Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TORRE PROIBIDA / Marion Zimmer Bradley
A TORRE PROIBIDA / Marion Zimmer Bradley

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TORRE PROIBIDA

 

    Damon Ridenow cavalgava por uma terra vazia. Durante a maior parte do ano, o grande platô das colinas Kilghard estivera sob a influência maligna dos homens-gatos. As colheitas murchavam nos campos, sob a escuridão anormal, que bloqueava a luz do sol; os pobres habitantes do distrito se refugiavam em suas casas, com medo de se arriscarem a sair.

    Mas agora os homens voltavam a trabalhar à luz do grande sol vermelho de Darkover, acumulando as colheitas contra as nevascas iminentes. Era o início do outono, e quase tudo já fora colhido.

    O Grande Gato fora morto nas cavernas de Corresanti, e a grande matriz ilegal, que ele descobrira e usara de maneira tão terrível, também fora destruída. Os homens-gatos sobreviventes haviam fugido para as florestas distantes, além das montanhas, ou tombado sob as espadas dos guardas que Damon enviara para desbaratá-los.

    A terra se achava agora livre do terror, e Damon, a maior parte do seu exército dispensada, agora voltava para casa. Não para sua propriedade ancestral de Serrais; era um filho mais moço, não estava destinado a ser o herdeiro, e jamais sentira Serrais como seu lar. Em vez disso, seguia para Armida, onde se casaria.

    Parando o cavalo à beira da estrada, ele observou os últimos homens se separarem. Havia guardas em uniformes preto e verde que iriam para Thendara; uns poucos homens, dos Domínios de Ardais e Hastur, seguiriam para o norte, até as Hellers; e outros viajariam para o sul, até as planícies de Valeron.

    - Deveria falar aos homens, Lorde Damon - sugeriu um homem baixo, ao lado de Damon.

    - Não sou muito bom em fazer discursos.

    Damon era franzino, com o rosto de um homem dedicado aos estudos. Até aquela campanha, nunca se imaginara um soldado, e ainda sentia-se surpreso consigo mesmo por ter comandado com pleno êxito aqueles homens, contra os remanescentes dos homens-gatos1.

    - Eles esperam, Lorde - insistiu Eduin.

    Damon suspirou, sabendo que era verdade. Afinal, era um Comyn dos Domínios; não um Lorde de um Domínio, nem um herdeiro Comyn, mas ainda assim um Comyn, da velha casta de telepatas, com poderes psíquicos, que governava os Domínios desde tempos imemoriais. Já haviam passado os dias em que aqueles do Comyn eram tratados como deuses vivos, mas ainda persistia o respeito, quase reverência. E Damon fora treinado para as responsabilidades de um filho do Comyn. Suspirando de novo, ele conduziu o cavalo para um ponto em que todos os homens à espera poderiam vê-lo.

    - Nosso trabalho está feito. Graças a vocês, que atenderam ao meu chamado, reina a paz nas colinas Kilghard e em nossos lares. Só me resta apresentar-lhes meus agradecimentos e minhas despedidas.

    O jovem oficial que trouxera os homens de Thendara aproximou-se de Damon, enquanto os outros se afastavam.

    - Lorde Alton cavalgará para Thendara conosco? Devemos aguardá-lo?

    - Teria de esperar muito tempo - respondeu Damon. - Ele foi ferido na primeira batalha com os homens-gatos, um ferimento pequeno, mas a espinha teve uma lesão além da cura. Ficou paralisado da cintura para baixo. Acho que ele nunca mais tornará a cavalgar para parte alguma.

    O jovem oficial mostrou-se apreensivo.

    - Quem vai comandar a Guarda agora?

    Era uma indagação procedente. O comando da Guarda pertencia ao Domínio de Alton por gerações; Esteban Lanart de Armida, Lorde Alton, a comandara por muitos anos. Mas o filho sobrevivente mais velho de Dom Esteban, Lorde Domenic, tinha apenas dezessete anos. Embora um homem pela lei dos Domínios, não tinha idade nem autoridade para comandar. O outro filho Alton, o pequeno Valdir, era um garoto de onze anos, noviço no mosteiro de Nevarsin, estudando sob a orientação dos irmãos de São-Valentim-das-Neves.

    Então quem comandaria os guardas. Era uma pergunta da maior importância, pensou Damon, mas ele não sabia a resposta. E declarou:

    - Caberá ao Conselho do Comyn decidir, quando se reunir no próximo verão, em Thendara.

    Nunca houvera guerra em Darkover durante o inverno; e nunca haveria. No inverno, havia um inimigo mais implacável, o frio cruel, com nevascas terríveis se abatendo sobre os Domínios, vindas das Hellers. Nenhum exército poderia se deslocar para atacar os Domínios durante o inverno. Até os salteadores mantinham-se perto de suas casas. Podiam esperar que a próxima sessão do Conselho escolhesse um novo comandante. Damon mudou de assunto.

    - Pretende alcançar Thendara ao cair da noite?

    - A menos que alguma coisa nos atrase no caminho.

    - Então não permita que eu os retarde. - Damon fez uma mesura. - O comando desses homens é seu, parente.

    O jovem oficial não pôde disfarçar um sorriso. Ainda era muito jovem, e aquele era seu primeiro comando, embora breve e temporário. Damon observou-o, com um sorriso pensativo, enquanto ele reunia seus homens e se afastava. Era um oficial nato, e com Dom Esteban incapacitado, os oficiais competentes podiam esperar promoções.

    Damon, embora tivesse comandado aquela missão, nunca se imaginara um soldado. Como todos os filhos do Comyn, servira no corpo de cadetes e tivera seu período como oficial, mas seus talentos e ambições se voltavam para outro lado. Aos dezessete anos fora admitido na Torre de Arilinn como um telepata, para ser treinado nas antigas ciências da matriz de Darkover. Por muitos e muitos anos trabalhara ali, desenvolvendo-se em força e habilidade, até se tornar um técnico psíquico.

    E depois fora dispensado da torre. Não por culpa sua, a Guardiã lhe assegurara, mas porque era sensitivo demais, a tal ponto que sua saúde e até a sanidade poderiam ser destruídas sob as tremendas pressões do trabalho com a matriz.

    Rebelado mas obediente, Damon fora embora. A palavra de uma Guardiã era lei, nunca se devia questionar ou resistir. Sua vida desmantelada, as ambições arruinadas, tentara construir uma nova vida na Guarda, embora não fosse um soldado e soubesse disso. Fora mestre de cadetes por algum tempo, depois oficial de hospital e oficial de suprimentos. E naquela última campanha, contra os homens-gatos, aprendera a agir com confiança. Mas não sentia o menor desejo de comandar, renunciava agora ao posto com a maior satisfação.

    Ficou observando os homens se afastarem, até que as formas sumiram na poeira da estrada. .Agora, seguiria para Armida...

    - Lorde Damon - disse Eduin, ao seu lado -, há cavaleiros na estrada.

    - Viajantes? Nesta época?

    Parecia impossível. As neves mais fortes do inverno ainda não haviam começado, mas a qualquer dia agora a primeira grande tempestade viria das Hellers, bloqueando as estradas por dias a fio. Havia um velho ditado: Só os loucos ou os desesperados viajam no inverno. Damon contraiu os olhos para divisar os cavaleiros distantes, mas era um tanto míope desde a infância, e só pôde avistar sombras indefinidas.

    - Seus olhos são melhores do que os meus, Eduin. .Acha que são homens armados?

    - Não creio, Lorde Damon: há uma dama viajando com eles.

    - Nesta época? Parece bastante improvável.

    O que poderia levar uma mulher a partir numa viagem incerta, na iminência do inverno?

    - É um estandarte Hastur, Lorde Damon. Só que Lorde Hastur e sua dama não deixariam Thendara neste momento. E se por algum motivo tivessem de ir para o Castelo Hastur, não seguiriam por esta estrada. Não consigo entender.

    Antes mesmo que ele acabasse de falar, Damon já sabia a identidade da mulher que viajava com a pequena escolta de guardas. Apenas uma mulher em Darkover viajaria sozinha sob o estandarte de Hastur, e apenas uma Hastur teria motivos para viajar assim.

    - É a Dama de Arilinn - disse ele finalmente-, relutante, e viu o rosto de Eduin se iluminar em espanto e respeito.

    Leonie Hastur. Leonie de Arilinn, Guardiã da Torre de Arilinn. Damon sabia que, por cortesia, deveria ir ao encontro de sua parenta, para lhe dar as boas-vindas, mas permaneceu onde estava, imóvel em cima do cavalo, fazendo um esforço para se controlar. O tempo parecia ter-se desvanecido. Num recesso intemporal de sua mente, um Damon mais jovem se descobriu diante da Guardiã de Arilinn, de cabeça baixa, ouvindo as palavras que destruíram sua vida:

    - Não é que você tenha falhado ou me desagradado. Mas é sensitivo demais para este trabalho, vulnerável demais. Se tivesse nascido mulher, seria uma Guardiã. Mas do jeito que são as coisas... Há anos que o venho observando. Deve nos deixar, Damon, para o seu próprio bem.

    Damon partira sem protestos, pois tinha um sentimento de culpa. Amara Leonie, amara-a com a paixão desesperada de um jovem solitário, mas amara de uma forma casta, sem uma única palavra ou contato. Pois Leonie, como todas as Guardiãs, tinha um compromisso com a virgindade, nunca deveria ser olhada com algum pensamento sensual, nunca deveria ser tocada por qualquer homem. Leonie descobrira isso de algum modo, temera que ele poderia um dia perder o controle e abordá-la - mesmo que fosse apenas em pensamento - de um jeito que nenhuma Guardiã podia ser abordada?

    Abalado, Damon fugira. Parecia agora, anos depois, que uma vida inteira se estendia entre o jovem Damon, lançado num mundo hostil para construir uma vida nova, e o Damon de hoje, no comando de si mesmo, veterano daquela campanha vitoriosa. A lembrança ainda era bem viva - e assim continuaria até sua morte -, mas Damon fortaleceu-se, enquanto Leonie se aproximava, com a lembrança de Ellemir Lanart, que o esperava em Armida.

    Eu deveria ter casado antes de partir para esta campanha. Bem que quisera, mas Dom Esteban achara que um casamento precipitado seria impróprio para gente de sua casta. Não permitiria que sua filha fosse levada às pressas para o leito nupcial como uma criada grávida! Damon concordara com o adiamento. A realidade de Ellemir, sua esposa prometida, deveria agora banir até as lembranças mais angustiantes. Recorrendo a todo o controle de que era capaz, Damon finalmente se adiantou, com Eduin ao seu lado.

    - Concede-nos a graça por sua presença, parenta - disse ele, solene, fazendo uma reverência, da sela. - Mas já passou o tempo em que se poderia viajar sem problemas por estas colinas. Para onde vai nesta época do ano?

    Leonie retribuiu a reverência com a formalidade excessiva de uma dama do Comyn diante de forasteiros.

    - Saudações, Damon. Viajo para Armida, entre outras coisas para o seu casamento.

    - Sinto-me honrado. - A viagem desde Arilinn era longa, e sempre árdua, em qualquer estação. - Mas não é apenas para o meu casamento, não é mesmo, Leonie?

    - Tem razão, não é só para isso... embora seja verdade que lhe desejo toda a felicidade, primo.

    Pela primeira vez, por um instante, os olhos dos dois se encontraram, mas Damon logo desviou os seus. Leonie Hastur, Dama de Arilinn, era alta, esguia, com os cabelos vermelhos do Comyn, agora grisalhos, sob o capuz do manto de montaria. Talvez tivesse sido bela outrora; Damon nunca seria capaz de julgar.

    - Callista me enviou o aviso de que deseja renunciar a seu juramento com a Torre e casar. - Leonie suspirou. - Não sou mais jovem. Gostaria de deixar meu lugar como Guardiã, passando-o para Callista, assim que ela se tornasse um pouco mais velha.

    Damon inclinou a cabeça, em silêncio. Isso estava previsto desde que Callista ingressara na Torre de Arilinn, aos treze anos. Damon fora um técnico psíquico antes do primeiro ano de Callista ali, e fora consultado sobre a decisão de prepará-la para ser uma Guardiã.

    - Mas agora ela deseja nos deixar para casar. Disse-me que seu amante... - Leonie usou a inflexão polida, que fazia com que a palavra significasse "marido prometido". - ...é de outro mundo, um dos terráqueos que construíram o espaçoporto em Thendara. O que sabe a respeito, Damon? Parece-me incrível, fantástico mesmo, como uma balada antiga. Como ela conheceu esse terráqueo? Disse-me seu nome, mas esqueci...

    - Andrew Carr - informou Damon, enquanto viravam os cavalos na direção de Armida.

    As respectivas escoltas e a dama de companhia de Leonie mantiveram-se a uma distância respeitosa. O grande sol vermelho pairava baixo no céu, projetando uma estranha claridade sobre os picos das colinas Kilghard, por trás deles. Nuvens começavam a se acumular ao norte, e soprava um vento frio, dos picos distantes e invisíveis das Hellers.

    - Mesmo agora, ainda não entendo direito como tudo começou - acrescentou Damon, depois de um longo silêncio. - Só sei que quando Callista foi seqüestrada pelos homens-gatos, e se encontrava sozinha, na escuridão e com medo, aprisionada nas cavernas de Corresanti, nenhum dos parentes conseguiu fazer contato com .sua mente.

    Leonie estremeceu, puxando o capuz para proteger melhor o rosto.

    - Foi um momento assustador...

    - É verdade. O terráqueo, Andrew Carr, foi capaz, de alguma forma, de alcançar sua mente e pensamento. Até hoje, ainda não conheço todos os detalhes, mas sei que ele conseguiu sustentá-la em sua prisão solitária, era o único que podia se comunicar. E assim se tornaram ligados na mente e no coração, embora nunca tivessem se encontrado pessoalmente.

    Leonie suspirou.

    - Esses vínculos podem ser mais fortes do que os vínculos da carne. E assim eles passaram a se amar, e se encontraram quando ela foi resgatada...

    - Foi Andrew Cair o maior responsável pela salvação de Callista - assegurou Damon. - E agora eles estão comprometidos um com o outro. Pode ter certeza, Leonie, de que não é nenhuma fantasia, nascida do medo de uma moça solitária ou do desejo de um homem solitário. Callista me disse, antes de minha partida para esta campanha, que, se não obtivesse o consentimento do pai e o seu, deixaria Armida e Darkover, iria com Andrew para o mundo dele.

    Leonie balançou a cabeça, pesarosa.

    - Tenho visto as naves terráqueas no espaço-porto em  Thendara. E meu irmão Lorill, que integra o Conselho e trata com eles, diz que os terráqueos são humanos como nós. Mas casamento, Damon? Uma jovem deste planeta com um homem de outro mundo? Mesmo que Callista não fosse Guardiã, destinada à virgindade, tal casamento seria difícil, perigoso para ambos.

    - Acho que eles sabem disso, Leonie, mas estão determinados.

    - Sempre achei que nenhuma Guardiã deveria casar - disse Leonie, numa voz estranha e distante. - Pensei assim durante toda a minha vida, e foi como me comportei. Se não fosse por isso...

    Ela lançou um olhar rápido para Damon, que ficou impressionado com a angústia em sua voz. Ele tentou se defender contra isso. Ellemir, pensou, como se fosse um amuleto a protegê-lo. Mas Leonie continuou, suspirando:

    - Se Callista tivesse se apaixonado por um homem de seu próprio clã e casta, eu não lhe imporia minhas convicções; ao contrário, poderia liberá-la de bom grado. Não... - Leonie fez uma pausa. - Não, não de bom grado, conhecendo os problemas que aguardam qualquer mulher treinada e condicionada como Guardiã para um círculo da matriz, jamais de bom grado. Mas a liberaria, e a entregaria em casamento com a cortesia que devo demonstrar. Mas como posso dá-la a um alienígena, a um homem de outro mundo, que nem mesmo nasceu em nosso solo, sob nosso sol? O pensamento me deixa gelada de horror, Damon! Deixa minha pele toda arrepiada!

    - Também me senti assim, Leonie, a princípio. Mas Andrew não é um alienígena. Minha mente sabe que ele nasceu em outro mundo, que gira em torno do sol de outro céu, uma estrela distante, que nem mesmo é um ponto de luz em nosso céu. Mas ele não é inumano, não é um monstro disfarçado de homem. É um dos nossos, um ser humano como eu. Pode ser forasteiro, mas não é um alienígena.  Tenho certeza disso, Leonie. Sua mente esteve ligada à minha.

    Num gesto inconsciente, Damon levantou a mão para a pedra de matriz, o cristal que ampliava os poderes psíquicos, pendurada em seu pescoço, numa bolsa isolante, antes de acrescentar:

    - Ele tem laran.

    Leonie fitou-o chocada, incapaz de acreditar. O laran era o poder psíquico que distinguia o Comyn dos Domínios das pessoas comuns, o dom hereditário embutido no sangue Comyn.

    - Laran! - exclamou ela, quase com raiva. - Não posso acreditar!

    - Acreditar ou desacreditar não altera um fato, Leonie. Eu tenho laran desde que era menino, fui treinado na  Torre, e posso lhe garantir que esse terráqueo também possui Laran.  Estive em contato com sua mente, e asseguro que ele não é absolutamente diferente de um homem do nosso mundo. Não há motivo para sentir horror e repulsa pela escolha de Callista. Ele é apenas um ser humano como nós.

    - E é seu amigo.

    Damon acenou com a cabeça.

    - Isso mesmo, meu amigo. E para salvar Callista, nós nos unimos... através da matriz.

    Não havia necessidade de dizer mais nada. Era o vínculo mais forte conhecido, mais forte que o parentesco de sangue, mais forte que os laços do amor. Unira Damon e Ellemir, assim como Andrew e Callista. Leonie suspirou.

    - Então é assim. Neste caso, acho que devo aceitar, independentemente de seu nascimento ou casta. Como ele tem laran, é um marido conveniente... se é que algum homem pode se tornar de fato um marido aceitável para uma mulher treinada para ser Guardiã!

    - Há ocasiões em que até esqueço que ele não é um dos nossos - comentou Damon. - É verdade que também há ocasiões em que ele parece estranho, quase alienígena, mas a diferença é apenas de costume e cultura.

    - Até mesmo isso pode fazer uma grande diferença, Damon. Lembro quando Melora Aillard foi seqüestrada por Jalak de Shainsa, e tudo o que ela suportou ali. Jamais um casamento entre os Domínios e as Cidades Secas sobreviveu sem uma tragédia. E um homem de outro mundo e outro sol deve ser ainda mais estranho.

    - Não tenho tanta certeza disso. De qualquer forma, Andrew é meu amigo, e o apoiarei em suas pretensões.

    Leonie arriou na sela.

    - Não deve conceder sua amizade nem se ligar através da matriz a alguém que é indigno. Mas mesmo que seja verdade tudo o que você disse, como pode um casamento assim escapar ao desastre? Ainda que ele fosse um dos nossos, com plena compreensão do poder da Torre sobre o corpo e a mente de uma Guardiã, seria quase impossível. Você ousaria tanto?

    Damon esquivou-se a responder, Ela não podia estar falando sério, não da maneira como ele pensava.

    Não tinham vivido durante a Era do Caos, quando as Guardiãs eram mutiladas, até neutralizadas, convertidas em menos do que mulheres. É verdade que as Guardiãs ainda eram treinadas, Damon sabia, com uma disciplina rigorosa, para viverem apartadas dos homens, com reflexos embutidos no corpo e no cérebro. Mas não mais eram mudadas. E, com certeza, Leonie não poderia saber... ou ele seria o único homem a quem ela jamais faria tal pergunta, refletiu Damon. Sem dúvida, era uma indagação inocente, ela jamais descobrira. Ele respirou fundo para enfrentar a inocência em Leonie, forçou-se a fitá-la, a dizer em voz baixa:

    - Claro que sim, Leonie, se eu amasse como Andrew ama.

    Por mais que ele se esforçasse para manter a voz firme e impassível, alguma coisa de sua luta interior transpareceu para Leonie. Ela levantou o rosto, os olhos se encontraram por um segundo... e desta vez foi Leonie quem desviou os seus.

    Ellemir, lembrou-se Damon, desesperado. Ellemir, minha amada, minha esposa prometida. Sua voz se manteve calma quando disse:

    - Tente se encontrar com Andrew sem preconceitos, Leonie, e creio que vai descobrir que se trata de um homem a quem concederá Callista com a maior satisfação.

    Leonie conseguira recuperar o controle.

    - Ainda mais por sua exortação, Damon. Mas mesmo que seja verdade tudo o que diz, continuo relutante.

    - Sei disso.

    Damon olhou para a estrada. Podiam agora avistar os grandes portões de Armida, a propriedade hereditária do Domínio de Alton. O lar, pensou ele, onde Ellemir o esperava.

    - Mas mesmo que seja verdade tudo o que você diz, Leonie, não sei o que poderíamos fazer para deter Callista. Ela não é nenhuma garota boba, dominada por uma paixão repentina; é uma mulher adulta, treinada na Torre, acostumada a impor sua vontade, e creio que o fará de novo, não importa o que todos os outros possam pensar.

    Leonie suspirou mais uma vez.

    - Eu não a obrigaria a voltar contra a sua vontade; o fardo de uma Guardiã é pesado demais para ser carregado sem consentimento. Eu o carreguei pela vida inteira, e falo com conhecimento de causa. - Ela parecia cansada, abatida. - Mas não é fácil encontrar Guardiãs. Se eu puder recuperá-la para Arilinn, Damon, sabe que devo fazê-lo.

    Damon sabia muito bem. Os antigos dons psíquicos dos Sete Domínios, embutidos nos genes das famílias do Comyn há centenas ou mesmo milhares de anos, estavam desaparecendo. Os telepatas eram mais raros do que em qualquer outra ocasião. Não se podia mais considerar como um fato consumado que nem mesmo os filhos e as filhas da linhagem dileta de cada Domínio teriam o dom, o poder psíquico herdado de sua Casa. E, agora, não eram muitos os que se importavam com isso. O irmão mais velho de Damon, herdeiro da família Ridenow, de Serrais, não tinha laran. Damon era o único entre todos os irmãos que possuía um laran integral, e nunca se sentira muito honrado com isso. Ao contrário, seu trabalho na Torre despertara o desprezo dos irmãos, que o consideravam diminuído como homem por isso. Era difícil encontrar telepatas com bastante força para o trabalho na Torre. Algumas das antigas Torres haviam sido fechadas, não mais se ensinavam ali as antigas ciências psíquicas de Darkover. Forasteiros, pessoas que tinham apenas uma quantidade ínfima de sangue Comyn, haviam sido admitidos em Torres menores. Arilinn, no entanto, apegava-se aos costumes antigos e só aceitava pessoas com o melhor sangue dos Domínios, e eram bem poucas as mulheres com força, capacidade psíquica, vigor - sem falar na coragem e na disposição de sacrificar quase tudo que tornava a vida apreciável para as mulheres nos Domínios - para suportar a terrível disciplina das Guardiãs. Quem encontrariam para tomar o lugar de Callista?

    De qualquer forma, portanto, seria uma tragédia. Arilinn devia perder uma Guardiã... ou Andrew uma esposa, Callista um marido. Damon soltou um suspiro profundo.

    - Sei disso, Leonie.

    E eles seguiram em silêncio pelo resto do caminho até os portões de Armida.

   

    Do pátio externo de Armida, Andrew Cair avistou os cavaleiros que se aproximavam. Chamou os cavalariços e os atendentes para aguardarem a expedição e depois foi ao salão principal para anunciar a chegada.

    - É Damon voltando! - exclamou Ellemir, no maior excitamento. Ela saiu correndo para o pátio. Andrew foi atrás, mais devagar, com Callista ao seu lado.

    - Não é apenas Damon - murmurou ela.

    Andrew compreendeu, sem precisar perguntar, que ela usara sua percepção psíquica para identificar os viajantes. Já se acostumara a isso agora, e não mais lhe parecia fantástico ou assustador.

    Callista sorriu-lhe, e mais uma vez ele ficou impressionado com sua beleza. Tendia a esquecer como ela era linda quando não a estava contemplando. Antes de vê-la pessoalmente, conhecera sua mente e coração, gentileza, coragem, raciocínio rápido. Depois, passara a conhecer e apreciar sua alegria e espírito, mesmo quando se encontrava sozinha, apavorada, aprisionada na escuridão de Corresanti.

     Mas Callista também era bonita, muito bonita, uma jovem esguia, de pernas compridas, cabelos avermelhados, presos em tranças caindo pelas costas, olhos cinza, por baixo de sobrancelhas retas. Ela acrescentou, enquanto andava ao seu lado:

    - É Leonie, a leronis de Arilinn. Ela veio, como eu pedi.

    Andrew pegou a mão de Callista, embora isso fosse sempre um risco. Sabia que ela fora treinada e disciplinada, por meios que ele não podia imaginar, a evitar o menor contato. Mas agora, embora seus dedos tremessem um pouco, ela permitiu o contato. Parecia que aquele tremor era um indício da tempestade interior que a sacudia, apesar da calma disciplinada. Andrew podia ver, nos pulsos e nas mãos esguias, algumas cicatrizes mínimas, parecendo talhos ou queimaduras cicatrizados. Interrogara-a a respeito. Callista dera de ombros, limitando-se a dizer:

    - São antigas, há muito que já sararam. Foram... acessórios para a memória.

    Ela não quisera dizer mais nada, mas Andrew adivinhara o que representavam, e o horror o dominara. Poderia algum dia conhecer realmente aquela mulher?

    - Pensei que você era a Guardiã de Arilinn, Callista - comentou ele agora.

    - Leonie já é Guardiã antes mesmo de meu nascimento. Preparou-me para assumir seu lugar um dia.  E eu já começara a trabalhar como Guardiã. Cabe a ela me liberar, se assim desejar.

    Mais uma vez houve um ligeiro tremor, o olhar desviado às pressas. Que poder aquela velha terrível tinha sobre Callista?

    Andrew observou Ellemir correndo para o portão. Como ela era parecida com Callista, também alta e esguia, os mesmos cabelos avermelhados, os mesmos olhos cinza, pestanas escuras, sobrancelhas retas... e ao mesmo tempo tão diferente da irmã gêmea! Com uma tristeza profunda, que não sabia ser inveja, ele viu Ellemir correr para Damon, que desceu da sela e abraçou-a, para um beijo prolongado. Callista algum dia se sentiria bastante livre para correr ao seu encontro assim?

    Callista conduziu-o até Leonie, que desmontara com a ajuda de um dos guardas da escolta. Os dedos de Callista ainda se entrelaçavam com os de Andrew, um gesto de desafio, uma violação deliberada do tabu. Andrew sabia que ela queria que Leonie visse. Damon apresentou Ellemir à Guardiã.

    - Sua visita é uma honra - disse Ellemir. - Seja bem-vinda a Armida.

    Andrew observava atentamente quando Leonie baixou o capuz. Preparado para uma megera horrenda e autoritária, ficou aturdido ao constatar que ela era apenas uma mulher magra, frágil, de idade já avançada, com olhos adoráveis, os remanescentes do que devia ter sido uma beleza extraordinária. Não parecia rigorosa ou intimidativa, e sorriu para Ellemir com extrema gentileza.

    - É. muito parecida com Callista, criança. Sua irmã me ensinou a amá-la, e fico contente por finalmente conhecê-la em pessoa.

    A voz era suave, clara e jovial. Ela virou-se para Callista, estendendo as mãos, num gesto de saudação.

    - Está bem de novo, chiya?

    Era surpreendente que alguém pudesse chamar a equilibrada Callista de "garotinha". Callista largou a mão de Andrew; as pontas de seus dedos mal roçaram as de Leonie.

    - Estou, sim. - Ela riu. - Mas ainda durmo como uma criança, com uma luz acesa no quarto, a fim de não acordar na escuridão e pensar que estou outra vez na amaldiçoada caverna dos homens-gatos. Envergonha-se de mim, parenta?

    Andrew fez uma reverência formal. Já conhecia o suficiente dos costumes darkovanos para não fitar diretamente a leronis, mas sentiu que os olhos cinza de Leonie o avaliavam. Callista acrescentou, com um tremor de desafio na voz:

    - Este é Andrew, meu marido prometido!

    - Ainda não tem o direito de dizer isso, chiya - protestou Leonie. - Falaremos a respeito mais tarde. Agora, quero cumprimentar meu anfitrião.

    Lembrada de seu dever como anfitriã, Ellemir largou a mão de Damon e subiu a escadaria da casa com Leonie. Andrew e Callista as seguiram. Ele tentou pegar a mão de Callista, que se esquivou, não de forma deliberada, mas pelo hábito inconsciente de anos. Andrew sentiu que ela nem dava conta de sua presença naquele momento.

    O Grande Salão de Armida era enorme, com chão de pedra, mobiliado ao estilo antigo, com bancos embutidos ao longo das paredes, estandartes e armas pendurados por cima da imensa lareira de pedra. Numa extremidade do salão havia uma mesa fixada no chão. Perto dali, Dom Esteban Lanart, Lorde Alton, estava deitado numa cama com rodinhas, recostado em travesseiros. Era um homem corpulento, ombros largos, cabelos vermelhos crespos, entremeados de fios brancos. Ao ver as pessoas entrando no salão, ele disse, irritado:

    - Dezi, meu rapaz, ajude-me a levantar para receber as visitas.

    Um rapaz sentado num dos bancos levantou-se de um pulo, ajeitou os travesseiros nas costas do velho, ajudou-o a assumir uma posição sentada. Damon pensou a princípio que o rapaz era um dos criados de Esteban, mas depois notou a sua grande semelhança com o velho lorde do Comyn.

    Era quase um menino, muito magro, cabelos vermelhos também crespos, olhos mais azuis do que cinza, as feições quase iguais às de Ellemir.

    Ele se parece com Coryn, pensou Damon. Coryn fora o primeiro filho de Dom Esteban, de sua primeira esposa, há muito falecida. Muitos anos mais velho do que Ellemir e Callista, fora amigo jurado de Damon na adolescência. Mas Coryn morrera e fora enterrado havia muito tempo. E não tinha idade suficiente para ter um filho daquele tamanho. O menino é um Alton, não resta a menor dúvida, pensou Damon. Mas quem é ele? Nunca o vi antes!

    Leonie, no entanto, pareceu reconhecê-lo no mesmo instante.

    - Com que então, Dezi, encontrou um lugar para ficar? O menino ofereceu um sorriso insinuante.

    - Lorde Alton mandou me chamar, e eu poderia ser útil aqui. Esteban Lanart interveio:

    - Saudações, parenta, e peço perdão por não poder levantar-me para recebê-la em meu salão. Sua presença é uma honra, chiya.

    Ele percebeu a direção do olhar de Damon e explicou, como se fosse algo sem maior importância:

    - Esqueci que você ainda não conhece o nosso Dezi. Seu nome é Desiderio Leynier. Calcula-se que seja filho nedestro de um dos meus primos, embora o pobre Cwynn morresse antes de poder legitimá-lo. Nós o testamos para verificar se tinha laran, e ele passou uma ou duas temporadas em Arilinn. Mas quando precisei de alguém para ficar ao meu lado durante todo o tempo, Ellemir lembrou que ele já voltara para casa, e mandei chamá-lo. É um bom menino.

    Damon sentiu-se chocado. Como Dom Esteban podia falar de maneira tão indiferente, até mesmo brutal, sobre o nascimento ilegítimo do menino, e sua condição de parente pobre, na presença do próprio Dezi? O menino contraiu os lábios, mas manteve o controle, e Damon experimentou uma profunda simpatia por ele. Então o pequeno Dezi também sabia o que significava encontrar afeição e intimidade num círculo da Torre, só para depois ser excluído!

    - Mas que droga, Dezi, já chega de travesseiros! - gritou Esteban. - Leonie, sei que isto não é jeito de recebê-la sob meu teto, depois de tantos anos, mas deve aceitar minha vontade de fazer tudo certo e considerar-se formalmente recebida, com todas as cortesias devidas, como eu faria se pudesse me levantar desta cama miserável!

    - Não preciso de cortesias, primo - disse Leonie, adiantando-se. - Só lamento encontrá-lo assim. Fui informada de que fora ferido, mas não sabia que era tão grave.

    - Eu também não sabia. Foi um ferimento pequeno... já sofri fisgadas de anzol mais profundas e mais dolorosas... mas afetou a espinha, e dizem que nunca mais tornarei a andar.

    - Acontece com freqüência em ferimentos na espinha. Tem sorte de ainda contar com o uso das mãos.

    - Acho que tem razão. Posso sentar numa cadeira, e Damon projetou um suporte para as minhas costas, a fim de evitar que eu caia como um bebê muito pequeno para se manter em sua cadeira alta. Além disso, Andrew me ajuda a supervisionar a propriedade e os animais, e Dezi transmite os meus recados. Ainda posso cuidar de meus negócios da cadeira, e por isso acho que sou mesmo afortunado, como você disse. Mas era um soldado, e agora... - Ele fez uma pausa, dando de ombros. - Damon, meu rapaz, como foi a campanha.-"

    - Há pouco a contar, meu sogro. Os homens-gatos sobreviventes fugiram para suas florestas.  Uns poucos ainda tentaram resistir, mas. acabaram morrendo. Além disso, não há mais nada a dizer.

    Esteban soltou uma risada amargurada.

    - É fácil perceber que você não é um soldado, Damon... embora eu tenha motivos para saber que é bem capaz de lutar, quando se torna necessário! Algum dia, Leonie, será contado por toda parte como Damon empunhou minha espada em Corresanti para enfrentar os homens-gatos, ligado à minha mente através da matriz...  mas deixemos essa história para outra ocasião! Por enquanto, acho que, se eu quiser conhecer os detalhes da campanha e das batalhas, terei de perguntar a Eduin, que sabe muito bem o que quero ouvir! Quanto a você, Leonie, veio até aqui para fazer minha filha tola recuperar o juízo e levá-la de volta a Arilinn, que é o lugar a que ela pertence?

    - Pai! - protestou Callista.

    Leonie ofereceu um sorriso contrafeito.

    - Não é tão fácil assim, primo, e tenho certeza de que sabe disso.

    - Perdoe-me, parenta. - Esteban parecia envergonhado. - Estou sendo negligente na hospitalidade. Ellemir a levará a seus aposentos... Mas que garota terrível! Onde ela se meteu agora? Ellemir!

    Ellemir voltou apressada ao salão, limpando as mãos sujas de farinha de trigo num avental comprido.

    - As criadas pediram-me para ajudar, pai... são jovens e não têm muita experiência. Perdoe-me, parenta.

    Ela baixou os olhos, escondendo as mãos sujas. Leonie disse gentilmente:

    - Não precisa se desculpar por ser uma dona de casa conscienciosa, criança.

    Ellemir fez um esforço visível para recuperar o controle.

    - Mandei aprontar seus aposentos, minha dama, e um quarto para sua acompanhante. Dezi cuidará da escolta... não é mesmo, primo?

    Notou que Ellemir se dirigia a Dezi em termos de intimidade familiar; também percebera que o mesmo não acontecia com Callista.

    - Pode deixar que cuidaremos de tudo, Ellemir - disse ele, saindo em seguida com Dezi, a fim de tomar as providências necessárias.

    Ellemir conduziu leonie e sua dama de companhia (sem a qual seria escandaloso para uma mulher com sangue Comyn viajar tão longe) pela estrada. Atravessando os largos corredores da casa antiga, Leonie perguntou:

    - Consegue administrar sozinha esta enorme propriedade, criança?

    - Só durante a sessão do Conselho, quando fico sozinha aqui. Mas nosso coridom é velho e experiente.

    - Mas não tem aqui nenhuma mulher responsável, nenhuma parenta ou companheira?É muito jovem para arcar sozinha com todo esse peso, Ellemir!

    - Meu pai nunca se queixou. Venho cuidando da casa para ele desde que minha irmã mais velha casou. Eu tinha quinze anos na ocasião.

    Ela falou com tanto orgulho que Leonie sorriu.

    - Não a acusei de qualquer falha de competência, prima. Só quis dizer que devia se sentir muito solitária. Se Callista não ficar com você, acho que deve ter alguma parenta ou amiga para morar aqui, pelo menos por algum tempo. Já está sobrecarregada, agora que seu pai precisa de tantos cuidados. Como poderia cuidar de tudo se Damon a engravidasse imediatamente?

    Ellemir ficou um pouco ruborizada.

    - Eu não tinha pensado nisso...

    - Pois uma noiva deve pensar a respeito, mais cedo ou mais tarde. Talvez uma das irmãs de Damon possa vir lhe fazer companhia... Criança, este é o meu quarto? Não estou acostumada a tanto luxo!

    - Era a suíte de minha mãe - explicou Ellemir. - Há outro quarto ali, em que sua companheira poderá dormir. Espero que tenha trazido uma criada pessoal, pois Callista e eu não temos nenhuma a lhe oferecer. A velha Bethiah, nossa babá quando éramos pequenas, morreu no ataque em que seqüestraram Callista, e ficamos tão desoladas que ainda não pusemos ninguém para substituí-la. Só há as mulheres da cozinha e outras servidoras assim, agora, em toda a propriedade.

    - Não tenho criada pessoal. Na Torre, a última coisa que desejamos é a presença de gente de fora, como tenho certeza de que Damon já lhe contou.

    - Damon nunca me fala de seu tempo na Torre.

    - Pois então saiba que não mantemos servidores humanos, mesmo que o preço seja termos de cuidar de tudo pessoalmente. Portanto, criança, não precisa se preocupar.

    Leonie tocou no rosto da moça, um contato leve, como uma pluma, um gesto de dispensa. Ellemir desceu a escada pensando, um tanto surpresa: Ela é gentil! Gostei dela! Mas sentia-se também perturbada com muitas coisas que Leonie dissera. Começava a compreender que desconhecia vários aspectos de Damon. Tomara como um fato consumado que Callista não gostava de criadas, e até zombara da irmã por causa disso. Agora, percebia que os anos de Damon na Torre, aqueles anos de que ele nunca falava - e já constatara que ele se sentia infeliz se o interrogava a respeito -, sempre seriam uma barreira entre os dois.

    E Leonie dissera também: "Se Callista não ficar com você." Seria uma indagação? Callista poderia ser levada de volta a Arilinn, persuadida contra sua vontade de que seu lugar era lá? Ou - e Ellemir estremeceu - seria possível que Leonie se recusasse a liberar Callista da Torre, o que levaria Callista a cumprir sua ameaça de abandonar Armida e até mesmo Darkover, partindo com Andrew para os mundos dos terráqueos?

    Ellemir desejou ter pelo menos um lampejo de precognição, que aflorava de vez em quando nas pessoas com o sangue Alton, mas o futuro se achava em branco, fechado para ela. Por mais que tentasse projetar a mente, nada podia ver além de uma imagem inquietante de Andrew, o rosto coberto pelas mãos, encurvado, chorando, o corpo todo tremendo, numa dor insuportável. Devagar, preocupada agora, ela se encaminhou para a cozinha, procurando o esquecimento nos doces negligenciados.

    Poucos minutos depois, a dama de companhia - uma mulher retraída e quieta chamada Lauria - foi comunicar, com toda a deferência, que a Dama de Arilinn desejava conversar a sós com Domna Callista. Relutante, Callista levantou-se, estendendo as pontas dos dedos para Andrew. Seus olhos estavam assustados, e ele se apressou em dizer, com alguma aflição na voz:

    - Não precisa enfrentá-la sozinha, se não quiser. Não vou admitir que aquela velha a assuste. Quer que eu vá também e diga a ela tudo o que penso?

    Os dois se encaminharam para a escada. Fora do salão, Callista virou-se para ele e murmurou:

    - Devo enfrentar isso sozinha, Andrew. Você não pode me ajudar agora.

    Ele desejou poder abraçá-la e confortá-la. Callista parecia muito pequena e frágil, perdida e assustada. Mas Andrew aprendera, da forma mais dolorosa, com imensa frustração, que Callista não devia ser confortada assim, que não podia sequer tocá-la sem despertar todo um complexo de reações que ele ainda não compreendia, mas que pareciam apavorá-la. Por isso, ele se limitou a dizer gentilmente:

    - Faça como achar melhor, amor. Mas não a deixe assustá-la... e lembre-se de que eu a amo. Se não nos deixarem casar aqui, há todo um vasto mundo fora de Armida. Há uma porção de outros mundos na galáxia além deste, caso tenha esquecido.

    Callista fitou-o e sorriu. Pensava às vezes que, se o tivesse visto primeiro pela maneira normal, em vez da maneira como o conhecera, através do contato mental, Andrew nunca lhe teria parecido bonito. Poderia até julgá-lo um tanto desgracioso. Era um homem alto e largo, de cabelos louros, como os habitantes das Cidades Secas, meio desajeitado e desleixado; apesar disso, no entanto, ele se tornara muito caro para ela, sentia-se segura ao seu lado. E desejou agora, angustiada, ser capaz de abraçá-lo, apertá-lo com toda a força, como Ellemir fazia com Damon, mas o medo antigo a manteve imóvel. Ao final, encostou as pontas dos dedos nos lábios de Andrew, um gesto raro. Ele beijou seus dedos, e Callista sorriu.

    - Eu amo você, Andrew... caso tenha esquecido isso. E ela subiu a escada, ao encontro de Leonie.

 

    As duas Guardiãs de Arilinn, a jovem e a velha, se fitaram. Callista avaliou a aparência de Leonie: nunca bela, talvez, exceto pelos olhos adoráveis, mas com feições serenas, regulares; o corpo liso e magro, tão assexuado quanto o de qualquer emmasca; o rosto pálido e impassível, como se fosse esculpido em mármore. Callista sentiu um calafrio de horror ao compreender que o hábito de anos, a disciplina arraigada, também dissolvia sua expressão, tornando-a fria e remota, tão apartada dos outros quanto Leonie. Parecia que o rosto da velha Guardiã era um reflexo do seu ao longo dos muitos anos mortos que teria pela frente. Dentro de meio século, parecerei exatamente como ela... Mas não! Não! Não ficarei assim! De jeito nenhum!

    Como todas as Guardiãs, ela aprendera a proteger seus pensamentos. Sabia, com uma estranha clarividência, que Leonie esperava que ela se descontrolasse e chorasse, suplicasse e implorasse, como uma garota histérica. Só que a própria Leonie a armara, anos atrás, com aquela calma fria, aquele controle absoluto. Era uma Guardiã, treinada em Arilinn; não se mostraria inapta. Ajeitou as mãos no colo, na maior serenidade, e ficou esperando, até que finalmente Leonie foi obrigada a falar primeiro.

    - Já houve um tempo em que um homem que tentasse' seduzir uma Guardiã seria dilacerado pelos ganchos, Callista.

    - Esse tempo já passou há séculos - respondeu Callista, a voz tão impassível quanto a de Leonie. - E Andrew não tentou me seduzir; ao contrário, ofereceu-me um casamento honrado.

    Leonie deu de ombros.

    - É tudo a mesma coisa.

    Ela permaneceu em silêncio por um longo tempo, um silêncio que se prolongou por minutos. Callista sentiu outra vez que Leonie desejava que ela perdesse o controle, que suplicasse. Mas Callista esperou, imóvel, e de novo foi Leonie quem teve de romper o silêncio.

    - Então é assim que você mantém seu juramento, Callista de Arilinn?

    Por um momento, Callista sentiu uma pressão dolorosa na garganta. O título era usado apenas para uma Guardiã, o título que ela conquistara a um custo tão elevado! E Leonie parecia tão velha, tão triste, tão cansada!

    Leonie é velha, ela disse a si mesma. Deseja se livrar de seu fardo, entregá-lo nas minhas mãos. Fui treinada com extremo cuidado, desde que era criança. Leonie trabalhou e aguardou com toda a paciência pelo dia em que eu poderia assumir o lugar que preparou para mim. O que ela fará agora?

    Em vez de angústia, porém, o que aflorou foi raiva, raiva contra Leonie, por manipular assim as suas emoções. Ela conseguiu manter uma voz serena ao dizer:

    - Durante nove anos, Leonie, tive de arcar com o peso do juramento de Guardiã. Não sou a primeira a pedir uma dispensa, nem serei a última.

    - Quando me tornei Guardiã, Callista, ficou tácito que era uma decisão pelo resto da vida. E nunca repudiei meu juramento. Esperava que você estivesse disposta a fazer a mesma coisa.

    Callista sentiu vontade de chorar, de gritar, Não posso!, de argumentar com Leonie. Refletiu, com uma isenção desolada, que seria melhor se pudesse. Mas fora-lhe incutido o orgulho, empenhara-se em alcançá-lo, armara-se com ele, não podia agora renunciar.

    - Nunca me disseram, Leonie, que eu deveria fazer um juramento pelo resto da vida. Foi você mesma quem me disse que é um fardo pesado demais para suportar sem consentimento.

    Com uma paciência inflexível, Leonie disse:

    - É verdade. Contudo, eu a julgava mais forte. Muito bem, fale-me a respeito. Já foi para a cama com seu amante?

    O termo era desdenhoso; era o mesmo que ela usara antes para indicar "marido prometido", mas desta vez Leonie usara a inflexão depreciativa, que continha a insinuação de "amásio"'. Callista teve de fazer uma pausa, a fim de recuperar a calma necessária para manter a voz firme.

    - Não. Ainda não quebrei meu juramento, e ele é honrado demais para pedir isso. .Apenas me pediu em casamento, Leonie, jamais por uma traição.

    - É mesmo? - Havia incredulidade na voz de Leonie, a expressão era desdenhosa. - Depois de resolver quebrar seu juramento, ficou esperando por minha permissão!

    Callista teve de recorrer a todo o seu autocontrole para não explodir numa defesa irada de si mesma e de Andrew... e depois compreendeu que Leonie lhe lançava uma isca, sondava para descobrir se ela era capaz de perder o controle das emoções disciplinadas com o maior cuidado. Conhecia aquele jogo, de seus primeiros dias em Arilinn, e o alívio pela lembrança deixou-a com vontade de rir. O riso seria tão inadmissível quanto as lágrimas naquela solene confrontação, mas havia certo divertimento em sua voz. e sabia que Leonie podia perceber, quando disse:

    - Temos uma parteira em Armida, Leonie; mande chamá-la, se assim deseja, para verificar se ainda sou virgem.

    Foi Leonie quem baixou os olhos e murmurou, depois de um momento:

    - Isso não será necessário, criança.  Mas vim preparada para enfrentar, se fosse preciso, a descoberta de que você fora estuprada.

    - Por não-humanos? Nada disso. Sofri medo, frio, encarceramento, fome, maus-tratos, mas fui poupada do estupro.

    - Não teria muita importância, sabe disso. - A voz de Leonie era bastante gentil agora. - De um modo geral, uma Guardiã não precisa temer o estupro. Sabe tão bem quanto eu que qualquer homem que põe as mãos numa Guardiã treinada como você está correndo um risco de vida. Apesar disso, o estupro sempre é possível. Algumas mulheres já foram dominadas pela força bruta, e outras temeram no último momento invocar a força necessária para se defenderem. Era uma das coisas, entre outras, que vim lhe dizer: mesmo que tivesse sido estuprada de fato, ainda teria uma possibilidade, minha criança. Não é o ato físico que faz a diferença.

    Callista não sabia disso, e ficou um pouco surpresa. Leonie continuou, impassível:

    - Se fosse possuída contra a vontade, sem o seu consentimento, não faria diferença, tudo poderia ser superado por algum tempo de reclusão, para a cura de seus medos e mágoas. E mesmo que não houvesse estupro,  se  deitasse depois  com  o seu salvador,  por gratidão ou bondade,  sem  qualquer  envolvimento  profundo...  como  poderia  ter acontecido... nem mesmo isso precisaria ser irremediável. Um período de isolamento, de retreinamento, e poderia ser como antes, inalterada, ilesa, ainda livre para ser Guardiã. Não é um fato dos mais conhecidos; mantemos em segredo, por razões óbvias. Mas ainda tem uma opção, criança. Não quero que pense que deve deixar a torre para sempre por causa de uma coisa que aconteceu sem a participação de sua vontade.

    Leonie ainda falava com extrema gentileza, mas Callista sabia que ela estava suplicando; e disse, dilacerada pela compaixão e angústia:

    - Não, Leonie, não foi assim que aconteceu. O que houve entre nós... foi muito diferente. Conheci Andrew e passei a amá-lo antes mesmo de contemplar seu rosto neste mundo. E ele é honrado demais para pedir que eu viole um juramento prestado sem permissão.

    Leonie ergueu os olhos azuis, o brilho era como um clarão de relâmpago.

    - Será que ele é tão honrado assim - disse ela, o tom ríspido -, ou acontece apenas que você tem medo?

    Callista sentiu uma intensa pontada de angústia, mas manteve a voz firme:

    - Não tenho medo.

    - Não por você mesma, talvez... admito isso. E por ele, Callista? Você ainda pode voltar a Arilinn, sem qualquer penalidade, sem prejuízos. Mas se não voltar... quer o sangue de seu amante na consciência? Não seria a primeira Guardiã a acarretar a morte de um homem!

    Callista ergueu a cabeça, abriu a boca para protestar, mas Leonie gesticulou para que permanecesse calada e continuou, implacável:

    - Já foi capaz de sequer tocar na mão dele?

    Callista sentiu o alívio invadi-la, um alívio tão grande que foi como uma dor física, esvaindo sua força. Com a recordação plena e total de uma telepata, a imagem em sua memória ressurgiu, aniquilando tudo mais...

    Andrew a carregara para fora da caverna em que o Grande Gato morrera, um cadáver enegrecido, ao lado da matriz espatifada que ele profanara. Envolvera-a em seu manto e a acomodara à sua frente no cavalo. Ela podia sentir de novo, em total recordação, como se encostara nele, a cabeça em seu ombro, aninhada entre seus braços, o coração dele batendo sob seu rosto. Segura, aconchegada, feliz, absolutamente em paz. Pela primeira vez desde que se tornara Guardiã, sentira-se livre, tocando e sendo tocada, nos braços de Andrew, contente por estar ali. E durante toda a longa viagem para Armida assim se mantivera, dentro do manto de Andrew, experimentando uma felicidade que nunca imaginara que fosse possível.

    A medida que a imagem em sua mente era absorvida por Leonie, o rosto da mulher mais velha mudou. Ao final, ela murmurou, na voz mais gentil que Callista já ouvira:

    - É assim, chiya? Nesse caso, se Avarra for misericordiosa com você, talvez seu desejo seja atendido. Eu não acreditava que fosse possível.

    E Callista sentiu uma estranha apreensão. Afinal, não revelara toda a verdade a Leonie. Por aquele pouco tempo, sem dúvida, estivera inflamada pelo amor, aconchegada, sem medo, contente:... mas, depois, o antigo constrangimento nervoso ressurgira, pouco a pouco, e agora tinha dificuldade até para encostar nas pontas dos dedos de Andrew. Mas com certeza era apenas um hábito, um hábito de anos, disse a si mesma. Tudo acabaria bem...

    - Quer dizer, criança, que ficaria muito infeliz se tivesse de se separar de seu amante? - indagou Leonie gentilmente.

    Callista descobriu que a calma a abandonara. Sabia que a voz tremia e as lágrimas afloravam aos olhos, quando disse:

    - Eu não ia querer mais viver, Leonie.

    - Portanto... - Leonie fitou-a em silencio por um longo momento, com uma tristeza assustadora, um tanto remota. - Ele compreende como será difícil, criança?

    - Acho... tenho certeza de que posso fazê-lo compreender. - Callista hesitou por um instante. - Ele... prometeu que esperaria por tanto tempo quanto fosse necessário.

    Leonie suspirou.

    - Sendo assim, criança... não quero que você seja infeliz. Como eu disse, o juramento de uma Guardiã é pesado demais para ser suportado sem consentimento.

    Num gesto deliberado, estranhamente formal, ela estendeu as mãos para Callista, as palmas viradas para cima; a mulher mais jovem pôs suas mãos por cima, palma contra palma. Leonie respirou fundo.

    - Está livre de seu juramento, Callista Lanart. Diante dos Deuses e diante de todos os homens, eu a declaro sem culpa e a libero do vínculo, e assim será.

    As mãos se separaram devagar. Callista tremia toda. Leonie pegou seu lenço, enxugou os olhos da moça, murmurando:

    - Rezo para que ambos sejam bastante fortes.

    Ela parecia prestes a falar mais alguma coisa, mas se conteve, e acrescentou apenas:

    - Creio que seu pai terá muito o que dizer a respeito, minha querida. Assim, vamos escutá-lo agora. - Leonie sorriu. - E depois que Esteban falar tudo o que pensa, diremos a ele como será, quer ele goste ou não. Não tenha medo, minha criança. Eu não tenho medo de Esteban Lanart, e você também não deve ter.

    Andrew esperou na estufa, por trás do prédio principal de Armida. Sozinho, olhou pelo vidro grosso e ondulado para os contornos das colinas distantes. Fazia calor ali dentro, com uma fragrância intensa de plantas e solo. A claridade dos coletores solares obrigou-o a contrair os olhos, até se acostumar. Foi andando entre as fileiras de plantas, tímidas e pingando, sentindo-se isolado, inteiramente sozinho.

    De vez em quando ficava assim. Na maior parte do tempo, sentia-se em casa ali, mais do que em qualquer outro lugar do Império em que já estivera; mais do que jamais se sentira desde que, aos dezoito anos, o rancho de criação de cavalos no Arizona em que havia sido criado fora vendido para o pagamento de dívidas, e se aventurara pelo espaço, como servidor civil do Império, deslocando-se de planeta para planeta, de acordo com a vontade dos administradores e dos computadores. E fora bem recebido ali, depois dos primeiros dias de estranheza. Ao saberem que conhecia alguma coisa sobre a doma e treinamento de cavalos, um serviço raro e muito bem remunerado em Darkover, passaram a tratá-lo com todo o respeito, como um profissional experiente e competente. Os cavalos de Armida eram considerados os melhores dos Domínios, mas em geral traziam os treinadores de Dalereuth, que ficava mais ao sul.

    E, assim, de um modo geral, fora feliz em Armida, nas semanas transcorridas desde que se tornara o marido prometido de Callista. Seu nascimento terráqueo só era conhecido por Damon, Dom Esteban, Callista e Ellemir; os outros pensavam apenas que ele era um estranho das terras baixas, de algum lugar alem de Thendara. De forma inacreditável, encontrara um segundo lar. O sol era imenso e sangrento, as quatro luas que surgiam à noite no céu, de uma curiosa tonalidade violeta, eram coloridas, com nomes que ele ainda não conhecia. Apesar de toda a estranheza, no entanto, aquele lugar se tornara seu lar...

    Lar... E, no entanto, houvera momentos como aquele, momentos em que experimentara um isolamento cruel, e sabia que era apenas a presença de Callista que fazia com que Armida fosse o seu lar. Sob o clarão do sol a pino, na estufa, experimentara um desses momentos. Solitário por quê? Não havia nada no mundo a que fora condicionado a chamar de seu, o mundo seco e árido do QG terráqueo, nada que realmente desejasse. Mas haveria uma vida para ele ali, no final das contas, ou Leonie levaria Callista de volta ao estranho mundo das Torres?

    Depois de um longo momento, ele percebeu que Damon se encontrava parado às suas costas, sem tocá-lo - Andrew já se acostumara a isso agora, entre telepatas -, mas bastante próximo para que pudesse sentir o homem mais velho como uma presença confortadora.

    - Não precisa ficar tão preocupado, Andrew. Leonie não é uma ogra. Ela ama Callista. Os vínculos de um círculo da Torre são os mais profundos que conhecemos. Ela saberá o que Callista realmente quer.

    - é disso que tenho medo - murmurou Andrew, através da garganta ressequida. - Talvez Callista não saiba o que quer. Talvez só tenha se aproximado de mim porque se encontrava sozinha e com medo. Receio a influência da velha sobre ela. A pressão da Torre... receio que seja forte demais.

    Damon suspirou.

    - Mas pode ser rompida.  Eu a rompi.  Foi difícil... nem dá para descrever como foi difícil...  mas consegui finalmente construir outra vida. E se tiver de perder Callista assim, é melhor que seja agora do que quando for tarde demais para voltar.

    - Já é tarde demais para mim.

    Damon acenou com a cabeça, exibindo um sorriso apreensivo.

    - Também não quero perdê-lo, meu amigo.

    E Damon pensou: Você é parte desta vida nova que construí com tanto sacrifício. Você, Ellemir e. Callista. Eu não poderia suportar outra amputação. Mas Damon não pronunciou as palavras; limitou-se a suspirar, parado agora ao lado de Andrew. O silêncio na estufa prolongou-se tanto que o sol vermelho, descendo do zênite, perdeu a força ali dentro. Damon, suspirando mais uma vez, foi ajustar os coletores solares. Andrew acompanhou-o e disse:

    - Como pode esperar com tanta calma? O que aquela velha está dizendo a Callista?

    Mas Andrew já aprendera que a escuta telepática era considerada um dos crimes mais vergonhosos numa casta de telepatas. Não ousava nem mesmo entrar em contato com Callista por esse meio. Todas as suas frustrações tinham de ser descarregadas no ato de andar de um lado para outro da estufa.

    - Calma, Andrew, calma. Callista ama você. Não deixará que Leonie a convença a mudar de idéia.

    - Não tenho mais tanta certeza - insistiu Andrew, desesperado. - Ela não me deixa tocá-la, beijá-la...

    Damon protestou, gentilmente:

    - Pensei que já tinha lhe explicado isso. Ela não pode. São... reflexos. Mais profundos do que você pode imaginar. Não é possível romper em poucos dias os hábitos de anos. Mas posso lhe assegurar que ela vem tentando com todo o empenho superar esse... esse condicionamento profundo. Não sabe que numa Torre seria inconcebível que ela pegasse sua mão, como a vi fazer, e o deixasse beijar a ponta de seus dedos? Tem noção da luta que deve ter sido necessária, contra anos de treinamento, de condicionamento?

    Contra a sua vontade, Damon recordou uma época na sua vida em que ensinara a si mesmo, de forma angustiante, a não lembrar: uma batalha solitária, ainda pior por não ser física, para reprimir a percepção de Leonie, controlar até seus pensamentos, a fim de que ela nunca percebesse o que ocultava. Nunca se atreveria a imaginar um contato das pontas dos dedos, como Callista concedera a Andrew no salão, antes de subir para falar com Leonie.

    Aliviado, ele viu Ellemir entrar na estufa. Ela foi andando entre as fileiras de plantas, abaixou-se diante de uma videira carregada. Empertigou-se com uma expressão satisfeita e anunciou:

    - Se houver sol por mais um dia, as frutas estarão maduras para o casamento.

    Seu sorriso se desvaneceu ao reparar no rosto tenso de Damon, no desespero contido de Andrew. Aproximou-se, ergueu-se na ponta dos pés, enlaçou Damon, sentindo que ele precisava do conforto de sua presença, de seu contato. Desejou poder confortar também a Andrew, que murmurou, angustiado:

    - Mesmo que Leonie dê seu consentimento, o que fará o pai? Ele vai consentir? Acho que ele não gosta muito de mim...

    - Ele gosta de você, e gosta muito - garantiu Ellemir -, mas deve compreender que é um homem orgulhoso. Achou que eu era boa demais para Damon, mas já tenho idade suficiente para impor minha vontade. Se tivesse me oferecido a Aran Elhalyn, que esquenta o trono em Thendara, o pai ainda assim pensaria que ele não estava à altura. Para Callista, nenhum homem nascido de mulher seria bastante bom, nem mesmo que fosse tão rico quanto o Lorde de Carthon e bastardo de um deus. Além disso, mesmo nos dias de hoje ainda é uma grande coisa ter uma filha em Arilinn. Callista seria a Guardiã de Arilinn, e não é fácil para ele renunciar a essa perspectiva.

    Andrew sentiu um aperto no coração, ela percebeu, e acrescentou:

    - Não se preocupe. Tudo vai acabar bem. E lá está Callista.

    A porta se abriu, e Callista entrou na estufa. Estendeu as mãos para eles, quase às cegas.

    - Não voltarei a Arilinn, e o pai deu seu consentimento ao nosso casamento...

    Ela perdeu o controle, desatou a chorar. Andrew estendeu os braços, mas Callista desviou-se, foi se encostar na grossa parede de vidro, escondendo o rosto, os ombros esguios se sacudindo com a violência do choro.

    Esquecendo tudo, exceto a aflição da amada, Andrew avançou em sua direção. Damon pôs a mão em seu braço, balançou a cabeça com firmeza. Consternado, Andrew ficou olhando para a mulher a chorar, incapaz de suportar seu sofrimento, mas também incapaz de fazer qualquer coisa a respeito, num desespero impotente. Ellemir aproximou-se da irmã, virou-a gentilmente.

    - Não se apóie nessa parede, minha querida, quando há três pessoas aqui com ombros em que você pode chorar. - Ela enxugou as lágrimas da irmã com o avental comprido. - Conte-nos tudo. Leonie foi horrível com você? - Callista sacudiu a cabeça, piscando com força, os olhos avermelhados.

    - Não poderia ter sido mais gentil...

    Com uma expressão cética, Ellemir indagou:

    - Então por que você uiva como um pássaro-espírito? Ficamos esperando, em agonia, com medo de que nos fosse arrebatada e levada de volta à Torre, e quando aparece e diz que está tudo bem, e nos preparamos para comemorar com você, desata a chorar como uma criada grávida!

    - Não...  Leonie...  Leonie foi gentil, acho que ela compreendeu. Mas o pai...

    - Pobre Callie - murmurou Damon. - Já senti muitas vezes a língua rude de seu pai.

    Andrew ouviu o tratamento carinhoso com surpresa e uma súbita pontada de ciúme. Nunca lhe ocorrera, e a abreviação usada por Damon, com tanta naturalidade, parecia uma intimidade que ressaltava ainda mais seu isolamento. Mas lembrou a si mesmo que não podia esquecer que Damon era íntimo da família desde que Callista era uma menina. Ela ergueu o rosto e disse calmamente:

    - Leonie me liberou do juramento, Damon, e sem contestação. Damon percebeu  a  luta angustiada  por trás daquela  serenidade controlada e pensou: Se Andrew a fizer infeliz, serei capaz de matá-lo. Em voz alta, ele se limitou a dizer:

    - Com seu pai, é claro, a história foi diferente. Ele foi muito terrível?

    Pela primeira vez, Callista sorriu.

    - Foi, sim, mas Leonie é ainda mais obstinada. Ela disse que não se pode prender uma nuvem em correntes.  E o pai se virou contra mim. Oh, Andrew, ele disse coisas horríveis, que você abusou da hospitalidade, que me seduziu...

    - O velho tirano! - interveio Damon, furioso. - Se ele acredita mesmo...

    - Ele já não pensa mais assim. - Um brilho nos olhos de Callista insinuava sua antiga alegria. - Leonie lembrou-o de que não sou mais uma garota de treze anos; que quando as portas de Arilinn se fecharam por trás de mim pela primeira vez, ele renunciara para sempre a todo e qualquer direito de me dar ou recusar em casamento; que mesmo que ela me considerasse inapta, e me mandasse embora da Torre antes que eu alcançasse a maioridade legal para ser declarada uma mulher, ainda assim seria seu, e não dele, o direito de me encontrar um marido. E muitas outras verdades, que o pai não ficou nada satisfeito em ouvir.

    - Evanda seja louvada por você estar rindo de novo, minha querida - disse Ellemir. - Mas como o pai reagiu a essas verdades desagradáveis?

    - Não gostou nada, como podem imaginar, mas ao final não havia outra coisa que pudesse fazer senão aceitar. Creio que ele até ficou satisfeito por Leonie contestá-lo; temos todos feito as suas vontades em demasia, desde que ele foi ferido. O pai voltou a se comportar como antes, e talvez se sinta melhor assim. E depois que ele acabou aceitando, com muitos protestos, Leonie se empenhou em apaziguá-lo... dizendo como era afortunado por ter dois genros para administrar a propriedade, o que permitiria que Domenic ocupasse seu lugar no Conselho, e duas filhas para viver aqui e lhe fazer companhia. No final, ele disse que Leonie deixara bem claro que eu não precisava de bênção para casar, mas pediu que você fosse tomar sua bênção.

    Andrew ainda estava irritado.

    - Se o velho tirano pensa que me importo com sua bênção ou maldição...

    Damon pôs a mão em seu braço, interrompendo-o.

    - Andrew, isso significa que ele o aceitará como um filho em sua casa. Pelo bem de Callista, acho que deve aceitar, com toda a gentileza de que for capaz. Callista já perdeu uma família quando decidiu, por você, não voltar a Arilinn. A menos que o odeie tanto que não conseguirá viver em paz sob o seu teto...

    - Não o odeio, mas posso cuidar de minha esposa em meu próprio mundo. Não quero me apresentar a ele sem dinheiro, aceitando sua caridade.

    - A caridade, Andrew, está do seu lado... e do meu - disse Damon. - Ele pode viver ainda muitos anos, mas nunca mais será capaz de pôr os pés no chão. Domenic deve ocupar seu lugar no Conselho, e ainda é um menino de onze anos. Se você tirar Callista dele, vai deixá-lo à mercê de estranhos, que poderá contratar por um preço, ou de parentes distantes, que só viriam pela ganância, para tentarem ganhar tudo o que fosse possível. Se você permanecer aqui e ajudá-lo a administrar a propriedade, contando ainda com a companhia da filha, vai dar muito mais do que aceitará.

    Andrew pensou um pouco, concluiu que Damon tinha razão.

    - Mas se Leonie arrancou o consentimento dele contra sua vontade...

    - Não foi assim, caso contrário ele nunca teria lhe oferecido sua bênção - afirmou Damon. - Eu o conheço durante toda a minha vida. Se ele ainda relutasse em conceder seu consentimento, diria algo como leve-a e que se danem os dois. Não é verdade, Callista?'

    - Damon está certo: ele é terrível na raiva, mas não é homem de guardar ressentimentos.

    - É isso mesmo - acrescentou Damon. - Esteban pode ter uma explosão de raiva, mas depois fica tudo bem, e ele o aceita em seu coração com a mesma rapidez com que o repudiou um momento antes. Podem discutir de novo... e é bem provável que isso aconteça, pois é um homem estourado e belicoso... mas ele nunca lhe servirá ressentimentos antigos como mingau azedo.

    Depois que Damon e Ellemir se retiraram, Andrew olhou para Callista e disse:

    - Tem certeza de que é isso o que você quer, meu amor? Não desgosto de seu pai. Apenas fiquei zangado porque ele a atormentou, a fez chorar. Se quer continuar aqui...

    Ela fitou-o, e a intimidade tornou a envolvê-los, o mesmo sentimento que os atraíra antes de se encontrarem pessoalmente, o contato muito mais real para Andrew do que o hesitante e assustado contato físico que era tudo o que Callista podia permitir.

    - Se você e o pai não chegassem a um acordo, eu o seguiria para qualquer lugar em Darkover, para qualquer lugar do seu Império das estrelas. Mas o faria com um sofrimento tão profundo que nem daria para medir. Este é o meu lar, Andrew. E o desejo mais profundo de meu coração é nunca mais ter de sair daqui.

    Ele levantou as pontas dos dedos de Callista até seus lábios e murmurou:

    - Então será o meu lar também, minha amada. Para sempre.

    Quando Andrew e Callista retornaram à casa principal, encontraram Damon e Ellemir sentados num banco, ao lado de Dom Esteban.

    No instante em que entraram no salão, Damon levantou-se e ajoelhou-se diante do velho. Disse alguma coisa que Andrew não pôde ouvir, e o Lorde Alton respondeu sorrindo:

    - Já provou muitas vezes que é um filho para mim, Damon. Não preciso de mais provas. Aceite minha bênção.

    Ele encostou a mão por um instante na cabeça de Damon. Erguendo-se, o homem mais jovem inclinou-se, beijou-o no rosto. Dom Esteban olhou além de Damon, com um sorriso triste.

    - É orgulhoso demais para se ajoelhar e aceitar minha bênção, Andra?

    - Não, senhor, não sou orgulhoso demais. Se ofendo os seus costumes, neste ponto ou em qualquer outro, Lorde Alton, peço que encare como ignorância do que é considerado apropriado, e não como uma ofensa deliberada.

    Dom Esteban gesticulou para que sentassem ao lado de Damon e Ellemir.

    - Andra - disse ele, ainda dando ao nome a inflexão darkovana -, não conheço nada realmente ruim sobre o seu povo, mas também pouco conheço que seja bom. Acho que são como todas as pessoas, alguns bons, outros maus, e a maioria não é uma coisa nem outra. Se fosse mau, creio que minha filha não estaria disposta a casar com você, contra todos os costumes e o bom senso. Mas não pode me culpar por não me sentir inteiramente feliz em entregar minha criança mais amada a um forasteiro de outro mundo, mesmo sendo alguém que demonstrou ser tão honrado e bravo.

    Andrew sentiu Ellemir, sentada ao seu lado no banco, cerrar as mãos com toda a força, quando o velho se referiu a Callista como a filha mais amada. Era uma crueldade, pensou ele, dizer isso na presença de Ellemir. .Afinal, fora Ellemir quem permanecera em casa, uma filha obediente e amorosa, durante todos aqueles anos. A indignação pela falta de tato do velho fez com que sua voz soasse fria:

    - Só posso dizer, senhor, que amo Callista e  tentarei fazê-la feliz.

    - Não creio que ela possa ser feliz entre seu povo. Tenciona levá-la para longe?

    - Se não consentisse em nosso casamento, senhor, eu não teria opção. - Mas ele poderia levar aquela jovem sensitiva, criada entre telepatas, para a Zona Terráquea,  aprisionando-a entre prédios altos e máquinas, expondo-a a pessoas que a encarariam como uma aberração exótica? Seu laran seria considerado como loucura ou charlatanismo? - Mas agora, senhor, terei o maior prazer em ficar aqui. Talvez eu possa lhe provar que os terráqueos não são tão diferentes quanto pensa.

    - Já sei disso. Pensa que sou ingrato? Sei muito bem que, se não fosse por você, Callista teria morrido nas cavernas, e as terras continuariam sob aquela escuridão amaldiçoada.

    - Foi mais um feito de Damon do que meu, senhor. O velho soltou uma risada breve e irônica.

    - é, assim, é como o antigo conto de fadas, vocês dois sendo recompensados com as mãos de minhas filhas e metade de meu reino. Só que não tenho nenhum reino para oferecer, Ann'dra, mas você tem aqui o lugar de um filho, enquanto viver, e seus filhos depois de você, se assim desejar.

    Os olhos de Callista estavam cheios de lágrimas. Ela foi se ajoelhar ao lado do pai e sussurrou:

    - Obrigada.

    Esteban pôs a mão, por um instante, sobre os cabelos avermelhados e disse, por cima da cabeça da filha:

    - Muito bem, Andra, venha se ajoelhar para receber minha bênção.

    A voz áspera soava gentil. Com um sentimento de confusão, meio de embaraço, meio de estranheza inevitável, Andrew ajoelhou-se ao lado de Callista. Na superfície de sua mente, havia pensamentos casuais, como aquele gesto pareceria absurdo no quartel-general, ou quando em Roma... mas num nível mais profundo aflorava um respeito pelo gesto. Sentiu a mão calejada do velho em sua cabeça, e com a percepção telepática recém-aberta, ainda estranha, não absolvida por completo, captou uma insólita mistura de emoções: apreensões, misturadas com uma simpatia hesitante, espontânea. Teve certeza de que era isso o que o velho sentia a seu respeito: e, para sua surpresa, não era diferente do que ele próprio sentia pelo lorde do Comyn.

    Tentando manter a voz neutra, embora tivesse certeza absoluta de que o velho também podia ler seus pensamentos, Andrew disse:

    - Fico agradecido, senhor, e tentarei ser um bom filho. Dom Esteban resmungou:

    - Como pode ver, vou precisar de dois bons filhos. Mas pretende continuar a me tratar por senhor pelo resto de nossas vidas, filho?

    - Claro que não, parente.

    Andrew usou agora a forma íntima da palavra, como Damon fazia. Podia significar "tio", ou qualquer parente próximo da geração do pai. Levantou-se em seguida, e ao se afastar deparou com o olhar curioso do menino Dezi, em silêncio, por trás de Esteban, com uma ira intensa... e Andrew pôde perceber que havia também ressentimento, inveja.

    Pobre menino, pensou ele. Chego aqui como um estranho e me tratam como alguém da família. Ele é da família... e o velho o trata como um criado! Ou um cachorro! Não é de admirar que o garoto esteja com inveja!

   

    Ficou acertado que os casamentos seriam realizados dali a quatro dias, uma cerimônia discreta, tendo apenas Leonie como convidada de honra, e uns poucos vizinhos que viviam em propriedades próximas para comemorar com a família. O breve intervalo era tempo suficiente para que fosse avisado o herdeiro de Dom Esteban, Domenic, que se encontrava em Thendara, e para que um ou mais dos irmãos de Damon pudessem vir de Serrais, se assim desejassem.

    Na noite anterior aos casamentos, as irmãs gêmeas permaneceram acordadas até tarde, no quarto que partilharam quando crianças, antes que Callista fosse para a Torre de Arilinn. Um pouco triste, Ellemir comentou:

    - Sempre pensei que no dia de meu casamento haveria muita festa, lindos vestidos, com a presença de todos os nossos parentes para comemorar, em vez de uma cerimônia apressada, tendo como convidados apenas uns poucos vizinhos. É verdade que, tendo Damon por marido posso dispensar o resto, mas mesmo assim...

    - Também lamento, Elli, e sei que a culpa é minha - disse Callista. - Você vai casar com um lorde do Comyn, do Domínio de Ridenow, e assim não há motivo para que a cerimônia não seja pelas catenas, com toda festa e alegria que desejar. Andrew e eu estragamos isso.

    Uma filha do Comyn não podia casar di catenas, pela cerimônia antiga, sem a autorização do Conselho do Comyn, e Callista sabia que não havia a menor possibilidade de o Conselho permitir que se unisse a um forasteiro, alguém que não pertencia à casta... e ainda por cima um terráqueo! Por isso, haviam escolhido a forma mais simples, conhecida como casamento livre, que podia ser consumado por uma simples declaração na presença de testemunhas. Ellemir percebeu a tristeza na voz da irmã e se apressou em dizer:

    - Ora, como o pai tanto gosta de dizer, o mundo continuará como quer, e não como você ou eu gostaríamos. Na próxima sessão do Conselho, Damon prometeu que me levaria a Thendara, e ali haverá diversão suficiente para todos.

    - E a essa altura, meu casamento com Andrew já estará consolidado há tanto tempo que nada mais poderá alterá-lo.

    Ellemir soltou uma risada.

    - Seria muito azar meu se até lá ficar com criança e não puder me divertir. Claro que não considero um azar ter um filho de Damon logo!

    Callista ficou calada, pensando em seus anos na Torre, quando pusera de lado, sem lamentar, por causa do desconhecimento, todas as coisas com que uma jovem sonha. Ouvindo agora os comentários de Ellemir, ela perguntou, hesitante:

    - Quer ter logo uma criança de Damon? 

    Ellemir riu de novo.

    - Mas claro! Você não quer?

    - Eu não tinha pensado a respeito. Foram tantos os anos em que nunca pensei em casamento, amor ou filhos... Imagino que Andrew vai querer filhos, mais cedo ou mais tarde, mas me parece que uma criança deve ser desejada por si mesma, não apenas por ser meu dever com o nosso clã. Passei tantos anos na Torre, só pensando no dever para com os outros, que acho que preciso primeiro de um pouco de tempo para pensar só em mim mesma... e em Andrew.

    Era desconcertante para Ellemir. Como uma mulher podia pensar no marido sem pensar primeiro em seu desejo de lhe dar uma criança? De qualquer forma, refletiu ela, com uma presunção inconsciente, Andrew não era do Comyn; não tinha muita importância que Callista não lhe desse um herdeiro de imediato.

    - Não se esqueça Elli, de que passei muitos anos pensando que nunca me casaria...

    A voz era tão triste e estranha que Ellemir não pôde suportar, e declarou:

    - Você ama Andrew, e tomou sua decisão por livre e espontânea vontade.

    Mas havia uma insinuação de pergunta no comentário. Callista resolvera casar com seu salvador só porque parecia a coisa mais simples? Callista acompanhou o pensamento e tratou de responder:

    - Não, eu o amo mais do que tenho palavras para descrever. Contudo, há outro velho ditado, que eu nunca imaginara até agora como pode ser verdadeiro: nenhuma opção deixa de acarretar pelo menos algum arrependimento, pois sempre nos traz mais, tanto em alegria quanto em pesar, do que podemos prever. Minha vida parecia inalterada, já assentada, muito simples: ocuparia o lugar de Leonie em Arilinn, e lá serviria até a morte, ou até que a idade me libertasse do fardo. E isso me parecia uma boa vida. Amor, casamento, filhos... essas coisas não eram sequer devaneios para mim!

    A voz de Callista tremia. Ellemir se levantou e foi sentar na beira da cama da irmã, pegando sua mão, no escuro. Callista fez menção, uma reação automática, inconsciente, de retirar a mão, e depois murmurou, desolada, mais para si mesma do que para Ellemir:

    - Acho que devo aprender a não fazer isso.

    Ellemir disse gentilmente:

    - Tenho a impressão de que Andrew não gostaria.

    Ellemir sentiu que a irmã se encolhia às palavras.

    - É... um reflexo. E descubro ser tão difícil rompê-lo quanto foi adquiri-lo.

    Ellemir exclamou, num súbito impulso:

    - Você deve ter sido muito solitária, Callista!

    As palavras de Callista pareciam sair agora de uma profundidade bem defendida:

    - Solitária? Nem sempre. Há mais intimidade na Torre do que você pode imaginar. Somos parte uns dos outros. Apesar disso, como Guardiã, sempre estive um pouco apartada, separada dos outros por... por uma barreira que ninguém podia ultrapassar. Acho que seria mais fácil se ficasse realmente sozinha.

    Ellemir sentiu que, no fundo, a irmã não se dirigia a ela, mas sim a lembranças remotas, que não podiam ser partilhadas, tentando traduzir em palavras algo sobre o qual nunca desejara falar.

    - As outras pessoas na Torre podiam... podiam dar vazão a um pouco dessa intimidade. Podiam se tocar. Podiam amar. Uma Guardiã tem de aprender uma separação dupla. Deve ficar mais unida do que qualquer outro a cada mente no círculo da matriz e ao mesmo tempo nunca... nunca ser real para os demais. Nunca uma mulher, nunca sequer um ser humano. Apenas... apenas parte do circuito.

    Ela fez uma pausa, a mente perdida naquela vida estranha e isolada que levara por muitos anos.

    - São muitas as mulheres que tentam e fracassam. Acabam se envolvendo, de alguma forma, com o lado humano dos outros homens e mulheres na  Torre. Em meu primeiro ano em Arilinn, vi seis moças chegar lá para serem treinadas como Guardiãs, e todas fracassaram. Sempre me orgulhei de ser capaz de suportar o treinamento. Não é nada fácil.

    Callista sabia que as palavras eram absurdamente inadequadas. Nem sequer insinuavam os meses de rigorosa disciplina física e mental, até sua mente adquirir um poder incrível, até seu corpo se tornar capaz de agüentar os fluxos e pressões inumanos. Depois de um longo momento, ela murmurou, a voz suave, mas também amargurada:

    - Agora eu gostaria de ter fracassado também!

    Ela parou de falar abruptamente, horrorizada com as próprias palavras.

    - E eu gostaria que não tivéssemos nos afastado tanto ao crescermos, breda - disse Ellemir.

    Quase que pela primeira vez, ela usou a palavra para irmã com a entonação íntima; podia também significar querida. Callista reagiu ao tom, mais do que à palavra:

    - Nunca foi porque eu não... não amasse você... nem me lembrasse de você, Ellemir. Mas fui ensinada... e não pode imaginar como!... a me manter apartada de todo e qualquer contato humano. E você era minha irmã gêmea... a pessoa de quem eu fora mais íntima. Durante meu primeiro ano na Torre, chorava à noite até dormir, de tanta saudade que sentia de você. Mais tarde, porém... mais tarde passou a parecer como todo o resto de minha vida antes de Arilinn, como alguém que eu conhecera apenas num sonho. E, por isso, quando tive permissão para vê-la de vez em quando, para visitá-la, tentei mantê-la a distância, como parte do sonho, a fim de não sofrer a cada nova separação. Nossas vidas se afastaram, e eu sabia que devia ser assim mesmo.

    A voz era mais triste do que as lágrimas. Numa reação impulsiva, ansiosa em confortar, Ellemir deitou ao lado da irmã e abraçou-a. Callista ficou rígida ao contato, mas logo suspirou e relaxou, permanecendo imóvel. Ellemir sentiu o esforço que a irmã fazia para não se desvencilhar. E pensou, com um violento ímpeto de raiva: Como puderam fazer isso com ela? É uma deformidade, como se a deixassem entrevada ou corcunda! Acomodando-se contra a irmã, ela murmurou:

    - Espero que possamos encontrar um meio de voltarmos  a ser como antes.

    Callista tolerou o gesto, embora não o retribuísse.

    - É o que eu também espero, Ellemir.

    - Parece horrível pensar que você nunca esteve apaixonada.

    - Ora, não é tão horrível assim. Somos tão íntimos na torre que suponho que, de certa forma, sempre estamos apaixonados. - Estava escuro demais para ver o rosto de Callista, mas Ellemir sentiu o sorriso da irmã quando ela acrescentou: - E se eu lhe dissesse que Damon ainda se encontrava em Arilinn quando cheguei lá e que por algum tempo fantasiei-me apaixonada por ele. Fica com ciúme, Ellemir:

    Ellemir riu.

    - Não... não muito.

    - Ele era um técnico sênior, ensinou-me a ser monitora. Claro que eu não era uma mulher para ele, apenas uma das garotas em treinamento. E não havia nenhuma mulher viva que tivesse importância para ele, à exceção de Leonie... - Callista fez uma pausa e depois se apressou a acrescentar: - Isso já passou há muito tempo, é claro.

    Ellemir soltou uma gargalhada.

    - Sei que o coração de Damon é todo meu. Como eu poderia ter ciúme do amor que um homem pode dedicar a uma Guardiã, uma virgem jurada? - Ellemir percebeu a extensão do que acabara de falar e se desmanchou em consternação. - Oh, Callista, não tive a intenção...

    - Acho que teve - protestou Callista gentilmente -, mas amor é amor, mesmo sem qualquer insinuação física. Se eu já não soubesse disso antes, teria aprendido nas cavernas de Corresanti, quando passei a amar Andrew. Era amor, e era real, e se eu fosse você não sorriria por isso, nem desdenharia a paixão de Damon por Leonie como se fosse uma fantasia de menino inexperiente.

    Callista pensou, mas não disse, que fora bastante real para perturbar a Paz de Leonie, embora ela fosse; a única que soubesse disso.

    Ela fez bem em mandar Damon embora...

    - Parece-me estranho o amor sem desejo, e não muito real, não importa o que você possa dizer - comentou Ellemir.

    - Homens já me desejaram, apesar do tabu. Acontece. Na maioria das vezes, nada despertavam em mim, apenas me faziam sentir como... como se insetos repulsivos rastejassem por meu corpo. Mas houve ocasiões em que quase tive vontade de saber como desejá-los em retribuição.

    Subitamente, sua voz tremeu, e Ellemir percebeu um tom angustiado, quase de terror, quando ela acrescentou:

    - Oh, Elli, Elli, se eu me encolho ao seu contato... minha irmã gêmea... o que farei com Andrew? Oh, Avarra misericordiosa, quanto terei de magoá-lo?

    - Chiya, Andrew a ama, tenho certeza de que ele compreenderá...

    - Mas compreender talvez não seja suficiente! Oh, Elli, mesmo que fosse alguém como Damon, que conhece os costumes das torres, que sabe o que é uma Guardiã, eu teria medo! E Andrew não sabe, não entende, e não há palavras para explicar! Ele também abandonou o único mundo que já conheceu, e o que posso lhe dar em troca?

    - Mas você foi liberada do juramento de uma Guardiã.

    O hábito de muitos anos, Ellemir sabia, não podia ser rompido em um único dia, mas depois que Callista se livrasse de seus temores, tudo acabaria bem. Ela apertou a irmã e murmurou com extrema ternura:

    - O amor não é uma coisa que se deva temer, breda, mesmo que lhe pareça estranho ou até assustador.

    - Eu sabia que você não conseguiria compreender - disse Callista, suspirando. - Havia outras mulheres nas torres, mulheres que não viviam pelas leis de uma Guardiã, que eram livres para aproveitar toda aquela intimidade.  Havia muito...  muito amor entre nós,  e eu sabia como isso as deixava feliz, amar, ou mesmo satisfazer o desejo, quando não havia amor, mas apenas... necessidade e bondade.

    Ela tornou a suspirar e acrescentou, com uma estranha e desolada dignidade:

    - Não sou ignorante, Ellemir. Inexperiente, admito, por causa do que sou, mas não ignorante. Aprendi meios... para não ter tanta percepção dessas coisas. Era mais fácil assim, mas eu sabia, claro que sabia. Assim como eu soube, por exemplo, que você teve amantes antes de Damon.

    Ellemir soltou uma risada.

    - Nunca fiz segredo disso. Se não falei a você, foi porque conhecia as leis sob as quais vivia... ou conhecia tanto quanto uma pessoa de fora pode conhecer... e isso parecia uma barreira entre nós.

    - Mas devia saber que eu a invejava por isso - comentou Callista. Ellemir sentou na cama, olhando para a irmã gêmea em surpresa e choque. Podiam se ver apenas vagamente; uma pequena lua verde, no começo do crescente, pairava além da janela. Só depois de um longo momento, hesitante, é que Ellemir disse:

    - Você... me invejava? Mas eu pensava... tinha certeza... que uma Guardiã jurada me desprezaria, ou pelo menos acharia vergonhoso que eu... que uma Comyn não fosse diferente de uma camponesa ou de uma fêmea animal no cio.

    - Desprezá-la? Jamais! Se não falamos muito a respeito, é por medo de não sermos capazes de suportar nossas diferenças. Até mesmo as outras mulheres nas Torres, que não partilham nosso isolamento, consideram-nos estranhas, quase inumanas... O apartamento, o orgulho... isso mesmo, o orgulho torna-se a nossa única defesa, como a esconder uma ferida, esconder nossa... deficiência.

    A voz soava abalada, mas Ellemir achou que o rosto da irmã, ao tênue luar, se mostrava inumanamente impassível, como se esculpido em pedra. Parecia que Callista ainda se mantinha distante, de uma forma quase angustiante, que tentavam conversar através de um vasto abismo.

    Durante toda a sua vida, Ellemir fora ensinada a pensar numa Guardiã como uma pessoa remota, muito acima dela, a ser reverenciada, quase idolatrada. Até sua própria irmã gêmea era como uma deusa, além de seu alcance. Agora, por um momento, teve uma sensação quase vertiginosa de reversão, abalando suas certezas; agora, era Callista quem a fitava com respeito, quem a invejava, era Callista que parecia de certa forma mais jovem do que ela, mais vulnerável, sem a majestade de Arilinn, mas uma mulher como ela, frágil, insegura... Ela sussurrou:

    - Eu gostaria de ter sabido disso antes, Callie.

    - Eu também gostaria de ter sabido como eu era antes - murmurou Callista, com um sorriso triste. - Não somos estimuladas a pensar nessas coisas, nem em qualquer outra que não seja o nosso trabalho. Mal começo a me descobrir como uma mulher, e eu... nem sei direito como começar.

    Parecia a Ellemir uma confissão de extrema tristeza. Depois de um momento, Callista acrescentou, baixinho, no escuro:

    - Ellemir, já contei o que podia de minha vida. E agora me fale da sua. Não quero ser bisbilhoteira, mas sei que teve amantes. Diga como foi.

    Ellemir hesitou, mas sentiu que havia mais por trás do pedido do que uma simples curiosidade sexual. Havia isso também, é claro, e levando-se em consideração a maneira pela qual Calista fora obrigada a reprimir esse tipo de percepção, durante seus anos de treinamento para Guardiã, era um sinal saudável, um bom presságio para o casamento iminente. Mas havia algo mais, um desejo de partilhar um pouco da vida de Ellemir durante os anos de separação. Reagindo de forma impulsiva a essa necessidade, ela disse:

    - Foi no ano em que Dorian casou. Chegou a conhecer Mikhail?

    - Eu o vi no casamento. - A irmã mais velha, Dorian, casara com primo nedestro de Lorde Ardais. - Ele me pareceu um jovem gentil e bem-falante, mas não conversamos muito. Poucas vezes vi Dorian desde a infância.

    - Foi naquele inverno - continuou Ellemir. - Dorian pediu-me que fosse passar o inverno em sua companhia; sentia-se solitária, já estava grávida, fizera poucas amigas entre as mulheres das montanhas. O pai me deu permissão para a viagem. Mais tarde, na primavera, quando Dorian se tornou tão pesada que não era mais um prazer partilhar sua cama, Mikhail e eu nos tornáramos tão bons amigos que passei a substituí-la nisso também.

    Ellemir soltou uma risadinha, reminiscente. Callista estava aturdida.

    - Mas você não tinha mais que quinze anos! Ellemir riu.

    - Já é idade suficiente para casar. Dorian não tinha muito mais do que isso quando casou. Eu também teria casado, se o pai não quisesse me manter aqui para cuidar da casa.

    Mais uma vez, Callista sentiu a cruel inveja, o sentimento desesperado de alienação. Como fora simples para Ellemir, e como fora certo! E como sua vida era diferente!

    - E houve outros? Ellemir sorriu na escuridão.

    - Não muitos. Descobri que gostava de deitar com homens, mas não queria que falassem de mim, como aquele escândalo sobre Sybil Mhari... já deve ter ouvido que ela procura amantes entre os guardas, e até mesmo entre os cavalariços... e não queria ter uma criança que não poderia criar, embora Dorian prometesse que adotaria qualquer filho que Mikhail fizesse em mim. Também não queria casar às pressas com alguém de quem não gostasse, como sabia que o pai exigiria, se houvesse um escândalo. Assim, não há mais do que dois ou três homens que poderiam dizer, se quisessem, que receberam de mim mais do que os meus dedos para beijar na noite do Solstício de Verão. Nem mesmo Damon. Ele esperou com toda a paciência...

    Ela soltou uma risada estranha, excitada. Callista afagou os cabelos macios da irmã.

    - Agora a espera está quase chegando ao fim, minha querida. Ellemir aconchegou-se contra a irmã.  Podia sentir os temores de Callista, as dúvidas, mas ainda não compreendia sua natureza.

    Ela assumiu o juramento de virgindade, pensou Ellemir, levou uma vida apartada dos homens, e por isso não é de surpreender que tenha medo. Mas depois que ela compreender que está livre, Andrew será gentil e paciente, e Callista encontrará a felicidade... uma felicidade como a minha... e a de Damon.

    As duas mantinham um ligeiro contato, e Callista acompanhou os pensamentos de Ellemir, mas não se deu o trabalho de dizer à irmã que não era tão simples assim.

    - Devemos dormir, breda, pois amanhã é o dia de nossos casamentos, e à noite... Damon talvez não a deixe dormir muito.

    Rindo, Ellemir fechou os olhos. Callista permaneceu em silêncio, a cabeça da irmã em seu ombro, o olhar perdido na escuridão. Depois de um longo momento, sentiu, à medida que o contato entre as duas diminuía e Ellemir resvalava para os sonhos, que a irmã dormia. Saiu da cama e foi até a janela, contemplou a paisagem enluarada. Assim ficou até sentir frio e cãibra, até que as luas sumiram, e uma chuva fina começou a cair. Com a árdua disciplina de anos, não chorou.

    Posso aceitar e suportar, como suportei tantas coisas. Mas o que será de Andrew? Poderei suportar o que representará para ele, o que pode acarretar a seu amor? Continuou imóvel, hora após hora, sempre com frio e cãibra, só que não mais consciente disso, a mente se retirando para um dos reinos além do pensamento, a que fora ensinada a entrar em busca de refúgio contra idéias angustiantes, deixando para trás o corpo que fora instruída a desprezar.

    A chuva deu lugar ao granizo durante a madrugada, batendo no vidro. Ellemir se remexeu, tateou pela cama à procura da irmã, depois sentou, consternada, vendo Callista imóvel na janela. Levantou-se e foi até lá, chamando-a, mas a irmã não ouviu nem se mexeu.

    Alarmada, Ellemir soltou um grito. Ouvindo não tanto a voz, mas sim o medo na mente de Ellemir, Callista virou-se, voltou lentamente ao quarto.

    - Está tudo bem, Elli - murmurou ela, fitando o rosto assustado da irmã.

    - Parece gelada e rígida, minha querida. Volte para a cama, Calli, deixe-me esquentá-la.

    Callista deixou que a irmã a levasse para a cama, que a cobrisse e abraçasse. Depois de um longo momento, ela sussurrou:

    - Eu errei, Elli.

    - Errou.

    - Como, breda?

    - Deveria ter ido para a cama com Andrew quando ele me trouxe das cavernas, tendo passado tanto tempo sozinha na escuridão, depois de tanto medo, minhas defesas se achavam desguarnecidas.

    Com um arrependimento angustiado, Callista lembrou como ele a carregara ao deixarem Corresanti, como ela se sentira descansada, Aconchegada, sem medo, nos braços de Andrew. E como, por um breve período, tudo lhe parecera possível.

    - Mas havia muita confusão aqui, o pai aleijado, a casa cheia de feridos Apesar de tudo, porém, teria sido mais fácil naquela ocasião.

    Ellemir seguiu seu raciocínio e sentiu-se propensa a concordar. Só que Callista não era o tipo de mulher que pudesse fazer tal coisa diante do desagrado do pai, contra o seu juramento de Guardiã. E Lorde Alton saberia, tão certamente como se Callista apregoasse do telhado.

    - Estava doente, minha querida. Tenho certeza de que Andrew compreendeu.

    Mas Callista especulou: a doença prolongada que a acometera depois de ser resgatada teria sido de alguma forma uma reação a esse fracasso? Talvez tivessem perdido uma oportunidade, que nunca mais voltaria, de se unir quando ambos ardiam com o fogo da paixão, e não havia margem para dúvidas e medos. Até Leonie julgava que era provável que ela tivesse feito isso.

    Por que não fiz? E agora é tarde, demais...

    Ellemir bocejou, com um sorriso de intensa satisfação.

    - É o dia dos nossos casamentos, Callista!

    Calista fechou os olhos. O dia do meu, casamento. E não posso partilhar a alegria de minha irmã. Amo tanto quanto ela, mas apesar disso não me sinto contente... Ela sentiu um ímpeto irracional de se rasgar toda com as unhas, de se espancar com os punhos, de punir a beleza que era uma promessa tão vazia, o corpo que tanto parecia com o corpo adorável e desejável de uma mulher... mas não passava de um invólucro vazio. Mas Ellemir a observava, com uma indagação ansiosa, e ela tratou de exibir um sorriso jovial.

    - O dia de nossos casamentos... - Callista inclinou-se e beijou a irmã. - Está feliz, querida?

    E por um instante, na alegria de Ellemir, ela conseguiu esquecer seus próprios temores.

   

    De manhã, Damon foi ajudar Dom Esteban a se acomodar na cadeira de rodas que fora feita para ele.

    - Queremos que compareça ao casamento sentado, e não estendido numa cama como um inválido.

    - É estranha a sensação de ficar outra vez na vertical - comentou o velho, firmando-se com as duas mãos. - Sinto-me tonto como se já estivesse embriagado.

    - Passou tempo demais deitado - explicou Damon. - Vai se acostumar num instante.

    - É melhor sentar do que me apoiar em travesseiros, como uma mulher no parto. E pelo menos posso ver minhas pernas, mesmo que não seja capaz de senti-las.

    - Com alguém para empurrar a cadeira, poderá circular por toda a parte térrea - assegurou Damon.

    - Será um alívio e tanto. Estou cansado de olhar para este teto. Quando a primavera chegar, chamarei alguns homens para fazerem meus aposentos aqui embaixo. Vocês dois... - Ele gesticulou para que Andrew se aproximasse. - ...podem ocupar as suítes lá em cima, junto com suas esposas.

    - É muita generosidade, meu sogro - disse Damon. O velho sacudiu a cabeça.

    - Não é, não. Não poderei mais usar nenhum quarto lá em cima. Sugiro que vocês dois escolham seus aposentos agora. Deixem os meus antigos aposentos para Domenic, quando ele tomar uma esposa, mas todos os outros estão à disposição de vocês. Se decidirem agora, as mulheres poderão ir direto para lá assim que casarem. - Uma pausa, e ele acrescentou, rindo: - E enquanto cuidam disso, pedirei a Dezi que me empurre, a fim de que eu possa ver minha casa de novo. Já lhe agradeci por isto, Damon?

    No andar superior, Damon e Andrew procuraram Leonie.

    - Eu queria lhe fazer uma pergunta sem que ele pudesse ouvir - disse Damon. - Compreendo o bastante para saber que Dom Esteban nunca mais tornará a andar. Afora isso, Leonie, como ele está?

    - Sem ele ouvir? - A Guardiã riu. - Esteban tem laran, Damon. Sabe de tudo, embora tenha sensatamente se recusado a entender o que significará para ele. O ferimento da carne há muito que já curou, e os rins não foram afetados, mas o cérebro não mais se comunica com as pernas e os pés. Ele conserva um pequeno controle sobre as funções do corpo; à medida que o tempo passar, no entanto, e a parte inferior do corpo definhar, isso também vai desaparecer. O maior perigo são as feridas da pressão. Devem cuidar para que os criados o virem a intervalos de poucas horas; como não há sensação, também não haverá dor, e ele não saberá se uma dobra de roupa, ou qualquer outra coisa, pressiona o corpo. A maioria dos paralíticos morre quando essas feridas ficam infectadas. O processo pode ser protelado se houver muito cuidado, se os músculos forem mantidos flexíveis com massagens, mas é inevitável, mais cedo ou mais tarde, que os músculos definhem e morram. Damon balançou a cabeça, consternado.

    - Ele sabe de tudo isso?

    - Sabe. Mas sua vontade de viver é forte, e enquanto isso persistir, vocês podem lhe proporcionar uma vida boa. Por algum tempo. Talvez anos. Depois... - Um dar de ombros, resignado. - Talvez ele encontre um novo desejo de continuar a viver se tiver netos ao seu redor. Mas Esteban sempre foi um homem ativo, além de orgulhoso. Não aceitará de bom grado a inatividade e impotência.

    - Precisarei muito de sua ajuda e conselho para cuidar da propriedade - declarou Andrew. - Venho tentando fazer as coisas sem incomodá-lo...

    - Se me permite dizer, isso é um erro - protestou Leonie com extrema gentileza. - Ele deve saber que seus conhecimentos ainda são necessários, mesmo que não possa pô-los em prática  pessoalmente. Peça-lhe tantos conselhos quanto puder Andrew.

    Era a primeira vez que ela o tratava dessa forma, e o terráqueo fitou-a com alguma surpresa. Possuía uma telepatia rudimentar suficiente para saber que Leonie se sentia contrafeita em sua presença, e ficou perturbado ao sentir que havia agora algo mais em sua consideração. Depois que ela se retirou, Andrew comentou para Damon:

    - Ela não gosta de mim, não?

    - Acho que não é esse o problema. Leonie se sentiria constrangida com qualquer homem a quem tivesse de entregar Callista em casamento.

    - Não posso culpá-la por pensar que não sou bastante bom para Callista; creio que não há homem algum que seja. Mas enquanto Callista não pensar assim...

    Damon riu.

    - Tenho a impressão de que nenhum homem se sente digno da noiva no dia de seu casamento. Preciso me lembrar a todo instante de que Ellemir concordou em casar comigo. Vamos embora. Temos de escolher os aposentos para nossas esposas.

    - A escolha não deveria caber a elas?

    Damon recordou que Andrew não conhecia os costumes de Darkover.

    - Não. O costume determina que o marido ofereça um lar à sua esposa. Por cortesia, Dom Esteban nos oferece um meio de encontrar esse lar e de aprontá-lo antes do casamento.

    - Mas elas conhecem a casa...

    - E eu também. Passei boa parte de minha infância aqui. O filho mais velho de Dom Esteban e eu éramos bredin, amigos jurados. Mas você... não tem parentes na Zona Terráquea, ou servos jurados aguardando a sua volta?

    - Não. Os servos são uma memória de nosso passado; nenhum homem deve se submeter a outro.

    - Teremos de lhe providenciar alguns. Se vai cuidar da propriedade para o nosso parente... - Damon usou a palavra com a inflexão de "tio". - ...não terá tempo para os detalhes da vida cotidiana, e não podemos esperar que as mulheres se encarreguem da limpeza e todo o resto. Não temos máquinas como vocês na Zona Terráquea.

    - Por que não?

    - Não somos ricos em metais. E por que deveríamos fazer com que muitas pessoas levassem vidas inúteis, por não serem capazes de ganhar seu mingau e carne com um trabalho honesto? Ou acredita mesmo que seríamos mais felizes se construíssemos máquinas e as vendêssemos uns para os outros, como vocês fazem? - Damon abriu uma porta no corredor. - Estes aposentos não são usados desde que a mãe de Ellemir morreu e Dorian casou. Parecem em boas condições.

    Andrew entrou atrás dele na espaçosa sala central, ainda pensando na pergunta de Damon.

    - Fui ensinado que é degradante para um homem se submeter a outro... degradante para o servo e para o amo.

    - Eu diria que é mais degradante passar a vida como servo de uma máquina. E se você possui uma máquina, também é possuído por ela, e passa a vida a servi-la.

    Ele pensou em seu relacionamento com a matriz, em todos os técnicos psíquicos de Darkover, sem falar das Guardiãs. Continuou a andar, abrindo todas as portas da suíte.

    - Há uma suíte completa em cada lado desta sala central. Cada uma tem um quarto, sala e banheiro, além de quartos menores, para as criadas e outros usos. As mulheres ficariam próximas, mas também teríamos toda a privacidade necessária. E há outros quartos menores nas proximidades se precisarmos algum dia para nossos filhos. Acha que é conveniente?

    Era muito mais espaço do que qualquer jovem casal teria nos alojamentos do QG terráqueo. Andrew concordou, e Damon indagou:

    - Prefere a suíte da esquerda ou a da direita?

    - Não faz diferença para mim. Quer decidir na cara ou coroa? Damon soltou uma risada.

    - Vocês também têm esse costume? Mas se não faz diferença para você, deixe-nos ficar com a suíte da esquerda. Ellemir, já notei, sempre desperta com o amanhecer, enquanto Callista gosta de dormir até tarde, sempre que pode. Talvez seja melhor não ter o sol da manhã na janela de seu quarto.

    Andrew corou, num doce embaraço. Também já percebera isso, mas não aprofundara o pensamento para as manhãs em que acordaria no mesmo quarto com Callista. Damon sorriu.

    - Faltam apenas umas poucas horas para o casamento. E seremos irmãos, você e eu... o que é uma perspectiva das mais agradáveis. Só me parece triste que você não tenha um único parente ou amigo em seu casamento.

    - Não tenho amigos neste planeta... e nenhum parente vivo em parte alguma.

    Damon ficou aturdido.

    - Veio para cá sem família, sem amigos? Andrew deu de ombros.

    - Nasci na Terra... num rancho de criação de cavalos num lugar chamado Arizona. Meu pai morreu quando eu tinha dezoito anos, e o rancho foi vendido para pagar suas dívidas. Minha mãe não viveu por muito tempo depois disso. Fui para o espaço como um servidor civil, e um servidor civil sempre vai, de certa forma, para onde os superiores o enviam. Terminei aqui, e o resto você conhece.

    - Pensei que não havia servos entre vocês - comentou Damon.

    Andrew se perdeu num emaranhado de palavras para tentar explicar a diferença entre um servidor civil e um servo. Damon escutou com uma expressão céptica e disse ao final:

    - Muito bem, um servo dos computadores e da administração. Acho que eu preferiria muito mais ser um honesto cavalariço ou cozinheiro.

    - Não há amos cruéis que exploram seus servos? Damon deu de ombros.

    - Claro que há, assim como alguns homens que maltratam seus cavalos de sela e os açoitam até a morte. Mas um homem racional pode algum dia compreender o erro desse comportamento, e outros podem contê-lo, na pior das hipóteses. Mas não há meio de ensinar bom senso a uma máquina.

    Andrew sorriu.

    - Tem toda a razão. Temos um ditado de que não se pode lutar contra um computador: ele está certo, mesmo quando erra.

    - Pergunte ao intendente de Dom Esteban, ou à parteira da propriedade, Ferrika, se eles se sentem abusados ou explorados. Possui telepatia suficiente para saber se eles dizem a verdade.  Talvez assim chegue à conclusão de que um homem pode ganhar a vida honestamente como criado pessoal ou cavalariço. Andrew deu de ombros.

    - Pode estar certo de que o farei. Temos outro ditado: quando em Roma, faça como os romanos. Roma, se não me engano, era uma cidade na Terra. Foi destruída por uma guerra ou terremoto, há muitos séculos, só permanece o provérbio...

    - Temos um provérbio similar: não tente comprar peixe nas Cidades Secas. - Damon deu uma volta pelo cômodo que escolhera para seu quarto e de Ellemir. - Estas cortinas não são arejadas desde os tempos de Regis IV! Mandarei os criados trocá-las.

    Ele puxou o cordão de uma sineta e deu as ordens quando um criado apareceu.

    - Teremos tudo pronto à noite, milorde, para que ambos e suas damas possam se mudar quando quiserem. E mais uma coisa, Lorde Damon: pediram-me para informá-lo de que seu irmão, Lorde Serrais, chegou para testemunhar o casamento.

    - Obrigado. Se encontrar Dama Ellemir, peça-lhe que venha aprovar as disposições que acertamos.

    Depois que o criado se retirou, Damon fez uma careta.

    - Meu irmão Lorenz! Desconfio que sua boa vontade com meu casamento tem segundas intenções. Eu esperava por meu irmão Kieran, pelo menos, ou por minha irmã Marisela, mas acho que devo me sentir honrado e procurar Lorenz para lhe agradecer.

    - Quantos irmãos você tem?

    - Cinco irmãos e três irmãs. Fui o mais novo, e meu pai e mãe já tinham muitas crianças quando nasci. Lorenz... - Damon deu de ombros. - Creio que se sente aliviado por eu tomar uma esposa de família tão boa que ele não precise barganhar o patrimônio e o quinhão do irmão mais moço. Não sou rico, mas também nunca desejei muita riqueza, e Ellemir e eu teremos o suficiente para atender a nossas necessidades. Meu irmão Lorenz e eu nunca fomos muito amigos. Kieran... ele é apenas três anos mais velho do que eu... Kieran e eu somos bredhi; a diferença de idade entre Marisela e eu e de apenas um ano, e além disso tivemos a mesma mãe-de-adoção.  Quanto a meus outros irmãos e irmãs, somos bastante corteses quando nos encontramos nas sessões do Conselho, mas tenho a impressão de que nenhum de nós lamentaria muito se nunca mais tornássemos a nos ver. Meu lar sempre foi aqui. Minha mãe era uma Alton, fui criado perto daqui. O filho mais velho de Dom Esteban entrou comigo no corpo de cadetes. Prestamos o juramento de bredin.

    Era a segunda vez que ele usava essa palavra, a forma íntima ou familiar de irmão. Damon suspirou, deixando o olhar perdido no espaço por um momento.

    - Você foi cadete?

    - Dos piores, mas nenhum filho do Comyn pode escapar ao serviço, se tem duas pernas sólidas e uma vista perfeita. Coryn era como todos os Altons, um soldado nato, um oficial nato. Eu era diferente - Damon soltou uma risada. -- Há uma piada na academia sobre o cadete com dois pés direitos e dez polegares. Eu era o próprio.

    - Do pelotão da falta de jeito, hein?

    Damon acenou com a cabeça, saboreando a expressão.

    - Passava onze dias punido em cada dez. Sou destro. Minha mãe-de-adoção... ela foi parteira de minha mãe... costumava dizer que nasci de cabeça para baixo, e de trás para a frente, e tenho feito tudo assim desde então.

    Andrew, que nascera canhoto numa sociedade de destros, e só em Darkover encontrara as coisas dispostas de uma maneira que fazia sentido para ele, dos talheres às ferramentas de: jardim, comentou:

    - Eis uma coisa que posso compreender.

    - Sou também um pouco míope, o que não me ajudava no corpo de cadetes, mas foi muito útil na hora de aprender a ler. Nenhum dos meus irmãos se importa com isso, e não sabem muito além do necessário para soletrar um cartaz e rabiscar seus nomes num título de propriedade. Mas eu me dediquei aos estudos como um coelho-de-chifres se entoca na neve. Depois que deixei a academia de cadetes, fui para Nevarsin e passei dois anos aprendendo a ler e escrever, além de fazer mapas e outras coisas. Foi quando Lorenz chegou à conclusão de que eu nunca seria um homem de verdade. Quando me aceitaram em Arilinn, isso só confirmou a sua opinião: meio monge, meio eunuco, era o que ele dizia.

    Damon ficou calado por um momento, o rosto contraído em linhas de desgosto.

