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O rei estava quase tão magnífico quanto a noiva, com o seu gibão de um rosa opaco, sob um manto de veludo de um profundo tom de carmesim, decorado com o seu veado e leão. A coroa assentava com facilidade em seus caracóis, ouro sobre ouro. Eu salvei aquela maldita coroa para ele. Tyrion deslocou o peso desconfortavelmente de um pé para o outro. Não conseguia ficar quieto. Vinho demais. Devia ter pensado em se aliviar antes de saírem da Fortaleza Vermelha. A noite sem dormir que passara com Shae também estava se fazendo sentir, mas acima de tudo queria estrangular o maldito do seu real sobrinho.
Não sou estranho ao aço valiriano, vangloriara-se o rapaz. Os septões andavam sempre falando sobre o modo como o Pai no Céu nos julga a todos. Se o Pai tivesse a bondade de derrubar e esmagar Joff como se fosse um besouro vira-bosta, eu até podia acreditar nisso.
Devia ter percebido há muito tempo. Jaime nunca mandaria outro homem matar em seu nome, e Cersei era esperta demais para usar uma faca cujo rastro poderia levar até si, mas Joff, o arrogante, perverso e estúpido canalha que era...
Recordou a manhã fria em que tinha descido os íngremes degraus exteriores da biblioteca de Winterfell e encontrou o Príncipe Joffrey gracejando com Cão de Caça sobre matar lobos. Mandar um cão matar um lobo, ele tinha dito. Contudo, nem mesmo Joff era tão tolo que ordenasse a Sandor Clegane que matasse um filho de Eddard Stark; Cão de Caça teria procurado Cersei. Em vez disso, o rapaz encontrou a sua ferramenta no duvidoso bando de cavaleiros livres, mercadores e seguidoras de acampamentos que se ligou à comitiva do rei à medida que esta seguia para o norte. Um cretino purulento qualquer disposto a arriscar a vida em troca do favor de um príncipe e de algumas moedas. Tyrion perguntou a si mesmo de quem teria sido a ideia de esperar até Robert partir de Winterfell para abrir a goela de Bran. O mais certo é ter sido de Joff. Sem dúvida pensou que isso era o cúmulo da astúcia.
Tyrion julgava recordar que a adaga do príncipe tinha o botão incrustado de jóias e arabescos de ouro em relevo na lâmina. Pelo menos Joff não tinha sido suficientemente estúpido para usar essa. Em vez disso tinha metido o nariz nas armas do pai. Robert Baratheon era um homem de descuidada generosidade e teria dado ao filho qualquer punhal que ele desejasse... mas Tyrion acreditava que o rapaz o teria simplesmente pego. Robert chegou a Winterfell com uma grande comitiva de cavaleiros e serventes, uma enorme casa rolante e um comboio de bagagem. Sem dúvida que algum criado diligente teria se assegurado de que as armas do rei seguiam com ele, para o caso de desejar alguma.
A lâmina que Joff escolheu era boa e simples. Nada de trabalhos em ouro, nada de jóias no cabo, nada de relevos de prata na lâmina. O Rei Robert nunca a usara, provavelmente tinha esquecido que lhe pertencia. Mas o aço valiriano era mortalmente afiado... suficientemente afiado para cortar pele, carne e músculo num golpe rápido. Não sou estranho ao aço valiriano. Mas tinha sido, não tinha? De outro modo nunca teria sido idiota a ponto de escolher a faca de Mindinho.
O motivo ainda lhe escapava. Simples crueldade talvez? O sobrinho tinha disso em abundância. Só com grande dificuldade Tyrion evitava vomitar todo o vinho que tinha bebido, urinar-se nos calções ou fazer ambas as coisas. Remexeu-se com desconforto. Devia ter segurado a língua no café da manhã. O rapaz agora sabe que eu sei. A minha grande boca será a minha morte, juro.
Os sete votos foram feitos, as sete bênçãos invocadas e as sete promessas trocadas. Quando a canção nupcial foi cantada e o desafio passou sem resposta, chegou a hora da troca dos mantos. Tyrion deslocou o peso de uma perna deformada para a outra, tentando ver entre o pai e o tio Kevan. Se os deuses forem justos, Joff vai estragar tudo isso. Assegurou-se de não olhar para Sansa, para o caso de a amargura estar visível nos seus olhos. Devia ter se ajoelhado, diabos. Teria sido assim tão difícil dobrar esses seus rígidos joelhos Stark, permitindo que eu mantivesse alguma dignidade?
Mace Tyrell removeu ternamente o manto de donzela da filha, enquanto Joffrey recebia o manto de noiva, dobrado, das mãos do irmão Tommen e o sacudia com um floreado. O rei rapaz era tão alto aos treze anos quanto a sua noiva aos dezesseis; não precisaria subir nas costas de um bobo. Envolveu Margaery em carmesim e ouro e inclinou-se para lhe prender o manto em volta do pescoço. E foi com essa facilidade que ela passou da proteção do pai para a do marido. Mas quem a protegerá de Joff ? Tyrion deu um olhar de relance ao Cavaleiro das Flores, que se encontrava junto dos outros membros da Guarda Real. É melhor que mantenha a espada bem afiada, Sor Loras.
- Com este beijo empenho o meu amor! - declarou Joffrey num tom retumbante. Quando Margaery ecoou as palavras, ele puxou-a para si e deu-lhe um longo e profundo beijo. Luzes arco-íris voltaram a dançar em volta da coroa do Alto Septão quando este declarou solenemente que Joffrey, das Casas Baratheon e Lannister, e Margaery, da Casa Tyrell, eram uma só carne, um só coração, uma só alma.
Ótimo, terminado. Voltemos agora para o maldito castelo para que eu possa dar uma mijada.
Sor Loras e Sor Meryn seguiram à frente da procissão que partiu do septo, trajando suas armaduras de escamas brancas e mantos de neve. Depois vinha o Príncipe Tommen, espalhando à frente do rei e da rainha pétalas de rosa que tirava de um cesto. Após o casal real seguiam a Rainha Cersei e Lorde Tyrell, atrás destes a mãe da rainha de braço dado com Lorde Tywin. Depois vinha a Rainha dos Espinhos, cambaleando com uma mão apoiada no braço de Sor Kevan Lannister e a outra em sua bengala, trazendo os guardas gêmeos logo atrás, para o caso de cair. Depois vinha Sor Garlan Tyrell e a senhora sua esposa, e por fim era a vez deles.
- Senhora. - Tyrion ofereceu o braço a Sansa.
Ela aceitou-o obedientemente, mas o anão conseguia sentir a rigidez da garota enquanto caminhavam juntos pelo corredor. Não o olhou nem uma vez.
Ouviu-os em aclamações lá fora antes mesmo de chegar às portas. A multidão amava tanto Margaery que estava até disposta a voltar a amar Joffrey. Ela pertencera a Renly, o belo e jovem príncipe que os amava tanto que tinha voltado da sepultura para salvá-los. E a prodigalidade de Jardim de Cima chegara com ela, fluindo do sul pela estrada de rosas. Os palermas não pareciam lembrar-se de que foi Mace Tyrell quem fechou a estrada de rosas para começar, e quem gerou a maldita fome.
Saíram para o ar puro de outono.
- Temi que nunca conseguíssemos fugir - gracejou Tyrion.
Sansa não teve alternativa a olhá-lo.
- Eu... sim, senhor. É como diz. - Parecia triste. - Mas foi uma cerimônia tão bela.
Tanto quanto a nossa não foi.
- Foi longa, é o que tenho a dizer. Preciso voltar ao castelo para uma boa mijada. - Tyrion esfregou o que lhe restava de nariz. - Gostaria de ter inventado uma missão qualquer que me levasse para fora da cidade. O Mindinho é que foi esperto.
Joffrey e Margaery estavam rodeados pela Guarda Real no topo dos degraus que davam para a grande praça de mármore. Sor Addam e seus homens de manto dourado mantinham a multidão afastada, enquanto a estátua do Rei Baelor, o Abençoado, os fitava com benevolência. Tyrion não teve alternativa exceto juntar-se à fila, com os demais, para dar os parabéns ao casal. Beijou os dedos de Margaery e desejou-lhe todas as felicidades. Felizmente, havia outras pessoas atrás deles esperando sua vez, e não precisaram demorar muito tempo.
A liteira tinha ficado ao sol, e dentro fazia muito calor. Quando entraram em movimento, Tyrion reclinou-se sobre um cotovelo e Sansa sentou-se, de olhos fixos nas mãos. Ela é tão bonita quanto a garota Tyrell. Os cabelos eram de um rico ruivo outonal; os olhos, de um profundo azul Tully. A mágoa tinha lhe dado um aspecto assombrado e vulnerável; isso a tornava ainda mais bela. Desejou chegar até ela, atravessar a armadura de sua cortesia. Teria sido isso que o fez falar? Ou só a necessidade de se distrair da bexiga cheia?
- Tenho andado pensando que, quando as estradas estiverem de novo seguras, podíamos fazer uma viagem a Rochedo Casterly. - Para longe de Joffrey e da minha irmã. Quanto mais pensava no que Joff tinha feito ao Vidas dos quatro reis, mais perturbado se sentia. Havia uma mensagem ali, ah, sim. - Adoraria mostrar-lhe a Galeria Dourada, a Boca do Leão e o Salão dos Heróis, onde Jaime e eu brincávamos quando crianças. Pode-se ouvir o trovão vindo de baixo, de onde o mar entra...
Ela levantou lentamente a cabeça. Sabia o que a garota estava vendo; a testa brutal e inchada, o toco em carne viva do nariz, a cicatriz cor-de-rosa e irregular e os olhos desiguais. Os olhos dela eram grandes, azuis e vazios.
- Irei aonde quer que o senhor meu esposo desejar.
- Esperava que pudesse agradá-la, senhora.
- Será do meu agrado agradar ao meu senhor.
A boca dele comprimiu-se. Que homenzinho patético você é. Achava que tagarelar a respeito da Boca do Leão iria fazê-la sorrir? Quando foi que fez uma mulher sorrir sem ser por ouro?
- Não, foi uma ideia tola. Só um Lannister pode amar o Rochedo.
- Sim, senhor. Como desejar.
Tyrion ouvia os plebeus gritarem o nome do Rei Joffrey. Daqui a três anos esse rapaz cruel será um homem e governará sozinho... e qualquer anão com metade dos miolos funcionando estará muito longe de Porto Real. Talvez em Vilavelha. Ou até nas Cidades Livres. Sempre desejou muito ver o Titã de Bravos. Isso talvez agradasse a Sansa. Em tom gentil, falou de Bravos, e encontrou uma muralha de taciturna cortesia tão gelada e inflexível como a Muralha por onde caminhara uma vez no norte. Isso o deixou fatigado. Naquela ocasião e agora.
Passaram o resto da viagem em silêncio. Após algum tempo, Tyrion viu-se esperando que Sansa dissesse alguma coisa, fosse o que fosse, a mais insignificante das palavras, mas ela não falou. Quando a liteira parou no pátio do castelo, permitiu que um dos palafreneiros a ajudasse a descer.
- Somos esperados no banquete dentro de uma hora, senhora. Irei encontrá-la em breve. - Afastou-se sobre pernas duras. Ouviu as gargalhadas sem fôlego de Margaery do outro lado do pátio enquanto Jofrey a tirava da sela. Um dia o rapaz será tão alto e forte quanto Jaime, pensou. E eu continuarei a ser um anão debaixo de seus pés. E um dia é bem capaz de me deixar ainda mais curto...
Descobriu uma latrina e suspirou, grato, enquanto se aliviava do vinho da manhã. Havia momentos em que uma mijada era tão boa quanto uma mulher, e aquele era um deles. Gostaria de conseguir se aliviar das dúvidas e das culpas com metade daquela facilidade.
Podrick Payne esperava-o à porta de seus aposentos.
- Preparei o seu gibão novo. Aqui não. Na sua cama. No quarto.
- Sim, é lá que fica a cama. - Sansa devia estar lá, vestindo-se para o banquete. E Shae também. - Vinho, Pod.
Tyrion bebeu-o no banco que ficava ao lado da janela, matutando enquanto observava o caos das cozinhas lá embaixo. O sol ainda não tinha tocado o topo da muralha do castelo, mas já sentia o cheiro de pães e de carnes assando. Os convidados começariam em breve a entrar em torrente na sala do trono, cheios de expectativa; aquela seria uma noite de canções e esplendor, planejada não só para unir Jardim de Cima e Rochedo Casterly, mas também para proclamar poderio e riqueza, como lição para todos os que pudessem ainda pensar em se opor ao domínio de Joffrey.
Mas quem seria suficientemente louco para se opor agora ao domínio de Joffrey, depois daquilo que sucedera com Stannis Baratheon e Robb Stark? Ainda se lutava nas terras fluviais, mas por todos os lados os nós se apertavam. Sor Gregor Clegane tinha atravessado o Tridente e capturado o vau rubi, para em seguida tomar Harrenhal quase sem esforço. Guardamar rendeu-se ao Walder Negro Frey, Lorde Randyll Tarly dominava Lagoa da Donzela, Valdocaso e a estrada do rei. No ocidente, Sor Daven Lannister uniu-se a Sor Forley Prester no Dente Dourado para marchar sobre Correrrio. Sor Ryman Frey descia das Gêmeas à frente de dois mil lanceiros para se juntar a eles. E Paxter Redwyne dizia que a sua frota zarparia em breve da Árvore, a fim de dar início à longa viagem em volta de Dorne e através dos Degraus. Os piratas lisenos de Stannis ficariam numa inferioridade numérica de dez para um. A luta que os meistres andavam chamando de Guerra dos Cinco Reis estava praticamente no fim. Mace Tyrell foi ouvido se queixando de que Lorde Tywin não tinha deixado vitórias para ele.
- Senhor? - Pod encontrava-se ao seu lado. - Irá trocar de roupa? Preparei o gibão. Na sua cama. Para o banquete.
- Banquete? - disse Tyrion, ácido. - Que banquete?
- O banquete de casamento. - Pod não entendeu o sarcasmo, claro. - O Rei Joffrey e a Senhora Margaery. Rainha Margaery, quer dizer.
Tyrion decidiu ficar muito, muito bêbado naquela noite.
- Muito bem, jovem Podrick, vamos lá me deixar festivo.
Shae estava ajudando Sansa com os cabelos quando entraram no quarto. Alegria e dor, pensou o anão quando as contemplou juntas. Riso e lágrimas. Sansa usava um vestido de cetim prateado debruado com veiro, com mangas pendentes que quase tocavam o chão, forradas de suave feltro roxo. Shae tinha arrumado os cabelos artisticamente em uma delicada rede de prata que reluzia com pedras preciosas de um tom escuro de púrpura. Tyrion nunca a vira mais adorável, mas ostentava a mágoa naquelas longas mangas de cetim.
- Senhora Sansa - disse-lhe -, esta noite será a mais bela senhora no salão.
- O senhor é bondoso demais.
- Senhora - disse Shae em tom desejoso. - Eu não poderia ir servir às mesas? Quero tanto ver os pombos saírem voando da torta.
Sansa olhou-a com incerteza.
- A rainha escolheu todos os criados.
- E o salão estará muito cheio de gente. - Tyrion teve de reprimir o aborrecimento. - Mas haverá músicos por todo o castelo, e mesas no pátio exterior com comida e bebida para todos. - Inspecionou o seu gibão novo, de veludo carmesim com ombros almofadados e mangas bufantes com cortes que mostravam o cetim negro que tinham por baixo. Um belo traje. Tudo o que precisa é de um belo homem para vesti-lo. - Venha, Pod, ajude-me a entrar nisto.
Bebeu outra taça de vinho enquanto se vestia, e então tomou a esposa pelo braço e acompanhou-a para fora da Fortaleza das Cozinhas, a fim de se juntarem ao rio de seda, cetim e veludo que fluía para a sala do trono. Alguns convidados já tinham ocupado seus lugares nos bancos. Outros zanzavam diante das portas, aproveitando o calor fora de época da tarde. Tyrion desfilou com Sansa em volta do pátio, a fim de cumprir as cortesias da praxe.
Ela é boa nisso, pensou, enquanto a observava dizer ao Lorde Gyles que sua tosse parecia melhor, elogiar Elinor Tyrell pelo vestido e interrogar Jalabhar Xho acerca dos costumes nupciais das Ilhas do Verão. O primo de Tyrion, Sor Lancei, havia sido trazido para baixo por Sor Kevan, era a primeira vez que deixava a cama desde a batalha. Tem um aspecto horrível. Os cabelos de Lancei tinham se tornado brancos e quebradiços, e ele estava magro como um espeto. Se não tivesse o pai ao seu lado para mantê-lo em pé, certamente teria tombado no chão. Mas quando Sansa elogiou sua bravura e disse como era bom vê-lo ganhando forças de novo, tanto Lancei como Sor Kevan resplandeceram. Ela teria sido uma boa rainha e uma esposa ainda melhor para Joffrey se ele tivesse tido o bom-senso de amá-la. Perguntou a si mesmo se o sobrinho seria capaz de amar alguém.
- Seu visual está muito requintado, filha - disse a Senhora Olenna Tyrell a Sansa quando se aproximou deles em seu passo titubeante, trajando um vestido de pano de ouro que devia pesar mais do que ela. - Mas o vento desmanchou seus cabelos. - A pequena velha esticou-se e ocupou-se com as madeixas soltas, voltando a colocá-las no lugar e endireitando a rede para cabelo de Sansa. - Fiquei muito triste quando soube de suas perdas - disse enquanto remexia e repuxava. - Seu irmão era um horrível traidor, eu sei, mas se começarmos a matar homens em bodas, eles ficarão com ainda mais medo do casamento do que já têm. Pronto, assim está melhor. - A Senhora Olenna sorriu. - Tenho o prazer de dizer que parto para Jardim de Cima depois de amanhã. Já estou por aqui desta cidade malcheirosa, muito obrigada. Talvez queira me acompanhar para uma pequena visita, enquanto os homens estão longe entretidos com a guerra deles? Vou sentir uma falta tão terrível de minha Margaery, e de todas as suas adoráveis senhoras. Sua companhia seria um conforto tão querido.
- É gentil demais, senhora - disse Sansa -, mas o meu lugar é junto do senhor meu esposo.
A Senhora Olenna concedeu a Tyrion um sorriso enrugado e desdentado.
- Oh? Perdoe uma velha tonta, senhor, não pretendi roubar a sua adorável esposa de você. Assumi que estaria longe, liderando uma tropa Lannister contra um inimigo malvado qualquer.
- Uma tropa de dragões e veados. O mestre da moeda tem de permanecer na corte para garantir que todos os exércitos sejam pagos.
- Com certeza. Dragões e veados, é muito inteligente. E também a moeda do anão. Já ouvi falar dessa moeda do anão. Sem dúvida que coletá-la é uma ocupação tão desagradável.
- Deixo a outros a coleta, senhora.
- Ah, deixa? Eu pensava que gostaria de tratar disso em pessoa. Não podemos admitir que a Coroa seja espoliada de sua moeda do anão. Podemos?
- Que os deuses não o permitam. - Tyrion começava a perguntar a si mesmo se Lorde Luthor Tyrell não teria cavalgado falésia abaixo intencionalmente. - Se nos perdoar, Senhora Olenna, é hora de ocuparmos nosso lugar.
- E eu também. Setenta e sete pratos, certamente. Não acha que isso é um pouco excessivo, senhor? Eu não comerei mais do que três ou quatro garfadas, mas nós dois somos muito pequenos, não somos? - voltou a dar palmadinhas nos cabelos de Sansa e disse: - Bem, vá lá, filha, e tente se mostrar mais alegre. Onde se meteram os meus guardas? Esquerdo, Direito, onde estão? Venham me ajudar a subir para o estrado.
Embora o anoitecer ainda estivesse a uma hora de distância, a sala do trono já estava um esplendor de luz, com tochas ardendo em todas as arandelas. Os convidados alinhavam-se, em pé, ao longo das mesas, enquanto arautos gritavam nome e títulos dos senhores e senhoras que faziam sua entrada. Pajens com a libré real escoltavam-nos pelo largo corredor central. A galeria encontrava-se repleta de músicos; tambores, flautistas e rabequeiros, corda, sopro e percussão.
Tyrion pegou no braço de Sansa e fez a caminhada num passo pesado e bamboleante. Sentia os olhos postos nele, espiando a nova cicatriz que o tinha deixado ainda mais feio do que já era. Que olhem, pensou enquanto saltava para a cadeira. Que me encarem e que murmurem até se fartarem, não me esconderei por causa deles. A Rainha dos Espinhos seguiu-o, avançando com passinhos minúsculos. Tyrion perguntou a si mesmo qual dos dois pareceria mais absurdo, ele com Sansa ou a mulherzinha encarquilhada entre seus guardas gêmeos de dois metros e dez de altura.
Joffrey e Margaery entraram na sala do trono montados em cavalos brancos combinando. Pajens corriam à frente deles, espalhando pétalas de rosa sob os cascos. O rei e a rainha também tinham se trocado para o banquete. Joffrey usava calções com listras negras e carmesim e um gibão de pano de ouro com mangas de cetim negro e rebites de ônix. Margaery trocou o vestido recatado que tinha usado no septo por outro muito mais revelador, um traje de samito verde-claro com um corpete em renda miúda que lhe desnudava os ombros e a parte superior de seus pequenos seios. Soltos, os suaves cabelos castanhos caíam sobre seus ombros brancos e desciam pelas costas quase até a cintura. Na testa trazia uma esguia coroa de ouro. Seu sorriso era tímido e doce. Uma garota adorável, pensou Tyrion, e um destino mais gentil do que o que o meu sobrinho merece.
A Guarda Real escoltou-os até o estrado, até os lugares de honra à sombra do Trono de Ferro, envolto para a ocasião em longas flâmulas do dourado Baratheon, do carmesim Lannister e do verde Tyrell. Cersei abraçou Margaery e beijou suas bochechas. Lorde Tywin fez o mesmo, e o mesmo fizeram Lancei e Sor Kevan. Joffrey recebeu beijos de carinho do pai da noiva e de seus dois novos irmãos, Loras e Garlan. Ninguém pareceu muito ansioso por beijar Tyrion. Depois do rei e da rainha ocuparem seus lugares, o Alto Septão levantou-se para comandar uma prece. Pelo menos não é tão monótono quanto o último, pensou Tyrion, consolando-se.
Ele e Sansa tinham sido postos em lugares distantes à direita do rei, ao lado de Sor Garlan Tyrell e de sua esposa, a Senhora Leonette. Havia uma dúzia de outros convivas sentados mais perto de Joffrey, o que um homem mais suscetível teria tomado como uma afronta, dado ter sido Mão do Rei não muito tempo antes. Tyrion teria se sentido contente se esses convivas tivessem sido cem.
- Que as taças sejam enchidas! - proclamou Joffrey, depois que os deuses receberam o que lhes era devido. Seu copeiro despejou um jarro inteiro de escuro tinto da Árvore no cálice nupcial de ouro que Lorde Tyrell lhe dera naquela manhã. O rei teve de usar ambas as mãos para erguê-lo. - A minha esposa, a rainha!
- Margaery! - gritou o salão em resposta. - Margaery! Margaery! A rainha! - Mil taças retiniram umas nas outras e o banquete nupcial teve o seu verdadeiro início. Tyrion Lannister bebeu com os outros, esvaziando a taça naquele primeiro brinde e fazendo sinal para que voltassem a enchê-la assim que se sentou de novo.
O primeiro prato era uma sopa cremosa de cogumelos e caracóis na manteiga, servida em tigelas douradas. Tyrion quase não tocara no café da manhã, e o vinho já tinha lhe subido à cabeça, por isso a comida era bem-vinda. Terminou depressa. Um já era, faltam setenta e seis. Setenta e sete pratos, enquanto ainda há crianças passando fome nesta cidade,e homens capazes de matar por um rabanete. Poderiam amar bem menos os Tyrell se nos vissem agora.
Sansa provou uma colherada de sopa e afastou a tigela.
- Não lhe agrada, senhora? - perguntou Tyrion.
- Haverá tanta coisa, senhor. Tenho uma barriga pequena. - Remexeu nervosamente nos cabelos e olhou ao longo da mesa para onde Joffrey se encontrava com a sua rainha Tyrell.
Será que desejaria estar no lugar de Margaery? Tyrion franziu a testa. Até uma criança devia ter mais juízo. Afastou os olhos, procurando uma distração, mas para onde quer que olhasse via mulheres; boas, lindas, felizes e belas mulheres que pertenciam a outros homens. Margaery, claro, sorria com doçura enquanto partilhava com Joffrey uma bebida vinda do cálice de sete lados. Sua mãe, a Senhora Alerie, grisalha e bonita, ainda orgulhosa ao lado de Mace Tyrell. As três jovens primas da rainha, vivas como passarinhos. A esposa myresa de Lorde Merryweather, com seus cabelos negros e seus grandes olhos, negros e provocantes. Eliaria Sand entre os dorneses (Cersei colocara-os numa mesa só para eles, logo abaixo do estrado, num lugar de grande honra, mas tão longe dos Tyrell quanto a largura do salão permitia), rindo de qualquer coisa que a Víbora Vermelha havia lhe dito.
E havia uma mulher, sentada quase na ponta da terceira mesa da esquerda... a esposa de um dos Fossoway, achava ele, e bem grávida do filho dele. Sua delicada beleza não era em nada diminuída pela barriga, e o prazer que obtinha da comida e dos divertimentos também não. Tyrion observou-a enquanto o marido lhe oferecia pedacinhos de seu prato. Bebiam da mesma taça e beijavam-se com frequência e imprevisivelmente. Sempre que o faziam, a mão dele pousava com gentileza no estômago dela, num gesto terno e protetor.
Perguntou a si mesmo o que Sansa faria se ele se debruçasse e a beijasse naquele exato momento. O mais certo seria recuar. Ou armar-se de coragem e aguentar, cumprindo o seu dever. Não se pode dizer que esta minha esposa não seja cumpridora de seu dever. Se lhe dissesse que queria romper sua virgindade esta noite, ela aguentaria isso obedientemente e não choraria mais do que tivesse de chorar.
Pediu mais vinho. Quando o obteve, o segundo prato estava sendo servido, uma fôrma feita de massa de torta e cheia de carne de porco, pinhões e ovos. Sansa não comeu mais do que uma de suas garfadas, enquanto os arautos anunciavam o primeiro dos sete cantores.
Hamish, o Harpista, de barba grisalha, anunciou que iria tocar "pros ouvidos de deuses e homens uma canção nunca antes ouvida em todos os Sete Reinos". Chamou-a de "A cavalgada de Lorde Renly".
Os dedos do homem moveram-se pelas cordas da harpa vertical, enchendo a sala do trono com um som doce.
- Do seu trono de ossos o Senhor da Morte olhou o lorde assassinado - começou Hamish, e prosseguiu contando o modo como Renly, arrependendo-se de sua tentativa de usurpar a coroa do sobrinho, tinha desafiado o próprio Senhor da Morte e regressado à terra dos vivos para defender o reino contra o irmão.
E foi por isso que o pobre Symon acabou numa tigela de castanho, refletiu Tyrion. A Rainha Margaery lacrimejou no fim, quando a sombra do bravo Lorde Renly voou até Jardim de Cima para olhar uma última vez o rosto de seu verdadeiro amor.
- Renly Baratheon nunca se arrependeu de nada na vida - disse o Duende a Sansa
mas se é para arriscar alguma coisa, diria que Hamish acabou de ganhar um alaúde
dourado.
O Harpista também lhes ofereceu várias canções mais familiares."Uma rosa de ouro" era para os Tyrell, sem dúvida, assim como "As chuvas de Castamere" se destinava a lisonjear o pai de Tyrion. "Donzela, mãe e velha" deliciou o Alto Septão, e"A senhora minha esposa" agradou a todas as mocinhas com romance no coração, e, sem dúvida, a alguns dos rapazinhos também. Tyrion escutou com meio ouvido, enquanto provava bolinhos fritos de milho doce e pão de aveia quente com pedaços de tâmara, maçã e laranja e roía a costela de um javali selvagem.
Daí em diante, os pratos e diversões sucederam-se uns aos outros numa profusão desconcertante, boiando numa enchente de vinho e cerveja. Hamish deixou-os, e o seu lugar foi ocupado por um urso razoavelmente pequeno e idoso, que dançou desajeitadamente ao som de flautas e tambores, enquanto os convidados da boda comiam truta com uma crosta de purê de amêndoas. O Rapaz Lua subiu nas pernas de pau e começou a caminhar imponentemente em volta das mesas, perseguindo o Abetouro, o bobo ridiculamente gordo de Lorde Tyrell, e os senhores e as senhoras provaram garças assadas e empadões de queijo e cebolas. Uma trupe de malabaristas de Pentos executou estrelas e mortais, equilibrou bandejas nos pés descalços e formou uma pirâmide, apoiando-se nos ombros uns dos outros. Seus feitos foram acompanhados por caranguejos cozidos com ardentes especiarias orientais, tabuleiros cheios de nacos de carneiro guisado em leite de amêndoa com cenouras, passas e cebolas, e tortas de peixe recém-saídas dos fornos, servidas tão quentes que queimavam os dedos.
Então os arautos chamaram outro cantor; Collio Quaynis de Tyrosh, cuja barba ostentava um tom vermelho-alaranjado e cujo sotaque era tão ridículo como Symon garantira que seria. Collio começou com a sua versão de "A dança dos dragões", que era mais adequada como canção para dois cantores, um homem e uma mulher. Tyrion suportou-a com a dupla ajuda de uma perdiz com mel e gengibre e de várias taças de vinho. Uma balada insinuante sobre um casal de amantes moribundos no meio da Destruição de Valíria poderia ter agradado mais ao salão se Collio não a tivesse cantado em alto valiriano, língua que a maior parte dos convidados desconhecia. Mas "Bessa, a criada de bar" reconquistou-os com a sua letra libertina. Foram servidos pavões na sua plumagem, assados inteiros e recheados de tâmaras, enquanto Collio chamava um tambor, fazia uma profunda reverência perante Lorde Tywin e se lançava em "As chuvas de Castamere".
Se me obrigarem a ouvir sete versões daquilo, pode ser que desça à Baixada das Pulgas para pedir desculpas ao guisado. Tyrion virou-se para a esposa.
- Então, qual preferiu?
Sansa olhou-o, pestanejando.
- Senhor?
- Os cantores. Qual preferiu?
- Eu... lamento, senhor. Não estava ouvindo.
E também não estava comendo.
- Sansa, há alguma coisa errada? - falou sem pensar, e sentiu-se instantaneamente idiota. Toda a família dela foi massacrada e está casada comigo, e eu não sei o que há de errado.
- Não, senhor. - Afastou os olhos dele e fingiu um interesse pouco convincente no Rapaz Lua, que enchia Sor Dontos de tâmaras.
Quatro mestres piromantes conjuraram feras de chamas vivas para se atacarem umas às outras com garras ardentes enquanto os criados carregavam para o salão tigelas de blandissório, uma mistura de caldo de carne com vinho fervido adoçado com mel e salpicado de amêndoas descascadas e pedaços de capão. Então veio um grupo de flautistas ambulantes, cães amestrados e engolidores de espadas, com ervilhas na manteiga, nozes fatiadas e lascas de cisne escaldado num molho de açafrão e pêssegos.
- Cisne outra vez, não - resmungou Tyrion, lembrando-se do jantar com a irmã na véspera da batalha.
Um malabarista manteve meia dúzia de espadas e machados rodopiando no ar enquanto espetos de morcela eram trazidos ainda chiando para as mesas, uma justaposição que Tyrion achou bastante esperta, embora talvez não do melhor dos gostos.
Os arautos sopraram as suas trombetas.
- Para cantar pelo alaúde dourado - gritou um deles - apresentamos Galyeon de Cuy.
Galyeon era um grande homem, com o peito em forma de barril, barba negra, cabeça
calva e uma voz trovejante que enchia cada canto da sala do trono. Trouxe nada menos que seis músicos para tocar para ele.
- Nobres senhores e belas senhoras, não cantarei mais do que uma canção para vocês esta noite - anunciou. - É a canção da Água Negra e de como um reino foi salvo. - O tambor começou num ritmo lento e agourento.
- O negro lorde cismou, no topo de sua torre - começou Galyeon - num castelo tão negro como a noite.
- Negro eram seus cabelos e negra a sua alma - entoaram os músicos em uníssono. Uma flauta juntou-se à melodia.
- Alimentava-se de sangue e inveja, e enchia a taça até transbordar de rancor - cantou Galyeon. - Meu irmão governou sete reinos, disse à bruxa da esposa. Tomarei o que era seu e vou torná-lo meu. Que o seu filho sinta o gume de minha adaga.
- Um jovem bravo com cabelos de ouro - entoaram os músicos, enquanto uma harpa de mão e uma rabeca começavam a tocar.
- Se algum dia voltar a ser Mão, a primeira coisa que faço é enforcar todos os cantores - disse Tyrion, alto demais.
A Senhora Leonette soltou uma leve gargalhada ao seu lado, e Sor Garlan debruçou-se para dizer:
- Um feito valente que não for cantado não será menos valente.
- O lorde negro reuniu as legiões, rodearam-no como corvos fazendo-o feliz. E sedentos de sangue embarcaram nos navios...
... e do pobre Tyrion cortaram o nariz - concluiu Tyrion.
A Senhora Leonette soltou um risinho.
- Talvez devesse ser um cantor, senhor. Rima tão bem quanto este Galyeon.
- Não, senhora - disse Sor Garlan. - O senhor de Lannister está destinado a realizar grandes feitos, não a cantar a respeito deles. Se não fosse a sua corrente e o seu fogovivo, o inimigo teria atravessado o rio. E se os selvagens de Tyrion não tivessem matado a maior parte dos batedores de Lorde Stannis, nunca teríamos sido capazes de pegá-los desprevenidos.Aquelas palavras fizeram com que Tyrion se sentisse absurdamente grato, e ajudaram a apaziguá-lo enquanto Galyeon cantava intermináveis versos sobre o valor do rei rapaz e de sua mãe, a rainha dourada.
- Ela não fez isso - exclamou Sansa de repente.
- Nunca acredite em nada que ouça numa canção, senhora. - Tyrion chamou um criado para voltar a encher de vinho suas taças.
Já era noite cerrada do lado de fora das grandes janelas, e Galyeon continuava a cantar. Sua canção tinha setenta e sete versos, embora parecesse ter mil. Um para cada conviva presente no salão. Tyrion aguentou os últimos vinte e tantos bebendo, para ajudar a resistir à vontade de enfiar cogumelos nos ouvidos. Quando o cantor finalmente fez as suas vénias, alguns dos convidados estavam suficientemente bêbados para começar a apresentar seus próprios divertimentos involuntários. O Grande Meistre Pycelle adormeceu, enquanto dançarinos das Ilhas do Verão giravam e rodopiavam com vestimentas feitas de penas brilhantes e seda esfumaçada. Medalhões de alce recheados com queijo mofado maduro estavam sendo servidos quando um dos cavaleiros de Lorde Rowan apunhalou um dornês. Os homens de manto dourado arrastaram ambos para fora da sala, um para apodrecer numa cela e o outro para ser cosido pelo Meistre Ballabar.
Tyrion brincava com o bolo de carne de porco cozido em leite e temperado com canela, cravo, açúcar e leite de amêndoa, quando o Rei Joffrey se levantou subitamente.
- Tragam os meus reais cavaleiros! - gritou, numa voz pesada de vinho, batendo as mãos.
Mew sobrinho está mais bêbado do que eu, pensou Tyrion enquanto os homens de manto dourado abriam as grandes portas no fundo do salão. Do local em que se encontrava sentado só conseguia ver o topo de duas lanças listradas quando dois homens a cavalo entraram lado a lado. Uma onda de gargalhadas seguiu-os pelo corredor central, na direção do rei. Devem vir montados em pôneis, concluiu... até surgirem à sua vista.
Os cavaleiros eram um par de anões. Um montava um feio cão cinzento, de pernas longas e maxilas pesadas. O outro montava uma imensa porca malhada. Armaduras de madeira pintada chocalhavam e estalavam enquanto os pequenos cavaleiros eram sacudidos para cima e para baixo em suas celas. Os escudos eram maiores do que eles e lutavam intrepidamente com as lanças enquanto avançavam, balançando de um lado para o outro e trazendo à tona rajadas de humor. Um cavaleiro vinha todo de dourado, com um veado negro pintado no escudo; o outro usava cinza e branco e trazia como símbolo um lobo. As montarias vinham albardadas da mesma forma.
Tyrion relanceou pelo estrado, para todos os rostos sorridentes. Joffrey estava vermelho e sem fôlego, Tommen gritava, aos saltos na cadeira, Cersei soltava risinhos polidos, e até Lorde Tywin parecia moderadamente estar se divertindo. De todos os que estavam sentados à mesa elevada, só Sansa Stark não sorria. Poderia tê-la amado por isso, mas na verdade os olhos da garota Stark encontravam-se longe, como se nem sequer tivesse visto os ridículos cavaleiros saltitando em sua direção.
Os anões não têm culpa, decidiu Tyrion. Quando terminarem, vou elogiá-los e dar uma gorda bolsa de prata a eles. E ao chegar a manhã, descobrirei quem planejou esta pequena diversão e tratarei de arranjar uma forma diferente de agradecer.
Quando os anões frearam as montarias sob o estrado para saudar o rei, o cavaleiro do lobo deixou o escudo cair. Ao inclinar-se para apanhá-lo, o cavaleiro do veado perdeu o controle de sua pesada lança e atingiu-o nas costas. O cavaleiro do lobo caiu da porca, e sua lança tombou e deu uma traulitada na cabeça do adversário. Ambos acabaram no chão, numa grande confusão. Quando se ergueram, ambos tentaram montar o cão. Seguiram-se muitos gritos e empurrões. Por fim, reconquistaram as selas, só que um montado no corcel do outro, segurando o escudo errado e virados para trás.
Levou algum tempo para ajeitarem as coisas, mas por fim esporearam as montarias, dirigiram-se às extremidades opostas do salão e viraram-se para a justa. Enquanto os senhores e as senhoras soltavam gargalhadas e risinhos, os pequenos homens colidiram com estrondo e tinido, e a lança do cavaleiro do lobo atingiu o elmo do cavaleiro do veado, fazendo sua cabeça saltar. Esta rodopiou pelo ar, espalhando sangue, e foi aterrissar no colo de Lorde Gyles. O anão sem cabeça começou a cambalear ao redor das mesas, agitando os braços. Cães ladraram, mulheres gritaram, e o Rapaz Lua deu um grande espetáculo, oscilando de um lado para o outro sobre suas pernas de pau, até que Lorde Gyles tirou um melão vermelho pingando de dentro do elmo despedaçado, no mesmo momento em que o cavaleiro do veado tirou a cabeça para fora da armadura, e outra tempestade de risos sacudiu o salão. Os cavaleiros esperaram que terminasse, rodearam-se um ao outro trocando coloridos insultos e estavam prestes a se separar para outra justa quando o cão atirou seu cavaleiro ao chão e montou a porca. O enorme animal guinchou de aflição, enquanto os convidados da boda guinchavam de riso, redobrado quando o cavaleiro do veado saltou para cima do cavaleiro do lobo, despiu seus calções de madeira e começou a se sacudir freneticamente de encontro às partes baixas do outro.
- Rendo-me, rendo-me - gritou o anão de baixo. - Bom sor, guarde a espada!
- Guardaria, guardaria, se parasse de mexer a bainha! - respondeu o anão de cima, para divertimento geral.
Vinho jorrava de ambas as narinas de Joffrey. Arfando, pôs-se em pé com dificuldade, quase derrubando seu grande cálice de duas mãos.
- Um campeão - gritou. - Temos um campeão! - O salão começou a ficar em silêncio quando os convidados perceberam que o rei estava falando. Os anões separaram-se, sem dúvida à espera dos agradecimentos reais. - Mas não é um verdadeiro campeão - disse Joff. - Um verdadeiro campeão derrota todos aqueles que o desafiam. - O rei subiu para cima da mesa. - Quem mais desafiará o nosso minúsculo campeão? - com um sorriso cheio de satisfação, virou-se para Tyrion. - Tio! Você irá defender a honra do meu reino, não é verdade? Pode montar o porco!
As gargalhadas estouraram sobre ele como uma onda. Tyrion Lannister não lembrava de ter se levantado, nem de ter subido na cadeira, mas deu por si empoleirado na mesa. O salão era uma mancha de rostos maliciosos, iluminada pelos archotes. Torceu o rosto na mais hedionda caricatura de um sorriso que os Sete Reinos já tinham visto.
- Vossa Graça - gritou -, eu montarei o porco... mas só se o senhor montar o cão!
Joff franziu a testa, confuso.
- Eu? Eu não sou nenhum anão. Por que eu?
Meteu o pé direitinho na argola, Joff.
- Ora, é o único homem presente no salão que eu tenho a certeza de derrotar!
Não poderia dizer o que era mais agradável; o instante de silêncio chocado, o vendaval de gargalhadas que se seguiu, ou a expressão de fúria cega no rosto do sobrinho. O anão voltou ao chão com um salto, bastante satisfeito, e, quando olhou novamente, Sor Osmund e Sor Meryn estavam ajudando Joff a descer também. Quando viu que Cersei o fulminava com o olhar, Tyrion soprou-lhe um beijo.
Foi um alívio quando os músicos começaram a tocar. Os minúsculos cavaleiros levaram o cão e a porca para fora do salão, os convidados retornaram aos seus tabuleiros de bolo de carne de porco e Tyrion pediu outra taça de vinho. Mas de repente sentiu a mão de Sor Garlan em sua manga.
- Senhor, atenção - avisou o cavaleiro. - O rei.
Tyrion virou-se na cadeira. Joffrey estava quase em cima dele, rubro e cambaleante, fazendo saltar vinho sobre a borda do grande cálice nupcial dourado que carregava com ambas as mãos.
- Vossa Graça - foi tudo que teve tempo de dizer antes de o rei virar o cálice sobre a sua cabeça. O vinho caiu sobre seu rosto numa torrente vermelha. Empapou seu cabelo, fez seus olhos arderem, queimou seu ferimento, escorreu por suas bochechas e ensopou o veludo de seu gibão novo.
- O que acha disso, Duende? - escarneceu Joffrey.
Os olhos de Tyrion estavam em fogo. Esfregou várias vezes o rosto com a parte de trás da manga e, piscando, tentou devolver clareza ao mundo.
- Isso não foi correto, Vossa Graça - ouviu Sor Garlan dizer em voz baixa.
- De modo algum, Sor Garlan. - Tyrion não se atrevia a deixar que aquilo ficasse ainda mais feio do que já estava, não ali, com metade do reino como testemunha. - Não é um rei qualquer que pensaria em honrar um humilde súdito servindo-o do seu próprio cálice real. Uma pena que o vinho tenha se derramado.
- Não se derramou - disse Joffrey, dotado de demasiada deselegância para aceitar a retratação que Tyrion tinha lhe oferecido. - E também não o estava servindo.
A Rainha Margaery surgiu de repente junto do cotovelo de Joffrey.
- Meu querido rei - rogou a moça Tyrell -, venha, volte ao seu lugar, há outro cantor à espera.
- Alaric de Eysen - disse a Senhora Olenna Tyrell, apoiando-se na bengala e sem prestar mais atenção no anão encharcado de vinho do que a neta havia prestado. - Tenho tanta esperança de que ele toque "As chuvas de Castamere" para nós. Já se passou uma hora, esqueci-me da melodia.
- Além disso, Sor Addam quer fazer um brinde - disse Margaery. - Vossa Graça, por favor.
- Não tenho vinho - declarou Joffrey. - Como é que posso fazer um brinde se não tenho vinho? Tio Duende, pode me servir. Uma vez que não quer justar, será o meu copeiro.
- Será uma honra.
- Não é para ser uma honra! - gritou Joffrey. - Dobre-se e pegue o meu cálice. - Tyrion fez o que lhe foi pedido, mas ao estender a mão para a alça, Joff chutou o cálice por entre suas pernas. - Pegue-ol Será que é tão desastrado quanto feio? - teve de se enfiar debaixo da mesa para achar aquela coisa. - Ótimo, agora encha-o com vinho. - Pegou um jarro que uma criada transportava e encheu a taça até três quartos. - Não, de joelhos, anão. - Ajoelhando, Tyrion ergueu a pesada taça, perguntando a si mesmo se estaria prestes a tomar um segundo banho. Mas Joffrey pegou o cálice nupcial com uma só mão, bebeu longamente e apoiou-o na mesa. - Agora pode se levantar, tio.
Sentiu cãibras nas pernas ao tentar se erguer, e quase voltou a cair. Tyrion teve de se agarrar a uma cadeira para se firmar. Sor Garlan estendeu-lhe uma mão. Joffrey riu, e Cersei também. Depois foram outros. Não viu quem, mas ouviu-os.
- Vossa Graça - a voz de Lorde Tywin estava impecavelmente correta. - A torta está chegando. Sua espada é necessária.
- A torta? - Joffrey pegou na mão de sua rainha. - Venha, senhora, é a torta.
Os convidados ficaram em pé, gritando, aplaudindo e batendo as taças de vinho umas nas outras enquanto a grande torta avançava lentamente ao longo da extensão do salão, empurrada por meia dúzia de radiantes cozinheiros. Tinha dois metros de largura, uma crosta e um tom dourado de marrom, e ouviam-se guinchos e batidas vindos lá de dentro.
Tyrion voltou a subir na cadeira. Tudo que lhe faltava agora era que uma pomba cagasse em cima dele para que o dia ficasse completo. O vinho tinha atravessado o gibão e as roupas de baixo, e sentia a umidade contra a pele. Devia trocar de roupa, mas não era permitido a ninguém abandonar o banquete até chegar a hora de levar os noivos para a cama. Calculou que isso ainda estivesse a uns vinte ou trinta pratos de distância.
O Rei JofFrey e sua rainha dirigiram-se à torta, colocada diante do estrado. Quando Jof puxou a espada, Margaery apoiou uma mão em seu braço para detê-lo.
- A Lamento da Viúva não se destina a cortar tortas.
- E verdade. - JofFrey ergueu a voz. - Sor Ilyn, a sua espada!
Das sombras do fundo do salão surgiu Sor Ilyn Payne. O espectro no festim, pensou Tyrion enquanto observava o Magistrado do Rei avançar, descarnado e sombrio. Era novo demais para ter conhecido Sor Ilyn antes de perder a língua. Teria sido um homem diferente nesse tempo, mas agora o silêncio faz tanto parte dele como aqueles olhos vazios, aquela malha enferrujada e a espada longa que traz às costas.
Sor Ilyn fez uma reverência perante o rei e a rainha, estendeu a mão por sobre o ombro e apresentou um metro e oitenta de ornamentada prata, cintilante de runas. Ajoelhou para oferecer a enorme lâmina a Joffrey, com o cabo para a frente; pontos de fogo vermelho piscaram dos olhos de rubi no botão, um pedaço de vidro de dragão esculpido em forma de uma caveira sorridente.
Sansa agitou-se na cadeira.
- Que espada é aquela?
Os olhos de Tyrion ainda ardiam por causa do vinho. Piscou e voltou a olhar. A espada de Sor Ilyn era tão longa e larga quanto Gelo, mas era brilhante e prateada demais; o aço valiriano possuía certa escuridão, uma espécie de fumaça em sua alma. Sansa agarrou seu braço.
- O que Sor Ilyn fez com a espada de meu pai?
Eu devia ter mandado Gelo de volta a Robb Stark, pensou Tyrion. Olhou de relance para o pai, mas Lorde Tywin observava o rei.
Joffrey e Margaery juntaram as mãos para erguer a espada e brandi-la, juntos, num arco prateado. Quando a crosta da torta se quebrou, as pombas jorraram num turbilhão de penas brancas, espalhando-se em todas as direções, dirigindo-se às janelas e às vigas. Um rugido de deleite ergueu-se dos bancos, e os rabequeiros e gaiteiros na galeria começaram a tocar uma melodia jovial. Joff tomou a noiva nos braços e Fê-la girar alegremente.
Um criado colocou uma Fatia quente de torta de pombo diante de Tyrion e cobriu-a com uma colherada de creme de limão. Naquela torta os pombos estavam bem e verdadeiramente cozidos, mas não os achou mais apetitosos do que os brancos que esvoaçavam pelo salão. Sansa também não comia.
- Está mortalmente pálida, senhora - disse Tyrion. - Precisa respirar um pouco de ar fresco e eu preciso de um gibão lavado. - Ergueu-se e ofereceu-lhe um braço. - Venha.
Mas antes de conseguirem se retirar, Joffrey voltou.
- Tio, aonde vai? É o meu copeiro, esqueceu?
- Preciso vestir um traje limpo, Vossa Graça. Posso ter a sua licença?
- Não. Gosto do aspecto que tem. Sirva-me o vinho.
O cálice do rei encontrava-se na mesa, onde ele o deixara. Tyrion teve de voltar a subir na cadeira a fim de alcançá-lo. Joff arrancou-o de suas mãos e bebeu longa e profundamente, com a garganta se agitando enquanto o vinho lhe escorria, purpúreo, pelo queixo.
- Senhor - disse Margaery -, devíamos regressar aos nossos lugares. Lorde Buckler quer fazer um brinde à nossa saúde.
- Meu tio não comeu sua torta de pombo. - Segurando o cálice com uma mão, Joff enfiou a outra na torta de Tyrion. - Não comer a torta traz má sorte - ralhou com ele enquanto enchia a boca com pombo quente e condimentado. - Está vendo? É boa. - Cuspindo flocos de crosta, tossiu e serviu-se de outro bocado. - Mas está seca. Precisa ser empurrada para baixo. - Joff bebeu um trago de vinho e voltou a tossir, com mais violência. - Quero ver, cof, como monta aquele, cof cof, porco, tio. Quero... - As suas palavras interromperam-se num ataque de tosse.
Margaery olhou-o com preocupação.
- Vossa Graça?
- E, cof, a torta, nad... cof, torta. - Joff bebeu outro gole, ou tentou, mas o vinho foi todo cuspido quando outro ataque de tosse o fez se dobrar. O rosto dele estava ficando vermelho. - Eu, cof, não consigo, cof cof cof cof... - O cálice escapou de sua mão e o escuro vinho tinto escorreu pelo estrado.
- Ele está sufocando - arquejou a Rainha Margaery.
A avó pôs-se ao seu lado.
- Ajudem o pobre rapaz! - guinchou a Rainha dos Espinhos, com uma voz que era dez vezes maior do que ela. - Palermas! Vão ficar todos aí de boca aberta? Ajudem o seu rei!
Sor Garlan afastou Tyrion com um empurrão e começou a bater nas costas de Joffrey. Sor Osmund Kettleblack rasgou o colarinho do rei. Um terrível som forte e agudo emergiu da garganta do rapaz, o som de um homem que tentava sugar um rio através de um caniço; então parou, e isso foi ainda mais terrível.
- Virem-no ao contrário! - berrou Mace Tyrrell para todos e para ninguém. - Virem-no ao contrário, sacudam-no pelos calcanhares!
Uma voz diferente estava gritando:
- Água, deem-lhe um pouco de água! - o Alto Septão começou a rezar ruidosamente. O Grande Meistre Pycelle gritou para alguém ajudá-lo a voltar aos seus aposentos, a fim de ir buscar as suas poções. Joffrey começou a arranhar a garganta, rasgando com as unhas fendas sangrentas na carne. Por baixo da pele, os músculos projetavam-se, duros como pedra. O Príncipe Tommen gritava e chorava.
Ele vai morrer, compreendeu Tyrion. Sentiu-se curiosamente calmo, embora o pandemônio se alastrasse por toda a sua volta. Estavam de novo batendo nas costas de Joff, mas o rosto dele só ficava mais escuro. Cães latiam, crianças berravam, homens gritavam conselhos inúteis uns aos outros. Metade dos convidados do casamento estava em pé, alguns empurrando-se para ver melhor, outros correndo para as portas na pressa de irem embora.
Sor Meryn abriu a boca do rei para lhe enfiar uma colher goela abaixo. Quando fez isso, os olhos do rapaz encontraram-se com os de Tyrion. Ele tem os olhos de Jaime. Porém nunca vira Jaime com uma expressão tão assustada. O rapaz só tem treze anos. Joffrey fazia um som seco, uma espécie de estalido, tentando falar. Seus olhos dilataram-se, brancos de terror, e ergueu uma mão... estendendo-a para o tio, ou apontando... Estará me pedindo perdão, ou será que pensa que posso salvá-lo?
- Nããããão - uivou Cersei - Pai, ajude-o, alguém o ajude, o meu filho, o meu filho...
Tyrion deu por si pensando em Robb Stark. Em retrospectiva, o meu casamento está
parecendo muito melhor. Tentou ver como Sansa estaria recebendo aquilo, mas a confusão no salão era tanta que não conseguiu encontrá-la. Mas seus olhos caíram sobre o cálice nupcial, esquecido no chão. Inclinou-se e apanhou-o. No fundo ainda havia um centímetro e meio de vinho de um profundo tom púrpura. Tyrion refletiu por um momento, e depois despejou-o no chão.
Margaery Tyrell chorava nos braços da avó enquanto a velha dizia: "Coragem, coragem". A maior parte dos músicos tinha fugido, mas o último flautista na galeria soprava uma canção triste. Nos fundos da sala do trono, uma balbúrdia tinha se instalado em volta das portas, e os convidados tropeçavam uns nos outros. Os homens de manto dourado de Sor Addam entraram para restaurar a ordem. Havia convidados que se precipitavam para a noite, alguns choravam, outros tropeçavam e vomitavam, outros estavam brancos de medo. Ocorreu tardiamente a Tyrion que talvez fosse sensato sair também.
Quando ouviu o grito de Cersei, soube que tinha chegado ao fim.
Eu devia sair. Já. Em vez disso bamboleou-se na direção da irmã.
Ela estava sentada numa poça de vinho, embalando o corpo do filho. Tinha o vestido rasgado e manchado, e o rosto branco como cal. Um cão negro e magro aproximou-se dela, farejando o cadáver de Joffrey.
- O rapaz está morto, Cersei - disse Lorde Tywin. Pousou a mão enluvada no ombro da filha enquanto um dos guardas enxotava o cão. - Largue-o. Deixe-o partir. - Ela não ouviu. Foram precisos dois homens da Guarda Real para desprender seus dedos de modo que o corpo do Rei Joffrey Baratheon deslizasse, sem forças e sem vida, para o chão.
O Alto Septão ajoelhou-se ao seu lado.
- Pai no Céu, julgue o nosso bom Rei Joffrey com justeza - entoou, dando início à prece pelos mortos. Margaery Tyrell desatou a soluçar, e Tyrion ouviu a mãe dela, Senhora Alerie, dizer:
- Ele engasgou-se, querida. Engasgou-se com a torta. Não teve nada a ver com você. Ele engasgou-se. Todos vimos.
- Ele não se engasgou. - A voz de Cersei era tão cortante quanto a espada de Sor Ilyn. - Meu filho foi envenenado. - Olhou para os cavaleiros brancos, em pé, impotentes, em volta dela. - Guarda Real, cumpra o seu dever.
- Senhora? - disse Sor Loras Tyrell, sem compreender.
- Prendam o meu irmão - ordenou-lhe. - Foi ele quem fez isto, o anão. Ele e a mulherzinha dele. Eles mataram o meu filho. Levem-nos! Levem os dois!
Longe, do outro lado da cidade, um Sino começou a repicar. Sansa sentiu-se como se estivesse num sonho.
- Joffrey está morto - disse às árvores, para ver se isso a acordaria.
Não estava morto quando ela tinha abandonado a sala do trono. Mas estava de joelhos, arranhando a garganta, rasgando a própria pele enquanto lutava para respirar. A cena havia sido terrível demais para observar, e ela virou-se e fugiu, soluçando. A Senhora Tanda também tinha fugido.
- Tem um bom coração, senhora - disse para Sansa. - Não é qualquer donzela que choraria assim por um homem que a pôs de lado e a casou com um anão.
Um bom coração. Eu tenho um bom coração. Um riso histérico subiu por sua garganta, mas Sansa sufocou-o. Os sinos tocavam, lentos e fúnebres. Ressoando, ressoando, ressoando. Tinham tocado da mesma forma pelo Rei Robert. Joffrey estava morto, ele estava morto, estava morto, morto, morto. Estava chorando por quê, se o que queria era dançar? Seriam lágrimas de alegria?
Encontrou a roupa onde a escondera, na noite da antevéspera. Sem aias que a ajudassem, levou mais tempo do que devia desatando os cordões do vestido. Tinha as mãos estranhamente desajeitadas, embora não estivesse tão assustada como devia estar.
- Os deuses são cruéis por o levarem tão jovem e bonito, em seu próprio banquete de casamento - tinha dito a Senhora Tanda.
Os deuses são justos, pensou Sansa. Robb também morrera num banquete de casamento. Era por Robb que chorava. Por ele e por Margaery. Pobre Margaery, duas vezes casada e duas vezes viúva. Sansa tirou o braço de uma manga, empurrou o vestido para baixo e contorceu-se para fora dele. Enrolou-o numa bola, enfiou-o no tronco de um carvalho e puxou a roupa que ali escondera, sacudindo-a. Vista roupa quente, Sor Dontos havia dito, e roupa escura. Não tinha nada preto, por isso escolheu um vestido de grossa lã marrom. O corpete era decorado com pérolas de água doce, porém. O manto vai cobri-las. O manto era de um verde profundo, com um grande capuz. Enfiou o vestido pela cabeça e prendeu o manto, deixando o capuz abaixado por enquanto. Também havia sapatos, simples e resistentes, com saltos baixos e ponta quadrada. Os deuses ouviram as minhas preces, pensou. Sentia-se tão atordoada, tão dentro de um sonho. Minha pele transformou-se em porcelana, em marfim, em aço. As mãos moviam-se rigidamente, de maneira desajeitada, como se nunca antes tivessem soltado seus cabelos. Por um momento, desejou que Shae estivesse ali, para ajudá-la com a rede.
Quando a libertou, seus longos cabelos ruivos caíram em cascata pelas costas e sobre os ombros. A rede de prata tecida pendia de seus dedos, com o fino metal a brilhar suavemente, e as pedras negras ao luar. Ametistas negras de Asshai. Uma delas tinha desaparecido. Sansa levantou a rede para ver melhor. Havia uma mancha escura no encaixe de prata de onde a pedra caíra.
Um súbito terror preencheu-a. O coração martelou contra suas costelas, e por um instante prendeu a respiração. Por que estou tão assustada? É só uma ametista, uma ametista negra de Asshai, nada mais. Devia estar solta no engaste, só isso. Estava solta e caiu, e agora jaz num ponto qualquer da sala do trono, ou no pátio, a menos que...
Sor Dontos tinha dito que a rede para cabelos era mágica, que a levaria para casa. Disse que ela devia usá-la naquela noite, no banquete de casamento de Joffrey. O fio de prata estendia-se, apertado, sobre os nós de seus dedos. Esfregou com o polegar o buraco onde a pedra estivera. Tentou parar, mas os dedos não lhe pertenciam. O polegar era atraído para o buraco, como a língua é atraída para um dente em falta. Que tipo de magia? O rei estava morto, o rei cruel que tinha sido o seu galante príncipe mil anos antes. Se Dontos havia mentido a respeito da rede para cabelos, teria mentido também sobre o resto? E se não vier? E se não houver nenhum navio, nenhum barco no rio, nenhuma fuga? O que lhe aconteceria se assim fosse?
Ouviu um tênue restolhar de folhas, e enfiou a rede de prata bem fundo no bolso do manto.
- Quem está aí? - gritou. - Quem é? - O bosque sagrado encontrava-se escuro e sombrio, e os sinos carregavam Joff para a sepultura.
- Eu. - Ele saiu cambaleando de debaixo das árvores, caindo de bêbado. Pegou no seu braço para se equilibrar. - Doce Jonquil, eu vim. O seu Florian veio, não tenha medo.
Sansa afastou-se do toque dele.
- Disse que eu devia usar a rede para cabelos. A rede de prata com... que tipo de pedras são estas?
- Ametistas. Ametistas negras de Asshai, senhora.
- Elas não são ametistas coisa nenhuma. São? São? Você mentiu.
- Ametistas negras - jurou ele. - Havia magia nelas.
- Havia assassinato nelas!
- Mais baixo, senhora, mais baixo. Assassinato não. Ele engasgou-se com a torta de pombo. - Dontos gargalhou. - Oh, torta saborosa, tão saborosa. Prata e pedras, é tudo que era, prata, pedras e magia.
Os sinos repicavam e o vento fazia um ruído igual ao que ele tinha feito ao tentar inspirar uma golfada de ar.
- Envenenou-o. Foi isso. Tirou uma pedra dos meus cabelos...
- Chiu, será a nossa morte. Eu não fiz nada. Venha, temos de ir, eles vão nos procurar. O seu esposo foi preso.
- Tyrion? - disse ela, chocada.
- A senhora tem outro esposo? O Duende, o tio anão, ela pensa que foi ele quem matou o rei. - Dontos agarrou a mão dela e puxou-a. - Por aqui, temos de ir, depressa, não tenha medo.
Sansa seguiu-o sem resistir. "Nunca consegui tolerar os choros das mulheres", Joff havia dito uma vez, mas a mãe dele era a única mulher que chorava agora. Nas histórias da Velha Ama os gramequins fabricavam coisas mágicas que eram capazes de fazer com que um desejo se tornasse realidade. Será que desejei a sua morte?, perguntou a si mesma, antes de se lembrar que já tinha idade para não acreditar em gramequins.
- Tyrion envenenou-o? - sabia que o seu esposo anão odiava o sobrinho. Poderia realmente tê-lo matado? Será que sabia da minha rede para cabelo, das ametistas negras? Ele levou vinho a Joff. Como era possível sufocar alguém pondo uma ametista no vinho? Se Tyrion fez isso, eles julgarão que eu também desempenhei um papel, compreendeu com um sobressalto de medo. E por que não? Eram marido e mulher, e Joff matara seu pai e zombara dela a propósito da morte do irmão. Uma carne, um coração, uma alma.
- Silêncio agora, doçura - disse Dontos. - Fora do bosque sagrado, não podemos fazer um som. Puxe o capuz e esconda o rosto. - Sansa assentiu e fez o que ele dizia.
O homem estava tão bêbado que Sansa teve de lhe dar o braço algumas vezes para impedir que caísse. Os sinos tocavam do outro lado da cidade, com um número cada vez maior se juntando aos demais. Manteve a cabeça baixa e permaneceu nas sombras, logo atrás de Dontos. Ao descer a escada em espiral, ele caiu de joelhos e vomitou. Meu pobre Florian, pensou, enquanto limpava a boca dele com uma manga larga. "Vista roupa escura", ele tinha dito, mas sob o manto marrom com capuz vestia o seu velho sobretudo; riscas horizontais em vermelho e rosa sob um chefe negro portando três coroas de ouro, as armas da Casa Hollard.
- Por que está usando o seu sobretudo? Joff decretou que seria a sua morte se fosse pego outra vez vestido como um cavaleiro, ele... ah... - Nada do que Joff tinha decretado importava mais.
- Quis ser um cavaleiro. Pelo menos para isto. - Dontos pôs-se de novo em pé e pegou no seu braço. - Venha. Agora fique em silêncio, nada de perguntas.
Continuaram a descer a escada em espiral e atravessaram um pequeno pátio rodeado de altas paredes. Sor Dontos abriu com um empurrão uma porta pesada e acendeu um círio. Encontravam-se dentro de uma longa galeria. Ao longo das paredes havia armaduras vazias, escuras e empoeiradas, com os elmos coroados com fileiras de escamas que desciam por suas costas. Enquanto passavam rapidamente por elas, a luz do círio fazia com que as sombras de cada escama se estendessem e torcessem. Os cavaleiros ocos estão se transformando em dragões, pensou.
Mais uma escada levou-os a uma porta de carvalho reforçada com ferro.
- Seja forte agora, minha Jonquil, está quase lá. - Quando Dontos levantou a tranca e abriu a porta, Sansa sentiu uma brisa fria no rosto. Passou através de três metros e meio de muralha e então viu-se fora do castelo, no topo da falésia. Embaixo ficava o rio, em cima, o céu, e um era tão negro quanto o outro.
- Temos de descer - disse Sor Dontos. - Lá embaixo há um homem esperando para nos levar num bote até o navio.
- Eu vou cair. - Bran tinha caído, e ele adorava escalar.
- Não, não cairá. Há uma espécie de escada, uma escada secreta, entalhada na pedra. Veja, pode tateá-la, senhora. - Ajoelhou-se com ela e fez Sansa debruçar-se sobre a borda da falésia, apalpando com os dedos até encontrar o apoio de mão cortado na face do penhasco. - É quase tão bom quanto os degraus de uma escada de mão.
Mesmo assim, a descida era muito longa.
- Não consigo.
- Precisa.
- Não há outro caminho?
- O caminho é este. Não será muito difícil para uma mulher jovem e forte como você. Agarre-se bem e nunca olhe para baixo, e chegará lá embaixo num instante. - Os olhos dele brilhavam. - Seu pobre Florian é gordo, velho e bêbado, eu é que devia estar assustado. Eu costumava cair do cavalo, esqueceu? Foi assim que começamos. Estava bêbado e caí do cavalo e Joffrey quis a minha cabeça boba, mas você me salvou. Você me salvou, querida.
Ele está chorando, reparou Sansa.
- E agora foi você que me salvou.
- Só se descer. Se não, matem-nos ambos.
Foi ele, pensou ela. Ele matou Joffrey. Tinha de ir, tanto por ele como por si mesma.
- Vá na frente, sor. - Se ele caísse, não o queria caindo sobre a sua cabeça e arrastando ambos falésia abaixo.
- Como quiser, senhora. - Deu-lhe um beijo úmido e passou desajeitadamente as pernas pela borda do precipício, esperneando até encontrar um apoio para os pés. - Deixe-me descer um pouco, e siga-me depois. Vai vir? Precisa jurar.
- Vou - prometeu.
Sor Dontos desapareceu. Sansa ouvia-o bufando e arquejando enquanto começava a descida. Ficou escutando o repique dos sinos, contando cada batida. Ao chegar a dez, baixou-se cautelosamente sobre a borda do penhasco, tateando com os dedos dos pés até encontrar um lugar para eles descansarem. As muralhas do castelo elevavam-se, grandes, por cima de si, e por um momento nada desejou mais do que puxar-se para cima e correr de volta para seus quentes aposentos na Fortaleza das Cozinhas. Seja brava, disse a si mesma. Seja brava, como uma senhora numa canção.
Sansa não se atreveu a olhar para baixo. Manteve os olhos postos na face da falésia, assegurando-se de cada passo antes de estender os pés para o seguinte. A pedra era áspera e fria. Às vezes sentia os dedos deslizando, e os apoios para as mãos não eram espaçados de uma forma tão regular como teria preferido. Os sinos não queriam parar de tocar. Antes de chegar na metade do caminho seus braços já estavam tremendo, e soube que ia cair. Mais um passo, disse a si mesma, mais um passo. Tinha de continuar em movimento. Se parasse, nunca mais se moveria, e a alvorada iria encontrá-la ainda agarrada à falésia, congelada de medo. Mais um passo, e mais um passo.
O chão apanhou-a de surpresa. Tropeçou e caiu, com o coração aos saltos. Quando rolou sobre as costas e fitou o local de onde tinha vindo, sentiu a cabeça a nadar, entontecida, e os dedos agarraram-se à terra. Consegui. Consegui. Não caí, consegui descer e agora vou para casa.
Sor Dontos ajudou-a a ficar em pé.
- Por aqui. Agora silêncio, silêncio, silêncio. - Permaneceu perto das sombras que se estendiam, negras e espessas, sob os penhascos. Felizmente não tiveram de ir longe. Cinquenta metros a jusante, um homem estava sentado num pequeno esquife, meio escondido pelos restos de uma grande galé que tinha dado à costa ali e queimado. Dontos manqueou até ele, bufando. - Oswell?
- Nada de nomes - disse o homem. - Para o barco. - Estava sentado, curvado sobre os remos, um homem velho, alto e de membros esguios, com longos cabelos brancos, um grande nariz adunco e os olhos escondidos por um capuz. - Entrem, e depressa - resmungou. - Temos de nos pôr a caminho.
Depois de ambos estarem a salvo a bordo, o encapuzado deslizou as pás para dentro de água e entregou as costas aos remos, fazendo o barco avançar para o canal. Por trás deles, os sinos continuavam a repicar a morte do rei rapaz. Tinham o rio escuro todo para si.
Com remadas lentas, constantes e ritmadas, abriram caminho para jusante, deslizando por cima das galés afundadas, passando por mastros partidos, cascos queimados e velas rasgadas. Os toletes tinham sido revestidos, de modo que o barco se movia quase sem um som. Uma névoa pairava sobre a água. Sansa viu o baluarte com ameias de uma das torres do guincho do Duende erguendo-se na margem, mas a grande corrente tinha sido descida e passaram sem impedimentos pelo local onde mil homens tinham ardido. A costa afastou-se, o nevoeiro tornou-se mais denso, o som dos sinos começou a se atenuar. Por fim, mesmo as luzes desapareceram, perdidas em algum lugar atrás deles. Estavam na Baía da Água Negra, e o mundo reduziu-se a água escura, névoa soprada pelo vento e o companheiro silencioso encurvado sobre os remos.
- Temos de ir até muito longe? - ela perguntou.
- Nada de falar. - O remador era velho, mas mais forte do que parecia, e sua voz era feroz. Havia algo estranhamente familiar no rosto dele, embora Sansa não conseguisse identificar o que seria.
- Não é longe. - Sor Dontos tomou sua mão na dele e esfregou-a com gentileza. - Seu amigo está perto, à sua espera.
- Nada de falar! - rosnou de novo o remador. - O som chega longe sobre a água, Sor Bobo.
Desconcertada, Sansa mordeu o lábio e encolheu-se em silêncio. O resto foi remar, remar, remar.
O céu do oriente já mostrava o primeiro vago indício da alvorada quando Sansa viu por fim uma silhueta fantasmagórica na escuridão que se estendia adiante; uma galé mercante, com as velas enroladas, deslocando-se lentamente, movida por uma única fileira de remos. Quando se aproximaram, viu a figura de proa do navio, um tritão com uma coroa dourada soprando um grande búzio. Ouviu uma voz gritar, e a galé deu a volta lentamente.
Quando se posicionaram ao lado da galé, uma escada de corda foi atirada por sobre a amurada. O remador puxou os remos para o barco e ajudou Sansa a ficar em pé.
- Agora para cima. Vá lá, menina, eu seguro você. - Sansa agradeceu-lhe pela gentileza, mas só recebeu um grunhido em resposta.
Foi muito mais fácil subir a escada de corda do que tinha sido descer a falésia. O remador Oswell seguiu logo atrás dela, ao passo que Sor Dontos permaneceu no barco.
Dois marinheiros esperavam junto à amurada, para ajudá-la a subir até o convés. Sansa tremia.
- Ela está com frio - ouviu alguém dizer. O homem tirou o manto e aconchegou-o em volta de seus ombros. - Pronto, está melhor, senhora? Descanse, o pior já passou.
Conhecia a voz. Mas ele está no Vale, pensou. Sor Lothor Brune estava ao lado dele, com um archote.
- Lorde Petyr - chamou Dontos do barco. - Tenho de remar de volta, antes que pensem em procurar por mim.
Petyr Baelish pôs uma mão na amurada.
- Mas primeiro vai querer o pagamento. Dez mil dragões, não é?
- Dez mil. - Dontos esfregou a boca com as costas da mão. - Conforme prometeu, senhor.
- Sor Lothor, a recompensa.
Lothor Brune baixou o archote. Três homens aproximaram-se da amurada, ergueram bestas, e dispararam. Um dardo atingiu Dontos no peito quando ele olhou para cima, penetrando através da coroa esquerda de seu sobretudo. Os outros rasgaram a garganta e a barriga. Aconteceu tão depressa que nem Dontos nem Sansa tiveram tempo de gritar. Quando terminou, Lothor Brune atirou o archote para cima do cadáver. O pequeno barco ardia violentamente enquanto a galé se afastava.
- Matou-o. - Agarrando-se à amurada, Sansa virou-se e vomitou. Teria fugido dos Lannister para cair em armadilha pior?
- Minha senhora - murmurou Mindinho -, seu pesar é desperdiçado num homem como aquele. Era um bêbado, e não era amigo de ninguém.
- Mas ele salvou-me.
- Ele vendeu a senhora em troca da promessa de dez mil dragões. Seu desaparecimento irá fazê-los suspeitar de seu papel na morte de Joffrey. Os homens de manto dourado irão à caça, e o eunuco fará tinir a sua bolsa. Dontos... bem, ouviu-o. Vendeu-a por ouro e, quando o bebesse, teria voltado a vendê-la. Um saco de dragões compra o silêncio de um homem durante algum tempo, mas um dardo bem colocado compra-o para sempre. - Deu um sorriso triste. - Tudo que ele fez foi às minhas ordens. Não me atrevi a travar abertamente amizade com você. Quando me contaram como Dontos salvou sua vida no torneio de Joff, soube que ele seria o instrumento perfeito.
Sansa sentiu-se enjoada.
- Ele disse que era o meu Florian.
- Por acaso lembra-se do que lhe disse naquele dia em que seu pai se sentou no Trono de Ferro?
O momento voltou-lhe à memória com grande clareza.
- Disse-me que a vida não era uma canção. Que um dia eu aprenderia isso para minha tristeza. - Sentiu lágrimas nos olhos, mas não saberia dizer se chorava por Sor Dontos Hollard, por Joff, por Tyrion ou por si mesma. - É tudo mentira, desde sempre e para sempre, tudo e todos?
- Quase todos. Menos eu e você, claro. - Sorriu. - Venha esta noite ao bosque sagrado, se quiser ir para casa.
- A nota... era você?
- Tinha de ser o bosque sagrado. Nenhum outro local da Fortaleza Vermelha está a salvo dos passarinhos do eunuco... ou ratazaninhas, como eu os chamo. No bosque sagrado há árvores em vez de paredes. Céu no lugar de tetos. Raízes, terra e pedras em vez de assoalhos. As ratazanas não têm por onde correr. As ratazanas precisam se esconder, para que os homens não espetem espadas nelas. - Lorde Petyr pegou-a pelo braço.
- Permita que lhe mostre a sua cabine. Teve um dia longo e penoso, eu sei. Deve estar cansada.
O barquinho já não era mais do que um turbilhão de fumaça e fogo atrás deles, quase perdido na imensidão do mar da alvorada. Não havia volta; seu único caminho era em frente.
- Muito cansada - admitiu.
Enquanto a levava para baixo, ele disse:
- Fale-me do banquete. A rainha dedicou-se tanto. Os cantores, os malabaristas, o urso dançarino... o pequeno senhor seu esposo gostou de meus anões combatentes?
- Seus?
- Tive de mandar buscá-los em Bravos e de escondê-los num bordel até o casamento. A despesa só foi excedida pelo incômodo. É surpreendentemente difícil esconder um anão, e Joffrey... pode levar um rei até a água, mas com Joffrey era preciso espalhá-la por todo lado antes que ele entendesse que a podia beber. Quando lhe falei de minha pequena surpresa, Sua Graça disse: "Por que eu iria querer uns anões feios no meu banquete? Detesto anões." Tive de me aproximar e sussurrar: "Mas não tanto quanto o seu tio os detestará".
O convés balançou sob os pés de Sansa, e ela sentiu como se o próprio mundo tivesse se tornado instável.
- Eles pensam que Tyrion envenenou Joffrey. Sor Dontos disse que o prenderam.
Mindinho sorriu.
- A viuvez cairá bem em você, Sansa.
A ideia agitou sua barriga. Podia nunca mais ser obrigada a dividir uma cama com Tyrion. Era isso o que queria... não?
A cabine era baixa e apertada, mas tinham colocado um colchão de penas no estreito beliche a fim de deixá-lo mais confortável, e grossas peles foram empilhadas por cima.
- É pequeno, eu sei, mas não deverá ficar muito desconfortável. - Mindinho indicou uma arca de cedro sob a vigia. - Achará roupa lavada lá dentro. Vestidos, roupa de baixo, meias quentes, um manto. Temo que sejam de lã e linho. Vestuário indigno de uma donzela tão bela, mas servirá para mantê-la seca e limpa até que possamos lhe arranjar algo melhor.
Ele mandou preparar tudo isso para mim.
- Senhor, eu... eu não compreendo... Joffrey deu-lhe Harrenhal, fez de você Senhor Supremo do Tridente... por quê...
- Por que haveria de querê-lo morto? - Mindinho encolheu os ombros. - Não tive nenhum motivo. Além disso, estou a mil léguas de distância, no Vale. Mantenha sempre seus inimigos confusos. Se nunca estiverem seguros de quem é ou do que quer, não podem saber o que é provável que faça em seguida. Às vezes, a melhor maneira de confundi-los é fazer coisas que não têm nenhum propósito, ou até que parecem prejudicar você. Lembre-se disso, Sansa, quando começar a jogar o jogo.
- Que... que jogo?
- O único jogo. O jogo dos tronos. - Afastou uma madeixa dos cabelos dela. - Já tem idade para saber que sua mãe e eu éramos mais do que amigos. Houve uma época em que Cat era tudo o que eu desejava neste mundo. Atrevi-me a sonhar com a vida que podíamos ter e os filhos que ela me daria... mas ela era filha de Correrrio, e de Hoster Tully. Família, Dever, Honra, Sansa. Família, Dever, Honra significavam que eu nunca poderia obter a mão dela. Mas ela deu-me algo melhor, um presente que uma mulher não pode dar mais do que uma vez. Como eu poderia dar as costas à filha dela? Num mundo melhor, você poderia ter sido minha, não de Eddard Stark. Minha leal e adorada filha... Afaste Joffrey da cabeça, querida. Dontos, Tyrion, todos. Nunca mais a incomodarão. Agora está em segurança, e isso é tudo o que importa. Está a salvo comigo, e a caminho de casa.
O rei está morto, disseram-lhe, sem saber que Joffrey não era só seu soberano, mas também seu filho.
- O Duende abriu a goela dele com um punhal - declarou um vendedor ambulante na estalagem à beira da estrada onde passaram a noite. - Bebeu seu sangue num grande cálice de ouro. - O homem não foi mais capaz de reconhecer o cavaleiro barbudo e maneta com o grande morcego no escudo do que qualquer um dos demais, por isso disse coisas que de outro modo poderia ter engolido, caso soubesse quem o estava ouvindo.
- Foi veneno o que despachou a coisa - insistiu o estalajadeiro. - A cara do rapaz ficou preta que nem uma ameixa.
- Que o Pai o julgue com justiça - murmurou um septão.
- A mulher do anão tratou do assassinato com ele - jurou um arqueiro vestido com a libré de Lorde Rowan. - Depois desapareceu do salão numa nuvem de enxofre, e um lobo gigante fantasma foi visto percorrendo a Fortaleza Vermelha, com sangue pingando das mandíbulas.
Jaime ouviu tudo sentado e em silêncio, deixando-se cobrir pelas palavras, com um corno de cerveja esquecido na mão boa .Joffrey. O meu sangue. Meu primogênito. Meu filho. Tentou trazer à memória o rosto do rapaz, mas seus traços teimavam em transformar-se nos de Cersei. Ela vai estar de luto, com os cabelos despenteados e os olhos vermelhos de tanto chorar, a boca tremendo enquanto tenta falar. Voltará a chorar quando me vir, embora lute contra as lágrimas. A irmã raramente chorava, exceto quando estava com ele. Não conseguia suportar que outros a julgassem fraca. Só ao gêmeo mostrava as feridas. Ela procurará conforto e vingança em mim.
Cavalgaram duramente no dia seguinte, por insistência de Jaime. O filho estava morto, e a irmã precisava dele.
Quando viu a cidade à sua frente, com as torres de vigia escuras contra o ocaso que se aprofundava, Jaime Lannister aproximou-se a meio-galope de Walter Pernas-de-Aço, que seguia atrás de Nage e da bandeira de paz.
- Que fedor horrível é esse? - protestou o nortenho.
A morte, pensou Jaime, mas disse:
- Fumaça, suor e merda. Porto Real, em suma. Se tiver um bom nariz, poderá também cheirar a traição. Nunca tinha cheirado uma cidade?
- Cheirei Porto Branco. Nunca fedeu assim.
- Porto Branco está para Porto Real como o meu irmão Tyrion está para Sor Gregor Clegane.
Nage subiu uma pequena colina à frente deles, com a bandeira de paz de sete pontas erguendo-se e virando ao vento, e a estrela polida de sete pontas cintilando brilhante no topo do mastro. Veria Cersei em breve, e também Tyrion, e o pai. Meu irmão poderia realmente ter matado o rapaz? Jaime achava difícil acreditar naquilo.
Sentia-se curiosamente calmo. Sabia que esperava-se que os homens enlouquecessem de desgosto quando os filhos morriam. Esperava-se que arrancassem os cabelos, que amaldiçoassem os deuses e jurassem rubra vingança. Então por que será que sentia tão pouco? O rapaz viveu e morreu acreditando que Robert Baratheon era o pai dele.
Jaime vira-o nascer, isso era certo, embora mais por Cersei do que pela criança. Mas nunca o pegara no colo.
- O que iriam achar? - avisou-o a irmã quando as mulheres finalmente os deixaram. - Já é suficientemente ruim que Joff se pareça com você sem que fique babando por cima dele. - Jaime cedeu quase sem luta. O rapaz fora uma coisinha cor-de-rosa e estridente que exigia demasiado do tempo de Cersei, do amor de Cersei e dos seios de Cersei. Que Robert ficasse com ele.
E agora está morto. Imaginou Joff jazendo imóvel e frio, com um rosto negro de veneno, e continuou a não sentir nada. Talvez fosse o monstro que o acusavam de ser. Se o Pai no Céu descesse para lhe oferecer de volta o filho ou a mão, Jaime sabia qual das coisas escolheria. Afinal, tinha um segundo filho, e sêmen bastante para muitos mais. Se Cersei quiser outro filho, eu dou... e dessa vez vou pegá-lo no colo, e que 05 Outros carreguem quem não gostar. Robert apodrecia em sua sepultura, e Jaime estava farto de mentiras.
Virou-se abruptamente e galopou para trás, ao encontro de Brienne. Só os deuses sabem por que me incomodo. Ela é a criatura menos sociável que tive o infortúnio de conhecer. A garota seguia bem atrás e cerca de um metro desviada para o lado, como que para proclamar que não fazia parte do grupo. Ao longo do caminho tinham encontrado roupas de homem para ela; uma túnica aqui, uma capa ali, um par de calções e um manto com capuz, até uma velha placa de peito de ferro. Parecia mais confortável vestida de homem, mas nada nunca faria com que parecesse bonita. Nem feliz. Uma vez fora de Harrenhal, sua habitual teimosia casmurra rapidamente voltou a se instalar.
- Quero minhas armas e armadura de volta - tinha insistido.
- Oh, com certeza, que a tenhamos de novo coberta de aço - respondeu Jaime. - Especialmente um elmo. Ficaremos todos mais felizes se mantiver a boca fechada e a viseira abaixada.
Pelo menos isso Brienne podia fazer, mas seus silêncios carrancudos depressa começaram a desgastar tanto o bom humor dele como as constantes tentativas de Qyburn para ser agradável. Nunca pensei que daria por mim com saudades da companhia de Cleos Frey, que os deuses me ajudem. Começava a desejar tê-la deixado para o urso.
- Porto Real - anunciou Jaime quando a encontrou. - Nossa viagem terminou, senhora. Cumpriu o seu voto e entregou-me em Porto Real. Inteiro, exceto por uns dedos e uma mão.
Os olhos de Brienne mostraram-se indiferentes.
- Isso foi apenas metade de meu voto. Disse à Senhora Catelyn que lhe levaria de volta as filhas. Ou Sansa, pelo menos. E agora...
Ela nunca conheceu Robb Stark, e no entanto o pesar que sente por ele é mais profundo do que o meu por Joff. Ou talvez fosse pela Senhora Catelyn que fazia luto. Essa notícia chegara até eles em Bosque Malhado, pela boca de um cavaleiro corado que mais parecia uma barrica chamado Sor Bertram Beesbury, cujas armas eram três colmeias em fundo listrado de negro e amarelo. Uma companhia de homens de Lorde Piper tinha passado por Bosque Malhado no dia anterior, disse-lhes Beesbury, correndo para Porto Real sob a sua bandeira de paz.
- Com o Jovem Lobo morto, Piper não viu objetivo em continuar a lutar. Seu filho é cativo nas Gêmeas. - Brienne tinha escancarado a boca como uma vaca prestes a engasgar com o bolo de grama, e assim coube a Jaime extrair a história do Casamento Vermelho.
- Todos os grandes senhores têm vassalos insubmissos que invejam sua posição - disse-lhe depois. - Meu pai tinha os Reyne e os Tarbeck, os Tyrell têm os Florent, Hoster Tully tinha Walder Frey. Só a força mantém homens assim em seus lugares. No momento em que sentem cheiro de fraqueza... durante a Idade dos Heróis, os Bolton costumavam esfolar os Stark e usar suas peles como mantos. - Ela tinha feito uma expressão tão infeliz que Jaime quase deu por si desejando confortá-la.
Desde esse dia Brienne agia como alguém que estivesse meio morto. Nem chamá-la de "garota" conseguia provocar uma resposta. A força dela desapareceu. A mulher fizera cair um rochedo sobre Robin Ryger, batalhara contra um urso com uma espada de torneio, arrancara a orelha de Vargo Hoat com uma dentada e lutara com Jaime até a exaustão... mas agora encontrava-se quebrada, acabada.
- Falarei com o meu pai para devolvê-la a Tarth, se isso lhe agradar - disse-lhe. - Ou, se preferir ficar, talvez possa arranjar alguma posição para você na corte.
- Como senhora acompanhante da rainha? - disse ela sem interesse.
Jaime recordou o aspecto dela naquele vestido de cetim cor-de-rosa e tentou não imaginar o que a irmã poderia dizer de uma tal acompanhante.
- Talvez um posto na Patrulha da Cidade...
- Não servirei com perjuros e assassinos.
Então por que quis prender uma espada na cintura?, podia ter dito, mas reprimiu as palavras.
- Como queira, Brienne. - Com uma só mão, deu meia-volta com o cavalo e deixou-a para trás.
O Portão dos Deuses estava aberto quando lá chegaram, mas havia duas dúzias de carros alinhados ao longo da beira da estrada, carregados com tonéis de sidra, barris de maçã, fardos de feno e algumas das maiores abóboras que Jaime já tinha visto. Quase todas as carroças tinham seus próprios guardas; homens de armas ostentando os símbolos de fidalgos menores, mercenários vestidos de cota de malha e couro fervido, às vezes apenas um filho de agricultor de cara rosada, agarrado a uma lança de fabricação caseira com a ponta endurecida pelo fogo. Jaime sorriu a todos eles enquanto passavam a trote. Ao portão, os homens de manto dourado recebiam moedas de cada um dos condutores antes de mandarem as carroças avançar.
- O que é isto? - quis saber Pernas-de-Aço.
- Eles têm de pagar pelo direito de vender dentro da cidade. Por ordem da Mão do Rei e do mestre da moeda.
Jaime olhou para a longa fila de carroças, carros de mão e cavalos carregados.
- E mesmo assim fazem fila para pagar?
- Dá para fazer um bom dinheiro aqui, agora que a luta terminou - disse-lhes alegremente o moleiro da carroça mais próxima. - São os Lannister que dominam a cidade agora, o velho Lorde Tywin do Rochedo. Dizem que ele caga prata.
- Ouro - corrigiu secamente Jaime. - E Mindinho cunha a coisa a partir de capim-dourado, garanto.
- Agora o mestre da moeda é o Duende - disse o capitão do portão. - Ou era, até o prenderem por assassinar o rei. - O homem examinou os nortenhos com suspeita. - Quem são vocês?
- Homens de Lorde Bolton, para falar com a Mão do Rei.
O capitão olhou de relance Nage com a sua bandeira de paz.
- Vêm dobrar o joelho, quer dizer. Não são os primeiros. Subam diretamente ao castelo e tratem de não causar confusão. - Mandou-os passar com um gesto e voltou a se virar para as carroças.
Se Porto Real estava de luto pela morte de seu rei rapaz, Jaime nunca o teria deduzido. Na Rua das Sementes um irmão mendicante vestido com uma túnica puída rezava ruidosamente pela alma de Joffrey, mas os transeuntes não prestavam mais atenção nele do que teriam prestado a uma janela aberta batendo ao vento. Em outros locais, as multidões habituais deslocavam-se de um lado para o outro; homens de manto dourado e cota de malha negra, ajudantes de padeiro vendendo tortas, pães e tortas quentes, prostitutas debruçadas em janelas com os corpetes meio desatados, sarjetas fedendo aos dejetos da noite. Passaram por cinco homens que tentavam arrastar um cavalo morto de uma viela, e, em outro local, por um malabarista que fazia girar facas no ar, para deleite de um grupo de soldados Tyrell bêbados e crianças pequenas.
Percorrendo a cavalo ruas familiares na companhia de duzentos nortenhos, um meistre sem corrente e uma mulher fenomenalmente feia ao seu lado, Jaime descobriu que quase não atraía um segundo olhar. Não sabia se devia se divertir ou se aborrecer com a situação.
- Eles não me reconhecem - disse ao Pernas-de-Aço enquanto atravessavam a Praça dos Sapateiros.
- Seu rosto está mudado, e suas armas também - disse o nortenho -, e agora eles têm um novo Regicida.
Os portões da Fortaleza Vermelha estavam abertos, mas uma dúzia de homens de manto dourado armados com lanças cortavam o caminho. Baixaram as pontas quando Pernas-de-Aço se aproximou a trote, mas Jaime reconheceu o cavaleiro branco que os comandava.
- Sor Meryn.
Os olhos abatidos de Sor Meryn Trant esbugalharam-se.
- Sor Jaime?
- Como é bom ser reconhecido. Afaste estes homens.
Passara-se muito tempo desde que alguém saltara para lhe obedecer tão depressa. Jaime tinha se esquecido de como gostava disso.
Depararam com mais dois membros da Guarda Real no pátio exterior, dois homens que não usavam manto branco da última vez que Jaime ali servira. É tão típico de Cersei nomear-me Senhor Comandante e depois escolher meus colegas sem me consultar.
- Vejo que alguém me deu dois novos irmãos - disse ao desmontar.
- Temos essa honra, sor. - O Cavaleiro das Flores brilhava, tão perfeito e puro em suas escamas e seda brancas que Jaime se sentiu uma coisa esfarrapada e barata por contraste.
Jaime virou-se para Meryn Trant.
- Sor, desleixou-se em ensinar os deveres aos nossos novos irmãos.
- Que deveres? - disse Meryn Trant num tom defensivo.
- Manter o rei vivo. Quantos monarcas perderam desde que deixei a cidade? Dois, não foi?
Então Sor Balon viu o coto.
- Sua mão...
Jaime obrigou-se a sorrir.
- Agora luto com a esquerda. Dá mais disputa. Onde posso encontrar o senhor meu pai?
- No aposento privado, com Lorde Tyrell e o Príncipe Oberyn.
Mace Tyrell e a Víbora Vermelha dividindo o mesmo pão? Cada vez mais estranho.
- A rainha também se encontra com eles?
- Não, senhor - respondeu Sor Balon. - Vai encontrá-la no septo, rezando pelo Rei Joff.
- Você!
Jaime viu que o último dos nortenhos tinha desmontado, e agora Loras vira Brienne.
- Sor Loras. - Ela ficou estupidamente imóvel, segurando o freio.
Loras Tyrell aproximou-se dela a passos largos.
- Por quê? - disse. - Vai me dizer por quê. Ele tratou-a com gentileza, deu-lhe um manto arco-íris. Por que você o mataria?
- Não o matei. Teria morrido por ele.
- E morrerá. - Sor Loras puxou a espada.
- Não fui eu.
- Emmon Cuy jurou que foi, com seu último suspiro.
- Ele estava fora da tenda, não chegou a ver...
- Não havia ninguém na tenda além de você e da Senhora Stark. Pretende dizer que aquela velha seria capaz de cortar através de aço endurecido?
- Houve uma sombra. Sei como isso soa a loucura, mas... eu estava ajudando Renly a vestir a armadura, e as velas apagaram-se e apareceu sangue por todo lado. A Senhora Catelyn disse que foi Stannis. A sua... a sua sombra. Eu não desempenhei nenhum papel no ato, por minha honra...
- Não tem honra nenhuma. Desembainhe a espada. Não quero que se diga que a matei enquanto estava de mão vazia.
Jaime interpôs-se entre os dois.
- Guarde a espada, sor.
Sor Loras rodeou-o.
- Será tão covarde quanto assassina, Brienne? Terá sido por isso que fugiu, com o sangue dele em suas mãos? Desembainhe a espada, mulher!
- É melhor ter esperança que ela não o faça. - Jaime voltou a bloquear o caminho dele. - Senão é provável que seja seu o cadáver que levaremos daqui. A garota é tão forte quanto Sandor Clegane, embora não seja tão bonita.
- Isto não lhe diz respeito. - Sor Loras empurrou-o para o lado.
Jaime agarrou o rapaz com a mão boa e obrigou-o a virar-se.
- Eu sou o Senhor Comandante da Guarda Real, seu cachorrinho arrogante. O seu comandante, enquanto usar esse manto branco. E agora embainhe a sua maldita espada, senão vou ter que tirá-la de você e enfiá-la num lugar que nem mesmo Renly encontrou.
O rapaz hesitou durante meio segundo, tempo suficiente para que Sor Balon Swann dissesse:
- Faça o que o Senhor Comandante diz, Loras. - Alguns dos homens de manto dourado puxaram então seu aço, e isso levou alguns dos homens do Forte do Pavor a fazer o mesmo. Magnífico, pensou Jaime, assim que desço do cavalo temos um banho de sangue no pátio.
Sor Loras Tyrell devolveu, com violência, a espada à bainha.
- Não foi assim tão difícil, foi?
- Quero-a presa. - Sor Loras apontou. - Senhora Brienne, acuso-a do assassinato de Lorde Renly Baratheon.
- O que vale dizer - disse Jaime - é que a garota tem honra. Mais do que vi em você. E até pode acontecer que esteja dizendo a verdade. Admito que ela não é aquilo que se poderia chamar de inteligente, mas até o meu cavalo conseguiria arranjar uma mentira melhor, se é que ela queria contar uma mentira. Mas já que insiste... Sor Balon, escolte a Senhora Brienne para uma cela de torre e mantenha-a lá sob guarda. E arranje aposentos adequados para Pernas-de-Aço e seus homens, até que o meu pai possa recebê-los.
- Sim, senhor.
Os grandes olhos azuis de Brienne estavam cheios de mágoa quando Balon Swann e uma dúzia de homens de manto dourado a levaram. Devia estar me soprando beijos, garota, quis dizer-lhe. Por que entendiam mal todas as coisinhas que fazia? Aerys. Tudo tem origem em Aerys. Jaime deu as costas à garota e atravessou o pátio em passos largos.
Outro cavaleiro de armadura branca guardava as portas do septo real; um homem alto com uma barba negra, ombros largos e nariz adunco. Este, quando viu Jaime, deu um sorriso amargo e disse:
- E aonde pensa que vai?
- Ao septo. - Jaime ergueu o coto para apontar. - Aquele mesmo ali. Pretendo ver a rainha.
- Sua Graça está de luto. E por que ela iria querer ver um tipo como você?
Porque sou seu amante e o pai de seu filho assassinado, quis dizer.
- E quem com os sete infernos é você?
- Um cavaleiro da Guarda Real, e é bom que aprenda a ter algum respeito, aleijado, senão corto essa sua outra mão e você vai ter que chupar o mingau de manhã.
- Eu sou irmão da rainha, sor.
O cavaleiro branco achou aquilo engraçado.
- Ah, fugiu, foi? E também cresceu um bocado, senhor?
- O outro irmão, cretino. E Senhor Comandante da Guarda Real. E agora afaste-se, senão vai desejar tê-lo feito.
Daquela vez o cretino olhou-o bem.
- É... Sor Jaime. - Endireitou-se. - Mil perdões, senhor. Não o reconheci. Tenho a honra de ser Sor Osmund Kettleblack.
Onde está a honra nisso?
- Quero passar algum tempo a sós com a minha irmã. Trate de que ninguém mais entre no septo, sor. Se formos incomodados, mandarei que cortem a porcaria da sua cabeça.
- Sim, senhor. Às suas ordens. - Sor Osmund abriu a porta.
Cersei estava ajoelhada diante do altar da Mãe. O ataúde de Joffrey tinha sido colocado por baixo do Estranho, que levava os recém-falecidos para o outro mundo. Cheiro de incenso pairava pesadamente no ar, e havia uma centena de velas ardendo, enviando ao alto uma centena de preces. E é provável que Joff precise de todas elas.
A irmã olhou por sobre o ombro.
- Quem? - disse, e depois: - Jaime? - Ergueu-se, com os olhos ardendo de lágrimas. - É mesmo você? - Mas não foi até ele. Ela nunca veio até mim, pensou. Sempre esperou, deixando-me ir até ela. Ela dá, mas tenho de pedir. - Devia ter vindo mais cedo - murmurou, quando ele a tomou nos braços. - Por que não pôde vir mais cedo, para mantê-lo a salvo? O meu filho...
O nosso filho.
- Vim o mais depressa que pude. - Rompeu o abraço e deu um passo para trás. - Há uma guerra lá fora, irmã.
- Está tão magro. E seus cabelos, os cabelos dourados...
- Vão crescer. - Jaime ergueu o coto. Ela precisa ver. - Isto não.
Os olhos de Cersei esbugalharam-se.
- Os Stark...
- Não. Isso foi obra de Vargo Hoat.
O nome não lhe dizia nada.
- Quem?
- O Bode de Harrenhal. Durante pouco tempo.
Cersei virou-se para fitar o ataúde de Joffrey. Tinham vestido o rei morto com armadura dourada, estranhamente semelhante à de Jaime. A viseira do elmo estava fechada, mas as velas refletiam-se suavemente no ouro, e o rapaz cintilava, brilhante e bravo, na morte. A luz das velas também despertava fogueiras nos rubis que decoravam o corpete do vestido de luto de Cersei. Os cabelos caíam sobre seus ombros, soltos e desordenados.
- Ele matou-o, Jaime. Tal como me avisou que faria. Um dia, quando me julgasse a salvo e feliz, transformaria minha alegria em cinzas na boca, disse ele.
- Tyrion disse isso? - Jaime não quis acreditar. O assassinato de familiares era pior do que o de reis, aos olhos dos deuses e dos homens. Ele sabia que o garoto era meu. Eu amei Tyrion. Fui bom para ele. Bem, exceto daquela vez... mas o Duende não conhecia a verdade sobre ela. Ou será que conhece? - Por que ele mataria Joff?
- Por uma puta. - Cersei agarrou-se à sua mão boa e apertou-a bem entre as suas. - Ele disse que ia fazer isso. Joff sabia. Ao morrer, apontou para o assassino. Para o monstrinho retorcido do nosso irmão. - Beijou os dedos de Jaime. - Vai matá-lo por mim, não vai? Vai vingar o nosso filho.
Jaime libertou-se dela.
- Ele continua sendo meu irmão. - Enfiou o coto em frente do nariz dela, para o caso de ela não ter visto. - E não estou em estado de matar seja quem for.
- Tem outra mão, não tem? Não estou pedindo para você derrotar o Cão de Caça em batalha. Tyrion é um anão, trancado numa cela. Os guardas vão deixá-lo entrar.
A ideia fez seu estômago se retorcer.
- Tenho de saber mais sobre isso. Sobre como aconteceu.
- Saberá - prometeu Cersei. - Vai haver um julgamento. Quando ouvir contar tudo o que ele fez, irá querer vê-lo morto tanto quanto eu. - Tocou-lhe o rosto. - Senti-me perdida sem você, Jaime. Tive medo de que os Stark me enviassem a sua cabeça. Não teria conseguido suportar tal coisa. - Beijou-o. Um beijo ligeiro, o mais ligeiro roçar dos lábios nos dele, mas sentiu-a tremer quando a envolveu nos braços. - Não estou inteira sem você.
Não havia ternura no beijo com que ele lhe respondeu, só fome. A boca dela abriu-se para a sua língua.
- Não - disse, com voz fraca, quando os lábios dele começaram a descer o seu pescoço -, aqui não. Os septões...
- Que os Outros carreguem os septões. - Voltou a beijá-la, beijou-a em silêncio, beijou-a até fazê-la gemer. Então empurrou as velas para longe e ergueu-a para cima do altar da Mãe, puxando para cima as saias e a combinação de seda que ela trazia por baixo. Ela bateu no peito dele com punhos fracos, murmurando sobre o risco, o perigo, o pai de ambos, os septões, a ira dos deuses. Ele nem a ouviu. Desatou os calções, subiu para cima do altar e afastou as pernas brancas e nuas da irmã. Uma mão deslizou coxa acima, por dentro da roupa de baixo. Quando a arrancou, viu que ela estava com a lua, mas o sangue não fazia qualquer diferença.
