um cigarro, fazia muita fumaça, entalava, tossia um ror de tempo e dizia, como se fosse um profundo conhecedor:

- Ora bem, cafés e restaurantes não foram feitos para matar a sede ou a fome de ninguém. São apenas lugares onde a sociedade se reúne.

A minha irmã Otília pouco se importava com essas conversas. Punha-se a olhar de lado para os rapazes, sorria e fazia festas ao Quinzinho, mas eu bem sabia que não eram para o Quinzinho todos aqueles sorrisos. Minha mãe, muito atenta, calcava o pé da Otília e sussurrava, com os olhos postos nas imagens que corriam na televisão:

- Tem modos, menina, ou vamos já embora! Era o que faltava! Não íamos deixar o Café Central assim a correr, depois de uma caminhada que parecia nunca mais ter fim. A minha irmã que tivesse muito juízo e olhasse apenas para a televisão. Otília beliscava-me nas pernas e dizia para eu estar calado, se não, em casa, chegava-me a roupa ao pêlo.

Depois de tomar aquela chavenazinha de café tão quente, tão doce, tão diferente da água negra que tomava em casa com açúcar amarelo, depois de ver a televisão, o Café Central tinha outra coisa bonita, que não havia em nenhuma casa do Souto.

O Café Central tinha uma porta ao fundo. Depois de se ter passado por essa porta havia um corredor atafulhado com grades cheias de garrafas vazias de cerveja, laranjada e gasosa e, ao fim do corredor, estavam duas portas. Na porta da direita havia duas letras, um W e um C. E por baixo do WC estava uma plaquinha com um desenho que mostrava a cabeça de um homem, com um grande chapéu na cabeça e um cigarro na boca. Por baixo do desenho estava escrito em letras maiúsculas: HOMENS. A porta da esquerda também tinha o W e o C, mas o desenho era diferente, na placa havia uma bela senhora de cabelos encaracolados, e por baixo do pescoço da senhora estava escrito, também em letras maiúsculas: MULHERES.

Eu transpunha a porta que dizia HOMENS, depois trancava-a com a chave e aproveitava para usar tudo o que lá estava sem ter de pagar nada: a sanita, o autoclismo que despejava a água com um barulho ensurdecedor, o rolinho de papel muito fino que estava ao lado da sanita, o sabão poisado à beira do lavatório, a água que corria na torneira cromada, a toalha encharcada. Em frente do espelho penteava com os dedos o meu cabelo curto, e ria-me com as malcriadices que estavam escritas e desenhadas na porta.

E eu pensava no meu pai. Ai, como ele era nosso amigo! Gostava que conhecêssemos a sociedade, que víssemos as coisas bonitas do mundo, pelo menos uma vez por ano. Se não fosse a vinda ao Café Central, como é que eu ia saber o que era um verdadeiro WC HOMENS, em nada parecido com a retrete toda feita de madeira que havia atrás da nossa casa, com bocadinhos de papel de jornal enfiados na ponta de um arame espetado na porta.

Depois de meu pai ter pago a despesa, voltávamos ao Souto.

Quando a Vila ficava para trás, e a escuridão recomeçava, a Otília dizia:

- Quando eu me casar, quero ir viver para a Vila. O Souto é uma esterqueira.

- Está calada, rapariga, não sabes o que estás a dizer! - dizia minha mãe, nascida, criada e casada no Souto.

E eu suspirava:

- Quando eu for grande, hei-de ter casa com luz, televisão, torneiras brilhantes e um quarto de banho com azulejos amarelinhos.

- Vais   morar num palácio,   meu   filho... Depois vou para lá viver! - brincava minha mãe.

Alto, espadaúdo, meu pai trazia o dorminhoco do Quinzinho às cavalitas todo o caminho, e o peso não o incomodava, era como se trouxesse uma linguiça sobre as costas.

 

O meu pai não gostava de cabras. Dizia que elas eram lambareiras, que não havia à face da Terra fartura que lhes matasse a fome, e ele não tinha tempo nem feitio para lhes aturar o descaramento. Mas o Quinzinho estava a crescer, e o leite, contrapunha minha mãe, era muito importante para os ossos das crianças. E de tanto insistir na saúde dos nossos ossos, lá o conseguiu convencer.

Numa tarde de nevoeiro cerrado, no mês do Natal, meu pai, que tinha ido à feira da Vila, trouxe consigo uma cabra comprida, esquelética, com as pernas tortas e um corno partido, toda preta e com uma mancha branca no pescoço.

- Tão fraquinha!... - suspirou minha mãe.

- Anda pré... prenha - gaguejou meu pai, com a cara muito vermelha e a rir-se muito. Todas as vezes que ia à feira sozinho vinha sempre assim, muito alegrinho, muito rosadinho, muito gago, e deitava-se logo na cama, pouco interessado em ouvir os ralhetes quase sussurrados de minha mãe:

- Um homem que fede e tresanda a vinho mete nojo a toda a gente, e nem os cães o respeitam.

Depois de meu pai se ter metido entre os lençóis, minha mãe recomendava:

- O vosso pai foi cedinho para a cama porque está com dores de cabeça, ouviram? Graças a Deus que em nossa casa não há bêbados!

Ficava assim combinado entre todos que os dias de feira faziam sempre dores de cabeça ao meu pai. E ponto final na conversa, os telhados inventaram-se para encobrir os sonhos e as misérias, e as portas e janelas existiam para mostrar as alegrias e as tristezas dos que lá moram.

A cabra ali estava à nossa frente, com uma cordinha enlaçada num corno e na metade do outro, tinha um olhar perdido e lentamente ruminava uma tristeza que logo fez mossa no meu coração com nove anos de vida. Pobre da bicha, ali assim presa, sem conhecer ninguém, se calhar com o corpo magoado de muita pancada ter apanhado, só pele e osso de tanta fome passar, e prenha. Prenha de quantos meses?

- Não sei - respondeu meu pai.

- E como é que ela se chama?

- Sei lá...

Fui à cozinha buscar um balde. Da panela grande de ferro que estava junto da lareira tirei, com a ajuda de uma malga velha, água morninha até o balde ficar meio. Atrás da porta da cozinha, à beira do forno de cozer o pão, havia um saco com farinha de milho. Despejei sobre a água morna do balde quatro grandes punhados de farinha e, com as duas mãos, mexi tudo muito bem. Pus o balde em frente da cabra que ainda não tinha nome, e ela cheirou-o, toda salamaleques, muito enfastiada. Aborrecido, gritei:

- Bebe isso, pernas tortas!

E ela obedeceu. Enfiou o focinho no balde e nunca mais de lá o tirou. Gluc, gluc, gluc, gluc, num instantinho bebeu a água, lambeu toda a farinha e ainda mais que lá estivesse, ficou com a barbicha toda molhada e, de repente, começou a balir. Balia desalmadamente, com as goelas todas abertas, um balido rouco, prolongado, incomodativo.

- Está calada, Pernas Tortas!

Ela não me obedeceu e eu desatei a rir, todo contente por ter descoberto o nome para aquela cabra comprida, esquelética, com um corno partido, toda preta e com uma mancha branca no pescoço. Não podia haver nome mais certeiro: Pernas Tortas!

Pernas Tortas era um nome original. De cabras Branquinhas e Cornudas, Laranjas e Lambonas, Mochas e Violetas estava o Souto cheio.

Antes de meter a Pernas Tortas na corte, à beira dos coelhos, que pertenciam a minha irmã e faziam luras no estrume para lá esconderem os filhotes até terem pêlo, olhos abertos e dentes afiadinhos para roerem todas as verduras que lhes aparecessem pela frente, minha mãe pôs-me as mãos sobre os ombros e disse, muito séria:

- Henriquinho, agora tu és o dono da cabra, tu é que tens de tomar conta dela.

- Ela é mesmo minha?

- Sim, é tua. Vê lá se lhe vais dar fome! Nunca na vida! Eu seria o melhor pastor de todos os tempos, havia de a levar para os melhores lameiros, havia de a tornar tão gorda como um porco, havia de lhe fazer festas no focinho e na barbicha, havia de dar-lhe muitas codeazinhas de pão e muita farinha de milho e água morninha. E quando ela ficasse com o úbere cheio, aprenderia a apertar-lhe os tetos com muita suavidade para que um fino jacto de leite enchesse malgas e malgas. E, assim, eu, o Quinzinho e até a minha irmã Otília havíamos de ter os ossos mais rijos do Souto.

Os coelhos, atordoados com o som esquisito que saía das goelas sempre abertas da nova inquilina, começaram a dar corridas que nunca tinham meta de chegada, e pouco tempo depois estavam escondidos nas luras que havia por baixo da enorme manta de estrume que cobria aquela corte escura, sem janelas, feita com pedras toscamente amontoadas e com uma porta que não tinha fechadura.

Nessa noite, o sono custou a tomar conta de mim. E na manhã seguinte, antes de pegar na saca dos livros, voltei a encher um balde com água. Quando ia meter as mãos no saco da farinha, minha mãe começou a gritar:

- Ah! Que rica mordomia! Então a cabra vai ser alimentada a farinha e água?! Tu estás bom da cabeça, Henriquinho?

Que mal havia nisso? A bicha estava magrinha, precisava de alimento reforçado...

- Não, meu filho, não é assim! A cabra precisa de rapar erva, muita erva. Quando acabarem as tuas aulas, vens a correr para casa e vais tratar da cabra. Tens de a levar para os campos e bouças, e andar lá com ela até começar a anoitecer. Assim é que está bem, essa é que é a tua obrigação!

Calei-me, engoli o café que enchia a minha malguinha com flores azuis, peguei na saca dos livros e fui para a escola, que ficava ao fundo do Souto.

Sentei-me na velha carteira à beira do Afonsinho, onde, ao longo dos anos, muita gente tinha gravado em segredo, com canivetes afiadinhos, as iniciais dos seus nomes. Nessa carteira, que ficava perto da secretária e rangia com o tempo seco, estava esculpido:

J P, MRF, APeCB que eu decifrava assim: Joaquim Penico, Marteludo Rilha Foles, Armando Parolo e Cabeça de Burro.

Eu acrescentei H R S, Henrique Rodrigo Soares, e o Afonsinho A C P, Afonso Carlos Pereira, mas o P ficou mal feito porque o Afonsinho deu um senhor golpe no dedo polegar da mão esquerda. Os nossos sucessores que inventassem nomes para essas letras.

A manhã foi correndo a passo de caracol, o sino da igreja demorava séculos a anunciar as horas, a dona Sara ditava problemas que parecia não terem solução, e eu só pensava na Pernas Tortas lá na corte, cheia de fome, esperando por mim, o seu novo dono.

Quando as aulas acabaram, corri para casa. Ia com tanta velocidade que as galinhas que ciscavam no caminho desataram a cacarejar, algumas levantaram voo, e os cães começaram a latir por descargo de consciência. O Teixeirinha, sapateiro, sacristão e coveiro do Souto, pôs a cabeça do lado de fora da janela e gritou:

- Ó moço, que é que se passa?

- Nada!

- Nada?!

- Tenho um serviço para fazer em casa.

- Vai mais devagar, senão não chegas lá inteiro...

- Até logo, até logo.

Em casa, encontrei a Otília a dar bufadelas nas brasas mortiças do ferro de engomar. Passar roupa a ferro, sobretudo a dela, era o passatempo da minha irmã. Os lenços da mão que ela passava, dobrava e repassava ficavam cheirosos e retesados como bacalhaus, e até dava pena a gente ter de se assoar neles.

- A cabra?

- Está na corte à tua espera.

- Deste-lhe alguma coisa para comer?

- Que remédio! Fui cortar um molho de erva.

- Para onde é que eu levo a Pernas Tortas?

- O que é isso?

- Pernas Tortas é o nome que eu dei à cabra, não sabias?

- Maluquinho...

A Otília riu-se. E mandou-me levar a cabra para uma bouça que tínhamos junto da ribeira.

Peguei numa grande côdea de broa e numa mão-cheia de azeitonas, comi tudo num instante, pus a saca dos livros às costas e arranjei um pau da minha altura, grossinho e muito direito para servir de cajado.

A cabra calou-se quando viu a luz da tarde e começou a andar muito depressa. E eu, sempre à beira dela, sentia que todo o meu corpo estava sendo alagado por um mar de suor.

- Vai mais devagar, Pernas Tortas! Pois sim... A Pernas Tortas lá ia de ventas no ar,   muito   airosa,   pouco   se   importando   com as minhas pernas curtas.

Num instante estávamos na bouça, à beira da ribeira, pejada de tojo e giestas, silvas, urzes e penedinhos cobertos por mantas de musgo e a toda a volta cercada por um muro baixinho, feito com pedras sobrepostas.

Pernas Tortas desatou a depenicar as pontas tenras dos tojeiros, das giestas e das urzes, e eu sentei-me sobre um penedo, tirei os livros, o caderno, o lápis, a lousa e o ponteiro de ardósia com a ponta bem afiada, e iniciei a feitura dos deveres de casa que a dona Sara tinha marcado.

Comecei a sofrer com uma conta de dividir, com imensos algarismos, com vírgulas no dividendo e no divisor, que enchiam a lousa. Quem inventou as contas de dividir devia penar mil anos no Inferno, pensava eu, cada vez mais aflito, cada vez mais impotente para resolver aquela operação.

Depois de muitas vezes apagar a lousa com cuspo e depois com a travesseirinha de pano que a minha irmã Otília me tinha arranjado, lá consegui ficar de bem com a conta e, com um suspiro fundo, apressei-me a copiá-la para o meu caderno.

Dona Sara crivava-nos de deveres de casa. Depois da conta, ainda tive de fazer uma cópia do livro e uma redacção sobre um animal doméstico à nossa escolha.