    - Apesar de tudo isso, porém, ele não ficou satisfeito quando me mandaram embora da torre, há alguns anos. Em nome de Coryn... o pobre rapaz já morrera nessa ocasião, de uma queda de um penhasco... Dom Esteban aceitou-me na Guarda. É verdade que nunca cheguei a ser um autêntico soldado, fui apenas oficial do hospital e mestre de cadetes, por menos de dois anos. - Ele deu de ombros. - Essa é a minha vida, mas já chega de falar a respeito. Escute, as mulheres estão chegando, podemos lhes mostrar os aposentos, antes que eu tenha de descer para tentar ser polido com Lorenz.

    Aliviado, Andrew viu a sombra de tristeza solitária e introspectiva deixar o rosto de Damon, no momento em que Ellemir e Calista entraram.

    - Venha ver os aposentos que escolhi para nós, Ellemir.

    Damon levou-a por uma porta no outro lado da sala, e Andrew sentiu, mais do que ouviu, que ele a beijava. Callista acompanhou-os com os olhos, sorrindo.

    - Fico contente em vê-los tão felizes.

    - E você também se sente feliz, meu amor?

    - Amo você, Andrew, mas o regozijo não é fácil para mim.  Talvez por natureza eu não seja tão alegre. Mostre-me os aposentos que vamos ocupar.

    Ela aprovou quase tudo, embora apontasse meia dúzia de móveis que eram tão velhos que não seria seguro usá-los; chamou um criado e mandou que fossem removidos. Depois, convocou diversas criadas e deu ordens para que trouxessem roupas de cama e banho, mandou que transferissem suas roupas para o enorme armário no quarto de vestir. Andrew escutou a tudo em silêncio, comentando ao final:

    - É uma excelente dona de casa, Callista. Ela riu, deliciada.

    - É tudo farsa. Tenho prestado atenção em Ellemir, mais nada, porque não quero parecer ignorante na frente dos criados. Conheço muito pouco sobre essas coisas. Aprendi a costurar, porque nunca permiti que minhas mãos ficassem ociosas, mas observando Ellemir na cozinha posso perceber que conheço menos sobre os cuidados com a casa do que qualquer outra moça.

    - Também me sinto assim - confessou Andrew. - Tudo o que aprendi na Zona terráquea é agora inútil para mim.

    - Mas sabe alguma coisa sobre criação de cavalos... Foi a vez de Andrew rir.

    - Tem razão, só que na Zona  Terráquea isso era considerado um anacronismo, uma habilidade inútil. Eu domava os cavalos de sela de papai, mas depois que deixei o Arizona pensei que nunca mais montaria.

    - As pessoas na Terra não andam a cavalo? Ele sacudiu a cabeça.

    - Há veículos motorizados. E calçadas rolantes. Os cavalos se tornaram um luxo exótico para ricos excêntricos. - Andrew foi até a janela, contemplou a paisagem ensolarada. - É muito estranho que, entre todos os mundos conhecidos do Império Terráqueo, eu tenha vindo parar logo aqui.

    Um ligeiro calafrio ao pensar como por pouco não perdera o que agora parecia seu destino, sua vida, o verdadeiro propósito para o qual nascera. Experimentou um desejo desesperado de estender os braços e enlaçar Callista, mas subitamente ela ficou tensa e pálida, como se o pensamento de Andrew de alguma forma a alcançasse. Ele suspirou, recuou um passo. Callista murmurou, como se o assunto não mais a interessasse:

    - Nosso tratador de cavalos já é um velho, e sem a presença do pai, talvez caiba a você ensinar os mais jovens.

    Ela fez uma pausa, fitando-o nos olhos, torcendo a ponta de uma trança comprida, depois acrescentou, abruptamente:

    - Quero conversar com você.

    Andrew nunca definira se ela tinha olhos azuis ou cinza; pareciam variar com a luz, e naquela claridade eram quase descoloridos.

    - Será muito penoso para você, Andrew... partilhar um quarto quando não podemos... ainda não... partilhar a cama?

    Ele fora advertido a respeito, numa conversa anterior, de que Callista fora condicionada de uma forma tão profunda que talvez se passasse muito tempo antes que pudessem consumar o casamento. Prometera na ocasião, espontaneamente, que nunca a apressaria, não tentaria pressioná-la, esperaria por tanto tempo quanto fosse necessário. E disse agora, tocando de leve nas pontas dos dedos de Callista:

    - Não se preocupe. Já lhe prometi isso.

    Um tênue rubor espalhou-se pelas faces pálidas da moça.

    - Fui ensinada que é... vergonhoso despertar um desejo que não posso satisfazer. Mas se permanecer longe de você, e não despertá-lo, para que seus pensamentos possam me influenciar, então é possível que as coisas nunca se tornem diferentes. Mas será muito difícil para você, Andrew. - O rosto de Callista se contorceu. - Não quero que você seja infeliz.

    Uma vez, apenas uma vez, e com enorme constrangimento, ele conversara a respeito com Leonie. Agora, olhando para Callista, aquela breve conversa, embaraçosa para ambas as partes, ressurgiu em sua mente, como se estivesse outra vez diante da leronis do Comyn. Ela o encontrara no pátio e dissera em voz baixa:

    - Olhe para mim, terráqueo.

    Ele a fitara, incapaz de resistir. Leonie era tão alta que seus olhos se encontraram no mesmo nível. Ela acrescentara:

    - Quero saber qual é o tipo de homem a que estou entregando a criança que tanto amo.

    Por um longo momento, Andrew Carr sentira como se toda a sua vida fosse revirada e vasculhada pela mulher, como se naquele olhar ela extraísse tudo o que ele tinha de mais íntimo e o deixasse pairando ali, murcho e com frio. Ao final, - não durara mais que um ou dois segundos, mas parecera uma eternidade -, Leonie suspirara e dissera:

    - Que assim seja. Você é honesto e gentil, tem as melhores intenções, mas pode imaginar o que significa um treinamento de Guardiã, ou como será difícil para Callista superá-lo?

    Ele sentira vontade de protestar, mas se limitara a balançar a cabeça e murmurara, humilde:

    - Como posso saber? Mas tentarei tornar tudo mais fácil para ela. O suspiro de Leonie parecera sair das profundezas de seu ser.

    - Nada do que você possa fazer, neste mundo ou no outro, será capaz de facilitar as coisas para ela. Se for paciente e cuidadoso... e afortunado... talvez faça com que seja possível. Não quero que Callista sofra.

    E, no entanto, sua opção acarreta um sofrimento inevitável. Ela é jovem, mas não tão jovem que possa relegar seu treinamento sem angústia. O treinamento de uma Guardiã é longo, não pode ser desfeito em pouco tempo.

    Andrew começara a protestar:

    - Sei disso, mas...

    Leonie interrompera-o com outro suspiro:

    - Sabe mesmo? Não é apenas uma questão de protelar a consumação do casamento por dias, ou talvez por várias estações. Isso será apenas o começo. Ela o ama, está ansiosa por seu amor...

    - Posso ser paciente até que ela esteja preparada. - jurara Andrew. Leonie explicara, balançando a cabeça:

    - A paciência talvez não seja suficiente. O que Callista aprendeu não pode ser desaprendido. Você não quer saber sobre isso, e talvez seja até melhor que não saiba.

    Ele insistira:

    - Tentarei facilitar as coisas para ela. Mas Leonie tornara a suspirar e repetira:

    - Nada que você possa fazer tornará as coisas mais fáceis para Callista. As galinhas não podem voltar ao ovo. Callista vai sofrer, e receio que você sofrerá com ela, mas se você... se ambos tiverem sorte, talvez ela consiga voltar atrás. Não será fácil, mas é possível.

    A indignação o dominara.

    - Como podem fazer isso com garotas? Como podem destruir suas vidas dessa maneira?

    Leonie não respondera, apenas baixara a cabeça e se afastara em silêncio. Num piscar de olhos ela desaparecera, tão rápida quanto uma sombra. Andrew chegara a duvidar da própria sanidade, especulara se a conversa de fato ocorrera, ou se suas dúvidas e medos haviam projetado uma alucinação.

    Callista, parada à sua frente no quarto que - a partir do dia seguinte - iriam partilhar, tornou a levantar os olhos para fitá-lo e sussurrou:

    - Eu não sabia que Leonie conversou com você a respeito. - Ela cerrou as mãos, com tanta força que as articulações ficaram esbranquiçadas. Desviou os olhos e acrescentou: - Andrew, quero que me prometa uma coisa.

    - Tudo o que pedir, meu amor.

    - Prometa que se algum dia... desejar outra mulher... prometa que a tomará, sem sofrer desnecessariamente.

    Ele explodiu.

    - Que tipo de homem você pensa que eu sou? Eu a amo! Por que haveria de querer outra?

    - Não posso esperar... não é justo, nem natural...

    - Vivi por muito tempo sem mulher, Callista - disse ele, a voz de novo gentil. - E isso nunca me fez tão mal assim. Tive umas poucas, aqui e ali, enquanto vagueava pelo Império, mas nunca houve nada mais sério.

    Ela baixou os olhos para as pontas de suas pequenas sandálias de couro pintado.

    - É diferente, os homens sozinhos, vivendo longe de mulheres. Mas aqui, vivendo comigo, dormindo no mesmo quarto, perto de mim durante todo o tempo e sabendo...

    Callista ficou sem palavras. Ele sentiu vontade de abraçá-la e beijá-la, até que ela perdesse aquela expressão rígida e perdida. Chegou a pôr as mãos nos ombros de Callista, sentiu-a se contrair ao contato, baixou as mãos. Amaldiçoadas fossem todas as pessoas que eram capazes de incutir reflexos patológicos em garotas daquele jeito! Mas mesmo sem o contato, Andrew podia sentir o pesar em Callista, o pesar e a culpa. Ela murmurou:

    - Não terá uma mulher acessível como esposa, Andrew.

    - Terei a esposa que quero.

    Damon e Ellemir voltaram. Os cabelos de Ellemir estavam desgrenhados, os olhos brilhavam; tinha a expressão vidrada que Andrew associava com mulheres excitadas. Pela primeira vez desde que conhecera as gêmeas, viu Ellemir como uma mulher, não apenas como a irmã de Callista, e achou-a sexualmente atraente. Ou seria por ver nela como Callista poderia um dia contemplá-lo? Andrew experimentou uma pontada de culpa. Ellemir era a irmã de sua esposa prometida, dentro de poucas horas se tornaria a esposa de seu melhor amigo, e entre todas as mulheres era a que não deveria olhar com desejo. Desviou os olhos, enquanto ele recuperava o controle, retomou a percepção comum. Ellemir disse:

    - Callie, precisamos providenciar cortinas novas; estas não são arejadas nem lavadas desde... desde... - Ela hesitou, procurando por uma analogia. - ...desde os tempos de Regis IV.

    Andrew compreendeu que ela mantivera um contato íntimo com Damon e sorriu para si mesmo.

    Pouco antes do meio-dia, houve um ressoar de cascos no pátio, um tumulto que parecia um pequeno furacão, com muitos gritos. Callista riu.

    - É Domenic! Ninguém jamais chega com tanta fúria!

    Ela desceu com Andrew para o pátio. Domenic Lanart, herdeiro do Domínio de Alton, era um rapaz alto e magro, de cabelos vermelhos e sardento, montando um enorme garanhão tordilho. Jogou as rédeas para um cavalariço, pulou do cavalo, agarrou Ellemir e abraçou-a na maior exuberância, depois abraçou Damon também.

    - Dois casamentos numa só cerimônia! - exclamou ele, subindo pelos degraus com os dois. - Demorou demais em sua corte, Damon. Eu já sabia no ano passado que você a queria; por que foi preciso uma guerra para levá-lo a pedir minha irmã em casamento? Elli, como pode aceitar um marido tão relutante?

    Ele virou a cabeça de um lado para outro, beijando os dois, depois desvencilhou-se e virou-se para Callista.

    - E para você um apaixonado bastante insistente para tirá-la da Torre! Estou ansioso em conhecer essa maravilha, breda!

    Mas sua voz era gentil; e quando Callista apresentou-o a Andrew, ele fez uma reverência. Apesar do comportamento exuberante e do riso juvenil, Domenic tinha as maneiras de um príncipe. Suas mãos eram pequenas e quadradas, calosas como as de um espadachim.

    - Então é você quem vai casar com Callista? Imagino que aquele bando de velhas e de perucas grisalhas no Conselho não vai gostar, mas já era tempo de termos algum sangue novo na família.

    Ele ergueu-se na ponta dos pés - Callista era uma mulher alta, e Domenic, apesar de toda a sua altura, ainda não completara o seu desenvolvimento, pelos cálculos de Andrew - e roçou os lábios no rosto da irmã.

    - Seja feliz, Callista. Pela misericórdia de Avarra, você bem que merece, se tem coragem suficiente para casar assim, sem a permissão do Conselho e sem as catenas.

    - Catenas! - repetiu ela, desdenhosa. - Preferiria casar com um homem das Cidades Secas e suportar as correntes!

    - Muito bem, irmã! - Ele virou-se para Andrew, enquanto entravam na casa. - O pai disse em sua mensagem que você era um terráqueo. Conversei com alguns do seu povo em Thendara. Pareceram boas pessoas, mas um tanto preguiçosas. Pelos bons Deuses, os terráqueos têm máquinas para tudo, para andar, para levantá-los por um lance de escada, para levar comida à mesa. Diga-me, Andrew, eles também têm máquinas para se limpar?

    Domenic lançou-se numa risada efusiva, enquanto as mulheres soltavam risadinhas. Ele olhou para Damon.

    - Não pretende voltar para a Guarda, primo? Foi o único mestre de cadetes decente que tivemos por lá em muitos anos. O jovem Danvan Hastur assumiu a função agora, mas não está dando certo. Todos o temem, e ainda por cima ele é muito jovem. É preciso um homem de mais idade. Alguma sugestão?

    - Experimentem meu irmão Kieran - sugeriu Damon, sorrindo. - Ele gosta da vida militar muito mais do que eu jamais apreciei.

    - Mas foi um excelente mestre de cadetes - insistiu Domenic. - Eu gostaria que voltasse, apesar de achar que não é trabalho para um homem ser uma espécie de governante de um bando de meninos crescidos.

    Damon deu de ombros.

    - Fico contente por saber que apreciaram meu trabalho, mas não sou um soldado, e um mestre de cadetes deve inspirar a seus pupilos um profundo amor pela vida militar.

    - Mas não demais - interveio Dom Esteban, que escutara com interesse a conversa, enquanto eles se aproximavam. - Caso contrário, eles podem endurecer a tal ponto que se: tornarão meros brutos, em vez de homens. Então você finalmente voltou, hein, Domenic?

    O rapaz riu.

    - Claro que não, papai. Ainda estou me divertindo numa taverna em Thendara. O que vê aqui é meu fantasma.

    No instante seguinte, o sorriso divertido desapareceu de seu rosto, ao contemplar o pai magro e encanecido, as pernas inúteis cobertas por uma manta de pele de lobo. Caiu de joelhos ao lado da cadeira de rodas e disse, a voz um pouco trêmula:

    - Ah, pai, pai, eu teria vindo a qualquer momento, se me chamasse... Lorde Alton pôs as mãos nos ombros do filho.

    - Sei disso, meu caro rapaz, mas seu lugar era em Thendara, já que eu não podia ir. Mas sua presença deixa meu coração mais contente do que posso descrever.

    - É o que também acontece comigo. - Domenic ergueu-se, sem desviar os olhos do pai. - Sinto-me aliviado por vê-lo tão bem e animado. As notícias em Thendara eram de que se encontrava à beira da morte ou de que até já morrera e fora enterrado!

    - A situação não é tão ruim assim. - Dom Esteban soltou uma risada. - Sente aqui ao meu lado e me conte tudo o que tem acontecido na Guarda e no Conselho.

    Era fácil perceber, refletiu Andrew, que o rapaz era a luz dos olhos do pai.

    - Terei o maior prazer, pai, só que: hoje é um dia de casamento e de diversão, e não há muita coisa boa para contar. O Príncipe Aran Elhalyn acha que sou jovem demais para assumir o comando da Guarda, mesmo enquanto você permanece doente em Armida, e sussurra isso dia e noite nos ouvidos de Hastur. E Lorenz de Serrais... perdoe-me por falar mal de seu irmão, Damon...

    Damon balançou a cabeça.

    - Meu irmão e eu não mantemos as melhores relações, e assim pode dizer o que bem quiser, Domenic.

    - Lorenz armou uma trama ardilosa, e o velho Gabriel de Ardais, que deseja o posto para seu arrogante filho, prontamente aderiu ao mesmo coro, de que sou jovem demais para comandar a Guarda. Cercam Aran dia e noite, com lisonjas e presentes, que ficam a um passo do suborno, para persuadi-lo a escolher um deles para comandante, enquanto você estiver aqui em Armida. Voltará antes do festival do Solstício do Verão, pai?

    Uma sombra passou pelo rosto do velho guerreiro entrevado.

    - Só os Deuses poderão decidi-lo, meu filho. Acha que a Guarda poderia ser comandada por um homem preso a uma cadeira de rodas, cujas pernas não têm mais proveito que nadadeiras de peixe?

    - É melhor um comandante coxo do que um comandante que não seja Alton - insistiu Domenic, com um orgulho inabalável. - Eu poderia comandar em seu nome, fazer tudo por você, quanto menos não seja para que os Altons continuem no comando, como vem acontecendo há tantas gerações.

    O pai pegou suas mãos e apertou-as.

    - Veremos, meu filho, veremos o que acontece.

    A simples perspectiva, Damon percebeu, incendiou Lorde Alton com súbita esperança e determinação. Mas ele seria mesmo capaz de comandar a Guarda de novo, de uma cadeira de rodas, com Domenic ao seu lado?

    - Infelizmente, não temos agora nenhuma Dama Bruna em nossa família - comentou Domenic, na maior alegria. - Ei, Callista, você seria capaz de empunhar a espada, como Dama Bruna fez, e comandar a Guarda?

    Ela riu, sacudindo a cabeça. Damon disse:

    - Não conheço essa história. Domenic relatou-a com um sorriso:

    - Aconteceu há várias gerações... não sei precisar quantas... mas o nome dela está inscrito na relação de comandantes, como Dama Bruna Leynier. Quando seu irmão, que era o Lorde Alton na ocasião, foi morto, deixando um filho que só tinha nove anos, ela tomou a mãe em casamento livre, para protegê-la, como muitas mulheres costumam fazer, e comandou a Guarda até o sobrinho crescer. Não seria capaz de fazer a mesma coisa, Callista? Não? E você, Ellemir?

    O rapaz balançou a cabeça, numa tristeza zombeteira, antes de acrescentar:

    - Ah, o que aconteceu com as mulheres do nosso clã? Não são mais como as de antigamente!

    Com a cadeira de rodas de Dom Esteban no centro, a reunião de família era fascinante. Domenic parecia-se com Callista e Ellemir, embora tivesse os cabelos mais vermelhos, os anéis mais desgrenhados, as sardas de um dourado mais forte, em vez de manchas quase imperceptíveis. E Dezi, calado, ignorado, por trás da cadeira de rodas, era como um reflexo mais pálido de Domenic, que virou o rosto de repente, avistou-o, bateu de leve em seu ombro, num gesto cordial.

    - Então você está aqui, primo? Soube que tinha deixado a Torre. Não o culpo por isso. Passei quarenta dias ali, há alguns anos, testando meu laran, e me senti ansioso em escapar. Também se cansou, ou eles o expulsaram?

    Dezi hesitou, desviou os olhos, e Callista interveio:

    - Não aprendeu nada ali de nossa cortesia, Domenic. Essa é uma pergunta que nunca se deve fazer. É uma questão exclusiva do telepata e sua Guardiã. Se Dezi prefere não contar, perguntar é uma grosseria injustificável.

    - Peço desculpas - disse Domenic, jovial, e só Damon percebeu o alívio no rosto de Dezi. - Acontece apenas que fiquei na maior satisfação quando saí daquele lugar, e só queria saber se você sentiu a mesma coisa. Algumas pessoas gostam. Olhe só para Callista. Passou dez anos na Torre, e há outros... Ora, não é um lugar para mim.

    Damon, observando os dois rapazes, pensou com angústia em Coryn, tão parecido com Domenic naquela idade! Teve a impressão de saborear de novo os dias meio esquecidos da adolescência, quando fora aceito por todos, apesar de ser o mais desajeitado dos cadetes, por causa de sua amizade jurada com Coryn, que fora, da mesma forma que Domenic agora, o mais apreciado, o mais dinâmico e o mais ousado.

    Acontecera antes do fracasso, do amor desesperançado e da humilhação que queimara tão fundo... mas fora também antes de conhecer Ellemir, pensou Damon. Ele suspirou e apertou a mão de sua esposa prometida. Domenic, sentindo que Damon o observava, virou o rosto e sorriu. No mesmo instante, Damon sentiu que o peso da solidão se dissipava. Tinha Ellemir para amar, e tinha Andrew e Domenic como irmãos. O isolamento e a solidão haviam acabado para sempre. Domenic pegou o braço de Dezi, num gesto cordial.

    - Escute, primo, se cansar de ficar aqui, junto de meu pai, vá para Thendara. Eu lhe arrumarei uma vaga no corpo de cadetes... posso fazer isso, não é mesmo, pai? - Ao aceno de cabeça indulgente de Dom Esteban, ele acrescentou: - Sempre precisam de rapazes de boas famílias, e basta olhar para você para saber que tem sangue Alton, não é?

    - Foi o que sempre me disseram - respondeu Dezi. - Sem isso, eu nunca poderia ter passado pelo Véu em Arilinn.

    - Isso não tem a menor importância entre os cadetes. A metade é constituída por bastardos de nobres... - Domenic soltou uma gargalhada. - ...e a outra metade é formada por pobres coitados que são filhos legítimos de nobres, sofrendo e suando para provar que estão à altura dos pais! Mas sobrevivi a três anos disso, e tenho certeza de que você também conseguirá. Vá para Thendara, e lhe encontrarei um lugar. Tem as costas nuas aquele sem irmão, diz o ditado, e como Valdir está com os monges em Nevarsin, sentirei o maior prazer pela sua companhia, parente.

    O rosto de Dezi corou um pouco, e ele murmurou:

    - Obrigado, primo. Ficarei aqui enquanto seu pai precisar de mim. Depois disso, o prazer será todo meu. - Ele se virou apressado para Dom Esteban. - Tio, o que o aflige?

    O velho empalidecera e arriara na cadeira.

    - Nada - murmurou Dom Esteban, recuperando-se. - Um momento de vertigem. Talvez, como dizem nas colinas, alguma criatura selvagem tenha mijado na terra que será minha sepultura. Ou talvez seja apenas por ser meu primeiro dia sentado, depois de passar tanto tempo deitado.

    - Deixe-me ajudá-lo a ir para a cama, tio. Descanse até a hora do casamento.

    - Eu o ajudarei - disse Domenic.

    Enquanto os dois se afastavam com Dom Esteban, Damon notou que Ellemir os observava com uma estranha expressão de consternação.

    - O que foi, minha querida?

    - Nada. Talvez uma premonição, não sei... - Ellemir tremia. - Enquanto ele falava, eu o vi deitado como a morte aqui, naquela mesa...

    Damon recordou que de vez em quando, nos Altons, um lampejo de precognição acompanhava o dom do laran. Sempre desconfiara que Ellemir tinha mais do dom do que lhe fora permitido acreditar, mas reprimiu sua apreensão e disse, afetuoso:

    - Ele não é mais um jovem, minha querida, e nós vamos morar aqui. A razão diz que algum dia o veremos no repouso final. Mas não deixe que isso a perturbe, minha amada. E agora acho que devo ir cumprimentar meu irmão Lorenz, já que ele decidiu honrar o casamento com sua presença. Será que poderemos evitar que ele e Domenic briguem?

    Ellemir voltou a se preocupar com os convidados e a cerimônia, e sua palidez diminuiu. Mas Damon desejou ter partilhado sua previsão. O que Ellemir vira?

    Com um senso de irrealidade, Andrew acompanhou os preparativos para seu casamento iminente. O casamento livre era uma simples declaração diante de testemunhas e deveria ocorrer ao final do jantar para os convidados e os vizinhos. Andrew não tinha parentes nem amigos ali. Embora não se importasse com isso, à medida que o momento se aproximava, descobriu que até invejava Damon pela presença de Lorenz, um homem de aparência sisuda, postado ao seu lado para a declaração solene, que faria com que Ellemir se tornasse sua esposa, pela lei e pelo costume. Qual fora mesmo o ditado que Domenic citara? "Tem as costas nuas aquele sem irmão." Pois ele tinha mesmo as costas nuas.

    Todos os fazendeiros, pequenos proprietários e nobres que viviam a um dia de viagem se reuniram em torno da mesa comprida no Grande Salão de Armida, ornamentada com as melhores toalhas, com as louças e talheres dos dias de festa. Damon estava pálido e tenso, mais bonito do que o habitual, num traje de couro macio, bordado e pintado nas cores de seu Domínio, como haviam explicado a Andrew. O laranja e o verde pareciam um tanto espalhafatosos para Andrew. Damon estendeu a mão para Ellemir, que contornou a mesa para ficar ao seu lado. Ela também se mostrava pálida e solene, num vestido verde, os cabelos presos numa rede prateada.  Duas moças postaram-se por trás dela - Ellemir informara a Andrew que as duas haviam sido companheiras de infância dela e de Callista, uma nobre de uma propriedade próxima e a outra camponesa de uma aldeia da propriedade. Damon disse, a voz firme:

    - Meus amigos, nobres e plebeus, nós os chamamos para testemunharem nosso compromisso. Sejam todos testemunhas de que eu, Damon Ridenow de Serrais, nascido livre e sem compromisso com qualquer outra mulher, tomo como companheira livre esta mulher, Ellemir-Lanart-Alton, com o consentimento de sua família. E proclamo que seus filhos serão declarados os legítimos herdeiros de meu corpo e partilharão minha herança e meu patrimônio, sejam grandes ou pequenos.

    Ellemir pegou sua mão. Sua voz soava como a de uma criança na vasta sala:

    - Sejam todos testemunhas de que eu, Ellemir Lanart, tomo Damon Ridenow como companheiro livre, com o consentimento de nossas famílias.

    Houve uma explosão de aplausos e risos, congratulações, abraços e beijos nos recém-casados. Andrew apertou as mãos de Damon, que no mesmo instante o enlaçou, pois o abraço era o costume aqui, entre parentes, os rostos se encostando por um instante. Depois, Ellemir ergueu-se na ponta dos pés, seus lábios se encontrando com os de Andrew. Por um momento, tonto, foi como se ele recebesse o beijo que Callista ainda não lhe dera, e sentiu a mente turva. Ellemir riu e murmurou:

    - Ainda é muito cedo para você ficar embriagado, Andrew!

    O casal seguiu adiante, aceitando beijos, abraços e votos de felicidade. Andrew sabia que dali a pouco seria a sua vez de fazer a declaração, mas teria de ficar sozinho. Domenic inclinou-se e sussurrou:

    - Se quiser, ficarei ao seu lado, como parente, Andrew. Só anteciparia o fato por alguns momentos.

    Andrew sentiu-se comovido com o gesto, mas hesitou em aceitar.

    - Não me conhece, Domenic...

    - Ora, você é a escolha de Callista, e só isso representa para mim um testemunho suficiente de seu caráter. Afinal, conheço minha irmã. - Domenic levantou-se, parecendo considerar que o assunto estava decidido. - Já reparou no rosto azedo de Dom Lorenz? Não acha difícil acreditar que seja irmão de Damon? Devia ver a mulher com quem ele casou! Acho que inveja Damon por minha linda irmã!

    Enquanto contornavam a mesa, Domenic disse:

    - Pode usar as mesmas palavras de Damon, ou quaisquer outras que lhe ocorram... não há uma fórmula fixa. Mas deixe Callista declarar que seus filhos serão legítimos. Sem ofensa, tal decisão cabe à pessoa de posição superior.

    Andrew murmurou seu agradecimento pelo conselho. Encontrava-se agora junto da cabeceira da comprida mesa, fitando os convidados, vagamente consciente de Domenic um pouco atrás, Dezi a observá-lo do outro lado, os olhos de Callista fixados nos seus. Engoliu em seco e ouviu sua voz sair rouca e áspera:

    - Eu, Andra... - Um nome duplo em darkovano indicava no mínimo uma nobreza inferior; e Andrew não tinha uma linhagem que qualquer deles pudesse reconhecer. - ...declaro que, na presença de todos, como testemunhas, tomo Callista Lanart-Alton como companheira livre, com o consentimento de sua família...

    Parecia-lhe que deveria haver algo mais. Lembrou-se de uma seita na Terra que celebrava seus casamentos assim, diante de testemunhas, e parafraseou da lembrança vaga, traduzindo as palavras de um eco em sua mente:

    - Tomo-a para amar e acalentar, nos bons e nos maus tempos, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença, enquanto a vida perdurar, e assim me comprometo diante de todos.

    Lentamente, Callista contornou a mesa para se juntar a ele. Usava um vestido escarlate, com bordados dourados. A cor ofuscava seus cabelos, fazia-a parecer ainda mais pálida. Andrew ouvira dizer que aquela era a cor reservada a uma Guardiã. Leonie, por trás dela, vestia um traje similar, solene, sem o menor sorriso.

    A voz baixa de Callista soou, apesar de tudo, como a voz de uma cantora. Embora suave, pôde ser ouvida por toda a sala.

    - Eu, Callista de Arilinn... - Seus dedos se contraíram de forma quase convulsiva quando pronunciou o título ritual em voz alta pela última vez. - ... tendo renunciado às minhas sagradas funções para sempre,  com  o  consentimento  de   minha  Guardiã,   tomo  este  homem, Ann'dra, como meu companheiro livre. Declaro ainda... - A voz tremia. - ...que, caso eu venha a lhe dar filhos, eles serão considerados legítimos diante de clã e conselho, casta e herança.

    Uma pausa, e ela acrescentou, num tom que pareceu a Andrew de desafio:

    - Os Deuses são testemunhas, e todas as coisas sagradas em Hali.

    Nesse momento, Andrew percebeu que os olhos de Leonie fixavam-se nele. Pareciam conter uma profunda tristeza, mas não havia tempo para especular por quê. Ele baixou a cabeça, pegou as mãos de Callista, roçou os lábios nos dela. Callista não se encolheu ao contato, mas Andrew sabia que ela erguera uma barricada, que não a alcançara de fato, que suportara o beijo ritual, diante das testemunhas, apenas porque seria escandaloso se não o fizesse. A desolação em seus olhos uma agonia para Andrew, mas ela sorriu e murmurou:

    - Suas palavras foram lindas, Andrew. São terráqueas?

    Ele acenou com a cabeça em confirmação, mas não pôde dar maiores explicações, pois no instante seguinte foram envolvidos por abraços congratulações, como haviam concedido a Damon e Ellemir. Depois, todos se ajoelharam para as bênçãos de Dom Esteban e Leonie.

    Logo ficou evidente, à medida que as festividades prosseguiram, que o verdadeiro propósito da celebração era permitir que os vizinhos próximos conhecessem e julgassem os novos genros de Dom Esteban. Damon, é claro, era conhecido de nome e reputação por todos: um Ridenow de Serrais, um oficial da Guarda. Andrew, por sua vez, ficou agradavelmente surpreso pela maneira como foi acolhido e aceito, por não atrair qualquer atenção exagerada. Desconfiou - e mais tarde teve certeza - de que uma ação de um lorde do Comyn era acatada sem contestação.

    Houve muita bebida, e ele logo foi atraído para a dança. Todos dançaram, até mesmo a solene Leonie, que pegou no braço de Lorde Serrais por algum tempo. Houve também algumas brincadeiras turbulentas. Andrew foi arrastado para uma, que envolvia muitos beijos, sob regras confusas. Num momento de sossego, à beira do jogo, ele manifestou sua confusão para Ellemir. Ela corou; e Andrew desconfiou que a moça andara bebendo demais o vinho adocicado e forte.

    - É um elogio para Callista o fato de as outras moças demonstrarem que acham seu marido desejável - comentou Ellemir, rindo. - Além do mais, elas não vêem ninguém, além dos irmãos e dos parentes, do Solstício do Inverno ao Solstício do Verão. Você é um rosto novo, e isso as deixa excitadas.

    O comentário pareceu compreensível a Andrew, mas mesmo assim, quando se tratava de distribuir beijos em moças meio tontas, algumas mal entradas na adolescência, ele achou que era velho demais para esse tipo de diversão. Jamais gostara muito de beber, nem mesmo entre seus compatriotas, onde conhecia todas as piadas. Olhou ansioso para Callista, mas parecia que uma das regras tácitas era a de que o marido não devia dançar com a esposa. Cada vez que ele se aproximava, outras pessoas se interpunham e os mantinham separados.

    A coisa acabou se tornando tão óbvia que ele procurou Damon para interrogá-lo a respeito. Damon riu e explicou:

    - Eu tinha esquecido que é um estranho nas Colinas Kilghard, irmão. E não vai querer privá-los de sua diversão, não é? É um jogo nos casamentos, manter marido e mulher apartados, a fim de que não possam escapulir para consumar o casamento em particular, antes de serem levados juntos para a cama. Todos podem então dizer as piadas que são tradicionais nos casamentos aqui.

    Ele riu de novo, e Andrew especulou sobre o que lhe estava reservado. Damon acompanhou seus pensamentos com precisão e acrescentou:

    - Se os casamentos fossem realizados em Thendara... as pessoas são mais sofisticadas lá, mais civilizadas. Mas aqui conservam os costumes do campo, e são bem próximos da natureza. Eu não me importo tanto com essas coisas, já que fui criado aqui. Na minha idade, terei algumas zombarias extras... a maioria dos homens casa quando chega à idade de Domenic. Ellemir também foi criada nas colinas, e já zombou de tantas noivas que acho que vai se divertir tanto quanto as outras pessoas. Mas eu bem que gostaria de poder poupar Callista disso. Ela teve uma existência... resguardada. E uma Guardiã renunciando à sua posição é um alvo certo para as piadas mais obscenas; lamento muito, mas tenho a impressão de que inventarão algo terrível para ela.

    Andrew olhou para Ellemir, rindo e corando no meio de um bando de moças. Callista também se encontrava cercada por outras moças, mas parecia retraída e angustiada. Andrew, no entanto, notou aliviado que, embora houvesse muitas mulheres rindo às gargalhadas, havia também uma quantidade substancial - quase: todas mais jovens - que se portavam como Callista, tímidas e corando.

    - Beba! - Domenic pôs um copo na mão de Andrew. - Não pode ficar sóbrio num casamento, é desrespeitoso. Além do mais, se não se embriagar, pode se tornar ansioso demais e maltratar a noiva, não concorda, Damon?

    Ele acrescentou uma piada sobre o luar, que Andrew não entendeu, mas fez Damon soltar uma risada embaraçada.

    - Vejo que tem pedido os conselhos de Damon sobre a noite, Andrew. Diga-me uma coisa: seu povo tem uma máquina para isso também? Não? - Domenic fez uma pantomima de alívio exagerado. - Já ficou um pouco melhor! Eu receava que tivéssemos de providenciar uma demonstração especial para você!

    Dezi observava Damon com extrema atenção. Será que o rapaz estava embriagado?

    - Fico contente que tenha manifestado a intenção de legitimar seus filhos - disse ele. - Mas, na sua idade, ainda não teve nenhum filho, Damon?

    Com um sorriso jovial, pois um casamento não era a ocasião para se sentir ofendido com perguntas intrometidas, Damon respondeu:

    - Não sou monge nem cristoforo, Dezi, e assim acho que não é impossível. Mas se tenho, as mães não me informaram de sua existência. Seja como for, eu acolheria de bom grado um filho, bastardo ou não.

    Abruptamente, sua mente fez contato com a de Dezi; embriagado, o rapaz não erguera uma barricada contra a intromissão. Damon percebeu o único fato relevante no fluxo de emoções, compreendeu qual era a essência da amargura de Dezi.

    O rapaz achava que era filho de Dom Esteban, jamais reconhecido. Mas Esteban seria capaz de fazer tal coisa com um filho seu, mesmo ilegítimo? - especulou Damon, para no instante seguinte lembrar. Dezi tinha laran. Mais tarde, comentou o assunto com Domenic, que lhe disse:

    - Não acredito. Meu pai é um homem justo. Reconheceu seus filhos nedestro com Larissa d'Asturien e lhes concedeu terras. Sempre foi generoso com Dezi, como seria com qualquer parente. Mas se Dezi fosse seu filho, tenho certeza de que ele o reconheceria.

    - Ele mandou-o para Arilinn, e você sabe muito bem que só as pessoas com sangue puro do Comyn podem entrar lá - argumentou Damon. - O mesmo não acontece nas outras Torres, mas em Arilinn...

    Domenic hesitou por um instante, antes de declarar com firmeza:

    - Não discutirei as ações de meu pai nas suas costas. Vamos perguntar a ele.

    - Acha que é a melhor ocasião para conversar sobre isso?

    - Um casamento é o momento certo para esclarecer questões de legitimidade.

    Damon seguiu-o, pensando que a atitude era típica de Domenic, resolver um problema assim que surgia.

    Dom Esteban estava sentado num lado do grande salão, conversando com um jovem casal, que se afastou para dançar assim que seu filho se aproximou. Domenic foi logo perguntando:

    - Pai, Dezi é nosso irmão ou não?

    Esteban Lanart baixou os olhos para a pele de lobo que cobria seus joelhos.

    - É possível que seja, meu rapaz.. Domenic indagou com veemência:

    - Então por que ele não é reconhecido?

    - Você não compreende essas coisas, Domenic. A mãe dele...

    - Era uma prostituta vulgar? - perguntou Domenic, em consternação e repulsa.

    - Por quem me toma? Não, claro que não. Era uma das minhas parentas. Mas ela... - Estranhamente, o rosto do velho corou em embaraço. - A pobre coitada já morreu, e não deve ser envergonhada ainda mais. Foi no festival do Solstício do Inverno, estávamos todos embriagados, e ela passou aquela noite comigo... e não apenas comigo, mas também com quatro o" cinco dos meus primos. Por isso, quando se descobriu que ela esperava um filho, nenhum de nós quis reconhecer o menino. Fiz o que podia por ele, e basta contemplá-lo para saber que tem sangue do Comyn, mas podia ter sido meu, ou de Gabriel, ou de Owynn...

    O rosto de Domenic se tornara vermelho, mas ele insistiu:

    - De qualquer maneira, um filho do Comyn deveria ter sido reconhecido.

    Esteban parecia contrafeito.

    - Gwymi sempre disse que pretendia fazê-lo, mas morreu antes de tomar as providências necessárias. Tenho hesitado em contar essa história a Dezi, pois creio que feriria seu orgulho muito mais do que o mero fato de ser um bastardo. E acho que ele não tem sido maltratado. Eu o trouxe para viver aqui comigo, mandei-o para Arilinn. Ele tem tudo o que um herdeiro nedestro pode ter, exceto o reconhecimento formal.

    Damon pensou a respeito, enquanto retornava ao baile. Não era de admirar que Dezi fosse tão sensível e perturbado; era evidente que sentia alguma desgraça que só a bastardia não acarretaria. Era vergonhoso para uma moça de boa família ser promíscua a esse ponto. Ele sabia que Ellemir tivera amantes, mas ela os escolhera com discrição, e pelo menos um era conhecido, o marido de sua irmã, um costume antigo. Não houvera escândalo. Nem ela se arriscara a gerar uma criança que nenhum homem reconheceria.

    Depois que Damon e Domenic se afastaram, Andrew foi pegar outro drinque, sombrio. Pensou, com certa amargura, que, considerando o que teria pela frente naquela noite, talvez fosse melhor se embriagar o máximo possível. Entre os costumes do campo, que Damon achava tão engraçados, e o conhecimento de que ele e Callista não poderiam consumar o casamento por enquanto, haveria uma noite de núpcias infernal.

    Pensando bem, teria de se manter numa linha estreita, bastante embriagado para turvar a consciência do embaraço, mas também sóbrio para cumprir a promessa a Callista, de nunca pressioná-la por forma alguma, não tentar apressá-la. Ele a queria - nunca desejara tanto qualquer outra mulher em sua vida -, mas a queria de bom grado, partilhando seu desejo. Sabia muito bem que não sentiria o menor prazer de qualquer coisa que se parecesse com estupro, mesmo que remotamente; e no atual estado de Callista, não poderia ser diferente.

    - Se não se embriagar, pode ficar ansioso demais e maltratar a noiva. Domenic e suas piadas! Por sorte, nenhum deles, à exceção de Damon, que compreendia o problema, sabia o que ele teria de enfrentar.

    Se soubessem, era bem provável que achassem engraçado! Andrew pensou a respeito. Apenas mais uma piada obscena para um casamento!

    E, de repente, ele sentiu aflição, angústia... Callista! Isso mesmo, Callista em dificuldades em algum lugar! Andrew seguiu apressado em sua direção, deixando que a sensitividade telepática o guiasse.

    Encontrou-a na extremidade do salão, espremida contra a parede por Dezi, que mantinha os braços em seus flancos, impedindo-a de se esquivar e escapar. O rapaz inclinava-se para a frente, como se quisesse beijá-la. Callista balançava a cabeça de um lado para outro, tentando evitar seus lábios, enquanto suplicava.

    - Não, Dezi, não quero me defender contra um parente...

    - Não estamos na Torre agora, domna. Vamos, um beijo de verdade.

    Andrew agarrou o rapaz pelo ombro e puxou-o, levantando-o do chão.

    - Deixe-a em paz!

    Dezi assumiu uma expressão soturna.

    - Era apenas uma brincadeira entre parentes.

    - Uma brincadeira que parecia não agradar a Callista - disse Andrew - Suma daqui, ou eu...

    - Ou você o quê? - escarneceu Dezi. - Vai me desafiar para um duelo?

    Andrew avaliou o rapaz franzino, corado, furioso, obviamente embriagado. Abruptamente, sua raiva se dissipou. - Havia algo de bom, pensou ele, no costume terráqueo de uma idade legal para beber.

    - Desafiar coisa nenhuma! - exclamou ele, rindo. - Eu o porei nos meus joelhos e lhe darei umas boas palmadas, como o menino impertinente que é. E agora saia daqui, trate de ficar sóbrio e pare de incomodar os adultos!

    Dezi lançou um olhar mortífero para Andrew, mas se afastou; e pela primeira vez desde a declaração do casamento, Andrew descobriu que se encontrava a sós com Callista.

    - O que aconteceu?

    Ela estava tão vermelha quanto a cortina, mas tentou gracejar:

    - Dezi disse que, agora que não sou mais Guardiã, estou livre para ceder à paixão irresistível que ele tem certeza de que desperta no coração de todas as mulheres.

    - Eu deveria ter esfregado o chão com ele - murmurou Andrew. Callista sacudiu a cabeça.

    - Oh, não! Acho apenas que ele bebeu um pouco mais do que pode agüentar. E é um parente, no final das contas.  Talvez até filho do meu pai.

    Andrew já percebera a possibilidade, ao ver Domenic e Dezi juntos.

    - Mas, ele seria capaz, de abusar de uma moça que acredita ser sua irmã?

    - Meia-irmã... e nas colinas, meio-irmão e meia-irmã podem ir para a cama, se assim quiserem, e até mesmo casar, embora se considere que é melhor eles não gerarem crianças da união. E brincadeiras rudes e piadas obscenas devem ser esperadas num casamento; por isso, o que ele fez foi apenas grosseiro, não chocante. Acontece apenas que sou sensível demais, e ele ainda é muito jovem.

    Ela ainda parecia abalada e aflita, e Andrew continuou a pensar que deveria ter dado uma lição no rapaz; depois, um pouco tarde, especulou se não fora duro demais com Dezi. Afinal, ele não era o primeiro garoto, nem seria o último, a beber além da conta e se tornar desagradável. Contemplando o rosto tenso e cansado de Callista, ele murmurou:

    - Tudo isso vai acabar em breve, meu amor.

    - Sei disso. - Ela hesitou. - Já conhece... o costume....

    - Damon me explicou. Imagino que nos levarão para a cama juntos, dizendo uma porção de piadas obscenas.

    Ela acenou com a cabeça, o rubor espalhando-se pelo rosto.

    - O objetivo é estimular a concepção de crianças, o que é muito importante para uma jovem família nesta parte do mundo, como pode imaginar. Assim, devemos simplesmente... tirar o melhor proveito da situação. - Ela fitou-o nos olhos, toda vermelha outra vez, e acrescentou: - Sinto muito. Sei que isso só vai piorar as coisas...

    Andrew balançou a cabeça, sorrindo.

    - Para ser franco, acho que não. Se faz alguma diferença, te digo que esse tipo de coisa tende a me esfriar.

    Ele tornou a ver o brilho de culpa nos olhos de Callista e ansiou em confortá-la e tranqüilizá-la.

    - Pense da seguinte maneira, meu amor: vamos deixar que eles se divirtam, mas podemos fazer o que quisermos, e esse será o nosso segredo. Quando chegar o momento oportuno, no nosso tempo. Assim, poderemos recordar e ignorar todas as bobagens deles.

    Ela suspirou e sorriu.

    - Se realmente pensa assim...

    - Claro que penso, meu amor.

    - Fico contente por isso. Olhe, Ellemir está sendo arrastada por todas as garotas. - Callista se apressou em acrescentar, à expressão de consternação de Andrew: - Não a estão machucando. É apenas o costume que a noiva deve resistir e se debater um pouco. Vem do tempo em que as moças eram casadas sem o seu consentimento, mas é apenas uma brincadeira agora. Os criados já estão levando meu pai embora, e Leonie também vai se retirar, para que os jovens possam fazer todo o barulho que quiserem.

    Mas Leonie não estava se retirando; aproximou-se e parou ao lado deles, imóvel e sombria, em seu traje escarlate.

    - Callista, minha criança, você quer que eu fique? Talvez, na minha presença, as brincadeiras sejam um pouco mais contidas e decorosas.

    Andrew percebeu o quanto Callista ansiava por isso, mas ela sorriu e tocou na mão de Leonie, o contato leve entre telepatas.

    - Agradeço, parenta, mas... Não devo começar por privar a todos de sua diversão. Nenhuma recém-casada jamais morreu de embaraço, e tenho certeza de que não serei a primeira.

    Contemplando-a, pronta para enfrentar bravamente qualquer brincadeira obscena que pudessem criar para uma guardiã que renunciava a virgindade ritual, Andrew lembrou-se da moça que gracejava com uma coragem excepcional mesmo quando se encontrava prisioneira, sozinha e apavorada, nas cavernas de Corresanti.

    É por isso que eu a amo, pensou ele. Leonie disse gentilmente:

    - Como quiser, minha querida. Aceite a minha bênção.

    Ela fez uma reverência solene para ambos e depois foi embora. Como se a sua saída abrisse as comportas, uma onda de rapazes e moças engolfou Callista e Andrew.

    - Callista, Ann’dra, vocês perdem seu tempo aqui, a noite está passando. Não têm nada melhor para fazer esta noite do que conversar?

    Andrew viu Damon sendo arrastado por Dezi. Domenic pegou-o pelas mãos e afastou-o de Callista, que foi cercada por um bando de moças. Uma delas gritou:

    - Providenciaremos para que ela fique pronta para você, Ann'dra, e assim não terá de profanar o traje sagrado!

    - Vamos embora, vocês dois! - disse Domenic, na maior animação. - Esses homens preferem passar a noite inteira bebendo aqui, tenho certeza, mas agora devem cumprir seu dever, não podem deixar suas esposas à espera!

    Andrew e Damon (oram levados pela escada, empurrados para a sala comum das duas suítes, que haviam sido preparadas naquela manhã.

    - Não vão se confundir agora! - berrou o guarda Caradoc, completamente embriagado. - Quando as esposas são gêmeas, como pode um simples marido, e bêbado ainda por cima, saber se deita nos braços da mulher certa?

    - E que diferença isso faz? - indagou um jovem estranho. - Não cabe a eles resolver essa questão. - quando as luzes se apagam, uma mulher é igual a outra. Se eles ficarem confusos entre a mão esquerda e a direita, que diferença isso faz?

    - Devemos começar por Damon. Ele perdeu tanto tempo que devemos apressar seu dever com o clã - declarou Domenic, efusivo.

    Num instante tiraram as roupas de Damon e vestiram-no com uma túnica comprida. A porta do quarto foi aberta com extrema cerimônia, e Andrew pôde avistar Ellemir usando uma camisola fina, os cabelos avermelhados soltos, caindo por cima dos seios. Tinha o rosto vermelho e soltava risadinhas incontroláveis, mas Andrew sentiu que ela se encontrava à beira do soluço histérico. Já chega, pensou ele. Era demais. Todos deviam sair e deixá-los em paz.

    - Damon - anunciou Domenic, com um ar solene - tenho um presente para você.

    Andrew constatou com alívio que Damon se achava meio embriagado, o suficiente para manter uma atitude jovial.

    - É muita gentileza de sua parte, cunhado. Qual é o presente?

    - Preparei um calendário para você, assinalando os dias e as luas. Se cumprir seu dever esta noite, indiquei em vermelho a data em que nascerá seu primeiro filho!

    Damon ficou vermelho no riso reprimido. Andrew compreendeu que sua vontade era jogar o calendário na cabeça de Domenic, mas aceitou-o, e depois deixou que o empurrassem até a cama, onde se deitou, cerimonioso, ao lado de Ellemir. Domenic disse alguma coisa a Ellemir, que baixou a cabeça, comprimindo o rosto contra os lençóis. Depois, Domenic se encaminhou para a porta, junto com os outros, e acrescentou com uma falsa solenidade:

    - E agora, para que vocês possam passar a noite bebendo em sossego, sem serem  perturbados  por qualquer coisa que aconteça além destas quatro paredes, tenho outro presente para o feliz casal, um amortecedor telepático, que colocarei no lado de dentro da porta...

    Damon sentou na cama, jogou um travesseiro para cima de Domenic, finalmente perdendo a paciência.

    - Já chega! - gritou ele. - Saiam logo daqui e deixem-nos em paz!

    Como se esperassem por isso - o que talvez fosse um fato -, os rapazes e as moças começaram a sair do quarto. Domenic ainda disse, o rosto contraído numa expressão de desaprovação:

    - Ora, Damon, será que não pode conter sua impaciência por mais algum tempo? Minha pobre irmã, à mercê de uma pressa tão indecorosa!

    Mal ele saiu e fechou a porta, Andrew pôde ouvir Damon trancá-la pelo outro lado. Pelo menos havia um limite para as brincadeiras consideradas apropriadas, e Damon e Ellemir se achavam a sós agora.

    Mas chegara a sua vez. Havia apenas uma coisa boa em tudo aquilo, pensou Andrew, sombrio. Quando os jovens embriagados acabassem com a brincadeira, ele se sentiria muito cansado - e muito irritado - para fazer qualquer outra coisa além de dormir.

    Empurraram-no para o quarto em que Callista esperava, cercada pelas moças, amigas de Ellemir, suas criadas, jovens nobres das propriedades ao redor. Haviam tirado seu vestido escarlate e lhe vestido uma camisola parecida com a de Ellemir; os cabelos soltos se desmanchavam sobre os ombros nus. Ela fitou-o, e por um instante Andrew teve a impressão de que parecia muito mais jovem do que Ellemir: jovem, perdida e vulnerável.

    Sentiu também que Callista fazia um tremendo esforço para conter as lágrimas. A timidez e a relutância eram parte da brincadeira, mas se ela perdesse o controle e chorasse, Andrew sabia, todos ficariam embaraçados e ressentidos por terem sua diversão estragada. Haveriam de desprezá-la por sua incapacidade de participar da brincadeira.

    As crianças podiam ser cruéis, pensou Andrew, e muitas daquelas moças não passavam de crianças. Por mais jovem que parecesse, Callista era uma mulher. Talvez nunca tivesse sido uma criança; sua infância fora roubada pela Torre... Preparou-se para o que estava por acontecer, sabendo que, por mais rude que fosse para ele, ainda seria pior para Callista.

    Será que conseguirei tirá-los daqui bem depressa, antes que ela desabe e desate a chorar, odiando a si mesma por isso? E por que ela tem de suportar esse absurdo?

    Domenic segurou-o pelos ombros, com toda a firmeza possível, desviando seus olhos de Callista, e advertiu:

    - Preste atenção. Ainda não acabamos com você, e as mulheres ainda não aprontaram Callista. Não pode esperar alguns minutos?

    Andrew deixou que Domenic fizesse como queria, disposto a conceder uma atenção cortês às piadas que não entendia. Mas pensava, ansioso, no momento em que ficaria a sós com Callista.

    Ou seria pior? Mas quer fosse ou não, tinha primeiro de passar por aquela provação. E ele deixou que Domenic e os outros o conduzissem para o cômodo ao lado.

   

    Houve ocasiões em que Andrew teve a impressão de que o contentamento de Damon era uma coisa visível, algo que podia ser medido e pesado. Nesses momentos, à medida que os dias passavam e o inverno chegava às Colinas Kilghard, Andrew não podia deixar de sentir uma inveja amargurada. Não que se ressentisse de Damon por sua felicidade; apenas acontecia que ele ansiava em partilhá-la.

    Ellemir também parecia radiante. Andrew sentia-se às vezes arrepiado ao pensar que os criados em Armida, os estranhos e até Dom Esteban notavam essa diferença e o culpavam, que quarenta dias depois do casamento Ellemir se mostrasse tão alegre, enquanto dia a dia Callista se tornava mais pálida e sombria, mais embaraçada e triste.

    Não que Andrew se sentisse infeliz. Frustrado, sim, pois era às vezes angustiante estar tão perto de Callista - e suportar os gracejos joviais que ele imaginava serem inevitáveis para todos os recém-casados na galáxia - e ao mesmo tempo separado por uma linha invisível que não podia transpor.

    E, no entanto, se por acaso se conhecessem por qualquer outro curso normal, teria havido um longo período de espera. Andrew lembrava a si mesmo que na ocasião do casamento eles se conheciam havia menos de quarenta dias. E assim ele podia estar sempre em sua companhia, passando a conhecer a Callista exterior, tão bem quanto a conhecera por dentro, na mente e no espírito, quando ela era prisioneira dos homens-gatos, na escuridão, no fundo das cavernas de Corresanti. Naquele momento, quando ela não era capaz, por algum estranho motivo, de entrar em contato com qualquer outra mente em Darkover, exceto a de Andrew Cair, suas mentes haviam se unido, de uma forma tão profunda que nem mesmo anos de vida em comum poderiam criar um vínculo mais íntimo. Antes de contemplá-la em carne e osso pela primeira vez, ele já a amava, por sua coragem diante do terror, por tudo o que enfrentaram juntos.

    Agora, passara a amá-la também pelas coisas externas: por sua graciosidade, a voz meiga, o charme descontraído, o espírito ágil. Callista era capaz de gracejar até mesmo sobre a frustrante separação dos dois, o que era mais do que Andrew podia fazer! Ele amava ainda a gentileza com que Callista tratava a Todos, desde o pai, entrevado e muitas vezes rabugento, até a mais jovem e desajeitada das criadas da casa.

    Uma coisa para a qual ele não estava preparado era a falta de articulação de Callista. Apesar do espírito ágil e apartes rápidos, ela tinha dificuldade para falar das coisas que lhe eram importantes. Andrew esperara que pudessem conversar livremente sobre os problemas que enfrentavam, a natureza do condicionamento que ela recebera na Torre, a maneira pela qual fora ensinada a nunca reagir com a menor percepção sexual. Mas sobre esse assunto ela se mantinha em silêncio, e desviou o rosto nas poucas ocasiões em que Andrew tentou conversar a respeito, gaguejou e acabou se calando, os olhos cheios de lágrimas.

    Ele se perguntou se a lembrança era dolorosa demais, e outra vez sentiu a mais profunda indignação pelo modo bárbaro com que a vida de uma moça fora deformada. Torcia para que algum dia Callista se sentisse em condições de conversar a respeito; ele não podia imaginar qualquer outro meio de ajudá-la a se livrar da repressão. No momento, porém, relutante em forçá-la a qualquer coisa, nem mesmo a falar contra a sua vontade, ele apenas esperava.

    Como Callista previra, não era fácil se manter ao seu lado e ao mesmo tempo distante. Vê-la no mesmo quarto, mas sem partilharem uma cama, contemplá-la sonolenta, corada e linda pela manhã, em sua cama, meio despida, os cabelos espalhados sobre os ombros... e não ousar mais que um contato casual. A frustração de Andrew assumiu estranhas formas. Uma ocasião, quando ela se encontrava no banho, sentindo-se tolo, mas incapaz de resistir, ele pegara sua camisola e a comprimira contra os lábios, arrebatado, aspirando a fragrância de seu corpo, o suave perfume. E sentira-se tonto e envergonhado, como se tivesse cometido uma perversão inominável. Quando Callista voltara, ele não fora capaz de fitá-la, sabendo que estavam abertos um ao outro e que ela sabia do seu gesto. Evitara os olhos da mulher e se retirara apressado, não querendo suportar o desdém imaginário - ou a compaixão - em seu rosto.

    Andrew chegou a especular se ela não gostaria que ele fosse dormir em outro lugar, mas, quando lhe perguntou, Callista respondeu, tímida:

    - Não. Gosto de ter você perto de mim.

    Ocorreu-lhe que talvez essa intimidade, mesmo assexuada, fosse um primeiro passo necessário no despertar de Callista.

    Quarenta dias depois do casamento, os ventos fortes e as nevascas leves deram lugar às fortes nevascas, e o tempo de Andrew era consumido, dia após dia, nos preparativos para o inverno, acumulando forragem acessível para os cavalos e outros animais em áreas abrigadas, inspecionando e abastecendo as cabanas dos pastores nos vales superiores. Havia ocasiões em que se ausentava por dias a fio, o tempo todo em cima do cavalo, passando a noite ao relento, visitando fazendas remotas que eram parte da propriedade.

    Durante esse período, ele compreendeu como Dom Esteban fora sensato ao insistir na festa de casamento. Na ocasião, sabendo que bastaria a presença de uma ou duas testemunhas para que o casamento fosse legal, Andrew ficara furioso com o sogro por não permitir que ocorresse na privacidade. Mas aquela noite de gracejos e brincadeiras rudes o convertera num habitante da região, deixara de ser um estranho surgido do nada. Era o genro de Dom Esteban, um homem cujo casamento todos haviam presenciado; e isso lhe: poupara anos de esforço para conquistar um lugar na comunidade.

    Ele despertou uma manhã para ouvir o barulho da neve contra a janela e compreendeu que começara a primeira tempestade de fato do inverno. Não teria como sair naquele dia. Continuou deitado, escutando o uivo do vento em torno da casa antiga, revisando mentalmente a disposição dos animais sob os seus cuidados. As éguas reprodutoras no pasto sob os picos gêmeos - havia forragem suficiente nos abrigos resguardados contra o vento e um córrego que nunca congelava por completo, como lhe assegurara o velho tratador de cavalos - não teriam problemas. Deveria ter separado os jovens garanhões da manada - podia haver brigas -, mas agora era tarde demais.

    Havia uma claridade cinzenta além da janela, através da cortina de neve. Não veriam o sol nascendo hoje. Callista mantinha-se em silêncio na sua cama estreita, no outro lado do quarto, de costas para ele, e assim só podia avistar suas tranças no travesseiro. Ela e Ellemir eram muito diferentes. Ellemir sempre despertava e se levantava ao amanhecer, Callista só saía da cama depois que o sol estava alto. Muito em breve ouviria Ellemir se agitando na outra suíte, mas ainda era cedo demais até para isso.

    Callista gritou no sono, um grito de terror... outro pesadelo angustiante do tempo em que fora prisioneira dos homens-gatos - Com um passo largo, Andrew foi para o seu lado, mas ela sentou na cama, abruptamente desperta, olhando além dele, com uma expressão transtornada.

    - Ellemir! - chamou ela, prendendo a respiração. - Tenho de ir para junto dela!

    E, sem dizer mais nada, sem sequer olhar para Andrew, Callista saiu da cama, pegou um roupão e correu para a outra suíte.

    Andrew limitou-se a observá-la, perturbado, pensando no vínculo entre as gêmeas. Sempre tivera uma noção vaga do vínculo telepático entre Ellemir e a irmã, mas uma respeitava a privacidade da outra. Se a mensagem de aflição de Ellemir alcançara a mente de Callista, então devia ter sido muito forte. .Andrew começou a se vestir. Calçava a segunda bota quando ouviu Damon na sala central entre as duas suítes. Foi ao seu encontro, e o rosto risonho de Damon dissipou seus temores.

    - Deve ter-se assustado quando Callista saiu correndo do quarto, e viu que Ellemir também se assustou, por um momento, mais surpresa do que qualquer outra coisa. Muitas mulheres escapam a isso por completo e Ellemir é bastante saudável. Seja como for, acho que nenhum homem conhece muito essas coisas.

    - Quer dizer que ela não tem nenhuma, doença grave?

    - Se é uma doença, vai se curar com o tempo - respondeu Damon, soltando uma risada, para logo voltar a ficar sério. - Claro que ela sofre muito agora, a pobre coitada, mas Ferrika garante que esse estágio passará em dez ou vinte dias. Deixei-a aos cuidados de Ferrika e ao conforto de Callista. Afinal, nenhum homem pode fazer muita coisa por ela neste momento.

    Andrew, sabendo que Ferrika era a parteira da propriedade, compreendeu no mesmo instante a natureza da indisposição de Ellemir.

    - É costumeiro e apropriado dar os parabéns?

    - Claro! - O sorriso de Damon era radiante. - Mas o costume maior é dar os parabéns a Ellemir. Vamos descer e avisar a Dom Esteban que pode esperar por um neto depois do Solstício do Verão?

    Esteban Lanart ficou na maior satisfação com a notícia. Dezi comentou, com um sorriso malicioso:

    - Vejo que está muito ansioso em produzir seu primeiro filho dentro do prazo. Sentiu-se tão obrigado assim a seguir o calendário fixado por Domenic, parente?

    Por um momento, Andrew pensou que Damon ia jogar sua caneca em Dezi. Mas Damon se controlou e disse:

    - Não. Ao contrário, eu esperava que Ellemir pudesse passar um ou dois anos livre de tais cuidados. Afinal, não sou um herdeiro de Domínio, com necessidade urgente de ter um filho. Mas ela queria uma criança logo, e a opção foi sua.

    - É típico de Elli - murmurou Dezi, abandonando a malícia e sorrindo. - Ela pegou no colo cada bebê nascido na propriedade antes que completasse dez dias. Vou lhe dar os parabéns, assim que ela estiver se sentindo melhor.

    Callista entrou na sala nesse momento, e Dom Esteban lhe perguntou:

    - Como está sua irmã?

    - Está dormindo. Ferrika aconselhou-a a permanecer na cama por tanto tempo quanto pudesse de manhã, enquanto se sentir mal, mas ela descerá depois do meio-dia.

    Ela foi sentar ao lado de Andrew, mas evitou os seus olhos, e ele especulou se aquilo a entristecia, saber que Ellemir já engravidara. Pela primeira vez, ocorreu-lhe que Calista talvez quisesse uma criança: tinha a impressão de que era o grande desejo de algumas mulheres, embora nunca tivesse pensado muito a respeito.

    A tempestade perdurou por mais de dez dias, a neve caindo forte, para depois dar lugar a um céu claro, com ventos uivantes, que acumulavam a neve em montanhas enormes e intransponíveis, e logo voltava a nevar. O trabalho na propriedade cessou por completo. Usando túneis, uns poucos criados cuidavam dos cavalos de sela e dos animais leiteiros, mas não havia muito mais que se pudesse fazer.

    Armida parecia tranqüila sem a agitação de Ellemir ao amanhecer. Damon, forçado à ociosidade pela tempestade, passava a maior parte do tempo ao lado da esposa. Perturbava-o ver a exuberante Ellemir pálida e sem forças, deitada pela manhã afora, sem querer tocar em comida. Sua preocupação era extrema, mas Ferrika achava graça de sua consternação, comentava que todo jovem marido ficava assim quando a esposa engravidava pela primeira vez. Ferrika era a parteira de Armida, responsável pelo nascimento de todas as crianças nas aldeias ao redor. Era uma tremenda responsabilidade, para a qual ela parecia muito jovem; apenas no ano passado é que sucedera a mãe na função. Calma, firme, de corpo roliço, baixa, com os cabelos louros, sabia que era muito jovem para o posto, e por isso usava os cabelos escondidos por uma touca e só vestia roupas simples e sóbrias, a fim de tentar parecer mais velha.

    A casa começou a desmoronar sem o comando eficiente de Ellemir, embora Callista fizesse o melhor possível. Dom Esteban queixava-se de que nunca dava para comer o pão, apesar de haver agora uma dúzia de mulheres na cozinha. Damon desconfiava que ele apenas sentia falta da companhia jovial de Ellemir. O velho mostrava-se soturno e rabugento, tornava a vida muito difícil para Dezi. Callista devotava-se ao pai, levando sua harpa e cantando baladas e outras canções para ele, jogavam cartas, sentava ao seu lado por horas a fio, com uma costura no colo, escutando paciente os relatos intermináveis de campanhas e batalhas antigas, dos anos em que Esteban comandara a Guarda.

    - Uma manhã, ao descer um pouco tarde, Damon encontrou o salão cheio de homens, muitos dos quais trabalhavam, no bom tempo, nos campos e pastos da propriedade. Dom Esteban, em sua cadeira de rodas, se encontrava no centro dos homens, falando com três ainda cobertos de neve e usando as roupas volumosas necessárias para sair de casa. Haviam tirado as botas, e Ferrika se: ajoelhava diante deles, examinando seus pés e mãos. Seu rosto jovem, redondo e amável, exibia uma expressão perturbada; havia alívio em sua voz, quando levantou os olhos para deparar com Damon se aproximando, e disse:

    - Lorde Damon, foi oficial de hospital na Guarda em Thendara. Venha dar uma olhada.

    Aflito com o tom de voz, Damon inclinou-se para examinar o homem cujos pés ela segurava, e depois indagou, na maior consternação:

    - O que lhe aconteceu? O homem alto, desarrumado, os cabelos compridos caindo em mechas ainda congeladas em torno das faces arranhadas e avermelhadas, respondeu no dialeto das montanhas:

    - Passamos nove dias no abrigo contra a neve no extremo norte, Dom. O vento acabou derrubando uma parede, não podíamos mais manter as roupas e botas secas. Só tínhamos comida para mais três dias, partimos assim que houve uma pausa na tempestade, querendo chegar aqui ou a uma das aldeias. Mas caíra uma avalanche na encosta, e passamos três noites ao relento. O velho Reino morreu de frio, e tivemos de enterrá-lo na neve, com umas poucas pedras apenas para proteger o corpo. Darrill teve de me carregar... - Ele gesticulou, estóico, para os pés brancos e congelados, nas mãos de Ferrika. - Não posso andar, mas não estou tão ruim quanto Raimon ou Piedro ali. Damon balançou a cabeça, horrorizado.

    - Farei o que puder por você, mas não posso prometer coisa alguma. Todos estão tão ruins assim, Ferrika?

    - Alguns não têm praticamente qualquer ferimento, enquanto outros, como pode observar, se acham em condições bem piores.

    Ela gesticulou para um homem já sem as botas, com farrapos de carne preta pendendo. Havia quatorze homens no total. Damon examinou rapidamente os feridos, um depois do outro, separando os menos graves, os que tinham apenas pequenas úlceras de frio nos dedos dos pés e das mãos e nas faces. Andrew ajudava os criados a trazerem sopa e bebidas quentes. Damon determinou:

    - Não dê vinho ou qualquer bebida forte até eu me certificar do estado em que se encontram.

    Depois de separar os menos feridos, ele disse ao velho Rhodri, que era o intendente da casa:

    - Leve esses homens para o salão inferior e convoque algumas mulheres para ajudá-lo. Lavem seus pés com bastante água quente e sabão e... - Damon virou-se para Ferrika. - Tem bastante extrato de espinheiro-bravo?

    - Temos a planta no dispensário, Lorde Damon. Pedirei a Dama Callista para providenciar.

    - Faça cataplasmas, ponha nos pés de todos, depois enfaixe-os. Mantenha-os aquecidos e lhes sirva tanta sopa e chá quente quanto puderem tomar, mas nada de bebida forte.

    Andrew interveio:

    - E assim que o vento melhorar, devemos mandar alguns dos nossos homens avisar às suas mulheres que eles estão sãos e salvos.

    Damon acenou com a cabeça, compreendendo que era a primeira coisa em que deveria ter pensado.

    - Pode providenciar isso, irmão? Tenho de cuidar dos feridos.

    Enquanto Rhodri e outros ajudavam os menos feridos a irem para o salão inferior, Damon tornou a se aproximar dos mais graves, os que haviam ficado com os pés e as mãos congelados demais.

    - O que já fez por esses homens, Ferrika?

    - Ainda nada, Lorde Damon; esperava por seu conselho. Há anos que não vejo nada assim.

    A expressão de Damon era solene. Uma nevasca parecida, quando ele era criança e se encontrava na aldeia de Corresanti, fizera com que metade dos homens perdesse dedos das mãos e dos pés. Outros haviam morrido de infecções ou gangrena subseqüentes.

    - O que acha que devemos fazer?

    Ferrika respondeu com alguma hesitação:

    - Não podemos aplicar o tratamento habitual, mas eu mergulharia seus pés em água apenas um pouco mais quente do que o calor do sangue. Já proibi os homens de massagearem os pés, com receio de que isso possa arrancar a pele. A congelamento penetrou fundo pela carne. Eles terão sorte se não perderem mais do que a pele. - Um pouco encorajada porque Damon não protestara, ela acrescentou: - Eu poria também sacos quentes em torno de seus corpos, para estimular a circulação.

    - Onde aprendeu tudo isso, Ferrika? Eu temia que tivesse de proibi-la de usar remédios populares, que causam mais mal do que bem. Esse é o tratamento usado em Nevarsin, e tive de brigar muito para que fosse adotado na Guarda.

    - Fui treinada na Casa da Guilda das Amazonas em Arilinn, Lorde Damon; elas preparam parteiras ali para todos os Domínios, e sabem muita coisa sobre a cura de ferimentos.

    Dom Esteban franziu o rosto.

    - Besteira de mulher! Quando eu era garoto, sempre nos ensinaram a nunca aproximar o calor de um braço ou perna congelado, mas sim esfregá-lo com neve.

    - É isso mesmo - interveio um homem com os pés inchados. - Pedi que Narrou esfregasse meus pés com neve. Quando meu avô congelou os pés no reinado do velho Marins Hastur...

    - Conheci seu avô - interrompeu-o Damon. - Ele andou com muletas até o fim da vida, e parece-me que seu amigo queria providenciar para que a mesma coisa lhe acontecesse, meu rapaz. Confie em mim, e farei melhor do que isso.

    Ele virou-se para Ferrika e acrescentou:

    - Use também cataplasmas, não apenas água quente, e de preferência de folhas de espinheiro-bravo; vai atrair o sangue para os pés e mandá-lo de volta ao coração. E dê chá quente a todos, para estimular a circulação.

    Tornando a fitar o homem ferido, Damon tentou animá-lo:

    - Esse é o tratamento usado em Nevarsin, onde o tempo é muito pior do que aqui. Os monges garantem que já salvou a vida de muitos homens que de outra forma ficariam aleijados.

    - Não pode nos ajudar mais do que isso. Lorde Damon? - suplicou o homem chamado Raimon.

    Damon olhou para os pés cinza-azulados, balançou a cabeça.

    - Não sei, meu rapaz. Farei tudo o que puder, mas nunca vi nada tão grave. É lamentável, mas...

    - Lamentável? - Os olhos do homem ardiam em dor e fúria. - Isso é tudo o que pode dizer, vai dom? É tudo o que significa para você? Sabe o que significa para nós, ainda mais neste ano? Não há uma única família em Ardais ou Corresanti que não tenha perdido um homem, talvez até dois ou três, para os amaldiçoados homens-gatos. A colheita do ano passado murchou abandonada nos campos, e já há fome nas colinas. E agora mais de uma dúzia de homens fortes têm de ficar de cama, talvez por meses, talvez nunca mais consigam andar, e só pode dizer que é "lamentável"?

    Sua voz, no dialeto rude, imitava com raiva a fala meticulosa de Damon.

    - Não tem problema para gente como você, vai dom, que nunca vai passar fome, não importa o que possa acontecer! Mas o que acontecerá com minha esposa e com meus filhos pequenos? E com a esposa de meu irmão e seus filhos, que acolhi quando meu irmão enlouqueceu e se matou, nas terras escuras, e as mulheres-gatas levaram sua alma? E com minha velha mãe e seu irmão, que perdeu um olho e uma perna em Corresanti? Restam poucos homens aptos nas aldeias, e por isso até as moças e as velhas trabalham nos campos, pouca gente para cuidar das colheitas e dos animais, para colher nozes antes que a neve cubra tudo por completo... e agora metade dos homens sadios das duas aldeias se encontra aqui, com  mãos e pés congelados, talvez aleijados para sempre, e tudo é apenas... lamentável!

    A voz tremia de raiva e dor, e Damon fechou os olhos, horrorizado. Era fácil demais esquecer. A guerra não terminava, nem mesmo quando a paz voltava a reinar na terra? Ele podia matar inimigos comuns, ou comandar homens armados para enfrentá-los, mas contra aqueles inimigos mais poderosos - fome, doença, mau tempo, perda de homens aptos - descobria-se impotente.

    - Não posso controlar o tempo, meu amigo. O que acha que eu poderia fazer?

    - Houve uma época... foi o que meu avô contou... em que o pessoal do Comyn, as feiticeiras das  Torres e os senhores da guerra, podiam usar suas pedras-da-estrela para curar ferimentos. Eduin... - Ele gesticulou para o guarda ao lado de Dom Esteban. - ...viu-o curar Caradoc, para que ele não sangrasse até a morte, quando sua perna foi cortada até o osso pela espada de um homem-gato., Não pode fazer a mesma coisa por nós, vai dom?

    Sem um pensamento consciente, os dedos de Damon se fecharam em torno da pequena bolsa de couro pendurada em seu pescoço, contendo a matriz de cristal que ganhara em Arilinn, como um técnico psíquico. Era verdade, podia fazer algumas dessas coisas. Mas desde que saíra da Torre... Ele sentiu a garganta se contrair, de medo e repulsa. Era difícil, perigoso, assustador até mesmo pensar em fazer tais coisas fora da Torre, sem a proteção do Véu eletromagnético que resguardava os técnicos de matriz da intromissão de pensamentos e perigos...

    Contudo, a alternativa para aqueles homens era a morte ou a invalidez, um sofrimento indescritível, no mínimo, com a fome prevalecendo nas aldeias. Damon murmurou, a voz trêmula:

    - Já se passou tanto tempo que não sei se ainda sou capaz de fazer alguma coisa. Tio...

    Dom Esteban sacudiu a cabeça.

    - Nunca tive essas habilidades, Damon. Ocupei-me apenas com retransmissões no pouco tempo que passei na Torre. E sempre pensei que a maioria dessas habilidades curativas se perdera na Era do Caos.

    - Não. Algumas eram ensinadas em Arilinn, quando estive lá. Mas não posso fazer muita coisa sozinho.

    Raimon disse:

    - A Dama Callista era uma leronis...

    O homem tinha razão. Damon disse, fazendo um grande esforço para controlar a voz:

    - Verei o que podemos fazer. Por enquanto, o importante é determinar até que ponto se pode restaurar a circulação naturalmente. Uma pausa, e ele acrescentou para a parteira, que acabara de voltar com uma porção de frascos de extratos e ungüentos de ervas: - Ferrika, vou deixá-la cuidando desses homens por um momento. Dama Callista ainda está lá em cima com minha esposa?

    - Ela está no dispensário, vai dom. Ajudou-me a providenciar estas coisas.

    Era uma sala pequena e estreita, com chão de pedra, cheia de prateleiras. Callista, com um lenço azul desbotado na cabeça, separava molhos de ervas secas. Outros pendiam das vigas, ou se achavam guardados em vidros e potes. Damon torceu o nariz o cheiro forte do lugar, enquanto Callista se virava para ele.

    - Ferrika me disse que temos alguns casos graves de congelamento. Vamos usar sacos quentes?

    - Você pode fazer melhor do que isso. - Damon pôs a mão, num gesto involuntário, na bolsa de couro que continha sua matriz. -Terei de efetuar um processo de regeneração de células com os casos piores, ou Ferrika e eu seremos obrigados a amputar alguns dedos, talvez mesmo pés e mãos. Mas não posso cuidar disso sozinho, você terá de me monitorar.

    - Claro.

    Callista ergueu a mão, num gesto automático, para a matriz em sua garganta. Começou a guardar os potes de volta nas prateleiras. Parou de repente e se virou, os olhos arregalados em pânico. - Damon... não posso!

    Ela estava tensa, uma parte sua já se preparando para a ação, a outra assustada, intimidada, recordando a situação.

    - Renunciei a meu juramento! Estou proibida!

    Ele fitou-a em profunda consternação. Poderia compreender se Ellemir, que nunca vivera numa Torre e quase nada sabia, manifestasse aquela antiga superstição. Mas Callista, que fora uma Guardiã?

    - Breda - disse ele gentilmente, com um toque leve em seu braço, o tipo de contato que o pessoal de Arilinn usava entre si -, não é o trabalho de uma Guardiã que estou lhe pedindo. Sei que nunca mais poderá entrar nas grandes transmissões e redes de energia... que isso é para as pessoas apartadas, as que conservam seus poderes no isolamento. Peço apenas uma monitoração simples, um trabalho que pode ser realizado por qualquer mulher que não viva sob as leis de uma Guardiã. Poderia pedir a Ellemir, mas ela está grávida, e não seria sensato. Você sabe que não perdeu a habilidade; nunca vai perder.

    Callista balançou a cabeça, obstinada.

    - Não posso, Damon. Sabe que, se eu fizer qualquer coisa desse tipo, estarei reforçando antigos hábitos, antigos... padrões, que preciso romper.

    Ela mantinha-se imóvel, linda, orgulhosa, furiosa, e Damon praguejou interiormente contra os tabus supersticiosos que haviam incutido em Callista. Como ela podia acreditar naquelas bobagens? Irritado, ele disse:

    - Compreende o que está em jogo aqui, Callista? Compreende o sofrimento a que vai condenar esses homens?

    - Não sou a única telepata em Armida! - protestou ela. - Dediquei anos de minha vida a isso, e agora já chega! E pensava que você, entre todos os homens vivos, poderia entender isso melhor do que ninguém!

    - Entender? - Damon sentia raiva e frustração. - Entendo que você está sendo egoísta! Pretende passar o resto de sua vida contando buracos em toalhas de linho e preparando especiarias para pão-de-ervas. - Logo você, que foi Calista de Arilinn?

    - Pare! - Ela se encolheu toda, como se tivesse sido golpeada, o rosto contraído em angústia. - O que tenta fazer comigo, Damon? Tomei minha decisão, e não há como voltar atrás, mesmo que eu quisesse! Para o melhor ou para o pior, minha decisão foi tomada! Acha mesmo...

    A voz vacilou, e Callista se virou, para que ele não a visse chorando

    - Acha que não me perguntei... e perguntei uma porção de vezes, o que fiz exatamente?

    Callista baixou o rosto para as mãos, com um gemido desesperado. Não podia falar, não podia sequer erguer a cabeça, todo o corpo se convulsionava no terrível pesar que a dilacerava. Damon sentiu a agonia que ameaçava sufocá-la, que ela mantinha a distância com um esforço desesperado:

    Você e Ellemir já encontraram sua felicidade, ela espera uma criança, sua. E Andrew e eu... Andrew e eu... ainda nem fui capaz de beijá-lo, deitar em seus braços, conhecer seu amor...

    Damon virou-se, sem ver, saiu do dispensário, ouvindo os soluços lá dentro. A distância não fazia diferença; o pesar de Callista o acompanhava, estava dentro dele. Sentia que o sacudia e dilacerava, e lutou para reerguer suas barreiras, cortar a percepção angustiante de seu desespero. Damon era um Ridenow, capaz de empatia, e as emoções da cunhada penetraram-no tão fundo que por um momento, cego pela dor de Callista, cambaleou pelo corredor, sem saber onde se encontrava ou o que fazia.

    Abençoada Cassilda, pensou ele, eu sabia que Callista era infeliz, mas não tinha idéia de que fosse tanto assim... Os tabus que envolvem uma Guardiã são fortes demais, e ela foi condicionada pelas histórias sobre as penalidades para uma Guardiã que viola seu juramento... Não posso lhe pedir qualquer coisa que prolongue seu sofrimento por mais um dia que seja...

    Depois de algum tempo, ele conseguiu interromper o contato, retirar-se um pouco para dentro de si mesmo - ou Callista conseguira recuperar seu precário controle - e torceu, contra toda a esperança, para que a angústia dela não tivesse alcançado Ellemir. Depois, passou a pensar nas alternativas. Andrew? O terráqueo não era treinado, mas já demonstrara ser um poderoso telepata. E Dezi... embora ele deixasse Arilinn depois de uma temporada apenas, devia conhecer as técnicas básicas.

    Ellemir descera e ajudava Dezi a lavar e enfaixar os pés dos homens com ferimentos menos graves, no salão inferior. Eles gemiam e gritavam de dor, à medida que a circulação era restaurada nas extremidades congeladas; embora o sofrimento fosse terrível, Damon sabia que as lesões não eram tão perigosas quanto as dos outros homens. Um deles fitou-o, com o rosto contorcido em dor, e suplicou:

    - Não podemos ao menos tomar um trago, Lorde Damon? Pode não ajudar os pés, mas com certeza vai diminuir a dor!

    - Sinto muito, mas não é possível - respondeu Damon, pesaroso. - Podem tomar toda a sopa ou qualquer comida quente' que quiserem, mas nada de vinho ou outra bebida forte; seria devastador para a circulação. Ferrika logo lhe dará uma coisa para atenuar a dor e ajudar a dormir.

    Mas seria preciso muito mais do que isso para ajudar os outros homens que estavam ameaçados de terem seus pés amputados. Damon acrescentou:

    - Tenho de ir agora, para tratar dos seus companheiros mais gravemente feridos. Dezi...

    O rapaz de cabelos vermelhos levantou o rosto, e Damon pediu:

    - Depois de cuidar desses homens, vá conversar comigo, está bem?                                                          

    Dezi acenou com a cabeça e tornou a se inclinar para o homem em

    Cujos pés passava um ungüento de cheiro forte, para depois enfaixá-los. Damon notou que ele tinha as mãos hábeis, trabalhava com rapidez e eficiência. Aproximou-se de Ellemir, que enfaixava dedos congelados, e disse:

    - Tome cuidado para não trabalhar demais, minha querida. Ela ofereceu-lhe um sorriso jovial.

    - Só ao acordar é que fico enjoada. Mais tarde, sinto-me muito bem. Damon, você pode fazer alguma coisa por aqueles pobres coitados? Darrill, Piedro e Kaiinon brincaram com Callista e comigo quando éramos crianças, e Kaiinon é irmão-de-adoção de Domenic.

    - Eu não sabia disso - murmurou Damon, já bastante abalado. - Farei tudo o que puder por eles, meu amor.

    Ele voltou para o lugar em que Ferrika tratava dos homens em piores condições e juntou-se a ela nos cuidados preliminares, enfaixando e mergulhando os pés em água morna, dando drogas fortes para aliviar a dor. Sem mais ajuda do que Ferrika e seus medicamentos de ervas poderiam proporcionar, eles morreriam ou ficariam aleijados pelo resto da vida. Na melhor das hipóteses, perderiam dedos dos pés ou das mãos, ficariam incapacitados para o trabalho por meses.

    Callista já recuperara o controle e agora trabalhava com Ferrika, ajudando-a a pôr sacos quentes nos feridos. Restaurar a circulação era a única maneira de salvar os pés congelados, e o retorno de um mínimo de sensação já era uma vitória. Damon observou-a com uma tristeza remota, incapaz de culpá-la por sua resistência. Ele próprio tinha dificuldade em superar sua apreensão pela necessidade de voltar a trabalhar com a matriz.

    Leonie lhe dissera que era sensitivo demais, vulnerável demais, que, se continuasse, o trabalho poderia destruí-lo. Também dissera que, se ele fosse uma mulher, teria dado uma excelente Guardiã.

    Damon disse a si mesmo, com firmeza, que não acreditara na ocasião, e se recusava a acreditar agora. Qualquer bom técnico de matriz poderia desempenhar as funções de uma Guardiã, tratou de se lembrar. Sentia um calafrio de medo ao realizar aquele trabalho fora das condições seguras da Torre.

    Mas era aqui que se tornava necessário, e era aqui que teria de fazê-lo. Talvez houvesse mais necessidade de técnicos de matriz fora da Torre do que lá dentro... Damon percebeu o rumo de seus pensamentos e estremeceu, pela blasfêmia. As torres - Arilinn, Hali, Neskaya, Dalereuth, as outras espalhadas pelos Domínios - constituíam o meio pelo qual a antiga ciência, a matriz de Darkover fora garantida, depois dos terríveis abusos da Era do Caos. Sob a supervisão firme das Guardiãs - presas por juramento, isoladas, virgens, imparciais, excluídos das tensões políticas e pessoais do Comyn - cada técnico de matriz era treinado com o maior cuidado, testado para se verificar se merecia confiança, cada matriz monitorada e vigiada contra o uso indevido.

    E quando uma matriz era usada ilegalmente, fora de uma Torre, e sem a sua permissão, então aconteciam coisas terríveis, como a ocasião em que o Grande Gato projetara as trevas sobre as Colinas Kilghard, a loucura, a destruição, a morte...

    Os dedos de Damon subiram para sua pedra-da-estrela. Usara-a, fora da Torre, para destruir o Grande Gato e eliminar seu terror das colinas. E isso não fora um uso indevido. A cura que se propunha a promover também não era um uso indevido; era uma ação legítima, aprovada por Todos. Era um técnico de matriz, mas se sentia apreensivo e contrafeito.

    Finalmente, todos os homens, com ferimentos graves e leves, foram cuidados, alimentados e levados para camas armadas em cômodos nos fundos de Armida. Os piores haviam tomado as poções analgésicas de Ferrika, que agora os mantinha sob observação, ajudada por algumas mulheres. Damon sabia que muitos se recuperariam sem mais tratamento que uma boa alimentação e os ungüentos curativos, mas o mesmo não ocorreria com alguns.

    Ao meio-dia, reinava o silêncio em Armida. Ferrika velava pelos feridos; Ellemir jogava cartas com o pai; a pedido de Dom Esteban, Callista foi buscar sua harpa, ajeitou-a no colo, começou a dedilhar as cordas. Damon, observando-a com atenção, constatou que ela podia parecer calma, mas seus olhos continuavam vermelhos, e os dedos não eram tão firmes nas cordas.

    Que som foi esse lá fora, na charneca:

    Escutem, escutem!

    Que som foi esse; na escuridão aqui?

    Foi o vento que sacudiu a porta,

    Não tenha medo, criança.

    Não é o barulho de um cavaleiro que chega? Escutem, escutem!

    Não são os cascos de um cavalo a galope?

    Foram apenas os galhos, roçando no telhado.

    Não tenha medo, criança.

    Não foi um rosto que na janela apareceu?

    Escutem, escutem! Um rosto estranho, escuro...

   

    Damon levantou-se em silêncio, fez sinal para que Dezi o acompanhasse e disse, assim que saíram para o corredor:

    - Dezi, sei muito bem que nunca se pergunta a alguém por que deixou uma Torre, mas poderia me contar, no mais absoluto sigilo, por que saiu de Arilinn?

    O rosto do rapaz assumiu uma expressão sombria.

    - Não quero contar. Por que deveria?

    - Porque preciso de sua ajuda. Viu o estado daqueles homens, sabe que apenas com água quente e ungüentos de ervas pelo menos quatro deles nunca mais voltarão a andar, e para Raimon a morte é inevitável. Portanto, sabe o que tenho de fazer.

    Dezi acenou com a cabeça, e Damon continuou:

    - Sabe também que precisarei de alguém para me monitorar. E se você foi afastado por incompetência, eu não ousaria usá-lo.

    Houve um silêncio prolongado. Dezi olhava para o chão de lajes de pedra cinzenta, enquanto ouviam a harpa tocando e Callista cantando, dentro do Grande Salão:

    Por que estendes meu pai sobre a fria terra?

    Calma, criança, calma! Ele foi morto pela lança do inimigo...

    - Não foi por incompetência - assegurou Dezi. - E não sei direito por que decidiram que eu deveria ir embora.

    Ele parecia sincero, e Damon, com força telepática suficiente para saber quando ouvia uma mentira, concluiu que devia ser verdade.

    - Ou talvez... - Dezi levantou os olhos, com um brilho de fúria. - ...soubessem que eu nem mesmo era um nedestro reconhecido, não era bastante bom para a preciosa Arilinn, onde o sangue e a linhagem representam tudo.

    Damon achava que não, que as Torres não funcionavam assim. Mas não tinha certeza. Arilinn não era a mais antiga das Torres, mas era a mais orgulhosa, alegando mais de novecentas gerações de puro sangue Comyn, e alegando também que sua primeira Guardiã fora uma filha do próprio Hastur. Damon não acreditava nisso, pois bem pouco da história sobrevivera a Era do Caos.

    - Ora, Dezi, bastaria passar pelo Véu para saber se você era Comyn, ou com sangue Comyn, e acho que não se importariam com mais nada.

    Mas ele sabia que nada do que dissesse poderia superar a vaidade ferida do rapaz.; e a vaidade era um defeito perigoso para um técnico de matriz.

    Os círculos da Torre dependiam muito do caráter da Guardiã. Leonie era uma mulher orgulhosa. Já o era na ocasião em que Damon a conhecera, com toda a arrogância de uma Hastur, e não mudara nos anos transcorridos desde então. Talvez fosse pessoalmente intolerante com a ausência de linhagem em Dezi. Ou talvez ele tivesse razão, e simplesmente não gostassem de sua pessoa... De qualquer forma, não fazia diferença agora. Damon não tinha opção. Andrew era um poderoso telepata, mas sem qualquer treinamento. Dezi, mesmo tendo passado apenas meio ano na Torre, contaria com o meticuloso treinamento nos elementos básicos da ciência.

    - Pode me monitorar, Dezi?

    - Experimente. Damon deu de ombros.

    - Muito bem.

    No salão, a voz de Callista se elevava, num lamento:

    - O que foi esse grito que cortou o ar?

    - Escutem, escutem!

    Um lamento do mais sinistro desespero, A maldição de uma viúva, a oração de um órfão... Dom Esteban explodiu, berrando a plenos pulmões:

    - Pelos infernos de Zandru, por que uma canção tão triste, Callista? Choro e lamento, morte e desespero. Não estamos num funeral! Cante algo mais alegre, menina!

    Houve um som estridente, como se a mão de Callista tocasse uma dissonância na harpa, antes que ela dissesse, a voz um pouco trêmula:

    - Lamento, pai, mas não estou com o menor ânimo para cantar. Peço que me desculpe.

    Damon sentiu o contato em sua mente, rápido e hábil, resguardado com tanta perfeição que não saberia de quem era, se não estivesse observando Dezi naquele momento. Era uma sondagem de leve, mas profunda, e Dezi disse:

    - Você tem um dente torto lá atrás. Isso o incomoda?

    - Não, desde que eu era menino - respondeu Damon. - Mais profundo?

    O rosto de Dezi se tornou vazio, com um olhar vidrado, e depois de um momento ele murmurou:

    - Seu tornozelo... o tornozelo esquerdo... quebrou em dois lugares quando era bem jovem. Deve ter levado bastante tempo para se recuperar. Há cicatrizes de fragmentos de ossos. Tem uma fissura na terceira... ou na quarta costela. Pensou que era apenas uma equimose, e não disse nada a Ferrika quando voltou da guerra contra os homens-gatos. Há uma pequena cicatriz... vertical, com cerca de dez centímetros de comprimento... na batata da perna. Foi causada por um instrumento afiado, não sei se uma faca ou uma espada. Sonhou ontem à noite... Damon balançou a cabeça, rindo.

    - Já chega. Você tem condições para me monitorar.

    Como haviam permitido, em nome de Aldones, a partida de Dezi? Ele era um telepata de incontestável habilidade. Com três anos de treinamento em Arilinn, teria se igualado aos melhores nos Domínios! Dezi captou o pensamento e sorriu. Damon experimentou outra vez um momento de apreensão. Não fora falta de competência, nem por falta de confiança. Teria sido então por sua vaidade?

    Ou apenas ocorrera um conflito de personalidades, alguém ali que se sentira incapaz ou relutante em trabalhar com o rapaz? Os círculos da Torre eram muito íntimos, um vínculo mais profundo que o de amantes ou parentes, a tal ponto que a menor dissidência emocional poderia se transformar numa tortura. Damon sabia que a personalidade de Dezi podia ser agressiva e cáustica - ele era jovem, sensível, ofendia-se com facilidade -, e era possível que simplesmente ele tivesse chegado no momento errado, para um grupo já tão íntimo que não podia mais se adaptar a alguém de fora, e sem precisar de fato de mais uma pessoa para efetuar o esforço dos ajustamentos pessoais necessários.

    Talvez nem fosse culpa de Dezi, refletiu Damon. Talvez, se ele comprovasse ser tão bom assim, outra torre pudesse aceitá-lo. Havia uma extrema necessidade de telepatas naturais fortes, e Dezi tinha um dom muito grande para ser desperdiçado. Damon percebeu o sorriso de satisfação do rapaz e compreendeu que Dezi captara o pensamento, mas isso não tinha qualquer importância. Um pensamento reprovador momentâneo, de que a vaidade era um defeito perigoso para um técnico de matriz, sabendo que Dezi também o captaria, parecia suficiente.

    - Muito bem, Dezi, vamos tentar. Não há tempo a perder. Acha que pode trabalhar comigo e com Andrew?

    - Andrew não gosta de mim - murmurou Dezi, soturno.

    - Acho que é muito precipitado na conclusão de que as pessoas não gostam de você.

    Damon falou gentilmente, sabendo que já era bastante ruim que Dezi soubesse que só o escolhera porque Callista recusara. Mas não podia ignorar o sofrimento de Callista. E Ellemir não deveria tentar aquele trabalho, logo no início da gravidez. Afinal, a gravidez era a única coisa que podia interromper o trabalho de uma técnica de matriz, já que acarretava perigos para o feto. E nos últimos dois dias, em seus contatos com Ellemir, Damon começara a captar as primeiras e tênues emanações do cérebro em desenvolvimento, ainda informe, mas presente, real, o suficiente para fazer com que a criança se tornasse uma entidade separada.

    Ele pensou que devia haver uma maneira de compensar isso, proteger a criança em desenvolvimento. Mas não conhecia nenhum, e de jeito nenhum faria experiência com sua própria criança! Portanto, teria de ser apenas ele, Andrew e Dezi.

    Um pouco mais tarde, quando Damon lhe expôs o problema, Andrew franziu o rosto e comentou:

    - Não posso dizer que me sinto feliz pela perspectiva de trabalhar com Dezi.

    Mas à censura de Damon, ele admitiu que não era digno de um adulto guardar um ressentimento contra um adolescente, um rapaz que se encontrava embriagado no momento da ofensa.

    - E Dezi é imaturo para a sua idade - insistiu Damon. - Se fosse reconhecido como nedestro, teria responsabilidades para acompanhar os privilégios, desde o início. Um ou dois anos com os cadetes fariam uma grande diferença, ou talvez um ano da rigorosa disciplina monacal em Nevarsin. A culpa é nossa, não de Dezi, que ele tenha se tornado o que é.

    Andrew não fez mais protestos, mas ainda se sentia preocupado. Independentemente de quem fosse a culpa, não lhe agradava trabalhar com o rapaz, se Dezi tinha defeitos de caráter.

    Mas Damon devia saber o que fazia. Andrew observou-o a iniciar os preparativos, recordando a ocasião em que aprendera a usar uma matriz. Callista integrara o círculo de mentes, embora ainda fosse prisioneira nas cavernas de Corresanti e ele nunca a tivesse contemplado com os olhos físicos. E agora que ela não era mais uma Guardiã, tornara-se sua esposa...

    Damon levantou sua matriz entre as mãos e declarou em voz alta, com um sorriso irônico:

    - Sempre tenho medo de fazer isso fora de uma Torre. Jamais perdi o temor de que não é seguro. Um medo absurdo, talvez, mas concreto.

    - Fico contente     por saber que você também sente medo, Damon - murmurou Dezi. - É bom saber que não sou o único.

    A voz trêmula, Damon acrescentou:

    - Creio que nem se deveria confiar esse tipo de força à pessoa que não tem medo de usá-la. Houve tanto abuso na Era do Caos que Regis Hastur IV determinou que nenhum círculo da matriz deveria usar as grandes telas e canais de comunicação fora das Torres estabelecidas. Claro que a lei não foi feita para um trabalho como este, mas ainda assim, Há todo um senso de... de violar um tabu. - Ele virou-se para Andrew. - Como tratam pés congelados em seu mundo?

    Andrew pensou por um momento.

    - O melhor tratamento é a injeção arterial de estimulantes com acetilcolina ou algo parecido. Talvez transfusão também, mas não sei muita coisa sobre medicina.

    Damon suspirou.

    - Parece que tenho de me empenhar nesse trabalho com mais freqüência do que tencionava. Mas vamos logo começar.

    Ele deixou sua mente mergulhar na matriz, projetou-a para o contato com Andrew. Já haviam feito contato antes, e foi renovado num instante. Por um momento, houve uma presença de Ellemir, tênue, como a lembrança de um beijo, e logo ela se retirou, à advertência de Damon: devia se precaver, por si mesma e pela criança. Callista também se manifestou, um contato ligeiro, com a intimidade antiga, e Andrew apegou-se a ele com a maior ansiedade. Há muito tempo que ela nem sequer tocava em sua mão, e agora se uniam outra vez... e depois, de uma forma abrupta e angustiante, Callista rompeu o contato, desligando-se. Andrew sentiu o vazio e o frio sem o contato de sua mente, sentiu o gosto amargo da frustração. Ficou contente, por um momento, que Dezi ainda não tivesse entrado em contato. E logo Damon o alcançou, Andrew sentiu que Dezi já se integrara no vínculo, teve uma consciência momentânea de sua presença, por trás de uma barreira, uma força firme e fria, como um aperto de mão.

    O vínculo triplo manteve-se por um instante, Damon sentindo os dois homens com os quais deveria trabalhar. Os olhos fechados, como sempre acontecia num círculo, ele viu por trás deles a estrutura azul cristalina das pedras de matriz que os mantinham unidos, amplificando e irradiando as ressonâncias eletrônicas individuais dos cérebros, e mais além a sensação puramente subjetiva dos dois. Andrew era como uma rocha, forte, protetor, e por isso Damon sentiu, com um suspiro de alívio, que sua própria carência de força não tinha importância. Andrew possuía o suficiente para ambos. Dezi era uma precisão esquiva e rápida, uma percepção brilhando aqui e ali, como reflexos de luz saindo de um prisma. Damon abriu os olhos, contemplou-os; era difícil conciliar a presença física com a sensação mental dentro da matriz.

    Dezi, em termos físicos, era a imagem de Coryn, seu amigo há tanto tempo morto, seu irmão jurado. Pela primeira vez, Damon permitiu-se especular quanto seu amor por Ellemir era uma decorrência dessa lembrança, do irmão-amigo que tanto amara quando eram crianças, e cuja morte o deixara na solidão. Ellemir era como Coryn, mas ao mesmo tempo diferente, única... Ele interrompeu o pensamento. Não devia pensar em Ellemir naquele vínculo tão forte, ou acabaria por captá-la telepaticamente, e o fluxo de energia poderia engolfar e deformar o cérebro em desenvolvimento da criança.  Retomou apressado o contato com Dezi e Andrew, passou a visualizar - a criar no nível de pensamento, onde trabalhariam - um muro resistente e inexpugnável, a fim de que nenhuma outra pessoa em Armida fosse afetada por seus pensamentos.

    Quando passarmos a trabalhar com os homens, para curá-los, traremos um a um para trás desse muro, afim de que nada transborde para prejudicar Ellemir ou a criança, nem perturbar a paz de Calista, nem incomodar o sono de Dom Esteban.

    Era apenas um artifício psicológico, Damon sabia, nada como a forte rede elétrico-mental em torno de Arilinn, tão forte quanto a própria muralha que cercava a Torre, impedindo o acesso de intrusos, em corpo ou mente. Mas tinha sua realidade no nível em que trabalhariam: servia para protegê-los de interferências externas e evitar que as pessoas em Armida captassem seus pensamentos, diluindo-os ou distorcendo-os. Também ajudaria a focalizar a cura nos homens que precisavam.

    - Antes de começarmos, vamos deixar bem claro o que faremos - declarou Damon.

    Ferrika tinha alguns desenhos anatômicos bem-feitos. Ela dava aulas de higiene básica para as mulheres nas aldeias, uma inovação que contava com a total aprovação de Damon. Ele tomara emprestado os desenhos que ela usava, descartando os que eram apresentados às mulheres grávidas. Abrindo o desenho da circulação, Damon explicou:

    - Temos de restaurar a circulação e o fluxo de sangue saudável para as pernas e os pés, diluir a linfa congelada e o sangue coagulado e tentar reparar as fibras nervosas danificadas pelo congelamento.

    Andrew, reparando na maneira neutra com que Damon falava, quase como um médico terráqueo descreveria a injeção intravenosa, olhou apreensivo para a matriz entre suas mãos. Não duvidava que Damon poderia fazer tudo o que dissera, e se sentia mais do que disposto a ajudar. Mas não podia deixar de refletir que formavam uma equipe médica inverossímil.

    Os homens continuavam deitados na sala para onde haviam sido transportados. A maioria ainda se encontrava num sono drogado, mas Raimon estava despeito, os olhos faiscando com a febre, corado, sacudido por espasmos de dor. Damon murmurou:

    - Viemos fazer o que pudermos por você, meu amigo.

    Ele descobriu a matriz em suas mãos, e Raimon se encolheu.

    - Bruxaria - balbuciou ele. - Essas coisas são para os Hali'iinyn...

    Damon balançou a cabeça.

    - É uma habilidade que qualquer pessoa com o dom nato pode usar. Andrew não nasceu no Comyn, nem da raça de Cassilda, mas é bastante competente neste trabalho e veio ajudar.

    Os olhos febris de Raimon fixaram-se na matriz. Damon viu seu rosto se contrair em repulsa, e apesar da crescente euforia do contato com a pedra, ainda encontrou suficiente isenção para dizer gentilmente:

    - Não olhe diretamente para a matriz, meu amigo, pois não está treinado para a visão, e vai criar problemas para seus olhos e cérebro.

    O homem desviou os olhos, fazendo um gesto supersticioso. Damon sentiu-se outra vez irritado, mas tratou de se controlar e disse:

    - Tente dormir, Raimon. - Uma pausa, e ele acrescentou: - Dezi, dê a todos outra dose do medicamento para dormir de Ferrika. Se puderem dormir enquanto trabalhamos, não vão interferir com o processo de cura.

    E se dormissem não sentiriam medo, o que sempre podia atrapalhar o trabalho meticuloso e delicado que realizariam.

    Era uma pena que não se pudesse ensinar Ferrika a trabalhar assim, pensou Damon. E se perguntou se a parteira teria um mínimo de laran. Com seus conhecimentos de cura e a capacidade de usar a matriz, Ferrika seria muito valiosa para todas as pessoas na propriedade.

    Era isso o que Callista podia fazer, refletiu Damon, em vez do trabalho estúpido de que qualquer dona-de-casa era capaz!

    Enquanto Raimon engolia o medicamento para dormir e se recostava sonolento no travesseiro, Damon projetou a mente com suavidade e recolheu os fios do contato. Andrew, observando as luzes em sua matriz aumentarem e diminuírem, acompanhando o ritmo de sua respiração, sentiu Damon se projetar, interpor sua percepção entre ele e Dezi. Para Andrew, em termos subjetivos, embora Damon não se mexesse nem tocasse em ninguém, era como se estivesse se apoiando em ambos, com extremo cuidado, para depois baixar sua percepção para o ferido. Andrew pôde sentir a tensão na carne avariada, os vasos sangüíneos obstruídos, o sangue denso nos tecidos dilacerados, distendidos ou flácidos, disformes, como carne congelada e depois degelada. Sentiu a percepção de Damon focalizar isso, sentiu-o procurar, com algo que se podia assemelhar a dedos mentais, os nervos avariados, nas faixas de fibras no tornozelo, nos dedos do pé, na arcada, nos tendões... Não há muito que se possa fazer aqui. Como se fossem os seus próprios dedos tateando, Andrew sentiu os tendões retesados, a maneira como a pressão de Damon os relaxava, os impulsos que percorriam as fibras danificadas. A superfície das fibras nunca se recuperaria por completo, mas outra vez os impulsos as percorreram, a sensação foi restaurada. Damon encolheu-se ao contato da dor nos nervos restaurados. Ainda bem que Raimon tomou o medicamento para dormir; não seria capaz de suportar a dor Se estivesse desperto. Com pulsações delicadas, ritmadas, ele começou a estimular o fluxo de sangue pelas artérias e veias, quase obstruídas pelo sangue denso. Andrew sentiu Damon, concentrado no delicado trabalho nas profundezas das camadas de células, vacilar e hesitar, a respiração entrecortada. Sentiu Dezi se projetar e firmar os batimentos cardíacos de Damon. Sentiu que também se projetava - a imagem em sua mente era a de um rochedo por trás de Damon, permitindo que este apoiasse todo o seu peso - e percebeu que havia alguma coisa ao redor. Muros? Muros largos, cercando-os? tinha alguma importância? Ele se concentrou em transmitir suas forças para Damon, vendo, com os olhos fechados, os pés enegrecidos mudar de cor, devagar, avermelhando, empalidecendo. Damon suspirou, abriu os olhos. Interrompendo o contato, exceto por um tênue fio, ele se inclinou para Raimon, ainda sonolento, encostou as pontas dos dedos em seus pés, com o maior cuidado. A pele enegrecida se desprendia em vários pontos; por baixo, havia uma carne avermelhada, cheia de vergões, mas livre, Andrew sabia, de qualquer infecção.

    - Ele vai sentir muita dor - murmurou Damon, tocando no dedo menor do pé, cuja unha também se soltara, junto com a pele. - Talvez também perca um ou dois dedos; os nervos estavam mortos, e não pude fazer nada. Mas ele vai se recuperar e terá o uso dos pés e das mãos... e era o que se encontrava em piores condições.

    Damon contraiu os lábios, solene com a responsabilidade. Compreendeu, envergonhado, que quase, em algum lugar do seu íntimo, torcera pelo fracasso. Era demais, pensou ele, aquele tipo de responsabilidade. Mas podia fazer o trabalho, e havia outros homens correndo o mesmo perigo. Agora que sabia que podia salvá-los... Virou-se para Dezi e Andrew e disse, com a voz deliberadamente ríspida:

    - O que estão esperando? temos de passar logo para os outros.

    O contato se restabeleceu em sua plenitude. Andrew já adquirira agora a habilidade necessária, sabia exatamente como e quando inundar Damon com sua própria energia quando a do amigo vacilava. Atuavam como uma equipe, e Damon se projetou para as pernas e os pés do segundo homem. Andrew, com uma pequena parte de sua consciência ainda apartada, sentiu que o muro ao redor aumentava, impedindo a intromissão de qualquer pensamento casual do exterior. Acompanhou o lento progresso de Damon, célula a célula, através das camadas de pele, carne, nervos e ossos, num estímulo gentil, diluindo as obstruções, despertando os tecidos congelados. Era mais eficaz do que o bisturi de um cirurgião, pensou Andrew, mas como era enorme o custo! Houve mais duas incursões por carne congelada e escura, antes que Damon finalmente interrompesse o contato, separando-os. Andrew experimentou a sensação de que escapuliam de um recinto fechado, que transpunham um muro ao redor. Mas os quatro homens dormiam, as pernas e os pés em carne viva, feridos, doloridos, mas sarando. Era a cura, com toda a certeza, sem o risco de infecções, as feridas limpas, que cicatrizariam o mais depressa possível.

    Deixaram os homens dormindo, avisando a Ferrika para mantê-los em permanente observação, e foram para o salão inferior. Damon cambaleou, e Andrew se adiantou para ampará-lo, fisicamente, sentindo que repetia, no meio físico, o que fizera tantas vezes durante o longo contato psíquico. Não pela primeira vez, teve a impressão de que Damon, embora muito mais velho na idade, era de certa forma o mais jovem, quem precisava ser protegido.

    Damon sentou num banco, exausto, encostado em Andrew, com o esgotamento que o trabalho com a matriz sempre acarretava. Pegou pão e frutas que haviam ficado na mesa, depois da refeição vespertina, e comeu com uma fome voraz, sentindo que o corpo exaurido precisava de uma renovação da energia. Dezi também começou a comer.

    - Você deve comer também, Andrew - disse Damon. - O trabalho com a matriz esgota de tal forma suas energias que vai acabar desfalecendo se não comer.

    Ele quase esquecera aquela terrível sensação de esgotamento, como se a própria vida tivesse se esvaído. Recebera em Arilinn explicações técnicas sobre os fluxos de energia no corpo, os canais que transmitiam tanto a força física quanto a psíquica. Mas sentia-se cansado demais para lembrá-las.

