Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A TIA JANE
A dama Nova da casa velha
Depois de se ter ido embora a carroça que trouxera a mobília, fechada a porta na casa antiga, Jane Louvier circunvagou o desolado olhar pelo cenário do século passado. No vasto salão de madeira cinzenta e persianas cerradas, encontravam-se alguns móveis preciosos, de mistura com as suas malas, as caixas de chapéus e os cestos para ali deitados ao acaso.
Então, esta grande casa silenciosa onde entrava pela primeira vez, pertencia-lhe!
A jovem senhora, olhando em seu redor, experimentou uma pungente impressão de abandono, tristeza e solidão.
Desalentada, deixou-se cair numa poltrona coberta da poeirenta housse, e, com os cotovelos nos joelhos, o rosto entre as mãos, não pôde reter as lágrimas.
Paulina, que era a cozinheira, abriu bruscamente a porta e surpreendeu a patroa, em plena crise de desespero. De rosto bastante velhaco, a criada era uma gorducha duns trinta e dois anos, muito pequena, quase anã. Já tinha alguns cabelos brancos e enraivecia-se por não encontrar marido. Não se mostrou nada comovida com o desgosto da patroa.
- Eu vinha pedir-lhe... mas a senhora está pálida, a senhora está a chorar, parece estar doente...
- Não, Paulina, isto não é mais do que uma fraqueza passageira - respondeu Jane, cedendo ao irreprimível desejo de confiança, expansão e simpatia.- Senti-me desorientada, muito comovida, ao chegar aqui. Antes de morrer, o meu pobre marido falou tanto da casa dos seus antepassados!
A Paulina orgulhava-se de ser uma pessoa prática e não ter coração piegas.
- Ora, ora... Há dezoito meses que a senhora está viúva!... Dezoito meses já é alguma coisa. Disseram-me que o sr. L ouvier era muito velho e muito doente....
- Doente sim, mas não muito idoso; tinha apenas cinquenta e nove anos.
- Claro que era um velho para a senhora... Ninguém lhe dá vinte anos.
- Pois vou agora tazê-los, Paulina. O sr. Louvier foi sempre muito bom.
- Sim, e generoso: parece que a senhora herdou tudo.
- Realmente herdei tudo... o que foi muito para mim, que era uma órfã sem dote! Para uma viúva mundana que gostasse de andar à moda e de gastar, não era nada. Meu marido deixou-me esta casa com um rendimento pequeno. Preciso de fazer muitas economias para poder viver, mesmo modestamente.
Esta perspectiva de economias não agradava nada à criada.
- Nos arredores de Paris, tanto os terrenos como as casas estão à subir - sugeriu. - Se eu fosse a senhora, vendia este casarão tão antigo, a cair aos bocados. com o dinheiro que arranjasse, em vez de me enterrar, tanto no inverno como no verão, nesta horrível aldeola, passaria a viver alegremente em Paris.
- Eu não sou uma pessoa frívola. O paternal afecto do sr. Louvier dava-me uma felicidade tranquila. Esperava poder tratá-lo, ao meu pobre marido, dedicar-me a ele durante longos anos.
- Hom'essa! Olhe que a mim,
Apesar de ser criada, não me agradaria nada viver assim! É preciso que a senhora possua resignação para dar e vender, ou que tivesse tido uma infância muito infeliz, para se contentar com tão pouco.
- Realmente não foi muito animada, não: Passeia toda internada num colégio. Excepto Henrique Louvier, velho amigo de meus pais, ninguém mais se importou comigo. Aceitei o pedido de casamento, do meu único protector, com imensa alegria: era a minha libertação! Mas não gozei o enlevo de ter um lar, senão durante dois meses, e cá estou agora, outra vez mergulhada numa existência isolada e sem finalidade. E ainda você se admira de me ver chorar!...
- Ora, minha senhora.., Bonita como é e nova e instruída - que mais é preciso Não lhe há-de faltar quem a queira consolar. Eu, no lugar da senhora, não me afligia.
O tom cínico, o sorriso trocista da criada, acabaram por magoar Jane. Censurou-se a si própria pelo momento de fraqueza que lhe valera este imoral conselho. Depois, limpou os olhos e replicou friamente
- Seria incapaz de vender esta velha casa, só por meu marido gostar tanto da sua aldeia de Sivry, onde ele e a irmã foram criados. Tencionava, depois de restabelecida a sua saúde, vir instalar-se aquí, comigo. Embora custem muito dinheiro as reparações a fazer nesta habitação, tentarei guardá-la e viver cá... duma forma absolutamente oposta à duma viúva alegre.
Depois de ter assim respondido em voz firme, M.me Louvier levantou-se, resolvida a começar imediatamente a organizar tudo.
- Bonito serviço!-resmungou a criada, com uma careta. - E eu à espera de que a patroa se começasse a divertir assim que acabasse o luto... Palavra que não tive sorte em cair em casa duma pessoa tão séria!... Neste velho casarão deve haver mais trabalho que descanso.
E, de mau humor, continuou em voz alta:
- A senhora faz favor de dizer o que quer para jantar?
- Um caldo.
- Não tenho carne para o fazer.
- Então uma sopa de legumes.
- E onde é que estão os legumes Eu sei lá o que há no jardim E a senhora sabe?
- Conheço-o tão bem como você.
- Aquilo é terreno bravio. Aposto que não há lá nem alhos, nem cenouras, nem azedas, nem salsa.
- O melhor é ir ver. Em dois minutos fica sabendo.
E depois da sopa, que é que a senhora
Come?
- Uma costeleta
- Eu sei lá onde é o talho? Nem sei onde é a mercearia, nem o leiteiro, nem o padeiro... nem nenhum fornecedor.
- Fará o obséquio de não se fingir tão atrapalhada, Paulina; não complique a situação, não estamos precisamente no Polo Norte. Sivry encontra-se apenas a seis léguas de Paris e tem três mil habitantes. Fala-se francês, aqui. Quem tem boca vai a Roma, e com dinheiro na algibeira você é bastante desembaraçada para, em duas horas, improvisar um simples jantar.
Estas palavras foram ditas com grande suavidade, por isso nada impressionaram a criada. Foi-se embora resmungando sempre, arrastando os chinelos, protestando em face do trabalho que iam exigir a limpeza e a arrumação da grande casa desabitada havia dois anos.
- Se eu soubesse isto, embora a patroa não seja severa nem somítica, bem me teria despedido antes de deixar Paris! Mesmo que ela me ajude, tenho aqui trabalho a valer. E isto sem falar que na aldeia ainda há menos rapazes que se queiram casar do que na cidade! Não estou para rebentar de aborrecimento... Se não houver cinema e bailaríco na terreola, amanhã mesmo deponho o meu avental nas mãos da maçadora viuvinha.
Enquanto que, sempre a protestar, a Paulina ia às compras, Jane Louvier visitava a casa e percorria o jardim. Larga e
espaçosa, a velha habitação mostrava a leste, do lado da rua, uma nobre fachada com frontão e pilastras do século XVIII luxuosa fachada um pouco decaída, mas ainda imponente, com o seu rés-do-chão elevado e o primeiro andar com sete grandes janelas. Por cima, as mansardas estavam alinhadas sob o alto telhado, coberto de telhas, outrora limpas e hoje revestidas de musgo. A oeste, em face dum vasto jardim, terminado pelos terraços e dominando o rio, a outra fachada, guarnecida, até ao tecto, de clematites, jasmins e roseiras, tinha o aspecto sadio de um pequeno solar aldeão.
Contemplando-a de longe e no conjunto, a habitação que a viuvinha herdara, testemunhava uma antiga opulência; mas quando se examinava de perto e em pormenor, o seu mau estado era flagrante. À impressão sentida por Jane Louvier juntavam-se o estado desolador do jardim e um dia cinzento e triste.
Como " que ela, com os seus módicos recursos, poderia, não restaurar, mas simplesmente manter de pé a velha casa E, no entanto, era esse o seu único desejo, o único meio que tinha de testemunhar a sua gratidão àquele que se mostrara seu protector e amigo dedicado.
Pouco a pouco, desde que chegara, estas crescentes inquietações materiais tinham transformado a doce melancolia de Jane numa pungente tristeza. No terraço que ladeava o rio, a rapariga deixou-se cair num banco de pedra, a sombra das tílias rumorejantes. Embrenhou-se nas suas recordações. Jane esperava gozar uma longa, uma tranquila felicidade naquele casamento sem amor, mas cheio de gratidão, afecto e confiança mútua. E no próprio dia do enlace, esta felicidade tinha sido perturbada pelas crises cardíacas de Henrique Louvier. Embora devotados e constantes, os cuidados da esposa não haviam conseguido salvar o doente. Sem ter conhecido as alegrias do matrimónio nem a exaltação maternal, Jane sentira-se viúva aos vinte anos.
- Não tenho ninguém a quem me dedicar, ninguém a quem dar a minha ternura! - repetia ela, doloridamente.
Perdera os pais, quando criança. Não tinha primos, nem família nenhuma. Pelo seu lado, Henrique Louvier possuía apenas uma irmã, M.me Lortain, três anos mais nova do que ele. Mas casara contra sua vontade e haviam cortado as relações. Nunca falava dela e, para evitar desgostá-lo, Jane respeitava este silêncio. Louvier arrependera-se da sua atitude, mas só pouco antes de morrer.
- Bem desejaria perdoar à minha irmã
- dissera ele-, tornar a vê-la, falar-lhe! Mas infelizmente é demasiado tarde!
E afastando tal pensamento, aproveitou a pouca voz que ainda tinha para agradecer a Jane tudo quanto fizera por ele.
- Minha querida filha, que tão generosamente me quis sacrificar a sua mocidade! -murmurava o moribundo, beijando-lhe as mãos, com ternura. - Merecia mais felicidade do que eu lhe dei. O que desejo é não entravar o seu futuro, mas sim fazer com que a minha recordação a ajude a encontrar a verdadeira ventura. É este o meu voto supremo!
Apesar de já terem decorrido os dezoito meses que ela, enlutada, passara no convento das Irmãs de Neuilly, esta cena do adeus final conservara-se sempre dolorosa, na memória de Jane. Evocando-a, ficou ainda mais triste e desolada. A sua saudade profunda pelo benfeitor e pelo amigo desaparecido, vibrava neste suspiro abafado:
- Ah! Que se eu, ao menos, tivesse um filho, eu que tanto sinto o desejo de ser mãe, como a existência me pareceria ainda útil e boa! Mas sozinha no mundo, que hei-de fazer durante os anos que ainda me restam para viver?
Tal pergunta causou-lhe grande angústia, tanto moral como física. Nunca o sentimento da inutilidade de viver a oprimira tanto, como naquele dia, em face da enorme e velha casa, outrora íntima e aconchegada, dentro da qual se sentia tão pequena e tão estranha! No meio do grande jardim, cujas ruas se escondiam sob as urtigas e que se tornara selvagem, assim entregue ao abandono - também ela se sentia desamparada e trémula naquela solidão que a apavorava.
Tinha frio. Seria que a triste tarde de Abril subitamente arrefecera, tornando mais áspera a brisa que vinha beijar o rio?
- Não... - pensou. - Este mal-estar vem da minha alma indecisa e perturbada. Devo dominar-me. vou reagir contra esta fraqueza, este peso que me oprime o coração. E para já, tenho uma tarefa: tornar a pôr a casa em ordem, como se o meu marido estivesse para chegar. Não será esta a melhor maneira de honrar a sua memória e testemunhar a minha persistente afeição? Legando-me o que possuía, o Henrique deu-me um belo presente; devo tomar conta do património e esforçar-me por pôr em destaque os mínimos objectos. Seria negligência e desdém da minha parte não deixar conhecer exactamente o que ele me deixou. Quem sabe se depois deste primeiro trabalho acabado, não surgirão outros e ficarei entretida?... Será para mim uma grande consolação se dias melancólicos, mas activos, me derem a satisfação do dever cumprido.
Ainda a tremer de frio, Jane levantou-se e entrou em casa, decidida a fazer uma espécie de inventário e a esvaziar, sem demora, as malas, as caixas e os cestos. Trataria de arrumar tudo nos armários e nas cómodas; depois ocupar-se-ia em tornar o seu lar tão limpo, tão confortável e tão risonho quanto possível.
Corajosa, Jane percorreu a habitação, desde os subterrâneos até ao sótão. Viu que pôr tudo em ordem era tarefa trabalhosa, mas tal verificação foi um estímulo para a sua energia.
Depois de ter andado a dar à língua dumas lojas para as outras, a criada, feitas as compras, voltou ainda mais mal-humorada.
Imaginem que naquele reles lugarejo não havia baile ao sábado nem cinema ao domingo! Apenas no patronato de S. José algumas conferências e representações; mas estes espectáculos eram organizados e presididos pelo padre Bouin, abade de Sivry, e, por consequência, a moderníssima Paulina achava-os extremamente maçadores. Para ser maior a desgraça, os fornecedores eram todos casados e os empregados eram uns garotos que ainda nem tinham feito o serviço militar. Nem um casadoiro, nem um simples amor em perspectiva!
- Não vejo nada que me sirva! - repetia Paulina, descoroçoada; e, para cúmulo, eis que, estando na cozinha, que tinha a péssima ideia de não dar para a rua, mas» para um jardim sem jardineiro, Paulina viu-se perturbada na leitura do seu folhetim pela aparição da patroa, que lhe vinha pedirl as tenazes e o martelo.
Continuou o monólogo interior:
- Livra! Não me faltava mais nada senão ela andar todo o dia atrás de mim. Se no próprio dia da chegada, sem ter tempo para respirar, a patroa começa a despejar as malas, a abrir as caixas, a pôr tudo no meio do chão, isto vai ser uma paródia! Pouco empurrar, an? Julga ela que estou pelos ajustes Nada disso! Tenho de meter já a minha viuvinha nos eixos.
E, trombuda, respondeu em voz queixosa:
- Como quer a senhora que eu saiba onde estão as tenazes e o martelo? Não fui eu que fiz as malas. Julga que tenho essas ferramentas todas na algibeira? Bem basta ter de me ocupar com o jantar. E não vejo aqui nem um dos tachos de que preciso. Não tenho carvão nem lenha para acender o lume. E as travessas, os pratos, os copos, os garfos, as facas, onde estão eles Não há absolutamente nada nesta casa maldita Em face de tanta má vontade que, evidentemente, tinha por fim pô-la fora de si, Jane teve dificuldade em se conservar calma. Enchendo-se de paciência, indicou-lhe uns embrulhos onde estava o trem de cozinha. Podia escolher ali, à vontade, aquilo de que precisasse. No celeiro pegado, mostrou-lhe um grande monte de lenha e um caixote de carvão. Depois, voltando para a sala de jantar, abriu armários e aparadores, onde se encontrava mais louça, cristais, toalhas e guardanapos do que seria preciso para quarenta pessoas. Na copa, sem ser necessário procurar muito, Jane viu uma caixa de carpinteiro contendo aquilo de que precisava e muitas coisas mais. E foi uma nova ocasião para admirar a ordem e a previdência do marido. Deixando a cozinheira tratar mal os tachos e partir furiosamente o carvão, Jane, até à noite, não deixou de fazer arrumações.
Era quase escuro quando, abrindo bruscamente a porta, a Paulina se decidiu a anunciar em voz tonitruante:
- O jantar está na mesa.
À luz duma vela, visto que a criada não se tinha dado ao trabalho de limpar um dos candeeiros e de o encher de petróleo, Jane, sem protestar, engoliu, como se fosse caldo, uma pratada de água menos que morna, mastigou a custo uma costeleta cheia de nervos e esturrada, provou, mas não comeu, um pedaço de couve-flor que estava crua.
Encostada ao aparador, a criada espiava a patroa, pronta a revoltar-se à primeira censura.
Mas como estava preocupada com outras coisas bem mais importantes, M.me Louvier não provocou, por nenhuma queixa, a cena desejada.
Acabou de jantar, sem dar palavra. Depois, pegou na vela e subiu para o seu quarto.
- Olhe que eu não tive tempo de lhe abrir a cama, nem mesmo de lha fazer... O trabalho é tanto que já nem sei de que terra sou.
- Está bem. Eu hoje arranjo o quarto. A condescendência da ama ainda mais
exasperou a criatura:
- Isto assim não pode continuar. Se eu trabalhasse desta maneira todos os dias, com certeza, que ia à cama. E o médico que me receitou repouso, por causa da minha nepatite! Não há dúvida... Se, em Paris, eu soubesse o que me esperava! Nem elevador, nem aquecimento, nem electricidade, e um casarão destes, não era a filha da minha mãe que tinha vindo, não! É de mais para as minhas forças, minha senhora, eu não posso...
A patroa não respondeu, prevendo os novos aborrecimentos que lhe estavam reservados na aldeia desconhecida, a partir da criada, indispensável apesar de preguiçosa e rabugenta. A serva, velhaca, via no rosto da ama a contrariedade que a situação lhe causava.
-Tenho-a na mão - pensava, divertida e má. - Na sua situação de viúva, estranha nesta terra, na desordem da mudança, que bela partida deixá-la aqui sozinha! Abandonada neste pardieiro em ruínas, como poderá ela viver de dia, e não morrer de medo, de noite? Mesmo que mandasse vir uma mulher a dias ou me desse mais dinheiro, eu recusaria enterrar-me nesta terra desgraçada.
Tendo reflectido, Jane não propôs nada do que ela esperava.
- É livre, Paulina, pode-se ir embora quando quiser.
O achado
Apesar da sua decisão enérgica, embora estivesse ocupada a fazer o que a criada não se dera ao trabalho de executar, Jane, sozinha no seu quarto, sentiu-se outra vez tomada de tristeza.
Em Paris, fingindo-se ingénua, atenciosa e aplicada, a criada tinha-lhe inspirado confiança. Pensava ter encontrado uma companheira bastante dedicada, simples, honesta e laboriosa, que lhe aliviasse o tormento da solidão, M.me Louvier julgava, pela sua indulgência e generosidade, misturadas com um pouco de compaixão, ter conquistado a criatura. E, eis que, mudando bruscamente de atitude, ela se mostrava desleixada, agressiva e má. Era mais uma contrariedade a juntar aos seus desgostos. E como isto se dava depois de um dia de angústia, emoção e dolorosas recordações, o incidente tomava a importância da minúscula gota de água que faz transbordar o cálice da amargura. Depois de tantos meses de solidão, povoados de nervosismo, luto e imagens de morte, a mínima conversa, afectuosa ou alegre, seria para Jane uma reconfortante doçura.
Qualquer palavra consoladora, qualquer gesto amável tê-la-iam enternecido. Um sorriso de esperança enchê-la-ia de gratidão.
Longe de se aproximar de Jane, nesta imensa casa onde as duas mulheres se deviam sentir tão sós, a criada, hostil e feroz, fugia e arreliava a patroa, afastava-se o mais possível dela e falava de se ir embora.
"A Paulina, que esperou este momento para me deixar, é porque realmente tem maus instintos. Mas é possível que o faça mais por estupidez do que por maldade. Em todo o caso não lhe direi que fique. Que se vá embora! com criada ou sem ela, o dia de amanhã não será mais triste do que o de hoje! Como é romanesca e, no entanto, lastimável, a situação das viúvas novas que, como eu, já não têm direito nem às alegrias exuberantes das raparigas, nem à felicidade enternecida das mães!
Feita a cama e cuidadosamente arrumada a roupa, os vestidos, o calçado e os chapéus, a viuvinha, "demasiado séria», como dizia a criada, sentiu que, a pesar do cansaço, não poderia adormecer. A fim de se familiarizar com o quarto que escolhera, Jane olhou lenta e minuciosamente à sua volta, para examinar em pormenor, o que no seu vaivém atarefado só vira por alto.
Mais pequeno do que os outros, este quarto era, mesmo assim, tão grande que a claridade pálida e azul da vela não penetrava nos ângulos e nos cantos mergulhados na sombra. Nesta semi-obscuridade, o relógio e os candelabros que estavam sobre a pedra do fogão, as jarras e os bibelots sobre a cómoda, os quadros pendurados na parede, não pareciam objectos reais, mas fantasmas de coisas. Reflectida no espelho, Jane, tão graciosa e tão esbelta no seu roupão de musselina, assemelhava-se a uma fada branca, uma Jane de sonho...
- Está quase tão escuro no meu quarto como na minha vida!-murmurou a viúva, com fugaz e desolado suspiro. - Oh! não, tão escuro não, porque aqui brilha um clarão, embora traço, enquanto que no meu futuro não cintila nenhuma luz de esperança.
Neste momento, os olhos de M.me Louvier, voltados para a chama, aperceberam, sobre o mármore da cómoda, uma pequena moldura oval, de veludo escuro, à qual não tinha ainda prestado atenção. Incidia a luz sobre este objecto. Era uma miniatura representando um bebé gorducho, que teria talvez dezoito meses ou dois anos, de olhos azuis e sorridentes, de rosto gracioso, com o cabelo loiro, todo encaracolado.
Num movimento de súbita curiosidade, Jane pegou na miniatura a fim de a examinar de mais perto. E, encantada, não deixava de admirar o retrato e de repetir num suspiro:
- Que linda criança! Se eu tivesse um filho como este, a minha vida não seria nem triste nem vazia; esta velha casa não me pareceria tão grande!
Mas como se encontrava aquele retrato assim à vista, neste local, onde, muito antes do seu tardio casamento, Henrique Louvier tinha vivido como celibatário inveterado?
Jane pensou logo que devia ser um sobrinho do marido.
Ignorava com que idade se tinha casado M.me Lortain, a única irmã de Louvier; mas sabia que era mais nova do que o irmão. Provavelmente, M.me Lortain era a mãe da criança. O silêncio em que o marido, até ao último suspiro, se havia esforçado por esquecer a família, não a autorizava a uma tal conjectura; mas também não se opunha a que o pensasse. No seu momento supremo, Henrique só desejara perdoar à irmã. Era muito natural que não tivesse feito nenhuma alusão ao perdão concedido a esta criança, que ele nunca vira e que devia ser muito pequena para ter podido causar o mínimo desgosto ao tio!
Estas reflexões aumentavam a atracção pela miniatura. Embora o retrato não lembrasse nenhum dos traços do seu benfeitor, Jane, comovida com esta descoberta, não podia desritá-lo. O colorido ainda fresco da pintura deu à rapariga a convicção de que esta obra delicada era muito recente. A toilette do bebé vestido de cambraia branca, sem mangas nem cinta, não indicava nenhuma época. Jane notou que, naquela idade, a moda era sempre a mesma e concluiu que o bebé não podia ter mais do que quatro ou cinco anos. Para se informar melhor, interrogava o retrato, mas em vão -o belo petiz olhava-a maliciosamente, ria-se, mas; é claro, permanecia mudo.
Ela virou e tornou a virar o pequeno caixilho de veludo escuro. Por trás da placa de marfim, chegou a decifrar algumas palavras traçadas em tão minúsculos caracteres que teriam passado desapercebidos a qualquer exame menos meticuloso.
Esta letra elegante justificou logo a suposição de M.me Louvier:
Ao tio Henrique, afectuosa lembrança dum pobre bebé que se sente muito só na vida.
Não podia agora duvidar: o tio era o seu marido. E este pobre bebé era o pequeno ou a pequena Lortain.
Desta maneira, Jane, que se julgava sem família, tinha um sobrinho ou uma sobrinha.
Que surpresa e que alegria!
Mas porquê estas palavras: um pobre bebé que se sente muito só na vida A criança seria órfã? Era não só possível, mas provável. A pessoa que mandara o retrato, julgara assim fazer um comovido apelo à clemência e à generosidade de Henrique Louvier.
Haveria o tio respondido?... Teria tido tempo de o fazer?
O coração de Jane pôs-se a bater violentamente. O achado do inestimável tesouro causava-lhe tanta perturbação como ternura. Aqui estava o que ela mais desejava no mundo! Mas, estudada em pormenor, apaixonadamente observada do direito e do avesso, a miniatura não podia desvendar mais nada à pobre viúva Sobreexcitada, a sua imaginação preenchia todas as lacunas. Procurava adivinhar o que se tinha passado.
Viúva e provavelmente arruinada, conservando no fundo do coração uma sincera ternura pelo irmão mais velho e sonhando ardentemente com a reconciliação, M.me Lortain, no pressentimento da sua morte, tinha recomendado que enviassem o retrato para a velha casa familiar. Esperava que o rosto risonho e encantador do seu filho comovesse Mr. Louvier. E era Jane que se enternecia... e de que maneira!
No seu instintivo e maternal desejo de afecto, levou a miniatura aos lábios. Mas deteve-se bruscamente, com receio de ver a encantadora imagem desaparecer ou apagar-se sob os seus beijos.
Pôs a moldura de veludo não sobre a cómoda, mas sobre uma pequena mesa, que aproximou da cama. Tratando da sua toilette da noite, voltava-se, de vez em quando, para admirar o bebé loiro.
M.me Louvier lembrava-se agora de que, poucos dias antes de adoecer, Henrique tinha vindo só a Sivry, para ali guardar os papéis de família e para conversar com Ernesto Ruíin, o novo procurador. Rufin fora encarregado de receber as rendas de Louvier e também de vender dois campos e um bocado de bosque, situados perto da aldeia. Desejosa de conhecer a habitação familiar e inquieta de ver o marido partir só, ela tinha-lhe pedido para o acompanhar. Mas Henrique havia-lhe objectado:
"-vou falar acerca de negócios com Ernesto Rufin, e isso para si seria um aborrecimento. Por outro lado, a nossa casa, abandonada há vários meses, parecer-lhe-ia muito melancólica nas brumas do outono. Eu quero que a veja, ao menos pela primeira vez, banhada pelo sol da primavera e toda perfumada de rosas e jasmins.
com receio de parecer interessada ou indiscreta, Jane não tinha ousado insistir. Louvier partira só. E fora certamente nesta última visita a sua casa da aldeia que ele havia recebido a miniatura ou que a tirara de alguma das gavetas. Lastimando esta zanga de família, não teria ele colocado o quadro bem à vista, sobre o mármore da cómoda, a fim de se lembrar da criança? Talvez também, no pressentimento da sua morte próxima, teria ali deixado o retrato na intenção de mostrar o bebé louro à esposa e de lho recomendar. O agravamento rápido do seu mal, decerto lhe fizera mudar o rumo das preocupações. E quando voltou a pensar na criança, já era demasiado tarde.
Muito plausível, esta explicação dos, factos contentava Jane, porque o seu vivo desejo de se dedicar àquela criança encontrava nela uma espécie de sanção. Pronta a amar o pequenito, era extremamente agradável provar a si própria que se conformava com a última vontade do seu protector.
Interpretando assim a descoberta do retrato, M.me Louvier sentiu-se singularmente reconfortada. Uma grande esperança vinha iluminar-lhe a vida e aquecer-lhe o coração. Embora o seu quarto fosse húmido e desconfortável, ela deitou-se sem sentir frio. Já não tinha a impressão de ser uma estranha nem de se sentir sozinha naquela grande casa. Pela primeira vez, depois do seu luto não pensou que a existência é vã, nem teve' medo da morte.
Só apagou a luz depois de ter contemplado mais uma vez a risonha criança.
Adormeceu então e sonhou com berços enxovais e biberons.
Um que se vai, dois que aparecem
Nunca a viuvinha dormira tão bem como naquela noite. Só abriu os olhos quando eram quase oito horas, apesar de ter as persianas todas abertas, visto que a nepatite da criada a impedira de as fechar.
Naquela manhã, Jane não pensou em se queixar da negligência de Paulina, porque o tempo estava bonito e o quarto, inundado de sol, lhe pareceu infinitamente mais alegre do que na véspera. Os seus sonhos de mamã improvisada haviam sido tão doces que ela sentia-se calma, bem-disposta, cheia de vivacidade.
Mas esta sensação de bem-estár foi quase logo perturbada pela recordação das palavras mal-humoradas e ameaçadoras da Paulina.
- Quando entrar no quarto - previa ela -, a primeira coisa que diz é que se vai embora. Se bem que tal resolução me contrarie; vou fingir que não me importo. Mas afinal não sei como resolver este problema! Como hei-de arrumar a casa, se for preciso ir à praça e cozinhar as refeições E depois, chegando a noite, embora não seja medrosa, não será para mim uma grande alegria permanecer sozinha nesta habitação tão grande...
Ficou durante alguns minutos, muito preocupada. Mas, de repente, o olhar encontrou a miniatura que, naquele instante, estava aureolada por um raio de sol. Lembrando-se da sua descoberta, recuperou o bom humor.
- Ora! - pensou, sorridente. - Já não estarei sozinha, pois terei junto de mim o meu sobrinho ou a minha sobrinha. Para que me hei-de afligir? Se não for materialmente, pelo menos moralmente, este lindo bebé reanimará a minha coragem e a sua presença ajudar-me-á a livrar-me de dificuldades.
Jane levantou-se rapidamente. Acabava de se vestir, quando três pancadas impacientes soaram à sua porta. A criada apareceu, trazendo no tabuleiro uma chávena de chá e uma fatia de pão.
- Não tenho leite nem manteiga. A senhora também não estranhará se o almoço estiver frio. Não sei o que tem o demónio daquele fogão que não quer acender-se. E como naquela horrível cozinha não há gás...
-Apesar disso custar muito dinheiro, mandarei instalar gás e electricidade.