Eu escrevi algumas linhas sobre a cabra. Disse que era um animal mamífero e herbívoro, vírgula, e que dava carne e fornecia leite para a nossa alimentação, ponto final. E que a sua pele era muito importante para a indústria dos curtumes e do calçado, vírgula, e o estrume das cabras era muito bom para as hortas onde se cultivam as hortaliças e os legumes frescos, vírgula, que são muito bons para a alimentação do Homem, ponto final. Um conjunto de muitas cabras chama-se rebanho, vírgula, que é um substantivo   colectivo, ponto final. Eu gosto muito das cabras, ponto final.

Calhou falar da cabra; se escrevesse sobre a ovelha, dizia a mesma coisa e acrescentava que a sua lã era muito importante para a indústria dos lanifícios, vírgula, e o leite também era muito importante para a indústria dos lacticínios, ponto final. Eu gosto muito das ovelhas, ponto final.

No extenso catálogo dos animais domésticos, havia alguns que pouco préstimo tinham para redacções. O que é que se ia dizer de um galo, por exemplo? Não dava leite, a pele não servia para a indústria dos curtumes, as suas penas deitavam-se na estrumeira, não punha ovos, e só sabia cantar quando muito bem lhe apetecia e galar tudo a eito: galinhas velhas e frangas novas. Mas o galo era um dos meus animais domésticos preferidos. Arroz de cabidela e uma coxa de galo era comidinha que muito me consolava.

Tão mergulhado estive no cumprimento dos meus deveres que esqueci por completo a Pernas Tortas.

Já o sol desaparecia por trás dum cabeço e um ventinho fresco fazia arrepiar a pele das mãos quando eu me lembrei que era pastor e tinha uma cabra a sério à minha guarda. Meti na saca as ferramentas da instrução, levantei-me e, ali, em cima do penedo, tentei descobrir o paradeiro da Pernas Tortas.

Corri com o olhar toda a bouça, uma, duas, dez, vinte vezes, e da cabra não vi um único sinal.

- Pernas Tortas! Pernas Tortas! - gritava eu cada vez mais alto.

Pois sim. A Pernas Tortas não me ouvia, não respondia aos meus apelos cada vez mais angustiados.

Saltei do penedo e com o pau nas mãos corri a bouça de lês a lês. Ela tinha de aparecer, ela tinha de estar ali, ai meu Deus, e se ela não aparecesse, o que é que eu havia de fazer?

- Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome, eu quero encontrar a minha cabra, e eu não sei onde é que ela se meteu.

Eu prometo, meu Deus, rezar dez ave-marias, não, vinte ave-marias, se a minha Pernas Tortas aparecer agora mesmo.

Ai, o meu pai vai dar-me uma coça como nunca levei, se calhar vai tirar o cinto das calças e vai dar-me com ele nas costas e nas pernas, vai gritar, vai dizer que não presto para nada.

E a minha mãe, coitadinha, que sempre nos quis dar muito leite para os nossos ossos ficarem muito rijos, vai ficar muito triste.

Só a mim, só a mim é que acontecem estas coisas. Ah, se eu tivesse um cão, a ordinária da cabra não gozava comigo. E quando te apanhar vais levar duas pauladas no corpo que até hás-de ganir, se te partir o outro corno não me importo nada,

ouviste?!

Pernas   Tortas!   Pernas   Tortas!   Aparece, minha rica cabrinha!

Ao fundo da bouça havia um bocadinho de muro no chão. Foi por lá que ela se escapuliu. Mas para onde?

Pus a saca dos livros às costas, passei por cima das pedras do muro caído, continuei a chamar pela cabra, de olhos bem abertos e ouvidos atentos, e, pouco depois, descobri a primeira pista: havia no chão caganitas ainda frescas.

- Pernas Tortas! Pernas Tortas!

Depois emudeci e o meu coração começou a bater ainda com mais força. A cabra andava a comer as couves que estavam plantadas no campo do Chico da Juliana.

O Chico da Juliana era um velho baixinho e solteirão que morava sozinho, à beira do cemitério, e era senhor de poucas palavras. Os moços do Souto tinham-lhe medo.

- Ai, Nosso Senhor, valei-me, que o Chico da Juliana deve estar ali escondido e vai dar-me com o cabo da enxada, vai rachar-me a cabeça, vai desfazer-me aos bocadinhos!

O Chico da Juliana não estava no campo e eu atirei com uma pedra à Pernas Tortas, que lhe acertou em cheio na barriga e a fez pular dali para fora, toda espavorida.

- Se os cabritos nascerem mortos não me importo, quero lá saber... Mas tu, se pensas que isto vai ficar assim, estás muito enganada! Quando te apanhar na corte, vais ver com quantos pauzinhos se faz um cesto... Quem te deu ordem para andares a comiscar aquilo que é dos outros, ainda por cima do Chico da Juliana, que é o homem mais bravo do Souto? Anda, anda lá para casa, que eu quero acertar contas contigo!

Assim que a cabra entrou na corte, peguei no meu pau e bati-lhe com quanta força tinha, bati-lhe até já não haver pau inteiro, bati-lhe até ficar exausto.

Entrei na cozinha da nossa casa ao anoitecer. Minha mãe, que preparava a comida dos porcos, perguntou:

- Portaste-te bem   com o   novo   trabalho, Henriquinho?

- Mais ou menos...

- Mais ou menos não é resposta. Ou é sim, ou é não.

- Sim.

- Nunca a deixes ir para a horta do Chico da Juliana. Eu não quero complicações, ouviste? E não lhe batas na barriga.

- Eu sei.

- Fizeste os deveres de casa? -Fiz.

- Então vai brincar um bocadinho.

- Agora é que vou brincar... Já é noite!

- Então vai à fonte buscar um regadorzinho de água.

Lá fui. Devagarinho, carregado com o imenso rol de pecados que tinha feito nessa tarde.

 

Nesse tempo eu pensava que o Souto era uma grande terra, que a torre da igreja, com a sua cruz de ferro lá no ciminho, tinha um tamanho gigantesco, que a residência paroquial, sempre branca como as açucenas que medravam nos canteiros do jardim, todos bordados a murta e com passeios empedrados, era a casa mais bonita do vale, e que a Vila, era o centro do mundo.

Pensava também que o Chico da Juliana era o homem mais feio de toda a humanidade. E como vivia à beira do cemitério, esse velho baixinho falava com as almas penadas que em certas noites de lua nova saíam das campas e imitavam os gritos lancinantes das corujas.

Isto era o que se dizia e se comentava em segredo, porque não havia provas, ninguém tinha visto nada. Mas era bom falar nessas coisas, era uma estranha sensação brincar com o medo, imaginar outras realidades, sem limites nem fronteiras.

Eu não tinha culpa de a Pernas Tortas ser tão lambona. O Chico da Juliana tinha de saber pela minha própria boca o que se passara. Era melhor assim.

Logo de manhãzinha, engoli com muito custo metade do café que minha mãe me serviu, pus a saca dos livros às costas e fiz de conta que caminhava para a escola sem ter chamado o Afonsinho, que costumava fazer-me companhia.

Passei o muro do cemitério e o alto portão de ferro que tinha lá no ciminho dois anjos e umas letras retorcidas que diziam REQUIESCANT IN PACE, que eu traduzia: "resultado de quem anda em paz". Era uma frase esquisita, sem sentido, barafustava o Afonsinho. E eu respondia que aquelas palavras deviam ter sido escritas no tempo do D. Afonso Henriques, por isso a gente não percebia nada.

A casa do Chico da Juliana estava cercada por um muro. E em cima do muro havia cacos de garrafas e vidros partidos. Para se entrar naquele reino era preciso bater com força no portão enferrujado. Logo depois, ouvia-se o latir do Mondego, um velho rafeiro, com as orelhas infestadas de gordas carraças. Esperava-se um niquinho de tempo e depois lá vinha o Chico da Juliana, fincado no cabo da enxada, abrir o portão sem nunca perguntar quem estava do lado de fora, e o cão calava-se.

- Que queres?

Eu tinha aprendido a ser um menino bem educado:

- bom dia, senhor Chico.

- bom dia.

- Eu precisava de lhe dar uma palavrinha em particular.

O velho olhou para mim com curiosidade e eu senti que havia naquela cara encorrilhada um breve sorriso.

- Então queres dar-me uma palavrinha em particular... Entra, filho, entra!

Credo! O velho estava a chamar-me filho... O que é que aquilo queria dizer? O melhor era estar calado e fazer um grande esforço para que as pernas tremessem menos, que as minhas orelhas não ardessem tanto e que a boca não estivesse tão seca logo de manhã.

Entre o portão e a casa havia um carreirinho de terra batida muito bem varrido, e no quintal, aqui e ali, viam-se laranjeiras, um limoeiro e outras árvores de fruto.

Um toco de carvalho ardia devagarinho na lareira da cozinha. O Mondego deitou-se sobre uma manta velha e rota que estava num canto do preguiceiro e olhava para mim com um olho aberto e outro fechado, o velho também lá se sentou e deixou ficar a enxadinha entre as pernas. Sentei-me num banquinho e pus-me a olhar para as brasas mortiças que estavam por baixo de uma panelinha de ferro e sentia que a minha boca cada vez se parecia mais com uma seca rolha de cortiça.

- Diz lá o que tens a dizer... E eu, sem querer, comecei a chorar. As lágrimas corriam-me pela cara abaixo, e os meus olhos pareciam duas fontainhas. A barriga doía-me muito, e a minha bexiga num repente ficou atestada, a minha pila começou a largar pinguinhas nas ceroulas, o lenço nunca mais enxugava o nariz, ai que aperto no coração, porque é que eu me fui meter na boca do lobo sem ninguém me ter mandado?

O Mondego levantou-se do preguiceiro e veio lamber-me a cara e eu abracei-o.

O velho ficou aflito:

- Que tens, Henriquinho, diz-me!

- Foi a Pernas Tortas...

- Que dizes?

- Foi a Pernas Tortas...

- Que é isso?

- A   minha   cabra...   Ela   chama-se   Pernas Tortas, eu é que lhe dei esse nome. O meu pai comprou-a e agora eu sou o dono dela.

- Pronto. Então tens uma cabra que se chama Pernas Tortas. E depois?

- Ontem eu fui levá-la ao pasto e...

- Fala, não tenhas medo!

- Mas toda a gente diz que você é muito mau.

- Fala, rapaz, fala! Eu não como ninguém.

- Pronto, eu vou dizer. Ontem à tarde, a Pernas Tortas fugiu da nossa bouça e foi comer as couves do seu campo. Eu não sabia que ela era assim, tão lambona, e agora... agora venho pedir-lhe perdão.

- Ela comeu-as todas?

- Não, aí umas cinquenta, ou até menos. Fiquei tão aflito que não as contei.

- Tens de ter cuidado.

- Ela corre muito.

- Arranja um bocado de corda e trava-lhe as pernas. Assim ela já não corre tanto. Sabes fazer uma trave?

- Nunca fiz nenhuma...

- Então faço-te uma. E guarda o choro para outra ocasião. Foste um bom rapaz, muito honesto, muito recto, estás perdoado.

Ai que alívio! As fontainhas secaram, a barriga deixou de me doer, a bexiga desatestou, meti o lenço encharcado no bolso das calças e respirei fundo.

A um canto da cozinha, havia uma pequena forja e alguns picos à espera de uma aguçadela. Chico da Juliana nunca se casou e toda a vida foi pedreiro. Algumas das casas e muitos muros do Souto tinham marcas do seu saber. Agora estava velho e sozinho.

Dois primos que apareciam no Souto uma vez por ano eram a única família que se lhe conhecia.

- Queres uma malguinha de papas?

- Não quero, muito obrigado.

- Não gostas de papas?

- Gosto.

- Então vais fazer-me companhia.

Não tive coragem para lhe dizer que estava na hora de ir para a escola.

As papas estavam dentro da panelinha que aquecia no lume.

Chico da Juliana encheu duas grandes malgas com papas e despejou o que restava da panela num prato velho que estava no chão, junto do preguiceiro.

As papas de farinha de milho tinham bocados de carne gorda; couves cortadas aos pedacinhos e folhas de hortelã, não estavam insossas nem salgadas, não muito espessas nem muito raras de farinha.

O Mondego foi o primeiro a limpar o prato e se não levasse uma sapatada também metia a língua na panela. Eu demorei muito tempo a comer aquela malgada de papas, tão bem temperadas, tão boas, tão quentes.

A saca dos livros começou a pesar-me nas costas e eu lembrei-me da escola.

Oh, a escola que esperasse, eu estava muito bem naquele sossego, a cozinha cheirava a hortelã e não era todos os dias que se comiam papas assim tão boas. Até podia ali ficar o dia inteiro. Depois inventava uma desculpa.

- Vai para a escola, meu filho. Só te faz bem. E quando quiseres vem aqui ter comigo. Todos os dias faço papas. É uma boa comida para os velhos desdentados.

Chico da Juliana fez num instantinho a trave para a Pernas Tortas. E com aquela corda, que não tinha mais de dois palmos de comprimento e uma laçada em cada ponta, metida no bolso das calças, prometi voltar mais vezes. Antes de fechar o portão, reparei numa pedra que andava a ser trabalhada e tinha, ainda bastante indefinida, a forma de um corpo.

Apeteceu-me voltar para trás e perguntar-lhe o que era aquilo. Mas, como já era muito tarde, fechei o portão com cuidado e corri para a escola.

Disse à dona Sara que tinha ido buscar um saquito de farinha ao moleiro e era por isso que me tinha atrasado. Chegar fora de horas por ter ido encaminhar água para os lenteiros, buscar farinha ao moleiro, assistir à missa da manhã ou a um funeral eram situações que a dona Sara tolerava.