    - Não estou com fome - murmurou Andrew. Damon insistiu, com a insinuação de um sorriso:

    - Está, sim, apenas ainda não sabe disso. - Ele estendeu a mão para impedir, quando Dezi fez menção de servir-se de um copo de vinho. - Não, isso é perigoso. Beba água, ou vá buscar leite ou sopa na cozinha. Mas nada de bebida alcoólica depois de um trabalho assim. Meio copo seria suficiente para deixá-lo tão embriagado quanto um monge no festival do Solstício do Inverno!

    Dezi deu de ombros, foi até a cozinha, voltou com um jarro cheio de leite, serviu para os três. Damon disse:

    - Dezi, você esteve em Arilinn, por isso não precisa de explicações, mas Andrew deve saber: tem de comer duas vezes mais que o habitual, por um ou dois dias, e se sentir alguma vertigem, náusea, qualquer coisa diferente, procure-me imediatamente. Dezi, há algum kirizan aqui?

    - Ferrika não usa, e agora que Domenic e eu passamos pela doença do limiar, e Valdir se encontra em Nevarsin, acho que ninguém mais por aqui tem necessidade.

    - O que é kirizan? - indagou Andrew.

    - Uma droga psicoativa usada nas Torres ou pelas famílias de telepatas. Diminui a resistência ao contato telepático, mas também pode ajudar em casos de excesso de trabalho telepático ou de tensões. E alguns telepatas em formação podem ficar doentes na adolescência, com problemas físicos e psíquicos, quando todo o desenvolvimento aflora ao mesmo tempo.

    - Você já passou da idade da doença do limiar, não é mesmo, Dezi?

    - Acho que sim - respondeu o rapaz, desdenhoso. - Superei-a antes de completar quatorze anos.

    - Mesmo assim, depois de ficar tanto tempo longe do trabalho com a matriz, desde que deixou Arilinn, pode ter uma súbita recaída - advertiu Damon. - E ainda não sabemos como Andrew reagirá.

    Teria de pedir a Calista para tentar fazer um pouco de kirizan. Todas as famílias de telepatas deveriam guardar uma porção da droga, para qualquer emergência. Ele largou o copo de leite pela metade. Sentia um cansaço absoluto.

    - Vá descansar Dezi... e pode ter certeza de que você é digno de Arilinn.

    Ele abraçou o rapaz, observou-o se afastar a caminho de seu quarto, ao lado do quarto de Dom Esteban. Torceu para que o velho dormisse a noite inteira, a fim de que Dezi pudesse descansar sem qualquer perturbação.

    Independentemente dos seus defeitos, a verdade é que Dezi cuidava do velho com a mesma dedicação de um filho reconhecido, refletiu Damon. Seria afeição... ou apenas por interesse?

    Ele deixou que Andrew o amparasse, ao subirem a escada, oferecendo uma desculpa pesarosa.

    - Esqueça! - protestou Andrew. - Pensa que não sei que você suportou quase todo o peso do processo de curar

    Assim, Damon deixou que o terráqueo o sustentasse, e pensou: Eu me apoio em você agora, como fiz durante o trabalho com a matriz... Na sala externa das suítes, ele hesitou por um instante.

    - Você não foi treinado na torre, Andrew, e por isso devo avisá-lo sobre mais uma coisa: o trabalho com a matriz... vai deixá-lo impotente por um ou dois dias. Não se preocupe, é apenas temporário.

    Andrew deu de ombros, com um sorriso amargurado. Damon, recordando abruptamente a verdadeira situação entre ele e Callista, compreendeu que um pedido de desculpas só serviria para enfatizar ainda mais a falta de tato de suas palavras. Apenas se perguntou como pudera ser tão obtuso a ponto de esquecer o problema.

    No quarto, ele encontrou Ellemir na cama, meio adormecida, envolta por uma manta branca. Ela soltara as tranças, e os cabelos espalhavam-se como luz vermelha sobre o travesseiro. Enquanto Damon a contemplava, ela sentou na cama, piscou, sonolenta e depois, como sempre acontecia, Ellemir passou do sono para a vigília sem nenhuma transição e estendeu os braços.

    - Oh, Damon, você parece tão cansado! Foi horrível demais? Ele arriou na cama, encostou a cabeça no peito da esposa.

    - Nem tanto. Apenas não estou mais acostumado a esse trabalho... e, no entanto, é tão necessário! Elli... - Damon empertigou-se, fitou-a nos olhos. - Há muitas pessoas morrendo em Darkover, sofrendo, ficando aleijadas, quando isso poderia ser evitado. Não contamos com o tipo de serviços médicos que Andrew diz que os terráqueos possuem. Mas há muitas coisas que um homem... ou uma mulher... poderiam curar através da matriz. Apesar disso, quantos doentes e feridos são levados para as Torres em Arilinn, Neskaya, Dalereuth ou Hali, a fim de serem tratados ali? Que importância os círculos de matriz nas Torres dão a um pobre camponês que ficou com os pés congelados, ou a um humilde caçador que foi atacado pelas garras de um animal ou atingido na cabeça pela patada de um chervine?

    Perplexa, mas tentando acompanhar o pensamento do marido,

    Ellemir disse:

    - Eles têm outras coisas para fazer nas Torres. Coisas importantes. Comunicações. E... e mineração, e várias outras coisas assim. Não teriam tempo para cuidar de ferimentos.

    - É verdade. Mas em toda Darkover, Elli, há muitos homens como Dezi, ou mulheres como você e Callista. Mulheres e homens que não podem, ou não querem, passar suas vidas nas Torres, longe do resto da humanidade. Mas poderiam se dedicar à cura.

    Damon estendeu-se na cama, ao lado de Ellemir, percebendo que se sentia mais cansado do que depois de qualquer batalha em que lutara quando pertencia à Guarda.

    - Não é preciso ser do Comyn, Elli, ou ter um dom extraordinário, para fazer algumas dessas coisas. Qualquer pessoa com um pouco de Laran pode ser treinada para ajudar a curar, mas isso não acontece.

    - Sempre ouvi dizer, Damon... Callista me contou... que é perigoso usar esses poderes fora das Torres.

    - Bobagem! Você é tão supersticiosa assim, Elli? Afinal, já manteve contato telepático com Callista. Achou que foi perigoso?

    - Não - respondeu ela, aflita. - Mas durante a Era do Caos foram feitas tantas coisas terríveis com as grandes teias de matriz, tantas armas devastadoras... formas-de-fogo e criaturas-de-vento, para destruir castelos e derrubar muralhas, criaturas de outras dimensões andando à solta pela terra... que todos decidiram que dali por diante todo trabalho de matriz só poderia ser realizado nas Torres, e mesmo assim apenas com todas as salvaguardas possíveis.

    - Mas esse tempo já passou, Ellemir, e quase Todas aquelas enormes e ilegais armas de matriz foram destruídas, ainda durante a Era do Caos, ou no tempo de Varzil, o Bom. Só porque curei os pés congelados de quatro homens e lhes restaurei a capacidade de andar, acha mesmo que  também  posso  enviar  uma  forma-de-fogo  para  destruir a floresta ou criar um monstro para destruir as colheitas?

    - Claro que não. - Ellemir sentou na cama, estendendo os braços, deite em meus braços, querido, e descanse. Está exausto demais.

    Damon deixou que ela o despisse, no escuro, mas depois continuou a falar, com uma expressão determinada.

    - Há algo de muito errado com o uso que fazemos dos telepatas em Darkover, Elli. Ou eles devem levar vidas resguardadas dentro das Torres, mal podendo ser considerados humanos... sabe que quase fui destruído quando me mandaram embora de Arilinn... ou então devem renunciar a tudo o que aprenderam. Como Callista... que Evanda se compadeça dela! - Ele ainda mantinha um tênue contato com Andrew, que naquele momento contemplava Callista adormecida, com lágrimas ainda no rosto. - Ela teve de renunciar a tudo o que aprendeu, a tudo o que sempre fez. Ela tem medo de fazer qualquer outra coisa. Deve haver um meio, Elli, tem de haver um meio!

    - Damon, Damon, sempre foi assim - murmurou ela, apertando-o entre seus braços. - As pessoas treinadas nas Torres são mais sábias do que nós; devem saber o que fazem quando decidem alguma coisa.

    - Não tenho tanta certeza assim.

    - Seja como for, não há nada que possamos fazer agora, meu querido. Você precisa descansar, acalmar-se, ou vai perturbá-la...

    Ela pegou a mão do marido, encostou-a em seu corpo. Damon, sabendo que era uma distração deliberada, mas disposto a aceitá-la - afinal, Ellemir tinha razão -, sorriu e passou a captar as emanações fortuitas, que ainda não eram pensamentos, da criança por nascer.

    - Acha que é ela?

    Ellemir riu baixinho, na maior satisfação.

    - Não me peça para explicar como sei, mas tenho certeza. Quem sabe uma pequena Callista?

    Damon pensou: Espero que ela tenha uma vida mais feliz. Não gostaria de ver a mão de Arilinn pousar sobre uma filha minha... E foi nesse instante que ele teve um lampejo de precognição, vendo uma mulher esguia, de cabelos vermelhos, na túnica escarlate de uma Guardiã de Arilinn... Ela rasgou a túnica de cima a baixo, jogou-a para o lado... Damon piscou os olhos, aturdido. A imagem desaparecera. Precognição? Ou teria sido uma projeção sua, uma alucinação, nascida de sua apreensão? Enlaçando a esposa e a filha, ele tentou esquecer tudo isso, pelo menos por enquanto.

   

    Os homens congelados estavam se recuperando, mas, com tanta gente de cama, uma parte do trabalho físico teve de ser assumida por Andrew, e até Damon dava uma ajuda de vez em quando. O tempo melhorara um pouco, mas Dom Esteban disse que era apenas uma trégua, antes que as verdadeiras tempestades de inverno chegassem das Hellers, deixando os contrafortes cobertos por uma profunda camada de neve durante meses.

    Damon se ofereceria para viajar com Andrew até Serrais e trazer alguns homens de lá, para trabalharem em Armida durante o inverno e ajudarem nas colheitas no início da primavera. A viagem duraria mais de dez dias. Faziam os planos no Grande Salão de Armida naquela manhã. O enjôo matutino de Ellemir já desaparecera, e ela se encontrava na cozinha, como sempre, supervisionando o trabalho das mulheres. Calista sentava ao lado do pai, e subitamente se empertigou, com uma expressão apreensiva, e murmurou:

    - Oh, Elli, Elli... oh, não!

    Antes mesmo que ela pudesse se levantar, Damon já derrubara sua cadeira, e corria para a cozinha, onde soaram naquele momento gritos de consternação. Dom Esteban resmungou:

    - O que há de errado com essas mulheres?

    Mas ninguém lhe prestava atenção. Callista também correra para a cozinha. Depois de um instante, Damon voltou apressado e chamou Andrew.

    - Ellemir desmaiou. Não quero que nenhum estranho a toque agora. Pode carregá-la?

    Ellemir estava caída no chão da cozinha, cercada por um bando de mulheres aturdidas e desconsoladas. Damon gesticulou para que elas se afastassem, e Andrew suspendeu Ellemir no colo. A palidez da moça era assustadora, mas Andrew nada sabia sobre mulheres grávidas, e calculou que um desmaio assim não era tão alarmante.

    - Leve-a para o quarto, Andrew. Vou chamar Ferrika.

    Enquanto Andrew punha Ellemir na cama, Damon chegou com a parteira. Ele segurou as mãos da esposa, entrou em contato mental com ela. Procurou pela emanação tênue e informe da criança. Sentindo em seu próprio corpo os espasmos de dor que sacudiam Ellemir, ele compreendeu, angustiado, o que estava acontecendo e suplicou para Ferrika:

    - Não pode fazer alguma coisa?

    - Farei tudo o que puder, Lorde Damon.

    Enquanto a parteira se inclinava, os olhos de Damon se encontraram com os de Callista, marejados de lágrimas.

    - Ellemir não corre perigo, Damon - murmurou ela. - Mas já é tarde demais para o bebê.

    Ellemir apertou as mãos de Damon.

    - Não me deixe! - suplicou ela.

    - Não, amor, não a deixarei. Permanecerei ao seu lado.

    Era esse o costume: nenhum telepata Comyn dos Domínios deixava a esposa sozinha enquanto ela esperava uma criança sua, nem se abstinha de partilhar sua provação. E agora ele precisava fortalecer Ellemir para a perda, não para a alegria. Reprimindo o seu pesar angustiado, Damon ajoelhou-se junto da cama, abraçou Ellemir, aninhando-a contra seu peito.

    Andrew descera para falar com Dom Esteban, sem nada para informar, exceto que Damon e Callista estavam com Ellemir e haviam chamado Ferrika. Ele sentiu a mortalha que assentara sobre a propriedade, durante todo aquele dia. Até as criadas se agrupavam em sussurros assustados. Andrew tinha vontade de procurar Damon, tentar fortalecê-lo, acalmá-lo, mas o que podia fazer ou dizer? Uma ocasião, levantando os olhos para a escada, avistou Dezi vindo do salão exterior.

    - Como está Ellemir? - perguntou o rapaz. O ressentimento de Andrew transbordou.

    - Como se você se importasse!

    - Não desejo qualquer mal a Ellemir - murmurou Dezi, estranhamente contido. - Ela é a única pessoa aqui que sempre foi decente comigo.

    Ele virou as costas e se afastou, e Andrew ficou com a impressão de que o rapaz também se encontrava à beira das lágrimas.

    Damon e Ellemir sentiam-se tão contentes com o bebê, e agora acontecia isso! Andrew especulou, angustiado, se o seu próprio azar não seria contagioso, se o problema de seu casamento não contaminara de alguma forma o outro casal. Compreendendo que isso era uma insanidade absoluta, ele desceu para a estufa e tentou se distrair da aflição dando ordens aos jardineiros.

    Horas depois, Damon saiu do quarto em que Ellemir estava, adormecida agora, a dor e o desespero esquecidos graças a uma poção para dormir de Ferrika. A parteira, parando por um momento ao seu lado, disse gentilmente:

    - Lorde Damon, é melhor ter acontecido agora do que a pobre criança viver até o parto e nascer deformada. A misericórdia de Avarra assume estranhas formas.

    - Sei que você fez tudo o que podia, Ferrika.

    Mas Damon tratou de se afastar, muito tenso, não querendo que a mulher o visse chorar. Ferrika entendeu a situação e desceu a escada, sem dizer mais nada. Damon seguiu para o salão, quase às cegas, consternado com a necessidade de contar a Dom Esteban. Por instinto, encaminhou-se para a estufa, onde encontrou Andrew. Ao vê-lo, Andrew se adiantou e indagou:

    - Como está Ellemir? Não corre mais qualquer perigo?

    - Acha que eu estaria aqui se ela corresse algum perigo?

    Damon arriou num caixote, cobriu o rosto com as mãos, deu vazão à sua dor. Andrew ficou de pé ao seu lado, a mão no ombro do amigo, tentando sem palavras transmitir algum apoio a Damon, o conhecimento de toda a sua compaixão.

    - O pior de tudo é que Elli acha que me falhou, que não foi capaz de conduzir nossa filha sã e salva para a vida - murmurou Damon, depois de um longo momento, erguendo o rosto desconsolado. - Se culpa existe, é toda minha, que a deixei cuidar desta casa enorme sozinha. Minha, de qualquer forma! Somos parentes muito próximos, primos em dobro, e num parentesco assim há com freqüência uma herança de morte no sangue. Eu nunca deveria ter casado com ela! Claro que eu a amo, e amo muito, mas sabia que ela queria ter filhos, e deveria ter imaginado que não era seguro, já que somos parentes tão próximos... Não sei se terei coragem de deixá-la tentar outra vez.

    Damon finalmente se acalmou um pouco, levantou-se, exausto, e murmurou:

    - Tenho de voltar agora. Quando ela acordar, vai me querer ao seu lado.

    Pela primeira vez desde que Andrew a conhecera, ela parecia ter toda a sua idade. E invejara a felicidade de Damon! É verdade que Ellemir era jovem, poderiam ter outros filhos... mas o que seria de todo aquele sentimento de culpa?

    Mais tarde, ele encontrou Callista no pequeno dispensário de chão de pedra, os cabelos envoltos pelo lenço desbotado que ela usava para evitar que ficassem impregnados com o cheiro das ervas. Callista fitou-o, e ele constatou que seu rosto ainda exibia os vestígios de lágrimas. Ela teria partilhado aquela provação com a irmã gêmea? Mas sua voz tinha a calma remota que ele aprendera a esperar de Callista e que de alguma forma deixou-o abalado agora.

    - Estou preparando uma mistura para diminuir a hemorragia; precisa ser feita na hora, ou não é eficaz, e Ellemir precisa tomá-la a intervalos de poucas horas.

    Ela esmagava algumas folhas cinzentas num pequeno pilão. Pôs num vidro de formato cônico, despejou por cima um líquido incolor, virou sobre um filtro de pano.

    - Pronto. Agora tenho de deixar filtrar, antes de continuar. - Callista virou-se para ele, fitou-o nos olhos. - Mas Helli... será que ela vai se recuperar? E mais tarde poderá ter outras crianças?

    - Acho que sim.

    Andrew queria abraçá-la, confortá-la pela dor que partilhava com a irmã gêmea. Mas não ousava nem mesmo tocar em sua mão. Tremendo de frustração, ele virou-se.

    Minha esposa. E nunca sequer a beijei. Damon e Ellemir têm o seu pesar partilhado; o que posso partilhar com Callista? Gentilmente, percebendo a angústia nos olhos dela, Andrew murmurou:

    - Meu amor querido, será mesmo uma tragédia tão grande assim? Afinal, ela não perdeu um bebê de verdade. Nem mesmo uma criança prestes a nascer. Não era apenas um feto? Como pode ser tão sério?

    Ele não estava preparado para o horror e a fúria que suas palavras desencadearam. O rosto de Callista ficou branco, os olhos ardiam como a chama por baixo da retorta.

    - Como pode dizer uma coisa dessas? - sussurrou ela. - Como se atreve? Não sabe que por duas vezes em dez dias Damon e Ellemir estiveram em contato com... com a mente da criança, que passaram a conhecê-la como uma presença autêntica, sua própria filha?

    Andrew se encolheu diante de toda aquela fúria. Nunca pensara nisso, que numa família de telepatas uma criança por nascer seria com certeza uma presença. Mas tão cedo assim? Tão depressa? E que tipo de pensamentos podia ter um feto que mal completara um terço da gravidez... Mas Callista captou o desdém nesse pensamento. Tornou a fitá-lo, o corpo sacudido pela raiva.

    - Quer dizer então que não seria uma tragédia se nosso filho... ou filha... por acaso morresse antes de ter forças suficientes para viver fora do meu corpo? - Sua voz tremia. - Será que não há nada real que você possa ver, Terranan?

    Andrew levantou a cabeça para uma resposta irada: Parece que é mais provável que nunca venhamos a saber; afinal, tudo indica que você não me dará uma criança, do jeito como estão as coisas agora. Mas o rosto pálido e angustiado de Callista deteve-o. Não podia responder ao insulto com insulto. Aquele impensado Terranan o magoara, mas jurara que nunca tentaria apressá-la, nunca a submeteria à menor pressão. Reprimiu as palavras iradas, mas percebeu, pela consternação no rosto de Callista, que ela as ouvira mesmo assim.

    Claro. Ela é uma telepata. O insulto que eu não falei para ela foi tão real quanto se o tivesse gritado.

    - Callista, minha querida, sinto muito - sussurrou ele. - Perdoe-me. Não tive a intenção...

    - Eu sei.

    Ela tropeçou ao seu encontro, encostou-se nele, a cabeça vermelha comprimida contra seu peito. E ficou ali, tremendo toda, dentro do círculo de seus braços.

    - Oh, Andrew, Andrew, como eu gostaria que pudéssemos ter isso. - Callista soluçava alto. Andrew limitou-se a enlaçá-la, não se atrevendo a fazer qualquer movimento. Sentia-a tensa, sensível, como algum passarinho do bosque que voara ao seu encontro, mas tornaria a partir a qualquer palavra ou movimento incauto. Depois de um momento, os soluços se aquietaram, e foi o rosto antigo, resignado, que se levantou para fitá-lo. Ela afastou-se, tão gentilmente que ele mal se sentiu abandonado.

    - Olhe, todo o líquido já filtrou. Preciso acabar o medicamento que estou preparando para minha irmã.

    Ela encostou de leve as pontas dos dedos nos lábios de Andrew, o gesto antigo. Ele beijou-as, compreendendo que, de uma estranha maneira, a briga os aproximara ainda mais.

    - Quanto tempo mais? Em nome de todos os Deuses ao mesmo tempo, por quanto tempo mais poderemos continuar assim? - E no momento mesmo em que o pensamento aflorava em sua mente, ele percebeu que não podia ter certeza se era seu ou de Callista.

    Três dias depois, Andrew e Damon deixaram Armida, como planejado, a caminho de Serrais. Ellemir estava fora de perigo, e não havia mais nada que a presença de Damon pudesse fazer por ela. Nada, Damon sabia, podia ajudar Ellemir agora, a não ser o tempo.

    Andrew sentia-se estranhamente aliviado, embora teria se envergonhado de dizê-lo, por sair de lá. Não percebera como a tensão entre ele e Callista, a aura de sofrimento silencioso, o sufocava em Armida.

    As planícies amplas, com as montanhas distantes, tudo aquilo poderia ser o rancho de criação de cavalos no Arizona, onde Andrew passara a infância. Contudo, bastava abrir os olhos e deparar com o enorme sol vermelho, brilhando como um olho injetado através do nevoeiro da manhã, para saber que não se encontrava na Terra. Era a metade da manhã, mas duas luas pequenas, uma de um violeta-claro, a outra verde-limão, pendiam baixas, além da crista da colina, a primeira quase cheia, a segunda em quarto minguante. O próprio cheiro do ar era estranho, e no entanto aquele planeta era o seu lar agora, e assim continuaria a ser pelo resto de sua vida. Junto com Callista. Com Callista à sua espera. O olho de sua mente conservava a imagem de Callista, o rosto pálido, sorrindo do alto dos degraus, enquanto ele se afastava. Guardava com carinho esse sorriso em sua memória, maravilhado por constatar que ela, apesar de todo o sofrimento que o casamento lhe acarretara, ainda era capaz de sorrir para ele, estender as pontas dos dedos para que as beijasse e desejar uma boa viagem com os deuses, numa língua suave que só agora ele começava a entender:

    - Adelandeyo.

    Damon também se animou, de forma perceptível, à medida que os quilômetros passavam sob os cascos dos cavalos. Os últimos dias haviam marcado em seu rosto rugas que não existiam antes, mas ele não mais parecia tão velho, oprimido pela angústia.

    Desmontaram ao meio-dia para comer uma refeição, amarrando os cavalos para pastarem na relva nova, projetando-se com vigor através do remanescente da última nevasca. Encontraram um tronco seco para sentar, cercado por botões de flores começando a desabrochar, num turbilhão de cores, como se já fosse a primavera. Mas quando Andrew levantou o assunto, Damon respondeu, impassível:

    - Primavera? Pelos infernos de Zandru, não! Nem mesmo estamos em pleno inverno, o que só vai acontecer depois do festival do Solstício. Por que as flores? - Ele soltou uma risada. - Com o tempo que temos aqui, as flores desabrocham sempre que há um dia ou dois de sol e calor. Os cientistas terráqueos têm um termo para isso, adaptação evolucionária. Nas Colinas Kilghard, há apenas uns poucos dias de verão alto, quando não neva, e por isso as flores desabrocham sempre que recebem um pouco de sol. Se acha que parece estranho aqui, deveria conhecer as Hellers e ver as flores e os frutos que crescem em torno de Nevarsin. Não podemos cultivar aqui melões-do-gelo. É  muito quente... e é uma planta das Hellers.

    Damon até tirara a capa de pele, e viajava em mangas de camisa, embora Andrew se mantivesse agasalhado contra o que lhe parecia um dia de frio intenso. Damon abriu o farelo de comida que Calista preparara para a viagem e desatou a rir.

    - Callista...   quase  como  se  pedisse  desculpas...   que  sabe   muito pouco sobre os cuidados domésticos. Mas estamos com sorte, já que ela ainda não aprendeu qual é a comida apropriada para se dar a viajantes!

    Havia uma galinha assada fria, que Damon cortou com a faca que trazia no cinto, e uma rodela de pão, ainda um pouco quente do forno. Andrew não entendeu por que o companheiro rira.

    - Não sei o que é tão engraçado. Callista me perguntou o que eu gostaria de comer durante uma longa viagem, e foi essa a minha sugestão.

    Damon tornou a rir, entregando a Andrew uma porção generosa da galinha assada. Estava flagrante, com temperos que os terráqueos ainda não haviam aprendido a identificar pelo nome.

    - Por algum motivo, talvez apenas pelo costume, os alimentos que as pessoas sempre levam em viagens são o pão duro, carne seca, frutas secas e nozes, coisas assim.

    Ele observou Andrew cortar o pão e fazer um sanduíche com a galinha assada.

    - Parece gostoso. Acho que vou experimentar comer assim. E... as maravilhas continuam!... ela nos deu também maçãs frescas, tiradas do porão.  - Mas que coisa! - Damon soltou outra risada, enquanto mordia com vontade uma coxa da galinha assada. - Nunca me passaria pela cabeça questionar a comida tradicional dos viajantes, e creio que nunca ocorreria a Elli me perguntar o que eu queria comer! Talvez possamos aproveitar algumas idéias novas em nosso mundo!

    Ele ficou sério, imerso em pensamentos, enquanto observava Andrew comer o pão com a carne fatiada. Já tivera pensamentos heréticos sobre o trabalho com a matriz fora das Torres. Deveria haver uma solução. Mas sabia que, se abordasse o assunto com Leonie, ela ficaria horrorizada, tão horrorizada como se estivessem no tempo de Regis IV.

    Leonie soubera que ele usara a matriz, com toda a certeza. Cada matriz legítima sintonizada com um telepata do Comyn era monitorada das grandes telas na Torre de Arilinn. Poderiam identificar Damon por sua matriz, e Dezi também, talvez até mesmo, embora Damon não pudesse ter certeza, Andrew.

    Se alguém estivesse observando. Havia uma escassez de telepatas para trabalhos não-essenciais, como a monitoração das redes de matriz, e por isso era provável que ninguém tivesse percebido. Mas as telas monitoras existiam, e cada matriz em Darkover era legalmente sujeita a controle e fiscalização. Mesmo pessoas como Domenic, que haviam sido testadas pelo Comyn e receberam uma matriz, mas nunca a usaram, podiam ser vigiadas.

    Isso era outro motivo pelo qual Damon achava que não deveriam desperdiçar um telepata como Dezi. Mesmo que sua personalidade não se ajustasse à intimidade de um círculo - e Damon estava disposto a admitir que Dezi era uma pessoa de convivência difícil -, ainda poderiam usá-lo para monitorar uma tela.

    Damon pensou, amargurado, que hoje estava cheio de heresias. Quem era ele para questionar Leonie de Arilinn?

    Ele acabou de comer a coxa de galinha, observando o terráqueo, pensativo. Andrew comia uma maçã e contemplava a cordilheira distante, também com uma expressão pensativa.

    Ele é meu amigo. Contudo, veio para cá de uma estrela tão distante que nem posso vê-la no céu, à noite, e, no entanto, o simples fato de que existem outros mundos como o nosso, por toda parte do universo, vai mudar o nosso mundo.

    Damon olhou para as colinas distantes e pensou: Não quero que nosso mundo mude. Riu desolado de si mesmo. Sentava ali a planejar uma maneira de alterar o uso das matrizes em Darkover, pensando nas maneiras de reformar o sistema das antigas Torres, que guardavam os segredos da velha ciência da matriz de Darkover, protegendo-os de Qualquer interferência externa, uma tradição que se mantinha por gerações.

    - Andrew, por que está aqui, em Darkover? O terráqueo deu de ombros.

    - Vim para cá quase que por acaso. Era apenas um serviço. Até que um dia avistei o rosto de Callista... e aqui fiquei.

    - Não era isso o que eu queria saber. Por que seu povo está aqui? O que a Terra quer com o nosso mundo? Não temos um mundo rico para explorar. Conheço o bastante sobre seu Império para saber que a maioria dos mundos em que ele se instala tem alguma coisa a oferecer. Por que Darkover? Somos um mundo com poucos metais pesados, um mundo isolado, com um clima que eu acho que vocês consideram inóspito. O que os terráqueos realmente querem conosco?

    Andrew cruzou as mãos em torno dos joelhos.

    - Há uma história antiga em meu mundo. Alguém perguntou a um explorador por que decidira escalar uma montanha. E ele respondeu apenas: "Porque a montanha está lá!"

    - Isso não me parece motivo suficiente para construir um espaço-porto.

    - Confesso que também não entendo, Damon. Mas não sou um construtor de impérios. Teria preferido continuar no rancho de papai. Pelo que sei, o importante em Darkover é sua localização. Sabia que a galáxia tem a forma de uma gigantesca espiral?

    Ele pegou um graveto, fez um desenho na neve se derretendo e continuou:

    - Esta é a parte superior da espiral da galáxia, e esta a inferior, e aqui está Darkover, um lugar ideal para o controle do tráfego, transferência de passageiros, entende?

    - Mas as viagens dos cidadãos imperiais de uma extremidade a outra do Império não significam nada para nós.

    Andrew deu de ombros.

    - Sei disso. Tenho certeza de que a Central Imperial teria preferido um mundo desabitado como encruzilhada, e assim não teria de se preocupar com quem vivesse lá. Mas aqui estão vocês, e aqui estamos nós. - Ele percebeu o rosto franzido de Damon e apressou-se em acrescentar: - Não sou eu quem determina a política, Damon. Nem mesmo tenho certeza se a compreendo. Estou apenas repetindo o que me explicaram.

    Não havia qualquer humor na risada de Damon.

    - E eu fiquei surpreso por Callista ter nos dado galinha assada e maçãs frescas como alimentos para a viagem! A mudança é' relativa, eu suponho.

    Ele notou a expressão perturbada de Andrew e esforçou-se a sorrir. Afinal, nada daquilo era culpa de Andrew.

    - Só nos resta torcer para que as mudanças sejam para melhor, como a galinha assada de Callista!

    Damon se levantou, e com Todo o cuidado enterrou os caroços da maçã num pequeno sulco na neve. A dor invadiu-o. Se as coisas fossem diferentes, poderia estar plantando aquela maçã para sua filha. Andrew, com a fantástica sensibilidade que demonstrava de vez em quando abaixou-se ao seu lado, em silêncio, para enterrar também seu resto de maçã. Só depois que tornaram a montar é que ele disse gentilmente:

    - Algum dia, Damon, nossos filhos comerão maçãs dessas árvores. Passaram mais de trinta dias longe de Armida. Em Serrais, levaram algum tempo para encontrar homens aptos que estivessem dispostos a deixar suas aldeias, e talvez suas famílias, para trabalhar na propriedade de Armida por quase um ano. Contudo, não podiam levar muitos homens solteiros, ou haveria um grande distúrbio na vida das aldeias. Damon tentou descobrir famílias que tivessem vínculos de sangue ou adoção com pessoas nas terras de Armida. Havia muitas. Depois, Damon quis visitar seu irmão Kieran e sua irmã Marisela e seus filhos.

    Marisela, uma jovem gentil, meio roliça, parecia-se com Damon, só que tinha cabelos louros em vez de vermelhos. Ela expressou seu pesar pelo aborto de Ellemir. Disse que, se o casal não tivesse melhor sorte dentro de um ano ou dois, deveria pegar uma de suas crianças para adotar, uma oferta que surpreendeu Andrew, mas que Damon encarou como normal.

    - Obrigado, Mari. Pode ser necessário, já que os filhos de primos duplos raramente vingam. Não tenho grande necessidade de um herdeiro, mas os braços de Ellemir estão vazios, e ela se angustia por isso. E não é provável que Callista tenha uma criança em breve.

    - Não conheço Callista muito bem - disse Marisela. - Mesmo quando éramos pequenas, já sabíamos que ela estava destinada à Torre, e por isso não se misturava com as outras. As pessoas são muito intrigantes. Calli tem todo o direito de deixar Arilinn e casar, se essa é sua vontade, mas também é verdade que todo mundo teve a maior surpresa. Sei que Guardiãs de outras Torres já saíram muitas vezes para casar, mas de Arilinn? E Leonie está lá desde que posso me lembrar, desde que nossa mãe pode se lembrar. Pensávamos que ela tomaria o lugar de Leonie. Houve um tempo em que as Guardiãs de Arilinn não podiam deixar seu posto, nem que assim desejassem...

    - Esse tempo já passou, há centenas de anos - respondeu Damon, impaciente.

    Mas Marisela continuou, impávida:

    - Fui  testada por laran em Neskaya, quando tinha treze anos, e uma das garotas me disse que recusaria se quisessem mandá-la para Airilinn, já que todas as Guardiãs ali eram neutralizadas. Não eram mais mulheres, tornavam-se emmascas, como a lenda diz que a filha de Robardin era emmasca e tornou-se mulher pelo amor de Hastur...

    - Contos de fadas! - exclamou Damon, rindo. - Isso não é feito há centenas de anos!

    - Só estou repetindo o que me contaram - disse Marisela, injuriada. - E não resta a menor dúvida de que Leonie parecia muito com uma emmasca, enquanto Callista... Callista é mais magra do que Ellemir, e parece mais jovem, por isso não pode me culpar por pensar que ela talvez nem seja mulher. Mesmo assim, isso não significa que ela não poderia casar, se assim desejasse, embora a maioria não queira.

    - Marisa, minha criança, posso lhe assegurar que a esposa de Andrew não é uma emmasca.

    Marisela virou-se para Andrew e perguntou:

    - Callista já engravidou?

    Andrew riu, balançou a cabeça. Não adiantava se irritar; os padrões de recato diferiam muito entre as culturas; e por que haveria de culpar Marisela, que no final das contas era prima de Callista, por perguntar o que todos queriam saber sobre uma recém-casada? Lembrou o que Damon dissera a respeito de Ellemir e repetiu:

    - Estou contente que ela permaneça por um ou dois anos livre de tais cuidados. Callista ainda é muito jovem.

    Mais tarde, porém, quando ficou a sós com Damon, ele perguntou:

    - O que é uma emmasca?

    - A palavra indicava alguém da antiga raça das florestas. Nunca se misturam com a humanidade agora, mas dizem que há sangue chieri no Comyn, especialmente nas Hellers. Algumas pessoas de Ardais e Aldaran têm seis dedos numa das mãos. Não sei se dá para acreditar... qualquer criador de cavalos sabe que um mestiço é estéril... mas a história é de que existe sangue chieri no Comyn, e que no passado os chieri se misturavam com a humanidade, misturavam seu sangue. Acreditava-se que um chieri podia aparecer como um homem para uma mulher, ou como uma mulher para um homem, sendo as duas coisas, ou talvez nenhuma das duas. Por isso, dizem que antigamente algumas pessoas do Comyn eram em masca, nem homem nem mulher, mas neutras. Isso aconteceu há muito tempo, mas persiste a tradição de que tais pessoas foram as primeiras Guardiãs, que não eram homens, nem mulheres. Mais tarde, quando as mulheres assumiram o encargo de serem Guardiãs, muitas se tornaram emmasca, neutralizadas por uma cirurgia, pois se julgava que era mais seguro para uma mulher trabalhar nas redes se não tivesse o fardo de sua feminilidade. Mas na memória viva... e posso garantir isso com certeza absoluta, pois conheço as leis de Arilinn... nenhuma mulher foi neutralizada, nem mesmo em Arilinn, para trabalhar nas  Torres.  A virgindade de uma Guardiã serve para protegê-la contra os perigos da feminilidade.

    - Ainda não entendo o motivo para isso. Damon explicou:

    - É uma questão de alinhamento nervoso. São os mesmos nervos do corpo que transmitem o laran e o sexo. Lembra que todos ficamos impotentes por dias depois que trabalhamos com as matrizes? Os mesmos canais nervosos não podem transmitir ao mesmo tempo os dois conjuntos de impulsos. Uma mulher não tem essa válvula de segurança em particular. É por isso que as Guardiãs, que devem manipular as mais altas freqüências e coordenar todos os outros telepatas, precisam manter seus canais abertos só para o laran. Se não fosse assim, haveria uma sobrecarga nos nervos, que seriam destruídos. Eu lhe mostrarei os canais algum dia, se estiver interessado. Ou pode interrogar Callista a respeito.

    Andrew não insistiu no assunto. Só de pensar na maneira como Callista fora condicionada, ele sentia uma raiva tão profunda que era melhor nem pensar no problema.

    Foi longa a viagem de volta a Armida, interrompida três vezes pelo mau tempo, que os obrigou a passar a noite em diferentes lugares, às vezes alojados em quartos luxuosos, outras partilhando uma enxerga no chão com os filhos mais jovens da família. Contemplando as luzes de Armida no outro lado do vale, Andrew pensou, com uma estranha percepção, que estava de fato voltando para casa. Achava-se a meia galáxia de distância do mundo em que nascera, mas Armida era o lar para ele, o lugar em que Callista vivia. Especulou se todos os homens, encontrando uma mulher que dava sentido à vida, definiam o lar assim: o lugar em que a amada esperava. Damon, pelo menos, parecia partilhar esse sentimento: mostrava-se tão contente em voltar a Armida quanto ficara, quase trinta dias antes, ao partir. A enorme casa de pedra parecia familiar agora, como se sempre tivesse vivido ali.

    Ellemir desceu correndo os degraus para receber Damon no pátio, deixando que ele a suspendesse do chão, num abraço exuberante. Ela parecia animada e saudável, as faces rosadas, os olhos faiscando. Mas Andrew não tinha tempo para reparar em Ellemir agora, pois Callista o aguardava, no alto dos degraus, imóvel e solene. Quando ela lhe ofereceu um pequeno meio sorriso, significou de certa forma para Andrew muito mais do que toda a alegria transbordante de Ellemir. Callista estendeu as mãos, deixando que ele as levantasse para os lábios, beijasse uma depois da outra; em seguida, com as pontas dos dedos se tocando, ela conduziu-o para o interior da casa. Damon inclinou-se e cumprimentou Dom Esteban com um beijo filial no rosto, virou-se para Dezi, abraçou-o. Andrew, mais contido, limitou-se a fazer uma reverência para o velho. Callista foi sentar ao seu lado, enquanto ele apresentava um relatório da viagem a Dom Esteban.

    Damon perguntou pelos homens que haviam ficado com os pés congelados. Os menos graves já haviam se recuperado, sendo despachados para os cuidados de suas famílias; os mais graves, que só foram curados pela matriz, ainda se achavam em convalescença. Raimon perdera dois dedos do pé direito; Piedro não recuperara a sensação nos dedos externos da mão esquerda; mas nenhum ficara totalmente entrevado, como se temera no início.

    - Continuam conosco - informou Ellemir -, porque Ferrika deve mudar os curativos pela manhã e à noite, passando os óleos curativos. Sabiam que Raimon é um esplêndido músico? - Quase todas as noites ele toca para a gente dançar no salão, todos os criados, até Callista, Dezi e eu... mas agora que vocês voltaram...

    Ela aconchegou-se contra Damon, fitando-o com uma expressão de felicidade. Calista acompanhou o olhar de Andrew e murmurou:

    - Senti saudade, Andrew. Talvez eu não seja capaz de demonstrar como Elli, mas sinto-me mais contente por sua volta do que tenho palavras para descrever.

    Depois do jantar, no grande salão, Dom Esteban sugeriu:

    - Vamos ter alguma música?

    - Devo mandar chamar Raimon? - indagou Ellemir.

    Ela saiu para cuidar disso, e Andrew pediu, num sussurro:

    - Pode cantar para mim, Callista?

    Callista olhou para o pai, solicitando permissão. Dom Esteban gesticulou para que ela cantasse. Pegando a harpa, Callista dedilhou alguns acordes.

    Como surgiu esse sangue em sua mão direita, Irmão, vamos, me conte...

    Dezi deixou escapar um grunhido de protesto. Vendo o seu rosto transtornado, ao voltar para o salão, Ellemir disse:

    - Callista, cante outra coisa! - Ao olhar surpreso e inquisitivo de Andrew, ela explicou: - Dá azar uma irmã cantar essa música na presença de um irmão. Conta a história de um irmão que matou todos os parentes, à exceção de uma única irmã, que foi obrigada a determinar seu banimento.

    Dom Esteban interveio, de cara amarrada:

    - Não sou supersticioso, e nenhum filho meu se encontra neste salão. Cante, Callista.

    Perturbada, Callista inclinou a cabeça sobre a harpa, mas obedeceu:

    - Ao banquete sentamos, trocamos gracejos, Irmã, e só posso dizer, que uma ira frenética dominou minha mão E a todos matei, em total ignomínia.

    - O que será de você agora, meu querido Irmão, vamos, me conte...

    Andrew, vendo os olhos de Dezi embaçados, sentiu uma profunda tristeza pelo rapaz, pelo insulto gratuito de Dom Esteban. Callista procurou os olhos de Dezi, como se pedisse desculpas, mas o rapaz levantou-se e saiu do salão para a cozinha, batendo a porta. Andrew pensou que deveria fazer alguma coisa, dizer algo... mas o quê.?

    Mais tarde, Raimon entrou no salão, apoiado em muletas, e tocou uma melodia de dança. A tensão desapareceu, os homens e as mulheres reunindo-se no centro do salão, os homens formando um círculo externo, as mulheres um círculo interno, pondo-se a dançar em roda e espiral. Um dos homens pôs-se a tocar uma gaita de foles, um pouco diferente do tipo que Andrew conhecia. O instrumento fazia um barulho infernal, e acompanhou dois outros homens na dança da espada. Depois, todos passaram a dançar em casais, embora Andrew notasse que a maioria das moças só dançava umas com as outras. Como Callista estivesse tocando, Andrew fez uma mesura para Ferrika e convidou-a a dançar.

    Ele viu Ellemir e Damon dançando juntos, ela enlaçando-o pelo pescoço, os olhos risonhos fixados nos do marido. Isso o lembrou de suas tentativas de dançar com Callista, contra o costume, no dia do casamento. Não havia nada para impedir agora. Ele saiu à procura de Callista, que entregara a harpa a outra mulher, e agora dançava com Dezi. No instante que os dois se separaram, Andrew adiantou-se, estendendo os braços.

    Calista sorriu na maior alegria e avançou para ele, mas Dezi se interpôs entre os dois. Falou numa voz que não podia ser ouvida a mais de três passos de distância, mas era inequívoca a malícia desdenhosa em seu tom:

    - Ora, ainda não podemos deixar vocês dois dançar, não é mesmo?

    Callista baixou as mãos, a cor se esvaiu de seu rosto. Andrew ouviu um barulho de pratos quebrados, uma taça de vinho se espatifando em algum lugar, sob o tremendo impacto do grito mental de dor de Callista. Era evidente que todos com um mínimo de percepção telepática no salão haviam captado sua indignação. Andrew não parou para pensar. Seu punho acertou com toda a força no rosto de Dezi, lançando-o para trás.

    Dezi levantou-se lentamente. Limpou o sangue que escorria do lábio, os olhos ardendo em fúria. Depois, partiu para cima de Andrew, mas Damon agarrou-o pela cintura, contendo-o à força.

    - Pelos infernos de Zandru, Dezi, você enlouqueceu? - murmurou ele. - Uma rivalidade de sangue por três gerações já foi declarada por um insulto menor do que você lançou contra o nosso irmão.

    Andrew correu os olhos pelo círculo de rostos chocados, até que avistou Callista, cabeça baixa, perdida em sua angústia. Abruptamente, ela levantou as mãos para o rosto, virou-se e saiu correndo do salão. Não soluçou alto, mas Andrew podia sentir, como se fossem vibrações tangíveis, as lágrimas que ela não conseguia derramar.

    A voz irada de Dom Esteban interrompeu o silêncio contrafeito e prolongado:

    - A explicação mais caridosa para isso, Deziderio, é a de que você outra vez bebeu além da conta! Se não agüenta beber como um homem, é melhor se limitar a tomar shallan com o jantar, como fazem as crianças! Peça desculpas ao nosso parente e depois vá se deitar!

    Era mesmo a melhor maneira de encerrar a questão, pensou Andrew. A julgar pelas expressões confusas, a maioria das pessoas no salão nem sequer sabia o que Dezi dissera. Haviam apenas captado a aflição de Callista.

    Dezi murmurou alguma coisa; Andrew não entendeu, mas calculou que era um pedido de desculpas e disse em voz baixa:

    - Não me importo com os insultos que possa me lançar Dezi, mas que tipo de homem eu seria se deixasse que ofendesse minha esposa?

    Dezi virou o rosto para olhar Dom Esteban - a fim de se certificar de que ele não podia ouvir? - e respondeu em tom insidioso:

    - Sua esposa? Será que não sabe que até mesmo um casamento livre só é legal depois da consumação? Ela não é sua esposa, tanto quanto não é minha!

    Ele passou por Andrew e saiu do salão. Toda e qualquer jovialidade acabara. Ellemir agradeceu a Raimon pela música e também se retirou. Dom Esteban chamou Andrew e perguntou se Dezi se desculpara. Evitando seus olhos - o velho era um telepata, como poderia mentir-lhe? - Andrew respondeu que sim, e para seu alívio Dom Esteban não insistiu. O que mais ele poderia fazer? Seria impossível declarar uma rivalidade de sangue contra o meio-irmão de sua esposa, um adolescente embriagado com a propensão para insultos grosseiros.

    Mas seria verdade o que Dezi dissera? Subindo para seus aposentos, ele perguntou a Damon, que balançou a cabeça em negativa, mas com uma expressão perturbada.

    - Não se preocupe com isso, meu caro amigo. Ninguém teria qualquer motivo para questionar a legalidade de seu casamento. Suas intenções são claras, e ninguém dá importância aos detalhes técnicos da lei.

    Mas Andrew sentiu que Damon não convencera nem a si próprio. Ouviu Callista chorando no quarto. Damon também ouviu.

    - Ah, como eu gostaria de torcer o pescoço de Dezi por isso! Andrew sentia a mesma coisa. Com umas poucas palavras insidiosas, Dezi tirara toda a alegria do reencontro.

    Callista já parara de chorar quando ele entrou no quarto. Estava de pé diante da penteadeira, abrindo lentamente a travessa em formato de borboleta na nuca. Os cabelos caíram pelos ombros. Ela virou-se e disse, umedecendo os lábios, como se fosse um discurso que ensaiara muitas vezes:

    - Andrew, sinto muito... lamento que tenha sido exposto a uma situação dessas... A culpa é minha.

    Ela sentou diante da penteadeira, pegou a escova de cabo de marfim, passou-a devagar pelos cabelos. Andrew ajoelhou-se ao seu lado, desejando desesperadamente poder abraçá-la e confortá-la.

    - Sua culpa, meu amor? Como pode ser culpada pela maldade daquele rapaz miserável? Não vou lhe dizer para esquecer... sei que não pode... mas não deixe que isso a perturbe.

    - Mas a culpa é mesmo minha. - Até pelo espelho, ela evitava os olhos de Andrew. - Por causa do que eu sou. É minha culpa que tudo o que ele disse... seja verdade.

    Andrew pensou, angustiado, na maneira com que Ellemir se aninhara nos braços de Damon, no jeito como ela o entrançara pelo pescoço, ao dançarem.

    - Não posso mentir para você, Calli. Não é fácil. Não vou fingir que estou gostando da espera. Mas fiz uma promessa, e não estou me queixando. Não se angustie mais, amor.

    Ela ergueu o queixo, numa atitude obstinada.

    - Não posso permitir que continue assim. Será que não entende que você... sua necessidade dói em mim da mesma forma, porque também o quero, e não posso, não me atrevo... Andrew, preste atenção. Não, não diga nada, deixe-me acabar. Lembra o que lhe pedi no dia em que casamos? Que, se fosse muito difícil para você, deveria... deveria arrumar outra?

    Ele franziu o rosto para Callista, pelo espelho, contrariado.

    - Pensei que tivéssemos acertado essa questão de uma vez por todas, Callista. Em nome de Deus, acha mesmo que eu poderia me interessar por qualquer das criadas ou outra serviçal?

    Será que Callista se incomodara por ele ter dançado com Ferrika naquela noite? Será que ela...

    - Não - murmurou Callista, balançando a cabeça. - Mas se fizesse alguma diferença... Conversei com Ellemir a respeito... e ela me disse que está disposta.

    Angústia e consternação se misturaram com as emoções de Andrew.

    - Fala sério?

    Era sério. O rosto solene de Callista dizia isso e além do mais ele sabia que sua esposa não seria capaz de brincadeiras desse tipo.

    - Ellemir? Ora, ela seria a última... sua própria irmã, Callista! Como eu poderia fazer uma coisa dessas a você?

    - Acredita que me sinto feliz por vê-lo tão angustiado, por saber que um pirralho como Dezi pode envergonhá-lo dessa maneira? E como eu poderia ter ciúme de minha própria irmã?

    Ele fez um gesto de repulsa, e Callista estendeu a mão para impedi-lo de falar.

    - Não diga nada, Andrew. Escute primeiro. É o nosso costume. Se fosse um dos nossos, aceitaria como um fato normal que minha irmã e eu... o partilhássemos assim. Mesmo que as coisas fossem... como deveriam ser entre nós, se surgisse uma ocasião em que eu ficasse doente, grávida ou apenas... apenas não o desejasse... É um costume muito antigo. Não me ouviu cantar a Balada de Hastur e Cassilda? Até mesmo essa balada conta como Camilla tomou o lugar de sua breda nos braços do Deus, e com isso acabou morrendo. Foi assim que a Abençoada Cassilda sobreviveu à traição de Alar, para gerar o filho do Deus...

    A voz de Callista definhou. Andrew disse, incisivo:

    - Esse tipo de coisa pode dar certo nas baladas antigas e nos contos de fadas, mas não na vida real.

    - Nem mesmo que eu quisesse, Andrew? Eu me sentiria menos culpada, pois assim não pensaria que cada dia adicional de protelação aumenta o seu... o seu sofrimento.

    - Por que não deixa que eu me preocupe com isso? Não precisa se sentir culpada.

    Ela virou o rosto, cansada e derrotada. Levantou-se, deixando os cabelos soltos cair até a cintura, separou-os lentamente, para fazer as tranças. E murmurou, a voz trêmula de emoção:

    - Não conseguirei suportar por mais tempo.

    - Então cabe a você acabar com essa situação, Callista.

    Andrew pegou uma mecha de cabelos, comprimiu contra os lábios, saboreando a textura, a delicada fragrância. Sentiu-se tonto ao contato. Prometera que nunca tentaria apressá-la. Mas por quanto tempo, por quanto tempo...?

    - O que posso lhe dizer, minha querida? O pensamento ainda é tão assustador para você, mesmo agora?

    Ela balbuciou, desamparada, desesperada:

    - Sei que não deveria ser. Mas tenho medo... acho que ainda não estou preparada...

    Andrew abraçou-a, com extrema gentileza, e disse, quase num sussurro:

    - Como poderá saber, Callista, a menos que tente? Não quer deitar ao meu lado? Nada mais do que isso... juro que não lhe pedirei qualquer coisa que não esteja disposta a me dar.

    Ela hesitou, retorcendo uma mecha dos cabelos.

    - Não... não será pior para você, se eu decidir que... não posso... ainda não estou pronta?

    - Preciso fazer um juramento solene? - Não confia em mim, amor?

    Calista exibiu um sorriso angustiado.

    - Não é em você que não confio, meu marido.

    As palavras deixaram Andrew com um aperto na garganta.

    - Nesse caso...

    Ele a mantinha dentro do círculo folgado de seus braços. Depois de um longo momento, Callista acenou com a cabeça, de forma quase imperceptível. Andrew conduziu-a para a cama, ajeitou-a sobre os travesseiros.

    - Se é assim que se sente, minha querida, não é prova de que o momento chegou? Prometo que serei gentil com você...

    Ela sacudiu a cabeça, sussurrando:

    - Oh, Andrew, se ao menos fosse tão simples assim!

    Seus olhos se encheram de lágrimas, que escorreram pelas faces. Subitamente, ela enlaçou-o pelo pescoço.

    - Pode fazer uma coisa por mim, Andrew? Algo que talvez não queira fazer? Promete, Andrew?

    Ele respondeu, tremendo de amor:

    - Não posso imaginar qualquer coisa neste mundo ou no outro que eu não faria por você, Callie. Minha querida, meu tesouro, qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que torne tudo mais fácil para você.

    Callista tremia da cabeça aos pés.

    - Pois então me deixe inconsciente. Possua-me pela força, desta vez, enquanto eu não puder resistir...

    Andrew recuou, fitando-a com imenso horror. Por um momento, a repulsa foi tão forte que não conseguiu falar. Ao final, balbuciou:

    - Você deve estar louca, Callista! Em nome de Deus, como eu poderia fazer uma coisa dessas com qualquer mulher? E muito menos com você!

    Ela demonstrou um desespero ainda maior.

    - Você prometeu! Agora, ele ficou furioso.

    - O que você é afinal, Callista? Que tipo de louca, pervertida...

    As palavras lhe faltaram. Fria diante de sua gentileza, será que ela ansiava por sua crueldade? As lágrimas continuavam a escorrer dos olhos de Callista, que captou seu pensamento, e disse:

    - Não, não, nunca pensei que você seria capaz de querer fazer isso. Mas foi a única maneira em que pude pensar... Oh, que Avarra tenha dó de mim... eu deveria ter morrido... deveria ter morrido...

    Callista virou-se, comprimiu a cabeça contra o travesseiro, desatou a chorar com tanto frenesi que Andrew se assustou. Deitou ao seu lado, tentou aninhá-la em seus braços, mas ela se desvencilhou, de um modo violento. Transtornado, numa agonia quase tão grande quanto a de Callista, ele tornou a estender os braços para envolvê-la, acariciou-a, confortou-a, tentando fazer contato com sua mente, mas ela já erguera Uma barreira. Andrew permaneceu assim, em silêncio, deixando-a chorar. Ao final, ela ficou inerte em seus braços, como não acontecia desde que a carregara para fora das cavernas de Corresanti. Ele teve a impressão de que alguma barreira interna se dissolvera, quando Callista murmurou:

    - Você é bom demais para mim, e me sinto muito envergonhada.

    - Amo você, Callista, mas acho que projetou esse bloqueio em sua mente além das proporções. Creio que erramos ao decidir esperar no começo, e quanto mais esperamos, pior se tornou.

    Ele sentiu o contato familiar em sua mente e compreendeu que agora Callista o acolhia de bom grado, como ocorrera naquele tempo de solidão e medo.

    - Eu não tinha medo naquela ocasião, Andrew. Ele declarou, em tom firme e incisivo:

    - A única coisa que mudou desde então foi que passei a amá-la ainda mais.

    Andrew não sabia muita coisa sobre os bloqueios sexuais, mas tinha certeza de que podia haver um estado como a frigidez patológica, e o pouco que ouvira sobre o treinamento de uma Guardiã confirmara sua suspeita do que haviam feito com ela: um condicionamento absoluto contra todo e qualquer tipo de reação sexual. Não era bastante ingênuo para acreditar que uma gentil sedução atenuaria seus medos e a transformaria numa esposa ardente, mas parecia a única maneira de começar. Poderia, no mínimo, tranqüilizá-la.

    Mantinham agora um contato profundo. Ele sentiu que Callista não tinha nenhum vestígio de excitamento físico, tão forte nele, mas sabia que ela ansiava pela intimidade que poderia acabar com aquela fria separação. Apertou-a gentilmente. Andrew a queria, é verdade, mas não relutante. Queria que ela partilhasse a tempestade de paixão que o fazia tremer. Não havia necessidade de palavras. Callista puxou o rosto dele para baixo, encostou os lábios nos seus, com uma tímida hesitação, e Andrew sentiu uma súbita apreensão. Jamais conhecera antes uma mulher inexperiente. Mas podia sentir - o contato mental era cada vez mais profundo - que ela fazia um tremendo esforço para não se retrair. E Andrew experimentou a sensação de que ia explodir de tanta ternura. Callista mantinha-se submissa em seus braços, tocando-o na maior inibição, sem tentar ocultar sua falta de reação. Não era a passividade da ignorância - era evidente que entendia o que Andrew esperava dela -, mas não havia o menor sinal de excitamento físico.

    Ele tornou a se projetar para a mente de Callista. E nesse instante, através da presença familiar que era ela, sentiu uma confusão, algo mais, estranho, mas ao mesmo tempo conhecido, intensamente sexual.

    - Ellemir? Damon e Ellemir? Sua primeira reação foi se retirar, erguer as barreiras mentais. Não sou um voyeur! -, mas depois, hesitante, ainda em forma especulativa, pôde sentir Callista assumir a fusão a quatro, o íntimo vínculo entre eles se restabelecendo, como ocorrera quando todos se uniram na matriz. E pela primeira vez ele sentiu que algo cedia Callista, não apenas mental, mas também físico. Ela se mostrava menos apreensiva, como se a perspectiva se tornasse menos assustadora ao partilhá-la com a irmã gêmea. Enquanto era atraído para o vínculo a quatro, para uma intensa participação no ato de amor do outro casal, Andrew teve a impressão, por um instante, de que tinha Ellemir em seus braços, que era ela quem o abraçava, abrindo-se toda, quente, reagindo... Não, apenas Callista submergira na reação de Ellemir, demonstrando uma tímida surpresa, encontrando segurança no excitamento e prazer da irmã. Ele comprimiu a boca contra a de Callista, num beijo prolongado, explorador, e pela primeira vez sentiu um lampejo de reação genuína. Callista não mais permitia passivamente que ele fizesse o que queria, mas partilhava o beijo com muito ardor.

    Quer dizer que ela precisava daquele tipo de segurança? Ao sussurro premente de Andrew, ela comprimiu-se contra ele, arrebatada. Andrew sabia que ela se fundira agora por completo na consciência de Ellemir, partilhava sua reação, deixando que dominasse seu corpo. Ele podia sentir Damon também, e isso era inquietante, ou seria apenas porque podia também partilhar a reação de Ellemir à estranha e sensual mistura de ternura e violência de seu marido?

    Por um momento, pareceu a Andrew que isso era suficiente, por enquanto, pairar na superfície do abraço arrebatado, não procurar mais, apenas mergulhar naquela percepção múltipla, afetuosa e acolhedora. Mas ainda era muito estranho para ele, e seu próprio corpo se tornou agora exigente, premente, insistia na conclusão. Como um nadador aflorando à superfície em busca de ar, ele ofegou, tentou se desvencilhar do vínculo mental múltiplo, resumir sua percepção a Callista apenas, Callista em seus braços, frágil, vulnerável, totalmente dócil, totalmente submissa.

    E de repente, com uma violência inimaginável, a precária rede de percepção se rompeu. Andrew sentiu uma dor intensa nos órgãos genitais, que pareciam estar queimando, sendo dilacerados. Chocado, gritando, ele ouviu Callista berrar em desespero, num protesto frenético, enquanto era arrancado de seus braços e projetado pelo ar. Sua mente era um turbilhão, uma intensa vertigem. Isso não pode ser real! Ele sentiu a cabeça bater em alguma coisa pontuda, e com luzes vermelhas explodindo como bombas no cérebro, perdeu a consciência.

   

    Ele estava caído no chão.

    Antes de recuperar plenamente a consciência, sentiu isso, e um protesto vago: Como vim parar aqui? Havia uma dor intensa na cabeça, e uma dor ainda pior na virilha. Alguém ergueu sua cabeça. Ele soltou um grunhido de protesto, quando a cabeça explodiu, e abriu os olhos. Damon, nu, ajoelhava-se ao seu lado.

    - Fique imóvel - disse ele, incisivo, quando Andrew fez menção de se levantar. - Deixe-me limpar o sangue de seus olhos, seu idiota!

    A principal emoção de Andrew, prevalecendo até a sobre a dor, era de indignação. Empurrou a mão de Damon com violência.

    - Mas o que veio fazer aqui? Como se atreve? Callista e eu...

    - É isso mesmo, estamos aqui - murmurou Damon, com um meio sorriso amargo. - Como você sabe muito bem. Acha que queríamos ser interrompidos assim? Mas melhor nós do que os criados, correndo para descobrir quem foi assassinado. Em nome do inferno, não ouviu Callista gritar?

    Andrew podia ouvir apenas soluços lamurientos, mas parecia que em algum lugar de sua mente havia percepção, não chegava a ser uma memória, de gritos lancinantes. Fez um esforço para se levantar, ignorando a mão que Damon estendia para ajudá-lo.

    - Callista! Tenho de ficar com ela...

    - Ellemir está com Callista, e não creio que ela queira vê-lo por enquanto. Deixe-me verificar seus ferimentos. - As mãos de Damon eram tão impessoais que Andrew não pôde se sentir ofendido. - Isto dói?

    Doía. A expressão de Damon era solene, mas ele anunciou, depois de apalpar mais um pouco:

    - Acho que não há danos permanentes nos testículos. Não, não tente olhar. Não está familiarizado com os ferimentos, e isto vai parecer pior do que é. Pode ver direito?

    Andrew tentou focalizar e murmurou:

    - As coisas estão um pouco indistintas. Damon tornou a limpar o talho em sua testa.

    - Os ferimentos na cabeça sangram muito, mas acho que este só vai precisar de um ponto ou dois.

    - Não se preocupe com isso. - Os soluços de Callista afloraram na mente de Andrew.

    - Callista está bem. Eu a machuquei?

    - Você a machucou? - disse Ellemir, irritada, por trás dele. - Foi por pouco que ela não o matou!

    - Não a atormente - protestou Andrew, assumindo uma atitude protetora. Tudo o que ele podia se lembrar era da paixão ardente e da violenta interrupção. - O que aconteceu? Um terremoto?

    Callista estava deitada de lado, o rosto inchado de tanto chorar. Nua, parecia tão indefesa que Andrew se sentiu angustiado. Pegou o roupão e estendeu-o sobre o corpo despido com extrema gentileza.

    - Oh, minha querida... o que eu fiz com você? Ela tornou a desatar num choro frenético.

    - Tentei com o maior empenho... e quase o matei, Damon! Pensei que já estava preparada, mas não era verdade! Poderia tê-lo matado...

    Damon afastou os cabelos do rosto molhado de Callista.

    - Não chore mais, breda. Nem todos os ferreiros das forjas de Zandru podem soldar um ovo quebrado. Você não o matou, e isso é a única coisa que importa agora.

    - Está querendo me dizer que Callista...

    - Um erro de julgamento - disse  Damon, calmamente. - Você não deveria ter tentado sem me pedir para monitorá-la primeiro e verificar se ela estava pronta. Pensei que podia confiar nela.

    Andrew ouviu o eco das palavras de Callista em sua mente: "Não é em você que eu não confio." E Damon dizendo: "O homem que estupra uma Guardiã arrisca a própria vida e a sanidade." Era evidente que Callista ainda se achava guardada por um conjunto de reflexos psíquicos totalmente involuntários, reflexos que ela não podia controlar... e que não faziam distinção entre uma tentativa de estupro e o amor mais terno.

    - Eu tenho de dar alguns pontos na testa de Andrew, Elli - avisou Damon. - Fique com Callista, não a deixe sozinha por um momento sequer. - Quando Ellemir o fitou, ele acrescentou, solene: - Compreende como isso é importante?

    Ela acenou com a cabeça. Andrew percebeu subitamente que ela também estava nua e que parecia inconsciente do fato. Depois de um momento, como se sentisse a percepção dele, Ellemir pegou um roupão de Callista, pendurado numa cadeira, e vestiu-o. Tornou a sentar ao lado da irmã, segurando suas mãos.

    - Vamos cuidar desse talho, Andrew - chamou Damon.

    Na outra suíte, ele vestiu um roupão, entrou sem pressa no banheiro para pegar o estojo de primeiros socorros, gesticulou para que Andrew sentasse sob um lampião. Passou no talho uma esponja com algo frio e úmido, que deixou o ferimento entorpecido.

    - Fique quieto, Andrew. Pode doer um pouco.

    Na verdade, doeu mais do que apenas um pouco, mas acabou tão depressa que, antes mesmo que Andrew tivesse tempo de estremecer, Damon já esterilizava a agulha na chama de uma vela e a guardava. Ele serviu um drinque para Andrew, outro para si mesmo. Sentou na frente do amigo, fitando-o com uma expressão pensativa.

    - Se o outro ferimento o incomodar demais amanhã, tome alguns banhos quentes. Mas o que deu em você, Andrew?  Tentar isso agora, sem sequer perguntar...

    - Por que você deveria se intrometer quando...  ou se... durmo com minha esposa?

    - A resposta para isso parece óbvia. Você nos interrompeu num momento crítico, e sabe disso. Eu deveria ter erguido uma barreira, mas pensei que poderia ajudar Callista. Como aconteceu, ambos ficaríamos bastante feridos, se eu não tivesse sido treinado na Torre. Sofri as conseqüências, e por isso é também da minha conta. - Uma pausa, e Damon acrescentou, a voz mais gentil: - Além do mais, gosto muito de Callista... e de você também.

    - Pensei que ela apenas tivesse medo. Porque fora resguardada, protegida, condicionada à virgindade...

    - Pelos infernos de Zandru, como coisas assim podem acontecer? Nós quatro somos telepatas, e nenhum teve o bom senso de sentar para conversar francamente sobre a situação! A culpa é minha. Eu sabia, mas nunca me ocorreu que você pudesse ignorar. Pensei que Leonie tivesse lhe contado; e é evidente que ela, por sua vez, pensou que eu tivesse lhe falado. E tinha certeza de que Callista o avisaria antes que tentasse... ora, o que está feito não pode ser desfeito agora.

    Andrew sentia um fracasso total, um desespero absoluto.

    - Não adianta, não é mesmo, Damon? Não sirvo para Callie, nem para qualquer outra. Devo... sair discretamente de sua vida? ir embora, deixar de tentar, parar de atormentá-la?

    Damon inclinou-se, apertou seu ombro com força, e disse em tom de urgência:

    - Quer que ela morra? Sabe quão perto Callista se encontra da morte? Ela pode se matar agora com um pensamento, com a mesma facilidade com que quase o matou! Não tem mais ninguém, mais nada, e pode sair da vida sem hesitar. Quer que ela faça isso?

    - Oh, Deus, não!

    - Acredito em você - murmurou Damon, depois de um minuto. - Mas terá de fazer com que ela acredite. - Ele hesitou. - Preciso saber. Chegou a penetrá-la, mesmo que apenas um pouco?

    A indignação de Andrew foi tão grande que Damon até se encolheu, antes mesmo que o terráqueo dissesse:

    - Escute aqui, Damon, o que pensa... Damon suspirou.

    - Eu poderia perguntar a Callie, mas achei que você poderia poupá-la desse constrangimento.

    Andrew baixou os olhos para o chão.

    - Não tenho certeza. Tudo está... confuso.

    - Creio que ficaria ainda mais ferido se a tivesse penetrado. Com uma amargura incontrolável, Andrew explodiu:

    - Eu não sabia que ela detestava tanto! Damon tornou a pôr a mão no ombro do amigo.

    - Não foi bem assim. Não deixe que isso estrague a lembrança do que foi bom. Aquela parte era real. - Depois de um momento, ele acrescentou: - Falo porque sei; eu estava presente, ou já esqueceu? Lamento se isso o incomoda, mas acontece entre telepatas, e todos já estivemos ligados pela matriz. Foi mesmo real, pode ter certeza de que Callista o ama e também o deseja. Quanto ao resto, ela apenas fez um cálculo errado, deve ter pensado que conseguira se livrar de todas as peias. A maioria das Guardiãs, se quer sair, se apaixona, vai casar, em geral deixa a Torre antes que seu condicionamento seja completo. Ou descobrem que não podem trabalhar sem muita dificuldade e sofrimento, por isso o condicionamento pára em determinado ponto, elas desistem e vão embora. O treinamento para uma Guardiã e terrível. Duas em cada três moças que tentam nem sequer conseguem chegar ao fim. E depois que é concluído, da maneira apropriada, é muito raro desaparecer. Quando Leonie deu permissão a Callista para casar, deve ter pensado que se tratava de um desses casos raros, caso contrário Callista não desejaria deixar a Torre.

    Andrew empalideceu enquanto escutava.

    - O que se pode fazer agora?

    - Não sei - respondeu Damon, com absoluta sinceridade. - Farei o que puder. - Ele passou a mão pela testa, cansado. - Gostaria de ter um pouco de kirian para dar a ela. Mas, por enquanto, o que Callista precisa é de segurança, e só você pode lhe dar isso. Tente tranqüilizá-la.

    Ellemir lavara o rosto manchado de lágrimas da irmã, penteara e trançara seus cabelos, vestira-lhe uma camisola. Quando ela viu Andrew, seus olhos tornaram a se encher de lágrimas.

    - Oh, Andrew, eu bem que tentei! Não me odeie... eu quase... quase...

    - Eu sei. - Ele pegou os dedos de Callista. - Deveria ter me contado do que exatamente tinha medo, amor.

    - Não podia.

    Havia culpa e angústia em seus olhos.

    - Fui sério no que disse antes, Callista. Eu a amo e posso esperar por você. Por tanto tempo quanto for necessário.

    Ela apertou sua mão com força. Damon inclinou-se e murmurou:

    - Elli vai dormir com você esta noite. Quero-a ao seu lado durante o tempo todo. Sente alguma dor?

    Ela acenou com a cabeça, mordendo o lábio.

    - Elli, quando você a vestiu, viu queimaduras ou equimoses?

    - Nada sério.  Encontrei apenas uma marca na parte interna da coxa.

    Ellemir puxou a camisola, e Andrew olhou horrorizado para a queimadura na carne. Será que a força psíquica atacava como um raio?

    - É bem provável que não fique nem uma cicatriz - comentou Damon. - Detesto ter de lhe perguntar, Callie, mas...

    - Não, ele não me penetrou...

    Damon balançou a cabeça, obviamente aliviado. Andrew, olhando para a marca de queimadura, compreendeu de repente, com um horror total, por que Damon perguntara.

    - Andrew não ficou muito machucado. Tem apenas um caroço na testa, e não houve concussão. Mas se você sente dor, é melhor eu examiná-la. - Como Callista fizesse menção de protestar, ele acrescentou gentilmente: - Eu já monitorava técnicos psíquicos quando você ainda era uma criança, Callie. Isso mesmo, deite de costas. Não tanta luz, Elli, pois não posso ver direito com toda essa claridade.

    Andrew estranhou, mas Damon balançou a cabeça em aprovação quando Ellemir diminuiu a luz. Ele fez sinal para que Andrew se adiantasse.

    - Eu gostaria de ter tido o bom senso de lhe mostrar isso há muito tempo.

    Damon passou os dedos pelo corpo de Callista, sem chegar a tocá-la, dois ou três centímetros acima da camisola. Andrew piscou, vendo uma suave claridade se projetar das pontas dos dedos de Damon, correntes em espiral, pulsando aqui e ali, em muitas cores.

    - Observe. Aqui estão os principais canais nervosos... espere, quero que veja antes um padrão normal. Ellemir?

    Obediente, a moça deitou ao lado de Callista. Damon continuou:

    - As correntes principais, os canais no lado da espinha, positivo e negativo, e ligados a eles os centros principais: testa, garganta, plexo solar, útero, base da espinha, genitália.

    Ele apontou para os centros, espirais de luz clara.

    - Ellemir é uma mulher adulta, sexualmente despertada. Se fosse virgem, as correntes seriam as mesmas, só o que os centros inferiores se mostrariam menos brilhantes, conteriam menos energia. Esse é o padrão normal. Numa Guardiã, essas correntes foram alteradas, pelo condicionamento, para reprimir os impulsos dos canais interiores, os que transmitem as energias sexuais e a força psíquica. Numa telepata normal... Ellemir possuía uma quantidade considerável de laran... as duas forças se elevam juntas na puberdade, e depois de algumas comoções, que chamamos de doença do limiar, assentam para operar de forma seletiva, transmitindo uma ou outra, de acordo com a necessidade, e todas impulsionadas pela mesma força na mente. Às vezes ocorre uma sobrecarga nos canais. Lembra como o adverti, depois que trabalhamos juntos na matriz, sobre a impotência temporária? Numa Guardiã, no entanto, as forças psíquicas irradiadas são tão grandes que um fluxo duplo seria forte demais para o corpo suportar. Por isso, os canais devem se tornar completamente livres para a força psíquica. Assim, os canais superiores são separados dos inferiores, que cuidam da vitalidade sexual, e não há refluxos. O que temos aqui...

    Damon fez uma pausa, apontando para Callista, e Andrew se lembrou, de forma absurda, de um professor ensinando anatomia.

    - ...é uma tremenda sobrecarga nos canais. Em circunstâncias normais, as forças psíquicas fluem em torno dos centros sexuais, sem envolvê-los. Mas veja isto.

    Ele mostrou a Andrew que os centros vitais inferiores de Callista tinham um brilho opaco, pulsando como feridas inflamadas, um turbilhão intenso, lento, doentio, ao contrário do que acontecia com Ellemir.

    - Houve um despertar sexual e estímulo, mas os canais que normalmente transmitem esses impulsos foram bloqueados, em decorrência do treinamento para Guardiã.

    Com extrema gentileza, Damon encostou as mãos no corpo de Callista, tocando numa das correntes turbilhonantes. Houve um estalo audível, e ela gemeu.

    - Doeu? Peço desculpas. O problema é que não posso nem desobstruir os canais. Não há kirian na casa, não é mesmo? De outra forma, você jamais conseguiria suportar a dor.

    Tudo aquilo era grego para Andrew, mas ele podia ver o turbilhão de um vermelho opaco em Callista, em vez das suaves pulsações luminosas do corpo de Ellemir.

    - Não se preocupe com isso agora - disse Damon. - Pode desaparecer depois que você dormir.

    - Acho que eu poderia dormir melhor com Andrew me abraçando - sussurrou Callista.

    Compadecido, Damon disse:

    - Sei como se sente, breda, mas não seria sensato. Depois que começou a reagir ao meu contato, há dois grupos conflitantes de reflexos tentando operar ao mesmo tempo. - Ele virou-se para Andrew e declarou, incisivo: - Não quero que toque nela, em hipótese alguma, até que os canais estejam limpos. - Ele olhou para Callista. - E o mesmo se aplica a você.

    Ellemir deitou na cama, ao lado de Callista, puxou as cobertas. Andrew notou que os canais luminosos e turbilhonantes haviam se desvanecido para a invisibilidade, e especulou como Damon os tornara visíveis. Captando seu pensamento, Damon disse:

    - Não é nenhum mistério. Eu lhe mostrarei como se faz um dia desses. Você tem bastante laran para isso. Por que não vai para a cama de Callista e tenta dormir? Precisa muito de um descanso. Ficarei aqui, monitorando Callista, até ter certeza de que ela não entrará numa crise.

    Andrew foi deitar na cama de Callista. Ainda rescendia à fragrância de seus cabelos, ao perfume floral delicado que ela sempre usava. Ele permaneceu acordado por algum tempo, numa angústia irrequieta, pensando que fizera uma coisa terrível com Callista. Ela estivera certa durante todo o tempo! Podia ver Damon, sentado em silêncio na cadeira, velando por eles. Por um instante, pareceu-lhe que via Damon não como um ser físico, mas como uma rede de correntes magnéticas, campos elétricos, energias se cruzando. Acabou caindo num cochilo inquieto.

    Andrew dormiu pouco naquela noite. A cabeça doía, de uma forma quase insuportável, e cada nervo isolado do corpo parecia gritar em tensão. De vez em quando despertava em sobressalto, ouvindo Callista gemer ou chorar no sono, e não podia deixar de reviver o pesadelo de seu fracasso. Já começava a clarear quando viu Damon se levantar da cadeira, sem fazer barulho, e se encaminhar para seu próprio quarto. Andrew saiu da cama e seguiu-o. Na semi-escuridão, Damon parecia exausto e sisudo.

    - Também não conseguiu dormir, parente?

    - Cochilei um pouco.

    Andrew achou que o amigo estava com uma aparência horrível. Damon captou seu pensamento, exibiu um sorriso irônico.

    - Andamos a cavalo durante todo o dia de ontem, e com toda aquela confusão à noite... Mas agora tenho certeza de que ela não entrará em crise, não haverá convulsões. Posso dormir um pouco. - Ele entrou em seu quarto. - Como você se sente, Andrew?

    - Estou com o pai de todas as ressacas, a cabeça estalando!

    - E mais algumas outras doses, posso imaginar. De qualquer forma, teve muita sorte.

    Sorrindo, Andrew demonstrou toda a sua incredulidade, mas Damon não ofereceu qualquer explicação. Foi até a janela, abriu-a, contemplou o manto branco de neve, o vento frio soprando em seu rosto.

    - Parece que vamos ter uma nevasca. A pior coisa que poderia acontecer, ainda mais agora, com Calista assim...

    - Por quê?

    - Quando começa a nevar nas Colinas Kilghard, é para valer. Podemos ficar com esse tempo por trinta ou quarenta dias. Eu pensava em mandar alguém à Torre Neskaya para buscar um pouco de kirian... não creio que Callista tenha preparado qualquer porção... a fim de desobstruir seus canais em caso de necessidade.  Mas nenhum homem pode viajar com esse tempo; eu não podia pedir a ninguém.

    Damon arriou no peitoril da janela, exausto. Observando o vento gelado agitar seus cabelos, Andrew advertiu:

    - Não durma aí, ou pegará uma pneumonia. - Ele fechou a janela. - Trate de descansar, Damon. Posso cuidar de Callista. Afinal, ela é minha esposa, minha responsabilidade.

    Damon suspirou.

    - Mas com Esteban entrevado, eu sou o parente mais próximo de Callista em condições de ajudá-la. E pus vocês dois em contato através da matriz. Isso faz com que se torne minha responsabilidade, pelo juramento que prestei.

    Ele cambaleou, sentiu Andrew segurá-lo pelo ombro, ampará-lo; e acrescentou, a voz um tanto engrolada:

    - Mas tenho de dormir um pouco, ou não serei capaz de ajudá-la se ela precisar de mim.

    Andrew levou-o para a cama desarrumada. Damon captou um fio de pensamento de Andrew, uma memória perturbada, de consciência culpada, por ter sido voyeur do seu ato de amor com Ellemir. Especulou, vagamente, por que isso tanto incomodava Andrew, mas sentia-se cansado demais para se importar. Estendeu-se na cama, forçou um momento de lucidez.

    - Fique com as mulheres, Andrew. Deixe Callista dormir, mas se ela despertar sentindo dor, trate de me chamar imediatamente. - Ele virou de costas, tentando divisar com clareza o rosto do terráqueo, diante de seus olhos turvos. - Não toque em Callista... isso é muito importante... nem mesmo se ela pedir. Pode ser perigoso...

    - Correrei o risco, Damon.

    - Perigoso para ela.

    Damon pensou, consternado:

    - Sim, não posso confiar nele, terei de voltar... Foi a vez de Andrew captar seu pensamento e dizer:

    - Está bem, eu prometo. Mas quero que explique o motivo, assim que puder.

    - Prometido - respondeu Damon, com um suspiro de exaustão.

    Ele se deixou mergulhar no vazio do sono. Andrew ficou parado ali por um momento, observando as rugas de cansaço do amigo se dissolverem no sono, depois cobriu-o com todo o cuidado e saiu. Instruiu o criado de Damon a deixá-lo dormir. Num súbito impulso, lembrando que Ellemir sempre acordava muito cedo, e seria constrangedor se alguém aparecesse à sua procura, mandou que o homem avisasse a todo mundo que haviam dormido tarde, e por isso ninguém deveria incomodá-los, enquanto não fossem chamados.

    Andrew foi deitar de novo na cama de Callista. Não demorou muito a adormecer. Despertou abruptamente, consciente de que dormira por horas. Já era dia, mas continuava escuro, a neve caindo além das janelas. Calista e Ellemir continuavam deitadas em sua cama; mas enquanto ele observava, Ellemir sentou, passou com todo o cuidado por cima da irmã, aproximou-se dele na ponta dos pés.

    - Onde está Damon?

    - Dormindo, eu espero.

    - Ninguém me procurou?

    Andrew explicou o que fizera, e ela agradeceu.

    - Preciso me vestir. Usarei o banheiro de Callista, se você não se importa. Não quero incomodar Damon. E também pegarei algumas de suas roupas.

    Movendo-se como uma sombra, Ellemir tirou do armário algumas roupas da irmã. Andrew ficou observando, com um vago ressentimento - ela preferia incomodar Calista em vez de Damon? -, mas parecia evidente que a presença familiar da irmã gêmea não perturbava o sono pesado de Callista.

    Andrew recordou, espontaneamente, Ellemir de pé ao lado de Callista na noite anterior, nua, e sem se preocupar com isso. Ele calculou que, se uma pessoa se acostumava a ter a mente aberta, a nudez física não seria tão importante. Mas descobriu-se a recordar um momento, na noite anterior, em que experimentara a sensação de que tinha Ellemir em seus braços, quente, ansiosa, reagindo a ele, como Callista não era capaz... Contrafeito, Andrew virou o rosto. Um calor escaldante espalhou-se por seu rosto, uma pontada de dor fez aflorar a memória do fracasso da última noite. Ellemir sabia que ele participara de seu ato de amor, também estivera consciente de sua presença?

    Ellemir observou-o por um momento, com um sorriso perturbado, mordendo o lábio, depois entrou no banheiro, carregando as roupas em azul e branco.

    Fazendo um esforço para recuperar o controle, Andrew olhou para sua esposa adormecida. Ela parecia pálida e extenuada, com olheiras imensas, semelhantes a equimoses, sob os olhos fechados. Estava deitada de lado, um braço cobrindo parcialmente o rosto. Com uma angústia incontrolável, Andrew recordou como a vira deitada assim, na luz difusa do mundo superior. Prisioneira dos homens-gatos, seu corpo nas cavernas escuras de Corresanti, ela o procurara em espírito, no sono, machucada, sangrando, cansada, apavorada. E nada podia fazer por ela. Sua impotência o enfurecera na ocasião; agora, sentia de novo todo o tormento da impotência, da provação solitária de Callista.

    Ela abriu os olhos.

    - Andrew?

    - Estou aqui, meu amor. - Ele percebeu a angústia no rosto de Callista, como uma sombra. - Como se sente, querida?

    - Horrível - murmurou ela, fazendo uma careta. - Como se tivesse sido atropelada por um estouro de chervines enfurecidos.

    Quem poderia fazer, além de Callista, um gracejo numa ocasião assim?

    - Onde está Damon?

    - Dormindo, amor. E Ellemir foi tomar um banho e se vestir. Ela suspirou, fechando os olhos por um instante.

    - E eu pensava que hoje seria de fato uma esposa. Louvada seja Evanda por terem sido Damon e Ellemir que nos ouviram, e não o insuportável do Dezi, com suas zombarias.

    Andrew estremeceu ao pensamento. No fundo, fora o escárnio de Dezi o fator que levara ao desastre. Ele disse, com alguma ênfase:

    - Ah, como eu gostaria de ter torcido o pescoço dele! Callista tornou a suspirar, balançando a cabeça.

    - A culpa não foi de Dezi. Ambos somos adultos, sabemos o suficiente para tomarmos nossas próprias decisões. Reconheço que ele foi muito grosseiro. Entre telepatas, aprende-se bem depressa a não bisbilhotar nessas questões; e se alguém tomar conhecimento, involuntariamente, de um assunto tão íntimo, deve se mostrar reticente. Foi imperdoável, mas ele não é culpado pelo que aconteceu depois, meu amor. A escolha foi nossa.

    - Foi minha - murmurou Andrew, baixando os olhos.

    Ela se estendeu para pegar a mão de Andrew. Seus dedos estavam frios. Ele viu outra vez a dor se estampar em seu rosto.

    - Damon disse que eu deveria chamá-lo se você acordasse com dor, Callista.

    - Ainda não. Deixe-o dormir. Ele se exauriu por nós. Andrew... Ele ajoelhou-se ao seu lado, Callista estendeu os braços.

    - Abrace-me, Andrew; só por um momento. Deixe-me deitar em seus braços... quero senti-lo perto de mim...

    Andrew teve uma reação imediata às palavras, ao apelo que continham, pensando que ela ainda o amava, ainda o desejava, apesar do que acontecera durante a noite. Depois, lembrando, ele recuou, e sussurrou, angustiado:

    - Minha querida, prometi a Damon que não tocaria em você.

    - Oh, Damon, Damon, sempre Damon! - exclamou ela, frenética. - Estou doente e desesperada, quero apenas que você me abrace...

    Callista parou de falar, fechou os olhos, com um suspiro desolado. Ele tremia no anseio de abraçá-la, não com um desejo sexual agora - era algo que se desvanecera para um recesso distante -, mas apenas para tê-la junto de si, protegê-la, acalmá-la, confortá-la. Mas a promessa o manteve imóvel, até que Callista acrescentou:

    - Acho que ele tem razão, o desgraçado. Sempre tem.

    Andrew viu a dor se manifestar mais uma vez em seus olhos, envelhecendo-a, contraindo o rosto em sulcos de exaustão. Por algum motivo, e o pensamento horrorizou-o, só pôde pensar no rosto de Leonie, consumido, cansado, velho.

    Outra lembrança aflorou, o momento em que, na noite anterior, ambos submergiram por um instante no ato de amor de Damon e Ellemir. Ela queria, ansiava, começara a reagir a ele, depois daquela fusão plena com o outro casal. E de novo Andrew sentiu o latejar da dor na virilha, a recordação angustiante do fracasso, toldando seu excitamento. Seu amor por Callista não diminuíra nem um pouco, mas havia agora um senso horrível e indefinível de que algo fora arruinado. Um sopro de intromissão, como se Damon e Ellemir, por mais queridos e íntimos que fossem, de alguma forma se interpusessem entre ele e Callista.

    Os olhos de Callista ficaram cheios de lágrimas. Em mais um momento, esquecendo a promessa, ele a teria abraçado, se Ellemir, viçosa e rosada do banho, vestindo uma roupa de Callista, não voltasse ao quarto naquele instante. Ela viu Callista acordada e avançou em sua direção.

    - Sente-se melhor, Callie? Callista sacudiu a cabeça.

    - Não. Pior, se alguma diferença há.

    - Pode se levantar, querida?

    - Não sei. - Callista experimentou um movimento. - Acho que devo. Pode chamar minha criada, Elli?

    - De jeito nenhum. Damon disse que ninguém pode encostar um dedo em você, e não vou permitir que as criadas inventem histórias. Eu mesma cuidarei de você, Callie. Andrew, é melhor avisar a Damon que ela acordou.

    Ele encontrou Damon já de pé, fazendo a barba no luxuoso banheiro, igual ao outro.

    - Callista parece melhor? - perguntou Damon, gesticulando para que ele entrasse no banheiro.

    Só depois é que ele percebeu a hesitação de Andrew.

    - Ora, nunca pensei... Há tabus de nudez no Império?

    Andrew sentiu estranhamente que era ele e não Damon quem deveria se sentir embaraçado.

    - Há em algumas culturas... inclusive na minha. Mas estou em seu mundo, e por isso acho que devo me ajustar aos seus costumes, não o inverso.

    Era estupidez sentir-se embaraçado, Andrew sabia, ou zangado e indignado pela lembrança de Damon na noite passada, parado nu junto de Callista, contemplando seu corpo frágil e machucado. Damon deu de ombros e comentou calmamente:

    - Não há muitos tabus assim por aqui. Um pouco entre os cristoforos, na presença de não-humanos, ou em gerações passadas. Eu não apareceria nu diante de um grupo de contemporâneos de meu pai, ou na presença de Dom Esteban, por exemplo. Também não me mostraria nu entre as criadas. É verdade que se a casa estivesse pegando fogo, ou qualquer coisa assim, eu não hesitaria. Mas um homem da minha idade, casado com a irmã de minha esposa... - Ele tornou a dar de ombros. - Nunca me ocorreu.

    Andrew compreendeu que deveria ter percebido na noite anterior, quando Ellemir nem parecera notar.

    Damon molhou o rosto, passou uma loção verde de ervas, com um aroma agradável. O cheiro lembrou Andrew do pequeno dispensário de Callista. Damon riu, vestindo a camisa, enquanto comentava:

    - Quanto a Elli, você devia se sentir aliviado. Isso significa que ela o aceitou como parte da família. Preferia que ela ficasse embaraçada e tomasse o cuidado de se cobrir na sua presença, como se fosse um estranho?

    - Não, a menos que você quisesse assim.

    Mas isso não significava absolutamente que ela não visse Andrew como um homem, especulou ele. Seria uma maneira sutil de mudar sua percepção.

    - Dê um tempo a si mesmo para definir as coisas. - Damon continuava a se vestir, despreocupado. - Ainda está nevando?

    - Mais do que nunca.

    Damon foi verificar pessoalmente. Quando abriu a janela para olhar, um vento uivante entrou pelo quarto, como um furacão. Ele se apressou em fechar a janela.

    - Callie já acordou? Quem está com ela? Ótimo, eu esperava que Ellemir tivesse o bom senso de manter as criadas a distância. No estado em que Callie se encontra, a presença de não-telepatas seria quase insuportável. É por isso que nunca temos servos humanos nas Torres. - Ele se encaminhou para a porta. - Algum de vocês já comeu alguma coisa?

    - Ainda não - respondeu Andrew, só agora percebendo que já passava de meio-dia e que sentia muita fome.

    - Por favor, desça e peça a Rhodri para mandar alguma comida. Acho que devemos todos ficar juntos de Callista. - Damon hesitou por um instante. - Vou encarregá-lo de uma missão difícil. Terá de apresentar uma explicação a Dom Esteban. Se me visse, ele saberia de tudo... conhece-me desde que tenho nove anos. Não creio que ele possa sondá-lo em busca das verdadeiras explicações. Você ainda é bastante estranho para ele se sentir um pouco reservado. Você se importa, Andrew? Não tenho condições de encará-lo.

    - Claro que não.

    Andrew se importava, mas sabia que era preciso apresentar alguma explicação ao entrevado Lorde Alton. Havia muito que já passara a hora em que Ellemir deveria ter assumido o comando da casa, e Dom Esteban se acostumara à companhia de Callista.

    Ele disse ao mordomo que todos haviam ido dormir tarde e que fariam a refeição em seus quartos. Recordando o que Damon dissera a respeito de não-telepatas, determinou que ninguém deveria entrar nos aposentos e que deixassem a comida do lado de fora. O homem se limitou a dizer, sem o menor relance de curiosidade, como se fosse um pedido corriqueiro:

    - Pois não, Dom Ann'dra.

    Dom Esteban estava no Grande Salão, em sua cadeira de rodas, junto da janela, com o guarda Caradoc lhe fazendo companhia. Andrew constatou aliviado que Dezi não se encontrava ali. Dom Esteban e Caradoc se achavam absorvidos num jogo de tabuleiro, parecido com xadrez, que Damon já tentara ensinar a Andrew. Era chamado de castelos, e tinha peões de cristal esculpido, que não eram dispostos em ordem no tabuleiro, mas sim sacudidos e espalhados ao acaso, movimentados do ponto em que caíam, de acordo com regras complexas. Dom Esteban tirou uma peça de cristal vermelho do tabuleiro, sorriu triunfante para Caradoc e levantou os olhos para Andrew.

    - Bom-dia... ou devo dizer boa-tarde? - Dormiu bem?

    - Muito bem, senhor, mas Callista está... um pouco indisposta. E Ellemir ficou lhe fazendo companhia.

    - E vocês dois ficarão com suas esposas, como é certo e apropriado - arrematou Dom Esteban, sorrindo.

    - Se há alguma coisa que precise ser feita...

    - Com esse tempo? - O velho gesticulou para a nevasca. - Não há nada. Nem precisa se desculpar.

    Andrew recordou que o velho era também um poderoso telepata. Se o distúrbio da noite passada interrompera até Damon e Ellemir em seu leito nupcial, teria também alcançado Dom Esteban? Mas se fosse esse o caso, Lorde Alton não deixou transparecer.

    - Transmita meu amor a Callista, e diga a ela que espero que se recupere logo. E avise a Ellemir que pode cuidar da irmã, não precisa se preocupar com mais nada.  Tenho companhia suficiente e posso passar sem vocês por um dia ou mais.

    Caradoc fez um comentário no dialeto das montanhas, que a temporada das nevascas era o momento apropriado para ficar dentro de casa e desfrutar a companhia da esposa. Dom Esteban riu, mas a piada era um pouco obscura para Andrew. Ele sentia-se grato ao velho, mas também contrafeito, como se estivesse sujeito a uma exposição indecente. Tinha a impressão de que ninguém com um mínimo de força telepática poderia ter dormido durante tudo o que acontecera na noite anterior. Devia ter despertado os telepatas por todo o caminho até Thendara!

    Ao subir, Andrew descobriu que a comida já fora Evanda e que Damon a carregara para o quarto. Callista se achava na cama outra vez, pálida e exausta. Ellemir tentava persuadi-la a comer, em pequenos pedaços, como se faria com uma criança doente. Damon deu espaço para Andrew a seu lado, entregou-lhe um pão quente.

    - Não esperamos por você. Fiquei faminto depois da noite passada. Os criados provavelmente pensam que fizemos uma orgia aqui!

    Callista disse, com uma risadinha amarga:

    - Eu bem que gostaria que eles estivessem certos. Seria sem dúvida uma melhoria sobre as atuais circunstâncias. - Ela balançou a cabeça quando Ellemir lhe ofereceu um pedaço de pão quente, com o mel aromático das montanhas. - Não, obrigada. Não consigo comer.

    Damon observou-a com evidente apreensão. Ela tomara alguns goles de leite, mas se recusara a comer, como se o esforço de engolir fosse excessivo. Depois de um momento, ele disse:

    - Você vem cuidando do dispensário, Callista. Preparou algum kirian?

    Ela sacudiu a cabeça.

    - Tenho adiado o preparo, pois não há ninguém aqui que precise, com Valdir em Nevarsin. E dá muito trabalho, já que é preciso destilar três vezes.

    - Sei disso. Eu mesmo nunca preparei, mas já observei sendo feito. - Damon fitava-a atentamente, enquanto mudava de posição. - Ainda sente dor?

    Callista acenou com a cabeça, murmurando:

    - Estou sangrando.

    - Isso também? - Será que ela não seria poupada de: nada? - Quanto tempo falta para o momento regular? Se for apenas uns poucos dias, pode ser apenas o choque.

    - Você ainda não entendeu. Não há... não há um momento regular para mim. Esta é a primeira vez...

    Damon ficou aturdido, quase incrédulo.

    - Mas você já tinha treze anos quando foi para a Torre. Seus ciclos femininos ainda não haviam começado?

    Andrew teve a impressão de que Callista ficou constrangida, quase envergonhada.

    - Não. Leonie disse que era uma boa coisa que não tivessem começado.

    Damon disse, furioso:

    - Ela deveria ter esperado por isso antes de iniciar  seu treinamento!

    Callista desviou os olhos, o rosto vermelho.

    - Leonie me disse... que, começando tão cedo, alguns dos processos físicos normais seriam interrompidos. Mas assegurou que seria mais fácil para mim se fosse poupada disso por completo.

    - E eu pensava que isso era um barbarismo da Era do Caos! - exclamou Damon. - Por gerações, presumiu-se que uma Guardiã devia ser uma mulher adulta!

    Callista se apressou em defender a mãe-de-adoção:

    - Ela me contou que seis outras moças haviam tentado, e não conseguiram fazer os ajustamentos necessários, que tornaria mais fácil para mim, com menos dor e problemas...

    Damon franziu o rosto, tomou um gole de vinho, olhando para as profundezas do copo, como se houvesse alguma coisa desagradável ali.

    - Quero que me diga uma coisa, e deve pensar com todo o cuidado antes de responder. Recebeu na Torre alguma droga para suprimir a menstruação?

    - Não. Nunca foi necessário.

    - Não creio que Leonie fosse capaz disso, mas tenho de perguntar: alguma vez ela trabalhou com uma matriz nas correntes de seu corpo?

    - Creio que só no treinamento padronizado comum - murmurou Callista, com alguma dúvida.

    Andrew interveio:

    - Mas que história é essa?

    A expressão de Damon era sombria.

    - Nos velhos tempos, uma Guardiã em treinamento era às vezes neutralizada... lembra que Marisela fez alguns comentários a respeito? Mas não posso acreditar... não posso acreditar de jeito nenhum... que Leonie pudesse ter estiolado sua feminilidade desse jeito!

    Calista balbuciou, consternada:

    - Oh, não, Damon! Oh, não! Leonie me ama, ela nunca...

    Mas sua voz definhou. Ela estava com medo. Leonie estivera tão segura de que sua opção seria vitalícia, mostrara-se tão relutante em liberá-la... Andrew pegou a mão fria de Callista, enquanto Damon acrescentava, de rosto franzido:

    - Não, eu sei que você não foi neutralizada, claro que não. Se menstruou agora, é sinal de que seu relógio voltou a funcionar. Mas era o que se fazia nos velhos tempos. Achavam que a virgindade era menos que um fardo para uma jovem imatura.

    - Mas agora que começou, ela não vai ficar boa? - indagou Ellemir, ansiosa.

    - Devemos torcer para que sim - respondeu Damon.

    Talvez o excitamento da noite anterior, embora malogrado, tenha reaberto alguns dos caminhos bloqueados no corpo de Callista; se ela amadurecera de repente, podia significar que sua doença e desconforto físico fossem problemas normais. Damon podia lembrar, de seus anos na Torre, que as moças em treinamento para Guardiã, ou até mesmo as mulheres que trabalhavam como técnicas psíquicas, acima do nível de monitora, eram sujeitas a dificuldades menstruais recorrentes e às vezes dolorosas. Acompanhando seu pensamento, Callista soltou uma pequena risada e disse:

    - Já servi o chá da flor dourada e outros medicamentos similares para mulheres em Arilinn, e sempre me considerei afortunada por ser imune a tais sofrimentos. Mas parece que agora me juntei às fileiras das mulheres normais... pelo menos sob esse aspecto! Sei que temos o chá da flor dourada no dispensário; Ferrika o dá à metade das mulheres na propriedade. Talvez uma dose seja tudo o que eu preciso.

    - Vou buscar - disse Ellemir.

    Ela não demorou a voltar, trazendo uma caneca com uma mistura fumegante, que exalava um pungente cheiro de ervas, um aroma bastante forte. A voz de Callista exibiu, por um instante, um eco de sua antiga jovialidade:

    - Dá para acreditar que nunca provei isso? Só espero que não seja uma poção horrível!

    Ellemir riu.

    - Seria bem merecido para você se fosse horrível, depois de servir a mistura tantas vezes sem ter a menor idéia do gosto! Na verdade, porém, é até saboroso. Nunca me importei em tomá-lo. Só que vai deixá-la sonolenta. Por isso, deve deitar e permitir que surta seu efeito.

    Obediente, Callista tomou o chá fumegante e acomodou-se sob as cobertas. Ellemir foi pegar um trabalho de costura, sentou ao seu lado.

    - Vamos embora, Andrew, elas ficarão bem agora - disse Damon. Os dois saíram do quarto. Lá embaixo, no dispensário de chão de

    pedra, Damon examinou o suprimento de ervas, essências e equipamentos de destilação. Andrew olhou para os frascos de estranhos formatos, para os pilões, para os vidros alinhados nas prateleiras, para os molhos de ervas secas, folhas, talos, vagens, flores, sementes, e perguntou:

    - Todas estas coisas são drogas e medicamentos?

    - Não. Estas... - Damon abriu uma gaveta, apontou para algumas sementes moídas. - ...são temperos para cozinhar. Além disso, Callista produz incenso para perfumar o ar, assim como algumas loções cosméticas e perfumes. Nenhuma das coisas que se podem comprar nas cidades é tão boa quanto o que é feito aqui, de acordo com receitas antigas.

    - O que Ellemir deu a ela? Damon deu de ombros.

    - O chá da flor dourada? É um tônico muscular, bom para cãibras e espasmos de todos os tipos. Não pode fazer mal; dão a mulheres grávidas e também a bebês com cólicas.

    Mas Damon se perguntou, franzindo o rosto, se adiantaria alguma coisa para Callista. Interferências tão profundas com os processos físicos... Como Leonie fora capaz de fazer uma coisa assim? Andrew captou o pensamento, tão claramente como se Damon tivesse falado em voz alta.

    - Eu sabia que as Guardiãs passavam por algumas mudanças físicas... mas isso?

    - Também fiquei chocado. - Damon revirou entre as mãos um molho de folhas de espinheiro-branco. - Pode estar certo de que não é o costume hoje em dia. E eu pensava que era contra a lei. É verdade que as intenções de Leonie não podiam ter sido melhores. Você viu as alterações nas correntes nervosas. Algumas moças passam por momentos horríveis com o ciclo menstrual, e Leonie provavelmente não foi capaz de vê-la sofrendo. Mas a que preço!

    Damon amarrou a cara, recomeçou a abrir as gavetas e continuou, depois de um momento:

    - Se Callista tivesse escolhido por sua livre e espontânea vontade... mas Leonie não contou nada a ela! É isso o que acho difícil compreender e até perdoar!

    Andrew sentia uma consternação insidiosa, um horror físico. Mas por que isso deveria chocá-lo tanto? Afinal, a modificação física não era algo tão inédito assim. A maioria das mulheres que tripulavam as naves estelares do Império - de qualquer forma, tornavam-se estéreis com a radiação do espaço - era poupada do estorvo da menstruação. Tratamentos com hormônios tornavam-na desnecessária para as mulheres que não se encontravam empenhadas ativamente em gerar filhos. Por que deveria chocá-lo tanto? Não era chocante, exceto porque Damon assim pensava! Será que algum dia ele se acostumaria àquela vida num aquário? Não poderia sequer ter seus próprios pensamentos? Damon examinava os molhos de ervas, enquanto explicava:

    - Você precisa compreender. Callista já passou dos vinte anos. É uma mulher adulta, que vinha realizando um trabalho difícil, altamente técnico, como uma técnica de matriz, há muitos anos. É uma profissional experiente no trabalho mais exigente em Darkover. .Agora, no entanto, nenhum aspecto do seu treinamento anterior, nenhuma de suas habilidades, nada mais tem qualquer proveito para ela. Luta com o descondicionamento e o despertar sexual, e tem todos os problemas emocionais de uma recém-casada. E agora, por cima de tudo isso, descubro que fisicamente ela foi mantida no estado de uma garota de doze ou treze anos! Por Evanda! Se ao menos eu soubesse...

    Andrew baixou os olhos para o chão. Mais uma vez, desde o terrível fracasso da noite anterior, sentira como imaginava que um estuprador devia se sentir. Se Callista era fisicamente uma garota não desperta, ainda no início da adolescência... Ele experimentou um espasmo de horror.

    - Não fique assim - disse Damon gentilmente. - A própria Callista não sabia. Lembre-se de que durante seis anos ela operou como uma profissional adulta e experiente.

    Mas ele sabia que isso também não era inteiramente verdadeiro. Callista devia estar a par do abismo profundo e intransponível que a separava das outras mulheres. Leonie talvez tivesse poupado sua protegida de algum sofrimento físico, mas a que preço?

    Mas pelo menos era um bom sinal o início espontâneo do ciclo menstrual. Talvez outras barreiras desaparecessem sem precisar recorrer a mais nada além de tempo e paciência. Damon pegou um molho de flores secas e cheirou-o com extrema cautela.

    - Aqui está, kireseth... não, Andrew, não cheire. Faz coisas estranhas com o cérebro humano.

    Ele experimentou algum sentimento de culpa. O tabu contra o kireseth, entre os trabalhadores psíquicos, era absoluto, e sentia que só manipulá-lo era como cometer um crime. Falando mais para si mesmo do que para Andrew, Damon acrescentou:

    - Posso fazer kirian com isto. Não sei destilar como fazem em Arilinn, mas posso preparar uma tintura...

    Sua mente concentrou-se nas possibilidades: uma solução forte de resinas dissolvidas em álcool. Com a ajuda de Ferrika, talvez pudesse fazer uma única destilação. Largou as flores, fantasiando que o cheiro alcançava as raízes de seu cérebro, destruindo os controles, rompendo as barreiras entre a mente e o corpo...

    Andrew andava de um lado para outro do dispensário, irrequieto. Sua própria mente se achava povoada por horrores.

    - Damon, Callista devia saber o que poderia acontecer.

    - Claro que sabia - respondeu Damon, sem prestar muita atenção. - Ela aprendeu isso antes de completar quinze anos, que nenhum homem pode tocar uma Guardiã.

    - E se eu podia machucá-la ou assustá-la de uma forma tão terrível... Damon! - Subitamente, ele tornou a sentir o horror e a repulsa que o haviam dominado na noite anterior. Baixou a voz para um sussurro ao acrescentar: - Sabe o que ela queria que eu fizesse? Pediu-me para... deixá-la inconsciente... e estuprá-la quando... quando não pudesse resistir.

    Andrew tentou transmitir um pouco do horror que isso lhe despertara, mas Damon se limitou a assumir uma expressão pensativa.

    - Poderia dar certo, Andrew. Foi bastante sagaz da parte de Callista pensar nisso. Demonstra que ela tem alguma noção dos problemas envolvidos.

    Andrew não pôde conter uma exclamação horrorizada:

    - Santo Deus! Como pode dizer isso tão calmamente?

    Damon virou-se e percebeu que o amigo se encontrava no limite de sua resistência.

    - Andrew, sabe o que o salvou de ser morto, não é?

    - Não sei de mais nada... e o que eu sei não ajuda muito! - Ele sentia um desespero profundo. - Acha mesmo que eu seria capaz de...

    - Não, claro que não, bredu. Compreendo por que você não fez o que ela pediu. Nenhum homem decente seria capaz de fazê-lo.

    Gentilmente, ele estendeu a mão, pegou o pulso de Andrew, antes de continuar:

    - O que o salvou, Andrew... o que salvou os dois... foi o fato de que ela não teve medo. O fato de amá-lo... e desejá-lo. Assim, atingiu-o apenas com o reflexo físico, que não podia controlar. Nem mesmo o deixou inconsciente; você só desmaiou porque bateu com a cabeça na cômoda. Se Callista estivesse apavorada, lutando contra você, se estivesse tentando possuí-la contra a sua vontade, pode imaginar o que teria acontecido? Callista é uma das mais poderosas telepatas de Darkover, treinada para Guardiã em Arilinn. Se ela odiasse a situação, se a encarasse como estupro, se sentisse... algum medo ou repulsa contra o seu desejo, você estaria morto! - Damon repetiu, para dar ênfase: - Estaria morto, morto, morto!

    Mas ela sentira medo, pensou Andrew, até que Damon e Ellemir fizeram contato... Fora a percepção do prazer de Ellemir que a levara a querer partilhá-lo! Ainda mais desconcertante era o pensamento de Damon, consciente de Callista, como ele estivera consciente de Ellemir. Damon, sentindo sua aflição, ficou chocado por um momento, experimentando-a como uma censura. Haviam sido tão íntimos... Andrew não queria participar disso? Ele pôs a mão no ombro de Andrew, um contato raro para um telepata, mas bastante natural naquele momento, na consciência da intimidade partilhada. Andrew se encolheu ao contato, e Damon retirou a mão, perturbado, um pouco triste. Andrew tinha de se manter a distância? Por quanto tempo? Por quanto tempo? Seria um irmão ou um estranho? Mas Damon persistiu, sempre gentil:

    - Sei que é uma coisa nova para você, Andrew. Sempre esqueço que fui criado como um telepata, encarando esse tipo de coisa como algo normal. Mas vai ver como tudo acabará bem para você.

    - Será? - Andrew não pôde deixar de especular. Saber que só o fato de ter-se tornado um voyeur involuntário impedira a esposa de matá-lo? Saber que Damon e Ellemir consideravam que tal situação era natural, que se deveria esperar, até mesmo acolher com satisfação? Damon se ressentia por ele querer Callista só para si? Andrew lembrou a sugestão que Callista fizera, lembrou a sensação de Ellemir em seus braços, ardente, reagindo... como Callista não era capaz. Chocado, numa confusão desesperada, ele se afastou de Damon, tremendo de horror, querendo sair dali. Sentia-se sufocado pela vergonha e horror. Queria - precisava - escapar, para qualquer lugar, longe dali, longe do contato revelador de Damon, do homem que podia ler seus pensamentos mais íntimos.

    Não sabia que se encontrava virtualmente doente, com uma doença bastante real, conhecida como choque cultural. Sabia apenas que se sentia nauseado, e a náusea assumia a forma de uma raiva violenta contra Damon. A fragrância intensa das ervas deixou-o com o receio de vomitar, e balbuciou, com a voz engrolada:

    - Tenho de respirar um pouco de ar fresco.

    Andrew abriu a porta, cambaleou pela cozinha deserta, saiu para o pátio. Parou ali, sob a neve caindo, amaldiçoou o planeta para o qual viera e o acaso que o levara àquele lugar.

    Eu deveria ter morrido quando o avião caiu. Callie não precisa de mim... Nunca serei capaz de fazer outra coisa que não magoá-la.

    - Andrew, venha conversar comigo - disse Damon, atrás dele. - Não saia assim sozinho, não tente se excluir de tudo.