Paulina tomou esta promessa por uma condescendente concessão destinada a cativá-la. Por isso, absolutamente resolvida a partir, interrogou num tom de vencedor arrogante:
- A senhora pôde dormir?
- Dormi deliciosamente oito horas a fio.
- Pois olhe, só lhe digo que tem muita sorte! Os ratos fizeram tal chinfrim no celeiro que está por cima do meu quarto! Os mochos, que estão anichados nos buracos destas velhas paredes, não deixaram de piar na escuridão. E isto até de madrugada. Todos estes barulhos e o medo que tenho dos ladrões e das almas do outro mundo, fizeram com que não pregasse olho em toda a santa noite.
- É pena, Paulina, mas ninguém dirá; está com óptima cara. Ainda melhor do que em Paris!
- Quanto mais pálida estou, mais saúde tenho. É o fígado. E, antes de mais nada, o médico recomenda-me que durma. Pois estou bem aviada nesta aldeia do inferno!... E depois, a gente, quando não dorme, pensa.
- E pensou que...
- Que é impossível continuar aqui. Ainda se eu ganhasse mais, mas assim... E como sou muito fraca... Não há nada pior do que o campo, principalmente quando tem algum rio perto,
- Ah! Faz-lhe mal à hepatite
- Não é repatite que se diz. É nepatite
- emendou a cozinheira, muito importante com a sua ciência. - O médico não quer que eu more à beira da água.
- Bem; então deseja ír-se embora?
- Sim, minha senhora, e já. Se eu ficasse aqui mais uma semana, poderia ser-me fatal. Vou-me embora amanhã.
- Bem. Está combinado. Então vá amanhã - respondeu Jane, muito calma.
Depois, alegremente, disse:
- Mas deixa-me num momento feliz em que a minha vida vai mudar.
Intrigada, a criada perguntou:
- Então a senhora tem tensão de começar a divertir-se? Vai viajar ou regressa a Paris?
- Nada disso. Fico em Sivry. Mas espero não viver aqui sozinha... Sem demora, vou tratar de mandar vir para cá uma pessoa. Não adivinha de quem se trata, pois não?
Vendo a ama tão alegre, a criada julgou compreender.
- A senhora espera alguém... Talvez um noivo!
- Que ideia! Melhor do que isso! Descobri ontem que tinha um sobrinho ou uma sobrinha, não sei... e espere: aqui lho apresento.
No espontâneo e irresistível desejo de comunicar a sua alegria, mostrou-lhe a miniatura, tão graciosa no seu quadro de veludo escuro.
Paulina recuou, espantada.
- Uma criança! Livra! Não faltava mais nada senão ocupar-me agora dum fedelho!
- Eu tratarei dela. Não dou a ninguém essa alegria. Tal felicidade pertence-me só a mim.
- Ah! Pode estar descansada; não serei eu que lhe disputarei tamanha felicidade. Já lhe disse que me ia embora amanhã. Se isso é assim, então prefiro ir hoje, logo em seguida ao almoço.
- Pode ir quando quiser, cá me arranjarei.
M.me Louvier, é claro que havia de dar rumo à vida - mas lá como, é que ainda não sabia.
No entanto, a sorridente imagem da criança loura enchera de sol a velha casa e de encanto o seu coração; por isso já não levava para a tragédia estas contrariedades domésticas. Até lhe deu vontade de rir o pânico causado pela criança. Bastara falar nela para que a criatura desertasse com toda a velocidade.
Daí a pouco, ouviu-a subir para, ruidosamente, fazer a mala.
Depois do seu achado, Jane parecia outra pessoa. Já não precisava de força de vontade nem de reflexão para sacudir a tristeza e vencer a indiferença. Sem esforço, sentia-se activa e bem-disposta. Tudo o que lhe restava para arrumar na casa, em vez de a inquietar, estimulava-a, interessando-a.
- Nada de fazer cera - murmurava ela, enquanto punha o seu quarto em ordem.- Quero, hoje mesmo, elucidar este assunto da existência de um sobrinho ou de uma sobrinha. É, para mim, uma questão de vida ou de morte. Talvez o procurador do meu pobre Henrique me dê as informações desejadas... deve eftar ao facto de tudo. Assim que eu tiver o nome, a direcção e mais algumas particularidades, irei em busca do miudinho. Oxalá não haja obstáculos e eu possa trazê-lo já para aqui. É este o mais querido dos meus sonhos. Criá-lo-ei, ao pobre passarinho caído do ninho: será o meu filho adoptivo.,. e eu a sua mamãzinha. Mas infelizmente ainda vem longe esse dia! Antes de ir informar-me junto de Rutin, é preciso que tudo isto pareça novo e esteja reluzente, para que a pequenita ou o petiz não tenha má impressão ao chegar a minha casa.
E, sem se preocupar mais com a criada, Jane não pensava senão na criança de olhos azuis.
- Preferia uma sobrinha a um sobrinho, mas se for rapaz ficarei muito contente também. Uma rapariga é decerto mais doce e mais meiga. Nem vai para o colégio como interna nem para o serviço militar. Viverei mais intimamente com uma rapariga, pois far-me-á companhia. Tê-la-ei sempre junto de mim... pelo menos até ao seu casamento. Para a casar será preciso um dote... E como é pesada a responsabilidade de escolher um marido! Enquanto que, se for um rapaz, sempre se arranja sozinho e é capaz de casar pobre. Em vez de precisar de ajuda e protecção, quando chegar a homem é ele que, por sua vez, auxilia e protege. Bem pesados os prós e os contras, quer seja rapaz ou rapariga, tanto me faz. Receberei com gratidão infinita aquela ou aquele que Deus me quiser mandar...
Depois de ter limpo e espanejado o seu quarto, Jane, antes de fazer o serviço noutros aposentos, desceu à cozinha para arrumar a dispensa e saber se a Paulina se dignaria preparar, não o jantar, mas, pelo menos, o almoço.
Não tendo acabado de encher a mala, a cozinheira ainda estava no segundo andar, fechada no quarto.
M.me Louvier, decidida a chamá-la, atravessou o vestíbulo, quando ouviu bater discretamente à porta da rua. Julgou que podia ser Ernesto Rufin e, por isso, poderia ter imediatamente novas do sobrinho ou da sobrinha. Abriu logo a porta.
Não era o procurador, mas um camponês, de trinta a quarenta anos. O seu fato usado mas limpo, a fisionomia plácida, honesta e franca, uns bons olhos inteligentes, uma atitude modesta e simples, tímida e desajeitada apesar da sua força e agilidade, impressionaram Jane muito favoravelmente.
- Eu sou Jerónimo, minha senhora, o filho da tia Fayoux, que veio, mais duma vez, trabalhar nesta casa. Era no tempo em que o sr. Louvier passava oito ou dez meses por ano, em Sivry. Quanto a mim, desde que vim da guerra, trabalho na fábrica. Mas não me dou lá nada bem. Não tenho senão uma ideia: retomar o meu antigo ofício. Sabendo da sua chegada, julguei que era ocasião de me apresentar. Se a senhora precisar dum jardineiro, será óptimo, porque entro já para o serviço! Não serei exigente, aceitarei o que a senhora me quiser dar.
Jerónimo falava lenta e sobriamente, sem se gabar, dizendo apenas o necessário. Tendo feito um esforço com esta conversa, longa para ele, que não era falador, esperou a resposta, muito calmo.
No entanto, Jane, pela maneira nervosa como o ex-soldado virava e revirava o boné entre os dedos, julgou adivinhar que, sob esta fleuma aparente, a espera da resposta lhe causava uma espécie de angústia.
Simpatizando espontaneamente com ele, a jovem viúva pressentiu que Jerónimo era um bom e honesto rapaz, que seria dedicado e capaz de prestar mais serviços do que prometia.
Teve vontade de se decidir logo e dizer:
- "Muito bem. Pode vir para cá!»
Mas não acabava Jane de ser enganada por uma criada que tinha escolhido por compaixão por ser quase anã e ter tantos cabelos brancos
Desta vez, desconfiando das suas primeiras impressões, M.me Louvier, silenciosa, pôs-se a reflectir. Evidentemente, ela não podia deixar o jardim, selvagem como estava, e admitindo mesmo que pudesse encontrar uma criada pára todo o serviço, um homem era indispensável naquela casa tão grande.
Por outro lado, Jane lembrava-se de que os seus rendimentos eram modestos, os seus recursos muito limitados. E levando também em conta que a educação do sobrinho lhe ia causar despesa, contratar um jardineiro não lhe parecia nada prudente. Perplexa, a dona da casa hesitou:
- Isto não é para o ofender - disse ela-, mas na verdade precisava mais duma criada do que dum jardineiro.
- Porque não fica com a minha mãe? E assim vínhamos os dois. Não gastará muito connosco, e olhe que a minha mãe ainda está valente. Cozinha muito bem. E, pelo meu lado, serei capaz de cultivar tantos legumes e frutos que chegarão para uma casa de família. Terá para dar e vender. Tenha confiança em nós. Olhe que não se arrependerá.
Embora estivesse muito tentada, Jane ainda não queria responder.
Fayoux fez uma careta como se quisesse erguer uma pedra muito pesada. Nunca tendo, na sua vida, falado tanto como um patrão, pareceu-lhe extraordinário não haver ainda dito o bastante para convencer a senhora. Que dizer mais A verdade E porque não? Pondo de lado o seu orgulho, confessou:
- O meu pai morreu cheio de dívidas. Quando veio a guerra, minha mãe, sozinha, não pôde cultivar a terra. Agora estamos fora da nossa casa. Este aluguer e o que devemos e que eu prometi pagar, tudo isto quase que come o que ganho. E ainda por cima tenho de oferecer algumas bebidas aos camaradas, quando saio da fábrica, senão ficaria mal visto. Detesto beberricar e até me faz mal à saúde, mas tenho de fazer como os outros. Se a senhora tivesse, nem que fosse um celeiro, onde a gente pudesse ficar, não imagina quanto nos ajudaria! Tendo tecto para nos abrigar, o ordenado era o menos. A senhora parece ser muito boazinha e eu também não sou mau. Tenho a certeza de que nos havemos de entender. E quanto ao trabalho, não era só com as mãos, mas também com o coração. Ah! sim, minha senhora, pode ter a certeza de que era um cão fiel.
À falta de lenço, Fayoux limpou a testa com o forro do boné. Suara mais para dizer estas frases do que levando um dia inteiro a cavar.
Desta vez Jane comoveu-se. Sorrindo, fez apenas esta leve restrição:
- Por hoje, o que mais desejo é arranjar uma pessoa que me abra as caixas.
- Era a minha ocupação, quando estava de impedido. E ainda não esqueci o que aprendi.
- E também me falta um homem para me armar a mobília.
- Esteja descansada, que eu faço-lhe isso.
- A minha criada deixa-me hoje mesmo.
- Quando deixei de ser tropa, fui criado de quarto. Além disso, sou carpinteiro, pedreiro, pintor, em suma: sei um pouco de tudo... Se a senhora tem medo de eu não servir, posso vir só para experiência. Não sou gabarola, mas tenho a certeza de que há-de ficar satisteita comigo.
O suor escorria-lhe pela cara. Não se lembrava de, nunca na sua vida, ter talado tanto.
- Está-me a tentar... - disse Jane - e você é sozinho?
- Sou sim, minha senhora. E toda a gente sabe que tenho juízo como se tivesse mulher e seis filhos. Então que diz? Bem gostava de vir para cá com a minha mãe!
- Pois bem, está combinado. Podem vir hoje mesmo?
- É claro que podemos, e muito agradeço à senhora. Presta-nos um grande serviço.
E continuando a limpar a testa com o forro do boné, Fayoux retirou-se, saboreando o silêncio, mas continuando a pensar:
"-Apre! Quantas palavras foi preciso gastar antes de levar esta boa senhora a dizer que sim! Foi duro de roer, mas enfim consegui o que queria: tenho o jardim.» -
Jane, pelo contrário, depois de fechar a porta, censurava-se:
- Resolvi isto sem ter nenhumas informações. Afinal nada me disse dele nem da mãe. E sem conhecer esta gente, vou introduzi-la cá em casa Sou uma eterna estouvada.
Na verdade, Jane não era mais estouvada do que Jerónimo era falador. O humor prazenteiro da rapariga, compensado por muita prudência e bom senso, tinha-a quase sempre bem inspirado.
No íntimo, não desgostava da combinação que fizera com Fayoux. A dispendiosa! e mandriona Paulina parecia-lhe estar! substituída com vantagem. E, acima de! tudo, a criança loura, sorrindo-lhe sempre na memória, tornava-a optimista.
- Se realmente este rapaz não se esteve a gabar-consolava-se ela-, não me custará mais ter dois criados do que uma doida que não faz nada. E assim, o meu sobrinho será recebido num jardim cheio de flores, numa casa alegre e rejuvenescida... como a sua nepatite exigia uma èomída escolhida, Paulina preferiu, pela última vez, almoçar copiosamente, à custa da patroa, a gastar o seu rico dinheiro no restaurante da estação, comendo à pressa e mal. Tratou, portanto, de preparar a refeição, dizendo que só partia às três horas.
Jane tinha mandado fazer uma costeleta, um ovo e salada. Paulina serviu-lhe hors-dexuvre variados, trutas, um frango, espargos, sem esquecer uma sobremesa digna de um Porto de honra. Mas chegado o momento de fazer as contas, a maior surpresa, depois de todas as outras, foi ver quanto tinha gasto: por duas refeições em Sivry, pagara tanto como por oito dias em Paris.
M.me Louvier protestou, revoltada. A sopeira, sem se desconcertar, tomou um ar impassível e parvo, olhou fixamente para o tecto e repetiu várias vezes em tom queixoso:
- E que culpa tenho eu? Não encontrei nada do que a senhora me tinha dito para comprar. Tive de trazer aquilo que achei. E realmente, nesta horrível aldeola, não há nada e o que se encontra é tão caro!... É tudo pelo dobro do preço de Paris.,.
- O quê, trinta e seis francos por esta galinha!
-E sabe Deus! Estava outra pessoa a oferecer quarenta.
- E os espargos, doze francos
- Só havia estes, era largar ou pegar.
- Pois deixasse-os ficar. E este bolo, oito francos
- E que quer que lhe faça
Jane viu que não obteria outra explicação. Cansada, e para acabar com aquilo pagou tudo, pondo mais dinheiro, pois o que dera na véspera não chegara.
- Não me engana, Paulina, mas eu não estou para discutir. E, de resto, o melhor que tem a fazer é ir-se embora. E deixe estar que estas contas consolam-me amplamente da sua partida.
Cheia de raiva e rancorosa, antes de bater a porta, com toda a força, a criada exclamou:
- Previno a senhora de que tenho de acabar de fazer a mala. Por isso, nem posso levantar a mesa nem lavar a louça...
Cavalheiro de indústria
Por mais paciente que fosse, Jane teria chamado a cozinheira e tê-la-ia censurado asperamente se não batessem à porta com toda a força, Paulina, tendo subido uns quinze degraus, não esteve para descer outra vez.
- Ela que abra a porta, se quiser, já que acha que as criadas custam muito dinheiro. Agora é que vai saber... Pôr a mesa, lavar a louça, fazer o jantar, arrumar a casa... e tremer de medo toda a noite. Há-de ficar em bonito estado; e ainda pensa em arranjar um miúdo. Ele sempre há cada uma! Parece que não tem o juízo todo, o demónio da viúva!...
Quando bateram à porta, Jane só teve uma ideia:
- Quem me dera que fosse o Rufin! Assim já tinha informações precisas sobre o pequeno ou a pequena Lortain.
Esta alegre esperança fez-lhe esquecer a recente contrariedade. Apressou-se em abrir a porta.
Desta vez, sempre era o procurador.
Jane estendeu-lhe a mão e Ernesto fez o que nunca ousara, quando em visita de negócios a vira em Paris: uma grande mesura e o beija-mão.
Nestes gestos exagerados demonstrou uma galantaria afectada e tola.
A rapariga, por mais séria que estivesse, conteve-se para não desatar às gargalhadas.
- Faça favor de entrar, sr. Rufin-disse-lhe tirando rapidamente a mão para abrir a porta da sala. - Estou muito satisfeita por o ver. Tenho tanto que lhe dizer! Se não tivesse cá vindo, iria eu procurá-lo,..
com tão caloroso acolhimento, do qual não podia adivinhar o verdadeiro motivo, o presunçoso Ernesto ficou agradavelmente surpreendido e encantado. Respirou fundo e achou digno de si tomar um ar absolutamente importante e fátuo. Mal se sentou à beira do canapé, em atitude oficial, com o chapéu colocado entre os joelhos, logo Jane, impaciente, o assaltou com as perguntas que, desde a descoberta da véspera, lhe bailavam nos lábios.
- Sabe se o sr. Louvier tinha alguma sobrinha ou algum sobrinho? Conheceu a minha cunhada, M.me Lortain Estava viúva há muito tempo, quando ele morreu Onde estará a criança? Que idade terá?
Febrilmente, Jane fazia todas as perguntas ao mesmo tempo, Rufin deixava-a falar, muito preocupado com os seus pensamentos. Apesar de ter tido vários ofícios, e alguns casamentos desfeitos, sem nenhuma competência e não sabendo que mais empreender, o ex-belo Ernesto, com uma pose espantosa, improvisara-se, em Sivry, chefe do contencioso e notário, alugador de casas e gerente de propriedades.
Mas nestas múltiplas profissões não dava grande conta de si. Sem faro nem observação, destituído de escrúpulos, apesar do palanfrório e da esperteza velhaca, não conseguira ludibriar plenamente a boa gente da aldeia. Tanto os burgueses como os comerciantes e os camponeses, desconfiavam do falso advogado que nunca transpusera o limiar da Faculdade de Direito.
Instalado em Paris e enfermo, o sr. Louvier recorrera a ele, porque não tinha ninguém mais competente, Reservando-se o cuidado de o vigiar, confiara-lhe apenas a gerência das quintas.
Muito embrulhada, precária desde o começo, a situação de Ruíin encontrava-se agora deveras comprometida. Muitas pessoas, demasiado prudentes para provocarem o alarme, não deixavam, no entanto, de suspeitar a sua situação, resultante da desordem e da incompetência. Estava prestes a falir. O mínimo passo em falso que provocasse, qualquer queixa no tribunal, trar-lhe-iam a ruína.
E contudo, este falhado, que já não era belo nem novo e que por umas dez ou doze vezes escapara à bancarrota, esperava ainda a salvação num súbito golpe de fortuna.
Fora sempre acolhido friamente por Henrique Louvier e com Jane trocara poucas e banais palavras. Mas não deixara de examinar os objectos de arte, o luxuoso mobiliário do cliente parisiense.
Não seria a grande fortuna dum novo-rico, mas era decerto a bela abastança dum capitalista - sólida riqueza que ele sempre invejara. E então agora, se pudesse apanhar a linda viuvinha, encantadora e ingénua... Que mina!... com a morte do cliente, pusera-se a pensar seriamente no caso. Tendo passado dos quarenta, não era realmente fantástico, vir a casar com uma rapariga deliciosa e rica?! Que óptima existência poderia ainda organizar!
Seria uma forma radical de se furtar às contas da gerência e uma garantia óptima em face dos outros clientes.
O acolhimento tão amável de Jane acabava bruscamente de reavivar a vaga esperança do homenzito. E, em vez de ouvir o que ela dizia, só pensava no meio de fechar o negócio.
Mas M.me Louvier falava com tal impaciência que foi forçado a prestar-lhe atenção.
- Será uma rapariga ou um rapaz? Que idade terá
Rufin ignorava-o por completo, mas não o confessou, pois o impudente procurador tinha por princípio fingir saber tudo, Desejando conhecer primeiro o que ela queria, empregou um meio evasivo e disse, com todo o descaramento:
- Deixemos sossegada, por agora, a família Louvier. Preciso de lhe falar em coisas sérias. Correspondendo à confiança absoluta que seu marido tinha em mim, tratei dos seus negócios com todo o interesse. Infelizmente, os terrenos baixaram. Tive de vender por um tanto inferior os dois campos e o bosque situado junto da aldeia. Por outro lado, os seus caseiros pagam mal e a custo. Finalmente, o dinheiro que o sr. Louvier deixara aqui, foi absorvido pelas reparações feitas nesta casa.
- Os caseiros - respondeu Jane - escreveram a dizer que tinham pago tudo. Ninguém me informou de que os terrenos baixaram. Quanto à casa, está muito precisada de obras. Se o senhor mandou fazer algumas reparações, são invisíveis. Mas hoje, tudo isso que julga muito importante, é secundário para mim. Estudaremos o assunto, um dia destes. Hoje, o que me interessa mais...
- com licença, minha senhora-cortou Ernesto, em tom catedrático, mas desconcertado, no fundo, por a ver tão bem informada sobre os seus negócios, tanto mais que estivera silenciosa durante dezoito meses.
Esta desagradável verificação levou-o a crer que Jane se ocupava dos seus interesses e que seria talvez por avareza, por causa das partilhas, que ela desejava informar-se acerca da família do marido. Nesse caso, o seu papel consistiria em se tornar o defensor da viúva e, depois de ter obtido a gratidão e a confiança, deixar-se amar. com este fim, prosseguiu o discurso:
- Na situação complicada e embaraçosa em que a morte de seu marido a deixou, minha querida senhora, precisa urgentemente de encontrar um conselheiro que se dedique a melhorar-lhe a situação. Ouso mesmo dizer que precisa dum amigo seguro para a auxiliar, amparando-a. Se quiser, serei eu esse amigo, embora esteja sobrecarregado de trabalho, não tendo mãos a medir por causa das múltiplas questões que de todos os lados me surgem. Queira confiar em mim e dar-me aquela estima que me tributava o nosso querido Henrique. Nestas condições de amizade e com uma procuração sua, não só defenderei o que possui aqui, mas comprometo-me a restituir-lhe em breve prazo, tudo aquilo a que tem direito, quer seja cá ou em Paris. Jovem, inocente, sozinha na vida, não conhecendo nada de leis, seria indignamente enganada, roubada, despojada de tudo, se eu aqui não estivesse para a defender, - O sr. Louvier, que era uma pessoa muito previdente, encarregara o seu notário de Paris...
- Deixe-me terminar, minha senhora. A simpatia que me inspirou na primeira vez que a vi, transformou-se num sentimento melhor do que amizade, que... que... enfim, num afecto sério, e, no entanto, extraordinariamente vivo. Há muitos meses já que eu penso. .. eu sonho...
- Não vale a pena sonhar, sr. Rufin interrompeu Jane. -Não há nada mais perigoso para um homem de negócios.
Espantada ao ouvir as primeiras palavras, tinha reprimido, a custo, uma grande vontade de rir, quando ele proferira as últimas frases que denunciavam a intempestiva declaração. Ela achava-o horrível, com o crânio à mostra e o bigode a transbordar de tinta. Mas talvez ele pensasse em a deslumbrar com a gravata espampanante ou com o brilho espelhento dos sapatos, ou então com as nódoas que lhe esmaltavam o casaco, ou com a beira das calças terminada em franja... Tudo provava, no vestuário do procurador, um abandono, um desleixo, uma suja presunção que tornavam a sua fatuidade mais para lastimar do que para rir.
Jane"quis tirar-lhe a possibilidade de tornar a repetir a declaração absolutamente deslocada e chocante. Cortou-lhe a frase e pediu-lhe, com severidade, que se limitasse a responder ao que lhe perguntava; a tudo quanto desejava saber acerca da família de Louvier.
Mas o homem quase nada sabia. Apenas disse que, tendo morrido um a seguir ao outro, a irmã e o cunhado, tinham deixado um filho único.
Por estas vagas informações, embora expostas com volubilidade, via-se que Rufin nunca fora, como queria dar a entender, o confidente e amigo de Louvier. De resto, isto já ela sabia.
Mas querendo prolongar a conversa e conquistar as boas graças da linda viúva, o intriguista apressou-se a engrossar e a guarnecer a sintética informação, tecendo algumas frases ocas e arrebicadas.
Quase sem o ouvir, Jane só pensava:
- Um filho! Deixou um filho. Tenho, portanto, um sobrinho!
Ela preferiria talvez uma rapariga, mas consolou-se pensando que um rapaz daria mais animação, faria mais barulho, ressuscitaria, enfim, a velha casa.
Que alegria!
E insistindo, Jane perguntou a idade, o nome, a direcção do pequeno.
- Tomei nota, cuidadosamente, do nome e da direcção da criança - afirmou o mentiroso -, mas tenho tanta coisa na cabeça que não posso agora lembrar-me. Procurarei a minha ficha e cá lha trarei, assim que a encontrar.
- Mas como é possível não se lembrar, se era o homem de confiança de meu marido - censurou Jane, irritada com tanta palavra vã.
O incoerente Ernesto teve esta impressão:- "Se confesso ignorância ou indiferença acerca dum assunto que a apaixona, vou perder todo o meu prestígio junto desta linda mulher».
E, para ganhar terreno, não hesitou em mentir descaradamente. Mas precisava de saber os motivos que levavam M.me Louvier a tal curiosidade, pois não convinha remar contra a maré.
E como ela não talava, foi difícil sabê-lo. Julgando-a igual à sua própria e miserável pessoa, que só pelo dinheiro era movida, pensou que se inquietava por causa da herança.
E insinuou:
- Receia talvez qualquer processo em que seja atacado o testamento de seu marido? Verdade seja que se pode contestar uma causa, por mais bem exposta que esteja. Mas para isso cá estou alerta, minha querida senhora. Defendê-la-ei energicamente. Desde o momento em que me dê plenos poderes sobre a administração da sua fortuna, garanto-lhe que ninguém no mundo...
- Não é nada disso, senhor. Meu marido redigiu o testamento de tal forma que o notário de Paris lhe disse ser inatacável.
O procurador, num reviramento brusco de ideias, julgou então que a sua cliente, julgando o último Lortain muito rico, procurava aproximar-se dele, na esperança de alguma vantagem pecuniária, quer fosse para tratar da criança, ou para mais tarde lhe vender a velha casa familiar.
Ora o Rufin persistia no intento de conquistar a viúva e comparticipar à larga na herança. Para o conseguir, achava que seria melhor ela ficar isolada, sem conselhos nem amizades, principalmente sem relações com os parentes de Henrique Louvier
Criando o vácuo em seu redor, assustando-a com perigos imaginários, o homem dos negócios escuros esperava vir a tornar-se imprescindível, primeiro como salvador, depois como marido.
Parecendo-lhe genial esta pueril e grosseira ideia, Ernesto inventou logo - defendendo o seu plano-muitos pormenores comprovativos da ruína dos Lortain. E concluiu:
- Aquela gente era pobre. Caída na maior miséria, passava a vida a perseguir o nosso querido Henrique, pedindo-lhe auxílio. Por essa razão, o nosso pobre amigo não queria vê-los nem escrever-lhes., Tenha cuidado - não vá renovar uns laços tão prudentemente cortados. Nunca o pequeno Lortain será capaz de lhe comprar esta velha casa, nem mesmo poderá ajudá-la a fazer as reparações de que precisa. E a sua fortuna, à mínima tentativa que fizer para se aproximar da criança, será absorvida, engolida por grandes e escandalosas dívidas que os pais deixaram.
Jane era ingénua, mas nada tinha de tola.
Notou o que havia de ilógico e desconexo nos argumentos de Ernesto. Sem saber com que fim, teve a intuição de que ele estava e exagerar descaradamente. A sua insistência em se gabar duma amizade e duma confiança que Louvier nunca lhe dera, pô-la de sobreaviso. O nosso querido amigo soava-lhe mal e aquela familiaridade póstuma feria-a horrivelmente.
Por isso, os argumentos pérfidos da criatura tiveram sobre o bom coração de Jane um efeito absolutamente oposto ao desejado. Ouvindo a fantástica narrativa do procurador, M.me Louvier, comovida e cheia de compaixão, só fixou que o pequenito estava abandonado e em situação precária.
- Coitado do òrfãozinho! - gemeu. - Que foi feito dele depois da morte dos seus? Em que mãos terá caído? Quem sabe se está doente e tudo lhe falta! E moralmente... Que horror! Nem quero pensar... Uma criança tão graciosa, a rir, cheia de confiança, esperando tudo do futuro! Mais uma vez lhe peço, sr. Rufin: arranje-me, sem demora, todas as informações de que preciso! Sendo altiva, e julgando o meu sobrinho rico, decerto hesitaria antes de querer entrar em relações Mas sabendo-o pobre, muito pobre mesmo, estou decidida a dar o primeiro passo. vou ocupar-me dele, trazê-lo para aqui, adoptá-lo... Quero ser a sua verdadeira mamã. E este dever, bem cumprido, será a grande felicidade da minha vida!
Ouvindo estas palavras, tão diferentes do que esperava, Ernesto, desconcertado, mal escondendo a surpresa aliada ao espanto, balbuciou:
- O quê Então não tem medo de se dedicar assim a uma criança desconhecida, talvez doente e, quem sabe se cheia de taras?! E que grande responsabilidade, desgostos constantes...
-Tratá-la-ei como tratei o tio. Ao menos, servirei para alguma coisa. E a minha dedicação não ficará perdida, pois nela encontrarei a razão de ser, o fim, a alegria, a ternura da minha vida!
- Desengane-se - retorquiu o falso homem, em voz ácida. - Só lhe servirá para ter desilusões, ansiedades, lágrimas. Assim que tiver conhecimento, se é que o não sabe já... de que herdou bens que podiam ser dele, o seu sobrinho, em vez de a amar, detestá-la-á...
