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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TORRE DE BABEL / Morris West
A TORRE DE BABEL / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

SHA’AR HAGOLAN... OUTUBRO DE 1966
A sentinela, no alto do monte, acomodou-se na cavidade nodosa de uma oliveira, experimentou o rádio, estendeu o mapa nos joelhos, assestou o binóculo de campanha e procedeu a uma minuciosa inspeção do extremo sul do lago Tiberíade até ao contraforte de Sha’ar Hagolan, onde o rio Yarmuk volta para sudoeste, indo desaguar no Jordão. Eram onze horas da manhã. O céu estava claro, o ar cortante e seco, depois das primeiras chuvas do outono.
Começou por inspecionar as cumeadas orientais, oscilando de norte a sul, abaixo da linha que demarcava a fronteira entre a Síria e a zona desmilitarizada de Israel. Os montes erguiam-se, castanhos e desertos, desde a fronteira até às vertentes dentadas. Nem carneiros, nem cabras. Não havia sinais de vida na aldeia, semelhante a um montão de blocos brancos contra o flanco da serra. Observou por muito tempo as ruínas além da aldeia, pois, às vezes os sírios postavam ali guerrilheiros prontos a cobrir o vale com fogo de metralhadora. Hoje as ruínas também estavam desertas. Seguiam-se as trincheiras — esse extenso cruzamento de cicatrizes no contraforte sul. que os australianos haviam cavado durante a guerra de 1918. Encontravam-se em território israelense, mas, por vezes, os invasores utilizavam-nas como ponto de partida para suas incursões noturnas contra o kibbutz. Uma reduzida manada de veados listrados pastava tranqüilamente entre as linhas superiores e inferiores das trincheiras. Ficou-se a olhar os veados, criaturas assustadiças, que qualquer som ou movimento espantava facilmente. Depois, dirigiu a atenção para as vinhas no extremo sul do vale. Apresentavam agora uma tonalidade castanha e mirravam ao sol tardio do outono. Não ofereciam qualquer abrigo para homem ou animal.
Ao norte das vinhas ficavam os dois extensos tapetes de terra arada, separados por uma estreita faixa de relva. Esta, ressequida, não podia ser trabalhada porque, devido a um disparate dos cartógrafos e desenhadores do armistício, nunca fora considerada terra arável; por isso, cavá-la ou mesmo pisá-la era expor-se ao fogo dos atiradores invisíveis do lado sírio da fronteira. Yigael já estava preparando a primeira nesga de terra; guiava o novo trator que, arrastando uma grade, erguia uma alta nuvem de pó cinzento na atmosfera calma. Yigael era seu irmão e ao meio-dia entraria de sentinela, ocupando-se outro homem do trator. Ainda ao norte, ficavam as plantações de bananas, que se estendiam, viçosas e verdes, quase até às margens do lago. À noite, constituíam uma área bastante perigosa, porque proporcionavam um bom esconderijo, mas, durante o dia, os montes que ficavam atrás eram demasiado descobertos e expostos, mesmo para os guerrilheiros mais intrépidos. Assim, o dia apresentava-se calmo no vale de Sha’ar Hagolan. Bebeu um longo gole do cantil, depois ligou o transmissor e fez um relatório negativo ao posto militar, instalado imediatamente após a zona desmilitarizada.

 

 

 


 

 

 


O trator atravessou o campo, uma e outra vez, pelo que o vale participava do hipnótico pulsar de seu motor, e a nuvem de pó brilhava ao sol como uma névoa terrosa. A última travessia levou o trator para junto da faixa de relva. Na curva, inclinou-se perigosamente sobre um fosso e, por instantes, pareceu prestes a capotar. Mas Yigael era um excelente tratorista. Acelerou o motor, torceu firmemente as rodas na direção contrária e endireitou o veículo, seguindo em linha reta através da relva. A sentinela ofegou e pôs-se de pé, na expectativa do tiroteio. Nada aconteceu. Yigael dirigiu com segurança o trator, através do estreito promontório, para a segunda nesga de terra arável. Continuava a não haver tiroteio. Mais cinco segundos e estaria a salvo.
De repente, a mina explodiu; o depósito de gasolina rebentou e Yigael foi atirado ao ar como uma boneca de trapos, de cabelos e roupas em fogo...

TELAVIVE

No seu amplo e frio gabinete, no quarto andar do QuartelGeneral o General-de-Brigada Jakov Baratz, Diretor do Serviço Secreto do Exército, sentou-se à secretária para estudar um relatório do incidente de Sharar Hagolan. Traçando um conjunto de coordenadas, marcou-as no mapa com uma cruz vermelha rodeada por uma cirtunferência e depois fez uma anotação na lista que tinha na mão.
— É o quarto incidente no Revaya-Sha’ar Hagolan. Sabotagem de um oleoduto, de um posto de bombagem, de três residências e de uma bomba de água, e agora isto. — E o General acrescentou, em aditamento: — Quatro incidentes em nove meses. Uma coisa arreliadora, para nos comprometer numa ação militar na zona desmilitarizada.
— Que faremos?
— Nós? Nada. — Havia em seu tom uma ironia amarga. — O Kaplan de Tiberíade já fez o relatório pelo telefone e comunicou-o por escrito à Comissão Mista de Armistício das Nações Unidas. Amanhã, depois de acusar sua recepção, a Comissão Mista de Armistício procederá a um inquérito formal. Daqui a um mês ou seis semanas, a Comissão dará uma decisão formal, isto é: uma mina, de procedência não identificada, foi colocada por um indivíduo ou indivíduos desconhecidos numa faixa de terra chamada Dedo Verde, na área de Sha’ar Hagolan. Também anotarão que um trator israelense invadiu a citada faixa e foi, conseqüentemente, destruído. Conclusão: o indivíduo ou indivíduos desconhecidos foram responsáveis por um ato ilegal ao colocarem uma mina numa zona desmilitarizada, e um israelense, lamentavelmente morto, cometeu um ato ilegal de invasão. Ação indicada: nenhuma.
— Mas nós é que suportamos as censuras como sempre.
— Como sempre — repetiu Baratz, secamente. — Mas dentro da mais estrita legalidade. . . e a Comissão de Armistício é um organismo legal. . . somos os únicos que podemos ser identificados. Temos um homem morto em nossa fronteira. — Fez uma pausa e prosseguiu com moderada intenção: — Mas o caso está tomando proporções exageradas. Tivemos quarenta e sete tentativas de sabotagem desde agosto do ano passado a outubro deste ano. Além disso, temos um novo governo em Jerusalém. Em breve, todos começarão a exigir ação. Não os posso censurar... Mas não agora, ainda é cedo.
— Quando?
Baratz compadeceu-se dele. Era muito novo, muito impulsivo, mas ainda inexperiente na fria arte do serviço secreto e das manobras políticas.
— Quando? Não somos nós que decidimos. Capitão. O Primeiro-Ministro decide em Jerusalém com o Gabinete e os Chefes do Estado-Maior. Contribuímos com informações, cálculos, uma opinião de prováveis conseqüências... E esperemos em Deus que acertemos em metade delas. Mas se me pergunta o que pode forçar-nos a represálias, dir-lhe-ei que tudo o que acontece aqui, por exemplo.
Seu dedo esquelético apontou para o mapa indicando a espessa cunha de terra entre a fronteira Sul do Líbano e a fronteira leste da Síria. Havia uma massa compacta de cruzes e círculos que corriam do sul de Mettula para a parte inferior do Jordão.
— Ou aqui, na planície de Sharon, ou no Shefelah, ou no mar Morto, entre Ein Gedi e Arad.. . É nesta ordem de idéias que temos de agir, sempre a mesma ordem de idéias.
— Um homem foi morto esta manhã:um pacífico agricultor. Isso não entra na tal ordem de idéias?
— Perdemos seis milhões em holocaustos, Capitão. Israel ergueu-se sobre suas cinzas. Não se esqueça disso. — Depois, mais afável, perguntou: — Já se sabe alguma coisa de Fathalla?
- Ainda não. Há dez dias que não se comunica pelo rádio. Nem sequer sabemos por onde anda.
— Eu sei — disse Baratz, taciturno. — Estou preocupado com ele. Chame-me logo que consiga contatar. É tudo.
O jovem saudou e retirou-se, fechando a porta atrás de si. Baratz continuou de pé fixando o mapa, onde a tinta vermelha se espalhava como manchas de sangue e os símbolos secretos militares contavam a história de uma batalha diária pela sobrevivência.
O mapa era-lhe tão familiar como a própria pele e reagia de igual modo a qualquer sarna ou erupção em sua superfície. Às vezes, em seus perturbados sonhos, era uma pele; uma pele humana viva, esticada e encravada num exíguo território entre o Egito a Jordânia, a Síria o Líbano e o mar, que era seu sangue vital. Subitamente, a pele
enchia-se de tumores e pústulas e destas saíam legiões e legiões de formigas-soldados, que marchavam em filas cerradas até cobrirem toda a pele, devorando-a até à nudez do solo. Quando as formigas se retiravam, o chão ficava juncado de ossos, por cima dos quais a voz do antigo profeta entoava uma litania:
”O Poder do Senhor tomou conta de mim e pelo Espírito do Senhor fui arrebatado e colocado no meio da planície juncada de ossos. Fez-me olhar em volta e levou-me através da planície, onde eles jazem ressequidos. Filho do Homem, disse ele, possa a vida voltar a estes ossos...”
Então, no sonho, fazia-se um silêncio, enquanto ele esperava pela prometida ressurreição, que deveria seguir-se à litania. Mas a promessa nunca se concretizava e ele continuava a vigiar, transpirando e aterrorizado, sabendo que, se as formigas invadissem de novo a terra, nunca mais haveria ressurreição e a Casa de Israel seria destruída para sempre.
Brusca e estridentemente, o telefone tocou. Dirigiu-se rapidamente para a secretária e atendeu laconicamente:
— Alô.
— Jakov, fala Franz Lieberman. Acabo de ver Hannah. Uma gélida mão comprimiu-lhe o peito. Sentiu-se tremer.
Agarrou num lápis para dominar os tremores.
— Como está ela? Que lhe parece, Franz?
— Acho que deve deixá-la conosco por enquanto, Jakov.
— Quanto tempo?
— Um mês. Talvez dois ou três. Ela atravessa um período difícil. Tentaremos ajudá-la a encontrar-se e a levaremos quando estiver em condições de partir.
- Não pode fazer nada?
— Sim, posso. Há tratamentos, naturalmente. Mas não garantias. Bem o sabe.
— Sem dúvida. Seja amável com ela, Franz.
— Como comigo próprio — disse Franz Lieberman.
— Quando poderei vê-la?
— Avisarei. Confie em mim, Jakov.
— Sim, confio. Que mais posso fazer?
Desligou o telefone e deixou-se ficar sentado, contemplando as palmas das mãos, como um quiromante que quisesse ler nelas o futuro da esposa e o seu, e o futuro de todos aqueles por quem estava a serviço, uma sentinela secreta num mundo crepuscular. Mas a quiromancia era uma arte mágica e ele acreditava tanto na magia como no Deus dos Padres, que dir-se-ia ter-se retirado para seu céu, enquanto seis milhões de seus eleitos pereciam numa monstruora hecatombe. E era esta a ironia de sua situação, pois nele, nomeado depositário da continuidade de Israel, a continuidade estava já interrompida. As mãos que se estendiam em sua frente, sobre a mesa, não tinham sido ungidas para o sacerdócio. Não havia profecias escritas nas palmas ásperas. Não faziam descer bênçãos de um céu silencioso. Er,am mãos de artífice, habituadas a trabalhar a madeira e o metal. Eram mãos de soldado, capazes de desmontar uma arma e montá-la de novo, desde a coronha ao cano, mais rapidamente do que a maioria dos outro^. Eram mãos de amante que outrora haviam despertado Hannah para triunfantes amplexos, mas que agora não tinham forças para a furtarem à sua alucinada regressão ao passado. Só, na sala nua, com seu mapa e seus seqredos, mergulhou por instantes numa vaga escura de desespero. Depois,-lentamente, a disciplina de toda uma existência impôs-se: a vaga retrocedeu e pôde de novo pensar com clareza.
Fathalla era seu principal problema: Selim Fathalla, cujo nome árabe significa Dom de Deus, que montou um negócio de importações e exportações em Damasco, que estava ligado a homens altamente colocados na Síria e vivia com risco diário da própria vida, porque seu verdadeiro nome era Adom Ronen e era um agente israelense. Todas as semanas, de uma maneira ou de outra, apresentava um relatório completo. Os meios variavam muito.
Todos os dias, a horas diferentes e em diferentes comprimentos de onda, Fathalla contatava pelo rádio com Telavive. As vezes um piloto israelense trazia uma carta, em código, de Chipre. Outras vezes, um motorista consular, que todos os dias atravessava a Passagem Mandei Baum, entregava um presente da Jordânia à namorada de Jerusalém. Ocasionalmente, vinha de Roma ou de Atenas, porque Fathalla era um homem de imaginação, com sentido de humor e muito cuidadoso no que se referia à segurança de seu complexo sistema. Mas havia dez dias que não dava notícias e isso preocupava Baratz.. .

DAMASCO

Não saberia dizer por quanto tempo estivera doente. O tempo tomara uma caprichosa dimensão, em que ele ficava suspenso por instantes, resvalando depois por uma eternidade agitada de febres e terrores indizíveis e sonhos confusos. O tempo era o declinar da luz do Sol através das frestas trabalhadas das gelosias, a forma da tamargueira do outro lado da janela aberta e o branco minarete da mesquita à sua retaguarda. O tempo era uma Lua branca no céu purpúreo. O tempo era um rosto de mulher, a carícia de suas mãos e o cheiro de água-de-colônia. Mas os símbolos eram ilusórios e, quando tentava agarrar-se a eles, desfocavam-se e dissolviam-se em confusão. Até agora.. . até este momento em que jazia, tímido mas sossegado, e sentia o mundo solidificar-se à sua volta.
Começou por ter conhecimento de seu corpo. Estava frio e hirto. Não sentia qualquer dor, apenas uma fraqueza e uma indiferença agradáveis. Seus dedos engalfinhavam-se nos cobertores. A almofada era macia contra seu rosto, de barba crescida. Quando abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi o grande candeeiro de cobre batido, que pendia do branco teto abobadado. Todas as fendas e riscos lhe eram familiares, pois há uma centena de noites que os contemplava. Portanto, não havia possibilidade de ilusão. Se o candeeiro estava ali, ele estava ali também.
Mesmo em frente de sua cama ficava a alcova com janela, ornada de sedas e mobiliada com um divã e um tamborete marchetado de madrepérola. As gelosias estavam corridas, de modo que as frestas rendilhadas de shisham desenhavam traços escuros no azul do céu. A esquerda da alcova, no centro de uma parede branca, estava o enorme painel de faiança azul, que tinha trazido de Ishfahan.
...Tudo estava ali, familiar e repousante: os tapetes de Bokhara, os azulejos brilhantes, o pequeno grupo de miniaturas pintadas, de marfim, a cimitarra em sua bainha dourada, que comprara ao alfageme Ali. Então, fraco mas nítido, ouvju o grito do vendedor de doces e, depois, o longo e lamentoso chamamento do muezzin, distorcido pelos amplificadores do invisível minarete. De súbito, sentiu-se gloriosa e infantilmente feliz porque Selim Fathalla estava vivo, em sua casa, em Damasco.
Era estranho como aderia amorosamente à sua identidade, como isso lhe agradava, como procurava reforçá-la. Não era um disfarce: era um indivíduo autêntico, organicamente completo, sem que se sentisse perdido e só, como um irmão privado do seu gêmeo. O outro indivíduo — chamado Adom Ronen — também estava completo. Até sua dualidade era total, pois havia entre eles um conflito fraterno sempre que os interesses de um ameaçavam o conforto ou a segurança do cutro. Seu diálogo era uma conversa refletida, continuamente matizada pelo medo de que um dia o homem refletido desaparecesse ou o homem diante do espelho se fosse embora, deixando sua imagem para sempre encerrada no cristal. E cada um deles tinha o mesmo problema: a cada mês que passava tornava-se mais difícil saber qual era a imagem e qual era o homem.
Nesta tortuosa e pobre cidade, só Selim Fathalla era real: Selim Fathalla, o conspirador de Bagdá, que quando o Partido Baath foi suprimido no Iraque, apareceu em Damasco pedindo asilo a seus camaradas sírios. Levava cartas dos chefes do partido, que se sabia estarem escondidos, e de velhos amigos da Universidade Americana de Beirute. Levava também dinheiro — um vasto depósito no Banco Fenício. Levava, além disso um conhecimento adequado do negócio de importações e exportações, que tinha aprendido na Rua Rashid, na velha Bagdá. Graças às cartas e ao dinheiro, foi recebido, se não com entusiasmo pelo menos sem grandes suspeitas. E porque era franco e delicado, rapidamente fez amigos. Porque era um baathista da linha dura. cedo foi útil ao governo que, tendo expropriado a indústria, socializado a agricultura e destruído a classe mercantil, viu-se perante o problema de vender sua produção num mercado livre.
Selim Fathalla não fez uma ostentação vulgar de seu êxito. Compreendeu que um hóspede tem de observar as conveniências, se não quer excitar a inveja de seus hospedeiros. Por isso, comprou uma casa no velho bairro de Damasco perto dos bazares e atrás de suas paredes brancas levava uma existência de luxo discreto e recebia amigos do partido e do Exército e diplomatas de Moscou, Praga e Sofia. Estes consideravam-no um elemento de informação e um guia válido para a política encoberta do mundo árabe. Mostrou-se também um bom muçulmano — embora não exageradamente devoto; mas era visto com freqüência na mesquita e tinha bastantes amigos no Ulema, para testemunharem sua ortodoxia.
Apaixonou-se pela secretária e fez dela sua amante. Mas não quis casar-se, porque ela era meio francesa e, além disso, cristã; por outro lado, esse casamento teria desagradado àqueles que então aprovavam seu bom gosto quanto a mulheres. Era hábil no comércio e conseguia transações difíceis — que iraquiano não as conseguia? — mas não era tão insaciável que fizesse inimigos, nem bastante louco para lesar o governo, pelo que, por último, até o temível Safreddin, que era Diretor da Segurança Pública da Síria e Juiz do Tribunal Militar Extraordinário, chegou a negociar com ele.
Mas o caso de Adom Ronen, o gêmeo do espelho, era muito diferente. Sua situação não era confortável nem aprazível — e, por vezes, tornava-se difícil respeitar-se.
Sentia-se prisioneiro naquele aposento caiado de branco. De fato, estava limitado a um espaço muito exíguo: um estreito quarto, pouco mais largo do que um guarda-roupa, oculto pelo painel de faiança. Aí escrevia seus relatórios, fotografava documentos e guardava o equipamento denunciador de suas atividades. Dali, como espectador escarninho, observava as selvagens ligações de Selim Fathalla, ao mesmo tempo que recordava a esposa e o filho em Jerusalém. Ali todos os dias, revivia a íntima tragédia que era ”A Casa Dividida”; é que Adom Ronen, o agente, estava dividido e subdividido em si próprio.
Era um judeu do gueto de Bagdá que tinha organizado o êxodo de seu povo e nunca conseguira o seu — porque não estava bem certo de o querer. Era o sionista que considerava a Casa de Israel monótona para viver e que, no entanto, se arriscava para preservá-la. Era um aventureiro amaldiçoado, com uma incumbência de missionário; um cínico carregado de culpas, que experimentava a comichão de uma lepra especial.
Fora ele quem criara Selim Fathalla e o dotara da plácida amoralidade que o fazia sofrer. Era ele quem conspirava e maquinava em segredo enquanto Fathalla acariciava sua amante síria ou ajustava contratos com Safreddin em nome de Alá. E, no entanto gostava de Fathalla e Fathalla gostava dele. Dependiam um do outro quanto à sanidade e à simples sobrevivência. Quando Adom Ronen considerava o seu dever intolerável, Fathalla lisonjeava-se com irônico deleite. Se Fathalla podia dormir sossegado, era porque Adom Ronen vigiava os lóbulos de seu cérebro e se precavia contra sua língua descuidada. Mas Selim Fathalla tinha apanhado malária em Aleppo e ficara oito dias de cama, delirante; por isso, não sabia o que tinha dito e quem poderia tê-lo ouvido. . .
Afastou os cobertores e sentou-se na beira da cama. Sentia-se cambaleante, mas mais forte do que supunha. Pôs-se de pé apoiando-se à parede. Depois, quando se certificou de seu equilíbrio,dirigiu-se cautelosamente para a janela, abriu as persianas e empoleirou-se no divã, contemplando o jardim. As plumas da tamargueira balançavam na tranqüila atmosfera meridional. Os gerânios, em vasos, provocavam uma explosão de cor contra os muros cinzentos. A única roseira, por baixo de sua janela, começava a florir. Da boca do leão cruzado, um fio de água gotejava para o tanque de pedra. Hassan, o jardineiro, estava de joelhos no meio da relva, como se num tapete de oração, moldando-a e aparando-a com tesouras. O rumor das ruas e o vozear dos mercados próximos envolviam-se numa suave monotonia. Este retiro, pelo menos, não fora ainda violado.
Enquanto respirava a sufocante e poeirenta fragrância das rosas, pensava em Emilie Ayub e desejava que estivesse ali para lhe dar banho, massagear e acalmar o ardor de seu debilitado corpo. Mas ela não aparecia sem que a chamasse, porque era esse o papel que ele lhe havia determinado: a discreta e útil amante que se mantinha fiel a seu homem e preservava sua dignidade entre os muçulmanos seus semelhantes. Era um papel que parecia agradar-lhe, embora isso não fosse muito lisonjeiro para ele. No entanto, não ousava confiar-se a ela mais abertamente, porque era preferível suportar a solidão do espírito a arriscar o pescoço por desvendar o segredo dos gêmeos.
A campainha da porta assustou-o. Levou algum tempo pararecompor-se, antes de dizer:
— Entre.
A pesada porta abriu-se, rangendo, e a velha Farida introduziu o Dr. Bitar no quarto. Bitar era um homem alto e esguio que lhe lembrava sempre um bambu balouçando ao vento. Seu rosto era comprido, magro e liso como o de uma mulher; as mãos eram delicadas, expressivas e cuidadas com esmero, A voz era incongruente: um profundo e ressonante baixo, que dir-se-ia pertencer a um cantor de ópera e não a um clínico. Houve, também, algo de teatral em sua entrada. Com um amplo gesto, pôs a velha mulher fora do quarto e depois estacou no meio do aposento, de pernas abertas, analisando seu paciente.
— Oh! Hoje estamos melhor. Não temos febre. Creio que estamos restabelecidos.
Fathalla sorriu do seu fofo poleiro e respondeu despreocupadamente:
— Sinto-me muito fraco. . . e cheiro pior do que um mendigo do bazar.
— Tome banho, meu amigo. Coma à vontade e beba grandes quantidades de líquido. Em dois dias ficará como novo. — Com a mesma dramática atitude, dirigiu-se para a alcova e sentou-se em frente de Fathalla. — Bem! Um pouco paralisado, mas bom. Sabe, naturalmente que está contaminado para sempre. Se quiser evitar mais ataques tome Paludrine a toda a hora e momento. Entreguei a receita a sua namorada. Trar-lhe-á o remédio esta noite.
— Quando posso voltar ao trabalho? Bitar encolheu os ombros:
— Dentro de dias, a não ser que surjam complicações no fígado, mas não creio. — Depois, acrescentou, numa leve censura: — Você fala dormindo, meu caro. Isso é perigoso.
Fathalla olhou-o espantado.
— Que disse eu?
— Nomes. .. como Jakov Baratz, Safreddin e outros, que ambos conhecemos, mas que seria preferível não ouvir. Falou da morte de reis e de um homem de Chipre que manda mensagens. E de outras coisas...
— Alguém mais me ouviu?
— Sua mulher, Emilie Ayub. Esteve aqui dia e noite, durante a febre.
— Que compreendeu ela?
— Ignoro. Não perguntei. Não fez comentários. É evidente que o ama e isso deve bastar.
— Falei... de outras mulheres?
— Não a mim. A ela? Espero que não.
— Estou espantado — disse Selim Fathalla.
— Bem! — observou o Dr. Britar. — Se isso o tornar mais cuidadoso, ainda bem!
— Teve mais algumas notícias?
— Não diretamente; mas houve seis editoriais atacando o Rei Hussein, chamando-lhe de instrumento dos imperialistas estrangeiros. Em vista do que já sabemos, o fator tempo é insignificante. Ornar Safreddin chamou-me duas vezes para se informar de sua saúde. Disse-lhe que o avisaria logo que estivesse em condições de receber visitas.
— Posso telefonar-lhe?
Bitar refletiu por instantes na pergunta, depois abriu as finas mãos num gesto de indiferença.
— Como queira. É uma delicadeza que pode valer-lhe uma pequena informação.
— Deixe-se disso, agora.
Dirigiu-se a passos vacilantes para o telefone e discou o número particular do Diretor da Segurança Pública. Momentos depois, a voz familiar e sem relevo respondeu:
— Alô!
— Coronel, fala Selim Fathalla.
— Meu caro! — Safreddin revelava-se inesperadamente cordial.— Passou um mau pedaço. Bitar contou-me. Como se sente?
— Um pouco fraco. Mas a febre desapareceu... É preciso que faça qualquer coisa contra a malária nesta região.
Era um pobre gracejo, mas pareceu agradar a Safreddin. Este riu e respondeu amavelmente:
— Estou estudando o novo programa. Vou anotar que não podemos dar-nos ao luxo de perder amigos como você.
— O Dr. Bitar obriga-me a ficar em casa ainda durante alguns dias. Gostaria que passasse por aqui e tomasse uma xícara de café comigo.
— Certamente. Digamos às dez horas da manhã de amanhã.
— Ótimo, Coronel.
Houve uma longa pausa e um estalar abafado na linha, como se a mão de alguém tapasse o bocal do telefone; depois, a mão foi retirada e Safreddin voltou a falar:
— Há uma coisa em que eu gostaria que pensasse, meu amigo. Está em condições de ajudar-nos?
— Quando quiser — respondeu, tranqüilamente, Fathalla. — O que posso fazer por você?
— Quando manda seu próximo carregamento para Ama? — Tenho de conferir a lista, mas julgo que na quarta-feira, dia vinte e cinco. Por quê?
— Gostaríamos que nos transportasse uma coisa.
— Que espécie de.coisa?
- Fuzis — disse Safreddin, lentamente. — Fuzis, granadas e bombas de plástico.
— Oh!... — A surpresa de Fathalla era sincera, mas agiu com ênfase especial. — Podemos transportar elefantes brancos se quiser coronel, basta que nos consiga a isenção de direitos na fronteira jordaniana.
— Quanto a isso. . . — Safreddin deixou a frase em suspenso, como se receasse comprometer-se com uma decisão. — Quanto a isso, podemos tratar da isenção de direitos.
— Oh! - repetiu Selim Fathalla. — Então, planejaremos o trabalho juntos. Deixe-me pensar no caso, Coronel. Procurarei ter algumas sugestões, amanhã de manhã.
— É um bom amigo — disse Safreddin cortesmente. — Quero que saiba que depositamos muita confiança em você.
- Alegra-me ouvir isso, Coronel.
Quando pousou o fone, Fathalla notou que suas mãos tremiam e um ligeiro suor frio lhe escorria da testa. Quando repetiu a Bitar o pedido de Safreddin, o médico assobiou lenta e dissonantemente. Depois, emudeceu.
— Isto cheira mal . — disse Fathalla.— Cheira como um montão de esterco.
— Eu sei — concordou o Dr. Bitar. — Há cem maneiras de levar armas para a Jordânia sem ter de se pagar direitos. Safreddin conhece-as todas. Já as utilizou todas. Por que precisa de sua ajuda? E por que se mostra tão aberto em relação a isso?

ALEXANDRIA

Na curva ocidental do Grand Corniche de Alexandria, perto do Palácio de Ras-el Tin, havia uma vivenda num jardim de palmeiras, relvados e canteiros de flores. Mesmo agora, tinha um ar de antiga opulência, embora seu esplendor tivesse desaparecido quando o proprietário grego perdeu a fé no regime de Nasser e decidiu pôr termo às suas perdas, abandonar seu diminuído capital egípcio e viver dos investimentos feitos na Europa. O jardim, sobretudo, tinha um aspecto precário; o equipamento de metal branco estava enferrujado, os abrigos apresentavam-se descobertos e esburacados, e os canteiros estavam juncados de ervas daninhas e de tâmaras caídas, que apodreciam ao sol.
No dia seguinte ao do incidente em Sha ar Hagolan, dois homens passeavam no jardim. Um era um indivíduo baixo e afetado, de cara redonda e inocente e olhos suaves, com aspecto de banqueiro ou de antigo funcionário. Chamava-se Idris Jarrah, era funcionário subalterno, mas Diretor das Operações de Campanha da Organização de Libertação da Palestina. Sua nacionalidade era incerta, uma vez que era, por nascimento, um árabe palestino natural de Jaffa, e sua pátria estava agora ocupada por um povo que odiava; uma nação que, para ele, não tinha existência legal e a cuja destruição se havia consagrado. Até na documentação era uma personagem equívoca, visto possuir uma infinidade de passaportes: egípcio, grego, sírio, libanês jordaniano e italiano. Seu companheiro era de natureza ainda mais equívoca; um homem alto, de cabelos grisalhos, na casa dos cinqüenta, cujo verdadeiro nome se afundava numa obscuridade cuidadosamente preparada, mas que era o Chefe do Estado-Maior da mesma Organização.
O dia estava quente e abafado. Um vento fraco e contínuo soprava da África, carregado de um acre odor a areia e umidade, emanação familiar do pântano de Maryut. Os ramos cimeiros das palmeiras moviam-se como leques, num ritmo lento e crepitante; e, quando os dois homens pisavam as áleas calcetadas, as folhas mortas enrolavam-se em seus pés num redemoinho de pó . O mais idoso falava enfaticamente acompanhando as palavras com gestos espasmódicos, como um adejar de asas. Idris Jarrah falava calmamente e sem gestos, porque era um homem que encarnava doze personalidades diferentes e aprendera a necessidade do autodomínio e do anonimato. O que não tinha nome disse:
— Este caso da Galiléia é um contra-senso! Uma provocação inútil que só serve para endurecer a opinião pública de Israel e põe a Síria em foco quando fazemos tudo para o evitar.
— De acordo — assentiu Idris Jarrah, suavemente. — Mas são coisas que acontecem. É provável que a mina estivesse lá há meses.
-- Quando for a Damasco, fale no caso a Safreddin. Lembre-lhe, nos termos mais ásperos, nossos esforços de entendimento. Os futuros incidentes devem limitar-se à fronteira com a Jordânia. Faça-lhe notar que, segundo o Tratado de Auxílio Mútuo, o Egito fica desligado de intervir, se a Síria provocar um ataque israelita.
— Assim farei. . . Em todo caso, o novo programa exige uma concentração de nossos esforços em Nablus, Hebron e no setor do mar Morto. Não teremos mãos a medir. Safreddin ocupar-se-á
do outro assunto.
— Quando tenciona ele agir?
— Dentro de duas semanas. Está à minha espera para mandar o dinheiro para a Jordânia.
— Khahl está organizado?
— Safreddin diz que sim, Mas quero verificar o plano antes de entregar o dinheiro.
— Desta vez tem de funcionar — declarou o anônimo com súbita ira. — Outra depuração no Exército jordaniano pode atrasar-nos um ano ou talvez mais .
— Eu sei — concordou Idris Jarrah.- Se houver falhas no plano de Khalil, estou autorizado a adiar a operação, não é assim?
— É. . . Agora, a questão do dinheiro. Depositamos duzentas mil libras esterlinas em seu nome. no
Pan-Arab Bank, de Beirute. Idris Jarrah olhou-o surpreendido;
— No Pan-Arab? Sempre tivemos transações com Chakry. Seu companheiro sorriu, um sorriso breve, íntimo, desanimado:
— Eu sei. Decidimos fazer outros acordos. Seu saldo atual no banco de Chakry é de cinqüenta e sete mil dólares americanos. Quando for a Beirute, levante-os imediatamente e deposite-os na nova conta.
— Há algum motivo para isso?
— Muitos. O principal é que Chakry se tornou demasiado grande para nos ser útil. O segundo é que os libaneses têm de compreender que não podem ficar com todos os lucros, quando são os outros, como nós, que correm todos os riscos.
— E cinqüenta e sete mil dólares os farão compreender tudo isso?
— Talvez não. Mas cinqüenta milhões o farão.
— Parece-me que vamos ter um mês interessante — disse Idris Jarrah com leve ironia.
— Espero que você esteja vivo para o gozar. Quando parte?
— Esta tarde, às três horas. O navio já está no porto. Estarei em Beirute às onze da manhã.
— Divirta-se — articulou o anônimo, indiferente.
— Inshallah — correspondeu o funcionário com cara de lua cheia.

BEIRUTE

Em seus momentos mais alegres — e um confiante bom humor era uma de suas mais valiosas armas ,
Nuri Chakry tinha por hábito proferir um pequeno discurso, em que se descrevia:
"...A sorte não é tudo. O caráter é o destino. Somos nós que nos fazemos. Conseguimos o que merecemos. Eu, por exemplo, sou fenício. Adoro o dinheiro. Adoro as transações. Para mim, regatear é um jogo; o risco é tão inebriante como o haxixe. Se tivesse vivido nos tempos antigos, ter-me-ia sentado numa barraquinha, junto do porto, trocando ouro por prata, peles de camelo por pontas de machado e óleo de palma pelas lentilhas dos faraós. Eu sou — como dizer? — um mascate. Para mim, só existe uma regra: nunca transacionar com um mascate mais esperto do que eu...”
A afirmação era verdadeira. Tudo o que Chakry dissera era verídico, pois adotara como norma nunca mentir em negócios. O problema para aqueles que tratavam com ele estava.em distinguir verdade poética do real, em lembrar-se de que o que ficava por alta era muitas vezes mais importante do que o que se exprimia em palavras vivas e persuasivas.
Chakry era um fenício no sentido que era um cidadão adotivo do que fora outrora uma cidade fenícia. Contudo, a certidão de nascimento mostrava
— àqueles que cavaram bastante fundo para o descobrir — que era um árabe palestino, natural de Acre, que fugira da região em 1948, quando os israelenses a ocuparam. Havia outros que afirmavam ter cavado ainda mais fundo e descoberto que ele era, de fato, um judeu renegado mais inclinado para os Relatórios Trendez do que para o Talmud, e que preferia regatear num mundo livre a submeter-se ao socialismo burguês do novo Estado judaico. Mas até seus inimigos se inclinavam a considerar isto uma calúnia, espalhada por aqueles que ele havia calcado em sua rápida e espetacular ascensão.
Que adorava o dinheiro, estava fora de dúvida; que adorava transacionar, era também um fato. Quando chegou a Beirute, estava ”quase falido, mais implorando, conseguindo empréstimos e enganando, logrou instalar-se como cambista numa rua transversal, perto das docas. Seu negócio estava aberto dia e noite. Os primeiros clientes eram marujos, alcoviteiros, prostitutas, porteiros de hotel, angariadores de clubes noturnos, vendedores das docas, contrabandistas, receptadores e negociantes de antigüidades duvidosas. Não havia moeda corrente tão degradada que ele não conseguisse colocar com lucro. Nenhuma transação era assaz insignificante para o impedir de agir como intermediário, contanto que a comissão fosse aceitável e paga por ambas as partes.
Comprou moedas antigas a fazendeiros, que as haviam descoberto em suas terras, a operários das escavações de Baalbek e Biblos. Limpou-as e
vendeu-as por preço elevado por intermédio de anúncios nas revistas internacionais de colecionadores. Desenvolveu qualidades de perspicácia para as antiguidades e pôs-se a par de seu Imitado mas rendoso mercado. Era, em suma, o que afirmava ser: um mascate amigo da vida opulenta e com uma intuitiva compreensão dos usos do poder.
A primeira lição que aprendeu foi que a comunicação imediata é a chave do êxito. Uma moeda de ouro fenícia no tabuleiro de um escavador de Biblos valia mais, talvez, do que cem dólares. Em Nova York, renderia quatro vezes mais. Pedras-d’água em Beirute não tinham cotação, mas em Bancoc compraria rubis, safiras e cintos de ouro entrelaçados. Uma nota de libra da África Oriental podia ser comprada por cinco e às vezes por dez, deduzida a percentagem, no mercado europeu, mas se a recambiasse para o Quênia valeria tanto como o esterlino. Por isso, sentado em seu sujo gabinete, Nuri Chakry sonhava com aviões, navios, cabos telegráficos e máquinas de telex - e toda uma vasta rede de ligações que o pusesse diariamente em contato com os mercados do mundo.
Aprendeu ainda outra lição: que o dinheiro é uma criatura tímida e aqueles que o possuem são ainda mais tímidos. Vivem no medo diário dos cobradores de impostos, dos reformadores sociais, dos revolucionários, dos políticos e das esposas abandonadas. Para Midas tão tímidos Beirute era um céu aberto: tinha os reis do petróleo do Kuwait e da Arábia Saudita, os mercadores sírios receosos da expropriação, os armadores gregos e os milionários do Texas.
Foi assim que, um dia, Nuri Chakry fechou sua loja perto das docas, meteu seus sonhos no bolsinho de um terno novo e se ligou à Sociedade Fenícia de Banqueiros. Porque era capaz e audacioso, porque era um hedonista prudente que se prestava de bom grado aos vícios de seus pretendentes ricos, prosperou rapidamente. Quando os pretendentes, um por um, se tornaram clientes, sentiu-se apto a não se deter diante de obstáculos para lhes confirmar a
confiança que tinham nele e o interesse que tomava nos fundos que eles lhe haviam confiado. Certa vez, no Pavilhão Mourisco, que era um anexo de seu gabinete, onde recebia seus principezinhos sauditas e do Kuwait, empilhou na mesa barras de ouro com mais de um metro de altura e cobriu-as com títulos e notas para provar que o dinheiro de seus clientes estava sempre à disposição e que não havia no
mundo um guarda mais seguro do que Nuri Chakry.
Quando chegou aos cinqüenta anos — cinqüenta anos joviais, de pele lisa e cabelos pretos —, tinha construído um império que se estendia de Beirute à Quinta Avenida, do Brasil à Nigéria e a Qatar; e fiscalizava tudo isso de um ninho de águia no topo do Banco Fenício — uma vasta sala particular, de cimento e vidro, que dava, a oeste, para o Mediterrâneo e, a leste, para as montanhas, além das quais se situavam os desertos ricos em petróleo.
Em todo o Líbano, não havia quem se lhe comparasse em poder e prestígio, e os fios de ouro de sua teia estavam presos a uma multidão de empresas. Através de seus clientes e empregados, podia contar com a décima parte do poder de voto de todo o país, e vinte por cento de seu capital ativo estava depositado nas caixas fortes subterrâneas da Sociedade Fenícia de Banqueiros.
Em sua secretária, revestida de plástico transparente, estava seu emblema particular e sua moeda talismã — uma moeda de ouro de Alexandre Magno que mostrava, de um lado, o conquistador deificado como o deus Ámon e, de outro, a deusa Atena num trono triunfal. O emblema talvez o mostrasse como um homem presunçoso, mas de maneira nenhuma estúpido. Compreendeu que os limites de seu império eram mais estreitos do que os de Alexandre. Sabia que seus recursos não estavam colocados em negócios demasiado arrojados, mas em investimentos arriscados que, se conseguisse agüentá-los, duplicariam ou triplicariam seu valor; mas que, se fosse obrigado a liquidá-los, lhe custariam o braço direito. Sabia que quanto mais suas linhas de comunicação se estendessem, menos dignas de confiança se tornariam. Sobretudo, sabia que rua própria existência dependia da precária situação política do Oriente Médio. A asa esquerda mais poderosa dos baathistas instalara-se na Síria, a maioria dos sauditas e dos kuwaitianos estava preocupada com o futuro de suas opulentas autocracias. Quanto mais inquilinos se iam tornando, mais tentavam transferir os riscos para esse agenciador serviçal que era Nuri Chakry. A maior parte do confuso Egito interferiu na guerra do lêmen, contraiu dívidas com os russos, teve necessidade de um banqueiro amigo para lhe trocar as letras por capital ativo. Com o conflito nas fronteiras de Israel, uma pequena parte de fundos passou para o Líbano, a fim de ser convertida em ações européias. Até os russos puseram a bonita soma de seis milhões de dólares em depósito e isso fez os americanos réus parceiros de gangorra.
Mas para levar a cabo este jogo eram precisos nervos de aço, uma linguagem bajuladora e olhos atentos a qualquer palha que pudesse fazer pender o fiel da balança. Nessa manhã, havia muita palha no vento, e Nuri Chakry mantinha-se pensativo à janela de seu gabinete, olhando para o mar iluminado pelo sol e curioso por saber onde ela iria cair. Alguns minutos depois, voltou para sua secretária, inclinou-se para um intercomunicador e chamou:
— Mark? Já o posso atender. Entre, por favor.
Momentos depois, as portas elétricas do gabinete abriam-se silenciosamente e Mark Matheson entrou com um grande livro de couro debaixo do braço. Era um indivíduo corpulento, de quarenta e tantos anos, cabelos à escovinha e rosto incrivelmente jovem. Era um americano que tinha aprendido seu ofício com os Rockefellers, de Nova York, e que Chakry atraíra a Beirute para fazer dele seu colaborador e principal agente europeu. Muitos de seus amigos haviam-no aconselhado a não aceitar o cargo; mas a remuneração era elevada, o monopólio de Chakry lisonjeiro e, por isso, aceitara.
Até então, não tivera motivos para lamentar a decisão. A princípio, a ofuscante confusão das manobras de Chakry asrustara-o, mas os livros estavam abertos, a escrita parecia em ordem e, embora nem sempre aceitasse conselhos, Chakry nunca faltava ao respeito a quem os dava.
Mostrava-se rude e franco para com aqueles com quem negociava e ruas raras explosões temperamentais eram igualadas por momentos de extraordinária generosidade. Indicou uma cadeira a Matheson e entrou logo no assunto.
— Como vamos este mês, Mark?
- Com certa dificuldade — respondeu Mark Matheson. — Mais do que o costume. Na sexta-feira, precisamos dos habituais dez milhões para satisfazer a folha de pagamentos da administração. Podemos cobrir isso. Na próxima semana, ainda estaremos OK, a não ser que haja levantamentos importantes... À treze do mês, vamos precisar de ajuda.
— Quanto?
— Seis. milhões. Podemos remediar com cinco.
— Tratarei disso — falou Chakry com firmeza. -— Amanhã, vou almoçar com o Presidente, iremos ao Banco Central para nos caucionar. Agora. . . — Bateu no pequeno monte de jornais empilhados com matemático esmero no canto da secretária. — Isto significa problema. Quatro editoriais esta manhã, todos atacando o Rei Faiçal. Ele não vai gostar.
Matheson encolheu os ombros:
— É a velha tática egípcia. Os jornais são financiados com dinheiro de Nasser, Faiçal deve sabê-lo.
— Claro que sabe — concordou Chakry asperamente. — Mas os jornais são publicados no Líbano. Para Faiçal, representam um vasto setor da opinião pública deste país. Por isso.. .
— Por isso?. . . — inquiriu Matheson, cortesmente.
— Se eu fosse Faiçal. . . e conheço-o muito bem. . . perguntaria a mim mesmo por que motivo haveria de deixar cinqüenta milhões do meu dinheiro no Líbano, onde todos os dias me insultam na imprensa, quando posso transferi-los para Londres e receber oito por cento da Imperial Chemical Industries.
— Aí está uma boa pergunta — comentou Mark Matheson.
— Uma pergunta perigosa... para nós — corrigiu Nuri Chakry. — Agora, outra coisa. Recebi esta manhã um telefonema de Ibrahim, do
Pan Arab.
— Oh! Como vai indo ele com o novo trabalho? Chakry encolheu os ombros com indiferença:
— Mal, mas enquanto lhe pagarmos está disposto a tolerá-lo. Disse-me que a O.L.P. tinha depositado duzentas mil libras esterlinas no Pan-Arab na conta de Idris Jarrah.
— Jarrah! — Matheson ficou surpreendido. -— É um dos nossos. Foi, durante três anos. Ainda tem em nosso poder um crédito substancial a seu favor.
— Eu sei. Mas desconfio de que chegará dentro de um ou dois dias, levantará o dinheiro e fechará a conta.
— O que significa isso?
Chakry pegou no pequeno cubo de plástico que encerrava seu talismã e pôs-se a atirá-lo, distraidamente, de uma para outra mão.
— Significa que os egípcios desaprovam a política libanesa; que nos querem mais árabes e menos fenícios; que nos querem mais ativos contra Israel; que nos querem para chamar os jordanianos e os kuwaitianos às fileiras da RAU... — Segurou o cubo contra a luz estudando-o como uma bola de cristal. — Significa que, se os egípcios são sórdidos, os sírios são ainda mais sórdidos e os russos dar-nos-ão uma sacudidela como medida de precaução... Significa que duzentas mil libras esterlinas é muito dinheiro.. . muito mais de que aquilo que Jarrah precisa para sabotagens de fronteira. Por isso, qualquer coisa de grande está para acontecer.
— Com duzentas mil libras pode comprar todos os refugiados palestinos da Jordânia Ocidental... e até parte do exército de Hussein.
— E é muito possível que o tente — disse Chakry sombriamente. — Diga-me Mark, se precisássemos de uma cobertura de repente, onde iríamos
procurá-la?
— Quanto e até quando?
- Cinqüenta milhões por trinta dias.
— Jesus! — explodiu Mark Matheson. — Com o mercado atual, é como pedir um pedaço da Lua. Quando o I.C.I. oferece oito por cento sobre um emprésfmo de vinte e quatro milhões, isso quer dizer que há mais falta de dinheiro do que de peixe.
Chakry brindou-o com um rápido sorriso zombeteiro:
— Assustado, Mark? Matheson não estava divertido:
— Tem razão caramba, estou assustado! Estamos três e meio por cento mais instáveis que. .. qualquer outra parte mas Beirute seria uma violação criminosa; e ainda fala de uma corrida de retiradas por parte de clientes maiores. Cinqüenta milhões em trinta dias! Onde os iríamos buscar? Em Londres revestem com fita gomada os rasgões nas notas de libra; estamos empenhados em Zurique e com os Rockefellers; o que nos deixa com Mortimer, por um lado, e o mercado judeu, pelo outro. Mortimer poderia caucionar-nos com uma chamada telefônica, mas sabe perfeitamente o que ele pedirá.
— A companhia de transportes aéreos... e explorá-la-ia sobre meu corpo morto!
— Exatamente. E isso refletir-se-ia diretamente no mercado judaico. Não consigo imaginá-los quebrando o pescoço para financiar a Liga Árabe. E você?
— Não tenho certeza — disse Chakry, calmamente. — O dinheiro não tem pátria. E os judeus têm certa tendência para a ironia. Sim! Posso imaginar uma situação de um grupo poderoso de judeus saindo muito delicadamente do Banco Fenício.
Matheson encarou-o com cética admiração.
— A verdade é que acredito que os odeia o suficiente para o tentar.
— Não se trata de ódio, mas de sobrevivência. E se para sobreviver tiver de tratar com o próprio Shaitan, fá-lo-ei. Agora, tome algumas notas.

NO MAR

Idris Jarrah, o terrorista de olhos suaves, era um homem que compreendia o porquê das coisas. Compreendia o porquê pessoal, o porquê político e o porquê público. E compreendia que eram todos diferentes e mutuamente contraditórios.
O porquê pessoal era o mais simples. Idris Jarrah era um árabe sem pátria. Um árabe sem pátria não tinha identidade nem futuro. Se quisesse um lar, tê-lo-ia entre os refugiados da Faixa de Gaza ou nas cidades de cabanas da Jordânia Ocidental. Se quisesse trabalho, tê-lo-ia também, como varredor de ruas, ou jornaleiro, ou vendedor ambulante de tâmaras, ou burilador de bugigangas para turistas. Mas se quisesse uma identidade — um certificado oficial de que era uma pessoa e não uma peça anônima dos restos de um naufrágio —, então tinha de descobrir um mercado onde lhe vendessem uma pelo preço que pudesse pagar.
Idris Jarrah encontrou esse mercado na Organização de Libertação da Palestina — essa família de fanáticos desalojados, que havia jurado atirar os judeus ao mar, restabelecer as antigas fronteiras da Palestina e implantar uma hegemonia árabe através de todo o Fértil Crescente. Quanto ao preço, Jarrah estava habilitado a oferecer moeda forte. Tinha trabalhado como informante e, mais tarde, como detetive subalterno para a antiga força de polícia da Palestina. Conheceu as artimanhas da espionagem e os processos de terror. Aprendeu com os ingleses o valor do sistema e do método.
Porque não tinha ilusões e nada esperava fora da Organização, trabalhava com desinteressada eficiência. Porque nunca prometia mais do que podia realizar, sua atividade satisfazia sempre; e porque não acreditava em Deus nem nos políticos, mas apenas em Idris Jarrah, estava acima da corrupção, insensível até a seus próprios interesses. Dava sua opinião, impunha ordens, favorecia um ataque noturno ou a explosão de uma bomba, recebia seus honorários e dormia feliz com qualquer mulher acessível, ao passo que a maior parte dos homens se debatia em pesadelos de frustrações ou sonhava com fantasias bárbaras de império.
O porquê político era igualmente claro para ele. No que dizia respeito ao mundo árabe, o Estado de Israel era como Deus. Se não existisse, teria de ser inventado para servir de pomo de discórdia e ponto de reunião do extremamente divido mundo muçulmano. Sem os judeus, que outro bode expiatório encontrar para os moradores dos bairros pobres de Alexandria, para os mendigos que coçavam suas chagas no pátio do Nobre Santuário para os desempregados de Damasco e as centenas e dezenas de milhares de pessoas perdidas que acampavam entre o deserto e o mar, nas proximidades da cidade de Sansão? Sem os judeus como descobrir uma causa comum para os libaneses ricos os kuwaitianos, os chefes de tribo beduínos, o rei dos hashemitas, o sírio marxista e o felá egípcio, que se entregava a uma guerra sem significado no lêmen? A unidade árabe só se podia expressar pela negativa: destruir os judeus. Mas sem os judeus, dicilmente se expressaria! Quanto à restauração da Palestina Jarrah sabia melhor do que a maior parte que, mesmo que fosse restaurada, seria desmembrada de um dia para o outro por seus invejosos vizinhos.
Por isso, a Organização consagrava-se a uma fantasia, mas fantasia eram os expedientes dos políticos e estes pagavam largas somas em dinheiro para os concretizarem e manterem homens como Idris Jarrah trabalhando para suas causas rivais.
E agora, o porquê público. Os egípcios queriam Israel destruído mas faltava-lhes dinheiro para o fazerem. Os socialistas sírios queriam desembaraçar-se do reizinho da Jordânia, que era amigo dos ingleses e um símbolo da obsoleta monarquia tribal. Os jordanianos queriam uma estrada para o mar e um porto no Mediterrâneo. Os libaneses queriam dinheiro e comércio, e os russos queriam um arco socialista de Bagdá às Colunas de Hércules. Para cada um deles, a Organização de Libertação da Palestina tinha um valor particular. Por isso, exaltavam-na em público ou condenavam-na em segredo, mas pagavam generosamente para a manter viva.
Por tudo isto, às nove e meia de uma luminosa manhã de outono, Idris Jarrah encontrava-se no convés de um barco a motor, o Surriento — dez mil toneladas, procedente de Gênova, com escalas fixas em Alexandria, Beirute e Limassol — e contemplava as montanhas do Líbano, que emergiam do mar, e a cidade dourada de Beirute, que tomavam forma sob o sol da manhã. Tinha passado uma noite agradável com uma cantora de clube, de certa beleza e considerável impetuosidade, e vogava no bem-estar e segurança de ser um homem solicitado.
Depois da sordidez de Alexandria e da estridente atitude para com os egípcios — um febril, arrogante e infeliz povo com que antipatizava sinceramente —, a perspectiva de dois dias no Líbano era muito atraente. Seu programa era simples e pouco exigente,
instalar-se-ia no hotel São Jorge, um aprazível local com vista para o mar e com um porteiro que conhecia seus gostos e era expedito em satísfazê-los. Iria ao Banco Fenício levantaria o dinheiro e depositá-lo-ia no Pan-Arab Bank. Teria uma breve conferência com amigos e agentes e depois faria uma cômoda viagem até Merjayoun, para ver o tenente local, que dirigia as atividades de sabotagem no polegar de Hasbaini. Pouco haveria ali para fazer, pois o plano era manter a fronteira do Líbano tranqüila, enquanto as agressões eram desencadeadas da Jordânia, ao longo do corredor de Jerusalém. Desembolsaria o dinheiro e arranjar-se-ia para a distribuição das armas que estavam sendo embarcadas no porão do Surriento, em tubos de plástico, que mais tarde seriam vendidas a um fornecedor de equipamento de drenagem, de Beirute. Depois disso, divertir-se-ia durante uma noite e tomaria o primeiro avião para Damasco a fim de conferenciar com Safreddin. Era aí que seus problemas começavam; é que Safreddin consagrava-se a muitos jogos ao mesmo tempo e queria Idris Jarrah envolvido em todos eles.
O Coronel Safreddin era um soldado que fizera um acordo com os políticos. Manteria o Exército sírio leal, contanto que lhe dessem poder bastante para o controlar e satisfazer sua grande ambição pessoal. Constituiria uma classe de oficiais treinada nas doutrinas do Baath — o Partido Socialista Árabe de Ressurgimento —, e conservá-la-ia como arma de reforço das polícias política e econômica de um Estado de partido único. Depuraria os descontentes que ainda seguiam Nasser e os egípcios. Exerceria vigilância constante sobre os proprietários e os mercadores, que tentavam desviar seus capitais da Síria para o Líbano, e os países do Mediterrâneo. Alimentaria a amizade dos russos, ao mesmo tempo que poria a subversão a descoberto ou a enquadraria nos moldes do socialismo sírio-árabe.
Sua ambição ia ainda mais longe. Queria ,que fosse a Síria e não o Egito a determinar o poder político árabe. Queria que Israel fosse riscado do mapa. Queria que os egípcios e os jordanianos se envolvessem o mais cedo possível numa guerra aberta contra os usurpadores sionistas. Queria que o rei dos hashemitas fosse destituído e instalado um governo socialista, a fim de que o bloqueio da fronteira pudesse originar um cerco em grande escala. E Idris Jarrah era o homem ideal para dar início ao desafio.
Idris Jarrah enviaria sabotadores da Jordânia para Israel e, se os israelenses se vingassem, seria contra a Jordânia e não contra a Síria. As populações fronteiriças acusariam o Rei Hussein e exigiriam um novo governo para as proteger do Exército judaico. Ao mesmo tempo, Idris Jarrah desembolsaria dinheiro para financiar a revolução no palácio de Amã. Idris Jarrah seria responsável pela operação final -— e, se fosse preciso, suportaria a acusação de sabotador pago para operar ilegalmente nas fronteiras de um Estado soberano.
Mas Idris Jarrah era um homem que compreendia o porquê das coisas e não tinha qualquer intenção de passar a corda à volta de seu próprio pescoço. Por isso, enquanto se expunha ao sol, lânguido e contente como um gato, e contemplava as montanhas do Líbano, que se recortavam no céu, pôs-se a idear uma política de segurança e a pensar naqueles que podiam
subscrevê-la.
Os primeiros subscritores seriam os membros da própria Organização no Líbano, na Jordânia e em Gaza. Seu dinheiro ajudava-os a comer; suas armas
davam-lhes uma sensação de poder e dignidade; suas promessas da restauração da pátria alimentavam-lhes a esperança. Até os riscos a que os sujeitava nas suas operações de sabotagem conferiam certo encanto e sentido às suas vidas de outro modo insípidas. Nem todos eram heróis. Alguns eram rematados covardes, que tinham de ser adulados ou ameaçados para que realizassem as tarefa? que lhes confiavam. Mas também havia patriotas e, se seu orgulho ou esperança na pátria perdida fosse destruído, então estariam perdidos para ele e para eles. Sem esses patriotas ficaria desprotegido e sem poder; com eles seria um príncipe complacente — se bem que um príncipe num reino de mercenários e proscritos.
Por isso, precisava cada vez mais de partidários poderosos. Precisava de uma rede para o apanhar se falhasse e caísse de sua posição de equilibrista entre os sírios e os egípcios. Por isso, pensava em Nuri Chakry, que era também um equilibrista e talvez aceitasse um acordo particular sobre um assunto de interesse mútuo.

Dois

JERUSALÉM

Quarenta e oito horas depois do incidente de Sha’ar Hagolan, o General-de-iBrigada Jakov Baratz era convocado para uma reunião no gabinete do Primero Ministro, em Jerusalém. A reunião estava marcada para as 15 horas. Uma viagem calma de Telavive demoraria duas horas, no máximo; mas Baratz preferiu partir ao nascer do Sol. Para seu motorista, ensonado e mal-humorado, era um sacrifício; para Baratz, era o mais puro dos prazeres espartanos .
Ao amanhecer, o mar era cor de opala e a neblina roçava por ele como uma mantilha pelo peito de uma linda mulher. A brisa começava a agitar-se, suave e alegre, não maculada ainda pelo fumo dos motores e pelo pó do tráfego costeiro. A cidade esfregava os olhos ensonados e raros transeuntes apresentavam um aspecto meditabundo e agreste, como se não pertencessem a este buliçoso e frenético centro urbano que tão rapidamente havia surgido das dunas, ao norte da antiga Jafa.
Os campos planos estavam úmidos de orvalho. Havia um cheiro a flor de laranjeira e a terra revolvida. A claridade filtrava-se em tons verdes pelas folhas do pomar, adquiria tonalidades douradas no restolho, era rósea, branca e de um castanho mosqueado nos afloramentos calcários. Nos recôncavos dos montes, a leste, os pinhais acotovelavam-se, ainda negros e sombrios, mas nas cumeadas de seus cocurutos resplandeciam como lanças de legiões em marcha.. . Para Jakov Baratz era esta a verdadeira face da Terra da Promissão, clara e nova a cada nascer do Sol
— como uma criança a veria na sua maravilhosa frescura.
Tinha ali chegado ainda criança filho de um negociante apátrida do Báltico, e nunca esquecera o esplendor de sua chegada: a chama abrasadora do Sol. o céu ofuscante as montanhas escarvadas como que a machadada, o deserto onde o ar dançava e as cidades e palmeiras que balouçavam desordenadamente e desapareciam a perder de vista. Jovem ainda, tinha amanhado a terra, erguido paredes de rocha com as mãos apenas, carregado cestos de terra às costas, plantado vides e limoeiros. Já homem, bateu-se por isso, usando as táticas militares que aprendera com os ingleses, percorrendo quilômetros de sangue desde Lydda a Ramle, a Abu Ghosh, até à última base do Sião. Tudo isso tornara seu amor multiforme: uma paixão cega que o ligava mais à terra do que o ligaria ao corpo de uma mulher. Era também ciumento, como todos os amantes; porque seu direito de posse sobre o bem-amado era incerto e ninguém sabia melhor do que ele como estava ameaçado.
Sob o ponto de vista legal — se é que havia vestígios de legalidade nos acordos entre nações -—, Israel nem sequer tinha fronteiras. Estas eram linhas de armistício, sujeitas a ratificação pela assinatura de um ato formal de paz, que parecia muito menos provável do que a chegada do homem à Lua. Além disso, essas linhas eram vulneráveis em muitos pontos, por causa da existência de zonas desmilitarizadas, onde o tráfego militar era interdito e ninguém podia usar uma arma para proteger sua vida, seus filhos ou suas terras. O comércio de Israel estava paralisado por sanções impostas pelos Estados árabes. O canal de Suez estava fechado a seus navios. As comunicações estavam cortadas, pelo que era impossível fazer um telefonema de um extremo para o outro de Jerusalém, e a estrada entre Acre e Sidon estava cercada de campos de minas, arame farpado e homens armados, que atiravam para matar.
Apesar de tudo, tinha prosperado e prosperaria ainda mais. Contudo, havia menos gordura sob sua pele e indícios de tempos mais magros. Depois das primeiras grandes colheitas -— dos escombros da Europa, Líbia, Tunísia, Argélia, do Marrocos, dos Bálcãs, do lêmen, da América do Sul, do Iraque, Irã e Hadramuat -—, a vaga de emigrantes para Israel tinha cessado. A menos que a Rússia abrisse suas portas para libertar seus três milhões de infelizes judeus. Israel seria forçado a contar com seu crescimento natural para encher os espaços desertos, construir uma economia industrial e manter suas forças de defesa. A vaga de cérebros e capital da diáspora americana tinha definhado, porque a memória dos holocaustos começava a enfraquecer e as trombetas de Sião a soar cada vez mais indistintamente aos ouvidos dos recém-chegados. Havia ainda os que vinham compartilhar a vida do kibbutz durante uma ou duas estações, mas já não constituíam um núcleo migratório. Com efeito, mal chegavam para substituir os que trocavam o país pelas fartas regiões da Europa e dos Estados Unidos.
Mesmo dentro das fronteiras de Israel, a história começava a repetir-se: tensões tribais disputas religiosas, descontentamentos sociais e rivalidades políticas. Israel ainda não tinha decidido — ainda não pudera decidir — em que forma se fixar: se num Estado ocidental aberto para o exterior ou numa congênita e inconstante comunidade levantina. Por enquanto, apesar da educação em massa e do serviço militar obrigatório, não havia ainda um cruzamento satisfatório entre raças ocidentais e orientais nos núcleos de imigrantes.
O conflito religioso era ainda mais doloroso. Os adukim, os justos, os da Bíblia e da antiga ortodoxia, não queriam comprometer-se com um Estado secular. Procediam com o poder político tão implacavelmente como com a imposição dos rituais de purificação; e por sua causa, Israel continuava sem Constituição e sua legislação social era um amálgama de anomalias e de pequenas e abrasivas injustiças. Fumasse alguém um cigarro em Mear Sharim durante o sábado, e ser-lhe-ia arrancado da boca por um fanático indignado; mas os membros do Rabinado não hesitavam em forrar as paredes com cartazes, proibindo o povo de exercer o voto legal — e, a maior parte das vezes, ficavam impunes.
Não havia casamento civil em Israel, quer se fosse cristão, judeu ou muçulmano. Mas se alguém pretendesse ser um simples homem secular e casar-se ou divorciar-se legalmente — ou até ser legalmente sepultado — fora de um grupo religioso, teria de ir
fazê-lo em Chipre. Uma mulher muçulmana poderia obter uma pensão alimentar inferior à de uma judia ou cristã, mas não teria meios para emendar a flagrante injustiça. As leis do jejum foram aplicadas tanto ao não religioso como ao ortodoxo, e um dia de sábado no hotel Carmelo era tão triste como em Mear Sharim.
As divisões políticas tinham todas a marca das vinganças pessoais. Os grandes homens dos anos de luta tornaram-se velhos e caprichosos. Sentiam rancor pelos novos, que desafiavam sua autoridade e sua política. Alguns mostravam-se assaz abatidos para provocar escândalos internos em face de um mundo hostil. Formavam ainda uma nação; e era a terra que defendiam juntos. Mas se não aprendessem a defender-se mutuamente, acabariam por perder essa terra — como já a tinham perdido antes com os assírios, os hasmoneus, os romanos e os turcos otomanos...
Quando chegaram às montanhas do corredor de Jerusalém, o ar tornou-se subitamente frio e Jakov Baratz arrepiou-se.
Em Abu Ghosh, deixaram a estrada principal e tomaram a da montanha, que levava a Habamísha e à fronteira da Jordânia. Começaram por subir em declive, por entre herdades montanhesas e pinhais; depois abruptamente, encontraram-se numa imensa cumeeira, donde podiam ver os montes desertos da Jordânia e a faixa sinuosa da estrada de Ramallah assim como as cabanas amontoadas das aldeias fronteiriças: Beit Surik, Biddu e Qubeiba.
Na luz cortante do amanhecer, era como que a paisagem de um planeta estranho. Os contornos apresentavam-se afiados e recortados como navalhas de pedra. As cores eram gritantes: castanho, amarelo, carmim, púrpura, um excesso de calcário branco, crateras sombrias. À primeira vista parecia demasiado pobre, mesmo para pasto de cabras; mas, abaixo, nas margens dos rios, os beduínos espalhavam suas tendas e apascentavam seus rebanhos, enquantos os aldeões se entregavam a uma tarefa penosa nos socalcos das encostas. Não havia sinais de violência. As terras e os empilhados lugarejos dir-se-iam ressequidos de seiva humana para a agüentarem.. . até que alcançaram a barreira de arame farpado que obstruía a estrada e as duas sentinelas israelenses saíram da sombra das rochas, armadas e vigilantes. Eram muito novas, mas soldados autênticos. Não abriram a barreira antes de inspecionarem os documentos de Baratz e de seu motorista. Depois, fizeram continência e subiram com dificuldade a última elevação, até ao posto de comando, que se erguia como uma fortaleza na encosta do monte.
O comandante, um capitão de trinta anos que falava o hebraico com um sotaque gutural, ofereceu café, ovos cozidos e pão do dia anterior. Depois, subiram a pé ao posto de observação, para contemplarem a paisagem que se estendia lá embaixo como um mapa de areia. O comandante resumiu, laconicamente, a situação:
— Conhece a disposição, Senhor. Uma companhia do Terceiro Batalhão da Legião Árabe está aquartelada em Biddu. Sua área estende-se a leste de Beit Surik e a oeste de Qubeiba. Há duas companhias de reservistas em Ramallah. Estas companhias de reserva também desempenham ações de policiamento entre os refugiados da Palestina em Ramallah e nos distritos circunvizinhos. É um fulcro de perturbações para eles.. .
— E para nós, também, Capitão — disse Jakov Baratz. — Nosso agente em Ramallah relata dois novos embarques de armas para a O.L.P. e uma nova avalancha de propaganda. . . principalmente folhetos. Creio que terá problema em breve.
— Estamos preparados — respondeu, confiadamente, o jovem capitão. — Este setor foi sempre fácil de defender. O relevo joga a nosso favor. Estamos cerca de cem metros acima da elevação mais próxima da Jordânia. Eles dispõem de uma pequena cobertura de terreno, ao passo que nós temos um campo de fogo que se estende por mais de três quilômetros. Durante dois anos, não tivemos qualquer atentado de sabotagem.
— Li seu último relatório, Capitão. Por isso é que estou aqui. Mencionava novos movimentos de tropas, não é verdade?
— É, sim, Senhor. Nos últimos cinco dias vimos patrulhas que se movimentavam a leste da estrada de Beit Surik e há notícias de patrulhas semelhantes a oeste de Beit Inan.
— Quantos veículos?
— Normalmente, dois caminhões. Às vezes, três, com um jipe no comando. Partem entre as oito e as nove da manhã e regressam por volta das quatro da tarde.
-— Isso faz sete horas entre a partida e o regresso. . . Qual a máxima distância?
— Trinta quilômetros, pelo menos.
— Dá-me a impressão — disse Baratz, taciturno — que eles se preocupam mais com os seus do que conosco. Não houve tentativas de infiltração em seu setor?
— Não pela Legião Árabe. Contudo, relatei que os beduínos pastoreiam muito perto de nossas linhas.
Baratz encolheu os ombros.
— Que sabe acerca dos beduínos? Com a chegada do inverno, o pasto torna-se escasso. Procuram-no onde lhes é possível. Às vezes, dão uma ajuda à O.L.P. A maior parte preocupa-se com sua própria vida. Agora... os burros selvagens. . .
O jovem capitão sorriu:
— Há duas noites meia dúzia de burros selvagens invadiu os campos de minas. Um deles pisou uma mina e foi pelos ares. Outro ficou ferido. Foi tudo. Não me pareceu digno de registro.
— Tudo é digno de registro, Capitão. Pode ser uma maneira simples de sondar o campo de minas sem correr riscos.
— Exceto que não pode repetir a experiência quem quer que a faça, Senhor.
~- Tem razão — concordou Baratz bem-humorado. — Mas pode-se carregar um animal com explosivos e amarrar-lhe um detonador de relógio. E, se o lançarem através do campo de minas em direção ao nosso setor, poderão causar estragos e distúrbios sem conta.
— Não tinha pensado nisso, Senhor. Foi a vez de Baratz sorrir:
— Nem eu, até este momento, Capitão. Mas, se está empenhado numa guerra aborrecida como a que a O.L.P. nos move e se o alarde que dela faz é tão importante como o resultado militar, isso obriga-o a ser original. Portanto, quero que me ponha a corrente dos burros relvagens e de qualquer outro episódio de comédia local que não se ajuste à norma.
- Não esquecerei, Senhor.
Demoraram-se ainda dez minutos no posto de observação, comparando a terra viva com símbolos no mapa de campanha. Depois, voltaram para o Quartel-General. onde Baratz telefonou ao Dr. Franz Lieberman, no Hospital Hadassah, de Jerusalém.
— Franz? Fala Jakov Baratz. Estarei em Jerusalém dentro de meia hora. Poderei ver Hannah?
— Se o desejar- respondeu Franz Lieberman sem entusiasmo — Mas prepare-se.
— Será mau para ela?
— Ela não o verá, Jakov — disse Lieberman. — Não vê nem ouve nada. Não pode ajudá-la nem prejudicá-la. Você é que talvez fique magoado.
— É minha mulher, Franz. Amo-a.
— Por isso mesmo -- concordou Franz Lieberman. — Telefone-me do gabinete, quando chegar.
No regresso por Abu Ghosh, ao longo dos últimos desfiladeiros, em direção a Jerusalém, sentia-se tenso e impaciente, enquanto seu motorista guiava o carro com extremo cuidado, ansioso por saber, mas sem ousar perguntar o que o excitara tão bruscamente.
Tinham um nome para Baratz no Exército: adish, o homem com gelo nas veias e cinzas em vez de coração. Como todas as alcunhas, era em parte um cumprimento e em parte uma definição. Vivia demasiado retirado para seu gosto; precisamente como um cirurgião em sua profissão, sem piedade para com os fracos, sem tolerância para com os loucos. O perigo tornara-o frio e calculista, e até seu humor era um tanto sardónico. O ardor que havia nele estava ciosamente oculto, como um fogo sagrado; e, embora suas amizades fossem profundas, nunca eram efusivas.
Tinha hábitos monarcais. Bebia pouco, não fumava e seu nome nunca estivera ligado ao de qualquer mulher, com exceção da esposa. Sua vaidade
consistia em a qualquer hora da noite ou do dia, apresentar-se sempre bem barbeado e suficientemente elegante para participar de uma parada oficial. Nas conferências, expunha suas informações e opiniões com categórica confiança, o que provocava poucas perguntas e nenhuma oposição; depois, voltava a sentar-se, sereno como um buda de pedra, enquanto o assunto dava volta à mesa. Quando chegava a hora de o discufr ou de tirar uma conclusão, fazia-o com moderada paixão, como um executor público.
Mas havia nele uma paixão e muito profunda. Os amigos que o haviam conhecido na época de Haganah contavam histórias de riscos brutais, perigosas conjuras e exortações a seus homens em que transparecia todo o fervor dos antigos profetas. Recordavam-se de rua terna e romântica corte a Hannah, que conhecera aos dezesseis anos, durante o Aliyah Bet, a emigração ilegal dos judeus deslocados da Europa para a Palestina. Começara por recrutá-la como mensageira, expondo-a a riscos fantásticos. Ao fim de seis meses, casara-se com ela, sujeitando-a a riscos ainda maiores. Depois, quando a guerra acabou, encerrou-se numa intimidade caseira, em que só os amigos mais chegados eram admitidos. Sua paixão pela intimidade, que era, a expressão de seu grande amor por Hannah, tornou-se a pedra angular que suportava todo o arco de sua carreira pública.
Havia muito tempo que Franz Lieberman o tinha avisado do perigo da mútua dependência existente entre ele e Hannah. Fizera-o com toda a simplicidade.
— Se um de vocês morrer, que será do outro? Para Hannah, você é uma porta fechada sobre o passado que a impede de se precipitar nele. Para você ela é... Com a breca! Não sei o que ela é. . . mas é muito, não há dúvida! Corre um grave risco, Jakov! Talvez uma tragédia.
Agora, Franz Lieberman preparava-o para o último ato da tragédia que ele se recusara a prever. Hannah estava separada dele, talvez para sempre. A porta tinha estalado rachara-se, e ela precipitara-se na câmara de horrores do Barba Azul que era sua infância do tempo dos holocaustos. Ele próprio estava à beira do poço encuro, olhando as profundezas que durante muito tempo se recusara a contemplar. Quando chegaram ao alto da última elevação do monte Sião, sentiu um medo súbito e desesperado.
Não era só a perda dela que o assustava; era o mistério da desintegração da pessoa humana em qualquer coisa abaixo do humano. Há quanto tempo começara aquilo? Seis meses? Um ano? Quando, depois da hora de amor, Hannah irrompera em lágrimas em seus braços e passara metade da noite a acalmá-la. Mais tarde, voltara a casa e encontrara-a de roupão, esquecida dos trabalhos domésticos e com a louça do pequeno almoço ainda por lavar. Por vezes, ela tocava músicas bárbaras, dançava cantava e ria freneticamente. Outras vezes, de noite, ele acordava e via-a sair da cama; e então ia encontrá-la sentada, hirta e silenciosa, na escura sala de estar e levava horas a persuadi-la de que não devia pensar. Finalmente, Hannah aceitou submeter-se ao tratamento com Franz Lieberman e, um mês depois, voltava, aparentemente recuperada. Outro mês se passou e o ciclo recomeçou, desta vez acelerado: delírios mais furiosos, alheamentos mais prolongados e profundos. Como acontecera? Por quê? E se acontecera a ela, não podia acontecer a ele também que, embora com um passado diferente, tinha a mesma câmara secreta dentro de si?
Franz Lieberman esperava-o no hospital pálido, encarquilhado, com aspecto de bode, como um antigo Pã. Não perdeu tempo com delicadezas antes o conduziu vivamente pelos corredores até uma arejada sala que dava para um jardim de flores serôdias. Havia cerca de uma dúzia de mulheres na sala, assistidas por duas jovens enfermeiras. Um pequeno grupo jogava cartas; duas cosiam; uma lia; outras estavam sentadas à volta de uma mesa de café tagarelando. As enfermeiras iam de um grupo a outro como monitoras num recreio de crianças. Lieberman deteve-se à porta com Baratz e explicou a cena em sua linguagem brusca e elíptica:
— Uma comunidade, como vê. O sintoma mais comum da doença mental é retirar-se da comunidade para um mundo privado. Tentamos fazer voltar o paciente a uma comunidade em que as exigências são poucas e as pressões reduzidas. . . Simples, mas também complicado.
— Onde está Hannah?
— Ali, ao fundo.
Estava tão encolhida e alheada que, por instantes, criara uma ilusão de invisibilidade. No canto mais afastado da sala, onde as estantes de livros faziam ângulo com a parede, estava empoleirada num banco, o queixo apoiado nos joelhos e as mãos apertadas à volta deles. Não havia expressão em seus olhos e tinha as faces encovadas e sem cor. A fita berrante do cabelo dava-lhe um aspecto de colegial.
— Já a viu neste estado? — perguntou Lieberman, pausadamente .
Baratz aquiesceu com um aceno, não se atrevendo a falar.
— Não há violência nem pânico. Está encerrada num abismo de tempo de que não ousa emergir.
— É um abismo igual ao de outrora — disse Jakov Baratz.— Encerraram-na durante quatro anos num sótão, em Salzburgo. Não tinha janela apenas um alçapão. Alimentavam-na de noite, quando os criados estavam dormindo. . . Posso falar-lhe?
— Como queira.
Dirigiu-se lentamente para ela, atravessando toda a sala. As outras doentes ignoraram-no, exceto uma moça que desatou a rir, súbita e obscenamente. Mesmo quando se deteve em sua frente, não deu sinais de reconhecê-lo. Colocou-lhe a mão no ombro. Estava quente, mas rígido como mármore. Murmurou:
— Hannah, sou eu, Jakov.
Ela não fé moveu, não articulou nenhum som. Baratz voltou-se e dirigiu-se de novo para a porta.
- Vamos tomar uma xícara de café — convidou Franz Lieberman.
No gabinete de Lieberman, com o sabor amargo do café na língua, ouviu o veredicto do ancião!
— Quer uma esperança? Posso dar-lhe uma, muito pequena. Às vezes, este encanto quebra-se como o da princesa na floresta encantada. Quer um diagnóstico? Negativo. Todos os sintomas são regressivos.
— Quero um conselho, Franz. Que devo fazer?
— Deixe-a conosco. Não será mais bem tratada em qualquer outra parte.
— Eu sei.
— Nesse caso... — Lieberman segurou um lápis entre os dedos, dobrando-o como um arco até quase o quebrar. — Nesse caso, dir-lhe-ei que deve pensar em refazer sua vida.
— Refazer? Como, Franz?... Como?
O lápis partiu-se entre as mãos do ancião. Pousou os dois pedaços, lado a lado, em cima do mata-borrão e deixou-se ficar contemplando-os por instantes, como que desgostoso com aquele pequeno ato de destruição. Tranqüilamente disse:
— Não sei, Jakov. Não sou Deus. Não posso emendar todas as vidas do mundo. Bem gostaria de fazê-lo.
Cinco minutos depois, Jakov Baratz encontrava-se sozinho na estrada, respirando a fria atmosfera poeirenta e olhando através do vale para as muralhas da cidade dividida. Com um súbito sentimento de culpa, apercebeu-se de que estava pensando, não em Hannah, mas em Selim Fathalla, em Damasco, e na mulher de Fathalla, que vivia em Jerusalém.