    - Oh, Deus! - Andrew respirou fundo, como um soluço. - É o que tenho de fazer. Não posso mais falar. Não posso mais suportar. Deixe-me em paz! Quero ficar sozinho, nem que seja por pouco tempo, está bem?

    Ele sentia a presença de Damon como uma dor física intensa, uma pressão, uma compulsão. Sabia que estava magoando Damon, mas continuou a se recusar a saber, a se virar, a olhar... Ao final, Damon murmurou, sempre gentil:

    - Muito bem, Ann'dra. Sei que já teve tudo o que pode suportar. Por algum tempo. Mas não demais.

    E Andrew teve certeza, sem se virar, de que Damon desaparecera. Não, pensou ele, com um estremecimento de horror, Damon nunca estivera lá, ainda se encontrava no dispensário de chão de pedra.

    Ele permaneceu no pátio, a neve soprando ao seu redor, a fúria da tempestade atenuada apenas um pouco pelos muros. Callista. Ele procurou a segurança de seu contato, mas ela não se achava ali, apenas uma tênue pulsação, irrequieta, e Andrew não ousou perturbar seu sono drogado.

    O que posso fazer? O que posso fazer? Para sua consternação e horror, começou a chorar, sozinho, no meio da neve. Nunca se sentira tão solitário em toda a sua vida, nem mesmo quando o avião caíra, e se descobrira só, num planeta estranho, sob um sol estranho, em montanhas desconhecidas...

    Tudo o que sempre conheci agora se perdeu, é inútil, não faz sentido, ou pior ainda. Meus amigos são estranhos, minha esposa é a mais estranha de todos. Meu mundo sumiu, renunciei a ele. Nunca poderei voltar; eles me consideram morto.

    Ele pensou ainda: Espero pegar uma pneumonia e morrer. Depois, consciente da infantilidade desse pensamento, compreendeu que corria um perigo real. Apreensivo, não por qualquer senso de auto-preservação, mas pelo resquício de um vago dever, virou-se e entrou. A própria casa parecia estranha, não um lugar em que qualquer terráqueo conseguiria viver. Alguma vez lhe parecera um lugar acolhedor... um lar? Ele correu os olhos, com profunda alienação, pelo salão vazio, contente porque estava vazio. Dom Esteban devia ter-se retirado para o seu descanso vespertino. As criadas conversavam em voz baixa. Andrew arriou num banco, exausto, encostou a cabeça nos braços, e assim permaneceu, não adormecido, mas em retiro, torcendo para que, se ficasse quieto daquele jeito, tudo desaparecesse, nada mais fosse real.

    Um longo tempo depois, alguém pôs um copo em sua mão. Ele tomou, agradecido, serviram-lhe outro, e mais outro, turvando seus sentidos. Ouviu-se a falar, despejando tudo, para um ouvido compreensivo. Houve mais drinques. E ele soube, e ficou grato por isso, quando apagou.

    Havia uma voz em sua mente, passando pelas barreiras, penetrando no inconsciente, superando sua resistência.

    Ninguém o quer aqui. Ninguém precisa de você aqui. Por que não vai embora agora, enquanto pode, antes que algo terrível aconteça"? Vá embora agora, volte para o lugar de onde veio, volte para o seu mundo. Será mais feliz lá. Vá agora. Parta agora. Ninguém .saberá, nem se importará.

    Andrew sabia que havia alguma falha no raciocínio. Damon lhe dera bons motivos para que ele não fosse embora, mas depois se lembrou de que estava zangado com Damon.

    A voz persistiu, gentil, persuasiva:

    Pensa que Damon é seu amigo? Pois não confie em Damon. Ele o usará, quando precisar de ajuda, e depois vai descartá-lo. Havia algo familiar na voz, mas não era absolutamente uma voz. Estava de alguma forma dentro de sua mente! Andrew tentou em pânico excluí-la, mas a voz era insistente, tranqüilizante.

    Vá embora agora. Vá logo. Ninguém precisa de você aqui. Será feliz quando voltar para seu povo. Nunca, será feliz aqui.

    Com passos trôpegos, Andrew saiu para o salão lateral. Encontrou seu capote de montaria, vestiu-o. Alguém o ajudava, prendendo a fivela. Damon? Damon sabia que ele não podia ficar. Não podia confiar em Damon. Seria feliz com seu próprio povo. Voltaria a Thendara, voltaria à Cidade Comercial, ao Império Terráqueo, onde sua mente lhe pertencia com exclusividade...

    Parta agora. Ninguém o quer aqui.

    Mesmo embriagado, com os sentidos entorpecidos, a violência da tempestade atingiu-o com impacto suficiente para deixá-lo sem fôlego. Fez menção de voltar, mas a voz insistiu dentro de sua cabeça.

    Vá agora. Trate de partir. Ninguém o quer aqui. Você fracassou. Está apenas magoando Callista. Vá embora, volte para o seu povo.

    As botas patinhavam na neve, mas Andrew seguiu em frente, levantando e baixando os pés, com uma determinação obstinada, Callista não precisa de você. Estava mais embriagado do que imaginava. Mal conseguia andar. Mal conseguia respirar... ou era a neve que lhe arrebatava a respiração e se recusava a devolvê-la?

    Vá embora. Volte para seu povo. Ninguém precisa de você aqui.

    Ele se recuperou um pouco, numa última e desesperada tentativa de auto-preservação. Estava sozinho na tempestade, as luzes de Armida haviam desaparecido na escuridão. Virou-se, angustiado, tropeçou, caiu de joelhos, sentiu a mente entorpecida, sentiu que o corpo todo estendia-se na neve. Precisava se levantar, continuar, voltar, alcançar um abrigo... mas sentia-se cansado demais.

    Descansarei aqui por um minuto... apenas por um minuto...

    A escuridão cobriu sua mente, e ele perdeu a consciência.

   

    Damon trabalhou por muito tempo no dispensário estreito, de chão de pedra, e acabou desistindo, frustrado. Não havia a menor possibilidade de preparar kirian, como era feito em Arilinn. Não dispunha da habilidade necessária e também desconfiava de que não dispunha, por uma investigação relativamente meticulosa do equipamento, dos materiais indispensáveis. Contemplou, sem qualquer entusiasmo, a tintura que conseguira produzir. Não gostaria de experimentá-la em si mesmo, e tinha certeza de que Callista se recusaria a usá-la. Enquanto lavava as mãos e descartava os resíduos com extremo cuidado, ele pensou de repente em Andrew. Para onde ele teria ido? Mas quando ele subiu, para encontrar Callista ainda dormindo, Ellemir reagiu com surpresa à sua pergunta preocupada.

    - Andrew? Não, não o vi. Pensei que ele estivesse com você. Devo ir...

    - Continue com Callista.

    Damon refletiu que Andrew devia ter descido para conversar com os homens, ou fora aos estábulos, através do túnel subterrâneo. Mas Dom Esteban, fazendo uma refeição frugal, em companhia de Eduin e Caradoc, franziu o rosto quando interrogado.

    - Andrew? Eu o vi bebendo no salão inferior com Dezi. E pela maneira como bebiam, acho que ele apagou em algum lugar. - As sobrancelhas grisalhas do velho se altearam em desdém. - Um grande comportamento, com a esposa doente, beber até ficar embriagado. Como está Callista?

    - Não sei.

    Ocorreu subitamente a Damon que o velho já sabia. O que mais poderia ser, com Callista doente na cama e Andrew se embriagando? Mas um dos tabus sexuais mais fortes em Darkover era o que separava as gerações. Mesmo que Dom Esteban fosse o pai de Damon, em vez de pai de Ellemir, o costume proibiria a discussão de tal assunto.

    Damon procurou pela casa, em todos os lugares prováveis, e depois, com um pânico crescente, até nos improváveis. Acabou chamando os criados, e foi informado de que ninguém vira Andrew desde o meio da tarde, quando ele estivera bebendo com Dezi no salão inferior.

    Ele mandou chamar Dezi, com o medo repentino de que Andrew, embriagado e ainda não acostumado ao clima darkovano, tivesse saído pela nevasca, subestimando sua força.

    - Onde está Andrew? - perguntou ele, assim que o rapaz entrou na sala.

    Dezi deu de ombros.

    - Como vou saber? Não sou seu guardião, nem seu irmão-de-adoção.

    Mas Damon percebeu tudo, por um brilho momentâneo e indisfarçável de triunfo, antes que os olhos de Dezi se desviassem.

    - Muito bem, Dezi, onde ele está? - insistiu Damon, sombrio. - Você foi o último a vê-lo.

    O rapaz tornou a dar de ombros.

    - Voltou ao lugar de onde veio, eu suponho, e boa viagem!

    - Com este tempo?

    Damon olhou consternado para a tempestade que caía além das janelas. Virou-se outra vez para Dezi, com uma violência que fez o rapaz estremecer e recuar.

    - Você teve uma participação nisso! - murmurou ele, a voz baixa e furiosa. - Mas cuidarei de você mais tarde. Agora, não há tempo a perder!

    Ele saiu correndo, chamando pelos criados.

    Andrew despertou, lentamente, com uma dor intensa nos pés e nas mãos. Estava envolto por mantas e bandagens. Ferrika inclinava-se sobre ele, com alguma coisa quente. Erguendo sua cabeça, ela obrigou-o a engolir. Os olhos de Damon surgiram no nevoeiro, e Andrew, tonto, compreendeu que o outro estava de fato preocupado com ele. Damon se importava. Não era verdade o que Andrew pensara.

    - Creio que o encontramos bem a tempo - disse Damon gentilmente. - Mais uma hora, e não seria possível salvar seus pés e mãos; mais duas horas, e você teria morrido. O que pode lembrar?

    Andrew fez um esforço para recordar.

    - Não muita coisa. Eu estava bêbado. Sinto muito, Damon. Devo ter enlouquecido um pouco. Não parava de pensar: Vá embora, pois Callista não o quer: Era como uma voz dentro de minha cabeça, e tentei fazer o que me dizia, ir embora...   Desculpe causar tanto problema, Damon.

    - Não precisa se desculpar.

    A expressão de Damon era sinistra, e sua raiva como um clarão vermelho palpável a envolvê-lo. .Andrew, sensitivo, via-o como uma rede elétrica de energias, muito diferente do Damon com quem convivia todos os dias. Ele luzia, tremia de fúria.

    - Não foi você quem causou o problema - acrescentou ele. - Houve um truque muito sujo, que quase o matou.

    No instante seguinte, ele voltou a ser o Damon de sempre, esguio, um pouco encimado, pondo a mão gentil no ombro de Andrew.

    - Trate de dormir, não se preocupe com mais nada. Está aqui conosco, e cuidaremos de você.

    Damon deixou Andrew dormindo e foi procurar Dom Esteban. A raiva pulsava em sua mente. Dezi possuía o dom Alton do contato compulsório, podia forçar um vínculo mental com qualquer pessoa, mesmo que não fosse telepata. Andrew, embriagado, seria a vítima perfeita; e conhecendo Andrew, Damon desconfiava que ele não se embriagara por sua livre e espontânea vontade.

    Dezi sentia ciúme de Andrew. Isso ficara patente desde o início. Mas por quê? Será que ele achava que, afastando Andrew, Dom Esteban o reconheceria como o filho de que precisaria então? Ou será que ele pensava em pedir Callista em casamento, na esperança de que isso obrigaria o velho a admitir que eram irmãos? Era um enigma além da compreensão de Damon.

    Talvez fosse possível perdoar um telepata comum que sofresse tamanha tentação, refletiu Damon. Mas Dezi fora treinado em Arilinn, prestara o juramento das Torres, de nunca interferir com a integridade de uma mente, nunca forçar a vontade de outra pessoa, nem controlar sua consciência. Haviam lhe confiado uma matriz, com todo o tremendo poder que isso acarretava.

    E Dezi traíra a confiança nele depositada.

    Não chegara a cometer um assassinato. A sorte e os olhos aguçados de Caradoc permitiram a descoberta de Andrew lá fora, parcialmente coberto pela neve. Mais uma hora, porém, e ele ficaria coberto por completo, o corpo só seria encontrado no degelo da primavera. E o que aconteceria com Callista, se pensasse que Andrew a abandonara? Damon estremeceu, compreendendo que Callista poderia não ter sobrevivido ao dia. Graças a todos os deuses ao mesmo tempo, ela se encontrava num profundo sono drogado na ocasião. Teria de saber - não havia como esconder algo assim numa família telepática -, mas não agora. Dom Esteban ouviu a história com extrema consternação.

    - Eu sabia que havia sangue ruim no rapaz - comentou ele. - Poderia tê-lo reconhecido como meu filho há alguns anos, mas nunca senti que podia confiar nele. Fiz o que podia por Dezi, mantive-o onde poderia vigiá-lo, mas sempre pareceu haver algo de errado com ele.

    Damon suspirou, sabendo que a fúria do velho era acima de tudo por um sentimento de culpa. Seguro, reconhecido, criado como um filho do Comyn, Dezi não precisaria apoiar suas enormes inseguranças na inveja e no rancor ciumento, até chegar a uma tentativa de assassinato. Tudo indicava, refletiu Damon, com tato suficiente para barricar o pensamento do velho, que seu sogro simplesmente relutara em perpetuar ou assumir a responsabilidade por um sórdido episódio de embriaguez.

    A bastardia não era uma desgraça. Para uma mulher, gerar um filho do Comyn era uma honra, tanto para ela quanto para a criança. Apesar disso, o epíteto mais insultuoso na língua casta era traduzido como "gerado-por-seis".

    E até isso poderia ser evitado, Damon sabia, se a mulher fosse monitorada durante a gestação, para determinar de quem fora o sêmen. E Damon pensou, com um sentimento próximo do desespero, que havia algo muito errado na maneira como os telepatas eram usados em Darkover.

    Mas já era tarde demais para mudar tudo isso. Pelo que Dezi fizera, só havia uma penalidade. Damon sabia disso, Dom Esteban sabia disso, e era evidente que o próprio Dezi também sabia. Haviam-no levado, com os pés e as mãos amarrados, meio morto de medo, à presença de Damon, ao final da noite. Fora encontrado no estábulo, selando um cavalo, prestes a sair para a nevasca. Foram precisos três guardas de Esteban para dominá-lo.

    Damon refletiu que seria melhor se ele tivesse escapado. Na tempestade, Dezi encontraria a mesma justiça, a mesma morte que desejara para Andrew, e uma morte sem mutilação. Mas Damon se encontrava obrigado pelo mesmo juramento que Dezi violara.

    Andrew sentiu que ele também teria preferido enfrentar a morte na nevasca, em vez de confrontar a fúria intensa que podia perceber agora em Damon. Mas apesar de tudo, paradoxalmente, Andrew ficou com pena de Dezi, quando o rapaz foi trazido, magro e apavorado, parecendo ainda mais jovem do que era. Dava a impressão de que mal saíra da adolescência, e por isso as cordas que o amarravam pareciam uma monstruosa injustiça e tortura.

    Por que Damon não entregara o problema aos seus cuidados?, especulou Andrew. Teria dado uma surra no rapaz, e para alguém de sua idade, isso deveria ser suficiente. Fora o que dissera a Damon, mas o amigo nem se dera o trabalho de responder. Afinal, era mais do que evidente.

    De outra forma, Andrew nunca mais estaria seguro: da facada pelas costas ao pensamento assassino... Dezi era um Alton, e um pensamento assassino podia matar. Ele já chegara bem perto disso. Dezi não era mais uma criança. Pela lei dos Domínios, podia lutar num duelo, reconhecer um filho, assumir a responsabilidade por um crime.

    Ele olhou agora para Dezi, todo encolhido, e para Damon, com profunda apreensão. Como todos os homens de ira rápida, mas de curta duração, Andrew não tinha qualquer experiência com o ressentimento persistente; nem com a raiva que vira para dentro, devorando o homem furioso tanto quanto a vítima de seu rancor. Era isso o que ele sentia em Damon agora, como uma fornalha com um fogo intenso, as chamas visíveis. O lorde do Comyn parecia implacável, uma expressão inabalável nos olhos.

    - Muito bem, Dezi, não tenho a esperança de que você facilite tudo para mim, e até para si mesmo, mas lhe darei a opção, embora seja mais do que merece. Vai se ajustar à minha ressonância de bom grado e permitir que eu tire sua matriz sem resistir?

    Dezi não respondeu. Seus olhos ardiam num desafio amargo, transbordante de ódio. Era um tremendo desperdício, pensou Damon. O rapaz era muito forte. Estremeceu, querendo se esquivar à intimidade que lhe era forçada, a pior de todas as intimidades, a que existia entre torturador e torturado. Não quero matá-lo, mas provavelmente terei de fazê-lo. Pela misericórdia de. Avarra, não quero sequer machucá-lo!

    Contudo, pensando no que tinha de fazer, Damon não pôde deixar de estremecer. Seus dedos se fecharam, numa pressão espasmódica, sobre a matriz em sua garganta, isolada por couro e seda.

    Ali, sobre a pulsação, sobre o centro reluzente, do canal do nervo principal. Desde que fora entregue a Damon, quando ele tinha quinze anos, e as luzes na pedra despertaram ao contato de sua mente, nunca estivera além do alcance tranqüilizador das pontas de seus dedos. Nenhum outro ser humano jamais a tocara, à exceção de sua Guardiã, Leonie, e por um breve período, em seus anos na Torre, a Subguardiã, Llillaiy Caslamir. O mero pensamento de que podia lhe ser tirada, para sempre, incutia-lhe um temor frio e negro, pior do que morrer. Ele sabia, com cada libra do dom Ridenow, o Laran» da empatia, o que Dezi suportava agora.

    Era ofuscante. Era terrível. Era a mutilação...

    Era a penalidade estipulada pelo juramento de Arilinn para o uso ilegal de uma matriz. E era o que ele devia infligir agora, por lei. Com um último resquício de desafio, Dezi protestou:

    - Sem a presença de uma Guardiã, é assassinato o que você está fazendo. Vai aplicar a pena de assassinato por tentativa de assassinato?

    Embora sentisse todo o terror de Dezi em suas próprias entranhas, Damon manteve a voz sob controle:

    - Qualquer técnico de matriz de competência média... e eu sou um técnico de primeira categoria... pode fazer essa parte do trabalho de uma Guardiã, Dezi. Posso ajustar as ressonâncias e tirar de você com absoluta segurança. Não vou matá-lo. E se não tentar resistir, será muito mais fácil para você.

    - Não! - explodiu Dezi.

    Damon preparou-se para a provação que teria de enfrentar. Podia admirar a tentativa do rapaz de simular coragem, exibir alguma dignidade, teve de lembrar a si mesmo que a coragem era uma impostura num covarde que abusara do laran contra um homem embriagado e desprotegido, a quem ele enchera de bebida com esse propósito. Admirar Dezi agora apenas porque ele não desmoronava e suplicava por misericórdia - como Damon tinha certeza de que ele próprio reagiria - não fazia o menor sentido.

    Ainda sentia as emoções de Dezi - um empático treinado, seu laran desenvolvido ao máximo em Arilinn, não podia bloqueá-las -, mas preparou-se para ignorá-las, focalizando a provação que tinha pela frente. O primeiro passo era o foco interior, em sua própria matriz, deixar que a percepção se expandisse para o campo magnético de seu corpo. Deixou as emoções filtrar-se por seu corpo, como uma Guardiã devia fazer, sentindo-as e aceitando-as, mas sem que o dominassem.

    Leonie lhe dissera uma ocasião que, se fosse mulher, teria se tornado uma Guardiã, mas como homem era sensitivo demais, o trabalho poderia destruí-lo. Por algum motivo, a lembrança deixou-o furioso de novo, e a raiva fortaleceu-o. Por que a sensitividade podia destruir um homem, se era valiosa para uma mulher, se tornava uma mulher capacitada para o mais difícil de todos os trabalhos com a matriz, o de uma Guardiã? Na ocasião, as palavras quase o destruíram; sentira-as como um ataque à sua virilidade. Agora, confirmavam para ele que era capaz de realizar aquela parte do trabalho de uma Guardiã.

    Andrew, observando, ligado de leve a Damon, viu-o outra vez como o contemplara por um momento na noite anterior, velando por Callista adormecida: um campo turbilhonante de correntes se cruzando, centros pulsando, cores suaves luzindo nos centros de pulsação. Pouco a pouco, passou a ver Dezi da mesma maneira, a sentir o que Damon fazia, aproximando seu ritmo de vibração do de Dezi, ajustando os fluxos para que seus corpos - e suas matrizes - vibrassem em perfeita ressonância. Andrew sabia que isso permitiria a Damon tocar na matriz de Dezi sem dor, sem infligir um choque físico ou nervoso bastante forte para produzir a morte.

    Se alguém que não estivesse sintonizado na ressonância precisa tocasse na matriz de outra pessoa, poderia produzir um choque, convulsões, até mesmo a morte, no mínimo uma terrível agonia.

    Andrew viu as ressonâncias se ajustar, pulsar juntas, como se, por um momento, os dois campos magnéticos se fundissem, tornando-se um só. Damon saiu de sua cadeira - para Andrew, parecia uma nuvem de campos de energia ligados, em movimento - e avançou para o rapaz. Abruptamente, Dezi escapou ao controle das ressonâncias de Damon, interrompendo o contato. Foi como uma estrondosa explosão de força. Damon ofegou em angústia pelo rompimento, Andrew sentiu a dor lancinante que se espalhou pelos nervos e cérebro do amigo. Numa reação automática, Damon cambaleou para além do alcance do campo conflitante, firmou-se para tornar a combinar as ressonâncias, no novo campo criado por Dezi. Ele pensou, quase com compaixão, que Dezi entrara em pânico, não seria capaz de suportar quando chegasse o momento.

    As ressonâncias combinadas outra vez, os campos de energia começaram a vibrar em consonância; uma nova tentativa de Dezi para escapar, para remover a matriz fisicamente do campo magnético de seu corpo. E outra vez a angústia intensa quando Dezi rompeu as ressonâncias, apartando-as com uma explosão de dor, que dominou a ambos. Damon murmurou, compadecido:

    - Sei que é difícil, Dezi.

    Interiormente, ele pensou que o rapaz quase que poderia também se tornar Guardiã. Naquela idade, Damon não era capaz de combinar as ressonâncias assim! Mas também nunca se sentira tão desesperado, nem tão atormentado. O rompimento de ressonâncias era obviamente tão doloroso para Dezi quanto para o próprio Damon.

    - Tente não resistir desta vez, meu rapaz. Não quero machucá-lo.

    E nesse instante - estavam abertos um ao outro - ele sentiu o desprezo violento de Dezi por sua tentativa de compaixão e compreendeu que não era absolutamente uma reação de pânico. Dezi apenas se empenhava numa luta feroz! Talvez ele achasse que poderia superar Damon, esgotá-lo por completo. Damon deixou a sala e voltou em seguida com um amortecedor telepático, um estranho aparelho que irradiava uma vibração capaz de arrefecer as emanações telepáticas, dentro de um amplo âmbito de freqüências. Com uma expressão sombria, ele pensou na brincadeira de Domenic na noite de seu casamento com Ellemir. Aqueles aparelhos eram usados às vezes para bloquear o vazamento telepático, quando havia outros telepatas por perto, a fim de resguardar a privacidade, permitir as conversas secretas ou prevenir a escuta telepática involuntária (ou deliberada), Era usado ocasionalmente no Conselho do Comyn, ou para proteger outros, quando havia um adolescente subdesenvolvido ou incontrolável em turbilhão psíquico, antes de aprender ou localizar seus poderes. Damon viu o rosto de Dezi mudar, assumir um pânico genuíno, através do desafio. Em tom impassível, ele advertiu a Andrew:

    - Saia do alcance, se quiser. Isto pode machucá-lo. Terei de usar o aparelho para amortecer as freqüências que ele tenta levantar.

    Andrew balançou a cabeça.

    - Ficarei aqui.

    Damon captou o pensamento de Andrew: Não vou deixá-lo sozinho com ele. Agradecido pela lealdade do amigo, Damon ajoelhou-se e começou a ajustar o amortecedor.

    Não demorou muito a sintonizá-lo, amortecendo a investida de Dezi contra sua percepção. Depois disso, foi apenas uma questão de observar suas ressonâncias alcançarem o campo físico de vibrações de Dezi. Desta vez, quando ele entrou nos campos interligados, o amortecedor bloqueou o impulso mental de Dezi para alterar as freqüências e assim se esquivar. Foi doloroso e difícil avançar sob o amortecedor, algo que ele pensava que só uma Guardiã experiente seria capaz de fazer, com o aparelho na potência máxima. Parecia, em termos físicos, que tivera de se deslocar por algum líquido espesso e viscoso, que prendia os braços e as pernas, puxava o cérebro. Dezi passou a pular como se estivesse enlouquecido, à medida que ele se adiantava. Mas era inútil, e ele sabia disso. Dezi podia se esgotar no esforço para mudar freqüências, mas não conseguiria agora alterar as de Damon; e quanto mais modificasse as suas, mais doloroso seria o choque final.

    Gentilmente, Damon tocou na pequena bolsa de seda isolante no pescoço de Dezi. Seus dedos tatearam para desfazer o laço. Dezi recomeçara a gemer e se debater, e seu empenho, como um coelho numa armadilha, encheu Damon de compaixão, embora o terror do rapaz fosse agora contido pelo amortecedor. Damon conseguiu abrir a bolsa. A pedra azul, pulsando, reluzindo com o terror de Dezi, caiu em seus dedos. Ao fechar a mão, ele sentiu o espasmo dilacerante e viu Dezi arriar, como se abatido por um golpe devastador. Especulou, angustiado, se matara o rapaz. Levou a matriz para o campo do amortecedor, viu-a aquietar-se para uma tênue pulsação, um ritmo de repouso. Dezi estava inconsciente, a cabeça pendendo para um lado, uma espuma nos lábios cortados. Damon teve de se endurecer, lembrar Andrew, inconsciente, num sono letal na morte, pensar na agonia de Callista se despertasse para se descobrir abandonada ou viúva, pela traição, antes de ter condições de anunciar:

    - Está feito.

    Ele manteve a matriz por alguns minutos sob o amortecedor, esperou que se desvanecesse, com as luzes pulsantes mais leves. Continuava viva, mas sua força [ora reduzida a um ponto em que não podia ser usada para ampliar o laran.

    Damon lançou um olhar compadecido para Dezi, sabendo que o cegara. O rapaz estava pior agora do que Damon ao ser enviado para Arilinn. Apesar do crime de Dezi, Damon não podia deixar de sentir pena do rapaz, tão talentoso, um poderoso telepata, com um potencial maior do que muitos que trabalhavam nas redes das Torres. Pelos infernos de Zandru, pensou Damon, que tremendo desperdício! E fora ele quem o mutilara.

    - Vamos acabar logo com isso, Andrew - murmurou ele, cansado. - Pode me passar essa caixa?'

    Ele a pegara com Dom Esteban, que retirara algumas jóias que guardava ali. Ao pôr a matriz na caixa e fechar a tampa, Damon se lembrou do antigo conto de fadas: o gigante mantinha seu coração fora do corpo, no lugar mais secreto que pudera encontrar, e assim não podia ser morto, até que descobrissem seu coração escondido. Ele explicou rapidamente a Andrew, enquanto ajustava a pequena tranca de matriz da caixa, usando a sua própria pedra:

    - Não podemos destruir a matriz, pois Dezi morreria. Mas ficará guardada aqui dentro com a tranca de matriz, e nada poderá jamais abrir esta caixa, a não ser minha própria matriz, sintonizada para o padrão.

    A caixa trancada foi guardada num cofre, Damon voltou e inclinou-se sobre Dezi, verificando sua respiração, o coração disparado.

    Ele sobreviveria.

    Mutilado... cego mental... mas sobreviveria. Damon sabia que, se estivesse no lugar do rapaz, teria preferido morrer.

    Empertigando-se, Damon escutou o som da tempestade lá fora por um momento. Sacou a adaga e cortou as cordas que prendiam o rapaz, pensando que seria mais gentil cortar sua garganta. Ele não gostaria de viver assim. Sua terrível luta teria sido apenas um meio de tentar o suicídio?

    Damon suspirou, pôs algum dinheiro numa bolsa ao lado do rapaz e murmurou consternado para Andrew:

    - Dom Esteban me entregou esse dinheiro para dar a ele. Dezi provavelmente irá para Thendara, onde Domenic lhe prometeu uma vaga de cadete. Não pode causar muito mal ali, trabalhando na Guarda, e talvez consiga desenvolver uma carreira. Domenic o ajudará... afinal, sempre existe um senso de lealdade de família. Dezi nem mesmo terá de lhe confessar o que fez. Ele ficará bem.

    Mais tarde, contando a Ellemir o que fizera, enquanto Andrew velava por Callista ainda adormecida, Damon repetiu:

    - Eu não gostaria de viver nessas circunstâncias. Quando me inclinei sobre ele, a fim de cortar as cordas que o prendiam, perguntei-me se não seria melhor matá-lo. Mas consegui sobreviver depois que me mandaram embora de Arilinn. Dezi deve ter a mesma oportunidade.

    Ele suspirou, recordando o dia em que deixara Arilinn, cego, atordoado pelo rompimento dos vínculos do círculo da Torre, a ligação mais íntima entre os que tinham laran, mais íntima que os laços de família, mais forte do que a união entre amantes, entre marido e mulher...

    - Superei a vontade de morrer - acrescentou Damon -, mas muito tempo se passou antes que eu quisesse viver de novo.

    Abraçando Ellemir, ele pensou: Não até que encontrei você. Os olhos de Ellemir se encheram de ternura, mas depois ela contraiu os lábios e disse:

    - Você deveria tê-lo matado.

    Damon, pensando em Callista adormecida, sem saber que estivera bem perto da morte, achou que se tratava apenas de amargura. Andrew era o marido de sua irmã, Ellemir estivera ligada a ele por uma matriz, durante a longa busca por Callista, e todos haviam se unido no breve e espontâneo momento de partilha, antes que fossem apartados pelo reflexo automático que Callista não podia controlar. Como Ellemir, Damon também estivera vinculado a Andrew, sentindo sua força e gentileza, ternura e paixão... e aquele era o homem que Dezi tentara matar, por rancor. Dezi, que se ligara a Andrew quando curavam os homens congelados, também o conhecia, sabia de sua bondade e qualidades. Ellemir repetiu, implacável:

    - Você deveria tê-lo matado.

    Por muitos meses, Damon não compreendeu que não era apenas amargura, mas precognição.

    Na manhã em que a tempestade cessou, Dezi, levando o dinheiro que Damon deixara ao seu lado, suas roupas e seu cavalo de sela, deixou Armida. Damon esperava, quase com um sentimento de culpa, que ele conseguisse sobreviver de alguma forma e chegasse são e salvo a Thendara, onde ficaria sob a proteção de Domenic. Afinal, Domenic, como herdeiro de Alton, era meio-irmão de Dezi. Damon tinha certeza disso agora; ninguém que não tivesse sangue inteiro do Comyn poderia oferecer tanta resistência.

    Domenic cuidaria dele, pensou Damon. Mas persistiu a sensação de que havia um peso em seu coração, e nada podia removê-lo.

   

    Andrew estava sonhando...

    Vagueava pela nevasca, que podia ouvir lá fora, a neve e o granizo caindo em torno de Armida, tangidos pelos ventos furiosos. Mas ele nunca vira Armida. Estava sozinho, vagueando numa região erma, sem qualquer trilha, sem casas, sem nenhum abrigo, como acontecera quando o avião de mapeamento caíra e se descobrira abandonado num mundo estranho. Cambaleava pela neve, o vento doía em seus pulmões e uma voz sussurrava, como um eco em sua mente: Não há nada para você aqui.

    E, de repente, ele avistou a moça.

    E a voz em sua mente sussurrou: Tudo isso já aconteceu antes. Ela usava uma camisola frágil e rasgada, e Andrew pôde contemplar sua carne pálida através dos rasgões. Só que a camisola não era agitada pelos ventos impetuosos, a tempestade não desmanchava seus cabelos. Ela não estava ali, era um fantasma, um sonho, uma moça que não existia, e no entanto ele sabia, em outro nível de realidade, que era Callista, que era sua esposa. Ou isso fora apenas um sonho dentro de um sonho, que tivera quando se encontrava caído na tempestade, e ali ficaria, continuando o sonho até morrer...? Ele começou a se debater, ouviu seu próprio grito...

    E a nevasca desapareceu. Estava deitado em seu próprio quarto, em Armida. A tempestade ainda caía lá fora, já começando a definhar, o fogo no quarto minguara para carvões em brasa. Pela claridade, ele pôde divisar os contornos vagos de Callista... ou seria Ellemir, que dormia ao lado da irmã desde a noite em que o reflexo psíquico, que Callista não podia controlar, quase destruíra os dois, no meio do ato de amor?

    Durante os primeiros dias depois da tentativa de assassinato por parte de Dezi, Andrew quase nada fizera além de dormir, sofrendo os efeitos posteriores da concussão, do choque e da exposição ao frio. Ele tocou agora no ferimento ainda não curado por completo na testa. Damon tirara os pontos dois dias antes, e as beiras da crosta começavam a sair. A cicatriz seria pequena. Não precisava de nenhuma cicatriz para lembrá-lo de como fora arrancado dos braços de Callista por uma força que parecia um raio atingindo seu corpo. Recordou que isso fora uma das formas prediletas de tortura, nos velhos tempos na Terra, um eletrodo ligado aos órgãos genitais. Só que não fora culpa de Callista, e o choque de saber o que fizera quase a matara também.

    Ela continuava de cama, e Andrew tinha a impressão de que seu estado não melhorara. Damon, ele sabia, andava muito preocupado com Callista. Medicava-a com poções de ervas de cheiro estranho, discutia suas condições com palavras que Andrew não entendia muito bem, talvez apenas uma em dez. Ele sentia-se tão inútil quanto uma quinta perna num cavalo. E mesmo quando começou a se recuperar, teve vontade de sair e fazer alguma coisa, não pôde sequer se distrair com o trabalho intenso e árduo, como faria no rancho de sua infância. Com a temporada das nevascas em pleno andamento, todas as atividades externas haviam cessado por completo. Um punhado de criados, usando túneis subterrâneos, cuidava dos cavalos de sela e dos animais que forneciam leite para a casa, enquanto outros trabalhavam na estufa. Andrew tinha o comando nominal de todos, mas não havia nada que precisasse fazer.

    Sem Callista, não havia nada para prendê-lo ali, e não ficara a sós com ela, por um instante sequer, desde aquela noite desastrosa. Damon insistira para que Ellemir dormisse ao lado de Callista, alegando que ela não devia se sentir sozinha em momento algum, nem mesmo no sono, e que sua irmã gêmea era a pessoa mais indicada para lhe fazer companhia.

    Ellemir cuidava da irmã, incansável, noite e dia. Em determinado nível, Andrew sentia-se grato pelos ternos cuidados de Ellemir, pois havia bem pouco que ele pudesse fazer por Callista agora. Ao mesmo tempo, porém, havia um ressentimento, pelo isolamento da esposa, pela maneira como isso enfatizava a fragilidade dos laços que o prendiam a Callista.

    Gostaria de cuidar dela, ajudá-la a se recuperar... mas nunca o deixavam a sós com Callista, o que também o deixava ressentido. Será que pensavam que, se ficasse a sós com Callista, ele a atacaria, como um animal selvagem, tentando estuprá-la? A verdade, pensou ele, amargurado, é que era bem mais provável que sempre sentisse medo de tocá-la, até com a ponta do dedo. Queria apenas ficar com ela. Disseram-lhe que Callista precisava saber que ele ainda a amava, mas se comportavam como se fosse inadmissível deixá-los a sós...

    Percebendo que apenas repassava as suas frustrações, obcecado, interminável, pensando em coisas sobre as quais não tinha qualquer controle, Andrew virou-se para o lado, tentou dormir de novo. Procurou-a com seus pensamentos, sentiu o contato vago em sua mente. Ela se encontrava num sono profundo, drogada com outra poção de ervas, preparada por Damon ou Ferrika. Ele bem que gostaria de saber o que estavam dando a Callista, e por quê. Confiava em Damon, mas seria bom se o amigo também confiasse nele, pelo menos um pouco.

    E a presença de Ellemir era outro motivo de irritação, tão parecida com a irmã, mas saudável e rosada, enquanto Callista era pálida e doente... Como Callista deveria ser. A gravidez, embora abortada tão cedo, suavizara o corpo de Ellemir, realçara o contraste com a magreza da irmã. Mas ele não devia pensar em Ellemir. Ela era a irmã de sua esposa, casada com seu melhor amigo, a mais proibida de todas as mulheres para ele. Além do mais, Ellemir era uma telepata, captaria seus pensamentos e ficaria embaraçada. Damon lhe dissera uma ocasião que numa família telepática um pensamento lascivo era o equivalente psicológico do estupro. Não se sentia tão atraído assim por Ellemir - ela era apenas sua cunhada - o problema era que ela o fazia pensar em Callista, como sua esposa poderia ser, se fosse saudável, livre da influência daquela amaldiçoada Torre...

    Callista fora tão gentil com ele...

    Depois de um longo tempo, Andrew resvalou para o sono e recomeçou a sonhar...

    Estava no pequeno abrigo de pastores para onde Callista, movendo-se pelo mundo superior, o mundo do pensamento o da ilusão, o levara, através da nevasca, depois da queda do avião. Não, não era o abrigo; era a estranha estrutura ilusória que Damon erguera em suas mentes, sem nada de real além da visualização, mas tendo solidez no mundo do pensamento, e assim ele podia ver os tijolos e as pedras. Despertou, como acontecera naquela ocasião, numa tênue claridade, para ver a moça deitada a seu lado, uma forma meio indefinida, imóvel, adormecida. Como fizera antes, Andrew estendeu as mãos para ela, apenas para descobrir que não se encontrava ali, que não viera para este plano, mas que sua forma, através do mundo superior, explicado como uma rede de energia que reproduzia o mundo real, projetara-se ao seu encontro, através do espaço e talvez do tempo também, para escarnecer dele. Mas Callista não escarnecera.

    Fitou-o com um sorriso solene, como fizera naquela ocasião, e disse, com um brilho de malícia nos olhos: "Ah, isto é muito triste! A primeira vez em que deito com um homem, e não sou capaz de desfrutar!"

    "Mas você está comigo agora, minha amada", sussurrou Andrew, estendendo as mãos. E desta vez ela se encontrava mesmo ali, veio para os seus braços, ardente e apaixonada, erguendo a boca para a sua, comprimindo-se contra seu corpo com uma ansiedade tímida, como outrora fizera, embora só por um instante.

    "Isso não prova que chegou o momento, amor?" Ele puxou-a, e seus lábios se encontraram, os corpos se fundiram. Andrew sentiu de novo toda a ânsia e urgência da necessidade, mas tinha medo. Havia algum motivo para que não a tocasse... e de repente, no instante de tensão e medo, ela sorriu-lhe, e era Ellemir, tão parecida e tão diferente da irmã.

    Ele exclamou "Não!", e empurrou-a, mas as mãos de Ellemir, pequenas e fortes, o puxaram. Ela tornou a sorrir e disse: "Pedi a Callista para avisar a você que estou disposta, conforme a balada de Hastur e Cassilda." Ele olhou ao redor, avistou Callista, contemplando os dois, e sorrindo...

    E Andrew despertou com um sobressalto de choque e vergonha, sentou na cama, olhou frenético ao redor, para ter certeza de que nada acontecera, absolutamente nada. Já era dia, e Ellemir, com um bocejo sonolento, saiu da cama, ficou de pé, numa camisola fina. Andrew apressou-se em desviar os olhos.

    Ellemir nem sequer notou - não era um homem para ela - e pôs-se a circular pelo quarto meio despida ou vestida, mantendo-o nervoso, com alguma frustração, que não chegava a ser sexual... Andrew teve de lembrar a si mesmo que estava no mundo deles, e lhe cabia se acostumar aos costumes locais, não tentar impor os seus. Era apenas seu estado de frustração, somado ao realismo vergonhoso do sonho, que o deixava quase que angustiosamente consciente da presença de Ellemir. Ela tinha uma expressão séria nos olhos, mas sorriu, e de repente ele se lembrou do sonho, teve certeza de que a cunhada o partilhara de alguma forma, que seus pensamentos e desejos haviam se infiltrado nos sonhos de Ellemir.

    Mas, afinal, que tipo de homem eu sou? Minha, esposa está de cama, doente, pode até morrer, e eu fico acalentando pensamentos libidinosos por sua irmã. gêmea... Ele tentou desviar os olhos, torcendo para que Ellemir não captasse seus pensamentos. A esposa do meu melhor amigo!

    Contudo, a lembrança das palavras no sonho persistiam em sua mente: Pedi a Callista para avisar a você que estou disposta...

    Ela tornou a sorrir, mas parecia perturbada. Andrew sentiu que devia apresentar um pedido de desculpas por seus pensamentos. Mas antes que pudesse falar, Ellemir disse gentilmente:

    - Está tudo bem, Andrew.

    Por um momento, ele não pôde acreditar que a cunhada pronunciara as palavras em voz alta. Piscou, aturdido, tentou pensar em alguma coisa para dizer, mas Ellemir pegou suas roupas, foi para o banheiro.

    Andrew aproximou-se da janela, contemplou a tempestade já definhando. Até onde podia avistar, tudo era branco, um pouco avermelhado pela luz do enorme sol vermelho, espiando através das nuvens. O vento agitara a neve, que parecia agora como ondas de um oceano branco e sólido, estendendo-se para as colinas indistintas. Andrew experimentou a sensação de que o vento refletia seu ânimo: cinzento, desolado, insuportável.

    Como era frágil, no final das contas, o vínculo que o prendia a Callista! E, no entanto, ele sabia que nunca poderia voltar. Descobrira profundezas demais dentro de si, coisas estranhas que nunca imaginara. O velho Carr, o Andrew Carr do Império Terráqueo, deixara de existir por completo naquele dia distante em que Damon os reunira a todos em contato, através da matriz. Andrew fechou os dedos em torno da pequena bolsa isolante pendurada em seu pescoço e compreendeu que era um gesto darkovano, que já vira Damon fazê-lo uma centena de vezes. Nesse gesto automático, ele percebeu outra vez a estranheza do seu novo mundo.

    Nunca poderia voltar. Devia construir uma vida nova ali, ou passar os anos que lhe restavam como um fantasma, um nada, um zero à esquerda.

    Até poucas noites atrás, ele se acreditava no caminho para a construção dessa vida nova tinha um trabalho valioso a realizar, uma família, amigos, um irmão e uma irmã, um segundo pai, uma esposa amante e amada. E de repente, no estrondo de um raio invisível, todo o seu novo mundo desmoronara, e toda a estranheza voltara a envolvê-lo. Começara a se afogar, a afundar... Até mesmo Damon, em geral tão íntimo e amigo, seu irmão, tornara-se frio e estranho.

    Ou seria o próprio Andrew que agora via estranheza em tudo e em todos?

    Ele percebeu que Calista se mexia, e subitamente apreensivo, com receio de que seus pensamentos a perturbassem, pegou suas roupas, foi tomar um banho e se vestir.

    Quando voltou, Callista já despertara, e Ellemir a aprontara para o dia, lavando-a, vestindo uma camisola limpa, trançando seus cabelos. O desjejum já fora trazido, e Damon o esperava à mesa em que faziam as refeições, desde o início da doença de Callista. Mas Ellemir continuava de pé, ao lado da cama de Callista, perturbada. No momento em que Damon entrou no quarto, ela disse, com uma profunda inquietação na voz:

    - Gostaria que deixasse Ferrika examiná-la, Callista. Sei que ela é jovem, mas foi preparada na Casa da Guilda das Amazonas, e é a melhor parteira que já tivemos em Armida. Ela...

    - Os serviços de uma parteira são a última coisa que preciso neste momento - comentou Callista, com amarga ironia - ou poderei precisar no futuro.

    - Mas ela é competente em todos os problemas das mulheres, Callista. Pode ajudá-la mais do que eu. O que você acha, Damon? - Ele se levantara e estava parado junto da janela, olhando para a neve. Virou-se e fitou-as, franzindo o rosto.

    - Ninguém tem mais respeito do que eu pelos talentos e treinamento de Ferrika, Elli. Mas não sei se ela possui a experiência necessária para lidar com isso. Não é uma coisa comum, nem  mesmo nas Torres.

    Andrew interveio:

    - Não entendo nada disso. É apenas o início da menstruação? Se é esse o caso, Callista, haveria algum mal em Ferrika examiná-la?

    Callista sacudiu a cabeça.

    - Não. Isso já acabou há alguns dias. Acho... - Ela olhou para Damon, rindo. - ...que sou apenas preguiçosa, tirando proveito das fraquezas femininas.

    - Eu bem que gostaria que fosse apenas isso. - Damon foi sentar à mesa. - Seria ótimo se você pudesse se levantar hoje.

    Ele observou-a passar manteiga num pão-de-noz quente. Callista mordeu um pedaço e mastigou, mas Andrew não a viu engolir. Ellemir partiu um pedaço de pão e comentou:

    - Temos uma dúzia de criadas na cozinha, mas basta eu passar um ou dois dias sem aparecer por lá, e o pão não fica bom!

    Andrew achou que o pão estava como sempre, quente, flagrante, a farinha engrossada com noz, que era a dieta básica de Darkover. Era fragrante, com ervas e especiarias, e saboroso, mas Andrew descobriu-se ressentido contra qualquer gosto estranho. Callista também não comia, e Ellemir, aflita, perguntou:

    - Quer que eu mande trazer outra coisa para você, Callista?

    - Não precisa, Elli - respondeu Callista, balançando a cabeça. - Eu não conseguiria comer. Não estou com fome...

    Fazia dias que ela não comia quase nada. Em nome de Deus, pensou Andrew, o que a aflige?

    - Está vendo, Callista? - disse Damon, com uma repentina aspereza. - É o que eu falei! Há quanto tempo você trabalha com a matriz... nove anos? Sabe o que significa quando não se consegue comer!

    Os olhos de Callista ficaram assustados.

    - Tentarei, Damon. Juro que tentarei.

    Ela pegou uma colher da fruta cozida em seu prato, engoliu com relutância. Damon observou-a, ansioso, pensando que não fora essa a sua intenção, forçá-la a simular fome quando não sentia nenhuma. Tornando a olhar para a neve, tingida de púrpura pela claridade do amanhecer, ele murmurou:

    - Se o tempo melhorar, mandarei alguém a Neskaya. Talvez a leronis possa vir cuidar de você.

    - Parece que já está melhorando - disse Andrew. Mas Damon balançou a cabeça.

    - Vai nevar com mais intensidade do que nunca até o anoitecer. Conheço o tempo nestas colinas. Se alguém partisse esta manhã, seria obrigado a parar por volta de meio-dia.

    E, de fato, pouco depois de meio-dia a neve voltou a cair, em imensos flocos brancos, lentamente a princípio, depois com uma intensidade cada vez maior, num fluxo que não encontrava resistência, encobrindo por completo a paisagem, apagando os contornos das colinas. Andrew observou, com incredulidade e indignação, enquanto circulava pelos estábulos e estufa, efetuando todos os movimentos de supervisão dos criados. Como algum céu podia despejar tanta neve?

    Ele tornou a subir ao final da tarde, assim que concluiu o trabalho mínimo, que era tudo o que se podia fazer com aquele tempo. Como sempre acontecia quando se afastava de Callista por algum tempo, ele ficou consternado. Parecia que desde aquela manhã ela se tornara ainda mais pálida e mais magra, dava a impressão de ser dez anos mais velha do que a irmã gêmea. Mas seus olhos brilharam ao vê-lo, e quando ele pegou as pontas de seus dedos, Callista agarrou sua mão, na maior ansiedade.

    - Ficou sozinha, Callista? Onde está Ellemir?

    - Ela  foi passar algum  tempo com  Damon.  Os pobres-coitados quase não ficam a sós ultimamente, um ou outro está sempre comigo. - Ela mudou de posição, com a pontada de dor que parecia nunca abandoná-la. - Pela misericórdia de Avarra, já  me cansei de  ficar nesta cama!

    Andrew inclinou-se, levantou-a em seus braços.

    - Pois então ficará um pouco em meu colo.

    Ele carregou-a para uma cadeira junto da janela. Callista parecia uma criança em seus braços, leve e inerte. Encostou a cabeça, exausta, no ombro de Andrew. Ele sentia uma ternura profunda, sem desejo... como algum homem poderia perturbar aquela jovem doente com o desejo? Embalou-a gentilmente para a frente e para trás.

    - Conte-me o que tem acontecido, Andrew. Tenho estado tão isolada que o mundo poderia acabar, e eu nem saberia!

    Andrew gesticulou para o mundo branco e informe de neve além da janela.

    - Não tem acontecido muita coisa, como pode constatar. Não há nada para contar, a menos que você esteja interessada em saber quantas frutas estão amadurecendo na estufa.

    - É bom saber que não foram destruídas pela tempestade. As vezes as janelas quebram, e as plantas morrem, mas ainda é cedo para que isso possa acontecer.

    Callista arriou o corpo em seu colo, como se o esforço de falar fosse demasiado. Andrew ficou sentado assim, com a esposa em seu colo, contente por ela não se afastar, por dar a impressão de que ansiava pelo contato, tanto quanto antes o temia. Talvez ela estivesse certa: agora que os ciclos normais de mulher madura haviam recomeçado, o condicionamento da Torre poderia ser superado, com tempo e paciência. Ela mantinha os olhos fechados, parecia adormecida.

    Assim permaneceram por algum tempo, até que Damon entrou no quarto, parou abruptamente, em choque e consternação. Abriu a boca para falar, mas Andrew captou a mensagem urgente e assustada direto de sua mente:

    Andrew, largue-a depressa! Afaste-se dela!

    Andrew ergueu a cabeça, em profunda irritação, mas reagiu depressa à aflição do pensamento de Damon, levantou-se e levou Callista de volta à cama. Ela se encontrava imóvel, inconsciente.

    - Há quanto tempo ela está assim? - perguntou Damon.

    - Há poucos minutos - respondeu Andrew, na defensiva. - Estávamos conversando.

    Damon suspirou.

    - Pensei que podia confiar em você... pensei que entendia a situação.

    - Ela não tem medo de mim, Damon... e queria ficar em meu colo! Os olhos de Callista se abriram. Pareciam desprovidos de cor, na tênue claridade do quarto.

    - Não o censure, Damon. Eu não agüentava mais ficar na cama. Juro que me sinto melhor. Pensei em pedir minha harpa esta noite, para tocar um pouco. Estou cansada de não fazer nada.

    Damon fitou-a com uma expressão cética, mas disse:

    - Mandarei trazê-la, se é o que você quer.

    - Eu vou buscar. - propôs Andrew.

    Se Callista se sentia bastante bem para tocar a harpa, com certeza estava melhorando! Andrew desceu para o Grande Salão, encontrou um criado, pediu-lhe que fosse pegar a harpa de Dama Callista. O homem trouxe o pequeno instrumento, não muito maior que uma guitarra terráquea, dentro de uma caixa de madeira toda esculpida.

    - Quer que eu a leve lá para cima, Dom Ann'dra?

    - Pode deixar que eu mesmo levo. Uma criada disse:

    - Transmita nossos parabéns à dama, e diga que todos esperamos que muito em breve ela possa recebê-los pessoalmente.

    Andrew praguejou, incapaz de se conter. Pediu desculpas no mesmo instante - afinal, a mulher tinha as melhores intenções. E o que mais os criados poderiam pensar? Callista estava de cama havia dez dias, nenhuma criada tivera permissão para servi-la, só a irmã cuidava dela. Alguém poderia culpá-los por pensarem que Callista engravidara, e que a irmã e o marido tomavam todo o cuidado para evitar que a criança sofresse o mesmo destino da filha de Ellemir? Ele acabou dizendo, sabendo que sua voz soava trêmula:

    - Agradeço por... por seus desejos gentis, mas minha esposa não teve a felicidade...

    Ele não pôde continuar. Aceitou os murmúrios de compaixão em silêncio, e tratou de escapar o mais depressa possível.

    Parou na ante-sala das suítes, ouvindo a voz de Damon alteada em raiva:

    - Não adianta, Callista, e você sabe disso! Não consegue comer, não dorme se eu não a drogar! Esperava que tudo se resolvesse depois que sua menstruação veio espontaneamente, mas olhe só para você!

    Callista murmurou alguma coisa que Andrew não conseguiu entender, percebeu apenas o protesto nas palavras.

    - Seja franca, Callista. Foi leronis em Arilinn. Se uma pessoa lhe fosse Evanda nesse estado, o que você faria? - Uma breve pausa. - Então sabe o que tenho de fazer... e depressa!

    - Não, Damon!

    Era um grito de desespero.

    - Bredu, eu lhe prometo que tentarei...

    - Oh, Damon, dê-me mais algum tempo! - Damon ouviu-a chorando. - Farei um esforço para comer, eu prometo. Já me sinto melhor, sentei hoje por mais de uma hora, pergunte a Ellemir. Não pode me dar mais algum tempo, Damon?

    Um silêncio prolongado, depois Damon praguejou e saiu do quarto. Já ia passar por Andrew sem dizer nada, mas o terráqueo agarrou-o pelo braço.

    - Qual é o problema? - O que disse a ela que a deixou tão transtornada?

    Damon olhava além dele, e Andrew teve o pensamento inquietante de que o amigo se encontrava longe dali.

    - Ela não quer que eu faça o que tenho de fazer. - Ele viu a caixa da harpa e acrescentou, desdenhoso: - Acha mesmo que ela está bastante bem para tocar?

    - Não sei - respondeu Andrew irritado. - Só sei que ela me pediu.

    Abruptamente, lembrando o que os criados haviam dito, ele sentiu que não podia mais suportar.

    - Damon, qual é o problema com Callista? Todas as vezes que perguntei, você se esquivou.

    Com um suspiro, Damon sentou, baixou a cabeça para as mãos.

    - Duvido que eu possa explicar. Você não foi treinado na matriz, não conhece a linguagem, nem mesmo os conceitos.

    - Tente me explicar de uma forma simples.

    - Não é possível. - Damon tornou a suspirar, ficou calado, pensando, antes de acrescentar: - Eu lhe mostrei os canais, em Callista e Ellemir.

    Andrew acenou com a cabeça, recordando as linhas luminosas e os centros pulsantes, tão claros em Ellemir, tão inflamados e lentos em Callista.

    - Basicamente, o que a aflige é a sobrecarga nos canais nervosos. - Damon percebeu que Andrew não entendera. - Eu lhe expliquei como os mesmos canais transmitem as energias sexuais e as forças psíquicas, embora não ao mesmo tempo. Ao ser treinada para Guardiã, Callista aprendeu técnicas para evitar qualquer capacidade de reação sexual, por menor que fosse... para nem mesmo ter consciência disso. Está claro até aqui?

    - Acho que sim.

    Andrew imaginou todo o sistema sexual de Callista sendo anulado para que pudesse usar todo o corpo como um transformador de energia. Oh, Deus, que coisa terrível para se fazer com uma mulher!

    - Muito bem, vamos continuar. No adulto normal, os canais funcionam de forma seletiva. Desligando as forças psíquicas quando os canais  são  necessários  para  as  energias  sexuais,  desligando  o  impulso sexual quando o uso é psíquico. Lembra que você ficou impotente por uns poucos dias depois do trabalho com a matriz? Normalmente, quando uma Guardiã renuncia a seu trabalho e porque os canais reverteram aos níveis normais, à seletividade normal. Ela não é mais capaz, como uma Guardiã deve ser, de permanecer completamente livre de todo e qualquer resquício de energia sexual nos canais. É evidente que Callista deve ter pensado que isso já ocorrera em seus canais, porque sentiu que reagia a você. E isso aconteceu por um momento, como sabe.

    Ele se mostrou hesitante, e Andrew, relutando em recordar o instante do contato a quatro, não querendo admitir que Damon também participara, limitou-se a acenar com a cabeça, sem levantar os olhos.

    - Vamos continuar. Se uma Guardiã normal... uma Guardiã em pleno funcionamento, com o condicionamento intacto, os canais desobstruídos... é atacada, sempre pode se defender. Si', por exemplo, você não fosse o marido de Callista, alguém a quem ela concedera o direito, se fosse um estranho tentando estuprá-la, seria destruído. Estaria morto agora, e Callista... ora, suponho que ela ficaria chocada e doente, mas teria se recuperado depois de uma boa refeição e algum sono. Mas isso não aconteceu.

    - Oh, Deus! - murmurou Andrew, atordoado. Não é em você que eu não confio, meu marido...

    - Ela deve ter acreditado que já se achava preparada, ou nunca se arriscaria. E quando percebeu que não estava pronta... naquela fração de segundo antes de repeli-lo com o reflexo que não podia controlar... ela sofreu um refluxo em seu próprio corpo. Foi isso o que salvou sua vida, Andrew. Se todo aquele fluxo de energia passasse por você, pode imaginar o que teria acontecido?

    Andrew podia, mas descobriu que preferia não fazê-lo.

    - Deve ter sido esse choque que provocou sua menstruação. Observei-a com todo cuidado, até ter certeza de que ela não estava entrando em crise. Depois, pensei que a menstruação, com o dreno normal de energia que as mulheres sofrem nessas ocasiões, acabaria com a sobrecarga e desobstruiria os canais. Mas não foi o que aconteceu. - Damon franziu o rosto. - Eu gostaria de saber exatamente o que Leonie fez com ela. Enquanto isso, pedi para você não tocá-la. E deve atender ao meu pedido.

    - Receia que ela possa me repelir outra vez? Damon balançou a cabeça.

    - Não creio que Callista tenha forças para isso agora. De certa forma, a situação é pior. Ela reage a você fisicamente, mas os canais permanecem obstruídos, e assim não há como transmitir as energias sexuais do modo normal. Há dois conjuntos de reflexos operando ao mesmo tempo, um interferindo com o outro, inibindo as funções normais.

    - Estou me sentindo mais confuso do que nunca - murmurou Andrew, baixando a cabeça para as mãos.

    Damon empenhou-se em simplificar ainda mais:

    - Uma mulher treinada como Guardiã precisa às vezes coordenar oito ou dez telepatas. Trabalhando nas redes, ela tem de canalizar toda essa energia através de seu próprio corpo. Manipula pressões psíquicas tão grandes quanto... - Ele captou a analogia da mente de Andrew. - ...um transformador de energia. Por isso, não pode, não ousa confiar na seletividade normal do adulto comum. Precisa manter os canais total e permanentemente abertos para as forças psíquicas. Lembra o que disse minha irmã Marisela?

    Eles ouviram juntos, um eco na mente de Damon: Nos velhos tempos, em que Guardiãs de Arilim não podiam deixar seus postos mesmo que quisessem... As Guardiãs de Arilinn não são mulheres, mas emmasca...

    - As Guardiãs não são mais neutralizadas, é claro. Baseiam-se agora nos votos de virgindade e no intenso condicionamento antisexual para manter os canais totalmente abertos. Mas uma Guardiã, no final das contas, é uma mulher, e se ela se apaixona, pode começar a ter reações sexuais, porque os canais retornaram à seletividade normal, para as forças psíquicas ou impulsos sexuais. Tem de deixar de atuar como Guardiã, porque os canais não mais se encontram livres. Ainda pode manipular o trabalho psíquico comum, mas não tem condições de absorver as enormes pressões de uma Guardiã nas redes de energia... bom, você não sabe muito sobre isso, e não tem importância. Na prática, uma Guardiã cujo condicionamento falhou geralmente renuncia por completo ao trabalho de Leronis. Acho que é uma tolice, mas é esse o nosso costume. Seja como for, Callista esperava que, depois que começasse a reagir a você, passaria a usar os canais de forma seletiva, como qualquer telepata maduro normal.

    - E por que isso não aconteceu? - perguntou Andrew.

    - Não sei - respondeu Damon, em desespero. - Nunca vi nada assim antes. Não quero acreditar que Leonie alterou os canais para que não pudessem operar seletivamente, mas não consigo imaginar nenhuma alternativa. Como é evidente que Leonie alterou seus canais de alguma forma para mantê-la fisicamente imatura, só posso pensar que foi isso. Mas compreende agora por que não deve tocá-la, Andrew? Não porque ela pode outra vez repeli-lo com violência... e é bem provável que o mate se isso acontecer de novo... pois preferiria morrer a fazer isso. Seria tão fácil para Callista se matar que me apavora pensar a respeito. O problema é que os reflexos ainda existem, ela os combate, e isso a está matando.

    Andrew cobriu o rosto com as mãos.

    - E eu supliquei a ela... - murmurou ele, quase inaudível.

    - Não podia saber - disse Damon gentilmente. - Ela também não sabia. Achava que tinha um descondicionamento normal, ou nunca correria o risco. Estava disposta a renunciar por completo à função psíquica dos canais por você. Sabe o que isso significa para Callista?

    - Não sou digno de todo esse sofrimento...

    - É tão desnecessário! - Era uma blasfêmia de Damon. Nenhuma lei era mais rigorosa do que aquela que proibia uma Guardiã, depois de renunciar a seu juramento, a virgindade perdida, de voltar a realizar qualquer trabalho sério com a matriz. - Era o que ela queria, Andrew. Renunciar a seu trabalho como Guardiã por você.

    - E o que se pode fazer agora? - Não é possível continuar assim, pois isso acabará por matá-la.

    - Terei de desobstruir seus canais - respondeu Damon, relutante. - E é isso o que ela não quer que eu faça.

    - Por que não?

    Damon demorou um pouco a responder.

    - É um trabalho que se costuma fazer com kirian, e não tenho nenhum para lhe dar. Sem isso, é extremamente doloroso.

    A explicação fazia com que Callista parecesse uma simples covarde, e Damon não gostou de dar essa impressão, mas não se sentia capaz de informar a Andrew qual era a verdadeira objeção de sua esposa. Seus olhos desviaram-se com evidente alívio para a caixa com Andrew.

    - Mas se ela se sente bastante bem para pedir sua harpa, talvez esteja melhorando - murmurou ele, com um lampejo de esperança. - Leve-a, Andrew. Mas... não a toque. Ela ainda está reagindo a você.

    - Mas não é isso o que queremos?

    - Não com os dois sistemas em sobrecarga. Andrew baixou a cabeça e murmurou:

    - Prometo.

    Ele passou por Damon, entrou no quarto... e, parou, chocado. Callista estava imóvel, em silêncio, e por um instante terrível Andrew teve a impressão de que não podia perceber sua respiração. Ela mantinha os olhos abertos, mas não o viu, não o acompanhou quando sua sombra se interpôs entre a cama e a luz. Um medo intenso o dominou, sentiu que um grito silencioso lhe contraía a garganta. Virou-se para chamar Damon, mas este já captara o impacto telepático de seu pânico, entrou correndo no quarto. E no instante seguinte, Damon deixou escapar um enorme suspiro de alívio, quase um soluço.

    - Está tudo bem - murmurou ele, apoiando-se em Andrew, como se estivesse tonto. - Ela não morreu... apenas deixou seu corpo, foi para o mundo superior, isso é tudo.

    Contemplando aqueles olhos arregalados, que nada viam, Andrew sussurrou:

    - O que podemos fazer por ela?

    - Em seu atual estado físico, Callista não poderá permanecer por muito tempo. - Preocupação e esperança misturavam-se na voz de Damon. - Eu nem mesmo imaginava que ela pudesse ter forças suficientes para isso. Mas se pôde...

    Ele não completou a frase em voz alta, mas Andrew ouviu o que não foi dito: “Se ela conseguiu isso, talvez não esteja tão mal quanto receamos.”

    Deslocando-se pelos espaços cinzentos do mundo superior, Callista sentiu os gritos e o medo de ambos, mas vagamente, como um sonho. Pela primeira vez numa eternidade, sentia-se livre da dor. Deixara para trás o corpo sofrido, como se fosse um traje grande demais, ingressando nos reinos familiares. Sentiu-se recuperada nos espaços cinzentos do mundo superior, o corpo tranqüilo e em paz, como antes... Viu-se envolta pelas dobras translúcidas de sua túnica de Guardiã, uma leronis, uma feiticeira. Ainda me vejo assim?, especulou ela, um pouco perturbada. Não sou uma guardiã, mas uma mulher casada, no pensamento e no coração, embora não de fato...

    O vazio do mundo cinzento assustou-a. Projetou-se, de forma quase automática, à procura de um ponto de referência, e avistou a distância o brilho tênue que era o equivalente à rede de energia, naquele mundo, da Torre de Arilinn.

    Não posso ir para lá, pois renunciei a tudo isso, pensou ela. Mas o pensamento despertou-lhe um profundo anseio pelo mundo que deixara para trás. Como se o anseio criasse sua própria resposta, ela viu o brilho aumentar, e um momento depois, quase com a rapidez do pensamento, descobriu-se ali, dentro do Véu, em seu refúgio secreto, o jardim das fragrâncias, o Jardim da Guardiã.

    E foi então que divisou o vulto à sua frente, assumindo forma lentamente. Não precisava ver o rosto de Leonie para reconhecê-la.

    - Minha querida criança... - murmurou Leonie.

    Calista sabia que era apenas um tênue contato em pensamento, mas era tão real a presença de uma para a outra naquele reino familiar que a voz de Leonie soava forte, afetuosa, mais terna do que na vida. Só naquele plano não-físico, Callista sabia, Leonie podia se arriscar a demonstrar uma emoção assim.

    - Por que veio para nós? Pensei que tinha se projetado além do nosso alcance para sempre, chiya. Ou se desgarrou até aqui num sonho?

    - Não é sonho, chiya.

    A ira envolveu Callista, como um choque frio atingindo todos os seus nervos. Tratou de se controlar, como fora ensinada desde a infância, pois a ira nos Altons podia matar. A voz gelada e incisiva, rejeitando a ternura de Leonie, ela acrescentou:

    - Vim procurá-la, perguntar por que concedeu uma bênção sem verdade! Por que mentiu para mim? - Sua própria voz soava como um grito em seus ouvidos. - Por que me prendeu em vínculos que eu não podia romper, e assim foi apenas um escárnio quando me deu em casamento? Ressente-se da minha felicidade, como jamais conheceu?

    Leonie se encolheu, sua voz tornou-se impregnada pela angústia:

    - Os Deuses são testemunhas, criança, assim como as coisas sagradas em Hali, de que você não foi neutralizada. Mas deve compreender, Callista, que era muito jovem quando chegou à Torre...

    O tempo pareceu voltar, enquanto Leonie falava, e Calista sentiu-se arrastada para uma época meio esquecida, seus cabelos ainda cacheados em torno do rosto, em vez de trançados como os de uma mulher, sentiu outra vez a reverência assustada que experimentara diante de Leonie, antes que ela se tornasse sua mãe, guia, mestra, sacerdotisa...

    - Você conseguiu ser Guardiã, quando seis outras fracassaram, minha criança. Pensei que se orgulhava disso.

    - E me orgulhava - murmurou Callista, baixando a cabeça.

    - Mas você me enganou, Callista, ou eu nunca permitiria que partisse. Fez-me acreditar... embora eu pensasse que isso não era possível... que já reagia a seu amante, que não demoraria muito a deitar com ele. E por isso pensei que eu não tivera um êxito real, que talvez seu sucesso como Guardiã fosse apenas porque você acreditava estar livre das coisas que atormentavam as outras mulheres. Quando o amor penetrou em sua vida, e descobriu onde seu coração se encontrava, como já acontecera com muitas Guardiãs antes, não era mais possível permanecer adormecida. Por isso a abençoei, deixei que renunciasse a seu juramento. Mas se não é verdade, Callista, se não é verdade...

    Calista lembrou a zombaria furiosa de Damon: Vai passar o resto de sua vida contando buracos em toalhas de Unho e preparando ervas para o pão-de-especiaria, logo você, que foi a Callista de Arilinn? E Leonie ouviu também, em sua mente, como um eco.

    - Já disse isso, minha querida, e agora torno a oferecer. Pode voltar para nós. Um prazo curto, algum reensinamento, e seria outra vez uma de nós.

    Leonie gesticulou, o ar ondulou, e Callista se descobriu envolta pela túnica escarlate de uma Guardiã, com os ornamentos rituais na testa e na garganta.

    - Volte para nós, Callista. Volte logo.

    - Meu marido...

    Leonie balançou a mão, desdenhosa, como se isso nada significasse.

    - Um casamento livre não tem a menor importância, Callista, não passa de uma ficção legal, sem o menor sentido, até a consumação da união. O que a prende a esse homem?

    Callista já ia dizer "Amor", mas sob o olhar frio de Leonie não foi capaz de falar.

    - Uma promessa, Leonie.

    - Sua promessa para nós está em primeiro lugar. Nasceu para este trabalho, Callista, é o seu destino. Lembra que consentiu ao que lhe foi feito? Foi uma das sete que nos chegaram naquele ano. Seis moças fracassaram, uma depois da outra. Já haviam crescido, tinham os canais nervosos amadurecidos.  Descobriram que era dolorosa demais a desobstrução dos canais, que não podiam suportar o condicionamento contra a reação. Pode lembrar de Lillary Castamir? Ela se tornou Guardiã, mas todos os meses, quando começava a menstruação, entrava em convulsões, o custo parecia alto demais. Recorda como eu fiquei desesperada, Calista? Realizava o trabalho de três Guardiãs, e minha saúde começou a sofrer. E por esse motivo expliquei-lhe tudo, e você consentiu...

    - Como eu podia consentir? - protestou Callista, desesperada. - Era uma criança! Nem mesmo entendia o que me pediu!

    - Mas consentiu em ser treinada quando ainda  não era adulta, com os canais imaturos. E, por isso, ajustou-se com facilidade ao treinamento.

    - Não esqueci - murmurou Callista.

    Sentira-se orgulhosa por ter sido bem-sucedida onde tantas outras fracassaram, por se tornar Callista de Arilinn, assumir um lugar entre as Guardiãs lendárias. Recordou a exultação de assumir o comando dos grandes círculos, de sentir os enormes fluxos de energia passando por seu corpo sem qualquer obstáculo...

    - E você era muito jovem, Callista, achei improvável que um dia pudesse mudar... e só mudou por puro acaso. Mas tudo isso pode ser seu de novo, minha querida. Basta dizer uma palavra.

    - Não! - gritou Callista. - Não! Renunciei a meu juramento... não quero mais voltar!

    E, no entanto, de uma estranha maneira, ela não tinha tanta certeza.

    - Eu poderia forçá-la a voltar, Callista. Continua virgem, e a lei me permite exigir o seu retorno a Arilinn. A necessidade ainda é grande, e estou velha. Contudo, como dizem, é um fardo grande demais para ser carregado sem consentimento. Eu a liberei, criança, embora seja velha, e isso signifique que tenho de fazer um esforço para arcar com o fardo até que Janine se torne bastante madura e forte para realizar o trabalho. Isso parece como se eu a desejasse doente, ou que menti quando a abençoei e desejei que vivesse feliz com seu amante. Pensei que já era livre. Pensei que me submetia ao inevitável ao liberá-la do juramento, que você já se libertara de fato, e não havia motivo para exigir que cumprisse sua palavra, para torturá-la com a tentativa de fazer com que voltasse, de desobstruir seus canais e obrigá-la a experimentar de novo.

    Callista sussurrou:

    - Eu esperava... acreditava que estava livre...

    Ela sentiu o horror de Leonie, como uma coisa concreta.

    - Minha pobre criança, como pôde assumir esse risco? Como pôde gostar tanto de um homem, quando tinha tudo isso antes? Callista, minha querida, volte para nós! Vamos curar Todas as suas dores.  Volte para o lugar a que pertence...

    - Não!

    Era um brado de renúncia, como se reverberasse para o outro mundo, ela ouviu a voz de Andrew, gritando seu nome, em agonia.

    - Callista, Callista, volte para nós...

    Houve um choque breve e intenso, o choque de uma queda. Leonie desapareceu, e a dor espalhou-se por seu corpo. Ela se descobriu estendida na cama, fitando o rosto de Andrew, branco como a morte.

    - Pensei que a tivesse perdido para sempre - balbuciou ele.

    - Talvez fosse melhor... se tivesse me perdido - sussurrou Callista em tormento.

    Leonie tinha razão. Nada me prende a ele, além de palavras... e meu destino é ser uma Guardiã. Por um momento, o tempo flutuou desfocado, e ela se viu abrigada por trás de um muro estranho, que não era o de Arilinn. Apertou as teias de força em suas mãos, projetou as redes de energia...

    Ela estendeu as mãos para Andrew, que recuou, instintivamente. Percebendo a consternação dele, e ignorando a dor dilacerante que sentia, pegou suas mãos, em desespero, e murmurou:

    - Nunca mais o deixarei.

    Não posso voltar. Se não houver solução, eu morrerei, mas nunca voltarei.

    Nada me prende a Andrew, a não ser palavras. E, no entanto... as palavras... as palavras têm poder. Callista abriu os olhos, fitando o marido, e repetiu as palavras que ele pronunciara no casamento:

    - Andrew, nos bons e nos maus momentos... na riqueza e na pobreza... na doença e na saúde... enquanto a vida durar. - Ela tornou a apertar as mãos do marido. - Andrew, meu amor, você não deve chorar.

   

    Damon tinha a impressão de que nunca antes se sentira tão frustrado quanto agora. Leonie agira por motivos que lhe pareciam bons na ocasião, e ele podia compreender suas razões, pelo menos um pouco.

    Tinha de haver uma Guardiã em Arilinn. Durante toda a vida de Leonie, essa fora a primeira consideração, não podia permitir que nada a suplantasse. Mas não havia como ele pudesse explicar isso a Andrew.

    - Tenho certeza de que eu sentiria a mesma coisa se estivesse no seu lugar. - Era tarde da noite, Callista mergulhara num sono exausto e irrequieto, mas pelo menos dormia sem estar drogada, e Damon tentava encontrar um vestígio de esperança no fato. - Não pode culpar Leonie...

    - Posso e culpo! - interrompeu-o Andrew. Damon suspirou.

    - Tente compreender. Ela fez o que julgava melhor, não apenas para as Torres, mas também por Callista, para poupá-la da dor e sofrimento. Não se podia esperar que previsse que Callista poderia um dia querer casar...

    Ele já ia dizer "casar com alguém de outro mundo". Conteve-se a tempo e parou, mas Andrew captou o pensamento mesmo assim. Um tênue rubor, meio de ira, meio de embaraço, espalhou-se pelo rosto do terráqueo. Ele virou o rosto, com uma expressão obstinada, e Damon tornou a suspirar, pensando que precisavam resolver o problema o mais depressa possível, ou acabariam perdendo Andrew também.

    O pensamento era amargo, quase insuportável. Desde aquele primeiro momento de contato a quatro, através da matriz, quando Callista ainda era prisioneira, Damon descobrira algo que pensara ter perdido para sempre ao deixar a Torre, o vínculo telepático do círculo.

    Perdera-o quando Leonie o despachara de Arilinn, resignara-se a viver sem isso, e depois, além de qualquer esperança, tornara a encontrá-lo, nas duas jovens e naquele forasteiro... Agora, Damon preferia morrer a deixar que o vínculo fosse rompido de novo. Ele disse, com firmeza:

    - Leonie fez isso, por quaisquer motivos, bons ou maus, e deve arcar com a responsabilidade. Calista não estava bastante forte para lhe arrancar uma resposta. Mas Leonie, e somente Leonie, pode ter a solução para o problema.

    Andrew olhou para a escuridão lá fora.

    - Não adianta. Qual é a distância daqui a Arilinn?

    - Não sei como vocês calculam as distâncias, mas para nós é de dez dias de viagem. Só que não pensei em ir até lá. Farei a mesma coisa que Callista, irei procurá-la no mundo superior. - Os lábios de Damon se contraíram, num sorriso desolado. - Com Dom Esteban entrevado e Domenic ainda menor, sou o parente mais próximo, tenho o direito e a responsabilidade de cobrar uma explicação de Leonie.

    Mas quem podia cobrar qualquer coisa de uma Hastur, e ainda por cima a Dama de Arilinn?

    - Acho que vou com você, e criarei a maior confusão - sugeriu Andrew.

    - Você não saberia o que dizer a ela. Andrew, prometo que, se houver uma solução, eu a descobrirei.

    - E se não houver?

    Foi a vez de Damon desviar os olhos, nem sequer querendo pensar a respeito. Callista dormia, irrequieta, agitada e gemendo no sono. Ellemir fazia um trabalho de costura em sua cadeira de braços, o rosto franzido sobre os pontos, o rosto brilhando no oval do lampião. Damon projetou-se para ela, sentindo a reação imediata na mente de Ellemir, um contato de segurança e amor. Preciso dela comigo, mas devo ir sozinho.

    - Vamos para a sala, Andrew, pois as perturbaríamos se ficássemos aqui. Você deve me monitorar.

    Ele seguiu na frente para a sala, acomodou-se numa cadeira confortável.

    - Fique atento...

    Damon focalizou a matriz, sentiu o choque breve e intenso ao sair de seu corpo, sentiu a força de Andrew ao pairar por um instante na sala... E depois estava na planície cinzenta e informe, vendo com surpresa, por trás dele, no mundo superior, que havia uma nova estrutura ainda indefinida. Lembrou de repente. Dezi, Andrew e ele haviam-na construído como um abrigo, quando trabalhavam com os homens congelados, um refúgio, uma proteção. Meu próprio lugar. Não tenho nenhum outro agora. Damon virou-se, decidido, procurou pela luz do farol de Arilinn. No instante seguinte, com a velocidade do pensamento, literalmente, ele estava lá, com Leonie à sua frente, velada.

    Ela fora tão bonita... Damon foi dominado outra vez pelo amor antigo, o anseio antigo, mas defendeu-se pensando em Ellemir. Mas por que Leonie se velava para ele?

    - Tive certeza, quando Callista apareceu, de que você não demoraria a me procurar, Damon. Claro que sei, de um modo geral, o que deseja. Mas como posso ajudá-lo, Damon?

    - Sabe tão bem quanto eu. Não é para mim que preciso de ajuda, mas para Callista.

    - Ela fracassou. Eu estava disposta a liberá-la... ela teve sua chance... mas agora seu único lugar é aqui. Callista deve voltar para Arilinn, Damon.

    - É tarde demais para isso. Acho que ela vai preferir morrer a ter de voltar. Já se encontra à beira da morte. - Damon ouviu sua voz tremer. - Está dizendo que a verá morta antes de liberá-la, Leonie? O domínio de Arilinn é mortal?

    Ele percebeu o horror em Leonie, como uma nuvem visível, pois as emoções eram uma realidade sólida ali.

    - Não, Damon! - A voz de Leonie também tremia. - Uma Guardiã é liberada quando não pode mais manter os canais abertos para os padrões de seu trabalho. Pensei que isso não poderia acontecer com Callista, mas ela me disse o contrário, e por isso me dispus a liberá-la.

    - Sabia que tornara isso impossível!

    - Eu... não tinha certeza - murmurou Leonie, os véus se agitando em negação. - Ela me contou... que tocara nele... que tinha... O que eu podia pensar, Damon? Mas agora ela sabe que não é possível. Ao se treinar uma garota para ser Guardiã, antes que atinja a maturidade, considera-se certo que a opção é pela vida inteira, e não pode haver retorno.

    - Você sabia disso, e ainda assim tomou a decisão por Callista?

    - O que mais eu podia fazer, Damon? Precisamos de Guardiãs, ou nosso mundo volta às trevas, à escuridão do barbarismo. Fiz o que devia, e se Callista for razoavelmente justa comigo, vai admitir que me deu seu consentimento.

    E, no entanto, Damon ouviu, como um eco na mente de Leonie, o protesto amargo e desesperado:

    Como eu podia consentir? Tinha apenas doze anos! Damon indagou, furioso:

    - Está querendo dizer que é irremediável. - Que Callista deve voltar a Arilinn ou morrer de pesar?

    A voz de Leonie soou indecisa, sua própria imagem tremeluzia, no mundo cinzento:

    - Sei que outrora havia um meio, e esse meio era conhecido. Nada do passado pode ser totalmente oculto. Quando eu era jovem, conheci uma mulher que fora tratada assim, e ela disse que havia um meio de reverter esse acerto dos canais. Mas ela não me explicou como, e morreu há mais anos do que você já viveu. Era conhecido por toda parte, no tempo em que as torres eram como templos, e as Guardiãs como suas sacerdotisas. Falei a verdade. - Abruptamente, Leonie puxou o véu, para exibir o rosto devastado. - Se você tivesse vivido naquele tempo, Damon, teria encontrado sua verdadeira vocação como um Guardião. Nasceu trezentos anos atrasado.

    - Isso de pouco me adianta agora, parenta.

    Damon virou-se de lado, não querendo ver o rosto de Leonie, que tremia e mudava, metade a Leonie do tempo em que ele estivera na Torre, quando a amava, metade a Leonie idosa de hoje, como a vira em seu casamento. Desejou que ela tornasse a se cobrir com o véu.

    - Na época de Rafael II, quando as Torres de Neskaya e Tramontana foram destruídas pelo fogo, todos os círculos morreram, junto com as guardiãs. Muitas das antigas técnicas se perderam nessa ocasião, e nem todas são lembradas agora, ou foram redescobertas.

    - E eu tenho de redescobri-las nos próximos dias? A sua confiança em mim é extraordinária, Leonie!

    - Qualquer pensamento que já aflorou na mente da humanidade, em qualquer lugar do universo, nunca se perde por completo.

    Damon protestou, impaciente:

    - Não estou aqui para discutir filosofia! Leonie balançou a cabeça.

    - Não se trata de filosofia, mas de fato. Se algum pensamento já agitou a substância de que é feito o universo, esse pensamento permanece, indelével, e pode ser recuperado. Houve um tempo em que essas coisas eram conhecidas, e a própria estrutura do tempo permanece...

    A imagem de Leonie ondulou, tremeu como uma poça em que se joga uma pedra e desapareceu. Damon, sozinho outra vez no mundo cinzento informe e interminável, especulou: Em  nome de Todos os Deuses ao mesmo tempo, como posso desafiar a própria estrutura do tempo"? E por um instante ele viu, como de uma grande altura, a imagem de um homem usando verde e dourado, o rosto meio oculto, todo indistinto aos olhos de Damon, à exceção de um enorme e faiscante anel em seu dedo. Anel ou matriz? Começou a se mexer, a ondular, a irradiar enormes ondas de luz, e Damon sentiu sua percepção se ofuscar, diminuir. Segurou a matriz pendurada em seu pescoço, tentando se orientar, desesperado, no mundo superior cinzento. E depois a imagem desapareceu, ele voltou a ficar sozinho no nada informe. Depois de um longo tempo, divisou no horizonte a forma tênue de seu ponto de referência, a que fixara ali junto com Dezi e Andrew. Com profundo alívio, sentiu seus pensamentos sendo atraídos nessa direção, e no instante seguinte retornara à sala em Armida, deparando com Andrew inclinado para seu rosto, na maior ansiedade.

    Piscou, tentando coordenar impressões fortuitas. Encontrou uma solução? Damon captou a pergunta da mente de Andrew, mas não sabia ainda se tinha uma resposta. Leonie não se comprometera a ajudar, a contribuir para libertar Callista da servidão de corpo e mente à torre. Nem podia. No mundo superior, era impossível mentir, e Leonie não fora capaz de ocultar sua intenção. Queria que Callista voltasse à torre. Acreditava sinceramente que Calista tivera sua oportunidade de conquistar a liberdade e fracassara. Contudo, ela também não pudera ocultar que havia uma solução, a ser encontrada nas profundezas do próprio tempo. Damon estremeceu, com o frio mortífero que parecia envolver até seus ossos, ajeitou uma túnica sobre os ombros. Seria esse o único meio?

    Leonie não podia dizer uma mentira expressa no mundo superior. Contudo, também não lhe dissera toda a verdade, ele sentia, porque não sabia onde procurar toda a verdade, e ainda restava muito que ela escondera. Mas por quê? Por que precisaria esconder alguma coisa dele? Será que ela não sabia que Damon sempre a amara, que - os Deuses o ajudassem - ainda a amava, e nunca faria coisa alguma para prejudicá-la? Damon baixou o rosto para as mãos, tentando desesperadamente recuperar o controle. Não poderia encarar Ellemir assim. Sabia que seu pesar e confusão magoavam Andrew também, e o terráqueo nem sequer compreendia como.

    Uma das cortesias básicas de um telepata, Damon lembrou a si mesmo, era controlar seu próprio sofrimento, a fim de não fazer os outros sofrer também... Depois de um momento, ele conseguiu se acalmar, e tornou a erguer suas barreiras. Levantou o rosto para Andrew e disse:

    - Acho que tenho a pista para uma solução. Ainda não sei de tudo, mas posso dar um jeito de descobrir, se tivermos tempo suficiente. Por quanto tempo viajei?

    Ele ficou de pé, foi até a mesa, onde ainda estava o resto de seu jantar, serviu-se de um copo de vinho, bebeu em pequenos goles, deixando que o esquentasse e acalmasse ainda mais.

    - Horas - respondeu Andrew. -Já deve passar de meia-noite. Damon acenou com a cabeça. Conhecia o efeito de tempo elástico daquelas viagens. No mundo superior, o tempo parecia transcorrer numa escala diferente, que nem mesmo era coerente, mas alguma outra coisa, o que fazia com que uma breve conversa durasse horas, enquanto em outras ocasiões uma viagem prolongada, que subjetivamente parecia ter consumido dias, ocorria num piscar de olhos. Ellemir apareceu na porta, com uma expressão preocupada.

    - Ainda bem que você está acordado, Damon. Venha dar uma olhada em Callista. Não gosto da maneira como ela geme no sono.

    Damon largou o copo de vinho, apoiou-se na mesa com as duas mãos. Foi para o quarto. Callista parecia adormecida, mas tinha os olhos entreabertos. Estremeceu quando Damon a tocou, evidentemente consciente do contato, embora não houvesse qualquer percepção em seus olhos. O rosto de Andrew estava contraído.

    - O que a aflige agora, Damon?

    - Uma crise. Era isso o que eu receava, mas pensei que aconteceria naquela primeira noite. - Ele passou as pontas dos dedos sobre o corpo de Callista, sem chegar a tocá-la. - Elli, ajude-me a virá-la. Não, Andrew, não a toque. Ela continua receptiva a você, mesmo no sono.

    Ellemir ajudou-o a virar Callista, partilhando com ele um momento de choque, quando afastaram as cobertas de seu corpo. Como ela parecia consumida! Pairando ciumento na proximidade, enquanto aumentavam as linhas de luz no corpo de Callista, Andrew divisou as correntes opacas e esmaecidas. Mas Damon tinha certeza de que ele não entendia direito.

    - Eu sabia que deveria ter desobstruído os canais imediatamente! - exclamou Damon, numa raiva desesperada.

    Como podia fazer Andrew compreender? Ele tentou, sem muita esperança, traduzir em palavras:

    - Ela precisa de alguma espécie de... descarga da sobrecarga de energia. Mas os canais estão bloqueados, e a energia recua... vaza, se preferir assim... para todo o resto de seu organismo, e começa a afetar as funções vitais: coração, circulação, respiração. E antes que eu pudesse...

    Ellemir deixou escapar um ofego de apreensão. Damon viu o corpo de Callista ficar rígido, arquear para trás, enquanto um grito estranho saía de seus lábios. Por vários segundos, um tremor espasmódico sacudiu todo o seu corpo, e depois ela arriou, inerte, como se estivesse sem vida.

    - Oh, Deus! - balbuciou Andrew. - O que foi isso?

    - Convulsão - respondeu Damon. - Tinha medo de que isso ocorresse. Significa que o nosso tempo está se esgotando.

    Ele inclinou-se para verificar o pulso, escutar a respiração de Callista.

    - Eu sabia que deveria ter desobstruído os canais!

    - E por que não o fez? - perguntou Andrew.

    - Já expliquei: não tenho kirian, e sem isso não sei se ela seria capaz, de suportar a dor.

    - Pois então faça agora, enquanto ela está inconsciente. Mas Damon sacudiu a cabeça.

    - Ela precisa estar desperta, e me conceder sua cooperação consciente, ou eu poderia provocar-lhe graves lesões. E... ela não quer que eu faça isso.

    - Por que não?

    Damon finalmente explicou, embora relutante:

    - Porque, se eu desobstruir os canais, isso significa que Callista volta ao estado normal para ela, o estado normal para uma Guardiã, com os canais completamente separados do estado de uma mulher normal... desobstruídos para as forças psíquicas, e assim fixados. Um retorno ao que era antes de sequer deixar a Torre. Com uma indiferença total a você, incapaz de reagir sexualmente. Para todos os efeitos, uma volta ao ponto de partida.

    Andrew respirou fundo.

    - Qual é a alternativa?

    - Não há nenhuma alternativa agora, infelizmente. Ela não pode continuar a viver desse jeito por muito tempo.

    Damon tocou por um instante na mão gelada, depois foi para o seu quarto, onde guardava o suprimento de medicamentos à base de ervas que vinha usando. Hesitou, mas acabou pegando um pequeno frasco, retornou ao outro quarto, abriu a tampa, despejou o líquido entre os lábios inertes de Callista, erguendo sua cabeça, para que não escorresse pelo queixo.

    - O que é isso? O que está dando a ela?

    - Vai evitar que Calista sofra outra convulsão, pelo menos durante o resto da noite. E amanhã...

    Damon se absteve de concluir a frase. Mesmo quando fazia aquele trabalho regularmente na Torre, não sentia a menor propensão. Angustiava-se com a dor que devia infligir, angustiava-se também com a necessidade de confrontar Callista com a informação de que ela deveria sacrificar o pouco ganho que conseguira e voltar ao estado que Leonie lhe impusera, incapaz de reagir, imatura, neutra. Ele se afastou de Callista, foi lavar e guardar o frasco, tentando se acalmar. Depois, sentou na outra cama, contemplando Calista na mais profunda consternação. Ellemir foi para o seu lado. Andrew continuou ajoelhado ao lado da cama de Callista. Damon pensou que deveria mandá-lo embora, pois mesmo no sono Calista se mantinha consciente dele, os canais reagindo à sua presença física, mesmo que a mente não fosse capaz.. Por um momento, parecia que ele podia ver Andrew e Callista como uma série de campos magnéticos, turbillionando, se interligando, projetando-se uns para os outros, polaridades atraídas. Só que as energias deveriam reforçar e fortalecer a ambos, mas as forças turbilhonavam e refluíam em Callista, drenando sua resistência, incapazes de fluir livremente. E o que isso fazia com Andrew? Também o esgotava. Pela pura força de vontade, Damon cortou essa percepção, forçando-se a retornar à superfície, vendo Calista apenas como uma mulher gravemente doente, que desfalecera depois de uma convulsão, e Andrew como um homem preocupado, debruçado sobre ela, em medo e desespero.

    Fora por causa desse tipo de coisa que Leonie o mandara embora da Torre, ele sabia. Ela dissera que ele era sensível demais, que essa sensibilidade acabaria por destruí-lo, recordou Damon... e foi nesse instante que, pela primeira vez em sua vida, a rebelião eclodiu. Poderia ter sido uma força, não uma fraqueza. Poderia torná-lo ainda mais valioso.

    Ele estendeu a mão para Ellemir, sentada ao seu lado, com uma necessidade quase angustiada, pois havia muito tempo que não faziam amor. Contudo, a longa disciplina da mecânica de matriz manteve-se firme em sua mente. Não lhe ocorreu pensar em violá-la. Abraçou-a, beijou-a gentilmente e murmurou:

    - Tenho de poupar minhas forças, querida, porque amanhã será um dia muito árduo. Se não fosse por isso...

    Ele beijou a palma da mão de Ellemir, uma lembrança particular e uma promessa. Ellemir percebeu que o marido fingia uma jovialidade e confiança que não sentia, e por um momento ficou indignada, por Damon não acreditar que ela soubesse, ou pensar que; podia fingir ou mentir para ela. Depois, no entanto, compreendeu que havia uma disciplina rígida por trás daquele otimismo, as cortesias formais de um agente telepático. Dispensar qualquer reconhecimento ao medo só serviria para reforçá-lo, criar uma espécie de retorno positivo, perpetuando um caos de desespero. Ela também, refletiu Ellemir, com um toque de cinismo, começava a aprender algumas duras lições sobre como era ser ligada de forma tão estreita a um telepata ativo. Mas seu amor e preocupação por Damon eram preponderantes. Sabia que ele não queria compaixão, que sua maior necessidade, naquele momento, era se libertar da preocupação de ter de compensá-la por seu próprio medo.

    Devia arcar com seu próprio fardo de medos, ela advertiu a si mesma. Não podia transferi-lo para Damon. Pegou as mãos do marido, abaixou-se para beijá-las de leve, em retribuição.

    Agradecido, Damon aconchegou-a na curva de seu braço, um contato confortador, sem qualquer exigência.

    Andrew, ainda ajoelhado junto de Callista, olhou para eles. Damon captou suas emoções: medo por Callista, angústia, incerteza - será que Damon pode mesmo ajudá-la? -, aflição pelo que significaria o retorno de sua esposa ao estado de Guardiã, todo o antigo condicionamento intacto, com a desobstrução dos canais. E, vendo Ellemir aninhada contra Damon, enroscada em seu braço, sentiu uma emoção confusa, que não era realmente nem de ciúme. Callie e ele nunca haviam ficado assim... A compaixão de Damon por Andrew foi tão profunda que ele teve de cortá-la, reprimi-la, antes que o dilacerasse e diminuísse suas forças para o que teria de fazer no dia seguinte.

    - Fique junto de Callista, Andrew. Avise-me se houver alguma mudança, por menor que seja.

    Damon viu Andrew puxar uma cadeira, inclinar-se para a frente, segurar o pulso inerte de Callista.

    Pobre-coitado, pensou Damon, ele não pode sequer perturbá-la agora. Ela já foi longe demais para isso, mas Andrew precisa sentir que está fazendo alguma coisa para ajudá-la, ou vai desmoronar. E o conforto que ele sentira pela proximidade de Ellemir desaparecera. Com uma disciplina rigorosa, ele se obrigou a relaxar, deitou quieto ao lado da mulher, descontraiu os músculos e flutuou no estado de serenidade necessário para o que tinha de fazer. Ainda flutuando, acabou dormindo.

    Já fazia bastante tempo que amanhecera quando Callista se mexeu, abriu os olhos, aturdida.

    - Andrew?

    - Estou aqui, amor. - Ele apertou os dedos de Callista. - Como se sente?

    - Melhor, eu acho. - Ela não podia sentir qualquer dor. Em algum lugar, há muito tempo, alguém lhe dissera que isso era um mau sinal. Mas depois do sofrimento dos últimos dias, a ausência de dor deixou-a contente. - Parece que dormi por muitas horas, e Damon se preocupava porque eu não dormia,

    Ela nem sequer sabia que fora drogada? Em voz alta, Andrew disse:

    - Vou chamar Damon,

    Ele recuou. Damon estava deitado na outra cama, um dos braços enlaçando Ellemir. Andrew experimentou aquela pontada cruel de inveja agoniada. Eles pareciam seguros, felizes no conhecimento um do outro. Callista e ele algum dia seriam assim? Tinha de acreditar nisso, ou morreria.

    Os olhos azuis de Ellemir se abriram. Ela sorriu, se espreguiçando, e Damon despertou no mesmo instante.

    - Como está Callista?

    - Parece melhor.

    Damon assumiu uma expressão cética, levantou-se, foi para o lado de Callista. Seguindo-o, Andrew subitamente viu Callista através dos olhos de Damon: pálida e emaciada, os olhos fundos. Damon disse gentilmente:

    - Callista, você sabe tão bem quanto eu o que tem de ser feito. É uma Guardiã.

    - Não me chame assim! Nunca mais!

    - Sei que foi liberada de seu juramento, mas um juramento é apenas uma palavra, Callista. Não há outro jeito. Não posso assumir a responsabilidade...

    - Não lhe pedi isso! Sou livre...

    - Livre para morrer - arrematou Damon brutalmente.

    - Não acha que eu prefiro morrer?'

    Ela começou a chorar, pela primeira vez desde a noite fatídica. Damon limitou-se a observá-la, o rosto como pedra, mas Andrew abraçoua, protetor.

    - O que está fazendo com ela, Damon?

    O rosto de Damon ficou vermelho de raiva.

    - Ora, Callista, estou cansado de ser tratado como um monstro se interpondo entre vocês, quando tenho me esgotado na tentativa de proteger a ambos!

    - Sei disso, mas não consigo mais suportar! - soluçou ela. - Sabe o que isso representa para Andrew, para mim, vai acabar nos matando!

    Andrew sentiu as mãos de Callista tremer, enquanto o apertavam, aninhada em seus braços, o corpo leve como o de uma criança. De algum lugar, tinha a impressão de contemplá-la como uma estranha teia de luz, uma espécie de rede de energia elétrica. De onde vinha essa estranha percepção? Seu próprio corpo não parecia mais real, e também tremia no nada, não passava de uma frágil rede de energia elétrica, faiscando e crepitando, com uma fraqueza crescente...

    Já não podia mais ver Damon... que também sumira por trás das redes elétricas em turbilhão. Não, Damon parecia fluir, mudar, brilhar em raiva, um vermelho opaco, como uma fornalha. Andrew já o vira assim antes, durante a confrontação com Dezi. Como todos os homens de temperamento tranqüilo, de ira aflorando e se dissipando com a maior facilidade, Andrew ficou chocado e horrorizado pelo brilho incandescente de fornalha de Damon. Vagamente, por trás das cores instáveis e energias elétricas, das pulsações e luzes em turbilhão, ele sabia que o homem Damon encaminhou-se até a janela, parou, de costas para os outros, olhando para a nevasca, fazendo um esforço para controlar sua ira. Andrew podia sentir a raiva de dentro, como sentia a agonia de Callista, como sentia a confusão de Ellemir. Lutou para fazer com que todos se tornassem sólidos outra vez, concretos e humanos, não confusões turbilhonantes de imagens elétricas. O que era real? Não seriam mais do que massas de energia, campos de energia e átomos em movimento no espaço. - Ele tentou se apegar às percepções humanas, através do contato frenético e febril de Callista. Queria ir até a janela... e foi até a janela, tocou em Damon... Não saiu do lugar, ancorado pelo peso de Callista em seu colo. Com um tremendo empenho para recuperar a fala humana, ele disse, suplicante:

    - Damon, ninguém pensa que você é um monstro. Callista fará o que você achar melhor. Ambos confiamos em você... não é mesmo, Callista?

    Damon conseguiu controlar sua raiva. Era raro para ele perder o controle, mesmo que por um instante. Sentiu-se envergonhado. Voltou para junto da cama e murmurou:

    - Andrew tem o direito de ser consultado em sua decisão, Callista. Não pode continuar a fazer isso com todos nós. Se fosse apenas uma decisão sua... - Ele soltou um grito angustiado. - Andrew! largue-a imediatamente!

    Callista ficara inerte nos braços de Andrew. Abalado pelo pavor na voz de Damon, Andrew não protestou quando o amigo tirou Callista de seus braços e estendeu-a de volta na cama. Damon gesticulou para que ele se afastasse. Perplexo, ressentido, Andrew obedeceu. Damon inclinou-se para ela.

    - Está vendo? Não, não chore de novo, pois não tem forças para isso. Não sabe que entrou em crise na noite passada? Teve uma convulsão. Dei-lhe um pouco de raivar. Você sabe o que isso significa tão bem quanto eu, Callie.

    Ela mal tinha vigor para falar.

    - Acho... seria melhor para Todos...

    Damon segurou seus pulsos, tão esguios que até as mãos dele, que não eram grandes, podiam envolvê-los por completo. Sentindo o olhar ressentido de Andrew, ele explicou, cansado:

    - Ela não tem mais forças para outra convulsão.

    Ao final de sua capacidade de resistência, Andrew protestou:

    - Isso foi minha culpa também? Eu tocar nela sempre foi inseguro?

    - Não culpe Andrew, Damon... - Era apenas um fio de voz. - Era o que eu queria...

    - Compreende agora? - disse Damon. - Se eu o mantenho a distância, ela quer morrer. Se deixo que a toque, a tensão física se torna cada vez pior. Muito diferente da tensão emocional, que está arrasando os dois, fisicamente ela não pode mais agüentar. As vezes é preciso agir depressa, antes...

    Ele não concluiu a frase, mas Todos sabiam o que não fora dito: antes que ela torne a entrar em convulsões, e desta vez não conseguiremos deter a tempo.

    - Sabe o que precisa ser feito, Callista, e sabe também de quanto tempo dispõe para tomar sua decisão.  Pensa que quero atormentá-la quando se encontra nesse estado, Callie? Sei que está fisicamente no estado de uma garota de doze anos, mas não é mais uma criança. Não pode deixar de se comportar como tal? Não pode se comportar como a profissional adulta que aprendeu a ser? Pare de agir de forma tão emocional! O que temos aqui é um fato físico! Você é uma Guardiã...

    - Não sou! Não sou!

    - Pelo menos demonstre um pouco do bom senso e da coragem que aprendeu como Guardiã! Sinto-me envergonhado por você. Seu círculo ficaria envergonhado. Leonie ficaria envergonhada...

    - Pare com isso, Damon! - protestou Andrew. Mas Ellemir, os olhos ardendo, pegou seu braço.

    - Fique fora disso, seu tolo - sussurrou ela. - Damon sabe o que está fazendo! É a vida dela que está em jogo!

    - Você está com medo - continuou Damon, zombeteiro. - Isso mesmo, está com medo.  Hilary Castamir não tinha mais que quinze anos, mas suportou ter seus canais desobstruídos a cada quarenta dias, por mais de um ano! E você tem medo de me deixar tocá-la!

    Callista mantinha-se imóvel, o rosto branco como a morte, os olhos começando a arder com uma chama trêmula que não existia antes. A voz, embora fraca, tremia com tanta raiva que até parecia gritar:

    - Como se atreve a me falar desse jeito, logo você, que Leonie despachou de Arilinn como um cachorrinho se lamuriando, porque não tinha coragem! Quem você pensa que é para me falar assim?

    Damon ergueu-se, soltando-a, como se tivesse receio de estrangulá-la se não o fizesse, pensou Andrew. O brilho vermelho de raiva tornou a envolvê-lo. Andrew cerrou as mãos, com toda força, até perceber o sangue sob as unhas, tentando evitar que todos se desintegrassem outra vez nos campos de energia turbilhonantes.

    - Quem sou eu? - gritou Damon. - Sou seu parente mais próximo, também sou seu técnico, e você sabe muito bem o que mais eu sou! E se não posso fazê-la ver a luz da razão, se não quer usar seu conhecimento e bom julgamento, então eu lhe juro, Callista de Arilinn, que mandarei carregarem Dom Esteban até aqui e deixarei que tente seus acessos com ele! Se seu marido não é capaz de fazer com que se comporte, e se um técnico também não consegue, minha cara, você pode experimentar suas conclusões com seu pai! Ele é um velho, mas ainda é o Lorde Alton, e se eu lhe explicar...

    Callista protestou, pálida de fúria:

    - Você não ousaria!

    - Experimente! - desafiou Damon.

    Ele virou as costas, ignorando a todos. Andrew permaneceu onde estava, apreensivo, olhando das costas de Damon para Callista, pálida e furiosa na cama, recostada nos travesseiros, mantendo a consciência apenas pelo fio de raiva. Um dos dois poderia ceder, ou continuariam empenhados naquela terrível batalha de vontades, até que um morresse? Andrew captou um pensamento fortuito de Ellemir, o de que a mãe de Damon era uma Alton, ele também possuía o dom Alton. Mas Callista era a mais fraca, Andrew sabia que ela não poderia sustentar por muito tempo aquela fúria, que estava destruindo a todos. Ele devia romper aquele impasse, e o mais depressa possível. Ellemir estava enganada. Damon não podia quebrar a vontade de Callista assim, nem mesmo para salvar sua vida. Ele aproximou-se de Callista, ajoelhou-se ao seu lado e suplicou:

    - Querida, faça o que Damon está querendo!

    Ela sussurrou em resposta, a raiva fria se dissipando o suficiente para que Andrew pudesse perceber o profundo sofrimento por trás:

    - Ele lhe contou que isso significa que eu não poderia mais... que nós perderíamos até o pouco que já tivemos?

    - Contou - respondeu Andrew, tentando desesperadamente demonstrar de alguma forma a ternura angustiada que sufocara todo o resto nele. - Mas comecei a amá-la antes mesmo de encontrá-la pessoalmente, minha querida. Acha que isso é tudo o que quero de você?

    Damon virou-se, lentamente. Sua raiva já se desvanecera. Olhou para os dois, com uma compaixão profunda e angustiada, mas falou em tom duro:

    - Já reuniu coragem suficiente para o que tem de ser feito, Callista?

    Ela suspirou.

    - Coragem? Não é coragem que me falta, Damon. Mas qual é o motivo para isso? Você diz que salvará minha vida... mas passarei a ter uma vida que valha a pena manter? Já envolvi a todos vocês. Preferia morrer agora, antes de levá-lo ao ponto em que me encontro.

    Andrew sentiu-se consternado pelo desespero total em sua voz. Fez um movimento para abraçá-la de novo, mas depois se lembrou de que a expunha ao perigo pelo menor contato. Permaneceu imóvel, paralisado pela angústia. Damon adiantou-se, ajoelhou-se ao seu lado também não tocou em Callista, mas projetou-se para ela, projetou-se para os dois, envolvendo-os. A pulsação lenta e gentil, o fluxo e o refluxo dos ritmos harmônicos, tudo se combinava para lhes proporcionar uma intimidade mais profunda do que o ato de amor. Damon sussurrou:

    - Se a decisão envolvesse apenas você, Callista, eu a deixaria morrer. Mas é agora uma parte integrante de todos nós, a tal ponto que não podemos deixá-la partir.

    E de um deles, Andrew nunca soube se de si mesmo ou de outro, o pensamento espalhou-se pela percepção múltipla que era o círculo ligado: Callista, enquanto tivermos isto, vale a pena viver; na esperança de encontrar de alguma forma o meio de ter o resto.

    Como se retornasse à superfície depois de um mergulho profundo, Andrew se descobriu outra vez como uma percepção separada. Os olhos de Damon se encontraram com os seus, e Andrew não se encolheu diante da intimidade que ali divisou. Os olhos de Callista estavam tão dilatados pela dor que pareciam pretos no rosto pálido, mas ela sorriu, tocando de leve em seu braço.

    - Muito bem, Damon. Faça o que é necessário. Já os fiz sofrer demais.

    Sua respiração era fraca, ela lutava para manter a consciência. Ellemir deu um beijo na testa da irmã.

    - Não tente falar. Nós compreendemos.

    Damon levantou-se, saiu do quarto, levando Andrew.

    - É muito difícil. Este é um trabalho para uma Guardiã. Já houve homens que foram Guardiões, mas não tenho o treinamento.

    - Preferia não fazer isso, não é mesmo, Damon?

    - E quem gostaria? - Sua voz tremia de forma incontrolável. - Mas não resta nenhuma alternativa. Se ela entrar em convulsão outra vez, pode não sobreviver ao dia. E, se sobrevivesse, poderia ocorrer uma lesão cerebral tão maciça que ela nunca mais nos reconheceria. A sobrecarga aumenta em todas as funções vitais, pulsação, respiração... e se o seu estado se deteriorar ainda mais... não podemos esquecer que ela é uma Alton.

    Damon fez uma pausa, balançando a cabeça, desesperado.

    - O que ela fez com você não seria nada em comparação com o que poderia fazer com todos nós, se a mente parasse de funcionar, e soubesse apenas que a estávamos machucando... - Ele estremeceu em pavor. - E terei de fazê-la sofrer. Preciso fazer isso enquanto ela se mantém consciente, capaz, de se controlar e cooperar de maneira racional.

    - De que você tem medo? Não pode machucá-la usando... a força psíquica?... para desobstruir os canais, não é mesmo? Afinal, não é um trabalho físico.

    Damon fechou os olhos por um momento, um movimento involuntário, espasmódico.

    - Não vai matá-la. Conheço o bastante para não fazer isso. Mas é por isso que ela deve permanecer consciente. Se eu cometesse algum erro de cálculo, poderia danificar alguns nervos. Caso estivessem concentrados em torno dos órgãos reprodutores, a lesão talvez afetasse a sua capacidade de gerar filhos. Callista pode determinar melhor do que eu onde estão os nervos principais.

    - Por Deus - murmurou Andrew -, não pode trabalhar enquanto ela está inconsciente? Tem alguma importância a capacidade de gerar filhos?

    Damon fitou-o em choque e horror.

    - Você não pode estar falando sério! - exclamou ele, dando o desconto devido pela aflição do amigo. - Callista é Comyn, possui laran. Qualquer mulher preferiria morrer a se arriscar a ficar estéril. Ela é sua esposa, homem, não alguma mulher das ruas!

    Diante do horror genuíno de Damon, Andrew se calou, tentando encobrir sua absoluta perplexidade. Deparara outra vez com um tabu darkovano. Algum dia aprenderia?

    - Desculpe se o ofendi, Damon.

    - Ofendeu - Não exatamente... mas me deixou chocado.

    Damon sentia-se completamente aturdido. Será que Andrew nem sequer pensava naquilo como a coisa mais preciosa que Callista poderia dar a ele, à sua herança, ao clã? Seu amor seria composto apenas por desejo e egoísmo? Damon ficou confuso de novo. Não, pensou ele, Andrew já suportara coisas demais por Callista: não era apenas isso. E Damon acabou pensando, em desespero: Eu o amo, mas será que algum dia conseguirei compreendê-lo?