- Mas porquê, se ele há-de ser o meu herdeiro - exclamou Jane.- Mais tarde, encontrará intacto, ou talvez aumentado, tudo quanto o tio me deixou. E gostarei tanto dele, do encantador rapazinho, que o obrigarei a também gostar de mim.
- Estou a lidar com uma doida! pensou o Ernesto, consternado.
E desorientou-se.
Certa de não obter, no momento, nenhuma indicação útil, do procurador, M.me Louvier aproveitou a sua perturbação visível para o mandar embora sem mais cerimónias.
- Bem; então adeus, sr. Rufin. Desculpe-me por ter feito perder este tempo todo. E eu que tenho tanto que fazer... A casa está numa desordem!...
- Peco-lhe que se não incomode, minha senhora. Deixe-me ajudá-la, Em vez de me ser penoso, só prazer será para mim.
- Não pense nisso! E, ainda para mais, sobrecarregado de trabalho como está! Ficaria cheia de remorsos se lhe roubasse o seu precioso tempo.
- Permita-me, ao menos, que venha, de vez em quando; falar-lhe de negócios... Olhe que é para seu bem.
- Pois sim, volte quando quiser. Mas não sem a ficha que diz respeito ao que me interessa: ao meu sobrinho.
Mandandò-o embora com esta rapidez, o enfatuado, Rufin ficou primeiro desiludido e depois, furioso, cheio de rancor. Reconhecia que a sua afectada superioridade e as suas mentiras não tinham servido senão para despertar a desconfiança de Jane, em vez de lhe conquistar o coração. Ao despedir-se, notou que ela nem o via, toda entregue às suas ilusões de ternura maternal, às suas utopias referentes à adopção da criança desconhecida.
Algumas luzes no mistério.
Assim que o procurador saiu, M.me Louvier voltou à sua faina de pôr a casa em ordem. Não queria dirigir-se a Paulina, para lhe não suportar o mau humor, e estava dando cabo das mãozitas fazendo trabalhos a que não andavam habituadas.
E pensava:
- Para que hei-de provocar mais uma discussão com uma pessoa tão estúpida, agora que ela se vai embora - E ia pondo em rimas, no armário da roupa, as toalhas e os guardanapos, previamente contados. Recusar-se-ia a ajudar-me ou fá-lo-ia de tão má vontade que ainda me daria mais trabalho. Que se vá embora depressa! De preguiçosas, não preciso cá em casa.
A ideia de ficar privada de criada, pensamento que, havia algumas horas, a inquietara grandemente, não a preocupava já, desde que vira o honrado rosto de Fayoux.
--Nunca mais ficarei só nesta casa pensou ela. - Este Jerónimo, que parece um bom rapaz, trar-me-á a mãe. Ambos morarão aqui. Embora a mãe seja muito idosa, sempre me há-de ajudar a fazer a comida. Se a minha casa não estiver tão bem arranjada como desejo, irei consolar-me para o jardim. Jerónimo é jovem e robusto. Tenho a certeza de que porá todo o seu coração e todo o seu orgulho no cultivo de certas flores, com as quais ornamentarei o quarto do meu petizinho. E dar-nos-á também alguns legumes e frutas com que nos regalaremos.
Depois de três pancadas batidas à porta com uma discrição desacostumada, Paulina apareceu na rouparia. A cozinheira vestira-se com toda a elegância para a viagem meias de seda, sapatos de salto alto e a saia dos domingos muito curta, deixando ver as pernas redondas e em arco.
Notando que a criada ainda não tinha posto o chapéu e não trazia a saca, Jane viu, além disso, que ela já não tinha cabelos brancos. Aqueles terríveis fios de prata haviam desaparecido sob uma camada ainda gordurosa e luzidia de tinta preta com reflexos ruivos. Pretendia assim, a presunçosa mulher, rejuvenescer-se e ficar tentadora para qualquer possível aventura de caminho de ferro. Embora isto não fosse natural, tinha uma certa explicação. Agora, o que não se compreendia é que ela tivesse ainda o avental posto.
- Mas então ainda está assim?-disse M.me Louvier.-Vá já buscar a saca, ponha o chapéu e arranje uma pessoa que lhe leve a mala. Olhe que perde o comboio!
- Ah! Não faz mal - suspirou a criada, muito corada e com os olhos no chão.- Eu pensei melhor. .. a senhora foi sempre tão boa para mim, que realmente não posso... oh, não, eu não posso deixar a senhora nesta barafunda...
- Sim, senhor, temos mudança de cenário. Mas estava tão apressada...
-'Pois já não estou, minha senhora. Vi que não tinha razão e peço-lhe desculpa... muita desculpa. Se a senhora concordar, eu fico.
- Até amanhã?
- Até amanhã, até depois de amanhã, até sempre.
Paulina juntou as mãos como para fazer uma súplica. Esforçava-se por mostrar um sorriso agradável. Depois, vendo que a patroa permanecia gelada, tentou choramingar para a enternecer:
- Nunca julguei que tivesse tanto desgosto por deixar a senhora: não imagina como lhe sou dedicada!... Já estava vestida para me ir embora, mas no derradeiro momento, não pude resolver-me. O coração dava-me uma volta e os soluços não me dei xavam falar.
E a Paulina limpava ou fingia limpar duas grandes lágrimas, com a ponta do avental.
É claro que Jane se mostrava bastante afável com os criados. E.o lugar era bom. Por isso não admira que a cozinheira se tivesse arrependido, mas M.me Louvier, lembrando-se da maneira insolente como a criada se portara até então, não podia acreditar neste arrependimento. Como a criatura continuava a choramingar, teve pena e pensou:
- Afinal esta rapariga parece ser mais parva do que má e, apesar de se não saber exprimir, o seu arrependimento pode ser sincero.
Aliando-se à compaixão a ideia de que a criatura, velhaca mas também ingénua, chegaria a Paris sem casa para onde ir, procurando em vão e comendo as economias Jane deu outra explicação ao seu feitio estúpido:
- Vaidosa e desejando ardentemente casar-se, o seu génio azedou-se desta maneira. Não é por isso inteiramente responsável pelas asneiras que comete. E quem sabe se outra que venha não será pior do que esta... Já que mo pede, vou dar-lhe tempo para procurar outro lugar. Aqui há muito trabalho e ela decerto se aborrecerá de cá estar.
Mas antes de ceder, M.me Louvier pôs as suas condições:
- Está bem, mas isso é provisório. E fica sabendo que durante bastante tempo não terei nem gás nem electricidade.
- O fogão agora trabalha muito bem disse a cozinheira, largando o avental que nenhuma lágrima tinha molhado. – Quanto à luz, lá na cozinha já tenho três candeeiros cheios de petróleo. É mais do que o preciso.
- Os defeitos são os mesmos de ontem, e nem por isso ganhará mais.
- Eu sei, eu sei... mas há outras vantagens em casa da senhora.
- E ainda não falamos na sua hepatite. Como é que se dará ela cá no campo? E para mais à beira dum rio...
- Este bom ar compensa tudo, minha senhora... o bom ar cura tudo.
- Além disso, com certeza vai dormir mal, aqui.
- vou dar cabo dos ratos, porque já encontrei umas ratoeiras. E, quanto às corujas, como a casa está habitada, com certeza que se vão embora.
- Previno-a de que não renunciei ao projecto de mandar vir o meu sobrinho,.. Uma criança, pense bem... uma criança!
- Ah! Isso não me incomodará muito... Deixarei à senhora a felicidade de se ocupar dela.
- bom, então está bem! Até arranjar casa pode ficar cá.
- Muito obrigada, minha senhora. vou já preparar o jantar.
Rápida, encantada, cheia de vivacidade, a Paulina desapareceu. Jane ficou pensativa. Depois, renunciando a explicar um reviramento tão súbito, sem lhe ligar mais importância, acabou de encher os seus armários. Quando o crepúsculo chegou, a jovem dama da casa velha, sentindo-se fatigada, pensou que um passeio até ao jardim a distrairia. Apenas deu alguns passos fora, viu o jardineiro acabando de cavar um canteiro. Jane aproximou se de Jerónimo, que tinha o boné na mão.
- Não sabia que já cá estava. Boa tarde.
- Boa tarde, minha senhora.
A um sinal da patroa, tornou a pôr o boné. O seu desejo seria continuar a trabalhar, em silêncio. Mas, pensando que mostrar-se falador no primeiro dia, era uma forma de pagar a gentileza recebida, disse com o seu riso franco e calmo:
- Vim ao meio-dia, como estava combinado, A mãe vem logo à noite. Está tão contente por voltar para cá que parece ter menos vinte anos. E vai ver o que ela trabalha! Mas o mais feliz dos dois está aqui na sua frente sou outra vez jardineiro - o meu sonho doirado! Parece-me até que passei de soldado para coronel. Jane sorriu. E disse
- Para vocês, escolhi, mesmo por cima dos meus aposentos, dois bons quartos cheios de sol.
- Agradeço-lhe por causa da velhota.
Quanto a mim, dormia mesmo num sótão; qualquer coisa me contenta.
Jane, pensando em restringir as suas despesas pessoais, talou então em organizar capoeira, pôr areia nos arruamentos, plantar roseiras, comprar sementes e mandar vir palha para cobrir algumas plantas.
Na sua embriaguez de parisiense, tornada do súbito agricultora e castelã, ela queria, sem nada mudar na velha mas linda casa, embelezar, restaurar, restituir-lhe o aspecto de outrora.
Mentalmente, o jardineiro separava as compras inúteis das aquisições necessárias e, sabendo em que época devia cada coisa ser feita, acalmava o entusiasmo da ama.
O sereno rapaz, tão são de espírito como o era de corpo, moderava a febre, a agitação da nova proprietária. Cheia de confiança, ela pedia-lhe conselhos não só acerca do jardim, mas também da moradia.
- Espero que o meu sobrinho não se demore a vir para junto de mim. Deve ter quatro ou cinco anos, não mais. Encontrarei, cá em Sivry, uma cama pequena, uma mesinha e duas cadeiras baixas?
- Talvez... - replicou Fayoux, que, não querendo passar por gabarola, dizia sempre menos do que sabia. - Ainda no mês passado eu trouxe da estação para a loja de Monchut, o comerciante de móveis, algumas coisas como deseja. E era tudo bem engraçadinho. .. E Monchut ainda as tem, o que o contraria, pois a casa dele é muito pequena e não se pode mexer lá dentro... É capaz de vender a mobília por metade do preço... Foram uns clientes que a mandaram vir, e afinal deixaram-lha lá ficar. A senhora podia ir ver.
- E é que vou. Não apanho outra ocasião como esta, tenho a certeza. Agradeço-lhe a sua informação. Há outra coisa que me preocupa... Encontrarei aqui alguma professora para o pequeno
- Se tem só quatro anos, o professor da escola chega muito bem.
- Não sei se será mais velho...
- Então, tem o sr. abade. Ainda será melhor.
- Você tem resposta para tudo, Jerónimo. E não acha estranho que eu ignore a idade exacta do meu sobrinho? Mas não admira, visto que ele é da família do meu marido e não da minha. Sem o conhecer, gosto imenso dele... e é só pelo retrato, Sei o seu apelido, mas não sei o nome.
- Maurício.
- Tem a certeza?
- A minha mãe teve a felicidade de encontrar o sr. Louvier na última vez que veio a Sivry. Ele talou-lhe da falecida irmã e disse-lhe o nome do filho. A minha mãe desejaria saber outros pormenores, mas o sr. Ruíin acompanhava o seu marido e a minha mãe não ousou perguntar-lhe mais nada. Por isso só sei que se chama Maurício.
- Ora ainda bem que lhe falei nisto. Agora só me falta a direcção.
- Rua de lena, 22.
Jane olhou para ele, maravilhada.
Fayoux acabava de lhe dar em três minutos, sem grandes frases, a informação que mais a interessava na vida, e que o procurador, numa hora de conversa vã, não lhe havia fornecido.
- É espantoso! Você sabe tudo, Jerónimo!
- Tudo, não; só falo quando sei. Mas sei pouco. O que me vale é que esse pouco, não o esqueço facilmente. Tenho a cabeça pequena. Custa a entrar, mas depois fica para sempre.
- E onde soube esta morada?
- Foi por acaso. O carteiro estava doente, há dois anos, e eu substituí-o. Nas cartas idas de Sivry e que eu tirei da caixa, vi uma dirigida a um sr. Lortain. Conhecia o nome, por isso fixei a rua e o número da porta.
- Mas há três mil habitantes em Sivry!
Como é que se vai saber quem escreveu a carta? E quem sabe se não se trata do meu sobrinhito, mas dum primo ou tio, qualquer parente, enfim?!
- Eu, se fosse à senhora, não procurava aquele que escreveu a carta e que a gente não sabe quem é, mas ia pelo caminho mais directo: escrevia ao sr. Lortain, para a morada que lhe dei. Se for tio ou primo ou sobrinho, é uma coisa que logo se vê pela resposta. E a senhora, assim, já ficará a saber alguma coisa.
Fayoux desenvolvera o seu raciocínio
com toda a lentidão, entre duas pàzadas de
terra mexida e remexida.
- Realmente, é o que tenho a fazer,
e quanto mais depressa, melhor. Assim que
tornar a ver o Rutin, digo-lhe que escreva.
E assim virei a saber onde está o pequeno
Maurício.
O jardineiro ficou com a enxada em suspenso. Depois aconselhou:
- Se a senhora quer que o seu sobrinho venha depressa, o melhor que tem a fazer é escrever directamente, sem consultar o Rufin. Não gosto nada desse cavalheiro. Acho que só serve para embrulhar os negócios, em vez de os esclarecer. Tudo o que anda à roda dele, cheira mal. Se eu tivesse meia dúzia de patacos, em vez de lhos meter na algibeira, preferia deitá-los ao rio. Mas pus-me a falar, a falar, e daqui a pouco é noite e não tenho nada feito...
Jane ficou apreensiva. As palavras do jardineiro davam-lhe que pensar, não só por causa do sobrinho, mas também por causa da sua herança. Arrependeu-se de não ter pedido contas a Rufin e ptometeu a si própria fazer as investigações respeitantes a Maurício, directamente, sem ser preciso meter no assunto a duvidosa personagem. Ia afastar-se, quando uma última preocupação lhe fez formular mais algumas interrogações:
-Ainda uma pergunta, Jerónimo. Se não tem chave, como é que entrou aqui? Não ouvi a campainha. Quem lhe abriu aporta?
- Foi a criada. Estava à janela, viu-me chegar e desceu a abrir, antes mesmo de eu bater. Tem boa vista. E a respeito de língua!... Um interrogatório em forma. Foi preciso dizer-lhe o que vinha cá fazer, para quê e como. Quando soube que a minha mãe vinha para aqui trabalhar e eu trataria do jardim, sobretudo quando lhe disse que era solteiro, ai, pai da vida! Abriu um sorriso que quase lhe chegou às orelhas! Aquilo é que foi!...
- Sim, sim... agora é que eu percebo tudo! - respondeu Jane, divertida. - Agora compreendo por que motivo já não se quer ir embora. Você agradou-lhe,
- Se assim é, o mesmo não se dá comigo. O pior é que a senhora, assim, tem uma data de ordenados a pagar. Eu não teria insistido em virmos para cá, se soubesse que a cozinheira ficava.
- A culpa é sua. Fica por sua causa. Vai tentar seduzí-lo.
- Pior ainda, porque, se é por isso que ela fica, então nunca mais se vai embora, sempre à espera de conseguir o que deseja. Precisa duma escada, o demo da anã, para me vir atar a corda ao pescoço. Mas fiquei para aqui a falar e o tempo vai passando...
Em silêncio, Jerónimo continuou a cavar a terra.
Visita importuna
Henrique Louvier vira logo que, não possuindo nem intuição, nem ordem nos negócios, Rufin era uma pessoa absolutamente nula.
Nunca o tomara por confidente devido a desconfiar da sua seriedade e lamentava mesmo tê-lo encarregado, embora provisóríamente, 67 da gerência das propriedades de Sivry. Esperava apenas que a saúde lhe voltasse, a fim de lhe retirar os poderes que lhe tinha dado. Mas a morte não esperara!...
Ernesto não recebera, pois, de Louvier nenhuma informação íntima acerca de M.me Lortain ou referente a seu filho. Negligente, o procurador não se dava ao trabalho de querer saber o que a viúva desejava.
Por esta e outras razões, Rufin esteve mais de oito dias sem aparecer na velha casa.
Estava ofendido. Depois de um acolhimento caloroso, M.me Louvier mostrara-se fria e reservada e acabara por o mandar embora com toda a sem-cerimónia. Além disso, o homem de negócios não tinha pressa alguma em dar contas da sua deplorável e embrulhada gerência. Finalmente, não procurando saber o nome e a direcção do sobrinho, impedi-la-ia de escrever. Esperava que Jane, desconsolada, desanimada com a dificuldade de saber o paradeiro da criança, acabaria por desistir, esquecendo, a pouco e pouco, o seu projecto. A sua ausência parecia-lhe, pois, muito hábil, visto que, assim, não se daria tão cedo a aproximação entre tia e sobrinho. Mas, por outro lado, o cavalheiro sofria com esta maquiavélica táctica, pois reconhecia que, desta forma, não poderia conquistar o coração da linda viúva... Na verdade, como havia de o conseguir se não ia fazer-lhe a corte
Cansado de ruminar neste dilema, Ernesto achou que era mais cómodo e agradável convencer-se de que M.me Louvier desistiria de adoptar a criança. Persuadido disto, voltou a visitá-la.
Desta vez, embora fosse muito optimista e pouco susceptível, achou que o acolhimento era tão seco como fora a despedida anterior. Aos primeiros cumprimentos que o conquistador lhe disparou, embora um tanto desconcertado pela janela que estava aberta para o jardim, M.me Louvier interrompeu-o, impaciente, falando-lhe dos campos, da madeira vendida e das rendas pagas pelos caseiros.
- Impressionada ainda por me encontrar sozinha nesta grande casa, emocionada pela recordação de meu marido, quando o senhor cá veio pela primeira vez, disse-lhe que deixássemos as nossas contas para mais tarde. Hoje, censuro-me de tal negligência e desejo pôr tudo em dia. Tem aí o dossier E trouxe-me o dinheiro?
Estas perguntas práticas cortaram a terna inspiração do homenzinho. O medo pelos números tirou-lhe qualquer desejo de flirt. Abandonando o tom fátuo de conquistador,
começou com queixumes e recriminações, alegando as constantes obras que fora forçado a fazer na velha casa, o custo exorbitante da mão de obra, os salários exagerados dos operários.
- E pagou tudo, sr. Rufin
- Evidentemente, minha senhora. Tenho, por princípio, pagar tudo a dinheiro.
- Bem; então visto que tudo isso está liquidado, com quanto fico eu
À pergunta directa que o colocava em difícil posição, fez uma careta e não ousou responder:- Nada!
Gaguejou evasivamente:
- Pouco fica... Muito pouco mesmo! Tenho a cabeça tão cheia de operações financeiras, transacções e especulações que não posso dizer-lho assim, de cor... Mas vou consultar os meus livros e depois lho direi.
- Sim, e quanto mais depressa, melhor, sr. Rufin. Peço-lhe grande urgência, pois quero pôr a minha vida em dia. Queira mandar-me também as contas dos mestres de obras, as facturas pagas, enfim, tudo quanto diz respeito à sua gerência. Eu pouco percebo de algarismos, mas enviarei o dossier ao meu notário, para ele verificar. Tenho pressa de acabar com isto...
Rufin não julgara nunca que a sentimental e meiga viúva fosse tão prudente e sabedora. Snpusera-a sempre ingénua, distraída, ignorante das coisas práticas, não pensando jamais que lhe viria um dia pedir contas. Estremeceu com o pavor de ver um homem de leis a meter o nariz na sua vida suja e ficou lívido.
Ladrão sem altos voos, cobarde, o procurador mostrava-se tão pusilânime sob a ameaça como era audaz no momento de enganar.
Às palavras da cliente seguiu-se um silêncio glacial, em que, passando, sem transição, da arrogância à máxima cobardia, o impudente se sentiu envolto já no turbilhão do pânico e da falência.
Desastrado, absolutamente desmoralizado, perdeu a cabeça, não se lembrando de que a sua atitude podia reforçar as suspeitas e ser mesmo uma confissão de culpabilidade. A fim de sair daquela situação que uma sindicância podia totalmente deitar abaixo, que havia de fazer?
Procurou uma diversão. Mas qual? Como havia de dirigir galanteios a uma mulher que decerto estava pronta a denunciá-lo Esta ideia envenenava-o, cortando-lhe toda a prosa galante que pudesse espremer do cérebro. E estava mais perto de odiar a viúva do que de a amar.
Nesta angustiosa perplexidade, querendo, a todo o custo, sair duma situação quase desesperada, Rufin teve de recorrer ao único meio de que não devia servir-se: abordou o assunto em que, de modo nenhum, teria querido falar. Fez perguntas acerca do sobrinhito. Isto representava avivar as tendências maternais de Jane e pô-la no caminho de que desejaria tirá-la - mas estava tão aflito que nenhum outro assunto lhe ocorreu para quebrar o silêncio. Antes afrontar este perigo do que vir a ouvir-se chamar ladrão.
Embora o álibi fosse grosseiro, teve pleno sucesso.
Jane perdeu o ar zangado, a testa desanuviou-se e um sorriso desenhou-se-lhe nos lábios. Uma nuvem de meiguice perpassou-lhe pelos lindos olhos, quando respondeu:
- Como o sr. Rufin não me disse mais nada acerca disto, perdi a esperança pelo seu lado. Mas consegui saber a direcção e há uma semana que escrevi ao meu sobrinho. Mas ainda não tive resposta!
Estava emocionada, encantadora, a graciosa viúva, nesta efusão de franqueza que lhe coloria o rosto e fazia bater mais apressado o coração. Esta sensibilidade era um dos seus encantos - mas, infelizmente, ninguém a gozava e a ela, só lhe fazia mal.
- Mas então escreveu sem mesmo saber o primeiro nome
- Já o sei.
- E a direcção?
- Já a tenho.
E como Rufin estivesse espantado, ela bateu as palmas, como uma criança, e disse, triunfante:
- Maurício Lortain, rua de lena, 22!
- Ah! E eu que lhe vinha dizer isso mesmo!- exclamou o procurador, que vendo o perigo menos iminente, já estava mais senhor de si, não hesitando em mentir descaradamente.- Procurei na correspondência tão afectuosa que o nosso querido Henrique me escreveu até à hora da morte. Lá encontrei tudo. Mas V. Ex.a, como soube?
- Foi pelo Jerónimo, o meu jardineiro. A mãe, Sidónia Fayoux, entrou ao meu serviço ao mesmo tempo que o filho. Como sabe, antigamente, ela vinha aqui, aos dias.
- Ah! Tem então jardineiro e a mais uma criada Que luxo! E a cozinheira, foi-se embora
- Não. Enquanto andar de bom humor, como agora, ou enquanto não arranjar casa, fica comigo.
- Faz bem. Tem bom ar, a sua criada, embora seja muito baixa e não esteja na primeira mocidade. Mas possui um certo chique. Andando a servir há uma data de anos, já deve ter um certo pé de meia..
-É possível. Se lhe agrada, posso ceder-lha. Mas voltemos ao nosso assunto: encontrou mais alguma informação acerca do meu sobrinho
- Mais nada. .. Sabe lá a minha vida! Tenho tanto que fazer!
- Sim, bem sei. .. Pois eu não tenho descurado o assunto. O quarto dele, comunicando com o meu, já está pronto. É um amor: todo branco, claro, garrido - um mimo! Foi o Jerónimo que me disse... comprei-o na loja do Monchut - por um preço excepcional! É um mobiliário de criança, que parece de boneca, completamente novo; e então dumas linhas!... Já lhe fiz o enxoval, que lá está arrumado numa das cómodas em miniatura. O armário está cheio de brinquedos e nem faltam os livros de histórias: As Desgraças de Sofia e outros. Terá para o instruir o professor de Silvry e o senhor abade ensinar-lhe-á latim. Para o piano, cá estou eu. Tenho tudo pronto, não falta nada! com o coração cheio de ternura, passo as horas à espera de que ele venha.
- E o pimpolho nunca mais chega! zombeteou Rufim, irritado com os preparativos duma festa para a qual não seria convidado nem comparsa, ele que desejaria representar o papel principal!
Jane estava muito feliz, muito absorvida pelo seu projecto, muito vibrante de esperança e ilusão, para atentar na expressão invejosa, nas insinuações sarcásticas do interlocutor.
- Sem o Jerónimo, nunca eu teria arranjado aquela instalação. É diligente e prestável. Ele mesmo colou, nas paredes da minha nursery, um papel muito lindo, com frisos, onde estão desenhados vários jogos infantis. Encerou o chão, pintou as janelas e colocou os cortinados. Trabalhador, modesto e calado, aquele rapaz é tudo quanto há: carpinteiro, pintor, pedreiro, serralheiro, decorador, marceneiro, bombeiro... enfim, um auxiliar poderoso. A mãe, embora tenha bastante idade, trata da casa na perfeição, muito melhor do que a Paulina.
Apesar do tom confidencial, Jane, num novo acesso de expansão, não parecia estar a contar estas coisas a Rufin, dir-se-ia que as repetia a si própria, a fim de renovar a sua alegria e confirmar a sua esperança.
O homem de negócios, apesar de pouco perspicaz, percebeu bem isto. Nunca sentira tanto como era indiferente, cada vez mais estranho, mais ausente na nova existência que se formava na velha casa. Tudo fora decidido e executado sem o seu conselho! Embora estivesse ainda sentado na sala, tinha a impressão de ter sido posto fora e mantido a distância. Julgara conquistar facilmente a rapariga, supondo-a tão crédula como bonita, e afinal encontrava-a agora clarividente e fugidia. Lá se lhe ia a esperança do consórcio por água abaixo!'
Estando ele perto da ruína, a viúva retirava-lhe a única tábua de salvação no naufrágio que se aproximava!
Pondo de parte a sua habitual e cautelosa prudência, vendo que a vítima lhe ia escapar, o ridículo conquistador, num impulso de rancor, numa onda de amargura e ódio, não resistiu ao malvado desejo de reavivar a inquietação e o desgosto no coração da pobre viúva-cuja consolação era bem precária e vaga.
- Não conheço esse Fayoux nem o seu sobrinho, minha senhora. Mas o meu dever de conselheiro e de amigo leva-me a lembrar-lhe que não é milionária. O que sei acerca dos seus negócios de Sivry, faz-me pensar na sua situação total e, francamente, não a vejo lá muito brilhante. Assumindo, além da manutenção desta casa, o encargo duma criança e de dois novos criados, tenho a certeza de que os seus rendimentos não chegarão para as despesas. Desta vez, não é apenas criancice, chega a ser loucura. Muito nova, sem experiência, ignorando a vida, não dando ao dinheiro o seu justo valor, vai-se deixar estupidamente sugar por toda essa gentalha que aqui introduziu!
-...Talvez menos do que por um procurador!
Em face do tom malcriado e da impertinência de Ernesto, a viúva, ofendida, espantada, teve um gesto de cólera e respondeu-lhe desta forma, como quem dá uma chicotada.
Doido de raiva e decepção, Rufin levantou-se bruscamente. com as feições convulsas e os dedos crispados, dirigiu-se para Jane e ia, talvez, apertar-lhe os pulsos, sacudi-la, maltratá-la, quando, em frente da janela aberta, apareceu o jardineiro. Tinha na mão uma forquilha, de três pontas aguçadas. Cumprimentou e perguntou na sua voz forte e calma:
- A senhora há-de fazer o favor de me dizer e'm que celeiro hei-de pôr a luzerna cortada.
- Espere, Jerónimo, eu já lá vou. Saindo da sala sem se voltar para trás,
a viúva não fez mais caso de Rufin, pesaroso, assarapantado, não ousando avançar nem recuar. Parecia que o feroz olhar do ex-soldado o acabava de pregar ao chão, petrificado como se tivesse visto a Medusa.
Só pôde retomar o domínio dos seus gestos, sair do passageiro estado cataléptico, quando M.me Louvier se afastou com o jardineiro.
Assim que recuperou o uso das pernas, Rufin aproveitou para, de dorso curvado, vacilante e tropeçando nos móveis, se dirigir para o vestíbulo.
Sorridente, com o cabelo ainda brilhante da tinta, a Paulina encontrou-se ali pronta para reconfortar o sedutor desasado. E quando a porta se fechou, foi depois dum namoro rapidamente esboçado.
Em frente da patroa, o Jerónimo ia com todo o método deitando os molhos de luzerna pela porta do celeiro.
- Sabe que chegou em óptima altura, Jerónimo - disse Jane. - O procurador falou-me num tom desagradável e eu estava a pô-lo no seu lugar. Irritado, tornou-se insolente e brutal. Mas a sua aparição acalmou-o instantaneamente.
- Não tenho o costume de escutar às portas, quer estejam fechadas quer abertas. Mas, quando passei pelo salão, espantou-me ouvir aquele malcriadão exprimir-se assim em voz alta. Foi por isso que me atrevi a falar à senhora.
- E fez muito bem. Foi a única maneira de me ver livre de tão ascorosa personagem.
- Ah, lá isso, não fui eu, minha senhora: foi a forquilha.
