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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TORRE NEGRA / P. D. James
A TORRE NEGRA / P. D. James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Espero que os apreciadores de Dorset me perdoem pelas liberdades que tomei em relação à topografia desse belo condado e, em especial, por minha temeridade em erigir duas aberrações arquitetônicas, a vila Toynton e a torre negra, no litoral de Purbeck. Eles hão de perceber que, embora a paisagem tenha sido tomada de empréstimo, as personagens são criação minha e não guardam semelhança com ninguém - vivo ou morto.

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1
 SENTENÇA DE VIDA
Aquela seria a última visita do médico, e Dalgliesh desconfiava que nem um nem outro lamentariam o fato: arrogância e superioridade, de um lado, fraqueza, gratidão
e dependência, de outro, nunca constituíram bons alicerces para um convívio decente entre adultos, conquanto temporário. Ele entrou no quartinho de hospital onde
Dalgliesh estava internado precedido pela enfermeira e seguido por seus auxiliares, já vestido para o casamento elegante ao qual daria a honra de sua presença ainda
pela manhã. Na verdade, não fosse a rosa vermelha que trazia na lapela, em lugar do cravo de praxe, poderia ser ele o noivo. Haviam ambos, ele e a flor, atingido
o auge da perfeição artificial, como se embrulhados para presente num papel espelhado invisível, imunes a ventos ocasionais, geadas e dedos indelicados capazes de
desfigurar primores mais vulneráveis. Como toque final, os dois foram borrifados de leve com uma fragrância cara, presumivelmente uma loção pós-barba. Dalgliesh
sentiu-a pairando sobre os vapores de repolho e de éter - um cheiro ao qual seu nariz se tornara tão afeito durante as semanas anteriores que agora mal lhe falava
ao olfato. Os estudantes de medicina presentes agruparam-se em volta da cama. De cabelos compridos e jalecos curtos, pareciam um bando de damas de honra de reputação duvidosa.
As mãos hábeis e impessoais da enfermeira despiram Dalgliesh para mais um exame. O estetoscópio moveu-se, um disco frio passeando por peito e costas. Esse último
exame era uma formalidade, mas o médico estava sendo, como sempre, meticuloso; nada do que ele fazia era superficial. De fato, o diagnóstico fora equivocado, mas
havia nele auto-estima de sobra para eliminar a necessidade de algo mais que um pedido pro forma de desculpa. O médico endireitou-se e disse:
- Recebemos o último resultado dos exames patológicos e acho que agora podemos ter certeza de que não há engano. A citologia é sempre um tanto obscura, claro, e
o diagnóstico foi prejudicado pela pneumonia. Mas não se trata de leucemia aguda, não se trata de nenhum tipo de leucemia. O senhor está se recuperando, felizmente,
de uma mononucleose atípica. Congratulações, comandante. Ficamos preocupados.
- Quem ficou preocupado fui eu; os senhores ficaram interessados. Quando é que eu posso ir embora?
O grande homem riu e em seguida sorriu para sua comitiva, incentivando-os a partilhar da benevolência com que acatava mais aquele exemplo de ingratidão convalescente.
Dalgliesh acrescentou mais que depressa:
- Imagino que estejam querendo meu leito.
- Sempre queremos o maior número possível de leitos. Mas não há por que ter pressa. O senhor ainda tem um bom caminho pela frente. De todo modo, veremos. Veremos.
Quando se foram, Dalgliesh esticou-se de novo na cama e deixou que os olhos vagassem pelo meio metro quadrado de espaço anódino que o rodeava, como se o enxergasse
pela primeira vez: a pia com torneiras adaptadas para abrir a um toque do cotovelo, a mesinha funcional de cabeceira, muito limpa, com um jarro de água tampado em
cima, duas cadeiras forradas de vinil para visitas, o estampado ofensivo das cortinas floridas, o denominador comum mais reles do gosto. E dizer que quase foram
as últimas coisas que teria visto na vida. Parecera-lhe um lugarzinho medíocre e impessoal para morrer. Assim como um quarto de hotel, destinava-se aos que estavam
em trânsito. Saíssem seus ocupantes andando com os próprios pés ou de maca, envoltos numa mortalha, não deixavam nada para trás, nem mesmo a lembrança dos medos,
sofrimentos e esperanças.
A sentença de morte fora transmitida - como aliás desconfiava que, no geral, fossem dadas tais sentenças - com uma amabilidade meio falsa, entre olhares circunspectos,
indagações sussurradas, um exagero de exames clínicos e, até ele insistir, uma relutância em dar um diagnóstico, ou um prognóstico. A sentença de vida, pronunciada
com menos artimanhas assim que superou o pior da doença, sem sombra de dúvida provocara uma indignação bem maior. Para ele, fora uma tremenda desconsideração dos
médicos, quando não um desleixo, reconciliá-lo tão cabalmente com a morte e em seguida mudar de idéia. Era embaraçoso, agora, lembrar-se do pouco pesar com que abrira
mão de prazeres e preocupações, sendo que tanto uns quanto outros, na iminência da perda, revelaram-se pelo que eram: na melhor das hipóteses um mero consolo; na
pior, um desperdício de tempo e energia. E seria preciso abraçá-los de novo, acreditar que eram importantes, ao menos para si mesmo. Duvidava que algum dia conseguisse
voltar a considerá-los importantes para os outros. Com certeza, quando recuperasse as forças, tudo retornaria aos devidos eixos. A vida física se reafirmaria com
o tempo. Ele se reconciliaria com a existência, já que não havia alternativa, e, posta toda a culpa desse surto perverso de ressentimento e amargura na fraqueza,
acabaria por acreditar que tivera uma sorte imensa em escapar. Os colegas, livres de constrangimentos, iriam felicitá-lo. Depois de substituir o sexo como a grande
indecência do momento, a morte adquirira seu próprio recato: morrer quando ainda não se pode ser considerado um estorvo e antes que os amigos possam, com certa razão,
entoar o coro ritual de “descansou, coitado” tornou-se coisa de péssimo gosto.
Entretanto ainda se sentia inseguro quanto a fazer as pazes com o trabalho. Por mais resignado que estivesse a ocupar o papel de espectador - e muito em breve nem
isso -, não se considerava apto a voltar ao ruidoso recreio do mundo e, se não havia outra saída, então precisava descobrir para si um recanto menos violento. Não
que tivesse pensado com grande profundidade nisso, durante seus períodos de consciência; faltara tempo. Tratava-se mais de uma convicção do que de uma decisão. Chegara
a hora de mudar de rumo. Regras processuais, rigor mortis, interrogatórios, o espetáculo da carne em decomposição e de ossos estraçalhados, toda aquela coisa de
perseguir o criminoso, isso tudo estava encerrado para ele. Havia outras coisas a fazer com o tempo. Ele ainda não sabia bem quais, mas descobriria. Tinha mais de
duas semanas de convalescença pela frente, tempo para chegar a uma decisão racional, justificá-la para si e, com um pouco mais de dificuldade, encontrar as palavras
para apresentá-la ao comissário. Era um momento ruim para deixar a Scotland Yard. Seria considerado um desertor. Por outro lado, sempre seria um mau momento.
Dalgliesh não sabia nem mesmo se esse desencanto com o trabalho era fruto exclusivo da doença - o lembrete salutar da inevitabilidade da morte - ou se era sintoma
de um mal-estar mais fundamental naquela latitude da meia-idade que oscila entre calmarias e ventos incertos, quando as pessoas percebem que as esperanças adiadas
não são mais realizáveis, que os portos não visitados jamais serão vistos, que esta e outras jornadas anteriores podem ter sido um engano, que perdemos a confiança
até mesmo nos mapas e nas bússolas. Havia coisas além do trabalho que lhe pareciam triviais e insatisfatórias. Insone como tantos outros pacientes deviam ter ficado
antes dele, deitado ali naquele quarto triste e impessoal, vendo o farol dos carros que passavam na rua a varrer o teto com luz, escutando os ruídos secretos e abafados
da vida noturna do hospital, Dalgliesh fez um inventário deprimente de sua vida. A dor pela morte da mulher, tão genuína, tão devastadora na época - quão convenientemente
sua tragédia pessoal o isentara de qualquer outro envolvimento emocional. Seus casos amorosos - como o que no momento ocupava-lhe de forma esporádica uma pequena
parcela de tempo e um pouco mais da energia - tinham sido todos desapaixonados, civilizados, agradáveis, fáceis de contentar. Ficava subentendido que seu tempo nunca
era de todo seu, mas o coração sim. As mulheres eram liberadas. Tinham empregos interessantes, apartamentos agradáveis e contentavam-se com o que conseguiam obter.
Sem sombra de dúvida estavam liberadas das emoções confusas, possessivas e destruidoras que complicam a vida de outras mulheres. Ele se perguntou o que todos aqueles
encontros tão bem espaçados, em que ambos os participantes se preparavam para o prazer feito um casal de gatos vadios, teriam a ver com amor, com quartos desarrumados,
com pratos por lavar, fraldas de criança, com o afeto, a claustrofobia e a solidez do compromisso da vida conjugal. A perda da mulher, o trabalho, a poesia, tudo
fora usado para justificar sua auto-suficiência. As mulheres tinham se mostrado mais receptivas à poesia do que à esposa morta. Tinham pouca consideração pelos sentimentos,
mas um respeito exagerado pela arte. E o pior de tudo - ou quem sabe o melhor - era que ele não poderia mais mudar, mesmo que quisesse, e que nada disso importava.
Não tinha a menor relevância. Nos últimos quinze anos, Dalgliesh não magoara um único ser humano, pelo menos não de propósito. Ocorreu-lhe que não haveria nada mais
ruinoso para se dizer de alguém do que isso.
Pois bem, nada disso poderia ser mudado, mas o trabalho sim. No entanto antes havia um compromisso pessoal que precisava de sua atenção, uma obrigação da qual a
morte, de um jeito perverso, o isentara de forma muito conveniente. Mas não o isentava mais. Apoiando-se no cotovelo, pegou a carta do padre Baddeley na gaveta da
mesinha de cabeceira e leu-a com atenção pela primeira vez. O velho estava com quase oitenta anos; já não era jovem quando, trinta anos antes, chegara ao vilarejo
de Norfolk como vigário da paróquia do pai de Dalgliesh; um homem tímido, ineficiente como ele só, ineficaz em tudo o que não fosse essencial, mas de uma integridade
absoluta. Era a terceira carta que Dalgliesh recebia dele. De 11 de setembro, dizia:
* * *
Meu caro Adam,
Sei que você deve estar ocupadíssimo, mas gostaria muito que me fizesse uma visita, já que estou com um problema que seus conselhos profissionais talvez possam ajudar
a resolver. Não se trata de nada urgente, mas o coração parece estar se desgastando mais depressa do que o resto, de modo que não dá para confiar demais na idéia
do amanhã. Estou aqui todos os dias, mas talvez um fim de semana seja mais de seu agrado. Devo dizer, para que você saiba o que esperar, que sou o capelão da vila
Toynton, uma casa de repouso para jovens inválidos, e que moro em terreno pertencente à instituição, numa casinha chamada Esperança, por bondade do senhor diretor,
Wilfred Anstey. Em geral faço as refeições na vila Toynton, mas talvez isso não lhe convenha, além, é claro, de reduzir o tempo que teríamos para passar juntos.
Portanto vou aproveitar minha próxima ida a Wareham para comprar alguns mantimentos. Tenho um quarto pequeno desocupado e posso me mudar para lá, para você ficar
mais à vontade.
Por gentileza, me mande um bilhete dizendo quando vai chegar. Não tenho carro, mas, se você vier de trem, William Deakin, dono de uma locadora de automóveis a cinco
minutos da estação (os funcionários da ferrovia lhe dirão como achá-lo), é uma pessoa confiável e não cobra muito caro. Os ônibus que saem de Wareham não são muito
freqüentes e só vão até Toynton. De lá, são dois quilômetros de caminhada, aliás bem agradável, se o tempo estiver bom, porém talvez você não esteja disposto a fazê-la,
depois de uma longa viagem. Caso contrário, veja o mapa que eu desenhei no verso desta carta.
O mapa, sem a menor sombra de dúvida, confundiria qualquer um mais acostumado com as publicações ortodoxas do Serviço Geodésico Nacional do que com cartas do começo
do século XVII. Pelo visto, as linhas ondeadas representavam o mar. Dalgliesh sentiu falta de uma baleia esguichando água. A parada de ônibus de Toynton estava bem
marcada, mas a linha trêmula dali em diante serpenteava de forma incerta por uma variedade enorme de campos, porteiras, pubs e bosques de abetos triangulares, serrilhados
na ponta, recuando às vezes sobre si mesma, sempre que o padre Baddeley se percebia metaforicamente perdido. Um minúsculo símbolo fálico na costa - e pelo visto
incluído no mapa como um marco, já que não ficava em absoluto próximo à trilha indicada - trazia uma legenda dizendo “torre negra”.
O mapa comoveu Dalgliesh quase tanto quanto o primeiro desenho é capaz de comover um pai complacente. Em que apatia e fraqueza profundas ele não devia ter mergulhado
durante a doença, para rejeitar-lhe os encantos! Procurou na gaveta um cartão e escreveu um bilhete dizendo que chegaria de carro no início da tarde de segunda-feira,
1o de outubro. Isso lhe daria tempo de sobra para sair do hospital e passar os primeiros dias de convalescença em seu apartamento em Queenhythe. Assinou com as iniciais
apenas, selou para entrega de primeira classe e encostou o cartão na jarra de água, para não esquecer de pedir a uma das enfermeiras que o postasse.
Havia ainda uma outra pequena obrigação para a qual não se sentia muito competente. Porém essa poderia esperar. Precisava ver ou falar com Cordelia Gray e agradecer
pelas flores. Não fazia idéia de como a moça descobrira que ele estava doente, a não ser talvez por meio de amigos em comum na polícia. Como diretora da Agência
de Detetives Bernie Pryde - se é que o escritório já não falira, conforme ditavam todas as leis da justiça e da economia -, ela ainda devia manter contato com um
ou dois policiais. Além disso, Dalgliesh também se lembrava de ter lido menção a sua inconveniente enfermidade nos vespertinos londrinos, citada de passagem num
artigo que comentava as perdas recentes nos altos escalões da Scotland Yard.
Era um buquê pequeno, feito com o maior cuidado e com flores escolhidas pessoalmente, tão especiais quanto a própria Cordelia, num contraste encantador com outras
oferendas - rosas de estufa, crisântemos gigantescos e desgrenhados feito vassouras de lã, flores primaveris extemporâneas, gladíolos com pinta de artificiais e
flores róseas, plastificadas, cheirando a anestésico, muito rígidas em seus caules fibrosos. Cordelia devia ter passado por algum jardim de interior; bem que ele
gostaria de saber onde. Assim como também gostaria de saber, sem muita lógica, se ela estava se alimentando bem, mas na mesma hora espantou essa idéia ridícula da
cabeça. O ramalhete viera, disso ele se lembrava com clareza, com discos prateados de lunária, três raminhos de urze, quatro botões de rosa - não aqueles botões
mirrados de inverno, e sim um plissado de laranjas e amarelos, delicados como os primeiros botões de verão -, hastes frágeis de crisântemos silvestres, frutinhos
avermelhados e uma esplêndida dália, como uma jóia no centro, todo ele rodeado por folhas cinzentas e peludas de uma planta que ele conhecia da infância pelo nome
de orelhas-de-coelho. Fora um gesto comovente e juvenil que uma mulher mais velha ou mais sofisticada não teria jamais. Chegara com um bilhetinho muito sucinto,
dizendo que ela ficara sabendo da doença e que mandava aquelas flores para desejar que ele sarasse logo. Precisava vê-la ou agradecer de próprio punho. O telefonema
que uma das enfermeiras dera em seu nome para a agência não bastava.
Mas isso e outras decisões mais fundamentais podiam esperar. Primeiro tinha de ir ver o padre Baddeley. Não se tratava de uma obrigação meramente respeitosa ou filial.
Dalgliesh descobrira que, apesar de certas dificuldades e dos constrangimentos previsíveis, estava ansioso para rever o velho padre. Não que tivesse intenção de
deixar que ele o seduzisse a voltar ao trabalho, ainda que sem querer. Se fosse mesmo assunto de polícia, do que ele duvidava, então a de Dorset se encarregaria
do assunto. E, se aquele sol agradável de começo de outono não fosse embora, Dorset seria um lugar tão gostoso quanto qualquer outro para se convalescer.
Entretanto o retângulo branco sisudo, apoiado na jarra de água, de repente pareceu-lhe uma intromissão indevida. Voltava os olhos a todo momento para ele, como se
fosse um símbolo potente, uma sentença de vida passada por escrito. Ficou contente quando a enfermeira entrou avisando que terminara o plantão e levou o cartão para
pôr no correio.
2
 MORTE DE UM PADRE
I
Onze dias depois, ainda fraco e pálido após a longa temporada no hospital, mas eufórico com o enganoso bem-estar que acompanhava a sensação de ter se recuperado,
Dalgliesh deixou seu apartamento na beira do Tâmisa, na Queenhythe, pouco antes do amanhecer e tomou a direção sudoeste para sair de Londres. Dois meses antes, havia
enfim, e com grande relutância, se desfeito de seu antiqüíssimo Cooper Bristol, isso logo no início da doença, e agora dirigia um Jensen Healey. Era um alívio saber
que o motor já fora amaciado e também que já se conformara com a troca. Embarcar de modo simbólico numa nova vida com um carro novo em folha teria sido de uma banalidade
irritante. No porta-malas colocou uma única valise, junto com alguns itens essenciais para piquenique, inclusive saca-rolha, e no bolso, um exemplar dos poemas de
Hardy, The Return of the Native, além do Newman e Pevsner, um guia das principais edificações de Dorset. Aquelas seriam férias de convalescente: livros conhecidos,
uma rápida visita a um velho amigo para dar um objetivo à viagem, uma rota ao sabor dos caprichos de cada dia, percorrendo território conhecido e desconhecido, e
o incômodo salutar de um problema pessoal para justificar a solidão e o ócio. Mas, ao dar uma última olhada no apartamento, ficou perturbado ao surpreender sua mão
indo direto para o estojo do material de perícia. Não se lembrava da última vez que viajara sem ele, mesmo em férias. No entanto, deixá-lo para trás era a primeira
confirmação de uma decisão sobre a qual haveria de ponderar conscienciosamente de tempos em tempos durante a quinzena seguinte, mas que lá no fundo sabia já ter
sido tomada.
Chegou a Winchester a tempo para um café-da-manhã tardio num hotel à sombra da catedral e passou as duas horas seguintes redescobrindo a cidade, antes de tomar o
rumo de Dorset, via Wimborne Minster. No caminho, começou a sentir alguma resistência em chegar ao fim da viagem. Serpenteou com vagar, quase sem rumo, na direção
noroeste, até Blandford Forum, onde comprou uma garrafa de vinho, alguns pãezinhos com manteiga, queijo e frutas para o almoço, além de duas garrafas de Amontillado
para o padre Baddeley, depois tomou a direção sudeste, passando pelos povoados ao longo do Bourne, e de lá para Wareham e Castle Corfe.
As magníficas pedras do castelo homônimo, símbolos de coragem, crueldade e traição, continuavam montando guarda na única fenda dos montes Purbeck, como mil anos
antes. Enquanto fazia seu piquenique solitário, Dalgliesh viu-se cada vez mais atraído por aqueles ásperos blocos de cantaria mutilada, recortados de encontro a
um céu benigno. Como se relutante em ir adiante sob suas sombras, e avesso a encerrar a solidão de um dia tão sereno e brando, passou um certo tempo procurando em
vão por gencianas do brejo, antes de iniciar os últimos oito quilômetros do trajeto.
E eis Toynton: uma fileira de casinhas térreas geminadas, com telhados de pedra cinzenta cintilando ao sol da tarde, um pub nada pitoresco no fim da rua e o vislumbre
de uma torre desinteressante de igreja. Em seguida a estrada, ladeada por um muro baixo de pedra, subindo suavemente por entre plantações esparsas de abetos. E foi
nessa altura que Dalgliesh começou a reconhecer os marcos do mapa do padre Baddeley. Logo adiante a estrada se bifurcaria e haveria então uma estradinha estreita
a oeste, acompanhando o promontório, e outra que passava por um portão, dando acesso à vila Toynton e ao mar. E lá estava ele, conforme o previsto: um portão pesado
de ferro chumbado num muro de pedras chatas, assentadas sem argamassa. O muro, que tinha bem um metro de espessura num encaixe intrincado e habilidoso de pedras
cimentadas por líquen e musgo, com uma coroa de capins ondulados por cima, formava uma barreira tão perene quanto o promontório do qual parecia ter surgido. Havia
dois avisos pintados em madeira, um de cada lado do portão. O da esquerda dizia:
POR FAVOR TENHA A BONDADE DE RESPEITAR
 NOSSA PRIVACIDADE
O da direita era um pouco mais didático, com letras desbotadas, porém mais profissionais.
MANTENHA DISTÂNCIA
PROPRIEDADE PARTICULAR
PENHASCOS PERIGOSOS
SEM ACESSO PARA A PRAIA
CARROS E TRAILERS ESTACIONADOS SERÃO GUINCHADOS
Debaixo do aviso, havia uma caixa grande de correio.
Dalgliesh pensou que mesmo um motorista indiferente àquela bem dosada mistura de sugestão, aviso e ameaça acabaria hesitando em pôr em risco a suspensão do carro.
O caminho sofria uma deterioração violenta, ultrapassado o portão, e o contraste entre a relativa maciez da estrada de acesso e a trilha pedregosa e cercada de rochedos
à frente tinha um poder quase simbólico de dissuasão. E também o portão, mesmo não estando fechado a chave, possuía um ferrolho pesado de desenho complexo que, enquanto
estivesse sendo manipulado, daria a qualquer intruso amplas oportunidades para se arrepender da imprudência. Ainda fraco devido à doença, Dalgliesh abriu o portão
com uma certa dificuldade. Depois de passar com o carro e fechá-lo de novo, teve a sensação de estar se metendo numa empreitada ainda não entendida por completo
e com toda a certeza insensata. O mais provável era que o problema fosse constrangedoramente alheio a suas habilidades e se resumisse a algo que apenas um velho
desinteressado das coisas do mundo - e talvez já um tanto senil - poderia imaginar ser da alçada de um policial. Embora vacilante, aos poucos ia voltando a um universo
em que os seres humanos tinham problemas, trabalhavam, amavam, odiavam e planejavam ser felizes; e, uma vez que o serviço que decidira abandonar não deixaria de
existir com sua deserção, um universo em que havia quem matasse e quem fosse morto.
Antes de entrar outra vez no carro, viu-se atraído por um aglomerado de flores desconhecidas. As corolas de um rosado quase branco erguiam-se de um trecho musguento
no topo do muro e tremulavam com delicadeza sob a brisa suave. Dalgliesh aproximou-se e observou imóvel e silencioso aquela beleza despretensiosa. Sentiu pela primeira
vez o cheiro penetrante e quase ilusório da maresia. O ar passou-lhe quente e suave pela pele. De repente, pegou-se inundado de alegria e também, como sempre nesses
raros e transitórios momentos, intrigado com a natureza estritamente física de seu contentamento. A felicidade escorria-lhe pelas veias, numa doce efervescência.
O simples fato de analisar-lhe a natureza significava perdê-la. Mas reconheceu-a pelo que era: um primeiro e claro indício, desde a doença, de que a vida podia ser
boa.
O carro continuou subindo lento pela trilha acidentada. Uns duzentos metros adiante, ao chegar ao topo da subida, em vez de descortinar a vastidão ondulada do Canal
da Mancha esparramando-se azulada no horizonte distante, experimentou a mesma decepção tantas vezes sentida na infância, quando, de férias, e depois de muitas falsas
esperanças, o tão esperado mar insistia em permanecer invisível. À sua frente havia um vale raso salpicado de pedras e entrecruzado por trilhas, e à sua direita
o que só podia ser a vila Toynton.
Era um casarão quadrado e sólido, feito de pedras, construído, ele imaginava, na primeira metade do século XVIII. O proprietário, porém, não tivera muita sorte com
o arquiteto. A casa era uma aberração, indigna de ser chamada de “georgiana”. Dava vista para o interior, com face para o nordeste, e, com isso, ofendia um cânone
arquitetônico obscuro e pessoal de Dalgliesh, segundo o qual uma casa no litoral deveria ter vista para o mar. Havia duas fileiras de janelas acima do portal, as
principais encimadas por gigantescas chaves de abóbada e as de cima sem adornos, tacanhas nas dimensões, como se tivesse havido uma certa dificuldade em encaixá-las
sob o item mais extraordinário da construção: um imenso frontão jônico encimado por uma estátua - uma massa desajeitada e, daquela distância, inidentificável de
pedra. No centro havia uma janela redonda, um olho sinistro de ciclope luzindo ao sol. O frontão degradava o portal e emprestava ao conjunto um ar acachapado e pesado.
Dalgliesh imaginou que a fachada poderia ter sido equilibrada com janelas em nicho, mas ou a inspiração terminara, ou então fora o dinheiro, e a casa parecia inacabada.
Nem sinal de vida por trás do frontispício intimidante. Quem sabe os internos - se é que essa era a palavra correta para eles - morassem nos fundos. Eram só três
e meia da tarde, a parte morta do dia, pelo que se lembrava do hospital. Deviam estar todos descansando.
Deu para ver que havia três outras casas bem menores, duas delas a cem metros da principal e a terceira isolada, mais no alto. Pensou ter divisado um quarto telhado,
mais para o lado do mar, mas não tinha certeza. Talvez fosse apenas um rochedo. Sem saber qual delas seria a que se chamava Esperança, achou sensato ir até as mais
próximas. Havia desligado o motor enquanto decidia o que fazer e foi quando, pela primeira vez, escutou o mar. Aquele resmungo suave, contínuo e rítmico que é um
dos sons mais nostálgicos e evocativos que existem. Ainda nem sinal de que sua chegada tivesse sido notada; o promontório estava em silêncio, sem um único pássaro.
Pressentiu algo estranho e quase sinistro naquele vazio e naquela solidão que nem mesmo a tarde harmoniosa conseguia espantar.
Sua aproximação não trouxe nenhum rosto à janela, nenhum vulto de batina à porta da frente. Eram dois antigos sobradinhos de calcário, cujos telhados pesados de
pedra, típicos de Dorset, exibiam retalhos vibrantes de musgo verde-esmeralda. À direita ficava o bangalô Esperança, à esquerda o bangalô Fé, com nomes pintados
havia relativamente pouco tempo. O bangalô mais distante devia ser o Caridade, mas Dalgliesh duvidava que Baddeley tivesse algo a ver com aqueles nomes. E nem precisou
ler o que estava escrito nos portões para saber qual era o que procurava. Seria impossível associar o desinteresse quase total que o velho padre sempre demonstrara
por tudo o que o rodeava com as cortinas claras de algodão estampado, com o cesto de hera e fúcsias pendurado sobre a porta da frente, ou com as duas tinas pintadas
de um amarelo vivo, ainda vistosas e floridas, em posição estratégica de ambos os lados da entrada do bangalô Fé. Dois cogumelos de concreto, pelo visto produzidos
em massa, montavam guarda nas laterais do portão, com um jeito tão suburbano e acolhedor que Dalgliesh se surpreendeu de não vê-los coroados por gnomos de jardim.
Já o bangalô Esperança era de uma austeridade absoluta. Havia um sólido banco de carvalho diante da janela, para se tomar um pouco de sol, e uma profusão de cajados
e um velho guarda-chuva na entrada. As cortinas, de algum tecido pesado de um vermelho baço, estavam fechadas.
Ninguém atendeu quando Dalgliesh bateu. Nem ele esperava que atendessem. Era óbvio que as duas casas estavam vazias. Havia um trinco simples na porta, sem fechadura.
Depois de um segundo de hesitação, baixou a maçaneta e pisou no interior da casa, onde reinava um cheiro quente, livresco, meio de mofo, que no mesmo instante o
fez recuar trinta anos. Correu as cortinas e a luz invadiu o ambiente. Os olhos começaram a reconhecer os objetos familiares: a mesa redonda de pau-rosa com pé em
forma de cálice, baça de poeira, posta no meio do aposento; a escrivaninha de tampo corrediço encostada numa parede; a poltrona de espaldar alto, recurvo, já tão
velha que o estofamento escapava pelo forro rasgado e o assento estava quase na madeira. Não podia ser a mesma. Ou era? Aquela pontada de lembrança devia ser uma
quimera nostálgica. Mas havia ainda outro objeto, igualmente conhecido, igualmente velho. A capa preta do padre Baddeley estava pendurada atrás da porta, e, por
cima dela, uma boina surrada e molenga.
Foi a visão daquela capa a primeira coisa que alertou Dalgliesh para a possibilidade de haver algo errado. Era estranho que o padre não estivesse ali para recebê-lo,
mas havia uma série de explicações possíveis para sua ausência. O cartão que ele enviara talvez tivesse se extraviado, o padre podia ter recebido um chamado urgente
da casa principal ou então ido a Wareham fazer compras e perdido o último ônibus. Era até provável que houvesse esquecido por completo que esperava a chegada de
um hóspede. Mas, se tivesse saído, por que não levara a capa? Era impossível imaginá-lo, fosse inverno ou verão, saindo de casa sem ela.
Foi então que Dalgliesh reparou no que o olho já devia ter visto sem se dar conta, na pequena pilha de folhetos sobre a escrivaninha, impressos com uma cruz negra.
Ele pegou o de cima e levou-o até a janela, como se esperando que uma iluminação melhor o desmentisse. Mas ali estava, claro, sem nenhum engano. Dalgliesh leu:
Padre Michael Francis Baddeley,
Nascido em 29 de outubro de 1896
Falecido em 21 de setembro de 1974, R.I.P
Enterrado na igreja de São Miguel
De Toynton, Dorset
Em 26 de setembro de 1974
Fazia onze dias que ele morrera e cinco que fora enterrado. Mas de todo modo Dalgliesh teria sabido que o padre se fora havia pouco tempo. De que outra forma explicar
a sensação de que a personalidade dele continuava presente ali na casinha, a impressão de que se encontrava tão perto que a um simples chamado estaria com a mão
na maçaneta? Olhando para aquela capa pardacenta tão familiar, com seu fecho pesado - seria mesmo possível que o velho não a tivesse trocado nos últimos trinta anos?
-, sentiu uma pontada de remorso, de dor até, tão intensa que o surpreendeu. Um velho morrera. Devia ter sido morte natural; eles o haviam enterrado bem depressa.
A morte e o enterro não tinham sido divulgados. Mas o padre estava preocupado com alguma coisa e morrera sem contar o que era. De repente tornou-se muito importante
saber ao certo se o padre Baddeley recebera seu cartão e, sobretudo, se morrera acreditando que seu pedido de ajuda não fora atendido.
O lugar mais óbvio onde procurar era a escrivaninha do começo da era vitoriana, que pertencera à mãe do padre. Lembrava-se de que Baddeley a mantinha trancada. Nunca
fora homem de segredos, de jeito nenhum, mas qualquer padre que se prezasse precisava ter ao menos uma gaveta ou mesa a salvo dos olhares xeretas de criadas e paroquianos
curiosos. Dalgliesh ainda se lembrava do padre Baddeley remexendo nos bolsos fundos daquela capa, em busca da pequena chave que destrancava a fechadura; para facilitar
o manuseio e a identificação, o padre amarrara a chave com um pedaço de barbante a um antigo pregador de roupas. Era muito provável que continuasse num dos bolsos.
Dalgliesh enfiou a mão nos dois bolsos da capa com um sentimento de culpa, como se estivesse assaltando um morto. A chave não estava ali. Foi até a escrivaninha
e mexeu no tampo. Que se abriu com facilidade. Curvando-se, examinou a fechadura, depois foi buscar a lanterna no carro e olhou de novo. Os sinais eram inconfundíveis:
a fechadura fora arrombada. Até que tinha sido um serviço limpo, que não exigira força nenhuma. A fechadura era bonita mas frágil, servia apenas como defesa contra
curiosos inofensivos, não contra um ataque proposital. Um cinzel ou uma faca, ou, mais provável ainda, a lâmina de um canivete fora enfiada entre a mesa e o tampo
e usada para arrombar a fechadura. Causara pouquíssimo dano, é verdade, mas os arranhões e a própria fechadura quebrada eram a prova.
Mas não de quem fora o responsável. Talvez fosse obra do próprio padre. Se tivesse perdido a chave, não haveria como substituí-la, e onde, num lugar tão remoto como
aquele, encontrar um chaveiro? Dalgliesh lembrou-se de que uma investida física contra o tampo da escrivaninha era um expediente improvável para um homem como Baddeley
- porém não impossível. Ou quem sabe tinha sido arrombada depois da morte dele. Sem conseguir encontrar a chave, alguém da vila Toynton fora obrigado a forçar a
fechadura. Talvez houvesse documentos ou papéis importantes ali: o cartão da previdência, nomes de amigos a serem avisados, um testamento. Deixou de lado as conjecturas,
irritado de ver que chegara a pensar em pôr luvas antes de continuar o exame, e fez uma vistoria rápida do conteúdo das gavetas.
Não havia nada de grande interesse. As preocupações do padre Baddeley com o mundo pelo visto haviam sido mínimas. Mas algo imediatamente reconhecível atraiu sua
atenção. Era uma pilha muito bem feita de pequenos cadernos escolares de capa verde. Dalgliesh sabia que eram os diários do padre. Quer dizer então que aqueles cadernos
continuavam à venda, com as indefectíveis capas verde-claro, a de trás impressa com a tabuada, tão evocatórios do curso primário quanto uma régua suja de tinta ou
uma borracha. Baddeley sempre utilizara esses cadernos para escrever seu diário, um para cada trimestre do ano. E então, diante do velho capote molenga pendurado
atrás da porta, com o cheiro eclesiástico de bolor nas narinas, Dalgliesh lembrou-se com toda a clareza, como se ainda tivesse dez anos, da conversa travada com
o padre, ele sentado à escrivaninha, já de meia-idade e já parecendo eterno.
- Quer dizer então que é só um diário comum, padre? Não é sobre sua vida espiritual?
- Esta é a vida espiritual; as coisas comuns que a gente faz todos os dias.
Adam então perguntara com o egoísmo dos jovens:
- E só sobre o senhor? Eu não estou aí?
- Não. Só o que eu faço. Você se lembra a que horas foi a reunião da União de Mães esta tarde? Foi na sala de sua mãe, esta semana. E numa hora diferente, acho eu.
- Foi às quinze para as três, em vez de três da tarde, padre. O arcediago precisava sair mais cedo. O senhor tem que ser exato?
O padre Baddeley deu mostras de ter meditado sobre o assunto, não por muito tempo, mas de forma séria, como se a indagação lhe fosse nova e, até certo ponto, interessante.
- Ah, sim, acho que tenho. Acho que tenho, sim. Caso contrário, perde o sentido.
O jovem Dalgliesh, para quem o sentido daquilo não estava de fato ao alcance, saíra para cuidar de assuntos mais palpitantes e imediatos. Vida espiritual. Essa era
uma expressão que já ouvira diversas vezes dançando nos lábios de paroquianos bem mais mundanos que freqüentavam a igreja paterna, se bem que jamais da boca do cônego.
Muito de vez em quando, tentava visualizar essa outra existência misteriosa. Será que era vivida junto com a vida ordinária de levantar, comer, ir à escola, sair
de férias? Ou se tratava de uma existência em algum outro plano, ao qual ele e os não iniciados não tinham acesso, mas onde o padre Baddeley podia se refugiar quando
lhe desse na telha? De um jeito ou de outro, por certo não teria muito que ver com aquele registro cuidadoso das trivialidades do dia-a-dia.
Dalgliesh apanhou o último livro da pilha e folheou. O sistema do padre não mudara. Estava tudo ali, dois dias para cada página, registrados com o maior cuidado.
As horas em que dissera suas matinas e vésperas, por onde caminhara e por quanto tempo, a viagem mensal de ônibus até Dorchester, a excursão semanal até Wareham,
as horas despendidas na vila Toynton, ajudando em alguma coisa, prazeres ocasionais anotados sem rodeios, o relato metódico de como ocupara cada hora de cada dia
de trabalho, ano após ano corriqueiro, tudo documentado com a meticulosidade de um guarda-livros. “Mas esta é a vida espiritual; as coisas comuns que a gente faz
todos os dias.” Só que não podia ser assim tão simples, podia?
Entretanto, onde fora parar o diário atual, o caderno para o terceiro trimestre de 1974? O padre Baddeley tinha o costume de guardar os diários dos últimos três
anos. Portanto deveria haver quinze cadernos, ali; mas eram catorze. O último terminava em junho de 1974. Dalgliesh pegou-se revirando as gavetas num estado quase
febril. O diário não estava ali. Mas ele achou algo. Enfiada embaixo de três contas - carvão, querosene e eletricidade -, havia uma folha de papel, do tipo barato
e fino, com o nome da vila Toynton impresso meio torto no alto. Por baixo, alguém datilografara:
Por que você não sai dessa casa, seu velho idiota e hipócrita, e deixa que alguém mais necessitado more nela? Não pense que não sabemos o que você e Grace Willison
andam fazendo quando ela diz que está se confessando. Não seria bom se você ao menos conseguisse fazer? E o que me diz daquele menino do coro? Não pense que não
sabemos.
A primeira reação de Dalgliesh foi mais de irritação com a cretinice do bilhete do que de raiva diante de tanto rancor. Era um exemplo infantil de despeito gratuito,
sem conter nem mesmo o mérito dúbio da verossimilhança. Coitado do quase octogenário padre Baddeley, acusado ao mesmo tempo de fornicação, sodomia e impotência!
Seria possível uma pessoa sensata levar a sério aquela bobagem pueril, a ponto de se ofender? Dalgliesh já vira um bocado de cartas anônimas em sua vida profissional.
Aquela fora uma tentativa até que branda; quase dava para supor que seu autor não estivesse lá muito animado com a coisa. “Não seria bom se ao menos você conseguisse
fazer?” A grande maioria dos autores de cartas anônimas teria encontrado termos mais descritivos para a atividade ali implícita. E a referência de última hora ao
menino do coro, sem nome, sem data. Aquilo não surgira de nenhum conhecimento real. Seria possível que o padre Baddeley estivesse preocupado a ponto de pedir a um
detetive profissional, a alguém que ele não encontrava fazia quase trinta anos, que fosse investigar aquela maldade mesquinha? Quem sabe. Talvez houvesse outras.
Se o problema fosse geral, então a coisa seria mais séria. Cartas anônimas à solta numa comunidade fechada como a vila Toynton tinham grande potencial para gerar
problemas e dissabores graves; havia até mesmo a possibilidade de que ele ou ela fosse um assassino. Se por acaso o padre Baddeley estivesse desconfiado da existência
de outras cartas semelhantes, podia ter lhe ocorrido pedir ajuda profissional. Ou então - e essa era uma possibilidade mais interessante - alguém pretendia fazer
com que Dalgliesh acreditasse justamente nisso. Haveria alguma possibilidade de que aquela carta tivesse sido plantada ali de propósito, para que ele a descobrisse?
Era sem dúvida curioso não haver sido encontrada e destruída, depois da morte do padre. Alguém da vila Toynton devia ter examinado a papelada toda do morto. E aquele
não era um bilhete para se deixar ao sabor da curiosidade alheia.
Dalgliesh dobrou-o e colocou-o na carteira e em seguida começou a vagar pela casa. O quarto era bem o que ele esperava. Uma janela acanhada com uma cortina encardida
de cretone, uma cama de solteiro ainda feita, com lençóis, cobertores e uma colcha bem esticada sobre o único travesseiro encaroçado, e, sobre a mesinha de cabeceira,
uma luminária muito simples, uma Bíblia e um cinzeiro espalhafatoso de porcelana pesada com propaganda de cerveja. O cachimbo do padre Baddeley continuava pousado
nele e, do lado, Dalgliesh viu uma carteira de fósforos semi-usada, do tipo que os restaurantes e bares oferecem. Aquela trazia um anúncio do Ye Olde Tudor Barn,
perto de Wareham. Havia um único fósforo usado no cinzeiro e fora desfiado até a ponta queimada. Dalgliesh sorriu. Quer dizer então que também aquele pequeno hábito
sobrevivera por mais de trinta anos. Lembrava-se dos dedos magros do padre, como os de um esquilo, desfiando com toda a delicadeza a tirinha de papelão, como se
numa tentativa de quebrar o recorde pessoal anterior. Dalgliesh apanhou o fósforo e sorriu: seis segmentos. O padre se superara.
Entrou na cozinha. Era pequena, mal equipada, arrumada, mas não muito limpa. O pequeno fogão a gás, antiquado, parecia pronto para entrar para o acervo de algum
museu popular. A pia, sob a janela, era de pedra e tinha, num dos lados, um escorredor de louças de madeira amarelecida, cheirando a gordura e sabão velho. As cortinas
de cretone descorado, com uma estampa já sumida de rosas gigantes enredadas a narcisos, numa mistura inoportuna de verão e primavera, estavam abertas e mostravam
uma paisagem que se estendia até os montes Purbeck. Nuvens tão ralas quanto baforadas de fumaça corriam e se dissolviam no azul infinito do céu, e algumas ovelhas
pontilhavam, qual lesmas brancas, o pasto distante.
Examinou a despensa. Ao menos ali havia indícios de que era esperado. O padre Baddeley comprara de fato mantimento extra, e todas aquelas latas eram um lembrete
deprimente do que, para ele, constituía uma dieta adequada. De forma até certo ponto patética, ele providenciara comida para dois - um dos quais obviamente com apetite
bem maior. Havia uma lata grande e uma pequena de quase todos os alimentos básicos: feijão, atum, picadinho irlandês, espaguete, arroz-doce.
Dalgliesh voltou para a sala, sentindo o cansaço vencer. A viagem fora mais árdua do que esperava. Pelo relógio grandalhão de carvalho em cima do consolo da lareira,
que continuava a funcionar na maior solidez, viu que não eram nem quatro da tarde, mas o corpo protestava: fora um dia longo e difícil. Estava doido por um chá.
Vira uma lata de chá na cozinha, mas não havia leite. Também não sabia se o gás ainda estava ligado.
Foi então que ouviu passos na porta, depois o tilintar da maçaneta. Havia uma silhueta de mulher desenhada de encontro ao sol da tarde. Escutou uma voz grave mas
muito feminina, com um leve traço de sotaque irlandês.
- Minha nossa! Um ser humano e ainda por cima do sexo masculino. O que está fazendo aqui?
Ela entrou na sala deixando a porta aberta atrás de si, e Dalgliesh pôde vê-la com mais clareza. Devia ter uns trinta e cinco anos, por aí, uma figura robusta, de
pernas longas e cabelos loiros - visivelmente mais escuros na raiz - que lhe batiam nos ombros. Os olhos de pálpebras pesadas eram estreitos, o rosto era quadrado,
a boca, ampla. Usava calça marrom, de mau caimento, com uma tira debaixo dos pés, tênis brancos manchados de mato e uma blusa branca sem mangas, de algodão, com
um decote que mostrava um triângulo de pele bronzeada e sardenta. Não usava sutiã, de modo que os seios fartos e pesados balançavam-se sob o tecido fino. Três braceletes
de madeira chacoalhavam no braço esquerdo. A impressão geral era de uma sexualidade reles mas não de todo desprovida de atrativos, tão forte que, embora não usasse
perfume, levou consigo para dentro da sala seu cheiro individual de mulher.
- Sou Adam Dalgliesh - ele disse. - Vim com a intenção de fazer uma visita ao padre Baddeley. Parece que isso não será mais possível.
- Bem, pode-se dizer que não, de fato. Você chegou onze dias atrasado. Com onze dias de atraso para vê-lo e cinco para enterrá-lo. Quem é você, um amigo? Não sabíamos
que ele tinha amigos. Por outro lado, havia um bocado de coisas que não sabíamos a respeito do nosso reverendo Michael. Era um homenzinho cheio de segredos. Sem
dúvida manteve você na surdina.
- Fazia bastante tempo que não nos víamos, a não ser muito rapidamente, desde que eu era menino. E só escrevi para ele dizendo que viria um dia antes de ele morrer.
- Adam. Gostei. Agora tem muito menino sendo batizado com esse nome. Está voltando a ser moda. Mas deve ter achado meio chato, quando estava na escola. Mesmo assim,
combina bem com você. Não sei dizer por quê. Você não é daqui da terra, é? Agora já sei quem você é. Veio buscar os livros.
- Vim?
- Os livros que Michael deixou para você no testamento. Para Adam Dalgliesh, único filho do falecido cônego Alexander Dalgliesh, todos os meus livros, para que ele
guarde ou disponha como achar conveniente. Lembro direitinho porque achei os nomes um tanto incomuns. E você veio rápido, hein? Me espanta que os advogados tenham
arrumado tempo para escrever avisando. Bob Loder em geral não é tão eficiente assim. Mas no seu lugar eu não ficaria muito animado. Nunca achei que esses livros
valessem muita coisa. É tudo um monte de volumes enfadonhos de teologia. Por falar nisso, não contava receber nenhum dinheiro, contava? Porque, se tinha alguma esperança,
tenho más notícias.
- Eu não sabia que o padre Baddeley tinha dinheiro guardado.
- Nem nós. Esse era mais um dos segredinhos dele. Deixou dezenove mil libras. Não é nenhuma fortuna, mas ajuda. Deixou tudo para Wilfred, para o bem da vila Toynton,
e o dinheiro veio em boa hora, pelo que andei sabendo. Grace Willison foi a única outra herdeira. Ficou com essa escrivaninha velha. Quer dizer, vai ficar, quando
o Wilfred se der ao trabalho de tirá-la daqui.
A mulher se instalara na poltrona ao pé da lareira, com os cabelos jogados por cima do encosto e as pernas esparramadas. Dalgliesh puxou uma das cadeiras arredondadas
e sentou-se diante dela.
- Você conhecia bem o padre Baddeley?
- Todos nós nos conhecemos muito bem por aqui, esse é um dos problemas. Está pensando em passar uns dias aqui na casa?
- Na região, quem sabe um dia ou dois. Mas não me parece possível eu ficar aqui...
- Não vejo por que não, se quiser. O lugar está vazio, pelo menos até Wilfred encontrar a próxima vítima, ou inquilino, melhor dizendo. Acho que ele não vai se opor.
Além disso, você vai ter que arrumar os livros, certo? Wilfred vai querer tirá-los do caminho, antes que chegue o próximo ocupante.
- Quer dizer que a casa é de Wilfred Anstey?
- Ele é dono da vila Toynton e de todas as casinhas, exceto a de Julius Court, que fica mais para cima, a única com vista para o mar. Fora isso, Wilfred é dono de
toda a propriedade, inclusive de nós.
Ela o avaliou uns instantes, em silêncio
- Por acaso você teria alguma habilidade que pudesse ser útil por aqui? Quero dizer, você não é fisioterapeuta, nem enfermeiro, médico ou contador, é? Não que se
pareça com um contador. E, se for, eu o aconselho a manter distância, antes que Wilfred decida não largá-lo nunca mais.
- Não creio que ele considerasse minhas habilidades de muito proveito.
- Então por que não ficar aqui, se é essa sua vontade? Mas acho melhor colocá-lo a par da situação. Depois você pode até mudar de idéia.
- Comece por você - disse Dalgliesh. - Ainda não me disse quem você é.
- Meu Deus, e não disse mesmo! Desculpe. Sou Maggie Hewson. Meu marido trabalha como médico na vila Toynton. Quer dizer, pelo menos ele mora comigo numa casa fornecida
por Wilfred e muito apropriadamente chamada de Caridade, mas passa a maior parte do tempo na vila Toynton. Com os cinco pacientes que restaram, seria de se perguntar
o que tanto ele faz por lá. Concorda? O que Adam Dalgliesh imagina que ele faz por lá?
- Seu marido cuidava do padre Baddeley?
- Pode chamá-lo de Michael, todos nós o chamávamos assim, exceto Grace Willison. Cuidava. Eric cuidou dele em vida e assinou o atestado de óbito quando ele morreu.
Não poderia ter assinado nada, seis meses atrás, mas agora que o pessoal fez o grande favor de lhe devolver a licença médica, meu marido já pode botar o nome numa
folha de papel para dizer que você está devidamente e legalmente morto. Nossa, que baita privilégio.
Ela riu, e remexendo nos bolsos da calça, tirou de lá de dentro um maço de cigarros. Acendeu um e estendeu o maço para Dalgliesh, que abanou a cabeça. Ela deu de
ombros e soltou uma baforada de fumaça em cima dele.
Dalgliesh perguntou:
- Do que foi que o padre Baddeley morreu?
- O coração dele parou de bater. Não, não estou fazendo gracinha. Ele era velho, o coração estava cansado e no dia 21 de setembro parou. Infarto agudo do miocárdio,
complicado por diabetes moderada, se preferir o jargão médico.
- Estava sozinho?
- Imagino que sim. Ele morreu à noite, ou pelo menos foi visto vivo pela última vez por Grace Willison às sete e quarenta e cinco da noite, quando ouviu a confissão
dela. Desconfio que morreu de tédio. Não, eu não deveria ter dito isso. Péssimo gosto, Maggie. Grace disse que ele parecia estar como de costume, só um pouco mais
cansado, claro, tinha acabado de receber alta do hospital, naquela manhã mesmo. Passei por aqui às nove horas do dia seguinte, para ver se ele queria alguma coisa
de Wareham; eu ia tomar o ônibus das onze. Wilfred não admite carros particulares aqui... e lá estava ele, morto.
- Na cama?
- Não, nessa cadeira onde você está sentado agora, afundado nela, de boca aberta e olhos fechados. Estava de batina e com uma fita roxa em volta do pescoço. Tudo
muito correto. Mas muito, muito morto.
- Quer dizer que foi você a primeira pessoa que viu o corpo?
- A menos que Millicent, que mora aqui do lado, tenha entrado pé ante pé mais cedo, não tenha gostado da cara do padre e tenha voltado rapidinho para a casa dela.
Millicent é a irmã viúva de Wilfred, caso esteja interessado. No fundo, é bem estranho que ela não tenha vindo vê-lo, sabendo que o padre estava doente e sozinho.
- Deve ter sido um choque e tanto para você.
- Na verdade não. Eu era enfermeira, antes de me casar. Já vi muita gente morta na vida. Nem sei quantas vezes. E ele estava bem velhinho. São os jovens, sobretudo
as crianças, que deprimem a gente. Santo Deus, que bom que não tenho mais que lidar com essas tristezas.
- Sério? Quer dizer então que você não trabalha na vila Toynton?
Maggie se levantou e foi até a lareira, antes de responder. Soprou uma grossa baforada de cigarro contra o espelho por cima do consolo; em seguida se aproximou,
como se estudasse o próprio reflexo.
- Não. Não quando posso evitar. E pode ter certeza de que eu tento evitar. Só Deus sabe como. Acho melhor contar logo. Eu sou a delinqüente da comunidade, aquela
que não coopera, que não participa, a herege. Nem semeio nem colho. Sou impérvia aos encantos do querido Wilfred. Cerro os ouvidos aos gritos dos aflitos. Não curvo
os joelhos diante do santuário.
Dito isso, virou-se para ele, com uma expressão entre desafiadora e especulativa. Dalgliesh achou aquela explosão pouco espontânea - o protesto já fora feito antes.
Soava quase como uma justificativa ritual, e ele desconfiava que alguém ajudara na redação do roteiro. Ele disse:
- Me fale sobre Wilfred Anstey.
- Michael não comentou nada sobre ele com você? Não, acho que ele não faria isso. Bem, é uma história curiosa, mas vou tentar ser breve. O bisavô de Wilfred construiu
a vila. Wilfred e sua irmã Millicent herdaram-na do avô. Wilfred comprou a parte da irmã quando resolveu começar a casa de repouso. Há oito anos ele teve esclerose
múltipla. A doença progrediu rapidamente; em três meses, ele estava numa cadeira de rodas. Foi então que fez uma peregrinação a Lourdes e se curou. Pelo visto ele
fez um trato com Deus. Você me cura e eu dedico a vila Toynton e todo meu dinheiro a servir os inválidos. Deus concordou e agora Wilfred se desdobra para cumprir
sua parte do trato. Desconfio que ele tem medo de revogar o acordo e a doença voltar. Acho que não se pode culpá-lo. Eu com certeza sentiria o mesmo. No fundo, somos
todos supersticiosos, sobretudo em se tratando de doenças.
- E ele se sente tentado a voltar atrás nesse tal acordo?
- Não creio. Este lugar lhe dá uma sensação de poder. Rodeado de gratos pacientes, tido como um objeto de veneração pelas mulheres, Dot Moxon, a chamada enfermeira-chefe,
o dia inteiro em volta dele feito uma galinha velha. Ele se sente bem contente, aqui.
Dalgliesh então perguntou:
- Quando exatamente ocorreu o milagre?
- Segundo ele, quando o mergulharam no poço. Da forma como ele conta a história, depois do choque inicial de frio intenso veio um calor formigante que invadiu o
corpo todo, seguido de uma sensação de grande felicidade e paz. É exatamente o que eu sinto depois do meu terceiro uísque. Se o outro preferiu tentar com um banho
em água gelada infestada de micróbios, tudo o que posso dizer é que ele teve uma sorte tremenda. Quando saiu dali, já podia se suster nas duas pernas, e olhe que
fazia seis meses que não parava em pé. Três semanas depois, já estava saçaricando feito um cabrito. Não se deu nem ao trabalho de voltar ao hospital St. Saviour
de Londres, onde foi atendido, para que pudessem registrar a cura milagrosa em sua ficha. Teria sido uma grande piada, se ele tivesse dado uma passadinha por lá.
Interrompeu o que estava dizendo como se quisesse acrescentar mais algum dado, depois limitou-se a completar:
- Comovente, não acha?
- Interessante. De onde sai o dinheiro para cumprir a parte dele do trato?
- Os pacientes pagam de acordo com suas posses e alguns são enviados para cá mediante contrato com as prefeituras. Além disso, claro, ele tem tirado do próprio bolso.
Mas as coisas estão ficando meio difíceis, ou pelo menos é o que ele diz. A herança do padre Baddeley chegou bem a tempo. Sem falar que Wilfred consegue mão-de-obra
barata. Eric, por exemplo, não recebe o salário integral de médico. Philby, o nosso quebra-galho, é ex-presidiário e com toda a certeza não conseguiria trabalho
em nenhum outro lugar; quanto à enfermeira-chefe, Dot Moxon, acho que ela não encontraria um emprego com facilidade, depois da investigação sobre crueldades cometidas
no último hospital em que trabalhou. Deve se sentir muito grata por Wilfred tê-la contratado. No fundo, somos todos muito, muito gratos mesmo ao querido Wilfred.
- Imagino que é melhor eu ir até a vila e me apresentar. Você diz que só restam cinco pacientes?
- Não deve se referir a eles como pacientes, embora eu não consiga imaginar que outro nome Wilfred gostaria de dar a eles. Interno soaria muito parecido com presidiário,
se bem que Deus é testemunha de como esse nome seria mais apropriado. Mas só restam cinco. Ele resolveu não chamar mais ninguém da lista de espera até decidir o
futuro da casa. A Fundação Ridgewell anda rodeando, e Wilfred está pensando em transferir tudo para eles, de graça. Na verdade, eram seis pacientes, quinze dias
atrás, mas isso foi antes que Victor Holroyd se atirasse do alto do promontório e se espatifasse nas pedras.
- Está dizendo que ele se matou?
- Bem, ele estava na cadeira de rodas a três metros da beirada do precipício, de modo que ou ele soltou o breque e se deixou levar até lá, ou Dennis Lerner, o enfermeiro,
o empurrou. Como o Dennis não tem peito para matar nem uma galinha, que dirá um homem, a opinião geral é a de que Victor fez tudo sozinho. Entretanto, como essa
idéia melindra os sentimentos do nosso querido Wilfred, estamos todos fingindo que foi acidente. Sinto falta dele, eu gostava do Victor. Ele era praticamente a única
pessoa por aqui com quem eu conseguia conversar. Mas os outros o detestavam. E agora, claro, todos estão com a consciência pesada, se perguntando se por acaso não
o teriam julgado mal. Não há nada como a morte para pôr as coisas em perspectiva. Quer dizer, quando um camarada não pára de falar que a vida não vale a pena ser
vivida, você presume que ele esteja apenas afirmando o óbvio. Mas, quando ele sustenta essa idéia com uma atitude, você começa a achar que ele merecia mais crédito.
O ruído de um carro subindo a trilha poupou Dalgliesh da necessidade de responder. Maggie, que pelo visto tinha ouvidos tão apurados quanto os dele, deu um pulo
da poltrona e correu para fora. Um automóvel grande de passeio aproximava-se da junção dos caminhos.
- Julius - informou ela, à guisa de explicação, começando então uma sinalização espalhafatosa.
O carro parou, depois embicou na direção do bangalô Esperança. Dalgliesh viu então que se tratava de um Mercedes preto. Assim que o carro reduziu a velocidade, Maggie
aproximou-se, igualzinha a uma colegial inconveniente, despejando esclarecimentos pela janela aberta. O carro parou e Julius Court saltou com agilidade.
Era um rapaz alto, de pernas compridas, calça esporte e uma malha verde ao estilo militar, com reforço nos ombros e nos cotovelos. O cabelo claro e curto modelava-lhe
a cabeça como um reluzente capacete de cor desmaiada. Tinha um rosto autoritário, confiante, mas com indícios de excessos nas bolsas bem visíveis debaixo dos olhos
cansados e na ligeira petulância da boca pequena incrustada no queixo forte. Na meia-idade, seria um sujeito pesado, até mesmo corpulento. Porém no momento exibia
uma beleza levemente arrogante, acentuada - mais do que prejudicada - pela cicatriz branca em triângulo, parecida com um símbolo tipográfico, sobre a sobrancelha
direita.
Ele estendeu a mão e disse:
- Pena que tenha perdido o enterro.
A frase foi dita como se Dalgliesh tivesse perdido um trem. Maggie gemeu:
- Meu querido, você não entendeu! Ele não veio para o funeral. Ele nem sabia que o velho tinha batido as botas.
Julius Court olhou para Dalgliesh com um pouco mais de interesse.
- Ah, desculpe. Talvez fosse melhor vir até a vila. Wilfred Anstey poderá lhe contar mais coisas sobre o padre Baddeley do que eu. Eu estava em Londres, em meu apartamento,
quando ele morreu, de modo que não posso oferecer nem mesmo algumas revelações interessantes que tenham sido feitas no leito de morte. Entrem, vocês dois. Estou
com alguns livros aí atrás, que eu trouxe para Henry Carwardine. Aproveito e entrego para ele.
Maggie Hewson parecia estar se achando relapsa por não ter feito uma apresentação formal; e então disse, com um bom atraso:
- Julius Court. Adam Dalgliesh. Acho que vocês não se conhecem de Londres. Julius já foi diplomata, ou é diplomatista que se diz?
Ao que Court respondeu com desembaraço, quando iam entrando no carro:
- Nem uma coisa nem outra. Fiquei num nível bem mais modesto. E Londres é uma cidade muito grande. Mas não se preocupe, Maggie. Como a dama inteligente do programa
de perguntas e respostas da televisão, acho que já sei como Adam Dalgliesh ganha a vida.
Ele segurou a porta do carro para os dois com uma cortesia exagerada. Em seguida o Mercedes avançou devagar rumo à vila Toynton.
II
Deitado na cama estreita da enfermaria, Georgie Allan tentou erguer a cabeça. A boca iniciou um trabalho grotesco. Os músculos da garganta saltaram, muito tesos.
A tentativa foi vã.
- Vou ficar bom para a peregrinação a Lourdes, não vou? Vocês acham que eu vou ser largado para trás?
As palavras saíram num uivo rouco, discordante. Helen Rainer levantou a ponta do colchão, esticou o lençol com todo o cuidado por baixo, ao estilo ortodoxo dos hospitais,
e disse com energia:
- Claro que ninguém vai largar você para trás. Você será o paciente mais importante da peregrinação. Agora pare de se preocupar e tente descansar um pouco, antes
do chá. Seja bonzinho.
E sorriu para ele, com o sorriso impessoal e profissionalmente tranqüilizador da enfermeira treinada. Depois ergueu a sobrancelha para Eric Hewson. Juntos, foram
até a janela. Em voz baixa, ela disse:
- Quanto tempo mais vamos conseguir cuidar dele?
- Mais um mês ou dois - disse Hewson. - Ele ficaria magoadíssimo se o transferíssemos agora. Wilfred também. Daqui a alguns meses, ambos estarão mais preparados
para aceitar o inevitável. Além disso, ele enfiou na cabeça que quer ir a Lourdes. Mas duvido que ainda esteja vivo quando formos para lá da próxima vez. E com toda
a certeza não vai estar mais aqui.
- Mas o caso dele agora é de hospital. Não temos licença para funcionar como clínica. Isto aqui é apenas uma casa para jovens inválidos e portadores de doenças crônicas.
Nosso contrato é com as prefeituras, não com o Serviço Nacional de Saúde. Não temos como oferecer um atendimento completo de enfermagem. E nem podemos. Está na hora
de Wilfred desistir, ou então decidir o que está tentando fazer aqui.
- Eu sei. - E sabia mesmo; ambos sabiam. Esse não era um problema novo. Por que será (Eric pensou com seus botões) que a conversa deles havia se transformado numa
repetição tediosa do óbvio, sempre dominada pelo tom didático e ardido de Helen?
Juntos observavam o pequeno pátio pavimentado, rodeado pelas duas novas alas térreas que abrigavam os quartos e as salas comuns, onde o pequeno grupo de pacientes
restantes se reunira para tomar o último sol do dia, antes do chá. As quatro cadeiras de rodas haviam sido dispostas com critério, a certa distância umas das outras
e de costas para a casa. Os dois observadores viam apenas a nuca dos pacientes, que, imóveis, tinham todos o olhar fixo no promontório: Grace Willison, com seus
cabelos grisalhos sempre mal penteados em polvorosa sob o mais leve vento; Jennie Pegram, o pescoço afundado nos ombros, a cabeleira loira espalhada sobre o dorso
da cadeira, como se num quaradouro; Ursula Hollis com seu cocuruto redondinho sobre um pescoço fino, ereto e estático como uma cabeça degolada espetada num poste;
Henry Carwardine e seu pescoço torto, largado de atravessado feito um boneco quebrado. Mas eram todos bonecos, ali. O dr. Hewson teve uma visão momentânea e insana
de si próprio entrando no pátio e pondo as quatro cabeças para chacoalhar e balançar, a puxar fios invisíveis até que o ar se enchesse de gritos estridentes.
- O que há com eles? - perguntou de repente. - Tem alguma coisa errada aqui.
- Mais que de hábito?
- Mais. Você não notou?
- Talvez estejam sentindo falta de Michael. Sabe Deus por quê. Ele não fazia quase nada. Se Wilfred pretende levar isto aqui adiante, agora já pode dar um destino
mais útil para aquela casa. Aliás, estou pensando em sugerir a ele que me deixe morar no bangalô Esperança. Seria mais fácil para nós.
A idéia deixou o médico atordoado. Então era isso que ela vinha planejando. A depressão costumeira tombou sobre ele, tão física quanto um peso de chumbo. Duas mulheres
objetivas e descontentes, ambas querendo o que ele não podia dar. Tentou disfarçar o pânico da voz.
- Não vai dar certo. Eles precisam de você aqui. E eu não poderia ir visitá-la, não com Millicent na casa ao lado.
- Ela não escuta nada depois que liga a televisão. Todos nós sabemos disso. E tem uma porta nos fundos, caso você precise sair às pressas. É melhor do que nada.
- Mas a Maggie ficaria desconfiada.
- Ela já está. E em algum momento ela vai ter que saber.
- Vamos conversar sobre isso depois. Não é a melhor hora para preocupar Wilfred com isso. Todos nós andamos meio ressabiados desde a morte do Victor.
A morte de Victor. Que masoquismo perverso o teria levado a tocar no nome do rapaz? Isso o fez voltar aos primeiros anos de faculdade, quando tirava com alívio o
curativo de uma ferida supurada, porque a visão de sangue, tecido inflamado e pus era menos assustadora do que aquilo que imaginava haver por baixo da gaze. Bem,
ele acabara se acostumando ao sangue. Acostumara-se à morte. Com o tempo, talvez até se acostumasse a ser médico.
Entraram juntos na pequena sala que funcionava como consultório, na frente do casarão. Eric foi até a pia e pôs-se a esfregar metodicamente mãos e braços, como se
o rápido exame que fizera no jovem Georgie tivesse sido um complicado procedimento cirúrgico a exigir assepsia total. Por trás, instrumentos tilintavam. Helen estava
mais uma vez - e sem a menor necessidade - arrumando o gabinete cirúrgico. Com um peso no coração, ele percebeu que teriam de conversar. Mas não ainda. Não ainda.
E sabia o que ela diria. Já tinha ouvido tudo antes, os velhos argumentos insistentes, ditos naquela voz confiante de boa aluna de escola. “Você está sendo desperdiçado
aqui. Você é médico, não um farmacêutico que só receita remédio. Você tem que se libertar, tem que se libertar da Maggie e do Wilfred. Você não pode colocar sua
lealdade para com Wilfred na frente de sua vocação.” Vocação! Essa era a palavra que a mãe usava. Teve vontade de gargalhar.
Abriu a torneira no máximo e a água jorrou, rodopiando pela pia e enchendo-lhe os ouvidos com sons que lembravam os da preamar. Como teria sido para Victor, aquele
salto rumo ao esquecimento? Teria a cadeira de rodas desengonçada, carregada pelo próprio ímpeto, navegado pelo espaço feito uma daquelas ridículas máquinas voadoras
dos filmes de James Bond, o homenzinho muito seguro na sua engenhoca, pronto para puxar a alavanca e criar asas? Ou teria Victor despencado aos trambolhões pela
face rochosa, preso entre a lona e o metal, todo retorcido, agitando os braços impotentes, somando seus gritos aos das gaivotas? Será que o corpo pesado se livrara
do cinto de lona durante a queda ou teria o tecido agüentado firme até o impacto derradeiro nos rochedos lá embaixo, com ele ainda preso à cadeira quando o incessante
e descuidado oceano arremessou a primeira onda sedenta? E o que teria lhe passado pela cabeça? Exaltação, desespero, terror? Ou um vazio abençoado? Teriam o ar fresco
e o mar varrido a dor, a amargura, o rancor?
Só depois da morte de Victor, vindo à tona a alteração em seu testamento, foi que eles souberam da extensão daquele rancor. O rapaz sempre fizera questão de que
os outros pacientes soubessem que era rico, que pagava na íntegra a mensalidade cobrada pela vila Toynton, por modesta que fosse, e que não dependia, como os demais,
à exceção de Henry Carwardine, da benevolência da municipalidade. Nunca contou a ninguém de onde vinha a fortuna - afinal ele era professor secundário e não se pode
dizer que os professores ganhem bem -, e todos continuavam sem saber. Talvez tivesse dito alguma coisa para Maggie, claro. Havia uma série de coisas que ele podia
ter dito a ela. Mas, sobre esse assunto, ela se mantivera enigmaticamente calada.
Eric Hewson não acreditava que sua mulher houvesse se interessado por Victor apenas pelo dinheiro. Afinal de contas, os dois possuíam algumas coisas em comum. Por
exemplo, nunca fizeram segredo do horror que tinham pela vila Toynton; eles estavam ali por necessidade, não por opção, e sentiam desprezo por todos os demais. Decerto
Maggie simpatizava com o rancor repelente de Victor. Sem dúvida haviam passado um bocado de tempo na companhia um do outro. Wilfred parecia quase inclinado a aceitar
aquela amizade, como se acreditasse que Maggie começava enfim a descobrir seu lugar na comunidade. Algumas vezes ela se prontificara a empurrar a pesada cadeira
de rodas de Victor até o lugar predileto dele. Victor encontrava uma certa paz, diante do mar. Maggie e ele haviam passado horas e horas juntos, longe das vistas
da casa, lá no alto, na beira do precipício. Mas isso não deixara Wilfred preocupado. Sabia, melhor que ninguém, que Maggie jamais amaria um homem que não pudesse
satisfazê-la fisicamente. Ele aceitou bem a amizade dos dois. Ao menos assim ela tinha algo com que ocupar a mente, sem atazanar ninguém.
Não se lembrava de quando, exatamente, Maggie começara a se empolgar com o dinheiro. Victor devia ter lhe contado algo. Quase que da noite para o dia, ela mudara,
se tornara uma mulher bem-disposta, quase alegre, com uma espécie de animação reprimida e febril. De repente, Victor exigiu ser levado a Londres, queria fazer um
exame no hospital St. Saviour e consultar seu advogado. Maggie acabou mencionando qualquer coisa sobre o testamento e isso o contagiou, o levou a sentir parte da
animação da mulher. Agora se perguntava o que ambos estariam esperando. Será que Maggie vira no dinheiro uma libertação apenas da vila Toynton ou dele também? De
um jeito ou de outro, sem dúvida teria sido a salvação dos dois. E a idéia não chegava a ser absurda. Todos sabiam que Victor não tinha nenhum parente, a não ser
uma irmã na Nova Zelândia para quem nunca escrevia. Não, ele pensou, estendendo as mãos para pegar a toalha e começando a enxugá-las, não fora um sonho absurdo;
menos absurdo do que a realidade.
Lembrou-se da volta de Londres: o mundo aquecido e fechado do Mercedes, Julius calado, as mãos pousadas de leve no volante, a estrada como um carretel prateado,
pontilhada de estrelas deslizando sem fim adiante do capô, placas saltando do escuro para fazer desenhos no céu negro-azulado, pequenos animais petrificados, com
o pêlo eriçado, glorificados por uma fração de segundo sob a luz dos faróis, as cercas vivas reduzidas a um dourado pálido. Victor viajara atrás, com Maggie, embrulhado
na capa xadrez, sorridente, sempre sorridente. E uma atmosfera carregada de segredos, ditos e não ditos.
Victor de fato alterara o testamento. Fizera um aditamento nas disposições gerais, que legavam toda a fortuna para a irmã, um testemunho final de seu rancor mesquinho.
Para Grace Willison, um sabonete; para Henry Carwardine, um desinfetante bucal; para Ursula Hollis, um desodorante; para Jennie Pegram, um palito de dente.
Eric achou que Maggie reagira bem à notícia. Na verdade, muito bem - se é que se podia chamar aquela risada exaltada, sonora e descontrolada de reagir bem. Lembrou-se
dela, sacudida pela risada na sala de estar deles, incapaz de refrear a histeria, a cabeça jogada para trás, gargalhando tanto que o riso ecoou ríspido das paredes,
feito um bando de feras cativas, e ressoou pelo promontório, a ponto de ele recear que acabasse sendo ouvido na vila Toynton.
Helen estava parada na janela. Com voz cortante, disse:
- Tem um carro na frente do bangalô Esperança.
Ele foi ter com ela. Juntos, espiaram. Devagar, os olhares se encontraram. Helen pegou a mão dele e a voz saiu suave, como a voz que ele escutara na primeira vez
em que fizeram amor.
- Você não tem nada com que se preocupar, querido. Você sabe disso, não sabe? Absolutamente nada.
III
Ursula Hollis largou o livro, fechou os olhos ao sol da tarde e mergulhou em seu devaneio particular. Fazê-lo nos breves quinze minutos antes do chá era um prazer
imenso, e ela, sempre muito rápida em se sentir culpada com tamanha indisciplina, receou de início que a mágica não fosse funcionar. Em geral, obrigava-se a esperar
até já estar deitada e até que a respiração irritante de Grace Willison, ouvida através da divisória fina, tivesse se aquietado, para só então se permitir pensar
em Steve e no apartamento da rua Bell. O ritual era fruto da força de vontade. Ela permanecia imóvel, mal ousava respirar, porque as imagens, por mais nítidas que
fossem quando evocadas, eram sensíveis, muito fáceis de desmanchar. Porém agora transcorriam lindamente. Concentrou-se, viu as manchas amorfas e os padrões cambiantes
de cor irem se concentrando num retrato tão claro quanto um negativo sendo revelado, depois sintonizou os ouvidos nos sons da casa.
Viu a parede de tijolos da construção em frente, do século XIX, e o sol matutino bater em sua fachada monótona até cada tijolo ser uma entidade distinta, multicolorida,
com um padrão próprio de luz. O apartamentozinho acanhado de dois cômodos em cima da mercearia do sr. Polanski, a rua lá fora, a vida heterogênea e movimentada daqueles
dois quilômetros quadrados de Londres, entre as estações de Edgware Road e Marylebone, tudo isso a absorvia e encantava. Ela estava de volta àquela região, passeando
de novo com Steve pelo mercado da rua Church no sábado de manhã, o dia mais feliz da semana. Viu as mulheres do bairro com seus aventais floridos, de chinelo caseiro
nos pés, alianças pesadas enterradas nos dedos grossos castigados pelo trabalho, os olhos brilhantes nas fisionomias amorfas, fofocando ao lado dos carrinhos de
bebê cheios de roupas usadas à venda; jovens em trajes festivos agachados no meio-fio, atrás de suas barraquinhas de bugigangas; turistas, com demonstrações de alegria
impulsiva ou cautela criteriosa, contando seus dólares ou mostrando seus tesouros bizarros. Sentiu no ar o cheiro de frutas, de flores e especiarias, de corpos suados,
de vinho barato e livros velhos. Viu as mulheres negras com seus traseiros empinados e prosa estridente, desenfreada; ouviu a súbita risada gutural delas quando
se aglomeraram em volta de uma barraca de bananas imensas e mangas do tamanho de uma bola de futebol. Em seu sonho, continuou andando, os dedos enrodilhados de leve
nos de Steve, feito um fantasma passando sem ser visto por caminhos conhecidos.
Os dezoito meses de casamento haviam sido uma época de felicidade intensa, mas precária, porque não houve meio de ela conseguir se convencer de que aquilo estivesse
enraizado na realidade. Foi como se tornar uma outra pessoa. Antes, havia ensinado a si própria como se sentir contente e chamara aquilo de felicidade. Depois, deu-se
conta de que havia um mundo de experiências, sensações, até mesmo de idéias, para o qual nada durante seus primeiros vinte anos de vida num subúrbio de Middlesbrough,
nem nada nos dois anos e meio passados num quarto da ACM de Londres, a preparara. Apenas uma coisa empanava aquilo: o medo que nunca conseguira superar de que estivesse
tudo acontecendo à pessoa errada, de que ela fosse uma impostora em meio à alegria.
Não conseguia imaginar o que nela atraíra tão caprichosamente a atenção de Steve naquela primeira vez, quando ele se aproximara do balcão de informações dos escritórios
da prefeitura para perguntar alguma coisa sobre taxas. Teria sido a única característica nela que sempre considerara muito próxima da deformidade - o fato de ter
um olho azul e o outro castanho? Sem dúvida era uma singularidade que o intrigara e divertira, e que dera a ela, percebia agora, um valor agregado aos olhos dele.
Steve mudara sua aparência, fizera com que deixasse o cabelo crescer até a altura dos ombros, levava para casa saias compridas e espalhafatosas de algodão indiano,
compradas em mercados de rua ou em lojas nas vizinhanças da Edgware. Às vezes, vendo-se refletida em alguma vitrine, tão maravilhosamente transformada, perguntava-se
de novo que estranha predileção o levara a escolhê-la, que possibilidades imperceptíveis aos outros, desconhecidas dela mesma, Steve vira nela. Alguma qualidade
que ela não sabia ter captara a atenção caprichosa de Steve, como um bricabraque exposto numa das barracas da rua Bell. Um objeto qualquer, ignorado pelos transeuntes,
lhe atraía o olho e ele começava a virá-lo de lá para cá na palma da mão, sob a luz, de repente fascinado. Ela sempre tentava reclamar.
- Mas, querido, não é um tanto horroroso?
- Não, de jeito nenhum. É divertido. E o Mogg vai adorar. Vamos comprar para dar a ele.
Mogg, o grande amigo de Steve - talvez até o único, como às vezes ela chegava a desconfiar -, fora batizado como Morgan Evans, mas preferia o apelido, considerando-o
mais adequado a um poeta da luta popular. Não que ele, Mogg, lutasse com muito empenho; na verdade, Ursula nunca conheceu ninguém que bebesse e comesse com tanta
sanha à custa dos outros. Os gritos confusos de batalha, que pediam anarquia e ódio, eram entoados nos pubs locais, onde seguidores cabeludos de olhares tristonhos
escutavam em silêncio e, de vez em quando, batiam os canecos de cerveja na mesa com grunhidos de aprovação. A prosa de Mogg, porém, era mais compreensível. Ela tinha
lido a carta dele uma única vez, antes de devolvê-la ao bolso do jeans de Steve, mas lembrava-se de cada palavra. Às vezes se perguntava se a intenção de Steve fora
que ela a encontrasse, se teria sido um acaso ele não ter limpado os bolsos da calça naquele dia, justamente o dia em que ela levava as roupas sujas para a lavanderia
automática. Fazia três semanas que o hospital lhe dera o diagnóstico.
“Eu diria eu avisei, só que esta é a minha semana de abstinência dos chavões. Profetizei um desastre, mas não o desastre total. Meu pobre Steve, que mancada! Mas
será que não dá para pedir o divórcio? Ela já devia ter algum sintoma, antes de vocês se casarem. A pessoa pode - ou pelo menos podia - obter o divórcio por doença
venérea existente à época do casamento, e o que é uma gonorréia diante de uma coisa dessas? Me espanta a irresponsabilidade do chamado sistema em relação ao casamento.
Eles vivem alardeando sua santidade, dizendo que é preciso protegê-lo para proteger os alicerces da sociedade, e depois deixam o camarada arranjar uma mulher com
menos exames físicos do que exigiriam de um carro usado. Seja como for, você sabe que precisa se livrar dessa, não sabe? Você vai se ferrar, se não pular fora. E
cuide para não se refugiar na covardia da compaixão. Será que você consegue mesmo se ver empurrando uma cadeira de rodas e limpando o traseiro dela? Sim, sei que
alguns homens fazem isso. Mas você nunca foi muito chegado em masoquismo, certo? Além do mais, os maridos que conseguem fazer isso conhecem alguma coisa de amor,
e mesmo você, meu caro Steve, não ousaria reivindicar tal conhecimento. Por falar nisso, ela não é católica? Como vocês se casaram num cartório, duvido que ela se
considere casada de fato. Essa poderia ser uma saída para você. Bom, de todo modo, a gente se vê no Paviours Arms, na quarta às oito da noite. Vou comemorar sua
desgraça com um novo poema e um caneco de cerveja.”
Na verdade ela nunca quis que ele empurrasse sua cadeira de rodas. Nunca quis que ele fizesse nem o mais simples, o menos íntimo, dos serviços para ela. Aprendera
muito cedo, no casamento, que qualquer doença, mesmo resfriados e indisposições passageiras, o deixava enojado, com medo. Mas nutrira a esperança de que a doença
progredisse devagar, de que pudesse continuar se virando pelo menos por mais alguns anos preciosos. Planejara como tornar isso possível. Ela se levantaria bem cedo
todos os dias, de modo que Steve não precisaria se melindrar com sua vagareza e falta de jeito. Poderia arrastar a mobília alguns poucos centímetros - ele com toda
a certeza nem notaria - para lhe fornecer apoios discretos, assim não precisaria recorrer ainda por um bom tempo a bengalas e muletas. Talvez pudessem arranjar um
apartamento mais fácil para ela, alguma coisa no térreo. Se houvesse uma rampa na porta da frente, daria para sair durante o dia, fazer as compras. E ainda teriam
as noites para si. Seguramente nada seria capaz de mudar isso.
Muito depressa, porém, percebeu que a doença, em seu avanço inexorável pelos nervos, igual a um predador, espalhava-se num ritmo próprio, sem nada a ver com o seu.
Os planos que havia feito, rígida ao lado dele na cama larga, a uma distância segura, esforçando-se para que nenhum espasmo o perturbasse, foram ficando cada vez
mais irreais. Vendo tais esforços patéticos, ele até tentara mostrar consideração e bondade. Não a censurara, mas se afastara; não condenara a fraqueza crescente,
mas demonstrara a própria falta de força. Nos pesadelos, Ursula Hollis se afogava: debatendo-se e sufocando num mar sem fim, ela se agarrava a um galho qualquer
e afundava junto com aquele pedaço esponjoso e podre de madeira nas mãos. Não sem uma certa morbidez, sentiu que estava adquirindo aquele arzinho pidonho, atoleimado
e patético dos inválidos. Era difícil ser natural com ele, mais difícil ainda conversar. No começo, antes que a doença se manifestasse, ele costumava deitar de comprido
no sofá, enquanto ela lia ou costurava, e ficar olhando aquela opção e criação sua, memorável dentro das roupas que ele escolhera para vesti-la. Aos poucos, foi
ficando com medo até de que os olhares se encontrassem.
Lembrava-se de como ele lhe dera a notícia de que havia conversado com a assistente social do hospital e que talvez em breve houvesse uma vaga na vila Toynton.
- Fica de frente para o mar, querida. Você sempre gostou do mar. Além disso, é uma comunidade bem pequena, não uma daquelas instituições enormes, impessoais. O camarada
que dirige a casa é muito bem conceituado e basicamente é uma fundação religiosa. Anstey, esse é o nome dele, não é católico, mas eles vão a Lourdes quase todo ano.
Isso vai ser bom para você. Quero dizer, você sempre se interessou por religião. Um dos assuntos sobre os quais nunca chegamos a concordar. Eu talvez não tenha sido
tão compreensivo quanto deveria a respeito de suas necessidades.
Agora ele já podia se mostrar complacente com aquela antiga birra. Esquecera-se de que fora ele quem a ensinara a passar sem Deus. A religião havia sido uma das
muitas posses que Steve lhe tirara com o maior descaso, sem compreendê-las ou valorizá-las. A verdade é que, no fundo, aqueles consolos substitutos para o sexo e
o amor nunca haviam sido importantes para ela. Não iria fingir agora que fora espinhoso abrir mão daquelas ilusões confortantes ensinadas na escola primária São
Mateus e assimiladas entre as cortinas de tergal da sala da tia, na casa de Alma Terrace, em Middlesbrough, cheia de imagens sacras, a fotografia do Papa João XXIII
e a bênção papal do casamento dos tios, emoldurada e pregada na parede. Tudo fazia parte de uma infância órfã, tranqüila, não de todo infeliz e tão distante quanto
uma praia estrangeira visitada em tempos remotos. Não dava mais para voltar porque ela não sabia que caminho tornar.
Por fim começou a apreciar a idéia da vila Toynton como um refúgio. Imaginava-se em meio a um grupo de pacientes sentados ao sol, olhando o mar; o mar, em constante
mutação mas eterno, revigorante porém assustador, dizendo-lhe naquele seu ritmo incessante que nada importa de fato, que a miséria humana é irrelevante, que tudo
passa com o tempo. E, afinal de contas, não seria uma solução permanente. Steve, com a ajuda do departamento de assistência social da prefeitura, planejava se mudar
para um apartamento novo e mais adequado; aquela seria apenas uma separação temporária.
Mas já durava oito meses; oito meses durante os quais fora cada vez mais infeliz. Tentara disfarçar, já que a infelicidade, na vila Toynton, era um pecado aos olhos
do Espírito Santo e de Wilfred. E, durante a maior parte do tempo, acreditava conseguir. Não havia muita coisa em comum entre ela e os demais pacientes. Grace Willison,
sem graça, de meia-idade, uma devota. Georgie Allan, de dezoito anos, de uma estridência vulgar; foi um alívio quando ele não conseguiu mais sair da cama. Henry
Carwardine, indiferente, sarcástico, tratando-a como se ela fosse uma escriturária principiante. Jennie Pegram, sempre preocupada com o cabelo, ostentando aquele
sorriso besta e misterioso na cara. E Victor Holroyd, o tenebroso Victor, que a odiara tanto quanto odiara todo mundo da vila Toynton. Victor, que não via nenhuma
virtude em ocultar a infelicidade, que a todo momento declarava que, se as pessoas queriam se dedicar à caridade, seria melhor que tivessem alguém a quem dedicá-la.
Sempre tomara como líquido e certo que o autor da carta anônima tinha sido ele. A seu modo, fora uma carta tão traumatizante quanto a que Mogg escrevera. Apalpou-a,
então, enterrada num bolso lateral da saia. Continuava ali, o papel barato amolecido de tanto manuseio. Entretanto não precisaria relê-la. Decorara tudo, inclusive
o primeiro parágrafo. Tinha lido uma vez só, depois dobrara o papel por cima, para que as palavras ficassem escondidas. Só de pensar nelas, o rosto queimava de vergonha.
Como é que ele - só podia ser um homem - soube que ela e Steve tinham feito amor, que tinham executado aqueles determinados atos e daquela maneira? Como é que alguém
poderia saber? Teria ela, talvez, falado enquanto dormia, gemido suas necessidades e seu desejo? Mas, se fosse assim, apenas Grace Willison teria condições de ouvir
do quarto pegado, e como ela poderia entender o que significava?
Recordava ter lido em algum lugar que cartas obscenas são em geral escritas por mulheres, sobretudo solteironas. Talvez no fim das contas não tivesse sido Victor
Holroyd. Grace Willison, enfadonha, reprimida, a tão devota Grace. Mas como poderia ter adivinhado o que Ursula nunca admitira nem para si mesma?
“Você já devia saber que estava doente quando se casou com ele. O que me diz daquelas tremedeiras, da fraqueza nas pernas, da dificuldade em se levantar de manhã?
Você já sabia, não sabia? Você o enganou. Não é à toa que ele escreve tão pouco, que nunca vem visitá-la. Ele não está morando sozinho, mas acho que já foi informada
disso. Você não esperava que ele fosse permanecer fiel, não é mesmo?”
E nesse ponto a carta parecia se interromper. Por algum motivo, ela pressentia que seu autor não chegara de fato a terminar, que havia um fecho mais dramático e
revelador deixado para o fim. Mas talvez ele, ou ela, tivesse sido interrompido; alguém poderia ter entrado de repente no escritório. O bilhete fora datilografado
em papel da vila Toynton, barato e absorvente, na velha máquina Remington. Quase todos os pacientes e funcionários se utilizavam dela de vez em quando. Tinha a impressão
de se lembrar de quase todos fazendo uso da Remington em algum momento. Claro que a máquina pertencia de fato a Grace; era reconhecida como sendo sobretudo dela;
era naquela máquina que batia os estênceis para o boletim trimestral, quase sempre sozinha no escritório, na hora em que os outros pacientes já consideravam findo
seu dia de trabalho. E não seria nem um pouco difícil garantir que a carta chegasse ao destinatário certo.
Colocá-la num livro da biblioteca era o jeito mais seguro. Cada um sabia o que o outro estava lendo, e como não saber? Os livros ficavam em cima das mesas, sobre
as cadeiras, era fácil o acesso a qualquer pessoa. Todos os funcionários e pacientes deviam ter conhecimento de que ela estava lendo o último livro de Iris Murdoch.
E, curiosamente, a carta anônima fora colocada bem na página em que ela estava.
De início tivera certeza absoluta de que era apenas mais um exemplo da capacidade de Victor de humilhar e magoar. Só depois da morte dele começaram as dúvidas, só
então ela passou a lançar olhares furtivos para os companheiros, a se perguntar e a temer. Mas claro que era uma bobagem. Atormentava-se à toa. Devia ter sido obra
de Victor, e, se tivesse sido ele, então não haveria mais cartas. Mas como, mesmo ele, poderia ter descoberto sobre ela e Steve, exceto pelo fato de que Victor parecia
ter o dom misterioso de saber das coisas? Lembrava-se da ocasião em que ela e Grace Willison estavam sentadas junto com ele, no pátio dos pacientes. Grace, erguendo
o rosto para o sol, com aquele sorriso brando e idiota, se pusera a falar de como estava feliz com a próxima peregrinação a Lourdes. Victor interrompera com ironia:
- Você está alegre porque está eufórica. É uma característica da doença. Pessoas com o mal de Dejerine Sottas sempre sentem essa felicidade e esperança despropositada.
Leia os compêndios. É um sintoma muito conhecido. Não se trata de nenhuma virtude de sua parte e irrita profundamente qualquer um.
Recordava-se da voz de Grace, trêmula de mágoa.
- Eu não disse que minha felicidade era uma virtude. Mas, mesmo que seja apenas um sintoma, ainda assim posso agradecer por senti-la; é uma espécie de graça.
- Contanto que não espere que a gente lhe faça coro, sinta-se à vontade, agradeça quanto quiser. Agradeça a Deus por não ter a menor utilidade nem para si mesma
nem para ninguém mais. E, quando estiver falando com Ele, não se esqueça de agradecer por outras bênçãos de Sua criação. Pelos milhões que labutam para arrancar
o sustento de uma terra flagelada por enchentes, esturricada pela seca. Pelas crianças de barriga inchada. Pelos prisioneiros torturados. Por toda esse inferno sem
sentido, maldito e malfadado.
Grace Willison protestara em silêncio, sentindo o ardor inicial das lágrimas.
- Mas, Victor, como é que você pode dizer uma coisa dessas? A vida não se resume apenas a sofrimento. Você não acredita de fato que Deus não se importa. Venha conosco
a Lourdes.
- Claro que vou. É minha única chance de escapar da chatice desta penitenciária maluca. Eu gosto de movimento, gosto de viajar, gosto do sol brilhando sobre os Pireneus,
gosto da cor. Chego até a gostar daquele comércio descarado, de ver milhares de semelhantes muito mais iludidos que eu.
- Mas que blasfêmia!
- É? Pois saiba que gosto disso também.
- Se ao menos você desse uma palavrinha com o padre Baddeley, Victor - Grace insistiu. - Tenho certeza de que ele o ajudaria. Ou quem sabe com Wilfred. Por que não
conversa com Wilfred?
Victor caíra numa risada trovejante, sarcástica mas curiosa e assustadoramente pontuada de sinceridade.
- Conversar com o Wilfred! Meu Deus, eu poderia contar umas coisinhas sobre nosso santo Wilfred que fariam você rir muito, e um dia desses, se ele me irritar demais,
acabo contando. Conversar com o Wilfred!
Era como se ainda ouvisse os ecos daquele riso. “Eu poderia contar umas coisinhas sobre Wilfred.” Só que não contara e agora não podia mais contar. Refletiu sobre
a morte de Victor. Que impulso o levara a fazer o gesto final contra o destino naquela tarde em especial? Porque só podia ter sido um impulso: quarta-feira não era
o dia em que costumava dar seu passeio e Dennis não queria sair com ele. Ela se lembrava bem da cena no pátio. Victor, importuno, insistente, exerceu todo seu poder
de persuasão para conseguir o que queria. Dennis, rubro de raiva, enfezado, uma criança recalcitrante, acabou cedendo, mas de má vontade. E assim foi que saíram
juntos para o derradeiro passeio e ela nunca mais viu Victor. Em que ele estaria pensando quando soltou o breque e se atirou, com cadeira e tudo, rumo ao extermínio?
Devia ter sido um impulso de momento. Ninguém em sã consciência optaria por uma morte tão espetacularmente horrenda, quando havia outros meios mais brandos à disposição.
E sem dúvida havia meios mais brandos. Às vezes se pegava pensando nas duas mortes mais recentes, a de Victor e a do padre Baddeley. O padre, tão delicado, tão ineficiente,
se fora como se nunca tivesse existido; quase ninguém mais mencionava seu nome. Mas Victor não; era como se continuasse por perto, assombrando a vila. Devia ser
aquele seu espírito amargo e difícil, pairando no ar. Havia momentos, sobretudo ao entardecer, em que ela nem ousava virar a cabeça na direção das cadeiras em volta,
com medo de ver, não o ocupante de praxe, e sim a figura sinistra de Victor, embrulhado naquela capa xadrez pesada, o rosto moreno sempre com um sorriso sardônico
pregado nos lábios, quase um esgar. De repente, apesar do calor do sol da tarde, Ursula estremeceu. Soltou o breque da cadeira, fez a manobra e empurrou-a de volta
à casa.
IV
A porta principal da vila Toynton estava aberta e Julius Court foi entrando. O saguão era um amplo quadrado de pé direito alto, de painéis de carvalho nas paredes
e assoalho xadrez de mármore branco e preto. A casa estava um forno. Foi como passar por uma cortina invisível de ar quente. Pairava um cheiro estranho no ar; não
era o bafo institucional costumeiro, uma mistura de corpos, comida, lustra-móveis e anti-sépticos, mas um aroma mais doce e até exótico, como se alguém tivesse queimado
incenso por ali. A luminosidade era tão pobre quanto a de uma igreja - sensação reforçada pelos dois vitrais pré-rafaelitas nas janelas da frente, um de cada lado
da porta principal. À esquerda, via-se a expulsão do Paraíso; à direita, o sacrifício de Isaac. Dalgliesh se perguntou que fantasia aberrante teria concebido aquele
anjo afeminado com cachos dourados debaixo do elmo de plumas, ou aquela espada enfeitada de pastilhas viscosas em tons de rubi, laranja e azul, com a qual barrava
sem muita convicção o acesso dos dois delinqüentes a um Éden repleto de macieiras. Tanto Adão quanto Eva - as carnes rosadas entremeadas de modo casto, porém implausível,
por ramos de louro - exibiam uma expressão que era ao mesmo tempo de espiritualidade espúria e de remorso petulante. À direita, o mesmo ordenança metamorfoseado
em anjo precipitava-se para o corpo amarrado de Isaac, enquanto da moita ao lado um carneiro muito lanudo a tudo observava com uma expressão compreensivelmente receosa.
Havia três cadeiras no saguão, criações bastardas de madeira pintada, estofadas com vinil, todas elas deformidades, uma com um assento muito alto, duas bem mais
baixas que o normal. Uma cadeira de rodas dobrável descansava junto à parede oposta, e um corrimão de madeira na altura da cintura corria ao longo do painel. À direita,
uma porta aberta mostrava parte do que devia ser um escritório ou vestiário. Dalgliesh conseguiu ver a dobra de uma capa xadrez pendurada na parede, um painel de
chaves e a quina de uma escrivaninha robusta. À esquerda da porta havia uma mesinha de madeira trabalhada, com uma bandeja de bronze para cartas, e, sobre ela, um
enorme sino de alarme de incêndio.
Julius continuou na frente, atravessou uma porta traseira e entrou num vestíbulo central, do qual saía uma escadaria toda entalhada, com parte do corrimão serrado
para acomodar a gaiola de metal de um elevador moderno. Chegaram a uma terceira porta. Julius abriu-a com dramaticidade e anunciou:
- Visita para os mortos. Adam Dalgliesh.
Entraram juntos, os três. Dalgliesh, flanqueado por seus dois padrinhos, teve a sensação, desconhecida até aquele momento, de estar sendo escoltado. Depois da penumbra
do saguão de entrada e do vestíbulo, a sala de jantar parecia tão clara que ele foi obrigado a piscar. As janelas altas, divididas em vários caixilhos pequenos ao
estilo gótico, não permitiam a entrada de muita luz, mas a sala contava com dois tubos fluorescentes pendurados de forma incongruente na moldura do teto. Era dali
que vinha o brilho que ardia na vista. De início as imagens se fundiram, em seguida se separaram, e então ele pôde ver com clareza os moradores da vila Toynton agrupados
em torno da mesa de carvalho do refeitório como se fossem um quadro vivo.
Sua chegada pelo visto provocara um silêncio aturdido. Havia quatro pessoas em cadeiras de rodas, uma delas um homem. As duas outras mulheres eram sem sombra de
dúvida funcionárias da casa. Uma estava vestida como enfermeira, só faltava o símbolo máximo da profissão: a touca. A outra, uma mulher mais jovem, loira, usava
calça preta e bata branca, mas conseguia, apesar do uniforme pouco ortodoxo, transmitir de pronto a impressão de uma competência um tanto assustadora. Os três homens
sadios vestiam todos um hábito marrom-escuro de monge. Depois de um segundo de pausa, uma figura na cabeceira da mesa se levantou e aproximou-se com lerdeza cerimonial,
de mãos estendidas.
- Seja bem-vindo à vila Toynton, Adam Dalgliesh. Sou Wilfred Anstey.
A primeira coisa que ocorreu a Dalgliesh é que ele parecia um figurante bem ensaiado fazendo com convicção sua ponta de bispo asceta. A veste castanha de monge lhe
caía tão bem que seria impossível imaginá-lo com qualquer outra roupa. Era um homem alto, muito magro, e os pulsos dos quais as mangas fartas escorregavam eram escuros
e quebradiços como gravetos de outono. O cabelo grisalho mas abundante fora cortado muito curto, mostrando a curva juvenil do crânio. Por baixo, havia um rosto comprido
e seco, mosqueado de marrom, como se o bronzeado estivesse clareando de modo desigual; duas manchas brancas brilhantes na têmpora esquerda sugeriam alguma doença
de pele. Era difícil calcular sua idade; uns cinqüenta anos, talvez. O olhar curioso e ao mesmo tempo suave, com a insinuação de sofrimentos alheios suportados com
humildade, era um olhar jovem, a íris azul muito limpa, o branco opaco feito leite. Ele sorriu, um sorriso singularmente doce e enviesado, na mesma hora arruinado
por dentes irregulares e amarelados. Dalgliesh não sabia explicar por quê, mas quase todo filantropo que conhecia tinha aversão por dentista.
Estendeu a mão e sentiu-a aprisionada pelas duas palmas de Anstey. Foi preciso certo esforço para não recuar do encontro viscoso com a carne úmida.
- Eu esperava passar alguns dias com o padre Baddeley. Éramos amigos de velha data. Eu não sabia que ele estava morto.
- Morto e cremado. Suas cinzas foram enterradas na quarta-feira passada no cemitério da igreja de São Miguel, em Toynton. Sabíamos que ele gostaria de descansar
em território santificado. Não anunciamos a morte dele nos jornais porque não fazíamos idéia de que tinha amigos.
- Exceto nós. - A correção suave mas firme partira de uma das pacientes. Era mais velha que os demais, de cabelos grisalhos, e angulosa feito uma boneca de pau.
De sua cadeira, olhava para Dalgliesh com olhos bondosos e interessados.
Wilfred Anstey corrigiu-se:
- Mas é claro. Exceto nós. Grace era, acho eu, mais próxima de Michael do que qualquer um aqui e esteve com ele na noite em que morreu.
- Ele morreu sozinho, pelo que me disse a senhora Hewson - Dalgliesh interveio.
- Infelizmente. Mas ao fim e ao cabo, todos morremos sozinhos. O senhor nos fará companhia para o chá, espero. Você também, Julius, e você, Maggie, claro. O senhor
disse que esperava passar uns dias com Michael? Então faço questão que passe a noite aqui conosco.
Virando-se para a enfermeira, acrescentou:
- O quarto do Victor, eu acho, Dot. Depois do chá, você poderia prepará-lo para nosso hóspede.
- É muita bondade sua, mas não quero atrapalhar. Haveria algum problema se eu, depois desta noite, passasse alguns dias no bangalô que ele ocupava? Segundo me disse
a senhora Hewson, o padre Baddeley deixou a biblioteca dele para mim. Ajudaria bastante se eu pudesse organizar e empacotar os livros enquanto estou aqui.
Era imaginação sua ou a sugestão não havia sido muito bem recebida? Anstey entretanto hesitou um segundo apenas, antes de responder.
- É claro, se o senhor prefere assim. Mas, antes, deixe-me apresentá-lo à família.
Seguindo as indicações de Anstey, Dalgliesh passou pelo arremedo formal dos cumprimentos. Sucessivas mãos - secas, frias, úmidas, inseguras ou firmes - apertaram
a dele. Grace Willison, a solteirona de meia-idade, era um estudo em cinza: pele, cabelo, vestido, meias, tudo um tanto encardido, dando a impressão de uma boneca
antiquada, de juntas rígidas, esquecida tempo demais num armário empoeirado. Ursula Hollis, uma moça alta, com o rosto cheio de espinhas, vestida com uma saia longa
de algodão indiano, lhe ofereceu um sorriso hesitante e um aperto de mão muito rápido, relutante. A mão esquerda continuara molemente pousada no colo, como se esgotada
pelo peso da grossa aliança. O comandante notou alguma coisa esquisita nela, mas já passara para as apresentações seguintes quando se deu conta de que ela tinha
um olho azul, o outro castanho. Jennie Pegram, a paciente mais jovem do grupo, mas com toda a certeza mais velha do que aparentava, tinha um rosto lívido, anguloso,
e um olhar doce de lêmure. O pescoço era tão curto que ela parecia estar toda encurvada na cadeira de rodas. Uma cabeleira cor de milho, repartida ao meio, caía
qual uma cortina plissada em volta do corpo atrofiado. Encolheu-se toda cheia de censura a seu toque, deu-lhe um sorriso doentio e sussurrou um “olá” engolido junto
com uma arfada de ar. Henry Carwardine tinha um rosto bonito, autoritário, mas marcado por linhas fundas de tensão, um nariz aquilino e uma boca larga. A doença
girara a cabeça para um lado - o moço lembrava uma ave de rapina. Ele não deu maior importância à mão estendida de Dalgliesh, mas disse um “muito prazer” com tamanho
desinteresse que o cumprimento beirou a descortesia. Dorothy Moxon, a enfermeira-chefe, era uma figura sombria, robusta, com um olhar melancólico por baixo da franja
escura. Helen Rainer tinha uns olhos verdes enormes, levemente saltados, sob pálpebras tão tênues quanto a casca de uma uva, e um corpo bem torneado que nem mesmo
a bata larga conseguia esconder de todo. Dalgliesh pensou com seus botões que, não fossem as bochechas irregulares e caídas de marsupial, até que seria atraente.
Ela apertou com toda a firmeza a mão do comandante e deu-lhe uma olhada ameaçadora, como se estivesse recebendo um novo paciente de quem esperava muitos problemas.
O dr. Eric Hewson era um homem claro, bem-apessoado, com um semblante juvenil, vulnerável, e olhos cor de barro franjados por cílios extraordinariamente longos.
Dennis Lerner tinha um rosto magro, um tanto fraco, olhos que piscavam de forma nervosa por trás dos óculos de aro de metal, e um aperto de mão úmido. Durante a
apresentação, Anstey acrescentou, quase como se achasse que Lerner exigia mais explicações, que o rapaz era enfermeiro auxiliar.
- Os dois outros membros da família, Albert Philby, nosso faz-tudo, e minha irmã Millicent Hammitt, o senhor conhecerá mais tarde, espero. E claro que não posso
me esquecer de Jeoffrey. - Como se tivesse escutado seu nome, um gato, que dormia no parapeito de uma janela, desenrolou-se, pulou gravemente para o chão e foi ter
com eles, de rabo ereto. Anstey explicou:
- Ele tem o mesmo nome do gato de Christopher Smart. Imagino que se lembre do poema.
Porquanto hei de respeitar meu gato Jeoffrey.
Porquanto ele serve ao Deus vivo e o serve bem, todos
[os dias,
Porquanto, ao poder das trevas, contrapõe a
[eletricidade dos pêlos e o lume dos olhos,
Porquanto ao Demônio, que é a morte, contrapõe-se
[passando trêfego pela vida.
Dalgliesh disse que conhecia o poema. Se quisesse, poderia ter acrescentado que, se a intenção de Anstey fora atribuir papel tão hierático àquele gato, tivera um
azar danado com a escolha do filhote. Jeoffrey era um gatão gordo, com uma cauda espessa de raposa e toda a pinta de não estar se dedicando tanto ao serviço do criador
divino quanto às satisfações de desejos mais felinos. O animal lançou para Anstey um olhar enfezado que misturava mágoas antigas à aversão perene e saltou com leveza
e precisão para o colo de Carwardine, onde foi mal recebido. Satisfeito com a óbvia relutância de Carwardine em acolhê-lo, acomodou-se com muitos ronrons e apalpadas,
fechou os olhos e voltou a dormir.
Julius Court e Maggie Hewson haviam se instalado na outra ponta da mesa comprida. De repente, Julius interrompeu a conversa:
- Cuidado com o que vocês dizem ao nosso visitante, porque qualquer coisa poderá ser usada como prova. Ele prefere viajar incógnito, mas na verdade estamos diante
do comandante Adam Dalgliesh, da Scotland Yard. O trabalho dele é pegar criminosos.
A xícara de Henry Carwardine tilintou no pires. O rapaz bem que tentou estabilizá-la com a mão esquerda. Ninguém se voltou para ele. Jennie Pegram arfou receosa,
em seguida olhou com complacência em volta da mesa, como se tivesse feito algo inteligente. Helen Rainer revidou com aspereza:
- Como é que você sabe?
- Eu vivo no mundo, meus caros, e de vez em quando leio jornal. Houve um caso muito comentado, no ano passado, que valeu ao comandante uma certa notoriedade pública.
Virando-se para Dalgliesh, acrescentou:
- Henry irá tomar um vinho comigo, após o jantar, e ouvir um pouco de música. Talvez queira nos fazer companhia. Assim poderá empurrar a cadeira de rodas. Wilfred
não se incomoda, tenho certeza.
O convite não fora dos mais educados, excluindo todos os presentes e reivindicando de forma um tanto peremptória a posse do recém-chegado sem nada além de uma ligeira
menção ao anfitrião. Mas pelo visto ninguém se incomodou. Talvez os dois estivessem habituados a tomar um drinque ou outro, quando Court estava em Toynton. Afinal
de contas, não havia razão para que todos os pacientes tivessem de dividir os amigos uns dos outros, nem para que esses amigos se sentissem forçados a fazer convites
generalizados. Além disso, Dalgliesh obviamente fora convidado para servir de escolta. Aceitou com um muito obrigado sucinto e sentou-se, entre Ursula Hollis e Henry
Carwardine.
Era um chá simples, típico de colégio interno. Sobre a mesa escalavrada e sem toalha, com marcas de queimado no tampo de carvalho, havia dois grandes bules marrons
a cargo de Dorothy Moxon, dois pratos de pão integral cortado em fatias grossas untadas de leve com o que Dalgliesh suspeitava fosse margarina, um pote de mel, um
de Marmite e uma travessa de bolo feito em casa, salpicado com passas pretas. Havia também uma terrina cheia de maçãs. Pareciam ter sido colhidas do chão. Todos
tomavam chá em canecos marrons de cerâmica. Helen Rainer foi até um armário sob a janela e pegou três canecos iguais, com os respectivos pratinhos, para as visitas.
A situação era estranha. Carwardine não tomou conhecimento do convidado, a não ser na hora de lhe passar o prato de pão com manteiga, e Dalgliesh de início não fez
muitos progressos com Ursula Hollis. O rosto pálido e intenso ficou o tempo inteiro voltado para ele, os dois olhos discordantes buscando os seus. Sentiu-se desconfortável,
como se ela estivesse exigindo algo dele, desesperada para provocar uma reação de interesse, até mesmo de afeto, que Dalgliesh não poderia sentir nem tinha competência
para dar. Mas, por uma feliz coincidência, mencionou Londres. O rosto da moça se iluminou e ela lhe perguntou se conhecia Marylebone, o mercado da rua Bell. Dalgliesh
viu-se envolvido numa discussão animada, quase obsessiva, sobre os mercados de rua londrinos. Ursula voltou à vida, ficou quase bonita e, curiosamente, aquilo lhe
trouxe algum conforto.
De repente, Jennie Pegram debruçou-se por sobre a mesa e disse com um muxoxo de falsa repugnância:
- Trabalho engraçado, esse, de pegar os criminosos e mandá-los para a forca. Não entendo como os senhores podem gostar.
- Não gostamos, e hoje em dia eles não vão mais para a forca.
- Bom, são encarcerados pelo resto da vida, então. O que eu acho ainda pior. E aposto como alguns dos que o senhor prendeu quando era mais jovem foram enforcados.
Dalgliesh detectou o brilho de antegozo quase lascivo nos olhos da interlocutora. O que aliás não era nenhuma novidade para ele. Em voz baixa, disse:
- Cinco. O curioso é que as pessoas sempre se interessam por esses cinco.
Anstey abriu seu sorriso suave e falou como alguém decidido a ser justo.
- Mas não é só uma questão de punição, Jennie. Há também o fator dissuasório, a necessidade de deixar claro o horror da sociedade diante dos crimes violentos, a
esperança de reformar e reabilitar o criminoso. E, claro, a grande importância de tentar garantir que o ato não se repita.
Wilfred fez Dalgliesh se lembrar de um professor de quem não gostava nem um pouco e que, sempre com um arzinho muito superior, considerava parte crucial de seu trabalho
iniciar discussões francas e permitir a expressão de opiniões até certo ponto liberais entre os alunos, desde que todos voltassem, dentro do tempo regulamentar,
a se convencer da exatidão das opiniões defendidas por ele próprio. Mas a verdade é que naquele momento Dalgliesh não se sentia nem obrigado nem disposto a cooperar.
Interrompeu a resposta simplória de Jennie, que dizia:
- Bem, eles não podem repetir o ato se foram enforcados, não é mesmo?
- Sei que esse assunto é de extrema relevância e interesse. Mas me desculpem se eu não o considero assim tão fascinante. Estou de férias, na verdade convalescendo
e tentando esquecer o trabalho.
- Esteve doente? - Carwardine, com a cautela deliberada de uma criança insegura, estendeu o braço e se serviu de mel. - Espero que sua vinda até aqui não tenha sido,
mesmo que por influência do subconsciente, em seu próprio benefício. O senhor não estaria procurando uma vaga, não é mesmo? Não está sofrendo de nenhuma doença degenerativa
incurável, está?
Anstey interveio:
- Todos sofremos de uma doença degenerativa incurável. Nós a chamamos de vida.
Carwardine abriu um sorrisinho apertado de congratulação a si mesmo, como se tivesse marcado pontos num jogo particular. Dalgliesh, que começava a se imaginar participando
de um chá do Chapeleiro Maluco, não saberia dizer se o comentário fora de uma profundidade meio espúria ou apenas tolice. Mas tinha certeza de que Anstey já o fizera
outras vezes. Houve um silêncio breve, constrangido; em seguida Anstey disse:
- Michael não nos comunicou que estava esperando o senhor. - E deu um jeito para que a frase soasse como uma censura, ainda que branda.
- Talvez ele não tenha recebido meu recado. Deveria ter chegado na manhã do dia em que ele morreu. Não encontrei nada na escrivaninha.
Anstey descascava uma maçã, e a pele da fruta ia se retorcendo por cima dos dedos magros. Os olhos não se desviaram da tarefa quando disse:
- Ele foi trazido de volta pelo serviço de ambulância. Eu não pude ir buscá-lo aquele dia. Pelo que soube, a ambulância parou na caixa postal para recolher a correspondência,
provavelmente a pedido de Michael. Mais tarde ele me entregou uma carta, e outra para a minha irmã, de modo que deve ter recebido seu recado. Só que não encontrei
nenhum cartão quando vasculhei a escrivaninha atrás de um testamento ou instrução por escrito que ele pudesse ter deixado. Isso foi na manhã seguinte à morte dele,
logo cedo. Claro que pode ter passado despercebido.
Dalgliesh respondeu com afabilidade:
- Se assim fosse, ainda estaria lá. Imagino que o padre Baddeley jogou fora. Pena que o senhor tenha precisado arrombar a escrivaninha.
- Arrombar? - A voz de Anstey não deixou transparecer nada, exceto uma indagação educada e despreocupada.
- A fechadura foi forçada.
- Ora vejam. Imagino que Michael perdeu a chave e foi forçado a tomar medidas extremas. Perdão pelo trocadilho. Encontrei a escrivaninha aberta quando fui procurar
a papelada. Nem me passou pela cabeça examinar a fechadura. Isso é relevante?
- A senhorita Willison pode achar que sim. Pelo que entendi, a escrivaninha é dela, agora.
- Uma fechadura quebrada reduz, claro, o preço da peça. Mas o senhor há de ver que damos muito pouco valor às posses materiais, aqui na vila Toynton.
Sorrindo de novo, descartou a frivolidade e virou para Dorothy Moxon. Grace Willison estava concentrada no prato. Não ergueu os olhos.
- Pode ser tolice minha, mas eu gostaria de ter certeza de que o padre Baddeley sabia que eu tinha a intenção de vir visitá-lo. Me passou pela cabeça que talvez
ele tivesse guardado o postal dentro do diário. Mas o último volume não está na escrivaninha.
Dessa vez Anstey ergueu a vista. Seus olhos azuis cruzaram com os olhos castanhos, inocentes, educados e despreocupados de Dalgliesh.
- Pois é, reparei nisso. Ele desistiu no final de junho, pelo que tudo indica. A surpresa, para mim, é que ele tenha mantido um diário, não que tenha desistido.
No fim, todos acabamos nos impacientando com o egoísmo que registra o trivial como se tivesse valor permanente.
- Mas não deixa de ser inusitado, depois de tanto tempo, desistir na metade do ano.
- Ele tinha acabado de voltar do hospital, sofria de uma doença grave e não devia ter muita dúvida quanto ao prognóstico. Sabendo que a morte não devia estar longe,
talvez tenha resolvido destruir os diários.
- Começando pelo último volume?
- Destruir um diário deve ser bem parecido com destruir uma lembrança. A pessoa começaria pelos anos que menos nos magoa perder. As velhas memórias são mais obstinadas.
Ele começou queimando o último volume.
Grace Willison uma vez mais interrompeu com uma correção suave mas firme:
- Queimando, não, Wilfred. O padre Baddeley usou o aquecedor elétrico, quando voltou do hospital. Dentro da lareira há um pote de geléia cheio de ramos secos.
Dalgliesh fez um retrato mental da sala de estar do bangalô Esperança. Grace Willison tinha razão, claro. Lembrava-se do pote de pedra cinzenta e do ramalhete de
folhas secas e talos de capim que enchiam a pequena lareira, com galhos empoeirados e fuliginosos saindo pelas grades de ferro. Devia fazer meses que ninguém mexia
ali.
O papo animado na outra ponta da mesa morreu, transformado em silêncio especulativo, como acontece quando as pessoas de repente desconfiam que algo de muito interessante
está sendo dito, algo que precisam escutar.
Maggie Hewson, tão colada a Julius Court que Dalgliesh se perguntava como ele estaria conseguindo tomar seu chá, até aquele momento flertara descaradamente com o
sujeito - se para desgostar o marido ou agradar o outro, era difícil dizer. Ao olhar para os dois, Eric Hewson exibia a expressão envergonhada de um colegial constrangido.
Court, muito à vontade, distribuía as atenções por todas as senhoras presentes, com exceção de Grace.
Maggie então olhou um por um e disse de modo brusco:
- O que foi? O que ela disse?
Ninguém respondeu. Foi Julius quem rompeu o momento de súbita e inexplicável tensão.
- Eu já ia esquecendo. Vocês estão tendo um privilégio duplo. Os talentos de nosso hóspede vão além da prisão de criminosos. Ele também publica versos. Ele é Adam
Dalgliesh, o poeta.
A declaração foi recebida com alguns segundos de murmúrios confusos de congratulações durante os quais Dalgliesh registrou o “que bom” de Jennie como o mais irritantemente
inepto. Wilfred deu um sorriso de incentivo e disse:
- Mas é claro. Sem dúvida somos privilegiados. E Adam Dalgliesh chega em boa hora. Na quinta-feira teremos o sarau mensal da família e gostaríamos de contar com
a participação do nosso hóspede. O senhor nos daria o prazer de declamar alguns de seus poemas?
Havia diversas respostas à pergunta, mas, diante das óbvias desvantagens dos presentes, nenhuma delas parecia amável ou possível.
- Peço desculpas, mas não viajo com exemplares de meus próprios livros.
Anstey sorriu.
- Isso não será problema. Henry tem seus dois últimos livros. Tenho certeza de que ele não se incomodará em emprestá-los.
Sem levantar a vista do prato, Carwardine disse em voz baixa:
- Considerando a falta de privacidade deste lugar, não tenho a menor dúvida de que vocês poderiam fornecer um catálogo verbal de toda a minha biblioteca. Mas, como
até agora ninguém demonstrou o menor interesse pelo trabalho de Dalgliesh, longe de mim emprestar meus livros para que vocês chantageiem o hóspede e o obriguem a
atuar como um macaco de circo!
Wilfred corou muito de leve e curvou a cabeça sobre o prato.
Não havia mais nada a acrescentar. Após alguns segundos de silêncio, a conversa se reiniciou, banal e inconseqüente. Nem o padre Baddeley nem seu diário voltaram
a ser mencionados.
V
Anstey pelo visto não se preocupou quando Dalgliesh expressou o desejo, após o chá, de dar uma palavrinha com Grace Willison a sós. Era muito provável que visse
o pedido apenas como um protocolo zeloso de cortesia e respeito. Ele avisou que era tarefa de Grace alimentar as galinhas e recolher os ovos antes do anoitecer.
E sugeriu que Adam a ajudasse.
A cadeira tinha um aro cromado ajustado por cima das duas rodas grandes, para que seu ocupante pudesse movimentá-la sem ajuda. Grace Willison agarrou-o e começou
sua lenta marcha pela trilha asfaltada, sacudindo o corpo frágil feito um boneco. Dalgliesh viu que a mão esquerda era deformada, quase sem força, o que levava a
cadeira a enviesar de vez em quando, dificultando o avanço. Mudando da direita para a esquerda, pegou no dorso da cadeira e, sem dar na vista, com muita delicadeza,
ajudou-a a manter o curso. Esperava não estar contrariando nenhuma norma. Grace Willison poderia se ressentir do tato que ele demonstrava tanto quanto da compaixão
implícita nisso. Mas concluiu que ela pressentira seu constrangimento e que resolvera poupá-lo, não dando nem ao menos um sorriso de agradecimento.
No caminho, absorto naquela presença física, reparou nos detalhes todos de Grace Willison, com a mesma intensidade que teria reservado a uma mulher jovem e desejável
por quem estivesse se apaixonando. Viu os ossos pontiagudos dos ombros que se sacudiam ritmicamente sob o algodão fino do vestido cinza; observou as ramificações
arroxeadas das veias que saltavam qual cordas da mão esquerda, quase transparente, tão pequena e tão frágil, comparada à companheira. Também a direita parecia deformada,
tamanha a força que aparentava ter para compensar a outra. Era imensa a mão que segurava o aro de cromo, tão rija quanto a de um homem. As pernas, cobertas por meias
de lã enrugadas, lembravam palitos de tão finas, ao passo que os pés, fixos no apoio da cadeira - como se grudados no metal - e calçados com sandálias, eram sem
dúvida grandes demais para suportes tão inadequados. A trança pesada de cabelos grisalhos, salpicada de caspas, fora presa no alto da cabeça por um pente branco
de plástico não muito limpo. E a nuca exibia um certo encardido, ou porque o bronzeado estivesse desbotando, ou por falta de banho. Reparando mais para baixo, viu
os sulcos na testa se tornarem mais fundos com o esforço de impelir a cadeira adiante e os olhos piscarem de forma espasmódica por trás dos óculos de aros finos.
O galinheiro era uma construção ampla, caindo aos pedaços, rodeada por arames bambos e vigas creosotadas. E obviamente fora planejado para ser mantido por inválidos.
Havia uma entrada dupla, de modo que Grace Willison podia entrar e fechar a porta atrás de si antes de abrir a que dava acesso ao galinheiro propriamente dito, e
uma faixa de asfalto liso, larga o bastante para uma cadeira de rodas, passando em frente aos ninhos, dos dois lados. A primeira porta tinha, pelo lado de dentro,
uma prateleira grosseira de madeira pregada na altura da cintura, onde ficavam uma tigela de ração já preparada, uma vasilha plástica com água e uma colher de madeira
de cabo comprido para recolher os ovos. Grace Willison pôs tudo aquilo no colo com uma certa dificuldade e esticou-se para abrir a porta interna. As galinhas - que
por algum motivo inexplicável haviam se aglomerado todas no canto oposto do galinheiro qual virgens nervosas - ergueram os olhinhos rancorosos e avançaram na mesma
hora, cacarejando e batendo as asas como se decididas a provocar uma hecatombe de penas. Grace Willison encolheu-se de leve e começou a jogar punhados de ração com
um ar de neófito aplacando as Fúrias. As galinhas começaram um bicar e engolir alvoroçado. Raspando a mão na borda da vasilha, ela disse:
- Bem que eu gostaria de me apegar mais a elas, ou elas a mim. Tanto um lado quanto outro poderiam tirar melhor partido da atividade. Eu achava que os bichos acabavam
se afeiçoando à mão que os alimenta, mas parece que isso não se aplica às galinhas. E também não vejo por que deveria. A exploração que fazemos é completa: primeiro
pegamos os ovos, e quando elas já não podem mais botar, torcemos o pescoço delas e jogamos na panela.
- Espero que não seja tarefa sua, torcer o pescoço das galinhas.
- Não, não. Essa tarefa ingrata é de Albert Philby; não que eu ache que ele a considere ingrata. Mas não deixo de comer minha parte.
- Sinto mais ou menos a mesma coisa. Fui criado num vicariato em Norfolk e minha mãe sempre teve galinhas. Ela gostava daqueles bichos e eles pareciam gostar de
minha mãe, mas meu pai e eu sempre as achamos criaturas muito aborrecidas. Mas adorávamos os ovos frescos.
- O senhor sabe, e tenho até vergonha de dizer isso, que eu nunca consegui ver a menor diferença entre estes ovos e os que compramos no supermercado? Mas Wilfred
prefere que a gente só coma alimentos produzidos de modo natural. Ele tem horror à agricultura industrial e claro que tem razão. No fundo ele gostaria que a vila
Toynton fosse vegetariana, mas isso tornaria o preparo das refeições ainda mais difícil do que já é. Julius andou fazendo umas contas e provou a ele que estes ovos
custam duas vez mais para nós do que os ovos comprados, sem contar, é claro, o meu trabalho. Foi um banho de água fria.
- Quer dizer então que Julius Court faz a contabilidade de vocês?
- Não, imagine! Não a contabilidade de verdade, a que vai para a declaração anual. Wilfred tem um contador profissional para isso. Mas entende de finanças e eu sei
que Wilfred às vezes lhe pede conselhos. Infelizmente, os conselhos costumam ser desanimadores. Estamos na corda bamba. A herança do padre Baddeley foi uma verdadeira
bênção. E Julius tem sido muito bom para nós. No ano passado, a perua que alugamos para nos trazer do porto até aqui, na volta de Lourdes, sofreu um acidente. Ficamos
todos muito abalados. As cadeiras de rodas estavam na traseira e duas quebraram. O recado telefônico que chegou aqui foi alarmante. O acidente não foi tão sério
quanto Wilfred pensou. Mas Julius foi direto ao hospital para onde tinham nos levado fazer exames, alugou outra perua e cuidou de tudo. E depois ainda comprou um
ônibus adaptado sob medida para nós, de modo que agora somos independentes. Dennis e Wilfred podem se revezar e nos levar até Lourdes. Julius nunca viaja conosco,
claro, mas está sempre aqui para preparar uma festinha de boas-vindas quando voltamos da peregrinação.
Essa generosidade desinteressada não se encaixava à impressão que tivera de Court, mesmo após relacionamento tão rápido. Intrigado, Dalgliesh perguntou com toda
a cautela:
- Me perdoe se a pergunta parece um tanto rude, mas o que é que Julius Court ganha com isso, com esse interesse todo pela vila Toynton?
- Sabe que às vezes eu me pergunto a mesma coisa? Entretanto sempre me parece uma pergunta ingrata, pois está claro que a vila se beneficia muito com a presença
dele. Ele chega de Londres e é como uma baforada do mundo exterior. Ele nos alegra. Mas sei que o senhor quer conversar sobre seu amigo. Que tal recolhermos os ovos
primeiro, depois vamos conversar num lugar mais sossegado?
Seu amigo. A frase discreta, dita de um modo discreto, o censurava. Juntos, encheram as vasilhas de água e recolheram os ovos, ela com a colher de pau e a experiência
nascida de longa prática. Encontraram só oito. O processo todo, que uma pessoa sadia poderia ter terminado em menos de dez minutos, fora tedioso, lento e muito pouco
produtivo. Dalgliesh, que não via mérito nenhum no trabalho pelo trabalho, se perguntava o que a companheira pensava de fato acerca de uma tarefa que fora obviamente
projetada, contrariando todas as leis da economia, para dar a ela a ilusão de estar sendo útil.
Terminada a função, foram até o pequeno pátio atrás da casa. Só Henry Carwardine estava sentado ali, com um livro no colo e os olhos fixos na direção do mar invisível.
Grace Willison lançou-lhe um olhar preocupado e ameaçou dizer alguma coisa. Mas não abriu a boca até que estivessem instalados a uns trinta metros da figura silenciosa
- Dalgliesh na ponta de um dos bancos de madeira e ela do lado. Só então ela disse:
- Nunca consegui me acostumar a estar tão perto do mar sem poder olhar para ele. Dá para ouvi-lo com tanta nitidez, às vezes. Como agora. Estamos quase rodeados
por ele e de vez em quando sentimos o cheiro da maresia, ouvimos o barulho das ondas, mas poderíamos muito bem estar a duzentos quilômetros de distância.
Isso foi dito com tristeza, mas sem ressentimento. Permaneceram alguns momentos em silêncio. De fato, Dalgliesh ouvia claramente o barulho do mar, o longo rangido
dos pedregulhos se retraindo sob as ondas, trazido até ele pela brisa marinha. Para os internos da vila Toynton, aquele murmúrio incessante devia evocar a liberdade
tão próxima, tão sedutora e ao mesmo tempo inalcançável dos amplos horizontes azuis, de nuvens rápidas, de asas brancas fazendo mergulhos e malabarismos no ar em
movimento. Dava para entender como a necessidade de vê-lo poderia se transformar numa obsessão. De propósito, falou:
- Victor Holroyd deu um jeito de chegar até onde pudesse ver o mar.
Era muito importante observar a reação dela, e ele percebeu na hora que, para Grace Willison, aquele comentário fora muito mais do que apenas inábil. Ela ficou abaladíssima,
perturbada mesmo. A mão direita espremeu o braço da cadeira. O rosto ruborizou-se com uma onda disforme de sangue, depois empalideceu. Por alguns instantes, Dalgliesh
chegou a desejar não ter dito nada. Mas o remorso foi passageiro. Apesar dos pesares (pensou ele com humor sardônico) aquela necessidade profissional de buscar os
fatos estava voltando. E, por mais irrelevantes ou sem importância que acabassem sendo, muito raramente eram descobertos sem um certo custo - custo que em geral
não era pago por ele. Ouviu-a falar tão baixinho que teve de curvar a cabeça para entender.
- Victor tinha uma necessidade muito especial de ficar sozinho. Nós entendíamos isso.
- Mas devia ser dificílimo empurrar uma cadeira leve dessas por terreno acidentado até o topo do penhasco.
- Ele tinha a cadeira dele, do tipo desta, mas maior e mais robusta. E não haveria necessidade de empurrá-la pela parte mais íngreme do promontório. Pelo que sei,
há uma trilha por dentro que leva até uma vereda afundada, bem estreita, que dá na beira do precipício. Mesmo assim, não era fácil para Dennis Lerner. Ele fazia
força bem uma meia hora, na ida e na volta. Mas o senhor queria conversar sobre o padre Baddeley.
- Se isso não for perturbá-la demais. Parece que a senhora foi a última pessoa a vê-lo com vida. Ele deve ter morrido logo depois que a senhora saiu, já que ainda
estava com a estola no pescoço quando Maggie Hewson encontrou o corpo na manhã seguinte. Em circunstâncias normais, ele a teria retirado logo depois de ouvir uma
confissão, não é assim?
Houve um silêncio, como se Grace Willison estivesse tomando uma decisão. Depois ela disse:
- Mas ele tirou a estola, como sempre, logo depois de me dar a absolvição. Dobrou-a e colocou-a no braço da poltrona.
Também aquela era uma sensação que, durante os longos dias funestos internado no hospital, Dalgliesh achara que nunca mais iria experimentar, aquele frêmito de emoção
no sangue ao primeiro sinal de que algo de relevante fora dito, de que, mesmo ainda invisível e sem rastros discerníveis, a presa estava de fato lá, escondida em
alguma parte. Tentou afastar esse surto importuno de tensão, mas era tão natural e involuntário quanto uma pontada de medo.
- Mas então isso significa que o padre Baddeley tornou a pôr a estola depois que a senhora saiu. Por que ele faria uma coisa dessas?
Ou que a estola fora reposta por alguém. Mas essa era uma idéia que seria melhor não ventilar, com implicações que precisavam amadurecer.
- Presumo que ele tenha recebido outro penitente - Grace Willison respondeu em voz baixa. - É a explicação mais óbvia.
- Ele não usaria a estola para ler seu breviário?
Dalgliesh tentou se lembrar de como o pai costumava agir nessas horas, nas raríssimas vezes em que não recitava o ofício divino na igreja; a memória contudo acudiu-lhe
com apenas a imagem juvenil, e imprestável, dos dois, pai e filho, abrigados numa cabana nos montes Cairngorms durante uma nevasca, ele olhando entre entediado e
fascinado os desenhos que a neve fazia nos vidros da janela, o pai de abrigo de malha, anoraque e boné de lã lendo em silêncio seu livrinho de orações. Sem sombra
de dúvida naquela ocasião ele não pusera a estola.
Grace Willison disse:
- Não, não! Ele só usava a estola para administrar o sacramento. Além do mais, já tinha dito as vésperas. Estava acabando quando cheguei e depois eu lhe fiz companhia
para a última oração.
- Mas, se em seguida alguém esteve lá, então a senhora não foi a última a vê-lo com vida. Conversou sobre isso com alguém, depois que ele morreu?
- Acho que não. Por quê? E para quê? Se a própria pessoa optou por não dizer nada, não cabia a mim fazer conjecturas. Claro que se alguém mais, fora o senhor, tivesse
se dado conta do significado da estola, não teria sido possível evitar especulações. Mas ninguém reparou, ou, se reparou, não disse nada. Já temos fofocas demais
aqui em Toynton, senhor Dalgliesh. É inevitável, talvez, mas não é... bem... não é saudável, moralmente falando. Se alguém mais foi se confessar, naquela noite,
não é da conta de ninguém, a não ser da própria pessoa e do padre Baddeley.
- Mas o padre continuava com a estola, na manhã seguinte. O que sugere que talvez possa ter morrido enquanto a visita ainda estava com ele. Se foi isso que aconteceu,
então seguramente a primeira providência, por mais privacidade que a ocasião exigisse, teria sido pedir ajuda médica, a senhora não acha?
- Talvez a pessoa não tenha tido a menor dúvida de que o padre Baddeley estava morto, de que de nada lhe valeria esse tipo de ajuda. Nesse caso, pode ter havido
a tentação de deixá-lo em paz ali na poltrona e escapar sem chamar a atenção. Não creio que o padre Baddeley considerasse isso um pecado e não creio que o senhor
possa chamar de crime. Talvez pudéssemos dizer que foi uma atitude insensível, mas não necessariamente. O senhor não concorda? O ato provaria que houve uma certa
indiferença ao costume e ao decoro, talvez, mas não muito mais que isso.
E provaria também, pensou Dalgliesh, que o visitante entendia de medicina ou enfermagem. O que Grace Willison estaria querendo insinuar? A primeira reação de um
leigo, sem sombra de dúvida, seria sair em busca de ajuda, ou ao menos de uma confirmação de que a morte ocorrera de fato. A não ser, claro, que a pessoa soubesse,
com boas ou más razões, que Baddeley estava morto. Entretanto essa possibilidade sinistra não parecia ter passado pela cabeça de Grace. E por que haveria de passar?
O padre era velho, estava doente, esperava-se que fosse morrer logo e morreu. Por que suspeitar do natural e do inevitável? Dalgliesh disse qualquer coisa sobre
estabelecer a hora da morte e obteve uma resposta delicada, mas inexorável.
- Imagino que no seu trabalho a hora exata da morte é sempre muito importante e que, por isso, esteja acostumado a se concentrar nesse fato. Mas, na vida real, será
que tem alguma importância? O que importa é se morremos em estado de graça, isso sim.
Por alguns segundos irreverentes, Dalgliesh imaginou seu sargento tentando zelosamente determinar e registrar aquela informação essencial sobre a vítima num relatório
oficial de homicídio; e não pôde deixar de pensar que a simpática distinção entre o trabalho policial e a vida real que Grace Willison fizera vinha a ser um lembrete
muito salutar de como as outras pessoas enxergavam seu ofício. Mencionaria essa história ao comissário. Depois lembrou-se de que não era assunto para o tipo de papo
profissional inconseqüente que os dois teriam durante a entrevista formal e sem dúvida decepcionante que iria marcar o fim de sua carreira na polícia.
Pesaroso, reconheceu em Grace Willison o mesmo tipo raro de honestidade de certas testemunhas com as quais achava difícil falar. Por mais paradoxal que fosse, era
mais complicado lidar com aquela retidão antiquada, com aquela sensibilidade de consciência, do que com as prevaricações, evasivas ou mentiras deslavadas que faziam
parte de um interrogatório normal. Bem que gostaria de perguntar a ela quem, na vila Toynton, teria sido capaz de visitar o padre Baddeley para se confessar, mas
sabia que a pergunta apenas prejudicaria a confiança entre eles e que, de toda maneira, não obteria uma resposta. Mas só podia ter sido alguém em pleno gozo da saúde.
Ninguém mais conseguiria chegar até lá e sair em segredo, a não ser, claro, que tivesse um cúmplice. Uma cadeira de rodas e seu ocupante, empurrados ou levados de
carro, com toda a certeza teriam sido vistos por alguém em algum momento do trajeto.
Torcendo para não soar demais como um detetive em pleno interrogatório, Dalgliesh perguntou:
- Quer dizer então que quando a senhora o deixou ele estava... o quê?
- Apenas sentado lá naquela poltrona ao pé da lareira, muito sossegado. Eu não quis que ele se levantasse. Wilfred tinha me levado até lá, na perua pequena. Disse
que faria uma visita à irmã enquanto eu me confessava e que estaria me esperando do lado de fora em meia hora, a menos que eu batesse na parede primeiro.
- Quer dizer que dá para escutar sons entre um bangalô e outro? Pergunto isso porque, nesse caso, se o padre Baddeley se sentiu mal depois que a senhora saiu, talvez
tenha batido na parede, para chamar a senhora Hammitt.
- Ela disse que ele não bateu, mas por outro lado ela pode não ter escutado, se por acaso estivesse com o volume da televisão muito alto. As duas casas foram muito
bem construídas, mas mesmo assim é possível escutar sons pela parede comum, sobretudo quando as vozes estão alteradas.
- Isso quer dizer então que a senhora escutou os dois irmãos conversando?
Grace Willison parecia arrependida de ter ido tão longe e acrescentou mais que depressa:
- Bem, uma vez ou outra. Lembro que foi preciso um certo esforço para não deixar que aquilo me perturbasse. Pensei com meus botões que eles poderiam falar mais baixo,
depois tive vergonha de mim mesma por me distrair com tanta facilidade. Foi bondade de Wilfred ter me levado até lá. Normalmente o padre Baddeley vinha até aqui
para me ver e usávamos o que chamamos de sala sossegada, pegada ao escritório, pertinho da porta da frente. Mas ele tinha acabado de ter alta do hospital e não seria
correto sair de casa logo no primeiro dia. Eu poderia ter adiado minha visita até ele se sentir mais forte, mas ele me escreveu do hospital dizendo que esperava
que eu fosse vê-lo, até disse a hora exata em que estaria me esperando. Ele sabia o quanto significava para mim.
- E ele estava em condições de ficar sozinho? Me parece que não.
- Eric e Dot, a enfermeira Moxon, queriam que ele viesse para cá passar ao menos a primeira noite, para que pudessem cuidar dele, mas o padre Baddeley insistiu que
queria ir direto para casa. Depois Wilfred sugeriu que alguém dormisse no quarto sobressalente da casa, para ajudá-lo durante a noite, caso ele precisasse. O padre
também não concordou com essa idéia. Estava inflexível, queria ficar sozinho; e tinha muita autoridade, lá do seu jeito manso. Desconfio que Wilfred se culpa por
não ter sido mais firme. Mas o que ele poderia ter feito? Não podia trazer o padre Baddeley para cá à força.
Entretanto teria sido bem mais simples para todos se ele tivesse concordado em passar a primeira noite fora do hospital na vila Toynton. Sem sombra de dúvida fora
uma desconsideração inusitada da parte dele resistir com tanta veemência àquela sugestão. Estaria esperando uma outra visita? Haveria alguém que ele queria ver,
com urgência e em particular, uma outra pessoa com quem, como fizera com Grace Willison, marcara um encontro com hora e tudo? Se fosse esse o caso, qualquer que
tivesse sido o motivo da visita, a pessoa em questão devia ter ido até lá sozinha, sem ajuda de ninguém. Dalgliesh perguntou a Grace Willison se o padre Baddeley
e Wilfred tinham se falado, antes que ela fosse embora.
- Não. Fiquei uma meia hora com o padre, depois ele bateu na parede com o atiçador do fogo e, logo em seguida, Wilfred buzinou. Manobrei a cadeira até a porta da
frente e então Wilfred veio abri-la. O padre Baddeley continuava sentado na poltrona. Wilfred lhe desejou boa noite, mas não creio que o padre tenha respondido.
Wilfred parecia com pressa de voltar para casa. Millicent saiu para ajudar a empurrar minha cadeira para dentro da perua.
Quer dizer então que naquela noite nem Wilfred nem a irmã falaram com Michael antes de se recolher e tampouco o viram de perto. Dando uma olhada rápida para a mão
direita de Grace Willison, tão rija, tão firme, Dalgliesh brincou por alguns instantes com a possibilidade de que Michael já estivesse morto. Mas a idéia, além da
improbabilidade psicológica, era um absurdo total, claro. Como ela poderia saber se Wilfred iria entrar ou não na casa? Aliás, pensando bem, era estranho que não
tivesse entrado. Michael acabara de sair do hospital. Sem dúvida teria sido mais natural entrar e perguntar como ele estava se sentindo, passar ao menos alguns minutos
com ele. Era curioso que Wilfred Anstey tivesse saído tão às pressas, que ninguém tivesse admitido ter ido visitar o padre Baddeley depois das sete e quarenta e
cinco da noite. E então perguntou:
- Que luzes estavam acesas no bangalô, quando a senhora estava com ele? - Se a pergunta a espantou, ela não deu mostras disso.
- Só a pequena lâmpada de mesa no tampo da escrivaninha, atrás da poltrona. Fiquei espantada de que ele estivesse conseguindo enxergar o breviário para dizer as
vésperas, mas é claro que já conhecia muito bem a oração.
- E a lâmpada estava apagada, na manhã seguinte?
- Estava sim. Maggie disse que encontrou o bangalô às escuras.
- Acho um pouco estranho que ninguém tenha ido dar uma olhada para ver como ele estava, para ajudá-lo a se deitar.
Grace Willison foi rápida na resposta.
- Eric Hewson pensou que Millicent iria dar uma olhada nele, antes de se deitar, e ela ficou com a impressão de que Eric e Helen, a enfermeira Rainer, o senhor sabe,
tinham se disposto a fazê-lo. Todos se culparam muito, no dia seguinte. Mas, como Eric nos disse, em termos médicos não teria feito a menor diferença. O padre Baddeley
morreu em paz logo depois que eu o deixei.
Permaneceram os dois em silêncio durante alguns momentos. Dalgliesh se perguntava se aquele seria o momento certo de falar sobre as cartas anônimas. Lembrando-se
de como ela ficara perturbada à menção de Victor Holroyd, relutava em constrangê-la ainda mais. Mas era importante saber. Olhando de esguelha para o rosto magro
marcado por um ar de serenidade resoluta, ele disse:
- Dei uma olhada na escrivaninha do padre Baddeley, logo depois que cheguei; eu estava à procura de algum possível bilhete ou mesmo uma carta que ainda não tivesse
sido enviada. E encontrei uma carta anônima muito desagradável endereçada a ele, debaixo de uns recibos antigos. Gostaria de saber se ele mencionou alguma coisa
a respeito, ou se alguém mais da vila Toynton recebeu coisa parecida.
Grace Willison ficou ainda mais abalada com a pergunta do que o previsto. Por alguns instantes, não conseguiu nem falar. Dalgliesh fitou o horizonte em frente, até
ouvir a voz dela. Mas, quando por fim abriu a boca, já recuperara o controle.
- Eu recebi uma, uns quatro dias antes de Victor morrer. Era... era obscena. Rasguei em pedacinhos e dei a descarga.
Dalgliesh respondeu com uma jovialidade robusta:
- A melhor coisa a se fazer com elas. Mas, como policial, tenho de lamentar a destruição de uma prova.
- Prova?
- Bem, o envio de cartas anônimas pode ser considerado um delito; porém, mais importante ainda, pode causar grande infelicidade. O melhor, sempre, é informar a polícia
e deixar que ela procure o responsável.
- A polícia! Ah, não! Não poderíamos fazer uma coisa dessas. Não é o tipo de problema que a polícia nos ajudaria a resolver.
- Não somos tão insensíveis quanto as pessoas às vezes imaginam. E nem sempre é uma questão apenas de processar o culpado. Mas é importante que se ponha um ponto
final na amolação, e a polícia está mais equipada para fazer isso. A carta seria enviada para a perícia e examinada.
- Para tanto, teria de haver um documento. Eu não mostraria aquela carta a ninguém.
Quer dizer então que a coisa era mesmo feia. Dalgliesh perguntou:
- Importa-se em descrever como era a carta? Manuscrita, datilografada, em que tipo de papel?
- A carta foi datilografada em papel da vila Toynton, com espaço duplo, na nossa velha Imperial. Quase todos aqui sabemos datilografar. Foi uma das maneiras que
encontramos para nos sustentar. Não havia nada de errado com a pontuação ou a ortografia. Não dava nenhuma outra pista, ou pelo menos não percebi. Não sei quem foi
que bateu a carta, mas quem quer que tenha sido devia ter certa experiência sexual.
Ou seja, mesmo em meio a toda a aflição, Grace Willison tentara resolver a charada.
- O número de pessoas que têm acesso à máquina de escrever é limitado. O caso não teria sido muito difícil para a polícia.
A voz dela continuou branda. E teimosa.
- A polícia veio aqui, por causa da morte de Victor, todos muito bondosos, muito atenciosos. Mas foi uma experiência terrível. Foi horrendo para Wilfred... para
todos nós. Acho que não suportaríamos passar por aquilo de novo. Tenho certeza de que Wilfred não agüentaria. Por mais corteses que sejam, os policiais têm que continuar
fazendo perguntas até resolver o caso, não é verdade? Não adianta chamá-los e depois esperar que ponham a sensibilidade das pessoas em primeiro lugar, à frente do
trabalho deles.
Era uma verdade inegável contra a qual Dalgliesh não possuía argumentos. Perguntou-se então o que ela fizera, além de jogar a carta ofensiva na privada.
- Contei a Dorothy Moxon. Me pareceu a coisa mais sensata a fazer. Não poderia ter falado sobre aquilo com um homem. Dorothy me disse que eu não deveria ter jogado
a carta fora, que ninguém poderia fazer nada a respeito sem uma prova. Mas concordou que não devíamos comentar nada por uns tempos. Wilfred estava muito preocupado
com a falta de dinheiro, na época, e ela não queria incomodá-lo com mais um problema. Sabia que aquilo o deixaria muito desnorteado. Além disso, desconfio que ela
fazia idéia de quem era o responsável. Se ela estiver certa, não receberemos mais nenhuma carta.
O que significava que Dorothy Moxon acreditara - ou fingira acreditar - que Victor Holroyd era o autor delas. E, caso o autor ou autora tivesse agora a sensatez
e o autodomínio de parar, essa viria a ser uma teoria conveniente que, na ausência de provas, ninguém poderia refutar.
Dalgliesh perguntou se alguém mais recebera coisa parecida. Até onde Grace sabia, não havia mais ninguém. Só ela fora procurar Dorothy Moxon. A sugestão de que existiam
outras cartas pareceu incomodá-la. Dalgliesh percebeu então que, até aquele momento, Grace considerara aquele bilhete o exemplo único de um rancor gratuito dirigido
apenas contra ela. Saber que o padre Baddeley também havia recebido uma carta anônima a deixara quase tão consternada quanto ao receber a sua. Conhecendo por experiência
própria o provável conteúdo da carta, Dalgliesh falou com brandura:
- No seu lugar, eu não me preocuparia muito com a carta que mandaram para ele. Acho que não o incomodou demais. Era bem leve; no fundo, apenas um bilhetinho despeitado
sugerindo que ele não tinha grande utilidade para a vila Toynton e que a casa seria mais bem aproveitada se ocupada por outra pessoa. O padre Baddeley possuía humildade
e bom senso de sobra para não se abalar com esse tipo de bobagem. Desconfio que só guardou a carta porque queria me consultar, para o caso de não ser a única vítima.
Pessoas sensatas jogam essas coisas na privada. Mas nem sempre conseguimos ser sensatos. De qualquer maneira, se a senhora receber outra, promete que me mostra?
Ela meneou a cabeça de leve, mas não disse nada. Dalgliesh, porém, viu que parecia mais contente. Estendeu a mão esquerda murcha e colocou-a por instantes sobre
a dele, dando-lhe um ligeiro aperto. A sensação daquela mão seca e fria, como se os ossos estivessem soltos na pele, não foi nada agradável. Mas o gesto era ao mesmo
tempo de humildade e de dignidade.
Esfriara e escurecera bastante no pátio; Henry Carwardine já tinha entrado. Era hora de ela entrar também. Dalgliesh pensou rápido e resolveu dizer:
- Não é nada importante e, por favor, não pense que eu estou sempre a trabalho. Mas se, nos próximos dias, a senhora conseguir se lembrar de como o padre Baddeley
passou a última semana antes de ser hospitalizado, seria de grande ajuda para mim. Não mencione esse meu pedido a mais ninguém. Apenas me diga o que ele fez, pelo
que a senhora recorda; as horas em que visitou a vila, onde mais ele pode ter ido. Eu gostaria de ter uma idéia dos últimos dez dias da vida dele.
- Sei que ele foi a Wareham na quarta-feira, antes de adoecer. Ele me disse que ia fazer umas compras e ver alguém a respeito de negócios. Lembro bem porque ele
explicou, na terça-feira, que não viria visitar a vila na manhã seguinte.
Então, pensou Dalgliesh, fora nesse dia que ele comprara os mantimentos, certo de que sua carta não ficaria sem resposta. E tinha toda a razão para se sentir confiante.
Continuaram mais um minuto sem dizer nada. Dalgliesh se perguntava o que ela estaria pensando de pedido tão estranho. Não dera mostras de ter se espantado. Talvez
considerasse natural aquele desejo de reconstituir os últimos dez dias de um amigo nesta terra. Mas, de repente, sem mais nem menos, ele sentiu uma pontada de apreensão
e cautela. Será que não seria melhor enfatizar a natureza sigilosa do pedido? Claro que não. Ele lhe dissera para não comentar com mais ninguém. Repisar o assunto
só levantaria suspeitas. E que perigo haveria? O que ele tinha para continuar a investigação? Uma fechadura arrombada, um diário desaparecido, uma estola recolocada
como se para ouvir uma confissão - ou seja, nenhuma prova real. Com certo esforço, afastou aquela pontada inexplicável de apreensão, tão forte quanto uma premonição.
Era um lembrete desagradável demais das longas noites passadas no hospital, em que lutara, numa semiconsciência irrequieta, contra terrores irracionais e medos incompreendidos.
E o que sentia agora era igualmente irracional, a ser combatido igualmente pela sensatez e pela razão. Era absurdo pensar que um pedido tão simples, quase casual
e sem grande perspectiva de frutos, pudesse tão claramente ter soado como uma sentença de morte.
3
 PERNOITE DE UM ESTRANHO
I
Antes do jantar, Wilfred Anstey sugeriu que Dalgliesh fosse com Dennis Lerner dar uma olhada na casa. Desculpou-se por não acompanhá-lo, alegando que tinha urgência
em escrever uma carta. A correspondência era coletada todos os dias, pouco antes das nove da manhã, direto da caixa do correio que havia no portão da divisa. Se
por acaso tivesse cartas para mandar, era só deixá-las na mesinha do saguão que Albert Philby levaria até lá, junto com o resto da correspondência. Dalgliesh agradeceu.
Havia, sim, uma carta que precisava escrever com urgência para Bill Moriarty, da Scotland Yard, mas essa ele pretendia postar em Wareham. Nem pensar em deixá-la
exposta à curiosidade e à especulação de Anstey e equipe.
A sugestão de uma excursão pela vila teve a força de um comando. Helen Rainer ajudava na toalete dos pacientes, antes do jantar, e Dot Moxon desaparecera junto com
Anstey, de modo que ele foi levado a conhecer as instalações apenas por Lerner, na companhia de Julius Court. No íntimo, Dalgliesh gostaria que a expedição já tivesse
terminado ou, melhor ainda, que pudesse ter sido evitada sem causar maiores mágoas. Lembrou-se, com aflição, de uma visita que fizera com o pai a um hospital geriátrico,
no Dia de Natal; da cortesia com que os pacientes receberam mais aquela invasão de privacidade, da exibição pública de sofrimentos e deformidades, da ansiedade patética
com que a equipe médica demonstrara seus pequenos triunfos. E percebeu que estava - assim como estivera naquele dia - morbidamente sensível ao menor traço de repugnância
na própria voz; chegou a detectar a presença de algo até mais ofensivo - um quê de condescendência em seu excesso de cordialidade. Mas Dennis Lerner não deu sinal
de ter percebido e, por seu lado, Julius acompanhava a ronda lépido e lampeiro, olhando tudo em volta com curiosidade, como se o lugar lhe fosse novo. Dalgliesh
não sabia ao certo se estava ali para ficar de olho em Lerner ou nele.
Passando de um quarto a outro, o rapaz foi perdendo a timidez inicial e tornou-se confiante, quase tagarela. Havia qualquer coisa de cativante em seu orgulho ingênuo
pelo que Anstey estava tentando fazer. De fato, o dono da vila Toynton empregara seu patrimônio com certa criatividade. A casa em si, de quartos amplos com pé direito
alto e chão de mármore gelado, de painéis escuros de carvalho e janelas góticas, não era adequada às necessidades de pacientes inválidos. Exceto pela sala de jantar
e por uma sala na parte de trás, que se transformara em sala de televisão comunitária, Anstey usara o casarão sobretudo para acomodar a si e a sua equipe e construíra
nos fundos uma extensão de dois andares que tinha, no térreo, dez quartos individuais para os pacientes e, no andar de cima, um consultório e alguns outros quartos
adicionais. Ligada aos antigos estábulos, essa extensão fazia com as dependências externas um ângulo reto, dando aos pacientes um pátio abrigado onde podiam pôr
suas cadeiras de rodas. Os estábulos haviam sido adaptados e continham garagens, uma oficina e uma sala onde todos podiam se exercitar em carpintaria e modelagem.
Ali também eram produzidos e empacotados, numa mesa por trás de um biombo de plástico transparente, instalado decerto para mostrar respeito ao princípio científico
da higiene, o creme hidratante e os sais de banho vendidos para ajudar nas despesas da casa. Dalgliesh viu, penduradas no biombo, as sombras brancas de aventais.
Lerner disse:
- Victor Holroyd era professor de química. Era ele que nos dava as receitas para o creme de mão e os sais de banho. Na verdade o creme é apenas uma mistura de lanolina,
óleo de amêndoa e glicerina, mas funciona bem e pelo visto as pessoas gostam. Dá um bom dinheiro. E este canto da oficina é reservado à modelagem.
Dalgliesh já quase esgotara seu repertório de comentários elogiosos. Mas ficou realmente impressionado com o que viu. Lá estava, no meio da mesa de trabalho, montada
sobre uma base de madeira, a cabeça de Wilfred Anstey em argila. O pescoço, alongado e rijo, surgia das dobras do capuz como o de uma tartaruga. A cabeça, projetada
para a frente, voltava-se de leve para a direita. Era quase uma caricatura, no entanto tinha uma força extraordinária. Como o escultor conseguira exprimir ao mesmo
tempo a doçura e a tenacidade daquele sorriso singular, moldar o sentimento de misericórdia e reduzi-lo à mera quimera da auto-sugestão, exibir a humildade envolta
pela veste monástica e ainda assim transmitir a impressão preponderante da pujança do mal? Dalgliesh estava impressionado de fato. Os pedaços e toletes de argila
embrulhados em plástico e espalhados em desordem sobre a mesa apenas enfatizavam a energia e a façanha técnica daquela obra acabada.
- Henry fez a cabeça - disse Lerner. - Alguma coisa saiu meio errada com a boca, eu acho. Wilfred não se importou, mas ninguém mais parece achar que o busto lhe
faz justiça.
Julius tombou a cabeça para o lado e franziu os lábios, num arremedo de avaliação crítica.
- Ora, eu não diria isso. Não diria isso. O que você acha, Dalgliesh?
- Um trabalho notável. Esse rapaz, Carwardine, já esculpia antes de vir para cá?
Foi Dennis Lerner quem respondeu:
- Acho que não. Ele era funcionário público, antes de ficar doente. Ele modelou essa cabeça uns dois meses atrás, mas Wilfred não posou para ele. Ficou muito boa,
para uma primeira tentativa, não é verdade?
Julius disse:
- O que me interessa saber aqui é se ele teve a intenção de obter esse resultado, e nesse caso eu diria que o rapaz é talentoso demais para ser desperdiçado na vila
Toynton, ou se seus dedos apenas obedeceram ao subconsciente, o que daria ensejo a especulações interessantes sobre a origem da criatividade e outras, mais interessantes
ainda, sobre o inconsciente de Henry.
- Acho que saiu assim e pronto - Lerner informou de maneira muito simples, olhando para a cabeça com respeito intrigado, sem obviamente ver nada ali que pudesse
dar motivo a espantos ou explicações.
Por fim, foram até um dos pequenos quartos da extensão. O aposento fora mobiliado para servir de escritório, com duas escrivaninhas manchadas de tinta que pareciam
refugos de alguma repartição pública. Numa delas, Grace Willison datilografava nomes e endereços numa folha de etiquetas adesivas. Com uma certa surpresa, Dalgliesh
viu que Carwardine datilografava uma carta particular na outra mesa. As duas máquinas de escrever eram antiqüíssimas. Henry usava uma Imperial; Grace, uma Remington.
Dalgliesh parou ao lado dela e espiou a lista de nomes e endereços. Viu que o boletim informativo era de ampla distribuição. Além das residências paroquiais das
vizinhanças e de outras casas para doentes crônicos, ia para destinatários em Londres, e havia até mesmo dois nos Estados Unidos e um perto de Marselha. Atrapalhada
com a demonstração de interesse, Grace mexeu o cotovelo com certa falta de jeito, e a lista encadernada de nomes e endereços com a qual trabalhava caiu no chão.
Dalgliesh, porém, já vira o que bastava; o e minúsculo desalinhado, o o borrado, o w maiúsculo apagado e quase indecifrável. Não restava a menor dúvida de que o
bilhete endereçado ao padre Baddeley saíra daquela máquina. Apanhou o livro de endereços e entregou-a à senhorita Willison. Sem olhar para ele, ela sacudiu a cabeça
e disse:
- Muito obrigada, mas na verdade nem preciso consultá-lo. Sei os sessenta e oito nomes e endereços de cor. Faço isso há tanto tempo. Posso imaginar que tipo de pessoas
são só pelo nome e pelos nomes que dão a suas casas. Mas sempre fui boa para lembrar nomes e endereços. Era muito útil quando eu trabalhava numa entidade filantrópica
e tinha de ajudar os prisioneiros recém-libertados. Eram tantas as listas. Esta aqui é curtinha, claro. Posso acrescentar seu nome, para que receba nosso boletim
trimestral? Custa só dez pence. É que o preço dos selos aumentou e somos obrigados a cobrar mais do que gostaríamos.
Henry Carwardine ergueu a vista:
- Acredito que no boletim deste trimestre temos um poema de Jennie Pegram que começa assim:
O outono é minha estação predileta,
Eu adoro suas tintas brilhantes.
Vale os dez pence que vai gastar, Dalgliesh. No mínimo para descobrir como ela lida com o probleminha da rima.
Grace Willison sorria com uma expressão de contentamento no rosto.
- Não passa de uma produção amadora, eu sei disso, mas mantém a Liga de Amigos em contato com o que acontece por aqui; e nossos amigos particulares, também, claro.
- Não os meus - Henry interveio. - Eles sabem que perdi o uso das pernas, mas não pretendo levar ninguém a pensar que perdi também o uso da cabeça. Na melhor das
hipóteses, esse boletim atinge o nível literário de uma revistinha de paróquia; na pior, ou seja, em três de cada quatro números, é de uma puerilidade embaraçosa.
Grace Willison enrubesceu e seus lábios tremeram. Dalgliesh apressou-se em dizer:
- Claro, por favor, ponha meu nome na lista. Seria mais fácil se eu pagasse agora a assinatura do ano todo?
- Quanta gentileza! Talvez seja mais seguro pagar só um semestre. Se Wilfred acabar decidindo transferir a vila para a Fundação Ridgewell, eles talvez tenham planos
diferentes para o boletim. Por enquanto o futuro está muito incerto para todos nós. Por favor, anote seu endereço aqui. Queenhythe. Fica à beira do rio, não fica?
Mas que agradável. O senhor não há de querer o creme de mão nem os sais para banho, suponho, se bem que mandamos os sais para um ou dois cavalheiros. Mas esse departamento
é de Dennis. É ele quem cuida da distribuição e do empacotamento. Nossas mãos não são muito firmes para essa tarefa. Na verdade não prestam para nada. Mas tenho
certeza de que ele poderá lhe dar uma amostra dos sais.
Dalgliesh foi poupado da necessidade de responder à pergunta melancólica pelo soar do gongo. Julius disse:
- Está na hora. Mais uma batida do gongo e o jantar será servido. Eu agora vou para casa ver o que a senhora Reynolds, minha indispensável caseira, preparou. Por
falar nisso, Grace, você avisou o comandante que o jantar na vila Toynton é à la trapista, feito em silêncio? Não convém violar as regras com perguntas aborrecidas
a respeito do testamento de Michael ou sobre que possíveis razões teria um paciente desta morada do amor para se atirar de um penhasco.
E desapareceu com certa rapidez, como se temesse que, à menor mostra de retardo, corresse o risco de ser convidado para participar do jantar.
Era óbvio que Grace Willison tinha ficado aliviada com aquela partida, mas mesmo assim sorriu com bravura para Dalgliesh.
- Nós temos de fato essa regra, ninguém fala durante a refeição noturna. Tomara que isso não o incomode. Nós nos revezamos e lemos alguma passagem de nossa livre
escolha. Hoje é a vez de Wilfred, de modo que com toda a certeza teremos um dos sermões de Donne. Eles são muito bons, claro... o padre Baddeley adorava, eu sei
disso... mas acho todos um pouco difíceis. Além do mais, não creio que combinem muito bem com carneiro ensopado.
II
Henry Carwardine impeliu sua cadeira até o elevador, puxou a grade de metal com dificuldade, fechou-a com estrondo e apertou o botão para subir um andar. Ele insistira
em ter um quarto na casa principal e rejeitara peremptoriamente os cubículos do anexo. No fim, apesar do receio de que houvesse um incêndio e ele ficasse preso -
temores que Henry considerava obsessivos, quase paranóicos -, Wilfred concordara, ainda que com muita relutância. Henry confirmou o compromisso assumido com a vila
Toynton transferindo para lá uma ou duas peças que mobiliavam seu apartamento em Westminster e todos os livros. O quarto era amplo, de pé direito alto e proporções
agradáveis, com duas janelas que davam vista para o sudoeste do promontório. Ao lado havia um banheiro com ducha, que ele dividia apenas com algum paciente eventual
que estivesse sendo tratado na enfermaria. Sabia, sem um pingo de culpa, que tinha o pedaço mais confortável da casa. Aos poucos, foi recuando para dentro de seu
mundo particular e ordeiro, cerrando a porta de entalhes fartos do quarto a todo e qualquer envolvimento; começou então a subornar Philby para lhe levar de vez em
quando as refeições numa bandeja, ou então comprar em Dorchester queijos especiais, vinhos, patê e frutas, com o que incrementava as refeições institucionais que
os funcionários preparavam em sistema de rodízio. Wilfred pelo visto achara prudente não tecer comentários a respeito dessa pequena insubordinação, dessa violação
às leis da vida comunitária.
Henry subiu se perguntando o que provocara nele aquele ataque rancoroso contra a inofensiva e patética Grace Willison. Não era a primeira vez, desde a morte de Holroyd,
que se pegava falando com a voz de Victor. O fenômeno o interessava. Fazia com que voltasse a pensar naquela outra vida, aquela à qual tão prematura e resolutamente
havia renunciado. Tinha reparado, ao presidir comissões, como os participantes desempenhavam cada qual um papel, quase como se tivessem sido distribuídos de antemão:
o belicoso, o manso, o apaziguador, o estadista professoral, o rebelde imprevisível; e com que rapidez, se um deles se ausentava, o colega modificava suas opiniões
e, com muita sutileza, adaptava a voz e a atitude para preencher a brecha deixada. E assim foi que, pelo visto, havia assumido o lugar de Holroyd. A idéia era irônica
e não de todo insatisfatória. Por que não? Quem mais na vila Toynton se encaixaria tão bem naquele ácido papel do inconformista?
Ele fora um dos subsecretários de Estado mais jovens a assumir o cargo. Chegara a ser cotado como o mais provável candidato a chefe de departamento. Era assim que
via a si próprio. E então a doença, a princípio mexendo em nervos e músculos com dedos hesitantes, atingira as raízes de sua confiança e todos os planos elaborados
com tanto cuidado. Ditar alguma coisa a sua secretária tornara-se um constrangimento mútuo, algo a ser temido e adiado. Toda e qualquer conversa telefônica era uma
tortura; bastava um primeiro toque insistente, ansioso, para que a mão começasse a tremer. Reuniões das quais sempre gostara e que presidia com uma competência serena
e firme tornaram-se choques imprevisíveis entre a mente e o corpo desobediente. Tornara-se inseguro naquilo em que havia sido mais confiante.
Não estava sozinho no infortúnio. Vira colegas - alguns do próprio departamento, que para passar de veículos grotescos para cadeiras de rodas precisavam de ajuda
alheia - aceitarem posições subordinadas e trabalhos mais fáceis, ou então serem transferidos para alguma repartição que pudesse se dar ao luxo de carregá-los. O
departamento equilibrava eficiência e interesse público com uma dose adequada de consideração e misericórdia. Eles o teriam mantido bem além do que sua utilidade
justificaria. Poderia ter morrido, como vira acontecer com outros, no cabresto oficial, um cabresto mais suave e ajustado a seus ombros frágeis, mas ainda assim
cabresto. Admitia haver uma certa coragem nisso. Mas não seu tipo de coragem.
Uma reunião conjunta com outro departamento, presidida por ele, acabara decidindo a questão. Ainda não conseguia se lembrar do fiasco sem sentir vergonha e horror.
Viu-se de novo, os pés impotentes se arrastando, a bengala batucando no chão, enquanto lutava para dar um passo na direção da cadeira, o ranho saindo junto com suas
palavras de boas-vindas e inundando os papéis do vizinho, a roda de olhares em volta da mesa, olhares animais, vigilantes, predatórios, constrangidos, temerosos
de cruzar com o seu. À exceção de um rapaz bonito, funcionário graduado do Tesouro. Ele olhara fixo para o presidente da reunião, não com piedade e sim com um interesse
quase clínico, reparando, para referências futuras, em mais uma manifestação do comportamento humano sob os efeitos do estresse. As palavras acabaram saindo, claro.
De um jeito ou de outro, conseguiu levar a reunião adiante. Mas, para ele, era o fim.
Soubera da vila Toynton como as pessoas ficam sabendo desses lugares, por um colega cuja mulher contribuía com doações e recebia o boletim trimestral enviado aos
amigos da casa de repouso. E ali lhe parecera estar a solução. Era solteiro e sem família. Não teria condições de cuidar de si muito mais tempo e, com sua aposentadoria
por invalidez, não conseguiria pagar um enfermeiro em tempo integral. Além disso, precisava sair de Londres. Se não havia mais como subir na carreira, então preferia
se afastar por completo, refugiar-se no esquecimento, longe da compaixão embaraçosa dos colegas, do barulho e do ar imundo, dos perigos e inconvenientes de um universo
agressivamente organizado apenas para pessoas em pleno gozo da saúde. Escreveria aquele livro sobre decisões governamentais planejado para a aposentadoria, daria
uma espanada em seus conhecimentos de grego, leria de novo toda a obra de Hardy. Se não podia cultivar seu próprio jardim, ao menos poderia evitar olhares críticos
diante da falta de cultura de todos os demais.
E durante os seis primeiros meses a coisa pareceu funcionar. Havia desvantagens que, curiosamente, não esperara ou não levara em conta: as refeições monótonas e
previsíveis, as pressões de personalidades discordantes, a demora na entrega de livros e vinhos, a falta de boas conversas, doentes absortos em si mesmos, a preocupação
constante com sintomas e funções do corpo, a tenebrosa infantilidade e a jovialidade espúria da vida institucional. Mas no fundo era quase possível suportar tudo
aquilo e ele relutava em admitir fracasso, uma vez que todas as demais alternativas pareciam piores. E então surgiu Peter.
Ele chegara à vila Toynton pouco mais de um ano antes. Era uma vítima da pólio, um rapaz de dezessete anos, filho único da viúva de um empresário da zona industrial
dos condados centrais da Inglaterra que fizera três visitas perfunctórias de inspeção antes de decidir se podia ou não se dar ao luxo de aceitar a vaga. Henry desconfiava
que, angustiada com a solidão e fragilizada com os primeiros meses de viuvez, já devia estar à cata de um segundo marido. E começara a perceber que um filho de dezessete
anos, preso a uma cadeira de rodas, constituía um obstáculo a ser posto na balança com imenso cuidado por prováveis pretendentes, ao lado da fortuna que o falecido
juntara fazendo carretos e da sexualidade madura e desesperada que ainda possuía. Escutando a enxurrada de intimidades obstétricas e conjugais da viúva, Henry percebeu
uma vez mais que os inválidos são tratados como uma raça diferente. Eles não representam ameaça nenhuma, nem sexual nem de outra natureza qualquer, não oferecem
competição. Como companhia, têm as vantagens do animal: pode-se falar literalmente de tudo na frente deles, sem o menor constrangimento.
De modo que Dolores Bonnington se declarara satisfeita e Peter fora para lá. O rapaz não lhe causara nenhuma impressão especial, de início. Foi só aos poucos que
começou a apreciar suas habilidades intelectuais. Peter fora tratado em casa, com a ajuda de enfermeiras municipais, e levado, sempre que a saúde permitia, à escola
pública local. Lá, não tivera muita sorte. Ninguém, muito menos a mãe, percebera a inteligência do garoto. Henry Carwardine duvidava que ela tivesse capacidade para
tanto. Mas sentia-se menos predisposto a absolver o colégio. Mesmo levando em conta o problema da falta de pessoal e o tamanho das classes e as inevitáveis dificuldades
logísticas de um estabelecimento público de ensino de cidade grande, alguém daquele corpo docente com equipamento de mais e disciplina de menos deveria ter tido
a capacidade de reconhecer um estudioso. Foi Henry quem concebeu a idéia de que eles poderiam dar a Peter a educação que o menino não tivera; de que ele ingressaria
numa faculdade e se tornaria auto-suficiente.
Preparando Peter para os exames nacionais da oitava série, qual não foi sua surpresa ao ver que o esforço conjunto criara uma preocupação comum, um sentido de unidade
e comunhão que as experiências de Wilfred na vila Toynton nunca haviam alcançado. Até Victor Holroyd ajudou.
- Pelo visto o rapaz não é nenhum tolo. Ele não tem praticamente instrução nenhuma, claro. Os professores, pobres coitados, com toda a certeza estavam ocupados demais
ensinando relações raciais, técnicas sexuais e outras novas contribuições contemporâneas ao currículo, tentando ao mesmo tempo impedir que os bárbaros pusessem fogo
na escola, e não tiveram tempo para alguém com um cérebro na cabeça.
- Ele precisa prestar exame de matemática e mais uma ciência, Victor, pelo menos para as provas nacionais de conclusão do primeiro grau. Se você pudesse ajudar...
- Sem um laboratório?
- Temos a enfermaria. E se você improvisasse alguma coisa ali? Não é dizer que ele vá enveredar pelo caminho das ciências exatas.
- Claro que não. Sei muito bem que minhas disciplinas foram incluídas só para dar uma ilusão de equilíbrio acadêmico. Mas o garoto precisa aprender a pensar de forma
científica. Conheço os fornecedores, óbvio. Acho que posso improvisar alguma coisa, sim.
- Eu pago as despesas.
- Mas é claro. Eu poderia arcar com elas, mas sou um firme adepto da teoria de que as pessoas devem pagar pelas próprias satisfações.
- E a Jennie e a Ursula talvez se interessem.
Henry se surpreendeu ao sugerir isso. O afeto - ainda não começara a usar a palavra amor - o fizera magnânimo.
- Deus queira que não! Não estou abrindo um jardim da infância. Mas aceito ensinar matemática e ciências ao garoto.
Victor Holroyd dera três aulas por semana, cada uma com duração cuidadosamente cronometrada de sessenta minutos. Mas não restava a menor dúvida quanto à qualidade
do ensino fornecido.
O padre Baddeley fora convocado para ensinar latim. O próprio Henry se encarregou de literatura inglesa e história e assumiu a direção geral do curso. Descobriu
que Grace Willison falava francês melhor do que qualquer pessoa na vila Toynton e, após uma certa relutância inicial, ela concordara em dar aulas de conversação
duas vezes por semana. Wilfred acompanhara os preparativos com indulgência, sem tomar parte ativa mas também sem se opor. De repente, estavam todos ocupados e felizes.
Quanto a Peter, ele mais aceitou do que se dedicou. No entanto mostrou-se de uma aplicação notável; talvez achasse uma certa graça naquele entusiasmo coletivo, mas
era capaz de manter a concentração, e essa é a marca do estudioso. Todos perceberam ser quase impossível sobrecarregá-lo. O rapaz mostrava-se grato, dócil, mas reservado.
Às vezes, ao olhar para aquele rosto calmo quase de menina, Henry tinha a sensação sinistra de que os professores eram todos jovens de dezessete anos e que apenas
aquele rapazinho arcava com o triste cinismo da maturidade.
Entretanto sabia que jamais se esqueceria do momento em que por fim, e com alegria, aceitara o amor. Fora num dia agradável de começo de primavera; teria sido só
seis meses atrás? Os dois sentados lado a lado, onde ele estava agora, ao sol do começo de tarde, com os livros no colo, prontos para começar a aula de história
das duas e meia. Peter usava uma camisa de manga curta e ele enrolara as mangas da sua, para sentir o primeiro calor do sol sobre os pêlos dos braços. Ambos calados,
como ele estava agora. E então, sem se virar para olhá-lo, Peter pusera o braço junto ao de Henry e, deliberadamente, como se cada movimento fizesse parte de um
ritual, de uma afirmação, enroscara os dedos em sua mão, até que as palmas se juntaram, carne com carne. Os nervos e o sangue de Henry lembravam-se desse momento
e haveriam de se lembrar até a morte: o choque, o enleio, a percepção repentina da alegria, o despontar de uma felicidade absoluta e genuína enraizada, apesar da
forte emoção e, por paradoxal que fosse, na plenitude e na paz. Naquele momento, foi como se tudo o que lhe acontecera na vida, o trabalho, a doença e a ida para
a vila Toynton, o tivesse conduzido, sem escapatória, para aquele amor. Tudo - sucesso, fracasso, sofrimento, frustração - havia levado àquilo e se justificava naquilo.
Nunca estivera tão consciente do corpo de alguém: dos batimentos cardíacos no pulso magro, do labirinto de veias azuis junto às suas, do sangue correndo em harmonia
com o seu, da carne delicada, macia e lisinha do braço, dos ossos nos dedos infantis pousados com toda a confiança entre os seus. Comparadas à intimidade daquele
primeiro toque, todas as aventuras anteriores da carne haviam sido uma fraude. E assim foi que continuaram em silêncio por um tempo indeterminado e incalculável,
antes de se virarem para olhar, de início com seriedade e depois sorrindo, um nos olhos do outro.
Como pudera subestimar Wilfred daquela forma? Seguro e satisfeito, confiante no amor confessado e retribuído, tratara as insinuações e as admoestações de Wilfred
- quando conseguiam lhe penetrar na consciência - com um desdém compadecido, considerando-as tão reais ou ameaçadoras quanto os balidos trêmulos de um professor
tímido e ineficiente, obcecado em advertir alunos sobre vícios que contrariassem a natureza.
- É muita bondade sua dedicar tanto tempo assim a Peter, mas não podemos nos esquecer de que somos uma família só, aqui na vila Toynton. Os outros também gostariam
de receber um quinhão de seu interesse. Talvez não seja bom, ou prudente, mostrar uma preferência tão marcada por uma única pessoa. A meu ver, Ursula, Jennie e até
o pobre Georgie às vezes se sentem deixados de lado.
Henry mal ouvia e com toda a certeza nunca se deu ao trabalho de responder.
- Henry, Dot me disse que você agora deu de trancar a porta quando está dando aulas para Peter. Eu preferiria que você não fizesse isso. Uma de nossas regras é jamais
trancar as portas. Se algum de vocês dois precisar de socorro médico urgente, pode ser muito perigoso.
Henry continuara a trancar a porta e a manter as chaves sempre consigo. Ele e Peter poderiam ser as únicas pessoas em toda a casa. À noite, na cama, começara a planejar
e sonhar, de início com certa hesitação e depois com a euforia da esperança. Ele desistira cedo demais, sem lutar. Ainda havia algum futuro pela frente. A mãe do
garoto quase nunca o visitava, pouco escrevia. Por que não saírem ambos da vila Toynton e irem morar juntos? Ele tinha a aposentadoria e algum capital. Poderia comprar
uma casa pequena, em Oxford ou Cambridge, talvez, e adaptá-la para as duas cadeiras de rodas. Quando Peter fosse para a faculdade, ele precisaria de uma casa. Fez
cálculos, escreveu para o gerente do banco, esquematizou até os mínimos detalhes para que o plano pudesse ser exposto a Peter em toda sua racionalidade e beleza.
Sabia que havia perigos. Ele iria piorar; já Peter, com um pouco de sorte, seria capaz até de melhorar. Não poderia jamais se tornar um fardo para o garoto. Numa
única ocasião, apenas, o padre Baddeley mencionara diretamente o assunto: no dia em que fora levar um livro de que Henry pretendia pedir um resumo como tarefa. Ao
sair, o padre dissera, com brandura, mas como sempre sem se furtar à verdade:
- Sua doença é progressiva, a do Peter não. Um dia ele terá de continuar sem você. Lembre-se disso, meu filho. - E Henry não se esqueceria.
No começo de agosto, a sra. Bonnington providenciou para que Peter fosse passar quinze dias com ela em casa. A viúva chamou isso de férias. Henry disse:
- Não me escreva. Nunca espero nada de bom de uma carta. Eu o vejo de novo daqui a duas semanas.
Porém Peter não voltou. Uma noite antes da data em que deveria regressar, Wilfred deu a notícia durante o jantar, com olhos que evitaram com todo o cuidado os de
Henry.
- Vocês vão ficar satisfeitos de saber, pelo bem de Peter, que a senhora Bonnington encontrou um lugar para ele mais perto de casa e que ele não voltará para cá.
Ela espera se casar em breve e, junto com o marido, quer visitar o filho com mais freqüência e tê-lo em casa nos fins de semana, às vezes. A nova casa de repouso
vai providenciar para que a educação de Peter prossiga. Todos vocês trabalharam muito por ele. Sei que ficarão satisfeitos em saber que não desperdiçaram seu tempo.
Fora tudo engenhosamente planejado; ao menos esse crédito teria de ser dado a Wilfred. Decerto houvera telefonemas e recados discretos para a mãe, negociações com
a nova casa de repouso. Peter devia ter ficado na lista de espera durante várias semanas, quem sabe meses. Henry podia até imaginar as frases.
“Interesses mórbidos; afeições anormais; exigindo muito do rapaz; pressão psicológica e mental.”
Quase ninguém na vila Toynton tocou no assunto da transferência com ele. Não queriam ser contaminados por sua tristeza. Grace Willison dissera, encolhendo-se toda
diante do olhar furioso de Henry:
- Todos nós vamos sentir muita falta dele, mas a própria mãe... É natural que ela o queira mais perto.
- Mas é claro. Perfeitamente. Vamos todos nos curvar aos sagrados direitos da maternidade.
Em pouco mais de uma semana, todos pareciam ter se esquecido de Peter e haviam voltado a seus antigos interesses, com a mesma facilidade com que as crianças abandonam
um brinquedo novo atrás do outro no Natal. Holroyd desmanchou seu aparato e o levou embora.
- Que lhe sirva de lição, meu caro Henry. Não deposite sua confiança em meninos bonitos. Ninguém pressupõe que ele tenha sido arrastado à força para a nova casa
de repouso.
- Pode muito bem ter sido.
- Ah, por favor! O rapaz já é praticamente maior de idade. Está em plena posse de suas faculdades mentais e é capaz de falar. Pode segurar uma caneta. Precisamos
admitir que nossa companhia era menos fascinante do que imaginávamos. Peter é cordato. Não levantou a menor objeção quando foi despejado aqui e não tenho a menor
dúvida de que também não se opôs quando o arrastaram daqui.
Num gesto impulsivo, Henry agarrara o braço do padre Baddeley, que passava, e lhe perguntara:
- O senhor contribuiu para esse triunfo da moralidade e do amor materno?
O padre sacudira a cabeça de leve, num gesto tão rápido que mal dera para perceber. Tinha feito menção de falar e, em seguida, depois de apertar o ombro de Henry
com a mão, seguira em frente - uma das raras ocasiões em que não soubera o que fazer e não oferecera consolo. Henry no entanto fora tomado por uma onda de raiva
e ressentimento que não sentira contra ninguém mais da vila Toynton. Michael Baddeley, em pleno gozo das pernas e da voz, que não fora reduzido pela ira a um bufão
empacado e baboso. Michael Baddeley, que sem dúvida seria capaz de evitar aquela monstruosidade, se não tivesse se deixado inibir pela timidez e sobretudo pelo medo
da carne, por sua aversão a ela. Michael Baddeley, que não tinha por que estar na vila Toynton, a menos que fosse para afirmar o amor.
Não houve nenhuma carta. Henry se vira reduzido a oferecer suborno a Philby, para que recolhesse a correspondência. Sua paranóia atingira a fase de achar que Wilfred
poderia estar interceptando as cartas de Peter. Ele próprio não escreveu. Mesmo que fazê-lo ou deixar de fazer fosse uma preocupação que lhe ocupasse a maior parte
do tempo. Porém, menos de seis semanas depois, a sra. Bonnington escreveu a Wilfred para contar que Peter morrera de pneumonia. Henry sabia que isso poderia ter
acontecido a qualquer hora, em qualquer lugar. E que não significava, necessariamente, que os médicos e enfermeiros da outra casa de repouso fossem piores que os
da vila Toynton. Peter sempre correra o risco de contrair alguma doença. Mas, lá no fundo, Henry sabia que poderia ter mantido Peter saudável. Ao planejar a transferência
de Peter da vila Toynton, Wilfred o matara.
E o assassino de Peter continuou a cuidar dos seus afazeres, a sorrir sorrisos enviesados de indulgência, a aconchegar com grande cerimônia as dobras de seu manto
em volta do corpo, protegendo-se das contaminações da emoção humana, a controlar com complacência os objetos defeituosos de sua benemerência. Seria imaginação sua
ou Wilfred de fato passara a ter medo dele? Mal se falavam, agora. Solitário por natureza, Henry se tornara casmurro depois da morte de Peter. Fora do horário das
refeições, passava boa parte dos dias no quarto, espiando o promontório deserto, sem ler nem trabalhar, tomado por um tédio profundo. Mais do que sentir ódio de
tudo, apenas sabia que odiava. Amor, alegria, raiva, até mesmo dor, eram emoções fortes demais para sua personalidade amesquinhada. Delas, só se julgava capaz de
acalentar as sombras pálidas. Porém o ódio era como uma febre latente estagnada no sangue; às vezes irrompia num delírio aterrador. Fora durante um desses surtos
que Victor Holroyd lhe cochichara ao ouvido, depois de atravessar o pátio com a cadeira de rodas e manobrá-la até chegar bem perto. A boca de Victor, rosada e bem
delineada como a de uma moça - uma ferida bem-feita sobre o queixo forte azulado -, franziu-se para despejar seu veneno. O hálito azedo penetrou nas narinas de Henry.
- Soube de um detalhe muito interessante a respeito de nosso querido Wilfred. E vou contá-lo a você, no futuro, mas por enquanto perdão por querer saboreá-lo sozinho
por mais um tempo. Haverá um momento certo para a revelação. É preciso procurar sempre pelo máximo de efeito dramático. - O ódio e o tédio os haviam levado a partilhar
segredos, a formular em conjunto seus míseros planos de vingança e traição.
Henry espiou pelas janelas altas e curvas, na direção do promontório se elevando a oeste. A escuridão vinha descendo. Em algum lugar, a maré irrequieta polia as
pedras, pedras lavadas para sempre do sangue de Victor Holroyd. Nem mesmo um fiapo de pano rasgado restara para que nele se agarrassem as cracas. As mãos mortas
de Victor Holroyd feito algas flutuantes, movendo-se lentas ao sabor da maré, os olhos cheios de areia voltados para cima, na direção das gaivotas. Qual era mesmo
o poema de Walt Whitman que Holroyd lera durante o jantar, uma noite antes de morrer?
Acerca-te, poderosa salvadora,
E quando assim for, quando tiveres levado a todos,
[jubiloso cantarei os mortos,
Perdidos em teu amoroso oceano flutuante,
Expurgados na corrente de tua beatitude, ó morte.
A noite silenciosa sob as muitas estrelas,
A praia e a onda rouca cujos sussurros eu tão bem
[conheço,
E a alma apelando para ti, ó vasta e velada morte,
E o corpo agradecido a teus pés se aninhando.
Por que aquele poema em especial, com sua sentimentalidade resignada, ao mesmo tempo tão avessa ao espírito antagônico de Holroyd e no entanto tão profeticamente
adequada? Estaria ele dizendo a todos, ainda que pelo inconsciente, que sabia o que tinha de acontecer, que aceitava e recebia de bom grado o inevitável? Peter e
Holroyd. Holroyd e Baddeley. E agora esse policial, amigo de Baddeley, que surgira de seu passado. Por quê? E para quê? Talvez ficasse sabendo de alguma coisa, quando
fossem tomar um drinque com Julius, após o jantar. O que, aliás, valia também para Dalgliesh, é claro. “Não há uma arte para descobrir na face o que se passa dentro
da alma.” Mas Duncan estava enganado. Havia, sim, essa arte, e o comandante da Polícia Metropolitana seria mais versado nela do que a maioria. Bem, se era por isso
que viera, que começasse depois do jantar. Essa noite ele, Henry, jantaria no quarto. Quando chamado, Philby lhe traria uma bandeja e a plantaria sem a menor cerimônia
e com resmungos à sua frente. Não dava para comprar cortesia de Philby, mas dava, raciocinou com uma satisfação sombria, para comprar quase tudo o mais.
III
- “Meu corpo é minha prisão; e tamanha minha obediência à Lei que dela jamais hei de fugir; não apressarei minha morte definhando ou torturando meu corpo. Mas se
porventura esta prisão for consumida pelo fogo de febres contínuas, ou derrubada por vapores mórbidos, haverá alguém tão enamorado do terreno sobre o qual tal prisão
se ergue a ponto de desejar ficar, em vez de ir para casa?”
Dalgliesh pensou com seus botões que o grande problema não era o fato de Donne não combinar com o carneiro ensopado, e sim o de o carneiro não descer muito bem com
o vinho caseiro. Nenhum dos dois, por si só, chegava a ser intragável. O carneiro, feito com cebolas, batatas e cenouras e temperado com ervas, até que estava muito
bom, ainda que um tanto gorduroso. O vinho de sabugueiro era um lembrete nostálgico de visitas obrigatórias feitas com o pai a paroquianos doentes ou hospitalizados.
Juntos, tinham um gosto letal. Estendeu a mão para pegar a garrafa de água.
À sua frente tinha Millicent Hammitt, o carão quadrado suavizado pela iluminação a vela e a ausência no período da tarde explicada: vindo das ondas rígidas da carapaça
de cabelos grisalhos, chegava ao nariz do comandante um odor penetrante de laquê. Estavam todos presentes, exceto pelos Hewsons, que presumivelmente jantavam em
casa, e por Henry Carwardine. No outro extremo da mesa, Albert Philby comia um pouco afastado dos outros, um Caliban com ares monásticos, de hábito marrom, debruçado
sobre a mesa. Comia fazendo barulho, rasgando o pão em nacos para com ele limpar o prato. Dalgliesh, desdenhoso do próprio fastio, tentou fechar os ouvidos aos sons
abafados de baba, ao raspar sincopado de colheres nos pratos, ao súbito arroto discretamente controlado.
- “Se partiste daquela Mesa em paz, podes partir em paz deste mundo. E a paz daquela Mesa significa partir na paz almejada, com a mente saciada...”
Wilfred lia em uma mesinha posta à cabeceira da mesa de jantar, ladeado por duas velas em candelabros de metal. Jeoffrey, empanzinado de comida, dormia cerimoniosamente
enroscado a seus pés. Wilfred tinha boa voz e sabia como usá-la. Um ator frustrado? Ou um ator que encontrara seu palco e que, desde então, não parara de interpretar,
satisfeito da vida, indiferente ao número cada vez menor de espectadores na platéia, à estagnação progressiva de um sonho? Um neurótico impelido pela obsessão? Ou
um homem em paz consigo mesmo, seguro no âmago tranqüilo de seu ser?
De repente, a chama das quatro velas da mesa aumentou e chiou. Os ouvidos de Dalgliesh perceberam o vago rangido de rodas, o baque suave de metal na madeira. A porta
abria-se com vagar. A voz de Wilfred engasgou e em seguida cessou. Uma colher raspou com violência num prato. Das sombras, surgiu uma cadeira de rodas e seu ocupante,
de cabeça baixa, embrulhado numa capa grossa xadrez. Grace Willison soltou um gemido triste e arranhou o sinal da cruz sobre o vestido cinzento. De Ursula Hollis
veio uma arfada. Ninguém abriu a boca. Sem mais nem menos, Jennie Pegram deu um grito, ardido e insistente como um apito de lata. O som foi tão irreal que Dot Moxon
girou a cabeça para os lados, como se não tivesse certeza sobre de onde viera o ruído. O grito morreu numa risadinha. A moça cobriu a boca com a mão e disse:
- Achei que fosse o Victor! Essa capa é dele.
Ninguém mais se mexeu ou falou. Curioso, Dalgliesh olhou de relance para os presentes e se deteve alguns momentos na expressão de Dennis Lerner. O rosto do rapaz
era uma máscara de terror que devagar se desmanchou em alívio, como se as feições tivessem desabado e se esmigalhado, tão amorfas quanto uma pintura borrada. Carwardine
moveu sua cadeira até a mesa. Teve uma certa dificuldade para conseguir falar. Uma gota de muco rebrilhou qual uma jóia amarela à luz da vela e escorreu pelo queixo.
Por fim, ele disse, com sua voz distorcida:
- Achei que seria uma boa idéia fazer companhia a vocês durante o café. Me pareceu descortesia ficar ausente na primeira noite de nosso convidado.
A voz de Dot Moxon saiu ríspida:
- Precisava usar essa capa?
Henry virou-se para ela.
- Senti frio e ela estava pendurada no escritório. Além do mais, temos tanto em comum. Será que precisamos mesmo excluir os mortos?
Wilfred interveio:
- Não vamos nos esquecer da Regra.
Todos viraram o rosto para ele, feito crianças obedientes. Wilfred aguardou até que tivessem recomeçado a comer. As mãos que seguravam as laterais da mesinha de
leitura estavam firmes e a voz bonita voltara ao controle.
- “E assim navegando seguro, naquela calma, tenha o Senhor te ampliado a viagem alongando-te a vida, tenha Ele te mandado ancorar junto ao bafejo, junto ao desalento
da morte, de um jeito ou de outro, Leste ou Oeste, que possas partir em paz...”
IV
Passava das oito e meia quando Dalgliesh e Henry Carwardine se puseram a caminho da casa de Julius Court. Não era uma tarefa fácil para um homem no início da convalescença
empurrar a cadeira de rodas. Apesar de magro, Carwardine era pesado, e a ladeira, pedregosa. Dalgliesh não quis sugerir o carro porque ter de ser içado pela porta
estreita do veículo poderia ser mais penoso e humilhante para o companheiro do que a cadeira costumeira. Anstey ia passando pelo saguão, na saída. Ele abrira a porta
e se prontificara a guiar a cadeira na descida da rampa, mas não fizera nenhuma outra tentativa de ajudar, nem oferecera o microônibus. Dalgliesh não saberia dizer
se no boa-noite final de Wilfred tinha havido ou não um quê de censura ao passeio.
Fizeram a primeira parte do trajeto em silêncio. Carwardine instalara uma lanterna pesada entre os joelhos e tentava manter o facho estável sobre a trilha. O círculo
de luz, que balançava e rodopiava à frente deles com cada solavanco da cadeira, iluminava com clareza impressionante um mundo noturno e secreto de verdes, movimentos
e vidas em fuga. Dalgliesh, um tanto zonzo de cansaço, sentia-se uma criatura à parte do ambiente físico que o rodeava. As duas alças revestidas de borracha, próprias
para conduzir a cadeira e escorregadias ao toque, estavam bambas e se retorciam de modo irritante em suas mãos, como se não guardassem a menor relação com o restante.
A trilha era real apenas porque as pedras e os buracos faziam as rodas chacoalhar. Estava uma noite calma e tépida para outubro, o ar impregnado com o cheiro da
relva e das últimas flores de verão. Nuvens baixas haviam encoberto as estrelas, e eles avançavam em quase total escuridão rumo ao murmúrio cada vez mais forte do
mar e aos quatro retângulos de luz que marcavam o bangalô Toynton. Quando se achavam perto o suficiente para discernir um dos retângulos como a porta traseira da
casa, Dalgliesh falou num impulso repentino:
- Encontrei uma carta anônima bastante desagradável na escrivaninha do padre Baddeley. Pelo visto alguém na vila Toynton não gostava muito dele. E fiquei me perguntando
se seria uma desavença pessoal ou se alguém mais recebeu algo parecido.
Carwardine inclinou a cabeça para trás. Dalgliesh viu um rosto estranhamente escorçado, com o nariz bem marcado, lembrando uma garra, o maxilar pendurado como o
de um marionete abaixo do vazio disforme da boca. Ele disse:
- Recebi uma faz dez meses; foi enfiada num livro que eu estava lendo. Não recebi mais nada, de lá para cá, e não sei de ninguém mais que tenha recebido. Não é exatamente
o tipo de assunto para se comentar, mas acho que a notícia teria se espalhado, se fosse algo mais generalizado. A minha foi, imagino, o lixo de costume. Sugeria
alguns métodos de auto-satisfação sexual um tanto acrobáticos, supondo-se que eu ainda tivesse a agilidade física para executá-los. E tomava o desejo de executá-los
como favas contadas.
- Quer dizer que era uma carta obscena, mais do que ofensiva?
- Obscena na medida em que foi planejada para enojar, mais do que depravar ou corromper.
- Tem alguma idéia de quem possa ter sido o responsável?
- A carta foi datilografada em papel da vila Toynton e na velha Remington, que é usada sobretudo por Grace Willison para bater o boletim trimestral. Ela me pareceu
a mais provável candidata. Ursula Hollis só chegou dois meses depois. Essas coisas não são em geral obra de solteironas de meia-idade?
- No caso em questão, duvido.
- Bem, eu me curvo à sua experiência mais vasta em obscenidades.
- Mencionou a carta a alguém?
- Só falei sobre isso com Julius. Ele achou melhor eu não contar a ninguém e sugeriu que eu a rasgasse e jogasse na privada. O conselho coincidiu com minhas próprias
inclinações e então foi o que fiz. Como eu disse, de lá para cá não recebi mais nada. Desconfio que o esporte perde muito da emoção quando a vítima não mostra o
menor sinal de preocupação.
- Poderia ter sido obra de Holroyd?
- Não me pareceu ser o estilo dele. Victor era agressivo, mas de uma outra forma, acho eu. Sua arma era a voz, não a pena. Pessoalmente, nunca tive nenhuma queixa
dele, ao contrário dos demais. No fundo, me parecia uma criança infeliz. Havia nele mais amargura do que rancor. Verdade que fez um aditamento um tanto infantil
no testamento, uma semana antes de morrer; Philby e a senhora Reynolds, a caseira de Julius, foram as testemunhas. Mas é muito provável que já tivesse se resolvido,
sabia que iria morrer e quis nos poupar da obrigação de lembrá-lo com alguma bondade.
- Quer dizer que acha que ele se matou?
- Mas é claro. Assim como todos os demais. O que mais pode ter sido? Me parece a hipótese mais provável. Porque, se não foi suicídio, foi assassinato.
Era a primeira vez que alguém da vila Toynton usava aquela palavra agourenta. Dita pela voz pedante e um tanto aguda de Carwardine, soava tão incongruente quanto
uma blasfêmia na boca de uma freira.
- Ou o breque da cadeira podia estar com algum defeito.
- Tendo em vista as circunstâncias, eu consideraria isso um homicídio.
Houve um breve silêncio. A cadeira esbarrou numa pedra maiorzinha e a lanterna apontou para cima num arco amplo, um frágil holofote em miniatura. Carwardine equilibrou-a
de novo entre os joelhos e continuou:
- Philby pôs óleo e examinou os freios da cadeira uma noite antes de Victor morrer. Eram oito e cinqüenta, me lembro bem. Eu estava na oficina, mexendo com argila,
nessa hora. Eu o vi. Ele saiu de lá pouco depois e eu fiquei até umas dez.
- Contou isso à polícia?
- Como eles me perguntaram, eu contei. Na verdade, eles indagaram com uma civilidade meio carregada onde eu havia estado aquela noite e se por acaso tinha tocado
na cadeira de Victor depois de Philby. Uma vez que se eu tivesse mexido nela dificilmente teria admitido o fato, a pergunta me pareceu ingênua. Também interrogaram
Philby, se bem que não na minha frente, e não tenho dúvida de que confirmaram minha história. Tenho uma atitude meio ambivalente diante da autoridade policial; restrinjo-me
a responder apenas às perguntas feitas, mas sob a premissa de que, no geral, a polícia tem direito à verdade.
Tinham chegado. A luz jorrava da porta de trás da casa, e Julius Court, uma silhueta escura, surgiu para recebê-los. Tomou a cadeira das mãos de Dalgliesh e empurrou-a
ao longo do curto corredor de pedra que levava à sala de estar. No caminho, Dalgliesh teve tempo de espiar de relance, pela porta entreaberta, as paredes revestidas
de pinho, o chão de lajotas vermelhas e as panelas brilhantes de cobre da cozinha, uma cozinha muito semelhante à sua, onde uma mulher com salário bem acima e carga
de trabalho bem abaixo da média - tudo uma questão de aliviar o sentimento de culpa do patrão pela ousadia de empregá-la - preparava refeições esporádicas para satisfazer
o paladar enfastiado de uma única pessoa.
Pelo tamanho da sala, que ocupava toda a parte dianteira da construção, dava para ver que o bangalô Toynton era o resultado da reforma de duas casas geminadas. O
fogo crepitava na lareira, mas as duas janelas altas estavam abertas. As paredes de pedra vibravam com o martelar do mar. Era desconcertante estar tão perto do precipício
e no entanto não saber, exatamente, a que distância. Como se lesse seus pensamentos, Julius disse:
- Estamos a seis metros apenas da beirada. São doze metros até lá embaixo. Há um pátio de pedra e uma mureta aí fora. Podemos sentar lá mais tarde, se não estiver
muito frio. O que vai beber, destilado ou vinho? Eu sei que Henry prefere um clarete.
Dalgliesh não se arrependeu de sua escolha quando viu os rótulos das três garrafas, duas delas já desarrolhadas, que aguardavam sobre a mesinha baixa perto da lareira.
Surpreendeu-o que um vinho de tamanha qualidade fosse oferecido a duas visitas ocasionais. Enquanto Julius se ocupava em pegar as taças, Dalgliesh deu uma volta
pela sala, que continha objetos invejáveis, caso o observador se sentisse inclinado a admirar tesouros pessoais. O olhar animou-se ao ver o jarro Sunderland de louça
esmaltada, produzido para comemorar a Batalha de Trafalgar, as três estatuetas Staffordshire sobre o consolo de pedra da lareira e as duas marinhas penduradas na
parede mais comprida. Em cima da porta que dava para o penhasco havia uma carranca de navio muito bem entalhada em carvalho: dois querubins arcavam com um galeão
encimado por um escudo envolto em nós intrincados de marinheiro. Vendo seu interesse, Julius disse:
- Foi feito por volta de 1660 por Grinling Gibbons, ao que consta para Jacob Court, um contrabandista famoso da região. Até onde me foi dado descobrir, não se trata
de nenhum ancestral, o que não deixa de ser azar meu. Talvez seja a carranca de navio mercante mais antiga de que se tem notícia. Greenwich acha que existe uma mais
antiga, mas, na dúvida, atribuo à minha uns dois anos a mais de vida.
Sobre um pedestal no outro extremo da sala, reluzindo de leve como se fosse luminoso, havia o busto em mármore de uma criança alada, segurando na mão gorducha um
ramalhete de botões de rosa e lírios-do-vale. O mármore era da cor de café fraco, à exceção das pálpebras, que tinham uma ligeira tonalidade rósea. As mãos sem veios
seguravam as flores na vertical, com o gesto afoito de uma criança; os lábios entreabertos do menino esboçavam um meio sorriso, tranqüilo e enigmático. Dalgliesh
estendeu um dedo e afagou-lhe delicadamente o rosto; chegou quase a senti-lo quente ao toque. Julius aproximou-se, com duas taças.
- Gostou do meu mármore? Pertenceu a algum túmulo, claro. Do século XVII ou começo do XVIII, de um discípulo de Bernini. Desconfio que Henry gostaria mais dele se
fosse um Bernini.
Henry gritou de onde estava:
- Gostaria coisa nenhuma. Já disse que estou disposto a pagar mais por ele.
Dalgliesh e Court voltaram para perto da lareira e se acomodaram; tudo indicava que seria uma noitada para beber feito gente grande. Os olhos do comandante vagaram
pelo aposento. Não havia ali nenhuma bravata, nenhum esforço consciente de ser original ou provocar admiração. No entanto, a sala era fruto de um planejamento cuidadoso:
cada objeto estava no lugar certo. Haviam sido comprados com apreço; não faziam parte de um plano cauteloso de valorização de capital, nem tinham sido adquiridos
por uma obsessão de aumentar a coleção. Mesmo assim, Dalgliesh duvidava que tivessem sido descobertos ao acaso ou custado barato. A mobília era outra prova de uma
situação financeira bastante confortável. O sofá de couro e as duas poltronas também de couro com o encosto em gomos talvez fossem um tanto opulentos para as dimensões
e para a simplicidade da sala, mas estava claro que Julius optara por aqueles estofados por uma questão de conforto. Dalgliesh censurou-se pelo puritanismo com que
comparou desfavoravelmente o ambiente com a saleta modesta e surrada do padre Baddeley.
Sentado em sua cadeira de rodas, espiando o fogo por cima da borda da taça, Carwardine de repente perguntou:
- Por acaso Baddeley o preveniu a respeito das manifestações mais bizarras da filantropia de Wilfred, ou sua visita não tinha sido planejada?
Dalgliesh já esperava por essa pergunta. E pressentiu que os outros dois estavam bem interessados na resposta.
- O padre me escreveu dizendo que ficaria contente em me ver. Então decidi vir. Passei uma temporada no hospital e me pareceu uma boa idéia convalescer uns dias
ao lado dele.
Ao que Carwardine respondeu:
- Não consigo pensar num lugar mais adequado do que o bangalô Esperança para uma convalescença, caso o interior seja o que o exterior promete. Conhecia o padre fazia
tempo?
- Desde menino. Ele foi vigário na paróquia de meu pai. Nosso último encontro, assim mesmo muito rápido, aconteceu quando eu ainda estava na faculdade.
- E estando satisfeitos de passar mais de uma década sem notícias um do outro, é claro que foi enorme a emoção de encontrá-lo tão inoportunamente morto.
Sem se irritar, Dalgliesh retrucou com toda a serenidade:
- Mais do que eu imaginava. Não havia muita comunicação entre nós, a não ser por ocasião do Natal, quando trocávamos um cartão, mas a verdade é que o padre Baddeley
talvez estivesse mais presente em meus pensamentos do que muita gente que eu vejo quase todos os dias. Não sei por que nunca procurei entrar em contato com ele.
Claro que sempre usamos a mesma desculpa: excesso de trabalho. Mas, pelo que me lembro dele, não vejo como ele se encaixaria aqui.
Julius riu.
- Ele não se encaixava. Foi recrutado durante uma das fases mais ortodoxas de Wilfred, desconfio que para dar à vila Toynton uma certa respeitabilidade religiosa.
Mas nos últimos meses senti uma certa frieza entre os dois. Você não, Henry? É provável que Baddeley não tivesse mais certeza se Wilfred queria um padre ou um guru.
A verdade é que Wilfred recolhe qualquer migalha de filosofia, metafísica e ortodoxia religiosa que lhe dê na veneta para tecer seu manto ideal em Technicolor. E
uma das conseqüências disso, como há de descobrir por si mesmo se ficar por aqui tempo suficiente, é que este lugar sofre da falta de um corpo unificado de crenças
e princípios. E não há nada mais fatal para o sucesso. Tome-se por exemplo meu clube londrino, dedicado apenas a saborear uma boa comida e um bom vinho e a excluir
os chatos e os pederastas. Não que isso esteja explícito, mas todos os sócios sabem onde pisam. Os objetivos são simples, compreensíveis e, portanto, realizáveis.
Aqui, os pobrezinhos não sabem se estão numa casa de repouso, numa comunidade, num hotel, num mosteiro ou num asilo totalmente desvairado. Eles têm até sessões de
meditação, de vez em quando. Desconfio que Wilfred está tendo um surto zen.
Carwardine interrompeu:
- Ele está meio confuso, mas quem não está? Basicamente, é uma pessoa bondosa e cheia de boas intenções, e pelo menos gastou o dinheiro que tinha com a vila Toynton.
Nesta nossa era de comprometimentos ruidosos em prol da satisfação própria, quando a primeira condição para qualquer protesto público ou privado é que não esteja
relacionado a nada pelo que o manifestante possa ser responsabilizado, nem envolva o mínimo sacrifício pessoal, isso, ao menos, fala a favor dele.
- Gosta dele? - Dalgliesh perguntou.
Henry Carwardine respondeu com uma aspereza surpreendente.
- Considerando que ele me salvou do castigo derradeiro de uma internação permanente num hospital e me dá um quarto particular por um preço que eu posso pagar, sinto-me
naturalmente obrigado a achá-lo encantador.
Fez-se um breve silêncio constrangido. Consciente do embaraço que provocara, o rapaz acrescentou:
- A comida é o que Toynton tem de pior, mas isso pode ser remediado, mesmo que de vez em quando eu me sinta como um colegial glutão, me banqueteando sozinho no quarto.
Mas só de pensar nas escolhas literárias dos meus colegas, naqueles malditos trechos de teologia popular, nas antologias baratas de poesia inglesa, já não considero
o preço tão salgado por um jantar silencioso.
- Achar mão-de-obra dever ser bem difícil - interveio Dalgliesh. - Segundo a senhora Hewson, Wilfred Anstey depende em grande medida de um ex-presidiário e de uma
enfermeira-chefe que não conseguiria emprego em mais lugar nenhum.
Julius pegou a garrafa de clarete e encheu de novo as três taças.
- Doce Maggie, discreta como sempre. É verdade que Philby, o faz-tudo, tem ficha na polícia. O sujeito não é exatamente a melhor publicidade para o lugar, mas alguém
tem que lavar a roupa suja, matar as galinhas, limpar os banheiros e fazer as outras tarefas que dão arrepios na alma sensível de Wilfred. Além do mais, ele tem
paixão por Dot Moxon e não resta dúvida de que isso ajuda a fazê-la feliz. Já que Maggie deixou escapar tanta coisa, acho melhor contar a verdade a respeito de Dot.
Talvez ainda se lembre do caso: ela era a famigerada enfermeira do hospital geriátrico Nettingfield. Quatro anos atrás, bateu numa paciente. Não foi nada de muito
sério, apenas um tapa, mas a velha senhora caiu, bateu com a cabeça no criado-mudo e quase morreu. Lendo as entrelinhas do inquérito subseqüente, dá para ver que
ela era uma megera egoísta e desbocada capaz de esgotar a paciência de um santo. A família nunca quis saber dela, nem sequer visitava a velha, até descobrir que
daria para conseguir uma bela publicidade favorável com manifestações de dignidade ultrajada. Perfeitamente justificada, sem dúvida. Todo paciente, por mais mal-humorado
que seja, é sacrossanto, e é do interesse de todos nós preservar esse preceito admirável. O incidente desencadeou uma série de queixas contra o hospital. Houve um
inquérito exaustivo que englobou a administração, os serviços médicos, a alimentação, a equipe de enfermagem, enfim, tudo. E claro que encontraram um bocado de irregularidades.
Logo em seguida, dois enfermeiros foram demitidos e Dot saiu de livre e espontânea vontade. O inquérito, embora condenasse a perda de controle por parte dela, eximiu-a
de qualquer suspeita de crueldade deliberada. Mas o estrago já estava feito; nenhum outro hospital quis contratá-la. Além da suspeita de que não fosse propriamente
confiável sob pressão, acabou sendo acusada de ter provocado um inquérito que não beneficiou ninguém e levou dois homens a perderem o emprego. Depois disso, Wilfred
tentou entrar em contato com ela; achou, pelos relatos do inquérito, que ela fora injustiçada. Levou algum tempo para localizá-la, mas acabou conseguindo e convidou-a
para vir para cá como uma espécie de enfermeira-chefe. Na verdade, como os demais integrantes da equipe, ela faz o que for preciso, das tarefas de enfermeira às
de cozinheira. Os motivos dele não foram de todo caridosos. É sempre muito difícil encontrar enfermeiros para trabalhar num lugar remoto e especializado como este,
apesar da falta de ortodoxia de Wilfred. Se ele perder Dorothy Moxon, não será muito fácil achar substitutos.
- Eu me lembro do caso - disse Dalgliesh. - Mas não do rosto. É a jovem loira, Jennnie Pegram, se não me engano, que me parece conhecida.
Carwardine sorriu; indulgente, um tanto desdenhoso.
- Sabia que iria perguntar sobre ela. Wilfred precisava encontrar uma forma de usá-la para angariar fundos. Ela iria adorar. Nunca conheci ninguém que expressasse
tão bem a força moral tristonha e sofrida de quem não compreende absolutamente nada. Explorada de forma correta, ela levantaria uma fortuna para o lugar.
Julius riu.
- Henry, como já deve ter reparado, não gosta muito da moça. Deve estar se lembrando dela da televisão. Ela apareceu um ano e meio atrás, mais ou menos. Foi o mês
que os meios de comunicação escolheram para fustigar a consciência dos britânicos em nome dos jovens com doenças crônicas, e o produtor do programa mandou seus assistentes
saírem em busca de vítimas adequadas. E eles encontraram Jennie. Ela fora tratada durante doze anos, e muitíssimo bem tratada, numa unidade geriátrica, em parte,
acho eu, porque não conseguiram encontrar nada mais adequado para ela, em parte porque ela gostava de ser a queridinha dos pacientes e das visitas e, também, porque
o hospital oferecia fisioterapia e terapia ocupacional, duas coisas com que Jennie se beneficiava. Mas claro que o programa tirou o máximo partido da situação dela:
“Garota infeliz de vinte e cinco anos encerrada entre velhos e moribundos; isolada da comunidade; desamparada; desesperançada”. Os mais senis dentre os pacientes
foram criteriosamente agrupados em volta dela diante da câmera, e Jennie fez seu papel às mil maravilhas. Acusações histéricas contra a desumanidade do Departamento
Nacional de Saúde, contra os hospitais regionais, contra os diretores dos hospitais. No dia seguinte, como se previa, houve uma explosão de indignação pública que
deve ter durado, imagino eu, até que fosse ao ar o protesto seguinte. O misericordioso público britânico exigiu que se encontrasse um lugar mais adequado para Jennie.
Wilfred escreveu, oferecendo uma vaga aqui; Jennie aceitou e, catorze meses atrás, ela chegou. Ninguém sabe ao certo o que ela pensa de nós. Eu daria tudo para saber
o que se passa pela cabeça de Jennie.
Dalgliesh ficou surpreso com o quão intimamente Julius conhecia a vida dos pacientes da vila Toynton, mas não fez mais perguntas. Distanciou-se discreto da conversa
e ficou tomando seu vinho, escutando os ecos das vozes dos dois conversando. E era a conversa sossegada, fácil, de homens que tinham conhecidos e interesses em comum,
que sabiam apenas o suficiente um do outro e que se davam apenas o suficiente para criar a ilusão de companheirismo. Não sentiu nenhum desejo especial de participar
daquilo. O vinho merecia silêncio. Deu-se conta de que era a primeira vez que tomava vinho desde a doença. Reconfortava-o pensar que mais um dos prazeres da vida
ainda detinha seu poder consolador. Levou bem um minuto para perceber que Julius falava diretamente com ele.
- Lamento que Wilfred o tenha convidado para ler um pouco de poesia. Mas até que foi bom, porque ilustra uma das coisas que acabará entendendo a respeito de Toynton.
Eles exploram. Não de propósito, mas não conseguem evitar. Eles dizem que querem ser tratados como pessoas comuns e depois fazem exigências que nenhuma pessoa comum
sonharia fazer e que, claro, não podemos recusar. Quem sabe assim acabe não sendo tão severo ao julgar aqueles de nós que não demonstram grande entusiasmo pela vila.
- Nós?
- O pequeno grupo de pessoas normais escravizadas por este lugar.
- Você se inclui entre elas?
- Claro que sim! Eu fujo para Londres, ou para o exterior, assim a maldição nunca me pega por completo. Mas pense em Millicent, enfurnada naquela casinha só porque
Wilfred permite que more ali sem pagar aluguel. Tudo o que ela queria na vida era voltar às mesas de bridge e aos bolos com creme de Cheltenham. Então por que não
o faz? E Maggie? Maggie diria que só o que ela quer é viver um pouco. Bem, isso é o que todos queremos, viver um pouco. Wilfred tentou interessá-la em ornitologia.
Lembro a resposta que ela deu. “Se eu tiver que observar mais uma maldita gaivota cagando no promontório eu saio correndo e me atiro no mar”. Doce Maggie. Eu bem
que gosto dela, quando está sóbria. E o que me diz de Eric? Bem, ele poderia escapar, se tivesse coragem. Cuidar de cinco pacientes e fazer a supervisão médica da
produção de creme para as mãos e sais de banho não é propriamente uma ocupação honrosa para um médico formado, mesmo para aqueles com uma queda infeliz por garotinhas.
E temos também Helen Rainer. Mas desconfio que o motivo da permanência de nossa enigmática Helen é mais natural e compreensível. No entanto são todos presas do tédio.
E agora eu é que o estou entediando. Gostaria de ouvir um pouco de música? Costumamos ouvir alguns discos, quando Henry vem me visitar.
O clarete sozinho, sem conversa nem música, teria contentado Dalgliesh. Mas reparou que Henry estava tão ansioso para ouvir um disco quanto Julius provavelmente
estava para demonstrar a superioridade de seu equipamento de som. Convidado a escolher, optou por Vivaldi. Enquanto a música tocava, ele deu uma saidinha. Julius
foi atrás e pararam os dois em silêncio diante da mureta baixa de pedra, na beira do precipício. O mar se abria diante deles revestido por uma leve luminosidade,
fantasmagórico sob o punhado de estrelas sem brilho lá no alto. Ele achava que seria hora da maré vazante, mas a água ainda parecia muito próxima, martelando as
pedras da praia em amplos acordes de som - um acompanhamento grave para o contraponto agudo e suave de violinos distantes. Pensou sentir um toque da espuma na testa,
mas, quando pôs a mão, percebeu que era apenas um truque da brisa gelada.
Quer dizer então que deviam ser dois os autores das cartas anônimas, mas apenas um genuinamente comprometido com seu negócio obsceno. Era evidente, pela perturbação
de Grace Willison e pelo nojo lacônico de Carwardine, que ambos haviam recebido um tipo de carta bem diferente daquela que ele encontrara no bangalô Esperança. Era
coincidência demais que houvesse duas pessoas enviando cartas anônimas ao mesmo tempo numa comunidade tão pequena. Só lhe restava presumir que o bilhete endereçado
ao padre Baddeley fora plantado na escrivaninha após sua morte com a finalidade expressa de ser encontrado por Dalgliesh. Se fosse esse o caso, então devia ter sido
posto ali por alguém que sabia ao menos da existência de uma das duas cartas, alguém que sabia que ela fora datilografada numa máquina da vila Toynton e em papel
da vila Toynton, mas que nunca vira a carta original. A carta de Grace Willison havia sido datilografada na Imperial e ela só mencionara o fato a Dot Moxon. A de
Carwardine, como a do padre Baddeley, fora feita na Remington, e Carwardine contara para Julius Court. A dedução era óbvia. Mas como é que um homem com a inteligência
de Court poderia imaginar que uma tramóia tão infantil fosse enganar um detetive profissional, ou mesmo um amador dedicado? Por outro lado, teria sido essa a intenção?
Dalgliesh assinara o bilhete enviado ao padre com suas iniciais, apenas. Se o cartão tivesse sido encontrado por alguém com a consciência pesada enquanto revirava
febrilmente a escrivaninha, seu conteúdo não teria revelado nada além do fato de que Baddeley esperava uma visita na tarde de 1o de outubro, uma visita com toda
a certeza tão inofensiva quanto um companheiro de sacerdócio ou um velho paroquiano. Mas, só para o caso de, na carta, ele ter mencionado alguma preocupação, talvez
a pessoa tivesse achado que valeria a pena falsificar e plantar uma pista. Com quase toda a certeza, fora colocada na escrivaninha pouco antes de sua chegada. Se
era verdade que Anstey tinha examinado a papelada do padre Baddeley na manhã seguinte à morte, seria impossível ele não ter visto a carta anônima. E ele não a deixaria
lá.
No entanto, mesmo que tudo aquilo fosse um conjunto elaborado e ultra-sofisticado de conjecturas, mesmo que o padre Baddeley tivesse de fato recebido o bilhete anônimo,
agora Dalgliesh tinha certeza de que não fora esse o motivo do chamado. Baddeley teria se sentido perfeitamente capaz tanto de descobrir o remetente quanto de ir
tirar satisfações. O padre não era uma pessoa mundana, mas também não era nenhum ingênuo. Ao contrário de Dalgliesh, talvez fosse muito raro ele se envolver profissionalmente
com os pecados mais espetaculares, o que não significava que não estivessem ao alcance de sua compreensão e, aliás, de sua compaixão. Pode-se argumentar, de todo
modo, que esses são os pecados que causam menos mal. Dos delitos mesquinhos mais corrosivos e maldosos, em toda sua triste e limitada variedade, ele, assim como
qualquer outro vigário de paróquia, haveria de ter tido seu quinhão. E para eles, Dalgliesh lembrou com ironia, sempre havia uma resposta misericordiosa, posto que
inexorável, pronta para ser oferecida com a suave arrogância da certeza absoluta. Não, quando o padre escreveu dizendo que queria um conselho profissional, era isso
que ele queria: um conselho que só um policial poderia dar sobre uma questão para a qual não se julgava qualificado. E era muito improvável que a tal questão incluísse
a descoberta de um autor rancoroso, mas não especialmente nocivo, de cartas anônimas operando numa comunidade pequena cujos membros ele devia conhecer muitíssimo
bem.
A perspectiva de tentar descobrir a verdade era deprimente. Ele estava ali na vila Toynton apenas como uma visita particular. Não tinha autoridade, não tinha os
meios, não tinha nem sequer o equipamento. A tarefa de pôr uma ordem nos livros do padre poderia se esticar por uma semana, talvez um pouco mais. Depois disso, que
desculpa teria ele para ficar? Além do mais, não descobrira nada que justificasse chamar a polícia local. O que significavam, no fundo, aquelas vagas suspeitas,
aquela sensação de mau agouro? Um velho morrendo do coração, sofrendo seu último e esperado ataque na paz de sua poltrona, querendo talvez em seu derradeiro momento
de consciência o contato com o tecido familiar da estola, erguendo-a por sobre a cabeça pela última vez por motivos que talvez nem tenham sido entendidos de todo,
para se consolar - quem sabe para se tranqüilizar - pelo simbolismo, pela simples afirmação de seu sacerdócio ou de sua fé. Havia dezenas de explicações, todas elas
muito simples, todas elas mais plausíveis que a visita secreta de um falso penitente assassino. O diário que sumira: quem poderia provar que ele próprio não o tivesse
destruído, antes de ir para o hospital? A fechadura arrombada da escrivaninha: não havia nada faltando e, até onde Dalgliesh sabia, nada de valor fora roubado. Na
ausência de outras provas, como justificar um inquérito oficial sobre uma chave sumida e uma fechadura arrombada?
No entanto o padre Baddeley o chamara. Alguma coisa o preocupava. Se Dalgliesh, sem grandes envolvimentos, perturbações ou constrangimentos, pudesse descobrir nos
próximos sete ou dez dias o que o estava atazanando, muito bem. Devia ao menos isso ao velho padre. Mas não levaria o caso adiante. No dia seguinte faria uma visita
à polícia local e ao advogado do padre. Se alguma coisa viesse à luz, a polícia se encarregaria do assunto. Ele pusera um ponto final no trabalho de detetive, profissional
ou amador, e seria preciso mais do que a morte de um velho vigário para fazê-lo mudar essa decisão.
V
Quando chegaram de volta à vila Toynton, pouco depois da meia-noite, Henry Carwardine foi áspero:
- Eles estão contando com sua ajuda para me pôr na cama. Em geral, Dennis Lerner me leva até a casa de Julius e vai me buscar à meia-noite, mas já que temos você
por aqui... Como disse o próprio Julius, somos todos exploradores na vila Toynton. E acho melhor eu tomar uma ducha. Amanhã é a folga de Dennis e eu não suporto
Philby. Meu quarto fica no primeiro andar. Vamos de elevador.
Henry sabia que estava sendo rude, porém isso, ele presumia, seria mais aceitável a seu calado companheiro do que demonstrações de humildade ou autocomiseração.
Ocorreu-lhe que Dalgliesh parecia estar ele próprio precisando de ajuda. Talvez tivesse estado mais doente do que imaginavam. Com toda a calma, Dalgliesh disse:
- Mais meia garrafa e desconfio que nós dois precisaríamos de ajuda. Mas farei o possível. Ponha a culpa pela falta de jeito na inexperiência e no clarete.
Entretanto foi surpreendentemente delicado e competente para tirar as roupas de Henry, ajudá-lo a ir até a privada e, por fim, levá-lo ao chuveiro. Passou um tempinho
examinando os equipamentos todos de içar e baixar, depois usou-os com inteligência. Quando não sabia o que era preciso, perguntava. Exceto por esses rápidos diálogos
necessários, não disseram mais nada. Henry pensou que poucas vezes na vida tinha sido posto na cama com delicadeza tão criativa. Entretanto, ao ver de relance no
espelho do banheiro o rosto tenso e preocupado do acompanhante, os olhos escuros, fundos de cansaço, reticentes, desejou na mesma hora não ter pedido ajuda; teria
sido preferível ir para a cama sem tomar banho, de roupa e tudo, livre do toque humilhante daquelas mãos competentes. Pressentiu que, por trás da calma disciplinada,
cada contato com seu corpo nu era um dever desagradável. E para o próprio Henry, de uma forma ilógica e surpreendente, o toque das mãos frias de Dalgliesh era como
o toque do medo. Quis gritar bem alto:
- O que você veio fazer aqui? Vá embora; não interfira; deixe-nos em paz. - O impulso foi tão forte que quase acreditou ter dito essas palavras em voz alta. E quando,
por fim, já confortavelmente instalado na cama por seu enfermeiro interino, Dalgliesh lhe deu um boa-noite súbito e saiu sem dizer mais nada, Henry sabia que era
porque ele não suportaria ouvir nem mesmo o mais superficial e desgracioso dos agradecimentos.
4
 A PRAIA FUNESTA
I
Pouco antes das sete, Dalgliesh foi arrancado de um sono pesado por ruídos inconvenientes que haviam se tornado velhos conhecidos seus: encanamentos indiscretos,
aparelhos barulhentos, rangidos de rodas, passos apressados e exortações resolutas em tons de alegria forçada. Sabendo que os pacientes precisariam dos banheiros,
fechou os olhos à impessoalidade desolada do quarto e decidiu dormir mais um pouco. Quando acordou de novo, depois de um sono agitado, o anexo estava silencioso.
Alguém - lembrava-se vagamente de um vulto de hábito castanho - colocara uma xícara de chá na mesinha de cabeceira. A bebida estava fria, a superfície acinzentada
salpicada de leite coagulado. Enfiou o roupão e saiu em busca de um banheiro.
Na vila Toynton, o café-da-manhã era servido, como imaginara, na sala de jantar comunitária. Mas, às oito e meia, das duas uma: ou se adiantara ou se atrasara demais,
porque não restava mais ninguém à mesa, exceto Ursula Hollis, que terminava seu desjejum quando ele chegou. Ela lhe deu um bom-dia tímido e voltou a se concentrar
no livro apoiado de forma precária num pote de mel. Dalgliesh reparou que a refeição era simples mas adequada. Havia uma tigela de maçãs cozidas; muesli caseira,
composta em grande parte de aveia, farelo de trigo e maçã ralada; pão integral, margarina e uma fileira de ovos quentes, cada qual no seu copinho, cada qual com
um nome escrito na casca. Os dois ovos restantes estavam frios. Pelo visto, eram preparados todos de uma vez, logo cedo, e, se alguém quisesse o seu quentinho, melhor
ser pontual. Dalgliesh pegou o ovo que trazia seu nome escrito a lápis. Estava pegajoso por cima e duro embaixo, um feito que, na sua opinião, exigiria algum tipo
de habilidade culinária muito perversa para ser conseguido.
Após o café, saiu em busca de Anstey para agradecer pela hospitalidade e perguntar se queria alguma coisa de Wareham. Resolvera que parte da tarde teria de ser dedicada
às compras, caso quisesse se instalar com algum conforto no bangalô do padre Baddeley. Uma rápida busca pela casa que parecia deserta levou-o até Anstey, trabalhando
com Dorothy Moxon no escritório. Estavam ambos sentados à escrivaninha, diante de uma pasta aberta. Quando Dalgliesh bateu e entrou, os dois ergueram os olhos ao
mesmo tempo, com ar de conspiradores culpados. Pelo visto levaram alguns segundos para perceber quem era. O sorriso de Anstey, quando surgiu, foi tão doce quanto
de costume, mas o olhar era raso. Dalgliesh teve a nítida impressão de que sua partida não seria lamentada. Talvez Wilfred Anstey se visse no papel do abade medieval
hospitaleiro, sempre pronto a servir o pão e a cerveja, mas no fundo ansiava apenas pelo prazer da hospitalidade, sem o inconveniente de ter de hospedar. Disse que
não queria nada de Wareham e em seguida perguntou a Dalgliesh quanto tempo pretendia ficar. Não havia pressa, claro. Que seu hóspede não se sentisse um incômodo,
em hipótese alguma. Quando Dalgliesh comunicou que ficaria só até selecionar e empacotar os livros do padre Baddeley, foi difícil para ele dissimular o alívio. Ofereceu-se
para mandar Philby até o bangalô Esperança com alguns caixotes. Dorothy Moxon não abriu a boca. Continuou a encará-lo como se houvesse decidido esconder tanto o
exaspero com a intromissão quanto o desejo de voltar a sua pasta não piscando nem ao menos uma vez os olhos sombrios.
Foi bom voltar ao bangalô Esperança, sentir de novo o cheiro um tanto eclesiástico mas tão familiar do velho padre e, melhor ainda, pensar na longa caminhada que
daria ao longo do penhasco, antes de ir a Wareham. Mas mal tivera tempo de desfazer a mala e calçar um par de sapatos mais apropriado quando ouviu o ônibus dos pacientes
frear em frente à casa; foi até a janela e viu Philby descarregando os primeiros dos prometidos caixotes. Colocou-os nos ombros, cruzou a entrada, abriu a porta
com um chute, levando consigo para dentro da sala um cheiro forte de suor azedo, largou os caixotes aos pés de Dalgliesh e disse, com rispidez:
- Tem mais dois na traseira.
Tratava-se de um convite mais do que óbvio para ajudar a descarregá-los, e Dalgliesh entendeu a deixa. Era a primeira vez que o via à luz do dia, e a visão não foi
das mais agradáveis. Para falar a verdade, raras vezes na vida vira um homem cujo aspecto físico o repelisse tanto. Com pouco mais de um metro e meio de altura,
Philby era corpulento, com braços e pernas roliços, tão pálidos e amorfos quanto troncos de árvore descascados. Tinha a cabeça bem redonda e uma pele, apesar da
vida ao ar livre, rosada, luzidia e muito lisa, como se polida pelo vento. Os olhos seriam extraordinários caso estivessem num rosto mais atraente. Eram meio puxados,
com íris grandes, de um negro azulado. O cabelo preto - o pouco que lhe restava - fora todo penteado por cima do crânio abobadado, até terminar numa franja desmazelada
e oleosa. Usava sandálias (a do pé direito amarrada com barbante), um calção branco tão curto que chegava quase a ser indecente e uma camiseta cinza, manchada de
suor. Por cima disso, aberto na frente e seguro por um cordão apenas, envergava seu hábito marrom de monge. Sem aquele traje incongruente, teria parecido só um sujeito
encardido e mal-encarado. Com ele, ficava decididamente sinistro.
E como não fez a menor tentativa de partir, depois de entregues os caixotes, Dalgliesh deduziu que esperava uma gorjeta. As moedas oferecidas foram introduzidas
no bolso do hábito com uma destreza matreira, sem um obrigado. Dalgliesh achou interessante ver que, apesar das experiências dispendiosas com a produção de ovos
caipiras, nem todas as leis da economia tinham sido enterradas naquela excelsa morada de amor fraterno. Philby deu um violento chute de adeus nos três caixotes,
como se, para merecer a gorjeta, precisasse mostrar que eram sólidos. E como permaneceram intactos, lançou-lhes um último olhar rabugento e se foi. Dalgliesh gostaria
de saber onde Anstey achara aquele integrante da equipe. A seus olhos desconfiados, o sujeito levava todo o jeito de um perigoso estuprador em dia de folga, mas
talvez isso já fosse ir um pouco longe demais, mesmo em se tratando de Wilfred Anstey.
Sua segunda tentativa de sair foi frustrada pela chegada de mais uma visita, dessa vez de Helen Rainer, montada numa bicicleta, levando no cestinho traseiro os lençóis
que ele usara na noite anterior. Explicou que Wilfred ficara preocupado com a possibilidade de os lençóis da casa não estarem bem arejados. Dalgliesh estranhou que
não tivesse aproveitado a oportunidade para pegar uma carona com Philby. Mas talvez, o que era bastante compreensível, achasse a proximidade dele repugnante. Ela
entrou, tranqüila mas rápida, e, sem fazer com que Dalgliesh se sentisse um estorvo, pelo menos não de modo explícito, transmitiu, de forma a não deixar nenhuma
margem para dúvidas, que aquela não era uma visita social, que não estava lá para conversar e que havia tarefas mais importantes à sua espera. Eles arrumaram a cama
juntos, a enfermeira Rainer estendendo os lençóis e dobrando cada canto com tamanha agilidade que Dalgliesh, um ou dois segundos atrasado, sentiu-se lento e incompetente.
De início, trabalharam em silêncio. Duvidava que fosse um momento oportuno para perguntar, por mais diplomático que fosse, como surgira o mal-entendido em torno
de quem ficara de ir ver o padre Baddeley na última noite de sua vida. Pelo visto, a temporada no hospital conseguira intimidá-lo. Foi preciso um esforço para dizer:
- Provavelmente estou sendo um pouco emotivo demais, mas teria sido bem melhor se o padre Baddeley não tivesse ficado sozinho aqui, na noite em que morreu, ou ao
menos que alguém tivesse vindo dar uma espiada nele, para ver se estava tudo bem.
Helen Rainer poderia muito bem ter respondido àquela crítica implícita dizendo que não era lá das mais apropriadas para alguém que não demonstrara a menor preocupação
com o velho durante quase trinta anos. Mas ela retrucou sem rancor nenhum, quase como se quisesse pôr a coisa em pratos limpos:
- É, isso foi muito ruim. Claro que, em termos médicos, não teria feito a menor diferença, mas esse mal-entendido não podia ter acontecido, um de nós deveria ter
vindo dar uma olhada nele. Quer mais um cobertor, além destes dois? Se não quiser, vou levar de volta para a vila Toynton, é um dos nossos.
- Dois serão suficientes. O que houve, exatamente?
- Com o padre Baddeley? Ele morreu de miocardite aguda.
- Quero dizer, como foi que surgiu esse mal-entendido?
- Quando ele chegou do hospital, eu lhe trouxe o almoço, galinha fria e salada, depois o ajudei a se acomodar para descansar um pouco. Ele estava precisando. Dot
lhe trouxe o chá da tarde e ajudou o padre a se lavar. Depois pôs o pijama nele, mas ele insistiu em usar a batina por cima. Pouco depois das seis e meia, preparei
uns ovos mexidos para ele, na cozinha daqui mesmo. Ele foi categórico quando disse que não queria ser perturbado, exceto, claro, pela visita de Grace Willison, mas
eu falei que alguém viria dar uma olhada nele lá pelas dez e ele não se incomodou com isso. Disse que bateria na parede com o atiçador do fogo, caso se sentisse
mal. Depois fui até a casa de Millicent para pedir a ela que ficasse atenta, e ela se ofereceu para vir dar uma espiada nele, mais tarde. Pelo menos foi o que eu
entendi. Lógico que ela achou que Eric ou eu viríamos vê-lo. Como eu disse, não deveria ter acontecido. A culpa foi toda minha. Eric não teve nada com isso. Como
enfermeira, eu deveria ter vindo vê-lo antes que fosse se deitar.
- Essa insistência em permanecer sozinho... Você teve a impressão de que ele esperava alguma visita?
- E que visita ele poderia estar esperando, fora a coitada da Grace? O que eu acho é que ele se fartou de ver gente no hospital e só estava querendo um pouco de
paz e tranqüilidade.
- E vocês estavam todos aqui, naquela noite?
- Todos menos Henry, que ainda não tinha voltado de Londres. Onde mais poderíamos estar?
- Quem desfez a mala dele?
- Eu. Ele foi internado às pressas e levou pouca coisa. Só o que achamos em cima da cama e pusemos na mala.
- A Bíblia, o breviário e o diário?
Helen ergueu os olhos para ele, muito de relance, sem expressão nenhuma no rosto, antes de se curvar outra vez para prender o cobertor.
- Exato.
- O que fez com essas coisas?
- Deixei tudo na mesinha ao lado da poltrona. Ele pode ter mexido nelas depois.
Quer dizer então que o padre Baddeley levara o diário consigo para o hospital. O que significava que todas as suas atividades haviam sido registradas. E, se Anstey
estivesse falando a verdade sobre não ter visto o último caderno na manhã subseqüente, então o diário fora retirado dali em algum momento daquelas doze horas.
Dalgliesh pensou um pouco antes de fazer a pergunta seguinte, para não despertar suspeitas. Sem nenhuma inflexão especial na voz, disse:
- Vocês podem tê-lo negligenciado em vida, mas cuidaram muito bem dele depois da morte. Primeiro a cremação, depois o enterro. Não foi um exagero, não?
Surpreso, Dalgliesh constatou que a enfermeira não se furtou à pergunta; foi quase como se ele a tivesse convidado a compartilhar uma indignação justificada.
- Claro que foi! Foi ridículo! E tudo por culpa de Millicent. Ela disse a Wilfred que Michael mencionara várias vezes seu desejo de ser cremado. Não consigo imaginar
quando nem por quê. Embora fossem vizinhos, ela e Michael não se viam lá com muita freqüência. Mas foi o que ela disse. Já Wilfred estava igualmente convencido de
que Michael gostaria de um enterro ortodoxo, de modo que o pobre homem teve os dois. O que significou uma complicação a mais e novas despesas. O doutor McKeith,
de Wareham, teve de assinar o atestado de óbito também, além de Eric. Toda essa confusão porque Wilfred sentiu a consciência pesada.
- É mesmo? E por quê?
- Por nada. Mas desconfio que ele achou que Michael tinha sido um pouco negligenciado nos últimos tempos, ou seja, nada mais do que o pesar complacente daqueles
que ficam pelos que se vão. Será que este travesseiro vai servir? Está me parecendo meio encaroçado, e o senhor pelo visto está precisando de uma boa noite de sono.
Se precisar de alguma coisa, é só dar um pulo até a vila Toynton. O leite é deixado no portão da divisa. Pedi para entregarem mais meio litro todos os dias, para
o senhor. Se for demais, sempre podemos aproveitar o que sobrar. Tem tudo de que precisa?
Com a sensação de estar vivendo sob um regime de rígida disciplina, Dalgliesh disse que sim, com toda a humildade. A animação da enfermeira Rainer, sua confiança,
a concentração no trabalho, até mesmo o sorriso tranqüilizador de despedida, tudo o relegava à condição de paciente. Enquanto ela empurrava a bicicleta pela ladeira
e montava de novo, ele pensou que podia muito bem ser um doente que tivesse acabado de receber uma visita da enfermeira distrital. Também cresceu seu respeito por
ela. Helen Rainer não se ressentira com suas perguntas e sem sombra de dúvida fora admiravelmente acessível. Restava saber por quê.
II
A manhã estava enevoada e o céu, cinzento e pesado. No momento em que ele deixou o vale para subir a trilha do penhasco, começou a chover - gordas gotas lentas e
relutantes. O mar tinha um tom leitoso de azul, indiferente e opaco, com ondas salpicadas de chuva cheias de desenhos cambiantes de espuma. Havia um cheiro de outono
no ar, como se, bem longe dali, impossível de detectar por algum fiapo de fumaça, alguém estivesse queimando folhas mortas. A trilha estreita subia contornando o
precipício, ora perto o bastante da beirada para lhe dar uma rápida e vertiginosa ilusão de perigo, ora serpenteando mais para dentro, entre samambaias cor de bronze
esfarrapadas pelo vento e moitas retorcidas de amoras mirradas e escassas, se comparadas aos frutos suculentos das amoreiras silvestres mais afastadas do mar. O
promontório era retalhado por muros baixos de pedra e crivado de rochas calcárias. Algumas, semi-enterradas, irrompiam do solo qual relíquias de um cemitério abandonado.
Dalgliesh caminhava com cautela. Era a primeira vez que saía para andar desde a doença. As exigências do trabalho significavam que, para ele, caminhar era sempre
um prazer muito raro e especial. Agora avançava com um pouco da incerteza daqueles primeiros passos vacilantes após qualquer doença - músculos e sentidos reencontrando
prazeres antigos, não com deleite indizível, mas sim com a aceitação dócil da familiaridade. O trinado breve e metálico e a nota rústica dos chascos-das-pedras numa
azáfama danada entre as amoreiras; uma solitária gaivota de cabeça preta, tão imóvel quanto uma figura de proa numa pedra; moitas de funcho-do-mar, as umbelas tingidas
de púrpura; dentes-de-leão cor de ouro, salpicos de luz na relva amarelecida de outono.
Após cerca de dez minutos de caminhada, veio uma descida suave, cortada de vez em quando por uma outra trilha que ia da beirada do precipício para dentro. A cerca
de seis metros do mar, o caminho alargava-se numa espécie de belvedere levemente inclinado, forrado de musgos e grama verde-clara. Dalgliesh parou de repente, como
se mordido por uma lembrança. Então era ali que Victor Holroyd ficava, fora dali que o rapaz mergulhara para a morte. Por alguns momentos, desejou que o local não
tivesse se interposto de forma tão inconveniente em seu caminho. A morte violenta viera como uma interrupção desagradável da euforia. Mas entendeu a atração daquele
pequeno platô. A trilha afundada era isolada e abrigada do vento; reinava ali uma sensação de privacidade e de paz - uma paz precária para um homem preso a uma cadeira
de rodas, com apenas um sistema de freio para manter o equilíbrio entre a vida e a morte. Entretanto isso talvez fosse parte do encanto. Quem sabe só ali, suspenso
acima do mar naquele trecho ermo de musgo brilhante, poderia Holroyd, frustrado e paralisado, ter a ilusão de liberdade, de estar no controle de seu destino. Quem
sabe sua intenção sempre tivesse sido esta, fazer ali a última tentativa de se libertar; afinal, durante meses insistira em ser levado sempre ao mesmo ponto, dando
tempo ao tempo para que ninguém da vila Toynton suspeitasse de nada. Por instinto, Dalgliesh examinou o terreno. Mais de três semanas haviam se passado desde a morte
de Holroyd, mas pensou estar vendo ainda na relva a leve depressão deixada pela cadeira e, com menor clareza, marcas onde o capim curto fora amassado pelas botinas
dos policiais.
Foi até a beirada e olhou para baixo. A vista, espetacular e assustadora, o deixou sem ar. A rocha era diferente ali, e o calcário cedera lugar a uma parede quase
vertical de argila escura, entremeada de pedras calcárias. Quarenta e cinco metros abaixo, o penhasco se desfazia num amontoado de rochas, lajes e nacos amorfos
de pedra de um preto-azulado que coalhavam a praia como se atirados com fúria selvagem por mão gigantesca. A maré estava baixa e a linha oblíqua de espuma movimentava-se
lenta entre as pedras mais distantes. Enquanto olhava para aquela massa caótica e espantosa de rochas e mar, tentando imaginar o que a queda teria feito com Holroyd,
o sol saiu caprichoso de trás das nuvens e uma faixa de luz iluminou o promontório, pousando quente em sua nuca como a mão de uma pessoa, dourando as samambaias
e conferindo às rochas soltas na beirada do precipício o aspecto de mármore. Entretanto, esse mesmo sol deixou a praia na sombra, sinistra e malévola. Por alguns
instantes, chegou a pensar que observava um litoral amaldiçoado e terrível, sobre o qual o sol jamais poderia brilhar.
Dalgliesh estava tentando chegar à torre negra assinalada no mapa do padre Baddeley, menos por curiosidade de vê-la do que pela necessidade de estabelecer um objetivo
para sua caminhada. Ainda matutando sobre a morte de Victor Holroyd, deparou com a torre de um jeito quase inesperado. Tratava-se de uma extravagância arquitetônica
ao mesmo tempo atarracada e assustadora, circular por cerca de dois terços da altura, mas encimada por uma cúpula oitavada, feito um pimenteiro antigo, perfurada
por oito fendas envidraçadas, pontos cardeais de luz reflexa que lhe davam o aspecto de uma espécie de farol. Intrigado, deu a volta completa na torre, tocando as
paredes negras. Reparou que fora construída com blocos de calcário, mas revestida com xisto negro, como se alguém tivesse resolvido decorá-la caprichosamente com
uma película de azeviche polido. Em certos lugares, o xisto caíra, dando-lhe uma aparência mosqueada; lâminas negras nacaradas espalhavam-se pela base das paredes
e reluziam entre o capim. Ao norte, abrigado do vento, havia um emaranhado de plantas, talvez uma tentativa antiga de fazer ali um jardim. Não restara nada além
de um chumaço desgrenhado de ásteres, punhados de antirrinos nascidos ao acaso, cravos-de-defunto, nastúrcios e uma única roseira estiolada, com dois botões brancos
raquíticos, o caule dobrado sobre uma pedra, como se resignada à primeira geada.
A leste, havia um pórtico de pedra trabalhada encimando uma porta de carvalho com traves de ferro. Dalgliesh pegou na maçaneta e girou-a com certa dificuldade. Mas
a porta estava trancada. Olhando para cima, viu uma placa grosseira de pedra na parede do pórtico, gravada com a seguinte inscrição:
NESTA TORRE MORREU
WILFRED MANCROFT ANSTEY
A 27 DE OUTUBRO DE 1887 AOS 69 ANOS
CONCEPTIO CULPA NASCI PENA
LABOR VITA NECESSI MORI
ADAM ST. VICTOR AD 1129
Era um epitáfio estranho para um proprietário rural vitoriano, e um lugar deveras bizarro para morrer. O atual dono da vila Toynton talvez tivesse herdado alguma
coisa da excentricidade de seu ancestral. CONCEPTIO CULPA: a teologia do pecado original já fora descartada pelo homem moderno, junto com outros dogmas igualmente
incômodos. Mesmo em 1887, já devia estar saindo de moda. NASCI PENA: a anestesia, ainda bem, já se encarregara de invalidar essa afirmação dogmática. LABOR VITA:
não se o homem tecnológico do século XX puder evitar. NECESSI MORI: ah! aí continuava o enrosco. Morte. Podemos ignorá-la, temê-la, até mesmo saudar-lhe a chegada,
mas jamais derrotá-la. A morte há de continuar tão notória quanto essas pedras celebratórias, mas muito mais durável. Morte: a mesma de ontem e de hoje, a mesma
de sempre. Teria Wilfred Mancroft Anstey escolhido ele próprio esse memento tão austero e conseguido tirar dele algum conforto?
Dalgliesh seguiu caminho ao longo da beira do precipício, contornando de cima uma pequena baía coberta de cascalho. Cerca de vinte metros adiante, viu uma trilha
tosca que descia até a praia, íngreme e com certeza perigosa em tempos de chuva, mas que obviamente surgira, em parte, de um arranjo ditoso e natural da própria
rocha e, em parte, da mão do homem. De onde estava, porém, a descida até a água se resumia a uma parede quase vertical de calcário. E qual não foi sua surpresa ao
ver que, mesmo sendo cedo ainda, havia dois alpinistas escalando o paredão, apoiados por cordas. O de cima, sem nenhuma proteção na cabeça, foi no mesmo instante
reconhecido: era Julius Court. Quando o segundo olhou para cima, Dalgliesh conseguiu ver o rosto debaixo do capacete vermelho de escalada: o companheiro de Julius
era Dennis Lerner.
Ambos escalavam devagar, mas com competência, com tanta competência que Dalgliesh não sentiu necessidade de se afastar - algo que teria feito caso um dos dois estivesse
correndo o risco de se desconcentrar ao perceber a presença de um espectador. Era óbvio que já tinham feito aquilo antes: a via e as técnicas eram conhecidas de
ambos. E estavam na última enfiada de corda. Observando os movimentos suaves e sem pressa de Court, braços e pernas achatados feito um sanguessuga na rocha, Dalgliesh
começou a reviver algumas das escaladas feitas na mocidade e a subir com eles, documentando mentalmente cada estágio. Travessia à direita de uns quatro metros e
meio, usando a proteção de pitons; subir com dificuldade; alcançar um pequeno pináculo; ganhar a próxima saliência com a força das mãos; escalar a fenda com a ajuda
de dois pitons e fazer um pêndulo até a fenda horizontal; seguir a fenda de novo até uma saliência pequena no canto; por fim, escalar até o topo com a ajuda dos
dois pitons.
Dez minutos mais tarde, foi devagar até onde Julius içava os ombros para a beirada do penhasco. Já com os pés no chão, ele parou um tanto ofegante ao lado de Dalgliesh.
Sem dizer palavra, martelou um pitom na fenda de uma rocha junto a um rochedo, prendeu um cabo no pitom e na cintura e começou a jogar a corda. Do paredão veio um
grito de alegria. Julius firmou-se no rochedo, de corda enrolada na cintura, gritou “suba quando estiver pronto” e começou a puxar com mãos cautelosas. Menos de
quinze minutos depois, Dennis Lerner estava a seu lado, já enrolando a corda. Piscando rápido, tirou os óculos de aro de aço, limpou o que poderiam ser borrifos
de chuva do rosto e retorceu as hastes de volta atrás das orelhas com dedos trêmulos. Julius olhou o relógio.
- Uma hora e doze minutos, nosso melhor tempo até agora. - Virando-se para Dalgliesh, acrescentou: - Não existem muitas opções de escalada por aqui, por causa do
xisto, então o jeito é tentar melhorar o tempo. Pratica esse tipo de esporte? Posso lhe emprestar o equipamento.
- Não escalei muita coisa, depois que saí da escola e, pelo que acabei de ver, não estou à altura de vocês.
Não se deu ao trabalho de explicar que ainda se sentia fraco demais para escalar com segurança. Houve uma época em que julgava imprescindível justificar sua relutância,
mas já fazia alguns anos que parara de se incomodar com a forma como os outros avaliavam sua coragem física. Julius disse:
- Wilfred costumava escalar comigo, mas uns três meses atrás descobrimos que alguém tinha esgarçado uma das cordas dele de propósito. Estávamos prestes a começar
a subir este mesmo trecho. Ele não quis nem ouvir falar em descobrir o responsável. Alguém da vila expressando alguma mágoa pessoal, imagino. Wilfred tem que contar
com esses contratempos ocasionais. É um dos riscos que corre quem se mete a bancar Deus. Mas não quer dizer que estivesse correndo um grande perigo. Eu sempre faço
questão de conferir todo o equipamento, antes de começar. Entretanto o fato o deixou inquieto, talvez tenha até lhe fornecido a desculpa que procurava para parar
de escalar. Ele nunca foi lá grande coisa. Agora dependo de Dennis e das folgas dele, como hoje.
Lerner virou-se e sorriu para Dalgliesh. O sorriso transformava seu rosto, libertava-o das tensões. De repente, parecia um garoto todo confiante.
- Tenho tanto medo quanto Wilfred, a maior parte do tempo, mas estou aprendendo. É fascinante. Estou começando a me apaixonar. Há uma escalada bem suave, uns oitocentos
metros para trás, um pouso de urias. Foi lá que Julius começou a me ensinar. É bem suave mesmo. Nós podíamos tentar, se quiser.
A ansiedade ingênua de comunicar e partilhar seu prazer era cativante.
Dalgliesh disse:
- Acho que não vale a pena, não vou ficar tanto tempo assim em Toynton.
E interceptou a olhada muito de relance que os dois trocaram, um encontro quase imperceptível de olhares... o quê? Aliviados? Satisfeitos? De aviso?
Os três permaneceram calados enquanto Dennis terminava de enrolar a corda. Em seguida Julius fez um gesto para a torre negra.
- Muito feia, não é mesmo? O bisavô de Wilfred mandou erguê-la pouco depois de reconstruir a vila Toynton. Que por sinal foi erguida para substituir uma pequena
mansão elisabetana destruída por um incêndio, em 1843. Uma pena. Devia ser muito mais agradável que a casa atual. O bisavô não tinha um olho muito bom para as formas.
Nem a casa nem essa esquisitice saíram grande coisa, não concorda?
Dalgliesh perguntou:
- Como foi que ele morreu, foi de propósito?
- Pode se dizer que sim. Era um daqueles excêntricos obstinados e intratáveis de que a era vitoriana foi tão pródiga. Inventou a própria religião, baseada, se entendi
direito, no Livro das Revelações. No começo do outono de 1887, emparedou-se dentro da torre e morreu à míngua. Segundo o testamento um tanto confuso que deixou,
estava esperando pelo segundo advento. Tomara que tenha chegado para ele.
- E ninguém o impediu?
- Não sabiam que ele estava lá dentro. O velho era louco, mas não burro. Ele preparou tudo em segredo, pedras, argamassa e por aí afora, depois fingiu que iria passar
o inverno em Nápoles. Só depois de três meses foi que o encontraram. Muito antes disso, já havia escalavrado os dedos até os ossos, tentando abrir uma saída. Mas
a alvenaria dele tinha ficado boa demais, pobre diabo.
- Que horror!
- Pois é. Antigamente, antes de Wilfred fechar o promontório, os moradores locais evitavam o lugar. Para ser franco, eu também evito. O padre Baddeley costumava
vir aqui de vez em quando. Segundo Grace, ele fazia algumas orações pela alma do bisavô, borrifava uma água benta e, para ele, a torre estava descontaminada. Wilfred
vem aqui para meditar, ou pelo menos é o que diz. Cá comigo, acho que é mais para fugir da vila. A associação sinistra não parece incomodá-lo. É bem verdade que
a tragédia não lhe diz respeito, pessoalmente. Wilfred foi adotado. Mas imagino que Millicent Hammitt tenha lhe contado tudo.
- Não ainda. Mal falei com ela.
- Ela contará, pode ter certeza.
Dennis Lerner surpreendeu-os dizendo:
- Eu gosto da torre negra, sobretudo no verão, quando o promontório fica tão tranqüilo, todo dourado, e o sol reluz nas pedras pretas. É um símbolo, na verdade,
não é? Parece mágico, irreal, uma extravagância construída para divertir uma criança. E, por baixo, há horror, sofrimento, loucura e morte. Eu disse isso para o
padre Baddeley uma vez.
- E o que ele respondeu? - perguntou Julius.
- Ele disse “Ah, não, meu filho. Por baixo há o amor de Deus”.
Com uma certa grosseria, Julius comentou:
- Eu não preciso de um símbolo fálico erguido por um excêntrico vitoriano para me lembrar do esqueleto que existe por baixo da pele. Como qualquer criatura razoável,
preparo minhas próprias defesas.
- E quais são elas? - Dalgliesh perguntou.
E a pergunta feita em voz baixa, mesmo aos ouvidos do próprio Dalgliesh, soou quase tão severa quanto uma ordem. Julius sorriu.
- Dinheiro e o consolo que ele pode comprar. Lazer, amigos, beleza, viagens. E quando tudo isso falhar, como seu amigo, o padre Baddeley, teria me dito que vai acabar
ocorrendo mais cedo ou mais tarde, e os quatro cavalos do apocalipse de Dennis tomarem as rédeas, três balas numa Luger. - Olhou uma vez mais para a torre, antes
de completar:
- Nesse meio tempo, posso muito bem passar sem lembretes. Minha porção irlandesa me torna supersticioso. Vamos até a praia.
Desceram com toda a cautela, escorregando e agarrando-se aos pontos de apoio. Ao pé do penhasco, o hábito marrom de Dennis Lerner esperava, dobrado com esmero, debaixo
de uma pedra. O rapaz tornou a vesti-lo, amarrou o cordão em volta da cintura, trocou as botas de escalar por sandálias tiradas do bolso do hábito e, assim metamorfoseado
e com o capacete debaixo do braço, foi ter com os companheiros que caminhavam pelas pedras.
Todos eles aparentavam cansaço, e ninguém disse nada até que a composição da falésia mudou e passaram sob as sombras de xisto negro. A praia era ainda mais notável
vista de perto, uma plataforma brilhante de argila crivada de rochas, fraturada por fendas como se tivesse passado por um terremoto - uma praia sinistra, intolerante.
As piscinas naturais eram fossos negro-azulados enfeitados de algas escorregadias; seria possível que algum mar ao norte do Equador produzisse um verde tão exótico?
Até mesmo os eternos detritos de uma praia - lascas enegrecidas de madeira, embalagens de papelão em volta das quais a espuma borbulhava feito uma escória marrom,
garrafas, pedaços de corda com alcatrão, ossadas frágeis de aves marinhas - pareciam restos nefastos de alguma catástrofe, lama tristonha de um mundo morto.
Como se por consentimento mútuo, aproximaram-se mais uns dos outros, escolhendo o melhor caminho entre as pedras viscosas, Dennis Lerner tendo de erguer o hábito.
De repente, Julius parou e olhou para o paredão rochoso. Dalgliesh virou-se também, mas Dennis continuou fitando o mar.
- A maré estava subindo rápido. Deve ter chegado até aqui. Eu desci pela trilha que acabamos de usar. Levei alguns minutos correndo a uma boa velocidade, mas era
o jeito mais rápido, na verdade o único. Não vi nada, nem ele nem a cadeira. Continuei correndo o mais que pude. Quando cheguei à altura do penhasco negro, tive
de me forçar a olhar. De início não percebi nada de estranho, só o mar espumando entre as pedras. Depois vi uma das rodas da cadeira. Estava sobre uma rocha achatada,
e o sol se refletia no cromado e nos aros de metal. Tinha um aspecto tão decorativo, uma posição tão precisa que não podia ter aterrissado ali por acaso. Desconfio
que saiu saltando com o impacto e acabou rolando até lá. Lembro que apanhei a roda e atirei-a na praia, rindo alto. De choque, imagino. O som ecoou de volta, vindo
da parede de rocha.
Sem se virar, Lerner falou com voz abafada:
- Eu me lembro. Eu ouvi. Pensei que fosse a risada de Victor; soou como se fosse a dele.
Dalgliesh perguntou:
- Quer dizer então que viu o acidente?
- De uma distância de uns cinqüenta metros. Cheguei de Londres depois do almoço e resolvi dar uma nadada. O dia estava excepcionalmente quente para setembro. Eu
tinha acabado de pisar no promontório quando vi a cadeira sair andando. Não havia nada que eu ou qualquer outra pessoa pudesse fazer. Dennis estava deitado na grama,
a uns dez metros de Holroyd. Ele levantou feito um azougue e começou a correr atrás da cadeira, uivando igual a uma bruxa. Depois se pôs a correr para frente e para
trás, ao longo da beirada do precipício, agitando os braços feito um enorme corvo marrom ensandecido.
Lerner, com os lábios quase fechados, falou:
- Eu sei que não fui muito corajoso.
- Não era bem o momento para grandes atos de coragem, meu caro rapaz. Ninguém poderia esperar que você se atirasse lá do alto, atrás dele, se bem que, por um segundo
ou dois, pensei que você fosse se jogar.
Virando-se para Dalgliesh, completou:
- Deixei Dennis deitado de bruços no chão, imagino que em estado de choque; na verdade só parei para dizer que fosse buscar ajuda na vila Toynton e desci pela trilha.
Dennis levou bem uns dez minutos para se recuperar e partir. Talvez tivesse sido mais sensato acudi-lo primeiro para depois irmos os dois juntos buscar o cadáver.
Eu quase o perdi.
Dalgliesh interrompeu:
- A cadeira deve ter transposto a beira do penhasco com uma certa velocidade, para cair assim tão longe.
- Pois é. Não é estranho? Eu estava procurando mais para dentro, logo abaixo do precipício. Foi aí que vi uma maçaroca de metal, uns seis metros mais para a direita,
já na água. E por fim avistei o corpo de Holroyd. Dava a impressão de um enorme peixe encalhado, boiando. Ele sempre teve o rosto lívido e inchado, mesmo quando
era vivo, pobre diabo: alguma coisa relacionada com os esteróides que Eric receitara para ele. Mas naquele momento estava com um aspecto grotesco. Deve ter caído
da cadeira antes do impacto no solo; seja como for, estava a uma certa distância dos destroços. A camisa de algodão que ele usava ao morrer tinha sido rasgada pelas
pedras e pelo mar, de modo que tudo que eu via era um enorme torso branco virando de lá para cá, ao sabor das ondas. Tinha uma fratura na cabeça e a artéria do pescoço
foi cortada. Até eu alcançá-lo, a água já estava manchada de rosa, tão bonita quanto um banho de espuma. Parecia exangue, como se tivesse ficado meses e meses no
mar. Um cadáver sem sangue, seminu, revirando na água.
Um cadáver sem sangue. Um crime sangrento.
A frase brotou espontânea na mente de Dalgliesh. Sem dar a menor ênfase à voz, quase como se não estivesse interessado, perguntou:
- Como foi que conseguiu pegá-lo?
- Não foi fácil. Como eu disse, a maré estava subindo rápido. Dei um jeito de passar minha toalha de banho pela cinta dele e tentei içá-lo até uma das pedras mais
altas, um expediente pouco digno e muito desajeitado para ambos. Victor Holroyd era bem mais pesado que eu, e a calça, encharcada, aumentava mais ainda o peso. Tive
medo de que ela acabasse saindo. Acho que não teria tido a menor importância, ele ficar sem calça, mas na hora julguei de fundamental importância preservar um pouco
da dignidade do morto. Aproveitei cada onda que entrava para puxá-lo mais para dentro e acabei conseguindo colocá-lo nesta pedra aqui, acho. Eu estava todo molhado
e tremendo, apesar do calor. Lembro que achei estranho que o sol não possuísse o poder de secar minhas roupas.
Dalgliesh observara o perfil de Lerner durante a narração. Uma veia no pescoço fininho, vermelho de sol, pulsava feito uma bomba. Com frieza, falou:
- Tomara que a morte de Holroyd tenha sido menos traumatizante para ele do que foi para você.
Julius Court riu:
- Não se esqueça de que nem todo mundo tem sua predileção profissional por esse tipo de entretenimento. Depois que o coloquei aqui, tudo o que consegui fazer foi
ficar funestamente ao lado dele, feito um pescador com seu pescado, até que o pessoal da vila trouxesse a maca. Eles chegaram aos trambolhões pela praia, o caminho
mais rápido, em fila indiana, tropeçando nas pedras, sobrecarregados como se tivessem vindo fazer um piquenique improvisado.
- E a cadeira de rodas, que fim levou?
- Só me lembrei dela quando já estávamos na vila. Perda total, claro. Todos nós sabíamos disso. Mas achei que a polícia talvez quisesse examiná-la, para ver se os
freios estavam com defeito. Muito inteligente da minha parte, não acha? A idéia pelo visto não ocorrera a mais ninguém. Mas, quando um grupo da vila Toynton voltou
para procurar, só acharam as duas rodas e o corpo principal da cadeira. As duas peças laterais com os malditos freios de mão haviam desaparecido. A polícia fez uma
busca mais minuciosa na manhã seguinte, mas também não encontrou nada.
Dalgliesh gostaria de ter perguntado quem, da vila Toynton, tinha feito a busca. Mas estava decidido a não deixar transparecer sua curiosidade. Disse para si mesmo
que não sentia nenhuma. Mortes violentas não eram mais assunto seu e, oficialmente, aquela morte violenta jamais seria. Entretanto não deixava de ser estranho que
as duas peças vitais da cadeira de rodas não tivessem sido encontradas. E aquela praia rochosa, com suas fendas profundas, suas piscinas, seus inúmeros esconderijos,
seria um lugar ideal para ocultá-las. Por outro lado, a polícia local teria pensado nessa possibilidade. Essa era uma das perguntas que, com muita diplomacia, precisaria
fazer a eles. O padre Baddeley lhe escrevera pedindo ajuda um dia antes de Holroyd morrer, mas isso não significava que os dois fatos tivessem uma ligação. Perguntou
então:
- O padre Baddeley ficou muito perturbado com a morte de Holroyd? Imagino que sim.
- Bastante, quando soube. Mas isso foi só uma semana depois. Até lá, a investigação havia terminado e Holroyd já fora enterrado. Pensei que Grace Willison tivesse
lhe contado. Juntos, Michael e Victor nos deram um dia daqueles. Quando Dennis chegou à vila com a notícia, o grupo de resgate saiu sem contar nada aos pacientes.
Foi um gesto compreensível, mas desastrado. Quando botamos o pé na soleira da porta, uns quarenta minutos depois, levando o que restara de Holroyd meio escorregando
da maca, Grace Willison ia passando sozinha pelo vestíbulo, na cadeira de rodas. Claro que, para aumentar um pouco mais a comoção, ela desmaiou de choque. Bom, mas
como eu ia dizendo, Wilfred resolveu que era hora de Michael começar a fazer jus a seu salário e mandou que Eric fosse buscá-lo em casa. Eric encontrou o padre tendo
um ataque cardíaco. Então chamamos mais outra ambulância, achando que seria o fim do padre se ele tivesse que dividir uma ambulância com os restos de Victor, e o
velho partiu na mais santa ignorância. Uma enfermeira lhe deu a notícia sobre Victor assim que os médicos julgaram que ele já estava bem o bastante para recebê-la.
Segundo essa enfermeira, ele ouviu a notícia em silêncio, mas ficou obviamente muito perturbado. Se não me engano, escreveu para Wilfred. Foi uma carta de pêsames.
O padre Baddeley tinha esse dom profissional de aceitar a morte dos outros com tranqüilidade. E ele e Holroyd não eram o que eu chamaria de íntimos. Foi a idéia
de suicídio que abalou suas susceptibilidades profissionais, imagino.
De repente, Lerner interrompeu em voz baixa:
- Eu me sinto culpado porque me sinto responsável.
Dalgliesh respondeu:
- Ou foi você quem empurrou Holroyd penhasco abaixo ou não foi. Se não foi você, a culpa é mera condescendência para consigo mesmo.
- E se fui eu?
- Então é uma condescendência perigosa.
Julius riu de novo:
- Victor se suicidou. Você sabe disso, eu sei disso, todo o mundo que conhecia Victor sabe disso. Se você está com caraminholas na cabeça, então sorte sua eu ter
decidido nadar naquela tarde e sobretudo ter chegado ao topo do morro naquela hora.
Os três então, como se por consentimento mútuo, retomaram a caminhada pelos seixos da praia. Olhando para o rosto pálido de Lerner, para o retesamento dos músculos
no canto da boca frouxa, para os olhos eternamente ansiosos, piscando o tempo todo, Dalgliesh achou que já tinham tido o que bastava de Holroyd. Começou a fazer
perguntas sobre a rocha. Lerner virou-se para ele todo prestativo.
- É fascinante, não acha? Eu adoro a variedade daqui. Temos o mesmo tipo de xisto mais para oeste, em Kimmeridge; lá, é chamado de carvão de Kimmeridge. É uma rocha
betuminosa, sabia? Dá para queimá-la. Já tentamos na vila Toynton; Wilfred gostou da idéia de sermos auto-sustentáveis até no aquecimento. Mas a coisa soltava um
cheiro tão horroroso que tivemos que desistir. Não agüentamos o fedor, para ser sincero. Se não me engano, as pessoas vêm tentando explorá-lo desde meados do século
XVIII, mas ninguém ainda conseguiu desodorizar a rocha. Essa pedra preta parece meio sem graça agora, mas depois de polida com cera de abelha fica igual ao azeviche.
Bem, o senhor viu o efeito na torre negra. As pessoas fazem enfeites com ela desde os tempos romanos. Tenho um livro sobre a geologia deste litoral, se estiver interessado,
e também posso lhe mostrar minha coleção de fósseis. Só que Wilfred achou melhor eu não pegar mais nada, porque as falésias já estão muito despojadas, de modo que
parei. Mas consegui uma coleção bem interessante. Tem até o que eu desconfio ter sido parte de uma armila da idade do ferro.
Julius Court seguia um pouco na frente, rangendo as botas nos seixos. Virando-se, gritou para os companheiros:
- Não chateie o comandante com seu entusiasmo pelas pedras velhas, Dennis. Lembre-se do que ele disse. Não vale a pena, ele não vai ficar tempo suficiente em Toynton.
E sorriu para Dalgliesh. Seu comentário soou mais como um desafio.
III
Antes de ir para Wareham, Dalgliesh escreveu uma carta para Bill Moriarty, da Scotland Yard. Forneceu as poucas informações que possuía sobre a equipe e os pacientes
da vila Toynton e pediu que verificasse se havia alguma coisa de oficial sobre eles. Achava-se capaz de imaginar a reação de Bill àquela carta, assim como de prever
o estilo da resposta. Moriarty era um excelente detetive, mas, tirando-se os relatórios oficiais que, graças ao bom Deus, vinham mais comedidos, escrevia ou comentava
os casos dos quais se encarregava com um estilo galhofeiro e pseudojovial, como se ambicionasse descontaminar com humor toda e qualquer violência ou mostrar com
que sangue-frio profissional enfrentava a morte. Entretanto, se o estilo era suspeito, as informações eram invariavelmente detalhadas e precisas. Mais importante
ainda: viriam com a maior presteza.
Ao parar no povoado de Toynton para postar sua carta, Dalgliesh tivera o cuidado de ligar para a polícia de Wareham, para não aparecer de surpresa. Sua chegada,
portanto, era esperada e estava tudo a postos. O superintendente, convocado de última hora para uma reunião com o chefe de polícia, deixara seu pedido de desculpas
e instruções precisas sobre como entreter a visita. Suas últimas palavras para o detetive-inspetor Daniel, encarregado de fazer as honras da casa, tinham sido:
- Sinto muito não poder falar com ele. Conheci o comandante faz um ano, numa palestra que ele deu em Bramshill. Pelo menos nele a arrogância da Polícia Metropolitana
vem temperada com bons modos e uma demonstração plausível de humildade. É um consolo encontrar alguém da cidade grande que não trata as forças de província como
se recrutássemos nossos homens na porta de cavernas, com nacos de carne crua espetados num pau. Talvez ele até seja a menina-dos-olhos do comissário, mas é um bom
tira.
- Não é ele que escreve poesia, chefe?
- Se eu fosse você, não tentaria cair nas graças dele mencionando esse fato. Eu invento palavras-cruzadas, um passatempo que com toda a certeza exige quase o mesmo
nível de habilidade intelectual que a dele, mas não quero que as pessoas venham me cumprimentar por isso. Peguei o último livro dele da biblioteca. Cicatrizes invisíveis.
Tendo em vista que ele é tira, você acha que o título é irônico?
- Eu não saberia dizer, chefe, não sem ler o livro.
- De cada três poesias, só consegui entender uma, e mesmo assim talvez seja apenas ilusão de minha parte. Imagino que ele não tenha informado o motivo de nos dar
essa honra.
- Não, chefe, mas, como ele está hospedado na vila Toynton, talvez esteja interessado no caso Holroyd.
- Não vejo por quê. Mas acho melhor colocar o sargento Varney à disposição.
- Convidei o sargento para almoçar conosco. No pub de sempre. Que tal?
- Por que não? Vamos mostrar ao comandante como vivem os pobres.
E foi assim que Dalgliesh, após as formalidades polidas de praxe, viu-se convidado a almoçar no Duke’s Arms. Longe da rua principal, não era dos pubs mais airosos,
com entrada por uma viela escura, entre um atacadista de grãos e um daqueles armazéns tão comuns em cidades do interior, onde toda e qualquer ferramenta de jardinagem,
junto com uma variedade de baldes de lata, tinas, vassouras, arames, bules de alumínio e guias de cachorro, fica dependurada no teto, pairando por cima de um cheiro
penetrante de querosene e terebintina. O inspetor Daniel e o sargento Varney foram cumprimentados sem grandes efusividades, mas com óbvia satisfação, pelo dono corpulento
do bar, um sujeito em mangas de camisa que evidentemente podia se dar ao luxo de receber bem a polícia local sem medo de ficar malfalado. O recinto, onde ressoavam
os erres fortes de Dorset, estava lotado e bastante enfumaçado. Daniel foi na frente pelo corredor estreito, que cheirava forte a cerveja e um pouco a urina, e saiu
num pátio inesperado, inundado de sol, de chão de paralelepípedos. Havia uma cerejeira no meio, com o tronco rodeado por um banco de madeira, e uma meia dúzia de
mesas robustas, com cadeiras de ripa, colocadas sobre o calçamento de pedra que delimitava os paralelepípedos. O pátio achava-se deserto. Os freqüentadores do bar
sem dúvida já passavam tempo suficiente trabalhando ao ar livre para enxergá-lo como uma boa alternativa à camaradagem do salão apertado e cheio de fumaça, ao passo
que os turistas que poderiam apreciá-lo com quase toda a certeza jamais chegariam até o Duke’s Arms.
Sem ser chamado, o taverneiro levou dois canecos de cerveja, um prato de sanduíches de queijo, um vidro de chutney caseiro e uma grande tigela de tomates. Dalgliesh
disse que queria o mesmo. A cerveja mostrou ser de excelente qualidade, o queijo era o cheddar inglês, o pão fora assado em alguma padaria local e sem sombra de
dúvida não guardava a menor semelhança com as maçarocas sem alma saídas de fornos industriais. A manteiga era sem sal e os tomates tinham gosto de sol. Comeram em
silêncio companheiro.
O inspetor Daniel era um sujeito impassível de um metro e oitenta de altura, com uma crista indisciplinada de fartos cabelos grisalhos e um rosto corado de sol.
Tinha jeito de quem se achava perto da aposentadoria. Os olhos negros e inquietos, indo o tempo todo de um rosto para outro, exibiam uma expressão folgazã, indulgente,
que beirava a auto-satisfação, como se se sentisse pessoalmente responsável pela conduta do mundo e, no geral, estivesse convicto de não estar realizando um trabalho
tão ruim assim. O contraste entre aqueles olhos brilhantes e irrequietos, seus movimentos lerdos e, mais ainda, a voz deliberada de caipira era desconcertante.
O sargento Varney era cinco centímetros mais baixo, com um rosto redondo, infantil e meigo no qual a experiência por enquanto não deixara marcas. Aparentava ser
jovem demais, o protótipo do policial cuja boa aparência acaba sempre desembocando na eterna queixa dos mais velhos de que a polícia anda ficando mais jovem a cada
ano que passa. Com os superiores, comportava-se de modo simpático e respeitoso, sem bajulações nem reverências. Dalgliesh desconfiava que o rapaz possuía uma tremenda
autoconfiança que, às vezes, ficava difícil de ocultar. Quando se pôs a falar sobre a investigação que realizara depois da morte de Holroyd, Dalgliesh entendeu por
quê. Ali estava um jovem policial inteligente, de grande competência, que sabia direitinho o que queria e o que fazer para chegar lá.
Com todo o cuidado, Dalgliesh reduziu a importância de sua pergunta.
- Quando o padre Baddeley escreveu, me convidando, eu estava doente. Quando cheguei, ele já estava morto. Desconfio que não era nada muito importante, mas fiquei
com uma leve dor na consciência por tê-lo deixado na mão. Achei mais sensato dar uma palavrinha com vocês para ver se houve alguma coisa na vila Toynton que pudesse
ser motivo de preocupação para ele. Confesso que julgo altamente improvável. Fui informado da morte de Victor Holroyd, claro, mas isso ocorreu um dia depois de ele
ter me escrito. Só que no fim acabei pensando que talvez houvesse algo relacionado com a morte iminente de Holroyd que o estivesse incomodando na época.
Foi o sargento Varney quem falou:
- Não vimos nenhuma evidência de que a morte de Holroyd estivesse relacionada com mais alguém, além dele próprio. Presumo que o senhor já saiba que a conclusão do
inquérito foi morte acidental. O doutor Maskell presidiu o júri e, se o senhor me permite uma opinião, acho que ficou aliviado com a decisão. Wilfred Anstey é respeitadíssimo
na região, ainda que o pessoal lá da vila Toynton seja meio arredio, e ninguém queria aumentar ainda mais a aflição dele. Mas, na minha opinião, foi suicídio, não
resta dúvida. E pelo visto Holroyd agiu por impulso. Não era dia de ser levado ao penhasco, mas de repente ele resolveu que queria ir. Segundo o depoimento da senhorita
Willison e da senhora Hollis, que estavam no pátio com ele, Holroyd mandou chamar Dennis Lerner e infernizou o enfermeiro até ele concordar em levá-lo para passear.
Em seu depoimento, Lerner disse que Holroyd estava de péssimo humor no trajeto e que quando eles chegaram ao lugar de costume, no penhasco, tornou-se tão ríspido
que ele pegou o livro e foi se sentar a uma boa distância da cadeira. Logo depois apareceu Julius Court, bem a tempo de vê-lo impelir a cadeira para a beirada do
morro e também de vê-la despencar de lá de cima. Quando examinei o terreno, na manhã seguinte, deduzi, pelos talos quebrados de flores e pela relva amassada, o ponto
exato onde Lerner estivera deitado; e seu livro, A geologia da costa de Dorset, continuava largado no chão, no mesmo lugar. A impressão que eu tenho é que Holroyd
atazanou de propósito a paciência de Lerner para que ele se afastasse e, assim, não pudesse impedi-lo a tempo, depois que tivesse soltado o freio.
- Lerner contou ao júri o que foi que Holroyd lhe disse?
- Ele não deu detalhes, mas mais ou menos admitiu para mim que Holroyd o atormentou por ser homossexual, por não fazer sua parte na vila Toynton, por querer ter
uma vida fácil e ser um enfermeiro bruto e incompetente.
- Eu não diria que faltaram detalhes, aí. E quanto de verdade haverá nisso?
- Difícil dizer. Talvez ele seja tudo isso, inclusive homossexual, o que não significa que tenha gostado de ouvir essas coisas de Holroyd.
O inspetor Daniel interveio:
- Uma coisa é certa: bruto ele não é. Minha irmã Ella é enfermeira da casa de repouso Meadowlands, nos arredores de Swanage. A mãe dele, a velha senhora Lerner,
que já está com mais de oitenta anos, é paciente de lá. Dennis visita a mãe com freqüência e não hesita em dar uma mãozinha, quando precisam dele. Eu só acho estranho
ele não ter procurado um emprego lá, mas talvez seja melhor mesmo manter separadas a vida profissional e a vida privada. De todo modo, talvez não haja vaga para
um enfermeiro homem. E sem dúvida existe uma certa lealdade dele para com Wilfred Anstey. Minha irmã Ella gosta muito do rapaz. Sempre diz que ele é um bom filho.
E deixar a mãe internada naquela casa de repouso deve comer boa parte do salário dele. Como todos os lugares bons mesmo, a Meadowlands não é barata. Não, o que eu
diria é que aquele Holroyd era um sujeitinho bem difícil. A vila vai ficar bem mais feliz sem a presença dele.
Dalgliesh então disse:
- É uma maneira muito incerta de se suicidar, imagino. O que me espantou foi que ele tenha conseguido mover aquela cadeira.
O sargento Varney deu um longo gole na cerveja.
- Não foi só o senhor. Não conseguimos recuperar a cadeira intacta, de modo que não pude fazer nenhum teste com ela. Mas Holroyd era bem pesadão, tinha pelo menos
seis quilos a mais do que eu, pelos meus cálculos, e eu fiz algumas experiências com uma das cadeiras mais antigas da vila Toynton, a mais parecida com a dele. Em
terreno firme, com um grau de inclinação superior a trinta centímetros, foi possível impelir a cadeira com um tranco bem dado. Julius Court disse em seu testemunho
que viu o corpo de Holroyd dar um tranco, embora não tivesse condições de precisar, daquela distância, se foi porque a cadeira estava sendo impelida para a frente
ou se foi uma reação espontânea de Holroyd, com o choque de se pegar em movimento. Não vamos esquecer que não existem muitos meios de suicídio disponíveis na vila.
Holroyd praticamente não se movimentava sozinho. Os medicamentos teriam sido a forma mais fácil, mas todas as drogas são mantidas num armário trancado a chave no
consultório do segundo andar; ele não teria a menor chance de conseguir alguma coisa sem ajuda. Ele poderia ter tentado se enforcar com uma toalha, no banheiro,
mas nem os lavatórios nem os chuveiros têm chave nas portas. Claro que isso é uma precaução para o caso de algum paciente desmaiar e não ter condições de pedir ajuda,
mas também significa que não há muita privacidade no local.
- E quanto a algum possível defeito na cadeira?
- Pensei nisso, e o fato também foi levantado no inquérito, claro. Mas só conseguimos recuperar o assento da cadeira e uma das rodas. As duas peças laterais com
os freios de mão e as barras com as travas nunca foram encontradas.
- Justamente as partes da cadeira onde quaisquer defeitos nos breques, naturais ou não, teriam aparecido.
- Se tivéssemos conseguido achar as peças a tempo, e o mar não houvesse causado tantos danos... Mas o fato é que não encontramos nada. O corpo se soltou da cadeira
durante a queda, ou então com o impacto, e Court naturalmente se concentrou em recuperar o corpo, que estava sendo jogado pelas ondas. Com a calça do morto encharcada,
ele ficou ainda mais pesado e foi difícil arrastá-lo para muito longe. Mas ele conseguiu prender a toalha na cinta de Holroyd e segurou-o até a ajuda chegar. Wilfred
Anstey, o doutor Hewson, a enfermeira Moxon e Albert Philby levaram uma maca. Juntos, eles conseguiram pôr o corpo em cima da maca e carregaram o morto de volta
até a vila Toynton. Só então ligaram para nós. Assim que eles chegaram, Julius Court lembrou que a cadeira deveria ser recuperada para exames posteriores e então
mandou Philby de volta, para procurar. A enfermeira Moxon ofereceu-se para ir junto. Até aí, a maré já tinha recuado uns vinte metros e eles encontraram a parte
principal da cadeira, ou seja, o assento e as costas, e uma das rodas.
- Curioso que Dorothy Moxon tenha se oferecido para ir procurar a cadeira. Não teria sido melhor, talvez, ela ter ficado para cuidar dos pacientes?
- Foi o que pensei. Mas Wilfred Anstey se recusou a sair da vila e o doutor Hewson pelo visto achou que seu lugar era ao lado do corpo. A enfermeira Rainer estava
de folga aquela tarde e não havia mais ninguém que pudesse acompanhar Philby, a menos que se inclua aí a irmã de Wilfred, Millicent Hammitt, e eu acho que essa idéia
não passou pela cabeça de ninguém. Mas era importante que ao menos dois pares de olhos procurassem pela cadeira, antes de escurecer.
- E por que Julius Court não foi?
- Court e Lerner acharam que o lugar deles era lá na vila Toynton, para nos receber quando chegássemos.
- Uma decisão bastante razoável. E, até vocês chegarem, claro que já estava escuro demais para fazer qualquer busca.
- Sim, senhor, eram dezenove e quatorze quando chegamos à vila Toynton. Além de tomar os depoimentos e providenciar para que o corpo fosse levado para o necrotério,
não havia muito o que fazer até a manhã seguinte. Não sei se o senhor já viu aquela praia com a maré baixa. Mas parece uma barra colossal de tofe negro estraçalhada
por algum gigante prodigioso que tivesse resolvido brincar com um martelo. Fizemos uma busca bem minuciosa por uma área bastante ampla, mas se as peças metálicas
entraram numa daquelas fendas, numa rocha qualquer, seria preciso um detetor de metal para encontrá-las... assim mesmo com muita sorte... e um guindaste para recuperá-las.
É muito provável que elas tenham sido arrastadas. O mar é bem agitado por lá na preamar.
- Houve algum motivo para supor que Holroyd tenha de repente se tornado um suicida, quer dizer... por que escolher aquele determinado momento para se matar?
- Fiz algumas perguntas a esse respeito. Uma semana antes, ou seja, no dia cinco de setembro, Julius Court, junto com o doutor Hewson e a senhora Hewson, o levaram
até Londres, no carro de Court, para falar com os advogados dele e também para ver um especialista do hospital St. Saviour, que é o hospital onde o doutor Hewson
fez residência. Pelo que entendi, não deram muita esperança a Holroyd, no estágio em que estava a doença. Segundo o doutor Hewson, a notícia não parece tê-lo abalado
demais. Na verdade, ele já esperava aquilo. O doutor Hewson deu a entender que Holroyd insistiu em fazer a consulta só para poder ir a Londres. Era um homem inquieto
e qualquer desculpa servia para tirá-lo da vila Toynton de vez em quando. Julius Court estava indo para lá e ofereceu carona. Aquela enfermeira mais velha, a senhora
Moxon, e Wilfred Anstey foram categóricos ao dizer que Holroyd não parecia especialmente deprimido ao voltar; por outro lado, eles têm uma espécie de interesse velado
em desacreditar a teoria do suicídio. Já os pacientes me contaram uma história muito diferente. Dizem que notaram uma mudança em Holroyd, depois do retorno. Não
disseram que ele estava deprimido, mas com toda a certeza não estava sendo fácil viver com ele. Comentaram que estava agitado. Grace Willison usou a palavra eufórico.
Disse que ele parecia estar tomando algum tipo de decisão. Acho que ela não tem a menor dúvida de que Holroyd se suicidou. Quando eu a interroguei, ela estava chocada,
claro, e também preocupada por causa de Wilfred Anstey. Não queria acreditar. Mas acho que acabou acreditando.
- E quanto à visita de Holroyd ao advogado? Será que recebeu alguma notícia desagradável?
- É um escritório antigo de família, chamado Holroyd & Martinson, na Bedford Row. O irmão mais velho de Victor Holroyd é o sócio majoritário. Liguei para perguntar,
mas não consegui grande coisa dele. Segundo esse irmão, a visita foi de caráter quase inteiramente social e Victor não estava nem mais nem menos deprimido do que
de costume. Os dois nunca foram muito próximos, mas Martin Holroyd de vez em quando fazia uma visita ao irmão na vila Toynton, sobretudo quando queria falar de negócios
com Wilfred Anstey.
- Está me dizendo que Holroyd e Martinson são advogados de Anstey?
- Eles cuidam dos assuntos da família Anstey há mais de cento e cinqüenta anos, pelo que entendi. É um relacionamento muito antigo mesmo. Foi assim que Victor Holroyd
ficou sabendo sobre a vila. Ele foi o primeiro paciente de Wilfred Anstey.
- E quanto à cadeira de Holroyd? Teria sido possível a alguém da vila Toynton sabotá-la, no dia em que Holroyd morreu ou na noite anterior?
- Philby poderia ter mexido na cadeira, claro. Era o que mais chances tinha para isso. Mas há uma série de outras pessoas também. A cadeira pesadona de Holroyd,
a que era usada para esses passeios, ficava na oficina, no final do corredor da extensão. Não sei se o senhor sabe, mas o lugar é acessível a qualquer cadeira de
rodas. Basicamente, a oficina é de Philby e lá ele tem o equipamento adequado e as ferramentas de praxe para trabalhos de carpintaria e serralheria. Entretanto os
pacientes também podem usá-la e na verdade são incentivados a ajudar ou a se entreter com os próprios passatempos. Holroyd costumava usá-la para trabalhos bem simples
de carpintaria, antes de ficar doente demais, e Henry Carwardine de vez em quando trabalha com argila. As pacientes mulheres não costumam ir até lá, mas seria muito
natural encontrar um dos homens ali.
- Carwardine me contou que estava na oficina quando Philby foi pôr óleo e examinar os freios, às oito e quarenta e cinco da noite.
- É bem mais do que ele me contou. Carwardine me deu a impressão de não ter visto direito o que Philby estava fazendo. E o próprio Philby foi meio esquivo; ele me
disse que não tinha certeza se havia mesmo testado os freios, que não lembrava direito. Não me surpreendi. Ficou muito óbvio que todos eles queriam que parecesse
um acidente, desde que isso pudesse ser aceito pelo magistrado que presidiu o inquérito sem provocar muitas censuras e acusações de descaso. Mas até que tive um
pouco de sorte quanto às atividades de todos eles na manhã em que Holroyd morreu. Soube que, terminado o café da manhã, Philby voltou à oficina, pouco depois das
oito e quarenta e cinco. Trabalhou durante uma hora e, quando saiu, trancou tudo. Estava colando umas peças que haviam quebrado e não queria que ninguém mexesse.
Desconfio que Philby considera a oficina território seu e não aprecia muito quando algum paciente faz uso dela. Bem, mas como eu ia dizendo, ele enfiou a chave no
bolso e só voltou a tirá-la quando Lerner apareceu para pedi-la, pouco antes das quatro da tarde. O enfermeiro queria pegar a cadeira de rodas de Holroyd. Se Philby
disse a verdade, as únicas pessoas na vila Toynton sem um álibi para as horas em que a oficina passou destrancada e vazia, na manhã do dia 12 de setembro, são Wilfred
Anstey, o próprio Holroyd, Henry Carwardine, a enfermeira Moxon e a senhora Hewson. Julius Court estava em Londres e voltou mais ou menos na hora em que Lerner e
Holroyd saíram para o passeio. Lerner também tem um álibi. Estava ocupado cuidando dos pacientes nas horas em questão.
Tudo muito bom, só que não provava grande coisa. A oficina permanecera destrancada na noite anterior, depois que Carwardine e Philby saíram. E seria de presumir
que tivesse passado a noite destrancada. Dalgliesh disse:
- Você foi muito minucioso, sargento. Conseguiu descobrir tudo isso sem assustá-los demais?
- Sim, senhor, acho que sim. Acredito que em nenhum momento lhes passou pela cabeça que eu estava investigando as oportunidades que Holroyd teve de mexer ele mesmo
na cadeira. E, se de fato aquela cadeira foi danificada de propósito, então aposto como foi ele. Holroyd era um sujeito rancoroso, pelo que ouvi dizer. Provavelmente
achou divertido pensar que, quando a cadeira fosse retirada da água e examinada, todos da vila Toynton seriam considerados suspeitos. Esse é o tipo de raciocínio
derradeiro que teria lhe dado imenso prazer.
- Só não consigo acreditar que ambos os breques tenham falhado ao mesmo tempo e por acidente. Eu vi cadeiras parecidas com aquela lá na vila. O sistema de freios
é muito simples, mas funciona. E é seguro. Ao mesmo tempo, também é difícil imaginar que tenha havido sabotagem. Como é que o assassino poderia contar com uma falha
nos freios bem naquele momento? Nada impediria que um dos dois, Lerner ou Holroyd, examinasse os freios antes de sair para o passeio. O defeito poderia ter sido
descoberto quando a cadeira foi freada, no topo do morro, ou mesmo durante o trajeto. Além do mais, como alguém poderia prever que Holroyd iria insistir em sair
naquela tarde? O que houve exatamente no alto do morro, falando nisso? Quem freou a cadeira?
- Segundo o depoimento de Lerner, foi Holroyd. O enfermeiro admitiu que nem olhou os freios. Tudo o que soube dizer foi que não notou nada de errado com a cadeira.
E que os freios só foram usados quando eles pararam no lugar de costume.
Houve um silêncio breve. Eles tinham terminado de comer, e o inspetor Daniel, apalpando os bolsos do paletó de tweed, tirou seu cachimbo. Enquanto acariciava o fornilho
com o polegar, antes de enchê-lo de tabaco, ele disse em voz baixa:
- O senhor por acaso estaria preocupado com alguma coisa envolvendo a morte do velho padre?
- Em termos médicos, ele já era um homem às portas da morte e, o que não foi lá muito conveniente para mim, acabou morrendo. O que me preocupa é não ter chegado
a tempo de saber o que o preocupava; mas esse é um problema meu. Falando como policial, o que eu gostaria de saber é quem o viu pela última vez. Oficialmente foi
Grace Willison, mas tenho o pressentimento de que houve mais alguém depois dela; um outro paciente. Na manhã seguinte, quando o encontraram morto, ele estava usando
a estola. O diário sumira e a escrivaninha tinha sido arrombada. Como fazia mais de vinte anos que eu não o via, talvez seja meio absurda essa minha certeza de que
não foi ele quem arrombou a fechadura da escrivaninha.
O sargento Varney interrompeu com uma pergunta a seu superior.
- Qual seria a posição teológica, inspetor, se alguém se confessasse, obtivesse a absolvição e depois matasse o confessor para manter seu segredo? A confissão continuaria
valendo, por assim dizer?
A fisionomia jovem adquiriu um ar de extraordinária seriedade e foi impossível dizer se estava sendo sincero, se era alguma piada particular entre ele e o inspetor
ou se a pergunta fora feita por outro motivo sutil qualquer. Daniel tirou o cachimbo da boca:
- Santo Deus, vocês da nova geração são mesmo um bando de selvagens ignorantes! Quando eu era menino e freqüentava as aulas de catecismo, eu punha tostões no pratinho
da coleta para crianças pagãs lá da África bem menos ignorantes do que vocês. Ouça o que eu vou lhe dizer, meu rapaz: ela não lhe traria nenhum benefício, posições
teológicas à parte.
Virando-se para Dalgliesh, o inspetor continuou:
- Ele estava com a estola, é? Que interessante.
- Também achei.
- Por outro lado, seria assim tão inusitado? Ele estava sozinho e talvez soubesse que a morte se aproximava. Quem sabe se sentiu mais confortável com ela em volta
do pescoço. O que o senhor acha?
- Não sei como ele agiria, muito menos o que estava sentindo. Na verdade, passei vinte anos satisfeito em não saber de nada.
- E a escrivaninha arrombada. Talvez tenha decidido começar pela destruição da papelada e não tenha conseguido se lembrar de onde guardara a chave.
- É perfeitamente possível.
- E ele foi cremado?
- Cremado por insistência da senhora Hammitt. As cinzas foram sepultadas segundo os ritos da Igreja Anglicana.
O inspetor Daniel não disse mais nada. E foi com uma certa amargura que Dalgliesh constatou que de fato não havia mais nada a dizer, quando se levantaram da mesa.
IV
A firma Loder & Wainwright, que cuidava dos interesses do padre Baddeley, estava instalada numa casa simples mas harmoniosa de tijolinho aparente na rua South, para
Dalgliesh, bem típica das construções mais agradáveis que surgiram depois do incêndio de 1762 que destruiu a antiga Wareham quase por completo. A porta era mantida
aberta com a ajuda de um canhão de bronze em miniatura, com boca reluzente apontando ameaçadora para a rua. Exceto por esse símbolo belicoso, porém, a casa e tudo
o que nela havia eram bastante acolhedores. Reinava ali uma atmosfera de fortuna sólida, tradição e honestidade profissional. O vestíbulo de paredes brancas exibia
gravuras de Dorchester nos idos do século XVIII e cheirava a lustra-móveis. À esquerda, uma porta aberta mostrava uma ampla sala de espera onde se destacavam, no
centro, uma vasta mesa redonda sustentada por uma robusta base entalhada e rodeada por meia dúzia de cadeiras de mogno trabalhado, pesadas o bastante para acomodar
em total desconforto vertical um fazendeiro bem robusto, e, na parede, uma tela a óleo de um senhor vitoriano desconhecido, presumivelmente o fundador do escritório,
de suíças e fitas, exibindo o fecho da corrente do relógio entre o polegar delicado e o indicador como se ansioso para que o pintor não se esquecesse do detalhe.
Era uma casa na qual os personagens mais prósperos de Hardy teriam se sentido à vontade e onde poderiam ter discutido com calma os efeitos da abolição das leis cerealistas
e a perfídia dos corsários franceses. Em frente à sala de espera havia um escritório com uma divisória e uma jovem, vestida até a cintura como uma governanta vitoriana,
de botas pretas e saia comprida, e acima da cintura, como uma vendedora de leite grávida de oito meses. Com grande afinco, a moça datilografava numa velocidade que
talvez explicasse as reservas manifestadas por Maggie Hewson quanto à presteza da firma. Em resposta à pergunta de Dalgliesh, ela ergueu os olhos ocultos sob uma
cortina de cabelos lambidos e disse que o dr. Robert estava fora no momento, mas que voltaria em dez minutos. Sem pressa para almoçar, pensou Dalgliesh, já conformado
com uma espera que poderia ser de meia hora.
Loder voltou uns vinte minutos mais tarde. Dalgliesh ouviu-o entrar satisfeito da vida no escritório da recepcionista; houve um murmúrio de vozes e segundos depois
ele apareceu na sala de espera e convidou Dalgliesh a acompanhá-lo até seu escritório, na parte de trás da casa. Nem a sala - acanhada, abafada e desarrumada - nem
o dono eram bem o que ele esperava. Nenhum dos dois combinava com a casa. Bob Loder era um sujeito encorpado, de tez amarelada, queixo quadrado, pele manchada, palidez
enfermiça e olhinhos pequenos, desanimados. O cabelo liso tinha um tom uniforme - uniforme demais para ser natural -, exceto por uma linhazinha prateada na testa
e dos lados. Um bigodinho garboso e aparado encimava lábios tão vermelhos e úmidos que pareciam verter sangue. Reparando nas rugas em volta dos olhos e nos músculos
caídos do pescoço, Dalgliesh suspeitou que não fosse nem tão moço nem tão vigoroso quanto fazia questão de sugerir.
Cumprimentou Dalgliesh com uma animação e uma bonomia que se afiguravam tão inadequadas à sua personalidade quanto o eram para a ocasião. Seus modos lembravam um
pouco a cordialidade desesperada de alguns ex-oficiais conhecidos de Dalgliesh, que nunca conseguiram se ajustar à vida civil, ou quem sabe a de um vendedor de carros
usados receoso de que o chassi e o motor não agüentem até a conclusão da venda.
Dalgliesh foi rápido ao explicar o objetivo ostensivo da visita.
- Eu só soube que o padre Baddeley tinha morrido quando cheguei a Toynton. E a primeira pessoa que mencionou essa herança dele para mim foi a senhora Hewson. Mas
isso não importa. O senhor com certeza ainda não teve oportunidade de me comunicar por escrito. Mas Wilfred Anstey quer liberar a casa para o próximo ocupante e
achei melhor vir eu mesmo conferir, antes de tirar os livros.
Loder pôs a cabeça no vão da porta e berrou pedindo a pasta, que surgiu num espaço de tempo surpreendentemente curto. Após uma olhada superficial, ele disse:
- Está tudo certo. Perfeito. Desculpe não ter enviado uma carta. Não foi tanto por falta de tempo e sim por falta de um endereço. Não tínhamos o seu. Coitado do
bom padre. Não pensou nisso. O nome me é familiar, claro. Algum motivo pelo qual eu devesse conhecer o senhor?
- Não creio. Talvez o padre Baddeley tenha mencionado qualquer coisa a meu respeito, quando veio vê-lo. Se não me engano ele lhe fez uma visita, um ou dois dias
antes de passar mal pela última vez.
- Exato, na quarta-feira, às onze da manhã. Essa foi a segunda vez que nos vimos, pensando bem. A primeira vez que ele me consultou foi há três anos, logo depois
de chegar à vila Toynton. Veio fazer o testamento. Ele não tinha muita coisa, mas, por outro lado, não gastava quase nada e juntara uma boa quantia.
- Como é que ele ficou sabendo do senhor?
- Puro acaso. O bom homem queria fazer um testamento, sabia que para isso precisaria de um advogado, então pegou um ônibus até Wareham e entrou no primeiro escritório
que viu. Como era eu que estava aqui naquele momento, fui eu que o recebi. Redigi o testamento na hora, uma vez que era isso que ele queria, e dois funcionários
assinaram como testemunhas. E isso eu tenho que admitir sobre o bom velhinho, ele foi o cliente mais fácil que já tive.
- Eu me pergunto se a visita que ele lhe fez no dia onze foi por algum motivo que o estivesse preocupando. Pela última carta que ele me mandou, imagino que havia
alguma coisa que o incomodava. Se eu puder fazer algo...
E deixou que a voz sumisse num longo ponto de interrogação.
Loder prosseguiu com animação:
- O bom homem chegou com alguma perturbação de espírito. Estava pensando em mudar o testamento mas ainda não se decidira. Pelo visto achava que eu teria meios de
pôr o dinheiro em alguma espécie de limbo, até ele se resolver. E eu lhe disse: “Meu caro, se o senhor morrer esta noite, o dinheiro irá todo para Wilfred Anstey
e para a vila Toynton. Se não quer que isso aconteça, então precisa tomar uma decisão sobre o que deseja de fato, para que eu possa redigir um novo testamento. Mas
o dinheiro existe. E não vai sumir. E se o senhor não cancelar ou alterar o antigo testamento, ele continuará valendo”.
- E ele lhe pareceu estar falando coisa com coisa?
- Sem dúvida. Um tanto confuso, talvez, mas mais na imaginação do que na compreensão, se é que me faço claro. Assim que apontei os fatos, ele entendeu. Bem, a verdade
é que nunca deixou de entendê-los. Mas, por alguns momentos, foi como se não quisesse que o problema existisse. Todos nós sabemos bem como é isso.
- E um dia depois ele foi para o hospital e em menos de duas semanas o problema estava resolvido para ele.
- Pois é, coitado. Desconfio que o bom padre teria dito que a providência decidiu por ele. E não resta dúvida de que a providência deixou bem claro a opinião que
tinha sobre o assunto.
- Por acaso o senhor tem idéia do que passava pela cabeça dele? Não quero invadir nenhum sigilo profissional, mas é que fiquei com a forte impressão de que o padre
desejava me consultar sobre alguma questão. E, se ele tinha uma tarefa para mim, eu gostaria de executá-la. E há também a curiosidade do policial de descobrir o
que ele queria, de terminar um negócio inconcluso.
- Do policial?
Por acaso a centelha de surpresa e interesse cortês naqueles olhos cansados não teria sido um tanto óbvia demais para ser natural?
- Ele o convidou como amigo ou como profissional?
- É provável que um pouco de cada.
- Certo, mas agora não tem mais jeito. Mesmo que ele tivesse me dito quais eram suas intenções sobre as disposições testamentárias e eu soubesse a quem ele gostaria
de beneficiar, agora é tarde demais.
Dalgliesh ficou se perguntando se Loder achava mesmo que ele estava interessado no dinheiro e que fora até lá na esperança de encontrar uma forma de revogar o testamento
do padre Baddeley.
- Sei. E duvido que seu chamado tivesse alguma relação com o testamento. Mas é estranho que nunca tenha me dito nada sobre os livros. E que tenha deixado o principal
beneficiado em total ignorância também, pelo visto. - Fora um tiro totalmente no escuro, mas atingiu o alvo. Loder falou com cuidado, um cuidado até excessivo.
- É mesmo? Pois eu achava que o constrangimento dele fizesse parte do dilema, que fosse uma relutância em decepcionar, depois de prometer.
O advogado hesitou, com cara de quem percebera ter dito demais, ou de menos, depois acrescentou:
- Mas Wilfred Anstey poderá confirmar isso.
Calou-se de novo, como se desnorteado com alguma implicação sutil de suas palavras e, obviamente irritado com os caminhos traiçoeiros que a conversa o forçava a
tomar, acrescentou com mais vigor:
- Quer dizer, se Wilfred Anstey diz que ele não sabia que era o principal beneficiário, então é porque não sabia e eu estou enganado. O senhor vai ficar muito tempo
em Dorset?
- Menos de uma semana, imagino. Só o tempo suficiente para pôr uma ordem e empacotar os livros.
- Ah, sim, os livros, claro; talvez fosse sobre isso que o padre Baddeley queria lhe falar. Ele pode ter achado que uma biblioteca de obras teológicas acabasse sendo
mais um fardo do que um legado aceitável.
- É possível. - A conversa parecia ter morrido. Houve uma pausa rápida, um tanto constrangida, antes de Dalgliesh se levantar dizendo:
- Quer dizer então que não havia mais nada preocupando o padre, até onde o senhor saiba, além do problema de como dispor do dinheiro? Ele não o consultou a respeito
de mais nada?
- Não, nada. E, se tivesse consultado, é possível que fosse algo que eu não teria como lhe contar sem violar o sigilo profissional. Entretanto, como ele não me consultou
sobre mais nada, não vejo por que não lhe dizer isso. E que assuntos o pobre velho teria para tratar comigo? Sem mulher, sem filhos, sem parente nenhum, até onde
eu sei, sem nenhum problema de família, sem carro, uma vida sem máculas. Para que ele precisaria de um advogado, a não ser para redigir seu testamento?
Dalgliesh achava que, àquela altura, era um pouco tarde para falar de sigilo profissional. De fato, Loder não precisaria ter lhe contado que o padre chegara a cogitar
uma mudança de testamento. Como ele não tinha alterado nada, era o tipo de informação que um advogado mais prudente julgaria melhor guardar consigo. Enquanto Loder
o acompanhava até a porta, Dalgliesh disse, como quem não quer nada:
- O testamento do padre Baddeley só trouxe satisfações. Já não se pode dizer o mesmo do testamento de Victor Holroyd.
Os olhos baços de repente ficaram penetrantes, quase como se maquinassem alguma coisa:
- Quer dizer que ficou sabendo a respeito, é?
- Fiquei. O que me espanta é que o senhor também tenha sido informado.
- Ah, as notícias correm, o senhor sabe como são as coisas no interior. Na verdade, tenho amigos em Toynton. Os Hewsons. Para ser mais preciso, sou amigo de Maggie.
Nós nos conhecemos no baile dos Conservadores, no inverno passado. É uma vida meio monótona para uma moça animada, isso de ficar enfurnada naquele penhasco.
- Deve ser.
- Ela é uma garota e tanto, a nossa Maggie. Foi ela quem me contou sobre o testamento de Holroyd. Pelo que sei, ele foi para Londres ver o irmão, e todos imaginaram
que era para discutir os termos do documento. Mas parece que o irmão não gostou muito do que Victor propôs e sugeriu que ele pensasse melhor. No fim, Holroyd redigiu
o aditamento ele mesmo. O que não teria sido nenhum problema para ele. A família toda cresceu no meio, e o próprio Holroyd chegou a fazer Direito, mas acabou mudando
e foi ser professor.
- Soube que o escritório Holroyd & Martinson cuida dos negócios da família Anstey.
- Exato. Há quatro gerações. Pena que o avô Anstey não tenha ido falar com eles antes de fazer seu testamento. Esse caso foi uma lição e tanto sobre as desvantagens
de se tentar ser advogado em causa própria. Bem, boa tarde, comandante. Desculpe se não fui de muita ajuda.
Ao olhar para trás, virando a esquina da rua South, Dalgliesh ainda teve tempo de ver Loder parado na porta, com o canhão de bronze reluzindo feito um brinquedo
a seus pés. Havia uma série de coisas sobre o advogado que considerava interessantes. Entre elas, o fato de Loder saber seu posto na Scotland Yard.
Restava ainda uma outra tarefa, antes de se dedicar às compras. Dalgliesh deu um pulo ao hospital Christmas Close, existente na cidade desde o começo do século XIX.
Mas dessa vez não teve sorte. O hospital não conhecia o padre Baddeley; só admitiam casos crônicos. Se a pessoa em questão sofrera um ataque do coração, com toda
a certeza teria ido para o pronto-socorro de um hospital distrital, apesar da idade. O porteiro, muito delicado, sugeriu que Dalgliesh tentasse o Hospital Geral
em Blandford ou o Hospital Victoria em Wimborne e, muito prestativo, mostrou-lhe a cabina telefônica mais próxima.
Dalgliesh tentou o Hospital Geral primeiro, já que era o mais próximo. E teve mais sorte do que imaginava. O funcionário que atendeu foi eficiente. Pela data em
que o padre tivera alta, pôde confirmar que o reverendo Baddeley havia de fato sido internado lá e passou Dalgliesh para a ala certa. Uma enfermeira atendeu. Sim,
ela se lembrava do padre Baddeley. Não, eles não sabiam que o padre morrera. Enunciou as palavras de praxe e conseguiu que soassem sinceras. Depois passou o telefone
para a enfermeira Breagan. A enfermeira Breagan costuma se oferecer para postar as cartas dos pacientes. Talvez ela pudesse ajudar o comandante Dalgliesh.
Sua patente - e ele sabia disso - respondia em parte pela solicitude delas, mas não de todo. Eram sobretudo mulheres bondosas dispostas a ajudar, mesmo a um estranho.
Explicou seu dilema à enfermeira Breagan.
- E assim foi que eu só fiquei sabendo que meu amigo tinha morrido quando cheguei ontem à vila Toynton. Ele prometeu me devolver os papéis que estávamos examinando,
mas não encontrei nada entre as coisas dele. Então pensei que talvez ele possa ter mandado para mim aí mesmo do hospital, ou para minha casa ou direto para a Scotland
Yard.
- Bem, comandante, o padre Baddeley não era muito de escrever. De ler, sim; mas não de escrever. Mas de fato eu coloquei duas cartas no correio para ele. Eram ambas
locais, pelo que me lembro. Tenho que olhar o endereço, o senhor sabe, para poder colocar na caixa apropriada. A data? Bem, isso não lembro. Mas ele me entregou
as duas juntas.
- Será que foram as duas cartas que ele mandou para a vila, uma para Wilfred Anstey e outra para Grace Willison?
- Pensando um pouco, comandante, parece que já vi esses nomes. Mas não posso garantir, o senhor compreende.
- Já fez muito de se lembrar tanto. E tem certeza de que só pôs essas duas no correio?
- Certeza absoluta. Por outro lado, pode ser que uma outra enfermeira tenha levado alguma coisa ao correio para o padre, mas isso seria meio difícil de descobrir.
Algumas já estão em outras enfermarias. Mas acho que não. Em geral sou eu quem cuida das cartas. E, como eu disse, ele não era de escrever muito. Por isso me lembro
daquelas duas.
Isso podia significar algo. Ou nada. Mas valera a informação. Se o padre Baddeley marcara um encontro para a noite em que voltou para casa, só podia ter feito isso
de duas maneiras: ou por telefone, do hospital mesmo, assim que melhorou o suficiente, ou por carta. E só a vila Toynton, os Hewsons e Julius Court tinham telefone.
Mas talvez para ele fosse mais fácil escrever. A carta endereçada a Grace Willison decerto era para marcar a hora da confissão. A carta para Anstey talvez fosse
de pêsames pela morte de Holroyd. Por outro lado, talvez não fosse nada disso.
Antes de desligar, perguntou se o padre Baddeley fizera algum telefonema do hospital.
- Ele fez uma ligação, que eu saiba. Isso quando já estava de pé, andando. Ligou da sala de espera dos pacientes do ambulatório e me perguntou se tínhamos uma lista
de Londres ali. Por isso é que eu me lembro.
- A que horas foi isso?
- Pela manhã. Pouco antes de eu ir embora, ao meio-dia.
Quer dizer então que o padre Baddeley tivera de fazer uma ligação para Londres, e para um número que ele não conhecia. E o fizera não à noite, e sim durante o horário
comercial. Havia um detalhe bastante óbvio que Dalgliesh poderia levantar. Mas não ainda. Disse a si mesmo que, por enquanto, não soubera de nada que justificasse
seu envolvimento, mesmo em caráter extra-oficial. E, mesmo que se envolvesse, para onde o levariam, ao fim e ao cabo, todas as suas suspeitas, todas as suas pistas?
Tão somente para um punhado de ossos calcinados no cemitério de Toynton.
V
Dalgliesh jantou mais cedo numa pousada próxima a Corfe Castle e só então voltou ao bangalô Esperança e começou a pôr ordem nos livros do padre Baddeley. Antes,
porém, havia algumas pequenas tarefas domésticas a fazer. Trocou a lâmpada da luminária de mesa por uma mais potente; limpou e ajustou o piloto do aquecimento a
gás que ficava sobre a pia; abriu espaço no guarda-comida para os mantimentos e o vinho que comprara; e descobriu no barracão do quintal, com a ajuda de uma lanterna,
uma pilha de lenha e uma tina. Não havia chuveiro no bangalô Esperança. O padre com certeza tomava seus banhos na vila Toynton. Mas Dalgliesh tinha toda a intenção
de se lavar na cozinha. Essa austeridade era um preço bem razoável a pagar para não ter de pisar no banheiro da vila, com seu cheiro hospitalar de desinfetante forte
e seus lembretes agressivos de doenças e deformidades. Acendeu um fósforo nos capins secos da lareira e viu aquilo tudo se incendiar na mesma hora e subir num chumaço
de agulhas negras e chamas cheirosas. Depois fez uma pequena fogueira experimental e descobriu, aliviado, que a chaminé estava desobstruída. Com um bom fogo, uma
boa luz, livros, comida e um estoque de vinho, não via razão para desejar estar em qualquer outro lugar.
Calculava haver entre duzentos e trezentos livros nas estantes da sala de estar e três vezes mais no quartinho sobressalente; de fato, os livros tinham tomado conta
do quarto de tal forma que era impossível chegar até a cama. A biblioteca do padre oferecia poucas surpresas. Muitos dos volumes sobre teologia talvez interessassem
alguma biblioteca especializada de Londres, e para alguns, uma tia sua com certeza encontraria guarida. Uma pequena seleção iria para suas próprias estantes: os
três volumes do Velho Testamento em grego de H. B. Swete; Imitação de Cristo, de Thomas à Kempis; Serious call, de William Law; dois volumes encadernados em couro
contendo a vida e as cartas de sacerdotes famosos do século XIX, além de uma primeira edição dos Parochial and plains sermons, de Newman. Não que não houvesse um
número representativo dos principais escritores e poetas ingleses, e, como o padre de vez em quando se dava ao luxo de comprar romances, sua biblioteca contava com
uma pequena porém significativa coleção de primeiras edições.
Às quinze para as dez, ouviu a aproximação de passos e um rangido de rodas; em seguida veio uma batida resoluta na porta e Millicent Hammitt entrou, trazendo consigo
um aroma agradável de café fresco e puxando um carrinho. Sobre ele havia um bule azul de louça robusta, uma jarra igual com leite quente, uma cumbuca de açúcar mascavo,
duas canecas do mesmo jogo e um prato de biscoitos doces.
Dalgliesh achou que não poderia levantar objeções quando a senhora Hammitt lançou um olhar de apreço para o fogo na lareira, serviu duas xícaras de café e deixou
bem claro que não estava com a menor pressa de ir embora.
Ela lhe fora sumariamente apresentada na noite anterior, antes do jantar, mas só tinham tido tempo para meio minuto de conversa, antes que Wilfred assumisse seu
lugar à mesa de leitura e o silêncio prescrito descesse sobre os presentes. Nesse meio minuto ela aproveitara para descobrir, por meio de uma pergunta indelicada
e sem a menor preocupação com finuras, que Dalgliesh estava tirando férias sozinho porque era viúvo e que a mulher morrera no parto, junto com a criança. - Muito
trágico. E incomum, sem dúvida, para os nossos tempos - fora a resposta que ela dera, com uma olhada de acusação para o outro lado da mesa e num tom que sugeria
descuido imperdoável de alguém.
Millicent usava chinelos caseiros, uma saia grossa de tweed e, por cima, uma incongruente malha cor-de-rosa de pontos bem abertos enfeitada com uma profusão de pérolas
fantasia. Dalgliesh desconfiava que sua casa era um meio-termo igualmente infeliz entre o útil e o espalhafatoso, mas não se sentia inclinado a deslindar essa parte.
Para seu alívio, ela não fez menção de ajudar e sentou-se encurvada na pontinha da poltrona, com a caneca de café aninhada no colo, as pernas bem plantadas no chão,
apartadas, revelando duas bolotas gêmeas, leitosas e varicosas, na altura onde acabavam as meias de náilon. Dalgliesh continuou o trabalho, com a caneca de café
sobre o chão, a seu lado. Sacudia cada livro com delicadeza, antes de colocá-lo na pilha correspondente, para o caso de haver lá dentro algum bilhete. Se houvesse,
a presença da senhora Hammitt seria embaraçosa. Entretanto sabia que a precaução era apenas fruto do hábito profissional de não deixar nada ao acaso. Não seria do
feitio do padre Baddeley.
Enquanto isso, Millicent Hammitt bebericava o café e falava, com a volubilidade e a indiscrição ocasional incentivadas pela crença - que por sinal Dalgliesh já tivera
ocasião de observar - de que um homem entretido fisicamente num trabalho ouve apenas metade do que está sendo dito.
- Desnecessário lhe perguntar se passou uma noite confortável. As camas de Wilfred são notórias. Uma certa dose de rigidez pelo visto faz bem a pacientes inválidos,
mas gosto de um colchão em que eu possa me afundar. Me espanta que Julius não o tenha convidado para dormir na casa dele, mas por outro lado ele nunca recebe visitas.
Não gosta de perturbar a senhora Reynolds, imagino. Ela é viúva de um sargento que foi chefe de polícia em Toynton e agora trabalha para Julius, sempre que ele vem
para cá. Por um salário para lá de generoso, claro. Bem, mas ele pode. E o senhor vai dormir aqui esta noite, pelo que entendi. Encontrei com Helen Rainer, quando
ela trouxe a roupa de cama. Imagino que não o perturbe, dormir na cama de Michael. Não, claro que não, sendo policial. O senhor não é sensível nem supersticioso
a respeito dessas coisas. E com razão; a morte nada mais é que um sono e um esquecimento. Ou será que estou falando da vida? É de Wordsworth, de todo modo. Eu costumava
gostar muito de poesia, quando era moça, mas não consigo apreciar esses poetas modernos. Mesmo assim, eu bem que gostaria de ouvir o senhor lendo uma das suas.
O tom de Millicent parecia sugerir que seria um prazer solitário e excêntrico. Dalgliesh, porém, cessara momentaneamente de escutá-la. Encontrara a primeira edição
do Diary of a Nobody, com uma dedicatória escrita com letra infantil na folha de rosto.
Ao padre Baddeley por ocasião de seu aniversário, com carinho, de Adam. Eu comprei na livraria do senhor Snelling em Norwich, e ele me vendeu barato por causa da
mancha vermelha na página vinte. Mas eu testei e não é sangue.
Dalgliesh sorriu. Quer dizer então que ele testara, é, o pestinha arrogante? Que misteriosa mistura de ácidos e cristais daquele estojo de química do qual ainda
se lembrava teria resultado em um pronunciamento científico tão confiante? A dedicatória reduzia o valor do livro bem mais do que a mancha, mas algo lhe dizia que
o padre Baddeley não pensava assim. Colocou-o na pilha reservada aos livros que iriam para suas estantes e deixou que a voz de Millicent Hammitt lhe penetrasse de
novo a consciência.
- E se um poeta não pode se dar ao trabalho de se fazer inteligível ao leitor educado, então o leitor educado faz melhor deixando o poeta sossegado, é o que eu sempre
digo.
- Tenho certeza que sim, senhora Hammitt.
- Me chame de Millicent, por favor. A idéia é que todos formamos uma família feliz, aqui. Se sou obrigada a aturar Dennis Lerner, Maggie Hewson e até mesmo aquele
estropício do Albert Philby me chamando pelo nome de batismo, não que eu dê a ele muitas oportunidades, lá isso eu garanto, não vejo por que o senhor também não
possa fazer o mesmo. E eu vou tentar chamá-lo de Adam, mas acho que não vai ser fácil. Não combina com seu estilo, ser chamado pelo nome de batismo.
Dalgliesh tirou com o maior cuidado a poeira dos volumes do Monumenta ritualica ecclesiae anglicanae e comentou que, pelo que tinha escutado, Victor Holroyd não
contribuíra grande coisa para promover o conceito de uma grande família feliz.
- Ah, quer dizer então que já lhe contaram algumas coisas sobre Victor? Fofocas de Maggie, sem dúvida. De fato, ele era um homem dificílimo, descortês tanto em vida
quanto na morte. Mas eu conseguia me dar até que bem com ele. Acho que me respeitava. Era um homem muito inteligente e cheio de informações úteis. Mas ninguém da
vila Toynton o suportava. Até mesmo Wilfred parece ter desistido dele no fim e resolvido deixá-lo em paz. Maggie Hewson era a exceção à regra. Mulher estranha. Sempre
tem que ser diferente. Sabe que eu acho que ela imaginou que Victor iria deixar o dinheiro para ela? Claro que todos nós sabíamos que ele era rico. Ele fez questão
de deixar claro que era um paciente autônomo e que não estava sendo sustentado pela prefeitura. Desconfio que ela achava que, mexendo os pauzinhos do jeito certo,
acabaria ficando com uma parte do dinheiro. Na verdade ela mais ou menos me deu a entender que contava com isso. Bom, estava meio bêbada na ocasião. Coitado do Eric!
Eu dou mais um ano no máximo para o casamento deles. Pode ser que para alguns homens ela seja uma mulher atraente, quer dizer, para quem gosta daquele tipo de loira
falsa meio relapsa com sensualidade para dar e vender. Claro que o caso dela (se é que se pode chamar aquilo de caso) com Victor foi uma coisa indecente. Sexo é
para gente saudável. Sei que os inválidos também têm sentimentos, como todo o mundo, mas é de se imaginar que eles sublimam isso quando chegam à fase da cadeira
de rodas. Esses livros parecem interessantes. Pelo menos a encadernação é boa. Talvez consiga um xelim ou dois por eles.
Pondo uma primeira edição do Tracts for the times a salvo dos pés irrequietos de Millicent e entre os livros que iria guardar, Dalgliesh reconheceu com um mal-estar
passageiro que, por mais que deplorasse as afirmações desinibidas daquela senhora, tinha de admitir que não estava muito longe de pensar o mesmo. Como seria sentir
desejo, amor, até mesmo concupiscência, e ver-se aprisionado num corpo impassível? Ou, pior ainda, num corpo ultra-sensível a certos apelos, mas descoordenado, feio,
grotesco? Reagir à beleza, mas conviver eternamente com a deformidade? Talvez estivesse começando a compreender a amargura de Victor Holroyd. E perguntou:
- Para quem ficou, no fim, o dinheiro dele?
- Foi todo para a irmã, que mora na Nova Zelândia, as sessenta e cinco mil libras. E ainda bem. Dinheiro tem que ficar na família. Mas eu diria que Maggie alimentava
esperanças. É possível que Victor tenha lhe prometido algo. É bem o tipo de coisa que ele faria. Ele podia ser bem vingativo, às vezes. Mas pelo menos deixou a fortuna
no lugar certo. Eu ficaria muito descontente se por acaso soubesse que a intenção de Wilfred é deixar a vila Toynton para qualquer um que não seja eu.
- E a senhora faria o quê, com a vila?
- Bem, os pacientes teriam que ir embora, claro. Não consigo me imaginar administrando uma casa de repouso. Respeito o que Wilfred está tentando fazer, mas ele tem
lá suas necessidades particulares. Imagino que já tenha ouvido algum comentário sobre a visita que ele fez a Lourdes e sobre o milagre. Bem, por mim, não há o menor
problema. Mas não fui agraciada com nenhum milagre, graças a Deus, e não tenho a menor intenção de sair atrás deles. Além do mais, já fiz o que baste pelos doentes
crônicos. Meu pai me deixou metade da casa e eu a vendi para Wilfred, para que ele começasse seu trabalho. Mandamos fazer uma avaliação técnica, claro, mas o preço
não foi muito alto. Na época esses casarões no campo não valiam nada. Agora, claro, custam uma fortuna. É uma bela casa, não acha?
- Sem dúvida muito interessante, arquitetonicamente falando.
- Exato. Casas do período Regência, com personalidade, estão alcançando preços fantásticos. Não que eu esteja pensando em vender. Afinal, foi onde passamos a infância,
e eu tenho afeição por ela. Mas é muito provável que eu me livrasse das terras. Na verdade, Victor Holroyd conhecia alguém na região que estava interessado em comprar,
alguém que quer abrir mais um acampamento de férias para trailers.
Sem querer, Dalgliesh comentou:
- Que idéia pavorosa!
Millicent Hammitt não se deu por achada. E respondeu, benigna:
- Pavorosa nada. Essa é uma atitude muito egoísta de sua parte, se me permite dizer. Os pobres também precisam de férias, tanto quanto os ricos. Julius não gostaria
da idéia, mas não tenho obrigação nenhuma de levar em conta o que ele aprova ou não. Ele venderia a casa e se mudaria daqui, imagino. Julius é dono daquele acre
e meio do promontório, mas não consigo vê-lo atravessando um estacionamento de trailers para chegar lá em cima, toda vez que voltasse de Londres. Além do mais, o
pessoal teria que passar quase na frente da janela dele, para alcançar a praia. Aquele é o único trecho com praia, na maré alta. Até já posso ver: pais de joelhos
ossudos e calçãozinho apertado, carregando o cesto de piquenique; mamãe logo atrás, com um transistor no volume máximo; crianças reclamando, bebês berrando. Não,
não vejo como Julius poderia continuar aqui.
- Alguém daqui sabe desse testamento?
- Claro. Não é segredo para ninguém. Quem mais iria herdar a vila? Aliás, a propriedade toda deveria ser minha por direito. Talvez já saiba que Wilfred não é um
Anstey de verdade, que ele foi adotado.
Dalgliesh disse com toda a cautela que se lembrava de alguém ter mencionado esse fato.
- Então é melhor que saiba a história toda. É bem interessante, para quem se preocupa com questões jurídicas.
Millicent serviu-se de mais uma xícara de café e afundou na poltrona, acomodando-se, pelo visto para fazer uma dissertação complicada.
- Meu pai tinha uma vontade enorme de ter um filho homem. Alguns homens são assim, as filhas não contam. E entendo que a minha chegada tenha sido uma decepção. Quando
um homem quer muito um filho, a única coisa que pode conciliá-lo com uma filha é a beleza dela. E isso eu nunca tive. Felizmente, parece que o fato não preocupou
demasiado meu marido. Nós nos dávamos muito bem.
Como a única resposta possível a essa declaração era um vago murmúrio de felicitações, Dalgliesh emitiu os ruídos apropriados.
- Obrigada - disse Millicent, como se aceitando um elogio, antes de continuar, feliz da vida:
- Mas, como eu ia dizendo, quando os médicos disseram a papai que minha mãe não poderia mais ter filhos, ele decidiu adotar uma criança. Se não me engano, ele pegou
Wilfred de um orfanato, mas eu só tinha seis anos na época e acho que ninguém me falou como e quando eles o encontraram. Ilegítimo, claro. As pessoas se importavam
mais com esse tipo de coisa nos anos 20 e havia uma legião de bebês indesejados naquele tempo. Lembro-me de que fiquei muito emocionada com a chegada de um irmão.
Eu era uma criança solitária, que tinha mais do que seu quinhão devido de afeto. Na época, não vi Wilfred como um rival. Eu gostava muito dele, quando éramos jovens.
Ainda gosto. As pessoas se esquecem disso, às vezes.
Dalgliesh perguntou o que acontecera.
- Foi o testamento do meu avô. O velho não confiava em advogados, nem mesmo em Holroyd e Martinson, que eram os advogados da família, e escreveu suas próprias disposições
testamentárias, doando toda a propriedade em partes iguais para os netos e deixando o usufruto para meus pais. A questão é: será que meu avô pretendia incluir Wilfred
no testamento? No fim, tivemos de recorrer à justiça. O caso causou muito rebuliço, na época, e tornou a levantar toda a questão dos direitos dos filhos adotivos.
Não se recorda desse caso?
Dalgliesh tinha uma vaga lembrança. E perguntou:
- Quando foi feito o testamento de seu avô, quer dizer, em relação à adoção de seu irmão?
- Essa era a parte crucial das provas. Wilfred foi legalmente adotado no dia 3 de maio de 1921, e vovô assinou seu testamento dez dias depois, no dia 13. Dois criados
serviram de testemunha, mas já tinham morrido quando o caso foi parar na justiça. O testamento estava claríssimo e em ordem, só que ele não pôs os nomes dos herdeiros.
Mas os advogados de Wilfred conseguiram provar que meu avô sabia da adoção e estava satisfeito com ela. E o testamento dizia netos, no plural.
- Mas ele podia estar pensando, quem sabe, que sua mãe talvez morresse antes e seu pai fosse se casar de novo.
- Muito perspicaz de sua parte! Já vi que tem a mente tortuosa de um advogado. Foi bem isso que meu advogado alegou. Mas não adiantou. Wilfred ganhou a causa. Mas
acho que entende meus sentimentos em relação à vila. Se vovô tivesse assinado aquele testamento antes do dia 3 de maio, as coisas seriam bem diferentes, isso eu
lhe garanto.
- Ainda assim ficou com metade do valor da propriedade, não ficou?
- Fiquei, é verdade, só que não durou muito. Meu querido marido acabou com o dinheiro rapidinho. Não com mulheres, me alegro em dizer. Foram os cavalos. Eles são
rivais tão caros quanto, e ainda mais imprevisíveis que elas, mas menos humilhantes. E dá até para ficar contente quando ganham, ao contrário do que acontece quando
a coisa é com mulheres. Wilfred sempre disse que Herbert ficaria senil quando se aposentasse do exército, porém não me queixei. Eu até que gostava mais dele, senil.
Mas o fato é que ele acabou com o dinheiro.
De repente, Millicent passou os olhos pela sala, inclinou-se para a frente e deu uma olhada marota de conspiração para Dalgliesh.
- Vou lhe contar uma coisa que ninguém sabe na vila Toynton, a não ser Wilfred. Se ele vender, eu fico com a metade do preço da venda. Não só com metade do lucro
excedente, fico com cinqüenta por cento do que ele conseguir. Tenho uma declaração de Wilfred, devidamente assinada e testemunhada por Victor. Na verdade, foi sugestão
do próprio Victor. Ele achou que o documento teria validade legal. E está muito bem guardado, longe do alcance de Wilfred. O documento está sob a guarda de Robert
Loder, um advogado de Wareham. Desconfio que Wilfred tinha tanta certeza de que jamais precisaria vender, que nem se importou em assinar o papel, ou talvez estivesse
se armando contra possíveis tentações. Não acredito, nem por um segundo, que ele vá vender. Ele gosta demais daqui, para se desfazer de tudo. Mas, se por acaso mudar
de idéia, vou me sair muito bem do negócio.
Com enorme ousadia, Dalgliesh comentou:
- Quando eu cheguei, Maggie Hewson disse qualquer coisa sobre a Fundação Ridgewell. Seu irmão não estaria pensando em transferir a casa de repouso?
Millicent Hammitt recebeu a sugestão com mais calma do que ele esperava. E retrucou vigorosa:
- Bobagem! Eu sei que Wilfred toca nesse assunto de vez em quando, mas ele nunca vai entregar a vila Toynton assim, de mão beijada. E por que faria isso? O dinheiro
anda curto, não nego, mas o dinheiro sempre é curto. Tudo o que ele tem a fazer é aumentar as mensalidades ou fazer com que as prefeituras paguem mais pelos pacientes
que nos mandam. Ele não precisa ficar subsidiando o Estado. Mas, se ainda assim não conseguir fazer com que a vila se pague, então o melhor seria mesmo vender, em
que pese o famoso milagre.
Diante das circunstâncias, Dalgliesh sugeriu que era espantoso Wilfred Anstey não ter se tornado católico apostólico. Millicent apossou-se da idéia com veemência.
- Foi uma luta espiritual e tanto, na época. - E sua voz aprofundou-se, latejando com os ecos de forças cósmicas enlaçadas num combate mortal. - Mas fiquei contente
que ele tenha continuado na nossa igreja. Nosso pai - altura em que a voz ressoou com tamanho fervor exortativo que Dalgliesh, espantado, teve quase certeza de que
ela iria começar a rezar o Pai Nosso - teria ficado tão aflito. Ele era muito apegado à igreja, comandante Dalgliesh. Evangélico, claro. Não. Eu fiquei muito satisfeita
quando Wilfred não se converteu.
Ela falou como se Wilfred, diante do rio Jordão, não tivesse gostado da cara da água ou houvesse desconfiado do barco.
Dalgliesh já havia perguntado a Julius Court a respeito das preferências religiosas de Wilfred e recebera uma explicação diferente e, ele suspeitava, bem mais precisa.
Lembrava-se da conversa que tinham tido no pátio, antes de voltar para a sala, e da voz jocosa de Julius:
- O padre O’Malley, que era o encarregado da conversão de Wilfred, deixou bem claro que sua igreja iria, num futuro bem próximo, fazer pronunciamentos sobre uma
série de questões que Wilfred julgava jurisdição sua. E foi então que sem dúvida lhe ocorreu estar prestes a entrar para uma organização imensa onde, como convertido,
estaria recebendo e não concedendo um benefício. No fim, depois de uma luta bastante satisfatória, tenho certeza, Wilfred decidiu permanecer fiel a uma igreja mais
afável.
- Apesar do milagre? - Dalgliesh perguntara.
- Apesar do milagre. O padre O’Malley é um racionalista. Ele admite a existência de milagres, mas prefere que as provas sejam submetidas às autoridades competentes
para um exame minucioso. Depois de um prazo razoável, a Igreja, em toda a sua sabedoria, faz seu pronunciamento. Sair por aí proclamando aos quatro ventos que se
recebeu uma graça especial, no entender do bom homem, é um pouco presunçoso. Pior: desconfio que ele acha que é de muito mau gosto. O padre O’Malley é um sujeito
enjoado. Ele e Wilfred não se deram lá muito bem. E nosso padre perdeu um convertido.
- Mas as peregrinações a Lourdes continuam? - Dalgliesh ainda perguntara antes de entrarem.
- Claro. Duas vezes por ano, regularmente. Eu não vou mais. No começo eu costumava ir, logo que vim para cá, mas, para usar a linguagem contemporânea, Lourdes não
é bem minha praia. No entanto em geral providencio uma boa festinha para recebê-los na volta.
Dalgliesh, de novo focado no presente, percebeu que as costas começavam a doer. Endireitou-se bem no momento em que o relógio no consolo da lareira bateu os três
quartos de hora. Uma acha esturricada despencou, soltando uma chuva final de faíscas. Millicent Hammitt tomou aquilo como um sinal de que já era hora de partir.
Dalgliesh insistiu em primeiro lavar as xícaras de café e ela o seguiu até a cozinha.
- Foi uma hora bem agradável, comandante, mas duvido que possamos repeti-la. Não sou do tipo de vizinho que vive aparecendo. Graças a Deus, ainda consigo agüentar
minha própria companhia. Ao contrário da pobre Maggie, tenho meus recursos. E uma coisa eu lhe digo a respeito de Michael Baddeley: ele era um homem bem fechado.
- A enfermeira Rainer me disse que foi idéia sua convencê-lo das vantagens da cremação.
- Ela disse isso? Bem, até certo ponto com razão. Eu talvez tenha tocado nesse assunto com Michael. Sou totalmente contra desperdiçar um bom terreno para enterrar
corpos em putrefação. Pelo que me lembro, o bom velho não tinha a menor preocupação com o que aconteceria com ele, desde que terminasse em terreno consagrado, com
as devidas palavras pronunciadas sobre seu cadáver. Muito sensato. É o que eu acho, sem tirar nem pôr. E em momento nenhum Wilfred se opôs à cremação. Ele e Dot
Moxon concordaram comigo em gênero, número e grau. Helen não gostou foi de precisarmos de uma segunda assinatura médica. Deve ter enfiado na cabeça que isso lançaria
alguma dúvida sobre o julgamento clínico do seu adorado Eric, imagino.
- O que não significa que alguém tenha insinuado que o diagnóstico do doutor Hewson foi errado.
- Claro que não! Michael morreu do coração e creio que até Eric teria competência para ver isso. Não, não se incomode em me acompanhar, eu trouxe a lanterna. E se
precisar de alguma coisa, a qualquer hora, é só bater na parede.
- Mas a senhora escutaria? O padre Baddeley bateu e a senhora não escutou.
- Não escutei porque ele não bateu, claro. E, depois das nove e meia, eu também não esperava mais nenhum chamado. É que eu pensei que alguém já tivesse vindo dar
uma olhada e ajudado o padre a ir se deitar.
A escuridão do lado de fora, fria e irrequieta, era mais do que mera ausência de luz; era uma força definitiva, misteriosa, uma névoa negra com sabor adocicado e
cheiro de maresia. Dalgliesh manobrou as rodas pelo degrau da entrada. Caminhando ao lado de Millicent e firmando o carrinho com uma das mãos, perguntou, com um
desinteresse calculado:
- Mas a senhora ouviu alguém?
- Eu não ouvi, eu vi. Ou pelo menos achei que vi. Estava pensando em preparar alguma coisa quente, antes de deitar, e me perguntei se Michael não gostaria de tomar
alguma coisa também. Mas, quando abri a porta da frente para dar um grito e perguntar, pensei ter visto um vulto envolto numa capa comprida. Como as luzes de Michael
estavam apagadas... vi que a casa se achava toda às escuras, claro que preferi não incomodá-lo. Agora sei que me enganei. Ou isso, ou então estou ficando biruta.
O que não seria nada difícil, neste lugar. Obviamente ninguém veio vê-lo, e agora estão todos de consciência pesada. Até entendo como pude ter me enganado. Era uma
noite como esta, só com uma brisa amena, mas mergulhada numa escuridão que parecia se mexer e se aglutinar em formas e vultos. E também não ouvi nada, nem mesmo
ruído de passos. Só um vulto de cabeça baixa, encapuzado e com uma capa rodopiando nas trevas.
- E isso foi lá pelas nove e meia?
- Ou um pouco depois. Talvez tenha sido por volta da hora em que ele morreu. Uma pessoa mais impressionável poderia até imaginar ter visto o fantasma do padre. Foi
o que Jennnie Pegram sugeriu, na verdade, quando contei isso a eles. Moça mais ridícula!
Estavam quase chegando à porta do bangalô Fé. Millicent hesitou, em seguida disse como se por impulso e, aos olhos de Dalgliesh, com um certo constrangimento:
- Me disseram que o senhor está preocupado com a fechadura arrombada da escrivaninha de Michael. Pois muito bem: a fechadura estava intacta uma noite antes de ele
voltar do hospital. Descobri que meus envelopes tinham acabado e eu precisava mandar uma carta com urgência. Achei que ele não iria se importar se eu desse uma espiada
na escrivaninha. E ela estava trancada.
- E arrombada quando seu irmão foi procurar pelo testamento, logo depois de encontrarem o corpo.
- É o que ele diz, comandante. É o que ele diz.
- Mas a senhora não tem provas de que foi ele quem arrombou?
- Eu não tenho provas contra ninguém. A casa ficou cheia de gente entrando e saindo. Wilfred, os Hewsons, Helen, Dot, Philby, inclusive Julius, quando chegou de
Londres. Virou quase um velório. Só o que eu sei é que às nove horas da noite, na véspera da morte de Michael, a escrivaninha se achava trancada. Também sei que
Wilfred estava louco para dar uma olhada naquele testamento, para ver se Michael tinha mesmo deixado tudo o que possuía para a vila Toynton. E mais ainda: sei que
não foi o padre quem arrombou aquela escrivaninha.
- Como, senhora Hammitt?
- Porque eu encontrei a chave, logo depois do almoço, no dia em que ele morreu. No lugar onde eu presumo que ela sempre tenha ficado guardada. Numa lata velha de
chá na segunda prateleira do guarda-comida. Achei que ele não se importaria se eu ficasse com os mantimentos que haviam sobrado. Enfiei no bolso, para que não se
perdesse quando Dot viesse esvaziar a casa. Afinal, aquela escrivaninha vale um bocado, e a fechadura precisa ser consertada. Na verdade, se Michael não a tivesse
deixado para Grace, em testamento, eu a teria trazido para cá e cuidado muito bem dela.
- Quer dizer que ainda tem a chave?
- Claro. Ninguém se preocupou com ela, a não ser o senhor. E, como parece tão interessado no assunto, é melhor ficar com ela.
Millicent enfiou a mão no bolso da saia e Dalgliesh sentiu o frio do metal em sua palma. Ela já abrira a porta do bangalô e tateava a parede para acender a luz.
Com o brilho repentino, Dalgliesh piscou forte e, em seguida, viu-a com clareza, uma pequena chave de prata, delicada como uma filigrana, mas amarrada com um barbante
fino a um pregador vermelho de roupa, de um vermelho tão vivo que, por um segundo atônito, parecia que sua mão se manchara de sangue.
5
 ATO DE VINGANÇA
I
Ao se lembrar do primeiro fim de semana passado em Dorset, Dalgliesh viu-o como uma seqüência de imagens tão diversas das cenas de violência e morte que se seguiriam,
que chegou quase a acreditar que estivesse vivendo em duas dimensões e dois tempos diferentes. Aqueles primeiros retratos tranqüilos, ao contrário dos stills escabrosos
de algum filmeco de horror em preto-e-branco, estavam impregnados de cores, sensações e cheiros. Recordou-se do movimento incessante dos seixos da praia de Chesil,
dos gritos dos pássaros e do estrondo ríspido das ondas a lhe encher os ouvidos, da caminhada até onde Portland se levanta em rochedos escuros; de ter transposto
as guarnições e trincheiras do forte Castle Maiden e observado - vulto solitário batido pelo vento - os quatro mil anos de história circunscritos nas ondulações
de terra em volta do morro; do chá que tomou fora de hora em Dorchester enquanto as últimas luzes aveludadas do outono iam se dissolvendo no poente; de dirigir à
noite por uma estradinha, entre samambaias douradas e sebes altas, até um pub de pedra que o aguardava de janelas iluminadas, nos prados de algum povoado distante.
E então, tarde da noite, quando não havia mais o menor risco de alguma visita da vila Toynton perturbar seu sossego, voltar para o bangalô Esperança e para o cheiro
familiar e acolhedor de livros e lenha. Não sem uma certa surpresa, percebeu que Millicent Hammitt cumprira a promessa de não incomodá-lo mais depois daquela primeira
visita. E logo adivinhou por quê: Millicent era viciada em televisão. Enquanto bebericava seu vinho e arrumava os livros do padre Baddeley, ele escutava pela parede
da chaminé os vagos sons das diversões noturnas dela, não de todo irritantes: o súbito irromper de um estribilho comercial já conhecido; a antífona de vozes sussurradas;
disparos de armas; gritos femininos; clarins tonitruantes anunciando o último filme da noite.
A sensação era a de estar existindo num limbo entre a antiga e a nova vida, escusado, pela convalescença, da responsabilidade de uma decisão imediata, de qualquer
esforço que considerasse enfadonho. E, para ele, a vila Toynton e seus pacientes eram enfadonhos. Já havia tomado as providências possíveis. Agora aguardava o desenrolar
dos acontecimentos. Uma certa hora, olhando para a poltrona vazia e surrada do padre Baddeley, lembrou-se com irreverência da lendária desculpa de um eminente filósofo
ateu que, após a morte e para imenso espanto seu, foi levado à presença de Deus.
- Mas, Senhor, não foram fornecidas provas suficientes.
Se o padre Baddeley queria que ele agisse, teria de fornecer pistas mais tangíveis do que um diário desaparecido e uma fechadura arrombada.
Não esperava nenhuma carta, a não ser a reposta de Bill Moriarty, porque deixara instruções em Londres para que não lhe remetessem nada. E pretendia ir buscá-la
ele mesmo na caixa do correio. Entretanto, a carta chegou na segunda-feira, pelo menos um dia antes do que imaginara possível. Dalgliesh tinha passado a manhã toda
no bangalô e só foi até a porteira depois do almoço, às duas e meia da tarde, para levar a garrafa de leite vazia até o ponto da coleta.
A caixa postal continha uma carta, um envelope branco com um carimbo da região central de Londres; o endereço fora datilografado e seu posto na polícia, omitido.
Moriarty tivera cuidado. Mas, ao passar o polegar pela aba do envelope, Dalgliesh receou não ter sido cauteloso o bastante. Não havia nenhum indício claro de que
a carta tivesse sido aberta: a aba estava intacta. Mas a cola lhe pareceu um tanto fraca e o envelope se abriu com uma facilidade excessiva sob a pressão do polegar.
E sobrara só aquela carta na caixa do correio. Alguém, com certeza Philby, já devia ter recolhido a correspondência endereçada aos moradores da vila Toynton. Estranho
que ninguém houvesse levado a carta para ele. Talvez tivesse sido mais acertado usar a posta-restante do povoado de Toynton, ou a de Wareham. Irritou-o pensar que
fora descuidado. Por outro lado, e para falar a verdade, não sabia bem o que estava investigando, se é que havia alguma coisa para investigar; no fundo, só muito
de vez em quando se preocupava com o assunto. Ocorreu-lhe que não tinha disposição para fazer o serviço direito e tampouco vontade e coragem para deixar a morte
do padre Baddeley em paz. Ou seja, seu humor atingira aquele estágio em que o estilo de Bill pareceria ainda mais enervante do que de costume.
“Que bom pôr os olhos em sua letra elegante de novo. Houve um alívio geral por aqui ao sabermos que as notícias de sua morte iminente foram exageradas. Estamos guardando
a caixinha da coroa de flores para uma festa de comemoração. Mas o que você foi xeretear aí em Dorset, no meio de um bando de esquisitões problemáticos? Se está
querendo trabalho, tem um monte por aqui. Entretanto, vamos às informações gerais.
“Dois do seu bandinho têm ficha. Pelo visto você já está sabendo algo sobre Philby. Duas condenações por lesões corporais de natureza grave, em 1967 e 1969, quatro
por furto em 1970 e uma miscelânea de delitos anteriores. O único aspecto extraordinário disso tudo é a leniência demonstrada por todos os juízes pelos quais passou.
Mas, vendo a ficha corrida do sujeito, até dá para entender. Eles provavelmente acharam injusto punir com rigor excessivo uma criatura que seguiu a única carreira
para a qual a fisiognomonia e o talento o prepararam. Consegui dar uma palavrinha com o ‘semi-aberto’ a respeito. O pessoal lá do presídio reconhece as falhas do
indivíduo, mas diz que ele é capaz, em troca de afeto, de uma lealdade feroz. Cuidado para ele não se tomar de amores por você.
“Millicent Hammitt foi condenada duas vezes pelos tribunais de Cheltenham por furto em loja, em 1966 e 1968. Na primeira vez, houve a alegação de praxe de problemas
de menopausa e ela foi multada. Teve sorte, porém, de escapar da prisão na segunda vez. Mas como o delito foi cometido uns dois meses depois da morte do marido,
um major aposentado do exército, o tribunal se mostrou compreensivo. Com toda a certeza houve também a influência de Wilfred Anstey, que ofereceu garantias de que
a irmã iria morar com ele na vila Toynton e ficaria sob sua responsabilidade. Desde então não houve mais nenhum incidente, de modo que eu presumo que ou a vigilância
de Anstey tem sido eficaz ou os lojistas locais são mais complacentes que os outros; também pode ser que a senhora Hammitt tenha aperfeiçoado suas técnicas.
“No geral, isso é tudo. Os outros estão limpos, ou ao menos não têm ficha na polícia. Mas, se está à cata de um vilão interessante - e nem me passaria pela cabeça
que Adam Dalgliesh estivesse desperdiçando seus talentos com Albert Philby -, então permita-me recomendar-lhe Julius Court. Obtive umas dicas sobre ele de um sujeito
que eu conheço que trabalha no Ministério do Exterior. Court cursou uma boa escola em Southsea e entrou para o serviço diplomático depois da faculdade, equipado
com todos os acessórios da elegância, mas meio carente de fundos. Estava na embaixada de Paris em 1970, quando Alain Michonnet foi acusado de ter assassinado Poitaud,
o piloto de corridas. Court testemunhou em favor dele. Talvez você se lembre do caso, ficou famoso na época. E a imprensa inglesa deu ampla cobertura. Era um daqueles
casos inequívocos, e a polícia francesa estava salivando de felicidade com a perspectiva de enquadrar Michonnet. Ele é filho de Theo d’Estier Michonnet, dono de
uma indústria química perto de Marselha, e a polícia já estava de olho em père e fils havia um tempo. Court porém forneceu um álibi ao coleguinha. O curioso é que
eles na verdade não eram nada um do outro - Michonnet é heterossexual fanático, como a imprensa não se cansa de alardear à exaustão -, e a tenebrosa palavra chantagem
foi sussurrada pelos quatro cantos da embaixada. Ninguém acreditou na história de Court; mas também ninguém conseguiu derrubá-la. Meu informante acha que não houve
motivação mais sinistra do que o desejo de dar umas boas risadas e botar os superiores numa situação delicada. Se era esse o objetivo dele, sem dúvida conseguiu.
Oito meses mais tarde, o padrinho dele fez o favor de falecer e lhe deixar trinta mil libras. Court largou o serviço diplomático. Dizem que ele entende à beça de
investimentos. Seja como for, são águas passadas. Não se sabe de nada que possa desacreditá-lo, como se diz por aí, exceto, talvez, uma tendência a ser um tanto
complacente demais com os amigos. Mas estou passando a história conforme a recebi.”
Dalgliesh dobrou a carta e enfiou-a no bolso do paletó, perguntando-se quanto daquilo tudo seria do conhecimento geral na vila Toynton. Julius Court com certeza
não se deixaria abalar se alguém soubesse. Afinal, ninguém tinha nada a ver com seu passado; ele não estava sob as garras sufocantes de Wilfred. Millicent Hammitt,
porém, arcava com o peso de uma dupla gratidão. Quem mais, fora Wilfred, estaria a par daqueles dois incidentes patéticos e desmoralizantes? E até que ponto ela
se importaria, se viessem a ser conhecidos por todos os moradores da vila Toynton? De novo, desejou ter pensado antes na posta-restante.
Um carro se aproximava. Dalgliesh ergueu os olhos. O Mercedes, em alta velocidade, vinha descendo a estrada costeira. Julius pisou no breque e o carro parou com
um safanão, o pára-choque a poucos centímetros do portão da divisa. Ele saltou e começou a abri-lo, gritando o nome de Dalgliesh.
- A torre negra está pegando fogo! Eu percebi a fumaça da estrada. Tem um ancinho no bangalô?
Dalgliesh foi ajudá-lo com o portão.
- Acho que não. Não tem jardim. Mas vi uma vassoura dura no quartinho de fora.
- Melhor que nada. Importa-se de vir comigo? Talvez sejam necessárias duas pessoas.
Dalgliesh entrou rápido no carro. Deixaram o portão aberto. Julius foi até o bangalô Esperança sem muita consideração pelos amortecedores e pelo conforto de seu
passageiro. Abriu o porta-malas enquanto Dalgliesh corria até o barracão. Ali, daquela parafernália de antigos moradores, pegou a vassoura lembrada, dois sacos vazios
e, surpreendentemente, um velho cajado de pastor. Atirou tudo no porta-malas espaçoso. Julius já tinha virado o carro e o motor estava ligado. Dalgliesh sentou-se
ao lado e o Mercedes avançou.
Quando viraram na estrada costeira, Dalgliesh perguntou:
- Você sabe se tem alguém lá dentro? Anstey?
- Pode ser que sim. É isso que me preocupa. Ele é a única pessoa que vai até lá, agora. E não consigo ver de que outra forma o fogo possa ter começado. Dá para chegar
mais perto da torre indo por aqui, só que vamos ter que subir o morro a pé, e a subida não é brincadeira. Não tentei fazer isso, quando vi a fumaça. Não iria adiantar
nada, sem alguma ferramenta para combater o fogo.
A voz saiu tensa; os nós dos dedos no volante brilhavam de tão brancos. Pelo espelho retrovisor, Dalgliesh notou que as pupilas estavam enormes, cintilantes. A cicatriz
triangular sobre o olho direito, em geral quase invisível, escurecera e saltava à vista. Logo acima, o sangue martelava a têmpora. Deu uma olhada no velocímetro:
estavam a mais de cento e sessenta, mas o Mercedes, conduzido esplendidamente, agarrava-se àquela estradinha sem a menor dificuldade. De repente, o caminho se torceu
numa subida e puderam então ver um pedaço da torre. Pelas vidraças quebradas das janelinhas estreitas, qual um canhão em miniatura arrotando fumaça, saíam grossos
rolos cinzentos que despencavam contentes da vida sobre o morro até que um vento qualquer os sacudia e reduzia a fiapos espanados. O efeito era absurdo e pitoresco,
tão inócuo quanto uma brincadeira de criança. Em seguida começaram a descer e perderam a torre de vista.
A estrada costeira, que comportava apenas um carro por vez, era protegida, do lado do mar, por uma mureta feita de pedras sobrepostas, sem argamassa. Julius conhecia
o caminho. Já tinha virado o carro para a esquerda antes mesmo de Dalgliesh notar uma abertura, sem portão, mas ainda delimitada por dois mourões apodrecidos. O
carro parou com um solavanco numa depressão à direita da entrada. Dalgliesh pegou o cajado e os sacos, e Julius, a vassoura. E com essa carga ridícula correram morro
acima.
Julius estava certo, era o caminho mais curto. Mas só podia ser feito a pé. Mesmo que ele estivesse disposto a meter o carro naquele terreno áspero, pedregoso, não
teria sido possível. O morro era todo entrecruzado por muros divisórios de pedra, baixos o suficiente para serem pulados, desmoronados em vários lugares, mas sem
uma brecha larga o bastante para deixar passar um veículo. O terreno enganava. Em determinado momento, a torre pareceu recuar, separada por barreiras intermináveis
de pedras soltas. De repente, assomou à frente deles.
Pela porta semi-aberta saía uma fumaça de cheiro acre, como se viesse de lenha úmida. Dalgliesh deu um chute para terminar de abri-la e saltou de lado, provocando
uma nova onda de rolos de fumaça e um rugido imediato. Uma língua de fogo avançou contra ele. Com o cajado, começou então a limpar os detritos em chamas, alguns
ainda identificáveis - capins e feno, pedaços de corda, algo que parecia ser o resto de uma cadeira -, os anos de lixo acumulado desde os tempos em que o morro era
de domínio público e a torre negra, destrancada, servia como abrigo de pastores e hospedaria noturna de vagabundos. Enquanto rastelava os restos malcheirosos, podia
escutar Julius atrás, batendo freneticamente em tudo, para apagar o fogo. De repente, sem mais nem menos, surgia um pequeno incêndio que se esgueirava qual uma língua
vermelha entre o mato.
Assim que a entrada ficou livre, Julius precipitou-se para a porta, apagando os restos chamejantes de relva e feno com os dois sacos. Dalgliesh viu o vulto envolto
em fumaça tossindo, cambaleante. Puxou-o sem muita cerimônia e disse:
- Não se aproxime enquanto eu não limpar tudo. Não quero acabar tendo que cuidar de duas pessoas ao mesmo tempo.
- Mas ele está aí dentro! Eu sei que está. Tem que estar. Ai, meu Deus! Que idiota!
O último capão de mato incendiado já fora apagado. Julius empurrou Dalgliesh para o lado e correu para a escada de pedra que acompanhava a parede redonda. Dalgliesh
foi atrás. Uma porta de madeira, dando para um aposento intermediário, se achava entreaberta. Ali não havia janelas, mas, na escuridão permeada de fumaça, divisaram
uma figura encolhida, derreada feito um saco vazio, junto à parede. Puxara o capuz do hábito de monge por cima da cabeça e se envolvera em suas pregas como um destituído
da sorte se protegendo do frio. As mãos febris de Julius se perderam nas dobras do hábito. Dalgliesh ouviu-o xingar. Levou alguns segundos até conseguirem liberar
os braços de Anstey, e, juntos, arrastaram-no até a porta e, com dificuldade, suspenderam e manobraram o corpo inerte pela escada estreita até alcançar o ar fresco.
Deitaram-no de bruços na relva. Dalgliesh estava de joelhos, pronto para começar a fazer respiração boca a boca. E foi então que, devagar, Anstey estendeu os dois
braços e ficou ali estendido, numa atitude ao mesmo tempo teatral e algo blasfema. Dalgliesh, aliviado de não ter que pôr sua boca na dele, levantou-se. Anstey dobrou
os joelhos e começou a tossir convulsivamente, em acessos ruidosos e roucos. Virou a cabeça de lado, com uma face encostada no morro. A boca úmida, cuspindo saliva
e bile, parecia estar sugando o capim, como se ávida de comida. Dalgliesh e Court ajoelharam-se e, cada um de um lado, ergueram-no. Com voz fraca, Wilfred disse:
- Eu estou bem. Estou bem.
Dalgliesh perguntou:
- O carro está lá embaixo. Consegue andar?
- Consigo. Eu estou bem, já disse. Estou bem.
- Não tem pressa. Melhor descansar um pouco, antes de descermos.
Puseram-no encostado numa pedra grande e lá ele ficou, um pouco afastado, ainda com acessos convulsivos de tosse, olhando o mar. Julius andava de um lado para o
outro, inquieto, como se preocupado com a demora. O fedor do fogo foi sendo soprado de mansinho para longe do morro enegrecido, como os últimos vapores de uma pestilência.
Cinco minutos depois, Dalgliesh falou:
- Vamos andando, então?
Juntos, e sem dizer palavra, puseram Anstey de pé e o ajudaram a descer o morro e entrar no carro.
II
Ninguém abriu a boca na volta para a vila Toynton. Como sempre, a frente da casa parecia deserta; o saguão axadrezado estava vazio, mergulhado num silêncio estranho.
Entretanto os ouvidos afiados de Dorothy Moxon deviam ter escutado o barulho do carro, talvez do consultório na parte dianteira da casa. Quase que na mesma hora,
ela apareceu no topo da escada.
- O que foi? O que houve?
- Está tudo em ordem. Wilfred conseguiu a proeza de pôr fogo na torre negra com ele lá dentro. Não está ferido, só assustado. E a fumaça não melhorou o estado dos
pulmões dele.
A enfermeira lançou um olhar de acusação de Dalgliesh para Julius, como se a culpa fosse deles, depois colocou os dois braços em volta de Anstey, num gesto ferozmente
maternal e protetor, e começou a animá-lo com toda a delicadeza para subir as escadas, resmungando incentivos e censuras em seu ouvido num murmúrio doce e monótono
que, para Dalgliesh, soava como um carinho. Anstey, ele reparou, parecia menos capaz de se sustentar nas pernas do que se mostrara no morro, e o avanço foi lento.
Entretanto, quando Julius se adiantou para ajudar, uma olhada de Dorothy Moxon o fez recuar. Com dificuldade, ela conseguiu pôr Anstey em seu quartinho pintado de
branco, nos fundos da casa, e ajudou-o a deitar na cama estreita. Dalgliesh fez um rápido inventário mental. O quarto era bem o que imaginara. Uma mesa pequena e
uma cadeira colocadas sob uma janela com vista para o pátio traseiro dos pacientes; uma estante bem abastecida de livros; um tapetinho; um crucifixo sobre a cama;
uma mesinha de cabeceira com uma luminária simples e uma garrafa de água. Entretanto o colchão grosso afundou suavemente quando Wilfred se deitou nele. A toalha
pendurada ao lado do lavatório dava a impressão de ser de uma maciez luxuosa. O tapetinho na beira da cama, de desenho simples, não era nenhum pedaço roto de carpete
reaproveitado. O roupão com capuz de atoalhado branco atrás da porta aparentava simplicidade, quase austeridade; porém Dalgliesh não duvidava que fosse de uma maciez
muito agradável na pele. Aquilo podia ser uma cela monástica, mas não lhe faltavam os confortos essenciais.
Wilfred descerrou as pálpebras e fixou o olhar azul em Dorothy Moxon. Dalgliesh achou interessante a maneira como ele conseguia combinar humildade e autoridade num
único olhar. Depois estendeu uma mão suplicante.
- Eu queria falar com Julius e Adam, Dot querida. Só um instantinho. Você dá licença?
A enfermeira abriu a boca, fechou-a em seguida e saiu pisando duro, sem uma palavra, puxando bem a porta atrás de si. Wilfred tornou a cerrar os olhos, como se tivesse
se retirado mentalmente de cena. Julius olhou para as mãos. A palma direita estava vermelha e inchada, e uma bolha se formara no polegar. Com um quê de surpresa
na voz, comentou:
- Que engraçado! Queimei a mão. E na hora nem senti. Agora está começando a doer feito o diabo.
Dalgliesh acudiu:
- Você devia pedir para a enfermeira Moxon fazer um curativo. E talvez fosse conveniente pedir para Hewson dar uma espiada.
Julius pegou um lenço dobrado do bolso, encharcou-o com a água fria do lavatório e enrolou sem o menor jeito em volta da mão.
- Dá para esperar.
Perceber que estava sentindo dor pelo visto azedou-lhe o humor. Parou diante de Wilfred e disse, zangado:
- Agora que houve um atentado contra sua vida que quase deu certo, imagino que vai se comportar com mais sensatez, pelo menos uma vez na vida, e mandar chamar a
polícia.
Sem abrir os olhos, Wilfred disse com voz fraca:
- Eu estou com a polícia aqui.
Dalgliesh interveio:
- Não é da minha alçada. Não posso assumir uma investigação oficial. Court está certo, é assunto para a polícia local.
Wilfred sacudiu a cabeça.
- Não tenho nada para dizer a eles. Eu fui até a torre negra porque havia umas coisas nas quais eu queria pensar em paz. Lá é o único lugar onde eu posso ficar absolutamente
sozinho. Eu estava fumando; vocês todos reclamam tanto do meu cachimbo malcheiroso. Lembro que o esvaziei com uma pancadinha na parede, quando subi. Ainda devia
estar aceso. Todo aquele capim seco, aquela palha toda deve ter pegado fogo na hora.
O humor de Julius era sombrio.
- E pegou mesmo. E a porta da frente? Imagino que tenha esquecido de trancá-la, apesar de todo o estardalhaço que você faz sobre nunca jamais deixar a torre negra
aberta. Vocês são um bando muito descuidado, aqui na vila Toynton, não é verdade? Lerner esquece de examinar os freios da cadeira de rodas e Holroyd cai no precipício.
Você bate um cachimbo em cima de um monte de palha seca altamente inflamável, deixa a porta aberta para formar uma corrente de ar e quase imola a si mesmo lá dentro.
Anstey não se abalou:
- É assim que eu prefiro acreditar que tenha acontecido.
Dalgliesh interveio rápido.
- Presumo que exista uma segunda chave para a torre. Onde ela é guardada?
Wilfred abriu os olhos e fitou o espaço, como se estivesse se dissociando com a maior paciência daquele interrogatório duplo.
- Pendurada num prego, no quadro de chaves no escritório. Era a chave de Michael, a que eu peguei de volta depois que ele morreu.
- E todos aqui sabem onde ela fica?
- Imagino que sim. Todas as chaves ficam guardadas ali e a da torre é bem característica.
- Quem sabia que você planejava dar um pulo na torre esta tarde?
- Todo mundo. Eu comuniquei meus planos a todo mundo depois das orações. Sempre faço isso. As pessoas precisam saber onde me encontrar, no caso de uma emergência.
Estavam todos lá, exceto Maggie e Millicent. Mas o que está sugerindo é ridículo.
- Acha mesmo? - perguntou Dalgliesh.
Mas, antes que ele pudesse se mexer, Julius, que estava mais próximo da porta, já tinha saído. Esperaram em silêncio. Escoaram-se dois minutos até o outro voltar,
dizendo com uma satisfação soturna:
- O escritório está vazio e a chave não está lá. O que significa que quem a pegou ainda não teve tempo de colocá-la de volta. Aproveitei para dar uma palavrinha
com a Dot, na volta. Ela está lá naquele seu inferno cirúrgico, esterilizando equipamento suficiente para uma cirurgia. É o mesmo que enfrentar uma harpia entre
silvos de fumaça. Mas, como eu ia dizendo, ela me disse, de muita má vontade, que esteve no escritório das duas da tarde até coisa de cinco minutos antes de chegarmos,
sem sair um segundo de lá. Não se lembra se a chave da torre estava no quadro ou não. Não reparou. Desconfio que despertei uma certa suspeita nela, Wilfred, mas
me pareceu importante esclarecer os fatos.
Dalgliesh sabia que os fatos poderiam ter sido esclarecidos sem interrogatórios diretos. Mas não disse nada; era tarde demais para seguir outro curso e, de todo
modo, não tinha coragem nem vontade para se encarregar disso. E sem sombra de dúvida não tinha o menor desejo de contrapor os méritos da investigação ortodoxa ao
amadorismo entusiasta de Julius. Ainda assim perguntou:
- Por acaso a enfermeira Moxon falou se alguém entrou no escritório enquanto ela estava lá? A pessoa, quem quer que seja, talvez tenha tentado repor a chave no lugar.
- Segundo ela, fato insólito, o lugar hoje esteve pior que uma estação de trem. Henry apareceu logo depois das duas, impelindo a própria cadeira, e depois foi embora.
Sem dar explicações. Millicent passou por lá faz uma meia hora, procurando, segundo explicou, por você, Wilfred. Dennis chegou alguns minutos depois, atrás de um
número de telefone. Maggie foi um pouco antes de nós. De novo, sem dar explicação nenhuma. Não se demorou, mas perguntou a Dot se ela tinha visto Eric. A única dedução
segura de tudo isso é que Henry não poderia estar no morro na hora do fogo. Mas isso nós já sabíamos. Quem quer que tenha começado aquele incêndio fez uso de um
par de pernas bem resistentes.
As dele mesmo, ou as de alguém mais, pensou Dalgliesh. Em seguida falou diretamente com Wilfred, muito quieto na cama.
- Viu alguém lá na torre, antes ou depois de o fogo começar?
Wilfred pensou antes de responder.
- Acho que sim.
Notando o semblante de Julius, acrescentou mais que depressa:
- Tenho certeza que sim, mas foi muito rápido. Quando o incêndio começou, eu estava sentado diante da janela sul, a que dá vista para o mar. Senti cheiro de fumaça
e desci até o aposento intermediário. Abri a porta que dá para a base da torre e vi chamas no feno e uma língua repentina de fogo. Eu poderia ter saído naquele momento,
mas entrei em pânico. Tenho horror de fogo. Não é um medo racional. Vai muito além. Imagino que vocês dariam a isso o nome de fobia. Seja como for, voltei a me enfurnar
de forma vergonhosa no aposento de cima e comecei a correr de uma janela a outra, na vã tentativa de pedir ajuda. Foi aí que eu vi, a menos que tenha sido uma alucinação,
um vulto de hábito marrom esgueirando-se entre a montoeira de pedras a sudoeste.
Julius interveio:
- De onde poderia escapar sem ser reconhecido por você tanto para a estrada, descendo o morro, quanto para a praia, pela trilha. Isso, claro, desde que fosse ágil
o suficiente para aquela trilha. Que tipo de vulto, de homem ou de mulher?
- Só um vulto. Foi muito rápido. Gritei, mas o vento estava contra mim e lógico que ele não me ouviu. Mas em momento algum achei que fosse mulher.
- Pense bem. A pessoa estava de capuz, eu imagino?
- Estava.
- E numa tarde tão quente! Raciocine, Wilfred. Falando nisso, tem três hábitos marrons pendurados no escritório. Apalpei os bolsos, em busca da chave. Foi isso que
me chamou a atenção. Três hábitos. Quantos vocês têm, ao todo?
- Oito de tecido mais leve, para o verão. Eles sempre ficam pendurados no escritório. O meu tem botões bem diferentes, mas de resto são usados em comum. Para nós
tanto faz usar esse ou aquele hábito.
- Você está usando o seu; imagino que Dennis e Philby estejam usando o deles. O que significa que estão faltando dois.
- Talvez um esteja com Eric; ele às vezes usa. E Helen também, ocasionalmente, quando o dia está mais gelado. Acho que estou me lembrando agora de que um está na
sala de costura, para ser remendado. E acho que já havia um faltando, pouco antes de Michael morrer, mas não tenho certeza. Talvez tenha aparecido de novo. Na verdade
nós não temos o costume de conferi-los.
- Quer dizer então que na prática é quase impossível saber se tem algum faltando. Acho que o que deveríamos fazer agora, Dalgliesh, seria conferir um por um. Se
ela ainda não conseguiu devolver a chave, deve estar com o hábito.
Dalgliesh estranhou:
- Não temos nenhuma prova de que seja uma mulher. E por que ficar com o hábito? Ele poderia ter sido largado em qualquer lugar desta casa, sem despertar a menor
suspeita.
Sentando-se na cama, Anstey interveio com uma força repentina.
- Não, Julius, eu o proíbo! Não quero saber de interrogatórios e perguntas por aqui. Foi um acidente.
Julius, que parecia estar gostando de seu papel de inquisidor-mor, disse:
- Certo. Foi um acidente. Você se esqueceu de trancar a porta. Esvaziou o cachimbo antes que estivesse apagado de todo e provocou um incêndio. O vulto que você viu
era apenas alguém da vila Toynton dando uma voltinha inocente pelo morro, verdade que com um pouco de roupa demais, para a época do ano, e tão imerso, ou imersa,
nas belezas naturais que não ouviu você gritar, não sentiu cheiro de fumaça nem viu o fogo. E aí, o que aconteceu?
- Quer dizer, depois que eu vi o vulto? Nada. Percebi, claro, que não daria para sair pelas janelas e desci de novo até a sala intermediária. Abri a porta que dá
para a base da torre. A última coisa de que me lembro é de uma grande nuvem de fumaça sufocante e de uma cortina de chamas. A fumaça estava me asfixiando. As chamas
pareciam estar torrando minha vista. Não tive nem tempo de fechar a porta de novo. Imagino que deveria ter mantido ambas as portas muito bem fechadas. Mas não é
fácil tomar decisões sensatas em estado de pânico.
Dalgliesh então perguntou:
- Quantas pessoas aqui sabiam de seu medo anormal do fogo?
- A maioria, eu acho. Talvez eles não tenham idéia do quão obsessivo e pessoal é esse medo, mas sabem que toda e qualquer possibilidade de fogo me preocupa. Sempre
insisti para todos os pacientes dormirem no térreo. Sempre me preocupei com a enfermaria e relutei muito antes de deixar que Henry ficasse com um quarto aqui em
cima. Mas alguém precisa dormir no corpo principal da casa e temos que ter a enfermaria perto do consultório e dos quartos das enfermeiras, caso haja alguma emergência
durante a noite. É sensato e prudente ter medo de fogo num lugar como este. Mas a prudência não tem nada que ver com o terror que eu sinto quando vejo fumaça e chamas.
Wilfred cobriu os olhos com a mão; Julius e Dalgliesh viram que começara a tremer. Julius olhou para o corpo com um interesse quase clínico.
Dalgliesh falou:
- Vou buscar a enfermeira Moxon.
Ele mal tinha se virado na direção da porta quando Wilfred estendeu a mão num protesto inequívoco. Os dois viram que o tremor passara. E ele então disse, olhando
para Julius:
- Você acredita que meu trabalho aqui tem algum mérito?
Dalgliesh não saberia dizer ao certo se tinha sido o único a notar uma pausa de menos de um segundo antes da resposta imperturbável de Julius:
- Mas é claro.
- Não está dizendo isso só para me consolar, está? Você acredita mesmo?
- Acredito. Do contrário eu não diria nada.
- Claro que não, me desculpe. E você concorda que a obra é mais importante que o homem?
- Aí já fica mais difícil. Eu poderia argumentar dizendo que a obra é o homem.
- Não aqui. Este lugar já está estabelecido. Pode muito bem continuar sem mim, se for preciso.
- Claro que pode, se tiver verba suficiente e se as prefeituras continuarem mandando pacientes pagos pelo Estado. Mas não há a menor necessidade, se você agir com
sensatez, em vez de bancar o herói relutante de um drama vagabundo de televisão. O papel não lhe assenta muito bem, Wilfred.
- Estou sendo sensato e não tenho a menor intenção de demonstrar bravura. Não tenho muita coragem física, você bem sabe. É a virtude que eu mais lamento não ter.
Vocês dois são diferentes... por favor, não me contradigam. Sei que são corajosos, e invejo os dois por isso. Mas na verdade não preciso de coragem para esta situação.
Simplesmente não consigo acreditar que alguém esteja tentando me matar. - Virou-se para Dalgliesh.
- Explique você, Adam. Deve ter entendido aonde estou querendo chegar.
Tateando o terreno, Dalgliesh disse:
- Poderíamos argumentar que nenhuma das duas tentativas foi coisa séria. A corda esgarçada de escalar? Não é dos métodos mais eficazes para matar alguém, e a maioria
das pessoas aqui deve saber que vocês não começariam uma escalada sem antes examinar todo o equipamento e que você com certeza não estaria sozinho. A charada desta
tarde? Se tivesse fechado ambas as portas e ficado na sala de cima, estaria a salvo, ainda que um tanto acalorado, é verdade, mas sem correr perigo de vida. O fogo
teria se extinguido sozinho com o tempo. O que quase acabou com você foi ter aberto a porta do meio e respirado fumaça.
Julius interveio:
- Mas digamos que o fogo tivesse se espalhado com mais ferocidade e as chamas tivessem atingido o assoalho de madeira do primeiro andar. Toda a parte do meio da
torre teria se incendiado em questão de segundos; aliás, o fogo deve ter alcançado a parte de cima. E se tivesse chegado ao assoalho, nada poderia salvar você. -
Em seguida buscou a confirmação de Dalgliesh:
- Não é verdade?
- É provável. Por isso mesmo deve contar à polícia. Um engraçadinho que faz brincadeiras tão arriscadas assim tem de ser levado a sério. E da próxima vez pode ser
que não apareça ninguém para salvá-lo.
- Pois eu não acredito que vá haver uma próxima vez. Acho que sei quem é o responsável. Não sou tão idiota quanto pareço. Vou cuidar deste assunto, prometo. Tenho
o pressentimento de que a pessoa responsável não ficará muito mais tempo conosco.
Julius insistiu:
- Você não é imortal, Wilfred.
- Também sei disso, e posso estar enganado. Por isso penso que chegou a hora de ter uma conversa com a Fundação Ridgewell. O coronel está no exterior, visitando
suas propriedades na Índia, mas deve voltar no dia 18. Os administradores do fundo gostariam de ter minha resposta até o final de outubro. É uma questão de empatar
capital para futuros investimentos. Mas eu jamais faria a transferência de tudo isto aqui para eles sem o acordo da maioria da família. Estou pensando em fazer um
conselho familiar. Porque, se alguém está de fato tentando me assustar, a ponto de me obrigar a quebrar meu juramento, pode ir tirando o cavalinho da chuva. Darei
um jeito de fazer com que minha obra seja indestrutível, esteja eu vivo ou morto.
- Se você entregar a propriedade toda para a Fundação Ridgewell, Millicent não vai gostar muito - disse Julius.
O rosto de Wilfred era uma máscara de teimosia. Dalgliesh interessou-se pela mudança da expressão. Os olhos meigos tornaram-se severos e vidrados, como se não quisessem
ver; a boca se enrijeceu numa linha inflexível. No entanto, no conjunto a fisionomia era de fraqueza petulante.
- Millicent me vendeu a parte dela de livre e espontânea vontade e a um preço justo. Não tem razão de se queixar. Se eu for obrigado a sair daqui, a obra continuará.
O que acontece comigo não tem importância.
Depois sorriu para Julius.
- Você não é homem de fé, eu sei disso, então vou usar uma outra autoridade para tranqüilizar você. Que tal Shakespeare? “Seja incondicional com a morte; tanto a
morte quanto a vida serão assim mais doces.”
Os olhos de Julius Court cruzaram rapidamente com os de Dalgliesh, por cima da cabeça de Wilfred. A mensagem simultânea teve entendimento simultâneo. Houve por parte
de Julius uma certa dificuldade em controlar a boca. Por fim, disse com secura:
- Dalgliesh está convalescendo, ou deveria estar. Ele já quase desmaiou, por causa do esforço feito para salvá-lo. Posso parecer bastante saudável, mas preciso das
forças que tenho para meus próprios prazeres. De modo que, se você resolveu entregar tudo para a Fundação Ridgewell até o final do mês, então, por favor, seja camarada
e tente ao menos ser incondicional com a vida nas próximas três semanas.
III
Já fora do quarto, Dalgliesh perguntou:
- Você acredita que ele esteja mesmo correndo perigo?
- Não sei. Provavelmente esta tarde a brincadeira foi mais longe do que a pessoa pretendia.
Depois Julius acrescentou, com um misto de afeto e zombaria:
- Sujeitinho pretensioso! Incondicional com a morte! Achei que fôssemos dali direto para Hamlet, para sermos lembrados de que a prontidão é tudo. Uma coisa é certa,
porém. Ele não está apenas bancando o corajoso. Ou ele de fato não acredita que alguém da vila Toynton esteja disposto a acabar com ele, ou acha que sabe quem é
o inimigo e que pode lidar com ele, ou ela. A não ser, claro, que tenha sido ele mesmo quem começou o incêndio. Espere até eu fazer um curativo nessa mão e venha
tomar um trago comigo. Está com cara de quem precisa.
Mas Dalgliesh tinha mais o que fazer. Deixou a tagarelice apreensiva de Julius sob a misericórdia de Dorothy Moxon e voltou ao bangalô Esperança para pegar a lanterna.
Estava com sede, mas não teria tempo para nada além de um copo de água fria da torneira da cozinha. Deixara as janelas da casa abertas, mas a pequena sala de estar,
protegida pelas grossas paredes de pedra, continuava tão quente e abafada quanto no dia em que chegara. Ao fechar a porta, a batina do padre Baddeley balançou e,
de novo, ele sentiu aquele odor que mesclava um pouco de mofo com um vago cheiro eclesiástico. As proteções de crochê das costas e dos braços da poltrona continuavam
lisinhas em seus devidos lugares, agora que o padre não estava mais lá para desarrumá-las com a cabeça e as mãos. Uma parte de sua personalidade continuava ali,
se bem que Dalgliesh já não pressentia mais tanto sua presença. Mas não havia comunicação alguma. Se quisesse o conselho do padre Baddeley, teria de procurá-lo em
caminhos familiares porém desusados, nos quais não se sentia mais no direito de entrar.
Sentiu um cansaço absurdo. A água fria, de gosto um tanto áspero, só serviu para constatar quão exausto se achava. A lembrança da caminha estreita lá em cima e a
perspectiva de se jogar sobre sua dureza foram quase irresistíveis. Ridículo que um esforço comparativamente tão pequeno pudesse cansá-lo tanto. E parecia estar
quente demais. Passou a mão pela testa e percebeu o suor frio e grudento nos dedos. Só podia estar com febre. Aliás, o hospital o prevenira de que a febre poderia
voltar. Sentiu uma onda de raiva contra seus médicos, contra Wilfred Anstey, contra si próprio.
Seria muito fácil, agora, fazer as malas e voltar para Londres. Estaria fresco e não haveria aborrecimentos lá, olhando o Tâmisa do alto da Queenhythe. As pessoas
o deixariam em paz por achar que ele continuava em Dorset. Ou então poderia deixar um bilhete para Anstey e pegar o carro; restava toda uma região para explorar.
Havia uma centena de lugares bem melhores para convalescer do que aquela comunidade claustrofóbica, empertigada, dedicada ao amor e à auto-realização pelo sofrimento,
onde as pessoas trocavam cartas anônimas, pregavam peças infantis rancorosas ou então se cansavam de esperar pela morte e se atiravam penhasco abaixo. Além do mais,
não havia nada que o segurasse em Toynton - Dalgliesh repetiu para si mesmo com insistência teimosa, descansando a cabeça no pequeno quadrado de vidro sobre a pia,
que obviamente servira ao padre Baddeley como espelho para fazer a barba. Com certeza devia ser alguma conseqüência singular da doença sentir ao mesmo tempo essa
indecisão tamanha e essa relutância obstinada em partir. Para alguém que se resolvera a não voltar jamais a investigar, estava fazendo uma boa imitação de um sujeito
comprometido com seu trabalho.
Não viu ninguém ao sair e começou então a longa caminhada morro acima. O dia continuava claro lá no alto, embebido naquela repentina e quase momentânea luminosidade
que vem antes de um entardecer de outono. As almofadas de musgo nos muros fragmentados tinham um verde intenso que ofuscava a vista. Cada uma das flores exibia o
brilho de uma pedra preciosa, cintilando com brandura no ar em movimento. A torre, quando por fim chegou, reluzia como ébano e dava a impressão de tremular ao sol.
Pareceu-lhe que, se tocasse naquelas pedras, o todo viria abaixo. A sombra espichada que projetava estendia-se como um dedo de censura sobre o promontório.
Aproveitando a luz ambiente, já que a lanterna seria de mais utilidade dentro da torre, iniciou a busca. As palhas queimadas e o entulho calcinado haviam se acumulado
em pilhas, junto ao portal, mas a brisa leve, sempre presente naquele pico, já começara a soprar as corcovas de lixo, e os fiapos espalhavam-se quase até a beira
do precipício. Começou examinando o terreno próximo às paredes e foi se afastando em círculos cada vez maiores. Não encontrou nada até atingir o aglomerado de pedras,
cerca de cinqüenta metros a sudoeste. Tinham uma formação curiosa, aquelas pedras, com um aspecto mais de artefato do que de afloramento de rocha, como se o construtor
da torre, depois de transportar lá para cima o dobro do material necessário, tivesse se divertido em arranjar as sobras de forma a parecer uma serra em miniatura.
As pedras formavam um semicírculo de uns quarenta metros de comprimento, com picos que variavam de um metro e oitenta a dois metros e meio, ligados por elevações
menores e mais arredondadas. Havia cobertura suficiente, ali, para um homem escapar sem ser visto tanto pela trilha quanto pelo morro a noroeste, que desembocava
na estrada, uns cem metros mais adiante.
E foi ali, atrás de uma das pedras mais volumosas, que Dalgliesh encontrou o que esperava: uma veste marrom de monge de tecido leve. Fora muito bem enrolada e enfiada
numa fenda entre duas rochas menores. Não havia mais nada para ver, nenhuma pegada visível na relva seca e firme, nenhuma lata cheirando a querosene. Por algum motivo,
contava encontrar uma lata. Ainda que as palhas e o capim seco na base da torre fossem queimar com rapidez suficiente, uma vez estabelecido o fogo, duvidava que
alguém confiasse apenas num fósforo para iniciar um incêndio.
Enfiou o hábito debaixo do braço. Se aquilo fosse uma investigação de homicídio, o pessoal da perícia técnica poderia examiná-lo para ver se encontrava vestígios
de fibras, poeira, querosene ou qualquer outra ligação, química ou biológica, com alguém da vila Toynton. Mas aquilo não era uma investigação de homicídio; não era
nem mesmo uma investigação. E ainda que a perícia identificasse alguma fibra igual à de uma camisa, uma calça, um paletó, até mesmo um vestido pertencente a alguém
da vila Toynton, o que isso provaria? Pelo visto, todos os funcionários tinham o direito de envergar o curioso substituto que Wilfred encontrara para um uniforme
de trabalho. O fato de ele ter sido abandonado, e naquele local, sugeria que a pessoa optara por escapar descendo a trilha do penhasco, em vez de pegar a estrada;
do contrário, por que não continuar com a camuflagem? A menos, claro, que fosse uma mulher e que não costumasse usar a fatiota. Nesse caso, ser vista perambulando
pelo promontório, logo depois do incêndio, seria desastroso. Mas ninguém, homem ou mulher, usaria uma túnica até os pés numa trilha perigosa, crivada de pedras.
Aquela era a rota de fuga mais rápida, mas também a mais difícil, e um hábito seria uma vestimenta perigosa. Além, é claro, de reter na barra vestígios reveladores
de solo arenoso ou manchas verdes de algas. Mas talvez fosse isso que alguém queria que ele pensasse. O hábito, a exemplo da carta enviada ao padre Baddeley, podia
muito bem ter sido plantado ali, tão certinho, tão bem colocado, para que fosse encontrado. Senão, por que abandoná-lo? Enrolado daquela forma, não seria um fardo
impossível de carregar na trilha escorregadia até a praia.
A porta da torre continuava entreaberta. Lá dentro, perdurava um vestígio de fumaça, mas, depois da refrescada no tempo, era um odor quase agradável, com laivos
de outono, lembrando folhas queimadas. A parte inferior do corrimão de corda fora atingida pelo incêndio e as fibras chamuscadas pendiam dos anéis de ferro, esfiapadas.
Acendeu a lanterna e começou uma busca sistemática entre os restos enegrecidos de palha. Em poucos minutos já havia encontrado a lata toda amassada, coberta de fuligem
e sem tampa, uma lata que talvez um dia tivesse contido chocolate em pó. Cheirou. Podia ser só imaginação sua, aquele leve odor de querosene.
Galgou os degraus de pedra com cautela, segurando-se na parede enegrecida. Não encontrou nada no aposento intermediário e não reclamou ao sair daquela cela escura,
claustrofóbica, sem uma única janela. Na sala de cima, o contraste com o compartimento de baixo foi imediato e espantoso. A saleta era cheia de luz. Tinha apenas
um metro e oitenta de largura, e o teto abobadado, canelado, lhe dava um aspecto charmoso, feminino e ligeiramente formal. Quatro das oito janelas que marcavam os
pontos cardeais e colaterais estavam sem a vidraça; o ar entrava livre, fresco e cheirando a mar. Como o aposento era minúsculo, a altura da torre se acentuava ali.
Dalgliesh teve a sensação de estar suspenso num pimenteiro, entre o céu e o mar. O silêncio era absoluto, pleno de paz. Não escutou nada além do tique-taque do próprio
relógio e do murmúrio calmante das ondas, quebrando sem parar. Por que aquele Wilfred Anstey vitoriano de alma atormentada não sinalizara seu desespero de uma das
janelas? Talvez porque, quando a tortura da sede e da fome vencera a vontade de suportar o sofrimento, já estivesse fraco demais para subir a escada. O fato é que
nada do terror e desespero finais permeara aquele minicastelo nas alturas, tão cheio de luz. Olhando pela janela sul, Dalgliesh viu o mar encrespado em camadas de
azul e roxo, com uma única vela triangular estacionada no horizonte. As outras janelas tinham uma vista panorâmica de todo o promontório ensolarado; da vila Toynton
e seu punhado de casinhas, dava para ver apenas a chaminé da casa principal, já que todas ficavam no vale. Dalgliesh reparou ainda que o quadrado de relva musguenta,
onde a cadeira de Holroyd parara antes do arremesso final, da convulsão rumo à destruição, bem como a trilha afundada de acesso ficavam fora do campo de visão. O
que quer que tivesse acontecido naquela tarde fatídica não pudera ser visto da torre negra.
O aposento estava mobiliado com simplicidade. Havia uma mesa de madeira e uma cadeira colocadas diante da janela que tinha vista para o mar, um pequeno armário de
carvalho, um tapete de vime no chão, uma cadeira antiquada de ripas no meio da sala, com duas almofadas por cima, e uma cruz de madeira pregada na parede. Viu que
a porta do armário estava entreaberta e a chave se encontrava na fechadura. Lá dentro, encontrou uma coleçãozinha desonrosa de livrecos pornográficos. Mesmo levando
em conta a tendência natural - à qual Dalgliesh sabia não ser imune - que temos de menoscabar as preferências sexuais dos outros, ele teria escolhido uma pornografia
diferente. Aquilo era uma bibliotecazinha mesquinha de flagelações, provocações e libertinagens, incapaz, a seu ver, de provocar qualquer emoção além de tédio e
um certo nojo. Verdade que ali estava O amante de Lady Chatterley - um romance que Dalgliesh considerava superestimado como literatura e sem qualificações para pornografia
-, porém o resto era desprezível, fosse qual fosse o parâmetro de julgamento. Mesmo depois de passar mais de vinte anos longe, era difícil acreditar que o padre
Baddeley, tão gentil, tão enjoado, com um senso estético tão apurado, tivesse adquirido gosto por aquelas mesquinharias. E, do contrário, por que deixar o armário
destrancado ou a chave num lugar onde Wilfred pudesse encontrá-la? A conclusão mais óbvia era que os livros pertenciam a Anstey e que ele só tivera tempo para destrancar
o armário quando sentiu cheiro de fumaça. No pânico que se seguiu, esquecera-se de trancar de novo a prova de seus prazeres secretos. Com toda a certeza, regressaria
com uma certa pressa e constrangimento assim que estivesse bem o bastante e tivesse uma oportunidade. E, se isso fosse verdade, provava ao menos uma coisa: Anstey
não poderia ter provocado o incêndio.
Deixando a porta do armário entreaberta, exatamente como a encontrara, Dalgliesh deu uma busca minuciosa no chão. O tapete rústico, que parecia ter sido feito de
cânhamo trançado, estava rasgado em alguns pontos e coberto de poeira. Pelas marcas na superfície e pelos minúsculos filamentos de fibra rasgada, deduziu que Anstey
mudara a mesa de lugar, levando-a da janela leste para a janela sul. Encontrou também o que julgou serem vestígios de dois tipos diferentes de cinza de tabaco -
mas era um volume pequeno demais para ser recolhido sem uma lente de aumento e uma pinça. Mas, um pouco à direita da janela leste, enfiado entre os interstícios
do tapete, descobriu algo que podia ser identificado sem dificuldade a olho nu. Era um único palito usado, idêntico aos que estavam na carteira de fósforos sobre
a mesinha de cabeceira do padre Baddeley, desfiado em cinco partes até a cabeça calcinada.
IV
A porta da frente da vila Toynton estava aberta, como sempre. Rápido e silencioso, Dalgliesh foi direto para a escadaria principal. Ao se aproximar da entrada do
quarto de Wilfred, escutou vozes; a de Dot Moxon, beligerante e autoritária, dominava os murmúrios masculinos. Entrou sem bater. Três pares de olhos fitaram-no com
prudência e, no seu entender, com certo ressentimento. Wilfred continuava na cama, com o corpo apoiado em travesseiros. Na mesma hora Dennis Lerner fixou o olhar
na janela, mas ainda houve tempo para que Dalgliesh reparasse que estava de rosto inchado, como se tivesse chorado. Dot, sentada ao lado da cama, imperturbável e
inamovível, era a própria imagem da mãe abnegada cuidando de um filho doente. Como se Dalgliesh tivesse pedido uma explicação, Dennis murmurou:
- Wilfred me contou o que houve. É inacreditável.
Wilfred, por seu lado, falou com uma teimosia muar que apenas enfatizava sua satisfação em não ser acreditado.
- Aconteceu e foi um acidente.
Dennis ia fazer algum comentário, mas Dalgliesh foi mais rápido e colocou ao pé da cama o hábito que encontrara.
- Estava escondido entre as pedras perto da torre negra. Se entregar isso à polícia, talvez seja possível descobrir algo.
- Eu não vou chamar a polícia e proíbo qualquer pessoa aqui, qualquer um, de fazer isso em meu nome.
Dalgliesh não perdeu a calma.
- Não se preocupe. Não tenho a menor intenção de desperdiçar o tempo da polícia. Tendo em vista sua teimosia em não querer que o assunto seja investigado, a polícia
com certeza já suspeita que foi você mesmo quem pôs fogo na torre. Foi?
Wilfred interrompeu mais que depressa a exclamação de incredulidade de Dennis e o protesto indignado de Dot.
- Não, Dot, é bastante razoável que Adam Dalgliesh pense assim. Ele foi treinado para ser profissionalmente desconfiado e cético. Entretanto, eu não tentei morrer
queimado. Um membro da família se suicidando na torre negra já é o suficiente. Mas acho que sei quem ateou o fogo e vou resolver isso com essa pessoa, a meu modo
e no tempo certo. Por enquanto, não quero que ninguém da família saiba, ninguém. Graças a Deus, posso ao menos ter certeza de uma coisa: nenhum deles pode estar
envolvido nesse assunto. E, diante disso, saberei o que fazer. E agora se vocês todos puderem ter a bondade de sair...
Dalgliesh não esperou para ver se os outros estavam dispostos a obedecer. Contentou-se com uma última palavrinha, já da porta.
- Se está pensando numa vingança pessoal, esqueça. Se não pode, ou não ousa, agir conforme a lei, não faça nada. É melhor.
Anstey sorriu seu sorriso de doçura irritante.
- Vingança, comandante? Vingança? Essa palavra não consta do vocabulário da vila Toynton.
Dalgliesh não viu nem ouviu ninguém ao atravessar o saguão principal. A casa poderia perfeitamente estar vazia. Depois de pensar um segundo, tomou o caminho da casinha
mais isolada, chamada Caridade. O promontório achava-se deserto, exceto por uma silhueta solitária descendo a ladeira; era Julius, trazendo o que parecia ser uma
garrafa em cada mão. Ergueu-as num gesto que poderia ser um misto de pugilato e celebração. Dalgliesh fez um aceno rápido e continuou subindo a trilha até a casa
dos Hewsons.
A porta estava aberta e, de início, ele não viu sinal de vida. Bateu e, como não obteve resposta, entrou. A casa era mais ampla que as outras duas geminadas, e a
sala de pedra, banhada pelo sol que entrava pelas duas janelas, tinha proporções agradáveis. Entretanto o aspecto era de sujeira e descaso, refletindo em seu desmazelo
a natureza insatisfeita e irrequieta de Maggie. A primeira impressão era a de que Maggie resolvera não desfazer as malas, como se assim pudesse proclamar seu intuito
de não ficar ali muito tempo. As poucas peças do mobiliário ainda pareciam estar no lugar onde dera na veneta do pessoal da mudança largá-las. Havia um sofá encardido
diante de uma televisão enorme, que dominava a sala. Os livros da parca biblioteca médica de Eric continuavam deitados nas prateleiras da estante, onde se via também
uma miscelânea de louças, enfeites, discos e sapatos achatados. À luminária padrão, de desenho repulsivo, faltava o quebra-luz. Dois quadros, com a face voltada
para a parede, continuavam no chão, com as cordas de pendurar amarradas e rompidas. Uma mesa quadrada, posta no meio da sala, exibia o que pelo visto sobrara de
um almoço tardio: um pacote de biscoitos de água e sal rodeado de migalhas, um pedaço de queijo num prato desbeiçado, manteiga extravasando para fora do invólucro
engordurado e um vidro destampado de ketchup, com molho coagulado em volta. Duas moscas gordas zumbiam em vôos intrincados sobre os destroços.
Da cozinha, vieram o barulho de água correndo e o rugido de um aquecedor a gás. Eric e Maggie estavam lavando a louça. De repente, o aquecimento parou de rosnar
e Dalgliesh escutou a voz de Maggie:
- Você é um fraco, Eric! Deixa que todos eles façam você de gato e sapato. E se está de caso com aquela vaca presunçosa, não pense que me importo com isso, é só
porque não consegue dizer não para ela. No fundo você sente tanto desejo por ela quanto por mim.
A resposta de Eric foi um sussurro ininteligível. Depois houve o barulho de alguma louça e a voz de Maggie de novo:
- Tenha a santa paciência, você não pode continuar se escondendo aqui pelo resto da vida! Aquela viagem até o St. Saviour não foi tão ruim quanto imaginou. Ninguém
falou nada.
Dessa vez, a resposta dele foi claríssima:
- E nem precisava. Além do mais, quem foi que nós vimos? Só o especialista e aquela funcionária do departamento de fichas médicas. Ela sabia muito bem e não me escondeu
isso. E é assim que iria ser sempre, se por acaso eu conseguisse um emprego em clínica geral. Eles nunca me deixariam esquecer. O clínico delinqüente. Toda e qualquer
paciente com menos de dezesseis anos diplomaticamente transferida para algum outro colega, só por garantia. Pelo menos Wilfred me trata como um ser humano. E eu
posso contribuir com alguma coisa. Posso fazer meu serviço.
Maggie estava quase gritando:
- Que tipo de serviço, santo Deus?
Em seguida as duas vozes foram engolidas pelo rugido do aquecedor e pela torneira aberta. Alguns instantes depois, o barulho cessou e Dalgliesh tornou a escutar
a voz de Maggie, estridente, enfática.
- Certo! Certo! Certo! Eu já disse que não vou contar nada e não vou. Mas, se você continuar me azucrinando com isso, eu posso mudar de idéia.
A resposta de Eric se perdeu, mas soou como um longo murmúrio de advertência. E então foi a vez de Maggie:
- E daí que eu contei? Ele não era nenhum idiota. Sabia que alguma coisa tinha. E qual é o problema? Ele está morto, não está? Morto. Mortinho da silva.
De repente Dalgliesh deu-se conta de que estava ali parado imóvel, em absoluto silêncio, fazendo o maior esforço para escutar a conversa como se aquele fosse um
caso oficial, um caso seu; cada palavra captada na clandestinidade, uma pista vital. Irritado, forçou-se a sair de lá. Tinha dado alguns passos na direção da porta
e acabara de erguer o punho para bater de novo, dessa vez mais alto, quando Maggie, carregando uma pequena bandeja de metal, saiu da cozinha. Eric vinha atrás. Ela
se recuperou rápido da surpresa e soltou uma risada que soou quase genuína.
- Minha nossa, não me diga que o Wilfred chamou a Scotland Yard para me interrogar. O coitadinho do homem anda meio nervoso. E o que você vai fazer, meu caro, me
avisar que qualquer coisa que eu diga pode ser usada contra mim?
A soleira escureceu e Julius apareceu na porta. Dalgliesh calculou que ele devia ter descido correndo a ladeira, para chegar tão rápido. Por que a pressa? Com a
respiração ofegante, Julius colocou duas garrafas de uísque sobre a mesa.
- Uma oferenda de paz.
- Espero que sim! - E de imediato os olhos de Maggie, agora brilhantes por baixo das pálpebras pesadas, dardejaram de Dalgliesh para Julius, como se incerta sobre
com quem deveria flertar e a quem distribuir seus favores. Mas dirigiu-se a Dalgliesh:
- Julius esteve me acusando de tentar assar Wilfred vivo na torre negra. Eu sei, eu sei que não tem a menor graça. Mas Julius fica meio cômico quando tenta ser pomposo.
E, para ser sincera, é tudo uma grande bobagem. Se eu quisesse me vingar do santo Wilfred, poderia fazê-lo sem ter de rondar a torre negra disfarçada de monge, não
é mesmo, meu caro?
Controlando o riso, ela deu uma olhada para Julius que era ao mesmo tempo de ameaça e conchavo. Julius, mais que depressa, respondeu:
- Eu não acusei você. Simplesmente indaguei, com o máximo de diplomacia possível, por onde você andou desde a uma da tarde.
- Na praia, meu caro. De vez em quando dou um passeio por lá. Sei que não tenho como provar isso, mas por outro lado você também não tem como provar o contrário.
- É muita coincidência, você não acha, ter ido passear na praia justamente hoje?
- Não mais do que você estar passando de carro pela estrada.
- E não viu ninguém?
- Eu já lhe disse, meu caro, que não vi alma viva. Deveria ter visto? E agora, Adam, é sua vez. Será que vai arrancar a verdade de mim com aquele charme tradicional
da polícia metropolitana?
- Não. O caso é dele. Este é um dos princípios fundamentais de qualquer investigação: nunca interfira na maneira como os outros conduzem um caso.
Julius interveio:
- Além do mais, minha cara Maggie, o comandante não está nem um pouco interessado em nossas míseras preocupações. Por mais estranho que pareça, ele simplesmente
não está. Não consegue nem mesmo fingir um certo interesse em descobrir se Dennis atirou Victor do precipício e se eu acobertei o crime. Humilhante, você não acha?
A risada de Maggie saiu forçada. Ela deu uma olhada para o marido, como uma anfitriã inexperiente temerosa de que a festa esteja fugindo do controle.
- Não seja tonto, Julius. Nós sabemos que você não acobertou nada. Por que faria uma coisa dessas? O que você ganharia com isso?
- Como você me conhece bem, Maggie! Nada. Por outro lado, posso ter feito isso por pura bondade. - Olhando para Dalgliesh com um sorriso afetado, continuou:
- Eu acredito em ser complacente com os amigos.
De repente, Eric interveio na conversa com uma autoridade que surpreendeu os presentes:
- O que o senhor queria conosco, comandante Dalgliesh?
- Apenas informações. Quando cheguei aqui, encontrei na casa uma carteira de fósforos na mesinha de cabeceira do padre Baddeley com um anúncio do Olde Tudor Barn,
perto de Wareham. Pensei em jantar lá, esta noite. Ele ia muito lá, alguém aqui sabe?
Maggie riu:
- Claro que não! Nunca foi, eu imagino. Não é bem o lugar ideal para alguém como o padre. Fui eu que lhe dei a carteira de fósforos. Ele gostava dessas bobagens.
Mas o Barn até que não é mau. Bob Loder me levou para almoçar lá, no meu aniversário, e eles nos serviram muito bem.
Julius interrompeu:
- Vou lhe dar uma descrição. Ambiente: uma profusão de luzinhas coloridas penduradas em volta de um celeiro sob todos os outros aspectos muito agradável, construído
no século XVII. Primeiro prato: sopa enlatada de tomate, com uma fatia de tomate por cima para acrescentar verossimilhança e contraste de cor; camarão congelado
com molho industrializado servido sobre uma camada de alface murcha; meio melão que, com sorte, pode ser que esteja maduro; ou então o patê caseiro do chef, saído
direto do supermercado mais próximo. O resto do cardápio, já pode imaginar. Em geral é uma variedade de carnes servidas com legumes congelados e o que eles chamam
de batatas fritas. Se por acaso quiser beber alguma coisa, fique com o tinto. Não sei se é feito lá mesmo, ou se o dono apenas gruda os rótulos nas garrafas, mas
ao menos é vinho. O branco é pior que xixi de gato.
Maggie riu com indulgência.
- Não seja tão esnobe, meu caro. O lugar não é tão ruim assim. Bob e eu fizemos uma refeição até que bem decente. E, seja quem for que tenha engarrafado o vinho,
ele teve o efeito certo, no que me diz respeito.
- Mas pode ter piorado - disse Dalgliesh. - Vocês sabem como é. O chef de repente vai embora e o restaurante muda da noite para o dia.
Julius riu.
- Essa é a vantagem do cardápio do Olde Barn. Os chefs vão e vêm a cada quinze dias mais ou menos, mas a sopa em lata mantém sempre o mesmo gosto.
- Do meu aniversário para cá não deve ter mudado grande coisa. Fiz anos no dia 11 de setembro. Eu sou de Virgem, meus caros. Muito apropriado, não acham?
- Existem um ou dois lugares decentes, não muito longe. Posso lhe dar alguns nomes - ofereceu Julius.
E assim fez. Dalgliesh anotou-os rigorosamente, nas costas de sua agenda. Mas, na volta para o bangalô Esperança, sua mente já registrara informações bem mais importantes.
Quer dizer então que Maggie era íntima de Bob Loder, a ponto de sair para almoçar com o advogado; o solícito Loder, pronto tanto para alterar o testamento do padre
Baddeley - ou dissuadi-lo disso - quanto para auxiliar Millicent a passar a perna no irmão e arrancar dele metade da quantia proveniente da venda da vila Toynton.
Só que essa pequena artimanha fora idéia de Holroyd, é claro. Teria sido então uma maquinação de Holroyd e Loder? Maggie mencionara seu almoço com ele com uma satisfação
marota. Mesmo negligenciada pelo marido no dia do aniversário, ela tinha como se divertir. Mas e o tal Loder? Que interesse seria o dele? Uma simples inclinação
para tirar partido de uma mulher condescendente e insatisfeita? Ou teria um motivo mais sinistro para se manter a par do que acontecia na vila Toynton? E o fósforo
desfiado? Dalgliesh ainda não o comparara aos palitos restantes na carteira de fósforos que continuava ao lado da cama do padre Baddeley, mas com quase toda a certeza
seriam do mesmo tipo. Verdade que não teve como fazer mais perguntas a Maggie - iria despertar suspeitas se o fizesse -, mas nem precisava. Ela só poderia ter dado
a carteira de fósforos ao padre na tarde do dia 11 de setembro, um dia antes da morte de Holroyd. E na tarde do mesmo dia o padre Baddeley fizera uma visita a seu
advogado. Portanto, aquela carteira de fósforos só lhe chegara às mãos no fim da tarde. O que significava que ele devia ter ido à torre negra no dia seguinte, pela
manhã ou à tarde. Quando a oportunidade surgisse, teria uma conversinha com Grace Willison e perguntaria se o padre Baddeley fora à vila Toynton na quarta-feira
de manhã. Segundo as anotações no diário, as visitas matinais à vila eram parte de uma rotina invariável. E isso significava que muito provavelmente ele estivera
na torre negra no período da tarde do dia 11 de setembro, talvez sentado na janela de face leste. As marcas no tapete eram bem recentes, o que significava que a
mesa fora mudada de lugar fazia pouco tempo. Porém mesmo daquela janela ele não poderia ter visto a cadeira de Holroyd despencar do precipício; não daria nem mesmo
para divisar os vultos distantes de Lerner e Holroyd avançando pela trilha em desnível até aquele retalho verde de relva. E, ainda que tivesse visto algo, o que
valeria o testemunho de um velho sozinho, lendo ou, com toda a probabilidade, cochilando ao sol? Era sem dúvida absurdo procurar um motivo para homicídio ali. Mas
e se o padre Baddeley tivesse certeza absoluta de que não estivera nem lendo nem cochilando? Então não seria tanto uma questão do que ele vira, e sim do que ele
curiosamente deixara de ver.
6
 CRIME SEM SANGUE
I
Na tarde seguinte, em seu último dia de vida, Grace Willison tomava um pouco de sol no pátio. Os raios da tarde continuavam quentinhos, mas lhe acariciavam a pele
murcha do rosto com o calor mais brando do adeus. De vez em quando, uma nuvem encobria o sol, e Grace se pegava tremendo com o prenúncio do inverno. O vento já estava
mais forte, escurecia mais rápido. Não restavam muitos dias para sentar ao ar livre. Na verdade, ela era a única paciente no pátio e, apesar do dia bonito, sentia-se
grata pela manta sobre os joelhos.
Sem mais nem menos, pegou-se pensando no comandante Dalgliesh. Gostaria que ele aparecesse mais vezes na vila Toynton. Pelo visto, continuava hospedado na casa do
padre Baddeley. Ele tinha ajudado Julius a resgatar Wilfred da torre negra no dia anterior. Wilfred mostrara coragem, como aliás era de se esperar; disse que não
era nada, teimou que tinha sido só um pequeno incêndio provocado inteiramente por sua própria falta de cuidado, que não correra perigo de fato. Mas, assim mesmo,
pensou Grace, que sorte o comandante estar por perto para ajudar.
Será que ele iria embora de Toynton sem se despedir dela? Esperava que não. Gostara tanto dele, dos breves momentos que haviam passado juntos. Seria tão agradável
se ele estivesse ali a seu lado, agora, conversando sobre o padre Baddeley. O nome de Michael não era mais nem sequer mencionado na vila. Mas, claro, o comandante
não tinha tempo para desperdiçar com ela.
Esse pensamento lhe veio sem a menor amargura, sem ressentimento nenhum. Não havia de fato nada que pudesse interessá-lo na vila Toynton. E não era dizer que ela
pudesse lhe fazer um convite pessoal. Permitiu-se lamentar por alguns instantes a tão esperada e planejada aposentadoria que nunca chegara. Uma pequena pensão paga
pela Caixa, uma casinha ensolarada, iluminada por gerânios e cortinas claras, com as poucas posses da mãe querida, as que ela vendera antes de ir para Toynton: o
serviço de chá de florzinhas cor-de-rosa, a escrivaninha de jacarandá e a série de aquarelas de catedrais inglesas. Que bom seria poder convidar quem ela quisesse
para visitá-la em sua própria casa, tomar um chá em sua companhia. Não um chá comunitário servido numa mesa inóspita de refeitório, não um chá institucional, e sim
um chá da tarde de verdade. Na sua mesa, no seu aparelho, com sua comida e seu convidado.
Deu-se conta do peso do livro no colo. Era uma edição em capa mole da Última crônica de Barset, de Trollope. Estivera ali a tarde inteira. Por que tamanha relutância
em abri-lo? E então, de chofre, lhe veio. Ela começara a reler o romance na tarde fatídica em que o corpo de Victor fora trazido para casa. Desde então, não tocara
mais nele. Mas isso era ridículo. Precisava tirar essa idéia da cabeça. Era burrice, não, era um erro, estragar um livro daqueles - com seu sossegado mundinho de
intrigas cardinalescas, sua sanidade, sua delicada sensibilidade moral -, do qual ela gostava tanto, contaminando-o com imagens de violência, de ódio e de sangue.
Colocou a mão esquerda entrevada em volta dele e abriu as páginas com a direita. Havia um marcador onde ela parara, um único antirrino cor-de-rosa, prensado entre
duas folhas de papel de seda. E então se lembrou. Era uma das flores de um pequeno ramalhete que o padre Baddeley lhe dera na tarde da morte de Victor. Em geral,
ele só apanhava flores silvestres quando eram para ela. Nunca duravam muito, menos de um dia. Mas, aquela, Grace resolvera prensar assim que ganhou, entre as páginas
do livro. Ela olhava imóvel para a flor.
Uma sombra tombou sobre a página. Uma voz disse:
- Alguma coisa errada?
Ela ergueu a vista e sorriu.
- Nada. É que acabo de me lembrar de uma coisa. Não é extraordinário como a mente rejeita tudo o que esteja associado com grandes abalos ou acontecimentos pavorosos?
O comandante Dalgliesh me perguntou se eu sabia o que o padre Baddeley fez nos poucos dias que antecederam sua ida para o hospital. E claro que eu sei. Sei o que
ele fez na quarta-feira à tarde. Não creio que tenha a menor importância, mas seria bom poder contar a ele. Claro que todo o mundo aqui vive sempre ocupadíssimo,
mas acha que poderia...?
- Não se preocupe. Vou tirar uma horinha para passar no bangalô Esperança. Já é hora de ele vir nos visitar, se pretende ficar mais tempo por aqui. E, agora, não
acha melhor entrar? Está esfriando.
Grace Willison sorriu, agradecendo. Teria preferido ficar um pouco mais. Mas não quis insistir. A sugestão fora bem intencionada. Fechou o livro de novo e entrou,
empurrada pelas mãos fortes da criatura que iria matá-la.
II
Ursula Hollis sempre pedia para as enfermeiras deixarem as cortinas abertas e, sob a tênue claridade do relógio luminoso na mesinha de cabeceira, discernia a moldura
retangular que separava a escuridão de fora da escuridão de dentro. Quase meia-noite. Não havia estrelas no céu e a noite estava tranqüila. Ao redor, o negrume parecia
tão denso que era quase um peso no peito, uma grossa manta descendo para lhe sufocar a respiração. Imaginou que, do lado de fora, tudo dormisse, a não ser uns poucos
animais pequenos a se esgueirar por entre os talos rígidos de capim. Do lado de dentro, ainda escutou ruídos vagos na casa: passos apressados por um corredor, uma
porta se fechando de manso, o rangido de peças mal lubrificadas, uma cadeira de rodas em movimento e, do quarto ao lado, o bulício do desassossego de Grace Willison,
remexendo-se inquieta na cama; de repente, escutou um clamor alto de música, abafado instantaneamente por alguém que abrira e fechara a porta da sala de estar. O
relógio de cabeceira tomava conta dos segundos e os relegava ao esquecimento. Deitada, o corpo rígido, deixou que as lágrimas escorressem num fluxo constante pelo
rosto e caíssem, frias e pegajosas, em cima do travesseiro. Embaixo dele, estava a carta de Steve. De vez em quando, dobrava o braço direito com dificuldade sobre
o peito e introduzia os dedos sob o travesseiro, para sentir a borda afiada do envelope.
Mogg se mudara para o apartamento; eles estavam morando juntos. Steve lhe dera a notícia de modo casual, quase como se fosse apenas um arranjo temporário e conveniente
para dividir o aluguel e as tarefas domésticas. Mogg cozinhava. Mogg trocara os móveis da sala e pusera mais estantes. Mogg lhe arranjara um trabalho na editora
que talvez abrisse as portas de uma colocação permanente bem melhor. O novo livro de poesia de Mogg sairia na primavera. E só uma pergunta muito superficial sobre
a saúde de Ursula. Não fizera nem mesmo as vagas e insinceras promessas de praxe sobre ir visitá-la algum dia. Não dissera uma palavra sobre seu regresso, sobre
o planejado apartamento novo, sobre suas negociações com a prefeitura. Não era preciso. Ela não iria voltar. Ambos sabiam disso. Mogg também.
Só recebera a carta na hora do chá. Albert Philby se atrasara inexplicavelmente para ir buscar a correspondência e eram mais de quatro horas quando lhe chegou às
mãos. Ainda bem que, naquele momento, estava sozinha na sala de estar, que Grace Willison ainda não chegara do pátio para se aprontar para o chá. Não havia ninguém
para observar seu rosto enquanto lia, ninguém para lhe fazer perguntas delicadas ou, com mais delicadeza ainda, deixar de fazê-las. Até então, raiva e choque tinham
tido o domínio completo de suas emoções. Havia se amparado na raiva, alimentando-a com lembranças reais e imaginadas, enquanto se forçava a engolir as duas fatias
costumeiras de pão, tomar seu chá e contribuir para a conversa comunitária com algumas trivialidades. Mas depois que a respiração pesada de Grace Willison acomodou-se
em um ronco suave, quando não havia mais risco de que Helen ou Dot lhe fizessem uma última visita e a vila Toynton começou a se preparar para dormir, pôde ceder
à desolação e à perda e entregar-se por inteiro à autocomiseração. Ela sabia o que sentia, e as lágrimas, depois de iniciadas, não quiseram parar. Impossível mitigar
a dor, após a entrega. Não possuía mais o menor controle sobre o choro, que já nem a incomodava mais, e que também não tinha mais nada que ver com mágoa ou saudade.
Era uma manifestação física, tão involuntária quanto um soluço, porém silenciosa e quase consoladora; um fluxo interminável.
Sabia o que era preciso fazer. Apurou os ouvidos. No quarto ao lado, o único som audível era o do ronco de Grace Willison, agora já bem regular. Estendeu a mão e
acendeu a luz. A lâmpada era a mais fraca que Wilfred descobrira no mercado, mas ainda assim a luminosidade toldou-lhe a vista. Imaginou-a como um retângulo cintilante
a sinalizar para o mundo seu propósito. Sabia que não havia ninguém para vê-la, mas, na imaginação, o promontório de repente se encheu de pés correndo de um lado
a outro, de vozes chamando alto. Tinha parado de chorar, mas os olhos inchados enxergaram o quarto como se fosse uma fotografia mal revelada mostrando formas indistintas,
distorcidas, a mudar de posição e se dissolver por trás de uma cortina ofuscante perfurada por agulhas luminosas.
Esperou. Nada aconteceu. Ainda ruído nenhum vindo do quarto ao lado, exceto a respiração pesada e regular de Grace. O passo seguinte era fácil; já fizera a mesma
coisa duas vezes. Derrubou os dois travesseiros no chão e, manobrando o corpo até a beirada da cama, deixou-se cair devagar sobre as almofadas macias. Mesmo com
os travesseiros para abafar-lhe o peso, o quarto deu a impressão de ter tremido. De novo esperou. Mas do corredor em frente não vieram passos apressados, nada. Sentou
sobre os travesseiros e começou a se arrastar para os pés da cama. Foi muito fácil esticar a mão e puxar o cordão do roupão. Em seguida, veio o doloroso progresso
rumo à porta.
As pernas eram inúteis; o pouco de força que tinha estava nos braços. Os pés mortos jaziam largados, brancos e flácidos como peixes no chão gelado, os dedos esparramados
qual excrescências obscenas, tentando em vão esgaravatar um apoio. O linóleo não era encerado, mas era liso, e ela escorregou por ele com rapidez surpreendente.
Lembrava-se da imensa alegria sentida no dia em que se descobrira capaz de fazer isso; que, por mais ridículo e humilhante que fosse, ela podia se mover pelo quarto
sem a ajuda de uma cadeira.
Entretanto agora estava se aventurando mais além. Era uma sorte que as portas modernas e frágeis dos quartos do anexo tivessem maçanetas que não precisavam ser giradas
- era suficiente baixá-las. Fez um laço com o cordão do roupão e, na segunda tentativa, conseguiu passá-lo pela maçaneta. Deu um puxão e a porta se abriu em silêncio.
Descartou um dos travesseiros e esgueirou-se pelo corredor silencioso. O coração batia com tamanha força que a qualquer momento poderia traí-la. De novo passou o
laço do cordão pela maçaneta e, manobrando o corpo um pouco mais adiante no corredor, ouviu o clique da porta se fechando.
Uma única lâmpada no fim do corredor era mantida acesa o tempo todo, ainda que bem velada, e Ursula viu sem dificuldade onde uma escada curta levava ao andar de
cima. Esse era o objetivo dela. Alcançá-la mostrou-se de uma facilidade espantosa. O linóleo do corredor, embora nunca tivesse sido encerado, parecia mais liso ainda
que o do quarto; ou talvez ela tivesse pegado o jeito de escorregar pelo chão. Continuou deslizando com uma facilidade quase contente.
Já a escada revelou-se mais difícil. Teria de subir com a ajuda do corrimão, puxando o corpo degrau por degrau. Só que era preciso levar o travesseiro junto. Ele
seria necessário no andar de cima. Mas o travesseiro de repente adquiriu as proporções de um trambolho mole, branco, gigantesco. Os degraus eram estreitos e estava
difícil apoiá-lo direito. Por duas vezes o travesseiro despencou e ela precisou recuar para pegá-lo. Porém, depois de transpor penosamente quatro degraus, descobriu
o melhor jeito de levá-lo. Prendeu uma das pontas do cordão do roupão em volta da cintura e a outra amarrou bem amarrada em volta do meio do travesseiro. Teria sido
melhor, contudo, se tivesse vestido o roupão. Verdade que iria atrapalhar seu avanço, mas fazia frio e ela já começara a tremer.
E assim, degrau por degrau, suada apesar da temperatura baixa, conseguiu subir se agarrando ao corrimão com as duas mãos. A escada rangia de modo alarmante. A qualquer
momento, esperava escutar o chamado abafado de alguma campainha de emergência e os passos apressados de Dot ou de Helen.
Não fazia idéia de quanto tempo demorara para chegar ao topo. Mas por fim lá estava ela, agachada, o corpo todo trêmulo, no último degrau, com as duas mãos tão grudadas
no corrimão que a madeira de vez em quando até se sacudia, espiando o corredor lá do alto. Foi nessa hora que surgiu a figura envolta num hábito. Não houve aviso
de passos, nenhuma tosse, ruído algum de respiração humana. O corredor estava deserto e, no segundo seguinte, um vulto marrom - cabeça baixa, o capuz bem enterrado
no rosto - passara, rápido e em silêncio, bem abaixo de onde ela estava. Depois sumira de novo. Ela esperou, apavorada, mal ousando respirar, encolhendo-se o máximo
possível para não ser vista. O vulto voltaria. Ela sabia. Assim como a tenebrosa figura da morte, conhecida de livros antigos e dos entalhes em mausoléus, a silhueta
embuçada estacaria bem abaixo de onde estava, arrancaria o capuz para revelar a caveira sorridente, as órbitas vazias, e viria cutucá-la com seus dedos descarnados.
O coração, batendo com um terror gelado dentro do peito, parecia grande demais para o corpo. Agora aquelas pancadas delirantes iriam traí-la, sem a menor dúvida!
Pareceu-lhe uma eternidade, mas percebeu que não podia ter transcorrido mais que um minuto até que o vulto surgisse de novo e passasse, abaixo de seus olhos aterrados,
silenciosa e rapidamente para a casa principal.
Ursula deu-se conta então de que não iria se suicidar. Decerto fora apenas Dot, ou Helen, ou mesmo Wilfred. Quem mais poderia ter sido? Mas o choque de ver aquele
vulto silencioso, passando feito uma sombra, lhe devolvera a vontade de viver. Se ela quisesse de fato morrer, então o que fazia ali agachada, naquele chão gelado,
no topo de uma escada? Estava com o cordão do roupão. Mesmo agora poderia amarrá-lo em volta do pescoço e deixar-se escorregar, sem resistência, escada abaixo. Mas
não faria isso. A simples idéia daquela queda derradeira, da corda apertada enterrando-se na carne do pescoço, estrangulando-a, provocou um gemido de protesto aflito.
Não, nunca fora sua intenção se matar. Ninguém, nem mesmo Steve, valia a danação eterna. Steve podia não acreditar no inferno, mas o que sabia ele a respeito do
que de fato importava? No entanto, já que estava ali, iria completar o trajeto. Precisava pegar o vidro de aspirina que sabia existir em algum lugar do consultório.
Não usaria os comprimidos, mas haveria de mantê-los sempre ao alcance. Assim, se algum dia a vida se tornasse intolerável, teria à mão uma forma de acabar com ela.
E, quem sabe, se ingerisse apenas um punhado e deixasse o frasco do lado, na cama, eles perceberiam ao menos que estava infeliz. Era tudo o que pretendia, no fundo;
tudo o que sempre pretendera. Mandariam chamar Steve. Ligariam para sua tristeza. Talvez até obrigassem Steve a levá-la de volta para Londres. Tendo chegado tão
longe com tanto custo, tinha de alcançar o consultório.
A porta não apresentou o menor problema. Mas, depois de entrar, percebeu que chegara ao fim da linha. Não havia como acender a luz. A lâmpada baixa do corredor fornecia
uma luminosidade difusa, no entanto, mesmo com a porta do consultório entreaberta, não era suficiente para lhe mostrar a posição do interruptor. E se quisesse acender
a luz do consultório usando o cordão do roupão, teria de saber onde ficava o interruptor. Esticou o braço e apalpou a parede. Nada. Atirou várias vezes o cordão
com o laço na ponta, mais ou menos na altura de onde achava que deveria haver um interruptor. Mas foi inútil. De repente lembrou que teria de empreender a penosa
jornada outra vez, no sentido inverso - subir de novo na cama seria a parte mais árdua e dolorosa. Voltou a chorar, derrotada, tremendo de frio.
E então, sem mais nem menos, viu surgir algo no escuro e a luz se acendeu. Soltou um pequeno grito de susto. Olhou para cima. Enquadrada na soleira, usando um hábito
marrom aberto na frente e com o capuz arriado, estava Helen Rainer. As duas mulheres, petrificadas, se encaravam sem fala. E Ursula viu que os olhos curvados para
os dela estavam tão cheios de pavor quanto os seus.
III
O corpo de Grace Willison despertou de supetão e no mesmo instante começou a tremer descontrolado, como se sacudido por mão muito forte. Recobrando a consciência,
Grace bem que tentou decifrar o que se passava em meio à escuridão. Ergueu com dificuldade a cabeça do travesseiro, mas não ouviu nada. O barulho que a fez acordar,
qualquer que tivesse sido, real ou imaginário, sumira. Acendeu a lâmpada de cabeceira: quase meia-noite. Estendeu a mão para pegar o livro de Trollope. Pena que
fosse tão pesado. Para ser lido, precisaria ser apoiado no cobertor; mas, depois de esticada na posição convencional de dormir, ficava muito difícil, para ela, dobrar
os joelhos, e o esforço de erguer de leve a cabeça para enxergar as letrinhas pequenas tornava-se cansativo, tanto para os olhos quanto para os músculos do pescoço.
O extremo desconforto às vezes fazia com que duvidasse que ler na cama era de fato o grande prazer que imaginara na infância, quando a parcimônia do pai com a conta
da luz e as preocupações maternas com a vista e as sagradas oito horas de sono da filha haviam lhe cerceado a posse de uma lâmpada de cabeceira.
A perna esquerda chacoalhava sem o menor controle, e ela observava, de uma distância interessada, os saltos ao acaso do cobertor, como se houvesse um animal à solta
entre os lençóis. Acordar assim tão de repente, depois de ter pegado no sono, era sempre um mau sinal. Teria uma noite agitada. Grace tinha pavor de insônia e, por
alguns momentos, sentiu-se tentada a rezar para que fosse poupada, pelo menos naquela noite. Mas já fizera suas orações e seria inútil rezar de novo por uma graça
que, por experiência própria, sabia que não iria receber. Apelar a Deus por algo que Ele já tinha deixado bem claro não estar disposto a conceder era o mesmo que
se comportar como uma criança ranheta e insistente. Acompanhava com curiosidade os movimentos excêntricos da perna, vagamente reconfortada pela sensação - que agora
lhe vinha muito fácil - de ser uma criatura à parte do corpo desregrado.
Largou o livro e resolveu pensar na peregrinação a Lourdes, dali a duas semanas. Imaginou a azáfama feliz da partida - reservara um casaco novo para a ocasião -,
a alegre travessia da França, como se estivessem todos indo a um piquenique; a primeira visão da neblina rondando o sopé dos Pireneus; os picos nevados; a própria
Lourdes com seu comércio ativo, seu ar de estar sempre en fête. O grupo da vila Toynton, à exceção de Ursula Hollis e Georgie Allan, que eram católicos, não integrava
nenhuma peregrinação oficial e não assistia à missa. Ficavam todos reunidos com a devida humildade atrás da multidão, vendo os bispos trajados de roxo atravessarem
lentos a praça do Rosário, o ostensório de ouro erguido bem no alto à frente deles. Mas que emocionante, que pitoresco, que esplêndido era aquilo tudo! As velas
tecendo desenhos de luz, o colorido todo, o canto, a sensação de pertencer de novo ao mundo exterior, mas a um mundo onde a doença era honrada e não mais tida como
uma alienação, como uma deformidade tanto do espírito quanto do corpo. Apenas mais treze dias, agora. O que diria seu pai, um protestante implacável, desse prazer
tão ansiado? Entretanto consultara o padre Baddeley sobre a conveniência de fazer a peregrinação, e o conselho dele fora bem claro. “Minha filha, você gosta da viagem,
gosta de ver outras paisagens. E por que não haveria de gostar? Seguramente ninguém imagina que uma viagem a Lourdes vá fazer mal. Não se acanhe, e ajude Wilfred
a comemorar o trato que ele fez com o Todo-Poderoso.”
Pensou mais uma vez no padre Baddeley. Era difícil aceitar que nunca mais conversaria com ele no pátio dos pacientes, nem rezaria a seu lado na sala de repouso.
Morte: uma palavra inerte, neutra, feia. Curta, inflexível; um trambolho de palavra. A mesma palavra, pensando bem, que aplicamos para uma planta, um bicho ou um
homem. Uma idéia até que interessante, essa. Seria de se imaginar que houvesse uma palavra mais característica, mais impressionante ou forte para a morte de um homem.
Mas por quê? Ele era apenas parte da mesma criação, partilhando da vida universal, dependente do mesmo ar. Morte. Contava sentir a presença do padre Baddeley pairando
ainda por ali; não sentia nada. Quer dizer, não era verdade. Eles partiam todos para o mundo da luz. De todo modo, partiam. Perdiam o interesse pelos vivos.
Devia apagar a luz; a eletricidade custava caro; se não tinha a intenção de ler, então ficasse no escuro. Iluminai nossas trevas - a mãe sempre gostara dessa oração-
e, por Vossa grande misericórdia, defendei-nos de todos os perigos e riscos desta noite. Só que não havia perigo nenhum, apenas insônia e dor - a dor já conhecida,
que era preciso tolerar e acolher como se acolhe um velho amigo porque, mesmo em suas piores fases, sabia que podia lidar com ela; e uma outra dor, nova e assustadora,
que muito em breve teria de despejar sobre os ombros de alguém que soubesse como tratá-la.
A cortina tremulou com a brisa. Grace Willison escutou um estalido repentino, alto a ponto de fazer o coração bater mais rápido por alguns segundos. Depois ouviu
um ruído de metal raspando em madeira: Dot não reparara que a janela estava aberta, antes de colocá-la na cama. Agora era tarde demais. A cadeira de rodas estava
ali do lado, só que ela não conseguiria se sentar sem ajuda. Mas tudo bem, a não ser que a noite fosse de tempestade. Estava em segurança total ali, ninguém iria
entrar pela janela. Não havia nada na vila Toynton para ser roubado. E, para além daquele quadrado branco desfraldado, não existia nada; nada exceto um vazio negro,
penhascos escuros se estendendo até o mar eternamente acordado.
A cortina inflou, explodindo qual vela branca numa curva de luz. Grace Willison soltou uma exclamação diante daquela bela imagem. O ar frio bateu-lhe em cheio no
rosto. Ela virou os olhos para a porta e sorriu, dando as boas-vindas. Começou a dizer:
- A janela... será que poderia fazer o favor de...?
Mas não terminou a frase. Restavam-lhe apenas três segundos de vida terrena. Viu a figura embuçada, o capuz bem enterrado ocultando a fisionomia, avançar veloz para
ela, os pés silenciosos como os de uma aparição familiar, e no entanto horrivelmente diferente; mãos prestativas porém com poder de morte; e o negrume desceu sobre
ela. Sem resistir, uma vez que era de sua natureza e que de todo modo não conseguiria, morreu quase com doçura, sentindo até o fim, através da fina película de plástico,
apenas os contornos fortes, quentes e até certo ponto reconfortantes de uma mão humana. Em seguida a mão se estendeu e, com toda a delicadeza, sem tocar na mesinha
de madeira, desligou a lâmpada. Dois segundos depois, a luz se acendeu de novo e, como se tivesse pensado melhor no assunto, o vulto furtivo pegou o Trollope, folheou
suas páginas com meiguice, encontrou a flor prensada entre as dobras do papel de seda e esmagou tudo com dedos vigorosos. Então a mão se estendeu de novo para a
lâmpada e a luz se apagou pela última vez.
IV
Por fim estavam de volta ao quarto de Ursula. Helen Rainer fechou a porta com uma firmeza contida e encostou-se por alguns segundos nela, como se exausta. Em seguida
foi até a janela e cerrou as cortinas com dois movimentos rápidos. Sua respiração ofegante enchia todo o quarto. Fora um trajeto difícil. Helen deixara Ursula durante
alguns instantes no consultório para posicionar a cadeira de rodas ao pé da escada. Depois que chegassem até ela, não haveria mais nenhum problema. Mesmo que fossem
vistas juntas no corredor do térreo, a conclusão natural seria que Ursula tocara a campainha noturna e estava sendo levada ao banheiro. Porém descer a escada não
foi brincadeira; Helen precisou apoiá-la, na verdade quase carregá-la, durante cinco minutos exaustivos e barulhentos, cinco minutos de respiração pesada, corrimão
estalando, ordens ciciadas, cinco minutos de gemidos semi-abafados de dor. Agora parecia quase um milagre que ninguém tivesse surgido no corredor. Teria sido bem
mais fácil e rápido ir até o corpo principal da casa e usar o elevador, mas o estrondo das grades corrediças e o ruído do motor teriam acordado metade da casa.
Mas, enfim, estavam de volta e a salvo. Helen, pálida, porém calma e recuperada, afastou-se da porta e começou a pôr Ursula na cama com competência profissional.
Nenhuma das duas disse palavra até que a tarefa estivesse terminada e Ursula deitada, num rígido silêncio receoso.
Helen curvou-se então sobre ela, até o rosto chegar bem perto, desagradavelmente perto. Sob o brilho da lâmpada de cabeceira, Ursula viu as feições se tornarem maiores,
mais brutas, os poros qual crateras em miniatura, dois pêlos eriçados feito bigodes de gato num canto da boca. O hálito era um tanto azedo. Curioso que nunca tivesse
notado isso antes. Os olhos verdes deram a impressão de crescer e saltar, enquanto ela fazia sua advertência terrível.
- Quando o próximo paciente se for, ele vai ter que começar a admitir os que estão na lista de espera, ou então largar mão. Isto aqui não se sustenta com menos de
seis pacientes. Dei uma espiada nos livros, um dia que ele deixou tudo em cima da mesa, no escritório, por isso eu sei. Ou ele vende tudo ou então entrega para a
Fundação Ridgewell. Se você quer dar o fora daqui, existem maneiras melhores do que se matar. Me ajude a forçá-lo a vender, assim poderá voltar para Londres.
- Mas como?
Ursula percebeu que sussurrara de volta, como uma conspiradora.
- Ele vai fazer o que chama de conselho de família. Ele sempre faz, quando surge algo importante que afeta todos, funcionários e pacientes. Cada um dá sua opinião.
Aí saímos e meditamos durante uma hora. Depois voltamos para votar. Não deixe que ninguém a convença a votar em favor da Fundação Ridgewell. Se isto aqui ficar para
a Fundação, você também fica aqui para o resto da vida. As prefeituras têm a maior dificuldade para encontrar lugar para os jovens com doenças crônicas. Quando sabem
que você está bem instalada, não transferem nunca.
- Mas, se a vila fechar, será que eles vão mesmo me mandar para casa?
- Serão obrigados ao menos a enviar você de volta para Londres, que continua sendo seu domicílio permanente. Você é responsabilidade de sua própria subprefeitura,
não do condado de Dorset. E, uma vez de volta, ao menos poderá vê-lo. Ele pode ir visitá-la, levá-la para passear, você poderá ir para casa nos fins de semana. Além
disso, a doença ainda não está numa fase avançada. Não vejo por que vocês não conseguiriam se virar num daqueles apartamentos adaptados para casais com problemas
de locomoção. Afinal de contas, ele se casou com você. Ele tem responsabilidades, deveres.
Ursula tentou explicar:
- Não estou preocupada com responsabilidades e deveres. Eu quero que ele me ame.
Helen soltou então um som rude, desconfortável, à guisa de risada.
- Amor. Só isso? E não é o que todos nós queremos? Pois bem, ele não pode continuar amando alguém que nunca vê, não é verdade? Com os homens, a coisa não funciona
assim. Você tem que voltar para ele.
- E você não vai contar nada?
- Não se você prometer.
- Que vou votar como você quer?
- E que vai ficar de bico calado sobre essa sua tentativa de se matar e sobre tudo o que houve aqui esta noite. Se alguém mencionar ter ouvido um barulho de noite,
você diz que me chamou e que eu estava levando você ao banheiro. Se Wilfred descobrir a verdade, ele manda você para um asilo de loucos. Você não vai querer ir para
um lugar desses, vai?
Não, ela não gostaria de ir parar num manicômio. Helen tinha razão. Precisava voltar para casa. Tudo muito simples, na verdade. De repente, se viu inundada de gratidão
e teve de se segurar para não estender os braços para ela. A enfermeira, porém, já se afastara. Mãos firmes enfiavam os lençóis sob o colchão, fazendo-o balançar.
As roupas de cama foram esticadas. Ursula sentiu-se presa, porém segura, um bebê enrolado no cueiro. Helen estendeu a mão para apagar a luz. No escuro, uma mancha
branca moveu-se até a porta. Ursula escutou o estalido suave da maçaneta.
Já sozinha, exausta mas curiosamente reconfortada, lembrou que não mencionara o vulto para Helen. Mas não podia ser nada importante. Talvez fosse a própria Helen,
atendendo à campainha de Grace. Então era disso que ela estava falando, quando mandou que ficasse calada e não contasse o que acontecera ali durante a noite? Não
podia ser. Mas ela não iria contar nada. Contar como, sem se trair e dizer também que estivera lá em cima, agachada no topo da escada? E tudo acabaria dando certo.
Agora podia dormir. Que sorte a sua Helen ter ido até o consultório pegar uma aspirina para sua dor de cabeça e tê-la encontrado ali! A casa estava envolta num silêncio
abençoado e inusitado. Havia algo de estranho, algo de diferente, naquele silêncio. E então, sorrindo na escuridão, percebeu. Era Grace. Nenhum som, nenhum ronco
irritante saindo daquelas paredes finas para incomodá-la. Naquela noite, até mesmo Grace Willison dormia em paz.
V
Em geral, Julius Court adormecia alguns minutos depois de desligar a lâmpada de cabeceira. Porém já fazia um bom tempo que se revirava na cama numa inquietude insone,
com a mente e os nervos agitados, as pernas geladas e pesadas, como se fosse inverno. Esfregou uma na outra, cogitando em pegar o cobertor elétrico. Mas a chateação
de ter de refazer a cama o desencorajou. O álcool parecia um remédio melhor e mais rápido, tanto para a falta de sono quanto para o frio.
Foi até a janela e olhou para fora, na direção do promontório. A lua minguante estava oculta por nuvens apressadas; para o lado da terra firme, apenas um único retângulo
amarelado perfurava a escuridão. Mas, enquanto observava, desceu um negrume sobre a janela distante, como uma veneziana. Na mesma hora, o que aparentava ser um retângulo
tornou-se um quadrado; depois também isso se extinguiu. A vila Toynton foi reduzida a contornos esboçados ao longe, mergulhados em silêncio. Curioso, olhou o relógio.
Meia-noite e dezoito.
VI
Dalgliesh acordou com as primeiras luzes da manhã silenciosa e, enfiando o roupão, desceu para preparar um chá. Millicent devia estar ainda na vila. A televisão
permanecera em silêncio durante toda a noite e, embora a irmã de Wilfred não fosse nem de levantar cedo nem de fazer barulho de manhã, o bangalô Esperança achava-se
envolto na calma um tanto clandestina e inconfundível do completo isolamento. Acendeu a luz na sala de estar, levou a xícara até a mesa e abriu o mapa. Pretendia
explorar a região nordeste do condado e tentaria chegar a Sherborne para o almoço. Mas, antes, seria de bom-tom passar na vila Toynton e ver como estava Wilfred.
Não se sentia preocupado de fato; era difícil lembrar os acontecimentos absurdos da véspera sem se irritar. No entanto, talvez valesse a pena fazer mais uma tentativa
de convencer Wilfred a chamar a polícia, ou ao menos a levar o atentado contra sua vida um pouco mais a sério. E já era hora de pagar algum aluguel pelo uso do bangalô
Esperança. A vila Toynton dificilmente seria assim tão próspera a ponto de recusar uma contribuição feita de forma diplomática. Nenhuma das duas tarefas precisaria
retê-lo por mais do que dez minutos.
Houve uma batida na porta e Julius entrou, já vestido dos pés à cabeça. Mesmo sendo tão cedo, transmitia a impressão costumeira de informalidade um tanto elegante.
Com toda a calma, como se a notícia mal valesse a pena ser dada, ele disse:
- Que bom que já está de pé. Estou indo para a vila Toynton. Wilfred acabou de me ligar. Pelo visto Grace Willison morreu durante o sono e Eric está nervoso por
causa do atestado de óbito. Não imagino o que Wilfred espera que eu faça a respeito. Acho que junto com a licença para clinicar, Eric também recuperou a arrogância
proverbial dos médicos. Na opinião dele, Grace Willison só deveria morrer daqui uns dezoito meses, quem sabe dois anos. E, sendo esse o caso, nosso doutor não sabe
direito que nome dar a tamanha insubordinação. Como sempre, estão todos fazendo um teatro danado. No seu lugar, eu não perderia o espetáculo por nada.
Dalgliesh deu uma espiada para a casa vizinha, sem dizer palavra. Julius interveio, todo prestimoso:
- Ah, não precisa se preocupar em incomodar Millicent; ela já está lá. Parece que a televisão dela quebrou ontem à noite e ela foi assistir lá. Agora, por algum
motivo enigmático, resolveu ficar a noite toda. Provavelmente viu uma boa oportunidade para economizar os próprios lençóis e a água do banho.
- Vá indo - disse Dalgliesh. - Eu vou em seguida.
Dalgliesh tomou seu chá sem pressa e gastou três minutos fazendo a barba. Não sabia ao certo por que se mostrara tão relutante em acompanhar Julius e por que, se
precisava ir até a vila Toynton, preferia ir sozinho. Também não sabia o motivo de se ver às voltas com tamanha sensação de arrependimento. Não nutria o menor desejo
de se intrometer nas polêmicas da vila Toynton. Não sentia nenhuma curiosidade especial a respeito da morte de Grace Willison. Não tinha consciência de nada, a não
ser de um desconforto inexplicável, que chegava quase a ser dor, pela morte de uma mulher que mal conhecia - um desconforto permeado pela vaga contrariedade de ver
o início de um belo dia estragado por indícios de carne em decomposição. Mas havia algo mais: sentimento de culpa. O que lhe parecia ao mesmo tempo absurdo e injusto.
Morrendo, era como se ela tivesse se aliado ao padre Baddeley. Em vez de um, agora eram dois fantasmas para acusá-lo. E ele teria um fracasso duplo. Foi com muito
esforço que se pôs a caminho.
Não teve a menor dificuldade para encontrar o quarto de Grace Willison, pois, antes mesmo de entrar no anexo, escutou o burburinho de vozes alteradas. Quando abriu
a porta, viu Wilfred, Eric, Millicent, Dot e Julius, todos em volta da cama com o ar meio incoerente e desconfortável de estranhos reunidos por acaso no local de
um acidente com o qual teriam preferido não se envolver, mas do qual tampouco conseguiriam se afastar.
Dorothy Moxon estava parada ao pé da cama, com as mãos fortes, vermelhas como presunto, agarradas às grades. Usava a touca de seu ofício. O efeito, longe de transmitir
calma profissional, era grotesco. Aqueles folhos de musselina rígida eram uma celebração bizarra e mórbida da morte. Millicent ainda estava de camisola, um camisolão
xadrez de lã grossa, abotoado com alamares como se fosse um uniforme cerimonial, que devia ter pertencido ao falecido marido. Já os chinelos, ao contrário, eram
dois espalhafatos vulgares de pelúcia cor-de-rosa. Wilfred e Eric usavam seus hábitos marrons. Todos deram uma olhada rápida para a porta, quando ele entrou, e em
seguida voltaram suas atenções de novo para a cama. Julius ia dizendo:
- Vi uma luz num dos quartos do anexo, logo depois da meia-noite. Não foi essa a hora que você disse que ela morreu, Eric?
- Pode ter sido por volta disso. Estou me baseando apenas no resfriamento e início do rigor mortis. Não sou especialista nessas coisas.
- Que estranho! E eu que achava que a morte era sua única especialidade.
Wilfred interveio rápido.
- A luz era do quarto de Ursula. Ela tocou a campainha logo depois da meia-noite. Queria ir ao banheiro. Helen cuidou dela, mas não entrou no quarto de Grace. Não
havia por quê. Ela não chamou. Ninguém a viu depois que Dot a pôs na cama. E não se queixou de nada, ao deitar.
Julius virou-se para Eric Hewson:
- Você não tem opção, correto? Se não sabe dizer do que ela morreu, não pode assinar o atestado de óbito. Seja como for, é melhor se garantir. Eu faria isso, no
seu lugar. Afinal, faz pouquíssimo tempo que lhe deram permissão para assinar atestados de óbito de novo. Melhor não se arriscar a cometer algum erro.
Eric Hewson retrucou:
- Fique fora disso, Julius. Não preciso de seus conselhos. Nem sei por que Wilfred o chamou.
Mas falou sem convicção nenhuma, como uma criança insegura e assustada, os olhos dardejando na direção da porta, como se esperasse a chegada de um aliado. Julius
não se abalou:
- Pois me parece que você está precisando de todos os conselhos que aparecerem. O que o preocupa, falando nisso? Está desconfiado de algum golpe baixo? Que expressão
mais ridícula, essa, pensando bem, tão deliciosamente britânica, combinando filosofia de internato com gíria de boxe.
Eric esforçou-se para demonstrar autoridade.
- Não seja ridículo! Claro que foi morte natural. O problema é que não estou entendendo por que teria ocorrido agora. Eu sei que quem sofre de Dejerine-Sottas pode
morrer de uma hora para a outra, mas eu não esperava que fosse acontecer com ela. Além do mais, Dot me disse que ela estava normal ao deitar, lá pelas dez da noite.
O que eu me pergunto é se havia alguma outra doença orgânica que passou despercebida.
Julius continuou na mesma veia jocosa:
- A polícia não suspeita de nenhum golpe baixo. Na verdade temos até um representante dela aqui conosco, se quiser um conselho profissional. Pergunte ao comandante
se ele desconfia de algum golpe baixo.
Todos se viraram e encararam Dalgliesh, como se pela primeira vez tivessem se dado conta de sua presença no quarto. O trinco da janela batia com insistência irritante.
Ele foi até lá e deu uma espiada para fora. O terreno perto da parede de pedra fora escavado num buraco de mais de um metro de largura, como se alguém pretendesse
fazer um canteiro. O solo arenoso estava liso, sem marca nenhuma. Mas claro! Se alguma visita secreta quisesse entrar no quarto de Grace sem ser vista, por que entrar
pela janela quando a porta da vila Toynton vivia aberta?
Fechou bem o trinco e, voltando para a cama, olhou para o corpo. Mais do que tranqüila, a fisionomia da morta parecia ser de reprovação; a boca, aberta de leve,
deixava ver o dente da frente, ainda mais saliente e mais parecido ao de um coelho, comprimido contra o lábio inferior. As pálpebras haviam se contraído, exibindo
uma nesga da íris, de tal forma que ela dava a impressão de estar espiando as próprias mãos, muito bem postas por cima do cobertor esticado. A possante mão direita,
marcada pelas manchas escuras da idade, estava em copa por cima da mão esquerda mirrada, como se a protegê-la instintivamente de olhares piedosos. Estava vestida
para o último sono com uma camisola branca antiquada, de algodão pregueado, com um incongruente lacinho de fita azul amarrado no pescoço. As mangas compridas terminavam
em punhos de babados. Havia um cerzido bem feito a uns cinco centímetros do cotovelo. Os olhos de Dalgliesh não conseguiam se afastar do remendo. Quem, hoje em dia,
se daria a tanto trabalho? Era muito difícil que aquelas mãos doentes e atormentadas tivessem conseguido fazer um desenho tão intrincado no tecido. Por que haveria
ele de achar aquilo mais patético, mais comovente, do que a expressão de calma reservada do rosto?
Percebeu que os demais, tendo parado de discutir, o espiavam num silêncio meio ressabiado. Apanhou os dois livros que estavam sobre a mesinha de cabeceira de Grace
Willison - o livro de orações e um exemplar de capa mole de A última crônica de Barset. Havia um marcador no livro de orações. Ela estivera lendo a coleta e o evangelho
do dia. O lugar estava assinalado por um daqueles santinhos sentimentais de que tanto gostam os devotos, uma imagem colorida de são Francisco com passarinhos esvoaçantes
ao redor da auréola, o santo pregando para um bando disparatado de animais pelo visto de lugares distantes e desenhados com um perfeccionismo afetado. Estranhou,
descabidamente, que não houvesse um marcador no livro de Trollope. Grace Willison não era mulher de pular páginas e, dos dois volumes, sem dúvida naquele seria mais
fácil de isso acontecer. A falta do marcador causou-lhe uma vaga preocupação.
- Ela tinha algum parente? - perguntou, e foi Anstey quem respondeu:
- Não. Ela me disse que os pais eram filhos únicos. Estavam ambos com mais de quarenta anos quando ela nasceu e morreram com poucos meses de diferença, faz coisa
de quinze anos. Ela tinha um irmão mais velho que morreu durante a guerra, na África do Norte. Acho que em El Alamein.
- Algum bem?
- Nada, nada. Depois que os pais morreram, ela trabalhou vários anos numa entidade beneficente que atende ex-presidiários. Era dessa entidade que ela recebia uma
pequena pensão por invalidez, uma ninharia, na verdade. E essa pensão, claro, agora acaba. A mensalidade dela aqui era paga pela prefeitura local.
Julius Court falou, com um súbito interesse:
- Por acaso ela conhecia Philby antes de você contratá-lo?
Anstey fez uma cara de quem achava aquela pergunta irrelevante e de péssimo gosto.
- Talvez conhecesse, mas nunca me disse nada. Foi ela quem sugeriu que contratássemos alguém ligado à instituição para a qual ela havia trabalhado. Disse que assim
a vila Toynton poderia dar sua contribuição. Ficamos muito satisfeitos com Albert Philby. Ele integra nossa família. Nunca me arrependi de tê-lo contratado.
Millicent interveio:
- E você o contratou barato, claro. No fundo, era ou ele ou nada, certo? Quando os candidatos descobriam que você estava oferecendo cinco libras por semana, e eles
sempre acabavam descobrindo, saíam todos correndo. De vez em quando me pergunto por que Philby continua conosco.
Maiores discussões sobre esse ponto foram evitadas pela entrada do próprio Philby. Já devia estar sabendo sobre a morte de Grace Willison, porque não demonstrou
a menor surpresa ao encontrar o quarto cheio de gente e tampouco se desculpou por estar ali. Em vez disso, postou-se ao lado da porta, feito um cão de guarda imprevisível
e descabido. Todos se comportaram como se tivessem combinado que seria mais prudente não reparar em sua presença. Wilfred virou-se para Eric Hewson:
- E será que não dá para chegar a algum diagnóstico sem precisar de autópsia? Detesto pensar que ela vai ser toda retalhada, tamanha indignidade, tão impessoal.
Ela sempre foi tão melindrosa com o corpo, tão recatada. Hoje em dia as pessoas nem entendem mais esses sentimentos. Uma autópsia seria a última coisa que ela própria
iria querer.
A resposta de Julius foi bastante grosseira:
- E vai ser a última coisa que ela vai ter.
Pela primeira vez, Dot Moxon abriu a boca. Voltou-se para ele tomada de uma ira repentina, o rosto rude avermelhado, os punhos fechados.
- Como ousa falar assim! Você nunca se preocupou com ela, viva ou morta, nem com ela nem com nenhum outro paciente. Você usa isto aqui para seus próprios fins e
mais nada.
- Eu? - Os olhos cinzentos dardejaram e depois aumentaram; Dalgliesh quase pôde ver as pupilas se contraindo. Julius fitava Dot com uma raiva incrédula.
- Exato, usa! Explora, se preferir. É divertido, não é, vir visitar a vila Toynton quando Londres começa a aborrecer você? Bancar o conselheiro de Wilfred, oferecer
presentinhos aos pacientes, como se fosse um Papai Noel? Faz você se sentir bem, com o ego massageado, contrastar sua saúde com a deformidade deles. Mas toma um
cuidado danado para não se esforçar demais. Suas gentilezas na verdade não lhe custam nada. Só Henry recebe convite para ir a sua casa. Mas é que ele já foi bem
importante um dia, não é isso? Ele e você têm o que conversar. Você é o único aqui que possui vista para o mar, mas nós nunca recebemos um convite para levar os
pacientes até seu pátio. Nem pensar! Essa era uma das coisas que você poderia ter feito por Grace, levá-la até sua casa uma vez ou outra, deixar que ela ficasse
lá sentada, quietinha, olhando o mar. Ela não era burra, sabia? Você poderia até ter mantido uma conversa agradável com ela. Mas isso estragaria toda a elegância
do seu pátio, certo? Uma velhota feia numa cadeira de rodas lá no meio. E, agora que ela está morta, você entra aqui fingindo dar conselhos ao Eric. Pois bem, pelo
amor de Deus, não dê palpite!
Julius riu, mas não estava confortável. Parecia ter se controlado, entretanto a voz saiu alta, áspera.
- Não faço idéia do que eu possa ter feito para merecer um ataque desses. Nunca me dei conta de que, ao comprar uma casinha de Wilfred, eu me tornaria responsável
por Grace Willison ou por qualquer outro paciente internado aqui na vila Toynton. Não tenho a menor dúvida de que perder outro paciente assim tão rápido, logo depois
da morte de Victor, está sendo um choque para você, Dot, mas por que descontar em mim? Todos nós sabemos que você é apaixonada por Wilfred e imagino que não deve
ser nada fácil isso, mas eu não tenho nada que ver com a questão. Posso ser um tanto ambivalente em minhas preferências sexuais, mas não estou competindo pelas atenções
de seu querido Wilfred, garanto.
De repente, Dot partiu para cima de Julius e, com um gesto ao mesmo tempo teatral e absurdo, ergueu o braço para esbofeteá-lo. Porém, antes que pudesse acertá-lo,
Julius já tinha agarrado seu pulso. Dalgliesh surpreendeu-se com a rapidez e a eficiência da reação. A mão retesada, branca e trêmula com o esforço, segurava a dela
no alto, num nó musculoso, de tal forma que pareciam dois competidores destoantes flagrados num tableau de conflito. Instantes depois, ele riu, soltou a mão de Dot,
baixou a dele mais devagar, ainda de olho nos movimentos da enfermeira, e começou a massagear e a torcer o pulso. Em seguida riu outra vez, um riso perigoso, e disse,
bem baixinho:
- Cuidado! Cuidado! Não sou um pobre velho entrevado, e você sabe disso.
Dot soltou um grito abafado, desfez-se em lágrimas e saiu soluçando do quarto, uma figura desengonçada e patética, mas nem um pouco ridícula. Philby foi atrás dela.
Sua partida provocou tanto interesse quanto sua chegada. Em voz baixa, Wilfred disse:
- Você não devia ter dito aquilo, Julius, nada daquilo.
- Eu sei. Foi imperdoável. Desculpe. Converso com Dot quando estivermos todos mais calmos.
A concisão, a ausência de justificativas e a aparente sinceridade do pedido de desculpas calou a todos. Dalgliesh interveio, também em voz baixa:
- Acredito que a senhorita Willison teria achado essa briga diante de seu cadáver bem mais chocante do que qualquer coisa que possa lhe acontecer na mesa mortuária.
Suas palavras trouxeram Wilfred de volta ao assunto em questão; ele se virou para Eric Hewson:
- Mas não tivemos toda essa dificuldade no caso de Michael; você assinou o atestado sem o menor problema.
Dalgliesh detectou os primeiros sinais de rabugice em sua voz.
Eric explicou:
- Porque eu sabia qual fora a causa. Eu tinha examinado Michael pela manhã. No caso dele, depois do último infarto, era apenas uma questão de tempo. Michael estava
morrendo.
- Como todos nós - acudiu Wilfred. - Como todos nós.
Essa banalidade carola pelo visto irritou a irmã, que se pronunciou pela primeira vez.
- Não seja ridículo, Wilfred. Eu garanto a você que não estou morrendo e ficaria muito desconcertada se alguém me dissesse que você está. E, no que diz respeito
a Grace, ela sempre me pareceu bem mais doente do que qualquer pessoa aqui era capaz de entender. Agora talvez vocês percebam que nem sempre os que precisam de mais
atenção são os que fazem mais escarcéu.
Dirigindo-se para Dalgliesh, acrescentou:
- O que acontece exatamente, se Eric não der o atestado de óbito? A polícia terá que voltar aqui de novo?
- É bem provável que venha um policial. Apenas um policial comum. Ele então agirá em nome do magistrado designado para presidir o inquérito e ficará encarregado
do corpo.
- E depois?
- O magistrado pedirá uma autópsia. Dependendo dos resultados, ou ele fornece um atestado de óbito para o cartório ou dá início às investigações.
Wilfred interveio:
- É tudo tão horrível, tão desnecessário.
- É a lei, e o doutor Hewson sabe disso.
- Mas o que o senhor está querendo dizer com é a lei? Grace morreu de doença, ela tinha Dejerine-Sottas, todos nós sabemos. E, se por acaso ela tivesse uma outra
doença, agora Eric não pode fazer mais nada para ajudá-la. De que lei está falando?
Com toda a paciência, Dalgliesh explicou:
- O médico que cuida de uma pessoa morta durante sua derradeira doença tem que assinar e entregar ao cartório uma certidão formal declarando, dentro de suas capacidades
e até onde lhe é possível saber, a causa da morte. Ao mesmo tempo, precisa necessariamente comunicar por escrito a alguém qualificado (e essa pessoa pode ser um
ocupante da casa onde ocorreu a morte) que assinou a certidão. Não há nenhuma obrigação legal por parte do médico de informar ao magistrado a ocorrência de uma morte,
mas é o que em geral acontece sempre que paira alguma dúvida sobre o motivo do óbito. Quando o médico comunica ao magistrado a ocorrência de determinada morte, ele
não fica isento de assinar o atestado que estabelece a causa possível dessa morte, mas é obrigado a declarar, no próprio atestado, que o acontecido foi comunicado
às autoridades competentes, de modo que o cartório fica sabendo que precisa adiar o registro até ser notificado. Segundo a Seção 3a da Lei dos Magistrados Encarregados
de Investigar Mortes Suspeitas, de 1887, sempre que houver na jurisdição um cadáver sobre o qual pairem suspeitas de morte violenta ou súbita, provocada por causas
desconhecidas, ou quando a morte na prisão ou em qualquer lugar ou circunstância requeira, sob uma outra lei, a realização de um inquérito, o magistrado tem obrigação
de investigar. Essa, já que você perguntou, e me estendendo um pouco além do conveniente, é a lei. Grace Willison morreu de repente e, na opinião do doutor Hewson,
a causa até o presente momento é desconhecida. Portanto o melhor, diante das circunstâncias, seria notificar o fato. O que implica uma autópsia, mas não necessariamente
uma investigação.
- Mas é abominável imaginá-la deitada lá, toda mutilada, numa mesa de mármore. - Wilfred começava a ficar igualzinho a uma criança teimosa. Dalgliesh respondeu com
frieza:
- Mutilada não é bem o termo correto. Uma autópsia é um procedimento muito bem feito, limpo e disciplinado. E agora, se me dão licença, vou voltar ao meu café-da-manhã.
Wilfred fez um esforço quase físico para se controlar. Endireitou o corpo, cruzou as mãos dentro das mangas generosas do hábito e parou uns instantes, em meditação
silenciosa. Eric Hewson olhou para ele, intrigado, depois deu uma espiada em Dalgliesh e Julius, como se buscasse orientação. Mas Wilfred acabou se decidindo:
- Eric, acho melhor você ligar para o magistrado já. Em circunstâncias normais, Dot prepararia o corpo, mas convém esperar para ver o que eles dizem. Depois disso,
por favor, Eric, comunique a todos que eu quero ter uma conversa em família logo após o desjejum. Helen e Dennis estão cuidando deles. Millicent, seria bom você
ir procurar Dot para ver como ela está. E agora eu gostaria de dar uma palavrinha a sós com você, Julius, e com Adam Dalgliesh também.
No entanto continuou mais alguns instantes, de olhos fechados, aos pés da cama de Grace. Dalgliesh se perguntou se estaria rezando. Em seguida, saiu, acompanhado
pelos dois. Enquanto o seguiam, Julius cochichou sem quase mexer os lábios:
- Lembrança desagradável dos tempos em que éramos chamados à diretoria. Devíamos ter tomado um bom café-da-manhã para fortalecer o espírito.
No escritório, Wilfred não desperdiçou tempo.
- A morte de Grace significa que eu terei que tomar minha decisão antes do previsto. Por outro lado, também não posso começar a aceitar pacientes da lista de espera
se a vila não for continuar. Vou fazer um conselho familiar na tarde em que Grace for enterrada. Acho que será mais acertado esperar até lá. Se não houver complicação
nenhuma, provavelmente será daqui a uma semana. Eu gostaria que ambos tomassem parte e nos ajudassem a decidir.
Julius respondeu na hora:
- Impossível, Wilfred. Eu não tenho o menor interesse; quero dizer, interesse no sentido jurídico e essa coisa toda. Não é assunto meu e ponto final.
- Você mora aqui. Sempre pensei em você como alguém da família.
- Muita bondade sua, e me sinto honrado. Mas não é verdade. Não sou da família e não tenho o menor direito de votar sobre uma decisão que não vai me afetar em nada.
Se você decidir vender (e repare que eu não o culpo se achar que esse é o melhor caminho), com quase toda a certeza eu também vendo minha parte. Não tenho a menor
vontade de ficar depois que isto aqui for transformado num acampamento para trailers. Só que, para mim, não faz diferença nenhuma. Tenho certeza de que consigo negociar
minha parte por um bom preço para algum brilhante empreendedor aqui da região, alguém que não está nem um pouco interessado em paz e sossego e que há de querer transformar
minha sala num bar e hastear uma bandeira no pátio. É muito provável que eu procure meu próximo bangalô em alguma parte da Dordogne, depois de uma pesquisa minuciosa
em busca de donos que porventura tenham feito uma boa barganha com Deus ou com o diabo. Desculpe, mas é não; e ponto final.
- E você, Adam?
- Tenho menos direito ainda de dar uma opinião. Este lugar serve de lar para alguns pacientes. Por que cargas d’água o voto de uma visita ocasional haveria de interferir
no futuro deles?
- Porque eu confio muitíssimo em sua capacidade de julgamento.
- Não vejo por quê. Em questões como essa, o melhor é confiar no contador.
Julius então perguntou:
- Vai convidar Millicent para o conselho da família?
- Claro. Ela talvez não tenha me apoiado cem por cento, mas faz parte da família.
- E Maggie Hewson?
Wilfred não titubeou:
- Ela não.
- Maggie não vai gostar de ser deixada de lado. E a ausência dela não vai ser meio penosa para Eric?
Wilfred retrucou em tom grave:
- Já que você acabou de deixar bem claro que não se considera de forma alguma envolvido em nossos assuntos, permita-me decidir eu mesmo o que é penoso ou não para
Eric. E agora, se me dão licença, vou tomar o desjejum com a família.
VII
Ao saírem do escritório de Wilfred, Julius fez um convite brusco, como se por impulso:
- Venha tomar café comigo. Ou qualquer outra coisa, se não achar que é cedo demais para uma bebida. Mas, por favor, venha. Comecei o dia com o pé esquerdo e estou
sendo uma péssima companhia para mim mesmo.
Aquilo estava próximo demais de um pedido de socorro para ser descartado.
- Se puder me dar cinco minutos - disse Dalgliesh. - Preciso ver alguém. Encontro com você no saguão de entrada.
Durante a primeira excursão monitorada pela vila Toynton, Dalgliesh ficara sabendo qual era o quarto de Jennie Pegram. Talvez não fosse a melhor hora para aquela
conversa, mas o assunto não podia mais esperar. Bateu à porta e detectou uma nota de surpresa na voz da moça quando ela disse “pode entrar”. Jennie estava sentada
na cadeira de rodas, em frente à penteadeira, com os cabelos loiros esparramados pelos ombros. Tirando a carta anônima da carteira, Dalgliesh aproximou-se por trás
e colocou o papel na frente dela. Os olhos de ambos se cruzaram no espelho.
- Foi você que escreveu?
Jennie deixou que a vista percorresse a carta, sem pegá-la. Pestanejou uns instantes. Uma onda sanguinolenta vinha subindo da base do pescoço. Dalgliesh escutou-a
engolir a respiração, mas a voz saiu calma.
- Por que eu faria isso?
- Posso sugerir alguns motivos. Mas foi você?
- Claro que não! Nunca vi isso antes.
Depois lançou para ele um olhar de desdém, de repúdio, e completou:
- É... é pura bobagem, infantilidade.
- Exato. Um exercício medíocre. Feito às pressas, imagino. Bem que eu previa que não iria lhe causar boa impressão. Não chega nem aos pés das outras, em emoção ou
imaginação.
- Que outras?
- Ora, o que é isso? Comecemos com a que foi enviada para Grace Willison. Essa foi excelente. Um esforço criativo, redigido com inteligência suficiente para acabar
com o prazer que ela sentia ao lado do único amigo que fez por aqui, e com maldade de sobra para que ela tivesse vergonha de mostrá-la a qualquer pessoa. Exceto,
claro, a um policial. Nem mesmo Grace Willison se envergonharia de revelar uma carta assim à polícia. Em questões de obscenidade, temos dispensa médica.
- Ela não ousaria! E não sei do que está falando.
- Não ousaria, é? Pena que não possa perguntar a ela. Sabia que ela morreu?
- Eu não tenho nada com isso.
- Pura sorte. Ela não era do tipo suicida. O que eu me pergunto é se você teve tanta sorte, ou azar, com outras vítimas. Com Victor Holroyd, por exemplo.
Impossível não perceber o terror em seu rosto. As mãos magras torciam o cabo da escova de cabelo num teatro mudo desesperado.
- Aquilo não foi culpa minha! Nunca escrevi nada para Victor! Nunca escrevi nada para ninguém.
- Você não é tão esperta quanto imagina. Esqueceu que existe uma coisa chamada impressão digital. Talvez não saiba que os peritos criminais podem tirar impressões
digitais de papel. E há também o elemento tempo. Todas as cartas foram recebidas depois que você veio para a vila Toynton. A primeira foi antes da chegada de Ursula
Hollis. E acho que podemos eliminar Henry Carwardine dessa história. Sei que as tais cartas pararam, depois da morte de Holroyd. Talvez por você ter percebido que
já fora longe demais. Ou será que imaginou que a culpa iria cair em cima dele? Acontece que a polícia sabe que as cartas não foram escritas por um homem. E há ainda
o teste da saliva. À exceção de uns quinze por cento, todo o mundo excreta seu grupo sangüíneo junto com a saliva. Pena que você não soubesse disso antes de lamber
os envelopes.
- Os envelopes... mas elas não foram...
Ela soltou um grito abafado. Os olhos se arregalaram de pavor. O rubor recuou, deixando-a lívida.
- Não, elas não foram postas em envelopes. O papel foi dobrado e enfiado no livro das vítimas. Mas ninguém sabe disso, a não ser os destinatários e você.
Sem olhar para ele, ela disse:
- O que vai fazer?
- Ainda não sei.
E não sabia mesmo. Sentia - e isso era novo para ele - uma mistura de constrangimento, raiva e vergonha também. Fora tão fácil induzi-la a confessar, tão fácil e
tão abjeto. Viu-se de fora, com a clareza de um observador isento, apto e saudável, magistrado empolado, julgando as fraquezas dela, fazendo as advertências de praxe,
procrastinando a sentença. Era uma imagem repugnante. Ela provocara o sofrimento de Grace Willison. Mas ao menos podia alegar alguma desculpa psicológica. Quanto
de sua própria raiva e repugnância tinha raízes na culpa? O que ele, Dalgliesh, fizera para tornar os últimos dias de Grace Willison um pouco mais felizes? No entanto,
alguma providência precisaria ser tomada a respeito. Era improvável que a moça fosse causar mais dissabores, pelo menos por enquanto, mas e no futuro? Além disso,
Henry Carwardine tinha o direito de saber. Assim como Wilfred e a Fundação Ridgewell, se viesse a assumir a vila Toynton. Algumas pessoas diriam também que Jennie
precisava de ajuda. Viriam com a solução contemporânea ortodoxa: seções de psicanálise. Dalgliesh, contudo, hesitava. Esse não era um remédio no qual depositasse
grande confiança. Seria bom para a vaidade dela, talvez, e concorreria para que sua necessidade de ser considerada importante fosse levada a sério. No entanto, se
as próprias vítimas haviam resolvido guardar segredo, ainda que apenas para poupar a Wilfred novas preocupações, que direito tinha ele de fazer pouco caso desse
motivo ou de violar a confiança que haviam depositado nele? Estava acostumado, em seu serviço, a trabalhar conforme as regras. Mesmo quando tomava uma decisão inortodoxa,
o que não era raro, as questões morais - se fosse possível usar tal palavra, e ele nunca a usara - eram claras, inequívocas. A doença devia ter minado, junto com
suas forças, a vontade e a capacidade de discernimento para que um problema tão insignificante o derrotasse. Seria o caso de deixar um bilhete lacrado para Anstey
ou seu sucessor abrir na eventualidade de surgirem novos problemas? Que ridículo, recorrer a um expediente tão reles e teatral! Santo Deus, por que não conseguia
tomar uma decisão mais direta? Seria tão bom se o padre Baddeley ainda estivesse vivo, porque então saberia em que ombros frágeis depositar com total segurança aquele
fardo.
Virando-se para Jennie, Dalgliesh disse:
- Vou deixar a seu cargo contar às vítimas, todas elas, que a responsável foi você e que não acontecerá de novo. E acho melhor não acontecer. E também vou deixar
a cargo de sua engenhosidade a tarefa de imaginar uma desculpa. Sei que deve sentir muita falta de todos os cuidados e atenções dispensados pelo hospital onde estava
internada. Mas por que compensar isso tornando os outros infelizes?
- Eles me odeiam.
- Claro que não. Você é que odeia a si mesma. Escreveu cartas para alguém mais, além da senhorita Willison e de Carwardine?
Ela lançou um olhar sorrateiro por baixo das pálpebras.
- Não. Só para eles.
Provavelmente era mentira, pensou Dalgliesh, já farto daquele assunto. Ursula Hollis também devia ter recebido alguma coisa. Será que iria causar mais mal do que
bem, se lhe perguntasse?
Escutou então a voz de Jennie Pegram, já mais forte, mais confiante. Ela ergueu a mão esquerda e começou a escovar os cabelos, puxando os fios para o rosto.
- Ninguém aqui se importa comigo. Todos me desprezam. Eles nunca quiseram que eu viesse para cá. Eu também não queria vir. Você poderia me ajudar, mas também não
se importa. Não quer nem mesmo escutar.
- Peça ao doutor Hewson para lhe indicar um psiquiatra e confie nele. Ele é pago para ouvir gente neurótica falar de si mesma. Eu não.
Lamentou a maldade assim que a porta se fechou. Sabia o que a provocara: a súbita lembrança do corpo mirrado e feio de Grace Willison dentro da camisola barata.
E então, numa onda de repulsa por si mesmo, pensou com seus botões que, de fato, se um ataque de piedade e de raiva conseguia pôr abaixo com tanta facilidade sua
isenção profissional, era melhor mesmo que estivesse desistindo de ser policial. Ou seria por causa da vila Toynton? O lugar estava começando a lhe dar nos nervos.
Enquanto passava rápido pelo corredor, a porta do quarto pegado ao de Grace Willison se abriu e ele viu Ursula Hollis. Ela o chamou, girando a cadeira de rodas para
liberar a entrada.
- Eles disseram para a gente esperar no quarto. Grace morreu.
- Pois é, eu sei.
- O que foi? O que houve?
- Ninguém sabe ao certo, ainda. O doutor Hewson está providenciando para que seja feita uma autópsia.
- Ela não se matou... ou algo assim, não é?
- Não sei ao certo. Parece que ela morreu tranqüila, enquanto dormia.
- Do mesmo jeito que o padre Baddeley?
- Isso, do mesmo jeito que ele.
E pararam então de falar, olhando um para o outro. Dalgliesh foi o primeiro a romper o silêncio.
- Ouviu alguma coisa, ontem à noite?
- Ah, não! Nada! Dormi muito bem, quer dizer, depois que Helen veio me atender.
- Teria ouvido, caso ela chamasse ou se alguém tivesse entrado para vê-la?
- Ah, sim, se eu não estivesse dormindo. Às vezes os roncos dela me mantinham acordada. Mas não ouvi chamado nenhum e ela dormiu antes de mim. Apaguei a luz por
volta da meia-noite e meia e me lembro de ter pensado que estava tudo muito calmo.
Dalgliesh foi até a porta e de repente parou, sentindo que ela relutava em deixá-lo partir. Perguntou:
- Está com algum problema, preocupada?
- Ah, não! Nada! Era só essa incerteza sobre Grace, todo mundo fazendo tanto mistério, a gente aqui sem saber de nada. Mas se eles vão fazer uma autópsia... Quer
dizer, o exame vai nos dizer como foi que ela morreu.
- Claro - ele disse, sem convicção, como se para tranqüilizar a si mesmo, além dela -, o exame vai nos dizer.
VIII
Julius esperava no saguão de entrada para saírem juntos da vila Toynton. Estava uma manhã ensolarada e, meio separados um do outro, caminharam absortos, de olho
na trilha. Não abriram a boca. Como se puxados por um cordão invisível, seguiram para o mar guardando uma distância cautelosa entre si. Dalgliesh agradeceu o silêncio
do companheiro. Pensava em Grace Willison, tentava entender e analisar as raízes de sua própria preocupação e inquietude, emoções que, a seu ver, lhe pareciam ilógicas,
quase perversas. Ele não vira nenhuma marca no corpo; lividez nenhuma; nenhuma marca de sangue pisado no rosto ou na testa; não havia sinais de que o quarto fora
mexido; nada estava fora do lugar, a não ser uma janela aberta. Ela simplesmente enrijecera na quietude natural da morte. Por que, então, essa suspeita irracional?
Afinal, era um policial, não um vidente. Trabalhava com provas, não com intuição. Quantas autópsias eram realizadas todos os anos? Mais de cento e setenta mil. Cento
e setenta mil mortes que exigiam ao menos uma investigação preliminar. A maioria dessas investigações poderia fornecer um motivo óbvio, pelo menos para alguém. Até
o rebotalho mais patético da sociedade tem o que deixar, por mais mesquinho e indesejável que seja esse legado a olhos mais sofisticados. No geral, toda morte beneficia
alguém, liberta alguém, tira um fardo dos ombros de alguém, seja de responsabilidade, de sofrimento vicário ou de amor tirânico. Toda morte é morte suspeita, se
olharmos apenas para o motivo, assim como toda morte, em última instância, é morte natural. O velho dr. Blessington, um dos primeiros legistas da Scotland Yard e
um grande patologista, lhe ensinara isso. Lembrava-se bem da ocasião porque fora a última autópsia de Blessington e a inaugural do detetive Adam Dalgliesh. As mãos
de ambos tremiam, porém por razões diferentes - se bem que as do velho trabalharam com precisão cirúrgica, depois de feita a incisão. Sobre a pedra do laboratório,
jazia o corpo de uma prostituta ruiva, de quarenta e dois anos. O assistente do médico, com duas passadas da mão enluvada, limpara o rosto do sangue, da poeira,
da base e do pó-de-arroz, deixando apenas uma face pálida, vulnerável, anônima. A mão forte e cheia de vida, não a morte, apagara toda a personalidade daquela mulher.
O velho Blessington demonstrara então a astúcia de sua arte:
- Está vendo só, meu rapaz, o primeiro golpe, evitado pela mão dela, escorregou pelo pescoço e pela garganta na direção do ombro direito. Uma sangueira danada, mas
nenhum grande dano. Com o segundo, de baixo para cima e de atravessado, ele cortou a traquéia. Ela morreu de choque, perda de sangue e asfixia, provavelmente nessa
ordem, pelo jeito do timo. Quando eles vêm parar aqui nesta pedra, meu rapaz, toda morte acaba sendo natural.
Natural ou não, essa fase estava encerrada. Era muito aborrecido ver que, diante de uma vontade tão forte, a mente ainda precisava de reafirmação contínua, ainda
parecia teimar em não deixar o assunto sossegado. Que justificativa plausível ele teria, de todo modo, para ir à delegacia mais próxima se queixar de que a vila
Toynton estava passando por uma epidemia de mortes? Havia o velho padre, que morrera do coração sem deixar inimigos ou posses, à exceção de uma modesta quantia legada
com finalidades beneficentes a um homem que se tornara seu amigo, um filantropo notável, de caráter e reputação inquestionáveis. E havia Victor Holroyd. Mas o que
poderia a polícia fazer sobre aquela morte, a não ser o que já tinha feito, e com a maior competência? Os fatos foram investigados e o júri já se pronunciara. Holroyd
fora enterrado; o padre Baddeley, cremado. Tudo o que restava era um caixão cheio de ossos quebrados e carne putrefata, mais um punhado de poeira cinzenta e pedregosa
no cemitério de Toynton; dois outros segredos acrescentados aos muitos outros enterrados naquele solo consagrado. Todos eles muito além de qualquer solução humana.
E agora uma terceira morte, aquela pela qual todos da vila Toynton deviam estar supersticiosamente esperando, cativos que eram da teurgia de que a morte vem sempre
de três em três. Agora podiam todos relaxar. Ele podia relaxar. O magistrado mandaria que se fizesse um exame cadavérico e Dalgliesh estava quase certo de qual seria
o resultado. Se por acaso Michael e Grace tivessem sido assassinados, o assassino era esperto demais para deixar rastros. E também não havia por que deixar pistas.
Com uma mulher frágil, imobilizada e cheia de doenças, teria sido facílimo, uma questão apenas de colocar a mão firme sobre o nariz e a boca. Não havia nada que
justificasse uma interferência sua. Não poderia chegar e dizer: Eu, Adam Dalgliesh, tive mais um dos meus famosos palpites - discordo do magistrado encarregado do
caso, discordo do médico-legista, da polícia local e de todos os fatos. Exijo, à luz dessa nova morte, que os ossos incinerados do padre Baddeley sejam ressuscitados
e obrigados a revelar seu segredo.
De repente estavam diante da casa de Julius. Deram a volta até a porta da frente, que levava direto do pátio de pedra para a sala de estar. Julius deixara a porta
destrancada. Empurrou-a e afastou-se um pouco, para que Dalgliesh pudesse entrar primeiro. Pararam ambos onde estavam, imobilizados pela surpresa. Alguém já estivera
por lá. O busto de mármore da criança sorridente fora estraçalhado.
Ainda sem dizer uma palavra, avançaram com cautela pelo tapete. A cabeça, agora uma maçaroca anônima, achava-se em meio a um holocausto de fragmentos de mármore.
O tapete cinza-escuro estava todo salpicado de grãos brilhantes de pedra. Réstias largas de sol, entrando pelas janelas e pela porta aberta, cruzavam o aposento
e, em seus raios, as lascas estilhaçadas piscavam como se fossem uma infinidade de estrelas minúsculas. Pelo jeito, de início a destruição fora sistemática. As duas
orelhas tinham sido cortadas com precisão e jaziam juntas, objetos obscenos jorrando um sangue invisível, ao passo que o ramalhete de flores, tão delicadamente esculpido
que os lírios-do-vale pareciam tremular com vida, encontrava-se a pouca distância da mão, como se atirado fora. Uma adaga em miniatura fora se alojar no sofá, espetada
na vertical, um microcosmo de violência.
A sala estava muito quieta: o conforto cheio de ordem, o tique-taque compassado do carrilhão sobre o consolo da lareira, o martelar insistente do mar, tudo realçava
a impressão de afronta, a brutalidade da destruição e do ódio.
Julius pôs-se de joelhos e recolheu a massa disforme que já fora a cabeça da criança. Segundos depois, deixou que caísse de novo no chão. E ela rolou desajeitada,
de viés, e foi parar no pé do sofá. Ainda sem dizer nada, estendeu o braço e apanhou o ramalhete de flores, que aninhou com cuidado nas mãos. Dalgliesh viu que ele
tremia; estava muito pálido, e a testa, curvada sobre o que restara da estatueta, brilhava de suor. Parecia um homem em estado de choque.
Dalgliesh foi até a mesa de canto, sobre a qual havia uma garrafa de cristal, e serviu uma dose generosa de uísque. Sem dizer nada, entregou o copo a Julius. O silêncio
e o tremor pavoroso de Julius começavam a preocupá-lo. Qualquer reação, pensou Dalgliesh, um ato violento, um acesso de raiva, uma enxurrada de obscenidades, seria
melhor do que esse silêncio tão pouco natural. Mas, quando Julius falou, a voz saiu calma. Sacudiu a cabeça para o copo que lhe fora oferecido.
- Não, obrigado. Não preciso de bebida, não agora. Quero saber o que estou sentindo, saber aqui, na barriga, não só na cabeça. Não quero abafar minha raiva e, por
Deus do céu, também não preciso que seja estimulada! Pense um pouco, Dalgliesh. Ele morreu faz trezentos anos, esse doce menino. O mármore deve ter sido esculpido
logo depois. Não serviu para absolutamente nada de prático durante trezentos anos, a não ser para fornecer consolo e prazer, e também para nos lembrar de que somos
pó. Trezentos anos. Trezentos anos de guerras, revoluções, violência e cobiça. Mas ele sobreviveu. Sobreviveu até este ano de graça. Beba você esse uísque, Dalgliesh.
Erga o copo e brinde à era do espoliador. Ele não sabia que isto estava aqui, a menos que tenha vindo espiar e xeretear na minha ausência. Qualquer coisa minha serviria.
Ele poderia ter destruído qualquer coisa. Mas, quando viu isto, não resistiu. Nada mais poderia ter lhe dado tamanha euforia na hora de destruir. Isto aqui não é
só ódio de mim, você sabe. A pessoa que fez isso, seja quem for, odiava a estatueta também. Porque ela dava prazer, porque foi feita com uma intenção, não era só
um pedaço de argila atirado numa parede, tinta jogada numa tela, um pedaço de pedra alisado em curvas inócuas. Ela tinha importância e integridade. Surgiu do privilégio
e da tradição, e contribuiu para eles. Deus meu, eu jamais deveria tê-la trazido para cá, para junto desses bárbaros!
Dalgliesh ajoelhou-se a seu lado. Apanhou dois pedaços de um braço quebrado e encaixou-os, como se fosse um quebra-cabeça. E disse:
- Sabemos o momento quase exato em que isso foi feito. Sabemos que seria preciso força e que ele, ou ela, com toda a certeza usou um martelo. E haverá marcas por
aí. Ele não pode ter vindo até aqui e voltado a tempo. Ou escapou pela trilha que vai até a praia, ou então veio de carro e depois foi recolher a correspondência.
Não será difícil descobrir o responsável.
- Santo Deus, Dalgliesh, você tem alma de policial. Acha mesmo que isso me serviria de consolo?
- A mim, serviria; mas, por outro lado, como diz você, é tudo uma questão de alma, provavelmente.
- Não vou chamar a polícia, se é isso que está me sugerindo. Não preciso dos detetives daqui para me dizer quem foi que fez isso. Eu sei, e você também, não é verdade?
- Não. Eu poderia lhe dar uma lista dos principais suspeitos em ordem de probabilidade. Mas não sei quem foi.
- Poupe-se do trabalho. Eu sei quem foi e vou lidar com ele do meu jeito.
- E dar a essa pessoa mais essa satisfação, de vê-lo preso e acusado de violência indevida ou até mesmo lesão corporal de natureza grave, imagino.
- Eu não contaria com muita simpatia de sua parte, não é verdade? Nem do tribunal local. A vingança é minha, dizem os juízes de paz de Sua Majestade. De um lado
o moço malvado e destrutivo; do outro, o pobre rapaz sem oportunidades! Cinco libras de multa e liberdade condicional. Mas não se preocupe! Não vou fazer nada precipitado.
Vou agir com calma, mas vou cuidar disso. Mantenha seus colegas longe deste assunto. Eles não foram exatamente um sucesso estrondoso quando investigaram a morte
de Holroyd. Então que fiquem de fora.
Pondo-se de pé, acrescentou com uma teimosia enfezada, quase como se tivesse acabado de pensar na questão:
- Além do mais, não quero mais nenhuma confusão por aqui no momento, não logo depois da morte de Grace Willison. Wilfred já tem preocupações suficientes. Vou limpar
tudo e dizer a Henry que levei o mármore de volta para Londres. Ninguém mais da vila costuma vir me visitar, ainda bem, de modo que serei poupado das condolências,
todas falsas, por sinal.
- Acho bem interessante essa sua preocupação com a paz de espírito de Wilfred.
- Logo imaginei que sim. Nos registros dele, sou um filho da mãe egoísta. Vocês têm um padrão para identificar todos os filhos da mãe egoístas e eu não me encaixo
direito. Portanto, é preciso achar um motivo. Tem de haver uma causa primordial.
- Sempre há.
- Bem, então qual seria? Será que de algum modo estou a soldo de Wilfred? Será que estou adulterando a contabilidade da casa? Será que ele sabe de algum segredo
meu? Haveria talvez alguma verdade nas suspeitas de Dot Moxon? Ou quem sabe eu sou o filho ilegítimo de Wilfred.
- Pois eu lhe digo que até um filho legítimo acharia válido causar um certo abalo na vida de Wilfred para descobrir quem fez isto. Você não está sendo escrupuloso
demais? Wilfred deve saber que alguém da vila Toynton, com quase toda a certeza um de seus discípulos, por pouco não liquidou com ele, sem querer ou de propósito.
Aposto como ele receberia muito filosoficamente a notícia desse seu mármore.
- Não há a menor necessidade de filosofias. Ele não ficará sabendo. Não posso explicar a você o que eu mesmo não entendo. Mas acabei me envolvendo com Wilfred. Ele
é tão vulnerável. E tão patético. E é tudo tão irrealizável! Se quer mesmo saber, de certa forma ele me lembra meus pais. Eles tinham uma lojinha em Southsea. Aí,
quando eu estava com uns catorze anos, veio uma grande cadeia de lojas e abriu uma enorme, bem do lado. Foi o fim deles. Eles tentaram de tudo; não quiseram desistir.
Começaram a espichar ainda mais as vendas a prazo, quando já não estavam recebendo quase nada; a fazer ofertas especiais em que a margem de lucro era praticamente
zero; passavam horas arrumando a vitrina depois de fechar; davam bexigas de brinde para a molecada da vizinhança. Nada disso adiantou, percebe? Foi tudo de uma inutilidade
e uma futilidade absolutas. Eles não tinham a mínima chance. Acho que eu teria conseguido suportar o fracasso dos dois. O que eu não consegui suportar foi a esperança.
Dalgliesh pensou ter entendido, pelo menos em parte. Sabia do que Julius estava falando. Aqui estou eu, jovem, rico, com saúde. Sei como ser feliz, se ao menos o
mundo fosse de fato como eu queria que ele fosse. Se ao menos as outras pessoas não insistissem em ser doentes, deformadas, incapazes, derrotadas, iludidas, cheias
de dores e sofrimentos. Ou se ao menos eu pudesse ser um pouco mais egoísta para não me importar com elas. Se ao menos não houvesse a torre negra. Escutou Julius
dizendo:
- Não se preocupe comigo. Lembre-se de que estou de luto. Não dizem por aí que os enlutados sempre têm que trabalhar sua dor? O tratamento mais adequado é uma simpatia
distanciada e uma alimentação simples, boa e abundante. Acho melhor comermos alguma coisa.
- Se não vai chamar a polícia - Dalgliesh disse em voz baixa -, então seria melhor limparmos isto aqui.
- Vou buscar uma pá. Não suporto o barulho do aspirador de pó.
Ele desapareceu em sua cozinha imaculada, elegante e superequipada, e voltou com uma pá e duas escovas. Num estranho companheirismo, ajoelharam-se os dois e puseram
mãos à obra. No entanto as escovas eram macias demais para varrer as lascas de mármore, e eles tiveram de apanhá-las uma a uma, trabalhosamente.
IX
O legista de plantão era um médico substituto, já na fase final de especialização em medicina legal, e se porventura contara com três semanas de calma, trabalhando
numa região aprazível do interior da Inglaterra, sem as pressões de seu emprego londrino, estava tendo uma surpresa e tanto. Quando o telefone tocou pela décima
vez naquela manhã, ele tirou as luvas, tentou não pensar nos quinze cadáveres nus que ainda aguardavam nas prateleiras refrigeradas e com ar filosófico ergueu o
fone. A voz masculina e confiante do outro lado, à exceção dos erres rolados, era igualzinha à de qualquer policial da força metropolitana, e as palavras, quase
as mesmas.
- É o doutor? Temos um corpo numa gleba de terra a cinco quilômetros ao norte de Blandford e não estamos gostando do aspecto dele. Poderia vir até o local?
Os chamados diferiam muito pouco uns dos outros. Eles sempre tinham um corpo de cujo aspecto não estavam gostando, numa vala, numa gleba de terra, numa sarjeta,
entre as ferragens de um automóvel acidentado. Pegou o bloco de notas, fez as perguntas de hábito e escutou as respostas esperadas. Virou para o assistente e disse:
- Certo, Bert, pode fechá-la agora. E avise o magistrado que já pode expedir a ordem de remoção. Estou indo examinar um cadáver. E veja se deixa os dois seguintes
prontos para mim, por favor.
Deu uma última olhada para o corpo emaciado sobre a mesa de autópsia. Fora um cadáver muito fácil, o de Grace Miriam Willison, solteira, cinqüenta e sete anos. Nenhum
sinal externo de violência, nenhuma evidência interna que justificasse o envio das vísceras para análise. Chegara inclusive a resmungar com o assistente, não sem
uma certa amargura, que, se os clínicos gerais da região contavam acertar suas diferenças de diagnóstico fazendo uso dos serviços de um instituto médico-legal assoberbado
de trabalho, o melhor seria fechar as portas. Verdade que o palpite do clínico estava certo. Havia de fato um detalhe que ele deixara passar, um neoplasma avançado
no estômago. Se bem que não iria fazer a menor diferença, para ele ou para ela, saber disso agora. Podia ter sido tanto o tumor quanto a doença de Dejerine-Sottas,
ou o coração fraco - um desses três a matara. Ele não era Deus e fizera uma escolha. Quem sabe ela decidiu que já tinha vivido o bastante e simplesmente virou a
cara para a parede? No estado dela, o grande mistério, o que precisava ser explicado, era a continuação da vida, não a morte. O legista começava a acreditar que
a maioria dos pacientes morre quando decide que chegou a hora de morrer. Mas não se pode botar isso numa certidão.
Rabiscou uma anotação final na ficha de Grace Willison, gritou uma última instrução ao assistente, depois empurrou as portas de vaivém e foi ter com mais outra morte,
outro corpo, para fazer, mais aliviado, aquilo que era pago para fazer.
7
 CERRAÇÃO NO PROMONTÓRIO
I
A igreja de São Miguel de Toynton era uma reconstrução vitoriana sem graça de alguma capela mais antiga, e o adro, um triângulo de grama ceifada, espremido entre
o muro oeste, a rua e uma fileira de casas insípidas. Apontado por Julius, o túmulo de Victor Holroyd surgiu como uma protuberância alongada toscamente remendada
com quadrados de relva infestada de mato. Ao lado, uma simples cruz de madeira marcava o lugar onde as cinzas do padre Baddeley haviam sido enterradas. Grace Willison
iria repousar na sepultura vizinha. Todos os moradores da vila Toynton compareceram ao enterro, exceto Helen Rainer, que ficou cuidando de Georgie Allan, e Maggie
Hewson, cuja ausência previsível ninguém estranhou. No entanto, ao chegar sozinho de carro, Dalgliesh se surpreendera ao ver o Mercedes de Julius estacionado em
frente ao portão principal, onde o caixão aguardava.
Como o cemitério era apertado, sem muito espaço na alameda estreita, coberta de plantas, levou algum tempo para manobrarem as três cadeiras de rodas até a cova.
O vigário da igreja tirara umas férias tardias e, numa reação natural, o padre substituto, que pelo visto não tinha idéia do que era a vila Toynton, espantou-se
ao ver quatro pessoas trajadas como monges, de veste castanha. Indagou se eram franciscanos anglicanos - pergunta que provocou um acesso nervoso de riso em Jennie
Pegram. A resposta de Anstey, inaudível de onde Dalgliesh estava, não logrou sossegá-lo, e o padre, com cara de alarme e censura, conduziu o serviço numa velocidade
cronometrada, como se ansioso para eliminar o mais rápido possível o risco de os impostores contaminarem a igreja. O pequeno grupo, por sugestão de Wilfred, cantou
o hino favorito de Grace, “Ó anjos sagrados e iluminados”. Dalgliesh sabia que esse era um hino difícil, ainda mais para amadores desacompanhados, e, de fato, as
vozes incertas e discordantes se alçaram em falsete no ar gelado de outono.
Não havia flores. A ausência delas, o cheiro bom de terra recém-revolvida, a luz aveludada de outubro, o perfume de lenha queimada permeando tudo, até mesmo a sensação
de olhares invisíveis mas curiosos espiando morbidamente por trás das moitas trouxeram de volta, com uma pontada de dor, a lembrança de um outro enterro.
Na época, ele era um colegial de catorze anos e passava os feriados em casa. Os pais estavam na Itália, e o padre Baddeley ficara encarregado da paróquia. O filho
de um fazendeiro da região, um moço de dezoito anos, tímido, delicado e muito responsável, cursando o primeiro ano da faculdade, fora para casa no fim de semana,
pegara o rifle paterno e matara o pai, a mãe, a irmã de quinze anos e, por fim, a si mesmo. Era uma família unida, e ele, um filho dedicado. Para o jovem Dalgliesh,
que começava a se imaginar apaixonado pela menina, fora um horror que eclipsara todos os horrores subseqüentes. De início, a inexplicável e pavorosa tragédia deixara
o povoado sem ação. Entretanto, em muito pouco tempo a dor cedera lugar à raiva supersticiosa, ao terror e à repulsa. Nem pensar em enterrar o rapaz em solo consagrado,
e a insistência branda, mas inflexível, do padre Baddeley para que toda a família permanecesse unida num único túmulo transformara, por algum tempo, o bom homem
num pária. O enterro, boicotado pelos moradores da região, fora realizado num dia muito semelhante. A família não tinha parentes próximos. Apenas o padre Baddeley,
o coveiro e Adam Dalgliesh compareceram. O garoto de catorze anos, hirto de pesar e incompreensão, concentrado nas respostas do serviço fúnebre, obrigara-se a divorciar
as palavras de seu sentido doloroso, insuportável, a ver nelas apenas símbolos negros impressos sem o menor significado nas páginas de um livro e a pronunciá-las
com firmeza, até mesmo indiferença, diante da cova aberta. E, quando o padre desconhecido ergueu a mão para dar a bênção final ao corpo de Grace Willison, em vez
dele Dalgliesh enxergou a figura frágil e ereta do velho amigo, com os cabelos desmanchados pelo vento. Depois que os primeiros grumos de terra caíram sobre o caixão,
sentiu-se um traidor. Lembrar a única ocasião em que a confiança do padre Baddeley não fora em vão só reforçou a impressão incômoda de que, dessa vez, ele falhara
por completo.
Foi talvez por isso que respondeu atravessado, quando Wilfred se aproximou e disse:
- Vamos voltar para almoçar, agora. E devemos começar o conselho em família às duas e meia. A segunda sessão será lá pelas quatro. Tem certeza de que não quer nos
ajudar?
Dalgliesh abriu a porta do carro.
- Pode me dar uma única razão que justifique minha presença? - Wilfred afastou-se; pela primeira vez, parecia quase desconcertado. Dalgliesh escutou a risada baixinha
de Julius.
- Tão tolo, coitado! Será que o Wilfred não desconfia que estamos cansados de saber que ele jamais faria esse tal conselho em família se não tivesse certeza de que
a decisão vai pender para o lado dele? Quais são seus planos para hoje?
Dalgliesh disse que ainda estavam meio incertos. Na verdade, resolvera espantar a insatisfação que sentia consigo mesmo fazendo uma caminhada ao longo do promontório.
Pretendia ir até Weymouth. Mas sem companhia.
Parou num pub das vizinhanças, almoçou um pedaço de queijo acompanhado de uma cerveja, em seguida voltou para o bangalô Esperança, trocou de roupa e partiu na direção
leste, acompanhando a trilha do penhasco. Tudo se afigurava bem diferente daquela primeira caminhada matinal feita um dia após sua chegada, quando todos os sentidos
despertos de novo tinham estado atentos a sons, cores e cheiros. Agora seguia em frente com passos rápidos, concentrado em seus pensamentos, de olho no caminho,
alheio até à respiração trabalhosa e sibilante do mar. Logo mais teria de tomar uma decisão a respeito do trabalho; mas isso ainda podia esperar umas duas semanas.
O que o preocupava eram as decisões imediatas, ainda que fossem menos onerosas. Quanto tempo mais deveria permanecer em Toynton? Não lhe restavam muitas desculpas
para ficar. Os livros estavam separados, e as caixas, quase prontas para serem fechadas. E ele não progredira um milímetro na solução do problema que o prendia ali.
Dificilmente conseguiria esclarecer por que Michael Baddeley o chamara. Era como se, morando na casinha que fora dele, dormindo na cama onde ele dormira, Dalgliesh
tivesse absorvido algum traço da personalidade do padre. Chegou quase a acreditar que estivesse sentindo o cheiro do mal. E essa era uma faculdade até então alheia,
da qual desconfiava muito e que o aborrecia um pouco. Mas que ficava cada vez mais forte. Agora tinha certeza de que o padre Baddeley fora assassinado. Só que, toda
vez que, na qualidade de policial, examinava mais de perto as evidências, o caso se dissolvia como fumaça em suas mãos.
Talvez por estar mergulhado em idéias improdutivas, a cerração o pegou de surpresa. Ela subiu do mar para o morro, uma súbita invasão física de umidade branca obliterante.
Momentos antes, Dalgliesh caminhava sob a luminosidade amena do sol da tarde, com a brisa a lhe fazer cócegas nos pêlos do pescoço e dos braços. Instantes depois,
o sol, as cores e os cheiros foram apagados e ele estacou, envolto por um nevoeiro que o comprimia como se fosse uma força inimiga. Aquele véu transparente e retorcido
se entranhou em seu cabelo, pegou-lhe na garganta e rodopiou em desenhos grotescos por sobre o morro, enroscando-se em amoreiras e samambaias, aumentando e alterando
formas, escondendo a trilha. Com a cerração, desceu uma quietude repentina. Só se deu conta de que o promontório fervilhava de aves quando seus gritos emudeceram.
Era um silêncio estranho. Em compensação, o barulho do mar cresceu, tornou-se difuso, desorganizado, ameaçador. Parecia avançar contra ele de todos os lados, como
um animal acorrentado, ora gemendo casmurro no cativeiro, ora se libertando para arremeter, rugindo de raiva impotente, contra os seixos da praia.
Virou-se para voltar, sem saber ao certo quanto já havia caminhado. O retorno ia ser difícil. Não tinha o menor indicador de direção, à exceção do fiapo de terra
debaixo dos pés. Mas achava que o perigo não seria grande se andasse devagar. Mal dava para enxergar a trilha que, por sorte, era franjada de amoreiras bravas, uma
barreira espinhenta, mas que vinha bem a calhar, sobretudo quando se desorientava temporariamente e não sabia onde estava. A certa altura, a cerração melhorou um
pouco e ele seguiu com mais confiança. Mas foi um erro. No último momento, percebeu que estava na beirada de uma fenda larga que se atravessava no meio da trilha
e que aquilo que ele julgara ser uma nova massa de neblina subindo do mar era espuma morrendo nas pedras, quinze metros abaixo.
A torre negra surgiu tão de chofre que ele só se deu conta quando as palmas das mãos - atiradas para a frente por puro instinto - rasparam nas frias escamas inquebrantáveis
de sua parede. Logo depois o nevoeiro subiu um pouco, dispersando-se em volta, e foi então possível enxergar o topo da torre. A base continuava envolta em torvelinhos
gelados de branco, mas a cúpula oitavada, com três das janelinhas visíveis, dava a impressão de flutuar por trás dos últimos fiapos sinuosos de névoa paralisada
no espaço, criando uma visão dramática, de uma solidez ameaçadora e, ao mesmo tempo, tão incorpórea quanto um sonho. A cúpula oscilava junto com a neblina, imagem
fugidia, ora descendo tanto que ele quase podia acreditá-la ao alcance, ora se erguendo, divina e inatingível, muito acima do mar trovejante. Impossível que estivesse
em contato com as pedras geladas nas quais suas mãos descansavam, ou com a terra firme sob seus pés. Para recuperar o equilíbrio, encostou a cabeça na torre e sentiu
a realidade, áspera e afiada, de encontro à testa. Ali, ao menos, havia um marco. Dali, achava que conseguiria se lembrar das voltas e quebradas principais da trilha.
E foi então que escutou o ruído: os arranhões arrepiantes, inconfundíveis, de ossos escalavrando a pedra. Vinha de dentro da torre. A razão se afirmou sobre a superstição
tão depressa que a mente mal teve tempo de reconhecer o terror. Apenas o martelar dolorido do coração de encontro ao peito e o enregelamento repentino do sangue
lhe diziam que, por um segundo, cruzara a fronteira do insondável. Durante um segundo, talvez menos, pesadelos infantis havia muito suprimidos voltaram para confrontá-lo.
Em seguida o terror passou. Apurou os ouvidos, depois explorou o terreno. O ruído foi logo identificado. Do lado que dava para o mar, escondida num canto entre o
portal e a parede redonda, viu uma rija amoreira brava. O vento arrancara um dos galhos do arbusto, e dois ramos soltos, afiados, raspavam na pedra. Por algum truque
de acústica, o som, distorcido, parecia vir de dentro da torre. De tais coincidências, pensou Dalgliesh, com um sorriso sombrio, nascem os fantasmas e as lendas.
Menos de vinte minutos depois, estava parado acima do vale, de frente para a vila Toynton. O nevoeiro começava a se dissipar e já se enxergava o casarão - uma sombra
escura maciça, destacada pelas manchas de luz das janelas. Seu relógio marcava três e oito. O que significava que estariam todos trancados em meditação solitária,
à espera do chamado das quatro da tarde, quando então dariam seu voto final. Sentiu uma certa curiosidade em saber como, de fato, estariam passando seu tempo. Porque,
quanto ao resultado, não havia a menor dúvida. Assim como Julius, considerava quase impossível Wilfred convocar um conselho sem ter certeza do que iria obter. E
isso, presumivelmente, significava entregar a casa de repouso para a Fundação Ridgewell. Dalgliesh avaliou como se daria a votação. Wilfred já devia ter obtido a
promessa de que todos os empregos seriam mantidos. De posse dessa garantia, o mais provável era que Dot Moxon, Eric Hewson e Dennis Lerner votassem a favor da transferência.
O pobre Georgie Allan não teria muita escolha. A opinião dos outros pacientes já era mais duvidosa, mas Dalgliesh achava que Carwardine não se incomodaria de ficar,
sobretudo diante do maior conforto e profissionalismo que a Fundação traria. Millicent, claro, optaria pela venda, e teria uma aliada em Maggie Hewson, caso Maggie
tivesse tido permissão de participar.
Olhando de novo para o vale, viu os dois quadrados de luz das janelas do bangalô Caridade, onde, excluída, Maggie aguardava sozinha o retorno de Eric. Da beira do
precipício vinha um esbranquiçado mais forte e mais brilhante. Quando estava em casa, Julius era extravagante com a eletricidade.
Essas luzes, embora de vez em quando encobertas à medida que o nevoeiro se deslocava e se reestruturava, serviram-lhe de farol. Dalgliesh pegou-se quase correndo
ladeira abaixo. E então, curiosamente, a luz nas janelas da casa dos Hewsons acendeu e apagou três vezes, deliberada como um sinal.
A sensação de ter recebido um pedido de socorro foi tão forte que precisou chamar-se à realidade. Maggie não tinha como saber que havia alguém ali no promontório,
ele ou qualquer outra pessoa. Só mesmo por acaso é que o sinal poderia ser visto da vila Toynton, já que deviam estar todos ocupados em meditar e decidir. Além disso,
os quartos dos pacientes ficavam quase todos nos fundos da casa. Com certeza fora apenas um piscar fortuito das luzes; talvez Maggie tivesse hesitado entre ver televisão
no escuro ou com a luz acesa.
Mesmo assim, os dois borrões amarelados, agora brilhando com um pouco mais de força, uma vez que o nevoeiro diminuíra, o atraíram para aquela casa. Afinal, o desvio
seria de uns trezentos metros, se tanto. Maggie estava lá sozinha. Bem que podia fazer uma visita, mesmo correndo o risco de se ver envolvido numa cantilena alcoolizada
de mágoas e ressentimentos.
A porta da frente não estava trancada. Bateu e, como ninguém respondeu, abriu-a e entrou. A sala, suja, desarrumada, com seu jeito encardido de ocupação transitória,
achava-se vazia. As três barras do aquecedor elétrico portátil faiscavam, vermelhas, e o aposento parecia muito quente. A televisão não estava ligada. A única lâmpada,
nua, pendurada no meio do teto, iluminava com espalhafato a mesa quadrada, a garrafa de uísque quase vazia, o copo emborcado e a folha de papel coberta com garatujas
feitas com esferográfica preta, de início até que firmes, depois tão incertas quanto o rastro deixado por um mosquito na superfície branca. O telefone fora tirado
de seu lugar habitual, em cima da estante, e o bocal, com o fio retesado, pendia frouxo da quina da mesa.
Dalgliesh não se deteve para ler a mensagem. A porta para o corredor traseiro estava entreaberta e ele a empurrou. Sabia, com o pressentimento aflito e certo de
desastre iminente, o que iria encontrar. O corredor era bem estreito, e a porta bateu nas pernas dela. O corpo balançou, e o rosto avermelhado voltou-se devagar,
olhando lá do alto para ele com uma surpresa súplice, entre melancólica e pesarosa, de se ver em tamanha desvantagem. A luz no corredor, vinda de uma única lâmpada,
era berrante, e Maggie, com o corpo alongado, pendia qual uma boneca bizarra, de cores espaventadas, exposta numa vitrine. A calça escarlate muito justa no corpo,
a blusa de cetim branco, as unhas dos pés e das mãos pintadas da mesma cor do talho da boca, tudo parecia horrível e ao mesmo tempo irreal. Um único golpe de faca
e sem sombra de dúvida o pó de serra jorraria das veias empalhadas para se empilhar aos pés dele.
A corda de alpinista novinha, de fios castanhos e vermelhos, alegre como uma corda de sino, fora feita para sustentar o peso de um homem. E não falhara. Maggie a
usara de modo simples. A corda fora dobrada, e as duas pontas haviam sido passadas pelo laço, formando um nó corredio, antes de ser amarrada, sem muito jeito mas
com eficácia, ao corrimão. Os metros sobressalentes jaziam emaranhados no patamar de cima da escada.
Uma banqueta alta de cozinha, de dois degraus, caída de lado, atravancava o corredor, como se tivesse sido chutada. Dalgliesh levou-a para debaixo do corpo e, depois
de acomodar os joelhos de Maggie sobre o topo da almofada de plástico, subiu os degraus e tirou-lhe o nó do pescoço. Todo o peso inerte tombou sobre ele. Deixou
que escorregasse devagar até o chão, segura em seus braços; em seguida a arrastou até a sala, onde a deitou sobre o tapete, diante da lareira. Colou sua boca na
dela e começou a fazer respiração artificial.
A boca cheirava a uísque. Sentiu o gosto do batom, uma oleosidade asquerosa na língua. A camisa molhada de suor grudou na blusa de cetim, unindo por alguns momentos
o peito que martelava ao corpo ainda quente e macio, mas calado. Dalgliesh bombeava ar para dentro dela lutando contra uma repugnância atávica. Aquilo era parecido
demais com estuprar um morto. Sentia a ausência de batidas cardíacas como se fosse uma dor no próprio peito
Só se deu conta de que a porta da frente abrira por causa do súbito resfriamento do ar em volta. Um par de sapatos parou ao lado do corpo. Escutou a voz de Julius:
- Santo Deus! Ela está morta? O que aconteceu?
O terror era óbvio, e Dalgliesh se surpreendeu. Ergueu a vista um segundo para o rosto agoniado do outro. Deparou com uma espécie de máscara incorpórea, de feições
apagadas e distorcidas pelo medo. Julius Court lutava para recuperar o controle. O corpo todo tremia. Dalgliesh, ocupado com o ritmo desesperado do boca-a-boca,
soltava suas ordens numa série de frases ríspidas, desconjuntadas.
- Vá chamar Hewson. Depressa.
A voz de Julius saiu como um mero resmungo ardido, monótono.
- Não consigo! Não me peça isso. Não presto para esse tipo de coisa. Ele nem vai com a minha cara. Nunca fomos íntimos. Vá você. Eu prefiro ficar aqui com ela a
enfrentar o Eric.
- Então liga para ele. Depois para a polícia. Pegue o fone com o lenço. Impressões.
- Mas eles não vão atender! Eles nunca atendem, quando estão meditando.
- Então pelo amor de Deus, vá buscá-lo!
- Mas o rosto dela! Está coberto de sangue.
- Batom. Borrou. Liga para o Hewson.
Julius continuou imóvel. Depois disse:
- Vou tentar. Eles já devem ter acabado de meditar. São quase quatro. Talvez atendam.
Virou-se para o telefone. Com o canto do olho, Dalgliesh viu o fone erguido tremendo nas mãos de Julius e um clarão vindo do lenço branco que ele embrulhara em volta
do aparelho, tão mal quanto se estivesse tentando proteger uma ferida. Após dois longos minutos, alguém atendeu. Não conseguiu adivinhar quem. Nem conseguiu se lembrar
depois do que Julius dissera.
- Eu avisei. Estão vindo.
- Agora a polícia.
- O que eu digo a eles?
- Os fatos. Eles sabem o que fazer.
- Mas não é melhor esperar? E se ela voltar a si?
Dalgliesh endireitou o corpo. Sabia que pelos últimos cinco minutos trabalhara num corpo morto.
- Acho que ela não vai voltar.
Ato contínuo, curvou-se outra vez para retomar a tarefa, a boca grudada na dela, tateando com a palma da mão direita em busca de um primeiro sinal de vida no coração
silencioso. A lâmpada dependurada no teto balançava docemente com o movimento de ar provocado pela porta aberta, fazendo passar uma sombra por sobre o rosto da morta,
qual uma cortina descerrada. Dalgliesh estava ciente do contraste formado entre aquela carne inerte, aqueles lábios frios e inóspitos, e o olhar de concentração
ardorosa de uma mulher pensando em fazer amor. O estigma arroxeado da corda parecia um bracelete duplo junto ao pescoço grosso. Restos de uma neblina fria entravam
pela porta para se enroscar em volta das pernas empoeiradas da mesa e das cadeiras. A névoa ardeu-lhe no nariz como um anestésico; a boca tinha o gosto amargo do
hálito maculado de uísque.
De repente, houve um alarido de passos: a sala se encheu de gente e de vozes. Eric Hewson empurrou-o e ajoelhou ao lado da mulher; atrás dele, Helen Rainer abriu
uma valise de médico e lhe entregou um estetoscópio. Eric abriu a blusa da mulher com um puxão. Com um gesto delicado, mas frio, Helen ergueu o seio esquerdo de
Maggie, para que ele pudesse escutar o coração. Eric arrancou o estetoscópio dos ouvidos e jogou-o de lado, estendendo a mão. Dessa vez, ainda sem dizer uma palavra,
ela lhe entregou uma seringa.
- O que você vai fazer? - Era a voz histérica de Julius Court.
Hewson ergueu os olhos para Dalgliesh. Seu rosto adquirira uma palidez mortal. As pupilas estavam enormes. Ele disse:
- É digitalina.
A voz, muito baixa, era quase um apelo, pedindo um pouco de confiança, um pouco de esperança. Mas também soou como um pedido de licença, uma ligeira renúncia à responsabilidade.
Dalgliesh fez que sim. Se era digitalina, talvez funcionasse. E claro que o médico não seria tolo a ponto de injetar alguma substância letal na mulher. Impedi-lo,
àquela altura, poderia significar a morte para Maggie. Será que teria sido melhor continuar com a respiração artificial? Provavelmente não; e, de todo modo, essa
era uma decisão médica. E o médico estava ali. No entanto, lá no fundo, Dalgliesh sabia que era uma dúvida acadêmica. Maggie passara do estágio de poder ser prejudicada,
assim como da fase de poder ser ajudada.
Helen Rainer estava com uma lanterna na mão e dirigia o facho de luz para o peito de Maggie. Os poros da pele entre os seios frouxos pareciam imensos, verdadeiras
crateras em miniatura, entupidas de talco e suor. A mão de Hewson começou a tremer. De repente, ela disse:
- Deixa, deixa que eu dou.
Ele entregou a seringa a ela. Dalgliesh ouviu o “Ah, não! Não!” incrédulo de Julius Court e depois viu a agulha entrar com a precisão e a certeza de um coup de grâce.
As mãos esguias não tremeram quando ela retirou a agulha nem quando colocou uma compressa de algodão sobre a marca da picada, e muito menos quando, sem dizer uma
palavra, entregou a seringa a Dalgliesh.
De repente, Julius Court saiu tropeçando da sala. Voltou quase que em seguida, segurando um copo. Antes que qualquer um pudesse impedi-lo, já tinha agarrado a garrafa
de uísque pelo topo do gargalo e se servido com a última dose. Depois puxou uma das cadeiras da mesa e sentou curvado para a frente, os braços envolvendo a bebida.
Wilfred falou:
- Julius... não devemos tocar em nada até a polícia chegar!
Julius pegou o lenço do bolso e enxugou o rosto.
- Eu precisava. E que diabo! Não mexi nas impressões dela. E ela estava com uma corda em volta do pescoço, caso você não tenha reparado. Por acaso acha que ela morreu
de alcoolismo?
Os demais continuavam parados em volta do corpo. Hewson ainda de joelhos ao lado da mulher; Helen com a cabeça de Maggie no colo. Wilfred e Dennis cada um de um
lado, as pregas das vestes de monge imóveis no ar parado. Aos olhos do comandante, pareciam um bando variegado de atores posando para um díptico contemporâneo, de
olhos fixos em antecipação circunspecta no corpo brilhante da santa martirizada.
Cinco minutos depois, Hewson se ergueu. Sem inflexão nenhuma na voz, falou:
- Sem reação. Vamos colocá-la no sofá. Não podemos deixá-la aí no chão.
Julius Court levantou da cadeira e, junto com Dalgliesh, os dois pegaram o corpo largado e o colocaram sobre o sofá. Mas o móvel era curto demais, e os pés de unhas
escarlates, com um aspecto ao mesmo tempo grotesco e de uma vulnerabilidade patética, sobraram. Dalgliesh escutou o suspiro suave dos presentes, como se eles tivessem
saciado um desejo obscuro de deixar o corpo mais confortável. Julius olhou em volta, pelo visto perdido, à procura de algo com que cobrir o cadáver. Foi Dennis Lerner
quem, para espanto geral, surgiu com um enorme lenço branco, que desdobrou e colocou com precisão ritualista sobre o rosto da morta. Todos olhavam para ele com a
maior atenção, como se à espera de que o linho se movesse com um primeiro hálito hesitante.
Wilfred disse:
- Uma tradição muito estranha, essa de cobrir o rosto dos mortos. Será porque julgamos que eles ficam em desvantagem, indefesos até, quando expostos a nossos olhares
críticos? Ou será que é porque temos medo deles? Acho mais provável esta última hipótese.
Sem lhe fazer caso, Eric Hewson virou para Dalgliesh.
- Onde está...?
- Lá no corredor.
Hewson foi até a porta e parou, silencioso, examinando a corda dependurada e a banqueta amarela, de pés cromados, brilhantes. Depois se dirigiu para o círculo de
fisionomias atentas, compassivas.
- Onde foi que ela conseguiu a corda?
- Talvez seja minha. - A voz de Wilfred saiu como a de alguém interessado, confiante, quando se virou para Dalgliesh.
- A minha corda é mais nova do que a de Julius. Comprei logo depois que a velha se esgarçou. Eu guardava num gancho, no escritório. Talvez tenha reparado nela. Tenho
certeza de que continuava pendurada lá, quando saímos para o enterro de Grace, hoje de manhã. Lembra, Dot?
Dorothy Moxon adiantou-se, saindo do refúgio sombreado da parede mais distante. Falou pela primeira vez. Todos olharam para trás, como se surpresos de vê-la ali
junto com o grupo. A voz saiu um tanto artificial, estridente, truculenta, incerta.
- É, reparei. Quer dizer, tenho certeza de que eu teria notado se ela não estivesse lá. Sim, agora me lembro. A corda estava lá.
- E quando voltaram do enterro? - perguntou Dalgliesh.
- Entrei no escritório para deixar minha capa. Acho que não estava mais lá. Tenho quase certeza de que não estava.
- E não ficou preocupado? - perguntou Julius.
- Não. Por que eu haveria de ficar? Nem sei se reparei, conscientemente, que a corda não estava mais lá. É só agora, refletindo, que tenho quase absoluta certeza
de que não a vi mais. Mas sua ausência não teria me causado a menor preocupação, mesmo que eu tivesse registrado a falta. Eu teria presumido que Albert precisou
dela para alguma coisa. Mas claro que não foi ele quem pegou a corda. Ele foi conosco ao enterro e entrou no ônibus antes de mim.
De repente, Lerner perguntou:
- A polícia já foi avisada?
- Claro - disse Julius. - Eu liguei.
- O que estava fazendo aqui? - A pergunta didática de Dorothy Moxon soou como uma acusação, mas Julius já parecia ter se controlado e respondeu até que com bastante
calma:
- Ela acendeu e apagou a luz três vezes, antes de morrer. Calhou de eu ver o sinal, mesmo com a névoa, da janela do meu banheiro. Não vim na mesma hora. Não pensei
que fosse importante ou que ela estivesse de fato com algum problema. Depois me senti meio inquieto e resolvi dar um pulo até aqui. Dalgliesh já tinha chegado.
- Eu também vi o sinal, do promontório - disse Dalgliesh. - E, como Julius, fiquei meio inquieto, nada de muito preocupante, mas achei melhor vir até aqui.
Lerner havia se aproximado da mesa. E falou:
- Ela deixou um bilhete.
Dalgliesh interrompeu-o com rispidez:
- Não toque em nada.
Lerner retirou a mão como se tivesse levado uma picada. Todos se agruparam em volta da mesa. O bilhete fora escrito com esferográfica preta na primeira folha de
um bloco estreito e comprido de anotações. Em silêncio, eles leram:
Caro Eric, eu lhe disse um monte de vezes que não agüentaria ficar neste buraco nojento muito mais tempo. Você achou que era só conversa fiada. Anda tão ocupado,
envolvido com seus preciosos pacientes, que eu poderia morrer de tédio aqui que você nem iria notar. Sinto muito se estraguei seus planos. Não vou me iludir achando
que sentirá minha falta.
Pode ficar com ela agora e, por Deus do céu, vocês se merecem. Tivemos nossos momentos. Lembre-se deles. Tente me esquecer. Melhor morrer. Desculpe, Wilfred. A torre
negra.
As primeiras oito linhas tinham sido escritas com uma letra firme e legível; as últimas cinco eram de garatujas quase incompreensíveis.
- É a letra dela? - perguntou Anstey.
Eric Hewson respondeu tão baixinho que mal se escutou.
- É. É a letra dela.
Julius se voltou para Eric e disse, com uma súbita energia:
- Escute, é evidente como foi que tudo aconteceu. Maggie nunca teve a intenção de se suicidar. Ela não apelaria para uma coisa dessas. Não fazia o gênero dela. Pelo
amor de Deus, por que ela haveria de se matar? Ainda era moça, com saúde; se não gostava daqui, bastava ir embora. Era enfermeira formada. Podia arrumar emprego
a hora que quisesse. Isso tudo foi feito só para pregar um susto em você. Ela tentou ligar para a vila Toynton e fazer você vir até aqui... a tempo de salvá-la,
claro. Quando percebeu que ninguém atendia, deu sinal com as luzes. Mas, até essa altura, já tinha bebido demais para saber direito o que fazia e a coisa toda se
transformou numa horrível realidade. Veja esse bilhete. Está lhe parecendo um bilhete de suicida?
- A mim, parece - disse Anstey. - E desconfio que vai parecer aos olhos da polícia.
- Pois a mim, não. Isso pode muito bem ser o bilhete de uma mulher planejando ir embora.
Com toda a calma, Helen Rainer interveio:
- Só que ela não estava indo embora. Ela não sairia de Toynton vestindo apenas uma camisa e uma calça. Onde está a mala? Mulher nenhuma planeja sair de casa sem
levar sua maquiagem e uma camisola.
Havia uma bolsa a tiracolo grandalhona, largada ao pé de uma cadeira. Julius apanhou-a e olhou dentro.
- Aqui não tem nada. Nem camisola nem estojo de toalete.
E continuou a inspeção. Depois, erguendo a vista, olhou de Eric para Dalgliesh. Uma sucessão extraordinária de emoções lhe passou pelo rosto: surpresa, constrangimento,
interesse. Fechou a sacola e colocou-a sobre a mesa.
- Wilfred tem razão. Nada deve ser tocado até a polícia chegar.
Fizeram silêncio até que Anstey o rompeu:
- A polícia vai querer saber onde estávamos todos esta tarde, sem sombra de dúvida. Mesmo num caso muito óbvio de suicídio, são perguntas que precisam ser feitas.
Ela deve ter morrido quando estávamos quase terminando nossa hora de meditação. O que significa, é claro, que nenhum de nós tem um álibi. Considerando as circunstâncias,
foi uma sorte, quem sabe, Maggie ter deixado um bilhete suicida.
Mais uma vez com toda a calma, Helen Rainer disse:
- Eric e eu estávamos juntos em meu quarto durante todo esse tempo.
Wilfred olhou para ela, desconcertado. Pela primeira vez, desde o momento em que entrara naquela casa, parecia não saber como agir. E disse:
- Mas estávamos fazendo um conselho em família! As regras estabelecem que devemos meditar em silêncio e sozinhos.
- Nós não meditamos e não estávamos exatamente em silêncio. Mas estávamos sozinhos... sozinhos juntos. - E olhou por cima dele, em atitude de desafio, quase de triunfo,
direto para os olhos de Eric Hewson. Ele a fitava aturdido.
Dennis Lerner, como se para se dissociar de toda e qualquer polêmica, aproximou-se de Dot Moxon, perto da porta. E falou, em voz muito baixa:
- Acho que estou ouvindo carros. Deve ser a polícia.
A cerração abafara o ruído da chegada deles. No mesmo momento em que Lerner falava, Dalgliesh escutou batidas duplas de portas. A primeira reação de Eric foi se
ajoelhar ao lado do sofá, protegendo o corpo de Maggie de olhares intrusos. Depois se ergueu desajeitado, como se receoso de ser descoberto numa posição comprometedora.
Dot, sem olhar em torno, afastou o corpo volumoso da porta.
De repente, a salinha apertada estava tão lotada quanto um ponto de ônibus coberto numa noite chuvosa, recendendo à neblina e capas de chuva molhadas. Mas não houve
o menor atropelo. Os recém-chegados entraram firmes e calmos, trazendo consigo seus apetrechos, movendo-se com muito propósito, como se fossem integrantes de uma
orquestra indo para os lugares designados. O grupo da vila Toynton recuou e ficou observando, cauteloso. Ninguém disse nada, até que a voz lenta do inspetor Daniel
quebrou o silêncio.
- Muito bem, e quem foi que achou a pobre senhora?
- Fui eu - disse Dalgliesh. - Court chegou uns doze minutos depois.
- Então vamos começar com os senhores. E com o doutor Hewson também. Por enquanto, basta.
Wilfred interveio:
- Eu preferia ficar, se não se importa.
- Bem, senhor... Anstey, não é isso? Entendo, mas nem sempre é possível fazer aquilo que queremos. Agora, se puderem fazer a gentileza de voltar para a vila, o detetive
Burroughs vai acompanhá-los e estará à disposição, se houver algo que queiram comunicar. Eu irei em seguida.
Sem dizer mais nada, Wilfred se afastou e os outros o seguiram.
O inspetor Daniel olhou para Dalgliesh:
- Bem, comandante, pelo visto a morte não lhe dá trégua por aqui.
II
Depois de entregar a seringa e relatar a descoberta do corpo, Dalgliesh não ficou para acompanhar a investigação. Não queria dar a impressão de estar fiscalizando
a maneira como o inspetor Daniel lidava com o caso; detestava o papel de espectador e aborrecia-o a idéia de que pudesse estar atrapalhando. Nenhum dos policiais
ali presentes estava. Ao contrário, eles circulavam com confiança no espaço exíguo, cada qual com sua especialidade e todos bem orquestrados no trabalho de equipe.
O fotógrafo manobrou a iluminação portátil até o corredor estreito; o especialista em impressões digitais, à paisana, com o estojo aberto exibindo as ferramentas
bem cuidadas de seu ofício, acomodou-se junto da mesa, de pincel em punho, pronto para começar seu metódico trabalho em volta da garrafa de uísque; o médico da polícia
se ajoelhou, com ar absorto e crítico, ao lado do corpo e beliscou a pele sardenta de Maggie, como se na esperança de estimulá-la a voltar à vida. O inspetor Daniel
curvou-se para ele, e os dois trocaram algumas palavras. Aos olhos de Dalgliesh, pareciam de repente dois granjeiros avaliando habilmente as qualidades de uma galinha
morta. Era curioso que Daniel tivesse levado consigo o médico da polícia e não o legista. Mas por que não? Devido às áreas imensas que a maioria era obrigada a cobrir,
era muito raro que os legistas do Ministério do Interior conseguissem chegar com presteza ao local da ocorrência. E o exame inicial, no caso, não apresentava maiores
problemas. Não fazia sentido gastar mais do que o necessário para realizar bem uma tarefa. Dalgliesh chegou até a supor que Daniel não teria ido ele próprio ao local,
não fosse a presença na vila Toynton do comandante da Polícia Metropolitana.
Mas foi formal e pediu a permissão de Daniel para voltar ao bangalô Esperança. Eric Hewson já havia saído. Daniel lhe fizera apenas umas poucas perguntas, breves
e delicadas, antes de sugerir que fosse ter com os outros moradores da vila Toynton. Dalgliesh sentiu o alívio geral que veio com a partida de Eric. Mesmo aqueles
especialistas imperturbáveis se movimentavam com mais liberdade quando poupados das restrições constrangedoras da dor pública. Agora o inspetor se esforçava ao máximo
para produzir mais do que um aceno sumário de dispensa:
- Muito obrigado, comandante. Antes de eu ir embora, queria dar uma palavrinha com o senhor, se não se importa. Eu passo lá. - E curvou-se de novo na contemplação
do corpo.
O que quer que fosse que Dalgliesh esperara encontrar ali, com certeza não era aquilo: a velha e conhecida rotina solene da morte violenta. Por alguns instantes,
viu tudo com os olhos de Julius Court, um rito necromântico esotérico, executado por seus insípidos praticantes em silêncio absoluto ou, então, com grunhidos e palavras
resmungadas, tão breves quanto fórmulas cabalísticas, um ministério secreto em honra aos mortos. Sem dúvida Julius parecia fascinado com os procedimentos. Não fez
a menor menção de sair; limitou-se a parar ao lado da porta e, sem tirar os olhos enfeitiçados do inspetor Daniel, segurou a porta aberta para que Dalgliesh passasse.
O inspetor não sugeriu que Julius saísse também, mas era improvável que fosse por ter se esquecido de sua presença.
Passaram-se quase três horas até que o carro do inspetor Daniel parasse em frente ao bangalô Esperança. Ele estava sozinho; o sargento Varney e os demais, como ele
explicou, já tinham ido embora. Entrou carregando consigo restos de névoa, como um ectoplasma, e seu rosto comprido, corado, reluzia como se tivesse acabado de fazer
uma caminhada ao sol. Por insistência de Dalgliesh, tirou a capa de chuva e instalou-se na poltrona, diante do fogo aceso. Os olhos negros e inquietos percorreram
a casinha, avaliando o tapete roto, a lareira modesta, o papel de parede em mau estado.
- Quer dizer então que foi aqui que morreu o velho padre.
- Viveu e morreu. Aceita um uísque? E tem café também, se preferir.
- Uísque, obrigado, comandante. Wilfred Anstey não se preocupou muito com o conforto dele, não é mesmo? Mas é provável que todo o dinheiro vá para os pacientes,
e com razão, sem dúvida.
Parte dele ia para o próprio Anstey, pensou Dalgliesh, repassando na memória a cela sibarítica que era o quarto do diretor da vila Toynton.
- É mais agradável do que parece no momento. Minhas caixas de livros não contribuem lá grande coisa para o aconchego. Mas duvido que o padre Baddeley reparasse no
estado enxovalhado da casa. Ou, se notava, isso não o incomodava.
- Bom, pelo menos é bem quentinho. Essa névoa marinha parece que entranha nos ossos. Mais longe do mar, já na altura do povoado de Toynton, o tempo está claro. Por
isso conseguimos chegar tão rápido.
O inspetor, agradecido, deu um gole no uísque. Após um minuto de silêncio, prosseguiu:
- Esta história de hoje, comandante. Parece que não temos muito o que investigar. Encontramos as impressões dela e de Court na garrafa de uísque, e as dela e de
Hewson no telefone. Não há a menor possibilidade de conseguirmos algo que preste do interruptor, claro, e as que ficaram na esferográfica não servem para nada. Encontramos
algumas amostras da letra dela. O pessoal da perícia grafológica pode dar uma olhada, mas para mim ficou bem claro, e também para o doutor Hewson, por sinal, que
foi ela quem escreveu o bilhete suicida. Os traços da letra são nitidamente femininos.
- Exceto pelas últimas três linhas.
- Aquela referência à torre negra? Ela já estava para lá de Bagdá quando escreveu isso. Aliás, Wilfred Anstey acha que foi uma confissão de culpa. Diz que foi ela
que começou o incêndio em que ele quase morreu e que não foi a primeira tentativa. O senhor sem dúvida já ouviu falar na corda de escalar que foi esgarçada? Ele
me fez um relato completo do incidente ocorrido na torre negra e disse inclusive que foi o senhor quem achou uma veste marrom de monge por lá.
- Não me diga. Na época, parecia que a única coisa que ele queria era manter a polícia longe desse assunto. Muito conveniente que tenha resolvido descarregar tudo
na porta de Maggie Hewson.
- Sempre fico surpreso, se bem que a essa altura eu já não deveria mais me espantar, de ver como a morte violenta de alguém solta a língua das pessoas. Ele disse
que suspeitou dela desde o início, que ela nunca fez segredo do quanto odiava a vila Toynton e sobretudo de que não gostava dele.
- E não fez mesmo. Muito me admiraria ver uma mulher capaz de expressar seus sentimentos com tamanha desenvoltura recorrer a outros métodos de catarse. O incêndio,
a corda de escalar esgarçada, isso tudo me parece parte de uma estratégia deliberada, ou então manifestações de ódio camuflado. Maggie Hewson no entanto nunca escondeu
a ojeriza que tinha por Anstey.
- Ele vê o incêndio como parte de uma estratégia deliberada. Segundo ele, ela estava tentando assustá-lo para forçar a venda da propriedade. Ela estava louca para
tirar o marido da vila Toynton.
- Então ela calculou mal. Meu palpite é que Wilfred Anstey não vai vender a propriedade. Até amanhã, ele já terá resolvido passar a vila Toynton para o controle
da Fundação Ridgewell.
- Eles estão decidindo agora, comandante. Tudo indica que a morte da senhora Hewson interrompeu a decisão final. Ele estava louco para que eu acabasse logo de falar
com os pacientes, para poderem continuar com a reunião. Não que tenha levado muito tempo para obter os fatos básicos, de toda forma. Ninguém foi visto saindo da
vila Toynton depois que o grupo voltou do enterro. Exceto pelo doutor Hewson e pela enfermeira Rainer, que admitiram ter passado a hora de meditação juntos no quarto
dela, todos os outros dizem que estiveram sozinhos. A ala dos pacientes, como o senhor sem dúvida já sabe, fica nos fundos da casa. Qualquer um, quer dizer, excetuando-se
os inválidos, poderia ter saído e voltado. Mas não há indício nenhum disso.
- E, mesmo que alguém tenha saído, a cerração serviu de excelente escudo. Qualquer pessoa poderia ter andado pelo promontório sem ser vista. Falando nisso, está
mesmo convencido de que foi Maggie Hewson quem começou o incêndio?
- Não estou investigando incêndios criminosos nem tentativas de homicídio, comandante. Wilfred Anstey me contou isso em caráter extra-oficial e disse que não queria
mais tocar no assunto. Talvez tenha sido ela, mas não há provas concretas. Ele mesmo poderia ter começado o incêndio.
- Duvido. Mas cheguei a cogitar na possibilidade de Henry Carwardine ter dado uma mãozinha na história. Ele não teria como começar o incêndio, claro, mas pode ter
pago um cúmplice. Acho que não simpatiza muito com Anstey. Mas isso não chega a ser um motivo, e, além do mais, ele pode ir embora daqui, não precisa ficar na vila
Toynton. Sem falar que é muito inteligente e um tanto exigente, pelo que pude perceber. Difícil imaginá-lo envolvido em maldades tão infantis.
- Ah, mas ele não está usando a inteligência que tem, não é mesmo, comandante? Esse é o problema do moço. Ele cedeu fácil demais, e cedo demais. E quem há de saber
qual é a verdade, quando o assunto é motivo? Às vezes acho que nem o próprio vilão. Eu diria que não é nada fácil para um homem como ele ter de viver numa comunidade
tão restrita, dependendo dos outros para tudo, sempre obrigado a agradecer a Wilfred Anstey. Bem, pelo menos não resta dúvida de que ele se sente grato a Wilfred
Anstey; todos eles se sentem. Só que às vezes a gratidão pode ser o próprio demônio, sobretudo quando é preciso agradecer por serviços dos quais a pessoa preferiria
prescindir.
- Talvez tenha razão. Mas conheço muito pouco dos sentimentos de Henry Carwardine, ou de qualquer outro morador da vila Toynton, para saber. Tomei um cuidado danado
para não conhecê-los. E me diga: a proximidade da morte violenta induziu alguém mais a revelar seus pequenos segredos?
- Ursula Hollis deu sua contribuição. Não sei o que ela achou que isso provaria, ou por que resolveu que valia a pena me contar. Mas talvez estivesse reivindicando
seu breve momento de glória. Aquela paciente loira foi a mesma coisa... senhorita Pegram, é isso? Não parou de insinuar que sabia que o doutor Hewson e a enfermeira
Rainer eram amantes. Sem nenhuma prova concreta, claro, apenas inveja e empáfia. Eu tenho cá umas idéias próprias sobre esses dois, mas seria preciso obter muito
mais provas do que as que eu recolhi hoje, antes de começar a pensar numa conspiração homicida. E a história de Ursula Hollis nem sequer tinha algo a ver com a morte
de Maggie Hewson. Ela disse que, na noite em que Grace Willison morreu, ela viu Maggie Hewson passando pelo corredor do dormitório, usando uma veste marrom e com
a cabeça coberta pelo capuz. Pelo que pude apurar, a senhorita Hollis costuma escorregar para fora da cama à noite e deslizar em cima do travesseiro pelo quarto.
Ela diz que é uma forma de exercício, que está aprendendo a se deslocar sozinha para ficar mais independente. Seja como for, na noite em questão ela conseguiu entreabrir
a porta, provavelmente pensando em dar umas escorregadas pelo corredor, e viu uma figura embuçada. Pensou depois que só podia ser Maggie Hewson. Qualquer um com
direito a estar ali, qualquer dos funcionários cuidando dos seus afazeres, não estaria usando o capuz.
- Se estivessem de fato cuidando de seus afazeres. Quando foi isso, exatamente?
- Ela disse que um pouco depois da meia-noite. Em seguida fechou a porta de novo e voltou para a cama com um certo esforço. Não ouviu nem viu mais nada.
Pensativo, Dalgliesh comentou:
- O que me espanta, pelo pouco que eu vi da moça, é que ela tenha conseguido voltar para a cama sem ajuda. Sair até que é fácil, mas subir de volta não deve ter
sido brincadeira. Será que valeria a pena, esse exercício?
Fez-se um breve silêncio; o inspetor Daniel então perguntou, com os olhos negros cravados no rosto de Dalgliesh:
- Por que o doutor Hewson notificou o magistrado sobre o óbito de Grace Willison, comandante? Se ele tinha dúvidas sobre o diagnóstico, por que não pediu ao patologista
do hospital, ou a algum amigo aqui da região mesmo, para abri-la e dar uma espiada?
- Porque eu o forcei a tomar uma atitude e não lhe dei escolha. Ele não podia se recusar, sem parecer suspeito. E acho que não tem muitos amigos na região. Ele não
se dá com os colegas de profissão. Como é que ficou sabendo disso?
- Pelo próprio. Depois de ouvir a história da moça, fui dar mais uma palavrinha com o doutor Hewson. Mas pelo visto não houve nada suspeito com a morte de Grace
Willison.
- Ah, não. Assim como no caso deste suicídio. Assim como na morte do padre Baddeley. Todas pelo visto sem nada de suspeito. Ela morreu de câncer no estômago. Mas
esta história, hoje. Descobriu alguma coisa sobre a corda?
- Eu já ia esquecendo, comandante. Foi a corda que atou as pontas soltas. A enfermeira Rainer viu Maggie Hewson tirá-la do escritório lá pelas onze e meia da manhã.
A enfermeira Rainer não foi ao enterro; ficou para cuidar de um paciente que não se levanta mais da cama. Georgie Allan, não é isso? Mas todos os outros moradores
estavam no enterro. Ela estava atualizando a ficha médica do paciente e precisava de um formulário novo. Todo o material de papelaria é guardado num arquivo que
fica no escritório. São coisas caras, e Wilfred Anstey não gosta de distribuir os formulários no atacado. Tem medo de que as pessoas utilizem como bloco de rascunho.
Quando chegou ao saguão de entrada, a enfermeira Rainer viu Maggie Hewson saindo do escritório com a corda pendurada no braço.
- E que explicação ela deu?
- Segundo a enfermeira Rainer, tudo o que ela falou foi: “Não se preocupe que eu não vou esgarçar esta corda. Ao contrário. Vocês vão recebê-la de volta tão novinha
quanto agora, ainda que não de mim”.
- Helen Rainer não demonstrou a mínima pressa em fornecer essa informação quando achamos o corpo. Mas, partindo do princípio de que ela não está mentindo, sem sombra
de dúvida isso encerra seu caso.
- Não acredito que ela esteja mentindo, comandante. Mas eu dei uma olhada na ficha médica do rapaz. A enfermeira Rainer iniciou uma nova folha esta tarde. E parece
que não há a menor dúvida de que a corda estava pendurada no escritório quando Wilfred Anstey e a enfermeira Moxon saíram para o enterro. Quem mais poderia ter pegado?
Estavam todos no cemitério, exceto a enfermeira Rainer, aquele rapaz muito doente e a senhora Hammitt.
- Eu tinha me esquecido de Millicent Hammitt. Reparei que estavam quase todos presentes, no cemitério. Mas não me ocorreu que faltava ela.
- Ela diz que não aprova os enterros. Que as pessoas deveriam ser cremadas no que ela chama de privacidade decente. Diz que passou a manhã limpando o forno. E, de
fato, o forno da casa dela está limpo.
- E à tarde?
- Meditando na vila Toynton com os demais. A regra é que todos fiquem separados e sozinhos. O irmão colocou a saleta de entrevistas à disposição dela. E ela diz
que não saiu de lá até que o irmão tocou o sino convocando a todos, pouco antes das quatro da tarde. Julius Court ligou logo em seguida. Maggie Hewson morreu em
algum momento durante os sessenta minutos que foram dedicados à meditação, quanto a isso não resta dúvida. E o cirurgião da polícia acredita que foi mais para as
quatro do que para as três da tarde.
Millicent seria forte o suficiente para pendurar o corpo pesado de Maggie? Era o que Dalgliesh se perguntava. Talvez, com a ajuda da banqueta da cozinha. E o estrangulamento
em si teria sido fácil, depois que ela estivesse bêbada. Um movimento silencioso por trás da cadeira, o nó enfiado por mãos enluvadas na cabeça inclinada, o safanão
repentino para cima, quando a corda mordesse a carne. Qualquer um deles poderia ter feito isso, poderia ter se esgueirado sem ser visto através do nevoeiro cerrado
na direção do borrão de luz que marcava o bangalô dos Hewsons. Helen Rainer era a mais magra; no entanto era enfermeira, tinha habilidade para erguer corpos pesados.
E Helen Rainer talvez não estivesse sozinha. Daniel estava dizendo algo:
- Vamos mandar analisar o conteúdo daquela seringa, e acho melhor também pedir para o laboratório dar uma verificada no uísque. Mas esses dois servicinhos não precisam
atrasar o processo de instrução criminal. Wilfred Anstey está ansioso para que tudo acabe o mais rápido possível, para não interferir com a peregrinação a Lourdes,
no dia 23. Ninguém me pareceu muito preocupado com o enterro. Que, aliás, pode esperar até que estejam de volta. Não vejo por que não permitir que o pessoal viaje,
se a perícia conseguir entregar os resultados a tempo. E nós já sabemos que não havia nada de errado com o uísque; Julius Court parece bastante bem. Até andei me
perguntando, comandante, por que ele tomou aquele gole. Aliás, foi ele que deu o uísque para ela: meia dúzia de garrafas por ocasião do aniversário, no dia 11 de
setembro. Um cavalheiro muito generoso.
- Bem que eu imaginei que era ele quem estava fornecendo a bebida para Maggie. Mas não creio que tenha tomado aquele gole para poupar os rapazes da perícia. Ele
precisava.
Daniel fitou pensativo seu copo meio vazio:
- Julius Court insiste na teoria de que a intenção dela nunca foi se matar, que foi tudo uma encenação, um apelo desesperado para que lhe dessem um pouco de atenção.
E talvez tenha achado que esse era o melhor momento para montar seu teatro. Estavam todos na vila, tomando uma decisão importante que afetava também o futuro dela,
e no entanto ela fora excluída. Talvez Julius Court tenha razão; o júri de instrução pode até aceitar essa hipótese. Mas isso não vai consolar o marido.
O que levou Dalgliesh a pensar que Hewson talvez estivesse buscando consolo em outras paragens, antes de responder:
- Não faz o gênero de Maggie. Posso vê-la executando alguma manobra dramática, ao menos para aliviar um pouco a monotonia. Mas não consigo imaginar que fosse querer
ficar aqui em Toynton no papel de suicida fracassada, atraindo aquele desprezo meio compassivo que as pessoas sentem por quem não consegue acabar nem com a própria
vida. E o pior é que eu acho que uma tentativa genuína de suicídio faz menos ainda o gênero dela.
- Talvez ela não pensasse em continuar por aqui. Talvez a idéia fosse justamente essa, convencer o marido de que ela se suicidaria se ele não arrumasse outro emprego.
Não acho que existam muitos homens dispostos a correr esse risco. O fato é que ela se matou, comandante, querendo ou não. Fosse essa a intenção dela ou não. O caso
se sustenta com duas provas: a história da corda e o bilhete suicida. Se a enfermeira Rainer conseguir convencer o júri de instrução e se os grafotécnicos confirmarem
que foi Maggie Hewson quem escreveu aquele bilhete, não vou nem apostar no veredicto. Fazendo ou não o gênero dela, não há como fugir às provas de que foi suicídio.
Entretanto, pensou Dalgliesh, havia uma outra prova, talvez menos positiva, mas não desprovida de interesse. E disse:
- Ela parecia estar de saída para algum lugar, ou talvez esperando uma visita. Ela tinha tomado banho não fazia muito tempo, os poros estavam entupidos de talco.
Estava maquiada e de unhas feitas. Além disso, não estava vestida para uma tarde solitária dentro de casa.
- O marido também disse isso. Eu mesmo achei que ela estava meio enfeitada demais. O que serviria para apoiar a tese de uma falsa tentativa de suicídio. Se você
planeja virar o centro das atenções, então por que não se aprontar para o espetáculo? Não há nenhuma prova de que ela tenha recebido visita, se bem que é verdade
que ninguém teria visto nada, com aquela cerração. Mas duvido que a pessoa conseguisse encontrar o caminho, depois de deixar a estrada. E, se ela planejava ir embora
de Toynton, então alguém teria de vir buscá-la. Os Hewsons não têm carro. Wilfred Anstey não permite que ninguém tenha transporte privado, hoje não tem ônibus até
aqui e nós conferimos com as locadoras de automóveis.
- Você não perdeu tempo.
- Uma questão de uns poucos telefonemas, comandante. Prefiro tirar esses detalhes do caminho enquanto ainda estão frescos na cabeça.
- Não consigo imaginar Maggie quietinha em casa, esperando todo mundo decidir o futuro dela. Ela era amiga de um advogado de Wareham, Robert Loder. Será que não
foi ele que ficou de vir buscá-la?
Daniel transferiu o peso do corpo para a frente e atirou mais lenha na lareira. O fogo queimava com certo fastio, como se a chaminé estivesse bloqueada pelo nevoeiro.
- O namorado local. O senhor não foi o único a sugerir isso, comandante. Achei melhor dar uma ligada para a residência do cavalheiro e ter uma palavrinha com ele.
Robert Loder está no hospital, operando as hemorróidas. Foi internado ontem, para uma cirurgia marcada faz uma semana. Uma situação bem desagradável. E dolorosa.
Não era bem a ocasião mais confortável, digamos assim, para planejar uma fuga com a mulher de outro homem.
- E que me diz da única pessoa por aqui que tem carro? Julius Court?
- Foi o que eu mesmo perguntei a ele, comandante. Obtive uma resposta bem definitiva, ainda que não muito cavalheiresca. No frigir dos ovos, foi mais ou menos o
seguinte: que ele tinha Maggie em altíssima estima, mas que a autopreservação era a primeira lei da natureza e, por um desses acasos da vida, as preferências dele
não vão nessa direção. Não que ele fosse contrário a ela ir embora de Toynton. Na verdade, ele mesmo lhe sugerira essa idéia, se bem que eu não entendo direito como
é que isso se encaixa com a noção anterior de que Maggie Hewson pretendia fingir um suicídio. Uma das duas teorias tem que estar errada.
- O que foi que ele viu na bolsa dela, um contraceptivo?
- Ah, o senhor reparou, é? Exato, um diafragma. Consta que ela não tomava pílula. Julius Court tentou ser fino a respeito, mas eu disse a ele que não dá para usar
de fineza em casos de morte violenta. Essa é uma catástrofe social para a qual os livros de etiqueta não têm receita. Foi o indício mais forte de que ela talvez
estivesse planejando partir, isso e o passaporte. Estavam ambos dentro da bolsa. Pode-se dizer que ela estava equipada para uma eventualidade qualquer.
- Ela estava equipada com os dois únicos itens que não poderia comprar dando um pulo à farmácia mais próxima. Imagino que haja um contra-argumento aí. Você poderia
dizer que é razoável que a pessoa carregue o passaporte na bolsa. Mas um diafragma?
- Sabe-se lá há quanto tempo não estava dentro da bolsa. As mulheres guardam as coisas em lugares bem esquisitos. Não adianta ficar fantasiando muito. E não há motivo
para supormos que os dois estivessem se aprontando para fugir, ela e o médico. Se quer saber mesmo, comandante, eu acho que o doutor Hewson está tão amarrado a Wilfred
Anstey e à vila quanto todos os outros pacientes, pobre coitado. O senhor conhece a história, imagino?
- Na verdade não. Eu já lhe disse. Tomei um cuidado danado para não me envolver.
- Tive um sargento como ele, uma vez. As mulheres não lhe davam sossego. É aquele jeito vulnerável de garoto que eles têm, acho eu. Chamava-se Purkiss. Pobre coitado.
Não conseguia lidar com as mulheres e não conseguia ficar sem elas. Acabou com a carreira dele. Agora tem uma oficina, lá para os lados de Harborough, pelo que me
disseram. E no caso do doutor Hewson é pior ainda. Ele nem sequer gosta do que faz. Foi forçado, pelo que entendi, por uma daquelas mães muito resolutas, uma viúva,
que enfiou na cabeça que iria transformar sua ovelhinha perdida num médico. Aliás um ato bastante adequado, a meu ver. A medicina é o equivalente moderno do sacerdócio,
não é verdade? Ele me contou que a época da faculdade não foi tão ruim. Ele tem uma memória fenomenal e consegue aprender qualquer coisa. É da responsabilidade que
ele não gosta. Não que haja muito pelo que ser responsável, na vila Toynton. Os pacientes são doentes incuráveis, e ninguém, nem eles mesmos, espera muito dos médicos.
Wilfred Anstey escreveu e contratou Eric Hewson, pelo que apurei, depois que a licença dele foi suspensa pelo Conselho Nacional de Medicina. Ele estava tendo um
caso com uma paciente, uma menina de dezesseis anos. Houve insinuações de que o namoro começara um ano antes ou mais, mas ele teve sorte. A garota manteve a mesma
história dele. Hewson não podia receitar medicamentos nem assinar atestados de óbito na vila Toynton, claro. Não até recuperar o registro, seis meses atrás. O que
eles não puderam tirar, no entanto, foram seus conhecimentos médicos, e eu não tenho a menor dúvida de que Wilfred Anstey fez bom proveito deles.
- E barato.
- Claro, também tem isso. Mas agora Eric Hewson não quer ir embora. Imagino que ele poderia ter matado a mulher para que ela parasse de infernizá-lo com essa história
de ir embora, mas, cá com meus botões, não acredito nisso, e tampouco um júri de instrução acreditaria numa coisa dessa. Ele é o tipo de homem que sempre consegue
uma mulher para fazer seus trabalhinhos sujos.
- Helen Rainer?
- Seria uma loucura total, não, comandante? E onde estão as provas?
Dalgliesh cogitou por alguns momentos em contar o teor da conversa que acabara escutando entre Maggie e o marido, logo após o incêndio. Mas afastou essa idéia da
cabeça. Hewson tanto poderia negar tudo quanto dar uma explicação satisfatória. Devia haver bem uma dezena de segredinhos tolos num lugar como a vila Toynton. Daniel,
por sua vez, se sentiria na obrigação de interrogá-lo de novo, lógico. Mas encararia a tarefa como um dever irritante que lhe fora impingido por um intruso enxerido
e desconfiado da Polícia Metropolitana, decidido a transformar os fatos mais simples numa teia de conjecturas complicadas. E, enfim, que diferença faria? Daniel
tinha razão. Se na audiência Helen mantivesse a história contada no depoimento, de que vira Maggie pegar a corda, e se os peritos confirmassem que Maggie escrevera
o bilhete suicida, o caso estava encerrado. Dalgliesh já sabia até qual seria o veredicto do júri de instrução, assim como soubera que a autópsia de Grace Willison
não iria revelar nada de anormal. Uma vez mais, viu a si próprio, como num pesadelo, observando impotente a passagem da bizarra caravana de fatos e conjecturas por
seu caminho predestinado. Não seria capaz de lhe interromper o percurso porque se esquecera de como fazê-lo. A doença parecia ter minado tanto a inteligência quanto
a vontade do comandante Dalgliesh.
O pedaço de lenha queimando na lareira, reduzido a uma lança enegrecida, salpicado de brasas, despencou devagar e morreu. Dalgliesh se deu conta de que a sala estava
um gelo e de que sentia fome. Talvez devido ao nevoeiro cerrado, que havia embaralhado o período de lusco-fusco entre o dia e a noite, era como se o entardecer tivesse
durado uma eternidade. Não sabia ao certo se deveria oferecer alguma coisa a Daniel. Presumia que ele aceitaria uma omelete. Entretanto até mesmo a simples tarefa
de cozinhar estava além de suas forças.
De repente, o problema se resolveu sozinho. Daniel levantou devagar e estendeu a mão para pegar a capa de chuva.
- Obrigado pelo uísque, comandante. Agora é melhor ir andando. Nos vemos no dia da audiência, claro. O que significa que ainda terá de ficar mais um pouco por aqui.
Mas vamos providenciar para que o caso ande o mais rápido possível.
Trocaram um aperto de mão. Dalgliesh quase fez uma careta de dor com o apertão. Na soleira, Daniel estancou, ajustando a capa.
- Falei com o doutor Hewson naquela saleta que segundo me disseram costumava ser usada pelo padre Baddeley. E, se quer saber, acho que ele faria melhor se procurasse
um padre. Não tive o menor problema para fazer o homem falar. O difícil foi fazê-lo parar. De repente o homem desandou a chorar e aí veio tudo à tona. Como poderia
continuar vivendo sem ela? Nunca deixou de amá-la, de desejá-la. Engraçado, quanto mais eles sentem, menos sinceros parecem. Mas o senhor já deve ter notado isso,
claro. Uma hora ele ergueu os olhos para mim, o rosto lavado de lágrimas, e disse: “Ela não mentiu porque se importava comigo. Para ela foi só um jogo. Ela nunca
nem sequer fingiu que me amava. Só fez aquilo porque considerava os integrantes do comitê do Conselho uma velharia arrogante e chata que fazia pouco dela. Não quis
dar a eles a satisfação de me mandar para a prisão. Foi por isso que ela mentiu, mais nada”. E sabe o que mais, comandante? Foi só nessa hora que eu percebi que
ele não estava falando da mulher. Não estava nem pensando nela. Muito menos na enfermeira Rainer. Pobre diabo! Pois é! É um trabalho muito curioso, este nosso.
Estendeu a mão de novo - pelo visto já tinha se esquecido do primeiro aperto esmagador - e com uma última olhada apurada na sala de estar, como se para se certificar
de que tudo continuava nos seus devidos lugares, saiu e se perdeu no nevoeiro.
III
No escritório, Dot Moxon, parada à janela junto com Wilfred Anstey, olhando para fora, para o véu escuro de névoa, disse, com amargura:
- A Fundação não vai querer nenhum de nós, você já se deu conta disso? Eles até podem batizar a casa de repouso com o seu nome, mas não vão deixar você ficar como
diretor. E vão tentar se livrar de mim.
Wilfred pousou a mão no ombro de Dot. Ela se perguntou como pudera algum dia ter ansiado por aquele toque ou ter sido confortada por ele. E ele falou com a paciência
contida de um pai consolando uma criança voluntariosa e obtusa:
- Eles se comprometeram. Todos os empregos serão mantidos. E todos terão aumento. De agora em diante, você receberá pela tabela do Serviço Nacional de Saúde. E eles
têm um esquema de contribuição para a aposentadoria, o que é uma grande vantagem. Eu nunca pude oferecer nada parecido.
- E o que vai ser de Albert Philby? Não vai me dizer que eles também se comprometeram a manter Albert aqui, uma instituição nacional tão respeitável como a Fundação
Ridgewell.
- Philby de fato representa um problema. Mas eles hão de cuidar do caso com humanidade.
- Cuidar do caso com humanidade! Todos nós sabemos direitinho o que isso significa. Foi isso que eles me disseram no meu último emprego, antes de me obrigarem a
sair! E aqui é a casa dele! Ele confia em nós. Nós o ensinamos a confiar em nós! Temos uma responsabilidade para com ele.
- Agora não mais, Dot.
- Quer dizer então que vamos trair o Albert e trocar o que você tentou construir aqui por uma tabela do Serviço de Saúde e um esquema de aposentadoria! E o meu posto?
Ah, eles não vão me despedir, claro. Eu sei disso. Mas nunca mais será a mesma coisa. Eles farão de Helen a enfermeira-chefe. Ela também sabe disso. Por que outro
motivo ela iria votar a favor da transferência?
Baixinho, Wilfred respondeu:
- Porque ela já sabia que Maggie estava morta.
- Funcionou tudo às mil maravilhas para ela, não foi? - disse Dot, rindo com amargura. - Para ambos.
- Dot, minha cara, você e eu temos de aceitar que nem sempre podemos escolher a maneira pela qual somos chamados a servir.
Dorothy Moxon não entendia como nunca notara aquilo antes, aquele tom irritante de censura untuosa na voz de Wilfred. Puxou o ombro com um safanão. A mão assim rejeitada
escorregou pesadamente. E foi então que atinou: Wilfred a fazia pensar no Papai Noel de açúcar que enfeitara sua primeira árvore de Natal. Algo tão desejado, tão
esperado; e, depois, mordido até virar nada: um vestígio de doçura na língua e em seguida uma cavidade vazia, polvilhada de areia branca.
IV
Ursula Hollis e Jennie Pegram estavam ambas no quarto de Jennie, as duas cadeiras de rodas lado a lado, diante da penteadeira. Ursula estava inclinada de atravessado,
escovando o cabelo de Jennie. Não tinha muita certeza de como fora parar ali, exercendo função tão curiosa. Era a primeira vez que Jennie a convidava. Mas nessa
noite, à espera de que Helen fosse colocá-la na cama, Helen, que nunca se atrasara tanto, era reconfortante não estar sozinha com seus pensamentos, reconfortante
inclusive ver os cabelos cor de trigo subirem a cada escovada e caírem de volta, devagar, uma névoa delicada e lustrosa, por sobre os ombros encurvados. As duas
mulheres, aos cochichos, sentiam-se confortáveis, quase como ginasianas confabulando. Ursula disse:
- O que você acha que vai acontecer agora?
- Com a vila Toynton? A Fundação vai assumir o controle, e Wilfred some de cena, imagino. Por mim, tudo bem. Pelo menos haverá mais gente internada. É muito chato,
com tão pouca gente. Wilfred me disse que eles planejam construir uma espécie de solário no alto do morro. Gostei dessa idéia. E com certeza vamos ter mais passeios,
viagens etc. Não tivemos muito coisa, nesses últimos tempos. Para falar a verdade, eu andava pensando em ir embora. Meu antigo hospital me escreve toda hora, me
convidando a voltar.
Ursula sabia que Jennie não recebera carta nenhuma nesse sentido. Mas não tinha importância. Ela deu sua contribuição para aquela fantasia.
- Eu também. Steve está louco para que eu me mude para um lugar um pouco mais perto de Londres, para ele poder me visitar. Só até ele encontrar um apartamento mais
adequado para nós, claro.
- A Fundação Ridgewell não tem uma casa de repouso em Londres? Eles podem transferir você para lá.
Que estranho que Helen não tivesse lhe dito nada sobre isso! Ursula então sussurrou:
- Esquisito a Helen votar a favor da transferência. Eu pensei que ela quisesse que Wilfred vendesse a propriedade.
- Provavelmente era o que queria, até saber que Maggie estava morta. Agora que ela se livrou de Maggie, desconfio que prefere ficar. Quer dizer, a área está desimpedida,
certo?
Agora que ela se livrou de Maggie. Mas seria possível que alguém tivesse feito algo assim? Não, só podia ter sido coisa da própria Maggie. E não havia como Helen
saber que Maggie iria morrer. Seis dias antes, ela insistira para que Ursula votasse a favor da venda. Mesmo durante o conselho preliminar, antes que todos se separassem
para sua hora de meditação, ela deixou bem claro qual era seu interesse. E de repente, durante a hora de meditação, mudara de idéia. Não, Helen não poderia saber
que Maggie iria morrer. Ursula encontrou um bálsamo nessa linha de raciocínio. Tudo daria certo, no final. Ela contara ao inspetor Daniel a respeito da figura embuçada
que tinha visto na noite da morte de Grace, não a verdade toda, claro, mas o suficiente para remover aquele peso de culpa e preocupação irracional que não queriam
saber de largá-la. Mas o inspetor não dera a menor importância ao fato. Pressentiu isso pela forma como sua história foi ouvida e pelas poucas perguntas rápidas
que ele lhe fez. E com razão, aliás. Era um detalhe irrelevante, aquele vulto. Como ela conseguira passar noites acordadas, abalada por ansiedades inexplicáveis,
perseguida por imagens diabólicas da morte a se esgueirar por corredores silenciosos, encoberta por um capuz? E só podia ter sido Maggie, o vulto que ela viu. Com
a notícia da morte de Maggie, de repente teve certeza disso. Era difícil saber por quê, a não ser pelo fato de que a silhueta lhe parecera ao mesmo tempo teatral
e dissimulada, quase uma estranha, trajando as vestes de monge sem nada da familiaridade desleixada dos funcionários da vila Toynton. Mesmo assim contara tudo ao
inspetor. Portanto, não havia mais nada com que se preocupar. Tudo daria certo no fim. A vila Toynton não iria fechar. Mas isso não tinha mais importância. Ela conseguiria
uma transferência para a casa de repouso em Londres, talvez numa troca. Alguém de lá com certeza gostaria de vir para perto do mar. E foi então que ouviu a voz estridente
e infantil de Jennie.
- Vou lhe contar um segredo a respeito da Maggie, se você jurar que não fala para ninguém.
- Juro.
- Ela escrevia cartas anônimas. Ela me mandou uma.
O coração de Ursula teve um sobressalto. Mas a pergunta veio rápido:
- Como é que você sabe?
- Porque a minha foi datilografada na máquina de Grace Willison e eu vi a Maggie batendo à máquina um dia antes. A porta do escritório estava entreaberta. Ela não
sabia que eu estava vendo.
- E o que dizia essa carta?
- Era sobre um homem apaixonado por mim. Um dos produtores do programa que eu fiz, na verdade. Ele queria se divorciar da mulher e me levar embora com ele. Foi uma
grande celeuma no hospital, na época, houve muita ciumeira. Em parte essa foi a razão de eu ter saído de lá. Na verdade, eu podia ir hoje mesmo morar com ele, se
quisesse.
- Mas como é que a Maggie sabia disso?
- Ela era enfermeira, certo? Acho que ela conhecia uma das enfermeiras do hospital onde eu estava. Ela era muito esperta na hora de descobrir o que lhe interessava.
Imagino que ela também conhecesse algum segredinho do Victor, mas não disse o quê. Foi bom ela ter morrido. E, se por acaso tiver recebido uma carta dela, agora
não vai receber mais nenhuma. Maggie morreu, e as cartas vão parar. Escove mais forte e para o lado direito, Ursula. Isso, assim está ótimo, ótimo. Nós devíamos
ficar amigas, você e eu. Quando os novos pacientes começarem a chegar, precisamos formar um time. Quer dizer, isso se eu me decidir a ficar, claro.
Com a escova parada no ar, Ursula viu pelo espelho o sorriso hipócrita e presunçoso de Jennie.
V
Pouco depois das dez da noite, após jantar, Dalgliesh saiu para dar uma volta. A neblina se fora tão misteriosamente quanto aparecera, e o ar gelado, cheirando a
grama lavada de chuva, passava suave por seu rosto acalorado. Parado no silêncio absoluto, ouvia apenas um mero sussurro sibilante vindo do mar.
Um facho de lanterna, tão excêntrico quanto um fogo-fátuo, vinha saçaricando em sua direção, partindo da vila. Do meio da escuridão, surgiu uma sombra volumosa que
aos poucos foi tomando forma. Millicent Hammitt estava voltando para casa. Na porta do bangalô Fé, ela parou e chamou.
- Boa noite, comandante. Quer dizer que seus amigos já se foram?
A voz era alta, quase beligerante.
- O inspetor já se foi, sim.
- Talvez tenha notado que eu não me juntei à multidão para participar da impensada charada montada por Maggie. Não aprecio muito esse tipo de comoção. Eric resolveu
dormir esta noite na vila. É o melhor que ele pode fazer, sem dúvida. Mas, pelo que entendi, a polícia já levou o corpo, então ele não precisava fingir tanta emoção.
Falando nisso, votamos pela transferência para a Fundação Ridgewell. Com uma coisa e outra, este foi um dia e tanto, sem dúvida.
E virou-se para abrir a porta. Depois estancou e chamou Dalgliesh de novo.
- Me disseram que ela estava com as unhas pintadas de vermelho.
- Estava, senhora Hammitt.
- As unhas dos pés também.
Ele não respondeu. E ela falou, com uma ira repentina:
- Mulher mais extraordinária!
Dalgliesh escutou a porta se fechar. Um segundo depois, surgiu um brilho atrás das cortinas. Ele entrou em casa. Quase cansado demais para subir a escada, esticou-se
na poltrona do padre Baddeley, olhando o fogo morto. Enquanto espiava, as cinzas esbranquiçadas se mexeram delicadamente, um pedaço de lenha carbonizada brilhou
por instantes, de volta à vida, e, pela primeira vez aquela noite, ele escutou o gemido familiar e reconfortante do vento na chaminé. Depois veio mais outro som
conhecido. Muito de leve, chegava-lhe pela parede um estribilho sincopado, todo alegrinho. Millicent Hammitt ligara a televisão.
8
 A TORRE NEGRA
I
No dia seguinte, Dalgliesh deu um pulo na vila Toynton com dois propósitos em mente: explicar a Wilfred que teria de permanecer no bangalô Esperança até a conclusão
do inquérito e pagar seu aluguel simbólico. Encontrou-o sozinho no escritório. Nem sinal de Dot Moxon, o que não deixava de ser espantoso. Wilfred estudava um mapa
da França, aberto sobre a escrivaninha - uma pilha de passaportes, unidos por um elástico, servia de peso num dos cantos -, e deu a impressão de não ter escutado
direito o que seu hóspede dissera, quando respondeu “A conclusão do inquérito. Sim, claro...”, como se fosse um almoço do qual tivesse se esquecido. Não tocou no
assunto da morte de Maggie, e as condolências formais de Dalgliesh foram recebidas com frieza, como se considerasse o gesto de mau gosto. A impressão era de que,
abrindo mão da vila Toynton, também se distanciava de toda e qualquer responsabilidade, inclusive das ansiedades. Restavam apenas suas duas obsessões gêmeas: o milagre
e a peregrinação a Lourdes.
O inspetor Daniel e o laboratório pericial trabalharam depressa. A audiência para decidir se houvera algo suspeito na morte de Maggie Hewson foi realizada exatamente
uma semana depois - semana em que os moradores da vila Toynton se mostraram tão decididos a manter Dalgliesh afastado quanto ele de evitá-los. Ninguém, nem mesmo
Julius, parecia inclinado a falar sobre Maggie. Era como se tivessem passado a enxergá-lo apenas como um policial, um intruso indesejável de lealdade duvidosa, um
espião em potencial. Ele saía de carro bem cedo e voltava tarde da noite, em meio ao silêncio e à escuridão. Nem as atividades policiais nem a vida na vila Toynton
o comoviam. Continuou com suas excursões diárias e compulsivas por Dorset, qual um prisioneiro em soltura provisória, ansiando pelo veredicto como se pelo dia da
libertação oficial.
E por fim o dia chegou. Dos pacientes da vila Toynton, apenas Henry Carwardine compareceu, o que aliás foi estranho, já que não tinha sido chamado a testemunhar.
Aos sussurros, todos os participantes haviam se reunido em grupinhos reverentes diante do tribunal, durante o hiato quase sempre desorganizado que sucede os rituais
públicos mais sinistros, e foi nesse momento que Carwardine, com braçadas vigorosas, impeliu sua cadeira até onde estava Dalgliesh. O aspecto e a voz eram de euforia.
- Claro que, para a polícia, esses cerimoniais para atar algumas pontas jurídicas soltas não são nenhuma novidade, mas para mim são. E o de hoje não deixou de ter
lances muito curiosos. Menos fascinantes, em termos técnicos e periciais, do que o caso de Holroyd, mas com uma dose maior de emoção, a meu ver.
- Você fala como um especialista em inquéritos de morte suspeita.
- Se continuarmos nesse ritmo na vila Toynton, não vai demorar muito para que eu de fato me torne um. Helen Rainer foi a grande estrela do dia, no meu entender.
Aquele conjunto extraordinário de tailleur e chapéu com que ela apareceu é, pelo que entendi, o uniforme de gala das enfermeiras formadas. Uma escolha muito sábia,
eu diria. O cabelo preso, um toque mínimo de maquiagem e um ar de profissionalismo dedicado estampado no rosto. “A senhora Hewson talvez tenha acreditado que havia
algum relacionamento entre mim e o marido dela. Tinha muito tempo livre para pensar tolices. É claro que o doutor Hewson e eu precisamos trabalhar juntos o tempo
todo. Tenho imensa consideração por sua bondade e competência, mas nunca houve nada impróprio entre nós. O doutor Hewson era um marido dedicado.” Nada impróprio!
Eu nunca acreditei que as pessoas usassem, de fato, essa expressão.
- Nos depoimentos, elas usam. Será que o júri acreditou nela?
- Acho que sim, acho que sim. E você? É muito difícil imaginar nossa Florence Nightingale, vestida como estava esta tarde, de brocado cinza... ou gabardina, tanto
faz, toda mística e maravilhosa, farreando entre os lençóis. Mas foi uma decisão sábia, a meu ver, admitir que ela e Hewson passaram a hora inteirinha de meditação
juntos no quarto dela. E isso, como ela explicou muitíssimo bem, só porque ambos já tinham chegado a uma decisão e não podiam se dar ao luxo de desperdiçar preciosos
sessenta minutos; não quando tantas outras questões profissionais aguardavam para ser discutidas.
- Eles precisavam optar entre o álibi que possuíam, não sei se válido ou não, e o risco de arranhar a reputação. No geral, escolheram bem.
Henry girou a cadeira de rodas com uma exuberância agressiva.
- Mas os honestos jurados de Dorset bem que ficaram com a pulga atrás da orelha. Dava para ver a mente de todos eles trabalhando. Se não eram amantes, o que faziam
os dois trancados num quarto? Por outro lado, se estavam juntos, então Hewson não poderia ter matado a mulher. Mas, a menos que fossem amantes, ele não teria motivos
para matá-la. Porém, se havia tal motivo, por que admitir que estavam juntos? Obviamente para lhe fornecer um álibi. Mas não haveria necessidade de um álibi se não
existisse o eterno motivo. E, se havia um motivo, então ele e a moça estavam juntos. Muito intrigante.
Sem deixar de achar uma certa graça, Dalgliesh perguntou:
- O que me diz da atuação de Hewson?
- Ele também não se saiu mal. Claro que sem a competência profissional e o distanciamento do meu caríssimo comandante, porém calmo, sincero, com laivos de um sofrimento
natural corajosamente sob controle. Muito sensato da parte dele admitir que Maggie queria porque queria que ele largasse a vila Toynton, ao passo que ele se sentia
penhorado a Wilfred, “que me aceitou quando eu tive dificuldade de arrumar um emprego”. Sem mencionar, é lógico, o desagradável fato de ter sido cassado pelo Conselho
de Medicina, e também sem ninguém grosseiro o bastante para trazer o assunto à baila.
- E sem ninguém grosseiro o bastante para sugerir que ele e Helen talvez tenham mentido a respeito do relacionamento que mantêm.
- E o que mais você esperava? Aquilo que as pessoas sabem e o que podem provar, ou que estão dispostas a admitir num tribunal, são duas coisas muito diferentes.
Além do mais, precisamos proteger o caro Wilfred das contaminações da verdade a todo custo. Não, achei que tudo saiu às mil maravilhas. Suicídio num momento em que
o equilíbrio mental etc. etc. Pobre Maggie! Estigmatizada como uma vadia egoísta e alcoólatra que só queria o prazer, sem a menor simpatia pela dedicação do marido
a sua nobre profissão e nem sequer competente para lhe dar um lar confortável. O palpite de Court de que talvez tenha sido morte acidental, um teatrinho que fugiu
ao controle, não teve o menor crédito entre os membros do júri. Eles preferiram achar que uma mulher que bebe uma garrafa de uísque quase inteira, pega uma corda
emprestada e escreve um bilhete de adeus está levando a encenação um pouco longe demais e prestaram a Maggie a homenagem de acreditar que ela pretendia fazer o que
fez. Achei o perito de uma confiança extraordinária na própria opinião, tendo em vista a natureza basicamente subjetiva do exame grafológico. Parece não ter restado
nenhuma dúvida de que foi Maggie quem escreveu o bilhete.
- As quatro primeiras linhas. Só sobre essas ele se sentiu competente para opinar. O que achou do veredicto?
- Ah, concordo com o Julius. O plano dela era ser cortada fora daquela corda na hora agá, no meio de um tremendo escarcéu. Porém, com quase uma garrafa inteirinha
de uísque na cuca, não teve competência sequer para montar o cenário da própria ressurreição. Por falar nisso, Julius me fez uma descrição bastante animada do drama
que se desenrolou no bangalô Caridade, inclusive com a estréia impressionante de Helen no papel de Lady Macbeth:
Dá-me a seringa. Os que dormem e os mortos
São apenas imagens; as crianças é que temem
Ver o diabo pintado.
Não havia expressão nenhuma, nem no rosto nem na voz de Dalgliesh, quando disse:
- Muito divertido, para vocês dois. Pena que Court não tenha se comportado com essa calma toda na hora. Ele poderia ter sido um pouco mais útil, em vez de agir como
um veado histérico.
Henry sorriu, satisfeito de ter provocado a reação que queria.
- Quer dizer então que não gosta dele? O mesmo acontecia com seu amigo de batina.
Dalgliesh não resistiu ao impulso:
- Sei que não é da minha conta, mas será que já não está na hora de sair da vila Toynton?
- Sair? E para onde sugere que eu vá?
- Deve haver outros lugares.
- O mundo está cheio de lugares. Mas o que julga que eu poderia fazer, ou ser, ou esperar, em qualquer um deles? Para ser sincero, cheguei a pensar em sair, uma
ocasião. Foi um sonho especialmente tolo. Não, vou permanecer na vila. A Fundação Ridgewell tem o profissionalismo e a experiência que faltam a Wilfred. Eu poderia
me dar ainda pior. Além do mais, Wilfred com certeza também vai continuar; e eu ainda tenho uma dívida para com ele. Nesse ínterim, encerradas as formalidades, podemos
todos relaxar e partir em paz para Lourdes amanhã. Devia vir conosco, Dalgliesh. Passou tanto tempo por aqui que estou começando a desconfiar que gostou de nossa
companhia. Além disso, acho que seu período de convalescença não foi lá muito proveitoso. Por que não ir a Lourdes e ver o que o cheiro de incenso e uma mudança
de cenário conseguem fazer por sua saúde?
O ônibus da vila Toynton, dirigido por Philby, acabara de estacionar junto deles, e a rampa traseira estava sendo baixada. Dalgliesh observou em silêncio quando
Eric e Helen se desvencilharam de Wilfred, colocaram as mãos, num gesto simultâneo, sobre os puxadores da cadeira e empurraram Henry com todo o vigor para dentro
do ônibus. A rampa foi recolhida, Wilfred tomou seu lugar na frente, ao lado de Philby, e o veículo desapareceu de vista.
O coronel Ridgewell e seus diretores chegaram após o almoço. Dalgliesh viu quando o carro parou na porta e os ternos escuros entraram no casarão. Mais tarde, tornaram
a sair e caminharam, acompanhados por Wilfred, ao longo do promontório, na direção do mar. Dalgliesh teve uma ligeira surpresa ao perceber que Eric e Helen estavam
no grupo, mas não Dorothy Moxon. Mesmo de longe, enxergava o cabelo grisalho do coronel se eriçar com a brisa sempre que ele fazia uma pausa e varria o horizonte
com a bengala, em gestos largos e explicativos, ou parava de chofre, imóvel, consultando o grupinho que mais que depressa se fechava num círculo à sua volta. Sem
dúvida, iriam querer inspecionar as casinhas. Bem, o bangalô Esperança estava pronto para eles. As prateleiras estavam vazias e limpas, os caixotes fechados e etiquetados
para o transporte, e a mala aguardava, já feita, exceto pelas poucas coisas de que precisaria para passar a última noite. Porém não estava com a menor vontade de
se envolver em apresentações nem de trocar amabilidades.
Quando, por fim, o grupo virou e tomou o caminho do bangalô Caridade, Dalgliesh entrou no carro e saiu, sem uma direção específica em mente, nenhum alvo especial,
intenção nenhuma a não ser a de dirigir noite afora.
II
O dia seguinte amanheceu abafado, mormacento, propício a uma dor de cabeça, com um céu que era um lençol de morim enodoado, carregado de chuva por derramar. A partida
dos peregrinos estava marcada para as nove horas, e às oito e meia Millicent Hammitt entrou sem cerimônia e sem bater, para se despedir. Usava um conjunto de tweed
cinza-azulado de mau caimento, com um casaco curto de quatro botões, blusa num tom mais forte e discordante de azul, enfeitada com um broche espalhafatoso no pescoço,
botinhas de cano curto e um chapéu de feltro cinza enterrado na cabeça até as orelhas. Pousou no chão uma enorme sacola de viagem e a bolsa a tiracolo, tirou o par
de luvas de algodão castanho e estendeu a mão. Dalgliesh largou a xícara de café. Sua mão direita foi agarrada num aperto esmagador.
- Até logo, então, comandante. Estranho, mas nunca consegui me acostumar a chamá-lo pelo nome de batismo. Pelo que me disseram, não estará mais aqui quando voltarmos,
não é isso?
- Tenho planos de voltar para Londres ainda hoje.
- Espero que tenha aproveitado sua estada conosco. Pelo menos, não faltaram emoções. Um suicídio, uma morte natural e o fim da vila Toynton como instituição independente.
Não deu para sentir tédio.
- E uma tentativa de homicídio.
- Wilfred na torre em chamas? Parece título de peça de teatro de vanguarda. Sempre tive cá minhas dúvidas a respeito daquela comoção. Se alguém me perguntasse, eu
diria que Wilfred começou ele mesmo o incêndio, para se absolver de ter aberto mão das responsabilidades. Sem dúvida essa explicação já lhe ocorreu.
- Me ocorreram várias explicações, mas nenhuma delas fez muito sentido.
- Pouca coisa faz, aqui na vila Toynton. Bem, muda a velha ordem, abrindo espaço à nova, e Deus realiza Sua obra de várias maneiras. Só nos resta esperar por Sua
vontade.
Dalgliesh perguntou quais eram os planos de Millicent.
- Vou continuar morando aqui. O acordo que Wilfred fez com a Fundação prevê que eu continue por aqui pelo resto da vida, e uma coisa eu lhe garanto: tenho toda a
intenção de morrer quando for de minha conveniência. Mas nunca mais será o mesmo, claro, sabendo que o lugar pertence a estranhos.
- E como é que seu irmão se sente, com essa transferência?
- Aliviado. Bem, tudo saiu como ele planejou, quanto a isso não resta dúvida. Só que ele não sabe no que está se metendo. Aliás, por falar nisso, ele não transferiu
a propriedade desta casa para a Fundação. O bangalô Esperança vai continuar sendo dele. O plano é se mudar para cá assim que for feita uma reforma e a casa ficar
um pouco mais civilizada e confortável. Também se ofereceu para ajudar a administrar a vila Toynton, fazendo qualquer coisa que a Fundação considere de alguma utilidade.
Mas, se o coitado imagina que eles vão deixá-lo continuar como diretor, vai ter uma surpresa e tanto. Aquele pessoal tem planos muito precisos para a vila e duvido
que incluam a figura de Wilfred, mesmo que tenham concordado em lhe afagar o ego batizando a casa de repouso com o nome dele. Desconfio que meu irmão acha que todo
mundo vai continuar lhe fazendo salamaleques, respeitando-o como o grande benfeitor e dono original do lugar. E eu garanto que não vão. Agora que a escritura de
doação, ou seja lá o que for, está assinada e a Fundação Ridgewell é a proprietária legal, Wilfred conta tanto quanto Philby, ou quem sabe menos. A culpa é dele
mesmo. Ele devia ter vendido tudo.
- Mas isso não seria voltar atrás na palavra dada?
- Tolices supersticiosas! Se Wilfred queria se vestir com trajes de monge e se comportar igual a um abade medieval, deveria ter entrado para um mosteiro. Qualquer
mosteiro anglicano teria sido perfeitamente aceitável. As peregrinações semestrais continuarão sendo feitas, claro. Essa foi uma das condições dele. Pena que não
queira vir conosco, comandante. Nós costumamos ficar numa pensãozinha muito agradável, bem barata, é verdade, mas com uma comida excelente. E Lourdes é uma cidade
muito alegre. Tem muita vida. Não digo que não acharia bem melhor se Wilfred tivesse recebido sua graça numa cidade como Cannes, mas poderia ser pior. Ele poderia
ter se curado em Blackpool.
Millicent Hammitt parou de novo na porta, virou e ainda disse:
- Imagino que o ônibus vá dar uma parada aqui, para que os outros também possam se despedir. - A frase foi dita de tal forma que soou como se eles estivessem lhe
concedendo um privilégio. Dalgliesh respondeu que subiria com ela até a vila para dar adeus. Encontrara um dos livros de Henry Carwardine nas estantes do padre Baddeley
e queria devolvê-lo. Havia também a roupa de cama para entregar e algumas latas de comida sobrando, que provavelmente poderiam ser aproveitadas.
- Eu levo as latas depois. Deixe todas aqui mesmo. E pode devolver os lençóis a qualquer hora. A casa nunca fica trancada. De todo modo, Philby estará de volta ainda
hoje. Ele só nos leva até o porto e nos ajuda a embarcar, depois retorna para tomar conta da casa, dar comida a Jeoffrey e, claro, às galinhas. Estão todos sentindo
muita falta da ajuda de Grace com as galinhas, se bem que, quando ela estava viva, ninguém achasse que ela fazia muita coisa de útil. E não são só as galinhas. Ninguém
consegue encontrar a lista de Amigos da Vila Toynton. Na verdade, Wilfred queria que Dennis ficasse, desta vez. Ele está com enxaqueca e parece um fantasma. Mas
quem é que consegue convencê-lo a perder uma peregrinação?
Dalgliesh subiu até a casa com ela. O ônibus estava parado diante da porta da frente e os pacientes já haviam entrado. O grupo pateticamente depauperado exibia um
ar bizarro de jovialidade meio espúria. A primeira impressão de Dalgliesh, ao ver o jeito como estavam vestidos, foi a de que cada um deles pretendia se entregar
a uma atividade diferente, desvinculada de todas as demais. Henry Carwardine, de paletó de tweed acinturado e boné de caçador, parecia um cavalheiro eduardiano a
caminho das charnecas para acertar alguns tetrazes. Philby, trajado com uma formalidade incongruente, de terno escuro, camisa de colarinho alto e gravata preta,
era o ajudante da funerária ajeitando o caixão. Ursula Hollis estava nos trinques de imigrante paquistanesa e sua única concessão ao clima inglês fora um casacão
mal cortado de pele sintética. Jennie Pegram, de estola azul até os pés, pelo visto fizera uma tentativa de imitar Santa Bernardette. Helen Rainer, vestida com a
mesma roupa com que fora ao inquérito, era a diretora do presídio, encarregada de cuidar de um grupo imprevisível de delinqüentes. Já estava acomodada, na cabeceira
da maca de Georgie Allan. Os olhos do rapaz mostravam-se febris, reluzentes, e Dalgliesh escutou a voz esganiçada com que falava sem parar. Estava com um cachecol
listrado de azul e branco, agarrado a um imenso urso de pelúcia enfeitado com um laço azul no pescoço e, no peito, algo que aos olhos espantados de Dalgliesh pareceu
uma medalha de peregrino. Poderiam muito bem constituir um grupo variegado de fãs a caminho de um jogo de futebol, mas, como Dalgliesh não pôde deixar de pensar,
um grupo de fãs sem a menor esperança de ver o time ganhar.