Muito em segredo, compartilhei com o Afonsinho a aventura que tinha vivido. E ele respondeu que não acreditava numa única palavra, era mais uma das muitas historietas que eu gostava de inventar. Eu ri-me, e o Afonsinho pôs um ponto final na conversa muito senhor da sua verdade:

- És um grande peteiro!

 

A Otília divertia-se a namoriscar com dois rapazes ao mesmo tempo: o Abílio do Passal e o Zé Coirinho. E a minha mãe impacientava-se:

- Que pouca-vergonha, rapariga, é um à porta e outro ao ferrolho. Não brinques com o lume.

A Otília ria-se e respondia que namorar era um desporto como outro qualquer.

O Abílio do Passal era o filho único do Julinho Barbeiro e tinha cinco campos, um pinhal, duas bouças, duas vacas, um boi, muitas ovelhas e tresandava a suor.

Zé Coirinho era filho da Madalena Sardinheira, e tanto ele como as suas duas irmãs mais novas - a Isaura e a Inês - tinham um pai incógnito.

O Zé ganhou o nome de Coirinho porque, quando andava na escola, a maior parte das vezes comia ao almoço pedaços de pão e coiratos de porco, cozidos ou fritos, que sua mãe comprava no talho da Vila.

Os coiratos fizeram-lhe bem. Zé Coirinho era alto, magro como um espeto, e como tinha muita força era a única pessoa do Souto que conseguia pôr um arado no ar sem a ajuda de ninguém.

Zé Coirinho de seu apenas tinha o corpo e ganhava a vida a trabalhar de jornaleiro. Pagavam-lhe o dia para cortar mato ou cortar lenha, cavar quintais, lavrar a terra dos campos, ceifar milho ou centeio, podar ou vindimar. E como sabia tocar concertina muito bem, pagavam-lhe para ele fazer a música em bailes que duravam até de madrugada.

Nos bailes onde minha irmã aparecia, muito bem penteada, cheirosa e muito bem escarolada, havia sempre uma grande cena de ciúmes que geralmente acabava em discussão. Era certo e sabido o que acontecia quando o Abílio começava a dançar com a minha irmã. Zé Coirinho deixava de sorrir e daí a nada pousava a concertina, pulava da caixa onde estava empoleirado e saía da sala por alguns instantes, dando a entender que o corpo o obrigava a fazer certas necessidades sem grandes demoras.

As raparigas cochichavam e riam entre elas; as velhas, lá no seu canto, mostravam as bocas desdentadas, a Otília fazia de conta que não tinha percebido nada, e o Abílio fumava cigarro atrás de cigarro e mastigava vinganças que ninguém percebia.

Uma vez, o caso ficou feio. O Abílio pôs-se no meio da sala iluminada por candeeiros de petróleo e apedrejou o Zé Coirinho com estas palavras:

- Tenho andado a pensar na doença do tocador. E impossível que um corpo tão avantajado tenha uma bexiga de menino. E porque não gosto de ver o meu semelhante a sofrer e felizmente tenho alguns rendimentos, resolvi ajudá-lo. Estou disposto a pagar as consultas do médico e os remédios que forem precisos para que o nosso tocador não sofra tanto!

Na sala todas as vozes mirraram, muitas cabeças fizeram negaças, as faces da Otília pareciam cerejas maduríssimas, e o Zé Coirinho pousou a concertina em cima da caixa onde estava empoleirado, desceu e aproximou-se do Abílio especado no meio da sala.

- Ou engoles o que disseste ou eu parto-te a cara!

- Ainda está por nascer quem for capaz de fazer uma coisa dessas!

Eu estava num canto da sala, pertinho da porta. Os olhos muito abertos dos dois ciumentos fizeram-me lembrar um par de galos com os pescoços muito esticados e as penas levantadas, antes de começarem a luta, que acaba sempre com um deles a fugir com a cabeça a sangrar e o outro muito quieto, cantando vitória.

- Vamos para fora da sala ajustar contas desafiou o Zé.

- Não saio daqui!

- Isso é que sais!

As irmãs de Zé Coirinho começaram a gritar, e a minha mãe saltou para o meio da sala, pôs-se entre os dois bulhentos, abriu os braços e disse:

- Não se esmurrem por tão pouca coisa. Há palavras que saem da boca, entram por um ouvido, saem pelo outro e o vento leva-as para longe. Se têm alguma consideração por mim, façam de conta que nada foi dito, que está tudo bem.

- Um dia havemos de ter uma conversa a sério - desafiou Zé Coirinho.

- Quando quiseres - respondeu o Abílio, branco como uma açucena.

E o baile recomeçou, com a minha irmã Otília a dizer que estava muito mal disposta, doía-lhe muito a cabeça, queria ir para casa. Minha mãe fez-lhe a vontade e pelo caminho fartou-se de lhe azucrinar a cabeça, culpando-a pelo mau ambiente que se tinha gerado no baile.

Uma semana depois, ou nem isso, todo o povo do Souto reparou que da noite para a manhã a cara do Abílio ficara muito inchada, cheia de negras. Ele explicou que tinha sido o coice de uma vaca que lhe pôs a cara naquele estado. Ninguém acreditou. A pata da vaca é que pagava as favas, mas quem teve o proveito foram de certeza as mãos calejadas do Zé Coirinho.

Uma noite, depois de já termos ceado, o pai do Abílio bateu-nos à porta. Meu pai mandou-o sentar no preguiceiro, ofereceu-lhe vinho, e começaram a falar do tempo e de outras ninharias. Não era certamente para dizer que no dia seguinte, se calhar, chovia que o Julinho Barbeiro se dava ao trabalho de vir a nossa casa pela calada da noite. Depois de minha mãe ter ido deitar o Quinzinho, que já dava os primeiros passos, fez-se um grande silêncio na cozinha.

- Vai-te deitar, Henriquinho - disse minha mãe.

- Ainda não tenho sono.

Era o que faltava! Eu também era gente, também tinha direito de saber o que é que o Barbeiro tinha para contar. Se ele vinha a nossa casa assim à noitinha era porque se tratava de assunto muito importante. Não, eu tinha de estar ali de olhos bem abertos, muito caladinho. Depois fiquei aflito: e se ele estivesse ali para dizer que estava interessado na minha Pernas Tortas, que agora já andava com passinhos curtos, com duas pernas entravadas com a cordinha que o Chico da Juliana me tinha feito? Não, a minha mãe não ia vendê-la. Pelo meu pai não punha eu a mão no fogo, do que ele mais gostava de fazer na vida era negociar e ver negociar, por isso nunca perdia um dia de feira, mesmo que chovessem picaretas.

A Otília pôs mais achas de carvalho no lume, o Julinho Barbeiro tirou do bolso das calças um lenço encardido e amarrotado, levou-o ao nariz e fungou estrepitosamente uma série de vezes, escarrou para o meio do lume, acendeu um cigarro com um tição em brasa e começou a falar baixinho, quase em segredo, de forma a que alguém que passasse no caminho não entendesse o que ali se estava a congeminar.

- Não vale a pena estar a falar nas qualidades do meu Abílio. É um rapaz poupado, trabalhador, tem alguns bens ao luar que não precisa de partilhar com mais ninguém porque é o único filho que tenho vivo; os outros dois que a minha Ana teve não vingaram, e ainda hoje me dá um nó no peito falar nisso. Agora gostávamos que ele se casasse e nos desse muitos netinhos. A casa é grande, mas também se pode alargar, o que importa é que se entendam muito bem, que vivam em paz.

- Isso é uma grande verdade - disse minha mãe, voltando a encher o copo de vinho que estava nas mãos do Julinho Barbeiro.

O silêncio voltou a tomar conta da cozinha. A minha irmã Otília fazia de conta que estava muito atarefada, varreu e voltou a varrer o chão com a vassoura de giesta que eu tinha feito, lavou a loiça e limpou-a muitas vezes, deitou petróleo na candeia acesa, pendurada num arame espetado na parede, lavou as panelas de ferro, andava para cá e para lá, para lá e para cá, e nunca mais se sentava.

Tinha o Julinho bebido o quarto copinho de vinho quando abriu o jogo depois de acender outro cigarro:

- Bem, vamos falar do que me trouxe aqui. Está a ficar tarde e amanhã é dia de trabalho.

- Faça de conta que está em sua casa! - disse minha mãe.

- E eu assim faço, muito agradecido. Como já não tinha mais nada que limpar, a Otília sentou-se num banco à beira da lareira e pôs-se a descascar batatas para o caldo do dia seguinte.

- Para o ano, o meu Abílio vai para a tropa, e o mais certo é ter de marchar para a guerra daquelas terras de África. Agora os nossos rapazes vão para Angola, Moçambique, Guiné e a gente nunca sabe a sorte que os espera. Isto está assim, que é que se lhe há-de fazer? De modo que ele pensou que o melhor era encaminhar a vida antes de ir assentar praça. Ele quer casar-se, e eu e a minha Ana estamos de acordo. Se ele nos deixasse ficar um netinho em casa, a tristeza de o ver partir não era tão grande. Aqui a Otília podia dar-nos essa alegria...

A Otília deixou cair a bacia e as batatas descascadas rolaram pela lareira e ficaram cobertas de cinza e sujidade.

Eu olhei para a Otília e ri-me. Minha mãe fuzilou-me com os olhos muito abertos e o meu pai, muito de mansinho e com a maior compostura, deu-me um beliscão numa nádega.

De repente, os cães do Souto começaram a ladrar furiosamente e, pouco depois, ouviu-se o estrondo de dois tiros. Toda a gente já estava habituada àquilo: quando os cães desatavam a ladrar, o Armandinho Rebolo abria a janela do quarto e disparava para o ar, e pouco depois os bichos calavam-se. Calada ficou a minha mãe, meu pai não abriu a boca e a Otília pôs-se a olhar para as labaredas que consumiam a lenha posta na lareira.

- O casamento é um passo muito importante na vida de toda a gente. Não se pode brincar com uma coisa tão séria. Compreendo que não é agora a altura de ter uma resposta de sim ou de não. Pensem no caso e depois digam qualquer coisa - rematou o Julinho Barbeiro antes de se ir embora.

Logo que os passos do pai do Abílio deixaram de se ouvir no caminho, a minha irmã Otília explodiu:

- Era o que faltava! Não quero casar tão cedo!... E se o Abílio tem essa ideia, dizia-mo, o pai dele não tem o direito de se meter nisso. Que descaramento!

- Filha, não leves a mal... Há pessoas que ainda pensam que o mundo não mudou, antigamente era assim que se fazia... - disse minha mãe.

- Então eu vou casar-me para fazer a vontade ao pai dele, que quer um rancho de netos... Mas o que é que eu sou no meio disto tudo? Não pensem que vou dizer amém. Isso é que era belo! Eu nem sequer namoro com ele!...

Sentado no preguiceiro, meu pai cofiava o bigode que já tinha alguns pêlos brancos. Calado, passou um ror de tempo a olhar para a chama tremeliquenta da candeia. Quando abriu a boca, foi para dizer que eram horas de nos irmos deitar.

 

Os dias foram passando devagarinho, os meses foram correndo, o meu pai ia ficando sempre com dores de cabeça todas as vezes que ia sozinho às feiras quinzenais da Vila. A Pernas Tortas nunca mais dava leite.

O Abílio começou a aparecer todas as tardes de domingo à porta da nossa casa, e ali ficava até vir a noite, a namorar com a minha irmã Otília e eu, sempre que podia, metia-me em casa do Chico da Juliana, comia uma malgada de papas, via-o a trabalhar, com um pico ou então com uma maceta numa mão e um escopro na outra, naquela pedra que estava perto da entrada.

Nessa altura, já eu tinha descoberto que o Chico da Juliana era um grande artista. Espalhadas pelo seu reino cercado por um muro tão alto, havia muitas esculturas de granito. Havia um cão parecidíssimo com o velho Mondego, que passava o tempo a dormitar na cozinha, deitado sobre uma manta velha e quase desfeita poisada num canto do preguiceiro; havia uma cabra com um úbere imenso, que roçava o chão; a cabeça de um cavalo que parecia rir-se, colocada junto duma pequena laranjeira; e também havia um belo mocho guardado na sala, em cima da mesa.

Chico da Juliana trabalhava lentamente naquela pedra, uma pancadinha agora, outra pancadinha muito mais tarde, sempre a medir com o esquadro e a régua, e eu ali parado a olhar, sem perceber muito bem qual seria o resultado final. Impacientava-me com toda aquela lentidão.

- Henriquinho, esta é a última brincadeira da minha vida. Por isso quero que fique muito bonita, muito perfeita.

Eu não percebia muito bem por que é que ele dizia aquilo. E exasperava-me por não conseguir adivinhar o que é que o velhote andava a esculpir. Ele dava uma risadinha, punha-se de longe a olhar para a pedra depois de nela ter trabalhado um pedacinho e perguntava:

- Então, já descobriste?

E eu, coçando a cabeça, dizia que não.

Muitos meses andou o Chico da Juliana à volta da pedra. Foi preciso passar muito tempo para eu admirar um belo anjo de granito polido, com cerca de um metro de altura. Tinha uma cabeça muito redonda, as mãos cruzadas no peito, e duas asas feitas com chapa de ferro pintadas de azul, muito bem cravadas nas costas.

Numa tarde de temporal, com as árvores a abanar como se fossem juncos e a água da chuva a cabriolar pelos caminhos, faíscas e estrondos de meter medo, o Chico da Juliana perguntou-me se era capaz de lhe fazer um favor. Eu disse que sim, embora não me agradasse nada ter de sair para o meio do temporal.

- Quando eu fechar os olhos, levas o anjo para a minha campa?

E eu disse que sim, que não me custava nada.