- Rápido - ela agora sussurava -, depressa, depressa, agora, vem já, me possua já. Jaime, Jaime, Jaime. - As mãos ajudaram a guiá-lo. - Sim - disse Cersei quando ele empurrou -, meu irmão, querido irmão, sim, assim, sim, tenho você, agora está em casa, está em casa, em casa. - Beijou-lhe a orelha e afagou-lhe os cabelos curtos e espetados. Jaime perdeu-se em sua carne. Sentiu o coração de Cersei batendo em uníssono com o seu, e a umidade do sangue e do sêmen quando se uniram.
Mas assim que acabaram, a rainha disse:
- Deixe-me levantar. Se formos descobertos assim...
Relutantemente, rolou de cima dela e ajudou-a a sair do altar. O mármore branco estava manchado de sangue. Jaime limpou-o com a manga, após o que se dobrou para apanhar as velas que derrubara. Felizmente todas tinham se apagado quando caíram. Se o septo tivesse se incendiado, podia nem ter reparado.
- Isso foi uma loucura. - Cersei ajeitou o vestido. - Com o pai no castelo... Jaime, temos de ter cuidado.
- Estou farto de ter cuidado. Os Targaryen casavam-se entre irmãos, por que não podemos fazer o mesmo? Case-se comigo, Cersei. Erga-se perante o reino e diga que é a mim que quer. Teremos o nosso banquete de núpcias e faremos outro filho para o lugar deJoffrey.
Ela recuou.
- Isso não tem graça.
- Está me ouvindo rir?
- Deixou os miolos em Correrrio? - a voz dela tornara-se afiada. - O trono de Tommen provém de Robert, você sabe disso.
- Ele terá Rochedo Casterly, não basta? Que o pai ocupe o trono. Tudo o que quero é você. - Tentou tocar seu rosto. Os velhos hábitos custam a morrer, e foi o braço direito que levantou.
Cersei afastou-se do coto com repugnância.
- Não... não fale assim. Está me assustando, Jaime. Não seja burro. Uma palavra errada e vai nos custar tudo. O que fizeram com você?
- Cortaram minha mão.
- Não, é mais do que isso, está mudado. - Afastou-se um passo. - Mais tarde nos falamos. Amanhã. Tenho as aias de Sansa Stark numa cela de torre, tenho de interrogá-las... você devia ir falar com o pai.
- Atravessei mil léguas para vir até você, e perdi a melhor parte de mim ao longo do caminho. Não me diga para deixar você.
- Deixe-me - repetiu ela, virando as costas para ele.
Jaime amarrou os calções e fez o que ela ordenara. Apesar de estar muito cansado, não podia ir atrás de uma cama. Àquela altura, o senhor seu pai já sabia que tinha voltado à cidade.
A Torre da Mão encontrava-se guardada por guardas domésticos Lannister, que o reconheceram de imediato.
- Os deuses são bons, para trazê-lo de volta até nós, sor - disse um deles, enquanto lhe abria a porta.
- Os deuses não desempenharam nisso nenhum papel. Foi Catelyn Stark quem me devolveu. Ela e o Senhor do Forte do Pavor.
Subiu as escadas e entrou no aposento privado sem se fazer anunciar, indo encontrar o pai sentado junto à lareira. Lorde Tywin estava só, e Jaime sentiu-se grato por isso. Naquele momento, não tinha qualquer desejo de exibir a mão mutilada perante Mace Tyrell ou a Víbora Vermelha, muito menos perante ambos ao mesmo tempo.
- Jaime - disse Lorde Tywin, como se tivessem se visto no café da manhã. - Lorde Bolton levou-me a esperá-lo mais cedo. Achava que estaria aqui a tempo do casamento.
- Fui atrasado. - Jaime fechou suavemente a porta. - Minha irmã superou-se, segundo ouvi dizer. Setenta e sete pratos e um regicídio, nunca houve um casamento assim. Há quanto tempo sabe que estou livre?
- O eunuco disse-me alguns dias depois de sua fuga. Mandei homens para as terras fluviais à sua procura. Gregor Clegane, Samwell Spicer, os irmãos Plumm. Varys também divulgou a informação, mas em segredo. Concordamos que quanto menos pessoas soubessem que estava livre, menos o perseguiriam.
- Varys mencionou isto? - aproximou-se do fogo, para permitir que o pai visse.
Lorde Tywin saltou da cadeira, silvando entre dentes.
- Quem fez isso? Se a Senhora Catelyn pensa...
- A Senhora Catelyn encostou uma espada na minha garganta e obrigou-me a jurar que lhe devolveria as filhas. Isto foi obra de seu bode. Vargo Hoat, o Senhor de Harrenhal!
Lorde Tywin afastou o olhar, repugnado.
- Não é mais. Sor Gregor capturou o castelo. Os mercenários abandonaram seu antigo capitão quase até o último homem, e parte do antigo pessoal da Senhora Whent abriu uma porta falsa. Clegane foi encontrar Hoat sentado, sozinho, no Salão das Cem Lareiras, meio louco de dor e febre devido a um ferimento que gangrenou. A orelha, dizem.
Jaime teve de rir. Que maravilha! A orelha! Mal podia esperar para contar a Brienne, se bem que a garota não veria na coisa metade da piada que ele via.
- Já está morto?
- Em breve. Cortaram-lhe as mãos e os pés, mas Clegane parece se divertir com o modo como o qohorik se baba.
O sorriso de Jaime coalhou.
- E os seus Bravos Companheiros?
- Os poucos que ficaram em Harrenhal estão mortos. Os outros espalharam-se. Vão se dirigir para os portos, aposto, ou tentar se perder nas florestas. - Os olhos voltaram a se dirigir ao coto de Jaime, e sua boca retesou-se de fúria. - Cortaremos a cabeça deles. De todos. Consegue usar uma espada com a mão esquerda?
Mal consigo me vestir de manhã. Jaime ergueu a mão em questão para que o pai a inspecionasse.
- Quatro dedos, um polegar, muito parecida com a outra. Por que não haveria de trabalhar tão bem?
- Ótimo. - O pai sentou-se. - Isso é ótimo. Tenho um presente para você. Pelo seu retorno. Depois de Varys me dizer...
- A menos que seja uma nova mão, que espere. - Jaime ocupou a cadeira à frente do pai. - Como foi que Joffrey morreu?
- Veneno. A ideia era que parecesse que ele tinha sufocado com um bocado de comida, mas eu mandei abrir a garganta dele e os meistres não encontraram qualquer obstrução.
- Cersei diz que foi Tyrion quem o matou.
- Seu irmão serviu ao rei o vinho envenenado, com mil pessoas olhando.
- Isso foi bastante idiota da parte dele.
- Prendi o escudeiro de Tyrion. As aias da esposa também. Veremos se têm alguma coisa a nos dizer. Os homens de manto dourado de Sor Addam andam à procura da garota Stark, e Varys ofereceu uma recompensa. A justiça do rei será feita.
A justiça do rei.
- Executaria seu próprio filho?
- Ele está sendo acusado de regicídio e assassinato de um familiar. Se for inocente, nada tem a temer. Primeiro temos de analisar as provas a favor e contra ele.
Provas. Naquela cidade de mentirosos, Jaime sabia que tipo de provas seriam encontradas.
- Renly também morreu de forma estranha, quando Stannis precisou que morresse.
- Lorde Renly foi assassinado por um de seus próprios guardas, uma mulher qualquer de Tarth.
- Essa mulher de Tarth é o motivo por que estou aqui. Atirei-a numa cela para apaziguar Sor Loras, mas antes acreditaria no fantasma de Renly do que ela lhe ter feito algum mal. Stannis, porém...
- Aquilo que matou Joffrey foi veneno, não feitiçaria. - Lorde Tywin voltou a relancear o coto de Jaime. - Não pode servir na Guarda Real sem uma mão da espada...
- Posso - interrompeu. - E é o que farei. Há precedente. Vou procurar no Livro Branco e encontrá-lo, se quiser. Mutilado ou inteiro, um cavaleiro da Guarda Real serve a vida toda.
- Cersei acabou com isso quando substituiu Sor Barristan devido à idade. Um presente adequado à Fé persuadirá o Alto Septão a libertá-lo de seus votos. Sua irmã foi tola em destituir Selmy, admito, mas agora que abriu os portões...
- ... alguém tem de fechá-los novamente. - Jaime levantou-se. - Estou farto de ter mulheres de nascimento elevado chutando baldes de merda na minha direção, pai. Nunca ninguém me perguntou se queria ser Senhor Comandante da Guarda Real, mas parece que sou. Tenho um dever...
- Tem. - Lorde Tywin também se levantou. - Um dever para com a Casa Lannister. É o herdeiro de Rochedo Casterly. É lá que devia estar. Tommen devia acompanhá-lo, como seu protegido e escudeiro. Será no Rochedo que ele aprenderá a ser um Lannister, e quero-o longe da mãe. Pretendo encontrar um novo marido para Cersei. Oberyn Martell, talvez, depois de convencer Lorde Tyrell de que a união não ameaça Jardim de Cima. E já é mais que hora de você se casar. Os Tyrell andam agora insistindo que Margaery se case com Tommen, mas se oferecer você em vez dele...
- NÃO! - Jaime ouvira tudo que conseguia aguentar. Não, mais do que conseguia aguentar. Estava farto daquilo, farto de lordes e mentiras, farto do pai, da irmã, farto de toda aquela maldita situação. - Não. Não. Não. Não. Não. Quantas vezes tenho de dizer não antes que me ouça? Oberyn Martell? O homem é infame, e não só por envenenar a espada. Tem mais bastardos do que Robert, e deita-se também com homens. E se acha por um disparatado momento que vou me casar com a viúva de Joffrey...
- Lorde Tyrell jura que a garota ainda é donzela.
- E por mim pode morrer donzela. Não a quero e não quero o seu Rochedo!
- E meu filho...
- Sou um cavaleiro da Guarda Real. O Senhor Comandante da Guarda Real! E isso é tudo o que pretendo ser!
A luz do fogo cintilava, dourada, nos pelos hirtos que enquadravam o rosto de Lorde Tywin. Uma veia latejava em seu pescoço, mas ele não falou. E não falou. E não falou.
O tenso silêncio prolongou-se até ser mais do que Jaime podia aguentar.
- Pai... - começou.
- Você não é meu filho. - Lorde Tywin afastou o olhar. - Diz que é o Senhor Comandante da Guarda Real, e apenas isso. Muito bem, sor. Vá cumprir o seu dever.
As vozes deles subiam como fagulhas, rodopiando na direção do céu púrpura do princípio da noite.
- Leve-nos para longe das trevas, oh senhor. Encha-nos de fogo o coração, para que possamos percorrer o seu caminho brilhante.
A fogueira noturna ardia contra a escuridão que se aprofundava, um grande animal brilhante cuja oscilante luz laranja atirava sombras com seis metros de altura pátio afora. Ao longo das muralhas de Pedra do Dragão, o exército de gárgulas e grotescos parecia se agitar e mudar de posição.
Davos olhava de uma janela arqueada na galeria, acima. Observou Melisandre erguer os braços, como que para abraçar as chamas tremulantes.
- R'hllor - entoou numa voz sonora e clara -, é a luz nos nossos olhos, o fogo nos nossos corações, o calor nos nossos quadris. E seu o sol que aquece os nossos dias, suas são as estrelas que nos protegem na escuridão da noite.
- Senhor da Luz, proteja-nos. A noite é escura e cheia de terrores.
A Rainha Selyse liderava as respostas, com o rosto atormentado e cheio de fervor. O Rei Stannis estava ao seu lado, com o maxilar bem cerrado e as pontas de sua coroa de ouro vermelho cintilando sempre que movia a cabeça. Ele está com eles, mas não é um deles, pensou Davos. A Princesa Shireen encontrava-se entre os pais, com as manchas cinzentas mosqueadas no rosto e no pescoço quase negras à luz da fogueira.
- Senhor da Luz, proteja-nos - cantou a rainha. O rei não respondeu com os outros. Estava fitando as chamas. Davos perguntou a si mesmo o que ele estaria vendo ali. Outra visão da guerra que aí vem? Ou algo mais perto de casa?
- Rhllor, que nos deu o sopro, agradecemos ao senhor - cantou Melisandre. - Rhllor, que nos deu o dia, agradecemos ao senhor.
- Agradecemos ao senhor pelo sol que nos aquece - respondeu a Rainha Selyse e os outros adoradores. - Agradecemos ao senhor pelas estrelas que nos vigiam. Agradecemos ao senhor pelas lareiras e archotes que mantêm a escuridão selvagem a distância. - Parecia a Davos que as respostas eram proferidas por menos vozes do que na noite anterior; menos rostos pintados de cor de laranja em volta da fogueira. Mas haveria ainda menos no dia seguinte... ou mais?
A voz de Sor Axell Florent ressoava, sonora como uma trombeta. Estava em pé, de peito estufado e pernas arqueadas, com a luz do fogo lambendo seu rosto como uma monstruosa língua laranja. Davos perguntou a si mesmo se Sor Axell lhe agradeceria depois. A obra que tinham realizado naquela noite poderia bem fazer do homem Mão do Rei, tal como sonhava.
Melisandre gritou:
- Agradecemos ao senhor por Stannis, por sua graça nosso rei. Agradecemos ao senhor pelo fogo de um branco puro de sua bondade, pela espada vermelha da justiça que empunha, pelo amor que sente por seu leal povo. Guie-o e proteja-o, Rhllor, e dê-lhe força para derrotar os inimigos.
- Dê-lhe força - responderam a Rainha Selyse, Sor Axell, Devan e os outros. - Dê-lhe coragem. Dê-lhe sabedoria.
Quando era garoto, os septões tinham ensinado Davos a rezar à Velha por sabedoria, ao Guerreiro por coragem, ao Ferreiro por força. Mas era à Mãe que rezava agora, para que mantivesse seu querido filho Devan a salvo do deus demoníaco da mulher vermelha.
- Lorde Davos? É melhor irmos. - Sor Andrew tocou suavemente em seu cotovelo. - Senhor?
O título ainda lhe soava estranho aos ouvidos, mas Davos afastou-se da janela.
- Sim. É hora.
Stannis, Melisandre e os homens da rainha permaneceriam nas suas preces durante uma hora ou mais. Os sacerdotes vermelhos acendiam as fogueiras todos os dias ao pôr do sol, para agradecer a Rhllor pelo dia que terminava e suplicar-lhe que voltasse a enviar o seu sol de manhã, para banir a escuridão. Um contrabandista deve conhecer as marés e a altura de apanhá-las. No fim das contas, não passava disso; Davos, o contrabandista. A mão mutilada subiu à garganta em busca de sua sorte, e nada encontrou. Baixou-a bruscamente e apressou-se um pouco mais.
Os companheiros apressaram-se com ele, ajustando os passos aos seus. O Bastardo de Nocticantiga tinha um rosto devastado pela varíola e um ar de cavalaria esfarrapada; Sor Gerald Gower era largo, brusco e louro; Sor Andrew Estermont era uma cabeça mais alto, com uma barba pontuda e hirsutas sobrancelhas castanhas. Davos os considerava todos bons homens, cada um à sua maneira. E todos serão homens mortos em breve, se a obra desta noite correr mal.
- O fogo é uma coisa viva - a mulher vermelha tinha dito, quando lhe pediu que o ensinasse a ver o futuro nas chamas. - Está sempre em movimento, sempre em mudança... como um livro cujas letras dançam e se movimentam mesmo enquanto se está tentando lê-las. São precisos anos de treino para ver as silhuetas por trás das chamas, e mais anos ainda para aprender a distinguir as silhuetas daquilo que irá acontecer das que mostram o que poderá acontecer ou o que já aconteceu. Mesmo então, é difícil, difícil. Vocês, os homens das terras do poente, não compreendem. - Davos perguntou-lhe então como Sor Axell tinha aprendido tão depressa o truque, mas ao ouvir isso ela limitou-se a dar um sorriso enigmático e dizer: - Qualquer gato pode fitar uma fogueira e ver ratos vermelhos brincando.
Não tinha mentido a respeito de nada daquilo aos seus homens do rei.
- Pode ser que a mulher vermelha veja o que pretendemos fazer - avisou-os.
- Então devíamos começar por matá-la - sugeriu Lewys Peixeira. - Conheço um lugar onde poderíamos preparar uma cilada, quatro de nós com espadas afiadas...
- Condenaria a todos nós - disse Davos. - Meistre Cressen tentou matá-la, e ela soube de imediato. Pelas chamas, suponho. Parece-me que é muito rápida em sentir qualquer ameaça à sua pessoa, mas certamente não pode saber tudo. Se a ignorarmos, talvez possamos escapar à sua detecção.
- Não há honra em nos escondermos e andarmos pela calada - objetou Sor Triston do Monte da Talha, que tinha sido um homem dos Sunglass antes de Lorde Guncer ser entregue às fogueiras de Melisandre.
- É assim tão honroso arder? - perguntara-lhe Davos. - Viu Lorde Sunglass morrer. É isso que deseja? Agora não preciso de homens de honra. Preciso de contrabandistas. Estão comigo ou não?
Estavam. Pela bondade dos deuses, estavam.
Meistre Pylos conduzia Edric Storm por suas somas quando Davos abriu a porta. Sor Andrew vinha logo atrás dele; os outros tinham sido deixados guardando as escadas e a porta do porão. O meistre interrompeu-se.
- Por enquanto é isso, Edric.
O garoto ficou confuso pela intrusão.
- Lorde Davos, Sor Andrew. Estávamos fazendo somas.
Sor Andrew sorriu.
- Eu detestava somas quando tinha sua idade, primo.
- Não me aborrecem muito. Mas gosto mais de história. Está cheia de histórias.
- Edric - disse Meistre Pylos -, agora vá correndo buscar o seu manto. Depois vai com o Lorde Davos.
- Vou? - Edric pôs-se em pé. - Aonde vamos? - Sua boca fez uma expressão teimosa. - Não irei rezar ao Senhor da Luz. Sou um homem do Guerreiro, como o meu pai.
- Nós sabemos - disse Davos. - Venha, rapaz, não podemos perder tempo.
Edric vestiu um espesso manto com capuz de lã crua. Meistre Pylos ajudou a prendê-lo, e puxou o capuz para lhe esconder o rosto.
- Você vem conosco, meistre? - perguntou o garoto.
- Não. - Pylos tocou a corrente de muitos metais que usava em volta do pescoço. - Meu lugar é aqui em Pedra do Dragão. Agora vá com Lorde Davos e faça o que ele disser. Lembre-se de que ele é a Mão do Rei. O que foi que eu lhe disse a respeito da Mão do Rei?
- A Mão fala com a voz do rei.
O jovem meistre sorriu.
- É isso mesmo. Agora vá.
Davos sentira-se incerto sobre Pylos. Talvez nutrisse ressentimento por ele ter ocupado o lugar do velho Cressen. Mas agora só podia admirar a coragem do homem. Isso também pode custar a vida dele.
Fora dos aposentos do meistre, Sor Gerald Gower esperava junto à escada. Edric Storm olhou-o com curiosidade. Enquanto desciam, perguntou.
- Aonde vamos, Lorde Davos?
- Para a água. Há um navio à sua espera.
O garoto parou subitamente.
- Um navio?
- Um dos de Salladhor Saan. Salla é um bom amigo meu.
- Eu irei com você, primo - garantiu-lhe Sor Andrew. - Não há nada de que ter medo.
- Eu não tenho medo - disse Edric, indignado. - É só... a Shireen também vem?
- Não - disse Davos. - A princesa tem de ficar aqui com o pai e a mãe.
- Então preciso vê-la - explicou Edric. - Para me despedir. Senão ela vai ficar triste.
Não tão triste do que ficaria se o visse ardendo.
- Não há tempo - disse Davos. - Eu digo à princesa que estava pensando nela. E você pode escrever para ela, quando chegar ao lugar para onde vai.
O garoto franziu a testa.
- Tem certeza de que preciso ir? Por que é que o meu tio me enviaria para fora de Pedra do Dragão? Desagradei-lhe? Não quis lhe desagradar. - Adotou de novo aquela expressão teimosa. - Quero falar com o meu tio. Quero falar com o Rei Stannis.
Sor Andrew e Sor Gerald trocaram um olhar.
- Não há tempo para isso, primo - disse Sor Andrew.
- Quero falar com ele! - insistiu Edric, mais alto.
- Ele não quer falar com você. - Davos tinha de dizer qualquer coisa para pôr o rapaz em movimento. - Eu sou a Mão dele, falo com a voz dele. Terei de ir até o rei e dizer-lhe que você não quer fazer o que lhe dizem? Sabe como isso o deixará zangado? Alguma vez já viu o seu tio zangado? - tirou a luva e mostrou ao garoto os quatro dedos que Stannis tinha encurtado. - Eu já.
Era tudo mentira; não houve qualquer ira em Stannis Baratheon quando cortou a extremidade dos dedos de seu Cavaleiro das Cebolas, só um sentido férreo de justiça. Mas Edric Storm ainda não era nascido naquela época, e não tinha como saber. E a ameaça teve o efeito desejado.
- Ele não devia ter feito isso - disse o garoto, mas deixou que Davos pegasse sua mão e o levasse degraus abaixo.
O Bastardo de Nocticantiga juntou-se a eles na porta do porão. Caminharam depressa, atravessando um pátio cheio de sombras e descendo alguns degraus, sob a cauda de pedra de um dragão congelado. Lewys Peixeira e Omer Blaclcberry esperavam na poterna, com dois guardas amarrados e amordaçados aos pés.
- O barco? - perguntou-lhes Davos.
- Está lá - disse Lewys. - Quatro remadores. A galé está ancorada logo depois do cabo. Prendos Louco.
Davos soltou um risinho. Um navio batizado em honra a um louco. Sim, é adequado. Salla tivera uma mostra do humor negro dos piratas.
Ajoelhou-se diante de Edric Storm.
- Agora tenho de deixá-lo - disse. - Há um barco à espera, para levá-lo a uma galé. Depois vai atravessar o mar. É filho de Robert, portanto sei que será corajoso, aconteça o que acontecer.
- Serei. Só que... - O rapaz hesitou.
- Pense nisso como uma aventura, senhor. - Davos tentou soar forte e alegre. - É o início da grande aventura de sua vida. Que o Guerreiro o proteja.
- E que o Pai o julgue com justiça, Lorde Davos.
O garoto saiu com o primo, Sor Andrew, pela poterna. Os outros seguiram-nos, todos menos o Bastardo de Nocticantiga. Que o Pai me julgue com justiça, pensou Davos com tristeza. Mas era o julgamento do rei que o preocupava agora.
- E estes dois? - perguntou Sor Rolland referindo-se aos guardas, depois de fechar e trancar o portão.
- Meta-os num porão - disse Davos. - Pode soltá-los depois de Edric estar longe e a salvo.
O Bastardo fez um aceno brusco. Não houve mais palavras a dizer; a parte fácil estava feita. Davos calçou a luva desejando que não tivesse perdido a sua sorte. Fora um homem melhor e mais corajoso com aquele saco de ossos pendurado no pescoço. Passou os dedos encurtados pelos cabelos castanhos que iam rareando e perguntou a si mesmo se precisaria cortá-los. Tinha de ter um aspecto aceitável quando se apresentasse ao rei.
Pedra do Dragão nunca parecera tão escura e temível. Caminhou lentamente, com os passos a ecoar em paredes negras e dragões. Dragões de pedra que nunca despertarão, espero eu. O Tambor de Pedra ergueu-se, enorme, à sua frente. Os guardas à porta descruzaram as lanças quando ele se aproximou. Não para o Cavaleiro das Cebolas, mas para a Mão do Rei. Davos era a Mão ao entrar, pelo menos. Perguntou a si mesmo o que seria ao sair. Se chegasse a sair...
Os degraus pareceram mais longos e íngremes do que antes, ou talvez fosse apenas o caso de estar cansado. A Mãe não me fez para tarefas como esta. Subira alto demais e depressa demais, e ali na montanha o ar era rarefeito demais para ele respirar. Quando garoto, sonhou com riquezas, mas isso tinha sido muito tempo antes. Mais tarde, crescido, tudo o que desejava resumiu-se a alguns acres de boa terra, uma casa em que envelhecer, uma vida melhor para os filhos. O Bastardo Cego costumava dizer-lhe que um contrabandista inteligente não tentava obter coisas demais, nem chamava a atenção para si. Alguns acres, um telhado de madeira, um "sor" antes do nome, devia ter ficado satisfeito. Se sobrevivesse àquela noite, levaria Devan e viajaria para casa, para o Cabo da Fúria e para a sua gentil Marya. Choraremos juntos os nossos filhos mortos, criaremos os vivos para que se tornem homens bons e não voltaremos a falar de reis.
A Sala da Mesa Pintada estava escura e vazia quando Davos entrou; o rei ainda devia estar na fogueira noturna, com Melisandre e os homens da rainha. Ajoelhou e acendeu a lareira, para afastar o frio do aposento redondo e expulsar as sombras para os seus cantos. Então dirigiu-se às janelas, uma de cada vez, abrindo as pesadas cortinas de veludo e destrancando as venezianas de madeira. O vento entrou, carregado com o cheiro do sal e do mar, e puxou seu manto simples e marrom.
Na janela norte, encostou-se ao peitoril para inspirar um pouco do ar frio da noite, esperando vislumbrar o Prendos Louco içar as velas, mas o mar parecia negro e vazio até perder de vista .Já terá partido? Só podia rezar para que sim, e o garoto com ele. Uma meia-lua aparecia e desaparecia por trás de nuvens finas e altas, e Davos via estrelas familiares; ali estava a Galé, velejando para oeste; ali a Lanterna da Velha, quatro estrelas brilhantes que rodeavam uma névoa dourada. As nuvens escondiam a maior parte do Dragão de Gelo, exceto pelo brilhante olho azul que indicava o rumo do norte. O céu está cheio de estrelas de contrabandista. Eram velhas amigas, aquelas estrelas; Davos esperava que isso significasse boa sorte.
Mas quando baixou o olhar do céu para as ameias do castelo, deixou de ter tanta certeza. As asas dos dragões de pedra criavam sombras negras à luz proveniente da fogueira noturna. Tentou dizer a si mesmo que não passavam de esculturas, frias e sem vida. Este foi antigamente o lugar deles. Um lugar de dragões e de senhores de dragões, a sede da Casa Targaryen. Os Targaryen eram do sangue da velha Valíria...
O vento suspirou pelo aposento, e na lareira as chamas estremeceram e rodopiaram. Ouviu as toras crepitarem e soltarem fagulhas. Quando Davos saiu da janela, a sua sombra seguiu à sua frente, alta e esguia, e caiu sobre a Mesa Pintada como uma espada. E ali permaneceu durante muito tempo, à espera. Ouviu as botas deles nos degraus de pedra ao subirem. A voz do rei chegou antes do rei.
- ... não é três - estava Stannis dizendo.
- Três são três - foi a resposta de Melisandre. - Juro, Vossa Graça, eu vi-o morrer e ouvi os lamentos de sua mãe.
- Na fogueira noturna. - Stannis e Melisandre atravessaram juntos a porta. - As chamas estão cheias de truques. O que é, o que será, o que poderá ser. Não pode me dar a certeza...
- Vossa Graça. - Davos deu um passo adiante. - A Senhora Melisandre viu a verdade. Seu sobrinho Joffrey está morto.
O rei não mostrou sinal de surpresa por encontrá-lo junto da Mesa Pintada.
- Lorde Davos - disse. - Ele não era meu sobrinho. Embora eu tenha julgado durante anos que fosse.
- Sufocou com um pedaço de comida no seu banquete de casamento - disse Davos. - Pode ter sido envenenado.
- E o terceiro - disse Melisandre.
- Eu sei contar, mulher. - Stannis caminhou ao longo da mesa, passando por Vilavelha e pela Árvore, subindo na direção das Ilhas Escudo e da foz do Vago. - Os casamentos tornaram-se mais perigosos do que as batalhas, ao que parece. Quem foi o envenenador? Sabe-se?
- O tio, segundo se diz. O Duende.
Stannis rangeu os dentes.
- Um homem perigoso. Fiquei sabendo disso na Água Negra. Como lhe chegou esse relatório?
- Os lisenos ainda negociam em Porto Real. Salladhor Saan não tem motivos para mentir para mim.
- Suponho que não. - O rei percorreu a mesa com os dedos. - Joffrey... lembro-me de uma vez, uma gata de cozinha... os cozinheiros gostavam de lhe dar restos e cabeças de peixe. Um deles disse ao rapaz que ela tinha gatinhos na barriga, achando que ele poderia querer um. Joffrey abriu o pobre bicho com um punhal para ver se era verdade. Quando encontrou as crias, levou-as para mostrar ao pai. Robert bateu no garoto com tanta força que julguei que o tinha matado. - O rei tirou a coroa e pousou-a na mesa. - Anão ou sanguessuga, esse assassino prestou um serviço ao reino. Agora têm de mandar me buscar.
- Não o farão - disse Melisandre. - Joffrey tem um irmão.
- Tommen. - O rei proferiu o nome de má vontade.
- Coroarão Tommen e governarão em seu nome.
Stannis cerrou o punho.
- Tommen é mais gentil do que Joffrey, mas nasceu do mesmo incesto. Outro monstro por se formar. Outra sanguessuga sobre a Terra. Westeros precisa de uma mão de homem, não de criança.
Melisandre aproximou-se.
- Salve-os, senhor. Permita-me que acorde os dragões de pedra. Três são três. Dê-me o garoto.
- Edric Storm - disse Davos.
Stannis virou-se para ele numa fúria fria.
- Eu sei como ele se chama. Poupe-me de suas censuras. Não gosto mais disso do que você, mas o meu dever é para com o reino. O meu dever... - Voltou a virar-se para Melisandre. - Jura que não há outra maneira? Jure por sua vida, porque juro que morrerá devagarinho se mentir para mim.
- O senhor é quem tem de se erguer perante o Outro. Aquele cuja vinda foi profetizada há cinco mil anos. O cometa vermelho foi o seu arauto. O senhor é o príncipe que foi prometido, e se cair, o mundo cairá junto. - Melisandre aproximou-se dele, de lábios entreabertos, com o rubi a latejar. - Dê-me este garoto - sussurrou - e eu darei o seu reino.
- Ele não pode - disse Davos. - Edric Storm partiu.
- Partiu? - Stannis virou-se. - O que quer dizer compartiu?
- Está a bordo de uma galé lisena, em segurança no mar. - Davos observava o rosto pálido e em forma de coração de Melisandre. Viu aí o tremeluzir do desânimo, a súbita incerteza. Ela não o viu!
Os olhos do rei eram hematomas azul-escuros nos buracos de seu rosto.
- O bastardo foi levado de Pedra do Dragão sem a minha autorização? Uma galé, você diz? Se esse pirata liseno pensa em usar o garoto para me extorquir ouro...
- Isso é obra da sua Mão, senhor. - Melisandre lançou a Davos um olhar sabedor. - Vai trazê-lo de volta, senhor. Vai fazer isso.
- O garoto está fora do meu alcance - disse Davos. - E fora do seu também, senhora.
Os olhos vermelhos da mulher fizeram-no contorcer-se por dentro.
- Devia tê-lo deixado no escuro, sor. Sabe o que fez?
- O meu dever.
- Alguns chamariam de traição. - Stannis dirigiu-se à janela e fitou a noite. Estará à procura do navio? - Eu tirei-o da lama, Davos. - Soava mais cansado do que irritado. - Seria demais esperar lealdade?
- Quatro dos meus filhos morreram pelo senhor na Água Negra. Eu mesmo podia ter morrido. Tem a minha lealdade, sempre. - Davos Seaworth pensara dura e longamente sobre as palavras que diria em seguida; sabia que a sua vida dependia delas. - Vossa Graça, fez-me jurar dar-lhe conselhos honestos e rápida obediência, defender o seu reino contra seus inimigos, proteger o seu povo. Não será Edric Storm um membro do seu povo? Um daqueles que jurei proteger? Obedeci aos meus votos. Como pode isso ser traição?
Stannis voltou a ranger os dentes.
- Nunca pedi esta coroa. O ouro é frio e pesado na cabeça, mas enquanto for o rei, tenho um dever a cumprir... Se tiver de sacrificar uma criança às chamas para salvar um milhão da escuridão... Sacrifício... nunca é fácil, Davos. Se for, não é um verdadeiro sacrifício. Diga-lhe, senhora.
Melisandre falou:
- Azor Ahai temperou a Luminífera com o sangue do coração de sua amada esposa. Se um homem com mil vacas der uma a deus, isso nada é. Mas um homem que oferece a única vaca que possui...
- Ela fala de vacas - disse Davos ao rei. - Eu estou falando de um garoto, amigo de sua filha, filho de seu irmão.
- O filho de um rei, com o poder do sangue real em suas veias. - O rubi de Melisandre cintilava como uma estrela vermelha à sua garganta. - Pensa que salvou este garoto, Cavaleiro das Cebolas? Quando a longa noite cair, Edric Storm morrerá com os outros, não importa onde esteja escondido. E os seus filhos também. As trevas e o frio cobrirão a terra. Intromete-se em assuntos que não compreende.
- Há muitas coisas que não compreendo - admitiu Davos. - Nunca fingi o contrário. Conheço os mares e os rios, a forma das costas, onde há rochedos e baixios. Conheço angras escondidas onde um barco pode aportar sem ser visto. E sei que um rei protege o seu povo, caso contrário não é rei nenhum.
O rosto de Stannis escureceu.
- Zomba de mim na minha cara? Será que preciso aprender quais são os deveres de um rei com um contrabandista de cebolas?
Davos ajoelhou.
- Se o ofendi, corte minha cabeça. Morrerei como vivi, um homem que lhe é leal. Mas primeiro escute-me. Escute-me em nome das cebolas que lhe trouxe, e dos dedos que me tirou.
Stannis desembainhou a Luminífera. O brilho da espada encheu a sala.
- Diga o que quiser, mas diga depressa. - Os músculos no pescoço do rei projetavam-se como cordões.
Davos apalpou dentro do manto e tirou um pedaço amarfanhado de pergaminho. Parecia uma coisa pequena e banal, mas era todo o escudo que possuía.
- Uma Mão do Rei deve saber ler e escrever. Meistre Pylos tem me ensinado. - Alisou a carta no joelho e começou a ler à luz da espada mágica.
Jôn Sonhou que estava de volta a Winterfell, passando mancando pelos reis de pedra em seus tronos. Seus olhos de granito, cinzentos, viravam-se para segui-lo e seus dedos de granito apertavam-se no cabo das espadas enferrujadas que descansavam sobre suas coxas. Não é um Stark, ouvia-os resmungar, em pesadas vozes de granito. Não há lugar para você. Vá embora. Caminhou mais profundamente para o interior das trevas.
- Pai? - chamou. - Bran? Rickon? - ninguém respondeu. Um vento gelado soprava em seu pescoço. - Tio? - chamou. - Tio Benjen? Pai? Por favor, pai, ajude-me. - Ouviu o som de tambores vindo de cima. Estão se banqueteando no Salão Grande, mas não sou bem-vindo lá. Não sou um Stark, e este não é o meu lugar. A muleta escorregou e ele caiu de joelhos. As criptas estavam se tornando mais escuras. Uma luz apagou-se, em algum lugar. - Ygritte? - sussurrou. - Perdoe-me. Por favor. - Mas era apenas um lobo gigante, cinza e sinistro, salpicado de sangue, com os olhos dourados brilhando tristemente na escuridão...
A cela estava escura e a cama era dura sob seu corpo. Lembrou-se de que era a sua cama, a sua cama em sua cela de intendente que ficava abaixo dos aposentos do Velho Urso. Deveria ter-lhe trazido sonhos melhores. Mesmo sob as peles tinha frio. Fantasma era seu companheiro de cela antes de partirem em patrulha, aquecendo-a contra o frio da noite. E depois Ygritte dormira ao seu lado. Ambos se foram agora. Ele mesmo tinha queimado Ygritte, como sabia que ela teria desejado, e o Fantasma... Onde está? Estaria também ele morto, seria esse o significado de seu sonho, o lobo ensanguentado nas criptas? Mas o lobo no sonho era cinza, não branco. Cinza como o lobo de Bran. Teriam os Thenns o caçado, o teriam matado após Coroado a rrainha? Se fosse isso que tinha acontecido, Bran estava perdido para ele, completamente e para sempre.
Jon estava tentando descobrir um sentido naquilo quando o berrante soou.
O Berrante do Inverno, pensou, ainda confuso do sono. Mas Mance não chegara a encontrar o berrante de Joramun, portanto não podia ser. Seguiu-se um segundo sopro, tão longo e profundo quanto o primeiro. Jon tinha de se levantar e ir para a Muralha, bem sabia, mas era tão difícil...
Empurrou as peles para o lado e sentou-se. A dor na perna parecia mais amortecida, nada que não pudesse suportar. Tinha dormido vestido com os calções, túnica e roupa interior, para obter mais calor, portanto tinha apenas de calçar as botas e vestir couro, cota de malha e manto. O berrante voltou a soar, dois sopros longos, por isso pôs Garra-longa ao ombro, pegou a muleta e manquejou escada abaixo.
Lá fora era noite cerrada, fazia um frio cortante e o céu estava coberto. Os irmãos jorravam de torres e fortalezas, afivelando os cintos de espada e dirigindo-se para a Muralha. Jon procurou Pyp e Grenn, mas não conseguiu encontrá-los. Talvez fosse um deles a sentinela que soprava o berrante. E Mance, pensou. Finalmente chegou. Isso era bom. Travaremos uma batalha, e depois descansaremos. Vivos ou mortos, descansaremos.
Onde estivera a escada só restava um imenso monte de madeira carbonizada e gelo quebrado à sombra da Muralha. Agora era o guincho que os içava, mas a gaiola só era suficiente para dez homens de cada vez, e já subia quando Jon chegou. Teria de esperar a sua volta. Outros esperaram com ele; Cetim, Mully, Bota Extra, Barricas, o grande e louro Hareth com seus dentes salientes. Todo mundo o chamava de Cavalo. Tinha sido cavalariço em Vila Toupeira, um dos poucos toupeiras que ficaram em Castelo Negro. Os outros tinham corrido de volta aos seus campos e cabanas, ou para as suas camas no bordel subterrâneo. Mas Cavalo queria vestir o negro, o grande tolo do dentuço. Zei, a prostituta que se mostrara tão habilidosa com o arco, também ficou, e Noye acolheu três garotos órfãos cujos pais tinham morrido na escada. Eram novos - nove, oito e cinco anos -, mas ninguém mais parecia querê-los.
Enquanto esperavam que a gaiola descesse, Clydas trouxe-lhes taças de vinho quente temperado, enquanto Hobb Três-Dedos distribuía nacos de pão escuro. Jon recebeu dele uma côdea e começou a roê-la.
- E o Mance Rayder? - perguntou ansiosamente Cetim.
- Podemos ter essa esperança. - Havia coisas piores do que selvagens na escuridão. Jon lembrava-se das palavras que o rei selvagem proferira no Punho dos Primeiros Homens, enquanto conversavam na neve cor-de-rosa. "Quando os mortos caminham, muralhas, estacas e espadas nada significam. Não pode lutar com os mortos, Jon Snow. Ninguém sabe disso tão bem quanto eu." Só de pensar naquilo o vento pareceu soprar um pouco mais frio.
Por fim, a gaiola voltou a descer, retinindo e oscilando na ponta da longa corrente, e eles aglomeraram-se lá dentro, em silêncio, e fecharam a porta.
Mully puxou três vezes a corda da sineta. Um momento mais tarde, começaram a subir, a princípio aos trancos, depois mais suavemente. Ninguém falou. No topo, a gaiola balançou para o lado e saltaram para fora, um por um. Cavalo ajudou Jon a descer para o gelo. O frio atingiu-o nos dentes como um soco.
Uma linha de fogos ardia ao longo do topo da Muralha, em cestos de ferro montados em postes mais altos do que um homem. O vento, frio como uma faca, agitava e fazia as chamas rodopiarem, de modo que a lúgubre luz laranja estava sempre mudando. Feixes de flechas, lanças e dardos para as bestas e as balistas estavam em posição por todo lado. Havia pilhas de pedra com três metros de altura, grandes barris de madeira cheios de piche e de óleo de lâmpadas alinhavam-se a seu lado. Bowen Marsh deixara Castelo Negro bem abastecido de tudo, menos de homens. O vento chicoteava o manto negro das sentinelas-espantalhos montadas ao longo das ameias, de lança na mão.
- Espero que não tenha sido um deles que soprou o berrante - disse Jon a Donal Noye quando se aproximou dele coxeando.
- Ouviu isso? - perguntou Noye.
Havia o vento, e cavalos, e algo mais.
- Um mamute - disse Jon. - Isso foi um mamute.
O hálito do armeiro gelava assim que saía de seu nariz largo e achatado. A norte da Muralha havia um mar de escuridão que parecia estender-se até o infinito. Jon conseguia distinguir a tênue cintilação vermelha de fogos distantes em movimento através da floresta. Era Mance, tão certo como a alvorada. Os Outros não acendiam archotes.
- Como é que lutamos contra eles se não os vemos? - perguntou Cavalo.
Donal Noye virou-se para dois grandes trabucos que Bowen Marsh tinha restaurado e posto em funcionamento.
- Deem-me luzl - rugiu.
Barris de piche foram apressadamente carregados nos estilingues e incendiados com um archote. O vento soprou as chamas até se transformarem numa viva fúria vermelha.
- AGORA! - berrou Noye. Os contrapesos precipitaram-se para baixo e os braços de arremesso ergueram-se até baterem com estrondo nas barras transversais almofadadas. O piche ardente partiu rodopiando pela escuridão, lançando uma fantasmagórica luz oscilante sobre o terreno lá embaixo. Jon vislumbrou mamutes que se moviam imponentemente à meia-luz, e com a mesma rapidez deixou de vê-los. Uma dúzia, talvez mais. Os barris atingiram a terra e estouraram. Ouviram uma trombeta soar num baixo profundo, e um gigante rugiu qualquer coisa no Idioma Antigo, com a voz num trovão ancestral que provocou arrepios na espinha de Jon.
- Outra vez! - gritou Noye, e os trabucos foram de novo carregados. Mais dois barris de piche ardente partiram, crepitando, para as sombras, e esmagaram-se entre o inimigo. Daquela vez um deles atingiu uma árvore morta, envolvendo-a em chamas. Não é uma dúzia de mamutes, viu Jon, é uma centena.
Aproximou-se da borda do precipício. Cuidado, recordou a si mesmo, é uma longa queda até lá embaixo. Alyn Vermelho fez soar mais uma vez o seu berrante de sentinela, Aaaaahuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, aaaaaaahuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu. E agora os selvagens responderam, não com um berrante, mas com uma dúzia, e também com tambores e gaitas. Chegamos, pareciam dizer, chegamos para quebrar a sua Muralha, para tomar suas terras e roubar suas filhas. O vento uivava, os trabucos rangiam e estrondeavam, os barris voavam. Atrás dos gigantes e dos mamutes, Jon viu homens avançando contra a muralha com arcos e machados. Haveria vinte ou vinte mil? Na escuridão, não havia como dizer. Esta é uma batalha de cegos, mas Mance tem alguns milhares mais do que nós.
- O portão! - gritou Pyp. - Eles estão no PORTÃO!
A Muralha era grande demais para ser assaltada por meios convencionais; alta demais para escadas ou torres de cerco, espessa demais para aríetes. Nenhuma catapulta era capaz de arremessar uma pedra suficientemente grande para abrir uma brecha nela, e caso se tentasse incendiá-la, o gelo derretido extinguiria as chamas. Era possível escalá-la, como os assaltantes tinham feito perto de Guardagris, mas só se os alpinistas fossem fortes, estivessem em forma e tivessem mãos seguras, e mesmo assim podiam acabar como Jarl, empalados numa árvore. Eles têm de tomar o portão, caso contrário não poderão passar.
Mas o portão era um túnel sinuoso através do gelo, menor do que qualquer portão de castelo dos Sete Reinos, tão estreito que os patrulheiros tinham de levar os garranos em fila indiana. Três portões de ferro fechavam a passagem interior, todos trancados e acorrentados e protegidos por um alçapão. A porta exterior era de carvalho antigo, com vinte e três centímetros de espessura e reforçada com ferro, difícil de quebrar. Mas Mance tem mamutes, recordou a si mesmo, e também tem gigantes.
- Deve estar frio lá embaixo - disse Noye. - Que dizem de os aquecermos, rapazes? - uma dúzia de potes de óleo para lâmpadas tinham sido alinhados junto ao precipício. Pyp percorreu a fileira com um archote, incendiando-os. Owen Idiota seguiu-o, empurrando-os borda afora, um por um. Línguas de fogo amarelo-claro rodopiaram em volta dos potes quando estes mergulharam. Depois de o último ter sido atirado, Grenn soltou com um pontapé os calços de um barril de piche e fez com que também caísse pela borda da Muralha, rolando e ressaltando. Os sons que vinham de baixo transformaram-se em berros e gritos, doce música para os seus ouvidos.
Mas os tambores ainda ressoavam, os trabucos estremeciam e estrondeavam, e o som das gaitas de foles veio em baforadas pela noite, como se fosse a canção de umas aves quaisquer, estranhas e ferozes. Septão Cellador também começou a cantar, com a voz trêmula e carregada de vinho.
Gentil Mãe, de clemência fonte, nossos filhos livre da disputa, pare espadas, pare flechas, deixe-os ver...
Donal Noye virou-se para ele.
- O primeiro homem aqui que parar a espada, eu mando a porcaria da bunda caída lá pra baixo... começando por você, septão. Arqueiros! Temos aí algum maldito arqueiro?
- Aqui - disse Cetim.
- E aqui - disse Mully. - Mas como é que encontro um alvo? Tá escuro como se estivéssemos dentro de uma barriga de porco. Onde estão eles?
Noye apontou para o norte.
- Dispare flechas suficientes e pode ser que acerte alguns. Pelo menos vai deixá-los inquietos. - Olhou em volta do círculo de rostos iluminados pelo fogo. - Preciso de dois arcos e de duas lanças para me ajudar a defender o túnel, caso eles consigam quebrar o portão. - Mais de dez deram um passo adiante, e o ferreiro escolheu seus quatro. - Jon, a Muralha é sua até eu voltar.
Por um momento Jon julgou ter ouvido mal. Parecera que Noye estava deixando-o no comando.
- Senhor?
- Senhor? Eu sou um ferreiro. Disse que a Muralha é sua.
Há homens mais velhos, Jon quis dizer, homens melhores. Ainda estou verde como a grama do verão. Estou ferido, efui acusado de deserção. Tinha ficado com a boca seca como um osso.
- Sim - conseguiu dizer.
Mais tarde Jon Snow teria a sensação de aquela noite ter sido um sonho. Lado a lado com os soldados de palha, com arcos e bestas apertados em mãos meio congeladas, seus arqueiros atiraram uma centena de nuvens de flechas contra homens que não chegavam a ver. De tempos em tempos uma flecha dos selvagens surgia em resposta. Enviou homens para as catapultas menores e encheu o ar com pedras angulosas do tamanho de um punho de gigante, mas a escuridão engolia-as como um homem poderia engolir um punhado de nozes. Mamutes bramiam nas trevas, estranhas vozes gritavam em línguas ainda mais estranhas, e o Septão Cellador rezava pela chegada da alvorada tão alto e com uma voz tão ébria que Jon se sentiu tentado a atirá-lo ele mesmo da Muralha. Ouviram um mamute morrendo bem abaixo deles e viram outro arremetendo pela floresta, ardendo, esmagando tanto homens como árvores. O vento soprava cada vez mais frio. Hobb foi içado com taças de caldo de cebolas e Owen e Clydas serviram-nas aos arqueiros em seus postos, para que pudessem emborcá-las entre flechas. Zei ocupou um lugar entre eles com a sua besta. Horas de repetidos abalos e choques soltaram qualquer coisa no trabuco da direita, e seu contrapeso libertou-se, súbita e catastroficamente, torcendo o braço de arremesso para o lado e estilhaçando-o. O trabuco da esquerda continuou a arremessar, mas os selvagens tinham aprendido depressa a evitar a zona onde suas cargas caíam.
Devíamos ter vinte trabucos, e não dois, e eles deviam estar montados em trenós e bases rotativas para podermos movê-los. Era um pensamento fútil. Podia também desejar mais mil homens e talvez dois ou três dragões.
Donal Noye não voltou, assim como os outros que o acompanharam a fim de defender aquele túnel negro e frio. A Muralha é minha, lembrava Jon a si mesmo sempre que sentia as forças fraquejarem. Ele também tinha pegado um arco e sentia os dedos cheios de cãibras e duros, meio congelados. A febre também estava de volta, e às vezes a perna tremia descontroladamente, enviando uma incandescente faca de dor pelo interior de seu corpo. Mais uma flecha, e descanso, disse a si mesmo meia centena de vezes. Só mais uma. Sempre que a aljava se esvaziava, um dos toupeiras órfãos trazia-lhe outra. Mais uma flecha, e basta. Não podia faltar muito tempo para o nascer do dia.
Quando a manhã chegou, a princípio nenhum deles notou. O mundo continuava escuro, mas o negro transformara-se em cinza e silhuetas entrevistas começavam a emergir das sombras. Jon baixou o arco para fitar a massa de pesadas nuvens que cobria o céu oriental. Via um brilho atrás delas, mas talvez estivesse apenas sonhando. Encaixou mais uma flecha.
Então o sol nascente penetrou por entre as nuvens e arremessou pálidas lanças no quilômetro de terra limpa que se estendia entre a Muralha e o limite da floresta. Em metade de uma noite tinham-na transformado num deserto de grama enegrecida, piche borbulhante, pedra estilhaçada e cadáveres. A carcaça do mamute queimado já começava a atrair corvos. Havia também gigantes mortos no chão, mas atrás deles...
Alguém gemeu à sua esquerda, e ouviu o Septão Cellador dizer:
- Que a Mãe tenha piedade de nós, oh. Oh, oh, oh, que a Mãe tenha piedade de nós.
Sob as árvores estavam todos os selvagens do mundo; corsários e gigantes, wargs e troca-peles, homens das montanhas, marinheiros do mar salgado, canibais do rio de gelo, cavernícolas com o rosto pintado, bigas puxadas por cães vindas da Costa Gelada, homens de Cornopé com suas solas semelhantes a couro fervido, todo o estranho povo selvagem que Mance reunira para quebrar a Muralha. Esta não é a sua terra, Jon quis gritar para eles. Não há lugar para vocês aqui. Vão embora. Conseguia ouvir Tormund Terror dos Gigantes rindo daquilo. "Você não sabe nada, Jon Snow", teria dito Ygritte. Flexionou a mão da espada, abrindo e fechando os dedos, embora soubesse perfeitamente que as espadas não entrariam em ação ali em cima.
Estava gelado e febril, e de repente o peso do arco foi demasiado. Compreendeu que a batalha com o Magnar não havia sido nada, e a luta da noite, menos que nada, nada mais que uma sonda, um punhal no escuro para tentar apanhá-los desprevenidos. A verdadeira batalha estava começando agora.
- Não sabia que seriam tantos - disse Cetim.
Jon sabia. Já os vira antes, mas não assim, não organizados em ordem de batalha. Durante a marcha, a coluna dos selvagens tinha-se espalhado ao longo de léguas como se fosse um enorme verme, e nunca era vista toda ao mesmo tempo. Agora...
- Aí vêm eles - disse alguém em voz rouca.
Jon viu que mamutes formavam o centro das fileiras dos selvagens, cem ou mais, montados por gigantes armados com malhos e enormes machados de pedra. Mais gigantes corriam ao lado dos animais, puxando um tronco de árvore apoiado em grandes rodas de madeira, com a ponta afiada em bico. Um aríete, pensou friamente. Se o portão ainda resistisse, lá embaixo, alguns beijos daquela coisa em pouco tempo o transformariam em lascas. De ambos os lados dos gigantes vinha uma onda de cavaleiros com couraça de couro fervido e lanças endurecidas pelo fogo, uma massa de arqueiros correndo, centenas de homens com lanças, estilingues, tacapes e escudos de couro. As bigas de osso da Costa Gelada avançavam chocalhando nos flancos, balançando sobre pedras e raízes atrás de parelhas de enormes cães brancos. A fúria da terra bravia, pensou Jon ao ouvir o gemido das gaitas de foles, o ladrar e latir dos cães, o bramido dos mamutes, os assobios e gritos do povo livre, os rugidos dos gigantes no Idioma Antigo. Os tambores ecoavam no gelo como trovões.
Sentia o desespero a toda a volta.
- Devem ser cem mil - gemeu Cetim. - Como poderemos parar tantos ?
- A Muralha para-os - Jon ouviu-se dizendo. Virou-se e voltou a dizer isso, mais alto. - A Muralha para-os. A Muralha defende-se. - Palavras ocas, mas precisava dizê-las, quase tanto quanto os irmãos precisavam ouvi-las. - Mance quer nos desencorajar com seus números. Será que acha que somos burros? - estava agora gritando, com a perna esquecida, e todos os homens o escutavam. - As bigas, os cavaleiros, todos aqueles palermas a pé... o que irão fazer conosco aqui em cima? Algum de vocês já viu um mamute escalar uma muralha? - soltou uma gargalhada, e Pyp, Owen e meia dúzia dos outros riram com ele. - Eles não são nada, têm menos utilidade do que os nossos irmãos de palha aqui, não podem chegar até nós, não podem nos fazer mal, e não nos assustam, certo?
- CERTO! - gritou Grenn.
- Eles estão lá embaixo e nós aqui em cima - disse Jon -, e enquanto defendermos o portão não podem passar. Eles não podem passar! - todos já estavam gritando, rugindo de volta suas próprias palavras, brandindo espadas e arcos no ar enquanto as faces se enrubesciam. Jon viu Barricas ali em pé, com um berrante de guerra metido debaixo do braço. - Irmão - disse-lhe -, faça soar o toque de batalha.
Sorrindo, Barricas levou o berrante aos lábios e soprou as duas longas notas que significavam selvagens. Outros berrantes imitaram o chamamento até que a própria Muralha pareceu estremecer e o eco daqueles grandes gemidos guturais afogou todos os outros sons.
- Arqueiros - disse Jon depois de os berrantes se silenciarem -, apontem para os gigantes que trazem o aríete, todos vocês. Disparem às minhas ordens, não antes. OS GIGANTES E O ARÍETE. Quero que chovam flechas sobre eles a cada passo, mas esperaremos até estarem ao alcance. Qualquer homem que desperdiçar uma flecha que seja vai ter de descer a Muralha e ir buscá-la, estão me ouvindo?
- Eu estou - gritou Owen Idiota. - Eu estou ouvindo, Lorde Snow.
Jon riu, riu como um bêbado ou um louco, e seus homens riram com ele. Viu que as bigas e os cavaleiros dos flancos agora estavam bem à frente do centro. Os selvagens ainda não tinham atravessado um terço do quilômetro, mas sua linha de batalha já se dissolvia.
- Carregar o trabuco com estrepes - disse Jon. - Owen, Barricas, virem as catapultas para o centro. Balistas, carregar com lanças incendiárias e disparar às minhas ordens. - Apontou para os rapazes de Vila Toupeira. - Você, você e você, fiquem à espera com archotes.
Os arqueiros selvagens disparavam ao avançar; precipitavam-se para a frente, paravam, disparavam e depois corriam mais dez metros. Eram tantos que o ar estava constantemente cheio de flechas, todas elas em voos lamentavelmente curtos. Um desperdício, pensou Jon. Sua falta de disciplina está se revelando. Os arcos de chifre e madeira do povo livre, menores, tinham um alcance mais reduzido do que os grandes arcos de teixo da Patrulha da Noite, e os selvagens estavam tentando disparar contra homens que se encontravam duzentos metros acima deles.
- Deixem-nos disparar - disse Jon. - Esperar. Aguentar. - Os mantos batiam atrás deles. - Temos o vento na cara, isso irá custar-nos alcance. Esperar. - Mais perto, mais perto. As gaitas de foles gemiam, os tambores trovejavam, as flechas dos selvagens esvoaçavam e caíam.
- PUXAR. - Jon levantou o próprio arco e puxou a flecha até a orelha. Cetim fez o mesmo, e o mesmo fizeram Grenn, Owen Idiota, Bota Extra, Jack Negro Bulwer, Arron e Emrick. Zei levou a besta ao ombro. Jon observava o aríete que se aproximava cada vez mais, com os mamutes e gigantes a acompanhá-lo pesadamente de ambos os lados. Pareciam tão pequenos que Jon poderia esmagar a todos com uma mão. Se ao menos a minha mão fosse suficientemente grande. Começaram a atravessar a extensão coberta de cadáveres. Uma centena de corvos levantou voo da carcaça do mamute morto quando os selvagens passaram trovejando por ela. Mais perto e ainda mais perto até que... - DISPARAR!
As flechas negras silvaram para baixo, como serpentes em asas de penas. Jon não esperou para ver onde caíam. Estendeu a mão para uma segunda flecha assim que a primeira deixou o seu arco.
- ENCAIXAR. PUXAR. DISPARAR. - Assim que a flecha partiu, pegou outra. - ENCAIXAR. PUXAR. DISPARAR. - E outra vez, e depois outra vez. Jon gritou pelo trabuco, e ouviu um rangido e um pesado tum quando uma centena de estrepes de aço cheias de espigões partiram girando pelo ar. - Catapultas - gritou -, balistas. Arqueiros, disparar à vontade. - Flechas dos selvagens atingiam a Muralha, trinta metros abaixo deles. Um segundo gigante girou e cambaleou. Encaixar, puxar, disparar. Um mamute virou de encontro a outro que seguia ao seu lado, derrubando gigantes ao chão. Encaixar, puxar, disparar. Viu que o aríete estava caído e quebrado, com os gigantes que o tinham empurrado mortos ou agonizando. - Flechas incendiárias - gritou. - Quero o aríete queimando. - Os berros dos mamutes feridos e os gritos ressonantes dos gigantes misturavam-se com os tambores e as gaitas, criando uma música horrível, mas seus arqueiros continuavam puxando e disparando, como se todos tivessem se tornado tão surdos quanto o falecido Dick Follard. Podiam ser a escória da ordem, mas eram homens da Patrulha da Noite, ou tão perto disso que não fazia diferença. É por isso que não passarão.
Um dos mamutes corria, descontrolado, atingindo selvagens com a tromba e esmagando arqueiros debaixo das patas. Jon puxou seu arco uma vez mais e lançou outra flecha contra o dorso felpudo do animal, para incentivá-lo a continuar. Para leste e para oeste, os flancos da tropa dos selvagens tinham chegado à Muralha sem oposição. As bigas aproximaram-se do centro ou viraram enquanto os cavaleiros davam voltas sem rumo, sem objetivo, sob a enorme falésia de gelo.
- No portão! - soou um grito. Talvez o Bota Extra. - Mamute no portão!
- Fogo - ladrou Jon. - Grenn, Pyp.
Grenn pôs o arco de lado, derrubou um barril de óleo e rolou-o até a borda da Muralha, onde Pyp fez saltar a rolha que o selava com uma martelada, enfiou no orifício um pano torcido e o incendiou com um archote. Empurraram-no juntos borda afora. Trinta metros abaixo, o barril atingiu a Muralha e estourou, enchendo o ar com tábuas estilhaçadas e óleo fervente. Grenn já estava rolando um segundo barril até o precipício, e Barricas também tinha um. Pyp incendiou-os a ambos.
- Acertaram! - gritou Cetim, esticando tanto a cabeça que Jon teve certeza de que estava prestes a cair. - Acertaram, acertaram, ACERTARAM! - Ouviu o rugido do fogo. Um gigante em chamas surgiu no seu campo de visão, tropeçando e rolando no chão.
Então, de repente, os mamutes puseram-se em fuga, afastando-se da fumaça e das chamas e colidindo em seu terror com os que se encontravam atrás. Esses também recuaram, com os gigantes e selvagens atrás deles, correndo para saírem do caminho. Em meio segundo, o centro inteiro ruía. Os cavaleiros nos flancos viram-se abandonados e decidiram também retirar, sem que nenhum tivesse chegado a ter o seu batismo de sangue. Até as bigas se afastaram ribombando, não tendo feito nada além de parecer temíveis e produzir muito barulho. Quando quebram, quebram de verdade, pensou Jon Snow enquanto os via se afastando. Todos os tambores tinham se silenciado. Que tal essa música, Mance? O que achou da mulher do domes?
- Temos alguém ferido? - perguntou.
- Os malditos filhos da mãe acertaram minha perna. - Bota Extra arrancou a flecha e brandiu-a por cima da cabeça. - A de madeira!
Uma aclamação irregular ergueu-se na Muralha. Zei pegou Owen pelas mãos, girou-o em círculos e deu-lhe um longo beijo molhado ali mesmo, à vista de todos. Também tentou beijar Jon, mas ele segurou-a pelos ombros e afastou-a gentil mas firmemente.
- Não - disse. Acabaram-se os beijos para mim. Subitamente sentiu-se cansado demais para se manter em pé, e a perna era uma agonia do joelho à virilha. Procurou a muleta às apalpadelas. - Pyp, ajude-me a ir até a gaiola. Grenn, a Muralha é sua.
- Minha? - disse Grenn.
- Dele? - disse Pyp. Era difícil dizer qual dos dois estava mais horrorizado.
- Mas - gaguejou Grenn - M-mas o que é que eu faço se os selvagens voltarem a atacar?
- Pare-os - disse-lhe Jon.
Enquanto desciam na gaiola, Pyp tirou o elmo e limpou a testa.
- Suor congelado. Há alguma coisa mais nojenta do que suor congelado? - Soltou uma gargalhada. - Deuses, acho que nunca tive tanta fome. Era capaz de comer um auroque inteiro, juro. Acha que o Hobb nos cozinharia o Grenn? - Quando viu o rosto de Jon, seu sorriso morreu. - Que foi? E a perna?
- É a perna - concordou Jon. Até as palavras eram um esforço.
- Mas não é a batalha? Nós ganhamos a batalha.
- Pergunte-me depois de ter visto o portão - disse Jon sombriamente. Quero um fogo, uma refeição quente, uma cama morna e qualquer coisa que faça com que minha perna pare de doer, disse a si mesmo. Mas primeiro tinha de ir verificar o túnel e descobrir o que acontecera a Donal Noye.
Depois da batalha com os Thenns tinham levado quase um dia tirando o gelo e as vigas quebradas do portão interno. Pate Malhado, Barricas e alguns dos outros construtores argumentaram acaloradamente sobre se deviam simplesmente deixar ali o entulho, mais um obstáculo para Mance. Mas isso teria significado o abandono da defesa do túnel, e Noye não quis ouvir falar do assunto. Com homens nos alçapões e arqueiros e lanças atrás de cada um dos portões interiores, alguns irmãos determinados seriam capazes de repelir cem vezes o seu número de selvagens e atulhar o caminho de cadáveres. Não pretendia dar a Mance Rayder livre trânsito através do gelo. E assim, com picaretas, pás e cordas, tinham afastado os degraus quebrados e escavado um caminho até o portão.
Jon esperou junto das frias barras de ferro enquanto Pyp ia pedir a chave reserva ao Meistre Aemon. Surpreendentemente, o próprio meistre voltou com ele, e Clydas também, trazendo uma lanterna.
- Venha me fazer uma visita quando terminarmos - disse o velho a Jon enquanto Pyp lutava com as correntes. - Tenho de trocar sua atadura e aplicar um cataplasma fresco, e você vai querer um pouco de vinho dos sonhos para as dores.
Jon assentiu debilmente. A porta abriu-se. Pyp entrou à frente, seguido por Clydas e pela lanterna. Jon só foi capaz de acompanhar o passo de Meistre Aemon. O gelo apertava-se em volta deles, e ele sentia o frio enfiando-se em seus ossos, o peso da Muralha por cima de sua cabeça. Era como penetrar na goela de um dragão de gelo. O túnel descreveu uma curva e depois outra. Pyp destrancou um segundo portão de ferro. Avançaram, viraram novamente e viram luz mais à frente, tênue e pálida através do gelo. Isso é ruim, soube Jon de imediato. Isso é muito ruim.
Então Pyp disse:
- Há sangue no chão.
Foi nos últimos seis metros do túnel que eles tinham lutado e morrido. A porta exterior de carvalho reforçado tinha sido atacada e quebrada e por fim arrancada das dobradiças, e um dos gigantes arrastara-se para dentro através das lascas. A lanterna banhava a macabra cena com uma luz soturna e avermelhada. Pyp virou-se para o lado e vomitou, e Jon deu por si a invejar a cegueira de Meistre Aemon,
Noye e seus homens tinham estado à espera dentro do túnel, por trás de um portão de pesadas barras de ferro igual aos dois que Pyp havia acabado de destrancar. Os dois besteiros tinham disparado uma dúzia de dardos enquanto o gigante lutava para chegar até eles. Então os lanceiros devem ter avançado, projetando as lanças através das barras. Mesmo assim, o gigante ainda encontrara forças para estender as mãos por entre as barras, arrancar a cabeça de Pate Malhado, agarrar o portão de ferro e afastar as barras. Elos de uma corrente quebrada estavam espalhados pelo chão. Um gigante. Tudo isso foi obra de um gigante.
- Estão todos mortos? - perguntou o Meistre Aemon em voz baixa.
- Sim. Donal foi o último. - A espada de Noye estava profundamente enterrada na garganta do gigante, até o meio da lâmina. O armeiro sempre tinha parecido a Jon um homem tão grande, mas preso aos enormes braços do gigante quase parecia uma criança. - O gigante esmagou sua coluna. Não sei quem morreu primeiro. - Pegou a lanterna e aproximou-se para ver melhor. - Mag. - "Eu sou o último dos gigantes." Sentia a tristeza que havia ali, mas não tinha tempo para tristezas. - Foi Mag, o Poderoso. O rei dos gigantes.
Sentiu então necessidade do sol. Dentro do túnel estava frio e escuro demais, e o fedor do sangue e da morte era sufocante. Jon devolveu a lanterna a Clydas, esgueirou-se em volta dos corpos e através das barras torcidas e caminhou para a luz do dia, para ver o que havia atrás da porta estilhaçada.
A enorme carcaça de um mamute morto bloqueava parcialmente a passagem. Uma das presas do animal prendeu seu manto e rasgou-o quando passou por ele. Mais três gigantes jaziam lá fora, meio enterrados por baixo de pedras, gelo sujo e piche endurecido. Via os locais onde o fogo derretera a Muralha, onde grandes lençóis de gelo tinham se desprendido com o calor e se estilhaçado no chão enegrecido. Ergueu os olhos para o local de onde tinham vindo. Quando estamos aqui, parece imensa, como se estivesse prestes a nos esmagar.
Jon voltou para dentro, para onde os outros aguardavam.
- Temos de reparar o portão exterior o melhor possível e depois bloquear esta seção do túnel. Entulho, montes de gelo, qualquer coisa. Até o segundo portão, se conseguirmos. Sor Winton terá de assumir o comando, é o último cavaleiro que resta, mas tem de agir já, os gigantes estarão de volta antes de percebermos. Temos de lhe dizer...
- Diga-lhe o que quiser - disse Meistre Aemon em voz baixa. - Ele sorrirá, fará um aceno, e esquecerá. Há trinta anos, Sor Wynton Stout esteve a uma dúzia de votos de ser Senhor Comandante. Teria sido dos bons. Há dez anos ainda podia ter sido capaz. Mas não mais. Sabe disso tão bem quanto Donal sabia, Jon.
Era verdade.
- Então dê você a ordem - disse Jon ao meistre. - Passou a vida inteira na Muralha, os homens vão segui-lo. Temos de fechar o portão.
- Eu sou um meistre acorrentado e juramentado. A minha ordem serve, Jon. Nós damos conselhos, não ordens.
- Alguém tem de...
- Você. Você tem de liderar.
- Não.
- Sim, Jon. Não precisa ser por muito tempo. Só até a guarnição retornar. Donal escolheu-o, e Qhorin Meia-Mão também, antes dele. O Senhor Comandante Mormont fez de você o intendente dele. É um filho de Winterfell, sobrinho de Benjen Stark. Tem de ser você, ou não será ninguém. A Muralha é sua, Jon Snow.
Sentia o buraco dentro de si todas as manhãs ao acordar. Não era fome, embora às vezes também houvesse isso, Era um lugar oco, um vazio onde o coração estivera, onde os irmãos e os pais tinham vivido. Sua cabeça também doía. Não tanto como a princípio, mas ainda doía bastante. Arya estava habituada a isso, porém, e pelo menos o galo estava desaparecendo. Mas o buraco dentro de si permanecia mesmo assim. O buraco nunca desaparecerá, dizia a si mesma quando ia dormir.
Em algumas manhãs, Arya não queria sequer acordar. Aninhava-se sob o manto com os olhos bem apertados e tentava voltar ao sono pela força da vontade. Se ao menos o Cão de Caça a deixasse em paz, dormiria todo o dia e toda a noite.
E sonhava. Essa era a melhor parte, os sonhos. Sonhava com lobos quase todas as noites. Uma grande alcateia de lobos, ela à frente. Era maior do que todos os outros, mais forte, mais ligeira, mais rápida. Era capaz de correr mais depressa do que cavalos e de vencer leões em luta. Quando arreganhava os dentes, até os homens fugiam dela, nunca tinha a barriga vazia por muito tempo, e o pelo mantinha-a quente mesmo quando o vento soprava frio. E os irmãos e irmãs acompanhavam-na, muitos e muitos mais, ferozes, terríveis e seus. Nunca a abandonariam.
Mas se as suas noites eram cheias de lobos, os dias pertenciam ao cão. Sandor Clegane obrigava-a a se levantar todas as manhãs, quer quisesse quer não. Amaldiçoava-a em sua voz arranhada, ou punha-a bruscamente de pé e sacudia-a. Uma vez tinha despejado um elmo cheio de água fria por cima de sua cabeça. Ela levantou-se repentinamente, cuspindo água e tremendo, e tentou chutá-lo, mas ele limitou-se a rir.
- Seque-se e dê de comer à merda dos cavalos - ele tinha dito, e ela obedeceu.
Agora tinham dois, o Estranho e uma égua palafrém alazã que Arya batizou de Covarde, porque Sandor disse que o animal provavelmente teria fugido das Gêmeas, tal como eles. Tinham-na encontrado vagueando sem cavaleiro pelo campo, na manhã seguinte ao massacre. Era um cavalo bastante bom, mas Arya não era capaz de amar um covarde. Estranho teria lutado. Apesar de tudo, cuidava da égua o melhor que sabia. Era melhor do que seguir montada no mesmo cavalo de Cão de Caça. E Covarde podia ter feito jus ao nome, mas também era jovem e forte. Arya achava que talvez fosse capaz de correr mais depressa do que Estranho, se fosse preciso.
Cão de Caça já não a vigiava tão atentamente como antes. Às vezes não parecia se importar se ela ficava ou se ia embora, e já não a atava num manto à noite. Uma noite, mato-o enquanto dorme, dizia a si mesma, mas não fazia isso. Um dia, vou embora com a Covarde, e ele não conseguirá me pegar, pensava, mas também não fazia isso. Para onde iria? Winterfell estava destruído. O irmão do avô estava em Correrrio, mas não a conhecia, tal como ela não o conhecia. A Senhora Smallwood talvez a acolhesse em Solar de Bolotas, mas talvez não. Além disso, Arya nem sequer tinha certeza de conseguir encontrar o Solar de Bolotas novamente. Às vezes pensava que podia voltar para a estalagem de Sharna, se as cheias não a tivessem levado. Podia ficar com o Torta Quente, ou talvez Lorde Beric a encontrasse ali. Anguy iria ensiná-la a usar um arco, e ela poderia cavalgar com Gendry e ser uma fora da lei, como Wenda, a Cerva Branca das canções.
Mas isso era uma estupidez, como um sonho que Sansa poderia ter. Torta Quente e Gendry tinham-na abandonado assim que puderam, e Lorde Beric e os fora da lei só queriam obter um resgate por ela, assim como o Cão de Caça. Nenhum deles a queria por perto. Nunca foram a minha alcateia, nem sequer o Torta Quente e o Gendry. Fui burra por pensar que sim, uma menininha estúpida, nem de longe uma loba.
Por isso ficava com o Cão de Caça. Viajavam todos os dias, sem nunca dormir duas vezes no mesmo local, evitando vilas, aldeias e castelos o melhor possível. Uma vez tinha perguntado a Sandor Clegane para onde iam.
- Para longe - disse ele. - É tudo o que tem de saber. Agora não vale uma cusparada para mim, e não quero ouvir as suas lamúrias. Devia tê-la deixado correr para aquele maldito castelo.
- Devia mesmo - concordou ela, pensando na mãe.
- Se tivesse feito isso, estaria morta. Devia me agradecer. Devia cantar uma cançãozinha bonita para mim, como a sua irmã fez.
- Também bateu nela com um machado?
- Bati em você com a parte romba do machado, minha cachorra estúpida. Se a tivesse atingido com a lâmina, haveria pedaços de sua cabeça flutuando pelo Ramo Verde abaixo. Àgora feche a merda da boca. Se eu tivesse algum juízo, dava você às irmãs silenciosas. Elas cortam a língua das garotas que falam demais.
Não era justo ele dizer aquilo. Tirando aquela vez, Arya quase nem sequer falava. Passavam-se dias inteiros sem que nenhum dos dois proferisse uma única palavra. Ela estava vazia demais para falar, e Cão de Caça tinha ira demais. Arya sentia a fúria nele; via-a em seu rosto, no modo como sua boca se comprimia e torcia, nos olhares que lhe lançava. Sempre que pegava o machado para cortar um pouco de lenha para uma fogueira, enchia-se de uma fúria fria, golpeando violentamente a árvore viva ou morta, ou o galho partido, até ficarem com vinte vezes mais lenha do que necessitavam. Às vezes, ficava tão dolorido e cansado depois de cortar a lenha que se deitava e adormecia sem sequer acender a fogueira. Arya detestava quando isso acontecia, e detestava-o também. Eram essas as noites em que fitava mais intensamente o machado. Parece terrivelmente pesado, mas aposto que seria capaz de brandi-lo. E não o golpearia com a parte romba.
Às vezes, em seus deslocamentos, vislumbravam outras pessoas; camponeses nos seus campos, guardadores de suínos com seus porcos, uma leiteira conduzindo uma vaca, um escudeiro levando uma mensagem por uma estrada sulcada. Também não queria falar com eles. Era como se vivessem em alguma terra distante e falassem uma língua estranha e estrangeira, nada tinham a ver com ela. E nem ela com eles.
Além disso, ser visto não era seguro. De tempos em tempos colunas de cavaleiros passavam pelas sinuosas estradas rurais, com as torres gêmeas de Frey esvoaçando à sua frente.
- À caça de nortenhos desgarrados - tinha dito Cão de Caça depois de uma dessas colunas ter passado. - Sempre que ouvir cascos, abaixe depressa a cabeça, pois não é provável que seja um amigo.
Um dia, num buraco na terra feito pelas raízes de um carvalho caído, deram de cara com outro sobrevivente das Gêmeas. O símbolo que trazia ao peito exibia uma donzela cor-de-rosa que dançava num rodopio de seda, e ele disse-lhes que era um homem de Sor Marq Piper; um arqueiro, embora tivesse perdido o arco. O ombro esquerdo estava todo inchado e torcido no local onde se juntava ao braço; um golpe de maça, disse, tinha partido seu ombro e enterrado profundamente a cota de malha em sua carne.
- E foi um nortenho - choramingou. - O símbolo dele era um homem ensanguentado, e viu o meu e fez uma piada, homem vermelho e donzela cor-de-rosa, talvez devessem se juntar. Eu bebi ao Lorde Bolton dele, ele bebeu a Sor Marq e bebemos juntos ao Lorde Edmure, à Senhora Roslin e ao Rei no Norte. E depois matou-me. - Os olhos dele tinham um brilho febril quando disse aquilo, e Arya viu que era verdade. O ombro estava inchado de forma grotesca, e pus e sangue tinham-lhe manchado todo o lado esquerdo. E também fedia. Cheira a cadáver, O homem implorou um trago de vinho.
- Se tivesse algum vinho, tinha-o bebido eu - disse-lhe Cão de Caça. - Posso dar-lhe água e misericórdia.
O arqueiro olhou-o longamente antes de dizer:
- É o cão de Joffrey.
- Agora sou um cão independente. Quer a água?
- Sim. - O homem engoliu em seco. - E a misericórdia. Por favor.
Tinham passado por uma pequena lagoa pouco antes. Sandor deu a Arya o elmo e disse-lhe para enchê-lo, e ela caminhou penosamente até a borda da água. Lama esguichou sobre a ponta de suas botas. Usou a cabeça do cão como balde. Escorreu água pelos buracos para os olhos, mas o fundo do elmo ainda tinha ficado com muita.
Quando voltou, o arqueiro virou o rosto para cima e ela despejou a água na boca dele. Ele engoliu-a tão depressa quanto ela conseguia despejar, e aquilo que não conseguiu engolir escorreu por seu rosto, indo misturar-se com o sangue marrom que estava incrustado nos pelos que o cobriam, até que lágrimas de um tom claro de rosa pingaram de sua barba. Quando a água se esgotou, agarrou o elmo e lambeu o aço.
- Ótimo - disse. - Mas preferia que tivesse sido vinho. Queria vinho.
- Eu também. - Cão de Caça enfiou o punhal no peito do homem quase com ternura, com o peso do corpo empurrando a ponta através do sobretudo, da cota de malha e do almofadado que usava por baixo. Quando voltou a puxar a faca para fora, olhou para Arya. - É ali que fica o coração, garota. É assim que se mata um homem.
Essa é uma maneira.
- Devemos enterrá-lo?
- Por quê? - disse Sandor. - Ele não se importa, e nós não temos pá. Deixe-o para os lobos e os cães selvagens. Os seus irmãos e os meus. - Dirigiu-lhe um olhar duro. - Mas primeiro vamos roubá-lo.
Havia dois veados de prata na bolsa do arqueiro, e quase trinta moedas de cobre. O punhal do homem tinha uma bonita pedra cor-de-rosa no botão. Cão de Caça sopesou a faca e depois atirou-a a Arya. Ela pegou-a pelo cabo, enfiou-a no cinto e sentiu-se um pouco melhor. Não era a Agulha, mas era aço. O morto também tinha uma aljava de flechas, mas as flechas não tinham muita utilidade sem um arco. As botas eram grandes demais para Arya e pequenas demais para Cão de Caça, portanto deixaram-nas lá. Ela também ficou com seu capacete, embora lhe caísse quase até abaixo do nariz, e tivesse de incliná-lo para trás para poder enxergar.
- Ele também deveria ter um cavalo, senão não teria fugido - disse Clegane, olhando em volta -, mas acho que já desapareceu. Não há como dizer há quanto tempo ele está aqui.
Quando chegaram ao sopé das Montanhas da Lua, as chuvas tinham quase parado. Arya conseguia ver o sol, a lua e as estrelas, e parecia-lhe que se dirigiam para leste.
- Para onde vamos? - voltou a perguntar.
Daquela vez o Cão de Caça respondeu-lhe.
- Você tem uma tia no Ninho da Águia. Talvez queira resgatar esse seu corpinho magricela, embora só os deuses saibam por quê. Depois de acharmos a estrada de altitude, podemos segui-la até o Portão Sangrento.
A tia Lysa. A ideia deixou em Arya uma sensação de vazio. Era a mãe que desejava, não a irmã da mãe. Não conhecia melhor a tia Lysa do que o tio-avô Peixe Negro. Devíamos ter entrado no castelo. Na verdade não sabiam se a mãe estava morta, ou mesmo Robb. Não os tinham propriamente visto morrer, nem nada parecido. Talvez Lorde Frey os tivesse apenas capturado. Talvez estivessem acorrentados em sua masmorra, ou talvez os Frey estivessem levando-os para Porto Real, para que Joffrey pudesse cortar a cabeça deles. Não sabiam.
- Devíamos voltar - decidiu de repente. - Devíamos voltar para as Gêmeas e ir buscar a minha mãe. Ela não pode estar morta. Temos de ajudá-la.
- Achava que era a sua irmã quem tinha a cabeça cheia de canções - rosnou o Cão de Caça. - O Frey podia ter mantido a sua mãe viva para obter um resgate, isso é verdade. Mas não há uma chance nos sete infernos de eu conseguir arrancá-la sozinho do seu castelo.
- Sozinho não. Eu também iria.
Ele soltou um som que era quase uma gargalhada.
- Isso ia fazer o velho mijar-se de susto.
- Você só tem medo de morrer! - disse ela com uma expressão de escárnio.
Agora Clegane riu mesmo,
- A morte não me assusta. Só o fogo. Agora veja se fica quieta, senão eu mesmo corto sua língua e poupo as irmãs silenciosas da chatice. Para nós é o Vale.
Não parecia a Arya que ele realmente cortaria sua língua; estava apenas dizendo aquilo como o Olho-Vermelho costumava dizer que bateria nela até tirar sangue. Fosse como fosse, não iria pô-lo à prova. Sandor Clegane não era nenhum Olho-Vermelho. O Olho-Vermelho não cortava gente ao meio nem batia nela com machados. Nem mesmo com a parte romba dos machados.
Naquela noite adormeceu pensando na mãe e perguntando a si mesma se deveria matar Cão de Caça enquanto dormia e salvar ela mesma a Senhora Catelyn. Quando fechou os olhos, viu o rosto da mãe na parte de dentro das pálpebras. Ela está tão perto que quase conseguiria cheirá-la...
... e então conseguiu cheirá-la. O odor era tênue sob os outros cheiros, sob o musgo, a lama e a água e o fedor de juncos e homens em putrefação. Caminhou lentamente pelo terreno macio até a beira do rio e lambeu um pouco de água, após o que ergueu a cabeça para farejar. O céu estava cinza e pesado de nuvens; o rio, verde e cheio de coisas flutuantes. Os baixios estavam coalhados de mortos, alguns ainda em movimento quando a água os empurrava, outros encalhados nas margens. Os irmãos e irmãs formigavam em volta dos corpos, devorando a rica carne putrefata.
Também lá estavam os corvos, gritando contra os lobos e enchendo o ar de penas. O sangue deles era mais quente, e uma de suas irmãs abocanhou um ao levantar voo, apanhando-o por uma asa. Aquilo fez com que também desejasse um corvo. Queria sentir o sabor do sangue, ouvir os ossos se esmagando entre seus dentes, encher a barriga com carne quente em vez de fria. Tinha fome e havia carne por toda a volta, mas sabia que não podia comer.
O cheiro agora era mais forte. Levantou as orelhas e escutou os rosnados da alcateia, os guinchos de corvos irritados, o sussurro das asas e o som da água corrente. Ouviu sons de cavalos e os gritos dos vivos vindos de algum lugar a distância, mas não eram eles que importavam. Só o odor importava. Voltou a farejar o ar. Ali estava ele, e agora também via a sua origem, algo pálido à deriva no rio, virando-se quando roçava por um obstáculo submerso. Os juncos faziam reverências à sua frente.
Chapinhou ruidosamente pelos baixios e atirou-se em águas mais profundas, batendo as patas. A correnteza era forte, mas ela era mais. Nadou, seguindo o nariz. Os cheiros do rio eram ricos e úmidos, mas não eram esses que a atraíam. Nadou atrás do vivo sussurro rubro do sangue frio, do fedor enfastiante e doce da morte. Perseguiu-os como perseguira frequentemente um veado vermelho por entre as árvores, e por fim apanhou-os e suas mandíbulas fecharam-se em volta de um braço pálido. Sacudiu-o para obrigá-lo a se mexer, mas havia apenas morte e sangue em sua boca. Começava a se cansar, e foi com dificuldade que puxou o cadáver para a terra. Enquanto o arrastava para a margem lamacenta, um de seus irmãos menores veio investigar, com a língua saindo da boca. Teve de rosnar para afastá-lo, caso contrário ele teria comido. Só então parou para sacudir a água do pelo. A coisa branca jazia de bruços na lama, com a carne morta enrugada e pálida e. sangue frio pingando de sua garganta. Levante-se, pensou. Levante-se, e venha comer e correr conosco.
O ruído de cavalos fez a loba virar a cabeça. Homens. Vinham contra o vento, e por isso não sentira o cheiro deles, mas agora estavam quase ali. Homens a cavalo, com asas pretas, amarelas e cor-de-rosa que batiam ao vento e longas garras brilhantes nas mãos. Alguns de seus irmãos mais novos mostraram os dentes para proteger a comida que tinham achado, mas ela mordeu-os até fugirem. Era essa a lei da natureza. Veados, lebres e corvos fugiam perante lobos, e lobos fugiam dos homens. Abandonou a captura fria e branca na lama para onde a arrastara, e fugiu, e não sentiu vergonha.
Quando a manhã chegou, Cão de Caça não precisou gritar ou sacudir Arya para que acordasse. Ela havia acordado antes dele, por uma vez, e até tinha dado água aos cavalos. Quebraram o jejum em silêncio, até que Sandor disse:
- Aquela conversa de sua mãe...
- Não importa - disse Arya numa voz sem vida. - Eu sei que está morta. Vi-a num sonho.
Cão de Caça observou-a por um longo momento, e depois assentiu. Nada mais foi dito sobre o assunto. Continuaram a viagem na direção das montanhas.
Nas colinas mais elevadas, chegaram a uma minúscula aldeia isolada rodeada por árvores-sentinela de um cinza-esverdeado e grandes pinheiros marciais azuis, e Clegane decidiu arriscar entrar.
- Precisamos de comida - afirmou - e de um telhado sobre a cabeça. Não é provável que eles saibam o que aconteceu nas Gêmeas, e com um pouco de sorte não vão me reconhecer.
Os aldeões estavam construindo uma paliçada de madeira em volta de suas casas, e quando viram a largura dos ombros de Cão de Caça, ofereceram-lhes comida e abrigo, e até dinheiro em troca de trabalho.
- Se também houver vinho, aceito - rosnou-lhes ele. Por fim, acabou se contentando com cerveja, e todas as noites bebia até adormecer.
Mas o seu sonho de vender Arya à Senhora Arryn morreu ali nas colinas.
- Há geada acima de nós e neve nos passos de altitude - disse o ancião da aldeia. - Se não congelar ou passar fome, os gatos-das-sombras vão pegá-lo, ou então serão os ursos das cavernas. E também há os clãs. Os Homens Queimados andam destemidos desde que Timett Zarolho voltou da guerra. E há meio ano, Gunthor, filho de Gurn, desceu com os Corvos de Pedra até uma aldeia a menos de treze quilômetros daqui. Levaram todas as mulheres e todos os restos de cereais e mataram metade dos homens. Agora têm aço, espadas boas e camisas de cota de malha, e vigiam a estrada de altitude... os Corvos de Pedra, as Serpentes de Leite, os Filhos da Névoa, todos eles. Talvez possa levar alguns com você, mas no fim vão matá-lo e ir embora com a sua filha.
Não sou filha dele, podia ter gritado Arya, se não se sentisse tão cansada. Agora não era filha de ninguém. Não era ninguém. Nem Arya, nem a Doninha, nem Nan, nem Arry, nem a Pombinha, nem sequer Cabeça de Caroço. Era apenas uma garota qualquer que corria de dia com um cão e à noite sonhava com lobos.
A aldeia era sossegada. Tinham colchões de palha sem muitos piolhos, a comida era simples mas satisfazia e o ar cheirava a pinheiros. Mesmo assim, Arya depressa decidiu que a detestava. Os aldeões eram covardes. Nenhum deles sequer olhava para a cara do Cão de Caça, pelo menos não por muito tempo. Algumas das mulheres tentaram enfiá-la num vestido e obrigá-la a bordar, mas não eram a Senhora Smallwood, e Arya nem quis ouvir falar do assunto. E havia uma garota que decidiu segui-la, filha do ancião da aldeia. Tinha a idade de Arya, mas não passava de uma criança; chorava se esfolasse um joelho, e carregava uma estúpida boneca de trapos para todo lado. A boneca tinha sido feita para se assemelhar a um homem de armas, mais ou menos, e por isso a menina chamava-a de Sor Soldado e gabava-se de como ele a mantinha a salvo.
- Vá embora - disse-lhe Arya meia centena de vezes. - Deixe-me em paz. - Mas ela não deixava, e Arya acabou por lhe tirar a boneca, rasgá-la, enfiar um dedo na barriga e puxar os trapos que a enchiam. - Agora parece mesmo um soldado! - disse, antes de atirar a boneca em um riacho.
Depois daquilo a garota deixou de importuná-la, e Arya passou a gastar os dias tratando da Covarde e do Estranho ou passeando pela floresta. Por vezes achava um pedaço de madeira e praticava seus trabalhos de agulha, mas então recordava o que havia acontecido nas Gêmeas e batia com ele numa árvore até que se partisse.
- Talvez devêssemos ficar aqui por algum tempo - disse-lhe Cão de Caça depois de uma quinzena. Estava bêbado de cerveja, mas mostrava-se mais pensativo do que sonolento. - Nunca chegaremos ao Ninho da Águia, e os Frey ainda devem andar à caça de sobreviventes nas terras fluviais. Parece que por aqui precisam de quem saiba manejar uma espada, com os ataques desses clãs. Podíamos descansar e talvez achar uma maneira de fazer chegar uma carta à sua tia.
O rosto de Arya tornou-se sombrio ao ouvir aquilo. Não queria ficar, mas também não havia para onde ir. Na manhã seguinte, quando Cão de Caça saiu para abater árvores e carregar troncos, voltou a enfiar-se na cama.
Mas quando o trabalho terminou e a grande paliçada de madeira ficou pronta, o ancião da aldeia deixou claro que não havia lugar para eles.
- Quando chegar o inverno, vamos ter dificuldade em alimentar os nossos - explicou.
- E você... um homem como você traz sangue consigo.
A boca de Sandor comprimiu-se.
- Então sabe quem eu sou.
- Sim. Os viajantes não chegam aqui, é verdade, mas vamos ao mercado e a feiras. Sabemos do cão do Rei Joffrey.
- Quando esses Corvos de Pedra vierem visitá-los, podem ficar felizes por ter um cão.
- Pode ser que sim. - O homem hesitou, mas depois reuniu coragem. - Mas dizem que perdeu o estômago para a luta na Água Negra. Dizem...
- Eu sei o que eles dizem. - A voz de Sandor soava como duas serras roçando uma na outra. - Pague-me, e vamos embora.
Quando partiram, Cão de Caça tinha uma bolsa cheia de moedas de cobre, um odre de cerveja amarga e uma espada nova. Era uma espada muito velha, a bem da verdade, embora fosse nova para ele. Trocara-a pelo machado que tinha pego nas Gêmeas, aquele que usara para criar o galo na cabeça de Arya. A cerveja desapareceu em menos de um dia, mas Clegane amolava a espada todas as noites, amaldiçoando o homem de quem a obtivera por cada entalhe e mancha de ferrugem que encontrava. Se ele perdeu o estômago para a luta, por que é que se importa se a espada está afiada? Não era uma pergunta que Arya se atrevesse a fazer, mas pensava muito nela. Seria por isso que ele tinha fugido das Gêmeas e a levado consigo?
De volta às terras fluviais, descobriram que as chuvas tinham se atenuado e que as águas da cheia tinham começado a baixar. Cão de Caça dirigiu-se para o sul, de volta ao Tridente.
- Vamos para Correrrio - disse a Arya enquanto assavam uma lebre que tinha matado. - O Peixe Negro talvez queira comprar uma loba.
- Ele não me conhece. Nem sequer saberá se eu sou realmente eu. - Arya estava farta de se dirigir a Correrrio. Parecia que estava se dirigindo para Correrrio havia anos, sem nunca chegar lá. Sempre que se dirigia para Correrrio acabava num lugar pior qualquer.
- Ele não vai lhe dar nenhum resgate. Provavelmente só vai enforcá-lo.
- E livre para tentar. - E virou o espeto.
Ele não fala como alguém que tenha perdido o estômago para a luta.
- Eu sei para onde podemos ir - disse Arya. Ainda lhe restava um irmão. Jon vai me querer, mesmo que mais ninguém queira. Vai me chamar de "irmãzinha" e despentear meus cabelos. Mas era uma longa viagem, e não lhe parecia que conseguisse chegar lá sozinha. Nem sequer tinha sido capaz de chegar a Correrrio. - Podíamos ir para a Muralha.
A gargalhada de Sandor foi um meio rosnido.
- A pequena loba quer se juntar à Patrulha da Noite, é?
- Meu irmão está na Muralha - disse ela obstinadamente.
A boca dele torceu-se.
- A Muralha fica a mil léguas daqui. Precisaríamos lutar contra a merda dos Frey só para chegar ao Gargalo. Nesses pântanos há lagartos-leões que comem lobos todos os dias no café da manhã. E se conseguíssemos chegar ao norte com a pele intacta, há homens de ferro em metade dos castelos e milhares de malditos nortenhos também.
- Tem medo deles? - perguntou ela. - Perdeu o estômago para lutar?
Por um momento pensou que Cão de Caça ia bater nela. Mas a lebre já estava corada, com a pele crocante e gordura borbulhando quando pingava na fogueira. Sandor tirou-a do espeto, abriu-a ao meio com suas grandes mãos e atirou metade para o colo de Arya.
- Não há nada de errado com o meu estômago - disse enquanto arrancava uma pata -, mas estou cagando para você e para o seu irmão. Eu também tenho um irmão.
Tyrion - disse Sor Kevan Lannister num tom fatigado -, se é realmente inocente da morte de Joffrey, não devia ter nenhuma dificuldade em prová-lo em tribunal.
Tyrion deu as costas à janela.
- A quem cabe me julgar?
- A justiça pertence ao trono. O rei está morto, mas o seu pai continua a ser a Mão. Uma vez que o acusado é seu próprio filho e que a vítima foi o neto, ele pediu que Lorde Tyrell e o Príncipe Oberyn o acompanhassem no julgamento.
Tyrion se sentiu pouco encorajado. Mace Tyrell tinha sido sogro de Joff, embora brevemente, e o Víbora Vermelha era... bem, uma cobra.
- Serei autorizado a exigir julgamento por batalha?
- Não o aconselharia.
- Por que não? - o julgamento por batalha salvara-o no Vale, por que não o salvaria ali? - responda-me, tio. Será permitido que eu tenha um julgamento por batalha, e um campeão para provar a minha inocência?
- Certamente, se for esse o seu desejo. No entanto, é melhor que saiba que a sua irmã pretende nomear Sor Gregor Clegane como o campeão dela, no caso de um julgamento desses.
A vadia corta minhas jogadas antes de eu fazê-las. Pena que não tenha escolhido um Kettleblack. Bronn trataria facilmente de qualquer um dos três irmãos, mas a Montanha que Cavalga era outra história.
- Vou ter de dormir sobre o assunto. - Tenho de falar com Bronn, e depressa. Não queria pensar no que era provável que aquilo lhe custasse. Bronn dava valor em excesso à própria pele. - Cersei tem testemunhas contra mim?
- Mais a cada dia que passa.
- Então tenho de ter testemunhas minhas.
- Diga-me quem quer, e Sor Addam enviará a Patrulha para trazê-las ao julgamento.
- Preferia ser eu próprio a procurá-las.
- E acusado de regicídio e assassinato de um familiar. Será que realmente imagina que lhe será permitido ir e vir a seu bel-prazer? - Sor Kevan fez um gesto na direção da mesa. - Tem pena, tinta e pergaminho. Escreva o nome das testemunhas de que necessita, e eu farei tudo o que estiver ao meu alcance para apresentá-las, dou-lhe a minha palavra de Lannister. Mas não sairá desta torre, exceto para ser julgado.
Tyrion não se rebaixaria a suplicar.
- Vai autorizar o meu escudeiro a ir e vir? O garoto, Podrick Payne?
- Decerto, se for esse o seu desejo. Vou mandá-lo para cá.
- Faça isso. Mais cedo será melhor do que mais tarde, e agora será melhor do que mais cedo. - Bamboleou-se até a mesa. Mas quando ouviu a porta se abrindo, virou-se e disse: - Tio?
Sor Kevan fez uma pausa.
- Sim?
- Eu não fiz isso.
- Gostaria de poder acreditar, Tyrion.
Quando a porta se fechou, Tyrion Lannister içou-se para a cadeira, afiou uma pena e pegou um pergaminho em branco. Quem falará por mim? Molhou a pena no tinteiro.
A folha continuava virgem quando Podrick Payne apareceu, algum tempo mais tarde.
- Senhor - disse o rapaz.
Tyrion pousou a pena.
- Vá atrás de Bronn e traga-o aqui de imediato. Diga-lhe que vai haver ouro, mais ouro do que alguma vez sonhou, e trate de não voltar sem ele.
- Sim, senhor. Quero dizer, não. Não vou. Voltar. - E foi.
Não tinha ainda voltado ao pôr do sol, nem ao nascer da lua. Tyrion adormeceu no banco de janela e acordou tenso e dolorido à alvorada. Um criado trouxe mingau de aveia e maçãs para o desjejum, com um corno de cerveja. Comeu à mesa, com o pergaminho em branco na sua frente. Uma hora mais tarde, o criado voltou para levar a tigela.
- Viu o meu escudeiro? - perguntou-lhe Tyrion. O homem balançou a cabeça.
Suspirando, virou-se para a mesa e pôs de novo tinta na pena. Sansa, escreveu no pergaminho. Ficou fitando o nome, com os dentes cerrados com tanta força que doíam.
Assumindo que Joff não tivesse simplesmente morrido sufocado com uma colherada de comida, coisa que até Tyrion achava difícil de engolir, Sansa devia tê-lo envenenado. Joff praticamente pôs a taça no colo dela, e deu-lhe amplos motivos. Quaisquer dúvidas que Tyrion pudesse ter nutrido desapareceram quando a esposa também desapareceu. Uma carne, um coração, uma alma. Sua boca torceu-se. Sansa não perdeu tempo para mostrar o que esses votos significavam para ela, não? Bem, o que você esperava, anão?
E no entanto... onde teria a garota arranjado veneno? Não podia acreditar que tivesse agido sozinha. Será que quero mesmo encontrá-la? Iriam os juízes acreditar que a esposa-criança de Tyrion tinha envenenado um rei sem o conhecimento do marido? Eu não acreditaria. Cersei insistiria que eles tinham cometido o ato em conjunto.
Mesmo assim, deu o pergaminho ao tio no dia seguinte. Sor Kevan franziu a testa ao vê-lo.
- A Senhora Sansa é sua única testemunha?
- Pensarei em outras a seu tempo.
- É melhor que pense nelas já. Os juízes pretendem dar início ao julgamento dentro de três dias.
- Isso é cedo demais. Vocês me têm aqui fechado e guardado, como vou encontrar testemunhas da minha inocência?
- Sua irmã não teve nenhuma dificuldade em encontrar testemunhas da sua culpa. - Sor Kevan enrolou o pergaminho. - Sor Addam tem homens à procura da sua esposa.
Varys ofereceu cem veados por notícias sobre o paradeiro dela, e cem dragões pela própria garota. Se ela puder ser encontrada, será, eu vou trazê-la até você. Não vejo mal algum em marido e mulher partilharem a mesma cela e confortarem-se um ao outro.
- É muita bondade sua. Viu o meu escudeiro?
- Enviei-o aqui ontem. Ele não veio?
- Veio - admitiu Tyrion - e depois foi-se.
- Mandarei que venha até você novamente.
Mas demorou até a manhã seguinte para que Podrick Payne voltasse. Entrou hesitantemente no quarto, com o medo escrito no rosto. Bronn vinha atrás. O cavaleiro mercenário vestia um gibão tachonado de prata e um pesado manto de montar, com um par de luvas de couro bem trabalhadas enfiadas no cinto da espada.
Uma olhada no rosto de Bronn deu a Tyrion uma sensação de náusea no fundo do estômago.
- Levou bastante tempo.
- O rapaz suplicou, senão nem tinha vindo. Esperam-me no Castelo Stokeworth para o jantar.
- Stokeworth? - Tyrion saltou da cama. - E, diga-me, o que há para você em Stokeworth?
- Uma noiva. - Bronn sorriu como um lobo contemplando um cordeiro desgarrado. - Deverei casar com Lollys depois de amanhã.
- Lollys. - Perfeito, perfeito como um raio. A filha idiota da Senhora Tanda arranja um cavaleiro como marido, e uma espécie de pai para o bastardo que traz na barriga, e Sor Bronn da Água Negra sobe mais um degrau. Aquilo tinha os dedos fedorentos de Cersei por todo lado. - A cadela da minha irmã vendeu-lhe um cavalo estropiado. A garota é obtusa.
- Se eu quisesse esperteza, tinha-me casado com você.
- Lollys está esperando o filho de outro homem.
- E quando o botar pra fora, deixo-a esperando um meu.
- Ela nem sequer é herdeira de Stokeworth - ressaltou Tyrion. - Tem uma irmã mais velha. Falyse. Uma irmã casada.