Wilfred cuidava com doçura do que sobrara de bagagem. Ele, Eric Hewson e Dennis Lerner trajavam as vestes castanhas de monge. Dennis parecia bastante doente, o rosto
retesado de dor e os olhos semicerrados, como se não conseguisse suportar nem mesmo a luminosidade baça daquela manhã. Dalgliesh escutou Eric sussurrando:
- Pelo amor de Deus, Dennis, desista e fique! Com duas cadeiras de rodas a menos, podemos dar conta de todos sem problema.
A voz ardida de Dennis Lerner saiu com um quê de histeria.
- Vai passar. Você sabe que nunca dura mais que vinte e quatro horas. Pelo amor de Deus, me deixe em paz!
Por fim toda a parafernália médica, decentemente coberta, foi embarcada, a rampa recolhida, a porta traseira fechou-se e eles partiram. Dalgliesh acenou de volta,
respondendo às mãos que abanavam com alvoroço, e ficou vendo o ônibus de cores vivas avançar devagar pelo promontório, parecendo, à medida que se afastava, tão vulnerável
quanto um brinquedo de criança. Ficou surpreso e também um tanto entristecido ao se pegar penalizado com a sorte de pessoas com quem tomara o máximo cuidado de não
se envolver. Continuou olhando até o ônibus chegar devagar ao topo do vale e mergulhar morro abaixo, sumindo de vista.
Agora não havia mais viva alma no promontório; a vila Toynton e as casinhas em volta estavam às escuras, desertas debaixo do céu carregado. Escurecera muito na última
meia hora. A tempestade viria antes do meio-dia. A cabeça de Dalgliesh já começara a doer, em antecipação aos trovões. Tudo descansava na calma sinistra que antecede
o campo escolhido para a batalha. Ouvia-se apenas o martelar do mar, mais uma vibração do que um barulho no ar denso, qual a ameaça sombria de canhões à distância.
Inquieto e teimosamente relutante em ir embora, agora que tinha plena liberdade de partir, caminhou até o portão da divisa para pegar seu jornal e alguma carta que
porventura houvesse. O ônibus devia ter parado para coletar a correspondência dos peregrinos, porque não havia nada na caixa de correio exceto um exemplar do Times,
um envelope pardo com jeito de algo oficial endereçado a Julius Court e outro, quadrado, para o padre Baddeley. Enfiando o jornal debaixo do braço, Dalgliesh rasgou
o envelope de papel de linho e foi lendo enquanto andava. A carta fora escrita com uma letra firme, forte e masculina; o endereço impresso na folha timbrada era
de um decanato nos condados centrais. O autor se desculpava por não ter respondido antes à carta do padre Baddeley, mas é que só fora recebê-la na Itália, onde fazia
uma substituição durante o verão. Ao final das indagações convencionais, do metódico registro de preocupações com a família e com a diocese, dos comentários superficiais
e previsíveis sobre o estado das questões públicas, vinha a resposta ao mistério do chamado do padre Baddeley:
“Assim que cheguei, fui visitar seu jovem amigo, Peter Bonnington, mas ele já estava morto fazia alguns meses, claro. Sinto muitíssimo. Diante das circunstâncias,
não me pareceu que fizesse sentido perguntar se ele se sentia feliz na nova casa ou se tinha de fato manifestado o desejo de sair de Dorset. Espero que seu amigo
da vila Toynton tenha conseguido ir visitá-lo antes disso. A respeito do outro probleminha, não creio que possa lhe oferecer muitas diretrizes. Nossa experiência
aqui na diocese - onde, como você sabe, temos um interesse especial pelos infratores menores - diz que providenciar uma residência para ex-detentos, seja numa casa
ou no tipo de albergue auto-sustentado que tem em mente, exige muito mais capital do que o disponível. Você talvez pudesse comprar uma casa pequena, mesmo com os
preços atuais, mas seriam necessários ao menos dois funcionários com prática, para começar, e você precisaria arcar com todas as despesas até que a experiência deslanchasse.
Mas existem diversos albergues e organizações que adorariam poder contar com sua ajuda. Sem sombra de dúvida não poderia fazer melhor uso de seu dinheiro do que
esse, se por acaso já tiver tomado a decisão - o que me parece obviamente ser o caso - de não deixar suas economias para a vila Toynton. Acho que fez muito bem de
chamar seu amigo policial. Estou certo de que ele saberá melhor como aconselhá-lo.”
Dalgliesh quase riu alto. Ali estava um final irônico e congruente com o fracasso. Então era assim que tudo começara! Não havia nada de sinistro por trás da carta
do padre Baddeley, nenhuma suspeita de crime, nenhuma conspiração, nenhum homicídio oculto. Tudo o que ele queria, pobre velho inocente, ignorante das coisas do
mundo, era um conselho profissional sobre como comprar, equipar, contratar funcionários e prover um albergue para ex-infratores jovens com um total de dezenove mil
libras. Considerando a situação atual do mercado imobiliário e os índices de inflação, ele precisaria no mínimo de um gênio financeiro. Mas apelara para um policial,
talvez o único que conhecia. Apelara para um especialista em morte violenta. E por que não? Aos olhos do padre Baddeley, todos os policiais eram fundamentalmente
iguais, com experiência em crimes, familiarizados com criminosos e dedicados tanto à prevenção quanto à detecção. E eu não fiz nem uma coisa nem outra - foi a amarga
constatação de Dalgliesh. O fato é que o padre Baddeley estava atrás de conselhos profissionais, não de um conselho sobre como lidar com o mal. Nesse terreno, tinha
suas próprias normas infalíveis; nesse terreno, sentia-se em casa. Por algum motivo, com toda certeza relacionado com a transferência daquele jovem paciente desconhecido,
Peter Bonnington, o padre se desencantara com a vila Toynton. E queria um conselho sobre outras formas de usar suas economias. Típico da minha arrogância - pensou
Dalgliesh - imaginar que ele havia me chamado por algum outro motivo.
Enfiou a carta no bolso do paletó e, ainda andando, passou os olhos pelo jornal dobrado. Um anúncio destacou-se na página, com a clareza de um trecho que tivesse
sido sublinhado, cheio de palavras familiares saltando aos olhos.
Vila Toynton. Queremos comunicar a todos os nossos amigos que, a partir do dia em que voltarmos de nossa peregrinação de outubro, estaremos fazendo parte da grande
família da Fundação Ridgewell. Por favor, continuem se lembrando de nós em suas orações nestes tempos de mudança. Tivemos o contratempo de ver nossa lista de Amigos
extraviada e por isso pedimos que todos aqueles que desejem manter contato nos escrevam com urgência.
Wilfred Anstey, Diretor.
Mas é claro! A lista dos Amigos da Vila Toynton inexplicavelmente sumida desde a morte de Grace Willison, aqueles sessenta e oito nomes que Grace sabia de cor. Dalgliesh
estacou ainda debaixo do céu ameaçador e leu o anúncio outra vez. Com um jato de sangue, a emoção tomou conta de todo seu corpo, tão física e violenta quanto uma
fisgada no estômago. Sabia, com uma certeza imediata e animadora, que ali estava a ponta do novelo emaranhado. Bastaria puxar com todo o cuidado esse único fato
e a meada começaria a se desenrolar sem tropeços, como por milagre.
Se Grace Willison tinha sido assassinada, como ele estava certo de que fora, não obstante o resultado da autópsia, era por saber algo. Entretanto esse algo teria
de ser uma informação vital, algum conhecimento que só ela possuía. Ninguém mata só para silenciar suspeitas intrigantes porém inúteis sobre as andanças do padre
Baddeley na tarde em que Holroyd morrera. E ele passara a tarde na torre negra. Dalgliesh sabia e possuía a prova; talvez Grace Willison também soubesse. Mas nem
o palito de fósforo desfiado e o testemunho de Grace juntos teriam conseguido reabrir o caso. Com o padre Baddeley morto, o máximo que alguém poderia estranhar era
ele não ter mencionado nada sobre a presença de Julius Court no promontório. E Dalgliesh já até imaginava o sorriso sardônico e desdenhoso de Julius. Um velho doente
e cansado, sentado com o livro no colo, diante da janela leste. Quem poderia afirmar, agora, que não havia cochilado o tempo todo em que estivera na torre e que
voltara para a vila Toynton sem se dar conta de que lá embaixo na praia, fora de seu campo de visão, o grupo de resgate se esfalfava para transportar seu fardo?
Com Baddeley morto, seu testemunho silenciado para sempre, polícia nenhuma do mundo reabriria o caso com uma prova tão precária. O pior dano que Grace poderia ter
feito a si mesma teria sido deixar escapar que Dalgliesh não estava apenas convalescendo em Toynton, que ele desconfiava de algo. E, para ela, esse deslize poderia
muito bem ter alterado os pesos da balança entre a vida e a morte. Nesse caso, talvez tivesse se tornado perigosa demais para continuar viva. Não porque soubesse
que o padre Baddeley fora à torre negra na tarde do dia doze de setembro, e sim porque possuía informações mais específicas, mais valiosas. Havia uma única lista
com os nomes e endereços dos Amigos da Vila Toynton, e ela sabia todos de cor. Julius estava junto quando ela fizera essa afirmação. A lista poderia ser rasgada,
queimada, destruída por completo. Mas só havia uma maneira de garantir que aqueles sessenta e oito nomes fossem apagados da consciência de uma mulher inválida.
Dalgliesh acelerou o passo. De repente, pegou-se quase correndo rumo ao fundo do vale. A dor de cabeça sumira como que por encanto, apesar do céu baixo e do ar denso,
carregado de tempestade. Era só trocar a metáfora, ainda banal, mas sempre válida. Naquele serviço, o mais importante não era a última peça do quebra-cabeça, a mais
fácil de todas. Não. Era o pedacinho bobo deixado de lado que, encaixado no devido lugar, de repente dava sentido a tantas outras peças descartadas. Cores ilusórias
e aspectos amorfos, ambíguos, juntavam-se como agora para revelar os primeiros contornos reconhecíveis da imagem final.
E, estando aquela peça no lugar, chegara a hora de experimentar com as outras, de movê-las pelo tabuleiro. Por enquanto, era esquecer as provas, os relatório de
autópsia e todas as certezas jurídicas formais dos veredictos; esquecer o orgulho, o receio do ridículo e a relutância de se ver envolvido. Voltar ao princípio número
um de todo detetive de polícia ao farejar alguma vilania em seu território. Cui bono? Quem estava vivendo acima de suas posses? Quem gastava mais dinheiro do que
parecia ter? Havia duas pessoas assim na vila Toynton, e ambas estavam ligadas pela morte de Holroyd. Julius Court e Dennis Lerner. Julius, que tinha dito que sua
resposta para a torre negra era o dinheiro e o consolo que com ele se podia comprar: beleza, lazer, amigos, viagens. Como é que uma herança de trinta mil libras,
por mais bem investida que tivesse sido, lhe permitia viver como vivia no momento? Julius, que ajudava Wilfred na contabilidade e que sabia melhor do que ninguém
como andavam precárias as finanças da vila Toynton. Julius, que nunca ia a Lourdes porque não era “sua praia”, mas que fazia questão de receber os peregrinos com
uma festa de boas-vindas. Julius, que fora tão insolitamente prestativo quando o ônibus do grupo sofrera um acidente, indo na mesma hora até o local, encarregando-se
de tudo, comprando um novo ônibus adaptado para cadeiras de rodas, para que eles se tornassem independentes. Julius, que fornecera a prova para isentar Dennis Lerner
de qualquer suspeita em torno do assassinato de Holroyd.
Dot o acusara de usar a vila Toynton. Dalgliesh lembrou-se da cena junto ao leito de morte de Grace: a explosão da enfermeira, o primeiro olhar de incredulidade
de Julius, a rápida reação rancorosa. Mas e se por acaso ele estivesse usando o lugar para propósitos mais específicos do que usufruir do prazer insidioso do patronato
e da generosidade fácil? Usando a vila Toynton? Usando os peregrinos? Planejando para preservar a ambos, porque ambos lhe eram essenciais?
E que dizer de Dennis Lerner? Dennis, que continuava trabalhando na vila Toynton, recebendo menos do que o salário normal de um assistente de enfermagem e que no
entanto podia sustentar a mãe numa casa de repouso caríssima. Dennis, que superou resolutamente o medo a fim de sair para escalar com Julius. Que melhor oportunidade
haveria para se encontrar e conversar com absoluta privacidade, sem despertar suspeitas? E que conveniente o fato de Wilfred ter se assustado com a corda esgarçada
a ponto de abandonar o esporte. Dennis, a quem ninguém conseguiria convencer de abrir mão de uma peregrinação, mesmo quando, como acontecera dessa vez, mal conseguia
se suster nas pernas, de tanta enxaqueca. Dennis, que estava encarregado de distribuir o creme de mão e os sais de banho e que empacotava boa parte da mercadoria
sozinho.
E isso explicava a morte do padre Baddeley. Dalgliesh nunca conseguira acreditar que seu amigo tivesse sido assassinado para não revelar o fato de não ter visto
Julius passar pelo promontório na tarde em que Holroyd morrera. Na ausência de provas concretas de que ele não havia cochilado nem um minuto diante da janela da
torre, qualquer alegação com base num depoimento do padre, afirmando que Julius mentira, teria sido, quem sabe, um tanto embaraçosa, mas nem um pouco perigosa. Mas
e se por acaso a morte de Holroyd fizesse parte de uma conspiração bem maior e mais sinistra? Então sim talvez fosse necessário apagar - e com que simplicidade!
- um observador teimoso, inteligente e sempre presente, que não poderia ter sido silenciado de nenhuma outra forma, depois de farejar a presença do mal. O padre
Baddeley fora levado ao hospital antes de saber da morte de Holroyd. Mas, logo que soube, claro que entendeu o significado daquilo que deixara de notar. E tomou
uma providência. Fez um telefonema para Londres, para um número que precisou procurar na lista. Marcou um encontro com seu assassino.
Dalgliesh continuou avançando a passos rápidos, sem parar no bangalô Esperança, e, numa decisão quase inconsciente, rumou para a vila Toynton. A pesada porta da
frente abriu-se a um toque. Sentiu, de novo, aquele cheiro quase intimidante de especiarias, mascarando odores mais sombrios e menos apetitosos. O saguão faiscava
feito um set de filmagem deserto. O chão de mármore branco e preto que ofuscava a vista era um tabuleiro gigante de xadrez à espera de que as peças assumissem seus
lugares.
Percorreu os aposentos vazios, acendendo as luzes à medida que avançava. Sala após sala, tudo se iluminou. Pegou-se tocando em mesas e cadeiras ao passar, como se
a madeira fosse um talismã, olhando atentamente em volta, com o olho precavido de um viajante retornando sem ser querido a uma casa deserta. Em silêncio, continuou
mexendo as peças do quebra-cabeça. O ataque contra Wilfred Anstey, o último e o mais perigoso, na torre negra. O próprio Anstey tomara aquilo como a tentativa final
de forçá-lo a vender a propriedade. E se por acaso o atentado tivesse sido realizado não para fechar a vila Toynton, e sim para assegurar seu futuro? Tendo em vista
os parcos recursos restantes, claro que a melhor maneira de garantir esse futuro seria transferir tudo para uma organização de renome e finanças sólidas. E, de fato,
foi o que Anstey fez. Convencido pela natureza do último ataque, o mais perigoso, de que aquilo não poderia ter sido obra de nenhum paciente e de que seu sonho continuava
intacto, ele transferira seu legado. A vila Toynton continuaria. As peregrinações continuariam. Será que era isso que alguém - alguém que sabia muito bem como era
precária a situação da instituição - planejara o tempo todo? O que esse alguém pretendera?
A visita de Holroyd a Londres. Sem sombra de dúvida durante aquela viagem, de alguma maneira, ele tomara conhecimento de algo que o fizera voltar à vila Toynton
inquieto e exultante. Esse algo o tornara perigoso demais para continuar vivendo? Dalgliesh havia presumido que o advogado lhe passara alguma informação, talvez
sobre seus próprios interesses financeiros ou os da família Anstey. Entretanto a visita ao advogado não fora o objetivo principal da viagem. Holroyd e os Hewsons
também tinham ido ao hospital St. Saviour, o hospital onde Anstey fora tratado. E lá, além da consulta que Holroyd fizera com o especialista, eles visitaram o departamento
de fichas médicas. Maggie não tinha dito, naquele primeiro dia, quando ele a conheceu: “Ele não se deu nem ao trabalho de voltar ao hospital para que pudessem registrar
a cura milagrosa em sua ficha. Teria sido uma grande piada, se ele tivesse dado uma passadinha por lá”? E se por acaso Holroyd tivesse constatado algum fato em Londres,
mas constatado não de modo direto, e sim por alguma confidência de Maggie Hewson, feita, quem sabe, durante um daqueles longos passeios que os dois costumavam dar
pelo penhasco? Lembrava-se ainda das palavras dela:
“Eu já disse que não vou contar nada, e não vou. Mas se você continuar me azucrinando com isso, eu posso mudar de idéia”. E, depois: “E daí que eu contei? Ele não
era nenhum idiota. Sabia que alguma coisa tinha. E ele está morto, mortinho da silva”. O padre Baddeley estava morto. Holroyd também. E Maggie. Haveria algum motivo
para que ela também tivesse de morrer, e naquele momento específico?
Mas era preciso calma, não devia botar o carro na frente dos bois. Tudo ainda não passava de conjectura, de especulação. Verdade que essa era a única teoria que
se encaixava a todos os fatos. Mas não era uma prova. Dalgliesh continuava sem evidências concretas de que qualquer das mortes da vila Toynton tivesse sido criminosa.
Uma coisa porém era certa: se acaso a morte de Maggie houvesse sido assassinato, então de alguma forma ela fora persuadida a ser cúmplice do próprio homicídio.
De repente se deu conta de que escutava um leve borbulhar e sentiu o cheiro forte de graxa e sabão quente, vindo dos lados da cozinha. A própria cozinha fedia tanto
quanto uma lavanderia vitoriana. Havia um balde de panos de prato fervendo no fogão a gás antiquado. Na confusão da partida, Dot Moxon devia ter se esquecido de
desligar o fogo. Os panos acinzentados encrespavam-se por sobre a espuma de cheiro repugnante e o fogão estava salpicado de manchas de sabão ressequido. Desligou
o gás, e os panos de prato mergulharam de volta em seu banho turvo. Com o estalido dado pela chama derradeira, o silêncio de repente se intensificou; era como se
Dalgliesh tivesse desligado o último vestígio de vida humana.
Passou então para a sala de atividades. As mesas de trabalho tinham sido cobertas por panos, para não acumular poeira. Dava para discernir o contorno da fileira
de garrafas plásticas e as latas de sais de banho à espera de serem peneirados e empacotados. O busto de Anstey modelado por Henry Carwardine continuava em sua base
de madeira. Fora coberto com um saco plástico e amarrado na garganta com o que parecia ser uma das velhas gravatas de Carwardine. O efeito era deveras sinistro:
as feições nebulosas debaixo da mortalha transparente, os buracos dos olhos vazios, o nariz afilado empurrando o plástico fino, tudo transmitia a imagem poderosa
de uma cabeça decepada.
No escritório no fim do anexo, a mesa de Grace Willison continuava solidamente debaixo da janela de face norte, com a máquina de escrever protegida pela capa cinzenta.
Dalgliesh abriu as gavetas. Estavam, como esperava, impecáveis: a pilha de papel de carta timbrado, os envelopes separados por tamanho, as fitas de máquina, os lápis,
as borrachas, o papel-carbono ainda na caixa, as folhas de etiquetas adesivas nas quais datilografava os nomes e endereços dos Amigos, tudo se encontrava na mais
perfeita ordem. Faltava apenas a lista encadernada dos nomes, a lista dos sessenta e oito endereços, um dos quais em Marselha. E ali, impresso naquele catálogo e
na mente de Grace Willison, estava o elo vital na corrente de morte e cobiça.
A heroína viajara muito, antes de ser finalmente embalada no fundo de uma lata de sais de banho na vila Toynton. Dalgliesh era capaz de recriar cada estágio daquele
trajeto com toda a clareza, como se ele próprio o tivesse percorrido. Os campos de papoula nos altos planaltos da Anatólia, as gordas sementes destilando sua seiva
leitosa. A transformação secreta do ópio bruto em pasta de morfina mesmo antes de sair das montanhas. A longa viagem por terra, ar ou mar até Marselha, um dos principais
portos distribuidores do mundo. O refino em heroína pura em um dos tantos laboratórios clandestinos. E então o encontro combinado entre as multidões de Lourdes,
talvez durante uma missa, o pacote passado num piscar de olhos para a mão ansiosa. Lembrou-se de sua primeira noite em Toynton, empurrando Henry Carwardine promontório
acima, e dos grossos puxadores revestidos de borracha retorcendo-se sob suas mãos. Nada mais simples do que tirar a borracha, enfiar um saquinho plástico no oco
do puxador e prender a boca do saquinho no metal com fita adesiva. A operação toda não levaria mais que um minuto. E não faltariam oportunidades. Philby não acompanhava
as peregrinações. O encarregado das cadeiras de rodas seria Dennis Lerner. Para um traficante de drogas, haveria jeito mais seguro de passar pela fronteira do que
fazer parte integrante de uma peregrinação conhecida e respeitada? E tudo fora planejado com máximo cuidado, eles não tinham como errar. Os fornecedores precisavam
saber com antecedência a data de cada peregrinação, assim como os fregueses e distribuidores precisavam saber quando o próximo carregamento chegaria. Pois bem. Bastava
um inócuo boletim informativo divulgado por uma respeitável entidade beneficente, um boletim despachado com o maior zelo e na maior inocência todo trimestre por
Grace Willison.
E havia aquele depoimento de Julius num tribunal francês, o álibi que ele fornecera ao assassino. Quer dizer então que não fora uma concessão relutante à chantagem,
que não fora um pagamento por serviços prestados, e sim um adiantamento por serviços a serem prestados? Ou será que, como sugerira o informante de Bill Moriarty,
Julius não tivera outro motivo para dar um álibi a Michonnet além do prazer perverso de atrapalhar a polícia francesa, prestar um serviço gratuito a uma família
poderosa e causar o máximo constrangimento possível a seus superiores? Era possível. Talvez não esperasse nem quisesse outras recompensas. Mas e se viessem lhe oferecer?
Se tivessem explicado com muita diplomacia a existência de uma determinada mercadoria que poderia ser fornecida em quantidades muito limitadas se ele conseguisse
encontrar uma forma de contrabandeá-la para a Inglaterra? Mais tarde, teria ele conseguido resistir à tentação da vila Toynton e de suas peregrinações semestrais?
E era tudo tão fácil, tão simples, tão seguro. E tão absurdamente lucrativo. Qual era a cotação atual da heroína? Algo em torno de cento e trinta libras o grama.
Julius não precisava lidar com grandes carregamentos nem complicar demais seu sistema de distribuição; bastavam um ou dois agentes confiáveis para lhe garantir um
belo rendimento. Trezentos gramas que ele trouxesse de cada vez comprariam todo o lazer e toda a beleza que um homem podia desejar. E, com a transferência para a
Fundação Ridgewell, o futuro estava garantido. Dennis Lerner manteria o emprego. As peregrinações continuariam. Haveria outras casas de repouso para explorar, outras
peregrinações. E Lerner estava em suas mãos. Mesmo que o boletim fosse cancelado e a instituição não precisasse mais vender cremes de mão e sais de banho para ajudar
no orçamento, ainda assim a heroína poderia continuar entrando. Os acertos para notificação e distribuição eram problemas logísticos de somenos importância, comparados
ao problema fundamental de passar a droga em segurança e com regularidade pelo porto.
Por enquanto, porém, não havia uma prova. Mas com sorte, e se estivesse correto, haveria, dali a três dias. Podia ligar para a polícia local e deixar a cargo deles
entrar em contato com a divisão antidrogas. Melhor ainda: poderia ligar para o inspetor Daniel e combinar de ir vê-lo, antes de voltar a Londres. O sigilo era essencial.
Não podia haver o menor risco de suspeita. Bastaria um telefonema para Lourdes para cancelar o carregamento e deixá-lo sem nada nas mãos, a não ser uma miscelânea
de suspeitas semiformuladas, coincidências e alegações não confirmadas.
O telefone mais próximo, segundo se lembrava, era o da sala de jantar. Dava linha para fora e estava ligado ao PABX. Mas quando ergueu o fone, percebeu que o aparelho
estava mudo. Sentiu a irritação costumeira e momentânea que todos temos sempre que um equipamento que entrou para o nosso cotidiano se vê reduzido a uma pelota ridícula
e inútil de plástico e metal; refletiu que uma casa com um telefone mudo sempre parece muito mais isolada do que outra que simplesmente não tenha telefone. Interessante,
quem sabe até significativo, que a linha tivesse emudecido. Mas tudo bem. Ele se poria a caminho e torceria para que o inspetor Daniel estivesse na delegacia. Nessa
fase em que sua teoria não passava de conjectura, não gostaria de falar a respeito com mais ninguém. Repôs o fone no gancho. Uma voz da soleira da porta disse:
- Problemas, comandante?
Julius Court devia ter entrado feito um gato na casa. E lá estava ele, parado com um dos ombros encostado de leve no batente e as duas mãos enterradas nos bolsos
do paletó. A aparência despreocupada era enganosa. O corpo, equilibrado na planta dos pés como se pronto para dar o bote, estava rígido de tensão. O rosto acima
da malha de gola alta era tão anguloso e definido quanto um entalhe, os músculos retesados sob a pele afogueada. O olhar fixo, de brilho estranho, cravou-se em Dalgliesh
com a concentração especulativa de um apostador vendo a roleta girar.
Com calma, Dalgliesh disse:
- Pelo visto enguiçou. Mas não importa. Minha cozinheira há de saber que eu cheguei quando me vir.
- Costuma vagar pela casa dos outros quando quer dar seus telefonemas particulares? O PABX fica no escritório. Não sabia disso?
- Duvido que tivesse tido mais sorte por lá.
Olhavam um para o outro em silêncio dentro do silêncio maior. Do outro lado do aposento, Dalgliesh podia reconhecer e seguir o processo mental do adversário com
a mesma clareza que teriam os pensamentos de Julius caso estivessem sendo registrados num gráfico, a agulha negra reproduzindo os contornos da decisão. Não havia
uma luta interior. Tratava-se apenas de pesar as probabilidades.
Quando Julius tirou finalmente a mão do bolso, devagar, foi quase com alívio que Dalgliesh viu o cano da Luger. O jogo estava feito. Agora não havia mais como retroceder
nem fingir, não havia mais incerteza.
Em voz baixa, Julius disse:
- Não se mexa, eu tenho uma pontaria excelente. Sente-se e ponha as mãos sobre a mesa. Agora me conte como foi que descobriu. Estou presumindo que tenha descoberto.
Se não sabe de nada, então errei nos cálculos. Você vai morrer, eu vou ter um trabalho danado e no fim vamos ambos ficar bastante chateados de saber que não teria
sido necessário.
Com a mão esquerda, Dalgliesh tirou a carta do bolso do paletó e empurrou-a pelo tampo da mesa.
- Isso pode lhe interessar. Chegou hoje de manhã, endereçado ao padre Baddeley.
Os olhos cinzentos não se desgrudaram dos dele.
- Desculpe. Claro que se trata de algo fascinante, mas estou preocupado com outros assuntos. Leia para mim.
- A carta explica por que ele queria falar comigo. Não precisava ter se dado ao trabalho de forjar uma carta anônima, nem destruir o diário dele. O problema não
era com você. E por que matá-lo, falando nisso? Ele estava na torre quando Holroyd morreu, sabia muito bem que não tinha cochilado e que você não passou pelo promontório
naquela hora. Mas será que isso seria motivo suficiente para dar cabo dele?
- Em se tratando de Baddeley, era. O velho tinha um instinto muito aguçado para tudo o que no vocabulário dele era chamado de mal. Vale dizer que era muito arraigada
a desconfiança que ele tinha de mim, sobretudo do que ele via como minha influência sobre Dennis. A meu ver, estávamos encenando nossa comediazinha particular num
nível irreconhecível pelos métodos de praxe da Polícia Metropolitana. E que só poderia terminar de um jeito. Ele ligou para mim do hospital três dias antes de receber
alta. Eu estava em Londres, e ele me pediu para que fosse vê-lo no dia 26 de setembro, depois das nove da noite. Fui preparado. Vim direto de Londres e deixei o
Mercedes naquela vala atrás da mureta de pedra, na estrada costeira. Peguei um dos hábitos do escritório enquanto estavam todos jantando. Depois fui a pé até o bangalô
Esperança. Se alguém tivesse me visto naquela hora, eu precisaria mudar de planos. Mas ninguém me viu. Ele estava sozinho, sentado diante do aquecedor elétrico,
à minha espera. Acredito que ele percebeu, uns dois minutos depois que eu entrei, que eu iria matá-lo. Não houve nem mesmo uma centelha de espanto quando apertei
o plástico no rosto dele. Plástico, note bem. Ele não deixa rastro nenhum de fibras, nem nas narinas nem na traquéia. Não que Hewson fosse notar, o pobre idiota.
O diário estava sobre a mesa e eu o levei embora, para o caso de ele ter anotado alguma coisa que me incriminasse. Ainda bem. Porque, como eu descobri, ele tinha
o costume maçante de anotar tintim por tintim tudo o que fazia e quando. Mas não fui eu que arrombei a escrivaninha. Não foi preciso. Podemos atribuir esse pecadilho
a Wilfred. Devia estar louco para ver o testamento do velho. Por falar nisso, não encontrei nem sinal do cartão que mandou, comandante, e desconfio que Wilfred não
se deu ao trabalho de olhar mais nada, depois que achou o testamento. É provável que o velho o tenha rasgado. Ele não gostava de guardar ninharias. Depois disso,
voltei e dormi com muito desconforto dentro do carro. Na manhã seguinte, tornei a pegar a estrada de Londres para cá e cheguei quando toda a comoção já tinha terminado.
Vi no diário que ele convidara alguém que respondia pelas iniciais A. D. para vir visitá-lo e que a pessoa chegaria em 1o de outubro. Me pareceu meio estranho. O
velho nunca recebia visitas. De modo que resolvi plantar a carta anônima uma noite antes da chegada do tal A. D., porque Baddeley podia ter lhe dito que alguma coisa
o preocupava. Confesso que foi um tanto desconcertante descobrir quem era o misterioso A. D. Se eu soubesse, talvez tivesse tentando algo mais sutil.
- E a estola? Ele estava usando a estola.
- Eu devia ter tirado, mas não se pode pensar em tudo. O problema foi que ele não acreditou que eu estivesse protegendo Dennis para poupar dissabores a Wilfred,
ou por pura bondade. Ele me conhecia bem demais. Quando me acusou de estar corrompendo Dennis e usando Toynton para propósitos só meus, eu disse que iria lhe contar
a verdade, que eu queria me confessar. Deve ter percebido, lá no íntimo, que isso significava a morte, que eu estava apenas me divertindo. Mas não podia se arriscar.
Se se recusasse a me levar a sério, então toda sua vida teria sido uma mentira. O padre hesitou por dois segundos apenas, depois pôs a estola em volta do pescoço.
- E não lhe deu o prazer de demonstrar nem uma faísca sequer de medo?
- Não, nada. E por que haveria? Éramos parecidos num aspecto. Assim como eu, ele não temia a morte. Não sei bem para onde achou que estava indo, já que teve tempo
de fazer só aquele último sinal arcaico de lealdade, mas, qualquer que fosse esse lugar, ao que tudo indica não viu motivos para sentir receio. Eu também não vejo.
Sei, com a mesma certeza que ele possuía, o que virá depois de minha morte. O nada. Seria insensato ter medo. E eu não sou tão insensato assim. Perdido o medo da
morte, de forma absoluta, total, todos os outros medos também perdem o sentido. Nada pode afetá-lo. Só é preciso manter à mão os meios para alcançá-la. Aí, então,
somos invulneráveis. Peço desculpas por ter de ser, no meu caso, uma arma de fogo. Sei muito bem que no momento pareço melodramático, ridículo. Mas não consigo me
imaginar dando cabo de minha vida de outra forma qualquer. Afogado? Aquele vagalhão de água sufocante? Drogas? Algum idiota enxerido pode me trazer de volta à vida.
Além do mais, eu tenho muito medo do território de sombras entre a vida e a morte. Uma faca? Muita sujeira, além da incerteza do resultado. Tenho três balas aqui
dentro, Dalgliesh. Uma para você e, caso seja preciso, duas para mim.
- Quando se negocia com a morte, como é o seu caso, não resta dúvida de que o melhor é entrar num acordo.
- Todos os que usam drogas pesadas desejam morrer. Você sabe disso tão bem quanto eu. E não existe maneira melhor de obtê-la com tão poucos incômodos e tamanho lucro
para terceiros, e também com tanto prazer para si, ao menos no início.
- E Lerner? Imagino que você esteja pagando a mensalidade da casa de repouso da mãe dele. E quanto vem a ser isso, umas duzentas libras por mês? Você conseguiu o
rapaz bem barato. Mesmo assim, ele devia saber o que estava trazendo.
- O que está trazendo, daqui a três dias. O que continuará trazendo. Eu disse a ele que era maconha, uma droga inofensiva, uma droga que a excessiva sensibilidade
do nosso governo relegou à ilegalidade, mas uma droga que meus amigos londrinos adoram e pela qual estão dispostos a desembolsar um bom dinheiro. Ele optou por acreditar
em mim. Ele sabe a verdade, mas não admite nem para si mesmo que sabe. O que é razoável, e até sensato; eu diria que é uma ilusão necessária. É assim que todos nós
conseguimos ir vivendo. Você deve saber que seu trabalho é um trabalho sujo, vigaristas pegando vigaristas, e que está desperdiçando sua inteligência. Mas não se
pode dizer que fosse contribuir com sua paz de espírito admitir o fato. E, se algum dia resolvesse largar tudo, não daria isso como motivo. Está pensando em largar,
por falar nisso? Não sei por quê, mas fiquei com a impressão que sim.
- O que demonstra certo discernimento. Andei pensando no assunto. Mas agora não mais.
A decisão de continuar, conquanto Dalgliesh não soubesse quando nem como fora tomada, lhe parecia tão irracional quanto a decisão de se demitir. Não era uma vitória.
Nem sequer uma espécie de derrota. Mas haveria tempo de sobra, caso ele vivesse, para analisar as vicissitudes daquele conflito pessoal. Assim como o padre Baddeley,
um homem vive e morre como tem de viver e morrer. Escutou a voz irônica de Julius.
- Uma pena. Mas, como parece que este vai ser seu último trabalho, por que não me conta como foi que descobriu?
- Será que há tempo? Eu não gostaria de gastar meus cinco minutos finais narrando um caso de incompetência profissional. Não me traria nenhuma satisfação e não vejo
por que satisfazer sua curiosidade.
- De fato. Mas isso seria mais do seu interesse do que do meu. Uma forma de ganhar tempo, percebe? Além do mais, se por acaso for fascinante o suficiente, talvez
eu baixe a guarda, o que lhe daria a chance de avançar ou de jogar uma cadeira contra mim, ou seja lá o que for que vocês da polícia são treinados para fazer em
situações como essa. Talvez apareça alguém. Quem sabe eu até mude de idéia.
- E mudaria?
- Não.
- Então, por favor, satisfaça minha curiosidade. Posso adivinhar o que houve com Grace Willison. Assim que concluiu que eu estava começando a ficar desconfiado demais,
você a matou, do mesmo jeito como matou o padre Baddeley, porque ela sabia de cor os nomes constantes da lista de Amigos, a lista que incluía seus distribuidores.
Mas por que Maggie Hewson teve de morrer?
- Por causa de algo que ela sabia. Não conseguiu adivinhar isso? Então eu o superestimei. Ela sabia que o milagre de Wilfred era um engodo. Eu levei os Hewsons a
Londres, junto com Victor, para a consulta dele no St. Saviour. Eric e Maggie aproveitaram para ir até o departamento de fichas médicas dar uma olhada na pasta de
Wilfred. Imagino que queriam satisfazer uma curiosidade profissional e natural, enquanto estavam ali. Descobriram que ele nunca sofreu de esclerose múltipla e que
os últimos testes mostraram ter havido um erro de diagnóstico. Ele sofria apenas de paralisia histérica. Mas isso talvez lhe seja chocante demais, comandante, já
que é um pseudocientista, não é isso? Deve ser duro ter de aceitar que a tecnologia médica às vezes erra.
- Não. Eu acredito na possibilidade de diagnósticos equivocados.
- Wilfred, pelo visto, não compartilha de seu saudável ceticismo. Nunca mais botou os pés no hospital para fazer um exame, de modo que ninguém se deu ao trabalho
de lhe escrever, avisando sobre o pequeno erro cometido. Nem havia por quê. Entretanto os Hewsons não conseguiram ficar de boca fechada. Contaram para mim e, em
seguida, Maggie deve ter contado para Holroyd. É muito provável que ele tenha farejado algo no ar, na volta de Londres. Tentei suborná-la com uísque, para que não
contasse nada a ninguém. Ela chegou até a acreditar na minha preocupação pelo nosso querido Wilfred, e a coisa funcionou até ele a excluir da decisão sobre o futuro
da casa de repouso. Maggie ficou furiosa. Me contou que planejava invadir a segunda sessão, depois da meditação, e anunciar publicamente a verdade. Eu não podia
correr esse risco. Essa era a única coisa, na verdade, que poderia forçá-lo a vender. Que teria interrompido a transferência para a Fundação Ridgewell. A vila Toynton
e as peregrinações tinham de continuar.
Dalgliesh escutava.
- Claro que ela não se sentia muito inclinada a presenciar o escarcéu que viria depois desse anúncio; portanto foi muito fácil convencê-la a abandonar o pessoal
da vila Toynton às voltas com suas diversas reações à notícia e escapar comigo para a cidade, logo depois. Sugeri que deixasse um bilhete deliberadamente ambíguo,
algo que pudesse ser lido também como um bilhete suicida. Depois poderia voltar a Toynton, quando e se sentisse vontade, para ver como Eric estaria reagindo no papel
de viúvo potencial. Era o tipo de gesto histriônico que nossa cara Maggie adorava. Iria tirá-la de uma situação meio delicada aqui, daria o máximo de preocupação
e transtornos tanto a Wilfred quanto a Eric e ainda lhe propiciaria umas férias grátis em meu apartamento londrino, junto com muita emoção se e quando ela resolvesse
voltar. Ela inclusive se ofereceu para pegar ela mesma a corda. Ficamos lá bebendo até o ponto em que não dava mais para ela suspeitar de nada, de tão bêbada, mas
ainda era capaz de escrever o bilhete. As últimas linhas, garatujadas, mencionando a torre negra, foram, claro, acrescentadas por mim.
- Então por isso ela tinha tomado banho e estava vestida para sair.
- Claro. Toda enfeitada para fazer uma entrada triunfal na vila Toynton e também, acredito eu, para me impressionar. Sem querer me vangloriar, fiquei satisfeito
de ver que mereci calcinha limpa e unhas pintadas. Não sei direito o que ela achou que eu tinha em mente para nós, quando chegássemos a Londres. Nossa caríssima
Maggie nunca foi muito sintonizada com a realidade. Botar o diafragma na bolsa talvez tenha sido um gesto mais otimista do que discreto. Mas quem sabe tinha lá seus
planos próprios. A coitadinha sem sombra de dúvida estava nas nuvens só de imaginar que iria sair daqui. Morreu feliz, garanto.
- E, antes de deixá-la, você deu o sinal com as luzes.
- Eu precisava de uma desculpa para aparecer lá e encontrar o corpo. Achei mais prudente acrescentar uma certa verossimilhança. Naquele exato momento, alguém poderia
ter olhado por uma janela e seria então capaz de confirmar minha história. Só não esperava que fosse nosso digníssimo comandante. Encontrá-lo lá, muito ocupado fazendo
as vezes de bom escoteiro, não foi das coisas mais agradáveis. E que teimosia, a sua, de não querer largar o corpo.
Quase tão desagradável, pensou Dalgliesh, quanto encontrar Wilfred quase morto por causa da fumaça. De fato, não tinha havido nada de falso no terror de Julius,
tanto naquela ocasião quanto depois, na morte de Maggie.
- E Holroyd foi atirado do penhasco pelo mesmo motivo, para impedi-lo de falar?
Julius riu.
- Isso irá diverti-lo muito; foi uma ironia deliciosa. Eu nem sequer sabia que Maggie havia contado tudo para Holroyd, até o dia em que dei um aperto nela, mas até
aí ele já tinha morrido. E Dennis Lerner até hoje não sabe de nada. O que aconteceu foi que Holroyd começou a atormentar Dennis, como ele sempre fazia. Dennis já
estava mais ou menos imune às provocações dele, de modo que apenas se afastou um pouco, levando seu livro. Aí então Holroyd enveredou por uma trilha mais sinistra
de tormentos. Começou a gritar com Dennis. Perguntou o que Wilfred diria quando soubesse que sua preciosa peregrinação era uma fraude, que a vila Toynton estava
alicerçada numa mentira. Aconselhou Dennis a tirar proveito máximo da peregrinação seguinte, porque com toda a certeza seria a última. Dennis entrou em pânico; pensou
que Holroyd tinha descoberto tudo sobre o tráfico de drogas. Nem parou para se perguntar como ele poderia ter descoberto. Depois me contou que não se lembrava nem
de ter levantado do chão, soltado os freios e atirado a cadeira para a frente. Mas fez isso tudo, claro. Não havia mais ninguém por lá. E a cadeira não poderia ter
caído onde caiu se não tivesse sido atirada com uma força considerável. Eu estava na praia, bem embaixo deles, quando Holroyd despencou. Um dos aspectos mais irritantes
a respeito desse homicídio foi que nunca recebi manifestação alguma de simpatia pela experiência traumática de vê-lo se arrebentar a vinte metros de onde eu estava.
Espero receber agora.
Em seu íntimo, Dalgliesh concluiu que aquele crime devia ter sido duplamente oportuno para Julius. Além de tirar Holroyd e seu perigoso conhecimento do caminho,
colocava Dennis Lerner na palma de sua mão. Em voz alta, disse:
- E então se livrou das duas peças laterais da cadeira de rodas enquanto Lerner ia buscar ajuda.
- Coisa de cinqüenta metros adiante, no fundo de uma fenda entre dois rochedos. Naquele momento me pareceu uma forma sensata de complicar o caso. Sem os freios de
mão, ninguém poderia saber ao certo se tinha sido um acidente ou não. Mas, pensando melhor, depois, percebi que deveria ter deixado tudo como estava. Que se pensasse
que Holroyd se suicidara. Em essência, foi o que ele fez. Consegui convencer Dennis disso.
- E agora, o que vai fazer?
- Meter uma bala na sua cabeça, esconder seu corpo no seu carro e me livrar dos dois ao mesmo tempo. É um método banal de homicídio, admito, mas funciona, que eu
sei.
Dalgliesh riu. Surpreendeu-se com a espontaneidade do som.
- Quer dizer então que pretende dirigir uns oitenta quilômetros, imagino eu, num carro muito fácil de ser identificado, com o corpo do comandante da Polícia Metropolitana
no porta-malas. Porta-malas do próprio comandante, diga-se de passagem. Uma série de conhecidos meus que estão agora nas alas de segurança máxima das penitenciárias
de Parkhurst e Durham sem dúvida alguma hão de admirar tamanho sangue-frio, mesmo que não vejam com muito bons olhos a perspectiva de tê-lo por companhia. Eles são
um bando pouco civilizado. Não creio que tenham muita coisa em comum, você e eles.
- Eu corro o risco. Mas você morre.
- Claro. Assim como você, a partir do momento em que a bala entrar em mim, a menos que veja a prisão perpétua como vida. Mesmo que você tente falsificar as impressões
digitais no gatilho, eles saberão que eu fui assassinado. Não sou bem o tipo de pessoa que se mata ou pega o carro e vai até um bosque ou uma pedreira distante para
meter uma bala na cabeça. Os peritos vão fazer a festa com os vestígios encontrados.
- Isso se encontrarem o corpo. Quanto tempo eles vão levar para começar a procurar? Três semanas?
- Mas, quando começarem, vai ser uma busca bem minuciosa. Se não é difícil para você encontrar um bom lugar para se livrar de mim, para eles também não será. E não
pense que a polícia não consegue ler um bom mapa. E como é que pretende voltar para cá? Pegando um trem em Bournemouth ou Winchester? Pedindo carona, alugando uma
bicicleta, caminhando durante a noite? Realmente não vai dar para voltar a Londres de trem e fingir que embarcou em Wareham. A estação é pequena e todos o conhecem
por lá. Indo ou voltando, você será notado.
Pensativo, Julius retrucou:
- Você tem razão, claro. Então vai ser o penhasco. Eles vão ter que pescar você do mar.
- Com uma bala na cabeça? Ou será que espera que eu pule da beirada só para agradá-lo? Também pode tentar a força física, óbvio, mas nesse caso terá de chegar perigosamente
perto, perto o bastante para uma luta. Nós até que somos bastante equilibrados, em tamanho. Presumo que não pretenda despencar junto comigo. Assim que eles encontrarem
o corpo e a bala, você estará acabado. As pistas começam por aqui, não se esqueça disso. Fui visto com vida pela última vez quando o ônibus da vila Toynton partiu,
e não ficou ninguém aqui, a não ser nós dois.
Foi então que, ao mesmo tempo, ambos ouviram a porta da frente bater. O ruído, nítido como um tiro, foi seguido pelo ressoar de passos, pesados e firmes, cruzando
o saguão da frente.
III
Julius disse mais que depressa:
- Se der um pio, eu mato os dois. Levante-se e fique do lado esquerdo da porta.
Os passos que cruzavam o vestíbulo central produziram um ruído sobrenatural, alto demais para o silêncio lúgubre. Tanto Dalgliesh quanto Julius estavam com a respiração
suspensa. Philby parou na soleira.
Viu a arma na hora. Os olhos se arregalaram e em seguida piscaram algumas vezes, bem rápido. Olhava de um para outro. Quando falou, a voz soou roufenha, como quem
pedisse desculpas. E falou direto com Dalgliesh, feito uma criança explicando uma travessura.
- Wilfred me mandou voltar antes. Dot achou que tinha esquecido o fogo ligado.
E, de novo, os olhos se voltaram para Julius. Dessa vez, o terror era inegável. Foi o tempo de ele dizer “Ah, não!” e Julius disparou. O estalo do revólver, ainda
que aguardado, foi estridente. E inacreditável. O corpo de Philby se enrijeceu, depois oscilou e em seguida tombou para trás, como uma árvore derrubada, com um estrondo
que chacoalhou o aposento. A bala tinha entrado exatamente entre um olho e outro. Dalgliesh sabia que fora esse o lugar que Julius tivera a intenção de acertar,
que ele usara esse homicídio necessário para demonstrar que sabia manejar uma arma. Aquilo fora um treino. Com toda a calma, já com o cano apontado de novo para
Dalgliesh, ele disse:
- Vá até ele.
Dalgliesh curvou-se junto do morto. Os olhos ainda pareciam manter aquela última expressão de espanto aturdido. A ferida era uma pequena fenda viscosa no semblante
grosseiro, tão insignificante que poderia ter sido usada por peritos em balística para demonstrar os efeitos de um disparo a menos de dois metros. Não havia marcas
de pólvora e, por enquanto, havia pouquíssimo sangue, apenas uma mancha na pele provocada pela entrada da bala. Era um estigma preciso, quase decorativo, que não
dava a menor pista do tumulto destrutivo ocasionado por dentro.
Julius disse:
- Agora estamos quites por aquela estatueta quebrada. A bala saiu?
Dalgliesh virou a cabeça de Philby com delicadeza.
- Não. Deve ter atingido um osso.
- Essa foi a minha intenção. O que nos deixa duas balas. Entretanto isso foi um bônus excelente, comandante. Enganou-se a respeito de eu ser a última pessoa a vê-lo
com vida. Vou me afastar daqui, para forjar meu álibi, e, aos olhos da polícia, a última pessoa a vê-lo com vida terá sido Philby, um criminoso com fortes tendências
à violência. Dois corpos no mar, ambos com marcas de bala. Uma arma, devidamente registrada e com porte, devo acrescentar, roubada da minha gaveta de cabeceira.
E então deixamos a polícia bolar uma teoria para explicar os fatos. Não há de ser difícil. Tem algum sangue?
- Ainda não. Mas haverá. Não muito, porém.
- Não me esquecerei disso. Nada mais simples do que limpar sangue de linóleo. Pegue aquele capuz de plástico que está no busto de Wilfred e amarre na cabeça dele.
Use a gravata dele mesmo. E depressa. Vou estar seis passos atrás. E, se me deixar impaciente, posso achar que vale mais a pena eu mesmo fazer o trabalho.
Encapuzado com o plástico transparente, tendo a ferida por terceiro olho, Philby foi transformado num boneco inerte, numa figura grotesca apertada num terninho garboso,
pequeno demais para o tamanho dele, a gravata torcida por sob o semblante de palhaço. Julius falou:
- Agora pegue uma das cadeiras mais leves.
Fez um sinal para que Dalgliesh fosse de novo até a oficina e seguiu, sempre a uma distância cautelosa de dois metros. Havia três cadeiras dobráveis encostadas na
parede. Dalgliesh ergueu uma delas, abriu-a e levou-a até o corpo. Haveria impressões digitais a tirar dali. Mas o que provariam elas? Aquela podia inclusive ser
a cadeira que Grace Willison usara para ir cuidar das galinhas e que ele ajudara a empurrar.
- Ponha Philby na cadeira.
Como Dalgliesh hesitasse, Julius acrescentou, com um quê de impaciência controlada na voz:
- Não quero ter de lidar com dois corpos sozinho. Mas posso cuidar muito bem dos dois, se for preciso. Tem um equipamento no banheiro, para içar o pessoal. Se não
consegue levantá-lo sem ajuda, então vá pegar. Mas eu achava que todo policial aprende esses truques; são muito úteis.
Dalgliesh conseguiu, sem ajuda do guindaste. Mas não foi fácil. Os freios da cadeira não respondiam bem ao linóleo do chão e levou mais de dois minutos para que
o corpo pesado se acomodasse de encontro à lona do assento. Dalgliesh conseguiu ganhar um pouco de tempo, mas o custo foi alto: ele perdera parte das forças. Sabia
que só continuaria vivo enquanto seu estoque mental de experiências horrendamente adequadas e a força física tivessem alguma utilidade para Julius. Seria muito incômodo
para ele ter de carregar dois cadáveres até a beira do penhasco, mas não impossível. A vila Toynton tinha todos os equipamentos necessários à locomoção de corpos
paralisados. No momento, Dalgliesh vivo atrapalhava menos do que morto, mas era uma margem bem estreita; não faria sentido reduzi-la ainda mais. A ocasião propícia
para a devida ação chegaria, e chegaria para ambos. Estavam os dois esperando por ela - Dalgliesh para atacar, Julius para atirar. Sabiam como seria alto o preço
de qualquer erro em reconhecê-la. Duas balas restantes e era preciso garantir que nenhuma delas acabasse dentro dele. Enquanto Julius mantivesse distância e estivesse
com a arma, seria inviolável. De alguma forma, Dalgliesh teria que atraí-lo para perto, para que houvesse contato físico. De alguma forma, teria que quebrar aquela
concentração, nem que fosse por uma fração de segundo.
- Agora vamos dar um pulo até o bangalô Toynton - disse Julius.
Ele continuou mantendo a mesma distância cautelosa, enquanto Dalgliesh empurrava a cadeira com seu fardo grotesco pela rampa da porta dianteira e, dali, cruzava
o promontório. O céu era um cobertor cinzento e sufocante que se comprimia em torno deles. O ar pesado deixava um gosto forte e metálico na língua e cheirava a alga
podre. Na pouca luz que havia, os pedregulhos da trilha reluziam como se fossem pedras semipreciosas. A meio caminho, Dalgliesh escutou um gemido briguento e, olhando
para trás, viu que Jeoffrey os seguia, de rabo empinado. O gato caminhou atrás de Julius durante uns cinqüenta metros e depois, tão imprevisível no sumiço quanto
no aparecimento, virou-se e voltou para casa. Julius, de olhos cravados nas costas de Dalgliesh, não pareceu ter notado nem sua chegada nem sua partida. Continuaram
subindo em silêncio. A cabeça de Philby tombara para trás, com o pescoço sustentado pela lona da cadeira. A ferida de ciclope, grudada no plástico, fitava o semblante
de Dalgliesh com o que parecia uma censura muda. A trilha estava seca. Olhando para baixo, Dalgliesh reparou que eles deixavam apenas uma marca imperceptível nos
trechos de relva ressequida e de cascalho poeirento. E, atrás dele, podia ouvir os sapatos de Julius relegando ao esquecimento o pouco que fora riscado no chão.
Não ficaria nada de útil para a perícia, ali.
Chegaram ao pátio de pedra. O lugar parecia sacudir com o rugido das ondas, como se a terra e o mar estivessem antecipando a aproximação da tempestade. No entanto
a maré baixava. Entre eles e o penhasco não se erguia mais uma cortina de espuma. Dalgliesh sabia que a situação era de grande perigo. Obrigou-se a rir alto, sem
saber ao certo se o som soara tão falso aos ouvidos de Julius como aos seus.
- No que está achando tanta graça?
- É fácil ver que suas execuções são feitas em geral à distância, uma simples transação comercial, mais nada. Você se propõe a nos atirar no mar do quintal de sua
própria casa, o que vem a ser uma pista clara o suficiente até mesmo para o policial mais obtuso. E eles não vão pôr policiais obtusos para apurar este crime. Sua
faxineira deve vir ainda hoje, não é? E aqui é o único lugar desta costa que tem uma praia, mesmo com a maré alta. Pensei que quisesse adiar ao máximo a descoberta
dos corpos.
- Ela não virá até o pátio. Ela nunca vem.
- Como é que você sabe o que ela faz, quando não está aqui? Talvez ela venha sacudir a vassoura na beira do penhasco. Pode até ser que dê uma chegadinha até a água.
Mas seja feita a sua vontade. Estou apenas salientando que sua única esperança de sucesso, e repare que não a considero muito grande, é retardar a descoberta dos
corpos. Ninguém irá começar a procurar por Philby antes de os peregrinos voltarem, daqui a três dias. Se conseguir se livrar do meu carro, vai demorar mais ainda
para que eles iniciem as buscas. O que lhe dará a oportunidade de se livrar desse carregamento de heroína antes que comece a caçada, presumindo-se que ainda pretenda
deixar que Lerner traga a mercadoria para cá. Mas, por favor, não quero interferir.
A mão que segurava o revólver não tremeu. Como se ponderasse os prós e os contras de um convite para fazer um piquenique, Julius disse:
- Tem razão, claro. Você precisa ser jogado em águas profundas e mais longe daqui. O melhor lugar é a torre negra. O mar ainda vai estar batendo nas rochas, por
lá. Temos que levá-lo até a torre.
- Como? Ele deve pesar mais de oitenta quilos. Não vou conseguir empurrá-lo morro acima sem ajuda. E você não vai ajudar muito, andando atrás de mim com uma arma
apontada nas minhas costas. Além do mais, e as marcas das rodas?
- A chuva vai se encarregar delas. E nós não vamos subir a pé. Nós vamos até a torre de carro, pela mesma estrada que pegamos no dia do incêndio. Assim que vocês
dois estiverem no porta-malas, vou vigiar a senhora Reynolds com os binóculos. Ela vem de bicicleta de Toynton e nunca se atrasa. O ideal será cruzar com ela no
portão da divisa. Aí então eu paro e digo que não vou jantar em casa. Esses dois minutinhos de prosa agradável servirão para impressionar o magistrado encarregado
da investigação de mortes suspeitas, isso se o corpo de vocês chegar a essa fase. E, quando todo esse negócio maçante estiver terminado, dou um pulo em Dorchester
para almoçar.
- Com a cadeira de rodas e o capuz de plástico no porta-malas?
- Com a cadeira e o capuz trancados no porta-malas. Estabeleço meu álibi para a tarde inteira e volto para cá à noite. E lógico que não vou me esquecer de lavar
o capuz de plástico antes de colocá-lo de volta, de limpar a cadeira para remover suas digitais e de verificar se não ficaram manchas de sangue no chão. E, claro,
de recuperar a cápsula do cartucho da bala. Estava torcendo para que eu me esquecesse disso? Não se preocupe, comandante. Verdade que, até lá, já estarei planejando
sem sua valiosa assistência, mas ainda terei um dia ou dois para aperfeiçoar os detalhes. Por enquanto, há algumas sofisticações que me atraem. Estou pensando, quem
sabe, em usar a estatueta quebrada. Será que isso não poderia servir de motivo para o acesso de fúria assassina de Philby?
- Se eu fosse você, tentaria ser mais simples.
- Pode ser que esteja com a razão. Meus dois primeiros assassinatos foram modelos de simplicidade e obtiveram sucesso absoluto. Agora vamos para o porta-malas do
Mercedes. O carro está lá atrás. Mas, antes, uma passadinha pela lavanderia. Você vai encontrar dois lençóis na máquina de lavar. Pegue o que está por cima. Não
quero nenhuma fibra nem poeira de sapato no carro.
- Será que a senhora Reynolds não vai reparar que está faltando um lençol?
- Ela lava e passa as roupas amanhã. Uma mulher de rotina rígida. Até a noite, já terei substituído tudo. Não desperdice tempo.
A mente de Julius devia estar registrando cada segundo, pensou Dalgliesh, no entanto a voz não deixava entrever a menor ansiedade. Em nenhum momento espiara o relógio,
nem mesmo o que havia na parede da cozinha. Mantinha os olhos e o cano da Luger em cima de sua vítima. De alguma forma, aquela concentração teria de ser quebrada.
E o tempo se esgotava.
O Mercedes estava parado diante do anexo da garagem. Sob as instruções de Julius, Dalgliesh levantou a porta destrancada do porta-malas e estendeu o lençol amarfanhado
no chão do compartimento. Não foi nada difícil despejar o corpo de Philby da cadeira de rodas lá dentro. Dalgliesh dobrou a cadeira e colocou-a por cima do corpo.
Julius então disse:
- Agora entre aí, do lado dele.
Seria aquela a melhor oportunidade, até mesmo a última, de agir, ali, diante da casa de Julius, com o morto dentro do carro e as evidências à mostra? Mas à mostra
para quem? Dalgliesh sabia que, se avançasse para cima de Julius naquele instante, não ganharia nada além de um segundo se tanto para liberar a frustração e a raiva,
antes que uma bala o atingisse. Em vez de um, haveria dois cadáveres para transportar até a torre negra e jogar no mar. Mentalmente, viu Julius postado em solitário
triunfo na beira do precipício, e a arma, feito um pássaro ferido, fazer uma curva no ar para fender as ondas espumantes sob as quais dois corpos, impelidos pela
maré, estariam se estraçalhando nas pedras. O plano seguiria em frente, mesmo que ficasse um pouco mais tedioso e fosse tomar um pouco mais de tempo, já que seriam
dois para levar, sem ajuda, morro acima. Mas não havia ninguém ali para impedir. Nem mesmo a caseira, a sra. Reynolds, já naquela hora montada em sua bicicleta,
a caminho do trabalho. E se ela desconfiasse? Se chegasse a mencionar, casualmente, ao desmontar para falar com Julius na estrada, ter ouvido o que parecia ser barulho
de tiro? Restavam ainda duas balas na arma. E ele não tinha mais certeza de que Julius fosse certo da cabeça.
Ao menos podia tentar usar de um expediente, um expediente já planejado. Só que não seria fácil. Contara ficar ao menos por uns dois segundos fora da mira de Julius,
escondido atrás da tampa erguida do porta-malas. Mas Julius estava parado bem atrás do carro; Dalgliesh continuava plenamente visível. Havia, porém, uma vantagem.
Os olhos cinzentos não desgrudavam, não ousavam desgrudar de seu rosto um segundo. Se fosse rápido e esperto, se tivesse sorte, talvez conseguisse. Colocou as mãos
nos quadris como quem não quer nada. Dava para sentir o peso leve da carteira fina de couro no bolso traseiro da calça, arredondada de encontro à curva da nádega.
Julius repetiu, com uma calma perigosa:
- Eu disse para entrar por cima dele. Não vou me arriscar a dirigir com você mais perto que isso.
O polegar e o indicador direito de Dalgliesh torceram o botão do bolso. Graças a Deus que a casa do botão era até que larga. Ele disse:
- Então acho melhor dirigir rápido, se não vai ter de explicar uma morte por asfixia.
- Um dia ou dois no mar e seus pulmões encharcados de água não vão passar mais por esse problema de diagnóstico.
O botão já fora aberto. Dalgliesh introduziu então o indicador direito e o polegar com toda a cautela no bolso e pegou a carteira. Tudo agora dependia de ela sair
com facilidade e de ele poder deixá-la cair sem dar na vista, atrás do carro. Ele disse:
- Não estarão não, você bem sabe. A autópsia mostrará sem o menor equívoco que eu já estava morto antes de entrar na água.
- E vai estar mesmo, com uma bala na cabeça. Em vista disso, duvido que procurem por sinais de asfixia. Mas obrigado pelo aviso. Vou dirigir depressa. Agora entre.
Dalgliesh sacudiu os ombros e curvou-se com uma energia repentina para entrar no porta-malas, como se tivesse abandonado as esperanças, de repente. Pousou a mão
no pára-choque. Ali, ao menos, haveria uma marca de palma difícil de explicar. Mas então lembrou. Tinha descansado a mão no pára-choque enquanto punha o cajado de
pastor, os sacos e a vassoura no porta-malas. Era só um pequeno desestímulo, mas que o deprimiu. Com a mão direita pendurada para fora, deixou que a carteira escorregasse
dos dedos e caísse sob a roda direita. Não houve nenhum comando dito em voz ameaçadora e baixa. Julius não falou nem se mexeu, e ele continuou vivo. Com sorte, continuaria
vivo até chegarem à torre negra. Sorriu à ironia de ver o coração se alegrar tanto com um dom que, um mês antes, recebera tão contrariado.
O porta-malas fechou-se com uma batida. Estava entalado dentro de uma escuridão total, em silêncio total. Teve um segundo de pânico claustrofóbico, um ímpeto irresistível
de esticar o corpo e socar os punhos contra o metal. O carro não se mexeu. Julius estava livre para controlar seu tempo. O corpo de Philby pesava de encontro ao
seu. Sentiu o cheiro do morto como se ele ainda respirasse, uma mistura de graxa, naftalina e suor; a atmosfera do porta-malas estava pesada com aquela presença.
Sentiu também uma pontada de culpa por Philby estar morto e ele, vivo. Será que poderia ter salvo aquele homem, se tivesse gritado um aviso? Mas isso só teria resultado
em dois mortos, em vez de um. Philby entraria de qualquer jeito na sala; tinha de entrar. E, mesmo que tivesse dado as costas e saído correndo, Julius teria ido
atrás e dado cabo dele. Porém agora a sensação da carne fria e úmida de encontro a sua, os pêlos do pulso bambo duros feito cerdas, aquilo o aguilhoava como se fosse
uma censura. O carro balançou de leve e começou a andar.
Não havia como saber se Julius vira a carteira e a tirara de lá; achava improvável. Mas será que a sra. Reynolds iria encontrá-la? Ele a deixara bem no caminho da
caseira. Com quase toda a certeza, ela guardava a bicicleta em frente à garagem. E, se por acaso topasse com aquela carteira, Dalgliesh sabia que não descansaria
enquanto não a devolvesse. Lembrou-se da sra. Mack - também viúva de um policial -, que fazia a faxina e, de vez em quando, cozinhava para ele; de sua honestidade
quase obsessiva, de sua preocupação meticulosa pelos pertences do patrão, dos intermináveis bilhetes de explicação sobre alguma peça de roupa desaparecida, sobre
os custos cada vez mais altos da comida, sobre uma abotoadura que sumira. Não, a sra. Reynolds não teria sossego com aquela carteira em suas mãos. Ele descontara
um cheque na última viagem a Dorchester; as três notas de dez libras, a pilha de cartões de crédito, a identidade policial, tudo a deixaria especialmente inquieta.
Era provável que desperdiçasse algum tempo indo até o bangalô Esperança. Não o encontrando por lá, o que faria? Tinha um palpite de que ligaria na mesma hora para
a polícia local, tamanho o pavor de que ele pudesse dar pela perda antes que tivesse tempo de notificar seu achado. E a polícia? Se estivesse com sorte, eles perceberiam
a incongruência de uma carteira caída de forma tão conveniente no caminho dela. Desconfiados ou não, fariam a cortesia de entrar em contato com ele logo em seguida.
Como não havia telefone no bangalô, talvez resolvessem ligar para a vila Toynton. E descobririam então que o telefone estava inexplicavelmente mudo. Existia ao menos
uma chance de que decidissem enviar uma radiopatrulha e, caso se encontrassem nas proximidades, de que esta chegasse com uma certa presteza. Uma ação se seguiria
à outra, de maneira lógica. E ele tinha um trunfo a seu favor. A sra. Reynolds, lembrava-se bem, era viúva do sargento que fora chefe-de-polícia do povoado de Toynton.
Ela, pelo menos, não teria receio de usar o telefone, saberia a quem ligar. Sua vida dependia de ela ver a carteira. Uns poucos centímetros quadrados de couro marrom
num pátio de pedras. E a luz ia diminuindo com a aproximação da tempestade.
Julius pisou fundo, apesar do terreno irregular do promontório. De repente, o carro parou. Decerto estava abrindo o portão. Mais alguns segundos em movimento e o
carro parou de novo. Devia ter encontrado a sra. Reynolds e estava tendo aquele meio minuto de prosa. Em seguida partiram de novo, dessa vez com uma estrada macia
sob as rodas.
Havia mais uma coisa que podia fazer. Levou a mão até o rosto e mordeu o polegar esquerdo. O sangue saiu quente e doce. Espalhou-o pelo teto do porta-malas e, afastando
o lençol com os pés, apertou o dedo no carpete. Grupo AB, Rh negativo. Era um grupo raro de sangue. E, com sorte, Julius não notaria aqueles minúsculos indícios.
Torcia para que o perito da polícia fosse mais perspicaz.
Começava a se sentir sufocado, a cabeça martelava. Tentou convencer a si mesmo de que o ar era mais que suficiente, de que aquela pressão no peito não passava de
trauma psicológico. E então, quando o carro balançou docemente, percebeu que Julius tinha saído da estrada e parado na valeta atrás do muro de pedra, que separava
a estrada do promontório. Era um lugar muito conveniente para parar. Mesmo que um outro veículo passasse por ali - o que era muito improvável -, o Mercedes continuaria
oculto. Haviam chegado. A última parte da jornada estava prestes a começar.
Eram só uns cento e cinqüenta metros de relva pedregosa e esburacada até o local onde a torre negra esperava, atarracada e maligna debaixo do céu ameaçador. Dalgliesh
sabia que Julius preferiria fazer uma única viagem até lá. Iria querer sair o mais rápido possível do campo de visão de quem porventura passasse pela estrada. Iria
querer acabar com aquilo o quanto antes. Mais importante ainda, precisava evitar todo e qualquer contato físico com suas vítimas. A roupa dos dois mortos não revelaria
nada quando seus corpos intumescidos fossem finalmente resgatados do mar; mas é claro que Julius sabia como seria difícil, sem fazer uma limpeza que também deixaria
vestígios, eliminar de vez os vários rastros ínfimos deixados por cabelos, fibras ou sangue em suas próprias roupas. Até o momento, ele estava livre e limpo de qualquer
resquício. Seria uma das cartas mais valiosas que guardaria no baralho. Dalgliesh provavelmente continuaria vivo ao menos até chegarem ao abrigo da torre. Estava
tão certo disso que levou um bom tempo para tirar Philby do porta-malas e amarrá-lo na cadeira de rodas. Em seguida, debruçou-se por alguns instantes sobre os puxadores,
respirando pesado, sem fôlego, fingindo mais cansaço do que aquele que de fato sentia. De algum modo, apesar do esforço que teria de fazer para levar o morto até
lá em cima, era preciso conservar as forças. Julius fechou o porta-malas com um tranco e disse:
- Vamos andando. A tempestade está quase chegando.
Entretanto não desviou os olhos para olhar o céu, nem precisava. Era quase possível sentir o cheiro da chuva no vento mais frio.
Embora as rodas da cadeira estivessem lubrificadas, não foi nada fácil subir o morro. As mãos de Dalgliesh escorregavam da borracha dos puxadores. O corpo de Philby,
amarrado como o de uma criança recalcitrante, chacoalhava e tombava de lado cada vez que as rodas batiam numa pedra ou em tufos de mato. Dalgliesh sentiu o suor
arder nos olhos. O que lhe deu a desculpa necessária para tirar o paletó. Quando chegasse a hora do último confronto físico, o homem mais livre teria alguma vantagem.
Parou de empurrar, com a respiração ofegante. Os pés atrás dele se detiveram também.
Talvez fosse agora. E não havia o que fazer. Consolou-se com a idéia de que não ficaria sabendo de nada. Bastava que Julius apertasse o gatilho uma única vez para
que sua mente temerosa e alvoroçada silenciasse para sempre. Lembrou-se das palavras de Julius. “Eu sei que o vem depois da morte. O nada. Seria insensato ter medo.”
Se ao menos fosse assim tão simples! Mas Julius não apertou o gatilho. Atrás dele, a voz perigosamente baixa falou:
- Vamos?
- Estou sentindo calor. Posso tirar o paletó?
- Não vejo por que não. Ponha sobre os joelhos de Philby. Eu jogo no mar, depois que jogar você. Ele acabaria sendo arrancado pelas ondas, de toda forma.
Dalgliesh tirou os braços para fora das mangas do paletó e colocou-o, dobrado, sobre os joelhos de Philby. Sem olhar para trás, disse:
- Não aconselho um tiro pelas costas. Philby morreu na hora. Vai ter que parecer que ele atirou primeiro e que eu, depois de ferido, arranquei a arma da mão dele
e o matei. Não existe luta com uma única arma que possa acabar com duas mortes instantâneas, sobretudo se uma delas for por um tiro na nuca.
- Eu sei disso. Talvez não seja tão experiente quanto você, quando o assunto são as manifestações mais brutais de violência, mas não sou idiota e entendo um pouco
de armas de fogo. Vamos andando.
Avançaram morro acima, a uma distância cautelosa um do outro, Dalgliesh empurrando seu macabro passageiro e, atrás, o farfalhar macio dos passos que o seguiam. Pegou-se
pensando em Peter Bonnington. Era por causa de um rapaz desconhecido, e agora morto, transferido da vila Toynton para outra casa de repouso, que ele, Adam Dalgliesh,
atravessava o promontório Toynton com um revólver nas costas. O padre Baddeley sempre acreditara num grande projeto fundamental. Diante dessa certeza, todas as perplexidades
humanas não eram mais do que problemas de geometria espiritual. De repente, Julius começou a falar. Dalgliesh chegou a imaginar que havia nele uma necessidade de
entreter sua vítima durante essa última e maçante caminhada, como se estivesse tentando se justificar.
- Eu não suportaria ser pobre outra vez. Preciso de dinheiro como preciso de oxigênio. Não apenas o suficiente; muito mais do que o suficiente. Muito, muito mais.
A pobreza mata. Não tenho medo da morte, mas tenho medo daquele processo lento e corrosivo de morrer. Você não me acreditou, não é mesmo? Quando contei a história
de meus pais?
- Não de todo.
- Pois deveria. Ao menos aquilo foi verdade. Eu poderia levá-lo a um sem-número de pubs em Westminster. Aliás, você deve conhecer todos eles, mas eu poderia deixá-lo
cara a cara com o que mais me apavora: aqueles veados patéticos de meia-idade se virando com a aposentadoria. Ou não conseguindo se virar. E eles, pobres coitados,
nem sequer sentiram o gostinho de ter dinheiro. Eu sim. Não tenho vergonha de minha natureza. Mas, se for para viver, tenho de ser rico. Você acha mesmo que eu deixaria
um velho idiota e doente e uma mulher moribunda se interporem em meu caminho?
Dalgliesh não respondeu, mas fez uma pergunta:
- Imagino que tenha vindo por aqui, quando pôs fogo na torre.
- Claro. Fiz exatamente como agora, vim de carro até o portão velho e subi a pé. Eu sabia os dias em que era mais provável Wilfred vir até a torre. Ele é uma criatura
muito metódica. Acompanhei-o com o binóculo, vindo para cá. Se não fosse naquele dia, seria num outro. Não tive a menor dificuldade em pegar a chave e um hábito.
Providenciei isso tudo um dia antes. Qualquer um que conheça a casa pode se movimentar à vontade por lá sem ser visto. E, mesmo que eu fosse visto, nunca precisei
explicar minha presença na vila Toynton. Como Wilfred sempre diz, eu sou da família. Por isso foi tão fácil matar Grace Willison. Pouco depois da meia-noite eu já
estava de volta, deitado, sem efeitos colaterais mais graves do que frio nas pernas e uma certa dificuldade em pegar no sono. Por falar nisso, eu devo acrescentar,
caso ainda reste alguma dúvida, que Wilfred não sabe coisa alguma sobre o tráfico. Se invertêssemos tudo, se eu estivesse prestes a morrer e você fosse viver, até
poderia ter a satisfação de lhe dar a dupla notícia: o grande milagre foi um embuste e sua morada do amor não passou de um estágio intermediário para a morte. Eu
daria nem sei quanto para ver a cara dele.
Estavam já quase na torre negra. Sem mudar abertamente de direção, Dalgliesh manobrou a cadeira até chegar o mais perto possível do portal de entrada. O vento aumentava
aos poucos, com gemidos curtos, mas num crescendo contínuo. A verdade é que sempre haveria uma brisa nessa ponta pedregosa de terra, a qualquer hora do dia. De repente,
Dalgliesh estacou. Segurou a cadeira com a mão esquerda e virou-se a meio para Julius, equilibrando com o maior cuidado seu peso. Era agora. Tinha de ser agora.
Julius perguntou com rispidez:
- O que foi?
O tempo parou. Um segundo imobilizou-se em eternidade. Nessa breve lacuna acrônica, a cabeça de Dalgliesh esvaziou-se de toda a tensão e do medo. Era como se estivesse
apartado do passado e do futuro, consciente apenas de si e, ao mesmo tempo, do adversário e dos sons, dos cheiros e das cores do céu, do penhasco e do mar. A raiva
que se acumulara pela morte do padre Baddeley, a frustração e as indecisões das últimas semanas, o suspense controlado da hora anterior: tudo se aquietou nesse momento,
antes da liberação final. E então ele falou, com uma voz estridente, desafinada, simulando terror. Mas, mesmo a seus próprios ouvidos, o terror ressoou com uma realidade
sinistra.
- A torre! Tem alguém lá dentro!
E de novo se ouviram, como ele rezara para que acontecesse, os chamados de dedos dilacerados arranhando loucamente as pedras impassíveis. Dalgliesh pressentiu, mais
do que ouviu, o silvo brusco da respiração de Julius. Depois o tempo seguiu seu curso e, naquele segundo, Dalgliesh avançou.
Ao caírem, o corpo de Julius debaixo do seu, Dalgliesh sentiu a martelada no ombro direito, um amortecimento súbito, o calor pegajoso, quase um bálsamo, empapando
a camisa. O tiro ecoou na torre negra, e o promontório voltou à vida. Uma nuvem de gaivotas alçou vôo da encosta do rochedo, aos berros. O céu e o penhasco viraram
um tumulto de asas batendo apavoradas. E então, como se as nuvens carregadas estivessem esperando pelo sinal, o céu se partiu ao meio com o barulho de pano rasgado
e veio o temporal.
Os dois lutaram como animais famintos, sem a menor perícia, os olhos machucados, cegos de chuva, engalfinhados na inclemência do ódio.
Dalgliesh, mesmo com o peso do corpo de Julius embaixo, sentiu as forças se esvaindo. Tinha de ser naquele instante, quando se achava por cima. E ainda podia fazer
uso do ombro esquerdo. Torceu o punho de Julius na terra pegajosa e o apertou com todas as suas forças. Sentiu o hálito do outro feito um jato quente no rosto. Estavam
de rosto colado, numa paródia horrenda da exaustão do amor. E ainda assim a arma não se soltava daqueles dedos rígidos. Devagar, em espasmos doloridos, Julius dobrou
o braço direito na direção da cabeça de Dalgliesh. E então a arma disparou. Dalgliesh sentiu a bala passar de raspão pelo cabelo e se consumir inócua no aguaceiro.
De repente, estavam rolando rumo ao penhasco. Dalgliesh, enfraquecido, sentiu-se agarrado a Julius como se em busca de apoio. A chuva era uma lança pontuda nos olhos.
O nariz, comprimido na terra encharcada, não conseguia mais respirar. Húmus. Um último cheiro consolador e familiar. Os dedos se cravaram impotentes na relva, enquanto
ambos rolavam. A grama saía em chumaços molhados em suas mãos. De uma hora para outra, Julius estava ajoelhado em cima dele, as mãos em sua garganta, forçando sua
cabeça na beira do penhasco. O céu, o mar e a chuva grossa eram uma brancura turbulenta, um imenso rugido em seus ouvidos. O rosto ensopado de Julius estava fora
de seu alcance, os braços rígidos impeliam as mãos a fazer um círculo cruel. Precisava obrigar aquele rosto a chegar mais perto. De propósito, relaxou os músculos
e afrouxou a pressão já reduzida que fazia nos ombros de Julius. Funcionou. Julius abrandou a pressão e, por instinto, curvou um pouco mais a cabeça para olhar o
rosto de Dalgliesh. Em seguida soltou um berro, quando os dedos de Dalgliesh entraram direto em seus olhos. Os corpos se separaram. E Dalgliesh estava de pé, subindo
como podia o morro, para se proteger com a cadeira de rodas.
Agachou-se, com o peito arfando, tendo o encosto de lona por apoio, vendo Julius avançar, os cabelos escorrendo água, o olhar enfurecido, os braços fortes esticados
para a frente, ansioso por aquele aperto final. Atrás dele, a torre escorria um sangue negro. A chuva batia feito granizo de encontro às rochas, fazendo subir uma
névoa fina que se misturava com seu hálito rouco. O ritmo penoso da respiração rasgava-lhe o peito e enchia seus ouvidos como se fosse os estertores de algum animal
de grande porte. De repente, soltou os freios e, com o que lhe sobrara de forças, arremessou a cadeira para a frente. Viu os olhos espantados e aflitos de seu assassino.
Por um segundo pensou que Julius fosse se atirar contra a cadeira. Mas, no último instante, ele saltou de lado, e a cadeira, junto com seu fardo tenebroso, voou
precipício abaixo.
- Explique isso quando eles o encontrarem! - Dalgliesh nunca soube se falou isso para si mesmo ou se pronunciou a frase em voz alta. E então Julius estava em cima
dele.
Era o fim. Ele não lutou mais, apenas permitiu ser rolado morro abaixo, rumo à morte. Não podia esperar mais nada, a não ser levar Julius consigo. Gritos roucos,
discordantes, feriam seus ouvidos. A multidão gritava por Julius. O mundo todo gritava. O promontório estava cheio de vozes, de formas. De repente, o peso sobre
seu peito desapareceu. Estava livre. Escutou o murmúrio de Julius, que disse “Ah, não!”. Ouviu esse protesto triste, desesperançado, com a mesma clareza com que
teria escutado um gemido seu. Não foi o grito derradeiro de um homem em desespero. As palavras saíram baixinho, num tom pesaroso, quase divertido. E então o ar escureceu
com uma silhueta, tão negra quanto uma enorme ave, passando de asas esparramadas por cima de sua cabeça numa espécie de câmara lenta. Céu e terra viraram juntos,
lentos. Uma gaivota solitária gritou. A terra palpitou. Um círculo branco de manchas amorfas se curvava sobre ele. Mas o chão estava macio, irresistivelmente macio.
Deixou que a consciência se esvaísse nele.
IV
O cirurgião saiu do quarto de Dalgliesh e aproximou-se de um grupo de homenzarrões que obstruíam o corredor. E disse:
- Ele vai poder responder perguntas daqui uma meia hora, nem isso. Extraímos a bala. Já entreguei para o colega de vocês. Ele está com uma sonda, não se impressionem
com isso. Perdeu um bocado de sangue, mas não houve nenhum dano mais sério. Acho que vocês já podem entrar para vê-lo.
Daniel perguntou:
- Ele está consciente?
- Mais ou menos. O colega de vocês que está lá dentro diz que está citando Rei Lear. Algo a respeito de Cordélia. E está todo agitado porque ainda não teve oportunidade de agradecer a vocês pelas flores.
Foi Daniel que de novo falou:
- Ele não vai precisar de flores desta vez, graças a Deus. E acho melhor ele já começar a agradecer à senhora Reynolds pela vista afiada e pelo bom senso. Verdade que a chuva ajudou. Mas foi por um triz. Court teria conseguido levá-lo para o precipício se não tivéssemos chegado até lá sem que ele reparasse. Bem, se o senhor acha que podemos entrar, então vamos lá.
Um policial fardado surgiu, com o quepe debaixo do braço.
- E então?
- O superintendente está vindo para cá. Eles tiraram o corpo de Philby da água. Estava preso à cadeira de rodas.
- E o de Court?
- Ainda não. Eles acham que vai aparecer mais adiante.
Dalgliesh abriu os olhos. Sua cama estava cercada por silhuetas em branco e preto que avançavam e recuavam numa dança ritual. Toucas de enfermeiras flutuavam qual
asas desencarnadas por sobre expressões borradas, como se não soubessem bem onde pousar. Depois a imagem clareou e ele viu o círculo de fisionomias até certo ponto
familiares. A enfermeira-chefe estava lá, claro. E o especialista voltara mais cedo do casamento. Não estava mais usando a rosa na lapela. Os semblantes abriram-se
todos ao mesmo tempo num sorriso. Ele se obrigou a sorrir de volta. Quer dizer então que não era leucemia aguda; não era nenhum tipo de leucemia. Ele iria melhorar.
E, assim que retirassem aquele treco pesado que por algum motivo tinham posto em seu braço direito, poderia levantar e voltar ao trabalho. Diagnóstico equivocado
ou não, era bondade deles, pensou sonolento, olhando para a roda de olhos sorridentes, ficarem todos tão satisfeitos de saber que no fim das contas ele não iria morrer.

 

 

                                                                  P. D. James

 

 

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