Alguém que surge
Nem no dia seguinte, nem durante a semana chegou a casa de Jane o dossier da agência Rufin.
Era uma coisa que a preocupava... mas ainda mais a entristecia, não receber resposta nenhuma à carta dirigida a Maurício Lortain!
Por outro lado, a visita de Ernesto deixara-lhe uma desagradável impressão, embora se esforçasse por esquecer as velhacas insinuações do traficante. Assim como uma data de pedras que se arremessa na água cristalina dam lago dormente, a perturba, assim também as palavras de Ernesto agitaram a alma da pobre tia que só para uma esperança vivia.
Depois de ter imaginado que a próxima chegada da criança traria a felicidade à velha casa, M.me Louvier, angustiada pelo inexplicável silêncio, tornava a mergulhar na descrença e na desolação.
Ter-se-ia perdido a carta Ou não quereriam responder-lhe?
No entanto, que cenário encantador apresentava agora a espaçosa habitação, finalmente desperta do longo sono, vibrante de movimento, inundada do sol que passava, em ressurreição, através de todas as janelas amplamente abertas! E como estava lindo o jardim com as ruas limpas pelo ancinho, os canteiros a florir, a relva muito verde e as árvores podadas, deixando ver, ao longe, as colinas arborizadas, e sob as tílias do terraço, o rio listrado de prata à noite " com salpicos doirados, logo de manhã!
Mas na prematura festa deste castelo da Bela Adormecida, faltava alegria, visto que tanto as coisas como as pessoas iam acordando antes da chegada do Príncipe Encantado ...
, Só junto dos Fayoux, tanto da mãe como do filho, Jane se tornava mais animosa, pois ambos sabiam reconfortá-la. »
- Não se aflija, minha senhora - dizia o Jerónimo.- Se a morada não fosse aquela, a carta já teria voltado para o remetente. Ela que não vem é porque, ou lhe vão responder, ou o menino aparece por aí um dia destes.
E a velhota, a Dónia, com as mãos cruzadas no regaço, exclamava em voz comovida:
- Um lindo ganapo cá na casa vai encher tudo de risos e barulho. Eu, que tanto desejaria ser avó, como vou amimá-lo, ao meu rico menino, àquela pobre avezinha que já não tem ninho! Não poderei lembrar-lhe nem pai nem mãe, porque infelizmente não os conheci. Mas falar-lhe-ei no tio.
Quanto a Paulina, não era pessoa para animar ninguém. Nunca fazia a mínima alusão, nem se interessava, de forma alguma, pelo "catraio da patroa».
Uma vez, foi mesmo censurada:
- Então você tem tanta vontade de casar e não gosta de crianças!
Vexada, respondeu secamente:
- Eu quero casar para ter um marido, minha senhora, não é para ter filhos.
Esta resposta não agradou nada a Jane. De resto, ela notou que a nepatite da criada devia estar outra vez a atormentá-la.
Quando o Jerónimo entrara para o serviço, a cozinheira mostrara-se alegre, simpática, exuberante mesmo. Mas agora, que já haviam passado alguns dias, o entusiasmo diminuía.
Embora dissimulada, a criatura não pudera esconder por completo que achava o Jerónimo um belo moço e que não se lhe daria de se chamar M.me Fayoux. Seria uma proposta que talvez fosse acolhida mesmo com entusiasmo.
O Jerónimo, antes que ela estivesse levantada, levava para a copa a hortaliça de que poderia precisar, cuidadosamente disposta numa cesta. Mas ia quase de madrugada. Porque não viria ele mais tarde, para daremdois dedos de cavaco?!
Durante o dia, não parava na cozinha; estava sempre no jardim. Encarregava a Sidónia de lhe arear os talheres, lavar a louça, preparar a comida - e ela: ela aí estava a contemplar as couves e as nabiças. Sob o pretexto de que ia cortar uma folha de louro, dois galhos de tomilho ou um raminho de salsa, ia ter com o Jerónimo e abria a torneira da conversação. Sem largar a sua enxada, a pá ou o ancinho, o antigo soldado, após uns silêncios mais ou menos prolongados, expelia uns "Ah!» e uns "Oh!» indiferentes e distraídos, que não eram para dar coragem a ninguém. Ao quinto ou sexto convite para a declaração, o jardineiro tornara-se surdo e mudo, não respondendo, sequer, por um gesto de cabeça. Limitava-se a passar as costas da mão pela cara, como que a ver se tinha a barba crescida. (')
Foi então que, desiludida, a Paulina recomeçou a falar da sua nepatite e deixou de pintar o cabelo.
Ao princípio, declarara à patroa que
(1) Em França faz-se este gesto acompanhado pela frase: Já barbeei quando alguém é importuno.
achava o jardineiro muito simpático; agora, punha várias restrições aos elogios que lhe fizera. Olhando para o tecto, vendo as moscas molemente voar, bocejando, dizia em voz aborrecida, fazendo caretas desdenhosas
- Ninguém sabe como é aquele homem. É impossível a gente fazer uma ideia. Não fala, nunca diz nada!... É mesmo um urso que só gosta de estar sozinho... Ora vá lá uma pessoa saber o que ele pensa?! Passado uma semana, o desdém de Paulina acentuou-se mais. E o orçamento ressentiu-se imediatamente.
Às censuras de Jane, a cozinheira, tomando o seu ar desolado e parvo, recomeçou a gemer:
- A culpa não é minha, eu já não sei o que hei-de fazer! Está tudo tão caro! E depois, é preciso ver que tenho mais duas bocas na cozinha. Embora a senhora me dê mais quinze a vinte francos por dia, não chega a nada. Muito come aquela gente! E, deixando filtrar o seu rancor, vil e mentirosa, acrescentava em tom de confidência
- E ainda comer é o menos. Mas se a senhora visse o que ele bebe, aquele alma do diabo! Quando a garrafeira estiver cheia de mais, não se aflija que ele se encarrega de a esvaziar. E se fosse só isso ele.. Mas é tão porco!...
- O quê? Pois eu acho-o bem limpo.
- A senhora mudaria de opinião se fosse obrigada a sentar-se à mesa, ao pé dele.
- Mas porque se senta junto dele
- Porque a mãe, ainda mais suja, cheira a capoeira e a estrume!
- Pois sim... mas o certo é que a aliviam muito no seu serviço. A pobre Sidônia arruma a casa inteira, acende-lhe o fogão, descasca as batatas, põe a mesa, lava a louça, limpa as pratas - sem falar no resto.
- A velha pode ser que me ajude... mas o filho não faz nada.
- Ora essa! O meu jardim é o mais cuidado de Sivry.
- Estou a falar no seu trabalho dentro de casa.
- Mas o Jerónimo não tem nenhum trabalho obrigatório cá dentro... e, no entanto, verifiquei que lhe trazia a lenha e o carvão, que lhe esfregava os ladrilhos e lhe afiava as facas. E você está sempre a chamá-lo para isto e para aquilo.
- Quem ouvir a senhora, julgará que eu vivo dos meus rendimentos e ando de braços cruzados.
- Não, só o que eu acho é que não tem motivo nenhum de queixa, do jardineiro. Há uns dias para cá não faz senão dizer mal dele. Pois olhe que o Jerónimo nunca me falou em si... tem mais que fazer. E quem sabe? Talvez seja por isso que você está assim contra ele...
- Livra! A senhora tem cada uma! Só lhe digo que era preciso não ter onde tombar morta para dar atenção a um homem como aquele, que anda mesmo a cair da boca aos cães.
Furibunda por se ver desmascarada, a criada afastou-se, fechando a porta com toda a força.
M.me Louvier encolheu os ombros. A criatura bem podia despedir-se, que ela não se importaria nada com isso. Em vez de ter pena, tanto ela como o pessoal, ficariam muito satisfeitos com tal resolução. Como eram os Fayoux que faziam tudo lá em casa, tanto se lhe dava que ela ficasse como não.
Esta certeza fez com que Jane suportasse com filosofia mais esta contrariedade doméstica.
Depois do almoço, naquele mesmo dia, M.me Louvier notou que os cabelos de Paulina estavam outra vez negros e luzidios. Mas a patroa nem por isso concluiu que tinha havido reconciliação com o jardineiro
Pensou antes que a rapariga havia arranjado outro lugar onde descobrira qualquer um, menos rebarbativo do que o Jerónimo.
Esta conjectura achou-se continuada pela participação desenvolta da cozinheira
--Previno a senhora de que preciso hoje do meu dia.
- Ó criatura, mas eu dou-lhe os dias todos! Vá-se embora! Não me apoquente mais. Você está a morrer por isso, e a mim não me faz falta nenhuma.
- Sim, talvez isso aconteça mais cedo do que a chegada do menino tão desejado!
Ferida por estas palavras, Jane decidiu friamente:
- Bem, então é assunto arrumado. Dou-lhe o dia de hoje e mais sete. Pode-se ir embora daqui a oito dias.
Levemente irritada, sem prestar atenção ao que a cozinheira resmungava, M.me Louvier saiu da sala de jantar, atravessou o jardim, dirigiu-se para o terraço e sentou-se num banco rústico. A tépida sombra das tílias, a vista das verdejantes ilhas e o rio que, cintilante de sol, corria claro e lento, acalmaram pouco a pouco o breve acesso de febre e de impaciência da viúva.
Pouco depois apareceu Jerónimo, que vinha podar as tílias. Trazia uma escada ao ombro.
- Então, Jerónimo, teve alguma zanga com a cozinheira?
- Porquê, minha senhora? Tudo está como antigamente. Cada um anda pelo seu lado - respondeu o rapaz, com serenidade, pondo a escada ao alto e subindo com a tesoura na mão. - Como o nosso trabalho é muito diferente, não temos necessidade nenhuma de estar juntos.
- Mas tenho notado que, tanto você como sua mãe, são muito amáveis para com ela. Vejo-os muitas vezes a fazer o seu serviço...
- Ora! Não é por causa da criada que a gente faz isso: é por causa da patroa.
- Ela não vos agradece nada.
- Isso sei eu: é uma velhaca! Mas há tantas assim que já me não admiro. Faço ideia do que ela terá dito à senhora ! Mas sei como a senhora é, por isso não acreditará nas suas intrigas. Tenho a certeza de que se prejudica mais a ela do que a mim.
- Quer-me parecer que desejaria vê-lo mais amável!...
- Pois olhe, minha senhora, se tem dessas ideias, não podia vir cair em pior sítio. Perdi na guerra o desejo de me casar.
- Porquê
- Porque vi muitos camaradas a sofrer e a passar tormentos por causa das mulheres.
Passavam a vida nos cabeleireiros e nas manicures, enquanto os pobres maridos ou noivos morriam nas trincheiras. Fiquei curado para sempre da doença do conjugo vobis...
- Mas nem todas as mulheres são como você diz; há excepções!.
- Claro! A prova é a senhora.
- Mais dia menos dia, há-de encontrar uma rapariga honesta, dedicada e trabalhadora, verá!
- Olhe, minha senhora, com tantas qualidades, acabava por ser um fenómeno, e eu não me quero casar com um fenómeno.
- Ora, se tivesse sorte, veria como seria feliz.
- Sim, e se casasse mal... isso era uma desgraça.
- A gente deve ser optimista.
- Isso sou eu desde que entrei cá para casa.
- Pois digo-lhe que ainda hei-de assistir ao seu casamento.
- Essa é a esperança da minha mãe, mas eu. . . quer-me bem parecer que a morte há-de vir procurar-me, antes de eu ir buscar o sr..regedor e o sr. abade.
O antigo soldado tornou-se sério. Depois notou com o seu leal e alegre sorriso:
- Não sei como isto é, mas a senhora é a única pessoa que me faz falar.
- E afinal o primeiro assunto já vai longe.
- A cozinheira não é uma pessoa que mereça ser olhada de perto. Ficaria bem contente se me fosse embora.
- E afinal quem vai é ela.
- E isso será melhor para a senhora; aquela criatura era capaz de a fazer mudar de chauffeur, de criado e de jardineiro, até que encontrasse o seu ideal! Era capaz de fazer passar por aqui todos os criados do mundo.
- Então acha-a muito antipática
-Nem simpática. Eu não olho para ela...
- Sim, mas eu não queria...
- O melhor é a senhora não se preocupar com essas ninharias. Não vale a pena. Eu sei bem defender-me. Não são vinte como ela que me deitam abaixo.
Jerónimo pôs-se a podar, durante um bom quarto de hora, em silêncio.
Erguendo os olhos, Jane viu-o então no alto da escada, com a tesoura aberta, a cabeça entre dois ramos, imóvel, e com o pescoço estendido, como se descobrisse ou farejasse qualquer coisa extraordinária.
- O olhar que é, Fayoux? Para onde está a
- É um cavalheiro que vai ao pé do rio...
- E isso que tem
- Ter, não tem nada; mas o que é esquisito é que veio agora mesmo da estação e não sabe para onde há-de ir. Deve andar à procura de alguma pessoa que não encontra. A prova é que parou em frente da tabuleta em que o Rufin pregou o seu anúncio de casas para alugar e terrenos para vender...
-E então?
- Então o passeante leu o que lá está escrito da primeira à última linha e eu sei muito bem que nessa última linha está isto: quem quiser algum esclarecimento deve dirigir-se à Agência Rufin.
- E isso porque lhe desperta a atenção, Jerónimo
- Porque o cavalheiro está a olhar para aquilo e parece muito interessado. Coitado, mal imagina ele que os esclarecimentos do Rufin são constituídos por uma data de mentiras. Aborrece-me que aquele senhor, que tem um aspecto tão simpático, vá cair nas goelas dum cão esfaimado.
- E que lhe havemos de fazer, Jerónimo
- Não sei, mas estou aborrecido.
E com o sobrecenho carregado, mais duros os negros olhos, o jardineiro, tendo fechado as tesouras, desceu, veloz, da escada, e saltou para o terraço.
- Mas que é isso, Jerónimo - exclamou Jane, há pouco surpreendida e alarmada agora.
Como é que o jardineiro, sempre tão cuidadoso com o trabalho, ia agora abandonar tudo para se preocupar com um passeante desconhecido?
- Não se preocupe, minha senhora, eu logo acabo isso. As tílias podem bem esperar. Preciso de largar o jardim, durante uma ou duas horas.
- Mas porquê, Deus do céu, porquê?
- Simplesmente para ir dizer àquele senhor que não acredite nas patranhas que o Rufin lhe vai impingir.
- Mas que tem com isso? Não percebo, francamente...
- Não é preciso perceber... É um pressentimento, uma espécie de faro.,. E se aquele cavalheiro, que chegou de Paris, fosse um notário, um advogado... ou um tutor?
Muito pálida, primeiro, e corada, em seguida, Jane levantou-se febrilmente do banco. Acabando o pensamento do criado, acabou num grito comovido:
- O tutor de Maurício
- E então? Não podia ser?
- Claro que podia! Quem me dera... Como eu seria feliz!
Depois, sacudindo negativamente a cabeça, desiludida e queixosa, deixou-se cair outra vez no banco, murmurando, triste:
- Ah! Mas se está enganado, Jerónimo, se não é o tutor, nem o notário, nem nada que lhe diga respeito. ..
-Nesse caso, manda-me passear e pronto! Chamar-me-á curioso e mais nada. Mas sempre ficarei sabendo o que se passa e não teremos o desgosto de não falar com ele, se por acaso nos interessa. Cá neste mundo, se a gente não se mexe, nunca faz nada.
- Não quero ter esperança, não quero pensar que pode ser o que desejo. Mas peço-lhe que se despache, ande, depressa.
E, sorridente, esboçando gestos militares, ordenou:
- Ordinário! Marche!
A desforra do procurador
O viajante, depois de ter subido apressadamente a rua, encontrou-se no largo da estação, em frente da barraca que, coberta de anúncios, e pretensiosamente denominada O chalet dos turistas, servia de escritório ao procurador.
Sem bater, deu volta ao puxador da porta e entrou. Teve um discreto gesto de recuo ao ver o director da agência em animada conversa com uma pessoa gorducha, cuja cabeleira, exageradamente preta, tresandava a tinta fresca.
- Queira ficar, cavalheiro, eu atendo-o já-exclamou Ernesto Rufin, voltando, sem cerimónia, as costas a Paulina e correndo para o desejado cliente que era, decerto, pessoa de categoria - o que logo se via pelo aspecto elegante e distinto.
- Faz o favor... eu não tenho pressa; o comboio para Paris não passa senão daqui a uma hora; queira acabar essa conferência à sua vontade.
- Está terminada. Aproximando-se da cozinheira, piscou olho e disse em tom de cumplicidade:
- Estamos absolutamente de acordo: conte comigo que eu conto consigo.
Dito isto em voz baixa, sem mais se ocupar com a velhaca mulher, o procurador, sorrindo obsequiosamente e quase partindo a espinha em repetidas reverências, pegou numa cadeira que, por acaso, não coxeava, colocou-a junto da sua secretária e ofereceu-a ao visitante.
Embora temendo ser apanhada em flagrante delito de curiosidade por qualquer camponês que passasse, Paulina tinha grande vontade de se pôr a ouvir, à porta, pois a chegada dum senhor de Paris, um senhor tão bem-posto, intrigava-a tanto como a Rufin. Mas bem depressa se felicitou por não ter feito de espiã, pois a primeira pessoa que apareceu no largo da estação, foi o esgrouviado do Jerónimo.
Vendo-o dirigir-se para agência de compra e venda de terrenos, Paulina julgou que a patroa o tinha encarregado de trazer alguma carta. Por isso, aproveitando a ocasião de pôr obstáculo à missão de Fayoux ou, pelo menos, de a demorar, sentiu um malicioso prazer anunciando-lhe:
- O sr. Rufin não poderá recebê-lo. Está em grande conferência com um cavalheiro que chegou de Paris.
O antigo soldado perguntava a si próprio que pretexto plausível iria arranjar para se introduzir no escritório e verificar se o desconhecido lá estava. Sem se dar ao trabalho de a interrogar, a criada, sem saber e sem querer, acabava de o informar. Jerónimo ficou satisfeito e mesmo reconhecido, mas não o mostrou. E como desejava ainda saber como chegara e como partiria o inesperado cliente de Ernesto, aparentou desconfiança para retorquir
- Não acredito em nada do que está a dizer, menina. Se houvesse algum cliente lá dentro, e pessoa chegada de Paris, como decerto não teria vindo a pé, havia de estar aqui um carro - e como não há cliente!...
- Mas que parvo me saiu! E então o comboio para que serve Veio nele e tenciona ir-se embora no das quatro horas. Viu? Aqui tem!
O Jerónimo sabia já o que queria. Certo de não perder o visitante, em vez de o procurar no escritório do procurador, o que era difícil e arriscado, esperá-lo-ia na estação e lá lhe falaria tranquilamente, o que seria mais fácil e ajuizado. Por isso, em vezde dar os poucos passos que o separavam da barraca, ficou no sítio onde encontrara a criada, mesmo ao centro da praça.
- E então, seu salta-pocinhas, acredita agora no que lhe digo?
- Ah! Como as mulheres são espertas... Lá isso! - replicou, fingindo grande admiração. - Palavra que me admira vê-la assim tão bem informada!
- E daqui a algum tempo ainda estarei melhor - descaiu-se a rapariga a dizer, não podendo esconder a importância de que se sentia revestida. - Agora estou em relações de amizade com o sr. Rufin. É um homem encantador. Aquele, sim, é que sabe dar às mulheres o seu devido valor! Há pouco, ainda ele me propôs para entrar como gerente, governante, inspectora e caixa da agência...
-Apre! Caixa ou tesoureira da casa Rutin! Isso é duma responsabilidade!
- Não tenho medo. Por isso, hoje mesmo largo a viúva, que realmente não é nada alegre. Compreende - e fez uma desdenhosa careta - aquilo lá em casa, não é uma ocupação bastante importante para mim. Que futuro tenho eu ali, não me dirá?
- Compreendo. Realmente, na barraca do Ernesto, a menina fica rica em pouco tempo... Os meus parabéns.
A palavra barraca, o tom imperceptivelmente trocista que o jardineiro empregou para a felicitar irritaram a criatura. Seria possível aquele trinca-espinhas permitir-se troçar dela
Mas o Jerónimo mostrava uma cara tão séria, um olhar tão ingénuo, que a criada acreditou no seu espanto e continuou:
- É verdade; vou ter uma situação brilhantíssima.
- com certeza!
- E o sr. Rufin, que conhece as operações financeiras como ninguém, não tem dúvida em se ocupar da colocação das minhas economias. Vai dar-me cem por cento.
- Dando-lhe um lucro tão grande, decerto nem precisa de lhe pagar ordenado.
- O quê? Julga que ele tenciona associar-me. .. e quem sabe até: casar comigo? Já pensei nisso. E, afinal, não era nada do outro mundo.
- Eu, se fosse a si, menina, tinha medo de que ele se divorciasse antes da boda. Por isso, não teria pressa em lhe dar a minha mão. E muito menos o pé-de-meia. Mas isso é lá consigo...
- Claro que é comigo! Julga talvez que todos os homens são uns ursos como você?
- perguntou ela, já vexada de lhe ter dito mais do que desejaria. - E olhe que não lhe peço conselho. Adeuzinho. vou dizer à patroa que se arranje sem mim. Depois farei a mala. É capaz de ma trazer para baixo
- Pois não, menina, com o maior dos prazeres.
Longe de perceber a troça, a cozinheira, que estava ainda mais inchada depois da combinação feita com o Ernesto, julgou que o Jerónimo estava cheio de pena. Quase comovida, disse em voz macia:
- Talvez o procurador e o cliente se demorem, sr. Fayoux. Se tem pressa, o melhor é bater à porta...
- Tenho alguma pressa, mas para que hei-de interromper a conversa?
- Para não estar aqui à espera...
- Vou-me embora.
- Ah! Julguei que trazia algum recado para o procurador.
- É mais com a procuradoria do que com o procurador. .. Adeus, boas tardes. Ainda tenho umas voltas a dar.
E, em passo tranquilo, continuou o seu caminho, deixando a Paulina desconcertada, sem nada compreender. E era isto, afinal, o que o seu interlocutor desejava.
Quando chegou à estação, escondeu-se entre a balança e o quiosque dos jornais. E com os olhos perscrutando através dos poeirentos vidros, ficou à espera da saída do viajante.
Na barraca, agarrando finalmente o primeiro cliente de peso que contemplara, havia já muitas semanas, Ernesto não tinha o mínino desejo de o deixar ir-se embora sem fazer negócio. Por isso, atacou-o com a sua fluente verbosidade:
- Vossa Excelência deseja alugar ou comprar Tenho com certeza o que lhe convém. Um castelo magnífico com trinta e cinco quartos, garagem para dez carros, cavalariças de vinte e dois cavalos, ténis, golf, electricidade, piscina Quinhentos hectares de terreno. Muita água. Caça e pesca. Três milhões apenas. Um negócio magnífico. É de graça, cavalheiro, garanto-lhe que é absolutamente de graça.
O visitante sacudiu a cabeça, a rir, e disse:
- É caro de mais para mim.
- Ah! Não me explique, eu compreendo tudo - exclamou Rufin, exaltado e cheio de inspiração. - Sim, compreendo, adivinho o seu pensamento não tem mistérios para mim! Os seus gostos são mais modestos. Muito bem. Deseja exactamente o contrário duma residência principesca. Pois cai como a sopa no mel. Tenho, precisamente, o que lhe convém. Um chalet delicioso, género cottage espanhol. Duas salas no rés-do-chão. Primo: casa de jantar, que também é cozinha; secundo: quarto de dormir, que, de dia, se transforma em salão. Por cima, as águas-furtadas. Um pouco arruinado, mas ficando como novo com algumas reparações. O jardim terá uns doze metros quadrados. Nem água nem gás e portanto nenhuma humidade nem perigo de explosão. Nem fumo, porque fica distante da estação uns cinco quilómetros. Encontrando-se longe da aldeia, esta habitação está preservada do barulho e do pó dos carros. Novecentos e quarenta francos! E ainda se pode baixar! E todas as facilidades no pagamento.
--Talvez eu pudesse dar mais alguma coisa - declarou o visitante, rindo com vontade, muito divertido com a tagarelice incoerente do extraordinário homem de negócios.
Depois, cortando novas propostas, o senhor de Paris, como Jerónimo lhe chamara, disse:
- Eu não venho nem para alugar nem para comprar. Desejo, apenas, que me dê um esclarecimento. Há uma senhora que é viúva e tem uma propriedade em Sivry, Chama-se Jane Louvier. Conhece-a?
- Conheço toda a gente.
- Bem. Esta senhora deseja encarregar-se dum pequeno, pelo qual me interesso vivamente desde que ele nasceu. E então, nestes últimos tempos, preocupa-me muito, mesmo. M.me Jane Louvier, numa carta encantadora, comovente, generosa, compromete-se a criar e educar o òrfãozinho, com tanta ternura como se fosse seu filho.
- Estou informado, meu caro senhor, estou informado de tudo isso! - interrompeu Ernesto que, na obcecante preocupação de se dar importância e dirigir a conversa como lhe convinha, não dava tempo, ao desconhecido, de se explicar melhor. - O órfão de que V. Ex.a fala, sobrinho do sr. Henrique Louvier, recentemente falecido, não se chama Maurício Lortain
- Exactamente.
- Vê: eu sei tudo, nada me escapa, É inútil perguntar quem é o tutor da criança; está na minha frente. Evidentemente... não há dúvida possível. Se não fosse o tutor, como teria tido conhecimento da carta e como estaria aqui para lhe responder !
- É duma lógica e duma perspicácia verdadeiramente notáveis, mestre Rufin!
- Simples hábitos de homem de negócios ... conhecimento do mundo. Vinte anos de prática! - exclamou Ernesto, passando a mão pela testa e lançando os hipotéticos cabelos para trás. - Mas precisemos: o senhor está decidido a confiar a criança a M.me Louvier?
- A priori, estou. Mas, primeiro, preciso de certas informações, de boas referências. Como M." Lortain já morreu há bastante tempo, e como estava zangada com o irmão, eu não conheci Henrique Louvier. Soube que, já com certa idade e atacado pela doença que o havia de levar, se casou. Dele pouco mais sei, e da viúva, então, não sei absolutamente nada.
- E, no entanto, tomou a sério a sua proposta!
- É verdade, porque, repito-lhe, me pareceu um desejo tão sincero, espontâneo, vibrante de emoção, que me fez entrever uma alma apaixonada, cheia de dedicação, pronta para todos os sacrifícios.
- Tem essa carta?
- Tenho.
- Queira mostrar-ma.
- De maneira nenhuma!
- Porquê
- O Maurício, desde que veio ao mundo, ainda não soube o que era ternura, e experimentou, ao receber esta carta, uma surpresa e alegria tão grandes, que nunca, na sua vida, as esquecerá. É confidencial. A pequena folha de papel lilás tornou-se para o pobrezinho uma relíquia tão preciosa, que é devido a ela que espera ver surgir a felicidade.
- Uma superstição pueril e oca!
- Talvez... mas não quero trair a confiança do meu amiguinho. Por mais infantil que seja, esta superstição, sem prejudicar ninguém, alegrou subitamente a existência vazia e monótona de Maurício Lortain. Ficou com a alma cheia de sol. O imprevisto convite da tiazinha desconhecida, seduziu-o, encantou-o, deu-lhe toda a exaltação do primeiro capítulo dum delicioso conto de fadas. O sobrinho de M.me Louvier espera o desenlace com grande impaciência. Confesso que ele teria uma decepção enorme se a esperança de vir a ser finalmente acarinhado e querido, se não realizasse.
- Ora! Isso é o que o senhor julga!... As crianças...
- Não, senhor. Estou convencido. Eu conheço muito bem o seu feitio. Nascido para a intimidade familiar, ninguém sofreu mais do que ele por não ter mãe. Felizmente que não se tornou melancólico; mas apesar da sua alegria é profundamente sentimental
- Mas o senhor, que é seu tutor, porque não lhe deu esse carinho?
- Afianço-lhe que o torno o mais feliz que posso. Mas apesar de toda a minha boa vontade, não o consigo. Maurício sente-se muito só - vê o vazio à sua roda. Qualquer esforço lhe parece inútil e o presente não o interessa mais do que o futuro. É muito orgulhoso, por isso nada deixa transparecer, mas eu sei que ele sofre e vai perdendo a coragem. Está agora numa crise que me preocupa... Amar seria o melhor dos remédios. E o Maurício está pronto a abrir o seu terno coração, embora seja desconfiado e céptico como quase todos os órfãos. Só queria afeiçoar-se a quem o merecesse. E eu dou-lhe toda a razão. Uma mulher que assim se oferece para se dedicar a uma criança, deve por força ter um belo coração. É por isso que estou pronto a confiar-lhe o meu pupilo. Será como eu imagino, essa tia desconhecida? O pequeno encontra-se, nesta altura, cansado e triste - o ar, o ambiente, a febril e trepidante agitação de Paris, não lhe são favoráveis. Uma estadia no campo, por alguns meses e até anos, só bem lhe podia fazer, tanto moral como fisicamente.
Desta vez, o procurador, desejoso de informações, deixara falar o visitante; ouvia-o e examinava-o com toda a atenção.
O tutor de Maurício devia ter uns vinte e oito a trinta anos. Era um homem alto, louro, elegante, desenvolto e forte como um desportista. Não tinha as feições regulares, mas todas se destacavam pela distinção. Boca bastante grande mas dentes muito brancos; nariz forte mas narinas sensíveis e bem desenhadas. Mesmo na sombra, o rosto vibrava de mocidade e os olhos claros iluminavam-no todo. Os cabelos, levemente ondulados, estavam deitados para trás, descobrindo a testa inteligente. E o que mais simpático o tornava, era a expressão franca, a mobilidade do olhar e o sorriso que era meigo e carinhoso.
Ernesto não prestou atenção à fisionomia bondosa, mas preocupou-se em notar o óptimo forro de cetim que se via quando o casaco se abria, o feitio impecável das calças, as peúgas de seda negra com baguette prateada, os sapatos de verniz. E como era distinta a longa mão em que cintilava um grande brilhante!
Enquanto o tutor falava, de coração nas mãos, o torpe homem lançava-se em cálculos mesquinhos e ávidos.
"Este sujeito deve ser muito rico. Sem ser irresistível, é, no entanto, muito simpático. O suficiente para agradar à viúva... e reciprocamente! O interesse que ambos têm pelo diabo do rapaz é quanto basta para os aproximar... traço de união: casamento. E lá vai tudo por água abaixo! Não, eu é que não vou aqui fazer o papel de parvo e dar àquela presumida a fortuna e, ainda por cima, a felicidade. E então depois de ter troçado de mim e de quase me haver posto na rua! É impossível que nada do que eu penso se realize; mas, se tal acontecesse, era motivo para rebentar de raiva.»
Num irreprimível acesso de ciúme e ódio, o desonesto procurador decidiu:
"Preciso de impedir tal calamidade e vou começar já a pôr obstáculos ao encontro do tutor de Maurício com Jane. Felizmente que este parvo teve a ingenuidade de me vir consultar. Caiu como um pato. Agora é que me vou vingar. A viuvinha vai saber quanto lhe custa ter-me posto no meio da rua.»
E como a ruminação da sua vingança tinha um gosto amargo, a fel, Rufin não pôde dissimular uma careta atroz.
Admirado primeiro, inquietando-se depois com o silêncio de Ernesto, o senhor de Paris provocou a resposta que tanto tardava a vir, por uma pergunta em que se resumia tudo quanto dissera:
- Habitar a sua casa familiar, junto de uma tia afectuosa e meiga, não será para o Maurício o que posso desejar-lhe de melhor?
- Eu acho que não - exclamou por fim o traficante, não podendo esconder um ímpeto de mau humor e despeito.
Depois, para tornar as falsas confidências mais verosímeis, compreendeu a necessidade de as envolver em velhacas perífrases. Afectando extrema gravidade, exclamou em voz untuosa e baixa:
- A excelente impressão que sinto ao ouvir Vossa Excelência e a confiança que me testemunha, vindo-me consultar espontaneamente, obrigam-me a dizer toda a verdade. Em primeiro lugar, devo confessar-lhe que Sivry não é uma terra salubre. A vizinhança do rio torna esta aldeia muito húmida. Abunda aqui a hepatite: ainda hoje diagnostiquei um caso. A adubação dos terrenos, que ainda se faz de forma primitiva, leva a depor grandes montes de estrume junto do rio. Logo que vem o calor, fica o ar empestado e as infecções são inumeráveis.
- Mas o local é encantador! Que pena!
- E não será esta a única decepção que o senhor terá. A aldeia é muito pobre. Os géneros são raros e caríssimos. A educação e instrução do seu pupilo são impossíveis aqui. O mestre-escola só pensa em política; o abade é um fanático. Nenhum deles sabe nada.
- Tanto pior! De resto, Maurício já sabe muita coisa e não vinha para cá com o fim de estudar. O meu desejo era dar-lhe um repouso de convalescença moral, uma espécie de cura cardíaca e mental. Os cuidados, as atenções de M.me Louvier, a crer nas promessas da sua deliciosa carta, seriam para o meu amigo o melhor dos reconstituintes.
- Essa é boa! Para a senhor ter essa ilusão é porque realmente nunca viu a viúva...
- Nunca, nem mesmo em fotografia.
- Nunca ninguém lhe falou dela
- Vim hoje a Sivry pela primeira vez e não conheço aqui ninguém, M.me Louvier e eu não temos nenhum amigo comum nem em Paris, nem fora. Ignoro tudo dela.
Ouvindo isto, Ernesto Rufim ficou livre das últimas apreensões. E pensou:
"Então vou dizer-lhe o que me apetecer!» E continuou em voz alta, cheio de importância:
- A tia do seu pupilo, meu caro senhor, não é nada-mas absolutamente nada- a mulher afectuosa e meiga que o senhor imagina. Ela, que se finge uma doce mamã, seria uma egoísta madrasta, seca, azeda e de humor insuportável.
- Estou desolado, mas, no entanto, se for nova e bonita... o Maurício tentará gostar dela. Um sobrinho está sempre pronto a perdoar tudo a uma tiazinha bonita e agradável.
- Jane Louvier é feia.
- Então, está tudo perdido.
- Ridiculamente tola, ela procura rejuvenescer-se, pois deve andar perto dos cinquenta anos.
- Já tem essa idade?
- Se não tiver mais! Usa cabeleira e e dentadura postiças.
- Deus do céu!
- É uma intrigante que soube captar Henrique Louvier por meio de intrujices, e só casou com ele por causa do dinheiro. Ficando viúva - o que ela mais desejava no mundo -, em lugar de se mostrar económica e moderada, começou a gastar sem conta e ao mesmo tempo, colocou de maneira tão duvidosa o seu dinheiro que, em pouco tempo, delapidou a fortuna do marido. Quase na miséria, veio-me suplicar que tomasse conta dos seus negócios. Eu deveria ter recusado, mas, por compaixão, acedi. E encontrei uma situação de tal maneira embrulhada, que me tenho visto aflito para a desenvencilhar. A tia do seu pupilo está cheia de dívidas, arruinada, sem vintém... e agora arranjou este meio: quer o sobrinho em casa dela para viver da pensão que o senhor lhe dará. Mas fique certo de que, por maior que a pensão seja, será toda engolida logo nos primeiros dias do mês. Os credores, esfomeados, comerão tudo.
- Para dar más notícias nunca vi como o senhor! - exclamou o visitante, levantando-se e começando a andar dum lado para outro, cheio de nervosismo.- Que decepção para o pobre Maurício! A carta da tia entusiasmou-o e encheu-lhe o coração de esperança. Se é forçado a renunciar a este lindo romance de ternura e de intimidade de que esperava inefáveis doçuras, é capaz até de adoecer.
E o próprio tutor estava tão comovido que qualquer outra pessoa teria pena dele. Mas o malfeitor continuava a expelir o seu ódio, com toda a crueldade:
- Pois se o pequeno tem de adoecer, é melhor que seja em Paris do que aqui. Não temos cá nem médico nem farmacêutico. Morria com certeza.
- Estou desolado, meu caro senhor, absolutamente desolado! - disse o tutor cada vez mais triste. - O que acaba de me dizer é a ruína brusca de todos os sonhos do pobre rapaz... Pusera a sua última esperança na carta lilás da tia Jane! Este desapontamento vai tomar no seu espírito as proporções de uma catástrofe.
- Mais vale ter este desapontamento antes, pois depois seria muito pior.
- Ora, ora, ora! Mas que azar! Palavra de honra que não esperava por uma destas Em suma: que é que me aconselha?
- Aconselho-o a não fazer caso dessa proposta que, francamente, não é nada recomendável. Se realmente tem interesse por essa criança...
- Ora essa! É a pessoa de quem eu mais gosto no mundo!
- Então, o melhor é não dar importância, nem resposta à carta de M.me Louvier.
E, vendo que o rapaz, de sobrancelhas carregadas, estava a consultar o relógio, acrescentou:
- Tem muito tempo ainda para tomar o comboio. Queira sentar-se, cavalheiro.
Posso dar-lhe mais pormenores, não menos edificantes, sobre a tia do seu pupilo.
- Obrigado. O que sei já me chega. A carta lilás tinha sido como um raio de sol, iluminando-nos o coração. Cheguei aqui tão alegre e esperançado! E agora vou-me embora triste como a morte! Não sei como o meu querido pequeno vai receber esta má notícia, ele que tanto desejava abraçar a tia!
- Então não se senta?
- Não... Prefiro ir-me embora. As suas informações contrariam os meus projectos e entristecem-me enormemente. Preciso de dominar os nervos. vou tomar um pouco de ar e daqui a pouco estarei bem.
Mas Rufin temia que o rapaz fosse ainda dar uma volta por Sivry - podia encontrar alguém que o desmentisse. Por isso, tirando o sebento chapéu do cabide, o meliante propôs com todo o afã:
- Se me permite, eu acompanho-o, senhor.
- Mas é que não lho permito de forma alguma, caro sr. Rufin. Já perdeu comigo um tempo precioso e não há perigo de que me engane no caminho. Estou daqui a ver a estação. Só tenho de atravessar este largo.
- Mas eu vou acompanhá-lo até ao comboio.
- Não se incomode, peço-lhe. Longe de me ser agradável, confesso que a sua presença me desagradaria. Preciso de estar sozinho, para reflectir.
Ernesto tentou fazer de conta que não ouvia e pôs o seu plano em prática, mas desta vez o tutor de Maurício protestou duma forma tão decisiva e numa voz de tal modo autoritária, que o procurador, temendo fazer despertar as suspeitas do seu interlocutor, não ousou insistir.
O parisiense despediu-se. Ernesto foi à janela, levantou a cortina suja, esfarrapada, e seguindo o visitante com os olhos, assegurou-se de que ele não voltava para a aldeia. Viu-o atravessar a praça deserta e entrar no cais.
- Apre! Decididamente, vai-se embora exclamou o caluniador, tranquilizado. Resolvi este negócio com mão de mestre. Agora estou bem vingado do desprezo daquela catatua. Este imbecil já não tem tempo de se informar, e como estou certo de que nunca mais aqui porá os pés... No comboio não há perigo... Tem poucos passageiros... Principalmente em primeira. Quanto aos empregados da estação, a viúva encontra-se aqui há tão pouco tempo que ninguém sabe da sua existência.
E esfregava as mãos, radiante. O monólogo continuou:
- Aquilo é que ele fez uma cara, o tutor!... E o miúdo, esse é que ficará desapontado! Tinha vontade de desatar às gargalhadas. Na verdade, é dum cómico! Mas que gente tão parva a que constitui esta família! Nem vale a pena uma pessoa dar-se ao trabalho de os enganar.
Por excesso de precaução e não tendo nada que fazer, Ernesto continuou a espiar.
Ao cabo de dez minutos, o rápido parou, e pouco depois tornou a partir. Ainda desconfiado, o traficante vigiou a porta de saída. Mas ninguém conhecido lhe chamou a atenção. Liberto de qualquer receio, Rufín deu o incidente por terminado e, para se felicitar da sua esperteza, foi ao fundo da sala, abriu o armário e, pegando numa garrafa quase vazia, levou-a à boca, recompensando-se assim de ter tão brilhantemente ganho o seu dia.
O gaia e o seu cliente
Assim que o senhor de Paris saiu da casa do procurador, sacudiu o mal-estar que o invadia e lamentou o tempo que perdera.
- "Mas que homem tão antipático! pensou.-Aquele maldito tirou-me todas as ilusões e parecia que tomava gosto ao ver a minha cara cada vez mais desconsolada. Realmente é um aborrecimento! A carta da tiazinha estava tão cheia de doces promessas, demonstrava uma tão fina e delicada ternura! Como havia de imaginar que, dirigindo-se a ti, meu pobre Maurício, a autora daquelas páginas tão comovedoras fosse uma velha intrigante, presunçosa, antipática, avarenta e gastadora?! Dizem que o estilo é o homem... Mas vê-se que não, é a mulher.., Que pena! Uma carta tão bem escrita No entanto, pensando bem, as palavras do procurador contradizem-se um bocado... Mas quer sejam exageradas, quer sejam fiéis, o certo é que me dão um grande desgosto. Sinto-me abalado e até me dói o coração. Tinha começado tão bem este romance!
Querendo reconfortar-se, o parisiense havia mesmo, antes de entrar no cais, tirado da carteira a carta lilás da tia Jane.
Releu-a e, embora fosse pela vigésima vez, continuou a ficar surpreendido e encantado, como no primeiro dia.
- Aquele falador disse-me coisas bem desagradáveis, mas a tia Jane será realmente uma velhota assim destituída de coração, como ele afirma Meu pobre Maurício, realmente não tens sorte nas tuas aventuras sentimentais. Estavas tão satisfeito por ir ter uma tiazinha! Mesmo pobre, mesmo rabugenta, mesmo feia! Tenho pena de ter ouvido aquele homem. E quantas vezes as avòzinhas são melhores do que a fama as pinta! Aquele sujeito não me inspira grande confiança. Se em vez de ter ido primeiro a casa dele, me tivesse informado junto de outras pessoas... ou me tivesse dirigido francamente, lealmente, a casa da tal M.me Louvier... Mas para que hei-de levar mais longe as investigações, se afinal o mais certo é o homenzinho ter falado verdade?! Para quê, se irei dar com um casarão arruinado, sinistro e miserável, e encontrar uma horrível velha avarenta em vez da linda e jovem tia Jane que sonhava ver num delicioso quadro de flores e arbustos! Esta cruel visão da verdade mataria num segundo a encantadora ilusão duma semana inteira. Por isso, mais vale guardar, assim intacta, a recordação do belo sonho! Vivamos de intenções! Adeus, quimeras sedutoras! Adeus, pequena e deliciosa mensagem lilás, perfumada de efémeras promessas e fugitivas esperanças! Mal o sobrescrito foi rasgado, logo as promessas se evolaram!
Durante este monólogo que trazia ao rosto, habitualmente alegre, do jovem tutor algumas nódoas de amargura provocadas pela sensibilidade ferida, o pseudo cliente de Ernesto passara para dentro da estação.
Depois de ter levado a carta lilás aos lábios, como em despedida dum momento de romantismo, dobrou-a cuidadosamente e meteu-a no fundo da carteira, murmurando com tristeza:
- Volta para o teu esconderijo de sombra, meu pequenino talismã, e colocado junto do meu coração adormece-o, embala-o, encanta-o com a tua benfazeja mentira.
Jerónimo, que pacientemente estivera esperando, aproximou-se neste momento, de boné na mão. Desconfiando de Rufin e observando, através dos sujos vidros, a barraca do procurador, perguntou deliberadamente:
- O senhor não terá vindo a Sivry da parte do menino Maurício Lortain, para a sr.a D. Jane, sua tia? Eu é que sou o jardineiro lá da casa.
Muito admirado, o rapaz respondeu:
- Realmente sou eu... Venho da parte dele. Mas quem lho disse, meu amigo
- Isto explica-se sem mais se explicar. E agora não há tempo. Temos outras coisas a fazer.
- Realmente, o comboio já se fez anunciar. E não quero perdê-lo.
- Pois eu digo ao senhor que é melhor deixá-lo ir. Olhe que vale a pena.
- Porquê?
- Porque o Rufin é um bandido declarou Jerónimo sem rodeios, com calma energia, muito convincente.- Não o deixarei ir embora com a cabeça cheia dessas mentiras e dessas infâmias que ele, com certeza, não deixou de lhe dizer... O senhor está transtornado!
-Verdade seja que, desde que saí lá da agência, tenho um peso no coração!.. Como é que adivinhou o meu estado
- É porque também estou danado. Eu, que tenho um belo estômago, há uma coisa que não posso digerir: a falsidade.
O camponês olhou a direito o senhor da cidade, sem atrevimento, mas para lhe provar a sua sinceridade. Tanto a fisionomia falsa, aduladora e velhaca do procurador lhe havia desagradado, quanto o rosto franco e alegre do jardineiro lhe inspirava simpatia e confiança.
Vendo aproximar-se o comboio, Jerónimo esforçou-se por ser eloquente e fazer-se compreender mais depressa:
- Não parta, senhor, não se vá embora sem tirar a limpo todas as calúnias daquele cavalheiro. Tenho a certeza de que ele lhe pintou ao contrário a tia do Maurício. Fique, venha ver. Repito que vale a pena perder o comboio!
Fayoux receava que o visitante, tão habilmente despistado, lhe fugisse.
Empurrando-o, esgueirando-se, não o deixaria ali especado, escapando-se para algum compartimento e Nem queria pensar que havia de voltar para casa sozinho! Por isso, plantou-se em frente da porta aberta, pronto a agarrar-se ao viajante, se ele quisesse escapulir-se. O tutor pressentiu o gesto e a intenção. Divertido, dando uma alegre gargalhada, declarou:
- Descanse, meu rapaz. Não tenho o mínimo desejo de fugir à investigação. É com a melhor boa vontade que perco o comboio.
Ouviu o apito de partida sem a menor impaciência e viu desfilar as carruagens, sem ter a mínima pena de ficar em terra.
A momentânea impossibilidade de deixar Sivry, restituía-lhe o bom humor.
Assim que o cais recuperou a calma e o silêncio, pôs a mão no ombro de Jèrónimo.
- Agora, meu amigo, vamos lá a saber. Então que diz acerca da tia do nosso Maurício
- O senhor é que é o tutor?
- Sim, sou eu que trato dos seus negócios, estou encarregado de tudo, ele nada pode fazer sem mim. Mas ande! Fale-me dessa famosa tia Jane!
Certo, agora, de que o rápido estava longe e de que o tão esperado tutor lhe não escaparia, o Jerónimo perdera outra vez a verbosidade. Voltou aos seus hábitos de não dizer senão a que era preciso.
- Não sei para que lhe hei-de falar da senhora. O melhor é vê-la. Ela mesma lhe contará tudo quanto deseja saber. E dito por ela, então nem se compara.
- É o único criado da casa
- Não; eu sou o jardineiro. A minha mãe é a cozinheira e trata de tudo.
Guiando o recém-vindo, Jerónimo atravessou o cais e a linha; depois, contornando o cais das mercadorias, enfiou por um atalho que marginava o alto talude do caminho de ferro.
Intrigado, o parisiense perguntou:
- Quer-me parecer que andamos aqui às voltas?!
-Tem razão; assim será mais longe, mas não é pior.
- Ah! Já sei, Deseja evitar que o homenzinho nos veja...
- Exactamente. Ia fazendo com que o senhor fugisse da minha patroa. Pois não quero que esse caso se torne a repetir.
- Não tenha medo. Eu também desconfiei dele.
- Sim, mas ia-se embora...
- Mas agora nada fará com que deixe de lhe falar. Ora diga-me.
Impaciente e curioso, o senhor de Paris interrogou o jardineiro. Desejaria, imediatamente, ver reduzidas a cinzas as afirmações de Ernesto. Por isso, não se cansou de fazer perguntas: como era a casa e a dona e como .vivia? A cada interrogação, calava-se para dar ao Fayoux o tempo necessário para a resposta, mas em vez de aproveitar a ocasião proporcionada, o Jerónimo parecia ser mouco ou então riscava o ar com qualquer gesto evasivo.
Quando o tutor de Maurício, levemente irritado, o forçava a responder, ele arranjava sempre maneira de lhe fugir:
- O senhor tem olhos, não tem? Pois então vai ver com os seus olhos e depois me dirá. Eu, lá do meu jardim, percebo; agora do resto... Posso dizer-lhe que a vinha está uma beleza, lá isso!... As ervilhas de cheiro crescem maravilhosamente e as minhas batatas são as melhores da aldeia. Agora, o resto...
Fayoux era malicioso. E, além disso, a sua gratidão pela ama dava-lhe o instinto de compreender que, para captar a boa vontade do tutor e a vinda do pupilo, o melhor de tudo era a surpresa. Quanto mais viva ela fosse, mais facilmente o tutor deixaria vir a criança. Portanto, qualquer comentário poderia ser, ou supérfluo ou prematuro.
Embora desiludido pelo silêncio de Fayoux e cheio das prevenções e más palavras de Rufin, o parisiense, no fundo, não podia deixar de aprovar a deferente discrição do criado em face da patroa. Apreciando esta reserva e contagiado pelo mutismo e pela fleuma do companheiro, cessou bruscamente o inútil inquérito.
Atravessando uma espécie de túnel cavado na linha férrea, os dois homens entraram na aldeia.
Chegados à rua, Fayoux abriu a porta de serviço, de que tinha a chave. Tendo subido alguns degraus, o tutor encontrou-se no terraço que dominava as poéticas margens do rio e as minúsculas ilhas.
Cheio de tacto, não raciocinado mas de segura intenção, para não perturbar com nenhum ruído o sono do jardim e da velha casa, Fayoux não nomeou mas designou, em gesto lento e comedido, na sombra perfumada das tílias, uma jovem mulher, sentada no banco rústico. Em atitude lânguida e melancólica, indiferente a tudo quanto se passava em seu redor, ela sonhava. Sob as semi-cerradas pálpebras, o seu olhar não se fixava nas águas que em redemoinhantes meandros se perseguiam "fugiam para longe, perdendo-se no horizonte. Os seus olhos estavam fitos na casa revestida de clematites, rosas e jasmins, como se esperasse a todo o momento ver surgir, num fluxo de felicidade e primavera, a felicidade que a tristeza e a negrura da solidão fizeram desertar!
Sonhadora, agitava as pálpebras e juntava os dedos como numa prece sentida em que a Deus pedisse qualquer coisa: um bocadinho de ventura, apenas!
Surpreendido pelo que via, o senhor de Paris, encantado, deteve-se.
Será Sonho
A leitura da carta dirigida a Maurício começara por surpreender o tutor, e depois por lhe exaltar a imaginação.
A espera, a viagem, a chegada a Sivry, a visita ao procurador, seguida pela amarga decepção, por fim o inesperado encontro com Jerónimo, que lhe restituíra alguma esperança ... tantas sensações diversas e mesmo contraditórias tinham febrilmente agitado o visitante.
Durante o trajecto do cais à casa familiar, a atitude de Fayoux havia mesmo feito aumentar a expectativa, nimbando-a de mistério. E eis que, depois da incómoda brancura poeirenta da estrada, após a rutilância azul e ouro do céu tórrido, ele se encontrava, em súbito contraste: mergulhado na penumbra cheia de frescura e serenidade dum delicioso oásis!
Que doçura, que magia de recordações naquele parque nimbado pelas flutuantes emanações das flores e sombreado por seculares árvores!
Para além das tílias, as acácias, os freixos, os plátanos, os olmos e os sicómoros, baloiçavam as copas rumorejantes, ondulando sob a leve brisa, e parecia que na relva, em notas trémulas de luz e sombra, andavam palpitando fugidias nuvens de renda. Nenhum artista seria capaz de compor mais belo quadro. Neste cenário, que apenas fora preparado pelo natureza e pelo tempo, tudo se harmonizava e poetizava delicadamente.
Em longínquas viagens, mais pitorescas e coloridas, havia locais que o tinham deslumbrado e fascinado. Mas nenhum o comovera tão intensamente, íntimo e familiar, este cantinho da França tinha para ele, não a sedução perturbadora dum espectáculo novo, mas o encanto enternecido duma paisagem de sonho que, durante muito tempo voada de esquecimento, surge por fim todo o seu esplendor.
E esta paisagem vivia, tinha uma alma: a rapariga imóvel, imersa em meditação.
Mas que comovedor contraste entre a velha criatura feia, antipática, rabugenta! descrita por Rufin, e esta ideal aparição, Não ousando acreditar nos seus olhos, infinitamente perturbado, temendo que o som da sua voz rompesse o sortilégio e fizesse desaparecer a fada da velha casa, o senhor de Paris perguntou ao jardineiro num mal perceptível murmúrio:
- Será possível, meu amigo Estarei acordado É realmente a tia Jane
- É sim, senhor, é M.me Louvier, a tia do menino.
Embora esperasse esta resposta, o coração do rapaz bateu com tanta força que ficou alguns segundos sem poder respirar. O visitante não olhava nem para a casa nem para o jardim: contemplava a tia Jane. O seu deslumbramento aumentava a cada pormenor que ia descobrindo.
Nunca a julgara tão nova e tão bonita. Embora estivesse na sombra, parecia que a luz emanava dela. O cenário desapareceu; o recém-chegado só tinha olhos para a bela sonhadora. Arvoredo, rosas e relva, eram coisas que se encontravam em toda a parte.
Mas onde descobrir uma mulher de perfil mais delicadamente puro, uns cabelos castanhos mais finamente polvilhados de ouro, uma pele tão luminosa e uma silhueta mais elegante e mais esbelta? A noiva, nunca encontrada, tecida de ilusão, ideal, que, ainda criança, depois adolescente, e por fim homem, o jovem tutor tinha incessantemente procurado - era Jane. Parecia-lhe lembrar-se dela e tê-la adivinhado nas suas primeiras aspirações de ternura. Retomava-o o encanto; mas, mesmo no seu êxtase, ele tinha a consciência de sentir uma alegria, não ilusória mas verdadeira. E este único momento de existência terrestre fazia-lhe conceber todas as felicidades duma eternidade celeste. O senhor de Parts, que era poeta, muito dado a rimar versos feéricos, julgou ter acabado de entrar no jardim da felicidade, onde iria colher a maravilhosa flor do amor.
No entanto, não foi esta a ideia que ele exprimiu quando, apressado por voltar ao seu trabalho e desesperando de captar a atenção da castelã, Fayoux, depois dum súbito e forte ataque de tosse, atirou o parisiense do sétimo céu abaixo e, sobressaltando a patroa, a arrancou á lânguida meditação. Jerónimo, desta vez, não teve outro remédio senão falar
- Trago à senhora o tutor do seu sobrinho.
E, tornando a pôr o boné, julgando mais que suficiente esta apresentação, deixou-os sozinhos, voltando para o seu trabalho. com a escada ao ombro, foi tratar das tílias, lá na outra extremidade do terraço. Embora tivesse sido dita em voz baixa, a frase do jardineiro causou a M.me Lonvier uma comoção igual à do tutor.
Levantou-se apressada. Pálida de espanto, depois afogueada de alegria, dirigiu-se para o rapaz e estendeu-lhe espontaneamente às delicadas mãozitas.
- Ah! Como me sinto feliz com a sua visita! Não imagina como estou contente Seja bem-vindo a esta casa, senhor. Já começava a desesperar de o ver, a si e ao meu sobrinho. No momento em que a voz do Jerónimo me fez estremecer, pensava eu, com amargura, na minha pobre carta que ficara sem resposta! Se soubesse como desejo conhecer o Maurício! Não como, não durmo, não vivo - é uma verdadeira obsessão. Teria sido uma ingrata se não tivesse amado o meu pobre Henrique, tão bom e afectuoso para mim; mas confesso que, o que me decidiu a casar, foi o desejo de ter filhos. Brinquei com bonecas até aos dezasseis anos... É uma vocação. Nasci mamãzinha.
O único desejo e a única esperança que me restam é Maurício Loriain, o bebé que idealizo tão lindo e amorável!...
A esta expansiva confissão, cheia de ardor mas sincera, principalmente ao ouvir as últimas palavras, o tutor deu uma grande gargalhada, deveras inexplicável. Mas esta explosão de alegria, seguindo-se a impressão de sonho e encanto, em vez de rasgar a ilusão, uniu-os na mesma ideia de optimismo e aumentou a admiração do tutor.
Trémula, animada, com as mãos unidas e os olhos cheios de prece, Jane parecia realmente ainda mais comovente e mais bela do que quando imersa no silencioso sonho. E como a delicada voz de puro timbre, a límpida voz da rapariga fazia vibrar todas as fibras do viril coração!
"Mas que adorável criança» - pensava ele. E continuava a rir, porque não tinha outro meio de mostrar o seu enlevo.
Jane ruborizou-se, pensando que o visitante troçava dela. Confusa, dominou a custo as suas impetuosas efusões e disse, mais reservada:
- Realmente, não sei como falar-lhe para inspirar confiança. Vai pensar que sou uma tagarela, impulsiva, tonta e sem juízo nenhum!!
Mas tenho tanto desejo de que simpatize comigo, para me confiar a criança, que já nem sei o que digo! Parece-me que é bondoso, senhor. Há-de saber desculpar a minha exaltação.
- Mas acho que está procedendo da melhor forma, minha senhora. Tudo quanto diz, em espontâneas frases vindas do coração, em vez de a prejudicar, revela-me quanto a sua alma é sensível, amorosa e grande. As suas palavras, este belo acolhimento, comovem-me ainda mais do que a sua carta, tão tocante. Tanto o pupilo como o tutor lhe estão profundamente reconhecidos. Se lho não agradeceram já, foi porque eu desejava fazê-lo pessoalmente... e devido a vários assuntos inadiáveis, não consegui vir mais cedo.
- E o Maurício? Porque não me escreveu uma palavrinha? Mas que estouvada sou; ele decerto ainda não sabe ler nem escrever!
- Sabe sim, minha senhora, lê muito bem e até escreve - respondeu o rapaz, a sorrir.
- Que pena! E eu que tanto desejava ensinar-lhe as primeiras letras! Comprei três cartilhas com uma data de bonecos coloridos, muito engraçados, e a gaveta da sua secretária está cheia de lápis, canetas, cadernos ... Até lá está uma pedra com giz e tudo...
- Para fazer os primeiros traços Não lhe prometo que ele volte assim ao princípio. .. Mas não imagina como lhe estou grato por ter pensado nisso tudo...