- Casada há dez anos, e ainda estéril - disse Bronn. - O senhor seu esposo evita a sua cama. Dizem que prefere virgens.
- Podia preferir cabras, que não faria diferença. As terras passarão para a esposa do mesmo jeito quando a Senhora Tanda morrer.
- A menos que Falyse morra antes da mãe.
Tyrion perguntou a si mesmo se Cersei faria alguma ideia do tipo de serpente que tinha dado à Senhora Tanda para amamentar. E se soubesse, será que se importaria?
- Então por que está aqui?
Bronn encolheu os ombros.
- Uma vez disse-me que se alguém me pedisse para vendê-lo, duplicaria o preço. Sim.
- O que quer é duas esposas, ou dois castelos?
- Um de cada deve servir. Mas se quiser que mate Sandor Clegane por você, é melhor que seja um castelo absurdamente grande.
Os Sete Reinos estavam cheios de donzelas bem-nascidas, mas até a mais velha, mais pobre e mais feia solteirona do reino recusaria casar-se com escória malnascida como Bronn. A menos que seja fraca de corpo e fraca de espírito, com um filho sem pai na barriga, gerado por ter sido violada meia centena de vezes. A Senhora Tanda andara tão desesperada por achar um marido para Lollys que até perseguira Tyrion durante algum tempo, e isso tinha sido antes de metade de Porto Real desfrutar dela. Sem dúvida Cersei havia adoçado um pouco a oferta, e Bronn agora era um cavaleiro, o que fazia dele um partido adequado para uma filha mais nova de uma casa menor.
- Encontro-me com uma calamitosa escassez tanto de castelos como de donzelas de nascimento elevado, no momento - admitiu Tyrion. - Mas posso oferecer ouro e gratidão, tal como antes.
- Ouro, já tenho. O que é que posso comprar com gratidão?
- Talvez se surpreenda. Um Lannister paga as suas dívidas.
- A sua irmã também é uma Lannister.
- A senhora minha esposa é herdeira de Winterfell. Se eu sair disso com a cabeça ainda sobre os ombros, posso vir um dia a governar o Norte em nome dela. Arranjaria um grande pedaço para você.
- Se e quando e pode ser - disse Bronn. - E lá em cima faz um frio dos Outros. A Lollys é suave, quente e está perto. Posso estar metendo nela daqui a duas noites.
- Não é uma perspectiva que me deliciasse.
- Ah não? - Bronn deu um sorriso. - Admita, Duende. Se o fizessem escolher entre foder a Lollys e lutar com a Montanha, você abaixaria os calções e poria o pau pra fora antes de eu conseguir piscar.
Ele conhece-me bem demais. Tyrion tentou outra estratégia.
- Ouvi dizer que Sor Gregor foi ferido no Ramo Vermelho, e de novo em Valdocaso. Os ferimentos certamente irão torná-lo mais lento.
Bronn pareceu aborrecido.
- Ele nunca foi rápido. Só brutalmente grande e brutalmente forte. Admito que é mais rápido do que seria de esperar para um homem daquele tamanho. Tem um alcance monstruosamente longo e parece que não sente os golpes como um homem normal sentiria.
- Ele assusta-o tanto assim? - perguntou Tyrion, esperando provocá-lo.
- Se não me assustasse, eu seria um perfeito idiota. - Bronn encolheu os ombros. - Pode ser que conseguisse derrotá-lo. Dançar em volta dele até ele ficar tão cansado de tentar me atingir que já não conseguisse erguer a espada. Arranjar alguma maneira de desequilibrá-lo. Quando estão caídos de costas, não importa a altura que têm. Mesmo assim, é um risco. Um tropeção, e estou morto. Por que haveria de arriscar? Gosto bastante de você, por mais feio e pequeno filho da puta que seja... mas se travar a sua batalha, perco seja qual for o resultado. Ou a Montanha arranca minhas tripas, ou o mato e perco Stokeworth. Eu vendo a minha espada, não a dou. Não sou seu irmão.
- Não - disse tristemente Tyrion. - Não é. - Fez um gesto com uma mão. - Então vá embora. Corra para Stokeworth e para a Senhora Lollys. Que encontre mais alegrias na sua cama de homem casado do que eu encontrei na minha.
Bronn hesitou à porta.
- O que vai fazer, Duende?
- Matar Gregor pessoalmente. Não se faria uma alegre canção com isso?
- Espero ouvir cantá-la. - Bronn sorriu uma última vez e saiu do castelo e da sua vida.
Pod arrastou os pés.
- Lamento.
- Por quê? É culpa sua que Bronn seja um patife insolente de coração negro? Ele sempre foi um patife insolente de coração negro. Era isso que me agradava nele. - Tyrion serviu-se de uma taça de vinho e levou-a para o banco de janela. Lá fora o dia estava cinzento e chuvoso, mesmo assim ainda oferecia melhores perspectivas do que as suas. Supunha que podia enviar Podrick Payne em busca de Shagga, mas havia tantos esconderijos nas profundezas da mata do rei que era freqüente os fora da lei levarem décadas até serem capturados. E às vezes Pod tinha dificuldade em encontrar as cozinhas quando o mandava lá embaixo buscar queijo. Timett, filho de Timett estava provavelmente de volta às Montanhas da Lua a essa altura. E apesar do que tinha dito a Bronn, enfrentar Sor Gregor Clegane em pessoa seria uma farsa ainda maior do que os anões lutadores de Joffrey. Não pretendia morrer com rajadas de gargalhadas ressoando aos seus ouvidos. E lá se foi o julgamento por combate.
Sor Kevan fez-lhe outra visita mais tarde nesse dia, e mais uma no dia seguinte. O tio informou-o polidamente de que Sansa não havia sido encontrada. E nem o bobo Sor Dontos, que tinha desaparecido na mesma noite. Desejaria Tyrion convocar mais testemunhas? Não desejava, Como vou provar que não envenenei o vinho, quando mil pessoas me viram encher a taça de Joff?
Não pregou o olho naquela noite.
Em vez de dormir ficou deitado no escuro, fitando o dossel e contando os seus fantasmas. Viu Tysha sorrindo enquanto o beijava, viu Sansa nua e tremendo de medo. Viu Joffrey arranhando a garganta, com o sangue escorrendo pelo pescoço enquanto o rosto enegrecia. Viu os olhos de Cersei, o sorriso lupino de Bronn, o sorriso malvado de Shae. Nem mesmo pensar em Shae conseguiu animá-lo. Acariciou-se, pensando que se acordasse o pau e o satisfizesse, talvez depois conseguisse descansar mais facilmente, mas de nada serviu.
E então chegou a alvorada, e a hora de seu julgamento começar.
Não foi Sor Kevan que veio buscá-lo naquela manhã, mas Sor Addam Marbrand com uma dúzia de homens de manto dourado. Tyrion tinha quebrado o jejum com ovos cozidos, bacon queimado e pão frito, e vestiu a sua melhor roupa.
- Sor Addam - disse. - Achei que meu pai enviaria a Guarda Real para me escoltar até o julgamento. Ainda sou um membro da família real, não sou?
- É, senhor, mas temo que a maior parte da Guarda Real seja testemunha contra o senhor. Lorde Tywin considerou que não seria próprio servirem como seus guardas.
- Os deuses não permitam que façamos algo de impróprio, Por favor, vá à frente.
O julgamento teria lugar na sala do trono, onde Joffrey tinha morrido. Quando Sor Addam o escoltou através das altas portas de bronze e pelo longo tapete, sentiu os olhos postos nele. Centenas de pessoas tinham se aglomerado dentro da sala para vê-lo julgado. Pelo menos esperava que tivesse sido por isso que tinham vindo. Pelo que sei, são todos testemunhas contra mim. Viu a Rainha Margaery na galeria, pálida e bela no seu luto. Duas vezes casada, duas vezes viúva, e só dezesseis anos. A mãe estava em pé, alta, de um dos lados, e a avó, baixa, do outro, com as damas de companhia e os cavaleiros do pai amontoados no resto da galeria.
O estrado ainda se encontrava por baixo do Trono de Ferro vazio, embora todas as mesas menos uma tivessem sido removidas. Atrás dela sentava-se o robusto Lorde Mace Tyrell com uma capa dourada sobre trajes verdes e o esguio Príncipe Oberyn Martell, trazendo leves vestes com riscas laranja, amarelas e escarlate. Lorde Tywin Lannister sentava-se entre os dois. Talvez ainda haja esperança para mim. O dornês e o jardineiro desprezavam-se mutuamente. Se conseguir arranjar maneira de usar isso...
O Alto Septão começou com uma prece, pedindo ao Pai no Céu que os guiasse à justiça. Quando terminou, o pai na terra inclinou-se para a frente para dizer:
- Tyrion, matou o Rei Joffrey?
Não quer perder um segundo.
- Não.
- Bem, isso é um alívio - disse secamente Oberyn Martell.
- Então foi Sansa Stark que fez isso? - quis saber Lorde Tyrell.
Eu teria feito, se fosse ela. Mas estivesse Sansa onde estivesse e fosse qual fosse o papel que tinha desempenhado naquilo, continuava a ser sua esposa. Envolvera seus ombros no manto de sua proteção, muito embora tivesse sido obrigado a empoleirar-se nas costas de um bobo para fazer isso.
- Os deuses mataram Joffrey. Ele sufocou com a sua torta de pombo.
Lorde Tyrell enrubesceu.
- Quer culpar os padeiros?
- A eles ou aos pombos. Só quero que me deixe fora disso. - Tyrion ouviu risos nervosos e compreendeu que tinha cometido um erro. Tento na língua, meu tolinho, antes que cave sua sepultura.
- Há testemunhas contra você - disse Lorde Tywin. - Vamos ouvi-las primeiro. Então, poderá apresentar as suas testemunhas. Só pode falar com a nossa licença.
Nada havia que Tyrion pudesse fazer além de assentir com a cabeça.
Sor Addam tinha falado a verdade; o primeiro homem a ser introduzido na sala foi Sor Balon Swann, da Guarda Real.
- Senhor Mão - começou, depois do Alto Septão ter aceitado o seu juramento de dizer apenas a verdade -, tive a honra de lutar ao lado de seu filho na ponte de navios. Ele é um homem corajoso, apesar do tamanho, e não quero acreditar que tenha cometido este ato.
Um murmúrio percorreu a sala, e Tyrion perguntou a si mesmo que jogo louco estaria Cersei jogando. Por que convocar uma testemunha que me julga inocente? Em breve ficou sabendo. Sor Balon falou relutantemente de como tinha separado Tyrion de Joffrey no dia do tumulto.
- Ele bateu em Sua Graça, é verdade. Foi um ataque de fúria, nada mais. Uma tempestade de verão. A multidão quase nos matou a todos.
- Nos dias dos Targaryen, um homem que batesse em alguém de sangue real perderia a mão que usasse no ato - observou a Víbora Vermelha de Dorne. - Cresceu uma mãozinha nova ao anão, ou vocês, Espadas Brancas, esqueceram o seu dever?
- Ele mesmo é de sangue real - respondeu Sor Balon, - E além disso, era Mão do Rei.
- Não - disse Lorde Twyn. - Ele era Mão do Rei interino, no meu lugar.
Sor Meryn Trant expandiu alegremente o relato de Sor Balon, quando ocupou o seu lugar como testemunha,
- Ele atirou o rei no chão e começou a chutá-lo. Gritou que era injusto que Sua Graça tivesse escapado incólume à multidão,
Tyrion começou a compreender o plano da irmã. Ela começou com um homem sabidamente honesto, e ordenhou dele tudo o que podia dar. Cada testemunha que seguir contará uma história pior, até que tu pareça tão mau quanto Maegor, o Cruel, e Aerys, o Louco, combinados, com uma pitada de Aegon, o Indigno, para dar sabor.
Sor Meryn prosseguiu, relatando o modo como Tyrion tinha interrompido o castigo de Joffrey a Sansa Stark.
- O anão perguntou a Sua Graça se ele sabia o que acontecera a Aerys Targaryen. Quando Sor Boros interveio em defesa do rei, o Duende ameaçou mandar matá-lo.
O próprio Blount veio em seguida, para fazer eco a essa lamentável história. Apesar de qualquer antipatia que Sor Boros pudesse nutrir por Cersei por tê-lo demitido da Guarda Real, mesmo assim disse as palavras que ela desejava.
Tyrion não conseguiu dominar mais a língua.
- Por que não diz aos juizes o que Joffrey estava fazendo?
O grande homem queixudo atravessou-o com os olhos.
- Você disse aos seus selvagens para me matar se eu abrisse a boca, é isso o que vou lhes dizer.
- Tyrion - disse Lorde Tywin. - Pode falar apenas quando solicitarmos. Que isso sirva de aviso.
Tyrion calou-se, fervendo.
Os Kettleblack vieram a seguir, todos os três, um de cada vez. Osney e Osfryd contaram a história de seu jantar com Cersei antes da Batalha da Água Negra e relataram as ameaças que tinha feito.
- Ele disse a Sua Graça que lhe queria fazer mal - disse Sor Osfryd, - Machucá-la.
O irmão Osney detalhou.
- Ele disse que esperaria por um dia em que ela estivesse feliz, e faria com que a alegria se transformasse em cinzas em sua boca. - Nenhum dos dois mencionou Alayaya.
Sor Osmund Kettleblack, um retrato da cavalaria com uma imaculada armadura de escamas e manto branco de lã, jurou que o Rei Joffrey havia muito sabia que o tio Tyrion pretendia assassiná-lo.
- Foi no dia em que me deram o manto branco, senhores - disse aos juizes. - O bravo rapaz disse-me: "Meu bom Sor Osmund, proteja-me bem, pois o meu tio não gosta de mim. Ele quer ser rei no meu lugar".
Aquilo era mais do que Tyrion conseguia agüentar.
- Mentiroso! - deu dois passos adiante antes que homens de manto dourado o arrastassem para trás.
Lorde Tywin franziu a testa.
- Terei de mandar acorrentar suas mãos e pés como faria a um salteador comum?
Tyrion rangeu os dentes, Um segundo erro, estúpido, estúpido, anão estúpido. Mantenha-se calmo, senão está perdido.
- Não, Peço-lhes perdão, senhores. As mentiras dele enfureceram-me.
- As verdades dele, você quer dizer - disse Cersei. - Pai, peço que o ponha a ferros, para a sua proteção. Você vê como ele é.
- Eu vejo que é um anão - disse o Príncipe Oberyn. - O dia em que temer a fúria de um anão será o dia em que me afogarei numa barrica de tinto.
- Não precisamos de algemas. - Lorde Tywin olhou de relance as janelas e levantou-se. - A hora já está bem adiantada. Continuaremos de manhã.
Naquela noite, sozinho em sua cela de torre com um pergaminho em branco e uma taça de vinho, Tyrion deu por si a pensar na esposa. Não em Sansa, na sua primeira esposa, Tysha. A esposa puta, não a esposa loba. O amor dela por Tyrion tinha sido fingimento, e no entanto ele acreditara e encontrara alegria nessa crença. Dê-me doces mentiras, e fique com as suas amargas verdades. Bebeu o vinho e pensou em Shae. Mais tarde, quando Sor Kevan lhe fez a visita da noite, Tyrion perguntou por Varys.
- Acredita que o eunuco irá falar em sua defesa?
- Não saberei até ter falado com ele. Mande-o aqui, tio, por gentileza.
- Como quiser.
Os meistres Ballabar e Frenken iniciaram o segundo dia do julgamento. Tinham aberto o nobre cadáver do Rei Joffrey, juraram, e não encontraram nenhum pedaço de torta de pombo nem qualquer outro alimento alojado na real garganta.
- Foi veneno o que o matou, senhores - disse Ballabar, enquanto Frenken assentia com gravidade.
Então apresentaram o Grande Meistre Pycelle, apoiando-se pesadamente numa bengala retorcida e tremendo ao caminhar, com um punhado de pelos brancos saindo de seu longo pescoço de galináceo. Estava frágil demais para permanecer em pé, e os juizes permitiram que fosse trazida uma cadeira para ele se sentar, e também uma mesa. Na mesa foram colocados alguns pequenos frascos. Pycelle etiquetou alegremente cada um deles com um nome.
- Grisalheira - disse, em voz trêmula - obtida do cogumelo. Beladona, sono-doce, dança do demo. Isto é olho-cego. Esta chama-se sangue de viúva, devido à cor. Uma poção cruel. Faz com que a bexiga e os intestinos deixem de funcionar, até que a vítima se afogue em seus próprios venenos. Isto é acônito, isto, veneno de basilisco, e isto são lágrimas de Lys. Sim. Conheço-as todas. O Duende Tyrion Lannister roubou-as de meus aposentos, quando mandou me aprisionar sob falsas acusações.
- Pycelle - gritou Tyrion, arriscando-se à ira do pai algum desses venenos pode sufocar um homem?
- Não. Para isso é preciso se virar para um veneno mais raro. Quando era rapaz, na Cidadela, meus professores chamavam-no simplesmente de o estrangulados
- Mas esse veneno raro não foi encontrado, não?
- Não, senhor. - Pycelle piscou os olhos em sua direção. - Usou-o todo para matar a criança mais nobre que os deuses puseram nesta boa terra.
A ira de Tyrion sobrepôs-se ao seu bom-senso.
- Joffrey era cruel e estúpido, mas não o matei. Podem cortar minha cabeça se quiserem, mas não participei na morte de meu sobrinho.
- Silêncio! - disse Lorde Tywin. - Já o avisei três vezes. Da próxima, será amordaçado e acorrentado.
Depois de Pycelle veio a procissão, sem fim e cansativa. Senhores, senhoras e nobres cavaleiros, tanto bem-nascidos como humildes, todos tinham estado presentes no banquete nupcial, todos tinham visto Joffrey sufocar, o seu rosto se tornando tão negro quanto uma ameixa de Dorne. Lorde Redwyne, Lorde Celtigar e Sor Flement Brax tinham ouvido Tyrion ameaçar o rei; dois criados, um malabarista, Lorde Gyles, Sor Hobber Redwyne e Sor Philip Foote tinham-no visto encher o cálice nupcial; a Senhora Merryweather jurou que tinha visto o anão deixar cair qualquer coisa no vinho do rei enquanto JofF e Margaery cortavam a torta; o velho Estermont, o jovem Peckledon, o cantor Galyeon de Cuy, e os escudeiros Morros e Jothos Slynt relataram como Tyrion tinha pegado o cálice enquanto JofF estava morrendo e despejado o resto de vinho envenenado no chão.
Quando foi que eu fiz tantos inimigos? A Senhora Merryweather era praticamente uma estranha, Tyrion perguntou a si mesmo se seria cega ou se teria sido comprada. Pelo menos Galyeon de Cuy não pôs o seu relato em música, senão talvez tivesse setenta e sete versos.
Quando o tio o visitou naquela noite após o jantar, sua atitude era fria e distante. Ele também pensa que fui eu.
- Tem testemunhas para nós? - perguntou-lhe Sor Kevan.
- Não propriamente, não. A menos que tenha encontrado a minha esposa.
O tio sacudiu a cabeça.
- Aparentemente o julgamento está correndo muito mal para você.
- Ah, acha que sim? Não tinha reparado. - Tyrion passou os dedos pela cicatriz. - Varys não veio.
- Nem virá. De manhã testemunha contra você.
Encantador.
- Estou vendo. - Mexeu-se na cadeira. - Estou curioso. Sempre foi um homem justo, tio. O que o convenceu?
- Para que roubar os venenos de Pycelle, se não para usá-los? - disse Sor Kevan sem rodeios.
- E a Senhora Merryweather viu...
- ... nada. Nada havia para ver. Mas como é que eu o provo? Como provo seja o que for, trancado aqui em cima?
- Talvez seja hora de confessar.
Mesmo através das espessas paredes de pedra da Fortaleza Vermelha, Tyrion ouvia o cair contínuo da chuva.
- Perdão, tio? Eu seria capaz de jurar que me instou a confessar.
- Se admitisse a sua culpa perante o trono e se arrependesse de seu crime, o seu pai deteria a espada. Seria permitido que você vestisse o negro.
Tyrion riu na cara dele.
- Esses foram os mesmos termos que Cersei ofereceu a Eddard Stark. Todos sabemos como isso acabou.
- Seu pai não participou desse assunto.
Aquilo, ao menos, era verdade.
- Castelo Negro está cheio de assassinos, ladrões e estupradores - disse Tyrion -, mas não me lembro de conhecer regicidas quando estive lá. Espera que acredite que se admitir ser um regicida e assassino de um familiar, meu pai irá simplesmente sacudir a cabeça, perdoar-me e enviar-me para a Muralha com ceroulas quentes de lã? - soltou uma rude exclamação de menosprezo.
- Nada foi dito sobre perdões - disse severamente Sor Kevan. - Uma confissão poria um fim nesse assunto, É por esse motivo que o seu pai me envia com essa proposta.
- Agradeça-lhe gentilmente por mim, tio - disse Tyrion -, mas diga-lhe que atualmente não me encontro com disposição de confessar.
- Se eu fosse você, mudaria a disposição. Sua irmã quer a sua cabeça, e pelo menos Lorde Tyrell está inclinado a dá-la a ela.
- Então um dos meus juizes já me condenou, sem ouvir uma palavra em minha defesa? - não era mais do que aquilo que esperava. - Ainda serei autorizado a falar e apresentar testemunhas?
- Você não tem testemunhas - recordou-lhe o tio, - Tyrion, se for culpado dessa enormidade, a Muralha é um destino mais benevolente do que merece. E se não tiver culpa,.. há luta no Norte, eu sei, mesmo assim será um lugar mais seguro para você do que Porto Real, seja qual for o resultado deste julgamento. O povo está convencido de sua culpa. Se fosse insensato ao ponto de se aventurar nas ruas, despedaçariam você membro por membro.
- Vejo o quanto essa perspectiva o perturba.
- É filho de meu irmão.
- Podia lembrá-lo disso.
- Acha que ele permitiria que você vestisse o negro se não fosse do seu sangue e de Joanna? Tywin parece-lhe um homem duro, bem sei, mas não é mais duro do que tem de ser. Nosso pai era gentil e amigável, mas tão fraco que os vassalos caçoavam dele quando estavam de porre. Alguns acharam por bem desafiá-lo abertamente. Outros senhores pediam-nos ouro emprestado e nunca se incomodavam em pagá-lo, Na corte, faziam piadas a respeito de leões sem dentes, Até a amante o roubou. Uma mulher que mal estava um passo acima de rameira, e meteu no bolso as jóias de minha mãe! Coube a Tywin devolver a Casa Lannister ao lugar que lhe é próprio. Tal como coube a ele governar este reino, quando não tinha mais de vinte anos. Suportou esse pesado fardo durante vinte anos e tudo que lucrou com isso foi a inveja de um rei louco. Em vez das honrarias que merecia, foi obrigado a suportar um sem-fim de afrontas, e no entanto deu aos Sete Reinos paz, abundância e justiça. É um homem justo. Faria bem em confiar nele.
Tyrion pestanejou, espantado. Sor Kevan sempre havia sido sólido, imperturbável, pragmático; nunca antes o ouvira falar com tal fervor.
- Você o ama.
- É meu irmão.
- Eu... eu pensarei no que disse.
- Então pense cuidadosamente. E rapidamente.
Naquela noite, pensou em poucas outras coisas, mas ao chegar a manhã não estava mais perto de decidir se podia confiar no pai. Um criado trouxe-lhe mingau de aveia e mel para quebrar o jejum, mas o único sabor que sentiu foi o da bílis ao pensar na confissão. Vão me chamar de assassino de familiares até o fim dos meus dias. Durante mil anos ou mais, se eu for lembrado, será como o monstruoso anão que envenenou o jovem sobrinho em seu banquete de casamento. Aquela idéia deixou-o tão furioso que atirou a tigela e a colher na parede oposta, deixando nela uma mancha de mingau, Sor Addam Marbrand olhou-a com curiosidade quando veio escoltar Tyrion até o julgamento, mas teve a boa educação de não fazer perguntas.
- Lorde Varys - disse o arauto -, mestre dos segredos.
Empoada, enfeitada e cheirando a água de rosas, a Aranha levou todo o tempo que falou esfregando as mãos uma na outra. Lavando a minha vida, pensou Tyrion, enquanto escutava o fúnebre relato do eunuco sobre como o Duende maquinara afastar Joffrey da proteção de Cão de Caça e conversara com Bronn a respeito dos benefícios de ter Tommen como rei. Meias-verdades são mais valiosas do que completas mentiras. E, ao contrário dos outros, Varys tinha documentos; pergaminhos meticulosamente cheios de notas, detalhes, datas, conversas inteiras. Tanto material que a sua récita durou o dia inteiro, e muito dele era condenatório. Varys confirmou a visita noturna aos aposentos do Grande Meistre Pycelle e o roubo de seus venenos e poções, confirmou a ameaça que tinha feito a Cersei na noite em que jantaram juntos, confirmou tudo e mais alguma coisa, menos o envenenamento propriamente dito. Quando o Príncipe Oberyn lhe perguntou como era possível que soubesse tudo aquilo sem ter estado presente em nenhum daqueles acontecimentos, o eunuco limitou-se a soltar uma risadinha e disse:
- Os meus passarinhos contaram-me. Saber é a função deles, e a minha.
Como é que eu questiono um passarinho? pensou Tyrion. Devia ter mandado cortar a cabeça do eunuco no primeiro dia que passei em Porto Real Maldito seja. E maldito seja eu por toda a confiança que depositei nele.
- Já ouvimos tudo? - perguntou Lorde Tywin à filha enquanto Varys saía da sala.
- Quase - disse Cersei. - Peço licença para trazer até vocês uma última testemunha, amanhã.
- Como quiser - disse Lorde Tywin.
Oh, ótimo, pensou Tyrion, furioso. Depois desta farsa de julgamento, a execução será quase um alívio.
Naquela noite, enquanto bebia junto à janela, ouviu vozes do lado de fora da porta. Sor Kevan veio atrás de minha resposta, pensou de imediato, mas não foi o tio quem entrou.
Tyrion ergueu-se para fazer uma reverência trocista ao Príncipe Oberyn.
- E permitido aos juizes visitar os acusados?
- É permitido aos príncipes ir aonde bem entenderem. Ou pelo menos foi isso que eu disse aos seus guardas. - O Víbora Vermelha sentou-se.
- Meu pai ficará descontente com o senhor.
- A felicidade de Lorde Tywin nunca esteve numa posição elevada em minha lista de interesses. É vinho de Dorne que está bebendo?
- Da Árvore.
Oberyn fez uma careta.
- Água vermelha. Envenenou o garoto?
- Não. E você?
O príncipe sorriu.
- Terão todos os anões línguas como a sua? Alguém acabará por cortá-la um dias desses.
- Não é o primeiro a me dizer isso. Talvez devesse cortá-la eu, parece arranjar um sem-fim de problemas.
- Tenho reparado. Acho que posso beber um pouco do suco de uva do Lorde Redwyne afinal.
- Como quiser. - Tyrion serviu-lhe uma taça.
O homem sorveu um gole, bochechou e engoliu.
- Servirá por enquanto. Mandarei um pouco do vinho forte de Dorne para você de manhã. - Bebeu mais um trago. - Descobri aquela puta de cabelos dourados que esperava encontrar.
- Então encontrou a casa de Chataya?
- Na Chataya deitei-me com a garota de pele preta, Creio que se chama Alayaya. Requintada, apesar das riscas que tem nas costas, Mas a puta a quem me referia é a sua irmã.
- Já o seduziu? - perguntou Tyrion, sem surpresa.
Oberyn riu alto.
- Não, mas seduzirá se eu pagar o seu preço. A rainha até insinuou um casamento. Sua Graça precisa de outro marido, e quem melhor do que um príncipe de Dome? Eliaria acha que eu devia aceitar. Basta a idéia de ter Cersei em nossa cama para deixar aquela gata lúbrica molhada, E nem vamos ter de pagar a moeda do anão, Tudo o que a sua irmã quer de mim é uma cabeça, um tanto grande demais e com um nariz a menos.
- E? - disse Tyrion, esperando.
Em jeito de resposta, o Príncipe Oberyn rodopiou o vinho, e disse:
- Quando o Jovem Dragão conquistou Dorne, há tanto tempo, deixou o Senhor de Jardim de Cima governando-nos após a Submissão de Lançassolar. Esse Tyrell foi se mudando de fortaleza em fortaleza, com a sua comitiva, perseguindo rebeldes e assegurando-se de que os nossos joelhos permaneciam dobrados. Chegava com força, tomava um castelo como seu, ficava lá uma volta de lua, e partia para o castelo seguinte. Era seu costume expulsar os senhores de seus aposentos e ficar com suas camas para si. Uma noite viu-se debaixo de um pesado dossel de veludo. Havia um cordão pendurado perto das almofadas, para o caso de desejar chamar uma moça. Tinha gosto por mulheres de Dorne, esse Lorde Tyrell, e quem pode censurá-lo? Portanto, puxou o cordão, e quando fez isso, o dossel rasgou-se e uma centena de escorpiões vermelhos caiu sobre a sua cabeça. Sua morte acendeu um incêndio que em pouco tempo varreria Dorne, anulando todas as vitórias do Jovem Dragão numa quinzena. Os homens ajoelhados puseram-se em pé, e nós voltamos a ser livres.
- Conheço essa história - disse Tyrion, - E daí?
- Só isso. Se alguma vez encontrar um cordão ao lado de minha cama e puxá-lo, prefiro que caiam escorpiões sobre a minha cabeça do que a rainha em toda a sua beleza nua.
Tyrion deu um sorriso.
- Então temos isso em comum.
- Decerto que tenho muito a agradecer à sua irmã, Se não fosse a acusação dela no banquete, podia perfeitamente ser você a me julgar em vez de ser eu a julgá-lo. - Os olhos do príncipe escureceram com divertimento. - Quem sabe mais sobre veneno do que a Víbora Vermelha de Dorne, afinal? Quem tem melhores motivos para querer manter os Tyrell longe da coroa? E com Joffrey em sua tumba, pela lei de Dorne o Trono de Ferro deveria passar para a irmã Myrcella, que por sinal está prometida ao meu sobrinho, graças a você.
- A lei de Dorne não se aplica. - Tyrion estivera tão enredado em seus próprios problemas que nem tinha parado para pensar na sucessão. - Meu pai coroará Tommen, conte com isso.
- Ele realmente pode coroar Tommen aqui em Porto Real, O que não é o mesmo que dizer que o meu irmão não pode coroar Myrcella, lá embaixo em Lançassolar. Irá o seu pai fazer a guerra contra a sua sobrinha em nome de seu sobrinho? E a sua irmã, fará isso? - encolheu os ombros, - Talvez devesse me casar com a Rainha
Cersei, afinal de contas, com a condição de ela apoiar a filha contra o filho. Acha que ela o faria?
Nunca, Tyrion quis dizer, mas a palavra ficou atravessada na garganta. Cersei sempre se ressentira de ser excluída do poder devido ao sexo. Se a lei de Dorne fosse aplicada no ocidente, ela seria herdeira de Rochedo Casterly. Ela e Jaime eram gêmeos, mas Cersei tinha chegado primeiro ao mundo, e isso era o suficiente. Defendendo a causa de Myrcella, estaria defendendo a sua.
- Não sei como a minha irmã escolheria entre Myrcella e Tommen - admitiu. - Não importa. Meu pai nunca lhe dará essa escolha.
- Seu pai - disse o Príncipe Oberyn - pode não viver para sempre.
Algo no modo como Oberyn disse aquilo arrepiou os pelos na nuca de Tyrion. De repente retomou consciência de Elia, e de tudo que Oberyn tinha dito enquanto atravessavam o campo de cinzas. Ele quer a cabeça que deu as ordens, não só a mão que brandiu a espada.
- Não é sensato proferir tais traições na Fortaleza Vermelha, meu príncipe. Os passarinhos estão à escuta.
- Que escutem. Será traição dizer que um homem é mortal? Vaiar morgbulis era como se dizia na Valíria de outrora. Todos os homens têm de morrer. E a Perdição veio provar que era verdade.
- O dornês dirigiu-se à janela e fitou a noite. - Dizem que não tem testemunhas para nos apresentar.
- Estava com esperança de que uma olhada nesta minha linda cara fosse suficiente para persuadir a todos de minha inocência.
- Está enganado, senhor. A Flor Gorda de Jardim de Cima está bem convencida da sua culpa, e determinada a vê-lo morrer. Sua preciosa Margaery também estava bebendo daquele cálice, como ele nos fez lembrar meia centena de vezes.
- E você?
- Os homens raramente são o que aparentam. Você parece tão culpado que estou convencido de sua inocência. Apesar disso, é provável que seja condenado. A justiça é um bem escasso deste lado das montanhas. Não houve nenhuma para Elia, Aegon ou Jhaenys. Por que haveria alguma para você? Talvez o verdadeiro assassino de Joffrey tenha sido comido por um urso. Isso parece acontecer com bastante freqüência em Porto Real. Ah, espere, o urso estava em Harrenhal, agora me lembro.
- É esse o jogo que está jogando? - Tyrion esfregou o que lhe restava de nariz. Nada tinha a perder por dizer a Oberyn a verdade. - Havia um urso em Harrenhal, e matou Sor Amory Lorch.
- Que triste para ele - disse o Víbora Vermelha. - E para você. Pergunto a mim mesmo se todos os homens sem nariz mentem assim tão mal.
- Não estou mentindo. Sor Amory arrastou a Princesa Rhaenys de debaixo da cama do pai e apunhalou-a até a morte. Tinha consigo alguns homens de armas, mas não conheço seus nomes.
- Inclinou-se para a frente. - Foi Sor Gregor Clegane quem esmagou a cabeça do Príncipe Aegon contra uma parede e estuprou a sua irmã Elia ainda com o sangue e os miolos dele nas mãos.
- O que é isso agora? A verdade vinda de um Lannister? - Oberyn deu um sorriso frio. - Seu pai deu as ordens, certo?
- Não. - Proferiu a mentira sem hesitação, e nem parou para perguntar a si mesmo por que deveria fazê-lo.
O dornês ergueu uma sobrancelha fina e negra.
- Um filho tão zeloso. E uma mentira tão fraca. Foi Lorde Tywin quem apresentou os filhos de minha irmã ao Rei Robert, enrolados nas capas carmesim dos Lannister.
- Talvez devesse ter esta discussão com o meu pai. Ele estava lá. Eu estava no Rochedo, e ainda era tão novo que pensava que a coisa que tenho entre as pernas só servia para mijar.
- Sim, mas agora está aqui, e em certas dificuldades, eu diria. Sua inocência pode ser tão evidente quanto a cicatriz que tem no rosto, mas não o salvará. Tal como o seu pai não o salvará. - O príncipe dornês sorriu. - Mas eu talvez o faça.
- Você? - Tyrion estudou-o. - É um juiz em três. Como poderá me salvar?
- Como seu juiz, não. Como seu campeão.
Um livro branco repousava sobre uma mesa branca numa sala branca. A sala era redonda, com paredes de pedra caiada cobertas de tapeçarias de lã branca. Constituía o primeiro andar da Torre da Espada Branca, uma esguia estrutura de quatro andares construída num ângulo da muralha do castelo com vista sobre a baía. A galeria subterrânea guardava armas e armaduras, e o segundo e terceiro andares, as pequenas celas individuais simples para os seis irmãos da Guarda Real.
Uma dessas celas tinha sido sua durante dezoito anos, mas naquela manhã mudara as suas posses para o andar superior, inteiramente dedicado aos aposentos do Senhor Comandante. Essas salas também eram simples, apesar de espaçosas; e ficavam acima da muralha exterior, o que significava que teria uma vista sobre o mar. Gostarei disso, pensou, Da vista, e de todo o resto.
Tão pálido quanto a sala, Jaime sentou-se diante do livro com as vestes brancas da Guarda Real, à espera de seus Irmãos Juramentados. Uma espada longa pendia de sua anca. Da anca errada. Antes, sempre tinha usado a espada junto à esquerda, puxando-a com a mão oposta quando a desembainhava. Mudou-a para a anca direita naquela manhã, para conseguir puxá-la da mesma maneira com a mão esquerda, mas estranhava o peso daquele lado, e quando tinha tentado sacar a lâmina da bainha, todo o movimento pareceu desajeitado e pouco natural, A roupa também lhe caía mal. Vestia o traje de inverno da Guarda Real, uma túnica e calções de lã alvejada e um pesado manto branco, mas tudo parecia pender de seu corpo, largo.
Jaime tinha passado os dias no julgamento do irmão, em pé bem no fundo do salão. Ou Tyrion não chegou a vê-lo ali, ou não o reconheceu, mas isso não era surpreendente. Metade da corte parecia já não conhecê-lo. Sou um estranho na minha própria Casa. Seu filho estava morto, o pai deserdara-o, e a irmã... não lhe permitiu ficar a sós com ela nem uma vez, após aquele primeiro dia no septo real onde Joffrey jazia entre as velas. Até quando o transportaram através da cidade para a sua sepultura no Grande Septo de Baelor, Cersei manteve uma distância cautelosa.
Olhou mais uma vez em volta da Sala Redonda. Reposteiros brancos de lã cobriam as paredes, e havia um escudo branco e duas espadas cruzadas montados por cima da lareira. A cadeira atrás da mesa era de velho carvalho negro, com almofadas em pele alvejada de vaca, com o couro já fino. Gasto pelo traseiro ossudo de Barristan, o Ousado, e, antes dele, por Sor Gerold Hightower, pelo Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, Sor Ryam Redwyne
e pelo Demônio de Darry, por Sor Duncan, o Alto, e pelo Grifo Branco, Alyn Connington. Como podia o Regicida estar em tão elevada companhia?
E, no entanto, ali estava.
A mesa propriamente dita era de um velho represeiro, pálido como osso, esculpido na forma de um enorme escudo sustentado por três garanhões brancos. Por tradição, o Senhor Comandante sentava-se ao topo do escudo, e os irmãos em grupos de três de cada lado, nas raras ocasiões em que todos os sete se encontravam reunidos. O livro que repousava junto de seu cotovelo era maciço; sessenta centímetros de altura e quarenta e cinco de largura, mil páginas de grossura, fino pergaminho branco encadernado em couro alvejado com dobradiças e presilhas de ouro. Seu nome formal era o livro dos irmãos, mas era mais habitual ser chamado simplesmente de Livro Branco.
Dentro do Livro Branco encontrava-se a história da Guarda Real. Todos os cavaleiros que algum dia tinham prestado serviço possuíam uma página, destinada a registar o seu nome e feitos para toda a eternidade. No canto superior esquerdo de cada página era desenhado o escudo que o homem usava no momento de sua escolha, em tintas de ricas cores. No canto inferior direito estava o escudo da Guarda Real; branco como neve, vazio, puro. Os escudos superiores eram todos diferentes; os inferiores, todos iguais. No espaço entre ambos eram escritos os fatos da vida e serviço de cada homem. Os desenhos heráldicos e as iluminuras eram feitos por septões enviados do Grande Septo de Baelor três vezes por ano, mas era dever do Senhor Comandante manter as entradas em dia.
Dever meu, agora. Ou melhor, seria, depois de aprender a escrever com a mão esquerda. O Livro Branco estava bem atrasado. A morte de Sor Mandon Moore e a de Sor Preston Greenfield precisavam ser acrescentadas, e o breve e sangrento serviço de Sandor Clegane na Guarda Real também. Novas páginas tinham de ser iniciadas para Sor Balon Swann, Sor Osmund Kettleblack e o Cavaleiro das Flores. Vou ter de convocar um septão para desenhar seus escudos.
Sor Barristan Selmy precedera Jaime como Senhor Comandante. O escudo no topo de sua página mostrava as armas da Casa Selmy: três espigas de trigo, amarelas, em fundo marrom. Jaime divertiu-se, embora não tenha ficado surpreso, ao descobrir que Sor Barristan tivera o cuidado de registrar a própria destituição antes de abandonar o castelo.
Sor Barristan da Casa Selmy. Filho primogênito de Sor Lyonel Selmy de Solar de Colheitas. Serviu como escudeiro de Sor Manfred Swann. Cognominado "o Ousado" no seu 10° ano, quando envergou uma armadura emprestada para surgir como cavaleiro misterioso no torneio em Portonegro, onde foi derrotado e desmascarado por Duncan, o Príncipe das Libélulas. Armado cavaleiro no seu 16° ano pelo Rei Aegon V Targaryen, após realizar grandes feitos de perícia como cavaleiro misterioso no torneio de inverno em Porto Real, derrotando o Príncipe Duncan, o Pequeno, e Sor Duncan, o Alto, Senhor Comandante da Guarda Real. Matou Maelys, o Monstruoso, o último dos Pretendentes Bíackfyre, em combate singular durante a Guerra dos Reis de Nove Moedas. Derrotou Lormelle Lança Longa e Cedrik Storm, o Bastardo de Portabrônzea. Nomeado para a Guarda Real no seu 23° ano pelo Senhor Comandante Sor Gerold Hightower. Defendeu a passagem contra todos os desafiantes no torneio da Ponte de Prata. Vencedor do corpo a corpo em Lagoa da Donzela. Levou o Rei Aerys II até lugar seguro durante o Desafio de Valdocaso, apesar de um ferimento de flecha no peito. Vingou o assassinato de seu Irmão Juramentado, Sor Gwayne Gaunt. Salvou a Senhora Jeyne Swann e a sua septã da Irmandade da Mata de Rei, derrotando Simon Toyne e o Cavaleiro Sorridente, e matando o primeiro. No torneio de Vilavelha, derrotou e desmascarou o cavaleiro misterioso Escudo-Negro, revelando-o como o Bastardo de Terraltas. Único campeão no torneio de Lorde Steffon em Ponta Tempestade, onde derrubou Lorde Robert Baratheon, o Príncipe Oberyn Martell, Lorde Leyton Hightower, Lorde Jon Connington, Lorde Jason Mallister e o Príncipe Rhaegar Targaryen. Ferido por flecha, lança e espada na Batalha do Tridente enquanto lutava ao lado de seus Irmãos Juramentados e Rhaegar, Príncipe de Pedra do Dragão, Perdoado e nomeado Senhor Comandante da Guarda Real pelo Rei Robert I Baratheon. Serviu na guarda de honra que trouxe a Senhora Cersei da Casa Lannister para Porto Real, a fim de desposar o Rei Robert. Liderou o ataque contra Velha Wyk durante a Rebelião de Balon Greyjoy. Campeão do torneio em Porto Real, no seu 57° ano. Destituído do serviço pelo Rei Joffrey Baratheon no seu 61° ano, por motivo de idade avançada.
A parte inicial da lendária carreira de Sor Barristan tinha sido escrita por Sor Gerold Hightower numa letra grande e enérgica. A escrita menor e mais elegante de Selmy substituía-a com o relato de seu ferimento no Tridente.
A página de Jaime era reduzida em comparação.
Sor Jaime da Casa Lannister. Filho primogênito de Lorde Tywin e da Senhora Joanna de Rochedo Casterly. Serviu contra a Irmandade da Mata de Rei como escudeiro de Lorde Sumner Crakehall. Armado cavaleiro no seu 15° ano por Sor Arthur Dayne da Guarda Real, por valor no campo de batalha. Escolhido para a Guarda Real no seu 15° ano pelo Rei Aerys II Targaryen. Durante o Saque de Porto Real, matou o Rei Aerys II aos pés do Trono de Ferro. De então em diante conhecido por "Regicida". Perdoado por seu crime pelo Rei Robert I Baratheon. Serviu na guarda de honra que trouxe a sua irmã, a Senhora Cersei Lannister, para Porto Real, a fim de desposar o Rei Robert. Campeão no torneio realizado em Porto Real por ocasião desse casamento.
Assim resumida, a sua vida parecia uma coisinha bastante limitada e mesquinha. Sor Barristan podia ter registado pelo menos algumas de suas outras vitórias em torneios. E Sor Gerold podia ter escrito mais algumas palavras a respeito dos feitos que tinha realizado quando Sor Arthur Dayne desbaratou a Irmandade da Mata de Rei. Jaime salvou a vida de Lorde Sumner no momento em que Ben Barrigudo estava prestes a esmagar-lhe a cabeça, muito embora o fora da lei tivesse escapado dele. E resistiu contra o Cavaleiro Sorridente, embora tivesse sido Sor Arthur quem o matou. Que luta foi essa e que adversário. O Cavaleiro Sorridente era um louco, uma mistura de crueldade e cavalaria, mas não conhecia o significado do medo. E Dayne, com a Alvorada na mão... No fim, a espada do fora da lei tinha tantos entalhes que Sor Arthur parou para permitir que ele fosse buscar outra.
- A que eu quero é essa sua espada branca - havia dito o cavaleiro ladrão ao retomar a luta, embora a essa altura já sangrasse de uma dúzia de ferimentos.
- Então vai obtê-la, sor - replicou o Espada da Manhã, e pôs fim ao combate.
Naqueles tempos o mundo era mais simples, pensou Jaime, e tanto os homens como as espadas eram feitos de melhor aço. Ou seria apenas por ter então seus quinze anos?
Agora estavam todos nas respectivas tumbas, o Espada da Manhã e o Cavaleiro Sorridente, o Touro Branco e o Príncipe Lewyn, Sor Osweíl Whent e seu humor negro, o zeloso Jon Darry, Simon Toyne e a sua Irmandade da Mata de Rei, o velho e brusco Sumner Crakehall. E eu, aquele rapaz que era... quando será que ele morreu, pergunto-me. Quando pus o manto branco? Quando abri a goela de Aerys? Aquele rapaz queria ser Sor Arthur Dayne, mas em algum ponto ao longo do caminho transformou-se no Cavaleiro Sorridente.
Quando ouviu a porta abrir, fechou o Livro Branco e levantou-se para receber seus Irmãos Juramentados. Sor Osmund Kettleblack foi o primeiro a chegar. Ofereceu a Jaime um sorriso, como se fossem velhos irmãos de armas.
- Sor Jaime - disse se tivesse esse aspecto na outra noite, o teria reconhecido de imediato.
- Ah, sim? - Jaime duvidava. Os criados tinham lhe dado banho, barbeado e lavado e escovado seus cabelos. Quando olhava para o espelho, já não via o homem que atravessara as terras fluviais com Brienne... mas também não via a si mesmo. O rosto estava magro e encovado e tinha rugas sob os olhos. Pareço um velho qualquer. - Vá para junto de seu lugar, sor, Kettleblack obedeceu. Os outros Irmãos Juramentados foram entrando um por um.
- Sores - disse Jaime num tom formal depois de se reunirem todos os cinco quem guarda o rei?
- Os meus irmãos Sor Osney e Sor Osfryd - respondeu Sor Osmund.
- E o meu irmão Sor Garlan - disse o Cavaleiro das Flores.
- Vão mantê-lo a salvo?
- Sim, senhor.
- Então sentem-se. - As palavras eram rituais. Antes dos sete poderem se reunir, era necessário assegurar a segurança do rei.
Sor Boros e Sor Meryn sentaram-se à sua direita, deixando uma cadeira vazia entre ambos para Sor Arys Oakheart, que se encontrava em Dorne, Sor Osmund, Sor Balon e Sor Loras ocuparam as cadeiras de sua esquerda. Os velhos e os novos. Jaime perguntou a si mesmo se aquilo poderia querer dizer alguma coisa. Tinha havido momentos durante a sua história em que a Guarda Real tinha se dividido contra si própria, e a mais notável e amarga dessas ocasiões fora durante a Dança dos Dragões, Seria isso algo que também teria de temer?
Parecia-lhe estranho sentar-se no lugar do Senhor Comandante, onde Barristan, o Ousado, se sentara durante tantos anos. E ainda mais estranho é me sentar aqui mutilado. Fosse como fosse, era o seu lugar, e agora aquela era a sua Guarda Real, Os sete de Tommen.
Jaime tinha servido durante anos com Meryn Trant e Boros Blount; lutadores capazes, mas Trant era dissimulado e cruel, e Blount, um saco de ar rosnador. Sor Balon Swann era mais digno de seu manto, e claro que o Cavaleiro das Flores era supostamente tudo que um cavaleiro devia ser. O quinto homem, aquele Osmund Kettleblack, era um estranho para ele.
Perguntou a si mesmo o que Sor Arthur Dayne teria a dizer daquele grupo, "Como foi que a Guarda Real caiu tão baixo?", provavelmente. "Foi obra minha", eu teria de responder. "Eu abri a porta, e nada fiz quando a ralé começou a entrar."
- O rei está morto - começou Jaime. - O filho de minha irmã, um rapaz de treze anos, assassinado em seu próprio banquete de casamento, em seu próprio salão. Todos os cinco de vocês se encontravam presentes. Todos os cinco estavam a protegê-lo. E no entanto ele está morto. - Esperou para ver o que eles responderiam àquilo, mas nenhum chegou sequer a pigarrear. O rapaz Tyrell está zangado, e Balon Swann, envergonhado, notou. Nos outros três Jaime sentiu apenas indiferença. - Foi o meu irmão que fez isso? - perguntou-lhes sem rodeios. - Tyrion envenenou o meu sobrinho?
Sor Balon mexeu-se desconfortavelmente na cadeira. Sor Boros cerrou um punho. Sor Osmund deu de ombros indolentemente. Foi Meryn Trant quem acabou por responder.
- Ele encheu a taça de Joffrey de vinho. Deve ter sido então que despejou lá o veneno.
- Tem certeza de que era o vinho que estava envenenado?
- O que mais poderia ser? - disse Sor Boros Blount. - O Duende despejou os sedimentos no chão. Por quê, se não para se livrar do vinho que poderia ter provado a sua culpa?
- Ele sabia que o vinho estava envenenado - disse Sor Meryn.
Sor Balon Swann franziu a testa.
- O Duende não estava sozinho no estrado. Longe disso. Com o banquete tão avançado, tínhamos pessoas em pé e movendo-se de um lado para o outro, mudando de lugar, saindo para ir à latrina, havia criados indo e vindo... o rei e a rainha tinham acabado de cortar a torta nupcial, todos os olhos estavam postos neles e naquelas três vezes malditas pombas. Ninguém estava vigiando a taça de vinho.
- Quem mais se encontrava no estrado? - perguntou Jaime.
Sor Meryn respondeu.
- A família do rei, a família da noiva, o Grande Meistre Pycelle, o Alto Septão...
- Aí está o seu envenenador - sugeriu Sor Oswald Kettleblack com um sorriso manhoso. - Muito mais santo do que devia ser, aquele velho. Pessoalmente, nunca gostei do ar dele. - Soltou uma gargalhada.
- Não - disse o Cavaleiro das Flores, sem mostrar estar se divertindo. - Sansa Stark foi a envenenadora. Todos se esquecem de que a minha irmã estava bebendo daquele cálice também. Sansa Stark era a única pessoa no salão que tinha motivo para querer ver tanto Margaery como o rei mortos. Ao envenenar a taça nupcial, podia esperar matá-los a ambos. E por que teria fugido depois, a menos que seja culpada?
O rapaz faz sentido. Tyrion pode até ser inocente. Mas ninguém se mostrava perto de encontrar a garota. Talvez Jaime devesse investigar aquilo pessoalmente. Para começar, seria bom saber como ela teria saído do castelo. Varys pode ter uma idéia ou duas sobre isso. Ninguém conhecia a Fortaleza Vermelha melhor do que o eunuco.
Aquilo podia esperar, porém. Naquele momento Jaime tinha preocupações mais imediatas. Você diz que é o Senhor Comandante da Guarda Real, tinha dito o pai. Vá cumprir o seu dever. Aqueles cinco não eram os irmãos que teria escolhido, mas eram os irmãos que tinha; chegara o momento de lidar com eles.
- Seja quem for que tenha cometido o ato - disse-lhes -, Joffrey está morto, e o Trono de Ferro pertence agora a Tommen. Pretendo que o ocupe até que seus cabelos embranqueçam e seus dentes caiam. E não devido a veneno. - Jaime virou-se para Sor Boros Blount. O homem tornara-se corpulento nos últimos anos, embora tivesse ossos suficientemente grandes para transportar o peso. - Sor Boros, parece ser um homem que aprecia a comida. De hoje em diante, provará tudo que Tommen comer ou beber.
Sor Osmund Kettleblack riu alto e o Cavaleiro das Flores sorriu, mas Sor Boros enrubesceu até um profundo tom de beterraba.
- Eu não sou nenhum provador! Sou um cavaleiro da Guarda Real!
- Lamento dizê-lo, mas é. - Cersei nunca devia ter tirado do homem o seu manto branco. Mas o pai só tornara a vergonha maior ao devolvê-lo. - Minha irmã falou-me da prontidão com que cedeu meu sobrinho aos mercenários de Tyrion, Vai achar as ervilhas e cenouras menos ameaçadoras, espero. Quando os seus Irmãos Juramentados estiverem no pátio treinando com escudo e espada, pode treinar com a colher e a bandeja. Tommen adora bolos de maçã. Tente evitar que algum mercenário desapareça com eles.
- Fala-me assim? Você?
- Devia ter morrido antes de permitir que Tommen fosse capturado.
- Tal como você morreu protegendo Aerys, sor? - Sor Boros pôs-se em pé e agarrou o cabo da espada. - Eu não,,, eu não aturarei isso. Devia ser você o provador, parece-me, Para que mais serve um aleijado?
Jaime sorriu.
- Concordo. Sou tão indigno de guardar o rei quanto você. Portanto, puxe essa espada que está acariciando e veremos como as suas duas mãos se saem contra a minha. No fim, um de nós estará morto e a Guarda Real será melhorada. - Levantou-se. - Ou, se preferir, pode voltar aos seus deveres.
- Bah! - Sor Boros puxou um monte de muco verde, escarrou-o aos pés de Jaime e saiu, com a espada ainda na bainha.
O homem é covarde, ainda bem. Apesar de gordo e envelhecido e de nunca ter sido mais que medíocre, Sor Boros ainda teria sido capaz de desfazê-lo em pedaços sangrentos. Mas Boros não sabe disso, e os outros também não podem saber: Eles temiam o homem que eu era; o homem que sou desperta piedade neles.
Jaime voltou a se sentar e virou-se para Kettleblack.
- Sor Osmund, Não o conheço, Acho tal fato curioso. Participei em torneios, em lutas corpo a corpo e em batalhas por todos os Sete Reinos. Conheço todos os pequenos cavaleiros, cavaleiros livres e escudeiros possuidores de alguma capacidade e que tenham alguma vez ousado quebrar uma lança nas liças. Assim, como é que nunca ouvi falar de você, Sor Osmund?
- Não saberei dizer, senhor, - Ele tinha um largo sorriso no rosto, aquele Sor Osmund, como se ele e Jaime fossem velhos camaradas de armas jogando um joguinho divertido qualquer. - Mas sou um soldado, não um cavaleiro de torneios.
- Onde prestou serviço antes de minha irmã encontrá-lo?
- Aqui e ali, senhor.
- Eu estive em Vilavelha no sul e em Winterfell no norte. Estive em Lanisporto no oeste, e em Porto Real no leste. Mas nunca estive em Aqui. Nem em Ali, - Por falta de um dedo, Jaime apontou com o coto para o nariz em forma de bico de Sor Osmund. - Vou voltar a perguntar. Onde prestou serviço?
- Nos Degraus. Um pouco nas Terras Disputadas. Ali há sempre luta. Acompanhei os Homens Galantes. Lutamos por Lys e um pouco por Tyrosh.
Lutou por quem quer que lhe pagasse.
- Como acabou sendo armado cavaleiro?
- No campo de baralha.
- Quem o armou?
- Sor Robert... Stone.Já morreu, senhor.
- Com certeza. - Supunha que Sor Robert Stone podia ter sido algum bastardo vindo do Vale, que tivesse andado vendendo a espada nas Terras Disputadas. Por outro lado, podia não ser mais do que um nome que Sor Osmund montou a partir de um rei morto e de uma muralha de castelo. Em que Cersei estava pensando quando deu a este aí um manto branco?
Pelo menos Kettleblack provavelmente saberia como usar uma espada e um escudo. Os mercenários raramente eram os mais honrosos dos homens, mas tinham de possuir certa perícia com as armas para continuarem vivos.
- Muito bem, sor - disse Jaime, - Pode ir.
O sorriso do homem voltou. Saiu se pavoneando.
- Sor Meryn. - Jaime sorriu ao azedo cavaleiro de cabelos cor de ferrugem e olheiras sob os olhos. - Ouvi dizer que Joffrey o usou para castigar Sansa Stark. - Virou o Livro Branco com uma mão só. - Tome, mostre-me onde está escrito nos nossos votos que juramos espancar mulheres e crianças.
- Fiz o que Sua Graça me ordenou. Juramos obedecer.
- De hoje em diante, irá moderar essa obediência. Minha irmã é rainha regente. Meu pai é Mão do Rei. Eu sou Senhor Comandante da Guarda Real. Obedeça a nós. A mais ninguém.
Sor Meryn fez uma expressão obstinada.
- Está me dizendo para não obedecer ao rei?
- O rei tem oito anos. Nosso primeiro dever é protegê-lo, o que inclui protegê-lo de si mesmo. Use essa coisa feia que mantém dentro do elmo. Se Tommen quiser que sele o cavalo dele, obedeça. Se lhe disser para matar o cavalo, venha conversar comigo.
- Sim. As suas ordens, senhor.
- Dispensado. - Enquanto ele saía, Jaime virou-se para Sor Balon Swann. - Sor Balon, vi-o tomar parte em justas muitas vezes, e lutei quer com você, quer contra você em lutas corpo a corpo. Disseram-me que demonstrou cem vezes o seu valor na Batalha da Água Negra. A Guarda Real é honrada por sua presença.
- A honra é minha, senhor. - Sor Balon parecia desconfiado.
- Existe apenas uma questão que gostaria de lhe colocar. Serviu-nos com lealdade, é certo... mas Varys disse-me que seu irmão acompanhou Renly e depois Stannis, enquanto o senhor seu pai decidiu não convocar os vassalos e permaneceu atrás das muralhas de Pedrelmo durante toda a guerra.
- Meu pai é um homem idoso, senhor. Já passou há muito os quarenta anos. Os dias de suas batalhas terminaram.
- E o seu irmão?
- Donnel foi ferido na batalha e rendeu-se a Sor Elwood Harte. Foi depois resgatado e jurou lealdade ao Rei Joffrey, tal como muitos outros cativos.
- E verdade - disse Jaime. - Mesmo assim... Renly, Stannis, Joffrey, Tommen... como foi que ele conseguiu deixar de lado Balon Greyjoy e Robb Stark? Podia ter sido o primeiro cavaleiro no reino a jurar lealdade a todos os seis reis.
O incômodo de Sor Balon era evidente.
- Donnel errou, mas agora é de Tommen. Dou-lhe a minha palavra.
- Não é Sor Donnel, o Constante, que me preocupa. É você. - Jaime inclinou-se para a frente. - O que fará se o bravo Sor Donnel entregar a sua espada a outro usurpador, e um dia invadir a sala do trono? E aí está você, todo de branco, entre o seu rei e o seu sangue. O que fará?
- Eu... senhor, isso nunca acontecerá.
- Aconteceu a mim - disse Jaime.
Swann limpou a testa com a manga de sua túnica branca.
- Não tem resposta?
- Senhor. - Sor Balon ficou em pé. - Pela minha espada, pela minha honra, pelo nome de meu pai, juro... não farei o que o senhor fez.
Jaime riu.
- Ótimo. Volte aos seus deveres... e diga a Sor Donnel para acrescentar um cata-vento ao seu escudo.
E então ficou sozinho com o Cavaleiro das Flores.
Esguio como uma espada, ágil e em forma, Sor Loras Tyrell usava uma túnica de linho branca como a neve e calções brancos de lã, com um cinto dourado em volta da cintura e uma rosa de ouro prendendo seu manto de seda fina. Os cabelos eram um suave desarranjo castanho, e os olhos eram também castanhos, e brilhantes de insolência. Ele acredita que isso é um torneio e que acabaram de anunciar a sua justa.
- Dezessete anos, e um cavaleiro da Guarda Real - disse Jaime. - Deve se sentir orgulhoso. Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, tinha dezessete anos quando foi nomeado. Sabia disso?
- Sim, senhor.
- E sabia que eu tinha quinze?
- Isso também, senhor. - E sorriu.
Jaime odiou aquele sorriso.
- Eu era melhor do que você, Sor Loras. Era maior, era mais forte e era mais rápido.
- E agora é mais velho - disse o rapaz, - Senhor.
Teve de rir. Isso é absurdo demais. Tyrion riria de mim sem dó se me ouvisse agora, comparando o pinto com este rapazinho verde.
- Mais velho e mais sábio, sor. Devia aprender comigo.
- Tal como você aprendeu com Sor Boros e Sor Meryn?
Aquela flecha aproximou-se demais do alvo.
- Aprendi com Touro Branco e Barristan, o Ousado - disse bruscamente Jaime. - Aprendi com Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã, que conseguiria matar vocês cinco com a mão esquerda enquanto mijava com a direita. Aprendi com o Príncipe Lewyn de Dorne, com Sor Oswell Whent e Sor Jonothor Darry, todos eles homens bons.
- Todos eles homens mortos.
Ele sou eu, compreendeu Jaime subitamente. Estou falando comigo mesmo tal como era, cheio de uma arrogância convencida e de cavalaria sem base. Isso é o que acontece quando se é bom demais e novo demais.
Assim como na esgrima, às vezes é melhor experimentar um golpe diferente.
- Dizem que lutou magnificamente na batalha... quase tão bem quanto o fantasma de Lorde Renly ao seu lado. Um Irmão Juramentado não tem segredos para com o Senhor Comandante. Diga-me, sor. Quem estava usando a armadura de Renly?
Por um momento Loras Tyrell pareceu poder recusar-se a responder, mas por fim lembrou-se de seus votos.
- Meu irmão - disse, de mau humor. - Renly era mais alto do que eu, e mais largo de peito. A armadura dele ficava folgada em mim, mas servia bem a Garlan.
- A mascarada foi idéia sua ou dele?
- Foi Lorde Mindinho quem a sugeriu. Ele disse que assustaria os ignorantes homens de armas de Stannis.
- E assustou-os. E também alguns cavaleiros e fidalgos. Bem, deu aos cantores algo para inspirar rimas, suponho que isso não deva ser desprezado. O que fez com Renly?
- Enterrei-o com minhas próprias mãos, num lugar que me mostrou um dia quando eu era escudeiro em Ponta Tempestade. Nunca ninguém o encontrará lá para perturbar o seu descanso.
- Olhou para Jaime em desafio. - Protegerei o Rei Tommen com todas as minhas forças, juro. Darei a minha vida pela dele se for necessário. Mas nunca trairei Renly por palavras ou por atos. Ele era o rei que devia ter sido. Era o melhor de todos.
O mais bem vestido, talvez, pensou Jaime, mas por uma vez não o disse. A arrogância tinha saído de Sor Loras no momento em que começara a falar de Renly. Ele respondeu honestamente. É orgulhoso, imprudente e cheio de mijo, mas não é falso. Ainda não.
- Como queira. Mais uma coisa e poderá voltar aos seus deveres.
- Sim, senhor?
- Ainda tenho Brienne de Tarth numa cela de torre.
A boca do rapaz endureceu.
- Uma cela negra seria melhor.
- Está certo de que é isso que ela merece?
- Ela merece a morte. Eu disse a Renly que uma mulher não tinha lugar na Guarda Arco-íris. Ela ganhou o corpo a corpo com um truque.
- Acho que me recordo de um outro cavaleiro que gostava de truques. Uma vez montou uma égua no cio contra um oponente montado num garanhão de mau temperamento. Que tipo de truque usou Brienne?
Sor Loras corou.
- Ela saltou... não importa. Ganhou, concedo-lhe isso. Sua Graça pôs um manto arco-íris em seus ombros. E ela matou-o. Ou deixou-o morrer.
- Há aí uma grande diferença. - A diferença entre o meu crime e a vergonha de Boros Blount.
- Ela tinha jurado protegê-lo. Sor Emmon Cuy, Sor Robar Royce, Sor Parmen Crane, eles também tinham jurado. Como poderia alguém atingi-lo com ela dentro da tenda e os outros à porta? A menos que participassem do ato.
- Havia cinco de vocês no banquete de casamento - ressaltou Jaime. - Como pôde Joffrey morrer? A menos que participassem do ato?
Sor Loras endireitou-se rigidamente.
- Não houve nada que pudéssemos fazer.
- A garota diz o mesmo. Ela chora por Renly, tal como você. Garanto-lhe que nunca chorei por Aerys. Brienne é feia e teimosa como um jumento. Mas falta-lhe a esperteza para ser uma mentirosa, e é leal para lá do bom senso. Prestou um juramento de me trazer para Porto Real, e aqui estou eu. Esta mão que perdi... bem, isso foi tanto obra minha como dela. Pesando tudo o que fez para me proteger, não tenho qualquer dúvida de que teria lutado por Renly, se tivesse havido um inimigo com quem lutar. Mas uma sombra? - Jaime sacudiu a cabeça. - Puxe a espada, Sor Loras. Mostre-me como você lutaria com uma sombra. Gostaria de ver isso.
Sor Loras não fez qualquer movimento para se erguer.
- Ela fugiu - disse. - Ela e Catelyn Stark abandonaram-no afogado em sangue e fugiram. Por que haveriam de fugir, se não fosse obra dela? - fitou a mesa. - Renly atribuiu-me a vanguarda. De outro modo teria sido eu a ajudá-lo a envergar a armadura. Ele muitas vezes confiava essa tarefa a mim. Nós tínhamos... tínhamos rezado juntos naquela noite. Deixei-o com ela. Sor Parmen e Sor Emmon guardavam a tenda e Sor Robar Royce também estava lá, Sor Emmon jurou que Brienne tinha,,, embora...
- Sim? - instou Jaime, detectando uma dúvida.
- O gorjal tinha sido atravessado, Um golpe limpo, através de um gorjal de aço. A armadura de Renly era do melhor, do mais fino aço. Como ela conseguiria fazer aquilo? Eu mesmo tentei, e não foi possível, Ela é anormalmente forte para uma mulher, mas até a Montanha teria precisado de um machado pesado. E por que vestir-lhe a armadura e só depois cortar a garganta dele? - dirigiu a Jaime um olhar confuso, - Mas se não foi ela... como pode ter sido uma sombra?
- Pergunte-lhe, - Jaime tomou uma decisão. - Vá à cela dela, Faça as suas perguntas e escute as respostas que ela der. Se ainda estiver convencido de que Brienne assassinou Lorde Renly, farei com que ela responda por isso, A decisão será sua. Acuse-a ou liberte-a. Tudo que peço é que a julgue com justiça, por sua honra de cavaleiro.
Sor Loras levantou-se.
- Farei isso. Por minha honra.
- Então terminamos.
O homem mais novo dirigiu-se à porta. Mas aí virou-se.
- Renly a achava absurda. Uma mulher vestida de cota de malha de homem, fingindo ser um cavaleiro.
- Se alguma vez a tivesse visto vestindo cetim cor-de-rosa e renda de Myr, não teria se queixado.
- Perguntei-lhe por que a mantinha por perto, se a achava assim tão grotesca. Ele disse que todos os outros cavaleiros queriam coisas dele, castelos, honrarias ou riquezas, mas tudo que Brienne queria era morrer por ele. Quando o vi todo ensangüentado, com ela fugida e os outros três incólumes.,, se ela for inocente, então Robar e Emmon,.. - Não parecia ser capaz de articular as palavras.
Jaime não tinha parado para refletir sobre aquele aspecto do assunto.
- Eu teria feito o mesmo, sor, - A mentira chegou-lhe fácil, mas Sor Loras pareceu grato por ouvi-la.
Quando o cavaleiro saiu, o Senhor Comandante sentou-se sozinho na sala branca, cheio de questões. O Cavaleiro das Flores tinha se sentido tão louco de dor por Renly que abatera dois de seus próprios Irmãos Juramentados, mas nunca ocorreu a Jaime fazer o mesmo aos cinco que tinham falhado a Joffrey, Ele era meu filho, meu filho secreto... Que coisa sou eu, se não ergo a mão que me resta para vingar meu próprio sangue e semente? Devia pelo menos matar Sor Boros, só para se ver livre dele.
Olhou para o coto e fez uma careta. Tenho de fazer qualquer coisa a esse respeito. Se o falecido Sor Jacelyn Bywater podia usar uma mão de ferro, ele devia ter uma de ouro. Cersei pode gostar. Uma mão dourada para afagar seus cabelos dourados e apertá-la bem contra mim.
Mas a mão podia esperar. Havia outras coisas a tratar primeiro. Havia outras dívidas a pagar.
A escada que levava ao castelo de proa era íngreme e cheia de lascas, por isso Sansa aceitou ajuda de Lothor Brune, Sor Lothor, teve de recordar a si mesma. O homem tinha sido armado cavaleiro pelo valor demonstrado na Batalha da Água Negra. Embora nenhum cavaleiro de verdade usasse aqueles calções marrons remendados e aquelas botas gastas, nem aquele gibão de couro rachado e manchado pela água. Atarracado, com rosto quadrado, nariz amassado e um emaranhado de fortes cabelos grisalhos, Brune raramente falava. Mas é mais forte do que parece. Ela percebeu isso pela facilidade com que a ergueu no ar, como se não pesasse nada.
Para lá da proa do Rei Bacalhau estendia-se uma costa nua e pedregosa, varrida pelo vento, desprovida de árvores e pouco convidativa. Mesmo assim, era uma visão bem-vinda. Havia bastante tempo que vinham se afastando da costa no caminho de volta. A última tempestade tinha-os varrido para longe da vista da terra, e atirara tamanhas ondas contra os lados da galé que Sansa tivera certeza de que iam todos se afogar. Tinha ouvido o velho Oswell dizer que dois homens haviam sido arrastados borda afora e outro caíra do mastro e quebrara o pescoço.
Ela raramente se aventurava até o convés. Sua pequena cabine era úmida e fria, mas Sansa passara a maior parte da viagem doente... doente de terror, doente de febre, ou doente de enjoo... Não conseguia manter nada no estômago e até o sono custava a vir. Sempre que fechava os olhos via Joffrey rasgando o colarinho, arranhando a suave pele da garganta, morrendo com flocos de crosta de torta nos lábios e manchas de vinho no gibão, E os lamentos do vento no cordame faziam-lhe lembrar o terrível e agudo som de sugar que ele tinha feito enquanto lutava para inspirar ar. As vezes sonhava também com Tyrion.
- Ele não fez nada - tinha dito ao Mindinho quando ele fez uma visita à sua cabine para ver se ela estava se sentindo melhor.
- Ele não matou Joffrey, é verdade, mas as mãos do anão estão longe de estar limpas. Teve uma esposa antes de você, sabia?
- Ele contou-me.
- E ele contou que, quando se cansou dela, deu-a de presente aos guardas do pai? Podia ter feito o mesmo com você, a seu tempo. Não derrame lágrimas pelo Duende, senhora.
O vento fez correr dedos salgados por seus cabelos, e Sansa estremeceu. Até tão perto da costa, o balanço do barco deixava seu estômago indisposto. Precisava desesperadamente de um banho e de uma muda de roupa. Devo parecer tão descomposta como um cadáver, e cheiro a vômito.
Lorde Petyr surgiu a seu lado, alegre como sempre.
- Bom dia. O ar salgado é tonificante, não lhe parece? Aguça-me sempre o apetite. - Rodeou seus ombros com um braço compreensivo. - Está bem? Parece tão pálida.
- É só a minha barriga. O enjôo.
- Um pouco de vinho será bom para isso. Vamos arranjar uma taça para você, assim que estivermos em terra firme. - Petyr apontou para o local onde uma velha torre de pederneira se delineava contra o céu cinzento sem vida, com as ondas se esmagando nas rochas abaixo dela. - Animado, não é? Temo que aqui não haja ancoradouro seguro. Iremos para a terra num bote.
- Aqui? - não queria ir para a terra ali. Tinha ouvido dizer que os Dedos eram um lugar lúgubre, e havia algo de abandonado e desolado na pequena torre. - Não podia ficar no navio até zarparmos para Porto Branco?
- Daqui, o Rei vira para leste rumo a Bravos. Sem nós.
- Mas... senhor, disse... disse que íamos para casa.
- E aqui está ela, por mais miserável que seja. A minha casa ancestral. Temo que não tenha nome. A sede de um grande senhor devia ter um nome, não concorda? Winterfell, Ninho da Águia, Correrrio, esses são castelos. Agora Senhor de Harrenhal, isso soa bem, mas o que era eu antes? Senhor da Bosta de Ovelha e dono do Forte Triste? Falta alguma coisa aí, - Seus olhos cinza-esverdeados olharam-na inocentemente. - Parece perturbada. Achava que nos dirigíamos a Winterfell, querida? Winterfell foi tomado, queimado e saqueado. Todos os que conhecia e amava estão mortos. Os nortenhos que não caíram perante os homens de ferro estão fazendo guerra entre si. Até a Muralha está sob ataque, Winterfell foi o lar de sua infância, Sansa, mas já não é uma criança. É uma mulher-feita, e tem de criar o seu lar.
- Mas não aqui - disse ela, consternada. - Parece tão...
pequeno, sem vida e insignificante? É tudo isso, e ainda pior. Os Dedos são um lugar adorável para quem por acaso for uma pedra. Mas nada tema, não nos demoraremos mais do que uma quinzena. Calculo que a sua tia já esteja a caminho para nos encontrar. - Sorriu, - A Senhora Lysa e eu vamos nos casar.
- Casar? - Sansa estava atordoada. - O senhor e a minha tia?
- O Senhor de Harrenhal e a Senhora do Ninho da Águia.
Disse que era a minha mãe que amava. Mas claro que a Senhora Catelyn estava morta, por isso, mesmo se tivesse amado secretamente Petyr e se lhe tivesse entregado a virgindade, agora não importava.
- Tão silenciosa, senhora - disse Petyr. - Estava certo de que gostaria de me dar a sua bênção. É coisa rara que um rapaz nascido para herdar pedras e cocozinhos de ovelha se case com a filha de Hoster Tully e viúva de Jon Arryn.
- Eu... eu rezo para que passem longos anos juntos, tenham muitos filhos e sejam muito felizes um com o outro. - Tinham-se passado anos desde que Sansa vira a irmã da mãe. Ela será gentil
comigo, certamente. É do meu sangue. E o Vale de Arryn era belo, todas as canções diziam isso. Talvez não fosse assim tão terrível ficar ali durante algum tempo.
Lothor e o velho Oswell assumiram os remos e levaram-nos para terra. Sansa aconchegou-se à proa sob o seu manto com o capuz puxado para proteger a cabeça do vento, interrogando-se sobre o que a esperava. Criados saíram da torre ao encontro do grupo; uma velha magra e uma gorda de meia-idade, dois anciãos de cabelos brancos e uma menina com dois ou três anos e terçol num olho. Quando reconheceram Lorde Petyr, ajoelharam-se nas pedras.
- O meu pessoal - disse ele. - Não conheço a criança. Outro dos bastardos de Kella, suponho. Ela põe um no mundo a cada dois ou três anos.
Os dois velhos entraram na água até as coxas para erguer Sansa do barco de modo que não molhasse as saias. Oswell e Lothos foram espirrando água até chegarem à margem, e o mesmo fez o próprio Mindinho. Este deu à velha um beijo na bochecha e sorriu à mais nova.
- Quem é o pai desta, Kella?
A gorda riu.
- Não sei bem, senhor, Não sou mulher pra lhes dizer que não.
- E todos os moços da terra são gratos por isso, tenho certeza.
- E bom tê-lo em casa, senhor - disse um dos velhos. Parecia ter pelo menos oitenta anos, mas usava uma brigantina com rebites e uma espada longa presa ao flanco. - De quanto tempo será a sua estadia?
- O menos possível, Bryen, não tenha medo. Diria que o lugar está habitável neste momento?
- Se soubéssemos que vinham, teríamos posto esteiras novas, senhor - disse a velha.
- Há um fogo de esterco queimando.
- Nada diz "casa" como o cheiro de esterco queimando. - Petyr virou-se para Sansa.
- Grisel foi a minha ama de leite, mas agora toma conta de meu castelo. Umfred é o meu intendente e Bryen... não o nomeei capitão da guarda da última vez que estive aqui?
- Nomeou, senhor. Disse também que ia arranjar mais alguns homens, mas não fez isso. Eu e os cães fazemos todas as vigias.
- E muito bem, tenho certeza. Ninguém fugiu com nenhuma das minhas pedras e cocôs de ovelha, vejo-o claramente. - Petyr indicou com um gesto a gorda. - Kella cuida de meus vastos rebanhos. Quantas ovelhas tenho no momento, Kella?
Ela teve de pensar por um momento.
- Vinte e três, senhor. Havia vinte e nove, mas os cães de Bryen mataram uma e abatemos algumas das outras pra salgar a carne.
- Ah, carneiro frio em salmoura. Devo estar mesmo em casa. Quando quebrar o jejum com ovos de gaivota e sopa de algas, terei certeza.
- Se quiser, senhor - disse a velha chamada Grisel.
Lorde Petyr fez uma careta.
- Venha, vejamos se o meu palácio é tão lúgubre como o recordo. - Subiu a costa à frente dos outros, por rochas tornadas escorregadias por algas em putrefação. Um punhado de ovelhas vagueava em volta da base da torre de pederneira, pastando a escassa grama que crescia entre o curral e o estábulo de telhado de colmo. Sansa teve de pisar com cuidado; havia cocô de ovelha por todo lado.
Lá dentro, a torre parecia ainda menor. Uma escada aberta de pedra corria em volta da parede interior, desde a galeria subterrânea até o telhado. Cada piso não era mais do que um único cômodo. Os criados viviam e dormiam na cozinha, no piso térreo, dividindo o espaço com um enorme mastim malhado e meia dúzia de cães pastores. Por cima havia um pequeno salão, e ainda mais acima o quarto de dormir. Não existiam janelas, mas havia seteiras em intervalos regulares na parede exterior, ao longo da curvatura da escada. Por cima da lareira pendia uma espada longa quebrada e um desgastado escudo de carvalho, com a tinta rachada e descascando.
Sansa não conhecia o símbolo pintado no escudo; uma cabeça de pedra cinza com olhos de fogo em fundo verde-claro.
- O escudo do meu avô - explicou Petyr quando a viu a fitá-lo. - O pai dele nasceu em Bravos e veio para o Vale como mercenário contratado por Lorde Corbray, e por isso o meu avô escolheu a cabeça do Titã como símbolo quando foi armado cavaleiro.
- É muito feroz - disse Sansa.
- Feroz demais, para um cara amigável como eu - disse Petyr. - Prefiro de longe o meu tejo.
Oswell fez mais duas viagens até o Rei Bacalhau para descarregar mantimentos. Entre as cargas que trouxe para terra havia vários toneis de vinho. Petyr serviu uma taça a Sansa, como prometido.
- Aqui está, senhora, isso deve ajudar a sua barriga, espero eu.
Ter terra firme debaixo dos pés já ajudara, mas Sansa ergueu obedientemente o cálice com ambas as mãos e bebeu um golinho. O vinho era muito bom; uma bela colheita da Árvore, pensou. Tinha toques de carvalho, fruta e noites quentes de verão e os sabores desabrochavam em sua boca como flores abrindo-se ao sol. Só esperava conseguir mantê-lo na barriga. Lorde Petyr estava sendo tão gentil que não queria estragar tudo vomitando em cima dele.
Ele estava estudando-a por sobre seu próprio cálice, com os brilhantes olhos cinza-esverdeados cheios de... seria divertimento? Ou outra coisa? Sansa não tinha certeza.
- Grisel - gritou ele para a velha -, traga um pouco de comida. Nada pesado demais, que a senhora tem uma barriga fraca. Um pouco de fruta poderá, talvez, servir. Oswell trouxe algumas laranjas e romãs do Rei.
- Sim, senhor.
- Seria possível também tomar um banho quente? - perguntou Sansa.
- Eu mando Kella ir buscar água, senhora.
Sansa bebeu outro gole de vinho e tentou pensar em algo polido para dizer, mas Lorde Petyr poupou-a do trabalho. Quando Grisel e os outros criados foram embora, disse:
- Lysa não virá sozinha. Antes de ela chegar, temos de esclarecer quem você é.
- Quem sou... não compreendo.
- Varys tem informantes por todo lado. Se Sansa Stark for vista no Vale, o eunuco vai ficar sabendo dentro de uma volta de lua, e isso criaria lamentáveis... complicações. Não é seguro ser um Stark neste momento. Portanto, diremos ao pessoal de Lysa que é minha filha ilegítima.
- Ilegítima? - Sansa estava horrorizada. - Quer dizer uma bastarda?
- Bem, dificilmente poderia ser minha filha legítima. Nunca tomei esposa, isso é bem sabido, Como se chamaria?
- Eu,., poderia usar o nome de minha mãe...
- Catelyn? Um pouco óbvio demais... mas o de minha mãe serviria. Alayne. Você gosta?
- Alayne é bonito. - Sansa esperava conseguir lembrar-se. - Mas eu não poderia ser filha legítima de algum cavaleiro a seu serviço? Ele poderia ter morrido galantemente na batalha, e...
- Não tenho cavaleiros galantes a meu serviço, Alayne. Uma história dessas atrairia tantas perguntas indesejáveis quanto um cadáver atrai corvos. Porém, é falta de educação bisbilhotar a origem dos filhos ilegítimos de um homem. - Ergueu a cabeça. - Então, quem é?
- Alayne... Stone, é? - quando ele confirmou com a cabeça, ela disse: - Mas quem é a minha mãe?
- A Kella?
- Não, por favor - disse ela, mortificada.
- Estava brincando. Sua mãe era uma senhora de Bravos, filha de um príncipe mercador. Conhecemo-nos em Vila Gaivota quando era encarregado do porto. Ela morreu ao dá-la à luz e confiou-a à Fé. Tenho alguns livros devocionais sobre os quais pode passar os olhos. Aprenda a citá-los. Nada desencoraja mais as perguntas indesejadas do que uma torrente de ladainha piedosa. Seja como for, em sua floração decidiu que não era seu desejo ser uma septã e escreveu-me. Foi então que eu soube da sua existência. - Afagou a barba. - Acha que é capaz de se lembrar de tudo isso?
- Espero que sim. Será como jogar um jogo, não é?
- Gosta de jogos, Alayne?
Ia ter de habituar-se ao novo nome.
- Jogos? Eu... suponho que dependeria de...
Grisel reapareceu antes de poder dizer mais, equilibrando uma grande bandeja. Apoiou-a entre ambos. Havia maçãs, peras e romãs, um punhado de uvas feiosas, uma enorme laranja sangüínea. A velha tinha trazido também uma rodela de pão e um pote de manteiga. Petyr cortou uma romã em duas com o seu punhal e ofereceu metade a Sansa.
- Devia tentar comer, senhora.
- Obrigada, senhor. - As sementes de romã sujavam tanto; Sansa preferiu uma pera, e deu uma pequena mordidinha delicada. Estava muito madura; o sumo escorreu pelo seu queixo.
Lorde Petyr desalojou uma semente com a ponta do punhal.
- Deve sentir terrivelmente a falta de seu pai, eu sei. Lorde Eddard era um homem corajoso, honesto e leal... mas um jogador bastante incapaz. - Levou a semente à boca com a faca, - Em Porto Real, há dois tipos de pessoas. Os jogadores e as peças.
- E eu era uma peça? - receou a resposta.
- Sim, mas não deixe que isso a perturbe, Ainda é quase uma criança. Todos os homens começam sendo peças, e todas as donzelas também. Mesmo alguns que acham que são jogadores. - Comeu outra semente. - Cersei, para começar. Julga-se astuta, mas na verdade é completamente previsível. Sua força reside na beleza, no nascimento e na riqueza. Só a primeira dessas coisas é realmente dela, e em breve a abandonará. Nessa hora, terei pena dela. Deseja o poder, mas não tem idéia do que fazer com ele quando o obtém. Todo mundo quer alguma coisa, Alayne. E quando ficar sabendo o que um homem quer, saberá quem ele é, e como jogar com ele.
- Tal como jogou com Sor Dontos para envenenar Joffrey? - concluíra que tinha de ter sido Sor Dontos.
Mindinho riu.
- Sor Dontos, o Tinto, era um odre de vinho com pernas. Nunca poderia ser confiada a ele uma tarefa de tal magnitude. Ele, se não a estragasse, teria me traído. Não, tudo que Dontos teve de fazer foi tirá-la do castelo... e assegurar-se de que usava a rede de prata para cabelos.
As ametistas negras.
- Mas... se não foi Dontos, quem? Você tem outras... peças?
- Poderia virar Porto Real do avesso e não encontraria um único homem com um tejo cosido sobre o coração, mas isso não significa que eu não tenho amigos. - Petyr dirigiu-se até junto da escada. - Oswell, venha aqui em cima e deixe que a Senhora Sansa olhe para você.
O velho apareceu alguns momentos mais tarde, sorrindo e fazendo uma reverência. Sansa examinou-o, incerta.
- O que eu deveria estar vendo?
- Não o conhece? - perguntou Petyr.
- Não.
- Olhe melhor.
Sansa estudou o rosto do velho, enrugado e queimado pelo vento, seu nariz adunco, os cabelos brancos e as enormes mãos nodosas. Havia algo de familiar nele, mas Sansa teve de sacudir a cabeça.
- Não o conheço. Nunca vi Oswell antes de entrar no barco dele, tenho certeza.
Oswell sorriu, mostrando uma boca cheia de dentes tortos.
- Não, mas a senhora talvez tenha conhecido os meus três filhos.
Foram os "três filhos" e também aquele sorriso.
- Kettleblack! - os olhos de Sansa esbugalharam-se, - E um Kettleblack!
- Sim, senhora, às suas ordens.
- Ela está fora de si de alegria. - Lorde Petyr mandou-o embora com um gesto e voltou à romã enquanto Oswell descia os degraus. - Diga-me, Alayne... o que é mais perigoso, o punhal brandido por um inimigo, ou o punhal escondido encostado às suas costas por alguém que não chega a ver?
- O punhal escondido.
- Aí está uma garota esperta, - Ele sorriu, com os lábios finos tornados vermelhos pelas sementes de romã, - Quando o Duende mandou os guardas dela embora, a rainha mandou Sor Lancei contratar-lhe mercenários. Lancei encontrou os Kettleblack, o que deliciou o pequeno senhor seu esposo, visto que os rapazes eram pagos por ele através do seu homem, Bronn. - Petyr soltou um risinho. - Mas fui eu quem disse a Oswell para mandar os filhos para Porto Real quando soube que Bronn andava à procura de espadas. Três punhais escondidos, Alayne, agora perfeitamente posicionados.
- Então um dos Kettleblack pôs o veneno na taça de Joff? - lembrou-se de que Sor Osmund tinha passado a noite inteira perto do rei.
- Terei dito isso? - Lorde Petyr cortou a laranja sangüínea em duas com o punhal e ofereceu metade a Sansa. - Os rapazes são traiçoeiros demais para participarem de uma tramóia dessas... e Osmund tornou-se especialmente indigno de confiança desde que entrou para a Guarda Real. Acho que aquele manto branco faz coisas aos homens. Até a homens como ele. - Inclinou o queixo para trás e espremeu a laranja sangüínea para que o sumo escorresse para sua boca. - Adoro o sumo, mas abomino os dedos pegajosos - reclamou, limpando as mãos. - Mãos limpas, Sansa. Faça o que fizer, assegure-se de que as suas mãos estejam limpas.
Sansa levou à boca um pouco de sumo de sua laranja com uma colher.
- Mas se não foram os Kettleblack e não foi Sor Dontos... você nem sequer estava na cidade, e não pode ter sido Tyrion...
- Não quer fazer outra tentativa, querida?
Ela sacudiu a cabeça.
- Eu não...
Petyr sorriu.
- Aposto que a certa altura durante a noite alguém lhe disse que a rede para cabelos estava torta e a endireitou para você.
Sansa levou uma mão à boca.
- Não pode querer dizer... ela queria me levar para Jardim de Cima, para me casar com o neto...
- O gentil e piedoso Willas Tyrell, com a sua boa índole. Fique grata por ter sido poupada, ele teria aborrecido você até a morte. Mas a velha não é entediante, admito. Uma temível velha bruxa, e que não é nem de perto tão frágil como finge ser. Quando cheguei a Jardim de Cima para regatear a mão de Margaery, ela deixou que o senhor seu filho fanfarronasse enquanto ela fazia perguntas mordazes a respeito da natureza de Joffrey. Elogiei-o até os céus, com certeza... enquanto os meus homens espalhavam histórias perturbadoras entre os criados de Lorde Tyrell. É assim que se joga o jogo.
"Também plantei a idéia de Sor Loras vestir o branco. Não que o tenha sugerido, isso teria sido rude demais. Mas homens em minha comitiva disseminaram medonhas histórias sobre o modo como o povo tinha matado Sor Preston Greenfield e violado a Senhora Lollys, e fiz chegar algumas moedas de prata ao exército de cantores de Lorde Tyrell para que cantassem sobre Ryam Redwyne, Serwyn do Escudo Espelhado e Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão. Uma harpa pode ser tão perigosa como uma espada, nas mãos certas.
"Mace Tyrell pensou mesmo que era sua a idéia de fazer a inclusão de Sor Loras na Guarda Real parte do contrato de casamento. Quem melhor para proteger a filha do que o seu magnífico irmão cavaleiro? E aliviou-o da difícil tarefa de tentar encontrar terras e uma noiva para um terceiro filho, o que nunca é fácil, e se torna duplamente difícil no caso de Sor Loras.
"Mas, seja como for, a Senhora Olenna não estava disposta a permitir que Joff fizesse mal à sua preciosa e querida neta, mas ao contrário do filho também compreendeu que, sob as suas flores e trajes finos, Sor Loras é tão temperamental quanto Jaime Lannister. Atire Joffrey, Margaery e Loras numa panela, e tem os ingredientes para um guisado de regicida. A velha compreendeu também outra coisa, O filho estava decidido a fazer de Margaery uma rainha, e para isso precisava de um rei... mas não precisava de Joffrey. Teremos em breve outro casamento, espere e verá. Margaery casará com Tommen. Manterá a sua coroa de rainha e a sua virgindade, nenhuma das quais deseja em especial, mas que importa isso? A grande aliança ocidental será preservada... pelo menos por algum tempo."
Margaery e Tommen. Sansa não sabia o que dizer. Gostava de Margaery Tyrell e também de sua pequena avó de língua afiada. Tinha pensado com anseio em Jardim de Cima, com seus pátios e músicos, e as barcaças de prazer no Vago; a uma distância enorme daquela costa desolada. Pelo menos aqui estou a salvo. Joffrey está morto, já não pode me machucar, e agora sou só uma bastarda. Alayne Stone não tem marido e não tem pretensões. E, além disso, a tia estaria ali em breve. O longo pesadelo de Porto Real tinha ficado para trás e sua caricatura de casamento também. Podia criar para si um novo lar ali, tal como Petyr havia dito.
Passaram-se oito longos dias até Lysa Arryn chegar. Choveu em cinco desses dias, enquanto Sansa permanecia sentada, entediada e inquieta junto à lareira, ao lado do velho cão cego. O animal estava doente e desdentado demais para montar guarda com Bryen, e o que fazia era principalmente dormir, mas quando ela lhe fez festas ele ganiu e lambeu sua mão, e depois disso tornaram-se bons amigos. Quando as chuvas pararam, Petyr percorreu com ela o perímetro de sua propriedade, o que demorou menos de meio dia. Ele possuía um monte de pedras, tal como tinha dito. Havia um local onde a maré saltava de uma furna, projetando-se dez metros no ar, e um outro
onde alguém esculpira a estrela de sete pontas dos deuses novos num pedregulho. Petyr disse que aquilo marcava um dos locais onde os ândalos tinham desembarcado, quando vieram do outro lado do mar para arrancar o Vale das mãos dos Primeiros Homens.
Mais para o interior, uma dúzia de famílias vivia em cabanas de pedras empilhadas ao lado de uma turfeira.
- A minha plebe - disse Petyr, embora só o mais velho parecesse conhecê-lo. Havia também uma gruta de eremita em suas terras, mas sem eremita. - Ele agora está morto, mas quando eu era rapaz, meu pai levou-me para visitá-lo. O homem não se lavava havia quarenta anos, portanto pode imaginar o cheiro, mas supostamente tinha o dom da profecia. Apalpou-me um pouco e disse que eu seria um grande homem, e por isso o meu pai deu-lhe um odre de vinho. - Petyr fungou. - Eu teria dito a mesma coisa por meia taça.
Por fim, numa tarde cinzenta e ventosa, Bryen correu de volta à torre com os cães latindo logo atrás, para anunciar que se aproximavam cavaleiros vindos de sudoeste.
- Lysa - disse Lorde Petyr. - Venha, Alayne, vamos ao encontro dela.
Vestiram os mantos e esperaram lá fora. Os cavaleiros não eram mais de uma vintena; uma escolta muito modesta para a Senhora do Ninho da Águia. Acompanhavam-na três aias, bem como uma dúzia de cavaleiros envergando cota de malha e placa de peito. Tinha trazido também um septão e um cantor atraente com um bigode fino e longos caracóis cor de areia.
Poderá aquela ser a minha tia? A Senhora Lysa era dois anos mais nova do que sua mãe, mas aquela mulher parecia dez anos mais velha. Grossas tranças ruivas caíam-lhe abaixo da cintura, mas sob o dispendioso vestido de veludo e corpete decorado com pedras preciosas, o corpo mostrava-se flácido e saliente. O rosto vinha rosado e pintado, os seios eram pesados, os membros, grossos. Era mais alta do que Mindinho e também mais pesada; e não mostrou qualquer graça no modo desajeitado com que desceu do cavalo.
Petyr ajoelhou para lhe beijar os dedos.
- O pequeno conselho do rei ordenou-me que a cortejasse e conquistasse, senhora. Acredita que poderá me aceitar como seu senhor e esposo?
A Senhora Lysa projetou os lábios e puxou-o de volta em pé, para plantar um beijo em sua bochecha.
- Oh, talvez possa ser convencida. - Soltou um risinho. - Trouxe presentes para derreter meu coração?
- A paz do rei.
- Oh, que se dane a paz, o que mais me trouxe?
- A minha filha. - Mindinho fez sinal com uma mão a Sansa para avançar. - Senhora, permita-me que lhe apresente Alayne Stone.
Lysa Arryn não pareceu grandemente satisfeita por vê-la. Sansa fez uma profunda reverência, com a cabeça baixa.
- Uma bastarda? - ouviu a tia dizer. - Petyr, foi maroto? Quem era a mãe?
- A moça está morta. Tinha a esperança de levar Alayne para o Ninho da Águia.
- O que farei com ela lá?
- Tenho algumas idéias - disse Lorde Petyr. - Mas neste momento estou mais interessado no que farei com a senhora.
Toda a severidade derreteu no rosto redondo e rosado da tia, e por um momento Sansa pensou que Lysa Arryn estivesse a ponto de chorar.
- Querido Petyr, tive tantas saudades suas, não faz idéia, não pode fazer idéia. Yohn Royce tem andado instigando toda espécie de problemas, exigindo que eu convoque os vassalos e parta para a guerra, E todos os outros enxameiam à minha volta, Hunter, Corbray e aquele horrendo Nestor Royce, todos desejando desposar-me e tomar o meu filho como protegido, mas nenhum deles me ama realmente. Só você, Petyr. Sonhei com você durante tanto tempo.
- E eu com você, senhora. - Passou um braço pelas costas dela e beijou-a no pescoço, - Quando podemos nos casar?
- Já - disse a Senhora Lysa, suspirando. - Trouxe o meu próprio septão e um cantor, e hidromel para o banquete de casamento.
- Aqui? - aquilo não lhe agradou. - Preferiria casar com a senhora no Ninho da Águia, com toda a corte presente.
- Que se dane a corte. Esperei durante tanto tempo que não agüento esperar nem mais um momento. - Envolveu-o com os braços, - Quero partilhar a sua cama esta noite, meu querido. Quero que façamos outro filho, um irmão para Robert ou uma doce filhinha.
- Eu também sonhei com isso, querida. Mas há muito a ganhar com uma grande boda pública, com todo o Vale...
- Não. - Lysa bateu o pé. - Quero-o agora, nesta mesma noite. E devo prevenir-lo de que depois de todos esses anos de silêncio e sussurros pretendo gritar quando me amar. Vou gritar tão alto que vão me ouvir no Ninho da Águia.
- Talvez possa dormir com você agora e casar mais tarde?
A Senhora Lysa soltou risinhos como se fosse uma menina.
- Oh, Petyr Baelish, você é tão maroto. Não, não, eu sou a Senhora do Ninho da Águia e ordeno que se case comigo neste exato momento.
Petyr encolheu os ombros.
- Nesse caso, seja como a senhora ordena. Sou impotente perante você, como sempre.
Proferiram seus votos menos de uma hora depois, em pé sob um dossel azul-celeste
enquanto o sol se afundava a oeste. Depois, mesas foram montadas junto da pequena torre de pederneira e banquetearam-se com codorna, veado e javali assado, empurrando tudo com um bom e leve hidromel. Archotes foram acesos quando o ocaso se instalou. O cantor de Lysa tocou "O voto não proferido" "Estações do meu amor" e"Dois corações que batem como um só". Vários
jovens cavaleiros até pediram a Sansa para dançar. A tia também dançou, fazendo rodopiar as saias quando Petyr a girou nos seus braços. O hidromel e o casamento tinham tirado anos de cima da Senhora Lysa. Ria de tudo desde que segurasse a mão do marido, e os olhos pareciam cintilar sempre que o olhava.
Quando chegou a hora de os levarem para a cama, os cavaleiros carregaram-na para a torre, despindo-a no caminho e gritando gracejos lascivos. Tyrion poupou-me disso, recordou Sansa. Não teria sido assim tão ruim ser despida para um homem que amasse, por amigos que os amassem a ambos. Mas por Joffrey... Estremeceu.
A tia só tinha trazido três senhoras consigo, por isso insistiram com Sansa para que ajudasse a despir Lorde Petyr e a empurrá-lo para a sua cama de núpcias. Ele submeteu-se com boa vontade e uma língua maliciosa, devolvendo o que recebia. Quando o conseguiram pôr dentro da torre e fora da roupa, as outras mulheres estavam coradas, com cordões soltos, vestidos tortos, saias em desarranjo. Mas Mindinho só sorria a Sansa enquanto o levavam para o quarto onde a senhora sua esposa esperava.
A Senhora Lysa e o Lorde Petyr tinham o quarto do terceiro andar para si, mas a torre era pequena... e cumprindo a promessa que havia feito, a tia gritou. Tinha começado a chover lá fora, levando os convivas para o salão um piso mais abaixo, e assim ouviram quase todas as palavras.
- Petyr - gemeu a tia de Sansa. - Oh, Petyr, Petyr, querido Petyr, oh oh oh. Aí, Petyr, aí. E aí o seu lugar. - O cantor da Senhora Lysa lançou-se numa versão lasciva de "O jantar da senhora", mas nem mesmo a sua voz e o som do instrumento foram capazes de abafar os gritos de Lysa. - Faça-me um bebê, Petyr - gritou -, faça-me outro bebezinho, querido. Oh, Petyr, meu precioso, meu precioso, PEEEEEEEEEETYR! - O último guincho foi tão alto que pôs os cães para ladrar, e duas das damas da tia quase não conseguiram conter o riso.
Sansa desceu a escada e penetrou na noite. Caía uma chuva ligeira sobre os restos do banquete, mas o ar tinha um cheiro fresco e limpo. A memória da sua noite de núpcias com Tyrion não a deixava. "No escuro, sou o Cavaleiro das Flores", ele tinha dito. "Poderia ser bom para você." Mas aquela foi apenas mais uma mentira Lannister. "Um cão consegue farejar uma mentira, sabei", disse-lhe um dia o Cão de Caça. Quase conseguia ouvir a aspereza rude de sua voz. "Olhe em volta e dê uma boa fungadela. Aqui são todos mentirosos... e todos eles são melhores do que você." Perguntou a si mesma o que teria acontecido a Sandor Clegane. Saberia que Joffrey tinha sido morto? Será que se importaria? Durante anos, ele fora o escudo juramentado do rei.
Permaneceu fora durante bastante tempo. Quando por fim foi em busca de sua cama, molhada e friorenta, só o tênue clarão de um fogo de esterco iluminava o salão escurecido. Não se ouvia um som vindo de cima. O jovem cantor estava sentado em um canto, tocando uma canção lenta para si mesmo. Uma das aias da tia beijava um cavaleiro no cadeirão de Lorde Petyr, ambos com as mãos atarefadas debaixo das roupas do outro. Vários homens tinham bebido até adormecer e um
estava na latrina, vomitando ruidosamente. Sansa foi encontrar o velho cão cego de Bryen na sua pequena alcova debaixo da escada e deitou-se ao lado dele. Ele acordou e lambeu-lhe o rosto.
- Meu velho e triste cão de caça - disse, afagando seu pelo.
- Alayne. - O cantor da tia estava em pé acima dela. - Querida Alayne. Chamo-me Marillion. Vi você entrar vinda da chuva. A noite está gelada e úmida. Deixe-me aquecê-la.