- Prometes?

Ceguinho fosse eu se não fizesse isso. O anjo   com aquelas asas tão azuis ficou guardado num canto da sala e eu, depois daquela breve conversa, evitava poisar o olhar naquelas asas que tinham a mesma cor dos ferros da minha cama, que o meu pai pintava todos os anos, em Agosto.

Também era em Agosto que minha mãe e minha irmã Otília carregavam os colchões das camas para o meio da rua e depois retiravam-lhe a palha de centeio que os enchera durante doze meses. Eu fazia molhinhos de palha e levava-os para dentro da corte dos porcos, e o meu pai, com a latinha de tinta de esmalte azul numa mão e o pincel na outra, assobiava modinhas, punha a língua à banda e pintava com muitos vagares as nossas camas de ferro forjado.

Mas antes de o anjo de pedra ter ficado pronto e guardado na sala do velho Chico da Juliana, que já contava setenta e cinco anos, muitas conversas correram no Souto. Muitas notícias correram naquela terra, onde os dias pareciam sempre iguais, governados pelas colheitas de outonos pardacentos, pelo frio e pela chuva de invernos ventosos e gelados. Uma terra que despertava na Primavera, inundada pelo intenso perfume das flores amarelas das mimosas e pelo canto da passarada em constante rebuliço, e transpirava debaixo do sol escaldante de verões sempre tão secos e tão compridos. Era nessa altura que apareciam nos caminhos as peles secas das cobras, que eu levava para o nosso quintal e pendurava no arame duma ramada, ali ficando um ror de tempo, à espera das ventanias que se encarregavam de as desfazer.

Era no pino do Verão que eu tinha excitantes encontros com as cobras, que bufavam, deitavam a língua e serpenteavam, apressadíssimas, fugindo das calhoadas que eu lhes atirava, tentando acertar-lhes na cabeça. Era uma luta que às vezes eu ganhava. E, muito senhor do meu feito, pendurava as bichas num pau e ia levá-las a casa do Armandinho Rebolo, que as apreciava muito. Cortava-lhes a cabeça, esfolava-as, partia-as aos pedacinhos e fazia um caldo que, dizia ele, depois de estar muitas horas a ferver, fazia muitíssimo bem a todo aquele que tivesse um estômago debilitado.

Como eu achava que o meu estômago era muito bom, nunca aceitei comer sequer uma colherzinha daquele caldo branco com umas amostras de grãos de arroz e pedacinhos de cobra. Aceitava sim a moeda que ele me dava, que servia para comprar um chocolate que sabia a leite e tinha no papel que o embrulhava uma vaca com manchas pretas no corpo e uns olhos espantados.

E eu punha-me a pensar: "Ai, por que é que eu não sei desenhar uma vaca tão bonita como esta? Como é possível fazer uns olhos assim? Por que é que eu sou uma nódoa a desenho, e não sou capaz de transformar pedras em vacas, ou em cavalos, ou noutra coisa qualquer, como faz o meu amigo Chico da Juliana? Se calhar, eu não presto para nada, só sei matar cobras com pedradas muito certeiras...".

Quem também não estava a prestar para nada era a Pernas Tortas. Eu bem me esforçava pela sua alimentação. De vez em quando, às escondidas de minha mãe, surripiava a farinha de milho que estava na cozinha, deitava-a num balde com água, juntava-lhe côdeas bolorentas de broa, metia-me na corte, segurava o balde para a Pernas não o entomar e ela lambia tudo num instante, e quando levantava a cabeça, respingava-me a cara e a roupa. Eu dava-lhe batatas cozidas e cortava grandes molhos de erva muito verde e muito tenra que despejava na corte para que ela a compartilhasse com os coelhos da minha irmã Otília.

Os coelhos cresciam num instante, a Otília metia-os num açafate coberto com uma rede, punha-o à cabeça e ia vendê-los à Vila, nos dias de feira. A minha mãe ia sempre com ela, para a ajudar a fazer o negócio, e quando voltavam a casa, traziam no açafate pratos, panos, muitos panos que depois a Edilinha costureira se encarregava de transformar em lençóis, saias, vestidos e blusas.

De vez em quando, depois de ter ido à primeira missa do domingo, meu pai ia à corte, apanhava um coelho pelas orelhas, depois agarrava-o pelas patas traseiras e, sem demoras, batia duas vezes com a cabeça do bicho contra uma parede. Ouvia-se uma guinchadela, depois via-se o sangue a borbulhar no focinho, a sair pelos olhos, boca e orelhas. Meu pai tirava do bolso uma navalha de gume afiadinho e esfolava-o num instante. As vísceras caíam no chão e pouco tempo ali ficavam a fumegar porque os gatos e os cães, com muitas zaragatas, escorraçadelas, corridas e dentadas, encarregavam-se de as arrastar para o meio dos silvedos, onde as comiam em paz.

Minha mãe costumava guisar o coelho com batatas e massa. As vezes, cobria-o com um picado feito de carne gorda de porco, sal e hortelã e metia-o no forno de cozer a broa, bem aquecido com lenha de giesta e carvalho, em cima de um alguidar de barro preto, cheio de arroz. E eu encarregava-me de tapar com bosta de vaca as frinchas da porta do forno, feita de madeira e carcomida pelo uso, por onde saía fumo, um fiozinho que mal se via e que queimava os dedos.

Os coelhos enchiam a corte de estrume, davam saias, vestidos e blusas à Otília, eram muito bons para guisar ou assar no forno ou fritos na sertã, depois de estarem alguns dias em vinha de alhos, também tinham o seu paladoso sabor. O Quinzinho queria sempre os "ovinhos dos coelhos", a minha mãe fazia-lhe sempre a vontade e eu ficava muito enciumado por não ter direito a comer pelo menos um rim, o tal o vinho, como lhe chamava o meu irmão mais novo.

Os coelhos faziam a sua função, por isso a gente os tratava bem, mas a Pernas Tortas, apesar de todo o trabalho que eu tinha, apesar da farinha e da erva mais tenra e mais verde que enfiava no bucho, não mudava: comprida, esquelética, sempre com as goelas abertas, sempre cheia de fome, sempre lampeira.

Eu sabia que uma vaca andava prenha nove meses, uma burra um ano inteiro, as galinhas demoravam três semanas a chocar os ovos, e só não nasciam pintos se os ovos não tivessem sido galados. E também sabia que as cabras traziam as crias na barriga cinco meses.

Cinco meses depois de o meu pai ter trazido a Pernas Tortas para o Souto, comecei a tratá-la com mil cuidados. E que, pensava eu, de repente, ela podia parir no meio de um campo ou de uma bouça, e eu tinha de estar por perto.

Todos os dias, antes de partir para a escola, ia dar uma espreitadela à corte. Quando regressava, a meio da tarde, voltava a passar por lá e fartava-me de olhar para a cafeteira de dois litros que estava na cozinha; pois era para dentro dela que eu havia de mungir o leite da cabra e depois havia de o deitar numa malga onde já estivesse pão migado.

Passaram as manhãs, passaram as tardes, passaram as noites, passaram os dias, e eu, ao fim de duas semanas de espera, virei-me para a cabra e gritei com os olhos toldados de lágrimas:

- És uma cabra de merda! Se não tivesses vindo ao mundo, não se perdia nada.

E a Pernas Tortas, ali no meio do campo, com as orelhas espetadas no ar, pôs-se a olhar para mim com aqueles olhos esbugalhados, e depois veio procurar-me a mão, à espera que eu lhe desse um punhadinho do milho que eu costumava trazer nos bolsos das calças.

- Burra, porque é que não emprenhaste? Agora vais feirar, que é que tu julgas?

Nesse dia entrei em casa a choramingar a triste novidade. Meu pai riu-se e aproveitou para expor a teoria que nós já sabíamos de cor:

- Cabras?   Hum,   são   bichas   lambonas... Nunca quis nada com elas.

Minha mãe confortou-me.

- Amanhã vais regalar-te com uma malgada de leite. Anda para aí uma lata que a minha irmã me deu e ainda tem algum.

Leite em pó... Pó amarelado, misturado com água quente... Ora viva a grande novidade! O que eu queria era leite a sério, leite de cabra, leite que cheirasse a leite, leite que até desse para fazer queijinhos frescos.

 

Dona Sara andava com os nervos à flor da pele. Fartava-se de fazer recomendações: que não nos distraíssemos, que não fizéssemos borrões nas provas, que escrevêssemos sempre com a melhor caligrafia, que as letras fossem perfeitas, que um o não parecesse um a, o / tinha de ficar mais alto que o e, o m tinha de ter sempre três perninhas para não se confundir com o M. E muito cuidadinho com a redacção, dez linhas chegavam perfeitamente, as frases tinham de ter sempre um ponto final.

A prova de desenho era muito fácil: um sol a nascer atrás da serra, duas árvores com folhas verdes e bolinhas vermelhas a fazer de conta que eram cerejas, ou pontinhos pretos a imitar as azeitonas. Depois rematava-se com uma casinha com uma chaminé a deitar fumo, uma igreja, um caminho que ia dar a uma ponte. A ponte estava por cima de um rio que tinha a nascente à beira do sol, onde havia um pastor e cinco ou seis ovelhas, e vinha por ali abaixo até acabar a folha, cada vez mais largo, mais azul, com muitos peixes quase tão grandes como as ovelhas, cobertos de muitas pintas, para se saber que aqueles peixes eram trutas.

Mas a grande batalha tinha de ser vencida a ferozes inimigos que davam pelo nome de problemas.

Não era nada fácil imaginar tanques com forma de paralelepípedo e base rectangular, medindo essa dita base, por exemplo, cinco centiares e a altura quinhentos milímetros, ora diz lá, meu menino, quantas horas e minutos demora o tanque a encher, se a torneira despejar para dentro do tanque cinco litros de água por minuto.

Não era nada fácil, mas à força de tanto repetir lá nos íamos preparando e ganhando confiança para o exame da quarta classe que tinha data marcada na Vila. Na Vila é que se tirava a prova dos nove. E a dona Sara dizia que não queria ficar mal, ai de nós se lhe beliscássemos o brio.

Ai de nós, que sabíamos na ponta da língua todos os rios e afluentes de Portugal, insular e ultramarino, províncias e capitais de distrito, que sabíamos em que sítio do mapa os comboios paravam, embora nunca tivéssemos visto o fumo do comboio. Ai de nós, fartos de repetir que depois de D. Afonso Henriques, filho de D. Teresa e Henrique de Borgonha, governou D. Sancho primeiro; depois D. Afonso segundo, depois D. Sancho segundo, depois D.   Afonso   terceiro,   depois já   não   houve   mais Sanchos. Apareceu o D. Dinis, que fazia versos e tinha uma mulher que se chamava Rainha Santa Isabel, que gostava de dar esmolas aos pobrezinhos sem o rei saber. E, um dia, corria o mês de Janeiro, o rei perguntou-lhe o que é que ela escondia no regaço. A rainha respondeu-lhe: "São rosas, senhor". "Rosas em Janeiro?". E quando ela abriu o regaço, estavam lá rosas brancas, o que muito espantou o rei e, claro, toda a gente que presenciou o milagre.

Depois de D. Dinis veio outro Afonso, o quarto, que teve um filho que não se chamou Sancho nem Afonso, mas sim D. Pedro primeiro. Depois do primeiro Pedro veio o D. Fernando, e depois de ele ter morrido acabou-se a primeira dinastia. Depois começou a segunda, depois veio a terceira, depois a quarta, depois a implantação da República em mil novecentos e dez, e a revolução de vinte e oito de Maio de mil novecentos e vinte e seis, e agora quem zelava pelo bem da nação era Sua Excelência o senhor Professor Doutor António de Oliveira Salazar, que estava à nossa frente, metido no retrato encaixilhado, pendurado numa das quatro paredes da escola.

Ai de nós, mil vezes repetindo que o pretérito mais-que-perfeito do indicativo do verbo cantar é eu cantara, tu cantaras, ele cantara, nós cantáramos, vós cantáreis, eles cantaram e o gerúndio é cantando.

Num dia de Junho, mal o sol despontou, descemos à Vila, enfiados nos nossos fatinhos da comunhão solene, cheios de medo, carregando o pesadíssimo fardo da responsabilidade, como dizia a dona Sara.

Antes de entrarmos na Vila, o Afonsinho disse que lhe doía muito a barriga, que esperássemos por ele um bocadinho. A dor passou de barriga em barriga e toda a gente foi para trás das giestas.

Quando chegámos à Vila, encontrámos a dona Sara nervosa e muito bem vestida. Falava connosco em voz quase sussurrada e vestia uma saia azul e uma blusa branca. Tinha uma gargantilha no pescoço, os dedos cheios de anéis, bâton nos lábios e o cabelo muito bem penteado. Assim cheirosa e tão bem arranjadinha, até parecia mais bonita.

Depois da prova escrita e da prova oral, ficámos a saber que todos os alunos da escola do Souto tinham sido aprovados no exame da quarta classe. Grande vitória da dona Sara, que nos levou ao Café Central e pediu sete bolos de arroz e sete copos de café com leite.

Corremos para o Souto para anunciar o grande feito. A minha mãe deu-me um beijo e disse:

- O prometido é devido... Quando é que vamos comer o galo?

- Pode ser hoje, minha mãe.

- Não,   vamos   comê-lo   no   domingo,   ao almoço. O teu pai anda a trabalhar fora, é melhor esperar por ele.

Concordei. O meu pai, lavrador e carpinteiro, às vezes arranjava trabalho longe do Souto e, por isso, saía de casa de madrugada, com a caixa das ferramentas às costas, e só voltava ao anoitecer.