    Andrew captou sua emoção, virou-se, pôs a mão no ombro de Damon, embaraçado, e disse, em voz alta, hesitante:

    - Eu me pergunto se... se alguém compreende alguém. Estou tentando, Damon. Dê-me tempo.

    A reação normal de Damon teria sido a de abraçar Andrew, mas se acostumara a ter esses gestos naturais repelidos, sabia que constrangiam o amigo. Teria de fazer algo a respeito também.

    - Nesse momento, irmão, concordamos numa coisa: ambos queremos o que é melhor para Callista. Vamos voltar ao quarto.

    Andrew foi para o lado de Callista. Apesar de tudo, achava antes que Damon devia estar exagerando. Aquelas eram coisas psicológicas, como poderiam ter um efeito físico? Agora, no entanto, sabia que Callista estava morrendo. Com um calafrio de medo, percebeu que ela nem mais tentava mover a cabeça no travesseiro, embora seus olhos o acompanhassem.

    - Damon, jure que depois haverá um meio de me trazer de volta para... para o normal...

    - Juro, breda.

    A voz de Damon soou tão firme quanto as mãos, mas Andrew percebeu que ele fazia um tremendo esforço para se controlar. Callista, porém, parecia tranqüila.

    - Não tenho kirian para dar a você, Callista. Andrew sentiu-a se contraindo em medo, mas ela disse:

    - Posso agüentar. Faça o que é preciso.

    - Se quiser arriscar, Callista, há flores de kireseth...

    Ela fez um tênue gesto de repúdio. Damon já sabia que ela não concordaria com isso; o tabu era absoluto entre os treinados na Torre. Mas bem que gostaria que Callista fosse menos escrupulosa, menos conscienciosa.

    - Você disse que ia tentar...

    Damon acenou com a cabeça, pegou o pequeno frasco.

    - Uma tintura. Filtrei as impurezas e dissolvi as resinas em vinho. Talvez seja melhor do que nada.

    O riso de Callista saiu silencioso, não mais do que um ofego. Observando-a, Andrew espantou-se por ela ainda ser capaz de rir.

    - Sei que não é a sua especialidade, Damon. Vou experimentar, mas deixe-me provar primeiro. Se pegou a resina errada... - Ela cheirou o frasco, cautelosa, provou algumas gotas, antes de acrescentar: - É seguro. Vou tomar, mas...

    Ela hesitou, calculou um espaço estreito entre o polegar e o indicador e arrematou:

    - Só esta quantidade.

    - Precisará mais do que isso, Callista. De outra forma, não conseguiria suportar a dor.

    - Preciso ter uma percepção máxima dos centros inferiores e dos canais nervosos. Os principais nódulos de descarga estão sobrecarregados, e por isso talvez precise efetuar um desvio.

    Andrew sentiu um calafrio de horror ao tom clínico e objetivo de Callista, como se o seu próprio corpo fosse alguma espécie de máquina defeituosa, como se os próprios nervos não passassem de peças desajustadas. Que coisa terrível para se fazer com uma mulher!

    Damon ergueu a cabeça de Callista, amparou-a enquanto ela tomava a dose indicada. Ela parou no ponto exato que calculara, fechando a boca, obstinada.

    - Já chega, Damon. Conheço os meus limites. Ele advertiu, impassível:

    - Será pior do que qualquer coisa que você já experimentou.

    - Sei disso. Se você atingir um nódulo perto da... – Andrew não conhecia o termo que ela usou. - ...posso ter outro ataque.

    - Terei o maior cuidado. Há quantos dias sua menstruação cessou por completo? Sabe a que profundidade terei de levá-la?

    Calista fez uma careta.

    - Claro que sei. Desobstruí Hilary duas vezes e estou mais sobrecarregada do que ela jamais ficou. Ainda há um resíduo...

    Damon percebeu a expressão de horror de Andrew e disse:

    - Quer que ele fique aqui, querida?

    Ela comprimiu os dedos contra a mão de Andrew.

    - Ele tem esse direito.

    A voz de Damon estava tão tensa que parecia ríspida, mas Andrew, ainda ligado ao amigo, sabia que era apenas a pressão interior.

    - Ele não está acostumado a isso, Callista. Só saberá que estou lhe causando muita dor.

    Oh, Deus!, pensou Andrew. Precisava mesmo assistir ao sofrimento de Callista? Mas ele disse calmamente:

    - Ficarei, se precisa de mim, Callista.

    - Se eu estivesse dando à luz um filho seu, Andrew permaneceria em contato e partilharia uma dor ainda maior.

    - Tem razão - concordou Damon gentilmente. - Mas se fosse isso... e como eu gostaria que fosse, pelo Senhor da Luz!... você poderia se projetar para ele e se apoiar em sua força, sem a menor hesitação. Mas nesta situação, Callista, como sabe muito bem, eu teria de proibi-lo de tocar em você, não importa o que possa acontecer. E você também não poderia se projetar para Andrew. Deixe-me mandá-lo embora, Callista.

    Ela quase se rebelou de novo, mas depois, em meio a seu sofrimento, sentiu o temor de Damon, sua desesperada relutância em fazê-la sofrer. Ergueu a mão, com uma surpresa angustiada, tocou no rosto dele e sussurrou:

    - Pobre Damon... detesta tudo isso, não é? Será mais fácil para você assim?

    Damon limitou-se a acenar com a cabeça, não confiando em si mesmo para falar. Já era muito difícil ter de infligir uma dor assim, e seria terrível ter de suportar ainda por cima as reações de pessoas que não tinham a menor idéia do que ele fazia. Determinada, Callista olhou para Andrew.

    - Saia, meu amor. Ellemir, tire-o daqui. Este é um assunto para técnicos psíquicos treinados. Mesmo com toda a boa vontade do mundo, vocês não poderiam ajudar, e talvez até prejudicassem o trabalho.

    Andrew sentiu uma mistura de alívio e culpa - se ela era capaz de suportar, ele também devia ser forte o bastante para partilhar -, mas teve também a impressão de que Damon sentia-se grato pela decisão de Callista. Dava para perceber o esforço que Damon fazia para assumir a mesma atitude clínica e impassível que Callista tentava demonstrar. Com uma mistura de horror e culpa, além de alívio envergonhado, ele se levantou e se apressou em deixar o quarto.

    Por trás dele, Ellemir hesitou, olhando para Callista, especulando se não seria mais fácil se pudessem todos permanecer em contato. Mas um rápido olhar para o rosto de Damon fez com que se decidisse. Deliberada, rompeu o vínculo restante com Damon e Calista e saiu do quarto, sem se virar para verificar o efeito disso nos outros dois... embora pudesse sentir um alívio quase tão grande quanto o de Andrew. Foi encontrá-lo na sala central.

    - Acho que você precisa de um drinque, Andrew. O que acha da idéia?

    Ela conduziu-o para a sala da outra suíte, abriu um armário, tirou uma garrafa de barro quadrada e dois copos. Serviu, sentindo os pensamentos cheios de remorso de Andrew: Fico tranqüilo aqui, tomando um drinque, e só Deus sabe o que Callista está sofrendo!

    Andrew pegou o copo, tomou um gole. Esperava por vinho: em vez disso, era uma bebida forte, ardente, de alta concentração. Tomou outro gole, e comentou, hesitante:

    - Não quero Ficar embriagado. Ellemir deu de ombros.

    - Por que não? Talvez seja a melhor coisa que você poderia fazer neste momento.

    Embriagar-me? Com Callista... Os olhos de Ellemir fixaram-se nos seus.

    - Justamente por isso.  É uma garantia para Damon de que você não vai interferir, não vai atrapalhar o trabalho que ele tem de realizar. É uma coisa que ele detesta.

    A tensão em sua voz levou Andrew a compreender que ela se encontrava tão preocupada por Damon quanto ele por Callista.

    - Nem tanto. - Mas a voz de Ellemir tremia. - Não da mesma maneira. Não podemos ajudar. Tudo o que podemos fazer é... não atrapalhar. E eu não estou... acostumada a ser excluída assim.

    Ela piscou os olhos, furiosa. Tão parecida com Callista e ao mesmo tempo tão diferente-, pensou Andrew. Passara a pensar nela como sendo mais forte do que a irmã, embora Callista tivesse sobrevivido a todo o sofrimento nas cavernas. Não era uma donzela frágil em perigo, jamais tão frágil quanto ele imaginara. Nenhuma Guardiã podia ser fraca. Era uma espécie de força diferente. Mesmo agora, recusando a droga que Damon lhe oferecera. Tomando um gole da bebida ardente, Ellemir comentou:

    - Damon sempre detestou esse trabalho. Só vai realizá-lo pelo bem de Callista. - Uma pausa, e ela acrescentou: - E por você.

    - Damon tem sido um grande amigo para mim. Sei disso.

    - Mas parece que tem dificuldade para demonstrar. Suponho que foi assim que o ensinaram a reagir às pessoas em seu mundo. Deve ser angustiante para você. Acho que não posso nem sequer imaginar como as coisas devem ser difíceis para você aqui, descobrir todo mundo pensando de maneira estranha, cada coisa diferente, por menor que seja. E creio que é mais difícil se acostumar às pequenas coisas do que às grandes. Dá para absorver as grandes, depois que se toma uma decisão. As pequenas surgem de maneira inesperada, quando não se está pensando nelas, quando não se preparou.

    Era muito perceptivo de Ellemir compreender isso, pensou Andrew. O problema estava mesmo nas pequenas coisas. A nudez indiferente de Damon - e também de Ellemir - que o deixava constrangido e inibido, como se todos os hábitos automáticos de uma vida inteira fossem de algum modo grosseiros; a estranha textura do pão; Damon beijar Dom Esteban, com a maior naturalidade, ao cumprimentá-lo; Callista, nos primeiros dias, quando partilhavam o quarto, não sentindo o menor embaraço quando ele a via meio despida, e até uma vez inteiramente nua no banho, mas corando e balbuciando confusa no dia em que se aproximara por trás e levantara os longos cabelos soltos, deixando a nuca à mostra.

    - Estou tentando me acostumar aos costumes de Darkover... Ellemir tornou a encher seu copo.

    - Andrew, preciso conversar com você.

    Era a mesma frase que Callista usava, e isso o deixou cauteloso.

    - Estou escutando.

    - Callista lhe disse naquela noite... - Ele soube no mesmo instante a que noite Ellemir se referia. - ...o que eu oferecera. Por que isso o deixou zangado? Sua repulsa por mim é tão grande?'

    - Repulsa? De jeito nenhum! Mas... - Andrew fez uma pausa, sem saber como continuar. - Não me parece justo você me tentar assim.

    - E você foi justo com qualquer de nós? É justo você insistir em permanecer nesse estado, quando todos temos de partilhá-lo, quer gostemos ou não? Você se encontra... há muito tempo... num terrível estado de necessidade sexual. Pensa que não sei? Pensa que Callista não sabe?

    Andrew se sentiu invadido.

    - Por que isso seria da sua conta?

    Ellemir inclinou a cabeça para trás.

    - Sabe muito bem por que é da minha conta. Contudo, Calista me disse que recusou...

    Fora uma sugestão indigna, mas Callista pelo menos tivera a decência de tratar do assunto de uma maneira um pouco diferente. E Ellemir era tão parecida com Callista que ele não podia deixar de reagir à sua simples presença. Ele cerrou os dentes e proclamou:

    - Posso me controlar. Não sou um animal.

    - E o que você é então? Um repolho? Controlar-se? Não sugeri que, de outra forma, você seria capaz de sair e estuprar a primeira mulher que encontrasse. Mas isso não significa que a necessidade não existe. Portanto, em suma, você mente para nós em tudo o que faz, em tudo o que é.

    - Oh, Deus Todo-Poderoso! - explodiu Andrew. - Não há privacidade aqui?

    - Claro que há. Ainda não percebeu? Meu pai não tem feito perguntas que poderiam nos constranger. Não é de sua conta, entende? Ele não vai bisbilhotar. Nenhum de nós jamais saberá se ele tem conhecimento do que está acontecendo. Mas nós quatro... é diferente, Andrew. Não pode pelo menos ser honesto com a gente'

    - O que eu deveria fazer? - Atormentá-la pelo que ela não pode me dar? - Andrew recordou a noite em que fizera exatamente isso. - Não poderia fazer a mesma coisa de novo!

    - Claro que não. Mas não percebe que isso é parte do que aflige Callista? Ela estava profundamente consciente de sua necessidade, e por isso acabou arriscando... e aconteceu, porque ela conhecia a sua necessidade, e sabia que você não podia aceitar qualquer outra coisa. Pretende continuar assim, aumentando o sentimento de culpa de Callista... e o nosso.?

    A falta de sono, a preocupação e a fadiga, além da bebida forte caindo no estômago vazio, atingiam Andrew com um tremendo impacto, turvando seu raciocínio, até que os argumentos de Ellemir quase faziam sentido. Se ele tivesse feito o que Callista pedira, nunca teria ocorrido tanta coisa...

    Não era justo. Tão parecida com Callista e tão diferente... podiam-se arrancar faíscas daquela!

    - Sou amigo de Damon. Como poderia fazer isso com ele?

    - Damon é seu amigo - protestou Ellemir, a raiva impregnando sua voz. - Acha que ele aprecia seu sofrimento? Ou é bastante arrogante... - A voz dela tremia. - ...para pensar que poderia me levar a gostar menos de Damon por fazer por você o que qualquer mulher decente teria feito, vendo um amigo nesse estado.-'

    Andrew fitou-a nos olhos, com uma fúria igual.

    - Já que estamos sendo tão francos, nunca lhe passou pela cabeça que não é você que eu quero?

    Mesmo agora, era apenas porque ela se encontrava ali, tão parecida com o que Callista deveria ser. A raiva de Ellemir desapareceu de repente.

    - Irmão querido... - Bredu foi a palavra que ela usou. - ...sei que é Callista que você ama, mas fui eu que estive em seu sonho.

    - Um reflexo físico - declarou Andrew brutalmente,

    - O que também é real. E significaria, no mínimo, que não precisaria mais atormentar Callista pelo que ela não pode lhe dar.

    Ela pegou a garrafa para tornar a encher o copo de Andrew que a deteve.

    - Chega. Já estou meio embriagado. Faz alguma diferença se eu a atormento assim, ou se vou para a cama de outra mulher?

    - Não estou entendendo. - Ele sentiu que a confusão de Ellemir era genuína. - Está querendo dizer que uma mulher do seu povo, se não puder por algum motivo partilhar a cama do marido, ficaria furiosa se ele encontrasse... conforto em outra parte? Mas que coisa estranha e cruel!

    - Acho que a maioria das mulheres pensa que... se tiver que se abster por algum motivo, nada mais justo que o homem partilhe... a abstenção. - E hesitou. - Se Callista se sente infeliz também, e eu saio para trepar... desculpe, não conheço as palavras polidas... não acha asqueroso de minha parte agir como se a infelicidade dela não tivesse a menor importância, desde que minhas necessidades sejam satisfeitas?

    Ellemir pôs a mão em seu braço.

    - Isso lhe faz crédito, Andrew. Mas acho difícil acreditar que uma mulher que ame um homem não ficaria contente em saber que ele se satisfez de alguma forma.

    - Mas ela não pensaria que eu não a amava o suficiente para esperar?

    - Acha que amaria Callista menos se fosse para a cama comigo? Ele sustentou com firmeza o olhar de Ellemir.

    - Nada neste mundo poderia me fazer amar Callista menos. Absolutamente nada.

    Ela deu de ombros.

    - Sendo assim, como ela poderia ficar magoada. Pense um pouco a  respeito, Andrew. Vamos supor que outro homem  pudesse ajudar Callista a se livrar das cadeias que ela não consegue romper. Você ficaria zangado com ela, ou a amaria menos?

    Era um ponto sensível, e Andrew recordou o momento em que parecia que Damon se interpusera entre os dois, seu ciúme quase frenético.

    - Espera que eu acredite que em Darkover um homem não se importaria com isso.-'

    - Acabou de me dizer que nada poderia fazer com que a amasse menos. Iria proibi-la?

    - Proibi-la? Não, mas poderia me perguntar até que ponto seu amor era profundo.

    A voz de Ellemir começou subitamente a tremer.

    - Quer dizer que os terráqueos são como os habitantes das Cidades Secas, que mantêm suas mulheres por trás de muros, em correntes, para que nenhum outro homem jamais as toque? Ela é um brinquedo que você quer trancar numa caixa, a fim de que ninguém mais possa brincar? Afinal, o que é o casamento para você?

    - Não sei - respondeu Andrew, cansado, sua ira desaparecendo. - Nunca fui casado antes. Não quero discutir com você, Elli... apenas... falamos antes das coisas estranhas para mim por aqui, e essa é uma delas. Acreditar que Callista não ficaria magoada...

    - Se você a abandonasse, ou se a obrigasse a consentir, contra sua vontade... como fez Dom Ruyvcn de Castamir, que forçou Dama Crystal a acolher sua esposa barragana e a adotar todos os bastardos gerados pela mulher... neste caso, ela teria motivos para se lamentar. Mas pode acreditar que é crueldade atender à vontade dela?

    Ellemir fitou-o nos olhos, pegou gentilmente a mão de Andrew entre as suas.

    - Se você está sofrendo, Andrew, isso angustia a todos nós. Inclusive a Callista. E... e a mim também, Andrew.

    Ele estava com as barreiras arriadas. O contato, o encontro dos olhos, tudo fazia com que se sentisse totalmente exposto. Não era de admirar que Ellemir não tivesse a menor hesitação em circular na sua presença sem uma túnica, refletiu Andrew. Aquela era a verdadeira nudez.

    Andrew alcançara aquele estágio da embriaguez em que os preconceitos se apagam, as pessoas fazem coisas afrontosas e acreditam que são normais. Podia ver Ellemir, ora como ela própria, ora como Callista, ora como o sinal visível de um contato que apenas começava a compreender, o vínculo a quatro entre eles. Ela inclinou-se e comprimiu a boca contra a sua. foi como se uma corrente elétrica passasse pelo corpo de Andrew. Toda a sua frustração angustiante estava por trás do ímpeto com que a puxou para os seus braços.

    Isso está mesmo acontecendo, ou apenas me embriaguei e sonho outra vez? Os pensamentos eram confusos, tinha consciência do corpo de Ellemir em seus braços, esguia, nua, confiante, com aquela curiosa aceitação natural. Num momento de percepção sóbria, Andrew soube que essa era a maneira que ela tinha de cortar também a presença de Damon. Não era apenas a necessidade dele, mas também a de Ellemir. E Andrew sentiu-se contente por isso.

    Ele se descobriu nu, sem lembrança de ter tirado as roupas. Ellemir era quente, dócil em seus braços. Na verdade, ela já esteve aqui antes, por um instante, nós quatro, unidos, pouco antes da catástrofe...  No fundo da mente de Ellemir, ele sentiu um pensamento afetuoso, divertido e acolhedor: Não, você não é um estranho para mim.

    Em meio ao crescente excitamento, aflorou um pensamento estranho e triste: Deveria ter sido Callista. Ellemir parecia diferente em seus braços, de alguma forma tão sólida, sem a fragilidade tímida que tanto o excitava em Callista. E depois ele sentiu suas mãos, despertando-o, bloqueando os pensamentos. Sentiu a memória se turvar, e especulou por um instante se seria obra de Ellemir, pois agora um suave nevoeiro obscurecia tudo. Ele era apenas um sentimento, um corpo reagindo, impelido pela longa necessidade e privação, consciente de um corpo em seus braços, aceitando, reagindo, consciente do excitamento e da ternura que acompanhavam os seus, procurando a liberação por tanto tempo negada. E, quando veio, foi tão intensa que Andrew pensou que perderia a consciência.

    Depois de algum tempo, ele se mexeu, mudando a posição do corpo com extremo cuidado. Ellemir sorriu, afastou seus cabelos do rosto de Andrew. Ele sentia-se calmo, agradecido. Não, era mais do que gratidão, era uma intimidade, como... isso mesmo, como o momento em que haviam se encontrado através da matriz.

    - Ellemir - murmurou ele.

    Apenas uma reafirmação, uma manifestação de segurança. Naquele instante, ela era ela mesma, não Callista, não qualquer outra, beijou-o de leve na têmpora, e de repente a exaustão e a liberação da longa repressão se juntaram, e Andrew dormiu nos braços da cunhada. Um tempo indefinível mais tarde, ele despertou para descobrir Damon a contemplá-los.

    Ele parecia cansado, abatido, e Andrew pensou, chocado, que ali estava o melhor amigo que já tivera, encontrando-o na cama com sua esposa. Ellemir sentou.

    - Calista...!?

    O suspiro de Damon pareceu sair das raízes de seu corpo.

    - Ela vai ficar boa. Está dormindo agora.

    Ele cambaleou, quase caiu por cima dos dois. Ellemir estendeu os braços, acolhendo-o em seu peito.

    Andrew pensou que estava atrapalhando ali, mas depois, sentindo a exaustão de Damon, como o homem mais velho se encontrava à beira de um colapso, concluiu que a preocupação consigo mesmo era egocêntrica e irrelevante. Desajeitado, desejando que houvesse algum meio de expressar o que sentia, ele passou o braço pelos ombros de Damon, que tornou a suspirar, e murmurou:

    - Ela está melhor do que ousei esperar. Continua muito fraca, é claro, e exausta. Depois de tudo a que a submeti...

    Ele estremeceu, e Ellemir puxou a cabeça dele para seus seios.

    - Foi tão terrível assim, meu amor?

    - Terrível, sim...  para ela.  - Mesmo naquele momento, Ellemir sentiu, angustiada, ele ainda tentava protegê-la, resguardar os dois da nudez de sua lembrança. - Callista se comportou com a maior coragem, e mal pude suportar ter de fazê-la sofrer tanto.

    Andrew pensou que deveria se retirar, mas Damon pegou sua mão, apertou-a agoniado. Pondo de lado seu desconforto por estar presente num momento assim, Andrew pensou que Damon precisava agora de todo o conforto que pudesse obter. Por isso, limitou-se a indagar, baixinho, assim que Damon se aquietou um pouco:

    - Devo ficar com Callista?

    Damon captou o pensamento por trás das palavras: Você e Ellemir devem querer ficar a sós. Em seu estado de exaustão, com os nervos à flor da pele, era doloroso, uma repulsa.

    - Ela não vai saber se você está lá ou não. Mas faça o que bem quiser, por favor!

    A parte silenciosa de sua resposta foi tão clara quanto se a tivesse pronunciado em voz alta: Se mal pode esperar para sair de junto de nós.

    Ele ainda não compreende...

    E como poderia, Damon? A própria Ellemir mal podia entender. Sabia apenas que, quando Damon ficava assim, era doloroso, extenuante. Sua necessidade era muito maior do que ela podia satisfazer ou confortar por qualquer forma. E sua própria inadequação a atormentava. Não era algo sexual - isso ela poderia compreender e satisfazer -, mas o que sentia em Damon deixava-a exausta e impotente, porque não era nenhuma necessidade reconhecível. Um pouco de seu desespero alcançou Andrew, embora Ellemir dissesse - apenas:

    - Fique, por favor. Acho que Damon quer nós dois com ele agora. Damon, agarrando-se aos dois com uma desesperada necessidade por contato físico, que não era, embora simulasse, a sua necessidade real, pensou: Não, eles não compreendem. E mais racionalmente: Eu também não compreendo. Por enquanto, era suficiente que eles estivessem ali. Não chegava a ser completo, não era o que ele de fato precisava, mas tinha de se contentar com isso. Ellemir, apertando-o em desespero, pensou que assim podia acalmá-lo, pelo menos um pouco. Mas o que ele realmente precisava? Algum dia ela saberia? Mas como poderia saber, quando o próprio Damon não sabia?

   

    Callista acordou, mas permaneceu com os olhos fechados, sentindo o sol nas pálpebras. A noite, durante o sono, sentira a tempestade cessar, a neve parar de cair e as nuvens desaparecer. O sol brilhava naquela manhã. Ela esticou o corpo, saboreando o prazer de se encontrar totalmente livre da dor. Continuava fraca, esgotada, mas agora tinha a sensação de que dormira por dois ou três dias inteiros, sem intervalo, depois da terrível provação. Só precisava passar mais alguns de cama, recuperando as forças, embora já se sentisse muito bem agora. Sabia que a primeira necessidade era recobrar a saúde, que sempre fora excelente antes, e isso levaria algum tempo.

    E quando ficasse bem de novo, o que aconteceria? Mas ela tratou de se controlar. Se começasse a se preocupar com isso agora, não teria mais sossego.

    Estava sozinha no quarto. O que também era um motivo de satisfação. Passara tantos anos sozinha que aprendera a ansiar pela solidão, tanto quanto outrora a temera, durante os anos difíceis de treinamento. - enquanto estivera doente, nunca ficara sozinha por um instante sequer. Sabia o motivo - sem a menor hesitação, teria ordenado o mesmo tratamento para qualquer pessoa em sua condição - e sentira-se agradecida pelo amor e cuidados incessantes. Agora, no entanto, era bom despertar de novo para se descobrir mais uma vez sozinha.

    Ela abriu os olhos, sentou na cama. Andrew não se encontrava em sua cama. Calista lembrou, vagamente, que durante seu sono ele entrara no quarto, ouvira-o andando de um lado para outro, depois de se vestir, e tornar a sair. Com o fim da tempestade, haveria uma porção de coisas para cuidar na propriedade. E na casa também, Ellemir passara tempo demais a seu lado, durante os dias da doença, negligenciando os afazeres domésticos.

    Callista decidiu que desceria naquela manhã.

    Andrew estivera outra vez com Ellemir na noite anterior. Ela o sentira vagamente, e logo desviara a mente, a disciplina antiga prevalecendo. Ele entrara quase à meia-noite, sem fazer barulho, para não incomodá-la, e ela fingira que dormia.

    Sou uma tola, e grosseira ainda por cima. Queria que isso acontecesse e me sinto sinceramente contente, mas não fui capaz de falar com ele, dizer isso. Mas essa linha de pensamento também não levava a nada. Só havia uma coisa que ela podia fazer, e precisava mobilizar toda a sua força para tal: viver cada dia da melhor forma que pudesse, recuperar a saúde, confiar na promessa de Damon. Andrew ainda a amava e desejava, embora não pudesse imaginar por que deveria, pensou ela, com tamanha isenção clínica que nem sequer sabia que era amargura. Por outro lado, por que esconder a única coisa que ainda não podiam partilhar? Determinada, Callista saiu da cama e foi para o banheiro.

    Vestiu uma saia azul de lã e uma túnica branca de tricô, com uma gola comprida, que poderia ajeitar em torno dos ombros, como um xale. Sentia fome pela primeira vez, desde que podia se lembrar. Lá embaixo, as criadas já haviam tirado a refeição matutina. A cadeira do pai fora Evanda até a janela, e ele olhava para o pátio coberto de neve, onde alguns homens, bastante agasalhados, tentavam abrir um caminho. Callista se adiantou, roçou um beijo filial em sua testa.

    - Já está bem outra vez, filha?

    - Muito melhor, eu acho.

    Dom Esteban gesticulou para que ela sentasse ao seu lado, examinou seu rosto com extrema atenção, os olhos contraídos.

    - Está mais magra. Pelos infernos de Zandru, menina, parece que você foi roída pelo lobo de Alar! O que a afligiu... ou não devo perguntar?

    Callista não tinha a menor idéia do que Andrew ou Damon poderiam ter contado a ele, se é que fazia alguma diferença.

    - Nada demais. Problemas de mulher.

    - Não me venha com essa história! - protestou o pai bruscamente. - Não é uma mulher doente. O problema é que o casamento não combina com você.

    Ela se encolheu toda e percebeu pelo rosto do pai que ele notara sua reação. Dom Esteban se apressou em bater em retirada.

    - Ora, criança, sei há muito tempo que as Torres não largam facilmente aqueles que recrutaram. Lembro muito bem como Damon passou mais de um ano como uma alma penada vagando pelos infernos exteriores. - Meio contrafeito, ele afagou o braço da filha. - Não farei perguntas, chiya. Mas se aquele seu marido não presta para você...

    - Está enganado, pai. Não tem nada a ver com Andrew. Ele franziu o rosto, cético.

    - Quando uma esposa de poucas luas fica com a sua aparência, raramente o marido é inocente.

    Calista corou sob o olhar inquisitivo do pai, mas sua voz manteve-se firme:

    - Dou minha palavra, pai, de que não houve nenhuma briga e de que Andrew não é culpado de coisa alguma.

    Era a verdade, mas não toda a verdade. Não havia como contar a verdade inteira a qualquer pessoa fora do círculo fechado, e Callista não tinha certeza se ela própria a conhecia. Dom Esteban sentiu que a filha se esquivava, mas aceitou a barreira entre os dois.

    - Muito bem, filha, o mundo continuará como quer, não como você ou eu gostaríamos. Já comeu?

    - Ainda não. Esperava lhe fazer companhia.

    Ela deixou que o pai chamasse as criadas e ordenasse que lhe trouxessem comida, mais do que queria, mas sabia que ele ficara chocado por sua magreza e palidez. Como uma filha obediente, forçou-se a comer um pouco mais do que realmente desejava. Os olhos de Dom Esteban não se desviaram de seu rosto enquanto ela comia. Depois de um longo tempo, ele disse, a voz mais gentil do que era seu costume:

    - Há ocasiões, criança, em que penso que as filhas do Comyn que vão para as Torres correm riscos tão grandes quanto os nossos filhos que entram na Guarda e combatem em nossas fronteiras... e que é inevitável que algumas saiam feridas.

    Quanto ele sabia? Quanto compreendia? Callista podia entender que o pai dissera tudo o que podia falar sem violar um dos tabus mais fortes numa família telepática. Sentiu-se vagamente confortada, apesar de seu embaraço. Não devia ter sido fácil para o pai ir tão longe. Dom Esteban estendeu um pote de mel para que ela passasse no pão. Callista recusou, rindo.

    - Quer que eu fique tão gorda quanto uma galinha pronta para o forno?

    - Talvez, tão gorda quanto uma agulha de tricô.

    Ela percebeu que o pai também emagrecera, tinha o rosto encovado e cansado, os olhos pareciam ainda mais fundos.

    - Não há ninguém aqui para lhe fazer companhia, pai?

    - Ellemir entra e sai, cuidando da cozinha. Damon foi à aldeia visitar as famílias dos homens que ficaram congelados durante a grande tempestade, e Andrew está na estufa, verificando os estragos causados pela geada. Por que não vai encontrá-lo, criança? Tenho certeza de que há bastante trabalho para duas pessoas.

    - E também é certo que não sou capaz de ajudar Ellemir na cozinha - comentou Callista, rindo. - Mais tarde, talvez. Com o sol brilhando, devem estar lavando tudo, e preciso verificar como estão as roupas.

    O pai soltou uma risada.

    - Boa idéia. Ellemir sempre disse que prefere limpar o estábulo a usar uma agulha. Talvez, mais tarde possamos ter um pouco de música de novo. Tenho lembrado que costumava tocar alaúde quando era mais jovem. Talvez meus dedos possam recuperar a habilidade. Tenho muito pouco para fazer, sentado aqui o dia inteiro...

    As mulheres da casa, ajudadas por alguns homens, haviam arrastado enormes tinas para o quintal dos fundos e estavam lavando as roupas. Callista logo descobriu que sua presença era supérflua e foi para o dispensário, onde costumava trabalhar. Nada continuava como ela deixara. Recordou que Damon também trabalhara ali durante sua doença. Depois de constatar a desordem que ele deixara, Callista começou a arrumar tudo. Verificou que precisava renovar os estoques de alguns medicamentos comuns; mas enquanto suas mãos se ocupavam a preparar as misturas de ervas mais simples para fazer chás, ela compreendeu que havia uma tarefa mais premente: devia providenciar um pouco de kirian.

    Ao deixar a torre, pensara que nunca mais teria de fazer isso; Valdir ainda era muito jovem para precisar, e Domenica passara da idade. Contudo, refletiu ela, nenhuma casa de telepatas devia ficar sem aquela droga, não importava o que acontecesse. Era de longe a mais difícil de todas as drogas que ela aprendera a fazer, devendo ser destilada em três operações separadas, cada uma para eliminar um resíduo químico diferente da resina. Ela acabou de arrumar tudo no dispensário e estava pegando o equipamento de destilação quando Ferrika entrou e teve um sobressalto ao vê-la.

    - Perdoe-me por incomodá-la, vai domna.

    - Não é problema, Ferrika. Em que posso ajudá-la?

    - Uma das criadas escaldou a mão na lavagem. Vim procurar um ungüento para a queimadura.

    - Aqui está. - Callista pegou um pequeno pote numa prateleira. - Posso fazer mais alguma coisa?

    - Não se preocupe, minha dama. Posso cuidar de tudo.

    A parteira saiu. Voltou pouco depois, para devolver o pote.

    - A queimadura é grave? Ferrika sacudiu a cabeça.

    - Não. Por descuido, ela pôs a mão na tina errada, mais nada. Mas acho que deveríamos guardar alguma coisa para queimaduras na cozinha e na lavanderia. Se alguém sofresse uma queimadura mais grave, poderia ser ruim ter de vir buscar tudo aqui.

    Callista acenou com a cabeça.

    - Tem razão. Passe o ungüento para potes menores e guarde-os lá. Enquanto Ferrika ia para a mesa menor e começava a fazer isso,

    Callista franzia o rosto, abrindo uma gaveta depois de outra. A parteira acabou se virando para indagar:

    - Posso ajudá-la a encontrar o que procura Dama Callista? Se Lorde Damon ou eu guardamos alguma coisa no lugar errado...

    - Havia flores de kireseth aqui...

    - Lorde Damon usou algumas durante sua doença.

    Callista balançou a cabeça, recordando a tintura que ele preparara.

    - Dei minha permissão. Mas a menos que Damon tenha desperdiçado ou estragado a maior parte, havia mais do que ele poderia usar, dentro de uma bolsa, no fundo daquele armário. - Callista continuava a procurar. - Você também usou, Ferrika?

    A mulher sacudiu a cabeça.

    - Nem toquei.

    Ela ajeitava o ungüento num pote pequeno, com uma colher de osso. Observando-a, Callista perguntou:

    - Sabe preparar kirian?

    - Sei como se faz. Durante o treinamento, na Casa da Guilda em Arilinn, cada uma de nós passou algum tempo com o boticário aprendendo a preparar medicamentos. Mas eu mesmo nunca fiz. Não tínhamos uso para isso na Casa da Guilda, embora fôssemos obrigadas a aprender como reconhecer. Sabia que... algumas pessoas vendem ilegalmente os subprodutos da destilação de kirian?

    - Já ouvi falar a respeito, até mesmo na Torre - respondeu Callista, secamente.

    As folhas, flores e caules da planta kireseth continham várias resinas. Nas Colinas Kilghard, em algumas ocasiões, o pólen criava um problema, pois tinha perigosas qualidades psicoativas. Kirian, a droga telepática que baixava as barreiras da mente, usava apenas a fração segura, e mesmo assim só era aplicada com a maior cautela. O uso direto de kiresseth e das outras resinas era proibido em Thendara e Arilinn, considerado um ato criminoso em todos os Domínios. Havia restrições até mesmo em relação a kirian, que muitos encaravam com um temor supersticioso.

    Enquanto contava e separava os filtros de pano, Callista pensou, com uma estranha saudade, nas planícies distantes de Arilinn. Fora seu lar por muito tempo. Refletiu que nunca mais tornaria a vê-las.

    Mas podia ser o seu lar de novo, como dissera Leonie... Para dissipar esse pensamento, ela perguntou:

    - Por quanto tempo viveu em Arilinn, Ferrika!

    - Três anos, domna.

    - Mas nasceu aqui na propriedade, não é mesmo? Lembro que você, eu, Dorian e Ellemir brincávamos juntas, quando éramos crianças. Até tivemos aulas de dança juntas.

    - É verdade. Mas quando Dorian casou e você foi para a Torre, cheguei à conclusão de que não queria ficar em casa pelo resto da minha vida, como uma planta que cresce no muro. Minha mãe fora parteira aqui, deve estar lembrada, e eu achava que tinha talento para esse trabalho. Havia uma parteira na propriedade em Syrtis que fora treinada na Casa da Guilda de Arilinn, onde preparam curandeiras e parteiras.

    E percebi que, sob seus cuidados, sobreviviam muitas mulheres que minha mãe teria encaminhado à misericórdia de Avarra... sobreviviam e seus bebês cresciam saudáveis. A mãe disse que aqueles métodos modernos eram absurdos, e provavelmente ímpios também, mas mesmo assim fui para a Casa da Guilda em Neskaya e prestei juramento ali. E, depois, mandaram-me fazer o curso em Arilinn. Ao final, pedi permissão à minha mãe-de-juramento para voltar e trabalhar aqui, e ela concordou.

    - Eu nunca soube que havia mais alguém daqui em Arilinn.

    - Eu a via de vez em quando, domna, em companhia das outras vai leronis. E houve uma ocasião em que domna Lirielle foi à Casa da Guilda para nos ajudar. Havia uma mulher ali cujas entranhas estavam sendo destruídas por alguma doença terrível, e nossa Mãe-da-Guilda disse que só a neutralização poderia salvá-la.

    - Pensei que isso fosse ilegal - comentou Callista, estremecendo.

    - E é mesmo, domna, exceto para salvar uma vida. Mais do que ilegal, é muito perigoso quando se faz com o bisturi cirúrgico. Muitas nunca se recuperam.  Mas também pode ser feito com uma matriz... - Ferrika fez uma pausa, com um sorriso pesaroso. - Mas quem sou eu para falar sobre isso, logo para você, que foi Dama de Arilinn, e conhece todas essas artes?

    Callista ficou toda arrepiada.

    - Eu nunca vi.

    - Tive o privilégio de observar a leronis e achei que seria muito útil para as mulheres do nosso mundo se essa arte fosse mais amplamente conhecida.

    Com um tremor de repulsa, Callista murmurou:

    - A neutralização?

    - Não apenas isso, domna, embora se deva admitir também, para salvar uma vida. A mulher sobreviveu. Sua feminilidade foi destruída, mas a doença também foi eliminada, e ela ficou livre. Mas há muitas outras coisas que poderiam ser feitas. Não viu o que Lorde Damon fez com os homens congelados depois da tempestade, mas eu testemunhei quando se recuperaram... e sei quantos homens costumam morrer por causa disso, mesmo depois que seus dedos são cortados. E há mulheres para as quais não é mais seguro gerar filhos, e não há nenhum meio infalível de evitar. Venho pensando há muito tempo que a neutralização parcial poderia ser a solução, se pudesse ser efetuada sem os riscos da cirurgia. É uma pena, minha dama, que a arte de fazer tais coisas com a matriz, não seja conhecida fora das Torres.

    Kallista parecia consternada à idéia, e Ferrika compreendeu que fora longe demais. Tampou o pote do ungüento para queimaduras com os dedos fortes.

    - Já encontrou o kirezeth que procurava, Dama Callista? Deve perguntar a Lorde Damon se ele guardou em algum outro lugar.

    Ela guardou o pote, correu os olhos pelas ervas para chás que Callista dividira em doses, examinou as prateleiras.

    - Quando este resto acabar, domna, não teremos mais a raiz de fruta-preta.

    Callista olhou para os pedaços retorcidos de raiz no fundo de um jarro.

    - Compraremos mais no mercado em Neskaya assim que as estradas abrirem. Vem das Cidades Secas. Mas não usa isso com freqüência, não é mesmo?

    - Venho dando a seu pai, para fortalecer o coração. Por algum tempo, posso substituir pelo chá de junco-vermelho, mas para uso diário a raiz de fruta-preta é melhor.

    - Pois então mande buscar, tem autoridade para isso. Mas ele sempre foi um homem forte e vigoroso. Por que acha que precisa de estimulantes para o coração, Ferrika?

    - Costuma acontecer com homens que foram muito ativos, domna, como espadachins, cavaleiros, atletas, guias nas montanhas. Se alguma lesão os mantém na cama por muito tempo, o coração enfraquece. É como se o corpo desenvolvesse uma necessidade de atividade; quando esta cessa, o homem fica doente, às vezes até morre. Não sei por que acontece assim, minha dama, só sei que é bastante freqüente.

    O que: também era culpa sua, pensou Callista, com um súbito desespero. O pai ficara paralítico na luta contra os homens-gatos. E, recordando a ternura com que o pai a envolvera naquela manhã, ela foi dominada pela angústia. E se ele morresse, quando mal começara a conhecê-lo! Na Torre, estivera isolada do pesar, mas também da alegria. Agora, parecia que o mundo exterior era repleto de pesares, a tal ponto que ela não conseguia suportar. Como pudera ter a coragem para sair?

    Ferrika a observava com compaixão, mas Callista era inexperiente demais para perceber. Fora ensinada a depender totalmente de si mesma, e agora era incapaz de recorrer a outra pessoa, em busca de conselho ou conforto. Depois de algum tempo, vendo Callista imersa em seus pensamentos, Ferrika se retirou, sem fazer barulho. Callista ainda tentou retomar o trabalho, mas ficara tão abalada pelo que ouvira que as mãos não obedeciam. Acabou guardando os ingredientes, limpou os equipamentos e saiu do dispensário, fechando a porta.

    Os homens e as mulheres já haviam concluído a lavagem e se espalhavam pelo pátio, pendurando as roupas em cordas estendidas por toda parte, a fim de aproveitar o sol brilhante tão raro. Todos riam alegremente, diziam gracejos, os pés afundando na lama e na neve derretendo. O pátio era um festival de roupas úmidas, ondulando ao vento. Pareciam felizes e ocupados, mas Callista sabia, pela experiência pessoal, que sua presença arrefeceria a animação. Estavam acostumados a Ellemir, mas para as mulheres da propriedade - e ainda mais para os homens - ela ainda era uma estranha, exótica, a ser temida e reverenciada, uma dama do Comyn que fora uma leronis em Arilinn. Só Ferrika, que a conhecia desde que eram crianças, era capaz de tratá-la como uma igual. Era uma solitária, compreendeu Callista, enquanto observava as moças e as mulheres circulando de um lado para outro, com os braços cheios de roupas lavadas, tirando as que já secaram das cordas e levando para guardar nos armários, rindo e zombando umas das outras.

    Era solitária, não pertencia a lugar algum, refletiu ela, nem mesmo à Torre.

    Depois de algum tempo, ela foi para as estufas. Havia sempre aquecedores ali, mas ela constatou que algumas plantas perto das janelas haviam ficado congeladas e que o peso da neve quebrara vários vidros numa das estufas. Embora a abertura fosse prontamente fechada com tábuas, alguns arbustos frutíferos haviam morrido. Avistou Andrew no outro lado, mostrando aos jardineiros como podar as videiras danificadas, para encontrar vida nos galhos.

    Raramente olhava para Andrew, acostumada ao contato por outros meios. Agora especulava se Ellemir o achava bonito ou feio. O pensamento a aborreceu de forma desproporcional. Sabia que Andrew a achava muito bonita. Não sendo vaidosa, e também desacostumada às atenções masculinas, por causa do tabu que a cercara durante toda a sua vida adulta, isso sempre a surpreendia um pouco. Mas agora, pensou Callista, ele devia achar que Ellemir era mais bonita, já que a irmã era adorável, enquanto ela ficara magra e pálida.

    Andrew virou o rosto, avistou-a, sorriu e acenou para que se aproximasse. Ela foi para o seu lado, acenou com a cabeça para os jardineiros, na maior polidez.

    - Todas essas plantas morreram? - Ele balançou a cabeça.

    - Acho que não. Algumas raízes podem ter morrido, mas o resto voltará a crescer na primavera. - Andrew acrescentou para os jardineiros: - Marquem onde cortaram as plantas, para não plantarem nada por cima.

    Callista olhou para as plantas cortadas.

    - As folhas devem ser recolhidas e separadas. É preciso secar as que não foram danificadas pelo frio, ou não teremos temperos para os nossos assados até a primavera!

    Andrew transmitiu a ordem.

    - Ainda bem que você está aqui. Sei cuidar das plantas, mas não sou um cozinheiro, nem mesmo no meu mundo.

    Ela riu.

    - Também não sou cozinheira, em qualquer mundo. Apenas conheço algumas ervas, mais nada.

    Os jardineiros abaixaram-se para cortar os galhos, e Andrew aproveitou para se inclinar e dar um beijo rápido na testa de Callista. Ela teve de fazer um esforço para não se esquivar, como era impelida pelo hábito antigo e pelos reflexos profundos. Andrew percebeu a reação, fitou-a com uma surpresa angustiada, mas depois se lembrou, suspirou e sorriu.

    - Fico contente que esteja parecendo tão bem, meu amor. Também suspirando, por nada ter sentido do beijo, ela comentou:

    - Eu me sinto como esse arbusto, morta até as raízes. Vamos torcer para que eu também volte a crescer na primavera.

    - É bom você ficar andando assim? Damon disse que deveria continuar a descansar hoje.

    - Damon tem o péssimo hábito de estar sempre certo, mas eu me sinto como um cogumelo num porão escuro. Já faz muito tempo que não vejo a luz do sol!

    Callista parou num círculo de sol, saboreando o calor em seu rosto, enquanto Andrew se afastava, inspecionando as fileiras de legumes e ervas em vasos.

    - Acho que tudo se encontra em boas condições aqui, mas não conheço estas plantas. Qual é a sua opinião, Callista?

    Ela foi se ajoelhar ao lado das plantas indicadas, examinou as raízes.

    - Eu disse ao pai, há alguns anos, que não deveria plantar os melões tão perto da parede. É verdade que há mais sol neste ponto, mas a proteção não é suficiente numa tempestade mais forte. Esta aqui morrerá antes que o fruto fique maduro, e aquela... - Callista apontou. - ...pode sobreviver, mas o frio já matou o fruto. A casca pode servir para conservar, mas o melão não ficará maduro e deve ser tirado antes que apodreça.

    Ela chamou um jardineiro, deu as ordens necessárias.

    - Teremos de pedir mais algumas sementes de outra plantação. Talvez Syrtis não tenha sofrido tanto com a tempestade. Há boas árvores frutíferas ali, podemos pedir algumas sementes de melão, e também mudas de videira. Estes melões devem ser levados para a cozinha. Alguns poderão ser cozinhados antes que estraguem, outros salgados e guardados.

    Enquanto os homens executavam as ordens, Andrew enfiou a mão entre seu braço e corpo. Callista se contraiu, ficou rígida, a cor se esvaiu de seu rosto.

    - Desculpe. é apenas... um reflexo, um hábito...

    De volta ao ponto de partida. Todos os reflexos físicos, suprimidos de forma tão lenta e cuidadosa nos meses transcorridos desde o casamento, haviam voltado com pleno vigor. Andrew sentiu-se desamparado e derrotado. Sabia que isso fora necessário para salvar a vida de Callista, mas testemunhar a reação era outro choque, e dos mais intensos.

    - Não fique assim! - suplicou Callista. - Será por pouco tempo! Andrew suspirou.

    - Sei como é. Leonie me advertiu.

    Ele contraiu o rosto, e Callista perguntou, nervosa:

    - Você a odeia muito, não é?

    - Não a ela... mas ao que fez com você. É algo que não posso perdoar... nunca perdoarei.

    Callista experimentou um estranho tremor interior, que não foi capaz de controlar. Só manteve a voz firme por um grande esforço:

    - Seja justo, Andrew. Leonie não me obrigou a ser Guardiã. Optei por minha livre e espontânea vontade. Ela apenas me possibilitou seguir por esse caminho, o mais difícil de todos. E foi também por minha livre e espontânea vontade que optei por suportar... a dor de ir embora. Por você, Andrew.

    Ele sentiu que se achavam perigosamente à beira de uma briga. Ansiava por isso, com uma parte de si mesmo, uma tormenta para limpar o ar; e aflorou em sua mente o pensamento de que seria assim com Ellemir, uma briga curta e violenta, e uma reconciliação que os tornaria ainda mais íntimos.

    Só que isso nunca poderia ocorrer com Callista. Ela aprendera, com um sofrimento que ele nem podia imaginar, a manter suas emoções guardadas, ocultas por trás de uma barreira intransponível. Andrew sabia que era sempre um risco arremeter contra essa barreira. Podia de vez em quando persuadir Callista a abaixá-la, ou dar um jeito de contorná-la, mas sempre estaria ali, e sempre havia o perigo de que qualquer tentativa de destruí-la pudesse acarretar também a destruição daquela mulher que tanto amava. Se Callista parecia dura e invulnerável na superfície, ele sentia que por baixo ela era mais vulnerável do que podia imaginar.

    - Não vou culpá-la, meu amor, mas gostaria que ela tivesse sido mais explícita com nós dois.

    Ele tinha razão, pensou Callista, recordando - como um pesadelo! - sua censura a Leonie no mundo superior. Apesar disso, sentiu-se compelida a dizer:

    - Leonie não sabia.

    Andrew sentiu vontade de gritar: E por que ela não sabia? Não era esse o seu trabalho? Mas também não ousava criticar Leonie. Sua voz tremia quando falou:

    - O que vamos fazer? Continuar assim, com você se esquivando até mesmo ao contato de minha mão?

    - Contra a vontade. - Ela tinha de forçar as palavras a sair pela garganta apertada. - Simplesmente não posso. Pensei que Damon tinha lhe explicado.

    - E o melhor que Damon pôde fazer só serviu para piorar a situação!

    - Não, não piorou! - protestou Callista, os olhos ardendo outra vez. - Ele salvou minha vida! Seja justo, Andrew!

    Andrew murmurou, baixando os olhos:

    - Estou cansado de ser justo.

    - Sinto que você me odeia quando fala assim!

    - Nunca, Callie - declarou ele, recuperando o controle. - Apenas me sinto desesperado. O que vamos fazer?

    Callista também baixou os olhos.

    - Não creio que seja tão difícil para você. Ellemir...

    Ela parou por aí. Andrew, invadido pela ternura antiga, projetou-se para o contato mais profundo, querendo tranqüilizar Callista, e a si mesmo, que o amor ainda existia, poderia resistir à separação. Ocorreu-lhe que, por causa das diferenças culturais arraigadas, nem mesmo a telepatia era uma garantia contra a incompreensão. Mas a intimidade ali estava.

    Deveriam partir desse ponto. A compreensão viria mais tarde. Ele disse gentilmente:

    - Parece cansada, Callie. Não deve exagerar em seu primeiro dia fora da cama. É melhor subir.

    Quando ficaram a sós no quarto, ele perguntou:

    - Vai me censurar por Ellemir, Callista? - Pensei que era o que você queria.

    - E era mesmo - balbuciou ela. - Apenas... apenas... deveria tornar a espera mais fácil para você. Mas precisamos conversar a respeito, Andrew?

    - Acho que devemos. Naquela noite... - E mais uma vez ela sabia a que noite Andrew se referia. Para Todos os quatro, durante um longo tempo, "aquela noite" só teria um significado. - ...Damon disse uma coisa que Ficou na minha cabeça. Todos nós quatro éramos telepatas, comentou ele, e nenhum tinha bom senso suficiente para sentar e tentar compreender os outros. Ellemir e eu conseguimos conversar a respeito...  - Um sorriso   surgiu   no  rosto  de  Andrew.  -  ...embora  ela precisasse me deixar meio embriagado antes que eu fosse capaz de baixar as barreiras e falar francamente.

    Calista indagou, sem fitá-lo:

    - Não tornou tudo mais fácil para você?

    - De certa forma, sim. Mas não terá valido a pena se a deixa envergonhada de olhar para mim.

    - Não envergonhada. - Ela conseguiu levantar os olhos. - Não, não envergonhada, apenas... fui ensinada a desviar meus pensamentos para outras coisas, a fim de não me tornar... vulnerável... Mas se quer falar a respeito... - Que Evanda e Avarra a impedissem de ser menos franca com ele do que Ellemir. - ...eu tentarei. Mas... não estou acostumada a tais conversas, a esses pensamentos, e posso não... não encontrar as palavras certas com muita facilidade. Se você... estiver disposto a agüentar isso... então eu tentarei.

    Andrew viu que ela mordia o lábio, lutando para forçar as palavras através da barreira de sua inarticulação, e sentiu uma profunda compaixão. Pensou em poupá-la, mas sabia que uma barreira de silêncio talvez fosse a única que não poderiam transpor. A qualquer custo - e olhando para as faces vermelhas e a boca trêmula, ele compreendeu que o custo seria elevado - deviam manter aberta uma linha de comunicação.

    - Damon disse que nunca deveríamos permitir que você se sentisse sozinha, ou se julgar abandonada. Isso a deixa magoada!-' Ou faz com que se sinta... abandonada?

    Retorcendo os dedos esguios no colo, Callista murmurou:

    - Só se você tivesse... realmente me abandonado. Deixado de se preocupar. Deixado de me amar.

    Ele pensou que era uma coisa muito íntima, não podia deixar de aproximá-lo ainda mais de Ellemir e aumentar a distância que o separava de Callista. As barreiras de Andrew estavam arriadas, Callista captou o pensamento e explodiu em indignação:

    - Só me quer por pensar que eu poderia lhe proporcionar mais prazer na cama do que minha irmã!'

    Andrew ficou vermelho. Muito bem, ele pedira franqueza; era o que tinha.

    - Deus me livre! Nunca pensei assim. .Acontece apenas... se você acha que eu vou desejá-la menos, prefiro esquecer tudo. Pensa mesmo que vou deixar de desejá-la só porque deito com Ellemir?

    - Assim como eu não deixei de desejá-lo, Andrew. Mas... mas agora estamos iguais.

    - Não entendi.

    - Agora, a sua necessidade de mim é como a minha de você. – Os olhos de Callista eram calmos, sem lágrimas, mas Andrew sentiu que ela chorava por dentro. - Uma... uma coisa da incute e do coração, um anseio como o meu, mas não... um tormento do corpo. Eu o queria contente, porque... – Calista umedeceu os lábios, lutando contra inibições que perduravam havia anos. - ... isso era terrível demais para mim, sentir sua necessidade, sua fome, sua solidão. E foi o motivo pelo qual tentei... partilhar e... quase o matei.

    As lágrimas afloraram agora, mas ela se recusou a chorar, removeu-as com um gesto furioso.

    - Pode compreender, Andrew? É mais fácil para mim quando não preciso sentir isso em você, e faria qualquer coisa, arriscaria qualquer coisa para mudar...

    A desolação no rosto de Callista fez com que ele também sentisse vontade de chorar. Ansiava em tomá-la nos braços, confortá-la, mas sabia que não podia arriscar nada além do mais leve contato. Com extrema gentileza, quase respeito, levantou a mão esguia de Callista para seus lábios, depositou o sopro de um beijo nas pontas dos dedos.

    - É tão generosa que me deixa envergonhado, Callista. Mas não há nenhuma outra mulher no mundo que possa me dar o que desejo de você. Estou disposto... a partilhar seu sofrimento, minha querida.

    Era um pensamento tão estranho que ela o fitou com o maior espanto. Ele falava sério, pensou Callista, com um súbito excitamento. Os costumes de seu mundo eram diferentes, ela sabia, mas em seus termos ele tentava sinceramente ser altruísta. Era a primeira percepção que ela tinha da total estranheza de Andrew, e foi como um choque, profundo e dilacerante. Sempre vira apenas as semelhanças; agora, defrontava-se, chocada, com as diferenças.

    Ele tentava lhe dizer que estava disposto, porque a amava, a sofrer toda a dor da privação... Talvez nem mesmo soubesse, naquela noite, quanto sua necessidade a atormentava, ainda podia atormentá-la.

    Callista comprimiu os dedos contra sua mão, recordando em desespero que, por algum tempo, soubera o que era desejá-lo, mas agora não podia sequer lembrar como fora. Tentando acompanhar a gentileza dele, ela murmurou:

    - Andrew, meu marido, meu amor, se me visse suportando um fardo pesado, poderia me sobrecarregar ainda mais com seu próprio fardo? Não aliviaria meu sofrimento se eu tivesse de arcar com o seu também.

    Outra vez o choque, a estranheza, o espanto, e Andrew compreendeu, com uma repentina percepção, que numa cultura telepática, partilhar o sofrimento significava algo diferente. Callista se apressou em dizer, com um sorriso:

    - Não percebe que Damon e Ellemir também são parte disso, e que também vão sofrer, se tiverem de partilhar seu sofrimento!'

    Lentamente, ele começava a absorver toda a situação. Não era fácil. Pensara ter-se livrado da maior parte dos preconceitos culturais. .Agora, descobria que, como uma cebola, a remoção de uma camada parecia apenas revelar outra camada, mais profunda, densa e impenetrável.

    Lembrou ter despertado na cama de Ellemir para deparar com Damon parado ao lado. Esperara, quase ansiara, pela censura de Damon. Talvez quisesse que Damon se mostrasse furioso porque um homem de seu mundo ficaria furioso, e desejava sentir algo familiar. Até mesmo a culpa seria bem-vinda...

    - Mas a posição de Ellemir... Você simplesmente esperava isso dela. Ninguém a consultou, ninguém perguntou se estava disposta.

    - Ellemir se queixou? - indagou Callista, sorrindo.

    Não, de jeito nenhum, pensou Andrew. Ela até dera a impressão de gostar. O que também o incomodava. Se ela e Damon tinham tanta felicidade no casamento, como ela podia demonstrar tanto prazer - e tanta diversão - ao ir para a cama com outro homem? Andrew foi dominado pela raiva e culpa, e a situação era pior porque sabia que Callista também não entendia isso.

    - Quando Elli e eu casamos, e concordamos em viver sob o mesmo teto, aceitamos que isso poderia acontecer. Deve saber que, se uma de nós casasse com um homem que a outra não pudesse... não pudesse aceitar, teríamos providenciado...

    Uma campainha de advertência soou na mente de Andrew. Não queria pensar a respeito das implicações óbvias. Callista continuou:

    - Até algumas centenas de anos atrás, o casamento como o conhecemos hoje não existia. E não era considerado certo que uma mulher tivesse mais que um ou dois filhos do mesmo homem. As palavras fundo genético significam alguma coisa para você? Houve um período em nossa história em que quase se perderam alguns dons valiosos, características hereditárias. Julgava-se que era melhor para as crianças terem tantas combinações genéticas diferentes quanto possível, como precaução contra a perda acidental de genes importantes. Gerar filhos de um único homem pode ser uma forma de egoísmo. Por isso, não tínhamos naquele tempo o casamento,  no sentido atual.  Não obrigamos as esposas, como fazem os homens das Cidades Secas, a acolher as concubinas, mas há sempre outras mulheres para partilhar. O que fazem os terráqueos quando suas esposas estão grávidas, já bem pesadas, ou cansadas, ou doentes. Exigem que uma mulher viole seus instintos para o conforto do homem?

    Se fosse Ellemir quem perguntasse, Andrew acharia que marcara um ponto, mas não havia desafio em ouvir de Callista.

    - Os preconceitos culturais não são racionais. O nosso é contra ir para a cama com outras mulheres. O de vocês, contra o sexo na gravidez, não faz sentido para mim, a menos que a mulher esteja realmente doente.

    Callista deu de ombros.

    - Biologicamente, nenhuma fêmea grávida deseja o sexo; e a maioria nem suportará. Se suas mulheres foram culturalmente condicionadas a aceitar, como o preço para manter o interesse sexual de um marido, só posso dizer que lamento muito por elas! Você exigiria isso de mim, depois que eu deixasse de sentir prazer?

    Andrew descobriu subitamente que estava rindo.

    - Entre todas as nossas preocupações, meu amor, essa parece ser a mais fácil de adiar, até que: aconteça! Vocês tem um ditado... podemos cruzar a ponte quando chegarmos lá!

    Ela riu também.

    - Dizemos que vamos montar no potro quando crescer o suficiente para agüentar uma sela. Mas, sinceramente, Andrew, vocês terráqueos...

    - Juro por Deus, meu amor, que não sei o que a maioria dos homens faz. Mas duvido muito que eu pudesse lhe pedir para fazer alguma coisa que você não quisesse. Provavelmente... eu encontraria um meio-termo. Acho que alguns homens vão se satisfazer com outras, mas tentam evitar que suas esposas descubram. Há outro ditado antigo: o que o olho não vê, o coração não sente.

    - Mas isso seria impossível numa família de telepatas, e eu prefiro saber que meu marido encontrou a satisfação nos braços de uma mulher que nos proporcionou isso por amor, como uma irmã ou uma amiga, do que se aventurando com uma estranha.

    Callista estava mais calma agora, e Andrew compreendeu que a transferência da conversa de um problema imediato para outro mais distante fizera com que se tornasse menos angustiante para ela.

    - Eu preferiria morrer a magoá-la, Callie.

    E como Andrew fizera antes, ela levantou as pontas de seus dedos até os lábios, beijou-os de leve, murmurando com um sorriso:

    - Ah, meu marido, a sua morte me magoaria muito mais do que qualquer outra coisa que pudesse fazer...

   

    Andrew seguia pela neve se derretendo, enquanto alguns flocos ainda caíam. No outro lado do vale, podia avistar as luzes de Armida, um suave cintilar contra a massa de montanhas. Damon dissera que eram apenas os contrafortes, mas para Andrew eram montanhas, das mais altas ainda por cima. Ouvia os homens falando em voz baixa por trás, e sabia que eles também se sentiam ansiosos por comida quente, um fogo, o lar, depois de oito dias nas pastagens mais remotas, inspecionando os danos da grande nevasca, as condições das estradas e a perda de animais.

    Ele acolhera com satisfação a oportunidade de ter a companhia apenas de homens que não podiam ler seus pensamentos. Ainda não se acostumara de todo à vida numa família telepática, e também ainda não aprendera a se precaver contra a intromissão acidental. Dos homens, ele captava apenas um pequeno filete de pensamentos, superficiais, irrelevantes, que não chegavam a perturbá-lo. Mas sentia-se contente por voltar para casa. Atravessou os portões do pátio, e os criados se aproximaram correndo para pegar as rédeas de seu cavalo. Aceitava isso agora sem pensar duas vezes, mas havia ocasiões em que parava para refletir a respeito e constatava que ainda o incomodava um pouco. Callista desceu correndo pelos degraus, em sua direção. Andrew inclinou-se para beijá-la de leve no rosto, e depois descobriu, embora estivesse escuro no pátio, que era Ellemir quem abraçava. Rindo, partilhando a diversão dela por seu erro, ele apertou-a com força, sentiu os lábios de Ellemir encontrar-se com os seus quentes e familiares.

    - Como estão as coisas aqui em casa. Elli?

    - Tudo bem, embora o pai esteja cada vez com menos fôlego e quase não coma. Callista está com ele, mas eu não podia deixar que você chegasse sem ninguém para lhe dar as boas-vindas. - Ela apertou os dedos de Andrew. - Senti saudade.

    Andrew também sentira, e a culpa o invadiu. Por que sua esposa tinha de ter uma irmã gêmea?

    - Como vai Damon?

    - Ocupado - respondeu ela, rindo. - Está absorvido nos velhos registros dos Domínios, das pessoas de nossa família que estiveram numa Torre, em Arilinn ou Neskaya. Não sei o que procura, ele não me contou. Quase não o vi nos últimos dez dias.

    Entrando no vestíbulo, Andrew tirou o enorme capote de montaria e entregou-o ao criado. Rhodri ajudou-o a tirar também as botas cheias de neve e a calçar botas forradas de pêlo, de cano curto, para usar em casa. Depois, com Ellemir no braço, entrou no Grande Salão.

    Callista sentava ao lado do pai. Assim que ele apareceu, largou sua harpa num banco, sem qualquer pressa, e levantou-se para ir ao seu encontro. Andava devagar, as dobras do vestido azul em sua esteira. Contra sua vontade, Andrew descobriu-se a comparar aquela atitude com a recepção efusiva de Ellemir. Mesmo assim, foi com fascínio que a observou. Cada movimento de Callista ainda o deixava encantado, transbordando de anseio e desejo. Ela estendeu as mãos, e, ao contato daqueles dedos frios e delicados, Andrew sentiu-se outra vez aturdido.

    Afinal, perguntou a si mesmo o que era o amor. Sempre achara que se apaixonar por uma mulher significava se tornar indiferente a todas as outras. Mas por qual delas estava apaixonado? Por sua esposa... ou pela irmã? Segurando as mãos de Callista gentilmente, ele murmurou:

    - Senti saudade.

    Ela sorriu-lhe, enquanto Dom Esteban dizia:

    - Seja bem-vindo, filho. Viagem difícil?

    - Nem tanto. - Porque assim se esperava, Andrew inclinou-se e beijou o rosto do velho, pensando que ele parecia ainda mais pálido, não muito bem. Mas refletiu que isso era normal. - Como está, pai?

    - Nada jamais muda para mim.

    Callista entregou uma xícara a Andrew. Ele levou-a aos lábios. Era sidra temperada, e tinha um gosto maravilhoso depois da longa viagem. Voltar para casa era maravilhoso. No outro lado do salão, as mulheres começaram a arrumar a mesa para a refeição vespertina.

    - Como estão as coisas por aí? - perguntou Dom Esteban. Andrew iniciou seu relatório.

    - A maioria das estradas já foi reaberta, embora ainda haja muita neve acumulada nas margens e uma barreira de gelo na curva do rio. Considerando tudo, não perdemos muitos animais. Encontramos quatro éguas e três potros congelados no abrigo além do vau. O gelo cobrira a forragem, e devem ter morrido de fome antes de congelar.

    Lorde Alton franziu o rosto.

    - Uma boa égua de reprodução vale o seu peso em prata, mas deveríamos esperar perdas maiores com uma tempestade como aquela. O que mais?

    - Na encosta de uma colina, a um dia de viagem de Corresanti, para o norte, alguns potros ficaram isolados do resto da manada. Um deles quebrou a perna, não conseguiu alcançar o abrigo, foi coberto por uma avalanche de neve. Encontramos os outros famintos e trêmulos, mas incólumes. Estão alimentados e cuidados agora, deixei um homem para vigiá-los. Meia dúzia de bezerros morreram no pasto mais distante, perto da aldeia de Bellazi. A carne ficou congelada, e os aldeões pediram as carcaças, alegando que dava para comer, e que você sempre lhes dava. Disse-lhes que seguissem o costume. Agi certo? O velho acenou com a cabeça.

    - É o costume nos últimos cem anos. O gado morto numa nevasca é entregue à aldeia mais próxima, que aproveita a carne e a pele. Em troca, os habitantes abrigam e alimentam qualquer animal que descer das colinas numa tempestade, devolvendo-o assim que é possível. Se num período de fome eles matam e comem um animal extra, não me preocupo muito com isso. Não sou um tirano.

    As criadas começaram a trazer a refeição. Os homens e as mulheres da casa reuniram-se em torno das mesas compridas, no salão inferior. Andrew empurrou a cadeira de rodas de Dom Esteban para a cabeceira da mesa principal. A família sentava ali, com os criados mais graduados, os profissionais que administravam a propriedade. Andrew já começava a especular se Damon não viria quando a porta no fundo do salão foi aberta. Damon pediu desculpas a Ellemir pelo atraso, e depois se aproximou de Andrew com um sorriso efusivo.

    - Soube no pátio que você tinha voltado. Como se saiu sozinho? Não parei de pensar que devia tê-lo acompanhado, pelo menos nesta primeira vez.

    - Correu tudo bem, mas eu teria ficado feliz por sua companhia. Andrew notou que Damon parecia cansado e abatido, e especulou

    o que ele andara fazendo. Damon não falou sobre suas atividades; em vez disso, desandou a fazer perguntas sobre os animais e os abrigos com forragem, os danos causados pela tempestade, pontes e vaus, como se nunca tivesse feito qualquer outra coisa na vida que não ajudar a administrar um rancho. Enquanto eles falavam sobre essas coisas com Dom Esteban, Callista e Ellemir conversavam em voz baixa. Andrew descobriu-se a pensar como seria bom quando os quatro pudessem ficar a sós, mas não lamentou o tempo consumido na conversa com o sogro. Ao chegar ali, temera ser tratado apenas como o marido de Callista, sem dinheiro, um forasteiro, inútil para os negócios estranhos de um mundo estranho. Agora, sabia que era aceito e apreciado como se fosse um filho e herdeiro dos Domínios.

    A maior parte da refeição foi ocupada pela discussão dos reparos em prédios e pontes, e substituição dos animais perdidos. As mulheres já começavam a tirar a mesa quando Callista inclinou-se e falou ao pai em voz baixa. Dom Esteban acenou com a cabeça, concedendo permissão. Ela se levantou, bateu numa caneca de metal para solicitar atenção. Os criados no salão a fitaram, respeitosos. Uma Guardiã era o alvo de uma reverência quase supersticiosa. Callista podia ter renunciado à sua posição formal, mas ainda era tratada com um respeito acima do normal. Depois que houve silêncio, ela começou a falar, em sua voz suave e firme, que alcançava os cantos mais distantes do salão:

    - Alguém aqui, sem autorização, invadiu o dispensário e tirou algumas ervas. Se forem devolvidas imediatamente, antes de qualquer uso ilegal, presumirei que houve apenas um equívoco e esquecerei o assunto. Mas se não forem devolvidas até amanhã de manhã, tomarei as providências que julgar cabíveis.

    Houve um momento de espanto silencioso no salão. Umas poucas pessoas murmuraram entre si, mas ninguém falou em voz alta. Depois de um instante, Callista acrescentou:

    - Muito bem, podem pensar a respeito durante a noite. Amanhã, usarei quaisquer métodos a meu dispor... - Num gesto automático e arrogante, ela ergueu a mão para a matriz pendurada em sua garganta. - ...para descobrir o culpado. Isso é tudo. Podem se retirar.

    Era a primeira vez que Andrew a via invocar de forma deliberada sua antiga autoridade como Guardiã, e isso o perturbou. Quando ela tornou a sentar, ele indagou:

    - O que desapareceu, Callista?

    - Kireseth. É uma erva perigosa, e seu uso é proibido, a não ser pelas pessoas treinadas nas torres, ou sob sua autorização expressa. - Ela estava com a testa franzida. - Não me agrada a idéia de alguma pessoa ignorante sair por aí enlouquecida com kireseth. Provoca delírios e alucinações.

    Dom Esteban protestou:

    - Ora, Callista, não pode ser tão perigoso assim. Sei que o pessoal das torres tem um tabu supersticioso a respeito dessa planta, que cresce em vários lugares aqui nas colinas, e nunca foi...

    - De qualquer maneira, sou pessoalmente responsável por evitar que o kireseth seja manipulado de forma errada por negligência.

    Damon ergueu a cabeça e murmurou, a voz cansada:

    - Não se preocupe com os criados, Callista. Fui eu que peguei. Ela ficou aturdida.

    - Você, Damon? E para que queria?

    - Será suficiente para você saber que eu tinha os meus motivos, Callista?

    - Mas por que, Damon? Se tivesse me pedido, eu lhe daria, mas...

    - Mas teria me perguntado para que eu queria. - O rosto de Damon estava contraído em sulcos de exaustão e dor. - Não, Callie, não tente ler meus pensamentos. - Os olhos se tornaram duros. - Peguei por motivos que me pareciam procedentes, e não vou lhe explicar quais são. Talvez eu não precise, e neste caso devolverei. Mas, por enquanto, creio que posso ter um uso importante. Não queira saber mais, breda.

    - Está certo, já que você insiste, Damon.

    Calista tomou um gole, observando Damon com uma expressão perturbada. Era fácil ler seus pensamentos: Damon é treinado no uso de kirian, mas não é capaz de produzi-lo. Para que pode querer a planta? O que pretende fazer? Não posso acreditar que dará um uso errado, mas quais suas intenções?

    Os criados se dispersaram. Dom Esteban perguntou se alguém queria jogar cartas com ele, ou castelo, o jogo parecido com xadrez que Andrew estava aprendendo. Andrew aceitou e foi sentar com o velho. Olhava atentamente para os peões de cristal, mas sua mente pairava longe dali. O que Damon podia querer com o kireseth? Podia lembrar que Damon o advertira a não manusear nem cheirar a planta. Movendo um peão, e perdendo-o para o sogro, Andrew teve a impressão de que podia sentir os pensamentos de Damon vazando pelo perímetro de suas emoções. Sabia quanto Damon detestava e temia o trabalho com a matriz, para o qual fora treinado, obrigado a renunciar e a que voltara contra sua vontade. Até Calista ficar livre. Mas mesmo depois... Há tanta, coisa que um telepata pode fazer, tanta coisa para desfazer... Cortando os pensamentos de Damon pela força de vontade, Andrew forçou a concentração no tabuleiro. Já perdera três peões, em rápida sucessão, e cometeu um grande erro num movimento, que lhe custou a peça chamada dragão. Admitiu o equívoco:

    - As formas dessas duas peças ainda me confundem um pouco.

    - Não tem importância. - Generoso, o velho permitiu o retorno da peça movimentada por equívoco. - Você joga melhor do que Ellemir, que é a única que tem paciência para jogar comigo. Damon joga bem, mas quase nunca tem tempo. Ei, Damon, quando Andrew e eu terminarmos esta partida, você não quer jogar com o vencedor?

    - Não esta noite, tio - respondeu Damon, saindo da profunda abstração em que mergulhara.

    Correndo os olhos pelo salão, o velho constatou que quase todos já haviam se retirado para dormir. Só o seu valete continuava ali, ao lado do fogo, bocejando. Lorde Alton suspirou, contemplou o luar além das janelas.

    - Estou sendo egoísta, ao manter vocês aqui, conversando, pela metade da noite. Afinal, Andrew acaba de chegar de uma longa viagem e passou muito tempo separado da esposa. Durmo muito mal agora, e por isso as noites me parecem intermináveis sem ninguém para me fazer companhia. É por isso que me apego a vocês. Mas podem se retirar agora.

    Ellemir deu um beijo de despedida no pai e deixou o grande salão. Calista se demorou a dizer alguma coisa ao valete do pai. Damon virou-se para seguir Ellemir, hesitou na porta, virou-se e voltou.

    - Pai, há um importante trabalho a ser realizado. Pode nos conceder alguns dias?

    - Precisam se ausentar?

    - Não, não vamos nos ausentar. Mas talvez eu precise instalar amortecedores e erguer uma barreira, para isolar nós quatro. Posso escolher o momento que julgar mais oportuno, mas prefiro não adiar por muito tempo.

    Damon olhou para Callista, e Andrew captou o pensamento que ele tentou ocultar: Ela morrerá de pesar...

    - Precisamos no mínimo de três ou quatro dias, sem qualquer interrupção. É possível?

    Dom Esteban acenou com a cabeça, lentamente.

    - Tire o tempo que for necessário, Damon. Mas para um trabalho mais prolongado, seria melhor esperar até passar o Solstício do Inverno, quando já deverão estar concluídos os reparos dos estragos causados pela tempestade. É possível?

    Andrew percebeu o olhar apreensivo do velho para Callista e captou o que ele não disse: Uma Guardiã que retoma seu juramento? Sabia que Damon também captara, mas o amigo limitou-se a dizer:

    - É possível, e assim faremos. Obrigado, pai.

    Ele inclinou-se e abraçou o velho. Observou-o por um momento, com o rosto franzido, enquanto o valete empurrava a cadeira de rodas para longe.

    - Acho que ele sente saudade de Dezi. Independentemente dos erros do rapaz, não se pode negar que era um bom filho para o velho. Só por isso, eu gostaria de ter podido perdoar Dezi. - Damon suspirou, enquanto se encaminhavam para a escada. - Dom Esteban sente-se solitário. Não há ninguém aqui que lhe faça companhia. Quando o degelo da primavera começar, creio que devemos chamar um parente ou amigo para ficar com ele.

    Calista subiu a escada atrás deles. Damon parou, antes de entrar em sua suíte, virou-se para ela.

    - Você foi feita Guardiã muito jovem, Callie, acho que até jovem demais. Fez treinamento também para outros níveis? - É monitora, mecânica ou técnica? Ou apenas operou nas redes de transmissão como tenerésas?

    Ele usou a palavra geralmente interpretada em casta como "Guardiã".

    - Você mesmo nus ensinou a monitorar, Damon. Foi no meu primeiro ano na Torre e no seu último. Por certificado, sou apenas mecânica; nunca tentei realizar o trabalho de uma técnica. Não havia escassez, de técnicos, e eu já tinha o suficiente para fazer nas transmissões. Por quê?

    - Queria saber com que habilidades posso contar entre nós. Eu alcancei o nível de técnico. Posso projetar as redes que forem necessárias, se dispuser dos cristais e dos nódulos em branco. Mas posso precisar de um mecânico, e um monitor será indispensável, a fim de encontrar a solução que lhe prometi. Por isso, cuide para se manter em condições de monitorar, caso seja preciso. Tem controlado sua respiração?

    - Não consigo dormir sem isso... e desconfio que todas as pessoas treinadas nas Torres têm de agir assim, pelo resto de suas vidas.

    Damon sorriu, inclinou-se para a frente, deu um beijo de leve em seu rosto.

    - Tem Toda a razão, irmã. Durma bem. - Ele acrescentou para Andrew, antes de se retirar: - Boa-noite, meu irmão.

    Era óbvio que alguma coisa preocupava Damon. Callista foi sentar à penteadeira, trançando os cabelos compridos para a noite. Andrew se lembrou, angustiado, de outra noite, mas tratou de desviar os pensamentos. Callista, ainda aflita com Damon, comentou:

    - Ele está mais perturbado do que quer que a gente saiba, mas conheço Damon há muito tempo e posso garantir que não adianta perguntar qualquer coisa que ele não queira nos contar...

    Mas o que ele pode querer fazer com o kireseth?

    Andrew recordou, com uma pontada de ciúme, que Callista não se encolhera ao beijo de Damon em seu rosto. Ele sabia o que aconteceria se tentasse. E no instante seguinte, contra sua vontade, Andrew descobriu-se a pensar em Damon e Ellemir juntos outra vez, reunidos.

    Ela era sua esposa, no final das contas, e Damon não tinha o direito... absolutamente nenhum.

    Callista apagou a luz, foi para sua cama. Suspirando, Andrew deitou-se também, observando as quatro luas que se deslocavam pelo céu. Nem percebeu quando mergulhou no sono. Era como se tivesse ingresso num estado de percepção entre a realidade e o sonho. Damon lhe dissera uma ocasião que às vezes, durante o sono, a mente ia para o mundo superior, sem qualquer pensamento consciente.

    Parecia-lhe que deixara o corpo para trás e se encontrava no cinzento informe do mundo superior. Em algum lugar, por toda parte, podia ver e ter consciência de Damon e Ellemir fazendo amor. Embora soubesse que os dois ficariam felizes se ele se juntasse ao momento, se ficasse ligado em seu êxtase alegre e intimidade, Andrew insistiu em desviar os olhos e a mente da visão. Não era um voyeur, não era tão depravado assim, ainda não, nem mesmo aqui.

    Depois de um longo tempo, ele encontrou a estrutura que haviam construído para trabalhar com os homens congelados. Teve medo de descobri-los ali também, já que pareciam estar por toda parte, mas Ellemir dormia, e Damon sentava num tronco, com uma expressão desolada, um molho de flores de kireseth secas ao seu lado.

    - O que você quer com essas flores, Damon? Ao que o amigo respondeu:

    - Ainda não sei direito, por que você acha que não pude explicar a Callista? É proibido.  Tudo é proibido. Nem deveríamos estar aqui.

    - Mas estamos apenas sonhando. Como alguém pode proibir o sonho?

    Só que ele sabia, com um sentimento de culpa, que um telepata deve ser responsável até mesmo por seus sonhos, e que mesmo em sonho não podia procurar Ellemir, como ansiava. Damon disse:

    - Já expliquei que é apenas uma parte de ser o que somos. Andrew virou as costas a Damon, tentou sair da estrutura, mas as paredes se fecharam, encerrando-o ali. E foi então que Callista - ou seria Ellemir? Não podia mais ter certeza de qual das duas era sua esposa - aproximou-se com um ramo de flores de kireseth na mão e disse:

    - Pegue-as. Nossos filhos comerão esses frutos um dia.

    O fruto proibido. Mas Andrew pegou-as, mordeu as flores, macias como os seios de uma mulher. O cheiro parecia arder em sua mente. Um raio atingiu as paredes, a estrutura começou a tremer e desmoronar, e Leonie apareceu além, censurando-os. Vagamente, Andrew compreendeu que era tudo culpa sua, pois fora ele quem tirara Callista da Torre.

    Um instante depois, descobriu-se sozinho na planície cinzenta, e o ponto de referência se encontrava muito longe, no horizonte. Mesmo que caminhasse por toda uma eternidade, dias, anos, séculos, jamais conseguiria alcançá-lo. Sabia que Damon, Callista e Ellemir se achavam lá dentro, haviam encontrado a solução, sentiam-se muito felizes, mas ele estava sozinho outra vez, um estranho, um forasteiro, nunca mais voltaria a se integrar. Assim que se aproximava, a planície cinzenta se expandia, elástica, e se descobria longe outra vez, a estrutura no horizonte distante. E, no entanto, ao mesmo tempo, sentia que de alguma forma se encontrava também no interior da estrutura, com Callista em seus braços - ou era Ellemir... ou fazia amor com as duas ao mesmo tempo? -, e era Damon quem vagueava lá por fora, no horizonte, fazendo um esforço para se aproximar do ponto de referência, mas nunca alcançando-o, nunca, nunca... Ele disse a Ellemir:

    - Você deve levar algumas flores de kireseth para ele.

    Mas ela se virou para Callista e declarou:

    - É proibido para as pessoas treinadas na Torre.

    Andrew não podia determinar se era ele quem se achava ali, deitado entre as duas mulheres, ou se vagava lá fora, pelo horizonte distante... De alguma forma, compreendeu que estava acuado dentro do sonho de Damon, e não podia escapar...

    Ele despertou com um sobressalto. Callista continuava a dormir, irrequieta, na escuridão cinzenta do quarto. Ouviu-se a dizer, em voz meio alta:

    - Saberá o que fazer com elas quando chegar o momento...

    E depois, especulando sobre o significado, concluiu que as palavras eram parte do sonho de Damon. Voltou a dormir, e vagueou por reinos cinzentos e informes até o amanhecer. Consciente em parte de que não era a sua própria percepção, especulou se fora ele próprio, ou se de algum jeito se vinculara também ao sonho de Damon.

    Descobriu-se a pensar que a precognição era quase pior do que não ter nenhum dom. Se fosse um aviso, ainda serviria para orientá-lo. Mas fora apenas o tempo desfocado, e nem mesmo Leonie era capaz de compreender o tempo. E Andrew, em sua própria percepção, desejou que Damon mantivesse seus sonhos perturbadores só para si.

    Era uma manhã muito fria, o granizo ainda caía. Damon sentiu que o céu refletia seu ânimo.

    Evitara aquele trabalho por muitos anos, agora era forçado a voltar. E sabia que não era apenas pelo bem de Callista. Fora um erro seu renunciar por completo ao trabalho com a matriz..

    Deixara-se enganar pelo tabu que proibia os telepatas de realizar qualquer trabalho com a matriz fora das Torres. Esse tabu podia fazer algum sentido logo depois da Era do Caos. Mas agora ele sentia, com todas as fibras de seu ser, que era um equívoco.

    Havia muitas coisas que os telepatas podiam fazer. E tudo era negligenciado.

    De certa forma, iniciara uma nova carreira na Guarda, mas nunca o satisfizera. Também não podia encontrar, como acontecia com Andrew, satisfação e realização ajudando a administrar a propriedade do sogro. Sabia que para muitos filhos mais moços, sem a possibilidade de herdar sua própria propriedade, aquela seria uma solução perfeita: um homem sem terra cuidando de uma propriedade cuja herança seria partilhada por seus filhos. Mas não era algo que atraía Damon. Sabia que um mero intendente poderia fazer o trabalho tão bem quanto ele. Sua presença servia apenas para evitar que algum empregado inescrupoloso se aproveitasse do pai de sua esposa.

    Não lamentava o tempo que passara no trabalho na propriedade. Sua vida era ali, com Ellemir, e ficaria dilacerado em fragmentos se tivesse que se separar, agora, de Andrew ou Callista.

    Era diferente para Andrew. Fora criado em outro mundo, e era como se recuperasse todo um mundo pessoal, que julgara perdido para sempre ao deixar a Terra. Mas Damon começava a compreender agora qual deveria ser o seu verdadeiro trabalho, um trabalho para o qual fora treinado na Torre.

    - Seu papel e o de Ellemir é apenas o de nos proteger contra qualquer intromissão - disse ele a Andrew. - Se houver interrupções... embora eu tenha providenciado para que não ocorra nenhuma... vocês têm de resolver. Caso contrário, devem simplesmente permanecer em contato e me transmitir a força necessária.

    O trabalho de Callista seria muito mais difícil. A princípio, ela relutara em participar assim, mas Damon conseguira persuadi-la e sentia-se contente por isso, já que depositava nela uma confiança absoluta. Como ele, Callista também fora treinada em Arilinn, era uma competente monitora psíquica e sabia com precisão o que tinha de ser feito. Velaria pelas funções vitais de Damon, cuidaria para que seu corpo continuasse a funcionar direito, enquanto seu eu essencial se distanciava.

    Ela parecia pálida e estranha, e Damon sabia que ainda relutava a retomar o trabalho que abandonara para sempre, não por medo ou repulsa, como acontecera com ele, mas porque se sentira tão angustiada ao deixá-lo. Consumada a renúncia, Callista não queria fazer uma concessão.

    Contudo, esse era o seu verdadeiro trabalho, Damon tinha certeza. Nascera para isso, fora treinada para isso. Era errado e cruel que uma mulher não pudesse realizar aquele trabalho sem renunciar à sua feminilidade. Para qualquer outra coisa que não fosse a atuação nas grandes redes, Callista era plenamente habilitada, mesmo que casasse uma dúzia de vezes e tivesse uma dúzia de filhos! Só que ela estava perdida para as Torres, e também se considerava perdida. Era uma noção absurda, refletiu Damon, a de que a perda da virgindade a privaria de todas as habilidades que adquirira, de todos os conhecimentos que acumulara a tanto custo em Arilinn, ao longo dos anos.

    Ele pensou Não acredito nisso, e no mesmo instante prendeu a respiração. Era uma blasfêmia, um sacrilégio inadmissível! Mas Damon olhou para Calista e pensou com desafio: Mesmo assim, não acredito nisso!

    De qualquer forma, violava um tabu da Torre pelo simples fato de usá-la como monitora. Que estupidez! Que tremenda estupidez!

    Legalmente, é verdade, nada fazia de errado. Callista, embora declarasse sua intenção de casar com Andrew numa cerimônia de companheira livre, não era de fato a esposa do terráqueo. Ainda era virgem e, portanto, habilitada... Como tudo aquilo era estúpido! De uma estupidez trágica!

    Havia algo errado, ele pensou mais uma vez, um equívoco terrível e trágico, em todo o conceito de treinamento de telepatas em Darkover. Por causa dos abusos da Era do Caos, por causa dos crimes de homens e mulheres mortos há tanto tempo que seus ossos já se tinham transformado em pó, outros homens e mulheres eram condenados a uma morte em vida. Callista perguntou gentilmente:

    - Qual é o problema, Damon? Você parece tão zangado...

    Ele não podia explicar. Callista ainda se achava dominada pelos tabus arraigados.

    - Estou com frio - murmurou Damon.

    E parou por aí. Envolvera-se com uma túnica folgada, que pelo menos protegeria seu corpo do frio terrível do mundo superior. Notou que Callista também vestira um agasalho comprido, em vez do vestido que costumava usar em casa. Damon recostou-se numa poltrona, enquanto ela se acomodava numa almofada a seus pés. Andrew e Ellemir ficaram um pouco mais além.

    - Quando mantive vigília por você - comentou Ellemir -, pediu-me para permanecer em contato físico com seus pontos de pulsação.

    - Porque você não é treinada, querida. Callista vem fazendo esse trabalho desde que era menina. Podia até me monitorar de outro cômodo, se fosse necessário. Você e Andrew são basicamente supérfluos, embora seja uma ajuda e tanto ter os dois aqui. Se algo ameaçasse nos interromper... dei ordens expressas, mas se, por exemplo, que os Deuses nos livrem, a casa pegar fogo, ou Dom Esteban cair doente e precisar de ajuda... vocês podem resolver o problema e proteger Callista e a mim de qualquer distúrbio.

    Callista tinha a matriz em seu colo. Damon notou que ela a prendera no ponto de pulsação com uma fita. Havia meios diferentes de manipular uma matriz, e em Arilinn todos eram encorajados a experimentar e encontrar o modo mais compatível. Damon notou também que ela entrou em contato com a pedra psíquica sem olhá-la fisicamente, enquanto ele próprio tinha de fixar as profundezas da sua, vendo as luzes turbilhonantes adquirir foco pouco a pouco... Passou a respirar mais e mais devagar, sentiu quando Callista fez contato com sua mente, combinando as ressonâncias dos campos de força. Mais vagamente', a alguma distância, sentiu que ela trazia Andrew e Ellemir para o contato. Damon relaxou por um momento, na satisfação de ter todos ao seu redor, no vínculo mais íntimo e tranqüilizador conhecido. Naquele instante, sabia que se encontrava mais ligado a Callista do que a qualquer outra pessoa no mundo. Mais até do que com Ellemir, cujo corpo conhecia tão bem, cujos pensamentos partilhara, que por um breve e angustiante período abrigara a filha de ambos. Callista, no entanto, mantinha agora uma intimidade como a de gêmeos por nascer, enquanto Ellemir se encontrava em algum lugar exterior, a distância. Além dela, podia sentir Andrew, um gigante, um rochedo de força, protegendo-os, resguardando-os...

    Damon sentiu que as paredes do abrigo os envolviam, a estrutura astral que construíra ao trabalhar com os homens congelados. E de repente, com aquele insólito impulso para cima, descobriu-se no mundo superior, as paredes assumiram forma ao redor. Quando construíra a estrutura com Andrew e Dezi, parecia um abrigo de viajantes, feito com pedras toscas, talvez porque a considerasse temporária. As estruturas no mundo superior eram o que você pensava que fossem. Ele notou que as pedras haviam se tornado lisas e luminosas, que havia um chão de pedra cinzenta sob seus pés, não muito diferente do pequeno dispensário de Callista. No lugar em que se encontrava, nas cores verde e dourada de seu Domínio, podia ver uma variedade de móveis. Observados assim, pareciam estranhamente transparentes e insubstanciais, mas sabia que, se experimentasse sentar numa cadeira, por exemplo, esta adquiriria força e solidez. Seria bastante confortável, e ainda por cima ofereceria a superfície que desejasse - veludo, seda ou pele, à sua vontade. Callista sentava em uma das cadeiras, e também parecia transparente, embora ele soubesse que acabaria se solidificando, à medida que passassem mais tempo ali. Andrew e Ellemir pareciam mais vagos, e ele constatou que dormiam num divã, porque se encontravam ali apenas em sua mente, não conscientemente no mundo superior. Só os pensamentos dos dois, vagueando através dos seus, no contato que Callista mantinha, eram fortes e presentes. Ambos eram passivos aqui, limitando-se a emprestar sua força a Damon. Ele flutuou por um momento, desfrutando o conforto de um círculo de apoio, sabendo que o resguardaria até certo ponto do terrível esgotamento que conhecera antes. Notou que Callista tinha nas mãos uma série de fios, como uma teia de aranha, e compreendeu que era assim que ela visualizava o controle que mantinha sobre seu corpo, deixado no mundo mais sólido. Se sua respiração fraquejasse, se a circulação fosse prejudicada por cãibras, se tivesse uma coceira que perturbasse sua concentração no mundo superior, Callista poderia reparar o problema antes mesmo que ele sequer tivesse noção de sua existência. Guardado por Callista, seu corpo estava seguro, ali, por trás do abrigo que era o seu ponto de referência.

    Mas não podia continuar ali por muito tempo; e no instante mesmo em que pensou isso, sentiu que passava pelas paredes impalpáveis do abrigo. Seus pensamentos forneceram a saída, embora nenhum forasteiro pudesse jamais entrar ali. Saiu para a planície cinzenta e informe do mundo superior. A distância, podia avistar a ponta da Torre de Arilinn, ou melhor, a duplicata da torre no mundo superior.

    Talvez durante mil anos, os pensamentos de cada técnico psíquico que se deslocara para o mundo superior haviam criado Arilinn como um ponto de referência seguro. Mas por que estava tão longe? E logo Damon compreendeu: aquela era a visualização de Callista, trabalhando em vínculo com a sua, e para ela Arilinn parecia de fato muito longe. Mas aqui, no mundo superior, o espaço não tinha realidade, e com a rapidez - literalmente - do pensamento ele se descobriu diante dos portões de Arilinn.

    Fora afastado de lá. Conseguiria entrar agora, se tentasse? Com o pensamento, foi parar no interior, nos degraus do pátio externo, Leonie à sua frente, em sua túnica vermelha, velada.

    - Sei por que veio, Damon. Procurei por toda parte os registros que você deseja e aprendi, nos últimos dias, mais sobre a história de Arilinn do que jamais imaginei que fosse possível. Descobri, por exemplo, que nos primeiros dias das Torres muitos Guardiões eram emmasca, de sangue chieri, nem homem, nem mulher. Não sabia que quando tais nascimentos se tornaram raros, à medida que os chieri, se miscigenavam cada vez menos com a espécie humana, algumas das primeiras Guardiãs foram neutralizadas, a fim de se parecerem com eles. Você sabia, Damon, que não apenas mulheres neutralizadas, mas também homens castrados foram usados às vezes como Guardiões? Que barbarismo!

    - E não era necessário - comentou Damon. - Qualquer técnico psíquico de competência regular pode fazer a maior parte do trabalho de uma Guardiã, e não pagar um preço superior a uns poucos dias de impotência.

    Leonie sorriu.

    - Há muitos homens que pensam que até esse preço é alto demais. Damon acenou com a cabeça, pensando em seu irmão Lorenz, e no desdém em sua voz ao comentar sobre ele: "Meio monge, meio eunuco."

    - E para as mulheres - continuou Leonie - descobriu-se que uma Guardiã não precisava ser neutralizada, embora ainda não conhecessem as técnicas que usamos agora. Bastava fixar os canais abertos, a fim de que não passassem outros impulsos além dos psíquicos. E assim se passou a fazer, sem o barbarismo da neutralização. Em nosso tempo, porém, até isso parecia demais, a deterioração de uma mulher.

    Leonie fez uma pausa, exibiu uma expressão desdenhosa.

    - Creio que foi apenas pelo orgulho dos homens do Comyn, que achavam que o atributo mais valioso de uma mulher era sua fertilidade, sua capacidade de transmitir a herança masculina. Tornaram-se melindrosos com qualquer deterioração da capacidade de uma mulher de gerar filhos.

    Damon comentou, em voz baixa:

    - Também significava que uma menina que desejasse ser Guardiã não teria de fazer uma opção pela vida inteira, antes de conhecer plenamente as exigências desse fardo.

    Leonie descartou a objeção.

    - Você é homem, Damon, e não espero que possa compreender. Era para poupar as mulheres do terrível fardo da opção. - Subitamente, a voz dela se tornou trêmula. - Acha que eu não preferia que tudo isso me fosse extirpado na infância, em vez de passar a vida inteira aprisionada, sabendo que possuía a chave da prisão, e que apenas meu Juramento, minha honra, a palavra de uma Hastur me mantinham... como uma prisioneira?

    Ele não podia determinar se era pesar ou ira que fazia a voz de Leonie tremer.

    - Se eu pudesse impor minha vontade, se os homens do Comyn não se preocupassem tanto com a preciosa fertilidade de uma mulher, qualquer menina que chegasse à Torre seria neutralizada imediatamente e viveria como uma Guardiã feliz, livre do fardo de sua feminilidade. Ficaria livre da dor e dos lembretes intermináveis de sua opção... do fato de que nunca pôde optar de uma vez por todas, mas deve renovar a opção cada dia de sua vida.

    - Faria com que se tornassem escravas vitalícias da Torre?

    A voz de Leonie soou quase inaudível, mas para Damon foi como um grito:

    - Acha que não somos escravas?

    - Leonie, Leonie, se era o que sentia, por que suportou durante todos esses anos? Havia outras que poderiam remover o fardo de seus ombros, quando se tornou pesado demais.

    - Sou uma Hastur, e prestei o juramento de nunca renunciar a meu fardo, até treinar outra para assumi-lo. Pensa que não tentei?

    Ela fitava-o fixamente, e Damon ficou tenso na recordação da angústia; como seus pensamentos a projetavam, assim ela era no mundo superior, e quem contemplava à sua frente agora era a Leonie de seus primeiros anos na torre. Nunca saberia se algum outro homem a julgara linda, mas para ele Leonie era de uma beleza infinita, desejável, segurando os cordões de sua própria alma entre as mãos esguias... Damon virou-se, fazendo um esforço para vê-la apenas da maneira como era na última vez em que haviam se encontrado pessoalmente, durante seu casamento: uma mulher serena, idosa, controlada, além da raiva ou rebeldia.

    - Pensei que se sentia contente com o poder e a reverência, Leonie, com o mais alto de todos os postos, igual a qualquer lorde do Comyn... Leonie de Arilinn, a Dama de Darkover.

    As palavras pareciam vir de muito longe quando ela disse:

    - Se você soubesse que eu me rebelava, Damon, então meu fracasso seria total. Minha própria vida, minha sanidade, meu lugar como Guardiã, tudo dependia disso, de eu própria mal me conhecer. Contudo, tentei muitas vezes treinar outra para tomar o meu lugar, a fim de poder me livrar de um fardo que se tornara pesado demais para mim. Mas sempre que eu preparava uma nova Guardiã, alguma outra Torre descobria que sua Guardiã resolvera se retirar, ou que seu treinamento falhara, e tinha de ir embora para casar. Eram mulheres fracas e sem rumo, nenhuma tinha força suficiente para agüentar firme. Fui a única Guardiã em todos os Domínios que se manteve no posto durante os últimos vinte anos. E mesmo depois que comecei a envelhecer, por três vezes tive de abrir mão de uma sucessora, duas para Dalereuth e uma para Neskaya. Eu, que treinara uma Guardiã para cada Torre nos Domínios, desejava treinar uma para Arilinn, a fim de poder descansar um pouco. Você estava lá, Damon, viu o que aconteceu. Seis jovens, todas com talento suficiente para se tornarem Guardiãs. Mas três já eram mulheres, com o despertar sexual, apesar de jovens. Os canais já eram diferenciados, não podiam transmitir freqüências mais fortes, embora duas se tornassem mais tarde monitoras e técnicas, em Arilinn e Neskaya. Passei a escolher moças cada vez mais jovens, quase crianças. Quase tive sucesso com Hilary. Por dois anos ela trabalhou comigo como Subguardiã, firme, mas você sabe o que ela tinha de suportar. Ao final, senti que devia me compadecer e deixá-la partir. Foi então que apareceu Callista...

    - E você cuidou para que ela não fracassasse - protestou Damon, enfurecido -, alterando seus canais para que não pudesse amadurecer!

    - Sou uma Guardiã, e responsável apenas perante minha consciência! - exclamou Leonie, também com raiva. - Callista consentiu o que foi feito. Como eu podia prever que sua fantasia se acenderia ao conhecer esse Terranan, e o juramento seria a mesma coisa que nada para ela?

    Diante do silêncio acusador de Damon, ela acrescentou, na defensiva:

    - Apesar de tudo, Damon, eu a amo, e não podia suportar sua infelicidade! Se achasse que era apenas uma fantasia infantil, eu a levaria de volta a Arilinn comigo e a cumularia de tanto amor e ternura que ela nunca teria saudade de seu amante terráqueo. E, no entanto... ela me fez acreditar...

    No nível fluido do mundo superior, Damon pôde ver e partilhar a imagem que Leonie vira na mente de Callista: a jovem nos braços de Andrew, exausta e vulnerável, saindo das cavernas de Corresanti.

    E agora que a vira, mesmo que apenas refletida na mente de Leonie, como ela poderia ter sido, ilesa, inalterada - só vira Callista assim uma vez -, sabia que nunca ficaria satisfeito enquanto não a contemplasse assim de novo.

    - Não posso acreditar que faria uma coisa dessas se não acreditasse que poderia ser desfeito, Leonie.

    - Sou uma Guardiã, e responsável apenas perante minha consciência - repetiu ela, impávida.

    Era verdade. Pela lei das Torres, uma Guardiã era infalível, sua palavra tinha de ser obedecida por todos os membros do círculo. Mesmo assim, Damon persistiu:

    - Se assim era, por que não a neutralizou, acabando com o problema de uma vez por todas?

    Ela se manteve em silêncio por um longo momento, antes de responder:

    - Fala assim  porque é homem,  Damon. Para você, uma mulher não passa de uma esposa, um instrumento para lhe dar filhos, transmitir a sua preciosa herança Comyn. Eu tenho outros propósitos. Sentia-me muito cansada, Damon, e achei que não poderia suportar gastar minha energia e força, empenhar meu coração em Calista por anos e anos, e depois observá-la despertar, ir embora nos braços de algum homem. Ou, como Hilary, cair doente e sofrer as torturas de uma alma condenada a cada lua minguante. Não foi por egoísmo, Damon! Não foi apenas pelo anseio em largar o meu trabalho e descansar um pouco! Eu a amava, como nunca amei Hilary. Sabia que ela não fracassaria, mas receava que fosse forte demais para ceder, mesmo sob um sofrimento tão grande quanto o de Hilary, que tentasse suportar... como eu fiz, Damon, ano após ano, cada um mais longo do que o outro. Quis poupá-la de tudo isso, como tinha o direito de fazer. - Uma pausa, e Leonie acrescentou, em tom de desafio: - Eu era sua Guardiã!

    - E tirou dela o direito de optar!

    - Nenhuma mulher do Comyn pode optar, não para valer - disse Leonie, quase num sussurro. - Não optei por ser Guardiã, nem mesmo por ser enviada a uma Torre. Era uma Hastur, e esse era o meu destino, assim como o destino de minhas companheiras de infância era casar e gerar filhos para seus clãs. E não era irrevogável. Conheci na infância uma mulher que fora tratada assim, e me garantiu que era reversível. Disse que era legítimo, ao contrário da neutralização, para que as mulheres pudessem ser recuperadas, se os pais optassem por aqueles casamentos dinásticos tão caros aos corações do Comyn. Além do mais, não havia a menor possibilidade de prejudicar a preciosa fertilidade de uma filha do Comyn!

    O sarcasmo em sua voz era tão amargo que Damon estremeceu.

    - E reversível... como, Leonie? Calista não pode continuar a viver assim, nem Guardiã, nem livre.

    - Não sei como se faz. Quando tomei a decisão, nunca imaginei que pudesse haver necessidade de uma reversão, e por isso não fiz planos para esse dia. Mas fiquei contente... ou pelo menos tão próxima de contente quanto alguma coisa podia me deixar... quando ela afirmou que eu não a alterara de forma tão completa como pensava.

    Outra vez ele partilhou com Leonie a breve visão de Callista nos braços de Andrew, deixando as cavernas de Corresanti.

    - Mas parece agora que ela estava enganada, Damon.

    Leonie parecia abatida e esgotada. Depois de uma pausa, acrescentou:

    - Damon, Damon, deixe-a voltar para nós!  É tão horrível assim que ela seja a Dama de Arilinn? Por que tem de renunciar a isso e se tornar a esposa de um Terranan, gerar seus filhos mestiços?

    Ele sabia que sua voz tremia ao responder:

    - Se ela desejasse ser a Dama de Arilinn, eu sacrificaria minha própria vida na defesa de seu direito de permanecer assim. Mas Callista optou por outra coisa. É a esposa de um homem honrado, que me orgulho de chamar de irmão, e não quero que a felicidade dos dois seja destruída. Mas mesmo que Andrew não fosse meu amigo, ainda assim eu defenderia o direito de Callista de ordenar sua vida como preferir. Renunciar ao título de Dama de Arilinn, se assim desejasse, ser a esposa de um carvoeiro na floresta, ou empunhar uma espada, como Dama Bruna, sua antepassada, e comandar a Guarda no lugar do irmão! A vida é dela, Leonie, não minha, nem sua!

    Leonie cobriu o rosto com as mãos. Sua voz soou débil e sufocada:

    - Que assim seja. Ela terá o direito à opção, embora isso não acontecesse comigo, nem com você. Escolherá o que os homens de Darkover consideram a única vida apropriada para uma mulher! E sou eu quem deve sofrer por sua opção, arcando com todo o peso de Arilinn até que Janine tenha idade e força suficientes para suportar o fardo.

    O rosto de Leonie era tão velho e amargurado que Damon teve um sobressalto involuntário.

    Mas ele refletiu que não era realmente um fardo para Leonie. Houvera um tempo em que ela talvez quisesse largá-lo. Mas agora não tinha outra coisa, representava tudo para ela, ter aquele poder de vida e morte sobre todos, controlar os pobres-coitados que entregavam suas vidas às Torres. Significava muito para ela, Damon sabia, que Callista a procurasse e suplicasse o que lhe pertencia por direito! Tornando a voz dura, ele declarou:

    - Sempre foi essa a lei. Ouvi-a dizer muitas vezes que a vida de uma Guardiã é árdua demais para ser suportada sem consentimento. E sempre se reconheceu que uma Guardiã deve ser liberada quando não pode mais realizar seu trabalho com segurança. Você mesma disse que é uma Guardiã, responsável apenas perante sua própria consciência. Mas o que significa ser uma Guardiã, Leonie, se a sua consciência não exige uma honestidade digna da função... ou de uma Hastur?

    Houve um silêncio prolongado.

    - Pela palavra de uma Hastur, Damon, não sei como pode ser desfeito.   Toda a minha pesquisa nos arquivos apenas revelou que nos velhos tempos, quando era uma prática comum... começou a ser feito depois que as Torres deixaram de neutralizar suas Guardiãs, a fim de que a sagrada fertilidade de uma Conym não sofresse, pelo menos em teoria... tais Guardiãs eram enviadas para Neskaya. Procurei nos arquivos ali. Theolinda, em Neskaya, contou-me que todos os manuscritos guardados ali haviam sido destruídos quando a Torre foi incendiada, durante a Era do Caos. Portanto, embora eu ainda ache que ela deve voltar para nós, só há um meio de redescobrir o que deve ser feito com Callista. Damon, sabe o que significa Pesquisa no Tempo?

    Ele sentiu um estranho calafrio, um sobressalto, como se a própria estrutura do mundo superior oscilasse sob seus pés.

    - Ouvi dizer que essa técnica também se perdeu.

    - Não, porque eu já a usei. O curso de um rio mudara, fazendas e aldeias às suas margens estavam ameaçadas pela seca e fome. Efetuei uma Pesquisa no Tempo para descobrir qual era exatamente seu curso cem anos antes, a fim de desviá-lo de volta a seu canal natural, em vez de envidar o esforço excessivo de fazê-lo correr por um caminho artificial. Não foi fácil. - A voz de Leonie se tornara mais tênue, a apreensão era evidente. - E você teria de voltar muito mais longe do que fui. Precisaria retornar a uma época anterior ao incêndio da Torre de Neskaya, durante as rebeliões de Hastur. Foi um tempo terrível. Acha que poderia alcançar esse nível?

    - Posso trabalhar em muitos níveis do mundo superior. - Há outros, é claro, a que não tenho acesso. Mas não sei como atingir o nível em que a Pesquisa no Tempo pode ser efetuada.

    - Posso guiá-lo até lá, Damon. Sabe, é claro, que o mundo superior é apenas uma série de harmonias. Aqui, no mundo cinzento, é mais fácil visualizar seu corpo físico se deslocando no espaço cinzento, com formas de pensamentos como pontos de referência... - Ela gesticulou para a forma vagamente reluzente de Arilinn por trás - ...do que encarar a verdade: a de que sua mente é uma tênue teia de intangíveis se deslocando num reino de abstrações. Aprendeu tudo isso durante o seu primeiro ano na Torre. É possível, sem dúvida, que o mundo superior esteja mais próximo da realidade objetiva do universo do que o mundo de formas, o que você chama de mundo real. Mesmo assim, há alguns bons técnicos que podem ver, à vontade, os corpos como teias de átomos, energia turbilhonante e campos magnéticos.

    Damon acenou com a cabeça, sabendo que isso era verdade. Leonie continuou:

    - Não é fácil afastar a mente das harmonias do que você chama de mundo real para se libertar do tempo, como o conhece. O próprio tempo, provavelmente, não passa de um meio de estruturar a realidade, a fim de que o cérebro possa encontrar algum sentido. É bem provável que na suprema realidade do universo, para a qual nossas experiências não passam de aproximações, não haja qualquer experiência do tempo como uma seqüência, mas passado, presente e futuro coexistindo, como um todo caótico. Num nível físico... que inclui, é claro, o nível em que nos encontramos agora, o mundo das imagens, onde nossa visualização recria constantemente o mundo que preferimos ver ao nosso redor...  descobrimos  ser  mais  fácil  viajar ao  longo  de  uma  seqüência pessoal do que chamamos de passado ao presente e ao futuro. Na realidade, porém, é bem provável que até um organismo físico exista em sua inteireza ao mesmo tempo, e seu desenvolvimento biológico, de embrião à senilidade e morte, não passe de uma dimensão, como o comprimento. Estou deixando-o confuso, Damon?