O velho cão ergueu a cabeça e rosnou, mas o cantor deu-lhe um tabefe e o cão escapuliu, ganindo.
- Marillion? - disse ela, insegura, - É... bondoso por pensar em mim, mas... peço que me desculpe. Estou muito cansada.
- E está muito bela. Tenho passado toda a noite fazendo canções para você na cabeça. Um deleite para os seus olhos, uma balada para os seus lábios, um dueto para os seus seios. Mas não as cantarei. Eram coisas fracas, indignas de tal beleza. - Sentou-se em sua cama e pôs a mão em sua perna, - Deixe-me em vez disso cantar para você com o meu corpo.
Um pouco do hálito dele chegou-lhe ao nariz.
- Está bêbado.
- Eu nunca fico bêbado, O hidromel só me deixa alegre. Estou em fogo. - A mão deslizou coxa acima. - E você também.
- Tire as mãos de cima de mim. Está fora de si.
- Misericórdia. Há horas que canto canções de amor. Meu sangue está agitado, E o seu também está, eu sei... não há garota que tenha metade da luxúria das que nasceram bastardas. Está molhada para mim?
- Eu sou uma donzela - protestou.
- Sério? Oh, Alayne, Alayne, minha bela donzela, dê-me o presente de sua inocência. Irá agradecer aos deuses por tê-lo feito. Farei com que cante mais alto do que a Senhora Lysa.
Sansa afastou-se dele com um empurrão, assustada.
- Se não me largar, a minh... o meu pai vai enforcá-lo. Lorde Petyr.
- O Mindinho? - ele soltou um risinho abafado, - A Senhora Lysa gosta bastante de mim, e eu sou o favorito de Lorde Robert, Se o seu pai me ofender, vou destruí-lo com um verso. - Pousou uma mão em seu seio e apertou, - Vamos tirar essa roupa molhada, Não vai querê-la rasgada, eu sei. Venha, doce senhora, ceda o coração...
Sansa ouviu o som suave do aço raspando em couro.
- Cantor - disse uma voz rude é melhor sair daqui, se quiser voltar a cantar. - A luz era fraca, mas ela viu o tênue brilho de uma lâmina.
O cantor também a viu.
- Arranje uma mulher para você... - A faca relampejou, e ele gritou. - Você me cortoul
- E faço coisa pior, se não for embora.
E, num instante, Marillion desapareceu. O outro ficou ali, erguendo-se acima de Sansa na escuridão.
- Lorde Petyr disse para vigiá-la. - Percebeu que era a voz de Lothor Brune. Não, não éa do Cão de Caça, como poderia ser? Claro que tinha de ser Lothor...
Naquela noite, Sansa quase não dormiu; em vez disso agitou-se e virou-se como fizera a bordo do Rei Bacalhau. Sonhou com a morte de Joffrey, mas quando ele arranhou a garganta e o sangue escorreu por seus dedos, Sansa viu com horror que era o irmão Robb. E sonhou também com a sua noite de núpcias, com os olhos de Tyrion a devorá-la enquanto se despia. Mas então ele tornou-se maior do que Tyrion tinha direito a ser, e quando se meteu na cama, tinha cicatrizes só de um lado do rosto. "Quero que me cante uma canção", rouquejou ele, e Sansa acordou e deu com o velho cão cego de novo a seu lado.
- Gostaria que fosse a Lady - disse.
Ao chegar a manhã, Grisel subiu até o quarto para servir ao senhor e à senhora uma travessa de pão matinal, com manteiga, mel, frutas e creme de leite. Voltou para dizer que Alayne era chamada. Sansa ainda estava tomada pelo sono e precisou de um momento para se lembrar de que a Alayne era ela.
A Senhora Lysa ainda se encontrava deitada, mas Lorde Petyr estava de pé e vestido.
- A sua tia quer falar com você - disse a Sansa enquanto puxava uma bota. - Disse-lhe quem é.
Deuses, sejam bons.
- Eu... agradeço, senhor.
Petyr enfiou a outra bota.
- Já agüentei o máximo do lar que sou capaz de suportar. Partimos para o Ninho da Águia esta tarde. - Beijou a senhora sua esposa e lambeu um resto de mel de seus lábios, e então desceu a escada.
Sansa ficou em pé aos pés da cama enquanto a tia comia uma pera e a estudava.
- Agora vejo - disse a Senhora Lysa, ao deixar de lado o caroço. - É tão parecida com Catelyn.
- É bondade sua dizê-lo.
- Não era para ser um elogio. A bem da verdade, é parecida demais com Catelyn. Algo tem de ser feito. Vamos escurecer seus cabelos antes de levarmos você para o Ninho da Águia, acho eu.
Escurecer meus cabelos?
- Se isso a agrada, tia Lysa.
- Não pode me chamar disso. Não podemos permitir que nenhuma palavra sobre a sua presença aqui chegue a Porto Real. Não pretendo deixar que o meu filho corra perigo. - Mordiscou um canto de um favo. - Mantive o Vale fora desta guerra. A nossa colheita foi abundante, as montanhas protegem-nos, e o Ninho da Águia é inexpugnável. Mesmo assim, não será bom atrair sobre nós a ira de Lorde Tywin. - Lysa apoiou o favo e lambeu mel dos dedos. - Petyr disse que esteve casada com Tyrion Lannister. Aquele anão nojento.
- Obrigaram-me a desposá-lo. Eu nunca quis isso.
- Assim como eu - disse a tia. - Jon Arryn não era anão, mas era velho. Pode não acreditar ao me ver agora, mas no dia em que casamos estava tão linda que envergonhei a sua mãe. Mas tudo que Jon desejava eram as espadas de meu pai, para ajudar os seus queridos rapazes. Devia tê-lo recusado, mas era um homem tão velho, quanto tempo poderia viver? Já não tinha metade dos dentes, e o hálito fedia a queijo ruim. Não consigo suportar um homem com mau hálito. O hálito de Petyr é sempre fresco... mas ele foi o primeiro homem que beijei, sabia? Meu pai disse que o nascimento dele era baixo demais, mas eu sabia como ele havia de subir alto. Jon entregou-lhe a alfândega de Vila Gaivota para me agradar, mas quando ele aumentou os lucros dez vezes o senhor meu esposo se deu conta de sua inteligência e deu-lhe outros cargos, até o levou a Porto Real para ser mestre da moeda. Isso foi duro, vê-lo todos os dias e continuar casada com aquele velho frio. Jon cumpria o seu dever no quarto, mas não era mais capaz de me dar prazer do que foi capaz de me dar filhos. A sua semente era velha e fraca. Todos os meus bebês morreram, exceto Robert; três meninas e dois meninos. Todos os meus queridos bebês mortos, e aquele velho durava e durava com o seu hálito fedido. Portanto, como vê, eu também sofri. - A Senhora Lysa fungou. - Sabe que a sua pobre mãe está morta?
- Tyrion contou-me - disse Sansa. - Disse que os Frey a assassinaram nas Gêmeas, com Robb.
Lágrimas jorraram de repente dos olhos da Senhora Lysa.
- Somos agora mulheres sós, você e eu. Tem medo, filha? Seja brava. Nunca me recusaria a acolher a filha de Cat. Estamos ligadas pelo sangue. - Chamou Sansa para mais perto com um gesto. - Pode vir me beijar no rosto, Alayne.
Obedientemente, Sansa aproximou-se e ajoelhou-se junto à cama. A tia estava ensopada num odor doce, embora por baixo houvesse um cheiro azedo e leitoso. A bochecha tinha gosto de maquiagem e pó.
Quando Sansa se afastou, a Senhora Lysa pegou seu pulso.
- E agora diga-me - disse em tom penetrante. - Está esperando bebê? Quero a verdade, saberei se mentir para mim.
- Não - disse Sansa, sobressaltada pela pergunta.
- É uma mulher já florescida, não é?
- Sim. - Sansa sabia que a verdade sobre a sua floração não podia ser escondida por muito tempo no Ninho da Águia. - Tyrion não... ele nunca... - Sentiu o rubor subir rosto acima. - Sou ainda uma donzela.
- O anão era incapaz?
- Não. Ele era só... era... - Gentil? Não podia dizer isso, não ali, àquela tia que o odiava tanto. - Ele.,, ele tinha prostitutas, senhora. Ele próprio me disse.
- Prostitutas. - Lysa largou seu pulso. - Claro que sim. Que mulher se deitaria com tal criatura, se não por ouro? Devia ter matado o Duende quando esteve em meu poder, mas ele ludibriou-me, E
cheio de baixa astúcia, esse aí. O mercenário dele matou o meu bom Sor Vardis Egen. Catelyn não o devia ter trazido para o Ninho, eu disse a ela, E ainda foi embora com o meu tio. Foi um gesto errado. O Peixe Negro era o meu Cavaleiro do Portão, e desde que nos deixou os clãs da montanha têm se tornado muito ousados. Mas Petyr em breve deixará tudo isso como deve ser. Farei dele Senhor Protetor do Vale. - A tia sorriu pela primeira vez, quase com calor. - Ele pode não ser tão alto ou forte como certos homens, mas vale mais do que todos eles. Confie nele e faça o que lhe disser.
- Farei, tia... senhora.
A Senhora Lysa pareceu agradada com aquilo.
- Eu conheci o rapaz, o Joffrey. Costumava chamar o meu Robert por nomes cruéis, e uma vez bateu nele com uma espada de madeira. Um homem dirá que o veneno é desonroso, mas a honra de uma mulher é diferente. A Mãe talhou-nos para protegermos nossos filhos, e nossa única desonra reside no fracasso. Saberá disso quando tiver um filho.
- Um filho? - disse Sansa com incerteza.
Lysa fez um gesto negligente com a mão.
- Não será antes de se passarem muitos anos. É nova demais para ser mãe. Mas um dia vai querer filhos. Tal como vai querer se casar.
- Eu., . eu sou casada, senhora.
- Sim, mas em breve será viúva, Fique feliz por o Duende preferir as rameiras dele. Não teria sido adequado que o meu filho recebesse as sobras daquele anão, mas como nunca a tocou... Que acharia de se casar com o seu primo, Lorde Robert?
A idéia abateu Sansa. Tudo o que sabia sobre Robert Arryn era que se tratava de um garotinho, e enfermiço. Não é comigo que ela quer que o filho case, é com a minha pretensão. Ninguém casará comigo por amor. Mas mentir era agora fácil.
- Eu... mal posso esperar para conhecê-lo, senhora. Mas ele ainda é uma criança, não é?
- Tem oito anos. E não é robusto. Mas é um rapaz tão bom, tão vivo e inteligente. Será um grande homem, Alayne. A semente é forte, disse o senhor meu esposo antes de morrer. Foram as suas últimas palavras. Os deuses deixam-nos às vezes vislumbrar o futuro quando estamos morrendo, Não vejo motivo para que não possa se casar assim que souber que o seu marido Lannister está morto. Um casamento secreto, claro. Não se pode pensar que o Senhor do Ninho da Águia se casaria com uma bastarda, isso não seria próprio. Os corvos devem trazer-nos a notícia de Porto Real quando a cabeça do Duende rolar. Você e Robert poderão se casar no dia seguinte, não seria isso uma alegria? Será bom para ele ter uma pequena companheira. Ele brincava com o filho de Vardis Egen quando voltamos ao Ninho da Águia, e também com os filhos de meu intendente, mas sempre foram duros demais, e não tive alternativa exceto mandá-los embora. Lê bem, Alayne?
- A Septã Mordane tinha a gentileza de dizer que sim.
- Robert tem olhos fracos, mas gosta que leiam coisas para ele - confidenciou a Senhora Lysa.
- Gosta de histórias sobre animais, principalmente. Conhece aquela cançãozinha sobre a galinha que se vestiu de raposa? Canto-a para ele o tempo todo, e ele nunca se cansa. E gosta de brincar de salto das rãs, de gira a espada, e de entra no meu castelo, mas tem de deixar que ganhe sempre. É apropriado, não acha? Afinal de contas, ele é o Senhor do Ninho da Águia, não pode nunca se esquecer disso. É bem-nascida, e os Stark de Winterfell sempre foram orgulhosos, mas Winterfell caiu, e agora na realidade não passa de uma pedinte, portanto deixe esse orgulho de lado. A gratidão caberá melhor a você, nas atuais circunstâncias. Sim, e a obediência. Meu filho terá uma esposa grata e obediente.
Os machados ressoavam dia e noite. Jon já não se lembrava da última vez que tinha dormido. Quando fechava os olhos, sonhava com a luta; quando acordava, lutava. Mesmo na Torre do Rei ouvia o incessante tunc de bronze, pederneira e aço roubados mordendo a madeira, e ouvia-o mais alto quando tentava descansar na cabana de aquecimento no topo da Muralha. Mance também tinha martelos trabalhando, assim como longas serras com dentes de osso e pederneira. Uma vez, quando Jon estava deslizando para um sono exausto, ouviu-se um grande estalo vindo da floresta assombrada e uma árvore-sentinela caiu numa nuvem de poeira e agulhas.
Quando Owen veio buscá-lo, estava acordado, tentando sem sucesso arranjar posição numa pilha de peles espalhada sobre o chão da cabana de aquecimento.
- Lorde Snow - disse Owen, sacudindo seu ombro a alvorada. - Estendeu uma mão a Jon para ajudá-lo a ficar em pé. Outros homens também estavam acordando, acotovelando-se uns aos outros enquanto calçavam as botas e afivelavam o cinto da espada no apertado confinamento da cabana. Ninguém falava. Estavam todos cansados demais para falar. Por aqueles dias, eram poucos os que chegavam a descer da Muralha. Demorava muito tempo para subir e descer na gaiola. Castelo Negro tinha sido abandonado ao Meistre Aemon, a Sor Wynton Sout e a mais alguns homens, velhos ou enfermos demais para lutar.
- Sonhei que o rei tinha vindo - disse Owen num tom feliz. - Meistre Aemon enviou um corvo, e o Rei Robert veio com todas as suas forças. Sonhei que via os seus estandartes dourados.
Jon obrigou-se a sorrir.
- Isso seria uma visão bem-vinda, Owen. - Ignorando a pontada de dor em sua perna, colocou um manto negro de peles sobre os ombros, apanhou a muleta e saiu para a Muralha, a fim de enfrentar mais um dia.
Uma rajada de vento enfiou finas gavinhas geladas em seus longos cabelos castanhos. A um quilômetro para o norte, os acampamentos dos selvagens acordavam, com as fogueiras erguendo dedos fumacentos para coçar o pálido céu da alvorada. Tinham erguido as suas tendas de peles ao longo do limite da floresta, incluindo mesmo um edifício tosco feito de troncos de árvores e ramos entretecidos; havia linhas de cavalos a leste, mamutes a oeste, e homens por todo lado, afiando as espadas, pondo pontas em lanças rústicas, vestindo armaduras improvisadas de peles, chifre e osso. Para cada homem que conseguia ver, Jon sabia que havia vinte outros invisíveis na floresta. A vegetação dava-lhes algum abrigo contra os ataques e escondia-os dos olhos dos odiados corvos.
Os arqueiros deles já avançavam, empurrando os manteletes rolantes.
- Aí vêm as nossas flechas para o café da manhã - anunciou Pyp alegremente, tal como fazia todas as manhãs. É bom que ele possa fazer disso uma brincadeira, pensou Jon. Alguém tem de fazer. Três dias antes, uma dessas flechas do café da manhã tinha atingido o Alyn Vermelho da Mata de Rosas na perna. Quem se debruçasse o suficiente ainda conseguia ver o seu corpo junto à base da Muralha. Jon tinha de pensar que era melhor eles sorrirem da brincadeira de Pyp do que pensarem a respeito do cadáver de Alyn.
Os manteletes eram escudos de madeira inclinados, suficientemente largos para esconder cinco membros do povo livre. Os arqueiros empurravam-nos para perto da Muralha e depois ajoelhavam-se atrás deles para disparar suas flechas através de fendas abertas na madeira. Da primeira vez que os selvagens os tinham levado, Jon gritou por flechas incendiárias e deixou meia dúzia em chamas, mas depois disso Mance começou a cobri-los com peles cruas. Nem todas as flechas incendiárias do mundo seriam capazes de botar fogo nelas agora. Os irmãos tinham até começado a fazer apostas sobre qual das sentinelas de palha colecionaria mais flechas antes do fim. Edd Doloroso liderava com quatro, mas Othell Yarwyck, Tumberjon e Watt do Lago Longo tinham três cada. Também foi Pyp que começou a batizar os espantalhos com o nome dos irmãos desaparecidos.
- Faz com que pareça que há mais de nós - disse.
- Mais de nós com flechas espetadas na barriga - protestou Grenn, mas o hábito parecia dar ânimo aos irmãos, e assim Jon permitiu que os nomes ficassem e as apostas prosseguissem.
Na borda da Muralha, um ornamentado olho de Myr em latão apoiava-se em três longos pés. Meistre Aemon usara-o antigamente para contemplar as estrelas, antes de lhe falharem os olhos. Jon virou o tubo para baixo, a fim de observar o inimigo. Até aquela distância a enorme tenda branca de Mance Rayder, feita com peles de ursos-brancos, era inconfundível. As lentes de Myr traziam os selvagens para tão perto que Jon conseguia distinguir os rostos. Do próprio Mance não viu sinal naquela manhã, mas a sua mulher, Dalla, estava do lado de fora cuidando da fogueira, enquanto a irmã Vai ordenhava uma cabra junto à tenda. Dalla parecia tão inchada que era uma surpresa conseguir se mover. O bebê deve chegar muito em breve, pensou Jon. Girou o olho para leste e procurou entre as tendas e árvores até encontrar a tartaruga. Aquilo também deve chegar muito em breve. Os selvagens tinham esfolado um dos mamutes mortos durante a noite e estavam amarrando firmemente a pele crua e ensangüentada à armação da tartaruga, mais uma camada por cima das peles de ovelha e outros animais. A tartaruga tinha um topo arredondado e oito enormes rodas, e sob as peles havia uma robusta armação de madeira. Quando os selvagens começaram a construí-la, Cetim pensou que estivessem fazendo um barco. Não se enganou por muito. A tartaruga era um casco virado ao contrário e aberto na frente e atrás; um edifício sobre rodas.
- Está pronta, não está? - perguntou Grenn.
- Quase. - Jon afastou os olhos. - Virá hoje, provavelmente. Encheu os barris?
- Todos. Congelaram bem durante a noite, o Pyp verificou.
Grenn tornara-se muito diferente do grande e desajeitado rapaz de pescoço vermelho de quem Jon ficara amigo. Tinha crescido quinze centímetros, o peito e os ombros tinham se alargado e não cortava o cabelo e a barba desde o Punho dos Primeiros Homens. Isso dava-lhe um aspecto tão enorme e hirsuto como se fosse um auroque, a alcunha zombeteira que Sor Alliser Thorne tinha colado nele durante o treino. Agora parecia cansado, porém. Quando Jon disse isso, ele assentiu.
- Ouvi os machados deles a noite toda, Não consegui dormir com todas as machadadas.
- Então vá dormir agora.
- Não preciso...
- Precisa. Quero que esteja descansado. Vá lá, não o deixo dormir durante a luta. - Obrigou-se a sorrir. - Ho único que consegue mover estes malditos barris.
Grenn foi embora resmungando, e Jon voltou à lente, perscrutando o acampamento dos selvagens. De tempos em tempos, uma flecha passava por cima da sua cabeça, mas tinha aprendido a ignorá-las. Os tiros eram longínquos e o ângulo ruim, portanto, as chances de ser atingido eram pequenas. Continuou sem ver sinal de Mance Rayder no acampamento, mas viu Tormund Terror dos Gigantes e dois de seus filhos em volta da tartaruga. Os filhos lutavam com a pele de mamute enquanto Tormund roía uma perna assada de cabra e berrava ordens. Em outro local, localizou o troca-peles selvagem, Varamyr Seis-Peles, caminhando entre as árvores com seu gato-das-sombras em seu encalço.
Quando ouviu o chocalhar das correntes do guincho e o gemido férreo da porta da gaiola se abrindo, soube que seria Hobb trazendo-lhes o café da manhã, tal como fazia todas as manhãs. A visão da tartaruga de Mance tinha roubado o apetite de Jon. Já quase não tinham óleo, e o último barril de piche fora atirado da Muralha havia duas noites. Em breve as flechas também começariam a escassear, e não havia ninguém fazendo mais delas. E na noite antes da última chegara um corvo do oeste, de Sor Denys Mallister. Bowen Marsh perseguira os selvagens até a Torre Sombria, aparentemente, e ainda mais adiante, penetrando nas sombras da Garganta. Na Ponte das Caveiras tinha defrontado o Chorão e trezentos selvagens e vencido uma sangrenta batalha. Mas a vitória tinha saído cara, Mais de cem irmãos mortos, entre os quais Sor Endrew Tarth e Sor Aladale Wynch. A Velha Romã em si havia sido levada de volta à Torre Sombria gravemente ferida. Meistre Mullin estava tratando dele, mas passaria algum tempo até estar em condições de retornar a Castelo Negro.
Quando leu aquilo, Jon despachou Zei para Vila Toupeira no melhor cavalo que possuíam, a fim de suplicar aos aldeões que ajudassem a guarnecer a Muralha. A mulher não tinha voltado. Quando enviou Mully à sua procura, este voltou relatando que a aldeia inteira estava deserta, incluindo o bordel, O mais certo era que Zei os tivesse seguido, pela estrada do rei afora. Talvez devêssemos todos fazer o mesmo, refletiu Jon sombriamente.
Obrigou-se a comer, com ou sem fome. Já era suficientemente ruim que não conseguisse dormir, não poderia prosseguir se também não se alimentasse. Além do mais, esta pode ser minha última refeição. Pode ser a última refeição para todos nós. E, assim, Jon tinha a barriga cheia de pão, bacon, cebolas e queijo quando ouviu Cavalo gritar: - A COISA VEM Aí!
Ninguém precisou perguntar o que "a coisa" era. E Jon também não precisou do olho de Myr do meistre para vê-la saindo de entre as tendas e as árvores.
- Afinal não se parece lá muito com uma tartaruga - comentou o Cetim. - As tartarugas não têm pelo.
- A maior parte delas também não tem rodas - disse Pyp.
- Faça soar o berrante de guerra - ordenou Jon, e Barricas deu dois longos sopros, para acordar Grenn e os outros homens adormecidos, que tinham estado de vigia durante a noite. Se os selvagens iam atacar, a Muralha precisaria de todos os homens. E os deuses sabem como temos poucos. Jon olhou para Pyp, Barricas e Cetim, Cavalo e Owen Idiota, Tim Língua-Presa, Mully, Bota Extra e os outros, e tentou imaginá-los avançando, lado a lado, espada com espada, contra uma centena de selvagens aos gritos na escuridão gelada do túnel, sem nada além de algumas barras de ferro entre uns e outros. Seria a esse ponto que se chegaria, a menos que conseguissem parar a tartaruga antes de ela abrir uma brecha no portão.
- E grande - disse Cavalo.
Pyp deu um estalo com os lábios.
- Pense em toda a sopa que vai dar. - A piada nasceu morta. Até Pyp tinha uma voz fatigada. Ele parece meio morto, pensou Jon, mas todos nós estamos.
O Rei-para-lá-da-Muralha tinha tantos homens que podia atirar atacantes frescos contra eles sempre, mas era o mesmo punhado de irmãos negros que tinha de agüentar todos os assaltos, e isso deixara-os em cacos.
Jon sabia que os homens por baixo da madeira e das peles estariam puxando com força, pondo nisso os ombros, esforçando-se por manter as rodas girando, mas depois que a tartaruga estivesse instalada contra a Muralha trocariam as cordas por machados. Pelo menos Mance não tinha mandado os mamutes naquele dia. Jon sentiu-se satisfeito por isso. A espantosa força dos animais era desperdiçada na Muralha, e o seu tamanho só os transformava em alvos fáceis. O último tinha demorado um dia e meio para morrer, soltando bramidos fúnebres terríveis de se ouvir.
A tartaruga aproximou-se lentamente por entre pedras, tocos de árvores e arbustos. Os ataques anteriores tinham custado ao povo livre uma centena de vidas ou mais. A maior parte dos mortos ainda jazia no local onde tinha caído. Nos momentos de calmaria, os corvos vinham lhes fazer companhia, mas agora as aves fugiam aos guinchos. Não gostavam mais do aspecto daquela tartaruga do que ele.
Jon sabia que Cetim, Cavalo e os outros estavam olhando para ele, à espera de ordens. Sentia-se tão cansado que já quase não conseguia pensar. A Muralha é minha, lembrou a si mesmo.
- Owen, Cavalo, para as catapultas. Barricas, você e o Bota Extra para as balistas. Os outros ponham as cordas nos arcos. Flechas incendiárias. Vejamos se conseguimos botar fogo nela. - Jon sabia que provavelmente seria um gesto inútil, mas tinha de ser melhor do que ficar impotente.
Pesada e lenta, a tartaruga era um alvo fácil, e os arqueiros e besteiros rapidamente a transformaram num enorme ouriço de madeira... mas as peles úmidas protegeram-na, tal como tinham protegido os manteletes, e as flechas incendiárias apagavam-se praticamente no momento que atingiam o alvo, Jon xingou em surdina.
- Balistas - ordenou. - Catapultas.
Os dardos das balistas penetravam profundamente nas peles, mas não fizeram mais danos do que as flechas incendiárias. As pedras quicavam no topo da tartaruga, deixando amassados nas espessas camadas de peles. Uma pedra de um dos trabucos talvez a tivesse conseguido esmagar, mas uma das máquinas continuava avariada, e os selvagens tinham passado bem longe da área que a segunda atingia.
- Jon, continua a avançar - disse Owen Idiota.
Ele conseguia ver isso com os próprios olhos. Centímetro a centímetro, metro a metro, a tartaruga aproximava-se, rolando, retumbando e balançando enquanto atravessava o campo de morte. Uma vez que os selvagens a instalassem contra a Muralha, ela daria todo o abrigo de que necessitavam enquanto seus machados abriam caminho através dos portões exteriores reparados às pressas. Lá dentro, debaixo do gelo, não levariam mais do que algumas horas retirando o entulho solto do túnel, e então nada haveria para detê-los além de dois portões de ferro, alguns cadáveres meio congelados e os irmãos que Jon quisesse lançar no caminho deles, para lutar e morrer nas trevas.
A sua esquerda, a catapulta soltou um tunc e encheu o ar de pedras girando. Estas metralharam a tartaruga como granizo e se dispersaram inofensivamente para o lado. Os arqueiros selvagens continuavam disparando flechas protegidos por seus manteletes. Uma delas atingiu com um ruído surdo o rosto de um homem de palha, e Pyp disse:
- Quatro para o Watt de Lago Longo! Temos um empate! - mas a flecha seguinte assobiou junto à sua própria orelha. - Fora! - gritou ele para baixo. - Eu não estou no torneio!
- As peles não queimam - disse Jon, tanto para si como para os outros. A única esperança que lhes restava era tentar esmagar a tartaruga quando atingisse a Muralha. Para isso, precisavam de pedregulhos. Por mais robusta que fosse a construção da tartaruga, um enorme pedaço de pedra que a atingisse em cheio vindo de uma altura de duzentos metros tinha de fazer algum estrago. - Grenn, Owen, Barricas, está na hora.
Junto da cabana de aquecimento havia uma fila de robustos barris de carvalho. Estavam cheios de rocha esmagada; o cascalho que os irmãos negros costumavam espalhar nos caminhos para obterem melhor apoio para os pés no topo da Muralha. Na noite anterior, depois de ver que o povo livre cobria a tartaruga de peles de ovelha, Jon tinha dito a Grenn para despejar água nos barris, tanta quanta eles pudessem conter. A água se infiltraria por entre a pedra esmagada, e durante a noite tudo aquilo estaria congelado. Era a coisa mais parecida com um pedregulho que teriam.
- Por que é que temos de congelar isto? - Grenn havia perguntado. - Por que é que não rolamos simplesmente os barris lá para baixo tal como estão?
Jon respondeu:
- Se eles baterem contra a Muralha durante a descida vão estourar, e cascalho solto iria se espalhar por todo lado. Não queremos fazer chover pedrinhas sobre os filhos da puta.
Encostou o ombro em um dos barris com Grenn, enquanto Barricas e Owen lutavam com outro. Juntos, fizeram-no balançar de um lado para o outro, a fim de libertá-lo do gelo que se formara em volta da base.
- O desgraçado pesa uma tonelada. - disse Grenn.
- Deite-o e role-o - disse Jon. - Cuidado, que se rolar por cima do seu pé acaba como o Bota Extra.
Depois de o barril estar deitado, Jon pegou um archote e agitou-o sobre a superfície da Muralha, de um lado para o outro, apenas o suficiente para derreter um pouco o gelo. A fina película de água ajudou o barril a rolar mais facilmente. Facilmente demais, na verdade; quase o perderam. Mas, por fim, com quatro homens somando esforços, rolaram o pedregulho até a borda e voltaram a pô-lo em pé.
Tinham já quatro dos grandes barris de carvalho alinhados por cima do portão quando Pyp gritou:
- Temos uma tartaruga batendo à nossa porta! - Jon escorou bem a perna ferida e debruçou-se para dar uma olhada. Tapumes, Marsh devia ter construído tapumes.
Havia tantas coisas que deviam ter feito. Os selvagens estavam arrastando os gigantes mortos para longe do portão. Cavalo e Mully atiravam pedras neles, e Jon pensou ver um homem cair, mas as pedras eram pequenas demais para ter algum efeito sobre a tartaruga propriamente dita. Perguntou a si mesmo o que faria o povo livre com o mamute morto que se encontrava no caminho, mas então viu a resposta. A tartaruga era quase tão larga quanto um salão, então simplesmente içaram-na por cima da carcaça. Sua perna estremeceu, mas Cavalo agarrou no braço dele e puxou-o para um ponto seguro.
- Não devia se debruçar assim - disse o rapaz.
- Devíamos ter construído tapumes. - Jon pensou que conseguia ouvir o bater de machados na madeira, mas aquilo era provavelmente apenas o medo ressoando em seus ouvidos. Olhou para Grenn. - Agora.
Grenn pôs-se atrás de um barril, encostou o ombro nele, grunhiu, e começou a empurrar. Owen e Mully foram ajudá-lo. Empurraram o barril trinta centímetros, e depois mais trinta. E, de repente, desapareceu.
Ouviram o tump que o barril soltou ao atingir a Muralha na queda e então, muito mais alto, o estrondo da madeira sendo estilhaçada, seguido por berros e gritos. Cetim soltou um grito de vitória, e Owen Idiota começou a dançar aos círculos, enquanto Pyp se debruçava para fora e gritava:
- A tartaruga estava recheada de coelhos! Vejam-nos fugindo aos saltos!
- Outra vez! - ladrou Jon, e Grenn e Barricas encostaram os ombros no barril seguinte e atiraram-no, rodopiando, pelo ar.
Quando terminaram, a parte da frente da tartaruga de Mance era uma ruína esmagada e lascada, e havia selvagens fugindo pela outra extremidade e esforçando-se por voltar ao acampamento. Cetim pegou sua besta e disparou alguns dardos contra eles, para botá-los para correr mais depressa. Grenn sorria abertamente através da barba, Pyp gracejava, e nenhum deles morreria naquele dia.
Amanhã, porém.., Jon olhou de relance para a cabana. Restavam oito barris de cascalho onde havia doze alguns momentos antes. Percebeu então como estava cansado e quanto lhe doía o ferimento. Tenho de dormir. Pelo menos algumas horas. Podia pedir um pouco de vinho dos sonhos ao Meistre Aemon, isso ajudaria.
- Vou descer até a Torre do Rei - disse-lhes. - Chamem-me se Mance preparar alguma. Pyp, a Muralha é sua.
- Minha? - disse Pyp.
- Dele? - disse Grenn.
Sorrindo, deixou-os naquilo e desceu na gaiola.
Uma taça de vinho dos sonhos realmente ajudou. Assim que se estendeu na estreita cama de sua cela foi tomado pelo sono. Os sonhos foram esquisitos e sem forma, cheios de estranhas vozes, gritos e choros, e do som do berrante de guerra, soando grave e ruidoso, uma única nota trovejante que pairava no ar.
Quando acordou, o céu fora da fenda que lhe servia de janela mostrava-se negro, e quatro homens que não conhecia encontravam-se em pé à sua volta. Um trazia uma lanterna.
- Jon Snow - disse bruscamente o mais alto dos quatro enfie as botas e venha conosco.
O primeiro pensamento atordoado que teve foi que de algum modo a Muralha caíra enquanto dormia, que Mance Rayder tinha enviado mais gigantes ou outra tartaruga e que tinha aberto caminho através do portão. Mas quando esfregou os olhos viu que os estranhos estavam todos vestidos de negro. São homens da Patrulha da Noite, compreendeu Jon.
- Vou para onde? Quem são vocês?
O homem alto fez um gesto, e dois dos outros arrancaram Jon da cama. Com a lanterna a iluminar o caminho levaram-no da cela e subiram meia volta de escada, até o aposento privado do Velho Urso. Viu Meistre Aemon em pé junto da lareira, com as mãos fechadas em volta do punho de uma bengala de abrunheiro. Septão Cellador estava meio bêbado, como de costume, e Sor Wynton Stout dormia num banco de janela. Os outros irmãos eram-lhe estranhos. Todos menos um.
Imaculado em seu manto forrado de peles e suas botas polidas, Sor Alliser Thorne virou-se para dizer:
- Aí está o vira-casaca, senhor. O bastardo de Ned Stark, de Winterfell.
- Não sou nenhum vira-casaca, Thorne - disse friamente Jon.
- Veremos. - Na cadeira de couro por trás da mesa onde o Velho Urso escrevia as suas cartas estava sentado um homem grande, largo e queixudo que Jon não conhecia. - Sim, veremos - voltou a dizer. - Não irá negar que é Jon Snow, espero? O bastardo do Stark?
- Ele gosta de se chamar de Lorde Snow. - Sor Alliser era um homem magro, esguio, compacto e vigoroso, e naquele momento seus olhos cruéis estavam escuros de divertimento.
- Foi você quem me apelidou de Lorde Snow - disse Jon. Sor Alliser gostava de dar alcunhas aos rapazes que treinava, durante os tempos passados como mestre de armas de Castelo Negro. O Velho Urso enviara Thorne para Atalaialeste-do-Mar. Os outros devem ser homens de Atalaialeste. A ave chegou a Cotter Pyke e ele enviou-nos ajuda. - Quantos homens trouxe? - perguntou ao homem sentado atrás da mesa.
- Quem faz perguntas sou eu - respondeu o queixudo. - Foi acusado de quebrar seus votos, covardia e deserção, Jon Snow. Nega ter abandonado os seus irmãos à morte no Punho dos Primeiros Homens e nega ter se juntado ao selvagem Mance Rayder, o autoproclamado Rei-para-lá-da-Muralha?
- Abandonado...? - Jon quase se engasgou com a palavra.
Meistre Aemon interveio então.
- Senhor, Donal Noye e eu discutimos estes assuntos quando Jon Snow voltou para junto de nós, e ficamos satisfeitos com as explicações dele.
- Bem, eu não estou satisfeito, meistre - disse o queixudo. - Vou ouvir com os meus ouvidos essas explicações. Ah, se vou!
Jon engoliu a ira.
- Não abandonei ninguém. Deixei o Punho na companhia de Qhorin Meia-Mão para bater o Passo dos Guinchos. Juntei-me aos selvagens sob ordens. Meia-Mão temia que Mance pudesse ter encontrado o Berrante do Inverno...
- O Berrante do Inverno? - Sor Alliser soltou um risinho. - Também lhe foi ordenado que contasse os snarks deles, Lorde Snow?
- Não, mas contei os seus gigantes o melhor que pude.
- Sor - exclamou o queixudo. - Irá se dirigir a Sor Alliser como sor, e a mim como senhor. Sou Janos Slynt, Senhor de Harrenhal e comandante aqui em Castelo Negro enquanto Bowen Marsh não voltar com a sua guarnição. Irá nos tratar com cortesia, ah, sim. Não admito ouvir um cavaleiro ungido como o bom Sor Alliser ser escarnecido pelo bastardo de um traidor. - Ergueu uma mão e espetou um dedo carnudo no rosto de Jon, - Nega ter levado uma mulher selvagem para a sua cama?
- Não. - O luto de Jon por Ygritte estava fresco demais para negá-la agora. - Não, senhor.
- Suponho que também tenha sido o Meia-Mão que ordenou que fodesse essa puta suja? - perguntou Sor Alliser com um sorriso afetado.
- Sor. Ela não era puta nenhuma, Sor, Meia-Mão disse-me para não me recusar, não importa o que os selvagens me pedissem, mas,., não negarei que fui além do que tinha de fazer, que... gostava dela.
- Então admite que quebrou os seus votos - disse Janos Slynt.
Jon sabia que metade dos homens de Castelo Negro visitavam Vila Toupeira de tempos em tempos para escavar em busca de tesouros enterrados no bordel, mas não desonraria Ygritte igualando-a às prostitutas de Vila Toupeira.
- Quebrei os meus votos com uma mulher, Isso admito. Sim.
- Sim, senhorl - quando Slynt franzia a testa, sua papada e seu queixo estremeciam. Era tão largo quanto o Velho Urso fora, e sem dúvida ia se tornar igualmente calvo se vivesse até a idade de Mormont. Metade de seus cabelos já tinha desaparecido, embora não pudesse ter mais de quarenta anos.
- Sim, senhor - disse Jon, - Cavalguei com os selvagens e comi com eles, como o Meia-Mão me ordenou que fizesse, e partilhei as peles com Ygritte. Mas juro-lhe que nunca virei a casaca. Fugi do Magnar assim que pude, e nunca levantei armas contra os meus irmãos ou o reino.
Os pequenos olhos de Lorde Slynt estudaram-no.
- Sor Glendon - ordenou. - Traga o outro prisioneiro.
Sor Glendon era o homem alto que tinha arrancado Jon da cama. Mais quatro homens acompanharam-no quando saiu da sala, mas retornaram pouco depois com um cativo, um homem pequeno, pálido, maltratado e de mãos e pés agrilhoados. Tinha as sobrancelhas unidas, o cabelo muito recuado nas têmporas e um bigode que parecia uma mancha de sujeira no lábio superior, mas o rosto estava inchado e manchado de hematomas, e tinha perdido a maior parte dos dentes da frente.
Os homens de Atalaialeste atiraram rudemente o cativo ao chão. Lorde Slynt olhou-o, de testa franzida.
- E este aquele de quem falou?
O cativo piscou olhos amarelos.
- É. - Foi só nesse instante que Jon reconheceu o Camisa de Chocalho. É um homem diferente sem a armadura, pensou. - É - repetiu o selvagem -, é o covarde que matou o Meia-Mão. Lá em cima nas Presas de Gelo, foi, depois de a gente ter caçado os outros corvos e matado todos. Queríamos também tratar deste, mas ele implorou por sua vida inútil, ofereceu-se pra se juntar à gente se o aceitássemos. O Meia-Mão jurou que antes disso ia ver o covarde morto, mas o lobo quase desfez Qhorin aos pedaços, e este aqui abriu a goela dele. - Então concedeu a Jon um sorriso de dentes quebrados e cuspiu sangue sobre os pés dele.
- E então? - perguntou Janos Slynt a Jon num tom duro. -Você nega? Ou irá dizer que Qhorin o ordenou que o matasse?
- Ele disse-me... - As palavras custaram a vir. - Ele disse-me para fazer não importa o que me pedissem.
Slynt olhou em volta do aposento privado, para os outros homens de Atalaialeste.
- Será que este rapaz pensa que eu caí de cabeça em uma carroça de nabos?
- Suas mentiras não vão salvá-lo agora, Lorde Snow - preveniu Sor Alliser Thorne. - Obteremos de você a verdade, bastardo.
- Eu disse-lhe a verdade. Nossos garranos estavam fraquejando, e o Camisa de Chocalho estava próximo. Qhorin disse-me para fingir que estava me juntando aos selvagens. "Não pode se recusar, não importa o que lhe seja solicitado", disse ele. Qhorin sabia que iam me obrigar a matá-lo. Camisa de Chocalho ia matá-lo de qualquer forma, e ele também sabia disso.
- Então agora diz que o grande Qhorin Meia-Mão temia esta criatura? - Slynt olhou para Camisa de Chocalho e resfolegou.
- Todos os homens temem o Senhor dos Ossos - resmungou o selvagem. Sor Glendon chutou-o e ele calou-se.
- Eu não disse isso - insistiu Jon.
Slynt bateu o punho contra a mesa.
- Eu ouvi-o! Sor Alliser avaliou-o bem, segundo parece. Mente com os dentes de bastardo que tem na boca. Bem, não tolerarei isso. Não tolerarei! Pode ter enganado este ferreiro aleijado, mas não engana Janos Slynt! Ah, não. Janos Slynt não engole mentiras assim tão facilmente. Acha que o meu crânio está recheado de couves?
- Não sei do que é que está recheado o seu crânio. Senhor.
- Lorde Snow é um grande arrogante - disse Sor Alliser. - Assassinou Qhorin, da mesma forma que os outros vira-casacas assassinaram Lorde Mormont. Não me surpreenderia se descobrisse que tudo faz parte do mesmo terrível plano. Benjen Stark pode bem ter também um dedo nisso. Tanto quanto sabemos, ele pode estar sentado na tenda de Mance Rayder nesse exato momento. Conhece esses Stark, senhor.
- Conheço - disse Janos Slynt. - Conheço-os bem demais.
Jon descalçou a luva e mostrou-lhes a mão queimada.
- Queimei a mão protegendo Lorde Mormont de uma criatura. E meu tio era um homem de honra, Nunca teria traído os votos dele.
- Tal como você? - caçoou Sor Alliser.
Septão Cellador pigarreou.
- Lorde Slynt - disse -, este rapaz recusou-se a proferir os votos no septo, como deve ser, e em vez disso foi para lá da Muralha a fim de proferir os votos perante uma árvore-coração. Os deuses do pai, disse ele, mas são também deuses dos selvagens.
- São os deuses do Norte, septão. - Meistre Aemon foi cortês, mas firme, - Senhores, quando Donal Noye foi morto, foi este jovem Jon Snow quem subiu à Muralha e a defendeu, contra toda a fúria do norte. Demonstrou ser valente, leal e cheio de recursos. Se não fosse ele, teria encontrado Mance Rayder aqui sentado quando chegou, Lorde Slynt. Está fazendo uma grande injustiça com ele, Jon Snow era o intendente e escudeiro do próprio Lorde Mormont. Foi escolhido para esse dever porque o Lorde Comandante viu nele grande promessa. Assim como eu.
- Promessa? - disse Slynt. - Bem, a promessa pode revelar-se falsa. Tem o sangue de Qhorin Meia-Mão nas mãos. Mormont confiava nele, você diz, mas e daí? Eu sei o que é ser traído por homens em quem se confia. Ah, sim. E conheço também os costumes dos lobos. - Apontou para o rosto de Jon. - Seu pai morreu como traidor.
- Meu pai foi assassinado. - Jon já tinha passado do ponto de importar-se com o que lhe fariam, mas não admitiria mais mentiras sobre o pai.
Slynt ficou roxo.
- Assassinato? Seu cachorro insolente. O Rei Robert ainda nem tinha esfriado quando Lorde Eddard começou a mover-se contra o filho. - Ficou de pé; mais baixo do que Mormont, mas largo de peito e braços, e com uma barriga correspondente. Uma pequena lança de ouro com esmalte vermelho na ponta prendia seu manto no ombro. - Seu pai morreu pela espada, mas era bem-nascido, uma Mão do Rei. Para você, uma corda bastará. Sor Alliser, leve este vira-casaca para uma cela de gelo.
- O senhor é sensato. - Sor Alliser agarrou Jon pelo braço.
Jon libertou-se com um empurrão e agarrou a garganta do cavaleiro com tal ferocidade que o ergueu no ar. Teria esganado o homem, se os homens de Atalaialeste não o tivessem afastado de Thorne. Este cambaleou para trás, esfregando as marcas que os dedos de Jon tinham deixado em seu pescoço.
- Veem com seus próprios olhos, irmãos. Este rapaz é um selvagem.
Quando a alvorada chegou, descobriu que não era capaz de enfrentar a idéia de comida. Ao cair da noite, posso estar condenado. Tinha o estômago ácido de bílis e sentia comichão no nariz, Tyrion coçou-o com a ponta da faca. Agüentar uma última testemunha, e depois é a minha vez. Mas o que fazer? Negar tudo? Acusar Sansa e Sor Dontos? Confessar, na esperança de passar o resto de seus dias na Muralha? Jogar os dados e rezar para que a Víbora Vermelha consiga derrotar Sor Gregor Clegane?
Tyrion apunhalou com indiferença uma salsicha gordurosa e cinzenta, desejando que fosse a irmã. Faz um frio dos demônios na Muralha, mas pelo menos ficaria isolado de Cersei. Não lhe parecia que pudesse ser um patrulheiro adequado, mas a Patrulha da Noite precisava tanto de homens inteligentes como de homens fortes. O Senhor Comandante Mormont tinha dito exatamente isso, quando Tyrion visitou Castelo Negro. Mas há aqueles votos inconvenientes. Significaria o fim de seu casamento e de qualquer pretensão que pudesse ter sobre Rochedo Casterly, mas, em todo caso, não parecia estar destinado a desfrutar de qualquer uma dessas coisas. E julgava recordar que havia um bordel numa aldeia próxima.
Não era a vida com que sonhara, mas era vida» E tudo que tinha de fazer para conquistá-la era confiar no pai, erguer-se em suas pequenas pernas deformadas e dizer: "Sim, fui eu, confesso". Essa era a parte que lhe dava nós nas entranhas. Quase desejava realmente ter cometido o ato de que era acusado, uma vez que parecia que teria de sofrer por ele fosse como fosse.
- Senhor? - disse Podrick Payne. - Eles estão aqui, senhor. Sor Addam. E os homens de manto dourado. Estão à espera lá fora.
- Pod, diga-me a verdade... acha que fui eu?
O rapaz hesitou. Quando tentou falar, não conseguiu emitir mais do que um fraco perdigoto.
Estou perdido. Tyrion suspirou.
- Não precisa responder. Foi um bom escudeiro para mim. Melhor do que eu merecia. Aconteça o que acontecer, agradeço por seus leais serviços.
Sor Addam Marbrand esperava à porta com seis homens de manto dourado. Nada tinha a dizer naquela manhã, aparentemente. Outro homem que julga que sou um assassino de familiares. Tyrion armou-se de toda a dignidade que conseguiu arranjar e bamboleou-se escadas abaixo. Sentia todos a observá-lo enquanto cruzava o pátio; os guardas nas muralhas, os palafreneiros junto aos estábulos, os ajudantes de cozinha, as lavadeiras e as criadas. Dentro da sala do trono, cavaleiros e fidalgos afastaram-se para deixá-los passar e murmuraram aos ouvidos de suas senhoras.
Assim que Tyrion ocupou seu lugar perante os juizes, outro grupo de homens de manto dourado introduziu Shae na sala.
Uma mão fria apertou-se em volta de seu coração. Varys traiu-a, pensou. Então lembrou-se. Não. Eu mesmo a traí Devia tê-la deixado com Lollys. Claro que iriam interrogar as aias de Sansa, eu faria o mesmo. Tyrion esfregou a cicatriz lisa que tinha onde estivera o nariz, perguntando a si mesmo por que Cersei teria se dado ao trabalho. Shae não sabe nada que possa me prejudicar.
- Eles planejaram o ato juntos - disse ela, aquela garota que ele amava. - O Duende e a Senhora Sansa planejaram isso depois de o Jovem Lobo ter morrido. Sansa queria vingança pelo irmão e Tyrion pretendia ficar com o trono. Ia matar a irmã em seguida, e depois o senhor seu pai, para poder se tornar Mão do Príncipe Tommen. Mas um ano ou dois mais tarde, antes de Tommen crescer demais, ia matá-lo também, para pôr a coroa na cabeça.
- Como pode saber tudo isso? - perguntou o Príncipe Oberyn. - Por que o Duende iria contar esses planos à aia da esposa?
- Ouvi uma parte, senhor - disse Shae e a senhora também deixou escapar algumas coisas. Mas a maior parte ouvi dos lábios dele. Não era só aia da Senhora Sansa. Fui a prostituta dele, durante todo o tempo que passou em Porto Real. Na manhã do casamento, ele arrastou-me pro lugar onde guardam os crânios de dragão e fodeu-me ali, com os monstros por toda a volta. E quando eu chorei, ele disse que devia ser mais grata, que não era qualquer moça que podia se tornar prostituta do rei. Foi aí que ele me contou como pretendia tornar-se rei. Disse que o pobre Joffrey nunca ia conhecer a noiva como ele tava me conhecendo. - Ela então começou a soluçar. - Nunca quis ser uma prostituta, senhores. Estava noiva. Ele era um escudeiro, um rapaz bom e corajoso, de bom nascimento. Mas o Duende viu-me no Ramo Verde e pôs o rapaz com quem eu queria casar na primeira fila da vanguarda, e depois de ele ser morto ordenou aos selvagens que me levassem à sua tenda. Shagga, o grande, e Timett, com o olho queimado. Ele disse que se não lhe desse prazer, me entregava a eles, e portanto eu dei. Depois trouxe-me pra cidade, pra ficar por perto quando ele me quisesse. Obrigou-me a fazer coisas tão vergonhosas...
O Príncipe Oberyn pareceu curioso.
- Que tipo de coisas?
- Coisas indescritíveis. - Enquanto as lágrimas rolavam lentamente por aquele rosto bonito, não havia dúvida de que todos os homens presentes no salão desejavam tomar Shae nos braços e confortá-la. - Com a boca e... outras partes do corpo, senhor. Todas as partes. Ele usou-me de todas as maneiras que há e... costumava me obrigar a dizer como ele era grande. O meu gigante, eu tinha de lhe chamar, o meu gigante de Lannister.
Osmund Kettleblack foi o primeiro a rir. Boros e Meryn juntaram-se a ele, e depois Cersei, Sor Loras e mais senhores e senhoras do que conseguia contar. A súbita rajada de hilaridade ressoou nas vigas e sacudiu o Trono de Ferro.
- É verdade - protestou Shae. - O meu gigante de Lannister. - As gargalhadas tornaram-se duas vezes mais ruidosas. A boca deles se torceu de diversão, as barrigas balançavam. Alguns riam tanto que expeliam ranho das narinas.
Salvei-os a todos, pensou Tyrion. Salvei esta cidade vil e todas as suas vidas sem valor? Havia centenas de pessoas na sala do trono, todas elas rindo, menos o pai de Tyrion. Ou pelo menos era o que parecia. Até a Víbora Vermelha riu alto, e Mace Tyrell parecia a ponto de estourar, mas Lorde Tywin Lannister permanecia sentado no meio deles como se fosse feito de pedra, com os dedos juntos por baixo do queixo.
Tyrion avançou.
- SENHORES! - gritou. Tinha de gritar, para ter alguma esperança de ser ouvido.
O pai levantou uma mão. Pouco a pouco, o salão voltou ao silêncio.
- Levem esta puta mentirosa para longe de minha vista - disse Tyrion - e eu darei a vocês a sua confissão.
Lorde Tywin assentiu, fez um gesto. Shae pareceu meio aterrorizada quando os homens de manto dourado a cercaram. Seus olhos encontraram-se com os de Tyrion quando ela foi levada do salão, Teria sido vergonha o que viu neles, ou medo? Perguntou a si mesmo o que Cersei lhe teria prometido. Receberá o ouro ou as jóias, o que quer que tenha pedido, pensou enquanto via as costas dela se afastando, mas antes da volta da lua ela vai ter você entretendo os homens de manto dourado em suas casernas.
Tyrion ergueu o olhar para os olhos duros e verdes do pai, com as suas manchas de ouro frio e brilhante.
- Sou culpado - disse -, tão culpado. É isso o que querem ouvir?
Lorde Tywin nada disse. Mace Tyrell assentiu. O Príncipe Oberyn pareceu moderadamente desapontado.
- Admite ter envenenado o rei?
- Nada disso - disse Tyrion. - Da morte de Joffrey sou inocente. Sou culpado de um crime mais monstruoso. - Deu um passo na direção do pai. - Nasci. Sobrevivi. Sou culpado de ser um anão, confesso. E independentemente de quantas vezes o meu bondoso pai tenha me perdoado, persisti na minha infâmia.
- Isso é uma loucura, Tyrion - declarou Lorde Tywin, - Fale do assunto que aqui nos traz. Não está sendo julgado por ser um anão.
- E aí que está errado, senhor. Estive sendo julgado por ser um anão minha vida toda.
- Não tem nada a dizer em sua defesa?
- Nada a não ser isto: não fui eu. Mas agora desejava ter sido. - Virou-se para enfrentar o salão, aquele mar de rostos pálidos. - Gostaria de ter veneno suficiente para todos vocês. Fazem-me lamentar não ser o monstro que gostariam que fosse, mas aí está. Sou inocente, mas aqui não
obterei justiça. Não me deixam alternativa exceto apelar aos deuses. Exijo julgamento pela batalha.
- Perdeu o juízo? - disse o pai.
- Não, encontrei-o. Exijo julgamento pela batalha!
Sua querida irmã não podia estar mais satisfeita.
- Ele tem esse direito, senhores - lembrou aos juizes, - Deixem que os deuses julguem. Sor Gregor Clegane lutará por Joffrey. Ele retornou à cidade anteontem à noite, a fim de colocar a sua espada a meu serviço.
O rosto de Lorde Tywin estava tão sombrio que por meio segundo Tyrion perguntou a si mesmo se ele também teria bebido vinho envenenado. Atingiu a mesa com um punho, furioso demais para falar. Foi Mace Tyrell quem se virou para Tyrion e fez a pergunta.
- Tem um campeão para defender a sua inocência?
- Tem, senhor. - O Príncipe Oberyn de Dorne pôs-se em pé. - O anão conseguiu me convencer.
A algazarra foi ensurdecedora. Tyrion sentiu especial prazer na súbita dúvida que vislumbrou nos olhos de Cersei. Foi preciso que cem homens de manto dourado batessem com o cabo das lanças no chão para que a sala do trono voltasse a se aquietar. A essa altura, Lorde Tywin Lannister já estava recomposto.
- Que o assunto seja decidido amanhã - declarou, num tom férreo. - Lavo as minhas mãos. - Lançou ao filho anão um olhar frio e zangado e depois saiu da sala a passos largos, pela porta do rei que se abria por trás do Trono de Ferro, com o irmão Kevan o seu lado.
Mais tarde, de volta à cela da torre, Tyrion serviu-se de uma taça de vinho e mandou Podrick Payne ir atrás de queijo, pão e azeitonas. Duvidava ser capaz de manter no estômago qualquer coisa mais pesada. Achava que eu iria docilmente, pai?, perguntou à sombra que as velas desenhavam na parede. Tenho em mim muito de si para isso. Sentia uma estranha paz, agora que tinha tirado o poder de vida e morte das mãos do pai e o depositado nas mãos dos deuses. Assumindo que existem deuses, e que eles não estão pouco se lixando. Caso contrário, estou em mãos dornesas. Não importa o que acontecesse, Tyrion estava satisfeito por saber que tinha feito em pedaços os planos de Lorde Tywin. Se o Príncipe Oberyn ganhasse, isso iria inflamar ainda mais Jardim de Cima contra os dorneses; Mace Tyrell veria o homem que aleijara seu filho ajudar o anão que quase envenenara sua filha escapar da devida punição. E se a Montanha triunfasse, Doran Martell poderia perfeitamente querer saber por que motivo o irmão tinha sido brindado com a morte em vez da justiça que Tyrion lhe prometera. Dorne podia acabar mesmo por coroar Myrcella.
Quase valia a pena morrer para saber de todos os problemas que causara. Virá ver o fim, Shae? Ficará lá com os outros, observando enquanto Sor Ilyn corta esta minha feia cabeça? Sentirá falta de seu gigante de Lannister quando ele estiver morto? Esvaziou a taça, jogou-a para o alto e cantou com vigor.
Cavalgou pelas ruas da cidade, desde o alto de sua colina.
Por becos e degraus e calçadas, para os braços de sua menina.
Porque ela era o secreto tesouro, a sua vergonha e o seu prazer.
E corrente e forte nada são, comparados com beijos de mulher.
Sor Kevan não o visitou naquela noite. Provavelmente estava com Lorde Tywin, tentando aplacar os Tyrell. Receio que não voltarei a ver meu tio. Serviu-se de outra taça de vinho. Uma pena que tivesse mandado matar Symon Língua de Prata antes de aprender a letra inteira daquela canção. Não era uma canção ruim, para falar a verdade. Especialmente se comparada com aquelas que seriam escritas sobre si futuramente.
- Porque mãos de ouro são sempre frias, mas há calor em mãos de mulher... - cantou. Talvez devesse escrever ele mesmo os outros versos. Se vivesse tempo suficiente.
Naquela noite, surpreendentemente, Tyrion Lannister dormiu longa e profundamente. Acordou à primeira luz da aurora, bem repousado e com um robusto apetite, e quebrou o jejum com pão frito, morcela, bolinhos de maçã e uma dose dupla de ovos cozidos com cebolas e pimenta ardida de Dorne. Depois pediu licença aos guardas para visitar o seu campeão. Sor Addam consentiu.
Tyrion foi encontrar o Príncipe Oberyn bebendo uma taça de vinho tinto enquanto punha a armadura. Era servido por quatro de seus fidalgos dorneses mais novos.
- Um bom dia para o senhor - disse o príncipe. - Aceita uma taça de vinho?
- Você devia beber antes da batalha?
- Eu sempre bebo antes das batalhas.
- Isso poderá levar à sua morte. Pior, poderá levar à minha morte.
O Príncipe Oberyn riu.
- Os deuses protegem os inocentes. Você é inocente, espero?
- Só de matar Joffrey - admitiu Tyrion. - Espero que saiba o que se prepara para enfrentar. Gregor Clegane é...
- ... grande? Ouvi dizer que sim.
- Ele tem quase dois metros e quarenta de altura e deve pesar cento e noventa quilos, e tudo de músculo. Luta com uma espada de duas mãos, mas só precisa de uma para manejá-la. É conhecido por ter cortado homens ao meio com um único golpe. Sua armadura é tão pesada que nenhum homem menor do que ele seria capaz de suportar o peso, quanto mais mexer-se lá dentro.
O Príncipe Oberyn não se mostrou impressionado.
- Já matei homens grandes antes. O truque é desequilibrá-los. Assim que caírem, estarão mortos. - O dornês parecia tão jovialmente confiante que Tyrion se sentiu quase tranqüilizado, até o outro se virar e dizer: - Daemon, a minha lança! - Sor Daemon atirou-a para ele, e a Víbora Vermelha apanhou-a no ar.
- Pretende enfrentar a Montanha com uma lança? - aquilo deixou Tyrion inquieto de novo. Em batalha, fileiras de lanças juntas faziam uma dianteira formidável, mas combate singular contra um espadachim habilidoso era outro assunto.
- Em Dorne gostamos de lanças. Além disso, é a única forma de me opor ao seu alcance. Olhe, Lorde Duende, mas assegure-se de não tocar. - A lança era freixo torneado com dois metros e meio de comprimento, com o cabo liso, grosso e pesado. Os últimos sessenta centímetros eram de aço: uma esguia ponta de lança em forma de folha que se estreitava para formar um perigoso espigão. As arestas pareciam suficientemente afiadas para fazer a barba. Quando Oberyn girou o cabo entre as palmas das mãos, cintilaram com um brilho negro. Óleo? Ou veneno? Tyrion decidiu que preferia não saber.
- Espero que seja bom com isso - disse em tom de dúvida.
- Não terá razões de queixa. Embora Sor Gregor talvez venha a ter. Por mais espessa que seja a sua placa, haverá fendas nas articulações. Do lado de dentro do cotovelo e do joelho, por baixo dos braços... Vou encontrar um lugar para lhe fazer cócegas, prometo, - Pôs a lança de lado. - Dizem que um Lannister sempre paga as suas dívidas. Talvez queira voltar comigo a Lançassolar quando o derramamento de sangue do dia terminar. Meu irmão Doran ficaria muito satisfeito por conhecer o legítimo herdeiro de Rochedo Casterly, especialmente se ele trouxesse a sua adorável esposa, a Senhora de Winterfell.
- Será que a cobra julga que tenho Sansa enfiada em algum lugar, como uma noz que estivesse guardando para o inverno? Se assim era, Tyrion não iria desenganá-lo.
- Uma viagem até Dorne poderá ser muito agradável, agora que reflito sobre o assunto.
- Faça planos para uma visita longa. - O Príncipe Oberyn bebericou o vinho. - Você e Doran têm muitos assuntos de interesse mútuo a discutir. Música, comércio, história, vinho, a moeda do anão... as leis de herança e sucessão. Sem dúvida que os conselhos de um tio beneficiariam a Rainha Myrcella nos árduos tempos que virão.
Se Varys tivesse passarinhos à escuta, Oberyn estava dando-lhes uma farta colheita.
- Creio que vou aceitar essa taça de vinho - disse Tyrion. Rainha Myrcella? Só teria sido mais tentador se tivesse Sansa escondida por baixo do manto. Se ela declarasse apoio a Myrcella no lugar de Tommen, iria o Norte segui-la? O que a Víbora Vermelha estava sugerindo era traição. Seria Tyrion realmente capaz de pegar em armas contra Tommen, contra o próprio pai? Cersei cuspiria sangue. Bastava isso para fazer com que talvez valesse a pena.
- Lembra-se da história que lhe contei quando nos encontramos pela primeira vez, Duende? - perguntou o Príncipe Oberyn, enquanto o Bastardo de Graçadivina ajoelhava à sua frente para prender suas grevas. - Não foi apenas devido à sua causa que eu e minha irmã fomos a Rochedo Casterly. Andávamos numa espécie de demanda. Uma demanda que nos levou a Tombastela, à Árvore, a Vilavelha, às Ilhas Escudo, a Crakehall e, por fim, a Rochedo Casterly... mas nosso verdadeiro destino era o casamento. Doran estava prometido à Senhora Mellario de Norvos, portanto foi deixado para trás, como castelão de Lançassolar. Minha irmã e eu ainda não estávamos comprometidos.
"Ella achou tudo aquilo empolgante. Estava nessa idade, e sua saúde delicada nunca lhe permitira muitas viagens. Eu preferia me divertir caçoando dos pretendentes de minha irmã. Houve o Pequeno Senhor Vesgo, o Escudeiro Boca-de-Esguicho, um que chamei de Baleia que Caminha, esse tipo de coisa. O único minimamente apresentável foi o jovem Baelor Hightower. Era um rapaz bonito, e minha irmã andou meio apaixonada por ele até que o rapaz teve o infortúnio de peidar uma vez na nossa presença. Imediatamente o apelidei de Baelor Peidorreiro, e depois disso Elia não conseguia olhá-lo sem rir. Eu era um jovenzinho monstruoso, alguém devia ter cortado minha língua perversa.”
Sim, concordou Tyrion em silêncio. Baelor Hightower já não era jovem, mas continuava sendo o herdeiro de Lorde Leyton; rico, bonito e um cavaleiro de magnífica reputação. Agora chamavam-lhe Baelor Sorriso Resplandecente. Se Elia tivesse se casado com ele em vez de Rhaegar Targaryen, poderia estar em Vilavelha com os filhos crescendo à sua volta. Perguntou a si mesmo quantas vidas teriam sido apagadas por aquele pum.
- Lanisporto era o fim de nossa viagem - prosseguiu o Príncipe Oberyn, enquanto Sor Arron Qorgyle o auxiliava a vestir uma túnica almofadada de couro e começava a atá-la nas costas. - Sabia que as nossas mães se conheciam desde muito antes?
- Creio recordar que tinham estado juntas na corte quando meninas. Companheiras da Princesa Rhaella?
- Exatamente. Eu estava convencido de que as mães tinham cozinhado aquela trama entre si. O Escudeiro Boca-de-Esguicho e os de sua laia, e as várias jovens donzelas cheias de espinhas que me tinham sido exibidas eram as amêndoas antes do banquete, destinando-se apenas a abrir nossos apetites. O prato principal deveria ser servido em Rochedo Casterly.
- Cersei e Jaime.
- Que anão mais esperto. Elia e eu éramos mais velhos, certamente. Seus irmãos não podiam ter mais de oito ou nove anos. Em todo o caso, uma diferença de cinco ou seis anos é bastante pequena. E havia uma cabine vazia no nosso navio, uma cabine muito boa, o tipo de cabine que poderia se destinar a uma pessoa de nascimento elevado. Como se a intenção fosse levarmos alguém para Lançassolar. Um jovem pajem, talvez. Ou uma companheira para Elia. A senhora sua mãe pretendia prometer Jaime à minha irmã, ou Cersei a mim. Talvez ambos.
- Talvez - disse Tyrion mas o meu pai...
- ... governava os Sete Reinos, mas em casa era governado pela senhora sua esposa, ou pelo menos era o que a minha mãe sempre dizia. - O Príncipe Oberyn ergueu os braços para que Lorde Dagos Manwoody e o Bastardo de Graçadivina pudessem enfiar uma longa camisa de cota de malha por sua cabeça. - Em Vilavelha ficamos sabendo da morte de sua mãe e do filho monstruoso que ela dera à luz. Podíamos ter voltado naquele momento, mas minha mãe decidiu prosseguir. Já lhe contei sobre o acolhimento que encontramos em Rochedo Casterly.
“O que não lhe contei é que a minha mãe esperou o tempo que era decente, e então abordou o seu pai com aquilo que nos levara ali. Anos mais tarde, em seu leito de morte, ela contou-me que Lorde Tywin nos recusou bruscamente. Informou-a de que a filha estava destinada ao Príncipe Rhaegar. E quando ela perguntou por Jaime, para desposar Elia, ele ofereceu a sua pessoa.
- Oferta essa que ela recebeu como um ultraje.
- E era. Até você pode ver isso, certamente.
- Oh, certamente. - Tudo vem de trás e mais de trás, pensou Tyrion, de nossas mães e pais e dos que vieram antes deles. Somos marionetes a dançar, presos aos cordéis daqueles que chegaram antes de nós, e um dia nossos filhos ficarão com nossos cordéis e dançarão em nosso lugar. - Bem, o Príncipe Rhaegar casou-se com Elia de Dorne, não com Cersei Lannister de Rochedo Casterly. Portanto, parece que a sua mãe ganhou essa justa.
- Ela achou que sim - concordou o Príncipe Oberyn -, mas o seu pai não é homem para esquecer tais desfeitas. Ensinou um dia essa lição ao Senhor e à Senhora Tarbeck, e aos Reyne de Castamere. E, em Porto Real, ensinou-a à minha irmã. O elmo, Dagos.
- Mandwoody entregou-o a ele; um elmo elevado e dourado com um disco de cobre montado na testa, o sol de Dorne. Tyrion viu que a viseira havia sido removida. - Elia e os filhos esperam justiça há muito tempo. - O Príncipe Oberyn calçou luvas flexíveis de couro vermelho e voltou a pegar na lança. - Mas hoje vão obtê-la.
Para o combate fora escolhido o pátio exterior. Tyrion teve de saltar e correr para acompanhar as longas passadas do Príncipe Oberyn. A serpente está impaciente, pensou. Esperemos que ele também esteja venenoso. O dia estava cinzento e ventoso. O sol lutava para abrir caminho por entre as nuvens, mas Tyrion não seria mais capaz de indicar quem iria vencer essa luta do que aquela da qual a sua vida dependia.
Pareciam um milhar, as pessoas que tinham vindo ver se ele iria sobreviver ou morrer. Aglomeravam-se ao longo dos adarves do castelo e acotovelavam-se nos degraus de torres e fortalezas. Observavam a partir de portas de estábulos, de janelas e pontes, de varandas e telhados. E o pátio estava repleto, tanta gente que os homens de manto dourado e os cavaleiros da Guarda Real tinham de empurrar todos para trás, a fim de abrir espaço suficiente para o combate. Alguns tinham trazido cadeiras para assistir com mais conforto, enquanto outros se empoleiravam em barris. Devíamos ter feito isso na Arena dos Dragões, pensou amargamente Tyrion. Podíamos ter cobrado uma moeda por cabeça e arranjaríamos o suficiente para pagar tanto a boda como o funeral de Joffrey. Alguns dos espectadores até tinham crianças pequenas montadas sobre os ombros para verem melhor. Gritavam e apontavam ao ver Tyrion.
A própria Cersei parecia quase uma criança ao lado de Sor Gregor. Em sua armadura, a Montanha parecia maior do que qualquer homem tinha direito a ser. Sob um longo sobretudo amarelo ostentando os três cães negros de Clegane, usava armadura pesada por cima de cota de malha, com o baço aço cinza amassado e riscado em batalha. Por baixo daquilo haveria couro fervido e uma camada almofadada. Um elmo de topo chato estava afivelado ao seu gorjal, com buracos para respirar em volta da boca e do nariz e uma estreita ranhura para ver. A figura no topo do elmo era um punho de pedra.
Se Sor Gregor sofria com seus ferimentos, Tyrion não via sinal disso desde o outro lado do pátio. Ele, ali em pé, parece ter sido esculpido em pedra. A espada estava espetada no chão à sua frente, um metro e oitenta de metal marcado. As enormes mãos de Sor Gregor, revestidas por manoplas articuladas de aço, seguravam no guarda-mão de ambos os lados do cabo. Até a amante do Príncipe Oberyn empalideceu ao vê-lo.
- Vai lutar com aquilo? - disse Eliaria Sand num tom segredado.
- Vou matar aquilo - respondeu descuidadamente o seu amante.
Tyrion tinha suas próprias dúvidas, agora que se encontravam à beira do combate. Quando olhou para o Príncipe Oberyn viu-se desejando ter Bronn para defendê-lo... ou melhor ainda, Jaime. A Víbora Vermelha tinha uma armadura leve; grevas, braçais, gorjal, espaldar e braguilha de aço. Fora isso, Oberyn vestia couro flexível e sedas esvoaçantes. Sobre a cota de malha usava as suas escamas brilhantes de cobre, mas cota de malha e escamas, em conjunto, não lhe dariam um quarto da proteção da placa pesada de Gregor. Com a viseira removida, o elmo do príncipe não passava efetivamente de um meio-elmo, faltando-lhe até uma proteção para o nariz. Seu escudo redondo de aço era brilhantemente polido, e ostentava o sol e a lança em ouro vermelho, ouro amarelo, ouro branco e cobre.
Dançar em volta dele até ficar tão cansado que mal consiga erguer o braço, e depois derrubá-lo de costas. A Víbora Vermelha parecia ter a mesma ideia de Bronn. Mas o mercenário não tivera rodeios quanto ao risco dessa tática. Espero, com os sete infernos, que saiba o que está fazendo, serpente.
Tinham erigido uma plataforma ao lado da Torre da Mão, a meio caminho entre os dois campeões. Era aí que se sentava Lorde Tywin com o irmão, Sor Kevan. O Rei Tommen não estava visível; pelo menos por isso Tyrion sentia-se grato.
Lorde Tywin deu um breve relance ao seu filho anão, e então levantou a mão. Uma dúzia de trombeteiros soprou uma fanfarra para aquietar a multidão. O Alto Septão avançou com passinhos curtos e sua grande coroa de cristal e rezou para que o Pai no Céu os ajudasse naquele julgamento e para que o Guerreiro emprestasse a sua força ao braço do homem cuja causa era justa. Esse sou eu, quase gritou Tyrion, mas eles iriam apenas rir, e estava mortalmente farto de risos.
Sor Osmund Kettleblack trouxe a Clegane o seu escudo, uma coisa enorme de pesado carvalho reforçado com ferro negro. Enquanto a Montanha enfiava o braço esquerdo nas correias, Tyrion viu que outro símbolo havia sido pintado por cima dos cães de Clegane. Naquela manhã, Sor Gregor usava a estrela de sete pontas que os ândalos tinham trazido para Westeros quando cruzaram o mar estreito e esmagaram os Primeiros Homens e os seus deuses. Muito pio da sua parte, Cersei, mas duvido que os deuses se deixem impressionar.
Havia cinquenta metros entre os dois. O Príncipe Oberyn avançou rapidamente, Sor Gregor de um modo mais agourento. O chão não treme quando ele caminha, disse Tyrion a si mesmo. Isso é só o meu coração batendo. Quando os dois homens chegaram a uma distância de dez metros, a Víbora Vermelha parou e gritou:
- Disseram-lhe quem eu sou?
Sor Gregor soltou um grunhido através dos buracos para respirar.
- Um morto qualquer. - E avançou, inexorável.
O dornês deslizou para o lado.
- Sou Oberyn Martell, um príncipe de Dorne - disse, enquanto a Montanha se virava para mantê-lo no seu campo de visão. - A Princesa Elia era minha irmã.
- Quem? - perguntou Gregor Clegane.
A longa lança de Oberyn saltou numa estocada, mas Sor Gregor parou a ponta dela com o escudo, empurrou-a para o lado, e investiu contra o príncipe, com a grande espada a relampejar. O dornês rodopiou para longe, intocado. A lança saltou em frente. Clegane golpeou-a com a espada, Martell puxou-a, após o que voltou a atirá-la em frente. Metal guinchou contra metal quando a ponta da espada deslizou no peito da Montanha, cortando o sobretudo e deixando um longo arranhão brilhante no aço que se encontrava por baixo.
- Elia Martell, Princesa de Dorne - sibilou a Víbora Vermelha. - Violou-a. Assassinou-a. Matou os filhos dela.
Sor Gregor grunhiu. Avançou pesadamente para acertar a cabeça do dornês. O Príncipe Oberyn evitou-o facilmente.
- Violou-a. Assassinou-a. Matou os filhos dela.
- Veio conversar ou lutar?
- Vim ouvir a sua confissão. - A Víbora Vermelha lançou um rápido golpe contra a barriga da Montanha, sem qualquer efeito.
Gregor tentou golpeá-lo e falhou. A longa lança dardejou por cima de sua espada. Qual língua de serpente, volteava para a frente e para trás, fintando embaixo e batendo em cima, em estocadas dirigidas às virilhas, ao escudo, aos olhos. A Montanha dá um alvo grande, pelo menos, pensou Tyrion. O Príncipe Oberyn dificilmente erraria, embora nenhum de seus golpes tivesse conseguido penetrar a placa pesada de Sor Gregor. O dornês não parava de rodear o adversário, de lançar estocadas e de voltar a saltar para trás, forçando o homem maior a virar-se e virar-se de novo, Clegane está perdendo-o de vista. O elmo da Montanha tinha uma viseira estreita, o que lhe limitava severamente a visão. Oberyn estava fazendo bom uso desse fato e do comprimento da lança e de sua rapidez.
A luta prosseguiu naqueles moldes durante o que pareceu um longo período. Deslocaram-se de um lado para o outro pátio afora e rodaram e voltaram a rodar, descrevendo espirais, com Sor Gregor golpeando o ar enquanto a lança de Oberyn atingia os braços e as pernas e duas vezes as têmporas. O grande escudo de madeira de Gregor também recebeu a sua cota de golpes, até uma cabeça de cão espreitar de debaixo da estrela e em outros pontos ser o carvalho nu a surgir. Clegane soltava um grunhido de vez em quando, e uma vez Tyrion ouviu-o resmungar um xingamento, mas fora isso lutava num silêncio carrancudo.
Mas Oberyn Martell não.
- Violou-a - gritava, fintando. - Assassinou-a - dizia, esquivando-se de um golpe em arco da espada de Gregor. - Matou os filhos dela - berrava, atingindo a garganta do gigante com a ponta da lança, apenas para vê-la deslizar pelo espesso gorjal de aço com um guincho.
- Oberyn está brincando com ele - disse Eliaria Sand.
Isso é brincadeira de tolos, pensou Tyrion.
- A Montanha é grande demais para ser brinquedo de quem quer que seja.
Em torno do pátio, a multidão de espectadores aproximava-se lentamente dos dois combatentes, avançando centímetro a centímetro para ver melhor. A Guarda Real tentava contê-los, empurrando com força os basbaques com seus grandes escudos brancos, mas havia centenas de basbaques e só seis dos homens da armadura branca.
- Violou-a. - O Príncipe Oberyn parou um violento golpe com a ponta da lança. - Assassinou-a. - Atirou a ponta da lança contra os olhos de Clegane, tão depressa que o enorme homem vacilou para trás. - Matou os filhos dela. - A lança cintilou para o lado e para baixo, raspando na placa de peito da Montanha. - Violou-a. Assassinou-a. Matou os filhos dela. - A lança era sessenta centímetros mais longa do que a espada de Sor Gregor, mais do que o suficiente para mantê-lo a uma distância incômoda. A Montanha golpeava a haste sempre que Oberyn saltava sobre ele, tentando cortar a ponta da lança, mas era como se estivesse tentando cortar de um golpe as asas de uma mosca. - Violou-a. Assassinou-a. Matou os filhos dela. - Gregor tentou investir, mas Oberyn esquivou-se para o lado e rodeou-o pelas costas. - Violou-a. Assassinou-a. Matou os filhos dela.
- Fique quieto. - Sor Gregor parecia estar se movendo um pouco mais lentamente, e a sua espada já não se erguia tanto como quando a luta tinha começado. - Fecha a merda da boca.
- Violou-a - disse o príncipe, deslocando-se para a direita.
- Basta! - Sor Gregor deu dois longos passos e fez cair a espada sobre a cabeça de Oberyn, mas o dornês recuou uma vez mais.
- Assassinou-a - disse.
- CALE-SE! - Gregor arremeteu com ímpeto, direto contra a ponta da lança, que atingiu com violência a parte direita de seu peito e depois deslizou para o lado com um hediondo guincho de aço.
De repente a Montanha encontrava-se suficientemente perto para atacar, com a sua enorme espada relampejando numa confusão de aço. A multidão também gritava. Oberyn esquivou-se do primeiro golpe e largou a lança, inútil agora que Sor Gregor tinha penetrado em seu raio de ação. O segundo golpe foi aparado pelo escudo do dornês. Metal colidiu com metal num estrondo ensurdecedor, pondo a Víbora Vermelha a cambalear para trás. Sor Gregor seguiu-o, berrando. Ele não usa palavras, limita-se a rugir como um animal, pensou Tyrion. A retirada de Oberyn transformou-se numa impetuosa fuga para trás, a meros centímetros da espada que lhe atacava o peito, os braços, a cabeça.
O estábulo encontrava-se atrás dele. Espectadores gritaram e empurraram-se para sair do caminho. Um deles tropeçou e caiu contra as costas de Oberyn. Sor Gregor atacou com toda a sua fúria selvagem. A Víbora Vermelha atirou-se para o lado, rolando. O infeliz cavalariço que estava atrás dele não foi assim tão rápido. No momento em que seu braço se erguia para proteger o rosto, a espada de Gregor cortou-o entre o cotovelo e o ombro.
- Cale-SE! - berrou a Montanha em resposta ao grito do cavalariço, e dessa vez brandiu a lâmina de lado, fazendo voar a metade superior da cabeça do rapaz por sobre o pátio, numa chuva de sangue e miolos. Centenas de espectadores pareceram perder subitamente todo o interesse na culpa ou inocência de Tyrion Lannister, julgando pelo modo como se atropelaram e empurraram uns aos outros para fugir do pátio.
Mas a Víbora Vermelha de Dorne estava de novo em pé, com a sua longa lança na mão.
- Elia - gritou para Sor Gregor. - Violou-a. Assassinou-a. Matou os filhos dela. E agora, diga o nome dela.
A Montanha rodopiou. Elmo, escudo, espada, sobretudo, estava salpicado de sangue e entranhas da cabeça aos pés.
- Você fala demais - resmungou. - Faz minha cabeça doer.
- Vou ouvi-lo dizer isso. Ela era Elia de Dorne.
A Montanha fungou de desprezo e atacou... e nesse momento o sol rompeu por entre as nuvens baixas que escondiam o céu desde a alvorada.
O sol de Dorne, disse Tyrion a si mesmo, mas quem primeiro reagiu para colocar o sol nas costas foi Gregor Clegane. Este homem é obtuso e brutal, mas tem os instintos de um guerreiro.
A Víbora Vermelha agachou-se, semicerrando os olhos, e voltou a fazer a lança saltar em frente. Sor Gregor tentou golpeá-la, mas a estocada havia sido apenas uma finta. Desequilibrado, deu um passo trôpego para a frente.
O Príncipe Oberyn inclinou seu escudo amassado de metal. Um raio de luz do sol refletiu-se, cegante, em ouro e cobre polido, e penetrou na estreita fenda do elmo do adversário. Clegane ergueu seu escudo para se proteger do brilho. A lança do Príncipe Oberyn dardejou como um relâmpago e descobriu a brecha na pesada placa de aço, a articulação por baixo do braço. A ponta mergulhou através de cota de malha e couro fervido. Gregor soltou um grunhido estrangulado quando o dornês torceu a lança e a libertou.
- Elia. Diga o nome! Elia de Dorne! - descrevia um círculo, com a lança preparada para outra estocada. - Diga o nome!
Tyrion tinha a sua prece privada. Caia e morra, eram as palavras que a compunham. Maldito seja, caia e morra! O sangue que pingava da axila da Montanha era agora o seu, e devia estar sangrando ainda mais dentro da armadura. Quando tentou dar um passo, um joelho cedeu. Tyrion pensou que ele ia cair.
O Príncipe Oberyn tinha dado a volta por trás dele.
- ELIA DE DORNE! - gritou.
Sor Gregor começou a se virar, mas com demasiada lentidão e tarde demais. A ponta da lança penetrou daquela vez na parte de trás do joelho, através de camadas de cota de malha e couro entre as placas, penetrando na coxa e na barriga da perna. A Montanha cambaleou, oscilou e depois caiu de cara no chão. A enorme espada saltou de sua mão. Lenta e pesadamente, rolou sobre as costas.
O dornês jogou fora o seu escudo arruinado, pegou na lança com ambas as mãos e afastou-se lentamente. Atrás dele, a Montanha soltou um gemido e ergueu-se sobre um cotovelo. Oberyn rodopiou com a rapidez de um gato e correu em direção ao adversário caído.
- EEEEELLLLLIIIIIAAAAA! - gritou, ao empurrar a lança com todo o peso de seu corpo. O crac da haste de freixo quebrando foi um som quase tão delicioso quanto o lamento de fúria de Cersei, e por um instante o Príncipe Oberyn teve asas. A serpente saltou com vara sobre a Montanha. Um metro e vinte de lança partida projetavam-se da barriga de Clegane quando o Príncipe Oberyn rolou, se levantou e sacudiu a poeira. Jogou fora a lança estilhaçada e pegou a espada do adversário. - Se morrer antes de dizer o nome dela, sor, vou persegui-lo por todos os sete infernos - prometeu.
Sor Gregor tentou se levantar. A lança quebrada atravessara-o por completo e o estava prendendo ao chão. Fechou ambas as mãos em volta da haste, grunhindo, mas não foi capaz de puxá-la. Por baixo dele espalhava-se uma poça vermelha.
- Estou me sentindo mais inocente a cada instante - disse Tyrion a Eliaria Sand, a seu lado.
O Príncipe Oberyn aproximou-se do adversário.
- Diga o nome! - pôs um pé no peito da Montanha e ergueu a espada com ambas as mãos. Tyrion nunca saberia se ele pretendia cortar a cabeça de Gregor ou enfiar a ponta através de sua viseira.
A mão de Clegane saltou e agarrou o dornês atrás do joelho. A Víbora Vermelha fez a espada cair num golpe selvagem, mas estava desequilibrado, e o gume não fez mais do que deixar mais um amassado no braçal da Montanha. Então a espada foi esquecida quando a mão de Gregor se apertou e torceu, fazendo o dornês cair por cima dele. Lutaram no meio da poeira e do sangue, com a lança quebrada se mexendo de um lado para o outro. Tyrion viu com horror que a Montanha tinha envolvido o príncipe num enorme braço, apertando-o com força contra o peito, como se fosse um amante.
- Elia de Dorne - todos ouviram Sor Gregor dizer, quando os dois ficaram suficientemente próximos para se beijar. Sua voz profunda retumbava dentro do elmo. - Matei a criazinha chorona dela. - Lançou a mão livre contra o rosto sem proteção de Oberyn, enfiando dedos de aço em seus olhos. - E então estuprei-a. - Clegane esmagou o punho na boca do dornês, transformando seus dentes em lascas. - E depois esmaguei a porra da cabeça dela. Assim. - Quando puxou para trás o enorme punho, o sangue em sua manopla pareceu fumegar no ar frio da alvorada. Ouviu-se um crunch nauseante. Eliaria Sand uivou de terror e o café da manhã de Tyrion subiu borbulhando até sua boca. Deu por si de joelhos, vomitando bacon, salsicha e bolinhos de maçã, e aquela dose dupla de ovos estrelados feitos com cebolas e pimenta ardida de Dorne.
Não chegou a ouvir o pai proferir as palavras que o condenavam. Talvez não houvesse necessidade de palavras. Pus a minha vida nas mãos da Víbora Vermelha, e ele deixou-a cair. Quando se lembrou, tarde demais, de que as serpentes não tinham mãos, Tyrion desatou a rir histericamente.
Já tinha descido metade da escada em espiral quando percebeu que os homens de manto dourado não o estavam levando de volta à sua sala de torre.
- Fui mandado para as celas negras - disse. Não obteve resposta. Para que gastar saliva com os mortos?
Dany quebrou o jejum à sombra do caquizeiro que crescia no jardim do terraço, observando os dragões se perseguirem uns aos outros em volta do cume da Grande Pirâmide onde outrora se erguera a enorme harpia de bronze. Meereen tinha uma vintena de pirâmides menores, mas nenhuma chegava sequer à metade da altura daquela. Dali conseguia ver toda a cidade: as estreitas vielas sinuosas e as largas ruas de tijolo, templos e celeiros, choupanas e palácios, bordéis e casas de banhos, jardins e fontes, os grandes círculos vermelhos das arenas de luta. E para lá das muralhas estendia-se o mar de peltre, o sinuoso Skahazadhan, as secas colinas marrons, pomares queimados e campos enegrecidos. Ali em cima, em seu jardim, Dany sentia-se às vezes como um deus, vivendo no topo da montanha mais alta do mundo.
Será que todos os deuses se sentem assim tão sozinhos? Alguns deviam se sentir, certamente. Missandei tinha lhe contado a história do Senhor da Harmonia, adorado pelo Pacífico Povo de Naath; era o único deus verdadeiro, segundo a sua pequena escriba, o deus que sempre existiu e sempre existiria, que fez a lua, as estrelas e a terra, e todas as criaturas que viviam sobre elas. Pobre Senhor da Harmonia. Dany apiedava-se dele. Devia ser terrível estar só para todo o sempre, servido por hordas de mulheres-borboletas que se podia criar ou destruir com uma palavra. Westeros ao menos tinha sete deuses, embora Viserys lhe tivesse dito que alguns septões afirmavam que os sete eram apenas aspectos de um deus único, sete facetas de um único cristal. Isso era uma confusão. Os sacerdotes vermelhos acreditavam em dois deuses, segundo tinha ouvido dizer, mas os dois estavam eternamente em guerra. Dany gostava ainda menos daquilo. Não gostaria de estar eternamente em guerra.
Missandei serviu-lhe ovos de pato e salsicha de cão e meia taça de vinho adoçado misturado com o sumo de um limão. O mel atraía moscas, mas uma vela odorífera afastava-as. Descobrira que as moscas não eram tão incômodas ali em cima como no resto da cidade, mais uma coisa que lhe agradava na pirâmide.
- Tenho de me lembrar de fazer qualquer coisa a respeito das moscas - disse Dany. - Há muitas moscas em Naath, Missandei?
- Em Naath há borboletas - respondeu a escriba no Idioma Comum. - Mais vinho?
- Não. Tenho uma audiência em breve. - Dany tinha passado a gostar muito de Missandei. A pequena escriba com os grandes olhos dourados era possuidora de uma sabedoria bem para lá da idade. E também é corajosa. Teve de ser, para sobreviver à vida que teve. Um dia esperava ver essa lendária ilha de Naath. Missandei dizia que o Pacífico Povo fazia música em vez de guerra. Não matavam, nem sequer animais; comiam apenas frutas e nunca tocavam em carne. Os espíritos borboletas sagrados para o seu Senhor da Harmonia protegiam a ilha deles contra os que desejavam fazer-lhes mal. Muitos conquistadores tinham velejado para Naath a fim de molharem as espadas em sangue, mas só conseguiram adoecer e morrer. As borboletas não os ajudam quando os navios dos escravos fazem incursões, porém. - Um dia levo-a para casa, Missandei - prometeu Dany. Se tivesse feito a mesma promessa a forah, teria me vendido mesmo assim? - Juro.
- Esta está contente por ficar com a senhora, Vossa Graça. Naath estará lá sempre. A senhora é boa para est... para mim.
- Tal como você para mim. - Dany deu a mão à garota. - Venha me ajudar a me vestir.
Jhiqui ajudou Missandei a dar-lhe banho, enquanto Irri preparava suas roupas. Hoje usaria uma veste de samito púrpura e uma faixa prateada, com a coroa do dragão de três cabeças que a Irmandade Turmalina lhe dera em Qarth. Os chinelos também eram prateados, com saltos tão altos que ela tinha sempre algum receio de cair para a frente. Quando acabou de se vestir, Missandei trouxe um espelho de prata polida para Dany poder se ver. Dany fitou-se em silêncio. Será este o rosto de um conquistador? Pelo que podia ver, ainda parecia uma garotinha.
Ninguém a chamava de Daenerys, a Conquistadora, mas talvez viessem a fazê-lo. Aegon, o Conquistador, tinha vencido Westeros com três dragões, mas ela tomara Meereen com ratazanas de esgoto e um pinto de madeira, em menos de um dia. Pobre Groleo. Dany sabia que o homem ainda andava desgostoso por causa do navio. Se uma galé de guerra podia abalroar outro navio, por que não um portão? Tinha sido essa a sua ideia quando ordenou aos capitães para encalhar os navios na costa. Os mastros tinham se transformado em seus aríetes, e uma multidão de libertos desfizera os cascos para construir manteletes, tartarugas, catapultas e escadas. Os mercenários tinham batizado os aríetes com nomes obscenos, e foi o mastro principal do Meraxes - anteriormente chamado Partida de Joso - que quebrou o portão oriental. Chamavam-no de Pica de Joso. A luta encarniçara-se, amarga e sangrenta, durante a maior parte de um dia e entrara noite adentro antes de a madeira começar a lascar e a figura de proa do Meraxes, uma cara de bobo risonha, conseguir trespassá-la.
Dany quis ser ela mesma a liderar o ataque, mas todos os seus capitães, sem exceção, disseram que isso seria loucura, e seus capitães nunca concordavam em coisa alguma. Em vez de liderar, tinha permanecido na retaguarda, montada em sua prata, envergando com uma longa camisa de cota de malha. Mas ouviu a cidade cair de uma distância de meia légua, quando os gritos de desafio dos defensores se transformaram em gritos de medo. Nesse momento, os dragões tinham rugido como se fossem um só, enchendo a noite de chamas. Os escravos estão se rebelando, compreendeu de imediato. As minhas ratazanas de esgoto roeram seus grilhões.
Depois de os últimos restos de resistência terem sido esmagados pelos Imaculados e de o saque terminar, Dany entrou em sua cidade. A pilha de mortos diante do portão principal era tão alta que seus libertos precisaram de quase uma hora para abrir caminho para a sua prata. A Pica de Joso e a grande tartaruga de madeira que a protegera, coberta de peles de cavalo, estavam abandonadas lá dentro. Passou por edifícios incendiados e janelas quebradas, através de ruas de tijolo cujas sarjetas estavam entupidas com os mortos, rígidos e inchados. Escravos gritando vivas erguiam para si mãos manchadas de sangue e chamavam-na de "Mãe” enquanto passava.
Na praça em frente à Grande Pirâmide, os meereeneses tinham se amontoado sem esperança. Os Grandes Mestres pareciam tudo menos grandes à luz da manhã. Despojados das jóias e de seus tokars debruados, eram desprezíveis; uma manada de velhos com bolas murchas e pele manchada e de jovens com penteados ridículos. Suas mulheres eram ou moles e carnudas ou secas como paus velhos, com a maquiagem facial riscada por lágrimas.
- Quero os seus líderes - disse-lhes Dany. - Entreguem-nos, e os demais serão poupados.
- Quantos? - perguntou uma velha, entre soluços. - Quantos quer para nos poupar?
- Cento e sessenta e três - respondeu.
Tinha ordenado que fossem pregados a postes de madeira em volta da praça, cada um apontando para o seguinte. A ira ardia feroz e quente dentro dela quando dera a ordem; fez com que se sentisse um dragão vingador. Mas, mais tarde, quando passou pelos moribundos nos postes, quando ouviu seus gemidos e sentiu o cheiro de entranhas e sangue...
Dany pôs o espelho de lado, franzindo a testa. Foi justo. Foi mesmo. Fiz isso pelas crianças.
A câmara de audiências ficava no piso imediatamente abaixo, uma sala cheia de ecos, de teto elevado e com paredes de mármore roxo. Era um lugar gelado, apesar de toda a sua grandiosidade. Havia ali um trono, uma coisa fantástica de madeira esculpida e dourada, com a forma de uma harpia selvagem. Tinha lançado-lhe um longo olhar e ordenado que fosse transformado em lenha.
- Não me sentarei no colo da harpia - disse-lhes. Em vez disso, sentava-se num simples banco de ébano. Servia, embora tivesse ouvido os meereeneses resmungarem que não era adequado para uma rainha.
Os companheiros de sangue estavam à sua espera. Sinetas de prata tilintavam em suas tranças oleadas, e usavam o ouro e as jóias de homens mortos. Meereen era rica além do que era possível imaginar. Até os mercenários pareciam saciados, pelo menos por ora. Do outro lado da sala, Verme Cinzento usava o uniforme simples dos Imaculados, com o capacete de bronze provido de espigão debaixo de um braço. Naqueles, pelo menos, podia confiar, ou assim esperava... e no Ben Mulato Plumm também, no sólido Ben com seus cabelos cinza-esbranquiçados e rosto desgastado, tão querido por seus dragões. E Daario, a seu lado, cintilando de ouro. Daario e Ben Plumm, Verme Cinzento, Irri, Jhiqui, Missandei... enquanto os olhava, Dany deu por si imaginando qual deles seria o próximo a traí-la.
O dragão tem três cabeças. Há no mundo dois homens em que posso confiar, se conseguir encontrá-los. Então já não estarei só. Seremos três contra o mundo, como Aegon e as irmãs.
- A noite foi tão calma como pareceu? - perguntou Dany.
- Parece que sim, Vossa Graça - disse Ben Mulato Plumm.
Ficou contente. Meereen havia sido saqueada de forma bárbara, como sempre acontecia às cidades recém-caídas, mas Dany estava determinada a que isso terminasse, agora que a cidade lhe pertencia. Decretara que os assassinos seriam enforcados, que os saqueadores perderiam uma mão e os violadores, os seus membros viris. Oito homicidas pendiam das muralhas, e os Imaculados tinham enchido um cesto de trinta e cinco litros com mãos ensanguentadas e vermes moles e vermelhos, mas Meereen estava de novo calma. Por quanto tempo?
Uma mosca zumbiu ao redor de sua cabeça. Dany enxotou-a, irritada, mas o inseto retornou quase imediatamente.
- Há moscas demais nesta cidade.
Ben Plumm soltou uma gargalhada.
- Havia moscas em minha cerveja hoje de manhã. Engoli uma.
- As moscas são a vingança dos mortos. - Daario sorriu e afagou o dente central de sua barba. - Os cadáveres geram vermes, e os vermes geram moscas.
- Então vamos nos livrar dos cadáveres. Começando por aqueles que estão lá embaixo na praça. Verme Cinzento, tratará disso?
- A rainha ordena, estes obedecem.
- É melhor levar tanto sacas como pás, Verme - aconselhou Ben Mulato. - Aqueles já estão bem para lá de maduros. Andam caindo daqueles postes aos pedaços e estão cheios de...
- Ele sabe. E eu também. - Dany recordou o horror que sentira quando vislumbrou a Praça da Punição em Astapor. Criei um horror igualmente grande, mas é certo que o mereceram. Justiça dura ainda assim é justiça.
- Vossa Graça - disse Missandei -, os ghiscari enterram os seus mortos de honra em criptas por baixo de suas mansões. Se fervesse os ossos e os devolvesse às famílias, seria uma bondade.
As viúvas vão me amaldiçoar mesmo assim.
- Que assim se faça. - Dany fez um sinal para Daario. - Quantos pretendem hoje uma audiência?
- Apresentaram-se dois para se aquecer sob o seu esplendor.
Daario tomou para si um guarda-roupa inteiramente novo durante o saque de Meereen, e para condizer com ele voltara a pintar a barba cortada em tridente e os cabelos encaracolados com um profundo e rico tom de púrpura. Aquela coloração fazia com que os olhos parecessem também quase púrpura, como se ele fosse algum valiriano perdido.
- Chegaram durante a noite no Estrela índigo, uma galé mercante de Qarth.
Um navio traficante de escravos, quer dizer. Dany franziu a testa.
- Quem são?
- O mestre do Estrela e um homem que diz falar por Astapor.
- Receberei primeiro o enviado.
Este revelou-se um homem pálido com cara de furão e pesados cordões de pérolas e fio de ouro pendurados do pescoço.
- Vossa Reverência! - gritou. - Meu nome é Ghael. Trago saudações do Rei Cleon de Astapor, Cleon, o Grande, para a Mãe de Dragões.
Dany ficou rígida.
- Deixei um conselho governando Astapor. Um curandeiro, um erudito e um sacerdote.
- Vossa Reverência, esses patifes manhosos traíram a sua confiança. Revelou-se que estavam maquinando a devolução do poder aos Grandes Mestres e das correntes ao povo. O Grande Cleon expôs os seus planos e cortou suas cabeças com um cutelo, e o grato povo de Astapor coroou-o por seu valor.
- Nobre Ghael - disse Missandei, no dialeto de Astapor -, será este o mesmo Cleon que era propriedade de Grazdan mo Ullhor?
A voz dela era franca, mas ficou claro que a pergunta deixou o enviado ansioso.
- Ele mesmo - admitiu. - Um grande homem.
Missandei inclinou-se para Dany.
- Era carniceiro na cozinha de Grazdan - a garota segredou-lhe ao ouvido. - Dizia-se que conseguia matar um porco mais depressa do que qualquer outro homem em Astapor.
Dei a Astapor um rei carniceiro. Dany sentiu-se enojada, mas sabia que não podia deixar que o enviado percebesse isso.
- Rezarei para que o Rei Cleon governe bem e sabiamente. O que ele quer de mim?
Ghael esfregou a boca.
- Talvez devêssemos conversar com maior privacidade, Vossa Graça?
- Não tenho segredos para os meus capitães e comandantes.
- Como desejar. O Grande Cleon pede-me para declarar a sua devoção pela Mãe de Dragões. Seus inimigos são os inimigos dele, diz o Grande Cleon, e acima de todos encontram-se os Sábios Mestres de Yunkai. Propõe um pacto entre Astapor e Meereen, contra os yunkaitas.
- Jurei que nenhum mal aconteceria a Yunkai se libertassem os escravos - disse Dany.
- Esses cães yunkaitas não são dignos de confiança, Vossa Reverência. Neste exato momento conspiram contra a senhora. Foram feitos novos recrutas e podem ser vistas escavações fora das muralhas da cidade, estão sendo construídos navios de guerra, foram enviados emissários a Nova Ghis e Volantis, no ocidente, para forjar alianças e contratar mercenários. Até enviaram cavaleiros para Vaes Dothrak, a fim de fazer cair um khalasar sobre a senhora. Cleon, o Grande, pediu-me que lhe diga para não ter medo. Astapor tem memória. Astapor não a abandonará. A fim de demonstrar a sua lealdade, o Grande Cleon oferece-se para selar a aliança com um casamento.
- Um casamento? Comigo?
Ghael sorriu. Seus dentes eram marrons e podres.
- O Grande Cleon dará muitos filhos fortes à senhora.
Dany viu-se privada de palavras, mas a pequena Missandei veio em seu auxílio.
- A primeira esposa dele deu-lhe filhos?
O enviado olhou-a com descontentamento.
- O Grande Cleon teve três filhas de sua primeira esposa. Duas de suas esposas mais recentes esperam bebê. Mas ele pretende pô-las de lado se a Mãe de Dragões consentir em desposá-lo.
- Que nobre da parte dele - disse Dany. - Refletirei sobre tudo o que disse, senhor.
- Ordenou que fossem arranjados aposentos para Ghael passar a noite, em algum lugar num dos andares inferiores da pirâmide.