DAMASCO

Selim Fathalla rodeou a cama em desordem e observou a luz solar que deslizava, em sua direção pelo piso de ladrilhos. Após uma noite de amor com Emilie, sentia-se tomado de agradável languidez; mas seu espírito mantinha-se claro e o pulso firme. Dentro de uma hora, Safreddin viria a seu encontro; e queria estar calmo e bem disposto para a entrevista. Safreddin era como um gato amável e acomodatício quando o afagavam; febril e desconfiado quando lhe arrepanhavam o pêlo. Um homem estranho, arrogante como um imperador antigo, um intriguista frio, um muçulmano místico fanaticamente leal para com seus amigos, implacável e cruel para com os inimigos.
Enquanto pensava em Safreddin lembrou-se do espião Eli Cohen a quem tinha substituído em Damasco e cujo corpo vira balouçar, envolto num saco branco, na Praça Morjan, como aviso aos traidores. Safreddin espiara Cohen durante doze meses, controlara suas transmissões radiofônicas, destruíra sua rede, prendera-o na cama e torturara-o durante uma centena de dias antes de o submeter a julgamento. Safreddin tinha-o admirado e até contava histórias a propósito de sua ingenuidade e de suas temerárias façanhas de espionagem. Safreddin ainda se ria quando recordava o julgamento e as diatribes dos juizes muçulmanos contra um infiel que se atrevera a rezar na mesquita e a recitar o Allah Akbat com os crentes filhos do Profeta. Mas, sob o riso, adivinhava-se a aversão, porque Eli Cohen tinha sido seu amigo e, portanto sentia-se duplamente traído por esse perro judeu. Se Safreddin viesse a descobrir também a dupla identidade de Selim Fathalla, sua vingança seria duplamente terrível. . .
Talvez já a tivesse descoberto. . . O pulso de Fathalla acelerou-re e um suor frio umedeceu-lhe as palmas das mãos. Talvez a entrevista dessa manhã fosse uma brincadeira do gato com o rato, já condenado a morrer. Mas isso não podia suceder assim de repente. Não tinha havido advertências, sinais e presságios. O Dr. Bitar que tinha informantes por toda a cidade, teria notado que alguma coisa estava errada. Além disso Safreddin solicitava um favor. Um favor podia significar um testemunho de lealdade, mas não uma sentença de morte. Fathalla era bastante árabe para compreender a tortuosa marcha do pensamento de Safreddin: não confiar em ninguém; exigir uma prova e logo outra; e, dois dias depois, nova prova, porque todo o homem é um junco que verga com os ventos da mudança e se parte quando forçado por qualquer mão. . .
O caso Eli Cohen prejudicara toda a estrutura da sociedade síria. Homens de posição, comerciantes, banqueiros e oficiais superiores do Exército
tinham-se visto envolvidos na rede de Cohen. Uns eram agentes condescendentes dos israelenses; outros eram amigos crédulo-; outros ainda eram mercenários bem pagos.Quando finalmente, Safreddin destruiu a rede, viu-se na embaraçosa contingência de ter de censurar o tribunal e tratar com homens que preferia enforcar. Por isso, era compreensivelmente desconfiado, e Fathalla, por seu turno, compreensivelmente cauteloso.
Contudo, tinha aprendido com os erros de Cohen. Ele revelara instinto, rapidez e uma desdenhosa ingenuidade em suas operações; mas afinal acabara por ser vítima dessa branda paranóia que é endêmica nos homens que se sujeitam a graves riscos e lidam com as paixões de seus semelhantes. Cohen tornara-se descuidado. Mesmo quando o prenderam, estava sentado na cama, entregue a uma transmissão radiofônica, aparentemente esquecido de que os detetores haviam assinalado sua localização dois meses antes.
Cohen tinha feito exibição de fortuna e retirava livremente fundos à sua disposição em bancos belgas, suíços e sul-americanos. Seus empreendimentos eram grandiosos e espetaculares; e o fato de que metade deles era apenas ficção constituía em si prova suficiente para levantar suspeita.
Mas Fathalla, o iraquiano, trabalhava de forma bem diversa. Seu negócio era visível e legítimo. Tinha amigos altamente colocados, mas conseguia sempre dar a impressão de ser inferior a eles, de lhes estar grato por sua proteção. Só tinha uma conta bancária no estrangeiro — no Banco Fenício de Beirute — e tivera sempre o cuidado de declarar sua existência ao Ministério das Finanças e de comunicar com relativa honestidade, suas transações. Era generoso nas dádivas, mas nunca em demasia. Eli Cohen aprendera árabe mas aprendera-o de maneira tão exótica que chamava a atenção. Selim Fathalla, pelo contrário, conservava alguma coisa do comerciante de bazar que se esforça sempre por parecer menos rico do que é. . .
Por isso, gravitava em torno de duas hipóteses: ou o favor que Safreddln pretendia era verdadeiro, ou era uma verificação cuidadosamente planejada de sua integridade como simpatizante baathista. Se era verdadeiro, a prestação do favor aumentaria seu crédito. Se era uma prova, aceitá-la-ia prudentemente e cometeria todos os erros que são de esperar de um homem inocente.
A porta abriu-se e Emilie Ayub entrou no quarto. Era uma moça baixa, mas o comprido roupão brocado de Damasco fazia-a parecer mais alta. Seus cabelos eram negros e lustrosos; a pele, da cor do mel. Os olhos, castanhos e límpidos, dir-se-iam por vezes demasiado grandes para o rosto, como se olhassem para o mundo com perpétuo espanto. Falava francês com sotaque árabe e árabe com uma cadência curiosa e lânguida.
Debruçou-se na cama, beijou Fathalla e disse-lhe:
— O banho está preparado. Farida trará o pequeno almoço logo que chegue o Coronel Safreddin. Acho melhor vestir-me e ir para o .escritório,
Reteve-a durante um longo momento, sentindo uma súbita necessidade de segurança e do calor dela. Depois, obrigou-a a sentar-se na cama, a seu lado, tomou as pequenas mãos dela nas suas e fez-lhe a pergunta que o atormentava:
— Quando estive doente, Emilie, delirei bastante. O Dr Bitar contou-me. Disse alguma coisa... estranha?
Sentiu-a enregelar-se. Viu o medo perpassar em seus olhos, mas ela recompôs-se rapidamente e, após um momento de hesitação, respondeu-lhe:
— Falou muitas coisas. Não percebi.
— Que coisas?
— Não me lembro.
— Ou não quer lembrar-se, Emilie?
— Tem razão. Não me quero lembrar. Quero dizer-lhe uma coisa, Selim.. . suplicar-lhe uma coisa! Não me pergunte nada.. .não me peça nada!. . . que não nos diga respeito. — Sua voz era entrecortada e tinha lágrimas nos olhos. — Eu. .. não estou interessada. Não fui feita para essas coisas. Por isso, não quero conhecê-las. . . nunca!
— Tem medo de mim, Emilie?
— Não. Amo-o.
— Sabe que também a amo?
— Sim, sei.
— Confia em mim?
— Sempre confiei.
— Nesse caso, estamos de acordo. Nem pedidos, nem perguntas.
Atraiu-a outra vez para si e ficaram assim durante algum tempo. Depois, ela libertou-se. Selim deixou a cama dirigiu-se para a janela e deixou-se ficar olhando a fonte e a tamargueira, ao mesmo tempo que o novo medo se arrastava como uma lagarta por sua pele.
Às dez horas em ponto, o Coronel Ornar Safreddin chegou para o pequeno almoço. Era um homem sem mácula: magro, rosto de falcão, cortês e amável. Bebeu três xícaras de café e fumou um cigarro. Mostrou solicitude pela saúde de seu anfitrião. Falou circunstanciadamente de amigos e conhecidos e fez um comentário breve sobre as novidades do dia. Levou cerca de hora e meia para abordar o assunto de sua visita. Então, seu comportamento mudou e tornou-se brusco e impessoal:
— Agora, meu amigo, o assunto de que falamos, Precisamos de sua ajuda.
— A seu dispor, Coronel.
— Trata-se de uma coisa simples. . . mas altamente confidencial .
— Com certeza.
— Seu próximo carregamento para Amã está marcado para quarta-feira. É exato?
— Exato,
— Quantos caminhões?
— Dois.
— Que leva neles?
— Farinha, conservas, algodão manufaturado, artigos diversos.
— À que horas sai normalmente de Damasco?
— Às seis da manhã. Os caminhões são carregados no dia anterior. Ficam no pátio do armazém toda a noite. Sigo para lá um pouco antes das seis, a fim de mandar os motoristas para a estrada.
— Quem toma conta durante a noite?
— O vigia.
— Muito bem. Passemos ao que interessa. Carregará os caminhões de maneira habitual, na terça-feira à tarde. Às oito e quarenta e cinco da noite de terça-feira, irá ao armazém e abri-lo-á. Dispense o vigia durante duas horas. Meu pessoal estará lá às nove; um caminhão com um oficial e quatro carregadores. Descarregarão parte de sua mercadoria, carregarão nosso material e, em seguida, voltarão a carregar suas coisas.
— E seu material é. . .?
— Já lhe disse: fuzis, granadas e explosivos de plástico. Às seis da manhã do dia seguinte, seus motoristas seguirão para Amã como habitualmente.
— Não serão informados da nova carga?
— Não. Quando chegarem à fronteira com a Jordânia, submeter-se-ão à vistoria aduaneira de costume. Desta vez, será um pouco mais severa. Os fuzis, granadas e explosivos serão descobertos e confiscados. Seus motoristas serão detidos e interrogados. Em segu;da, serão libertados e seguirão com sua carga para Amã, como habitualmente.
- E é tudo?
— É tudo. Alguma pergunta?
— Apenas uma. O que acontecerá ao nosso futuro comércio. Tenho negócios importantes com Amã.
— Não haverá problema. A vigilância da fronteira será reforçada durante algumas semanas, depois afrouxará de novo.
— Mas tecnicamente minha firma é a única a transportar armas.
— A polícia síria elaborará um relatório que revelará a existência desse transporte. Nerte relatório, você e sua firma serão ilibados de qualquer cumplicidade. Os jordaníanos solicitar-nos-ão um inquérito.
Fá-lo-emos imediatamente e nosso relatório suplementar absolvê-lo-á também de qualquer culpa. Acredite que não haverá complicações.
Selim Fathalla permitiu-se um sorriso aprovador:
— Acredito Coronel. Tenho a maior admiração pela sua eficiência. Mais café?
— Uma xícara e depois retiro-me.
Safreddin recostou-se na cadeira, tirou um estojo dourado do bolso, escolheu meticulosamente um cigarro, acendeu-o e soprou uma série de anéis de fumo. Em seguida, com ares protetores, deixou escapar um cumprimento:
— Admiro-o, Fathalla. Ê um bom comerciante. Tem gostos excelentes... e uma esplêndida discrição.
Fathalla sorriu e entendeu as mãos no tradicional gesto do mascate: humilde, irônico e astuto.
— Sou hóspede de sua pátria, Coronel. Tento não esquecer as boas maneiras.
— Diga-me — perguntou em voz baixa Safreddin —, o que sabe do Dr. Bitar?
— Bitar? — A surpresa era autêntica. Esperava que um encolher de ombros revelasse suficientemente sua indiferença. — É um companheiro agradável. Enquanto ,estive doente, mostrou-se muito atencioso. De vez em quando, jogamos uma partida de xadrez. Mas pouco sei a seu respeito.
— É bom médico?
— Segundo minha limitada experiência, creio que sim. Por que, Coronel?
— Foi-me recomendado como médico de família. É tudo. Com a mesma brusquidão com que o abordara, mudou de assunto e pôs-se a falar das novas medidas para combater a malária no vale do Eufrates. Três mniutos mais tarde levantou-se e despediu-se. Selim Fathalla permaneceu sentado contemplando os resíduos do café e tentando apreender o sentido daquele contrabando disparatado, assim como da disparatada pergunta acerca da competência médica de Bitar. Mas a solução para esse quebracabeças teria de esperar. Tinha de fazer seu longo e já atrasado relatório para Telavive e informar Baratz de que continuava vivo. Subiu a seu quarto, fechou a porta premiu a mola secreta que abria o painel de faiança e entrou no cubículo de pedra, onde se transformou em Adom Ronen, o agente israelense.

BEIRUTE

Nuri Chakry assinou o cheque com um rabisco e estendeu-o através da mesa a Idris Jarrah.
— Cinqüenta e sete mil dólares, fora os encargos bancários. Isto fecha a conta da Organização de Libertação da Palestina no Banco Fenício. É pena. Não gostamos de perder um bom cliente.
Idris Jarrah dobrou o cheque e meteu-o no bolso interior do casaco, ao mesmo tempo que dizia com fingido desgosto:
— Também o lamento. Nunca tive razão de queixa quanto às nossas transações com o banco, mas deve compreender que não passo de um simples auxiliar da Organização. Não me compete controlar a disposição de seus fundos. Limito-me a gastá-los de acordo com as diretrizes da Executiva Central.
— Compreendo — disse Nuri Chakry. Pegou no pequeno cubo de plástico com a moeda de ouro no interior e pôs-se a girá-la entre as mãos delicadas. — Compreendo. É que as relações entre banqueiro e cliente são muito especiais. Sempre julguei... continuo a julgá-lo. . . que devíamos estar mais bem informados acerca das intenções da Organização. Uma conversa pessoal podia ser útil a ambos.
Fez-se um breve silêncio. Depois, Idris Jarrah disse: — Gostaria de conversar com o senhor... Se tiver tempo, claro.
— Naturalmente. Em que posso servi-lo?
— Preciso de um empréstimo, um empréstimo pessoal. — De quanto?
— Cem mil dólares.
Nuri Chakry deixou cair o talismã na mesa e ergueu os olhos. Eram grandes e vigilantes como os de um pássaro.
— É um grande empréstimo, Sr. Jarrah. Tem garantia, não é verdade? Bens imóveis, ações, títulos?
— Não tenho bens imóveis. Sou um homem errante. Considero isso um obstáculo. Ações e títulos. Também não. Mas posso transacionar com artigos. Artigos negociáveis.
— Tais como?
— Informações - respondeu Idris Jarrah.
— As informações só têm valor quando são exclusivas.
— Estas são exclusivas.
— Mesmo assim é ainda arriscado.
— Corro o risco de as fornecer. Os maiores riscos são para mim, que as transmito.
— Não me compreendeu.— Nuri Chakry mostrava-se afetadamente cortês, — O risco é que a informação pode ser falsa ou adulterada de forma a parecer verdadeira.
-— Aprendi a ser extremamente cuidadoso quanto à autenticidade de minhas informações, Sr. Chakry. Minha vida depende disso.
— Bem observado. Sr. Jarrah. Por favor, prossiga.
— Está preparado para uma prova?
- Quando?
— Agora, se está livre.
— Muito bem.
Idris Jarrah concentrou-se por instantes. Depois, inclinou-se para a frente e, calmo como um jogador de pôquer, pôs as cartas, uma a uma, na mesa.
— Está numa situação difícil, Sr. Chakry. Seu banco está em dificuldades. Suas responsabilidades ascendem, em certa parte do território, a cento e setenta milhões de dólares. O valor nominal de seus ativos, aqui e noutras partes, é de cerca de duzentos e cinquenta milhões, mas grande parte desses capitais estão em investimentos a longo prazo que não podem ser imediatamente realizados no mercado livre. Quando muito, tem cinco por cento líquido, provavelmente menos, e isto apesar de reter cerca de quarenta por cento dos depósitos de todos os bancos do; Líbano. Os sauditas estão pensando em retirar seus fundos por motivos políticos. Os kuwatianos sofrem a pressão de interesses britânicos para retirarem os seus, a fim de proteger a libra esterlina. Seus depósitos americanos ascendem a cerca de três milhões de dólares, mas serão congelados de um dia para o outro, visto estar em dívida para com os interesses americanos na Suíça e noutros países. A crise desencadear-se-á dentro de trinta dias. Por isso, terá de conseguir um financiamento antes. Tem um encontro com o Ministro das Finanças amanhã de manhã; espera que eles o afiancem por intermédio do Banco Central. Talvez prometam fazê-lo. Por outro lado, tem muitos inimigos poderosos. Executou uma hipoteca sobre Aziz e apoderou-se de seu edifício de apartamentos. Recusou um empréstimo a Taleb, quando ele estava em dificuldades com uma mulher que logo passou a pertencer ao senhor. Podia nomear mais uma meia dúzia. Mortimer, que teria podido salvar com um simples telefonema, está ressentido porque não o aceitou na companhia de aviação. . . Pode verificar todas estas informações, Sr. Chakry. e verá que, se isto se espalhar pelas ruas neste momento terá de fechar as portas dentro de quarenta e oito horas. O motivo que levou meu povo a encerrar sua conta é muito simples: não podem arriscar seus fundos numa empresa duvidosa.
Calou-se e recostou-se na cadeira à espera. Como conspirador, não escondia sua admiração pela fria compostura do homem sentado à sua frente.
— Supondo. .. — disse Chakry — que suas informações são corretas, não me disse nada que eu já não soubesse. . . Que mais tem para oferecer?
— A prova acabou, Sr. Chakry. Dinheiro na mesa.
Sem proferir palavra, Chakry levantou-se e saiu da sala. Jarrah levantou-se também e encaminhou-se para a janela que dava para a fascinante extensão da costa — mar azul, praias douradas e edifícios novos empilhados como brinquedos de crianças ao longo dos promontórios e da faixa da nova estrada. Era esta a verdadeira área do comércio. Desde tempos imemoriais, tinha sido o local de encontro dos mercadores mal afamados que se abrigavam à sombra de deuses estrangeiros e esqueciam a lealdade devida aos príncipes e sátrapas, ao mesmo tempo que regateavam o preço das escravas
e do olíbano. Ali se tinham travado sangrentas batalhas; traições fantásticas haviam sido planejadas; e o preço de um homem — ou de uma mulher
-— continuava a ser avaliado em moedas de prata.
Era ali que se contava a história zombeteira do escorpião que chegara à margem do rio Cão e não o pudera atravessar por causa da cheia. Viu um peixe que mordiscava calmamente o lodo. ”Por favor, peixe”, disse o escorpião, ”põe-me às tuas costas e leva-me para a outra margem.” O peixe não gostou da proposta. ”Se te puser às costas” disse ele,
”pica-me e morrerei.” Mas o escorpião respondeu-lhe: ”Se eu te picasse e morrestes no meio do rio estaria perdido porque não sei nadar.” Deste modo, o pe:xe tranqüilizou-se. Pôs o escorpião às costas e começou a nadar através do rio caudaloso. A meio do caminho, o escorpião picou-o. Já agonizante, o peixe perguntou: ”Por que fizeste isto? Agora, morreremos ambos.” Ao que o ercorpião retorquiu: ”Eu sei, amiguinho. . . mas isto é o Iíbano!. . .”
Cerca de cinco minutos depois, Chakry estava de volta. Trazia numa das mãos uma bolsa de plástico cheia de notas de dólar novas e na outra uma folha de papel de carta dobrada ao meio. Colocou a bolsa em cima do mata-borrão e pôs-lhe as mãos em cima. Idris Jarrah voltou a sentar-se. Chakry sorriu.
— Cem mil dólares, meu amigo! Agora, fale.
— Daqui a duas semanas, aproximadamente— disse Idris Jarrah —, um grupo de oficiais do Exército tentará assassinar o Rei Hussein da Jordânia. Os oficiais serão comandados por um certo Major Khalil. Como prelúdio do movimento, procurar-se-á desacreditar o atual Comandante da Guarda do Palácio, a fim de que o Major Khalil seja promovido e nomeado para seu lugar. Toda a operação está sendo planejada pelo Coronel Safreddin, em Damasco. Amanhã de manhã, sigo para lá, de avião, a fim de me encontrar com ele.
— Mesmo que essa informação seja verdadeira, como poderá compensar-me de cem mil dólares?
—- Em primeiro lugar, investiu cerca de um milhão num novo projeto de desenvolvimento em Amã. No caso de uma revolução socialista, perdê-lo-ia de um dia para o outro. Em segundo lugar, pode vender esta informação por preço superior ao da compra.
— Por outro lado, posso oferecê-la sem encargos ao Coronel Safreddin. É um homem poderoso Poderá vir a ser um bom cliente do banco.
— Duvido — replicou Idris Jarrah calmamente. — Os sírios estão endividados até ao pescoço. Precisa de clientes mais fortes do que ele.
Uma vez mais, fez-se silêncio na vasta sala ensolarada. Finalmente, foi Chakry quem falou:
— Lamento, Sr. Jarrah, não poder recomendar seu empréstimo como proposta bancária. Contudo, como investimento pessoal, estou disposto a ceder-lhe o dinheiro, contanto que, evidentemente, assine o habitual recibo e aceite as condições de reembolso.
— Quais são?
Chakry desdobrou a folha de papel e leu:
”Eu abaixo assinado, Idris Jarrah, indivíduo sem pátria, atualmente utilizado pela Organização de Libertação da Palestina, declaro que recebi nesta data um empréstimo, em dinheiro, de cem mil dólares americanos, de Nuri Chakry, residente em Beirute, Líbano. Comprometo-me a pagar este empréstimo num prazo de sessenta dias a partir da data determinada por Nuri Chakry. Concordo em que o juro sobre este empréstimo seja de quinze por cento ao ano sobre toda a dívida. Declaro mais que, em troca deste empréstimo, prestei ao dito Nuri Chakry certa informação sobre um assunto de natureza política que foi registrada em fita magnética em seu gabinete, nesta data...”
Chakry premiu um botão oculto num dos lados da secretária e abriu-se uma gaveta que revelou um gravador cujas bobinas ainda giravam. Desligou o aparelho, recostou-se na cadeira e sorriu com todo o bom humor para seu visitante:
— Então, Sr. Jarrah? Estamos de acordo?
— Com certeza — anuiu Idris Jarrah amavelmente. Compreendemo-nos à perfeição. Estou certo de que voltaremos a negociar.
— É muito possível — concordou Nuri Chakry.
Quando ele se retirou, Chakry pegou no telefone e discou um número. Momentos depois, uma voz de mulher atendia, repetindo o número chamado. Chakry respondeu:
— Fala Nuri Chakry. Diga à Srta. Frances que irei almoçar com ela às doze e trinta.
A resposta chegou hesitante:
— Lamento, Sr. Chakry. A Srta. Frances foi esta manhã para Trípoli... com o Sr. Aziz. Quer deixar-lhe um recado?
— Nada de recados!
Pousou o fone e apanhou um lenço de seda para limpar o suor das mãos. Frances era uma prostituta, uma prostituta bela, inteligente e muito especial. Mas quando as prostitutas começam a abandonar a cidade é hora de os cidadãos acenderem as fogueiras da vigilância e inspecionarem o estado de defesa de seus muros. Fez outra chamada desta vez para um homem que vivia numa casa de campo entre laranja:s, ao norte do promontório de Biblos. Chamava-se Heinrich Müller e era um solitário local, que gozava de certa mas infundada reputação como historiador e arqueólogo. Como sempre, Nuri Chakry falou-lhe com delicadeza e respeito:
— Heinrich, fala Nuri. Como vai o trabalho?
— Estará pronto dentro de três dias — respondeu Heinrich Müller.
— Não pode acabá-lo em dois?
— Se for indispensável, posso.— Ouviu Müller rir por entre dentes. — Mas depois preciso de umas férias.
—Vamos tirá-las juntos — prometeu Chakry. — Umas longas férias. Telefone-me assim que estiver pronto.

ZURIQUE
Num gabinete gótico da sombria cidade de Zurique, Mark Matheson tratava de assuntos bancários com Simon Lewisohn, homem baixo e atarracado de faces rosadas, olhos cintilantes e uma cabeleira branca que lhe dava mais o aspecto de um cantor de ópera aposentado do que de diretor de uma corporação de bancos su:ços. Estava entregue a seu café e aos bolos que mordiscava com infantil prazer, enquanto Mark Matheson estendia seus papéis na mesa e expunha os problemas e as necessidades prementes do Banco Fenício. A exposição foi longa e pormenorizada, ouvindo-a Lewisohn em silêncio até ao fim. Depois, sacudiu os restos de bolo do peito da camisa, apoiou as mãos no amplo ambdômen e sorriu com benevolência para seu visitante.
— Tem boa reputação, Sr. Matheson. Creio que a merece. Se um dia quiser mudar de emprego, agradeço-lhe que me fale em primeiro lugar.
— Obrigado, Sr. Lewisohn. Por enquanto, não penso nisso.
— Apenas pretendo que encare essa hipótese. Agora, permita-me que lhe faça algumas perguntas. O Banco Fenício está, segundo a sua exposição, cerca de três e meio por cento solúvel neste momento. Acha que é uma boa situação?
— Claro que não.
— Contudo, é assistente pessoal do Sr. Chakry. Por que consentiu nessa situação?
- Não me compete ditar diretrizes, Sr. Lewisohn. Dou conselhos, quando me solicitam. Obedeço-lhes, quando são aceitos.
— Opôs-se às atuais diretrizes? — Sim, algumas vezes.
— Mas a direção continua a segui-las?
— Por motivos válidos, suponho. No Oriente Médio, o dinheiro extraído do chão todos os dias. Não há termo previsto para seu fornecimento. Até agora, fomos o maior canal de investimento desse dinheiro. Não parecia haver motivo suficiente para acreditar que a situação mudaria.
— Mas agora mudou... continua a mudar?
— Sim, continua. Há pressão sobre a libra esterlina, sobre as reservas americanas de ouro. Há pressão política exercida no Líbano por outros membros da Liga Árabe. Acreditamos que, se nos derem tempo para restaurar nossa força, podemos pôr cobro a essas pressões. Para comprar esse tempo...
— Precisam imediatamente de cinqüenta milhões de dólares.
— Exatamente.
— Mas as pressões continuarão.
— Sem dúvida.
— E há outras que não me mencionou.
— Não me parece, Sr. Lewisohn, que lhe tenha escondido qualquer informação pertinente.
Simon Lewisohn sorriu serena e infantilmente e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos na mesa polida.
— Não se zangue comigo, Sr. Matheson. Não sugeri que tivesse ocultado o que quer que fosse. Simplesmente afirmei que havia outras pressões sobre o Banco Fenício que não me mencionou .
— E quais são?
Lewisohn enumerou-as uma a uma, contando pelos dedos rechonchudos .
— Mesmo que conseguisse auxílio externo nosso ou de qualquer outro, continuaria precisando do Banco Central do Líbano para o livrar de embaraços. Há gente importante no Banco Central e no Ministério das Finanças a quem o Sr. Chakry desagrada profundamente. Dariam muito para o verem arruinado. Mais: há gente em Zurique, Nova York Paris e Londres que duvida da honestidade do Sr. Chakry. Não teria relutância em tornar públicas suas dúvidas. Além disso, na relação de valores que estendeu na minha frente há, chamemo-lhes assim, certos exageros.
— Se os há — defendeu-se Mark Matheson — não os notei. Lewisohn debruçou-se, pegou numa das grandes folhas e fez deslizar o indicador ao longo da lista:
— ...Aqui está um, por exemplo: O hotel Vista del Lago, em Lugano. Tem indicado o valor de quatorze milhões de dólares. Para meu uso pessoal, fiz uma avaliação particular. Foi comprado por oito milhões. Na melhor das hipóteses, não vale atualmente mais do que onze milhões. Com o dinheiro tão difícil de obter, seria uma sorte se conseguisse dez milhões no mercado livre. Por isso, está avaliado em, pelo menos, três milhões a mais. Compreende o que quero dizer?
— Compreendo. Embora não tenha possibilidade de saber se tem ou não razão.
~ Posso prosseguir, se quiser. Há pelo menos mais quatro inflações prováveis em sua lista. É possível que haja outras.
— A única prova real do valor será feita quando se proceder à liquidação.
— E quando será, Sr. Matheson? — perguntou Slmon Lewisohn num murmúrio.
— Em breve, creio eu. Tudo o que precisamos é de uma pequena ajuda de nossos amigos e nos firmaremos para sempre como a mais forte instituição bancária do. Oriente Médio.
— Chakry não tem amigos! — Subitamente, o atarracado homenzinho deixara de sorrir. — Chakry é um cão que se alimenta de cães. Se quer dinheiro em caixa, que penda sua companhia aérea a Mortmer. Quanto a mim, faço-lhe uma oferta de oito milhões pelo Vista del Lago. É pegar ou largar! Mas emprestar-lhe dinheiro? Nunca na vida. Que apodreça no fosso que ele próprio cavou.
— É muito cáustico, Sr. Lewisohn. — Por instantes, Matheson sentiu-se senhor da situação. — Pode dizer-me por quê?
Instantaneamente, como se mudasse de máscara, Lewisohn mostrou-se de novo
bem-humorado:
— Posso, Sr. Matheron. Com efeito, posso. Todos temos direito a nossos pequenos segredos, mas revelar-lhe-ei e-te. Toda a vida fui banqueiro. Meu pai, meu avô e meu bisavô foram banqueiros. Sabe o que deita abaixo homens como Chakry e os impérios que construíram? É um homenzinho que magica em uma esquina, porque seu orgulho foi ferido ou sua mulher seduzida. Espera, espera e espera... Vê um bando de homens mais poderosos e ricos do que ele suportando calamidades muito maiores do que as suas. Então, nosso homenzinho sai de seu canto e oferece-lhes uma chave para as comportas. Depois disso, o dilúvio é inevitável!
— Tem um nome para esse homenzinho? — perguntou Mark Matheson.
— Tenho — respondeu Lewisohn —, mas já é tarde para lhe dizer... Pense em minha proposta, Sr. Matheson. E se se juntar a mim, gostarei de saber por que motivo procurou Chakry em primeiro lugar.
Quando regressou à suave claridade outonal de Zurique, Mark Matheson pensou com amargura que aquela era uma pergunta a que nunca fora capaz de responder com sinceridade.

JERUSALÉM

A casa de Yehudith Ronen, mulher de Adom Ronen, o homem-reflexo de Damasco, era uma antiga vivenda situada no topo da colina de Har Zion. Para lá chegar, subia-se ao longo de edifícios dispersos e arruinados até um muro caiado de branco, interrompido por um portai de ferro. Para lá do portão havia um terreno plantado de oliveiras figueiras e ciprestes. Do portão apenas era visível a cúpula do telhado, que se erguia do meio da verdura, como o túmulo de um antigo profeta. Um estranho silêncio reinava em redor, como se o tripúdio longínquo da cidade e os gritos estridentes das crianças esbarrassem contra as paredes dos prédios e se desfizessem como as pequenas vagas de um lago.
Eram exatamente dez horas e vinte minutos quando o Generalde-Brigada Jakov Baratz chegou ao portão e tocou a campainha. Sempre fora meticuloso em anotar a hora de suas chegadas e saídas, e o hábito mantinha-se ainda, embora, após sua visita a Hannah, o tempo se tivesse repentinamente congelado, numa eternidade vazia e assustadora. Cinco segundos depois do toque da campainha, o portão abriu-se e Baratz penetrou no pomar. O ar frio que se respirava sob as figueiras fê-lo estremecer. Mas, ao virar a esquina do passeio o sol voltou a aparecer e a casa surgiu à sua frente, acachapada, de janelas estreitas e entrada em forma de arco, emoldurada por uma videira. A porta era preta, pesada, com ferragens forjadas há um século numa oficina da antiga Jerusalém. Abriu-se e Yehudith Ronen apareceu para o receber.
Tinha trinta e seis anos; mas, vestindo calças de sarja e camisa de homem, com o cabelo oculto por um velho lenço, parecia uma jovem plena de seiva força e alegria. Trazia numa das mãos um par de luvas e uns óculos escuros e com a outra acenava.
— Jakov, que surpresa! Entre.
A sala, sob a cúpula, continuava como sempre a conhecera: fria, sombria, apenas iluminada por súbitos e fantásticos salpicos de cor; a manta enrolada em cima do sofá, o brilho do cobre, o fulgor dourado e purpúreo de uma paisagem agreste, um amálgama de lombadas poeirentas nas estantes, o reflexo baço de um espelho fenício e o tom acinzentado da respectiva moldura de bronze. Era uma sala sem segredos, mas provocante, ao mesmo tempo brusca e serena como a mulher que ali vivia.
— O que o traz a Jerusalém?
— Uma reunião com o Primeiro-Ministro, esta tarde... e o regresso de Hannah ao hospital.
— Céus! — Sua mágoa era tão sincera que se sentiu comovida e prestes a chorar. — Viu-a?
— Vi. .. Mas não me reconheceu.
— Que diz Lieberman?
— Diagnóstico negativo. -— Surpreende-o?
— Não. Há muito que o esperava, mas não queria acreditar.
— E agora?
— Diabos me levem se sei!
— Pode demorar-se um pouco?
— Sim, tenho uma hora disponível. Precisava vê-la.. .
— Ótimo. Vamos tomar um café.
Deixou a capa e a pasta em cima do sofá e seguiu-a até à pequena cozinha, que comunicava com a sala abobadada. Queria estar perto dela sentir-se sociável e absolvido do pecado com que Hannah, sem o saber, o manchara. Enquanto ela se movimentava na pequena e clara dependência, recordou-se do significado bíblico de seu nome: ”Yehudith era uma viúva que vivia em sua casa. .. de porte majestoso e muito agradável à vista...”
Perguntou-se, como já o fizera muitas vezes antes, que espécie de união existia entre aquela meiga e franca criatura e o sutil e incansável indivíduo que vivia com outro nome em Damasco.
Como se lesse seus pensamentos, Yehudith perguntou:
— Sabe alguma coisa de Adom?
— Nada, nos últimos dez dias.
— Não é normal isso, é?
— Um pouco. É possível que ande em viagem. É possível que não dê sinais de vida por medida de segurança. .. Não se preocupe, informá-la-ei logo que saiba qualquer coisa.
— Não estou preocupada, Jakov. — Inesperadamente, voltou-se para o encarar.
— Acredite que aceito o que ele é, o que faz. Tenho Golda, que é uma criança amorosa. E tenho meu trabalho. Sinto-me menos.. . menos só do que quando Adom estava comigo. Amo-o tal como é e creio que ele sente o mesmo por mim. Mas nunca fomos muito felizes juntos.
— Não sabia.
— Querido Jakov! — Brindou-o com um sorriso triste e afagou-lhe por instantes o rosto com a mão fria. — É tão hábil em sua profssão e tão cego noutras coisas!
— Nunca fui cego em relação a você Yehudith.
— Nem eu quanto a você. Mas aonde nos leva isso?
— A parte nenhuma; Absolutamente nenhuma.
— Agora, descanse — disse Yehudith Ronen ternamente. — Ponhamo-nos à vontade e falemos com franqueza e sem subterfúgios do que sabemos.
— Perfeitamente de acordo. -— Abeirou-se do rosto dela, beijou-lhe suavemente os lábios e voltou a afastar-se. — Faça o café e depois mostre-me o que está fazendo no momento.
Tinham escorregado no gelo, mas agora encontravam-se de novo em terra firme; tinham-se apercebido do abismo e, embora tivessem recuado, sabiam que ele continuaria para sempre ali, profundo e secreto, à espera de os tragar. Sorveram o café e tagarelaram acerca de Jerusalém e de Telavive, das loucuras dos amigos, das comédias iidiches, das por vezes sinistras histórias de embusteiros e impostores que medravam à custa dos grupos de emigrantes. Depois, Yehudith pegou-lhe na mão e conduziu-o através das sombras do pomar até a seu estúdio, uma pequena casa caiada de branco contra o muro leste do pomar.
Havia a habitual desordem distraída de ferramentas, armações de arame, modelos de cera, moldes de gesso, esboços pregados nas paredes com alfinetes, bronzes meio polidos, tentativas de escultura de pedra e madeira. Eram quase todas peças já suas conhecidas, mas havia uma, com metade da altura de um homem, coberta por um lençol, em cima de um banco de madeira, batida por um raio de sol que se filtrava pela bandeira da porta. Yehudith obrigou-o a colocar-se a dez passos da peça, tomando ela posição ao lado desta. Depois, fingiu um momento de antegozo:
— Se não gostar, não a compre!... Aviso-o de que não há desconto, Jakov. Pus nela todo o meu saber e tudo o que sou. Acabei-a ontem. É o primeiro a vê-la. Intitula-se Casamento.
Puxou o lençol e deixou-se ficar observando o rosto de Baratz enquanto este contemplava a escultura. Uma extensa faixa retangular de plásfco claro tinha sido dobrada em dois círculos e fixada em uma base de pedra. Na abertura de um dos círculos via-se uma forma feminina, nua, numa atitude forçada de climático desejo, voltada para o homem que, frustrado e agonizante, se apoiava ao flanco da parede transparente. Toda a fúria da paixão transparecia nos músculos tensos de ambos, todo o terror da solidão em seus rostos atormentados, como se a parede ameaçasse ruir sobre o impacto da necessidade que sentem um do outro. Mas a parede era firme e eles permaneciam gelados num inferno límpido e eterno. O efeito causado no espectador foi estranho. Houve um momento de curiosidade desinteresrada, de alheamento pela composição em si, como se as duas partes não se conjugassem. Em seguida, foi-se intensificando um estado de choque, à medida que as partes soltas iam formando um todo e o espectador era arrastado, invencivelmente, para a ação das figuras de bronze. Por último, a emoção transbordou em frases curtas e inadequadas.
— É belo! — exclamou Jakov Baratz. - Belo e terrivelmente triste.
— Agora, já sabe o que se passa comigo e Adom.
— Preferia não o saber.
— Era necessário, não acha? Para o proteger e proteger-me.
— Para nos proteger a todos — acrescentou Baratz. Então, ela começou a chorar, silenciosamente e com alívio, como se houvesse sobrevivido a uma rude provação. Quando a enlaçou, rendeu-se como uma criança esfomeada de calor e ternura; mas ele sabia que essa ternura nunca seria completa e que a parede transparente, uma vez derrubada, não mais poderia ser reparada. Por isso quando a viu mais calma pediu-lhe que cobrisse a escultura e regressassem à casa branca com sua porta negra e as janelas estreitas. Dali, telefonou para o
Quartel-General e foi informado da sabotagem ocorrida em Ein Kerem: uma vivenda fora destruída por uma bomba de plástico, uma criança morrera atingida pelos estilhaços e uma mulher ficara ferida sob os destroços. E ouviu mais: que Adon Ronen enviara um relatório de Damasco, encontrando-se uma cópia à espera dele, em seu gabinete de Jerusalém.
— Quarenta e um atos de sabotagem em doze meses. — O Primeiro-Ministro repetiu as estatísticas, em sua voz abafada e áspera. — Sete mortos dois na semana passada. Estamos aqui para estudar represálias: sua natureza, seu ritmo, seus efeitos políticos e militares.
Era um homem sombrio pensava Baratz, de cabelos, roupas, olhos, pele e temperamento frio no governo de coligação. Era o chefe seguido pelos partidários de destaque que haviam ensopado de sangue as fronteiras de Israel. Não era um fraco. Tinha a obstinação de um político de carreira, a astúcia de um funcionário.
Mas faltava-lhe a presença, o ardor e a eloqüência profética para encorajar um povo bloqueado.
— ... O incidente desta manhã e a recente morte do condutor de um trator em Sha’ar Hagolan provocaram uma crise interna em meu Governo. O povo quererá saber... e tem o direito de saber! ... o que fazemos para proteger sua vida e seus bens contra as incursões inimigas. Isso significa uma demonstração clara de nossa vontade e capacidade para resistir à agressão. E o que é mais importante. — assentou as papudas mãos no tampo da mesa e pôs-se a bater com os polegares um abafado batuque — ... é que, se não agirmos imediatamente, nossos inimigos aumentarão de audácia e nos veremos envolvidos numa ação militar de graves e perigosas conseqüências.
Baratz brincava com o lápis, tentando disfarçar a irritação. O problema já tinha sido discutido. Para que adorná-lo de lugares-comuns entretecidos na velha retórica de Knesset? Se querem represálias,
tê-las-ão. Se querem uma lista das possíveis conseqüências, também daremos — e citaremos as vantagens de cada uma delas. Mas, por amor de Deus, que o assunto fique resolvido. E, quando tivermos decidido esta embrulhada, vejamos o que fazem do relatório de meu agente em Damasco. . .
— . . .Duas espécies diferentes de sabotagem. - A voz abafada prosseguia monotonamente. — Ataques diretos da Síria e incursões ao longo da fronteira jordaniana de membros da Organização de Libertação da Palestina. A detruição do trator em Sha’ar Hagolan foi obra de sírios. A explosão desta manhã em Ein Kerem é visivelmente obra de sabotadores da O.L.P., com base na Jordânia. Por isso, a primeira pergunta é: quem devemos atacar a Síria, a Jordânia ou ambas?
— Ou nenhuma? — Foi o Ministro dos Negócios Estrangeiros quem completou a pergunta, ao mesmo tempo que avançava para o centro do estrado. — Todos os incidentes na fronteira com a Síria são investigados pela Comissão Mista de Armistício. Se ignorarmos ersa investigação e atacarmos diretamente a Síria, esta pode invocar seu Tratado de Defesa Mútua com o Egito. Se atacarmos os jordanianos, é quase certo que estes nos acusarão de represálias contra um povo inocente por causa de terroristas ilegais, ou seja, os da O.L.P.
— Nesse caso, ficamos de braços cruzados? — perguntou o Primeiro-Ministro com agressividade.
— Não disse isso, Aron. Apenas fiz notar que, seja o que for que façamos, nos expomos a uma ilegalidade técnica pela qual teremos de responder nas Nações Unidas.
— E respondem as Nações Unidas a nosso povo... pelos nossos mortos?
- Não.
— Sendo assim, repito a pergunta: a Síria, a Jordânia, ou ambas?
O Ministro da Defesa arrancou o comprido e enroscado corpo das profundezas da cadeira e embrenhou-se numa tirada oratória:
— Nossa política para com a Síria é determinada por seu tratado com o Egito. Se a Síria fomentar ações militares, o Egito não será obrigado a intervir. Se formos nós a fomentá-las, a Síria poderá invocar a ajuda egípcia. Portanto, se abrirem fogo contra nós, abriremos fogo contra eles... Se nos atacarem, contra-atacaremos. Considero perigoso alterar esta política, pelo menos por enquanto.
— E o que recomenda o Ministério da Defesa?
— Um único ataque a um objetivo bem definido, dentro dos limites da Jordânia.
— Para demonstrar o quê?
— Que os jordaníanos devem vigiar suas fronteiras e combater os grupos da O.L.P., que ali operam.
— Faz sentido — aquiesceu o homem sombrio, recostando-se e cruzando as mãos sobre o peito da camisa amarrotada. — Tem um objetivo particular em mente?
— Ainda não, Mas se esta sugestão for aceita na generalidade, gostaria de estudar imediatamente o assunto com o Chefe do Estado-Maior e o Diretor do Serviço Secreto Militar.
— Quanto tempo demorará esse estudo?
— Uma semana — respondeu o Chefe do Estado-Maior.
— É trabalho para duas semanas, pelo menos — corrigiu Jakov Baratz. — Ou até mais, se possível.
O Chefe do Estado-Maior franziu a testa. O Ministro da Defesa tossiu, em sinal de discordância. O Ministro dos Negócios Estrangeiros replicou asperamente:
—- Quanto mais tempo demorarmos, mais a represália se afastará do ato que a motivou. Politicamente, é perigoso.
— Há outros perigos — interveio Jakov Baratz molemente. — Temos de sopesá-los todos, antes de entrarmos em ação.
Abriu a pasta procurou e retirou dela uma cópia do relatório de Damasco. Colocou-a em cima da mesa, por baixo das mãos, e prosseguiu no mesmo tom despreocupado:
— Recebi esta manhã um relatório atrasado de nosso principal agente na Síria. Esteve com malária. Eis o texto da mensagem:
Creio que Safreddin prepara uma conjura para assassinar o Rei da Jordânia. Utiliza meu caminhão para o que parece ser um carregamento de armas destinadas a pessoas desconhecidas, mas que não passa de um engodo. Esse carregamento será interceptado na fronteira síria, provavelmente para desviar as suspeitas dos elementos leais do palácio. Também pode ser que o engodo se destine a mim. Mandarei mais informes.”
Baratz ergueu os olhos e viu todos os rostos, tensos e apreensivos, voltados para ele.
— Estão vendo, senhores, o que quero dizer. Se atacarmos a Jordânia, lutaremos contra um homem que já tem uma arma apontada às costas.

3

BEIRUTE

Às sete horas da tarde, Nuri Chakry, barbeado e lavado de fresco, estava sentado em seu aposento com uma bebida e um nu de Picasso por companhia, pensando seriamente em seu futuro. Começara por estabelecer uma única e simples premissa: a de que Nuri Chakry tinha de sobreviver nas condições a que ele próprio se habituou. Restava agora determinar quais os melhores meios de sobrevivência, qual a melhor utilização do tempo e das circunstâncias. Gostaria de continuar em Beirute, ensolarado império de tijolo e cimento, de ações, fianças, hipotecas, diretorias e esferas de influência, que criara para si próprio. Se isso lhe fosse recusado, então teria de descobrir uma saída airosa e um céu firme, onde pudesse recomeçar a construir.
A generalidade era simples: o problema estava nos pormenores. Se Nuri Chakry continuasse em Beirute, o Banco Fenício continuaria também. A sobrevivência de ambos resumia-se em quatro palavras: cinqüenta milhões de dólares. Se os sauditas e os kuwaitianos mantivessem seus depósitos, o problema ficaria automaticamente resolvido. Mas havia probabilidades de que os colocassem noutro lado, nos próximos trinta dias. O Ministério das Finanças e o Banco Central podiam também salvá-lo. Não o perderiam de vista, para estarem seguros; mas, uma vez envolvidos numa operação de salvamento, não poderiam facilmente desenredar-se. Assim, Nuri Chakry conseguiria aquilo de que mais necessitava: tempo. Havia, no entanto uma dificuldade. No Ministério das Finanças e no Banco Central pululavam indivíduos que haviam sido maltratados por Nuri Chakry; portanto, era difícil conjeturar qual a direção que as coisas tomariam.
Eliminadas estas duas hipóteses, restaria uma única e a menos importante: Mark Matheson que labutava ainda em torno das tocas de toupeiras de Zurique, em busca de um amigo relutante ou de um jogador suficientemente audacioso para arriscar cinqüenta milhões em Nuri Chakry. Matheson prometera telefonar nessa noite, entre as sete e as nove horas. Até então, Chakry tinha de ocupar a alma — se é que a possuía — com toda a paciência de que era capaz.
Outra pequena possibilidade. Tudo podia falhar incluindo o banco. Que aconteceria então a Nuri Chakry? Em primeiro lugar, haveria um exame oficial aos livros, o qual revelaria o que muitos suspeitavam, mas que poucos afirmavam: que os valores dos títulos do banco estavam totalmente inflacionados devido a um firme mercado de capitais. Revelaria que tinham sido feitos importantes empréstimos a favor de pessoas sem garantias ou contra documentos que eram uma simples esperança lançada no papel. No final — ou mesmo antes — Nuri Chakry seria chamado a prestar contas: sua propriedade do Líbano seria penhorada e, com toda a lentidão da lei, acabaria por ir parar na cadeia.
Por conseguinte, mesmo que não viesse a ser necessária, sua fuga devia estar preparada. Tinha de repartir meticulosamente o tempo, pois só lhe restavam trinta dias para salvar o máximo possível do naufrágio de um grande império. E era aí que Idris Jarrah, o agente venal, lhe seria útil, ao passo que Heinrich Müller era absolutamente essencial.
Jarrah não era tão louco que estendesse a cabeça ao carrasco, em troca de dólares que não viveria para gastar. Jarrah não temia a declaração gravada ou o documento incriminador que assinara. Jarrah era bom jogador e apostava todas suas fichas num homem do qual partilhava os segredos, cujos motivos compreendia, com o qual tinha interesses comuns.
Enquanto sorvia a bebida e estudava as curvas puras do nu, Chakry avaliou o crédito e o débito de Idris Jarrah. Débito: cem mil dólares. Débito: um conhecimento perigoso dos negócios do Banco Fenício. Débito: uma posição forte numa organização terrorista cujos membros derrubariam um banqueiro de Beirute tão facilmente como minariam um posto de gasolina de Battir. . . Crédito: uma nota promissória de um empréstimo pessoal a quinze por cento. Crédito: uma incriminação gravada. Crédito: uma série de assinaturas fáceis de imitar. Crédito: uma informação imediatamente transacionável em dois ou três mercados. Total: um bom negócio com lucro razoável para o cliente e muito melhor para o banqueiro.
Jarrah era um homem esperto, simplesmente porque nunca tentara ser esperto demais. Era óbvio que tinha sido nomeado chefe das operações para o assassínio na Jordânia. Era óbvio que não apreciava a tarefa nem. suas conseqüências. Era óbvio que não confiava na proteção de Safreddin. A conclusão era também evidente: estava traindo os conspiradores na Síria e na Jordânia, ao mesmo tempo que salvava a pele, mantendo intata sua Organização
e conseguindo um excelente lucro. Seu único risco era que Nuri Chakry o denunciasse a Safreddin; mas sabia que Nuri Chakry estava do lado dos reis e capitalistas e nada tinha a esperar dos socialistas sírios e de seus conselheiros russos, nem dos frios homens da Junta Militar. Portanto, um cumprimento respeitoso a Idris Jarrah, irmão de sangue no comércio dos mascates, incapaz de apostar um centavo na honra de um homem, mas que jogaria tudo num bom projeto de seu interesse! Só era pena que, desta vez, tivesse de perder!
Depois do cumprimento, uma pergunta: onde vender melhor a informação que Jarrah lhe confiara? Dois homens lhe vieram imediatamente ao espírito. Ambos se encontravam em Beirute. Ambos eram agentes comerciais: um, da Casa Real da Jordânia; o outro, de um xecado do Kuwait. Cada um deles aceitaria pagar generosamente a oportunidade de prestar um serviço pessoal ao príncipe que lhe pagava substanciais comirsões e cujo favor era uma garantia de riqueza que ultrapassava os sonhos dos homens mais simples. O jordaniano pagaria sem discutir porque estava intimamente envolvido em tudo o que acontecesse ao Rei. O kuwaitiano regatearia, mas acabaria por pagar muito mais, porque tanto ele como seu senhor metiam os dedos em muitos pratos ao mesmo tempo. Uma reflexão momentânea convenceu Chakry de que ambos pagariam e lhe proporcionariam um juro alto sobre os cem mil que esperava arrancar-lhes.
Pousou o copo e deu dois telefonemas. O primeiro deixou-o um tanto desconsolado. O kuwaitiano estava numa recepção oferecida por um representante de um fundo monetário americano. A segunda chamada revelou-se mais encorajadora. O jordaniano jantava no cassino e mais tarde iria jogar no salão privativo, que era um local tão bom como qualquer outro para negociar com reis, rainhas, valetes e o ás na manga de um banqueiro jogador.
O ás era Heinrich Müller o sábio menor que vivia num laranjal perto de Biblos e publicara uma descolorida monografia circunstancial sobre os túmulos dos hicsos e o desenvolvimento da escrita alfabética dos pseudo-hieróglifos da Fenícia. ..
Seu primeiro encontro com Heinrich Müller fora um momento de primordial importância na carreira de Nuri Chakry. Era então um simples cambista, enterrado em seu buraco junto às docas, que ganhava penosamente dinheiro e coragem para atacar. Um dia, recebeu um telefonema de um comerciante sem importânca que explorava uma barraca para turistas perto das ruínas de Biblos. Esse comerciante tinha moedas para vender e uma coleção de selos. Chegado ao pequeno porto, Chakry viu-se a regatear sob o olhar de um visitante, um sujeito alto e desajeitado, esperto como um
cão pastor. Concluído o negócio, o visitante seguiu-o e dirigiu-se-Ihe num árabe sofrível:
— Interessa-se por coisas antigas?
— Compro para vender — respondeu Chakry com rudeza. Tinha fechado o estabelecimento, estava prejudicando seus negócios, ansiava por se ir embora.
— Fez uma boa transação — disse o sujeito hirsuto, amavelmente. — Com exceção do duplo ducado, É uma imitação.
— Como o sabe? — perguntou subitamente cauteloso ao sentir um rival.
— Foi-me oferecido. Examinei-o. Os duplos ducados foram cunhados durante um período de cerca de setenta e cinco anos a partir do primeiro quartel do século 16. Este pesa mais dois gramas do que qualquer outro exemplar conhecido. É ouro puro, mas trata-se de uma reprodução e não de uma moeda cunhada. Diria que foi feita há uns duzentos anos. Não perdeu; mas, se estivesse em seu lugar, não a proporia a um cliente conhecedor como sendo uma moeda original. Qualquer perito a identificaria facilmente.
— É perito?
— Apenas amador. — Soltou uma risada e apresentou-se no estilo teutônico: — Heinrich Müller. Vivo aqui perto. Tenho uma pequena coleção que talvez lhe interesse.
— Obrigado. Gostaria muito de a ver.
Mostrara-se repetinamente amável. Todos os seus instintos de comerciante estavam alerta. Primeira regra no negócio: cultivar o homem que sabe;
pagar-lhe por seu saber; torná-lo um aliado, pelo menos até se saber tanto quanto ele. . .
Sua aliança com Heinrich Müller durava havia dezessete anos e tinha proporcionado lucros consideráveis a ambos. Continuavam a negociar em moedas antiguidades e objetos exóticos; e cada um deles sabia o suficiente a respeito do outro para desejar que o acordo e os lucros se mantivessem. É que Heinrich Müller não era Heinrich Müller. Era um sueco, nascido e batizado Willi Reiman, e fora um dos mais habilidosos falsificadores do Terceiro Reich: um executor de passaportes falsos, um gravador de notas falsas, um perito em papel, tintas e chapas eletrolíticas; um homem que enterrava a vida num feliz anonimato e mantinha os mortos vivos para se proteger. Seu bom humor era constante, a paciência vacilante, e possuía uma habilidade levantina para a arte do possível. Para Nuri Chakry, constituía uma garantia dispendiosa, mas reconfortante .
O telefone tocou e Mark Matheson falou do outro lado da linha, em Zurique. Seu relatório era lúgubre e deprimente:
— Nada feito, aqui. Os grupos ”J” não estão interessados. Dois outros talvez ajudassem, se soubessem que o governo nos apoia. De outro modo, ficarão de mãos cruzadas.
— Que sabem eles, Mark?
- Demasiado.
— Hostilidade ativa?
— Não. Desgosto passivo. Mandarão flores para o funeral. O que devo fazer?
— Volte o mais depressa possível. — Já esteve com o Ministro?
— Amanhã de manhã.
— Com sorte, estarei em casa à noite..
— Telefonar-lhe-ei. . . E Mark. , .
— Diga.
— Passe uma noite agradável.
— Obrigado! — disse Mark Matheson sem entusiasmo, ao mesmo tempo que desligava.

JERUSALÉM

— Está-nos pedindo que encenemos uma peça de teatro — observou com tristeza o Chefe do Estado-Maior.— Isso não me agrada.
— A política é em grande parte teatro — sentenciou o Ministro da Defesa, que revelava certo gosto pelos aforismos. — E isto é essencialmente um movimento político.
— No teatro — disse Jakov Baratz — a ação é definida e limitada por um texto. As reações do público são previamente experimentadas nos ensaios. E se o texto exige uma espingarda, usa-se pólvora seca e cartuchos vazios, Na guerra, só há texto para o primeiro ato. Não se pode predizer como decorrerão o segundo e o terceiro.
— As armas são demasiado reais — interveio o Chefe do Estado-Maior. .— Há gente que morre.
— Nesse caso deixemo-nos de metáforas — disse, brandamente, o Ministro da Defesa. — Limitemo-nos aos fatos. Concordou-se, na reunião de hoje, que desencadearíamos uma ação limitada a um objetivo definido e nos termos mais aceitáveis. Parece-me que deveríamos definir claramente esses termos, se nos quisermos entender. . . Mais conhaque, senhores?
Levantou-se da mesa e entregou-se à pequena cerimônia de aquecer os copos e verter neles uma porção exata de bebida para cada um de seus convidados. Baratz e o Chefe do Estado-Maior trocaram um olhar por cima da mesa e encolheram os ombros. Já tinha jogado aquela mão. O Ministro da Defesa era um político hábil, que sabia exatamente o que queria e como convencer seus subordinados, que assumiriam então a responsabilidade, a apresentar propostas. Era uma convenção do jogo e. portanto, competia a Baratz, o mais novo, fazer a primeira proposta:
— Comecemos pelo termo médio: um objetivo definido. Temos uma lista das aldeias fronteiriças onde a O.L.P. opera. Escolhamos uma delas. Organizamos um ataque de força, evacuamos a população civil, destruímos a aldeia e depois retiramos. Nosso objetivo terá sido alcançado. Não estamos interessados em provocar catástrofes. Apenas exigimos que a Jordânia tome providências contra os sabotadores ilegais.
— Excelente — concordou o Ministro, colocando os copos em frente dos convidados. — Que aldeia sugere para alvo?
—Nenhuma, por enquanto — disse Baratz com firmeza. — A situação que descrevi é apenas ideal. Necessita de uma localização favorável para um ataque de surpresa. É preciso que não haja tropas jordanianas na área. Exige que cortemos as comunicações antes que possam pedir a intervenção da Legião Árabe. Sem um estudo mais atento, não é possível realizar nenhuma destas exigências. Por cutro lado, se entrarmos em contato com a Legião Árabe, embrenhar-nos-emos numa batalha declarada. Tenho certeza de que venceríamos. Mas também tenho certeza de que não poderíamos garantir seu termo.
O Ministro rodeou o copo com as mãos, aproximou-o do longo nariz e inalou com evidente prazer. Depois, antes de saborear a bebida, perguntou:
— Mas acha que isso a que chama uma situação ideal se pode transformar numa situação possível?
— Sem dúvida que pode.
O Ministro sorveu o conhaque, embebeu com satisfação a língua nele e engoliu-o. Então, voltou-se para o Chefe do EstadoMaior:
— E você Chaim?
— Como sempre, tenho de decidir com base em informações fidedignas.
— E que lhe dizem as informações atuais?
— Estão incompletas — adiantou-se Baratz. — E por dois motivos. Presume, pelo teor de nossa conversa de hoje, que as informações do nosso agente a respeito de um atentado contra a vida do Rei Hussein não tardarão a chegar a Amã por intermédio dos americanos ou dos ingleses. Logo que isso aconteça, é evidente que haverá modificações no dispositivo de guerra da Legião Árabe. Em segundo lugar, a imprensa anunciou hoje uma próxima visita à Jordânia de dignitários muçulmanos do Paquistão. O programa inclui uma visita oficial a Jerusalém e à Cúpula do Rochedo. Inevitavelmente, haverá uma concentração de unidades de combate na área de Jerusalém. Precisamos de mais pormenores, antes de estabelecermos o plano definitivo.
— E se houver um atentado contra a vida do Rei — acrescentou o Chefe do Estado-Maior com severidade — não queremos que isso aconteça enquanto estiver em Jerusalém, pelo que temos de desviar a atenção dos assassinos.
O Ministro sentou-se, balouçando na mão o copo de conhaque e contemplando as gotas douradas da bebida. Baratz e o Chefe do Estado-Maior esperavam carrancudos pelo próximo movimento familiar: o largo sorriso, as frases convencionais, o frio gesto de concordância, as despedidas apressadas. Com surpresa sua o Ministro não procedeu a esse espetáculo. Dir-se-ia ter esquecido seus gestos de ator e a estudada ironia. Quando ergueu os olhos, notaram que tinha o rosto sombrio e tenso. Falou hesitantemente, num tom de súplica:
— Afirmo-lhes que esta operação não me agrada mais do que a vocês. Mas creio firmemente que é preciso levá-la a cabo. A situação é pior do que supúnhamos. Ontem, no Gabinete, o Primeiro-Ministro descreveu-nos um quadro chocante. Dentro de quatro meses teremos oitenta mil desempregados. . . talvez mais. Nossa Marinha Mercante está em apuros. Há pelo menos um banco prestes a falir e o governo, para evitar o pânico, terá de dar garantias aos depositantes. Se o desemprego aumentar excessivamente, acabaremos por perder o que não nos podemos dar ao luxo de perder: o povo! Acrescente-se a tudo isto a alta tensão que reina na comunidade. . . um sentimento de frustração, de insegurança, falta de confiança nas instituições públicas. Se a isto juntarmos o medo de que não podemos ou não queremos salvaguardar nossas fronteiras, então respondo por nossas cabeças. É brutal dize-lo, mas, para bem do país, precisamos de uma pequena guerra e já!
— E até quando teremos necessidades de guerras? — perguntou com contida ira o Chefe do Estado-Maior. — Uma democracia deve sustentar-se a si própria, de outro modo para que serve? Autodefesa claro! Mas com o Exército como arma de propaganda e homens mortos para manter o volume de vivos.. . de maneira nenhuma! Se é esse o nosso futuro como nação, é preferível desistir desde já. Voltemos a dispersar-nos e acabemos com isto!
— Concordo, Chaim. — O Ministro parecia ter-se, subitamente, concentrado. — É perigoso dizê-lo alto e bom som, mas é este o dilema que enfrentamos. E, por estranho que pareça, sempre foi o lema dos judeus na pátria de seus antepassados.
Apoderamo-nos dela. Defendemo-la por algum tempo. Fazemos com que floresça de novo. Depois, perdemo-la. São deuses estrangeiros que nos seduzem ou é o Deus de Jacó que continua cioso de seus efeitos?
— Não sei. Não sou um homem religioso. As vezes, gostaria de o ser.
Jakov Baratz não disse nada. Seus pensamentos tinham mudado de direção. Perguntava-se o que sustinha Adom Ronen em sua solitária vigília de Damasco e como se agüentaria ele próprio nos anos invernosos sem Hannah.
Como que desconcertado por seu silêncio, o Ministro afivelou sua máscara oficial:
- Portanto, estamos de acordo. Uma missão de represália a ser planejada e submetida à aprovação na próxima semana.
— Duas semanas — corrigiu Baratz.
O Ministro suspirou teatralmente:
— É obstinado. Pois sejam duas semanas. Mas é o limite máximo,
Eram apenas nove e meia quando deixaram a casa do Ministro. O Chefe do Estado-Maior sugeriu um passeio. Por isso, dispensaram o carro e puseram-se a caminhar em direção ao hotel do Rei David. A noite estava fresca. Uma aragem fria varria as colinas de Jerusalém; mas o céu estava claro, semeado de estrelas, e havia qualquer coisa de familiar e confortável na confusão dos apartamentos nas formas das árvores dos jardins e na claridade amarelada das luzes das casas. Começaram por caminhar alegremente, ritmando com os saltos dos sapatos uma sonora marcha marcial no pavimento; depois a pouco e pouco, o andamento abrandou e o Chefe do Estado-Maior deu início a um diálogo
mal-humorado e resmungão:
-— Acontece a todos nós, Jakov. O dia das trombetas passou. Agora é a política, a restrição econônrca, a balança de pagamentos e a balança do poder em Knerset. Suponho que se trata de um ciclo natural. Mas preocupa-me. Outrora éramos os aventureiros, os conspiradores, os sabotadores, os atiradores e os comandos. . . Agora, somos a Organização. Quem vem depois? Onde conduzirão o país?
— Gostaria de saber. Gostaria de ter um filho. Não para que lhe pudesse contar. .. mas para que ele me contasse o que se passa no espírito da mocidade. Há jovens bons no Exército.
Apreciam a disciplina. Têm energia e determinação. Se os abandonarmos, perder-se-ão. Há dias vi em Telavive alguns relatórios sobre delinqüência juvenil. É assustador!
— Talvez Yuval tenha razão quando diz que precisamos de outra guerra.
— E quando acabar?
O Chefe do Estado-Maior não fez qualquer tentativa para responder à pergunta. Ficou silencioso por instantes e depois, sem razão aparente, mudou de assunto:
— Há uma coisa que me preocupa, Jakov. Uma frase do relatório de seu agente: ”Também pode ser que o engodo se destine a mim.” Que pretende ele dizer? Está assustado? Foi descoberto?
— Assustado? Creio que sim. Mas não há mai em que seja cauteloso. Descoberto? Duvido. Está provavelmente sendo experimentado, como acontece de vez em quando com todos os estrangeiros. A polícia de Safreddin está fomentando a suspeita e o medo, enquanto ele transforma o Exército sírio num instrumento de poder. — Soltou uma breve risada estranha e prosseguiu: — Conhecer os sírios já é em si uma árdua tarefa. Mas Ronen é um bom homem.
— Que espécie de homem? — perguntou o Chefe do EstadoMaior .
— Não é fácil responder. Creio que você parte sempre do princípio de que um espião é um homem diferente dos outros. De certo modo, suponho que é uma espécie de ator. Sente-se mais feliz com seus disfarces do que na vida normal. Tem mais convicções do seu lado, impõe mais a convicção aos outros do palco do que do passeio. Lembre-se de que Ronen também é iraquiano. Não é um europeu. Creio que se sente mais feliz no ambiente árabe do que nós. Foi isso em parte que provocou o
mal-entendido de seu casamento.
A última frase escapara-se-lhe contra vontade. O Chefe do Estado-Maior aproveitou-se imediatamente:
— Foi um casamento infeliz?
— Insatisfatório para ambas as partes.
— Continua casado?
— Tem a esposa aqui em Jerusalém. Eu...a minha família...olhamos por ela e pela criança.
— Como se arranja ele para ter companhia? — Sempre teve amigas. Suponho que tem uma, agora. — É seguro. . . sob o nosso ponto de vista? — Sob o nosso ponto de vista — respondeu lentamente Baratz ~- tudo o que mantém um agente satisfeito e levando uma vida normal em sua área é uma vantagem. Ê uma questão de aptidão e não de moral.
— A mulher sabe onde ele está?
— Sabe.
— Acha isso prudente?
— Necessário, na minha opinião.
— Não duvido — disse afavelmente o Chefe do, EstadoMaior. — É o seu homem. Tem de lidar com ele. E a mulher?
— Muito inteligente. Muito atraente. É uma artista de talento.
— Tem algum amigo?
- Não.
— Deve ser uma mulher notável.
— É
— O marido se comunica com ela?
— Apenas por meu intermédio. Arranjamos um código para mensagens simples. O que ele não diz, invento eu.
— Como Cyrano de Bergerac, hem?
— A comparação está errada — disse Jakov Baratz. — Cyrano de Bergerac estava apaixonado pela moça.
Riram ambos; e os ecos repercutiram-se pesados e cavernosos ao longo da rua deserta.

DAMASCO

O Coronel Omar Safreddin era um homem de crenças firmes e claras. Acreditava em Alá, o Único Messias. Acreditava em Maomé, o Profeta — exaltando Seu Glorioso Nome! Acreditava no Livro Sagrado e na sua Leitura, fonte de todo o conhecimento. Acreditava no Povo — o Eleito de Deus, nos Filhos do Profeta, que tinham rolado como as ondas do mar pela face da terra e que, mediante o Corão e o Profeta, voltarão a encontrar sua identidade, fraternidade e dignidade entre os infiéis. Acreditava na Terra e na Tribo, definidas por fronteiras, pela posse, pela história e pela tradição. Acreditava no poder e no seu exercício por uma elite que se tinha preparado para o exercer.
No Exército sírio, que era sua própria tribo e seu território, criara essa elite: um grupo de jovens oficiais, nobres de corpo, de espírito iluminado e educados para serem os primeiros herdeiros da revolução e da ressurreição. Com os russos, que admirava e temia ao mesmo tempo, aprendera o valor do método da organização celular; e começara a aplicá-lo em seu próprio programa de treinamento .
O instrumento de aplicação era o Hunafa Club, um grupo de quinze jovens que se reuniam todas as semanas em sua casa de Abo Romana. O clube foi buscar o nome nesse pequeno grupo de crentes de Meca, entre os quais o Profeta Maomé descobriu pela primeira vez a inspiração e a iluminação. Hanif era todo aquele que voltava as costas à grosseira idolatria que desfigurava a original Casa de Alá. Por extensão, significava um homem justo, que trocara a corrupção pelo deserto e que, no Mês do Cio, se consagrava à oração e à autodisciplina.
Todas as reuniões do clube começavam por uma oração e abluções, seguidas de uma refeição ritual feita em comum. Depois, os membros recitavam em coro a Fala do anjo Gabriel ao Profeta, quando do seu primeiro apelo e as respostas que este, aterrorizado, dera à voz angélica. Era talvez simbólico o fato de Omar Safreddin representar a voz do anjo, enquanto os discípulos respondiam representando a voz do Profeta:
- Leia!
— Não posso ler.
— Leia!
— Não posso ler,
— Leia!
— Que devo ler?
— Leia: em nome do Teu Deus que cria, criando o homem de um coágulo. Leia: e isto é o Teu Deus, o mais generoso, que ensina pela pena ensinando ao homem o que ele não sabia.
Após a antífona, começava a doutrinação. Safreddin lia o Sagrado Corão explicando o texto e aplicando-o à vida dos Eleitos do século 20.
”Dá-me bocados de ferro. E quando nivelou a cavidade entre as colinas, disse: sopra! Depois que fez uma fogueira, disse: traz-me cobre fundido para derramar sobre ela. E Gog e Magog não conseguiram subir nem penetrar ali...”
O Coronel Omar Safreddin explicava o texto da seguinte maneira :
— As palavras são velhas; mas sua mensagem, como todas as mensagens do Profeta, é continuamente nova. Quando éramos uma colônia da França, os colonizadores viviam nas colinas e nós estávamos limitados ao vale. Transformaram-nos em escravos e sugaram-nos; mas o ferro que havia em nós permanecia. Depois que os franceses se foram, começamos a encher os vales com ’O
ferro de nossos próprios corpos. Acabamos com as diferenças de homem para homem. Destruímos a classe mercantil e os exploradores estrangeiros, que levam seu dinheiro para fora do país em vez de o deixarem aqui para benefício do povo. Desalojamos os traidores de seus esconderijos. Erguemos muralhas orgulhosas, para que não viessem explorar-nos de novo. Gog e Magog foram para sempre expulsos da Síria; mas continuam vivos nas terras que nos cercam, no Iraque, em Israel, no Líbano e na Jordânia, onde um filho do Profeta casou com uma infiel e se tornou joguete dos ingleses. Por isso temos de ser cada vez mais fortes, mais vigilantes, mais agressivos contra nossos inimigos...
Havia certa magia em sua eloqüência, ele o sabia. Exercitava-se com frio cálculo, nunca se rendendo à cólera que por vezes sentia possuí-lo. Era um soldado; não podia transformar-se num dervixe bailarino ou num sufi exaltado que grita estéreis profecias. Disciplina, disciplina acima de tudo! O próprio Profeta fora um homem disciplinado.
Por esse motivo, após a doutrinação, havia sempre exercícios de artes varonis. Desciam à cave do edifício e ali se treinavam no tiro a pistola, na esgrima com florete e sabre, em combate de armas, para o que Safreddin contratara professores na Coréia do Norte. Ele próprio participava dos exercícios de tiro e esgrima, mas nunca nas lutas corpo-a-corpo, porque era mais velho do que os discípulos e não suportaria mostrar-se menos forte do que eles. Havia, porém, outra razão, que não se dava ao cuidado de examinar mais de perto. É que detestava ser tocado por outra pessoa do seu sexo; e se, no dia-a-dia normal, alguém o roçava, sentia um formigueiro e eriçava-se como um animal tocado por mão desconhecida.
Finalmente, quando os exercícios acabavam, voltavam à sala de jantar, onde Safreddin expunha um problema para o qual, na reunião seguinte, cada membro do clube devia apresentar uma solução. . . Deste modo, enquanto Nuri Chakry tentava sua jogada com o agente comercial da Jordânia, enquanto Jakov Baratz voltava, de carro, para Telavive, e Idris Jarrah se divertia em seu quarto de hotel com uma especialista da dança do ventre do Scheherazade. Omar Safreddin propunha um enigma aos membros do Hunafa Club.
— .. . Apanhamos o espião israelense Eli Cohen na Praça Morjan. Destroçamos sua rede. Será isto o fim das intrigas de Israel entre nós? É evidente que não. Tentarão fixar de novo um agente permanente em Damasco ou em qualquer outra parte. Não são parvos. Pelo contrário, são muito espertos, são indivíduos evoluídos saberão tirar proveito dos erros de Eli Cohen e dos nossos. Que é um agente? Uma aranha que tece sua teia e espera calmamente no centro que as moscas e os mosquitos desprevenidos se deixem prender em suas pegajosas malhas. O centro da teia é sempre uma esquina sombria. Não é fácil descobri-la imediatamente. Começamos por ver os fios e os insetos apanhados, que zunem e se debatem. . . Portanto, o problema que hoje proponho a vocês é o seguinte: suponhamos que, aqui em Damasco, ha um novo agente. Suponhamos que suas caraterísticas e seus métodos são diferentes dos de Eli Cohen. Suponhamos que sua rede é também diferente. Como e por onde começar a vigiá-lo?. . .

ZURIQUE

No bar do Dolder Grand, com o lago e as luzes da cidade brilhando lá embaixo, Mark Matheson bebeu o último de uma longa série de uísques, numa tentativa inútil para esquecer os dissabores. A luz era mortiça. A música suave e acariciadora. As mulheres eram elegantes, se bem que nem todas formosas. Os homens de aspecto cuidado e próspero, se bem que nem todos sóbrios. O local cheirava a dinheiro — sólido dinheiro suíço, protegido por leis estáveis, gasto com reserva, manejado com discrição de acordo com as melhores regras bancárias. Toda a cena era uma censura e um escárnio a um homem que outrora fora recebido ali com honras e que agora se sentia proscrito. Em quarenta e oito horas, sofrera os maiores vexames de sua vida. Fora ofendido em seu orgulho e em sua vaidade. A vergonha da falência obcecava-o. O fedor do descrédito de outro homem parecia acompanhá-lo para onde quer que fosse.
Era sua pior experiência e estava decidido a não repeti-la. Se não se sentisse tão fatigado, teria tentado banir tudo aquilo mediante uma noite de orgia com uma das prostitutas internacionais cujos nomes eram tranqüilamente transacionados pelos ricos e prósperos de Zurique onde os clubes fechavam à meia-noite e meia e a vida da alta-roda começava à uma. Mas tivera de despender toda sua energia em súplicas, debates e na defesa do cada vez menos firme crédito de Nuri Chakry; e a confiança em si próprio fora abalada pela pergunta do velho Lewisohn: ”Por que tinha preferido juntar-se a Chakry?”.
Mesmo agora, na hora da verdade do uísque, era difícil responder com honestidade. Oportunismo? Para um homem a meio dos trinta, não era uma insignificãncia ser capaz de trocar a lenta e segura hierarquia da vida bancária americana pela trepidante liberdade do Levante. Tinha realizado num momento o que, em Nova York, lhe levaria quinze anos. Dinheiro? Também. Chakry pagava generosamente e exigia que seu assistente pessoal mantivesse um estilo de vida que honrasse o Banco Fenício.
Mas havia outras razões, menos dignas, menos fáceis de admitir. Sabia que tinha sido contratado para impor um caráter de sobriedade, um caráter de confiança a uma instituição que, apesar de seu aspecto ocidental continuava utilizando os métodos do bazar e as convenções do tráfico tribal. Tinha-o feito. Mas, ao fazê-lo, deixara-se também seduzir pelo engodo do jogador: dinheiro que jorrava do chão, que era distribuído com ligeireza e parcimônia, umas vezes para rápidos reembolsos, outras vezes com lucros fabulosos, embora a longo prazo. Havia ainda outra razão; mas sempre se esquivara a ela, receoso de enfrentar as conseqüências de seu total conhecimento.
A vida em Beirute era fácil. O prazer era barato e não originava qualquer censura moral, permitindo que se gozasse com estilo, partilhando esse gozo com os amigos. Para um puritano de Connecticut. era um mergulho no mundo das mil e uma noites um cartão de admissão nas exóticas intimidades de que não resultava qualquer castigo, a não ser o baixo imaginar que dificilmente poderia existir sem elas. Era apenas uma verdade formal quando afirmava que os livros estavam em ordem e os documentos valorizados. Podia jurá-lo em tribunal e prová-lo com relatores de auditores e até ser ilibado de perjúrio; mas só porque se recusava a investigar o que conjeturava; porque se falasse de suas conjeturas. perderia a proteção do homem que lhe proporcionara um viver fácil. Tudo isso estava escrito na superfície dourada do uísque e apenas esperava que Mark Matheson o lesse. Tratava-se de saber se Mark Matheson poderia viver com o que lesse. Foi então que uma voz fanhosa dirigiu-se a ele:
— Olá, Matherson!
Ergueu os olhos admirado e viu Lew Mortimer, de pé, ao lado de sua mesa.
— Oh! Viva, Mortimer. — Seu cumprimento nada tinha de cordial.
— Disseram-me que estava na cidade. Pensei que o encontraria aqui. Permite que me sente?
— À vontade.
Mortimer ajeitou o volumoso corpo na cadeira e chamou um criado que passava:
— Bourbon com gelo. Duplo.
Era um homem incongruente. Usava roupas impecáveis e feitas pelo melhor alfaiate italiano; mas seu enorme corpo musculoso parecia sempre prestes a sair delas. Tinha a cara rapada; o cabelo era cortado todos os dias; a pele escura e queimada pelo sol, como se ainda trabalhasse nos oleodutos, praguejando contra os operários para que assentassem os tubos, pois cada metro era mais um dólar em seu bolso. Sua voz conservava ainda o timbre do comando, a sonoridade brutal de um homem que sabia o que queria e tolerava oposições. Sorriu para Matheson e disse, pachorrento:
— Ouvi dizer que tem andado atarefado, rapaz. Matheson encolheu os ombros, irritado:
— Tenho andado por aí. ..
— Por aí, por aí. .. Não teve sorte, hem?
— Alguma — respondeu Mark Matheson.
— Mas não a suficiente, rapaz. Nem metade sequer. Os judeus não se arriscam, porque vão ter de ajudar o Governo israelense, quando o grupo Wilderstein explodir, daqui a um mês, em Telavive. — Num relance, notou a surpresa no rosto de Mark Matheson. — Não sabia? Aposto que não lhe faltaram aborrecimentos. Pois é verdade. Estão subcapitalizando. É claro que o Sr. Chakry cometeu outro disparate. Tinha o capital, mas não soube utilizá-lo. Como também não sabe utilizar as pessoas. -O criado estendeu-lhe a bebida e Mortimer ergueu o copo numa saúde: — Ao crime!
Matheson bebeu em silêncio. Então, Mortimer pôs cobro à sua mordacidade e prosseguiu, amigável:
— É um feio negócio para você, rapaz. Fez um bom trabalho. Admiro-o. Quando quiser um bom emprego, venha ter comigo.
— É a segunda oferta que me fazem hoje.
— E terá mais. Os homens bons são difíceis de encontrar. Mais do que o dinheiro.
— Podia socorrer-nos, Mortimer.
— Podia — concordou Lew Mortimer calmamente.
— Podia fazê-lo agora mesmo: ajudá-lo com um empréstimo, aceitar seu capital congelado ou
comprar-lhe tudo de uma assentada. Mas não o farei.
— Por causa da companhia de aviação?
Mortimer corou. Era um homem de ira fácil, mas dominou-se e respondeu no mesmo tom sereno,
— Não é por causa da companhia de aviação, rapaz, embora isso também conte. É por causa de Nuri Chakry, esse cão que guardou todo o bolo para ele e não deu uma migalha que fosse aos velhos amigos. Emprestei-lhe dinheiro, em tempos idos. Não sabia, não é? É claro que pagou tudo e com juros. Mas quando começou a prosperar, a distribuir ações da companhia de aviação, de negócios rendosos, de hotéis, deixou de me incluir na lista. Sabia que eu era tão esperto quanto ele e não queria competição.
Por isso, procurou novos amigos. Muito bem! Que se entenda agora com eles! Limitar-me-ei a ficar sentado, eu e os outros, e apanharemos as sobras.
— Por que me conta isso? — inquiriu Mark Matheson, aborrecido. — Trabalho para ele.
— É que quero que o repita a Nuri Chakry — respondeu Mortimer com suave malícia. — É que quero que ele se contorça em seu maldito gabinete. Quero que ele
saiba que sei que, quando for amanhã ao Governo lhe farão mil promessas e não cumprirão nenhuma, que Faiçal o abandonará dentro de trinta dias, assim como os kuwaitianos, e até os russos já nada querem com ele. E pode dizer-lhe outra coisa: é melhor que procure um país sem leis de extradição, pois alguns de nós sabemos o suficiente para o metermos na prisão para o resto da vida.
— Vejo que sabe odiar — disse Matheson com mal contida ira.
— Acredite que sei! — aquiesceu Mortimer, subitamente furioso. — Fui um amante fogoso se bem que agora esteja um pouco velho para isso. Mas o problema não é esse. Diga a Chakry que faça uma lista dos homens aos quais roubou as mulheres: era o maior galo de Istambul ao Cairo. . . Depois, compare-a com a dos homens que hoje o seguram pelos raros cabelos. Descobrirá aí a verdadeira história. — Subitamente, voltou a acalmar-se. — Não tenho nada contra você, rapaz. É um bom empregado...o melhor. Mas nunca será um grande homem porque é brando de coração. O emprego está às ordens. Basta pedi-lo. Eu pago minha bebida.
Colocou em cima da mesa uma nota de cinco francos e foi-se embora. Mark Matheson acabou seu uísque e pediu outro.
Detestava voar depois de uma bebedeira; mas, nessa noite pelo menos, dormiria como um justo.