- Não lhe faltará nada. Há vinte dias que não tenho outra preocupação. Ora olhe: vê aquela janela toda rodeada de rosas? É a do seu quartinho. É o que tem mais sol.
Dizendo estas palavras, Jane dirigia-se para casa e convidava o tutor a acompanhá-la.
- Há-de ver o quarto branco, que é mesmo pegado ao meu, mas mais tarde. Depois lhe direi porquê. Está tudo pronto, nada falta. Maurício Lortain será recebido na velha casa em festa, como um rei pequeno.
- O pimpolho, realmente, anda com sorte! Olhe que isto de lhe aparecer, no momento oportuno, a mais encantadora mamã que se possa imaginar! Quantos homens desejariam tornar a ser crianças para ter o quartinho branco e a querida tia Jane!
O tutor estava entusiasmado e desejaria dizer mais coisas, mas notou que, logo ao primeiro cumprimento, ela se ruborizou. Adivinhando-a tímida, casta, esquiva mesmo, sob a aparência de dona de casa expedita, e não querendo contrariá-la, teve a delicadeza de esconder o que sentia sob o véu do bom humor e duma simples camaradagem que a poriam mais à vontade.
- Não julgue pelas minhas palavras que sou leviano e frívolo, tia Jane. Garanto-lhe que sou o tutor mais sério do mundo. Embora tenha um enorme desejo de lhe ser agradável, não posso confiar-lhe o meu querido Maurício sem reflectir maduramente. Parece-me tão novinha!
- Ora essa! Tenho vinte anos.
- E eu, vinte e oito.
- Sim... deve ter mais experiência do que eu. Mas a ternura duma mulher compensa muito a sua ignorância. Saberei adivinhar tudo aquilo de que o seu pupilo precisar - tanto moral como fisicamente. Não sou rica mas, economizando na minha toilette e noutras coisas, nada me parecerá nem caro nem belo de mais para o meu sobrinho!
- Ah! Mas eu não quero que se prive...
- Mas se lhe estou a dizer que é uma alegria!
- Como é gentil, tia Jane!
- com ele é que eu vou ser gentil, não digo que não! Mas... mas, senhor tutor... se lhe custa muito, não mo dê para sempre. Empreste-mo apenas, E verá como o faremos feliz!
- Fala ainda com mais graça do que escreve... Sabe que estou tentado?
- É verdade
- Juro.
- Ah! como me tornaria feliz!
- O Maurício é muito sentimental. Possui uma alma impressionável e terna... Órfão, tendo vivido sempre só, como lhe saberá bem ser assim rodeado de carinho!
- Ah, quanto a isso, pode estar sossegado.
- Vai gostar dele
- Que pergunta! Pois se já gosto e ainda o não conheço! Como lhe disse na carta, encontrei o seu retrato, uma adorável miniatura, na cómoda do meu quarto. Foi um coup-de-foudre para a meu coração de mãe sem filho! Desde então, beijei-o sempre, de manhã e à noite. Quando o tiver aqui nos meus joelhos, havemos de passar a vida a brincar.
- Já é ter sorte!
Ambos haviam parado no limiar da casa.
--Tudo aqui é delicioso; o parque, o palácio encantado e a fada. O meu pupilo vai viver no paraíso. E, realmente, não me sinto com coragem para demorar a sua entrada no jardim da felicidade. Portanto, está combinado. Seria de mau gosto fazer-me rogado. Confiar-lhe-ei, em breve, aquilo que, no mundo, me é mais querido. E para dizer a verdade, tia Jane, o seu convite chega mesmo a propósito. Perguntava a mim próprio o que havia de fazer do sujeito, durante estes meses de férias...
- Só as férias não é nada: tem que mo deixar cá ficar mais tempo.., se não puder ser sempre!
- Nem sabe o que está a pedir, tiazinha. O Maurício não é nenhum anjo. É um bom diabrete, mas enfim, sempre é um diabito... Olhe que lhe vai dar muito que fazer.
- Ora! Está-me a meter medo.., Não acredito.
- Em todo o caso, quando o tiver aqui, por mais desagradável, ruidoso, maçador que ele seja, olhe que não poderá mandá-lo embora. Prometa-me que, faça ele o que fizer, aconteça o que acontecer, diga o que disser - que nunca o abandonará?
- Prometo. Juro mesmo, se é preciso, senhor tutor. Esta casa é dele. Só para ele a guardo, viverá aqui como quiser e todo o tempo que desejar.
- Bem! Então está combinado. Mas olhe que não esqueço o seu juramento!
- Nem eu. Quando o traz
- Daqui a oito dias será muito cedo?
- Acho tarde.
- Depois de amanhã?
- E amanhã? Preferia...
- Também eu. Não lho dizia, com medo de a incomodar. Virá cá jantar.
- E porque não almoçar? Não queria ficar a tarde inteira numa febril ansiedade, à espera dele...
- O Maurício está impaciente, também. Mas preciso de tempo para lhe arranjar as coisas. Não vou agora trazer-lhe o cavalheiro só com os seus lindos olhos. É preciso, pelo contrário, que venha todo elegante, para fazer honra à tiazinha. Se acha bem, chegaremos, com a nossa bagagem, logo que pudermos - mas depois do almoço.
- Mas o mais cedo possível, sim Queria já poder beijá-lo, cantar-lhe cantigas para o adormecer, passear com ele nos braços..,
- Isso cansá-la-ia muito... Pesa imenso, sabe É crescido, nada bebé...
- Para mim, será sempre um bambino. Ele que se faça pequeno para agradar a tia Jane.
- Muito bem. vou recomendar-lhe isso. Guiando o tutor através da casa, Jane,
admirada com o ar enternecido e o respeitoso silêncio do seu visitante, censurou-o:
- Estou ávida de esclarecimentos, quero que me conte uma data de coisas acerca do meu sobrinho e, afinal, nada me diz! Fale-me dele, peço-lhe!...
- Mas ainda não fiz outra coisa! Para variar um pouco, não desgostaria de lhe falar um pouco de mim.
M.me Louvier fez uma careta, mas tão bonita e garota, que o rapaz não se pôde zangar.
- Então o pupilo interessa-a mais do que o tutor?
- Mas sem comparação! - exclamou Jane, velando logo a espontaneidade da resposta com um olhar que pedia perdão pela indelicadeza. - Se, como disse, gosta assim tanto do Maurício...
- Imenso!
- Então, em vez de se zangar com a minha preferência, deve até agradecer-ma.
- Sim, sim... mas já que está disposta a encher o pequeno de mimos - não poderia guardar um bocadinho de ternura para mim?
- Creio que fui bastante amável para consigo, senhor tutor. De resto, já não é uma criança. Não precisa de ser amimado.
- Quem sabe?
- Ora! Irritá-lo-iam todos estes cuidados. .. julgar-me-ia ridícula, importuna...
- Talvez não!
- com certeza.
- Digo lhe eu que não.
Jane impacientou-se e respondeu, com volubilidade;
- Mas a si estou a vê-lo, Senhor tutor: oiço-lhe a voz, sei que tem vinte e oito anos, adivinho-lhe o feitio... enquanto que do meu sobrinho, ignoro tudo! Nada tem de extraordinária esta minha curiosidade, depois de tantos dias de espera, sempre com a ideia fixa na desejada criança! Queixa-se, quando afinal quem se deve zangar sou eu: nem sequer me disse que idade ele tinha?!
- Pois então nada lhe direi: nem idade, nem nada - respondeu o tutor, fingindo-se amuado. - O próprio Maurício lhe dará todas as respostas. E ditas pela sua voz, hão-de encantá-la muito mais do que se fossem proferidas pela minha. Não quero roubar-lhe a surpresa nem empanar o brilho da primeira entrevista; desejo que o felizardo beneficie, até ao último minuto, na sua imaginação exaltada, de todo o seu prestígio de criança misteriosa. A decepção chegaria sozinha e mais depressa do que julga...
- Faz mal em alarmar-me, em troçar da minha vocação maternal, senhor tutor, porque hoje, nada mais tenho no mundo!
Arrependido por ter zombado, o rapaz comoveu-se com o tom entristecido da voz de Jane e calou-se.
Subiram a escada. Ela estava contrariada por ele não tomar mais a sério o assunto. Por isso, muito grave, anunciou:
- vou conduzi-lo ao escritório do sr. Louvier.
Mais interessado do que ela supunha, o visitante seguiu-a, muito apressado. Na galeria, perguntou, indicando duas portas juntas:
- Não são aqui os dois quartos? O seu e o de Maurício?
- São.
- Adivinhei pelo perfume. Chega cá o odor das rosas e dos jasmins. Na minha qualidade de tutor, não poderei fazer a minha visita?
E como ela ficou atrapalhada, acrescentou logo:
- Não é o seu quarto que desejo ver, tia Jane, mas o do meu pupilo, o famoso paraíso alvo de neve.
Esta restrição não sossegou a rapariga. Embaraçada, confessou em voz muito baixa:
- Vai fazer outra vez troça de mim, senhor tutor, mas como já lhe disse, no terraço, quando lhe mostrei a janela, tenho a superstição de não deixar lá entrar ninguém, antes do meu sobrinho. Desejo que seja ele o primeiro a ver e a tocar nos objectos que lhe estão destinados: a caminha, a mesa, a secretária, os brinquedos. Quero que só ele estreie tudo isto. Será pueril, ridículo... talvez. Em todo o caso, tive tanto prazer em preparar as pequeninas coisas da casinha de boneca, que a presença de qualquer outra pessoa, lá dentro, parecer-me-ia uma profanação.
- Mas que feliz é o patifório do Maurício Tudo aqui é para ele, tudo lhe pertence! Não insisto, tia Jane, não profanemos o santuário.
E, lado a lado, passaram para o escritório.
Uma vez no gabinete, rodeados de estantes, a rapariga ficou surpreendida por ver o parisiense ainda há pouco tão escarninho, tornar-se de repente sério e mesmo grave.
- Uma sala feita para o estudo e para a concentração - proferiu com aquela voz comovida que, por instantes, tão bem havia impressionado Jane. - Neste recanto solitário há tempo para pensar, há tempo para viver.
- Será a sala de estudo do Maurício. Aqui dará as suas lições; e mais tarde poderá consultar os papéis, os livros, as recordações de família, de que estão cheias as estantes. Quando da sua última visita a esta velha casa, o tio Henrique colocou mesmo na gaveta desta mesa uma pasta, onde, em folhas soltas, ele anotava em forma de Diário os simples factos e impressões de cada dia. -
- E não leu essas folhas, minha senhora?
- Não. Henrique, quando vivo, nunca mas mostrou e depois de morto eu tive escrúpulo em as ler. O meu sobrinho lê-las-á um dia. Aprenderá, naquelas linhas já trémulas e febris, a conhecer, a estimar e a amar a memória de seu tio.
-Pode estar certa de que Maurício Lortain apreciará devidamente a sua delicada atenção. Tomará um extremo interesse e há-de ler essas páginas com todo o carinho impregnado de filial respeito.
Estas palavras apagaram do espírito de Jane as prevenções que as zombarias do parisiense lá tinham feito nascer. A dona da casa e o tutor tornaram a descer para o jardim, completamente reconciliados.
Fazia-se tarde. O visitante pensou que Jane não gostaria duma visita tão comprida.
No momento de se despedir, desejando entrar definitivamente nas boas graças dela, pediu desculpa por ter zombado, embora inocente e estouvadamente, da sua vocação de mãe.
- É verdade - confessou ela -, que ao princípio da nossa entrevista, julguei-o menos indulgente. Mas posso por acaso censurá-lo por ser mais alegre do que eu... que sou tão triste? Não se desculpe. compreendo perfeitamente que se admire pela extraordinária ternura que tenho pelas crianças e pela importância que dou a chegada do meu sobrinho. É uma coisa que o senhor não pode perceber. Eu própria sinto-o melhor do que o explico. Decerto há muitas mulheres como eu. Os homens não podem sentir como nós. De resto, deve ter tantas outras preocupações!...
- Neste momento, não. Renunciei às viagens. Exceptuando a preocupação que me causa o Maurício, e que não é pequena,
não penso agora em mais nada; ou quase...
No entanto, desde a minha entrada nesta adorável casa, onde a vida me parece tão calma, honesta, fácil, tão deliciosamente íntima... sabe qual foi a ideia que eu tive?
- Não sei.
-A ideia de que devia casar-me. Por isso, bem vê que a compreendo e que o meu coração é, mais do que nenhum outro, acessível aos sentimentos familiares.
- Mas que excelente ideia e que louváveis projectos! - exclamou a tia Jane, maliciosa, por sua vez.
- Então aprova-me! - exclamou ele, radiante.
- Mas com todo o coração; case-se o mais depressa possível, a mulher dar-lhe-á muitos filhos-... adorá-los-á e, definitivamente desligado do Maurício, desistirá dos seus direitos de tutor - e nunca mo levará. Não era isto que o parisiense desejaria ouvir. Pensou mesmo que Jane estava a fazer troça dele. Gelado por uma resposta tão desconcertante e tão diferente do que esperava, respondeu:
- Pois só lhe digo que, se eu casar, mais difícil será ficar com Maurício... Julgo mesmo que será impossível.
- Mas porquê? Seria para si uma preocupação a menos e eu ficaria doida de alegria.
- Não pense nisso, tia Jane - disse o tutor, secamente. - Gosto demasiado do seu sobrinho para me poder separar dele.
- Oh, como isso é aborrecido! - lamentou-se a rapariga, um pouco amuada.
- Agradeço-lhe muito o cumprimento!
- exclamou o rapaz, não em jeito de amuo, mas com uma careta furibunda. - Bem merecia que eu não lhe trouxesse o seu sobrinho amanhã.
- Oh, não me queira mal, suplico-lhe!
- implorou a rapariga com os olhos já molhados de lágrimas e juntando as mãos num adorável gesto de prece. - Torno a pedir-lhe perdão pelas minhas frases inconscientes e desastradas. Não julgue que lhe não estou grata. Por tudo o que fizer hoje, por tudo o que fizer amanhã, a fim de realizar o mais querido dos meus sonhos, creia que lhe agradeço e que lhe agradecerei até ao fim da minha vida.
- Fale assim sempre, minha querida tia, e ouvi-la-ei como se escuta um anjo.
com um último "até amanhã!», murmurado num respeitoso beija-mão, o rapaz afastou-se.
Jane dera a Jerónimo ordem de descer da escada, abrir a porta da rua e acompanhar o visitante até à estação.
Tomaram o mesmo caminho que tinham percorrido a chegada. Desta vez, Fayoux pôde ir silencioso à sua vontade. Sem mesmo notar que lhe não respondiam, o tutor falava sempre. Embora com a certeza de voltar, dizia que tinha imensa pena de se ir embora. Caminhava entusiasmado, exaltado pela recordação do belo dia passado naquele paraíso. Confessava ter tido a impressão de viver ali a verdadeira vida; sentira-se lá tão feliz que a si próprio jurava ser bondoso e amar todas as criaturas. Afirmava que era aquela a casa da felicidade, que o sol caía lá dentro como um sorriso de Deus e a brisa passava como a respiração da Virgem Maria. No seu exuberante entusiasmo, teve ainda assim a discrição de não dizer que nunca mais evocaria o romântico jardim, sem nele ver surgir a deliciosa figura sonhadora, destacando-se na sombra como uma aparição luminosa. Também não confessou que a súbita simpatia se transformara em comovida ternura, que não estava muito longe do deslumbramento do amor. Mas sem nada ouvir, Fayoux ouviu tudo ou antes: adivinhou. Caritativo, resolveu, mais uma vez, trazê-lo lá de cima, do sétimo céu para a terra. E decidiu-se a proferir algumas palavras:
- Como o senhor viu, o Rufin sempre nos saiu um indivíduo bastante mentiroso, não?
Esta simples frase foi o derivativo que Jerónimo esperava. A exaltação do rapaz, profundamente perturbado pelos clarões de esperança e dúvida, suscitados pela conversa com Jane, transformou-se em cólera furiosa contra o procurador.
- É um impostor da mais baixa espécie! Quero ir, agora mesmo, dar-lhe uma bofetada por cada uma das suas calúnias.
O camponês teve grande trabalho em acalmar o parisiense - que não tinha dúvida alguma em perder o rápido, e todos os rápidos no mundo para ficar naquela terra... Lá conseguiu levá-lo sem escândalo até à estação, mas só ficou satisfeito quando o viu dentro do compartimento e com a portinhola fechada. Já o comboio se afastava quando, tendo baixado o vidro, o parisiense estendeu a mão a Fayoux. Dentro, ia uma nota de cinquenta francos que o jardineiro não pôde recusar. Ficou convencido de que o pobre senhor estava completamente doido.
Virá?
- Jerónimo, venha cá. Ajude-me a pôr esta mala lá em baixo.
Sabendo que o tutor e o sobrinho deviam chegar depois do almoço, o jardineiro andava, com todo o esmero, a tratar do jardim, varrendo as ruas, aparando a relva, borrifando as flores-refrescando o ambiente para que tudo, como a dona da casa, estivesse em cuidada toilette. Embora a ordem da Paulina, em pleno trabalho, não viesse nada a propósito, Fayoux, sem resmungar, deixou a mangueira. Não ajudou a cozinheira, como ela lhe pedia" visto que a sua nepatite não lhe permitia fazer forças, mas emquanto ela dava os últimos retoques ao espelho, o jardineiro pôs a mala ao
ombro e desceu com ela. Cá em baixo, na escada, a mãe, a velha Dónia, disse-lhe que a senhora dera ordem para ele a pôr no carro pequeno e levá-la à estação.
- Tendo medo de vir aí mais trabalho, a criatura declarou à senhora que, em vez de partir daqui a oito dias, prefere ir hoje mesmo.
-Já sabia.
- A senhora ficou bem contente.
- E a mãe
- Eu também. É uma preguiçosa... não faz nada... só o que ela sabe é intrigar... Que alívio e que economia! Nunca me queixei dela para não importunar a senhora com histórias de criados ... Mas a verdade é que nos arreliou imenso, a malvada! Levava para o quarto a manteiga, o açúcar, o chocolate, a sobremesa, enfim tudo de que ela gostava... como se nós fôssemos ladrões ou uns gulosos e que precisassem de nos fechar as coisas... E sabes o que fazia Aquilo que não metia na barriga, ia revendê-lo ao Lureau, o ferro-velho! E a senhora que pagasse... e a gente que comesse os restos!... Eram-nos servidos três e quatro dias a seguir, sem, nem sequer, os aquecer. Mesmo que uma pessoa tenha boa boca, francamente...
- O que valia era a mãe fazer o caldo. Uma boa sopa vale por tudo.
- Para explicar como gasta o dinheiro, a desavergonhada dizia à senhora que tu bebias como uma esponja e comias como um lobo.
- Ora! Ora Se ela dissesse só isso!.. Não precisamos de ser bruxos para o adivinhar. Quando ela abria a boca até às orelhas e andava à roda de mim, como uma gata, eu rosnava logo, cá para os meus botões: "Hum!... Ela que me está a fazer rapa-pés é porque se fartou de falar mal de mim!...» Ainda não será aquela que a há-de fazer avó, descanse...
- Cala-te! Ela aí vem!
- Nem que a mala pese como chumbo, vou levá-la já daqui para fora como se fosse uma pena. Teremos a menos, na aldeia, uma terrível má língua...
Passados momentos, na íngreme rua, passava o Jerónimo, empurrando o carrito que gemia com o peso da mala. Mas ele ia com tal velocidade que nem parava para ganhar fôlego. De pernas curtas e saltos
altos, sempre a virar, a criada seguia-o, ofegante. Mas nem por isso deixava de expelir a bílis.
- Como lhe ia dizendo, eu podia lá ficar em casa duma patroa tão maçadora e somítica como aquela? Tudo aquilo é demasiado simples, ordinário, "muito povo», para mim. Imagine: esqueci tudo o que sabia! Preciso duma casa onde se dêem grandes jantares e bailes e có... coqueleifes, ou lá que é... Casa onde não haja chás com cento e cinquenta a duzentos convidados, não me serve. E quem há-de fazer as compras... sei eu muito bem quem há-de ser... Não acha?
Quando, por fim, espicaçado por inúmeros "não acha » o jardineiro se viu forçado a responder, fê-lo com a maior seriedade:
- Compreendo perfeitamente... Uma casa tranquila, honesta como aquela, não era a que convinha a uma pessoa no seu género... Quem sabe se o sr. Rufin, que não é simples nem modesto, nem ordinário, lhe dará todos os dias, para comer, passarinhos trufados e outros acepipes quejandos,,. Quanto a recepções, não tardará que haja uma, e de estrondo, na casa dele. Esteve para ser ontem, mas acho que não perde nada com a demora.
Como haviam chegado em frente da barraca do procurador, cuja porta estava entreaberta, o Jerónimo, sabendo que era inútil ir até à estação, parou o carrito ali mesmo.
- Ah! Vamos então ter uma recepção
- perguntou a criada, curiosa e estúpida. E o sr. Ernesto que nada me disse!
Jerónimo tirou a mala e pô-la à porta do escritório.
A criatura insistia:
- Mas que é que está para aí a contar O sr. Ernesto não sabia que ia haver uma recepção em casa dele? An?
- Não... O senhor de Paris, ontem, não teve tempo de se convidar para casa dele. Mas amanhã ou depois não falta...
- E o sr. Rufin não sabe nada?
- Pois não.
- Fez bem em mo dizer. Eu o prevenirei. Faremos tudo quanto é preciso, nada faltará... Não virá almoçar
- Não.
- Então é jantar?
- Também não.
- Ah! Não percebo. Cear?
- Virá cá para dar duas bofetadas bem puxadas ao cavalheiro que se chama Ernesto Rufin.
E, sem reparar no espanto da Paulina, acrescentou:
- Será para si uma bela ocasião de começar a prestar os seus serviços. O senhor de Paris conhece todos os desportos: a bengala, o boxe e o jogo de pau.
A mulher olhava-o, estupidificada:
- Confesso que não percebo nada.
- Ele compreenderá - respondeu Fayoux, extraindo da algibeira do avental um grande lenço de quadrados, para limpar as fontes.
Renunciando a desvendar o mistério e cheia de fatuidade, pensando que o jardineiro estava comovido, perguntou-lhe:
- Tem pena de que eu me venha embora, sr. Fayoux?
O homem pensou: "Não me podia dar maior alegria!», mas calou-se.
Ela ainda lhe fez mais algumas perguntas para o fazer falar.
Por fim, não querendo levar a delicadeza até à galantaria, respondeu:
- Não julgue que estou a limpar as lágrimas. É simplesmente a transpiração. Pode-se gabar de me ter feito suar até ao último minuto.
Não podendo tomar aquilo como cumprimento, embaraçada, Paulina tirou também o lenço da algibeira e disse:
- Realmente está calor!
- Olhe que suja o lenço, menina. O que lhe escorre da testa não é transpiração - é a tinta dos cabelos. Adeus, boa viagem.
E sem mais palavras, nem pensamentos vingativos, o Jerónimo pegou nos varais do carro e foi-se embora no seu passo firme e pacato.
A criada envolveu-o num olhar incompreensível e depois concluiu, não sem pena:
- Bonito rapaz... Mais novo e melhor do que o Rufin. Pena que seja maluco e intratável, realmente!...
E entrou na barraca.
Mal a criada partiu, logo o serviço começou a andar melhor. A cozinha e a copa foram lavadas e postas em ordem. A tia Sidónia arranjou mesmo tempo para, antes de preparar o almoço, ir arrumar o quarto da Paulína. Foi o que mais trabalho lhe deu, pois tudo estava sujo e em desordem.
Pelo seu lado, Jane havia preparado e enchido de flores o quarto de Maurício.
Em seguida, pela primeira vez depois de quinze ou dezasseis meses, a fim de agradar à criança, enfiou um vestido de musselina lilás, todo bordado - precisamente do mesmo tom do seu papel de cartas.
Esta toilette e a graça delicada do seu rosto ansioso, faziam dela, não uma castelã hierática, mas a fada esfusiante da habitação antiga. A própria casa, como sob o impulso duma varinha de condão, tomava o maravilhoso aspecto dum palácio de verdura e flores.
O almoço foi servido à hora exacta, o que nunca acontecera anteriormente. O menu era simples mas apetitoso. com as economias que ia agora fazer, Jane pensava já em amimar com mais cuidados o tão desejado sobrinho.
Como a presença de Dónia, desembaraçada mas discreta, contrastava com o barulho insolente, contínuo, atabalhoado da Paulina!
Sentia em seu redor um ambiente de franqueza, bem-estar, uma familiar intimidade de que havia muito tempo se sentia privada. Para evitar censuras indelicadas ou respostas enervantes, M.me Louvier, durante as refeições, falava à criada o menos possível. Mas o próprio silêncio se tornava agressivo. com a velha Sidónia, a conversa tornava-se amigável, chegando mesmo a ser confidencial.
Dónia referiu-se à visita da véspera, dizendo como o filho achara o tutor afável e generoso.
- O meu rapaz que, francamente, não é de amizades novas, ficou logo à vontade com aquele senhor, nada orgulhoso. Falou-lhe não de senhor para criado, mas realmente como se se conhecessem há imenso tempo. Embora muito satisfeito com a sua condição de jardineiro, o meu filho, quando quer, também sabe falar. E ele, que não gosta de tratar com gente da alta que, em geral, não liga aos pobres, com aquele .bom senhor sentiu-se logo à sua vontade. Bem se vê que não é nenhum novo-rico! Se não tivéssemos tido a sorte de encontrar uma ama como a senhora, desejaríamos ter um patrão como ele.
Jane estava calada. Pensara tanto no pupilo, ao receber o tutor, que as observações de Sidónia não a impressionavam. Mas como não mostrava que o assunto lhe desagradava, a criada continuou:
- Eu mal vi o senhor, quando ele entrou cá em casa. Pareceu-me elegante, muito alto
- um lindo rapaz!
Jane fez um esforço - um esforço não muito grande - para evocar na memória a silhueta do desconhecido. Sem afectação, confessou:
- Realmente, achei-o muito bem. Mas enquanto falávamos, tinha o espírito tão ocupado com o meu sobrinho que não prestei atenção a mais nada. Durante todo o tempo que durou a nossa conversa, pairava sempre entre nós, como por encanto, a miniatura do bebé louro e risonho que eu adoro. Posso dizer que o vi vagamente, numa espécie de névoa e por detrás da imagem infantil. Embora pareça mentira, minha boa Dónia, ser-me-ia difícil dizer-lhe se o tutor é vesgo e se o seu nariz é direito ou torto.
- Pois eu digo-lhe que não olha contra o governo e que o nariz, o tem bem ao meio da cara! Quando um dos olhos via a senhora, posso afiançar-lhe que o outro não olhava para mais ninguém. Se a senhora não pensava senão no pupilo, quis-me parecer que ele não pensava senão na senhora. Lia-se-lhe nos gestos, adivinhava-se-lhe nos olhos, sentia-se-lhe na voz: a alegria de encontrar nesta velha casa uma tia tão linda como a senhora.
- Pois olhe, Sidónia, acho que, para quem olhou pouco, viu muito. Que faria se ele se tivesse cá demorado e falado consigo, an Eu não dei por nada disso, creia. De resto, não tem importância.
- Ah! Eu julgava que a senhora, quando mais não fosse senão para ficar com o menino, desejaria estar em boas relações com o tutor.
- Claro, mas não é lá por ele ter o nariz direito ou à banda, que eu tenho mais probabilidades de ficar com a criança. Por isso, não reparei. E afinal tem razão devia ter olhado melhor. Não me lembrei de que a sorte do Maurício e a minha dependiam dele!
- Se o parisiense gostar tanto do pupilo como a tia do sobrinho, tê-lo-emos cá muitas vezes. E a casa tornar-se-á assim muito mais alegre. O menino será um laço entre as pessoas crescidas.
A rapariga, a quem já não agradava nada que outra pessoa tivesse direitos sobre o sobrinho, franziu levemente as sobrancelhas. Intimidada, a velha criada perguntou:
- Não incomodo a senhora com a minha tagarelice
- De forma alguma, Dónia. As suas palavras são-me úteis, fazem-me reflectir em muita coisa que passou despercebida no deslumbramento da minha alegria. Na verdade, não há apenas o sobrinho... há também o tutor - infelizmente!
-Serei indiscreta perguntando à senhora o nome dele
Ouvindo esta interrogação, afinal bem simples e prevista, Jane corou e ficou perplexa, surpreendida com a sua absoluta ignorância.
- Parece impossível! Não sei como se chama! Imagine, Dónia, que nem sequer pensei em lho perguntar!
- Nem ele em lho dizer
- É extraordinário, inacreditável! Mas onde tinha eu a cabeça? Em face dessa sua pergunta, fico outra vez cheia de inquietação. Ora supúnhamos que ele muda de ideias e já não me traz o Maurício.. Aí estou eu outra vez aflita e sem ter nada a que recorrer... exactamente nas mesmas condições em que me encontrava antes de ele vir! A quem havia de escrever para exigir o cumprimento da promessa?
- Ao seu sobrinho... e para a mesma morada. Mas sossegue, minha senhora, verá como ele volta e mesmo antes da hora marcada ... Punha as mãos no fogo!
- Obrigada por me dar confiança, Dónia. Realmente, o nome do tutor era a primeira coisa que eu devia ter perguntado. É um esquecimento imperdoável, de que podem resultar novas demoras e mais complicações ... Que desespero se tenho de passar ainda por outras alternativas de esperança e decepção!
- Sossegue, minha senhora, então... garanto-lhe que ele não faltará à sua palavra. O seu único desejo é agradar-lhe. Acha os seus olhos lindos de mais para os fazer chorar...
- Mas que está para aí a dizer, minha boa Dónia? Que me ache feia ou bonita, não me interessa nada... contanto que me traga a criança! Estou desejando brincar às bonecas...
Depois de alguns momentos de reflexão, acrescentou:
- Afinal, tem razão. É melhor que eu agrade ao tutor. Conceder-me-á mais facilmente o que eu quiser. E o que eu desejo, bem sabe, é ter o Maurício sempre comigo! Bem sei que sou maçadora, constantemente a falar na mesma coisa, mas é assim mesmo... pronto! Lá o resto não me preocupa.
- Talvez preocupe o tutor. A propósito, previno a senhora de que o quarto de hóspedes) o verde, está prontinho. Se o menino estranhar, bem terá o tutor de cá ficar até que se habitue a nós todos. O senhor estará ali muito bem.
- Oxalá não seja preciso! - exclamou Jane, deveras contrariada.-Eu, que tinha pensado em ficar sozinha com ele, travarmos conhecimento, tornandos-nos logo bons amigos! Diante do tutor não saberei falar ao pequeno, nem amimá-lo como desejo. Meu Deus! Como este tutor me dá que fazer! A Sidónia lembrou-se de mais uma coisa em que eu nem sequer tinha pensado... e que me desola! Mas fez bem em preparar o quarto. Oferecê-lo-ei... mas espero que não aceite.
Acabado o almoço, inquieta com o seu estouvamento que lhe fizera esquecer as coisas primordiais, Jane foi dar uma vista de olhos pelo jardim. O Fayoux lá estava ainda.
-Olhe que a sua mãe já o chamou, Jerónimo. Vá almoçar.
- O céu favorece-nos com um lindo raio de sol. Então porque não hei-de eu de o ajudar com o meu ancinho? Mas vou à sopa. Está tudo pronto. Tenho empenho em que o aspecto da nossa velha casa agrade ao patrãozinho pequeno, faça honra à patroa... não esquecendo o jardineiro!
- Obrigada. O seu jardim está soberbo. E agora vá. bom apetite.
Percorrendo as áleas, passeando no terraço, a rapariga não deixava de olhar para o relógio. Parecia-lhe que os ponteiros estavam parados.
- Naturalmente vem no rápido das duas
- pensou.
Imaginava já a chegada do comboio num turbilhão de fumo e pó; tinha a impressão de ouvir o formidável ranger dos travões. Abriam-se as portas. Fremente, Jane via-se no cais, procurando, não o tutor, mas o pequenito de olhos azuis. E murmurava:
- Tantas vezes contemplei o retrato que sou capaz de o conhecer entre cem, à primeira vista e sem o auxílio de ninguém. Julgo sentir já os meus lábios tocando na sua carne de pétala. Ah! este beijo tão desejado e nunca dado, que doçura! Porei nele toda a minha alma. Verá logo como lhe quero.
Pegar-lhe-ei na mão e nunca mais a largarei ... E, exactamente como se as pulsações do meu coração fossem o bater de asas, terei a sensação de felicidade que deve experimentar a avezinha cujo filho partiu cedo de mais e que ela desesperara já de tornar a ver!
Em vez de lhe acalmar a febre, esta visão ainda lhe aumentava a Impaciência, agitando-lhe os pensamentos.
À uma e meia, não resistiu mais. Voltou para casa, foi ao vestíbulo, pôs o chapéu, empurrou a porta que dava para a cozinha e preveniu a Dónia de que ia à estação esperar o sobrinho.
Daí a momentos, estava na rua. Passava em frente do presbitério quando a grade se abriu. E encontrou-se em face do padre Bouín, abade de Sivry. Logo na segunda visita que lhe fizera, não resistira à tentação de lhe falar no sobrinho. E agora anunciou-lhe que chegava daí a minutos.
- Se quiser, sr. abade, vá esta tarde lá a casa - convidou, muito feliz por poder anunciar tão alegre nova - e apresentar-lhe-ei o seu novo discípulo. Combinaremos os dias, as horas das lições. Acho que deve ser muito novo para começar já com o latim. O sr. abade verá. Mas peço-lhe que não o fatigue no primeiro mês. Passe-lhe umas lições muito pequenas, sim O que ele precisa, antes de mais nada, é de gozar umas belas férias.
O bom cura riu-se alegremente:
-Toma-me então por um bom professor para as férias, não é Ora muito obrigado! Pois digo-lhe que, embora gordo e velho, posso plenamente corresponder à sua confiança e realizar os seus votos, ensinando ao petiz como se deita um pião, se joga à barra, o croquet e também a malha. Sim, senhora, isso é que me vai rejuvenescer!
Jane sorriu, mas apressou-se acabar a conversa.
- Desculpe-me por o deixar já, sr. abade... mas tenho medo de não chegar a tempo. Deus me livre!
O sacerdote despediu-se logo e ela continuou o seu caminho.
No cais, a espera tornou-se ainda mais ansiosa. Por fim o comboio chegou. Jane colocara-se em face da saída. com o coração a bater, procurando-através de vários grupos bastante compactos de sombrinhas e chapéus de palha, que enchiam o cais - ver a criança ou o tutor, viveu então as diversas emoções pressentidas no jardim da velha casa. Os passageiros desapareciam a um e um. Começavam a surgir espaços entre os que restavam e, por fim, a pobre Jane ficou quase sozinha.
Cada vez mais inquieta, perturbada por cada novo rosto desconhecido e indiferente que via, teve a impressão de que todas as suas esperanças se espalhavam, rolavam, desapareciam na voragem da desilusão.
O comboio tornou a partir, a grade fechou-se de novo. Ninguém! Só a Jane l
- Não veio! Nem sequer o tutor!...
Não podia convencer-se de que não tinham vindo. Quem sabe se estariam a tratar da bagagem?
Foi para o lado do armazém, fez várias perguntas. Os empregados não haviam visto nem o cavalheiro que ela descrevia nem o menino de cabelos louros e olhos azuis.
Encontrando-se sozinha na praça deserta, Jane sentiu o coração apertar-se-lhe numa terrível sensação de vácuo. Subiram-lhe as lágrimas aos olhos e nada mais viu, nem mesmo a barraca do procurador que parecia abandonada e que, pela primeira vez, havia dois anos, tinha a porta e as janelas fechadas.
Tudo imaginara, tudo temera, menos que o tutor faltasse à sua palavra! Que terrível decepção! Teve a ideia de estar outra vez enovelada em ansiedades e dúvidas, ainda piores do que as da semana passada, Para voltar a casa, atravessou lentamente o largo, pálida, de cabeça baixa e coração magoado.
De repente, Sidónia desembocou da travessa que ia dar ao rio. Correu para a ama, afogueada e com a respiração ofegante.
- Já chegou, minha senhora. Veio de automóvel.
- Ah! Que felicidade! - exclamou Jane, que no auge da alegria ficou tão corada como a velha.
Ambas, lado a lado, apressaram o passo, enquanto trocavam algumas palavras.
- Estava a arrumar a louça na sala de jantar, quando ouvi um resfolegar de motor. Ergui a cabeça e vi o carro parar. Ah! É um automóvel lindo, minha senhora. Acho que é limousine que lhe chamam.,. Vinha cheio de malas de couro, todas muito bonitas e ricas.
- Sério?
- É o que lhe digo. O Jerónimo e o chauffeur tiveram que fazer para as pôr cá fora. Vai ver que fica tudo cheio: o quarto verde, o branco, o escritório...
- Mas o meu sobrinho... o Maurício? Eu que tanto queria ser a primeira a vê-lo!
- Sossegue, minha senhora, vai vê-lo antes de mim... eu não tive tempo senão de deitar os olhos para o chauffeur e para o carro. O tutor, que tinha baixado o vidro, debruçou-se e gritou-me:
" - Olhe, faz favor chama o jardineiro. Previna M.me Louvier. - E sem me preocupar com mais nada, chamei o meu filho e desatei a correr para aqui. Vim pelo terraço e tomei pela porta pequena...
- Naturalmente o menino estava no fundo do carro, atrás do tutor... com certeza foi por isso que o não viu.
- Pois foi. Mas eu só pensei na senhora, para que não estivesse muito tempo à espera. Pena foi que não lhe pudesse poupar a decepção.
- Obrigada, Dónia. Realmente teria feito melhor se tivesse ficado em casa, tranquilamente, a esperar. Mas perdi a paciência, a minha imaginação começou a galopar. .., e afinal não estava à chegada de quem eu tanto desejava! Esta gente de Sivry, o próprio senhor abade julgam que em casa dos Louvier habita uma senhora calma, reflectida e ponderada... e afinal quem lá mora estou vendo que é uma estouvada!
- Console-se, minha senhora: quando uma alegria é retardada ainda se torna mais viva.
Chegou!
Passando adiante da criada, Jane correu pelas escadas, atravessou o terraço, enfiou pela rua mais directa e só parou no vestíbulo.
Aí ouviu no primeiro andar o pesado passo de Jerónimo, que acabara de levar para cima uma grande mala. Pela porta da rua, ainda aberta, M.me Louvier viu a famosa limousine que, segundo a informação de Dónia, lhe pareceu com efeito muito luxuosa.
No mesmo instante, vendo entrar, carregado de maletas, um chauffeur de farda, Jane perguntou-lhe nervosamente:
- Onde está o sr. Maurício?
O homem cumprimentou e respondeu:
- O sr. Maurício está no salão, minha senhora. Espera por V. Ex.a.
Jane precipitou-se, abriu a porta e encontrou-se em face do tutor.
Enquanto ele lhe beijava a mão, a rapariga, pálida, desconcertada, sem forças para pronunciar a mínima frase de bom acolhimento, perscrutou todos os cantos da sala como se a criança pudesse estar escondida, e balbuciou;
- O menino Então não o trouxe
- Veio comigo - disse o rapaz que amavelmente sorria, embora estivesse bastante perturbado com a atitude esgazeada de Jane.
- Mas eu não o vejo... Onde está ele? No jardim? No quarto Responda! Está a ouvir Responda-me!
Ele hesitou ainda um segundo, mas depois, vendo a ansiedade crescente de Jane, confessou:
- O seu sobrinho está aqui diante de si. Eu é que sou Maurício Lortain!
Olhava-a ternamente, não rindo, mas esforçando-se por lhe sorrir. E os seus olhos, cheios de ternas desculpas, pareciam suplicar à rapariga que aceitasse a situação com alegria, exactamente como ele fazia. Não achava ela que estavam vivendo uma aventura encantadora e alegre - nada trágica?
Infelizmente, Jane estava, na verdade, enfeitiçada pela imagem do bebé louro; os seus pensamentos haviam-se concentrado durante muito tempo no mesmo objecto; a sua alma tinha-se deixado demasiadamente embalar pela tão querida ilusão para aceitar plàcidamente este fulminante golpe teatral.
- O senhor, o senhor é que é Maurício Lortain O senhor... é o meu sobrinho repetiu ela, numa voz abafada, sem timbre,
E muda, desfalecida, como tomada de vertigem, deixou-se cair no sofá.
Para não o ver, fechou os olhos e escondeu entre as mãos trémulas o rosto, ainda mais pálido do que há bocado - a sua pobre cara tão linda, amargurada de dor.
Lortain esperava alguma surpresa ou comoção, mas nunca esta decepção profunda e acabrunhada. Se ele fosse mais vaidoso, como o seu amor-próprio ficaria amarrotado! Mas Maurício, vendo as lágrimas correndo entre os dedos esguios da tia, pensou mais nela do que em si próprio.
Sentando-se junto de Jane, mas reprimindo o seu desejo de lhe passar a mão pela cinta, tentou consolá-la, em voz baixa, com tudo o que a sua ternura o aconselhava a dizer de doce e reconfortante.
- Estou aterrado, minha querida tia. Nunca julguei causar-lhe um pesar tão grande... E afinal eu desejava exactamente o contrário disto. Mas está realmente assim tão desiludida?
- Oh! Estou, sim. Tenho um desgosto enorme! - soluçou Jane, incapaz de fingir, sem mesmo pensar que ia melindrar o rapaz com a sinceridade das suas respostas. Ora veja! Há uma data de dias que eu não penso noutra coisa senão em ver realizada a minha doce vocação de mãe, e quando, vibrante de ternura e de emoção, embriagada de felicidade, venho a correr julgando poder fazer saltar nos meus joelhos e apertar nos braços o pequenino tão apaixonadamente desejado, encontro-me...
- Em frente de um indesejável gigante de vinte e oito anos! Realmente foi uma grande desilusão, minha pobre tia! compreendo perfeitamente as suas lágrimas... mas pode ser que elas lhe escureçam a vista... Se consentisse em limpar os seus olhos encantadores e fitá-los um instante em mim, examinando-me melhor... talvez com um bocadinho de boa vontade chegaria, apesar de tudo, a reconhecer no meu rosto de mau rapaz as feições do encantador bebé louro.
- Oh! Não, isso de nada serviria! exclamou a rapariga, sem se dignar olhar para Maurício e obstinando-se no seu desgosto. - Não se parece nada com a miniatura ... A prova é que nem um momento desconfiei que o senhor fosse o sobrinho de meu marido.
- E também sou seu sobrinho, minha tia. Seu sobrinho.
- Parece impossível! Nunca me poderei habituar a esta ideia insensata e desoladora.
- É extraordinário! Pois eu habituei-me imediatamente. Logo no primeiro encontro, assim que a Vi, no alvoroço da minha surpresa extasiada... e longe de me parecer desoladora ou risível a aventura, parece-me pelo contrário, inesperadamente nova, picante, feliz e romanesca! Ah! se a tiazinha não chorasse, como seria agradável viver este momento!
Lortain falava com a voz cheia de ternura. Tinha delicadamente pegado na mãozinha alva de Jane e tentava retê-la, cativá-la nos seus dedos com uma pressão ligeira, carinhosa.
A linda Jane nada respondia; mas a sua mão procurava fugir como um passarinho, assustado que quisessem meter numa gaiola.
- Quanto a mim - continuou Maurício-, desde sempre, desde a morte de meu pai e de minha mãe, ninguém mais tornou a querer-me. Que felicidade encontrar agora não uma tia feia, áspera e antipática, como ao princípio julguei que era, mas pelo contrário uma adorável tiazinha de vinte anos.
- E eu - gemeu a rapariga - dava-lhe o máximo seis ou sete anos e, afinal, tem pelo menos trinta.
--Vinte e oito, minha tia, vinte e oito, já lho disse... Não acha bastante?
- Acho de mais!... Um sobrinho mais velho do que a tia! É uma coisa anormal, estúpida, grotesca, ridícula!
- Acontece todos os dias! E alem disso, eu tenho alguma culpa? Serei um criminoso? Se quiser, pedir-lhe-ei perdão por ter nascido, sem sua licença, oito anos antes de si.
É vendo-a mais bem-disposta, explicou;
- Minha mãe tinha só menos dezoito meses do que o irmão. Casou com vinte e três e eu nasci três anos depois do casamento. Nem sequer me pode acusar de ter tido pressa em vir a este mundo! O meu tio teria hoje cinquenta e sete anos e a minha mãezinha .cinquenta e quatro. Ora faça cálculos, tia Jane: tenho normalmente vinte e oito anos. Não é? O que vê de extraordinário em tudo isto?
E, esforçando-se por a serenar e enternecer, narrou-lhe a sua infância, sombreada pela morte dos pais. Felizmente herdara uma grande fortuna. Servindo-se da zanga existente entre o irmão e a irmã, um primo dos Lortain fizera-se nomear tutor e metera-o no colégio interno. Sem mais se embaraçar com ele, administrara-lhe a fortuna e recebera os rendimentos, enquanto que o tio Louvier, por altivez e escrúpulo, não quisera nunca imiscuir-se nos negócios dum sobrinho que era muito mais rico do que ele. Quando o tio Henrique, já doente, cheio de remorsos, tentou aproximar-se do sobrinho, era tarde de mais. Afastados, sem se conhecerem, um tinha crescido e o outro caminhava para O fim. Não Podiam acusar-se mutuamente de negligência e desinteresse. No entanto, tornado homem, Maurício lembrava-se sempre do que M.me Lortain lhe dissera acerca da felicidade da sua infância, da paz e do encanto da velha casa.
Por mais de uma vez, o rapaz perguntara a si próprio por que motivo, sem ter culpa nenhuma, se encontrava banido da habitação familiar... As viagens haviam-no distraído, ao princípio. Depois, as suas acerbas impressões de isolado tinham voltado, mais agudas e lancinantes.
Na esperança de comover Jane, o rapaz insistiu nas tristezas de eterno exilado. Ela não sabia o que isso era Não haveria, no seu passado de órfã, alguns incidentes, ideias, factos que, pela semelhança, fizessem nascer entre ambos uma amizade duradoira e até mesmo um sentimento mais doce
Jane sofrera toda esta melancolia, havia ainda bem pouco tempo, mas a ideia da desejada criança tudo fizera esquecer. Por isso, não ficou tão comovida como o rapaz esperava. Era do outro desgosto, mais recente e vivo, que ela estava inconsolável.
Por sua vez, repetiu a Lortain o que lhe escrevera: o achado do retrato, cujas cores tão frescas e o vestido, que não tinha moda, lhe haviam dado a impressão de se tratar dum retrato recente. E pensar que aquela miniatura já tinha uma data de tempo!
- Era preciso que eu estivesse realmente desejosa de ter comigo um bebé, para cometer tal leviandade! Julgar que era de há quatro ou cinco anos, o máximo!
As lágrimas já não corriam. O rapaz continuou:
- Exceptuando a minha idade, todas as outras previsões estão certas. Soube pelo meu tutor que a minha mãe, depois de enviuvar, sentindo-se perto do fim e desejando ardentemente reconciliar-se com o irmão, lhe mandou esse retrato, com a secreta esperança de o comover sobre a minha situação, assegurando-me um bom guia e protector. Foram os primos de meu pai e o meu tutor que se interpuseram. Mas hoje o desejo da minha mãezinha encontra-se realizado, visto que regressei ao lar dos meus antepassados. Pode ter a certeza, tia Jane, de que, se o seu marido, na última visita, colocou o meu retrato sob os seus olhos, foi na intenção de lhe sugerir isto mesmo que fez: chamar-me a esta casa. Como a tiazinha compreendeu bem o que ele queria! Obrigado...
O rapaz ia conseguindo fazer vibrar a corda sensível do coração da rapariga, erguendo-o ao nível do seu próprio entusiasmo. Menos esquiva do que há pouco, ela confessou:
- Realmente, há uma certa verdade em tudo o que diz, sr. Lortain...
- Ah! Então trata o seu sobrinho por senhor? O meu nome não é Maurício?
- Sim. Maurício. - replicou ela, enquanto se ruborizava, confusa.
- Que ia dizer?
- Que, apesar de me parecer agora sincero, o certo é que não hesitou em... em me enganar ontem...
- Eu Nunca! Não fui eu: foi o miserável Rufin que embrulhou tudo, dizendo-lhe que o Maurício era uma criança sofredora e infeliz... Julgando que a afastaria de mim, por egoísmo, afinal aproximou-a por compaixão ... E a mim, também me enganou odiosamente, dando-me a entender que era uma criatura rabugenta, intriguista e gastadora... e além de tudo isso, pior ainda: velha e feia.
- O quê Pois ele disse-lhe que eu era velha e feia - indignou-se Jane. - Ele disse?...
E a sua voz traía um tal despeito que não se julgaria vinda duma rapariga tão séria e tão desiludida. Quem sabe? Talvez a tia Jane ainda não estivesse completamente indiferente ao espelho e à garridice!...
Neste momento, dava mesmo a impressão de não estar nada desligada das vãs frivolidades da vida»..
- Sim, senhora, velha e feia - insistiu Maurício, que cada vez era ouvido com mais atenção.
- Idiota! Imagine que aquele monstro teve a ousadia de me pedir em casamento! É claro que o mandei passear. E agora vinga-se... Velha e feia!
Contou a cena que se passara e a aparição do Jerónimo com a forquilha.
Furioso, Maurício renovou a promessa de lhe ir dar duas bofetadas.
- E duas não bastam. O patife quis impedir que eu a conhecesse. Sem o Jerónimo, teria partido logo no comboio... e fui bastante estúpido para acreditar nele!
- Então, se o jardineiro, com o seu espantoso faro, não tivesse ido à estação...
- Claro! Devemos... - e como Jane franzisse as sobrancelhas, rectificou - Devo imenso ao Jerónimo!
- Mas então por que motivo, ao chegar aqui, não disse logo que era o meu sobrinho?
- O Rufin atribuiu-me esta missão de tutor... Continuei a desempenhar o papel...
Não creia que foi por velhacaria ou leviandade, tia Jane... Foi, pelo contrário, na melhor das intenções... Aquele bandido não só disse que era velha e feia, mas afirmou também que era pobre, necessitada, vivendo de expedientes... O silêncio de Fayoux não aclarou nada a situação, e eu não queria, caso isto aqui me desagradasse, que o sobrinho, recusando a oferta da tia, tornasse esse acto brutal e indelicado. Vinda do tutor, tal atitude nunca poderia ofendê-la.
- Bem. Mas depois...
- Depois fiquei entusiasmado com a velha casa e com a sua castelã. E, nessa altura, outro receio me assaltou. Não sendo eu o querubim de cabelos louros que esperava, temi que, desiludida, voltasse atrás com a sua palavra... Infelizmente neste ponto não me enganei muito!... Mal soube quem eu era, começou logo aos soluços - espectáculo um tanto humilhante para mim, concorde. Esta decepção, que eu queria evitar-lhe, a minha querida e doce tia não teve o mínimo pejo de ma lançar em rosto, nesse tão grande desgosto que eu não compartilho, creia...
A censura era merecida. Mas Jane não se mostrou nada contrita. Pensativa, não respondeu.
Alarmado temendo que ela se arrependesse do que escrevera, Maurício achou prudente pôr tudo nos devidos termos:
- Assegurou-me ontem que eu seria bem acolhido na casa dos meus antepassados. Ora hoje, tenho a impressão de aqui estar como um intruso. A tia disse: a Aconteça o que acontecer, juro-lhe que hei-de amimar o meu querido Maurício; amá-lo-ei, tê-lo-ei sempre comigo, nunca o abandonarei!» Ora diga-me: foi procurar o pássaro caído do ninho, fez-lhe entrever a felicidade, simplesmente para agora o expulsar
Jane estava acabrunhada, Murmurou em voz fraca:
- Isso é verdade. Levada pela minha imaginação, persuadida de que se tratava dum pequenito de quatro a cinco anos, prometi isso tudo, como uma estouvada que sou. Pois agora, não tenho outro remédio: mantenho a minha palavra! Está em sua casa, senhor meu sobrinho. Vá, venha, ande dum lado para o outro, disponha as suas coisas como quiser. Tem o escritório às suas ordens e também o quartinho branco. Tome.
Sem o olhar, estendeu-lhe o molho das chaves, com mão trémula. Confuso, perturbado pelo desgosto que lhe causava, ele implorou timidamente:
- Então a tiazinha não quer fazer-me as honras da minha nova casa?
- Já a conhece. Ontem mostrei-lhe quase tudo. Não se perderá.
- Não me levou ao quartinho branco...
-'- É melhor entrar lá sozinho - respondeu Jane, em voz desconsolada e lassa. Depois dos belos sonhos que fiz, seria para mim um grande desgosto ter de levar lá... um sobrinho tão crescido! E já que a minha tristeza é para si uma humilhação, não me obrigue a ir...
- Eu não a obrigo a coisa nenhuma, tia Jane. Mas acho que não me sentirei bem nesta casa, se não tornar a ver depressa o seu lindo sorriso...
Mas Jane não teve coragem para sorrir. E, preocupado, nada satisfeito, Lortain deixou o salão para dar ordens ao chauffeur e proceder à sua instalação.
A questão do alojamento
Ficando só, Jane tentou, em vão, reagir. Quanto lhe custava renunciar à existência sonhada e como tudo quanto sofria era diferente do que idealizara! Estava triste e desorientada. Como se havia de resignar a ter um sobrinho mais velho do que ela, assim resoluto, activo e rico? De protectora transformava-se em protegida. Mas que mudança tão grande! Sentia-se quebrada, sem forças nem energia.
"E não se tratava de nenhuma brincadeira. Não me teria divertido; pelo contrário, havia de desempenhar o meu papel de mamã - do princípio até ao fim. Sabia bem o que havia de fazer em todos os casos e que responsabilidades assumia. Como sentiria o coração a vibrar! E agora Em que situação falsa me encontro envolvida! Que dirá esta gente de Sivry? Como proceder sem dar lugar à má língua? Fazendo estouvadamente aquele juramento que ele não exigia, em que camisa de onze varas me vim meter?»
E, agitada, Jane deu reviravoltas à imaginação durante muito tempo. Mas nenhuma solução encontrou para o problema.
Quando Sidónia entrou, perguntando se havia de servir o chá no salão ou no jardim, Jane levantou-se e disse:
- É melhor lá fora, Dónia. Aqui abafa-se. Estou cheia de calor, até parece que tenho febre.
No terraço, à sombra perfumada das tílias, Jane pareceu acalmar. Enquanto ia estendendo a toalha bordada e dispondo as chávenas junto dos guardanapos, a velha criada permitiu-se arriscar algumas observações:
- Ora cá temos a senhora outra vez desorientada. Eu, que tenho um filho tão calmo... hão sei se foi por ter visto tanta desgraça na guerra... não compreendo como haja pessoas que se possam afligir assim tanto como a senhora e por nada, afinal...
- Por nada? Se soubesse...
- Eu sei, minha senhora. Então julga que o Raul, o chauffeur, é surdo-mudo? O rapaz, que parece um "cara direita», já nos esteve a informar. Foi apenas um mal-entendido.
- E não acha isto horrível?
- Eu não, minha senhora. Seria terrível se o seu sobrinho fosse um assassino... ou um sujeito como o Rufin. Mas, graças a Deus, estamos longe disso. O sr. Maurício é um senhor como se quer e nada orgulhoso com toda a sua riqueza. E pelo que diz o Raul, não é só rico, mas também generoso. Para que um criado diga bem do patrão, só lhe digo que tem de ser a perfeição em pessoa.
-Vejo que o sr. Lortain tem toda a sua simpatia, Dônia.
- Lá isso, digo que sim. Tem uma
forma de falar com a gente que chega mesmo ao coração, parece que a gente o conhece já há mais de dez anos. Assim que o vi, gostei logo dele. Não tem sorte o senhor... foi só no gosto da velha criada que ele caiu... E como gostaria de ter antes agradado à senhora nova!
Jane corou e não respondeu directamente
- Admitamos que este engano não é trágico. Mas há-de concordar que é triste!
- Seria triste... se o sr. Lortain não fosse uma, pessoa alegre. Mas assim... Encontrando uma tia como a senhora dentro da casa familiar, a sua alegria via-se tão bem que a gente até ficava comovida! A senhora não deu por isso?
- Eu? Tinha mais em que pensar!... Desiludida como estou! E para sair desta situação, que hei-de fazer? Eu que tencionava passar a vida entre o culto do passado e o futuro do meu sobrinho!
- Então, e o presente não conta? O passado é dos mortos; o futuro vive-se nos sonhos. Só o presente é certo - esse é que nós temos de o passar com os vivos, iguais a nós. Nada de dizer mal do dia de hoje! Não seria prático, nem ajuizado!
- É uma filósofa, Dónia.
- Não posso dizer-lhe se sou ou deixo de ser, porque não sei o que é. Só não desejo que a senhora se ofenda com as minhas palavras.
- Que ideia! Adoro a franqueza!
- Então... ainda não acabei o meu discurso.... A senhora desculpe, mas sempre lhe digo que, sendo bondosa com toda a gente, acho que é injusta e até màzinha com o sr. Maurício.
- Eu?
- Então não dizia que seria o dia mais feliz da sua vida, esse da chegada do seu sobrinho
- Sim...
- E afinal está tão triste que até dá vontade de chorar. Ele, que se sentia tão feliz, ontem, como está hoje pouco à vontade! Teria pena dele se o visse: não sabendo onde ficar, anda sozinho pela casa toda, como uma alma penada, salvo seja!
Nisto, a campainha do portão fez-se ouvir. A Sidónia terminou o seu aranzel:
- Estão a bater à porta. É mesmo de propósito, para me lembrarem que estou a meter-me onde não sou chamada. vou abrir.
- Deve ser o sr. abade. Que entre para aqui. Tomará o chá comigo.
- Daqui a pouco está tudo pronto. Antes de servir chamo o sr. Maurício
- Pois... que remédio
Depois de ter visitado rapidamente o quartinho branco, Maurício, perplexo e sem saber o que havia de fazer, andava pelos corredores, descia ao rês-do-chão e depois tornava a subir ao primeiro andar, sempre na esperança de um encontro. Por fim, refugiara-se no escritório do tio Henrique. No meio das recordações, livros, bibelots e retratos de família, teve melhor impressão do regresso ao ninho ancestral. Mas como o frio acolhimento da tia Jane lhe matava a alegria!
Quando, passados vinte minutos, não o tendo encontrado no resto da casa, a Sidónia foi dar com ele ali, viu que estava pensativo. Diante dum livro aberto que não lia, encostara-se à mesa onde estavam os papéis que Jane lhe mostrara, como constituindo o Diário do tio.
- Eu vou servir o chá no terraço, meu senhor. A senhora está à sua espera e o sr.,abade também.
A voz da criada apagou-lhe o sonho. Surpreendido, perguntou:
- O sr. abade Maliciosa, a Dónia respondeu:
- O sr. abade veio... acho que para dar a lição de latim ao sr. Maurício...
Lortain desatou a rir. Esta resposta restituiu-lhe o seu bom humor. Deixou o escritório, desceu os degraus a quatro e quatro e, a correr, dirigiu-se para a avenida das tílias.
feita a apresentação pela tia Jane, a conversa, embaraçosa, era difícil. Mas, confortàvelmente sentado em face do abade, o rapaz abordou a situação de frente, com a franqueza e a alegria que o tornava extremamente simpático,
- Estou-lhe grato, sr. abade, por não se ter mostrado estupefacto ao ver aparecer um Maurício Lortain que não mede menos de um metro e setenta e oito. Além disso, declaro-lhe já que sou um péssimo aluno, um grande cábula, pouco forte em latim e absolutamente nulo em grego. Deve sentir uma desilusão parecida com a da minha pobre tia Jane... que não há maneira de se consolar. Isto é que foi uma partida! Ficou arrasada!
- Já está melhorzinha... - respondeu o sacerdote no mesmo tom brincalhão, pois viu ser o que mais convinha, no momento.- Já conversámos longamente sobre o assunto. Contou-me o que se passara e a confidência primeiro aliviou-lhe, depois acalmou-lhe a alma. Eu, pelo meu lado, absolvo-o.
- Está a ouvir, tia Jane?
- Embora ontem não tivesse necessidade nenhuma de se fazer passar pelo tutor,., No entanto, é uma atitude que se explica e... vou mesmo mais longe... que se desculpa em face das infames mentiras do Ernesto. O culpado é ele. Por inveja, rancor e baixa vingança, depois de ter criado o mal-entendido, enovelou tudo de tal forma, complicou, envenenou, que era difícil desembrulhar a meada. Mais cedo ou mais tarde, terá o merecido castigo. Agora, como teve conhecimento do seu regresso, cheio de medo, fecha-se na barraca, a sete chaves. Mas deixemos o caluniador em paz. Diga-me, sr. Maurício, está satisfeito por se encontrar na sua casa familiar
- Estava... e ainda estou, mas já não é tanto... - respondeu Maurício à pergunta do abade, mas fitando Jane. - Esta velha moradia, em vez de me desiludir, evoca o passado de todos os meus com um poder sugestivo e forte ao qual me abandono sem reservas - de alma e coração. Deve-se experimentar aqui o sabor e o encanto das coisas idas. Aqui pode a gente sonhar deliciosamente e viver numa espécie de magia. Infelizmente, a atitude desoladora e desolada da minha tia, ensombra este cantinho do paraíso... E sabe porque tem ela esta atitude, sr. abade é porque já não tenho dois anos! Ora aqui está o meu grande crime!
- M.me Louvier é não só muito bondosa, mas também muito justa, para o tornar responsável duma culpa de que afinal está absolutamente inocente!
- Fala que nem um livro aberto, sr, abade. E olhe que eu ainda não exigi o cumprimento de nenhuma das promessas que recebi por escrito. Uma data de promessas, para me atrair a Sivry - é o que lhe digo! Assegurava-me que me daria hospitalidade, que me amimaria, fazendo-me todas as vontades, que me daria beijos e faria saltar nos seus joelhos. Será preciso dizer-lhe que nada disto aconteceu, sr. abade?
-Espero bem que não!-respondeu o sacerdote, que não podia conter o riso.
- Embora tivesse todos os direitos, garanto-lhe que nada reclamei. Ora diga: não sou uma pessoa discreta? Pois bem, tanto juízo não desarmou a tia Jane e longe de dissimular a sua atroz decepção...
- Oh! Atroz é exagero... - protestou ela, francamente.
Pressentindo que a discussão ia recomeçar, conciliador, o abade interveio logo:
- Tomou como decepção o que não passava de espanto, sr. Lortain. Realmente, parece-se tão pouco com o sobrinhito do retrato!
- Perdão, sr. abade, pareço-me com ele, ou antes: pareço-me comigo. Ainda sou risonho e louro. Continuo a ter os olhos azuis, a boca grande e sem bigode, o nariz um pouco arrebitado. Se em vez de fitar a ponta dos seus sapatinhos, a tia Jane se dignasse erguer os olhos para mim, como já lhe pedi, reconheceria que o Maurício pouco mudou. E se o seu olhar pudesse penetrar no meu peito, veria que este pobre coração de órfão, ávido de ternura, não mudou absolutamente nada.
Lortain falara com tanta sentimentalidade que acabou de conquistar o abade. Mas Jane, sempre silenciosa, tornou-se ainda mais pálida.
- Poupe a sua tia - aconselhou o sacerdote, inclinando-se para Maurício e aproveitando a ocasião em que a viúva, para disfarçar, se levantara, indo. ter com a Sidónia, que trazia o bule e os doces. - Depois de passado o primeiro instante de surpresa, M.me Louvier está agora mais sensível do que nunca às suas censuras. Bem sabe em que excepcionais circunstâncias ela desposou o seu tio. Pense nisso, sr, Lortain. Em vez de a censurar, mostre-se indulgente para com a perturbação que lhe causa a chegada imprevista, em vez da criança tão desejada, dum homenzarrão cuja existência ignorava por completo.
- Jane voltara, trazendo o tabuleiro. Colocou-o na mesa, serviu o chá e ofereceu bolos.
Impressionado pelas palavras do padre; (Maurício ficou, durante segundos, taciturno e meditativo. Concentrou-se. Mas bem "depressa o seu feitio alegre lhe inspirou uma resolução que, naquele caso, era a melhor. As controvérsias sentimentais desconcertavam ainda mais Jane do que a zombaria, de modo que Lortain continuou a brincar. E como ele preferia vê-la rir, em vez de chorar!
O abade queria reavivar a conversa, de modo que perguntou:
- O senhor viu a casa? A nossa nova castelã rejuvenesceu-a de alto a baixo. Graças a ela, este velho casarão é hoje a moradia mais linda de Sivry.
- Gosto imenso dela e dar-me-ei cá muito bem, principalmente no escritório, se lá não incomodar a tia Jane. Mas há uma coisa que me preocupa: a presença dum sobrinho da minha idade tem os seus inconvenientes e pode dar pasto à má língua.
- Estou acima disso tudo! - declarou energicamente Jane, indo além do que pensava. - Uma tia não poderá ter o sobrinho em casa durante as férias? Não acha, sr. abade?
- Claro.. Evidentemente... Mas compreendo os escrúpulos do sr. Lortaín... Será bom tomar em conta a opinião pública.
- Mas ainda há mais-replicou o rapaz, decidido a todos os sacrifícios para fazer voltar o sorriso aos lábios da tia. - O quarto que me está destinado, o quartinho branco, é um amor... mas quanto a comodidade temos conversado...
- Porquê
- Porque é mesmo pegado ao da tia Jane. Não me sentiria lá à minha vontade. Faço muito barulho: falo quando durmo e canto quando sonho... Não pregava olho em toda a noite só com medo de acordar a vizinha.
- Mas eu posso mudar de quarto disse Jane, tocada pelo tacto delicado de Maurício e não querendo ficar-lhe atrás, em generosidade. - Eu passarei para um quarto de hóspedes.
- Era o que faltava... que se mudasse agora por minha causa. Está em sua casa, instalada, e eu não. Quem vai tomar ar sou eu. De resto, o delicioso quartinho branco tem ainda mais alguns inconvenientes... Como sobrinho obediente que sou, consentiria em tocar piano com a minha tia e a reaprender o latim com o sr. abade, mas recuso absolutamente habitar aquele compartimento de bonecas, onde, para ler, não tenho senão a escolha entre À Pousada do Anjo da Guarda e Os Desastres de Sofia. com muito boa vontade, a cómoda servir-me-ia de tamborete e seria mesmo capaz de rabiscar o alfabeto na secretária, mas só lhe digo que para caber no berço, teria de me reduzir a um oitavo. E embora a ginástica me tenha dado grande elasticidade, a tanto ainda não cheguei!
O bom do abade não se conteve: desatou às gargalhadas. Jane riu-se também. Sob uma forma graciosa, a frase de Maurício destinava-se a livrá-la do pudico pensamento que a contrariava. Agradeceu-lhe, propondo:
- Temos o quarto verde, meu sobrinho. Ou então, se gosta assim tanto do escritório, tira-se o sofá, e põe-se uma cama. Terá lá o seu aposento. Os livros, os documentos de família, o Diário de seu tio, tudo lhe ficará à mão.
O sacerdote propôs por sua vez:
- Eu tenho outra solução ainda melhor. Venha para minha casa. É a dois passos daqui. Todos os dias virá trabalhar cá para o escritório... almoçará e jantará com sua tia - e dormirá lá. Ás conveniências ficarão salvas e as más línguas não terão que dizer!
- Ora aqui está a verdadeira, a única solução! - exclamou Lortain, simulando afim entusiasmo tanto mais meritório quanto mais longe estava de o sentir.
Compreendendo tudo quanto a alegria de Maurício escondia de discreta atenção, a linda Jane, desta vez, ergueu os olhos para o sobrinho e com um longo e doce olhar agradeceu-lhe o seu sacrifício.
No fundo, Jane censurava-se de ser assim tão cautelosa e de ter, sem nenhum protesto, aceitado esta solução, faltando a todos os seus deveres de hospitalidade.
Por seu lado, Maurício, com a ideia de abandonar todas as noites a velha casa, perdera a alegria e não podia dissimular um ar amuado.
O mais contente dos três era o bondoso sacerdote.
Horas perturbadas
A vida organizara-se em Sivry conforme a vontade de Maurício. E houve, segundo a sua definição: "manhãs azuis, tardes cor-de-rosa, crepúsculos dourados.»
Nas horas de calor, lia, escrevia ou arrumava papéis, no escritório. As refeições juntavam tia e sobrinho. Depois, passeavam pelo parque e cada vez se demoravam mais sob as tílias.
Agora, Jane erguia, sem cessar, o seu olhar confiante, para os fiéis e francos olhos de Maurício. Todos os dias, a todas as horas, ela sentia-se cada vez mais à vontade junto dele. Nunca julgara que a vida pudesse tornar-se assim tão divertida, tão cheia, na velha casa! A fortuna de Maurício permitia-lhe proporcionar pequenos confortos que Jane não gozara nunca. O carro não parava, sempre em passeios pela floresta e arredores. Mas o divertimento preferido consistia em irem para o norte, com a gasolina» que Maurício comprara.
Jane não se entregava sem escrúpulos a estas distracções. Tendo vivido sempre com monotonia, acusava-se agora de frivolidade e tornava-se então reservada, pensativa, triste, tendo o Maurício grande trabalho para a distrair. Uma angústia apertava-lhe o coração quando pensava que a linda tia lhe poderia fugir, retirar-se, afastar-se dele.
"-Para que me serve a minha experiência de viagens por tantos países - pensava nas suas horas de inquietação - se, tendo percorrido todas as estradas do mundo, eu não soube encontrar o caminho do coração »
Mas se alguma vez duvidava, não desesperava nunca. Redobrava de esforços e acabara sempre por tranquilizar Jane. Era ela a única mulher que verdadeiramente amara e tinha a certeza de que a amaria sempre. O coup-de-foudre da primeira entrevista transformava-se insensivelmente em amor mais profundo mas não menos apaixonado. Longe de o fatigar ou de lhe tirar coragem, esta incessante preocupação dos sentimentos dela enchia e embelezava-lhe a existência até então solitária, desocupada e sem finalidade.
"- Como é agradável a gente não ter que pensar em si! - reconhecia ele.
E, sozinho desde a infância, este homem, que nem a riqueza nem o celibato haviam tornado egoísta, experimentava uma espécie de felicidade em só viver para Jane e perto dela.
A tia estava sempre de pé atrás, pronta a defender-se... Mas contra quê
Sem correr o risco de comprometer, com declarações ardentes, a boa camaradagem, Maurício contentava-se em rodeá-la de cuidados constantes e mudas atenções. Esta ternura sem confissões, sem carícias, mas no entanto visível, incessante, penetrava, a pouco e pouco, na alma da rapariga e entontecia-a como a emanação dum perfume. Conquistados pela afabilidade, pelo inalterável bom humor de Lortain, Jerónimo, Sidónia e o abade Bouin, mais ou menos conscientemente, tornavam-se cúmplices desta sedução.
Jane que, em geral, era pouco expansiva, sendo mesmo reservada e tímida, dominava-se junto do sobrinho, embora se mostrasse comunicativa com as outras pessoas. Muitas vezes, no jardim, detinha-se ao pé de Fayoux para lhe exprimir a sua satisfação por ver a casa tão alegre, os arrevaldos tão cuidados e a maravilha das flores policromas.
- Já não há hoje velhas casas, jardins antigos, suaves recordações como aqui existem, minha senhora. Quando se tem a sorte de possuir tudo isto, deve-se guardar muito bem... e não o deixar compartilhar por estranhos... Novos proprietários não saberiam nunca apreciar tanta beleza - só a senhora e o sr. Maurício lhes podem dar o devido valor. Por isso, para melhor guardarem a velha casa, mais valia que em vez de pertencer a um pertencesse aos dois...
Fingindo não perceber, Jane respondeu:
- Era por isso que eu desejava ter um sobrinhito pequeno. Teria crescido junto de mim, impregnando-se de todas as lindas tradições do lar.
- Sim, lá isso... o sr. Maurício já não é nenhuma criança. Há muito tempo que foi desmamado e a senhora não poderá mandar fazer um anel com o seu primeiro dentinho... como é de uso cá na aldeia. Mas assim ainda é muito melhor. Olhe que os petizes dão muitos desgostos. Caem, magoam-se, choram, partem os braços e as pernas... A gente nunca sabe se chegarão inteirinhos até ao serviço militar. E depois, nem sempre vão para onde a gente quer! Aparecer-lhe assim um sobrinho já pronto foi óptimo. De quantos trabalhos a senhora se livrou!
- E fiquei também sem muitas alegrias .., O sr. Maurício é realmente a gentileza em pessoa, mas é grande de mais Como hei-de fazer de mamã com ele?
- Sim, lá isso é difícil... -concordou o antigo soldado, numa gargalhada. - Ele hoje precisa mais de esposa do que de mãe!
Jane corou e continuou a passear pelo jardim, sem dizer mais nada.
A noite, depois de Maurício se ter despedido, enquanto se preparava para se deitar, Jane, com medo da solidão, retinha Sidónia junto de si. E comentavam então os diversos incidentes do dia. Os conselhos da velha criada eram menos sóbrios e rudes do que os do jardineiro, mas a súmula era precisamente a mesma,
- Não compreendo o afecto sem a dedicação - confessava Jane. - Foi este sentimento que me levou a casar com o sr. Henrique. O que me desconcerta na grande amizade que sinto aumentar pelo meu sobrinho, é que ele não precisa de mim para nada. É mais velho, experimentado e rico do que eu. Em que lhe poderei ser útil
- Então a senhora julga que os homens não precisam, assim como as crianças, de afecto Sob a aparência grave, altiva, todos eles, novos ou velhos, têm um coração de bebé, ingénuo e sensível.
- Seja! Mas nem mesmo assim poderei gostar do meu sobrinho, como se ele tivesse seis ou sete anos!
- Se a senhora o não puder amar de outra forma, talvez o sr. Maurício antes quisesse isso do que nada.
- Não sei que lhe hei-de responder, Dónia! Tudo isto é tão novo para mim! Não sei bem o que penso acerca desta situação... Apesar da sua alegria, parece-me que a minha frieza lhe causa pena... Por outro lado, penso no meu pobre marido e fico obcecada de recordações e remorsos... É um difícil caso de consciência...
- O sr. Lortain adivinha-lhe a inquietação e em vez de lhe querer mal, admira-a mais ainda. E não julgue que tenha ciúmes do seu primeiro casamento. Falando do falecido 193
com o mesmo respeito enternecido que a senhora e todo o tempo que não está consigo, emprega-o a ler as cartas e o Diário do sr. Louvier. Por este lado, nenhum mal-entendido há a temer.
- Agradeço-lhe por me ter dito isso, Dónia. Mas para saber tão bem o que se passa, decerto já tem falado com o meu sobrinho?...
- Não o escondo, minha senhora. E sinto-me muito orgulhosa com o pouco que ele me confiou, tanto como com as confidências da senhora. Posso ainda dizer mais uma coisa Não se zanga
- Diga.
- Pois bem; eu acho que a senhora exagera e dá muita importância a esta coisa de ser a tia mais nova do que o sobrinho. Se a senhora gostasse tanto dele, como ele gosta de si, o caso parecer-lhe-ia, como a nós, absolutamente natural... Por amor, o que é impossível torna-se possível e o inacreditável, singelo.
- Essa frase é sua
- É do sr. Lortain. Mas o que me pertence é a ideia de que a senhora gosta mais do seu sobrinho do que imagina.
- Talvez...
- Ora suponha que ele se vai embora e casa com outra...
- O quê? Ele falou-lhe nisso -perguntou Jane, inquieta e nervosa.
- É uma ideia minha... Nesse caso, seria a esposa dele, uma M.me Lortain, sua sobrinha, que teria o bebé louro de olhos azuis, o bebé que a senhora tanto deseja.
- É verdade! Não tinha pensado nisso! - exclamou a rapariga, subitamente comovida.
- E não teria ciúmes, minha senhora
- Sim... um poucochinho - confessou espontaneamente.
Depois reflectiu e disse, alvoroçada:
- Credo! Nem pensar nisso é bom!
- Vê?
E a Sidónia não insistiu, deixando Jane entregue às suas meditações sugeridas por tão desagradável hipótese.
Finalmente, o abade Bouin, cheio de gratidão por um locatário tão agradável e generoso, em cada uma das suas visitas tentava abordar o assunto que tanto interessava o seu amigo. A rapariga confessara-lhe não só a amizade que, dia a dia, aumentava, como também os seus escrúpulos.
E o bom abade replicava:
- Seria, na verdade, bem difícil não estimar um rapaz tão bondoso como é o seu sobrinho. Possui uma força secreta de simpatia, confiança e optimismo que é o melhor auxílio dado por um companheiro de vida. Conhece bem a maldade e a ingratidão humanas, mas nem por isso diminui a bondade do seu coração. Sabe sempre o que se deseja e o que nos consola. Por mim estou absolutamente enfeitiçado. Quanto aos seus escrúpulos, minha filha, para que há-de ter mais do que os exigidos pela Santa Madre Igreja O vosso caso não tem absolutamente nada de ilegal, pecaminoso ou injusto. Tanto como se fossem primos.
- O Maurício diz muitas vezes: "Quando aquilo que se deseja não é censurável, é preciso querer com coragem e decisão sem inúteis reflexões».
- Também assim penso, minha filha. Não queira ser mais papista do que o papa. O nosso direito canónico conceder-lhe-á a dispensa, sem a menor objecção, em face dos vários motivos que tem a seu favor.
- Que motivos, sr. abade
- Primeiro, que apesar de viúva, é ainda muito novinha.
- É um motivo
- E dos mais importantes. Em seguida, que são ambos órfãos de pai e mãe.
- Isso também conta?
- A Igreja toma tudo em conta, minha filha. Em terceiro lugar, na nossa aldeola já começaram a dizer que estavam noivos.
- E também é um motivo
- Claro que é! Pois! No seu caso não temos a temer nem a perda da fé nem um casamento civil, só receamos que haja uma grande familiaridade resultante da coabitação. Finalmente-concluiu o abade Bouin-, alegaremos, não do seu lado, mas do outro, um amor excessivo...
- Vai dizer-me também que é um motivo aos olhos da Igreja?
- E de peso. O excessivo amor que ele tem por si, com certeza que o leva a recusar qualquer outro casamento. E nós não somos indiferentes à questão da repopulação. Só isto bastaria para dar a dispensa. E ainda há mais motivos...
- Estes chegam muito bem" sr. abade. Estou amplamente informada.
O quartinho branco
Passados alguns dias, Jane deixou de esconder os seus sentimentos.
Naquela tarde, durante o jantar, Maurício falou muito acerca do Diário de Henrique Louvier.
- Estou quase a acabar de o ler - anunciou ele. - Só as últimas páginas lhe são consagradas, tia Jane. Ando ansioso por as conhecer. As passagens que mais me interessaram, referem-se à predilecção do tio por esta velha casa e descrevem a sua infância neste belo e grande jardim. É curioso como, tendo conhecido tudo isto só aos vinte e oito anos, eu tenha sentido, logo aos primeiros passos que aqui dei, uma emoção profunda - como se tivesse vivido aquelas páginas!
- Sente esse encanto por hereditariedade- afirmou Jane, pensativa.-A sua mãe também se criou aqui e decerto gostava muito disto. Será dela que herdou esse sentimento do lar que é tão vivo em si
- É possível. Um estranho seria indiferente.
Jane, cujas recordações lhe haviam sobressaltado o coração, quis subir para o seu quarto. Maurício, aproveitando as últimas horas do dia, tornou a ir para o escritório.
O final da leitura do Diário perturbou-o de tal maneira que não pôde voltar para o presbitério sem primeiro falar à tia. Foi por isso que se resolveu a bater à porta do quarto onde nunca entrara. Mas foi do lado, do quartinho branco que a voz de Jane respondeu.
Ela refugiáva-se muitas vezes na casinha de bonecas,. segura de se poder ali entregar às suas meditações, sem ser incomodada.
Na luz crepuscular, atenuada pelas diáfanas musselinas dos cortinados, estava sentada numa cadeira baixa, à cabeceira do berço velado por uma imagem de anjo enquadrada em veludo branco.
Na sombra que vinha tombando sobre o pequeno santuário, Jane surgiu, tão nova, cândida e virginal que se tornava difícil imaginá-la prudente e assisada como era. Silencioso, para não interromper e antes prolongar a meditação da tia, Maurício estendeu-lhe as últimas folhas do Diário.
Ela começou a lê-las, lentamente, em voz baixa:
"-Por mais calma e pura que seja a nossa vida - escrevia o tio Henrique duas semanas antes do fim-, pergunto a mim próprio se, já velho e doente, procedi bem casando com esta criança, tendo como único desejo assegurar-lhe o futuro. Mas esta alegria dos meus últimos dias, esta casta união não irá encher de sombra, em persistente e triste recordação, os anos que ela deve ainda viver? Embora generosa, a minha inspiração de a tornar feliz ter-me-ia terrivelmente enganado se o desgosto da minha morte viesse a pesar para sempre na vida de Jane.
Outro virá que deverá acabar a felicidade que eu comecei. Ah, porque não me aproximei logo do meu sobrinho, depois da minha irmã morrer! Maurício teria conhecido a minha protegida.,. Maurício talvez a tivesse amado! Que lindo casamento seria! Deus faça aquilo que eu não soube fazer. Eis o meu voto supremo!»
Os belos olhos da rapariga cavaram-se mais; pensamentos profundos passaram-lhe pelo cérebro e lentas lágrimas correram-lhe pelas faces. Discretamente, Lortain pegou nas mãos trémulas da tia, levou-as aos lábios e murmurou:
- Vê, querida Jane, o tio Henrique tinha pensado em nos unir... Este desejo supremo duma alma nobre e bondosa foi escrito no pressentimento de que, voltando à velha casa, eu teria de vencer os seus escrúpulos.
Jane conhecera bem o afecto dedicado de Louvier e acreditava que ele tivesse tido tal pensamento.
Sidónia e Jerónimo tinham-na ajudado a ler no seu coração. Havia lá descoberto, com emoção, mas sem medo, um novo sentimento. O abade Bouin acalmara definitivamente o excessivo, o louco alarme da sua consciência. O próprio falecido, no seu póstumo desejo, sancionava aquele amor.
No entanto os lábios de Jane, comovidos com os apaixonados beijos que lhe queimavam os dedos, estremeciam, entreabriam-se, quase a pronunciar, mas hesitando ainda, o tão desejado sim. A pobre tia, no seu silêncio dolorido e num último olhar lançado à pequena secretária, à còmodazinha, ao livro Os desastres de Sofia, a todas as lindas coisas do quartinho branco, baixinho, dizia adeus ao seu desfeito sonho de mamã.
Maurício compreendeu.
- Continua ainda e sempre a pensar no lindo bebé louro, de olhos azuis, querida Jane
- É verdade... - confessou ela, não sem corar por se ver assim descoberta.- Na nova existência para onde me arrasta,, uma confissão que eu já não posso calar, a minha única saudade é este berço vazio. Apesar de todo o seu desejo de me agradar, Maurício, não poderá rejuvenescer-se bastante para tornar a ser o bebé gorducho que eu embalaria e adormeceria aqui.
- Evidentemente... Mas posso encontrar um miúdo parecendo-se notavelmente com a sua adorável miniatura.
- Oh! Se pudesse conseguir isso...
- Tudo é possível; case comigo, tia Jane! Desta maneira o bebé que nascer nesta velha casa será igualzinho ao petiz com quem está sempre a sonhar. Não serei eu o único marido que possa assegurar-lhe a semelhança perfeita ou quase
Vendo que a rapariga cada vez corava mais, Lortain acrescentou gentilmente:
- Em geral, a mulher apaixona-se primeiro pelo papá e só depois pelo filho. A Jane ficou logo seduzida pela criança. Possuidor dum belo feitio, nada ciumento, o papá não se ofenderá com isso nem se sentirá lesado... E, se lhe custar muito, minha esquiva mulherzínha, retribuir os beijos amorosos que eu lhe der, passá-los-á para o pequeno. Não poderemos assim arranjar as coisas
Jane não pôde deixar de se rir. Cheio de coragem, vibrante de esperança, o rapaz continuou:
- Juro-lhe, minha querida, que a ajudarei com todo o entusiasmo, na realização do seu sonho, fazendo o possível para lhe evitar o contacto com a realidade. Se alguma vez me esquecer desta promessa, o papá esforçar-se-á por obter o perdão do marido.
Comovida, Jane apertou a mão do noivo.
- É muito bom, Maurício, e a sua bondade fazme compreender como me mostrava egoísta e presunçosa desejando para mim a felicidade, sem lha deixar compartilhar. Esta velha casa é bastante grande para abrigar a felicidade de duas pessoas! Não receie ter no meu coração um lugar secundário, querido Maurício. Quanto mais olho para si, mais me convenço de que o prefiro assim crescido... Sabe? A miniatura, pálida e apagada, não vale o original...
Caiu a noite no quartinho branco. Eles continuavam a falar ternamente, quando as vozes do abade e da Sidónia os vieram despertar do sonho.
Desceram logo. Encontraram no vestíbulo o padre, a criada e o jardineiro, com caras de caso.
- Trago-lhes uma'notícia má-anunciou o sacerdote. - Ernesto Rufin...
- É o homem a quem eu devo duas bofetadas.
- Precisava agora de ter o braço muito comprido para lá chegar, meu amigo. Acabo de saber que, desejando liquidar dum só golpe todos os seus negócios, a vil personagem, que desde a sua chegada andava escondida, resolveu fugir daqui e passar-se para a Bélgica...
- Fez a mudança toda de noite e desapareceu sem dizer água-vai! - exclamou Sidónia, indignada.
E plàcidamente, Jerónimo completou a informação:
- Desta vez, fiel ao patrão, a Paulina acompanhou-o. É escusado dizer que as suas economias lá estão para pagar todas as despesas.
O abade respondeu
- Se ele não tivesse enganado senão essa criatura, o mal não seria muito grande. Mas levou consigo o dinheiro de todos os patetas que lho confiaram.
- Mas eu também sou uma pateta, nesse caso! - exclamou Jane, muito pálida. Rufin não me deu as rendas das quintas, vendeu dois campos, o bosque... E eu que contava com esse dinheiro para fazer as reparações urgentes de que a casa precisa! Que desgosto se sou obrigada a vendê-la!...
O abade Bouin, os dois criados e Jane olhavam uns para os outros, taciturnos e consternados. Maurício apressou-se a confortá-los:
- Não se aflijam, meus amigos, tudo se remedeia. Primeiro, é possível que Rufin seja apanhado. Em seguida, embora não seja milionário, posso muito bem tratar eu das reparações. A partir de hoje tenho o direito de olhar por isto não só em meu nome mas também no da nossa castelã. Porque chegou agora a minha vez, não de lhes dar uma notícia má, nada disso: mas uma esplêndida. Fique sabendo, meu caro sr. abade e vocês também, dedicados servos, que o nosso casamento ficou resolvido hoje, no quartinho branco.
Foi uma explosão de alegria. Exclamações radiantes da Sidónia, parabéns do sacerdote, um vigoroso aperto de mão do Jerónimo ao seu novo patrão. Mas como o jardineiro se conservava mudo, Jane quis fazê-lo falar e perguntou-lhe o que pensava daquilo tudo.
- Só quando houver um ou dois meninos louros no quartinho branco... é que eu manifestarei a minha alegria... Antes disso, não.
- Ah! E porquê
- Porque, assim, já a minha mãe não me censurará de ficar solteiro. E terei sossego ... Já poderá fazer de avòzinha com os meninos da senhora e do senhor... E será, também, cômpletamente feliz!
Charles Foley
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