    - Não muito. Continue.

    - No nível de Pesquisa no Tempo, todo esse conceito de seqüência linear desaparece. Você deve criá-lo para si mesmo, a fim de não ficar perdido na realidade caótica, e precisa se ancorar de alguma forma, para não regressar ao corpo físico através das ressonâncias. É como vaguear vendado por um labirinto de espelhos. Eu preferiria fazer qualquer outra coisa neste universo a tentar isso outra vez. Mas receio que só com uma busca no tempo será possível encontrar uma solução para Callista. Deve mesmo se arriscar, Damon?

    - Claro que devo, Leonie. Fiz uma promessa a Callista. - Ele não contaria a Leonie sobre a situação em que fizera a promessa, nem a agonia que Callista suportara, quando teria sido mais fácil morrer, resistindo apenas porque confiara em sua garantia. - Não sou um Hastur, mas não quebrarei a palavra empenhada.

    Leonie deixou escapar um longo suspiro.

    - Sou uma Hastur, e uma Guardiã ainda por cima, responsável por todos que me prestaram um juramento, homem ou mulher. Sinto agora que, se me fosse dado decidir, nenhuma mulher seria treinada para Guardiã se não consentisse primeiro em ser neutralizada, como acontecia nos tempos antigos. Mas o mundo continua como quer, e não como eu gostaria. Assumirei a responsabilidade, Damon, mas não posso assumir toda a responsabilidade. Sou a única Guardiã remanescente em Arilinn. Neskaya está fora das redes, porque Theolinda não é bastante forte, nem mesmo agora. Dalereuth vem usando um círculo de mecânicos, sem Guardiã, o que faz com que eu me sinta culpada por manter Janine ao meu lado em Arilinn. Não conseguimos preparar Guardiãs em quantidade suficiente, Damon, e as que treinamos muitas vezes perdem seus poderes ainda jovens. Compreende agora por que precisamos tanto de Callista!'

    Era um problema sem solução, mas Damon não podia admitir que Calista fosse um mero peão naquele jogo, e Leonie sabia disso. Ela acabou comentando, meio espantada:

    - Como você deve amá-la, Damon!   Talvez eu devesse tê-la entregue a você.

    - Amor? Não nesse sentido, Leonie, embora ela  me seja muito querida. O fato é que eu, que tenho tão pouca coragem, admiro isso acima de tudo mais numa pessoa.

    - Acha que tem pouca coragem, Damon? - Leonie ficou em silêncio por um longo tempo, e ele viu sua imagem tremer e ondular, como ondas de calor no deserto além das Cidades Secas. - Ah, Damon, Damon, como pude destruir todas as pessoas que amo? Só agora percebo que quebrei você, assim como fiz com Callista...

    As palavras ressoaram como um eco, intemporais, na cabeça de Damon. Como pude destruir todas as pessoas que amo? Todas as pessoas que amo, todas as pessoas que amo, todas as pessoas que amo...

    - Disse que era para o meu próprio bem que me mandava embora de Arilinn, Leonie, que eu era sensível demais, e o trabalho me destruiria.

    Ele convivera com essas palavras por anos, sufocara com elas, engolira-as em amargura, odiando a si mesmo por viver para ouvi-las ou repeti-las. Nunca pensara em duvidar, nem por um instante... a palavra de uma Guardiã, de uma Hastur. Acuada, Leonie gritou:

    - O que eu poderia lhe dizer? - Sua agonia era patente. - Algo está errado, terrivelmente errado, com todo o nosso sistema de treinamento de trabalhadores psíquicos! Como pode ser justo sacrificar vidas inteiras dessa maneira? A de Callista, a de Hilary, a sua! - Uma pausa, e ela arrematou com uma indescritível amargura: - e a minha.

    Se ela tivesse tido a coragem, pensou Damon, amargurado, ou a honestidade, de lhe dizer a verdade, que um dos dois devia partir, que não podia ser dispensada por ser a Guardiã, então ele estaria perdido para Arilinn, mas não se sentiria tão perdido.

    Mas agora recuperara algo perdido ao ser afastado da Torre. Era inteiro de novo, não fragmentado como ficara ao ser removido por Leonie, julgando-se fraco, inútil, sem a força necessária para o trabalho que escolhera.

    Havia alguma coisa profundamente errada com o sistema de treinamento de trabalhadores psíquicos; e, agora, até a própria Leonie o reconhecia.

    Damon sentiu-se chocado com a tragédia nos olhos de Leonie. Ela sussurrou:

    - O que quer de mim, Damon.-' Porque quase destruí sua vida com minha fraqueza, a honra de uma Hastur exige que eu permaneça inflexível e o deixe destruir a minha também?

    Damon baixou a cabeça. Seu longo amor, o sofrimento que controlara, a paixão que pensara ter definhado ao longo dos anos, tudo agora lhe proporcionava compaixão. Ali, no mundo superior, onde nenhuma insinuação de paixão física poderia acrescentar perigo ao gesto ou ao pensamento, ele se inclinou para Leonie, como ansiara fazer por tantos anos desesperançados, tomou-a em seus braços, beijou-a. Não importava que apenas imagens se encontrassem, que estivessem separados, no mundo real, por dez dias de viagem, que ela nunca poderia reagir à sua paixão, da mesma forma que Callista. Nada importava, absolutamente nada. Foi um beijo de amor desesperado, como ele nunca dera em qualquer mulher, e nunca daria. Por um momento, a imagem de Leonie tremeu, se transformou, até que ela voltou a ser a Leonie mais jovem, radiante, casta, intocável, a Leonie por cuja presença ele ansiara durante tantos anos angustiados e solitários, e se atormentara em culpa por esse anseio.

    E depois tornou-se a Leonie de hoje, consumida pelo tempo, chorando desamparada, de uma forma que ele pensou que partiria seu coração; e ela murmurou:

    - Vá agora, Damon. Volte depois do Solstício do Inverno, e eu o guiarei para o lugar em que poderá procurar no tempo pelo destino de Callista... e também pelo seu. Mas, por enquanto, se ainda resta alguma compaixão em você, vá embora!

    O mundo superior tremeu, como se fosse uma tempestade, e desapareceu. Damon descobriu-se de volta ao quarto em Armida. Callista o fitava, em espanto e consternação. Ellemir perguntou:

    - Damon, meu amor, por que está chorando?

    Mas Damon sabia que nunca poderia responder. Tudo desnecessário, por Cassilda e todos os Deuses, tudo desnecessário, tanto sofrimento, o seu, o de Callista. Da pobre Hilary. De Leonie. E só a compadecida Avarra sabia de quantas outras vidas, de quantos outros telepatas nas Torres dos Domínios, condenados ao sofrimento...

    Teria sido melhor para o Comyn, melhor para todos, pensou Damon, desesperado, se na Era do Caos todos os filhos de Hastur e Cassilda explodissem em mil fragmentos, junto com suas pedras-da-estrela! Mas devia haver um paradeiro, um fim para todo aquele sofrimento!

    E Damon abraçou Ellemir, angustiado, estendeu-se além dela, para segurar as mãos de Andrew e Callista. Não era suficiente. Nada jamais seria suficiente para apagar sua percepção de todo aquele sofrimento. Mas enquanto eles permanecessem ao seu redor, unidos, seria capaz de conviver com isso. Por enquanto. Talvez.

   

    Dom Esteban pedira-lhes que adiassem o trabalho psíquico para depois do Solstício do Inverno, quando fossem concluídos os reparos dos danos causados pela tempestade. Damon acolheu a espera com alguma satisfação, embora se sentisse aflito de apreensão, com a necessidade de acabar logo com aquilo. Sabia que muita coisa dependeria do tempo. Se houvesse outra tempestade, o festival do Solstício do Inverno seria celebrado apenas com o pessoal da casa, mas, se o tempo estivesse bom, contaria com a presença de todas as pessoas que viviam num raio de um dia de viagem, e muitas passariam a noite ali. A véspera do Solstício do Inverno amanheceu vermelha e amena, e Damon percebeu que Dom Esteban se animava com a perspectiva. Sentiu-se envergonhado por sua própria relutância. Uma trégua no isolamento do inverno era muito importante nas Colinas Kilghard, ainda mais para um velho paralítico, preso a uma cadeira de rodas. Ao desjejum, Ellemir conversou jovialmente sobre os planos, num espírito festivo.

    - Mandarei as mulheres da cozinha fazer os bolos do festival. Um homem deve descer ao Vale Sul e pedir ao velho Yashri e seus filhos para virem tocar no baile. E se muitos forem passar a noite aqui, teremos de abrir e arejar todos os quartos de hóspedes. E acho que a capela está vergonhosamente cheia de poeira e sujeira. Não vou lá desde...

    Ellemir hesitou, desviou os olhos, e Callista se apressou em dizer:

    - Pode deixar que cuidarei da capela, Elli. Mas vamos acender o fogo?

    Ela olhou para o pai, que comentou:

    - Eu diria que é uma tolice, nos tempos de hoje, fazer uma fogueira para acender o sol.

    Dom Esteban olhou para Andrew, as sobrancelhas alteadas, como se esperasse que o homem mais jovem escarnecesse, pensou Damon. Mas o terráqueo declarou:

    - Parece ser um dos costumes mais universais da humanidade, senhor. Na maioria dos mundos há alguma forma de festival do Solstício do Inverno, assinalando o retorno do sol depois da noite mais longa, e também alguma forma de festividade do Solstício do Verão, para o dia mais longo.

    Damon nunca se julgara um sentimental, condicionara-se com todo o rigor a deixar o passado sepultado, mas agora se lembrou de todos os invernos que passara em Armida, como amigo de Coryn. Costumava ficar ao lado de Coryn no festival do Solstício do Inverno, cercados pelas meninas pequenas, e pensava que, se tivesse sua própria família, haveria de manter aquele costume. O sogro captou o pensamento e virou o rosto, sorrindo para Damon. Sua voz soou um tanto ríspida:

    - Pensei que  todos  os jovens achassem que  era  uma bobagem pagã, algo que estaria melhor esquecido. Mas como todos parecem concordar, poderemos fazê-lo, se alguém carregar minha cadeira para o pátio... e se houver sol suficiente. Damon, não posso descer para escolher o vinho do banquete. Aqui está a chave da adega. Rhodri diz que o vinho deste ano foi bom, apesar de eu não ter participado da produção.

    Andrew voltara de sua tarefa diária de inspecionar os cavalos de sela quando Callista o interceptou.

    - Venha me ajudar a cuidar da capela. Nenhum criado pode fazer isso, apenas as pessoas ligadas por sangue ou casamento ao Domínio. Você nunca esteve lá antes.

    Era verdade. A religião parecia não desempenhar um papel importante na vida cotidiana dos Domínios, pelo menos não em Armida. Callista vestira um avental grande e explicou, enquanto desciam a escada:

    - Essa era minha única tarefa quando criança; Dorian e eu tínhamos de cuidar da capela nos festivais, Elli nunca teve permissão para descer, pois era exuberante demais e sempre quebrava as coisas.

    Era fácil visualizar Callista como uma menina pequena e solene, a quem se confiava o manuseio de coisas valiosas e frágeis, pois não quebrava nenhuma. Ela acrescentou, ao entrarem na capela:

    - Não passei o festival em casa desde que fui para a Torre. Agora, Dorian está casada, com duas filhas pequenas... que eu não conheço... Domenic comanda a Guarda em Thendara, e meu irmão caçula foi para Nevarsin. Não vejo Valdir desde que ele era um bebê de colo. E acho que não tornarei a vê-lo até que esteja crescido.

    Ela parou, teve um súbito calafrio, como se tivesse visto alguma coisa assustadora.

    - Dorian é muito parecida com você e Elli?

    - Não, não muito. Ela é loura, como muitos dos Ridenows. Todos diziam que era a beldade da família.

    - Reluto em pensar que toda a sua família tem alguma deficiência visual - comentou Andrew, rindo.

    Callista corou e conduziu-o para o interior da capela. No centro havia um altar quadrado, um bloco de pedra branca translúcida. Parecia muito antigo. Nas paredes da capela havia quadros, também antigos. Callista apontou, explicando em voz baixa:

    - Estes são os Quatro, os Deuses antigos: Aldones, o Senhor da Luz; Zandru, que projeta o mal das trevas; Evanda, a dama da primavera e do crescimento das culturas; e Avarra, a mãe do nascimento e da morte.

    Ela pegou uma vassoura e começou a varrer a capela, que estava de fato bastante empoeirada. Andrew especulou se Callista acreditava mesmo naqueles deuses, ou se sua observância religiosa era apenas formal. Até o seu desdém pela religião deveria ser diferente do que ele pensava a respeito. Ela comentou, hesitante:

    - Não sei direito em que acredito. Sou uma Guardiã, uma tenerésteis, uma mecânica. Aprendemos que a ordem do universo não depende de divindades, mas... mas quem sabe se não foram os Deuses que ordenaram as leis que construíram as coisas como elas são, as leis que não podemos nos recusar a obedecer?

    Calista ficou imóvel por um instante, depois foi varrer um canto, chamando Andrew para ajudá-la a remover a poeira, recolher os pequenos pratos e recipientes do altar. Num nicho na parede, havia uma imagem muito antiga de uma mulher velada, cercada por cabeças de crianças, esculpidas de forma tosca numa pedra azul. Ela murmurou:

    - Talvez eu seja supersticiosa, no final das contas. Esta é Cassilda, chamada a Abençoada, que gerou um filho para Lorde Hastur, olho da Luz. Dizem que de seus sete filhos descenderam os sete Domínios. Não sei se a história é verdadeira, apenas mito, conto de fadas, ou uma memória truncada de alguma verdade antiga, mas as mulheres de nossa família fazem oferendas...

    Ela se calou. Na poeira do altar negligenciado, Andrew viu um ramo de flores, deixadas para murchar ali.

    Oferenda de Ellemir, quando pensava que teria a criança de Damon...

    Sem dizer nada, ele passou o braço pela cintura de Callista, sentindo-a mais íntima do que em qualquer outro momento desde a noite da catástrofe. Muitos fios estranhos entravam na formação de um casamento... Os lábios de Calista se mexiam, e ele especulou se seria uma oração, depois ela ergueu a cabeça, pegou entre os dedos as flores murchas e largou-as na pilha de lixo.

    - Precisamos limpar todos os recipientes e preparar o altar para o novo foge que vai arder ali. Temos de raspar todos os castiçais... por que será que deixaram neles a cera derretida do ano passado.- - A jovialidade ressurgiu em sua voz. - Vá até o poço, Andrew, e traga água.

    Por volta de meio-dia, o enorme disco vermelho que era o sol pairava num céu sem nuvens, e três dos guardas mais fortes carregaram Dom Esteban para o pátio, enquanto Damon arrumava o espelho, a lente e a mecha, para acender o fogo no vaso antigo de faiança. Podiam sentir o cheiro do incenso que Calista acendera no altar dentro da capela. Damon, contemplando Callista e Ellemir, quase que pôde vê-las como meninas, em vestidos de tartã, os cabelos cacheados em torno do rosto, solenes e bem-comportadas. Dorian às vezes levava sua boneca para a cerimônia - ele não se lembrava de jamais ter visto Callista ou Ellemir com uma boneca. Sempre ficava ao lado de Dom Esteban, junto com Coryn, para a cerimônia. Agora, o velho não podia se ajoelhar diante do vaso, e foi Damon quem segurou a lente, esperando enquanto o foco brilhante de luz avançava pela mecha e as folhas cheias de resina, criando uma trilha estreita de fumaça flagrante. A trilha fumegou por um longo momento, a fumaça subindo. E depois um ponto escarlate reproduziu o clarão do sol no espelho, uma pequena chama se elevou, adquirindo vida, no meio da fumaça. Damon inclinou-se sobre o vaso, alimentando a chama com raspas e folhas, até que o fogo se avolumou, sob um acompanhamento de aclamações e gritos de estímulo dos espectadores. Ele entregou o vaso a Ellemir, que o carregou para o altar. Em seguida, rindo e desejando votos de felicidade, as pessoas começaram a deixar o pátio, passando uma a uma pela cadeira do velho, a fim de receber pequenos presentes. Ellemir, de pé ao lado do pai, distribuía os presentes, berloques de prata, às vezes de cobre. Em uns poucos casos - os criados mais valiosos - ela entregava certificados de propriedade de animais e outras coisas. Ao final, Callista e Ellemir beijaram o pai e lhe desejaram todas as alegrias da estação. Os presentes de Dom Esteban para as filhas foram peles preciosas, que poderiam ser adaptadas para mantos de viagem, no pior tempo.

    O presente para Andrew foi um conjunto de lâminas de barbear, numa caixa de veludo. Eram feitas de alguma liga de metal bem leve, e Andrew sabia que em Darkover, um planeta com escassez de metais, era um presente excepcional. Ele inclinou-se, meio contrafeito, abraçou o velho, sentindo as costeletas roçar em seu rosto com uma curiosa sensação de afeto, de pertença.

    - Um bom festival para você, filho, e um alegre Ano-Novo.

    - Para você também, pai - disse Andrew, desejando poder pensar em palavras mais eloqüentes.

    De qualquer forma, ele sentiu que dera mais um pequeno passo para encontrar seu lugar ali. Callista apertou sua mão com força, quando entraram na casa, a fim de ultimar os preparativos para o banquete que seria realizado ainda naquele dia.

    Durante toda a tarde os convidados chegaram, das fazendas ao redor, de pequenas propriedades próximas. Muitos haviam comparecido aos casamentos. Subindo para trocar de roupa, Damon descobriu-se exilado de sua suíte. Ellemir levou-o para os aposentos de Andrew e Callista, explicando:

    - Cedi nossos aposentos ao pessoal de Syrtis, Loran, Caitlia e suas filhas. Você e eu teremos de passar a noite aqui, com Andrew e Callista. Já trouxe as suas roupas para cá.

    Andrew, partilhando o espaço exíguo com Damon, num espírito festivo, baixou o espelho de barbear, a fim de que o amigo mais baixo pudesse se ver também. Quase que se agachou, passando a mão pelos cabelos que haviam crescido ao longo do pescoço.

    - Eu deveria arrumar alguém para me cortar os cabelos. Damon soltou uma risada.

    - Não é um monge nem um guarda, então não vai querer os cabelos mais curtos do que estão agora, não é mesmo?

    Os cabelos de Damon eram aparados na altura da gola. Andrew deu de ombros. Os costumes eram sempre relativos. Seus cabelos pareciam agora compridos demais, desleixados, embora fossem mais curtos que os de Damon. Fazendo a barba com uma lâmina nova, ele se descobriu a especular por que, num planeta tão frio como Darkover, apenas os velhos usavam barba, algo que sempre protegia do tempo. Mas também os costumes nunca faziam sentido.

    Lá embaixo, contemplando o salão ornamentado com galhos verdes e os bolos do festival, com um aroma não muito diferente do pão de gengibre de seus Natais na Terra, ele teve a pungente impressão de que era tudo igual a uma celebração de sua infância. Já conhecera quase todos os convidados no casamento. Houve muita dança, e se bebeu um bocado, para surpresa de Andrew, que pensava que os habitantes das colinas eram sempre sóbrios. Foi o que comentou para Damon, que balançou a cabeça e explicou:

    - E somos mesmo. E por isso que reservamos a bebida para as ocasiões especiais, que não ocorrem com muita freqüência. Portanto, aproveite ao máximo. Beba, irmão!

    Damon seguia o próprio conselho, e já se encontrava meio embriagado. Houve as efusivas brincadeiras de beijos de que Andrew se recordava do casamento. Ele se lembrou de ter lido em algum lugar, anos antes, como as sociedades urbanas, com bastante tempo para o lazer, desenvolviam diversões sofisticadas, que não eram necessárias para os raros momentos de lazer de pessoas que dedicavam a maior parte de seu tempo aos trabalhos manuais árduos. Pensando no que ouvira contar sobre os dias de fronteira em seu próprio mundo, as festas de produção de colchas e debulhação do milho, em que os rudes camponeses se divertiam em jogos que mais tarde seriam considerados brincadeiras de criança - como morder uma maçã pendurada em um barbante ou brincar de cabra-cega -, ele compreendeu que deveria ter esperado por isso. Mesmo ali, na casa-grande, havia muito trabalho árduo a realizar, e os festivais assim eram poucos; portanto, se as brincadeiras lhe pareciam infantis, a culpa era sua, não daqueles rudes fazendeiros e rancheiros. A maioria dos homens tinha as mãos calosas, indicando um intenso trabalho físico, até mesmo os nobres. Suas próprias mãos se achavam calejadas como nunca acontecera desde que deixara o rancho de criação de cavalos no Arizona, aos dezenove anos. As mulheres também trabalhavam, pensou ele, recordando o tempo que Ellemir passava supervisionando a cozinha, e as longas horas de Callista no dispensário e na estufa. As duas aderiram à dança na maior alegria, participaram das brincadeiras. Uma delas não era muito diferente da brincadeira de cabra-cega, com um homem e uma mulher vendados, tendo de procurar um ao outro através da multidão.

    Quando o baile começou, Andrew se descobriu na maior demanda como parceiro. Soube o motivo quando um rapaz, tirando Callista para dançar, virou a cabeça para trás e disse à sua parceira anterior, uma garota que parecia não ter mais de quatorze anos:

    - Se eu dançar com uma recém-casada no Solstício do Inverno, estarei casado antes do ano terminar!

    A garota - na verdade, uma criança, usando um vestido estampado infantil, os cabelos em longos cachos em torno do rosto - aproximou-se de Andrew e murmurou, com um sorriso petulante para disfarçar a timidez:

    - Ora, neste caso dançarei com o recém-casado!

    Andrew deixou que a garota o levasse para a pista de dança, avisando antes que não era um bom dançarino. Mais tarde, ele avistou a garota num canto, com o rapaz que queria casar antes do final do ano, trocando um beijo ardente, que não tinha nada de paixão infantil.

    A medida que a noite foi passando, muitos casais se esgueiraram para os cantos, saíram para os corredores escuros. Dom Esteban se embriagou e acabou sendo carregado para a cama, sem sentidos. Um a um, os convidados se despediram, ou desejaram boa noite e foram conduzidos a seus aposentos. A maioria dos criados participara da festa, embriagando-se tanto quanto os convidados, pois não precisavam fazer uma longa viagem pela noite fria. Damon adormecera num banco no Grande Salão e roncava alto. Era a claridade difusa antes do amanhecer quando eles correram os olhos pelo Grande Salão, com suas folhagens, garrafas e copos espalhados por toda parte, doces e refrescos descartados, e concluíram que seus deveres como anfitriões estavam superados e poderiam ir dormir. Depois de alguns esforços sem muito ânimo para despertar Damon, que grunhiu embriagado algumas palavras incompreensíveis, deixaram-no ali e subiram. Andrew estava espantado. Mesmo em seu casamento, Damon bebera muito pouco. Mas até um homem normalmente sóbrio tinha o direito de se embriagar no festival do Ano-Novo, refletiu Andrew.

    Nos aposentos que os dois casais deveriam partilhar naquela noite, por causa dos hóspedes, ele sentiu uma frustração intensa, intensificada pelo estado de semi-embriaguez, amoroso e ao mesmo tempo desapontado. Era um inferno de vida, estar casado e dormir sozinho. Um inferno de casamento, até agora, ainda mais com o que lhe parecia um arremedo de festa de Natal. Sentia-se abandonado, desolado. Talvez com Damon embriagado, Ellemir... mas não, as mulheres já haviam deitado juntas na cama grande, como fizeram durante toda a longa doença de Callista. Andrew calculou que dormiria outra vez na cama pequena, a que era sempre ocupada por Callista, e que Damon, se por acaso subisse, ficaria na sala de estar da suíte.

    As mulheres não paravam de rir, como se fossem adolescentes. Teriam bebido demais também? Callista chamou-o baixinho, e ele se aproximou, estavam deitadas juntas e continuavam a rir. Callista estendeu a mão, puxou-o para a cama.

    - Há espaço para você aqui.

    Andrew hesitou. Fazia algum sentido provocá-lo daquele jeito? Mas ele acabou rindo, estendeu-se na cama. Era enorme, poderia abrigar meia dúzia de pessoas, sem qualquer aperto. Callista sussurrou:

    - Eu queria provar uma coisa para você, meu amor. Gentilmente, ela empurrou Ellemir para os braços de Andrew. Ele ficou furioso, com um embaraço que parecia arder por todo o seu corpo, arrefecendo a paixão como um balde de água gelada. Nunca se sentira tão nu em toda a sua vida, tão exposto.

    Ora, estava se comportando como um tolo! Afinal, não era esse o passo lógico seguinte? Mas a lógica não tinha nenhuma participação em seus sentimentos.

    Ellemir era quente, familiar, confortadora em seus braços.

    Qual é o problema, Andrew?

    O problema, e ela tinha de saber disso, era a presença de Callista. Ele refletiu que algumas pessoas podiam achar aquilo muito excitante. Ellemir acompanhou seus pensamentos, que associavam aquele tipo de coisa a espetáculos eróticos, tentativas de animação de gostos dissipados, decadência. Ela sussurrou:

    - Não é assim, Andrew. Somos todos telepatas.  Qualquer coisa que façamos, os outros saberão, serão partes integrantes. Então, por que fingir que algum de nós pode alguma vez ficar completamente excluído dos outros?

    Ele sentiu as pontas dos dedos de Callista tocando em seu rosto. Era estranho que no escuro, embora as mãos pequenas de ambas fossem quase idênticas, pudesse ter tanta certeza de que era a mão de Callista, não a de Ellemir.

    Entre telepatas, o conceito desse tipo de privacidade não podia existir, Andrew sabia, e por isso fechar portas e se trancar em isolamento era apenas uma encenação. Mas chegava um momento em que se tinha de parar de fingir...

    Ele tentou recuperar o estado apaixonado anterior, mas a embriaguez e o constrangimento conspiravam para derrotá-lo. Ellemir riu, mas era evidente que a risada não tinha a intenção de escárnio.

    - Acho que todos beberam demais. Vamos dormir.

    Já estavam quase pegando no sono quando a porta do quarto foi aberta, e Damon entrou, em passos trôpegos. Olhou para os três, sorrindo.

    - Eu sabia que encontraria todo mundo aqui! - Ele jogou as roupas pelo chão. Ainda estava embriagado. - Vamos, abram espaço para mim. Onde eu...

    - Damon, você quer dormir até passar a embriaguez - disse Callista. - Não ficaria mais confortável...

    - O conforto que se dane! Ninguém quer dormir sozinho na noite do festival!

    Rindo, Callista afastou-se para ele deitar ao seu lado. Damon mergulhou no sono um instante depois. Andrew soltou uma gargalhada, que dissipou seu embaraço. Ao adormecer, sentiu um fio tênue de contato a envolvê-lo, como se Damon, mesmo no sono, se projetasse em busca do conforto da presença dos outros, unindo-os, os corações batendo no mesmo ritmo, uma pulsação lenta, uma serenidade infinita. Andrew pensou, sem saber se era seu pensamento ou de alguém mais, que Damon se encontrava ali, estava tudo bem agora. Era assim que devia ser. Ele sentiu a percepção de Damon: Todas as pessoas que eu amo... nunca mais estarei sozinho...

    Já era tarde quando acordaram, mas as cortinas fechadas deixavam o quarto na escuridão. Ellemir ainda estava aninhada nos braços de Andrew. Mexeu-se, virou-se sonolenta para ele, envolveu-o com seu calor de mulher. O senso de intimidade;, de partilhar tudo, ainda persistia, e Andrew se deixou arrebatar, aceitando a acolhida daquele corpo. Não eram apenas ele próprio e Ellemir, de certa forma, mas uma percepção, abaixo do nível consciente, de que todos eram parte da mesma coisa, ajustavam-se uns aos outros, de forma singular, sem qualquer análise. Ele teve vontade de bradar para o mundo: "Eu amo vocês, amo todos vocês." Em sua exultação, não distinguia o excitamento sexual por Ellemir, a ternura por Callista, a afeição forte e protetora por Damon. Tudo era uma só emoção, e essa emoção era de amor. Andrew flutuou nela, se afogou, arriou consumido, se deleitou. Sabia que haviam despertado os outros. O que parecia não ter qualquer importância.

    Ellemir foi a primeira a se movimentar, espreguiçou-se, suspirou, riu, bocejou. Ergueu a cabeça, deu um beijo rápido em Andrew e comentou, pesarosa:

    - Eu gostaria de passar o dia inteiro aqui, mas estou pensando no caos lá embaixo. Se algum dos nossos hóspedes quiser comer o desjejum, tenho de descer para providenciar.

    Ela se inclinou e beijou Damon, depois de um momento beijou Callista também, saiu da cama, foi se vestir.

    Damon, menos fisicamente envolvido, sentiu o esforço que Callista fazia para manter suas barreiras. Portanto, no final das contas, não fora completo. Ela continuava por fora. Ele encostou a ponta de um dedo em seu olho fechado. Andrew entrara no banheiro. Estavam a sós, e Damon sentiu que a encenação se dissolvia.

    - Chorando, Callie?

    - Não, claro que não. Por que deveria?

    Mas ela estava. Damon abraçou-a, sabendo que naquele momento partilhavam uma coisa de que os outros eram excluídos, a experiência comum, a disciplina dolorosa, o senso de que eram diferentes.

    Andrew fora se vestir. Damon captou um fragmento de seus pensamentos, contentamento misturado com tristeza, e pensou que por algum tempo Andrew fora um deles. Agora, porém, voltara a se sentir apartado. Damon também captou as emoções de Callista, não de ressentimento contra Ellemir, ou qualquer coisa assim, mas uma necessidade desesperada de saber, antes de poder partilhar. Ele sentiu sua angústia, o impulso súbito e desvairado de se dilacerar com as próprias unhas, espancar-se com os punhos, virar-se contra aquele corpo inútil e mutilado, que estava longe de ser o que deveria. Apertou-a com firmeza contra seu corpo, tentando acalmá-la, confortá-la com seu contato.

    Ellemir voltou do banho, os cabelos molhados, sentou à penteadeira de Callista.

    - Usarei um dos seus vestidos de trabalho, Callie, pois há muita coisa para fazer. Essa é a única coisa ruim numa festa!

    Ela viu Callista com o rosto oculto contra o peito de Damon, por um momento foi sacudida por sua angústia. Ellemir fora criada a pensar que tinha apenas um pouco do laran de seu clã; e agora, absorvendo o pleno impacto do desespero da irmã gêmea, compreendeu que era mais uma maldição do que uma bênção. E, quando Andrew voltou ao quarto, sentiu que ele se apartara subitamente.

    Andrew estava pensando que era preciso ser criado com aquele tipo de coisa. Interpretou o silêncio tenso de Ellemir como vergonha ou arrependimento pelo que acontecera e especulou se deveria pedir desculpas. Pelo quê? A quem? Ellemir? Damon? Viu Callista nos braços de Damon. Tinha o direito de protestar? - Nada mais justo, mas ainda assim ele sentiu uma náusea e repulsa quase física... ou seria apenas porque bebera demais na noite anterior?

    Damon percebeu que ele os contemplava e sorriu.

    - Acho que Dom Esteban tem a cabeça pior do que a minha esta manhã. Vou refrescá-la com um pouco de água fria, e depois descerei para verificar se posso fazer alguma coisa por nosso pai. Não tenho ânimo para deixá-lo aos cuidados de seu valete hoje. - Uma pausa, e ele acrescentou, desvencilhando-se devagar de Callista, sem qualquer pressa:

    - Os terráqueos têm alguma expressão apropriada para a manhã seguinte?

    - Dezenas - respondeu Andrew, com uma expressão sombria -, e todas tão repulsivas quanto a própria situação.

    Ressaca, pensou ele. Damon foi para o banheiro. Andrew passou uma escova pelos cabelos, olhando furioso para Callista. Nem sequer percebeu que ela tinha os olhos vermelhos. Callista se levantou lentamente, vestiu seu robe florido.

    - Devo ajudar Ellemir. As criadas mal saberão por onde começar. Por que me olha assim, meu marido?

    A pergunta deixou-o irritado, belicoso.

    - Não me deixa tocá-la nem com as pontas dos dedos, me repele se eu a beijar como se fosse estupro, mas estava deitada nos braços de Damon...

    Ela baixou os olhos.

    - Sabe por que me atrevo... com ele.

    Andrew recordou a intensa percepção, sexualidade, que sentira, que partilhara com Damon. Era inquietante, inundando-o com uma vaga apreensão.

    - Não pode dizer que Damon não é um homem!

    - Claro que é, mas ele aprendeu... na mesma escola dura que eu... quando e como não parecer assim.

    Isso foi, para o sentimento de culpa exacerbado de Andrew, como uma provocação, como se ele fosse alguma espécie de bruto, um animal, que não era capaz, de controlar seus impulsos sexuais, e precisava ser apaziguado. Callista o empurrara literalmente para os braços de Ellemir, mas Damon não precisava de tais concessões. Abruptamente, enfurecido, ele abraçou Callista, foiçou a boca contra a sua. Por um momento, ela resistiu, tentando desviar a boca, e Andrew pôde sentir toda a sua convulsão interior. - de repente ela se tornou passiva em seus braços, os lábios hirtos, imóveis, tão distante que nem parecia estar no mesmo quarto. Sua voz baixa dilacerou-o como presas afiadas:

    - Qualquer coisa que você acha que deve fazer, posso suportar. Como estou agora, não faria a menor diferença. Não vai me afetar agora, nem me agitar a um ponto de reação. Mesmo que você sinta que deve... que deve me levar para a cama... nada significaria para mim... mas se lhe proporcionar algum prazer...

    Chocado, gelado até os ossos, Andrew largou-a. De certa forma, aquilo era mais terrível do que se ela tivesse resistido, atacando-o com unhas e dentes, golpeando-o outra vez com o raio. Antes, Callista temera seu próprio excitamento. Agora, sabia que nada passaria por suas defesas... absolutamente nada.

    - Oh, Callista, perdoe-me! Oh, Deus, Callista, perdoe-me!

    Ele caiu de joelhos à sua frente, pegou as pontas de seus dedos, comprimiu-as contra os lábios, numa agonia de remorso. Damon saiu do banho, contemplou a cena, consternado, mas nenhum dos dois o viu, nem ouviu. Lentamente, Callista estendeu as mãos para o rosto de Andrew e sussurrou:

    - Ah, meu amor, eu é que devo lhe pedir perdão. Não quero... não quero ser indiferente a você.

    Sua voz estava impregnada de tanta angústia que Damon compreendeu que não poderia esperar por mais tempo. Sabia por que bebera tanto na noite passada. Passado o Solstício do Inverno, não poderia mais protelar a provação. Devia partir agora para o mundo superior, mergulhar no tempo e procurar por ajuda ali, por um meio de trazer Callista de volta para eles. Agora, antes que sua dor frenética a dominasse por completo. Arriscaria mais do que isso por ela, por Andrew.

    Sem dizer nada, ele saiu do quarto.

   

    Depois do Solstício do Inverno, surpreendentemente, o tempo melhorou, e os reparos dos danos causados pela grande tempestade progrediram depressa. Foram concluídos em dez dias, e Andrew achou que poderia deixar o resto do trabalho aos cuidados do coridom por algum tempo.

    Pensou que nunca vira Damon tão esgotado e irritado como na manhã em que isolou a suíte com amortecedores telepáticos e avisou aos criados para não incomodá-los. Desde o Solstício do Inverno que Damon se mantinha irrequieto, sempre calado, mas agora, ao ajustar os amortecedores, andando de um lado para outro muito nervoso, todos puderam notar. Callista acabou protestando:

    - Já chega, Damon! Deite-se e respire lentamente. Não pode começar assim, e sabe disso tão bem quanto eu.  Trate de se acalmar primeiro. Quer um pouco de kirian?

    - Não, não quero - respondeu Damon, irritado. - Mas creio que é melhor eu tomar. E quero também um cobertor. Sempre volto meio congelado.

    Callista gesticulou para que Ellemir o cobrisse e foi buscar O kirian.

    - Prove primeiro. Meu equipamento de destilação aqui não é tão eficiente quanto o que eu usava em Arilinn, e pode haver resíduos, embora tenha sido filtrado duas vezes.

    - Não pode ser pior do que eu nesse tipo de coisa. - Damon cheirou com cautela, depois soltou uma risada, ao lembrar que Callista fizera a mesma coisa com a tosca tintura que ele preparara. - Não importa, minha querida, acho que não envenenaríamos um ao outro.

    Ele deixou-a medir uma dose exata e acrescentou:

    - Não sei qual é o fator de distorção do tempo, e você terá de permanecer em sintonia para me monitorar. Não é melhor tomar um pouco também?

    Callista sacudiu a cabeça.

    - Tenho uma tolerância baixa demais para a substância, Damon. Se tomasse o suficiente para entrar em sintonia, teria graves problemas. Posso dar um jeito sem isso.

    - Vai sentir cãibras e muito frio - advertiu Damon.

    Mas ele refletiu que, depois de tantos anos como Guardiã, Callista devia conhecer sua tolerância para a droga telepática por uma margem mínima. Ela sorriu, medindo a sua própria dose, apenas umas poucas gotas.

    - Estou usando um xale de lã extra. Se vou controlar suas funções vitais, quando quer que eu o traga de volta?

    Damon não sabia. Não tinha qualquer experiência com as pressões da Pesquisa no Tempo. Não fazia idéia do que poderia ser obrigado a suportar, em termos de efeitos colaterais.

    - É melhor não me trazer de volta, a menos que eu entre em convulsões.

    - Tanto assim?

    Callista sentiu uma intensa pontada de culpa. Era por ela que Damon assumia aquele risco terrível, voltando ao trabalho que tanto temia e detestava. Já estavam ligados. Ele pôs a mão de leve em seu pulso.

    - Não apenas por você, querida. Por todos nós. Pelas crianças.

    E pela Guardiã que virá. Callista não disse as palavras em voz alta, mas o tempo saiu de foco, como acontecia às vezes com os Altons, e ela se viu de uma grande distância, ali, em outro lugar, afundada até os joelhos numa vasta campina florida; contemplando uma menina delicada, estendida à sua frente, inconsciente; de pé na capela de Armida, diante da estátua de Cassilda, uma grinalda de flores escarlates na mão. Largou as flores no altar e depois voltou para os outros, tonta, corada, inebriada, e sussurrou:

    - Damon, você viu...

    Andrew também vira, todos haviam visto, e ele se lembrou da expressão de compaixão e pesar de Callista ao remover da capela a oferenda esquecida de Ellemir.

    - Nossas mulheres ainda depositam flores em seu santuário... - comentou Damon gentilmente. - Eu vi, Callie. Mas há uma longa distância a percorrer daqui até lá, e você sabe disso.

    Ela especulou se Andrew ficaria feliz, antes de voltar a se concentrar no trabalho, com uma disciplina determinada.

    - Deixe-me verificar sua respiração. - Callista passou as pontas dos dedos por cima do corpo de Damon. - Tome o kirian agora.

    Ele engoliu, fazendo uma careta.

    - Ufa! Qual é o sabor que você acrescenta... urina de cavalo?

    - Nada. Você apenas esqueceu o gosto, só isso. Fazia quantos anos que não tomava? Deite-se e pare de cerrar as mãos; só servirá para contrair os músculos e deixá-los com cãibras.

    Damon obedeceu, olhando para os três rostos que o cercavam: Callista, sóbria e no comando; Ellemir, parecendo um pouco assustada; e Andrew, forte e calmo, mas ele pôde sentir uma corrente de aflição. Tornou a fixar os olhos no rosto confiante de Callista. Podia confiar completamente nela, em seu treinamento em Arilinn. Sua respiração, suas funções vitais, sua própria vida, tudo estava nas mãos de Callista, e ele sentia-se contente por isso.

    Por que ela tinha de renunciar a isso, só porque queria ser feliz e ter filhos?

    Callista atraía Ellemir e Andrew para o círculo. Damon sentiu que eles entravam em contato. Já se encontrava à deriva, flutuando, muito longe. Olhou para Ellemir como se ela fosse transparente, pensando no quanto a amava, no quanto ela era feliz. Callista anunciou:

    - Vou deixá-lo ir até o primeiro estágio da crise, antes de chegar às convulsões. Isso não seria bom para você, nem para qualquer de nós.

    Damon não se deu o trabalho de protestar. Ela fora treinada em Arilinn; cabia-lhe tomar a decisão. No instante seguinte, ele se descobriu no mundo superior, sentindo os pontos de referência formar-se ao seu redor, uma torre como Arilinn, menos sólida, menos brilhante, não um farol, mas um abrigo, remoto e ao mesmo tempo sólido, ao seu redor, uma proteção, um lar ali. Por um momento, enquanto corria os olhos pelo mundo cinzento, abrigado, protelando a saída do interior dos muros, Damon se perguntou, com uma absurda irrelevância, o que pensariam os outros telepatas que vagavam pelo mundo cinzento, ao depararem com uma nova torre ali. Ou se os outros sequer notariam, sequer alcançariam aquele lugar remoto em que Damon e seu grupo trabalhavam. Resoluto, ele formou os pensamentos para levarem-no no mesmo instante a Arilinn, e se descobriu no pátio, diante de Leonie. Constatou com alívio que ela estava velada, e sua voz soou calma e fria, como se o momento de paixão nunca tivesse existido:

    - Devemos primeiro alcançar o nível em que é possível o movimento através do tempo. Tomou as precauções necessárias para se manter monitorado?

    Damon sentiu que ela olhava através dele, para o mundo superior, para o mundo em que deixara seu corpo, com Callista velando em silêncio ao lado. Leonie exibiu uma estranha expressão de triunfo, mas disse apenas:

    - Você pode se ausentar por um longo tempo, e vai parecer mais do que é. Eu o guiarei até o nível de Pesquisa no Tempo, embora não tenha certeza se serei capaz de permanecer ali. Mas devemos nos deslocar pelos níveis, um pouco de cada vez. De um modo geral, tento pensar nisso como se fosse um lance de escada.

    Damon viu o cinza ao redor se elevar para formar uma escada meio indefinida, subindo em curva, até desaparecer no cinza mais denso acima, como nevoeiro amortalhando o leito de um rio. Percebeu que a escada tinha um corrimão dourado e se perguntou que escada da infância de Leonie, talvez no Castelo Hastur, era ressuscitada ali, em sua imagem mental.

    Sabia muito bem, ao pôr o pé no primeiro degrau, atrás de Leonie, que na verdade apenas suas mentes se deslocavam pelos átomos informes do universo, mas a firme visualização da escada era tranqüilizadora e sólida, proporcionava um ponto focal no movimento de um nível para outro. Leonie conhecia aquele caminho, e ele não hesitou em segui-la.

    A escada não era íngreme, mas, à medida que subia, sua respiração se tornou mais ofegante, como se escalasse um desfiladeiro nas montanhas. Ainda assim a escada continuava firme, até mesmo acarpetada sob seus pés, embora ele soubesse que estes não passavam de formulações mentais. Mas foi ficando cada vez mais difícil senti-los, levantá-los de um degrau para outro. A escada era agora indefinida e vaga, levando para o denso nevoeiro cinzento um pouco acima. Leonie era apenas uma forma espectral num véu escarlate.

    O denso nevoeiro envolveu-o por completo. Podia avistar uns poucos centímetros da escada sob seus pés, mas subia num cinza que fazia seu corpo desaparecer. Logo o cinza foi escurecendo, ficou preto, riscado por arcos de luz azul.

    O nível das redes de energia. Damon trabalhara naquele nível como um técnico psíquico, e com um tremendo esforço conseguiu solidificá-lo, convertendo-o numa caverna escura, com trilhas estreitas iluminadas que subiam por um labirinto de água caindo. Leonie era ainda mais vaga ali, a túnica incolor. Ele não a ouvia agora em palavras:

    Vá com todo o cuidado aqui. Estamos no nível das matrizes monitoradas. Estarão velando por nós, para que nenhum mal me aconteça. Mas você deve me seguir de perto. Sei onde o trabalho de matriz está sendo realizado, e não devemos interferir.

    Em silêncio, Damon foi avançando pelos caminhos iluminados em azul. Houve uma explosão de luz azul, mas o pensamento de Leonie alcançou-o urgente:

    - Vire-se!

    E ele compreendeu que havia uma operação de matriz em andamento em algum lugar, de uma natureza tão delicada que até mesmo um pensamento casual - como "olhar" para ela - poderia provocar um desequilíbrio e representar um risco para os mecânicos. Damon visualizou-se virando as costas fisicamente ao clarão e fechando os olhos com toda a força, para não poder vê-lo nem mesmo através das pálpebras. A impressão era a de que passara um longo tempo antes que o pensamento de Leonie tornasse a alcançá-lo:

    - É seguro continuar agora.

    Outra vez a escada se formou sob seus pés, embora ele não pudesse vê-la. Continuou a subir. Só a concentração obstinada podia agora forçar a ilusão de um corpo físico capaz de subir, e a escada era como uma neblina. Sua pulsação começou a se acelerar, enquanto se esforçava para prosseguir na escalada, e a respiração tornou-se mais ofegante. Era como passar por um desfiladeiro nas montanhas, como subir a escada íngreme escavada na rocha que levava ao Mosteiro de Nevarsin. Damon tateou na densa escuridão, à procura do corrimão gelado, sentiu-o queimar seus dedos, mas ficou grato pela sensação. Ajudava-o a solidificar a amorfia terrível e caótica daquele nível. Não tinha idéia de como Leonie, que nunca foi treinada para escaladas, conseguia subir, mas podia senti-la na escuridão, e sabia que ela devia ter técnicas mentais para lidar com os níveis ascendentes. O ar era mais rarefeito agora, e Damon sentiu que o coração batia descompassado, em aflição. Foi dominado pela vertigem da altura. Não podia se forçar a prosseguir. Segurou-se ao corrimão com toda a força, sentindo as mãos dormentes do frio.

    - Não posso continuar. Não dá mais. Morrerei aqui.

    Pouco a pouco, a respiração se tornou mais fácil, o coração disparado se acalmou. Com a mais remota percepção, sabia que Callista entrara em sintonia com ele, regulando seu coração e sua respiração. Podia agora realizar o esforço de recomeçar a subir, embora a escada tivesse desaparecido. Enquanto o senso de subida árdua se tornava mais intenso, ele começou, desesperado, a formular a memória das técnicas de escalada de penhasco, entre gelo e rocha, que aprendera quando menino em Nevarsin, como se estivesse se arrastando por apoios para pés e mãos, fixando cordas imaginárias, para ajudá-lo a erguer o corpo relutante. Depois, tornou a perder o corpo, e toda noção de esforço e de níveis, deslocando-se apenas, pela concentração absoluta, de escuridão para escuridão. Numa delas havia estranhas massas de nuvens informes, projetando sua intangibilidade contra ele, envolvendo-o... O próprio conceito de forma, desapareceu. Não podia lembrar o que era um corpo, ou qual a sensação de ter um. Era tão informe, estava por toda parte e ao mesmo tempo não se encontrava em parte alguma, tanto quanto aquelas nuvens, o que quer que fossem, numa total interpenetração. Sentia-se nauseado e violado, mas continuou a se empenhar, e depois de uma eternidade isso também acabou.

    Acabaram chegando a uma escuridão estranha, não tão densa, e Leonie, ao seu lado na ausência de espaço, declarou, mas não com palavras:

    - Este é o nível em que podemos escapulir do tempo linear, tente pensar em se deslocar contra a correnteza de um rio. Será mais fácil se encontrarmos um lugar fixo e voltarmos a partir de lá. Ajude-me a encontrar Arilinn.

    “Damon - pensou - Arilinn também está, aqui"?, e sabia que estava sendo absurdo. Cada lugar de existência física devia se projetar para cima, através de todos os níveis do universo. Uma mão intangível pegou a sua, e Damon sentiu que sua própria mão se materializava onde deveria estar, se tivesse uma ali. Focalizou a mente em Arilinn, divisou uma sombra vaga e descobriu-se no quarto de Leonie ali.

    Uma ocasião, no último ano que ele passara ali, Leonie desmaiara dentro da rede. Carregara-a para seu quarto, ajeitara-a na cama. Naquele momento, não registrara conscientemente nenhum detalhe do quarto, mas ao vê-lo agora, em contornos vagos, na mente e na memória...

    - Não, Damon! Pela misericórdia de Avarra, não!

    Ele não tinha noção de ter invocado aquele dia esquecido, nem qualquer desejo de recordar... pelos infernos de Zandru, não! A lembrança fora de Leonie, e ele sabia disso, mas aceitou a culpa e procurou por uma memória mais neutra. Na câmara da matriz em Arilinn, observou Callista, aos treze anos, os cabelos ainda descendo pelas costas. Guiou os dedos dela gentilmente, tocando os nódulos em que os nervos afloravam contra a pele. Podia ver as borboletas bordadas nos punhos de sua túnica; não as notara na ocasião. Vagamente, mas com uma realidade que o afligia - eram pensamentos revividos de anos atrás, ou a recordação de Callista no dia de hoje? -, percebeu que ela estava dócil, mas assustada com aquele homem austero que fora o amigo de juramento de seu irmão morto, mas que agora parecia impassível, velho, alienado, distante. Um estranho, não o parente com quem convivera.

    - Fui tão rude com ela, tão distante? Ficou com medo de mim, Callie? Pelos infernos de Zandru, por que somos tão duros com essas crianças?

    As mãos de Leonie tocaram-no, através das mãos de Callista. Como ela fora austera, como seu rosto se tornara severo e vincado em poucos anos! Mas o tempo continuou a recuar, Callista desapareceu, nunca estivera ali. Ele se postava diante de Leonie, um jovem monitor psíquico contemplando pela primeira vez o rosto de uma Guardiã de Arilinn. Por Evanda! Como ela fora linda! Todas as mulheres Hastur eram bonitas, mas ela possuía a lendária beleza, de Cassilda. Damon tornou a sentir a agonia do primeiro amor, o desespero de saber que não havia esperança, mas o tempo continuava a correr para trás, com uma rapidez implacável. Ele perdeu a noção de seu corpo, nunca existira, era apenas um sonho vago, numa escuridão ainda mais vaga, vendo os rostos de Guardiãs que jamais conhecera. (Aquela loura era com certeza uma Ridenow, de seu próprio clã.) Viu um monumento construído no pátio em homenagem a Marche Hastur e compreendeu, com um espasmo de terror, que assistia a um evento ocorrido mais de três séculos antes de seu nascimento. Continuou em frente, correnteza acima, sentiu que Leonie era arrebatada para longe, tentou fazer um esforço para ir ao seu encontro...

    - Não posso continuar, Damon. Que os Deuses o guardem, parente.

    Damon projetou-se para ela em pânico, mas Leonie já desaparecera, não nasceria por mais algumas centenas de anos. Ele se encontrava sozinho, atordoado, cansado, numa escuridão nebulosa, apenas com a sombra de Arilinn por trás. Para onde posso ir? É possível vagar para sempre pela Era do Caos, sem nada aprender.

    Neskaya. Ele sabia que Neskaya era o centro do segredo. Deixou Arilinn se dissolver, sentiu-se a avançar com o pensamento para a Torre de Neskaya, delineada contra as Colinas Kilghard. Era como vadear um córrego gelado das montanhas contra a correnteza, que tentava arrastá-lo o tempo todo. Na luta intensa, quase perdeu a noção de seu objetivo. Agora, desesperado, reconstituiu-o: encontrar uma Guardiã em Neskaya antes de sua destruição na Era do Caos e posterior reconstrução. Empenhou-se em voltar, cada vez, até que contemplou a Torre de Neskaya em ruínas, destruída ao final das grandes guerras daquela época, incendiada até virar cinzas, a Guardiã e todo o seu círculo massacrados.

    E lá estava outra vez, não a vigorosa estrutura de blocos de granito que ele vira se erguendo por trás das muralhas da cidade de Neskaya, mas uma torre alta, luminosa, construída com pedras de um azul pálido. Neskaya! Neskaya no tempo de sua glória, antes que o Comyn decaísse ao lamentável resquício de hoje. Damon sentiu que estremecia em algum lugar ao pensamento de que contemplava o que nenhum homem ou mulher de seu tempo jamais vira, a Torre de Neskaya no auge do Comyn.

    Uma luz cintilante começou a surgir no pátio, Damon avistou um jovem à sua claridade, e lembrou, aturdido e satisfeito, que já vira aquela cena antes. Resolveu interpretar como um sinal favorável. O jovem vestia-se em verde e dourado e tinha no dedo um anel grande e faiscante... anel ou matriz? O rosto delicado, o traje verde e dourado ao estilo antigo não indicavam que o jovem era um Ridenow? Isso mesmo, Damon já o vira antes, embora apenas por um instante. Sentiu que formulava um estranho e emocionado sentimento de alívio. Sabia que seu corpo naquele nível astral era apenas uma imagem, a sombra de uma sombra. Teve uma rápida percepção de seu corpo, frio, comatoso, com cãibras, um pedaço de carne atormentado, em algum lugar inimaginável. O corpo que usava ali, no nível mais elevado, era livre, sereno, confiante. Depois das eternidades de ausência de formas, até mesmo a sombra de uma forma constituía uma liberação da tensão, quase uma explosão de prazer. Um peso sólido, sangue que ele podia sentir pulsando nas veias, olhos que podiam ver... A imagem do jovem tremeu, tornou-se firme. Era mesmo um Ridenow, muito parecido com Kieran, o único irmão que Damon amava, em vez de apenas tolerar, como acontecia com os outros, pela urbanidade do sangue comum.

    Damon experimentou um ímpeto de amor pelo estranho, que devia ser um dos seus antepassados remotos. O jovem usava uma túnica dourada comprida e larga, com um cinto verde, e contemplou Damon com uma expressão serena e gentil, dizendo:

    - Pelo seu rosto e traje, é com certeza alguém de meu clã. Vagueia num sonho, parente, ou me procura de outra Torre?

    - Sou Damon Ridenow.

    Ele começou a explicar que não trabalhava numa Torre, mas ocorreu-lhe que o tempo não tinha qualquer significado naquele nível. Se todo o tempo coexistia - como devia ser -, então o período em que fora um técnico psíquico era tão real e presente quanto o momento em que estava em Armida.

    - Damon Ridenow, Terceiro na Torre de Arilinn, técnico por formação, sob a Guardiã Leonie de Arilinn, Dama Hastur.

    O jovem declarou com extrema gentileza:

    - Sem dúvida sonha, parente, ou está louco, ou extraviado no tempo. Conheço todos os Guardiões de Nevarsin a Hali, e não há nenhuma Leonie, muito menos uma mulher Hastur. - Ele sorriu. - Devo enviá-lo para seu lugar, primo, e para seu tempo? Estes níveis são perigosos, e um simples técnico não pode percorrê-los em segurança. Pode voltar quando tiver adquirido a força de um Guardião, primo... embora o fato de ter vindo aqui para se apresentar demonstre que já possui essa força. Mas posso enviá-lo para um nível em que fique seguro e lhe desejar tanta cautela quanto a sua coragem evidente.

    - Não estou louco, nem sonhando, muito menos extraviado no tempo, apesar de estar muito longe do meu tempo. Minha Guardiã me mandou até aqui, e talvez você seja a pessoa que procuro. Quem é você?

    - Sou Varzil - respondeu o jovem. - Varzil de Neskaya, Guardião da Torre.

    Guardião. Damon aprendera que houve uma época em que homens serviam como Guardiões. O jovem usara a palavra de uma forma que ele nunca ouvira antes, tenerézu. Quando Leonie lhe falara a respeito dos homens que haviam exercido a função, usara a forma comum da palavra, que era feminina. Partindo de Varzil, a palavra foi um choque. Varzil! O lendário Varzil, chamado o Bom, que recuperara Hali, depois do cataclismo que destruíra o lago ali.

    - No meu tempo você é lendário, Varzil de Neskaya, mais conhecido como Senhor de Hali.

    Varzil sorriu. Possuía um rosto calmo e inteligente, mas animado pela curiosidade, sem a qualidade retraída, remota e isolada de todas as Guardiãs que Damon conhecera.

    - Lendário, primo? Bom, imagino que os mitos de sua época são como os de meu tempo, e talvez seja melhor para mim não saber o que haverá pela frente, a fim de não me tornar arrogante. Não me diga nada, Damon. Contudo, já falou uma coisa. Se uma mulher serve como Guardiã em sua época, então meu trabalho foi bem-sucedido e silenciou os que se recusavam a acreditar que uma mulher pudesse ser bastante forte para se tornar Guardiã. Portanto, sei que meu empenho não é inútil e terá êxito. E já que me concedeu um presente, Damon, uma dádiva de confiança, o que posso lhe dar em troca? Pois tenho certeza de que não realizaria uma viagem tão longa se não houvesse alguma necessidade extrema.

    - A necessidade não é minha, mas de uma parenta - explicou Damon. - Ela foi treinada para ser Guardiã em Arilinn e mais tarde liberada de seus votos para casar.

    - Precisava ser liberada para isso? Mas ainda não me disse qual é a necessidade. Mesmo em meu tempo, parente, um Guardião já não é mais cirurgicamente mutilado... ou me acha um eunuco?

    Ele riu com uma jovialidade que, por algum motivo, fez Damon se lembrar de Ellemir.

    - Claro que não. O problema é que ela foi mantida numa posição intermediária entre uma Guardiã e uma mulher normal. Seus canais foram fixados para o padrão de Guardiã quando era muito jovem, antes de alcançar a maturidade, e não pode reajustar os canais para selecionar o uso normal.

    Varzil assumiu uma expressão pensativa.

    - Tem razão, isso pode acontecer. Quantos anos ela tinha ao ser treinada?

    - Entre treze e quatorze anos, se não me engano. Varzil acenou com a cabeça.

    - Foi o que pensei. A mente grava fundo no corpo, e os canais não podem se reajustar com a impressão de tantos anos como Guardiã em sua mente. Deve levar sua mente de volta ao tempo em que o corpo era livre, antes de os canais serem alterados e fixados, antes que tantos anos como Guardiã consolidassem a impressão nos canais nervosos. Depois que a mente se libertar, o corpo também se tornará livre. Quando conduzi-la através do sacramento seguinte... Mas espere um momento. Tem certeza de que os canais não foram cirurgicamente alterados, nem os nervos cortados?

    - Tenho. Pelo que sei, foi feito em treinamento padrão com a matriz...

    Varzil deu de ombros.

    - Desnecessário, mas não sério. Há sempre algumas mulheres que deixam seus canais trancados assim, mas a liberação sempre ocorre no festival do Final do Ano. Alguns de nossos primeiros Guardiões eram chieri, nem homens, nem mulheres. Eram emmasca, e se descobriram encerrados nesse padrão. Foi por isso que instituímos o antigo rito sacramentar do Final do Ano. Como você deve amá-la, primo, para viajar tão longe! Que ela possa gerar seus filhos, que serão um crédito tão grande para o clã quanto seu bravo pai!

    - Ela não é minha esposa, mas casada com meu irmão de juramento...

    Assim que acabou de falar, Damon ficou confuso, pois as palavras pareciam não ter o menor sentido para Varzil, que balançou a cabeça, descartando o assunto.

    - Você é o Guardião dela; portanto, é o responsável.

    - Não, ela e que é a Guardiã - protestou Damon, e percebeu uma irritação súbita e assustadora.

    Varzil fitou-o atentamente. O mundo superior tremeu, e por um momento Damon perdeu Varzil de vista; até mesmo o brilho intenso de seu anel diminuiu para um ponto azul tênue e distante. Seria uma matriz? Ele experimentou a sensação de que estava sufocando, se afogando na escuridão. Ouviu Varzil a distância, chamando seu nome, até que sentiu, aliviado, a mão de Varzil se fechar sobre a imagem de sua própria mão. Seu corpo tornou a entrar em foco, mas sentia-se fraco e nauseado. Só podia divisar Varzil vagamente, e além dele um círculo de rostos, um círculo reluzente de pedras, rostos do Comyn, que deviam ser seus ancestrais esquecidos. Varzil parecia muito preocupado.

    - Não deve permanecer mais tempo aqui, primo, pois este nível é a morte para os que não são treinados. Volte, se precisar, depois que adquirir uma força plena como Tenerézu. Não tema pela pessoa a quem ama. Cabe a você, como seu Guardião, conduzi-la ao antigo sacramento do Final do Ano, como se ela fosse meio chieri e emmasca. Receio que será preciso esperar pelo festival, se ela tem de continuar a trabalhar como Guardiã, mas depois disso tudo será acertado.  E nenhuma criança das Torres poderá esquecer o festival, nem em trezentos ou mil anos.

    Damon balançou, tonto, e Varzil amparou-o, acrescentando, com uma gentil preocupação:

    - Olhe para o meu anel. Eu o enviarei de volta a um nível seguro. Não tema, pois este anel não acarreta os perigos de uma matriz comum. Adeus, parente. Transmita meu amor e saudações à pessoa que você tanto preza.

    Sentindo a percepção cada vez mais tênue, Damon murmurou:

    - Eu não... não compreendo...

    Nada mais era claro agora, a não ser o anel de Varzil, reluzente, removendo a escuridão. Já vi isso antes, como um farol.

    A fala se desvanecera. Não era mais capaz de formular palavras. Mas Varzil se mantinha ao seu lado na escuridão. Irei agora, mas haverá um farol, para guiá-lo até aqui... este anel.

    Damon tornou a pensar, confuso: Eu o vi antes.

    Não tente encontrar definições para o tempo, primo. Compreenderá quando for Guardião.

    Os homens não se tornam Guardiões no meu tempo.

    Mas você é um Guardião, ou nunca teria conseguido chegar aqui sem a morte. Agora, não posso adiar mais seu retorno seguro, primo, irmão...

    O brilho do anel preencheu por completo a percepção de Damon. A visão se desvaneceu, a luz deixou-o, o corpo se tornou informe. Estava flutuando, fazendo um tremendo esforço para manter o equilíbrio sobre um abismo de nada. Tentou se segurar   em algum ponto de apoio, foi arrebatado, caiu. Todos esses níveis pelos quais subi com tanta dificuldade... devo cair assim de repente?

    Mas caía, e sabia que continuaria a cair e cair, por centenas de anos.

    Escuridão. Dor. Cansaço infinito. E, depois, a voz de Callista:

    - Acho que ele voltou. Andrew, levante sua cabeça, está bem? Elli, se você não parar de chorar, terá de se retirar... e falo sério!

    Damon sentiu a ardência acre na língua, e depois o rosto de Callista entrou em seu campo de visão. Ele sussurrou, sentindo que os dentes batiam:

    - Frio... estou com tanto frio...

    - Não, meu querido, não está - assegurou Callista gentilmente. - Nós o envolvemos com todos os nossos cobertores, e há tijolos quentes em seus pés. O frio é por dentro, pensa que não sei? Não, já chega de Jiri. Vamos lhe seivir uma sopa quente daqui a um minuto.

    Damon podia ver agora, e todos os detalhes de sua jornada, da conversa com Varzil, afloraram em sua mente. Encontrara-se de fato com um ancestral há tanto tempo morto que até seus ossos já tinham virado pó? Ou sonhara, dramatizara o conhecimento no fundo de seu inconsciente? Ou sua mente se projetara pelo tempo para ver o que estava escrito na própria estrutura do passado? O que era a realidade?

    Mas qual era o festival a que Varzil se referira? Ele dissera que nem em trezentos ou mil anos o Comyn esqueceria o festival e o sacramento, mas Varzil não levara em consideração a Era do Caos, a destruição da Torre de Neskaya.

    Apesar disso, a resposta estava ali. Podia ser obscura, mas ele já podia perceber para onde levava. A mente escreve fundo no corpo. De alguma forma, portanto, devia levar a mente de Callista a um tempo em que seu corpo se encontrava livre das cruéis restrições de seus anos como Guardiã. Cabe a você, como seu Guardião, conduzi-la, ao antigo sacramento do Final do Ano, como se ela fosse meio chieri e emmasca.

    Qualquer que fosse o festival perdido, podia ser reconstituído de alguma forma... um ritual para libertar a mente de suas restrições? E se tudo mais falhasse... o que fora mesmo que Varzil dissera? Volte quando adquirir a plena força como Guardião.

    Damon estremeceu. Teria de prosseguir com aquele trabalho assustador, fora da segurança de uma Torre, tornar-se Guardião de fato, não apenas pelo potencial que Leonie vira nele? Mas assumira um compromisso, e para Callista talvez não houvesse outra saída.

    Mas podia não ser tão terrível assim, pensou Damon, esperançoso. Devia haver registros do festival do Final do Ano nas outras Torres, ou talvez em Hali, no rziufead, o lugar sagrado do Comyn.

    Ellemir olhou por cima do ombro de Callista, os olhos vermelhos de tanto chorar. Damon sentou, aconchegando-se nos cobertores.

    - Eu a assustei, meu amor querido? Ela balbuciou:

    - Ficou tão frio, tão rígido, parecia que nem mais respirava. E depois começou a ofegar, a gemer... pensei que estivesse morrendo... Oh, Damon! - Ellemir estendeu as mãos para ele. - Nunca mais faça isso! Prometa!

    Quarenta dias atrás ele teria prometido, com o maior prazer.

    - Minha querida, este é o trabalho para o qual fui treinado, e devo ser livre para realizá-lo conforme a necessidade.

    Varzil o saudara como um Guardião. Seria esse o seu destino? Mas não de volta a uma Torre. Haviam desenvolvido a arte de deformar a vida das pessoas que ali trabalhavam. No empenho para libertar Callista, acabaria libertando também todos os filhos e filhas? Callista ergueu a cabeça ao ouvir um som.

    - Deve ser a comida que pedi. Vá buscar, Andrew. Não queremos mais ninguém aqui.

    Quando ele voltou, Callista despejou a sopa quente numa caneca.

    - Beba tão depressa quanto puder, Damon. Está fraco como um passarinho recém-chocado.

    Ele fez uma careta.

    - Na próxima vez, acho que ficarei dentro do ovo.

    Começou a beber, em goles hesitantes, indeciso a princípio, sem saber se podia engolir. As mãos não seguravam direito a caneca, e Andrew teve de ajudá-lo.

    - Por quanto tempo me ausentei?

    - Durante o dia inteiro, e a maior parte da noite - respondeu Callista. - E é claro que também não pude me mexer durante todo esse tempo, por isso estou rígida como as tábuas pregadas num caixão.

    Exausta, ela esticou os braços e as pernas com cãibras. Andrew, deixando a Ellemir o cuidado de firmar a caneca de Damon, foi se ajoelhar à sua frente, tirou as chinelas de veludo e massageou seus pés com as mãos fortes.

    - Como estão frios! - exclamou ele, consternado.

    - A única vantagem dos níveis superiores sobre o inverno em Nevarsin é que a gente não fica com ulcerações do frio - comentou Callista.

    Damon sorriu, irônico.

    - Também não ocorrem ulcerações de frio nos infernos, mas nunca ouvi ninguém dizer que isso era um bom motivo para se ir até lá.

    Andrew parecia perplexo, e Damon perguntou:

    - Será que vocês têm um inferno quente, como os habitantes das Cidades Secas?

    Andrew acenou com a cabeça. Damon terminou de tomar a sopa e estendeu a caneca para que fosse enchida de novo, enquanto explicava:

    - Zandru reina sobre os nove infernos, cada um mais frio do que o anterior. Quando estive em Nevarsin, costumavam dizer que o dormitório dos  estudantes  era  mantido  na temperatura do quarto inferno, como um meio de mostrar o que poderia nos estar reservado se violássemos regras demais. - Ele olhou para a escuridão além da janela. - Está nevando?

    - Alguma vez acontece outra coisa por aqui durante a noite? - indagou Andrew.

    Damon ajeitou os dedos em torno da caneca.

    - Claro. As vezes, no verão, temos oito ou dez noites sem neve.

    - E suponho que as pessoas começam a desmaiar de insolação e morrem pela exaustão do calor - disse Andrew, com o rosto impassível.

    - Não, nunca ouvi falar disso... - murmurou Callista.

    Mas depois, percebendo o brilho nos olhos de Andrew, ela desatou a rir. Damon observava-os, esgotado, mas em paz. Mexeu os dedos dos pés.

    - Eu não ficaria surpreso se encontrasse ulcerações do frio, no final das contas. Num determinado nível, tive de subir pelo gelo... ou pelo menos foi o que pensei.

    Ele estremeceu ao recordar.

    - Tire as chinelas dele, Ellemir, e verifique.

    - Ora, Callie, eu estava apenas gracejando.

    - Mas eu não estou. Hilary se descobriu uma vez num nível em que parecia haver fogo, e voltou com queimaduras e bolhas nas solas dos pés. Passou dias sem poder andar. Leonie costumava dizer que a mente escreve fundo no corpo. O que é isso, Damon?

    Ela inclinou para os seus pés descalços, sorriu e acrescentou:

    - Parece não haver qualquer lesão física, mas tenho certeza de que você se sente meio congelado. Quando terminar a sopa, talvez seja melhor imergir num banho quente. Assim, não terá qualquer problema de circulação.

    Callista percebeu o olhar inquisitivo de Andrew e continuou:

    - Para dizer a verdade, não sei se é o frio dos níveis refletido no corpo, algo na mente, se o kirian facilita a projeção da mente para o corpo, ou se o kirian reduz a circulação e torna mais fácil visualizar o frio. O que quer que seja, porém, a experiência no mundo superior é fria, mais do que isso, gelada. Sem querer analisar de onde vem o frio, o fato é que já o experimentei muitas vezes para saber que sopa quente, tijolos quentes, um banho quente e muitos cobertores devem estar sempre disponíveis para quem volta de uma jornada assim.

    Damon relutava em ficar sozinho, mesmo no banho. Sentiu-se bem enquanto permaneceu deitado, mas quando tentou sentar, andar, teve a sensação de que o corpo se tornara insubstancial, os pés não encostavam no chão, e caminhava sem corpo e desmanchando pelo espaço vazio.

    Ouviu, envergonhado, seu gemido de protesto. Sentiu o braço forte de Andrew a ampará-lo, tornando-o sólido, real outra vez para si mesmo, e murmurou:

    - Desculpe. Continuo a experimentar a sensação de que estou desaparecendo.

    - Não vou deixá-lo cair.

    Ao final, Andrew teve de quase carregá-lo para o banheiro. A água quente devolveu a Damon a consciência de seu eu físico. Andrew, alertado para essa reação por Callista, ficou aliviado quando Damon voltou a parecer como era antes. Sentou num banco ao lado da banheira, dizendo:

    - Ficarei aqui, caso precise de mim.

    Damon sentiu que transbordava com um afeto intenso, uma profunda gratidão. Como todos eram bons com ele, gentis, afetuosos, como se preocupavam com seu bem-estar! E como ele amava a todos! Permaneceu no banho, flutuando, eufórico, uma exultação tão grande quanto o desespero anterior, até que a água começou a esfriar. Andrew, ignorando seu pedido de chamar o valete, levantou seu corpo da banheira, enxugou-o, envolveu-o com um roupão. Quando voltaram ao encontro das mulheres, Damon continuava em plena euforia. Callista mandara trazer mais comida, e ele comeu devagar, apreciando cada mordida, sentindo que os alimentos nunca haviam parecido tão saborosos.

    No fundo da mente, sabia que aquela exultação era apenas parte da reação, e mais cedo ou mais tarde seria substituída por uma enorme depressão; mas agarrava-se à sensação enquanto durava, desfrutando-a, tentando saborear cada momento. Depois de comer tanto quanto podia (Callista também comeu como um carroceiro, depois da exaustão da longa sessão de monitoração), Damon suplicou:

    - Não quero ficar sozinho. Não podemos todos passar o resto da noite juntos, como fizemos no Solstício do Inverno?

    Callista hesitou, lançou um olhar para Andrew.

    - Claro. Nenhum de nós o deixará, enquanto precisar de nossa presença.

    Sabendo que a proximidade de criados não-telepáticos seria dolorosa demais para Damon e Callista, no estado em que se encontravam, Andrew removeu da suíte o que sobrara do jantar. Ao voltar, todos já estavam na cama, Callista adormecida junto da parede, Damon com Ellemir em seus braços, os olhos fechados. Ellemir virou o rosto, sonolenta, abriu espaço para Andrew ao seu lado. Sem hesitar, ele deitou também. Parecia certo, natural, uma reação indispensável à necessidade de Damon.

    Damon, com Ellemir aninhada entre seus braços, sentiu Andrew cair no sono, e depois sua própria esposa, mas permaneceu acordado, relutando em deixá-los, mesmo no sono. Não havia o menor desejo - sabia que, nas circunstâncias atuais, não teria desejo por vários dias -, mas sentia-se contente por ter Ellemir em seus braços, os cabelos em seu rosto, a certificá-lo de que: também era real. Podia ouvir e sentir Andrew, um pouco além, um baluarte de força contra o medo. Estou aqui com as pessoas que amo. Não estou sozinho. E me sinto seguro.

    Gentilmente, sem desejo, ele acariciou Ellemir, os dedos roçando os cabelos, a nuca quente, os seios macios. Sua percepção se achava tão sintonizada que pôde sentir, através do sono de Ellemir, a consciência que ela tinha do contato, o excitamento. Como fora ensinado há muito tempo, quando era monitor, deixou que sua percepção penetrasse pelo corpo da esposa, sentindo as mudanças nos seios, no fundo do útero, sem surpresa. Tomara o maior cuidado desde que ela perdera a criança, e por isso devia ser obra de Andrew. Ainda bem, pensou Damon. Ele e Ellemir eram parentes próximos demais. Beijou a nuca de Ellemir com tanto amor que sentiu que podia até explodir. Por instinto, resguardara-a do perigo de uma criança de muitas gerações de endogamia, e agora ela poderia ter a criança que tanto ansiava, sem medo. Sabia, com uma profunda certeza interior, que aquela criança não seria perdida cedo demais, e regozijou-se por Ellemir, por todos eles. Inclinou-se por cima de Ellemir para tocar na mão de Andrew, no escuro. O terráqueo não despertou, mas apertou a mão de Damon, no sono. Meu amigo. Meu irmão. Já sabe de nossa sorte? .Apertando Ellemir entre seus braços, ele compreendeu, estremecendo, que poderia ter morrido nos níveis mais altos do mundo superior, que poderia nunca mais tornar a ver aqueles que tanto amava, mas nem mesmo esse pensamento o perturbava agora.

    Andrew teria cuidado de todos, pelo resto de suas vidas. Mas era maravilhoso estar ainda com eles, partilhar de tanto afeto, pensar nas crianças que nasceriam ali, da vida que se estendia à frente, cheia de promessas de felicidade. Nunca mais estaria sozinho. Ao adormecer, Damon ainda pensou: Nunca fui tão feliz em Toda a minha vida.

    Quando ele acordou, horas depois, as últimas gotas de afeto e euforia já haviam sido espremidas de seu ânimo. Não podia sentir o próprio corpo, e comprimiu-se contra Ellemir, num espasmo de pânico. O contato despertou-a no mesmo instante. Ela reagiu à sua necessidade, envolvendo-o, quente, sensual, viva, contra o seu frio letal. Damon sabia, racionalmente, que não havia agora nada de sexual em sua ânsia, mas ainda assim a apertou, numa tentativa desesperada de acender alguma chama em seu corpo, alguma sombra, alguma indicação de todo o seu amor. Era uma agonia de necessidade, e Ellemir compreendeu, aflita, que nada tinha de sexual. Enlaçou-o e acalmou-o, fez o que podia. Mas Damon, no estado de esgotamento em que se encontrava, não tinha condições de manter os lampejos de excitamento que surgiam e desapareciam no instante seguinte. Ela sentiu um medo terrível de que Damon se exaurisse ainda mais em sua tentativa angustiada, mas não conseguiu pensar em nada para dizer que não o magoasse ainda mais. Queria dizer a ele que não se importava, que podia compreender, mas importava para Damon, ela sabia disso, e não havia como mudar essa situação. Limitou-se a beijá-lo, aceitando seu fracasso e desespero, e deixou escapar um longo suspiro.

    Mas Damon sentiu agora que os outros também haviam despertado. Projetou-se com extrema gentileza, formando um vínculo a quatro que o tranqüilizou mais do que a desesperada tentativa de sexo. Intenso, mais íntimo que o contato de corpos, além das palavras, além do sexo, sentiram que se fundiam em um só. Andrew, captando a necessidade de Damon, virou-se para Ellemir, que foi ansiosa para os seus braços. O excitamento a quatro aumentou, expandiu-se em ondulações trêmulas por todos, engolfando até mesmo Callista, unindo-os numa só entidade, se tocando, envolvendo, arremetendo, reagindo. De quem era os lábios que se encontravam e se esmagavam, as coxas que se entrelaçavam, os braços que apertavam em êxtase? Tudo transbordava, espalhava-se como uma onda, um fluxo de fogo, uma explosão escaldante de prazer e realização. A medida que o excitamento se desvaneceu - ou melhor, estabilizou-se, num nível menos intenso -, Ellemir saiu dos braços de Andrew, olhou para Callista, abraçou-a e abriu a mente para a irmã, generosa. Callista agarrou-se ao contato mental na maior ansiedade, tentando absorver alguma coisa daquela intimidade, da união que só podia partilhar assim, de forma indireta. Por um momento, até perdeu a noção total de seu corpo passivo, de tão concentrada na corrente ininterrupta de emoções.

    Andrew, sentindo quando a mente de Callista se abrira plenamente, a tal ponto que de certa forma fora ela quem estivera em seus braços, experimentou uma exultação inebriante. Era como se transbordasse, preenchesse todo o espaço no quarto, envolvesse todos em seus braços, e Damon e Callista captaram seu pensamento impulsivo: Eu gostaria de estar em toda parte ao mesmo tempo! Queria, fazer amor com todos vocês ao mesmo tempo! Damon chegou mais perto de Andrew e abraçou-o, num desejo confuso de partilhar aquele intenso prazer, aquela intimidade, participando de fato do lento ressurgir do excitamento, das carícias gentis...

    E, de repente, choque, consternação - Mas o que está acontecendo aqui? - quando Andrew percebeu de quem eram as mãos que o acariciavam. A frágil teia de contato se espatifou como vidro quebrado, rompeu-se com um violento choque físico. Callista soltou um grito curto e trêmulo, como um soluço, e Ellemir quase gritou em voz alta: Oh, Andrew, como pôde...!

    Andrew ficou imóvel, rígido, forçando-se a não se separar fisicamente de Damon. Ele é meu amigo, isso não é importante. Mas o momento passara. Damon afastou-se, comprimiu o rosto contra o travesseiro, a voz saiu rouca quando disse:

    - Pelos infernos de Zandru, Andrew, por quanto tempo mais você e eu teremos medo um do outro?

    Andrew, piscando, aflorou devagar da confusão. Só compreendia vagamente o que acontecera. Virou-se, pôs a mão no ombro trêmulo de Damon e murmurou, contrafeito:

    - Desculpe, irmão. Você me surpreendeu, isso foi tudo.

    Damon já recuperara o controle, mas fora apanhado no momento de vulnerabilidade mais profunda, numa abertura plena a todos, e a rejeição causara uma dor intensa. Mesmo assim, era um Ridenow, e um telepático, e lamentava o arrependimento e a culpa de Andrew.

    - Outro de seus tabus culturais?

    Andrew balançou a cabeça, abalado. Nunca lhe ocorrera que pudesse fazer alguma coisa para deixar Damon tão magoado.

    - Eu sou... Desculpe, Damon. Foi apenas... uma espécie de reflexo, mais nada.

    Constrangido, ainda assustado com a imensidade do que fizera a Damon, ele inclinou-se e abraçou-o. Damon riu, retribuiu ao abraço, sentou na cama. Sentia-se exausto, todo dolorido, mas a desorientação desaparecera.

    Tratamento de choque, refletiu ele. Os tranqüilizantes eram eficazes na histeria. Assim como um bom tapa. Ao se levantar para tomar um banho e se vestir, ele sentia-se outra vez sólido, real para si mesmo. E concluiu que, no final das contas, não fora tão ruim assim. Desta vez, ao receber o choque contra um de seus tabus arraigados, Andrew não fugira, não tentara se esquivar. Sabia que magoara Damon, e aceitava esse fato.

    Os dois pararam por um momento na sala da suíte, enquanto as mulheres se arrumavam. Andrew olhou para Damon, embaraçado, especulando se o amigo ainda sentia raiva.

    - Não, Andrew, não estou com raiva - respondeu Damon, em voz alta. - Deveria esperar por sua reação. Sempre teve medo da sexualidade masculina, não é mesmo? Senti isso naquela primeira noite, quando você e Callista entraram em contato com Ellemir e comigo. Mas havia tantas outras coisas daquela noite com que me preocupar que esqueci por completo essa parte. Mas quando nos tocamos por acaso, durante o vínculo, você entrou em pânico. - Ele sentiu outra vez a reação hesitante de Andrew, o recuo perturbado. - É culturalmente necessário considerar toda a sexualidade masculina, exceto a sua, como uma ameaça?

    - Não é uma questão de medo, mas sim de repulsa, quando é dirigida para mim - respondeu Andrew, com um ímpeto de raiva.

    Damon deu de ombros.

    - Os humanos não são como os animais que vivem em manadas e consideram todos os outros machos como um rival ou ameaça. É impossível para você experimentar prazer na sexualidade masculina?

    A repulsa de Andrew era evidente.

    - Claro. E para você?

    - Certamente que não - murmurou Damon, aturdido. - Aprecio... a percepção de sua masculinidade, assim como também aprecio a feminilidade das mulheres. E tão difícil assim de compreender? Faz com que eu me torne mais consciente... da minha própria virilidade...

    Ele fez uma pausa, soltando uma risada apreensiva.

    - Como podemos sair dessa confusão? Nem a telepatia adianta, pois não há imagens mentais para acompanhar as palavras. - Outra pausa, e Damon acrescentou, em tom mais gentil: - Não sou um amante de homens, Andrew, mas acho difícil entender esse... medo.

    Sem olhar para ele, Andrew disse:

    - Acho que não tem tanta importância. Não aqui.

    Damon sentiu-se consternado por saber que algo tão simples para ele causa as dúvidas mais profundas e um medo concreto no amigo.

    - Tem razão, Andrew, não é tão importante. Mas deve se lembrar de que somos casados com irmãs gêmeas. Provavelmente passaremos juntos uma grande parte de nossas vidas. Terei sempre que temer que um momento de... de afeição possa aliená-lo, transtorná-lo ao ponto em que todos nós, até as mulheres, ficaremos magoados.- Vai sempre temer que eu... ultrapasse algum limite invisível, tente forçá-lo... a alguma coisa que causa tanta repugnância em você- Por quanto tempo... por quanto tempo ficará em guarda contra mim?

    Andrew sentia um profundo desconforto. Desejava estar a mil quilômetros dali, sem estar exposto à intensidade e à proximidade de Damon. Jamais compreendera o que significava ser um telepata e parte de um grupo assim, onde não havia como se esconder. Havia problemas cada vez que tentavam se esconder uns dos outros. Tinham de enfrentar as coisas. Abruptamente, ele ergueu a cabeça, fitou Damon nos olhos e disse em voz baixa:

    - Você é meu amigo. Qualquer coisa que quiser... sempre estará certa para mim.   Tentarei não... não ficar muito transtornado. Eu... - Nem mesmo as mãos se tocavam, mas parecia que ele e Damon estavam bem juntos, abraçados, como irmãos. - Desculpe ter magoado seus sentimentos. Não quero magoá-lo por nada neste mundo, Damon, e se ainda não sabe disso, precisa saber.

    Bastante comovido, Damon compreendeu que Andrew precisaria de muita coragem para dizer aquelas palavras. Afinal, era um forasteiro... e já percorrera uma longa distância. Sabendo que Andrew já avançara por mais da metade do caminho para curar a ferida que abrira, ele tocou de leve no pulso do terráqueo, no contato usado pelos telepatas para intensificar ainda mais a intimidade.

    - E eu tentarei me lembrar de que isso ainda é estranho para você. Parece tanto com um de nós agora que sempre me esqueço de dar os descontos necessários. Mas já chega de falar a respeito. Há muito trabalho a ser feito. Preciso vasculhar os arquivos de Armida, a fim de descobrir se há registros do antigo festival do Final do Ano, antes da Era do Caos e da destruição de Neskaya. Se nada encontrar, terei de procurar nos arquivos das outras Torres, e uma parte desse trabalho terá de ser efetuada por transmissões telepáticas. Não posso viajar para Arilinn, Neskaya e Dalereuth, mas agora estou convencido de que algum dia encontraremos a solução.

    Ele começou a relatar tudo a Andrew. Ainda se sentia cansado e deprimido, a fadiga residual da longa jornada pelo mundo superior o envolvia na reação inevitável. Disse a si mesmo que não podia culpar Andrew por seu estado mental. Tudo se tornaria mais fácil quando todos voltassem ao normal.

    Mas, pelo menos, pensou Damon, havia agora uma esperança de que isso viesse a acontecer.

   

    A busca nos arquivos de Armida foi improdutiva. Havia registros de todos os tipos de festivais, que em uma ou outra ocasião foram celebrados nas Colinas Kilghard, mas o único festival do Final do Ano que Damon conseguiu encontrar foi um antigo ritual de fertilidade, que acabara muito antes da destruição da Torre de Neskaya, e parecia não ter qualquer relação com o problema de Callista. Agora que a busca começara, no entanto, ela se mostrava paciente, e sua saúde melhorava cada vez mais.

    A menstruação retornara duas vezes. Damon insistira em que ela ficasse de cama, por precaução, em cada ocasião, e se preparara para desobstruir seus canais, em caso de necessidade, mas os canais permaneceram abertos. Era um bom sinal para a saúde física, mas um péssimo sinal para o eventual desenvolvimento da seletividade normal dos canais.

    O trabalho de inverno continuou como sempre em Armida. Era um inverno brando, e o degelo da primavera se aproximava. Como sempre acontecia no inverno, Armida estava isolada, com poucas notícias do que ocorria no mundo exterior. Assim, qualquer informação assumia a maior importância. Uma égua num dos pastos inferiores pariu duas potrancas. Dom Esteban deu-as a Callista e Ellemir, comentando que poderiam ter éguas de sela iguais, dentro de poucos anos, se assim desejassem. O velho mestre Yashri, que tocara para o baile no Solstício do Inverno, quebrou dois dedos da mão numa queda, quando se embriagara numa festa de aniversário na aldeia. Seu neto de nove anos passou a ir orgulhoso para Armida, carregando a harpa do avô - quase tão alta quanto ele -, e tocava para as pessoas dançarem, durante as longas noites. Uma mulher de uma aldeia quase no limite da propriedade deu à luz quatro crianças num único parto, e Callista foi com Ferrika até lá, levando presentes e votos de felicidade. Uma tempestade inesperada obrigou-a a passar duas noites fora de casa, para temor e preocupação de Andrew. Quando ela voltou, Andrew perguntou por que tivera de viajar até a aldeia.

    - Era necessário para a segurança dos bebês, meu marido. Os aldeões consideram que um nascimento assim é presságio de sorte ou azar, e não se sabe o que poderiam fazer. Ferrika pode lhes dizer que isso é um absurdo, mas também é camponesa, e não a escutariam, embora seja treinada em Arilinn, uma Amazona Livre, e provavelmente muito mais inteligente do que eu. Mas eu sou Comyn, e uma leronis ainda por cima. Quando levo presentes para as crianças, e conforto para a mãe, as pessoas sabem que as coloquei sob a minha proteção, e pelo menos não as tratarão como presságio de alguma catástrofe iminente.

    - Como eram as crianças? - indagou Ellemir, na maior ansiedade. Callista fez uma careta.

    - Todos os bebês recém-nascidos me parecem coelhos-de-chifres sem pêlo, Ellie, feios demais.

    - Oh, Callie, como pode dizer uma coisa dessas? - protestou Ellemir. - Bom, terei de ir até lá para vê-los pessoalmente. Quatro de uma vez só... que maravilha!

    - Seja como for, a situação é muito difícil para a pobre mãe. Consegui persuadir duas outras mulheres da aldeia a ajudar na amamentação, mas teremos de enviar uma vaca leiteira antes que as crianças sejam desmamadas.

    A notícia do nascimento dos quádruplos espalhou-se pelas colinas. Ferrika comentou que sentia-se contente por ainda ser inverno e as estradas não estarem boas - embora fosse um inverno brando -, ou a pobre mulher seria atormentada pelos curiosos querendo ver aquela maravilha. Andrew descobriu-se a especular como seria um inverno rigoroso, se aquele era brando. E concluiu que ainda iria descobrir.

    Ele perdeu a noção da passagem do tempo, exceto pelos registros meticulosos dos nascimentos de crias previstos. Mantinha longas discussões com Dom Esteban e o velho Rhodri sobre o aproveitamento das melhores éguas na reprodução. Os dias já se alongavam de maneira perceptível quando sua atenção foi atraída de forma inexorável para a passagem do tempo.

    Voltara de um longo dia na sela, e subia a fim de se aprontar para o jantar. Callista estava no Grande Salão, ensinando o pai a tocar sua harpa. Ellemir recebeu-o na porta das duas suítes e levou-o para seus aposentos.

    O que nada tinha de incomum. Damon andava absorvido na pesquisa, e de vez em quando efetuava longas viagens ao mundo superior. Seus esforços haviam sido infrutíferos até agora, mas acarretava a conseqüência normal do trabalho com a matriz, e Ellemir acolhia Andrew em sua cama com a maior naturalidade, nessas ocasiões e em outras. A princípio, ele aceitara isso pelo que sempre fora, um substituto para a incapacidade de Callista. Até que uma noite, quando dormia ao seu lado - ela rejeitara a intimidade, alegando que se sentia muito cansada -, compreendera que não era apenas por isso que desejava Ellemir.

    Amava-a. Não como uma substituta para Callista, mas por si mesma. E ficara bastante perturbado, pois sempre pensara que se apaixonar por uma mulher implicava a exclusão do amor por todas as outras. Ocultara o pensamento com o maior cuidado, sabendo que a deixaria perturbada, e só quando se encontrava nas colinas, longe de todos, é que deixara a mente explorar a perspectiva: Que Deus me ajude, mas será que casei com a mulher errada? E, no entanto, ao rever Callista, compreendera que não a amava menos, que a amaria para sempre, mesmo que nunca mais pudesse tocá-la, nem com as pontas dos dedos. Amava as duas. O que podia fazer? Agora, ao contemplar Ellemir, pequena, sorridente e corada, não pôde deixar de tomá-la nos braços e beijá-la com ardor. Ela torceu o nariz.

    - Você cheira a cavalo.

    - Desculpe. Eu ia tomar um banho...

    - Não precisa se desculpar. Gosto do cheiro de cavalos, e durante o inverno não posso sair para montar. O que andou fazendo?

    Depois que Andrew apresentou seu relato, ela comentou:

    - Creio que o coridom poderia cuidar de tudo isso.

    - Tem razão, mas se eles se acostumarem a me ver cuidar dos problemas, passarão a me procurar, em vez de incomodarem Dom Esteban. E ele parece cada vez mais cansado e consumido. Acho que o inverno está pesando nele.

    - Em mim também, mas agora tenho algo para fazer com que a espera valha a pena. Andrew, eu queria que você fosse o primeiro a saber: estou grávida! Deve ter acontecido pouco antes do Solstício do Inverno...

    - Deus Todo-Poderoso! - exclamou ele, chocado. - Oh, Ellemir, minha querida, sinto muito! Eu deveria...

    Foi como se ela tivesse recebido um tapa na cara. Afastou-se de Andrew, os olhos faiscando de raiva.

    - Eu queria lhe agradecer por isso, e agora descubro que você lamenta a maior de todas as dádivas. Como pode ser tão cruel?

    - Espere, espere... - Ele sentia-se confuso. - Elli, meu pequeno amor...

    - Como ousa me chamar assim... depois de me dar um tapa na cara?

    Ele estendeu a mão.

    - Por favor, Ellemir, não estou entendendo. Pensei... Está tentando me dizer que se sente satisfeita por estar grávida?

    Foi a vez de Ellemir se mostrar confusa.

    - E como eu poderia não ficar satisfeita? Que tipo de mulheres você conheceu? Senti a maior felicidade quando Ferrika me disse esta manhã que agora era certo, não apenas meu desejo me confundindo. - Ela parecia prestes a chorar. - Eu queria partilhar minha felicidade, e você me trata como uma prostituta, como se não tivesse condições de gerar um filho seu!

    Ellemir desatou a chorar. Andrew abraçou-a. Ela empurrou-o, mas acabou encostando a cabeça em seu ombro, as lágrimas escorrendo.

    - Ai, Ellemir, Ellemir, será que algum dia serei capaz de compreender vocês? Se você está feliz com isso, então é claro que também me sinto feliz!

    Andrew percebeu que falava sério, que era isso mesmo o que sentia. Ela fungou, levantou o rosto, como um dia de primavera, radiante.

    - Jura, Andrew? Está realmente contente?

    - Claro, querida, se você está.

    Quaisquer que sejam as complicações que isso possa acarretar, pensou ele. A criança devia ser sua, ou ela teria contado primeiro a Damon. Ellemir captou sua confusão.

    - Mas como acha que Damon poderia se sentir? Ele partilha a minha felicidade, é claro, está muito contente! - Ela inclinou a cabeça para trás e fitou-o nos olhos. - Isso também seria errado para seu povo? Pois então estou contente por não conhecer nenhum deles!

    Choques repetidos desse tipo haviam deixado Andrew quase entorpecido para tais coisas.

    - Damon é meu amigo, meu melhor amigo. Entre meu povo, isso seria considerado uma traição. A esposa do meu melhor amigo seria uma mulher proibida para mim.

    Ellemir sacudiu a cabeça.

    - Acho que não gosto nada do seu povo. Pensa que eu partilharia minha cama com algum homem que meu marido não conhecesse e amasse? Ou que teria uma criança para meu marido criar de um estranho ou inimigo? - Depois de um momento, ela acrescentou: - Claro que eu gostaria de gerar primeiro uma criança de Damon, mas sabe o que aconteceu... e poderia acontecer de novo. Somos parentes muito próximos, e por isso decidimos não ter filhos comuns. Além do mais, ele não precisa de um herdeiro com o sangue Ridenow, e é bem provável que uma criança que você nos dê seja mais saudável e mais forte do que qualquer uma que Damon pudesse me dar.

    - Estou entendendo...

    Andrew não podia deixar de admitir que havia algum sentido naquela argumentação, mas fez uma pausa para analisar seus próprios sentimentos. Uma criança sua, com uma mulher que amava. Mas não sua amada esposa. Uma criança que chamaria outro homem de pai, que não poderia reivindicar. E como Callista reagiria? Seria como mais uma marca de sua distância, de sua exclusão? Ela se sentiria traída?

    - Tenho certeza de que ela também ficará contente, Andrew. Eu não acrescentaria mais um pesar ao fardo que minha irmã já tem de suportar.

    Ele ainda estava indeciso.

    - Ela já sabe?

    - Não, embora deva desconfiar. - Ellemir hesitou. - Sempre esqueço que você não é um dos nossos. Direi a ela, se você prefere assim, embora, se fosse um dos nossos, tomaria a iniciativa de dar a notícia.

    A complexa etiqueta daquelas coisas situava-se além da compreensão de Andrew, mas de repente ele teve vontade de fazer o que era certo no mundo que adotara.

    - Pode deixar que falarei com Callista.

    Mas escolheria o momento mais oportuno, quando Callista não pudesse duvidar de seu amor.

    Ele foi para o seu quarto, na maior confusão. Enquanto se aprontava para a refeição, seus pensamentos enveredaram por um estranho contraponto para as atividades corriqueiras de tomar banho, aparar a barba, que deixava crescer em desafio ao costume, e se vestir.

    Uma criança sua. Aqui, num mundo estranho, e nem mesmo com sua própria esposa. Mas Ellemir não achava estranho, e era evidente que Damon sabia havia algum tempo e aprovava. Um mundo estranho, ao qual ele agora pertencia.

    Antes de terminar de se arrumar, ouviu cavaleiros entrando no pátio. Ao descer, encontrou o irmão de Damon, Kieran, retornando de uma visita de inverno a Thendara, acompanhado pelo filho mais velho, um garoto de cabelos vermelhos e olhos brilhantes, em torno dos quatorze anos, e meia dúzia de guardas e outros servidores. Andrew não gostara do irmão mais velho de Damon, Lorenz, mas descobriu que Kieran era muito simpático, e estava ansioso em ter notícias do mundo exterior, da mesma forma que Dom Esteban.

    - Conte-me como Domenic está se saindo - pediu o velho. Kieran sorriu.

    - Conversei muito com ele. E Ester... - Kieran indicou o filho. - ...deve ingressar no corpo de cadetes neste verão. Por isso, achei que era melhor recusar o convite de Domenic para substituir Danvan como mestre dos cadetes. - Ele tornou a sorrir, para suavizar suas palavras, e acrescentou: - Não desejo ser tão exigente com o meu filho quanto teve de ser com o seu, Lorde Alton.

    - Mas ele está bem? Tem-se mostrado competente no comando da Guarda?

    - Até onde eu sei, creio que mesmo você teria dificuldades para fazer um trabalho melhor. Domenic tem pedido muitos conselhos a Kyril Ardais e Danvan, até mesmo a Lorenz, embora eu não creia... - Kieran lançou um sorriso rápido para Damon, uma piada partilhada. - ...que ele tenha mais consideração do que nós por meu irmão mais velho. Ainda assim, ele é cauteloso, diplomático, tem feito os amigos certos e não tem favoritos. Seus dois bredin são jovens bem-comportados, tanto Cathal Lindir quanto um de seus irmãos nedestro... o nome dele não é Dezirado?

    - Desiderio - informou Dom Esteban, com um sorriso aliviado. - Fico contente em saber que Dezi está seguro e bem.

    - Os três andam sempre juntos, mas sem brigas, sem farras, sem bebedeiras. São tão sóbrios quanto monges. Tudo indica que Domenic compreendeu, como um homem três vezes mais velho, que alguém tão jovem no comando seria vigiado dia e noite. Não que sejam moralistas de cara triste... o jovem Nic sempre tem uma risada e um gracejo... mas está segurando a responsabilidade com as duas mãos.

    Andrew, recordando o rapaz alegre que estivera a seu lado no casamento, sentiu-se contente pelo desempenho eficaz de Domenic. Quanto a Dezi, talvez um trabalho responsável e árduo e o fato de saber que Domenic reconhecia sua posição familiar como o velho nunca o faria pudessem finalmente ajudar o rapaz a se encontrar. Ele torcia para que isso acontecesse. Sabia o que era sentir que não se pertencia a lugar algum.

    - Há outras notícias, cunhado? - indagou Ellemir, ansiosa. Kieran sorriu.

    - Eu deveria ter prestado mais atenção às conversas das mulheres em Thendara, irmã. Deixe-me pensar... Houve um tumulto na rua da Casa da Guilda das Amazonas, e segundo dizem, um homem alegou que sua esposa fora Evanda para lá contra a vontade...

    - Isso não é verdade - interveio Ferrika, irritada. - Perdoe-me, Dom Kieran, mas uma mulher tem de pedir autorização para entrar na Casa da Guilda!

    Kieran riu jovialmente.

    - Não duvido, mestra, mas a história que corre em Thendara é a de que ele enviou espadachins de aluguel para buscá-la, sua esposa lutou ao lado das Amazonas, na defesa da casa, e acabou por feri-lo. A história aumenta a cada boca que a repete. Algum dia, com toda a certeza, dirão que ela o matou e pregou sua cabeça no muro. Alguém exibiu no mercado o corpo de um potro de duas cabeças, mas meu pajem garantiu que não passava de uma farsa, e das mais grosseiras ainda por cima. Ele foi aprendiz de um fabricante de arreios na infância e conhece todos os truques. E que mais? Deixe-me pensar... Ah, sim, ouvi falar de um campo de kireseth desabrochado nos dias quentes, não um autêntico Vento Fantasma, como no verão, mas uma floração de inverno.

    Dom Esteban balançou a cabeça, sorrindo.

    - É raro, mas acontece, e antigamente se considerava um bom presságio.

    Callista explicou a Andrew, em voz baixa:

    - Kireseth é uma flor muito rara que desabrocha nas colinas. O pólen e as flores são a fonte da substância com que produzimos o kirian.

    Quando desabrocha no auge do verão, com um calor intenso e o vento soprando nas colinas, espalha-se ao redor como um vento de loucura... o Vento Fantasma, como é chamado. Os homens fazem coisas estranhas sob sua influência. Quando há um autêntico Vento Fantasma, tocamos os alarmes e nos trancamos em casa, pois os animais correm desvairados pelas florestas, e às vezes os não-humanos descem do alto das colinas para atacar a humanidade. Eu os vi uma vez, quando era criança. Ela estremeceu, enquanto Dom Esteban continuava:

    - Uma floração de inverno não pode durar por tempo suficiente para se tornar uma ameaça. Os habitantes de uma aldeia podem se esquecer de arar e semear, negligenciar suas hortas por um dia ou dois, enquanto bancam os tolos, mas depois de umas poucas horas a chuva assenta o pólen no chão. O pior que já ouvi acontecer, durante uma floração de inverno, foi que os lobos de carniça da floresta se tornaram ousados... o pólen afeta o cérebro tanto de homens quanto de animais... e saíram para os campos, atacando gado e cavalos. Mas, quase sempre, uma floração de inverno é apenas um feriado inesperado.

    Andrew recordou que fora advertido por Damon a não manusear nem cheirar as flores de kireseth no dispensário.

    - Há outro efeito colateral - comentou Ferrika, com um sorriso largo. - Quando o outono chegar, haverá mais trabalho para a parteira naquela aldeia. Mulheres que decidiram não ter filhos, ou mesmo matronas já com filhos crescidos, descobrem de repente que estão grávidas.

    Dom Esteban soltou uma risada.

    - Quando eu era rapaz, costumavam fazer piadas a respeito em casamentos, se estes tivessem sido arrumados pelas famílias, ainda mais se a noiva se mostrava relutante. E houve um casamento no verão... lá ao norte, perto de Edelweiss... e um Vento Fantasma soprou na ocasião. As festividades foram turbulentas, com muita bebida, e... indecorosas também, prolongando-se por dias. Infelizmente, eu era muito jovem para aproveitar, mas me lembro de ter visto coisas que geralmente eram escondidas dos olhos de crianças. - Ele enxugou as lágrimas de riso do rosto. - E mais de meio ano depois, nasceram muitas crianças de pais duvidosos, para dizer o mínimo. Mas já não dizem mais essas piadas em casamentos.

    - Que coisa repulsiva! - exclamou Ferrika com uma careta.

    Mas Damon não pôde deixar de rir, pensando no casamento de piadas vulgares e brincadeiras ousadas que acabara se transformando numa orgia total, sob a influência do Vento Fantasma.

    - Acho que elas não achavam nada engraçado - protestou Ellemir, muito séria.

    - Tem Toda razão, filha, - disse Dom Esteban. - Como falei antes, não se fazem mais piadas a respeito nos casamentos. Mas havia histórias de que nas colinas, durante o verão, quando o Vento Fantasma soprava, algumas pessoas nos Domínios realizavam um antigo festival da fertilidade. Eram dias de barbarismo, antes do Acordo, talvez antes mesmo da Era do Caos. Mas é claro que uma floração de inverno não é grave.

    - Nem motivo de riso para as mulheres que se descobrem grávidas de uma criança indesejável! - acrescentou Ferrika.

    Andrew viu Ellemir franzir um pouco o rosto em perplexidade. Acompanhou seus pensamentos com a maior facilidade: Será que alguma mulher podia não querer um filho? Callista comentou:

    - Eu bem que gostaria de uma floração de inverno aqui. Preciso fazer mais kirian, porque o nosso está quase acabando, e sempre devemos guardar um estoque em casa.

    Um dos empregados, comendo numa mesa num dos lados do salão, onde poderia ser convocado a qualquer momento em caso de necessidade, levantou a cabeça e disse, em voz rouca, meio hesitante:

    - Domna, se é o que deseja, há flores de kireseth na colina por cima do pasto em que nasceram os potros gêmeos, onde existe a antiga ponte de pedra. Não sei se ainda estão desabrochadas, mas meu irmão as viu quando passou por lá, há três dias.

    - É mesmo? - murmurou Callista. - Obrigada, Rimai. Se o tempo se mantiver bom... o que não é provável... irei até lá amanhã para renovar meu estoque.

    Não houve chuva nem neve naquela noite. Depois da primeira refeição e das despedidas de Kieran Ridenow - Dom Esteban o exortara a permanecer como hóspede em Armida por alguns dias, mas ele dissera que precisava aproveitar o bom tempo -, Calista ordenou que sua égua fosse selada. Dom Esteban franziu o rosto ao vê-la com a saia de montaria.

    - Isso não me agrada, Callista. Quando eu era rapaz, sempre se dizia que nenhuma mulher deve viajar sozinha pelas colinas quando a kireseth desabrocha.

    Callista soltou uma risada.

    - Ora, pai, acha mesmo...

    - Você é cohynara, criança, e nenhum dos nossos lhe faria qualquer mal, em sã consciência ou desvairado, mas pode haver estranhos ou proscritos nas colinas.

    - Levarei Ferrika comigo - propôs Callista em tom jovial. - Ela fez o treinamento da Casa da Guilda das Amazonas e é capaz de se defender contra qualquer homem que já nasceu, quer ele tencione o assalto ou o estupro.

    Mas Ferrika, convocada, recusou-se a partir.

    - A mulher do leiteiro pode ter a criança hoje, domna. Não é certo deixar meu trabalho para dar um passeio pelas colinas. Tem um marido, peça a ele para acompanhá-la.

    Não havia muito trabalho para Andrew fazer na propriedade, pois os reparos dos estragos causados pela tempestade já haviam sido concluídos, e o resto ainda se encontrava na paralisação do inverno, apesar do bom tempo.

    Longe de casa, pensou ele, quando estivessem a sós, poderia encontrar o momento oportuno para contar a ela sobre Ellemir e a criança.

    Ainda era cedo quando partiram. Para o leste, havia densas nuvens púrpuras e pretas, tingidas de escarlate pelo sol por trás. Enquanto seguiam por trilhas íngremes, contemplando os vales lá embaixo, com manchas brancas de neve por baixo das árvores, e os cavalos comendo cada ramo novo que acabara de nascer, Andrew sentiu que seu coração se animava. Callista nunca parecera tão alegre, tão linda. Cantava trechos de antigas baladas, e em determinado momento fez uma pausa, como uma criança, a entrada de um vale comprido, para gritar um longo "Aloooooô!", rindo divertida quando mais de uma centena de ecos responderam. O sol foi subindo pelo céu, o dia tornou-se mais quente. Ela tirou a capa de montaria azul-escura e pendurou-a na sela.

    - Eu não sabia que você montava tão bem - comentou Andrew.

    - Sempre gostei de montar, e o fazia até mesmo em Arilinn. Passávamos tanto tempo trancados, operando nas redes e transmissões, que, se não saíssemos de vez em quando para fazer exercício, acabaríamos rígidos e sem vida como as imagens de Hastur e Cassilda na capela. Nos feriados, pegávamos nossos falcões e saíamos para os campos ao redor de Arilinn... não é uma região de colinas, como aqui, mas uma planície... e os lançávamos contra aves e pequenos animais. Eu me orgulhava de poder controlar um falcão verrin, bem grande, assim... - Ela abriu as mãos. - ...não uma fêmea pequena, como as outras mulheres. - Callista soltou uma risada, um som retumbante. - Pobre Andrew, conheceu-me cativa, doente e retida em casa por tanto tempo que deve me julgar uma frágil donzela de conto de fadas. Mas saiba que sou uma camponesa, e muito forte. Quando era criança, podia cavalgar tão bem quanto meu irmão Coryn. Agora, acho que minha égua pode vencer seu cavalo numa corrida até aquela cerca!

    Ela comprimiu os flancos da égua e partiu como o vento. Andrew também saiu a galope, com o coração na boca - ela não estava mais acostumada a montar, podia cair. Mas mulher e égua pareciam se fundir numa única criatura. Em vez de parar ao alcançar a cerca, Callista saltou por cima, com um grito alegre e excitado. A égua cinza elevou-se como um pássaro pelo ar e desceu sem qualquer dificuldade no outro lado. Andrew saltou a cerca também, e ela conteve a égua; continuaram andando, devagar, lado a lado.

    Talvez estar apaixonado fosse isso, refletiu Andrew. Cada vez que via Callista, era como se fosse a primeira vez, sempre nova e surpreendente. Mas o pensamento atiçou o sentimento de culpa. Depois de alguns minutos, Callista reparou em seu silêncio e virou-se para fitá-lo, estendendo a mão enluvada.

    - O que é, meu marido?

    - Tenho uma coisa para lhe contar, Callista. Sabia que Ellemir está grávida de novo?

    O rosto se desmanchou num sorriso feliz.

    - Fico tão contente por ela! Ellemir tem-se mostrado muito corajosa, mas agora seu luto e pesar vão terminar.

    - Não está entendendo - insistiu Andrew, obstinado. - Ela diz que a criança é minha...

    - Claro. Ela me contou que Damon não queria que tentasse de novo, tão cedo, com medo de que pudesse... perder a criança outra vez. Isso me deixa muito satisfeita, Andrew.

    Será que algum dia se acostumaria aos costumes locais? Ele pensou que era sorte sua, mas ainda assim...

    - Não se importa, Callista?