Fui a casa do velho Chico da Juliana, encontrei-o deitado na cama, não liguei grande importância a isso, o mais importante era a minha grande vitória, o mais importante era eu saber que já podia ir trabalhar para a beira do meu pai, adeus, escola, adeus, dona Sara.

Tão contente eu estava que até a Pernas Tortas abracei. Coitada, se calhar era a velhice que não a deixava emprenhar, ter cabritos e dar leite.

Paciência, ninguém é perfeito.

 

O galo era enorme, muito vistoso, bom galador, tinha a crista bem levantada e até parecia que estava a adivinhar o que ia acontecer logo que eu conseguisse deitar-lhe a mão. Quando ele me viu no galinheiro, desatou a correr para um lado e para o outro, a fazer fintas e negaças, a levantar voo e a ameaçar-me com bicadas. A minha mãe tinha medo que ele lhe pusesse as pernas a sangrar, a Otília disse que aquilo não lhe dizia respeito, e eu, agora que já tinha feito a quarta classe, e por isso me considerava um homenzinho, prontifiquei-me a tratar da morte do galo.

Depois de muitas corridas e algumas quedas, com as galinhas alvoroçadas e algumas penas a levantar voo, lá consegui deitar as mãos ao galo. Segurei-o pelas asas e levei-o para a cozinha.

- Mata-o! - disse minha mãe.

E eu assim fiz. Peguei no cutelo de cortar lenha, que tinha um gume sempre muito bem afiadinho, pus o bicho sobre um cepo de carvalho e dei uma pancada tão certeira no pescoço, que logo a cabeça do galo saltou para o chão, com o bico a abrir e a fechar.

Pronto, estava o serviço feito, a empreitada mexeu um bocadinho comigo, mas alguém tinha de o fazer. Agora a minha mãe e a Otília que tratassem do resto.

Pus o galo no chão e a minha mãe gritou:

- Aproveita o sangue, rapaz!

Claro, era preciso aproveitar o sangue que saía daquele pescoço decapitado, era necessário que caísse para dentro duma malga e ali ancorasse. E antes de coagular havia de ser misturado com vinagre, para depois se fazer um saboroso arroz de cabidela.

No preciso momento em que ia pegar no galo estirado no chão, ele levantou-se e começou a correr à volta da cozinha. A Otília fugiu, a rir-se, e a minha mãe, aflita, gritava:

- Mata o galo, Henriquinho, mata o galo!

Como é que eu ia matar o galo se ele já não tinha cabeça? A malga partiu-se, o Quinzinho desatou a gritar com medo, a cozinha ficou toda pintalgada de sangue, e o galo sem cabeça, exausto de tanto correr, caiu de lado e ali ficou definitivamente quieto.

Acabou-se o arroz de cabidela...

- disse minha mãe.

- Não tem mal.

Sem sangue não havia arroz de cabidela, mas ia haver arroz de galo e coxa de galo, asa de galo, pescoço de galo, peito de galo.

Minha mãe e minha irmã meteram o animal dentro de uma bacia, deitaram-lhe uma panela de água a ferver por cima das penas. Depois de o depenarem, abriram-no, limparam-no, esquartejaram-no e cozinharam-no.

Quando o almoço ficou pronto, eu tive a honra de ser o primeiro a ser servido. Minha mãe pôs à minha frente um prato cheio de arroz, uma coxa e uma asa. E eu comi devagarinho, porque é muito vagarosamente que se devem saborear as vitórias, porque não é todos os dias que somos os eleitos nem os mais importantes.

- Não comes a coxa? - perguntou minha mãe.

Respondi que sim, mas não naquele momento. Preferia comê-la mais tarde quando fosse apascentar a Pernas Tortas.

Eu mentia. Aquela coxa de galo, tão saborosa, tão bem cozidinha, tão bem embrulhada numa folha de couve e depois num pedaço de papel, não havia de ser comida por mim.

Contente com a surpresa que levava no bolso, transpus o portão do velho Chico e estranhei que o Mondego não viesse ao meu encontro com a cauda a abanar, esperando que eu lhe oferecesse um bocadinho de pão.

A porta da cozinha estava encostada.

- Tio Chico! Tio Chico! Não está ninguém em casa?

Quem me atendeu foi o cão. Sem grandes pressas, veio ao meu encontro, olhou para mim, e eu reparei que tinha um olhar muito triste, a cauda caída.

- Tio Chico! Tio Chico!

Passei pela cozinha, reparei que na lareira não havia restos de lume, só cinza e alguns carvões. Na sala estava o anjo a olhar para mim com aquelas asas muito azuis. E o mocho de granito, poisado na mesa, parecia que a qualquer momento ia levantar voo e fugir daquela casa.

Depois da sala havia um pequeno quarto, onde o velho dormia. Nas paredes caiadas havia um crucifixo, em cima da mesinha-de-cabeceira estava um toco de vela com o pavio apagado, poisado sobre um pratinho e um envelope que mostrava, desenhado a lápis, um caixão.

Ao fundo da cama havia uma caixa feita com madeira de castanho e uma cadeira. Um casaco, umas calças e uma camisa amontoavam-se sobre a cadeira.

Chico da Juliana estava deitado na cama e tinha os olhos fechados.

- Tio Chico! Tio Chico! Acorde, Tio Chico!

O Mondego saltou para cima da cama e foi aninhar-se aos pés do velho.

Os olhos continuaram fechados. E eu reparei que a cara dele estava muito roxa. De repente, o meu coração começou a bater com mais força e a minha garganta ficou seca.

- Tio Chico! Tio Chico! Acorde, Tio Chico! Meu Deus, como era possível não acordar?

- Tio Chico!... Acorde, Tio Chico, que eu tenho aqui um presentinho para lhe dar, trago no bolso das minhas calças uma perna de galo muito bem embrulhadinha numa folha de couve e papel, eu   quero   compartilhar consigo   a minha alegria. Agora que já me despedi da escola, já sou um homenzinho, já vou trabalhar com o meu pai, já vou ganhar algum dinheiro. Acorde, Tio Chico, faça-me esse favorzinho.

Pus-lhe uma mão no rosto, depois a outra, e senti que estava gelado.

- Tio Chico!

As lágrimas toldaram-me os olhos, senti um •frio muito grande a correr todo o meu corpo e uma vontade imensa de gritar, gritar, gritar, até me doer a garganta.

Sempre a correr e a chorar, fui bater à porta da casa do Teixeirinha e contei-lhe o que tinha visto.

Pouco depois, eu e o Teixeirinha subimos à torre da igreja e começámos a puxar o badalo dos sinos. E, assim, todo o povo do Souto e os povos de mais redondezas ficou a saber que tinha morrido o velho pedreiro. Mas não sabiam que, no dia seguinte, logo pela manhãzinha, seria enterrado o meu grande amigo, um grande artista que criara um mundo onde pouca gente tinha permissão de entrar. Depois de os sinos terem ressoado longamente, ajudei o Teixeirinha a abrir a cova no cemitério e falei-lhe do anjo que eu prometera trazer para aquela campa.

- Vamos já lá buscá-lo, Henriquinho.

- Depois. Prometi ser eu a fazer isso.

- As promessas devem cumprir-se.

Como não tinha família no Souto, nem se sabia a morada dos parentes, foi o meu pai que se encarregou de ir à Vila comprar o caixão com o dinheiro que o velho Chico deixara dentro do envelope.

O funeral fez-se no dia seguinte logo pela manhã, teve muito pouca gente e ninguém chorou a morte do meu amigo.

Depois de o caixão ter sido enterrado, fui a minha casa buscar uma velha carreta, pus-lhe palha por cima e levei-a para a sala do Chico da Juliana. Com muito cuidado para não o danificar, pus o anjo sobre a palha.

O anjo pesava imenso, a roda da carreta rodava vagarosamente e eu cerrava os dentes e empurrava até ao limite das minhas forças. Dava dez passinhos e depois parava, limpava o suor que me corria da testa, descansava um nadinha e voltava a empurrar.

Atrás de mim, a farejar o chão, vinha o Mondego. Quando transpus a porta do cemitério, todo o meu corpo suava em bica, tinha a camisa encharcada, doíam-me os braços, as pernas. E os olhos ardiam-me.

Pus o anjo sobre a terra revolvida da campa e virei costas, com o peito mais apertado que uma pinha verde.

Atrás de mim, silencioso e com o focinho quase pregado ao chão, veio o Mondego. Tive pena do bicho e dei-lhe um abraço muito apertado.

- Ficas comigo, está bem?

Levei o Mondego para minha casa e a minha mãe, que não gostava de cães, não me disse nada.

Poucos dias depois, o velho Mondego, sempre triste, sempre calado, desapareceu do Souto.

 

Poucas semanas depois de o velho pedreiro ter sido enterrado, Teixeirinha Sacristão foi o primeiro a jurar que vira fumo a sair pelas frinchas das telhas da casa do Chico da Juliana.

Impossível, disseram os do Souto. O portão tinha sido fechado, ninguém ia meter-se naquela casa que agora era pertença dos tais parentes que ninguém sabia exactamente onde moravam.

- Eu vi, com estes que a terra há-de comer! Eu vi, carago, não sou mentiroso! Eu vi! Vi claramente visto - gritou o sacristão, muito melindrado com os sorrisos das gentes do Souto embrulhados em muitos pontos de interrogação.

- Estava a escurecer, mas eu vi, carago, eu vi! Dias depois, Julinho Barbeiro andou de casa em casa a cortar cabelos e, enquanto escanhoava barbas de uma semana inteira, ia anunciando que aquilo do fumo sempre era verdade. Era verdade, sim senhor, porque ele também vira.

Se o fumo saía daquela casa onde já não morava ninguém, alguma coisa estava a acontecer. Se calhar, eram as almas penadas que acendiam a fogueira. Ou o diabo. Sim, o diabo, em forma de gente. Então não se dizia que o falecido tinha pacto com o diabo?

Nada disso, minha gente, nada disso. Pode muito bem ser uma quadrilha de ladrões fugidos ao braço da justiça. Como sabem que a casa está vazia, metem-se lá dentro e fazem patuscadas que duram até às tantas da madrugada.

Ladrões?! Mas, que se saiba, ninguém foi roubado nos últimos anos, tirando aquele caso, que agora até dá vontade de rir, do Manuel Catarino, que ficou sem vinte notas de contos num dia de feira.

Estava o Manuel Catarino a entrar na Vila quando dois senhores muito bem postos, muito bem escanhoados, cada um com a sua pasta de couro na mão, lhe dirigem a palavra, muito correctos, muito bem educados:

"O senhor tem lumes?"

Ele disse que sim, que também fumava o seu cigarrinho de vez em quando para enxugar as humidades dos pulmões. E depois de muita conversa mole, um deles disse que precisava de ir a um certo sítio porque o corpo lho pedia, deixou a pasta no chão e desapareceu.

"Ai, Nossa Senhora, que o meu colega não está bom da cabeça... Sabe o tiozinho o que está dentro da pasta? Uma fortuna, nem mais nem menos. Para cima de mil contos, dinheiro de uma herança que temos de entregar ainda hoje ao legítimo dono."

E como parecia mal um senhor tão distinto andar com uma pasta em cada mão, lá convenceu o Catarino a ficar a tomar conta da mala. Era só um instantinho. Coisa pouca, é que o colega não regulava muito bem da cabeça, até já tinha ido a um médico, especialista afamado, agora andava a tomar umas pastilhas que lhe atacavam a memória, de repente ficava sem orientação, coitado, coisas a que todos nós estamos sujeitos.

O Catarino ficou a tomar conta da mala. E o falador voltou atrás:

"Olhe lá, e como é que eu posso confiar no senhor? Mal o conheço..."

"Sou um homem de palavra!", bufou o Catarino. "Se eu lhe dou a minha palavra de honra que fico aqui à espera, pode ter a certeza que fico aqui, mesmo que chovam picaretas, ora essa..."

E o outro, todo engravatado, todo bem posto, com o cabelo a brilhar e com falinhas mansas, lá o convenceu a dar-lhe os vinte contos que ele trazia na carteira. Que diabo, vinte contos, contra os mil que estavam dentro da mala, até nem era nada...

"Ainda que estivesse aqui todo o dinheiro do mundo, fique o senhor a saber que eu não lhe tocava, ouviu?"

"Acredito, que o senhor é um homem honrado."

Foi-se o janota à procura do outro janota, o Catarino pôs a mala debaixo do braço e esperou.

Esperou.

Esperou.

Esperou e desesperou. As horas passaram, a feira acabou, a noite começava a aproximar-se e ele, homem de palavra, continuava à espera com a mala milionária debaixo do braço.

"Depois deu-me um baque no peito. Ai que eu fui roubado! Senti as pernas a tremer como varas verdes", contava o Catarino.

No posto da GNR, abriu a pasta. Lá dentro havia um jornal.

Também há o caso do Hilário.

O rapazito entrou pela porta encostada da sacristia da igreja e comeu todas as hóstias que estavam guardadas em latas, dentro dum gavetão, à beira dos paramentos. Foram mais de mil, nas contas do padre Ramos.

Mas isso não se pode considerar bem um roubo, antes uma criancice. Se ele quisesse, rebentava as caixinhas das esmolas...

Coitado do Hilário. Quando o pai soube da novidade, deixou-o cear, deixou-o deitar-se e depois foi ter com ele, com o cinto das calças na mão. Deu-lhe tantas correadas nas pernas, nas costas, nos braços, no peito, na cara que lhe chagou o corpo todo. "Perdão, meu pai, perdão!" "Ainda não! Ainda não te perdoei..." O Hilário gritava, levantava as mãos, implorava perdão, e o pai, zumba que zumba, sempre a malhar, sempre a malhar, sem ver que o mocito já tinha urinado pelas pernas abaixo, que quase já não tinha voz para pedir perdão.

Era assim o David Borges, pai do Hilário. Um dia, zangou-se com uma burra velha, esquelética, gorda de manhas e farta de mazelas. A bicha resolveu parar no meio do caminho e ali ficou a fazer sombra às pedras, uma estátua viva, nem um passinho para a frente, nem um passinho para trás. E muito mouca aos gritos do dono.

Depois de muito gritar, o pai do Hilário levantou a enxada que sempre lhe fazia companhia e começou a cavar na cabeça da burra.

Pouco depois, estava a bicha caída no chão, com uns olhos enormes, muito espantados, à espera da corda que foi atada nas patas para ser arrastada para dentro de um buraco bem fundo, que o Borges fez num instantinho, sem pedir ajuda a ninguém.

A Etelvininha, mãe do Hilário, meteu-se entre o filho e o cinto. E gritou:

"Pára, homem, que ele é teu filho."

"Sai-me da frente, que eu não vejo nada."

"Não, não saio. Se quiseres, continua a bater, tens aqui o meu corpo..."

"Sai-me da frente, Etelvina, que eu não enxergo nada."

"Não saio, não. Foge, meu filho. Foge."

O mocito, em ceroulas e camisola interior, lá fugiu para o meio da rua. E ainda teve de ouvir certas vozes a bichanar que quem dá o pão também tem de dar a criação. Mas pancadinha assim também era exagero, diziam as mulheres. Pobre do Hilário.

O David quer bem ao filho, disso ninguém tenha dúvidas. Está bem, mas o que passa da conta é sempre um exagero.

Pouco tempo depois, o Hilário marchou para Lisboa. Deixou um bilhete ao pai a dizer que não precisava de o procurar. Mas a mãe sabia de tudo porque lhe seguiu as pegadas.

Atrás deles, ameaçando pancadaria até à morte, caso os encontrasse, seguiu o David Borges.

 

Num domingo à tarde, quando a noite já espreitava, depois de meter a Pernas Tortas à beira dos coelhos da minha irmã, abri o portão do reino perdido do Chico da Juliana e entrei, pé ante pé.

E era estranho aquele reino: para todos os lados onde eu pousava o olhar, parecia-me ver a figura derreada do velho. Aqui, via-o a regar uma árvore, ali, colhia uma laranja que depois me oferecia, além, picava as pedras muito demoradamente.

A porta da cozinha estava aberta. E lá dentro, para meu espanto, vi um corpo magro, serenamente sentado no preguiceiro.

- Ó Olivinha, que é que está aqui a fazer?

Ela não me respondeu. Sentada no preguiceiro, tinha os olhos postos nas pequenas labaredas que bailavam na lareira.

- Ó Olivinha, por onde é que tem andado?

Ela olhou para mim. E eu vi um rosto pregueado de rugas e umas olheiras enormes, muito escuras, cercando uns olhos mortiços.

- Quem és tu?

- Então já não se lembra de mim?!... Sou o Henriquinho.

- Não, não me lembro de ti.

- Então não há-de lembrar...

- Nunca te vi em lado nenhum.

- O que é que está aqui a fazer?

- Estou no meu lar, estou onde sempre estive. Esta casa é minha e do Francisco. Onde é que está o meu Francisco? Há tanto tempo que o espero...

- De que Francisco está a falar, Olivinha?

- Ora, ora... Do Chico, o filho da Juliana, que Deus tenha em santa paz, amém.

Fiquei calado um ror de tempo, com a garganta cada vez mais seca. Depois, com voz sumida, disse-lhe:

- Olivinha, o Chico da Juliana já não mora aqui.

- Pois não, ele foi sempre um cobardola. Eu disse-lhe: "Francisco, sei que me queres bem, sabes que eu bem te quero, então porque é que andamos assim a encontrar-nos às escondidas, porque é que não nos casamos? Olha que, se eu engravidar, tens de perfilhar o inocente que vier ao mundo".

Eu dizia-lhe isto, e ele fazia-me festas no cabelo, gostava muito de mexer no meu cabelo comprido, muito negro, depois dava-me um beijo e dizia: "Tens razão, rapariga, um dia havemos de nos casar, mas agora não, agora ainda é muito cedo". Eu chorava e dizia: "Francisco, se tu gostasses de mim, não dizias isso". Ele amuava um bocadinho, depois mexia no meu cabelo, abraçava-me com muita força e dizia: "És muito tola, rapariga". E eu respondia: "Tens razão, sou muito tola, muito burra".

Os anos foram passando, e eu sempre com a mesma conversa e ele sempre com a mesma resposta. E, um dia, depois de ter vindo de Fátima, já eu estava velha e ele caduco, depois de muito pensar, de passar noites sem dormir, eu disse-lhe: "Francisco, ouve o que te digo, ouve com muita atenção, já não vai haver casamento. Nem que te ponhas de joelhos me convences".

Mas nunca esperei que ele procedesse daquela maneira. O maroto começou a rir-se, a dar gargalhadas à minha frente, e disse umas palavras que me mataram por dentro, que me puseram os miolos a latejar. Ele disse: "Ai, Olívia, Olívia, como tu te enganaste! Como é que não percebeste que eu nunca quis casar contigo?".

Eu fiquei sem pinta de sangue, calada. Virei-lhe as costas e fui para minha casa, deitei-me na cama e esperei que o mundo acabasse. Onde está o Francisco, menino?

- Olivinha, o Chico da Juliana morreu.

- Ai morreu? Calha a todos. Quem é que tu disseste que morreu?

- O seu Francisco.

- Não pode ser. O meu Francisco não se ia embora sem ter reconsiderado, ele tinha de casar comigo. Ele não fazia isso.

- É verdade, Olivinha. O Chico da Juliana, que era muito meu amigo, está enterrado no cemitério.

Houve um silêncio muito prolongado.

De repente, a Olivinha começou a gritar:

- Vai-te embora, Belzebu, vai-te embora, que me estás a tentar. Vai-te, Belzebu, vai-te embora,   abrenúncio,   Satanás.   Sai   da   minha   frente, Mafarrico!

Com uma destreza que me impressionou, pegou num pau e deu-me uma pancada forte que me acertou em cheio num ombro, quando eu iniciava a fuga.

- Vai-te embora, Diabo! Vai-te embora! Fechei o portão e fui para casa, com a noite a fazer-me companhia. Quando lá cheguei, resolvi contar apenas o que tinha visto.

Depois de me deitar na cama, ainda estonteado com o que ouvira, pensei: "Meu Deus, como o mundo é tão complicado!".

Depois de muita conversa, de muitas lamentações no Souto - pobrezinha da Olivinha Patalaca, que tinha perdido o juizinho, mas que era um perigo tê-la ali, podia muito bem incendiar a aldeia de ponta a ponta e ainda ficar a rir-se -, o povo decidiu interná-la no hospital.

O Julinho Barbeiro e o Teixeirinha Sacristão foram à Vila expor o caso ao doutor Leão e ao cabo Lucas, do posto da GNR.

Numa manhã de Setembro, a Olivinha deixou o Souto de vez. Antes de se ir embora, ainda teve tempo para destruir todas as estátuas que o Chico da Juliana tinha feito, excepto o mocho, que eu trouxe para casa, depois de ter perguntado a minha mãe se considerava ser roubo ter trazido aquela peça.

Ela respondeu que pedras era o que mais havia por aqueles lados. E para que é que eu queria aquilo?

- Ora, é uma recordação.

Trouxe o mocho para a cozinha, depois fui obrigado a transferi-lo para a sala, depois para o meu quarto. Mas tive de pô-lo por baixo da cama.

Nem a minha mãe nem a Otília gostavam de encarar com aquela mascareta.

 

A minha mãe dizia que tinha de ser assim. E eu respondia que não. Era uma teima que nunca mais tinha fim. Ela rematava a conversa ameaçando uma estalada nas ventas. E eu calava-me, era o remédio, mas não ficava convencido.

Meu pai era carpinteiro, pau para toda a colher, como se costuma dizer, tanto se lhe dava consertar as rodas de um carro de bois como fazer uma cadeira, um banco de matar porcos, o cancelo de uma cozinha, o cabo de uma enxada. E era especialista a fazer as armações dos telhados de quatro águas. com mestria, cortava e pregava as vigas, os caibros e finalmente as ripas, madeira tirada de velhos e imponentes carvalhos.

Depois de ter feito a quarta classe, fui algumas vezes trabalhar ao lado de meu pai, ajudá-lo a armar telhados.

Levantávamo-nos ainda de noite e bebíamos uma malga de café com migas de broa que a minha mãe ou a Otília coziam no forno, todas as semanas.

Meu pai metia a régua de madeira na asa da mala das ferramentas, punha-a sobre um ombro, eu pegava numa saca que tinha dentro duas marmitas cheias de massa ou arroz e bocados de carne de porco ou postas de bacalhau frito. Também lá iam um bom naco de broa, os garfos e uma garrafa atestada com vinho tinto.

As caminhadas eram longas, meu pai tinha o hábito de assobiar modinhas e eu, atrás dele, aflito com o fardo da merenda, admirava-lhe a força. Sempre direito e com passo lesto, até parecia que a mala que ele carregava tinha o peso dum pardalito.

Empoleirado no cimo das paredes da casa à espera de telhado, lá andava eu para trás e para a frente, a subir e a descer andaimes, a ir buscar ferramentas que caíam ao chão, a acarretar caibros, a segurar ripas. E todas as vezes que pegava no martelo para pregar a madeira entortava os pregos, e o meu pai, na frente de todos, barafustava comigo, passava o tempo a dizer para eu andar mais depressa, que descesse outra vez para ir buscar a garrafa do vinho porque estava com sede, e eu ia devagarinho procurá-la, com medo que de repente ficasse tolhido com as célebres dores de cabeça que o atormentavam nos dias de feira.

Várias vezes fiquei com os dedos lascados e farpeados. E não me queixava, suportando heroicamente dores horrorosas porque eu já era um homenzinho, e chupava e dentava os dedos, a ver se a dor passava mais depressa.

- Assim é que é. De pequenino é que se torce o pepino - diziam os que andavam a trabalhar connosco, felicitando o meu pai por me trazer junto dele a ganhar o dia, ainda eu não tinha feito onze anos.

Quando eram horas de arrear do trabalho para o almoço, já eu tinha feito uma braseira com os cavacos que havia espalhados pelo chão e posto as marmitas em cima das brasas para que o arroz ou a massa aquecessem.

Deitava-me no chão, punha a marmita à minha frente, metia o garfo dentro da marmita, enchia-o, levava-o à boca e engolia a comida quase sem a mastigar.

- Qualquer dia ainda te engasgas, rapaz... Olha que a marmita não foge da tua frente.

As marmitas não fugiam, mas podiam ser roubadas. Aprendi isso no dia em que, depois de ter feito a braseira, não as vi em lado nenhum. Depois de muito procurar, avisei em surdina, assustado:

- Pai, não vejo a comida...

- Procuraste bem? Tens olhos de ver? É que há gente que olha e não vê...

- A comida não está aqui.

- Onde é que a tinhas posto?

- Em cima de uma pedra, atrás da casa.

- Bonito serviço... Agora vamos comer cornos   assados!   Palerma,   inocentinho!...   Ainda tens muito para aprender para te pores fino! Vai procurar, vai procurar, a ver se ao menos recuperamos as marmitas. Isso foi obra de um cão vagabundo.

E eu lá fui procurar, sem saber muito bem para onde ir, sempre a olhar para o chão, com o estômago a dar horas. Depois de muito girar e fazer perguntas envergonhadas, encontrei o saco roto e as marmitas muito bem lambidas, no meio de um carvalhal.

Nesse dia, não almoçámos e o meu pai, à socapa, deu-me uma estalada na cara.

- É para tu aprenderes a pôr a saca da merenda num sítio alto do local onde andamos a trabalhar.

Mas ele nunca me tinha ensinado que era assim que se fazia. Nem nunca me ensinava nada com palavras serenas. Gritava comigo, ameaçava bater-me, dizia que eu era mais burro que uma porta. Quando o dia acabava, tinha o corpo cansado e uma vontade imensa de comer o caldo na cozinha de minha casa, estirar-me na cama e dormir, dormir, dormir.

Eu queixava-me em casa e a minha mãe respondia que tinha de ser assim e rematava com um suspiro fundo, prolongado.

- Eu não quero ser carpinteiro, não quero andar à beira do pai!

- Então que é que vais fazer? Queres andar a vadiar?

- Eu não quero ser carpinteiro. E se me obrigam, eu...

- Acaba! -Eu...

- Fala, rapaz!

- Eu desapareço daqui... Faço como o Hilário.

- Isso nem a brincar se diz, ouviste?!

- Mas eu não quero ser carpinteiro!

- Uma profissão tão bonita...

- Para quem gostar, é bonita. Para mim, é uma nojeira.

- E então o que é que tu queres fazer?

- Queria ser jardineiro!

- Jardineiro?! Onde é que foste buscar essa ideia?

- Era o que eu gostava de ser, mãe.

- Então vai tirando daí o sentido, que não é coisa que exista por estas bandas. Se quisesses ir para trolha, ou para pedreiro, que são profissões de futuro...

- Mãe, também gostava de aprender a tocar concertina.

- E não queres mais nada? Ai, meu filho, o mundo é mais complicado do que tu julgas. Nem sempre podemos fazer o que nos apetece...

Eu ficava triste, amuava. E punha-me a pensar: "Ninguém me compreende, ninguém gosta de mim, sou um triste diabo. Era melhor não ter nascido."

Num sábado à noitinha, sem ter dito nada em casa, fui bater à porta do Zé Coirinho. Foi a mãe, a Madalena Sardinheira, que abriu a porta da cozinha encovada de fumo:

- Está aí o Zé?

- Está. Que lhe queres?

- Queria falar com ele, é uma coisa particular.

- Entra!

- Muito obrigado, mas prefiro falar aqui, é uma coisa particular.

Zé Coirinho não tardou a aparecer. E segredou:

- Trazes um recado da tua irmã?

- Não. Por que é que havia de trazer? Ele ficou descoroçoado:

- Pensei...

Contei-lhe que gostava muito de aprender a tocar concertina.

- Se me ensinasse, muito lhe agradecia, Zé!

- Agora não,   que estamos no tempo das colheitas, e há muito trabalho. Mas, vindo as noites compridas do Inverno, não me importo! Um mês é mais   que   suficiente para aprenderes. - É   que   em Janeiro tenho de marchar para a tropa.

- Está certo. Mas isto ainda é segredo. Ainda não disse nada lá em casa. Não diga a ninguém que a gente teve esta conversa, está bem?

- Fica descansado, Henriquinho. A minha boca é um túmulo.

Voltei para casa a dar pinotes como se fosse um cabrito com um mês de idade.

Pouco tempo depois, minha irmã Otília, quando estávamos sozinhos na sala, ela a passar roupa a ferro, eu a limpar os olhos do mocho cheios de pó, perguntou num tom de voz cúmplice, cauteloso, em surdina:

- Olha lá, meu menino, que história é essa de ires aprender a tocar concertina sem teres dito nada em casa?

Fiquei calado e acho que corei. Depois compreendi tudo, sorri, acenei com a cabeça e respondi-lhe com o mesmo tom de voz:

- Olha lá, minha menina, que história é essa de   continuares   a   namorar   em   segredo   o   Zé Coirinho?...

- Cala-te! Isso é mentira.

- Claro! A mim não me enganas tu... E breve já te vais casar com aquele palerma do Abílio, que nem concertina sabe tocar. Eu não gosto nada dele!

- Cala-te, cala-te!

- Pois calo. Cala-te tu também!...

 

Numa manhã insolarada de Outubro, o Afonsinho e a Lurdes, sua mãe, entraram no velho táxi do senhor Cardoso, o único que havia na Vila. Depois de partirem, ficou um grande silêncio no Souto. Também ficou o cheiro incomodativo do gasóleo queimado. E ouviu-se durante longo tempo o choro da avó materna do Afonsinho, a tia Luzia, que mais de mil vezes repetiu que nunca mais veria a filha nem o netinho.

- Não diga isso, tia Luzia, para o ano eles cá estarão, vai ver que não me engano! - dizia o Julinho Barbeiro.

Antes de partir, o Afonsinho andou alvoroçado. com a mãe foi muitas vezes à Vila para arranjarem documentos, trocarem dinheiro, comprarem roupas novas, calçado, malas. Venderam na feira um toiro, sete ovelhas e duas cabras, e a minha mãe comprou-lhe quatro galinhas e um galo, com a ideia de os gastar na boda do casamento da minha irmã Otília, marcado para o dia nove, segundo sábado de Novembro, do ano de mil novecentos e sessenta e oito, data que nunca se me varreu da memória. No dia dois de Janeiro do ano seguinte, tanto o Abílio como o Zé Coirinho tinham um lugar reservado no quartel.

Muitos dias antes de partir, já o Afonsinho sonhava com a partida. O que mais o empolgava era a viagem de avião de Lisboa até Toronto, no Canadá.

- Como será um avião por dentro? E se eu enjoo?

Eu ficava calado, cheio de ciúmes. Meu Deus, quando é que eu teria essa sorte? Se calhar, nunca. Então se fosse para carpinteiro, é que nunca mais...

O pai do Afonsinho - o Zé Pereira, que era baixote e espadaúdo e tinha uma barba comprida, muito negra, a tapar-lhe o rosto - estava no Canadá há muito tempo. Todos os anos, em Dezembro, aparecia no Souto, vestindo casacos de couro, com forro de lã. E, quando falava, misturava português com francês e toda a gente se admirava com aqueles conhecimentos.

O meu pai dizia que o Zé Pereira, antes de emigrar, era um pobre diabo, sem eira nem beira. Casou-se à pressa com a Lurdes e, quatro meses depois, nasceu o Afonsinho. Foi trabalhar para Lisboa mas não se deu bem. Passou por Espanha, França, Inglaterra, Alemanha e acabou por assentar no Canadá.

Esperou que o Afonsinho fizesse a quarta classe em Portugal e agora, depois de dez anos separada, a família ia juntar-se definitivamente.

Minha mãe alarmou-se:

- Nossa Senhora, por este andar, o Souto fica deserto!

- E não há-de vir nenhum mal ao mundo se

isso acontecer. Esta terra não vale um traque! - refilou a Otília.

- Olha quem fala!... E para onde é que tu vais viver, minha filha? Não é aqui?

- Pode ser e pode não ser!

- com umas terrinhas tão boas para trabalhar e sem ter de prestar contas a patrões, pensas que o Abílio, quando voltar da tropa, e oxalá que nossa Senhora da Guia o acompanhe, vai sair daqui? Só se ele perder o juízo! Só quem precisa é que sai da terra onde nasceu. Eu estou muito bem aqui.

- Mas as suas irmãs saíram. E são três!

- Porque assim lhes estava traçado o destino.

- Lá vem ela com o destino...

- Tu andas muito nervosa, Otília, e estás a ficar muito magra. Vê lá se adoeces.

A Otília ia viver para casa do futuro sogro. Era uma casa espaçosa, com cozinha muito ampla, uma sala e três quartos no primeiro piso, divisões feitas em tabique, soalhadas e forradas com boa madeira de carvalho. A adega, com o seu lagar de granito, pipos e pipas, e as cortes dos porcos e das vacas ficavam no rés-do-chão. Junto da casa havia uma eira, a casota dos cães coelheiros, um tanque sempre cheio com a água que gorgolejava na bica e o espigueiro onde o Julinho Barbeiro guardava as espigas de milho.

Muito satisfeito com o casamento que não tardaria, e a sonhar com os netos que iriam nascer, Julinho mandou caiar a casa de ponta a ponta e limpar as telhas, e encomendou ao meu pai uma cama espaçosa para o casalinho.

Ajudei o meu pai a fazer uma bela cama com madeira de cerejeira que, depois de envernizada, ficou muito amarelinha, e a minha mãe comprou na Vila um pano às riscas e pediu à Edilinha costureira que lhe fizesse um colchão.

Meu pai ofereceu a cama, minha mãe o colchão, muitos cobertores, lençóis e mantas. E a Otília, cada dia que passava mais magra e mais nervosa, disse que a cama era feia, o que muito entristeceu o meu pai, e, depois de o colchão estar feito e pago, fez saber que preferia um colchão de sumaúma, que os colchões de palha estavam mais que ultrapassados.

- Já podias ter dito - lamuriou-se minha mãe.

- Tem razão. De agora em diante, eu é que digo o que quero. Acho que tenho esse direito...

- Não te engalispes, minha filha, que só perdes. E come, rapariga, come, que estás a ficar só pele e osso.

- Não consigo engolir.

- Pensa noutra coisa. Casar e ter filhos é mais um passo da via-sacra das mulheres. Sempre foi assim e sempre assim será.

- Mas não havia de ser. Tem que haver mudanças!

- Cala-te, que estás a dizer asneiras.

- Estarei, estarei.

 

- Oxalá que a roda não comece a andar para trás, era o que faltava!

Eu fiquei calado, confuso, triste. A Pernas Tortas deixou de comer. Nem as couves mais tenras lhe abriam o apetite e os baldes com muita farinha, água e côdeas de broa punham-na a espirrar.

- A cabra tem algum bicho dentro dela - disse meu pai. - Tem que se vender antes que se perca tudo.

- E a gente vai vender um bicho que está doente?

- Pois. Esta cabra nunca prestou para nada. De certeza que também já a comprei doente. Fui bem levado...

- Eu não a vendia... Assim vamos enganar alguém.

- Olha, meu filho, puros são os santos. Nunca ouviste dizer que anda meio mundo a enganar outro meio?

- E que é que o pai vai dizer?

- Não vou dizer nada. Apresento a cabra na feira. E quem estiver interessado compra-a. Tão simples como isto!

A Pernas Tortas tinha os ossos salientes, tetas que mal se viam, e não se aguentava muito tempo de pé.

- Esperemos que ela dure mais alguns dias disse meu pai.

No dia de feira, logo de manhãzinha, atei um cordel aos cornos da cabra, penteei-lhe os pêlos compridos com uma vassoura para ficar com melhor aspecto e, sozinho, pus-me a caminho da Vila. A meio da jornada, que parecia não ter fim, com tantos passinhos miúdos, a cabra deitou-se a arfar. E eu pensei: "Pronto, acabou-se a Pernas Tortas...".

Esperei um bocado de tempo e depois, com muito jeito, com palavrinhas mansas, consegui que a bicha se levantasse e retomasse a caminhada.

Estava a manhã quase no fim, quando eu, cansado e transpirado, a bufar como uma cobra, entrei na Vila, onde o meu pai me esperava, aflito com tantas demoras. É que nesse dia havia muitas coisas para comprar por causa do casamento da Otília.

No recinto do gado, a Pernas Tortas passou despercebida. Ninguém olhou para ela, ninguém fez qualquer pergunta. As horas iam passando muito devagar e eu ali plantado, com uma mão a segurar a corda de uma cabra deitada no chão a ruminar um punhadito de milho cozido que eu lhe tinha dado pela manhã.

Meu pai, exasperado, ainda aventou a hipótese de atarmos a corda a uma árvore e irmos ter com a minha mãe, a Otília e o Quinzinho, que cirandavam de tenda em tenda, à procura de roupa e outras tralhas.

- Pode ser que apareça alguém. Vamos esperar mais um quarto de hora - disse eu, olhando para o meu relógio novinho, comprado com o dinheiro que tinha ganho nas obras.

Finalmente, apareceu um homem baixote e gordo, a cheirar a bode, com um dente de ouro na boca.

- É para vender?

- É sim senhor.

- Então vamos lá fazer o negócio antes que a cabra morra.

- Engana-se! A bicha está magra porque não tem havido tempo para a pensar como deve ser disse meu pai, muito ofendido.

- Pois. A cabra está doente. Pode-se aproveitar a pele e mais nada...

- Vendo o que aqui está à sua frente, nem mais nem menos!

- Tem razão.

Em poucos minutos, o negócio ficou concluído. Ajudei a cabra a subir para o estrado duma camioneta velha, pintada de azul e com a chapa amolgada, e ali ficou a fazer companhia a duas ovelhas velhas, uma burra com o corpo ornamentado de feridas, onde o mosquedo se lambuzava sem cerimónias, e um porco estirado no chão, com manchas pretas espalhadas da cabeça até ao rabo, mais morto que vivo.

Apeteceu-me dizer bem alto "Adeus, Pernas Tortas!", mas fiquei mudo como uma pedra. com a corda arrumada no bolso das calças, perguntei:

- Pai, quem é que vai comer esta carne? São as pessoas da cidade?

- Acho que não. Este senhor vem às feiras para limpar os bichos podres que por cá aparecem.

- E para onde é que leva os bichos?

- Parece que trabalha para um circo que tem leões e outra bicharada que precisa de comer carne. Assim, sai-lhe mais barato e quem tem a pouca sorte de lhe cair um bicho empeçonhado na mão não perde tudo.

Fomos encontrar a minha mãe e a Otília numa grande discussão por causa dos sapatos que ela havia de usar no dia do casamento. A Otília queria uns sapatos pretos, a minha mãe, muito ofendida, dizia que tinham de ser brancos. com um sorriso que lhe ia de orelha a orelha, o homem da tenda, com barba de cinco dias, ia dizendo que, para ele, tanto se lhe dava vender preto ou branco, ia dar tudo no mesmo.

- Algum dia se viu uma noiva entrar na igreja com uns sapatos pretos?! Credo!

- Se não se viu antes, vê-se agora. Para que é que eu quero uns sapatos brancos? Depois tenho de os mandar tingir de preto... Então compram-se já pretos...

Branco, preto, preto e branco, branco, preto, preto e branco, ali estiveram em grande discussão até que o meu pai decidiu:

- A rapariga leva os sapatos pretos, que é assim que ela quer.

Vencida mas não convencida, minha mãe comentou em voz baixa:

- Até parece que não tens gosto no teu próprio casamento...

A Otília não respondeu.

Eu entrei numa tenda e vesti um fato azul que me ficava bastante folgado: as mangas do casaco cobriam-me metade das mãos e as calças roçavam no chão.

- Tem de ser assim. O rapaz está a crescer disse minha mãe. E eu calei-me porque o homem da tenda resolveu oferecer-me uma gravata, que era um apetrecho, como ele dizia, que dava um ar distinto a qualquer homem.

E como o rapaz estava a crescer e queria apresentar-se no dia do casamento com o ar distinto de qualquer homem, também me arranjaram uns sapatos com dois pontos a mais do que os meus pés precisavam e uma camisa amarelada que tinha um colarinho onde cabia pescoço e meio.

Depois de se terem comprado alguidares, pratos, malgas, facas e garfos, bacias e roupa interior, e quando já íamos a caminho da tenda das comidas para saborear uma posta de bacalhau frito, minha mãe disse que ainda faltava comprar uma coisa muito importante, que esperássemos por ela, que não demorava nada.

Choramingava o Quinzinho por ninguém lhe ter comprado um cartucho de cavacas quando minha mãe apareceu com mais um embrulho na mão, muito satisfeita por se ter lembrado a tempo:

- Faltava comprar um penico!