DAMASCO

O Dr. Bitar abriu a porta do aposento e abrangeu toda a cena num olhar: a mulher encolhida a um canto, chorando, numa longa e monótona litania; a enfermeira, jovem e de mãos experientes, de pé, ao lado da cama; o médico interno que embalava o minúsculo corpo enfraquecido e tentava forçá-lo a sorver o líquido. Antes que o conseguisse, aconteceu o inevitável: a criança engasgou-se e vomitou tudo no jaleco do interno.
— Deite-o, por favor. ~- A voz profunda de Bitar não admitia contradição. — Estenda-o ao comprido da cama.
O interno obedeceu e, apesar de seu cuidado, a barriga do doente contraiu-se e um rio de bílis deslizou pelos lençóis. A criança respirou com dificuldade, pôs-se a chorar e as pernas e os braços executaram uma série de movimentos convulsivos. Bitar observou os lábios secos, a palidez das faces e as órbitas enterradas. Abriu a maleta, pegou num estetoscópio e procedeu a uma rápida auscultação do peito e do abdômen, enquanto a mulher continuava a choramingar. Depois, endireitou-se e deu uma série de ordens:
— Aplique-lhe soro. Glicose e salinos. Ferros esterilizados e suturas. Um estimulante cardíaco. Água fervida e uma colher. Bacia e roupa limpa. Entendido?
A enfermeira acenou afirmativamente e depois saiu às pressas do quarto.
Bitar enfrentou o interno:
- Há quanto tempo está ele assim?
O jovem encolheu os ombros, desanimado:
— Trouxeram-no há uma hora. Disseram que está doente desde a meia-noite.
— Será uma sorte se não morrer antes da meia-noite de hoje. Por que não lhe aplicou logo o soro?
Um novo encolher de ombros:
— Pensei que devia tentar um sedativo e algum alimento líquido, primeiro.
— Com os demônios! — praguejou Bitar. — O que lhe ensinaram na Escola Médica? Meter-lhe líquido à força pela boca era sufocá-lo. Que idade tem ele?
— Dois anos, segundo me disseram. — Onde está o pai?
— Numa reunião qualquer. Foi a mulher quem o trouxe. Bitar lançou uma olhadela à chorosa mãe. Estava fora de si, toda entregue à sua dor.
— Mande-a embora — disse Bitar ao interno.
— Mande-a para casa. E depois o material, depressa.
O interno hesitou um momento, ofendido e obstinado; mas o olhar de Bitar convenceu-o imediatamente. Ajudou a mulher a levantar-se, amparou-a na direção da porta e obrigou-a a sair do quarto. Bitar debruçou-se na cama, umedeceu a testa da criança com um pano, ao mesmo tempo que entoava uma canção de embalar. Tinha visto centenas como aquela, em casas de ricos e em cabanas malcheirosas, com a vida a fugir-lhes através das membranas rebentadas e dos intestinos inflamados, de pele seca como sedas em cabides de tintureiro, de músculos decompostos por eletrólise, morrendo literalmente de sede porque a garganta ressequida não permitia a passagem de uma simples gota de água Moribundas e abandonadas- eram a causa primeira de sua cólera contra os demagogos os membros das juntas os filhos definhavam atacados de malária, tracomas e parasitas intestinais.
Finalmente com milagrosa rapidez, levando-se em conta que estava em Damasco, a mesa de rodas com os frascos e o restante material chegou, e ele pôde lavar-se e iniciar a simples, mas imprescindível intervenção cirúrgica. Abaixo do tornozelo esquerdo da criança fez uma incisão numa veia depois suturou-a na agulha oca que levaria o fluido renovador ao sangue. Ligou a agulha ao tubo de borracha e verificou a saída do líquido do frasco. Depois, injetou um estimulante para auxiliar o coração debilitado e, quando teve certeza de que se agüentaria, mandou cobrir com um saco plástico transparente o pênis encolhido da criança, mudar o lençol de linho e prender a perna ferida, a fim de que os estremeções não arrancassem agulha da veia.
- Entao- endireitou-se.
— E agora? - perguntou o interno.
— Esperemos. Quando estiver mais calmo,
alimentá-lo-emos com água esterilizada, uma gota de tempos a tempos, de modo que a possa reter. Depois esperaremos que evacue. Se não o fizer... se não o puder... - Esboçou com as mãos um gesto de resignação
- Inshallah- Seja o que Deus quiser.
— Eu e a enfemeira - interveio o interno, como a tentar desculpar-se — podemos ficar de vigília.
— Não obrigado- o tom de Bítar era seco-” Quero ver o pai. Quero saber por que motivo um homem inteligente abandona uma criada como esta numa casa de mulheres histéricas. Se quer prestar-me um rerviço, telefone para minha casa e diga onde estou.
Abatido, mas sem ousar rebelar-se o interno saiu. Bitar voltou-se Para a jovem enfermeira e, amavelmente, deu-lhe instruções:
— Não permíta que isto volte a acontecer. Parta do princípio de que a criança já estava doente há muito, antes de ser trazida para o hospital - É um trabalho de rotina: soro, glucose e sais. A hidratação oral é vagarosa, mas segura. Use um funil, se necessário, mas nunca como fez esse parvo - deite agua pela garganta abaixo de uma criança. Vomitá-la-á imediatamente e perderá mais do que aquilo que a tentam fazer ingerir. Repare!- ... - Com todo o cuidado meteu com uma colher algumas gotas de água na boca seca da criança- Assim: devagarinho e várias vezes. Cubra-o com um lençol, mas verifique a urina de meia em meia hora. Se os rins falharem, não temos meios químicos para os substituirmos. Perdê-lo-emos--- Dirigiu-lhe um largo sorriso e prosseguiu: — Nós, os velhos, pouco valemos; mas as crianças são muito valiosas para que se percam.
— É um bom homem; Doutor.
Havia gratidão e respeito no sorriso dela.
— E você será uma excelente enfermeira se usar a cabeça e não deixar que os descuidados a dominem. Quer arranjar-me uma xícara de café? É possível que tenhamos uma longa noite.
Depois que ela saiu procedeu a nova auscultação, introduziu mais água entre os lábios descorados e em seguida dirigiu-se para a janela, acendeu um cigarro e respirou profundamente. Sentiu-se subitamente velho — demasiado velho para as consumições do dia-a-dia; demasiado velho para a batalha sem esperança contra a miséria, a ignorância e a doença; demasiado velho para conjuras e contraconjuras contra um regime que detestava, porque seus estudos no estrangeiro lhe tinham despertado o gosto pela liberdade imperecível e a fé no livre comércio de homens e idéias. No íntimo, sabia que a batalha era fútil e as conjuras infecundas. Só o tempo e a educação acabaram com a ignorância. Mas não havia remédio para a morte e a liberdade era um estado que o homem atingia lentamente ou ao qual reagia perigosamente a partir da tirania do coletivo. Fosse como fosse, não podia abandonar a luta, porque seria abandonar-se a si próprio.
A enfermeira voltou com o café e atrás dela vinha Omar Safreddin grave e aprumado, visivelmente preocupado com o prmeiro filho com o seu nome. Ficou parado cerca de um minuto, olhando para o corpo contraído, depois inquiriu:
— Viverá?
— Inshallah! — Havia irritação no encolher de ombros de Bitar. — Se viver, não será graças a você.
— Não tem o direito de me falar assim!
— Tenho todos os direitos! Esta criança há vinte horas que adoeceu e só há uma hora a trouxeram para aqui. Só depois de a mandarem para o hospital é que você me chamou.
— Parecia uma simples indisposição, vulgar nas crianças.
— Mas que pode matar! A gastrenterite é o maior flagelo das crianças, mesmo nos países evoluídos, o que não é, que Alá nos perdoe, o nosso caso.
Homem temido por amigos e inimigos, Safreddin submeteu-se por instantes à cólera de Bitar. Gaguejou uma desculpa e depois perguntou com desacostumada humildade:
— O que a provoca?
— Um vírus. Um vírus transportado pelas moscas, mãos sujas, alimentos mal lavados, pó e água impura. Às vezes, no ventre de uma criança, desenvolve-se com espantosa rapidez. Ê urgente combatê-lo. Veja as estatísticas da Saúde Pública e compreenderá por quê.
— Temos muito que combater. Precisamos de recuperar cinqüenta anos em dez e, mesmo assim, continuaremos atrasados vinte anos.
Havia uma tristeza sincera na resposta: a tristeza de todo o homem cuja ambição é superior às suas forças. Bitar sentiu-se comovido. Sorriu complacente e desculpou-se:
— Pedoe. Coronel. Também apanhei um susto, quando aqui cheguei e vi a criança. Ainda estou com receio, pois podemos perdê-la. Deve estar preparado para isso.
— Não se pode fazer mais nada?
— Não, a não ser rezar... se puder.
— Sem dúvida que posso.
Dirigiu-se para o espaço entre a cama e a janela, voltou o rosto para Meca, prosternou-se e pôs-se a orar, num murmúrio baixo e monótono. Era uma coisa tão simples, tão direta e infantil que Bitar sentiu-se chocado e, depois, estranhamente receoso com a brutal fé primitiva revelada naquele ato. Voltou para junto da cama e recomeçou a alimentar a criança com água. O pulso estava agora mais calmo, os estremeções eram menos freqüentes, mas o saco de plástico no traseiro continuava vazio e também não havia cor nas faces pálidas.
Minutos depois, Safreddin deu por findas suas orações e aproximou-se do leito.
— Se me disser o que devo fazer, substitui-lo-ei por uma hora. Bitar meneou a cabeça:
— Qualquer descuido, agora, seria fatal. Eu fico. Sente-se e tente dormir. Chamá-lo-ei se acontecer alguma coisa, boa ou má. — Certo, doutor.
Obedientemente, instalou-se na cadeira, estendeu as compridas pernas, puxou o boné para os olhos e ficou-se a suspirar. Três minutos depois, dormia. Devido à tensão criada pela vigília, Bitar sentiu o medo invadi-lo de novo. O homem que ali estava personificava o método, puro, sem imperfeições. Viu a morte pairar e enfrentou-a com orações. Agora dormia, porque fizera tudo o que devia ser feito. Se a morte vencer, chorará. Sepultará o corpo e engendrará um novo. Vive em compartimentos bem delineados, completo e autônomo em cada um deles. Não lamenta nada, não sente remorsos. É uma totalidade em si mesmo. Amanhã, será diferente. Deus não abandonará o
pobre-diabo que trair semelhante indivíduo.
As duas da manhã, Safreddin ainda dormia. A enfermeira do turno da noite veio mudar o frasco de soro. Ao fim de três horas, os estremeções cessaram e a criança dormia exausta, ao mesmo tempo que suas faces começavam a colorir-se. Eram quatro horas quando urinou e, então, Bitar acordou Safreddin para lhe dizer que o filho viveria. O Coronel deixou-se emocionar, mas logo se dominou e sorriu. Estendeu a mão a Bitar:
—- Nunca esquecerei isto, Doutor.
— Não passou de um simples dia de trabalho, com a diferença de que este foi dos mais longos.
— Também tenho de agradecer ao nosso amigo Fathalla. Disse-me que o senhor era um bom médico.
— Aviso-o de que o meu preço é alto — sorriu Bitar, cansadamente. — E cobro o dobro depois da meia-noite.
— Devo-lhe uma vida — disse Omar Safreddin.
Enquanto, aos primeiros alvores da manhã guiava o carro de regresso a casa e aspirava o pó do deserto, Bitar perguntava a si próprio quando, como e se alguma vez seria forçado a exigir pagamento.
A mesma hora, Selim Fathalla despertou de um sonho para uma realidade nova e estranha.
O sonho começara em seu próprio quarto, não sabia se de madrugada ou a meio da noite porque havia luz embora não houvesse claridade, havia som, embora reinasse um grande silêncio. Tudo o que sabia de certo é que estava só, imerso numa vil tristeza, de que apenas a vista de outro rosto humano o poderia aliviar. Apetecia-lhe sair para a rua, percorrer os bazares, mas não podia. Para onde quer que se voltasse, via paredes nuas e portas falsas, sem fechaduras nem puxadores. Estava desesperado, até que se lembrou do espelho. O seu gêmeo estava ali, trocista mas tranquilizador.
Pôs-se a caminhar em- direção ao espelho, mas ao fazê-lo o quarto alongou-se num túnel sem fim, branco e inexpressivo. Tentou retroceder. O túnel retrocedeu também, prolongando-se a perder de vista. Voltou a seguir em frente, devagar a princípio, numa corrida desesperada depois. Então, o túnel desapareceu e ele quedou-se arquejante, aterrorizado, olhando para o espelho. O cristal estava vazio, tal como um lago sereno visto de grande altura. No mesmo instante, acordou com uma disposição que não era a habitual. Sentia-se sólido, inteiro, isolado como uma árvore no meio da planície, mas enraizado como a árvore, não mais um estranho. Uma sensação de alívio sacudiu-o como um vento forte. Quis rir, chorar e gritar para expulsar aquela ventura sem nexo.
Estava bem acordado em sua cama, com Emilie, nua e ainda adormecida, a seu lado.
O estranho é que continuava a sentir-se feliz. Sabia exatamente o que lhe acontecera. Não precisava de tatear as brumas e miasmas para descobrir uma interpretação. Milagrosamente, ou devido a qualquer movimento inconsciente da natureza, as duas metades de si próprio haviam-se reunido. O gêmeo do espelho morrera. Agora, havia um único homem;
Fathalla-Ronen ou Ronen-Fathalla, pouco importava. Um homem capaz de se aventurar e decidir. Uma vida para viver. Um amor para gozar — e o objeto desse amor estava ali, estendido e sereno, a seu lado.
Cautelosamente, saiu da cama e foi até à janela. Uma tênue claridade cor de pérola iluminava o céu para além do minarete. O jardim ainda estava imerso ,em sombras, mas aspirou o perfume das rosas e ouviu o rumor musical da água na fonte do leão. A unidade que descobrira em si também era unidade com o ambiente. As altas paredes abarcavam tudo: o homem, a moça, as flores, a água a tamargueira, a alta torre, o caminho para o céu do alvorecer. As próprias ccntradições de sua atividade podiam ser reconciliadas na magia do momento. Não era uma atividade nobre, mas também não era totalmente ignóbil. Podia servir o seu país sem rejeitar inteiramente aqueles com quem convivia. Podia pôr termo ao serviço pois assim fora previsto no contrato com Baratz. E se isso acontecesse poderia partir com Emilie e recomeçar a vida na Europa ou mesmo no Líbano, onde judeus muçulmanos e maronitas se acotovelavam numa harmonia cínica.
Também para Yehudith e para a criança havia um contrato que podia ser invocado em qualquer altura. Na última noite de ambos, após um ato de amor sem entusiasmo, Yehudith dissera-lhe francamente:
— Não sei, Adom, quanto tempo agüentarei isto. Suponho que o mesmo se passa com você. Não o censuro. Está provado que a química não nos favorece. Por muito difícil que seja... para qualquer de nós. . . sejamos honestos e separemo-nos. Golda não sofrerá, prometo-lhe. Nenhum de nós quer fazer dela cavalo de batalha. . .
Assim, exceto quanto à situação legal, era livre; e, mesmo no que se referia a essa legalidade, Jakov Baratz arranjaria as coisas discretamente, logo que lhe pedisse.
Voltou para a cama e estendeu-se ao lado da moça adormecida. Então, vagarosa e ternamente pôs-se a solicitá-la afagando-lhe os seios as ancas e as curvas suaves do ventre. Ela entesou-se, suspirou e, depois, rolou e abraçou-o ansiosa e suplicante até ele a possuir com fúria até então desconhecida de ambos

4
TELAVIVE

De manhã cedo, Jakov Baratz reuniu seu corpo de oficiais na sala de comando do Quartel-General.
Dirigiu-lhes uma breve saudação formal e entrou imediatamente no assunto:
— ... O memorando que têm nas mãos descreve a operação que nos pedem para projetar. Temos quatorze dias para apresentar uma solução. Há demasiadas implicações políticas. Não acredito que haja quem possa com êxito preparar uma operação militar como se se tratasse de uma operação cirúrgica. Contudo, as ordens são claras. Temos de fazer todo o possível por cumpri-las. . . Pedem-nos que planejemos um ataque de represália. Uma represália implica uma relação clara entre o tempo, a geografia e os atos de que tira desforço. O tempo já foi determinado. A geografia exige que ataquemos algures na zona hebraica, entre estes dois pontos. Tomem nota das coordenadas, por favor.
Com um ponteiro, descreveu um grande arco ao longo da faixa sul do corredor de Jerusalém. Esperou que os oficiais apontassem as coordenadas nos respectivos mapas e prosseguiu:
— O objetivo tem de ser de certa importância. Não serve uma aldeola ou qualquer povoação isolada. Há três aldeias consideráveis no Setor I, que demarquei. Estão indicadas pelas letras A, B e C. Cada uma delas tem um posto de guarda, uma enfermaria, um posto dos correios, mesquita, escola e setecentos ou oitocentos habitantes. Em nenhuma delas há aquartelamentos militares fixos. Temos de optar por uma das três. Vejamos o que deve determinar nossa escolha. O objetivo terá de permitir o acesso aos tanques e carros de assalto, apoiados pela Infantaria, que se moverá em duas colunas para executar um ataque cerrado. Se juntarmos a isto uma certa dose de surpresa, tanto melhor. Por outro lado, é preciso determinar a que distância está cada aldeia das mais próximas concentrações de tropas jordanianas. O fator tempo entra aqui como fator força. Quanto demorarão os jordanianos para movimentar suas tropas? De que estradas se servirão? Estarão aptos a desdobrar a defesa? Neste caso, teremos de tomar em consideração os aldeões. É preciso evitar danos civis. Nosso plano é evacuar a população e, depois, destruir a aldeia. É porém necessário albergar esses aldeões. O ideal seria conseguirmos cavernas e abrigos para os alojarmos. Não podemos permitir que fiquem entre o nosso fogo e o dos jordanianos. Por último, há o problema de nossas forças. Têm de ser impressionantes, pois o espetáculo é nosso.. . Além disso é indispensável que a vitória nos pertença, seja qual for a resistência que tenhamos de enfrentar. Serão tomadas providências para um eficaz apoio aéreo. Algumas perguntas?
— Para quando a operação?
— O mais depressa possível, logo que nossos planos sejam aprovados.
- De noite ou de dia?
— De dia, naturalmente. Ao alvorecer, provavelmente. Convém que vejamos o que estamos fazendo, será mais fácil controlar os movimentos da população.
— Que forças considera impressionantes, Senhor?
Uma gargalhada ecoou pela sala e Baratz condescendeu num sorriso de apreciação:
— Digam-me qual a oposição máxima a enfrentar e cedo saberemos as forças de que precisaremos para os impressionar.
— Qual o momento ideal para pôr termo à luta e dar por finda a ação?
— Se pudermos começar por volta das seis e acabar cerca das nove será ótmo. Digamos dez no máximo.
— Suponho que, no sábado, não há quaisquer incursões - lançara um engraçado, de rosto impassível, do fundo da sala.
— Nem na sexta-feira — dignou-se a responder Baratz, quase com seriedade. — Isso é um problema religioso, mas politicamente condenado.
— Uma sugestão, Senhor.
— Diga.
— Os serviços médicos. No caso de danos civis, não devemos estar preparados para prestar socorros imediatos?
— Enquanto controlarmos a atuação sem dúvida,é uma excelente idéia. Tome nota. Mais alguma pergunta?
Fez-se silêncio na sala. De repente, tal como a iniciara, Baratz deu por finda a reunião:
— À mesma hora, daqui a uma semana. Quero uma sugestão válida, para ser apreciada pela direção dos Serviços Secretos. Precisaremos de toda a semana seguinte para proceder à coordenação com os Serviços Operacionais. É tudo, meus senhores. Obrigado.
Enquanto se dirigia para seu gabinete pensava, como já lhe acontecera antes, que tudo era demasiado mesquinho, frígido e impessoal, uma peça representada num mapa de areia, sem verdadeira consciência nem discussão válida dos fatores humanos em causa. Evacuar a população civil. Demasiado simples! Um rugido através de um chifre de touro e as formigas humanas abandonariam ordeiramente o formigueiro. Mas isso nunca acontecera. Como seria possível? Era qualquer coisa muito mais pungente e destruidora, velhas que caminhavam vacilantes e aterrorizadas pelas ruas, uma confusão de homens disparando e gritando à toa, bebês de encontro ao peito, crianças arrastadas como um rebanho de carneiros para as cavernas rochosas da encosta, as economias de setecentas pobres vidas enterradas sob um monte de cascalho. Para quê? Para dizer a um atormentado principelho que deve vigiar melhor uma centena de quilômetros de fronteira desértica! Serviços médicos? Muito fácil de dizer, caramba!, mas difícil de pôr em prática! Um homem com um olho arrancado por uma bala, um rapaz que tenta meter no ventre as tripas rebentadas, o espanto inútil dos rostos dos mortos. Como era fácil fazer conjeturar políticas, como se fosse possível pôr em equação toda a humanidade com um compasso e uma régua de cálculo! Do outro lado do Atlântico, a assembléia das nações reunir-se-ia para julgar com total desprendimento o ato que agora se planejava. Em todo o globo, homens e mulheres leriam as notícias e perguntar-se-iam se esse incidente ou outro do mesmo gênero não desencadearia uma catástrofe atómica. As conseqüências do mais simples ato de violência não tinham limites. Os mortos signifiçavam milhares de seres que nunca nasceriam. Os desalojados podiam vir a destruir cidades, numa vingança feroz contra a raça humana.
Esta lógica monstruosa poderia ser desenvolvida até à loucura. Por outro lado, poder-se-ia fingir ignorar o resto e limitar-se à área de ação legalmente atribuída a cada um. Poder-se-ia informar, aconselhar, protestar e, em seguida, submeter-se à opinião geral com plena consciência. . . Ou não podia? Baratz lembrou-se de Eichmann sentado em sua cabina de vidro, no tribunal, e repetindo a mesma súplica de cem maneiras diferentes. O que acabou por derrotar Eichmann foi o simples horror pela aritmética; mas isso começou com o primeiro judeu espancado na rua pelo primeiro grupo de fanfarrões. Por isso, se por causa do que foi começado esta manhã uma criança for morta numa cabana de Hebron, o que fazer? Sabe-se que isso pode acontecer. Sabe-se; provavelmente, se o deseja. Esta probabilidade tácita já foi admitida. O que vai alegar, Jakov Baratz? Culpado ou inocente?
A verdade é que nem tempo havia para alegações. O trabalho amontoava-se em sua secretária e havia um envelope selado vindo da sala de código. Continha uma nota oficial responsável pela vigilância. ”Damasco elaborou uma ficha de emergência às sete desta manhã. Vimo-nos embaraçados para decifrá-la, mas não podemos pedir sua verificação porque o operador perdeu o contato.”
Presa à nota havia uma cópia da decifração. Começava por ”Ao Diretor” e continuava com uma série de grupos de letras ininteligível. Baratz reconheceu imediatamente que se tratava de uma carta no código especial que inventara para uso de Ronen em circunstâncias excepcionais ou para assuntos de família. Teria de codificá-la primeiro e, em seguida, decifrar esse código. O certo é que só Baratz era capaz de deslindar aquilo. Dez minutos de trabalho deram-lhe um texto claro:
”Ao Diretor. Recebi telefonema de Bitar esta manhã. Meus receios quanto a Safreddin infundados. Parece que nos tem a ambos em grande consideração. Portanto, não considerar operação de transporte como engodo para mim. Seguirá relatório final. Peço favor pessoal. Informar minha esposa de que trate do divórcio imediatamente, em termos de acordo mútuo. Concordará, Esta resolução dos meus problemas particulares é essencial para a segurança e eficiência da operação. Obrigado. R.”

DAMASCO

As 8:40 da mesma manhã, o avião da carreira do Oriente Médio que transportava Idris Jarrah sua pasta e a magra bagagem pessoal aterrou no aeroporto de Damasco. Um carro militar com um dos ajudantes de Safreddin esperava na pista. Idris Jarrah entrou no carro e foi imediatamente conduzido ao gabinete de Safreddin. Uma vez lá, disseram-lhe que o Coronel estava em conferência há uma hora e demoraria ainda um pouco. Serviram-lhe café para amenizar aquela fria recepção e deixaram-no, durante quarenta e cinco minutos, numa antecâmara.
Não se sentia muito aborrecido. Compreendia o estratagema, pois ele próprio o utilizara muitas vezes. Estava decidido a definir sua situação como membro subalterno de uma importante empresa, provando que a Organização de Libertação da Palestina existia sob o patrocínio dos Estados árabes legais e que, quando ele, Idris Jahah, se erguesse para falar em conselho, se comportaria com discrição e deferência.
O que, claro está, não tinha intenção de fazer. Tinha queixas a apresentar — queixas oficiais. Os egípcios estavam aborrecidos com o incidente de Sha’ar Hagolan. Farejavam o perigo nas constantes incursões através da fronteira sírio-israelense. Estavam a braços com uma guerra infeliz no lêmen e pouco dispostos a enfrentar outra ainda pior contra o disciplinado e bem apetrechado Exército israelense. A O.L.P. também tinha suas razões de queixa. Safreddin organizara os planos de um golpe militar, tendo em pouca conta os interesses da O.L.P. O acorão original estipulava que as forças irregulares da O.L.P. se encarregariam dos centros de comunicação afastados e cooperariam com as unidades do exército rebelde. A O.L.P. concordara em contribuir com vinte e cinco mil dólares para as despesas da operação. Na sua pasta, Idris Jarrah trazia dez mil dólares para o primeiro pagamento, mas não tencionava entregá-los senão depois de se considerar satisfeito com os acordos. Aliás, tinha certeza de que não se consideraria satisfeito, pois toda a operação se encontrava já comprometida por causa de suas revelações a Nuri Chakry. Portanto, esperou com paciência e bom humor que o grande homem se dispusesse a recebê-lo .
As primeiras saudações foram cordiais. Safreddin não se esquivou a apresentar desculpas por ter feito esperar seu aliado. Este, por rua vez, mostrou-se compreensivo, embora revelasse cortês desaprovação. Depois, por linhas travessas, à maneira oriental, chegaram ao assunto de sua entrevista. Jarrah exprimiu a opinião dos egípcios, dissociando-se deles, como membro de um grupo político independente. Como esperava, Safreddin não reprimiu sua irritação:
— Já lá vai o tempo em que os egípcios ditavam a política da Síria. Tentamos uma vez trabalhar com eles em íntima colaboração. Mostraram-se arrogantes, altivos e desorganizados. Agora, seguimos nosso próprio caminho. Garanto-lhe que faremos melhor figura do que a que eles fazem no lêmen.
Jarrah acendeu um cigarro e fez um aceno de equívoca concordância .
— A O.L.P. tem de viver com todos. Temos opiniões particulares, que, nem sempre é aconselhável exprimir. Contudo, sentimos que a Jordânia é o lugar onde todos podemos operar com mais eficiência, sobretudo a leste da Jordânia. É por isso que estamos tão profundamente preocupados com a Operação Khalil. Em que, ponto nos encontramos?
”Permita-me que comece pela letra alfa, meu amigo, ou seja o nosso objetivo. Ê muito simples: derrubar a monarquia hashemita por meio de um golpe militar e nomear um governo militar que estabelecerá o regime socialista já experimentado na Síria.
Deste modo, ficaremos com uma frente unida ao longo de toda a fronteira leste com Israel. Temos uma pollfca comum e um objetivo político comum. Entretanto, planejaremos uma ofensiva que atire com os judeus no mar.
— Mas o golpe terá de ser bem sucedido.
- Com certeza. Estamos convencidos disso. O Major Khalil é bom soldado e bom organizador. É tido em grande consideração pelos jovens oficiais responsável pelo êxito da operação. É segundo-comandante da Guarda do Palácio, posição-chave para o que temos em vista.
— E que é?
— Em primeiro lugar, eliminar o atual Comandante da Guarda do Palácio, a fim de que Khalil possa ocupar seu posto.
— E como pensa conseguir isso?
- Esta noite, dois caminhões, com um carregamento normal de mercadorias para Amã, transportarão armas e explosivos, em caixotes de madeira. Estes serão claramente endereçados ao domicílio particular do Comandante da Guarda, uma pequena vivenda nos subúrbios de Amã. Amanhã, ao alvorecer os caminhões deixam Damasco. Subornado por nós, o oficial da alfândega jordaniana dará busca nos caminhões. A armas serão encontradas. Um relatório será apresentado à policia jordaniana que, por sua vez, o transmitirá ao rei. O Comandante da Guarda do Palácio será suspenso até que se proceda a um inquérito, ocupando o Major Khalil seu posto. A partir desse momento, ficará senhor da situação. Fácil e seguro, como vê.
— Demasiado fácil — comentou Idris Jarrah. Safreddin teve um acesso de cólera:
— Por quê?
— Implica demasiadas suposições. Antes de mais, exige que a polícia de segurança jordaniana aceite de boa-fé um suborno da Síria. A imprensa síria e a O.L.P. há muito que apregoam a derrocada do trono dos hashemitas. A imprensa síria é de caráter oficial e, portanto, faz-se eco das opiniões do governo. Por conseguinte, tudo o que os sírios fizerem tornar-se-á suspeito aos jordanianos, sobretudo essa deposição do atual Comandante. A segunda suposição é que o Rei suspenderá um homem de confiança por uma simples suspeita.
Safreddin permitiu-se um breve e contrafeito sorriso:
— Tanto o Rei como o Comandante de sua Guarda foram treinados pelos ingleses. Ora, os ingleses resolvem os casos desta natureza como já expus, .Se o Rei não ordenar a suspensão o próprio Comandante a exigirá, num gesto de boa fé. Seja como
for, a suspeita implantar-se-á, e o Rei não tem outra alternativa senão proteger-se, chamando Khalil.
— A não ser que desconfie imediatamente de Khalil e o mande fuzilar.
— Nesse caso, desceremos até ao terceiro homem na lista das promoções. É um amigo e partidário do Major Khalil.
— O que continua a deixar supor que o Rei e seus conselheiros seguirão a lista. Podem decidir rasgá-la e optar por um grupo de elite da Legião Árabe; pelo menos, até se concluir o inquérito sobre o carregamento de armas.
Safreddin recostou-se na cadeira e cravou no visitante um olhar hostil:
— Parece-me, Jarrah que desaprova esta operação e que não está muito disposto a apoiá-la.
— Assim é, Coronel, E o motivo é simples. Penso que o plano já está comprometido.
Foi com prazer que notou a reação de Safreddin, que impeliu para a frente a mesa, e perguntou asperamente:
— Como o sabe? Onde ouviu isso?
— Em Beirute ontem — Jarrah mantinha-se calmo. — Fui ao Banco Fenício levantar os fundos da O.L.P., a fim de depositá-los no Pan-Arab. Chakry está em apuros. Não queremos ser apanhados. Vi Chakry. Conheço-o há muito. Tive negócios particulares com ele.
Disse-me que ouvira falar de uma conjura no palácio. Quis saber pormenores, mas recusou-se a dar-me. No entanto, confessou que obtivera a informação de uma fonte síria. É possível que saiba muito mais e, nesse caso, deve ter passado a informação, pois tem investimentos na Jordânia, além de que negocia cem informações além de muitas outras coisas.
Safreddin considerou aquela revelação por um momento. Depois, meneou a cabeça:
— Não acredito. Disse há pouco que nossos jornais e a O.L.P. se referem há muito a um golpe no palácio. Deve ser isso o que Chakry sabe e nada mais. Não estou disposto a atirar pela janela meses de trabalho e uma oportunidade que talvez não volte a surgir, só por causa da tagarelice de um banqueiro. É demasiado vago.
-Pois para mim basta, para não arriscar os fundos da O.L.P. e. . . o que é muito mais importante. . . toda nossa organização a oeste da Jordânia. Minhas instruções são claras. Compete-me decidir se a O.L.P, deve ou não comprometer-se.
Era um beco sem saída . Safreddin abandonou a cadeira e pôs-se a percorer a sala, irritado como um leopardo na jaula. Finalmente, voltou-se para Jarrah:
- Aí está a falha! Se o plano é conhecido, por que motivo não tomou Hussein providências?
— Talvez esteja à espera da ação; da ação que desacreditará publicamente a Síria e a O.L.P.
Safreddin digeriu a resposta em silêncio. Depois, admitiu, centra vontade:
— É possível que seja verdade, mas por enquanto não passa de uma hipótese.
— Concordo.
— Nesse caso, por que não faremos um acordo?
— Como?
— Mandamos as armas amanhã de manhã como estava combinado. Você vai a Amã, contata com o Major Khalil, diz-lhe o que sabe, ou julga saber, e vê o que ele pensa. Pelo menos, tomará precauções. Se lhe parecer otimista, deixe-o ir em frente com seu plano. Quanto a você, atue a oeste da Jordânia, tenha sua gente preparada; mas não a comprometa até ver o que acontece. Entrementes, organizarei um serviço de segurança em Damasco para ver se há qualquer falha. Se descobrir alguma, contatarei imediatamente com você e com Khalil. Está bem assim?
Idris Jarrah achava muitíssimo bem. Isso punha-o exatamente na posição que pretendia; um servidor leal de seu país um amigo cauteloco de seus aliado.., com cem mil dólares de prevenção num banco americano de Beirute. Mas tinha de esconder seu contentamento. Mostrou-se preocupado com o problema durante mais quatro ou cinco minutos e depois disse, relutante:
— Compreendo seu ponto de vista, Coronel. Tenho de admitir que faz sentido. Partirei de manhã para Amã. Contudo, tenho um mau pressentimento.
— Também eu — disse Ornar Safreddin. .— Mas estou numa posição em que tenho de pesar os prós e os contras e depois agir consoante as informações. Desde que apanhamos Eli Cohen, não tem havido problemas de segurança. Seria lamentável se descobrisse qualquer falha grave.
Para si mesmo, Idris Jarrah acrescentou que seria lamentável pensar no que aconteceria ao indivíduo que Safreddin considerasse culpado de traição.

BEIRUTE

Nuri Chakry olhou para os homens reunidos em torno da mesa de conferência e desprezou-os. O Ministro das Finanças não estava presente. Preparava-se para uma reunião do Fundo Monetário Internacional, em Nova York. Contudo, daria despacho favorável a tudo o que os representantes do Ministério e do Banco Central decidissem. Nuri Chakry desprezou-os ainda mais do que aos outros. É que aquele era seu último recurso e, sabia-o, deixá-lo-ia com a corda no pescoço. Que eles acreditassem ou não, pouco se lhe dava.
-— ... O Banco Fenício precisa de auxílio. Não é segredo para ninguém. Precisa dele no prazo de trinta dias, o que também não constitui segredo. Mas. . . .— empunhou uma folha com números e agitou-a ccmo se fosse uma bandeira.—-... precisamos desse auxílio na qualidade de instituição solvente: uma casa que fez mais do que qualquer outra para transformar o Líbano no coração financeiro do Oriente Médio. Não peço que aceitem minha palavra. Cada um de vocês possui uma cópia das contas, imparcialmente examinadas por uma célebre companhia americana. Todos têm uma cópia da carta que lhe pedi para escrever com vista a esta reunião. Eis aí o nome e a insígnia. Leiam-na! O Banco Fenício é uma companhia solvente que devido a circunstâncias alheias a seu controle, se encontra no momento em uma situação difícil. . . Que circunstâncias são essas? Todas políticas. O Rei Faiçal está ofendido com as toneladas de artigos publicados na imprensa libanesa. Os xecados do Kuwait estão sofrendo pressão dos ingleses para investir na zona do esterlino. E as cláusulas são boas! Ninguém pode oferecer melhor. Uns e outros sabem que podem causar embaraços ao Líbano. Todos, por motivos diferentes, procuram embaraçar o Líbano. O Banco Fenício é libanês! Cortem o baralho como entenderem, a mão continua a ser deles! Muitos de vocês não apreciam meus métodos, o que compreendo. Mas se eu falir, o Líbano, em termos bancários, retrocederá dez anos. Portanto. . . querem ou não ajudar-me?
Por instantes, viu-se rodeado de silêncio. Depois,, sentou-se e esperou para ver quem daria a primeira resposta. ”Não o surpreendeu muito que fosse Taleb a iniciar o debate. Taleb não possuía fortuna, por isso nada tinha a perder. Deviam ter sido suas mulheres que lhe deram coragem.
— Fala de circunstâncias alheias a seu controle, Sr. Chakry. Especifica-as como circunstâncias políticas. Todos os banqueiros têm seus problemas, não é assim? Os bancos americanos, por exemplo, investem na América do Sul, na nova África e na Coréia do Sul. Compreendem os riscos da instabilidade política. Tomam providências. Por que não fez o mesmo?
— Precisamente porque não estamos na América. Como país bancário estamos muito verdes. Por isso, tivemos de tentar certos negócios, de enfrentar em determinados momentos, o mercado do risco. O dinheiro é uma mercadoria, Sr. Taleb. Tem de ser vendido como geladeiras ou aspiradores.
— Mas não o vende, por certo, com prejuízo?
— Nunca investimos com prejuízo. Nossos livros provam-no.Somos solventes e com lucro.
— Mas não tem dinheiro em caixa?
— Se os kuwaitianos e os sauditas o levantarem, não!
— Portanto, pode-se ver obrigado a liquidar bens às pressas?
— Sim.
— Nesse caso, arrisca-se a perder?
— Só se este país, que ajudamos a edificar, nos deixar à mercê de nossos inimigos.
Foi Aziz quem fez a pergunta seguinte. Demorou-se nela, pachorrento, como se experimentasse a lâmina de uma adaga:
— Inimigos? Aí está uma palavra estranha, Sr. Chakry. Em termos bancários, fala-se de devedores e credores, de associados ou concorrentes.
— Por inimigo entenda concorrente, e tudo continuará na mesma.
— Admira-me que assim seja — resmungou Aziz como resposta. — Seus concorrentes têm-lhe emprestado dinheiro, não é verdade? Suas exigências têm sido moderadas, quase normais. Por que os considera inimigos?
— Onde entra dinheiro não há lealdade, apenas o lucro legal; o fato de um homem aceitar seu negócio, o fato de não o enganar, não quer dizer que seja seu amigo. Se descobrir uma maneira legal de o afastar, não hesitará. Isso, na minha opinião, transforma-o num inimigo.
— Nesse caso, Sr. Chakry, parece-me que tem sido muito imprudente. Fez mais inimigos do que o necessário.
— Estou de acordo — admitiu Nuri Chakry. — Embora possa objetar. Há aqui uma pergunta objetiva para responder. Irá meu próprio país juntar-se ao inimigo e forçar o Banco Fenício a recusar o pagamento a milhares de pequenos depositantes?
Era a última carta e jogou-a com a mesma frieza com que jogara a primeira. Mas não estavam ainda preparados para apostar nela. Aziz dirigiu-lhe outra pergunta:
— Estaria disposto a sujeitar-se a outro exame imparcial?
— Por que não?
— Estaria disposto a apoiar os resultados desse exame com seu capital particular?
— Com todas as minhas libras.
— Venderia sua posição no banco?
— Por um preço compensador, sim.
— Concordaria com a liquidação imediata de seus bens, incluindo a companhia de aviação?
- Não!
— Por que não, Sr. Chakry?
— Porque a liquidação imediata significa venda forçada. Uma venda forçada significa perda inevitável. No interesse de meus acionistas, não poderia consentir nisso.
— Mas pode vir a ser obrigado a fazê-lo?
— Se o Ministério das Finanças e o Banco Central nos recusarem um auxílio temporário, assim será. Nesse caso, assumirão toda a responsabilidade, aconteça o que acontecer.
Continuavam a não aceitar a aposta. Nenhum deles se dispunha a aceitar tal responsabilidade e desprezou-os ainda mais. Decidiu forçá-los:
— Se têm mais perguntas a fazer, cavalheiros, terei muito gosto em responder. Caso contrário, eu lhes farei uma. Querem ou não, no prazo de trinta dias, financiar o Banco Fenício?
Finalmente, após uma longa pausa, foi o Ministro-Substituto quem respondeu:
— Esta reunião, Sr, Chakry, não basta para lhe darmos uma resposta. Nem o Ministro o pode fazer. Nosso dever é analisar suas propostas e apresentar um relatório ao Ministro, logo que regresse de Nova York. Então, ele fará sua recomendação ao Gabinete, que tomará a decisão final.
— No prazo de trinta dias?
— Assim o esperamos, Sr. Chakry. Não temos informações a esse respeito.
— Entrementes, terei de recorrer a um banco internacional como precaução?
— A quantos já recorreu? — perguntou Taleb, com evidente malícia.
— Desculpem-me cavalheiros — disse cortesmente Nuri Chakry—, mas tenho o que fazer. O Banco Fenício ainda está aberto.
Quarenta minutos depois, guiava furiosamente o carro pela estrada, atravessou Djounie e El Bouar e chegou à casa do laranjal.
Heinrich Muller, enrugado como sempre, era um tônico para seu espírito cansado. Bamboleava-se no fofo sofá, despejando bebidas, mostrando seus tesouros mais recentes, inventando soezes piadas sobre a vida sexual de Biblos. Bisbilhoteiro, tinha um binóculo de potentes lentes com o qual fazia um pormenorizado estudo noturno dos hábitos de seus vizinhos. . .
— Melhor do que o Jardim dos Aromas, meu caro Nuri. Muito melhor! Tão engenhoso e ginástico!
Chakry deixava-o discorrer, feliz por desviar o espírito da dolorosa experiência da reunião. Que Aziz fosse para o diabo. Para o diabo com esse malicioso palhaço que era Taleb. Para o diabo com toda a cambada de bajuladores! Oferece-se um milhão a cada um deles e nem cinco por cento são capazes de pagar! Bastardos!
— ... Acabo de lhe falar da perversão mais exótica — disse Müller com ar de censura — e não ouviu uma única palavra,
— Desculpe, Heinrich. — Apesar do mau humor, Chakry parecia divertido. — Fale-me antes de dinheiro. Prometo escutá-lo.
— Oh, o dinheiro! — exclamou Muller, esboçando com as mãos um gesto de afago. - Melhor do que as mulheres. Melhor do que rapazes atravessando rios profundos. Vou-lhe mostrar dinheiro.
Saiu alegremente da sala e, momentos depois, voltou com dois pedaços de papel grosso nas mãos, que estendeu a Chakry, com solene petulância.
— Aqui tem, meu amigo. Uma autêntica criação pessoal. Por dez dólares. . . o que é?
— Deixe-me vê-los à luz.
Dirigiu-se com as duas folhas para a varanda e examinou-as meticulosamente. Eram dois títulos ao portador sobre um conhecido banco inglês, famoso por sua extrema cautela contra falsificações. Os papéis, tanto quanto Chakry pôde avaliar eram idênticas: os mesmos e curiosos veios, as mesmas e complicadas linhas d’água. A tinta era absolutamente igual, a impressão e a gravação eram uma obra-prima de reprodução.
— Analise-os à vontade — disse Heinrich Müller. — Demore o tempo que quiser. Custar-lhe-á dez dólares.
— Ou o pescoço.
Passados alguns minutos, depois de ter examinado os dois documentos com uma magnífica lente,
confessou-se derrotado e pagou a aposta em libras libanesas.
— Agora, mostre-me a diferença.
— Não a posso mostrar — disse orgulhosamente Müller. — Não é visível a olho nu, nem mesmo com lentes. A tinta é diferente, mas só uma análise química o poderá revelar. O papel é o mesmo, porque, embora não se possa comprar em quantidade comercial, os fabricantes incluem sempre uma folha nos catálogos como amostra. A gravação também é diferente. Há um erro mínimo na profundidade de corte da minha chapa. Mas quem o pode saber?
— Na verdade, quem, Heinrich? Quem? E o material restante? — Também aposto nele, se quiser, mas perderá seu dinheiro.
— Mesmo assim, gostaria de vê-lo.
— Gosto dos homens cautelosos.
Saiu e voltou com dois maços de títulos de origens e designações diferentes. Mostrou-os aos pares, indicando desta vez o verdadeiro e o falso. Chakry examinou-os com a mesma minúcia e, por último, teve de se confessar satisfeito. Mas Heinrich Müller não estava, tinha uma pergunta a fazer, e fê-la com toda a objetividade:
— Temos aqui, meu amigo, documentos com um valor nominal de meio milhão de libras esterlinas. Convertidas em dólares perfazem cerca de milhão e meio. Inclua os duplicados e terá o dobro. Bem. . . que pensa fazer com eles?
— Os originais pertencem ao banco.
— Isso não responde a minha pergunta.
— Eu sei — concordou Chakry, com uma gargalhada. .— O problema, Heinrich, está em que há duas respostas possíveis. Gostaria que me dissesse qual lhe parece melhor.
Müller empilhou os dois maços de documentos e voltou a guardá-los. Depois, preparou bebidas frescas e, confortável como um gato enterrou-se numa poltrona à espera das propostas de Chakry. Este não se apressou. Agitou a bebida, fazendo com que o gelo batesse no vidro, acendeu um cigarro, contemplou as espirais de fumo subindo para o teto e, por fim, disse:
— Antes de mais, uma pergunta, Heinrich. Prefere que lhe pague este trabalho ou que ponha o dinheiro em circulação?
— Depente — respondeu Müller, sem pressa. — Depende do lugar onde o puser em circulação e dos riscos que isso possa acarretar.
— O que lhe parece o Brasil?
— Um país agradável. Alguns problemas políticos, sem dúvida, mas um potencial enorme a desenvolver.
— Por quem tenha iniciativa.
— Claro.
— Tenho lá uma pequena companhia, mais ou menos independente e com algum lucro. Assim, já temos uma cobertura para iniciar o negocio. Para o desenvolver, precisaríamos de mais Capital.
— E onde o iria arranjar?
— Já o temos. — Apontou para os maços empilhados em cima da mesa, à sua frente. — Temos de escolher a maneira de o utilizar. A primeira alternativa é repor os documentos forjados no banco e levar os verdadeiros conosco... no caso de sermos forçados a partir. Se escaparmos desta tormenta, é evidente que continuaremos no Líbano e voltaremos a pôr os documentos verdadeiros em seu lugar.
— Não — opôs-se Müller com firmeza. — Não e não. E um ato criminoso, uma fraude, um roubo. Diga o que disser, seríamos perseguidos pela polícia e condenados a vinte anos de prisão. Não caio nessa.
Chakry aquiesceu, complacente:
— Muito bem. Em caso de desespero, tentá-lo-ei. Mas ainda não estou desesperado.
— E a segunda alternativa?
— Levamos as cópias, mas não as negociamos. Limitamo-nos a pô-las em segurança num banco brasileiro. É evidente que faremos tudo para que nosso banqueiro veja os documentos, os analise e teme nota deles. Então, quando pretendermos uma conta-corrente, como reagirá ele?
— Favoravelmente, claro. Mas pedirá garantias.
— Para o que lhe daremos um documento geral, que afiance todos nossos fundos, incluindo os que estão em depósito no cofre. Mas nunca especificaremos os bens individuais nem diremos que têm um valor que de fato não possuem. É um aspecto definido da lei, não cometeremos nenhum crime.
— A não ser que não consigamos o empréstimo e o banco decida recorrer à nossa conta e liquidar os títulos.
— Concorda em que é o único risco? — perguntou Nuri Chakry.
— Concordo.
— Pois digo-lhe que não existe qualquer risco.
Uma chama repentina brilhou nele. Recostou-se na cadeira, cerrou os punhos e rompeu numa violenta afirmação de tudo o que quisera dizer na reunião, mas que não dissera para não incorrer na ira de seus inimigos:
— Heinrich, conhece-me bem e eu o conheço. Somos indivíduos que sabemos o que é o dinheiro e como se manipula. Há poucos como nós. Para oitenta ou noventa por cento das pessoas,o dinheiro é um mistério maior do que Deus, porque nunca o tiveram nem esperam vir a tê-lo. Que é o dinheiro? Confiança e fé. Um balancear de riscos e aventuras. Veja isto!
Pegou num dos títulos de cima da mesa segurou-o nervosamente entre o polegar e o indicador e prosseguiu:
— Que é isto? Papel e tinta, nada mais. Uma ordem para pagar determinada soma referente a outro papel, que é, por rua vez, uma ordem para pagar determinada porção de ouro. Reduza-a a uma pasta e desaparecerá para sempre. Mas o que ela significa continua a existir: metal que gira em torno da terra, trigo, milho e algodão transformados pelo labor dos homens, distribuídos por homens como nós, cuja função é saber em que ponto a necessidade compete com o resto. Nós somos dinheiro, Heinrich. E é isto que esses parvos do Ministério se recusam a admitir! Somos dinheiro porque sabemos. Percorri a costa esta manhã e vi vinte anos de trabalho... o meu trabalho!... na praia e nas colinas, onde nem as oliveiras cresciam. Fi-lo uma vez e posso fazê-lo de novo, Mas agora não cometerei erros. Quer acompanhar-me?
— Quero, se for necessário,
—- Muito bem! Nesse caso, prepare-me um passaporte com um nome falso. Empacote sua coleção e tenha-a preparada para ser embarcada dez dias antes do fim do mês. Cinco dias antes do fim do mês, marque duas passagens de primeira classe no mais acreditado navio internacional de Beirute até ao Brasil.
— Você lembra-me o Führer— comentou Heinrich Müller com um cumprimento irônico. — Possui a mesma magia.
— O Führer era um louco! — replicou Chakry com aspereza.
—Nunca compreendeu o dinheiro. Tentou exterminar os judeus, mas já estava vencido antes de começar.
— E você, Nuri?
— Só existe uma vitória, Heinrich: a da sobrevivência! Você sobreviveu, quando os homens com quem trabalhava foram presos. Os judeus sobreviveram, agarrando-se ao pescoço do Islame. Também sobreviverei. Um passo para trás, dois para a frente. Quando se está vivo, é sempre possível lutar!
E a verdade é que lutava tão bem que, às três horas da tarde, vendeu uma cópia do relatório de Jarrah e outra de sua nota promissória ao agente do Kuwait, por cento e vinte e cinco mil dólares. O jordaniano já havia pago trinta mil pela mesma prova e Chakry ganhara-lhe mais cinco mil numa partida de pôquer. Lucro líquido: ressenta mil dólares. . . e nem um centavo desse dinheiro foi depositado no Banco Fenício.


DAMASCO

Depois da sua entrevista com Idris Jarrah, Omar Safreddin sentiu-se como se tivesse um prego no sapato. Feria-lhe a carne e o caráter e não se conformaria enquanto não conseguisse arrancá-lo. Por muito pouco que gostasse de Jarrah, por pouco que estivesse disposto a subordinar sua política às exigências de um conspirador emigrado, tinha de admitir que os receios de Jarrah, quanto à existência de uma falha, era fundados. Sendo assim, essa falha tinha de ser descoberta e eliminada sem perda de tempo. Se não pudesse eliminá-la então teria de transformá-la numa vantagem política. Descobrir o mal era um problema semelhante ao que apresentara aos membros do Hunafa Club: supor a existência de um espião estrangeiro, supor a existência de um traidor sírio numa posição de destaque e, nesse caso, por onde começar a procurá-lo?
Os pontos mais supeitos já haviam sido devassados por seus agentes regulares. Todas as embaixadas estrangeiras — russa, americana e inglesa — se entregavam a uma espécie de atividade secreta. Se a conjura fosse conhecida por essa gente, já se teriam feito sentir claras e visíveis conseqüências. Os russos, por exemplo, identificavam-se com os americanos no desejo de preservar a estabilidade política no Oriente Médio. Viam nela, como os asiáticos viam tigelas de arroz, uma mina que uma luta de galos poderia fazer explodir e provocar uma guerra mundial. Nas esferas doutrinais, as monarquias eram detestadas e desejavam uma corrida que transformasse o Fértil Crescente numa zona marxista; mas não estavam dispostas a correr o risco de um conflito, quando isso podia ser menos perigosamente realizado pela evolução. Se tivessem ouvido rumores acerca de uma conspiração contra o trono hashemita. há semanas que teriam investigado —- e sem qualquer espécie de delicadeza —, pois a Síria era devedora de todos, sendo os russos os maiores credores.
Por instantes pensou nos egípcios, mas os interesses egípcios eram os mesmos que os dele. Pensou com mais vagar na O.L.P., mas esta era tão vulnerável na Jordânia que tudo tinha a perder e nada a ganhar com a traição. Os israelenses? Consagrou-lhes uma longa e preocupada meditação. Desde a morte de Eli Cohen, nunca deixara de o afligir a convicção de que, mais cedo ou mais tarde, os israelenses tentariam montar outra rede em Damasco. Contra tal possibilidade organizara um grupo especial de segurança composto por aqueles que haviam trabalhado para desmascarar Cohen, mas nenhum conseguira o mais leve indício. Por outro lado, se um israelense houvesse comprado aquela informação, têla-ia transmitido diretamente para Telavive e não a um árabe palestino como Nuri Chakry.
Pensou em Nuri Chakry e concordou, com Jarrah, que ele negociava tudo ainda que se tratasse dos dentes de ouro de sua avó. Mas possuía Chakry um centro de informação? Era difícil. O dinheiro mantinha certas fidelidades, e Chakry não o possuía para pagar a informantes particulares. Era demasiado inteligente para se envolver com agentes secretos. Se tinha um informante em Damasco, devia ser alguém que tratava de negócios com ele; alguém que, numa correspondência mais ou menos legal, pudesse passar uma frase oportuna, em troca, talvez, de uma oportuna operação de crédito.
Era um grande golpe; mas os grandes golpes reservam, por vezes, grandes surpresas. Eli Cohen fora atingido por um desses golpes — uma coluna de cifras bancárias que não se harmonizava com sua balança comercial. Foi assim que pegou no telefone, ligou para o Ministério das Finanças e pediu uma lista de todas as pessoas residentes na Síria que tivessem contas bancárias no Líbano, sobretudo no Banco Fenício,

TELAVIVE

O relatório cifrado de Adom Ronen ficara fechado durante todo o dia na secretária de Baratz. Precisava refletir, antes de tratar dele, mas faltava-lhe tempo. O trabalho secreto é’como um jogo de paciência. As peças amontoam-se na mesa e é necessário escolhê-las com todo o cuidado e muita concentração, fazendo e desfazendo, até surgir um esboço aceitável. Quando se joga por prazer, é fácil. O esboço está à nossa frente basta encontrar as peças que se seguem. Mas, no âmbito nacional, o esboço muda todos os dias e a todas as horas; é forçoso construir à margem dele, deitar mão a conjeturas e à muito falível imaginação. A mesma peça informativa pode ajustar-se a vinte hipóteses diferentes; entretanto, se sucede escolher-se a peça errada, acaba-se numa súbita e total confusão e se é obrigado a recomeçar de novo. Também há peças incógnitas, fatos que à primeira vista pareciam profundamente importantes e, depois, após várias tentativas, se revelaram simples resultantes do acaso ou meras coincidências. Segundo o provérbio antigo, um urso tosse no Pólo Norte e um homem morre em Pequim; mas se a referência for feita ao urso e ao homem errados comete-se um disparate. Do mesmo modo, quando se estabelece um plano militar com base numa relação fictícia, cria-se uma tragédia que pode custar centenas de vidas.
Adom Ronen pertencia a um setor especial de operações. Não podia permitir-se a participação noutras mais importantes. Yehudith Ronen ocupava lugares especiais em sua vida oficial e em suas emoções particulares. Tentava não misturar os dois. Contudo, embora o desejasse, não podia expulsar do espírito nem o homem nem a mulher. Um relatório do presidente da Câmara de Jerusalém evocava uma visão da casa branca de Har Zion e uma estranha e atormentada escultura. Uma súmula de operações de patrulha no Túmulo de Hasbani deixava-o admirado acerca das mulheres na vida de Ronen-Fathalla e dos riscos que representavam em sua já arriscada atividade de espionagem. Um memorando sobre
rádio-segurança levava-o a perguntar a si próprio por que tinha Selim Fathalla usado o código de emergência para uma mensagem sem urgênca aparente. Uma parada na fronteira, entre as famílias árabes de contrabandistas, mostrava-lhe como conhecia pouco as circunstâncias físicas da vida de seu agente em Damasco e como conhecia ainda menos os ajustamentos íntimos e psíquicos para ali viver.
Certa vez, no final de um jantar tranqüilo discutira o assunto com Franz Lieberman, que era um adepto inveterado de emoções fortes e romances de espionagem. O assunto foi abordado de maneira muito pessoal:
— Suponha, Franz, que está em meu lugar e tem de escolher homens que vivam em permanente anonimato num país inimigo. Que espécie de candidato preferiria?
De modo estranho, Lieberman começou por esquivar-se à pergunta, respondendo evasivamente:
— Deveria saber melhor do que eu, Jakov. Foi um homem dos subterrâneos. Teve uma comissão britânica, usou o uniforme inglês e também trabalhou no Haganah. Foi soldado, espião e sabotador ao mesmo tempo.
— Não era a mesma coisa, Franz.
— Por que não?
— Os fins em vista eram claros, definidos, urgentes. Tínhamos de ganhar a guerra, matar, passar pessoas clandestinamente, prosseguir com as operações de guerrilhas. Estávamos então em boa companhia. Éramos como as tribos mosaicas, guiadas pela coluna de fumo durante o dia e a coluna de fogo durante a noite. O homem que tenho em mente terá de levar uma existência solitária num ambiente hostil. Terá de arriscar a vida para obter informações muitas vezes triviais. Terá de separar-se da comunidade. De fato, conhecerá a parte pior, porque saberá apenas o que for revelado por nossos inimigos. E não se esqueça de que será um semita, para o qual o apoio tribal é quase indispensável. Não verá nem tirará proveito dos resultados de seu trabalho. Se falhar, não terá nem perdão nem segunda oportunidade. Recordá-lo-emos inscrito no livro dos mortos. Agora, diga-me que espécie de homens escolheria para este gênero de ocupação.
— Não sei .— respondeu obstinadamente o velho Franz. — Nunca fiz uma análise clínica dessa natureza. Sei que está procedendo a essa escolha e não sou tão estúpido que lhe dê conselhos, tanto mais que já bebi três conhaques. Posso pensar nisso, ler alguma coisa e ver o que daí resulta. Mas nada prometo.
— Está bem. Sem compromisso.
Seis semanas depois, Lieberman mandava-lhe uma carta em que sem o conhecer, fazia uma descrição razoável de Adom Ronen-Selim Fathalla.
"... Você precisa de um homem insatisfeito, de alguém que não esteja contente com o que tem, embora saiba que o ideal a que aspira é inacessível. Que tenha sido um rebelde na juventude. Pode vir a tornar-se um revolucionário; mas, logo que os frutos da revolução estejam em suas mãos, transformar-se-ão nas maçãs de Sodoma, Assim, tomará um sentido físico ou espiritual, será um vagabundo, um ser que procura o singular e o exótico. Tornar-se-á talvez um adepto de estranhos cultos, um especialista em línguas raras, antiquário, negociante de excentricidades, camaleão, que tomará a cor de todas as árvores, exceto das de seu jardim. Sexualmente, será um indivíduo de apetites fortes tanto em relação às mulheres como aos de seu sexo. Seus amores serão apaixonados, mas terá dificuldade em mantê-los porque sua segurança reside na insatisfação e não na identificação. Não recuará para defender seu domínio privado, no qual sente que pode ficar só. Será mais vulnerável ao isolamento do que à tortura, porque seus pontos de referência são muito pessoais e, portanto, sujeitos a uma dependência especial. Terá de ser manejado suavemente. Se o tratarem com demasiada severidade, tornar-se-á outra vez rebelde e poderá ser tentado pelo risco, afirmando sua identidade. . .”
Tudo isto conduzia a uma descrição clara do caso presente. Se Adom Ronen queria o divórcio, Jakov Baratz, o patrão tinha de fazer todo o possível para o conseguir, ainda que, ao fazê-lo, criasse problemas para si próprio. Por isso pegou no telefone e pediu uma ligação para Yehudith Ronen, em Jerusalém. Enquanto esperava, discou o número de urn membro superior do Rabinato de Telavive e marcou uma entrevista para as seis horas da tarde.
Quando Yehudith atendeu, avisou-a e fez-lhe um pedido:
— Yehudith? Jakov. Estamos numa linha vigiada. Gostaria que viesse esta noite a Telavive e jantasse comigo. Pode arranjar alguém que tome conta de Golda?
— Sem dúvida. Aconteceu... aconteceu alguma coisa?
— Não. Mas há um assunto que temos de discutir urgentemente. Jantaremos em minha casa.
— Sabe cozinhar, Jakov?
— Espere e verá.
— Cheira-me a mistério.
— Não confie muito nisso.
— Ao menos diga-me, Jakov: é bom ou mau? Refiro-me ao assunto.
— Francamente, não sei. Você é que terá de decidir. .— Nesse caso, até às oito e trinta.
Fez outra chamada para pedir o carro, meteu a carta de Ronen no bolso interior do paletó e foi avistar-se com o rabino um homem versado em leis e perito em assuntos matrimoniais. Quando explicou a natureza do caso o rabino comprimiu os lábios descorados e meditou em silêncio. Depois, com certa deliberação, emitiu um parecer:
— Por um lado, a necessidade de segredo é evidente. Por outro, os direitos de ambas as partes têm de ser salvaguardados. Normalmente o solicitante é convidado a expor as razões de seu pedido formal de divórcio. Se a mulher estiver de acordo é provável que o tribunal aceite, com o valor de pedido o documento que me mostrou. Contudo, se ela não concordar, o tribunal exigirá que você faça o pedido em nome dele. Em seguida, a lei obriga que ambas as partes se submetam ao conselho do tribunal, isto é, que se juntem e reconsiderem sobre o pedido de divórcio, o que neste caso, é manifestamente impossível. Na minha opinião, o pedido pode ser anulado de comum acordo. . . Como vê, tudo depende da mulher. O tribunal tem poderes para anular as objeções dela, mas não creio que invoque esses poderes no caso presente.
— Mesmo no interesse da segurança nacional?
— Mesmo segundo as mais liberais interpretações, General, chegamos sempre a um ponto em que temos de optar entre a integridade da lei e o interesse público.
— Ou seja entre a integridade da lei e a vida de um agente secreto.
— Exato.
— E como optaria, Rabino?
— Não há opção. Destruir a lei é voltar ao caos.
— E se a lei depender do capricho de uma mulher?
— Não dependerá. General Baratz, e o senhor sabe-o. Entre dois conflitos, a lei saberá decidir qual deles é o mais válido, sem, no entanto, negar o direito existente em cada caso.
— Gostaria que isso fosse tão claro para mim como o é para o senhor — disse Baratz — e que Adom Ronen pudesse expor seu próprio caso com o mesmo rigor. . . Quero que ele fique livre, porque preciso de um agente satisfeito e de confiança. Quero-o livre porque, de noite, tenho sonhos em que sou David e ele Urias... e não é sonho o fato de poder mandá-lo para a morte com mais rapidez e sutileza do que David em relação a Urias. Quero Yehudith livre, porque não posso confiar em mim por mais tempo e, se falhar não quero outras culpas além das minhas. Quero ser livre também; mas estou preso a uma falsa esperança, a uma longa servidão, a uma criança fechada num sótão escuro de Salzburgo.
— Uma situação difícil — murmurou o rabino — para. ambas as partes. Contudo, com prudência e boa vontade, talvez possamos remediá-la.
— Janto esta noite com a senhora. Se me permite, telefonar-lhe-ei amanhã. . .
— Quando quiser, General.
E assim regressou à casa triste e vazia, para preparar uma refeição de solteiro para a mulher de outro. Felizmente, à medida que se ocupava desajeitadamente dos preparativos, o sentido do humor voltou-lhe e conseguiu rir à vista do General--de-Brigada Jakov Baratz, Diretor dos Serviços Secretos do Exército, misturando salada, descascando batatas e cenouras, pondo a mesa para dois e música no toca-discos. Entretanto Yehudith chegou quando já estava sentado, fingindo-se perfeitamente à vontade, com um uísque na mão — mais cerimonioso do que o habitual — e um exemplar da última edição da Cronologia das Políticas Árabes aberto sobre os. joelhos.
Yehudith notou logo o artifício da encenação e soltou um gracejo que serviu de pretexto aos cumprimentos e à primeira bebida. Depois, disse:
— Jakov quero saborear o jantar. Falemos primeiro de negócios, está bem?
— Boa idéia.
Estendeu-lhe a carta de Ronen e observou-lhe cuidadosamente o rosto, enquanto Yehudits lia. Viu-a inteiriçar-se e empalidecer sob o choque inicial; mas não houve lágrimas nem gritos. Sua primeira pergunta foi de uma irrelevância calculada.
— Quem é Safreddin?
— O Chefe do Tribunal Militar Extraordinário e Diretor dos Serviços de Segurança da Síria. É o homem que desmascarou Eli Cohen e o mandou para a forca.
— E Adom trata com ele?
— Mantém relações constantes e cordiais.
— Mas é um risco tremendo! — Sem dúvida.
— O que pretende Adom quando diz que o divórcio é necessário para que a operação seja segura e eficiente?
— Não sei. Apenas posso adivinhar.
— Então, adivinhe!
— Está bem. Mas baseio-me unicamente na experiência pessoal que adquiri com Hannah, quando trabalhava no Haganah Utilizava-a em toda a espécie de missões perigosas: corre o, espionagem, contrabando. Não tinha dúvidas nem receios. Ela era competente e não temia sacrificar-se, aliás como todos. Minha paixão por ela e o conseqüente casamento foram uma desvantagem e um impedimento. Cada vez que me servia dela, partia-me o coração e, com ele, o cérebro. Não voltei a fazê-lo. Creio que Adom sente o mesmo por você e por Golda.
— Está mentindo, Jakov. Por favor, não minta.
— Nesse caso, não me obrigue a isso. Você sabe. Adom diz que você sabe. Conte-me.
— Apaixonou-se por outra.
— Já tem feito isso dezenas de vezes, na pátria e no estrangeiro. Para que procurar uma saída, agora?
— Interessa-lhe saber por quê?
— Sim, interessa-me. — Estava viva e terrivelmente irritado — Preciso dele para esta missão e quero-o seguro. Instalou uma rede que depende dele e por isso quero saber tudo a seu respeito.
Yehudith terminou sua bebida e estendeu-lhe o copo.
— Nesse caso, volte a encher.
Baratz obedeceu e voltou a entregar-lhe o copo. Ela bebeu um pouco e, um tanto hesitante, começou:
— É como se se tratasse da primeira leitura de uma criança. Deveria poder dizê-lo em dez palavras, mas não sou capaz. É triste, sujo, ambos temos culpa e, no entanto, nenhum de nós pode ser culpado. Adom é um iraquiano. Eu sou polaca. Para ele, o casamento é uma coisa e o amor outra. Você compreende, Jakov, conhece-o. Como amante, deixava-me ébria e estonteada, com vertigens. Era um êxtase espasmódico. Era como viver em champanha. Não podíamos estar longe um do outro. Juraria que o mesmo se passa com sua atual amante. Mas quando nos casamos tudo mudou. O homem tribal veio subitamente à tona. Eu ela o objeto, a procriadora, a mãe. Era a casa, o lar, a dignidade social... nada mais. Quando fiquei grávida, teve de abster-se. Não o podia evitar, assim como eu não podia evitar a angustia de não o ter, sabendo-o lá fora, à caça como um gato. Foi isso que o levou a ir trabalhar para você. Era por isso que ele queria um casamento e um lar à antiga maneira tribal. . .
— E por que o quer destruir agora?
— Não. . . não sei. Oh, que inferno! Há muito que o sabia. Ele esperava que isso nos acontecesse. Quando as coisas chegassem ao último extremo, pedir-me-ia que as precipitasse. Costumava dizer: ”Algures, num dado memento surgirá uma ocasião ou uma mulher que reanimará as duas partes de meu ser.” E o pior, Jakov, era que ele sabia que não tinha razão, mas nada podia fazer. E eu também não. Agora. . . Creio que a ocasião surgiu e a mulher também.
— Mas se ele casou com você, a história pode
repetir-se.
— Nesse caso, lamento-os a ambos.
— Receio por vinte pessoas — disse Jakov implacavelmente. — Que faria ele, se você lhe recusasse o divórcio e eu o chamasse?
— Odiar-nos-ia. E não voltaria.
— E se você consentir?
— Tem uma possibilidade de ser feliz e, como diz ele, sentir-se seguro e eficiente. Mas por que motivo hei de consentir? Responda Jakov! Por que não hei de ser má e torturá-lo por uns tempos? Deus sabe o que ele me fez!
— Porque você não é má. Pode livrar-se de tudo isto mas Adom não, por muito que eu o deseje para segurança de todos! É uma mulher adulta, Yehudith, grande demais para uma posição dessas.
— Sou, Jakov? Acha que sou? — Levantara-se subitamente, desafiando-o com um selvagem sorriso de troça por si mesma. — Sou uma mulher que dorme com um travesseiro entre as pernas, desejando que se transforme num homem. À noite, em casa. sento-me junto de Golda e a ajudo em seus deveres. Trabalho no estúdio até os olhos me doerem. E, durante todo esse tempo, meu desejo era ir para o portão e miar como uma gata à Lua!
~ Não me interesra — disse Baratz com brutalidade, como um carrasco encapuzado e pronto para ferir — que se ponha nua e corra pela Rua Allenby. Só quero saber: concorda ou não com o divórcio?
— Você é abjeto, Jakov.
— Pagam-me para ser abjeto,
— Que quer que eu faça?
— Responda: sim ou não.
— Preciso de tempo para pensar.
— Não há tempo. . .
- Você não é Deus.
— Mas sou um homem com vidas nas mãos.
— Nunca o supus tão cruel.
— É que não me conhece bem.
Foi como se lhe tivesse dado uma bofetada. Toda a ira desapareceu e deixou-se ficar com olhos arregalados e trêmula até que cedeu.
— Está bem. Concordo. E agora?
— Sou abjeto — murmurou Baratz suavemente. — E detesto esta suja missão. Prepare-me uma bebida, enquanto trato do jantar.
5

DAMASCO

Faltava um quarto de hora para as nove da noite quando Selim Fathalla saiu de casa e se dirigiu ao armazém que ficava no lado oposto ao bazar. Abriu caminho através de ruelas estre.tas e malcheirosas, com restos de vegetais e excrementos. Esbarrou em homens apressados burros pachorrentos, mulheres de véu e crianças de pés nus. Demorou-se um pouco na rua dos caldeireiros, uma comprida e sombria caverna que tresandava a carvão e solda e onde ecoava o ritmo dos martelos e bigornas. Era conhecido ali. Olhos brilhantes em rostos enegrecidos sorriam-lhe, mãos sujas moviam-se numa saudação. Mercadores ansiosos expunham seus artigos mais recentes: grandes tabuleiros envernizados, lâmpadas cinzeladas, fogões de metal polido, salvas, cafeteiras e talhas da altura de um homem. Gostava daquela gente. Eram pessoas que praticavam sua antiga arte com perícia e dignidade. Também gostavam dele, porque tinha olhos francos, respeitava o trabalho bem feito e pagava à vista e por bom preço.
O mesmo acontecia na rua dos tecelões. Conhecia as melhores fábricas. Afagava com deleite os ricos brocados. De bom grado distribuía elogios; mas era rápido em notar um mau trabalho ou a falta de um filete de ouro ou prata no desenho. Não recurava presentes: um lenço, uma peça de vestuário — e nunca se esquecia de retribuir na devida altura.
Em sua nova e harmoniosa maneira de sentir, estava grato àquela gente, da qual dependia seu negócio e experimentou uma súbita angústia por não poder identificar-se inteiramente com ela. Aqueles é que eram o sal da terra. Suas vidas eram duras, as recompensas tristemente diminutas. Viam-se envolvidos em acontecimentos que não compreendiam, impelidos para destinos que não podiam dominar. No entanto, erguiam-se instintivamente, procurando uma vida melhor, ansiosos por uma promessa de liberdade e amanhãs mais esperançosos. Saudavam-no como um amigo e, no entanto, ele era o traidor que pairava na sombra de suas nuvens.
Perguntava a si próprio o que responderia se algum deles o obrigasse a justificar sua traição: o velho Hamid, fabricante de filigranas, quase cego ao fim de tantos anos debruçado em sua bancada, com as mãos encarquilhadas semeadas de ouro e prata e que, no entanto, mantinha a dignidade de um antigo patriarca; ou Talat, o escultor que fazia os moldes com os quais os ferreiros reproduziam complicados desenhos nos pratos de prata, e que era um muçulmano convicto incapaz de esculpir uma imagem de homem, mulher ou animal, embora o pudesse fazer tão fluida e satisfatoriamente como modelos de árvores nas águas correntes.
Como explicar a si próprio semelhantes coisas? Como tornar inteligíveis suas culpas e seus méritos, ele que partilhava o sal dessa gente e servia uma nação que todos os dias a ensinavam a odiar? Era gente que não pretendia odiar mais do que ele, mas a aversão proclamada pelos rádios portáteis baratos, gritada por todos os cabeçalhos, mergulhava-a na insegurança, ao mesmo tempo que prometia milagres quando o inimigo fosse expulso da terra de Canaã.
Sentiu-se contente ao irromper das ruelas vivas e rumorejantes para a viela sombria fronteira ao armazém. Tocou a campainha e, pouco depois, o postigo abriu-se e o rosto cinzento e aquilino do vigia assomou. Passados instantes, os pesados batentes giravam e pôde entrar no pátio onde estavam seus caminhões carregados e prontos para a viagem do dia seguinte. Como ordenara Safreddin, mandou o vigia sair durante duas horas, deu-lhe dinheiro para comer e uma explicação falsa de sua presença, a hora tão estranha. Em seguida, fechou os portões, dirigiu-se para o escritório e preparou-se para seu encontro com Safreddin.
Sua mensagem cifrada a Baratz continuava a preocupá-lo. Sua missão era descobrir a quem se destinava o carregamento de explosivos. Ao mesmo tempo, tinha de se mostrar não só desinteressado, mas também indiferente quanto àquelas secretas maquinações. Safreddin era tão nervoso que o mínimo gesto ou palavra sem intenção o deixaria preocupado até descobrir uma explicação plausível. Apesar do telefonema animador de Bitar e de sua confiança na gratidão de Safreddin, a única garantia era desconfiar. O vetusto código do deserto continuava em vigor: um hóspede é sagrado enquanto come nosso pão, uma vez fora do acampamento é uma vítima possível; e se foi derramado sangue, é com sangue que deve ser pago.
As nove horas em ponto, a campainha do portão retiniu e, quando espreitou pelo postigo, viu dois caminhões militares e um carro oficial parados na ruela com os motores funcionando. Fez deslizar os pesados portões e os veículos entraram no pátio. Fechou à chave os portões e apontou para os dois caminhões já carregados para a viagem até Amã. Safreddin deu algumas ordens breves e os soldados puseram-se a descarregar as mercadorias. Safreddin tomou-o por um braço e conduziu-o para o escritório iluminado. Mostrava-se elaboradamente casual. Ofereceu um cigarro a Fathalla e disse:
— Quero agradecer-lhe por me ter recomendado o Dr. Bitar. É muito competente e devotado. Sem ele, meu filho estaria morto.
— Isso alegra-me. — Hábil como uma serpente, Fathalla entrou no jogo de Safreddin. — Só soube que seu filho esteve doente quando Bitar me telefonou. Deve ter sido um momento doloroso para você.
— Foi. A princípio, Bitar mostrou-me má cara. Estava convencido de que eu havia negligenciado o garoto.
Fathalla sorriu e encolheu os ombros:
— Também se irritou comigo. Mas é o gênero de homem de que precisamos.
— Não está muito entusiasmado com os serviços médicos sírios.
— Tudo leva seu tempo. Bitar é um homem impaciente.
— Não há mal nisso. Precisamos de homens impacientes, contanto que sejam capazes de realizar. Acha que Bitar daria um bom administrador?
— Não sei. Nunca me ocorreu isso.
— Parece-lhe que tenha sido um político?
— Político? — Fathalla franziu o sobrolho. — Não sei muito bem o que quer dizer.
— É uma pergunta necessária — disse Safreddin, calmamente. — Pensei em recomendar Bitar para conselheiro superior do Departamento de Saúde Pública. Da maneira como estamos organizados, necessitamos de homens que não sejam apenas administradores, mas que assumam a responsabilidade política de seus atos. Foi uma das coisas que aprendi com os russos. O Executivo e a burocracia devem dar-se as mãos. Bitar é um baathista.
— É o que supunha. Nunca me preocupei em perguntar. Sei que é um fanático.
- Tem contatos que nos podem ser muito úteis. É assistente médico de várias embaixadas estrangeiras. Creio que é um bom lingüista.
Antes que Fathalla pudesse afirmar ou negar, um grito agudo veio do pátio, logo seguido por um clamor de vozes. Safreddin transpôs rapidamente a porta, acompanhado por Fathalla. Quando chegaram ao pátio, viram um carregador sendo retirado da traseira de um caminhão. Tinha a mão direita coberta de sangue. Safreddin precipitou-se para ele seguido a pouca distância por Fathalla. O acidente era banal, mas provocara confusão. O homem ficara com a mão presa num espiral do arame farpado que fazia parte do carregamento e isso ocasionara-lhe um golpe profundo no polegar. Enquanto Safreddin verificava cs estragos, Fathalla aproveitou para uma rápida inspeção em um dos caixotes amontoados a curta distância do caminhão. O nome e a residência do destinatário estavam escritos em caracteres árabes, num dos cantos superiores. Um simples olhar bastou depois do que foi juntar-se ao pequeno grupo, solícito e prestável.
— Deixe-me ver.
Fez um penso com o lenço entrapou a mão do soldado e levou-o para o banheiro do escritório. Aí limpou a ferida, desinfetou-a e segurou a atadura com adesivo. Safreddin seguiu a operação com evidente impaciência.
— Vai precisar de uns pontos — disse Fathalla.
— Levá-lo-emos para a enfermaria, logo que acabemos com isto.
— Não deveria trabalhar mais, esta noite, se não quer que a ferida abra de novo. Posso ajudar a carregar?
— Não. . . não é preciso. — Havia certa preocupação na voz de Safreddin. — Além disso quero perguntar-lhe uma coisa.
Despediu rudemente o soldado e esperou que ele abandonasse o escritório antes de fazer a pergunta:
— Fathalla, disse-me uma vez. . . ou terá sido imaginação minha?.. . que tinha conta aberta no Banco Fenício, em Beirute?
— Talvez o tenha dito — respondeu Fathalla. com fingida surpresa. - Não é segredo e é legal. Sirvo-me do Banco Fenício como intermediário de minhas transações com o estrangeiro. Remetem-me diretamente para um banco de Damasco as ordens de pagamento. Por que pergunta?
Em vez de responder, Safreddin inquiriu:
— Sua conta lá é importante?
— Por vezes assume proporções consideráveis, mas sou obrigado por lei a convertê-la em moeda local dentro de um prazo limitado. Por que me pergunta isso?
— Entre amigos — disse Omar Safreddin — garanto-lhe que há uma boa razão. Uma fonte fidedigna
informou-nos que esse banco está numa situação delicada. Se tem lá grandes somas aconselho-o a levantá-las. Sugiro também que feche essa conta e passe a operar com outra entidade, de preferência uma organização árabe.
— Obrigado pelo aviso. Verei isso amanhã.
Mas, ao dizer isso, uma pergunta o preocupava: como depositar num banco árabe os reveladores fundos necessários para financiar sua rede? O Banco Fenício estava preparado para atender os clientes mais excêntricos e as mais complicadas transações. Não se faziam perguntas não se esperavam explicações. Nuri Chakry era o melhor banqueiro do mundo para um espião. Como se daria com outro e onde procurá-lo? Aí estava um problema para Jakov Baratz resolver.
Isso deixou-o alheado por bastante tempo, a ponto de Safreddin sorrir e dizer com leve malícia:
— Não se preocupe demasiado. Temos bons banqueiros em Damasco. Sabemos proteger nossos amigos.
- Nunca duvidei, Coronel. Simplesmente, é sempre aborrecido acostumarmo-nos a novos processos de pagamento. Quando isso acontece, perde-se dinheiro na certa. Por outro lado, não compreendo por que o Banco Fenício se vê tão subitamente em apuros. É uma das maiores organizações do Oriente Médio.
— Demasiado grande para as mãos de um único homem. Alguma vez manteve correspondência com Nuri Chakry?
— A princípio, sim. Mas a maior parte dessa correspondência foi endereçada a seus subordinados.
— Poderei lê-la, um dia?
— Agora mesmo se quiser, Coronel. Mas por quê?
— Procuramos um homem que segundo desconfiamos, está passando informações confidenciais por meio de correspondência com o Banco Fenício.
— E suspeita de mim?
— Não, meu amigo — respondeu calmamente Omar Safreddin. — Se assim fosse, não lhe teria confiado, como acabo de fazer, esse... esse pequeno assunto, ali. Pelo contrário, considero-o um amigo. É por isso que quero dar-lhe um atestado de confiança para o Ministério das Finanças e os serviços secretos.
— Também o desejo — disse Fathalla. sem tentar esconder a ira. — Não quero viver sob suspeita. Meus negócios estão a vista. Meus livros estão em ordem.
— Ótimo! — exclamou Ornar Safreddin. — Mandarei um homem de manhã. Verificará seus arquivos e apresentar-me-á um relatório pessoal.
Fathalla tornou-se rubro e inquiriu com pesada ironia:
— E não quer investigar minha casa, também?
— Estamos fazendo isso, neste momento. — Safreddin mostrava-se extremamente cortês e afável. — Espero um telefonema antes de sairmos daqui. Creia que não há nisto nada de pessoal. Sei que está inocente, mas tenho de ser imparcial em todas as investigações desta natureza. De outro modo não poderia protegê-lo nem a você nem a qualquer outro amigo. Peço-lhe que compreenda.
— Claro! Mas é horrível vermo-nos tratados como criminosos. Quando acabará isso?
— Nunca! Quem me garante que amanhã será o mesmo homem de hoje? — Sorriu e continuou com redobrada afabilidade: — Não me censure, Selim. Sou um cão de guarda que ladra indiferentemente a amigos e inimigos. Mas só morde os intrusos e os traidores!
— Espero que seus homens se tenham mostrado corteses com minha família. Não me agradaria vê-la assustada e não quero mexericos no bazar.
— Se tiver motivos de queixa, telefone-me. Chamarei à ordem o responsável.
— Obrigado.
— Quando acabarmos isto, talvez aceite jantar comigo!
— Fica para outra oportunidade — declinou Fathalla, com delicada frieza. — Para quando tiver mais confiança em mim.
Safreddin encolheu os ombros:
— Sem dúvida. . . Quando este assunto estiver resolvido ambos nos sentiremos mais felizes.
E a conversa terminou com esta frase ambígua. Safreddin saiu para inspecionar o carregamento, enquanto Fathalla fumava um cigarro, à espera de que o telefone tocasse. Estava irritado consigo porque consentira que Safreddin o melindrasse. Lidava com ele há tempo suficiente para saber que era um indivíduo extremamente tortuoso e inflexível. Era um apaixonado da técnica clássica do terror, que consistia em manter toda a gente em constante estado de tensão e desconfiança. Mais cedo ou mais tarde, um incauto cederia e faria as mais íntimas confidências em troca de sossego. Mais cedo ou mais tarde, um culpado cometeria um ou dois erros, aceitaria um falso atestado de confiança ou tiraria conclusões erradas a partir de uma verdadeira. O certo é que se deixaria enredar como um pássaro numa armadilha.
Fathalla recordava-se vivamente do velho estratagema dos ladrões de bazar, a que se chamava ”dança dos dedos”. Dois aproximavam-se de uma vítima numa rua apinhada de gente. Encostavam-se a ela e empurravam-na. Os dedos, movendo-se com rapidez incrível como asas de mosquitos, dançavam por cima dela, na cara, no peito e nos olhos até esta ficar tão transtornada que era fácil a um terceiro meter-lhe a mão no bolso ou roubar-lhe até o relógio do pulso. Mesmo que a vítima se defendesse, provocava outra espécie de confusão, um tumulto insignificante, que levava a idêntico resultado.
Para a técnica de Safreddin havia uma única resposta: manter-se calmo, ao mesmo tempo que se exibe uma emoção apropriada, que se anotam todos os pontos ganhos e se joga com eles como no xadrez,
lembrando-se sempre de que o gesto mais óbvio pode ser também o mais perigoso. Naquele momento por exemplo, os homens de Safreddin devassavam sua casa. Era um incômodo, nada mais. A não ser que descobrissem a abertura secreta por detrás do painel de faiança, nada havia que o incriminasse. Se a encontrassem seria um homem morto, sem apelo nem agravo. Então, uma idéia atravessou-o como uma bala. . . Talvez não andassem em busca de nada. Talvez fossem simples operários que instalavam uma escuta no telefone e microfones nos quartos. Essa possibilidade deprimtu-o. Mesmo quando se sabe que existem percevejos, nem por isso deixam de ser uma ameaça. Se os fizesse desaparecer, ficaria imediatamente sob suspeita. Se tentasse enganá-los o artificialismo das conversas traí-lo-ia. Ignorá-los era sentir-se vítima da psicose de viver hora a hora exposto aos ouvidos atentos do inimigo. O telefone tocou a seu lado, e ele quase pulou da cadeira.
- Alô!
Uma voz masculina inquiriu:
— O Coronel Safreddin está aí?
— Um momento. Vou chamá-lo.
Mas Safreddin já se encontrava no escritório e esperava pelo fone.
— Fala Safreddin. Não mais nada. Obrigado! Safreddin pousou o fone e voltou-se para Fathalla:
— Acabaram a busca em sua casa, meu amigo. Consideram-no livre de suspeita.
— Gostaria de lhe dizer que isso me satisfaz, Coronel. Pelo contrário, sinto-me insultado.
— Se não se sentisse insultado — disse Safreddin cortesmente — seria para mim um desapontamento. . . Lá fora está quase tudo pronto. Vamos buscar os caminhões. Depois, poderá fechar os portões e ir para casa.
— Ainda não. Tenho de esperar pelo vigia. —- É de confiança?
— Para mim, é. Para você Coronel, não sei. E, para ser franco, pouco se me dá.
Súbita e surpreendentemente Safreddin soltou uma risada, atirando a cabeça para trás e batendo palmas:
— Ótimo! Muito, muito bem! Poderia mandar abatê-lo a tiro amanhã e você cuspir-me-ia na cara. Está aprovado, Fathalla. Gostaria de trabalhar para mim?
Considerou a pergunta em pormenor. Rolou-a na boca para lhe aprender o sabor e o cheiro, ao mesmo tempo que calculava a jogada a fazer. Depois, com deliberação, articulou a resposta:
— Talvez gostasse, Coronel. . . Creio que sim! Quando entregar minhas mercadorias em Amã, quando meus caminhões tiverem voltado a salvo e os condutores se encontrarem com as respectivas mulheres, quando a escuta for retirada de meu telefone e os microfones tirados de minha casa, dar-lhe-ei uma resposta.
- E como sabe, Fathalla, que há microfones e escutas telefnicas?
— Descobrirá a resposta no meu dossiê! Sou baathista, lembra-se? Escapei por pouco aos assassinos porque fui avisado desses pequenos estratagemas. . Alá! Pensar que eu viria encontrá-los entre meus amigos de Damasco! Se quer minha cabeça, Coronel, diga e a enviarei numa bandeja. Mas que o Partido da Ressurreição não seja aviltado com esta espécie de sujeira!
Os passos e as vozes soavam estranhamente no pátio: dir-se-ia pertencerem a um plano de existência diferente. Um longo e mortal silêncio pesou no exíguo escritório, batido por uma luz amarelada e crua. Safreddin, sentado, hirto como uma estátua, contemplava os próprios dedos. Por fim, ergueu a cabeça, Os olhos brilhavam-lhe, os lábios finos sorriam. Tinha o aspecto de um homem extremamente orgulhoso de sua inteligência:
— Muito bem, Selim. O equipamento será retirado amanhã de manhã. . . Mas não procure ser demasiado esperto está bem?
— Não pretendo ser esperto, Coronel — disse Selim Fathalla. — Quero comprar, vender e dormir feliz com uma mulher apaixonada. Quanto ao resto, Inshallah,
— Inshallah! — repetiu Safreddin, beatamente. — Boa noite, meu amigo.

BEIRUTE

No restaurante do terraço do Hotel Fenício — que era, nesse momento mais rico e seguro do que o Banco Fenício - Nun Chakry jantava com Mark Matheson. Sentaram-se à mesa habitual, reservada, perto da janela do lado norte contemplando o mar sombrio e as luzes que corriam em direção ao norte, ao longo do litoral, até aos promontórios, que pareciam esbarrar nas estrelas baixas.
O local era luxuoso, as luzes suaves, os tapetes fofos, os cortinados de rico tecido de thai, as toalhas de brancura imaculada, os cristais reluzentes. O serviço de mesa tinha a maciez da seda, a comida era uma seqüência de exóticos petiscos de todo o mundo. Nuri Chakry mostrava-se um anfitrião otimista e
bem-humorado:
— ... Garanto-lhe, Mark, que as coisas correm melhor do que era de esperar. Os patetas do Ministério pareciam um rebanho de mestres-escolas, agitando os dedos e tentando ensinar as avós a chupar ovos! O que eles me leram! Mas, no fim, tudo se tornou claro. Foram à reunião porque a ISTO eram obrigados. Todo o crédito nacional está envolvido. Oh! Agüentarão enquanto puderem de modo que ficaremos um tanto queimados, mas um dia antes do prazo entrarão com o dinheiro.
— Não foi o que ouvi em Zurique — disse Matheson com ar sombrio. — Não foi dessa maneira que Mortimer me explicou a questão.
— Sabe por quê? — inquiriu Chakry, ao mesmo tempo que levava à boca uma colher cheia de morangos.
— Porque pretendem criar uma atmosfera de desconfiança. Antes de você telefonar de Zurique, soube particularmente que Mortimer estava decidido a fazer uma oferta sobre a companhia de aviação. . . mais do que suficiente para nos tirar de embaraços, mas de lucro muito reduzido. Lewisohn disse-lhe que compraria o Hotel Vista del Lago, não disse? E houve críticas quanto à nossa verdadeira situação em Paris e Nova York.. . Até os sujeitos do Ministério me perguntaram se eu tomaria em ccnsideração uma oferta por minhas ações. Onde parará tudo isto? Um esforço combinado para desprestigiar o mercado.. . O maior perigo para nós é a carência de autoconfiança. Nem os kuwaitianos nem os sauditas...
— A confiança não é dinheiro.
Chakry encheu a boca de morangos e mastigou-os, deliciado, ao mesmo tempo que dizia:
— Não se preocupe com o dinheiro. Já está a caminho. Matheson ergueu os olhos, embasbacado:
— Como conseguiu isso? Quem o cedeu?
Chakry sorriu bem disposto, limpou os lábios com o guardanapo e meneou a cabeça:
— Ainda não, Mark! Nem a você. É uma pequena encenação minha. Mas, para o contentar vou descrever-lhe parte do enredo. .. a melhor parte! Vamos permitir que esta crise se desenvolva da forma que todos supõem. Como sabe, podemos cronometrá-la quase até ao dia em que se declarará. Cinco dias antes do previsto para me encostarem na parede desaparecerei na fumaça. . . uma pequena viagem de negócios. Você procederá às negociações finais
com o Ministério e o Banco Central. Nessa altura, surgirão inúmeras ofertas dos abutres. Reuni-las-á todas para que eu as estude. Então, precisamente antes de o Banco Central correr em nosso auxílio, aparecerei estirarei o coelho do chapéu. Eh, presto! E ouvirá as palmas!
— Será uma boa peça... se é que a pode pregar.
— Acredite que posso.
— Alegra-me sabê-lo. Mas podia ter-me poupado o couro dos sapatos e os pontapés que recebi no fundo das costas.
Chakry riu.
— Lamento isso, Mark. Antes de você ter partido, eu já sabia que conseguiria compor as coisas. Contudo, tinha certeza de que sua viagem era indispensável ao cenário.
~- Até que ponto posso utilizar o que me confiou? Terei de responder a uma infinidade de perguntas nas duas próximas semanas.
— Não dirá nada, a não ser que há motivos para confiar. Se me dá licença, vou dar um telefonema.
Depois que se afastou, Mark Matheson apoiou o queixo na mão, observando as luzes de um cargueiro, ao longe, e que contrastavam com a escuridão do mar. Era tudo demasiado fantástico para ser verdade. E no entanto, aproximava-se o momento em que a fantasia parecia ser a única coisa digna de crédito — a fantasia e o imponente prestidigitador de mangas arregaçadas, varinha mágica e um onipotente sorriso. Aliás, era para isso que lhe pagava: para pôr termo à descrença e mofar do bom senso de homens inferiores. Como seu assistente, tinha outro cargo a desempenhar: instalar o palco e velar pela dignidade e autoridade do grande chefe. Havia os que podiam censurá-lo e clamar que fazia parte de um embuste secreto. No entanto, havia em todo o espetáculo momentos em que o próprio assistente- se deixava subjugar pela magia e, por vezes, ficava surpreendido com um truque em que nunca reparara antes — um súbito adejar de pombas uma virgem, putativa pelo menos, irrompendo de um bolo de noiva. Além disso, que Outra coisa podia fazer — o bom empregado, o homem com coração de malvaísco? Fazia parte do espetáculo. Era pago com dinheiro sonante. Tinha de agüentar o ato até este atingir o ponto mais alto eu até o último coelho ser comido e o chapéu de seda cair para o lado. Os árabes tinham razão: senta-te nos calcanhares enquanto ruge o trovão e deixa que Alá vele pelo amanhã.
— Esta noite, vamos divertir-nos — disse Nuri Chakry, recostando-se na cadeira. — Kamal Amm dá uma festa. Todos os nossos amigos, nenhum de nossos rivais e um conjunto de mulheres jovens. Que diz, Mark?
— Digo: beba e seja feliz. Somos outra vez ricos. — Sentiu-se subitamente despreocupado e cheio de dinamismo. Chakry chamou-o à razão, colocando-lhe uma das mãos no braço:
— Não muito ricos, Mark. Isso despertaria a inveja. Suficientemente ricos para termos confiança, hem?
— À fé. à esperança e ao amor! — exclamou Matheson, erguendo o copo. — Principalmente, ao amor! Um dia destes, volto a casar.
Quando se levantou para sair, percebeu que estava um tanto embriagado; mas quando chegaram à casa de Kamal Amin, já se sentia bastante sóbrio para ver que a festa fora preparada com todo o esmero e reconhecer no seu arranjo o toque prático e elegante de Nuri Chakry. Os homens eram todos seus clientes, sócios ou acionistas de uma ou outra de suas empresas. Todos revelavam o brilho e o ar confortável do êxito, Falavam a mesma linguagem, arrevesada e critica — a estenografia do dinheiro e da bolsa. Riam com prazer e de igual modo, se embrenhavam em conversas segredadas e gestos mais eloqüentes do que as palavras.
As mulheres eram novas, como prometera Chakry: um grupo de modelos de Roma, uma ninhada de estrelinhas do último Festival de Cannes, três bailarinos do novo espetáculo em ensaio no Cassino. No entanto, Mark já as conhecia: os mesmos rostos nem novos nem velhos de Rubinstein e Max Factor; os mesmos olhos irrequietos, ora calculistas ora admirados, cientes dos riscos e vantagens de novos e opulentos encontros. Todas chegavam em primeira classe, munidas dos respectivos vistos, quando o verão começava a definhar na Europa. Alugavam os mesmos apartamentos de suas predecessoras do ano anterior. Demoravam-se até a neve do inverno atapetar as montanhas e, então, regressavam — em primeira classe, no caso de haverem tido sorte — para Arosa, Zermatt e
Saint-Moritz um pouco mais industriadas, um pouco mais ricas, todas muito mais velhas no mercado internacional.
Moviam-se languidamente de um grupo para outro, levando consigo uma dádiva de perfume e uma promessa de sensualidade. Suas mãos suaves tocavam os pulsos ou as faces e, depois, afastavam-se. Falavam melodiosa e lentamente, com a secular experiência das gueixas, entremeando a conversa com nomes e lugares, renovando antigas promessas a homens que já tinham comprado o máximo e para os quais representavam não uma conquista, mas uma conveniência elegante.
Chakry movia-se por entre os grupos, semelhante a um fio dourado, acariciando um ombro nu, segredando a ouvidos atentos, refletindo antes de emitir uma conclusão ou um veredito. Matheson observava-o com admiração e inveja, fascinado com sua resistência e facilidade com que mudava de assunto, sempre que
este se tornava demasiado pessoal. Era o médico perfeito, acalmando temores, besuntando de bálsamo as feridas financeiras, fértil em promessas tão brilhantes que dificilmente sofreriam contradição. Fragmentos de sua conversa atravessavam a sala, chegando até Matheson, que afagava distraidamente o joelho da bailarina sentada no braço de sua poltrona e que tagarelava alegremente, alheia ao aborrecimento dele.
— Todos invejam a autonomia e a independência do Líbano ... Quando se atiram a nós, é isso que atacam... Os períodos de pressão são inevitáveis. . . até no negócio do petróleo se pode fcar com a corda no pescoço. O truque está em descobrir novas fontes de capital, como estamos fazendo... As reservas de ouro americanas estão decaindo. . . As grandes promessas dos ingleses continuam, mas a libra está condenada. . . Sete por cento de aumento anual mínimo sobre o valor do capital... Os transportes aéreos e cs hotéis devem desenvolver-se ao mesmo tempo. . . Não venda, agüente. . .
Era uma representação cheia de virtuosismo e Matheson sabia que nunca o contradiria, um século que vivesse. Assim, após uma hesitação, cedeu ao álcool e deixou a conversa inundá-lo, afogando a vergonha da rendição, ao mesmo tempo que calculava obscuramente até quando suportaria a bailarina tagarela, antes de a mandar passear.

TELAVIVE

— As vezes, penso que há apenas uma grande batalha dentro de cada um de nós — dizia Baratz, à luz da última vela de seu jantar íntimo.— Só uma vez na vida as bandeiras se desfraldam, as trombetas são de prata e conquistamos disparando ou perdemos rezando. Depois, sabemos demais, e o melhor que há a esperar é sermos mercenários leais.
— É o que você é, Jakov, um mercenário?
Não havia ironia na pergunta; era um simples e delicado pedido de explicação. Desde seu anterior assomo de auto-humilhação, Yehudith sentia-se subjugada. Falara bastante livremente no decorrer do jantar; mas seu interesse era remoto, como se houvesse esgotado as reservas de paixão e tivesse de manter-se calma e retraída até as recuperar. Baratz mostrava-se sombrio e quizilento, teimando em explicar-se, se bem que receoso de trair-se.
— Já não sei o que sou. Um soldado de carreira. Recebo meu vencimento como qualquer outro funcionário do Estado. Gosto de meu trabalho. Sei que o desempenho um pouco melhor do que a maioria, mas é uma questão de aptidão e não de inspiração... Portanto, sou um mercenário.
— Isso o preocupa?
— No que diz respeito ao trabalho.. . sem dúvida.
— E quanto ao que significa: a vigilância das fronteiras, a terra, a tradição, o povo?
— Também, mas de maneira diferente. Já não tenho ilusões. Ouço os mais penosos debates no Knesset. Vejo homens, que conspiram e lutam juntos para erguer Israel, encarniçar-se uns contra os outros à face do mundo. Observo o jogo do poder, o rastejar no mercado do dinheiro e pergunto a mim próprio se aquilo por que lutamos é válido.
— No entanto, obriga Adom e outros como ele a arriscarem todos os dias a vida por isso. Esta noite sentiu-se feliz, quando me viu oferecer em holocausto as poucas esperanças que tinha. Por quê?
— Quer música?
— Também terei de dar a resposta?
— Eu próprio procuro uma.
— Nesse caso, diga-me ao menos onde a procura.
Baratz abandonou a mesa, ligou o toca-discos e, momentos depois, escutavam Hotowitz no Concerto em Dó Maior, de Schumann, esse belo e terno poema da separação e da saudade. Yehudith aninhou-se no canto do sofá, fechou os olhos e deixou que a música a embalasse em suas ondas cicatrizantes. Parecia tão magoada e perdida, tão grata por aquela momentânea trégua que Baratz se sentiu dominado por uma súbita sensação de piedade. Desejaria tomá-la nos braços e suavizar-lhe o corpo insatisfeito, acalmá-la com ternuras, alegrá-la com ardores de amante e, no entanto, nem sequer ousou tocá-la, a fim de não incorrer em traição.
Passados instantes, suavemente e sem abrir os olhos, ela perguntou de novo:
— O que procura, Jakov? E onde procura?
— Busco o que foi perdido. . . aquilo em que se acredita e por que se morre cantando.
— Alguma vez o teve?
— Julgo que sim. Já não tenho certeza.
— Por quê?
— Por quê? Por causa do que lhe fiz esta noite. Porque as razões para todas as outras coisas que devia fazer são cada vez mais confusas.
— É crente, Jakov?
— Não em Deus. Gostaria de o ser. Há dias, duas semanas atrás, encontrava-me em Jerusalém. Telefonei para o museu a fim de pedir esclarecimentos acerca de uma peça de cerâmica que comprei de um beduíno, no Negev. Um guia conduzia um grupo de velhos, de Safad. Eram adukim autênticos. Conhece-os. Não preciso descrevê-los. Ainda hoje não sei por quê, mas segui-os. Estavam pouco interessados em antigüidades mais atentos a si próprios e ao passeio. Mas quando chegaram à grande sala onde a velha Thora, os vasos sagrados e os paramentos estão expostos, tornaram-se súbita e estranhamente vivos. Vi homens e mulheres beijarem os dedos e tocarem com eles nos escrínios de vidro. Alguns tombaram numa espécie de êxtase, de olhos fechados, lábios
movendo-se numa oração. Invejei-os tanto que quase chorei. Para mim, era apenas história e tradição. . . um elo de ligação, sem dúvida, mas não suficiente. Muito abaixo de suficiente! Era o amor que me faltava. O amor que torna o Deus dos padres real, para eles o onipresente.
— Talvez a resposta seja essa, Jakov: o amor.
— Talvez. Se é que sabe o que significa.
— Você ama Hannah.
— Amei-a. Possuí-a. Destruí-a. Franz Lieberman disse-me que isso acabaria por acontecer. Não lhe dei ouvidos. Portanto, que sei do amor?
Yehudith abriu os olhos e viu o rosto dele arrepanhado e duro, em parte às escuras, em parte iluminado pela chama da vela. Por instantes envergonhou-se de manifestar sua dor, mas logo o ressentimento se sobrepôs e voltou a censurá-lo.
— E que faz agora, Jakov?
— Trabalho. Faço o que faz um crente sem fé. Pratico a lealdade e imponho a disciplina. Sou pago para comandar. Comando. Confiam em mim para dar opiniões honestas. Dou-as o melhor que sei.
— E isso é suficiente?
— É tudo o que tenho.
— Por quanto tempo o suportará?
— Por um dia.
— E depois?
— Por outro dia.
— É toda a esperança que lhe resta?
— Ê tudo o que conta. A esperança é outro assunto.
— E por que espera, Jakov?
— Pelo que Goethe pediu antes de morrer: ”Luz! Mais luz!”
— Onde me encontro, reina o escuro, Jakov.
— Bem sei.
Já não havia música. E palavras também não. Eram duas ilhas numa sala cheia de sombra e silêncio. Algures, em Damasco, havia um homem cuja ausência os separava como uma espada desembainhada. Uma pausa e foi sentar-se ao lado de Yehudith. Estendeu-lhe a mão direita e ela viu, na palma, uma caixinha chata de papelão. Sóbria e ternamente, voltou a falar:
— Fomos longe demais. Magoamo-nos. Não devemos voltar a fazê-lo. Isto é a coisa mais preciosa que possuo. Encontrei-a na cavidade de uma rocha, durante a primeira Batalha de Ramle. Quero que fique com ela e vá para casa; guarde-a, contemple-a de quando em vez e deixe que ela lhe diga aquilo que eu não posso.
Admirada, pegou na caixa e inquiriu!: — Posso vê-la?
— Claro!
Abriu a caixa, desembrulhou o algodão protetor e segurou na ponta dos dedos o pequeno tesouro: um quadrado de pedra antiga, plana, de brilhantes veios verdes e, cravada nela, a imagem de Vênus saindo do mar.
— É linda, Jakov. O que é?
— Uma esmeralda. Como pedra não vale muito. A cor é demasiado brilhante. Além disso, está cheia de veios em volta. É romana provavelmente confeccionada em Alexandria, na época de Tito. Pelo menos, é o que dizem no museu. Sugeriram que devia ter sido uma fivela de adorno para um cinto de mulher.
— Pergunto a mim mesma de quem seria. Tê-la-ia oferecido ao marido antes de este partir para os campos de batalha? Tê-la-ia ele comprado e morrido antes de a poder ofertar?
— Já lá vão tantos anos! Quem sabe? Quem se importa com isso?
— Eu sei — disse num murmúrio Yehudith Ronen.
— Sei, importo-me e sinto-me tão grata que nem consigo chorar. Agora, mande-me para casa, Jakov. Mande-me para casa, depressa.

DAMASCO

No miserável quarto de um outrora grande hotel, Idris Jarrah, estendido na cama, contemplava o deteriorado abajur por cima dele. Jantara mal perdera duas horas num clube noturno, onde as moças mais pareciam rapazes, eram mais antipáticas do que nunca, e uma vez mais concluiu que Damasco estava morta para além de qualquer esperança de ressurreição de Baath ou de qualquer outro. As ruas regurgitavam de soldados errantes e policiais excessivamente zelosos, que o haviam abordado duas vezes para lhe pedirem os documentos. Nas lojas, a mercadoria era escassa e de má qualidade. Os edifícios eram velhos e ameaçavam ruína. Não vira uma única mulher elegante ou um homem bem vestido. E porque a moralidade pública era agora uma das principais preocupações oficiais, tinha de dormir sozinho no hotel ou arriscar a saúde e a carteira nurn bordel de segunda categoria. Concluíra, sem grande esforço, que o conforto duvidoso não era o pior risco.
Sua única consolação consistia no fato de, no dia seguinte, aos primeiros raios do Sol, estar fora dali, a caminho de Amã e Jerusalém. Mas nem isso constituía um bálsamo contra as dúvidas que começavam a aguilhoá-lo. Saíra de sua entrevista com Safreddin alegre e confiante em que como planejara, controlaria a situação. Agora, sozinho naquele triste cubículo, sua certeza não era tanta. Safreddin mostrara-se demasiado acessível, demasiado complacente. Evidenciara um respeito exagerado pelas opiniões de um intruso, se bem que este trouxesse na pasta uma considerável quantia em dinheiro da O.L.P. E, quando Safreddin fazia concessões, havia sempre um odor a perigo na atmosfera. Mas que perigo? Aí estava uma boa pergunta. Uma questão de vida ou de morte para Idris Jarrah que tinha cem mil dólares no banco e queria gozá-los por muito tempo.
Havia tantas sinuosidades na política árabe, tantas substituições e mudanças de vento que era preciso ser um gênio ou um mago para as prever. No próprio Islame, havia as seitas, os sectários e os filhos do Profeta que não formavam de maneira alguma uma família feliz. Havia rixas, disputas, invejas tribais, tensões étnicas, rivalidades nacionais, dissensões políticas e juras solenes e inesperadas de amizades que não sobreviviam a um momento de interesse comum. O apregoado interesse de Safreddin era a remoção da monarquia na Jordânia; mas as traições dos israelenses da Galiléia fizeram-no recear uma guerra civil e obrigaram-no a arrepiar caminho. Toda a conspiração devia ser um meio para apresentar Safreddin como um amigo da monarquia que desmascarava os traidores, a favor da causa da unidade árabe e da fundamental fraternidade do Islame. Como o kadi o fizera notar séculos atrás a Abu o Trocista, havia várias maneiras de brincar com um gato — e o infeliz Trocista fora desfeiteado por afirmar que havia uma apenas.
Safreddin dissera-lhe que entrasse em contato com o Major Khalil. Mas Khalil já estava comprometido — ou mesmo na prisão — porque Jarrah o denunciara a Nuri Chakry. Contatar com ele seria passar a corda pelo próprio pescoço. Recusar o contato despertaria as suspeitas de Safreddin, embora não alcançasse toda a extensão da traição. .. Via agora, com toda a clareza, como era afiada e perigosa a lâmina que esgrimia.
Apostara tudo na esperança de que Chakry não revelaria a fonte da informação, sobreviveria à crise financeira e continuaria no mercado como comprador regular de informações. Mas se assim não acontecesse, se seu crédito se desmoronasse para sempre, então como recuperar o dinheiro que pagara a seu informante? Que o recuperaria disso não havia dúvidas. Mesmo que tivesse de o esmagar até espirrar sangue. Que fazia um comprador quando um homem já desacreditado lhe oferecia informações explosivas? Exigia provas de autenticidade; e Chakry tinha-as: uma assinatura, uma nota promissória, um recibo, uma fita com uma voz identificável. Jarrah sabia de homens mortos em ruelas escuras ou atirados pela borda de barcos de pesca per haverem cometido, após anos de cálculos felizes, um único e pequeno deslize.
À partir de agora, sua vida dependia de ”se”: se Chakry denunciara seu informante; se os homens aos quais o denunciara tinham declarado ou declarariam seu nome a Safreddin. Na Jordânia, poderia sobreviver um pouco mais, pois prestara um bom serviço ao trono. Pelo menos, teria tempo para refletir e avaliar as vantagens e os inconvenientes. Em Damasco, corria perigo de vida.
Fez um rápido cálculo. De Damasco à fronteira jordaniana em Rumtha eram duas horas e meia por estrada. Poderia chamar um táxi e sair, mas isso significaria vaguear à toa pela cidade até à chegada do transporte da manhã para Ama. Precipitar a fuga alertaria Safreddin; e sua chegada a Rumtha a hora tão estranha seria notada com suspeita pelos guardas da fronteira. Era melhor ficar-se pelo ”se”, arriscar a última e longa noite em Damasco e partir de manhã, à hora prevista.
Saltou da cama e atravessou o quarto para ir fechar a porta à chave. Mas esta não funcionava, tinha a lingueta partida. Apoiou uma cadeira por debaixo da maçaneta. Não seria difícil removê-la, mas pêlo menos avisá-lo-ia das tentativas de qualquer intruso. Abriu a mala e tirou uma automática pequena e negra. Depois, voltou a deitar-se, vestido, puxou o lençol sujo para os ombros e , dormiu desconfortavelmente, acordando a cada ruído vindo da rua e a cada bater de pés no corredor.

DAMASCO

Quando Safreddin e seus homens deixaram o recinto, Selim Fathalla telefonou a Emilie.
— Emilie? Estou no armazém. O vigia foi tomar um café. Por que não apanha o carro e me vem buscar, daqui a meia hora? Daríamos um passeio.
— Aonde?
Já esperava a pergunta. Respondeu despreocupadamente para gáudio do agente que estivesse a escuta na linha:
— Onde vccê quiser. Estive engaiolado todo o dia,
sinto-me abafado. Se o mesmo se passa com você, podemos ir jantar no Hakim e, depois, estacionar algures e admirar o luar. Estou com disposição romântica.
— Como queira, Selim. Tenho estado preocupada toda a noite. Vieram dois homens dos serviços de segurança. Disseram que tinham ordens para revistar a casa.
— Eu sei — disse Fathalla tranqüilamente. — O Coronel Safreddin avisou-me. É uma investigação de rotina sobre as pessoas que têm contas bancárias no estrangeiro.
— Devia ter-me informado. Não sabia o que fazer. Tive de os deixar entrar.
— Cumpriu seu dever. Não se preocupe com isso. Venha ter comigo daqui a meia hora.
Desligou e pôs-se a refletir no que devia fazer imediatamente. Antes de mais nada, era necersário avisar a toda sua rede que uma espécie de investigação de segurança estava em curso. O próprio aviso comportava um risco. . . de pânico, precipitação e da perfídia do fraco. Sua operação era um pouco diferente da de Eli Cohen. Este tinha-se tornado quase um homem público, com amigos altamente colocados nas finanças, na diplomacia e na política. Cohen tinha utilizado o velho truque de teatro da capa da invisibilidade. Estava tão manifestamente presente que por muito tempo passou despercebido. Era tão obviamente suspeito que não se podia suspeitar dele. Mas logo que o jogo foi descoberto, toda a organização se desmoronou como um castelo de cartas.
Os agentes de Fathalla eram indivíduos apagados: funcionários ministeriais, mal pagos e descontentes; oficiais subalternos, revoltados contra as lentas promoções e o sistema de doutrinação política; comerciantes lesados, vítimas da revolução socialista; membros dos grupos nasseristas expulsos do poder quanto o Baath assumiu a direção. Estavam distribuídos por todo o país, e Fathalla não tinha contatos diretos com eles. Sua rede baseava-se na clássica tríade — o grupo de três — de modo que cada agente conhecia apenas dois outros e, assim só podia trair aqueles que conhecia. O próprio Fathalla apenas contatava com Bitar e outro homem, em Aleppo, e nenhum dos dois conhecia a existência do terceiro.
Desta forma, tinha de fato duas redes à sua disposição e cada uma delas funcionava independentemente da outra. No dia seguinte, avisaria Bitar e, na primeira oportunidade, iria a Aleppo fazer o mesmo.
O problema imediato era mais premente. Tinha de enviar uma mensagem para Telavive, a Baratz. Este precisava saber o nome e o endereço do depósito das armas de Safreddin. Mais urgentemente ainda, Baratz tinha de saber que o Banco Fenício estava em apuros e mandar-lhe um agente de fora com o qual pudesse combinar novos acordos para financiar seus informantes. Mas sua casa já não era segura como centro de comunicação, nem o seria enquanto Safreddin não retirasse todas as escutas e ele próprio não inspecionasse cada centímetro do imóvel para verificar se não ficara alguma esquecida. Havia um transmissor em casa de Bitar, escondido nos painéis do seu equipamento de raios X, mas também a casa de Bitar devia estar sob vigilância e, de qualquer modo, nessa noite seria impossível contatar.
Finalmente, tinha de pensar em Emilie e tomar uma decisão crítica: admiti-la ou não no segredo. Quanto mais pensava nisso, mais evidente se lhe tornava que a decisão já estava tomada.
Amava-a. Estava plenamente convencido de que ela lhe correspondia. Se falhasse, ela falharia com ele; e sua inocência não a protegeria contra a vingança de Safreddin. Por isso, tinha de armá-la com o conhecimento do que se passava, armar-se a si próprio com a cooperação dela e indenizá-la no fim com o casamento e uma vida segura num novo país. Ela já sabia alguma coisa, apanhada durante suas noites de delírio. De qualquer maneira, era demasfado para sua segurança e muito pouco para protegê-la contra a indiscrição ou um investigador sutil. Tinha de confiar nela; mas, primeiro, devia certificar-se de que ela estava disposta a confiar em si própria. Uma vez feita a revelação, Emilie teria de segurá-lo e a toda a organização em ruas pequenas mãos. Era um risco terrível. Toda sua experiência de conspirador o precavia contra o perigo de partilhar segredos com uma mulher; no entanto, sabia com igual certeza que não podia suportar outra divisão de si próprio por um infeliz caso de amor. O indivíduo era um capital reduzido que percisava de ser constantemente restaurado mediante uma revelação com outro indivíduo. Já tinha desperdiçado com demasiada prodigalidade e visto demasiado ao vivo todo o perigo da destruição pessoal.
Quando o vigia voltou deixou o anexo e postou-se à saída do portão fumando um cigarro. A viela estava escura e deserta; aparentemente, Safreddin ainda não estava farto de o seguir. Dirigiu-se para a esquina, onde a ruela se cruzava com uma rua mais larga, parou junto de um vendedor ambulante, comprou uma garrafa de laranjada quente e bebeu-a lentamente, examinando a rua em todos os sentidos, em busca de qualquer intruso que não se ajustasse à cena. Mas não havia ninguém. Por fim, tranqüilizado, voltou para junto do portão e esperou por Emilie.
A Lua do deserto pairava num céu baixo e frio quando atravessaram a cidade adormecida e tomaram a estrada de Rumtha. Os montes rochosos
rodeavam-nos, cinzentos e áridos, apontando para tímidas estrelas. Um vento ligeiro e fresco soprava através dos baldios, arrastando areia e uma poeira argilosa. Emilie chegou-se a ele, em busca de calor; Fathalla passou-lhe um braço pelos ombros e os cabelos dela roçavam-lhe os lábios e a mão, delicada e macia metida na abertura da camisa, afagava-o. Um quilômetro além dos últimos subúrbios, desviou o carro da estrada principal e seguiu por um estreito e escarpado atalho que acompanhava o curso de um arroio seco e sinuoso, por trás dos montes. Pouco mais era do que um caminho de mulas e os buracos e pedras soltas obrigavam-nos a pular e a balançar até que torneando um cotovelo rochoso, Fathalla parou o carro junto de uma minúscula igreja caiada de branco, rodeada por um muro baixo de pedra, com um cemitério arruinado e uma torre que caía aos pedaços. Saiu do carro e encaminhou-se para o portão enferrujado. Emilie seguiu-o, confusa e um tanto receou.
— Onde estamos, Selim?
— Numa igreja. — Apertou-a contra si e sorriu-lhe.
— Diz-se que no tempo das Cruzadas era um santuário famoso com um poço de água milagrosa. Agora ninguém vem aqui. . . a não ser eu.
Ela o!hou-o, surpreendida:
— Por que você?
— Pertence-me. Comprei-a ao Patriarca sírio quando cheguei pela primeira vez a Damasco.
— Mas aqui não há nada.
— Estamos aqui.
— Eu sei. Mas. . .
— Ama-me, Emilie?
— Bem sabe que sim... e muito! — Beije-me!
Beijaram-se, à luz do luar, tendo os mortos por testemunhas silenciosas. Depois, Fathalla pegou-lhe na mão, abriu o portão e introduziu-a no adro. Ergueu uma pedra tumular, desalojou um lagarto adormecido e retirou uma velha chave. Abriu a porta da igreja, fê-la entrar e voltou a fechá-la. No interior, o ar era seco e bolorento; finos raios de luar desciam sobre a nave deserta, o altar arruinado e a pia rachada do batistério. Todos os vestígios de móveis haviam sido roubados do local há muito, toda a madeira tinha sido queimada e os candelabros de chumbo arrancados das janelas sem vidros.
— Por que me trouxe aqui, Selim?
Ele riu brandamente e o som ecoou pelo interior de pedra.
— Seja paciente. Em breve, o saberá.
Pondo-se em pontas de pés, elevou-se até ao capitel de uma coluna de Norman e retirou um candelabro. Acendeu-o e fez incidir o feixe de luz no teto abobadado do santuário. Havia um resplendor de mosaico ouro, carmesim e verde; e, quando o foco de luz atravessou a cúpula, ela viu uma variedade de velhos santos em gloriosa ascensão para uma divindade triangular. Meio a sério, meio a rir, Fathalla explicou:
— Chamaram-lhes os Santos Mártires de Nedjan. Eram trezentos e quarenta. .. pode contá-los. .. e tinham por chefe Abdullah Ibn Kaab, da tribo dos Beni Harith. Foram massacrados por Dhu Nowas que era judeu e por homens de tribos árabes, no século sexto. Os próprios muçulmanos os veneravam e Maomé menciona-os no sagrado Alcorão. . . Vê a criança? Dizem que seguiu a mãe até às chamas, pronunciando o nome de Cristo. . . Pensei que gostaria de vê-los.
— Nunca ouvi falar deles.
— Ninguém ouviu. Por isso, são o nosso segredo, Emilie.
— Não gosto de segredos. Assustam-me.
— Esta noite, quero contar-lhe segredos, Emilie.
— Por favor, não.
— Tem de ser. Quero casar-me com você.
— Meu Deus. — As palavras saíram num murmúrio dificilmente audível. A cor fugiu-lhe das faces e ficou como uma mulher de pedra, evidenciando descrença. Depois, caiu nos braços dele, soluçante e angustiada.
— Não posso, Selim! Quero, mas não posso! Não posso!
— Por que não? .— Tomou-a nos braços e abraçou-a com fúria. — Diga-me por que não.
— Não sei!
— Sabe. Diga-me!
— Está magoando-me, Selim!
Largou-a e recuou vendo-a friccionar os braços contundidos, e tentou acalmá-la. Finalmente, numa voz apagada, ela respondeu:
— Não posso, não ouso casar-me com um muçulmano.
— Mas dorme com ele. Ama-o.
— Tem razão. Mas o casamento. . . o casamento é diferente. Pode ter quatro esposas se quiser. E não quero rivais em minha casa, Selim. Não suportaria ser relegada para terceiro lugar, quando estiver farto de mim. Não sou esse gênero de mulher. Como estamos agora, posso deixá-lo quando me apetecer. De outra maneira, não!
— E você diz que me ama!
— Amo. Por isso, fiquemos como estamos agora, até o amor acabar.
Aquilo era tão frio e definitivo, ela estava tão decidida que Selim Fathalla sentiu-se na presença de uma estranha. Viu-se arquitetando frases para a convencer. As palavras acabaram por surgir, mas a voz que as articulou não era a sua:
— Emilie, por favor, ouça-me.
— Estou ouvindo.
— Trouxe-a aqui para- lhe contar segredos. Assim que os conte, pode destruir-me com uma palavra. Se não os contar, serei igualmente destruído. Em suma, se não quer ouvir meus segredos, amanhã levo- para a cidade e acabamos. . . com tudo! Nem sequer poderemos trabalhar juntos.
— Como pode ser tão cruel? — Não sou cruel, acredite. — Por que não continuamos como até agora?
— Porque, mesmo que você pudesse suportá-lo, eu não poderia .
— Tenho medo por você, Selim.
— Por quê?
— É um homem muito estranho. Já não o compreendo. Por mim preferiria isso, para ser livre de ser eu própria sempre que queira. Mas casar-me e passar metade de minha vida num mundo separado... não!
— Mas aí é que está o problema veja se compreende! Estou pedindo-lhe que me deixe entrar em seu mundo. Quero você ligada a mim, em mim ~- e depois transformá-la em mim e comigo.
-E qual é seu mundo, Selim?
Tinha ido demasiado longe para recuar agora. Sua vida e uma centena de outras eram um contrapeso pequeno demais para a necessidade que tinha dela. Tomou-lhe a mão e guiando-a com a luz da tocha, conduziu-a para trás do altar partido e desceu um lance de escadas até à cripta do poço sagrado, seco há séculos e vazio de milagres. Na parede da cripta havia uma alcova onde outrora havia sido sepultado um santo, sob uma placa de mármore. O santo desaparecera, mas a placa continuava intata. Levou Emilie até junto dela e esta sentou-se, pálida e receosa como uma antiga pitonisa, de olhos perturbados. Depois, ele disse-lhe:
— Vou confiar-lhe minha vida, Emilie. Não sou muçulmano, Sou judeu. Não sou Selim Fathalla. Sou Adom Ronen. Sou um agente do governo israelense.
— Eu sabia. . . Em parte, pelo menos .— disse com simplicidade, mas ele sentiu-se gelado até à medula. — Sabia e preferia não saber. Perguntava a mim própria se seria verdade.
— E agora?
— Estou contente. Desculpe.
— Ainda tem medo de mim?
— Tenho medo de você. E de mim também.
— Vou pedir para ser dispensado.
— Por minha causa?
— Sim.
— Não o deve fazer. Quando chegar a hora, quando puder dizer: ”Acabou. Nada mais posso fazer”; então retirar-nos-emos.
— E casa comigo?
— Se ainda precisar de mim. . . então, peça-me.
— Preciso de você, agora. — Mostrava-se agressivo; uma nota áspera msmuou-se em sua voz. — Tenho mulher em Israel. Vamos divorciar-nos! de modo que poderei casar com você. Se temos de viver juntos também trabalharemos juntos. Além disso, pode trair-me e
traí-la pelo simples fato de não saber.
— É só por isso que quer que me case com você7
— Bem sabe que não.
— Sim, sei. Mas terá de me lembrar a todo o momento, Selim. É o preço que terá de pagar. Sabe que se entregou em minhas mãos. Entrego-me nas suas, também. Se me abandonar, atirar-me-ei em um poço.
— Nunca a abandonarei, Emilie. Juro por minha vida.
Ela desceu da pedra do altar, beijaram se e uniram-se nas trevas. Então, ele abriu o túmulo vazio e
mostrou-lhe o transmissor de emergência. Ergueu uma pequena laje e tirou um caderno de mensagens uma aparelho de ondas longas e um livro de código. Depois, enquanto ela segurava a lanterna e olhava por cima de seu ombro, transcreveu o sinal para Jakov Baratz
Carregamento de armas endereçado ao Coronel Abid Badaoui Rua Kamcuz 37 Amã pt Por motivos não conhecidos Safreddin conduz investigação de segurança a todos os que tem contas no Banco Fenício Beirute pt Estou incluído na investigação pt
Minha casa presentemente comprometida por esta investigação mas Safreddin garante-me não ter razões de suspeita pessoal pt Informa que Banco Fenício financeiramente indigno de confiança e sugere imediata transferência de minha conta para instituição árabe representada em Damasco pt Isto ocasiona imediata e essencial reconstituição de nossos canais de finanças pt Peço contato urgente com agente de sua responsabilidade pi Solicito informação especial sobre assunto já debatido.
Hesitou um momento e depois acrescentou uma última frase:
Em face de delicada situação de segurança tenho reparada pessoa fidedigna para fazer transmissões caso eu seja impedido pt Assinatura Emili indicará condições de emergência.

6

TELAVIVE

A mensagem de Damasco punha a Jakov Baratz, com pura ironia, um dilema desagradável e uma pergunta sem resposta.
A ironia assentava no fato de, no momento preciso em que Baratz formulava planos para um ataque a uma aldeia jordaniana, estarem passando, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros e de seus canais diplomáticos, informações suscetíveis de salvar a vida do Rei da Jordânia. Enquanto redigia um despacho para o Ministério em Jerusalém, não pôde eximir-se à cínica congeminação de que, se se matassem vinte homens vulgares, isso provocaria um incidente de fronteira; mas, se se abrissem as veias de uma personalidade real, provocar-se-ia uma crise internacional. O primeiro caso seria recebido com a frieza de um risco no mercado de cereais; o segundo cauraria pesadelos e dispepsia diplomática. E a parte mais desagradável do jogo era que, se o Rei não viesse a mostrar-se grato pela advertência, o incidente da fronteira proporcionar-lhe-ia um agravo que não deixaria de explorar gostosamente no foro das nações. Se a política era a arte do possível, era também a crônica das improbabilidades, a que não poderia equiparar-se a pior ficção.
O dilema não tinha qualquer parcela de humor. Se não conseguisse tirar Fathalla de dificuldades, perderia um agente e a respectiva rede. Quando o Banco Fenício funcionava normalmente, os fundos de Fathalla podiam ser-lhe enviados por intermédio de meia dúzia de fontes, cada uma das quais correspondia a um lançamento em suas contas comerciais. Mas se cada envio da Suíça, Roma ou Atenas fosse objeto de exame por parte de um banco governamental sírio, Fathalla ver-se-ia apanhado no espaço de um mês. A outra alternativa era mandar o dinheiro por mensageiro — um risco para o dinheiro, para o mensageiro e para o próprio Fathalla, que parecia estar, já agora, numa situação difícil. Por último, Baratz decidiu que mandaria um agente de Roma e proveria Fathalla de uma reserva mensal em moeda corrente. Estas
maquinações e um telefonema pedindo informações ao Banco Central roubaram-lhe hora e meia.
Mas havia ainda uma perturbante pergunta: quem era Emil, e por que tinha Fathalla tomado a decisão, sem precedentes, de confiar o transmissor de emergência e a informação em código a um agente desconhecido e não autorizado pelo Quartel-General? Só havia uma resposta. Redigiu a mensagem a transmitir a Fathalla, ao mesmo tempo que tentava reorganizar seu horário:
Enviar mais pormenores sobre a identidade de Emil stop O contato bancário chegará dentro de quatro dias stop Identificação ópera cômica stop Peço relatórios urgentes sobre assuntos seguintes segurança pessoal e da rede movimentos das tropas sírias plano da área da Galiléia e especificações técnicas das posições fortificadas dos montes da Galiléia informação sobre a chegada de novos tipos de Mig e progresso das negociações para instalação do campo russo de mísseis de ar no Iraque participação da Síria no pacto de defesa RAU stop Assunto pessoal amigavelmente resolvido a ultimar em duas semanas.
Meteu a mensagem num envelope, escreveu uma nota para as Comunicações e chamou um estafeta para proceder à sua entrega. Selim Fathalla continuava nos arquivos: um número nas contas de uma nação, uma pequena variável x na equação de sobrevivência. Se ao menos Jakov Baratz pudesse riscá-lo tão facilmente do seu livro-razão particular!
Felizmente, havia outros assuntos que o solicitavam, pelo menos-durante as horas de trabalho. Os planos para o ataque de represália começavam a tomar forma. Todo seu estado-maior recomendava o mesmo objetivo na área de Hebron. Os serviços operacionais aprovavam. Havia pequenas discordâncias quanto às forças ”blindadas, ao apoio da artilharia e ao desdobramento da infantaria; mas podiam ser resolvidas em reunião. Contudo, dois problemas continuavam por solucionar: a força da oposição árabe e as conseqüências políticas do ato. Em certo sentido, a segunda resposta dependia da primeira. Se esta não se cifrasse numa maioria de empenho militar, a destruição da aldeia seria interpretada como represália pura e simples?. Se se cifrasse numa ação militar de certa envergadura, seria considerada uma operação
agressiva.. . Outra vez a ironia. .. e a terrível loucura dos juízos militares e diplomáticos.
A ordem do dia de batalha para as forças jordanianas indicava duas colunas blindadas em ação de patrulha no setor de Hebron e duas companhias de infantaria motorizada de reserva a dez quilômetros da área do objetivo. Seu único acesso à aldeia era uma
estreita estrada de montanha, que podia ser facilmente cortada por fogo de granadas. Seu único apoio aéreo era uma esquadrilha de Hunters que não se comparavam aos Mirages israelenses. Mas, enquanto o ataque se desencadeasse, toda a disposição podia ser modificada pela ameaça de uma revolução no palácio ou a necessidade de proteger um grupo de dignitários em visita. Assim, quase até à véspera da operação,
ter-se-ia de trabalhar com números incertos e resultados muito variáveis.
Quanto mais Baratz pensava em tudo isto, menos lhe agradava. Quanto mais progredia em seus cálculos, menos seguro se sentia da situação. A ordem dos acontecimentos era evidente. Os Serviços Secretos consultavam; os Serviços Operacionais dirigiam; o Ministério da Defesa dava ou recusava a autorização. Amém! Deus nos ajude a todos!. . . contanto que Ele não tenha desaparecido para sempre de nossos esquemas.
O telefone tocou. Quando pegou nele ouviu o breve e conciso relato de uma ação em marcha na Galiléia. Um barco de pesca israelense, que lançava redes no lago Tiberíade, afastara-se demasiado na direção da costa leste. Os sírios abriram fogo. Um barco de patrulha enviado em seu auxílio encalhara num banco de areia e era agora um alvo fixo para os atiradores dos montes sírios. Aviões de combate tinham levantado vôo para silenciar a artilharia. Baratz rabiscou algumas notas no bloco de apontamentos, pousou o telefone e, em seguida, concentrou-se, carrancudo, na nova informação .
A Galiléia era um autêntico foco de perturbações. Em termos puramente militares, era aí que devia ser travado todo e qualquer combate para expulsar os sírios de suas posições de comando e tornar o lago e o vale do Jordão seguros para a população e para o cultivo. Mas todas as escaramuças com os sírios implicavam o perigo de uma guerra com os Estados árabes num prazo mais ou menos longo. A Síria ameaçava, invocava o Egito. O Egito pregava a guerra santa em todo o Mediterrâneo. Esta nova ação introduzia uma nova dificuldade nos planos de ataque à Jordânia. O resultado político era evidente, uma vez que um duelo de artilharia tinha sempre mais repercussão na imprensa mundial do que um ato isolado de sabotagem da O.L.P. De novo se viu batendo com a cabeça de encontro às paredes que o rodeavam. Era um soldado. Tinha de tomar em consideração as conseqüências políticas. Mas não podia determiná-las.
De fato — e era a verdadeira tragédia da condição humana — até a mais simples relação entre eu e tu estava para além da determinação de qualquer homem. O discernimento não era bastante, porque a luz de um homem iluminava apenas o seu canto; a do seu vizinho iluminava o outro. Entre os dois situava-se um vazio escuro, minado e traiçoeiro. A boa vontade não era suficiente. Com toda a boa vontade do mundo, era impossível render justiça a cada ser humano em particular que, pelo simples fato de ter nascido, se tornara vítima de um paradoxo humano. Seis milhões de judeus mortos eram recordados na cripta de Yad Vashem; mas trezentos e dez mil árabes vivos estavam aquartelados nas cabanas da Faixa de Gaza e não renunciariam às suas pretensões, a um lugar ao sol na terra de origem.
O onipresente eu e o tu, plenamente conhecidos e amados, podiam chegar a acordo. O pior era que o conhecimento nunca seria completo, o amor nunca abdicaria do egoísmo, porque, no íntimo de cada ser, havia uma área murada, uma espécie de ara sagrada, em que o ser se defenderia mesmo à custa da própria destruição. Os místicos de todos os credos afirmaram com verdade que o momento de paz e perfeição era aquele em que esse muro fosse derrubado e se renunciacse à posse territorial de forma a que nada ficasse para defender e, portanto, por que lutar. Mas os mesmos místicos admitiam que a perfeição era uma visão que só ré encontraria — no caso de existir — no além.
Com isto, Jakov Baratz voltou ao trabalho pelo qual lhe pagavam: a reunião de informações incompletas para pintar um quadro, em parte verdadeiro, em parte falso; o balanço dos lucros e perdas no dispêndio da vida humana; a elaboração de mapas de campanha com alfinetes coloridos e bandeirinhas de papel; a combinação de duas traições, pois dir-se-ia que os homens nascidos de um ato de amor apenas podiam sobreviver pela prática do terror.

RUMTHA

Por milagre — em que não acreditava —, por um ato de misericórdia — que aprendera a não esperar -— ou pela simples boa estrela de um jogador entendido, Idris Jarrah notou que continuava vivo ao romper do dia. A descoberta tornou-o confiante em que sairia com segurança da Síria, pois sabia perfeitamente que as detenções preventivas se efetuavam normalmente durante essa hora outonal que precede a alvorada, quando o espírito se encontra em sua maré baixa e o número de espectadores não é de molde a incitar à violência. Apesar da noite agitada, sentiu-se suficientemente bem disposto para tomar decisões claras. A primeira consistia em servir-se do passaporte jordaniano, um documento perfeito que sobrevivera a muitas inspeções em vários postos fronteiriços. À segunda consistia em não se demorar em Amã. Seguiria diretamente para Jerusalém e procuraria um esconderijo seguro na cidade antiga, onde os forasteiros constituíam um lugar-comum.
Tomadas estas decisões, sentiu-se mais calmo e tranqüilo. Despiu a roupa amarrotada com que havia dormido, tomou banho, barbeou-se, meteu a pistola no coldre, vestiu um impecável terno de linho e saiu do hotel. O carro estava à sua espera, um carro de vinhateiros pertencente a uma das agências turísticas que transportavam os visitantes de Damasco para Amã e Petra.
Sentia-se feliz por ter companhia — um casal idoso do Oeste- americano e um inglês de aspecto carrancudo com um terno de lã
furta-cores, que chupava um cachimbo vazio e respondia por surdos monossílabos a todas as perguntas. Jarrah não estava com disposição para conversar, pelo que, após alguns e infrutíferos esforços dos americanos, um pesado silêncio desceu sobre o mal combinado grupo.
A viagem foi um ininterrupto atravessar de solidões arenosas, de raros telheiros na rocha e minúsculas aldeias bíblicas que despertavam preguiçosamente para a vida sob o calor nascente. Durante meia hora, ficaram bloqueados por um comboio de caminhões militares. Respiraram areia e a fumaça dos motores. Seus ouvidos foram maltratados pelas destemperadas cóleras do motorista. Finalmente, num raivoso ímpeto de velocidade, ultrapassaram o comboio e embrenharam-re nas curvas rochosas até que foram detidos pelo pachorrento patear de um rebanho. Deixando para trás os carneiros, percorreram mais dez quilômetros até serem de novo bloqueados por dois caminhões cobertos de lona que subiam uma íngreme encosta, ocupando todo o centro da estrada. Nem a buzina nem os gritos os convenceram a desviar-se; e, quando chegaram ao cimo, aceleraram e desceram velozmente a encosta, deixando para trás uma espessa nuvem de pó.
No posto fronteiriço sírio, Jarrah sentiu um sobressalto momentâneo, receoso de que o longo braço de Safreddin o obrigasse a retroceder. Mas tanto ele como o pequeno grupo deixaram o país sem um mínimo de formalidades. Contudo, quando chegaram à terra de ninguém, do lado jordaniano, o coração de Jarrah bateu apressado. O local estava repleto de tropas. Pesados veículos estacionavam na beira da estrada. Os carros e táxis que chegavam eram mandados para outra rua, onde a Polícia inspecionava os documentos e homens fardados davam busca nas viaturas e nas bagagens. Com a pistola escondida na coxa e o dinheiro costurado no forro da pasta, Jarrah procurou ansiosamente um rosto amigável ou um funcionário pouco escrupuloso. Lembrando-se do carregamento de Safreddin, sentiu-se um pouco mais tranqüilo: tudo aquilo podia ser o resultado do suborno oficial dos Serviços de Segurança jordanianos por parte de Safreddin. Se assim fosse — outra vez o incômodo se —, então pouco teria que recear. Senão. .. Trocou a palidez do rosto por um sorriso paciente de funcionário público e preparou-se para jogar a vida.
Ocupava o décimo lugar na linha de carros, que se movimentavam com arreliadora lentidão. A atmosfera no interior do veículo era abafada e fétida. Jarrah agarrou a pasta, saiu do carro e esboçou uma espécie de pantomima para desentorpecer as pernas e respirar a pura atmosfera jordaniana. Como calculava, seus companheiros desceram também e ficaram agrupados observando o trabalho da polícia e dos homens fardados, e esperando a vez de ferem revistados. Jarrah mostrava-se mais interessado nos caminhões. Estes eram inspecionados por soldados que faziam o trabalho com rapidez e eficiência, dirigidos por um capitão com o uniforme da Legião Árabe. Não se incomodavam com as etiquetas nem com as embalagens. Tratavam a carga como estivadores. Abriam as caixas de papelão e os caixotes de madeira. Desaparafusavam as tampas dos tonéis de óleo e enterravam compridas varetas de metal nos fardos de cânhamo e nos sacos de grão. Entretanto, os guardas, com fuzis automáticos, detinham o trânsito, ao mesmo tempo que um sargento e um cabo passavam em revista os motoristas dos caminhões. Não havia dúvida de que levariam as horas que julgassem necessárias.
Por fim as viaturas começaram a mover-se. Jarrah e seu grupe submeteram-se à inspeção dos respectivos passaportes às habituais apalpadelas e resmungos sobre os documentos. O carro foi revistado de uma ponta a outra. Até os assentos foram removidos pelos zelosos funcionários. Todas as malas foram abertas. Um dos homens fardados pediu a Jarrah que lhe mostrasse a pasta. Este abriu-a contra a vontade e pôs-se a tirar todos os papéis, acompanhando a operação de fastidiosas explicações. O funcionário acabou por se aborrecer, encolheu os ombros e foi-se embora.
Finalmente, voltaram para o veículo e continuaram viagem. Estavam a meio quilômetro de distância contornando as primeiras curvas, quando ouviram as explosões: uma série de estampidos que fez estremecer os montes e cujas ondas de choque, ricocheteando nos penhascos ecoaram nos desfiladeiros.
— Santo Deus! — exclamou o ancião americano. — O que é isto?
— Parecem explosões, querido — respondeu calmamente a mulher.
O inglês tirou o cachimbo da boca e pronunciou suas últimas palavras do dia:
— Disparate, minha senhora!
Mas a senhora não ouviu, porque o motorista tinha carregado no acelerador e guiava o veículo a cento e vinte quilômetros por hora em direção a Amã. Era um sírio, pouco à vontade em território hostil. Idris Jarrah ouviu, mas não disse nada. Era um sabotador experimentado. Sabia que um quilograma de plástico explosivo bastava para provocar confusão. Tinha uma idéia clara da carnificina que teria provocado no posto fronteiriço e esperava desesperadamente que não o viessem a responsabilizar por isso.

DAMASCO

Quando Selim Fathalla chegou a seu armazém com Emilie, havia uma surpresa à sua espera. Dois soldados armados estavam de guarda ao portão; um civil com focinho de rato
encontrava-se empoleirado na cadeira de seu escritório fumando um cigarro; e seu vigia tinha desaparecido. A seu irado pedido de explicações, o civil respondeu com um encolher de ombros e um displicente conselho:
— Por que não telefona ao Coronel Safreddin? As ordens partem dele.
Fathalla pegou no telefone e discou o número de Safreddin. Estava ocupado. Esperou cinco minutos e voltou a discar. Atendeu um secretário e, quando Fathalla se identificou, reteve-o na linha por mais cinco minutos, antes de o pôr em contato com Safreddin .
Safreddin mostrou-se suspeitosamente jovial:
— Ah, Fathalla! Esperava que me telefonasse. Que posso fazer por você?
— Quero uma explicação, Coronel. Meu escritório é propriedade privada. Encontrei-o ocupado por um indivíduo que não conheço. Afirma que foi você quem o mandou.
— É verdade — confessou Safreddin, sempre amável. — Devia ter tido a delicadeza de mostrar-lhe suas credenciais.
— Concordo. Para que são os guardas?
— Simples medida de segurança. Retirá-los-emos esta noite.
— O que não explica nada.
— Pois não. Não podemos encontrar-nos esta tarde para falarmos mais à vontade?
— Marque a hora, Coronel. Lá estarei.
— Pode ser às três e meia? Tenho um programa no rádio, às duas horas. Talvez lhe interesse ouvi-lo. . . para experiência.
— Sobre quê, Coronel?
— Fatos correntes. . . e nossa interpretação deles.
— Prometo ouvir. Outra pergunta: onde está meu vigia?
— Oh, o vigia. Quase o esquecia. Está sendo interrogado.
— Interrogado? Por quê?
— Explicar-lhe-ei quando nos encontrarmos.
— Gostaria de o saber agora. É um velho ignorante, quase analfabeto. Que poderá
dizer-lhe?
- É isso que tentamos descobrir, meu amigo. Talvez tensamos a resposta às três e meia. Agora, desculpe-me. Estou numa reunião.
E com isto, apesar da ira e do medo que procurava disfarçar, teve de se contentar.
O focinho de rato observava-o com evidente desdém:
— Está satisfeito?
- Não!
Uma raiva súbita possuiu-o. Debruçou-se por cima da secretária, agarrou o outro pelo peito da camisa e puxou-o:
— Agora, tire o traseiro de minha cadeira e faça o que tem a fazer. Ali, naquele canto!
— Vai arrepender-se, Fathalla!
— Está ameaçando-me? — Voltou a agarrá-lo pela camisa. — Está?
Um súbito receio brilhou nos olhos do fuinha:
— Não... não é uma ameaça. Foi apenas uma brincadeira.
— Uma brincadeira de mau gosto — replicou Fathalla. — Não o esqueça, enquanto aqui estiver. Agora, o que quer?
— Os livros de contas, os lançamentos bancários, os arquivos de encomendas e entregas, e toda sua correspondência.
— Entregue-os — ordenou Fathalla, dirigindo-se a Emilie, que, de pé, observava a cena de olhos arregalados e receosos. — Entregue tudo o que ele pedir e veja que nada seja retirado deste escritório sem meu conhecimento. Entendido?
— Sim, Sr. Fathalla.
Fathalla girou nos calcanhares, saiu do escritório e encaminhou-se para o comprido e escuro barracão onde guardava as mercadorias. Todo ele tremia. Ao tentar acender um cigarro, este escapou-se-lhe dos dedos. Com o pé, esmagou-o raivosamente contra o chão de terra.
Encostou-se a uma pilha de fardos, fechou os olhos e tentou dominar-se. Safreddin vigiava-o, como um cirurgião cruel em busca de pontos fracos e das’ extremidades expostas dos nervos.
Tinha de se manter calmo, mostrar-se forte e calculista, cínico e brutal como o adversário que teimava em ser um amigo e agia, sob todos os aspectos, como o pior dos inimigos. Olhou para o relógio. Eram nove horas; faltavam cinco para o programa de Safreddin e seis e meia para seu encontro com o grande homem. Era uma longa espera. Precisava manter-se ocupado.
De um gancho na parede tirou uma prancheta e começou a conferir as mercadorias. Gostaria que fosse assim tão simples a verificação dos prós e dos contras respeitantes à sua sobrevivência e de Emilie.

AMÃ

(Imprensa Internacional) ”Pouco depois das nove horas desta manhã, a aldeia jordaniana de Rumtha, localidade fronteiriça de resistência entre a Síria e a Jordânia, foi sacudida por uma série de violentas explosões. Vinte e três pessoas morreram e dezoito ficaram feridas, algumas com gravidade. Vários edifícios foram danificados e grande número de viaturas civis e militares ficou destruído. A fronteira foi fechada até nova ordem e uma equipe de segurança de Amã dirige-se para o local, a fim de investigar as causas do incidente. As estradas estão bloqueadas numa área de dez quilômetros para sul e os jornalistas foram proibidos de se aproximar. Os relatórios oficiais são vagos mas foi possível estabelecer alguns fatos. Segundo informações recebidas de uma fonte desconhecida, estavam sendo passadas armas em carros comerciais jordanianos e sírios. A polícia e um destacamento de tropas da Legião Árabe dirigiram-se de manhã cedo para Rumtha. O tráfego acumulou-se e todas as viaturas foram cuidadosamente revistadas. Mercadoria suspeita foi encontrada em dois caminhõrs pertencentes a um fornecedor sírio, embalada em caixotes de madeira. O oficial encarregado da busca ordenou que um dos caixotes fosse aberto. Ouviu-se uma explosão imediata e todo o carregamento foi pelos ares. Entre os despojos, descobriram-se fuzis automáticos e outras armas. Quando os primeiros relatórios chegaram a Amã, o Embaixador sírio foi imediatamente chamado a Palácio, onde se demorou mais de uma hora. Não foi publicado qualquer comunicado a este respeito e nem a Jordânia nem a Embaixada da Síria fizeram comentários. Mais tarde...”

DAMASCO

As duas horas da tarde, tendo Emilie por companhia e o focinho de rato como ouvinte hostil, Fathalla ligou o rádio no escritório. Começou por ouvir-se uma longa seqüência de músicas militares e, em seguida, um locutor convidou todos os sírios a suspender os trabalhos para ouvirem uma importante comunicação do Coronel Omar Safreddin, Diretor da Polícia de Segurança Pública. De novo se escutou música militar e, por fim, foi anunciado Safreddin. Sua voz grave e áspera parecia mais aflautada, devido à eloqüente entonação corâmica que utilizava em todas as suas aparições públicas.
... Hoje mesmo, enquanto os pacíficos cidadãos sírios retomavam sua vida normal, dois acontecimentos ocorreram, quase simultaneamente.. . acontecimentos que dizem respeito à segurança interna deste país, à salvaguarda de suas fronteiras e às relações com seus vizinhos árabes. Há certa conexão entre os dois acontecimentos. Ambos foram atos de hostilidade. Ambos foram planejados pelo mesmo inimigo e executados com o mesmo desrespeito pela vida humana e pela santidade das fronteiras nacionais. O primeiro ato foi uma agressão gritante, habilmente planejada e executada com ousadia. Um barco de pesca israelense violou deliberadamente as águas sírias no lago Tiberíade, protegido por um
barco-patrulha armado. Nossos artilheiros, sempre atentos à defesa do solo pátrio, abriram fogo contra o barco-patrulha, que se refugiou atrás de um banco de areia, sempre em nossas águas territoriais. De acordo com planos preestabelecidos, os caças israelenses levantaram vôo e bombardearam nossas posições, o que ocasionou dois mortos e três feridos. Nossos atiradores sírios ripostaram e dois deles caíram dentro de nossa fronteira. Ambos os pilotos foram mortos. Mas a história não acaba aqui. No momento exato em que se travava este combate algo diferente acontecia, muito mais sinistro, muito mais sangrento em suas conseqüências. Três dias antes um de nossos agentes de segurança descobriu que um grupo de sabotadores israelenses tinha penetrado na Síria através do Líbano e se preparava para operar tanto na Síria como na Jordânia. Tinham instalado um arsenal secreto de armas na cidade de Damasco e tentavam passar fuzis e explosivos através da fronteira jordaniana. Imediatamente comunicamos o fato ao Governo jordaniano e pedimos sua colaboração na descoberta da conjura. Infelizmente, não pudemos evitar a tragédia. Esta manhã dois caminhões pertencentes a um negociante de Damasco atravessaram o posto fronteiriço de Rumtha. Foram revistados e descobriu--se um carregamento de armas e munições. Mas os israelenses foram brutalmente espertos. Puseram detonadores nos caixotes e, quando estes foram abertos, explodiram. Morreram vinte e três dos nossos amigos jordanianos e muitos mais ficaram feridos. Apesar de nossos esforços fomos impotentes para evitar a tragédia. Esta manhã, contudo, prendemos o chefe dos sabotadores. Foi executado ao meio-dia. Os outros membros do grupo continuam em liberdade, mas temos seus nomes, conhecemo-lhes o paradeiro e em breve serão detidos. Pedimos a todos os cidadãos que se mantenham em vigilância constante e relatem imediatamente o que lhes parecer suspeito, pois só com coragem e vigilância poderemos
proteger-nos contra os imperialistas e colonizadores agressores que não respeitam a vida humana e se consagram à destruição da independência síria e da unidade do mundo árabe...”
Por muito tempo ainda, continuou a apaixonada peroração de um brilhante demagogo que sabia que é possível impor a fé pela repetição colorida de um simples amontoado de palavras. Mas o
demagogo Safreddin não era tão brilhante como Safreddin o conspirador, o pensador duplo, o falador triplo, que tinha organizada a sabotagem contra os hashemitas, a atribuía aos israelenses e por uma espécie de virtuosismo, a transformara num incidente de fronteira em que os israelenses partilhavam pelo menos metade das culpas.
A tirada prosseguia, e Fathalla ouvia, hirto, não ousando olhar para Emilie, sempre consciente do secreto regozijo do agente que mergulhava nos arquivos com indolente concentração. Agora, tinha de pensar com toda clareza. Tinha de abrir caminho através do labirinto de pensamentos de Safreddin e tentar descobrir o motivo de seus atos. Um momentâneo triunfo de propaganda? Sim, mas isso não bastava. Um espião assustado? Sim, também. Um público alertado cria um clima pouco propício aos que manobram do estrangeiro. Mas isso não bastava ainda. Uma armadilha? Ainda era pouco. Talvez um incentivo para o transformar num obediente servidor de Safreddin. A referência a ”um negociante de Damasco” não lhe escapara. Safreddin
apanhara-o. Uma simples acusação seria suficiente para o enforcarem como acessório à morte de vinte e três pessoas. Nenhuma prova seria necessária para além do fato de as armas terem sido transportadas em seus caminhões. O interrogatório de seu vigia proporcionaria a Safreddin todo e qualquer elemento que julgasse imprescindível. O inexistente israelense que fora fuzilado ao meio-dia e os inexistentes sabotadores que em breve seriam detidos eram um aviso acerca de seu destino, caso se recusasse a cooperar. Mas cooperar em quê? Estava ainda muito longe do centro do labirinto.
Lembrou-se da mensagem que recebera, na véspera à noite, de Jakov Baratz. O General queria relatórios sobre os movimentos das tropas sírias na Galiléia e a possível participação do Iraque no Pacto de Defesa entre a Síria e o Egito. Era aí que estava a chave das maquinações de Safreddin. Queria incriminar Israel como agressor, a fim de poder invocar o auxílio dos egípcios e, através deles, comprometer o restante mundo árabe na luta contra os judeus... Fazia sentido... bastante sentido, pelo menos para dar uma orientação à sua conversa com Safreddin, às três e trinta. Mas havia ainda um certo número de peças que não se ajustavam ao quebra-cabeças: o Banco Fenício, a ação da O.L.P., o notório desejo de Safreddin de se livrar do Rei da Jordânia e sua preocupação em servir-se de um iraquiano como Selim Fathalla, quando podia encontrar mais segura cooperação em sua própria gente. Era este o eterno problema do espião: em dado momento, via-se privado das informações do exterior e da possibilidade de discutir livremente com os colegas...
O discurso de Safreddin acabou com um grande e histérico desafio aos agressivos judeus. A música recomeçou.
Fathalla desligou o aparelho, olhou para Emilie e sorriu:
— Confesso que o Coronel Safreddin é um orador impressionante .
Emilie aquiesceu. Sentia-se agora segura de si e sua resposta revelava um tom de sóbria admiração:
— Não sou muçulmana, mas aquelas passagens do Alcorão sempre me impressionaram.
— Um grande homem! — exclamou o agente com súbito fervor. — O melhor que temos.
— Sempre o admirei — disse Selim Fathalla. — Quer que o ajude nesses arquivos?
— Por enquanto, não. Far-lhe-ei algumas perguntas mais tarde.
— Como queira. A Srta. Ayub dar-lhe-á todos os esclarecimentos que precisar. Regressarei assim que fale com o Coronel.
— Não se apresse — disse firmemente Emilie. — Tratarei de tudo.
Quis agradecer-lhe mas não ousou. Brindou-a com um breve aceno de aprovação, saiu, entrou no carro e passou pelos dois guardas no portão. Quando chegou ao centro da cidade, estacionou o carro, entrou num café e deu um rápido telefonema a Bitar.
— Doutor, é o Ayub. — O sobrenome de Emilie era a palavra de código nos casos de urgência.— Continuo com os pensos nas costas. Posso ir aí?
— Tem tomado as pílulas?
— Tenho. Mas não me parece que resultem. Não consigo andar direito.
— Venha esta tarde, às cinco e meia. Tem o endereço?
— Tenho. Obrigado.
Isso significava que o encontro se realizaria às quatro e trinta, na casa de um padre sírio doente, que vivia com um criado imbecil e com o qual jogavam, às vezes, uma inofensiva partida de damas. O padre acalentava duas secretas esperanças: poder converter pelo menos um de seus amigos muçulmanos e ver-se um dia curado pelo excelente médico da doença de Parkinson. Quando ocasionalmente queriam falar de negócios, o menos que lhes podia oferecer era sossego e uma xícara de café. . .
Pontualmente, às três e meia, Fathalla apresentou-se no gabinete de Safreddin. Com surpresa foi imediatamente levado à presença do grande homem, que o saudou com efusiva cordialidade:
— Desculpe-me por ter sido tão breve com você, esta manhã. Tinha muito que fazer, como pode imaginar.
— Não o sabia, Coronel, antes de ouvir seu discurso. Muito impressionante.
— Ainda bem que gostou.
— É claro que fiquei confuso. Ainda o estou.
— Com o discurso? Julguei que tinha sido claro.
— Talvez não o tenha compreendido bem. Era eu o negociante a quem explodiram os caminhões?
— Era — sorriu Safreddin, ao mesmo tempo que lhe estendia um cigarro. — Isso aflige-o?
— Não. -— Aceitou o cigarro e ofereceu lume a Safreddin. — A verdade, porém, é que perdi dois veículos.
Safreddin recostou-se na cadeira e riu com vontade:
— Você é um homem de sangue-frio, Fathalla. Invejo-o. Amanhã, receberá do arsenal os substitutos. É tudo o que o preocupa?
— Há outra coisa. O vigia.
— Oh, sim! Julgo que já o largaram. Poderá vê-lo em breve.
— Soprou uma série de perfeitos anéis de fumaça e deixou-se ficar vendo-os subir até ao teto. — Não sente curiosidade em saber o que aconteceu?
— Naturalmente. Mas não sou demasiado curioso, Coronel — respondeu, carregando no qualificativo. — Pediu-me que cooperasse. Ofereci-me de boa vontade. Deve recordar-se de que lhe disse que pretendia uma vida calma e sem complicações. É ainda o que pretendo.
— Eu sei. Lembro-me até que lhe perguntei se gostaria de trabalhar para mim.
— E eu respondi que pensaria nisso, sob certas condições.
— Que não esqueci. Importa-se que lhe faça duas perguntas?
— De maneira nenhuma.
— Lembra-se do nome do indivíduo a quem se destinavam as armas?
— Nunca o soube, Coronel. O senhor não me disse.
— Não o viu nos caixotes?
-— Como? Estava com o senhor no escritório, quando os carregaram. Apenas saí para socorrer o homem que se feriu na mão.
— Claro. Tinha-me esquecido. Seja como for, não tem importância. Outra pergunta: Para onde foi, depois que deixou o armazém, ontem à noite?
— À Srta. Ayub telefonou-me e ofereceu-se para me ir buscar no carro e fomos passear pela estrada de Rumtha.
— À que propósito?
— Queria apanhar um pouco de ar fresco. E namorar, também. Safreddin riu de novo, mas não havia humor em seus olhos:
— Um lugar estranho para namorar, quando pode... e deve... dormir com a moça todas as noites, em sua própria cama.
— Não é assim tão estranho, Coronel. Pôs escutas em minha casa. Não quero minha vida sexual gravada.
Safreddin analisou a resposta e pareceu satisfeito:
— Bem respondido, Fathalla. Devia ter pensado nisso. Os microfones foram retirados hoje, como prometi.
— Obrigado, Coronel. Agora, posso fazer também uma pergunta?
— Pode.
— Suspeita de mim?
— Por que havia de suspeitar, meu amigo?
— Não sei. Gostaria de saber. É por isso que pergunto. Safreddin estendeu os delgados dedos
e levou-os aos lábios. Sua resposta foi amável, mas cautelosa, parcimoniosa, cadenciada:
— Para mim, Fathalla, todo homem é capaz de trair, contanto que o preço seja convidativo. Neste momento, investigo uma fuga de informações que não deixa de ter relação com a operação de hoje, em Rumtha. Repare que a chamo de operação, porque, embora fosse planejada com outro objetivo, o certo é que me vi forçado a modificar os planos à última hora. Essa fuga efetuou-se através do Líbano. Você é um dos homens que têm ligações no Líbano e, além disso relações bancárias, comerciais e contatos pessoais. Portanto, é um possível suspeito. Tanto quanto sei, está inocente. Mas precisava pô-lo à prova. Tem uma história política, por conseguinte é um político. Um homem pode mudar de política como muda de mulher.
— Pôs-me à prova muito grosseiramente, Coronel. Não parece coisa sua.
- E você foi bastante esperto para o notar, Fathalla. Aliás, fazia parte do teste.
— E que provou ele?
— Que é um ser sensível e de olhos abertos.
— Disse que eu era um político. Se não fosse sensível e esperto, teria sido morto em Bagdá. Que mais provou o teste?
— Que é suficientemente sagaz para se mostrar indisposto comigo.
— Ou suficientemente inocente.
— Concordo.
— Nesse caso, como ficamos?
Safreddin encolheu os ombros e lançou mais anéis de fumo. Sua resposta foi de uma indiferença estranha:
— Tirei as escutas de sua casa. Creio que meus homens encontrarão seus arquivos em ordem. Esta noite, os guardas deixarão seu armazém. Não lhe parece que tudo isto fala por si?
— Já lhe disse, Coronel, que não gosto de viver sob suspeita. Quero ouvi-lo de sua boca.
— O quê?
— Uma afirmação de confiança. -- Vou dar-lhe. Venha.
Desceram em silêncio os quatro degraus de pedra que conduziam à cave. Ao fundo de um comprido corredor de ardósia, um soldado estava de guarda a uma pesada porta de ferro, fechada pelo lado de fora.
- Abra!
O guarda deu volta à fechadura e escancarou a porta.
— Entre, Fathalla.
Fathalla seguiu-o até uma pequena cela, apenas iluminada por uma débil lâmpada. No chão, havia uma enxerga e, estendida nela, uma forma humana coberta por um cobertor cinzento. Safreddin puxou o cobertor para descobrir o rosto. Era o vigia do armazém. Estava morto. Fathalla tentou reprimir as náuseas que o invadiam.
— Então? — Os olhos frios de Safreddin estudavam-lhe as reações.
— Conte-me, Coronel — pediu, em tom seco e duro.
— Precisávamos de um traidor — começou, calmamente, Safreddin. — Encontramo-lo nesse velho sem família e sem amigos, sem ninguém que se preocupe com ele. Deste modo, temos um corpo para meter no saco e pendurar, na Praça Morjan, um corpo que ninguém perguntará a quem pertence. . . Queria uma prova de confiança. Aí a tem. Como vê ter-nos-ia sido fácil matar você... e talvez lucrássemos mais!

AMÃ

(Imprensa Internacional) ”Esta tarde, um informante oficial de Amã revelou os últimos fatos relacionados com as explosões de Rumtha. Fuzis automáticos e outras armas recolhidos entre os destroços foram identificados como sendo de proveniência russa, do tipo fornecido ao Exército sírio. Vestígios nos restos de madeira dos caixotes indicam que se destinavam ao Coronel Badaoui, Comandante da Guarda do Palácio de Amã. Os jordanianos rejeitam a acusação sina, feita aos microfones da Rádio de Damasco, segundo a qual a sabotagem teria sido obra dos israelenses. Afirmam ter provas de que os carregamentos de armas faziam parte de uma complicada conspiração síria para assassinar o Rei da Jordânia, após a destituição do Comandante da Guarda do Palácio Real. O Major Khalil, Segundo-Comandante da Guarda do Palácio, está sob prisão e é acusado de cumplicidade. Uma violenta nota de protesto foi enviada esta tarde ao governo sírio. Embora o conteúdo não fosse revelado, é possível que as relações, diplomáticas com a Síria venham a ser interrompidas em breve. Segundo alguns informantes oficiais, mas sem confirmação, a primeira informação sobre a conjura foi transmitida à Jordânia graças a um importante banqueiro de Beirute, não denominado, o qual a comprou de um membro da Organização de Libertação da Palestina identificado pelos mesmos informantes como sendo Idris Jarrah. Confirmação posterior da cumplicidade de Khallil e da ação comprometedora de Jarrah foi enviada à Jordânia peIo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel, por intermédio de canais diplomáticos britânicos. Julga-se que Jarrah se encontra presentemente na Jordânia e foram dadas ordens para sua prisão imediata. Termina aqui o noticiário. Uma última informação acaba de chegar. Os caminhões que transportavam as armas pertenciam a um negociante sírio. Selim Fathalla, que tem relações comerciais constantes com a Jordânia. Fathalla continua em liberdade, em Damasco.

DAMASCO

Na salinha de visitas do padre sírio, sob o meigo olhar da Virgem bizantina, o Dr. Bitar, encarapitado num velho divã, escutava a história de Fathalla. Bitar parecia doente. Seu rosto comprido e liso era de um cinzento terroso; tinha olheiras e rugas de cansaço nos cantos da boca, mas revelava ainda certa vivacidade e quando ouviu o que sucedera ao velho vigia, rompeu em impropérios:
— Tornamo-nos outra vez selvagens! Nós que civilizamos o Mediterrâneo depois da chegada dos bárbaros! Nós, que ensinamos a matemática, a filosofia e as artes médicas! Isto não é o Islame! Onde está a misericórdia de Alá e dignidade dos filho do Profeta? Isto é uma tirania, brutal e sangrenta! É preciso acabar com ela!
— Não acabará nem hoje nem amanhã — disse Fathalla, raivosamente. — E ambos o sabemos. Ouviu o discurso de Safreddin?
— Não. Tive dois casos de febre tifóide. Andei às voltas para descobrir soro para inocular e tive de lutar com os homens da Saúde Pública para conseguir um suprimento de água. Se a epidemia se alastrar, será uma calamidade... O que disse Safreddin?
— Não se trata do que disse, mas da forma genial como o disse. É capaz de formar um exército nas ruas, amanhã.
— A guerra santa. . . um sonho de loucos! Estamos desperdiçando os fundos nacionais em armas e aviões e eu não posso comprar soro para vinte pessoas. Como acabará isto? E quando?
— Não sei. Mas há coisas que preciso saber o mais depressa possível. Por que Safreddin não me larga? Se soubesse quem sou, há muito que eu estaria morto.
— Vou dizer-lhe por quê. É a loucura do antigo Moloch que tem de ser alimentado com crianças assadas em seu ventre. A tirania exige sempre mais vítimas. Não hoje, talvez. Não nas próximas semanas ou nos próximos meses. Mas acontecerá, mais cedo ou mais tarde. E você está na lista. E eu também, porque ambos, por motivos diferentes, somos possíveis traidores. Que sejamos traidores de fato, pouco importa. Você é iraquiano, está aqui por favor. Está diretamente ligado às mortes de Rumtha. Safreddin pode atirá-lo no braseiro quando quiser. Quanto a mim, sou um conhecido descontente. Queixo-me, porque morrem crianças demais e também porque há demasiada miséria num país que amo.
— Mas Safreddin pensa recomendá-lo para o Ministério da Saúde.
— Só ganharia com isso. Eu faria um trabalho melhor do que aqueles que lá estão. Mas que significaria isso? Quanto mais alto me guindassem, em melhor vítima me transformaria.
Fathalla refletiu por instantes, traçando com o dedo desenhos no tampo da mesa. Depois, endireitou-se. Um gélido sorriso pairava-lhe nos olhos e nos lábios.
-— Creio que tem razão. Estamos em cima do risco. Sempre o estivemos. Com a diferença de que agora, fomos avisados. Acabaram-se as ilusões. Falemos de negócios.
Bitar abandonou seu lugar e sentou-se ereto no divã. Havia em seus olhos um brilho intenso de interesse profissional.
Fathalla prosseguiu:
— Passe a palavra a todos os contatos. Queremos todas as informações possíveis sobre a ordem do dia de batalha do Exército sírio na Galiléia e no Norte. Queremos relatórios constantes sobre os movimentos das tropas e as novas instalações, sobretudo as dos mísseis de ar. Queremos o número e a localização dos aviões de combate russos. No aspecto político, precisamos de cópias dos documentos relativos ao Pacto de Defesa Sírio-Egípcio e à possível participação do Iraque em acordos de auxílio mútuo. Todos os contatos devem ser avisados de que é urgente reforçar a segurança e evitar qualquer falha. Entendido?
— Perfeitamente.
- Há outra coisa... — Hesitou por instantes, antes de fazer a revelação final. — É necessário que o saiba, no caso de ter de operar numa situação de emergência. Tenciono casar-me com Emilie Ayub. Sabe quem sou e o que faço. Sabe que você pertence à organização. Conhece o posto de ondas curtas e o código para meu transmissor de emergência. Só o utilizará se eu for apanhado ou imobilizado.
Um silêncio sombrio pesou no descolorido aposento de reposteiros austeros, com seus móveis estragados e a Virgem triste que assistia à repetição de seculares tragédias. Bitar
aprumou-se e observou os desenhos que Fathalla traçara no pó. Quando falou, havia em sua voz uma tonalidade sussurrante e longínqua, como o roçagar de seda velha.
— Creio que cometeu um grande erro. Não vejo que outra coisa poderia ter feito e, por isso, aceito-o. Mas é um risco enorme para todos nós.
— Eu sei.
— Saberá mesmo? Já pensou no que Safreddin faria a uma mulher como Emilie?
— Sim, pensei.
Bitar encolheu os ombros, num gesto de impotência.
— Nesse caso, nada mais há a dizer. Você paga; escolha a música. Mãos à obra!
Se pudesse ouvir o que diziam a seu respeito na casa do padre paralítico Omar Safreddin ter-se-ia divertido bastante, antes de se vingar daqueles que o julgavam: um médico lamuriento, torturado por doenças que não conseguia curar, e um pária bufarinheiro de Bagdá, que dormia com uma prostituta de sangue mesclado. Que sabiam eles do formidável empreendimento de edificação de um Estado do século 20 sobre as ruínas de uma colônia francesa e de uma província do Império Otomano? Que sabiam do empreendimento — ainda mais formidável — de restauração, e purificação do Islame, de uma hegemonia árabe, diversificada mas dominante do Eufrates às Colunas de Hércules? Era um homem orgulhoso, mas analisava-se com severidade superior à de seus críticos.
Não se considerava um homem cruel; contudo, conhecia os prazeres da crueldade como conhecia o deleite das mulheres e as alegrias da amizade masculina. Saber era uma coisa, entregar-se ao gozo como um libertino era outra. A crueldade era uma arma natural do dirigente. As mulheres eram a ferramenta do intrigante. Os homens eram pedras na mão do construtor mais forte.
Não se considerava um tirano. Não exercia o poder pessoal por simples satisfação. Mas o poder tinha de ser exercido; de outro modo, a energia vivificadora dissipar-se-ia, como a água derramada no deserto é engolida pelas sequiosas areias. O Profeta tinha perdoado a seus inimigos e feito com eles um pacto de dez anos,
sentando-se debaixo de uma árvore em
Al-Hudébiyal. Mas, quando o pacto caducou o Profeta assenhoreou-se do poder, desencadeou a campanha de Kheybar e submeteu os judeus, que assim ficaram até ao califado de Omar. Quanto às exações da luta pelo poder, sempre houve um preço de sangue a pagar, mesmo no feudo do deserto. Podia exigir o preço de sangue aos outros, porque ele próprio estava preparado para o pagar. Conseguiu uma elevada posição porque estava preparado para arriscar o pescoço. Até a morte era gloriosa aos olhos do crente que compreendia o verdadeiro significado da Surah, que se designa por ”Vitória” ”Dize aos caminhantes árabes que ficaram para trás: serás chamado a lutar contra um povo poderoso na guerra, até que este se renda. Se obedeceres, Alá dar-te-á a recompensa que mereces; mas se fugires como fizeste outrora, punir-te-á com um doloroso castigo.” Era esta sua missão. Combater os judeus, um povo já experimentado na guerra; chamar os caminhantes árabes — aqueles que tinham ficado para trás na marcha da História — e enquadrá-los numa poderosa hoste ávida das recompensas prometidas pelo Único Misericordioso. Tinha de reconduzi-los à tremenda simplicidade do Livro Sagrado. Tinha de lhes ensinar que o risco valia mais do que o lucro e que era sempre preferível que alguns morressem para maior glória futura de- muitos. Deste modo, sentou-se junto da janela aberta de seu gabinete, contemplando o declinar do dia num céu cor de pêssego, e entregou-se a problemas urgentes e imediatos.
Em sua secretária havia um memorando do Ministério dos Negócios Estrangeiros, enumerando todas as acusações feitas pela Jordânia sobre o caso de Rumtha. Não era necessário responder-lhe. Ninguém acreditaria nas respostas. No jogo da propaganda, quem disparava em primeiro lugar e com mais estrondo é que tinha vantagem. Contudo, era preciso determinar certos fatos e tomar decisões rápidas.
Era evidente que os judeus tinham tido conhecimento da conjura contra a vida do rei e da cumplicidade do Major Khalil. Quem lhes teria dito? Não foi Jarrah. Não foi Chakry. Os judeus eram suficientemente espertos para negociarem com tal gente. Por conseguinte, a informação devia ter partido de um agente da O.L.P. ou de seus próprios serviços. Chegara a ter uma suspeita momentânea de Fathalla, porque estava a par do carregamento de armas e tinha ligações com o Banco Fenício. Mas Fathalla era demasiado vulnerável para ser um espião. Era um comerciante demasiado inteligente para vender a própria vida por meia dúzia de dólares que não chegaria a gastar. Portanto?...
À idéia de que traidores estavam de novo operando em sua cidade, possivelmente em seu gabinete, fê-lo arrepiar e encheu-o de uma raiva surda. Sua tarefa era suja e ingrata. Tinha decidido assentar toda sua carreira no êxito. Se falhasse, poderia ser arruinado de um dia para o outro por políticos venais ou rebeldes do Exército; acabaria também metido num saco. na praça pública. Uma vaga idéia atravessou-lhe o espírito. Tentou acalmar-se e concentrar-se nela. Fumou cigarros atrás de cigarros, sentado junto da janela e vendo o Sol declinar por cima dos telhados e minaretes da cidade. Telefonou para a Embaixada da Rússia e conversou demoradamente com o Embaixador. Telefonou também ao Diretor do Banco Sírio e deu-lhe uma série de breves instruções. Por último, chamou seu secretário e mandou-o reservar um lugar no primeiro avião com destino a Beirute,

7

TELAVIVE. JERUSALÉM

Jakov Baratz chegava ao fim de uma longa e fastidiosa discussão com o Chefe do Estado-Maior. Sentia a paciência esgotar-se e teve de fazer um esforço enorme para manter o habitua] ar despreocupado.
O Chefe do Estado-Maior não se mostrava tão apoquentado. Era incisivo e irritável:
— Por amor de Deus, homem! Acaba de me apresentar o relatório das operações em Hebron e agora quer comprometer tudo outra vez.
— Não pretendo comprometer nada, Chaim.Apenas quero que o objetivo seja claro.Aconteceram hoje coisas importantes. Tivemos um combate terrestre e aéreo com os sírios. Vem nos cabeçalhos dos jornais de todo o mundo e foi apresentada queixa nas Nações Unidas.Os sírios tentaram responsabilizar-nos pelo massacre de Rumtha.Felizmente, os jordanianos acusam publicamente os sírios. . . Agora, discutimos a forma de arrasar uma aldeia jordaniana. . . A meu ver, isso não faz sentido,
— Mas tem sentido para o Primeiro-Ministro e seu Gabinete.
— Nesse caso, deveríamos incutir-lhes um pouco mais de senso.
— Somos militares. Eles são o Executivo. Fazemos o que nos mandam.
— Não!— A palavra saiu-lhe numa explosão de raiva. — Nunca aceitei essa discriminação. Não a aceitarei agora. Todos fazemos parte da mesma organização. Participamos nas mesmas batalhas com os mesmos objetivos. Conseguimos...pelo menos no presente... o que nenhum outro país conseguiu: fraternidade, um compromisso mútuo com Israel. Quanto mais velhos e maiores nos tornarmos, mais ela se esbaterá. Mas quero defendê-la enquanto puder. E a melhor forma será manter a antiga tradição Mapai da liberdade de expressão e comunicação em todos os setores: político, religioso, econômico e militar. Não quero o Exército em incursões pelo país. Isso transformar-nos-ia em junkers. Mas também não quero o Exército como instrumento passivo do poder. Nem você. Se não é permitido levantar questões legítimas em conselho, então apresento-lhe minha demissão.
Era a mais tola declaração de sua vida. A veemência com que a fizera deixou-o surpreendido.
O Chefe do Estado-Maior também se surpreendeu:
— Ignorava a força de suas convicções, Jakov.
—- Não sente a mesma coisa?
— Não em absoluto.— O Chefe do Estado-Maior passou os dedos pelos raros cabelos. — Mas meu cargo é diferente. Em certo sentido, seu também um político. Trato todos os dias com os ministérios. Creio que, sem o suspeitar, adotei algumas de suas atitudes.
— Não todas — disse Baratz com um amistoso sorriso. — Falou com muita convicção em nosso primeiro encontro em Jerusalém. Como foi?... ”O Exército como arma de propaganda e homens mortos para defender os vivos... — Moderou-se e ergueu as mãos num gesto de desculpa e apelo.— Repare! Não sou um rebelde, não tenho qualquer ambição particular em vista. Mas ambos queremos o mesmo: o melhor resultado para o país. Tudo o que peço é outra reunião com Yuval e, se possível, com o Primeiro-Ministro. Depois,
submeter-nos-emos às regras.
— Falta saber como pediremos isso.— O Chefe do EstadoMaior não estava ainda convencido. — Gostaria de que Nathan também estivesse presente. Gostaria de poder mostrar-lhes o plano do Hebron, para provar a todos que somos bons servidores. Não podemos
vencê-los com argumentos políticos. Estará preparado para isso? E quando?
— Já estou preparado. À reunião poderia ser amanhã. enquanto os acontecimentos de hoje estão bem presentes no espírito de cada um. Pode conseguir isso?
— Creio que sim. Parto para Jerusalém dentro de meia hora.
— Segui-lo-ei. Se nos apresentarmos os dois, a coisa parecerá menos formal. Caso isto lhe sirva para conseguir a reunião, diga-lhes que espero notícias de Damasco sobre o caso de Rumtha. Se meu agente contatar à hora prevista, poderei apresentar a informação na reunião.
— Muito bem! — Levantou-se e alisou os vincos da túnica. — Outra coisa, Jakov... — Hesitou, duvidoso do efeito de suas palavras.
Baratz encorajou-o:
— De que se trata, Chaim?
— Sei que no momento tem um problema pessoal. Não transparece em seu trabalho, mas em você. Ê um dos homens com mais autodomínio que conheço, mas deixa-o transparecer. Não sei o que faria numa situação familiar como a sua. Sei que não pode suportar isso sozinho e indefinidamente. Se decidir fazer qualquer espécie de... de ajustamento, não o censurarei.
— Ainda não chegou a esse ponto e espero que não chegue. Seja como for, obrigado. Ver-nos-emos em Jerusalém.
Apertaram as mãos e Baratz voltou para seu gabinete com uma absolvição social no bolso e a consciência de que desejava desesperadamente utilizá-la. Olhou para o relógio. Dez minutos para as sete. Seu motorista
pô-lo-ia em Jerusalém por volta das oito e meia. Telefonou a Yehudith e convidou-a para jantar às nove. Ela estava tão ansiosa que ele sentiu a angústia de culpa e acrescentou uma cláusula ao convite:
— Tenho de telefonar para o hospital e falar com Hannah e Franz Lieberman. Importa-se que peça a Franz para se juntar a nós?
— Por que não?... É um velho encantador. Gosto dele.
— Onde lhe agrada ir comer?
— Por que não aqui? Teremos uma refeição fria e o serviço é bom.
— Posso levar alguma coisa?
— Você. .. E as bebidas.
— De acordo. Até às nove. Shalon.
Outro telefonema para Franz Lieberman e estava arranjado o trio; a culpa ficava, pelo menos temporariamente, em repouso. Mas enquanto viajava, na escuridão, através das quintas e dos negros cocurutos dos pinhais, a consciência voltou a atormentá-lo.
A consciência?. . . Uma palavra cristã que não tinha lugar na tradição mourisca. Havia Javé e a lei de Javé sem dúvida abaixo do menor título da prescrição ritual e moral. Havia um lado e o outro lado, e o sábio rabino para mostrar como se podia caminhar legitimamente entre os dois. Mas se na hora em que for mais preciso quando os fornos começarem a fumegar, Javé não se encontrar em parte alguma, o que acontecerá então à Lei e aos Profetas com sua vã promessa e à Thora com suas sanções. .. tão insignificantes em face das sanções impostas pelo crime de ser homem?
As sanções eram tão horrendas que parecia loucura relacioná-las com qualquer espécie de plano divino. Somos concebidos sem consentimento, arremessados soluçando em um universo estranho, com a sentença já escrita na palma da mão impotente: um cancro
devora-nos as entranhas, um fanático com um machado corta-nos a cabeça; um tigre, fugido de um circo de aldeia, despedaça-nos; um louco embriagado atropela-nos com um automóvel; viveremos, sorridentes e loquazes, até que um idiota submisso largue uma bomba de hidrogênio em nosso pátio.
Uma vez lavrada a sentença, não há atenuação, comutação ou anistia. Apenas um adiamento. Apenas tempo — ”tempo para plantar e tempo para ceifar, tempo para chorar e tempo para rir!...” Muito pouco tempo para esquecer e tempo demais para se lembrar. ... E apesar de tudo isto o milagre do homem repete-se a todas as horas e todos os dias. O homem sentenciado tenta ainda preservar a sagrada ilusão da imortalidade acalentando-a como Israel acalentou outrora a Arca da Aliança. O homem, vilipendiado por abjeta pobreza, deformado por um sofrimento monstruoso, tenta ainda aparentar dignidade, como um templo violado num vasto e árido deserto. O homem desorientado pela tirania, sonha ainda com a justiça, distribuída, também, por forma vacilante e incerta. O homem, sentenciado à morte, planta ainda macieiras, cujos frutos nunca comerá, ergue cidades gigantes onde viverão outros homens, eleva-se até uma Lua fria e planetas ocultos num espaço hostil. O próprio hedonista desafia o lamentável comércio da vida — suave vinho derramado em honra dos deuses ausentes, ternos beijos desperdiçados em louras jovens, antes de se transformarem em velhas desdentadas. Até seu austero estoicismo era outra espécie de desafio; mas tinha a desagradável sensação de que era o mais inútil de todos os gestos. Os crentes eram os únicos felizes. Riam-se da sentença de morte, como os montadores de touros da antiga Creta, convencidos de que, um dia. um último salto mortal os projetaria do puído invólucro da carne para uma pacífica eternidade de união com o Uno, que se escondia sob o disfarce do Múltiplo.
Mas a fé era um dom, como a poesia, a adivinhação ou a maravilhosa fantasia de uma criança feliz. Se não se tem esse dom — ou se se perdeu — é forçoso apoiar-se na razão. A mais nobre das faculdades, diziam os antigos gregos, mas não a chave do mistério, do paradoxo e da tragédia da condição humana. Pelo contrário, a razão podia transformar-se no machado do carrasco; a razão podia transformar-se num gatilho atômico.. . a menos que as razões do coração erguessem a voz para protestar contra o trágico disparate dos silogismos humanos.
Tudo isto deixara Jakov Baratz só e perturbado, enquanto percorria a íngreme estrada do corredor de Jerusalém; um amante esfomeado que ponderava os riscos e as armadilhas do amor — por Yehudith por ele próprio, por Selim Fathalla, que era já em si um risco, e por Hannah, que podia — sim, podia - acordar um
dia de seu triste encantamento e não encontraria ninguém para a saudar.
Quando chegou ao hospital, ela estava dormindo — drogada, disse-lhe Franz Lieberman, porque dera para deambular de noite pelas alas e corredores, um catatônico rosto vazio numa peregrinação infrutífera. Mesmo em repouso, eram visíveis as marcas de sua aflição. Tinha a pele baça. Havia em suas feições e nas mãos inativas uma espécie de vulgaridade. Estava envelhecendo rapidamente, como envelhece um animal. Uma aparência animal tinha-se já estampado em seu rosto outrora formoso. Quando a beijou, sentiu uma súbita repulsa que o envergonhou e indignou.
— Quanto tempo vai durar isto? ~- perguntou a Franz Lieberman ,
O médico abriu os braços num gesto de desânimo:
— Anos talvez.
— Há alguma esperança?
-— Na minha profissão, temos de ter sempre esperança. Veremos como reage ao grupo ácido lisérgico.
- Sofre?
— Não. O alheamento total é uma rejeição absoluta da realidade que inclui a realidade salutar do sofrimento. É uma espécie de indução da morte, sem a graça final de morrer. Se conseguisse descobrir qualquer coisa que a obrigasse a reagir, ainda que por um segundo. .. mas não descubro.
— Vamos jantar, Franz.
— Espero que sua amiga seja boa cozinheira. Estou farto da dieta do hospital.
— Garanto-lhe que é.
— Isso já é uma felicidade — disse Franz Lieberman. — Devemos estar gratos.
Quando atravessavam a cidade envolta em trevas, em rumo à casa branca de Yehudith Ronen, Baratz sentiu uma necessidade premente de abrir-se com o ancião, tão rudemente sincero, tão compreensivo para com os espíritos doentes que nele confiavam; mas não encontrou as palavras apropriadas para iniciar a confissão; não tinha o direito de sobrecarregar com outro fardo quem já carregava tantos. Franz Lieberman era médico; fazer dele árbitro da moralidade sexual seria provocar sua irritação. Franz lieberman tinha seu código, extraído do antigo provérbio: ”Leva o que quiseres, disse Deus. Leva-o e paga-o!” Ao que ele acrescentava sempre com acidez: ”Mas tens de pagar com o teu dinheiro. Por isso, verifica teu crédito antes de pagares com uma banana.” Sua tolerância era fantástica para com os fracos e os pobres de espírito.
Sua troça para com os egoístas era brutal: ”Chora sobre o travesseiro, amigo! Cura tua própria dor de barriga! E para a próxima vez não sejas tão ganancioso!” ... Portanto, não lhe seria fácil absolver as culpas de Jakov Baratz; nem transacionaria com as feridas por ele próprio infligidas. Foi por essa tola razão que, ao jantar se mostrou tão alegre que causou a admiração de Yehudith. Contou histórias picantes, fez palhaçadas, entoou velhas canções e namoriscou abertamente Yehudith, enquanto Franz Lieberman observava, calmo e sorridente, esperando que qualquer coisa de bom resultasse daquilo e ninguém ficasse ferido pelo kinderspiel(jogo de crianças).
A brincadeira acabou, como sempre acontece com os jogos de crianças, na suavíssima melancolia do cansaço. Não sentiam o mínimo desejo, como sucede com as crianças, de se separarem. Mostravam relutância em sair do tranqüilizador círculo de Juz para a negra solidão do sono. Por isso, entregaram-se a outro jogo: ”É cedo; não vá ainda; esqueça o sono; esqueça a solidão; esqueça o incerto amanhã.” A conversa tomou novo rumo. Transformou-se num questionário, numa exposição experimental do ser receoso de outros seres que pareciam sempre muito mais confiantes. Baratz falou do debate em que iria participar ao amanhecer e das dúvidas que o assaltavam, num momento em que devia impor autoridade àqueles que tinham mais autoridade do que ele. Resumiu tudo isto numa única pergunta a Franz Lieberman:
— Franz. .. que é que nos arrasta sempre para o ponto em que nossa vida parece depender da morte de outro homem em que nossas árvores só crescem se devastarmos o jardim de nosso vizinho?
O ancião pareceu absorver a pergunta como uma esponja absorve a água. Analisou-a dolorosamente, como se recalcasse pensamentos que não podia exprimir. A luz refletia-se como uma auréola em seus cabelos brancos e matizava de claros e escuros seu rosto atormentado. Por muito tempo não falou. Era como se estivesse obcecado oor visões, dominado por profecias que se negava a expressar oralmente. Por fim respondeu, lenta e hesitantemente:
— Todos os dias faço a mesma pergunta. Fico estendido na cama, debatendo-me com ela. Muitos de meus pacientes estão doentes por causa do terror que ela lhes infunde. Tem de haver uma resposta, de outro modo toda a vida do homem e todo o esforço do homem resultaria num disparate.
— É isso que assusta — disse Yehudith. — O absurdo de tudo isso. Julgamos ter conseguido um padrão sensível e logo se transforma numa confusão obscena.
Franz Lieberman lançou-lhe um olhar vivo e agudo: — Por que lhe chama obscena?
— Porque o é. Por instantes, vê-se a imagem humana clara e forte como uma estátua grega; no instante seguinte, mostra-se desfigurada e impossível de reconhecer. Afaste-se duzentos metros de meu jardim e esbarrará numa mina e será reduzido a uma pasta. Mas alguém pôs ali a mina. Alguém como nós. Dizemos que somos construtores, amantes, criadores, mas também somos destruidores, um alfinete oculto sob nossas peles. Meu nome é o de uma mulher que embriagou um homem e lhe cortou a cabeça.
Havia tanta zombaria em seu tom que Baratz ficou chocado; mas o ancião recostou-se comodamente, pesando as mordazes palavras e sua delicada resposta:
— Compreendo o que quer dizer. . . Ainda ninguém explicou o mal fora do mundo. Tenho pacientes que estão literalmente loucos de maldade. Isso tornou-se o centro de suas existências, de tal modo que não há lugar para a mais simples decência para com outro ser humano. Levam-me a acreditar nas histórias bíblicas dos possessos do Demônio — Saul arremessando a lança contra David numa dupla loucura de ciúme e ódio. . . Mas há também o bem minha filha, Tenho uma pequena enfermeira da Argélia que passeia com essas mesmas pessoas pelo jardim e as conforta com palavras e carícias, como David conforta Saul com sua música. Embora às vezes seja necessário evitar que a magoem, ela continua a tentar, sorridente.
- Faz-me sentir envergonhada.
— Não. . . Não se envergonhe. Cada um de nós é um campo de batalha entre o bem e o mal.
— Não sabia que os psiquiatras acreditavam no mal. — Baratz disse isto com um sorriso, mas Franz Lieberman preferiu tomá-lo a sério.
— Só os loucos o negam. Os antigos tinham razão ao associarem a religião às artes médicas. Um dos deploráveis erros da medicina moderna é o termo-nos transformado em mecânicos. Alguns de nós somos tão especializados que esquecemos que o impacto da doença na psique humana é por vezes mais letal do que a própria doença. ., Tanto a enfermidade como a pobreza podem enobrecer alguns. Noutros, alimenta um medo destrutivo e o ressentimento. . .
— E é a esse mal que se refere? — perguntou Yehudith Ronen. .— Em parte é. Não posso defini-lo todo. Mas penso que o verdadeiro mal consiste em atribuir um valor tão alto ao indivíduo que este destruirá tudo o que se oponha à sua satisfação.
— Portanto, equipara o mal ao desejo de sobrevivência? — perguntou Baratz, que insistiu: — Não querem todos sobreviver... custe o que custar?
— Não!— respondeu Lieberman com decisão. — Essa é a diferença entre o bem e o mal: quanto está disposto a pagar para sobreviver? À desonra? À traição? À morte de uma criança? Uma blasfêmia contra a dignidade do homem? A negação do Deus que você adora. . . se é que tem um!
— Mas quem estipula o preço, Franz? Quem desenha a risca? E por que tem um homem razão e outro não a tem? É esta a verdadeira tragédia da condição humana. Nunca temos certeza. Cumprimos todas as regras, submetemo-nos a todos os mandamentos e conselhos da Bíblia e chegamos sempre a conclusão de que não a temos.
— E é preciso ainda decidir — acrescentou Yehudith com suavidade. — Caso contrário, pára-se de viver. No momento em que se decide, entra-se no conflito e na dissensão, porque outro. . . talvez alguém que se ama. . . decidiu o inverso, O que acontece, então?
— Pactua-se, se for possível.
— Como pactuar — perguntou rudemente Baratz -— quando se tem na frente o cano de um fuzil?
— Infelizmente — disse pausadamente Franz Lieberman, só pactuamos quando compreendemos que o homem que preme o gatilho e o homem que ele mata são a mesma pessoa.
— Não compreendo.
— Tentarei explicar. Penso... toda a minha experiência me confirma nesta crença. . . que a raiz da dissensão está na luta do indivíduo para descobrir, afirmar e manter sua identidade pessoal contra tudo o que o ameaça ou parece ameaçá-lo. . . A luta começa no instante do nascimento, O minúsculo animal humano encontra-se sem governo num abiente hostil e estranho. Já não tem o conforto do quente fluido do ventre. Sua alimentação já não é automática . Está sujeito ao calor e ao frio, à fome e à dor, às excêntricas atenções dos outros seres humanos, que conhece apenas pelo tato e pelo cheiro, pelo fato de lhe proporcionarem conforto ou desconforto. A partir desse trágico momento, descobre que seus desejos e exigências são coarctados, que é forçado, por um lado, a acomodar-se e, pelo outro, a afirmar-se, com seus débeis recursos contra os que são mais fortes do que ele. Mesmo antes de saber, antes de saber que sabe, já está em conflito. Começou sua dialética com a vida, uma discussão que só terminará no dia em que morrer.
— Quer dizer -— inquiriu Yehudith Ronen num murmúrio — que está condenado a errar sempre, sem o saber?
— Não empreguei a palavra errar. — Conforme ia avançando no assunto, falava mais livre e confiadamente. — Disse que está condenado ao conflito e que em todos os conflitos há um grande número de causalidades. Alguns acabam em instituições de doenças mentais. Muitos, se não tcdos, acabam numa espécie de obstáculo, mas, apesar do obstáculo, atingem um equ líbrio razoável. O problema é que a mais primitiva luta pela identidade se centraliza no ser, no ser fraco, no ser ignorante e vulnerável. Exige muito tempo e uma educação penosa antes que o eu compreenda que não pode sobreviver sem o tu. Exige muito mais tempo ao eu coletivo... a tribo, a nação, o estado... para reconhecer que o tu coletivo lhe é necessário. Mesmo neste século, em que mandamos foguetes à Lua não reconhecemos que, quando contrariamos uma lei natural, quando espalhamos inseticidas, quando poluímos a atmosfera com radiações e gases tóxicos, estamos
condenando-nos a um futuro castigo... Vejam esta cidade, Jerusalém! Está dividida por um muro e sobre o muro há carabinas. Não podemos passar livremente de um lado para o outro. Mas passam os micróbios e os vírus, os germes da febre tifóide e da cólera. Portanto, somos forçados, mesmo contra vontade, a cooperar na sanidade mútua Por que não levamos esta cooperação mais longe? Porque o nós e o vocês continuam a acreditar que outras coisas intangíveis são necessárias para nossa identidade: soberania, posse deste ou daquele santuário ocupação de uns metros de terra estéril, tradições religiosas ou étnicas. . . Somos ainda crianças, brigando por uma maçã, chorando uns e outros, enquanto a maçã apodrece no pó. — Deteve-se e brindou-os com um sorriso um pouco triste. — É tarde e não podemos emendar o mundo esta noite. Além disso, para que estragar um bom jantar? Vou para casa.
— Eu o levo — ofereceu-se Jakov Baratz.
— Não — opôs-se com firmeza. — Gosto de passear. Gosto desta hora em que as estrelas brilham, as crianças dormem e até as sentinelas do muro estão demasiado fatigadas para se preocuparem com a vigilância. É uma hora de esperança. E todos precisamos dela. Acompanhem-me até ao portão e deixem-me.
Ficaram junto ao portão e viram-no distanciar-se, ao longo das barracas, passar pelo arame farpado e subir a montanha sagrada. Depois, de mãos dadas, voltaram a atravessar o jardim e beijaram-se à sombra das árvores seculares.
— Amo-a, moça — disse Jakcv Baratz.
— E eu a você. Jakov. Fique comigo.
— Bem gostaria... só Deus sabe. Mas há Golda. E também a sombra de Adom. Esperemos.
— Tem medo, Jakov?— Tenho.
— De quê?
— Sobretudo de mim. Quero entregar-me a você inteira... não aos pedaços como me sinto agora.
— Não me importa como se sente.
— Importar-se-á mais tarde. Odiar-me-á. Eu próprio me odiarei.
— Por causa de Hannah? — E por outros motivos.
— Quer o amor... e a absolvição também.
— Se for possível... sim.
— Pede demasiado, Jakov. E se não houver absolvição? — Nerse caso, quero tempo.
Ela desprendeu-se bruscamente e riu-se-lhe na cara:
— Meu Deus! Que relutante apaixonado! Ele agarrou-a com furiosa rudeza:
— Não me provoque, moça! Não volte a provocar-me! Posso comprar prostitutas romenas em Telavive em troca de um mau jantar e de uma garrafa de champanha. Há dias, chorou no meu ombro porque estava casada com um detestável gato. Em breve estará livre dele. Quero casar-me com você. Que o casamento nos melhore a ambos.
— Com ou sem casamento, ame-me! Não me importo com o resto.
— Mas me importo eu! Amanhã e sempre, os homens viverão ou morrerão por causa do que sou e faço. Cometi um erro. Ela está no hospital de Hadassah, surda, muda, cega, transformada num farrapo! Não cometerei outro.
— Não fale assim. Jakov. .. peço-lhe!
— Então, pelo amor de Deus, nunca mais briguemos!

DAMASCO

Logo que os criados se deitaram, Selim Fathalla, acompanhado por Emilie, passou em revista todos os aposentos. Levou-lhes cerca de duas horas para descobrir a coisa: um minúsculo transmirsor, do tamanho de uma azeitona grande, oculto no nó da borla de seda que pendia do candeeiro de cobre por cima da cama. Era uma peça altamente sofisticada de fabricação russa e que captava qualquer frase proferida no vasto aposento. Colocou-a na palma da mão hesitante quanto ao destino a dar-lhe. Esteve tentado a devolvê-la a Safreddin com um bilhete humorísfco. Foi fácil resistir à tentação. Safreddin tinha sentido de humor; mas não apreciava as brincadeiras dirigidas contra ele. Provar-lhe que era um mentiroso seria uma indignidade intolerável. Por isso, envolveu o transmissor numa camisa velha e meteu-o entre suas roupas, na última gaveta da secretária. Mais tarde, enviá-lo-ia a Baratz, que revelava interesse profissional por essas curiosidades.
Agora, estava livre para consagrar sua atenção a Emilie, na qual os acontecimentos do dia haviam provocado um estranho efeito. Já não se mostrava alegre. De um dia para o outro, parecia ter-se transformado numa matrona, tão segura e calculista que ele se sentiu vagamente protegido. Continuava terna, mas a ternura era forçada e não natural.
Sentou-se na beira da cama e começou a despir-se, ao mesmo tempo que o interrogava, como um advogado cujos direitos no tribunal não são inferiores aos de seu cliente:
— Por que me meteu nisto. Selim?
— Era mais seguro.
— Para você ou para mim?
— Para ambos.
— Por que aceitou este trabalho?
— Gostava dele. Sua utilidade era suficiente para que eu me pudesse respeitar. E tinha excitação bastante para me impedir de pensar demasiado.
— Em sua mulher?
— E em mim.
— O que se passou entre vocês?
— Nada. O problema era esse. Nada se passava. Tinha de acontecer. Ambos estávamos apaixonados. Mas não resultou.
— Continua apaixonado por ela?
— Não, é a você que amo.
— E o que se passa conosco é diferente?
— Não me obrigue a responder.
— Quero saber, Selim. Tenho de saber — Por quê?
— Porque ontem era uma amante e sentia-me feliz. Hoje, pedem-me para casar e, de repente, surge o perigo, A casa está cheia de escutas. Um velho é morto numa cela; um velho que costumava oferecer-me café quando eu chegava ao trabalho. Amava esta cidade. De um dia para o outro, tranrforma-se num lugar hostil. Tem de haver qualquer coisa nela que valha a pena.
— Por agora, a única coisa que há sou eu.
— E quando estamos sós e nos amamos, isso basta. É verdade. Mas quando está ocupado com esse. .. esse seu negócio, sinto-me desesperar. Não me interessam conjuras e políticas. Quero um lar seguro, um jardim, filhos e amigos com quem falar na rua. Quero ter certeza de que o dia de amanhã será tão tranqüilo como o de hoje...
— Dar-lhe-ei isso. Prometo. Muito em breve.
— Prometeu-o também à sua mulher?
De repente, sentiu-se terrivelmente cansado e indisposto com aquele deplorável e persistente interrogatório. Uma resposta irada subiu-lhe aos lábios mas reprimiu-a, lembrando-se de que já não podia permitir-se ao luxo de enfurecer-se em sua própria casa. Deu as costas e dirigiu-se para a janela, abrindo-a de forma a que o luar inundasse o quarto e o ar seco e frio do deserto lhe batesse no rosto. Um calmo amanhã. . .! Prometera-o com veemência, alheio a um insuportável vazio. E, além disso, tinha de manter a promessa até chegar o dia de cumpri-la. Tinha de espremer uma gota diária de conforto, para que o amor não secasse e a amada não lamentasse o compromisso a que ele a tinha ligado. Tentou, sem o conseguir, encontrar palavras para lhe responder e o antigo medo da impotência veio atormentá-lo de novo. Ela continuava à espera, infeliz e ressentida.
— Por que não responde, Selim?
As palavras surgiram finalmente, com amarga lentidão:
— A resposta é sim. Prometi-o à minha mulher. Falhei. Chegou um dia em que deixei mesmo de ser um hcmem para ela. Então.. . isso tinha de acabar. Mas com você sou outra vez homem. Faço um trabalho de homem cem a cabeça pousada no cepo do carrasco, todos os dias... E agora, façamos as pazes.
Ela correu a seu encontro e abraçou-o, tensa e apaixonada, à claridade do luar.
— Desculpe, Selim. Acredite que não quis magoá-lo. Apenas estou com medo!
— Por que não, boneca? — Seus lábios pousaram-se nos cabelos pretos. — È prudente ter medo. Mas tem de combatê-lo. Tem de lhe vazar os olhos, todos os dias. Caro contrário, acabará acotovelada numa esquina, gritando às sombras.
— Vamos para a cama.
-Ainda não. Temos de chamar Telavive às onze e quarenta. Precisamos de saber o que sucedeu hoje. Também querem um relatório a seu respeito.
— A que propósito?
— Pus você no rol de Israel. Querem saber quem é.
— E que vai dizer-lhes?
— A verdade.
— Quando casarmos, terei de tornar-me judia?
— Só se você quiser.
— E você que quer?
— Apenas uma mulher feliz. . . Agora, coma qualquer coisa e vamos mandar a mensagem.
— Primeiro, vou fazer café. — Boa pequena.
— Mas, Selim.
— Que é?
— Prometa-me mais uma coisa.
— Se puder.
— Não deixe que Safreddin me apanhe.
— Isso nunca acontecerá, criança. É a única promessa que posso fazer.
Lá fora, um sussurro abafado percorria e quebrava o silêncio do jardim; a água jorrava musicalmente da boca úmida do leão e o Crescente do Islame brilhava como prata no cume do branco minarete.

BEIRUTE

Às dez e trinta da manhã seguinte, o Coronel Omar Safreddin fez uma visita a Nuri Chakry, no Banco Fenício. Porque se tratava de um homem importante posto que não muito rico, Chakry recebeu-o com delicadeza mais do que habitual e ofereceu-lhe limonada gelada no Pavilhão Mourisco. Conversaram amigavelmente durante vinte minutos, abordando uma dúzia de temas irrelevantes, ambos cheios de paciência para com os preâmbulos retóricos. Depois, Safreddin começou a estipular os termos do negócio em causa:
— Segundo depreendo, Sr. Chakry, o Banco Sírio e o senhor têm um acordo mútuo para atuarem como correspondentes em transações entre nossos dois países.
— Exato. Consideramos isso uma associação lucrativa e muito agradável.
— Também nós. Por esse motivo, pedimos sua ajuda num assunto de certa delicadeza.
-Que podemos fazer pelo senhor. Coronel?
— Compreende que os cidadãos sírios só podem ter depósitos nos bancos estrangeiros mediante autorização do Ministério das Finanças e estão sujeitos à vigilância e fiscalização do mesmo Ministério
— Sim, compreendo.
— A Diretoria da Segurança Pública e o Ministério das Finanças estão realizando um inquérito sobre todos os sírios com depósitos no estrangeiro.
— Por alguma razão especial, Coronel?
— Por motivos de segurança nacional.
— O Líbano é um mercado livre para as transações monetárias, Coronel. Esse mercado depende da confiança e do sigilo. Não gostamos de nos imiscuir em assuntos de polícia.
— Não se trata de um assunto de polícia, Sr. Chakry. O Líbano é membro da Liga Árabe. Seu Governo comprometeu-se a apoiar a Liga nos acordos de segurança mútua.
— E seu pedido é feito sob o signo da segurança mútua?
— Sim.
— Se pudesse ser mais explícito, Coronel. . .
— Suspeitamos que um novo grupo de agentes israelenses está operando dentro das fronteiras sírias. Temos motivos para acreditar que são financiados através de um depósito no Banco Fenício ou em qualquer outro banco do Líbano. Gostaríamos que nos deixasse examinar em seus livros todos os depósitos sírios. Tenho aqui a lista. Não demorará muito.
— E quem procederia ao exame, Coronel?
— Eu. Hoje, se possível.
Nuri Chakry ponderou a proposta com teatral deliberação. Serviu-se de um copo de limonada e bebeu-o lentamente. Pousou o copo e limpou os lábios com um lenço de seda. Em seguida, agitou a mão num gesto de desculpa:
— Receio não poder consentir, Coronel. Seria contra a política e os interesses do banco. Causar-nos-ia complicações com os clientes, muito mais importantes e lucrativos do que o Banco Sírio.
— Creio que já tem complicações, Sr. Chakry — advertiu Safreddin em tom amável. — Está a ponto de perder dois de seus maiores depositantes. Talvez possa
ajudá-lo a segurar um terceiro, que pensa retirar-se. Talvez possa fazer mais... persuadir esse cliente a ajudá-lo a vencer as próximas dificuldades.
— Talvez não é uma palavra de banqueiro, Coronel.
— Nesse caso, emendo. Posso ajudá-lo. Falei a noite passada com o Embaixador russo. Podemos convencê-lo a recomendar a Moscou um apoio substancial ao Banco Fenício.
— E por que faria isso?
— Porque os russos têm interesses investidos no progresso sírio.
— Mas estamos no Líbano, Coronel.
— Que ainda está comprometido com a Liga Árabe.
— Quer dizer que estamos tratando com a alta política?
— Altíssima, Sr. Chakry.
— É um, campo perigoso para um banqueiro. - Mas já está nesse campo, Sr. Chakry. Através de um homem chamado Idris Jarrah.
— Estou fora disso, agora. Fui bem pago por um serviço prestado a clientes amigos.
— Pode fazer novos amigos... e ser pago ainda melhor. Telefone para Damasco. Fale com o Embaixador russo. Confirmar-Ihe-á o que acabo de dizer.
— Acredito, Coronel. Mas sejamos claros. Está oferecendo apenas seus bons ofícios... não dinheiro em caixa.
-— É difícil fazer preço à amizade, Sr. Chakry. Mas um homem sem amigos é muito pobre. Sua companhia de aviação, por exemplo, voa para Damasco todos os dias. É um trajeto muito lucrativo. A boa vontade das autoridades locais é muito importante para o senhor.
— Marcou um ponto, Coronel.
— E vou marcar outro. Mais cedo ou mais tarde... provavelmente mais cedo... seremos forçados a uma confrontação final com o Estado judaico. Nesse dia, todos os verdadeiros árabes se erguerão para serem contados. Se se viesse a saber que um banqueiro árabe ocultou deliberadamente informações acerca da espionagem de Israel, viria a encontrar-se numa posição incômoda.
— Os banqueiros sobrevivem sempre, Coronel. E nunca fazem negócios sob ameaça.
— Minha experiência bancária é muito limitada. Sou um pobre oficial. Perdoe-me.
— Contudo, com base na amizade... e nos bons ofícios a que se referiu.. . podemos fugir um pouco às normas que nos regem.
— Obrigado, Sr. Chakry.
— Se não se importa, entrego-o nas mãos de meu assistente pessoal, o Sr. Matheson. Ele fornecer-lhe-á todos os documentos de que precisar e ajudá-lo-á a analisá-los. É um americano. Portanto, será mais prudente expor suas razões para o exame de modo um tanto diferente... referir apenas as diretivas do Ministério das Finanças e não a espionagem.
— Uma boa sugestão. Obrigado.
Quando o pedido lhe foi apresentado, Mark Matheson ficou admirado. Já não estranhava os romanescos serviços prestados pelo banco a clientes ricos mas uma quebra de sigilo, sobretudo a favor dos sírios era de molde a chocar sua confundida consciência. Objetou rudemente:
— Não gosto disto, Sr. Chakry. É como se quebrássemos diretamente o contrato com nossos clientes.
Safreddin. insinusitadamente delicado, respondeu por ele:
— O Sr. Chakry e eu já discutimos o assunto, Sr. Matheson. Reconhecemos o caráter sagrado do contrato entre o banqueiro e o cliente. Mas seu contrato cem os cidadãos sírios é especial. Transacionam com vocês sujeitos ao consentimento e à fiscalização do governo. O que estamos fazendo é parte de nosso direito de fiscalização.
— É verdade, Mark — disse Chakry com a maior naturalidade. — Não precisa preocupar-se.
Não tencionava preocupar-se. Cumprira seu dever, como funcionário zeloso. Estava absolvido de futuras responsabilidades. . . Embora soubesse que a resposta de Safreddin só era verdadeira em parte e que a Síria não tinha jurisdição legal no Líbano e que conceder-lhe essa jurisdição pra uma quebra de fidelidade. De lato, era atentar contra a soberania e cheirava a conspiração. Mas que era uma conspiração a mais ou a menos numa cidade cheia de mascates e caçadores de percentagens? Submeteu-se com um encolher de ombros e levou Safreddin para seu escritório, a fim de lhe apresentar os livros.
Assim que se afastaram, Nuri Chakry sentou-se à secretária, acariciando seu talismã imperial e revendo sua posição. Outrora, antes de os ratos terem começado a roer-lhe as traves da casa, teria despedido Safreddin com um encolher de ombros e um insulto velado. Agora, tinha de curvar-se diante dele. . . por uma promessa sem valor e uma ameaça declarada... tal como tinha de curvar-se diante de Aziz e Taleb e todos os outros loucos coniventes que tanto desprezava. Mas Safreddin dera-lhe uma interessante idéia. Os russos bem podiam afiançá-lo; mesmo sem a intervenção de Safreddin e de sua desacreditada administração.
Um banco com plenos direitos de transação no Líbano uma companhia de aviação, uma maioria de ações nas principais empresas, constituíam um engodo interessante para uma grande potência, já comprometida com o bloco socialista árabe. Se Safreddm falara a verdade, já estavam mordendo a isca; mas espetar-lhes o anzol antes do fim do mês era outro problema. Uma oferta segura de interesses americanos podia comprometer o negócio. Mas os americanos estavam desenvolvendo um jogo de espera e além disso, era difícil organizar um leilão num mercado desinteressado. Por onde começar?... Por onde começar sem se comprometer e destruir a fachada de arrojada confiança de que, afinal, dependia a última jogada?
Matheson podia ser o ponto de partida. Sua viagem à Suíça tinha-o desanimado, mas conservava ainda a presença e o respeito. Se lhe incutisse um pouco mais de confiança, poderia assentar o trabalho de fundo num plano de competição. Mas Matheson
convencera-se, ou julgava-se convencido, de que havia já um coelho branco à espera de saltar do chapéu. Seria perigoso destruir essa convicção antes do tempo. Por outro lado...
A campainha do intercomunicador retiniu. Premiu o comutador e respondeu:
— Chakry. O que se passa?
— Fala Mark. Nosso amigo Safreddin quer fotocópias de todos os depósitos sírios. O que lhe digo?
— Que as terá.
— Como? — espantou-se a voz do outro lado. -Isso é jogo sujo. Como nos justificaremos perante os clientes?
— Não temos que nos justificar. São súditos sírios.
—- Não gosto nada disto.
— Obedeça, Mark. A responsabilidade é minha. Explicar-lhe-ei mais tarde.
— Espero que a explicação seja boa.
— Sê-lo-á.
Desligou e recostou-se na cadeira, sorrindo satisfeito. Matheson estava irritado. Uma irritação de homem fraco, fácil de dominar. O que precisava agora era de uma história bem engendrada. Pegou num lápis e
pôs-se a planejar a conspiração.

JERUSALÉM, JORDÂNIA

Nessa mesma manhã, no Hotel Intercontinental, num confortável quarto que dava, através do vale do Hebron, para o amontoado da antiga Jerusalém, Idris Jarrah tomava um parcimonioso pequeno almoço e lia os jornais matutinos. Não estava com pressa de se levantar; não tinha para onde ir. Os jornais traziam um relato completo da sabotagem de Rumtha, acompanhado de uma série de sangrentas fotografias das vítimas. Também havia um relato da prisão do Major Khalil e de certos membros da Guarda do Palácio acusados de conspiração contra o trono. Seu nome era
igualmente mencionado; e cidadãos leais da Jordânia ofereciam uma recompensa por informações que levassem à sua prisão por estar implicado no caso de Rumtha. Felizmente não havia fotografia e a descrição era vaga. Contanto que não circulasse pela cidade onde um policial penetrante o poderia reconhecer, estava a salvo. O Hotel Intercontinental era uma nova e moderna caravana-serraIho, construído por uma companhia de aviação americana para albergar homens de negócios e peregrinos da zona bíblica, estudantes sabáticos, grupos turísticos e viúvas peripatéticas, dos quais nenhum estaria possivelmente interessado num homenzinho com cara de lua cheia, um nome falso e um passaporte grego. Por enquanto pelo menos, podia comer bem e dormir tranqüilo, ao mesmo tempo que estudava suas porsibilidades de saída.
Estas, infelizmente, eram um tanto complicadas. Não lhe faltava dinheiro. Tinha dez mil dólares de fundos intactos da O.L.P. em sua pasta. Logo que estivesse a salvo fora do pais, poderia levantar mais cem mil e transferi-los imediata e secretamente para um banco do país que escolhesse. Havia apenas duas maneiras de sair da Jordânia. Uma, por via aérea, do aeroporto de Jerusalém. Era a mais simples. Bastava comprar a passagem, apresentar-se na alfândega para verificação do passaporte e deixar o pais como qualquer turista normal. Havia, porém, um perigo. A Polícia de Segurança estava sempre em ação nos aeroportos. Tinham sua descrição e agora deviam ter também uma fotografia enviada do Cairo ou de Damasco.
O mais seguro era juntar-se a um grupo de turistas que atravessava a Porta de Mandelbaum para Israel. Nem os jordanianos, nem os israelenses desejavam maçar os viajantes que chegavam cheios de boa vontade e divisas estrangeiras; e, logo que a saída fosse autorizada, as formalidades alfandegárias seriam mínimas. Um jordaniano desaprovador mandava-o seguir. Um israelense sorridente acenava-lhe do outro lado. E havia um certo humor na visão de Idris Jarrah, ao ver-se recebido oficialmente na terra de seus antepassados com um passaporte grego. Mas também aí havia um perigo. Tinha de pedir aos jordanianos a autorização de saída. O visto tinha de ser obtido, quer através de seu Consulado, quer por intermédio de uma agência turística reconhecida; e havia uma espera obrigatória de quarenta e oito horas. Apelar para o Consulado grego era evidentemente impossível. Idris Jarrah falava árabe, inglês e um pouco de francês. Mas não sabia nada de grego. Portanto, tinha de apelar para a agência de viagens e tentar imiscuir-se num grupo turístico, o mais numeroso e poliglota possível.
Acabou o café e pôs os jornais de lado. Saltou da cama, barbeou-se. tomou banho, vestiu roupa interior limpa e um terno recentemente passado pelo criado. Depois, abriu precipitadamente a janela. respirou o ar seco e quente e ficou olhando por sobre o vale para os muros da cidade e a vasta cúpula do Zimbório do Rochedo.
Uma nova idéia se lhe apresentou. Um novo risco, mas de segurança reconfortante. Conhecia aquele local como as palmas das mãos. . . todos os parques da cidade, todos os desfiladeiros dos montes, todos os postos fronteiriços e as áreas de patrulha. Era este o seu terreno de campanha e, se tudo falhasse, gostaria de tentar a travessia a pé, de noite, como qualquer contrabandista ou sabotador da O.L.P. Havia de conseguir uma saída. Mas tudo isso seria em último recurso. Portanto, o melhor era passear abertamente por Israel, tomar um táxi para o aeroporto de Lod e voar para Atenas, Roma ou Paris. Divertiu-se com uma imagem de Idris Jarrah, rico e tranqüilo, sentado nos Campos Elísios admirando as garotas que passavam.
Chegou-lhe aos ouvidos um súbito restolhar de trânsito: o roncar de motocicletas com os escapes abertos, o gemer dos motores dos jipes, o ribombar dos caminhões. Não podia ver os veículos porque estavam ocultos pelo contraforte do Monte das Oliveiras. O barulho tornou-se mais intenso e, pouco depois, seis motoclistas armados, e com o uniforme da Legião Árabe entraram na alameda do hotel. Eram seguidos por quatro jipes cada um deles munido de uma metralhadora e ocupado pelo condutor, um artilheiro e um soldado com uma carabina automática. Atrás dos jipes, chegaram dois caminhões com infantaria. Passado um minuto, o jardim e a entrada do hotel enxameavam de tropas. Uma fria mão apertou o coração de Idris Jarrah. Ficou de pé, como um homem de pedra, esperando que os soldados ocupassem seus postos, até que todo o hotel ficou cercado de armas.

JERUSALÉM, ISRAEL

— Gosto disto. Gosto mesmo muito — O Ministro da Defesa favoreceu com uma bênção os seus fiéis servidores do Exército e da Força Aérea. -— Meus cumprimentos., senhores. É uma página de antologia, belamente documentada, Não concorda Aron?
O Primeiro-Ministro concordou. . . com indiferença e neutralidade. Depois, inquiriu:
— Quando estaremos aptos a desencadear a operação?
— Muito em breve — respondeu com ardor o Ministro da Defesa. — Dentro de vinte e quatro horas.
— O documento diz doze horas, Yuval — corrigiu o Chefe do Estado-Maior com brandura. — Temos de estar preparados para nos movimentar rapidamente se a disposição das tropas jordanianas na área de Hebron mudar a nosso favor.
— Como mudou esta manhã — acrescentou Jakov Baratz: — O Rei vai visitar Jerusalém. E esperado ao fim da tarde. A delegação paquistanesa deve chegar amanhã à noite. Tudo foi arranjado para tranqüilizar os jordanianos do oeste, depois da sabotagem de Rumtha. Por causa da presença do Rei, a companhia de apoio da Legião Árabe no setor do objetivo foi transferida para Jerusalém. Se decidirem atacar, creio que amanhã de manhã ou na manhã seguinte seria a melhor ocasião.
— Se decidirmos?. . . — O Ministro da Defesa exagerou seu espanto. .— Pensei que já tínhamos concordado com a operação.
— Não inteiramente. — O Primeiro-Ministro entrou na discussão como um grande selo cinzento. — Nathan, aqui presente, quer que ponderemos uma vez mais os resultados políticos. Estes têm sido comprometidos pela ação militar na Galiléia e pela sabotagem de Rumtha que os sírios nos atribuíram.
— Não poderíamos discutir isso em reunião de Gabinete? — sugeriu intencionalmente o Ministro da Defesa. — E deixarmos que os chefes do serviço ativo resolvam seu problema?
— Uma vez que eles estão aqui, por que não havemos de nos beneficiar com suas opiniões?
O Primeiro-Ministro começava a tornar-se implicante. O Ministro da Defesa concordou com evidente relutância:
— Como queira.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros tossiu, ajustou os óculos e reuniu suas notas. Era um homem meticuloso e detestava a precipitação. Tinha um ar pedante, mas era um duro e rude lutador, com um arsenal de ardis e surpresas. Seu intróito foi característico:
— Uma pergunta a Yuval e a Chaim. Se entrássemos amanhã em guerra, ou dentro de três meses, com os egípcios, os jordanianos e os sírios aliados contra nós, venceríamos ou seriamos derrotados?
— Venceríamos — respondeu, molemente, o Ministro da Defesa.
— Contanto — acrescentou o Chefe do Estado-Maior — que tomemos a iniciativa do ataque aéreo e destruamos a aviação inimiga em terra.
— Concordo — disse o representante da Força Aérea.
— Há outra condição — interveio Jakov Baratz. — Temos de fazer uma guerra-relâmpago e não uma guerra de desgaste. Se não conseguirmos vencer num mês, ver-nos-emos em apuros.
Houve um murmúrio de concordância em redor da mesa. O Ministro dos Negócios Estrangeiros fez a pergunta seguinte:
— No caso de uma campanha rápida e vitoriosa, o que lucraremos com isso?
— Em termos de território? — O Ministro da Defesa contou pelos dedos. -Todo o leste do Sinai, Isso
dar-nos-ia toda a Jordânia Ocidental, o enclave
Belém-Hebron, a antiga Jerusalém e as colinas da Galiléia Ocidental. Talvez um pouco mais.
— Muito mais — disse o Chefe do Estado-Maior. — Milhão e meio de árabes contra a nossa população de dois milhões e três quartos. Um problema social, um problema de alimentação e um problema de policiamento da maior amplitude.
— Além da possibilidade de uma terceira guerra mundial — acrescentou Baratz, sombrio.
— Está muito otimista esta manhã, Jakov — observou, com rudeza, o Ministro da Defesa.
— Pagam-me para dar respostas — disse, calmamente, Barat: .— Não garanto que sejam todas otimistas.
— É essa precisamente a minha opinião. — O Ministro dos Negócios Estrangeiros agitou-se com vivacidade.
— A não ser que tenhamos certeza de controlar as conseqüências da vitória, temos de usar da maior cautela quanto à declaração de guerra.
— Somos nós os provocados em todos os aspectos — replicou o Primeiro-Ministro, batendo com a grossa mão na mesa. — Temos de responder energicamente. De outro modo, criaremos uma mentalidade defensiva no povo. O que, com o tempo, poderá resultar num desastre.
— Concordo — disse o Ministro da Defesa.
— E eu também — apoiou o Chefe do Estado-Maior.
— Nesse caso, temos de escolher entre dois males do dilema — concluiu o Ministro dos Negócios Estrangeiros. — O ressentimento público. . . a mentalidade defensiva de Israel. . . ou a armadilha em que os sírios tentam fazer-nos cair: ação de represália que os habilitará a invocar o auxílio do Egito. Está certo?
— Errado, Nathan! — respondeu o Ministro da Defesa. — É por isso que atacamos a Jordânia, que não é signatária do Pacto de Defesa.
— Mas, ontem de manhã, nossa aviação entrou em ação no território sírio, não entrou?
- Sim, mas. .
— E os sírios não declararam que tínhamos organizado o massacre de Rumtha?
— Mas os jordanianos desmentiram-nos.
— É por isso que ignoramos essa vantagem e arrasamos uma aldeia jordaniana?
— Não podemos ficar sentados, sem fazer nada — irritou-se o Primeiro-Ministro. — Nossa única força está na unidade e na confiança nacional.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros não se deu por vencido:
— Não vivemos no vácuo, Aron. A Rússia alinha totalmente com os árabes, Mas nem a América nem a Europa Ocidental alinham conosco por muito simpatizantes que se mostrem. Não controlamos o Suez nem o petróleo que a Europa queima e a América Utiliza na guerra do Vietname. Não controlamos o votos afroasiáticos nas Nações Unidas. Por isso, avaliemos os riscos antes de darmos início ao tiroteio.
Houve um breve e incômodo silêncio. Todos haviam dito o que pensavam e cada um deles era bastante inteligente paira compreender que o quadro não estava completo. Jakov Baratz tomou a palavra:
— Peço licença para ler parte da mensagem recebida na noite passada de nosso agente em Damasco... "Caso de Rumtha claramente uma adaptação de última hora do primitivo plano sírio para desacreditar o Comandante da Guarda do Palácio da Jordânia e Introduzir assassinos no palácio. O plano abortou e prosseguem as investigações de segurança. Estive envolvido nessas investigações porque meus caminhões foram utilizados para transportar um Carregamento de armas. Na minha opinião, Safreddin sabotou os Caixotes no último momento para dar a impressão de uma conspiração israelense. A sabotagem foi feita depois de eu ter saído do armazém. Meu vigia foi executado por Safreddin como espião israelense não identificado. Não se sabe quem deixou escapar a informação. Estou tomando medidas de precaução em relação à rede. Ainda não fomos descobertos, caso contrário Safreddin já me teria utilizado como autêntica vítima para provar a conjura israelense. . . Dada a recusa jordaniana da versão síria devemos esperar mais provocações sírias que inculpem Israel...” O resto da mensagem
a resposta a outros quesitos e não tem interesse para esta reunião. Contudo, posso acrescentar mais um par de fatos. Um indivíduo chamado ídris Jarrah, membro da O.L.P. foi citado pela imprensa européia como sendo o responsável pelo rombo no caso de Rumtha. Temos a ficha deste homem. Dirigiu as operações de sabotagem ao Heron e na Jordânia Ocidental durante algum tempo. É evidente que desertou e a polícia jordaniana o procura. Se soubesse onde ele está, não me importaria de o comprar para Israel e ver o que tem para nos contar. A imprensa ocidental menciona também um importante banqueiro do Líbano. Estamos convencidos de que se trata de alguém do Banco Fenício...O Ministro da Defesa interrompeu-o com uma lânguida repreensão:
— Estou certo de que tudo isso é muito interessante sob o ponto de vista dos serviços secretos, Jakov, mas como pode afetar a decisão que vamos tomar aqui?
— Parece-me — disse calmamente Jakov — que a frase que mais nos deve interessar é esta: ”Devemos esperar mais provocações sírias que inculpem Israel.” Pode ser que, ao prosseguirmos com o plano do Hebron, estejamos cometendo uma irrelevância e até um erro de raciocínio.
— Poderia ser um erro de raciocínio. Mas será, Jakov?
— Creio que sim.
— Como resolve então o problema que o
Primeiro-Ministro expôs tão claramente?
— Não dessa maneira.
— É uma resposta ambígua.
— Nesse caso torná-la-ei positiva. Se apanhássemos os sabotadores, diria que acertamos. Mas não. Apanhamos os aldeões que são culpados na maioria de albergar a O.L.P.. . . muitas vezes sob ameaça. Apanhamos elementos da Legião Árabe, que tentam policiar as fronteiras e não o conseguem. Isso nada nos adianta, a não ser novas inimizades e má reputação nas Nações Unidas.
— Então, que faremos?
— Esperemos. Confiemos um pouco mais no nosso povo. Vejamos o que fazem os sírios. Se atacarem de novo, replicaremos energicamente.
— E arriscamo-nos a uma guerra em grande escala? — Já nos arriscamos com nosso ataque aéreo.
— Ainda não pesamos todas as conseqüências — disse, caprichosamente, o Ministro dos Negócios Estrangeiros.
O Chefe do Estado-Maior acrescentou, à guisa de comentário:
— Além disso, Jakov, façam os sírios o que fizerem, temos de continuar lutando contra a O.L.P. Se não conseguirmos pôr cobro a seus atos de sabotagem teremos de enfrentar uma série de incidentes desde a Faixa de Gaza a Revaya.
— Toda a ação é um risco — sentenciou o Ministro da Defesa numa última prova de eloqüência. — A inação é o maior dos riscos. É como uma deficiência nervosa. Pode reduzir-nos à paralisia total. Como sobreviveram os kibbutzim? Não foi por ficarem sentados do outro lado do arame farpado, mas por mandarem patrulhas para o exterior. . . Defesa positiva. . . não a psicologia do charlatão e do pária!
Baratz sentiu o sangue afluir-lhe às faces, mas dominou-se e inquiriu com irônico respeito:
— Uma pergunta aos diplomatas. O que dirá o mundo quando duas colunas de tanques israelenses e dois mil soldados de infantaria atacarem uma aldeia indefesa e a reduzirem a escombros?
Foi o Primeiro-Ministro quem respondeu, um indivíduo disforme e inexpressivo, mas decidido e astuto como um velho mastim.
— O mundo olha e vê o que deseja ver. Queremos viver nos melhores termos possíveis. Seja o que for que façamos, um erro pode sair-nos caro. É justo que reconheçamos o preço que podemos ter de pagar. Prossigamos com o Plano do Hebron, em boa hora recomendado pelo Chefe do Estado-Maior.
— Fixe a data, Jakov — pediu o Chefe do Estado-Maior.
— Oh! Seiscentas horas a contar de depois de amanhã — disse Jakov Baratz.
— Amém — troçou o Ministro da Defesa.
— Amém, não. — Havia no tom de Baratz uma ira repentina. — Este tempo foi determinado cem base nas atuais estimativas das forças da Legião Árabe na área do objetivo. Uma reestruturação dessas forças obrigar-nos-ia a desistir da operação.
— Por quê?
— Pediu-nos uma ação de represália e não uma batalha.
— Mas tem de haver um ponto de não desistência. Não pode pôr tudo de parte uma hora antes do nascer do Sol. Seria arriscado.
— Concordo com Jakov — disse o Chefe do
Estado-Maior. — Também concordo com Yuval. Indique-me a hora zero, Jakov.
— Meia-noite de amanhã. A partir daí,
consideramo-nos comprometidos.
— E quem toma a decisão final? — perguntou o PrimeiroMinistro .
— Eu — respondeu sem hesitar o Chefe do
Estado-Maior.
— Ao encerrar esta reunião, tomarei o comando exclusivo da operação .
— Concordo. Obrigado, meus senhores. Está encerrada a reunião.
8

JERUSALÉM, JORDÂNIA

Idris Jarrah manteve-se de pé à janela do quarto, tentando interpretar a cena lá embaixo. O pânico inicial dissipara-se, mas continuava atento e cauteloso. Um homem com a cabeça a prêmio não podia arriscar-se a interpretar mal os presságios.
O jardim do Hotel Intercontinental parecia o cenário de um filme. A decoração era formada pelo céu nu, os montes lunares salpicados de oliveiras, a grande cerca do Zimbório do Rochedo sob o qual ficava a eira que David trouxera dos jebusitas, de onde, segundo a lenda, Maomé tinha sido içado pelos cabelos para o céu, e por trás do Zimbório, os telhados e torres das igrejas da cidade antiga, um deslumbramento de cal branca, ocre deslavado e manchas escuras. O primeiro plano era constituído pela cerca do jardim um semicírculo de relvados e canteiros de pedra onde cresciam malmequeres amarelos e roseiras bravas, vermelhas, rosadas e brancas. Na calçada, à esquerda, estavam estacionados os táxis e carros de turistas, com os motoristas em mangas de camisa, conversando ao sol. Junto da entrada, alinhavam-se as viaturas militares, os motociclistas e os artilheiros vigiavam do interior dos jipes. As restantes tropas estavam de tal modo distribuídas que dominavam as entradas para o jardim e todas as portas do hotel. No relvado, uns vinte ou trinta hóspedes passeavam aos pares ou formavam um pequeno grupo, admirando o panorama, tirando fotografias dos soldados, consultando notas e guias.
Alguém bateu à porta. Jarrah estremeceu, mas logo se recompôs e ordenou:
— Entre!
A maçaneta rodou, a porta abriu-se e uma criada árabe, munida de balde vassouras e escovas, surgiu à entrada. Jarrah sentiu tamanho alívio que quase a abraçou. Inquiriu:
— Todos -esses soldados lá embaixo... O que se passa?
— Oh, aquilo!— Encolheu os ombros com indiferença e pousou o balde. — O Rei chega hoje a Jerusalém. Depois, amanhã, vem visitantes de um país qualquer. Uma maçada. Esta tudo de pernas para o ar. Posso arrumar seu quarto?
Ele saiu para o corredor, virou à esquerda, ao longo do corredor que levava ao edifício principal vagueou em frente da recepção, onde dois oficiais da Legião Árabe consultavam o livro de hóspedes, e dobrou a esquina em direção à seção turística. Ao elegante jovem que estava à secretária explicou suas pretensões em inglês. Queria juntar-se a um grupo que fosse para Israel pela Porta de Mandelbaum. Queria que lhe tratassem da autorização de saída. O jovem explicou-lhe como fazer, ajudou-o a preencher o impresso e propôs-lhe várias diversões para preencher as quarenta e oito horas de espera: uma excursão pela cidade antiga, um passeio de carruagem até Jericó uma visita a Belém e a Hebron, uma viagem até ao mar Morto e às grutas essênicas de Qumran. Idris Jarrah prometeu tomar as sugestões em consideração. Assinou o impresso com seu nome grego, devolveu-o, entregou o passaporte, pôs uns óculos escuros e saiu para o jardim.
Os guardas à entrada não lhe concederam mais do que um olhar de relance. Um motorista de táxi fez-lhe uma solicitação eloqüente, que foi recusada, pelo que se retirou resmungando. Uma viúva rica e coriácea informou-o acerca do tempo num sotaque do Centro-Oeste e perguntou se viajava com a Igreja Apostólica Reformista. Jarrah respondeu delicadamente que não. Já tinha ido ao Túmulo do Horto? Claro que não era autêntico, não podia ser; mas era muito bonito e incitava à oração. Jarrah garantiu que não deixaria de o visitar. Mas agora estava cansado da viagem. De onde vinha? De Atenas. A senhora nunca visitara Atenas; mas fazia parte da excursão e estava ansiosa por conhecê-la. Por acaso, não conhecia os Judsons? Eram seus amigos. Viviam em Atenas há cinco anos... ou seis? Qualquer coisa ligada ao petróleo. . . ou à marinha mercante? De qualquer maneira, eram pessoas encantadoras e pediram-lhe que lhes telefonasse. Viajar era sempre muito mais agradável quando havia alguém para nos mostrar as coisas, não era verdade? Muito, muito mais agradável. A senhora queria desculpá-lo? Fê-lo, mas com relutância. Calcou por alguns minutos o relvado e foi sentar-se num banco de pedra, um homenzinho insignificante, imperceptível como um lagarto numa rocha.
Começava a ressentir-se da tensão. Perito na guerra subterrânea sabia que as toupeiras têm por hábito cavar nos lugares mais inesperados. Assassino profissional, sabia que a vítima raramente encapava à tortuosa lógica do assassino. Os jordanianos já tinham iniciado a perseguição. Os sírios e a O.L.P. em breve entrariam na caçada... se é que já não o haviam feito. Cada um deles tinha uma explicação diferente para seus movimentos; porém, mais cedo ou mais tarde, todos convergiriam para ele. Quarenta e oito horas eram um longo espaço de tempo para ficar sentado, alimentando ansiedades. Precisava de liberdade... a liberdade da ação ou a das relações sexuais.
Havia uma mulher na cidade antiga que satisfazia suas necessidades sexuais: uma discreta viúva que alugava tendas no bazar e não era avessa a alugar-se também aos clientes seletos e generosos. Contudo, só exercia de noite e era necessário telefonar para marcar encontro. Se telefonasse, teria de se identificar como Idris Jarrah e trair sua presença em Jerusalém. O sexo poderia, deste modo, proporcionar-lhe um prazer desastroso.
Ação?. . . Pensou novamente no itinerário para uma fuga de emergência: uma viagem a pé através da minada e traiçoeira terra de ninguém, entre a Jordânia e Israel. Não seria mau proceder a um reconhecimento. Sabia que dois caminhos lhe restavam franqueados: um no enclave do Hebron, ao sul da cidade; o outro por Nablus, ao norte. Ambos apresentavam o mesmo problema. Toda a área a oeste do rio Jordão regurgitava de palestinos, que, se tivessem recebido notícias de seus quartéis-generais deviam estar agora de atalaia. A pergunta era: teriam recebido? Já deviam saber que os jordanianos o procuravam; mas a polícia jordaniana era inimiga natural da O.L.P., que não entregaria um dos seus aos hashemitas. Havia pelo menos uma possibilidade de não saberem ainda que Idris Jarrah era um desertor e um ladrão, que roubara dez mil dólares de seus fundos. Mas como ter certeza? Ponderou a pergunta, sentado no banco de pedra, enquanto a Igreja Apostólica Reformista e o Grupo Excursionista Talismã deambulavam pela relva seca e partilhavam o carismático mistério da peregrinação cristã. Então, foi para o hotel, entrou numa cabina telefônica discou um número e falou através de um lenço que pôs sobre o bocal.
— Aqui, Café Branco.
— Aqui, Café Preto. Fale.
— Alá! Não sabemos nada de você. Nosso amigo devia chegar de Damasco com o dinheiro, mas ainda não veio. Soubemos estranhas histórias pelos jornais.
— Alá! Não soubemos de nada.
— Onde se encontra o Café Preparador?
— Partiu esta manhã para Damasco. Recebeu uma mensagem do pai.
— Quando volta?
— Quando Alá quiser... ou quando o pai o mandar.
— Assim que chegue, diga-lhe que Café Branco lhe quer falar.
— Dir-lhe-ei. Katrak!
— Ma’assalemeh!
Pousou o fone, dobrou o lenço, limpou a testa e meteu o lenço no bolso. Quanto mais longe melhor. A tal ponto que se permitiu um sorriso de satisfação. À O.L.P. de Jerusalém não sabia da deserção de Idris Jarrah. O Hebron continuava às escuras. No Cairo, desenvolviam um jogo cauteloso. Não queriam alertar a organização local com uma história de traição. Tinham convocado o diretor local para uma reunião em Damasco. Enquanto não regressasse ou não telefonasse, Idris Jarrah estaria a salvo entre os da sua espécie. Não que desejasse voltar a ligar-se a eles. Mas arriscar-se-ia a um passeio de táxi e, mais tarde, talvez fizesse uma tranqülia visita à viúva. Para um homem a meio caminho entre a morte e a riqueza, qualquer moratória era uma mercê especial. Dirígiu-se ao quarto, pegou na pistola e tirou o dinheiro da pasta. Meteu. o dinheiro num envelope lacrado e colocou-o no cofre do hotel. Guardou a pistola no bolso da calça e voltou a sair para o jardim. Chamou um táxi e, falando agora em inglês ao motorista e ao porteiro, disse que queria dar um passeio turístico por Belém e pelo Hebron.

BEIRUTE

Para o Coronel Omar Safreddin, Beirute era uma provocação constante. Era uma cidade tão calma, tão próspera e complacente, tão cheia de transigências que o irritava. Outrora, no tempo dos grandes califas, tinha feito parte da Síria uma província marítima de um império islâmico que se estendia do Atlântico ao vale do Indo, do mar Cáspio ao deserto da Núbia. Outrora. o chamamento do muezzin do minarete da mesquita Umayyad de Damasco acompanhava o pôr do Sol, qritando o nome de Alá e de seu Profeta, em Tânger, Córdova e Toledo, elevando-se até aos picos dos Pireneus. O chamamento continuava a ouvir-se; mas o império corrompera-se e desmembrara-se há muito; e em nenhuma parte a corrupção era mais evidente do que nessa nação bastarda, encravada no ponto mais fértil do Fértil Crescente, onde muçulmanos, judeus, cristãos e drusos prestavam obediência a uma dúzia de realezas e enriqueciam com base na neutralidade.
Em todas as vertentes, a Cruz Cristã zombava do Crescente. O Chefe de Estado era árabe; o Chefe do Executivo era um cristão maronita. Os judeus eram mais ricos aqui do que em Israel. Para os libaneses, o dinheiro não tinha odor quer fosse arrancado às areias do Kuwait, passado como contrabando através da fronteira síria, ou trazido da índia sob a forma de rubis e safiras pendurados numa faixa de couro enrolada nos quadris. O Líbano era membro da Liga Árabe; mas a única e verdadeira obediência dos libaneses era para a Áurea Aliança entre banqueiros e comerciantes .
Para o fanático Omar Safreddin, Beirute era a cidade mais prostituída, empoleirada na sua colina, solicitando o comércio de todo o Mediterrâneo. Para o estadista Safreddin, era o último e mais rico prêmio que, uma vez aniquilado o Estado judaico, se aninharia no regaço de um novo império islâmico. Para o místico Safreddin, continuava a ser a morada dos Deuses baixos e um mercado para transações mais baixas ainda entre os filhos do Profeta e os infiéis. E toda a baixeza se concentrava em Nuri Chakry, tão arrogante na fartura e tão maleável quando ameaçado.

Chakry era o símbolo de todo o mal que debilitava o mundo árabe. Sua única crença era a da força do dinheiro. Sua única fraternidade, a da bolsa. A unidade do Islame constituía para ele uma ameaça, pois prosperava à custa da divisão e da dissensão. Os fundos que canalizava para a Europa e para a América podiam fertilizar o deserto voltar a fazer de Damasco a refulgente cidade em que o Profeta hesitara em entrar, porque desejava entrar uma única vez no Paraíso. Mas os sonhos de Chakry cifravam-se todos em lucros e percentagens, em transações mas nunca no enobrecimento dos homens. Para ele, a ressurreição árabe era uma fantasia acadêmica. Sua Meca situava-se no Ocidente, onde o sol do capitalismo começava a declinar. Não via o alvorecer do Oriente, apenas o crepúsculo de passadas glórias e o grasnar de principelhos rivais entronizados num reservatório sem fundo de petróleo. Juraria todos os credos, contanto que lhe deixassem a bolsa. Dobrar-se-ia sob qualquer vento, como um bambu enraizado num pântano pestilento. Abra-se a rodovia entre Tiro e Haifa e ele será o primeiro a percorrê-la com os bolsos abarrotados de ações, ansio-o por negociar com os judeus, que o expulsaram de sua pátria. Se os americanos tocassem música de dinheiro,
vê-lo-iam dançar ao som da alegre ária. Se os russos rufassem num tambor, ele marcharia submisso, ao compasso marcial, como feliz partidário de campanha, pronto a desertar ao primeiro tiro de fuzil. Ele e os de sua espécie seriam os primeiros a ser eliminados, quando chegasse a hora do ajuste de contas. Até lá, podiam servir.
Sentado num canto reservado do terraço do hotel São Jorge, matando o tempo com café, Safreddin examinava as fotocópias que Matheson lhe cedera contra vontade. Era extraordinário o que se podia saber de um indivíduo em duas colunas de números, extraordinário como se tornava vulnerável a uma simples adição ou subtração. Em poucas horas, um bom contabilista podia escrever uma história aceitável de suas atividades e trabalhos e um horóscopo de seu futuro. Selim Fathalla, por exemplo. Sua história começava com um importante depósito de vinte e cinco mil libras esterlinas. Não era um capital desprezível para um iraquiano perseguido. Mas também não era demasiado para um comerciante esperto do bazar da Rua Rashid. Também tinha um fiador, o que era novidade para Safreddin. Havia uma anotação nas contas que autorizava um crédito constante de vinte e cinco mil libras esterlinas — ou o equivalente em dólares — garantido pela Società Intercommercio Bellarmino, de Roma. O que levaria uma companhia italiana a financiar um comerciante iraquiano para se estabelecer na Síria? Onde e como conseguira Fathalla um contato tão amistoso? Perguntas interessantes. Mais interessantes ainda seria ver como corresponderiam as respostas de Fathalla a seus registros comerciais. Safreddin esperava que a correspondência fosse perfeita. Gostava do homem. Havia nele um temperamento inflexível e exaltado que impunha respeito. Se fosse um pouco mais ambicioso, -um pouco mais cobiçoso de favores, seria mais fácil tratar com ele. O que o aborrecia era o fingido ar de troça, a aparente ira do bagdali contra o sírio. Talvez, agora que o vigia fora morto, se mostrasse menos arrogante.
Enquanto folheava a volumosa coleção de documentos bancários, Safreddin refletia num problema pessoal. A segurança dependia de uma rígida documentação. A documentação era inútil sem um eficiente sistema de fiscalização e comunicações dentro da administração. Um estado socialista moderno precisava de uma vasta e progressiva equipe de administradores competentes; e estes eram tão raros como ovos de pássaros fabulosos na maior parte do mundo árabe. Os políticos cresciam como ervas daninhas em cada canteiro de jardim. Um homem que soubesse montar seu departamento, manter os arquivos em ordem e despachar os assuntos num espaço de tempo razoável era uma jóia sem preço. Mesmo alguém que conseguisse escrever com caligrafia legível ou descobrir uma referência noutro local, entre o café da manhã e o almoço, devia considerar-se um tesouro.
De que servia a chancela alfandegária, se não se roubesse quem tinha atravessado a fronteira, senão quando voltasse? Ou se não se pudesse ler a garatuja do registro aduaneiro? Como fiscalizar o sistema telefônico, se os operadores não falassem corretamente a língua materna? Se os cobradores de impostos fossem venais e os mercadores deliberadamente maus em aritmética, como se manter solvente e pagar aos russos as armas, os tanques e os caças Migs?... E o que ficava para escolas e universidades depois de se pagarem as armas? A educação era a única resposta, e Safreddin sabia-o melhor do que ninguém. Seu receio era que a revolução e a insegurança levassem para fora do país os cérebros, como levavam o dinheiro.
Um brilhante locutor radiofônico e um eloqüente apresentador de televisão não podiam substituir as disciplinas da escola nem a dedicação de educadores experimentados. Mas onde encontrá-los e como conservá-los? Mande-se um indivíduo estudar em Beirute e voltará um descontente desejoso de uma vida fútil e roupas melhores do que as que se podem oferecer. Se for enviado para o Cairo, voltará um nasserista. Em Moscou, atafulham-no de tanta dialética marxista que tem de ser purgado antes de ser admitido a serviço do Islame e da Ressurreição árabe. Na América, treinam-no em computadores e máquinas de calcular e, quando volta à pátria, despreza os primitivos lápis e papel.
Uma vez mais, sua irritação concentrou-se em Nuri Chakry, o pródigo, que tinha dissipado uma fortuna com os infiéis, quando podia ter erguido um novo califado para os crentes. Tinha engolido tão sofregamente a isca do auxílio russo que devia estar numa situação desesperada. Se um pequeno empurrão de Omar Safreddin pudesse ajudá-lo a enterrar-se mais, Safreddin o daria de bom grado. Enquanto se dirigia para o aeroporto, através da próspera e orgulhosa cidade, divertiu-se imaginando Chakry atormentado por todas as pragas do Egito e gritando por socorro a um mundo que ria.
Inconsciente da malignidade que provocava, e desinteressado também Nuri Chakry passeava pelo seu soalheiro gabinete e conversava tolerantemente com Mark Matheson. O americano continuava irritado. Seu rosto melancólico e gracio.so estava congestionado. As mãos desenhavam grandes gestos,, indignados. Mostrava-se eloqüente e sincero:
— Ouça, Nuri Estamos em apuros. Disse que nos livraríamos no último momento. Não me disse como, mas acredito. No entanto, esquece-se de uma coisa. Esta crise abalou-nos. Perdemos muita confiança e benevolência. Perderemos ainda mais. antes de sairmos de dificuldades... Uma espalhafatosa quebra de confiança como esta não nos ajuda. Não julgue que Safreddin não tirará partido de nossa fraqueza! Fá-lo-á! E o pobre Mark Matheson ver-se-á forçado a trotar durante meses pela cidade, tentando explicar o caso!
— Mark, meu amigo! — Chakry estacou no centro do tapete e atirou os braços para a frente. — Tem razão em tudo o que diz. Não ignoro as rudes incumbências de que o encarrego. Metade delas não teriam sentido em Nova York, Zurique ou Londres. Mas aqui têm todo o sentido possível. Precisávamos de uma estrutura ocidental. Não podíamos passar sem ela. Foi você quem nos deu. E estou-lhe grato por isso. Tenho tentado demonstrar minha gratidão. Concorda, não é verdade?
— Claro, Nuri. Mas...
— Espere! Espere! Deixe-me explicar. Não estamos no Ocidente. Estamos no Levante. Modificamos, mas não mudamos. Está aqui há tempo bastante para o saber. Mas continua a acalentar a ilusão de que podemos ou desejamos mudar de um dia para o outro. Não queremos mudar. Não podemos. Julga que um príncipe tribal vai desistir do poder de vida e de morte, só porque este não é admitido em Connecticut? Você não aceita o investimento preferencial. Afirma que o menor dos clientes do banco tem os mesmos direitos sobre a administração do nosso dinheiro que tem o indivíduo que passeia num Cadillac com um milhão de dólares na carteira. Ora, ora Mark! Um é príncipe. O outro é um pobrediabo! O príncipe exige que o tratem como príncipe. Primeira proposta de nova emissão, melhor taxa de desconto nas letras, preço reduzido nos serviços bancários. Não fazem isso no Chase Manhattan? Talvez não o façam da mesma maneira. Mas fazem-no, meu caro. Fazem-no! Simplesmente, faço-o à maneira árabe.
— Mas até os árabes exigem confiança e sigilo.
— Quer dizer que nosso padrão de crédito não pode rivalizar com o de qualquer banco dos Estados Unidos?
— É uma questão de método!
— Portanto, é de métodos que estamos falando, não de princípios!
— Se põe o problema assim. ..
— É assim que o ponho, Mark; porque é preciso que você e eu nos compreendamos. Sabe qual foi a verdadeira razão da visita de Safreddin?
— Queria informações. Queria-as a todo o custo.
— Queria-as de tal maneira que fez disso uma tragédia. Lembre-se do caráter árabe, Mark! Aquilo que realmente quer fica escondido na manga.
— Portanto?. ..
— Portanto, demos a Safreddin o que ele disse que queria. As aparências foram salvas de ambos os lados. O que ele realmente queria era muito diferente.
— E o que era?
Nuri Chakry interrompeu a caminhada e acercou-se de Matheson. Bateu com os dedos na secretária e dobrou-se. O tom de sua voz era sombrio:
— É um grande segredo, Mark. Dê-me sua palavra de que não o divulgará.
— Não precisa de me pedir.
— Eu sei. Desculpe, Mark. — Sentou-se, pôs os pés em cima da secretária e pegou no talismã. — Isto só tem sentido para quem sabe o que se passa. Como não ignora, Safreddin é um homem poderoso. E também muito ambicioso. É ele quem domina os fantoches sírios. Puxa os cordéis que obrigam os políticos a dançar. Modula as vozes que saem de suas bocas. Pretende ser o profeta da Ressurreição. Não pode competir com Nasser. Sabe-o. Falta-lhe magia. .. Falta-lhe petróleo e o canal de Suez. Por isso, não pode negociar nem persuadir. Mas pode organizar e conspirar. E sua conspiração está originando uma situação que lançará todo o mundo árabe contra Israel. .. Quer a guerra. Mais ninguém, sobretudo Nasser, a deseja por enquanto. Contudo, se Safreddin vier a conseguir uma confrontação em massa, então é um homem muito mais importante do que parece. É principalmente importante para os russos, que pagam as contas. Não creio que estes queiram a guerra. Mas querem todas as possibilidades de tensão sem guerra... Os russos sempre fizeram uma distinção clara entre o Legislativo e o Executivo. Precisamente neste momento, estão ensinando a Safreddin o futuro executivo do movimento pan-arábico...
—- Não vejo onde quer chegar.
— Verá Mark. E faz muito sentido. Os russos pretendem dominar o Banco Fenício. Se nos comprarem, compram o maior depositário particular do Líbano, que é o único Estado democrático da Liga Árabe. Mas os russos são espertos. Não fizeram uma oferta apressada. Mandaram Safreddin para me sondar. Safreddin também é esperto. Não quer apresentar-se como agente dos marxistas. Portanto arranjou esse pequeno estratagema para vir a Beirute e regressa com uma coleção de fotocópias para provar que esteve ocupado numa tarefa normal de segurança.. .
— Macacos me mordam!
— Compreende agora por que tive de entrar no jogo, Mark?
— Sim, compreendo. A oferta de Safreddin tem bases?
— Tem e bastantes. Mas faltam os números, evidentemente. Pôs a questão da seguinte maneira: se quisermos vender, os russos estão dispostos a negociar.
— Meu Deus! Isso é dinamite.
— Assim é, de fato.
— Que pensa fazer?
Chakry ficou silencioso por momentos, contemplando a imagem do imperador de ouro. Quando finalmente falou, mostrava-se preocupado e distante:
— Vou ser franco com você, Mark; assim como espero que seja franco comigo. No momento, estou disposto a considerar quaisquer ofertas. Sinto-me traído... por homens que fiz, por um país que ajudei mais do que qualquer outro, a edificar. Não me interessa vender, como sabe. Mas estou cansado Mark. Estou farto de lutas subterrâneas e de punhais no escuro. Não me importaria de cometer um assassínio e fugir. Sei que o choca a idéia de que eu possa vender aos russos. É americano. Tem obrigações muito especiais. Mas eu não tenho qualquer obrigação especial para com o Líbano. Principalmente agora. Sou cidadão libanês; mas, no fundo continuo a ser um indivíduo sem pátria. E há os que como Aziz e Taleb nunca me deixam esquecer isso. Muito bem’.. . Não consideraria grande infelicidade ter de cambiar as minhas fichas e comprar outra cidadania. .. Pode compreender isto?
— Muito bem — disse calmamente Mark Matheson. — Não o censuro. Mas mesmo sob um ponto de vista comercial, não lucraria mais com um leilão?
— Lucraria. Porém, não tenho certeza de o querer.
— Por que não me deixa organizá-lo?
Chakry mostrou má cara e quedou-se em óbvia indecisão.
— É muito amável, Mark. Mas não vejo como o possa fazer. Matheson revelou súbita impaciência:
— É uma situação política de interesse imediato para o Departamento de Estado. Se estiverem interesrados... e deve interessá-los manter os russos fora do meio bancário do Oriente Médio. .. podem fazer de um dia para o outro o que não conseguiríamos em seis meses. Vale a pena tentar. Por que não me deixa falar com o Embaixador?
— Preocupa-se muito, Mark? Matheson olhou-o com surpresa:
-— Pois bem! Confesso que me preocupo. - Por quê?
— Tem sido bom para mim. Gostaria que se saísse bem.
— Mas não é só por isso.
— Não. .. Creio que é também por ser americano, por ter certas obrigações fundamentais e... por gostar de cumpri-las.
— Nesse caso, continue. Mas deixe-me de fora, por enquanto. Tem as informações. Utilize-as como entender. Sou neutro.
— Ótimo. Telefonarei para a Embaixada depois do almoço e tentarei marcar um encontro com o Embaixador. Mais alguma coisa, Nuri?
— Nada por ora, Mark... Mas obrigado.
Quando Matheson saiu Nuri Chakry recostou-se na cadeira e riu satisfeito. O velho estratagema nunca falhava. Ofereça-se a um ocidental uma boa mulher por um preço honesto e cuspir-nos-á na cara, chamando-nas árabe porco. Dêem-se luzes mortiças, música suave, o fascínio do misterioso Oriente e pagará o dobro pela mesma mercadoria. Regateie-se com ele por cima de uma travessa de cobre e
ser-se-á um fraudulento filho de um camelo.
Batam-se palmas para o café acrescente-se um escaravelho de pasta e um cavalo de barro cozido num forno dos fundos e ser-se-á um nobre educado nas cortesias das tendas negras. Todos os americanos queriam ser amados e respeitados; e, quando morriam queriam ser envolvidos nas estrelas e riscas e enterrados ao som de trombetas de lata. Não compreendiam que se pudesse nascer numa barraca, ser amamentado por peitos secos e crescer como um imbecil, acordado a murro e deitado à bofetada, sendo sua única obrigação para com aquele que lhe oferecesse a próxima refeição. Mark Matheson podia permitir-se o luxo de uma consciência inflexível. Não podia chegar a acordo com ela com a mesma honesta facilidade com que chegava o mais obscuro mendigo do bazar.

DAMASCO

Nessa mesma manhã, enquanto estava sentado no escritório preenchendo as guias de despacho para um carregamento destinado a Istambul, Selim Fathalla recebeu um telefonema.
O interlocutor falava com acentuado sotaque francês.
— Sr. Fathalla? Está falando Sérgio Bellarmino de Roma. Tive uma viagem de ópera cómica. Mas consegui chegar a Damasco. Quando nos podemos encontrar?
- Agora se está livre. Onde se encontra hospedado?
— No Hotel dos Califas.
— Estarei aí dentro de dez minutos. Tenho excelentes coisas para lhe mostrar. Novas fábricas e alguns trabalhos de ourivesaria que lhe farão revirar os olhos.
— Esplêndido. Eu o aguardo.
Quando pousava o fone, Emilie ergueu os olhos da máquina de escrever e inquiriu:
— Quem era?
— Um de nossos clientes italianos. Vê-lo-á ao almoço. Quer dizer a Farida que prepare qualquer coisa de especial?
— Sem dúvida. Já o esperava?
— Contava com ele mais ou menos por esta altura. É da Società Intercommercio Bellarmino. Viu o nome dele nas faturas. Mostre-se amável. É um rico contribuinte.
— Como vai explicar minha presença?
— Os italianos são pessoas cultas, Emilie. Ninguém é obrigado a explicar as coisas do coração.
Disse-o com uma gargalhada, mas, enquanto se dirigia ao hotel refletia numa boa explicação a dar. Os homens do Serviço Secreto G2 de Baratz constituíam um punhado de profissionais conscienciosos e davam pouco crédito aos loucos e ineptos.
Sérgio Bellarmino era um jovem excessivamente graoso para seus trinta anos, muito elegante num terno de seda azul, sapatos de crocodilo preto e camisa Battistoni. No vestíbulo do hotel, mostrou-se amável e delicado. Estava encantado com sua primeira visita à Siria. Tinha uma-pasta cheia de planos para o futuro desenvolvimento do comércio... Na intimidade da casa de Fathalla, revelou-se subitamente brusco e prático. Falava rapidamente em hebraico com o sotaque da escola rabínica italiana.
— Estamos seguros aqui? Não há escutas? Nem problemas de criados?
— Hoje estamos de folga ~ sorriu Fathalla. ,— Mas, tivemos problemas ontem.
— Que espécie de problemas?
Fathalla informou-o pormenorizadamente. O jovem fez algumas perguntas, penetrantes e embaraçosas. Quanto a Emilie Ayub, o seu veredito foi draconiano:
— Parece-me que cometeu um grande erro. Mas está feito. Tem de viver com ela. Portanto, também nós. Fathalla exasperou-se:
— Baratz aceitou-me como sou. Se não está contente, que me dispense.
— Pode ser que o faça. Sou apenas um mensageiro. Trouxe o dinheiro.— Procurou na pasta, retirou um espesso maço de notas e entregou-o a Fathalla. — Há aí o suficiente para um mês em sua atual escala de pagamentos.
— E depois?
— Com que freqüência faz carregamentos para fora de Aleppo?
— Há uma carreira mensal para Istambul e os portos gregos. É a que utilizamos normalmente.
— Quantas vezes vai lá?
— Mais ou menos de seis em seis semanas.
— Telefone para o escritório da Companhia de Navegação Arkadia. Pergunte pelo Sr. Callisthenes.
— É de confiança?
— Muito. A propósito, onde vai guardar este material? Fathalla mostrou-lhe o painel de faiança e o jovem acenou aprovadoramente:
— Ótimo. Muito engenhoso.
— Temos feito um bom trabalho — disse Fathalla secamente. — E temos de tomar nossas próprias decisões. É diferente em Telavive... e em Roma.
Serqio Bellarmino era assaz jovem para não perder a serenidade. Corou, gaguejou um pouco e, depois, balbuciou uma desculpa :
— Não lhe estava ensinando seu trabalho.
— Não o faça! — disse, friamente, Fathalla. — E quando minha companheira chegar, mostre-se simpático. Todos vamos precisar dela.
— Pedi desculpa. Apenas quis... Falemos da segurança geral.
— É difícil ser exato a esse respeito. — Fathalla era de novo o profissional. — Como sabe, trabalhamos no sistema de tríade. Um nó da cadeia pode romper-se, mas não é possível romper toda a rede de um dia para o outro. Além disso, os membros subalternos julgam que estão trabalhando para uma organização síria e não judaica. Os mais vulneráveis são Bitar e eu próprio...
— E a moça?
— Respondo por ela — disse Fathalla.
— Fale-me de Bitar.
— É médico. Um indivíduo competente e dedicado. Sua fraqueza ... e sua força. . . está em ser um humanista e um internacionalista. Perdeu a mulher. Seu único filho foi atropelado por um caminhão militar quando atravessava a rua. Nessa altura, Bitar estava no Líbano. A criança faleceu no hospital. Parece que o Exército revelou demasiada insensibilidade pelo caso. Bitar nunca perdoou isso.
— É muçulmano, evidentemente? — E dos bons.
— Nesse caso, como se explica que trabalhe para nós?
— É complicado. Nunca o compreendi muito bem. Em parte, é uma vingança , pessoal contra o Exército que domina agora o país. Em parte é uma cruzada particular contra a pobreza e a doença. Todo o dinheiro que recebe de mim gasta-o numa clínica que tem na cidade para pessoas pobres. Quanto ao resto... é francês por educação, presumo. Liberdade, igualdade, fraternidade ... e vergonha de se ver segregado por um novo nacionalismo em que não acredita. Considera a paz com Israel uma possibilidade para projetar o mundo árabe num círculo de relações permanentes e proveitosas com o Ocidente. Mas. . . — Fathalla encolheu os ombros e sorriu. — É sempre a mesma coisa com os muçulmanos. Raciocinamos alegremente em conjunto e, de repente, vemo-nos à beira de um profundo poço e pedem-nos que saltemos com eles. — Riu e acrescentou com ironia: — É claro que os muçulmanos dizem o mesmo dos judeus. Bellarmino não parecia muito divertido:
— Mas confia em Bitar?
— A minha vida e a de muitos outros,
— Fale-me de Safreddin. Fathalla meneou a cabeça:
— Continuo tentando compreendê-lo. É um
quebra-cabeças, cheio de surpresas. Serve-se de toda a gente, não confia em ninguém e, no entanto, manifesta uma necessidade infantil de ser admirado e até amado, se não me engano.
— E que pretende?
— Poeticamente? Quer que a Síria domine a Liga Árabe. Enquanto Nasser for vivo nunca o conseguirá. Por isso, explora o jogo do poder, tentando envolver os egípcios numa guerra conosco.
— Como se entende com os russos?
— Creio que muito bem. Eles compreendem este tipo de homem.
— E com os iraquianos?
— Têm medo dele. Sabem que lhes pode cortar o oleoduto quando lhe apetecer. Não o suportam, mas tentam viver com ele. — Recebeu nossas últimas perguntas de Telavive?
— Recebi. Ainda não tenho as respostas.
— Precisamos delas o mais depressa possível.
— Faremos o que pudermos. Espero uma resposta breve e satisfatória sobre os tipos de aviões. Um de nossos agentes é fornecedor do Exército e da Força Aérea. Tem acesso às bases e aeródromos. A questão dos mísseis? É difícil. Se estão aqui, o que duvido, ocultaram-nos bem. É provável que não tenham sido instalados perto de qualquer aeródromo. Os iraquianos?... É uma questão de documentação. Levará tempo. Mantenho-me afastado dos iraquianos, como deve calcular. Meu disfarce é excelente; mas não quero encontrar-me com quem conheça a Rua Rashid melhor do que eu.
— E a Galiléia?
— Nossa última diretiva de combate para a Galiléia foi arquivada, há quatro semanas. Desde então, não parece ter havido mudanças importantes. Contudo, temos um ótimo agente em Quneitra. Em geral, suas informações são exatas. Está trabalhando agora.
— Voltemos aos mísseis. Sabemos que os egípcios os têm. Por que Conclui que os sírios não os têm?
— Em primeiro lugar, não há sinais de instalações, nem sequer unidades móveis. Em segundo lugar, a situação política aqui ê muito menos estável do que parece. O Exército está de prevenção, mas há opressão econômica e secreto descontentamento. Por outro lado os rus-os são pretendentes ativos, assim como os chineses. A Sír’a enviou mais delegações à China e recebeu mais delegações da China do que qualquer outro país árabe. Foram suficientemente espertos para explorar a desentendimento entre a China e a Rússia sem se comprometerem com qualquer dos lados. . . Mas os russos exigem um compromisso pleno. E não concederão bonitos presentes como os mísseis Sam a não ser que eles o garantam. Pelo menos é esta minha opinião. Mas estamos verificando, como nos ordenaram.
Bellarmino pareceu satisfeito com a resposta. Mas mostrou-se embaraçado com a pergunta seguinte:
— Quanto à jovem senhora, Fathalla.. . Quais são seus planos?
— Vou casar-me com ela.
— Aqui? Em Damasco?
— Claro que não. É cristã. Todos me julgam muçulmano. Perderia o respeito e as amizades se me casasse aqui.
— Então?...
— Logo que Baratz possa substituir-me convenientemente, abandono isto e levo Emilie comigo.
— Não vê outra alternativa?
- Qual?
— Deixe-nos tirar a jovem daqui. Mandá-la-emos para onde você quiser. Sustentá-la-emos e cuidaremos dela. Você fica aqui e trabalha, digamos, mais doze meses.
— Foi Baratz quem sugeriu isso?
— Não. Pediu-me que me informasse de sua situação
pessoal e fez-me recomendações.
— Preciso pensar nisso. E falar com Emilie. Desde já lhe digo que não me agrada. Também não me parece que ela concorde .
— Se se retirar, Fathalla, teremos de organizar uma nova rede. . . logo agora que precisávamos de uma organização bem estruturada.
— Se há alguma coisa que eu não saiba — articulou Fathalla —, será melhor dizer-me.
— Há um estudo sobre nossa atual rituação, que passo a resumir: a provocação da O.L.P. na Faixa de Gaza e na Jordânia Ocidental está aumentando. As provocações sírias aumentam também. Estamos sendo impelidos inevitavelmente para uma confrontação militar que, inevitavelmente também, incluirá o Egito e, muito provavelmente, todo o mundo árabe. Damasco é o melhor posto de escuta que temos. . . para russos, chineses, sírios, iraquianos e todos os outros. Se você desistir,
ver-nos-emos atrapalhados, num momento crítico. Não há coerção nesta espécie de trabalho. Não pode haver. Mas. . .
Não acabou a frase. Contudo, seu significado era mais do que claro para Selim Fathalla. Invocavam o dever. Faltava determinar que dever era este, o que havia nele de contraditóro e como decidir entre interesses conflitantes. Sergio Bellarmino
observava-o com olhos frios e perspicazes. Era um dos novos macabeus: crítico, calculista, quase cruel em sua certeza de que os judeus não voltaram a ser chacinados como carneiros. Era a voz que gritava no julgamento de Eichmann: ”Por que não fez qualquer coisa?” Desprezava o homem do gueto. Não tinha compaixão para com o coração dividido, E também não o compreendia. Fathalla viu que ele não era capaz de entender suas indecisões. A resposta foi breve:
— Pensarei no que me disse. Fá-lo-ei saber a Baratz.
Bellarmino sorriu e encolheu os ombros:
— Tem tempo. Demoro-me alguns dias.
Fathalla encarou-o com espanto:
— Alguns dias?
O jovem voltou a sorrir e estendeu as mãos num gesto eloqüente:
— Por que não? Sou um negociante legítimo com passaporte italiano. Procuro mercadorias. Quero falar com os serviços comerciais do governo.
~ Isso pode ser perigoso. Dará muito na vista.
— Seria mais perigoso se não desse na vista. Você é um agente comercial do governo. A Intercommercio Bellarmino é um dos maiores clientes registrados em seus livros. . . Procuro negociar onde me é possível. A propósito, falou de mim à moça?
— Ainda não.
— Não o faça.
-É uma ordem?
— Um pedido.
— Terá de deixar isso a meu critério, Bellarmino encolheu os ombros:
— Como queira. . . Trago-lhe notícias pessoais. Baratz pediu-me que lhe dissesse que o problema do divórco será discutido no dia vinte e cinco. Ficará livre no dia seguinte.
— Eis aí uma boa notícia. Que mais se passa na pátria?
— O Banco Wilderstein está na falência. Vendemos dois barcos porque não os podíamos manter. Lutamos com o desemprego e dentro de um mês, mais ou menos, teremos sessenta ou oitenta mil desempregados. O dinheiro é escasso. O governo vê-se em apuros e os turistas já não gastam tanto
como outrora. Precisamos de animação para estimular o mercado.
— Safreddin está fazendo o possível para o conseguir. — Estou ansioso por conhecê-lo.
— Quando isso acontecer — avisou Fathalla —, tenha tento na língua. E não procure fazer-se de esperto. Quanto mais estúpido parecer, mais seguro estará. .. E já agora falemos de minhas hipotéticas relações com a Intercommercio Bellarmino. Será uma das primeiras perguntas que Safreddin lhe fará.
Estavam ainda ensaiando quando Emilie os chamou para almoçar. Tinha tirado as roupas que usava no escritório e envergava uma bata caseira de brocado de Damasco cingida por um cinto de Filigrana de ouro. Não usava outros adornos e, com os cabelos presos atrás da nuca e sua atitude de reservado respeito para com Fathalla e seu convidado, parecia uma figura de um exófco conto de fadas oriental. Bellarmino começou por se mostrar surpreendido e depois volúvel, dirigindo-lhe cumprimentos à italiana, que ela aceitou tão calmamente que o deixou desorientado. Não quis comer com eles. Não se intrometeu na conversa. Servia, ouvia e, depois de trazer o café, ia retirar-se quando Fathalla a reteve.
— Sente-se, Emilie. Temos coisas a tratar.— Vou buscar um livro de apontamentos?
— Não é preciso. São assuntos particulares. Belarmino lançou-lhe um severo olhar de aviso. Fathalla ignorou-o e prosseguiu:
— Como sabe, o nosso amigo é de Roma. É um dos nossos mais importantes clientes. Quer alargar seu comércio conosco e com outros negociantes de Damasco. Gostaria de conhecer algumas das personalidades mais importantes do governo. Depois do almoço,leve-o ao armazém, mostre-lhe nossos registros e faça para ele os contatos telefônicos. Só fala italiano e francês. Se for preciso um intérprete, acompanhe-o.
—- Não é preciso. Posso falar árabe.
— É preciso — disse Fathalla com decisão. — Não deve falar árabe nesta cidade. É um inocente europeu, desorientado por uma situação anormal. É mais seguro para você. . . e para nós. - Voltou-se para Emilie: — Deve saber que o Sr. Bellarmino também é agente do Governo israelense. Quer fazer-lhe algumas perguntas. Responda, se puder.
O jovem estava visivelmente irritado, mas
dominou-se. Disse intencionalmente:
— Talvez a Srta. Ayub saiba responder à pergunta que lhe fiz.
— Qual foi, Selim?
— Se consentiria em sair do país e esperar por mim num lugar seguro durante um ano, mais ou menos.
— É isso o que deseja, Selim?
— O Sr. Bellarmino acha que seria aconselhável.
— Não me vou casar com o Sr. Bellarmino. Ficarei onde você está. Irei para onde você me levar.
— Talvez tenha de ficar mais doze meses.
— Nesse caso, ficaremos ambos.
Bellarmino interrompeu-os. Havia qualquer coisa de cirúrgico em sua determinação:
— Lamento dizer-lhe, Srta. Ayub, mas na minha opinião. .. que é também a de Telavive... é um risco para Fathalla e muito mais para nós.
— Sendo assim, desfaçam-se de nós. — Havia nela uma frieza e uma decisão enormes.
— Isso compete a Telavive.
— Não — replicou, rudemente, Fathalla.
— Compete-nos a nós. Vou fazê-lo e já. Não posso sobreviver como homem sem Emilie. Considera-nos um risco demasiado grande para ficarmos em Damasco. Pois decidimos agora mesmo ir embora. Estuda-se uma forma de manter a rede e nomeia-se outro homem para a dirigir. Ficaremos enquanto formos necessários. Mas Telavive fica avisada desde já.
—- Deve sentir-se orgulhosa, Srta. Ayub — resmungou Bellarmino. — Uma mulher desafia um país e é a mulher quem vence.
— Não seja louco! — exclamou Fathalla com incontida ira. — Está-se,mostrando néscio e fanático. Oferecemos-lhe os préstimos de duas vidas e
atira-nos com eles ao rosto. — Pálido e trêmulo, ergueu-se, derramando sobre o colega as piores invectivas: — Vive num apartamento confortável em Roma e distribui mensagens por todo o Mediterrâneo! Que diabo sabe você de um trabalho como o nosso? Que sabe de mim, do que eu sinto e de quanto custa a um judeu suportar a terrível solidão entre seus inimigos? Quando estive doente, falava durante o sono. Emilie ouviu tudo, podia
ter-me traído em menos de uma hora e garantir sua segurança e reputação para toda a vida! Para ela, Israel não passa de um nome no mapa. Para mim, é um lugar que amo e onde não posso viver. Eu sou o país dela. Ela é o meu. O que mais quer de nós? O último descanso dos zelotes em Masada?
— Quero saber o que faria se lhe pedissem para o fazer -— respondeu Sérgio Bellarmino.
— Eu respondo — interveio Emilie Ayub. — Tomaríamos as pequenas pílulas que Selim guarda em sala secreta. E adormeceríamos em silêncio. Os zelotes fazem mais?
Sérgio Bellarmino não respondeu. Bebeu o café, pousou a xícara e tirou da cigarreira de prata um cigarro. Observando-lhe os movimentos calmos e as linhas severas do rosto sob a epiderme lustrosa, Fathalla teve a fria sensação de estar na presença de um indivíduo muito perigoso.

9
JERUSALÉM, JORDÂNIA

Há muito que a antiga estrada entre Jerusalém e Jericó tinha sido cortada e agora encontrava-se minada de ambos os lados da linha de armistício. À nova estrada fazia um desvio de dezoito quilômetros depois de Betânia, Bethphage e da torre fortificada da Rainha Melisanda. Mergulhava entre os antigos túmulos onde se dizia que o Rei David tinha sido sepultado — embora ninguém tivesse descoberto seu lugar de descanso. Subia a Colina do Advogado do Diabo, onde, inconsciente da ironia, o Chefe da Comissão Mista de Armistício das Nações Unidas tinha sua residência. Voltava a descer através de Sur Bahir e subia de novo até um espinhaço de onde se viam as torres de Belém e, a leste da orla do deserto, o túmulo-montanha de Herodes, o Grande, que, à chegada dos reis persas, ordenara o massacre dos inocentes.
Idris Jarrah vira tudo aquilo centenas de vezes. Não o preocupava a história dos pastores e de seus angélicos visitantes, nem a do Messias cristão ou a dos cruzados que tinham assassinado em seu nome. Sua preocupação provinha de uma nova experiência — uma sensação quase sexual em sua intensidade e satisfação. Desde que abandonara os limites do hotel, sentia aquilo invadi-lo. Via-se outra vez em apuros, inteira e completamente, como quando andara fugido pelos montes da Judéia, travando uma luta de retaguarda contra os usurpadores judeus. Com fria lógica, seu táxi penetrou em território da O.L.P.. o que era uma rematada loucura. Estava arriscando a vida na simples suposição de que os comandos das guerrilhas palestinas não sabiam ainda de sua deserção nem o saberiam nas próximas doze horas. Mas, se a suposição estivesse certa e ainda o aceitassem como diretor de seus serviços operacionais, sua palavra valeria para eles mais do que a lei de medas e persas; e
pô-lo-iam na fronteira e passearia como homem livre por Israel antes do próximo amanhecer.
O velho Hamid, o fabricante de candelabros de Belém, tinha um filho que conhecia um caminho através de uma fossa seca, onde
não havia minas, onde o arame podia ser cortado e, após uma hora de cautelosa caminhada estaria a salvo na Nova Jerusalém. O pastor Abdul tinha-lhe falado de um túnel que começava em forma de caverna do lado jordaniano e atravessava as colinas até uma saída segura em Israel. Havia uma dúzia de homens entre Belém e Hebron mas sempre contatara com eles através daquele que usava o nome de código Café Branco, o chefe dos guerrilheiros da saliência sul, que, durante o dia, era professor numa aldeia do Hebron e, à noite, treinava atiradores e brigadas de demolição para a O.L.P.
Café Branco era um indivíduo afável, bem educado, bem comportado e sempre serviçal. Tinha feito amizades entre os armênios, os ortodoxos e os romanos que zelavam pelos santuários cristãos. Preocupava-se muito com sua gente. Emprestava-lhe dinheiro, arbitrava as disputas agia como intermediário nas questões de casamento. Nunca ninguém o vira irritado. Mas contavam-se histórias, murmuradas à luz das velas -— um delator espancado até à morte, um sabotador relutante anavalhado e atirado em um poço seco —, que tornavam seu nome temido e mantinham sua autoridade indiscutível. Idris Jarrah tinha encontrado nele um colega amigo e competente. Esperava que se mostrasse agora um colaborador condescendente para com seus secretos desígnios. Antes disso, porém, faria perguntas. Por que arriscava Idris Jarrah o pescoço na travessia da fronteira? Nunca o fizera antes. .. por que o tentava agora? Por que ia sozinho? Que objetivo justificava o risco de um experimentado guerrilheiro que, se fosse apanhado pelos israelenses, seria uma fonte de informações contra a O.L.P.? Idris Jarrah teria de responder rápida, claramente e com tal convicção que não deixasse dúvidas quanto à urgência ou autenticidade de sua missão.
Por isso, quando chegou a Belém, Idris Jarrah dispensou seu motorista, pagou-lhe a viagem em dobro para que não tivesse de voltar para a praça, dirigiu-se para a Igreja da Natividade, sentou-se como qualquer piedoso cristão, num canto escuro e pôs-se a meditar. A meditação foi frutuosa. A excitação sensual acalmou-se. Sentiu-se tão sereno que não se apercebeu imediatamente da traiçoeira sensatez de Safreddin das sutilezas do Inominado do Cairo ou da astúcia animal do Café Preparador. Isso tornou-o prudente, a tal ponto que não renunciaria a uma possibilidade de evasão antes de se certificar da existência de outra. Assim, chegou a uma série de sensatas conclusões.
Em primeiro lugar, alugaria um quarto na Estalagem dos Peregrinos em Belém. O fato de não dormir lá não tinha importância. Estava registrado. Seu esconderio no Hotel Intercontinental continuaria seguro. Em seguida, evitaria encontrar-se frente a frente com Café Branco, telefonar-lhe-ia de Belém. Pediria um guia e uma entrevista para um agente não identificado que tinha de atravessar a fronteira nessa noite para uma missão não especificada. Se Café Branco quisesse saber mais, Jarrah invocaria a autoridade do Cairo e ameaçaria reter os fundos que Café Branco sabia que ele tinha consigo. Se houvesse mais objeções, poria termo à conversa e voltaria para seu refúgio no Hotel Intercontinental. ..
Quanto mais pensava nisso, mais lhe agradava. Na melhor das hipótese, estaria em Israel antes do romper do dia, com outro dos seus passaportes. Na pior, teria de revelar à O.L.P. que se encontrava algures a oeste da Jordânia. .. informação que ela obteria em qualquer dos casos. Tinha esgotado os recursos de piedade Saiu para a poalha solar da praça e mergulhou numa estreita viela que conduzia à Estalagem dos Peregrinos. Hesitaram um pouco em registrá-lo sem bagagem nem passaporte mas dois dias de pensão adiantados e a promessa de se apresentar antes do anoitecer, devidamente documentado, convenceu-os. Rabiscou uma assinatura ilegível no livro e encaminhou-se para a estação dos correios.
Gastou meia hora para contatar com Café Branco e dez minutos para se identificar e explicar na gíria secreta dos guerrilheiros. Mas — Alá seja louvado! — Café Branco mostrou-se acessível e eficiente. Aceitou como autêntica a história de Jarrah. Lamentou não poder dirigir a operação. Tinha de partir para Nablus logo que saísse da escola. Contudo, encarregar-se-ia dos preparativos. O viajante devia apresentar-se em casa de Hamid, o fabricante de candelabros, uma hora antes da meia-noite. Discretamente. Café Branco perguntou pela saúde de seu irmão. Jarrah garantiu-lhe que a saúde do irmão era excelente, apesar do calor. Café Branco riu satisfeito e exprimiu a secreta esperança de poder vê-lo muito em breve. Precisava de dinheiro. Jarrah riu também e declarou que o irmão só esperava um momento propício para pagar todas suas dívidas. Invocaram bênçãos mútuas e o caso ficou arrmuado — nem perguntas, nem problemas, um trabalho de rotina.
Idris Jarrah pousou o fétido bocal do telefone e riu até seus óculos de sol ficarem embaciados. Quando tirou o lenço para os limpar suas mãos tremiam tão violentamente que os óculos caíram no chão. Foi uma sorte não se partirem. Ter-se-ia sentido muito nu sem eles.

BEIRUTE

O Embaixador dos Estados Unidos da América na República do Líbano era, por temperamento, um homem cordial. Sorria com facilidade. Ouvia com paciência. Todo ele era cheio de pequenas delicadezas que faziam com que o mais casual visitante se sentisse esperançado e importante. Há muito que tratava com o mundo árabe e compreendia os usos da obliqüidade. Nunca dizia sim, e nunca dizia não. Encorajava a eloqüência nos outros; não se deixava arrastar por ela. Era fácil depreciá-lo, ao ponto de alguns colegas mais bruscos lhe causarem certo desconforto. Concedia favores com facilidade.. . sobretudo se não custavam nada. Quando tinha de proceder a uma execução diplomática
fazia-o com tão delicada contrariedade que a vítima sofria pelo carrasco e morria com uma bênção nos lábios.
Tinha um respeito profissional por Mark Matheson, apenas vagamente nublado por uma dúvida pessoal. Era um banqueiro de posição. Era bem educado e competente. Compreendia e sabia interpretar a equação monetária da política embora por vezes se mostrasse ingênuo acerca das concepções tribais e carismáticas das relações do Oriente Médio. Era socialmente polido. Vivia sua existência particular com suficiente discrição; e, se seus deveres para com a pátria nunca tinham sido solicitados, também nunca tinham sido postos em dúvida. A dúvida a seu respeito era mais instintiva do que racional. Se se tivesse de escrever sobre isso, seria forçoso exprimir-se pela negação. Não havia nele força moral. Não havia direção perceptível. Tinha-se consciência de seu encanto, mas não uma idéia clara de seu caráter. Não respirava nem malícia nem entusiasmo; e até suas mulheres — e eram muitas — o descreviam em termos de indiferente afeição.
Agora, contudo, havia nele uma sutil mudança. Contou a história da oferta russa pelo Banco Fenício com grande vivacidade. Discutiu a possibilidade de uma tomada de posse americana com uma paixão não isenta de um matiz de desespero:
— Não se deixe iludir, Senhor Embaixador. Se os russos se anteciparem, ficarão em posição de controlar o programa de investimentos do banco, o que lhes dará uma enorme vantagem política. Poderão dominar as instituições em que investirem. Poderão formar alianças que, de outra maneira, estariam para além de suas possibilidades. Poderão comprar amigos e tomar partido contra os inimigos. Poderão exercer uma influência exagerada na política libanesa e também na política do petróleo.. . Custa-me ver isso acontecer.
— Está convencido, Mark, de que acontecerá? — perguntou o Embaixador com ênfase.
Matheson considerou a questão por instantes e respondeu sem hesitar:
— Sei que houve uma tentativa esta manhã. Sei que o Sr. Chakry está disposto a entrar em negociações.
- Pelo que ouvi, encontra-se atualmente sob grande pressão.
— Assim é, E também está desapontado e desiludido com a conduta daqueles que considerava amigos. Creio que está decidido a vender.
— E acha que é de interesse para a América comprar?
— Sim, acho.
— Mas o Governo dos Estados Unidos não é uma instituição bancária, é uma instituição política. Não vejo como podemos ou devemos intervir.
— O intererse russo faz disto uma situação política, Senhor Embaixador. Eis por que considero útil discutir o caso.
— Alegra-me que o tenha feito, Mark, embora não compreenda bem o que pretende sugerir-me.
— Nem eu. — Matheson mostrava-se aplicadamente franco. — Pensei que talvez estivesse disposto a comunicar o fato ao Departamento de Estado, que poderia recomendar um exame da transação por uma corporação bancária americana.
O Embaixador refletiu por instante na proposta e, depois, meneou a cabeça:
— É um assunto deixado numa sociedade de livre iniciativa. Não creio que qualquer dos nossos queira meter-se nisso.
— Como banqueiro e como cidadão, penso que se lhes devia dar oportunidade de considerar o problema. . . a um nível político.
— É uma boa sugestão, Mark. Contudo, como diplomata, vejo o caso de maneira um tanto diferente. A meu ver, devemos informar o Departamento de Estado do interesse russo e deixar que lá decidam se querem levar a transação adiante. Desta forma, ficaríamos ilibados de uma recomendação direta que poderia vir a resultar num erro.
- Faz sentido. Contanto que os russos não se adiantem mais do que seria de desejar.
— Por que se adiantariam, Mark, se não há outros concorrentes? E como poderiam firmar tão depressa uma transação desta natureza?
— Isso é muito possível. Os números do exame oficial são fáceis do obter.
— Os russos aceitá-los-iam?
— Não vejo por que não. Podiam regatear a boa vontade.
— Seria muito baixo, não lhe parece?
— Em termos de comércio, não. Para a maioria, é essa a imagem da boa vontade, que poderia ver-se um tanto comprometida pela política da atual situação. Isso resolver-se-ia rapidamente com uma negociação final.
— Chakry sabe que veio aqui, Mark?
— Sabe. Pedi-lhe autorização. Tive de o fazer,
— Opôs-se à idéia?
— Não. Antes me pareceu indiferente. — Ê um pouco estranho.
— Por quê, Senhor Embaixador?
— Um concorrente americano sgnifiçaria um leilão. Um leilão podia elevar o preço. Chakry dificilmente se mostraria indiferente a isso.
— Foi o que lhe disse. Sua resposta indicou-me o estado de seu espírito. Disse-me: ”Não tenho certeza de o querer.”
— E você acreditou?
— Acreditei e acredito.
— Isso soa-me mal, embora não conheça o Sr. Chakry tão bem como você. Seja como for, soa mal.
— Neutro, talvez. Mas Chakry abriu caminho à força até ao cimo. Teve de lutar para se agüentar aí. Ê razoável supor que chegou o momento em que deseja colher os lucros e oferecer-se uma vida fácil.
— Outra pergunta, Mark. Não seria preferível contatar diretamente com um banco americano e sondar seu interesse... sem jogo político?
— Não estou em posição de o fazer, a não ser que Chakry me peça. Sou funcionário do banco. Ele é o principal acionista. Pedi-lhe autorização para contatar com o senhor porque sou cidadão americano e minha lealdade está comprometida.
— E agora?. ..
— Tem a informação, Senhor Embaixador. Compete-lhe decidir.
O Embaixador recostou-se na cadeira e pôs-se a riscar um mata-borrão com a ponta de aço de um cortador de papel. Pela primeira vez, pareceu apreensivo, relutante em dar por finda a entrevista e, ao mesmo tempo, não sabendo como continuá-la. Por fim, disse:
— Deu-me respostas francas, Mark, que o acreditam. Tentarei ser sincero com você. Chakry é um grande homem com má reputação. Quanto mais ouvimos falar dele, menos o apreciamos. Entrega-se a demasiados jogos na sombra... jogos que nada têm a ver com o banco. Na semana passada, recebemos relatórios secretos assaz surpreendentes, em que o nome dele é citado com grande destaque. Não pretendo interrogá-lo a esse respeito, pois sei que é um funcionário de confiança. Nem sequer sugiro que esteja a par do que se passa. Contudo, gostaria que me respondesse a uma pergunta: sim não ou talvez. No seu trabalho com ele e para ele, confia no Sr. Chakry?
-No trabalho, confio. . . e é a única coisa que sei.
— Ponhamos a questão de outra maneira.
Declarou-me que é de interesse para a América comprar o Banco Fenício. Acha que se pode comprar com base nos números de Chakry?
— Se tivesse de aconselhar um comprador de qualquer empresa, reccmendaria um exame independente antes de assinar o contrato. É uma simples medida de senso comum.
— Acha que os números se agüentariam?
— O que pretende insinuar? — Matheson não escondeu a irritação. — Estamos solventes e com lucros. Os verificadores, que pertencem a uma das mais reputadas firmas do mundo, assinaram as contas. Não posso ir mais além.
— Não. Suponho que não. — O Embaixador
levantou-se e estendeu a mão. — Obrigado pela informação Mark. Discuti-la-ei com os serviços comerciais e enviarei um relatório a Washington. Depois, lavo minhas mãos.
Dois minutos mais tarde, Matheson estava ao sol, junto aos portões da Embaixada, perguntando-se se não teria cometido uma loucura e absolutamente convencido de que acabava de se transformar num mentiroso sem apelo nem agravo. O mais estranho é que não se sentia culpado, apenas uma aguda sensação de que tinha sido forçado a adotar aquele último e primitivo estratagema de sobrevivência. Quis mal ao Embaixador que tão rapidamente reduzira a farrapos sua capa de virtude. Quis mal a Chakry que, durante anos lhe forjara a mentira e a adornara com verdade suficiente para a tornar saborosa quando a proferisse. Quis mal ao indivíduo mesquinho e mole que vivia nele e o incitava a pequenas e ignóbeis loucuras, mas nunca aos grandes e arriscados empreendimentos de seu senhor. Uma buzina soou à sua retaguarda tão estridente e assustadora que se agarrou ao gradeampnto de ferro da cerca. Olhou raivosamente em redor e viu Lew Mortimer que lhe sorria pela janela de um enorme automóvel:
— Eh, Matheson! Suba. Levo-o até à cidade.
— Por amor de Deus, Mortimer! Pregou-me um susto dos diabos!
— Estava precisando. Parecia um sujeito com um burro às costas. Venha, vamos beber qualquer coisa.
Faltou-lhe energia para recusar. Não toleraria uma discussão com aquele bucaneiro indecente. Subiu para o carro. Mortimer riu satisfeito:
- As coisas vão mal, hem, rapaz?
— Não pior do que o costume.
— Não foi o que ouvi. Disseram-me que Chakry brinca de ”Sou espião”. Que está vendendo informações... aos kuwaitianos e aos jordanianos.
— Não sei a que se refere.
Mortimer lançou-lhe um rápido e profundo olhar. Depois, sacudiu a cabeça:
Acredito. Você é a espécie de indivíduo que desempenha seu dever no mercado da Bolsa e depois vai procurar uma região de lagos e pântanos. Mas devia ler também os jornais. Muito interessantes. Um de seus clientes mais antigos anda fugido, porque Chakry o vendeu. Chama-se Idris Jarrah. Trabalha para a O.L.P. Vendeu a Chakry uma informação qualquer sobre suas atividades na Jordânia. Chakry negociou a gravação e uma nota assinada. A verdade é que fez um rico negócio.
— Onde, diabo, ouviu isso? Mortimer riu de novo:
— Toda a cidade o diz. A imprensa sabe-o... embora não publiaue o nome de Chakry. Sabe-o a CIA.
Sabe-o o Embaixador. Falei cem ele antes de você chegar. É estranho que não lhe tenha falado nisso.
— Não falou.
— Posso perguntar por quê?
— Como, diabo, quer que o saiba? Não discutimos o assunto.
— Voltou a pensar em minha proposta?
— Não.
— Devia fazê-lo. É honesto, eu sei. Muitos outros o sabem. Mas se continua ali por muito tempo, acabará por ser enlameado. E lá se vai sua reputação mesmo no Líbano. Se não o acusarem de ser desonesto, acusá-lo-ão por não ter falado.- E isso é uma infelicidade dos demônios em nosso negócio.
— Nunca desiste, não é?
— Já lhe disse que sei odiar. Vou contar-lhe o que vai acontecer ao Sr. Nuri Chakry nas próximas três semanas.
E contou. Contou-o no bar do hotel Fenício com tanta abundância de pormenores e fria lógica que Matheson ficou estupefato. Terminou com um resumo que mais parecia uma sentença de morte:
— ... Portanto, Chakry só tem um lugar para onde ir! Tem dois buracos para se esconder e ambos na América do Sul, onde arranjou confusões bastantes para que o deixem viver em paz. Um deles pode extraditá-lo. O outro não. Sei-o porque mandei meus advogados estudarem o assunto particularmente. Mas no Líbano,na Europa e no mundo árabe, está acabado. Esta travessura com Jarrah fechou-lhe a tampa do caixão. Por isso, Mark, pergunto-lhe o que tenciona fazer depois do funeral.
— Segundo Chakry — disse Mark Matheson num murmúrio —, não haverá funeral.
— E acredita nisso?
— Por que me mentiria?
~ Porque precisa de você, rapaz. Precisa de você como um cadáver precisa de um embalsamador. . . para evitar o mau cheiro, Precisa de sua cara de rapazinho honesto à frente do negócio, enquanto ele faz rair pela dos fundos alguém que goza de influência junto da autoridade. Vá, Matheson! Seja sensato! Ele precisa de cinqüenta milhões pelo menos para se recompor. Por que não os consegue imediatamente?
— Disse-me que os tem.
— Onde e de quem? — Não sei.
— Perguntou a ele?
— Perguntei. Riu e declarou que os tinha, que os conseguiria no momento exato.
— Está trapaceando!
— Talvez não esteja.
— Pode prová-lo?
— Claro que posso.
— Nesse caso, vai fazer o seguinte. Amanhã de manhã, vá ter com ele em seu gabinete.
Diga-lhe que teve outra oferta. Ê verdade. Fui eu que a fiz. Diga-lhe que quer continuar com ele, mas que precisa de uma prova tangível de que terá o futuro assegurado no Banco Fenício. Peca-lhe para a ver a cor de seu dinheiro. E diga-lhe o que mais lhe parecer. Igualarei, até ao último dólar, em sete dias.
— Fará isso?
— Se a fiscalização dos investimentos for satisfatória, sim, farei!
— Ele não aceitará.
— Disso sei eu. Mas dê-lhe uma possibilidade de ser posto à prova. Talvez daí resulte qualquer coisa. Além disso... o que tem a perder?
- Nada.
— Então, mãos à obra, rapaz!
Mortimer sorriu por cima do copo, mas, se o sorriso era de mofa ou de encorajamento, Matheson estava demasiado confuso para o notar. A dançarina esperava que a levassem para jantar e depois para a cama; e aí, pelo menos, Mark Matheson lutaria em igualdade de condições.

JERUSALÉM, ISRAEL

O posto de observação israelense era uma fortificação de cimento situada num despido morro que dominava o vale do Hebron. A norte, sul e leste estendia-se o panorama da planície rochosa, minúsculas aldeias abrasadas, os rios e desfiladeiros dos montes baixos. No terraço, rodeado de sacos de areia fronteiriço à fortifcação, Jakov Baratz encontrava-se com o Chefe do Estado-Maior e seus colaboradores, observando o helicóptero que voava negro e orgulhoso, contra o deslumbramento do movimento do trânsito ao longo da estrada de Hebron e transmitia as coordenadas codificadas em hebraico para um operador de rádio na fortificação. Podiam ouvir sua voz, sem modulação, crepitar no ar seco, ver suas indicações traduzidas em símbolos na superfície plástica de um mapa de manobras militares.
Era uma cena estranhamente estática, como um ensaio de luzes num palco vazio. Não havia sentido de urgência, nem de perigo. Os atores permaneciam, silenciosos e relaxados, ouvindo o ruído do helicóptero e a repousada transmissão do observador. A planície apresentava-se nua e deserta, à exceção de um pastor beduíno que se erguia como uma minúscula estátua de pedra, apoiado a seu bordão e contemplando o sonolento rebanho que pastava. As aldeias estavam mortas como cemitérios, amontoadas por detrás de seus muros de pedra. O espaço aéreo era uma solidão resplandecente, onde o gafanhoto negro voava sem estorvo nem concorrência. A ilusão teatral era tão forte que Jakov Baratz teve de fazer um esforço para se integrar na realidade.
A aldeia não estava morta. Havia crianças que entoavam números na escola. Havia mulheres que batiam roupa no tanque. Havia trabalhadores rurais artesãos e fazendeiros que vigiavam a escassa terra nas margens dos rios. Havia um posto de polícia, onde profissionais como ele observavam o helicóptero e tentavam penetrar o significado de seu vôo sem objefvo. Havia também homens armados, tropas irregulares e maltrapilhas que se consagravam à destruição de Israel e à reparação de seu exproprado pedaço de quintal. Para oeste, do outro lado dos montes, havia aviões de combate dispersos por pistas secretas. Tripulantes de tanques inspecionavam seus veículos, caminhões carregados de tropas começavam a concentrar-se, armadas e com instruções para uma operação que transformaria o ermo vale numa fogueira e provocaria um trovão que ecoaria por todo o planeta.
Olhou por cima do ombro do oficial que registrava as coordenadas transmitidas pelo observador aéreo. Não havia modificações significativas na ordem de batalha sobre a qual a operação tinha sido projetada. A não ser que certas mudanças se impusessem nas próximas trinta horas, estava confiante no êxito. Essa confiança alegrava-o. Alegrava-o também o fato de se ver liberto de discussões e controvérsias, de ser uma vez mais o mercenário clarividente a quem pagavam por um trabalho bem feito e que, depois, dormia profundamente. Sentia-se grato por partilhar de novo a inquestionável camaradagem daqueles que vigiavam e defendiam os montes de Judá.
O Chefe do Estado-Maior dirigiu-lhe uma pergunta:
— Algo de novo, Jakov?
— Nada de importante. Movimentos de comboios em seu labor rotineiro. O resto é trânsito civil e turístico. Nenhuma mudança sob o ponto de vista aeronáutico.
— Ótimo!’ Transmita ao helicóptero. A mesma rotina amanhã de manhã e à tarde.
O operador transmitiu a ordem e, momentos depois, o helicóptero aterrou. Durante mais dez minutos, debruçaram-se sobre o mapa e, em seguida, Baratz e o Chefe do Estado-Maior desceram a encosta em direção à viatura militar.
— Irei com você — disse Baratz — até à área de concentração Chaim. Depois, volto para Telavive. A não ser que suceda qualquer coisa de especial, estarei aqui amanhã à tarde.
— Não é preciso, Jakov. Por enquanto, isto não passa de manobras .
— Quero estar presente — insistiu Baratz.
— Como queira.
— Quando atravessavam os desfiladeiros rochosos em direção à área de concentração, o Chefe do Estado-Maior perguntou, como que por acaso:
— Como se sente agora, Jakov?
— Melhor. Vou-me habituando.
— Mas ainda não, está convencido?
— Não.
— É muito fácil, não é?
— Demasiado fácil.
— Nem quero pensar o que seria, se decidíssemos expulsar os sírios das e!evações da Galiléia. Seria uma autêntica carnificina.
— Talvez tenhamos de o fazer... mais cedo do que pensa.
— Eu sei.
— Estive estudando outra vez a área. Pedimos mais informações ao nosso homem em Damasco. Mantém-nos regularmente a par da situação bélica, mas há uma perigosa fenda em nossas informações.
— A mesma?
— Sim. Não temos planos pormenorizados das fortificações sírias nos altos. Devem ser complicadas, pois sabemos que os russos têm estado trabalhando lá como técnicos e conselhe!ros. Mas não temos quaisquer planos. Em geral, os sírios não sabem guardar segredos. Neste caso, porém, sua segurança tem sido perfeita.
— Seja como for, temos nosso próprio plano de batalha.
— Baseado em bombardeamentos de cobertura e napalm. Não me parece que seja suficiente. À primeira vaga de infantaria pode ser chacinada.
— Seu agente conseguirá ajudar-nos?
— Está em sua lista de projetos. Sei que está trabalhando nisso e sei que levará tempo. Não o tenho assediado, porque também temos tempo. Pelo menos, julgávamos ter. Já não estou tão certo.
— Nem eu Jakov. Seria preferível dar prioridade ao projeto sobre a Síria. Paremos aqui por um momento.
Estavam no cume de um alto espinhaço que pendia abruptamente para um vasto vale em forma de pires, semeado de jovens pinheiros. Depois dos contornos nus das dunas o verde era um descanso para os olhos e para o espírito... até que, após um momento inicial de prazer e surpresa, se via que a floresta estava animada por homens, aquartelados debaixo das árvores, que as clareiras serviam de parque de estacionamento de tanques, aos blindados e aos carros militares, um jardim zoológico habitado por implacáveis monstros.
— Impressionante, não lhe parece, Jakov?
— Um rolo compressor para esmagar um mosquito .— respondeu Baratz secamente. — A imprensa foi convidada?
— Não. A máxima regurança... a máxima surpresa. A imprensa virá quando tudo estiver pronto e então prepara-se a história a seu gosto.
Baratz assestou o binóculo de campanha e examinou o vale com atenção profissional.
— Um bom desdobramento. Camuflagem deficiente em alguns pontos. É tudo?
— Não. O restante chegará ao cair da noite. O controle noturno do tráfego é um bom exercício. Vamos falar com Zakkai e seus homens.
— Antes disso, Chaim. ..
— Diga.
— É um assunto pessoal. Gostaria que me ouvisse.
— Continue.
— Nosso homem em Damasco vai divorciar-se. A mulher dele concordou. Arranjei discretamente as coisas com o Rabinado. Ele está apaixonado por uma moça de Damasco.
— O que não é agradável, sob nosso ponto de vista, Jakov.
— Não, Mas a não ser que o dispensemos imediatamente. . . e não desejo fazê-lo, temos de utilizá-lo e ver como trabalha.
— Disse que era pessoal, Jakov.
— E é. Estou enamorado da mulher dele.
— Oh!... — Um pouco de surpresa. Um breve silêncio. — E Hannah?
— Lieberman diz que não há esperança. Esperarei até ter certeza.
— Por que me conta isso, Jakov?
— Por nada. Julguei que gostaria de saber.
— Obrigado pela confiança. É um problema difícil. Lamento. Mas isso não altera nossas relações...profissional ou pessoalmente .
— Quanto a mim, altera — disse Baratz calmamente. -E altera também no aspecto profissional.
— Como?
— Perguntou-me pelos planos das fortificações. Não insisti em consegui-los porque tinha um bom motivo.
— Qual?
Com branda e amarga ironia, Jakov Baratz citou as palavras do profeta Samuel:
— E David escreveu uma carta a Joab, dizendo: Manda... Urias para a parte mais renhida da batalha e retira-te de forma a que ele seja derrotado e morto... E Urias, o hitita, morreu... E quando o luto passou, David mandou levar Betsabé para sua casa e fez dela sua mulher... Não podia fazer o mesmo, Chaim. Não podia.
— E agora?
— Posso. Ele pediu divórcio. Yehudith já nada tem a ver com ele. E não é minha mulher ou minha amante.. . ainda.
— É uma moralidade um tanto exacerbada, não acha?
— Assim é! — Baratz ergueu o braço e apontou para o acampamento do vale. — E já não há profetas que nos transmitam a vontade de Javé Eloim.
— Não o censuro, caro amigo — disse amavelmente o Chefe do Estado-Maior. — Não precisa justificar-se perante mim.
— Perante quem, então?
— Apenas perante você mesmo. Mas temos de inspecionar as concentrações, não lhe parece?
— Sim. Temos de inspecioná-las.
Voltaram para o carro e seguiram por entre as sombras aprazíveis dos pinheiros daquele jardim de monstros.

DAMASCO

Na noite de seu regresso de Beirute, o Coronel Omar Safreddin presidiu a uma reunião do Club Hunafa e escolheu para texto de seu discurso a sutra denominada ”Al Mujâdilah”: A que provoca discussão.
”Ó vós que acreditais! Quando conspirais juntos, não conspirais pelo crime, as más ações e a desobediência para com o mensageiro, mas conspirais pela justiça, a piedade e o cumprimento dos vossos deveres para com Alá, ao qual vos reunireis...”
Leu o texto duas vezes para o imprimir em seus espíritos. Depois, começou a comentá-lo, viva e apaixonadamente:
— Em nome de Alá, o bem-fazejo, o misericordioso... Em primeiro lugar, meus irmãos, sabem que nesta revelação o Profeta esclarece a distinção entre os usos da conspiração. Não diz que a conspiração é um mal em si mesma. Pelo contrário, recomenda-a quando seus objetivos são bons. Nós somos conspiradores, porque nos reunimos secretamente para discutir o que, vulgarmente falando, possa despertar suspeita e discórdia. Somos aqueles a quem o Profeta invoca... ”Ó vós que acreditais!” Somos os crentes. Acreditamos no Islame acreditamos na missão unificadora do Islame. Acreditamos no Baath como seu instrumento político. Acreditamos no direito do iluminado a aconselhar e do forte a comandar. A conspiração em que estamos comprometidos é uma conspiração de esclarecimento, uma conspiração para provar secretamente nossa força antes de sermos chamados a exercê-la abertamente. Mas há
outros, aqui e além, que conspiram de maneira diferente, a favor do crime e do mal... Temos de extirpá-los da terra, antes que se transformem numa praga entre nós.. . Na nossa última reunião, fiz-lhes uma pergunta: admitindo que há um novo agente de Israel em Damasco como e onde começar a procurá-lo? Se têm as respostas, gostaria de ouvi-las já...
Houve uma breve e embaraçosa pausa que provocou a impaciência de Safreddin:
— Falem por ordem de grau e antiguidade. Você, Major! O Major era um indivíduo baixo e atacarrado com uma constituição de lutador romano, mas sua voz era abafada e profunda:
— Eu ccmeçaria, Coronel, pelas camadas baixas. Eli Cohen vivia numa posição de evidência. Este deve ser muito vulgar. Deve tratar com gente inferior.
— E como consegue as informações acerca dos assuntos importantes, Major?
— Nessas camadas baixas a que me referi... escriturários, tipógrafos, funcionários que farão tudo por um pouco de dinheiro extra, um garçom que serve as refeições numa Embaixada, um motorista de caminhão do Exército, um operador das comunicações. É gente que vê e ouve muito mais do que se supõe.
— E essa gente conhece-o?
— Não. Ele está sempre mudando. Aprendeu com os erros de Cohen, que esteve sempre em contato direto com suas fontes.
— Nesse caso, precisa de uma rede?
- Exatamente.
— Como a controla?
— Pelo sistema de grupo. .. o grupo de três, o grupo de cinco.
— E onde vai buscar os chefes de grupo?
— Procura os que têm necessidade de dinheiro, de um amigo. Os que albergam o ódio. A mulher que pretende um amante. Nunca trata diretamente com eles, mas através de outro.
— Que outro?
— Alguém que possa dispensar favores. Um oficial que concede licenças e dispenas, um lojista que vende a crédito, um médico, um guarda fiscal.
— Pode fazer-me um retrato de nosso espião?
— Não, Coronel, não posso.
— Capitão Shabibi?
Agora era um homem mais novo, magro e elegante, um pouco enervado com a inspeção do grande Safreddin.
— Com licença, Coronel — interferiu o atento Shabibi — também falhamos nesse ponto. Não há uma via normal através da qual um visitante ou um comerciante amigo possa ser introduzido em nossa sociedade, a fim de que possamos conhecê-lo.
— Essas vias existem, Capitão. Nunca deixamos de oferecer os favores do comércio e da diplomacia a nossos visitantes.
— Isso não basta Coronel. Há demasiado formalismo. Todos mostram sua cara pública, mas escondem a verdadeira. Estamos imitando os russos e chineses, que tanta influência exercem em nosso país.
Um murmúrio de espanto percorreu o círculo de iniciados. Todos os olhos se voltaram para o inverossímil indivíduo que se atrevera a um tão corajoso desafio em público. Safreddin ficou imóvel, branco como a cal medindo o jovem e refletindo nas implicações de seu desabafo. Tinha orgulho nele e no entanto, a infâmia da suspeita ofuscava o orgulho. Tinha-o elogiado e, no entanto, estava violentamente tentado a escarnecer de sua indiscrição. Havia um poço aberto sob seus pés e podia precipitar-se nele com toda a facilidade, a não ser que reprimisse a vaidade é dominasse o medo de rivais em potencial. O Capitão Shabibi continuava de pé, à espera. Finalmente, Safreddin falou com serenidade e persuasão:
— Por favor, sente-se, Capitão. . . Antes de mais, deixe-me dizer-lhe que sua franqueza não me agrada. Não é aconselhável fazer declarações impopulares, mesmo nesta... conspiração de justos. Meu maior desejo seria que nos pudéssemos apresentar evoluídos, orgulhosos e fortes entre as nações; de tal modo que todos os estrangeiros se sentissem honrados por entrar em nossa casa e compartilhar da intimidade de nossas existências. Mas a Síria atravessou um longo período de doença. Vencemos a enfermidade, é verdade. Mas o paciente continua em convalescença. Persiste a atmosfera do hospital e a humilhação de sucessivos tratamentos. Nossa cara autêntica, como disse, ainda está pálida e macilenta. Por isso, agarramo-nos a nossos amigos mais fortes: aqueles que tiveram a mesma doença, que suportaram o mesmo remédio azedo da revolução, que estão em condições de nos ajudar a recuperar com seu dinheiro, suas armas e seu apoio comercial é político. Deram-nos sangue novo. Estão-nos ajudando a criar ossos e músculos fortes para o dia da batalha decisiva. Compreende?
— Compreendo, Coronel. Mas...
- Deixe-me explicar esse mas. Capitão... a você e aos outros. Não apreciamos todas as atitudes de nossos amigos. Não compartilhamos de todas as suas ambições a nosso respeito. Assim
como não compartilhamos dos planos dos egípcios, embora tenhamos uma força conjunta. Mas não quebramos nossa amizade por isso. Estamos acima dessas coisas. Curvamo-nos como os juncos do Tigre ao vento. Quando o vento desaparece, voltamos a endireitar-nos. Consentimos que os russos nos ensinem organização e administração. Consentimos que os chineses nos ensinem a maneira de preservar a unidade política, ao mesmo tempo que prosseguimos na luta interna. Contudo, continuamos nós próprios. .. enraizados no Islame, enraizados nesta terra que foi outrora o trono do Islame. Agora...
— Deteve-se e contemplou o pequeno grupo com afeição e autoridade —... Agora, voltemos à pergunta a que responderam em parte, mas não totalmente. Como apanhar nosso espião e destruir sua rede? Como apanhar o rato que nos rói os sacos de milho? Vou dizer-lhes. Um espião só trabalha com um objetivo: informações. Como obrigá-lo a sair de seu esconderijo?. .. Com a isca da informação! Você, Capitão Shabibi, se fosse um espião judeu, o que procuraria saber a nosso respeito?

Selim Fathalla tivera um mau dia. Desde o almoço que o preocupava a disputa com Sérgio Bellarmino — uma disputa que introduzia novos riscos numa situação já bastante perigosa. Emilie tinha-se sentido insultada e passara a tarde num tal estado de tensão lacrimosa que a mandara mais cedo para casa. Bellarmino tinha-a recusado como guia e intérprete: em vez disso, saíra para se desempenhar de suas próprias incumbências junto dos comerciantes e dos funcionários do Ministério do Comércio. Ou o homem era um louco rematado ou estava jogando uma partida secreta sob instruções de Telavive. .. Contudo, não era aquela a maneira de Baratz. Este escolhia sua gente com cuidado e depois esperava dela o máximo, assistia-a em suas crises e assumia a responsabilidade final. Todos os mensageiros que enviava traziam uma mensagem de confiança e uma palavra de encorajamento. Mas este indivíduo não se contentava em ser um mensageiro; agia também como inspetor. Propunha juízos morais... um luxo extravagante num negócio essencialmente amoral. Reivindicava uma autoridade que não tinha o direito de exercer. Era demasiado propenso à ira, demasiado confiante em sua integridade para andar à solta entre um povo há muito conhecido por sua flexibilidade e sutileza.
Desde o princípio da tarde que andava em liberdade. Havia telefonado uma vez para dizer que um funcionário do Ministério do Comércio o tinha convidado para jantar na noite seguinte e que Fathalla estava também convidado. Depois disso, nada. Desesperado, Fathalla dirigia-se a seu hotel às nove horas da noite, onde lhe disseram que o cavalheiro tinha alugado um carro para ir a Aleppo e que só voltaria no dia seguinte à tarde. Semelhante conduta, não fazia sentido; a não ser... uma nova idéia o atravessou e analisou-a longamente, enquanto Emilie se debatia num sono agitado, resmungão e lamentoso.
Os serviços secretos israelenses não constituíam uma organização autônoma. Havia o G2 das Forças Armadas, que passava por Jakov Baratz. Havia a Divisão de Pesquisas e Análise do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Havia também um serviço que lidava com a contra-espionagem e dependia diretamente do Primeiro-Ministro. Como tudo em Israel os três departamentos trabalhavam umas vezes de acordo outras em concorrência. Não era impossível que Baratz, preocupado com sua infração à segurança com Emilie, tivesse chamado um homem de contra-espionagem para o vigiar. Era uma idéia suja que lhe arrepiava a pele como um ouriço; mas não podia deixar de a levar em conta. Pelo menos, explicava a extraordinária brusquidão de Bellarmino e seu evidente desejo de pôr Emilie e o próprio Fathalla na defensiva. Havia uma única forma de saber a resposta verdadeira; perguntar a Baratz. Olhou para o relógio. Dez e quarenta e cinco. O contato noturno com Telavive previa uma transmissão aos trinta e cinco minutos depois da meia-noite. Fechou a porta do quarto, abriu o painel de faiança, debruçou-se no sistema e começou a codificar seu relatório.
Trabalhava há cerca de vinte minutos quando a campainha da porta tocou. O som alarmou-o. Os visitantes noturnos eram raros em Damasco. Abandonou seu refúgio na parede fechou o painel de faiança e enrolou-sè numa capa. A campainha tocou outra vez, um som prolongado e impaciente que ecoou pela casa. Desceu ao rés-do-chão e abriu a pesada porta de madeira. Um caminhão cheio de vegetais estava estacionado em frente e o motorista de pé à entrada, um indivíduo vulgar e truculento que tresandava a aguardente. Aqarrado a ele, como um pugilista bêbado de ponche, estava Sérgio Bellarmino: tinha as roupas rotas e imundas, o rosto cheio de arranhões e contusões e a cabeça envolta numa atadura suja e manchada de sangue.
— Alá! — praguejou o motorista com maus modos. — Julguei que nunca mais vinha.
— Que aconteceu?
— Um acidente. Sessenta quilômetros ao norte. Um táxi foi atingido por um caminhão. O motorista morreu. Este foi cuspido. A princípio, portou-se bem. Disse-me o nome e trouxe-o. Depois, desmaiou. A polícia quer vê-lo de manhã. . . Alá! Fique com ele... E há dinheiro a pagar.
— Primeiro, ajude-me a levá-lo para dentro.
Transportaram Bellarmino para o andar de cima e estenderam-no num divã, no quarto. Estava muito contundido e agitado, balbuciando incoerentemente, ao mesmo tempo que uma espuma sangrenta lhe escorria dos lábios. Emilie acordou e levantou-se, de olhos esbugalhados, enrolando seu corpo nu nos lençóis. O motorista fitou-a com aprovação de ébrio. Fathalla meteu-lhe um maço de notas na palma da mão, empurrou-o para fora da casa e fechou a porta.
Quando voltou ao quarto, Emilie preparava água quente e toalhas. Deu-lhe uma ordem breve:
— Chame o Dr. Bitar. Ele está muito mal.
Fathalla discou o número de Bitar e esperou muito tempo, até que Bitar respondeu, irritado e cheio de sono. Contou-lhe o que se passava:
— Um sócio meu chegou hoje. Teve um acidente. Tem a cabeça quebrada e outros ferimentos. Parece grave. Gostaria que viesse vê-lo imediatamente.
— É melhor chamar uma ambulância e levá-lo para o hospital. Vê-lo-ei lá.
— Não me parece que possamos transportá-lo.
— Dê-me quinze minutos. Irei aí.
Bellarmino estava agora mais tranqüilo, o que lhes permitiu limpá-lo, despir-lhe o casaco esfarrapado e cobri-lo com cobertores. Enquanto Emilie ficava sentada junto dele, Fathalla revistou-lhe os bolsos. Encontrou dinheiro miúdo, um lenço ensangüentado, um passaporte italiano, um atestado de saúde internacional, uma carteira bem fornida de notas sírias e talão de cheques de viagem no valor de cinqüenta e cem dólares cada um. Havia sete cartões de visita que identificavam Sérgio Bellarmino como representante da Intercommercio Bellarmino, de Roma. Havia uma agenda cheia de endereços e números de telefone e costurado por dentro do forro, um pequeno objeto pesado e retangular. Fathalla descoseu o forro e retirou-o. Era uma placa de ouro tendo gravada no centro a Estrela de David; no reverso, em caracteres hebraicos, estavam os nomes dos campos de concentração europeus e, por baixo de cada um deles, o número de vítimas que ali haviam morrido. Fathalla gritou um palavrão.
Surpresa, Emilie ergueu os olhos:
— O que descobriu, Selim?
— O bastante para nos enforcar a todos. Bellarmino é um louco e um fanático. Andar com um talismã como este é contra todas as regras. Ainda bem que não o usava ao pescoço!
Lançou uma olhadela nos endereços. Só Deus sabia o que poderiam revelar! Não tinha tempo para os examinar agora. Guardou a agenda e a placa atrás do painel e voltou a meter a carteira e os documentos no casaco.
Emilie tomou o pulso a Bellarmino:
— As pulsações são muito fracas.
— Oxalá morra.
— Não diga isso, Selim.
— Desculpe.
— O que lhe aconteceu?
— Apenas sei o que me disse o motorista do caminhão. Um acidente. Aparentemente, Bellarmino ficou suficientemente bom para agüentar o regresso. Teve um desmaio a meio do caminho. Alá! Se o levassem para o hospital!. ..
— Por favor, Selim, acalme-se. O Dr. Bitar dirá o que é preciso fazer.
— De manhã, teremos a polícia em nossos calcanhares.
— Isso é amanhã. Agora, ocupemo-nos da noite.
Bellarmino recomeçou a agitar-se e a gemer. Desta vez as palavras eram claras. . . quatro palavras repetidamente proferidas, como se gravadas num rolo de fita magnética: Barukh attà Adonai elohenu... Barukh attà Adonai elohenu... Barukh attà...
Emilie olhou para Fathalla; ele tinha o rosto tenso e contorcido.
— Que diz ele?
— É hebraico. As primeiras palavras da oração: ”Bendito sejas, ó senhor nosso Deus!” Por que diabo, não se cala?
A campainha da porta tocou. Uma vez mais, Fathalla saiu e desceu precipitadamente as escadas. A cabeça de Bellarmino rolava de um lado para o outro no travesseiro e as palavras caíam monotonamente com uma queda d’água: ”Barukh attà Adonai elohenu.. . Barukh...”
Pouco depois, o Dr. Bitar entrava no quarto, seguido por Fathalla. Contou as pulsações e procedeu a uma auscultação. Examinou os olhos os ouvidos e as narinas, arrancou a atadura ensangüentada e apalpou a caixa craniana, enquanto as palavras continuavam a escoar-se dos lábios espumantes. Por último, Bitar endireitou-se e anunciou:
— Fratura e hemorragia. Nada podemos fazer aqui. Chame uma ambulância, enquanto telefono para o hospital para que estejam preparados.
— Espere! — deteve-o Fathalla. — Por quanto tempo vai ele delirar assim?
Bitar encolheu os ombros:
— Até que a presrão seja removida, ou da fratura, ou do coágulo de sangue.
— Voltará a falar?
— É possível. Quem sabe?
— Compreende o que ele diz? Bitar escutou por instantes:
-— Parece árabe, mas não é.
-— É uma oração hebraica. Não podemos correr o risco do hospital.
— Também não o pode correr aqui — disse Bitar, com firmeza. — Morrer-lhe-á nas mãos. Morrerá de qualquer maneira.
— Nesse caso, mate-o! — exclamou Selim Fathalla. — Mate-o já!
Olharam para ele, silenciosos. O único som no quarto era a voz uniforme e insistente de Sérgio Bellarmino, pronunciando sua enfadonha oração.
— Pode fazê-lo. — O tom de Fathalla era frio e impessoal. — Injete-lhe adrenalina no coração... uma boa dose. Tem de fazê-lo. Três vidas, vinte vidas, cinqüenta. . . contra uma. Faça-o.
Sem proferir palavra e com toda serenidade Bitar levantou-se. Tirou da maleta uma comprida seringa, uma agulha envolta num plástico esterilizado e uma ampola de líquido claro. Ajustou a agulha, encheu a seringa e passou-a a Fathalla. Não havia tremor nem em sua mão, nem em sua voz.
— Faça-o você Selim. Dir-lhe-ei onde injetar. É um judeu. Você tem direitos de família. Eu sou árabe. Se o que faço e arrisco significa alguma coisa, é que um árabe não deve matar um judeu.. . Injete aqui.
Abriu o peito da camisa de Bellarmino e apontou o local com o indicador.

JERUSALÉM, JORDÂNIA

Os preparativos feitos por Idris Jarrah para sua fuga para a Terra Prometida do anonimato e da riqueza eram muito simples. Meteu duzentos dólares em dinheiro num dos bolsos das calças. No outro, guardou a pistola com um carregador completo. Envolveu o restante dos dez mil dólares num lenço limpo e ligou-o ao corpo com fita adesiva. Em seguida, vestiu a camisa, deu o
nó na gravata, enfiou os passaportes, os atestados de saúde e o novo talão de cheques americano no bolso do casaco —
e considerou-se preparado para a viagem,
Tinha pensado cuidadosamente em tudo. A mala e a pasta ficariam no quarto. Continuava hospedado no hotel Intercontinental. Se surgisse qualquer obstáculo nos planos para a noite, podia voltar atrás, reclamar o passaporte grego e pedir autorização para atravessar a Porta de Mandelbaum, Uma vez em Israel, compraria uma nova mala cheia de roupas e utilizaria seu passaporte italiano para se identificar como turista e garantir uma saída segura do aeroporto de Lod. Passou um mau momento quando se lembrou que seu passaporte italiano não tinha visto de entrada para provar que havia sido legalmente admitido em Israel. Mas recordou-se de que, por causa do boicote árabe, os israelenses admitiam seus visitantes, sem lhes visar os passaportes a fim de que pudessem voltar a viajar pelos países árabes. Portanto, não tinha que se preocupar. Israel era uma nação pacífica e ninguém interrogaria um respeitável cidadão por passear de manhã cedo pelos subúrbios.
Sentiu-se tão satisfeito que lhe apeteceu fazer uma breve visita à viúva da cidade antiga; mas faltavam vinte e cinco minutos para as onze e, dentro de uma hora, era esperado em casa de Hamid, o fabricante de candelabros. Lançou um último olhar ao espelho e viu um sujeito de aspecto repousado e rosto redondo com vinte anos de boa vida à sua frente. Depois, dirigiu-se para o vestíbulo, chamou um táxi e tomou a estrada para Belém.
Nessa noite — Alá seja louvado — não havia luar. O céu cintilava de estrelas que pareciam estar ao alcance da mão. A atmosfera era fria e em breve, nos planaltos, o vento do deserto começaria a soprar. Era uma noite ideal para sua aventura. A dez metros das luzes pálidas das aldeias era impossível distinguir um homem de uma rocha. O frio impedia os movimentos dos guardas fronteiriços e, logo que o vento se levantasse, redemoinharia e turbilhonaria de tal maneira através dos montes sucessivos que seria difícil descobrir a direção verdadeira de qualquer som.
No entanto, quando as luzes da cidade antiga ficaram para trás, Jarrah sentiu uma leve angústia. Era a raiz do ser que o pregava tenazmente ao solo pátrio. Era a memória popular que despertava penosamente num reflexo de luz, num aroma de poeirentas flores, no ritmo de uma frase proferida na língua materna. Mas quando se viaja demoradamente e por longe, tornamo-nos como os beduínos, os habitantes da areia, que vivem sem embaraços, amando sem perpetuidade, não construindo nada, porque amanhã a areia sepultá-lo-ia. E passado tempo, as lembranças que nos prendiam ao torrão natal tornam-se vagas e tênues, como uma canção assobiada por um pastor na encosta, apenas ouvida e logo olvidada.
A casa de Hamid, o fabricante de candelabros, ficava no meio de uma ruela bastante larga para um camelo, mas demasiado estreita para um automóvel. As pedras do pavimento fediam a refugo, a excrementos de burro, a lavaduras derramadas pelas janelas das casas. No momento, as janelas tinham as persianas corridas e a única luz provinha das estrelas baixas e do débil clarão das lâmpadas amarelentas por detrás das ripas. Idris Jarrah abriu caminho por entre o entulho e chegou até junto da pequena porta, enquadrada num arco normando. Dois degraus conduziam à porta, no centro da qual havia um postigo com cortinas interiores e protegido por fora por barras de ferro enferrujado. Jarrah bateu à porta uma, duas pancadas, depois mais duas. As cortinas foram afastadas e um par de olhos de velho inspecionaram-no. Em seguida as cortinas voltaram a fechar-se, ouviu-se o ranger de pesados ferrolhos e a porta entreabriu-se. Desceu mais três degraus até uma sala impregnada de cheiro de cera, incenso, tabaco turco e café estragado.
Havia nessa sala velas empilhadas do soalho ao teto: círios delgados, brancos e amarelos, cubos achatados e moldados com imagens de santos bizantinos longos arabescos verdes, amarelos e vermelhos, velas brancas de Pascal com tachas, os Três Magos com pavios que brotavam de suas coroas, as Virgens Prudentes e a Louca, pintadas com cores vivas e infantis em torno de uma espiral tão grossa como uma coluna. No meio de tudo isto, estava Hamid torcido como uma oliveira velha grisalho como um patriarca bíblico. Juntou as mãos numa saudação e inquiriu:
— É o homem que esperamos?
— Sim. Conhece-me, Hamid?
— Não me pediram para o conhecer. Apenas para lhe indicar o caminho.
Bateu palmas. As cortinas dos fundos da sala foram afastadas e um jovem, de sandálias, calças folgadas e camisa ensebada, avançou. O velho apresentou-o sem cerimônia:
— É Yussuf. Levá-lo-á.
— Onde vamos?
— Primeiro, a Hebron — respondeu Yussuf. Tenho um caminhão. Transporto peles para os curtidores.
— E depois de Hebron?
— Os outros encarregar-se-ão de você.
— Quanto lhe devo?
—- Nada. Somos pagos por Hebron. Entenda-se com eles.
— Então, vamos. Obrigado.
— Tikram... Seja bem-vindo.
O velho retirou-se, indiferente. Jarrah seguiu seu guia até um pátio, para lá das cortinas, onde os tanques de cera se alinhavam sob telhados de chapa ondulada. No extremo do pátio havia um portão que dava para outra ruela, agora mais ampla, mas que fedia a peles frescas. O fedor provinha de um caminhão cheio até em cima de peles de carneiro e cabra. Jarrah tossiu e cuspiu.
O rapaz riu:
— Habituar-se-á depressa. Dê graças por não ter de ir debaixo das peles. Não seria o primeiro!
Jarrah subiu na cabina. Seu guia acionou a manivela, arrastou-se para o lado dele, ligou o barulhento motor e arrancou com um solavanco temerário. Yussuf conduzia como um maníaco pelas íngremes ladeiras e incitava o velho veículo a subir as encostas por entre pragas e invocações obscenas. Fazia as curvas por fora, de tal modo que a carga se desprendia e espalhava numa desordem indecente por todo o vale. Perseguia implacavelmente os veículos da frente, tocando a buzina e gritando de júbilo quando os ultrapassava no único momento possível. Quando Jarrah o admoestou, riu satisfeito:
- Se formos devagar, terá de agüentar o fedor. Se formos depressa, ver-se-á livre dele. Escolha!
Jarrah decidiu contra o fedor e suportou o resto da arrasadora corrida em silêncio. Finalmente, deixaram a estrada principal e seguiram os profundos sulcos do vale do Hebron. Passaram por uma e outra aldeia e depois pararam a uma centena de metros dos limites de um povoado razoavelmente grande. O jovem apontou através do pára-brisas partido.
— Deixo-o aqui. Siga em linha reta. A quinta casa à direita. Bata quatro vezes.
— Por que não me leva até lá?
— Tenho de entregar esta mercadoria. Tem um cigarro?
— Não fumo.
Jarrah desceu do caminhão e desentorpeceu os músculos paralisados. O jovem descreveu com o caminhão um vasto círculo à sua volta e seguiu em direção à estrada principal. Idris Jarrah dirigiu-se para a aldeia. Havia poucas luzes. O movimento era inexistente. Seus passos soavam desagradavelmente no cascalho solto do caminho. Ao passar pela primeira casa, um cão acorrentado ladrou-lhe e continuou a ladrar até que uma voz praguejou
no silêncio. Jarrah contou as casas. Ao chegar à quinta, parou. Estava às escuras e silenciosa. Aproximou-se da porta e bateu quatro pancadas em rápida sucessão.
Houve uma longa pausa, depois a porta se abriu. Uma voz convidou:
— Entre, amigo.
E Jarrah penetrou nas trevas.

10
BEIRUTE

Às dez e quinze da manhã Nuri Chakry recebeu um telefonema do representante de um banco suíço em Beirute. Era um gesto de delicadeza, para informar o Sr. Chakry de que os suíços estavam na posse de um cheque pós-datado de quinze milhões de dólares sobre um depósito saudita no Banco Fenício. Seria apresentado para pagamento dentro de dez dias. Nuri Chakry agradeceu a delicadeza e garantiu a seu colega que o cheque seria imediatamente descontado. Às dez e trinta em ponto, a agência de um banco inglês proporcionou-lhe outra delicadeza semelhante. Iam apresentar três cheques kuwaitianos dentro de dez dias, num total de trinta milhões de dólares. Nuri Chakry deu-lhes a mesma garantia de pronto pagamento e pousou o fone.
Um suor frio umedecia-lhe as mãos. Sentia um vazio no estômago e contrações por todo o corpo. Não estava surpreendido. Sabia que não tinha motivos para ficar chocado. Era assim que se anunciava a execução de alguém no pequeno mundo das finanças. Enviava-se um convite impresso para a cerimónia e
concedia-se o tempo necessário para o condenado se entreter com seus pesadelos antes de ser liquidado. Não eram brutais; nem sequer eram desagradáveis. Mostravam-se mecanicamente exatos em toda a transação. Um cheque era um documento pagável à vista mas a decência exigia um prazo de sete dias para o pagamento de um capital importante. A ele davam-lhe dez. Como podiam considerar-se culpados? Como podia sentir-se ofendido?
Ê claro que pagaria. Ainda estava três e meio por cento solvente . Mas outro telefonema como aqueles arruiná-lo-ia... e esse telefonema seria feito. Quem, em perfeito juízo, continuaria a confiar seu dinheiro a um homem que já estava condenado à morte? Dentro de dez dias, a não ser que o governo o evitasse, teria de fechar as portas e deixar milhares dos depositantes menores chorando por seu dinheiro. Nessa altura, não serviria de nada explicar que os fundos deles tinham sido temporariamente investidos
num arranha-céu de Manhattan, num estaleiro e numa companhia de aviação, em dúzias de hotéis e numa centena de outros projetos impressionantes, mas inacreditáveis; não serviria de nada mostrar-lhes que esses investimentos se reproduziam como cogumelos num diagrama. Tinha feito uma transação com eles que não podia cumprir. O contrato estava assim redigido: ”Deposite aqui seu dinheiro e o entregarei a você a qualquer momento, dentro do horário do banco, nos seis dias da semana.” Se não entregasse o dinheiro, exigir-lhe-iam o sangue... e tinham todas as probabilidades de consegui-lo.
Durante muito tempo, lograra escapar à violência; mas, agora, via-se perseguido por ela: um jogador fraudulento espancado até à morte numa viela próxima de seu escritório das docas; um alcoviteiro que tenha vendido infelizes moças, espancado até à medula pela tripulação de um armador alemão; os massacres na Jordânia Ocidental quando era rapazote; os sangrentos e violentos dias do Bando Stern e da polícia da Palestina. Vira o que a plebe podia fazer com pedaços de tijolo e garrafas de petróleo. Já a ouvira cantar, enraivecer-se e despedaçar as janelas de vidro do palácio de sonho que edificara com seu dinheiro.
Então, com igual nitidez, viu que essa mesma violência podia ser sua salvação. Às voltas com a desordem civil, com a destruição da confiança pública, com a deformação da imagem do Líbano como porto seguro para os capitais, como paraíso dos turistas, o Ministro das Finanças e o Banco Central teriam de ajudá-lo. Não importava que preferssem vê-lo cozido em azeite, tinham de o manter salvo e respeitado. A tensão diminuiu. Limpou as mãos úmidas e enxugou a testa, respirou profundamente e sentiu o pulso normalizar-se. Depois, serviu-se de sua linha particular e falou com Taleb.
— Taleb?... Chakry. Estou à espera de notícias suas ou do Ministro. Não recebi nada.
— Ainda não foi tomada qualquer decisão. — Taleb mostrava-se brusco e desagradável. — O Ministro regressou há poucos dias e tem estado muito atarefado.
— Foi posto a corrente do nosso problema?
— Não tenho a certeza. Preciso consultar os fichários.
— Não há pressa — disse Chakry despreocupadamente. — Sei que estão todos muito ocupados. Mas pensei que gostaria de saber. Dentro de dez dias, pagaremos vinte e oito milhões contra documentos à vista. No dia seguinte, estaremos fora do negócio.
— Como! — Gaguejou Taleb como um papagaio assustado. — Você disse-nos. .. Pensávamos. . .
— Não pensaram absolutamente nada! — interrompeu Chakry com melíflua malicia. — Estiveram tão ocupados em afiar as facas para mim que não se preocuparam com o que pudesse acontecer. Pois bem, irmãozinho isso acontecerá dentro de dez dias. Estamos solventes mas não temos dinheiro em caixa. Nem para pagar ao governo, nem para dar aos pequenos comerciantes, nada de nada. É tudo seu, agora.
— Não, espere! — Taleb estava desesperado. — Se nos mandasse os números. . .
— Já os têm. Estão em seus arquivos. O que não tomaram foi uma decisão. Sugiro que a tomem.
— Isso levará alguns dias.
— Levem os dias que quiserem. Fecharemos as portas dentro de dez.
Taleb continuava a gaguejar desagradavelmente, quando o outro desligou o telefone.
Chakry pegou no seu imperador dourado,
atirou-o ao ar, apanhou-o e falou-lhe como a um irmão feliz. ”... Nunca compreenderão, não é? Mostre-se-lhes os preciosos templos do outro lado do rio e gritarão que a água está fria. Metam-nos numa alcatéia e uivarão como lobos; rosne-se-lhes e rastejarão como chacais. São devoradores de cadáveres e querem banquetear-se com reis! Mas agora
apanhamo-los, não é verdade? Apanhamo-los você e eu! Daqui a um mês vender-nos-ão as filhas e as irmãs para provar que são amigos.. .
O imperador dourado continuava sentado em silêncio em sua prisão e fitava-o com seus áureos olhos. Chakry abandonou-o na secretária e dirigiu-se à janela, onde ficou por muito tempo, contemplando a capital de seu ameaçado império. Estava agora muito calmo: calmo exaltado e cheio de desprezo pelas maquinações de seus inimigos. Estava na véspera da última batalha. A julgar pelo terror de Taleb, tinha uma probabilidade de sair vencedor. Mesmo que fosse derrotado, conseguiria sobreviver. Mas, a partir desse momento, tudo o que fizesse ou dissesse seria de importância vital. Não podia permitir-re um movimento em falso ou indeciso, porque os chacais estariam rondando o acampamento respirando o cheiro do medo. Todos os atos teriam de ser estudados para fomentar a dúvida e a confusão entre os que o sitiavam e que, no entanto, receavam que ele acabasse por se escapar.
Era a estranha química do cassino: joga-se melhor quando se sabe como pôr à margem um príncipe ou um indigente; e tem-se um violento desprezo por aqueles que nos lisonjeiam quando ganhamos e recusam um copo de água quando perdemos. A despropósito, pensou em Idris Jarrah, acossado e escondido. Jarrah era
da mesma massa que ele, um bom jogador com o baralho voltado contra si. Era agradável saber que tinha conseguido escapar. Matheson?.. . Matheson era um joão-ninguém que não valia nem lágrimas nem aplausos. Matheson podia comprar-se sob vinte nomes diferentes em tantos outros países. Serviria qualquer patrão, como o servira a ele, sem distinção nem compromisso. Era esse seu único valor: podia-se confiar nele; não era forçoso respeitá-lo. Matheson pedira para ser recebido às onze horas dessa manhã. Queria relatar-lhe rua entrevista com o Embaixador americano. Queria discutir aquilo a que chamava um ”assunto pessoal da maior importância”; o que significava que lhe tinham eriçado as penas e queria uma mão firme e amiga para as alisar. Assim seja. Contanto que se mostrasse feliz nos próximos quatorze dias, Chakry de bom grado lhe alimentaria a vaidade, a toda a hora e momento.
Matheson tinha-se preparado com notável cuidado para sua entrevista. Começou por descrever seu encontro com o Embaixador americano. Não ocultou nada. Antes, insistira no seu embaraço perante as perguntas a que fora obrigado a responder e na sua estrema defesa do patrão. Emitiu a inesperada opinião de que os americanos não estariam interessados numa tomada de posse, enquanto não houvesse uma oferta russa segura e pública. Chakry aquiesceu com um sorriso:
— Naturalmente Mark. Sabia-o desde o princípio. Mas vi-o tão ansioso por descarregar a consciência que o deixei ir. Como lhe disse ontem, não dou nada pelos americanos. Cumpriu seu dever. Esqueça-os... Disse-me que tinha um assunto pessoal para discutir.
Matheson havia ensaiado esta parte de sua história com particular cuidado. Recitou-a com desembaraço e confiança. Lew Mortimer
tinha-lhe oferecido emprego. Iria ganhar mais do que atualmente; mas tinha deveres para com Chakry e o Banco Fenício. Gostaria de continuar onde estava. .. contanto que Chakry lhe garantisse que o banco se manteria. Lew Mortimer dissera-lhe precisamente o contrário. O banco fecharia dentro de um mês. Rira-se à idéia de que Chakry, o Ministro das Finanças ou qualquer banqueiro o pudessem salvar. E claro que Mortimer era um inimigo declarado; mas Matheson precisava, e sentia-se com direito a isso, de olhar por seu futuro.
Chakry escutou-o com a habitual simpatia. Fez as perguntas exatas que manteriam Matheson embaraçado. Foi suficientemente solícito para convencer Matheson de que era indispensável e apreciado. Quando a tirada findou, mergulhou num silêncio prolongado e pensativo para conferir o peso e importância a tudo o que Matheson dissera. Depois, recostou-se na cadeira e começou a falar, grave e calmamente:
— Deixe que lhe diga, Mark. Não o censurarei se aceitar a oferta de Mortimer. Carregou um pesado fardo nessas últimas semanas. Evidenciou uma lealdade e uma coragem muito raraa em nossa profissão. Se quiser deixar-nos, terá meus votos de felicidades e uma gratificação. Isso penalizar-me-á, confesso. Sentirme-ei abandonado no pior momento e levarei muito tempo a substituí-lo. Mas não o censurarei.
- Não quero deixá-lo. -— Matherson sentia-se obviamente infeliz. — Mas compreenda Nuri, preciso de informações mais claras e seguras do que as que tenho tido.
— Concordo. E esta manhã estou em condições de as fornecer. Comecemos pelas notícias piores e em seguida mostrar-lhe-ei como elas nos podem ser úteis. O banco suíço telefonou... e o inglês também. Dentro de dez dias, os sauditas e os kuwaitianos levantarão seu dinheiro. Em teoria, teremos de fechar no dia seguinte. De fato não o faremos. Isto foi o que eu disse a Taleb, do Ministério das Finanças; se não nos ajudarem, teremos uma corrida ao banco. Taleb está assustado. Estão todos assustados. É precisamente o que pretendo. Estou convencido de que a estas horas, Taleb alivia o espírito no gabinete do Ministro. Hoje é terça-feira. Nosso prazo termina na quarta-feira da próxima semana. Isso significa que têm de entrar na dança o mais tardar na segunda-feira. Por outro lado, não podemos pagar os encargos do governo na próxima semana. Portanto, a não ser que esteja muito enganado, entrarão em contato conosco antes de fecharmos, na segunda-feira. Até lá, deixar-nos-ão suar...
— Mas disse-me que não dependíamos do Ministério das Finanças .
— Disse-o a você, Mark. Não o disse a eles. Quero-os comprometidos. Será melhor assim.
— E se não se comprometerem?
— Neste caso, eis o que acontecerá. Parto amanhã de manhã para Paris. Falei com Moscou na noite passada. Sua oferta
mantém-se. Vão mandar dois homens para falarem comigo em Paris. Disse-lhes que tinham quarenta e oito horas para resolverem os princípios gerais de um contrato de venda. Nessas mesmas quarenta e oito horas, conseguirei um financiamento de cinqüenta milhões de dólares por intermédio de uma companhia de seguros francesa. . . Este é um dos aspectos do negócio que tenho explorado, tranqüilamente, por conta própria
— Qual ê a companhia?
— A Société Anonyme des Assurances Comerciales. A vantagem está em que eles avaliarão nosso capital imobilizado em vinte e cinco milhões e emprestar-nos-ão outros vinte e cinco milhões ao juro de seis por cento, a pagar em três anos.
— Como diabo, conseguiu um negócio desses?
— Prometi-lhes nossos novos seguros comerciais e todos aqueles que fossem renovados.
— É um gênio, Nuri! — O alívio de Matheson era quase cômico.
Chakry sorriu, condescendente:
— Nunca torça o rabo do velho tigre Mark, pode morder. . . Ora, aqui tem como vamos representar a comédia. Parto amanhã, como lhe disse. Você fica aqui e trata com Taleb e sua gente. No meio da transação, na segunda-feira, telefonar-lhe-ei. Se o Ministro das Finanças tiver concordado, muito bem. Caso contrário, negociarei com os russos ou com a companhia de seguro antes das cinco horas e estarei de volta a Beirute na terça-feira de manhã. Então, veremos quem fica com cara grande.
— Uma pergunta Nuri. Suponha que os russos tomem conta. O que sucederá a meu emprego?
— Ou eles o conservam ou rescindem seu contrato. Minha opinião é que pretendem conservá-lo, pois desejam manter a atual administração.
— Isso é bastante agradável. O que direi a Taleb para explicar sua ausência?
— Nada. Estou em Paris, a negócios. Regressarei na terçafeira de manhã. Isso causar-lhe-á outra dor de cabeça. . . Mais alguma coisa?
— Sim, há qualquer coisa mais. Não a mencionei porque supus que Mortimer estivesse tentando um blefe. Disse que se você conseguisse o dinheiro de que precisa ele o igualaria, até ao último dólar, contanto que pudesse controlar os investimentos. Quer que lhe diga alguma coisa? Fiquei de lhe dar uma resposta esta tarde.
— Diga-lhe que vá dormir com a mãe — respondeu Nuri Chakry.
— Com prazer — apoiou Mark Matheson.
— E não mencione as Assurances Commerciales.
— Claro que não.
HEBRON JORDÂNIA

Idris Jarrah, o mercenário com cara de lua cheia, estava suspenso como o caixão do Profeta entre o céu e o inferno. O céu era uma minúscula nesga de dia, muito acima de sua cabeça: o inferno era um poço negro e sem fundo por baixo de seus pés balouçantes. Sabia que estava vivo porque lhe doíam todos os músculos do corpo. Sabia que em breve estaria morto, porque na noite anterior tinha caído numa armadilha — dez homens armados que o esperavam na quinta casa à direita. Café Branco também lá estava, desarmado e sorridente, pronto a dar as boas-vindas a seu infeliz irmão caído no banco dos réus.
A princípio, não se mostraram muito severos. Despiram-no, confiscaram-lhe a pistola, aliviaram-lhe o peito dos dez mil dólares e sentaram-no numa cadeira com uma espingarda apontada para a nuca. Depois contaram-lhe a história de sua própria mistificação. Quando telefonara a Café Preto do Hotel Intercontinental, Café Branco estava sentado com ele na mesma sala, discutindo a melhor maneira de executar as ordens do Cairo para apanhar e matar Idris Jarrah. Depois, tudo fora fácil. Se não tivesse contatado com a Organização, tê-lo-iam morto no hotel ou disparado contra ele de um táxi, a caminho da Porta de Mandelbaum. Claro que tencionavam matá-lo; mas se queria morrer confortavelmente, teria de pagar por esse privilégio. Teria de lhes passar um cheque sobre seus fundos pessoais no banco americano, onde os tinha depositado.
Idris Jarrah recusou-se a fazê-lo. Concluiu que com paciência e sofrimento chegaria a um acordo: cinqüenta mil dólares por sua vida e outros cinqüenta mil de lado para iniciar uma nova. Café Branco raciocinava de maneira diferente. Com tempo e habilidade, podia vergar qualquer homem. Tinha certeza de que vergaria Idris Jarrah cujo corpo branco e arrepiado era indubitavelmente muito sensível ao desconforto. Portanto, espancaram-no, queimaram-no com cigarros e infligiram-lhe toda a espécie de torturas até que, precisamente antes de o galo cantar, desmaiou. Então, ataram-lhe as pernas e os braços como a um frango, meteram-lhe um trapo sebento na boca. passaram-lhe uma corda pelas axilas e penduraram-no num velho silo, onde há dois mil anos, os romanos armazenavam cereais. Cobriram o silo com uma tampa de madeira e deixaram-no balouçando como um peso na extremidade de um fio de chumbo.
E ali estava, à deriva e inconsciente, procurando respirar através da mordaça que o abafava, lamentando-se em vão contra a dor dos músculos doridos o sofrimento das queimaduras inflamadas o raspar da corda pela carne nua, Tinha perdido toda a noção do
tempo. Apenas sabia que era dia, porque, quando conseguiu forças suficientes para erguer a cabeça viu a nesga de sol e sentiu o calor inundá-lo, Sentiu também seu corpo
mirrar e compreendeu que. ao cair da no;te, estaria disposto a rastejar por um copo de água e que, ao fim de outro dia, estaria morto.
Por instantes sentiu-se enlouquecer, roendo a mordaça, fazendo girar o torturado corpo de um lado para outro, tentando atirar-se contra as paredes do silo e golpear-se até morrer; mas o recinto era demasiado largo e, algum tempo depois, a dor substituiu a loucura; de modo que ficou suspenso, girando e rodopiando, meio sufocado pela saliva.
Em seguida, começou a experimentar uma reparação de si próprio. Agora era dois talvez três eu mesmo quatro. Havia o Jarrah que via, que se agarrava como um morcego às paredes e olhava para a ensangüentada trouxa suspensa no ar calmo e viciado; havia o Jarrah que sofria, ligado ao morcego e à trouxa, miando e gargarejando numa intolerável diversidade de dores; havia o Jarrah que sonhava, fazendo amor com uma infinidade de mulheres, contando montes de notas de banco, dormindo em lençóis de seda despertando ao som de música celeste. . . E depois deixava de haver Jarrah, apenas um núcleo de agonia no escuro centro do nada.

DAMASCO

O Coronel Omar Safreddin estava passando por uma experiência fora do comum: o súbito desabrochar da simpatia por um jovem inteligente e esbelto. Da noite para o dia, o Capitão Shabibi tornara-se uma personagem em rua vida — uma personagem tão viva e
variada que todas as outras foram relegadas para um plano inferior. Safreddin dera-se conta de que, por muito tempo, sua existência tinha sido demasiado pobre em satisfações pessoais. Havia-se consagrado teimosamente à ambição a tal ponto que quase se tornara insensível à esterilidade de sua vida. Tinha-se protegido tão ciosamente que era um prazer estranho descobrir que continuava vulnerável aos afetos. Casara-se tarde... e tão tradicionalmente que até os amigos mais íntimos haviam começado a murmurar, perguntando como podia um homem tão público contentar-se com uma mulher tão caseira.
Mas sentira-se recompensado porque ela lhe dera tudo o que exigia de uma esposa: solicitude, o benefício de um corpo forte, a comodidade de uma dona de casa obediente, a fidelidade e a ausência de complexos a que estavam sujeitos os homens que casavam com mulheres mais instruídas. Dera-lhe um filho, um espelho em que um dia poderia contemplar sua própria continuidade e a renovação de seus poderes. A humildade dela enchia-o de júbilo. O respeito que lhe testemunhava tornava-o amável e sua gratidão para com as condescendências dele tornavam-no generoso e indulgente para com sua pouca inteligência.
Mas havia momentos de tensão, cada vez mais freqüentes, em que se sentia estranhamente solitário e indefeso perante a maldade de seus numerosos inimigos. Havia momentos em que via claramente com que prodigalidade gastava suas reservas de força e inteligência e como era difícil renová-las. Muitas vezes, quando brincava com o filho, desejava apaixonadamente que ele crescesse de um dia para o outro e cumprisse sem delongas a promessa de continuidade e participação, à antiga maneira tribal. Era nesses momentos que Safreddin sentia a perigosa tensão dominá-lo e a terrível crueldade felina arrepanhar-lhe a pele.
O Club Hunafa proporcionava-lhe o indispensável escape para essa tensão. Os exercícios de destreza física curavam-no dos temores que de outro modo o envenenariam. A admiração evidente de seus pupilos dava-lhe a ilusão parcial de uma paternal amizade. Isso era o bastante para o manter calmo e firme no rumo escolhido; mas quase nunca era suficiente para preencher sua solidão ou
libertá-lo do medo que o assaltava nas horas de intimidade: o medo da secreta animosidade e do desprezo público, quando sua força desaparecesse, e das usurárias exigências do exercício do poder em termos de recursos corporais e mentais.
Agora da noite para o dia, tudo mudara. Depois da reunião do Club Hunafa. passeara pelo jardim com o jovem Capitão. Mostrara-se afável, um mestre feliz com seu pupilo brilhante e esperto. Confessara-lhe suas esperanças e incertezas fizera-lhe uma resenha de sua carreira, revelara-lhe seus afetos íntimos que ao que parecia, se concentravam há muito no próprio Safreddin. Dera-lhe um avisado e prudente conselho, que o jovem parecera aceitar com tocante gratidão. Convidara-o para trabalhar como seu assistente e sentira-se profundamente comovido com a ardente expressão de lealdade que a oferta provocara. Passara o braço em redor dos ombros do jovem e experimentara não repulsa, mas um estranho alívio no contato físico. Tinham-se separado tarde e sentira-se vazio, mas curiosamente feliz, como se tivesse consumado um ato de união. De manhã, encontraram-se cedo, antes de o pessoal da repartição entrar, e a harmonia da tarde pairara ao longo das horas de trabalho conjunto de modo que até os casos sinistros em que estavam comprometidos tomaram um aspecto de aventura mútua.
O Capitão Shabibi era demasiado delicado para confiar sua opiniões a seu superior; insinuara-as calma e astutamente, expondo suas razões por tentativas, com muita deferência, discutindo-as com sutileza, mas sempre com grande respeito. Nunca assumiu o risco de um fato desagradável, e suas conjeturas tiveram por vezes um toque de inspiração.
Por volta das três da tarde, dispunham de uma enorme quantidade de material teórico e resumiram a questão a três pontos: a hipótese de uma rede de espionagem israelense, o transmissor ilegal e o caso curioso de um certo Sérgio Bellarmino, transportado numa ambulância para o hospitaj, onde chegara já morto.
O Capitão Shabibi tinha certeza de que os dois primeiros pontos deviam ser considerados em conjunto.
-Deduzo-o de nossas próprias atividades, Coronel. Temes uma fronteira aberta com o Líbano. Tínhamos, até o incidente de Rumtha, uma fronteira aberta com a Jordânia. Temos comunicações telefônicas e telegráficas com estes países, com o Iraque e o Egito. Nossos agentes não têm grandes problemas para contatar conosco. Mas os israelenses têm-nos. São forçados a utilizar o rádio. Sabemos que existe um transmissor algures em Damasco, que opera em várias freqüências de Onda e segundo um horário constantemente alterado. Na noite passada quarenta e três minutos depois da meia-noite cs monitores localizaram o novo comprimento de onda. Outra vez grupos de algarismos. Agora, porém, só conseguimos onze grupos antes de suspenderem a emissão. O tempo era pouco para os radiogoniômetros operarem. Passado algum tempo, captamos uma estação estrangeira que também emitia grupos de cinco algarismos. Apanhamos cerca de cem grupos. Estou convencido de que era um sinal de resposta ao nosso amigo daqui, esteja ele onde estiver.
— Concordo, Capitão. Continuaremos trabalhando até que tenhamos uma noite de sorte. Pedi a colaboração dos russos para os problemas de código. Têm muito mais experiência do que nós. Mandar-lhes-emos tudo o que captarmos. .. O que acima de tudo me interessa é sua proposta da noite passada para preparar uma cilada a nossos amigos judeus. Ainda não decidimos qual a isca a utilizar e onde a lançar.
— Onde, julgo que é fácil, Coronel. Temos de partir da hipótese que informações são vendidas em nossos ministérios por funcionários venais ou descontentes. Quanto à isca. . . — Abriu o envelope de linho no colo e retirou uma volumosa coleção de impressos azuis. — Sugiro isto. O primitivo projeto para as fortificações nos montes da Galiléia. Foram consideravelmente alteradas durante a construção, de modo que não deve
prejudicar-nos muito o fato de caírem em mãos estranhas. Além disso, têm a vantagem de serem documentos autênticos. Normalmente, ertão bem guardados. Sou novo aqui. Gostaria de preencher uma requisição que me permitisse estudá-los por alguns dias. Faço-me descuidado e deixo-os em cima de minha secretária ou na gaveta que não tem fechadura. Se houver um rato na casa, poderemos
tentá-lo... Isto no caso de o senhor aprovar, Coronel,Safreddin aprovou; mas temperou a aprovação com uma pergunta:
— E se o tentarmos, o que acontece?
O Capitão Shabibi meteu os documentos no envelope de linho e mostrou como ficavam fechados por uma mola de metal,
— Os documentos são-me entregues assim, Devolvê-los-ei fechados da mesma maneira, Ninguém está autorizado a abrir o envelope. Tratamos os impressos azuis com ninidrina. É um pó usado pelos russos e suponho que também pelos americanos. O pó é de um castanho avermelhado. Quando em contato com a pele humana reage com os aminoácidos e deixa a pele purpúrea, Não pode ser lavado; sai com o tempo. . , e isso leva cerca de quatro dias. Portanto, será fácil identificar quem quer que toque nestes documentos,
— Isso conforta-me, Capitão!— riu Safreddin bem disposto, — Prova que meu trabalho não é inútil! Faremos grandes coisas juntos. Agora... permita-me que lhe fale do falecido Sr, Bellarmino — Abriu a pasta em cima da secretária e passou os documentos, um por um, através da mesa, a Shabibi. — O relatório da política sobre o acidente... Repare o que
rabisquei a lápis! Um pedido de inquérito disciplinar em relação à conduta dos dois policiais que permitiram que um homem tão machucado fosse conduzido a Damasco num caminhão em vez de o mandarem diretamente para o hospital. É possível que tenha circulado dinheiro, , ,
— E por que o ofereceriam, Coronel?
— A explicação pode ser a que está aqui. O homem encontra-se em estado de choque, atordoado e assustado. Está num pais ertrangeiro. Não se abrirá senão com o amigo que conhece. Em vez de apertar com ele, a polícia deixa-o ir, certa de que conseguirá apanhá-lo no dia seguinte, Transportam-no para casa de Fathalla. . . Eis o depoimento de Fathalla. Condiz com o do motorista do caminhão. . . Fathalla telefona ao Dr. Bitar. Bitar procede a um exame e chama uma ambulância para levar o paciente ao hospital. Antes que a ambulância chegue, o paciente começa a sucumbir. Bitar dá-lhe uma inieção cardíaca. O paciente não reage. Morre. O depoimento de Bitar é confirmado pelo relatório do cirurgião que procedeu à autópsia, Simples e franco... Até que se começa a fazer perguntas e a obter respostas que não condizem. Bellarmino e Fathalla eram amigos de negócio, tão íntimos que o primeiro pensamento de Bellarmino depois do acidente é fazer-se conduzir à casa de Fathalla. Mas ò empregado da recepção do Hotel dos Califas declara que, às nove horas da noite passada Fathalla foi procurar Bellarmino no hotel. Bellarmino tinha partido para Aleppo sem lhe dizer. Fathalla afirma que Bellarmino apenas falava italiano e francês Os policiais, que só compreendem o árabe dizem que Bellarmino se expressava muito bem na língua deles. A companhia de Bellarmino garantia a Fathalla um crédito permanente de vinte e cinco mil libras esterlinas, mas os livros de Fathalla revelam uma média de transações um pouco inferior a dezoito mil libras esterlinas. Fathalla declara que Bellarmino veio de Roma. A passagem de avião indica um vôo pela BEA para Atenas, uma permanência de um dia, um vôo para Chipre com nova permanência e mais um voo para Beirute, com um intervalo de quatro horas antes da ligação para Damasco. Não há passagem de volta o que é estranho para um homem de negócios que, normalmente, se beneficia de um desconto. Mais duas coisas. A polícia retirou do táxi os objetos pessoais de Bellarmino. Havia uma mala de viagem de fibra de nylon que continha roupas e objetos de toucador. Havia uma pasta que continha apenas dois livros de encomendas, alguns impressos comerciais e uma lista de catálogos de mercadorias negociadas pela Intercommercio. Fathalla entregou à polícia uma carteira, cheques de viagem, um passaporte e um atestado de saúde que encontrou nos bolsos de Bellarmino.
— Safreddin espalhou os objetos em cima da secretária como um jogador que mosta seu jogo. Olhou para seu pupilo com um sorriso de afetuosa ironia e pediu:— Agora, diga-me o que falta.
O Capitão Shabibi examinou durante cerca de um minuto a pequena e patética exposição e depois meneou a cabeça: — Não sei, Coronel.
— Pense — insistiu Safreddin cordialmente — e veremos se sua resposta coincide com a minha. Outra pergunta: o que deduz das contradições que lhe apresentei?
Shabibi franziu o sobrolho e meneou a cabeça:
— Não são necessariamente contradições, Coronel. Bellarmino pode ter sido apenas um homem cauteloso. Ê um bom estratagema em negócios limitar os conhecimentos a uma língua e forçar o outro indivíduo a falar numa língua estrangeira. A passagem de avião também não diz muito. Bellarmino podia ter dito a Fathalla que chegava de Roma, sem especificar o itinerário. A garantia de um crédito elevado poderia explicar-se como uma providência tomada contra emergências comerciais. Não há provas de Fathalla o ter utilizado com objetivos pessoais, não é?
— Não, por enquanto. Ainda estamos analisando a escrita
— Nesse caso, por que se preocupa com Fathalla?
— Por causa das-respostas que acaba de
dar-me. Ouço Fathalla dizer o mesmo e da mesma maneira. Deu-me muito que fazer ultimamente e não quero sacudi-lo mais. Experimentei-o duramente, porque gosto dele, embora me irrite e não desagradasse obrigá-lo a engolir um pouco de pó. Mas há qualquer coisa nele que não consigo. . . — Deteve-se. Levantou-se e pôs-se a andar pelo aposento, enquanto o jovem esperava em discreto silêncio. Tão abruptamente como havia começado, Safreddin interrompeu a caminhada e voltou-se para seu pupilo. Havia um rubor de excitação em suas faces descoradas. — É isso! Disse-lhe que você me inspirava. E inspira. Já sei por que motivo Fathalla me preocupa. É que reage como um profissional.
— Um profissional de quê? Safreddin ladeou a pergunta:
— Um profissional, como nós. Um indivíduo que sabe as respostas, porque adivinha quais serão as perguntas.
O Capitão Shabibi refletiu por uns momentos, depois rejeitou a idéia:
— Se pretende dizer que é um agente é uma suposição gratuita Coronel. A não ser que tenha provas que o incriminem, nada poderá contra ele.
— As provas existem! — Safreddin voltou para a secretária e dispôs os objetos pessoais de Bellarmino de forma a que a carteira e o talão de cheques ficassem juntos e houvesse um espaço significativo entre eles e o passaporte. — Um indivíduo que parte em viagem de negócios... quaisquer negócios!. .de que precisa antes de mais nada?
— De contatos.
— E contatos significam nomes, endereços e números de telefone. Ninguém os retém na memória. Onde estão? Aqui, não. Nem na pasta, A polícia não descobriu mais nada no local do acidente. Tudo o que há se encontra aqui. Conclusão?
O Capitão Shabibi continuava relutante em aceitar o fato.
— Um momento. Coronel. Ainda temos muitas perguntas sem resposta. Se Bellarmino era realmente um homem de negócios. . . e podemos averiguá-lo facilmente por intermédio de nossos contatos em Roma. . . sua agenda de endereços não tem significado para ninguém, a não ser para ele próprio. Para que a quereria Fathalla?
— Nesse caso, onde está?
— Bellarmino podia tê-la perdido. Podia ter-lhe caído do bolso quando tirou o casaco por causa do calor. Há vinte explicações.
— Então, vamos analisá-las todas, meu amigo. Entretanto, não esqueçamos a outra pergunta, a que nunca conseguimos responder: quem forneceu aos israelenses o nome do Major Khalil, o que fez com que fosse preso no dia da explosão de Rumtha? Sabemos que os jordanianos tiveram a informação de Telavive. Mas quem a passou? Fathalla também estava metido no caso.
— Mas o senhor interrogou-o e não conseguiu nada.
— Também pusemos uma escuta na casa dele e não funcionou. Ou estava avariada ou descobriu-a e
tirou-a.
— E se a tivesse descoberto?
— Isso torná-lo-ia duplamente profissional.
— Sendo assim, volte a interrogá-lo.
— Não. Agora, não. — Safreddin pôs-se à vontade e sorriu como se antegozasse um secreto prazer.
— Desta vez, vamos deixá-lo pensar que o esquecemos. Pedir-lhe-emos que trate dos preparativos para o funeral de Bellarmino e arrume os negócios dele aqui. Depois, deixá-lo-emos em paz. Mas vigiá-lo-emos, dia e noite. Vigiá-lo-emos até que possamos ter um gráfico de seus sonhos.
Posso traçá-lo já — disse Shabibi com mal disfarçado desprezo. Os iraquianos são grandes mulherengos.
— Você é mulherengo, Capitão? — A pergunta era casual e bem-humorada.
Shabibi sorriu:
— Não tenho tempo para isso, Coronel.
— É um jovem ajuizado. Deposito grandes esperanças em você. Jantará comigo esta noite... e depois passaremos uma ou duas horas junto do monitor. Talvez nosso palrador amigo esteja novamente no ar.
— Bem gostaria, Coronel. Gostaria mesmo muito.

— Matou-o — acusou Emilie Ayub.
— Não o sabe — disse Selim Fathalla. — Você estava dormindo, lembra-se? Quando acordou o viu morto.
Estavam sentados no jardim onde as últimas e tardias rosas espalhavam seu perfume e o leão de pedra se entregava à sua lamentosa música de água. Bebiam limonada gelada e gozavam os últimos calores do dia, antes de o frio do deserto invadir a cidade. Uma calma semelhante à das terras cansadas tinha-se apoderado de ambos e sua conversação era um diálogo de atores alheios à realidade.
— Por que o matou?
— Por que o pergunta, moça?
-— Tenho de viver com você, Selim. Tenho de sentir suas mãos no meu seio e no meu ventre. Preciso de amá-las. Quero amá-lo.
— Sou um comerciante. Fui-o toda a vida. Faço minhas contas. Tenho uma vida na mão direita. Na erquerda tenho. .. quantas? A sua a minha, a de Bitar. . . as de todos os nossos agentes dispersos pela Síria.Ouço um homem ferido balbuciar uma sentença de morte contra nós todos.O que devo fazer?
— Não o censuro, Selim. Nunca julgue que o censuro. Mas a última coisa de que me recordo é que Bitar manifestava ódio por você.
— Não era ódio, Emilie. Estava me experimentando. Tinha de saber se eu era capaz de fazer o que exigia dele. Serve-me para servir sua própria causa. Só o conseguirá respeitando-me.
- Quer dizer que matou um homem para se fazer respeitar?
— Responsabilizei-me pela morte de um homem para salvar a vida.
— Está certo ou errado, Selim?
— Não sou cristão. Não sei.
— Os judeus também não têm razão, não é?
— Temos, moça.Seis milhões mortos contam...não é verdade? Dois milhões e meio vivos contam também. . . não lhe parece? Muito, pouco... Só Deus o sabe! Quanto pesa um homem morto? Faça você as contas.Eu não posso.Estou terrivelmente cansado.
— Bitar não destruiria um homem.
— Acha que não?
— Foi o que ele disse. É a última coisa de que me lembro. — Disse que não mataria um judeu. Mas um judeu é um homem. E um muçulmano é um homem. E você é uma mulher cristã. Sabe o que Bitar disse, quando tudo acabou? ”Agora sei que é meu irmão, Selim. Agora, sei que podemos viver em paz.. . todos os semitas, todos os crentes no Uno, no Misericordioso!” Pegou-me na mão, beijou-a e tinha lágrimas nos olhos. Disse: ”Matou um judeu para salvar um muçulmano” Era uma espécie de loucura sentimental; mas havia nela certa verdade. Tinha-o absolvido de qualquer coisa. Estava-me reconhecido. Sabia que não podia absolver-me. E no entanto, desejava-o.,. Você não pode fazer o mesmo? Ê minha mulher. Por que não tenta perdoar-me?
— Tento perdoar-me a mim própria, Selim. Precisou de mim e eu não estava lá. Tinha fugido.
— O que você podia fazer?
— Não sei. Uma mulher não tem pátria. Também não tem religião! É a transportadora da vida. Ê a única coisa que compreende. .. Dê-me um filho, Selim, esta noite. Aqui, agora, se quiser!
— Esta noite, Emilie, sou um homem morto.
— Fá-lo-ei viver outra vez.
— Fará? — Seu rosto era macilento na luz pálida.
— Na noite passada, enquanto você dormia, recebi de Telavive uma mensagem de Baratz. Vai casar-se com minha mulher logo que o divórcio fique resolvido. Ê tão honesto que o vejo sangrar a cada palavra. Quer os planos das fortificações da Galiléia. Há guerra no ar e os quer urgentemente. Conhece os riscos. Também nisto é honesto. Deixa que seja eu a decidir. Se não puder cumprir a missão dispensar-me-á.. . dispensar-nos-á a ambos...imediatamente. Tenho de lhe responder esta noite.
— E que lhe vai dizer, Selim?
— Que quer que eu diga, moça?
— O que o coração lhe ditar Selim.
—- O coração? Santo Deus1 Meu coração diz que opte pelo mais simples. Que pegue nas malas e parta esta noite! Que atravesse os montes do Líbano e tome o primeiro avião da manhã para Chipre. Podemos fazê-lo. Pensei nisso centenas de vezes. No entanto..,
— Diga a verdade, Selim.A verdade.
— Não consigo traduzi-la em palavras.
— Experimente.
— Por que não me deixa?
— Não posso. Pertenço-lhe, Selim. Pertence-me. Separados, seríamos folhas mortas arrastadas pelo vento.
— Assim o creio também, Emilie, Um dia. . . cedo ou tarde, quem sabe?... haverá uma guerra entre Israel e os árabes. Os soldados subirão os montes da Galiléia para silenciar os fuzis sírios que, durante anos, dispararam contra suas herdades. Se não souberem o que eu lhes poderia ter dito, morrerão, de ventres rasgados sobre as rochas. Rapazes às centenas, Emilie. As centenas.. ,
— E se o souberem Selim, os sírios morrerão sob o fogo deles... As centenas, também.
— Defende seus irmãos — disse Fathalla asperamente.
— O que mais você sabe?
— Quando dorme comigo, pergunta-me quem sou? Quando acordei na noite passada e vi Bellarmino estendido na cama era já um homem morto. Árabe ou judeu que importava? Que importa?
— Quer atormentar-me, mulher?
— Se temos de morrer, querido, não podemos perguntar por quê?
E então, enquanto o Sol declinava, ouviram o muezzin gritar a todos os que quisessem ouvir;
Não há Deus, mas Deus...”
O encanto pairava ainda quando a velha Farida conduziu o Dr. Bitar ao jardim. Para um homem tão propenso à melancolia, estava de bom humor. Sorveu depressa um copo de chá gelado, estendeu as pernas magras e compridas e proferiu uma breve alocução:
— Tudo se passa a três.. . bom ou mau. Deveria deitar-me cedo esta noite, porque há uma mulher que está convencida de que vai dar à luz depois da meia-noite e me manda chamar para lhe segurar a mão. O parto não se verificará antes das dez horas mas que importa isso? Esta noite, porém, não quero ir dormir Sinto-me tão feliz que me apetece cantar. A noite passada foi má Selim. Esta manhã não foi melhor por causa da polícia. Hoje, tudo muda. Ouça! Tudo se passa a três, como disse. Antes de sair de casa para vir ter com você, o cirurgião da polícia telefonou-me. É um velho amigo. Remendei alguns de seus maus trabalhos e nunca o denunciei. Disse-me que o caso estava encerrado. Morte acidental. Acabaram-se os inquéritos. Ótimo, hem?
—- Excelente. — Fathalla mostrava-se cético. -— Tanto quanto o pode ser. A polícia é um departamento. Os serviços de segurança são outro. Não confie demasiado. Nosso amigo Safreddin deve estar cavando nos arquivos como um rato num saco de arroz.
— Não, Selim. É claro que Safreddin requisitou os arquivos. Mas devolveu-os, A informação partiu dele. É esta a primeira de três boas coisas. Pela próxima terá de pagar.
— Quanto?
— Um pouco mais do que o costume. Mas creio que vale o dinheiro. — Remexeu no bolso e retirou um pedaço de papel escrito em caracteres árabes. Entregou-o a Fathalla. — É a cópia de uma carta arquivada hoje no Ministério dos Negócios Estrangeiros.
— Autêntica?
— Absolutamente. Nunca tivemos complicações com o agente. É por isso que gosto de lhe pagar bem. Leia-a e depois risque o assunto de sua lista.
Fathalla percorreu rapidamente a carta e, em seguida, voltou a lê-la lentamente, procurando as notas falsas e os acordes dissonantes. Não encontrou nada. O conteúdo era impressionante e importante. Em troca de uma garantia de um ano de passagem livre para seu petróleo através do oleoduto sírio, por um preço estabelecido de comum acordo os iraquianos comprometiam-se a cooperar militarmente com a Síria. Os termos da cooperação eram claros. O acordo devia
manter-se secreto e não seria exigido qualquer tratado. O fornecimento de tropas e armas seria feito na eventualidade de um ataque direto de Israel à Síria ou ao território egípcio, ou, então, na eventualidade de uma operação conjunta de defesa desencadeada pela Síria e o Egito, agindo em bloco. O acordo entrava em vigor a partir da data da carta.
— Então? — Bitar encheu outro copo de chá e bebeu-o com ruidoso deleite. — Vale o dinheiro, Selim?
- Vale. Pagar-lhe-ei antes de sua partida. — Sorriu para Emilie. —- Isto vai contentar Baratz. Pelo menos, sentirá que está fazendo um trabalho útil. Espero que o terceiro ponto seja tão bom como este, Doutor.
— Não o é tanto Selim. Por isso, não pagará muito. Chegou em terceira mão, do indivíduo que copia as minutas das reuniões da Defesa, através de sua amante, ao amante que ela tem de reserva e que, por acaso, trabalha para nós. Vinte técnicos sírios partem no fim da semana para a Rússia, a fim de se treinarem em mísseis de terra e ar.
— Portanto, vão tê-los... se é que não os têm já.
— Assim parece... Está mais satisfeito, agora?
— Voltamos ao trabalho e isso satisfaz-me sempre.
- Sendo assim, não me quer dar um bebê, Selim? — pediu Emilie ansiosa como uma mocinha.
— Todas as mulheres precisam de um bebê, não é verdade, Doutor?
— Sem dúvida. — Bitar repousou as compridas mãos no peito da camisa. — Por que não lhe dá um Selim? Ela é saudável, tem uma boa estrutura pélvica. Servirei de parteiro. . . não se preocupe com os honorários.
— Prefiro pagar um jantar a ambos.
— Jantemos aqui, Selim. Eu trato disso. Estamos bem instalados. Para que sair?
— Preciso sair um pouco, moça. Estou farto desta vida de buraco. Há uma semana que estamos nisto, e é mau para todos.
— Concordo. — Bitar estava encantado com a idéia. — Vamos ao Abu Nowas. A comida é péssima, mas ainda é o melhor que há em Damasco. Faça-se bonita, menina, e verá que consegue seu bebê. Nem que o tenha de lhe dar eu.
Quando ela se retirou, Bitar voltou-se para Fathalla e riu escarninho:
— O que tenciona fazer, Selim? Quando elas estão assim, só há uma solução.
— Está muito alegre esta noite, Doutor. E também muito clínico.
— Sabe por quê? — Bitar inclinou-se e pôs-lhe a mão ossuda no pulso.
— Desafiei o Profeta. Bebi um pouco. .. dois copos de uísque.
— Mais um e seria perigoso, Doutor.
— Eu sei. Mas, às vezes, é preciso uma aiuda para nos agüentarmos até o dia seguinte. Há outras novidades que eu não queria que a menina ouvisse.
— Boas ou más?
— Más. Um paciente meu foi visitar-me hoje. Venho tratando-o de uma deficiência cardíaca. Queria um atestado de que não podia trabalhar de noite.
— E daí?
— Disse-me qual era esse trabalho noturno. Percorrer as ruas num caminhão de rádio em busca de um transmissor ilegal,
Fathalla disse um sujo palavrão.

JERUSALÉM, ISRAEL

Uma hora depois do pôr do Sol Jakov Baratz recebeu o último relatório secreto do dia: o Rei da Jordânia e os dignitários visitantes tinham deixado Jerusalém e voltado para Amã; não havia mudanças significativas na disposição das tropas da Legião Árabe; a ordem de batalha na área do Hebron mantinha-se invariável.
O relatório desapontou-o. Tinha alimentado a esperança de que, no último momento, as disposições seriam alteradas e a operação, cem todas as suas imprevisíveis conseqüências, interrompida. Ainda havia tempo, naturalmente. cinco horas para a meia-noite; mas já não havia esperanças. A Porta de Mandelbaum estava fechada. A mais vigilante sentinela nos montes não conseguiria identificar pequenos grupos de tropas movendo-se nas trevas. Portanto, quanto a objetivos práticos, o assunto estava encerrado. O tiroteio começaria ao amanhecer.
O Chefe do Estado-Maior estava em conferência com o Comandante dos Serviços Operacionais. Baratz transmitiu por telefone seu relatório, marcou um encontro para as cinco da manhã no posto de observação do Hebron e em seguida dirigiu-se para a casa branca de Har Zion, a fim de jantar com Yehudith Ronen. Sentia-se profundamente deprimido. Todo seu mundo havia tomado um aspecto sinistro, como uma paisagem demasiado calma sob as nuvens de uma tempestade iminente.
As notícias de Damasco eram más. Um agente de ligação e uma rede vital estavam em perigo por causa da indiscrição de um mensageiro. Este tinha morrido, assassinado por seu próprio colega. Uma vez que lhe exigiam que conseguisse informações estratégicas, Selim Fathalla vira-se coagido, numa atitude de defesa, a optar por sua sobrevivência e à de sua organização. Se, por infelicidade ou desleixo, a organização fosse descoberta, os sírios teriam um belo instrumento de propaganda para provar as intenções agressivas de Israel e chamar os desunidos árabes à guerra santa. Não havia legalidade na política secreta do mundo subterrâneo; mas uma ilegalidade patente, como a espionagem ou a operação de amanhã no Hebron, era uma arma poderosa nas mãos de um inimigo.
Quando chegou à casa de Yehudith, telefonou para seu gabinete e deixou o número do telefone para qualquer contato de emergência. Depois, acompanhou Yehudith até ao jardim e passeou com ela na noite fria, contemplando o disco da lua nova por sobre os muros da cidade antiga. O humor negro continuava a dominá-lo como as teias de um pesadelo, mas Yehudith mostrava-se paciente. Insistia em contar-lhe seu dia: os planos para uma exposição, um novo trabalho em que procurava exprimir o começo de uma vida nova para ambos, seu projeto de ficar com a velha casa de Jerusalém, mesmo depois de se instalarem em Telavive, as obras de um jovem pintor da Máli, que estava com uma bolsa de estudo em Jerusalém.
Baratz deixava-se navegar naquele oceano de palavras, atracando ora em uma praia, ora em um promotório de um país que, durante muito tempo, lhe estivera vedado. Era este o problema do serviço secreto, de toda a vida militar: ser-se membro de uma pequena comunidade à parte, falar em dialeto, utilizar pesos e medidas estranhos, fazer cálculos na moeda corrente da crise e da catástrofe; esquecer demasiado depressa as coisas simples de uma vida vulgar: galanteios, bodas, dores de barriga dos filhos, homens que pescam, moças que bordam lenços e esposas felizes que regateiam o preço das maçãs.
Havia grande perigo na existência esotérica do especialista, um fascínio fatal na intimidade dos bastidores do teatro de fantoches. Passado algum tempo, cai-se num sutil desprezo pela feliz ignorância do rebanho. Despreza-se a inocência dos que não têm qualquer conhecimento da iniqüidade. A língua materna torna-se estranha e acaba-se, como um estilista empoleirado numa coluna, vigiando um deserto e se perguntando onde se teriam metido as pessoas. Não tinha consciência de ter posto o pensamento em palavras, pelo que ficou espantado quando Yehudith o interrogou.
— Não é isso o casamento, Jakov? Duas portas para dois mundos uma vinda e ida constante. Não é por isso que sentimos necessidade de casar. . . ou qualquer coisa em vez disso? De modo a que não enlouqueçamos fechados conosco numa sala cheia de espelhos?
— Sim, creio que sim. Olhando para trás, estou certo de que foi esse meu erro com Hannah. Obríguei-a a viver uma vida com um só quarto. Fechei-a em meu mundo privado. A única maneira que tinha de escapar-se era refugiar-se no passado. Não me posso perdoar por isso.
— Tem de fazê-lo, Jakov. Caso contrário, não haverá felicidade para nenhum de nós.
Disse-o com tanta veemência que Baratz ficou interdito. Olhou para ela e viu que tinha o rosto tenso como a pele de um tambor, de uma palidez de marfim ao luar.
—- Fique tranqüila, querida. Daqui a duas semanas o passado estará morto. Começaremos vida nova.
— Não Jakov. É nisso que você se engana. O passado não morre. Continua fazendo parte de nós. Temos de aceitá-lo e tentar mostrar-nos gratos, se for possível. De outro modo, transformar-se-á num veneno que nos queima por dentro. .. Há dias, falei disto com Franz Lieberman. Disse-me a mesma coisa por outras palavras.
— Por que foi falar com Franz? — Estava ressentido e desconfiado.
— Porque é um velho inteligente e amável. Porque eu precisava de ajuda.
— Para quem?
— Para mim... e para você. Levou-me a ver Hannah. Chorei, Jakov. Está tão mudada, tão patética e remota! Franz foi muito delicado. Levou-me ao seu gabinete, fez-me beber uma xícara de café e falou-me durante muito tempo, a meu respeito, de Golda, de Adom... e de você, Jakov. Não fez sermões. Não emitiu juízos. Apenas explicou. Disse que a única maneira de nos sentirmos humanos é dizer três coisas: ”Sou culpado. Arrependo-me. Quero emendar-me.” Depois, riu maliciosamente, como é seu hábito, e acrescentou: ”É claro, liebchen, que todos sabemos que somos apenas meio culpados e só nos arrependemos em parte e o melhor que podemos fazer com um frasco partido é colá-lo e pô-lo na prateleira. Mas já é um começo, nicht?” Ele tem razão, Jakov. É um começo. Deixamos de odiar os outros. Deixamos de nos odiar.
— Mas continuamos a partir frascos, não continuamos? Tenho de lhe dizer, Yehudith. Encarreguei Adom de uma missão que pode
pôr sua vida em perigo. Dei-lhe a possibilidade de recusá-la. Mas não creio que o faça.
— Também se sente culpado por isso?
— Um pouco. Falei-lhe de nós. Tinha o direito de saber. Se eu chegar à conclusão de que estou exigindo demasiado dele, prometi tirá-lo, a ele e à moça, imediatamente de Damasco.
— O que mais você podia fazer?
— Não sei.
— Nesse caso, por que se sente culpado?
— Porque estou aqui com você, a salvo neste jardim, enquanto ele está em Damasco cercado de punhais.
— Está bem?
— Tem passado um mau pedaço, mas está bem.
— Pergunto-me o que ele fará, quando isto acabar.
— Interessa a você?
— Claro que interessa, querido. É o meu passado como Hannah é o seu. É também o meu presente, através de Golda. Estamos no mesmo barco, você e eu, Jakov. Por isso é que temos de nos proteger mutuamente. .. Uma bebida, antes do jantar?
- Sim. Mas sem abusar. Tenho de estar de pé às quatro horas da manhã.
Beijou-a levemente nos lábios e dirigiram-se para casa. Estava agora mais calmo. Tinha-se submetido ao rito sedativo da confissão e recebera o habitual conselho: ”Sossegue, amigo! Estamos todos no mesmo barco. Tentamos e falhamos. Não podemos esquecer. Não podemos perdoar nem ser perdoados. Compadeça-se de mim e compadecer-me-ei de você. Deus sabe-o... mas está demasiado ocupado para nô-lo dizer. Não chega? É tudo o que tem, amigo! Agüente-se ou dê um tiro nos miolos...” Portanto, nessa noite beberia, comeria e divertir-se-ia um pouco com uma mulher encantadora. E amanhã veria uma aldeia de pedra desfazer-se em pó. Quem, perguntava-se com azedume, se importaria com os pobres-diabos que amanhã à noite dormiriam nas cavernas e gargantas ao longo do vale do Hebron?
11

BEIRUTE

Nuri Chakry preparara sua noite com invulgar cuidado. Talvez fosse a última em Beirute; talvez fosse o prelúdio para um regresso triunfante. De qualquer maneira, era uma ocasião digna de ser assinalada.
Precisamente antes de se retirar do trabalho, passou um cheque sobre sua conta pessoal no Banco Fenício; teria de deixar para trás muitas coisas — uma propriedade mobílias, automóvel, um barco a motor, roupas e algumas mulheres assaz agradáveis. Não tencionava deixar um centavo que fosse em metal sonante. Por isso, mandou buscar seu cofre particular, esvaziou-o de tudo o que pudesse ser negociável e devolveu-o à caixa-forte. Meteu os documentos e o dinheiro na pasta, colocou-lhes em cima o imperador de ouro e seguiu para seu apartamento.
Pouco tinha a fazer ali. A mala de viagem estava preparada. Meia dúzia de quadros valiosos tinham sido retirados das molduras e metidos em tubos de papelão com a etiqueta ”Plantas arquitetônicas” . As molduras foram ocupadas por estampas dispendiosas, de modo que os aposentos continuavam a ter aspecto de habitados. Tomou banho, barbeou-se e telefonou a Heinrich Miller, em Biblos; depois, serviu-se de uma bebida e sentou-se para rever seus preparativos de viagem.
Estes tinham sido feitos com todo o cuidado por sua secretária, tanto mais que os discutira enfática e pormenorizadamente com ela. Partiria às oito da manhã em vôo direto para Paris, onde lhe estava reservada uma suite no Hotel Lancaster. A viagem de regresro também fora marcada e confirmada para a terça-feira da semana seguinte. A documentação era a essencial; mas provava — se é que precisava de uma prova — um fato importante: um legítimo homem de negócios empreendia uma legítima viagem de negócios com a firme intenção de regressar a seus afazeres numa data preestabelecida. Não se tratava de desfalque, de subterfúgio ou de fuga.
Heinrich Miller, por seu lado, preparara outra espécie de documentação: um passaporte novo, um novo atestado de vacinas e uma passagem de ida de Paris para o Brasil. Assim, quando chegasse o momento, na segunda-feira à tarde, Nuri Chakry estaria pronto a optar por uma de duas direções: regressar a Beirute, se o Ministério das Finanças e o Banco Central se decidissem a ajudá-lo; ou atravessar o Atlântico para uma nova vida, caso não o fizessem.
Isso deixava-lhe uma tarde e uma noite para preencher. Estava decidido a aproveitá-las. Iria de carro até Biblos, beber qualquer coisa com Heinrich Müller, que também estaria pronto para partir logo que fosse conhecida a sorte do banco. Guardaria seus documentos pessoais e a valiosa coleção de falsificações de Müller. Iria jogar um pouco no cassino e, depois, cearia com a cantora de longas pernas que lhe devia o emprego e o apartamento na praia de Djouníe. Após a ceia, passaria o resto da noite em casa dela e daí seguiria diretamente para o aeroporto. Um sugestivo programa de diversões para um um homem que se sentia um tanto cansado de se equilibrar sem rede nos altos arames. Portanto, uma bebida para o caminho dez minutos de música e um último interlúdio contemplativo antes-de passar de uma vida para outra.
Acontecesse o que acontecesse a vida mudaria. Só havia uma chegada verdadeira, um alto e estonteante momento em que se escala a úlima elevação e se fica de pé no cume, vendo a fancaria do mundo espalhada a seus pés. Depois, é a velhice que começa, a sensação mais do que experimentada que nos incita a riscos maiores com menos proveito e ainda menos satisfação. Havia outros cumes; mas quando eram escalados, via-se o mesmo velho mundo numa panorâmica levemente diferente. Tempo houve em que se sonhou abarcá-lo todo, sentir na carne todas as suas sensações. Mas isso não foi possível, porque o corpo não tolera tanta variedade. Tente-se beber todo o vinho do mundo e acaba-se com uma ressaca. Tente-se amar todas as mulheres do mundo e ficar-se-á condenado a uma interminável monotonia.
Por um lado, gostaria de voltar a Beirute. Era o ventre que o dera pela segunda vez à luz que fizera do maltrapilho um príncipe de comerciantes. Mas os súditos tinham inveja dos príncipes e os príncipes, por seu turno, chegavam a um momento em que desejavam que todos seus súditos tivessem um único pescoço para pôr no cepo. Por outro lado, porém, agradava-lhe partir de novo à aventura experimentando sua maturidade em novos desafios, antes que a seiva secasse e seu velho coração implorasse descanso. Não era uma maneira má de começar uma tarde festiva: uma libação aos antigos deuses, no caso de virem a ser de novo precisos; uma oferenda aos modernos, para os tornar benignos para com o estrangeiro. E se lhe falhassem — Inshallah! Pelo menos, não voltaria a ser um maltrapilho. Acabou a bebida, transportou a bagagem para o elevador, fechou o apartamento vazio e desceu até ao parque de estacionamento.
O trânsito vespertino na estrada marginal era intenso e levou cerca de quarenta minutos para chegar a casa de Müller. Este estava sentado na varanda com o binóculo e uma caneca de cerveja gelada na frente — imagem perfeita da felicidade teutônica. Indicou uma cadeira a Chakry,
serviu-lhe uma bebida e fez uma saúde:
— Com que então. .. Der Tag, hem? Boa sorte, meu amigo!
— Ainda não é der Tag — sorriu Chakry.
É segunda-feira. Aguardarei as notícias em Paris. Se forem boas, regresso. Senão... Tem meu material pronto?
Müller pousou o copo e limpou os lábios:
— Tudo pronto. O passaporte é um trabalho limpo. Sinto-me orgulhoso.
— E você, Heinrich? Está preparado para partir?
— Eu não vou, Nuri.
Chakry oulhou-o com espanto e ira:
— O que está dizendo? Concordamos que. ..
— Mudei de idéia — replicou Heinrich calmamente — Chamei os carregadores para tratarem de minhas coisas e me passarem uma nota de embalagem e embarque. Quando se foram embora, vim para aqui, pus-me a contemplar o mar e a cidade e perguntei a mim mesmo por que raio haveria de ir vagabundear por esse mundo, só porque meu amigo Chakry quer construir outro império. Perguntei-me o que faria no Brasil, que está cheio de antigos camaradas que não me interessa voltar a ver. Dinheiro. Tenho dinheiro, esta casa e todo o litoral está cheio de coisas bonitas que esperam ser aprofundadas. Logo ali embaixo, na segunda casa à direita, há uma moça que todas as noites se despe para mim, em frente da janela. Sabe que a estou observando. Quer que a veja. E sinto-me em casa. Estou em casa, Nuri. Não quero mudar-me.
— Mas sempre fizemos dinheiro juntos. Preciso de você Heinrich.
— Eu sei, Nuri. .— Serviu-se de outra cerveja e soprou a espuma. ,— Mas não precisa tanto que não possa passar sem mim. Tudo o que pretende é alguém no outro extremo da corda, que puxe e o ajude a elevar-se. É um jogo de um só lado. Tem estado sempre na mó de cima. Não o censuro. Também não o invejo. Depois da guerra, tive de manter a cabeça baixa. Mas em breve
aprendi a gozar. É como olhar para a blusa de uma moça do alto de uma escada de mão. Espreita-se livremente e não se corre o risco de uma bofetada. . . Não se zangue, Nuri. Sempre que queira um trabalhinho de documentos, conte comigo... e tudo se arranjará. Sabemos que calaremos os segredos de um e de outro. Portanto, por que lutar?
— Por nada.
- Nuri Chakry estendeu as mãos num gesto de resignação, depois sorriu. — Mas quem me elucidará sobre as antiguidades existentes na América do Sul?
Hernrich Müller jogou a cabeça para trás e soltou uma sonora gargalhada:
— Elucide-se a si próprio, Nuri! Faça-se amigo de um conservador de museu, mas procure agir legalmente. Assim, não terá de pagar comissões a patifes como eu e em pouco tempo estará duas vezes mais rico.
— Gosto dos patifes, Heinrich. Fazem parte da paisagem.
- Eu sei, Nuri... É por isso que me deve vinte mil dólares.
— Está brincando!
Heinrich Müller lançou-lhe um olhar úmido e terno.
— Não, Nuri, Por uma perfeita coleção de títulos pagáveis ao portador, no valor de um milhão e meio de dólares, por um bonito passaporte e um segredo bem guardado, é um preço muito razoável. . . E eu sei que o pode pagar.
— É um indecente filho de um camelo, Heinrich.
— Eu sei.. . Todos os dias me envergonho de mim. Mas que hei-de fazer?
— Assentemos em dez mil e passo-lhe já um cheque. — Vinte mil e em metal sonante. Sei que está cheio dele esta noite, Nuri.
— Então, quinze.
— Vinte. Pense no serviço que lhe prestei.
— Dezessete e meio. É a minha última oferta.
— Dezoito e não se fala mais nisso.
— Müller sorriu.
-Você tem o dinheiro e eu tenho os papéis. Abrirei outra garrafa de cerveja para celebrar.
— Vou sentir sua falta, Heinrich.
— Também eu, Nuri. Mande-me ..alguns postais indecentes do Brasil.
Riram ambos, um par de tratantes, contemplando o arruinado porto onde os tratantes de um mundo antigo negociavam, enquanto os impérios se erguiam e desmoronavam.
HEBRON, JORDÂNIA

Noite avançada, enquanto a gente simples ceava ou se preparava para dormir, tiraram Idris Jarrah do silo e levaram-no a uma centena de metros da encosta, para a casa onde Café Branco esperava. Jarrah estava num mísero estado febril, desidratado e comatoso. Libertaram-no das cordas, estenderam-no numa cama,
despejaram-lhe água e aguardente pelas goelas ressequidas. Reanimou-se o suficiente para os ver de pé, debruçados sobre ele, depois recaiu na inconsciência. Despejaram-lhe mais água e aguardente e, quando voltou a reanimar-se, apenas viu Café Branco, à vontade e amigável, sentado na beira da cama. Voltou a custo a cabeça. Os outros encontravam-se sentados a uma mesa, jogando cartas. Tentou falar, mas sentia a língua demasiado espessa. As palavras, estúpidas e irrelevantes, saíram-lhe da boca seca como um grasnido:
— Que horas são?
Café Branco consultou o relógio de pulso:
— Nove e meia. Um longo dia, não é verdade?
Jarrah tentou aquiescer, mas os músculos do pescoço estavam rígidos e tensos. Fechou os olhos.
— Esta noite pode ser ainda mais longa. E amanhã será pior. Conheci homens que passaram três dias no silo. Outra bebida?
— Por favor.
Café Branco ergueu-o com brusquidão e
chegou-lhe a xícara aos lábios. Todos os músculos de seu corpo acusaram dolorosamente o movimento. Engasgou-se com o líquido e ficou deitado de costas, suando e exausto. Café Branco falava lentamente e sem rancor:
— Se quiser, pode dormir um pouco. Agora não seria capaz de fazer uma boa assinatura. Fá-la-a mais tarde, concorda?
— Concordo.
— Assim será mais fácil, Irmão Jarrah. Mais fácil para nós. E para você também, cem certeza. Agora, durma. Acordá-lo-emos daqui a uma hora, mais ou menos.
Grato como uma criança por tanta solicitude, fechou os olhos e tentou mergulhar no esquecimento das dores e cãibras que lhe atenazavam os músculos presos. A morte seria uma bênção; uma luz ao fim de um comprido túnel que, quando alcançada, se apagaria e o apagaria também — o libertaria do sofrimento, do medo, das vozes, dos olhos acusadores e da irônica lembrança das riquezas tidas outrora na palma da mão e depois brutalmente atiradas
no chão. Via a luz um minúsculo ponto como o centro de um alvo, negro e muito longínquo. O alvo era o peito de um homem, diziam eles. O centro era o coração. Aponta-se para o coração. Puxa--e o gatilho. A bala enterra-se no coração. O homem morre imediatamente. Imediatamente... Eis a palavra consoladora. Nem espera, nem sensações, nem além. Ou havia além? Havia um Eblish real, rodeado de fogo. povoado de eternos acusadores que tinham os mesmos rostos daqueles que agora o acusavam? Havia um Paraíso real donde lânguidas ninfas atiravam cascas de romãs para o abrasado poço lá embaixo? Não seria mau sabê-lo. A pequena chama moveu-se e ele seguiu-a, ou transportavam-no outra vez para o silo? Sentia-se rodopiar, numa queda sem fim, à espera do repelão áspero da corda, quando esta o estrangulasse. Mas não havia corda e a luz aproximava-se, um fogo vingador que o perseguia como uma criatura viva. Gritou — um longo, agônico e abafado grito. E acordou para ver Café Branco que lhe sorria.
— Já descansou, Irmão Jarrah? Está pronto? .— Creio que sim.
Enquanto o tiravam da cama e o arrastavam para a mesa, teve uma breve e clara intuição de que ainda poderia vencê-los; mas sabia que não agüentaria outro assalto aos pobres restos de sua pessoa e recusou aquela louca idéia.
Sentaram-no numa cadeira e colocaram-lhe na frente uma caneta e uma folha de papel em branco. Ao lado, depuseram uma das cartas que escrevera à Organização, em seus tempos de autoridade. Estava assinada por seu punho. Café Branco debruçou-se por cima de seu ombro e apontou para a assinatura:
— É essa a assinatura que tem no banco?
- É.
— Escreva-a nesse papel.
Tentou uma dúzia de vezes, mas a mão tremia tanto que a escrita degenerou num rabisco.
Café Branco não perdia a paciência. Analisou a folha de papel e depois aquiesceu:
— Já está melhor. Dentro de uma hora, conseguirá. Quer comer alguma coisa?
— Sim.
Trouxeram-lhe uma fatia de pão, queijo duro, uma maçã e uma garrafa de soda quente. Ficaram de pé vendo-o comer, como se fosse um animal numa jaula. Quase vomitou os primeiros bocados e Café Branco teve de lhe recomendar mais cuidado.
— Calma, irmãozinho. Coma devagar. Mastigue bem. De outro modo, vomitará tudo.
Enquanto mastigava ruidosamente os míseros alimentos, Idris Jarrah sentia um acréscimo de forças penetrá-lo e, ao mesmo tempo, um tímido despertar de esperança. Até chegarem com o cheque ao banco não teriam certeza absoluta de que a assinatura era a verdadeira. Viam-no assustado e alquebrado. Com alegria lhe meteriam uma bala no estômago; todos exceto Café Branco, para quem a vida era um incidente temporal e somente a Causa uma permanência. Café Branco sabia de cheques e bancos. Também conhecia os homens; e, por cem mil dólares em fundos operacionais, suportaria tudo. Café Branco falava de novo. Jarrah ergueu a cabeça latejante e tentou escutar com respeito.
— Diga-nos, Irmão, por que nos deixou? Por que tentou roubar nosso dinheiro? Por que nos vendeu por mais dinheiro? Somos camelos ou burros para negociar conosco? Não percebo. Gostaria de compreender. Por quê?
Jarrah deixou pender a cabeça para o prato sujo. O cabelo roçou pelas cascas do queijo e da maçã sem sabor.
— O que importa isso, agora?
Café Branco agarrou-o pelos cabelos e ergueu-lhe a cabeça.
— Importa muito, irmãozinho! Diga! Por quê?
A súbita dor deu-lhe novas forças. As palavras jorraram-lhe raivosamente dos lábios feridos:
— Porque somos camelos e burros. A Palestina está tão morta como a Babilónia! Nunca mais lá voltaremos. Mas os egípcios pagam-nos e os sírios também para que acreditemos nisso. Somos homens sem pátria. Vão dar-nos uma? Nunca! Os judeus têm um Muro das Lamentações. Nós somos o muro das lamentações dos árabes... mas quando acabarem de chorar, mijar-nos-ão em cima!
— Basta! — Café Branco obrigou-o a bater com a cara na mesa. Um enxame de abelhas começou a zumbir-lhe no crânio. Quando as abelhas desapareceram, endireitou-se na cadeira e tentou troçar:
— Querem o dinheiro? Tragam-me o talão de cheques e assinarei. Depois, matem-me e acabem cem esta nojenta comédia.
Café Branco pôs o talão de cheques na mesa, meteu-lhe a caneta nas mãos e colocou a assinatura de modelo ao lado.
— Escreva.
Rabiscou uma assinatura sofrível.
— Outra.
O traço da escrita revelou-se mais firme.
— Assine mais seis.
Quando acabou, atirou com a caneta para a mesa e recostou-se na cadeira, encarando seus carrascos. O pequeno fogo que o alimento nele acendera continuava a arder. Umedeceu os lábios e voltou o rosto para eles, num desafio:
— Prometeram-me uma morte decente. Estou à espera.
— Ainda não, Irmão Jarrah. —« Café Branco mostrava-se de novo afável. — Tem de ter paciência por mais algum tempo. Esta noite, se se comportar bem, amarramo-lo e deixamo-lo dormir aqui. De manhã, tomarei o primeiro avião para Beirute e levantarei seu cheque. Se a assinatura for boa, dar-lhe-emos o que pede. Senão.. .
— A assinatura é boa.
— Tenho quase certeza de que é. Terei a certeza amanhã. Então, amarraram-no à cama e voltaram a pôr-lhe a mordaça.
Dois homens ficaram vigiando-o, enquanto os outros se dispersavam. À medida que saíam do aposento, paravam junto da cama e cuspiam-lhe na cara.

DAMASCO

No pavilhão de Abu Nowas, que afirmava, um pouco bombasticamente, ter a melhor cozinha oriental de Paris, o Coronel Omar Safreddin bebia café e mordiscava doces na companhia do Capitão Shabibi. Sentiam-se indolentes devido à comida e a uma amizade que prometia bons momentos para ambos. Enterrados nas almofadas, sob o madeiramento trabalhado do reservado tinham caído nesse tagarelar retórico que é o exercício tradicional dos espíritos árabes uma poesia de volubilidade e imobilismo, um diálogo de contemplação sem o qual a monotonia da ação se tornaria intolerável. Safreddin desenvolvia seu tema favorito:
— ... Nunca, meu caro, nunca confunda os meios de que nos servimos com os fins que pretendemos. Se o fizer, será como o jardineiro que arranca uma erva daninha e julga que plantou um roseiral. O trabalho dos serviços de segurança... a caça aos espiões e a gente revoltada... é como arrancar ervas daninhas e cardos. A própria guerra para a qual nos preparamos não passa de um arar e gradar a terra com vista à próxima colheita. Permita que lhe conte uma coisa.. . — Assentou a mão ossuda no ombro de Shabibi e apertou até os dedos sentirem os jovens músculos. — Permita que lhe conte uma traição! Eu tanto poderia ser judeu ccmo árabe. Meu povo veio da região dos grandes rios, como o povo de Abraão. Éramos todos semitas. Acreditávamos num único Deus. Durante séculos, lutamos juntos pela vida. Parecemo-nos
mais com os judeus do que com os egípcios, que degeneraram desde a época dos faraós. Estamos mais aparentados aos judeus do que aos tuaregues de tez azulada ou aos escravos negros vindos do Norte da África. E, no entanto, somos inimigos. Por quê? Vou dizer-lhe. O judeu foi sempre um homem isolado. Só dá a si próprio. Aos outros tira. Desde o princípio tirou, guardou, perdeu e voltou para tirar de novo. Nem o seu Deus empresta, ao passo que nós espalhamos Alá pelo mundo como uma esmola. Esse minúsculo território onde os judeus se concentram. .. podemos viver sem ele. Mas não podemos viver com ele enquanto lá estiver o judeu, um homem isolado, um povo isolado, um Deus isolado... Está compreendendo?
— Creio que sim — respondeu cautelosamente, o Capitão Shabibi. — Mas não tenho certeza. Desenraizamos os judeus. Restauramos a Palestina... ou fazemos uma Síria maior. E depois? Continuaremos a ser tribos separadas. Invejamo-nos mais uns aos outros do que aos judeus. Repare nos iraquianos e em nós. Veja o que sucedeu, quando tivemos um comando conjunto com o Egito. Olhe para os kuwaitianos e para o que está acontecendo no lêmen,
— Dê-me sua mão.
Shabibi estendeu-lhe a mão. Safreddin agarrou-a, prolongando o contato, o que com outro o teria revoltado. Afastou os dedos e apoiou a mão na mesa, com a palma para cima. Pegou numa faca, encostou a ponta ao centro da palma e premiu-a contra a pele. Os dedos de Shabibi contraíram-se na direção da lâmina. Safreddin riu.
— Agora, compreende? Primeiro, havia cinco dedos e um polegar. Agora, há um punho cerrado contra o perigo. Eis o que os judeus significam para nós. São o punhal que fere nossa palma.
— Mas depois, Coronel?
— Shabibi era um jovem muito obstinado.
- Quando o punhal for afastado, o que nos unirá?
— Depois? — perguntou Safreddin com calculada ênfase. — Depois, haverá o Islame. O Islame armado com o livro e o gládio. O Islame vivo com novos mestres.. .
— Boa noite, Coronel.
Ergueu os olhos e não escondeu o espanto ao ver Selim Fathalla de pé, junto à mesa, com Bitar e Emilie Ayub. Não levou um segundo a
recompor-se e fez as apresentações:
— Meus senhores, Srta. Ayub, este é meu novo assistente, o Capitão Shabibi.
— Após os corteses murmúrios acrescentou: .— Chocou-me muito, Fathalla, a prematura morte do Sr. Bellarmino. Deve ter sido um grande desgosto para você.
— Sim, foi, Coronel.
— Morreu em sua casa, se não me engano.
— É verdade.
— Muito aborrecido. Suponho que deve ter tido uma infinidade de formalidades a preencher.
— Bastantes. Haverá mais, quando do enterro.
— Se tiver quaisquer dificuldades — disse Safreddin delicadamente —, não hesite em me telefonar. Estou certo de que poderemos ajudá-lo.
— É muito amável, Coronel.
— De maneira nenhuma... Espero que esteja bem, Doutor?
— Sobrecarregado como sempre. Mas bem, obrigado. —Creio que em breve terá boas notícias.
— Sim?...
— Pediram-me que confirmasse determinada recomendação para um elevado posto no Departamento de Saúde Pública. Fi-lo com muito gosto.
— Obrigado.
— Bem apetite. Recomendo-lhes os pimentões recheados. Viu-os partir e acomodar-se num reservado, no canto oposto da sala. Quando se voltou para Shabibi, estava pensativo.
— É estranho.
— O quê, Coronel?
— Aquele grupinho. Na noite passada, a morte reuniu-os. Hoje, jantam juntos.
— Isso é significativo? Safreddin voltou a tranqüilizar-se.
— Provavelmente, não. Mas dá sempre azo a uma pergunta tola. . . De que falávamos?
— Do Islame, Coronel. Do Islame, e dos novos mestres... Isso interessa-me. Quem são esses novos mestres? Onde estão? Não no Ulema de Damasco, com certeza. No Cairo? Se lá estão, não lhes sentimos a influência. E devíamos
senti-la, como sentimos a sua no Club Hunafa. ..
— Há uma coisa que tem de compreender... — Safreddin mostrava-se exaltado. O intriguista desaparecido por detrás do fanático. — Outrora, e apenas outrora, todas as grandes religiões ligavam tão intimamente seus sequazes que estes marchavam ou morriam como uma multidão de irmãos. Foi assim que os cristãos venceram o Império Romano. Era assim o Islame em sua época de glória. O mesmo acontecia com o budismo. O mesmo se passou com o marxismo em nossa época. . . se bem que não entre nós.
É a magia especial e explosiva da idéia nova, a visão nova do homem renovado.. . Depois, a visão ensombra-se. Surgem os filósofos, os teólogos, os que dividem e separam, os quais partem o homem em dois para provarem uma doutrina. Pergunte o que é um muçulmano. .. receberá vinte respostas de outras tantas seitas. Os cristãos estão divididos. Os judeus estão divididos. Os marxistas encontram-se também fragmentados. E nunca conseguirá pô-los de acordo, nem com uma carrada de sábios. ..
— Então, Coronel?
— Voltemos àquilo que todos os profetas compreendem. A exposição sem adornos. Á grande simplicidade. Todo o homem que diz ”Não há Deus, mas Deus e Maomé é o seu profeta” é um irmão muçulmano. Todo o homem que venera Cristo é cristão ... Veja o que Ben Gurion, fez em Israel. Foi um gênio, também. Todo o judeu que chegava, quer vestisse um cafetã ou uma camisa suada, era declarado cidadão... Temos de fazer o mesmo. A fórmula simples, o grito forte e prolongado e a bandeira do Crescente voltarão a dominar o mundo.
— Parece muito fácil, Coronel... no entanto. . .
— Eu sei. -— Safreddin continuava preso ao entusiasmo de sua própria profecia. - No entanto, não basta. . . falta ainda quaquer coisa. O quê? Diga-me... você, a quem neste momento quero como a um filho. . . o que mais nos é preciso?
— Sangue no estandarte — respondeu o Capitão Shabibi.
O jantar oferecido por Selim Fathalla foi tudo, menos um êxito. Á presença de Safreddin era um aviso constante do perigo que os ameaçava. À comida era insípida, o serviço do restaurante, meio vazio, era incessante, como se os garçons mal pagos, tivessem sido todos recrutados como espiões pelos serviços de segurança. Bitar, já sóbrio, sentia-se fatigado e um tanto solene. Emilie em breve desistiu de tentar mostrar-se alegre. Fathalla estava de mau humor e preocupado com o novo e urgente problema que Bitar lhe atirara casualmente nos ombros. Acabaram cedo. O Dr. Bitar seguiu para casa. Fathalla e Emilie dirigiram-se para a orla do deserto e sentaram-se, escutando até tarde música da Rádio Damasco. Ficaram silenciosos por muito tempo, cada um deles encerrado num mundo particular, hesitando em abraçar-se com receio de que o outro não estivesse disposto às carícias.
Finalmente, Emilie perguntou:
— O que se passa, Selim? O que o preocupa?
— As coisas estão ficando feias. É tempo de desaparecer, mas não podemos. Pergunto a mim mesmo se não seria melhor, pegar na palavra de Baratz e fugir.
— Juntos?
— Naturalmente.
— Então façamo-lo, Selim. O mais depressa possível.
— Deixe-me pensar. Se pudéssemos manter a rede intata e entregá-la a outro sentir-me-ia muito melhor. Se ao menos Bellarmino não tivesse sido tão desmiolado! Uma agenda cheia de nomes. ..e aquela louca viagem a Aleppo. Gostaria de estar dez minutos com o indivíduo que o treinou! Seja como for, está morto, tenho de o sepultar e representar a comédia de mandar a triste notíca a Roma. Isso significa mais contatos com a policia, precisamente quando me convinha que me esquecessem. Terei de mandar a informação a Baratz... e isso é outro problema. Ainda não sei a rerposta.
Explicou como um operador ilegal de rádio podia trabalhar durante meses sem ser perturbado, até que uma noite os radiogoniômetrcs descobriam seu esconderijo. Explicou os riscos a que tinha ainda de se submeter. . .
—- Portanto, pelo menos por enquanto, não me atrevo a transmitir de casa, ou da de Bitar. Tenho duas soluções: instalar um transmissor no carro e transformar-me em brigada móvel ou comunicar da Igreja dos Mártires e correr o risco. Mas, de qualquer maneira, o perigo existe. Se me revistarem o carro ou se tiver um acidente como Bellarmino estarei liquidado. Por outro lado, se entrarem na igreja enquanto eu lá estiver serei encurralado. Aquele caminho de montanha é um ponto morto e não há lugar onde possa esconder o carro. . . De qualquer maneira, tenho de mandar o material para Telavive.
— Eu podia levá-lo à igreja, deixava-o lá e depois ia buscá-lo. Assim, não teria que se preocupar com o carro.
— Mas. se eles me seguirem, pode ser apanhada...Não, espere! — Tirou do bolso um caderno e pôs-se a fazer uma série de rápidos cálculos. — Vejamos as coisas pelo pior. Minha transmissão mais longa é de dez minutos. A Igreja dos Mártires fica a sete, oito minutos da cidade. Suponhamos que me detetam no início da transmissão. Enquanto chamam a polícia e organizam a busca, tenho pelo menos cinco minutos para encerrar a emissão e fugir para os montes.
— Mas não pode fazer isso sempre.
— Não penso fazê-lo sempre, mas agora, esta noite!. . . Que horas são?
— Onze e vinte e três.
— Ótimo! Leve-me à igreja. Começarei já a preparar o código e iniciarei a transmissão às onze e cinqüenta. Espere-me em casa por volta das três horas. . . ou mesmo mais tarde, no caso de surgirem complicações.
— Tenho medo, Selim.
— Uma noite... só uma! Com sorte, talvez seja a última. Depois, passarei a ser outra vez Adom Ronen.
— E poderei ter meu filho?
— Fica prometido.
Beijaram-se à claridade da lua do deserto e Fathalla voltou o carro na direção da estrada de Rumtha. Quando chegaram à encruzilhada, desceu e ficou de vigia até Emilie dobrar a curva, depois subiu c caminho pedregoso que conduzia à Igreja dos Mártires. O som de seus passes ecoava na paisagem tranqüila. Uma coisa a não esquecer: o som repercutia-se claramente até aos montes. Um desprendimento de cascalho ou uma pedra solta colando pela encosta poderiam traí-lo imediatamente. Um tornozelo torcido seria uma sentença de morte.
Ladeou o muro do cemitério e subiu o baixo e dentado monte que ficava atrás, observando o caminho de retirada. Na vertente mais afastada do monte, um atalho descia até ao leito rochoso de um riacho que se dividia num contraforte de rocha branca. Um braço do riacho seguia para norte, por trás da cidade. Seria esse caminho que tomaria para regressar à cidade. O outro apontava para oeste, em direção aos montes do Antilíbano, a trinta quilômetros. Uma vez rodeado o contraforte, havia grutas e aberturas às centenas, onde seria preciso suar muito para descobrir alguém. Mas os montes também eram cruéis: no verão, os rios secavam e um charco era tão raro como um diamante; transpirava-se de dia e gelava-se de noite e os beduinos contavam misteriosas histórias de duendes que cavalgavam o vento em selas enfeitadas.
Ouviu um ruído atrás de si e esboçou um movimento de defesa e alerta. Uma velha cabra preta e barbuda baliu e fugiu pela encosta. Riu nervosamente e pôs-se a caminho da igreja branca, aconchegada entre seus mortos pela fé.

BEIRUTE

— Escute, rapaz!
— Lew Mortimer fazia confidencias a Mark
Matherson, após a quinta bebida no bar do Hotel Fenício. — É americano, não é? Joga segundo as regras, não joga? Acredita em Deus. Acredita em verificadores de contas honestos e num bom dia de trabalho por um bom salário diário, etc., não acredita? Então, que raio faz metido com essa cambada de burros? Oh, eu sei! Ama a vida. Também eu. Quer tirar lucro e proveito sem que o Tio Sam aí meta a colher. Também eu. Mas, Jesus, não é forçoso fazê-lo dessa maneira! Quanto lhe paga Chakry? Trinta mil? Trinta e cinco?
- Quarenta.
-— Dou-lhe cinqüenta e trabalha para mim. Pelo amor de Deus, fica dez mil vezer melhor e não tem um maldito árabe nos calcanhares, sempre que um fecho não funciona!
— É uma oferta tentadora — reconheceu Mark Matheson. — Gostaria de voltar a trabalhar para uma organização americana, mas sabe como é. Quando se edifica qualquer coisa, gosta-se de ficar nela e vê-la crescer.
— Sem dúvida. — Mortimer estava tão à vontade como um macaco pendente de sua árvore preferida. — Estende-se a argamassa, colocam-se os tijolos, carrega-se com as telhas às costas. Tem-se o direito de ficar orgulhoso e dizer:
”Edifiquei isto.” E você o fez, rapaz. Edifcou bem. Mas repare! Essa maldita gente não pensa como nós. Espremem-nos todo o suco e depois mandam-nos andar. O que é seu é meu, o que é meu é meu e passe muito bem! Veja o Chakry! Irmão! Ele o reduziu a zero! Vá à Suíça, fale com os judeus.. . como se eles lhe emprestassem um centavo!... Veja como reage o Departamento de Estado. Pois sim! Isso não é trabalho bancário, Mark. É angariação. E Chakry obrigou-o a fazê-lo.
— Não sei, Lew. Gosto do homem. Tem muito fel, mas também tem muito fôlego. Admiro-o, É alguém capaz de voar para Paris e apresentar um ultimato aos russos. . .
— Aos russos? Meu Deus, Mark! Engoliu essa? Acha que os russos têm assim tanta valia que vão pagar entre cento e cinqüenta a cento e setenta milhões por um castelo de cartas no Líbano? Julqa que trabalham assim tão depressa? Enquanto o Comitê Central decide autorizar um fornecimento de molas para papel, o modelo passa de moda.
— Ele ertá muito seguro disso Lew.
— Chakry está seguro de tudo desde que cobrou a primeira conta de três dobres a uma prostituta cega. Está metendo-o em ridículo Mark. Não vê isso?
— Lew, não conhece esse homem como eu. É um mago.
— Vi esse mago antes. Três dedais e uma ervilha. isso já é velho.
— É fácil de dizer. Mas pense. Estamos em risco de fechar as portas dentro de dez dias e ele voa para Paris de manhã. E, se os russos não entrarem no jogo, regressará na terça-feira com um empréstimo de cinqüenta milhões de dólares.
— Repita isso.
— Vai para Paris de manhã.
— Até aí percebi. Continue. Regressa com quê?
— Com um empréstimo de cinqüenta milhões de dólares.
— E quem lhe concede?
— Sei, mas não lhe posso dizer, Lew.
— Dinheiro francês?
— Sim.
— Não acredito. Os franceses estão tão escassos de capital que eram capazes de empenhar as meias da avó. Tenho negócio com eles. Acredite, Mark.
— Digo-lhe que o conseguirá, Lew.
— Não está brincado comigo?
— Por que o faria, Lew? Ele paga-me quarenta. Você oferece-me cinqüenta. Acha que o iria enganar?
— Que espécie de dinheiro, Mark? Dinheiro de banco?
— Não.
— Fundos mútuos?
— Não.
— Seguros?
— Sim.
— Agora, sei que não posso acreditar.
— Disse-me o nome da companhia e os termos da transação.
— Preciso de outra bebida. Acompanha-me?
— Por que não?
Mortimer fez estalar os dedos à passagem de um garçom, pediu o que pretendia e, depois
recostou-se na cadeira, de pernas estendidas e os polegares metidos nas lapelas. A face enrugada e cor de noz refletia simpatia e admiração.
— Gosto de você, Mark. Gosto de você porque é tão honesto como uma galinha do Sul frita e tão danadamente ingênuo que sangro por dentro quando falo com você. Conheço todos esses filhos de um camelo dos seguros franceses, desde a Alsácia ao Midi. Se conseguir apanhar mais de dois miIhões com qualquer deles é porque é muito mais esperto do que um Gunga Din. Chakry o está enganando, Mark. Prepara-se para levantar vôo. Se o Banco Central não o afiançar na próxima segunda-feira. . . e não o fará. . . baterá asas, irmão! Será um belo vôo! Não me acredita?
— Sim. . . e não, Lew. Devia acreditar, mas. .
— Mas o que, Mark?
— Não sei.
— Pois vou dizer-lhe, rapaz. — Mortimer cortou um pedaço de presunto e passou-o através da mesa a Matheson. — É boa pessoa Mark; mas é uma crianca. Oferecem-lhe uma chupeta doce e agradável e a recusa. Cresça, rapaz! Deixe de se agarrar às saias da mãe.
— Cale-se, Lew!
— Desculpe. . . Não quis ferir seus sentimentos. Mas não quero que a sujeira de Chakry recaia sobre você. Uma resposta provar-me-á se tenho ou não razão. Que companhia de seguros é essa?
— É difícil responder.
— Claro que é difícil. Mas será ainda mais quando o Ministéro das Finanças o acusar de encobrir o fato de não terem uma lei bancária decente no Líbano.
— Não farão isso. Não podem.
— Trata-se do seu pescoço, rapaz. . . não do meu.
Era engraçado como se podia chegar àquilo ... a última traição com todas as desculpas preparadas. Era engraçado como isso custava pouco com um homem como Lew Mortimer. Estender uma galdéria ou um oleoduto, era tudo uma questão de músculos e confiança. Hesitou apenas o suficiente para disfarçar o rubor da face. Depois, respondeu:
— Que isto fique entre nós, Lew...
— Claro... claro.
—- É a Société Anonyme des Assurances Commerciales.
— Oh, irmão! — exclamou Mortimer com surpresa e deleite. — Oh, esse untuoso e sorridente bastardo! Se tivesse um chapéu, far-lhe-ia um cumprimento. É ele o dono dessa maldita companhia, e bastaria um protesto decente para pô-los fora do negócio!
— O que quer dizer?. . .
— Quero dizer que é preferível que se demita amanhã. Mark. Daqui a um mês, fará parte do meu pessoal. Cinqüenta líquidos por ano... concorda?
— Concordo, Lew. Não sei como lhe agradecer...
— Deixe disso, rapaz. Faça um trabalho honesto e sentir-me-ei recompensado. Vou ao cassino jogar uma partida de dados. Quer ir?
— Não, obrigado, Lew. Tenho um jantar.
— Ela vale a pena?
— Sem dúvida. Mas fala demais.
— É uma maneira de agarrá-lo, rapaz. O truque mais simples do mundo. Divirta-se.
Mark Matherson riu tão imoderadamente que o garçom teve de lhe bater nas costas. Quando se recompôs, Lew Mortimer já havia pago a conta e ia a caminho da porta.

No Cassino do Líbano, encarapitado no seu alcantilado penhasco como um monumento a Mídas, os carneiros já tinham sido separados dos bodes mais violentos. Os carneiros eram os turistas, arrebanhados nas bancadas do auditório para comer um caríssimo jantar e gozar um extravagante espetáculo de malabaristas, acrobatas, dançarinos, cançonetistas e um ballet de seios nus. Os bodes estavam agrupados na sala de jogo particular, onde todos os jogadores eram iguais perante o deus-dinheiro, contanto que seu capital fosse sonante, os rendimentos seguros e o crédito insuspeito.
Nuri Chakry encontrava-se entre cs jogadores, posto que sua chanteuse tinha dois números e uma apoteose e ele não estava disposto a ficar sentado no meio de toda aquela elaborada mediocridade. Além disso considerava-se um ator e sentia necessidade de dar um último espetáculo público e fazer uma final e escarninha despedida. Gostava de se sentar nas mesas de jogo, mas jogava com moderação e dentro de limites predeterminados. Não era o risco que o preocupava, eram as desvantagens que rodeavam o jogador. A casa tinha de ganhar, e Nuri Chakry não sentia o mínimo prazer nessa prévia conclusão.
O que lhe agradava era o ambiente: almiscarado com fumo, perfumes e o odor da excitação humana; os rostos desalinhados por cima dos panos verdes como retratos de todas as paixões; o tráfico constante da vigilância e da cobiça; os gritos de papagaio dos crupiês e dos apostadores, o ruído das fichas e o rodopiar hipnótico das roletas.
Não começou logo a jogar, antes circulou em redor, melífluo, sorridente e orgulhosamente confiante, observando o padrão de jogo, trocando uma palavra ou um sorriso com os clientes habituais. Sabia que era motivo de exame. Quase podia ouvir as perguntas que faziam a seu respeito, mas que não ousavam fazer a ele naquele sagrado templo onde todos os fiéis eram ricos em princípio, contanto que possuíssem um cartão de sócio. Uns eram seus inimigos, outros seus amigos. Mas ninguém, a não ser os estrangeiros de passagem, era indiferente a sua presença. Todos sabiam que tinha ajudado a construir aquele local e que, quaisquer que fossem as equações, Nuri Chakry continuava a funcionar como a Incógnita X, que podia significar tanto o zero como o infinito.
Finalmente, comprou uma mancheia de fichas — metade da parada que podia permitir-se — descobriu uma cadeira na extremidade da mesa da roleta e preparou-se para jogar. Não utilizava qualquer sistema; não selecionava suas apostas, antes jogava nos números em frente, confiando nas probabiIidades e esperando que sua sorte continuasre quando chegasse sua vez. Durante quinze minutos perdeu calmamente. Depois, ganhou no sete. Deixou ficar a parada e passou para o dezessete. Voltou a ganhar. De novo deixou o dinheiro ali e passou para o vinte e sete. Quando voltou a ganhar, ouviu-se um murmúrio em redor da mesa. O crupiê sorriu, encorajadoramente:
— Outra vez, m’sieu?
Chakry abanou a cabeça. O crupriê retirou todo o dinheiro da mesa. Chakry gratificou-o e embolsou os lucros.
— É um jogador cauteloso, Nuri — disse Mortimer, por detrás de sua cadeira.
— Quer meu lugar? — perguntou Chakry, com delicada frieza.
— É um jogador cauteloso — repetiu Mortimer. — Por que não deixa correr? Pode não voltar a ter a mesma sorte.
Chakry ignorou-o, abandonou a mesa e
dirigiu-se com as fichas para a caixa.
O volumoso corpo de Lew Mortimer bloqueou-o. Parecia dançar. Tinha o rosto congestionado e os olhos raiados de sangue.
— Não vá ainda, Nuri. Preciso falar-lhe.
— Desculpe, por favor.
— Apenas uma palavrinha, Nuri. E uma bebida no caminho. Depois, beijarei minha mão por você.
— Prefiro não falar com você. E é claro que também não beberei. Deixe-me passar, por favor.
Reinava silêncio no grande salão. Os garçons moviam-se cautelosamente. Lew Mortimer lançou a enorme mão ao peito da camisa de Chakry:
— Não me afaste, homenzinho! Não o pode fazer.Nunca mais poderá afastar ninguém.
— Por favor, cavalheiro! — Um jovem musculoso, mas delicado, meteu-se no grupo. — Se tem negócios a tratar, por que não o faz lá fora? E largue o cavalheiro.
— Meta-se na sua vida. — gritou Mortimer. furioso. — Sabe quem é este? O Sr.Nuri Chakry. Um meu amigo de negócios. Vai beber comigo, não vai, Chakry?
— Não.
Havia agora três jovens que empurravam e seguravam Mortimer, enquanto Chakry alisava o peito da camisa e se dirigia para
a caixa. Mas não puderam impedi-lo de gritar e as frases exaltadas de ébrio ecoaram na sala,
— Vai fugir, não é, Nuri? Espatifou tudo, gastou toda a massa e agora foge para a América do Sul. Quem vai pagar aos depositantes, Nuri? Quem vai limpar a sujeira? Olhem para ele! Troca suas próprias fichas. Mas as nossas? E o resto?,., Diga-lhes, Nuri. . . fale a eles do grande empréstimo da companhia de seguros que nunca conseguirá. ., Diga-lhes que abandona o negócio na próxima semana.
Então, fizeram sair Mortimer pela porta de serviço, e os homens das mesas pediram que se reiniciasse imediatamente o jogo. Mas ninguém lhes prestava atenção. Todos olhavam para Nuri Chakry, que contava seu dinheiro, metia-o na carteira e se dirigia, ao longo do extenso e solitário tapete, para a porta.
Não foi uma má saída. Foi até uma espécie de triunfo. Ainda que publicamente humilhado continuava a mantê-los em respeito. Seu sorriso imputou a mentira a seu embriagado acusador. Seu desprezo convenceu o mais malévolo de seus inimigos. Deixou-os como um príncipe, com um irônico gesto de adeus,
Nunca nenhum deles saberia como teria sido fácil voltar a fazer dele um maltrapilho, entre a caixa e a porta.

12

DAMASCO

Havia quatro operadores na sala dos monitores, cada um deles equipado com um receptor e um auscultador, sintonizando lentamente a faixa de ondas curtas, em busca de uma estação que emitisse grupos de cinco algarismos. Havia mais quatro operadores nos caminhões que cruzavam a cidade e cada um dos caminhões estava sintonizado com a estação monitora, de forma a que, logo que um deles descobrisse o canal pirata, os outros o soubessem simultaneamente e pudessem dirigir os radiogoniômetros para o transmissor. Era um trabalho para ouvidos pacientes e dedos sensíveis, pois os canais estavam tão sobrecarregados que os sinais interferiam uns com os outros e alguns, enviados de muito longe, cobriam todo um continente e chegavam fortes, como se de um transmissor local.
O Capitão Shabibi tinha seus homens bem treinados. Começara com todos ao mesmo tempo cada um deles num ponto diferente da faixa e ensinara-os a sintonizar com razoável perícia, pelo que havia oito probabilidades de apanhar o operador clandestino. O próprio Shabibi estava em permanente contato com os carros, certificando-se de que se mantinham suficientemente afastados para poderem fornecer quatro vetores diferentes do transmissor — contanto, naturalmente que estivesse em funcionamento nessa noite e conseguissem descobri-lo.
O Coronel Omar Safreddin estava sentado em sua cadeira, descontraído, fumando cigarro atrás de cigarro. Sua atenção dividia-se entre os pormenores técnicos da operação e o jovem que a controlava com tão repousada segurança. Olhava-se para Shabibi a determinada luz e
era-se tentado a esmurrá-lo antes que se tornasse demasiado importante. Era o perfeito homem de carreira, sutil, industriado nas artes da lisonja, inteligente, obstinado e bem informado. Olhava-se para ele sob outra luz e todas as esperanças se justificavam imediatamente: a esperança de uma administração honesta, de um progresso industrial e da maturidade política. Era
a mão que levantaria as altas torres, fixaria a bandeira do Crescente e a mancharia com o próprio sangue para sua maior glória. Olhava-se à luz das trevas e sentiam-se os arrepios de paixões estranhamente confusas fraternas, paternais amigáveis todas nobres e nenhuma isenta da solicitação do contato sensual. A solicitação também era nobre; os grandes poetas do califado haviam-na celebrado centenas de vezes em canções e poemas. Mas para um homem que acabava de realizar uma revolução e que tentava ainda torná-la efetiva, o mais nobre afeto roçava as margens do perigo. Nenhum banho era seguro contra o punhal do assassino, nenhum vinho estava a salvo do veneno e muitos catamitos tinham cuspido no rosto de seus senhores mortos.
Era essa a fraqueza para a qual não encontrara remédio. Enquanto pudesse odiar, poderia ficar só; nunca se arriscaria à liberdade do amante ou mesmo à comunidade de espíritos iguais. Recuava sempre no momento da entrega, desprezando-se e vingando-se do desprezo por si próprio em cruéis invenções sobre o objeto amado. Nesta noite, queria que Shabibi vencesse. Amanhã, humilhá-lo-ia, arranhando-o delicadamente até sangrar. E quando tivesse provado o sangue, então seria de novo generoso, cheio de tolerância e cicatrizante solicitude.
Viu um dos operadores endireitar-se ajustar o botão de sintonia e prender melhor o auscultador. O operador escutou por alguns intantes e depois voltou-se, excitado:
— Apanhei-o Capitão! No fim da faixa... quatro ponto dois. .. quatro ponto três...
Shabibi deu uma ordem:
— Que todos sintonizem e comecem a copiar,
Voltou para seu aparelho e começou a chamar os radiogoniômetros para cercarem a área da freqüência de onda e lhe enviarem os vetores que indicariam a posição exata do transmissor. Quando estes lhe foram fornecidos, apontou-os e passou-os a um oficial subalterno que os assinalou no mapa da cidade. As linhas vetoriais transpunham o mapa e Safreddin resmungou raivosamente, até que descobriram o ponto de convergência ao sul da estrada de Rumtha.
Tinham-se passado três minutos e mais cinco se escoaram até fazer entender suas ordens à polícia e ao oficial de serviço no Quartel-General da Segurança: dois bloqueies da estrada, um ao sul e outro ao norte do mapa de referência; um grupo armado de policiais cercaria a área em causa, entrando em ação logo que chegasse; os radiogoniômetros mover-se-iam para sul, na direção de Rumtha. Em seguida, desceu com Shabibi, despertou com um grito o motorista adormecido e dirigiu-se para o local.
Quando chegaram ao alto da cidade, onde as encostas iniciavam a descida e a estrada fazia uma grande curva em redor de um precipício, encontraram o primeiro bloqueio já organizado. Os caminhões-emissores também lá estavam, estacionados na berma verdejante. Safreddín e Shabibi seguiram lentamente pela estrada, procurando um desvio que os levasse até aos montes. Quando o descobriram o grupo armado de policiais já vinha à sua retaguarda. Em fila entraram no caminho cheio de sulcos que os conduziria à Igreja dos Mártires.
Agora, Safreddin era apenas o profissional. Dispersou rapidamente seus homens em redor da cerca do cemitério, depois mandou-os seguir cautelosamente através das campas arruinadas, até ficarem encostados à parede da igreja. A porta estava fechada. Forçaram a ferrugenta fechadura e penetraram num espaço vazio inundado de luar. Safreddin dispôs o pequeno e nervoso grupo junto da entrada e iluminou o pavimento da nave. Havia claros vestígios de pegadas na espessa camada de pó. Safreddin ajoelhou-se para as examinar, depois acenou para Shabibi e traçou dois arabescos com o indicador:
— Um homem e uma mulher. O homem vem aqui com mais freqüência do que a mulher. Ê possível que haja mais pegadas ao lado. Mande avançar os homens junto às paredes. Que não apaguem as marcas.
Foi Safreddin quem os conduziu até à cripta. Fez incidir a luz em torno da câmara vazia, notando, a nascente, o sepulcro e vestígios de pés em redor. Por muito tempo, ficou silencioso, perdido em seus pensamentos, e depois voltou-se de novo para Shabibi:
— Mande chamar uma equipe da polícia, antes que destruamos alguma coisa... Os das impressões e os fotógrafos. Quero que examinem isto bem. que abram aquele sepulcro e inspecionem o chão e as paredes. Não estamos equipados para isso e podíamos esquecer algum indício importante. Mande também explorar as encostas. Não espero que encontrem nosso homem, mas temos de tentar. Que voltem todos dentro de uma hora. Deixe quatro homens de guarda na igreja.
Após a primeira excitação da descoberta, reinou um clima de embaraço. Shabibi esteve tentado a arriscar um comentário, mas, ao olhar para o rosto de Safreddin, desistiu. Dispôs os homens da guarda e mandou os outros darem uma busca nos montes iluminados pelo luar. Enviou uma mensagem pelo rádio pedindo os peritos da polícia e, depois, ficou no seu posto, junto ao carro, à espera de Safreddin.
Passaram-se cinco minutos antes que ele saísse da igreja e atravessasse o cemitério, de cabeça pendente para o peito como se voltasse de um enterro. Shabibi fez sucintamente seu relatório:
— Os batedores partiram, Coronel. As equipes de investigação vêm a caminho.
— Não descobri a chave — murmurou Safreddin, ausente.
— Coronel?
— Conheço este local — prosseguiu Safreddin, no mesmo tom abstrato. -— Conheço-o. Creio lembrar-me por que motivo...— Não compreendo, Coronel. Safreddin lançou-lhe um gélido e irônico sorriso.
— É um jovem muito brilhante, Capitão. Esta noite, subiu dez degraus no caminho da promoção.
— E o Coronel?
Saffreddin apoiou-lhe afetuosamente um braço no ombro:
— Espera-se muitos anos, rapaz. Espera-se, trabalha-se e estuda-se como um avaro amealhando um tesouro que nunca gastará. Até que um dia surge alguém na nossa vida com o qual decidimos ser pródigo. Para mim, esse alguém é você. Vamos acabar isto aqui, esperar pelos peritos e deixá-los trabalhando. Depois, mostrar-lhe-ei as recompensas da paciência e de uma longa memória.
Errando pelos tortuosos desfiladeiros, Selim Fathalla ouvia o rumor dos veículos ao longo da estrada de Rumtha. Era de mau agouro, mas não conclusivo. Podia tratar-se de um comboio militar em direção aos postos fronteiriços do sul; menos provavelmente, de uma fiIa de veículos comerciais, dirigindo-se para o mercado de Damasco. O som era distorcido pelos contornos das montanhas e tornava-se difícil determinar sua localização exata. Depois, ouviu dispares de fuzil um tiroteio que ecoava pelas montanhas desertas. Apressou o passo, descuidadamente até que tropeçou e esfolou a canela numa rocha. A dor obrigou-o a refletir. O pânico podia paralisá-lo. Avançou com mais cautela, procurando as sombras ao longo do flanco do vale, detendo-se de quando em vez para respirar e sondar o silêncio que se seguia aos ecos.
Estava acocorado à entrada de uma gruta baixa ofegante e esfregando a canela ferida, quando ouviu novos sons ao longe, mas nítidos no ar seco: pesadas botas calcavam o chão, vozes de homens chamando uns pelos outros, enquanto subiam aos cumes ou desciam até ao rio, à sua retaguarda. Uma vez mais o pânico ameaçou esgolfá-lo. Lutou desesperadamente, agarrando-se com firmeza à rocha até se acalmar. Em seguida, moveu-se, furtivo como uma raposa, tentando distanciar-se dos perseguidores.
Tinha perdido toda a noção do tempo, todo o sentido da identidade e da fraternidade humana. Era presa do instinto animal da sobrevivência. A terra era sua única amiga... as cavidades rochosas, o único abrigo, onde o animal acossado se podia sentir seguro por instantes; as covas e as depressões, a única esteira onde se podia estender, respirar e ouvir o rumor da perseguição.
Distanciavam-se agora. Não conseguia ouvir os passos, apenas as vozes, ocasionais, dispersas e abafadas. O desfiladeiro começava a
alargar-se e em breve irromperia no espaço aberto dos limites da cidade.
Um novo pânico se apoderou dele: o que aconteceria se tivessem mandado homens cercá-lo e apanhá-lo à saída do vale? Por cima dele, negros tentáculos geminados de rocha erguiam-se contra o céu enluarado. Se conseguisse subir até eles, dominaria a estrada, ao norte da cidade e ao sul, até às primeiras curvas da rodovia. Ali, a parede do vale era demasiado íngreme e teve de abrir caminho através de atalhos transversais, tropeçando a cada passo, agarrando-se para não cair, evitando a queda barulhenta de um pedra. O granito duro rasgava-lhe as mãos e as roupas, e momentos houve em que, pendurado como um fruto à luz da Lua, seria um alvo fácil para qualquer atirador. Estava inundado de suor e o coração parecia querer rebentar na arca do peito. A boca enchera-se-Ihe de pó e teve de sufocar a tosse, enquanto subia os últimos metros que o separavam de um pequeno planalto, protegido pelas rochas. Ficou estendido um minuto, vomitando e exausto. Depois, rastejou até uma fenda entre as rochas e espreitou.
Quatro caminhões de rádio estavam estacionados na relva, no sopé da montanha. Os ocupantes, encostados a eles, fumavam e conversavam indolentemente. Dois carros da polícia, atravessados, bloqueavam a rodovia deserta. Vinte metros adiante, dois homens com lanternas incumbiam-se de impedir o trânsito.
O caminho para a cidade estava cortado. Sentia-se demasiado cansado para tentar outra caminhada pelas montanhas, na direção oeste. A única solução era aguardar que dessem a busca por finda antes do romper do dia e tentar um novo plano para salvar o pescoço e a rede. Sem dúvida que tinham descoberto a igreja e, provavelmente o transmissor. Com certeza que não encontrariam impressões digitais pois tivera o cuidado de limpar tanto o aparelho como a tampa do sepulcro. Descobririam pegadas e vestígios de sua ocasional presença, mas seria difícil a identificação enquanto estivesse em liberdade.
Preocupava-o um pequeno erro. Tinha fechado a porta da igreja e metera a chave no lugar habitual, por baixo da pedra da
estela. Um investigador sutil poderia concluir que a posse da chave implicava um arrendamento. Pergutaria ao Patriarca quem estava de posse da chave. O Patriarca responderia que a igreja tinha sido desconsagrada e vendida há muito tempo. Caso não se recordasse do nome do comprador... e era o mais provável, pois estava velho demasiado e preocupado em manter uma florescente comunidade cristã num Estado muçulmano... consultaria os arquivos. Estes revelariam que o atual dono era um certo Selim Fathalla. E então nem queria pensar no que o esperava. Por isso, empoleirado em seu refúgio rochoso, de boca seca e trêmula, tomou uma decisão.
Logo que o bloqueio fosse levantado, iria a casa, avisaria Bitar para interromper a rede, meteria Emílie no carro e seguiria por atalhos em direção à fronteira do Líbano. Abandonariam o carro antes do romper do dia, esconder-se-iam nos montes e subiriam as encostas do Hermon durante a noite. Era uma fronteira amiga e pouco vigiada. Com sorte, estariam no vale do Àntilíbano antes do amanhecer do dia seguinte.
Uma súbita agitação na estrada despertou-o do devaneio. Olhou para baixo e viu os carros da polícia serem retirados do meio da rodovia para darem passagem a um carro do Estado-Maior e a um caminhão da polícia, vindos do sul. Quando fizeram a curva, deixaram também a estrada. Viu Safreddin e Shabibi descerem do carro oficial e convocarem os policiais e os motoristas para uma rápida consulta.
Esforçou-se por ouvir o que diziam, mas as vozes chegavam até ele em murmúrios confusos. Momentos depois, dirigiram-se para seus veículos, ligaram os motores e puseram-se em marcha. Três minutos mais tarde, a estrada estava deserta.
Fathalla esperou ainda dez minutos, depois abandonou o esconderijo e iniciou a caminhada de regresso à cidade.
Era uma experiência de arrasar os nervos. A certa altura, teve de entrar rapidamente em uma viela, a fim de escapar ao policial de patrulha, que, vendo-o errar à toa pela cidade, esfarrapado, coberto de pó e sem documentos, inevitavelmente o deteria para um interrogatório. Quando parou para beber numa fonte, por pouco não foi surpreendido por um carro patrulha. Quando mergulhou no dédalo de ruelas que iam desembocar nos bazares fechados, um par de rufiões seguiu-o durante uma centena de metros, até que se voltou para eles e atirou uma mancheia de notas na sarjeta. Enquanto procuravam o dinheiro, desatou a correr, ecoando seus passos contra as paredes arruinadas. Um mendigo que dormitava num monte de palha estendeu uma perna e obrigou-o a ir de encontro à parede oposta. Fathalla voltou-se praguejando, a tempo de ver uma faca brilhar no escuro. Com um safanão, fez com que a faca rodopiasse no ar, enquanto o mendigo gritava de dor. Continuou a correr, não se detendo sequer para respirar, até que chegou ao fim da ruela, que dava para sua rua. Seguiu protegido pela sombra de uma arcada, tentando recompor-se para seu encontro com Emilie.
Foi então que surgiram três carros que guincharam ao desembocar da ruela e foram parar bruscamente diante da porta de sua casa. Coseu-se com a parede e viu Safreddin e Shabibi dirigirem-se para a porta e tocar a campainha ao mesmo tempo que a escolta, de armas engatilhadas, se mantinha firme atrás deles. Viu a porta abrir-se e Emilie, pálida como a morte, espreitar. Viu que a empurrava para o interior, seguindo-a e batendo a porta com força. Então, desesperado, voltou as costas e regressou, como um gato vadio, a escuridão das sujas vielas.
Gastou dez minutos para chegar ao centro da cidade ao único lugar de onde podia
comunicar-se com alguém — a cabina telefônica da estação central dos Correios. Era uma temeridade, mas tinha de arriscar-se. Procurou nos bolses uma moeda e discou o número de Bitar. Ouviu-se o sinal de chamada durante muito tempo e por fim, uma voz desconhecida atendeu:
— Fala da casa do Dr. Bitar. Quem está ao telefone?
Desligou. Haviam também apanhado Bitar e a estas horas, a polícia devia estar correndo por toda a cidade, em busca de Selim Fathalla. Evitou as luzes da estação dos Correios e voltou para as sombras humildes das ruelas. De repente, sentiu-se terrivelmente fraco como que paralisado pelo incrível colapso de seus cálculos. Que Emilie tivesse sido apanhada, brusca e brutalmente, enquanto ele se abrigava impotente nas sombras, era uma vergonha que o imobilizava. Se, nesse momento tivesse passado um policial e o visse ébrio de cansaço e amargura encostado a uma barraca fechada, tê-lo-ia seguido sem um protesto, pedindo apenas que o levassem para junto dela.
O ruído de um carro que se aproximava despertou-o daquele colapso, obrigando-o a esconder-se atrás da barraca até o silêncio se restabelecer. Olhou para o relógio. Eram cerca de três e meia da manhã. Dentro de uma hora, os primeiros alvores inundariam a cidade. À luz do dia e no meio da multidão ficaria mais exposto e indefeso do que nunca. Emilie e Bitar era como se estivessem mortos. Nada podia fazer para aliviar o tormento que os esperava e sabia que, se pensasse demasiado nisso acabaria por enlouquecer.
Reuniu as últimas forças e prosseguiu, por ruas de pesadelo, em direção aos abrigados montes do lado oeste.

— Lamento ter interrompido seu descanso doutor —- desculpou-se Safreddin com irôn!ca delicadeza. —- Mas, como vê temos um doente que precisa de seus cuidados.
O Dr. Bitar parou junto da porta com a maleta preta balouçando na mão e lançou uma olhadela ao quarto de Fathalla. Todas as gavetas tinham sido revistadas o painel de faiança estava aberto e todos os segredos à mostra. Emilie Ayub jazia desmaiada numa cadeira, de ombros nus, com sangrentas contusões no rosto e no peito. Tinham-se mostrado muito profissionais com ela.
Haviam-na assaltado rude e selvaticamente, convencidos de que o choque a venceria antes de ter tempo para se robustecer na afronta e na obstinação. Era por demais evidente que o tinham conseguido.
Dois homens estavam atrás da cadeira dois outros perfilavam-se ao lado de Shabibi e Safreddin, junto à janela. Outros dois ainda encontravam-se entre Bitar e a saída.
Bitar voltou-se lentamente para encarar Safreddin. Em sua voz profunda, havia um furioso desprezo:
— São uns bárbaros! Safreddin sorriu amavelmente:
— Faça o favor de a acordar, Doutor. Queremos fazer-lhe mais umas perguntas.
— Ponham-na na cama.
Dois homens ergueram o ccrpo inerte e gracioso e estenderam-no no leito. Bitar
sentou-se junto dele e abriu a maleta.
Shabibi moveu-se numa corrida rápida e arrancou a maleta das mãos do médico:
— Permita-me que a veja, Doutor?
Bitar ignorou-o e pegou no pulso de Emilie. Estendeu a mão para a maleta e Shabibi entregou-a sem proferir palavra. Bitar procurou nas bolsas interiores e retirou dois minúsculso tubos de vidro, que passou ao Capitão para que os examinasse.
— Inaladores de nitroglicerina. É o único estimulante cardíaco que tenho.
— Use-o — disse Safreddin.
— Antes de o fazer — replicou Bitar com o mesmo árido desprezo — quero que compreendam uma coisa. Não haverá mais torturas..
— Parece-me, Doutor, que ignora sua situação. Também tenho perguntas para você. Perguntas acerca de uma agenda tirada do bolso de um homem morto, em sua presença. Muitas e muitas perguntas sobre suas relações com Selim Fathalla e o local onde se encontra escondido.
Bitar olhou-o com raiva, mas não se moveu.
- Conhece as respostas. Para que perder tempo perguntando... Além disso, deve-me um favor. Reclamo-o agora.
— Não lhe devo nada! — Uma ira súbita dançava nos olhos de Safreddin. — Não há recompensa para a traição.
Pela primeira vez, o rosto comprido e melancólico de Bitar contraiu-se num sorriso irônico:
— Um nobre árabe! Que não paga uma vida por uma vida! Fathalla, o judeu, era mais honesto!
Por instantes Safreddin pareceu imobilizado pela própria raiva, enquanto Shabibi e os outros o fitavam surpreendidos. Depois, com a mão erguida para atacar, dirigiu-se para a cama.
Nesse mesmo instante, Bitar meteu um dos inaladores nas narinas de Emilie e o outro nas suas. Morreram em dois segundos, no meio de um perfume de amêndoas.

HEBRON

Às cinco horas da manhã, o Sol nasceu e ondas douradas, roxas e purpúreas invadiram a terra. Era um momento breve e miraculoso de transfiguração, durante o qual, como diz a lenda, o anjo da espada chamejante entreabria os portões e permitia que a humanidade lançasse uma vista de olhos pelo perdido jardim do Paraíso. Depois, as ondas desapareceram e a terra mágica voltou a transformar-se em deserto, mostrando à luz nua suas marcas e cicatrizes.
Na área de concentração, no vale de pinheiros, as tropas esvaziavam os restos dos cantis, inspecionavam o equipamento de combate e regulavam os motores, à espera da ordem de marcha. A quarenta quilômetros, os Mystères estavam sendo abastecidos e armados, enquanto os pilotos saíam do refeitório e esperavam a chamada final da torre de controle. O nervosismo era pouco, a excitação nenhuma; as brincadeiras tinham um sabor amargo, embora os leões de Judá tivessem sido mobilizados para lutar contra coelhos.
No posto de observação, sobranceiro ao vale do Hebron, Jakov Baratz comia o pequeno almoço com o Chefe do Estado-Maior e esperava que o jogo da guerra começasse. Estavam descontraídos e quase alegres, dois técnicos competentes que tinham insuflado todos os seus fatos no cérebro mecânico e que nada mais tinham a fazer senão esperar que ele lhes fornecesse uma solução profética. Sua responsabilidade estava reduzida ao mínimo. Eram inspetores que observavam o trabalho dos subordinados, que teriam de suportar o peso da ação e da decisão em campanha.
Na essência, o plano do Hebron era muito simples e havia pouca margem para erros. As 6 horas, os caças levantariam vôo e as tropas terrestres estariam a postos na fronteira jordaniana. Penetrariam cinco quilômetros em território jordaniano e cercariam a aldeia. Os aldeões seriam evacuados e uma companhia mista de infantaria e engenharia avançaria para recolher os tresmalhados e colocar cargas de demolição nas casas e nos edifícios públicos. As cargas explodiriam a companhia retirar-se-ia e a operação estaria acabada. Os tanques estariam lá para proteger a infantaria, fazer uma demonstração maciça de força e barrar o caminho a qualquer aproximação de tropas da Legião Árabe. A única oposição provável seria a de armas ligeiras e de elementos irregulares da Organização de Libertação da Palestina.
O Chefe do Estado-Maior voltou-se para Baratz e riu:
— Devia ter ficado na cama, Jakov. Não há o que fazer aqui.
— De fato, Chaim. Mas acordaram-me às três da manhã para decifrar uma mensagem de Damasco. Isso tirou-me a vontade és voltar para a cama.
— Alguma novidade?
— Duas. Os iraquianos concordaram em tomar parte em todas as operações militares iniciadas pela Síria e o Egito ao abrigo do Pacto de Defesa. O preço é livre trânsito para seu oleoduto através da Síria.
— Quer dizer que a Jordânia fica bloqueada?
- Geograficamente, sim. Hussein foi apanhado numa armadilha.
— Mais alguma coisa?
— Uma equipe síria de mísseis partiu para treinamento na Rússia. Portanto, devem receber em breve o material.
— E quanto às fortificações da Galiléia?
— Nada. E é possível que tenhamos de esperar muito.Fathalla receia ter sido descoberto. Quer que o evacuemos com a moça. Insiste em ficar até pôr a rede a salvo, mas não estou de acordo. Verei o que é possível fazer, quando regressar a Telavive.
— Portanto, a moça foi um erro.
—- Também nós cometemos um erro, Chaím. Enviamos um mau contato de Roma. Portou-se como uns louco. Morreu, mas cometeu uma série de tolices.
— Por exemplo, Jakov?
— Uma discussão com Fathalla, por causa da moça. Uma viagem despropositada a Aleppo para contatar com nosso pagador. Não tinha o direito de o fazer sem consultar Fathala. Sofreu um desastre na estrada e morreu pouco depois.
— É essa a verdadeira história?
- É a mais conveniente - respondeu Baratz. — Agrada-me aceitá-la.
O Chefe do Estado-Maíor guardou silêncio por instantes, depois mudou de assunto:
— Quando este exercício de tiro aos patos acabar... e não acabará esta manhã, como sabemos... não seria desacertado discutirmos um plano de manobras e fazer outro ensaio da Operação Abu Agheila, antes que chegue o inverno.
— Há outras coisas mais a discutir, Chaim. Reservas, por exemplo. As que temos não dão para seis meses. lsso preocupa-me.
— Também a mim, Jakov. Elaborei uma agenda para discutir com o Ministro quando o vir, hoje... Façamos uma aposta: o que acontecerá a seguir e quando?
— Não gosto de apostas, Chaim. Mas pode-se chegar a uma conclusão prévia. Os sírios espicarçar-nos-ão na Galiléia até nos forçarem a uma acareação. Nessa altura, gritarão pelos egípcios. Se os egípcios mandarem tropas para o Sinai, começa a brincadeira. Quando.., Quem, diabo o pode saber? Como sabê-lo? Consulte os arquivos. Leia os jornais. Estamos num mundo de loucos... uma Torre de Babel, onde ninguém se entende e se morre dizendo disparates num deserto de macacos.

— Como se sente, irmãozinho? — Café Branco estava debruçado sobre a cama, gozando seu doloroso despertar, — Como se sente em sua última manhã?
— Quero mijar — disse Idris Jarrah.
— Desamarrem-no. Levem-no para fora.
Libertaram-no das cordas puseram-no de pé e, quando cambaleou e caiu, riram-se e
deixaram-no ali estendido, até recobrar forças para se erguer. Levaram-no para uma pequena cerca de pedra, bateram-lhe com os fuzis e cobriram-no de sarcasmos, enquanto se aliviava contra o muro de pedra. Não lhe deram tempo para gozar o sol ou o ar fresco da manhã, logo o empurraram para o interior da casa e
sentaram-no à mesa. Serviram-lhe uma caneca de água morna e um bocado de pão duro. Depois, Café Branco sentou-se do lado oposto da mesa brincando com uma pistola carregada. Acordara de mau humor, nessa manhã. Mostrava-se cáustico e ameaçador.
- Sonhei com você esta noite, irmãozinho. Sonhei que nos tinha abandonado e atravessava a fronteira. Ví-o sentado com os
judeus contando-lhes nossos segredos em troca de mais dinheiro.

Acordei nesse momento, pelo que não sei como acabava o sonho. Gostaria que me dissesse, agora.
Jarrah fitou-o com espanto e de olhos raiados. Algo estava errado, mas sentia-se demasiado atordoado para o descobrir.
— Não sei o que pretende. Disse-lhe tudo. Terá o dinheiro ao meio-dia. Que mais quer?
— Quem era seu contato em Israel?
— Não tinha nenhum contato.
— Está mentindo.
— Por que mentiria agora?
— Era esse o sonho, Irmão Jarrah. Explique-o.
— Nada há a explicar. Tinha dinheiro e um passaporte. Ia a caminho do aeroporto, a fim de fugir para Paris.
— Mas tinha muito para vender aos judeus, não é verdade? Muito mais do que aquilo que vendeu a Chakry, no Líbano. Podia vender-lhes uma exposição pormenorizada de nossa Organização a oeste da Jordânia. Podia vender-lhes uma lista de nomes, a posição de nosso arsenal e a indicação do local onde guardamos nosso dinheiro. Logo que obtivessem essas coisas, entrariam em negociações cem os hashemitas e davam cabo de nós num mês!
— E por que não o venderia aos jordanianos?
— Oh, não, irmãozinho! Os jordanianos não lhe dariam um centavo. Atiravam-no em uma cela e o espancavam durante vinte e quatro horas. Sabia isso. Foi o que o decidiu tentar contatar com os judeus.
— Não tive quaisquer contatos. Como seria isso possível?
— Sabe o que interrompeu meu sonho? — Café Branco segurou a pistola com as duas mãos e apontou-a para o peito de Jarrah. — Um telefonema de Safreddin de Damasco. Descobriram um espião judeu, na noite passada. Safreddin está convencido de que você não é estranho ao fato. Pensa que revelou aos judeus o caso de Rumtha, que lhes falou da conspiração do palácio e do Major Khalil... e muitas coisas mais... Então, irmãozinho?
— Não sabia nada disso. Como poderia ter falado?
— Ora, vejamos alguns nomes... Selim Fathalla. - Não.
— Uma mulher chamada Emilie Ayub.
— Não.
— Dr. Bitar. - Não.
— Está mentindo.
— O que ganharia com isso?
— Tempo! É valioso para os judeus. Espera que venham salvá-lo da confusão em que se meteu.
— Não!
- Esta manhã não tenho tempo a perder, irmãozinho. O avião para Beirute parte às oito. Portanto, pense bem e... •— Calou-se, escutando o longínquo som de um avião. Recuou a cadeira e gritou uma ordem: — Vocês dois .. . vigiem-no! — Depois correu para o exterior, acompanhado pelo resto do bando.
Jarrah, sentado, apoiou a cabeça nas mãos, enquanto a vaga de aviões sobrevoava a casa. Sua confusão era total. Não havia maneira de esquecer a despropositada acusação de Café Branco, não havia maneira de escapar a novos tormentos. Desmembrá-lo-iam lentamente, na ânsia de acreditarem numa ficção que se diria ameaçar-lhes a existência. Ouviu uma confusão de vozes lá fora; homens que gritavam, mulheres, que choravam e crianças que chamavam de casa em casa. Momentos depois, Café Branco voltou ao aposento. Ergueu Jarrah pelos cabelos e arremessou-o contra a parede.
— Os judeus chegaram, Jarrah! Tanques, caminhões e aviões. Vieram por sua causa, não foi? É para você ver como é importante! O resto era tudo estratagema. É a grande matança, não é?
Então Idris Jarrah compreendeu o gracejo e riu na cara de seus carrascos.
Do posto de observação, o espetáculo desenrolava-se em movimento lento e estranho, como um manobrar de formigas de fogo, vistas através de um olho gigante.
Primeiro foram os tanques, em duas colunas, rolando pela planície levantando pó e pedras, sacudindo o ar com o ruído de seus motores e o raspar das lagartas. Dos extremos opostos da planície, convergia para a minúscula aldeia uma parada de focinhudos monstros planetários, conduzidos por criaturas de olhos desorbitados com capacetes e correias afiveladas ao queixo. Eram implacáveis e invulneráveis. Quando os aldeões os viram, fugiram apavorados, agarrando objetos e crianças, evacuando o local num êxodo patético, em direção às cavernas das encostas. Para os homens que observavam do posto, a luta era uma agitação liliputiana, reduzida em suas proporções pela imensidade da planície ensolarada e o cortejo ameaçador do primeiro plano.
Depois dos tanques, que seguiam paralelamente às linhas de convergência, foi a infantaria em caminhões e carros de assalto, fantoches com cabeças de cogumelo e roupas cor de fungos, e pequenos fuzis de canos apontados para o céu. Vistos assim, a distância, metidos em suas caixas metálicas dir-se-iam soldados de chumbo, prontos para uma alegre e insensata carnificina numa brincadeira de crianças.
Estavam agora perto da aldeia. Os que abriam as colunas encontravam-se quase a par. Movimentaram-se para estabelecer um anel de ferro e de homens armados em volta da região. Antes que o anel se fechasse, pararam. Os homens dos tanques experimentaram as armas nos edifícios. A infantaria saiu dos caminhões e avançou, agachada, protegida pelos flancos de ferro dos monstros. Reinava silêncio, agora. O pó começava a assentar. Então, uma confusão de tiros ecoou pelas montanhas distantes e indiferentes. Depois do tiroteio, uma voz profunda e distorcida pôs-se a chamar os aldeões, se é que os havia para que abandonassem as casas e levassem seus familiares para as cavernas. Não seriam molestados — prometia-lhes a voz — mas, se algum deles disparasse um tiro ou fossem encontradas armas em seu poder, seria morto sem piedade. O apelo foi repetido, duas e mais vezes. Então, sob o olhar atento dos artilheiros, cs últimos habitantes, assustados, saíram das casas e desataram a correr. O anel de tanques fechou o cerco e as tropas prepararam-se para destruir aquele amontoado de casas desertas.
No céu deslumbrante, dois Mystères travavam um combate desigual com três Hunters jordanianos. Aos homens do posto de observação a batalha parecia um relampejar de raios solares, uma confusão de esteiras de fumo a que se misturava o som longínquo dos tiros de canhão. Acabou quando uma forma despedaçada tombou do céu, envolta em fumo e fogo. Viram os outros dois Hunters afocinharem nos montes jordanianos, enquanto os Mystères davam a batalha por finda e regressavam à base.
O Chefe do Estado-Maior agarrou Baratz por um braço e apontou para o vale:
— Olhe para aquilo, Jakov!
Baratz assestou o binóculo e viu, na curva da estrada do Hebron, um comboio de caminhões abertos, cheios de tropas da Legião Árabe. Blasfemou raivosamente:
- Deus Todo-Poderoso! Estão loucos! Caminhões abertos e infantaria! Espero que esse Zakkai dos diabos se lembre das ordens. Se os atacar agora, será uma carnificina!
Mas as palavras acabavam de sair de sua boca e já os tanques abriam fogo, varrendo a estrada. Os caminhões pararam e os homens desceram, dispersando-se pelas encostas rochosas.
Baratz soltou um suspiro de alívio:
— Cem pontos para Zakkai.
Os tanques voltaram a disparar, atingindo os caminhões parados e deixando, ao longo da estrada montanhosa, uma esteira de metralha. Ainda disparavam quando as primeiras cargas de demolição rebentaram e girândolas de fumo e cascalho começaram a erguer-se da aldeia. Durante vinte minutos houve uma confusão de tiros, de homens que corriam e prédios que jorravam fogo ou se desmoronavam como casas de papel entre nuvens de pó. Depois, apenas ficou uma pequena torre branca de mesquita por cima das ruínas, e os tanques que encurralavam desconexamente os legionários dispersos, enquanto a infantaria voltava para os carros e se dirigia para a fronteira. Os tanques dispararam uma última vez, deram a volta e, calmamente e sem pressa, retiraram-se com seu inútil triunfo.
— E pronto — disse o Chefe do Estado-Maior — acabou-se. Muito simples, muito eficiente. Vamos fazer o balanço.
— Não podemos — disse Jakov Baratz.— Ainda não foi apresentada a conta final.


JERUSALÉM, ISRAEL

Por volta das cinco horas da tarde, os resultados começavam a tomar forma. O Primeiro-Ministro já tinha feito seus cálculos e não se sentia feliz com o balanço.
— Devo confessar, Chaim, que estou mais do que surpreendido com o número de baixas. Risque o número jordaniano de quarenta e três mortos e escreva em seu lugar a cifra mais provável de vinte ou trinta o que ainda é muito. Prometeram-nos.. .
— Não prometemos nada.— O Chefe do Estado-Maior estava terrivelmente cansado e pouco inclinado a delicadezas. — Apontamos os riscos. Aceitou-os. Não faça de nós bodes expiatórios .
O Primeiro-Ministro encolheu-se. Disfarçou a impaciência e, depois, voltou obstinadamente à carga:
—- Não procuro bodes expiatórios, Chaim. Apenas peço uma explicação.
O Chefe do Estado-Maior deu-a com brusquidão:
— Não temos nem podemos ter um conhecimento total do que se passa do outro lado da fronteira. Julgamos que, quando o ataque foi desencadeado o posto de polícia pediu o auxílio da Legião Árabe. São espertos e estão bem treinados. Nenhum de seus comandantes teria a audácia de enviar infantaria mal armada em caminhões abertos contra armamento pesado; portanto, concluímos que o apelo da polícia não especificou que estávamos atacando com tanques. É a ruína de todos os comandantes de campo. Pobre relatório... Quando os jordanianos chegaram podíamos ter destruído o maldito comboio de caminhões com uma simples bomba. Teria sido um autêntico massacre. Não o fizemos. Isolamos a estrada numa barragem de fogo e dêmos-lhe tempo para dispersar. Mas tínhamos que mantê-los fora da aldeia. Isso explica as baixas.
-— Há uma baixa que exige mais explicações
— interveio o Ministro da Defesa, enroscado como uma serpente em sua cadeira. — À Rádio de Ama anunciou a descoberta de um homem que tinha sido espancado, torturado e depois morto com um tiro no peito. Seu corpo foi encontrado numa das casas não demolidas. Prometeram publicar fotografias na imprensa matutina de amanhã e enviar toda a documentação às Nações Unidas.
Jakov Baratz respondeu com certa hostilidade:
— Se isso é verdade... e só vendo o corpo acreditarei... nada temos a ver com o caso. A tortura é uma coisa que leva tempo. Nossos homens estavam demasiado ocupados com a demolição para pensarem num disparate como esse. Um tiro. talvez. Não posso responder por todos os homens do Exército. Tortura? Em tais circunstâncias, absolutamente impossível.
— Outra pergunta para você, Jakov. — O Ministro dos Negócios Estrangeiros mostrava-se mais delicado. — Recebemos duas notícias deturpadas de Damasco sobre a descoberta de um espião israelense na Síria. O que sabe a esse respeito?
— Pouca coisa. Nosso homem mandou-nos uma mensagem depois da meia-noite. Deu-nos algumas informações importantes e depois pediu para ser retirado, porque receava ter sido descoberto. Desde então, não soubemos mais nada. Minha opinião é de que ainda não apanharam nosso homem. Talvez eu esteja enganado. Estamos sondando nossas outras fontes.
— Isso vai-nos fazer uma linda propaganda, Aron. — O Ministro dos Negócios Estrangeiros sorriu tristemente para seu melancólico superior. .— Um ataque de represália com vinte ou quarenta mortos. Um escândalo de espionagem em Damasco. Um árabe torturado e morto numa aldeia. Vou precisar de um salário duplo para minha próxima visita às Nações Unidas.
O Primeiro-Ministro preferiu ignorar o gracejo e fez outra pergunta embaraçosa:
— O que sabemos quanto às reações da imprensa?
O Ministro dos Negócios Estrangeiros respondeu no mesmo tom de humor negro:
— Tudo o que vimos é mau. O Golias judeu espanca o David árabe. Dispêndio brutal e fútil de forças. Táticas terroristas. Incitamento às hostilidades. Agravamento das dificuldades de um governo honesto mas perseguido... ou seja, a Jordânia. Baixam um pouco o tom no fim, mas os cabeçalhos são todos contra nós.
— E os diplomatas?
— Espantados. A maior parte deles lamenta.
— Nesse caso, o que se passará nas Nações Unidas?
— Nada de promessas, Aron. Que isto conste do relatório. Quando muito, apanharemos um voto de censura por unanimidade. Na pior das hipóteses, sofreremos uma condenação formal de uma pequena maioria.
— Não é lá muito reconfortante.
— Temos um cadáver nas mãos, Aron. Enterremo-lo depressa e não esperemos que abram buracos no caixão.
Por instantes, um fugidio sorriso brilhou nos olhos melancólicos .
— Mas temos de vesti-lo para o funeral, não é verdade? Nossos inimigos dizem que temos a melhor máquina de propaganda do mundo. Sendo assim, por que não aproveitá-la para afirmar coisas agradáveis acerca de Israel?
13

TELAVIVE

Jakov Baratz voltou a Telavive ao cair da noite, praguejando mentalmente contra os tortuosos processos dos políticos. Exigiam o impossível
— becos sem saída batalhas sem sangue, diplomacia sem fraude. Que nunca o conseguissem, pouco importava, contanto que houvesse um relatório impresso de suas nobres intenções e hilotas pacientes para suportar a carga de seus erros. Jogavam com as mais obstinadas ilusões do homem. Prometiam uma garantia de bem-estar por uma temporária delegação de poder. Viviam no perpétuo temor de que a garantia os deixasse pendurados pelo pescoço como uma ave marinha malcheirosa e nunca conseguissem libertar-se, a não ser que se reconhecem como loucos ou mentirosos.
Para eles, o soldado era sempre o bode expiatório e serviçal. Carregavam-no com todos os seus pecados históricos e empurravam-no para o deserto, a fim de que se purificasse mediante uma prova primitiva pelo combate. Se vencesse, enchiam-lhe o pescoço de grinaldas. Se fosse vencido, enterravam-no numa nota ao fundo da página para maior glória das crônicas. Interessavam-se pelos números de uma lista de baixas, mas os homens ensangüentados e as vidas ceifadas eram-lhes desconhecidos. Um escândalo de espionagem em Damasco significava remoques na Assembléia das Nações, a irrisão dos profissionais. Mas quem proferia uma prece ou uma palavra de compaixão pelos soldados desconhecidos no subterrâneo mundo internacional?
À medida que a raiva arrefecia, compreendia que as contradições da vida política eram apenas um aspecto do mais vasto paradoxo que o atormentava cada vez mais, consoante ia envelhecendo: a desesperada loucura da violência e a necessidade premente dos homens em utilizá-la; o anseio de comunicação na solicitude humana e os diálogos fúteis em que os homens mentem e dizem a verdade com as mesmas palavras; a busca heróica da dignidade humana e os ignóbeis despotismos que a abafam. Talvez o velho Franz Lieberman tivesse razão ao afirmar que o trabalho positivo
do mal no mundo e a eterna batalha para preservar o bem se contrabalançavam.
Mas como manter o equilíbrio no mundo, quando era tão difícil mantê-lo em nós próprios? Javé Eloim gritara durante séculos contra as iniqüidades de seus eleitos mas nunca conseguira extirpá-las — nem com o cativeiro, o exílio, a dispersão ou os massacres romanos. Nessa noite, ele Jakov Baratz. obrigava-se a sair de Jerusalém, pois sabia que se ficasse, iria dormir com a mulher de um homem prestes a ser ou já torturado numa cela em Damasco. Uma pequena traição, talvez
— mas em todo o caso uma traição —, outra mais a adicionar à soma de erros que ainda não fora capaz de perdoar a si próprio. Não tinha telefonado a Yehudith. de modo que continuava a ignorar os relatórios de Damasco.
Telefonar-lhe-ia de Telavive, quando tivesse informações mais seguras.
Outros assuntos o preocupavam, menos urgentes contudo mais graves do que a sorte de um agente e de sua rede. O tom da reunião com o Primeiro-Ministro tinha sido de mau agouro. O caso Hebron transformara-se num desastre de primeira grandeza. Dera aos árabes uma auréola de autênticos mártires, vítimas de inexplicável tortura com uma quantidade de destroços dentro de suas fronteiras — testemunhos evidentes da agressiva brutalidade de uma nação jovem. Teriam sua vingança no tribunal e o menos que conseguiriam seria um veredito a seu favor. Depois, orgulhosos e virtuosos explorariam as vantagens. Os sírios, ilesos e sem feridos, clamariam pela desforra, por uma ação de defesa centra ameaças não especificadas por sangue em troca de sangue. Desencadeariam novos ataques na Galiléia; e, quando fossem rechaçados, considerar-se-iam vítimas de agressão... E porque já tinham um veredito favorável, sentir-se-iam confiantes em alcançar outro. E o ciclo recomeçaria, a roda dentada giraria cada vez mais depressa, até explodir em letais fragmentos de aço. . . E Jakov Baratz era pago para estar preparado para o dia da explosão.
Quando chegou a seu gabinete pediu uma xícara de café para acalmar a angústia e entregou-se à consulta dos papéis que se tinham acumulado durante sua ausência. As notícias de Damasco não eram ainda claras. Dois agentes — um homem e uma mulher, especificados como ”traidores sírios às expensas de Israel” — tinham sido presos. As investigações continuavam. Esperavam-se mais detenções para breve, Haviam sido encontrados transmissores secretos, com documentos comprometedores que seriam publicados a seu tempo. Depois havia os habituais gritos de batalha e as eternas admoestações à vigilância. Havia também uma nota do oficial de dia dizendo que todos os códigos de Fathalla tinham sido presumivelmente apanhados e que, portanto, haviam sido cancelados.
Embaixadas amigas tinham fornecido alguns aditamentos extraordinários às informações. Julgava-se que os dois agentes sírios haviam sido mortos. Todos os departamentos governamentais estavam sendo investigados e havia indicações de uma caça em grande escala a um iraquiano de nome Selim Fathalla. Dos males... o menor. Um agente em fuga era preferível a um homem vencido e forçado a falar sob potentes refletores. Mas a rede desfizera-se e, agora que era mais necessária, poucas possibilidades havia de reorganizá-la. Pensou por instantes em telefonar a Yehudith, mas desistiu. Não adiantava provocar-lhe uma noite de insônia. Havia tempo de sobra para isso no dia seguinte.
Então, pôs-se a especular quanto ao itinerário de fuga de Fathalla. Levou o café para junto do mapa e tentou imaginar como podia alguém escapar do secreto e desconfiado enclave que era a Síria, desde que os baathistas ocupavam o poder. Foi um exercício inútil e cedo desistiu. Havia demasiados "se": se Fathalla tinha dinheiro e documentos, se estava ferido ou ileso, se se encontrava armado, se tinha transporte, amigos ou contatos particulares ao longo da fronteira. E o último se era o único que Fathalla havia aceito por ocasião do contrato: ”Se vencer, não haverá recompensa; se for vencido não haverá reabilitação. Patriota ou aventureiro, aceitamo-lo tal como é e sua vida ou sua morte é um risco particular.”
Jakov Baratz podia abandonar Fathalla de consciência tranquila; mas não podia riscá-lo do mapa; dominava-o uma estranha hipnose. Ali para quem tivesse olhos para ler, estava escrita a história: o passado, o presente e pelo menos, uma parte do futuro. A estrutura da terra impunha a estrutura da história representada em sua superfície. A estrutura da terra imprimia-se nos homens que a habitavam por certo tempo e nela eram enterrados. Mudar-lhe os contornos seria mudar ao mesmo tempo os homens e a história. Seria mudar os cultos, as lendas, as visões e até os deuses.
Quando o nômade Abraão saiu de Ur, na Caldéia, levou consigo, como agora o beduíno, um deus particular, uma promessa particular e uma vida tribal particular de rebanhos, manadas e alianças familiares. A promessa era simples e formal: ”Toda a terra que vês será tua e de teus filhos para sempre.” A promessa não tinha sentido para os insignificantes reis de Canaã. porque não conheciam o Deus que a fizera. E, no século 20, Israel, que reclamava a mesma herança ao abrigo da mesma convenção, via-se desafiado precisamente nos mesmos locais.
Os impérios semitas da Assíria, Babilónia, Fenícia e Síria tinham-se erguido e desmoronado, mas continuavam a ser uma ameaça sob novas formas, e o Egito restaurado, se bem que não nos seus sete anos de fartura, embalava-se de novo num sonho imperial. Se atacassem, os egípcios utilizariam os mesmos caminhos que seus antepassados, agrupando em torno de suas bandeiras os povos que Israel havia expulso da Terra da Promissão.
Soltavam os mesmos gritos como pontos de união: que o Deus de Israel era um deus ciumento que não queria viver em paz com Baal, Dagon. Astaroth e o muito tolerante e civilizado Alá; que os judeus, que se curvavam como juncos em terra estrangeira, se mostravam rijos como os cedros na sua e apenas cobriam com sua sombra os circuncisos; em troca, eles recebiam-nos como a habitantes do Fértil Crescente, como a iguais que não ousavam sujeitar.
E era esta a terrível ironia da história, que vemos repetir-se e que, no entanto não temos poder para modificar, porque está inexoravelmente ligada à estrutura da terra. As margens dos rios ainda são férteis, como o eram quando Josué derrubou os muros de Jericó. A água continua a ser tão preciosa como rubis numa terra ressequida. Há sal no mar Morto. Há peixe em Kinnereth. Há ouro negro sob as areias do deserto. As cidades portos de mar continuam a ser motivo de cobiça. E os homens continuam a cobiçá-las .
Estranhamente também, quase sardonicamente, a terra fomentava as invejas e alimentava os ódios, porque a história de antigas vendettas estava gravada na rocha viva. Aquela era a eira que David trouxera dos jebusitas, onde Salomão edificou seu templo e onde agora se ajoelham os muçulmanos, mas não os judeus. Aqui, os romanos crucificaram Cristo a instâncias do Sinédrio, e há séculos que os cristãos discutem à sombra da eterna misericórdia. Aqui, em Yad Vashem, comemoramos, com severa austeridade, a memória de seis milhões de mortos. Ali paia além do arame farpado, ficam as cabanas dos expatriados que pagam a dívida que a Europa recusou. Ali fica o museu que construímos para mostrar como o homem, neste recanto escolhido, se elevou desde a Idade da Pedra à da nave espacial. Ao longe, no deserto, está o reator atômico que pode um dia fazer com que as bombas o aniquilem. . . Tudo ali. Tudo escrito no mapa tão evidente e palpável que Baratz sentiu-se tentado a passar-lhe a mão pela superfície para sentir a areia, a pedra e a seiva viva que dele brotava e escorria. :
Também o amanhã ali estava escrito — mas não na totalidade. Apenas as linhas de combate eram claras. Como, se o inimigo atacasse, as hostes dos modernos mídias, os tanques
contra-atacariam a sul, em torno de Gaza e El Harish, e prosseguiriam para os lagos Salgados; como abririam caminho através de Abu Agheila e sulcaram os desertos do Sul, continuando em direção ao golfo de Aqaba. Como as tenazes se fechariam em torno de Jerusalém e as tropas de assalto escalariam os montes da Galiléia e os aviões atravessariam o céu limpo e regressariam como águias cavalgando os ventos da manhã. Tudo ali. Tudo previamente escrito para o esperado dia do ajuste de contas.
Mas o além não estava escrito. Não havia profetas para o predizer nem salmistas para o cantar. Javé Eloim mantinha-se silencioso num céu silencioso. Falara durante tanto tempo e tão eloqüentemente que acabara cansado? Ou estaria ali, apesar de tudo? Alguma vez o estivera? Que sucederia se a Aliança não passasse de uma vasta e bonita mentira forjada por um gênio nômade para sua irrequieta tribo, a fim de a manter unida durante dez mil anos numa ilusória esperança e num interminável sofrimento? De que serviriam então as longas vigílias, as batalhas a travar, e o longo lamento de Raquel chorando os filhos perdidos?
Vá para casa, Baratz. É tarde. Amanhã é outro dia. Barba feita, roupa limpa e cedo na parada. Os ingleses ensinaram-lhe isso e veja o que lhes aconteceu!

LÍBANO

Selim Fathalla acordou ao som de sinos. Foi um repousado e agradável despertar sem ansiedade e sem angústia. Sentia os membros entorpecidos; os movimentos eram lentos e insensíveis. Quando abriu os olhos, viu paredes brancas, uma réstia de sol que vinha da janela em arco, uma mesinha de cabeceira coberta com um pano. Na mesa, havia uma campainha e um copo de plástico cheio de água. Um bilhete escrito em árabe estava encostado ao copo. Tentou lê-lo, mas sentiu-se demasiado indolente e eufórico para tamanho esforço. Fechou os olhos e contou as badaladas dos sinos. O futuro não o preocupava e tinha convicções estranhamente claras quanto ao passado. O mais esquisito era que a convicção não lhe causava ansiedade. Analisava-se calmamente, como se assistisse a um filme, demasiado confuso e caleidoscópico para despertar emoções.
No fume, Selim Fathalla era louco. Adom Ronen era igualmente louco. Tinham hilariantes diálogos sobre suas pescas e as comuns aflições. Adom Ronen falava em hebraico e Fathalla contava-lhe sua confusa história em árabe. Quando um ria, o outro chorava. Quando um cantava vitória, o outro encolhia-se de medo. Aperfeiçoaram com tão elaborada arte o espelho-experiência que já não havia um espelho e dois homens mas milhares de espelhos e dez mil homens, inchados, deformados, divididos vertical e horizontalmente, fendidos em prismas e reunidos em cômicos fragmentos.
O próprio tempo era uma dimensão de sua loucura. O dia era escuro; a noite era terrivelmente clara; o passado e o presente confundiam-se, agora; simples momentos transformavam-se em eternidades. A própria terra era um fluido de loucura. As montanhas dissolviam-se em vales, as parreiras cresciam sobre espinhos as figueiras brotavam de rochas nuas; vastas planícies tomavam a forma de montanhas lunares ou abriam-se a seus pés em negros e profundos poços.
Havia também monstros nessa louca paisagem; mas, como eles próprios estavam desfigurados, dir-se-ia terem pena desses inofensivos palradores. Havia uma velha corcunda que lhes oferecia uvas e as bênçãos de Alá. Havia um gigante zarolho nos montes, armado com um bordão e rodeado por felpudos carneiros, que lhes dava água e queijo e lhes contava prodigiosas histórias de sua lasciva mocidade. Havia moças esguedelhadas que,
encontrando-os bebendo agua turva, os levaram para debaixo de uma tenda de peles. Havia um anão bêbado e zaragateiro que os empoleirou num monte de hortaliças e os levou através das montanhas até à cidade e ao mar. . . E atrás destas personagens de comédia, erguia-se Emilie, pálida como a morte, que os olhava com eterna censura.
Na cidade, separaram-se com receio da estranha gente. Entregaram-se a uma série de buscas frenéticas, Selim chamando por Adom, Adom procurando o gémeo sem o qual morreria; ambos à espera de Emilie, que os havia deixado para sempre.
Encontraram-se finalmente num olival da encosta. Comeram azeitonas verdes e ficaram doentes, depois do que se deitaram para dormir debaixo das árvores. O sonho acabava ali.. . e estava tão divcrciado do presente de paredes brancas que não sentiu curiosidade em saber como poderia continuar. Notou que os sinos se haviam calado. Depois, adormeceu.
Quando acordou, a languidez tinha diminuído e o peso dos membros desaparecera. Conseguiu chegar à mesa bebeu o copo de água e leu o bilhete Dizia simplesmente: ”Se precisar de alguma coisa, toque a campainha.” Assim fez. Sentia-se agora curioso e uma vaga apreensão despertava-o do torpor. Alguns infantes e um homem de barba curta e envolto numa comprida sotaina entrou no quarto. Sorria, como se aprovasse o espetáculo. Disse em árabe:
— Bom dia. Como se sente?
— Um pouco ensonado, mas bem. Obrigado. Onde estou?
— Num mosteiro.
— Oh! — Não estava ainda preparado para as surpresas.
— Nossa Senhora de Éfeso. O nome é tirado de um quadro que temos.
— Compreendo. — Não compreendia nada, mas era mais simples aceitar a estranha explicação.
— É uma fundação maronita.
— Onde?
— No Líbano. Perto de Beirute.
— Como vim parar aqui?
— Trouxemo-lo. Os irmãos. Os irmãos encontraram-no em nosso campo, debaixo das oliveiras.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Há dois dias e duas noites. O médico pô-lo a dormir. Disse que era melhor.
- Que médico?
— Em breve o virá ver. É um bom homem. Quer o pequeno almoço? Café. Pão fresco e mel. O mel é de nossas colmeias.
— Obrigado.
— Não demora muito.
Saiu. Fathalla estendeu-se de costas, digerindo a informação. Parecia satisfatória, não havia nela qualquer ameaça. Chegou para trás os cobertores e sentou-se na beira da cama. Só então viu que tinha os pés entrapados. Assentou-os no chão, mas logo os levantou vivamente. Doíam-lhe, mas não muito. Coxeou até à janela e olhou para o exterior, para um pequeno claustro cheio de laranjeiras e loendros. Um velho monge passeava entre os pilares, lendo um livro. Fathalla dirigiu-se coxeando para a porta e tentou abri-la. Não estava fechada à chave. Abriu-a e viu um corredor branco e comprido. Havia um ícone num dos extremos e, por baixo dele, uma mesa com flores e uma lâmpada azul. Todas as portas do corredor eram iguais à sua. Voltou para a cama.
Minutos depois, o frade regressou com café pãezinhos, manteiga e mel numa bandeja. Abençoou a comida, desejou bom apetite a Fathalla e saiu. Fathalla comeu vagarosamente saboreando os pãezinhos. O torpor continuava a desaparecer e as forças renasciam. A porta abriu-se de novo e um indivíduo alto e magro, de terno azul, entrou no quarto e apresentou-se:
— Bom dia, Sr. Ronen. Sou o Dr. Silver. Aprecia seu pequeno almoço?
— Muito. Obrigado. Acordei agora.
— Ótimo. Mas tenha cuidado. Tomou muitos sedativos. -— Sentou-se aos pés da cama e lançou ao doente um olhar penetrante e profissional, ao mesmo tempo que dizia:
— Isto para o caso de lhe interessar saber. Sou cidadão americano. Ensino na Universidade Americana de Beirute. Tenho uma casa precisamente a seguir ao mosteiro. Os monges servem-se de mim como conselheiro médico.
Subitamente, Fathalla deu-se conta de que estavam falando em hebraico. A suspeita sobrepôs-se à euforia e lampejou-lhe nos olhos. Perguntou:
— Por que fala em hebraico? Por que me chamou Ronen? O Dr. Silver riu:
— Sou judeu, embora não o confesse no Líbano. Freqüentei a escola de Los Angeles. O seu nome? Foi você quem me disse, sob a ação dos primeiros sedativos. Também me falou em hebraico. Tem outro nome?
— Tenho.
— E outra língua?
— Também.
— Foi uma dura jornada. Andou muito e naturalmente, comeu pouco.
— Não me recordo.
— Há-de recordar-se. É importante que se recorde. Falo como médico, claro. Não deve tentar deixar para trás as lembranças desagradáveis. Sobretudo agora. O sedativo está perdendo o efeito. Voltarão as ansiedades. Se estiver preparado, as suportará. — Abriu a maleta e tirou dela um volumoso jornal escrito em árabe. Não o deu a Fathalla, antes se pôs a folheá-lo nos joelhos, ao mesmo tempo que dizia calmamente:
— Sou judeu. Os frades são discretos e não querem complicações com a polícia por um simples ato de caridade. A imprensa síria e libanesa inserem notícias de um certo... incidente em Damasco. Pelo que disse quando aqui chegou e pelo que li nos jornais, aposto que esteve envolvido nisso.
— E se assim fosse?
— Naturalmente — disse, amavelmente, o Dr. Silver — quer voltar para Israel o mais cedo possível.
— Seria uma conclusão natural, se a primeira hipótese fosse verdadeira.
— Mas não tem dinheiro nem documentos.
— Tenho dinheiro no Banco Fenício de Beirute.
— Seria perigoso ir levantá-lo, sobretudo agora.
— Não tinha pensado nisso.
— Como estão seus pés?
— Um pouco doridos. Podia ser pior.
— Precisa de sapatos novos. Os outros ficaram em tiras. Esta tarde, vou trazer-lhe um par de sandálias.
— É muito amável.
— Acabe o café e deixe-me auscultá-lo.
Terminado o exame, o Dr. Silver deu-se por satisfeito. Mas acrescentou uma recomendação.
— Nada de esforços, Sr. Ronen. Descanse o mais que puder. Os traumatismos psíquicos custam a passar e você teve alguns.
— Está bem.
— Clinicamente, está em condições de viajar. Talvez o possamos mandar de barco para casa, esta noite.
— Como?
— Gosta de pescar?
— Nunca experimentei.
—Tenho um barco a motor em Sour. Podemos levá-lo para lá esta tarde, navegar algumas milhas e lançar as linhas. É possível que consigamos afastar-nos para o sul e ser recolhidos por um barco patrulha israelense. O que lhe parece?
— Demasiado simples para ser verdade.
— Voltarei cerca das três horas. Trarei algumas roupas. Não conviria que fosse morto nas outras.
— Não faltou muito! — exclamou Selim Fathalla. E, sem razão aparente, desatou a soluçar baixinho e desoladamente, como uma criança perdida.

JERUSALÉM, ISRAEL

— Melhorará — disse Franz Lieberman judiciosamente. — Ficará com cicatrzes, como todos nós, depois da batalha com o mensageiro das trevas; mas curar-se-á com o tempo.
— Não sem ela — resmungou Jakov Baratz.
— Não. Não sem ela.
Estavam sentados debaixo das figueiras no jardim de Yehudith, bebendo chá gelado e esperando que Yehudith se lhes viesse juntar. Ela estava em casa, junto de Adon Ronen, vigiando-lhe o sono após um terrível desabar de pesadelos que o deixaram marcado, encolhido e receoso da solidão. A experiência abalara Baratz. Nunca tinha visto um homem tão humilhado, tão emaranhado em culpas tão medonhamente perseguido pela crueldade e pela morte. Ronen tinha soluçado, gritado e mergulhado em longos e desconexos monólogos de lamentações por Emilie, Bitar e as vítimas sem nome de seu fracasso. Viera ter com Yehudith como um
bebê, escondendo a cabeça em seu seio, implorando-lhe que não o odiasse e não permitisse que a filha o desprezasse.
Franz Lieberman observava aquilo tudo, confiante na terapêutica da purificação, à espera do inevitável momento de exaustão; o triste prelúdio para o desespero ou a cura. Este chegara finalmente: um homem gasto, estendido de costas sobre os travesseiros, aguardando a graça do sono e Yehudith pálida, de olhos secos, quase envergonhada de sua irrefletida compaixão, acenando-lhes do quarto.
— O que queria dizer-me, Jakov? — O ancião fitava-o com súbita afeição. — Que ela não pode amá-lo? Que cumprirá nobremente seu dever até ele ficar bom e que depois voltará para você?
— Sim ou não, Franz?
— Não — respondeu Franz Lieberman prontamente. — Ela não o sabe ainda mas nós sabemos. O herói regressou, vergado ao peso de seu escudo. Há feridas a cicatrizar, pecados a perdoar, uma necessidade de amor que a faz sentir-se de novo mulher e que apaga o primeiro fracasso com ele. Pode aceitar isto?
— Eu a amava, Franz. Amo-a ainda. Julguei que ela me tivesse amor.
— Tinha e tem. De hoje a um mês, se quiser, ela dar-lhe-á todas as provas que pedir. E Ronen não a impedirá, nem a você. Aceitará tudo como um cilício em penitência pela jovem morta em Damasco. Mas Yehudith voltará sempre para ele e para Golda.
-Por quê, Franz? Por quê?
— Porque quando você crescer, Jakov. .. e saiba que metade das pessoas nunca o conseguem... aprenderá que há sempre uma conta a pagar por se ter nascido. Ninguém a pode pagar de uma só vez portanto paga-se a prestações. . . com juros. Todos nos atrasamos um ou dois meses, um ou dois anos, mas não descansamos enquanto não pomos de novo as contas em dia. Você tem dívidas para com Hannah. Yehudith tem-nas para com Adon. E chega-se à conclusão de que todos estamos em dívida para com ele. Assim, você tem seu grande caso de amor, e noite após noite saltará da cama e odiar-se-á um pouco mais. Há pessoas que conseguem suportar isso durante muito tempo. Não creio que você seja desse tipo. E Yehudith também não.
— E quem nos paga a nós, Franz? Pelo amor de Deus, quem nos paga o que perdemos e não volta?
— Ninguém, Jakov. Somos pagos antecipadamente. — Com quê?
— Com a vida! — Houve um súbito clarão nos olhos cansados e inteligentes. — Apenas com a vida... breve ou longa,feliz ou infeliz. Uma lufada de ar, um olhar para o Sol, um sorriso no rosto de uma criança, o gosto da maçã da ciência, ainda que nos saiba a pó e a cinza na boca. Coragem, homem, e diga-me francamente se pode afirmar que foi enganado!
Por um longo momento, Baratz permaneceu calado, depois ergueu os olhos e deu um sorriso cansado:
— É uma velha raposa, Franz Não devia discutir com você.
— Por este conselho — disse, alegremente, Lieberman — cobro cem libras israelenses em consulta particular. Você é um militar. Dou-lhe de graça. Ao menos, aprecie-o. . . Agora, despeça-se da moça e leve-me ao hospital.
Fez as despedidas na cozinha, com Golda agarrada às saias da mãe. Não houve paixão, apenas desgosto, uma sensação de alívio e uma grande e suave ternura. As palavras foram banais, porque nenhuma conseguiria igualar as do passado ou fazer esquecer o tormento que haviam prerenciado no quarto. Beijaram-se como amigos e dirigiram-se de mãos dadas para a porta.
— Virá visitar-nos, Jakov?
— Sim. mais tarde. Se precisarem de alguma coisa. . .
— Pedirei.
— Shalom, Tio Jakov.
— Shalom, menininha.
— Shalom, Jakov, meu querido.
Nada mais havia a fazer do que desempenhar-se da ritual visita a Hannah e regressar a Telavive para os longos e ocupados dias e as noites vazias e agitadas.
Quando chegaram ao hospital, Franz Lieberman conduziu-o em silêncio pelo corredor até à enfermaria onde vira Hannah no dia de sua primeira visita. Havia os mesmos pequenos grupos jogando os mesmos jogos de crianças, entretendo-se com as mesmas e intermináveis tarefas. Havia as mesmas enfermeiras, atentas e solícitas. Hannah também lá estava; mas tinham-na persuadido a sair de seu canto e encontrava-se sentada à mesa, olhando para uma enfermeira que dispunha flores numa jarra.
Tinha o mesmo olhar vago e adiposo, os mesmos olhos indiferentes e sem brilho. Não tomava parte no trabalho; mas observava e, quando a enfermeira lhe ofereceu uma flor, pegou nela e segurou-a firmemente, como se isso fosse importante. Quando lhe tiraram a flor não opôs resistência; quando lhe ofereceram outra, aceitou-a. Franz Lieberman contemplava a cena em silêncio. Baratz perguntou:
— Quando aconteceu isso?
— Esta manhã, pela primeira vez.
— E agora?
— Repetirám o gesto eternamente. Acabará por solicitá-lo. Se, por qualquer motivo, a cerimônia lhe for negada retrair-se-á de novo, vencida e infeliz. Estendeu o dedo minimo e tocou a superfície da realidade. Pode ficar por aí; pode estendê-lo até mais longe, para acariciar a flor cheirá-la ver suas cores à luz ou até metê-la numa jarra. Ainda não sabemos.
-Posso falar-lhe?
— Desta vez, não.
- Lieberman franziu a testa numa advertência. — Se, no momento em que ela toma este primeiro contato com uma realidade que redescobriu, esta desperta os majs leves ecos da realidade de que fugiu, retrair-se-á como uma lesma tocada por um dedo. É preciso muita paciência para restaurar a mais elementar confiança. Só gente especializada pode realizar este trabalho .
— Mas leva muito tempo, Franz!
Franz Lieberman encolheu os ombros e sorriu um pouco tristemente:
— Só nós é que temos consciência do tempo. Para ela não existe. Apenas o breve instante em que sente o ligeiro e desconhecido prazer de segurar a flor. Se a deixarmos
segurá-la-á todo o dia. . . Será quando começar a sentir saudade e a compreender por si que começará a cura. É o grande paradoxo, Jakov. O sofrimento é também uma cura. Sabe-o perfeitamente.
- Estou aprendendo.
— Boa moça! — murmurou Lieberman com aprovação, ao ver a enfermeira deixar cair a flor e pedir a Hannah que a apanhasse. Soltou um pequeno suspiro de desgosto quando viu que ela continuava sentada indiferente, olhando para a flor caída. — Bem. voltaremos a tentar amanhã.
— Pode dar-me uma esperança. Franz?
— Muito pequena. Mas... uma esperança. Qual de nós pode exigir mais?
— Nenhum — respondeu num murmúrio Jakov Bartz.

MASADA... JANEIRO DE 1967

O helicóptero ergueu-se do chão do deserto, barulhento, numa nuvem de areia, e elevou-se no muro de aço do céu. Rumou para oeste, sobrevoando rapidamente o deserto de Zin, e depois virou para o sul, numa ampla curva, em direção às recortadas alturas de Makhtesh Ramon.
Embaixo, o deserto abrasado pelo sol da tarde um lugar cruel para o estrangeiro, mas, para os que o conheciam, os pacientes e os fortes, um lugar de visões perseguidas pela memória de passadas glórias.
Aqui, nas dobras de áridas montanhas, havia cavernas e choças, onde, milênios antes dos Patriarcas, viviam homens. Aqui. Abraão procurara espaço, conduzindo seu rebanho ao longo do caminho que era hoje uma estrada tarmac de Beersheba a Eilat. Aqui, vieram as caravanas de Salomão, carregando o cobre dos fundidores de Etzion Geber e mercadorias do golfo de Eliat. Aqui tinham vivido os nabatinos. conduzindo as caravanas, construindo cidades e cultivando o deserto com a água armazenada durante as chuvas do inverno. Aqui, os bizantinos haviam edificado Abde e Subaita e em seguida, abandonaram-nas aos lagartos e escorpiões, Aqui, vive hoje o mais agreste e propagado cacto de Israel plantando laranjais na areia e na argila, esquadrinhando os baldios batidos pelo vento em busca de minerais, cultivando suas fazendas distantes, sempre mais para leste, em direção à depressão do rio Arabah.
Amanhã, seria um campo de batalha, As formigas de fogo estariam novamente em marcha pela estrada de Sde Boker dividindo-se pelas encostas para assaltar a passagem de Mitzpe Ramon. Lá do alto, na atmosfera ofuscante. Baratz e o Chefe do Estado-Maior viam-nas chegar — um tabuleiro de damas com tanques espingardas carros de assalto e multidões de homens anônimos, Era a Operação Macabéia, repetida ao longo de dez anos com as mesmas unidades; observada, revista, ensaiada vezes sem conta, para o dia em que seria montada para uma realidade sangrenta contra outra passagem noutro local.
O objetivo real era a passagem de Abu Agheila. chave do deserto do Sinai, onde Israel sofrera, na campanha de 1965, pesadas perdas num assalto a fortins e posições de artilharia fortemente defendidas. Se a campanha do Sinai tivesse de ser repetida — e tudo levava a crer que sim -, Abu Agheila teria de ser
reconquistada. Mas desta vez, as perdas deviam ser mínimas. Todas as vidas de Israel eram preciosas, porque sem homens o deserto voltaria engoliria as pastagens, fazia mirrar os pinhais e encheria de areia as cisternas.
Portanto, a Operação Macabéia não era um rotineiro passatempo bélico. Era um ensaio para a sobrevivência, e o Chefe do Estado-Maior dirigía-o com tirânica perfeição, enquanto Baratz procurava no papel os pontos fracos, um analista frio e meticuloso e um crítico brutal. Desta vez, mais do que em qualquer das outras, a natureza da responsabilidade tornava-se-lhes clara: dois milhões e meio de vidas espalhadas pelo mundo tinham vindo acampar numa superfície estreita, hostilizadas, ultrapassadas em número por dezenas de milhões, um país recém-nascido que media forças com terríveis gigantes de armaduras.
Voaram cerca de uma hora e depois uma vez que o movimento de tropas abrandara e fora ordenada uma pausa para alimentar e dessedentar os homens, o Chefe do
Estado-Maior gritou por cima do ruído dos motores:
— Vamos descansar, Jakov.
— Como queira, Chaim. Onde quer aterrar?
O Chefe do Estado-Maior pensou um pouco e depois fez uma tímida sugestão:
— Quer dar uma volta sentimental? Baratz sorriu e gritou:
— Iremos onde quiser.
O Chefe do Estado-Maior bateu no ombro do piloto e indicou-lhe o rumo. Viraram para norte até à povoação de Oren e seguiam a estrada pavimentada entre as serras gêmeas de Bagadol e Hakatan até ao ponto de junção com a rodovia que ia de Beersheba ao mar Morto. Daí, rumaram a leste, em direção à repressão e contemplaram o grande lago Salgado, brilhando ccmo um escudo de prata ao sol, rodeado de escarpas rochosas. Ali jazia Sodoma, uma cidade de potassa, oculta no fundo das águas, com abruptos penhascos, ocres e amarelos, erguendo-se à retaguarda. De novo mudaram de rumo e sobrevoaram as águas em direção ao norte até verem a grande mole espalmada de Masada, que se erguia no meio de uma desolação confusa.
— Circunde-a — ordenou o Chefe do
Estado-Maior, batendo novamente no ombro do piloto. — Circunde-a e aterre.
Quando descreviam a grande espiral de descida em torno do imponente planalto, dominou-os o silêncio atemorizados pela majestade monstruosa do local, familiar mas terrível, sagrado, glorioso e pleno de memórias sangrentas.
Ha dois mil e duzentos anos, Jônatas Macabeu tinha-o fortificado. Cem anos mais tarde, Herodes, o Grande, edificara um palácio para si na escarpa, uma construção fantástica e paranoica, com casas de banho, armazéns depósitos de armas, poços com água bastante para um exército, salas rebocadas e salas de prazer para o monarca e seus favoritos. Quando os partos tomaram Jerusalém, retirou-se para o deserto, protegendo-se no interior de uma muralha e trinta e sete torres de vigia que desmascaravam toda e qualquer aproximação do planalto. Não era ainda a glória, apenas uma mímica de péssimos atores sibaritas que se pavoneavam numa terra morta à vista de um mar pustulento.
Depois chegou a hora, quando Tito
abriu trincheiras em torno de Jerusalém e a sitiou e crucificou os fugitivos à entrada do fosso,quando forçou os defensores a
renderem-se, reduziu a cidade a ruínas e escravizou os sobreviventes. Foi então que Masada se ergueu para a posteridade. Eliezer ben Yair reuniu seus-fanáticos com as mulheres e as crianças — mil almas — e levou-os para o deserto de Zin, para a fortaleza abandonada. Acamparam em rochas estéreis, batidas pelo vento do deserto. Apenas com as mãos, reconstruíram as muralhas de Herodes. Abriram os armazéns, os depósitos de armas e descobriram uma razão para viver e lutar. E esperaram. . .
Enquanto o helicóptero descia em círculos, rodeando os rebordos rochosos, Baratz pôde observar a fachada do palácio de recreio, as linhas compactas dos armazéns, as paredes das casamatas e as cisternas de Herodes. Viu os sinuosos e íngremes caminhos por onde os fanáticos tinham arrastado sua tribo renitente e os enormes penhascos que haviam escalado para alcançarem seu refúgio. ... E depois, vieram os romanos irritados por um bando tão pequeno ousar desafiar as águias e as legiões. Flavius Silva comandava-os, dez mil homens. Acamparam junto à rocha, construíram uma muralha em volta e os legionários ergueram suas tendas com caráter permanente, sitiando a cidadela. Fizeram dos agricultores e servos escravos judeus e também estes esperaram, enquanto o grande Silva estudava o problema. Podiam permitir-se esperar, porque Roma era grande e eterna, e seu império estendia-se de Pártia às Colunas de Hércules. . .
O Chefe do Estado-Maior apontou para o vale. onde se viam ainda os oito acampamentos de Flavius Silva, filas e filas de tendas e adormecidas plataformas encerradas no interior das antigas muralhas. Baratz acenou num gesto de concordância, mas o ruído dos motores não lhe permitiu expor o que lhe ia no espírito: que aquilo era um símbolo de Israel — cercado por boicotes bloqueios e inimigos beligerantes. Nunca os submeteriam mas podiam enfraquecê-los, sangrando o seu capital de braços, cortando as linhas mestras de seu comércio, fazendo chantagem com os que desejavam negociar com eles. Mas continuariam a agüentar-se mesmo assim . . . como se tinham agüentado os mil de Masada durante três anos, contra dez mil romanos.
. . . Finalmente, Flavius Silva realizou seu plano. Utilizando o trabalho de escravos judeus, construiu uma grande rampa de terra e rocha desde o vale até às muralhas da cidade. Içou os aríetes e catapultas até ao cimo da rampa e começou a bombardear os defensores com pedras ”com cinqüenta quilos de peso”, de tal maneira negras que os defensores não conseguiam vê-las. Quando as muralha” de pedra abriram brechas, os fanáticos
repararam-nas com vigas de madeira, tão apertadas e enterradas no chão que os aríetes fizeram-nas oscilar, mas não as quebraram. Então, Flavius Silva ateou fogo às muralhas de madeira, mas o vento do deserto voltou o fogo contra eles e tiveram de retirar-se, cientes de que de manhã poderiam entrar e ocupar a fortaleza sem dificuldade. ..
Hoje o vento do deserto não soprava, pelo que o piloto aterrou facilmente no extremo norte da rocha. Desceram, espreguiçando-se gostosamente, e dirigiram-se para o local, onde, há dezenove séculos, as fogueiras romanas tinham ardido ao longo de uma noite de terror e magnificência. Ninguém falou. Não havia necessidade de palavras. Eram gêmeos recortados no seio da mesma tradição. As mesmas vozes chegavam até eles do passado: a voz de Eliezer ben Yair, exortando seu condenado exército ao heroísmo final, a voz do cronista renegado que relatou o epílogo.
"... Morramos pois, antes que nos tornemos escravos de nossos inimigos e deixemos o mundo, com os nossos filhos e as nossas mulheres, na condição de homens livres. Eis o que nossas leis nos exigem que façamos; eis o que nossas mulheres e nossos filhos esperam de nós; Deus impõe-nos esta necessidade; ao passo que os romanos desejam o contrário e temem que qualquer homem morra antes de sermos subjugados. . . Vamos dar-lhes um exemplo que provoque seu espanto perante nossa morte e sua admiração perante nossa intrepidez. . .
”Assim, juntaram tudo o que tinham num montão e chegaram-lhe o fogo. Depois, ercolheram grupos de dez homens para que matassem os outros; todos se estenderam ao lado da mulher e dos filhos, abraçaram-nos e ofereceram o pescoço aos golpes daqueles que, em grupo, executavam esta terrífica tarefa; e quando esses dez, sem medo. os tinham assassinado a todos, a mesma lei foi aplicada aos grupos, isto é, o primeiro grupo matou os outros nove e, em seguida, cada um deles foi morto pelo que seria o último.
”Assim, todos tiveram coragem suficiente para não esmorecer no sofrimento; assim, e a concluir, os nove ofereceram o pescoço ao carrasco e este, que foi o.último, verificou todos os corpos, a fim de ver se por acaso um ou outro de entre tantos que tinham sido mortos não precisaria de sua assistência para o golpe de misericórdia; e quando viu que todos estavam mortos, lançou fogo ao palácio e, com a grande força de sua mão, matou-se com a própria espada e caiu morto junto de seus parentes. Assim, este povo morreu com a certeza de que não haveria uma única alma para se submeter aos romanos...
”Quanto aos romanos, esperavam decidir o combate de manhã, assim que pegassem em armas e estendessem pontes de tábuas para assaltar a fortaleza, o que fizeram; mas não viram qualquer inimigo, apenas uma terrível solidão por todos os lados, com uma fogueira ao centro, assim como um silêncio total...”
O Chefe do Estado-Maior meteu a mão no bolso da túnica e tirou um pequeno fragmento de barro com uma inscrição em caracteres hebraicos. Baratz acenou e mostrou outra igual. Os arqueólogos davam-lhe um nome: ostraca. Era a marca pessoal dos fanáticos de Masada, usada para o plano de rações e talvez para o último sorteio fratricida no alto da montanha, Era a última resposta para a última pergunta. Os símbolos nela inscritos eram as únicas palavras que faziam sentido na Torre de Babel das políticas, das legalidades, das querelas familiares e das lealdades divididas. Mais cedo ou mais tarde, crentes ou não crentes todos os homens encontravam uma polegada de terra de onde podiam olhar e desafiar o mundo. Mais cedo ou mais tarde, cada um dizia: ” tudo o que sei, não basta; mas é assim.” Mais cedo ou mais tarde, profeta ou charlatão, teria de tomar nas mãos sua pequena parcela de verdade, inscrever nela o nome e metê-la no vaso, pronto para viver ou morrer por sorteio.
— Fechou-se o círculo — disse Jakov Baratz. — Vinte anos e aqui estamos outra vez.
— Lembra-se das palavras, Jakov? —Juntaram as mãos, apertando entre as palmas os fragmentos de barro, e recitaram o antigo juramento de Haganah e sua aliança com o novo Israel.
”Masada não voltará a cair.”

 

 

                                                                  Morris West

 

 

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