    Ela já ia dizer - Andrew quase ouviu as palavras - "Por que deveria me importar?", mas depois se conteve. Ele ainda era um estranho em algumas coisas, apesar de tudo. Em vez disso, Callista murmurou:

    - Não, Andrew, não me importo, com toda a sinceridade. Acho que você não entende. Mas pense de outra maneira. - Ela tornou a sorrir, um sorriso jovial. - Haverá um bebê na casa, uma criança sua, e embora eu goste muito de crianças, ainda não quero ter uma. A verdade, Andrew, e que parece meio absurda, apesar de Ellemir e eu sermos gêmeas, é que ainda não tenho idade suficiente para ter um filho! Não sabia que as parteiras dizem que nenhuma mulher deve gerar uma criança até que seu corpo esteja maduro há pelo menos três anos? E, no meu caso, ainda não passou nem meio ano! Elli e eu somos gêmeas, ela está grávida pela segunda vez, e eu não tenho idade suficiente para ter um filho!

    Andrew sentiu um calafrio. Como ela podia gracejar sobre a maneira pela qual seu corpo fora contido, permanecendo imaturo? Por outro lado, refletiu ele, objetivo, fora a capacidade de Callista de encontrar algo divertido, mesmo naquela situação, que salvara todos do desespero.

    Alcançaram o vale com a velha ponte de pedra, onde haviam nascido os potros gêmeos. Subiram juntos pela longa encosta, desmontaram e amarraram os cavalos numa árvore.

    - A kireseth é uma flor das alturas - explicou Callista. - Não cresce nos vales cultivados, o que provavelmente é uma boa coisa. Os homens costumam arrancá-la como se fosse uma erva daninha quando surge nas encostas inferiores, porque o pólen causa problemas: quando desabrocha, até mesmo o gado e os cavalos se comportam como loucos, saem em disparada, brigam entre si, se acasalam fora da temporada. Mas é muito valiosa, pois é dela que produzimos o kirian. E olhe só como é bonita!

    Callista apontou para a encosta coberta de vegetação, como se fosse uma cascata de flores azuis, os estames dourados brilhando ao sol. Algumas ainda estavam azuis, outras já pareciam sinos dourados cobertos pelo pólen. Callista prendeu um pano fino sobre a parte inferior do rosto, como se fosse uma máscara.

    - Estou treinada a manusear a kireseth sem muita reação, mas mesmo assim não quero me arriscar a respirar demais o pólen.

    Ele observou-a fazer os preparativos para colher as flores. Callista advertiu-o:

    - Não chegue muito perto, Andrew. Nunca esteve exposto antes. Todas as pessoas que vivem nas Colinas Kilghard já passaram por um Vento Fantasma, às vezes mais, e sabem como reagirão, mas os efeitos são muito estranhos. Fique sob aquela árvore, junto com os cavalos.

    Andrew hesitou, mas ela repetiu a ordem com firmeza.

    - Acha que preciso de ajuda para colher algumas flores, Andrew? Trouxe-o comigo para desfrutar sua companhia na longa viagem, e também para aliviar as apreensões de meu pai sobre bandidos à espreita nas colinas, com a intenção de tirar as jóias que não estou usando ou de tentar me estuprar... - Ela fez uma pausa e soltou uma risada sombria. - ...o que seria muito pior para eles.

    Andrew desviou o rosto. Sentia-se contente por Callista ser capaz de rir, mas aquele comentário em particular lhe parecia de gosto duvidoso.

    - Não levarei muito tempo para colher o que preciso. As flores já desabrocharam e estão carregadas de resina. Espere por mim, meu amor.

    Ele obedeceu, voltou para a árvore e observou-a subir entre as flores. Callista agachou-se e começou a colher as flores, metendo-as dentro de um saco. Andrew deitou na relva, ao lado dos cavalos, e continuou a contemplá-la em movimento entre as flores azuis e douradas, os cabelos vermelhos caindo pelas costas, presos numa única trança. O sol era quente, mais quente do que ele podia se lembrar de ter sentido em qualquer outro dia em Darkover. Abelhas e insetos zumbiam pela encosta, umas poucas aves voavam por cima. Ao seu redor, com os sentidos aguçados, Andrew podia sentir o cheiro dos cavalos e das selas de couro, a fragrância das árvores-de-resina, e mais um aroma adocicado, penetrante, que ele calculou ser da kireseth. Podia sentir que povoava sua cabeça. Lembrando que Damon o advertira a não manusear ou cheirar nem mesmo as flores secas, ele se afastou um pouco, levando os cavalos. Ainda era um dia sem vento, não soprava a menor brisa. Andrew tirou o casaco de montaria, dobrou-o e ajeitou-o por baixo da cabeça. O sol deixou-o sonolento. Como Callista era graciosa, inclinada sobre as flores, cortando um botão aqui e outro ali, guardando tudo no saco! Ele fechou os olhos, mas teve a impressão de que ainda podia ver o sol por trás das pálpebras, explodindo em cores brilhantes e prismas. Compreendeu que devia ter aspirado um pouco da resina; Damon informara que era um alucinógeno. Mas sentia-se relaxado e contente, sem nenhum impulso para fazer qualquer das coisas perigosas a que homens e animais se entregavam sob sua influência. Estava satisfeito em permanecer deitado ali, na relva quente, vagamente consciente das cores do arco-íris além das pálpebras. Quando tornou a abrir os olhos, o sol parecia ter-se tornado ainda mais quente, mais brilhante.

    E depois viu Callista se aproximando, sem a máscara, os cabelos soltos. Ela parecia afundada até a cintura em ondas douradas da flor com o formato de estrela, uma mulher-menina delicada, numa nuvem de cabelos avermelhados. Por um momento, a imagem tremeluziu, como se não estivesse ali, como se não fosse sua esposa numa saia de montaria, mas sim a projeção que ele contemplara quando Callista ainda era prisioneira nas cavernas de Corresanti e só podia encontrá-lo no mundo superior. Mas ela era real agora. Sentou ao seu lado na relva, inclinou o rosto radiante em sua direção, com um sorriso tão terno que Andrew não pôde resistir e puxou-a para dar um beijo em seus lábios. Callista retribuiu o beijo com uma intensidade que o surpreendeu... embora não pudesse se lembrar, meio adormecido, com os sentidos meio embotados pelo pólen, por que isso deveria surpreendê-lo tanto.

    Estendeu as mãos para ela e ajudou-a a se estender a seu lado na relva. Abraçou-a, beijando-a com ardor, e que Callista retribuiu, sem qualquer hesitação ou retraimento.

    Um pensamento casual aflorou em sua mente, como uma brisa agitando as flores reluzentes: Alguma vez sonhei que casara com a mulher errada? Aquela nova Callista em seus braços, reagindo com ardor, transbordante de ternura, tornava o mero pensamento absurdo. Andrew sabia que ela partilhava o pensamento - não mais se dava o trabalho de tentar escondê-lo, não mais se preocupava em ocultar qualquer coisa dela - e que isso a divertia. Pôde sentir as ondulações de riso misturar-se com as ondas de desejo que envolviam ambos.

    Sabia, com absoluta certeza, que agora podia fazer o que queria e que Callista não protestaria, mas o escrúpulo impediu-o de ir além dos beijos, que ela partilhava e retribuía com a maior intensidade. Independentemente do que Callista sentia, podia ser perigoso para ela. Naquela noite... ela também o desejara. E tudo acabara em catástrofe, quase uma tragédia. Andrew não arriscaria de novo, até ter certeza, mais pelo bem de Callista do que pelo seu.

    Sabia que ela se encontrava além do medo, mas aceitava o comedimento, da mesma forma que aceitava os beijos e as carícias. Estranhamente, parecia não haver compulsão de ir além, nenhuma angustia de frustração. Ele também foi varrido pelas ondulações de riso, que pareciam de alguma forma aumentar o êxtase do momento, de sol e calor, flores e insetos zumbindo ao redor, uma alegria que também dominava Callista, junto com o desejo.

    Sua esposa e ele se contentavam em deitar ali, na relva, ambos vestidos, apenas se beijando, como se fossem adolescentes... Era absurdamente hilariante e maravilhoso.

    A mais polida das palavras darkovanas para sexo era accandir, que significava apenas deitar juntos, e era tão neutra que podia ser usada na presença de crianças. Ora, pensou Andrew, outra vez dominado pelo riso, era o que estavam fazendo. Andrew nunca soube por quanto tempo permaneceram assim, deitados juntos na relva, beijando-se, trocando carícias gentis, ele brincando com os cabelos de Callista ou contemplando as cores por trás de seus olhos deslizarem pelo rosto radiante de sua amada.

    Deviam ter-se passado horas - o sol já começava a descer pelo céu - quando uma nuvem os projetou na sombra e uma rajada de vento soprou, espalhando os cabelos de Callista pelo rosto. Andrew piscou e sentou, fitando-a. Ela se apoiava num cotovelo, a túnica aberta na garganta, fragmentos de relva e flores presos nos cabelos. De repente fazia frio, e ela olhou para o céu, pesarosa.

    - Lamento muito, mas temos de partir agora, ou seremos apanhados pela chuva no meio do caminho. - Com evidente relutância, Calista fechou a túnica, limpou os cabelos e trançou-os. Soltou uma risada, acrescentando: - É uma concessão à decência. Não quero dar a impressão de que andei deitando nos campos, nem mesmo com meu próprio marido!

    Andrew riu também, pegou o saco com as flores e foi pendurá-lo em sua cela. O que acontecera com eles? - especulou. O sol, o pólen... o que teria sido? [à se preparava para levantar Callista para a sela quando ela virou-se e enlaçou-o pelo pescoço.

    - Oh, Andrew, por favor...

    Ela olhou para a beira da campina, na direção do abrigo das árvores. Andrew conhecia seus pensamentos; não havia necessidade de traduzi-los em palavras.

    - Eu quero... quero ser toda sua.

    As mãos de Andrew apertaram-na na cintura, mas ele não se mexeu, apenas murmurou:

    - Não, querida. Tem de ser sem riscos.

    Parecia que não haveria problemas, mas ele não podia ter certeza. Se os canais ficassem outra vez com uma sobrecarga... Não suportaria vê-la sofrer assim. Não outra vez.

    Ela soltou um longo suspiro de desapontamento, mas Andrew sabia que aceitara sua decisão. Quando Callista tornou a erguer os olhos, estavam cheios de lágrimas, mas ela sorria. Não lançarei uma sombra sobre este dia maravilhoso ao pedir mais, como uma criança gulosa.

    Andrew ajeitou o manto de montaria nos ombros da esposa pois agora um vento forte soprava das alturas, e o frio aumentava. Ao levantá-la para a sela, pôde contemplar a encosta florida, com as flores agora de um azul frio, sem o brilho dourado anterior. O céu escurecia depressa. Na encosta no outro lado do vale os cavalos começavam a se reunir, também a procura de abrigo.

    A viagem de volta foi silenciosa, Andrew aflito, um tanto decepcionado. Sentia que fora um tolo. Deveria ter aproveitado a submissão de Callista, o súbito desaparecimento do medo e da hesitação. Que escrúpulo estúpido o levara a se conter?

    Afinal, se era a reação de Callista a ele que obstruía os canais, então esse problema parecia ter sido superado, pois fora como se a tivesse possuído. E fora ela própria quem o desejara! Que idiota fora, pensou ele, por perder uma oportunidade assim!

    Callista também se mantinha em silêncio, fitando-o de vez em quando com uma expressão inconfundível de medo e temor. Ele captou o medo, um medo que prevalecia sobre o contentamento de ambos.

    Estou satisfeita por saber de novo como é desejá-lo, retornar a seu amor... mas tenho medo. E Andrew podia sentir a força paralisante daquele medo, a lembrança da dor que ela experimentara quando reagira a ele antes. Não poderia suportar a mesma coisa de novo. Nem mesmo tomando kirian. E seria terrível para Damon também. Avarra misericordiosa, o que eu fiz?

    Chovia forte quando chegaram a Armida. Andrew tirou Callista da sela e sentiu, consternado, que o corpo se contraía ao seu contato. Outra vez? Beijou seu rosto molhado sob o capuz encharcado. Ela não se retraiu ao beijo, mas também não o retribuiu. Perplexo, mas tentando ser compreensivo - a pobre-coitada tinha medo, e quem podia culpá-la por isso, depois da provação dolorosa por que passara? -, Andrew carregou-a pelos degraus e tornou a pô-la no chão na entrada.

    - Vá se enxugar, minha querida. Não espere por mim.  tenho de providenciar para que os cavalos sejam cuidados direito.

    Callista entrou e subiu a escada devagar, pesarosa. Sua alegria se dissipara, deixando-a cansada, nauseada de apreensão. Um dos tabus mais fortes em Arilinn era o que tornava a flor de kireseth sem qualquer tratamento uma proibição absoluta. Embora não estivesse mais obrigada por essas leis, sentia-se culpada e envergonhada. Mesmo depois que percebera que estava sendo afetada pelas flores, permanecera ali, a fim de desfrutar o efeito, sem se retirar, sem tentar escapar para uma distância segura. E por trás da culpa havia o medo. Não sentia a mesma coisa que experimentara com a sobrecarga dos canais, mas o pavor era intenso, ao pensar no que poderia ter acontecido.

    Foi procurar Damon, que adivinhou no mesmo instante o que ocorrera.

    - Esteve exposta à kireseth, Callista? Conte-me tudo.

    Gaguejando, envergonhada, assustada, ela conseguiu transmitir a Damon um pouco do que acontecera. Escutando as palavras trêmulas, Damon pensou, com uma empatia angustiada, que ela parecia tão consternada quanto uma prostituta arrependida, não como uma mulher que passara o dia inocentemente em companhia do próprio marido. Mas ele ficou perturbado. Depois dos eventos do início do inverno, Andrew nunca a teria abordado assim sem um convite expresso. A kireseth, é verdade, tinha uma reputação e tanto de acabar com inibições. Mas qualquer que fosse a causa, ela poderia ter outra vez uma sobrecarga nos canais, com duas reações conflitantes.

    - Vamos verificar se houve algum dano, Callista. Depois de monitorá-la, porém, ele sentiu-se confuso.

    - Tem certeza, Callista? Seus canais são os de uma Guardiã, intactos. Que brincadeira é essa?

    - Brincadeira? Como assim, Damon?

    - Aconteceu exatamente como eu contei.

    - Mas isso é impossível! Você não poderia reagir assim. Se o tivesse feito, sofreria uma sobrecarga nos canais e ficaria muito doente. O que sente agora?

    - Nada - murmurou ela, cansada, derrotada. - Não sinto nada, absolutamente nada!

    Por um momento, Damon pensou que ela desataria a chorar. Quando Callista tornou a falar, a voz era tensa, mas não havia lágrimas derramadas:

    - Tudo se desvaneceu, como um sonho, e violei as leis da  Torre. Sou uma pária por nada.

    Ele não sabia o que pensar. Um sonho, compensando-a pelas privações de sua vida. - Afinal, a kireseth era alucinogênica. Damon estendeu as mãos para ela. O retraimento automático de Callista confirmou seu palpite: ela e Andrew haviam apenas partilhado uma ilusão.

    Mais tarde, ele interrogou Andrew, que pôde oferecer um relato mais meticuloso, analisando as reações físicas envolvidas. Andrew estava angustiado, na defensiva, embora admitisse que teria sido o responsável se Callista sofresse alguma coisa. Pelos infernos de Zandru, pensou Damon, que confusão! Andrew já experimentava tanto sentimento de culpa por desejar Callista quanto ela por não ser capaz de reagir, e agora teria de ser privado até mesmo da ilusão. Pondo a mão no ombro do amigo, Damon disse:

    - Está tudo bem, Andrew. Você não lhe fez mal algum. Callista se sente bem, seus canais não ficaram obstruídos.

    Andrew insistiu, obstinado:

    - Não creio que tenha sido um sonho, ou uma ilusão, ou qualquer outra coisa parecida. Maldição, eu não inventei as folhas nos meus cabelos!

    Damon sentiu uma profunda compaixão.

    - Não tenho a menor dúvida de que vocês estavam deitados em algum lugar da campina. A kireseth. contém uma substância que estimula o laran. É evidente que você e Callista mantiveram um contato telepático, muito mais forte do que o habitual, e suas... suas frustrações projetaram um sonho. Que pôde acontecer sem... sujeitá-la a nenhum risco. Nem você.

    Andrew cobriu o rosto com as mãos. Já era bastante ruim se sentir um tolo por passar o dia inteiro beijando e acariciando a esposa sem passar para uma intimidade maior, mas ser informado de que isso fora apenas um sonho drogado... era pior ainda. Mas tornou a fitar Damon e persistiu:

    - Não creio que tenha sido um mero sonho. Se foi, por que não sonhei com o que queria realmente fazer? E por que ela também não sonhou isso? Os sonhos servem para aliviar frustrações, não para criar novas, não é mesmo?

    Era sem dúvida uma boa pergunta, Damon não podia deixar de admitir, mas o que sabia dos medos e das frustrações que podem inibir até sonhos? Uma noite, ao final da adolescência, sonhara que tocava em Leonie como não se podia tocar em nenhuma Guardiã, nem mesmo em pensamento, e passara três noites insones por medo de repetir a ofensa.

    Em seu quarto, aprontando-se para a refeição noturna, Andrew olhou para suas roupas, amarrotadas e sujas. Seria bastante tolo para ter sonhos eróticos com a própria esposa? Não acreditava nessa possibilidade. Damon não estava presente; ele estava. E sabia o que acontecera, mesmo que não pudesse explicar. Sentia a maior satisfação por Callista não ter sido prejudicada, embora também não pudesse explicar isso.

    Durante a refeição, Dom Esteban disse, em tom preocupado:

    - Tenho pensado... Acham que está tudo bem com Domenic? Sinto que algo o ameaça... algo maligno...

    - Isso é bobagem, pai - protestou Ellemir gentilmente. - Ainda esta manhã mesmo Dom Kieran nos contou que ele está bem e feliz, cercado por amigos que o amam, comportando-se direito e cumprindo suas obrigações da melhor forma possível. Não corre nenhum perigo.

    - Tem razão - murmurou o velho, mas ainda assim continuou perturbado. - Só que eu gostaria que ele estivesse em casa.

    Damon e Ellemir trocaram olhares preocupados. Como todos os Altons, Dom Esteban tinha relances ocasionais de precognição. Deus conceda que ele esteja apenas se preocupando, pensou Damon, e não vendo o futuro. O velho estava paralítico e doente. Provavelmente era apenas preocupação.

    Mas Damon descobriu que também começara a se preocupar, e não pôde mais parar.

   

    Durante toda a noite, os sonhos de Damon foram povoados pelo som de cascos de cavalos, galopando... e galopando na direção de Armida, com más notícias. Ellemir se vestia, preparando-se para descer, a fim de supervisionar o início dos trabalhos na cozinha - esta gravidez não era acompanhada pelo enjôo e indisposição da primeira -, quando empalideceu de repente e soltou um grito. Damon apressou-se para o seu lado, mas Ellemir passou por ele, desceu a escada correndo, saiu para o pátio e foi parar nos enormes portões, a cabeça descoberta, branca como a morte. Damon, sentindo a premonição dominá-lo, tratou de segui-la e suplicou:

    - O que foi, meu amor? Não deve ficar aqui desse jeito...

    - O pai... - balbuciou ela. - Vai matar nosso pai! Oh, abençoada Cassilda, Domenic, Domenic!

    Ele exortou-a a voltar para a casa, com extrema gentileza, através da chuva miúda do amanhecer. Lá dentro, depararam com Callista, pálida e tensa, com Andrew ao seu lado, perturbado e apreensivo. Callista encaminhou-se para o quarto do pai, murmurando:

    - Tudo o que podemos fazer agora, Andrew, é ficar com ele. Andrew e Damon permaneceram ao lado do velho, enquanto seu valete o vestia. Damon ajudou a transferi-lo para a cadeira de rodas.

    - Tio querido, só podemos esperar pelas notícias. Mas quaisquer que sejam, lembre-se de que ainda tem filhas e filhos que o amam e estão aqui.

    No Grande Salão, Ellemir foi se ajoelhar ao lado do pai, chorando. Dom Esteban afagou sua cabeça e disse, a voz rouca:

    - Cuide dela, Damon. Não precisa se preocupar comigo. Se... se algum mal aconteceu a Domenic, a criança que você está gerando, Ellemir, pode ser o próximo herdeiro de Alton.

    Que Deus ajude a todos nós, pensou Damon, pois Valdir ainda nem tem doze anos! Quem comandaria a Guarda? Até mesmo Domenic fora considerado jovem demais para o comando!

    Andrew refletiu que seu filho, a criança esperada por Ellemir, seria o herdeiro de Alton. O pensamento parecia tão absurdo que ele foi dominado por um riso histérico. Callista pôs um copo pequeno na mão de Dom Esteban.

    - Beba isto, pai.

    - Não quero nenhuma das suas drogas! Não deixarei que me acalme e me ponha para dormir, enquanto não souber...

    - Beba! - ordenou ela, de pé ao seu lado, pálida e furiosa. - Não é para amortecer sua consciência, mas para fortalecê-lo. Vai precisar de toda a sua força hoje!

    Relutante, o velho engoliu a poção. Ellemir levantou-se, declarando:

    - O pessoal da casa e os trabalhadores não devem passar fome por causa de nossos pesares. Vou providenciar a primeira refeição.

    Levaram o velho para a mesa, exortaram-no a comer, mas nenhum deles conseguiu comer quase nada. Andrew empenhava-se em escutar além do alcance de seus ouvidos, ser o primeiro a ouvir a chegada do mensageiro, trazendo a notícia que todos agora consideravam inevitável.

    - Ele chegou - anunciou Callista de repente, largando um pedaço de pão com manteiga e fazendo menção de se levantar.

    O pai estendeu a mão, muito pálido, mas outra vez se controlando, Lorde Alton, chefe do Domínio, Comyn.

    - Sente-se, filha, e fique quieta. As más notícias chegam no momento certo, mas não é correto correr ao seu encontro.

    Ele levou à boca uma colher do mingau de nozes, tornou a largá-la no prato, sem provar. Nenhum dos outros sequer fingia comer agora, ouvindo o som de cascos nas pedras do pátio, as botas do mensageiro nos degraus. Era um guarda, muito jovem, com os cabelos vermelhos que indicavam, como Andrew sabia agora, que em algum ponto de sua genealogia, próximo ou distante, havia sangue Comyn. Parecia cansado, triste, apreensivo. Dom Esteban disse calmamente:

    - Seja bem-vindo à minha casa, Darren. O que o traz aqui a esta hora, meu rapaz?

    - Lorde Alton... - A voz do mensageiro parecia presa na garganta. - Lamento ser o portador de más notícias.

    Ele correu os olhos pelo salão. Parecia acuado, angustiado, relutante em dar a má notícia àquele velho, frágil e tenso em sua cadeira.

    - - Já recebi o aviso, meu rapaz. Venha me contar tudo. - Dom Esteban falou calmamente. Estendeu a mão, e o jovem, hesitante, aproximou-se da mesa. - É meu filho Domenic. Ele está... morto?

    O jovem Darren baixou os olhos. Dom Esteban deixou escapar um suspiro rouco e trêmulo, quase como um soluço, mas já recuperara o controle quando tornou a falar:

    - Está cansado da longa viagem.

    Ele mandou que os criados tirassem o manto e as pesadas botas de montaria do jovem guarda, trouxessem chinelas de andar em casa, pusessem uma cadeira à mesa e providenciassem um copo de vinho quente.

    - E agora me conte, rapaz. Como ele morreu?

    - Foi acidental, Lorde Alton. Praticava esgrima com seu ajudante, o jovem Cathal Lindir. De alguma forma, apesar de usar máscara, foi atingido por um golpe na cabeça. Ninguém pensou que era sério, mas ele morreu antes que pudéssemos chamar o oficial do hospital.

    Pobre Cathal, pensou Damon. Fora um dos cadetes durante o ano em que Damon servira como mestre dos cadetes, assim como o próprio Domenic. Os dois eram inseparáveis, faziam dupla em tudo: na esgrima, nos turnos de guarda, nas horas de lazer. Damon sabia que eram bredin, irmãos jurados. Domenic morrer de forma acidental já era bastante terrível, mas um golpe desfechado por seu irmão jurado ser a causa da morte... Abençoada Cassilda, como o pobre rapaz devia estar sofrendo! Dom Esteban começou a interrogar o mensageiro sobre as providências necessárias.

    - Valdir deve ser trazido imediatamente de Nevarsin, como o herdeiro indicado.

    - Lorde Lorill Hastur já mandou chamá-lo, e o exorta a ir a Thendara, se for capaz, senhor - informou Darren.

    - Capaz ou não, partiremos hoje mesmo - anunciou Dom Esteban, a voz firme. - Mesmo que eu tenha de viajar de liteira. Damon, Andrew, vocês devem ir comigo.

    - Também irei.

    Foi Callista quem falou, o rosto pálido, mas determinado: e Ellemir acrescentou:

    - E eu também.

    Ela chorava baixinho. Damon chamou seu velho intendente.

    - Rhodri, providencie um lugar para o mensageiro descansar e envie um dos nossos homens para Thendara, no cavalo mais rápido disponível, para avisar a Lorde Hastur que lá estaremos dentro de três dias. E peça a Ferrika para vir imediatamente examinar Dama Ellemir.

    O velho acenou com a cabeça em aquiescência. As lágrimas escorriam pelo rosto encarquilhado de Rhodri, e Damon lembrou que ele passara toda a sua vida em Armida, pegara Domenic e Coryn no colo, quando eles eram pequenos. Mas não havia tempo para pensar em qualquer dessas coisas. Ferrika, depois de examinar Ellemir, admitiu que a viagem provavelmente não lhe causaria mal algum.

    - Mas deve viajar pelo menos parte do tempo numa liteira, domna, pois sela demais a deixaria exausta.

    Quando informada de que deveria acompanhá-los, Ferrika protestou:

    - Há muitas mulheres na propriedade precisando dos meus serviços, Lorde Damon.

    - Dama Ellemir espera o próximo herdeiro de Alton. É quem precisa mais de seus cuidados, e além disso é sua amiga de infância. Tem ensinado a outras mulheres na propriedade, e agora elas devem justificar seu treinamento.

    Era tão óbvio, até para a parteira amazona, que Ferrika murmurou a frase polida de respeito e aquiescência, e se retirou para falar com suas subordinadas. Callista mandou as criadas arrumar a bagagem para a estada em Thendara, que poderia ser prolongada. Quando Ellemir indagou por quê, ela explicou:

    - Valdir é uma criança. O Conselho do Comyn pode não querer que nosso pai, paralítico e com o coração fraco, permaneça como chefe do Domínio; talvez haja uma longa luta para designar um tutor para Valdir.

    - Acho que Damon seria o tutor lógico - comentou Ellemir. Callista contraiu os lábios, num sorriso desolado.

    - Concordo, irmã, mas já participei do Conselho, como substituta de Leonie, e sei que para aqueles grandes lordes nada jamais é simples ou óbvio, se houver uma vantagem política em resolver uma questão de outro modo. Lembra que Domenic contou que muitos contestavam seu direito de comandar a Guarda, por ele ser tão jovem? Pois Valdir é ainda mais jovem.

    Ellemir sentiu um calafrio e pôs a mão protetora sobre a barriga, numa reação automática. ]à ouvira histórias antigas sobre brigas encarniçadas no Conselho do Comyn, lutas ainda mais cruéis que as rivalidades de sangue, pois se travavam não entre inimigos, mas entre parentes. Como dizia o ditado, quando irmãos entravam em choque, os inimigos se adiantavam para aumentar o abismo.

    - Callie, você acha... acha que Domenic foi assassinado? A voz de Callista estava trêmula:

    - Por Cassilda, rezo para que não. Se ele tivesse morrido envenenado ou em conseqüência de alguma doença misteriosa, eu ainda poderia pensar que sim... houve muita disputa pela herança de Alton... mas atingido por Cathal num exercício? Conhecemos Cathal, Elli. Ele amava Domenic como sua própria vida! Tinham feito o juramento de bredin. Acho mais possível que Damon viole um juramento do que nosso primo Cathal. - Ela fez uma pausa, antes de acrescentar, pálida e perturbada: - Se tivesse sido Dezi...

    As duas irmãs fitaram-se em silêncio, não querendo dar forma à acusação, mas lembrando como a iniqüidade de Dezi quase causara a morte de Andrew. Ellemir acabou balbuciando:

    - Onde será que Dezi estava quando Domenic morreu?

    - Oh, não, Ellemir, não! - Nem mesmo pense nisso!  Nosso pai ama Dezi, mesmo que não o reconheça, e assim não deve tentar tornar a situação pior do que já é. Eu lhe suplico, Elli, para não meter essa idéia na cabeça do pai.

    Ellemir entendeu o que Callista estava dizendo: precisava dar um jeito de guardar seus pensamentos, a fim de evitar que a acusação impensada chegasse ao conhecimento do pai. Mas o pensamento continuou a perturbá-la, enquanto dava ordens às criadas para cuidarem da casa durante sua ausência. Encontrou um momento para se esgueirar até a capela e pôs uma pequena grinalda de flores de inverno diante do altar de Cassilda. Desejara que seu filho nascesse em Armida, onde viveria cercado pela herança que um dia lhe pertenceria.

    Tudo o que ela sempre desejara na vida fora casar com Damon e gerar filhos e filhas para seus clãs. Era pedir demais?, pensou ela, desolada. Não era como Callista, ansiosa em fazer o trabalho de laran, sentar no Conselho, decidir problemas de estado. Por que não podia ter um pouco de paz? E, no entanto, ela sabia que nos dias subseqüentes não poderia se refugiar na feminilidade.

    Será que exigiriam que Damon comandasse a Guarda, no lugar do sogro? Como todas as filhas de Alton, Ellemir orgulhava-se do posto hereditário de comandante que seu pai exercera, e que pensara que seria de Domenic por muitos anos. Mas agora Domenic morrera, e Valdir era jovem demais; quem assumiria o comando? Ela correu os olhos pela capela, contemplou os deuses pintados nas paredes, uma representação estilizada de Hastur, Filho de Aldones, em Hali, com Cassilda e Camilla. Eram os antepassados do Comyn; a vida era mais fácil no tempo deles. Cansada, Ellemir deixou a capela e subiu para decidir que criadas os acompanhariam na viagem e quais ficariam tomando conta da propriedade.

    Andrew também tinha muito com que se ocupar. Conversou com o velho coridom - como todos os outros servidores, também abalado com a notícia da morte de seu jovem amo - sobre os cuidados com os animais e a administração da propriedade durante sua ausência. Achava que deveria ficar, pois não tinha o que fazer em Thendara, e seria melhor não deixar o rancho aos cuidados dos criados. Mas sabia que parte de sua relutância era o fato de ser em Thendara o QG do Império Terráqueo. Sentira-se contente pelo fato de os terráqueos pensarem que ele morrera; não tinha parente para lamentá-lo, e não havia nada ali que desejasse. Mas agora, inesperadamente, ressurgia o conflito. Em termos racionais, sabia que os terráqueos não poderiam incomodá-lo, nem sequer saberiam de sua presença na velha cidade de Thendara. Mesmo assim, sentia-se apreensivo. E também especulara onde Dezi se encontrava quando Domenic morrera, mas tratara de descartar o pensamento como indigno.

    Damon lhe dissera que Thendara não ficava a muito mais que um dia de viagem de distância, para um homem viajando sozinho, num cavalo veloz, com bom tempo. Mas para um grupo grande, com criados, bagagem, uma mulher grávida e um velho paralítico, que tinha de viajar em liteira, poderia durar quatro ou cinco vezes mais. A maior parte do trabalho de aprontar os cavalos e a bagagem cabia a Andrew, e ele sentia-se exausto, mas satisfeito, quando a expedição finalmente passou pelos grandes portões. Dom Esteban viajava numa liteira entre dois cavalos; outra aguardava Ellemir quando se cansasse de montar, mas agora ela cavalgava ao lado de Damon, usando um manto de montaria verde, os olhos inchados de tanto chorar. Andrew recordou Domenic brincando com Ellemir no dia do casamento, e foi dominado por uma profunda tristeza; tivera muito pouco tempo para conhecer melhor seu jovial cunhado, que o aceitara com tanta presteza.

    Havia uma longa fila de animais de carga, os criados montando os animais de chifres, que tinham um passo mais seguro nas estradas íngremes do que a maioria dos cavalos, e meia dúzia de guardas na retaguarda, para protegê-los dos perigos da viagem pelas colinas. Callista, alta e pálida, em seu manto de montaria preto, parecia uma figura de outro mundo. Contemplando seu rosto angustiado sob o capuz escuro, era difícil lembrar a moça risonha entre as flores douradas. Teria mesmo acontecido apenas ontem?

    E, no entanto, por baixo da solenidade do luto, com os trajes pretos e o rosto pálido, ela ainda era aquela mulher sorridente que recebera seus beijos e os retribuíra com uma paixão insuspeitada. Algum dia - em breve, muito em breve, Andrew prometeu a si mesmo - ele a libertaria e a teria sempre ao seu lado. Ao sentir que ele a fitava, Callista levantou o rosto e exibiu um sorriso triste.

    A viagem prolongou-se por quatro dias frios e extenuantes. No segundo dia, Ellemir passou para a liteira e só voltou a montar quando se aproximaram de Thendara. Ao final do desfiladeiro, quando se podia avistar a cidade lá embaixo, ela insistiu em deixar a liteira e voltou para a sela.

    - A liteira me sacode e à criança mais do que a andadura de Shirina - declarou ela, petulante -, e não entrarei em Thendara carregada como uma rainha mimada ou uma aleijada. Quero que todos saibam que minha criança não é fraca!

    Apelaram para Ferrika, que disse que o conforto de Ellemir era mais importante do que qualquer outra coisa; se ela se sentia bem e capaz de montar, então que montasse.

    Andrew só vira o Castelo Comyn a distância, da Zona Terráquea. Ficava acima da cidade, imenso e antigo. Callista informou-o de que fora construído antes da Era do Caos, e não por mãos humanas. As pedras haviam sido levantadas para seus lugares por círculos de matriz das Torres, trabalhando em conjunto para transformar as forças.

    O interior era um labirinto, com corredores largos e compridos, e os aposentos a que foram conduzidos - aposentos reservados desde tempos imemoriais aos Altons, durante a temporada do Conselho, explicou Callista - eram quase tão espaçosos quanto as suítes adjacentes que partilhavam em Armida. Fora dos aposentos dos Altons, o castelo parecia deserto.

    - Mas Lorde Hastur está aqui - assegurou Callista. - Ele permanece em Thendara durante a maior parte do ano, e seu filho Danvan está ajudando a comandar a Guarda. Creio que vão convocar o Conselho para decidir sobre a herança de Alton. Há sempre questões, e Valdir é muito jovem.

    Quando Dom Esteban foi carregado para a sala principal dos aposentos dos Altons, um menino esguio e pálido, de rosto fino e inteligente, em torno dos doze anos, cabelos tão escuros que mal pareciam vermelhos, adiantou-se para encontrá-lo.

    - Valdir!

    Dom Esteban estendeu os braços, e o garoto ajoelhou-se aos seus pés.

    - Ainda é muito jovem, meu rapaz, mas já terá de se comportar como um adulto! - O garoto levantou-se, e o pai deu-lhe um abraço apertado. - Sabe onde está seu irmão...

    Dom Esteban não foi capaz de continuar, e o jovem Valdir murmurou:

    - Ele está na capela, pai, junto com seu pajem. Eu não sabia o que devia fazer, mas... - Ele gesticulou, e Dezi entrou na sala, hesitante. - ...meu irmão Dezi tem sido de grande valia desde que cheguei de Nevarsin.

    Damon pensou, implacável, que Dezi não perdera tempo, agora que seu protetor estava morto, tratara de se insinuar nas boas graças do herdeiro seguinte. Ao lado do esguio e pálido Valdir, Dezi, com seus cabelos vermelhos brilhantes e rosto sardento, parecia muito mais da família que o filho legítimo. Dom Esteban abraçou Dezi, chorando.

    - Meu caro rapaz...

    Damon se perguntou como poderia privar o velho de seu único outro filho remanescente, privar Valdir de seu único irmão vivo. Era verdadeiro o ditado: tem as costas nuas aquele que não tem irmão. De qualquer forma, Dezi era inofensivo sem a matriz. Valdir foi abraçar Ellemir.

    - Finalmente casou com Damon. Era o que eu esperava há muito tempo.

    Diante de Callista, porém, ele se mostrou inibido. Ela estendeu as mãos, explicando a Andrew:

    - Fui para a torre quando Valdir ainda era um bebê de colo. Só o vi poucas vezes desde então, e nenhuma desde que ele era pequeno. Tenho certeza de que se esqueceu de mim, irmão.

    - Não de todo. - Valdir levantou os olhos para a irmã alta. - Lembro alguma coisa. Estávamos numa sala com muitas cores, parecia um arco-íris. Eu devia ser muito pequeno. Caí e machuquei o joelho. Você me pegou no colo e cantou para mim. Usava um vestido branco com alguma coisa azul.

    Callista sorriu.

    - Lembro agora. Foi quando você foi apresentado na Câmara de Cristal, como deve acontecer com todo filho do Comyn, a fim de que possam se certificar de que não tem nenhum defeito ou deformidade oculta, para que possa mais tarde se comprometer em casamento. Eu era apenas uma monitora psíquica na ocasião. Mas você ainda nem tinha cinco anos; fico surpresa que se lembre do véu azul. Este é o meu marido, Andrew.

    O garoto fez uma reverência cortês, mas não estendeu a mão para Andrew, e depois recuou para o lado de Dezi. Andrew fez uma mesura fria para Dezi; Damon deu-lhe um abraço de parente, esperando que o contato pudesse dissipar as suspeitas que não conseguia superar. Mas Dezi se encontrava bem defendido contra ele. Damon não foi capaz de ler coisa alguma em sua mente. Advertiu a si mesmo para ser justo. No último encontro, ele torturara Dezi, quase o matara; como podia esperar que Dezi o acolhesse com demonstração de amizade?

    Dom Esteban foi conduzido para seus aposentos. Antes de sair, lançou um olhar suplicante para Dezi, que o seguiu. Depois que os dois se retiraram, Andrew comentou, com uma careta:

    - Pensei que tínhamos nos livrado dele. Mas se sua presença proporciona conforto a nosso pai, o que podemos fazer.

    Damon refletiu que não seria a primeira vez que um filho bastardo, capaz, de muitas iniqüidades na juventude, se tornaria o apoio de um pai que perdera seus outros filhos. Torcia para que assim fosse, pelo bem de Dom Esteban e do próprio Dezi. Ele se aproximou de Andrew e Callista, dizendo:

    - Não querem ir comigo até a capela, para verificar o que fizeram com Domenic? Se tudo estiver conveniente, poderemos poupar nosso pai e Ellemir dessa angústia. Ferrika já a levou para a cama. Era a que melhor conhecia Domenic... não há necessidade de fazê-la sofrer ainda mais.

    A capela ficava na parte mais profunda do Castelo Comyn, escavada na rocha viva da montanha, tinha o frio de uma caverna subterrânea. O corpo de Domenic estava num esquife sobre cavaletes, diante da imagem esculpida que Andrew já podia reconhecer como a Abençoada Cassilda, mãe dos Domínios. Na figura esculpida em pedra, Andrew fantasiou que podia perceber alguma semelhança com as feições de Callista e com o rosto frio e sem vida do jovem morto.

    Damon baixou a cabeça, cobrindo o rosto com as mãos. Callista inclinou-se, beijou a testa do irmão e murmurou alguma coisa que Andrew não pôde entender. Um vulto escuro, ajoelhado ao lado do esquife, moveu-se de repente e levantou-se. Era um jovem baixo e corpulento, desgrenhado, as pálpebras inchadas e vermelhas de tanto chorar. Andrew sabia quem ele era, antes mesmo que Callista estendesse as mãos e dissesse:

    - Cathal, meu querido primo...

    Ele fitou todos com uma expressão angustiada, antes de encontrar a voz:

    - Dama Ellemir, meus lordes...

    - Não sou Ellemir, mas Callista, primo. Estamos gratos por ter permanecido com Domenic até nossa chegada. Foi certo ele ter a companhia de alguém que o amava.

    - Foi o que pensei, mas ainda assim me sinto culpado. Afinal, fui eu quem o matou...

    Ele não pôde continuar. Damon adiantou-se para abraçar o trêmulo rapaz.

    - Todos sabemos que foi um acidente, parente. Conte-me como aconteceu.

    O desespero de Cathal era profundo.

    - Estávamos praticando esgrima com espadas de madeira, como fazíamos todos os dias. Ele era melhor espadachim do que eu.

    Ele fez uma pausa, o rosto se contraindo. Andrew notou que também tinha as feições do Comyn; o tratamento de "primo" não era mera polidez.

    - Eu não sabia que o tinha acertado com tanta força, juro que não sabia. Pensei que ele estava brincando, zombando de mim, que no instante seguinte se levantaria de um pulo, rindo... como fazia muitas vezes.

    Damon, recordando mil e uma brincadeiras de Domenic durante o seu ano como mestre dos cadetes, apertou a mão de Cathal.

    - Ele sempre foi assim, meu jovem. - Será que Cathal ficara assim desde a morte de Domenic, sem ninguém para confortá-lo? - Continue, por favor.

    - Sacudi-o - balbuciou Cathal, pálido de horror. - E disse: "Vamos, levante logo, seu idiota. Pare a brincadeira.” - Tirei sua máscara e descobri que ele estava inconsciente. Mas ainda assim não dei muita importância... alguém sempre sai machucado nos exercícios.

    - Sei disso, Cathal. Eu mesmo perdi os sentidos meia dúzia de vezes durante os meus anos como cadete. Olhe, meu dedo médio ainda é torto, por causa de um golpe que recebi de Comyn com uma espada de exercício. Mas o que fez em seguida, meu rapaz?

    - Corri para chamar o oficial do hospital, Mestre Nicol.

    - Deixou-o sozinho?

    - Não. Seu irmão Dezi ficou com ele, molhando seu rosto com água fria, tentando ressuscitá-lo. Mas Domenic já tinha morrido quando voltei com Mestre Nicol.

    - Tem certeza de que ele estava vivo quando o deixou, Cathal?

    - Certeza absoluta. Podia ouvir sua respiração, e senti seu coração.

    Damon balançou a cabeça, suspirando.

    - Reparou em seus olhos? As pupilas estavam dilatadas? Contraídas? Reagiam a luz de alguma forma?

    - Eu... não notei, Lorde Damon. Nem me lembrei de olhar.

    Damon soltou outro suspiro.

    - Quase ninguém pensa em reparar nessas coisas. Os ferimentos na cabeça nem sempre seguem as regras, meu caro rapaz. Durante meu ano como oficial do hospital,  um guarda bateu com a cabeça num muro, durante uma briga de rua. Quando o recolheram, parecia muito bem, mas naquela noite, ao jantar, a cabeça pendeu para a mesa, ele dormiu e nunca mais despertou. Morreu durante o sono.

    Damon fez uma pausa, pondo a mão no ombro de Cathal.

    - Fique tranqüilo, meu rapaz. Não havia nada que pudesse fazer.

    - Lorde Hastur e alguns outros me interrogaram, como se alguém pudesse acreditar que eu fosse capaz de fazer qualquer mal a Domenic. Éramos bredin... eu o amava!

    O rapaz foi postar-se diante da imagem de Cassilda e acrescentou com extrema veemência:

    - Que os Senhores da Luz me liquidem agora se eu fosse capaz de machucá-lo! - Cathal virou-se e foi ajoelhar-se por um momento diante de Callista. - Domna, é uma leronis, pode provar que eu não acalentava ressentimento algum contra Domenic, que sacrificaria minha própria vida para defendê-lo!

    As lágrimas escorriam por suas faces. Damon inclinou-se e ergueu-o, dizendo com firmeza:

    - Sabemos disso, meu rapaz, pode estar certo.

    O desespero e a culpa transbordaram. O rapaz se abrira à mente de Damon, mas a culpa era apenas pelo golpe descuidado, pois não havia perfídia em Cathal.

    - Agora, Cathal, chegou o momento em que mais lágrimas seriam apenas auto-indulgência. Precisa descansar. Era o pajem de Domenic, e deve se postar ao seu lado quando ele for sepultado.

    Cathal respirou fundo e fitou Damon.

    - Sei que acredita em mim, Lorde Damon. Creio que agora posso dormir direito.

    Damon observou o rapaz se afastar e suspirou mais uma vez. Independentemente das garantias que ele pudesse oferecer, Cathal viveria pelo resto da vida com o conhecimento de que um golpe seu matara o parente e amigo jurado, mesmo que acidental. Pobre Cathal! Domenic morrera depressa e sem dor, mas Cathal sofreria por muitos anos.

    Callista fora se postar diante do esquife e olhava para Domenic, vestido com as cores de seu Domínio, os cabelos crespos escovados até se tornarem lisos, os olhos fechados, com uma expressão de serenidade. Ela sentiu um aperto na garganta.

    - Onde está a matriz? Deve ser enterrada com ele, Damon.

    Damon franziu o rosto.

    - Cathal!

    O rapaz, já na porta da capela, parou e virou-se.

    - Pois não, senhor?

    - Quem o preparou para o sepultamento? Por que tiraram sua matriz?

    - Matriz? - Havia alguma perplexidade nos olhos azuis. - Ouvi-o dizer várias vezes que não tinha interesse por essas coisas. Nem sabia que ele tinha uma matriz.

    Calista levantou os dedos para sua garganta.

    - Ele recebeu uma quando foi testado. Tinha laran, embora raramente o usasse. Quando o vi pela última vez, estava pendurada em seu pescoço, numa bolsa como esta.

    - Lembro agora - disse Cathal. - Ele tinha alguma coisa no pescoço. Pensei que fosse um amuleto, ou algo assim. Nunca soube o que era. Talvez a pessoa que preparou o corpo para o sepultamento tenha pensado que era uma coisa sem valor para levar à sepultura.

    Damon deixou Cathal se retirar. Falaria depois com a pessoa que preparara o corpo de Domenic para o sepultamento. A matriz deveria acompanhá-lo à sepultura.

    - Como alguém poderia tirá-la? - indagou Andrew. - Você me disse... e mostrou... que não é seguro tocar na matriz de outra pessoa. Quando tirou a de Dezi, foi quase tão doloroso para você quanto para ele.

    - De um modo geral, quando o dono de uma matriz sintonizada morre, a pedra morre com ele. Torna-se apenas um fragmento de cristal azul, sem vida, sem luz. Mas não é conveniente que fique à solta para ser reaproveitada.

    Era mais do que provável, como dissera Cathal, que algum criado tivesse pensado que se tratava de um amuleto sem valor, que não era digno de ser sepultado com um herdeiro do Comyn.

    Se Mestre Nicol a tocara, sem saber do que se tratava, talvez removendo a bolsa para facilitar a respiração de Domenic, isso poderia tê-lo matado... Mas não, Dezi estava presente, saberia que não se podia tocar na pedra, pois fora treinado em Arilinn. Se Mestre Nicol tentasse remover a matriz, Dezi, que era capaz de fazer o trabalho de uma Guardiã, como Damon sabia muito bem, com toda a certeza cuidaria disso pessoalmente, com toda a segurança.

    Mas se Dezi tivesse removido a pedra...

    Não, ele não podia acreditar nisso. Quaisquer que fossem seus defeitos, Dezi amara Domenic. Afinal, Domenic era o único da família que sempre o tratara com a maior amizade, como um verdadeiro irmão, e sempre defendera seus direitos.

    Irmão já matara irmão antes, mas neste caso era impossível. Dezi amara Domenic, ainda amava seu pai. Teria sido muito difícil, na verdade, não amar Domenic.

    Damon postou-se por um momento ao lado do esquife do jovem morto. Não obstante o que pudesse acontecer dali por diante, aquele era o fim dos velhos tempos em Armida. Valdir ainda era muito jovem; se tivesse de assumir sua herança tão cedo, não haveria tempo para o treinamento habitual de um filho do Comyn, os anos no corpo de cadetes e na Guarda, o tempo passado numa Torre, se tivesse, aptidão para isso. Ele e Andrew fariam o melhor que pudessem para serem os filhos do velho e frágil Lorde Alton. Apesar de suas melhores intenções, no entanto, não eram Altons, enraizados nas tradições dos Lanarts de Armida. O que quer que acontecesse, era o fim de uma era.

    Callista seguiu Andrew quando ele foi examinar os quadros nas paredes. Eram muito antigos, pintados com pigmentos que reluziam como pedras preciosas, descrevendo a lenda de Hastur e Cassilda, o grande mito do Comyn. Hastur em seus trajes dourados, passeando pela praia do lago; Cassilda e Camilla em seus teares; Camilla cercada por suas pombas, levando-lhe os frutos tradicionais; Cassilda, uma flor na mão estendida, oferecendo-a ao filho do Deus. Os desenhos eram antigos e estilizados, mas Callista podia reconhecer alguns frutos e flores. A flor azul e dourada na mão de Cassilda era a kireseth, a flor-da-estrela das Colinas Kilghard, mais conhecida como sino dourado. Era por causa dessa associação sagrada, especulou ela, que a kireseth se tornara tabu para todos os círculos das Torres, de Dalereuth às Hellers? E Callista lembrou, com uma pontada de pesar, como ficara nos braços de Andrew, sem qualquer medo, durante a floração de inverno. Costumavam fazer piadas a respeito nos casamentos, se a noiva se mostrava relutante. As lágrimas arderam em seus olhos, mas Callista tratou de reprimi-las. Com o herdeiro do Domínio prestes a ser sepultado, seu amado irmão mais jovem, havia tempo para se angustiar com seus problemas pessoais?

   

    Era uma manhã cinzenta, o sol oculto por trás do nevoeiro, nuvens de chuva miúda e granizo passando pelas alturas, enquanto o cortejo fúnebre saía de Thendara e seguia para o norte, levando o corpo de Domenic Lanart-Alton para ser sepultado ao lado de seus antepassados do Comyn. O reni fead em Hali, o lugar sagrado do Comyn, ficava a uma hora de viagem para o norte, partindo do Castelo Comyn. Todos os lordes e damas de sangue Comyn que haviam chegado para o Conselho, durante os últimos três dias, acompanhavam o cortejo, numa homenagem ao herdeiro de Alton, morto tão jovem, num trágico acidente.

    A exceção de Esteban Lanart-Alton. Andrew, cavalgando junto de Cathal Lindir e do jovem Valdir, recordou a cena daquela manhã, quando Ferrika, convocada pelo velho para dar alguma droga que o fortalecesse para a viagem, recusara-se terminantemente:

    - Não tem condições de acompanhar o cortejo, vai dom, nem mesmo numa liteira. Se o acompanhar até a sepultura, estará sepultado ao seu lado antes de se passarem dez dias. - Uma pausa, e ela acrescentara mais gentilmente: - O pobre rapaz está além de qualquer ajuda ou sofrimento, Lorde Alton. Devemos pensar agora em suas próprias forças.

    O velho tivera um acesso de raiva tão intenso que Callista, chamada às pressas, chegara a pensar que a ira acarretaria a catástrofe que Ferrika tanto temia. Tentara mediar, dizendo:

    - Pode lhe fazer tão mal quanto esse tipo de transtorno?

    - Não aceitarei a decisão de nenhuma mulher! - berrara Dom Esteban. - Chamem meu valete e saiam daqui, vocês duas! Dezi...

    Ele se virara para o rapaz, em busca de apoio. O rosto liso se afogueando, Dezi murmurara:

    - Se viajar, tio, eu o acompanharei.

    Ferrika se retirara, mas voltara um momento depois com Mestre Nicol, o oficial de hospital da Guarda. Ele verificara a pulsação do velho, baixara sua pálpebra para examinar as pequenas veias ali e depois dissera, em tom brusco:

    - Se viajar hoje, Lorde Alton, não é provável que volte. Há outros aqui que podem sepultar o falecido. Seu herdeiro ainda nem foi aceito formalmente pelo Conselho, e ainda por cima tem apenas doze anos. Sua obrigação, vai dom, é poupar suas forças, até que o rapaz esteja crescido. Por um último serviço sentimental a seu filho morto, vai se arriscar a deixar o outro sem pai?

    Diante dessas verdades indesejáveis, não havia o que dizer. Consternado, Dom Esteban permitira que Mestre Nicol o levasse de volta à cama. Segurara a mão de Dezi, que permanecera docilmente ao seu lado.

    Agora, seguindo para o norte, Andrew lembrou as visitas de condolências e as conversas com membros do Conselho, que haviam exigido ao máximo a energia de Lorde Alton. Mesmo que ele sobrevivesse à iminente sessão do Conselho e à viagem de volta, poderia resistir até que Valdir fosse declarado um homem, aos quinze anos? E como um jovem de quinze anos poderia enfrentar os problemas complexos e a política do Domínio? Com toda a certeza, aquele garoto resguardado da vida, um estudioso educado num mosteiro, não teria condições para tanto!

    Valdir seguia à frente do cortejo, no traje de luto formal, o rosto ainda mais pálido em contraste com o pano preto. Viajava ao lado de seu amigo jurado, Valentine Aillard, que viera com ele de Nevarsin, um garoto grande e corpulento, os cabelos tão louros que até pareciam brancos. Os dois exibiam expressões solenes, mas não de profundo pesar, pois não haviam conhecido Domenic bastante bem para isso.

    A margem do Lago de Hali, onde a lenda dizia que Hastur, Olho da Luz, chegara a Darkover, Domenic foi enterrado numa sepultura sem qualquer indicação, como determinava o costume. Callista apoiou-se em Andrew, ao lado da sepultura aberta, e ele captou seu pensamento: Não importa onde ele esteja sepultado, pois foi para outro lugar. Mas teria confortado meu pai se ele pudesse ser sepultado no solo de Armida.

    Andrew correu os olhos pelo cemitério e estremeceu. Ali, sob seus pés, se encontrava tudo o que fora mortal de incontáveis gerações do Comyn, sem qualquer sinal para indicar onde estava cada um, exceto pelas elevações irregulares, aumentadas pela neve do inverno e pelo degelo da primavera. Seus filhos e filhas seriam sepultados ali algum dia? Ele próprio teria o repouso eterno sob aquele estranho sol?

    Valdir, como o parente mais próximo, aproximou-se da beira da sepultura. Sua voz soou estridente e infantil, quando ele falou, com evidente hesitação:

    - Quando eu tinha cinco anos, meu irmão Domenic me tirou de meu pônei, dizendo que eu deveria ter um cavalo digno de um homem. Levou-me ao estábulo e ajudou o coridom a escolher um cavalo manso para mim. Que essa lembrança atenue a dor!

    Ele recuou, e Valentine Aillard adiantou-se.

    - Em meu primeiro ano em Nevarsin, eu me sentia solitário e desesperado, como todos os meninos ali, só que ainda mais, porque não tinha mãe nem pai vivos, e minha irmã era criada longe. Domenic foi visitar Valdir. Levou-me à cidade, comprou balas e doces, a fim de que eu tivesse as mesmas coisas dos outros meninos ao receberem visitas dos parentes. Quando mandava presentes para Valdir, no festival do Solstício do Inverno, também me mandava um presente. Que essa lembrança atenue a dor!

    Um a um, os membros do cortejo fúnebre se adiantaram, cada um com sua lembrança ou tributo ao jovem falecido. Cathal Lindir permaneceu em silêncio por um longo momento, tentando reprimir os soluços, até que finalmente balbuciou:

    - Éramos bredim. Eu o amava.

    Ele recuou, escondendo-se entre a multidão, incapaz até de pronunciar a frase ritual. Callista, ocupando seu lugar à beira da sepultura, declarou:

    - Ele era o único na minha família para quem eu não era... não era uma coisa apartada e estranha. Mesmo quando eu residia em Arilinn, e todos os meus outros parentes me tratavam como uma estranha, Domenic continuou a ser o mesmo. Que essa lembrança atenue a dor!

    Ela desejou que Ellemir estivesse presente, para ouvir os tributos a seu irmão predileto. Mas Ellemir optara por permanecer ao lado do pai. Domenic, alegara ela, estava além de qualquer ajuda ou sofrimento, enquanto o pai precisava de seus cuidados. Chegou a vez de Andrew se adiantar.

    - Cheguei como um estranho a Armida. Ficou ao meu lado no casamento, pois eu não tinha parente para me apoiar.

    Ao encenar, com a frase ritual, "Que essa lembrança atenue a dor!", ele lamentou ter tido tão pouco tempo para conhecer seu jovem cunhado.

    Parecia que todos os lordes e damas do Comyn presentes ao sepultamento de Domenic haviam rebuscado a memória para descobrir alguma pequena gentileza, um encontro agradável com o falecido. Lorenz Ridenow, que conspirara para derrubar Domenic do comando da Guarda, sob a alegação de que ele era muito jovem, comentou como o rapaz se mostrara modesto e competente, apesar de lhe delegarem tanta autoridade. Danvan Hastur, um rapaz baixo e atarracado, com cabelos prateado-dourados e olhos cinza, mestre dos cadetes da Guarda, contou como o jovem comandante intercedera pela vítima de uma brincadeira cruel entre os cadetes. Damon, que fora mestre dos cadetes durante o primeiro ano de Domenic na Guarda, quando ele tinha apenas quatorze anos, declarou que o cunhado estava sempre brincando, mas nunca o ouvira dizer qualquer piada maldosa, nem o vira fazer alguma brincadeira com laivos de crueldade. Andrew compreendeu, com uma pontada de pesar, como a ausência do jovem seria sentida. Não seria fácil para Valdir ocupar o lugar de um irmão tão apreciado e respeitado.

    Enquanto voltavam, o nevoeiro começou a se dissipar. Atravessando o passo nas colinas, pelo qual se descia para Thendara, Andrew tornou a correr os olhos pelo vale, observando os prédios que subiam dentro da área cercada da Zona Terráquea, com o zumbido das máquinas perceptível mesmo àquela distância. Houvera um tempo em que ele fora Andrew Carr e vivera em conjuntos assim, as luzes amarelas prevalecendo sobre a cor do sol do planeta em que se encontrava, sem se preocupar com o que existia além. Agora, olhava indiferente para as formas distantes das espaçonaves, para os esqueletos dos prédios inacabados. Tudo aquilo não tinha mais nada a ver com ele.

    Ao se virar, ele percebeu que Lorill Hastur o observava. Era o Regente do Conselho do Comyn, e Callista explicara que era mais poderoso do que o próprio rei. Um homem de meia-idade, alto, imponente, de cabelos vermelho-escuros, com muitos fios brancos nas têmporas. Seus olhos se encontraram por um momento com os de Andrew, que se lembrou de que Lorill era considerado um poderoso telepata e se apressou em virar o rosto. Sabia que era uma tolice - se o Lorde Hastur desejasse ler sua mente, poderia fazê-lo sem fitá-lo nos olhos! E conhecia agora o suficiente da ética dos telepatas para saber que Lorill não leria sua mente sem ser convidado, ou sem um bom motivo. Mesmo assim, sentiu-se contrafeito, sabendo que se encontrava ali sob uma falsa identidade. Ninguém sabia que ele era terráqueo. Tentou aparentar indiferença, escutando Callista, que lhe indicava os estandartes dos Domínios.

    - O pinheiro prateado sobre fundo azul é Hastur, como já sabe, pois viu quando Leonie esteve em Armida. E aquele é o estandarte Ridenow, em verde e dourado, acompanhando Lorenz. Damon tem o direito de ser portador do estandarte, mas não se importa com isso. As plumas vermelhas e cinza são o estandarte de Aillard, e a árvore e a coroa prateadas representam Elhalyn. Eles já foram do clã de Hastur.

    O Príncipe Duvic, pensou Andrew, que também viera prestar sua última homenagem ao herdeiro de Alton, parecia menos imponente do que Lorill Hastur, e até do que o jovem Danvan. Duvic era um jovem de aparência dissoluta e mimada, trajando presunçosamente pele.

    - E aquele é o velho Dom Gabriel de Ardais e sua consorte, Dama Rohana. Vê o falcão em seu estandarte?

    - São apenas seis, contando com o de Armida - comentou Andrew. - Qual é o sétimo Domínio?

    - O Domínio de Aldaran foi exilado há muito tempo. Já ouvi uma porção de motivos, mas desconfio que foi apenas porque eles viviam muito longe para vir ao Conselho todos os anos. O Castelo Aldaran é distante, nas Hellers, e é difícil governar pessoas que habitam em montanhas remotas, tão longe que ninguém pode saber se vivem ou não de acordo com as leis. Há quem diga que os Aldarans não foram exilados, mas se separaram por sua livre e espontânea vontade. De cada pessoa que indagar ouvirá uma história diferente das razões pelas quais os Aldarans não constituem mais o sétimo Domínio. Creio que algum dia um dos Domínios maiores vai se dividir outra vez, e assim voltaremos a ter sete. Os Hasturs fizeram isso quando a antiga linhagem de Elhalyn acabou. De qualquer forma, somos todos parentes, e muitos da pequena nobreza também têm sangue Comyn. O pai pensou uma ocasião em casar Ellemir com Cathal...

    Callista ficou em silêncio, e Andrew suspirou, pensando nas implicações. Casara numa família de soberanos hereditários de um Domínio. O filho de Ellemir e qualquer criança que Callista viesse a ter seriam os herdeiros de uma tremenda responsabilidade.

    E eu comecei a vida num pequeno rancho de criação de cavalos no Arizona!

    Ele sentiu-se igualmente impressionado quando, mais tarde, ainda naquele dia, o Conselho do Comyn reuniu-se, no que Callista chamara de Câmara de Cristal, uma sala no alto de uma das torres, com pedras translúcidas, cortadas em prismas, refletindo a luz do sol, de tal forma que a impressão que se tinha era de estar no meio de um arco-íris. Era octogonal, com fileiras de assentos, cada Domínio do Comyn sob seu emblema e estandarte. Callista explicou que cada membro de uma família com direito a participar do Conselho podia apresentar-se ali e falar, desde que tivesse laran. Como Guardiã de Arilinn, ela também possuíra esse direito, embora raramente se desse o trabalho de comparecer.

    Leonie se encontrava presente, junto com os Hasturs; Andrew desviou os olhos ao vê-la. Se não fosse por ela, Callista poderia agora ser sua esposa não apenas no nome e talvez fosse Callista quem estivesse esperando uma criança sua, não Ellemir.

    Mas neste caso, refletiu ele, nunca teria qualquer intimidade com Ellemir. Como poderia desejar isso?

    Dom Esteban, pálido e tenso, mas empertigado e distinto, em sua cadeira de rodas, sentou na primeira fila. Seus filhos sentaram nos lados, Valdir pálido e excitado, Dezi com o rosto impassível, indecifrável. Andrew percebeu as sobrancelhas franzidas, os olhares curiosos para Dezi. A semelhança de família era inegável, e o fato de Dom Esteban sentá-lo ao seu lado, na Câmara de Cristal, equivalia a um tardio reconhecimento público. A voz de Lorill De Hastur soou profunda e serena:

    - Esta manhã prestamos nossa homenagem ao herdeiro de Alton, tragicamente morto pelo infortúnio. Mas a vida continua, e agora devemos designar o próximo herdeiro. Esteban Lanart Alton, você quer... - Ele fez uma pausa, olhando para o velho na cadeira de rodas, e corrigiu: - Pode ocupar seu lugar entre nós? Se não, pode falar de onde está.

    Dezi levantou-se, empurrou a cadeira para a frente e depois retornou a seu lugar.

    - Esteban, peço que designe os próximos herdeiros de seu Domínio, a fim de que possamos conhecê-los e aceitá-los.

    Esteban anunciou, a voz calma:

    - Meu herdeiro mais próximo é meu filho legítimo mais jovem, Valdir-Lewis  Lanart-Ridenow,  com  minha legítima  esposa di catenas, Marcella Ridenow.

    Ele fez sinal para Valdir se adiantar; o rapaz foi se ajoelhar aos pés do pai.

    - Valdir-Lewis Lanart-Alton - continuou Dom Esteban,  usando pela primeira vez o título do Domínio, reservado apenas ao chefe do Domínio e seu herdeiro mais próximo -, como filho mais moço, você não estava jurado ao Comyn, nem mesmo por procuração, e por causa de sua juventude não se pode exigir nem aceitar nenhum juramento formal. Eu lhe pergunto apenas, portanto, se vai respeitar fielmente os votos jurados em seu nome e se os repetirá para si mesmo quando alcançar a idade legal.

    A voz do garoto soou trêmula:

    - Eu os respeitarei e repetirei.

    Dom Esteban gesticulou para que o filho se levantasse e beijou-o nas faces, enquanto dizia:

    - Neste caso, eu o designo para herdeiro de Alton.  Há alguma contestação?

    Gabriel Ardais, um homem na casa dos sessenta anos, alto e de porte ereto como um militar, mas grisalho e muito magro, com a palidez da doença, disse em voz rouca:

    - Não contesto, Esteban, que o garoto tem um nascimento legítimo e parece saudável. Além disso, meu filho-de-adoção Valentine, seu companheiro em Nevarsin, garante que ele é esperto e inteligente. Mas não me agrada que o herdeiro de um Domínio tão poderoso seja ainda tão jovem. Sua saúde é incerta, Esteban; deve considerar a possibilidade de não viver até que Valdir alcance a vida adulta. É preciso indicar um regente para o Domínio.

    - Estou pronto para designar um regente. Meu herdeiro seguinte, depois de Valdir, é o filho por nascer de minha filha Ellemir. Com a permissão de todos, indicarei o marido dela, Damon Ridenow, como regente de Alton e guardião de Valdir e da criança por nascer.

    - Ele não é um Alton - protestou Aran Elhalyn. Dom Esteban respondeu sem qualquer hesitação:

    - É um parente mais próximo do que muitos outros; sua mãe era minha irmã caçula, Camilla. Ele é meu sobrinho, possui laran e tem direito por casamento ao Domínio.

    - Conheço Lorde Damon - disse Aran. - Não é um jovem, mas sim um homem responsável, beirando os quarenta anos. Exerceu honrosamente muitas responsabilidades atribuídas aos filhos do Comyn. Mas não fomos informados desse casamento em Conselho. Podemos perguntar por que um casamento entre um filho do Comyn e uma comynara foi efetuado com uma pressa tão imprópria, e ainda por cima a título de companheiros livres?

    - Não era a temporada do Conselho - explicou Dom Esteban -, e os jovens não queriam esperar meio ano.

    - Damon - interveio Lorill Hastur -, se vai se tornar regente de um Domínio, seria conveniente que seu casamento passasse a ser di catenas, legitimado sob as leis do Conselho. Está disposto a casar com Ellemir-Lanart em plena cerimônia?

    Damon respondeu em tom jovial, pegando a mão de Ellemir:

    - Casarei com ela uma dúzia de vezes, se assim desejarem, por qualquer ritual que escolherem... se ela me quiser.

    Ellemir soltou uma risada alegre e feliz.

    - Pode duvidar disso, meu marido?

    - Então se adiante, Damon Ridenow de Serrais.

    Depois que Damon foi se postar no espaço central da sala, Lorill indagou, solene:

    - Damon, está livre para aceitar essa obrigação? É herdeiro de seu próprio Domínio?

    - Nem de longe,   tenho quatro irmãos mais velhos, e creio que eles têm um total de onze filhos... ou tinham, quando contei pela última vez; pode haver mais agora. Além disso, Lorenz já é avô duas vezes. Jurarei fidelidade a Alton de bom grado, se meu irmão e Lorde de Serrais conceder permissão.

    - Lorenz? - indagou Lorill olhando para o lugar da sala em que sentavam os Ridenows.

    Lorenz deu de ombros.

    - Damon  pode  fazer o que bem  quiser.  É responsável por seus atos, e não é provável que se torne o herdeiro de Serrais. Ainda por cima, casou no Domínio de Alton. Dou meu consentimento.

    Damon lançou um olhar rápido para Andrew, alteando uma sobrancelha, numa expressão cômica. Andrew captou seu pensamento: É a primeira vez que Lorenz aprova sem restrições alguma coisa que eu faço.

    - Ajoelhe-se então, Damon Ridenow - continuou Lorill. - Foi designado regente e guardião do Domínio de Alton, como parente mais próximo de Valdir-Lewis Lanart Alton, herdeiro de Alton, e do filho por nascer de Ellemir, sua legítima esposa. Está disposto a jurar fidelidade ao lorde do Domínio e renunciar a todas as outras lealdades, exceto ao Rei e aos deuses?

    - Eu juro.

    - Está disposto a assumir a tutela do Domínio, caso o chefe legítimo de Alton se mostre incapaz, pela idade, doença ou enfermidade,  de  agir  nessa  capacidade e  jura  que  guardará  e  protegerá  os próximos herdeiros de Alton com sua própria vida, se os deuses assim determinarem?

    - Eu juro.

    Ellemir, observando de seu lugar, percebeu as pequenas gotas de suor na testa do marido e compreendeu que Damon não queria aquilo. Não hesitava, pelo bem das crianças, Valdir e seu filho, mas não era algo que desejasse. E ela torceu para que o pai soubesse o que estava fazendo com Damon. Lorill Hastur acrescentou:

    - Declara solenemente que, ao melhor de seu conhecimento, tem condições de assumir essa responsabilidade? Há algum homem que conteste seu direito a essa tutela oficial, entre o povo de seu Domínio, entre todos os povos dos Domínios, entre todos os habitantes de Darkover?

    Ajoelhando-se, Damon pensou: Quem teria plenas condições de assumir tamanha responsabilidade? Não eu, por Aldones, Senhor da Luz, não eu! Contudo, farei o melhor que puder, juro por todos os Deuses. Por Valdir, por Ellemir e sua criança. Em voz alta, ele declarou:

    - Assumirei o desafio.

    Danvan Hastur, comandante da Guarda de Honra do Conselho, foi para o centro da sala, onde Damon continuava ajoelhado, a luz de arco-íris incidindo em seu rosto. Com a espada na mão, ele indagou, em voz bem alta:

    - Há alguém que conteste a tutela de Damon Ridenow-Alton, Regente de Alton?

    No meio do silêncio, uma voz jovem declarou:

    - Eu contesto.

    Damon, aturdido, sentindo a consternação de Andrew até mesmo do lugar em que ele sentava, no fundo dos assentos reservados aos Altons, ergueu a cabeça para ver Dezi se adiantar e pegar a espada da mão de Danvan.

    - Sob que alegação? - perguntou Lorill. - E com que direito? Não o conheço, meu jovem.

    Dom Esteban, angustiado, olhou para Dezi e murmurou, a voz trêmula:

    - Não confia em mim, Dezi, meu filho?

    Dezi ignorou as palavras e a ternura na voz do velho.

    - Sou Desiderio Leynier, filho nedestro de Gwennis Leynier e Esteban Lanart Alton. Como único filho adulto sobrevivente do lorde do Domínio, reivindico o direito de ser guardião de meu irmão e do filho por nascer de minha irmã.

    Lorill disse em tom firme:

    - A exceção dos dois filhos de Larissa dAsturien, que não têm laran, e assim se encontram excluídos por lei deste Conselho, não temos registro de qualquer outro filho nedestro de Esteban Lanart-Alton. Posso perguntar porque nunca foi reconhecido?

    - Deve perguntar isso a meu pai - respondeu Dezi, com um sorriso que beirava a insolência. - Mas invoco a Dama de Arilinn para testemunhar que sou Alton e possuo em plena medida o dom do Domínio.

    A pedido de Lorill, Leonie levantou-se, o rosto franzido demonstrando todo o seu desagrado pelo que estava acontecendo.

    - Não é da minha conta designar herdeiros no Comyn, mas, já que fui chamada a testemunhar, devo declarar que Desiderio diz a verdade: ele é filho de Esteban Lanart e possui o dom de Alton.

    - Estou pronto e disposto a reconhecer Dezi como meu filho, se este Conselho permitir, pois o trouxe até aqui com esse propósito - interveio Dom Esteban. - Mas não o considero o guardião mais apropriado para meu filho menor, nem para meu neto por nascer. Damon já é um homem maduro, Dezi ainda é muito jovem. Peço a Dezi para retirar a contestação.

    - Com todo o respeito, pai, não posso fazer isso - respondeu Dezi com extrema deferência.

    Damon, ainda ajoelhado, especulou sobre o que aconteceria agora. Tradicionalmente, a contestação podia ser resolvida pelo combate, um duelo formal, ou um dos dois podia recuar, ou qualquer deles podia apresentar provas ao Conselho de que o outro era incapaz. Foi o que Lorill explicou.

    - Tem algum motivo para achar que Damon é incapaz de assumir a responsabilidade, Desiderio Leynier, nedestro de Alton?

    -  Tenho, sim. - A voz de Dezi era estridente. - Declaro que Damon tentou me assassinar, a fim de tornar mais segura sua posição. Sabia que eu era filho de Esteban, enquanto ele não passava de genro em Alton, e por isso tirou minha matriz. Foi apenas graças à minha habilidade com o laran que ele não se tornou culpado pelo sangue derramado de um irmão no casamento.

    Oh, Deus!, pensou Andrew, sentindo a respiração prender na garganta. Mas que desgraçado, que jovem repulsivo! Quem além de Dezi poderia, inventar uma mentira tão sórdida?

    - É uma acusação muito grave, Damon - disse Lorill De Hastur. - Você serviu ao Comyn de forma honrosa por muitos anos. Nem mesmo teremos de escutá-lo, se puder nos oferecer alguma explicação.

    Damon engoliu em seco e levantou o rosto, consciente de que todos o observavam.

    - Servi em Arilinn; prestei o juramento ali de impedir qualquer uso errado da matriz.   Tirei a pedra de Dezi de acordo com esse juramento, pois ele fizera mau uso do laran, impondo sua vontade ao marido de minha irmã, Andra.

    - É verdade - confirmou Dezi, sem esperar que Damon continuasse. - Minha irmã Callista se apaixonou de forma absurda por esse homem  ambicioso que veio do  nada,  um   Terranan.   Tentei apenas  nos livrar desse homem inescrupuloso, que lançou um encantamento maligno sobre ela, a fim de que Callista pudesse fazer um casamento digno de uma dama do Comyn, em vez de se desgraçar na cama de um espião Terranan.

    Houve um tumulto. Damon levantou-se de um pulo, enfurecido, mas Dezi o enfrentou, desafiador, um pouco zombeteiro. Parecia que todos na Câmara de Cristal falavam ao mesmo tempo. Lorill Hastur tentou em vão, várias vezes, impor silêncio. Quando um arremedo de ordem foi restabelecido, ele declarou, muito sério:

    - Devemos investigar esse assunto em particular. Foram apresentadas as mais graves acusações e contra-acusações. Por enquanto, encerro a sessão do Conselho, e peço que não discutam o problema entre vocês. As intrigas não vão melhorar a situação. Cuidado com o fogo negligente na floresta; cuidado com a conversa negligente até mesmo entre os sábios. Mas podem estar todos certos de que investigaremos os certos e os errados da questão, e apresentaremos tudo para julgamento daqui a três dias.

    Lentamente, a sala se esvaziou. Esteban, muito pálido, olhou para Dezi e Damon com profunda tristeza.

    - Quando irmãos entram em conflito, os estranhos se apresentam para aumentar o abismo. Dezi, como pôde fazer isso?

    Dezi ergueu o queixo, obstinado.

    - Pai, vivo apenas para servi-lo. Duvida de mim? - Ele olhou para Ellemir, segurando o braço de Damon, e depois disse a Callista: - Um dia ainda vai me agradecer, minha irmã.

    - Irmã? - Callista fitou-o nos olhos, cuspiu no chão, num gesto ostensivo, virou-se e pôs as pontas dos dedos no braço de Andrew. - Tire-me daqui, meu marido. Este lugar rescende a traição.

    - Filha... - suplicou Dom Esteban.

    Mas Callista virou-lhe as costas, e Andrew não teve outra opção senão acompanhá-la. Mas seu coração batia forte, e os pensamentos pareciam ecoar o ritmo descompassado: O que vai acontecer agora?

   

    Assim que chegaram a seus aposentos, Callista virou-se para Andrew e disse com veemência:

    - Ele matou Domenic! Não sei como conseguiu, mas tenho certeza!

    - Só há um meio pelo qual ele poderia fazer isso - interveio Damon -, e tenho medo de pensar que seja tão forte assim.

    - Ele poderia ter dominado a mente de Cathal, obrigando-o a golpear Domenic num ponto vulnerável? - indagou Ellemir. - Dezi possui o dom de Alton e pode impor o contato...

    Mas ela parecia hesitante, e Callista balançou a cabeça.

    - Seria impossível sem matar Cathal, ou sem infligir tanto dano cerebral que o próprio estado de nosso primo denunciaria toda a história.

    O rosto de Damon estava frio e indecifrável.

    - Dezi tem talento suficiente para fazer o trabalho de uma Guardiã, e todos constatamos isso quando tirei sua matriz. Ele pode manipular ou modificar a pedra de outra pessoa, adaptando-a às suas próprias ressonâncias. Creio que, quando ele ficou a sós com Domenic, ferido, mas ainda vivo, não pôde resistir à tentação de ter de novo uma pedra em suas mãos. E quando a tirou do pescoço de Domenic...

    Damon se encolheu, e Andrew percebeu que suas mãos tremiam enquanto acrescentava:

    - O coração de Domenic parou com o choque.  Um assassinato perfeito, impossível de ser provado, já que não havia nenhuma Guardiã presente, e a maioria das pessoas nem sequer sabia que Domenic possuía uma matriz. E isso explicaria por que Dezi levantou uma muralha mental contra mim.

    - Entre telepatas, ele terá de se manter assim até o dia de sua morte, um terrível destino! - exclamou Callista, a voz trêmula.

    - Não tão terrível quanto a morte que ele infligiu a Domenic! - declarou Ellemir.

    - A situação é pior do que vocês imaginam - disse Damon em voz baixa. - Agora que ele conhece seu poder, acham que Valdir está seguro? Por quanto tempo Valdir será poupado, agora que é o único entre ele e a herança de Alton? E depois que Dezi conquistar o ouvido e a confiança total de Dom Esteban, quem mais se interporá entre ele e o controle do Domínio?

    Ellemir empalideceu e levou as mãos à barriga, como se protegesse a criança que gerava ali.

    - Eu disse que deveria tê-lo matado - murmurou ela, começando a chorar.

    Callista fitou-a consternada.

    - Seria muito fácil, bastaria romper uns poucos vasos sangüíneos frágeis, e o bebê sangraria até a morte, sem a sua ligação com a vida.

    - Não fale assim! - gritou Ellemir.

    - Por que acha que somos tão cuidadosos no treinamento dos monitores psíquicos? - insistiu Callista. - As mulheres nas Torres tomam precauções para não engravidarem durante seu tempo de serviço, mas ainda assim isso acontece de vez em quando. E Dezi aprendeu ali a monitorar... pela misericórdia de Avarra, fui eu quem o treinou! E aprender os  pontos vulneráveis,  saber como não danificar a  mãe  nem  a criança, torna fácil descobrir como violá-las.

    - Acho que ele é bem capaz disso - declarou Andrew,  falando pela primeira vez. - Mas não podemos fazer nada, sem mais provas do que temos. Há algum meio de comprovar o que ele fez?

    Mesmo que Dezi tivesse matado Domenic, ao remover a matriz do rapaz inconsciente, só precisava jogar fora um fragmento de cristal morto. O rosto de Damon estava franzido.

    - Creio que a própria fraqueza de Dezi vai denunciá-lo. É verdade que ele poderia ter-se livrado da prova, mas não acredito que seja capaz de renunciar a esse tipo de poder. Conseguiria resistir à tentação de ter outra vez uma matriz, em suas mãos? Não, se bem conheço o nosso Dezi. E podia ter modificado a pedra para seu uso, o que significa que ainda há uma testemunha contra ele. Silenciosa. Mas uma testemunha.

    - Isso é ótimo! - exclamou Andrew, sarcástico. - Só precisamos pedir a ele que se comporte como um bom rapaz e entregue a pedra cuja remoção matou Domenic.

    Damon levou a mão à sua própria matriz, como em busca de segurança.

    - Se ele estiver com uma matriz modificada, isso vai aparecer nas redes em Arilinn e nas outras Torres.

    - E de que adiantaria? - insistiu Andrew. - Qual é a distância para Arilinn? Uma viagem de dez dias... ou mais?

    - É mais simples do que isso - assegurou Callista. - Há uma rede aqui, na Torre Velha do Castelo Comyn. No passado, pelo que dizem, os técnicos podiam se teleportar entre as Torres, usando as grandes redes. O que não mais se faz. Mas também há redes monitoras, sintonizadas com as outras Torres. Qualquer mecânico pode entrar nessas redes e verificar qualquer matriz autorizada em Darkover. - Ela hesitou. - Eu não posso... renunciei a meu juramento.

    Damon sentiu-se impaciente com aquele detalhe técnico. Era uma perda para as Torres, e também uma perda para Callista, mas qualquer Guardiã mecânica que estivesse agora no comando da Torre Velha respeitaria a proibição, e não havia nada que se pudesse fazer a respeito.

    - Quem comanda a Torre Velha, Callista? Não posso acreditar que Mãe Ashara nos receberia para uma missão assim.

    - Ninguém na memória viva viu Ashara fora da Torre - informou Callista. - Acho que ela não poderia mais sair, mesmo que quisesse, de tão velha. Eu mesma só a vi através das redes, e tenho a impressão de que Leonie também nunca a encontrou pessoalmente. Mas por minhas últimas informações, Margwenn Elhalyn era a Subguardiã; ela lhe dirá o que deseja saber.

    - Margwenn era monitora psíquica em Arilinn quando fui o terceiro ali - comentou Damon. - Vinha de Hali; não sabia que tinha se transferido para cá.

    Técnicos, mecânicos o monitores eram transferidos de uma Torre para outra, de acordo com as necessidades. Margwenn Elhalyn podia não ser exatamente uma velha amiga, mas pelo menos sabia quem ele era, e isso pouparia longas explicações sobre o que desejava.

    Damon nunca estivera dentro da Torre Velha do Castelo Comyn. Margwenn recebeu-o na câmara da matriz, um lugar de telas antigas, de dispositivos esquecidos desde a Era do Caos. Damon, sua missão em segundo plano por um momento, examinou tudo com uma curiosidade ávida. Por que toda aquela tecnologia, a ciência antiga de Darkover, resvalara para a obscuridade? Nem mesmo em Arilinn ele aprendera a usar todas aquelas coisas. É verdade que havia bem poucos técnicos e mecânicos até para guarnecer as redes que proporcionavam as comunicações e geravam a energia essencial para determinadas tecnologias; mas mesmo que os trabalhadores de matriz não estivessem mais dispostos, naqueles tempos de auto-indulgência, a renunciar a suas vidas para viver por trás de muros, algumas daquelas coisas podiam ser feitas lá fora!

    Estranhos pensamentos heréticos para acalentar no próprio centro da ciência antiga. Quando seus antepassados proibiram que tal se fizesse, deviam ter bons motivos!

    Margwenn Elhalyn era esguia, cabelos louros, idade indefinível, embora Damon calculasse que era apenas um pouco mais velha do que ele. Era fria e retraída, com o decoro quase hierático de todas as guardiãs.

    - Mãe Ashara não pode recebê-lo, pois sua mente vagueia por outras partes, como acontece agora durante a maior parte do tempo. Em que posso ajudá-lo, Damon?

    Damon hesitou, relutante em explicar sua missão e acusar Dezi, sem provas, de algo que apenas desconfiava. Margwenn não comparecera à sessão do Conselho, embora tivesse esse direito. Muitos técnicos não se interessavam por política. Damon também se sentira assim outrora, achando que o trabalho nas Torres se encontrava acima das mesquinhas considerações políticas. Agora, já não tinha a mesma certeza. Ele acabou dizendo:

    - Surgiu alguma confusão sobre o paradeiro de determinadas matrizes em poder do clã Alton, todas legítimas, mas com destino incerto. Conhece Dezi Leynier, que esteve em Arilinn por menos de um ano, já faz algum tempo?

    - Dezi? - repetiu Margwenn, sem muito interesse. - Um bastardo do Lorde Alton, não é mesmo? Claro que me lembro. Ele foi dispensado porque não era capaz de manter a disciplina, pelo que ouvi dizer.

    Ela foi até a tela monitora e postou-se imóvel diante da superfície cristalina. Depois de um momento, luzes começaram a piscar lá no fundo. Damon, observando o rosto de Margwenn, sem tentar acompanhá-la em pensamento, compreendeu que ela estava ligada à rede em Arilinn. Margwenn informou:

    - É evidente que ele renunciou à sua matriz. Está nas mãos de uma Guardiã, não desativada, mas mantida em nível muito baixo.

    Nas mãos de uma Guardiã. Damon, que baixara o nível da pedra e a guardara numa caixa lacrada, à prova de qualquer interferência, já sabia disso muito bem.

    As mãos de uma Guardiã. Mas qualquer técnico competente podia fazer o trabalho de uma Guardiã. Por que isso deveria ser envolto por tabu, ritual, reverência supersticiosa? Ocultando seus pensamentos de Margwenn, ele pediu:

    - Pode agora verificar o que aconteceu com a matriz de Domenic Lanart?

    - Tentarei, mas pensei que ele tivesse morrido. Sua matriz provavelmente morreu com ele.

    - Foi o que também pensei, mas não a encontraram no corpo. É possível que esteja nas mãos de uma Guardiã?

    Margwenn deu de ombros.

    - Parece improvável, embora seja possível, sabendo que Domenic não costumava usar o Laran, que alguma a tenha reivindicado e modificado para o uso de outra pessoa, ou o seu próprio. Embora a maioria das Guardiãs prefira começar com um cristal virgem. Onde ele foi testado? Não em Arilinn, tenho certeza.

    - Creio que foi em Neskaya.

    Margwenn franziu as sobrancelhas enquanto voltava à tela. Não era preciso sutileza telepática para acompanhar seu pensamento: São capazes de fazer qualquer coisa em Neskaya. Depois de algum tempo, ela virou-se para comunicar:

    - Você acertou. Está nas mãos de uma Guardiã, mas não em Neskaya. Deve ter sido modificada, e foi entregue a outra pessoa. Não morreu com Domenic. Continua plenamente operacional.

    Pronto, pensou Damon, com um aperto no coração. Uma coisa pequena, como prova incontestável de um assassinato diabólico, a sangue frio.

    Não premeditado. O que era um consolo mínimo. Nenhuma pessoa viva poderia prever que Cathal deixaria Domenic inconsciente durante o exercício. Mas uma súbita tentação... e a matriz de Domenic sobrevivera a ele, apontando implacável para a única pessoa que poderia removê-la de seu corpo sem morrer no processo.

    Pelos deuses lá em cima, que desperdício! Se Dom Esteban fosse capaz de superar seu orgulho, admitir as circunstâncias um tanto vergonhosas da geração de Dezi, se estivesse disposto a reconhecer antes aquele jovem de tanto talento, nada daquilo teria acontecido.

    Damon pensou, com uma empatia angustiante, que a tentação devia ter sido repentina e irresistível. Para um telepata treinado, viver sem a matriz era como ser surdo, cego, mutilado, e a visão de Domenic inconsciente o levara ao assassinato, ao assassinato do único irmão que defendera seu direito de ser chamado de irmão, que fora seu benfeitor e amigo.

    - Damon, o que o aflige? - indagou Margwenn, aturdida. - Sente-se mal, parente?

    Ele apresentou uma desculpa cortês, agradeceu a ajuda e foi embora. Ela saberia de tudo muito em breve. Pelos infernos de Zandru, não havia como esconder a situação. Todo o Comyn logo descobriria, e todos em Thendara. Que escândalo para os Altons! De volta a seus aposentos, ele contou imediatamente a verdade a Ellemir.

    - Misericordiosa Avarra, o que isso fará a nosso pai? Ele amava Dezi. E Domenic também o amava.

    - Eu gostaria de poder poupá-lo desse conhecimento - murmurou Damon, consternado. - Mas sabe por que eu não posso, Elli.

    - Quando o pai souber a verdade, haverá outro assassinato, tenho certeza! - disse Callista.

    - Ele ama o rapaz, já o poupou antes - protestou Andrew. Callista contraiu os lábios com toda a força.

    - É verdade. Mas quando eu era menina, o pai tinha um cachorro predileto. Criara-o pessoalmente desde que era filhote, dormia em sua cama à noite, ficava a seus pés no chão do Salão. Quando ficou um cão velho, no entanto, tornou-se maldoso. Passou a matar animais nos pátios, e uma ocasião mordeu Dorian, tirando sangue. O coridom disse que devia ser destruído, mas sabia como o pai amava aquele velho cão. Ofereceu-se para cuidar discretamente do assunto.  Mas o  pai  declarou: "Não. O problema é meu." Ele saiu para o estábulo, chamou o cão e torceu seu pescoço com as próprias mãos.

    Ela se calou, pensando no quanto o pai chorara depois, a única vez em que o vira chorar, exceto por ocasião da morte de Coryn.

    Mas ele nunca se abstinha de fazer o que devia.

    Damon sabia que ela estava certa. Podia preferir poupar o sogro de mais esse sofrimento, mas Esteban Lanart era Lorde Alton, com a tutela, até mesmo de vida e morte, sobre cada homem, mulher e criança em seu Domínio. Nunca aplicara a justiça de forma injusta, mas também nunca se omitira.

    - Vamos - disse ele a Andrew. - Devemos apresentar a situação a Dom Esteban.

    Quando Callista se levantou para acompanhá-los, Damon balançou a cabeça.

    - Breda, esse é um assunto para os homens.

    Ela ficou branca de raiva.

    - Como ousa me falar assim, Damon? Domenic era meu irmão, e Dezi também é! Sou uma Alton!

    - E eu também! - acrescentou Ellemir. - Além do mais, meu filho será o herdeiro seguinte, depois de Valdir!

    Ao se encaminharem para a porta, um trecho de uma canção aflorou na cabeça de Damon, incongruente, de alguma lembrança triste. Depois de um momento, ele identificou com a canção que Callista começara a cantar e pela qual fora censurada:

    De onde veio esse sangue em sua mão direita,

    Irmão, conte-me, conte-me... É o sangue de meus próprios irmãos,

    Que comigo beberam...

    Ellemir falara a verdade, mais do que imaginava: Dava azar uma irmã entoar essa canção na presença de um irmão. Mas olhando agora para as mulheres, Damon pensou que elas, como a irmã na balada antiga, que condenara o irmão assassino ao banimento, não haveriam de hesitar na sentença.

    Eram apenas uns poucos passos até os aposentos de Dom Esteban, mas para Damon pareceu uma longa jornada, através de um abismo de angústia. O velho ficou surpreso quando eles entraram.

    - O que significa isso? Por que estão todos tão solenes? Callista, o que há com você, filha?  Elli, você andou chorando?

    - Pai - disse Callista -, onde está Valdir? E Dezi se encontra com ele?

    - Os dois estão juntos, eu espero. Sei que você tem ressentimento contra Dezi, Damon, mas não se esqueça de que ele tem o direito do seu lado. Eu já deveria ter feito há muitos anos o que me proponho a fazer agora. O rapaz não tem idade suficiente para ser o regente do Domínio, nem o guardião de Valdir. A idéia é absurda, mas creio que ele verá a luz da razão depois que for reconhecido. E se tornará então um irmão para Valdir, como o foi para o meu pobre Domenic.

    - Pai - murmurou Ellemir, é justamente isso o que tememos.

    O velho virou-se para ela, furioso.

    - Pensei que pelo menos você demonstraria a clemência de uma irmã, Ellemir!

    Ele percebeu que Damon e Andrew o fitavam fixamente. Olhou de um para o outro em crescente aflição.

    - Como se atrevem?

    Impaciente, Dom Esteban projetou-se para o contato mental e leu diretamente o que eles sabiam. Damon sentiu que a informação era absorvida pela mente do velho em meio a uma dor intensa. Foi como a morte, um momento ofuscante de agonia física. Ele captou o último pensamento do velho: Meu coração está se partindo. Sempre pensei que isso era apenas uma figura de retórica, mas é o que está acontecendo. No instante seguinte, Dom Esteban resvalou para a inconsciência misericordiosa. Andrew, agindo depressa, amparou o corpo inerte em seus braços, no momento em que caía da cadeira de rodas.

    Chocado demais para pensar com lucidez, ele estendeu o sogro na cama. Damon ainda se encontrava paralisado pelo golpe da dor de Dom Esteban.

    - Acho que ele morreu - murmurou Andrew, atordoado. Calista adiantou-se, verificou a pulsação, encostou o ouvido no peito do pai.

    - Não. O coração ainda bate. Depressa, Ellemir, vá chamar Ferrika, que está mais próxima, enquanto um de vocês vai procurar Mestre Nicol.

    Ela esperou ao lado do pai, lembrando que Ferrika a advertira de que o coração do velho estava cada vez mais fraco. Ao chegar, Ferrika confirmou o temor de Callista.

    - Houve algum problema no coração, Callista. - Em sua compaixão, ela esqueceu o formal "minha dama", recordando que haviam brincado juntas quando crianças. - Ele sofreu mais choques do que podia suportar.

    Ferrika foi buscar poções estimulantes e quando Mestre Nicol chegou, os dois conseguiram fazer com que o velho tomasse uma dose.

    - O estado é incerto - avisou Mestre Nicol. - Ele pode morrer a qualquer momento, ou resistir até o Solstício do Verão. Sofreu algum choque? Com todo o respeito, Lorde Damon, ele deveria ter sido resguardado de qualquer tensão ou má notícia.

    Damon sentiu vontade de perguntar como se podia resguardar um telepata das más notícias. Mas Mestre Nicol fazia o melhor de que era capaz, e não teria uma resposta, tanto quanto o próprio Damon.

    - Faremos tudo o que for possível, Lorde Damon, mas por enquanto... Ainda bem que ele já o tinha escolhido para regente.

    Foi como uma ducha de água gelada. Ele era o regente de Alton, com a guarda e soberania sobre o Domínio, até que Valdir fosse declarado um homem.

    Regente. Com o poder de vida e morte.

    Não, pensou Damon, arrepiando-se em repulsa. Seria demais. Ele não queria isso.

    Mas contemplando o velho abatido, compreendeu qual era o seu dever. Confrontado com a prova da traição de Dezi, o Lorde Alton teria de agir de forma implacável, a fim de proteger os herdeiros, o garoto e o bebê por nascer. Como Damon devia agir...

   

    Quando Dezi voltou com Valdir, encontrou todos à sua espera.

    - Valdir - disse Ellemir gentilmente -, nosso pai está muito doente. Procure Ferrika e peça notícias dele.

    Para alívio geral, o garoto saiu correndo no mesmo instante. Dezi permaneceu onde estava, com uma atitude de desafio.

    - Agora conseguiu o que queria, Damon. É o regente de Alton. Ou será que não?

    - Estou preparado, Dezi. Não poderá fazer comigo a mesma coisa que fez com Domenic. Como regente de Alton, exijo que me entregue a matriz que roubou do corpo de Domenic.

    Damon viu a compreensão se estampar no rosto de Dezi. E depois, para horror de Damon, o jovem soltou uma risada. Damon refletiu que nunca ouvira um som tão chocante quanto aquela risada.

    - Venha tirar de mim, seu meio-homem Ridenow. Mas saiba que não será tão fácil desta vez. Não conseguirá tirá-la de mim agora, nem mesmo com seu véu de Guardiã! Lancei um desafio na sessão do Conselho, vamos resolver tudo, aqui e agora. Qual de nós será o regente de Alton? Acha que tem força suficiente? Meio homem, meio eunuco, é assim que o chamam!

    Damon sabia que Dezi captara o escárnio de Lorenz... ou teria sido dele próprio?

    - Se me matar, vai provar ainda mais que não tem condições de ser regente. Não é apenas uma questão de força, mas de direito e responsabilidade.

    - Ora, não me venha com essa hipocrisia! A mesma responsabilidade que nosso querido pai demonstrou comigo?

    Damon teve vontade de dizer que o velho dom sentia tanto amor por Dezi que sua traição quase o matara. Mas não desperdiçou mais palavras. Pegou sua matriz e focalizou, empenhando-se em aliciar as ressonâncias da pedra que Dezi usava. A matriz roubada de Domenic.

    Dezi sentiu o contato e desfechou um tremendo golpe mental. Damon caiu de joelhos, fisicamente, ao impacto. Dezi possuía o dom de Alton, a raiva que podia matar. Reprimindo o pânico, ele compreendeu que Dezi crescera, tornara-se mais forte. Como um lobo com gosto por carne humana, tinha de ser destruído imediatamente, a fim de que a besta voraz não pusesse em risco o Comyn...

    A sala foi ficando enevoada, com os turbilhões de força projetando-se entre os dois. Damon tornou a fraquejar, sentiu a força de Andrew ampará-lo, no momento mesmo em que o terráqueo o erguia fisicamente. Dezi faiscava no meio do nevoeiro, lançando raios contra os dois homens. Damon teve a sensação de que o chão cedia sob seus pés, que pouco a pouco era sufocado.

    Callista interpôs-se entre eles. Parecia pairar acima de todos, alta e imperiosa, a matriz ardendo em sua garganta. Damon viu a matriz na mão de Dezi se tornar incandescente, como um carvão em brasa, queimando a túnica e a carne. Dezi soltou um grito de dor e raiva, e por um instante Damon viu Callista como ela fora em Arilinn, faiscando com a túnica escarlate de uma Guardiã. Sacando a pequena adaga que usava na cintura, ela cortou o cordão da bolsa que continha a matriz de Dezi. A pedra caiu no chão, ardeu como fogo quando Dezi estendeu a mão para pegá-la. Damon sentiu com Dezi a agonia da mão em chamas. A matriz rolou para o lado, uma coisa enegrecida e morta.

    E Dezi desapareceu. Por uma fração de segundo, Andrew observou o lugar em que Dezi estivera, o ar ainda tremendo. E depois ressoou nas mentes de todos um terrível grito agonizante, de desespero e raiva. E todos viram, como se estivessem fisicamente presentes, o cômodo em Armida.

    Quando Callista destruíra a matriz roubada de Domenic, Dezi não pudera suportar a perspectiva de ficar outra vez sem uma pedra. Com suas últimas forças, tratara de se teleportar, através do mundo superior, para o lugar em que Damon guardara a sua própria - uma reação de pânico, sem pensamento racional. Um momento de consideração lhe diria que sua matriz se encontrava trancada com toda a segurança, dentro de uma caixa de metal. Dois objetos sólidos não podiam ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, não no universo sólido. E Dezi - todos viram e estremeceram de horror - se materializara meio dentro e meio fora da caixa, segurando a matriz. E mesmo antes que se desvanecesse o grito agonizante. Todos ouviram o eco na mente de Damon. Dezi se encontrava caído no chão, em Armida, o corpo estraçalhado. Mesmo em seu horror, Damon ainda encontrou tempo de se compadecer de quem teria de limpar aquele cadáver materializado, meio dentro e meio fora da caixa-forte trancada, o crânio esborrachado como se fosse uma fruta podre.

    Ellemir arriara no chão, gemendo em choque e pavor. O primeiro pensamento de Andrew foi para ela. Correu para levantá-la, tentando lhe incutir força, como fizera com Damon. Só lentamente Damon foi recuperando o controle, com o olhar perdido no espaço. Callista não desviava os olhos de sua matriz, dominada pelo horror.

    - Agora sou mesmo uma perjura... - balbuciou ela. - Violei meu juramento... e usei a força para matar...

    Ela desatou a berrar, desvairada, batendo em si mesma com os punhos, rasgando o próprio rosto com as unhas. Andrew largou Ellemir numa cadeira, com toda a gentileza, e correu para Callista. Tentou segurar seus braços agitados. Houve uma chuva de faíscas azuis, e ele foi lançado, atordoado, contra a parede do outro lado. Callista, fitando-o, os olhos arregalados em frenesi e horror, gritou de novo, e suas unhas cortaram as próprias faces, o sangue escorrendo em filetes finos.

    Damon adiantou-se. Agarrou-a pelos pulsos com uma das mãos, imobilizando-a, e com a outra mão esbofeteou-a com toda a força. Os gritos definharam para um lamento. Ela arriou, e Damon a amparou, aninhando a cabeça em seu ombro. Callista começou a soluçar.

    - Eu tinha renunciado a meu juramento... não pude me controlar... agi contra ele como uma Guardiã! Oh, Damon, ainda sou uma Guardiã, apesar de meu juramento!

    - Que se dane seu juramento! - berrou Damon, sacudindo-a. - Pare com isso, Callista! Nem mesmo sabe que salvou a vida de todos nós?

    Ela parou de chorar, mas o rosto, manchado de lágrimas e sangue, contraiu-se numa máscara de horror.

    - Violei meu juramento!

    - Todos violamos nossos juramentos, e agora é tarde demais para qualquer arrependimento! Trate de se controlar, Callie! Tenho de verificar se aquele bastardo conseguiu também matar seu pai. E Ellemir...

    Damon sentiu a respiração prender na garganta. Chocada para a docilidade, Callista aproximou-se de Ellemir, arriada na cadeira, inerte. Depois de um momento, ela ergueu a cabeça.

    - Creio que a criança nada sofreu. Vá verificar como está nosso pai, Damon.

    Encaminhando-se para o quarto em que se encontrava o velho, Damon compreendeu que Dom Esteban se achava tão próximo da morte que a fraqueza lhe proporcionara um escudo. Fora poupado de todo e qualquer conhecimento da batalha mortal. Damon, no entanto, precisava de um momento sozinho, a fim de absolver seu novo conhecimento.

    Sem pensar, agira contra uma Guardiã, uma Alton, numa reação automática, para arrancá-la da histeria, e assumira a plena e total responsabilidade.

    Eu é que sou o Guardião dos quatro. Não importa o que possamos fazer, a responsabilidade é minha.

    Sabia que não passaria muito tempo para que fosse obrigado a explicar o que fizera. Todos os telepatas, de Dalereuth às Hellers, deviam ter testemunhado aquela morte.

    E já os alertara para o que estava acontecendo entre os quatro, quando construíra, junto com Andrew e Dezi, aquele ponto de referência no mundo superior, a fim de curar os homens congelados. O pesar tornou a corroê-lo, pelo jovem que tivera uma morte tão terrível e trágica. Aldones, Senhor da Luz... Dezi, Dezi, que desperdício, que trágico desperdício de todos os seus talentos...

    Mas até mesmo o pesar foi substituído pelo conhecimento do que fizera, daquilo que se tornara.

    Exilado de Arilinn, construíra sua própria Torre. E Varzil o saudara como tenerézu. Guardião. Ele era um Guardião. Guardião de uma Torre proibida.

   

    Damon sabia que não demoraria a acontecer; e não demorou.

    Ellemir se aquietara. Continuava sentada na cadeira em que Andrew a largara, ofegando um pouco com o choque. Ferrika, convocada, fitou-a com alguma consternação.

    - Não sei o que andou fazendo, minha dama, mas é melhor ir para a cama agora e ficar lá, se não quiser perder essa criança também.

    Ela começou a passar gentilmente as mãos pelo corpo de Ellemir. Para surpresa de Damon, não houve um contato físico, as pontas dos dedos se mantendo a dois ou três centímetros de distância. Ao final, com o rosto um pouco franzido, Ferrika disse:

    - O bebê está bem. Para ser franca, seu estado é pior que o dele. Mandarei uma criada trazer uma refeição quente. Deve comer e ir para...

    Ela parou de falar abruptamente, olhando para suas mãos, em espanto e reverência.

    - Em nome da Deusa, o que estou fazendo?

    Callista, tendo de assumir a responsabilidade, declarou:

    - Não se preocupe, Ferrika, seu instinto é bom. Conviveu conosco por muito tempo, e assim não é surpreendente. Se tivesse um resquício de laran, não poderia deixar de ser despertado. Mais tarde, eu lhe mostrarei como fazer isso com precisão. Com uma mulher grávida, é um pouco difícil.

    Ferrika piscou, aturdida, fitando Callista. O rosto redondo, de nariz arrebitado, parecia um tanto confuso.

    - Não sou uma leronis.

    -  Também não sou agora, Ferrika, mas fui ensinada, como você será. É a mais útil das habilidades para uma parteira. Tenho certeza que possui mais laran do que imagina. Agora, vamos levar Ellemir para o quarto, pois ela precisa descansar. - Erguendo a mão para o rosto sangrando, Callista acrescentou: - Preciso também cuidar destes ferimentos. E quando pedir comida para Ellemir, Damon, peça alguma coisa para mim também. Estou faminta.

    Damon observou-as se retirarem. Há muito que desconfiava que Ferrika possuía algum laran, mas sentia-se grato por Callista ter decidido assumir a responsabilidade de ensiná-la.

    Não havia razão para que qualquer pessoa com talento não pudesse receber o treinamento, sendo ou não do Comyn. Só porque as coisas eram assim desde a Era do Caos, não havia motivo para que continuassem da mesma maneira até que Darkover mergulhasse na Noite Final! Andrew se tornara um deles, e era um terráqueo. Ferrika nascera em Alton, uma plebéia, e ainda pior, uma Amazona Livre. Mas possuía tudo o que era necessário para se tornar um deles: tinha laran e sangue do Comyn. Era só ver o que fizera com Dezi!

    Consciente de que também estava faminto, depois da terrível batalha de matriz, Damon mandou trazer bastante comida. Enquanto comia, sem se preocupar com o que era, observou Andrew fazer a mesma coisa. Nenhum dos dois falou de Dezi. Em algum momento no futuro, pensou Damon, Dom Esteban teria de tomar conhecimento de que o filho bastardo, que ele tanto amara e defendera, morrera por seus crimes. Mas precisaria saber dos terríveis detalhes.

    Andrew comeu sem sentir o gosto, com a fome insaciável que acompanhava o trabalho com a matriz; mas sentia-se nauseado, mesmo enquanto o corpo faminto absorvia os alimentos com uma intensidade mecânica. Seus pensamentos tinham um contraponto amargo: via Damon sacudindo Callista, impedindo-a de continuar na auto-mutilação. A lembrança do rosto de Callista sangrando o deixava angustiado.

    Deixara a Damon o encargo de cuidar dela, pensando apenas em Ellemir. Que esperava seu filho. Tocara em Callista e fora arremessado para o outro lado da sala. Damon a agarrara como se fosse um homem das cavernas, e ela se aquietara no mesmo instante. Andrew especulou, desesperado, se ambos não teriam casado com as mulheres erradas.

    Afinal, refletiu ele, a mente se arrastando consternada por um caminho familiar, os dois eram treinados na torre, telepatas de alto nível, compreendiam um ao outro. Elli e ele se encontravam numa posição diferente, não passavam de pessoas comuns, não compreendiam aquelas coisas. Andrew olhou para Damon com um sentimento de inferioridade ressentida.

    Ele matou um rapaz esta manhã. Da forma mais horrenda possível. E agora senta calmamente para comer!

    Damon percebeu o ressentimento de Andrew, mas não tentou acompanhar seus pensamentos. Sabia e aceitava que havia ocasiões, talvez sempre haveria, em que Andrew, sem qualquer motivo que ele pudesse compreender, de repente se apartava, deixava de ser um irmão amado e se tornava um estranho desesperadamente alienado. Sabia que era parte do preço que ambos tinham de pagar pela tentativa de estender a fraternidade através de dois mundos conflitantes, duas sociedades muito diferentes. Era bem possível que sempre fosse assim. Tentara superar o abismo, mas sempre agravava a situação. Agora, tudo o que podia fazer, e com tristeza reconhecia o fato, era deixar que as coisas seguissem seu curso natural.

    Quando a porta tornou a ser aberta, Damon ergueu a cabeça, na maior irritação, mas tratou de se controlar: afinal, o criado tinha seu trabalho a fazer.

    - Quer levar os pratos? Um momento... Andrew, já acabou?

    - Não senhor, dom - disse o homem -, a Dama de Arilinn e sua leroni da Torre suplicam o favor de lhe falar, Lorde Damon.

    Suplicam"? Cético, Damon pensou que isso não era provável.

    - Avise que receberei todo mundo na câmara exterior dentro de poucos minutos.

    Em particular, ele agradeceu a qualquer deus que pudesse estar escutando o fato de Calista ter-se retirado com Ellemir e não pedirem sua presença. Se Leonie visse os arranhões em seu rosto...

    - Vamos embora, Andrew. É bem provável que queiram falar com nós quatro, embora ainda não saibam disso.

    Leonie liderava o grupo. Margwenn Elhalyn a acompanhava, assim como duas telepatas de Arilinn que haviam ingressado ali depois do tempo de Damon, e um homem chamado Rafael Aillard, que fora seu contemporâneo na Torre, embora agora estivesse servindo em Neskaya. Era incrível, pensou Damon, que aquele homem já tivesse pertencido a seu círculo, mais íntimo do que um parente de sangue, seu amigo amado. Leonie estava velada, o que irritou Damon. Era apropriado, sem dúvida, que uma comyn e Guardiã se apresentasse velada entre estranhos. Poderia entender, se Margwenn estivesse velada, mas Leonie? Apesar de tudo, porém, ele falou como se fosse uma coisa corriqueira a invasão de seus aposentos por quatro telepatas, sob o comando da Guardiã de Arilinn:

    - Parenta, é uma grande honra. Em que posso servi-la?