 

A Edilinha tinha feito o vestido para a minha irmã usar no dia do casamento. O meu pai tinha comprado dois anhos, a pesar cada um mais de uma arroba, e minha mãe tinha ido à Vila contratar a senhora Amália, cozinheira afamada, para vir a nossa casa preparar a boda marcada para o dia nove, segundo sábado de Novembro, do ano de mil novecentos e sessenta e oito.

Nesse dia, depois da cerimónia na igreja, a boda teria canja de galinha, cozido à portuguesa e arroz de forno com batatas e anho assado. Depois seriam servidos os bolos e cálices de vinho fino.

Contadas e recontadas, seriam vinte e três bocas à mesa. A nossa sala ficaria mais testa que um ovo e para que toda a gente coubesse os convidados haviam de se sentar em bancos corridos.

A senhora Amália viria para nossa casa na sexta-feira, para preparar o picado feito com bocados de carne gorda de porco, cebola, sal, colorau, salsa e alho, que depois seria estendido na carne dos anhos. Também era preciso descascar muitas batatas e escolher, lavar e partir em pedacinhos as hortaliças do cozido que havia de levar galinha, salpicão, presunto e vitela comprada no talho da Vila. Também havia de fazer os bolos, gastando os ovos que há muito tempo se andavam a empilhar numa grande cesta de vime.

O pai do meu futuro cunhado Abílio ajudaria o meu pai a matar e esfolar os anhos, a retalhar as carnes e a pôr as peles dos bichos a secar em cima de um penedo depois de terem sido muito bem esticadas.

Na sexta-feira à tarde, a minha mãe havia de caminhar para a Vila. Agora, com o casamento da filha, e para não ficar atrás das irmãs, minha mãe iria à cabeleireira cortar o cabelo comprido, negro como tições. O carrapito daria lugar a uma permanente muito bem encaracolada, para não ser menos que as irmãs dela que viviam no Porto.

A Otília estaria na Vila apenas no dia do casamento, às sete em ponto.

No sábado, logo pela manhãzinha, havia de se acender o forno de cozer o pão que havia na nossa cozinha e, como não cabiam lá dentro tanta carne e tantos alguidares de barro, também havia de se aquecer o forno do Armandinho Rebolo. Para lhe pagar a gentileza, minha mãe já tinha destinado levar-lhe a casa uma travessa acuculada de toda a comida da boda.

Por volta das onze horas, haviam de chegar os convidados a nossa casa. E eu não havia de dar grande importância às minhas primas do Porto, que, sempre que vinham ao Souto, passavam o tempo a rir-se da forma como eu pronunciava as palavras, diziam que eu era mesmo um parolo, que não sabia falar. Coitadas delas, lá por serem filhas de polícias e segundos-sargentos da tropa, e chamarem "titi" à minha mãe, pensavam que tinham o rei na barriga.

O caminho que ia da nossa casa à igreja estaria muito bem varrido, o Quinzinho levaria as alianças numa cestinha de pano e toda a canalha e mulheres do Souto haviam de se juntar no adro para, finda a cerimónia, lançar sobre o casalinho pétalas de flores e garfadas de arroz barato, que logo as galinhas se haviam de encarregar de debicar, consoladinhas da vida.

O Teixeirinha Sacristão subiria à torre da igreja e tocaria os sinos um ror de tempo, e o Armandinho Rebolo lançaria para as nuvens uma dúzia de foguetes.

A boda teria a honrosa presença do padre Ramos, muito amigo do Julinho Barbeiro, e haveria de se estender até ser noite. E talvez o Zé Coirinho aparecesse com a sua concertina para se fazer um baile.

Depois, cada convidado seguiria para sua casa. A Otília e o Abílio deixariam a nossa casa e dormiriam juntos na cama nova, envernizada e muito segura, que meu pai fizera com a madeira de uma cerejeira sobre a qual descansava um colchão de sumaúma, há muito tempo posta no maior quarto da casa do Abílio.

Tudo estava combinado, tudo estava arranjado para que o Souto vivesse um dia diferente.

Mas não aconteceu. Na terça-feira, três dias antes do casamento, a Otília desapareceu do Souto.

 

Nessa terça-feira inesquecível, logo pela manhã, o Abílio, muito bem escanhoado e a tresandar a um perfume enjoativo, entrou na nossa cozinha com um machado na mão. Combinara-se ser esse o dia perfeito para partirmos e empilharmos a lenha que desde Setembro estava amontoada junto de nossa casa. Muito toco de giesta e muita acha de carvalho haviam de ficar reduzidos a cinza para estrugir, cozer e assar as comidas da boda.

O meu pai não estava na cozinha. Tinha ido pensar a parelha de vacas velhotas que pacatamente ruminavam na corte muito bem estrumada e emoldurada com um incontável número de teias de aranha que caíam do tecto e tapavam todos os buracos. Meu pai não deixava que as destruíssemos. Assim, ensinava ele, o mosquedo fica preso na gosma das aranhas e não incomoda as vacas. Quando Deus criou o mundo, ainda bem que teve tempo de se lembrar das aranhas, bichos de muitas patas e de grande préstimo.

As nossas vacas velhotas começaram a viver connosco desde o mês em que eu nascera, contava, embevecida, minha mãe. Além do estrume que curtiam ao longo do ano, que dava para arrumar as terras de lavoura, cada uma paria seu bezerro, nove meses depois de as termos levado ao boi do Julinho Barbeiro, um bicho enorme e gordíssimo que quase as derreava, tal era a força e o peso daquele mastodonte, sempre pronto para acasalar, soltando mugidos que me metiam medo.

Na ausência do Abílio ou do Julinho, quem ia buscar o boi e o ajudava a cumprir era a senhora Ana. Eu achava que a senhora Ana era a mulher mais corajosa do Souto. Pôr-se na frente dum bicho tão corpulento apenas com um pauzito na mão e conduzi-lo para junto do carvalho onde a vaca tinha sido presa, sempre a dizer "Já lá vais! Já lá vais! Tem calma, tem calma...", não era serviço para qualquer mulher, ainda por cima franzininha, só pele e ossos.

Mas é daquela manhã de terça-feira que é preciso falar. E do Abílio, que, a tresandar a perfume e com o cabelo bastante comprido, respondeu a minha mãe que já tinha almoçado, obrigadinho, agora não lhe apetecia mais nada, sempre a olhar para a porta a ver quando a Otília aparecia.

Eu tomei o café devagar porque estava muito quente, comi as migas de broa, muito doces, que se amontoaram no fundo da malga, e dei um estalo ao Quinzinho, que andava com a mania de encostar a boca junto das minhas orelhas e depois soltar um grito agudíssimo que me punha zonzo, com os ouvidos a chiar.

- Ó Abílio, sente-se! - disse minha mãe.

- Muito obrigado, estou bem assim. A Otília não está cá?

- Sabe que hoje ainda não lhe pus os olhos em cima?! Deve ter ido para o lavadoiro. Por que é que não vai lá ter com ela? E diga-lhe que não se demore.

Depois de o Abílio ter saído da cozinha, muito lesto, minha mãe queixou-se:

- Ai esta modernice de os homens andarem a pôr perfume na cara é fraca moda...

Já eu tinha deitado milho às galinhas e minha mãe pensado o porco que estava quase cevado, a pesar muito mais de cem quilos, quando o Abílio voltou.

- Ela não está lá!

- Onde é que se meteu o diacho da rapariga?! Ah, já sei, se calhar foi a casa da Edilinha provar uma blusa...

Eu, meu pai e o Abílio começámos a cortar a lenha. A meio da manhã, quando os paus traçados já faziam um grande monte, minha mãe veio pedir-me para ir a casa da Edilinha dizer à Otília que estava a fazer falta em casa.

A contragosto, lá fui. A Edilinha, baixa e anafada, com a pele muito branca e grande bigodaça, parou de dar com os pés enfiados nos chinelos de pano aos pedais da máquina de costura para me dizer que não senhor, a Otília não tinha aparecido por lá. E a blusa já ela a tinha levado no fim da tarde do dia anterior.

Quando cheguei a casa, já minha mãe chorava, prostrada na sala, com as mãos a segurar o papel que tinha encontrado em cima da cama da Otília:

"Minha mãe e meu pai: Peço que me perdoem. vou viver com o Zé, o homem de quem realmente gosto. Não havia outra solução. A filha que muito lhes quer. Otília"

Meu pai, como se nada tivesse acontecido, partia furiosamente os troncos de carvalho, alagado em suor. E o Abílio, depois de estar um ror de tempo com as mãos nos bolsos, calado e a acenar com a cabeça e a morder os lábios, disse que tinha de ir fazer um serviço a casa.

- Ó homem, aguente e não faça asneiras. Não sente mais do que eu, que sou pai dela.

- Não faltam mulheres por esse mundo fora. E nem todas são doidas, graças a Deus!

- A minha filha não é nenhuma doidivanas.

Tenha tento nessa língua, ouviu?

- Desculpe. Não o queria ofender.

Meia hora depois, ou nem isso, toda a gente do Souto estava em nossa casa. E na eira do Julinho Barbeiro, depois de o Abílio a ter regado com petróleo, a bela cama de cerejeira, que tanto trabalho nos tinha dado a fazer, ardia em altas labaredas, e o colchão de, sumaúma desfazia-se, envolto num intenso fumo negro.

Ninguém sabia para onde é que minha irmã e Zé Coirinho tinham ido. Meu pai, sempre sereno, disse que não tinha interesse nenhum porque a partir desse dia só tinha dois filhos: eu e o Quinzinho.

Quando anoiteceu, a Madalena Sardinheira veio a nossa casa e, pedindo muito segredo, contou que o Zé e a Otília estavam a caminho de França.

- E só me diz isso agora... - lamentou-se minha mãe.

- Achei que era melhor assim... Como eles foram clandestinamente para lá, todos os cuidados são poucos.

- E a tropa? Como é que ele vai fazer? - perguntou meu pai.

- Pois, esse é outro problema. O meu Zé não quer ir para a guerra do Ultramar... E eu bem me fartei de lhe dar bons conselhos... Agora, nunca mais o vou ver... Juro por tudo o que é sagrado que eu não sabia que a Otília tinha ido com ele. Esta madrugada, lá pelas duas ou três da manhã, ele acordou-me e disse-me assim: "Mãe, vou tentar a sorte em França, não se preocupe comigo". A Madalena começou a esbagoar silenciosamente e a minha mãe, fazendo-lhe companhia, rematou:

- Podia ser tudo tão diferente. O meu coração está mais negro que a noite. Nós não merecíamos isto...

Nessa noite, custou-me a adormecer. Tentava imaginar os caminhos que iam dar a França.

 

Duas semanas depois de a Otília e o Zé terem partido pela calada da noite, o carteiro trouxe para o Souto duas cartas que tinham selos franceses. Uma era destinada a minha mãe, a outra à Madalena Sardinheira.

Minha mãe leu e releu as palavras da Otília, limpou as lágrimas e depois passou-me a carta que dizia que tudo tinha corrido bem, moravam e trabalhavam numa quinta muito grande, com muitas máquinas e muita bicharada, e ganhavam muito bem.

Ao cair da noite, a Isaura, filha da Madalena Sardinheira, veio bater a nossa casa e pôs em cima da mesa da sala a concertina do irmão.

- Na carta que nos mandou, o Zé diz que o Henriquinho deve tomar conta da concertina. Ela aqui está!

Meu pai não queria aceitar. Dizia que, se quisesse dar-me uma concertina, ainda havia em casa dinheiro para a comprar, e não percebia a razão dessa dádiva.

Eu tive de explicar tudo. Contei a conversa que houvera entre mim e o Zé, e o grande desejo que eu tinha de aprender a tocar concertina.

Pus a concertina no meu quarto, por cima duma cadeira.

E a partir desse dia, com as noites compridas do Inverno, sentava-me num banco em frente do lume aceso na lareira da cozinha e aprendi a dar ao fole e a tocar nos botões certos. Minha mãe recomendava-me que não me habituasse a fazer caretas e que não fechasse os olhos. Meu pai dizia:

- Estás quase a chegar lá.

- O pior é o quase - dizia eu, com os braços dormentes.

E, uma noite, a primeira música, certa do princípio ao fim, surgiu:

"Ó Rosa, arredonda a saia Ó Rosa, arredonda-a bem

Ó Rosa, arredonda a saia, Olha a roda que ela tem!"

Que alegria! Eu era capaz de aprender, mesmo sem mestre.

Depois, nunca mais parei. E em pouco tempo já tinha um belo repertório de quinze músicas. Material mais que suficiente para aceitar tocar num baile de Carnaval que as moças do Souto resolveram fazer.

Empoleirado numa caixa encostada a um canto da sala, estive a tocar desde as nove da noite até à uma da madrugada. Bebi alguns copos de vinho, comi salpicão e broa, fiquei mais transpirado que uma toalha encharcada e recebi uma nota de cinquenta escudos. Nada mau para quem começa!

Dois anos depois, em Agosto, a Otília, mais gorda e muito bem vestida, e sempre a dizer oui, oui, apareceu no Souto com um bebé ao colo, um menino que se chamava Manuel. Meu pai ficou babado com o neto que lhe herdara o nome.

E eu, depois de a Otília voltar para França, deixei ficar a concertina no meu quarto, muito bem embrulhada num lençol, meti numa mala de cartão a melhor roupa que tinha e dois pares de sapatos. Numa fria madrugada de Setembro, entrei numa velha camioneta da carreira, que me levou, enjoadíssimo, até ao jardim de S. Lázaro, no Porto.

Impecavelmente fardado, estava lá à minha espera o meu tio Augusto, casado com minha tia Elvira, irmã de minha mãe, e polícia com muitos conhecimentos.

O tio Augusto tinha-me arranjado emprego numa confeitaria. 

 

                                                                  António Mota

 

 

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