Todas as minhas vitórias se transformam em escórias em minhas mãos, pensou. Não importa o que faça, tudo que produzo é morte e horror. Quando a notícia do que tinha acontecido a Astapor chegasse às ruas, como certamente chegaria, dezenas de milhares de escravos meereeneses recém-libertados iriam sem dúvida decidir segui-la quando partisse para oeste, temendo o que os esperaria se ficassem... mas podia bem acontecer que o que os esperaria na marcha fosse pior. Mesmo se esvaziasse todos os celeiros da cidade e entregasse Meereen à fome, como conseguiria alimentar tanta gente? O caminho à sua frente está repleto de dificuldades, derramamento de sangue e perigos. Sor Jorah prevenira-a disso. Prevenira-a de tantas coisas... ele... Não, não pensarei em Jorah Mormont. Que espere um pouco mais.
- Receberei agora esse capitão mercador - anunciou. O homem talvez tivesse melhores novas.
Essa esperança revelou-se vã. O mestre do Estrela índigo era qarteno, de modo que chorou copiosamente quando foi interrogado a respeito de Astapor.
- A cidade sangra. Mortos apodrecem nas ruas, por enterrar, cada pirâmide é um acampamento armado, e os mercados não têm nem comida nem escravos para vender. E as pobres crianças! Os matadores do Rei Cutelo capturaram todos os rapazes de nascimento elevado de Astapor para fazer novos Imaculados, a fim de vendê-los, embora ainda faltem anos até estarem treinados.
O que mais surpreendeu Dany foi até que ponto não se surpreendeu. Deu por si a recordar Eroeh, a garota lhazarena que um dia tentara proteger, e aquilo que tinha acontecido a ela. Será igual em Meereen quando me puser em marcha, pensou. Os escravos das arenas de luta, criados e treinados para o massacre, já estavam se revelando indisciplinados e conflituosos. Pareciam julgar que a cidade agora lhes pertencia, bem como todos os homens e as mulheres que nela viviam. Dois deles estavam entre os oito que tinha enforcado. Nada mais posso fazer, disse a si mesma.
- O que quer de mim, capitão?
- Escravos - disse ele. - Meus porões estão estourando de marfim, âmbar cinza, peles de zebralo e outros produtos de boa qualidade. Quero trocá-los aqui por escravos, para vender em Lys e em Volantis.
- Não temos escravos para vender - disse Dany.
- Minha rainha? - Daario deu um passo adiante. - A margem do rio está cheia de meereeneses, implorando licença para se venderem a este qarteno. São mais do que as moscas.
Dany estava chocada.
- Eles querem ser escravos?
- Aqueles que vieram são bem-educados e de bom nascimento, querida rainha. Escravos assim são estimados. Nas Cidades Livres serão tutores, escribas, escravos de cama, e até curandeiros e sacerdotes. Dormirão em camas macias, comerão alimentos ricos e viverão em mansões. Aqui perderam tudo e vivem no medo e na miséria.
- Estou vendo. - Talvez não fosse assim tão chocante, se as histórias de Astapor fossem verdadeiras. Dany refletiu por um momento. - Qualquer homem que deseje vender-se a si próprio para a escravatura pode fazê-lo. Ou qualquer mulher. - Ergueu uma mão.
- Mas não podem vender os filhos, e um homem não pode vender a esposa.
- Em Astapor a cidade ficava com um décimo do preço, toda vez que um escravo trocava de mãos - disse-lhe Missandei.
- Nós faremos o mesmo - decidiu Dany. As guerras eram ganhas com espadas, mas também com ouro. - Um décimo. Em moedas de ouro ou prata, ou em marfim. Meereen não tem necessidade de açafrão, cravo ou peles de zebralo.
- Será conforme ordena, gloriosa rainha - disse Daario. - Meus Corvos de Pedra coletarão o seu dízimo.
Dany sabia que se os Corvos de Pedra supervisionassem a coleta, metade do ouro iria de algum modo se extraviar. Mas os Segundos Filhos eram igualmente maus, e os Imaculados eram tão incorruptíveis como iletrados.
- Terão de ser mantidos registros - disse. - Procurem entre os libertos homens que saibam ler, escrever e fazer somas.
Com os seus assuntos tratados, o capitão do Estrela índigo fez uma reverência e retirou-se. Dany mexeu-se desconfortavelmente no banco de ébano. Receava aquilo que viria a seguir, mas sabia que já o adiara por tempo demais. Yunkai e Astapor, ameaças de guerra, propostas de casamento, a marcha para oeste pairando sobre tudo... Preciso dos meus cavaleiros. Preciso de suas espadas, e preciso de seus conselhos. Mas a ideia de voltar a ver Jorah Mormont deixou-a como se tivesse engolido uma colherada de moscas; zangada, agitada, agoniada. Quase as sentia zumbindo em sua barriga. Sou do sangue do dragão. Tenho de ser forte. Tenho de ter fogo nos olhos quando os enfrentar, não lágrimas.
- Diga a Belwas para trazer os meus cavaleiros - ordenou Dany, antes de ter tempo de mudar de ideia. - Os meus bons cavaleiros.
Belwas, o Forte, bufava por causa da subida quando os conduziu pelas portas, com uma mão carnuda segurando um braço de cada homem. Sor Barristan caminhava com a cabeça bem erguida, mas Sor Jorah fitava o chão de mármore ao se aproximar. Um traz orgulho, o outro, culpa. O velho escanhoara a barba branca. Parecia dez anos mais novo sem ela. Mas seu urso meio calvo parecia mais velho do que antes. Pararam diante do banco. Belwas, o Forte, deu um passo para trás e cruzou os braços sobre o peito coberto de cicatrizes. Sor Jorah pigarreou.
- Khaleesi...
Sentira tanta saudade da voz dele, mas tinha de ser severa.
- Cale-se. Eu lhe direi quando falar. - Ficou em pé. - Quando os enviei para os esgotos, parte de mim esperava não voltar a vê-los. Morrer afogado na merda de feitores parecia um fim adequado para mentirosos. Pensei que os deuses fossem cuidar de vocês, mas em vez disso regressaram para mim. Meus galantes cavaleiros de Westeros, um informante e um vira-casaca. Meu irmão teria enforcado a ambos. - Pelo menos teria sido essa a atitude de Viserys. Não sabia o que Rhaegar faria. - Admito que me ajudaram a conquistar esta cidade...
A boca de Sor Jorah comprimiu-se.
- Fomos nós que conquistamos esta cidade. Nós, as ratazanas do esgoto.
- Cale-se - repetiu ela... embora houvesse verdade no que ele tinha dito.
Enquanto a Pica de Joso e os outros aríetes arremetiam contra os portões da cidade
e os arqueiros disparavam nuvens de flechas incendiárias por sobre as muralhas, Dany enviara duzentos homens pelo rio na calada da escuridão, a fim de incendiar os cascos que havia no porto. Mas isso tinha servido apenas para esconder seu verdadeiro propósito. Enquanto os navios em chamas atraíam o olhar dos defensores nas muralhas, um punhado de nadadores semiloucos dirigiu-se à desembocadura dos esgotos e soltou uma enferrujada grade de ferro. Sor Jorah, Sor Barristan, Belwas, o Forte, e vinte bravos tolos esgueiraram-se na água marrom e pelo túnel de tijolo acima, uma força mista de mercenários, Imaculados e libertos. Dany tinha dito para escolherem apenas homens sem família... e de preferência sem olfato.
Tinham tido tanta sorte quanto coragem. Passara-se uma volta de lua desde a última chuva forte, e a água nos esgotos só chegava às coxas. O oleado em que tinham enrolado os archotes manteve-os secos, e por isso tinham luz. Alguns dos libertos assustaram-se com as enormes ratazanas até que Belwas, o Forte, apanhou uma e a cortou em duas com uma dentada. Um homem foi morto por um grande lagarto pálido que se ergueu da água escura e o arrastou pela perna, mas da vez seguinte em que foram vistas ondulações, Sor Jorah matou a fera com sua lâmina. Seguiram algumas vezes caminhos errados, mas assim que encontraram a superfície, Belwas, o Forte, levou-os para a arena de luta mais próxima, onde surpreenderam alguns guardas e arrebentaram as correntes dos escravos. Uma hora mais tarde, metade dos escravos lutadores de Meereen tinha se revoltado.
- Você ajudou a conquistar esta cidade - repetiu com obstinação. - E serviu-me bem no passado. Sor Barristan salvou-me do Bastardo do Titã, e do Homem Pesaroso em Qarth. Sor Jorah salvou-me do envenenador em Vaes Dothrak e voltou a salvar-me dos companheiros de sangue de Drogo depois da morte do meu sol-e-estrelas. - Tantas pessoas queriam vê-la morta que às vezes perdia a conta. - E no entanto mentiu, enganou-me, traiu-me. - Virou-se para Sor Barristan. - O senhor protegeu o meu pai por muitos anos, lutou ao lado de meu irmão no Tridente, mas abandonou Viserys no exílio e dobrou o joelho ao Usurpador. Por quê? E fale a verdade.
- Há verdades que são difíceis de ouvir. Robert era... um bom cavaleiro... cavalheiresco, corajoso... poupou-me a vida, e a vida de muitos outros... o Príncipe Viserys era apenas um garoto, iam se passar muitos anos até estar preparado para governar, e... perdoe-me, minha rainha, mas pediu a verdade... até quando criança, Viserys parecia ser filho de seu pai de maneiras que Rhaegar nunca parecera.
- Filho de meu pai? - Dany franziu a testa. - O que isso quer dizer?
O velho cavaleiro não hesitou.
- Seu pai é conhecido em Westeros como "o Rei Louco”. Ninguém nunca lhe disse isso?
- Viserys disse. - O Rei Louco. - O Usurpador chamava-lhe assim, o Usurpador e seus cães. - O Rei Louco. - Era mentira.
- Para que pedir a verdade - disse Sor Barristan em voz baixa - se fecha os ouvidos a ela? - hesitou, mas depois prosseguiu. - Já tinha lhe dito que usei um nome falso para que os Lannister não soubessem que tinha me juntado à senhora. Isso foi menos de metade do motivo, Vossa Graça. A verdade é que queria observá-la durante algum tempo antes de lhe jurar a minha espada. Para me certificar de que não era...
- ... filha do meu pai? - se não era filha do pai, quem seria?
- ... louca - concluiu ele. - Mas não vejo na senhora a mácula.
- A mácula? - irritou-se Dany.
- Não sou um meistre para lhe citar história, Vossa Graça. Minha vida foram as espadas, não os livros. Mas qualquer criança sabe que os Targaryen sempre dançaram demasiado perto da loucura. Seu pai não foi o primeiro. O Rei Jaehaerys disse-me um dia que a loucura e a grandeza eram dois lados da mesma moeda. “Sempre que um novo Targaryen nasce”, disse ele, "os deuses atiram uma moeda ao ar e o mundo segura a respiração para ver de que lado cairá".
Jaehaerys. Este velho conheceu o meu avô. A ideia obrigou-a a refletir. A maior parte daquilo que sabia de Westeros tinha vindo do irmão, e o resto de Sor Jorah. Sor Barristan devia ter esquecido mais do que os outros dois algum dia souberam. Este homem pode falar-me daquilo que levou até mim.
- Então sou uma moeda nas mãos de um deus qualquer, é isso o que está dizendo, sor?
- Não - respondeu Sor Barristan. - É a legítima herdeira de Westeros. Até o fim dos meus dias, permanecerei seu leal cavaleiro, se me achar digno de voltar a pegar numa espada. Se não, contento-me em servir Belwas, o Forte, como seu escudeiro.
- E se eu decidir que é digno apenas de ser o meu bobo? - perguntou Dany num tom de escárnio. - Ou talvez o meu cozinheiro?
- Ficaria honrado, Vossa Graça - disse Selmy com calma dignidade. - Sou capaz de assar maçãs e cozinhar carne tão bem quanto qualquer homem, e já assei muitos patos em fogueiras de acampamentos. Espero que goste deles gordurosos, com a pele tostada e os ossos cheios de sangue.
Aquilo fez Dany sorrir.
- Teria de estar louca para comer comida como essa. Ben Plumm, venha entregar a Sor Barristan a sua espada.
Mas o Barba-Branca recusou-se a aceitá-la.
- Atirei a minha espada aos pés de Joffrey e desde então não toquei em nenhuma outra. Só das mãos de minha rainha voltarei a aceitar uma espada.
- Como quiser. - Dany tirou a espada do Ben Mulato e ofereceu-a com o cabo para a frente. O velho pegou-a com reverência. - Agora ajoelhe-se - disse-lhe ela - e juramente-a ao meu serviço.
Ele ajoelhou-se e pousou a lâmina diante de Dany enquanto proferia as palavras. Ela quase não as ouviu. Este foi o mais fácil, pensou. O outro será pior. Quando Sor Barristan terminou, virou-se para Jorah Mormont.
- E agora você, sor. Diga-me a verdade.
O pescoço do grande homem estava vermelho; se de ira ou de vergonha, Dany não sabia.
- Tentei dizer-lhe a verdade meia centena de vezes. Disse-lhe que Arstan era mais do que parecia ser. Preveni a senhora de que Xaro e Pyat Pree não eram de confiança. Preveni-a...
- Preveniu-me contra todos, menos contra você. - A insolência dele enfureceu-a. Devia ser mais humilde. Devia suplicar o meu perdão. - “Não confie em ninguém, a não ser em Jorah Mormont”, disse... e durante todo esse tempo era uma criatura da Aranha!
- Não sou criatura de ninguém. Sim, recebi o ouro do eunuco. Soube de algumas coisas sem importância e escrevi algumas cartas, mas foi tudo...
- Tudo? Espiou-me e vendeu-me aos meus inimigos!
- Durante algum tempo. - Ele disse de má vontade. - Parei.
- Quando? Quando foi que parou?
- Enviei um relatório de Qarth, mas...
- De Qarth? - Dany esperara que tivesse parado muito antes. - O que foi que escreveu de Qarth? Que era agora um de meus homens, que não queria mais fazer parte das tramóias deles? - Sor Jorah não enfrentava o olhar dela. - Quando Khal Drogo morreu, pediu-me para ir consigo para Yi Ti e para o Mar de Jade. Esse desejo era seu ou de Robert?
- Isso era para protegê-la - insistiu ele. - Para mantê-la longe deles. Eu sabia que cobras eles eram...
- Cobras? E o que é você, sor? - ocorreu-lhe algo indizível. - Contou-lhes que eu esperava o filho de Drogo...
- Kbaleesi...
- Que nem pense em negá-lo, sor - disse em tom penetrante Sor Barristan. - Eu estava presente quando o eunuco contou isso ao conselho, e Robert decretou que Sua Graça e o seu filho tinham de morrer. Você foi a fonte, sor. Até se falou que poderia realizar o ato em troca de perdão.
- Mentira. - O rosto de Sor Jorah tornou-se sombrio. - Eu nunca... Daenerys, fui eu quem impediu que bebesse o vinho.
- Sim. E como foi que soube que o vinho estava envenenado?
- Eu... eu apenas suspeitava... a caravana tinha trazido uma carta de Varys, prevenindo-me de que haveria atentados. Ele a queria vigiada, é certo, mas não machucada. - Ajoelhou-se. - Se não lhes tivesse dito nada, alguém o teria feito. Sabe disso.
- O que eu sei é que me traiu. - Tocou a barriga, onde o filho Rhaego perecera. - O que sei é que um envenenador tentou matar o meu filho graças a você. É isso o que eu sei.
- Não... não. - Ele sacudiu a cabeça. - Eu nunca quis... perdoe-me. Tem de me perdoar.
- Tenho? - era tarde demais. Ele devia ter começado por suplicar perdão. Não podia perdoá-lo como tinha pretendido. Ela tinha arrastado o vendedor de vinhos preso ao cavalo até nada restar dele. Não mereceria o mesmo o homem que o trouxera? Este é Jorah, o meu urso feroz, o braço direito que nunca me falhou. Estaria morta sem ele, mas... - Não posso perdoá-lo - disse. - Não posso.
- Perdoou o velho...
- Ele mentiu para mim a respeito do nome. Você vendeu os meus segredos aos homens que mataram meu pai e roubaram o trono de meu irmão.
- Protegi-a. Lutei por você. Matei por você.
Beijou-me, pensou ela, traiu-me.
- Entrei nos esgotos como se fosse uma ratazana. Por você.
Poderia ter sido uma bondade se lá tivesse morrido. Dany nada disse. Nada havia a dizer.
- Daenerys - disse ele -, eu amei-a.
E aí estava. Três traições conhecerá. Uma vez por sangue, uma vez por ouro e uma vez por amor.
- Os deuses não fazem nada sem um objetivo, segundo dizem. Não morreu em batalha, portanto isso deve querer dizer que ainda tem uma utilidade qualquer para eles. Mas para mim, não. Não o quero perto de mim. Está banido, sor. Volte para junto dos seus chefes em Porto Real e receba o seu perdão, se puder. Ou vá para Astapor. O rei carniceiro irá sem dúvida precisar de cavaleiros.
- Não. - Ele estendeu a mão para ela. - Daenerys, por favor, escute-me...
Ela afastou a mão dele com um tapa.
- Nunca tenha a ousadia de voltar a tocar em mim ou proferir o meu nome. Tem até a alvorada para juntar as suas coisas e abandonar esta cidade. Se for encontrado em Meereen após o raiar do dia, ordenarei a Belwas, o Forte, que arranque sua cabeça. E farei isso. Acredite no que lhe digo. - Virou as costas para ele, fazendo rodopiar as saias.
Não suporto ver o seu rosto. - Tirem este mentiroso da minha vista - ordenou. Não posso chorar. Não posso. Se chorar, vou perdoá-lo. Belwas, o Forte, pegou no braço de Sor Jorah e arrastou-o para fora da sala. Quando Dany deu um relance para trás, o cavaleiro caminhava como se estivesse bêbado, aos tropeções e lentamente. Afastou o olhar até ouvir o abrir e fechar das portas. Então afundou-se novamente no banco de ébano. Então ele partiu. O meu pai e a minha mãe, os meus irmãos, Sor Willem Darry, Drogo, que era o meu sol-e-estrelas, o filho dele que morreu dentro de mim e agora Sor Jorah...
- A rainha tem bom coração - ronronou Daario através de sua barba de um roxo profundo -, mas aquele homem é mais perigoso do que todos os Oznaks e Meros combinados num só. - As fortes mãos do mercenário acariciaram o cabo de suas armas idênticas, aquelas sensuais mulheres douradas. - Nem precisa dizer uma palavra, meu esplendor. Faça apenas o menor dos acenos, e o seu Daario trará à senhora a feia cabeça de Jorah.
- Deixe-o em paz. Os pratos da balança agora estão equilibrados. Deixe-o ir para casa. - Dany imaginou Jorah deslocando-se por entre velhos carvalhos nodosos e grandes pinheiros, passando por espinheiros em flor, pedras cinzentas barbadas de musgo e pequenos arroios correndo, gelados, por vertentes íngremes. Viu-o entrando num salão feito de enormes troncos de árvores, onde cães dormiam junto à lareira e o cheiro da carne e do hidromel pairava, pesado, no ar cheio de fumaça. - Por enquanto terminamos
- disse aos seus capitães.
Foi com dificuldade que não subiu correndo as amplas escadas de mármore. Irri ajudou-a a despir o traje para audiências e a colocar vestes mais confortáveis; calções largos de lã, uma túnica solta de feltro, um colete pintado dothraki.
- Está tremendo, khaleesi - disse a garota ao ajoelhar-se para amarrar as sandálias de Dany.
- Tenho frio - mentiu Dany. - Traga-me o livro que eu estava lendo ontem à noite.
- Desejava perder-se nas palavras, em outros tempos e outros lugares. O grosso volume encadernado em couro estava cheio de canções e histórias dos Sete Reinos. Histórias infantis, a bem da verdade; simples e fantasiosas demais para serem história verdadeira. Todos os heróis eram altos e bonitos, e podia-se identificar os traidores por seus olhos matreiros. Mas adorava-as mesmo assim. Na noite passada estivera lendo a história das três princesas na torre vermelha, trancadas pelo rei pelo crime de serem belas.
Quando a aia trouxe o livro, Dany não teve dificuldade em encontrar a página em que tinha parado, mas não valia a pena. Deu por si lendo a mesma passagem meia dúzia de vezes. Sor Jorah deu-me este livro como presente de casamento, no dia em que desposei Khal Drogo. Mas Daario tem razão, não o devia ter banido. Devia tê-lo conservado ao meu lado, ou matado. Representava o papel de rainha, mas às vezes sentia-se ainda como uma garotinha assustada. Viserys andava sempre dizendo como eu era tola. Seria realmente louco? Fechou o livro. Ainda podia chamar Sor Jorah, se quisesse. Ou mandar Daario matá-lo.
Dany fugiu da decisão para o terraço. Foi dar com Rhaegal adormecido junto à piscina, um novelo verde e brônzeo tostando ao sol. Drogon estava empoleirado no topo da pirâmide, no local onde a enorme harpia de bronze tinha estado antes de ela ordenar que fosse derrubada. Abriu as asas e rugiu quando a viu. Não se via sinal de Viserion, mas quando se dirigiu ao parapeito e perscrutou o horizonte, viu asas pálidas a distância, pairando sobre o rio. Está caçando. Tornam-se mais ousados a cada dia que passa. Mas ainda ficava ansiosa quando voavam até muito longe. Um dia, um deles pode não voltar, pensou.
- Vossa Graça?
Virou-se para deparar com Sor Barristan atrás de si.
- O que mais quer de mim, sor? Poupei-o, aceitei-o ao meu serviço, dê-me agora alguma paz.
- Perdoe-me, Vossa Graça. E que... agora que sabe quem eu sou... - O velho hesitou.
- Um cavaleiro da Guarda Real está na presença do rei dia e noite. Por esse motivo, nossos votos exigem que protejamos seus segredos tal como protegeríamos sua vida. Mas os segredos de seu pai são agora por direito seus, bem como seu trono, e... pensei que talvez tivesse questões a me fazer.
Questões? Tinha uma centena de questões, um milhar, dez milhares. Por que não conseguia se lembrar de nenhuma?
- Meu pai era realmente louco? - perguntou antes de conseguir evitar. Por que é que eu perguntei isso? - Viserys dizia que essa conversa de loucura era uma manobra do Usurpador...
- Viserys era uma criança, e a rainha protegeu-o o máximo que pôde. Agora creio que o seu pai sempre teve em si um pouco de loucura. Mas era também encantador e generoso, de modo que suas pequenas falhas eram esquecidas. Seu reinado começou tão promissor... mas à medida que os anos iam passando, as falhas tornaram-se mais frequentes, até que...
Dany fê-lo parar.
- Será que eu quero ouvir isso agora?
Sor Barristan refletiu por um momento.
- Talvez não. Agora não.
- Agora não - concordou. - Um dia. Um dia deve me contar tudo. As coisas boas e ruins. Há algo de bom a ser contado a respeito de meu pai, certamente?
- Há, Vossa Graça. A respeito dele, e a respeito dos que vieram antes dele. Seu avô Jaehaerys e o irmão, o pai deles, Aegon, a sua mãe... e Rhaegar. Acima de tudo a respeito dele.
- Gostaria de ter podido conhecê-lo. - Sua voz estava melancólica.
- Gostaria que ele pudesse tê-la conhecido - disse o velho cavaleiro. - Quando estiver pronta, contarei tudo.
Dany deu um beijo no rosto de Sor Barristan e mandou-o embora.
Naquela noite, as aias trouxeram-lhe carneiro, com uma salada de passas e cenouras embebidas em vinho e um pão quente e farelento que pingava de mel. Não conseguiu comer nem uma migalha. Terá Rhaegar alguma vez se sentido tão exausto?, perguntou a si mesma. Ou Aegon, após a sua conquista?
Mais tarde, quando chegou o momento de dormir, Dany levou Irri consigo para a cama, pela primeira vez desde o navio. Mas mesmo enquanto estremecia de prazer e enredava os dedos nos espessos cabelos negros da aia, fazia de conta que era Drogo que tinha nos braços... porém, de algum modo, seu rosto não parava de se transformar no de Daario. Se desejar Daario, só tenho de dizer. Ficou deitada com as pernas de Irri entrelaçadas nas suas. Os olhos dele pareciam quase púrpura, hoje...
Os sonhos de Dany foram sombrios naquela noite, e ela acordou três vezes, por conta de pesadelos ainda meio frescos na memória. Na terceira vez estava muito inquieta para voltar a dormir. O luar se infiltrava pelas janelas oblíquas, cobrindo o piso de mármore de prateado. Uma brisa fresca soprava pelas portas abertas do terraço. Irri dormia sonoramente a seu lado, com os lábios levemente entreabertos, um mamilo surgindo por sobre as sedas de dormir. Por um momento, Dany sentiu-se tentada, mas era Drogo que queria, ou talvez Daario. Não Irri. A aia era doce e habilidosa, mas seus beijos tinham gosto de dever.
Levantou-se, deixando Irri adormecida ao luar. Jhiqui e Missandei estavam dormindo em suas camas. Dany enfiou-se numa túnica e atravessou descalça o chão de mármore, dirigindo-se ao terraço. O ar estava gelado, mas gostou da sensação da relva entre os dedos dos pés e do som das folhas sussurrando umas para as outras. Ondulações provocadas pelo vento perseguiam-se pela superfície da pequena piscina para banhos e faziam o reflexo da lua dançar e tremeluzir.
Encostou-se a um parapeito baixo de tijolo a fim de olhar para baixo, para a cidade. Meereen também dormia. Perdida em sonhos sobre dias melhores, talvez. A noite cobria as ruas como uma manta negra, escondendo os cadáveres e as ratazanas cinzentas que saíam dos esgotos para se banquetearem com eles, os enxames de moscas que picavam. Tochas distantes cintilavam, vermelhas e amarelas, no local onde as sentinelas faziam suas rondas, e aqui e ali viu o tênue clarão de lanternas oscilando ao longo de uma viela. Talvez uma delas fosse Sor Jorah, levando lentamente o cavalo pela arreata na direção do portão. Adeus, velho urso. Adeus, traidor.
Ela era Daenerys Filha da Tormenta, a Não Queimada, khaleesi e rainha, Mãe de Dragões, matadora de feiticeiros, quebradora de correntes, e não havia ninguém neste mundo em quem pudesse confiar.
- Vossa Graça? - Missandei estava a seu lado, enrolada num roupão, com sandálias de lã nos pés. - Acordei e vi que tinha saído. Dormiu bem? Para onde está olhando?
- Para a minha cidade - disse Dany. - Estava à procura de uma casa com uma porta vermelha, mas à noite todas as portas são negras.
- Uma porta vermelha? - Missandei estava confusa. - Que casa é essa?
- Não é casa nenhuma. Não importa. - Dany pegou na mão da garota mais nova. - Nunca minta para mim, Missandei. Nunca me traia.
- Nunca o farei - prometeu Missandei. - Veja, a alvorada chega.
O céu tinha se tornado azul-cobalto do horizonte ao zénite, e por trás da linha de colinas baixas, a leste, via-se um clarão, de ouro pálido e cor de ostra. Dany ficou vendo o sol subir ao céu, de mãos dadas com Missandei. Todos os tijolos cinza se tornaram vermelhos, amarelos, azuis, verdes e laranja. As areias escarlate das arenas de luta transformaram-se em chagas sangrando perante seus olhos. Em outro local, a cúpula dourada do Templo das Graças refulgia brilhantemente, e estrelas de bronze tremeluziam ao longo das muralhas nos locais onde a luz do sol nascente tocava os espigões dos capacetes dos Imaculados. No terraço, um punhado de moscas agitou-se indolentemente. Uma ave pôs-se a gorjear no caquizeiro, logo seguida por mais duas. Dany inclinou a cabeça para escutar sua canção, mas não demorou muito até que os ruídos da cidade que acordava a submergissem.
Os ruídos da minha cidade.
Naquela manhã convocou seus capitães e comandantes para o jardim, em vez de descer à sala de audiências.
- Aegon, o Conquistador, trouxe fogo e sangue a Westeros, mas depois deu-lhe paz, prosperidade e justiça. Mas tudo que eu trouxe à Baía dos Escravos foi morte e ruína. Fui mais khal do que rainha, esmagando e saqueando, e depois seguindo viagem.
- Não há nada por que valha a pena ficar - disse Ben Mulato Plumm.
- Vossa Graça, os senhores de escravos fizeram a perdição cair sobre si mesmos - disse Daario Naharis.
- Trouxe também a liberdade - fez notar Missandei.
- Liberdade para passar fome? - perguntou Dany em tom cortante. - Liberdade para morrer? Serei eu um dragão ou uma harpia? - Serei louca? Terei a mácula?
- Um dragão - disse Sor Barristan num tom que não admitia dúvida. - Meereen não é Westeros, Vossa Graça.
- Mas como serei eu capaz de governar sete reinos, se não conseguir governar uma única cidade? - ele não tinha resposta para aquela pergunta. Dany deu as costas a eles para voltar a olhar a cidade. - Meus filhos precisam de tempo para curar as feridas e aprender. Meus dragões precisam de tempo para crescer e testar as suas asas. E eu preciso das mesmas coisas. Não permitirei que esta cidade siga o caminho de Astapor. Não permitirei que a harpia de Yunkai volte a acorrentar aqueles que eu libertei. - Virou-se novamente para olhar o rosto deles. - Não me porei em marcha.
- Então o que fará, khaleesi? - perguntou Rakharo.
- Ficarei - disse ela. - Governarei. E serei uma rainha.
Tommen estava sentado à cabeceira da mesa, com uma pilha de almofadas debaixo do traseiro, assinando cada documento que lhe era apresentado.
- Só mais alguns, Vossa Graça - garantiu-lhe Sor Kevan Lannister. - Este é um decreto de confisco contra Lorde Edmure Tully, despojando-o de Correrrio e de todas as suas terras e rendimentos, por rebelião contra o seu legítimo rei. Este é um decreto semelhante, contra o tio, Sor Brynden Tully, o Peixe Negro. - Tommen assinou-os um após o outro, mergulhando cuidadosamente a pena na tinta e escrevendo o seu nome numa letra grande e infantil.
Jaime observava do fundo da mesa, pensando em todos aqueles senhores que aspiravam a um lugar no pequeno conselho do rei. Podem ficar com a porcaria do meu. Se aquilo era o poder, por que teria sabor de tédio? Não se sentia particularmente poderoso vendo Tommen mergulhar de novo a pena no tinteiro. Sentia-se entediado.
E dolorido. Cada músculo de seu corpo doía, e as costelas e os ombros estavam cheios de hematomas, das pancadas que tinham levado, cortesia de Sor Addam Marbrand. Estremecia só de pensar nisso. Só podia ter esperança de que o homem mantivesse a boca fechada. Jaime conhecia Marbrand desde que este era rapaz, quando serviu como pajem em Rochedo Casterly; confiava mais nele do que em qualquer outro. O suficiente para lhe pedir para pegar em escudos e espadas de torneio. Queria saber se seria capaz de lutar com a mão esquerda.
E agora sei. O conhecimento era mais doloroso do que a surra que Sor Addam lhe dera, e a surra fora tão bem dada que quase não tinha conseguido se vestir naquela manhã. Se tivessem lutado a sério, Jaime teria morrido duas dúzias de mortes. Trocar de mão parecia tão simples. Não era. Todos os seus instintos estavam errados. Tinha de pensar sobre tudo, quando antes bastava se mover. E enquanto estava pensando, Marbrand batia nele. A mão esquerda nem sequer parecia capaz de segurar uma espada longa da maneira certa; Sor Addam desarmara-o três vezes, fazendo sua arma rodopiar pelo ar.
- Este concede as ditas terras, rendimentos e castelo a Sor Emmon Frey e à senhora sua esposa, a Senhora Genna. - Sor Kevan apresentou ao rei outro maço de pergaminhos. Tommen mergulhou a pena no tinteiro e assinou. - Isto é um decreto de legitimação para um filho ilegítimo de Lorde Roose Bolton, do Forte do Pavor. E este nomeia Lorde Bolton como o seu Protetor do Norte. - Tommen punha tinta na pena e assinava, punha tinta na pena e assinava. - Este atribui a Sor Rolph Spicer direitos sobre o castelo de Castamere e eleva-o à categoria de lorde. - Tommen rabiscou seu nome.
Devia ter procurado Sor Ilyn Payne, refletiu Jaime. O Magistrado do Rei não era um amigo como Marbrand, e teria sido bem capaz de espancá-lo até tirar sangue... mas sem língua, não era provável que se vangloriasse disso depois. Não seria preciso mais do que um comentário casual de Sor Addam enquanto bebia, e o mundo inteiro logo saberia como ele se tornara inútil. Senhor Comandante da Guarda Real. Isso era uma piada cruel... embora não tanto quanto o presente que o pai tinha lhe enviado.
- Este é o seu real perdão para Lorde Gawen Westerling, a senhora sua esposa e a filha Jeyne, aceitando-os de volta à paz do rei - disse Sor Kevan. - Isto é um perdão para Lorde Jonos Bracken de Barreira de Pedra. Este é para Lorde Vance. Este é para Lorde Goodbrook. Este para Lorde Mooton, de Lagoa da Donzela.
Jaime pôs-se em pé.
- Parece ter esses assuntos bem controlados, tio. Deixarei Sua Graça com o senhor.
- Como quiser. - Sor Kevan também se levantou. - Jaime, devia ir encontrar o seu pai. Essa discórdia entre vocês...
- ... é obra dele. E não irá remediá-la enviando-me presentes debochados. Diga-lhe isso, se conseguir descolá-lo dos Tyrell durante tempo suficiente.
O tio fez uma expressão angustiada.
- O presente foi sincero. Achamos que poderia encorajá-lo...
- ... a fazer crescer uma mão nova? - Jaime virou-se para Tommen. Embora tivesse os caracóis dourados e os olhos verdes de Joffrey, o novo rei pouco mais tinha em comum com o seu falecido irmão. Tinha tendência a engordar, seu rosto era rosado e redondo, e até gostava de ler. Ainda não tem nove anos, este meu filho. O garoto não é o homem. Passariam sete anos até que Tommen governasse de seu pleno direito. Até lá, o reino permaneceria firmemente nas mãos do senhor seu avô. - Senhor - perguntou -, tenho a sua autorização para sair?
- Como quiser, sor tio. - Tommen voltou a olhar para Sor Kevan. - Posso selá-los agora, tio-avô? - pressionar o selo real contra a cera quente era a parte de ser rei que preferia até agora.
Jaime saiu a passos largos da sala do conselho. Do lado de fora, à porta, foi encontrar Sor Meryn Trant, rígido e de guarda, em sua armadura de escamas brancas e manto alvo como a neve. Se este aí ficar sabendo como eu sou fraco, ou o Kettleblack ou o Blount ouvirem alguma coisa sobre isso...
- Fique aqui até Sua Graça acabar - disse - e depois escolte-o de volta a Maegor.
Trant inclinou a cabeça.
- Às ordens, senhor.
Naquela manhã, o pátio exterior estava cheio de gente e ruídos. Jaime dirigiu-se aos estábulos, onde um grande grupo de homens selava os cavalos.
- Pernas-de-Aço! - chamou. - Vai embora?
- Assim que a senhora estiver montada - disse o Pernas-de-Aço Walton. - O senhor de Bolton espera-nos. Aí está ela.
Um palafreneiro conduzia uma bela égua cinza através da porta do estábulo. No dorso do animal vinha montada uma garota magricela de olhos encovados, envolta num manto pesado. Era cinza, tal como o vestido que usava por baixo, e debruado de cetim branco. O broche que o prendia ao peito era trabalhado na forma de uma cabeça de lobo com olhos fendidos de opala. Os longos cabelos castanhos da garota eram violentamente soprados pelo vento. Achou que ela tinha um rosto bonito, mas os olhos eram tristes e cautelosos.
Quando o viu, inclinou a cabeça.
- Sor Jaime - disse, numa voz fina e ansiosa. - Foi gentil em vir se despedir de mim.
Jaime estudou-a de perto.
- Ah, então me conhece?
Ela mordeu o lábio.
- Talvez não se recorde, senhor, pois eu era pequena naquela altura... mas tive a honra de conhecê-lo em Winterfell quando o Rei Robert veio visitar meu pai, Lorde Eddard. - Baixou seus grandes olhos castanhos e murmurou: - Sou Arya Stark.
Jaime nunca tinha prestado muita atenção em Arya Stark, mas parecia-lhe que aquela garota era mais velha.
- Segundo ouvi dizer, você irá se casar.
- Deverei me casar com o filho de Lorde Bolton, Ramsay. Ele era um Snow, mas Sua Graça fez dele um Bolton. Dizem que é muito corajoso. Estou muito feliz.
Então por que é que parece tão assustada?
- Desejo-lhe felicidades, senhora. - Jaime virou-se de volta para Pernas-de-Aço. - Tem o dinheiro que lhe foi prometido?
- Sim, e distribuímo-lo. Tem os meus agradecimentos. - O nortenho sorriu. - Um Lannister sempre paga as suas dívidas.
- Sempre - disse Jaime, lançando um último relance à menina. Perguntou a si mesmo se haveria muitas semelhanças. Não que isso importasse. A verdadeira Arya Stark estava, com toda a probabilidade, enterrada em alguma sepultura anônima na Baixada das Pulgas. Com os irmãos mortos, bem como ambos os pais, quem se atreveria a chamar aquela garota de fraude? - Boa viagem - disse a Pernas-de-Aço. Nage ergueu a sua bandeira de paz, e os nortenhos formaram uma coluna tão cheia de buracos quanto seus mantos de peles e trotaram através do portão do castelo. A menina magra montada na égua cinza parecia pequena e desamparada no meio deles.
Alguns dos cavalos ainda recuavam perante a mancha escura no chão de terra batida, no local onde a terra tinha bebido o sangue vital do cavalariço que Gregor Clegane matara tão desajeitadamente. Aquela visão deixou Jaime furioso de novo. Tinha dito à Guarda Real para manter a multidão afastada, mas aquele palerma do Sor Boros se distraiu com o duelo. O idiota do rapaz partilhava parte da culpa, com certeza; e o dornês morto também. E acima de todos Clegane. O golpe que cortou o braço do rapaz tinha sido um infortúnio, mas aquele segundo golpe...
Bem, Gregor está pagando por ele agora. O Grande Meistre Pycelle andava tratando os ferimentos do homem, mas os uivos que ressoavam nos aposentos do meistre sugeriam que a cura não estava correndo tão bem como poderia.
- A carne gangrena e as feridas soltam pus - disse Pycelle ao conselho. - Nem mesmo as larvas querem tocar naquela imundície. Suas convulsões são tão violentas que tive de amordaçá-lo para evitar que cortasse a língua com os dentes. Removi o máximo de tecido que me atrevi a cortar e tratei a putrefação com vinho fervente e bolor de pão, mas sem resultado. As veias de seu braço estão se tornando negras. Quando o sangrei, todas as sanguessugas morreram. Senhores, tenho de saber qual foi a maligna substância que o Príncipe Oberyn usou na lança. Detenhamos os outros dorneses até se tornarem mais cooperativos.
Lorde Tywin havia recusado.
- Já haverá problemas suficientes com Lançassolar por causa da morte do Príncipe Oberyn. Não pretendo tornar as coisas piores prendendo seus companheiros.
- Então temo que Sor Gregor possa morrer.
- Sem dúvida que sim. Jurei que morreria na carta que enviei ao Príncipe Doran com o corpo do irmão. Mas tem de ser visto que foi a espada do Magistrado do Rei que o matou, e não uma lança envenenada. Cure-o.
O Grande Meistre Pycelle pestanejou, desalentado.
- Senhor...
- Cure-o - voltou a dizer Lorde Tywin, enfadado. - Vocês estão cientes de que Lorde Varys mandou pescadores para as águas que rodeiam Pedra do Dragão. Eles relatam que só resta uma força simbólica para defender a ilha. Os lisenos desapareceram da baía, e a maior parte das forças de Lorde Stannis desapareceu junto.
- Boas e melhores novas - anunciou Pycelle. - Que Stannis apodreça em Lys, digo eu. Estamos livres do homem e de suas ambições.
- Transformou-se num completo idiota quando Tyrion cortou sua barba? Estamos falando de Stannis Baratheon. O homem lutará até o fim, e mesmo depois. Se desapareceu, isso só pode querer dizer que pretende retomar a guerra. O mais provável é que desembarque em Ponta Tempestade e tente inflamar os senhores da tempestade. Se assim for, está acabado. Mas um homem mais ousado poderia jogar os dados com Dorne. Se ele conquistasse Lançassolar para a sua causa, poderia prolongar esta guerra durante anos. Portanto, não iremos ofender os Martell mais ainda, seja por que motivo for. Os dorneses são livres para partir, e você irá curar Sor Gregor.
E assim a Montanha gritava, noite e dia. Lorde Tywin Lannister conseguia intimidar até o Estranho, aparentemente.
Enquanto Jaime subia os degraus em espiral da Torre da Espada Branca, ouvia Sor Boros roncando em sua cela. A porta de Sor Balon também estava fechada; tinha ficado com o rei naquela noite e dormiria o dia inteiro. À parte os roncos de Blount, a torre estava muito silenciosa. Isso convinha bastante a Jaime. Eu devia descansar. Na noite anterior, depois de sua dança com Sor Addam, sentira-se dolorido demais para dormir.
Mas quando entrou no quarto, encontrou a irmã à sua espera.
Ela estava junto da janela aberta, olhando para lá das muralhas exteriores, para o mar. O vento da baía rodopiava à sua volta, encostando o vestido ao corpo dela de um modo que acelerou o pulso de Jaime. Era branco, aquele vestido, como os reposteiros que pendiam da parede e os cortinados da cama. Voltas de minúsculas esmeraldas alegravam as pontas de suas largas mangas e espiralavam pelo corpete abaixo. Esmeraldas maiores estavam embutidas na teia dourada que prendia seus cabelos dourados. O vestido tinha um corte baixo, desnudando-lhe os ombros e a parte de cima dos seios. Ela é tão bela. Nada mais desejava exceto tomá-la nos braços.
- Cersei. - Fechou a porta sem fazer barulho. - Por que está aqui?
- Para onde mais poderia ir? - quando se virou para ele, havia lágrimas em seus olhos.
- O pai deixou claro que já não sou desejada no conselho. Jaime, não pode falar com ele?
Jaime tirou o manto e pendurou-o num gancho na parede.
- Falo todos os dias com Lorde Tywin.
- Você tem de ser assim tão teimoso? Tudo que ele quer...
- ... é forçar-me a sair da Guarda Real e mandar-me de volta para Rochedo Casterly.
- Isso não pode ser assim tão terrível. Ele também vai me mandar de volta para Rochedo Casterly. Quer que eu esteja longe, para que possa ter a mão livre com Tommen. Tommen é meu filho, não dele!
- Tommen é o rei.
- Ele é um garoto! Um garotinho assustado que viu o irmão ser assassinado no próprio casamento. E agora dizem-lhe que precisa se casar. A garota tem o dobro da idade dele e é duas vezes viúva!
Jaime deixou-se cair numa cadeira, tentando ignorar a dor dos músculos machucados.
- Os Tyrell são insistentes. Não vejo mal nisso. Tommen tem se sentido sozinho desde que Myrcella foi para Dorne. Ele gosta de ter Margaery e suas senhoras por perto. Que se casem.
- Ele é seu filho...
- Ele é da minha semente. Nunca me chamou de pai. Assim como Joffrey. Você avisou-me mil vezes para nunca mostrar interesse indevido por eles.
- Para mantê-los a salvo! E você também. O que pareceria se o meu irmão se fizesse de pai com os filhos do rei? Até Robert poderia ter começado a desconfiar.
- Bem, ele agora já está para lá da desconfiança. - A morte de Robert ainda deixava um sabor amargo na boca de Jaime, Devia ter sido eu a matá-lo, e não Cersei. - Só desejaria que ele tivesse morrido pelas minhas mãos. - Quando eu ainda tinha duas. - Se tivesse deixado o regicídio tornar-se um hábito, como ele gostava de dizer, poderia tê-la tomado como esposa para o mundo inteiro ver. Não me envergonho de amá-la, apenas das coisas que fiz para esconder isso. Aquele garoto em Winterfell...
- Eu mandei você atirá-lo da janela? Se tivesse ido caçar como supliquei, nada teria acontecido. Mas não, tinha de me possuir, não podia esperar até voltarmos à cidade.
- Já tinha esperado tempo suficiente. Odiava ver Robert entrando aos tropeções em sua cama todas as noites, sempre sem saber se naquela noite decidiria reivindicar os seus direitos de marido. - Jaime lembrou-se de repente de outra coisa que o perturbava com relação a Winterfell. - Em Correrrio, Catelyn Stark parecia convencida de que eu tinha mandado um salteador qualquer cortar a garganta do filho. Que eu lhe tinha dado um punhal.
- Isso - disse ela em tom de escárnio. - Tyrion perguntou-me sobre isso.
- Houve um punhal. As cicatrizes nas mãos da Senhora Catelyn eram bem reais, ela mostrou-me. Você...?
- Ah, não diga besteiras. - Cersei fechou a janela. - Sim, tive esperança de que o garoto morresse. E você também. Até Robert pensou que teria sido melhor assim. "Matamos os cavalos quando quebram uma perna, e os cães quando ficam cegos, mas somos fracos demais para mostrar a mesma misericórdia por crianças aleijadas”, disse-me ele. Ele mesmo estava cego nesse momento, da bebida.
Robert? Jaime protegera o rei durante tempo suficiente para saber que Robert Baratheon dizia coisas quando estava de porre que negaria furiosamente no dia seguinte.
- Alguém estava presente quando Robert disse isso?
- Espero que não ache que ele disse isso a Ned Stark. Claro que estávamos a sós. Nós e as crianças. - Cersei tirou a rede para cabelos e enrolou-a numa das colunas da cama, após o que sacudiu seus caracóis dourados. - Talvez tenha sido Myrcella quem enviou esse homem com o punhal, parece-lhe que é possível?
Aquilo tinha a intenção de ser uma zombaria, mas Jaime compreendeu de imediato que ela acertara em cheio no cerne da questão.
- Myrcella, não. Joffrey.
Cersei franziu a testa.
- Joffrey não simpatizava com Robb Stark, mas o rapaz mais novo não lhe dizia nada. Ele próprio não passava de uma criança.
- Uma criança ansiosa por uma palmadinha na cabeça dada por esse bêbado que permitiu que ele acreditasse ser seu pai. - Teve uma ideia desconfortável. - Tyrion quase morreu por causa daquele maldito punhal. Se soubesse que tudo havia sido obra de Joffrey, podia ser esse o motivo...
- Não me interessa o motivo - disse Cersei. - Ele pode levar seus motivos consigo para o inferno. Se tivesse visto como Joff morreu... ele lutou, Jaime, ele lutou por cada golfada de ar, mas era como se algum espírito maligno tivesse as mãos em volta de sua garganta. Tinha um terror tão grande nos olhos... Quando era pequeno, corria para mim quando estava assustado ou magoado, e eu protegia-o. Mas naquela noite não houve nada que eu pudesse fazer. Tyrion assassinou-o na minha frente, e não houve nada que eu pudesse fazer. - Cersei ajoelhou-se diante da cadeira de Jaime e tomou a sua mão boa entre as dela. - Joff está morto e Myrcella em Dorne. Tommen é tudo que me resta. Não pode deixar que o pai o afaste de mim. Jaime, por favor.
- Lorde Tywin não pediu a minha aprovação. Posso falar com ele, mas não me escutará...
- Escutará, se concordar em abandonar a Guarda Real.
- Não vou abandonar a Guarda Real.
A irmã tentou reprimir as lágrimas.
- Jaime, você é o meu reluzente cavaleiro. Não pode me abandonar quando mais preciso de você! Ele está roubando meu filho, mandando-me embora... e a menos que o impeça, o pai vai me forçar a casar de novo!
Jaime não devia ter ficado surpreso, mas ficou. As palavras foram um golpe no estômago mais forte do que qualquer um dos que Sor Addam Marbrand lhe dera.
- Com quem?
- E isso importa? Um lorde ou outro qualquer. Alguém de que o pai pense que precisa. Não me interessa. Não aceitarei outro marido. É o único homem que eu quero na minha cama, para sempre.
- Então diga-lhe isso!
Ela afastou as mãos.
- Está outra vez dizendo loucuras. Quer nos ver afastados, como a mãe fez daquela vez que nos pegou brincando? Tommen perderia o trono e Myrcella, o seu casamento... eu quero ser sua esposa, pertencemos um ao outro, mas isso nunca poderá acontecer, Jaime. Somos irmão e irmã.
- Os Targaryen...
- Nós não somos os Targaryen!
- Calminha - disse ele em tom zombeteiro. - Assim tão alto vai acordar os meus Irmãos Juramentados. Não pode ser, certo? As pessoas poderiam ficar sabendo que veio me visitar.
- Jaime - soluçou ela -, acha que eu não desejo isso tanto quanto você? Não importa o homem com quem me casarem, quero você ao meu lado, quero você em minha cama, quero você dentro de mim. Nada mudou entre nós. Deixe-me provar. - Ela puxou a túnica dele para cima e começou a remexer nos cordões de seus calções.
Jaime deu por si a responder.
- Não - disse -, aqui, não. - Nunca tinham feito aquilo na Torre da Espada Branca, e muito menos nos aposentos do Senhor Comandante. - Cersei, este não é o local adequado.
- Tomou-me no septo. Aqui não é diferente. - Tirou seu pau para fora e inclinou a cabeça por cima dele.
Jaime empurrou-a com o coto da mão direita.
- Não. Aqui não, já disse. - Forçou-se a levantar-se.
Por um instante viu confusão nos brilhantes olhos verdes de Cersei, e também medo. Então a raiva substituiu-os. Ela recompôs-se, pôs-se em pé, alisou as saias.
- Foi a mão que lhe cortaram em Harrenhal, ou a virilidade? - quando sacudiu a cabeça, seus cabelos caíram em volta dos alvos ombros nus. - Fui uma tola por vir. Você não teve coragem para vingar Joffrey, por que devia pensar que protegeria Tommen? Diga-me, se o Duende tivesse matado todos os seus três filhos, teria isso o irritado?
- Tyrion não vai fazer mal a Tommen ou Myrcella. Ainda não tenho certeza de que matou Joffrey.
A boca dela torceu-se de fúria.
- Como pode dizer isso? Depois de todas as ameaças dele...
- Ameaças não querem dizer nada. Ele jura que não o fez.
- Oh, ele jura, então é isso? E os anões não mentem, é isso o que pensa?
- A mim, não. Assim como você.
- Seu grande idiota dourado. Ele mentiu para você mil vezes, e eu também. - Voltou a prender os cabelos e tirou a rede para cabelos da coluna da cama onde a pendurara. - Pense o que quiser. O monstrinho está numa cela negra, e em breve Sor Ilyn cortará sua cabeça. Talvez queira ficar com ela como recordação. - Lançou um relance à almofada.
- Ele pode vigiá-lo enquanto você dorme sozinho naquela cama branca e fria. Até que os olhos apodreçam, pelo menos.
- É melhor ir embora, Cersei. Está me deixando bravo.
- Oh, um aleijado bravo. Que coisa assustadora. - Soltou uma gargalhada. - Pena que Lorde Tywin Lannister nunca tenha tido um filho. Eu poderia ter sido o herdeiro que ele queria, mas faltava-me o pau. E, a propósito, é melhor enfiar o seu para dentro, irmão. Tem um ar bastante tristonho e pequenino, assim pendurado nos calções.
Depois de ela ir embora, Jaime aceitou o seu conselho, lutando contra os cordões com uma só mão. Sentia uma dor fantasma nos dedos que lhe chegava aos ossos. Perdi uma mão, um pai, um filho, uma irmã e uma amante, e em breve perderei um irmão. E no entanto não param de me dizer que a Casa Lannister ganhou esta guerra.
Jaime envergou o manto e desceu, indo encontrar Sor Boros Blount bebendo uma taça de vinho na sala comum.
- Quando terminar a bebida, diga a Sor Loras que estou pronto para recebê-la.
Sor Boros era covarde demais para fazer muito mais do que uma carranca.
- Está pronto para receber quem?
- Limite-se a dizer isso a Loras.
- Sim. - Sor Boros esvaziou a taça. - Sim, Senhor Comandante.
Levou o seu tempo cuidando do assunto, porém, ou então foi o Cavaleiro das Flores que se mostrou difícil de achar. Tinham-se passado várias horas quando chegaram, o magro e belo jovem e a grande donzela feia. Jaime estava sentado sozinho na sala redonda, folheando ociosamente o Livro Branco.
- Senhor Comandante - disse Sor Loras -, desejava receber a Donzela de Tarth?
- Sim. - Jaime fez-lhes um gesto com a mão esquerda para que se aproximassem. - Falou com ela, suponho?
- Conforme ordenou, senhor.
- É?
O rapaz ficou tenso.
- Eu... as coisas podem ter acontecido como ela diz, sor. Talvez tenha sido Stannis. Não posso ter certeza.
- Varys diz que o castelão de Ponta Tempestade também faleceu de forma estranha
- disse Jaime.
- Sor Cortnay Penrose - disse Brienne num tom triste. - Um bom homem.
- Um homem teimoso. Um dia pôs-se firmemente no caminho do Rei de Pedra do Dragão. No seguinte, saltou de uma torre. - Jaime levantou-se. - Sor Loras, conversaremos mais sobre isso mais tarde. Pode deixar Brienne comigo.
A garota parecia tão feia e desajeitada como sempre, Jaime concluiu quando o Tyrell os deixou. Alguém tinha voltado a vesti-la com roupa de mulher, mas esse vestido servia-lhe muito melhor do que aquele hediondo trapo cor-de-rosa que o bode a obrigara a usar.
- Azul é uma cor que lhe cai bem, senhora - observou Jaime. - Combina bem com os seus olhos. - Ela realmente tem uns olhos espantosos.
Brienne olhou-se de relance e perturbou-se.
- A Septã Donyse almofadou o corpete, para deixá-lo com esta forma. Disse que o mandou para mim. - A garota permanecia junto à porta, como se pretendesse fugir a qualquer segundo. - Está...
- Diferente? - conseguiu fazer um meio sorriso. - Mais carne sobre as costelas e menos piolhos no cabelo, é tudo. O coto é o mesmo. Feche a porta e venha cá.
Ela fez o que ele pediu.
- O manto branco...
- ... é novo, mas tenho certeza de que o sujarei bem depressa.
- Não era isso... eu ia dizer que lhe caía bem. - Brienne aproximou-se, hesitante.
- Jaime, falava a sério quando disse aquilo a Sor Loras? Sobre... sobre o Rei Renly e a sombra?
Jaime encolheu os ombros.
- Eu teria matado Renly pessoalmente se tivéssemos nos encontrado em batalha, que me importa quem lhe cortou a garganta?
- Disse que eu tinha honra...
- Eu sou o maldito Regicida, esqueceu-se? Quando digo que tem honra, isso é como ter uma prostituta assegurando a sua virgindade. - Encostou-se para trás e ergueu os olhos para ela. - Pernas-de-Aço vai a caminho do Norte, para entregar Arya Stark a Roose Bolton.
- Entregou-a a ele? - gritou ela, consternada. - Prestou um juramento à Senhora Catelyn...
- Com uma espada encostada na garganta, mas deixemos isso de lado. A Senhora Catelyn está morta. Não poderia devolver as filhas a ela mesmo se as tivesse em meu poder. E a garota que o meu pai mandou com Pernas-de-Aço não é Arya Stark.
- Não é Arya Stark?
- Você ouviu. O senhor meu pai encontrou uma nortenha magricela mais ou menos da mesma idade com mais ou menos as mesmas cores. Vestiu-a de branco e cinza, deu-lhe um lobo de prata para prender o manto e botou-a a caminho para se casar com o bastardo de Bolton. - Ergueu o coto para apontar para ela. - Quis dizer-lhe isso antes que partisse a galope para salvá-la e se fizesse matar inutilmente. Não é nada má com uma espada, mas não é suficientemente boa para derrotar sozinha duzentos homens.
Brienne sacudiu a cabeça.
- Quando Lorde Bolton souber que o seu pai lhe pagou com moeda falsa...
- Oh, ele sabe. Os Lannister mentem, lembra? Não importa, a garota serve ao seu propósito igualmente bem. Quem irá dizer que ela não é Arya Stark? Todo mundo de que a garota era próxima está morto, exceto a irmã, que desapareceu.
- Por que me contaria tudo isso se fosse verdade? Está traindo os segredos de seu pai.
Os segredos da Mão, pensou ele. Já não tenho pai.
- Eu pago as minhas dívidas, como todos os outros leõezinhos bons. Prometi as filhas à Senhora Stark... e uma delas continua viva. Meu irmão pode saber onde se encontra, mas se sabe, não o diz. Cersei está convencida de que Sansa o ajudou a assassinar Joffrey.
A boca da moça fez uma expressão obstinada.
- Não acreditarei que aquela garota gentil é uma envenenadora. A Senhora Catelyn disse que ela tinha um coração afetuoso. Foi o seu irmão. Houve um julgamento, disse Sor Loras.
- Na verdade, houve dois. Tanto as palavras como as espadas lhe falharam. Uma bagunça sangrenta. Assistiu da janela?
- Minha cela dá para o mar. Mas ouvi os gritos.
- O Príncipe Oberyn de Dorne está morto, Sor Gregor Clegane, moribundo, e Tyrion condenado perante os olhos dos deuses e dos homens. Ele será mantido numa cela negra até o matarem.
Brienne olhou-o.
- Não acredita que tenha sido ele.
Jaime concedeu-lhe um sorriso duro.
- Vê, garota? Conhecemo-nos bem demais. Tyrion deseja ser eu desde que deu o primeiro passo, mas nunca me seguiria no regicídio. Foi Sansa Stark quem matou Joffrey. Meu irmão manteve silêncio para protegê-la. Ele tem esses ataques de galanteria de vez em quando. O último custou-lhe um nariz. Dessa vez custará a cabeça.
- Não - disse Brienne. - Não foi a filha da minha senhora. Não pode ter sido ela.
- Aí está a garota teimosa e burra de que me lembro.
Ela enrubesceu.
- Meu nome é...
- Brienne de Tarth. - Jaime suspirou. - Tenho um presente para você. - Estendeu a mão por baixo da cadeira do Senhor Comandante e tirou-a para fora, envolta em dobras de veludo carmesim.
Brienne aproximou-se como se a trouxa pudesse mordê-la, estendeu uma enorme mão sardenta e afastou uma dobra de tecido. Rubis cintilaram à luz. Pegou cuidadosamente no tesouro, enrolou os dedos em volta do cabo de couro e libertou lentamente a espada de sua bainha. As ondulações brilharam de sangue e negrume. Um dedo de luz refletida correu, vermelho, ao longo do gume.
- Isto é aço valiriano? Nunca vi cores assim.
- Nem eu. Houve um tempo em que teria dado a mão direita para brandir uma espada como essa. Agora parece que o fiz, portanto a lâmina é desperdiçada em mim. Aceite-a. - Antes que ela pudesse pensar em recusar, prosseguiu. - Uma espada tão boa precisa de um nome. Ficaria feliz se chamasse esta de Cumpridora de Promessas. Mais uma coisa. A lâmina tem um preço.
O rosto dela tornou-se sombrio.
- Eu disse-lhe, nunca servirei...
- ... criaturas tão malvadas. Sim, eu me lembro. Ouça-me até o fim, Brienne. Ambos prestamos juramentos a propósito de Sansa Stark. Cersei pretende assegurar-se de que a garota seja encontrada e morta, não importa onde ela tenha se enfiado...
O rosto simples de Brienne torceu-se de fúria.
- Se acredita que eu faria mal à filha de minha senhora em troca de uma espada, você...
- Cale-se e ouça - exclamou ele, irritado pelas suposições dela. - Quero que encontre Sansa primeiro e que a leve para qualquer lugar seguro. De outro modo, como nós iremos cumprir os estúpidos juramentos que prestamos à sua preciosa e falecida Senhora Catelyn?
A moça pestanejou.
- Eu... eu pensei...
- Eu sei o que pensou. - De repente, Jaime ficou farto de olhar para ela. Bale como uma porcaria de uma ovelha. - Quando Ned Stark morreu, a espada dele foi oferecida ao Magistrado do Rei - disse-lhe. - Mas meu pai achou que uma lâmina tão boa era desperdiçada num mero carrasco. Deu uma nova espada a Sor Ilyn, e mandou fundir a Gelo e forjá-la novamente. Havia metal suficiente para duas lâminas novas. Tem uma delas na mão. Portanto, irá proteger a filha de Ned Stark com o aço do próprio Ned Stark, se é que isso faz alguma diferença para você.
- Sor, eu... eu devo-lhe um pedido de desc...
Jaime interrompeu-a.
- Pegue a porcaria da espada e vá embora, antes que eu mude de ideia. Há uma égua baia nos estábulos, tão feia quanto você, mas um pouco mais bem treinada. Vá em perseguição do Pernas-de-Aço, vá em busca de Sansa, ou vá para casa, para a sua ilha de safiras, não me interessa. Não quero olhar mais para você.
- Jaime...
- Regicida - relembrou-lhe. - É melhor que use essa espada para limpar a cera dos ouvidos, garota. Nossa conversa acabou.
Teimosamente, ela insistiu.
- Joffrey era seu...
- Meu rei. Deixe as coisas assim.
- Diz que Sansa o matou. Por que protegê-la?
Porque Joff não me era mais do que um esguicho de sêmen na boceta de Cersei. E porque merecia morrer.
- Fiz reis e desfi-los. Sansa Stark é minha última oportunidade de honra. - Jaime deu um ligeiro sorriso. - Além disso, os regicidas deviam se juntar. Nunca mais vai embora?
A grande mão de Brienne fechou-se com força em volta da Cumpridora de Promessas.
- Vou. E encontrarei a garota e a manterei a salvo. Pela senhora mãe dela. E por você.
- Fez uma reverência rígida, virou-se e saiu.
Jaime ficou sentado à mesa, sozinho, enquanto as sombras iam enchendo a sala. Quando o ocaso começou a se instalar, acendeu uma vela e abriu o Livro Branco em sua página. Encontrou pena e tinta numa gaveta. Por baixo da última linha escrita por Sor Barristan, escreveu numa letra desajeitada que poderia ter sido elogiada numa criança de seis anos que estivesse aprendendo as primeiras letras com o meistre:
Derrotado no Bosque dos Murmúrios pelo Jovem Lobo Robb Stark durante a Guerra dos Cinco Reis. Mantido cativo em Correrrio e resgatado em troca de uma promessa não cumprida. Capturado de novo pelos Bravos Companheiros e mutilado por ordem de Vargo Hoat, o capitão deles, perdendo a mão da espada pela lâmina de Zoilo, o Gordo. Devolvido em segurança a Porto Real por Brienne, a Donzela de Tarth.
Quando terminou, ainda restava encher mais de três quartos de sua página, entre o leão de ouro no escudo carmesim ao topo e o escudo branco e vazio no fundo. Sor Gerold Hightower tinha começado a sua história e Sor Barristan Selmy continuara-a, mas o resto teria de ser escrito pelo próprio Jaime Lannister. Dali em diante, poderia escrever o que quer que decidisse escrever.
O que quer que decidisse...
O vento soprava forte do leste, tão forte que a pesada gaiola balançava sempre que uma rajada a apanhava em seus dentes. Uivava ao longo da Muralha, tremendo pelo gelo, fazendo o manto de Jon esvoaçar de encontro às barras. O céu era um cinza de ardósia, o sol, nada mais do que uma tênue mancha brilhante por trás das nuvens. Para além do campo de morte, via a cintilação de mil fogueiras ardendo, mas suas luzes pareciam pequenas e impotentes contra tamanha escuridão e frio.
Um dia carregado. Jon Snow envolveu as barras com mãos enluvadas e segurou-se bem, enquanto o vento martelava a gaiola mais uma vez. Quando olhou para baixo, por entre os pés, viu o chão perdido em sombras, como se estivesse sendo baixado para um poço sem fundo. Bem, a morte é uma espécie de poço sem fundo, refletiu, e quando a obra deste dia estiver concluída, meu nome ficará para sempre envolto em sombras.
Os homens diziam que as crianças bastardas nasciam da luxúria e da mentira; a sua natureza era libertina e traiçoeira. Antes, Jon pretendia provar que isso era um erro, mostrar ao senhor seu pai que podia ser um filho tão bom e leal quanto Robb. Arruinei tudo isso. Robb tinha se transformado num rei herói; se Jon fosse por acaso recordado, seria como vira-casaca, perjuro e assassino. Estava feliz por Lorde Eddard não estar vivo para assistir à sua vergonha.
Devia ter ficado naquela gruta com Ygritte. Se houvesse uma vida para além daquela, esperava dizer-lhe isso. Ela vai arranhar meu rosto como a águia e amaldiçoar-me de ser covarde, mas direi mesmo assim. Flexionou a mão da espada, como Meistre Aemon lhe ensinara a fazer. O hábito tinha se tornado parte de si e precisaria dos dedos flexíveis para ter nem que fosse meia chance de assassinar Mance Rayder.
Tinham-no tirado para fora naquela manhã, depois de quatro dias passados no gelo, fechado numa cela de um metro e meio por um metro e meio por um metro e meio, baixa demais para se pôr em pé, apertada demais para se deitar de costas. Os intendentes tinham há muito descoberto que a comida e a carne duravam mais tempo nos armazéns de gelo esculpidos na base da Muralha... mas os prisioneiros não.
"Morrerá aqui, Lorde Snow” disse Sor Alliser imediatamente antes de fechar a pesada porta de madeira, e Jon tinha acreditado nele. Mas naquela manhã tinham vindo tirá-lo de lá e tinham-no levado, cheio de cãibras e tremendo, à Torre do Rei, para comparecer uma vez mais perante o queixudo Janos Slynt.
- Aquele velho meistre diz que não posso enforcá-lo - declarou Slynt. - Escreveu a Cotter Pyke, e até teve o maldito descaramento de me mostrar a carta. Diz que não é nenhum vira-casaca.
- Aemon viveu tempo demais, senhor - garantiu-lhe Sor Alliser. - Seu discernimento tornou-se tão escuro como os olhos.
- Sim - disse Slynt. - Um cego com uma corrente em volta do pescoço, quem ele pensa que é?
Aemon Targaryen, pensou Jon, filho de um rei e irmão de um rei, e um rei que poderia ter sido. Mas nada disse.
- Mesmo assim - falou Slynt -, não quero que se diga que Janos Slynt enforcou um homem injustamente. Não quero. Decidi dar-lhe uma última chance de demonstrar que é tão leal como diz ser, Lorde Snow. Uma última chance de cumprir o seu dever, sim! - Levantou-se. - Mance Rayder quer parlamentar conosco. Sabe que não tem chances, agora que Janos Slynt chegou, portanto quer conversar, este Rei-para-lá-da-Muralha. Mas o homem é covarde, e não quer vir até nós. Sem dúvida que sabe que o penduraria na forca. Penduraria pelos pés do topo da Muralha, na ponta de uma corda com sessenta metros de comprimento! Mas ele não vem. Pede que lhe mandemos um enviado.
- Vamos mandá-lo, Jon Snow. - Sor Alliser sorriu.
- Eu. - A voz de Jon não tinha vida. - Por que eu?
- Acompanhou estes selvagens - disse Thorne. - Mance Rayder conhece você. Estará mais inclinado a confiar em você.
Aquilo era tão errado que Jon poderia ter rido.
- Entendeu as coisas ao contrário. Mance suspeitou de mim desde o início. Se aparecer em seu acampamento de novo com um manto negro e falando pela Patrulha da Noite, saberá que o traí.
- Ele pediu um enviado, e nós vamos enviar um - disse Slynt. - Se for covarde demais para enfrentar este rei vira-casaca, podemos devolvê-lo à sua cela de gelo. Dessa vez sem as peles, parece-me. Sim.
- Não há necessidade disso, senhor - disse Sor Alliser. - Lorde Snow fará o que pedimos. Ele quer nos mostrar que não é nenhum vira-casaca. Quer mostrar que é um membro leal da Patrulha da Noite.
Jon tinha notado que Thorne era, de longe, o mais inteligente dos dois; aquilo fedia a obra dele por todo o lado. Estava preso numa armadilha.
- Eu vou - disse, numa voz apertada e seca.
- Senhor - lembrou Janos Slynt. - Vai me tratar por...
- Eu vou, senhor. Mas está cometendo um erro, senhor. Está mandando o homem errado, senhor. Ver-me será o suficiente para enfurecer Mance. O senhor teria uma melhor possibilidade de conseguir um acordo se enviasse...
- Um acordo? - Sor Alliser soltou um risinho.
- Janos Slynt não faz acordos com selvagens sem lei, Lorde Snow. Não, não faz.
- Não o estamos enviando para falar com Mance Rayder - disse Sor Alliser. - Estamos enviando-o para matar Mance Rayder.
O vento assobiou por entre as barras, e Jon Snow estremeceu. Tinha a perna latejando e a cabeça também. Não tinha condições de matar um gatinho, mas ali estava. A armadilha tinha dentes. Com Meistre Aemon a insistir na inocência de Jon, Lorde Janos não se atrevera a deixá-lo no gelo para morrer. Aquilo era melhor.
“Nossa honra não significa mais do que nossas vidas, desde que o reino fique em segurança”, Qhorin Meia-Mão tinha dito nas Presas de Gelo. Precisava se lembrar daquilo. Quer matasse Mance, quer apenas tentasse e falhasse, o povo livre iria matá-lo. Até a deserção era impossível, se estivesse inclinado a tal coisa; para Mance, ele era um mentiroso e traidor comprovado.
Quando a gaiola parou com um solavanco, Jon saltou para o chão e sacudiu o cabo de Garralonga para que a lâmina bastarda ficasse solta dentro da bainha. O portão estava a alguns metros para a sua esquerda, ainda bloqueado pelos restos estilhaçados da tartaruga, com a carcaça de um mamute apodrecendo lá dentro. Havia também outros cadáveres, espalhados entre barris quebrados, piche endurecido e manchas de mato queimado, tudo sob a sombra da Muralha. Jon não tinha qualquer desejo de se demorar ali. Pôs-se a caminhar na direção do acampamento dos selvagens, passando pelo corpo de um gigante cuja cabeça havia sido esmagada por uma pedra. Um corvo estava arrancando pedaços de cérebro do crânio estilhaçado do gigante. Olhou para cima quando ele passou. “Snow", gritou para ele. “Snow, snow.” Então abriu as asas e partiu voando.
Assim que começou a avançar, um cavaleiro solitário emergiu do acampamento dos selvagens e veio em sua direção. Perguntou a si mesmo se Mance viria parlamentar na terra de ninguém. Isso podia tornar as coisas mais fáceis, se bem que nada as tornará fáceis. Mas quando a distância entre ambos diminuiu, Jon viu que o homem era baixo e largo, com anéis de ouro cintilando em braços grossos e uma barba branca que se espalhava por seu peito maciço.
- Ha! - trovejou Tormund quando se encontraram. - Jon Snow, o corvo. Tive receio de não o ver mais.
- Não sabia que tinha receio de alguma coisa, Tormund.
Aquilo fez o selvagem sorrir.
- Bem dito, moço. Tô vendo que seu manto é negro. O Mance não vai gostar disso. Se veio mudar de lado outra vez, é melhor subir de volta a sua Muralha ali.
- Enviaram-me para tratar com o Rei-para-lá-da-Muralha.
- Tratar? - Tormund riu. - Mas que palavra. Ha! Mance quer conversar, isso lá é verdade. Mas não sei lá muito bem se quer conversar com você.
- Foi a mim que enviaram.
- Tô vendo isso. Então é melhor vir daí. Quer montar?
- Posso ir a pé.
- Deu-nos boa luta aqui. - Tormund virou o garrano para o acampamento dos selvagens. - Você e seus irmãos. Tenho de admitir. Duzentos mortos e uma dúzia de gigantes. O próprio Mag entrou naquele seu portão e não saiu mais.
- Ele morreu pela espada de um homem valente chamado Donal Noye.
- Ah sim? Era algum grande senhor, esse Donal Noye? Um de seus cavaleiros brilhantes com roupas de baixo em aço?
- Um ferreiro. Só tinha um braço.
- Um ferreiro maneta matou Mag, o Poderoso? Ha! Essa deve ter sido uma luta digna de ser vista. O Mance vai fazer dela uma canção, você vai ver. - Tormund desprendeu um odre da sela e tirou a rolha dele. - Isso vai nos aquecer um pouco. A Donal Noye e a Mag, o Poderoso. - Bebeu um trago e passou o odre para Jon.
- A Donal Noye e a Mag, o Poderoso. - O odre estava cheio de hidromel, mas um hidromel tão potente que encheu os olhos de Jon de água e mandou gavinhas de fogo serpenteando por todo o seu peito. Depois da cela de gelo e da fria descida na gaiola, o calor era bem-vindo.
Tormund recuperou o odre e emborcou mais um trago e depois limpou a boca.
- O Magnar de Thenn jurou à gente que ia ter o portão escancarado, pra que tudo que tivéssemos de fazer fosse passear por ele cantando. Que ia botar a Muralha inteira abaixo.
- Botou abaixo parte dela - disse Jon. - Em cima da própria cabeça.
- Ha! - disse Tormund. - Bem, nunca vi grande utilidade no Styr. Quando um homem não tem nem barba, nem cabelo, nem orelhas, não se pode pegar bem nele quando se luta. - Mantinha o cavalo a passo lento, para que Jon pudesse ir coxeando a seu lado.
- O que é que houve com essa perna?
- Uma flecha. Uma das de Ygritte, acho eu.
- Isso é que é mulher. Um dia tá beijando você, no outro o enche de flechas.
- Está morta.
- Ah, é? - Tormund sacudiu tristemente a cabeça. - Uma pena. Se eu fosse dez anos mais novo, tinha raptado-a pra mim. Aqueles cabelos que ela tinha... Bem, as fogueiras mais quentes são as que ardem mais depressa. - Ergueu o odre de hidromel. - A Ygritte, beijada pelo fogo! - bebeu um longo trago.
- A Ygritte, beijada pelo fogo - repetiu Jon quando Tormund lhe entregou o odre. Bebeu um trago ainda mais longo.
- Foi você que a matou?
- Foi um irmão meu. - Jon nunca soube qual, e esperava nunca saber.
- Malditos corvos. - O tom de Tormund era duro, mas estranhamente gentil. - Aquele Lança-Longa roubou-me a filha. Munda, a minha maçãzinha de outono. Raptou-a bem da minha tenda, com os quatro irmãos dela por lá. Toregg passou o tempo todo dormindo, o grande palhaço, e Torwynd... bem, Torwynd, o Manso, isso diz tudo que é preciso dizer, não diz? Mas os mais novos deram luta ao moço.
- E Munda?
- Ela é do meu sangue - disse Tormund com orgulho. - Rasgou o lábio dele e arrancou-lhe metade de uma orelha com uma dentada, e ouvi dizer que ele tem tantos arranhões nas costas que não consegue pôr um manto. Mas gosta bastante dele. E por que não haveria de gostar? Ele não luta com lança, sabe? E nunca lutou. De onde acha que veio aquele nome dele então? Ha!
Jon teve de rir. Mesmo naquela hora, mesmo naquele local. Ygritte gostara do Lança-Longa Ryk. Jon esperava que ele tivesse encontrado alguma alegria com a Munda de Tormund. Alguém tinha de encontrar alegria em algum lugar.
“Você não sabe nada, Jon Snow”, teria dito Ygritte. Sei que vou morrer, pensou. Pelo menos isso sei. “Todos os homens morrem” quase conseguia ouvi-la dizer "e as mulheres também, e todos os animais que voam, nadam ou correm. Não é quando se morre que importa, é como, Jon Snow". É fácil para você dizer isso, pensou em resposta. Morreu bravamente em batalha, assaltando o castelo de um inimigo. Eu vou morrer como vira-casaca e assassino. E a morte dele também não seria rápida, a menos que viesse na ponta da espada de Mance.
Logo estavam entre as tendas. Era o acampamento selvagem habitual; a vasta confusão de fogueiras e fossas, crianças e cabras vagueando livremente, ovelhas balindo entre as árvores, peles de cavalo penduradas para secar. Não tinha um plano, não tinha ordem, não tinha defesas. Mas havia homens, mulheres e animais por todo lado.
Muitos ignoraram-no, mas a cada um que prosseguia com a sua vida havia dez que paravam para encará-lo; crianças agachadas junto às fogueiras, velhas em carros de cães, habitantes de cavernas com o rosto pintado, corsários com garras, serpentes e cabeças cortadas pintadas em seus escudos, todos se viraram para ver. Jon também viu esposas de lanças, com longos cabelos soprados pelo vento que cheirava a pinheiro e suspirava por entre as árvores.
Ali não havia verdadeiras colinas, mas a tenda de peles brancas de Mance Rayder havia sido erguida num local de terreno elevado e pedregoso bem no limite das árvores. O Rei-para-lá-da-Muralha esperava à porta, com o esfarrapado manto vermelho e negro esvoaçando ao vento. Jon viu que Harma Cabeça de Cão se encontrava com ele, de volta dos ataques e simulações feitos ao longo da Muralha, e Varamyr Seis-Peles também, rodeado por seu gato-das-sombras e dois esguios lobos cinzentos.
Quando viram quem a Patrulha tinha enviado, Harma virou a cabeça e cuspiu, e um dos lobos de Varamyr mostrou os dentes e rosnou.
- Deve ser muito valente ou muito estúpido, Jon Snow - disse Mance Rayder - para voltar para junto de nós vestindo um manto negro.
- O que mais vestiria um homem da Patrulha da Noite:1
- Mate-o - instou Harma. - Mande o corpo de volta naquela gaiola que eles têm e diga-lhes que nos mandem outro. Eu fico com a cabeça dele como estandarte. Um vira-casaca é pior que um cão.
- Eu preveni que ele era falso. - O tom de Varamyr era brando, mas seu gato-das-sombras estava fitando Jon com uma expressão faminta nas fendas cinza que eram seus olhos. - Nunca gostei do cheiro dele.
- Recolha as garras, animal. - Tormund Terror dos Gigantes saltou do cavalo. - O moço tá aqui pra ouvir. Se puser uma pata nele, pode ser que eu arranje esse manto de gato-das-sombras que tenho cobiçado.
- Tormund Ama-Corvos - escarneceu Harma. - É um grande saco de vento, velho.
O troca-peles tinha um rosto cinzento, ombros redondos e era calvo, um homem que
mais parecia um rato com olhos de lobisomem.
- Depois de um cavalo se habituar à sela, qualquer homem pode montá-lo - disse ele em voz baixa. - Depois de um animal se juntar a um homem, qualquer troca-peles pode entrar nele e montá-lo. Orell estava definhando dentro de suas penas, por isso fiquei com a águia. Mas a junção funciona nos dois sentidos, warg. Orell agora vive dentro de mim, murmurando como o odeia. E eu posso pairar por cima da Muralha e ver com olhos de águia.
- É assim que sabemos - disse Mance. - Sabemos como vocês eram poucos quando detiveram a tartaruga. Sabemos quantos vieram de Atalaialeste. Sabemos como seus suprimentos minguaram. Piche, óleo, flechas, lanças. Até a escada desapareceu, e aquela gaiola só pode içar uns poucos. Nós sabemos. E agora você sabe que sabemos. - Abriu a aba da tenda. - Entre. O resto de vocês, esperem aqui.
- O quê, até eu? - disse Tormund.
- Especialmente você. Sempre.
Lá dentro fazia calor. Uma pequena fogueira ardia sob os buracos para a fumaça, e um braseiro incandescia junto da pilha de peles onde Dalla jazia, pálida e suando. A irmã estava segurando sua mão. Vai, recordou Jon.
- Tive pena quando Jarl caiu - disse-lhe.
Vai olhou-o com olhos cinza-claros.
- Ele sempre escalou depressa demais. - Era tão bonita quanto ele lembrava, esguia, com seios cheios, graciosa até em repouso, com malares altos e pronunciados e uma grossa trança de cabelos cor de mel que lhe caía até a cintura.
- A hora de Dalla está chegando - explicou Mance. - Ela e Vai ficarão. Elas sabem o que eu quero dizer.
Jon manteve o rosto imóvel como gelo. Já é suficientemente ruim matar um homem em sua própria tenda sob uma trégua. Terei também de assassiná-lo diante de sua mulher enquanto nasce seu filho? Fechou os dedos da mão da espada. Mance não vestia armadura, mas tinha a espada embainhada junto à anca esquerda. E havia outras armas na tenda, punhais e adagas, um arco e uma aljava cheia de flechas, uma lança de ponta de bronze no chão, ao lado do grande e negro...
... berrante.
Jon prendeu a respiração.
Um berrante de guerra, um berrante de guerra grande como o diabo.
- Sim - disse Mance. - O Berrante do Inverno, que Joramun soprou um dia para despertar os gigantes da terra.
O berrante era enorme, com dois metros e quarenta ao longo da curvatura e tão largo na boca que podia ter enfiado o braço lá dentro até o cotovelo. Se isto veio de um auroque, era o maior que já existiu. A princípio, pensou que as tiras de metal em volta dele eram de bronze, mas quando se aproximou percebeu que eram de ouro. Ouro velho, mais castanho do que amarelo, e gravado com runas.
- Ygritte disse que não chegou a encontrar o berrante.
- Pensa que só os corvos sabem mentir? Eu gostei bastante de você, para um bastardo... mas nunca confiei em você. Um homem tem de ganhar a minha confiança.
Jon encarou-o.
- Se tinha o Berrante de Joramun desde o início, por que não o usou? Para que se incomodar com a construção de tartarugas e com o envio de Thenns para nos matar enquanto dormíamos? Se esse berrante for tudo que as canções dizem que é, por que não simplesmente soprá-lo e pronto?
Foi Dalla quem lhe respondeu, a Dalla da enorme barriga, deitada em sua pilha de peles ao lado do braseiro.
- Nós, o povo livre, sabemos coisas que vocês, os que ajoelham, já esqueceram. Às vezes, a estrada mais curta não é a mais segura, Jon Snow. O Senhor Chifrudo disse um dia que a feitiçaria é uma espada sem cabo. Não há maneira segura de pegar nela.
Mance percorreu com uma mão a curvatura do grande berrante.
- Ninguém vai à caça só com uma flecha na aljava - disse. - Tive a esperança de que Styr e Jarl pegassem seus irmãos desprevenidos e nos abrissem o portão. Afastei a sua guarnição com simulações, incursões e ataques secundários. Bowen Marsh engoliu essa isca, como eu sabia que engoliria, mas seu bando de órfãos e aleijados mostrou-se mais teimoso do que eu esperava. Mas não pense que nos deteve. A verdade é que vocês são poucos demais e nós, muitos. Podia continuar com o ataque aqui e ainda mandar dez mil homens atravessar a Baía das Focas em jangadas e tomar Atalaialeste pela retaguarda. Também podia assaltar a Torre Sombria, conheço tão bem os acessos como qualquer outro homem vivo. Podia mandar homens e mamutes escavar os portões dos castelos que abandonaram, todos ao mesmo tempo.
- Então por que não faz isso? - Jon podia ter puxado Garralonga naquele momento, mas queria ouvir o que o selvagem tinha a dizer.
- Sangue - disse Mance Rayder. - No fim venceria, sim, mas vocês iriam me sangrar, e o meu povo já sangrou o suficiente.
- Suas perdas não foram assim tão pesadas.
- Pelas suas mãos, não. - Mance estudou o rosto de Jon. - Viu o Punho dos Primeiros Homens. Sabe o que aconteceu ali. Sabe o que enfrentamos.
- Os Outros...
- Eles ficam mais fortes à medida que os dias se tornam mais curtos e as noites mais frias. Primeiro matam-no, depois mandam seus mortos contra você. Os gigantes não foram capazes de lhes resistir, nem os Thenns, os clãs do rio de gelo ou os Cornopés.
- Nem você?
- Nem eu. - Havia ira naquela admissão, e uma amargura profunda demais para ser expressa por palavras. - Raymun Barba-Vermelha, Bael, o Bardo, Gendel e Gorne, o Senhor Chifrudo, todos eles vieram para o sul para conquistar, mas eu vim com o rabo entre as pernas para me esconder atrás da sua Muralha. - Voltou a encostar no berrante. - Se fizer soar o Berrante do Inverno, a Muralha cairá. Pelo menos é o que as canções me querem fazer crer. Há alguns entre o meu povo que não desejam nada com mais força...
- Mas depois que a Muralha cair - disse Dalla -, o que irá parar os Outros?
Mance concedeu-lhe um sorriso afetuoso.
- E uma mulher sensata, esta que encontrei. Uma verdadeira rainha. - Voltou-se de novo para Jon. - Volte e diga-lhes para abrirem o portão e deixarem-nos passar. Se o fizerem, darei o berrante, e a Muralha ficará em pé até o fim dos tempos.
Abrir o portão e deixá-los passar. Fácil de dizer, mas o que se seguiria? Gigantes acampados nas ruínas de Winterfell? Canibais na mata de lobos, bigas varrendo as terras acidentadas, povo livre raptando as filhas de construtores navais e ourives em Porto Branco e peixeiras ao largo da Costa Pedregosa?
- E um verdadeiro rei? - perguntou Jon subitamente.
- Nunca tive uma coroa na cabeça nem sentei o traseiro na porcaria de um trono, se é isso o que está perguntando - respondeu Mance. - Meu nascimento é tão baixo quanto poderia ser, nenhum septão me besuntou a cabeça com óleos, não sou dono de castelos, e a minha rainha usa peles e âmbar, e não seda e safiras. Sou o meu próprio campeão, o meu próprio bobo e o meu próprio harpista. Não se torna Rei-para-lá-da-Muralha por causa de quem foi o seu pai. O povo livre não seguirá um nome e não se importa com qual dos irmãos nasceu primeiro. Segue lutadores. Quando abandonei a Torre Sombria, havia cinco homens fazendo barulho a respeito de como eles mesmos podiam ser do material de que são feitos os reis. Tormund era um, o Magnar, outro. Matei os outros três, quando deixaram claro que preferiam lutar a me seguir.
- Pode matar seus inimigos - disse Jon sem rodeios -, mas será capaz de governar seus amigos? Se deixarmos seu povo passar, é suficientemente forte para fazê-los manter a paz do rei e obedecer às leis?
- Às leis de quem? Às leis de Winterfell e de Porto Real? - Mance soltou uma gargalhada. - Quando quisermos leis, faremos as nossas. Pode ficar também com a sua real justiça e os seus reais impostos. Estou oferecendo-lhe o berrante, não a nossa liberdade. Não nos ajoelharemos perante vocês.
- E se recusarmos a proposta? - Jon não tinha dúvida de que recusariam. O Velho Urso poderia pelo menos ter escutado, embora recusasse diante da ideia de deixar trinta ou quarenta mil selvagens à solta nos Sete Reinos. Mas Alliser Thorne e Janos Slynt descartariam a ideia logo de cara.
- Se recusarem - disse Mance Rayder -, Tormund Terror dos Gigantes fará soar o Berrante do Inverno dentro de três dias, ao nascer do dia.
Levaria a mensagem para Castelo Negro e contaria a eles sobre o berrante, mas se deixasse Mance vivo, Lorde Janos e Sor Alliser usariam isso como prova de que era um vira-casaca. Mil pensamentos passaram pela cabeça de Jon. Se puder destruir o berrante, esmagá-lo aqui e agora... mas antes de poder começar a pensar bem nisso, ouviu o gemido grave de outro berrante qualquer, atenuado pelas paredes de peles da tenda. Mance também ouviu. Franzindo a testa, dirigiu-se para a porta. Jon seguiu-o.
O berrante de guerra era mais sonoro lá fora. Seu chamado tinha agitado o acampamento dos selvagens. Cavalos relinchavam e resfolegavam, gigantes rugiam no Idioma Antigo e até os mamutes estavam inquietos.
- Berrante de batedor - disse Tormund a Mance.
- Alguma coisa vem aí. - Varamyr estava sentado de pernas cruzadas no chão meio congelado, com os lobos descrevendo círculos agitadamente em volta dele. Uma sombra pairou por cima dele, e Jon ergueu o olhar para ver as asas azul-acinzentadas de uma águia. - Vem do leste.
“Quando os mortos caminham, muralhas, estacas e espadas não significam nada, recordou. Não pode lutar com os mortos, Jon Snow.” Ninguém sabe disso tão bem quanto eu.
Harma franziu as sobrancelhas.
- Do leste? As criaturas deviam estar atrás de nós.
- Do leste - repetiu o troca-peles. - Alguma coisa vem aí.
- Os Outros? - perguntou Jon.
Mance sacudiu a cabeça.
- Os Outros nunca vêm quando o sol está no céu. - Bigas chocalhavam através do campo de morte, transbordando de guerreiros que brandiam lanças de osso afiado. O rei gemeu. - Onde eles pensam que vão, porra? Quenn, leve aqueles idiotas de volta às suas posições. Alguém me traga o cavalo. A égua, não o garanhão. Também vou querer a minha armadura. - Mance deu um relance desconfiado à Muralha. No topo das ameias geladas, os soldados de palha mantinham-se em pé, colecionando flechas, mas não havia sinal de mais nenhuma atividade. - Harma, ponha em campo os seus batedores. Tormund, vá à procura de seus filhos e arranje uma linha tripla de lanças.
- Sim - disse Tormund, afastando-se a passos largos.
O pequeno troca-peles com ar de rato fechou os olhos e disse:
- Estou vendo-os. Aproximam-se ao longo dos riachos e das trilhas de caça...
- Quem?
- Homens. Homens a cavalo. Homens vestidos de aço e homens vestidos de negro.
- Corvos. - Mance transformou a palavra numa praga. Virou-se para Jon. - Será que os meus antigos irmãos pensaram que me apanhariam de calças arriadas se atacassem enquanto estivéssemos conversando?
- Se planejaram um ataque, não me falaram dele. - Jon não acreditava. Lorde Janos não tinha homens suficientes para atacar o campo dos selvagens. Além disso, encontrava-se do lado errado da Muralha, e o portão estava selado com entulho. Ele tinha um tipo diferente de traição em mente, isso não pode ser obra sua.
- Se está outra vez mentindo para mim, não sai vivo daqui - preveniu Mance. Os guardas trouxeram-lhe o cavalo e a armadura. Em outros pontos do acampamento, Jon viu gente correndo desordenadamente, com alguns homens se posicionando como se fossem assaltar a Muralha, enquanto outros se esgueiravam para a floresta, mulheres conduzindo carros de cães para leste, mamutes vagueando para oeste. Estendeu a mão por sobre o ombro e puxou a Garralonga, exatamente no momento em que uma fina linha de patrulheiros emergia do limite da floresta a trezentos metros de distância. Usavam cota de malha negra, meios-elmos negros e mantos negros. Com a armadura meio posta, Mance puxou a espada. - Então você não sabia de nada disto? - disse friamente a Jon.
Lentos como mel numa manhã fria, os patrulheiros caíram sobre o acampamento dos selvagens, abrindo caminho por entre maciços de giestas e pequenos bosques, por sobre raízes e pedras. Selvagens voaram ao seu encontro, berrando gritos de guerra e brandindo tacapes, espadas de bronze e machados de pederneira, galopando temerariamente contra seus velhos inimigos. Um grito, um golpe e uma boa morte valente, era como Jon ouvira os irmãos referindo-se à maneira de lutar do povo livre.
- Acredite no que quiser - disse Jon ao Rei-para-lá-da-Muralha -, mas nada sabia de ataque algum.
Harma passou por eles trovejando antes de Mance poder responder, à frente de trinta corsários. Seu estandarte seguia à sua frente; um cão morto empalado numa lança, fazendo chover sangue a cada passo. Mance observou enquanto ela se esmagava contra os patrulheiros.
- Pode ser que esteja dizendo a verdade - disse. - Estes parecem homens de Atalaialeste. Marinheiros a cavalo. Cotter Pyke sempre teve mais coragem do que juízo. Capturou o Senhor dos Ossos em Monte Longo, pode ter pensado em fazer o mesmo comigo. Se sim, é um idiota. Não tem homens suficientes, ele...
- Mance! - soou o grito. Era um batedor, irrompendo de entre as árvores num cavalo coberto de espuma. - Mance, há mais, estão por toda a nossa volta, homens de ferro, ferro, uma tropa de homens de ferro.
Praguejando, Mance saltou para a sela.
- Varamyr, fique e trate de que nenhum mal aconteça a Dalla. - O Rei-para-lá-da-Muralha apontou a espada a Jon. - E mantenha olhos extras neste corvo. Se ele fugir, corte-lhe a goela.
- Sim, eu trato disso. - O troca-peles era uma cabeça mais baixo do que Jon, baixo e mole, mas aquele gato-das-sombras era capaz de estripá-lo com uma pata. - Também estão vindo do norte - disse Varamyr a Mance. - É melhor ir.
Mance colocou o elmo com as suas asas de gralha. Seus homens também tinham montado.
- Ponta de lança - gritou Mance -, a mim, formar em cunha. - Mas quando deu com os calcanhares na égua e voou campo afora ao encontro dos patrulheiros, os homens que correram para acompanhá-lo perderam qualquer semelhança com uma formação.
Jon deu um passo em direção à tenda, pensando no Berrante do Inverno, mas o gato-das-sombras bloqueou-o, com a cauda balançando. As narinas da fera dilataram-se e escorreu saliva de seus dentes curvos da frente. Ele cheira o meu medo. Sentiu então mais do que nunca a falta de Fantasma. Os dois lobos estavam atrás dele, rosnando.
- Estandartes - ouviu Varamyr murmurar -, vejo estandartes dourados, oh... - Um mamute passou pesadamente por eles, bramindo, com meia dúzia de arqueiros na torre de madeira que levava sobre o dorso. - O rei... não...
Então o troca-peles jogou a cabeça para trás e berrou.
O som era chocante, ensurdecedor, pesado de agonia. Varamyr caiu, contorcendo-se, e o gato também estava gritando... e alto, alto no céu oriental, contra a muralha de nuvens, Jon viu a águia queimando. Durante um segundo brilhou mais do que uma estrela, engrinaldada de vermelho, dourado e laranja, batendo violentamente as asas como se fosse capaz de fugir da dor. E subiu, e subiu, e subiu ainda mais alto.
O grito fez Vai sair da tenda, pálida.
- Que foi, o que aconteceu? - os lobos de Varamyr estavam lutando um contra o outro e o gato-das-sombras tinha fugido para o meio das árvores, mas o homem continuava se contorcendo no chão. - O que se passa com ele? - quis saber Vai, horrorizada.
- Onde está o Mance?
- Ali. - Jon apontou. - Foi lutar. - O rei levava a sua cunha esfarrapada na direção de um grupo de patrulheiros, fazendo a espada relampejar.
- Foi? Não pode ter ido, agora não. Começou.
- A batalha? - Jon viu os patrulheiros espalhando-se perante a sangrenta cabeça de cão de Harma. Os corsários gritaram, golpearam e perseguiram os homens de negro até as árvores. Mas havia mais homens saindo da floresta, uma coluna de cavalaria. Cavaleiros em cavalaria pesada, viu Jon. Harma teve de reagrupar e dar a volta para ir a seu encontro, mas metade de seus homens tinha se adiantado em excesso.
- O nascimento! - Vai estava gritando-lhe.
Soavam trombetas por todo lado, sonoras e metálicas. Os selvagens não têm trombetas, têm apenas berrantes de guerra. E sabiam disso tão bem quanto ele; o som pôs o povo livre para correr numa confusão, alguns na direção da luta, outros para longe dela. Um mamute estava pisoteando um rebanho de ovelhas que três homens tentavam levar para oeste. Os tambores batiam enquanto os selvagens corriam para formar quadrados e linhas, mas tarde demais e com muita desorganização e lentidão. O inimigo emergia da floresta, de leste, de nordeste, do norte; três grandes colunas de cavalaria pesada, toda revestida de aço escuro e cintilante e sobretudos claros de lã. Não eram os homens de Atalaialeste, esses não tinham passado de uma linha de batedores. Um exército. O rei? Jon sentia-se tão confuso quanto os selvagens. Poderia Robb ter retornado? Teria o rapaz no Trono de Ferro finalmente se posto em movimento?
- É melhor que volte para a tenda - disse a Vai.
Do outro lado do campo de batalha, uma coluna tinha afogado Harma Cabeça de Cão. Outra esmagara-se contra o flanco dos lanceiros de Tormund enquanto ele e os filhos tentavam desesperadamente virá-los. Mas os gigantes estavam subindo em seus mamutes, e os cavaleiros em seus cavalos albardados não gostaram nada disso; Jon viu como os corcéis e cavalos de batalha gritavam e debandavam ao ver aquelas pesadas montanhas. Mas também havia medo do lado dos selvagens, com centenas de mulheres e crianças fugindo da batalha, algumas indo se meter cegamente sob os cascos dos garranos. Viu o carro de cães de uma velha entrar no caminho de três bigas, fazendo-as chocar umas com as outras.
- Deuses - sussurrou Vai deuses, por que é que estão fazendo isso?
- Volte para a tenda e fique com Dalla. Aqui não está em segurança. - A segurança não seria muito maior lá dentro, mas ela não precisava ouvir isso.
- Tenho de encontrar a parteira - disse Vai.
- A parteira é você. Eu fico aqui até o Mance retornar. - Tinha perdido Mance de vista, mas agora encontrara-o, abrindo caminho com a espada pelo meio de um agrupamento de homens a cavalo. Os mamutes tinham estilhaçado a coluna central, mas as outras duas aproximavam-se como tenazes. No limite oriental dos acampamentos, um grupo de arqueiros disparava flechas incendiárias contra as tendas. Viu um mamute arrancar um cavaleiro da sela e atirá-lo a doze metros de altura com um golpe de tromba. Selvagens fluíam por ali, mulheres e crianças que fugiam da batalha, algumas acompanhadas de homens que as apressavam. Uns poucos lançaram a Jon olhares sombrios, mas ele tinha Garralonga na mão, e ninguém o incomodou. Até Varamyr fugiu, engatinhando sobre as mãos e os joelhos.
Mais e mais homens jorravam das árvores, já não apenas cavaleiros mas também cavaleiros livres, arqueiros a cavalo e homens de armas com jaquetas e capacetes redondos, dúzias de homens, centenas de homens. Um deslumbramento de estandartes voava por cima deles. O vento sacudia-os com violência demais para que Jon visse os símbolos, mas vislumbrou um cavalo-marinho, um campo de aves, um anel de flores. E amarelo, tanto amarelo, estandartes amarelos com um símbolo vermelho, de quem eram aquelas armas?
A leste, norte e nordeste, viu bandos de selvagens tentando tomar posição e lutar, mas os atacantes passavam por cima deles. O povo livre ainda tinha a vantagem dos números, mas os atacantes possuíam armaduras de aço e cavalos pesados. Na parte mais densa do combate, Jon viu Mance levantar-se nos estribos. Seu manto vermelho e negro e o elmo alado tornavam-no fácil de localizar. Tinha a espada erguida, e os homens reuniam-se ao redor dele quando uma cunha de cavaleiros caiu sobre eles com lanças, espadas e machados longos. A égua de Mance empinou-se, escoiceando, e uma lança espetou-se no peito dele. Então a maré de aço submergiu-o.
Acabou, pensou Jon, eles estão quebrando. Os selvagens fugiam, jogavam as armas fora, homens de Cornopé, cavernícolas e Thenns revestidos de escamas de bronze, todos fugiam. Mance tinha desaparecido, alguém brandia a cabeça de Harma na ponta de uma estaca, as linhas de Tormund tinham quebrado. Só os gigantes em seus mamutes ainda resistiam, ilhas peludas num rubro mar de aço. Os fogos saltavam de tenda em tenda e alguns dos grandes pinheiros também começavam a se incendiar. E outra cunha de cavaleiros couraçados surgiu por entre a fumaça, montados em cavalos albardados. Flutuando sobre eles vislumbravam-se os maiores estandartes vistos até então, estandartes reais grandes como lençóis; um amarelo com longas pontas, que exibia um coração flamejante, e outro que era como uma folha de ouro martelado, com um veado negro empinando-se e ondulando ao vento.
Robert, pensou Jon durante um momento louco, recordando o pobre Owen, mas quando as trombetas voltaram a soar e os cavaleiros avançaram, o nome que gritaram foi: “Stannis! Stannis! Stannis.
Jon virou-se, e entrou na tenda.
À porta da estalagem, pendurados em uma forca desgastada pelas intempéries, os ossos de uma mulher torciam-se e chocalhavam a cada rajada de vento.
Conheço esta estalagem. Mas não havia forca à porta quando tinha dormido ali com a irmã Sansa, sob o olhar vigilante da Septã Mordane.
- Não queremos entrar - decidiu subitamente Arya pode haver fantasmas.
- Sabe quanto tempo passou desde que eu bebi uma taça de vinho? - Sandor saltou da sela. - Além do mais, temos de ficar sabendo quem controla o vau rubi. Fique com os cavalos se quiser, por mim tô cagando.
- E se o reconhecerem? - Sandor já não se incomodava em esconder o rosto. Já não parecia se importar com quem o reconhecesse. - Podem querer prendê-lo.
- Que experimentem. - Soltou a espada na bainha e empurrou a porta.
Arya nunca teria melhor oportunidade de fugir. Podia se afastar, montada na Covarde, e levar também o Estranho. Mordeu o lábio. Então levou os cavalos para os estábulos e entrou atrás dele.
Eles conhecem-no. Foi o silêncio que lhe contou. Mas isso não era o pior. Ela também os conhecia. Não o estalajadeiro magricela, nem as mulheres, nem os trabalhadores rurais que estavam junto da lareira. Mas os outros. Os soldados. Ela conhecia os soldados.
- Procurando o seu irmão, Sandor? - a mão de Polliver estivera enfiada no corpete da moça que tinha no colo, mas agora a havia tirado para fora.
- Procurando uma taça de vinho. Estalajadeiro, um jarro de tinto. - Clegane atirou um punhado de moedas de cobre para o chão.
- Não quero problemas, sor - disse o estalajadeiro.
- Então não me chame de sor. - Sua boca torceu-se. - Está surdo, idiota? Pedi vinho.
- Quando o homem fugiu, Clegane gritou às suas costas. - Duas taças! A garota também tem sede!
Eles são só três, pensou Arya. Polliver deu-lhe um breve relance e o rapaz que estava a seu lado nem chegou a olhá-la, mas o terceiro fitou-a longa e duramente. Era um homem de altura e constituição medianas, com um rosto tão comum que era difícil saber que idade tinha. O Cócegas. Cócegas e Polliver juntos. O rapaz era um escudeiro, julgando pela idade e pelo vestuário. Tinha uma grande espinha branca junto ao nariz e algumas vermelhas na testa.
- Este é o cachorro perdido de que Sor Gregor falou? - perguntou ao Cócegas. - Aquele que fez xixi nas esteiras e fugiu?
Cócegas apoiou uma mão no braço do rapaz, num aviso, e sacudiu vivamente a cabeça. Arya compreendeu aquilo com bastante clareza.
Mas o escudeiro não, ou então não se importou.
- Sor disse que o seu irmão cachorro enfiou o rabo entre as pernas quando a batalha esquentou demais em Porto Real. Disse que fugiu ganindo. - Dirigiu ao Cão de Caça um estúpido sorriso de zombaria.
Clegane estudou o rapaz e não disse palavra. Polliver tirou rudemente a moça de cima de si e pôs-se em pé.
- O moço tá bêbado - disse. O homem de armas era quase tão alto quanto o Cão de Caça, embora não fosse tão musculoso. Uma barba arredondada cobria-lhe o queixo e as maxilas, espessa, negra e bem cortada, mas a cabeça estava mais calva do que coberta. - Ele não aguenta o vinho, é só isso.
- Então não devia beber.
- O cachorro não assusta... - começou o rapaz, mas o Cócegas torceu casualmente sua orelha entre o indicador e o polegar. As palavras transformaram-se num guincho de dor.
O estalajadeiro retornou apressadamente, trazendo duas taças de pedra e um jarro numa bandeja de peltre. Sandor levou o jarro à boca. Arya via os músculos do pescoço dele trabalhando enquanto engolia. Quando bateu com ele na mesa, metade do vinho tinha desaparecido.
- Agora já pode servir. E é melhor que apanhe aqueles cobres, que são as únicas moedas que deve ver hoje.
- Nós pagaremos quando acabarmos de beber - disse Polliver.
- Quando acabar de beber, vai fazer cócegas no estalajadeiro para saber onde ele guarda o ouro. Como faz sempre.
O estalajadeiro lembrou-se de repente de algo que tinha na cozinha. Os homens da terra também estavam saindo, e as garotas já tinham desaparecido. O único som que se ouvia na sala comum era o tênue crepitar do fogo na lareira. Também devíamos ir embora, compreendeu Arya.
- Se anda à procura do Sor, vem tarde demais - disse Polliver. - Ele esteve em Harrenhal, mas já não está. A rainha mandou buscá-lo. - Arya viu que o homem trazia três lâminas à cintura; uma espada longa na anca esquerda e na direita um punhal e uma lâmina mais esguia, longa demais para ser uma adaga e curta demais para ser uma espada. - O Rei Joffrey está morto, sabe? - acrescentou. - Envenenado durante o banquete do próprio casamento.
Arya penetrou um pouco mais na sala .Joffrey está morto. Quase conseguia vê-lo, com os caracóis louros, o sorriso maldoso e os lábios grossos e moles. Joffrey está morto! Sabia que aquilo devia deixá-la feliz, mas de algum modo ainda se sentia vazia por dentro. Joffrey estava morto, mas se Robb também estava, que importava?
- Lá se foram os meus bravos irmãos da Guarda Real. - Cão de Caça soltou uma fungada de desprezo. - Quem foi que o matou?
- O Duende, pensam. Ele e a mulherzinha.
- Que mulher?
- Esquecia-me de que tem estado escondido debaixo de uma pedra. A nortenha. A filha de Winterfell. Ouvimos dizer que ela matou o rei com um feitiço e que depois se transformou num lobo com grandes asas de couro, como as de um morcego, e voou por uma janela de torre. Mas deixou o anão para trás e Cersei quer cortar a cabeça dele.
Isso é estúpido, pensou Arya. Sansa só sabe canções, e não feitiços, e nunca casaria com o Duende.
Cão de Caça sentou-se no banco mais próximo da porta. Sua boca torceu-se, mas só do lado queimado.
- Ela devia mergulhá-lo em fogovivo e cozê-lo. Ou fazer-lhe cócegas até a lua ficar negra. - Ergueu a taça de vinho e esvaziou-a de uma só vez.
Ele é um deles, pensou Arya quando viu aquilo. Mordeu o lábio com tanta força que sentiu o gosto do sangue. E igualzinho a eles. Devia matá-lo quando dormisse.
- Então Gregor tomou Harrenhal? - disse Sandor.
- Não foi preciso tomar muito - disse Polliver. - Os mercenários fugiram assim que souberam que estávamos a caminho, todos menos uns poucos. Um dos cozinheiros abriu uma poterna para a gente entrar, para se vingar de Hoat por lhe ter cortado o pé. - Soltou um risinho. - Ficamos com ele para cozinhar para nós, umas meninas para aquecer nossas camas e passamos todos os outros pela espada.
- Todos os outros? - disse Arya antes de conseguir se segurar.
- Bem, o Sor ficou com Hoat como passatempo.
Sandor disse:
- O Peixe Negro ainda está em Correrrio?
- Não por muito tempo - disse Polliver. - Está cercado. O velho Frey vai enforcar Edmure Tully se ele não entregar o castelo. O único local onde se luta a sério é em volta de Corvarbor. Os Blackwood e os Bracken. Os Bracken agora são dos nossos.
Cão de Caça serviu uma taça de vinho a Arya e outra a si mesmo, e bebeu-a enquanto fitava o fogo na lareira.
- O passarinho voou, foi? Bem, ainda bem para ela. Cagou na cabeça do Duende e voou.
- Vão encontrá-la - disse Polliver. - Nem que seja preciso metade do ouro de Rochedo Casterly.
- Uma garota bonita, segundo ouvi dizer - disse o Cócegas. - Doce como o mel. - Estalou os lábios e sorriu.
- E cortês - concordou Cão de Caça. - Uma senhorinha como deve ser. Ao contrário da porcaria da irmã.
- Também a encontraram - disse Polliver. - A irmã. Ouvi dizer que é para o bastardo de Bolton.
Arya bebericou o vinho para que não vissem sua boca. Não compreendia o que Polliver estava dizendo. Sansa não tem nenhuma outra irmã. Sandor Clegane riu alto.
- O que é tão engraçado assim? - perguntou Polliver.
Cão de Caça não deu nem um relance a Arya.
- Se quisesse que você soubesse, teria dito. Há navios em Salinas?
- Salinas? Como é que eu vou saber? Os mercadores voltaram para a Lagoa da Donzela, segundo ouvi dizer. Randyll Tarly tomou o castelo e trancou Mooton numa cela de torre. Não ouvi porra nenhuma a respeito de Salinas.
Cócegas inclinou-se para a frente.
- Iria se lançar ao mar sem se despedir de seu irmão? - Arya sentiu arrepios ao ouvi-lo fazer uma pergunta. - Sor ia preferir que voltasse a Harrenhal com a gente, Sandor. Aposto que sim. Ou a Porto Real...
- Que isso se foda. Que ele se foda. Que você se foda.
Cócegas encolheu os ombros, endireitou-se e esticou uma mão para as costas, a fim de esfregar a parte de trás do pescoço. Então tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo; Sandor pôs-se em pé, Polliver puxou a espada e a mão de Cócegas chicoteou num arco borrado para enviar qualquer coisa prateada relampejando pela sala comum. Se o Cão de Caça não estivesse em movimento, a faca podia ter arrancado o seu pomo de adão; em vez disso, apenas roçou suas costelas, e acabou espetada, tremendo, na parede perto da porta. Ele então riu, uma gargalhada tão fria e vazia como se tivesse saído do fundo de um poço profundo.
- Eu tinha esperança de que fizesse alguma coisa estúpida. - A espada deslizou para fora da bainha bem a tempo de desviar para o lado a primeira estocada de Polliver.
Arya deu um passo para trás quando a longa canção de aço se iniciou. Cócegas saltou do banco com uma espada curta numa mão e um punhal na outra. Até o atarracado escudeiro moreno se levantara, procurando o cabo da espada às apalpadelas. Arya pegou sua taça de vinho que estava sobre a mesa e atirou-a na cara dele. A pontaria foi melhor do que havia sido nas Gêmeas. A taça atingiu-o bem em cheio na grande espinha branca e ele estatelou-se sobre o traseiro.
Polliver era um lutador sombrio e metódico e empurrou firmemente Sandor para trás, movendo a sua pesada espada longa com brutal precisão. Os golpes do Cão de Caça eram mais desleixados, as paradas apressadas, os pés lentos e desajeitados. Ele está bêbado, compreendeu Arya com consternação. Bebeu demais, e depressa demais, sem comida na barriga. E Cócegas estava deslizando ao longo da parede para ficar atrás dele. Arya pegou a segunda taça de vinho e atirou-a nele, mas o homem foi mais rápido do que o escudeiro e desviou a cabeça a tempo. O olhar que lhe dirigiu foi frio e cheio de promessas. Há ouro escondido na aldeia?, conseguia ouvi-lo perguntar. O estúpido do escudeiro estava se agarrando à borda de uma mesa, apoiando-se nela para se pôr de joelhos. Arya sentiu o sabor do início do pânico no fundo da garganta. O medo golpeia mais profundamente do que as espadas. O medo golpeia mais profundamente...
Sandor soltou um grunhido de dor. O lado queimado de seu rosto escorria, vermelho, da têmpora à bochecha, e o coto de orelha desaparecera. Aquilo pareceu zangá-lo. Empurrou Polliver para trás com um ataque furioso, pressionando-o com a velha espada amassada que arranjara nas colinas. O homem barbudo cedeu terreno, mas nenhum dos golpes chegou sequer a tocá-lo. E então o Cócegas saltou sobre um banco, rápido como uma cobra, e golpeou a parte de trás do pescoço do Cão de Caça com a aresta de sua espada curta.
Estão matando-o. Arya não tinha mais taças, mas havia algo melhor para atirar. Puxou o punhal que tinham roubado do arqueiro moribundo e tentou arremessá-lo no Cócegas da mesma maneira que ele tinha feito. Não era o mesmo que atirar uma pedra ou uma maçã, porém. A faca balançou e atingiu-o no braço com o cabo. Ele nem sequer a sentiu. Estava concentrado demais em Clegane.
Enquanto apunhalava, Clegane torceu-se violentamente para o lado, conquistando para si uma pausa de meio segundo. Escorria sangue por seu rosto e do golpe no pescoço. Ambos os homens da Montanha o atacavam duramente, com Polliver golpeando a cabeça e os ombros enquanto Cócegas se precipitava para apunhalar as costas e a barriga. O pesado jarro de pedra continuava sobre a mesa. Arya agarrou-o com ambas as mãos, mas no momento em que o erguia alguém a agarrou pelo braço. O jarro escorregou de seus dedos e caiu com estrondo no chão. Obrigada a girar com um empurrão, deu por si à distância de um nariz do escudeiro. Sua estúpida, esqueceu completamente dele. Viu que a grande espinha branca tinha estourado.
- E o cachorro do cachorro? - ele tinha a espada na mão direita e o braço dela na esquerda, mas as mãos dela estavam livres, portanto puxou a faca do rapaz de sua bainha e voltou a embainhá-la na barriga, torcendo-a. Ele não usava cota de malha, nem mesmo couro fervido, por isso a faca penetrou facilmente, como a Agulha penetrara quando Arya matou o cavalariço em Porto Real. Os olhos do escudeiro abriram-se muito e ele largou o braço dela. Arya girou na direção da porta e arrancou a faca do Cócegas da parede.
Polliver e Cócegas tinham encostado Cão de Caça em um canto, por trás de um banco, e um deles acrescentara aos seus outros ferimentos um feio golpe vermelho na coxa superior. Sandor apoiava-se na parede, sangrando e respirando ruidosamente. Parecia quase não conseguir manter-se em pé, quanto mais lutar.
- Jogue a espada fora e levamos você de volta a Harrenhal - disse-lhe Polliver.
- Para que Gregor possa acabar comigo em pessoa?
Cócegas disse:
- Talvez o dê a mim.
- Se me quer, venha me pegar. - Sandor desencostou-se da parede e ficou semiagachado atrás do banco, com a espada cruzada em frente do corpo.
- Acha que não pegamos? - disse Polliver. - Está bêbado.
- Pode ser que sim - disse Cão de Caça -, mas você está morto. - Seu pé projetou-se para a frente e apanhou o banco, atirando-o com força contra as canelas de Polliver. De algum modo, o barbudo conseguiu manter o equilíbrio, mas Cão de Caça abaixou-se sob a sua violenta estocada e lançou a própria espada para cima, num traiçoeiro golpe para trás. Sangue esguichou no teto e nas paredes. A lâmina ficou presa no meio da cara de Polliver, e quando Cão de Caça a soltou com uma sacudida, metade da cabeça do outro veio junto.
Cócegas recuou. Arya conseguia sentir o medo dele. A espada curta que tinha na mão pareceu de repente quase um brinquedo, comparada com a longa lâmina que Cão de Caça empunhava, e além disso não tinha armadura. Moveu-se rapidamente, ligeiro de pés, sem nunca tirar os olhos de Sandor Clegane. Foi a coisa mais simples do mundo para Arya aproximar-se dele por trás e apunhalá-lo.
- Há ouro escondido na aldeia? - gritou enquanto enfiava a lâmina em suas costas.
- Há prata? Pedras preciosas? - apunhalou-o mais duas vezes. - Há comida? Onde está Lorde Beric? - então já estava em cima dele, ainda apunhalando-o. - Para onde foi ele? Quantos homens o acompanhavam? Quantos cavaleiros? Quantos arqueiros? Quantos, quantos, quantos, quantos, quantos, quantos? Há ouro na aldeia?
Tinha as mãos vermelhas e pegajosas quando Sandor a arrastou de cima dele.
- Basta - foi tudo que disse. Ele mesmo sangrava como um porco na matança e arrastava uma perna ao caminhar.
- Há mais um - relembrou-lhe Arya.
O escudeiro tinha puxado a faca da barriga e estava tentando parar o sangue com as mãos. Quando Cão de Caça o endireitou, o rapaz gritou e desatou a choramingar como um bebê.
- Misericórdia - chorou -, por favor. Não me mate. Mãe, misericórdia.
- Eu pareço-me com a merda da sua mãe? - Cão de Caça não tinha nada de humano.
- Também matou este - disse a Arya. - Furou as tripas, e isso é o fim dele. Mas vai levar muito tempo para morrer.
O rapaz não pareceu ouvi-lo.
- Eu vim por causa das garotas - choramingou. - ... fazer de mim um homem, disse o Polly... oh, deuses, por favor, levem-me a um castelo... um meistre, levem-me a um meistre, o meu pai tem ouro... foi só por causa das garotas... misericórdia, sor.
Cão de Caça deu-lhe uma bofetada no rosto que o fez gritar outra vez.
- Não me chame de sor. - Virou-se novamente para Arya. - Este é seu, loba. Trate dele.
Arya sabia o que ele queria dizer. Dirigiu-se a Polliver e ajoelhou em seu sangue tempo suficiente para lhe desafivelar o cinto da espada. Pendurada junto ao punhal havia uma lâmina mais esguia, longa demais para ser uma adaga, curta demais para ser uma espada de homem... mas ajustava-se perfeitamente à sua mão.
- Lembra-se de onde fica o coração? - perguntou Cão de Caça.
Ela assentiu. O escudeiro rolou os olhos.
- Misericórdia.
A Agulha deslizou entre as suas costelas e deu-lhe misericórdia.
- Ótimo. - A voz de Sandor estava pesada de dor. - Se estes três estavam aqui nas putas, Gregor deve controlar o vau, além de Harrenhal. Podem aparecer mais dos seus animais de estimação a qualquer momento, e já matamos o suficiente desses malditos por um dia.
- Para onde vamos? - perguntou ela.
- Salinas. - Apoiou uma grande mão em seu ombro para evitar cair. - Arranje algum vinho, loba. E leve também o dinheiro que eles tiverem, vamos precisar dele. Se houver navios em Salinas, podemos chegar ao Vale por mar. - A boca torceu-se para ela, enquanto mais sangue escorria de onde tivera a orelha. - Pode ser que a Senhora Lysa a case com o seu pequeno Robert. Essa era uma união que eu gostaria de ver. - Começou a rir, mas em vez disso gemeu.
Quando chegou o momento de partir, precisou da ajuda de Arya para voltar a subir no Estranho. Atara uma tira de tecido em volta do pescoço e outra em torno da coxa, e tirara o manto do escudeiro do gancho junto à porta. O manto era verde, com uma flecha verde numa banda branca, mas quando Cão de Caça o enrolou e o comprimiu contra a orelha rapidamente se tornou vermelho. Arya teve receio de que ele caísse no momento em que se puseram em movimento, mas de algum modo ele permaneceu na sela.
Não podiam se arriscar a um encontro com quem quer que controlasse o vau rubi, portanto, em vez de seguirem a estrada do rei, desviaram-se para sudeste, cruzando campos repletos de ervas daninhas, bosques e pântanos. Passaram-se horas até chegarem à margem do Tridente. Arya viu que o rio tinha voltado docilmente ao seu canal costumeiro, com toda a sua úmida raiva marrom desaparecida com as chuvas. Ele também está cansado, pensou.
Perto, à beira da água, encontraram um grupo de salgueiros que cresciam numa confusão de pedras desgastadas. Juntas, as pedras e as árvores formavam uma espécie de forte natural onde podiam se esconder tanto do rio como da trilha.
- Isto aqui serve - disse Cão de Caça. - Dê água aos cavalos e arranje lenha para uma fogueira. - Quando desmontou, teve de se apoiar num galho para não cair.
- A fumaça não será vista?
- Se alguém quiser nos encontrar, só tem de seguir o meu sangue. Água e lenha. Mas traga-me primeiro esse odre de vinho.
Depois de acender a fogueira, Sandor equilibrou o elmo sobre as chamas, despejou lá dentro metade do odre e caiu contra uma saliência de pedra coberta de musgo como se não pretendesse voltar a se levantar. Obrigou Arya a lavar o manto do escudeiro e a cortá-lo em faixas. Estas também foram enfiadas no elmo.
- Se tivesse mais vinho, bebia-o até ficar morto para o mundo. Talvez devesse mandá-la de volta àquela maldita estalagem para trazer mais dois ou três odres.
- Não - disse Arya. Ele não faria isso, não é? Se fizer, eu simplesmente o abandono e vou embora.
Sandor riu do medo no rosto dela.
- Uma brincadeira, lobinha. Uma merda duma brincadeira. Ache um pedaço de madeira, mais ou menos deste tamanho e não muito grosso. E lave a lama dele. Detesto o sabor de lama.
Não gostou dos primeiros dois pedaços de madeira que ela lhe trouxe. Quando encontrou um que lhe agradou, as chamas já tinham enegrecido a cabeça de cão até os olhos. Lá dentro, o vinho fervia furiosamente.
- Tire a caneca do meu rolo de dormir e encha-a até metade - disse-lhe. - Tome cuidado. Se virar aquela porcaria, mando-a mesmo buscar mais. Pegue o vinho e despeje-o sobre as minhas feridas. Acha que consegue fazer isso? - Arya assentiu. - Então está esperando o quê? - rosnou.
Os nós dos dedos dela roçaram no aço da primeira vez que encheu a caneca, deixando-lhe uma queimadura tão grande que ficou com bolhas. Arya teve de morder o lábio para evitar gritar. Cão de Caça usou o pedaço de madeira para o mesmo fim, prendendo-o entre os dentes enquanto ela despejava o vinho. Arya tratou primeiro do golpe na coxa, e depois da ferida menos profunda na parte de trás do pescoço. Sandor cerrou a mão direita num punho e esmurrou o chão quando ela tratou de sua perna. Quando foi a vez do pescoço, mordeu o pedaço de madeira com tanta força que este se quebrou, e Arya teve de lhe arranjar outro. Conseguia ver o terror nos olhos de Cão de Caça.
- Vire a cabeça. - Deixou pingar o vinho sobre a rubra carne viva que surgia onde ficava sua orelha, e fios de sangue castanho e vinho tinto escorreram sobre seu maxilar. Então ele gritou mesmo, apesar do pau. E depois desmaiou devido às dores.
Arya descobriu o que mais devia fazer sozinha. Pescou do fundo do elmo as faixas que tinham feito com o manto do escudeiro e usou-as para atar os cortes. Quando chegou ao ouvido, teve que envolver metade da cabeça dele para estancar a hemorragia. A essa altura, o ocaso já caía sobre o Tridente. Deixou os cavalos pastar, e então os prendeu para a noite e instalou-se o mais confortavelmente que pôde num nicho entre duas pedras. A fogueira ardeu durante algum tempo e extinguiu-se. Arya observou a lua por entre os ramos, por cima de sua cabeça.
- Sor Gregor, a Montanha - disse em voz baixa. - Dunsen, RafF, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. - Deixar de fora Polliver e Cócegas deu-lhe uma sensação estranha. E JofFrey também. Sentia-se contente por ele estar morto, mas gostaria de ter estado lá para vê-lo morrer, ou mesmo para ser ela a matá-lo. Polliver disse que Sansa o matou, com o Duende. Poderia isso ser verdade? O Duende era um Lannister, e Sansa... Gostaria de poder me transformar em lobo e ganhar asas e voar para longe.
Se Sansa também tinha desaparecido, já não havia Starks além dela. Jon estava na Muralha a mil léguas de distância, mas era um Snow, e aqueles vários tios e tias a quem o Cão de Caça queria vendê-la, esses também não eram Starks. Não eram lobos.
Sandor gemeu, e ela rolou sobre o flanco para olhá-lo. Percebeu que também tinha deixado de fora o nome dele. Por que teria feito isso? Tentou pensar em Mycah, mas era difícil lembrar-se de sua aparência. Não o conhecera por muito tempo. Tudo o que ele fez foi brincar comigo de espada.
- Cão de Caça - sussurrou, e: - Vaiar morghulis. - Ele talvez estivesse morto de manhã...
Mas quando a pálida luz da aurora chegou, filtrada pelas árvores, foi ele que a acordou com a ponta da bota. Arya sonhara de novo que era um lobo, perseguindo um cavalo sem cavaleiro por uma colina com uma alcateia atrás de si, mas o pé dele trouxe-a de volta exatamente no momento em que se aproximavam para a matança.
Cão de Caça continuava fraco, com todos os movimentos lentos e desajeitados. Afundou-se na sela e desatou a suar, e a orelha começou a sangrar através da atadura. Precisou de todas as suas forças para evitar cair do Estranho. Se os homens da Montanha tivessem vindo em seu encalço, Arya duvidava que ele fosse capaz sequer de erguer uma espada. Arya deu um olhar de relance por sobre o ombro, mas nada havia atrás deles além de um corvo que voava de árvore em árvore. O único som era o do rio.
Muito antes do meio-dia, Sandor Clegane cambaleava. Ainda restavam horas de luz do dia quando ele decidiu fazer uma parada.
- Preciso descansar - foi tudo o que disse. Daquela vez, quando desmontou, caiu mesmo. Em vez de tentar ficar de pé novamente, engatinhou debilmente para baixo de uma árvore e encostou-se no tronco. - Maldito inferno - praguejou. - Maldito inferno.
- Quando viu Arya a fitá-lo, disse: - Era capaz de esfolá-la viva por uma taça de vinho, menina.
Em vez disso, Arya trouxe-lhe água. Ele bebeu um pouco, queixou-se de que tinha gosto de lama e deixou-se cair num sono ruidoso e febril. Quando Arya tocou nele, a pele ardia. Arya cheirou as ataduras como o Meistre Luwin fazia às vezes quando lhe tratava os cortes ou arranhões. Foi o rosto de Cão de Caça que tinha sangrado mais, mas foi o ferimento na coxa que pareceu a Arya ter um cheiro esquisito.
Perguntou a si mesma a que distância estaria aquele lugar, Salinas, e se seria capaz de encontrá-lo sozinha. Não teria de matá-lo. Se apenas fosse embora e o abandonasse, ele morreria sozinho. Morreria de febre, e ficaria ali debaixo daquela árvore até o fim dos tempos. Mas talvez fosse melhor se o matasse. Matara o escudeiro na estalagem e ele nada tinha feito a não ser agarrar o braço dela. Cão de Caça tinha matado Mycah. Mycah e mais gente. Aposto que ele matou cem Mycahs. E provavelmente teria matado Arya também, se não fosse o resgate.
A Agulha cintilou quando a desembainhou. Polliver mantivera-a limpa e afiada, pelo menos. Posicionou o corpo de lado, numa pose de dançarina de água, sem sequer pensar nisso. Folhas mortas estalaram sob os seus pés. Rápida como uma cobra, pensou. Suave como seda de verão.
Os olhos dele abriram-se.
- Lembra-se de onde fica o coração? - perguntou num sussurro rouco.
E ela ficou imóvel como pedra.
- Eu... eu estava só...
- Não minta - rosnou ele. - Odeio mentirosos. E odeio ainda mais embusteiros sem culhões. Vá, trate disso. - Quando Arya não se mexeu, ele disse: - Eu matei o seu filho de açougueiro. Cortei-o quase ao meio e depois ri dele. - Soltou um som estranho, e Arya precisou de um momento para perceber que o homem estava soluçando. - E o passarinho, a sua irmã bonita, fiquei lá com o meu manto branco e deixei que a espancassem. E arranquei a maldita canção dela, ela não me deu. Também queria possuí-la. Devia ter feito isso. Devia tê-la fodido até fazer sangue e devia ter arrancado seu coração antes de deixá-la para aquele anão. - Um espasmo de dor contorceu seu rosto. - Quer me obrigar a suplicar, cadela? Trate disso! A dádiva da misericórdia... vingue o seu pequeno Michael...
- Mycah. - Arya afastou-se dele. - Você não merece a dádiva da misericórdia.
Cão de Caça viu Arya selar a Covarde com olhos brilhantes de febre. Nem uma vez tentou erguer-se e impedi-la. Mas quando ela montou, disse:
- Um verdadeiro lobo acabaria com um animal ferido.
Talvez alguns lobos verdadeiros o encontrem, pensou Arya. Talvez o farejem quando o sol se puser. Então ficaria sabendo o que os lobos faziam aos cães.
- Não devia ter batido em mim com aquele machado - disse. - Devia ter salvo a minha mãe. - Virou o cavalo e afastou-se dele, e não olhou para trás nem uma vez.
Numa manhã luminosa seis dias depois, chegou a um lugar onde o Tridente começava a se alargar e o ar cheirava mais a sal do que a árvores. Permaneceu perto da água, passando por campos de cultivo e fazendas, e um pouco depois do meio-dia uma vila apareceu na sua frente. Salinas, pensou, esperançosa. Um pequeno castelo dominava a vila; não passava de uma fortaleza, na verdade, uma única fortificação quadrada com um cercado e uma muralha exterior. A maior parte das lojas, estalagens e cervejarias em volta do porto tinha sido saqueada ou queimada, embora algumas casas parecessem ainda habitadas. Mas o porto estava lá, e para leste estendia-se a Baía dos Caranguejos, com águas que cintilavam azuis e verdes ao sol.
E havia navios.
Três, pensou Arya, há três. Dois eram apenas galés fluviais, barcos de pequeno calado e fundo raso concebidos para percorrer as águas do Tridente. O terceiro era maior, um navio mercante do mar salgado com duas fileiras de remos, uma proa dourada e três grandes mastros com velas roxas dobradas. O casco também estava pintado de roxo. Arya levou a Covarde até as docas para ver melhor. Estranhos não eram tão estranhos num porto como são nas pequenas aldeias, e ninguém pareceu se importar com quem ela era ou com o motivo por que se encontrava ali.
Preciso de prata. A conclusão fez Arya morder o lábio. Tinham encontrado um veado e uma dúzia de cobres em Polliver, oito moedas de prata no escudeiro espinhento que ela tinha matado, e não mais do que um par de moedas na bolsa de Cócegas. Mas Cão de Caça tinha lhe dito para tirar as botas de Cócegas e cortar as roupas ensopadas em sangue, e ela descobriu um veado em cada pé, e três dragões de ouro cosidos no forro de seu gibão. Mas Sandor tinha ficado com tudo. Não foi justo. Era tanto meu como dele. Se lhe tivesse oferecido a dádiva da misericórdia... mas não tinha. E não podia voltar, assim como não podia suplicar ajuda. Nunca se consegue ajuda suplicando-a. Teria de vender a Covarde e esperar conseguir dinheiro suficiente.
Ficou sabendo por um rapaz junto às docas que o estábulo tinha sido queimado, mas a ex-proprietária do lugar continuava fazendo negócio atrás do septo. Arya encontrou-a sem dificuldade; uma mulher alta e robusta com um bom cheiro de cavalo. Gostou da Covarde à primeira vista, perguntou a Arya como a arranjara, e sorriu com a resposta dela.
- E um cavalo de boa linhagem, isso é bem evidente, e não duvido que pertenceu a um cavaleiro, querida - disse. - Mas o cavaleiro não era nenhum irmão seu que morreu. Já faço negócio ali com o castelo há muitos anos, e sei como se parecem os fidalgos. Esta égua é bem-nascida, mas você não é. - Espetou um dedo no peito de Arya. - Ou a encontrou, ou a roubou, não importa, foi o que foi. E a única maneira de uma coisinha malvestida como você acabar montada num palafrém.
Arya mordeu o lábio.
- Isso quer dizer que não vai comprá-la?
A mulher soltou um risinho.
- Quer dizer que aceitará o que eu lhe der, querida. Senão vamos ao castelo, e talvez fique sem nada. Ou até acabe enforcada, por roubar um bom cavalo de cavaleiro.
Meia dúzia de outras pessoas de Salinas andavam por ali, cuidando de seus assuntos, portanto Arya sabia que não podia matar a mulher. Em vez disso teve de morder o lábio e se deixar ser tapeada. A bolsa que recebeu era deploravelmente achatada, e quando pediu mais pela sela, freios e manta, a mulher apenas riu na sua cara.
Ela nunca teria tapeado o Cão de Caça, pensou durante a longa caminhada de volta às docas. A distância parecia ter aumentado quilômetros desde que a percorrera a cavalo.
A galé roxa ainda se encontrava no mesmo lugar. Se o navio tivesse zarpado enquanto estava sendo assaltada, isso teria sido demais para suportar. Um barril de hidromel estava sendo rolado pela prancha acima quando chegou. Quando tentou segui-lo, um marinheiro no convés gritou-lhe numa língua que não conhecia.
- Quero falar com o capitão - disse-lhe Arya. Ele limitou-se a gritar mais alto. Mas a agitação atraiu a atenção de um homem robusto e grisalho vestido com um casaco de lã roxa, e ele falava o Idioma Comum.
- Eu sou o capitão aqui - disse ele. - O que deseja? Rápido, pequena, temos de apanhar a maré.
- Quero ir para o norte, para a Muralha. Olhe, posso pagar. - Deu-lhe a bolsa. - A Patrulha da Noite tem um castelo junto ao mar.
- Atalaialeste. - O capitão despejou a prata na palma da mão e franziu a testa. - Isto é tudo que tem?
Não é suficiente, compreendeu Arya sem que lhe dissessem. Conseguia ver no rosto do homem.
- Não ia precisar de uma cabine, nem nada disso - disse. - Eu poderia dormir no porão, ou...
- Aceite-a como moça de cabine - disse um remador que passava por ali, com um fardo de lã ao ombro. - Ela pode dormir comigo.
- Tento na língua - exclamou o capitão.
- Eu poderia trabalhar - disse Arya. - Poderia esfregar os conveses. Eu já esfreguei os degraus de um castelo. Ou poderia remar...
- Não - disse ele não poderia. - Devolveu-lhe as moedas. - E não faria diferença se pudesse, pequena. O norte não tem nada para nós. Gelo, guerra e piratas. Vimos uma dúzia de navios piratas rumando para o norte quando viramos a Ponta da Garra Rachada, e não tenho nenhuma vontade de voltar a encontrá-los. Daqui, apontamos os remos para casa, e eu sugiro que você faça a mesma coisa.
Não tenho casa, pensou Arya. Não tenho alcateia. E agora nem sequer tenho um cavalo.
O capitão estava se virando quando ela disse:
- Que navio é este, senhor?
Ele parou tempo suficiente para lhe conceder um sorriso cansado.
- Esta é a galeota Filha do Titã, da Cidade Livre de Bravos.
- Espere - disse subitamente Arya. - Tenho mais uma coisa. - Enfiara-a na roupa de baixo para mantê-la em segurança, por isso teve de procurar bem fundo para achá-la, enquanto os remadores riam e o capitão esperava com óbvia impaciência.
- Mais uma moeda de prata não fará diferença, pequena - disse por fim.
- Não é prata. - Seus dedos fecharam-se sobre ela. - E ferro. Tome. - Enfiou-a na mão dele, a pequena moeda negra de ferro que Jaqen Hghar lhe dera, tão gasta que o homem cuja cabeça mostrava não tinha feições. Provavelmente não tem nenhum valor, mas...
O capitão virou-a, pestanejou, e então voltou a olhá-la.
- Isto... como...?
Jaqen disse para pronunciar as palavras também. Arya cruzou os braços contra o peito.
- Vaiar morghulis - disse, tão alto como se soubesse o que aquilo queria dizer.
- Vaiar dohaeris - respondeu o homem, tocando a testa com dois dedos. - É claro que terá uma cabine.
- Ele suga com mais força do que o meu. - Goiva afagou a cabeça do bebê enquanto o segurava junto do mamilo.
- Tem fome - disse a loura chamada Vai, aquela que os irmãos negros chamavam de princesa selvagem. - Viveu até agora de leite de cabra e das poções daquele meistre cego.
O rapaz ainda não tinha nome, tal como o de Goiva. Era esse o costume dos selvagens. Nem mesmo o filho de Mance Rayder teria um nome até o seu terceiro ano, aparentemente, embora Sam tivesse ouvido os irmãos chamarem-no de"principezinho” e “nascido-em-batalha”.
Observou a criança se alimentar do seio de Goiva e então observou Jon observando. Jon está sorrindo. Um sorriso triste, ainda, mas decididamente uma espécie de sorriso. Sam sentiu-se contente por ver isso. É a primeira vez que o vejo sorrir desde que voltei.
Tinham caminhado de Fortenoite até Lago Profundo, e de Lago Profundo até Portão da Rainha, seguindo uma estreita trilha de um castelo até o seguinte, sem nunca perder de vista a Muralha. A um dia e meio de Castelo Negro, enquanto caminhavam penosamente com pés cobertos de calos, Goiva ouviu cavalos atrás deles e virou-se para ver uma coluna de cavaleiros negros que vinha de oeste.
- Irmãos meus - Sam tinha assegurado. - Ninguém usa esta estrada a não ser a Patrulha da Noite. - No fim era Sor Denys Mallister da Torre Sombria, com o ferido Bowen Marsh e os sobreviventes da batalha na Ponte das Caveiras. Quando Sam viu Dywen, Gigante e Edd Doloroso Tollett, descontrolou-se e chorou.
Foi através deles que ficou sabendo da batalha à sombra da Muralha.
- Stannis desembarcou os seus cavaleiros em Atalaialeste, e Cotter Pyke levou-os pelos caminhos dos patrulheiros, para apanhar os selvagens desprevenidos - contou-lhe o Gigante. - Esmagou-os. Mance Rayder foi capturado, mil de seus melhores guerreiros foram mortos, incluindo Harma Cabeça de Cão. O resto dispersou-se como folhas antes de uma tempestade, segundo ouvimos dizer. - Os deuses são bons, pensou Sam. Se não tivesse se perdido enquanto se dirigia para o sul vindo da Fortaleza de Craster, ele e Goiva podiam ter esbarrado com a batalha... ou com o acampamento de Mance Rayder, pelo menos. Isso poderia ter sido bom para Goiva e o menino, mas não para ele. Sam tinha ouvido todas as histórias sobre aquilo que os selvagens faziam com corvos capturados. Estremeceu.
Mas nada do que os irmãos lhe tinham dito o preparara para o que foi encontrar em Castelo Negro. A sala comum tinha queimado até o chão e a grande escada de madeira era um monte de gelo partido e vigas carbonizadas. Donal Noye estava morto, bem como Rast, Dick Surdo, Alyn Vermelho e tantos outros, e no entanto o castelo tinha mais gente do que Sam alguma vez vira; não eram irmãos negros, mas soldados do rei, mais de mil homens. Havia um rei na Torre do Rei pela primeira vez desde que havia memória, e flutuavam estandartes na Lança, na Torre de Hardin, na Fortaleza Cinzenta, no Salão dos Escudos e em outros edifícios que tinham se mantido vazios e abandonados durante longos anos.
- O grande, o dourado com o veado preto, é o estandarte real da Casa Baratheon - disse Sam para Goiva, que nunca antes tinha visto bandeiras. - A raposa com as flores são da Casa Florent. A tartaruga é de Estermont, o peixe-espada é de Bar Emmon e as trombetas cruzadas pertencem aos Wensington.
- São todos brilhantes como flores. - Goiva apontou. - Gosto daqueles amarelos, com o fogo. Olhe, e alguns dos guerreiros têm a mesma coisa nas blusas.
- Um coração flamejante. Não sei de quem é esse símbolo.
Descobriu bastante depressa.
- Homens da rainha - disse-lhe Pyp (depois de soltar um grito e berrar “Fujam e barrem as portas, rapazes, é Sam, o Matador, que voltou da sepultura”, enquanto Grenn abraçava Sam com tanta força que este achou que suas costelas iam quebrar) -, mas é melhor que não ande por aí perguntando onde está a rainha. Stannis deixou-a em Atalaialeste, com a filha e a frota. Não trouxe mulher nenhuma além da vermelha.
- A vermelha? - perguntou Sam, com incerteza.
- Melisandre de Asshai - disse Grenn. - A feiticeira do rei. Dizem que queimou um homem vivo em Pedra do Dragão para que Stannis tivesse ventos favoráveis para a sua viagem ao norte. E também cavalgou a seu lado na batalha e deu-lhe a espada mágica. Chamam de Luminífera. Espere até vê-la. Brilha como se tivesse um pedaço do sol lá dentro. - Voltou a olhar para Sam e deu um grande, desamparado e estúpido sorriso. - Ainda não consigo acreditar que está aqui.
Jon Snow também tinha sorrido ao vê-lo, mas foi um sorriso cansado, como aquele que mostrava agora.
- Afinal conseguiu voltar - disse. - E também trouxe Goiva. Bom trabalho, Sam.
O próprio Jon havia feito mais do que um bom trabalho, pelo que Grenn contara. Mas nem mesmo a captura do Berrante do Inverno e de um príncipe selvagem eram o bastante para Sor Alliser Thorne e os amigos, que continuavam a chamá-lo de vira-casaca. Embora Meistre Aemon dissesse que o seu ferimento estava sarando bem, Jon tinha outras cicatrizes, mais profundas do que aquelas que lhe rodeavam o olho. Ele chora por sua garota selvagem e pelos irmãos.
- É estranho - disse ele a Sam. - Craster não tinha nenhuma amizade por Mance, nem Mance por Craster, mas agora a filha de Craster está alimentando o filho de Mance.
- Eu tenho leite - disse Goiva, com uma voz suave e acanhada. - O meu só tira um pouco. Não é tão insaciável como este.
A selvagem chamada Vai virou-se para eles.
- Ouvi os homens da rainha dizer que a mulher vermelha quer oferecer Mance ao fogo, assim que ele estiver suficientemente forte.
Jon lançou-lhe um olhar fatigado.
- Mance é um desertor da Patrulha da Noite. A pena por esse crime é a morte. Se tivesse sido a Patrulha a capturá-lo, já teria sido enforcado, mas é prisioneiro do rei, e ninguém além da mulher vermelha sabe o que o rei tem na cabeça.
- Quero vê-lo - disse Vai. - Quero mostrar-lhe o filho. Ele merece isso antes que o matem.
Sam tentou explicar.
- Ninguém está autorizado a vê-lo exceto o Meistre Aemon, senhora.
- Se estivesse nas minhas mãos, Mance poderia pegar o filho no colo. - O sorriso de Jon desapareceu. - Lamento, Vai. - Virou-lhe as costas. - Sam e eu temos que regressar aos deveres. Bem, Sam tem, pelo menos. Perguntaremos se pode visitar Mance. É tudo que posso prometer.
Sam ficou tempo suficiente para dar um apertão na mão de Goiva e prometer voltar depois do jantar. Depois correu atrás de Jon. Havia guardas à porta, homens da rainha com lanças. Jon já estava no meio da escada, mas esperou quando ouviu Sam bufando atrás de si.
- É mais do que amigo de Goiva, não é?
Sam enrubesceu.
- Goiva é boa. É boa e gentil. - Estava feliz por seu longo pesadelo ter terminado, feliz por estar de volta aos seus irmãos em Castelo Negro... mas certas noites, sozinho na cela, pensava no calor de Goiva quando se enrolavam sob as peles com o bebê entre ambos. - Ela... ela tornou-me mais corajoso, Jon. Não corajoso, mas... mais corajoso.
- Sabe que não pode ficar com ela - disse Jon com gentileza -, assim como eu não podia ficar com Ygritte. Proferiu as palavras, Sam, assim como eu. Assim como todos nós.
- Eu sei. Goiva disse que seria uma esposa para mim, mas... eu contei-lhe a respeito das palavras e do que elas significavam. Não sei se isso a deixou triste ou feliz, mas contei. - Engoliu nervosamente e disse: - Jon, pode haver honra numa mentira, se for dita com... boa intenção?
- Suponho que isso dependa da mentira e da intenção. - Jon olhou para Sam. - Eu não o aconselharia. Não foi feito para mentir, Sam. Você cora, guincha e gagueja.
- É verdade - disse Sam -, mas podia mentir numa carta. Sou melhor com uma pena na mão. Tive uma... uma ideia. Quando as coisas estiverem mais estabelecidas por aqui, pensei que talvez a melhor coisa para Goiva... pensei que podia enviá-la para Monte Chifre. Para junto de minha mãe e irmãs e... e p-p-pai. Se a Goiva dissesse que o bebê era m-meu...
- Estava de novo corando. - A minha mãe quereria ficar com ele, eu sei. Arranjaria algum lugar para Goiva, alguma espécie de serviço, não seria tão duro como servir Craster. E Lorde R-Randyll, ele... ele nunca diria isso, mas poderia ficar satisfeito se acreditasse que eu tinha feito um bastardo numa garota selvagem qualquer. Pelo menos provaria que sou homem suficiente para dormir com uma mulher e gerar um filho. Ele disse-me uma vez que eu iria morrer virgem, que nenhuma mulher jamais... você sabe... Jon, se eu fizesse isso, se escrevesse essa mentira... isso seria uma coisa boa? A vida que o garoto teria...
- Crescendo como bastardo no castelo do avô? - Jon encolheu os ombros. - Isso depende em grande medida de seu pai, e do tipo de garoto que este é. Se for como você...
- Não será. Seu verdadeiro pai é Craster. Você o viu, ele era duro como um velho toco de árvore, e Goiva é mais forte do que parece.
- Se o rapaz mostrar alguma habilidade com a espada ou a lança, deve ter pelo menos um lugar na guarda doméstica de seu pai - disse Jon. - Não é inédito que bastardos sejam treinados como escudeiros e elevados à condição de cavaleiros. Mas é melhor que tenha certeza de que Goiva consegue jogar esse jogo de forma convincente. Por aquilo que me disse de Lorde Randyll, duvido que aceite bem ser enganado.
Mais guardas estavam colocados nos degraus fora da torre. Aqueles eram homens do rei, porém; Sam rapidamente tinha aprendido a diferença. Os homens do rei eram tão terrenos e ímpios como quaisquer outros soldados, mas os da rainha eram fervorosos na sua devoção a Melisandre de Asshai e ao seu Senhor da Luz.
- Vai para o pátio de treinos outra vez? - perguntou Sam quando atravessaram o pátio. - Será sensato treinar tanto antes que a perna acabe de sarar?
Jon encolheu os ombros.
- O que mais posso fazer? Marsh afastou-me de meus deveres, com receio de que eu ainda seja um vira-casaca.
- São poucos os que acreditam nisso - garantiu-lhe Sam. - Sor Alliser e os amigos. A maior parte dos irmãos sabe que não é verdade. O Rei Stannis também sabe, aposto. Trouxe-lhe o Berrante do Inverno e capturou o filho de Mance Rayder.
- Tudo que fiz foi proteger Vai e o bebê contra saqueadores quando os selvagens fugiram, e mantê-los lá até que os patrulheiros nos encontrassem. Não capturei ninguém. O Rei Stannis mantém bem os seus homens na mão, isso é evidente. Deixa-os saquear um pouco, mas só ouvi falar de três selvagens estupradas, e os homens que o fizeram foram todos castrados. Suponho que devia ter matado o povo livre enquanto fugia. Sor Allister tem andado dizendo por aí que a única vez que desembainhei a espada foi para defender os nossos inimigos. Diz que não matei Mance Rayder porque estava aliado a ele.
- Isso é só o Sor Alliser - disse Sam. - Todo mundo sabe que tipo de homem ele é. - Com seu nobre nascimento, seu grau de cavaleiro e os muitos anos passados na Patrulha, Sor Alliser Thorne podia ter sido um forte pretendente ao título de Senhor Comandante, mas quase todos os homens que treinara durante seus anos como mestre de armas o desprezavam. Seu nome havia sido sugerido, claro, mas depois de ter acabado num fraco sexto lugar após o primeiro dia e de ter perdido votos no segundo, Thorne retirou-se em apoio ao Lorde Janos Slynt.
- O que todo mundo sabe é que Sor Alliser é um cavaleiro de nobre linhagem, e legítimo, enquanto eu sou o bastardo que matou Qhorin Meia-Mão e dormiu com uma esposa de lanças. Ouvi-os chamarem-me de warg. Como posso ser warg sem um lobo, pergunto? - sua boca torceu-se. - Já nem sequer sonho com o Fantasma. Todos os meus sonhos são sobre as criptas, sobre os reis de pedra em seus tronos. Às vezes ouço a voz de Robb e a do meu pai como se estivessem num banquete. Mas há uma parede entre nós, e sei que não foi posto nenhum lugar para mim.
Os vivos não têm lugar nos banquetes dos mortos. Despedaçou o coração de Sam manter então o silêncio. Bran não está morto, Jon, quis dizer. Está com amigos, e vão para o norte num alce gigante à procura de um corvo de três olhos nas profundezas da floresta assombrada. Aquilo parecia uma loucura tão grande que às vezes Sam Tarly pensava que devia ter sonhado, que teria imaginado toda a história por causa da febre, do medo e da fome... mas teria contado mesmo assim, se não tivesse dado sua palavra.
Três vezes jurara manter o segredo; uma ao próprio Bran, outra àquele estranho rapaz, Jojen Reed, e por fim a Mãos-Frias.
“O mundo acredita que o garoto está morto”, tinha dito o seu salvador quando partiu. “Que os seus ossos não sejam perturbados. Não queremos ninguém no nosso encalço. Jure, Samwell da Patrulha da Noite. Jure pela vida que me deve.”
Infeliz, Sam mudou o peso de uma perna para a outra e disse:
- Lorde Janos nunca será escolhido Senhor Comandante. - Era o melhor conforto que podia dar a Jon, o único conforto. - Isso não acontecerá.
- Sam, você é um tolo de bom coração. Abra os olhos. Está acontecendo há dias. - Jon tirou os cabelos dos olhos e disse: - Eu posso não saber nada, mas sei isso. Agora peço que me dê licença, tenho de bater minha espada em qualquer coisa com muita força.
Nada havia que Sam pudesse fazer, exceto ver Jon caminhar a passos largos na direção do arsenal e do pátio de treinos. Era ali que Jon Snow passava a maior parte das horas em que não dormia. Com Sor Endrew morto e Sor Alliser desinteressado, Castelo Negro não tinha mestre de armas, por isso Jon encarregara-se de trabalhar com os recrutas mais verdes; Cetim, Cavalo, Robin Saltitão com sua perna de pau, Arron e Emrick. E quando eles tinham deveres a cumprir, treinava sozinho durante horas com espada, escudo e lança, ou defrontava qualquer um que quisesse lutar com ele.
Sam, você é um tolo de bom coração, conseguiu ouvir Jon dizendo ao longo de todo o caminho de volta à torre do meistre. Abra os olhos. Está acontecendo há dias. Poderia ele ter razão? Um homem precisava dos votos de dois terços dos Irmãos Juramentados para se tornar Senhor Comandante da Patrulha da Noite, e após nove dias e nove votações ninguém estava sequer perto disso. Lorde Janos andava ganhando votos, era verdade, ultrapassando Bowen Marsh e depois Othell Yarwyck, mas ainda estava bem atrás de Sor Denys Mallister da Torre Sombria e de Cotter Pyke de Atalaialeste-do-Mar. Um deles será o novo Senhor Comandante, com certeza, disse Sam a si mesmo.
Stannis também tinha colocado guardas à porta do meistre. Lá dentro, os aposentos estavam quentes e cheios com os feridos da batalha; irmãos negros, homens do rei e homens da rainha. Clydas andava de um lado para o outro entre eles, com jarros de leite de cabra e de vinho dos sonhos, mas o Meistre Aemon ainda não havia retornado de sua visita matinal a Mance Rayder. Sam pendurou o manto num gancho e foi ajudar. Mas mesmo enquanto ia buscar coisas, servir leite ou vinho e trocar ataduras, as palavras de Jon continuaram a importuná-lo. Sam, você é um tolo de bom coração. Abra os olhos. Está acontecendo há dias.
Passou-se uma boa hora até que conseguisse retirar-se para ir alimentar os corvos. Na subida até a colônia, parou para verificar o registro que fizera da contagem da noite anterior. No início da votação, mais de trinta nomes tinham sido sugeridos, mas a maior parte foi retirada assim que se tornou claro que não tinham chance de ganhar. Depois da noite passada, restavam sete. Sor Denys Mallister reunira duzentos e treze penhores, Cotter Pyke, cento e oitenta e sete, Lorde Slynt, setenta e quatro, Othell Yarwyck, sessenta, Bowen Marsh, quarenta e nove, Hobb Três-Dedos, cinco, e Edd Doloroso Tollett, um. Pyp e suas estúpidas brincadeiras. Sam verificou as contagens anteriores. Sor Denys, Cotter Pyke e Bowen Marsh vinham todos perdendo votos desde o terceiro dia e Othell Yarwyck, desde o sexto. Só Lorde Janos Slynt subia, dia após dia após dia.
Ouvia as aves crocitando na colônia, por isso guardou os papéis e subiu os degraus para ir alimentá-las. Viu com prazer que mais três corvos tinham chegado. “Snow", gritaram-lhe. “Snow, snow, snow." Foi ele que lhes ensinou aquilo. Mesmo com os recém-chegados, a colônia parecia tristemente vazia. Poucas das aves que Aemon enviara tinham voltado até agora. Mas uma chegou a Stannis. Uma encontrou Pedra do Dragão, e um rei que ainda se importava. Sam sabia que, mil léguas para o sul, o pai tinha juntado a Casa Tarly à causa do rapaz no Trono de Ferro, mas nem o Rei Joffrey nem o pequeno Rei Tommen tinham feito alguma coisa quando a Patrulha gritou por ajuda. De que serve um rei que não quer defender o seu reino?, pensou, irritado, recordando a noite no Punho dos Primeiros Homens e a terrível viagem até a Fortaleza de Craster através da escuridão, do medo e das nevascas. Os homens da rainha deixavam-no inquieto, era verdade, mas pelo menos tinham vindo.
Nessa noite, durante o jantar, Sam procurou por Jon Snow, mas não o viu em lugar nenhum, na cavernosa adega de pedra onde agora os irmãos faziam as refeições. Por fim, ocupou um lugar no banco, junto de seus outros amigos. Pyp estava falando ao Edd Doloroso do concurso que tinham feito para ver qual dos soldados de palha juntaria mais flechas dos selvagens.
- Você esteve à frente a maior parte do tempo, mas Watt de Lago Longo levou três no último dia e ultrapassou você.
- Nunca ganho nada - lamentou-se Edd Doloroso. - Mas os deuses sempre sorriram ao Watt. Quando os selvagens o derrubaram da Ponte das Caveiras, de algum modo conseguiu aterrissar numa boa e funda lagoa cheia de água. Quanta sorte, não acertar em nenhuma daquelas pedras.
- A queda foi longa? - Grenn quis saber. - Cair na lagoa salvou a vida dele?
- Não - disse Edd Doloroso. - Já estava morto, da machadada que levou na cabeça. Mesmo assim, foi bastante sorte não ter batido nas pedras.
Hobb Três-Dedos tinha prometido aos irmãos quadril de mamute assado para aquela noite, talvez na esperança de mendigar mais alguns votos. Se era essa a sua ideia, devia ter arranjado um mamute mais novo, pensou Sam, enquanto tirava um fio de cartilagem de entre os dentes. Suspirando, afastou a comida.
Haveria outra votação em breve, e a tensão no ar era mais densa do que a fumaça. Cotter Pyke estava sentado junto ao fogo, rodeado de patrulheiros de Atalaialeste. Sor Denys Mallister encontrava-se perto da porta com um grupo menor de homens da Torre Sombria. Janos Slynt tem o melhor lugar, percebeu Sam, a meio caminho entre as chamas e as correntes de ar. Sentiu-se alarmado por ver Bowen Marsh a seu lado, pálido e acabado, com a cabeça ainda envolta em linho, mas escutando tudo o que Lorde Janos tinha a dizer. Quando mostrou isso aos amigos, Pyp disse:
- E olhe ali, é Sor Allister aos segredos com Othell Yarwyck.
Após a refeição, Meistre Aemon levantou-se para perguntar se algum dos irmãos desejava falar antes de depositarem os seus penhores. Edd Doloroso levantou-se, com o rosto de pedra e sombrio de sempre.
- Só quero dizer a quem quer que esteja votando em mim que com certeza daria um horrível Senhor Comandante. Mas estes outros também. - Foi seguido por Bowen Marsh, que se ergueu com uma mão no ombro de Lorde Slynt.
- Irmãos e amigos, peço que meu nome seja retirado desta escolha. O ferimento ainda me causa problemas e temo que a tarefa seja grande demais para mim... mas não para Lorde Janos aqui, que comandou os homens de manto dourado em Porto Real durante muitos anos. Vamos todos lhe dar o nosso apoio.
Sam ouviu resmungos irritados vindos do canto da sala onde estava Cotter Pyke, e Sor Denys olhou para um de seus companheiros e sacudiu a cabeça. É tarde demais, o estrago está feito. Perguntou a si mesmo onde Jon estaria, e por que motivo havia se mantido afastado.
A maior parte dos irmãos era iletrada, portanto segundo a tradição a escolha era feita depositando penhores em um grande caldeirão de ferro de fundo redondo que Hobb Três-Dedos e Owen Idiota tinham arrastado das cozinhas. Os barris de penhores estavam em um canto, atrás de uma pesada cortina, de modo que os votantes pudessem fazer sua escolha sem serem vistos. Era permitido pedir a um amigo para votar em seu nome, caso houvesse deveres a cumprir, então alguns homens tiravam dois, três ou quatro penhores, e Sor Denys e Cotter Pyke votavam pelas guarnições que tinham deixado para trás.
Quando finalmente o salão ficou vazio além deles, Sam e Clydas viraram o caldeirão de pernas para o ar na frente de Meistre Aemon. Uma cascata de conchas, pedras e moedas de cobre cobriu a mesa. As mãos enrugadas de Aemon ordenaram-nas com surpreendente rapidez, movendo as conchas para cá, as pedras para lá, as moedas para um lado, e a ocasional ponta de lança, prego e bolota para os montinhos respectivos. Sam e Clydas contaram as pilhas, mantendo cada um o seu registro.
Naquela noite era a vez de Sam dizer primeiro os resultados.
- Duzentos e três para Sor Denys Mallister - disse. - Cento e sessenta e nove para Cotter Pyke. Cento e trinta e sete para Lorde Janos Slynt, setenta e dois para Othell Yarwyck, cinco para Hobb Três-Dedos, e dois para Edd Doloroso.
- Eu tinha cento e sessenta e oito para Pyke - disse Clydas. - Temos dois votos a menos, pela minha contagem, e um pela de Sam.
- A contagem de Sam está correta - disse Meistre Aemon. - Jon Snow não votou. Não importa. Ninguém está perto.
Sam estava mais aliviado do que desapontado. Até com o apoio de Bowen Marsh, Lorde Janos ainda era apenas terceiro.
- Quem são estes cinco que continuam votando no Hobb Três-Dedos? - perguntou a ninguém em especial.
- Irmãos que o querem fora das cozinhas? - disse Clydas.
- Sor Denys caiu dez votos desde ontem - apontou Sam. - E Cotter Pyke caiu quase vinte. Isso não é bom.
- Não é bom para suas esperanças de se tornarem Senhor Comandante, com certeza - disse Meistre Aemon. - Mas no fim das contas pode ser bom para a Patrulha da Noite. Não cabe a nós decidir. Dez dias não é um tempo excessivo. Certa vez, houve uma escolha que durou quase dois anos, umas setecentas votações. Os irmãos chegarão a uma decisão a seu tempo.
Sim, pensou Sam, mas que decisão?
Mais tarde, sobre taças de vinho aguado na privacidade da cela de Pyp, a língua de Sam soltou-se e deu por si pensando em voz alta.
- Cotter Pyke e Sor Denys Mallister vêm perdendo terreno, mas entre eles ainda têm quase dois terços - disse a Pyp e a Grenn. - Qualquer um dos dois poderia ser um bom Senhor Comandante. Alguém tem de convencer um deles a se retirar e a apoiar o outro.
- Alguém? - disse Grenn em tom de dúvida. - Que alguém?
- Grenn é tão burro que acha que alguém podia ser ele - disse Pyp. - Talvez quando alguém acabar de tratar de Pyke e Mallister, devesse convencer também o Rei Stannis a se casar com a Rainha Cersei.
- O Rei Stannis já é casado - objetou Grenn.
- O que vou fazer com ele, Sam? - suspirou Pyp.
- Cotter Pyke e Sor Denys não gostam muito um do outro - argumentou obstinadamente Grenn. - Discutem sobre tudo.
- Sim, mas só porque têm ideias diferentes sobre o que é melhor para a Patrulha - disse Sam. - Se nós explicássemos...
- Nós? - disse Pyp. - Como foi que alguém se transformou em nós? Eu sou o macaco do saltimbanco, lembra? E Grenn é, bem, Grenn. - Sorriu a Sam e abanou as orelhas. - Agora, você... você é filho de um lorde e intendente do meistre...
- E Sam, o Matador - disse Grenn. - Matou um Outro.
- Foi o vidro de dragão que o matou - disse-lhe Sam pela centésima vez.
- Filho de um lorde, intendente do meistre e Sam, o Matador - meditou Pyp. - Você poderia falar com eles, talvez...
- Poderia - disse Sam, soando tão pessimista quanto Edd Doloroso -, se não fosse covarde demais para encará-los.
Jon rodeou Cetim lentamente, de espada na mão, obrigando-o a se virar.
- Levante o escudo - disse.
- É pesado demais - reclamou o rapaz de Vilavelha.
- Tem o peso que precisa ter para parar uma espada - disse Jon. - E agora levante-o. - Deu um passo para a frente, golpeando. Cetim ergueu o escudo a tempo de apanhar a espada na borda e brandiu a sua lâmina contra as costelas de Jon. - Boa - disse Jon, quando sentiu o impacto em seu escudo. - Isso foi bom. Mas tem de colocar o corpo no movimento. Ponha o seu peso no aço e conseguirá fazer mais estragos do que apenas com a força do braço. Vá, tente outra vez, ataque-me, mas mantenha o escudo levantado, senão faço sua cabeça ressoar como se fosse um sino...
Em vez disso, Cetim deu um passo para trás e levantou a viseira.
- Jon - disse, numa voz ansiosa.
Quando se virou, ela estava em pé atrás dele, rodeada de meia dúzia de homens da rainha. Pouco admira que o pátio tenha ficado tão silencioso. Tinha visto Melisandre nas fogueiras noturnas, e nas idas e vindas pelo castelo, mas nunca tão de perto. É bela, pensou... mas havia algo mais do que um pouco perturbador em seus olhos vermelhos.
- Senhora.
- O rei deseja falar com você, Jon Snow.
Jon espetou a espada de treino no solo.
- Talvez me possa ser permitido que troque de roupa? Não estou em estado digno de comparecer perante um rei.
- Esperaremos no topo da Muralha - disse Melisandre. Nós, ouviu Jon, e não ele. É como dizem. Esta é que é a sua verdadeira rainha, e não aquela que deixou em Atalaialeste.
Pendurou a cota de malha e a armadura no arsenal, regressou à sua cela, livrou-se das roupas manchadas de suor e vestiu um conjunto limpo de vestes negras. Sabia que faria frio e ventaria na gaiola, e seria ainda mais frio e ventaria mais no topo do gelo, por isso escolheu um pesado manto com capuz. Por último recolheu a Garralonga e atou a espada bastarda às costas.
Melisandre esperava-o na base da Muralha. Mandara embora os homens da rainha.
- O que Sua Graça quer de mim? - perguntou-lhe quando entraram na gaiola.
- Tudo o que tiver para dar, Jon Snow. Ele é um rei.
Jon fechou a porta e puxou a corda do sino. O guincho começou a girar. Subiram. O dia estava luminoso e a Muralha chorava, com longos dedos de água escorrendo por sua superfície e cintilando ao sol. No apertado confinamento da gaiola de ferro, sentia-se vivamente consciente da presença da mulher vermelha. Até cheira a vermelho. O odor lembrou-lhe a forja de Mikken, o modo como o ferro cheirava quando incandescente; o odor era fumaça e sangue. Beijada pelo fogo, pensou, recordando Ygritte. O vento penetrou no interior das longas vestes vermelhas de Melisandre e fez com que batessem contra as pernas de Jon, a seu lado.
- Não sente frio, senhora? - perguntou-lhe.
Ela riu.
- Nunca. - O rubi na garganta parecia pulsar, em uníssono com o bater de seu coração. - O fogo do Senhor vive dentro de mim, Jon Snow. Sinta-o. - Pôs a mão no rosto dele, e manteve-a ali enquanto ele sentia como ela estava quente. - E esta é a sensação que a vida deve ter - disse-lhe ela. - Só a morte é fria.
Foram encontrar Stannis Baratheon em pé, sozinho, na borda da Muralha, pensativo, virado para o campo onde tinha vencido a sua batalha e a grande floresta verde que se estendia à frente. Estava vestido com os mesmos calções, túnica e botas negras que um homem da Patrulha da Noite usaria. Só o seu manto o distinguia: um pesado manto dourado forrado de peles negras, e preso com um broche com a forma de um coração flamejante.
- Trouxe-lhe o Bastardo de Winterfell, Vossa Graça - disse Melisandre.
Stannis virou-se para estudá-lo. Sob a sua pesada testa havia olhos que eram como lagoas azuis sem fundo. Seu rosto encovado e o forte maxilar estavam cobertos com uma barba negro-azulada cortada curta e que pouco fazia para esconder a magreza de seu rosto, e o maxilar estava tenso. O pescoço e os ombros também estavam tensos, assim como a mão direita. Jon deu por si lembrando-se de uma coisa que Donal Noye havia dito um dia sobre os irmãos Baratheon. Robert era o verdadeiro aço. Stannis é puro ferro, negro, duro e forte, mas quebradiço, como o ferro se torna. Quebrará antes de se dobrar. Inquieto, ajoelhou, perguntando a si mesmo por que teria aquele rei quebradiço necessidade de si.
- Levante-se. Ouvi muitas coisas e mais ainda acerca de você, Lorde Snow.
- Não sou um lorde, senhor. - Jon levantou-se. - Sei o que ouviu dizer. Que sou um vira-casaca e um covarde. Que matei o meu irmão Qhorin Meia-Mão para que os selvagens me poupassem a vida. Que acompanhei Mance Rayder e tomei uma selvagem como esposa.
- Sim. Tudo isso e mais. Também é um warg, dizem eles, um troca-peles que de noite caminha como lobo. - O Rei Stannis tinha um sorriso duro. - Quanto disso é verdade?
- Eu tinha um lobo gigante, o Fantasma. Abandonei-o quando escalei a Muralha perto de Guardagris, e não voltei a vê-lo desde então. Qhorin Meia-Mão ordenou-me que me juntasse aos selvagens. Ele sabia que me obrigariam a matá-lo para provar a minha deserção, e disse-me para fazer tudo o que me pedissem. A mulher chamava-se Ygritte. Quebrei os votos com ela, mas juro em nome de meu pai que nunca virei a casaca.
- Acredito em você - disse o rei.
Aquilo surpreendeu-o.
- Por quê?
Stannis fungou.
- Conheço Janos Slynt. E também conheci Ned Stark. Seu pai não era meu amigo, mas só um idiota duvidaria de sua honradez ou de sua honestidade. É parecido com ele.
- Um homem grande, Stannis Baratheon erguia-se bem mais alto do que Jon, mas tão magro que parecia dez anos mais velho do que era. - Sei mais do que pode pensar, Jon Snow. Sei que foi você quem encontrou o punhal de vidro de dragão que o filho de Randyll Tarly usou para matar o Outro.
- Foi o Fantasma que o encontrou. A lâmina estava enrolada no manto de um patrulheiro e enterrada no sopé do Punho dos Primeiros Homens. Havia também outras lâminas... pontas de lança, pontas de flecha, tudo de vidro de dragão.
- Sei que defendeu o portão aqui - disse o Rei Stannis. - Se não tivesse feito isso, eu teria chegado tarde demais.
- Foi Donal Noye quem defendeu o portão. Morreu lá embaixo no túnel, lutando contra o rei dos gigantes.
Stannis fez uma careta.
- Noye fez a minha primeira espada e também o martelo de guerra de Robert. Se deus tivesse achado por bem poupá-lo, ele daria um Senhor Comandante melhor para a sua ordem do que qualquer um daqueles idiotas que andam disputando o cargo.
- Cotter Pyke e Sor Denys Mallister não são idiotas, senhor - disse Jon. - São homens bons e capazes. Othell Yarwyck também, à sua maneira. Lorde Mormont confiava em todos eles.
- Seu Lorde Mormont confiava com demasiada facilidade. Se não fosse assim, não teria morrido da forma como morreu. Mas estávamos falando de você. Não esqueci que foi você quem nos trouxe este berrante mágico e quem capturou a esposa e o filho de Mance Rayder.
- Dalla morreu. - Aquilo ainda entristecia Jon. - Vai é a irmã dela. Ela e o bebê não exigiram grande captura, Vossa Graça. Havia posto os selvagens em debandada, e o troca-peles que Mance deixara guardando a sua rainha enlouqueceu quando a águia queimou. - Jon olhou para Melisandre. - Há quem diga que foi obra sua.
Ela sorriu, com os longos cabelos de cobre caindo sobre o rosto.
- O Senhor da Luz tem garras flamejantes, Jon Snow.
Jon acenou com a cabeça e voltou-se de novo para o rei.
- Vossa Graça, falou de Vai. Ela pediu para ver Mance Rayder, para lhe levar o filho. Seria uma... uma gentileza.
- O homem é um desertor de sua ordem. Seus irmãos estão todos insistindo na morte dele. Por que eu lhe faria uma gentileza?
Jon não tinha resposta para aquilo.
- Se não por ele, então por Vai. Em nome da irmã, a mãe da criança.
- Gosta dessa Vai?
- Mal a conheço.
- Dizem-me que é atraente.
- Muito - admitiu Jon.
- A beleza pode ser traiçoeira. Meu irmão aprendeu essa lição com Cersei Lannister. Ela assassinou-o, não duvide. E também ao seu pai e a Jon Arryn. - Franziu a testa. - Você acompanhou estes selvagens. Acha que há alguma honra neles?
- Sim - disse Jon -, mas o seu próprio tipo de honra.
- E em Mance Rayder?
- Sim. Penso que sim.
- No Senhor dos Ossos?
Jon hesitou.
- Nós o chamávamos de Camisa de Chocalho. Traiçoeiro e sedento de sangue. Se há honra nele, esconde-a por baixo de sua armadura de ossos.
- E naquele outro homem, aquele Tormund de muitos nomes que escapou de nós após a batalha? Responda-me com a verdade.
- Tormund Terror de Gigantes pareceu-me ser o tipo de homem que daria um bom amigo e um mau inimigo, Vossa Graça.
Stannis balançou secamente a cabeça.
- Seu pai era um homem de honra. Não era amigo meu, mas eu conhecia o seu valor. Seu irmão era um rebelde e um traidor que pretendia roubar metade do meu reino, mas não há homem que possa questionar a sua coragem. E você?
Será que ele quer que diga que o adoro? A voz de Jon soou dura e formal quando disse:
- Eu sou um homem da Patrulha da Noite.
- Palavras. Palavras são vento. Por que pensa que abandonei Pedra do Dragão e naveguei para a Muralha, Lorde Snow?
- Não sou um lorde, senhor. Veio porque o chamamos, espero. Embora não possa dizer por que motivo levou tanto tempo para vir.
Surpreendentemente, Stannis sorriu ao ouvir aquilo.
- É suficientemente ousado para ser um Stark. Sim, devia ter vindo mais cedo. Se não fosse o meu Mão, poderia nem sequer ter vindo. Lorde Seaworth é um homem de nascimento humilde, mas recordou-me de meu dever, quando tudo aquilo em que eu conseguia pensar era nos meus direitos. Tinha posto a carroça antes dos bois, disse Davos. Estava tentando conquistar o trono para salvar o reino, quando devia estar tentando salvar o reino para conquistar o trono. - Stannis apontou para o norte. - É ali que encontrarei o inimigo que nasci para enfrentar.
- O nome dele não pode ser proferido - acrescentou Melisandre em voz baixa. - Ele é o Deus da Noite e do Terror, Jon Snow, e essas silhuetas na neve são as suas criaturas.
- Dizem-me que matou um desses cadáveres caminhantes para salvar a vida de Lorde Mormont - disse Stannis. - Pode ser que esta guerra também seja sua, Lorde Snow. Se me quiser ceder a sua ajuda.
- Minha espada está a serviço da Patrulha da Noite, Vossa Graça - respondeu cautelosamente Jon Snow.
Aquilo não agradou ao rei. Stannis rangeu os dentes e disse:
- De você preciso mais do que uma espada.
Jon não estava entendendo.
- Senhor?
- Preciso do Norte.
O Norte.
- Eu... o meu irmão Robb era Rei no Norte...
- Seu irmão era o legítimo Senhor de Winterfell. Se tivesse ficado em casa e cumprido o seu dever, em vez de se coroar e partir para a conquista das terras fluviais, poderia estar vivo hoje. Mas, seja como for. Você não é Robb, assim como eu não sou Robert.
As palavras ríspidas afastaram qualquer empatia que Jon pudesse ter sentido por Stannis.
- Eu amava meu irmão - disse.
- E eu o meu. Mas eram como eram, e nós também. Sou o único rei legítimo em Westeros, no norte ou no sul. E você é o bastardo de Ned Stark. - Stannis estudou-o com aqueles olhos azul-escuros. - Tywin Lannister nomeou Roose Bolton Protetor do Norte, como recompensa por trair o seu irmão. Os homens de ferro estão lutando entre si desde a morte de Balon Greyjoy, mas ainda controlam Fosso Cailin, Bosque Profundo, Praça de Torrhen e a maior parte da Costa Pedregosa. As terras do seu pai sangram, e eu não tenho forças nem tempo para estancar as feridas. O que é necessário é um Senhor de Winterfell. Um Senhor de Winterfell leal.
Está olhando para mim, pensou Jon, atordoado.
- Winterfell já não existe. Theon Greyjoy passou o archote nele.
- O granito não arde facilmente - disse Stannis. - O castelo pode ser reconstruído, a seu tempo. Não são as muralhas que fazem um senhor, é o homem. Seus nortenhos não me conhecem, não têm motivos para nutrir amizade por mim, mas vou precisar de suas forças para as batalhas que temos pela frente. Preciso de um filho de Eddard Stark para conquistá-los para o meu estandarte.
Ele quer fazer de mim Senhor de Winterfell. O vento soprava em rajadas, e Jon sentiu a cabeça tão leve que quase teve receio de ser soprado Muralha abaixo.
- Vossa Graça - disse -, esquece-se. Eu sou um Snow, não um Stark.
- Quem está se esquecendo é você - respondeu o Rei Stannis.
Melisandre pousou uma mão morna em seu braço.
- Um rei pode remover de um golpe a mácula da bastardia, Lorde Snow.
Lorde Snow. Sor Alliser Thorne tinha lhe dado essa alcunha, para zombar de seu nascimento bastardo. Muitos dos irmãos tinham se habituado a usá-la também, alguns com afeto, outros para magoar. Mas, de repente, ela tinha um som diferente aos ouvidos de Jon. Soava... real.
- Sim - disse, hesitante já houve casos de reis que legitimaram bastardos, mas... eu continuo sendo um irmão da Patrulha da Noite. Ajoelhei perante uma árvore-coração e jurei não possuir terras nem gerar filhos.
- Jon. - Melisandre estava tão próxima que conseguia sentir o calor de seu hálito. - Rhllor é o único deus verdadeiro. Um juramento prestado a uma árvore não tem mais poder do que um juramento prestado aos seus sapatos. Abra o coração e deixe que a luz do Senhor entre nele. Queime esses represeiros e aceite Winterfell como presente do Senhor da Luz.
Quando Jon era bem novo, novo demais para compreender o que significava ser bastardo, costumava sonhar que um dia Winterfell poderia ser seu. Mais tarde, mais crescido, sentiu-se envergonhado por esses sonhos. Winterfell passaria para Robb e depois para os filhos dele, ou então para Bran e Rickon, caso Robb morresse sem filhos. E depois deles vinham Sansa e Arya. Até sonhar que não fosse assim parecia desleal, como se estivesse traindo os irmãos no coração, desejando sua morte. Nunca desejei isso, pensou, em pé diante do rei de olhos azuis e da mulher vermelha. Amei Robb, amei a todos eles... nunca desejei que nenhum mal acontecesse a nenhum deles, mas aconteceu. E agora só resta eu. Tudo o que tinha de fazer era dizer uma palavra, e seria Jon Stark, nunca mais um Snow. Tudo o que tinha de fazer era jurar lealdade a este rei, e Winterfell seria seu. Tudo o que tinha de fazer...
... era abjurar de novo os seus votos.
E dessa vez não seria um estratagema. Para reivindicar o castelo do pai, teria de se virar contra os deuses do pai.
O Rei Stannis voltou a olhar para o norte, com o manto dourado esvoaçando de seus ombros.
- Pode ser que me engane com você, Jon Snow. Ambos sabemos o que se diz dos bastardos. Poderá faltar a você a honra de seu pai, ou a perícia de seu irmão com as armas. Mas é a arma que o Senhor me deu. Encontrei-o aqui, tal como você encontrou o esconderijo de vidro de dragão aos pés do Punho, e pretendo usá-lo. Nem Azor Ahai venceu sozinho a sua guerra. Matei mil selvagens, capturei outros mil e dispersei o restante, mas ambos sabemos que eles voltarão. Melisandre viu isso em seus fogos. Esse Tormund Punho de Trovão provavelmente está reunindo os remanescentes neste exato momento, e planejando algum novo assalto. E quanto mais nos sangrarmos uns aos outros, mais fracos estaremos todos quando o verdadeiro inimigo cair sobre nós.
Jon tinha chegado à mesma conclusão.
- É como diz, Vossa Graça. - Perguntou a si mesmo onde aquele rei queria chegar.
- Enquanto seus irmãos tentam decidir quem deve liderá-los, eu tenho falado com este Mance Rayder. - Rangeu os dentes. - Um homem teimoso, esse, e orgulhoso. Não vai me deixar outra escolha a não ser entregá-lo às chamas. Mas capturamos outros também, outros líderes. Aquele que chama a si mesmo de Senhor dos Ossos, alguns dos chefes de clã deles, o novo Magnar de Thenn. Seus irmãos não gostarão disso, não mais do que os senhores de seu pai, mas eu pretendo permitir que os selvagens atravessem a Muralha... aqueles que me jurarem lealdade, que garantam manter a paz do rei e cumprir as leis do rei, e acolher o Senhor da Luz como seu deus. Até os gigantes, se aqueles grandes joelhos que eles têm puderem se dobrar. Vou instalá-los na Dádiva, depois de arrancá-la de seu novo Senhor Comandante. Quando os ventos frios se erguerem, sobreviveremos ou morreremos juntos. É hora de fazermos uma aliança contra o nosso inimigo comum. - Olhou para Jon. - Concordaria?
- Meu pai sonhava em repovoar a Dádiva - admitiu Jon. - Ele e o meu tio Benjen costumavam conversar sobre isso. - Nunca pensou em povoá-la com selvagens, porém... mas também nunca viveu com selvagens. Não se iludia, o povo livre daria súditos insubmissos e vizinhos perigosos. Mas quando punha num prato da balança os cabelos ruivos de Ygritte e no outro os frios olhos azuis das criaturas, a escolha era fácil. - Concordo.
- Ótimo - disse o Rei Stannis -, pois a maneira mais segura de selar uma nova aliança é através de um casamento. Pretendo casar o meu Senhor de Winterfell com esta princesa selvagem.
Jon talvez tivesse vivido tempo demais com o povo livre; não conseguiu impedir-se de rir.
- Vossa Graça - disse -, cativa ou não, se pensa que pode simplesmente me dar Vai, temo que tenha bastante a aprender sobre as mulheres selvagens. Quem quer que se case com ela é bom que esteja preparado para escalar até a sua janela de torre e levá-la na ponta da espada...
- Quem quer que case? - Stannis lançou-lhe um olhar avaliador. - Isso significa que não quer casar com a moça? Previno-o de que ela faz parte do preço que tem de pagar, se quiser o nome e o castelo de seu pai. Essa união é necessária, para ajudar a garantir a lealdade de meus novos súditos. Está me recusando, Jon Snow?
- Não - disse Jon, rápido demais. Era de Winterfell que o rei estava falando, e Winterfell não era algo que se pudesse recusar com ligeireza. - Isto é... tudo isso surgiu muito de repente, Vossa Graça. Posso suplicar-lhe algum tempo para pensar?
- Como quiser. Mas pense depressa. Não sou um homem paciente, como os seus irmãos negros estão prestes a descobrir. - Stannis apoiou uma mão magra e descarnada no ombro de Jon. - Não diga nada sobre o que falamos aqui hoje. A ninguém. Mas quando regressar, necessitará apenas dobrar o joelho, depositar a sua espada aos meus pés e colocar-se ao meu serviço, e voltará a se erguer como Jon Stark, o Senhor de Winterfell.
Quando ouviu ruídos através da espessa porta de madeira de sua cela, Tyrion Lannister preparou-se para morrer.
Já é mais que tempo, pensou. Vá lá, vá lá, deem um fim a isto. Pôs-se em pé com dificuldade. Suas pernas estavam adormecidas de estarem dobradas por baixo do corpo. Curvou-se e esfregou-as, aliviando a sensação de facas o pinicando. Não irei para o cepo aos tropeções e bamboleios.
Perguntou a si mesmo se o matariam ali no escuro ou se o arrastariam pela cidade para que Sor Ilyn Payne pudesse cortar-lhe a cabeça. Após a farsa que tinha sido o seu julgamento, sua querida irmã e seu dedicado pai podiam preferir ver-se livres dele discretamente, em vez de se arriscarem a uma execução pública. Eu podia dizer ao populacho umas coisinhas bem escolhidas se me deixarem falar. Mas seriam eles tão tolos assim?
Quando as chaves tilintaram e a porta da cela se abriu, rangendo, Tyrion encostou-se à umidade da parede, desejando ter uma arma. Ainda posso morder e chutar. Morrerei com o sabor do sangue na boca, isso é sempre alguma coisa. Desejou ter sido capaz de arranjar umas últimas palavras que fossem vibrantes. "Vão todos se foder” não era coisa que servisse para conquistar lugar de relevo nas histórias.
Luz de archote caiu sobre seu rosto. Protegeu os olhos com uma mão.
- Ora, tem medo de um anão? Trate disso, seu filho de uma puta bexiguenta. - Sua voz tinha se tornado roufenha com a falta de uso.
- Isso é maneira de falar da senhora nossa mãe? - o homem avançou, com uma tocha na mão esquerda. - Isto ainda é mais pavoroso do que a minha cela em Correrrio, embora não tão úmido.
Por um momento, Tyrion não conseguiu respirar.
- Você?
- Bem, a maior parte de mim. - Jaime estava magro e tinha os cabelos cortados curtos.
- Deixei uma mão em Harrenhal. Trazer os Bravos Companheiros do outro lado do mar estreito não foi uma das melhores ideias do pai. - Ergueu o braço e Tyrion viu o coto.
Uma gargalhada histérica saltou de seus lábios.
- Oh, deuses - disse. - Jaime, desculpe, mas... pela bondade dos deuses, olhe para nós dois. Maneta e Narigueta, os rapazes Lannister.
- Houve dias em que a minha mão cheirava tão mal que desejei não ter nariz. - Jaime baixou a tocha, para que a luz banhasse o rosto do irmão. - Uma cicatriz impressionante.
Tyrion afastou-se do clarão.
- Obrigaram-me a travar uma batalha sem o meu irmão mais velho para me proteger.
- Ouvi dizer que quase queimou a cidade.
- Uma mentira imunda. Só queimei o rio. - Abruptamente, Tyrion lembrou-se de onde estava e por quê. - Está aqui para me matar?
- Isso já é ingratidão. Talvez devesse deixá-lo aqui apodrecendo, se vai ser assim tão descortês.
- Apodrecer não é o destino que Cersei tem em mente para mim.
- Bem, não, para falar a verdade. Deverá ser decapitado amanhã de manhã, no antigo terreiro de torneios.
Tyrion voltou a gargalhar.
- Haverá comida? Vai ter de me ajudar com as últimas palavras, meus miolos têm andado aos círculos, como uma ratazana numa despensa.
- Não vai precisar de últimas palavras. Estou salvando você. - A voz de Jaime estava estranhamente solene.
- Quem disse que eu precisava ser salvo?
- Sabe, quase tinha me esquecido do homenzinho irritante que você é. Agora que me lembrou disso, acho que vou deixar que Cersei corte sua cabeça afinal.
- Ah, não vai, não. - Bamboleou-se para fora da cela. - É dia ou noite lá em cima? Perdi toda a noção do tempo.
- Passam três horas da meia-noite. A cidade dorme. - Jaime voltou a enfiar o archote na arandela, na parede entre as celas.
O corredor estava tão mal iluminado que Tyrion quase tropeçou no carcereiro, estatelado no frio chão de pedra. Empurrou-o com a ponta do pé.
- Está morto?
- Dormindo. Os outros três também. O eunuco misturou sonodoce no vinho deles, mas não o suficiente para matá-los. Pelo menos foi o que me jurou. Está esperando na escada, vestido com uma túnica de septão. Vai descer aos esgotos, e dali vai para o rio. Uma galé está esperando na baía. Varys tem agentes nas Cidades Livres que se assegurarão de que não lhe faltem fundos... mas tente não se fazer notar. Cersei mandará homens em seu encalço, não duvido. Pode ser boa ideia adotar outro nome.
- Outro nome? Oh, certamente. E quando os Homens Sem Rosto vierem me matar, direi: “Não, enganou-se de homem, eu sou outro anão com uma hedionda cicatriz na cara.” - Ambos os Lannister riram do absurdo de tudo aquilo. Então Jaime ajoelhou-se e deu-lhe um rápido par de beijos nas bochechas, roçando os lábios na fita pregueada de tecido cicatricial.
- Obrigado, irmão - disse Tyrion. - Pela minha vida.
- Era... uma dívida que tinha para com você. - A voz de Jaime soava estranha.
- Uma dívida? - inclinou a cabeça. - Não compreendo.
- Ainda bem. Há portas que é melhor que fiquem fechadas.
- Ora, ora - disse Tyrion. - Haverá algo de sinistro e feio atrás disso? Será possível que alguém um dia tenha dito algo cruel a meu respeito? Tentarei não chorar. Conte-me.
- Tyrion...
Jaime está com medo.
- Conte-me - repetiu Tyrion.
O irmão afastou o olhar.
- Tysha - disse em voz baixa.
- Tysha? - seu estômago apertou-se. - O que tem ela?
- Não era uma prostituta. Não fui eu que a trouxe para você. Aquilo foi uma mentira que o pai me ordenou que dissesse. Tysha era... era o que parecia ser. Filha de um caseiro, encontrada por acaso na estrada.
Tyrion conseguia ouvir o tênue som da própria respiração assobiando através da cicatriz do nariz. Jaime não era capaz de encará-lo. Tysha. Tentou lembrar-se do aspecto dela. Uma garota, era apenas uma garota, não era mais velha do que Sansa.
- A minha esposa - crocitou. - Ela casou comigo.
- Pelo seu ouro, disse o pai. Era malnascida, e você, um Lannister de Rochedo Casterly. Tudo que ela queria era o ouro, o que fazia com que não fosse diferente de uma prostituta, portanto... portanto não seria uma mentira, não por completo, e... ele disse que você precisava de uma dura lição. Que aprenderia com ela e me agradeceria mais tarde...
- Agradecê-lo? - a voz de Tyrion estava estrangulada. - Ele deu-a aos guardas. Uma caserna cheia de guardas. E obrigou-me... a ver. - Sim, e a mais do que ver. Também a possuí... minha esposa...
- Eu não sabia que ele ia fazer isso. Tem de acreditar em mim.
- Ah, tenho, é? - rosnou Tyrion. - Por que devo acreditar em você sobre seja o que for, seja quando for? Ela era minha esposa!
- Tyrion...
Tyrion bateu nele. Foi um tabefe, dado com as costas da mão, mas colocou nele todas as suas forças, todo o seu medo, toda a sua raiva, toda a sua dor. Jaime estava acocorado, desequilibrado. O golpe fez com que tropeçasse e caísse de costas.
- Eu... suponho que mereci isso.
- Oh, você mereceu mais do que isso, Jaime. Você e a minha querida irmã e o nosso dedicado pai, sim. Nem consigo começar a dizer o que mereceram. Mas terão o que merecem, isso posso jurar para você. Um Lannister sempre paga as suas dívidas. - Tyrion afastou-se, bamboleando, quase voltando a tropeçar no carcereiro com a pressa. Antes de percorrer uma dúzia de metros deu um encontrão num portão de ferro que fechava a passagem. Oh, deuses. Por pouco não gritou.
Jaime surgiu atrás dele.
- Eu tenho as chaves do carcereiro.
- Então use-as. - Tyrion abriu-lhe passagem.
Jaime destrancou o portão, abriu-o e atravessou-o. Olhou para trás por sobre o ombro.
- Você vem?
- Não com você. - Tyrion atravessou o portão. - Dê-me as chaves e vá embora. Eu encontro Varys sozinho. - Inclinou a cabeça e fitou o irmão com seus olhos desiguais. - Jaime, consegue lutar com a mão esquerda?
- Bastante pior do que você - disse amargamente Jaime.
- Ótimo. Nesse caso estaremos bem equilibrados se alguma vez voltarmos a nos encontrar. O aleijado e o anão.
Jaime entregou-lhe a argola cheia de chaves.
- Ofereci a verdade a você. Deve-me o mesmo. Foi você? Matou-o?
A pergunta era outra faca, torcendo-se em suas tripas.
- Tem certeza de que quer saber? - perguntou Tyrion. - Joffrey teria sido um rei pior do que Aerys alguma vez foi. Ele roubou o punhal do pai e deu-o a um salteador para que cortasse a goela de Brandon Stark, sabia disso?
- Eu... achei que pudesse ter feito isso.
- Bem, um filho sai ao pai. Joff teria me matado também, uma vez que estivesse na posse de todos os seus poderes. Pelo crime de ser baixo e feio, do qual sou tão obviamente culpado.
- Não respondeu à minha pergunta.
- Meu pobre, estúpido, cego, mutilado idiota. Terei de soletrar tudo para que entenda? Muito bem. Cersei é uma puta mentirosa, e tem andado fodendo Lancei e Osmund Kettleblack e provavelmente até o Rapaz Lua, pelo que sei. E eu sou o monstro que todos dizem que sou. Sim, matei o seu abjeto filho. - Obrigou-se a sorrir. Devia ter sido uma visão hedionda, ali na escuridão iluminada pelo archote.
Jaime virou-se sem uma palavra e afastou-se.
Tyrion ficou vendo-o partir, com passos largos de suas pernas fortes, e parte de si desejou chamá-lo, dizer-lhe que não era verdade, implorar-lhe perdão. Mas então pensou em Tysha, e manteve o silêncio. Ficou à escuta dos passos que se afastavam até já não conseguir ouvi-los, e depois foi à procura de Varys, bamboleando-se.
O eunuco estava escondido na escuridão de uma escada em espiral, vestido com uma túnica marrom e comida pelas traças, com um capuz que escondia a palidez de seu rosto.
- Demorou tanto que temi que algo tivesse dado errado - disse ele quando viu Tyrion.
- Oh, não - sossegou-o Tyrion com veneno na voz. - O que poderia ter dado errado? - torceu a cabeça para trás, a fim de olhar para cima. - Mandei buscá-lo durante o julgamento.
- Não pude vir. A rainha tinha-me sob vigilância, noite e dia. Não me atrevi a ajudá-lo.
- Mas agora está me ajudando.
- Ah, estou? Ah. - Varys soltou um risinho. O som parecia estranhamente deslocado naquele lugar de pedra fria e escuridão cheia de ecos. - Seu irmão consegue ser muito persuasivo.
- Varys, você é tão frio e viscoso como uma lesma, alguém já lhe disse? Fez o melhor que pôde para me matar. Talvez eu devesse devolver o favor.
O eunuco suspirou.
- O cão fiel é chutado, e não importa o modo como a aranha tece a teia, nunca ninguém gosta dela. Mas se me matar aqui, temo por você, senhor. Pode nunca encontrar o caminho de volta à luz do dia. - Os olhos cintilaram à oscilante luz da tocha, escuros e úmidos. - Estes túneis estão cheios de armadilhas para os confiantes.
Tyrion fungou.
- Confiante? Sou o homem mais desconfiado dos Sete Reinos, você ajudou a garantir que assim fosse. - Esfregou o nariz. - Portanto diga-me, feiticeiro, onde está a minha inocente e donzela esposa?
- Não encontrei sinal da Senhora Sansa em Porto Real, lamento dizê-lo. Nem de Sor Dontos Hollard, o qual normalmente já teria aparecido bêbado em algum lugar, a essa altura. Foram vistos juntos na escada em espiral na noite em que ela desapareceu. Depois disso, nada. Houve muita confusão naquela noite. Meus passarinhos estão em silêncio. - Varys deu um leve puxão na manga do anão e puxou-o para a escada. - Senhor, temos de ir andando. Seu caminho é para baixo.
Ao menos isso não é mentira nenhuma. Tyrion bamboleou-se na pegada do eunuco, raspando com os calcanhares na pedra áspera à medida que iam descendo. Fazia muito frio na escadaria, um frio úmido de gelar os ossos que fez Tyrion começar a tremer imediatamente.
- Que parte das masmorras é esta? - perguntou.
- Maegor, o Cruel, decretou a construção de quatro pisos de masmorras para o seu castelo - respondeu Varys. - No piso superior, há celas grandes onde os criminosos comuns podem ser confinados juntos. Têm janelas estreitas, abertas no topo das paredes. O segundo piso tem as celas menores onde os cativos de nascimento elevado são mantidos. Não têm janelas, mas archotes nos corredores enviam luz suficiente através das barras. No terceiro piso as celas são menores e as portas são de madeira. São chamadas de celas negras. Foi em uma delas que foi mantido, bem como Eddard Stark antes de você. Mas há um piso ainda mais profundo. Uma vez que um homem seja levado para o quarto piso, não volta a ver o sol nem a ouvir vozes humanas nem a respirar sem estar sujeito a uma dor agonizante. Maegor mandou construir as celas do quarto piso para a tortura. - Tinham chegado ao fundo dos degraus. Uma porta não iluminada abria-se na sua frente.
- Este é o quarto piso. Dê-me a mão, senhor. Aqui é mais seguro caminhar na escuridão. Há coisas que não desejaria ver.
Tyrion hesitou por um momento. Varys já o traíra uma vez. Quem saberia que tipo de jogo o eunuco estava jogando? E que local melhor para assassinar um homem do que no meio das trevas, num lugar que ninguém sabia que existia? Seu corpo podia nunca ser encontrado.
Por outro lado, que alternativa tinha? Subir as escadas e sair pelo portão principal? Não, isso não serviria.
Jaime não teria medo, pensou, antes de se lembrar do que o irmão lhe fizera. Deu a mão ao eunuco e deixou-se conduzir através do negrume, seguindo o suave raspar do couro na pedra. Varys caminhava depressa, sussurrando de vez em quando, "Cuidado, aqui há três degraus”, ou, "O túnel inclina-se para baixo aqui, senhor”. Cheguei aqui como Mão do Rei, atravessando os portões a cavalo, à frente dos meus próprios homens, refletiu Tyrion, e saio como uma ratazana, correndo na escuridão, de mãos dadas a uma aranha.
Uma luz surgiu diante deles, tênue demais para ser a luz do dia, e cresceu à medida que se apressavam em sua direção. Passado algum tempo, Tyrion viu que se tratava de uma porta em arco, fechada por outro portão de ferro. Varys apresentou uma chave. Atravessaram a porta e entraram num pequeno aposento redondo. Havia mais cinco portas na sala, todas fechadas com barras de ferro. Havia também uma abertura no teto, e uma série de degraus de mão na parede por baixo da abertura, levando para cima. Um ornamentado braseiro encontrava-se de um lado, esculpido com a forma de uma cabeça de dragão. O carvão dentro da boca escancarada da fera já tinha se reduzido a brasas, mas ainda brilhava com uma lúgubre luz alaranjada. Embora bastante fraca, a luz era bem-vinda depois do negrume do túnel.
Além do braseiro, a sala encontrava-se vazia, mas o chão exibia o mosaico de um dragão de três cabeças, feito com ladrilhos vermelhos e negros. Algo perturbou Tyrion por um momento. Então ocorreu-lhe o que era. Este é o lugar de que Shae me falou, quando Varys a levou pela primeira vez à minha cama.
- Estamos por baixo da Torre da Mão.
- Sim. - Dobradiças geladas gritaram em protesto quando Varys abriu uma porta havia muito fechada. Partículas de ferrugem caíram lentamente no chão. - Isso vai nos levar ao rio.
Tyrion dirigiu-se lentamente para a escada, percorreu com a mão o degrau inferior.
- Isso vai me levar ao meu quarto de dormir.
- Agora é o quarto do senhor seu pai.
Ergueu os olhos para o alçapão.
- Quanto terei de subir?
- Senhor, está fraco demais para uma loucura dessas, e além disso não há tempo. Temos de ir.
- Tenho assuntos a tratar lá em cima. Quão longa é a subida?
- Duzentos e trinta degraus, mas seja o que for que pretenda...
- Duzentos e trinta degraus, e depois o quê?
- O túnel à esquerda, mas escute-me...
- A que distância está do quarto? - Tyrion pôs um pé no degrau mais baixo da escada.
- Não passa de vinte metros. Mantenha uma mão na parede enquanto avançar. Detectará as portas pelo tato. O quarto é na terceira. - Suspirou. - Isso é uma loucura, senhor. Seu irmão devolveu-lhe a vida. Quer jogá-la fora, juntamente com a minha?
- Varys, a única coisa que prezo menos do que a minha vida neste momento é a sua. Espere-me aqui. - Deu as costas ao eunuco e começou a subir, contando em silêncio.
Degrau a degrau, penetrou na escuridão. A princípio conseguia ver o tênue contorno de cada degrau quando o agarrava, bem como a áspera textura da pedra atrás dele, mas à medida que ia subindo a escuridão cerrava-se. Treze, catorze, quinze, dezesseis. Ao chegar ao trigésimo degrau, os braços tremiam com a tensão de puxar. Descansou um pouco para ganhar fôlego e olhou para baixo. Um círculo de luz tênue brilhava muito embaixo, meio obscurecido por seus pés. Tyrion retomou a subida. Trinte e nove, quarenta, quarenta e um. Ao alcançar o quinquagésimo degrau, suas pernas ardiam. A escada era infinita, entorpecedora. Sessenta e oito, sessenta e nove, setenta. Ao chegar ao octagésimo degrau, tinha as costas numa agonia surda. Mas continuou a subir. Não poderia explicar por quê. Cento e treze, cento e catorze, cento e quinze.
Depois de duzentos e trinta degraus, o poço estava negro como breu, mas ele conseguia sentir o ar quente que saía do túnel à sua esquerda, como se fosse o hálito de alguma grande fera. Apalpou desajeitadamente com um pé e saiu com cuidado da escada. O túnel ainda era mais apertado do que o poço. Qualquer homem de estatura normal teria sido obrigado a engatinhar, mas Tyrion era suficientemente baixo para caminhar direito. Finalmente, um lugar feito para anões. Suas botas raspavam suavemente contra a pedra. Caminhou lentamente, contando os passos, apalpando as paredes em busca de descontinuidades. Depois de um tempo começou a ouvir vozes, abafadas e indistintas a princípio, mas depois mais claras. Escutou com mais atenção. Dois dos guardas do pai estavam trocando gracejos a respeito da puta do Duende, dizendo como seria bom fodê-la, e como ela devia ansiar por um pau como deve ser em vez da coisinha atrofiada do anão.
- O mais provável é que seja torta - disse Lum. Isso levou-os a uma discussão sobre o modo como Tyrion morreria na manhã seguinte. - Ele vai chorar como uma mulher e suplicar misericórdia, vai ver - insistia Lum. Lester achava que enfrentaria o machado com a coragem de um leão, sendo um Lannister como era, e estava disposto a apostar nisso as botas novas. - Ah, estou cagando nas suas botas - disse Lum -, sabe que nunca vão servir aqui nestes meus pés. Olha, se eu ganhar, pode limpar a porcaria da minha cota de malha durante uma quinzena.
Ao longo de um a dois metros, Tyrion conseguiu ouvir cada palavra do regateio entre os dois, mas, quando prosseguiu, as vozes desvaneceram-se rapidamente. Pouco admira que Varys não quisesse que eu subisse a maldita escada, pensou Tyrion, sorrindo no escuro. Passarinhos, oras.
Chegou à terceira porta e tateou em volta durante bastante tempo até que seus dedos roçaram num pequeno gancho de ferro instalado entre duas pedras. Quando o puxou para baixo, ouviu-se um ruído surdo e fraco, que no silêncio pareceu o estrondo de uma avalanche, e um quadrado de tênue luz alaranjada abriu-se trinta centímetros à sua esquerda.
A lareira! Quase riu. A lareira estava cheia de cinzas quentes e tinha uma tora negra com um quente coração alaranjado ardendo por dentro. Atravessou cautelosamente, dando passos rápidos para não queimar as botas, esmagando suavemente as cinzas quentes debaixo dos calcanhares. Quando deu por si naquilo que antes havia sido o seu quarto, ficou imóvel por um longo momento, bebendo o silêncio. Teria o pai ouvido? Estenderia a mão para a espada e daria o alarme?
- Senhor? - chamou uma voz de mulher.
Isso poderia ter me machucado em outros tempos, quando ainda sentia dor. O primeiro passo foi o mais duro. Quando chegou à cama, Tyrion afastou as cortinas e ali estava ela, virando-se para ele com um sorriso sonolento nos lábios. Morreu quando viu Tyrion. A moça puxou os cobertores até o queixo, como se isso a protegesse.
- Estava à espera de alguém mais alto, querida?
Grandes lágrimas molhadas encheram os olhos dela.
- Eu não queria dizer aquelas coisas, a rainha obrigou-me. Por favor. Seu pai assusta-me tanto. - Sentou-se, deixando o cobertor deslizar até o colo. Por baixo encontrava-se nua, exceto pela corrente que trazia à garganta. Uma corrente de mãos de ouro ligadas, cada uma segurando na seguinte.
- Minha senhora Shae - disse Tyrion em voz baixa. - Todo o tempo que fiquei na cela negra esperando morrer, não parava de me lembrar de sua beleza. Vestida de seda ou tecido grosseiro, ou de coisa nenhuma...
- O senhor deve estar de volta daqui a pouco. Você devia ir, ou... veio me levar?
- Alguma vez gostou? - envolveu-lhe o rosto com as mãos, lembrando-se de todas as vezes que tinha feito isso. De todas as vezes que tinha deslizado as mãos em torno da cintura dela, apertado seus pequenos e firmes seios, afagado seus curtos cabelos escuros, tocado seus lábios, bochechas, orelhas. De todas as vezes que a abrira com um dedo para sondar a sua doçura secreta e fazê-la gemer. - Alguma vez gostou do meu toque?
- Mais do que tudo - disse ela -, meu gigante de Lannister.
Essa foi a pior coisa que poderia ter dito, querida.
Tyrion enfiou uma mão por baixo da corrente do pai, e torceu. Os elos apertaram-se, enterrando-se no pescoço dela.
- Porque mãos de ouro são sempre frias, mas há calor em mãos de mulher - disse.
Deu às mãos frias outra torção enquanto as quentes batiam nele, limpando-lhe as lágrimas.
Depois, encontrou o punhal de Lorde Tywin na mesa de cabeceira e enfiou-o no cinto. Uma maça com cabeça de leão, uma alabarda e uma besta tinham sido penduradas nas paredes. A alabarda seria uma arma incômoda de usar dentro de um castelo, e a maça pendurada em um lugar alto demais para que ele a alcançasse, mas um grande baú de madeira e ferro tinha sido encostado à parede logo abaixo da besta. Subiu no baú, pegou a besta e uma aljava de couro repleta de dardos, enfiou um pé no estribo e puxou-o para baixo até que a corda do arco engatilhou. Então enfiou um dardo na ranhura.
Jaime tinha lhe dado mais do que um sermão acerca das desvantagens das bestas. Se Lum e Lester surgissem de onde quer que estivessem conversando, nunca teria tempo de recarregar, mas pelo menos levaria um para o inferno consigo. Lum, se pudesse escolher. Vai ter de limpar você mesmo a cota de malha, Lum. Perdeu.
Bamboleando-se até a porta, escutou por um momento, após o que a abriu lentamente. Uma lâmpada ardia num nicho de pedra, lançando uma pálida luz amarela sobre o corredor. Só a chama se movia. Tyrion deslizou para fora do quarto, mantendo a besta abaixada, encostada à perna.
Foi encontrar o pai onde sabia que o encontraria, sentado nas sombras do poço das latrinas, com o roupão enrolado em volta dos quadris. Ao ouvir o som de passos, Lorde Tywin ergueu os olhos.
Tyrion concedeu-lhe uma meia reverência trocista.
- Senhor.
- Tyrion. - Se estava assustado, Tywin Lannister não mostrou qualquer sinal. - Quem o libertou de sua cela?
- Adoraria dizer, mas prestei um juramento sagrado.
- O eunuco - decidiu o pai. - Isto vai custar a cabeça dele. Essa é a minha besta? Aponte-a para baixo.
- Vai me punir se eu me recusar, pai?
- Esta fuga é uma loucura. Não vai ser morto, se é isso que teme. Ainda é minha intenção enviá-lo para a Muralha, mas não podia fazer isso sem o consentimento de Lorde Tyrell. Abaixe a besta, e vamos até os meus aposentos conversar.
- Podemos perfeitamente conversar aqui. Talvez eu não queira ir para a Muralha, pai. Faz um frio dos diabos lá em cima, e creio que já aguentei frio suficiente vindo do senhor. Por isso, diga-me uma coisa, e eu vou embora. Uma simples pergunta, deve-me isso.
- Não lhe devo nada.
- Deu-me menos do que isso, toda a minha vida, mas isso vai me dar. O que fez com Tysha?
- Tysha?
Ele nem sequer se lembra do nome dela.
- A garota com quem me casei.
- Ah, sim. A sua primeira puta.
Tyrion apontou para o peito do pai.
- Da próxima vez que disser essa palavra, mato-o.
- Não tem coragem suficiente.
- Vamos descobrir: É uma palavra curta, e parece vir tão facilmente aos seus lábios.
- Tyrion fez um gesto impaciente com a besta. - Tysha. O que fez com ela, depois de minha liçãozinha?
- Não me lembro.
- Tente com mais força. Mandou matá-la:
O pai franziu os lábios.
- Não havia motivo para isso, ela já tinha aprendido qual era o lugar dela... e foi bem paga pelo trabalho do dia, se bem me lembro. Suponho que o intendente a tenha mandado embora. Nunca pensei em perguntar.
- Mandado embora para ondei
- Para onde quer que as putas vão.
O dedo de Tyrion apertou-se. A besta soltou um uang exatamente no momento em que Lorde Tywin começava a se levantar. O dardo atingiu-o acima da virilha e ele voltou a se sentar com um gemido. O dardo penetrou profundamente, bem até as penas, Sangue jorrou ao redor da haste, pingando sobre os pelos púbicos e as coxas nuas de Lorde Tywin.
- Atirou em mim - disse ele, incrédulo, com os olhos vidrados, em choque.
- Sempre foi rápido em compreender as situações, senhor - disse Tyrion. - Deve ser por isso que é Mão do Rei.
- Você... não é... não é meu filho.
- É justamente aí que se engana, pai. Ora, eu creio que sou você em letra pequena. E agora faça-me a bondade de morrer depressa. Tenho um navio para alcançar.
Por uma vez, o pai fez o que Tyrion lhe pediu. A prova foi o súbito fedor, quando suas tripas se soltaram no momento da morte. Bem, estava no lugar certo para isso, pensou Tyrion. Mas o fedor que encheu a latrina forneceu ampla evidência de que a frequentemente repetida piada a respeito de seu pai era apenas mais uma mentira.
No fim das contas, Lorde Tywin Lannister não cagava ouro.
Orei estava zangado. Sam viu-o de imediato. Enquanto os irmãos negros entravam, um a um, e ajoelhavam na sua frente, Stannis afastou o café da manhã de pão duro, charque e ovos cozidos, e olhou-os friamente. A seu lado, a mulher vermelha, Melisandre, parecia achar a cena divertida.
Não tenho lugar aqui, pensou Sam com ansiedade, quando os olhos vermelhos dela caíram sobre si. Alguém tinha de ajudar Meistre Aemon a subir os degraus. Não olhe para mim, sou só o intendente do meistre. Os outros eram candidatos ao posto do Velho Urso, todos menos Bowen Marsh, que se retirara da eleição, mas continuava a ser castelão e Senhor Intendente. Sam não compreendia por que Melisandre havia de parecer tão interessada nele.
O Rei Stannis manteve os irmãos negros de joelhos durante um tempo extraordinariamente longo.
- Levantem-se - disse por fim. Sam ofereceu o ombro ao Meistre Aemon para ajudá-lo a ficar em pé novamente.
O som de Lorde Janos Slynt limpando a garganta quebrou o tenso silêncio.
- Vossa Graça, permita-me que exprima o nosso agrado por sermos aqui convocados. Quando vislumbrei seus estandartes a partir da Muralha, soube que o reino estava salvo. "Aí vem um homem que nunca esquece o seu dever”, disse eu ao bom Sor Alliser. “Um homem forte, e um verdadeiro rei.” Posso felicitá-lo por sua vitória sobre os selvagens? Os cantores farão grandes coisas dela, eu sei...
- Os cantores podem fazer o que bem entenderem - interrompeu Stannis. - Poupe-me de sua bajulação, Janos, que não lhe servirá de nada. - Ficou em pé e mostrou a todos o cenho carregado. - A Senhora Melisandre disse-me que ainda não escolheram um Senhor Comandante. Estou descontente. Quando tempo mais esta loucura vai durar?
- Senhor - disse Bowen Marsh em tom defensivo -, ninguém conquistou ainda dois terços dos votos. Só se passaram dez dias.
- Nove dias a mais. Tenho cativos cujo destino deve ser decidido, um reino que precisa ser posto em ordem, uma guerra a travar. Escolhas têm de ser feitas, decisões que envolverão a Muralha e a Patrulha da Noite. Por direito, o seu Senhor Comandante deveria ter algo a dizer nessas decisões.
- Deveria, sim - falou Janos Slynt. - Mas há que dizê-lo. Nós, os irmãos, somos simples soldados. Soldados, sim! E Vossa Graça saberá que os soldados se sentem mais confortáveis obedecendo a ordens. Eles se beneficiariam de sua real orientação, parece -me. Para o bem do reino. Para ajudá-los a escolher sabiamente.
A sugestão indignou alguns dos outros.
- Também quer que o rei limpe nosso cu? - disse irritadamente Cotter Pyke.
- A escolha de um Senhor Comandante cabe aos Irmãos Juramentados, e apenas a eles - insistiu Sor Denys Mallister.
- Se escolherem sabiamente, não me escolherão - gemeu Edd Doloroso.
Meistre Aemon, calmo como sempre, disse:
- Sua Graça, a Patrulha da Noite escolhe seu próprio líder desde que Brandon, o Construtor, ergueu a Muralha. Até Jeor Mormont tivemos novecentos e noventa e sete Senhores Comandantes em sucessão ininterrupta, todos eles escolhidos pelos homens de quem seriam líderes, uma antiga tradição de muitos milhares de anos.
Stannis rangeu os dentes.
- Não é meu desejo imiscuir-me em seus direitos e tradições. E quanto à real orientação, Janos, se a sua ideia é que eu devia dizer aos seus irmãos que devem escolhê-lo, tenha a coragem de afirmá-lo.
Aquilo surpreendeu Lorde Janos. Sorriu com incerteza e começou a transpirar, mas Bowen Marsh, ao seu lado, disse:
- Quem será mais adequado para comandar os homens de manto negro do que um homem que um dia comandou os de manto dourado, senhor?
- Qualquer um de vocês, creio eu. Até o cozinheiro. - O olhar que o rei lançou a Slynt era frio. - Janos dificilmente terá sido o primeiro homem de manto dourado a aceitar um suborno, admito, mas pode ter sido o primeiro comandante a engordar a bolsa através da venda de posições e promoções. Nos últimos tempos, deve ter tido metade dos oficiais na Patrulha da Cidade pagando-lhe parte de seus salários. Não é verdade, Janos?
O pescoço de Slynt estava se tornando roxo.
- Mentiras, tudo mentiras! Um homem forte faz inimigos, Vossa Graça sabe disso, eles murmuram mentiras atrás de suas costas. Nunca nada foi provado, nem um homem testemunhou...
- Dois homens que estavam preparados para testemunhar morreram subitamente durante suas rondas. - Stannis estreitou os olhos. - Não brinque comigo, senhor. Eu vi as provas que Jon Arryn apresentou ao pequeno conselho. Se o rei tivesse sido eu, você teria perdido mais do que o seu cargo, garanto-lhe, mas Robert encolheu os ombros aos seus pequenos lapsos. “Todos eles roubam”, lembro-me de ouvi-lo dizer. - É preferível um ladrão que conhecemos do que um que desconhecemos, o homem seguinte pode ser pior.” Palavras de Lorde Petyr na boca de meu irmão, aposto. Mindinho tinha faro para o ouro, e estou certo de que arranjou as coisas de forma que a coroa lucrasse tanto com a sua corrupção quanto você.
A papada de Lorde Slynt tremia, mas antes de ele ter tempo de preparar mais protestos, Meistre Aemon disse:
- Vossa Graça, segundo a lei, os crimes e as transgressões anteriores são limpos quando um homem profere suas palavras e se torna um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite.
- Estou consciente disso. Se por acaso Lorde Janos aqui for o melhor que a Patrulha da Noite tem a oferecer, rangerei os dentes e engolirei esse fato. Não me importa nada quem de seus homens será escolhido, desde que façam uma escolha. Temos uma guerra a travar.
- Vossa Graça - disse Sor Denys Mallister, num tom de cuidadosa cortesia. - Se está falando dos selvagens...
- Não estou. E você sabe disso, sor.
- E o senhor deve saber que, embora nos sintamos gratos pela ajuda que nos deu contra Mance Rayder, não lhe podemos fornecer auxílio em sua disputa pelo trono. A Patrulha da Noite não participa nas guerras dos Sete Reinos. Ao longo de oito mil anos...
- Eu conheço a sua história, Sor Denys - disse bruscamente o rei. - Dou-lhe a minha palavra, não lhes pedirei para erguer a espada contra nenhum dos rebeldes e usurpadores que me atormentam. Mas espero que continuem defendendo a Muralha como sempre fizeram.
- Defenderemos a Muralha até o último homem - disse Cotter Pyke.
- Que provavelmente serei eu - disse Edd Doloroso em tom resignado.
Stannis cruzou os braços.
- Também precisarei de mais algumas coisas de vocês. Coisas que talvez não me deem com tanta prontidão. Quero seus castelos. E quero a Dádiva.
Aquelas palavras sem rodeios estouraram entre os irmãos negros como um frasco de fogovivo atirado num braseiro. Marsh, Mallister e Pyke, todos tentaram falar ao mesmo tempo. O Rei Stannis deixou-os falar. Quando terminaram, disse:
- Eu tenho três vezes mais homens do que vocês. Posso ocupar as terras, se quiser, mas preferiria fazer isso legalmente, com o seu consentimento.
- A Dádiva foi perpetuamente oferecida à Patrulha da Noite, Vossa Graça - insistiu Bowen Marsh.
- O que significa que não pode ser legalmente capturada, adquirida ou tomada de vocês. Mas o que foi oferecido uma vez pode voltar a ser oferecido.
- O que fará com a Dádiva? - quis saber Cotter Pyke.
- Darei melhor uso a ela do que vocês deram. Quanto aos castelos, Atalaialeste, Castelo Negro e Torre Sombria continuarão sendo seus. Guarneçam-nos como sempre fizeram, mas tenho de ficar com os outros para as minhas guarnições, se quisermos defender a Muralha.
- Você não tem homens suficientes - retrucou Bowen Marsh.
- Alguns dos castelos abandonados são pouco mais do que ruínas - disse Othell Yarwyck, o Primeiro Construtor.
- Ruínas podem ser reconstruídas.
- Reconstruídas? - disse Yarwyck. - Mas quem fará o trabalho?
- Isso é problema meu. Necessitarei que me forneçam uma lista, detalhando o estado atual de cada castelo e o que será necessário para restaurá-lo. Pretendo tê-los todos guarnecidos de novo dentro de um ano, com fogueiras noturnas ardendo perante seus portões.
- Fogueiras noturnas? - Bowen Marsh dirigiu a Melisandre um olhar hesitante. - Agora devemos acender fogueiras noturnas?
- Sim. - A mulher levantou-se num turbilhão de seda escarlate, com os longos cabelos acobreados caindo em volta de seus ombros. - As espadas, sozinhas, não podem deter esta escuridão. Só a luz do Senhor consegue fazer isso. Não se iludam, bons sores e valentes irmãos, a guerra que viemos travar não é uma querela mesquinha a propósito de terras e honrarias. A nossa é uma guerra pela própria vida, e se falharmos o mundo morre conosco.
Sam viu que os oficiais não sabiam como entender aquilo. Bowen Marsh e Othell Yarwyck trocaram um olhar de dúvida, Janos Slynt estava furioso e Hobb Três-Dedos tinha a expressão de quem preferia estar cortando cenouras naquele momento. Mas todos pareceram surpreendidos ao ouvir Meistre Aemon murmurar:
- A guerra de que fala é a guerra pela alvorada, senhora. Mas onde está o príncipe que foi profetizado.
- Ele está na sua frente - declarou Melisandre -, embora não tenha olhos para ver. Stannis Baratheon é Azor Ahai regressado, o guerreiro do fogo. Nele, as profecias cumprem-se. O cometa vermelho ardeu no céu para anunciar a sua vinda, e ele traz a Luminífera, a espada vermelha dos heróis.
Sam viu que as palavras dela pareceram deixar o rei desesperadamente desconfortável. Stannis rangeu os dentes e disse:
- Chamaram, e eu vim, senhores. Agora têm de sobreviver comigo, ou morrer comigo. É melhor que se habituem a isso. - Fez um gesto brusco. - É tudo. Meistre, fique por um momento. E você também, Tarly. Os outros podem ir.
Eu?, pensou Sam, aflito, enquanto os irmãos faziam reverências e se dirigiam para a porta. - O que ele quer comigo?
- É aquele que matou a criatura na neve - disse o Rei Stannis, depois de só restarem os quatro na sala.
- Sam, o Matador. - Melisandre sorriu.
Sam sentiu o rosto enrubescer.
- Não, senhora. Vossa Graça. Quer dizer, sou, sim. Sou Samwell Tarly, sim.
- Seu pai é um soldado capaz - disse o Rei Stannis. - Derrotou uma vez o meu irmão, em Vaufreixo. Mance Tyrell reclamou alegremente as honras dessa vitória, mas Lorde Randyll tinha resolvido o assunto antes de Tyrell sequer encontrar o campo de batalha. Ele matou Lorde CafFeren com aquela sua grande espada valiriana e mandou a cabeça dele a Aerys. - O rei esfregou o queixo com um dedo. - Você não é o tipo de filho que eu esperaria que um homem assim tivesse.
- Eu... eu não sou o tipo de filho que ele desejava, senhor.
- Se não tivesse vestido o negro, daria um refém útil - devaneou Stannis.
- Ele vestiu o negro, senhor - apontou Meistre Aemon.
- Estou bem consciente desse fato - disse o rei. - Estou consciente de mais do que pensa, Aemon Targaryen.
O velho inclinou a cabeça.
- Sou apenas Aemon, senhor. Abandonamos o nome de nossas Casas quando forjamos as correntes de meistre.
O rei respondeu àquilo com um aceno seco, como quem diz que sabia e não se importava.
- Matou aquela criatura com um punhal de obsidiana, segundo me dizem - disse ele a Sam.
- S-sim, Vossa Graça. Foi Jon Snow quem me deu.
- Vidro de dragão. - O riso da mulher vermelha era música. - Fogo congelado, na língua da antiga Valíria. Pouco admira que seja anátema para aqueles frios filhos do Outro.
- Em Pedra do Dragão, onde tinha a minha sede, vê-se muita desta obsidiana nos velhos túneis por baixo da montanha - disse o rei a Sam. - Grandes pedaços, pedregulhos, veios. A maior parte é negra, se bem me lembro, mas havia também alguma verde, alguma vermelha, até púrpura. Mandei dizer a Sor Rolland, o meu castelão, para começar a miná-la. Não controlarei Pedra do Dragão durante muito mais tempo, receio, mas o Senhor da Luz talvez nos permita obter fogo congelado suficiente para nos armarmos contra essas criaturas, antes que o castelo caía.
Sam pigarreou.
- S-senhor. O punhal... o vidro de dragão apenas estilhaçou-se quando tentei apunhalar uma criatura.
Melisandre sorriu.
- E a necromancia que anima essas criaturas, mas elas não deixam de ser apenas carne morta. O aço e o fogo servirão para elas. Aqueles que chamam de Outros são algo mais.
- Demônios feitos de neve, gelo e frio - disse Stannis Baratheon. - O antigo inimigo. O único inimigo que importa. - Voltou a fitar Sam. - Disseram-me que você e aquela garota selvagem passaram por baixo da Muralha, através de um portão mágico qualquer.
- O P-Portão Negro - gaguejou Sam. - Por baixo de Fortenoite.
- Fortenoite é o maior e mais antigo dos castelos na Muralha - disse o rei. - É lá que pretendo me instalar, enquanto travo esta guerra. Você irá me mostrar esse portão.
- Eu - disse Sam -, eu m-mostro, se... - Se ainda estiver lá. Se se abrir para um homem que não veste negro. Se...
- Mostrará - exclamou Stannis. - Eu direi quando.
Meistre Aemon sorriu.
- Vossa Graça - disse -, antes de irmos, pergunto a mim mesmo se poderia nos fazer a grande honra de mostrar essa maravilhosa lâmina de que tanto ouvimos falar.
- Você quer ver a Luminífera? Um cego?
- Sam será os meus olhos.
O rei franziu a testa.
- Todo mundo já viu a coisa, por que não um cego? - seu cinto da espada e a bainha estavam pendurados em um gancho perto da lareira. Pegou o cinto e desembainhou a espada. Aço roçou em madeira e couro, e uma radiância encheu o aposento privado; cintilando, ondulando, uma dança de luz dourada, alaranjada e vermelha, todas as cores brilhantes do fogo.
- Conte-me, Samwell. - Meistre Aemon tocou-lhe o braço.
- Ela brilha - disse Sam, em voz abafada. - Como se estivesse em fogo. Não há chamas, mas o aço é amarelo, vermelho e laranja, lampejando e tremeluzindo como o sol na água, só que mais bonito. Gostaria que pudesse vê-la, meistre.
- Agora estou vendo, Sam. Uma espada cheia da luz do sol. Uma beleza de se admirar. - O velho fez uma hirta reverência. - Vossa Graça. Minha senhora. Foi muita amabilidade sua.
Quando o Rei Stannis embainhou a espada cintilante, a sala pareceu ficar muito escura, apesar da luz do sol que entrava pela janela.
- Muito bem, já a viram. Podem voltar aos seus deveres. E lembrem-se do que eu disse. Seus irmãos escolherão um Senhor Comandante esta noite, caso contrário eu farei desejarem que tivessem escolhido.
Meistre Aemon manteve-se perdido em pensamentos enquanto Sam o ajudava a descer a estreita escada em espiral. Mas quando atravessavam o pátio, disse:
- Não senti nenhum calor. Você sentiu, Sam?
- Calor? Vindo da espada? - tentou lembrar-se. - O ar em volta dela estremecia, como faz por cima de um braseiro quente.
- Mas não sentiu nenhum calor, não é? E a bainha em que a espada estava guardada, é de madeira e couro, não é? Ouvi o som quando Sua Graça puxou a espada. O couro estava chamuscado, Sam? A madeira parecia queimada ou enegrecida?
- Não - admitiu Sam. - Que eu visse, não.
Meistre Aemon assentiu. De volta aos seus aposentos, pediu a Sam para acender a lareira e ajudá-lo a se sentar na cadeira junto a ela.
- É difícil ser tão velho - suspirou enquanto se instalava na almofada. - E ainda mais difícil ser tão cego. Sinto falta do sol. E dos livros. Acima de tudo sinto falta dos livros. - Aemon fez um gesto com uma mão. - Não precisarei mais de você até a votação.
- A votação... Meistre, não há algo que possa fazer? O que o rei disse sobre Lorde Janos...
- Eu lembro-me - disse Meistre Aemon -, mas, Sam, eu sou um meistre, acorrentado e juramentado. Meu dever é aconselhar o Senhor Comandante, seja ele quem for. Não seria adequado que eu fosse visto favorecendo um candidato em detrimento de outro.
- Eu não sou um meistre - disse Sam. - Poderia eu fazer alguma coisa?
Aemon virou seus alvos olhos cegos para o rosto de Sam e sorriu suavemente.
- Ora, não sei, Samwell. Poderia?
Poderia, pensou Sam. Tenho de fazer. E tinha de fazer imediatamente. Se hesitasse, perderia a coragem com certeza. Sou um homem da Patrulha da Noite, lembrou a si mesmo enquanto cruzava o pátio, apressado. Sou sim. Posso fazer isso. Tinha havido uma época em que estremeceria e guincharia se Lorde Mormont apenas o olhasse, mas esse era o velho Sam, de antes do Punho dos Primeiros Homens e da Fortaleza de Craster, de antes das criaturas e do Mãos-Frias e do Outro montado em seu cavalo morto. Ele agora era mais corajoso. Goiva tornou-me mais corajoso, tinha dito a Jon. Era verdade. Tinha de ser verdade.
Cotter Pyke era o mais assustador dos dois comandantes, por isso Sam foi primeiro falar com ele, enquanto a coragem ainda estava quente. Foi encontrá-lo no antigo Salão dos Escudos, jogando dados com três de seus homens de Atalaialeste e um sargento ruivo que viera de Pedra do Dragão com Stannis.
Mas quando Sam pediu licença para falar com ele, Pyke ladrou uma ordem, e os outros pegaram o dado e as moedas e deixaram-nos a sós.
Ninguém chamaria algum dia Cotter Pyke de bem-apessoado, embora o corpo que se encontrava sob a sua brigantina tachonada e os calções de tecido grosseiro fosse esguio, duro e forte. Os olhos eram pequenos e juntos, tinha o nariz quebrado, e os cabelos recuados nas têmporas formavam um bico tão pronunciado quanto a ponta de uma lança. As bexigas tinham devastado violentamente seu rosto, e a barba que deixou crescer para esconder as cicatrizes era fina e irregular.
- Sam, o Matador! - disse ele, em jeito de saudação. - Tem certeza de que apunhalou um Outro, e não um cavaleiro de neve de alguma criança?
Isso não está começando bem.
- Foi o vidro de dragão que o matou, senhor - explicou debilmente Sam.
- Sim, sem dúvida. Bem, desembucha, Matador. Foi o meistre que o mandou vir até mim?
- O meistre? - Sam engoliu em seco. - Eu... eu estive agora com ele, senhor. - Aquilo não era realmente uma mentira, mas se Pyke quisesse ler a informação da maneira errada, podia deixá-lo mais inclinado a escutar. Sam respirou fundo e lançou-se em seu apelo.
Pyke interrompeu-o antes de dizer vinte palavras.
- Quer que me ajoelhe e beije a bainha do lindo manto do Mallister, é isso? Devia ter imaginado. Vocês, os fidalgos, formam rebanhos como se fossem ovelhas. Bem, diga a Aemon que desperdiçou sua saliva e o meu tempo. Se alguém devesse se retirar, devia ser o Mallister. O homem é velho demais para o raio do cargo, e talvez devesse lhe dizer isso. Nós escolhemos o homem, e de repente estamos aqui de volta dentro de um ano, escolhendo outro qualquer.
- Ele é velho - concordou Sam -, mas tem muita experiência.
- De se sentar em sua torre e remexer em mapas, talvez. O que ele planeja fazer? Escrever cartas às criaturas? Ele é um cavaleiro, muito bem, mas não é um lutador, e eu estou cagando e andando para quem ele derrubou do cavalo num torneio de idiotas qualquer há cinquenta anos. O Meia-Mão travou todas as batalhas dele, até um velho cego devia ser capaz de ver isso. E, mais do que nunca, nós precisamos de um lutador, com este maldito rei em cima de nós. Hoje são ruínas e campos vazios, muito bem, mas o que irá Sua Graça querer amanhã? Acha que o Mallister tem estômago para enfrentar Stannis Baratheon e aquela cadela vermelha? - Soltou uma gargalhada. - Eu não.
- Então não irá apoiá-lo? - disse Sam, desalentado.
- E o Sam, o Matador, ou o Dick Surdo? Não, não irei apoiá-lo. - Pyke sacudiu um dedo em frente de seu rosto. - Veja se entende isto, rapaz. Eu não quero a porcaria do cargo, e nunca quis. Luto melhor com um convés debaixo de mim, não com um cavalo, e Castelo Negro fica longe demais do mar. Mas prefiro ser enrabado por uma espada em brasa a entregar a Patrulha da Noite àquela águia peralta da Torre Sombria. E você pode correr de volta para junto do velho e contar-lhe o que eu disse se ele perguntar. - Ficou em pé. - Desapareça da minha vista.
Sam precisou de toda a coragem que lhe restava para dizer:
- E... e se houvesse outra pessoa? Poderia a-apoiar outra pessoa?
- Quem? Bowen Marsh? O homem conta colheres. Othell é um seguidor, faz o que lhe dizem, e faz bem, mas não passa disso. Slynt... bem, seus homens gostam dele, admito, e quase valeria a pena enfiá-lo no real papo e ver se Stannis se engasgava, mas não. Há demasiado de Porto Real nesse aí. Um sapo ganha asas e pensa que é a merda de um dragão. - Pyke soltou uma gargalhada. - Sobra quem? Hobb? Podíamos escolhê-lo, suponho, mas depois quem é que iria assar o seu carneiro, Matador? Você parece ser um homem que gosta do seu carneiro.
Nada mais havia a dizer. Derrotado, Sam só pôde gaguejar seus agradecimentos e retirar-se. Terei mais sucesso com Sor Denys, tentou dizer a si mesmo enquanto atravessava o castelo. Sor Denys era um cavaleiro, bem-nascido e educado, e tinha tratado Sam com toda a cortesia quando o encontrou com Goiva na estrada. Sor Denys vai me escutar, tem de escutar.
O comandante da Torre Sombria tinha nascido à sombra da Torre Ressonante de Guardamar, e cada centímetro de seu corpo se parecia com um Mallister. Zibelina forrava seu colarinho e realçava as mangas de seu gibão de veludo negro. Uma águia prateada prendia as garras nas dobras de seu manto. A barba era branca como neve, o cabelo quase desaparecera, e o rosto exibia profundas rugas, era certo. Mas ele ainda possuía graça nos movimentos e dentes na boca, e os anos não tinham enevoado nem seus olhos azul-acinzentados nem sua cortesia.
- Senhor de Tarly - disse, quando seu intendente levou Sam até ele, na Lança, onde os homens da Torre Sombria estavam alojados. - Agrada-me ver que se recuperou de sua provação. Posso oferecer-lhe uma taça de vinho? A senhora sua mãe é uma Florent, se bem me lembro. Um dia tenho de lhe contar como derrubei ambos os seus avôs no mesmo torneio. Mas não hoje, sei que temos assuntos mais prementes a tratar. Vem da parte de Meistre Aemon, com certeza. Ele tem conselhos a me dar?
Sam bebeu um gole de vinho e escolheu as palavras com cuidado.
- Um meistre acorrentado e juramentado... não seria adequado que fosse visto influenciando a escolha do Senhor Comandante...
O velho cavaleiro sorriu.
- Motivo pelo qual não veio pessoalmente falar comigo. Sim, compreendo bastante bem, Samwell. Aemon e eu somos ambos velhos, e sábios em tais assuntos. Diga o que veio dizer.
O vinho era doce, e Sor Denys escutou o apelo de Sam com grave cortesia, ao contrário de Cotter Pyke. Mas quando terminou, o velho cavaleiro sacudiu a cabeça.
- Concordo que seria um dia negro na nossa história se um rei nomeasse o nosso Senhor Comandante. Este rei, especialmente. Não é provável que mantenha a coroa por muito tempo. Mas realmente, Samwell, devia ser Pyke a retirar-se. Tenho mais apoio do que ele, e sou mais adequado ao cargo.
- É verdade - concordou Sam mas Cotter Pyke poderia servir. Dizem que provou frequentemente o seu valor em batalha. - Não pretendia ofender Sor Denys elogiando o seu rival, mas de que outra forma poderia convencê-lo a se retirar?
- Muitos de nossos irmãos demonstraram o seu valor em batalha. Não basta. Há assuntos que não podem ser decididos com um machado de guerra. Meistre Aemon compreenderá esse fato, embora Cotter Pyke não compreenda. O Senhor Comandante da Patrulha da Noite é um senhor, acima de tudo. Tem de ser capaz de lidar com outros senhores... e também com reis. Tem de ser um homem merecedor de respeito. - Sor Denys inclinou-se para a frente. - Nós dois somos filhos de grandes senhores. Conhecemos a importância do nascimento, do sangue e desse treino inicial que nunca pode ser substituído. Eu fui escudeiro aos doze anos, cavaleiro aos dezoito, campeão aos vinte e dois. Sou comandante na Torre Sombria há trinta e três anos. O sangue, o nascimento e o treino tornaram-me apto a lidar com reis. O Pyke... bem, ouviu-o esta manhã, perguntando se Sua Graça lhe limparia o traseiro? Samwell, não é meu hábito falar mal de meus irmãos, mas sejamos francos... os homens de ferro são uma raça de piratas e ladrões, e Cotter Pyke já andava violando e assassinando quando mal tinha deixado de ser um rapaz. Meistre Harmune lê e escreve as cartas dele, e tem feito isso há anos. Não, por mais relutância que sinta em desapontar o Meistre Aemon, não poderia de forma honrosa afastar-me pelo Pyke de Atalaialeste.
Daquela vez, Sam estava preparado.
- E poderia fazê-lo por outra pessoa? Se houvesse alguém mais adequado?
Sor Denys refletiu por um momento.
- Nunca desejei a honra em si mesma. Na última eleição, afastei-me, grato, quando o nome de Lorde Mormont foi sugerido, tal como tinha feito por Lorde Qorgyle na eleição anterior. Desde que a Patrulha da Noite permaneça em boas mãos, estou satisfeito. Mas Bowen Marsh não está à altura da tarefa e Othell Yarwyck também não. E este dito Senhor de Harrenhal é uma cria de carniceiro promovida pelos Lannister. Não me admira que seja venal e corrupto.
- Há outro homem - Sam deixou escapar. - O Senhor Comandante Mormont confiou nele. E Donal Noye e Qhorin Meia-Mão também. Embora o nascimento dele não seja tão nobre quanto o seu, provém de sangue antigo. Nasceu e foi educado num castelo, e aprendeu a manejar espada e lança com um cavaleiro e as letras com um meistre da Cidadela. O pai era um senhor, e o irmão, um rei.
Sor Denys afagou sua longa barba branca.
- Talvez - disse, após um longo momento. - É muito jovem, mas... talvez. Poderá servir, admito, embora eu fosse mais adequado. Não tenho qualquer dúvida. Eu seria a escolha mais sensata.
Jon disse que podia haver honra numa mentira, se fosse dita pelos motivos certos. Sam disse:
- Se não escolhermos um Senhor Comandante esta noite, o Rei Stannis pretende nomear Cotter Pyke. Ele disse isso ao Meistre Aemon esta manhã, depois de todos vocês terem saído.
- Entendo. - Sor Denys ergueu-se. - Tenho de pensar sobre isso. Obrigado, Samwell. E dê os meus agradecimentos também ao Meistre Aemon.
Sam estava tremendo quando saiu da Lança. O que foi que eu fiz?, pensou. O que foi que eu disse? Se o pegassem mentindo ...fariam o quê? Iriam me enviar para a Muralha? Tirar minhas entranhas? Transformar-me numa criatura? De repente, tudo aquilo lhe pareceu absurdo. Como podia se sentir tão assustado com Cotter Pyke e Sor Denys Mallister, depois de ter visto um corvo comer o rosto de Paul Pequeno?
Pyke não se mostrou satisfeito com o seu retorno.
- Você outra vez? Seja rápido, você começa a me aborrecer.
- Só preciso de mais um momento - prometeu Sam. - Disse que não se retiraria por Sor Denys, mas poderia se retirar por outro homem.
- Quem é dessa vez, Matador? Você?
- Não. Um lutador. Donal Noye entregou-lhe a Muralha quando os selvagens chegaram e era escudeiro do Velho Urso. O único problema é que é bastardo.
Cotter Pyke soltou uma gargalhada.
- Oh, inferno. Isso ia enfiar uma lança no cu do Mallister, não ia? Pode valer a pena só por isso. O rapaz talvez não seja tão ruim, não é? - fungou. - Mas eu seria melhor. Eu sou o líder de quem precisamos, qualquer idiota consegue ver isso.
- Qualquer idiota - concordou Sam até eu. Mas... bem, eu não devia lhe contar, mas... o Rei Stannis pretende nos obrigar a aceitar Sor Denys, se não escolhermos um homem esta noite. Ouvi-o dizendo isso ao Meistre Aemon, depois do resto de vocês ter sido mandado embora.
Emmett de Ferro era um jovem patrulheiro alto e magricela cuja resistência, força e habilidade com a espada eram o orgulho de Atalaialeste. Jon saía sempre de suas sessões hirto e dolorido, e no dia seguinte acordava coberto de hematomas, o que era exatamente o que queria. Nunca conseguiria se aperfeiçoar defrontando gente como Cetim, Cavalo ou mesmo Grenn.
Jon gostava de pensar que na maior parte dos dias batia tanto quanto apanhava, mas não naquele. Quase não tinha dormido na noite anterior, e após passar uma hora virando-se na cama, num desassossego, desistiu até de tentar, vestiu-se e percorreu o topo da Muralha até o sol nascer, lutando com a oferta de Stannis Baratheon. A falta de sono estava agora se fazendo sentir, e Emmett malhava nele sem misericórdia pátio afora, mantendo-o sobre os calcanhares com um longo golpe em arco após outro, e batendo nele de tempos em tempos com o escudo, para variar. O braço de Jon ficou dormente com os impactos, e a espada de treino sem gume parecia tornar-se mais pesada a cada momento.
Estava prestes a baixar a lâmina e pedir para pararem quando Emmett fez uma finta baixa e arremeteu por cima de seu escudo com um violento golpe direto que atingiu Jon num lado da cabeça. Cambaleou, com o elmo e a cabeça ressoando com a força do ataque. Durante meio segundo o mundo para lá de sua viseira foi uma mancha indistinta.
E então os anos desapareceram, e ele estava uma vez mais de volta a Winterfell, usando um casaco de couro almofadado em vez de cota de malha e placa de aço. Sua espada era feita de madeira, e era Robb quem o defrontava, e não Emmett de Ferro.
Tinham treinado juntos todas as manhãs, desde que tiveram idade suficiente para andar; Snow e Stark, rodopiando e golpeando-se pelos pátios de Winterfell, gritando e rindo, e às vezes chorando quando ninguém estava vendo. Quando lutavam não eram garotinhos, e sim cavaleiros e poderosos heróis. “Eu sou o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão”, gritava Jon, e Robb gritava em resposta: “Bem, eu sou Florian, o Bobo”. Ou então Robb dizia: “Eu sou o Jovem Dragão”, ejon respondia: "Eu sou Sor Ryam Redwyne”.
Naquela manhã tinha sido ele quem gritou primeiro.
- Eu sou o Senhor de Winterfell - gritou, como gritara cem vezes antes. Mas daquela vez, daquela vez, Robb respondeu:
- Você não pode ser Senhor de Winterfell, é um bastardo. A senhora minha mãe diz que nunca poderá ser Senhor de Winterfell.
Achava que tinha esquecido isso. Jon sentia sangue na boca, do golpe que sofrera.
No fim, Halder e Cavalo tiveram de afastá-lo de Emmett de Ferro, cada um dos homens segurando um de seus braços. O patrulheiro estava sentado no chão, atordoado, com o escudo meio feito em lascas, a viseira do elmo torta, e a espada a seis metros de distância.
- Jon, basta - Halder estava gritando -, ele caiu, você desarmou-o. Basta!
Não. Não basta. Nunca basta. Jon largou a espada.
- Desculpe - murmurou. - Emmett, está ferido?
Emmett de Ferro tirou seu elmo amassado.
- Houve alguma parte de rendo-me que não conseguiu entender, Lorde Snow? - Mas aquilo foi dito de forma amigável. Emmett era um homem amigável e adorava a canção das espadas. - Que o Guerreiro me proteja - gemeu -, agora sei o que Qhorin Meia-Mão deve ter sentido.
Aquilo foi demais. Jon libertou-se dos amigos e se retirou para o arsenal, sozinho. Ainda tinha os ouvidos ressoando do golpe que Emmett lhe dera. Sentou-se no banco e afundou a cabeça nas mãos. Por que estou tão zangado?, perguntou a si mesmo, mas era uma pergunta estúpida. Senhor de Winterfell. Poderia ser Senhor de Winterfell. Herdeiro de meu pai.
Mas não foi o rosto de Lorde Eddard que viu flutuando na sua frente; foi o da Senhora Catelyn. Com os seus profundos olhos azuis e a boca dura e fria, parecia-se um pouco com Stannis. Ferro, pensou, mas quebradiço. Ela o olhava daquela maneira como costumava olhá-lo em Winterfell, sempre que ele se sobrepunha a Robb nas espadas, nas somas, ou em qualquer outra coisa. Quem é você?, sempre lhe parecia que aquele olhar dizia. Este não é o seu lugar. Por que está aqui?
Os amigos ainda estavam no pátio de treinos, mas Jon não se encontrava em estado de encará-los. Saiu do arsenal pelos fundos, descendo uma íngreme escada de pedra até os caminhos de minhoca, os túneis subterrâneos que ligavam as fortalezas e as torres do castelo. Foi uma caminhada curta até a casa de banhos, onde deu um mergulho frio para lavar o suor do corpo e depois se enfiou numa quente banheira de pedra. O calor levou um pouco da dor dos músculos e fez Jon pensar nas lagoas lamacentas de Winterfell, que fumegavam e borbulhavam no bosque sagrado. Winterfell, pensou. Theon deixou-o queimado e quebrado, mas eu poderia restaurá-lo. Certamente o pai teria desejado isso, e Robb também. Nunca teriam desejado que o castelo fosse abandonado à ruína.
“Você não pode ser Senhor de Winterfell, é um bastardo”, ouviu de novo Robb dizer. E os reis de pedra rosnavam para ele com línguas de granito. "Não pertence a Winterfell. Este não é o seu lugar.” Quando Jon fechou os olhos, viu a árvore-coração, com seus ramos claros, folhas vermelhas e rosto solene. Lorde Eddard sempre dizia que o represeiro era o coração de Winterfell... mas para salvar o castelo, Jon teria de arrancar esse coração até suas antigas raízes e entregá-lo ao faminto deus de fogo da mulher vermelha. Não tenho o direito, pensou. Winterfell pertence aos deuses antigos.
O som de vozes ecoando no teto abobadado trouxe-o de volta a Castelo Negro.
- Não sei - um homem estava dizendo, numa voz pesada de dúvidas. - Talvez se conhecesse melhor o homem... Lorde Stannis não tinha nada de muito bom a dizer dele, digo-lhe isso.
- Quando Stannis Baratheon teve muitas coisas boas a dizer de alguém? – A voz pétrea de Sor Alliser era inconfundível. - Se permitirmos que Stannis escolha nosso Senhor Comandante, transformamo-nos em seus vassalos em tudo menos no nome. Não é provável que Tywin Lannister se esqueça disso, e você sabe que será Lorde Tywin quem vai ganhar no fim. Já derrotou Stannis uma vez, na Água Negra.
- Lorde Tywin é favorável a Slynt - disse Bowen Marsh, numa voz inquieta e ansiosa.
- Posso lhe mostrar a carta dele, Othell. Chamou Slynt de “o nosso fiel amigo e servidor”.
Jon Snow ergueu-se de repente, e os três homens imobilizaram-se ao ouvir o som da água escorrendo.
- Senhores - disse, com fria cortesia.
- O que está fazendo aqui, bastardo? - perguntou Thorne.
- Tomando banho. Mas não deixem que eu estrague as suas maquinações. - Jon saiu de dentro da banheira, secou-se, vestiu-se e deixou-os conspirando. Lá fora, descobriu que não fazia nenhuma ideia de onde ir. Passou pelo esqueleto da Torre do Senhor Comandante, onde um dia tinha salvado o Velho Urso de um morto; passou pelo local onde Ygritte morreu com aquele sorriso triste no rosto; passou pela Torre do Rei, onde ele, Cetim e Dick Surdo Follard tinham esperado pelo Magnar e os seus Thenns; passou pelos restos empilhados e carbonizados da grande escada de madeira. O portão interior estava aberto, então Jon penetrou no túnel e começou a atravessar a Muralha. Sentia o frio à sua volta, o peso de todo o gelo por cima de sua cabeça. Passou pelo local onde Donal Noye e Mag, o Poderoso, tinham lutado e morrido juntos, atravessou o novo portão exterior, e saiu para a luz pálida e fria do sol.
Só então se permitiu parar, respirar, pensar. Othell Yarwyck não era um homem de fortes convicções, exceto naquilo que dizia respeito a madeira, pedra e argamassa. O Velho Urso sabia disso. Thorne e Marsh irão fazê-lo mudar de opinião, Yarwyck irá apoiar Lorde Janos, e Lorde Janos será escolhido Senhor Comandante. E isso deixa-me o quê, além de Winterfell?
Um vento rodopiava contra a Muralha, puxando seu manto. Sentia o frio que vinha do gelo tal como o calor vem de uma fogueira. Jon puxou o capuz para cima e recomeçou a andar. A tarde encaminhava-se para o fim, e o sol estava baixo a oeste. Cem metros à frente ficava o acampamento onde o Rei Stannis confinou seus cativos selvagens dentro de um anel de valas, estacas afiadas, e altas cercas de madeira. Para a esquerda havia três grandes fossos para fogueiras, onde os vencedores tinham queimado os corpos de todos os membros do povo livre que tinham morrido à sombra da Muralha, fossem enormes gigantes cobertos de pelo, fossem pequenos homens de Cornopé. O terreno de matança ainda era uma desolação de mato chamuscado e piche endurecido, mas o povo de Mance deixou sinais de sua passagem por todo lado: uma pele rasgada que podia ter feito parte de uma tenda, um malho de gigante, a roda de uma biga, uma lança quebrada, uma pilha de estrume de mamute. No limite da floresta assombrada, onde as tendas tinham se erguido, Jon encontrou um toco de carvalho e sentou-se.
Ygritte queria que eu fosse um selvagem, Stannis quer que eu seja o Senhor de Winterfell. Mas o que eu quero? O sol engatinhou pelo céu e foi mergulhar atrás da Muralha, no local onde esta descrevia uma curva através dos montes a ocidente. Jon ficou observando, enquanto essa altíssima extensão de gelo adotava os tons vermelhos e rosados do poente. Preferiria ser enforcado como vira-casaca por Lorde Janos ou abjurar os meus votos, casar com Vai e tornar-me Senhor de Winterfell? Parecia uma escolha fácil quando pensava nela nesses termos... se bem que, se Ygritte ainda fosse viva, pudesse ter sido ainda mais fácil. Vai era uma estranha para ele. Não era de doer os olhos, com certeza, e tinha sido irmã da rainha de Mance Rayder, mesmo assim...
Teria de raptá-la se quisesse o seu amor, mas ela poderia me dar filhos. Eu poderia um dia segurar nos braços um filho de meu próprio sangue. Um filho era algo com que Jon Snow nunca se atrevera a sonhar, desde que decidira viver a sua vida na Muralha. Podia chamá-lo de Robb. Vai gostaria de ficar com o filho da irmã, mas poderíamos criá-lo em Winterfell, e o filho da Goiva também. Sam nunca teria de contar a sua mentira. E também encontraríamos lugar para Goiva, e Sam poderia ir visitá-la uma vez por ano, ou algo assim. O filho de Mance eo de Craster cresceriam como irmãos, como aconteceu comigo e Robb.
Jon compreendeu então que desejava aquilo. Desejava-o tanto como jamais tinha desejado alguma coisa. Sempre o desejei, pensou, sentindo-se culpado. Que os deuses me perdoem. Era uma fome que trazia dentro de si, afiada como uma lâmina de vidro de dragão. Uma fome... conseguia senti-la. Era de comida que necessitava, de presas, de um veado vermelho que fedesse a medo ou de um grande alce, orgulhoso e desafiador. Desejava matar e encher a barriga de carne fresca e sangue quente e escuro. Sua boca começou a se encher de saliva ao pensar nisso.
Passou-se um longo momento até compreender o que estava acontecendo. Quando isso aconteceu, pôs-se em pé de um salto.
- Fantasma? - virou-se para a floresta, e ali estava ele, saltando em silêncio do interior do ocaso verde, com a respiração saindo quente e branca de suas mandíbulas abertas. - Fantasma! - gritou, e o lobo gigante desatou a correr. Estava mais esguio do que antes, mas também estava maior, e o único som que fazia era o suave estalar de folhas mortas sob as patas. Quando se aproximou de Jon, saltou, e ambos lutaram entre a grama amarronzada e as longas sombras, enquanto as estrelas surgiam por cima deles. - Deuses, lobo, onde esteve? - disse Jon quando o Fantasma parou de lhe mordiscar o braço. - Achava que tinha morrido, como Robb e Ygritte e todos os outros. Não consegui senti-lo desde que escalei a Muralha, nem mesmo em sonhos. - O lobo gigante não tinha resposta a dar, mas lambeu o rosto de Jon com uma língua que era como lixa úmida, e seus olhos capturaram a última luz e brilharam como dois grandes sóis vermelhos.
Olhos vermelhos, percebeu Jon, mas não como os de Melisandre. O lobo tinha olhos de represeiro. Olhos vermelhos, boca vermelha, pelo branco. Sangue e osso, como uma árvore-coração. Este pertence aos deuses antigos. E só ele, entre todos os lobos gigantes, era branco. Tinham encontrado seis filhotes nas neves do fim do verão, ele e Robb; cinco que eram cinzentos, negros e castanhos, para os cinco Stark, e um branco, tão branco como a neve. Snow.
Então obteve a sua resposta.
Sob a Muralha, os homens da rainha estavam acendendo a sua fogueira noturna. Viu Melisandre emergir do túnel com o rei a seu lado, para liderar as preces que acreditava que manteriam a escuridão afastada.
- Vem, Fantasma - disse Jon ao lobo. - Comigo. Você tem fome, eu sei. Consegui sentir. - Correram juntos para o portão, dando uma volta larga em torno da fogueira noturna, na qual altas chamas enfiavam as garras na barriga negra da noite.
Os homens do rei encontravam-se em grande evidência nos pátios de Castelo Negro. Paravam quando Jon passava por eles, e ficavam olhando de boca aberta. Compreendeu que nenhum deles jamais tinha visto um lobo gigante, e Fantasma era duas vezes maior do que os lobos comuns que patrulhavam as suas florestas do sul. Enquanto se dirigia ao arsenal, Jon olhou casualmente para cima e viu Vai em pé, na sua janela de torre. Lamento, pensou, não sou o homem que a raptará daí.
No pátio de treinos deparou com uma dúzia de homens do rei com archotes e longas lanças nas mãos. O sargento olhou para Fantasma e franziu a testa, e dois dos seus homens baixaram as lanças até que o cavaleiro que os liderava disse:
- Afastem-se e deixem-nos passar. - E, dirigindo-se a Jon, disse: - Está atrasado para o jantar.
- Então saia do meu caminho, sor - respondeu Jon, e foi o que o outro fez.
Ouviu o ruído antes mesmo de chegar ao pé das escadas; vozes alteradas, xingamentos, alguém esmurrando uma mesa. Jon entrou na adega praticamente sem ser notado. Os irmãos enchiam os bancos e as mesas, mas os que estavam em pé e aos gritos eram mais numerosos do que aqueles que se encontravam sentados, e ninguém comia. Não havia comida. O que está acontecendo aqui? Lorde Janos Slynt berrava qualquer coisa sobre vira-casacas e traições, Emmett de Ferro encontrava-se em pé sobre uma mesa com a espada desembainhada na mão, Hobb Três-Dedos amaldiçoava um patrulheiro da Torre Sombria... um homem qualquer de Atalaialeste bateu com o punho algumas vezes na mesa, exigindo silêncio, mas tudo que conseguiu foi somar esse ruído ao burburinho que ecoava sob o teto abobadado.
Pyp foi o primeiro a notar a presença de Jon. Sorriu ao ver Fantasma, levou dois dedos à boca e assobiou como só um filho de saltimbanco sabia assobiar. O som estridente cortou o clamor como uma espada. Enquanto Jon caminhava na direção das mesas, mais irmãos reparavam nele e ficavam quietos. Um silêncio espalhou-se pela adega, até que os únicos sons que se ouviram foram os calcanhares de Jon soltando estalidos do chão de pedra, e o suave crepitar da lenha na lareira.
Sor Alliser Thorne estilhaçou o silêncio.
- O vira-casacas finalmente agracia-nos com sua presença.
Lorde Janos estava ruborizado e tremendo.
- A fera - arquejou. - Olhem! A fera que arrancou a vida do Meia-Mão. Um warg caminha entre nós, irmãos. Um WARGl Esta... esta criatura não é digna de nos liderar! Este lobisomem não é digno de viver!
Fantasma mostrou as presas, mas Jon apoiou uma mão na cabeça dele.
- Senhor - disse -, quer me dizer o que está acontecendo aqui?
Meistre Aemon respondeu do outro lado da sala.
- Seu nome foi sugerido para Senhor Comandante, Jon.
Aquilo era tão absurdo que Jon teve de sorrir.
- Por quem? - disse, em busca dos amigos. Aquilo tinha de ser uma das brincadeiras de Pyp, com certeza. Mas Pyp encolheu os ombros, e Grenn balançou a cabeça. Foi Edd Doloroso Tollett quem se levantou.
- Por mim. Sim, fazer isso a um amigo é terrivelmente cruel, mas antes você do que eu.
Lorde Janos recomeçou a falar furiosamente.
- Isso, isso é um ultraje. Nós devíamos enforcar esse rapaz. Sim! Enforquem-no, enforquem-no por ser um vira-casacas e warg, juntamente com o amigo Mance Rayder. Senhor Comandante? Não aceitarei isso, não admitirei isso!
Cotter Pyke pôs-se em pé.
- Você não admite isso? Pode ser que tenha treinado aqueles homens de manto dourado para lamber a merda do seu cu, mas agora está usando um manto preto.
- Qualquer irmão pode pôr qualquer nome à nossa consideração, desde que o homem tenha proferido seus votos - disse Sor Dennis Mallister. - Tollett está inteiramente no seu direito, senhor.
Uma dúzia de homens começou a falar ao mesmo tempo, cada um tentando sobrepor sua voz à dos outros, e não tardou muito até que metade da sala estivesse de novo aos gritos. Daquela vez foi Sor Alliser Thorne quem saltou para cima da mesa e ergueu as mãos exigindo silêncio.
- Irmãos. - gritou - Não lucramos nada com isso. Sugiro que votemos. Este rei que ocupou a Torre do Rei colocou homens em todas as portas para se assegurar de que não comamos nem saiamos até que a escolha seja feita. Que seja! Votaremos, e votaremos de novo, a noite inteira se necessário, até termos o nosso comandante... mas antes de depositarmos os penhores, creio que nosso Primeiro Construtor tem algo a nos dizer.
Othell Yarwyck levantou-se lentamente, de cenho franzido. O grande construtor esfregou seu queixo protuberante e disse:
- Bem, vou retirar o meu nome. Já houve dez oportunidades de me escolherem, e não o fizeram. Não o suficiente de vocês, pelo menos. Eu ia dizer que aqueles que estavam depositando um penhor por mim deviam escolher Lorde Janos...
Sor Alliser fez um aceno.
- Lorde Slynt é a melhor escolha...
- Não tinha acabado, Alliser - protestou Yarwyck. - Lorde Slynt comandou a Patrulha da Cidade em Porto Real, todos sabemos, e era Senhor de Harrenhal...
- Ele nem sequer viu Harrenhal - gritou Cotter Pyke.
- Bem, isso é verdade - disse Yarwyck. - Seja como for, agora que estou aqui em pé, não me lembro por que foi que pensei que Slynt seria uma escolha assim tão boa. Isso seria como dar um chute na boca do Rei Stannis, e não vejo como é que isso nos é útil. Pode ser que o Snow seja melhor. Está há mais tempo na Muralha, é sobrinho de Ben Stark e serviu o Velho Urso como escudeiro. - Yarwyck encolheu os ombros. - Escolham quem quiserem, desde que não seja eu. - E sentou-se.
Jon viu que Janos Slynt, que já estava vermelho, ficara roxo, mas Sor Alliser Thorne tinha empalidecido. O homem de Atalaialeste estava de novo batendo na mesa com o punho, mas agora gritava pelo caldeirão. Alguns de seus amigos adotaram o grito.
- Caldeirão! - rugiram eles, como um só. - Caldeirão, caldeirão, CALDEIRÃO!
O caldeirão estava no canto junto à lareira, uma enorme coisa negra de fundo redondo, com duas enormes alças e uma tampa pesada. Meistre Aemon disse algo a Sam e Clydas, e eles agarraram as alças e arrastaram o caldeirão para a mesa. Alguns dos irmãos já estavam fazendo fila junto aos barris de penhores quando Clydas tirou a tampa e quase a deixou cair em cima do pé. Com um grito roufenho e um bater de asas, um enorme corvo saltou de dentro do caldeirão. Voou para cima, talvez em busca das vigas, ou de uma janela por onde escapar, mas não havia vigas no porão e também não havia janelas. O corvo estava encurralado. Crocitando ruidosamente, voou aos círculos pela sala, uma, duas, três vezes. E Jon ouviu Samwell Tarly gritar:
- Eu conheço aquela ave! É o corvo de Lorde Mormont!
O corvo pousou na mesa mais próxima de Jon. "Snow", crocitou. Era uma ave velha, suja e enlameada. “Snow", voltou a dizer, "Snow, snow, snow”. Caminhou até a borda da mesa, abriu de novo as asas e voou para o ombro de Jon.
Lorde Janos Slynt sentou-se tão pesadamente que fez tum, mas Sor Alliser encheu a adega com uma gargalhada zombeteira.
- Sor Porquinho pensa que somos todos tolos, irmãos - disse. - Ele ensinou à ave este truquezinho. Todos eles dizem snow, é só ir à colônia e escutar com seus ouvidos. A ave de Mormont sabia mais palavras além dessa.
O corvo inclinou a cabeça e olhou para Jon. “Grão?, disse com ar esperançoso. Quando não obteve nem grão nem uma resposta, soltou um cuorc e resmungou: “Caldeirão? Caldeirão? Caldeirão?”
E o resto foram pontas de flecha, uma torrente de pontas de flecha, um dilúvio de pontas de flecha, pontas de flecha suficientes para afogar as últimas pedras e conchas, e também todas as moedas de cobre.
Quando a contagem terminou, Jon deu por si rodeado. Alguns deram-lhe tapinhas nas costas, enquanto outros se dobravam para ajoelhar perante si como se fosse um senhor de verdade. Cetim, Owen Idiota, Halder, Sapo, Bota Extra, Gigante, Mully, Ulmer da Mata de Rei, Donnel Doce Hill e meia centena de outros comprimiram-se ao seu redor. Dywen bateu seus dentes de madeira e disse:
- Pela bondade dos deuses, nosso Senhor Comandante ainda usa cueiros.
Emmett de Ferro disse:
- Espero que isso não queira dizer que já não posso dar-lhe uma surra daquelas da próxima vez que treinarmos, senhor. - Hobb Três-Dedos quis saber se ele continuaria comendo com os homens ou se iria querer as refeições enviadas para o aposento privado. Até Bowen Marsh se aproximou para dizer que ficaria feliz por continuar sendo Senhor Intendente se fosse essa a vontade de Lorde Snow.
- Lorde Snow - disse Cotter Pyke -, se estragar isto, eu arranco seu fígado e como-o cru com cebolas.
Sor Denys Mallister foi mais cortês.
- Foi coisa difícil, aquela que o jovem Samwell me pediu - confessou o velho cavaleiro. - Quando Lorde Qorgyle foi eleito, eu disse a mim mesmo: “Não importa, ele está na Muralha há mais tempo do que você, a sua hora chegará”. Quando foi Lorde Mormont, pensei: "Ele é forte e feroz, mas é velho, a sua hora ainda pode chegar”. Mas você pouco mais é do que um rapaz, Lorde Snow, e agora tenho de retornar à Torre Sombria sabendo que a minha hora nunca virá. - Deu um sorriso cansado. - Não me faça morrer arrependido. Seu tio era um grande homem. O senhor seu pai e o pai dele também. Esperarei do senhor precisamente o mesmo.
- Sim - disse Cotter Pyke. - E pode começar por dizer àqueles homens do rei que está feito, e que queremos a porcaria do jantar.
“Jantar", gritou o corvo.“Jantar, jantar."
Os homens do rei saíram da porta quando lhes falaram da eleição, e Hobb Três-Dedos e meia dúzia de ajudantes dirigiram-se a trote para as cozinhas a fim de ir buscar a comida. Jon não esperou para comer. Atravessou o castelo, perguntando a si mesmo se estaria sonhando, com o corvo ao ombro e Fantasma logo atrás. Pyp, Grenn e Sam seguiram-no, tagarelando, mas quase não ouviu uma palavra até que Grenn sussurrou:
- Sam conseguiu isso.
E Pyp disse:
- Sam conseguiu isso! - Pyp tinha trazido consigo um odre de vinho, e bebeu um longo trago e entoou: - Sam, Sam, Sam, o feiticeiro, Sam, o prodígio, Sam, Sam, o homem maravilha, ele conseguiu. Mas quando foi que escondeu o corvo no caldeirão, Sam, e como, com os sete infernos, podia ter certeza de que ele voaria para o Jon? Se o pássaro tivesse decidido empoleirar-se na cabeça gorda de Janos Slynt, teria estragado tudo.
- Não tive nada a ver com o corvo - insistiu Sam. - Quando voou de dentro do caldeirão, quase me molhei todo.
Jon soltou uma gargalhada, meio espantado por ainda se lembrar de como se fazia.
- São todos um bando de idiotas loucos, sabem disso?
- Nós? - disse Pyp. - Chama a nós de idiotas? Não fomos nós que fomos escolhidos como o nonocentésimo nonagésimo oitavo Senhor Comandante da Patrulha da Noite. É melhor que tome algum vinho, Lorde Snow. Acho que vai precisar de muito vinho.
Então Jon Snow tirou o odre da mão de Pyp e bebeu um gole. Mas só um. A Muralha era sua, a noite era escura, e tinha um rei a enfrentar.
Acordou de repente, com todos os nervos a tremer. Por um momento não se lembrou de onde estava. Tinha sonhado que era pequena, dividindo ainda um quarto com a irmã Arya. Mas foi a aia que ouviu se mexendo no sono, não a irmã, e aquilo não era Winterfell, mas o Ninho da Águia. E eu sou Alayne Stone, uma bastarda. O quarto estava frio e negro, embora ela se sentisse quente sob os cobertores. A alvorada ainda não havia chegado. Às vezes sonhava com Sor Ilyn Payne e acordava com o coração aos saltos, mas aquele sonho não tinha sido assim. O lar. Estava sonhando com o meu lar.
O Ninho da Águia não era lar nenhum. Não era maior do que a Fortaleza de Maegor, e fora de suas abruptas muralhas brancas ficavam apenas a montanha e a longa e traiçoeira descida que passava por Céu, Neve e Pedra e levava aos Portões da Lua, no fimdo do vale. Não havia para onde ir e pouco havia para fazer. Os criados mais velhos diziam que aqueles salões ressoavam de risos na época em que seu pai e Robert Baratheon eram protegidos de Jon Arryn, mas esses dias tinham passado havia muitos anos. A tia mantinha pouco pessoal, e raramente permitia que as visitas subissem para lá dos Portões da Lua. Além de sua idosa aia, o único companheiro de Sansa era Lorde Robert, com oito anos e quase três meses.
E Marillion. Há sempre Marillion. Quando tocava para eles no jantar, com frequência o jovem cantor parecia estar cantando diretamente para Sansa. A tia não ficava nada satisfeita. A Senhora Lysa tinha um fraco por Marillion e banira duas criadas e até um pajem por dizerem mentiras a respeito dele.
Lysa estava tão solitária quanto Sansa. Seu novo esposo parecia passar mais tempo no sopé da montanha do que em seu cume. Agora andava longe, já partira havia quatro dias, para um encontro com os Corbray. Juntando aqui e ali as conversas que tinha ouvido, Sansa sabia que os vassalos de Jon Arryn se ressentiam do casamento de Lysa e só de má vontade concediam a Petyr a sua autoridade como Senhor Protetor do Vale. O ramo principal da Casa Royce estava perto da revolta aberta devido à recusa da tia de Sansa em ajudar Robb na guerra, e os Waynwood, Redfort, Belmore e Templeton davam-lhes todo o apoio. Os clãs da montanha também andavam causando problemas, e o velho Lorde Hunter morrera de forma tão súbita que os dois filhos mais novos andavam acusando o irmão mais velho de o ter assassinado. O Vale de Arryn podia ter sido poupado do pior da guerra, mas estava longe de ser o local idílico pelo qual a Senhora Lysa o queria fazer passar.
Não vou voltar a dormir, percebeu Sansa. Tenho a cabeça num tumulto. Afastou relutantemente a almofada, atirou os cobertores para trás, dirigiu-se à janela e abriu as venezianas.
Nevava no Ninho da Águia.
Lá fora, os flocos pairavam com a suavidade e o silêncio da memória. Teria sido isso que me acordou? A neve já jazia numa camada espessa sobre o jardim, lá embaixo, cobrindo a grama, salpicando de branco os arbustos e as estátuas e pesando nos galhos das árvores. A cena levou Sansa de volta a noites frias de muito tempo atrás, no longo verão de sua infância.
A última vez que vira neve havia sido no dia em que tinha partido de Winterfell. Aquela foi uma nevada mais leve do que esta, recordou. Robb tinha flocos derretendo nos cabelos quando me abraçou, e a bola de neve que Arya tentou fazer não parava de se desfazer em suas mãos. Doía-lhe lembrar-se de como tinha se sentido feliz naquela manhã. Hullen ajudara-a a montar, e ela partira a cavalo com os flocos de neve girando à sua volta, para ver o grande e vasto mundo. Pensei que a minha canção estava começando naquele dia, mas tinha quase terminado.
Sansa deixou as janelas abertas enquanto se vestia. Sabia que estaria frio, embora as torres do Ninho da Águia rodeassem o jardim e o protegessem do pior dos ventos de montanha. Vestiu roupa de baixo de seda e uma combinação de linho e, por cima, um vestido quente de lã azul de carneiro. Dois pares de meias longas para as pernas, botas que eram atadas até os joelhos, pesadas luvas de couro, e por fim um manto com capuz de suave pele de raposa branca.
A aia enrolou-se melhor em seu cobertor quando a neve começou a entrar pela janela. Sansa entreabriu a porta e desceu pela escada em caracol. Quando abriu a porta do jardim, ele estava tão lindo que prendeu a respiração, sem desejar perturbar uma beleza tão perfeita. A neve caía e caía, tudo num silêncio fantasmagórico, e acumulava-se numa camada grossa e contínua no chão. Todas as cores tinham fugido do mundo exterior. Era um lugar de brancos, negros e cinza. Torres brancas, neve branca e estátuas brancas, sombras negras e árvores negras, tudo coberto pelo céu cinza-escuro. Um mundo puro, pensou Sansa. Este não é o meu lugar.
Mas saiu mesmo assim. As botas rasgaram buracos até os tornozelos na superfície alva e lisa da neve, mas não fizeram nenhum som. Sansa vagueou por entre arbustos congelados e esguias árvores escuras e perguntou a si mesma se estaria ainda sonhando. Flocos de neve que caíam roçavam seu rosto com a leveza dos beijos de um amante e derretiam-se em suas bochechas. No centro do jardim, ao lado da estátua da mulher chorosa que jazia no chão, quebrada e meio enterrada, virou o rosto para o céu e fechou os olhos. Sentiu a neve nas pálpebras, saboreou-a nos lábios. Era o sabor de Winterfell. O sabor da inocência. O sabor dos sonhos.
Quando Sansa voltou a abrir os olhos, estava de joelhos. Não se lembrava de ter caído. Parecia-lhe que o céu tinha tomado um tom mais claro de cinza. A alvorada, pensou. Outro dia. Outro novo dia. Era dos dias antigos que tinha fome. Era por eles que rezava. Mas a quem podia rezar? Sabia que um dia o jardim se destinara a um bosque sagrado, mas o solo era raso e pedregoso demais para que um represeiro ganhasse raízes. Um bosque sagrado sem deuses, tão vazio quanto eu.
Pegou um punhado de neve e apertou-a entre os dedos. Pesada e úmida, a neve comprimia-se com facilidade. Sansa ficou fazendo bolas de neve, dando-lhes forma e alisando-as até ficarem redondas, brancas e perfeitas. Recordou uma nevada de verão em Winterfell, durante a qual Arya e Bran a emboscaram ao sair da fortaleza, uma bela manhã. Cada um deles tinha uma dúzia de bolas de neve à mão, e ela nenhuma. Bran estava empoleirado no telhado da ponte coberta, fora de alcance, mas Sansa perseguiu Arya pelos estábulos e em volta das cozinhas até ambas ficarem sem fôlego. Até podia tê-la apanhado, mas tinha escorregado em um pouco de gelo. A irmã voltou para ver se teria se machucado. Quando disse que não, Arya atingiu-a no rosto com outra bola de neve, mas Sansa agarrou-lhe a perna e puxou-a para baixo e estava esfregando neve no cabelo dela quando Jory apareceu e as separou, rindo.
O que faço com as bolas de neve? Olhou para o seu pequeno e triste arsenal. Não há ninguém em quem atirá-las. Deixou que a que estava fazendo lhe caísse das mãos. Em vez disso, podia fazer um cavaleiro de neve, pensou. Ou até...
Juntou duas das bolas de neve, acrescentou uma terceira, comprimiu mais neve em volta delas e deu a tudo a forma de um cilindro. Quando ficou pronto, colocou-o em pé e usou a ponta do mindinho para fazer os buracos das janelas. As ameias em volta do topo precisaram de um pouco mais de cuidado, mas quando ficaram prontas, tinha uma torre. Agora preciso de muralhas, pensou Sansa, e, depois, de uma fortaleza. Pôs mãos à obra.
A neve caía e o castelo erguia-se. Duas muralhas que se erguiam até a altura do tornozelo, a interior mais alta do que a exterior. Torres e torreões, fortalezas e escadarias, uma cozinha redonda, um arsenal quadrado, os estábulos ao longo do interior da muralha ocidental. Quando começou era apenas um castelo, mas não muito depois Sansa soube que era Winterfell. Encontrou gravetos e galhos caídos por baixo da neve e quebrou suas extremidades para fazer as árvores do bosque sagrado. Para as lápides do cemitério usou pedaços de casca de árvore. Pouco tempo depois tinha as luvas e as botas cobertas por uma crosta branca, as mãos formigando e os pés ensopados e frios, mas não fazia mal. O castelo era tudo o que importava. Algumas coisas eram difíceis de recordar, mas a maior parte vinha com facilidade, como se tivesse estado lá apenas no dia anterior. A Torre da Biblioteca, com a íngreme escada de pedra enrolada à sua volta, pelo exterior. A guarita, dois enormes baluartes, o portão arqueado entre eles, ameias ao longo do topo...
E durante todo o tempo a neve não parou de cair, empilhando-se em montículos em volta de seus edifícios tão depressa quanto ela os erguia. Estava compactando o telhado do Grande Salão quando ouviu uma voz, e ergueu os olhos para se deparar com a aia chamando-a da janela e perguntando se estava bem, se desejava quebrar o jejum. Sansa balançou a cabeça e voltou à escultura de neve, acrescentando uma chaminé a uma das pontas do Grande Salão, no local onde a lareira estaria lá dentro.
A alvorada esgueirou-se para o jardim como uma ladra. O cinza do céu ficou ainda mais claro, e as árvores e os arbustos tomaram um tom de verde-escuro sob suas estolas de neve. Alguns criados saíram e observaram-na durante algum tempo, mas não prestou atenção neles, e eles rapidamente voltaram para dentro, para onde fazia mais calor. Sansa viu a Senhora Lysa olhá-la de sua varanda, enrolada num roupão de veludo azul debruado de pele de raposa, mas quando voltou a olhar a tia tinha desaparecido. Meistre Colemon esticou a cabeça da colônia de corvos e espreitou para baixo durante algum tempo, magricelo e tremendo, mas curioso.
As pontes não paravam de ruir. Havia uma ponte coberta entre o arsenal e a fortaleza principal, e outra que ligava o quarto andar da torre sineira ao segundo andar da colônia de corvos, mas por mais cuidadosa que fosse ao esculpi-las, elas não resistiam. Na terceira vez que uma delas ruiu, soltou uma praga em voz alta e sentou-se, numa frustração impotente.
- Comprima a neve em volta de uma vareta, Sansa.
Não sabia havia quanto tempo ele estava a observá-la, ou quando tinha voltado do Vale.
- Uma vareta? - perguntou.
- Isso vai lhe dar suficiente resistência para se manter, creio eu - disse Petyr. - Posso entrar em seu castelo, senhora?
Sansa estava desconfiada.
- Não o quebre. Seja...
- ... gentil? - ele sorriu. - Winterfell resistiu a inimigos mais ferozes do que eu. Isto é Winterfell, não é?
- Sim - admitiu Sansa.
Ele caminhou ao longo do exterior das muralhas.
- Costumava sonhar com ele, naqueles anos que se seguiram a Cat ter ido para o Norte com Eddard Stark. Em meus sonhos era sempre um lugar escuro e frio.
- Não. Sempre foi quente, mesmo quando nevava. Água das nascentes termais é canalizada através das paredes para aquecê-las, e dentro dos jardins de vidro era sempre como o mais quente dia de verão. - Levantou-se, erguendo-se acima do grande castelo branco. - Não consigo imaginar como fazer o telhado de vidro por cima dos jardins.
Mindinho afagou o queixo, onde tinha a barba antes de Lysa lhe pedir para raspá-la.
- O vidro estava preso em molduras, não estava? Sua resposta são gravetos. Tire a casca deles e cruze-os, e use casca de árvore para atá-los uns aos outros e formar molduras. Eu mostro. - Deslocou-se pelo jardim, recolhendo paus e gravetos e sacudindo a neve deles. Quando obteve o suficiente, passou por cima de ambas as muralhas com um longo passo e agachou-se no meio do pátio. Sansa aproximou-se para ver o que ele estava fazendo. As mãos de Petyr eram hábeis e seguras, e não muito depois tinha uma treliça de gravetos, muito parecida com aquela que servia de telhado aos jardins de vidro de Winterfell. - Vamos ter de imaginar o vidro, certamente - disse quando lhe entregou.
- Isto é perfeito - disse Sansa.
Ele tocou o rosto dela.
- E isto também.
Sansa não compreendeu.
- Isto o quê?
- O seu sorriso, senhora. Faço-lhe outro?
- Se quiser.
- Nada me agradaria mais.
Ela ergueu as paredes dos jardins de vidro enquanto Mindinho os cobria, e quando terminaram essa tarefa, ele ajudou-a a prolongar as muralhas e a construir o edifício dos guardas. Quando usou varetas para as pontes cobertas, elas resistiram, tal como ele havia dito que resistiriam. A Primeira Fortaleza era bastante simples, uma antiga torre redonda e atarracada, mas Sansa voltou a ficar sem saber o que fazer quando chegou a hora de pôr as gárgulas ao longo do topo. De novo, ele tinha a solução.
- Tem estado nevando em seu castelo, senhora - destacou. - Com que se parecem as gárgulas quando estão cobertas de neve?
Sansa fechou os olhos para vê-las em sua memória.
- São só protuberâncias brancas.
- Muito bem. Gárgulas são difíceis, mas protuberâncias brancas devem ser fáceis. - E eram.
A Torre Quebrada foi ainda mais simples. Fizeram juntos uma torre alta, ajoelhando-se lado a lado para rolá-la até ficar lisa, e quando a ergueram, Sansa enfiou os dedos no topo, agarrou um punhado de neve e atirou em cheio no rosto dele. Petyr soltou um ganido quando a neve se enfiou em seu colarinho.
- Isso não foi nada cavalheiresco, senhora.
- Tal como não o foi trazer-me para cá, quando jurou que me levaria para casa.
Perguntou a si mesma de onde teria vindo a coragem, para lhe falar com tanta franqueza. De Winterfell, pensou. Sou mais forte dentro das muralhas de Winterfell.
O rosto dele ficou sério.
- Sim, enganei-a sobre isso... e sobre outra coisa também.
Sansa sentiu o estômago se agitando.
- Que outra coisa?
- Disse-lhe que nada me agradaria mais do que ajudá-la com o seu castelo. Temo que também tenha sido uma mentira. Há outra coisa que me agradaria mais. - Aproximou-se. - Isto.
Sansa tentou se afastar, mas ele puxou-a para si e de repente a estava beijando. Debilmente, tentou contorcer-se, mas só conseguiu apertar-se mais contra ele. A boca dele estava sobre a sua, engolindo suas palavras. Mindinho tinha gosto de menta. Durante meio segundo, Sansa cedeu ao seu beijo... antes de virar o rosto para o lado e se arrancar de seu abraço.
- O que está fazendo?
Petyr endireitou o manto.
- Estou beijando uma donzela de neve.
- É suposto que beije a ela. - Sansa olhou de relance para a varanda de Lysa, mas estava agora vazia. - A senhora sua esposa.
- E beijo. Lysa não tem razões de queixa. - Sorriu. - Gostaria que pudesse se ver, senhora. E tão bela. Está coberta de neve como uma pequena cria de urso, mas o rosto está corado e quase não consegue respirar. Há quanto tempo está aqui? Deve estar com muito frio. Deixe-me aquecê-la, Sansa. Tire as luvas, dê-me as suas mãos.
- Não dou. - Ele soava quase como Marillion, na noite em que o cantor se embebedara durante o casamento. Porém, dessa vez Lothor Brune não surgiria para salvá-la; Sor Lothor era um homem de Petyr. - Não devia ter me beijado. Eu poderia ser sua filha...
- Poderia - admitiu ele, com um sorriso triste. - Mas não é, certo? É filha de Eddard Stark e de Cat. Mas acho que talvez seja ainda mais bela do que a sua mãe, quando tinha a sua idade.
- Petyr, por favor. - A voz soava tão fraca. - Por favor...
- Um castelo.
A voz era sonora, estridente e infantil. Mindinho virou-se.
- Lorde Robert. - Esboçou uma reverência. - Devia estar na neve sem as suas luvas?
- Foi você que fez o castelo de neve, Lorde Mindinho?
- A Alayne fez a maior parte, senhor.
Sansa disse.
- Era para ser Winterfell.
- Winterfell? - Robert era pequeno para oito anos, um espeto de menino com pele manchada e olhos que estavam sempre lacrimejando. Debaixo de um braço trazia o puído boneco de pano que levava para todo lado.
- Winterfell é a sede da Casa Stark - disse Sansa ao seu futuro marido. - O grande castelo do Norte.
- Não é assim tão grande. - O menino ajoelhou perante a guarita. - Olhe, aqui vem um gigante para botá-lo abaixo. - Pôs o boneco em pé na neve e moveu-o aos trancos. - Tumba-tumba, sou um gigante, sou um gigante - cantarolou. - Ho-ho-ho, abra os portões, senão trituro-os e esmago-os. - Balançando o boneco pelas pernas, derrubou o topo de uma das torres da guarita e depois a outra.
Aquilo foi mais do que Sansa podia suportar.
- Robert, pare com isso.
Mas em vez de parar, ele voltou a balançar o boneco e trinta centímetros de muralha explodiram. Ela tentou agarrar a mão dele, mas só conseguiu pegar o boneco. Ouviu-se um sonoro ruído de rasgar quando o fino pano se abriu. De repente, ela tinha a cabeça do boneco, Robert tinha as pernas e o corpo, e o enchimento de trapos e serragem estava se derramando na neve.
A boca de Lorde Robert estremeceu.
- Você o matoooooooooou - berrou. Então desatou a tremer. Começou com um pequeno arrepio apenas, mas poucos segundos depois tinha caído sobre o castelo, agitando violentamente os membros. Torres brancas e pontes de neve estilhaçaram-se e caíram por todos os lados. Sansa ficou horrorizada, mas Petyr Baelish pegou nos pulsos do garoto e gritou pelo meistre.
Guardas e criadas chegaram instantes depois para ajudar a segurar Robert, e Meistre Colemon surgiu um pouco mais tarde. A doença dos tremores de Robert Arryn não era nada de novo para as pessoas do Ninho da Águia, e a Senhora Lysa treinara-os todos para virem correndo ao primeiro grito do rapaz. O meistre segurou a cabeça do pequeno lorde e deu-lhe meia taça de vinho dos sonhos, murmurando palavras tranquilizadoras. Lentamente, a violência do ataque pareceu reduzir-se, até nada restar além de um pequeno tremor nas mãos.
- Ajudem-no a subir aos meus aposentos - disse Colemon aos guardas. - Uma sangria ajudará a acalmá-lo.
- Foi culpa minha. - Sansa mostrou-lhes a cabeça do boneco. - Eu rasguei o boneco dele em dois. Não queria fazer isso, mas...
- Sua senhoria estava destruindo o castelo - disse Petyr.
- Um gigante - sussurrou o garoto, chorando. - Não fui eu, foi um gigante que fez mal ao castelo. Ela matou-o! Odeio-a! É uma bastarda e eu odeio-a! Não quero ser sangrado!
- Senhor, seu sangue precisa ser refinado - disse Meistre Colemon. - É o sangue ruim que o deixa zangado, e a raiva que traz os tremores. Agora venha.
E levaram o garoto. O senhor meu esposo, pensou Sansa, enquanto contemplava as ruínas de Winterfell. A neve tinha parado de cair, e fazia mais frio do que antes. Perguntou a si mesma se Lorde Robert passaria a boda toda tremendo. Pelo menos Joffrey era saudável de corpo. Uma raiva enlouquecida tomou conta dela. Pegou um galho partido e enfiou-o na cabeça rasgada do boneco, após o que a espetou no topo da destruída guarita de seu castelo de neve. Os criados pareceram ficar horrorizados, mas quando Mindinho viu o que ela tinha feito, riu.
- Se as histórias forem verdadeiras, esse não é o primeiro gigante cuja cabeça acabou nas muralhas de Winterfell.
- São só histórias - disse ela, e abandonou-o ali.
De volta ao seu quarto, Sansa despiu o manto e as botas úmidas e sentou-se junto da lareira. Não duvidava de que seria obrigada a responder pelo ataque de Lorde Robert. Talvez a Senhora Lysa me mande embora. A tia era rápida para banir quem quer que lhe desagradasse, e nada lhe desagradava mais do que aqueles que suspeitava de maltratarem seu filho.
Sansa teria acolhido de bom grado o banimento. Os Portões da Lua eram muito maiores do que o Ninho da Águia, e também mais animados. Lorde Nestor Royce parecia rude e severo, mas a filha Myranda governava o castelo em seu nome, e todos eram unânimes em dizer que era brincalhona. Até a suposta bastardia de Sansa poderia não contar muito contra si lá embaixo. Uma das filhas ilegítimas do Rei Robert estava a serviço de Lorde Nestor, e dizia-se que ela e a Senhora Myranda eram grandes amigas, tão próximas quanto irmãs.
Direi à minha tia que não quero me casar com Robert. Nem o próprio Alto Septão podia declarar uma mulher casada se ela se recusasse a proferir os votos. Não era uma pedinte, não importa o que a tia dissesse. Tinha treze anos, era uma mulher florescida e casada, a herdeira de Winterfell. Sansa às vezes sentia pena de seu pequeno primo, mas não era capaz de imaginar que algum dia desejasse ser sua esposa. Preferiria voltar a estar casada com Tyrion. Se a Senhora Lysa soubesse disso, certamente a mandaria para longe... para longe dos beicinhos, tremores e olhos lacrimejantes de Robert, para longe dos olhares demorados de Marillion, para longe dos beijos de Petyr. Vou contar para ela. Vou mesmo!
Foi ao fim da tarde que a Senhora Lysa mandou chamá-la. Sansa tinha passado o dia todo reunindo coragem, mas assim que Marillion surgiu à sua porta, todas as suas dúvidas regressaram.
- A Senhora Lysa requer a sua presença no Alto Salão. - Os olhos do cantor despiam -na enquanto falava, mas Sansa já tinha se habituado a isso.
Marillion era bonito, não havia como negar; jovial e esguio, com pele lisa, cabelos cor de areia, um sorriso encantador. Mas tornara-se bastante odiado no Vale, por todos exceto a tia e o pequeno Lorde Robert. Pelo que diziam as conversas dos criados, Sansa não era a primeira donzela a sofrer o seu assédio, e as outras não tinham tido Lothor Brune para defendê-las. Mas a Senhora Lysa não queria ouvir queixas contra ele. Desde que tinha chegado ao Ninho da Águia, o cantor tornou-se seu favorito. Cantava até que Lorde Robert adormecesse todas as noites, e torcia o nariz aos pretendentes da Senhora Lysa com versos que caçoavam de seus pontos fracos. A tia fez chover sobre ele ouro e presentes; roupas caras, um bracelete de ouro, um cinto incrustado de pedras de lua, um bom cavalo. Até lhe dera o falcão preferido do falecido marido. Tudo aquilo servia para tornar Marillion impecavelmente cortês na presença da Senhora Lysa, e impecavelmente arrogante longe dela.
- Obrigada - disse-lhe rigidamente Sansa. - Eu conheço o caminho.
Ele não quis ir embora.
- A senhora disse-me para levá-la.
Levar-me? Não gostou de como aquilo soava.
- Agora é um guarda? - Mindinho tinha demitido o capitão da guarda do Ninho da Águia e colocado Sor Lothor Brune em seu lugar.
- Precisa de guarda? - disse Marillion com ligeireza. - Devia saber que ando compondo uma nova canção. Uma canção tão doce e triste que derreterá até o seu coração gelado. Pretendo chamá-la de “A rosa da beira da estrada”. É sobre uma garota ilegítima tão bela que enfeitiçava todos os homens que pusessem os olhos nela.
Eu sou uma Stark de Winterfell, desejou dizer-lhe. Mas em vez disso assentiu e permitiu que a levasse ao longo da escada da torre e por uma ponte. O Alto Salão tinha estado fechado durante todo o tempo que passara no Ninho da Águia. Sansa perguntou a si mesma por que motivo a tia o teria aberto. Normalmente preferia o conforto de seu aposento privado, ou o calor aconchegante da sala de audiências de Lorde Arryn, com a sua vista sobre a queda d agua.
Dois guardas com manto azul-celeste flanqueavam as portas de madeira esculpida do Alto Salão, de lanças na mão.
- Ninguém deve entrar enquanto Alayne estiver com a Senhora Lysa - disse-lhes Marillion.
- Entendido.
Os homens deixaram-nos passar e em seguida cruzaram as lanças. Marillion fechou as portas e trancou-as com uma terceira lança, mais longa e mais grossa do que as que os guardas usavam.
Sansa sentiu uma pontada de desconforto.
- Por que fez isso?
- A senhora a espera.
Ela olhou em volta hesitantemente. A Senhora Lysa estava no estrado, sentada num cadeirão de espaldar alto feito de represeiro esculpido, sozinha. À sua direita encontrava-se um segundo cadeirão, mais alto do que o seu, com uma pilha de almofadas azuis sobre o assento, mas Lorde Robert não estava lá sentado. Sansa esperava que ele tivesse se recuperado. Mas não era provável que Marillion lhe dissesse.
Sansa percorreu o carpete de seda azul entre fileiras de pilares canelados esguios como lanças. O assoalho e as paredes do Alto Salão eram feitos de mármore de um branco leitoso, com veios azuis. Raios de pálida luz do sol caíam na diagonal, provenientes de estreitas janelas arqueadas abertas na parede oriental. Entre as janelas havia archotes, montados em altas arandelas de ferro, mas nenhum deles estava aceso. Seus passos caíam suavemente sobre o carpete. Lá fora, o vento soprava, frio e solitário.
No meio de tanto mármore branco, até a luz do sol parecia de certo modo gelada... embora nem de perto tão gelada quanto a tia. A Senhora Lysa usava um vestido de veludo de cor creme e pusera um colar de safiras e pedras de lua. Seus cabelos ruivos tinham sido penteados numa grossa trança e caíam sobre um ombro. Estava sentada no cadeirão observando a aproximação da sobrinha, com o rosto rubro e inchado por baixo da tinta e do pó. Da parede atrás dela, pendia um enorme estandarte, a lua e o falcão da Casa Arryn em creme e azul.
Sansa parou diante do estrado e fez uma reverência.
- Senhora. Mandou me chamar. - Ainda ouvia o ruído do vento, e os suaves acordes que Marillion estava tocando ao fundo do salão.
- Eu vi o que você fez - disse a Senhora Lysa.
Sansa alisou as dobras da saia.
- Espero que Lorde Robert esteja melhor. Não pretendia rasgar o seu boneco. Ele estava esmagando meu castelo de neve, eu só...
- Vai se fazer de recatada comigo? - disse a tia. - Não estava falando do boneco de Robert. Eu vi quando o beijou.
O Alto Salão pareceu ficar um pouco mais frio. As paredes, o chão e as colunas podiam perfeitamente ter se transformado em gelo.
- Foi ele que me beijou.
As narinas de Lysa dilataram.
- E por que ele faria isso? Tem uma esposa que o ama. Uma mulher-feita, não uma garotinha. Não tem necessidade de gente como você. Confesse, menina. Atirou-se nele. Foi assim que as coisas se passaram.
Sansa deu um passo para trás.
- Não é verdade.
- Aonde vai? Está com medo? Um comportamento impudico como esse tem de ser punido, mas não serei dura com você. Temos um carrasco para Robert, como é costume das Cidades Livres. Sua saúde é delicada demais para ser ele a brandir o açoite. Arranjarei uma garota comum qualquer para levar as suas chicotadas, mas primeiro tem de assumir o que fez. Não posso tolerar uma mentirosa, Alayne.
- Eu estava construindo um castelo de neve - disse Sansa. - Lorde Petyr estava me ajudando, e depois beijou-me. Foi isso o que viu.
- Não tem honra alguma? - disse a tia em tom penetrante. - Ou será que me toma por uma idiota? Toma, não toma? Toma-me por uma idiota. Sim, agora vejo. Não sou uma idiota. Pensa que pode ter qualquer homem que queira porque é jovem e bela. Não pense que não vi os olhares que dirige a Marillion. Sei de tudo o que se passa no Ninho da Águia, senhorinha. E também já conheci gente da sua laia antes. Mas engana-se se acha que grandes olhos e sorrisos de prostituta lhe servirão para conquistar Petyr. Ele é meu. - A tia levantou-se. - Todos tentaram afastá-lo de mim. O senhor meu pai, o meu esposo, a sua mãe... principalmente a Catelyn. Ela também gostava de beijar o meu Petyr, ah, se gostava.
Sansa recuou mais um passo.
- A minha mãe?
- Sim, a sua mãe, a sua preciosa mãe, a minha querida irmã Catelyn. Que nem pense em se fazer de inocente comigo, sua mentirosazinha nojenta. Levou todos aqueles anos em Correrrio brincando com Petyr como se ele fosse seu brinquedinho. Provocou-o com sorrisos, palavras suaves e olhares lascivos, e fez das noites dele um tormento.
- Não. - Minha mãe está morta, quis gritar. Ela era sua própria irmã, e está morta. - Ela não fez isso. Não o faria.
- Como pode saber? Estava lá? - Lysa desceu do cadeirão, fazendo rodopiar as saias.
- Veio com Lorde Bracken e Lorde Blackwood, daquela vez que nos visitaram para levar a disputa deles à consideração de meu pai? O cantor de Lorde Bracken cantou para nós, e Catelyn dançou seis danças com Petyr naquela noite, seis, eu contei. Quando os lordes começaram a discutir, meu pai levou-os para a sua sala de audiências, de modo que deixou de haver quem nos impedisse de beber. Edmure embebedou-se, apesar de ser tão novo... e Petyr tentou beijar a sua mãe, mas ela o afastou. Riu dele. Ele pareceu tão magoado que eu achei que o meu coração fosse estourar, e depois bebeu até perder os sentidos em cima da mesa. Tio Brynden levou-o para a cama antes que meu pai o encontrasse naquele estado. Mas não se lembra de nada disso, não é? - Olhou para baixo, zangada. - Não é?
Ela está bêbada, ou louca?
- Eu não era nascida, senhora.
- Você não era nascida. Mas eu era, portanto não ouse me dizer o que é verdade. Eu sei o que é verdade. Beijou-o!
- Foi ele que me beijou - voltou a insistir Sansa. - Eu nunca quis...
- Silêncio, não lhe dei licença para falar. Seduziu-o, tal como a sua mãe fez naquela noite em Correrrio, com seus sorrisos e sua dança. Acha que eu me esqueceria? Foi essa a noite em que me esgueirei para a cama dele para confortá-lo. Sangrei, mas foi a mais doce das dores. Ele disse-me então que me amava, mas chamou-me de Cat, logo antes de voltar a adormecer. Mesmo assim, fiquei com ele até o céu começar a se iluminar. Sua mãe não o merecia. Ela nem sequer quis lhe dar um favor para usar quando ele lutou contra Brandon Stark. Eu teria dado o meu favor ao Petyr. Dei-lhe tudo. Ele agora é meu. Não de Catelyn, e não seu.
A resolução de Sansa havia murchado perante o ataque da tia. Lysa Arryn a estava assustando mais que a Rainha Cersei jamais a assustara.
- Ele é seu, senhora - disse, tentando soar submissa e arrependida. - Tenho a sua licença para ir embora?
- Não, não tem. - O hálito da tia cheirava a vinho. - Se fosse outra pessoa, você seria banida. Mandaria você para baixo, para os Portões da Lua de Lorde Nestor, ou de volta para os Dedos. Gostaria de passar a vida naquela costa desolada, rodeada de mulheres porcas e cocozinhos de ovelha? Era isso que meu pai queria para Petyr. Todo mundo pensou que foi por causa daquele estúpido duelo com Brandon Stark, mas não é verdade. O pai disse que eu devia agradecer aos deuses por um senhor tão grande como Jon Arryn estar disposto a me aceitar manchada, mas eu sabia que era só por causa das espadas. Tinha de me casar com Jon, senão meu pai iria me expulsar como fez com o irmão, mas era a Petyr que eu estava destinada. Estou lhe contando isso tudo para que compreenda como nos amamos um ao outro, quanto tempo sofremos e sonhamos um com o outro. Fizemos juntos um bebê, um precioso bebezinho. - Lysa encostou as mãos na barriga, como se a criança ainda estivesse ali. - Quando o roubaram de mim, prometi a mim mesma que nunca deixaria que voltasse a acontecer. Jon queria mandar meu querido Robert para Pedra do Dragão, e aquele rei beberrão queria entregá-lo a Cersei Lannister, mas eu não permiti... assim como não vou permitir que me roube o meu Petyr Mindinho. Está me ouvindo, Alayne, ou Sansa, ou como quer que chame a si mesma? Está ouvindo o que estou lhe dizendo?
- Sim. Juro, nunca mais o beijarei ou... ou o seduzirei. - Sansa achou que era aquilo que a tia quisesse ouvir.
- Então agora já admite? Foi você, como eu pensava. É tão libertina quanto a sua mãe.
- Lysa agarrou-a pelo pulso. - Venha comigo. Há uma coisa que quero lhe mostrar.
- Está me machucando. - Sansa contorceu-se. - Por favor, tia Lysa, eu não fiz nada. Juro.
A tia ignorou seus protestos.
- Marillion -, gritou. - Preciso de você, Marillion! Preciso de você!
O cantor tinha ficado discretamente ao fundo da sala, mas acorreu de imediato ao grito da Senhora Arryn.
- Senhora?
- Toque-nos uma canção. Toque "A falsa e a bela".
Os dedos de Marillion roçaram as cordas.
- O senhor chegou a cavalo num dia de chuva, tralolé, tralolé, tralolélolá...
A Senhora Lysa puxou o braço de Sansa. Era andar ou ser arrastada, portanto decidiu andar, percorrendo meio salão e passando entre um par de pilares, até uma porta de represeiro instalada na parede de mármore. A porta encontrava-se firmemente fechada, com três pesadas trancas de bronze para mantê-la no lugar, mas Sansa ouvia o vento lá fora mordendo suas arestas. Quando viu o crescente de lua esculpido na madeira, plantou os pés no chão.
- A Porta da Lua. - Tentou se libertar, aos puxões. - Por que está me mostrando a Porta da Lua?
- Agora está guinchando como um rato, mas no jardim foi bastante ousada, não foi? Foi bastante ousada na neve.
- A senhora fazia costura num dia de chuva - cantava Marillion -, tralolé, tralolé, tralolélolá...
- Abra a porta - ordenou Lysa. - Estou dizendo para abri-la. Vai abri-la, senão mando chamar os meus guardas. - Empurrou Sansa em frente. - Sua mãe pelo menos era corajosa. Levante as trancas.
Se eu fizer o que ela diz, vai me largar. Sansa agarrou uma das barras de bronze, soltou-a com um puxão e atirou-a ao chão. A segunda barra retiniu no mármore, seguida pela terceira. Mal tinha tocado no trinco quando a pesada porta de madeira voou para dentro e bateu com estrondo na parede. Um monte de neve estava empilhado na soleira, e todo ele foi soprado contra elas, trazido numa explosão de ar frio que deixou Sansa tremendo. Tentou dar um passo para trás, mas aí encontrava-se a tia. Lysa pegou-a pelo pulso e pôs a outra mão entre as suas omoplatas, empurrando-a à força para a porta aberta.
Atrás da porta havia céu branco, neve caindo e nada mais.
- Olhe para baixo - disse a Senhora Lysa. - Olhe para baixo.
Tentou se libertar, mas os dedos da tia enterravam-se em seu braço como garras. Lysa deu-lhe outro empurrão, e Sansa soltou um guincho. O pé esquerdo atravessou uma crosta de neve e soltou-a. Nada havia à sua frente além de ar vazio, e um castelo intermediário cento e oitenta metros abaixo, agarrando-se ao flanco da montanha.
- Não! - gritou Sansa. - Está me assustando! - Atrás dela, Marillion continuava a tocar a harpa e a cantar “tralolé, tralolé, tralolélolá".
- Ainda quer licença para ir embora? Quer?
- Não. - Sansa fez pressão com os pés no chão e tentou contorcer-se para trás, mas a tia não se moveu. - Dessa maneira não. Por favor... - Ergueu uma mão, procurando com os dedos o batente da porta, mas não conseguiu encontrar um apoio, e os pés estavam escorregando no chão úmido de mármore. A Senhora Lysa empurrava-a inexoravelmente para a frente. A tia tinha mais de vinte quilos a mais do que ela.
- A senhora trocava beijos num monte defeno - estava cantando Marillion. Sansa torceu-se para o lado, histérica de medo, e um pé escorregou por sobre a borda. Gritou. - Tralolé, tralolé, tralolélolá. - O vento levantou suas saias e mordeu suas pernas nuas com dentes frios. Sentia flocos de neve derretendo nas bochechas. Sansa esbracejou, encontrou a grossa trança ruiva de Lysa e agarrou-se bem nela.
- Meu cabelo! - guinchou a tia. - Largue meu cabelo! - Estava tremendo, soluçando. As duas vacilaram na borda do precipício. Muito longe, ouviu os guardas baterem na porta com as lanças, exigindo que os deixassem entrar. Marillion interrompeu a canção.
- Lysa! O que significa isso? - o grito cortou através dos soluços e da respiração pesada. Passos ecoaram ao longo do Alto Salão. - Saia daí. Lysa, o que você está fazendo?
- os guardas continuavam a bater à porta; Mindinho tinha entrado pelo fundo, pela entrada do senhor que se abria atrás do estrado.
Quando Lysa se virou, suas mãos fraquejaram o suficiente para que Sansa se libertasse. Caiu sobre os joelhos, e Petyr Baelish viu-a. Parou subitamente.
- Alayne. Qual é o problema aqui?
- É ela. - A Senhora Lysa agarrou uma madeixa dos cabelos de Sansa. - O problema é ela. Ela beijou-o.
- Diga-lhe - suplicou Sansa. - Diga-lhe que estávamos só construindo um castelo...
- Cale-se! - gritou a tia. - Não lhe dei licença para falar. Seu castelo não interessa a ninguém.
- Ela é uma criança, Lysa. A filha de Cat. O que você acha que estávamos fazendo?
- Eu ia casá-la com Robert! Não tem gratidão. Não tem... não tem decência. Você não é dela para que o beije. Não é dela! Estava lhe dando uma lição, só isso.
- Estou vendo. - Mindinho afagou o queixo. - Acho que ela compreende agora. Não é verdade, Alayne?
- Sim - soluçou Sansa. - Compreendo.
- Não a quero aqui. - Os olhos da tia estavam brilhantes de lágrimas. - Por que foi que a trouxe para o Vale, Petyr? Este não é o seu lugar. Não pertence a este lugar.
- Sendo assim, mandamo-la embora. De volta a Porto Real, se quiser. - Deu um passo na direção delas. - Agora largue-a. Deixe-a afastar-se da porta.
- NÃO! - Lysa deu outro puxão na cabeça de Sansa. Neve rodopiou em volta delas, fazendo com que as saias esvoaçassem ruidosamente. - Não pode desejá-la. Não pode. Ela é uma garotinha estúpida de cabeça oca. Não o ama como eu o tenho amado. Eu sempre o amei. Já demonstrei isso, não foi? - lágrimas escorreram por seu rosto inchado e vermelho. - Eu dei a você o presente de minha virgindade. Teria dado também um filho, mas eles assassinaram-no com chá de lua, com tanásia, menta e losna, uma colher de mel e uma gota de poejo. Não fui eu, eu nunca soube, só bebi o que o pai me deu...
- Isso passou e está feito, Lysa. Lorde Hoster está morto, e o seu velho meistre também. - Mindinho aproximou-se. - Caiu outra vez no vinho? Não devia falar tanto. Não queremos que Alayne saiba mais do que devia, não é? Ou Marillion.
A Senhora Lysa ignorou aquilo.
- A Cat nunca lhe deu nada. Fui eu quem arranjou seu primeiro posto, quem fez com que Jon o trouxesse para a corte para podermos ficar perto um do outro. Prometeu-me que nunca se esqueceria disso.
- E não me esqueci. Estamos juntos, tal como você sempre desejou, tal como sempre planejamos. Mas largue o cabelo de Sansa...
- Não largo! Vi-os aos beijos na neve. Ela é exatamente como a mãe. Catelyn beijou-o no bosque sagrado, mas nunca foi a sério, ela nunca quis você. Por que foi que a amou mais? Era eu, sempre fui eeeeeu!
- Eu sei, amor. - Ele deu mais um passo. - E estou aqui. Tudo o que tem de fazer é pegar na minha mão, vamos. - Estendeu-a para ela. - Não há motivo para todas essas lágrimas.
- Lágrimas, lágrimas, lágrimas - soluçou ela histericamente. - Não há necessidade de lágrimas... mas não foi isso o que disse em Porto Real. Disse-me para pôr as lágrimas no vinho de Jon, e foi o que eu fiz. Por Robert, e por nós! E escrevi a Catelyn e contei-lhe que os Lannister tinham matado o senhor meu esposo, tal como você disse para fazer. Isso foi tão inteligente... sempre foi inteligente, eu disse isso ao pai, disse: o Petyr é tão inteligente, subirá bem alto, subirá, subirá, e é doce e gentil e tenho o seu bebê na barriga... Por que foi que a beijou? Por quê? Agora estamos juntos, estamos juntos após tanto tempo, tanto, tanto tempo, por que é que havia de querer beijááááá-la?
- Lysa - Petyr suspirou -, depois de todas as tempestades que aguentamos, devia confiar mais em mim. Juro, nunca mais sairei de seu lado, enquanto ambos formos vivos.
- Sério? - perguntou ela, chorando. - Oh, sério?
- Sério. Agora solte a garota e venha aqui me dar um beijo.
Lysa atirou-se nos braços do Mindinho, soluçando. Enquanto eles se abraçavam, Sansa afastou-se engatinhando da Porta da Lua e envolveu os braços no pilar mais próximo. Sentia o coração aos saltos. Havia neve em seus cabelos, e o sapato direito tinha desaparecido. Deve ter caído. Estremeceu e abraçou com mais força o pilar.
Mindinho deixou Lysa soluçar contra o seu peito por um momento e depois pôs as mãos em seus braços e deu-lhe um pequeno beijo.
- Minha esposa querida, pateta, ciumenta - disse ele com um risinho. - Eu só amei uma mulher, garanto.
Lysa Arryn deu um sorriso trêmulo.
- Só uma? Oh, Petyr, jura? Só uma?
- Só a Cat. - E deu-lhe um curto e forte empurrão.
Lysa tropeçou para trás, com os pés escorregando no mármore úmido. E então desapareceu. Não chegou a gritar. Durante o mais longo dos momentos não se ouviu som algum exceto o vento.
Marillion arquejou.
- Você... você...
Os guardas estavam gritando do lado de fora da porta, batendo nela com as hastes de suas pesadas lanças. Lorde Petyr pôs Sansa em pé.
- Não se machucou? - quando ela balançou a cabeça, ele disse: - Então corra, deixe os guardas entrar. Depressa, não há tempo a perder. Este cantor matou a senhora minha esposa.
A estrada que levava a Pedravelhas rodeava duas vezes o monte antes de chegar ao cume. Cheia de vegetação e pedregosa, teria causado um avanço lento mesmo no melhor dos tempos, mas a nevasca da noite anterior deixara-a também lamacenta. Neve no outono nas terras fluviais, não é natural, pensou sombriamente Merrett. Não tinha sido uma grande nevasca, era certo, só o suficiente para atapetar o solo durante uma noite. A maior parte começou a derreter assim que o sol surgiu. Mesmo assim, Merrett havia considerado isso um mau presságio. Entre chuvas, inundações, fogo e guerra, tinham perdido duas colheitas e boa parte de uma terceira. Um inverno prematuro significaria a fome por todas as terras fluviais. Muitas pessoas passariam fome e algumas morreriam. Merrett só esperava não ser uma dessas pessoas. Mas posso vir a ser. Com a minha sorte, posso mesmo. Nunca tive sorte nenhuma.
À sombra das ruínas do castelo, as vertentes inferiores do monte estavam cobertas por uma floresta tão densa que meia centena de fora da lei podia perfeitamente estar ali escondida. Podem estar me observando agora mesmo. Merrett olhou em volta, e nada viu além de tojo, fetos, cardos, junco e amoreiras-silvestres entre os pinheiros e as sentinelas cinza-esverdeadas. Em outros pontos, olmos e freixos despidos de folhas e carvalhos pequenos sufocavam o terreno como ervas daninhas. Não viu nenhum fora da lei, mas isso pouco queria dizer. Os fora da lei eram melhores em se esconder do que os homens honestos.
A bem da verdade, Merrett odiava a floresta, e odiava ainda mais os fora da lei. “Os fora da lei roubaram-me a vida”, fora ouvido protestando quando estava de pileque. Estava de pileque com demasiada frequência, dizia o pai, frequente e ruidosamente. É bem verdade, pensou, pesaroso. Nas Gêmeas era preciso arranjar uma distinção qualquer, caso contrário eram capazes de se esquecer de sua existência, mas descobrira que uma reputação como o maior bebedor do castelo pouco havia feito para melhorar as suas chances. Um dia esperei me tornar o maior cavaleiro que algum dia baixou uma lança para o ataque. Os deuses roubaram-me isso. Por que não haveria de beber uma taça de vinho de vez em quando? Ajuda minhas dores de cabeça. Além disso, minha mulher é uma megera, meu pai despreza-me, meus filhos são inúteis. O que tenho eu que me leve a ficar sóbrio?
Mas agora estava sóbrio. Bem, tinha bebido dois cornos de cerveja quando quebrou o jejum e uma pequena taça de tinto quando se pôs a caminho, mas isso havia sido apenas para evitar que a cabeça latejasse. Merrett sentia a dor de cabeça preparando-se atrás dos olhos e sabia que se lhe desse meia oportunidade, em breve se sentiria como se tivesse uma trovoada entre as orelhas. Às vezes, as dores de cabeça eram tão fortes que até chorar doía demais. Então tudo o que conseguia fazer era ficar deitado na cama, num quarto escuro, com um pano úmido por cima dos olhos, e amaldiçoar a sorte e o fora da lei anônimo que lhe fizera aquilo.
Só de pensar nisso, ficava ansioso. Agora não podia se dar ao luxo de ter uma dor de cabeça. Se trouxer o Petyr de volta em segurança, a minha sorte mudará. Levava o ouro, tudo que tinha de fazer era subir ao topo de Pedravelhas, encontrar-se no castelo arruinado com os malditos fora da lei, e fazer a troca. Um simples resgate. Nem ele poderia estragar aquilo... a menos que tivesse uma dor de cabeça, uma tão forte que o deixasse incapaz de montar a cavalo. Devia estar nas ruínas até o pôr do sol, não choramingando enrolado sobre si mesmo à beira da estrada. Merrett esfregou as têmporas com dois dedos. Mais uma volta ao monte e estarei lá. Quando a mensagem tinha chegado e ele se ofereceu para levar o resgate, o pai olhou-o de viés e disse:
- Você, Merrett? - e desatou a rir pelo nariz, aquele hediondo heh, heh, heh que fazia quando ria. Merrett tinha sido praticamente obrigado a suplicar antes de lhe darem o maldito saco de ouro.
Algo se moveu na vegetação rasteira ao longo da beira da estrada. Merrett puxou as rédeas com força e levou a mão à espada, mas era apenas um esquilo.
- Estúpido - disse a si mesmo, voltando a enfiar a espada na bainha sem ter chegado a desembainhá-la por completo. - Os fora da lei não têm cauda. Maldito inferno, Merrett, controle-se. - Seu coração estava aos saltos no peito, como se fosse um rapazinho verde em sua primeira campanha. Como se esta fosse a mata do rei e eu me preparasse para enfrentar a antiga Irmandade, em vez do patético bando de salteadores do Senhor do Relâmpago. Por um momento sentiu-se tentado a dar meia-volta e trotar monte abaixo, em busca da cervejaria mais próxima. Aquele saco de ouro compraria um monte de cerveja, suficiente para que se esquecesse por completo de Petyr Espinha. Que o enforquem, foi ele que fez com que isso lhe acontecesse. Não é mais do que merece, depois de ir atrás de uma seguidora de acampamentos qualquer como se fosse um veado no cio.
Sua cabeça tinha começado a doer; por enquanto pouco, mas sabia que pioraria. Merrett esfregou a ponte do nariz. Na realidade não tinha nenhum direito de pensar tão mal de Petyr. Eu próprio fiz o mesmo quando era da idade dele. No seu caso, tudo que o ato tinha lhe custado foi uma gonorreia, mesmo assim não devia condenar o outro. As prostitutas tinham encantos, especialmente quando se tinha um rosto como o de Petyr. O pobre moço tinha uma esposa, com certeza, mas ela era metade do problema. Não só tinha o dobro de sua idade, como andava dormindo também com o irmão Walder, se o que se contava fosse verdade. Havia sempre muito falatório nas Gêmeas, e só uma pequena parte era verdade, mas naquele caso Merrett acreditava. Walder Negro era um homem que tomava aquilo que desejava, mesmo se fosse a mulher do irmão. Também possuíra a mulher de Edwyn, isso era de conhecimento geral. Sabia-se que a Bela Walda se enfiava em sua cama de tempos em tempos, e havia até quem dissesse que ele havia conhecido a sétima Senhora Frey bastante melhor do que deveria. Pouco admirava que se recusasse a se casar. Para que comprar uma vaca quando havia úberes por todo lado suplicando que os ordenhasse?
Praguejando em surdina, Merrett enfiou os calcanhares nos flancos do cavalo e retomou a subida. Por mais tentador que fosse detonar o ouro em bebida, sabia que se não voltasse com Petyr Espinha melhor seria não voltar nunca mais.
Lorde Walder faria noventa e dois anos em breve. Seus ouvidos tinham começado a fraquejar, os olhos já quase não funcionavam, e a gota estava tão ruim que tinha de ser carregado para todo lado. Todos os filhos concordavam que não era possível que durasse muito mais tempo. E quando ele se for, tudo mudará, e não para melhor. O pai era queixoso e teimoso, com uma vontade de ferro e uma língua viperina, mas acreditava em cuidar dos seus. De todos os seus, mesmo daqueles que lhe desagradaram e o desapontaram. Até daqueles de cujo nome não se lembra. Mas quando ele se fosse...
Quando Sor Stevron era o herdeiro, tudo era diferente. O velho passara sessenta anos treinando Stevron, e enfiou na cabeça dele que sangue era sangue. Mas Stevron tinha morrido em campanha com o Jovem Lobo no oeste - “da espera, sem dúvida", gracejou Lothar Coxo quando o corvo lhes trouxe a notícia -, e seus filhos e netos eram uma espécie diferente de Frey. Agora o herdeiro era o filho de Stevron, Sor Ryman; um homem obtuso, teimoso e ganancioso. E depois de Ryman vinham os filhos, Edwyn e Walder Negro, que eram ainda piores.
- Felizmente - disse uma vez Lothar Coxo - odeiam-se ainda mais um ao outro do que nos odeiam.
Merrett não tinha certeza de que isso fosse auspicioso, e, já agora, o próprio Lothar podia ser mais perigoso do que qualquer dos outros dois. Lorde Walder tinha ordenado o massacre dos Stark no casamento de Roslin, mas foi Lothar Coxo quem o planejou com Roose Bolton, até o ponto de escolher que canções seriam tocadas. Lothar era um tipo muito divertido para uma bebedeira em conjunto, mas Merrett nunca seria tolo o suficiente para lhe virar as costas. Nas Gêmeas aprendia-se bem cedo que só se podia confiar nos irmãos de pai e mãe, e mesmo nesses não até muito longe.
Era provável que quando o velho morresse fosse cada filho por si, e cada filha também. O novo Senhor da Travessia manteria nas Gêmeas, sem dúvida, alguns de seus tios, sobrinhos e primos, aqueles de que gostasse ou em quem confiasse, ou, o que era mais provável, aqueles que achasse que lhe seriam úteis. O resto de nós será posto para fora, para nos virarmos sozinhos.
A perspectiva preocupava Merrett mais do que as palavras podiam exprimir. Faria quarenta anos dentro de menos de três, era velho demais para adotar a vida de cavaleiro andante... mesmo se fosse um cavaleiro, o que no caso não era. Não possuía terras nem riquezas que fossem suas. Possuía as roupas que trazia no corpo mas não muito mais, nem mesmo o cavalo que montava. Não era suficientemente inteligente para ser um meistre, não era suficientemente piedoso para septão ou selvagem o bastante para mercenário. Os deuses não me deram nenhum dom além do nascimento, e mesmo aí limitaram-me. De que servia ser filho de uma Casa rica e poderosa, quando se era o nono filho? Quando se levava em conta os netos e bisnetos, Merrett tinha mais chances de ser escolhido Alto Septão do que de herdar as Gêmeas.
Não tenho sorte nenhuma, pensou amargamente. Nunca tive nenhuma maldita sorte. Era um homem grande, largo de peito e ombros, apesar da altura mediana. Ao longo dos últimos dez anos tornara-se mole e carnudo, bem sabia, mas quando era mais novo, Merrett tinha sido quase tão robusto quanto Sor Hosteen, seu irmão de pai e mãe mais velho, que era habitualmente considerado o mais forte dos filhos de Lorde Walder Frey. Quando garoto, tinha sido enviado para Crakehall, a fim de servir a família da mãe como pajem. Quando o velho Lorde Sumner fez dele escudeiro, todos assumiram que se tornaria Sor Merrett em não mais do que alguns anos, mas os fora da lei da Irmandade da Mata de Rei tinham cagado nesses planos. Enquanto seu colega escudeiro Jaime Lannister se cobria de glória, Merrett começou por pegar uma gonorreia de uma seguidora de acampamentos e depois conseguiu ser capturado por uma mulher, aquela que chamavam de Cerva Branca. Lorde Sumner resgatou-o dos fora da lei, mas na batalha seguinte foi derrubado com um golpe de maça que lhe quebrou o elmo e o deixou sem sentidos durante uma quinzena. Disseram-lhe mais tarde que todos julgaram que morreria.
Merrett não tinha morrido, mas seus dias de luta tinham terminado. Até a mais leve pancada na cabeça lhe causava uma dor que o cegava e o reduzia às lágrimas. Sob tais circunstâncias, a cavalaria estava fora de questão, disse-lhe Lorde Sumner, não sem gentileza. Foi enviado de volta às Gêmeas para enfrentar o venenoso desdém de Lorde Walder.
Depois disso a sorte de Merrett só piorou. O pai tinha conseguido de algum modo arranjar-lhe um bom casamento; casou-se com uma das filhas de Lorde Darry, na época em que os Darry ainda se mantinham numa posição elevada nos favores do Rei Aerys. Mas pareceu que assim que deflorou a sua noiva, Aerys perdeu o trono. Ao contrário dos Frey, os Darry tinham sido proeminentes lealistas Targaryen, o que lhes custou metade das terras, a maior parte da fortuna e quase todo o poder. E quanto à senhora sua esposa, achara-o uma grande desilusão desde o primeiro momento e insistiu em levar anos pondo no mundo nada mais do que meninas: três vivas, uma natimorta e outra que morreu na infância, antes de finalmente gerar um filho. A filha mais velha revelou-se uma devassa; a segunda, uma glutona. Quando Ami foi pega nos estábulos com nada menos do que três palafreneiros, foi forçado a casá-la com um maldito cavaleiro andante. Essa situação não podia se tornar pior, tinha pensado... até Sor Pate decidir que poderia ganhar renome derrotando Sor Gregor Clegane. Ami voltou correndo, transformada em viúva, para consternação de Merrett e indubitável deleite de todos os cavalariços das Gêmeas.
Merrett atreveu-se a esperar que a sua sorte estivesse finalmente mudando quando Roose Bolton escolheu casar-se com a sua Walda, em vez de alguma de suas primas mais magras e mais agradáveis à vista. A aliança Bolton era importante para a Casa Frey e a filha ajudara a garanti-la; tinha achado que aquilo certamente contaria para alguma coisa. O velho rapidamente o desenganou.
- Ele escolheu-a porque é gorda - disse Lorde Walder. - Pensa que o Bolton não esteve se cagando para o fato de ser cria sua? Acha que ele se sentou para pensar: “Heh, Merrett Cabeça de Carneiro, é esse mesmo o homem de que preciso para meu sogro? Sua Walda é uma porca vestida de seda, foi por isso que ele a escolheu, e eu não vou lhe agradecer por isso. Teríamos obtido a mesma aliança por metade do preço, se a sua porquinha largasse a colher de vez em quando.”
A humilhação final foi entregue com um sorriso, quando Lothar Coxo o chamou para discutir o seu papel no casamento de Roslin.
- Todos temos de desempenhar o nosso papel, de acordo com os nossos dons - tinha dito o meio-irmão. - Você terá uma tarefa e só uma, Merrett, mas creio que está habilitado para ela. Quero que se assegure de que o Grande-Jon Umber fique tão bêbado que quase não consiga manter-se em pé, quanto mais lutar.
E mesmo nisso falhei. Levou o enorme nortenho a beber vinho suficiente para matar três homens normais, mas depois de Roslin ter sido levada para a cama, o Grande-Jon ainda conseguiu tirar a espada do primeiro homem que o abordou, quebrando o braço dele ao fazê-lo. Tinham sido precisos oito homens para acorrentá-lo, e o esforço deixou dois homens feridos, um morto e o pobre e velho Sor Leslyn Haigh com uma orelha a menos. Quando deixou de conseguir lutar com as mãos, Umber lutou com os dentes.
Merrett fez um momento de pausa e fechou os olhos. Sua cabeça latejava como aquele maldito tambor que havia sido tocado no casamento, e durante um momento foi com dificuldade que conseguiu se manter na sela. Tenho de continuar, disse a si mesmo. Se pudesse trazer de volta o Petyr Espinha, isso certamente o poria nas boas graças de Sor Ryman. Petyr podia ser um ramo do lado sem sol, mas não era tão frio quanto Edwyn nem tão quente quanto o Walder Negro. O rapaz ficará grato por meu papel, e o seu pai verá que sou leal, um homem que vale a pena ter por perto.
Mas só se estivesse lá com o ouro até o pôr do sol. Merrett olhou o céu de relance. Bem a tempo. Precisava de algo para firmar suas mãos. Puxou o odre que pendia da sela, tirou a rolha dele e bebeu um longo trago. O vinho era espesso e doce, tão escuro que quase chegava a ser negro, mas, deuses, era bom.
A muralha exterior de Pedravelhas rodeara em outros tempos o cume do monte como uma coroa adorna a cabeça de um rei. Só restavam as fundações e algumas pilhas de pedras partidas e manchadas de líquenes que lhe davam na altura da cintura. Merrett avançou ao longo da linha da muralha até chegar ao local onde a guarita deveria existir. As ruínas eram mais abundantes ali, e ele teve de desmontar para atravessá-las com o palafrém. A oeste, o sol havia desaparecido atrás de um banco de nuvens baixas. Tojo e fetos cobriam as vertentes, e dentro das muralhas desaparecidas as ervas daninhas batiam em sua cintura. Merrett desprendeu a espada dentro da bainha e olhou em volta com cautela, mas não viu nenhum fora da lei. Será que vim no dia errado? Parou e esfregou as têmporas com os polegares, mas isso em nada contribuiu para aliviar a pressão por trás de seus olhos. Sete malditos infernos...
De algum lugar, bem dentro do castelo, uma música tênue chegou-lhe por entre as árvores.
Merrett viu-se tremendo, apesar do manto. Abriu o odre e bebeu outro gole de vinho. Podia simplesmente voltar, cavalgar para Vilavelha e detonar o ouro em bebida. Nunca se conseguia nada de bom tratando com um bando de fora da lei. Aquela vil cadela da Wenda tinha marcado sua nádega com uma cerva quando o teve cativo. Não admirava que a esposa o desprezasse. Tenho de levar isto até o fim. Petyr Espinha poderá ser um dia Senhor da Travessia, Edwyn não tem filhos eWalder Negro só tem bastardos. Petyr vai se lembrar de quem veio buscá-lo. Bebeu outro gole, devolveu a rolha ao odre e levou o palafrém através de pedras quebradas, tojo e árvores esguias chicoteadas pelo vento, seguindo os sons até o que tinha sido o pátio do castelo.
Folhas caídas jaziam em grande número no chão, como soldados após alguma grande matança. Um homem vestido de traje verde remendado e desbotado estava sentado de pernas cruzadas num desgastado sepulcro de pedra, dedilhando as cordas de uma harpa. A música era suave e triste. Merrett conhecia a canção. No alto dos salões dos reis que partiram, Jenny dançava com os seus fantasmas...
- Saia daí - disse Merrett. - Está sentado em cima de um rei.
- O velho Tristifer não vai se importar com o meu traseiro ossudo. Chamavam-lhe o Martelo da Justiça. Há muito tempo que não ouve canções novas. - O fora da lei saltou para o chão. Saudável e magro, tinha um rosto estreito e feições de raposa, mas a boca era tão larga que o sorriso parecia tocar suas orelhas. Algumas madeixas de cabelo castanho eram sopradas sobre a sua testa. Empurrou-as para trás com a mão livre e disse:
- Lembra-se de mim, senhor?
- Não. - Merrett franziu a testa. - Por que haveria de me lembrar?
- Cantei no casamento de sua filha. E creio que bastante bem. Aquele Pate com quem ela se casou era meu primo. Somos todos primos em Seterrios. Isso não o impediu de se tornar sovina quando chegou a hora de me pagar. - Encolheu os ombros. - Por que é que o senhor seu pai nunca me chamou para tocar nas Gêmeas? Será que não faço barulho suficiente para sua senhoria? Segundo o que tenho ouvido, ele gosta da coisa barulhenta.
- Traz o ouro? - perguntou uma voz mais ríspida, atrás de si.
A garganta de Merrett estava seca. Malditos fora da lei, sempre escondidos nos arbustos. Tinha sido a mesma coisa na mata do rei; apanhava-se cinco deles, e outros dez saltavam de lugar nenhum.
Quando se virou, rodeavam-no por todos os lados; um infeliz bando de velhos com rosto enrugado e rapazes de face lisa, mais novos do que o Petyr Espinha, todos eles vestidos de farrapos de tecido grosseiro, couro fervido e partes de armaduras pertencentes a homens mortos. Havia uma mulher com eles, enrolada num manto com capuz que era três vezes maior do que devia ser para lhe servir. Merrett estava perturbado demais para contá-los, mas pareciam ser pelo menos uma dúzia, talvez uma vintena.
- Eu fiz uma pergunta. - Quem falou foi um homem grande e barbudo com dentes tortos e verdes e um nariz quebrado; mais alto do que Merrett, embora não tão pesado na barriga. Um meio-elmo cobria sua cabeça e um remendado manto amarelo, os ombros largos. - Onde está seu ouro?
- No alforje. Cem dragões de ouro. - Merrett pigarreou. - Vão recebê-los quando eu vir que Petyr...
Um fora da lei atarracado e zarolho avançou antes de ele conseguir terminar, estendeu a mão para o alforje com uma ousadia que só vendo e encontrou o saco. Merrett fez um movimento para agarrá-lo, mas depois pensou duas vezes. O fora da lei abriu o cordel, tirou uma moeda e mordeu-a.
- Tem o sabor certo. - Sopesou o saco. - E também tem o peso certo.
Eles vão roubar o ouro e ficar com Petyr, pensou Merrett num súbito pânico.
- Isso é o resgate completo. Tudo que pediram. - As palmas de suas mãos suavam. Limpou-as nos calções. - Qual de vocês é Beric Dondarrion? - Dondarrion era um senhor antes de se tornar fora da lei, podia ainda ser um homem de honra.
- Ora, sou eu - disse o zarolho.
- É um diabo de um mentiroso, Jack - disse o barbudo grande com o manto amarelo.
- É a minha vez de ser Lorde Beric.
- Isso quer dizer que eu tenho de ser Thoros? - o cantor riu. - Senhor, lamento dizer, mas Lorde Beric foi exigido em outro local. Os tempos que correm são difíceis, e há muitas batalhas a travar. Mas nós lidaremos com você tal como ele lidaria, nada tema.
Merrett temia muitas coisas. E a cabeça latejava. Muito mais daquilo, e estaria soluçando.
- Vocês têm o seu ouro - disse. - Deem-me o meu sobrinho, e eu vou embora. - Petyr era na realidade um meio-sobrinho-neto, mas não havia necessidade de entrar nesses detalhes.
- Ele está no bosque sagrado - disse o homem com o manto amarelo. - Vamos levá-lo até ele. Notch, segure o cavalo dele.
Merrett entregou relutantemente o arreio. Não via outra alternativa.
- Meu odre - ouviu-se dizendo. - Um gole de vinho, para sossegar a minha...
- Nós não bebemos com gente como você - disse bruscamente o do manto amarelo.
- É por aqui. Siga-me.
Folhas esmagaram-se sob os calcanhares do grupo, e cada passo enfiou um espeto de dor nas têmporas de Merrett. Caminharam em silêncio, com o vento soprando em rajadas em volta deles. Tinha nos olhos a última luz do sol poente enquanto ia tropeçando nos montículos cobertos de musgo que eram tudo o que restava da fortaleza. Atrás dela ficava o bosque sagrado.
Petyr Espinha pendia do galho de um carvalho, com um nó corredio bem apertado em volta de seu pescoço longo e esguio. Os olhos saltavam de um rosto negro, olhando acusadoramente para Merrett. Chegou tarde demais, pareciam dizer. Mas não tinha chegado. Não tinha! Veio quando lhe tinham dito para vir.
- Mataram-no - coaxou.
- Inteligência aguçada como uma agulha, a deste -, disse o zarolho.
Um auroque trovejava na cabeça de Merrett. Mãe, misericórdia, pensou.
- Eu trouxe o ouro.
- Isso foi bom de sua parte - disse amigavelmente o cantor. - Vamos nos certificar de que lhe seja dado bom uso.
Merrett afastou os olhos de Petyr. Sentia o sabor da bílis na garganta.
- Vocês... vocês não tinham direito de fazer isso.
- Tínhamos uma corda - disse o do manto amarelo. - Isso é direito suficiente.
Dois dos fora da lei agarraram os braços de Merrett e ataram-nos firmemente por trás das costas. Estava num choque profundo demais para oferecer resistência.
- Não - foi tudo que conseguiu dizer. - Eu só vim resgatar o Petyr. Disseram que se tivessem o ouro até o pôr do sol não lhe fariam mal...
- Bem - disse o cantor -, com essa nos pegou, senhor. Acontece que isso foi uma espécie de mentira.
O fora da lei zarolho avançou com um longo rolo de corda de cânhamo. Enrolou uma ponta em volta do pescoço de Merrett, apertou-a bem, e atou um nó forte por baixo de sua orelha. A outra ponta foi atirada por cima do galho do carvalho. O grandalhão do manto amarelo pegou-a.
- O que está fazendo? - Merrett sabia como aquilo parecia estúpido, mas não conseguia acreditar no que estava acontecendo, mesmo então. - Nunca se atreveriam a enforcar um Frey.
O do manto amarelo soltou uma gargalhada.
- Aquele outro, o rapaz das espinhas, disse a mesma coisa.
Ele não fala a sério. Não pode falar a sério.
- Meu pai vai pagá-los. Eu valho um grande resgate, mais do que Petyr, duas vezes mais.
O cantor suspirou.
- Lorde Walder pode estar meio cego e artrítico, mas não é tão burro para morder a mesma isca duas vezes. Temo que da próxima vez envie uma centena de espadas em vez de uma centena de dragões.
- E enviará mesmo! - Merrett tentou soar severo, mas a voz traiu-o. - Enviará mil espadas e matará todos vocês.
- Tem de nos pegar primeiro. - O cantor olhou de relance o pobre Petyr. - E não pode nos enforcar duas vezes, não é? - arrancou um acorde melancólico das cordas de sua harpa. - Vamos, não se borre todo. Tudo que tem de fazer é responder-me uma pergunta, e eu direi para o deixarem partir.
Merrett diria qualquer coisa se isso quisesse dizer que salvaria a vida.
- O que você quer saber? Direi a verdade, juro.
O fora da lei dirigiu-lhe um sorriso encorajador.
- Bem, acontece que andamos à procura de um cão que fugiu.
- Um cão? - Merrett não estava entendendo. - Que tipo de cão?
- Ele responde pelo nome de Sandor Clegane. Thoros diz que se dirigia às Gêmeas. Encontramos os barqueiros que fizeram a travessia do Tridente com ele, e o pobre diabo que assaltou na estrada do rei. Por acaso o viu no casamento?
- No Casamento Vermelho? - Merrett sentia-se como se o crânio estivesse prestes a explodir, mas fez o melhor que pôde para se lembrar. Houve tanta confusão, mas certamente alguém teria falado do cão de Joffrey se o tivessem visto farejando em volta das Gêmeas. - Ele não estava no castelo. Pelo menos não no banquete principal... pode ter estado no banquete bastardo, ou nos acampamentos, mas... não, alguém teria dito...
- Ele estaria acompanhado por uma criança - disse o cantor. - Uma menina magricela, com cerca de dez anos. Ou talvez um garoto da mesma idade.
- Acho que não - disse Merrett. - Que eu saiba, não.
- Não? Ah, que pena. Bem, então vai subir.
- Não - guinchou Merrett sonoramente. - Não, não faça isso, eu dei a sua resposta, disse que me deixaria partir.
- Parece-me que o que eu disse foi que lhes diria para deixarem-no partir. - O cantor olhou para o do manto amarelo. - Limo, deixe-o partir.
- Vá se foder - replicou bruscamente o fora da lei grandalhão.
O cantor ofereceu a Merrett um encolher de ombros impotente e começou a tocar “O dia em que enforcaram o Robin Negro".
- Por favor. - O resto da coragem de Merrett escorria-lhe perna abaixo. - Eu não lhes fiz mal. Trouxe o ouro, como ordenaram. Respondi à pergunta. Tenho filhos.
- Que o Jovem Lobo nunca terá - disse o fora da lei zarolho.
Merrett quase não conseguia pensar devido ao latejar na sua cabeça.
- Ele envergonhou-nos, o reino inteiro estava rindo, tínhamos de limpar a mancha em nossa honra. - O pai tinha dito tudo aquilo e mais ainda.
- Talvez. O que sabe uma porcaria de um bando de camponeses sobre a honra de um lorde? - o do manto amarelo deu três voltas ao redor da mão com a ponta da corda. - Mas sabemos umas coisas a respeito de assassinato.
- Não foi assassinato. - Tinha a voz esganiçada. - Foi vingança, nós tínhamos direito à nossa vingança. Foi a guerra. Aegon, nós o chamávamos de Guizo, um pobre débil mental que nunca fez mal a ninguém, a Senhora Stark cortou a goela dele. Perdemos meia centena de homens nos acampamentos. Sor Garse Goodbrook, marido de Kyra, e Sor Tytos, filho de Jared... alguém esmagou a cabeça dele com um machado... o lobo gigante do Stark matou quatro de nossos lobeiros e arrancou o braço do mestre dos canis de seu ombro, mesmo depois de o enchermos de dardos...
- E por isso costurou a cabeça dele ao pescoço de Robb Stark depois que os dois estavam mortos - disse o do manto amarelo.
- Foi o meu pai que fez isso. Tudo o que eu fiz foi beber. Não mataria um homem por beber. - Merrett lembrou-se então de uma coisa, uma coisa que podia ser a sua salvação. - Dizem que Lorde Beric sempre concede um julgamento, que não mata nenhum homem a menos que algo seja provado contra ele. O Casamento Vermelho foi obra de meu pai, e de Ryman e de Lorde Bolton. Lothar armou as tendas de maneira a caírem e pôs os besteiros na galeria com os músicos, Walder Bastardo liderou o ataque aos acampamentos... são eles que querem, não eu, eu só bebi um pouco de vinho... vocês não têm testemunhas.
- Pois acontece que aí se engana. - O cantor virou-se para a mulher encapuzada. - Senhora?
Os fora da lei afastaram-se quando ela avançou, sem dizer palavra. Quando abaixou o capuz, algo se apertou no peito de Merrett, e por um momento não conseguiu respirar. Não. Não, eu a vi morrer. Ela esteve morta durante um dia e uma noite antes de despirem-na e atirarem seu corpo no rio. Raymund abriu a garganta dela de orelha a orelha. Ela estava morta.
O manto e o colarinho escondiam o golpe que a lâmina do irmão tinha feito, mas seu rosto estava em estado pior ainda do que ele se lembrava. A carne tornara-se esponjosa na água e tomara a cor do leite coalhado. Metade dos cabelos tinha desaparecido, e o resto ficou tão branco e quebradiço como o de uma velha. Sob o couro cabeludo destroçado, o rosto era feito de pele rasgada e sangue negro, nos locais em que a cortara com as próprias unhas. Mas os olhos eram aquilo que tinha de mais terrível. Os olhos viam-no, e o odiavam.
- Ela não fala - disse o homem grande do manto amarelo. - Vocês, malditos bastardos, cortaram a garganta dela fundo demais para isso. Mas ela lembra-se. - Virou-se para a morta e disse: - O que diz, senhora? Ele participou?
Os olhos da Senhora Catelyn não o deixaram por um instante. Assentiu com a cabeça.
Merrett Frey abriu a boca para suplicar, mas o nó corredio afogou suas palavras. Seus pés deixaram o chão, enquanto a corda cortava profundamente a carne mole por baixo de seu queixo. Subiu, esperneando e torcendo-se, subiu, subiu, e subiu.
Apêndice
JOFFREY BARATHEON, o Primeiro do Seu Nome, um rapaz de treze anos, filho mais velho do Rei Robert Baratheon e da Rainha Cersei, da Casa Lannister.
- sua mãe, RAINHA CERSEI, Rainha Regente e Protetora do Reino.
- espadas a serviço de Cersei:
- Osfryd KETTLEBLACK, irmão mais novo de Sor Osmund Kettleblack da Guarda Real.
- OSNEY KETTLEBLACK, o mais novo dos irmãos de Sor Osmund Kettleblack da Guarda Real.
- sua irmã, PRINCESA MYRCELLA, uma menina de nove anos, protegida do Príncipe Doran Martell, em Lançassolar.
- seu irmão, PRÍNCIPE TOMMEN, um menino de oito anos, herdeiro do Trono de Ferro.
- seu avô, Tywin LANNISTER, Senhor de Rochedo Casterly, Protetor do Oeste e Mão do Rei.
- seus tios e primos paternos:
- o irmão de seu pai, STANNIS BARATHEON, senhor rebelde de Pedra do Dragão, autointitulado rei.
- a filha de Stannis, SHIREEN, uma menina de onze anos.
- o irmão de seu pai, RENLY BARATHEON , senhor rebelde de Ponta Tempestade, assassinado no meio de seu exército.
- o irmão de sua avó, SOR ELDON ESTERMONT.
- o filho de Sor Eldon, SOR AEMON ESTERMONT.
- o filho de Sor Aemon, SOR Alyn ESTERMONT,
- seus tios e primos maternos:
- o irmão de sua mãe, SOR JAIME LANNISTER, dito REGICIDA, cativo em Correrrio,
- o irmão de sua mãe,
Tyrion LANNISTER, dito DUENDE, ferido na Batalha da Água Negra,
- o escudeiro de Tyrion, PODRICK PAYNE,
- o comandante da guarda de Tyrion, SOR Bronn DA ÁGUA NEGRA, antigo mercenário,
- a concubina de Tyrion, Shae, uma seguidora de acampamentos, agora servindo como aia de Lollys Stokeworth,
- o irmão de seu avô, SOR KEVAN LANNISTER,
- o filho de Sor Kevan, SOR LANCEL LANNISTER, antigo escudeiro do Rei Robert, ferido na Batalha da Água Negra, moribundo,
- o irmão de seu avô, Tygett LANNISTER , morto de varíola,
- o filho de Tygett, Tyrek LANNISTER, um escudeiro, desaparecido desde o grande tumulto,
- a esposa bebê de Tyrek, a SENHORA ERMESANDE HAYFORD,
- seus irmãos ilegítimos, bastardos do Rei Robert:
- Mya Stone, uma donzela de dezenove anos, a serviço de Lorde Nestor Royce, nos Portões da Lua,
- GENDRY, um aprendiz de ferreiro, fugitivo nas terras fluviais e ignorante de sua linhagem,
- EDRIC Storm, o único filho bastardo reconhecido pelo Rei Robert, protegido do tio Stannis em Pedra do Dragão,
- sua Guarda Real:
- SOR JAIME LANNISTER, Senhor Comandante,
- SOR Meryn Trant,
- SOR BALON Swann,
- SOR Osmund KETTLEBLACK,
- SOR LORAS Tyrell, o Cavaleiro das Flores,
- SOR Arys OAKHEART,
- seu pequeno conselho:
- LORDE Tywin LANNISTER, Mão do Rei,
- SOR KEVAN LANNISTER, mestre das leis,
- LORDE Pityr BAELISH, dito MINDINHO, mestre da moeda,
- Varys, um eunuco, dito ARANHA, mestre dos segredos,
- LORDE MACE Tyrell, mestre dos navios,
- GRANDE MEISTRE PYCELLE,
- sua corte e seus servidores:
- SOR Ilyn PAYNE, o Magistrado do Rei, um carrasco,
- LORDE HALLYNE, O PIROMANTE, um sábio da Guilda dos Alquimistas,
- RAPAZ LUA, um bobo,
- Ormond DE VILAVELHA, o harpista e bardo real,
- DONTOS HOLLARD, um bobo e bêbado, anteriormente um cavaleiro chamado SOR DONTOS, O VERMELHO,
- JALABHAR Xho, Príncipe do Vale da Flor Vermelha, exilado das Ilhas do Verão,
- SENHORA TANDA STOKEWORTH,
- sua filha, FALYSE, casada com Sor Balman Byrch,
- sua filha, Lollys, de trinta e quatro anos, por casar e de fraca inteligência, à espera de um bebê após ter sido violada,
- seu curandeiro e conselheiro, MEISTRE FRENKEN,
- LORDE Gyles ROSBY, um velho enfermiço,
- SORTALLARD, um promissor jovem cavaleiro,
- LORDE MORROS Slynt, um escudeiro, filho mais velho do antigo Comandante da Patrulha da Cidade,
- JOTHOS Slynt, seu irmão mais novo, um escudeiro,
- DANOS Slynt, ainda mais novo, um pajem,
- SOR BOROS Blount, um ex-cavaleiro da Guarda Real, demitido por covardia pela Rainha Cersei,
- Josmyn PECKLEDON, um escudeiro, e um herói da Batalha da Água Negra,
- SOR Philip FOOTE, nomeado Senhor da Marcha por seu valor durante a Batalha da Água Negra,
- LOTHOR BRUNE, chamado LOTHOR PAPA-MAÇÃS por seus feitos durante a Batalha da Água Negra, um ex-cavaleiro livre a serviço de Lorde Baelish,
- outros senhores e cavaleiros em Porto Real:
- MATHIS ROWAN, Senhor de Bosquedouro,
- PAXTER REDWYNE, Senhor da Árvore,
- os filhos gêmeos de Lorde Paxtrer, SOR HORAS e SOR HOBBER, escarnecidos como HORROR e BABEIRO,
- o curandeiro de Lorde Redwyne, MEISTRE BALLABAR,
- ARDRIAN CELTIGAR, Senhor da Ilha da Garra,
- LORDE ALESANDER STAEDMON, dito MOEDÓFILO,
- SOR BONIFER HASTY, dito O BOM, um cavaleiro afamado,
- SOR DONNEL Swann, herdeiro de Pedrelmo,
- SOR RONNET CONNINGTON, dito RONNET, O VERMELHO, o Cavaleiro do Poleiro do Grifo,
- AURANE Waters, o Bastardo de Derivamarca,
- SOR DERMOT DA MATA DE CHUVA, um cavaleiro afamado,
- SOR TIMON SCRAPESWORD, um cavaleiro afamado,
- o povo de Porto Real:
- a Patrulha da Cidade (os“homens de manto dourado”):
- SORJACELYN BYWATER, dito MÃO DE FERRO , Comandante da Patrulha da Cidade, morto por seus próprios homens durante a Batalha da Água Negra,
- SOR ADDAM MARBRAND, Comandante da Patrulha da Cidade, sucessor de Sor Jacelyn,
- CHATAYA, dona de um bordel de luxo,
- ALAYAYA, sua filha,
- DANCY, MAREI, JAYDE, garotas de Chataya,
- TOBHO Mott, um mestre armeiro,
- PANÇA DE FERRO, um ferreiro,
- Hamish, O HARPISTA, um cantor afamado,
- COLLIO QUAYNIS, um cantor de Tyrosh,
- BETHANY DEDOS-BELOS, uma cantora,
- ALARIC DE EYSEN, um cantor, muito viajado,
- GALYEON DE CUY, um cantor, notório pela duração de suas canções,
- Symon LÍNGUA DE PRATA, um cantor,
A bandeira do Rei Joffrey ostenta o veado coroado dos Baratheon, negro sobre dourado, e o leão dos Lannister, dourado sobre carmesim, combatente.
Robb Stark, Senhor de Winterfell, Rei no Norte e Rei do Tridente, filho mais velho de Eddard Stark, Senhor de Winterfell, e da Senhora Catelyn, da Casa Tully,
- seu lobo gigante, VENTO CINZENTO,
- sua mãe, SENHORA CATELYN, da Casa Tully, viúva de Lorde Eddard Stark,
- seus irmãos:
- sua irmã, PRINCESA SANSA, uma donzela de doze anos, cativa em Porto Real,
- a loba gigante de Sansa LADY , morta no Castelo de Darry,
- sua irmã, PRINCESA ARYA, uma menina de dez anos, desaparecida e julgada morta,
- a loba gigante de Arya, NYMERIA, perdida perto do Tridente,
- seu irmão, PRÍNCIPE BRANDON, dito BRAN, herdeiro do Norte, um menino de oito anos, julgado morto,
- o lobo gigante de Bran, VERÃO,
- os companheiros e protetores de Bran:
- MEERA REED, uma donzela de dezesseis anos, filha de Lorde Howland Reed da Atalaia da Água Cinzenta,
- JOJEN REED, o seu irmão, de treze anos,
- HODOR, um cavalariço simplório, com dois metros e dez de altura,
- seu irmão, PRÍNCIPE RICKON, um menino de quatro anos, julgado morto,
- o lobo gigante de Rickon, CÃO-FELPUDO,
- a companheira e protetora de Rickon:
- OSHA, uma cativa selvagem, que servia como ajudante de cozinha em Winterfell,
- seu meio-irmão, JON Snow, um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite,
- o lobo gigante de Jon, FANTASMA,
- seus tios e tias paternos:
- o irmão mais velho do pai, BRANDON Stark , assassinado por ordem do Rei Aerys II Targaryen,
- a irmã do pai, Lyanna Stark , morta nas Montanhas de Dorne durante a Rebelião de Robert,
- o irmão mais novo do pai, BENJEN Stark, um homem da Patrulha da Noite, perdido para lá da Muralha,
- seus tios, tias e primos maternos:
- a irmã mais nova da mãe, Lysa Arryn, Senhora do Ninho da Águia e viúva de Lorde Jon Arryn,
- seu filho, Robert Arryn, Senhor do Ninho da Águia,
- o irmão mais novo da mãe, SOR EDMURE TULLY, herdeiro de Correrrio,
- o irmão de seu avô, SOR BRYNDEN TULLY, dito PEIXE NEGRO,
- as espadas a ele juramentadas e os companheiros de batalha:
- seu escudeiro, OLYVAR FREY,
- SOR WENDEL MANDERLY, segundo filho do Senhor de Porto Branco,
- PATREK MALLISTER, herdeiro de Guardamar,
- DACEY MORMONT, filha mais velha da Senhora Maege Mormont e herdeira da Ilha dos Ursos,
- JON UMBER, dito PEQUENO-JON, herdeiro da Última Lareira,
- DONNEL LOCKE, OWEN NORREY, ROBIN Flint, nortenhos,
- os senhores seus vassalos capitães e comandantes:
- (com o exército de Robb nas terras ocidentais)
- SOR BRYNDEN TULLY, o PEIXE NEGRO, comandando os batedores,
- JON UMBER, chamado GRANDE-JON, comandando a vanguarda,
- RICKARD KARSTARK, Senhor de Karhold,
- GALBART GLOVER, Senhor de Bosque Profundo,
- MAEGE MORMONT, Senhora da Ilha dos Ursos,
- SOR STEVRON FREY , filho mais velho de Lorde Wälder Frey e herdeiro das Gêmeas, morto em Cruzaboi,
- o filho mais velho de Sor Stevron, SOR Ryman FREY,
- o filho de Sor Ryman, WALDER NEGRO FREY,
- Martyn Rivers, filho bastardo de Lorde Walder Frey,
- (com a tropa de Roose Bolton, em Harrenhal)
- ROOSE BOLTON, Senhor do Forte do Pavor,
- SOR Aenys FREY, SOR JARED FREY, SOR HOSTEEN FREY, SOR DANWELL FREY,
- o meio-irmão bastardo deles, RONEL Rivers,
- SOR Wylis MANDERLY, herdeiro de Porto Branco,
- SOR Kuyle CONDON, um cavaleiro a seu serviço,
- RONEL Stout,
- VARGO HOAT, da Cidade Livre de Qohor, comandante de uma companhia de mercenários, os Bravos Companheiros,
- seu tenente, URSWYCK, dito O FIEL,
- seu tenente, SEPTÃO Utt,
- TIMEON DE DORNE, RORGE, IGGO, ZOLLO, O GORDO, DENTADAS, Togg Joth de Ibben, Pyg, TRÊS DEDOS, os seus homens,
- Qyburn, um meistre sem corrente e ocasional necromante, seu curandeiro,
- (com o exército nortenho no ataque de Valdocaso)
- Robett GLOVER, de Bosque Profundo,
- SOR HELMAN TALLHART, de Praça de Torrhen,
- HARRION KARSTARK, único filho sobrevivente de Lorde Rickard Karstark e herdeiro de Karhold,
- (em viagem para o norte com os ossos de Lorde Eddard)
- HALLIS MOLLEN, capitão dos guardas de Winterfell,
- Jacks, Quent, Shadd, guardas,
- os senhores seus vassalos e castelões no norte:
- Wyman MANDERLY, Senhor de Porto Branco,
- HOWLAND REED, Senhor da Atalaia da Água Cinzenta, um cranogmano,
- Mors UMBER, dito PAPA-CORVOS, HOTHER UMBER, dito TERROR-DAS-RAMEIRAS, tios do Grande-Jon Umber, cocastelões da Ultima Lareira,
- Lyessa Flint, Senhora da Atalaia da Viúva,
- ONDREW LOCKE, Senhor de Castelovelho, um velho,
- CLEY Cerwyn , Senhor de Cerwyn, um rapaz de catorze anos, morto em batalha em Winterfell,
- sua irmã, JONELLE Cerwyn, uma donzela de trinta e dois anos, agora a Senhora de Cerwyn,
- LEOBALD TALLHART , irmão mais novo de Sor Helman, castelão em Praça de Torrhen, morto em batalha em Winterfell,
- a esposa de Leobald, BERENA, da Casa Hornwood,
- o filho de Leobald, BRANDON, um rapaz de catorze anos,
- o filho de Leobald, BEREN, um menino de dez anos,
- o filho de Sor Helman, BENFRED , morto por homens de ferro na Costa Pedregosa,
- a filha de Sor Helman, EDDARA, uma menina de nove anos, herdeira de Praça de Torrhen,
- SENHORA SYBELLE, esposa de Robett Glover, cativa de Asha Greyjoy em Bosque Profundo,
- o filho de Robett, GAWEN, de três anos, legítimo herdeiro do Bosque Profundo, cativo de Asha Greyjoy,
- a filha de Robett, ERENA, um bebê de um ano, cativa de Asha Greyjoy em Bosque Profundo,
- LARENCE Snow, um filho bastardo de Lorde Hornwood e protegido de Galbart Glover, com treze anos, cativo de Asha Greyjoy em Bosque Profundo.
A bandeira do Rei no Norte permanece igual à que foi durante milhares de anos: o lobo gigante cinza dos Stark de Winterfell, correndo por um campo branco de gelo.
STANNIS BARATHEON, o Primeiro do Seu Nome, segundo filho de Lorde Steffron Baratheon e da Senhora Cassana da Casa Estermont, anteriormente Senhor de Pedra do Dragão,
- sua esposa, SENHORA SELYSE, da Casa Florent,
- a PRINCESA SHIREEN, sua filha, uma menina de onze anos,
- CARA-MALHADA, seu bobo louco,
- seu sobrinho ilegítimo, EDRIC Storm, um rapaz de doze anos, filho bastardo do Rei Robert e de Delena Florent,
- seus escudeiros, DEVAN SEAWORTH e BRYEN FARRING,
- sua corte e servidores:
- LORDE ALESTER FLORENT, Senhor da Fortaleza de Águas Claras e Mão do Rei, tio da rainha,
- SOR Axell FLORENT, castelão de Pedra do Dragão e líder dos homens da rainha, tio da rainha,
- SENHORA MELISANDRE DE ASSHAI, dita MULHER VERMELHA, sacerdotisa de Rhllor, o Senhor da Luz, Deus da Chama e da Sombra,
- MEISTRE Pylos, curandeiro, tutor, conselheiro,
- SOR DAVOS SEAWORTH, dito CAVALEIRO DAS CEBOLAS e às vezes MÃO-CURTA, antigo contrabandista,
- a esposa de Davos, SENHORA MARYA, filha de um carpinteiro,
- seus sete filhos:
- DALE , perdido na Água Negra,
- Allard , perdido na Água Negra,
- MATTHOS , perdido na Água Negra,
- MARIC , perdido na Água Negra,
- DEVAN, escudeiro do Rei Stannis,
- STANNIS, um menino de nove anos,
- STEFFON, um menino de seis anos,
- SALLADHOR SAAN, da Cidade Livre de Lys, autointitulado Príncipe do Mar Estreito e Senhor da Baía da Água Negra, dono da galé Valiriana e de uma frota de galés irmãs daquela,
- MEIZO Mahr, um eunuco por ele contratado,
- KHORANE SATHMANTES, comandante de sua galé Dança de Shayala,
- MINGAU” e“LAMPREIA” dois carcereiros,
- os senhores seus vassalos:
- MONTERYS VELARYON, Senhor das Marés e Mestre de Derivamarca, um menino de seis anos,
- DURAM BAR EMMON, Senhor de Ponta Aguda, um rapaz de quinze anos,
- SOR GILBERT FARRING, castelão de Ponta Tempestade.
- LORDE ELWOOD MEADOWS, ajudante de campo de Sor Gilbert,
- MEISTRE JURNE, conselheiro e curandeiro de Sor Gilbert,
- LORDE LUCOS CHYTTERING, dito PEQUENO LUCOS, um rapaz de dezesseis anos,
- LESTER MORRIGEN, Senhor do Ninho de Corvo,
- seus cavaleiros e espadas juramentadas:
- SOR LOMAS ESTERMONT, tio do rei pelo lado materno,
- seu filho, SOR ANDREW ESTERMONT,
- SOR ROLLAND Storm, dito BASTARDO DE NOCTICANTIGA, filho ilegítimo do falecido Lorde Bryen Caron,
- SOR PARMEN CRANE, dito PARMEN PÚRPURA, cativo em Jardim de Cima,
- SOR ERREN FLORENT, irmão mais novo da Rainha Selyse, cativo em Jardim de Cima,
- SOR Gerald GOWER,
- SOR TRISTON DE MONTE DA TALHA, anteriormente a serviço de Lorde Guncer Sunglass,
- Lewys, dito ESPOSA DE PEIXES,
- OMER BLACKBERRY,
Rei Stannis escolheu como símbolo o coração em chamas do Senhor da Luz: um coração vermelho rodeado por chamas cor de laranja sobre fundo amarelo-vivo. No interior do coração encontra-se retratado o veado coroado da Casa Baratheon, de negro.
DAENERYS TARGARYEN, a Primeira do Seu Nome, Khaleesi dos dothraki, dita Daenerys, FILHA DA TORMENTA, a NÃO QUEIMADA, MÃE DE DRAGÕES, única herdeira sobrevivente de Aerys II Targaryen, viúva de Khal Drogo dos dothraki,
- seus dragões em crescimento, DROGON, VISERION, RHAEGAL,
- sua Guarda Real:
- SOR JORAH MORMONT, antigo Senhor da Ilha dos Ursos, exilado por traficar escravos,
- Jhogo, ko e companheiro de sangue, o chicote,
- AGGO, ko e companheiro de sangue, o arco,
- RAKHARO, ko e companheiro de sangue, o arakh,
- BELWAS, O FORTE, um eunuco, ex-escravo nos fossos de luta de Meereen,
- seu escudeiro idoso, ARSTAN, dito BARBA-BRANCA; um homem de Westeros,
- suas aias:
- IRRI, uma moça dothraki, de quinze anos,
- Jhiqui, uma moça dothraki, de catorze anos,
- GROLEO, capitão da grande coca Balerion, um marinheiro pentoshi contratado por Illyrio Mopatis,
- sua família falecida:
- RHAEGAR , Príncipe de Pedra do Dragão e herdeiro do Trono de Ferro, morto pelo Rei Robert no Tridente,
- RHAENYS , filha de Rhaegar e de Elia de Dorne, assassinada durante o Saque de Porto Real,
- AEGON , filho de Rhaegar e de Elia de Dorne, assassinado durante o Saque de Porto Real,
- VISERYS , autoproclamado Rei Viserys, o Terceiro do Seu Nome, dito o REI PEDINTE, morto em Vaes Dothrak por Khal Drogo,
- DROGO , seu esposo, um grande khal dos dothraki, nunca derrotado em batalha, morto de um ferimento,
- Rhaego , filho natimorto de Daenerys e Khal Drogo, morto no ventre por Mirri Maz Duur,
- seus inimigos conhecidos:
- Khal PONO, outrora ko de Drogo,
- Khal Jhaqo, outrora ko de Drogo,
- MAGGO, seu companheiro de sangue,
- OS IMORREDOUROS DE Qarth, um bando de magos,
- Pyat PREE, um mago qarteno,
- OS HOMENS PESAROSOS, uma guilda de assassinos qartenos,
- seus aliados incertos, antigos e atuais:
- XARO Xhoan DAXOS, um príncipe mercador de Qarth,
- QUAITHE, uma umbromante mascarada de Asshai,
- ILLYRIO MOPATIS, um magíster da Cidade Livre de Pentos, que arranjou o casamento de Daenerys com Khal Drogo,
- em Astapor:
- KRAZNYS MO NAKLOZ, um rico mercador de escravos,
- sua escrava, MISSANDEI, uma menina de dez anos, pertencente ao Pacífico Povo de Naath,
- GRAZDAN MO ULLHOR, um velho mercador de escravos, muito rico,
- seu escravo, CLEON, açougueiro e cozinheiro,
- VERME CINZENTO, um eunuco dos Imaculados,
- em Yunkai:
- GRAZDAN MO ERAZ, enviado e nobre,
- MERO DE BRAVOS, dito BASTARDO DO TITÃ, comandante dos Segundos Filhos, uma companhia livre,
- BEN MULATO Plumm, um sargento dos Segundos Filhos, um mercenário de dúbia ascendência,
- PRENDAHL NA Ghezn, um mercenário ghiscari, capitão dos Corvos Tormentosos, uma companhia livre,
- SALLOR, O CALVO, um mercenário qarteno, capitão dos Corvos Tormentosos,
- DAARIO NAHARIS, um excêntrico mercenário tyroshi, capitão dos Corvos Tormentosos,
- em Meereen:
- OZNAK ZO Pahl, um herói da cidade,
A bandeira de Daenerys Targaryen é a de Aegon, o Conquistador, e da dinastia que ele estabeleceu: um dragão de três cabeças, vermelho sobre fundo negro.
BALON GREYJOY, o Nono do Seu Nome desde o Rei Cinzento, autointitulado Rei das Ilhas de Ferro e do Norte, Rei do Sal e da Rocha, Filho do Vento Marinho e Senhor Ceifeiro de Pyke,
- sua esposa, SENHORA ALANNYS, da Casa Harlaw,
- seus filhos:
- RODRIK , o filho mais velho, morto em Guardamar durante a Rebelião Greyjoy,
- MARON , o segundo filho, morto em Pyke durante a Rebelião Greyjoy,
- ASHA, a terceira filha, capitã do Vento Negro e conquistadora de Bosque Profundo,
- Theon, o filho mais novo, comandante do Cadela do Mar e durante um breve período Príncipe de Winterfell,
- o escudeiro de Theon, WEX Pyke, filho bastardo do meio-irmão de Lorde Botley, um rapaz mudo de doze anos,
- a tripulação de Theon, os homens do Cadela do Mar:
- URZEN, MARON BOTLEY, dito BARBAS-DE-PEIXE, Stygg, GEVIN HARLAW, CADWYLE,
- seus irmãos:
- EURON, dito OLHO DE CORVO, capitão do Silêncio, um notório fora da lei, pirata e corsário,
- VICTARION, Senhor Capitão da Frota de Ferro, mestre do Vitória de Ferro,
- AERON, dito CABELO-MOLHADO, um sacerdote do Deus Afogado,
- seu pessoal em Pyke:
- MEISTRE WENDAMYR, curandeiro e conselheiro,
- HELYA, governanta do castelo,
- seus guerreiros e espadas juramentadas:
- DAGMER, dito BOCA-FENDIDA, capitão do Bebedor de Espuma,
- BLUETOOTH, um capitão de dracar,
- ULLER, Skyte, remadores e guerreiros,
- ANDRIK, O SÉRIO, um homem gigantesco,
- Qarl, dito Qarl, O DONZEL, imberbe mas mortífero,
- pessoas de Fidalporto:
- OTTER GIMPKNEE, estalajadeiro e devasso,
- SIGRIN, um carpinteiro naval,
- os senhores seus vassalos:
- SAWANE BOTLEY, Senhor de Fidalporto, em Pyke
- LORDE Wynch, de Bosque de Ferro, em Pyke,
- STONEHOUSE, Drumm e GOODBROTHER, de Velha Wyk,
- LORDE GOODBROTHER, Sparr, LORDE Merlyn e LORDE Farrynd, de Grande Wyk,
- LORDE HARLAW, de Harlaw,
- VOLMARK, Myreb, STONETREE e KENNING, de Harlaw,
- ORKWOOD e TAWNEY, de Montrasgo
- LORDE BLACKTYDE, de Pretamare,
- LORDE SALTCLIFFE e LORDE SUNDERLY, de Salésia.
Os Arryn são descendentes dos Reis da Montanha e Vale, uma das mais antigas e puras linhagens da nobreza ândala. A Casa Arryn não participou da Guerra dos Cinco Reis, retendo suas forças a fim de proteger o Vale de Arryn. O selo dos Arryn é a lua e o falcão, em branco, sobre fundo azul-celeste. O lema dos Arryn é: Tão Alto Como a Honra.
Robert Arryn, Senhor do Ninho da Águia, Defensor do Vale, protetor do Leste, um rapaz enfermiço de oito anos,
- sua mãe, SENHORA Lysa, da Casa Tully, terceira esposa e viúva de Lorde Jon Arryn, e irmã de Catelyn Stark,
- o pessoal de sua casa:
- MARILLION, um belo e jovem cantor, muito apreciado pela Senhora Lysa,
- MEISTRE COLEMON, conselheiro, curandeiro e tutor,
- SOR Marwyn BELMORE, capitão da guarda,
- Mord, um carcereiro brutal,
- os senhores seus vassalos, cavaleiros e servidores:
- LORDE NESTOR ROYCE, Supremo Intendente do Vale e castelão dos Portões da Lua, pertencente ao ramo menor da Casa Royce,
- o filho de Lorde Nestor, SOR ALBAR,
- a filha de Lorde Nestor, MYRANDA,
- Mya Stone, uma garota bastarda a seu serviço, filha ilegítima do Rei Robert I
Baratheon,
- LORDE Yohn ROYCE, dito BRONZE Yohn, Senhor de Pedrarruna, pertencente ao ramo principal da Casa Royce, primo de Lorde Nestor,
- o filho mais velho de Lorde Yohn, SOR ANDAR,
- o segundo filho de Lorde Yohn, SOR ROBAR , um cavaleiro da Guarda Arco-Iris de Renly Baratheon, morto em Ponta Tempestade por Sor Loras Tyrell,
- o filho mais novo de Lorde Yohn, SOR WAYMAN , um homem da Patrulha da Noite, perdido para lá da Muralha,
- SOR Lyn CORBRAY, um pretendente da Senhora Lysa,
- Mychel REDFORT, seu escudeiro,
- SENHORA ANYA WAYNWOOD,
- o filho mais velho e herdeiro da Senhora Anya, SOR MORTON, pretendente da Senhora Lysa,
- o segundo filho da Senhora Anya, SOR DONNEL, o Cavaleiro do Portão,
- EON HUNTER, Senhor de Solar de Longarco, um velho, pretendente da Senhora Lysa,
- HORTON REDFORT, Senhor de Fortencarnado.
Os Florent da Fortaleza de Águas Claras são vassalos dos Tyrell, apesar de uma pretensão mais forte a Jardim de Cima por virtude de um laço de sangue com a Casa Gardener, os antigos Reis da Campina. Ao estourar a Guerra dos Cinco Reis, Lorde Alester Florent seguiu os Tyrell na proclamação pelo Rei Renly, mas o seu irmão, Sor Axell, escolheu o Rei Stannis, o qual servia havia anos como castelão de Pedra do Dragão. A sobrinha de ambos, Selyse, era e é a rainha do Rei Stannis. Quando Renly morreu em Ponta Tempestade, os Florent passaram-se para Stannis com todas as suas forças, tendo sido os primeiros dos vassalos de Renly a fazê-lo. O selo da Casa Florent exibe uma cabeça de raposa rodeada por um círculo de flores.
ALESTER FLORENT, Senhor de Águas Claras,
- sua esposa, SENHORA MELARA, da Casa Crane,
- seus filhos:
- ALEKYNE, herdeiro de Águas Claras,
- MELESSA, casada com Lorde Randyll Tarly,
- Rhea, casada com Lorde Leyton Hightower,
- os irmãos:
- SOR Axell, castelão em Pedra do Dragão,
- SOR Ryam , morto ao cair de um cavalo,
- a filha de Sor Ryam, RAINHA SELYSE, casada com o Rei Stannis Baratheon,
- o filho mais velho de Sor Ryam, SOR IMRY , ao comando da frota de Stannis Baratheon na Água Negra, perdido com o Fúria,
- o segundo filho de Sor Ryam, SOR ERREN, mantido cativo em Jardim de Cima,
- SOR COLIN,
- a filha de Sor Colin, DELENA, casada com SOR HOSMAN NORCROSS,
- o filho de Delena, EDRIC Storm, um bastardo do Rei Robert Baratheon, com doze anos de idade,
- o filho de Delena, ALESTER NORCROSS, de oito anos,
- o filho de Delena, RENLY NORCROSS, um menino de dois anos,
- o filho de Sor Colin, MEISTRE OMER, a serviço em Carvalho Velho,
- o filho de Sor Colin, MERRELL, um escudeiro na Árvore,
- a sua irmã, Rylene, casada com Sor Rycherd Crane.
Poderosos, ricos e numerosos, os Frey são vassalos da Casa Tully, mas nem sempre foram diligentes em desempenhar o seu dever. Quando Robert Baratheon enfrentou Rhaegar Targaryen no Tridente, os Frey só chegaram depois da batalha terminada, e daí em diante Lorde Hoster Tully passou a chamar Lorde Walder de "o Atrasado Lorde Frey”. Também se diz de Walder Frey que é o único senhor dos Sete Reinos que poderia tirar um exército dos calções.
Ao estourar a Guerra dos Cinco Reis, Robb Stark conquistou a aliança de Lorde Walder com a promessa de desposar uma de suas filhas ou netas. Dois dos netos de Lorde Walder foram enviados para Winterfell para lá serem educados.
WALDER FREY, Senhor da Travessia,
- de sua primeira esposa SENHORA PERRA , da Casa Royce:
- SOR STEVRON , o filho mais velho, morto após a Batalha de Cruzaboi,
- Corenna Swann, morta de uma doença debilitante ,
- o filho mais velho de Stevron, SOR Ryman, herdeiro das Gêmeas,
- o filho de Ryman, Edwyn, casado com Janyce Hunter,
- a filha de Edwyn, WALDA, uma menina de oito anos,
- o filho de Ryman, WALDER, dito WALDER NEGRO,
- o filho de Ryman, Petyr, dito Petyr ESPINHA,
- Mylenda Caron,
- a filha de Petyr, PERRA, uma menina de cinco anos,
- c. Jeyne Lydden, morta numa queda de cavalo ,
- o filho de Stevron, AEGON, um débil mental, dito GUIZO,
- a filha de Stevron, MAEGELLE , morta no parto, c. Sor Dafyn Vance,
- a filha de Maegelle, MARIANNE, uma donzela,
- o filho de Maegelle, WALDER VANCE, um escudeiro,
- o filho de Maegelle, PATREK VANCE,
- c. Marsella Waynwood, morta no parto
- o filho de Stevron, WALTON, c. Deana Hardyng,
- o filho de Walton, STEFFON, dito O DOCE,
- a filha de Walton, WALDA, dita BELA WALDA,
- o filho de Walton, BRYAN, um escudeiro,
- SOR EMMON, c. Genna, da Casa Lannister,
- o filho de Emmon, SOR CLEOS, c. Jeyne Darry,
- o filho de Cleos, Tywin, um escudeiro de onze anos,
- o filho de Cleos, WILLEM, um pajem em Cinzamarca, nove anos,
- o filho de Emmon, SOR Lyonel, c. Melesa Crakehall,
- o filho de Emmon, TION, um cativo em Correrrio,
- o filho de Emmon, WÄLDER, dito WALDER VERMELHO, catorze anos, um escudeiro em Rochedo Casterly,
- SOR Aenys, c. Tyana Wylde, morta no parto ,
- o filho de Aenys, AEGON NASCIDO-EM-SANGUE, um fora da lei,
- o filho de Aenys, Rhaeg AR, c. Jeyne Beesbury,
- o filho de Rhaegar, Robert, um rapaz de treze anos,
- a filha de Rhaegar, WALDA, uma menina de dez anos, dita WALDA
BRANCA,
- o filho de Rhaegar, JONOS, um menino de oito anos,
- PERRIANE, c. Sor Laslyn Haigh,
- o filho de Perriane, SOR Harys Haigh,
- o filho de Harys, WALDER Haigh, um menino de quatro anos,
- o filho de Perriane, SOR DONNEL Haigh,
- o filho de Perriane, Alyn Haigh, um escudeiro,
- de sua segunda esposa SENHORA CYRENNA , da Casa Swann:
- SORJARED, o seu filho mais velho, c. Alys Frey ,
- o filho de Jared, SOR Tytos, c. Zhoe Blanetree,
- a filha de Tytos, ZIA, uma donzela de catorze anos,
- o filho de Tytos, ZACHERY, um rapaz de doze anos, em treino no Septo de Vilavelha,
- a filha de Jared, Kyra, c. Sor Garse Goodbrook,
- o filho de Kyra, WALDER GOODBROOK, um menino de nove anos,
- a filha de Kyra, JEYNE GOODBROOK, de seis anos,
- o SEPTÃO LUCEON, a serviço no Grande Septo de Baelor, em Porto Real,
- de sua terceira esposa SENHORA AMAREI , da Casa Crakehall:
- SOR HOSTEEN, o seu filho mais velho, c. Bellena Hawick,
- o filho de Hosteen, SOR ARWOOD, c. Ryella Royce,
- a filha de Arwood, Ryella, uma menina de cinco anos,
- os filhos gêmeos de Arwood, ANDROW e Alyn, de três anos,
- SENHORA LYTHENE, c. Lorde Lucias Vypren,
- a filha de Lythene, ELI ANA, c. Sor Jon Wylde,
- o filho de Elyana, RICKARD Wylde, de quatro anos,
- o filho de Lythene, SOR DAMON Vypren,
- Symond, c. Betharios de Bravos,
- o filho de Symond, ALESANDER, um cantor,
- a filha de Symond, Alyx, uma donzela de dezessete anos,
- o filho de Symond, BRADAMAR, um menino de dez anos, criado em Bravos como protegido de Oro Tendyris, um mercador dessa cidade,
- SOR DANWELL, c. Wynafrei Whent,
- (muitos natimortos e abortos)
- MERRETT, c. Mariya Darry,
- a filha de Merrett, AMEREI, dita AMI, uma viúva de dezesseis anos, c. Sor Pate do Ramo Azul ,
- a filha de Merrett, WALDA, dita WALDA GORDA, uma donzela de quinze anos, c. Lorde Roose Bolton,
- a filha de Merrett, MARISSA, uma donzela de treze anos,
- o filho de Merrett, WALDER, dito PEQUENO WALDER, um menino de oito anos, aprisionado em Winterfell enquanto era protegido da Senhora Catelyn Stark,
- SOR GEREMY , afogado, c. Carolei Waynwood,
- o filho de Geremy, SANDOR, um rapaz de doze anos, escudeiro de Sor Donnel Waynwood,
- a filha de Geremy, CYNTHEA, uma menina de nove anos, protegida da Senhora Anya Waynwood,
- SOR RAYMUND, c. Beony Beesbury,
- o filho de Raymund, Robert, com dezesseis anos, em treino na Cidadela em Vilavelha,
- o filho de Raymund, Malwyn, de quinze anos, aprendiz de um alquimista
em Lys,
- as filhas gêmeas de Raymund, SERRA e SARRA, donzelas de catorze anos,
- a filha de Raymund, CERSEI, de seis anos, dita PEQUENA ABELHA,
- de sua quarta esposa SENHORA ALYSSA , da Casa Blackwood:
- LOTHAR, o seu filho mais velho, dito LOTHAR COXO, c. Leonella Lefford,
- a filha de Lothar, Tysane, uma menina de sete anos,
- a filha de Lothar, WALDA, uma menina de quatro anos,
- a filha de Lothar, EMBERLEI, uma menina de dois anos,
- SORJAMMOS, c. Sallei Paege,
- o filho de Jammos, WALDER, dito GRANDE WALDER, um menino de oito anos, aprisionado em Winterfell enquanto era protegido da Senhora Catelyn Stark,
- os filhos gêmeos de Jammos, DICKON e MATHIS, de cinco anos,
- SOR Whalen, c. Sylwa Paege,
- o filho de Whalen, HOSTER, um rapaz de doze anos, escudeiro de Sor Damon
Paege,
- a filha de Whalen, MERIANNE, dita MERRY, uma menina de onze anos,
- SENHORA MORYA, c. Flement Brax,
- o filho de Morya, Robert BRAX, de nove anos, criado em Rochedo Casterly como pajem,
- o filho de Morya, WALDER BRAX, um menino de seis anos,
- o filho de Morya, JON BRAX, um bebê de três anos,
- Tyta, dita Tyta, A DONZELA, uma donzela de vinte e nove anos,
- de sua quinta esposa SENHORA SARYA , da Casa Whent:
- nenhuma prole,
- de sua sexta esposa SENHORA BETHANY , da Casa Rosby:
- SOR Perwyn, o seu filho mais velho,
- SOR BENFREY, c. Jyanna Frey, uma prima,
- a filha de Benfrey, DELLA, dita DELLA SURDA, uma menina de três anos,
- o filho de Benfrey, Osmund, um menino de dois anos,
- MEISTRE WILLAMEN, ao serviço em Solar de Longarco,
- OLYVAR, escudeiro de Robb Stark,
- ROSLIN, uma donzela de dezesseis anos,
- de sua sétima esposa SENHORA ANNARA , da Casa Farring:
- Arwyn, uma donzela de catorze anos,
- WENDEL, o filho mais velho, um rapaz de treze anos, criado em Guardamar como pajem,
- COLMAR, prometido à Fé, com onze anos,
- Waltyr, dito Tyr, um menino de dez anos,
- ELMAR, anteriormente prometido a Arya Stark, um menino de nove anos,
- Shirei, uma menina de seis anos,
- a sua oitava esposa, SENHORA JOYEUSE, da Casa Erenford,
- ainda sem prole,
- filhos ilegítimos de Lorde Walder, de mães diversas,
- WALDER Rivers, dito WALDER BASTARDO,
- o filho do Walder Bastardo, SOR AEMON Rivers,
- a filha do Walder Bastardo, WALDA Rivers,
- MEISTRE Melwys, a serviço em Rosby,
- JEYNE Rivers, Martyn Rivers, Ryger Rivers, RONEL Rivers, MELLARA Rivers, e outros.
Os Lannister de Rochedo Casterly permanecem como o principal apoio da pretensão do Rei Joffrey ao Trono de Ferro. Vangloriam-se de descender de Lann, o Esperto, o lendário trapaceiro da Era dos Heróis. O ouro de Rochedo Casterly e de Dente Dourado fez dela a mais rica entre as Grandes Casas. O selo Lannister é um leão dourado num fundo carmesim. Seu lema é Ouçam-me Rugir!
Tywin LANNISTER, Senhor de Rochedo Casterly, Protetor do Oeste, Escudo de Lanisporto e Mão do Rei,
- seu filho, SOR JAIME, dito REGICIDA, irmão gêmeo da Rainha Cersei, Senhor Comandante da Guarda Real e Protetor do Leste, cativo em Correrrio,
- sua filha, RAINHA CERSEI, gêmea de Jaime, viúva do Rei Robert Baratheon, Rainha Regente em nome de seu filho Joffrey,
- seu filho, REI JOFFREY BARATHEON, um rapaz de treze anos,
- sua filha, PRINCESA MYRCELLA BARATHEON, uma menina de nove anos, protegida do Príncipe Doran Martell em Dorne,
- seu filho, PRÍNCIPE TOMMEN BARATHEON, um menino de oito anos, herdeiro do Trono de Ferro,
- seu filho anão, Tyrion, dito DUENDE, dito MEIO-HOMEM, ferido e mutilado na Água Negra,
- seus irmãos:
- SOR KEVAN, irmão mais velho de Lorde Tywin,
- a esposa de Sor Kevan, DORNA, da Casa Swyft,
- seu filho, SOR LANCEL, antigo escudeiro do Rei Robert, ferido e moribundo,
- seu filho, WILLEM, gêmeo de Martyn, um escudeiro, cativo em Correrrio,
- seu filho, Martyn, gêmeo de Willem, um escudeiro, cativo de Robb Stark,
- sua filha, JANEI, uma menina de dois anos,
- GENNA, sua irmã, casada com Sor Emmon Frey,
- seu filho, SOR CLEOS FREY, cativo em Correrrio,
- seu filho, SOR Lyonel,
- seu filho, TION FREY, um escudeiro, cativo em Correrrio,
- seu filho, WALDER, dito WALDER VERMELHO, escudeiro em Rochedo Casterly,
- SOR Tygett , seu segundo irmão, morto de varíola,
- a viúva de Tygett, DARLESSA, da Casa Marbrand,
- seu filho, Tyrek, escudeiro do rei, desaparecido,
- GERION , seu irmão mais novo, perdido no mar,
- a filha bastarda de Gerion, JOY, de onze anos,
- seu primo SOR STAFFORD LANNISTER , irmão da falecida Senhora Joanna, morto em Cruzaboi,
- as filhas de Sor Stafford, CERENNA e MYRIELLE,
- o filho de Sor Stafford, SOR DAVEN,
- seus primos:
- SOR DAMION LANNISTER, c. Senhora Shiera Crakehall,
- seu filho, SOR LUCION,
- sua filha, LANNA, c. Lorde Antario Jast,
- MARGOT, c. Lorde Titus Peake,
- o pessoal de sua casa:
- MEISTRE CREYLEN, curandeiro, tutor e conselheiro,
- Vilarr, capitão dos guardas,
- LUM e LESTER VERMELHO, guardas,
- WAT RISO-BRANCO, um cantor,
- SOR BENEDICT BROOM, mestre de armas,
- os senhores seus vassalos:
- DAMON MARBRAND, Senhor de Cinzamarca,
- SOR ADDAM MARBRAND, seu filho e herdeiro,
- Roland CRAKEHALL, Senhor de Paço de Codorniz,
- seu irmão SOR BURTON CRAKEHALL , morto por Lorde Beric Dondarrion e seus fora da lei,
- seu filho e herdeiro, SOR Tybolt CRAKEHALL,
- seu segundo filho, SOR Lyle CRAKEHALL, dito VARRÃO FORTE, cativo no Castelo de Donzelarrosa,
- seu filho mais novo, SOR MERLON CRAKEHALL,
- ANDROS BRAX , Senhor de Valcorno, afogado durante a Batalha dos Acampamentos,
- seu irmão SOR Rupert BRAX , morto em Cruzaboi,
- seu filho mais velho, SOR Tytos BRAX, atual Senhor de Valcorno, cativo nas Gêmeas,
- seu segundo filho SOR Robert BRAX , morto na Batalha dos Vaus,
- seu terceiro filho, SOR FLEMENT BRAX, atual herdeiro,
- LORDE LEO LEFFORD , afogado no Moinho de Pedra,
- REGENARD ESTREN, Senhor de Vieleira, cativo nas Gêmeas,
- GAWEN WESTERLING, Senhor do Despenhadeiro, cativo em Guardamar,
- sua esposa, SENHORA Sybell, da Casa Spicer,
- seu irmão, SOR Rolph Spicer,
- seu primo, SOR SAMWELL Spicer,
- seus filhos:
- SOR RAYNALD WESTERLING,
- JEYNE, uma donzela de dezesseis anos,
- ELEYNA, uma menina de doze anos,
- ROLLAM, um menino de nove anos,
- LEWIS Lydden, Senhor de Toca Funda,
- LORDE ANTARIO Jast, cativo no Castelo de Donzelarrosa,
- LORDE Philip Plumm,
- seus filhos, SOR DENNIS Plumm, SOR PETER Plumm e SOR Harwyn Plumm, dito PEDRADURA,
- QUENTEN BANEFORT, Senhor de Forte Ruína, cativo de Lorde Jonos Bracken,
- seus cavaleiros e capitães:
- SOR Harys Swyft, sogro de Sor Kevan Lannister,
- o filho de Sor Harys, SOR STEFFON Swyft,
- a filha de Sor Steffnn, JOANNA,
- a filha de Sor Harys, SHIERLE, c. Sor Melwyn Sarsfield,
- SOR FORLEY PRESTER,
- SOR Garth GREENFIELD, cativo no Solar de Corvarbor,
- SOR Lymond VIKARY, cativo no Pouso do Viajante,
- SOR SELMOND STACKSPEAR,
- seu filho, SOR STEFFON STACKSPEAR,
- seu filho mais novo, SOR Alyn STACKSPEAR,
- TERRENCE KENNING, Senhor de Kayce,
- SOR KENNOS DE KAYCE, um cavaleiro a seu serviço,
- SOR GREGOR CLEGANE, dito A MONTANHA QUE CAVALGA,
- POLLIVER, CHISWYCK, Raff, O QUERIDO, DUNSEN e CÓCEGAS, soldados ao seu serviço,
- SOR AMORY Lorch , dado de alimento a um urso por Vargo Hoat após a queda de Harrenhal.
Dome foi o último dos Sete Reinos a jurar lealdade ao Trono de Ferro. Tanto o sangue como os costumes e a história distinguem os homens de Dorne dos outros reinos. Quando estourou a Guerra dos Cinco Reis, Dorne não participou. Com o prometimento de Myrcella Baratheon ao Príncipe Trystane, Lançassolar declarou o seu apoio ao Príncipe Joffrey e convocou os vassalos.
O estandarte Martell é um sol vermelho atravessado por uma lança dourada. Seu lema é Insubmissos, Não Curvados, Não Quebrados.
DORAN NYMEROS MARTELL, Senhor de Lançassolar, Príncipe de Dorne,
- sua esposa, MELLARIO, da Cidade Livre de Norvos,
- seus filhos:
- PRINCESA ARIANNE, a filha mais velha, herdeira de Lançassolar,
- PRÍNCIPE QUENTYN, o filho mais velho,
- PRÍNCIPE TRYSTANE, o filho mais novo, prometido a Myrcella Baratheon,
- seus irmãos:
- sua irmã PRINCESA ELIA , casada com o Príncipe Rhaegar Targaryen, morta durante o Saque de Porto Real,
- seus filhos:
- PRINCESA RHAENYS , uma garotinha, assassinada durante o Saque de Porto Real,
- PRÍNCIPE AEGON , um bebê, morto durante o Saque de Porto Real,
- seu irmão, PRÍNCIPE Oberyn, dito VÍBORA VERMELHA,
- a amante do Príncipe Oberyn, Eliaria Sand,
- as filhas bastardas do Príncipe Oberyn, OBARA, NYMERIA, Tyene, SARELLA, ELIA, OBELLA, DOREA, LOREZA, ditas AS SERPENTES DA AREIA,
- os companheiros do Príncipe Oberyn:
- HARMEN ULLER, Senhor da Toca do Inferno,
- o irmão de Harmen, SOR Ulwyck ULLER,
- SOR Ryon ALLYRION,
- o filho ilegítimo de Sor Ryon, SOR DAEMON Sand, dito BASTARDO DE GRAÇADIVINA,
- DAGOS MANWOODY, Senhor de Tumbarreal,
- os filhos de Dagos, Mors e DICKON,
- o irmão de Dagos, SOR Myles MANWOODY,
- SOR ARRON QORGYLE,
- SOR DEZIEL Dalt, o Cavaleiro de Limoeiros,
- Myria JORDAYNE, herdeira da Penha,
- LARRA BLACKMONT, Senhora de Monpreto,
- sua filha, JYNESSA BLACKMONT,
- seu filho, PERROS BLACKMONT, um escudeiro, o pessoal de sua casa:
- AREO HOTAH, um mercenário norvoshi, capitão dos guardas,
- MEISTRE CALEOTTE, conselheiro, curandeiro e tutor, os senhores seus vassalos:
- HARMEN ULLER, Senhor da Toca do Inferno,
- EDRIC DAYNE, Senhor de Tombastela,
- DELONNE ALLYRION, Senhora de Graçadivina,
- DAGOS MANWOODY, Senhor de Tumbarreal,
- LARRA BLACKMONT, Senhora de Monpreto,
- TREMOND GARGALEN, Senhor da Costa do Sal,
- Anders YRONWOOD, Senhor de Paloferro,
- NYMELLA Toland.
Lorde Edmyn Tully de Correrrio foi um dos primeiros senhores do rio a jurar lealdade a Aegon, o Conquistador. O vitorioso Aegon recompensou-o atribuindo à Casa Tully o domínio sobre as terras do Tridente. O símbolo dos Tully é uma truta saltante, de prata, em fundo ondulado de azul e vermelho. O mote dos Tully é: Família, Dever, Honra.
HOSTER TULLY, Senhor de Correrrio,
- sua esposa SENHORA MINISA , da Casa Whent, morta no parto,
- seus filhos:
- CATELYN, viúva de Lorde Eddard Stark de Winterfell,
- seu filho mais velho, Robb Stark, Senhor de Winterfell, Rei no Norte e Rei do Tridente,
- sua filha, SANSA Stark, uma donzela de doze anos, cativa em Porto Real,
- sua filha ARYA Stark, de dez anos, desaparecida há um ano,
- seu filho, BRANDON Stark, de oito anos, julgado morto,
- seu filho, RICKON Stark, de quatro anos, julgado morto,
- Lysa, viúva de Lorde Jon Arryn do Ninho da Águia,
- seu filho, Robert, Senhor do Ninho da Águia e Defensor do Vale, um rapaz enfermiço de oito anos,
- SOR EDMURE, seu único filho, herdeiro de Correrrio,
- amigos e companheiros de Sor Edmure:
- SOR Marq PIPER, herdeiro de Donzelarrosa,
- LORDE Lymond GOODBROOK,
- SOR Roland VANCE, dito O MAU, e seus irmãos, SOR HUGO, SOR ELLERY e Kirth,
- PATREK MALLISTER, LUCAS BLACKWOOD, SOR Perwyn FREY, TRISTAN Ryger, SOR Robert PAEGE,
- seu irmão, SOR BRYNDEN, chamado Peixe Negro,
- o pessoal de sua casa:
- MEISTRE Vyman, conselheiro, curandeiro e tutor,
- SOR ROBIN Ryger, capitão da guarda,
- LEW COMPRIDO, ELWOOD, Delp, guardas,
- UTHERYDES WAYN, intendente de Correrrio,
- RYMUND, O RIMANTE, um cantor,
- os senhores seus vassalos:
- JONOS BRACKEN, Senhor de Barreira de Pedra, -JASON MALLISTER, Senhor de Guardamar,
- WÄLDER FREY, Senhor da Travessia,
- CLEMENT PIPER, Senhor do Castelo de Donzelarrosa,
- KARYL VANCE, Senhor do Pouso do Viajante,
- NORBERT VANCE, Senhor de Atranta,
- THEOMAR SMALLWOOD, Senhor de Solar de Bolotas,
- sua esposa, SENHORA RAVELLA, da Casa Swann,
- sua filha, CARELLEN,
- WILLIAM MOOTON, Senhor de Lagoa da Donzela,
- SHELLA WHENT, a desalojada Senhora de Harrenhal,
- SOR HALMON PAEGE,
- TYTOS BLACKWOOD, Senhor de Corvarbor.
Os Tyrell ascenderam ao poder como intendentes dos Reis da Campina, cujos domínios incluíam as planícies férteis desde a Marca de Dorne e da Torrente da Água Negra até as costas do Mar do Poente. Através da linha feminina, dizem descender de Garth Greenhand, o rei jardineiro dos Primeiros Homens, que usava uma coroa de trepadeiras e flores e fazia a terra florescer. Quando Mern IX, o último rei da Casa Gardener, foi morto no Campo de Fogo, seu intendente Harlen Tyrell rendeu Jardim de Cima a Aegon, o Conquistador. Aegon concedeu-lhe o castelo e o domínio sobre a Campina. O símbolo dos Tyrell é uma rosa dourada em fundo verde-relva. Seu lema é: Crescendo Fortes.
Lorde Mace Tyrell declarou seu apoio a Renly Baratheon no início da Guerra dos Cinco Reis, e deu-lhe a mão de sua filha Margaery. Após a morte de Renly, Jardim de Cima aliou-se à Casa Lannister, e Margaery foi prometida ao Rei Joffrey.
MACE Tyrell, Senhor de Jardim de Cima, Protetor do Sul, Defensor das Marcas, Supremo Marechal da Campina,
- sua esposa, SENHORA ALERIE, da Casa Hightower de Vilavelha,
- seus filhos:
- WILLAS, o filho mais velho, herdeiro de Jardim de Cima,
- SOR GARLAN, dito GALANTE, o segundo filho,
- sua esposa, SENHORA LEONETTE, da Casa Fossoway,
- SOR LORAS, dito CAVALEIRO DAS FLORES, o filho mais novo, Irmão Juramentado da Guarda Real,
- MARGAERY, sua filha, uma viúva de quinze anos, prometida ao Rei Joffrey Baratheon,
- as companheiras e servidoras de Margaery:
- suas primas, MEGGA, ALLA e ELINOR Tyrell,
- o prometido de Elinor, ALYN AMBROSE, escudeiro,
- SENHORA ALYSANNE BULWER, uma menina de oito anos,
- MEREDYTH CRANE, dita MERRY,
- TAENA DE MYR, esposa de LORDE ORTON MERRYWEATHER,
- SENHORA ALYCE GRACEFORD,
- SEPTÃ NYSTERICA, uma irmã da Fé,
- sua mãe viúva, a SENHORA OLENNA, da Casa Redwyne, dita RAINHA DOS ESPINHOS,
- os guardas da Senhora Olenna, ARRYK e ERRYK, ditos ESQUERDO e DIREITO,
- suas irmãs:
- SENHORA MINA, casada com Paxter Redwyne, Senhor da Árvore,
- seus filhos:
- SOR HORAS REDWYNE, gêmeo de Hobber, escarnecido como HORROR,
- SOR HOBBER REDWYNE, gêmeo de Horas, escarnecido como BABEIRO,
- DESMERA REDWYNE, uma donzela de dezesseis anos,
- SENHORA JANNA, casada com Sor Jon Fossoway,
- seus tios e primos:
- o irmão do pai, GARTH, dito o GROSSO, Senhor Senescal de Jardim de Cima,
- os filhos bastardos de Garth, GARSE e GARRETT FLOWERS,
- o irmão do pai, SOR MORYN, Senhor Comandante da Patrulha da Cidade de Vilavelha,
- o filho de Moryn, SOR LUTHOR , c. Senhora Elyn Norridge,
- o filho de Luthor, SOR THEODORE, c. Senhora Lia Serry,
- a filha de Theodore, ELINOR,
- o filho de Theodore, LUTHOR, um escudeiro,
- o filho de Luthor, MEISTRE MEDWYCK,
- a filha de Luthor, OLENE, c. Sor Leo Blackbar,
- o filho de Moryn, LEO, dito LEO PREGUIÇOSO,
- o irmão do pai, MEISTRE GORMON, um erudito da Cidadela,
- seu primo, (SOR QUENTIN), morto em Vaufreixo,
- o filho de Quentin, SOR OLIVER, c. Senhora Lysa Meadows,
- os filhos de Olymer, RAYMUND e RICKARD,
- a filha de Olymer, MEGGA,
- seu primo, MEISTRE NORMUND, a serviço em Coroanegra,
- seu primo SOR VICTOR , morto pelo Cavaleiro Sorridente da Irmandade da Mata de Rei,
- a filha de Victor, VICTARIA, c. Lorde Jon Bulwer , morto de uma febre de
verão,
- a sua filha, SENHORA ALYSANNE BULWER, de oito anos,
- o filho de Victor, SOR LEO, c. Senhora Alys Beesbury,
- as filhas de Leo, ALLA e LEONA,
- os filhos de Leo, LYONEL, LUCAS e LORENT,
- o pessoal de sua casa em Jardim de Cima:
- MEISTRE LOMYS, conselheiro, curandeiro e tutor,
- IGON VYRWELL, capitão da guarda,
- SOR VORTIMER CRANE, mestre de armas,
- ABETOURO, bobo, enormemente gordo.
- os senhores seus vassalos:
- RANDYLL TARLY, Senhor de Monte Chifre,
- PAXTER REDWYNE, Senhor da Árvore,
- ARWYN OAKHEART, Senhora de Carvalho Velho,
- MATHIS ROWAN, Senhor de Bosquedouro,
- ALESTER FLORENT, Senhor da Fortaleza de Águas Claras, um rebelde partidário de Stannis Baratheon,
- LEYTON HIGHTOWER, Voz de Vilavelha, Senhor do Porto,
- ORTON MERRYWEATHER, Senhor de Mesalonga,
- LORDE ARTHUR AMBROSE,
- seus cavaleiros e espadas a ele juramentadas:
- SOR MARK MULLENDORE, mutilado durante a Batalha da Água Negra,
- SORJON FOSSOWAY, dos Fossoway da maçã verde.
- SORTANTON FOSSOWAY, dos Fossoway da maçã vermelha.
em patrulha para lá da Muralha)
JEOR MORMONT, Senhor Comandante da Patrulha da Noite, dito o VELHO URSO,
- JON Snow, o Bastardo de Winterfell, seu intendente e escudeiro, perdido numa incursão ao Passo dos Guinchos,
- FANTASMA, o seu lobo gigante, branco e silencioso,
- EDDISON Tolett, dito Edd DOLOROSO, seu escudeiro,
- THOREN SMALLWOOD, no comando dos patrulheiros,
- DYWEN, ADAGA, PÉ-LEVE, GRENN, BEDWYCK, dito GIGANTE, OLLO MÃO-CORTADA, GRUBBS, BERNARR, dito BERNARR CASTANHO, outro BERNARR, dito BERNARR PRETO, TIM STONE, ULMER DA MATA DE REI, GARTH, dito PENA-CINZA, GARTH DE VIAVERDE, GARTH DE VILAVELHA, ALAN DE ROSBY, RONNEL HARCLAY, AETHAN, RYLES, MAWNEY, patrulheiros,
- JARMEN BUCKWELL, no comando dos batedores,
- BANNEN, REDGE WHITEYE, TUMBERJON, FORNIO, GOADY, patrulheiros e batedores,
- SOR OTTYN WYTHERS, no comando da retaguarda,
- SOR MALLADOR LOCKE, no comando da coluna logística,
- DONNEL HILL, dito DOCE DONNEL, seu escudeiro e intendente,
- HAKE, um intendente e cozinheiro,
- CHETT, um intendente feio, tratador dos cães,
- SAMWELL TARLY, um intendente gordo, tratador dos corvos, escarnecido como SOR PORQUINHO,
- LARK, dito HOMEM DAS IRMÃS, o seu primo ROLLEY DE VILIRMÃS, KARL PÉ-TORTO, MASLYN, PAUL PEQUENO, SERROTE, LEY MÃO ESQUERDA, ÓRFÃO OSS, BILL RESMUNGÃO, intendentes,
- QHORIN MEIA-MÃO , comandando os patrulheiros da Noite Sombria, morto no Passo dos Guinchos,
- ESCUDEIRO DALBRIDGE, EGGEN , patrulheiros, mortos no Passo dos Guinchos,
- COBRA DAS PEDRAS, um patrulheiro e alpinista, perdido no Passo dos Guinchos enquanto se deslocava a pé,
- BLANE, segundo oficial de Qhorin Meia-Mão, comandando os homens da Torre Sombria no Punho dos Primeiros Homens,
- SOR Byam FLINT,
(em Castelo Negro)
- BOWEN MARSH, Senhor Intendente e castelão,
- MEISTRE AEMON (TARGARYEN), curandeiro e conselheiro, um cego, com cem anos de idade,
- o seu intendente, CLYDAS,
- BENJEN STARK, Primeiro Patrulheiro, desaparecido, temendo-se que esteja morto,
- SOR WYNTON STOUT, patrulheiro há oitenta anos,
- SOR ALADALE WYNCH, PYPAR, DICK SURDO FOLLARD, HAL PELUDO, JACK NEGRO BULWER, ELRON, MATTHAR, patrulheiros,
- OTHELL YARWYCK, Primeiro Construtor,
- BOTA EXTRA, JOVEM HENLY, HALDER, ALBETT, BARRICAS, PATE MALHADO DE LAGOA DA DONZELA, construtores,
- DONAL NOYE, armeiro, ferreiro e intendente, sem um braço,
- HOBB TRÊS-DEDOS, intendente e chefe cozinheiro,
- TIM LÍNGUA-PRESA, CALMA, MULLY, VELHO HENLY, CUGEN, ALYN VERMELHO DA MATA DE ROSAS,JEREN, intendentes,
- SEPTÃO CELLADOR, um devoto ébrio,
- SOR ENDREW TARTH, mestre de armas,
- RAST, ARRON, EMRICK, CETIM, SALTO DE PISCO, recrutas em treinamento,
- CONWY, GUEREN, recrutadores e coletores,
(em Atalaialeste-do-Mar)
COTTER PYKE, Comandante, Atalaialeste,
- MEISTRE HARMUNE, curandeiro e conselheiro,
- SOR ALLISER THORNE, mestre de armas,
- JANOS SLYNT, ex-comandante da Patrulha da Cidade de Porto Real, durante um breve período Senhor de Harrenhal,
- SOR GLENDON HEWETT,
- DAREON, intendente e cantor,
- EMMETT DE FERRO, um patrulheiro afamado por sua força,
(na Torre Sombria)
SOR DENYS MALLISTER, Comandante, Torre Sombria,
- WALLACE MASSEY, seu intendente e escudeiro,
- MEISTRE MULLIN, curandeiro e conselheiro.
BERIC DONDARRION, Senhor de Portonegro, dito O SENHOR DO RELÂMPAGO, frequentemente dado como morto,
- seu braço direito, THOROS DE MYR, um sacerdote vermelho,
- seu escudeiro, EDRIC DAYNE, Senhor de Tombastela, de doze anos,
- seus seguidores:
- LIMO, chamado LIMO MANTO LIMÃO, outrora soldado,
- HARWIN, filho de Hullen, anteriormente a serviço de Lorde Eddard Stark em Winterfell,
- BARBA-VERDE, um mercenário tyroshi,
- TOM DE SETERRIOS, um cantor de duvidosa reputação, dito TOM SETE-CORDAS e TOM DAS SETE,
- ANGUY, O ARQUEIRO, um arqueiro originário da Marca de Dorne,
- JACK SORTUDO, um homem procurado pela justiça, com um olho a menos,
- O CAÇADOR LOUCO, do Septo de Pedra,
- KYLE, NOTCH, DENNETT, arqueiros,
- MERRIT DE VILALUA, WATTY, O MOLEIRO, LUKE PROMISSOR, MUDGE, DICK IMBERBE, os fora da lei do seu bando,
- na Estalagem do Ajoelhado:
- SHARNA, a estalajadeira, cozinheira e parteira,
- seu marido, dito MARIDO,
- RAPAZ, um órfão de guerra,
- no Pêssego, um bordel em Septo de Pedra:
- TANÁSIA, a proprietária ruiva,
- ALYCE, CASS, LANNA, JYZENE, HELLY, SINETA, algumas de suas funcionárias,
- em Solar de Bolotas, a sede da Casa Smallwood:
- SENHORA RAVELLA, anteriormente da Casa Swann, esposa de Lorde Theomar Smallwood,
- aqui, ali e acolá:
- LORDE LYMOND LYCHESTER, um velho de mente incerta, que um dia deteve Sor Maynard na ponte,
- seu jovem prestador de cuidados, MEISTRE ROONE,
- o fantasma de Coração Alto,
- a Senhora das Folhas,
- o septão em Brotadança.
MANCE RAYDER, Rei-para-lá-da-Muralha,
- DALLA, sua esposa grávida,
- VAL, sua irmã mais nova,
- seus chefes e capitães:
- HARMA, dita CABEÇA DE CÃO, no comando da vanguarda,
- O SENHOR DOS OSSOS, escarnecido como CAMISA DE CHOCALHO, chefe de um bando de guerra,
- YGRITTE, uma jovem esposa de lanças, membro de seu bando,
- RYK, dito LANÇA-LONGA, membro de seu bando,
- RAGWYLE, LENYL, membros de seu bando,
- seu cativo, JON Snow, o corvo-que-veio,
- FANTASMA, o lobo gigante de Jon, branco e silencioso,
- STYR, o Magnar de Thenn,
- JARL, um jovem assaltante, amante de Vai,
- GRIGG, O BODE, ERROK, QUORT, BODGER, DEL, GRANDE FURÚNCULO, DAN DE CÂNHAMO, HENK, O ELMO, LENN, DEDO-DO-PÉ, POLEGARES DE PEDRA, assaltantes,
- TORMUND, Rei-Hidromel de Solar Ruivo, dito TERROR DOS GIGANTES, ALTO-FALANTE, SOPRADOR DE CHIFRES e QUEBRADOR DE GELO, e ainda PUNHO DE TROVÃO, ESPOSO DE URSAS, FALADOR COM OS DEUSES e PAI DE TROPAS, líder de um bando de guerra,
- os seus filhos, TOREGG, O ALTO, TORWYRD, O MANSO, DORMUND e DRYN, a sua filha MUNDA,
- ORELL, dito ORELL, A ÁGUIA , um troca-peles morto por Jon Snow no Passo dos Guinchos,
- MAG MARTUN DOH WEG, dito MAG, O PODEROSO, dos gigantes,
- VARAMYR, dito SEIS-PELES, um troca-peles que controla três lobos, um gato-das-sombras e um urso-branco,
- O CHORÃO, um assaltante e líder de um bando de guerra,
- ALFYN MATA-CORVOS , um assaltante, morto por Qhorin Meia-Mão da Patrulha da Noite,
CRASTER, da Fortaleza de Craster, que não se ajoelha perante ninguém,
- GOIVA, sua filha e esposa, no fim da gravidez,
- DYAH, FERNY, NELLA, três de suas dezenove mulheres.
Agradecimentos
Se os tijolos não estiverem benfeitos, a muralha cai.
E esta muralha que estou construindo é realmente enorme, portanto preciso de um monte de tijolos. Felizmente, conheço um monte de tijoleiras e também todos os tipos de pessoas úteis.
Meu obrigado e reconhecimento vai, uma vez mais, para aqueles bons amigos que tão amavelmente me emprestaram seus conhecimentos (e, em alguns casos, até os seus livros) para que os meus tijolos pudessem ser bons e sólidos - do meu Arquimestre Sage Walker ao Primeiro-Construtor Cari Keim, passando por Melinda Snodgrass, meu mestre dos cavalos.
E, como sempre, a Parris.
R. R. Martin, George
O melhor da literatura para todos os gostos e idades