    Leonie disse bruscamente:

    - Damon, você foi afastado de Arilinn há alguns anos. Possui laran e foi treinado no uso de uma matriz. Portanto, não está proibido de usá-la para quaisquer propósitos pessoais que sejam legítimos. Mas a lei proíbe que qualquer operação de matriz mais séria seja realizada fora das salvaguardas de uma torre. E agora você usou sua matriz para matar.

    Na verdade, pensou Damon, fora Callista quem matara Dezi. Mas isso não importava. A responsabilidade era sua e foi o que disse.

    - Sou o regente de Alton. Levei à morte, de uma forma legal, um assassino que matou uma pessoa e tentou matar outra dentro do Domínio. Reivindico imunidade.

    - Imunidade   negada  - disse  Margwenn.  - Devia  abatê-lo  num duelo legal, com armas legítimas. Não tem o direito de usar uma matriz, fora da Torre, para uma execução.

    - A tentativa de assassinato e o assassinato foram cometidos através de matriz. Sendo treinado na torre, prestei o juramento de impedir esse abuso.

    - Abuso para impedir um abuso, Damon?

    - Nego que eu tenha cometido um abuso.

    - Não lhe cabia tomar tal decisão - interveio Rafael Aillard. - Se Dezi violara as leis de Arilinn... e pelo que eu sabia dele, não é difícil acreditar nessa possibilidade, embora não venha ao caso aqui... você deveria ter-nos apresentado a situação e deixado que adotássemos as ações cabíveis.

    A resposta de Damon foi monossilábica e obscena. Andrew nunca imaginara que Damon fosse capaz de falar assim na presença de mulheres.

    - O primeiro crime foi cometido em Armida. Ele tentou impor sua vontade a meu irmão jurado, levando-o a sair para uma tempestade sem qualquer proteção; só a sorte o salvou da morte. E agora Dezi matou o irmão de minha esposa, o herdeiro de Alton, e por pouco todos não deixavam passar como um lamentável acidente! Quem senão eu deveria aplicar a punição? Durante toda a minha vida, fui ensinado que tinha a responsabilidade de lidar com um crime contra o clã. Não é isso que o Comyn propõe?

    - Mas recebeu seu treinamento para uso dentro de uma Torre - insistiu Leonie. - Quando foi afastado...

    - Deveria passar o resto da vida sem o conhecimento e a habilidade adquiridos pelo treinamento? Se não podiam confiar que eu saberia utilizar o conhecimento, por que o deram a mim? Devo passar o resto da vida como uma criança andando em arreios, só podendo me mexer se a babá permite?

    Ele fitou Leonie nos olhos. Não falou em voz alta, mas todos os presentes puderam entender: Eu nunca deveria ter sido afastado de Arilin. Fui dispensado sob um pretexto que agora sei que era falso. Em voz alta, Damon declarou:

    - Quando me mandaram embora, concederam-me a liberdade de agir de acordo com minha responsabilidade, como qualquer filho do Comyn.

    E mesmo agora, Leonie, você não quer me encarar.

    Como ousa pensar assim? Leonie removeu o véu. Damon notou, com indiferença, que ela perdera quase por completo os resquícios de sua extraordinária beleza. Empertigou-se em toda a sua altura - quatro ou cinco centímetros a mais do que Damon - e disse:

    - Eu me recuso a ouvir esses argumentos capciosos!

    Damon respondeu com uma insolência fria e deliberada:

    - Não convidei nenhum de vocês a vir aqui. O guardião de Alton  é  obrigado  a  escutar e  se manter calado,  como  se  fosse  uma criança levada sendo repreendida, em seus próprios aposentos?

    Leonie franziu o rosto.

    - Prefere que o assunto seja discutido formalmente na presença de todo o Comyn, numa sessão na Câmara de Cristal?

    Damon deu de ombros.

    - Muito bom, podem falar. - Ele acenou com a cabeça para as cadeiras ao redor da sala. - Não querem sentar? Não me agrada discutir assuntos tão relevantes de pé, deslocando o peso do corpo de uma perna para a outra, como se fosse um cadete sofrendo uma punição. E posso lhes oferecer refrescos?

    - Não, obrigada.

    Mas todos sentaram. Andrew permaneceu de pé. Sem o saber, assumira a posição tradicional de um pajem, um passo atrás de seu lorde. Os outros perceberam e estranharam, enquanto Leonie começava a falar:

    - Quando você deixou Arilinn, confiávamos que cumpriria as leis, e de um modo geral nunca tivemos qualquer queixa. De vez em quando observávamos sua matriz nas telas monitoras, mas a maioria das coisas que você fez era de pouca monta e legítima.

    - Isso é ótimo! - exclamou Damon, com uma ênfase sarcástica. - Fico aliviado em saber que consideraram legítimo eu usar minha matriz para trancar uma caixa-forte, encontrar o caminho por um bosque se saíra da trilha ou estancar a hemorragia do ferimento de um amigo!

    A irritação de Rafael Aillard era evidente.

    - Se quiser nos ouvir sem tentar gracejos de mau gosto, poderemos acabar mais depressa com essa lamentável missão.

    - Não me falta tempo para ouvir o que vocês têm a dizer. Ainda assim, minha esposa está grávida e doente, e meu sogro, no limiar da morte. Assim, posso aproveitar melhor o que resta deste dia, em vez de ficar escutando as bobagens que vieram me falar.

    - Lamento saber que Ellemir não passa bem - disse Leonie. - Mas o estado de Esteban é tão grave assim? Ele parecia forte e bem-disposto na sessão do Conselho.

    A expressão de Damon se tornou dura.

    - A notícia da traição cometida pelo filho bastardo, que ele tanto amava, deixou-o prostrado. É possível que sobreviva a este dia, mas não é provável que veja a neve de outro inverno.

    - Por isso, você decidiu se vingar e assumiu o papel de carrasco de Dezi - disse Leonie. - Não sinto o menor pesar por ele. Estava em Arilinn havia apenas dez dias quando percebi tantas falhas em seu caráter que compreendi que não ficaria por muito tempo.

    - E mesmo sabendo disso, ainda assim assumiu a responsabilidade de treiná-lo? Quem escolhe uma ferramenta inadequada para um trabalho não deve se queixar se sair com a mão cortada.

    De uma forma um tanto remota, Damon pensou que até o último Solstício do Inverno lhe pareceria inconcebível questionar os motivos e decisões de qualquer Guardiã, muito menos da Dama de Arilinn. Margwenn interviu, impaciente:

    - O que queria que fizéssemos? Sabe que não é fácil encontrar filhos e filhas do Comyn com laran pleno, e Dezi possuía um grande talento, independentemente de seus defeitos.

    - Teria sido melhor treinar um plebeu, com menos sangue nobre e mais decência e caráter!

    - Sabe muito bem que nenhuma pessoa que não tenha sangue Comyn pode penetrar no Véu de Arilinn - protestou Rafael.

    - Pois então talvez tenha chegado o momento de rasgar o Véu e introduzir algumas mudanças em Arilinn! - exclamou Damon, pensando no gentil contato de Ferrika ao monitorar Ellemir.

    Os lábios de Leonie se contraíram em repulsa.

    - De onde tirou essas idéias, Damon? São o resultado de abrigar um Terranan em sua casa? - Ela não lhe deu tempo para responder, pois logo continuou: - Não nos queixamos quando você usou sua matriz legalmente, também não protestamos quando tirou a matriz de Dezi. Mas não se contentou com isso. Fez muitas coisas ilegais. Ensinou a esse Terranan alguns rudimentos da tecnologia de matriz. Deve estar lembrado do decreto de Stefan Hastur, quando eles chegaram aqui, de que não se deveria permitir a nenhum terráqueo sequer testemunhar uma grande operação de matriz.

    - Que ele descanse em paz - disse Damon -, mas não estou disposto a conceder a um morto o direito de ser o tutor da minha consciência.

    - Devemos rejeitar a sabedoria de nossos antepassados? - protestou Rafael, furioso.

    - Não, mas eles viveram como escolheram, quando estavam vivos, e não me consultaram sobre seus desejos e necessidades. Farei a mesma coisa com eles. Não vou entronizá-los como deuses, nem tratarei suas palavras como os cristoforos tratam as bobagens do Livro dos Fardos!

    - Qual é a sua desculpa para treinar esse Terranan? - indagou Margwenn.

    - Por que precisaria de uma desculpa? Ele tem laran, e um telepata destreinado é uma ameaça para si mesmo e para todos ao seu redor.

    - Foi ele quem encorajou Callista a violar sua palavra empenhada? Ela se comprometera a renunciar a seu trabalho para sempre.

    - Também não sou o tutor da consciência de Callista - insistiu Damon. - O conhecimento permanece em sua mente, não posso tirá-lo.

    Ele fez uma pausa e repetiu a pergunta para Leonie, com intensa amargura:

    - Ela deveria passar o resto de sua vida contando buracos em toalhas de linho e preparando o pão-de-especiarias?

    Margwenn fez uma careta de desdém.

    - Parece que a opção foi de Callista. Ela não foi obrigada a renunciar a seu juramento. Nem mesmo foi pressionada. Tomou uma decisão por sua livre e espontânea vontade, e deve viver com isso.

    Todos vocês não passam de uns tolos, refletiu Damon, cansado, sem fazer o menor esforço para esconder o pensamento. Viu-o refletido nos olhos de Leonie.

    - Uma acusação é tão grave que torna todas as outras triviais, Damon. Você construiu uma  Torre no mundo superior. Vem trabalhando com um círculo de mecânicos ilegal, fora de uma Torre construída por determinação  do  Comyn  e  fora  dos juramentos  e  das salvaguardas ordenados desde a Era do Caos. A penalidade por isso é terrível. Reluto em impô-la a você. Vai dissolver os elos de seu círculo, destruir a Torre proibida que ergueu e jurar que nunca mais agirá assim? Se assumir esse compromisso comigo, não haverá qualquer penalidade adicional.

    Damon levantou-se. Estava preparado para tudo, como acontecera ao enfrentar a investida assassina de Dezi. É algo que tenho de enfrentar de pé, pensou ele.

    - Quando você me mandou embora da Torre, Leonie, deixou de ser minha Guardiã, muito menos a tutora de minha consciência. Tudo o que fiz foi de minha exclusiva responsabilidade. Sou um técnico de matriz, treinado em Arilinn, e tenho vivido sob os preceitos que me ensinaram ali. Minha consciência está limpa, e não aceitarei o compromisso que me pede.

    - Desde a Era do Caos, está proibida a operação de qualquer círculo de trabalhadores de matriz fora de uma Torre sancionada pelo Comyn. Também não podemos permitir que inclua em seu círculo uma mulher que já foi Guardiã e renunciou a seu juramento. Pelas leis mantidas desde o tempo de Varzil, o Bom, isso não é permitido. É inadmissível, um absurdo total. Você deve destruir a Torre, Damon, e jurar que nunca mais vai operar assim. Como regente de Alton e guardião de Callista, exijo que providencie para que ela nunca mais viole as condições pelas quais foi liberada de seu juramento.

    Mantendo a voz firme, com algum esforço, Damon declarou:

    - Não aceito seu julgamento.

    - Devo então invocar algo pior. Deseja que eu encaminhe a questão ao Conselho e aos trabalhadores de todas as Torres? Sabe qual será a penalidade se for considerado culpado ali. Depois que começar um julgamento, nem mesmo eu poderei mais salvá-lo. - Leonie o fitava nos olhos, pela primeira vez desde que a conversa começara. - Mas sei que, se você der sua palavra, não vai quebrá-la. Prometa-me, Damon, que vai acabar com esse círculo ilegal, retirar toda a força de sua Torre no mundo superior e assumir o compromisso de só usar sua matriz, daqui por diante, em coisas legítimas e dentro dos limites permitidos. Em troca, eu lhe darei minha palavra de que não levarei o assunto adiante, não importa o que você tenha feito.

    Sua palavra, Leonie? E o que vale sua palavra?

    Era como um tapa na cara. A Guardiã empalideceu, a voz tremia quando indagou:

    - Está me desafiando, Damon?

    - Estou, sim. Não quer saber dos meus motivos, prefere ignorá-los. Fala em Varzil, o Bom. Creio que sabe menos do que a metade do que eu sobre ele. É isso mesmo, Leonie, eu a desafio. Responderei às acusações no momento oportuno. Apresente-as ao Conselho, se é o que deseja, ou perante as Torres, e estarei pronto para respondê-las.

    O rosto de Leonie tinha uma palidez mortal. Como uma caveira, pensou Damon.

    - Que assim seja, Damon. Conhece a penalidade. Será despojado de sua matriz; e, para que não possa fazer a mesma coisa que Dezi, os centros de laran em seu cérebro serão destruídos. A decisão é sua, Damon, e que todos sejam testemunhas de que tentei salvá-lo.

    Ela virou-se e deixou a sala. Os outros saíram em sua esteira. Damon permaneceu imóvel, o rosto rígido e impassível, até que todos se retiraram. Conseguiu manter uma dignidade fria até que se desvaneceu o som dos passos no corredor lá fora. Depois, como se estivesse embriagado, cambaleou para a sala interna da suíte.

    Ouviu Andrew praguejar uma sucessão de imprecações, numa língua que ele supôs ser terráqueo - da qual não conhecia uma palavra sequer -, mas ninguém com laran podia se equivocar sobre o significado. Passou por Andrew, arriou num divã e ali ficou, sem se mexer, com as mãos no rosto. O horror dominou-o, o coração se contraía em náusea.

    Toda a sua atitude de desafio parecia agora uma bravata de criança. Sabia, além de qualquer dúvida, que não encontraria qualquer meio de responder às acusações, que o considerariam culpado, e teria de sofrer a penalidade.

    Cego. Surdo. Mutilado. Continuar pela vida sem Laran, eterno prisioneiro em seu crânio, insuportavelmente sozinho para sempre... vivendo como um animal irracional. Damon contraiu-se em agonia. Andrew aproximou-se, parou ao seu lado, perturbado, apenas parcialmente consciente do que o afligia.

    - Não fique assim, Damon. Tenho certeza de que o Conselho o deixará explicar; compreenderão que você fez a única coisa que podia fazer.

    Damon limitou-se a grunhir, em seu pavor. Parecia que todos os medos de sua vida - e fora ensinado que não era digno de um homem sequer admiti-los - agora o envolviam por completo, numa onda imensa, que ameaçava sufocá-lo. Os medos de um menino solitário e indesejado, de um rapaz solitário no corpo de cadetes, desajeitado e desarmado, tolerado apenas por ser o amigo eleito de Coryn; toda a sua vida mantendo o medo a distância, para não ser considerado, nem se considerar, menos que um homem. O medo e a dúvida de que Leonie pudesse de alguma forma perceber além de seu controle, descobrir sua paixão proibida, seu desejo intenso, o sentimento de culpa e perda quando ela o despachara de Arilinn, dizendo-lhe que não era bastante forte para esse trabalho, alimentando sua própria fraqueza, o medo que sempre reprimira. O medo reprimido em todos os anos na Guarda, sabendo que não era um soldado, não era um espadachim. O medo terrível de fugir, deixando seus guardas para enfrentarem a morte em seu lugar...

    Toda a sua vida. Isso mesmo, sentira medo por toda a sua vida. Houvera pelo menos um dia em que não estivera consciente de que era um covarde, fingindo em vão não ter medo, simulando audácia para que ninguém pudesse perceber que não passava de um verme assustado, um impostor desamparado, um pobre-coitado assumindo a pretensão de ser um homem? A vida tinha pouca importância para ele; preferia ter enfrentado a morte a se revelar como o fraco covarde e vergonhoso que era.

    Mas agora ameaçavam-no com a única coisa que não podia suportar, que não suportaria, não sofreria de jeito nenhum. Seria mais fácil morrer agora, passar uma faca pela garganta, em vez de viver cego, mutilado, um cadáver ambulante fingindo que vivia.

    Pouco a pouco, através do nevoeiro de pânico e pavor, ele percebeu que Andrew se ajoelhara ao seu lado, pálido e transtornado. Ele suplicava, mas as palavras não podiam alcançar Damon, em meio à mortalha de medo.

    Como Andrew devia desprezá-lo!, pensou ele. O terráqueo era tão forte...

    Consternado, Andrew observava a luta silenciosa de Damon. Ainda tentou argumentar, mas sabia que suas palavras não alcançavam o amigo. Será que Damon sequer o ouvia? Tentando fazer contato, ele sentou ao seu lado, passou o braço pelos ombros de Damon.

    - Não fique assim, por favor - murmurou ele, contrafeito. - Tudo vai acabar bem, Damon. Estou aqui.

    E depois, ainda mais inibido, como sempre acontecia à menor insinuação de intimidade entre os dois, Andrew acrescentou, quase num sussurro:

    - Não deixarei que lhe façam mal algum, bredu.

    A agonia de terror de Damon foi projetada, engolfando a ambos. Ele soluçou convulsivamente, perdendo os últimos resquícios de controle. Abalado, Andrew tentou se retirar, pensando que Damon não gostaria que o visse naquele estado, mas depois compreendeu que isso era apenas um vestígio final de seu pensamento terráqueo. Não podia se retirar do sofrimento de Damon, porque era seu próprio sofrimento; uma ameaça ao amigo era uma ameaça a ele também. Devia aceitar a fraqueza e o medo de Damon como aceitava tudo mais, como aceitava seu amor e preocupação.

    Isso mesmo, amor. Sabia agora, abraçando o amigo, que não parava de soluçar, o terror sacudindo-o como um maremoto, que amava Damon tanto quanto a si mesmo, tanto quanto amava Calista e Ellemir - era uma parte de todos eles. Desde o início, Damon soubera e aceitara isso, mas ele, Andrew, sempre se contivera, dissera a si mesmo que eram apenas amigos e que havia limites para a amizade que nunca poderia ser ultrapassados.

    Ressentira-se quando Damon e Ellemir haviam se fundido em sua tentativa de fazer amor com Callista, tentara se isolar com ela, sentindo que seu amor era algo que não podia e não queria partilhar. Ressentira-se da intimidade de Damon com Callista, e nunca entendera direito, como sabia agora, o que impelira Ellemir a fazer a oferta que ela apresentara. Ficara embaraçado, envergonhado, quando Damon o encontrara com Ellemir, embora achasse que ele consentia. Considerara o seu relacionamento com Ellemir como algo apartado de Damon, assim como era apartado de Callista. E quando Damon tentara partilhar sua euforia, seu amor transbordante por todos, quando tentara expressar o desejo tácito do próprio Andrew - Eu gostaria de poder fazer amor com vocês todos -, censurara-o com extrema crueldade, quebrando o frágil vínculo.

    Até especulara se ambos não haviam casado com as mulheres erradas. Mas Andrew era o único errado, como sabia agora.

    Não eram dois casais trocando parcerias. Eram os quatro, todos juntos. Pertenciam uns aos outros, e o vínculo era forte entre Damon e ele, como também era entre qualquer dos dois e as mulheres.

    Talvez mesmo, e ele sentiu o pensamento aflorar com um terror absoluto, ousando um autoconhecimento que nunca se permitira antes, ainda mais forte. Porque podiam se ver refletidos um no outro. Encontrar uma espécie de afirmação da realidade em sua virilidade. Sabia agora o que Damon quisera dar a entender quando dissera que gostava da masculinidade de Andrew tanto quanto gostava da feminilidade das mulheres. E não era o que Andrew tinha medo que fosse.

    Pois era justamente isso, ele compreendia de repente o que amava em Damon, a gentileza e a violência combinadas, a própria afirmação da virilidade. Parecia incrível agora que pudesse ter imaginado que o contato de Damon constituía uma ameaça à sua virilidade. Em vez disso, confirmava algo que partilhavam, outro meio de declarar um ao outro o que ambos eram. Deveria ter acolhido como uma maneira de fechar o círculo, de partilhar a percepção do que todos significavam uns para os outros. Mas ele o repelira, e agora, no terror que não podia partilhar com as mulheres, Damon nem mesmo era capaz de recorrer ao amigo em busca de força. E para onde ele poderia se virar, se não contasse com seu irmão jurado?

    - Bredu... - sussurrou de outra vez.

    E apertou Damon num gesto de intensa proteção, o sentimento que acalentara por ele desde o início, embora não soubesse como expressá-lo. Os olhos de Andrew se achavam também ofuscados pelas lágrimas. A enormidade daquele compromisso o assustava, mas não viraria as costas.

    Bredin. Não havia nada parecido com esse relacionamento na Terra. Uma ocasião, em busca de uma analogia, mencionara para Damon o ritual da fraternidade de sangue. Damon estremecera em repulsa e dissera, a voz tremendo de aversão:

    - Isso seria a suprema proibição entre nós, derramar o sangue de um irmão. As vezes os bredin trocam facas, como um juramento de que nunca atacarão um ao outro, já que a faca que você usa é a de seu próprio irmão.

    Contudo, ao tentar compreender, através da repulsa, o que a fraternidade de sangue significava para Andrew, ele acabara admitindo que o peso emocional era o mesmo. Andrew, pensando em seus próprios símbolos, porque ainda não podia partilhar os de Damon, refletiu agora, enquanto o abraçava, que daria até a última gota de seu sangue pelo amigo; e isso o deixaria horrorizado, como assustara a Andrew o que Damon tentara lhe dar.

    Devagar, bem devagar, tudo o que havia na mente de Andrew foi filtrado para Damon. Ele compreendia agora, finalmente era um deles. E enquanto continuava a abraçá-lo, deixando que as barreiras se dissolvessem, o terror de Damon recuou.

    Não estava sozinho. Era o Guardião de seu próprio círculo da Torre, e extraía confiança de Andrew, recuperava sua força e virilidade. Não mais suportava o fardo de todos os outros, mas sim partilhava o peso do que eram.

    Podia fazer qualquer coisa agora, pensou Damon, e sentindo a presença de Andrew, apressou-se em emendar, em voz alta:

    - Nós podemos fazer qualquer coisa.

    Damon respirou fundo, empertigou-se, puxou Andrew para um abraço de parente e beijou-o no rosto, murmurando:

    - Irmão...

    Andrew sorriu e afagou suas costas.

    - Você está bem.

    As palavras nada significavam, mas Damon podia sentir o que havia por trás.

    - O que eu disse uma vez sobre a fraternidade de sangue - acrescentou Andrew, lutando para encontrar as palavras apropriadas - foi que... o mesmo sangue, como se fosse de irmãos... um sangue que qualquer dos dois derramaria pelo outro.

    Damon balançou a cabeça, aceitando.

    - Irmão por nascimento - disse ele gentilmente. - Irmão de sangue, se assim quiser. Bredu. Só que é a vida que partilhamos, não o sangue. Está me entendendo?

    Mas as palavras não tinham importância, nem os símbolos particulares. Ambos sabiam o que eram um para o outro, e não precisavam de palavras.

    - Temos de preparar as mulheres para isso. Se apresentarem acusações no Conselho... e cumprirem as ameaças... sem que Ellemir esteja alertada, ela pode abortar, ou pior ainda. Devemos decidir como enfrentaremos a situação. Mas o mais importante... - Damon tornou a abraçar Andrew. - ... é que enfrentemos juntos. Todos nós.

 

    Esteban Lanart pairou entre a vida e a morte durante três dias. Callista, em vigília a seu lado - Ferrika proibira Ellemir de sentar com o pai -, monitorando o homem aparentemente agonizante, constatou que a grande artéria do coração tinha uma obstrução parcial. Havia um meio de reverter o dano, mas ela ficou com medo de tentar.

    Ao anoitecer do terceiro dia, ele abriu os olhos e viu-a ao seu lado. Tentou se mexer, mas Callista estendeu a mão para impedi-lo.

    - Fique quieto, pai querido. Estamos com você.

    - Perdi... o funeral de Domenic... - balbuciou ele, e no instante seguinte toda a memória aflorou, um espasmo de dor contraindo o rosto. - Dezi... onde quer que eu estava... acho que o senti morrer, pobre-coitado... não sou inocente...

    Calista envolveu a mão calosa com seus dedos esguios.

    - Pai, não importa quais foram os seus crimes e erros, ele agora está em paz. Você deve pensar apenas em si mesmo. Valdir precisa de sua presença.

    Ela percebeu que até aquelas poucas palavras haviam esgotado Dom Esteban, mas sob os lábios lívidos e a palidez azulada ainda existia o velho gigante, concentrando suas forças, e ele sussurrou:

    - Damon...

    Callista compreendeu o que ele queria saber e apressou-se em tranqüilizá-lo:

    - O Domínio está seguro nas mãos de Damon, e vai tudo bem.

    Satisfeito, o velho tornou a resvalar para o sono. Callista refletiu que o Conselho deveria aceitar Damon como o regente. Não havia mais ninguém com a menor reivindicação. Andrew era um terráqueo; mesmo que ele tivesse toda a competência para o governo, não o aceitariam. O jovem marido de Dorian era um nedestro de Ardais, e nada sabia de Armida, ao passo que a propriedade fora o segundo lar de Damon. Mas a regência de Damon ainda se encontrava sob a sombra da ameaça de Leonie; e no instante mesmo em que ela especulava quando seria a confrontação, Damon abriu a porta do quarto e chamou-a.

    - Deixe Ferrika com ele e venha até aqui.

    Assim que ela passou para a outra sala, Damon informou:

    - Recebemos uma convocação para a Câmara de Cristal, daqui a uma hora, Andrew e eu. Acho que todos devemos ir, Callista.

    A luz difusa, os olhos de Callista se endureceram, não mais azuis, mas de um cinza frio e faiscante.

    - Sou acusada de violação do juramento?

    Ele acenou com a cabeça.

    - Mas, como regente de Alton, sou seu guardião. Além disso, seu marido é meu homem jurado. Não precisa enfrentar as acusações, a menos que queira. - Damon segurou-a pelos ombros. - Deve saber de uma coisa, Callista: vou desafiá-los! Você tem a coragem para desafiá-los também? É bastante forte para enfrentá-los junto comigo, ou vai desmoronar e assim dar força a nossos acusadores?

    A voz era implacável, as mãos apertavam os ombros de Callista com tanta força que até doíam.

    - Podemos ter a coragem de assumir o que fizemos e desafiá-los. Mas, se você não o fizer, vai perder Andrew, sabe disso, e a mim também. Quer voltar para Arilinn, Callista?

    Ele levantou a mão para o rosto de Callista, e com a ponta do dedo acompanhou as marcas vermelhas dos arranhões, antes de acrescentar:

    - Ainda tem essa opção, pois continua virgem. Essa porta permanece aberta, até você fechá-la.

    Ela levou a mão à matriz na garganta.

    - Renunciei ao juramento por minha livre e espontânea vontade; nunca pensei em violá-lo.

    - Teria sido fácil fazer uma opção definida, de uma vez por todas. Não é tão fácil assumir uma posição agora. Mas você é mulher e se encontra sob a minha guarda. Deseja que eu responda por você no Conselho, Callista?

    Ela empurrou a mão de Damon.

    - Sou uma Lanart, e fui Callista de Arilinn. Não preciso que nenhum homem responda por mim! - Ela se encaminhou para o quarto que partilhava com Andrew. - Estarei pronta quando chegar o momento.

    Damon foi para seu próprio quarto. Fora deliberado ao atiçar uma atitude de desafio em Callista, mas sabia que a situação poderia se virar contra eles com a maior facilidade.

    Seu próprio instinto de desafio também estava elevado. Não enfrentaria os acusadores como algum ladrão furtivo arrastado a julgamento! Vestiu seu melhor traje, uma túnica e um culote de couro pintado com as cores do Domínio, e pôs uma adaga ornamentada com pedras preciosas na cintura. Vasculhou seus pertences à procura de um ornamento para o pescoço, um colar de pedras-do-fogo, e tirou um embrulho de pano de uma gaveta.

    Era o ramo de flores secas de kireseth que tirara do dispensário de Callista, sem saber por quê.

    Agira por um impulso que ainda não compreendia, ainda não tinha certeza se fora um lampejo de precognição, ou algo pior. Não fora capaz de explicar a Callista, ou a qualquer outra pessoa, por que fizera isso.

    Mas agora, com as flores na mão, ele percebeu tudo. Nunca soube se fora por causa do tênue cheiro de resina que exalava do pano - todos sabiam que estimulava a clarividência - ou se apenas acontecia que sua mente, dispondo agora de todas as informações, subitamente entrava em ação para sintetizar tudo, sem qualquer esforço consciente. Mas sabia o que Varzil tentara lhe dizer e o que devia ter sido o ritual do Final de Ano.

    Ao contrário de Callista, sabia com precisão por que o uso de kireseth era proibido, a não ser quando destilado e fracionado na essência volátil conhecida como kirian. Como as histórias de Dom Esteban haviam-no lembrado, a kireseth, a flor-da-estrela azul, que a lenda dizia que Cassilda dera a Hastur - chamada também de sino dourado, quando ficava coberta pelo pólen dourado -, era também, entre outras coisas, um potente afrodisíaco, rompendo as inibições e controles. Agora, todos os elos na corrente eram claros.

    Os quadros na capela. As histórias de Dom Esteban e a indignação que despertaram em Ferrika, que prestara o juramento de Amazona Livre, não queria casar, e considerava o casamento como uma forma de escravidão. A estranha ilusão partilhada por Andrew e Callista por ocasião da floração de inverno, só que agora Damon sabia que não fora uma ilusão, apesar de os canais de Callista permanecerem desobstruídos imediatamente depois. E o conselho de Varzil...

    A chave era o tabu. A proibição não era por causa de impureza e associações libidinosas, como ele sempre pensara, mas sim por causa da santidade. Ellemir, por trás de Damon, murmurou, bastante nervosa:

    - Já está na hora. O que tem aí, meu amado?

    Culpado pela memória do tabu, que o envolvia desde a infância, Damon tornou a guardar as flores na gaveta, ainda dentro do pano. O mesmo instinto que o impelira a se vestir da melhor forma possível para enfrentar os acusadores também aflorara em Ellemir, ele ficou contente em constatar. Ela usava um traje digno de um festival, com um decote profundo. Os cabelos reluziam, presos num coque volumoso na nuca. Sua gravidez era óbvia agora, até para o observador mais distraído, mas nem por isso a tornava desgraciosa. Era uma autêntica dama do Comyn, bela e orgulhosa.

    Ao se encontrarem com Andrew e Callista, na sala exterior do conjunto de aposentos, Damon verificou que o mesmo instinto se manifestara em todos. Andrew usava seu traje de festa, em cetim cinza opaco, mas Callista superava a todos.

    Damon nunca pensara que o traje escarlate de uma Guardiã combinasse com ela. Era pálida demais, e a cor brilhante ofuscava sua aparência, deixando-a como um reflexo desfavorável da beleza da irmã gêmea. Jamais julgara Callista bonita; e desconcertava-o saber que Andrew a achava linda. Ela era magra demais, como a criança tímida que conhecera na Torre, com uma rigidez virginal que a tornava desgraciosa, pelo menos aos olhos de Damon. Em Armida, ela escolhia as roupas ao acaso, velhas e grossas saias de tartã, xales pesados. As vezes ele especulava se ela não usava os refugos de Ellemir, já que demonstrava tão pouco interesse por sua aparência.

    Para a sessão do Conselho, no entanto, ela vestira uma saia azul-acinzentada, com um véu da mesma cor, só que mais fino, com fios metálicos que faiscavam quando se movimentava. Os cabelos ardiam como chamas. Fizera alguma coisa no rosto para encobrir os longos arranhões vermelhos, e havia um rosado anormal nas faces. Seria a vaidade ou o desafio que a impelira a pintar seu rosto assim, para que a palidez natural não parecesse a palidez do medo? Safiras-de-estrela cintilavam em sua garganta, e a matriz se encontrava descoberta, ardendo com a maior intensidade. Ao ingressarem na câmara do Conselho, Damon sentiu-se orgulhoso de todos, e disposto a desafiar Darkover inteiro, se fosse necessário. Foi Lorill Hastur quem abriu a reunião, declarando:

    - Graves acusações  foram apresentadas contra todos vocês.  Damon, está disposto a responder a essas acusações?

    Virando a cabeça para a seção reservada aos Hasturs, Damon contemplou o rosto implacável de Leonie e compreendeu que seria perda de tempo explicar e justificar, como tencionara. A única possibilidade era tomar a iniciativa.

    - Alguém me ouviria, se eu respondesse?

    Foi Leonie quem falou:

    - Não pode haver explicação nem desculpa para o que você fez. Mas estamos propensos à clemência, se quiser se submeter a nosso julgamento, você e os outros que liderou nessa rebelião contra as leis mais sagradas do Comyn.

    Ela olhava para Callista como se nunca a tivesse, visto antes. Em meio ao silêncio, Andrew pensou: Prisioneiros em julgamento, têm alguma coisa a dizer antes que a sentença seja promulgada?

    Foi para ele que Lorill se virou agora.

    - Andrew Carr, seu crime foi grave, embora tenha agido na ignorância de nossas leis. Será recambiado a seu próprio povo, e se não violou nenhuma de suas leis, estará livre, mas pediremos que seja afastado de nosso mundo imediatamente.

    Ele fez uma pausa.

    - Callista Lanart, você merecia uma sentença equivalente à de Damon. Mas Leonie intercedeu por você. Seu pretendido casamento, não tendo sido consumado... - Como Lorill podia saber disso?, especulou Damon. - ...não tem força de lei. Nós o declaramos nulo. Voltará para Arilinn, com Leonie assumindo a responsabilidade pessoal por seu bom comportamento.

    Chegou a vez do principal culpado, e Lorill disse:

    - Damon Ridenow, por seus próprios crimes, e pelos crimes daqueles que liderou na desobediência, merece a morte ou a mutilação, pelas leis antigas. Mas vamos lhe oferecer uma opção. Pode entregar sua matriz agora, com uma Guardiã para salvaguardar sua vida e razão, a fim de poder continuar a vida como regente de Alton e guardião do herdeiro de Alton que sua esposa está gerando. Se recusar, será tomada pela força. Caso sobreviva, os centros de laran de seu cérebro serão destruídos, para impedir que cometa mais algum abuso.

    Ellemir soltou um grito baixo de consternação. Lorill fitou-a com uma expressão que podia ser de compaixão.

    - Ellemir-Lanart, foi enganada por seu marido, e por isso não vamos lhe aplicar nenhuma sentença, a não ser o seguinte: deixará de se intrometer em questões fora da esfera das mulheres e concentrará os pensamentos em seu único dever neste momento, o de proteger seu filho, que é um herdeiro de Alton. Como seu pai se encontra doente, seu único irmão sobrevivente é menor de idade e seu marido se encontra sob sentença, nós a entregamos à guarda de Lorde Serrais. Deverá seguir agora para Serrais, onde seu filho nascerá. Escolhi três respeitáveis matronas do Comyn para cuidarem de você, até que seja aplicada a sentença contra seu  marido:  Dama Rohana Ardais, Jerana, Princesa de Elhalyn, e a esposa de meu próprio filho, Dama Cassilda  Hastur. Permita que elas a retirem agora desta sessão, Dama Ellemir. O que vai acontecer pode ser perturbador e até mesmo perigoso para uma mulher em seu estado.

    Dama Cassilda, bonita, de cabelos escuros, mais ou menos da idade de Ellemir, e também grávida, estendeu a mão.

    - Venha comigo, minha cara.

    Ellemir olhou para Cassilda Hastur e depois para Damon.

    - Posso falar, Lorde Hastur?

    Lorill  acenou  com  a  cabeça.  A  voz de  Ellemir soou  tão  infantil quanto sempre, mas também determinada:

    - Agradeço às matronas por sua gentil preocupação, mas recuso seus bons ofícios. Ficarei com meu marido.

    - Minha cara, sua lealdade não lhe faz crédito - insistiu Cassilda Hastur. - Deve pensar em sua criança.

    - Estou pensando em minha criança... em todas as crianças, Cassilda, a sua e a minha, e na vida que queremos para elas. Algum de vocês já se deu o trabalho de pensar, pensar de verdade, no que Damon está fazendo?

    Damon, ouvindo incrédulo - despejara o que havia em seu coração para ela, na noite em que curara os homens congelados, mas não imaginara que Ellemir compreendera -, prestou toda a atenção às suas palavras seguintes:

    -  Todos nós sabemos como é difícil encontrar telepatas para as Torres hoje em dia. Mesmo aqueles que possuem laran relutam em renunciar a suas vidas, abandonando tudo para se isolarem por trás dos muros. E quem pode culpá-los por isso? Eu mesma não gostaria de fazê-lo. Quero viver em Armida e ter filhos para viverem ali depois de mim. E também não quero que as vidas de meus filhos sejam dilaceradas por essa terrível opção, não quero que tenham de se esquivar a seus deveres com o Domínio. Mas há muita coisa que os telepatas podem realizar, e que ninguém está fazendo. Nem tudo precisa ser feito por trás dos muros de uma Torre, e na verdade há coisas que não podem ser feitas ali. Mas porque tantas pessoas acreditam que é a única maneira de usar o laran, o trabalho deixa de ser realizado, e os habitantes dos Domínios sofrem por causa disso. Damon encontrou um meio de torná-lo disponível para todos. O laran não precisa ser uma espécie de... bruxaria misteriosa,  oculta  dentro  das   Torres.  Se  eu,  que  sou  uma   mulher sem qualquer instrução, e a mais fraca das gêmeas, posso aprender a usá-lo, pelo menos um pouco, como aconteceu, então deve haver também muitos outros que são capazes. E...

    Margwenn Elhalyn se levantou, muito pálida.

    - Devemos ficar sentados aqui, escutando essa... essa blasfêmia? Devemos nós, que dedicamos nossas vidas às   Torres, ouvir tamanha blasfêmia... de uma mulher ignorante, que deveria estar ao lado da lareira, fazendo roupas de bebê, em vez de se postar à nossa frente arengando  como   uma   criança   tola,  sobre   coisas   que   não   é   capaz  de entender?

    - Espere, Margwenn, espere um pouco - interveio Rohana Ardais. - Também fui treinada na Torre, e a opção me foi imposta: renunciar àquele trabalho que tanto amava, para poder casar e dar filhos ao clã de meu marido. Há alguma sabedoria no que Dama Ellemir diz. Vamos escutá-la até o fim, sem interromper.

    Mas Rohana foi abafada por um intenso clamor. Lorill Hastur pediu ordem. Damon recordou, com um aperto no coração, que o próprio Lorill também fora treinado numa Torre, em Dalereuth, sendo obrigado a renunciar quando herdara a posição de Regente do Conselho.

    - Não tem voz no Conselho, Dama Ellemir - declarou Lorill. - Pode optar por sair com as matronas que designamos para cuidá-la, ou pode permanecer aqui. Não tem outra escolha.

    Ela segurou o braço de Damon.

    - Ficarei com meu marido.

    - Senhor - protestou Cassilda Hastur, apreensiva -, ela tem o direito de escolher, quando sua opção pode pôr em risco a criança em seu ventre? Já abortou uma vez, e o bebê será o herdeiro de Alton. A segurança da criança não é mais importante do que o seu desejo sentimental de permanecer com Damon?

    - Em nome de todos os deuses, Cassilda! - exclamou Rohana. - Ela não é uma criança! Sabe muito bem o que está em jogo aqui! Pensa que ela não passa de uma vaca leiteira, que basta afastá-la da presença do pai de seu filho para que se torne indiferente ao destino dele? Sente-se e deixe-a em paz!

    Censurada, a jovem Dama Hastur tornou a sentar.

    - Damon Ridenow, tem de escolher agora. Vai entregar sua matriz sem protesto, ou teremos de tirá-la?

    Damon olhou para Ellemir, segurando seu braço; para Callista, numa atitude de desafio; e para Andrew, um passo atrás. Falou para eles, não para Lorill Hastur:

    - Posso falar por todos vocês? Callista, é sua vontade voltar a Arilinn, sob os cuidados de Leonie?

    Leonie observava Callista com a maior ansiedade, e Damon subitamente compreendeu tudo.

    Leonie nunca se permitira amar. Mas a Callista, também uma virgem jurada pela vida inteira, a Callista ela podia amar, em segurança, com toda a ânsia reprimida de suas emoções famintas. Não era de admirar que não quisesse renunciar a Callista, que tentasse tornar impossível sua saída da torre. Seu amor pela jovem não tinha o menor vestígio de sexualidade, mas ainda assim era amor, tão real quanto o amor sem esperanças que ele outrora acalentara por Leonie.

    Callista não disse nada por um longo momento, e Damon não sabia qual seria sua decisão. Arilinn parecia mais atraente para ela, menos angustiante e doloroso do que a vida que lhe ofereciam? Mas logo ele percebeu que o silêncio de Callista era apenas por compaixão, a relutância em rejeitar o amor e a proteção que Leonie propunha. Ela não queria magoar a mulher que demonstrara tanto desvelo pela criança solitária na Torre. Quando Callista falou, havia lágrimas em seus olhos:

    - Renunciei a meu juramento. Não tornarei a prestá-lo, também ficarei com meu marido.

    Agora, de fato, eram um só! A voz de Damon ressoou com desafio:

    - Ouçam todos! - Ele passou o braço pelos ombros de Ellemir, num gesto protetor. - Por minha esposa, agradeço às nobres damas do Comyn, mas serei o único que cuidarei dela, enquanto viver. Quanto a Andrew, ele é meu homem jurado, e você mesmo, Lorill Hastur, durante a construção do espaçoporto, decidiu que os terráqueos podiam fazer acordos  particulares  com   darkovanos,  e  vice-versa,  e que  esses acordos seriam considerados como qualquer outro contrato sob as leis dos Domínios. Prestei o juramento de bredin com Andrew, e serei pessoalmente responsável por sua honra, tanto quanto pela minha. Isso significa que, como regente de Alton, considero o seu casamento com Callista tão válido quanto o meu. - Ele fitou Leonie e arrematou, incisivo: - Quanto a mim, sou um Guardião e responsável apenas perante minha própria consciência.

    - Você, Guardião? - O tom de Leonie era desdenhoso. - Você, Damon?

    - Você mesma me guiou na Pesquisa do Tempo, e foi Varzil, o Bom, que me nomeou tenerézu.

    Foi deliberadamente que ele usou a forma masculina arcaica da palavra. Lorill disse:

    - Não pode invocar o testemunho de um homem que morreu há centenas de anos.

    - Estão me levando a julgamento por leis que existem desde esse tempo, e a estrutura que ergui no mundo superior é um testemunho para todos que ali ingressam. E essa era a lei e o teste naquele tempo. Sou um Guardião. Estabeleci minha Torre. E sustentarei o desafio.

    Leonie empalideceu.

    - Essa lei está morta desde a Era do Caos.

    Você vive por leis que também deveriam estar mortas há muito tempo. Damon não pronunciou as palavras em voz alta, mas Leonie ouviu-as, assim como todos na Câmara de Cristal que possuíam laran. Ela disse, pálida como uma caveira:

    - Que assim seja. Invocou o teste antigo do direito e responsabilidade de uma Guardiã. Você e Calista são renegados de Arilinn, e assim caberá a Arilinn responder ao desafio. Será um duelo, Damon, e você sabe qual é a penalidade se perder. Não apenas você e Callista, mas também seus consortes... se alguém sobreviver à provação, o que é improvável... serão despojados de suas matrizes, os centros de laran destruídos, para que passem a viver como um exemplo e uma advertência para qualquer pessoa que tencionar usurpar, de forma ilegítima, a posição e o poder de uma Guardiã.

    - Vejo que conhece bem as conseqüências, Leonie - comentou Callista. - Gostaria que as tivesse explicado quando me fez Guardiã.

    Leonie ignorou-a, os olhos fixados em Damon.

    - Enfrentarei a provação e suas penalidades - declarou Damon. - Mas quero que compreenda, Leonie, que as invoca para si mesma e para toda Arilinn, caso não consiga vencer.

    Ela ficou furiosa.

    - Acho que devemos arriscar muito mais do que isso, a fim de punir a insolência daqueles que construíram uma Torre proibida em nosso limiar!

    - Já chega! - Lorill levantou as mãos para silenciá-los. - Declaro o desafio entre a Torre de Arilinn e sua Guardiã, Leonie Hastur, de um lado, e... - Ele hesitou por um instante. - ...e a Torre proibida, com aquele que se proclama como seu Guardião, Damon Ridenow. Começará amanhã, ao nascer do sol.

    O rosto de Leonie era como pedra.

    - Aguardarei a provação.

    - E eu também - acrescentou Damon. - Até a aurora, Leonie.

    Ele estendeu uma das mãos para Ellemir e a outra para Callista. Andrew foi andando um passo atrás. Sem olharem para trás, eles deixaram a Câmara de Cristal.

    Até o amanhecer. Ele falara com extrema coragem. Mas seriam capazes de enfrentar Leonie, apoiada por todas as forças de Arilinn?

    Deviam ser, ou morreriam.

    Capítulo Vinte e Dois

    A primeira providência de Damon, quando retornaram aos aposentos dos Altons, foi pegar um amortecedor telepático e isolar o quarto de Dom Esteban. Explicou a Ferrika o que estava fazendo.

    - Ao amanhecer, pode haver um... um distúrbio telepático - avisou ele, pensando como as palavras eram ridiculamente inadequadas. - Com isso, ele não será atraído para sua intensidade, pois está fraco demais e não agüentaria. Deixo-o aos seus cuidados, Ferrika. Confio em você.

    Ele se descobriu a desejar também poder isolar Ellemir por trás da mesma barreira segura, com o bebê em seu ventre. Disse isso a ela, e Ellemir sorriu.

    - Ora, meu marido, não está sendo melhor do que as damas do Conselho do Comyn, achando que devo ser protegida e resguardada, só porque sou mulher e espero uma criança. Pensa que não compreendo que estamos todos lutando juntos pelo direito de vivermos juntos e criarmos nossos filhos para uma vida  melhor do que a maioria das crianças do Comyn pode ter? Pensa que quero que ele... - Ellemir pôs a mão na barriga, num gesto expressivo. - ...enfrente a mesma opção angustiante que você, Callista e Leonie tiveram? Pensa que reluto em lutar?

    Damon abraçou-a, sabendo que a intuição da esposa era mais forte do que a sua.

    - Minha querida, que todos os deuses me impeçam de lhe negar esse direito.

    Mas ao se juntarem a Callista e Andrew, ele refletiu que a iminente batalha era mais que apenas de vida ou morte. Se perdessem - e sobrevivessem - estariam piores do que mortos.

    - Será travada no mundo superior, como a última batalha com o Grande Gato - advertiu ele. - Devemos ter certeza absoluta de nós mesmos, porque só os nossos próprios pensamentos podem nos derrotar.

    Ellemir mandou trazer comida e vinho, e jantaram juntos, tentando fazer uma ocasião festiva e esquecer que se fortaleciam para a maior provação de suas vidas. Callista continuava pálida, mas Damon sentiu-se aliviado ao constatar que ela comia com voracidade.

    Havia dois no grupo treinados para Guardião, pensou ele, com a força de Guardião. Mas isso também acarretou um pensamento inquietante. Se perdessem, todos ficariam na mesma situação; mas, se vencessem, havia uma questão que ainda tinha de ser resolvida.

    - Se vencermos, terei conquistado o direito de trabalhar como quiser, com o círculo que escolher. Neste caso, Ellemir, como minha esposa, e Andrew, como meu homem jurado, ficarão além do alcance de qualquer interferência do Conselho. Mas você, Callista, continua na lista direta de herdeiros do Comyn; na sua frente, só há duas crianças, e uma delas ainda nem nasceu. O Conselho vai alegar que meu dever como regente de Alton é casá-la com um homem condizente, alguém com sangue Comyn. Uma mulher de sua idade, Callista, a menos que esteja trabalhando numa Torre, geralmente já é casada.

    - E eu sou casada!

    - Breda, o casamento não resistirá se alguém o contestar. E acredita realmente que o Conselho não vai contestá-lo? O velho Dom Gabriel de Ardais já me falou sobre a possibilidade de casá-la com seu filho Kyril...

    - Kyril Ardais? - As narinas de Callista tremeram em desprezo. - Preferiria me casar com um bandido das Hellers a casar com um homem assim! Não falo com ele desde que era um garoto arrogante, intimidando todas as crianças nas festas, e tenho quase certeza de que não melhorou com a idade!

    - Apesar disso, é um casamento que o Conselho aprovaria. Ou seus membros podem atender ao desejo de seu pai e entregá-la, como ele tencionava fazer com Ellemir, a Cathal. Mas pode estar certa de que o Conselho vai casá-la. Conhece a lei sobre casamento livre tão bem quanto eu, Callista.

    Era verdade, ela conhecia. O casamento livre só se tornava legal com a consumação e podia ser anulado por ato do Conselho, se não houvesse filhos.

    - Pela misericórdia de Avarra - disse ela, olhando para todos -, isso é pior do que ser levada para a cama à vista de metade do Domínio de Alton... e eu que pensava que não podia haver nada mais embaraçoso!

    Callista riu, só que não havia qualquer divertimento na risada. Ellemir comentou gentilmente:

    - Por que acha que uma mulher é levada para a cama na presença de público? Para que todos vejam e saibam que o casamento é um fato legal. No seu caso, porém, uma dúvida foi levantada. Tenho certeza de que Dezi andou falando a respeito, maldito seja!

    - Não duvido que ele seja amaldiçoado, mas o mal já está feito - disse Damon.

    Pondo a mão sobre a de Callista, e notando com pavor que ela se retraía, com o velho reflexo automático, Andrew indagou:

    - Está querendo nos dizer que a zombaria de Dezi era verdadeira, no final das contas, e que nosso casamento não é legal?

    Relutante, Damon balançou a cabeça em confirmação.

    - Enquanto Domenic era vivo e Dom Esteban saudável, ninguém questionaria o que suas filhas fizessem, tão longe, nas Colinas Kilghard. Mas a situação mudou. O Domínio está nas mãos de um garoto e de um velho agonizante. Se Calista ainda fosse Guardiã, não poderiam legalmente obrigá-la a casar, mas usariam qualquer outra persuasão, à exceção da força. Mas como ela já renunciou a seu juramento, e se recusou em público a voltar a Arilinn, seu casamento é uma legítima preocupação do Conselho.

    - Não tenho mais direitos nessa questão do que um cavalo levado ao mercado? - perguntou Callista.

    - Não fui eu quem fez as leis, Callie - respondeu Damon com extrema ternura. - Quero revogar algumas, se puder, mas não é possível fazê-lo da noite para o dia. A lei é o que é.

    - O pai de Callista concordou em entregá-la a mim - declarou Andrew. - Essa decisão não tem mérito legal?

    - Ele é um homem agonizante, Andrew. Pode morrer esta noite, e eu sou apenas o guardião de Alton, sob as ordens do Conselho, mais nada. - Damon parecia profundamente perturbado. - Só se pudéssemos recorrer ao Conselho com um casamento estabelecido pela Lei de Valeron...

    - O que é isso?

    Callista explicou, impassível:

    - Uma mulher do Domínio Aillard, das planícies de Valeron, ganhou uma decisão no Conselho que tem servido como precedente desde então. Não importa se o casamento é de companheiros livres, ou de qualquer outro tipo, nenhuma mulher pode ser separada contra a vontade do pai de sua criança. Damon está querendo dizer que, se você pudesse   me   levar   para   a   cama...   e   de   preferência   me   engravidar imediatamente... teríamos um meio de contestar o Conselho. - Ela fez uma careta. - Não quero uma criança por enquanto... e ainda menos por pressão do Conselho, como uma égua sendo levada para a reprodução... mas melhor isso do que casar com alguém escolhido pelo Conselho, por razões políticas, e gerar as suas crianças.

    Ela olhou de Damon para Andrew, angustiada, antes de acrescentar:

    - Mas vocês sabem que isso é impossível.

    - Não, Callista, não é impossível - disse Damon. - Sabe muito bem que seu casamento vai ser mantido ou anulado na dependência de você poder se apresentar ao Conselho amanhã e jurar que foi consumado.

    Ela soltou um grito, acuada, apavorada.

    - Quer que eu o mate desta vez? - gritou ela, cobrindo o rosto com as mãos.

    Damon contornou a mesa e gentilmente virou Callista para fitá-lo.

    - Há outro meio, Callista. Não, olhe para mim. Andrew e eu somos bredin. E sou mais forte do que você. Pode me atingir com toda a força que lançou contra Andrew, mais ainda, e nem assim me machucaria.

    Ela desviou o rosto, soluçando.

    - Se não há outro jeito... Ah, mas como eu queria, por Avarra misericordiosa, que isso acontecesse em amor, quando eu estivesse pronta, não numa batalha que pode ser mortal!

    Houve um silêncio prolongado, em que só se podiam ouvir os soluços abafados de Callista. O som dilacerava o coração de Andrew, mas ele sabia que devia confiar em Damon para encontrar uma solução. Por fim, Damon disse, muito calmo:

    - Só há um meio, Callista. Varzil me explicou que a resposta para você era libertar a mente da marca dos anos como Guardiã em seu corpo. Posso libertar sua mente, e seu corpo será libertado, como aconteceu na floração de inverno.

    - Você disse que foi apenas uma ilusão...

    - Eu estava enganado. Não juntei todas as informações até bem pouco tempo atrás. Para o seu bem, gostaria que você e Andrew tivessem sido capazes de confiar em seus instintos. Mas agora... tenho algumas flores de kireseth, Callista.

    Ela levou as mãos à boca, em apreensão, terror e compreensão.

    - É tabu, proibido para qualquer pessoa treinada na Torre!

    - Mas nossa Torre não vive pelas leis de Arilinn, breda, e eu não sou um Guardião por essas leis. Por que acha que se tornou tabu, Callista? Porque, sob o impacto da kireseth, como pôde verificar, nem mesmo uma Guardiã conseguia manter sua imunidade à paixão, ao desejo, a necessidade humana. É uma droga de catálise telepática, mas é também muito mais do que isso. Depois do treinamento dado às Guardiãs nas Torres, é assustador, inconcebível, admitir que não há razão para uma Guardiã ser casta, exceto em caráter temporário, quando realiza algum trabalho mais intenso. Com toda a certeza, não há a menor necessidade para tamanha solidão e privação durante a vida inteira. As torres impuseram leis cruéis e desnecessárias às suas Guardiãs, Callista, desde a Era do Caos, quando se perdeu o ritual do Final do Ano. Creio que ocorria na mesma ocasião do festival do Solstício do Verão. Em nosso festival, em todos os Domínios, as mulheres recebem flores e frutas, em comemoração ao presente de Cassilda para Hastur. Mas como a Dama dos Domínios é sempre representada? Com o sino dourado da kireseth nas mãos. Esse era o ritual antigo, para que uma mulher pudesse operar como Guardiã nos círculos de matriz, com os canais normais, e depois recuperasse a feminilidade normal, no momento em que escolhesse.

    Damon pegou as mãos de Callista entre as suas. Ela tentou retirá-las, na reação automática antiga, mas Damon as segurou com firmeza, controlando-a.

    - Callista, você tem coragem para virar as costas a Arilinn e explorar conosco uma tradição que lhe permitirá ser uma Guardiã e mulher ao mesmo tempo?

    Ele encontrara a nota certa ao apelar para sua coragem. Juntos, haviam-na testado aos limites extremos. Callista inclinou a cabeça, consentindo. Mas quando Damon trouxe as flores de kireseth, envoltas pelo pano, ela hesitou.

    - Já violei todas as outras leis de Arilinn, menos essa. Agora, sou mesmo uma pária.

    Ela estava quase em lágrimas.

    - Nós dois fomos chamados de renegados, Callista. Não lhe pedirei para fazer qualquer coisa que eu não esteja disposto a fazer primeiro.

    Damon pegou o embrulho, abriu-o, levou ao rosto, aspirando a fragrância vertiginosa. O medo invadiu-o - a coisa proibida, o tabu -, mas ele recordou as palavras de Varzil:

    - Foi por isso que instituímos o antigo ritual sacramental do Final do Ano... Você é o Guardião dela, cabe-lhe assumir a responsabilidade.

    Callista estava branca e trêmula, mas pegou as flores de kireseth das mãos de Damon e aspirou fundo. Enquanto isso, Damon pensava no círculo de Arilinn, que os atacaria ao amanhecer. Ele estaria cometendo um trágico erro?

    Durante seus anos na Torre, quando se ia fazer um trabalho mais sério, qualquer tipo de tensão era proibido, acima de tudo o contato sexual. Eles passariam aquela noite em solitária concentração, preparando-se para a batalha iminente.

    Mas Damon não operava por essas linhas. Sabia que não poderia derrotar Arilinn usando os mesmos recursos. Sua Torre construía algo novo, baseado no contato a quatro. Nada mais certo que passassem aquela noite fortalecendo o vínculo, ajudando Callista a partilhar integralmente.

    Andrew pegou as flores das mãos de Callista. Ao aspirar a fragrância - ressequida, empoeirada, mas ainda assim reminiscente da campina de sinos dourados, sob o sol escarlate -, teve a impressão de que Callista se aproximava através das flores outra vez, e a lembrança deixou-o palpitando de anseio. Quando Ellemir pegou as flores, ele fez menção de protestar... seria seguro para ela, em seu estado? Mas ela tinha o direito de optar. Devia partilhar qualquer coisa que aquela noite lhes trouxesse.

    Damon sentiu um ímpeto de expansão dos sentidos, uma percepção aguçada. Parecia que a matriz em sua garganta vibrava como uma coisa viva. Apertou-a na mão e teve a impressão de que lhe falava. Por um momento, especulou se as matrizes não seriam, no final das contas, uma forma de vida alienígena, experimentando o tempo num ritmo fantasticamente diferente, em simbiose com a humanidade.

    E depois parecia voltar atrás, a toda a velocidade, como ocorrera durante a Pesquisa no Tempo, e aflorou em sua mente tudo o que ouvira sobre a história das Torres, em Arilinn e Nevarsin. Depois da Era do Caos, séculos de decadência, corrupção e conflitos que dizimaram os Domínios e se alastraram por metade do mundo, as Torres foram reconstruídas e se celebrara o Acordo, proibindo todas as armas, exceto as que deixavam os oponentes ao alcance um do outro, e obrigando qualquer um que matasse a correr um risco de morte igual. O trabalho de matriz fora relegado às Torres e às pessoas com sangue Comyn, que prestavam juramento às Torres e suas Guardiãs. Fazendo voto de castidade e sem fidelidade nem mesmo à própria família, as Guardiãs eram obrigadas a manter-se desinteressadas, sem interesses políticos ou dinásticos no governo dos Domínios. O treinamento dos trabalhadores nas Torres baseava-se em profundos princípios éticos e no rompimento de todos os outros vínculos, criando força e integridade num mundo corrompido e arrasado.

    E as Guardiãs prestavam o juramento de proteger os Domínios, de coibir qualquer abuso das matrizes. Mesmo sem o poder político, possuíam uma tremenda força pessoal e carismática, sacerdotisas, feiticeiras, com uma vital ascendência espiritual e religiosa, controlando todos os trabalhadores de matriz em Darkover.

    Mas isso, em si mesmo, não se tornara um abuso?

    Damon teve a impressão de que entrara em contato, através dos séculos, com seu parente distante, Varzil... ou seria uma tênue memória racial? Quando as Torres haviam abandonado o ritual do Final do Ano, que as mantinha em contato com sua humanidade comum? O ritual permitia que uma Guardiã, celibatária pela dura necessidade de um trabalho difícil e árduo - e naquele tempo, no auge das Torres, era ainda mais exigente -, se tornasse periodicamente consciente de sua humanidade comum, partilhando os instintos e os desejos de seus semelhantes.

    Quando o ritual fora interrompido? E ainda mais importante, por que fora abandonado? Em algum momento, durante a Era do Caos, transformara-se numa espécie de orgia? Quaisquer que fossem os motivos, bons ou maus, o fato é que acabara, e com isso desaparecera o conhecimento de como abrir os canais congelados para o trabalho psíquico, num nível tão alto. Assim, as Guardiãs, não mais neutralizadas, foram obrigadas a confiar numa espécie de treinamento, basicamente inumano, e o poder se concentrara nas mãos de mulheres que eram capazes de reprimir por completo seus instintos e desejos.

    Damon teve a impressão, enquanto viajava pelos anos, que podia sentir dentro de si mesmo todo o sofrimento daqueles homens e mulheres, alienados, desesperados, fracassando porque não eram capazes de uma separação plena de seu destino humano. E as pessoas que alcançavam o êxito tinham de adotar padrões impossíveis para si mesmas, um treinamento de rigor inumano, uma alienação total, até de seus próprios círculos. Mas que opção tinham?

    Agora, no entanto, redescobririam o que o antigo ritual poderia ter feito...

    Ele não olhava para Callista, mas sentiu que seu decoro gelado se dissolvia, sentiu a atenuação da rigidez física, a tensão se escoando como água. Ela arriara numa cadeira. Damon virou-se, viu-a sorrir, espreguiçar-se como uma gata e estender os braços para Andrew, que foi se ajoelhar ao seu lado. E Damon, observando, pensou com saudade na criança adorável na Torre, perdendo dia a dia a espontaneidade maravilhosa, mudando devagar para um silêncio tenso e retraído. Agora, com um aperto no coração, podia reencontrar um pouco daquela criança no terno sorriso que Callista ofereceu a Andrew. O terráqueo beijou-a, hesitante a princípio, depois com uma paixão crescente. Com os quatro entrando num contato múltiplo, todos partilharam o beijo. Mas Andrew, suas próprias inibições dissolvidas pela kireseth, avançou com alguma precipitação. Seus braços se contraíram em torno de Callista, apertando-a com toda a força, e a crescente demanda de seus beijos deixou-a assustada. Em súbito pânico, ela se desvencilhou, empurrou-o com todo o vigor de seus braços, os olhos arregalados de pavor.

    Damon sentiu os dois componentes daquele medo: em parte ela temia que pudesse se repetir o que já acontecera antes, que o reflexo que não era capaz de controlar pudesse golpear Andrew de novo, feri-lo, talvez matá-lo; e em parte ela temia o próprio excitamento, estranho, desconhecido. Fitou Andrew com uma expressão próxima do terror, depois olhou para Damon, atordoada, acuada, deixando-o desconcertado.

    Os pensamentos de Ellemir projetaram-se depressa pelo crescente contato. Esqueceu, como ela, é jovem?

    Andrew fitou-a, sem entender. Afinal, Callista era irmã gêmea de Ellemir!

    É verdade; e depois de tantos anos na Torre, sob alguns aspectos é mais velha, só que tudo isso desapareceu de sua mente agora. Essencialmente, é a garotinha de treze anos que foi para a Torre. Para ela, o sexo ainda é uma lembrança de terror e dor, a recordação que quase o matou. Nada tem de bom para recordar, exceto alguns beijos entre as flores. Deixe-a comigo por um instante, Andrew.

    Relutante, Andrew afastou-se de Callista, e Ellemir passou o braço pelos ombros encolhidos da irmã. Nenhum deles precisava falar em voz alta agora, e nenhum se preocupou com isso.

    Venha comigo, querida. Não fará mal algum a eles esperar até que você esteja pronta. Ellemir conduziu-a para o outro quarto, acrescentando: Esta é a sua verdadeira noite de núpcias, Callista, e não haverá brincadeiras e piadas grosseiras.

    Dócil como uma criança - e para Ellemir ela parecia quase uma criança -, Callista permitiu que a irmã a despisse, removesse a tinta com que encobrira as marcas vermelhas no rosto, escovasse os cabelos compridos e lhe vestisse uma camisola. Tudo isso abriu-as uma para a outra, a guarda de Ellemir também baixando, sob a influência cada vez mais forte da kireseth. Sentiu o fluxo de lembranças que a irmã não fora capaz de partilhar, quando haviam tentado, na noite anterior ao casamento, trocar confidências.

    Ellemir sentiu e experimentou, com Callista, o condicionamento para o retraimento, a disciplina rigorosa contra qualquer contato de outra mão humana, mesmo que casual. Com profundo horror, olhou para as pequenas cicatrizes nos pulsos e nas mãos de Callista e foi invadida pela angústia física e emocional daqueles primeiros anos terríveis na Torre. E Damon teve uma participação nisso! Por um momento, ela partilhou o ressentimento agoniado de Callista, a raiva que nunca extravasara, concentrando-se numa tensão e força cujo único escoamento era através da energia focalizada das redes de matriz.

    Re-experimentou com Callista o lento e inexorável embotamento das reações físicas normais, o entorpecimento dos reflexos físicos, o desenvolvimento das tensões da mente e do corpo numa armadura rígida. Callista, por volta do terceiro ano em Arilinn, não mais era solitária, não mais ansiava por contato humano ou acalento emocional.

    Era uma Guardiã.

    E era um milagre, compreendeu Ellemir, que ainda tivesse alguma compaixão humana, que ainda lhe restasse qualquer sentimento real. Mais uns poucos anos e teria sido tarde demais; nem mesmo a kireseth conseguiria desmanchar a armadura acumulada por tanto tempo, a gravação na mente de tanta tensão.

    Mas a kireseth dissolvera agora o padrão em Callista, deixando-a como uma criança trêmula. A mente fora libertada, o corpo não mais se encontrava escravizado pelos reflexos implacáveis do treinamento; mas com isso também desaparecera toda a maturidade e aceitação intelectual que Calista sobrepusera à inexperiência, e ela se tornara uma garotinha assustada. Em suma, pensou Ellemir, com uma profunda compaixão, Callista era ainda mais jovem do que ela ao ter seu primeiro amante.

    Depois de se libertar assim, Callista deveria contar com um ou dois anos para crescer normalmente, alcançar primeiro a percepção emocional do amor, e depois a física. Só que ela não dispunha de todo esse tempo. Tinha apenas aquela noite para percorrer um abismo de anos.

    Com uma empatia angustiada, aninhando a moça trêmula em seus braços, Ellemir desejou poder oferecer a Callista um pouco de sua aceitação. Calista não carecia de coragem - não faltava coragem a quem suportara aquele tipo de treinamento. Haveria de se fortalecer, passaria pela consumação, a fim de poder enfrentar o Conselho no dia seguinte, e jurar que acontecera; mas, Ellemir receava, seria uma provação, um teste de coragem, não o ato alegre que devia ser.

    Era cruel, concluiu Ellemir. Estavam pedindo a uma criança para consentir em seu próprio estupro... pois na verdade seria isso!

    Ela não seria a primeira. Muitas mulheres do Comyn eram casadas, quase como crianças, com homens que mal conheciam e não amavam. E ela amava Andrew. Ainda assim, refletiu Ellemir, seria uma terrível noite de núpcias para ela, a pobre criança.

    O tempo era uma coisa de que ela precisava, e a única coisa que Ellemir não podia lhe oferecer.

    Sentiu o contato hesitante de Callista em sua mente, em busca de segurança, e compreendeu de repente que havia um meio de partilhar sua experiência com a irmã. Ambas eram telepatas. Ellemir sempre tivera dúvidas e hesitações sobre seu próprio laran, mas descobria agora, sob os efeitos da kireseth, um novo potencial, um novo crescimento.

    Confiante, pegando as mãos de Callista, ela deixou que sua mente voltasse para os quinze anos, a época da gravidez de Dorian, sua crescente intimidade com o jovem marido de Dorian, o acordo entre as irmãs para que Ellemir ocupasse o lugar de Dorian no leito conjugal. Ellemir sentira um pouco de medo, não da experiência em si, mas de que Mikhail pudesse considerá-la ignorante ou infantil, jovem demais, inexperiente demais, não uma substituta à altura de Dorian. Quando ele a procurara pela primeira vez, e Ellemir não se lembrava disso havia anos, ficara paralisada pelo pavor, quase tão assustada quanto Calista se encontrava agora. Ele a acharia feia, desajeitada?

    E, no entanto, como fora fácil, como fora simples e agradável, no final das contas, como suas apreensões haviam parecido tolas! Quando nascera a criança de Dorian, e seu tempo como substituta acabara, até que lamentara um pouco.

    Pouco a pouco, ela foi avançando no tempo, fundindo sua percepção com a de Callista, partilhando o crescimento de seu amor por Damon. A primeira vez que dançaram juntos, em Thendara, no festival do Solstício do Verão, ele lhe parecera de meia-idade, apenas um dos oficiais de seu pai, silencioso, retraído, dando atenção à prima por polidez, nada mais. Só depois que Callista fora aprisionada pelos homens-gatos, e que mandara chamá-lo, em pânico, é que lhe ocorrera que Damon era algo mais além de um parente mais velho e cordial, além do amigo de seu falecido irmão. E compreendera de repente o que Damon significava para ela. Partilhou com Callista, como nunca poderia ter feito com palavras, a crescente frustração da espera, a insatisfação com beijos e abraços castos, o êxtase do primeiro orgasmo juntos. Ah, se eu soubesse antes como partilhar isso com você, Callie!

    E tornou a experimentar, com alegria e a lembrança do medo, a primeira gravidez: felicidade, apreensão e náusea, o turbilhão em seu corpo, que se transformara numa coisa estranha e hostil, e, em meio a tudo a intensa alegria. Sentiu que soluçava outra vez, incontrolável, ao reviver o dia em que o frágil vínculo se rompera, e a filha de Damon morrera antes de nascer. E depois, mais hesitante - Você é capaz de aceitar? Guarda algum ressentimento? - sentiu de novo a crescente percepção da necessidade de Andrew, acolhendo-o em sua cama, por algum tempo  quase  receando  que  diminuiria   sua  intimidade  com Damon; e a satisfação por saber que a aprofundava, porque agora era uma questão de opção, não apenas de costume, que seu relacionamento com  Damon se  tornara ainda  mais  íntimo,  em  decorrência do que aprendera a seu próprio respeito e de seus desejos por Andrew.

    Sabia que você queria que eu fizesse isso, Callista, mas não pude deixar de especular se era porque no fundo ignorava o que significava para mim.

    Callista sentou na cama, abraçou a irmã e beijou-a, num gesto tranqüilizador. Seus olhos estavam arregalados em espanto e reverência. Ellemir ficou impressionada com sua beleza. Sabia que Damon também amava Callista, partilhando com ela algo que Ellemir nunca poderia. E independentemente, chegou à mesma conclusão de Andrew: não eram dois casais mudando as parcerias de vez em quando, como manobras numa dança complexa. Eram outra coisa, e cada um tinha algo singular, a oferecer aos outros

    Sabia que o medo de Callista desaparecera, que ela se sentia ansiosa em se tornar parte daquela coisa que os quatro formavam, e não precisou levantar os olhos para saber que Andrew e Damon haviam entrado no quarto. Por um momento, especulou se ela e Damon deveriam se retirar, deixando Andrew a sós com Callista, mas acabou censurando a si mesma pela idéia, todos faziam parte da mesma coisa.

    Durante algum tempo, o contato foi apenas das mentes, com Damon se projetando para reforçar a fusão a quatro, interligando-os por completo, como nunca acontecera antes. Ellemir pensou em imagens musicais, e para ela foi como a união de vozes, a de Callista clara e vibrante como o som de harpa, a de Andrew um baixo intenso, a de Damon uma curiosa harmonia múltipla, a sua própria espalhando-se pelas outras, misturando se com cada uma. E enquanto visualizava o contato como música, como harmonia, partilhou as imagens dos outros: uma explosão solar de cores se fundindo na mente de Callista; o senso de intimidade volátil das imagens particulares de Andrew, de tal forma que pensou por um instante que todos se enroscavam nus, numa estranha escuridão, tocando-se por toda parte; os fios faiscantes de teia de aranha da percepção de Damon, unindo-os para se transformarem em uma só. Por um longo tempo, pareceu que não precisavam de mais do que isso. Callista, flutuando nas cores reluzentes, sentiu o contato de Damon, um pouco divertida, e compreendeu que ele se mantivera apartado o suficiente para monitorar seus canais. E, depois, o vínculo emocional se aprofundou, tornou-se uma percepção intensa no corpo de Callista, algo novo e estranho, mas não assustador.

    Vagamente, à beira da mente, ela recordou as histórias do pai. A kireseth era dada a recém-casadas relutantes. Mas ela não era mais relutante. Seria o efeito da resina no corpo ou na mente? Fora a abertura da mente que a libertara para se tornar tão consciente de seu corpo, da intimidade de Ellemir, que se sentia excitada e tão consciente de todos? Ou fora a fome do corpo por intimidade que abrira a mente para a mais profunda comunhão das mentes? Isso tinha alguma importância? Sabia que Andrew ainda tinha medo de tocá-la. Pobre Andrew, ela o magoara muito. Estendeu as mãos para ele, puxou-o para seus braços e sentiu-o a cobri-la de beijos. E desta vez se entregou por completo aos beijos e experimentou a sensação de que se afogava no tremeluzir de luzes e ao mesmo tempo se fundia numa escuridão palpitante.

    Numa súbita explosão de sensualidade, não era mais suficiente estar nos braços de Andrew. Não se afastou dele, mas procurou Damon, sentiu seu contato, beijou-o, e de repente lembrou como desejara fazer isso em seu primeiro ano na Torre e reprimira a memória, num frenesi de horror e vergonha. Tocando os dois rijos corpos masculinos, sentiu que as pontas de seus dedos acompanhavam a curva do seio da irmã, desciam pelo corpo intumescido, e deixou que sua percepção afundasse ainda mais, entrando em contato com a ligeira agitação da criança por nascer, mergulhada num sono sem sonhos. Sentiu-se envolvida assim, segura, cercada de amor, e compreendeu que estava pronta para o resto também.

    Andrew, partilhando isso com ela, refletiu que, para Callista, a sensualidade de Ellemir sempre seria a chave, o segredo para transpor o abismo, como quase acontecera na primeira tentativa catastrófica. Compreendeu que, se tivesse aceitado o contato naquela ocasião, Ellemir seria capaz de levar todos em total segurança até o final. Mas quisera ficar a sós com Callista, em separado.

    Se ao menos eu tivesse confiado em Ellemir e Damon naquele momento... e através do arrependimento, ele captou os pensamentos de Damon: Isso foi antes, agora é agora, Todos mudamos e crescemos.

    E esse foi o último momento de percepção separada para eles. Agora, como quase ocorrera no Solstício do Inverno, a fusão era absoluta. Nenhum deles jamais soube ou quis saber, nenhum deles jamais tentou se separar ou desemaranhar sensações isoladas. Os detalhes não importavam àquela altura - as coxas de quem se abriam ou fechavam, os braços de quem apertavam, quem se afastava por um instante, apenas para voltar mais íntimo, quem beijava, explorava, os lábios de quem se abriam para o beijo, quem penetrava ou era penetrado. Parecia que, por algum tempo, todos tocavam em toda parte, partilhando cada intimidade, tão profundamente que não havia qualquer percepção separada. Callista nunca teve certeza, depois, se partilhara a percepção de Ellemir do ato de amor, ou o experimentara pessoalmente, e por um instante, entrando em contato mental com um dos homens, viu e abraçou a si mesma... ou teria sido à irmã? Sentiu um dos homens explodir em orgasmo, mas não sabia se participara. Sentiu sua própria percepção se expandindo, com Damon, Andrew e Ellemir mais como pontos sólidos em seu corpo, que se ampliara para ocupar todo o espaço do quarto, vibrando em ritmos múltiplos, de excitamento e percepção. Se ela própria conhecera o prazer, ou se apenas partilhara o prazer dos outros, nunca soube com certeza; nem queria saber. Nem qualquer deles jamais soube quem possuíra primeiro o corpo de Callista. Não importava; nenhum deles queria saber. Flutuavam, submergiam no êxtase, fundidos na sensualidade, partilhando um amor tão grande que tais coisas eram irrelevantes. O tempo saíra de foco por completo. Parecia que anos  haviam transcorrido.

    Muito tempo depois, Calista percebeu que estava cochilando, em intensa satisfação, ainda cercada por todos. Ellemir dormia com a cabeça no ombro de Andrew. Callista sentia-se cansada, estranha e feliz, mergulhando ora na consciência de Damon, ora na consciência de Andrew, submergindo por minutos a fio no sono de Ellemir. Oscilando entre o passado e o futuro, consciente de seu próprio corpo como nunca estivera desde a infância, sabia que seria capaz de comparecer à sessão do Conselho e jurar que seu casamento fora consumado, e depois, com uma relutância que a fez rir, que saíra grávida daquela noite. Não queria realmente uma criança, ainda não. Preferia ter um pouco de tempo para aprender, experimentar o tipo de crescimento que Ellemir conhecera, explorar as novas e inexplicadas dimensões de sua vida.

    Mas viverei através disso, as mulheres sempre sobrevivem, pensou ela com uma risada secreta que alcançou Damon. Ele estendeu a mão e seus dedos se entrelaçaram.

    Sejamos gratos aos deuses por você ser capaz de rir a respeito, Calie!

    Não é a obrigação de fazer uma opção, como eu temia. Como se nunca mais fosse capaz de usar minhas habilidades. Ao contrário, é uma expansão do que eu sou, não uma redução das opções.

    Ela ainda se ressentia da necessidade de ter uma criança por decisão do Conselho, e não sua - nunca perdoaria o Conselho por essa atitude -, mas aceitava o inevitável, e sabia que não teria a menor dificuldade para amar a criança indesejada, o suficiente para ter a esperança de que a filha não saberia, até ter idade bastante para compreender o quanto fora indesejada.

    Mas jamais quero saber quem é o pai... Por favor, Elli, nunca me deixe ter certeza, nem mesmo quando me monitorar. E prometeram uma à outra, silenciosamente, que nunca tentariam saber se a criança concebida naquela noite era filha de Damon ou de Andrew. Podiam desconfiar, mas nunca saberiam com certeza.

    Ficaram deitados ali durante horas, cochilando, descansando, partilhando a união a quatro, sentindo o desejo aflorar e ser satisfeito. Embora os outros resvalassem para o sono perto do amanhecer, Damon descobriu-se em vigília, um pouco apreensivo. Enfraquecera aos outros e a si mesmo para a batalha iminente? Callista seria capaz de limpar seus canais com a rapidez necessária?

    No instante seguinte, entrando na consciência de Callista, ele compreendeu que sempre permaneceriam desobstruídos, para qualquer força que ela decidisse usá-los. Callista não precisaria mais da kireseth; sabia agora como trocar os canais das mensagens sexuais para a força total do laran. E Damon teve certeza, com uma confiança irresistível, de que agora podia enfrentar qualquer coisa.

    E depois compreendeu, com alguma relutância, por que o uso de kireseth fora abandonado. Como um ritual raro e sacramental, era seguro e necessário, ajudando as Guardiãs a reafirmar sua humanidade, confirmando o vínculo íntimo dos antigos círculos de Torre, o vínculo mais íntimo conhecido, mais profundo que o parentesco, mais profundo do que o desejo sexual.

    Mas podia também, com a maior facilidade, tornar-se uma fuga, um vício. Com aquela liberdade acessível, os homens aceitariam os períodos ocasionais de impotência, depois de um trabalho árduo? As mulheres aceitariam a disciplina de manter os canais abertos? A kireseth em excesso era perigosa. Mil e uma histórias de Ventos Fantasmas nas Hellers deixavam isso bem claro. E a tentação do excesso seria quase irresistível.

    Por isso, primeiro fora um tabu, para uso sacramental, em raras ocasiões, e mais tarde o tabu fora ampliado, para o desuso e o descrédito. Com pesar pelo que lembraria como uma das experiências mais inebriantes de sua vida, Damon concluiu que mesmo como um ritual de Final do Ano podia ser tentador demais. Conduzira-os, ilesos, através da última barreira para se completarem, mas no futuro deveriam contar com a disciplina e a renúncia.

    Renúncia? Jamais, pois tinham uns aos outros.

    E, no entanto, se todo o tempo coexistia, aquele momento mágico sempre estaria presente, seria tão real para eles quanto era agora.

    Com tristeza, com muito amor, sentindo a presença de todos ao seu redor, lamentando a necessidade da separação, ele suspirou. E despertou os outros, um a um.

    - O sol vai nascer em breve. Eles respeitarão as condições com precisão, mas não nos darão um momento sequer de vantagem, e por isso precisamos estar prontos. É tempo de nos prepararmos para o desafio.

   

    Era a tênue escuridão que precedia o amanhecer. Damon, de pé diante da janela escura, nem mesmo acinzentada com a luz iminente, sentia-se contrafeito. Ainda experimentava a exaltação, mas havia também uma pequena insegurança corrosiva.

    Afinal, fora a coisa errada a fazer? Por todas as leis de Arilinn, aquilo deveria enfraquecê-los, torná-los ineptos para o conflito. Cometera o mais trágico e irrevogável de todos os erros? Amando a todos, condenara-os à morte, ou ainda pior?

    Não. Apostara suas vidas na retidão do que estavam fazendo. Se as leis antigas de Arilinn fossem certas, então todos mereciam morrer, e ele aceitaria essa morte, se não com satisfação, pelo menos com um senso de justiça. Empenhavam-se por uma nova tradição, menos cruel e debilitante do que aquela que rejeitava, e sua convicção de que estavam certos devia triunfar.

    Vestira uma túnica quente contra o frio do mundo superior. Callista fizera a mesma coisa, e ajeitara um xale felpudo nos ombros de Ellemir. Andrew, vestindo um manto de montaria de pele, perguntou:

    - O que exatamente vai acontecer, Damon?

    - Exatamente? Não há como prever. É o teste antigo dos Guardiões: construiremos nossa Torre no mundo superior, e eles tentarão destruí-la, e a nós também. Se não conseguirem destruí-la, devem reconhecer que é legítima e tem o direito de existir. Se a destruírem... você sabe o que acontecerá nesse caso. Por isso, não devemos permitir que a destruam.

    Callista estava pálida e assustada. Ele pegou seu rosto entre as mãos.

    - Nada pode nos machucar no mundo superior, a menos que você acredite que é possível.

    No instante seguinte, ele compreendeu o que a perturbava: durante toda a sua vida, fora condicionada a acreditar que seu poder dependia da virgindade ritual.

    - Pegue sua matriz - ordenou Damon. Ela obedeceu, hesitante.

    - Focalize-a. Está vendo? - As luzes começaram a cintilar na pedra. - E sabe que seus canais estão livres.

    Era verdade. E não se tratava apenas de uma conseqüência da kireseth. Liberados das enormes tensões e armaduras do treinamento de Guardiã, os canais não mais se encontravam congelados. Ela podia comandar a seletividade natural. Mas por que o instinto não lhe dissera isso?

    - Damon, como e por que puderam permitir que um segredo assim fosse esquecido?

    Significava que ninguém jamais teria de fazer a cruel opção que Leonie lhe impusera quando ainda era uma criança, que outras Guardiãs por séculos haviam aceitado, numa lealdade altruísta ao Comyn e às Torres.

    - Como puderam abandonar isto... - As palavras de Callista ressoavam com toda a maravilha e descoberta da noite que terminava. - ...por aquilo?

    - Não sei - respondeu Damon com profunda tristeza. - Também não sei se aceitarão agora. Ameaça o que sempre ensinaram, faz com que seus sacrifícios e sofrimentos se tornem inúteis, um ato de loucura.

    Ele sentiu um aperto no coração, sabendo que em sua iniciativa, como acontecia com todas as grandes descobertas, havia as sementes de um amargo conflito. Homens e mulheres morreriam em defesa de um lado ou outro naquela luta acirrada, e ele soube, com uma imensa angústia, que uma filha sua, com o rosto e o nome de uma fllor, uma filha que não seria de nenhuma das duas mulheres presentes, acabaria assassinada por introduzir aquele conhecimento em Arilinn. Por um ato de misericórdia, o conhecimento logo voltou a se tornar turvo; o momento era agora, e não ousava se preocupar com o passado ou o futuro.

    - Arilinn, como todas as outras   Torres, se encontra aprisionada numa decisão de nossos antepassados. Eles podem ter sido guiados por razões que eram válidas na ocasião, mas que não são mais agora. Não estou obrigando os círculos das Torres a abandonarem sua opção, se é de fato uma opção deles e se preferirem, sabendo o custo, e tendo certeza de que existe agora uma alternativa, manter sua tradição. Mas quero que todos saibam que há uma alternativa, que se eu, trabalhando sozinho, e como um pária, encontrei outro caminho, pode haver outros, dezenas de outros, e alguns podem ser ainda mais aceitáveis do que este que descobri. Mas reivindico o direito, para mim e meu círculo, de trabalhar à minha maneira, pelas leis que nos parecerem certas e apropriadas.

    Parecia muito simples e racional. Como podiam os outros ameaçá-los com a morte ou mutilação por isso? E, no entanto, Callista sabia que haviam ameaçado, e tentariam cumprir a ameaça. Andrew disse a Ellemir:

    - Não estou preocupado com você, mas gostaria de poder ter certeza de que isso não constitui uma ameaça para a criança.

    Ele compreendeu que acertara em cheio ao medo de Ellemir. Mas ela declarou, a voz firme:

    - Confia ou não em Damon? Se ele achasse que havia perigo, já teria me explicado e me deixaria tomar uma decisão com pleno conhecimento.

    - Claro que confio.

    Mas será que Damon, especulou Andrew, achava que, se perdessem a batalha, seria inútil para qualquer deles sobreviver, inclusive Ellemir e o bebê? Ele tratou de interromper essa linha de pensamento. Damon era o Guardião. A única responsabilidade de Andrew era decidir se Damon era ou não digno de confiança, e depois se entregar ao seu comando, seguir sua orientação sem restrições mentais. Por isso, ele perguntou:

    - O que faremos primeiro?

    - Construímos a Torre e a consolidamos com toda a nossa força. Já existe há muito tempo, mas é o que imaginamos que seja. - Ele acrescentou para Ellemir: - Você nunca esteve no mundo superior; só precisa se manter em vigília por mim aqui. Entre em contato comigo, e eu a levarei até lá.

    Com um forte impulso mental, Damon se projetou para o mundo superior, com Ellemir ao seu lado, na paisagem cinza informe. Vagamente, a princípio, mas com uma nitidez cada vez maior à claridade superior, ele pôde divisar as paredes de seu ponto de referência.

    No começo, era apenas um abrigo tosco, como uma cabana de pastor, visualizado quase que por acaso. Mas a cada uso sucessivo, crescera e se reforçara, e agora uma Torre autêntica e ostensiva se erguia ao redor deles, com paredes de um azul brilhante, um lugar tão real ao seu contato e passos quanto o quarto no Castelo Comyn em que haviam consumado sua união a quatro. Na verdade, haviam levado muita coisa daquele mundo, porque o vínculo a quatro, pensou Damon, era de certa forma a coisa mais importante que já acontecera a qualquer um deles.

    Como sempre ocorria no mundo superior, ele sentia-se mais alto, mais forte, mais confiante, o que era a essência de tudo. Ellemir, a seu lado, não parecia tanto com Callista como no mundo sólido. Fisicamente, ela e Callista eram muito parecidas, mas ali, onde a mente determinava a aparência física, eram bem diferentes. Damon conhecia o bastante de genética para especular, por um momento, se elas não eram gêmeas idênticas, no final das contas. Se não eram, isso podia significar que Callista seria capaz de gerar um filho seu sem tanto risco quanto Ellemir. Mas tal pensamento era para outro tempo, para outro nível de percepção.

    Depois de um instante, Callista e Andrew se juntaram a eles no mundo superior. Damon notou que Callista não vestira a túnica escarlate de uma Guardiã. Quando o pensamento a alcançou, ela sorriu e disse:

    - Deixo isso para você, Damon.

    Para um duelo entre uma Guardiã e um Guardião, talvez ele devesse vestir o escarlate ritual, mas abstivera-se da blasfêmia, e de repente compreendeu o motivo.

    Não lutaria aquela batalha pelas leis de Arilinn! Não era um Guardião por aquelas leis cruéis, que representavam uma negação da vida, mas sim o tenerézu por uma tradição mais antiga, defendendo seu direito de agir como tal! Usaria as cores de seu Domínio, não mais do que isso.

    Andrew assumiu a posição de um pajem ou guarda, dois passos atrás. Damon pegou a mão de Ellemir à sua direita e a de Callista à esquerda, como um contato de leve com as pontas dos dedos, como sempre pareciam todos os contatos no mundo superior. E disse em voz baixa:

    - O sol se levanta por cima de nossa Torre. Sintam sua força ao nosso redor. Nós a construímos aqui para abrigo. Agora, deve permanecer aqui, não apenas por nós, mas também como um símbolo para todos os mecânicos de matriz que rejeitam as cruéis restrições das Torres, um abrigo e um farol para todos os que nos sucederão.

    Andrew teve a impressão, embora as paredes azuis da Torre o cercassem, de que podia avistar o sol do mundo superior através daquela barreira. Callista já lhe explicara:

    No mundo da luz superior, onde se encontravam agora, não havia trevas, porque, a luz não se irradiava de um sol sólido. Vinha da rede de energia do sol, que podia brilhar através da rede de energia do planeta. Para Andrew, o sol vermelho era enorme, uma faixa pálida se erguendo além e, de certa forma, através da Torre, derramando uma claridade escarlate por toda parte.

    Um raio explodiu, ofuscando-os, e por um momento pareceu que a Torre balançava, tremia, que a própria estrutura do mundo superior ficava abalada. Já começou, pensou Damon, o ataque que aguardavam. Unidos em plena força, eles sentiram as paredes da Torre bem fortes, um abrigo seguro. Damon projetou uma explicação para Andrew e Ellemir, menos experientes.

    Eles tentarão destruir a Torre, mas como é nossa visualização da Torre que a mantém firme assim,,  não poderão arrasá-la se nossa percepção não vacilar.

    Um dos jogos de técnicos em treinamento era travar duelos simulados no mundo superior, onde a substância do pensamento era sempre flexível, e todas as projeções podiam ser destruídas com um pensamento, tão depressa quanto haviam sido erguidas. Apesar de saber que não passava de uma ilusão, Damon ainda assim experimentou uma pontada puramente irracional de medo físico, à medida que um raio depois de outro atingia a Torre, parecendo sacudi-la, com trovoadas ensurdecedoras. Podia ser um jogo perigoso, pois qualquer coisa que acontecesse ao corpo no mundo astral podia também ocorrer, por repercussão, com o eu físico. Mas estavam seguros por trás das paredes da Torre.

    Eles não podem nos fazer mal. Eu não quero fazer mal a eles, mas apenas permanecer seguro com meus amigos... Mais cedo ou mais tarde, porém, o ataque incessante do exterior deveria enfraquecê-los. Sua única defesa era o ataque.

    Tão depressa quanto o pensamento, eles se descobriam juntos na ameia mais alta de sua Torre. Para Andrew, era como se houvesse rocha sob seus pés. Vestia, como sempre acontecia no mundo superior, o tecido cinza-prateado de um uniforme do Império Terráqueo; ao percebê-lo, sentiu que o alterava. Não sou mais um terráqueo agora. E descobriu, com um lampejo de percepção, que usava o culote de couro e o casaco de pele com que costumava trabalhar na propriedade. Era esse agora o seu verdadeiro eu; agora pertencia a Armida.

    Do alto da Torre, podiam avistar a projeção de Arilinn, como um farol flamejante. E Damon especulou: Como podia estar tão próxima? Logo compreendeu que era a visualização de Leonie e seu círculo, que haviam falado da Torre proibida como construída em seu próprio limiar. Para Damon, parecera muito longe, a mundos de distância. Mas agora se encontravam tão perto que ele podia até ver Leonie, uma estátua em traje escarlate, empunhando punhados de substância de pensamento e lançando um raio. Damon interceptou-o em pleno ar com seu próprio raio, viu-o explodir por cima do topo de Arilinn e divisou uma rachadura na fortaleza que era a Torre de Arilinn.

    Percebem-nos como uma ameaça a eles! Por quê?

    Houve silêncio por um instante, e depois as trovoadas voltaram a ressoar por toda parte, num violento duelo de raios, lançados e interceptados. Damon sentiu um pensamento casual, Eu me sinto como Jeová, arremessando seus raios, devia ser de Andrew. E se perguntou, com um fragmento ínfimo de sua consciência, quem ou o que era Jeová.

    Posso derrubar a Torre de Arilinn porque eles têm medo de nós, por algum motivo. Mas, abruptamente, Leonie mudou sua tática. Os raios cessaram, e no instante seguinte eles foram sufocados pelo que parecia uma chuva de limo e vomitaram em repugnância. Como esterco, sêmen, as trilhas deixadas pelas lesmas que invadiam as estufas com a umidade... estavam se afogando na fetidez. É assim que eles consideram o que fizemos? Damon fez um esforço para limpar a mente da náusea, para remover do rosto a... Não, isso seria dar realidade. Rapidamente, com a união das mãos e das mentes de seu círculo, ele engrossou o limo, converteu-o na riqueza do solo fertilizado, deixou que escorresse por seus corpos, até que das profundezas afloraram flores, cobrindo o topo da Torre proibida, numa explosão de vida e cores de uma floração no início da primavera. Mantiveram-se triunfantes na campina florida, reafirmando a vida que se sobrepunha à fetidez.

    Combati o Grande Gato fora da Torre e acabei vencendo. Como a afirmar o ato que o despertara para seu poder psíquico, que não diminuíra mesmo depois de anos fora da Torre, Damon invocou o Grande Gato, projetando as mentes unidas na imagem e mandando-a pairar sobre as alturas de Arilinn. Enquanto o Grande Gato devastava as Colinas Kilghard, impondo as trevas, o terror e a fome a todo o nosso povo, vocês sentavam seguros em Arilinn e nada fizeram para ajudar as pessoas!

    As duas Torres se achavam tão próximas agora que ele podia ver o rosto de Leonie através do véu, faiscando em ira e desespero. No mundo superior, pensou Damon, com isenção, ela ainda era linda como sempre fora. Mas só pôde contemplá-la por um instante, pois seu rosto desapareceu numa escuridão turbilhonante, que a fez sumir da vista de seu círculo. Onde Leonie antes se encontrava, um dragão se ergueu, apoiado nas patas traseiras, rugindo e cuspindo fogo. Escamas douradas, garras douradas, elevando-se pelo céu, por cima de Arilinn, o fogo alcançando a Torre proibida. Damon sentiu o calor escaldante, sentiu que seu corpo se encolhia no fogo, ouviu Callista gritar em agonia, percebeu o terror de Ellemir, e por um momento se perguntou se Leonie devia conseguir, no final das contas, expulsá-los do mundo superior, forçando-os de volta a seus corpos físicos...

    Com a chama, no entanto, também captou a lenda na mente de Andrew: Pode nos queimar; mas voltaremos, como a fênix ressurgindo das cinzas... Projetando-se com suas últimas forças, através do fogo e do calor insuportável que ameaçava expulsá-los do mundo superior, Damon reforçou ainda mais o vínculo entre os quatro. Juntos, concentraram toda a sua força psíquica na substância moldável do mundo superior, formando uma ave gigantesca, com penas flamejantes, ardendo na união extasiada que haviam consumado, as quatro mentes como uma só. Damon sentiu, na mente de Andrew, os quatro enroscados juntos, nus,  dentro de uma escuridão, dentro de um ovo não chocado, as chamas do dragão consumindo-os por completo, convertendo-os em cinzas. Depois, num êxtase em expansão, a casca ao redor se rompeu, e se projetaram para o alto, emergindo das cinzas, estendendo asas poderosas, numa explosão de energia, alçando vôo por cima de Arilinn, triunfando... Do bico da fênix saiu um raio que abalou a Torre de Arilinn. Damon viu, como se estivesse muito lá embaixo, as formas diminutas de Leonie e seu círculo, observando em desespero e pavor. Leonie! Você não pode nos destruir! Proponho uma trégua. Damon sabia que não desejava destruir Arilinn. Fora seu lar. Sofrera muito ali, como Callista, mas também adquirira seu treinamento, aprendera a disciplina, a usar ao máximo sua força e controle. O treinamento  em Arilinn constituía a base do que era agora, do que poderia se tornar mais tarde. Arilinn deveria permanecer para sempre, no mundo superior e no mundo real, um lar para os telepatas, um símbolo do que o treinamento na Torre já fora, e um dia ainda poderia voltar a ser. A força e poder dos Domínios.

    Mas a voz de Leonie estava abalada, quase inaudível.

    - Não, Damon, acabe conosco. Destrua-nos por completo, como destruiu tudo o que representamos.

    - Não, Leonie.

    E, subitamente, eles se defrontavam na planície cinzenta do mundo superior. E Damon compreendeu - e sabia que Leonie partilhou o pensamento - que nunca poderia lhe fazer qualquer mal. Amava-a, sempre a amara, sempre a amaria.

    - E eu também amo você - murmurou Callista, ao lado de Damon.

    Ela estendeu as mãos para Leonie e abraçou-a, terna e afetuosa, como nunca fizera no mundo real.

    - Mas será que você não pode perceber, Leonie,  minha amada mãe-de-adoção, o que Damon fez?

    Leonie respondeu com a voz trêmula:

    - Ele destruiu as Torres! E você, Callista, traiu a todos nós!

    Ela se afastou da jovem com uma expressão de horror. Damon, ligado a Leonie agora, compreendeu que ela podia ver o que acontecera com Callista, que Callista se tornara uma mulher, amando, amada, realizada - não mais uma Guardiã no sentido antigo, mas ainda possuindo todo o poder e força de seu treinamento.

    - Callista, Callista, o que você fez?

    Damon respondeu, a voz gentil, mas inflexível:

    - Descobrimos o método antigo de trabalho, pelo qual uma Guardiã não precisa sacrificar a vida e toda a alegria de viver.

    Então minha vida foi inútil, meu sacrifício desnecessário. E com um desespero que Damon não podia medir nem suportar: Deixe-me morrer!

    Ele podia ver através de Leonie, com a visão nova de um Guardião e descobriu horrorizado o que ela fizera consigo mesma. Por que não adivinhara? Ela o despachara da Torre a fim de remover para sempre a tentação de que ele pudesse perder o controle e revelar seu desejo. Mas como remover a tentação da própria Leonie? As leis proibiam a neutralização de uma mulher do Comyn, e ela parara pouco antes disso com Callista.

    E consigo própria?

    - Não desnecessário - murmurou ele, com uma compaixão angustiada. - Você e todos os outros mantiveram a tradição viva, mantiveram vivas as ciências da matriz em Darkover, para que algum dia esta redescoberta pudesse ser feita. Seu heroísmo tornou possível que nossos filhos e netos usem as ciências antigas sem tanto sofrimento e tragédia. Não quero destruir as  Torres, apenas remover alguns fardos, permitir que outros sejam treinados fora das Torres, para que vocês não precisem renunciar às suas vidas, para que o preço não seja tão cruelmente alto. Você e todos nós que passamos por Arilinn e pelas outras Torres mantivemos a chama viva, embora alimentada com nossa própria carne e sangue.

    Damon postou-se desarmado diante de todos, sabendo que poderiam golpeá-lo, mas também sabendo, com toda a certeza, que agora ouviam suas palavras.

    - Agora a chama viva pode ser reacesa, e não mais precisa se alimentar com nossas vidas. Leonie... - Damon tornou a se virar para ela, estendendo os braços, suplicante. - ... se você pôde ceder sob a pressão, logo você, uma Hastur, a Dama de Arilinn, então é sem dúvida um fardo pesado demais para qualquer mortal suportar. Nenhuma pessoa viva conseguiu agüentar sem quebrar. Vamos trabalhar, Leonie, vamos continuar como começamos, a fim de que chegue o dia em que os homens e as mulheres que foram para as Torres possam encontrar a alegria em seu trabalho, não o sacrifício interminável e a morte em vida!

    Lentamente, Leonie inclinou a cabeça.

    - Reconheço-o como Guardião, Damon. Está além do mal ou da vingança por nossas mãos. Merecemos qualquer penalidade que você quiser invocar.

    Ele sentiu um aperto no coração.

    - Não posso lhe infligir nenhuma penalidade maior do que aquela que já aplicou a si mesma, Leonie, a sentença que deve continuar a suportar até que outra geração seja bastante forte para se libertar. Que Avarra em sua misericórdia permita que você seja a última Guardiã de Arilinn a enfrentar essa morte em vida, mas você deve permanecer Guardiã de Arilinn, até que Jasmine possa arcar com o fardo sozinha.

    E sua única punição será saber que para você é tarde demais. Consternado com a agonia de Leonie, Damon compreendeu que sempre fora tarde demais para ela. Já era tarde demais quando, aos quinze anos, ela ingressara na Torre de Dalereuth, fazendo os votos de uma Guardiã. Ele viu-a recuando, mais e mais, como uma estrela se desvanecendo à claridade da manhã. Viu a própria Torre de Arilinn recuando para o horizonte fluido do mundo superior, definhando a distância, até desaparecer, com um derradeiro clarão azul. Damon, Andrew, Ellemir e Callista estavam a sós na Torre proibida; e depois, com um choque intenso, o mundo superior também desapareceu, e retornaram ao quarto no Castelo Comyn. Os picos além da janela estavam banhados pela claridade do amanhecer, mas o enorme sol vermelho mal se elevara acima do horizonte.

    O nascer do sol. E o destino dos quatro, talvez também o destino de todos os telepatas em Darkover, fora acertado numa batalha astral que durara menos de um quarto de hora.

   

    - Você é um tolo, Damon - disse Lorenz, Lorde de Serrais, com evidente repulsa. - Sempre foi um tolo e sempre será. Podia ter sido regente de Alton e comandante da Guarda pelo tempo suficiente para romper o poder dos Altons e passar o cargo para o Domínio de Serrais.

    Damon soltou uma risada jovial.

    - Mas não quero ser comandante, e agora não há mais necessidade. É bem provável que Dom Esteban viva por todo o tempo necessário para levar Valdir à maioridade, e talvez ainda mais.

    Lorenz fitou-o com suspeita e desconfiança.

    - Como fez isso? Todos ouvimos dizer que ele se encontrava às portas da morte!

    - Um exagero.

    Damon deu de ombros, sabendo que esse seria o trabalho de sua vida, estudar os meios de curar com a matriz. Determinado o princípio, não era difícil entrar no coração avariado, remover os bloqueios e restaurá-lo em sua plena função. Esteban Lanart, Lorde Alton, continuaria paralítico pelo resto de sua vida, mas um homem podia comandar a Guarda de uma cadeira de rodas. Quando fosse necessário sair em campanha, o jovem Danvan Hastur ou Kieran Ridenow poderiam comandar em seu lugar. Damon era o regente do Domínio apenas no nome agora, como uma contingência para qualquer acidente. A precognição não era o dom principal de Alton ou Ridenow, mas ele teve um lampejo agora, sabendo que Valdir assumiria a direção de Alton quando se tornasse adulto, e que seria um dos mais inovadores soberanos do Domínio.

    - Você não tem qualquer ambição, Damon? - indagou Lorenz, irritado.

    - Tenho mais ambição do que você pode imaginar, Lorenz, só que assume uma forma diferente da sua. E agora, infelizmente, devemos nos separar, já que temos uma longa viagem pela frente. Voltaremos a Armida. O filho de Ellemir é o herdeiro seguinte do Domínio e deve nascer lá.

    Lorenz fez uma reverência, a contragosto. A Andrew, logo atrás de Damon, ele ignorou, mas saudou Ellemir com toda a cortesia e Callista com um respeito genuíno. Damon virou-se para abraçar o irmão Kieran.

    - Vai nos visitar em Armida no outono, quando voltar a Serrais?

    - Claro que sim, e espero conhecer o filho de Ellemir na ocasião. Quem sabe ele não se tornará algum dia o comandante da Guarda?

    Kieran ficou para trás, sendo ultrapassado pelos guardas que acompanhariam Damon e seu grupo na viagem. Damon já ia dar o sinal para a partida quando avistou uma mulher esguia, com o manto e o capuz apropriados para uma comynara diante de tanta gente, descer a escadaria do pátio do Castelo Comyn. O instinto lhe disse quem era... ou seria apenas porque nada poderia esconder Leonie de Arilinn de sua vista?

    Por isso ele não montou, mas fez sinal para que seu cavalariço mantivesse o animal de prontidão e se adiantou para o encontro com Leonie na base da escadaria.

    - Leonie - murmurou ele, inclinando para sua mão.

    - Vim me despedir e oferecer minha bênção a Callista.

    Andrew fez uma reverência profunda quando ela passou com Damon, encaminhando-se para Callista, prestes a montar em sua égua cinza. Leonie ergueu a cabeça, e Andrew teve a impressão de que os olhos da velha ardiam das profundezas de uma caveira, irradiando ressentimento. Mas ela inclinou a cabeça e disse formalmente:

    - Que a sorte o acompanhe.

    Leonie estendeu as mãos em seguida, e Callista as tocou apenas com as pontas dos dedos, o tênue contato de telepata para telepata.

    - Aceite minha bênção, criança - disse Leonie. - Sabe agora como sou sincera e como lhe desejo tudo de bom.

    - Claro que sei, Leonie.

    O ressentimento já desaparecera. Fora difícil suportar o que Leonie fizera, mas também possibilitara aquela abertura mais profunda, levara-a ao que ela sabia agora ser a maior realização que podia existir. Ela e Andrew poderiam se unir sem qualquer mal e viver juntos em felicidade, mas teria de renunciar a seu laran para sempre, como presumia antes que uma Guardiã devia fazer. Compreendia agora que, assim, passaria o resto da vida apenas meio viva. Levantou as pontas dos dedos de Leonie para seus lábios e beijou-as, com reverência e um amor profundo.

    Era tarde demais para Leonie, Callista sabia, mas agora ela não mais se ressentia de sua felicidade.

    Leonie virou-se para Ellemir, fazendo um gesto de bênção. Ellemir inclinou a cabeça, aceitando a saudação, mas sem retribuí-la. Leonie virou-se para Damon. Outra vez, em silêncio, ele curvou-se sobre sua mão, sem fitá-la nos olhos. Tudo já fora dito; não havia mais nada a falar ou fazer entre os dois. Damon sabia que nunca mais tornariam a se encontrar. Havia uma distância enorme e intransponível entre Arilinn e a Torre proibida, e tinha mesmo de ser assim. Toda uma nova ciência de mecânica da matriz resultaria do trabalho de Damon, removendo o terrível fardo das Torres. Ela tornou a fazer o gesto de bênção e afastou-se.

    Damon montou em silêncio, e atravessaram os portões, Andrew seguindo à frente com Callista, depois os criados, os agregados, os porta-estandartes. Damon ia na retaguarda, ao lado de Ellemir. Ele tinha a impressão de que seu coração ia explodir. Experimentava uma enorme felicidade, como jamais imaginara que seria possível. Mas sua felicidade se baseava na vida de Leonie e de outras pessoas como ela, que haviam mantido o conhecimento vivo. Cassilda, mãe dos Domínios, orou ele, faça com que nunca esqueçamos, que nunca tomemos seu sacrifício em vão...

    Ele avançava de cabeça baixa, lamentando, até que percebeu os olhos pesarosos de Ellemir fixados nos seus e compreendeu que não devia continuar naquele estado.

    Pelo resto de sua vida, lembraria e lamentaria, mas devia ser uma dor particular, quase um segredo. Agora, devia voltar-se para o futuro.

    Havia muito trabalho a fazer. Um trabalho talvez trivial para as Torres, mas importante: trabalho como reparar o coração de Dom Esteban, como salvar os pés e as mãos dos homens congelados. E mais importante ainda, testar os limites extremos dos que podiam ser treinados para a matriz. Callista, como prometera, já ensinara Ferrika a monitorar. Era uma discípula compenetrada, e aprenderia ainda mais. E haveria outros nos próximos anos.

    Ellemir mudou de posição na sela, e Damon se apressou em dizer, na maior ansiedade:

    - Não deve se cansar, meu amor. Precisa mesmo cavalgar agora?

    Ellemir soltou uma risada jovial.

    - Ferrika aguarda a primeira oportunidade de me mandar para a liteira, mas agora quero cavalgar ao sol.

    Foram seguindo juntos, passando pelos criados, pelos animais de carga, até alcançarem Callista e Andrew.

    Chegando ao desfiladeiro, Andrew lançou um último olhar para o espaçoporto terráqueo. Talvez nunca mais tornasse a vê-lo, mas os terráqueos, com toda a certeza, ali continuariam pelo resto de sua vida. Talvez a atitude de Valdir em relação aos terráqueos seria diferente, por conhecer Andrew muito bem, não como um forasteiro, mas como um homem igual a eles, o marido de sua irmã.

    Mas tudo isso pertencia ao futuro. Ele desviou os olhos do espaçoporto e não mais olhou para trás. Seu mundo era outro agora.

    Desceram pelo desfiladeiro, e o espaçoporto sumiu lá atrás. Mas Callista pôde ouvir o estrondo de uma das grandes naves espaciais, e estremeceu um pouco. Fazia-a pensar nas mudanças que ocorreriam em Darkover. Mas se ela fora capaz de suportar todas as mudanças por que passara no último ano, também conseguiria enfrentar o que teria pela frente. Também tinha um trabalho a realizar, partilhando a obra de Damon e também pensando na criança que nasceria.

    Ela também está sendo trazida indesejada a um mundo que não deseja, como aconteceu comigo..

    Mas caberia a seus filhos enfrentar o mundo do futuro. Tudo o que podia fazer era prepará-los e tentar tornar o mundo um pouco melhor para eles viverem. Já começara. Pegou a mão de Andrew, desfrutando a simples percepção de que podiam se tocar, sem sentir a menor necessidade de repeli-lo. Ela sorriu quando Damon e Ellemir se aproximaram. Quaisquer mudanças que pudessem ocorrer, eles as enfrentariam juntos.

 

                                                                            Marion Zimmer Bradley

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades