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A TORRE / Steven James
A TORRE / Steven James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Quinta-feira, 5 de novembro de 2008
Washington, DC
17h32
A grande caminhonete parou derrapando no trecho encharcado por uma camada de neve fora de época, e Creighton Melice adentrou a penumbra.
Ele examinou o bairro decrépito de Washington DC. Traficantes de droga nas esquinas. Alguns rostos vazios o observavam através de janelas de edifícios mortos. Sombras espessas se espalhavam pela rua. Creighton inspirou o ar estagnado. Sim. Estar no centro podre da cidade com o dia morrendo ao seu redor fazia Creighton Melice se sentir em casa.
Seu advogado, Jacob Weldon, suspirou nervoso pela janela do SUV.
– Então, você quer que espere por você?
Creighton olhou para ele. Weldon. Um homenzinho tímido com olhos arregalados.
– Não, vou ficar bem.
– Tome cuidado. – Weldon parecia aliviado.
– Eu sempre tomo.
Há menos de três horas Creighton estava preso. Cela úmida. Acusações de assassinato em segundo grau – e provavelmente uma longa sentença na cadeia. Mas então, bem quando Creighton estava ensaiando sua história, Weldon apareceu e anunciou que havia pago a fiança.
– Você é um homem livre. – ele disse.
– Não brinca comigo.
– É sério.
– Quem? Quem pagou?
Weldon balançou a cabeça.
– Não sei. Alguém. Um amigo.
Creighton franziu a testa.
– Como você não sabe? Ele não teve que assinar?
– Ele mandou alguém. Um cara grande, que já vi antes, sentado nas preliminares. Mas ele era só um pau-mandado. Outra pessoa pagou a conta.
– Um amigo, é? Bom, nenhum dos meus amigos tem esse tanto de dinheiro.
– Talvez você tenha um novo amigo. Vem, vamos sair desse lugar. Seja quem for, a pessoa quer ver você.
Então eles deixaram a cadeia, dirigiram por um bom tempo para garantir que nenhum policial estivesse tentando vigiá-los, e então chegaram aqui, no número 1311 da Donovan Street, em frente a esse edifício vazio e cinzento com uma placa torta escrita The Blue Lizard Lounge.
O lugar onde o novo amigo de Creighton havia escolhido para o encontro.
Após o carro de Weldon ter desaparecido na esquina, Creighton vasculhou o chão procurando algum tipo de arma, agarrou uma garrafa de cerveja quebrada e empurrou a porta de metal desgastada da danceteria. Ela enganchou no trinco por um momento e então se abriu.
Um corredor esticava-se à sua frente, iluminado apenas por um escasso conjunto de lâmpadas penduradas em ângulos estranhos, mais ou menos a cada dois metros.
Ele não gostou nada disso. O encontro. O espaço confinado. Um cara que ele nem conhecia pagando sua fiança. Creighton segurou mais firme o gargalo da garrafa. Ele havia usado uma garrafa quebrada como arma apenas uma vez. Aquela noite havia terminado bem para ele e não muito bem para o cara que deu em cima da mulher que estava prestes a se tornar sua namorada. Ele sabia que poderia pelo menos causar tanto dano quanto daquela vez, se fosse preciso.
Enquanto Creighton aproximava-se do fim do corredor, ele pôde ver duas portas, uma de cada lado. Uma única palavra havia sido rabiscada em cada uma das portas. E, mesmo sendo difícil dizer com certeza por causa da luz fraca, as palavras pareciam ter sido escritas com sangue. Ele esticou sua mão. Sentiu a palavra Dor .
Ainda úmida.
Provou.
Sim. Sangue.
A palavra Liberdade estava pintada na porta do outro lado do corredor.
Creighton olhou para trás. Só um corredor vazio. Ele então checou as portas, procurou por luz vazando sob elas. Nada. Olhou mais uma vez para o corredor.
Nada. Apenas um corredor vazio que terminava ali. Naquelas duas portas. Liberdade ou dor.
Creighton pressionou seu ouvido contra cada uma das portas. Escutou. Nenhum som. Ele precisava fazer uma escolha. A decisão era fácil.
Creighton escolheu dor.
Com um clique suave, a porta escancarou-se para um vestíbulo estreito. Talvez cinco metros à sua frente uma luz bem focada cortava o centro de uma sala adjacente, provavelmente a pista de dança abandonada da danceteria. Uma luminária? Por que uma luminária?
Creighton sentiu cheiro de fumaça de cigarro. Alguém o esperava.
Seu novo amigo.
Creighton atravessou o vestíbulo, e assim que chegou na luz forte, uma voz o interrompeu.
– Já foi longe o suficiente. – A voz era alterada eletronicamente, mas para Creighton, quem falava parecia ser um homem. Creighton parou.
No outro lado da sala, cerca de uns oito metros à frente, estava sentada uma figura com uma forte lâmpada industrial de halogênio brilhando por trás de sua cadeira.
Mesmo com a iluminação forte por trás da pessoa, Creighton podia ver que, seja quem fosse, possuía uma arma.
– Você escolheu a porta correta, Creighton.
– Sim. Bom, vamos ver. – Ele cobriu seus olhos e fez um gesto em direção à arma. – Então, você me libertou só para poder atirar em mim?
Uma risada eletrônica reverberou pela sala. A pessoa moveu a arma em direção à garrafa que Creighton estava segurando.
– E você veio aqui só para poder me cortar?
– Talvez.
Uma pausa.
– Quero te oferecer algo.
– Eu não trabalho para ninguém e você não pode me comprar. Então, se você for atirar em mim, atire bem, porque se você só me ferir, vou pegar você. – Creighton ergueu a arma pontiaguda. – Eu sou muito rápido, e se eu atravessar a sala, vou enterrar isso na sua barriga. O que acha dessa oferta?
– Eu não mereço nem um “obrigado”? Sua fiança não foi pequena, e nós dois sabemos que você não vai aparecer para o julgamento. Foi um belo punhado de dinheiro que paguei só para você vir aqui e me ameaçar.
Creighton tentou pegar o tom de voz verdadeiro da pessoa, mas seja quem fosse, deveria estar usando um microfone que mudava a afinação e o tom de cada palavra enquanto ele falava.
– Bom, – disse Creighton – eu nunca pedi sua ajuda. Uma voz grave veio pelo microfone.
– Sr. Melice, eu estive, como posso dizer, acompanhando sua carreira.
– Então você é um fã. Nossa, que ótimo.
– De certo modo, sim. Sou um fã. Você tem um grande dom.
– Ah, é assim que você chama isso. – Não foi bem uma pergunta. O silêncio tomou a sala. Creighton esperou a pessoa responder, e quando a resposta não veio, Creighton virou sua cabeça e tocou com a garrafa em sua própria nuca. – A base da nuca, bem aqui, ou talvez a parte de trás da cabeça, seria sua melhor escolha. Porém, dessa distância, é bom você saber o que está fazendo. Estou me virando para ir embora, agora. Faça o melhor que pode. – Creighton esperava ouvir o clique da pessoa destravando a arma; isso diria muito, se ele fizesse. Nenhum dos caras com quem ele já havia trabalhado usava a trava de segurança. Creighton deu dois passos. Então ouviu a voz novamente.
– Eu sei porque você escolheu essa porta.
Creighton parou.
– Posso conseguir o que você quer.
Creighton virou.
– Ninguém pode conseguir o que quero.
– Meu amigo, você não estaria aqui se eu não pudesse. Nunca teria me importado com você. Você que publicou os vídeos. Leio o seu blog. Sei o que você quer.
Creighton queria perguntar como foi possível ligar os vídeos e o blog a ele, mas obviamente isso já havia acontecido e nesse momento isso era tudo o que importava.
– Estou ouvindo.
– Existe algo que gostaria que você me ajudasse a obter. Seu passado, suas habilidades e... seus gostos peculiares... tornam você eminentemente qualificado para esse trabalho. Quando tiver em minhas mãos, darei a você a coisa que pessoa nenhuma no planeta pode dar.
– O que quer que eu “obtenha”?
Ele movimentou com desprezo o cano da arma.
– Falarei mais na hora adequada, meu amigo. Por enquanto, eu apenas gostaria de saber se você está interessado o suficiente para continuar essa discussão. Caso contrário, está livre para ir. Vou considerar o dinheiro da fiança como um investimento que não deu certo.
– Livre para ir, é? Assim que eu virar as costas, você mete uma bala na minha cabeça.
– Não, – disse a voz. – Eu escolho a base da nuca ao invés disso. Um calafrio repentino. Erro de cálculo.
– O quê?
Um instante depois, Creighton escutou o estalo simultâneo da arma e a explosão brilhante de vidro ao seu lado. Ele não sentiu o impacto da bala, mas rapidamente procurou em seu corpo pela ferida, por uma mancha crescente de sangue. Não encontrou nada.
Foi apenas a garrafa. O cara havia atirado na garrafa que estava na mão de Creighton. Bem na base do gargalo.
– Esse tiro – disse Creighton, segurando o pouco que sobrou da garrafa – foi impressionante.
– Se quisesse matar você, – disse a voz, – você estaria morto. Eu quero sua ajuda.
Quando Creighton jogou o resto da garrafa no chão, ele percebeu que cacos de vidro haviam atingido sua coxa. O sangue começou a escorrer de uma dúzia de ferimentos.
Ele esticou sua mão e passou a arrancar os pedaços de vidro de sua perna, pensando no quanto deveria ter doído.
– Como sei que posso confiar em você?
– Não sabe. E não posso confiar em você também. Mas essa é a natureza desses relacionamentos, não é?
Ultimamente, Creighton estivera trabalhando sozinho, mas não havia sido assim sempre.
– Sim – ele disse. – É mesmo.
– Então, você está dentro?
Creighton não respondeu, apenas terminou de remover o vidro da sua perna e jogá-lo no chão. Mas ele também não se virou para ir embora.
– Tudo bem. Bom. Então eu tenho uma surpresa para você.
– E seria?
– Sua namorada. Ela está esperando por você lá fora, no carro. Creighton se endireitou.
– Minha namorada?
– Aham.
Ele olhou ao redor da sala.
– Onde?
O homem balançou a arma em direção à parede mais distante.
– A porta está ali. As chaves, no carro. Também estão sua passagem de avião, carteira de motorista, crachá de identificação do FBI e um pouco de dinheiro para gastar, sr. Neville Lewis.
Creighton deixou escapar um suspiro áspero.
– Neville Lewis? Foi o melhor que pôde fazer?
Um estalo de risada eletrônica.
– Vá em frente. Nos falamos em breve. Eu sei que você deve estar ansioso para vê-la.
– Espere. Você sabe meu nome, como eu devo chamar você?
– Você pode me chamar de Shade1..
A luz se apagou e Creighton percebeu que não conseguia enxergar nada, exceto o resíduo do clarão e cores movendo-se por sua vista. O corredor por onde tinha vindo emitia uma luz leve, mas tirando isso, o quarto estava um completo breu.
Ele ouviu um leve ruído de movimento ao lado da cadeira e percebeu que se ele não conseguia enxergar o atirador, atirador também não conseguia.
Então. Uma chance.
Dê um jeito nesse cara agora. Daí você não terá que se preocupar em
confiar nele, ou trabalhar para ele, ou pagar a ele por qualquer favor.
Creighton agachou-se e deslizou ao longo da parede. Foi apressado na direção da cadeira. Apalpando pela escuridão, ele trombou com a lâmpada industrial, que caiu no chão, as lâmpadas quentes explodindo com o impacto. As mãos de Creighton encontraram a cadeira e a ergueram, balançaram, com a esperança de encontrar a pessoa que havia atirado na garrafa em sua mão, mas ao invés disso encontrou apenas o vazio.
Ele balançou novamente. Explorou em volta.
Nada.
Cutucou o vazio com a cadeira por mais alguns minutos mas não achou nenhum sinal do homem que o convidou para estar ali. Finalmente, decidiu que o cara deve ter escapado de algum jeito, talvez por uma outra porta.
Ao invés de ficar perdendo mais tempo perambulando pelo escuro, tentando atacar um fantasma, ele jogou a cadeira no chão e partiu em direção à parede mais distante.
O cara havia garantido que sua namorada estava esperando. Ele não tinha certeza sobre o que pensar daquilo, mas certamente queria descobrir.
Creighton encontrou a porta e abriu-a. Saiu para o beco atrás da danceteria. Um sedan com as janelas escuras estava parado ao lado de uma lixeira fétida. A noite
tinha chegado, mas a luz amarelada do poste no fim do beco fornecia claridade suficiente para que Creighton enxergasse.
Ele conferiu se não havia mais ninguém no beco, então aproximou-se do carro e tentou espiar pelo vidro. Muito escuro.
Ele não confiava no cara com a arma e não tinha certeza sobre o que esperar quando abrisse a porta do carro. Um carro bomba? Mas por que? Por que desperdiçar o dinheiro da fiança? Além disso, o cara poderia tê-lo matado dentro do edifício.
Barulhos suaves vindo de dentro do carro. Ele alcançou a maçaneta da porta. Abriu com um clique.
– Olá? – ele chamou incrédulo.
Ninguém no banco da frente. Ele entrou no carro.
– Olá? – ele se virou.
E a encontrou, deitada no banco de trás. Uma mulher que ele nunca havia visto. Amarrada e amordaçada.
Ele fechou a porta. Os olhos suplicantes da mulher arregalaram-se de terror quando ela o viu e percebeu que ele não fez nenhuma tentativa de libertá-la. Eles nunca haviam se encontrado, mas ele já havia visto o rosto dela. Sabia quem ela era. Ela se contorceu. Não conseguia se livrar.
– Então, – disse ele, olhando para ela, sorrindo, acariciando seu cabelo loiro e macio – talvez eu possa confiar nele, afinal – Creighton virou-se para frente e ligou o motor. – Vamos, querida. É hora de nos conhecermos. Vou ser seu novo namorado.
Saindo do beco, Creighton podia ouvir os gritos abafados e desesperados que vinham do banco de trás. Não era preciso se virar para saber o que era. Ele conhecia esse som muito bem. Ele já havia escutado antes.
Ela estava tentando gritar por trás da mordaça. Sim, ele conhecia esse som muito bem. Parece que Weldon estivera certo o tempo todo.
Creighton Melice havia feito um novo amigo.

 

 

 


 

 

 


1
Três meses depois
Segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
San Diego, Califórnia
17h46
Olhei para o conjunto de talheres em torno do meu prato.
– Eu nunca me lembro qual é o garfo para salada.
Minha enteada Tessa apontou.
– O que está para o lado de fora, Patrick. Você começa nesse e vai indo para os do meio.
– Tem certeza?
Ela pegou meus garfos um de cada vez, uma porção de pulseiras de couro balançando para cima e para baixo em seu pulso, por cima dos quatro elásticos que ela usava
sob eles.
– Salada, prato principal e daí a sobremesa.
Ao colocar de volta meu garfo de sobremesa, percebi o quanto nós dois nos destacávamos neste restaurante. Todas as outras pessoas vestiam smoking, ou vestido de
festa; nós dois estávamos de camiseta – a minha, uma camiseta esportiva desbotada da Marquette University, a dela, uma camiseta preta de manga longa do DeathNail
13, com o logotipo da banda, um olho com um prego enfiado. Ao lado da imagem, ela usava um pequeno bóton: Salve Darfur. Agora2..
Tessa havia escolhido um batom rosa claro essa noite, mas esmalte preto e sombra preta para combinar com seu cabelo negro como um corvo. Eu não estava muito animado
com os piercings na sobrancelha e no nariz que ela havia feito mês passado sem minha permissão, mas eu tinha que admitir que ficaram bonitos. E com sua meia três
quartos preta sob uma saia de tecido plissado, ela parecia um pouco gótica, um pouco ousada e sombria, mas ainda assim feminina e inocente aos 17 anos.
– Então, como sabe tanto sobre a organização da mesa? – perguntei.
– Eu trabalhei no La Saritas, lembra? Antes da mamãe morrer.
Seu comentário me pegou de surpresa, me levou de volta para o funeral de Christie. Olhei pela janela. O vento estivera forte por toda a tarde, e naquela hora, logo
após o pôr-do-sol, o mar parecia agitado e cinzento. A luz do sol restante foi arrastada lentamente para o mar enquanto algumas poucas gaivotas voavam sob as nuvens,
eventualmente mergulhando para pegar um peixe que estivesse vagando perto demais da superfície acidentada da água.
– É, desculpa. – Eu disse. – Eu tinha esquecido. Por quanto tempo você trabalhou lá, mesmo?
– Dois dias. O gerente disse que eu não tinha “espírito de trabalho em equipe”. – Ela bebeu um gole de sua água com gelo. – Babaca.
Eu havia escolhido uma mesa no fundo do restaurante, minhas costas viradas para a parede. Força do hábito. Por um momento, observei os garçons caminhando entre o
labirinto de mesas, reparando nas rotas que tomavam, nas escolhas que faziam. Hábito de novo.
Alguns minutos antes, a garota que nos levou ao nosso lugar colocou um prato com pão na minha frente. Ela deixou do lado uma tigela com uma espécie de azeite, e
as pessoas em suas mesas, ao redor, estavam mergulhando seus pães no líquido amarelo forte e comendo. Preferi passar.
Nosso atendente, um homem magro com um nariz que parecia um bico, chegou para pegar nosso pedido.
– Senhor – disse ele. Então se virou Tessa. – Mademoiselle. Gostariam de saber quais são os pratos especiais? Essa noite estamos oferecendo um adorável lombo de
porco, acompanhado de molho de manga e...
Tessa lançou um olhar mortal.
– Você tem ideia das condições a que esses porcos são forçados a viver antes de serem mandados para o matadouro? Gaiolas de ferro. Pequenas gaiolas de ferro...
– Tessa... – disse eu.
– Onde eles são alimentados à força, drogados com hormônios de crescimento até ficarem gordos demais para levantar...
– Tessa Bernice Ellis.
– Só estou dizendo...
Dei a ela o meu melhor olhar “fique quieta agora ou vamos comer no Burger King”. Nossos olhares batalharam por um tempo, e finalmente ela cedeu.
– Tudo bem, tudo bem. Eu quero a salada da casa. – Ela apontou no cardápio. – E sem o bacon defumado.
– Sim, senhora. – Ele virou-se para mim, inclinou a cabeça e deu um sorriso falso. Ele parecia um robô. – E para o senhor?
Percebi Tessa olhando para mim.
– Acho que vou pedir a salada também. – eu disse. – Mas estou com fome, a minha pode ser uma grande.
– Grande, senhor? Desculpe, mas nossa salada vem apenas em um tamanho, mas eu garanto que a porção é generosa.
Eu tinha visto algumas dessas “porções generosas” quando Tessa e eu viemos até nossa mesa.
– Bom, eu vou querer duas dessa, então. Mas jogue as duas em um prato bem grande. Assim vai ficar bom.
Ele rabiscou algo em sua caderneta, porém não achei que nosso pedido tinha sido tão complexo. Tessa limpou a garganta.
– Patrick, falando sério, você pode pedir o lombo de porco se você quiser que prometo não falar nada sobre como os porcos são amontoados em jaulas cheias de fezes,
onde eles não conseguem nem se virar, como são levados para um matadouro onde são atingidos por uma arma de ar comprimido que os deixa vivos, gritando e sangrando
até a morte, enquanto são jogados vivos em água fervendo para remover os pelos e amaciar a carne, para que restaurantes como esse possam temperá-los com mangas e
servi-los para seus clientes. Prometo que não vou dizer nada disso.
A mulher na mesa ao nosso lado baixou lentamente até a mesa seu garfo de prato principal.
– Que atencioso da sua parte, Tessa. – eu disse. Matadouros. Ótimo. Exatamente sobre isso que eu precisava pensar agora.
Percebi que o rosto do nosso atendente havia se tornado branco pastoso.
– Pode me trazer as duas saladas em um prato grande mesmo e uma xícara de café. Calma, que tipo de café você tem?
Ele tentou se recompor.
– Nós servimos uma variedade de espressos e cappuccinos, além do normal e do descafeinado...
– Não, não, não. Eu quero dizer o tipo, como o Ruiru 11 do Quênia, ou La Magnolia da Costa Rica, ou algo da região do cerrado do Brasil. Qual o tipo do café? De
que país ele é?
– Acredito que ele é comprado aqui nos Estados Unidos... Meu deus.
– Quando você pega o café na loja, ele vem numa lata grande de metal? Ele sorriu.
– Certamente.
Era tudo que eu precisava saber.
– Chá. Uma xícara de chá.
– Obrigado, senhor.
Olhei para a tigela de azeite.
– E um pouco de manteiga também.
– Chá... – Ele balbuciou as palavras enquanto escrevia em seu bloco.
– E manteiga. – Então ele virou-se na direção de Tessa, hesitante. – E sua bebida, senhora?
– Refrigerante. E não coloque nenhum queijo na minha salada, nem nada do tipo.
Ele fez um pequeno aceno com a cabeça.
– Nem molho ranch. É nojento.
– Sim, senhora.
– Nem ovos.
Mais um rápido aceno e ele desapareceu.
– Bom, – eu disse – nada como visitar um restaurante chique. Deveríamos fazer isso mais vezes.
– Sim,– ela disse, mergulhando um pedaço de pão no azeite e segurando-o contra a luz. Nacos de azeite da cor de vômito pingaram no prato dela. – Nada melhor.
Tentei relaxar e aproveitar os próximos minutos. Tentei engatar uma conversa coerente, tentei ouvi-la falar de uma casa noturna sobre a qual estavam comentando e
ela queria conhecer mas que de qualquer jeito eu nunca iria deixá-la ir, tentei pensar em coisas inteligentes para dizer sobre o garçom com cara de passarinho.
Tentei, mas não consegui. A imagem de um matadouro pousou em minha cabeça e se recusava a sair. Eu conseguia ouvir os gritos vindo de dentro. Gritos agudos e desesperados.
Mas nem esse matadouro nem os gritos tinham alguma coisa a ver com porcos.
2
Os últimos três meses haviam sido bons para Creighton Melice, agora conhecido como Neville Lewis. Ele gostava do clima de San Diego, e especialmente gostava de viver
em uma cidade com centenas de milhares de pessoas irrastreáveis, sem documento e que podem sumir de uma hora pra outra.
E tantas mulheres. Adoráveis mulheres latinas. Namoradas em potencial. Creighton olhou em volta do escritório do armazém e seus olhos pararam no gabinete de arquivos
empoeirados no canto, com uma grande pilha de pastas de papel pardo, no calendário de biquíni ainda em maio de 2007, pendurado na parede e, é claro, na grande escrivaninha
cinza com um monitor de computador de alta definição sobre ela. Ao lado do teclado havia uma pilha de caixas de DVD.
Ele subiu em uma cadeira giratória e reposicionou a câmera, centralizando-a no buraco da parede para que pudesse ter uma imagem mais clara de sua próxima namorada,
quando fosse a hora. Através dos anos ele havia percebido que os vídeos eram muito mais satisfatórios quando ele acertava o ângulo da câmera.
E, claro, muito dependia da qualidade do equipamento. E quem quer que fosse o cara que havia atirado na garrafa em sua mão naquele dia em Washington era alguém que
entendia da coisa: as duas câmeras profissionais eram do tipo que um noticiário usaria em uma reportagem.
O armazém já havia sido preparado para Creighton quando ele chegara, em novembro. Tudo estava preparado. Apenas esperando por ele.
Quando ele sentou na escrivaninha, uma grande aranha, inchada com filhotes, desceu até seu braço, mas Creighton não ligou, não a espantou. Ele sempre tivera afinidade
com aranhas.
Ele acionou o teclado para testar as capacidades de zoom remoto. A aranha deslizou por seu braço e através de sua nuca. Teclou mais algumas vezes.
Sim. Excelente. Agora, a segunda câmera.
O atendente chegou com nosso pedido. Ele colocou uma grande tigela de metal do meu lado contendo minhas duas nem tão generosas porções de salada. Então ele colocou
a salada de Tessa na frente dela e rapidamente se afastou.
– Algo mais?
– Não, – eu disse – está ótimo. Obrigado.
Tessa inspecionou sua salada, provavelmente procurando por peda
ços perdidos de carne que poderiam ter caído nela.
– Parece que está tudo bem.
Enquanto nosso atendente saía apressado e começávamos a comer, olhei para os caminhos que as duas dúzias de atendentes faziam. Percebi quais mesas cada um estava
atendendo, quem dava passagem para quem quando se aproximavam da cozinha. Então, entre grandes garfadas de alface, espinafre, pimentão verde e azeitonas pretas,
Tessa e eu conversamos sobre como estava seu penúltimo ano no colegial, as faculdades que ela gostaria de cursar, as coisas que ambos estávamos planejando fazer
em San Diego e algumas bandas das quais eu nunca havia ouvido falar que eram “animais” – ou seja, boas. Mas durante todo o tempo, no fundo da minha mente, eu ainda
estava pensando no matadouro.
Então, com uma grande garfada de salada na boca, Tessa perguntou,
– Então, a sensação é boa, não é?
Um arrepio percorreu minhas entranhas. Parei meu garfo com salada a meio caminho da minha boca.
– O que você disse?
Meu tom deve ter sido tão duro quanto as imagens passando pela minha cabeça, porque ela piscou e, quando respondeu, parecia intimidada.
– Quero dizer, estar num caso como esse. Tentando pegar o incendiário. Parece ser bom. É o que você faz. É o que você gosta, não é?
– É sim. É o que eu faço. É o que eu gosto. – Minhas palavras foram duras. Marteladas desnecessárias. Eu não queria chegar onde essa conversa ou meus pensamentos
estavam me levando, então mudei de assunto.
– Mas eu gosto mais de estar aqui com você. – Abaixei meu garfo.
Ela me dirigiu um olhar adolescente do tipo “você não pode estar falando sério”, mas percebi o indício de um sorriso.
– Ah. Legal. – É sério.
– Valeu. – Ela baixou o olhar para a mesa. Levemente envergonhada. Gostei de ter visto.
Nos últimos dois anos nós enfrentamos muita coisa. Tessa tinha 15 anos quando sua mãe e eu nos conhecemos, namoramos e casamos. Tinha 16 quando Christie morreu tragicamente
de câncer de mama.
Os pais de Christie haviam morrido anos antes e Tessa não sabia quem era seu verdadeiro pai, deixando nós dois para encarar a morte de Christie e formar uma família
juntos. Não estava indo muito bem. Quase um ano havia passado desde a morte de Christie e sentia que Tessa e eu estávamos ainda no ponto de partida. Mas pelo menos
estávamos juntos. Isso já era alguma coisa.
Peguei o garfo da parte externa e mirei em um tomate cereja na salada.
– Então, quatro dias em San Diego, hein?
– É. Dessa vez eu estou feliz por Denver ter escolas anuais3.. Todos aqueles recessos malucos...
– Eu pensei que enquanto você estivesse aqui eu poderia levar você ao Sherrod Aquarium.
– Um aquário. – disse ela com a boca cheia. – Uau. Que divertido.
– Dizem que é um dos melhores do mundo.
Ela suspirou, virando os olhos.
– Eles têm tubarões – eu disse. – Uma porção deles – axrescentei. Ela pareceu considerar por um momento.
– Tubarões são legais.
– Agora – eu disse, – você sabe que preciso...
– Trabalhar um pouco enquanto estivermos aqui. Eu sei, eu sei. O incendiário.
– Algumas vezes você terá que ficar no hotel sozinha... Uma pequena pausa.
– Eu não vim aqui pra ficar sentada em um hotel idiota. Eu me viro sozinha, você sabe.
– É que não estamos em Denver, essa é uma cidade diferente.
– Em alguns meses eu terei idade suficiente para viver por conta própria.
– Oito meses.
– Como disse.
Tomei um gole de chá.
– De qualquer jeito, vou passar o máximo de tempo possível com você.
– Nós já conversamos sobre tudo isso. Não tem problema. – E então
– Você não precisa ser minha babá.
Grande coisa. Lide com isso depois.
– Tudo bem.
Tessa sempre implorava para vir junto quando viajo, mas gostava de seu espaço também. Sendo um criminologista do FBI que persegue criminosos em série, eu não posso
sempre levá-la comigo.
Dessa vez, porém, a agente especial Lien-hua Jiang, membra da minha equipe no National Center for the Analysis of Violent Crime4. do FBI, ou NCAVC, bem como uma
das melhores psicólogas forenses do Bureau, havia me convocado. Estávamos colaborando com o Departamento de Polícia de San Diego em uma série de incêndios iniciados
em casas abandonadas pelos últimos dez meses. Nenhuma fatalidade até então, apenas danos em propriedades.
O Bureau quer encorajar relacionamentos familiares fortes, e como esse não era um caso que poderia colocar Tessa em perigo, não era o principal investigador e estava
disposto a pagar as despesas de sua viagem, eles não viram problema no fato dela vir comigo. Então, levando tudo em conta, essa parecia uma boa chance para passarmos
um tempo junto, especialmente porque ela estava em recesso da escola.
– Então – eu disse, mudando de assunto, – é a sua primeira vez visitando o Oceano Pacífico, certo?
– Eu já vi o oceano antes, Patrick. Você sabe disso. Quando nós moramos em Nova York.
– Mas aquele é o Atlântico.
– Só existe um oceano.
Imaginei que isso poderia ser uma piada que não estava entendendo.
– Da última vez que eu vi havia o Atlântico, o Pacífico, o Ártico, o Índico...
– Bom, da última vez que eu vi, todos os oceanos eram ligados. Uma grande massa de água. Um mundo, um oceano.
Espiei pela janela. Observei a água negra lamber a costa sob a luz da lua.
– Acho que nunca havia pensado desse jeito antes.
– Eles fazem a mesma coisa com a Terra. Sete continentes? Tá bom! Só se você dividir a Europa e a Ásia e separar a América do Norte e do Sul e considerar o Canal
de Suez, feito pelo homem.
Eu nunca havia pensado naquilo também.
– Então por que acha que fazemos isso, dividimos as coisas desse jeito? Ela encolheu os ombros. Pegou uma garfada de salada.
– Como eu vou saber? Sou só uma menina. Culturas diferentes, talvez. Territorialismo. Etnocentrismo. Não sei. Mas me parece idiota.
Etnocentrismo. Isso é ótimo.
Creighton apertou o botão de gravação, virou a câmera e filmou 20 segundos.
Desde que visitara o Blue Lizard Lounge, em novembro, ele havia tentado descobrir a identidade real de Shade, mas até então nenhum de seus contatos havia conseguido
descobrir nada específico, e desde que Creighton mudou de cidade, seu antigo advogado Jacob Weldon sequer retornava suas ligações. Então Creighton não tinha descoberto
nada sobre seu novo amigo misterioso e isso, embora ele não admitisse para ninguém, por alguma razão, o incomodava.
Toda a comunicação entre eles era feita através de chamadas telefônicas com voz alterada, mensagens de texto e troca oculta de mensagens. Tudo dissimuladamente,
o que fez Creighton pensar que ele – ou ela, ou seja quem fosse – era provavelmente um aspirante a espião.
Mas talvez não um aspirante. Talvez um de verdade. Tudo era possível. Creighton pressionou o botão de pausa, então voltou o vídeo. Assistiu até o fim. Ajustou o
foco, então pressionou o botão de gravação novamente.
Pelas primeiras semanas, era um completo mistério para ele porque Shade o havia escolhido para esse trabalho específico. Mas quando Shade finalmente explicou o esquema
geral e começou a dar nomes aos bois, ele viu a beleza e a ironia de tudo. É, ele era a pessoa perfeita para isso.
Na verdade, a única pessoal.
Ele pressionou a pausa.
Ali. Era aquilo.
Sim, apenas um leve brilho do vidro, mas ele poderia cuidar daquilo, do mesmo modo que havia feito com os vídeos anteriores.
A câmera estava preparada. Ele colocou as cordas no porta-malas. Era hora de encontrar uma mulher interessada em passar a noite com um homem bonito e levemente diabólico.
3
Victor Sherrod Drake, presidente e CEO da Drake Enterprises, sentou-se à escrivaninha na cobertura da sede mundial da Drake Enterprises na Aero Drive, em San Diego.
A maioria das pessoas não sabia que a indústria de biotecnologia é a segunda maior força econômica em San Diego, atrás apenas dos militares. Mas Victor sabia. Ele
ajudou para que isso se tornasse uma realidade.
A maioria de seus empregados tinha ido embora às 17h30, mas Victor preferia ficar até um pouco mais tarde, especialmente nessa época do ano, quando os relatórios
financeiros de 2008 estavam sendo preparados. É claro, isso significava ter que manter uma equipe para o funcionamento básico da empresa por horas a mais, para garantir
que seu tempo não fosse desperdiçado, mas isso não era problema. Ele podia bancar.
Victor colocou seu celular ao lado dos papéis em sua mesa caso seu consultor ligasse, então leu o último relatório de margem de lucro e batucou com os dedos no ritmo
de uma música que havia ouvido enquanto dirigia para o trabalho no começo do dia.
Sim. As coisas estavam indo bem. Muito, muito bem.
Ele olhou através da janela para San Diego, o deserto à beira-mar que os humanos haviam definido como o paraíso. Victor gostava de observar a cidade. Todos os habitantes
como formigas. Robôs ocupadamente cuidando de suas vidas suburbanas mesquinhas...
– Sr. Drake – uma voz feminina sensual interrompeu seus pensamentos. Ele havia contratado a mulher por trás da voz só pelo jeito que ela soava. Ele pressionou o
interfone.
– Sim?
– Estou com o general Biscayne na linha.
Victor parou de batucar com os dedos.
Biscayne. De novo.
Quem liga se você trabalha no Pentágono? Você não pode ir ligando para um dos homens mais ricos do mundo quando bem entender. Não mesmo.
Mas por outro lado... Os bilhões de dólares que o braço de desenvolvimento e pesquisa do Pentágono, a Defense Advanced Research Projects Agency5., ou DARPA, estava
gastando neste projeto poderiam dar ao general alguns minutos a mais de microgerenciamento.
– Vou atender na minha linha particular – disse ele para a voz que adorava. Victor fechou a porta do escritório, pegou seu telefone fixo e tentou disfarçar a irritação
em sua voz.
– General. Que bom que ligou.
– Estava pensando se você já não tinha ido para casa.
– Gosto de trabalhar até tarde. – Victor calculou o horário na costa leste. – Você deve gostar também.
– Odeio. Acabei de sair de uma maratona de reuniões da DARPA e nós estamos, como posso dizer, ansiosos para ver o progresso do Projeto Rukh.
– Bem, tenho boas notícias, general: nós praticamente finalizamos o protótipo. Ficará pronto em algumas...
– Na verdade, queremos vê-lo agora. O mais breve possível. Realizar um teste. Ver se o desempenho é bom.
Apenas a ideia deles questionando se funcionaria era um insulto para Victor. Apenas a ideia! Você não constrói a empresa de biotecnologia mais lucrativa do país
fornecendo produtos com defeito, e é por esse motivo que Victor providenciou seus próprios testes internos.
– Quando entregarmos para você, general, garanto que funcionará.
– Bem, se funcionar, garanto para você que a Drake Enterprises terá uma posição privilegiada quando sair a licitação para o próximo projeto da DARPA. Mas se o dispositivo
não estiver pronto, vou acabar com esse negócio. Você teve dois anos para fazer isso funcionar e até agora não temos nada além de um micro-ondas de 2,5 bilhões de
dólares, o que não é exatamente o que você foi contratado para construir.
Victor podia sentir sua mão apertando o telefone. Ele sabia que se perdesse o contrato e isso de algum modo vazasse para a imprensa – coisa que o governo certamente
garantiria que acontecesse – as ações iriam despencar e ele perderia bilhões.
Não apenas isso, mas na investigação obrigatória que seu conselho administrativo convocaria, era possível, apenas possível, que algumas inconsistências fossem encontradas
nas declarações de lucros do terceiro trimestre de 2007. E depois da Enron e da WorldCom, isso poderia não pegar bem para a Drake Enterprises e seu CEO.
Pior ainda, alguém poderia descobrir evidências dos testes.
– Drake – exclamou o general, trazendo-o de volta para a conversa, – vou chegar na quinta-feira. Marquei uma reunião do Comitê de Supervisão do Projeto Rukh às 14
horas em ponto. Quero você lá.
– General, isso não é necessário. Eu posso garantir que...
– Quero ver em primeira mão o que o dinheiro do contribuinte está produzindo. E estou avisando você agora, é melhor que o dispositivo funcione.
– Mas não em dois dias e meio. Isso não é possível. Nós temos milhares de páginas de pesquisa para avaliar antes da entrega final. Não é tempo suficiente...
– Você teve dois anos. É tempo suficiente.
Victor teve que esforçar ao máximo para não deixar claro que estava falando através de dentes cerrados.
– Tudo bem, então. Estou ansioso por sua visita... – e antes que pudesse terminar a frase, o general desligou.
Drake bateu o telefone no gancho. Ninguém desliga na cara de Victor Drake. Ninguém!
Ele puxou uma gaveta da escrivaninha, abriu um frasco de comprimidos, engoliu cinco deles e guardou o frasco para depois. Fechou a gaveta com uma batida.
Então. Tudo certo.
Eles queriam ter certeza que funcionava. Tudo bem.
Mais um teste. Um teste final. Essa noite.
Isso daria pelo menos terça e quarta-feira para o dr. Kurvetek, dois dias inteiros, pra avaliar os resultados antes do general chegar.
Victor ligou para os membros da equipe e disse a eles que precisava de seus serviços uma última vez, e que era melhor eles obterem resultados definitivos. Ele usou
apenas quatro homens porque havia aprendido através dos anos o quanto é difícil manter as coisas confidenciais. Quanto menos pessoas soubessem de seus segredos,
melhor. Ele perguntou para o quarto homem:
– Você já escolheu o local?
– Eu já deixei você na mão alguma vez?
– Tudo bem. Você sabe o que fazer. Só não chegue lá muito cedo. Uma pausa.
– É melhor o dinheiro ser transferido dentro de 24 horas a partir de agora. Não gosto de esperar.
– Será feito. Não se preocupe com isso.
Victor encerrou a ligação e desceu de elevador até a garagem, o tempo todo tentando não pensar nas ameaças disfarçadas do general em relação a futuros contratos.
Esqueça isso. Esqueça Biscayne. Vá para casa e relaxe. De manhã, o texto será completado e você poderá dar para ele exatamente o que ele pediu.
Victor acelerou seu Jaguar, saiu rugindo da garagem em direção à sua propriedade em La Jolla Farm Road. Enquanto os quatro membros de sua equipe preparavam-se para
o teste.
4
Enquanto Tessa e eu comíamos, tentei desviar a conversa para longe do meu trabalho, mas quando estávamos quase terminando nossas saladas, Tessa nos levou de volta.
– Então, Patrick. É verdade que você tem o índice mais alto de solução de casos envolvendo serial killers na história do FBI?
– Uau. Esse papo não tem nada a ver.
– Você não pode falar desse jeito. Você tem mais de 30 anos. Tomei um pouco de ar.
– Tessa, onde você ouviu essa estatística?
– Na Fox News. Algumas semanas atrás. Depois de toda aquela coisa com o Ramirez.
Julio Ramirez havia sequestrado meninos jovens em playgrounds no Maine. Ele os levava para sua casa, fazia com eles coisas sobre as quais os pais têm pesadelos,
então os trancava em um buraco no porão até que eles morressem de fome. Oito no total. Meu amigo, o agente especial Ralph Hawkins, e eu o pegamos logo após o primeiro
dia do ano.
– Bom, eu não tenho certeza se essa estatística é precisa.
Ela enfiou o garfo em sua salada e colocou uma azeitona na boca.
– Eles disseram que era.
– Você não pode sempre acreditar no que ouve. Olha, não quero conversar sobre tudo isso agora. Então, vamos fazer nossa programação para os próximos...
– Eles só chamam você quando todo mundo está, tipo, com as piores dificuldades. O que é muito legal, por sinal, devo dizer.
– Obrigado. Agora, vamos conversar sobre...
– Mas não vá ficar se achando – disse ela. – Até porque não entendo mesmo.
– Não entende o que?
– O que você faz.
Eu não estava gostando de onde isso estava chegando.
– Pensei que você tinha lido os dois livros que escrevi.
– Bem, eu li. Mais ou menos.
– Mais ou menos?
Ela olhou para baixo. Ficou observando a mesa.
– Eu os li, quero dizer... até eu cair no sono.
Uma agulha através do meu ego. Perfurado. Caindo pelo chão.
– Você dormiu lendo meus livros?
– Olha, não foi minha intenção, tá bem? É que... não dava para evitar. – Ela colocou mais alface na boca. – Sem ofensas, não largue seu emprego oficial.
Que agradável.
– De qualquer jeito – falando com a boca cheia novamente, – o que eu quero dizer é que talvez você possa explicar melhor pessoalmente do que no papel.
Cara, ela realmente sabia como colocar os elogios. Decidi encarar, mesmo assim. Talvez eu não tivesse outra chance.
Mas seja rápido, daí volte a planejar a semana.
– Está bem. Vamos ver, por onde começar? Então, crimes só ocorrem quando cinco fatores se cruzam.
– Hora, local, infrator, vítima ou objeto de desejo e falta de supervisão ou da presença do cumprimento da lei. Essa é a introdução de Entendendo o crime e o espaço.
Eu ainda não tinha caído no sono nesta parte.
– Bom, isso é animador – peguei o saleiro e o deslizei em minha frente. Seria muito complexo falar de todos os 14 incêndios, mas poderia pelo menos dar uma ideia
a ela sobre o que eu faço usando como referência quatro ou cinco deles. – Então é assim, sobre esses incêndios, vamos dizer que este é o local do primeiro incêndio...
– toquei no saleiro, então levei a pimenta para o outro lado da mesa. – O incêndio seguinte foi aqui embaixo, no sul de San Diego, em Chula Vista... – coloquei as
chaves do carro alugado atrás da minha tigela de salada. – E o terceiro incêndio foi aqui, em Clairemont... – movi o recipiente de creme e a xícara de chá para suas
posições. – E estes são os incêndios quatro e cinco. O que isso diz para você?
– Nada. Eles só estão espalhados por todo lado.
– Na verdade, isso nos diz muita coisa – amassei um guardanapo e o posicionei no meio da mesa.
– Isso é o próximo incêndio?
– Não, é onde eu acredito que o incendiário viva. Pense nisso por um minuto: se você tivesse começado estes incêndios, você acha que deveria estar familiarizada
com a área?
– Acho que sim. Para que soubesse como fugir.
– Correto. Mas se você cometesse os crimes muito perto de sua casa, poderia chamar muita atenção – afundei o dedo no azeite e desenhei dois círculos concêntricos
ao redor do guardanapo, o maior deles englobando os incêndios do saleiro e da pimenta. Enquanto fazia isso, nosso atendente se aproximou, deu uma olhada em mim desenhando
na mesa com o dedo, girou sobre os calcanhares e retornou para a cozinha.
– Então – continuei, – você acaba com uma área, uma área ideal, uma zona de conforto, entre esses círculos. Longe, mas não tão distante. Perto, mas não tão próximo.
Ela colocou minha faca nessa área, mas no lado da mesa oposto à pimenta.
– Tipo, o próximo incêndio pode ser aqui?
– Certo. Talvez. Mas estudo o que aconteceu, não o que pode acontecer.
– Isso muda? Essa coisa da zona de conforto, conforme acontecem mais e mais incêndios.
– Sim, porque o incendiário não vai continuar ateando fogo em uma área que poderia estar mais policiada. Então eu me pergunto, “qual é o significado desses locais
para nosso infrator?”. Eu olho para o local, hora e progressão dos incêndios, comparo-os com a zona de conforto e então trabalho de trás para frente para tentar
encontrar a locação mais provável da base do infrator. Que pode ser onde ele vive ou talvez onde ele trabalha. Nós chamamos de zona de perigo.
– Parece simples.
– Em princípio, sim. Mas você tem de levar em conta todos os locais associados com os incêndios, assim como caminhos indo e vindo das cenas. Existe uma porção de
fórmulas matemáticas envolvidas, algoritmos baseados em teorias de deslocamentos, mapeamento cognitivo, coisas do tipo.
– Isso é chamado de perfil geográfico, certo?
– Sim – peguei uma pequena garfada de salada. – Mas não é como um perfil comportamental. Nada parecido.
– É, você já me falou isso antes.
– De qualquer jeito, todos os locais, certo? Então, onde ele comprou os acelerantes, onde os incêndios ocorreram, quais alarmes de incêndio foram disparados primeiro,
a localização das pessoas que ligaram para os bombeiros, linhas de visão... – quando eu disse as palavras linha de visão, olhei para a mesa e percebi algo. – Espere
um pouco. – Movi minha tigela de salada para a esquerda da zona de conforto. – Você consegue ver o garfo de salada daí?
Ela balançou a cabeça negativamente.
– E as chaves?
Ela balançou a cabeça novamente.
– A tigela está no caminho.
Hum. Sim.
– A tigela está no caminho – repeti suavemente.
– O que é a tigela? – ela perguntou.
Inspecionei a mesa, mexi alguns dos condimentos.
– Acho que deve ser o Petco Park. Onde jogam os Padres.
– Bark Park.
– Isso. – Olhei para a relação entre a tigela de salada, a xícara de chá e o recipiente de creme. Sim, sim. Você vai precisar dar uma olhada nisso.
– O que foi? – ela perguntou.
Calma, Pat. Fique aqui agora. Não em algum outro lugar.
– Nada. – Soltei o pensamento da cabeça. Eu poderia voltar para ele mais tarde, depois que ela fosse dormir. – De qualquer jeito, quando eu comparo todos esses fatores
com os padrões do tráfego na hora do crime, com o traçado das vias, pontes, corpos de água, demografias, distribuição populacional, dá pra começar a... bom, você
pegou a ideia. A maioria dos investigadores pergunta “por que isso aconteceu?” ou “o que o infrator estava pensando?” ou “como alguém poderia fazer uma coisa dessas?”.
Mas eu pergunto “quando o infrator esteve aqui?”, “aonde ele foi?” e “onde ele está agora?”. Isso é criminologia ambiental em poucas palavras.
Ela analisou a mesa. Olhou para o saleiro e para a pimenta, para as chaves, a tigela de salada, o círculo de azeite, o recipiente de creme.
– E você tem um doutorado sobre isso?
– Bom, sim, eu...
– Quantos anos de estudo foram mesmo?
– Tudo bem. Então, o aquário. Tubarões. Ouvi falar que o Sherrod Aquarium tem mais de uma dúzia de espécies diferentes...
– Então você não procura por um motivo?
Seria bom se mais investigadores fossem persistentes como ela era.
Bati meu dedo sobre a mesa.
– Não muito. Não.
– Por que não?
– Tentar descobrir os motivos de alguém sempre acaba sendo apenas especulação, Tessa. É baseado em interferência ao invés de dedução, em intuição ao invés de evidências,
e não há como confirmar ou refutar um chute. Eu sou um investigador, não um leitor de mentes.
– O que a agente Jiang acha disso? Existe alguma coisa, não é? Entre vocês dois.
Essa conversa estava indo longe demais.
– Nós temos uma grande consideração um pelo outro. – É, percebi. – disse ela num sussurro.
– O que isso quer dizer?
– Nada. – Ela deu um último gole no refrigerante. – Então, você pode dizer onde o próximo incêndio vai ser?
Balancei minha cabeça
– Não. Como eu já falei, eu trabalho de trás para frente e encontro a base do infrator. Eu não sou muito bem em prever o futuro.
– Mas tente. Quero dizer, se você tivesse que fazer.
– Eu não posso prever o futuro, Tessa.
– Tá bem. – Ela virou o olhar para o outro lado do salão. – Tanto faz.
– Pode fazer beicinho o quanto você quiser, não vai me ajudar a prever o futuro.
– Tá. Tanto faz. Não estou fazendo beicinho.
Ainda nenhum contato visual. Então ela começou a resmungar, indiferente, silenciosamente.
Maravilha.
Está bem. Certo. Eu estudei a mesa, movi alguns objetos de lugar para representar os incêndios até então. Se tivesse prever o próximo incêndio, onde seria? Me inclinei
sobre a tigela vazia de salada e conferi as linhas de visão, então usei meu garfo de sobremesa para verificar as distâncias entre os locais dos incêndios representados
na mesa.
Algumas ideias. Nada sólido. Ela me observava brincando com os talheres e os temperos.
– Um doutorado, hein?
– Escute – peguei o guardanapo e limpei o azeite da mesa. – Você quer uma sobremesa?
Ela parecia estar considerando quando um dos atendentes parou ao lado dela e pousou um prato de lombo de porco com molho de manga e abacaxi sobre a mesa ao nosso
lado. Tessa fez uma careta.
– Eca, isso é tão nojento! – percebi que ela puxou um dos elásticos que ela usava no pulso e estalou-o contra sua pele. – Pobre porco. Ainda dá para ver o sangue.
Matadouros.
Sim, ainda dá. Ainda é possível ver o sangue.
– Estou passando mal – ela levantou-se. – Vamos embora.
– Preciso pagar. – eu disse.
– Espero por você lá fora. – Ela agarrou a sacola de lona cáqui que ela usava como uma bolsa e foi apressada em direção à porta.
5
Depois de pagar nossa conta, saí e encontrei Tessa esperando sob uma das lâmpadas amareladas da rua. Estava escrevendo algo em um pequeno caderno que quase sempre
carregava com ela. Quando me viu, deslizou sorrateiramente a caneta e o caderno para dentro de sua sacola. Decidi não bisbilhotar.
O vento havia aumentado mais ainda desde a hora em que entramos no restaurante e soprava forte, num ritmo agitado nos cabelos negros na altura dos ombros da garota.
– Então, – disse ela – quantas pessoas estavam lá dentro quando saímos?
– Tessa, eu não quero fazer isso.
– Claro que quer, vai.
– Vamos embora, tá?
Ela cruzou os braços, inclinada contra a luz da rua. Eu sabia que ela não iria se mover até que eu a respondesse.
– Tá bom. 62.
– E quando entramos?
– 49. Como você sabia que eu estava contando?
– É o que você faz. Qual dos garçons trabalha lá há mais tempo?
– Tessa...
– Você não sabe, né? Por isso que está evitando a pergunta.
– Allison Reynolds. Era uma com seis piercings na orelha esquerda, três na orelha direita. Baseado na eficiência de sua rota, eu diria que ela trabalha no Geraldo’s
faz uns dois anos. Ouvi uns trechos de conversas. Ela é do meio--oeste, mais provavelmente do sudoeste de Michigan ou norte de Indiana.
Depois de um momento em silêncio:
– Você não consegue desligar, né?
Batuquei meus dedos ansiosos sobre minha perna.
– Está pronta para ir?
– Na verdade eu não quero voltar já para o hotel.
Pensei por um momento. Eu não me lembrava exatamente quando, mas em algum ponto nos últimos meses, comecei a chamar Tessa de Raven6.. Ela sempre me lembrou um corvo,
e, às vezes, o apelido escapava, como foi naquela hora.
– Bom, então, Raven, que tal uma caminhada na beira do único oceano do mundo?
Ela encolheu os ombros.
– Tá bom.
Pegamos nossos casacos no carro e encontramos uma faixa de areia que estava úmida o suficiente para andarmos com facilidade, mas não tão perto da água que a gente
teria que ficar fugindo das ondas. Andamos por um tempo, lado a lado, mas também a oceanos de distância. De vez em quando uma onda rebelde quebrava bem mais pra
frente na costa e corríamos para a praia, para sair de seu caminho.
A névoa, levada pela ressaca constante, começou a se enrolar ao nosso redor.
Após uma onda mais forte ter nos perseguido de volta para a praia, Tessa disse suavemente:
– Então, você nunca se imaginou como seria ser desse jeito? Ser um deles. Você sabe. Estar do outro lado. Um incendiário, um assassino, algo desse tipo. As pessoas
que você ajuda a encontrar.
Todo mundo está sujeito à sua condição de ser humano, falível; mas eu entendi o que ela queria dizer.
– Já imaginei. Às vezes imagino esse tipo de coisa. Mas eu tento não ficar pensando demais nessas coisas.
– Dá medo pensar nessas coisas, não é?
– Sim.
– Bom – disse ela, – fico feliz que você não seja como eles.
– Obrigado – um silêncio se formou entre nós.
– Não é? – Ela parou de andar e esperou até que eu parasse também. Olhou para mim sob a luz da lua. – Você não é como eles, é?
– Não, claro que não – eu não podia contar para ela o que realmente estava me incomodando. Era algo que nunca havia contado para ninguém. – Claro que não sou como
eles.
A sensação é boa, não é?
Sim, é.
Ela ficou ali, um corvo na luz da lua.
– Alguma coisa está incomodando você, não está? Às vezes eu gostaria que ela não fosse tão astuta.
– Me desculpe, Tessa. É que ele está aqui, no fundo da minha mente. Não quer dizer que você não seja importante...
– É o incendiário?
– Isso mesmo.
E era verdade, eu estava pensando no incendiário. Mas não era a verdade completa. Eu também estava pensando sobre outra pessoa.
Richard Devin Basque.
Andamos por meia hora, conversando um pouco, mas principalmente mantendo nossos pensamentos para nós mesmos. A lua caminhou para o alto do céu, e fomos sentar em
um trecho de areia seca próximo a um punhado de algas marinhas que as ondas haviam depositado durante o dia.
E ao sentarmos juntos na areia, deixei meus pensamentos me levarem a 13 anos atrás, ao começo da minha carreira como detetive em Milwaukee; à noite em que prendi
Richard Devin Basque naquele matadouro abandonado na periferia de Milwaukee.
6
Mesmo estando na praia, podia ver o matadouro por toda minha volta. A luz do fim do dia inclinava-se pelas janelas. Ganchos de carne enormes e enferrujados estavam
pendurados no teto. A imagem de um homem segurando um bisturi, de pé sobre uma mulher sangrando. Ela ainda estava viva, engasgando no próprio sangue. Essa era a
parte mais perturbadora de se lembrar.
Os médicos nunca conseguiram explicar como ela conseguiu sobreviver tanto tempo.
Então, veio o momento atemporal quando ordenei a ele que largasse a faca, se afastasse, e ele apenas ficou ali, parado, segurando a lâmina vermelha brilhante, olhando
para o cano da minha arma.
Eu gritei novamente, segui procedimento atrás de procedimento, alerta atrás de alerta, até que finalmente ele girou, deu três passos e surgiu com uma Smith & Wesson
Sigma em sua mão e atirou. Errou.
Eu apertei o gatilho da minha .357 SIG P229, mas pela primeira vez em minha carreira minha arma falhou, recusou-se a disparar. Corri para o lado enquanto ele disparava
outro tiro, acertando meu ombro esquerdo, um estilhaço agudo de dor subindo pelo meu pescoço e através do meu peito. Levantei-me, corri atrás dele e arremessei um
dos ganchos de carne em seu rosto. Quando ele se abaixou para desviar, joguei os braços para trás e o ataquei.
Quando caímos sobre o chão de concreto, eu escutava o barulho
úmido da mulher lutando para viver apenas a alguns metros dali, engasgando, tossindo.
Morrendo.
Basque enterrou o bisturi em minha coxa direita, mas derrubei sua arma, e enquanto ele se rastejava por ela, agarrei seu braço e o torci para trás de suas costas,
meu ombro e minha perna gritando de dor o tempo todo.
Imobilizei-o no chão. Algemei-o.
Então, empurrei-o de lado, e quando me inclinei para ajudar a mulher, ele disse suavemente:
– Acho que vamos precisar de uma ambulância, não acha, detetive? – dava para perceber o sorriso pela voz.
Tentei ajudá-la, tentei salvá-la, mas o sangue estava saindo de tantos lugares que era impossível estancá-lo. Não havia nada que pudesse fazer, nada que pessoa nenhuma
pudesse fazer.
O bisturi ainda estava em minha perna, mas se o removesse, o ferimento iria sangrar muito. Latejou quando ergui Basque desajeitadamente para ler os seus direitos.
Não pude evitar de reparar em seu rosto. Bonito como um galã de Hollywood e, ainda assim, possuído por pura maldade. Ele estava olhando para o corpo imóvel e ensopado
em sangue da mulher.
– Acho que não vamos mais precisar daquela ambulância.
E foi quando aconteceu. Algo dentro de mim estalou Ódio e medo borbulhando dentro de mim.
Ódio pelo que ele havia feito com ela. Medo porque humanos eram capazes de fazer aquilo, e eu era humano...
Bem. Eu me perdi.
Soquei-o o mais forte que pude na mandíbula. A força da pancada o mandou girando para o chão. Caí de joelhos ao lado dele e ergui o punho. Soquei-o novamente. Recolhi
o punho de novo, pronto para descarregar uma terceira vez.
Quando estava treinando para a polícia, meus instrutores me ensinaram a me controlar. A evitar o envolvimento emocional. Mas às vezes não dá para evitar. A violência
e o sofrimento te pegam. E naquele momento, eu estava pronto para acertá-lo de novo e de novo e de novo até que eu o fizesse sofrer tanto quanto a mulher que ele
acabara de matar. Uma parte de mim queria pegar o bisturi e cortá-lo. Cortá-lo como ele havia cortado ela.
Ele olhou para mim e lambeu o sangue quente em seus lábios.
– A sensação é boa, não é, detetive? A sensação é muito boa.
A sensação é boa, não é?
E a coisa que eu nunca contei para ninguém, nunca mencionei em nenhum dos meus relatórios, foi o que eu fiz. A sensação foi boa mesmo quando acertei-o. Uma rajada
de fogo e ódio e poder. E, para uma certa parte de mim, teria sido uma sensação boa pegar o bisturi e continuar, me entregar ao impulso primitivo em minha alma.
Parte de mim teria desfrutado da selvageria.
Eu não o respondi aquele dia, mas acho que o silêncio entregou meus pensamentos.
Mais tarde, Basque disse aos oficiais de interrogatório que ele quebrou sua mandíbula quando o gancho de carne o acertou no rosto. E foi isso que acabou nos arquivos
do caso, e eu não os corrigi. Então, pelos últimos 13 anos, pelo silêncio dele e pelo meu, nós compartilhamos um segredo que tem me apavorado mais do que qualquer
assassino que já encarei. O segredo de que foi uma sensação boa dar um passo em direção ao mal. Foi sim.
Descobri depois que o nome da mulher era Sylvia Padilla. Era sua décima sexta vítima. Pelo menos que nós soubemos.
E naquele dia, enquanto ela morria ao meu lado e eu via a extensão dos horrores que um ser humano podia proporcionar a outro, um calafrio enterrou-se de uma maneira
em minha alma e tem perambulado dentro de mim desde então. Um lembrete arrepiante do quão perto eu cheguei de virar aquilo que persigo.
Os comentários de Tessa no restaurante e na praia tinham atingido um ponto fraco, porque esse mês, depois de mais de uma dúzia de anos no corredor da morte, Richard
Devin Basque estava sendo julgado novamente, por causa de algumas discrepâncias no teste de DNA. E como eu apenas peguei-o na cena do crime, e não no ato do assassinato,
o caso não poderia ser um flagrante. Meu parceiro, agente Ralph Hawkins, iria depor amanhã. O julgamento provavelmente duraria meses, e eventualmente eu seria chamado
para depor também. Mas não era isso que estava me incomodando enquanto eu sentava ao lado da minha enteada. Eu estava pensando no segredo que eu compartilhava com
Basque.
Aquilo, sim, havia sido uma sensação boa
– Você não é como eles, né? – ela havia perguntado para mim.
E eu havia dito que não.
Mas talvez eu seja.
7
Sentados sob a luz pálida da lua, Tessa e eu observávamos as ondas famintas lambendo a costa. E por alguns momentos pareceu que tínhamos sempre conhecido um ao outro,
que ela era realmente minha filha, que eu era realmente seu pai, e que tínhamos uma vida inteira de memórias compartilhadas guardadas em algum lugar, prontas para
nos levar através de qualquer coisa que os tempos ruins pudessem trazem.
Mas a sensação durou apenas um momento. Então se foi. A névoa do mar nos cercava e os espaços frios entre as estrelas distantes desceram à praia para nos cercarem.
Senti um arrepio. Talvez fosse o vento. Talvez fosse a noite profunda rastejando lentamente pela costa.
– Estou ficando com frio – disse Tessa.
– Eu também – eu disse. – Vamos, ainda temos uma longa caminhada de volta para o carro.
Quando nos levantamos, ela olhou para o único oceano do mundo uma última vez.
– Estar aqui, agora, com o vento e a noite e tudo mais, me lembra de uma coisa que li uma vez.
– O que é?
Ela dirigiu um olhar imóvel e pensativo para as ondas iluminadas pela lua.
– “Era, de fato, uma noite tempestuosa, ainda que severamente bonita, e descontroladamente singular em seu terror e sua beleza.” – E então, olhandoem minha direção,
ela acrescentou – Poe. A queda da casa de Usher.
– É assustador – eu disse. – E bonito, também.
– É mesmo – confirmou ela. – As duas coisas.
Pensei por um momento em colocar a mão sobre seu ombro, mas achei melhor não. O vento soprava rajadas salgadas do oceano, e em algum lugar sobre nós, uma gaivota
guinchou no meio da noite. Por um momento, o grito da gaivota soou como um grito humano que se estendia por sobre a água.
Como um grito de mulher ecoando no chão de concreto de um matadouro.
Enfiei a mão no bolso, e quando tirei as chaves do carro, lembrei-me de onde havia as colocado na mesa, atrás da tigela de salada.
– Venha – eu disse. – Tem uma coisa que quero mostrar para você.
– O que é?
– O futuro.
8
Creighton Melice estacionou seu carro em frente a um bar em um bairro infestado de gangues na parte sul de San Diego. Ele percebeu que pelo menos metade das pessoas
no lugar estaria armada, então ele se certificou que havia munição em sua Glock antes de sair do carro.
Algumas mulheres que ignoravam o tempo frio e vestiam tiras de pano minúsculas e justas abordaram Creighton em seu caminho para o bar, mas ele apenas dispensou-as.
Ele não estava interessado no tipo delas.
Ele queria uma namorada com um pouco mais de classe
Alguns dos membros de gangue rondando as mesas olharam para Creighton quando ele entrou. Alguns deles olharam seu rosto e suas mãos, reparando no conjunto de cicatrizes
e marcas de queimaduras que ele carregava, mas a maioria deles estava provavelmente apenas querendo saber se ele era um policial. A atenção não incomodou Creighton.
Ele sabia como agir entre membros de gangues. Afinal, ele havia sido um deles no passado.
Em uma gangue, respeito é tudo. Então, ao invés de abaixar a cabeça ou de provocar os vagabundos, ele apenas deu um aceno casual com a cabeça a cada um enquanto
passava.
Eles pareceram ter aceitado aquilo e, um por um, retornaram a suas conversas murmuradas, mantendo um olho cauteloso nele enquanto encontrava um lugar para se sentar
no bar.
Creighton pediu duas cervejas e seus olhos navegaram pela sala. A mulher sentada sozinha abaixo da placa da Bud Light parecia muito bêbada. Passou.
A mulher negra que estava observando ele da cabine no fim do bar parecia muito ansiosa. Nunca era um bom sinal.
Ele tomou um gole longo e devagar e sua atenção se desviou para uma morena atraente, de pele escura, sentada sozinha na mesa ao lado da janela. Ela não parecia uma
imigrante irrastreável e sem documento, mas ela era atraente para Melice por outros motivos. Ela parecia entediada e aparentemente era confiante o suficiente para
não se vestir como uma puta de dez dólares para encontrar algum cara.
Hum. Interessante.
Ele pegou as duas cervejas e atravessou por entre as pessoas até a mesa dela.
Ser confiante. Essa é a chave. Confiança é tudo. Se você é confiante o suficiente, as pessoas irão onde você as mandar, pode acreditar nisso. Foi assim que Jeffrey
Dahmer conseguiu. Confiança completa. Uma vez ele convenceu dois policiais que o cara pelado e drogado usando algemas e perambulando pelas ruas era seu amante bêbado.
Então os policiais levaram o cara até o apartamento de Dahmer, onde ele prontamente o matou e então o comeu. Uma outra vez, alguns policiais foram até onde ele morava
para investigar o cheiro que atravessava as paredes de seu apartamento e Dahmer os convenceu que era apenas o aquário que ele não havia tido tempo de limpar. Eles
não se deram o trabalho de verificar seu quarto, ou teriam encontrado o cadáver apodrecido em sua cama.
Então. Confiança.
Creighton colocou as duas cervejas na mesa da morena.
– Preciso de uma ajuda.
Ela olhou para as garrafas de cerveja e deu um leve sorriso para Creighton.
– Ah, é? Que tipo de ajuda?
Através dos anos, Creighton descobriu que as pessoas ficam mais des confiadas se você oferecer algo a elas em troco de nada. Quanto mais gentil você é, mais elas
pensam que você quer algo delas. As pessoas confiam na necessidade, não na caridade.
Ele apoiou a mão na cadeira ao lado dela.
– Eu sou novo por aqui. Preciso de alguém que possa me mostrar a cidade. Uma sobrancelha erguida. Um pouco de sarcasmo.
– Eu pareço uma guia turística?
– Você parece alguém que está cansada de todos esses canalhas nessa espelunca secando você. Parece alguém que sabe que poderia fazer algo melhor essa noite, era
só o cara certo aparecer na sua vida.
Então. Agora.
Espere.
Só espere.
Ela vai responder de algum jeito, ela tem que responder alguma coisa. Confiança. Essa é a chave.
Creighton tomou um gole de sua cerveja.
Ela poderia apenas dispensá-lo. Sim, poderia. Mas quem sabe?
– Bom, – disse ela, finalmente – você está certo sobre esse lugar. E eu conheço a cidade muito bem... – Ela se levantou e escorregou o braço em torno de seu cotovelo.
– Tudo bem. Essa noite, serei sua guia.
– Mal posso esperar – disse ele, e a levou em direção à porta.
9
Como tenho 1,90 m de altura, fiquei grato quando, ontem, a Avis nos liberou um carro de tamanho maior. Pelo menos desse jeito eu poderia manobrar com as minhas mãos,
e não com os joelhos.
Virei numa rua salpicada de estúdios de tatuagem, concessionárias e pequenos restaurantes estrangeiros e então cruzei com um grupo de imigrantes sem-teto que olhavam
fixamente para o nosso carro do meio-fio.
– Patrick, – disse Tessa – nós podemos voltar para o hotel agora se você quiser. Quero dizer, eu não ligo. Só para você saber. Pra mim tudo bem.
– Não se preocupe, está tudo bem. O bairro para onde estamos indo não é tão ruim.
– Como você sabe?
– É isso que eu faço.
Dirigimos por mais uns dez minutos e então eu disse:
– Então, mais cedo você me perguntou se poderia dizer onde o próximo incêndio seria, certo?
– Sim.
– Bom, – deixei o carro deslizar até parar ao lado de uma série de casas de estuque marrom, alinhadas em uma das muitas colinas de San Diego cobertas de artemísia
– é aqui.
– Aqui? – Ela parecia animada, como se eu houvesse sugerido que mudássemos de volta para Nova York.
– Sim. Se eu tivesse que prever o futuro, diria que o próximo incêndio seria em algum lugar por aqui.
Nós saímos do carro e ela olhou em torno do bairro desolado. Não havia muito para se ver. Uma pequena tabacaria ficava na esquina, no fim do quarteirão. As colinas
eram ladeadas por palmeiras e pontilhadas por casas silenciosas e adormecidas. O tráfego na Five7. podia ser ouvido como um murmúrio através da noite. Um trem de
passageiros, que eles chamam aqui de trolley, rugiu distante nos trilhos. Não era o pior bairro da cidade, mas eu não queria manter Tessa aqui muito tempo, também.
– Você realmente acha que vai haver um incêndio aqui? – ela perguntou.
– Claro que não. Já falei para você que não posso prever o futuro. É só que, se eu fosse... quer dizer... baseado no padrão do incendiário, se eu fosse ele, seria
aqui que eu escolheria.
Ela olhou em volta com expectativa.
– Então, quando vai acontecer?
Olhei para o meu relógio.
– Muito bem, vamos ver... três... dois... um.
Ela virou-se lentamente, com os olhos arregalados.
– Tem certeza? – ela perguntou.
Percebi um homem hispânico cambaleando do outro lado da rua, no fim do quarteirão. Ele usava um emaranhado de roupas rasgadas, e quando chegou ao meio-fio, começou
a andar em círculos em torno do poste de luz.
– Tessa, já falei para você que não posso fazer isso. Por acaso tenho cara de Nostradamus?
Ela balançou a cabeça, ainda observando a vizinhança.
– Essa é uma boa frase. Eu a gravaria.
– Obrigado.
– Não estou vendo nenhum incêndio.
– Claro que não.
O mendigo estava a cerca de 30 metros dali. Parecia estar balbuciando para si mesmo. Ele olhou para nós e então começou a tropeçar em nossa direção.
– Acho que é hora de irmos – eu disse.
Próximo dali, eu podia escutar o balanço e o zumbido do trolley chegando perto.
Tessa deslizou para o banco do passageiro.
– Então, quanto você disse que custou sua graduação?
– Pelo jeito, demais.
Assim que saí do meio-fio, o mendigo começou a cambalear do centro da rua em nossa direção. Parou bem em frente do carro. Não conseguiria ultrapassar ele em segurança,
então parei o carro. Ele estava a apenas alguns metros de nós, imóvel, olhando para os faróis.
– O que ele está fazendo? – Tessa perguntou.
– Provavelmente só quer pedir dinheiro.
Estava prestes a sair do carro para pedir a ele gentilmente que saísse do caminho, quando ele deu um berro descontrolado e correu gritando em direção ao carro, subiu
no capô até o para-brisa e olhou para nós através do vidro. Abri a minha porta.
– Tessa, fique no carro. Tranque a porta.
Ela obedeceu.
Ele olhou para mim ameaçadoramente, olhos descontrolados na noite.
– Brraynn! – ele gritou. Antes que eu pudesse impedi-lo, ele bateu com o rosto no vidro.
Tessa se jogou para trás o máximo que conseguiu.
– Patrick!
Drogas. Provavelmente está drogado. Agarrei seu braço.
– Senhor, você precisa se acalmar. Venha. Vamos tirar você desse carro. – Ele afastou seu braço, balançou a cabeça violentamente e bateu com a testa contra o para-brisa,
criando um padrão de rachaduras que se espalhou pelo vidro. Então ele olhou para mim com uma expressão louca e transtornada, seu nariz agora sangrando e quebrado.
Seus dentes eram saliências podres, seu hálito, fétido.
Ele estava incoerente. Drogado. Talvez bêbado, porém, seu hálito não cheirava a álcool.
– Ssslllleee – ele guinchou. – Mergh. Whikl!
Conter pessoas que usaram crack nunca é fácil. Força sobre-humana.
Combativo. Fora de controle.
Mas eu preciso protegê-lo dele mesmo.
Puxei-o de cima do capô, mas quando o fiz, ele soltou um guincho, balançou sua cabeça em minha direção, e enterrou seus dentes podres através do meu casaco e da
carne do meu antebraço. Sacudi o meu braço, e um dos seus dentes manchados foi arrancado de sua boca e ficou alojado em meu braço. Ele caiu de cima do carro e correu
numa velocidade surpreendente em direção à tabacaria, de onde um garoto de 20 e poucos anos havia acabado de sair.
Bati na janela, me certifiquei de que Tessa estava bem e corri na direção da tabacaria e gritei para o garoto sair da frente!
O transeunte, que ou sofria de alguma doença mental, ou estava drogado – ou ambos – estava agora segurando uma chave de roda enferrujada. Se ele havia escondido
aquilo ali perto ou se havia acabado de encontrar, eu não sabia.
– Ei! – eu tive que gritar alto para ser ouvido além do barulho do trolley que se aproximava. O cara era rápido, frenético. Corri em direção a ele. – Pare!
– Preeehl! – ele gritou.
Balançando nos trilhos próximos, o trolley estava acelerando. Corri em direção ao transeunte.
– Largue isso! – procurei pelas abraçadeiras plásticas que carrego no bolso de trás. – Largue agora!
Isso estava ficando muito ruim.
O mendigo girou em um círculo, delirante. Desorientado.
– Rrrrhhhhkkk.
Finalmente, o cliente que estava de pé fora da tabacaria recuou e des lizou para as sombras ao lado da loja.
Bom, isso é bom.
Mas você ainda tem que imobilizar esse cara para que ele não ataque mais alguém.
Então, me aproximei do mendigo e ele atirou a chave de roda em mim, e então fugiu na direção dos trilhos do trolley. Sua arma improvisada bateu na calçada do meu
lado enquanto eu corria em sua direção.
Só mais alguns metros.
O barulho de trovão do trolley ficou mais pronunciado ali, porque logo depois de onde estávamos, o trilho descia por um vão estreito através da cidade. Uma cerca
de metal preta, rígida, de uns dois metros de altura, acompanhava as laterais do vão para impedir que pessoas caíssem ali.
Ou pulassem.
Oh, não.
O transeunte agarrou a grade e começou a escalar. Corri em sua dire ção para agarrar sua perna. Quase consegui. Quase.
Isso. Agarrei seu tornozelo.
Mas então ele gritou uma última palavra ininteligível, chutou minha mão com força e se atirou por cima da grade, diretamente no caminho do trolley que se aproximava.
10
Mesmo com o barulho do trolley sacudindo sobre os trilhos, pude ouvir o barulho úmido e macabro do impacto.
Não, não, não.
Corri para a grade.
O maquinista estava freando o trolley, mas não adiantava mais para o homem que havia pulado. Imaginei se as pessoas a bordo haviam sentido alguma coisa, se eles
tinham alguma ideia do que tinha acabado de acontecer. Percebi alguma coisa rolando até parar ao lado dos trilhos. Então percebi o que era.
O sapato do homem.
E parecia que seu pé ainda estava dentro.
Um fluxo agitado e acre de náusea passou por mim. Algumas pessoas ficam insensíveis com isso tudo. Com a morte, o sangue, a violência. Seria de se imaginar que,
com o meu trabalho, eu também ficaria insensível, mas ainda me incomoda. Ainda me dói no coração e revira meu estômago.
Respirei fundo para me acalmar e então me lembrei de Tessa. Me virei e corri para o carro, parte da minha mente catalogando a cena.
Rotas de entrada e saída – K Street e 16th. Sem tráfego móvel.
Checado.
Números das placas – cinco carros estacionados, memorizar as placas.
Checado.
Testemunhas potenciais – passageiros do trolley? Improvável. No canal não dava para ver... o garoto da tabacaria, o dono? Possivelmente. Tessa, eu.
Checado.
Vigilância – nenhuma câmera visível.
Checado.
Tessa estava sentada no banco do passageiro, balançando para frente e para trás, as duas mãos cobrindo o rosto. Meu telefone ainda estava no carro ao lado dela.
Bati na janela e pedi que ela destrancasse a porta.
Quando ela não se moveu, acenei para um Mustang marrom que havia acabado de virar naquela rua. Primeiramente pensei que ele não iria parar, mas quando ele me viu
olhando para sua placa, ele encostou no meio-fio.
– O que está havendo? – ele perguntou. Seus olhos pousaram no sangue escorrendo do meu braço.
– Você tem um telefone?
– Sim, claro.
– Ligue para a polícia. Diga a eles que um homem pulou na frente do trolley. Ele continuou olhando para o meu braço.
– Agora!
Ele discou.
Eu tive que chamar Tessa umas quatro ou cinco vezes antes que ela finalmente destrancasse a porta e eu pudesse sentar ao lado dela.
– Você está bem?
Ela estava tremendo.
Puxei ela para perto. Abracei-a forte.
– Ele pulou? – sua voz frágil, partida.
Bom. Ela não viu. Ainda bem que ela não viu.
– Não se preocupe com isso...
– Ele pulou?!
– Sim – tive que ser direto com ela. – Ele pulou.
Ela começou a me acertar com pequenos punhos cerrados.
– Ele não deveria ter feito isso, Patrick. Não deveria.
– Eu sei.
– Por que ele fez?
Nós sempre queremos uma razão, uma explicação, mas, às vezes, elas não existem.
– Ele estava confuso – eu disse. – Ele cometeu um erro terrível. – Abracei-a, e tentei acalmá-la – Agora, você está bem?
– Queria que não tivéssemos vindo aqui.
– Eu também. Me desculpa.
– Podemos ir? – ela estava enxugando uma lágrima. – Por favor, vamos.
Um homem havia acabado de morrer, havia se matado, e desde a hora em que Tessa cobriu os olhos e que o garoto da tabacaria havia se escondido, parecia que eu fui
o único que viu o que aconteceu. Sabia que a polícia precisaria do meu depoimento, então, por mais que eu quisesse, eu não poderia deixar a cena ainda. Por outro
lado, não queria Tessa perto dali de jeito nenhum. Eu precisava urgentemente levá-la de volta para o hotel.
Relaxe e pense um pouco, Pat. Pense.
Olhei para frente e vi que o para-brisa estava como uma teia de aranha, com rachaduras, e espirrado de vermelho. Além da mancha de sangue do fulano, eu pude ver
que uma multidão já estava se formando através da beirada dos trilhos, olhando para baixo. Apontando. Do outro lado dos trilhos, dois homens se deslocaram através
dos curiosos. Eu não pude ver seus rostos, mas um caminhava com os passos medidos de um homem mais velho, e o cara maior e mais jovem estava carregando uma bolsa
esportiva preta. O homem do Mustang havia dado a volta no quarteirão e estava pegando-os.
– Então? – disse Tessa.
– Eu não vou poder ir embora por enquanto – eu disse. – Deixe me ver se eu consigo achar alguém que possa te levar de volta para o hotel.
11
A agente especial Lien-hua Jiang encostou-se nos travesseiros da cama do hotel com seu notebook no colo. Lutando com sua vista embaçada, ela analisou as informações
do caso sobre o incendiário em série.
Pela enésima vez.
Com o clima seco e a população densa de San Diego, os oficiais da cidade estavam nervosos em relação aos incêndios – especialmente com a lembrança ainda fresca na
cabeça dos ventos de Santa Ana que causaram os incêndios devastadores de 2007.
Lien-hua havia trabalhado pela primeira vez no perfil desse incendiário no último outono, mas desde então houveram mais seis incêndios e a polícia ainda não tinha
nenhuma pista sólida, e ultimamente ele havia progredido, demorado menos entre um incêndio e outro. Então, a tenente Aina Mendez, chefe do San Diego’s Metro Arson
Strike Team8., ou MAST, chamou Lien-hua de volta para atualizar o perfil. E desta vez Lien-hua havia pedido ao agente especial Patrick Bowers para ajudar na análise
dos horários e dos locais dos crimes.
Ela disse pra si mesma que havia pedido a ele para vir por causa de sua especialidade em encontrar infratores em série, e não por conta de nenhum tipo de interesse
pessoal que ela poderia ter por ele.
Isso é o que ela disse pra si mesma.
Ele havia aceitado o pedido imediatamente, exatamente como ela sabia que ele iria.
Mesmo Lien-hua tendo seis sólidos anos de experiência como criadora de perfis comportamentais, ela nunca havia visto algo assim antes.
Por sua natureza, incêndios estão entre os crimes mais difíceis de resolver. O fogo destrói evidências e os esforços de apagar o fogo e resgatar as vítimas deixam
a cena do crime contaminada. Por causa disso, um incêndio é um ótimo jeito de esconder um crime dentro de outro.
Então, quando ela havia iniciado o caso no último outono, começou procurando por um motivo. Qual outro crime os incêndios devem estar escondendo?
Fraude de seguro não era o problema – ela havia checado isso de primeira. O valor de propriedade dos edifícios era comparativamente baixo pelos padrões de San Diego,
e os donos não possuíam laços aparentes uns com os outros. Nenhuma fatalidade até então, felizmente, então ele não parecia estar causando incêndios para encobrir
um crime – bom, não assassinato, pelo menos.
Mas então o que? Se não por lucro ou para encobrir provas, por que os incêndios?
Talvez pela pura emoção de ver as coisas queimando? Possivelmente, exceto que a tenente Mendez e o MAST haviam entre vistado e acompanhado todos nas multidões em
cada um dos incêndios – até os policiais responsáveis e bombeiros. Algumas pistas até então, mas nada substancial.
Por tudo que Lien-hua havia visto, esse cara não ficava para assistir.
Então... qual era seu motivo? Por que ele fazia isso?
Durante sua carreira, Lien-hua trabalhou na maioria das vezes em homicídios ao invés de incêndios, mas a tenente Mendez disse para ela que a eficiência dos incêndios
apontava para alguém que entendia dos padrões de fluxo de gases flutuantes, e podia localizar o melhor ponto de origem para que o edifício caísse rapidamente.
Em outras palavras, um profissional.
Mas se ele era um profissional, quem o estava contratando? E por que? Mesmo agora, após 14 incêndios, a polícia ainda não tinha um único suspeito...
Tinha milhares.
Lien-hua suspirou e massageou sua testa com uma mão cansada.
Ela deixou seu laptop na cama e foi até o vaso colocado ao lado de sua bolsa sobre a mesa. Ela havia trazido o vaso com ela, como sempre fazia, e comprou as flores
quando chegou na cidade. Viajando o tanto que ela viajava, ela descobriu que precisava de algo além da yoga e do kickboxing para acalmar sua mente e recentralizar
seu espírito quando estava no meio de um caso.
O simples ato de criar beleza e simetria a partir do caos trazia a ela um senso de calma e uma fuga bem vinda das pressões que se sofre sendo uma especialista em
criar perfis para o FBI – sem mencionar a graça que a flores traziam aos quartos de hotel inclassificáveis por onde ela andava com tanta frequência.
Dez anos atrás, nos meses após o “acidente” que ninguém na família dela nunca ousou falar – e que Lien-hua ainda não acreditava ter sido um acidente – sua mãe havia
começado a mexer com arranjos de flores. E pelos próximos sete anos, antes da batida de carro que havia tirado sua vida, Mei Xing havia se tornado especialista.
Após a morte de sua mãe, Lien-hua havia decidido fazer arranjos de flores em seu lugar. Talvez para honrar sua mãe, ou para lidar com a tristeza, ela não tinha certeza.
Afinal, a pessoa mais difícil de se conhecer, a pessoa mais difícil para se fazer um perfil, é você mesmo.
Arranjos de flores deveriam ser pacíficos e relaxantes, mas no início Lien-hua acabou descobrindo que parecia ser o contrário.
Frustrante, exasperante, gastador de tempo? Sim.
Calmante e tranquilizante? Não exatamente.
E ainda assim, com o tempo, Lien-hua aprendeu a distinguir as diferentes sensações que uma pequena mudança em uma única pétala poderia produzir. Tranquilidade. Animação.
Admiração.
Fascinação.
Ela angulou os dois cíclames para ficarem de frente para as íris brancas e inclinou uma das pétalas da estrela-de-Belém para que recebesse mais luz. Usar apenas
flores brancas em um vaso branco dava ao quarto uma sensação elegante. Pura e inocente.
Lien-hua deu um passo para trás.
Pronto. Muito melhor.
Ela se jogou novamente sobre a cama e voltou aos arquivos do computador, mas assim que ela estava prestes a olhar na lista de possíveis acelerantes, seu celular
tocou.
– Sim?
– Lien-hua, precisa de sua ajuda.
– Pat? – ele parecia incomodado. – O que foi? Você está bem?
– Aconteceu um acidente. Estou com a Tessa...
Um calafrio.
– Você se machucou...?
– Não, estamos bem, mas escute, você poderia vir buscar a Tessa e levá-la de volta para o hotel? Eu preciso ficar aqui, dar meu depoimento para a polícia. Se você
pudesse ficar com ela por uma hora ou duas, até eu voltar, seria de muita ajuda. Acho que ela vai ficar bem, eu só não quero que ela fique sozinha.
– Claro. Onde você está?
Ele deu a ela o endereço e finalizaram a ligação.
Lien-hua agarrou sua bolsa, mas na pressa bateu o cotovelo no vaso, e ele tombou para fora da mesa, espalhando suas flores pelo carpete.
Ela levou um momento para avaliar a bagunça e então rapidamente deslizou as flores de volta para o vaso. Ela poderia encher o vaso com água depois, quando ela tivesse
mais tempo.
Enquanto ela colocava o vaso sobre a mesa, ela percebeu que algumas da pétalas haviam sido danificadas pela queda.
Pétalas danificadas.
Inocência ferida.
Ela pensou de novo no incidente que havia trazido todas as flores para a vida de sua família. Uma estranha gota de culpa espalhou-se dentro dela.
O arranjo nunca mais será o mesmo.
Nunca o mesmo.
Quando ela saiu do quarto, fechou a porta mais forte do que era necessário, então correu apressada pelo corredor para buscar Tessa no local do acidente.
12
Enquanto esperava por Lien-hua e pela polícia, tirei algumas fotos da cena com meu celular e enviei por e-mail para o expedidor encaminhar para os oficiais responsáveis.
Antigamente tínhamos que esperar um fotógrafo aparecer na cena de um acidente ou de um crime.
Agora não mais. Bem-vindo ao século XXI.
Percebi que o dente do transeunte ainda estava enfiado no meu braço. Sem deixar que Tessa visse, arranquei-o. Doeu mais do que eu pensei que doeria, e meus dedos
estavam tremendo um pouco quando coloquei-o em meu bolso e apertei a manga elástica do meu casaco para estancar o sangramento.
Alguns minutos depois, três carros de polícia e uma ambulância encostaram no meio-fio, e como que numa deixa, Lien-hua chegou e estacionou bem atrás deles.
Percebi os olhos de todos os policiais homens – e mulheres – acompanhando Lien-hua enquanto ela atravessava a rua. Eu não fiquei surpreso. Afinal, ela se movimenta
com um equilíbrio oriental, tem um rosto elegantemente bonito, com um nariz pequeno e as maçãs do rosto salientes e, para dizer o mínimo, estava muito, muito em
forma. Claro, ela também é brilhante, calma sob pressão, solteira e, aos 32 anos, apenas quatro anos mais jovem do que eu.
Resumindo, ela é uma das mulheres mais deslumbrantes que já conheci. Mas enquanto ela se aproximava, tentei não pensar sobre tudo isso, e ao invés disso, após um
rápido cumprimento, me foquei em explicar para ela o que havia acontecido. Um dos paramédicos me deu um tubo de antibiótico para meu braço e estiquei novamente a
manga quando nos aproximamos de Tessa, que estava sentada no meio-fio, indiferente, estalando um elástico contra seu pulso e eventualmente escrevendo algo em seu
caderno.
Após um momento, Lien-hua sentou-se ao lado dela.
– Olá, Tessa.
Sem olhar de volta.
– Agente Jiang.
– Você está bem?
Estalo.
– Não preciso de psicanálise nem nada. Eu só quero ir pra cama.
Lien-hua arrastou o dedo fino na calçada.
– É justo. – Então se levantou e ofereceu a mão para Tessa.
Terminei de esfregar um pouco do antibiótico em meu braço e fechei a tampa do tubo.
– Tessa, eu pedi para Lien-hua ficar um pouco com você enquanto eu termino isso aqui.
Estalo. Estalo.
– Eu não preciso de alguém que fique comigo.
Quando Lien-hua viu que Tessa não ia pegar sua mão, ela a abaixou.
– Por favor.
Ela fechou a cara, levantou-se e foi bufando para o carro de Lien-hua. Estalo. Estalo. Estalo.
Preciso falar com ela sobre essa coisa do elástico.
Assim que Tessa estava numa distância onde não podia mais nos ouvir, eu disse para Lien-hua:
– Foi uma noite difícil, mas acho que ela vai ficar bem. Vejo você no hotel, tudo bem?
– Claro.
Toquei levemente em seu cotovelo.
– Ei, obrigado por vir.
– De nada – disse ela. – Fico feliz de poder estar aqui pra você.
Sua palavras rolaram pela minha cabeça, significando para mim mais do que ela possivelmente desejava.
– Sim, eu também.
Então ela entrou no carro ao lado de Tessa e um policial cujo rosto parecia um pedaço de carne com uma barba por fazer colada na parte de baixo gritou:
– Onde você acha que está indo? – Uma velha cicatriz atravessava sua bochecha e puxava um dos seus lábios para baixo numa careta. Seus braços eram como duas sucuris
tatuadas penduradas nas mangas de sua camisa. Ele usava um distintivo de detetive.
– Elas não viram o que aconteceu – eu disse.
Ele olhou para mim desconfiado.
– E você é?
– Patrick Bowers. Sou agente federal. FBI.
Quando pegava minha identificação, ele analisou minha roupa, aparentemente percebendo meus jeans, tênis e camiseta.
– Agente federal, é? Se você é um agente do FBI, cadê o sapato Oxford e a gravatinha idiota?
Quase perguntei para ele cadê seu donut e o bigodinho ridículo, mas não achei que seria o melhor jeito de começar nossa amizade. Ao invés disso apenas mostrei minha
identificação federal.
Lien-hua havia esperado, mas acenei que ela podia ir embora. O detetive não parecia mais interessado nas duas mulheres. Ele olhou minha identificação, mexendo sua
mandíbula para frente e para trás.
– Então agora os federais estão envolvidos nisso também?
– Envolvidos no que?
Ele me devolveu a identificação.
– Olha, se você está vindo aqui para começar alguma briga por território... Li seu nome em seu distintivo.
– Detetive Dunn, eu não fui enviado para investigar nada. Só estou aqui porque fui testemunha do suicídio desse fulano. Está acontecendo alguma coisa que eu deveria
saber?
Ele se aproximou tanto que eu podia sentir seu hálito de alho.
– Essa é a minha cidade. Da próxima vez que você e seus amiguinhos advogados burocratas de Quantico decidirem meter o nariz em uma investigação em andamento, pelo
menos tenham a cortesia de passarem pelos canais apropriados.
– Eu acho melhor você se afastar – eu disse. – Agora.
Ele se afastou lentamente.
– De qual investigação em andamento você está falando, detetive?
– Não me insulte. Você sabe, ou não estaria aqui. – Ele esfregou a barba por fazer como uma lixa em sua bochecha. – Então, você é o fotógrafo também? Está mandando
fotos do trolley via e-mail para todo mundo.
Esse cara tinha algo a mais.
– Seu distintivo diz que você é um detetive de homicídios. Eu fui detetive em Milwaukee por seis anos e eu sei que a expedição não mandaria você aqui para trabalhar
em um suicídio confirmado por testemunha, pelo menos não até que suspeitassem de algum jogo sujo. O que está acontecendo aqui?
Ele sorriu.
– Ah, entendi. Você quer brincar assim. Bom, você é o agente federal, espertalhão. Por que você mesmo não tenta descobrir?
– Bom, você é quem sabe, detetive, me soa uma ótima ideia. Acho que vou mesmo.
Sua voz endureceu.
– Então, o cara que chamou a polícia, você não chegou a dar uma boa olhada nele, chegou?
– Tinha entre 35 e 40 anos, cabelos loiros, sem costeletas, pequeno cavanhaque. Ele esteve sentado o tempo todo, mas sua cabeça estava perto do teto do Ford Mustang
2003 marrom que ele estava dirigindo, então a altura era mais ou menos 1,90m, 1,92m. Ele usou um telefone Nextel, tinha uma tatuagem de uma águia careca no antebraço
esquerdo mas nenhuma outra marca visível ou joias no corpo. O Mustang tem um arranhão de aproximadamente 20 centímetros no painel frontal, no lado do motorista.
Placa do Arizona, número B73... – Dunn estava apenas me olhando. – Você não está anotando nada? – perguntei.
– Você está inventando tudo?
– Não – eu disse, olhando além dele para o perfil do Petco Park contra o horizonte. – Isso é o que eu faço.
Durante as últimas duas horas, Creighton Melice e a morena, que havia dito a ele que se chamava Randi – com “i” – dividiram drinks em um bistrô de vinhos no centro
e visitaram duas danceterias. Agora, ele dirigia o carro para os estaleiros enquanto ela mexia no cabelo em frente ao espelho do carro.
– Então, onde você está hospedado, Neville?
– Eu tenho um lugar em Chula Vista
Creighton adorou o jeito que ela entrou no carro por vontade própria. Ele não tinha certeza que ela iria, mas acabou sendo fácil assim. Abra a porta. Deixe ela entrar.
Feche a porta. Era muito melhor quando acontecia desse jeito. Muito mais satisfatório.
Creighton ficou de olho nos policiais. Cuidado nunca era demais. Ele parou em um semáforo.
– Você disse que era novo em San Diego – disse ela, fechando o espelho. – O que o trouxe aqui?
– Um projeto de um filme no qual estou trabalhando. Acabo me mudando muito.
– Quanto tempo você está planejando ficar dessa vez?
– Depende.
– Do que?
– De quanto tempo vai levar para acertar as coisas por aqui.
O semáforo ficou verde e ele virou na rua que levava ao armazém com as câmeras.
Em meu trabalho, não é sempre que você tem o luxo de trabalhar em apenas um caso de cada vez. Enquanto você vai caminhando resolvendo um crime, um outro rasteja
por trás de você e te alcança. Então, mesmo com o caso dos incêndios no centro da minha atenção, eu não podia ignorar o fato de que as estranhas circunstâncias girando
em torno do suicídio do fulano estavam cutucando meu ombro.
Então, arrumei espaço na minha cabeça para os dois casos.
Não achava plausível que o homem com a bolsa esportiva preta e seu amigo estivessem apenas passando e ainda assim não se preocuparam em ver o que estava acontecendo.
A maioria das pessoas naturalmente fica curiosa, a menos que, é claro, elas queiram parecer desinteressadas – e normalmente apenas pessoas que têm algo a esconder
querem isso. Além do mais, eu estava com uma sensação crescente que algo a mais estava acontecendo ali, especialmente após ouvir as palavras do meu novo amigo detetive
jurisdicionalmente paranoico.
Então, após terminar de dar meu depoimento para o detetive Dunn e deixar um paramédico fazer um curativo no meu braço, levei alguns minutos para perguntar às pessoas
que estavam no trolley se alguma delas tinha visto um homem com uma bolsa esportiva preta a bordo antes dele parar.
Nenhuma delas viu.
Eu poderia checar a filmagem das câmeras no departamento de trolleys mais tarde para ver se os dois homens estavam a bordo.
Antes de deixar o local, andei até a cerca de metal novamente e olhei para o vão.
Dois empregados da prefeitura estavam esfregando a frente do trolley. Um deles reclamava que estava perdendo o programa do Jay Leno, o outro cara estava tentando
fazer seu colega se interessar em discutir a formação titular dos Lakers.
Logo além deles, um policial de aparência sombria recuperava o sapato.
Era como eu imaginava.
Não estava vazio.
Dei mais uma olhada ao redor, então fui para o meu carro. Como mordidas humanas quase sempre resultam em infecções, parei no hospital para arrumar mais antibióticos.
Os médicos do pronto-socorro também fizeram um teste de Hepatite C e HIV por causa da mordida, e me disseram para retornar em uma semana e para fazer um teste novamente
em seis meses. Não havia mais nada a se fazer, então tirei aquilo da cabeça.
Antes de deixar o hospital, tirei um momento para imaginar com que cara o representante da Avis ficaria no sábado quando eu explicasse o que aconteceu com o para-brisa.
Isso ia ser interessante.
Não queria que Tessa visse as manchas e espirros de sangue do fulano no vidro, então saí procurando um lava-rápido 24 horas.
Minha mente indo e vindo entre os dois casos o tempo todo.
13
Creighton e Randi chegaram no imenso estacionamento do armazém. Ele viu Randi mandando uma mensagem de texto.
– Pra quem é?
– Minha colega de quarto. Estou avisando a ela para não esperar por mim. – É uma boa ideia.
Ela fechou o telefone e o guardou, então olhou pela janela.
– Onde estamos? Pensei que estávamos indo para sua casa.
– Preciso resolver algo aqui primeiro. Vamos, eu não quero deixar você aqui sozinha.
– Do que você está falando? O que você precisa fazer aqui?
Ele não respondeu, apenas abriu sua porta. Mas assim que o fez, o celular em seu bolso vibrou. Ele soube quem era no mesmo instante. Apenas uma pessoa tinha esse
número. Ele atendeu o celular.
– Sim?
– Está na hora – a voz eletronicamente alterada disse. – Faremos nessa noite.
– O quê? – os olhos de Creighton dirigiram-se para Randi. – Você está brincando.
Uma pausa.
– Você está pronto, não está?
– Claro que estou pronto. Mas era para fazermos isso durante o dia. Eu preciso de pelo menos algumas horas para encontrá-la e...
Randi cruzou os braços.
– Encontrar quem?
– Shh – disse ele.
– Quem está aí? – perguntou Shade.
– Não é nada – disse Creighton. – Escuta, estou falando, essa noite não é boa. Eu não gosto de ser apressado. O plano era pegá-la no caminho dela do trabalho para
casa...
Randi guardou sua maquiagem, fechou o zíper de sua bolsa e colocou-a no colo.
– Pegar quem, Neville?
Creighton tirou o telefone de perto da boca e olhou para ela.
– Só um minuto – ele chiou.
– As coisas mudaram – Shade disse. – Nós vamos fazer agora. Hunter está a caminho. Não me decepcione.
O telefone ficou mudo e Creighton percebeu que era muito difícil enfiá-lo em seu bolso enquanto sentado. Ele colocou-o ao seu lado, entre os assentos.
– O que está acontecendo? – perguntou Randi.
Creighton esfregou seus dedos ásperos. Parecia que ele tinha que fazer uma decisão.
– Deixe-me pensar. – É outra garota, né?
– Quieta.
Creighton ponderou suas opções. Randi... Cassandra... Randi... Cassandra... De quem deveria ser essa noite?
– Quem é ela? – Randi perguntou.
Então Creighton tomou a decisão e ligou o carro.
– Nós não vamos para minha casa. Apareceu algo.
– Ahn?
– Saia do carro.
Randi olhou para o velho distrito dos galpões arrastando-se até o oceano.
– Você quer que eu saia aqui? Você não vai me largar aqui no meio do nada!
Creighton deixou sua voz sair como uma pancada.
– Saia do carro! – ele esticou o braço e abriu a porta do passageiro. Ela xingou alto enquanto se contorcia para pegar suas coisas, e então girou suas pernas para
fora.
– Você teria se divertido comigo. – Ele colocou a mão em suas costas e empurrou-a para fora. Ela cambaleou. – Você não sabe o que está perdendo!
– Nem você. – Antes que ela pudesse fechar a porta, ele pisou no acelerador, jogando o carro para frente, usando o impulso para fechar a porta do carro.
No espelho retrovisor ele a viu chutando o pneu do carro quando passou ao lado dela. Ela estava balançando seu braço para ele, gritando.
Por um momento, ele ficou tentado a voltar para ela, para ver o que a Randi com “i” poderia fazer por ele. Mas não. Ele tinha um serviço a fazer para Shade, e se
ele mantivesse o plano, logo ele morreria feliz para sempre.
Mas antes disso, um agente do FBI morreria também.
Mas não tão feliz.
Creighton precisava pegar algumas coisas. Ele ficava tentado a ultrapassar o limite de velocidade mas tomava cuidado em se manter nas leis de trânsito no caminho
para seu apartamento para pegar os dardos e a arma de tranquilizante que Shade deu para ele usar.
Afinal, cuidado nunca é demais.
14
Victor Drake estava irritado. E quando ele estava irritado, ele não conseguia dormir.
E quando ele não conseguia dormir, ele ficava mais irritado ainda. Então, após ficar deitado acordado em sua cama por mais de duas horas, ele levantou e pulou dentro
da Jacuzzi na marquise fechada com vidro com vista para o oceano. Ele desligou os jatos d’água para que pudesse ouvir a televisão de presa à parede ao lado de seu
Monet, mas então ficou irritado com o som e abaixou o volume, e apenas observou os números do índice da bolsa Nikkei passando na tela.
Quando ele estava começando a relaxar, o guarda do portão da frente o chamou na campainha.
Victor ignorou o barulho. Tudo que ele queria era relaxar o suficiente para conseguir dormir
A campainha de novo.
Victor não se moveu.
De novo.
Ele bateu o dedo contra o controle remoto e a tela da televisão dividiu-se em duas imagens, com o mudo índice da bolsa do lado direito e a transmissão de vídeo ao
vivo da estação de guarda na entrada de veículos na esquerda.
– Quê? – gritou Victor.
– Señor, estou com dois homens aqui que...
– Você tem alguma ideia de que horas são? – Victor falou.
– Eu sei, señor. Eles são muito insisten...
– Não me perturbe a menos que...
Outra voz o cortou e um rosto apareceu na tela junto do guarda.
– É o Octal. Estou com o Geoff. Estamos subindo.
Os dedos de Victor tremeram um pouco e ele derrubou o controle remoto dentro da hidromassagem. Ele xingou e buscou o controle, mas na hora que o recuperou, ele viu
na tela que a BWM do dr. Octal Kurvetek cruzou com os guardas de cara confusa e estava a caminho da casa. Victor decidiu demitir aquele guarda fajuto e inútil amanhã,
mas, por enquanto, ele precisava lidar com Geoff e o doutor. Eles nunca deveriam ter vindo aqui.
Nunca.
Ele havia deixado isso muito claro.
Victor desligou a televisão, saiu da banheira e se secou. Algum momento depois, antes que ele tivesse tempo de terminar de se vestir, ele ouviu os passos dos dois
homens na escada. Ele sabia que havia trancado a porta da frente mais cedo, mas aquilo não parecia segurar Geoff nem um pouco. Victor prendeu seu robe de banho ao
redor de sua cintura e saiu do quarto principal.
Os dois homens estavam esperando por ele no saguão.
– O que vocês estão fazendo aqui? – sua voz estava fervendo. – Eu disse a vocês para nunca...
– Eu sei o que você disse – Geoff era uma montanha de um homem com um nariz largo que parecia estar no lugar certo, pregado em seu rosto volumoso. – Mas isso é importante.
O outro homem estava parado atrás dele, quieto. Um homem de barba grisalha, por volta de seus 60 anos, com olhos frios e perfurantes, o dr. Octal Kurvetek havia
trabalhado por 20 anos para o Texas Department of Criminal Justice9., ou TDCJ, como médico supervisor das execuções por injeção letal. Ele sempre deixava Victor
nervoso, mas suas habilidades fizeram dele o homem perfeito para o trabalho para o qual foi contratado.
Victor tirou os olhos do Dr. Kurvetek e olhou para Geoff.
– Bem, o que foi? E é bom que seja coisa boa.
– Houve um pequeno problema – o rosto de Geoff não registrava nenhuma emoção.
– Que tipo de problema?
– Hunter não apareceu – dr. Kurvetek acrescentou.
– O quê? – Victor engasgou. – Ele não apareceu? Como ele pode não ter aparecido?
– O sujeito reagiu inesperadamente – dr. Kurvetek disse. – E a polícia foi chamada.
– E? – Victor exigiu.
– Suicídio óbvio – disse Geoff. – Hunter provavelmente fugiu.
– Ficamos de olho no local, mas mesmo depois que todo mundo foi embora, ele não veio – dr. Kurvetek disse. – Fomos até seu apartamento mas ele não estava lá também.
As gavetas dele estavam uma bagunça. Parece que ele saiu às pressas. Pensei que ao invés de ligar para você fosse melhor discutirmos isso pessoalmente.
Victor tentou ligar os pontos. Era difícil dizer o quanto Hunter sabia. Não haviam dito muito para ele, mas era quase certeza que era o sufi-ciente para lesá-los
se ele decidisse procurar as autoridades.
Além disso, o general Biscayne chegaria na quinta-feira. Não, não, isso não poderia estar acontecendo. Não agora.
– Onde está Suricata?
– No apartamento de Hunter – disse Geoff. – Caso ele volte.
Victor deixou tudo aquilo decantar por um momento. Se alguma coisa acontecesse com o dispositivo e o Comitê de Supervisão do Projeto Rukh descobrisse, a Drake Enterprises
perderia seu contrato com o departamento de defesa. E então as investigações começariam.
– E você cuidou do...
– Não se preocupe – disse o dr. Kurvetek. – Está guardado em segurança na base. É o que fizemos primeiro.
Esse era um momento em que Victor se sentia feliz por ter permitido que Octal tivesse acesso ilimitado ao Edifício B-14, mas ele ainda não queria pensar em nada
disso. Sua cabeça estava começando a doer. Era demais. Mas pelo menos o dispositivo estava seguro. Ele precisava de uma bebida.
– Cuide da casa e encontre Hunter. Ligue-me quando souber mais. Vamos manter isso sob controle. Sem mais pontas soltas.
Os dois homens deixaram a casa e Victor foi procurar seu frasco de comprimidos.
Creighton levou apenas cinco minutos para reunir os itens necessários em seu apartamento. Mesmo ele não gostando da ideia de ter que seguir em frente com isso tão
imediatamente – e ele estava mais do que incomodado por ter tido que dizer adeus para Randi – agora que tudo estava em jogo, sua adrenalina estava em alta e isso
era algo que o agradava muito.
Após carregar os dardos na arma de tranquilizante hidráulica, ele saiu para encontrar Cassandra Lillo, a mulher que ele já enxergava como sua próxima namorada.
15
Terça-feira, 17 de fevereiro
5h10
Levantei antes de amanhecer para correr. Tessa deveria continuar dormindo por mais umas três ou quatro horas e isso me daria uma chance de ficar sozinho, de pensar
nos eventos da noite anterior sem me sentir culpado em dividir minha atenção entre ela e meu trabalho.
O vento havia se acalmado, mas deixou a manhã fria o suficiente para que um moletom fosse necessário. Apesar de tudo que havia acontecido na noite anterior, após
25 minutos de corrida, senti minha mente ficando mais limpa.
Na noite passada, quando voltei para o hotel e bati na porta de Tessa, Lien-hua veio até o saguão e me disse que Tessa estava dormindo.
– Ela está bem? – eu havia perguntado para Lien-hua.
– Acredito que sim. Sim. Mas mesmo assim achei que seria melhor ficar com ela até que você chegasse.
Parecia que havia algo a mais na cabeça dela.
– Você está bem?
– Apenas processando algumas coisas. Talvez possamos conversar sobre isso amanhã. Preciso dormir um pouco. Te vejo de manhã, tudo bem?
Havia mais a ser dito, mas isso não aconteceria tão tarde da noite. Depois de eu ter agradecido novamente e dela ter voltado para seu quarto, comecei a imaginar
se Tessa teria falado algo para ela. Talvez o suicídio do fulano tenha sido mais forte do que imaginei, para Tessa. Caso fosse, meus planos para a semana teriam
que sofrer mudanças drásticas.
Quando o amanhecer chegou, uma faixa de nuvens altas flutuou por cima de mim e o sol da manhã expulsou a noite. Mas com o dia, veio o calor. Em contraste com a última
noite, parecia que Deus havia colocado o termostato do sul da Califórnia no máximo no momento em que ele mandou o sol para acordar a cidade.
Cheguei a um cruzamento e vi uma placa que indicava para o colégio Bryson Heights, e imaginei se eles teriam uma pista de corrida, ou uma trilha de exercícios. Corri
em direção à escola e descobri que eles não tinham uma pista de corrida, mas tinham um campo de futebol. E isso era uma boa notícia, pois eu poderia fazer flexões
de braço usando as traves do gol.
Encontrei as traves, pulei, agarrei a barra horizontal e a sensação de entrar no ritmo foi boa. Sobe. Desce.
Sobe.
Desce.
Quando tinha 19 anos, trabalhei por um ano como guia ecológico e me apaixonei por escalada; e o melhor jeito de se manter em forma para os penhascos era fazendo
flexões de braço. No começo, fazer algumas centenas de flexões por dia era impossível – eu mal conseguia fazer dez. Mas com os anos eu fui melhorando, e depois de
mais de quatro mil dias fazendo, as flexões eram tão naturais quanto andar.
Sobe.
Desce.
Fiz uma série de 40, tomei fôlego e então tentei fazer apenas com o braço esquerdo. A mordida do mendigo não afetou meu braço tanto quanto imaginei que afetaria,
mas a cada flexão eu podia sentir uma pontada.
Sobe.
Pensei nele. Descontrolado. Delirante. Perdendo sua vida. Tudo tão sem sentido. Tão trágico.
Desce.
Na maioria das vezes eu tento me focar no impacto positivo que meu trabalho na NCAVC tem, mas às vezes eu penso qual é o sentido disso tudo.
Sobe. A maioria das pessoas que já viveram em nosso planeta tiveram vidas curtas, difíceis e brutais e então morreram antes de seus sonhos se realizarem.
Desce. Pessoas como Sylvia Padilla e aquele homem ontem a noite e Christie, minha esposa que faleceu ano passado, levando com ela todos os nossos planos para o futuro.
Sobe. É trágico e sem sentido, mas é assim que o mundo funciona. Desce. Nós vivemos em um país onde apresentadores de televisão podem ficar animados com o resultado
de um jogo de beisebol, mas não podem mostrar emoção ou remorso quando noticiam um homicídio, um bombardeio suicida ou um estupro.
Sobe.
Desce. Esse é o nosso mundo.
Foi o suficiente com o braço esquerdo. Só consegui nove. Hora do braço direito.
Suando, suando. Hoje o dia ia ser um forno.
Toda vez que eu erguia meu queixo em direção à trave, era capaz de entrever os navios indiferentes no porto e ver a luz do sol reluzente no oceano. Sem o vento ansioso
da noite passada, o mar estava imóvel naquela manhã.
Sobe.
A Ilha de Coronado me observava da baía. A ilha era um exemplo de contrastes, com milhares de funcionários navais vivendo em quartéis de aparência anônima e, atravessando
a rua, algumas das propriedades mais caras do mundo; e claro, um dos hotéis mais luxuosos dos Estados Unidos, o Hotel del Coronado, situado a apenas 400 metros das
condições de vida espartanas da Navy SEAL Amphibious Training Base10..
Desce.
Consegui fazer 11 com meu braço direito. É meu braço mais forte, de qualquer jeito. Dava para sentir o braço queimando. Fiz quantas repetições eu pude até que meus
braços estivessem esgotados e o curativo no meu antebraço esquerdo estivesse ensopado com algo além de suor. Então comecei minha corrida novamente. Dessa vez, escolhi
um caminho que me levasse ao longo da praia.
A água ao meu lado parecia tão parada, tão mansa no nascer do dia, tão diferente de ontem à noite. Algumas ondas tímidas apareciam na superfície, apenas o suficiente
para que o oceano não parecesse uma grande placa de vidro.
E se eu não soubesse o que acontece no fundo, sob as ondulações, eu provavelmente teria uma sensação de calma. Mas eu havia praticado mergulho o suficiente para
saber a verdade: bem no fundo, debaixo das ondas, nos lugares onde a luz do sol nunca vai chegar, fica um mundo totalmente diferente. Mesmo em dias como esse, quando
a superfície parecia pacífica e serena, correntes escuras, rápidas e fortes serpenteavam infinitamente pelas profundezas. Incansáveis. Inesgotáveis. Sempre, sempre
se movendo.
Enquanto corria ao lado do oceano paradoxal, não consegui deixar de pensar na minha caminhada com Tessa ontem à noite.
Tanto assustador quanto bonito.
Então pensei no suicídio do fulano.
Eu estava a apenas um ou dois quilômetros dos trilhos do trolley onde ele morreu. Decidi dar uma passada no local para ver se eu reparava em algo diferente sob a
luz do dia.
Enquanto cruzava o Kenneth Boulevard, consegui ouvir a Linha Laranja se aproximando, então soube que os trolleys estavam funcionando novamente.
A vida continuava.
Logo as pessoas de San Diego estariam ouvindo seus tocadores de mp3, bebericando seus lattes e decidindo qual filme assistir no fim de semana, enquanto andavam de
trolley para o trabalho, esquecendo-se da mancha escura nos trilhos sob eles.
Só mais seis quarteirões. O sol estava queimando. O dia havia chegado com força total. Provavelmente alcançaríamos os 30°C hoje. Talvez mais.
A vida é um enigma para mim, com seus momentos de alegria indizível e temporadas de dor de cortar o coração – a luz do sol dançando na superfície enquanto as correntes
mortais vagam abaixo.
O sofrimento chega destruindo nossas vidas e depois vai embora, e nós damos um jeito de seguir em frente.
Ou não. Algumas pessoas não.
Dei a volta no quarteirão.
É um ato de equilíbrio. Você quer que a tragédia doa, precisa que ela doa, porque quando ela parar de doer, sua parte mais importante fica oca e dormente. Parte
de ser um humano é deixar a vida nos machucar.
Mas por outro lado, se doer demais, se você viver imerso na falta de sentido e no sofrimento, você pode se afogar. Eu vi pessoas se cansarem e vi pessoas se desfazendo
em frangalhos. Seja qual for o extremo, você perde. Eu ainda não tinha aprendido como atingir o equilíbrio em minha própria vida, mas eu sei o seguinte: toda vez
que as correntes escuras sobem para a superfície, elas levam um pouco do meu otimismo com elas de volta para o abismo.
Só mais três quarteirões.
Faltando dois quarteirões, comecei a sentir o cheiro de madeira queimada. Faltando um quarteirão, vi uma camada escura de fumaça pairando sobre o pavimento. Não
pode ser.
Cheguei na esquina da K Street com a 15th e congelei. Senti minha pele úmida e fria, mesmo com o sol do dia me fritando.
A fumaça cinza manchava a manhã, subindo numa espiral, vindo da casca enegrecida de um sobrado carbonizado mas ainda estruturalmente intacto.
A casa estava exatamente do outro lado da rua de onde o mendigo havia aparecido na noite anterior – a menos de um quarteirão do lugar onde eu havia estacionado e
tentado prever o futuro.
Fiquei olhando para as ruínas fumegantes, tentando recuperar o fôlego, tentando entender o que isso poderia querer dizer.
Se uma multidão esteve ali antes, já tinha se dispersado e, ao invés disso, apenas alguns bombeiros parecendo cansados estavam próximos de seu caminhão. Ao lado
deles, reparei em Lien-hua e na tenente Aina Mendez andando em direção aos escombros da casa.
Depois de dar uma olhada rápida em uma certa parte de trilha aberta a pouco tempo, corri para me juntar a elas.
16
Baseado na quantidade de água alagando a base da casa, imaginei que a construção havia esfriado o suficiente, o que significava que o fogo havia sido apagado algumas
horas atrás. E baseado no baixo grau de dano estrutural, percebi que os bombeiros devem ter chegado ali quase que imediatamente. Talvez tenham recebido uma dica.
A tenente Mendez acenou para mim.
– Buenos días, dr. Bowers. Não achei que viria. Não consegui entrar em contato com você.
Apontei para minhas roupas.
– Saí para correr um pouco. Deixei o celular no hotel. E tenente Men-dez, já disse que meus amigos me chamam de Pat.
Ela acenou educadamente.
– Sí, dr. Bowers.
Encontrei Aina pela primeira vez três semanas antes, quando vim para San Diego por um dia para fazer uma avaliação inicial do caso. Gostei dela de primeira. Ela
me pareceu esperta, experiente e, o mais impressionante de tudo, de mente aberta. Na maioria das vezes, os detetives só procuram por provas que confirmem suas suspeitas
ou que encaixem com suas “intuições”. Aina não; ela acreditava em fatos ao invés de sensações. E isso faz toda a diferença do mundo.
Apesar de ainda ser de manhã cedo, Lien-hua usava óculos escuros. Ela os levantou e olhou minha camiseta ensopada.
– Quantos você fez? – 148, no total.
– Está ficando velho, hein.
– Você não sabe nem metade.
Pedi para Aina um par de luvas de látex e as coloquei. Afinal, evidências eram evidências, mesmo que estivessem cobertas de fuligem. Então, ela acenou para dois
bombeiros descansando no meio-fio para emprestarem a mim e Lien-hua suas botas. Ele obedeceram a contragosto e nós as colocamos e seguimos Aina pelo buraco enegrecido
do que costumava ser a porta da frente de alguém.
17
– Seja quem for que começou este incêndio – Aina disse, – o fez logo após os policiais terminarem de analisar a cena do suicídio do fulano. Estamos calculando duas
horas da manhã como a hora em que o combustível foi aceso.
O detetive Dunn e sua equipe devem ter terminado o mais rápido que puderam para manter os trolleys funcionando. Não me surpreendia, porém. Tudo parecia muito simples:
um mendigo drogado descontrolado se jogou na frente de um trolley. Ponto. Exceto que a hora e o local do incêndio me disseram que as coisas não eram tão simples
e claras como pareciam.
– Alguma chance do incêndio ter sido acidental? – perguntei para Aina.
– Improvável. Você vai ver quando chegar no ponto de origem.
– Testemunhas? – perguntou Lien-hua.
Aina nos conduzia pela cozinha manchada de fuligem.
– Ninguém que falaria, mas não é surpresa. As pessoas nesse bairro normalmente não gostam de conversar com a polícia. Ah, mas nós conseguimos encontrar o garoto
que estava na tabacaria.
– Alguma coisa? – perguntei.
– Ele é um estudante de intercâmbio da Coreia. Conversamos com ele hoje cedo. Ele não testemunhou o suicídio e estava em seu apartamento quando o incêndio começou.
Não vejo nenhuma ligação. O dono da tabacaria também não viu nada.
Acenei com a cabeça.
– Lien-hua, me fale sobre o perfil dele. Apenas as partes importantes.
– Dói em você dizer isso, né? Pedir perfil a mim.
– Mais do que você imagina.
Aina deve ter olhado para ela com cara de dúvida porque Lien-hua explicou com firmeza.
– Pat acha que perfis são uma completa perda de tempo.
– Não uma completa perda de tempo – eu disse. – Isso faz com que muitos escritores não precisem da assistência social.
Lien-hua pisou em uma das tábuas sob seus pés com força suficiente para quebrá-la e imaginei se a tábua representava algo específico para ela. Achei melhor não perguntar.
– Bom – disse ela, – não temos nenhuma testemunha ocular, nenhuma pegada, nem outra evidência física incriminatória de nenhum tipo, portanto, ele está ciente da
análise forense. Ele é experiente, mais velho do que a maioria dos incendiários. Provavelmente uns 35 anos. Ele é preciso e exigente, tem orgulho de seu trabalho.
Possivelmente elogia as reportagens sobre os incêndios para seus amigos: “Viu aquele incêndio? O cara realmente sabe o que está fazendo.” Coisas do tipo. Ele trabalha
sozinho em todos os incêndios. Mora sozinho. Tem experiência militar.
– Experiência militar? – perguntou Aina.
– Uma grande porcentagem dos incendiários tem experiência militar. Até que eu possa provar o contrário, começarei com a hipótese de que o nosso também tem. Ele não
parece causar os incêndios por lucro ou para esconder outro crime. E como ele não ficou por perto para ver os lugares queimando, duvido que esteja fazendo pela emoção.
Ele tem outro motivo, porém ainda não estou certa do que seria.
– Não vamos esquecer do horário – eu disse. – Cada um dos incêndios, com exceção desse na última noite, foi sempre causado em uma hora em que o vento estava a menos
de 15 km/h. Isso é raro em San Diego.
– Então o que alterou seu padrão? – Lien-hua perguntou.
– Bem, agente Jiang – estalei meus dedos, – é para descobrir isso que estou aqui.
Ela balançou a cabeça.
– Você tem assistido filmes policiais demais.
Eu estava tentando pensar em uma resposta inteligente quando Aina parou na soleira da sala de estar e perguntou:
– Então, em quantos incêndios vocês já trabalharam? – ela dirigiu a pergunta para nós dois.
– O suficiente – respondi.
– Não muitos – respondeu Lien-hua. – Minha especialidade são homicídios em série.
– Bem – disse Aina, – algumas coisas básicas. Se pudermos identificar a direção e a propagação do fogo, nós conseguimos reduzir os locais possíveis de sua origem
– Ela apontou para a parede. – O calor se transfere das chamas para a superfície das paredes e do teto. Quanto mais longe as chamas se movem a partir do combustível,
menos calor elas têm, e vão causar menos danos.
Os olhos de Lien-hua varreram o quarto como sensores silenciosos. Sensores belos e escuros, misteriosamente convidativos. Então ela apontou.
– Aqui o papel de parede está chamuscado e soltando... – ela entrou no quarto ao nosso lado, olhou para as paredes novamente. – Mas aqui, o papel de parede na mesma
altura foi destruído, e o fogo devorou até o forro de gesso. Então, esse quarto provavelmente está mais próximo do local onde o fogo começou.
Eu adoro observá-la trabalhando.
Na verdade, eu não ligo de observá-la fazendo não importa o quê.
– Sí – disse Aina. – é claro, outros fatores podem afetar o fluxo do calor: os materiais do prédio, disposição do quarto, fluxo de ar e assim por diante, mas a extensão
dos danos de superfície é uma das primeiras coisas que verificamos.
Ao fazer nosso caminho através da casa morta, me veio na cabeça a noção de como o trabalho de Aina era igual o meu. Ambos avaliamos a evidência, estudamos o modo
como algo se move através do espaço e do tempo, e então usamos o que conhecemos sobre padrões para apontar o ponto de origem. Ela estuda o fluxo e o movimento de
fumaça e chamas; eu estudo o fluxo e movimento de pessoas. Mas o princípio continua o mesmo. O segredo para se resolver um caso resume-se a tempo e localização.
Escutei um toque de celular. Aina olhou para baixo, puxou o telefone de seu cinto.
– Com licença, preciso atender. Vocês dois, deem uma olhada por aí. Volto em um minuto.
Lien-hua e eu pisamos cuidadosamente sobre algumas tábuas enegrecidas. Aproximadamente todos os suportes estruturais e batentes de porta ainda estavam no lugar,
mas a maioria deles estava parcialmente chamuscada pelas chamas. Dirigi a atenção de Lien-hua para o teto nos dois lados de um batente.
– Vê como apenas um lado está coberto de cinzas?
Ela andou para frente e para trás sob o batente da porta, examinando o teto em cada lado.
– Sim.
– Gases flutuantes movem-se pelo ar de um modo similar ao jeito que a água flui descendo por um rio – eu disse. – Quando a água encontra uma pedra, ela passa em
torno dela, e então um pouco da água rola de volta em direção à pedra.
– Você fala como se tivesse sido guia de ra?ing.
– Acertou em cheio.
– Isso é chamado de turbilhão, certo?
Concordei com a cabeça.
– Às vezes os turbilhões são tão fortes que a água acaba fluindo ao contrário. Isso é o que acontece quando gases quentes passam através de um edifício. Quando o
gás passa através de uma porta, um pouco dele rola de volta em direção ao teto, criando um turbilhão de ar que consome a madeira mas deixa um resíduo de cinzas.
Identificando esses turbilhões, nós podemos trabalhar de trás para frente através de uma estrutura...
– Para encontrar a fonte do incêndio.
– Correto.
Passamos por diversos outros cômodos, Lien-hua cautelosamente observando os turbilhões sobre os batentes das portas, trabalhando com acuidade surpreendente, nos
levando para um cômodo na parte de trás da casa. Pelas evidências que havia visto até então, concordei que esse cômodo era provavelmente a fonte do incêndio.
– Nada mal para uma criadora de perfis – eu disse.
– Sim. Bom, essa coisa ambiental também não é tão complexa. Talvez eu deva escrever um livro sobre isso.
– Touché.
A eletricidade da casa estava desligada, mas a luz do sol entrando pela janela era suficiente para enxergarmos dentro do quarto. Percebi que o vidro nas molduras
da janela ainda estava intacto.
Com um olhar animado, Lien-hua percebeu uma linha subindo a parede em direção ao teto.
– Essas marcas aqui, o que significam?
– Foi a pluma de fogo11. que as causou. Normalmente, quando você as encontra, quer dizer que está próximo do ponto de origem.
Ouvi os passos de Aina vindo da porta.
– Muito bom, dr. Bowers – disse ela. – Quando um incêndio é começado contra uma parede, a parede faz duas coisas: ela reflete o calor e não permite que o ar mais
frio escape das chamas. Isso cria chamas maiores do que um fogo similar com a mesma taxa de emissão de calor localizado no meio de uma sala. Nos cantos, o efeito
é ampliado, criando uma pluma de fogo mais alta ainda. Vê como o chão diretamente abaixo da pluma está consumido? É aí que ele colocou o acelerante.
Examinei o cômodo.
– Mas esse quarto não está extensivamente danificado, nunca alcançou envolvimento total. Diferente dos pontos de origem de outros incêndios.
– Isso é porque ele usou um acelerante diferente dessa vez, provavelmente gasolina.
Lien-hua parecia confusa.
– Como você sabe?
– A gasolina cria labaredas, queima muito rápido – Aina disse. – Ele devora todo o oxigênio no cômodo antes que o resto dos materiais esteja quente o suficiente
para pegar fogo. É um jeito desleixado, de principiante, para se começar um incêndio. Nos filmes, os incendiários jogam gasolina por todo lado, atiram um fósforo
e boom! Mas não é assim que os profissionais fazem. Para começar um incêndio de verdade, você precisa de um combustível que queime por mais tempo.
– Lien-hua – eu disse, – você tem certeza que nosso incendiário está trabalhando sozinho?
– Certeza, não – ela disse. – Mas até agora tudo aponta para isso.
– Nós já sabemos alguma coisa sobre os acelerantes dos outros incêndios? – perguntei para Aina.
Ela balançou a cabeça.
– Ainda não. Os cromatogramas foram inconclusivos. Estamos rastreando compras de acetona e de álcool desnaturado nos dias anteriores a cada incêndio, mas até agora,
nada sólido.
Olhei o cômodo. Para fora da janela eu tinha uma linha direta de visão para a esquina que o fulano dobrou antes de ter pulado no capô do meu carro alugado. Olhei
para o ponto de origem do incêndio novamente.
– A localização do fogo no quarto não está certa também – eu disse.
– No voo vindo de Denver, eu dei uma olhada nos diagramas dos edifícios que você me mandou, Aina, aqueles dos outros incêndios, e o nosso incendiário gosta de usar
respiradouros, escadas, janelas, o fluxo natural de ar do edifício para manter o oxigênio do incêndio alimentado. Mas o cara de ontem a noite começou o incêndio
ao longo de uma parede exterior, sem considerar o fluxo de ar – Apontei. – Ele nem mesmo abriu a janela. Levando em conta a mudança de acelerante e o ponto de origem
ineficiente...
– Não é o mesmo cara – disse Lien-hua.
– Era o que eu estava pensando também – disse Aina.
A evidência nessa cena certamente parecia apontar para um infrator diferente, mas eu não estava convencido.
– Ainda assim, a localização dessa casa faz muito sentido em relação aos outros incêndios. Isso que me pegou. Se não foi ele, como o cara da noite passada sabia
que deveria causar o incêndio nessa rua?
– Coincidência? – disse Aina.
– Eu não acredito em coincidências – eu disse.
Ela deu um tapinha em seu telefone.
– Preciso ir. Encontramos a pessoa que chamou os bombeiros. Eu gostaria de falar com ela. Voltarei a entrar em contato com vocês.
Lien-hua e eu acenamos com a cabeça, Aina partiu, e por alguns minutos nós demos uma olhada no cômodo. Finalmente, eu disse:
– Estou realmente perplexo. Nós temos o tipo certo de crime, a localização correta e um horário que se encaixa no progresso escalar da série, 14 incêndios causados
pelo mesmo cara, e agora, repentinamente, um incendiário diferente aparece?
– Não faz sentido, né?
– Não. Ou é isso, ou está me faltando um grande pedaço do quebra-cabeça.
– OK. Vamos pensar em tudo novamente – ela sugeriu. – Reconstruir o que aconteceu.
– Ótimo – eu disse. – Baseados no que sabemos, existem dois incendiários. Então, por enquanto, vamos dizer que somos nós dois.
– OK – ela disse. – Somos só nós dois.
O jeito que ela disse aquelas palavras me fez parar. Eu queria perguntar algo a ela, mas não sabia como colocar em palavras.
– Espere – eu disse. – Antes de começarmos. Tinha alguma coisa que você queria me falar na noite passada. Na frente do quarto da Tessa.
– Agora não é hora, Pat – ela disse. – É a Tessa? Tem algo de errado?
– Não, não, não. Nada desse tipo. Eu só preciso resolver algumas coisas. Eu não deveria ter falado nada. Vamos esquecer isso, tudo bem?
Eu queria pressioná-la, fazer com que ela me dissesse mais, mas sabia que isso a faria ficar menos disposta a se abrir.
– Tudo bem – eu disse. – É justo.
Então, voltamos aos negócios.
– Agora – ela disse, – vamos reconstruir esse crime.
18
Lien-hua imitou alguém jogando gasolina pelo chão, e então acendendo.
– Então nós não temos experiência, não sabemos o que estamos fazendo. Nós começamos o incêndio e então o que? Talvez esperamos alguns minutos para ter certeza que
está queimando?
– Sim, acho que sim.
– Então aonde vamos? Como nós saímos?
Estudei o cômodo.
– Bom, nós não queremos ser pegos... Dá para ver a porta da frente muito facilmente do cruzamento e da tabacaria do outro lado da rua. A porta da frente seria muito
arriscado.
– Então vamos para a porta dos fundos – Lien-hua conduziu-me através da casa. Na verdade, a casa era pequena o suficiente para que houvesse apenas um caminho. Seguindo-a,
examinei cuidadosamente o chão enegrecido para ver se o infrator havia deixado alguma pegada ou impressão digital nas cinzas, mas havia ao menos seis diferentes
padrões visíveis de marcas de pisada, além daquelas que correspondiam às botas que pegamos emprestadas. As impressões digitais devem ter sido deixadas pelos bombeiros
ou pelos oficiais do MAST que analisaram a cena. Precisaríamos fazer muitos testes para descobrir se alguma das pegadas não pertenciam a ninguém dali. Olhei para
elas cuidadosamente.
– E o recipiente de gasolina? – eu disse. – Nós deixaríamos aqui ou levaríamos conosco?
– Somos novos em incêndios, então talvez não tivéssemos pensado nisso antes de começar o fogo... Ou talvez somos descuidados e a jogamos do lado de fora... Claro,
nós poderíamos ter usado um recipiente plástico e então atirado ele no fogo... Ou poderíamos...
– Acho que não estamos prontos para esse tipo de pergunta, ainda – eu disse. – Muitos “poderíamos”. Precisamos de mais evidências...
– E menos conjecturas – disse ela, completando o meu pensamento.
– Oh, eu já havia dito isso antes?
– Uma ou duas vezes.
Com a minha mão coberta por uma luva, forcei a porta dos fundos e reparei na fita amarela de cena de crime pendurada, solta na manhã sem brisa, cercando a propriedade
em um perímetro de uns quatro metros.
Lien-hua deve ter me visto observando o local com a fita amarela, pois ela disse:
– Aina me disse que seus criminalistas já analisaram a cena, tudo que está dentro da fita. Não encontraram nada.
A maioria das agências de polícia usa os termos “unidade de investigação de cena do crime” ou “técnico de ciência forense”, mas em alguns lugares, especialmente
em outros países, o termo “criminalista” é mais comum. Seja como for, eu normalmente fico impressionado, não pela quantidade de evidências que a equipe detecta,
mas pela quantidade que eles ignoram.
– Eles checaram do lado de fora da fita? – perguntei.
– Fora dela?
Apontei para a fita policial amarela.
– Você não acha conveniente demais que a cena do crime seja exatamente do mesmo tamanho que a área abrangida por esses postes de telefone?
– Eles foram práticos.
– Sim, foram. Mas uma cena de crime é definida pela natureza das evidências do crime e pelas características físicas do próprio local, não pela posição dos postes
de telefone mais próximos. – Opa, eu estava começando a falar como numa palestra. Eu precisava evitar isso.
– Está certo.
Olhei para além da fita para ver se nosso incendiário inexperiente poderia ter jogado o recipiente de gasolina pela colina.
– Você ficaria espantada com quantas vezes eu encontrei uma arma de crime apenas alguns metros fora da fita policial. Mas as pessoas raramente pensam em olhar lá
porque não é parte da “cena do crime”.
Ela me acompanhou além da fita, na colina empoeirada que subia numa leve inclinação além da casa.
– Então a fita na verdade dificulta a investigação – disse ela, pensativa. – Nós não vemos a evidência porque estamos procurando no lugar errado. É um ponto cego.
Um ponto cego.
Sim.
– Lien-hua, se nós fôssemos os incendiários, onde estacionaríamos? Ela apontou.
– Do outro lado da colina?
Corri até o topo. Minha cabeça estava a mil.
– Acesso ruim. Muita iluminação da rua, muito trânsito. E nós não estacionaríamos a oeste daquela casa ali, pois ela fica muito próxima, a varanda está a apenas
10 ou 12 metros de distância. Então poderíamos ter estacionado no beco, do lado leste.
– Ou talvez não – suas palavras chamaram minha atenção, e vi que ela estava apontando para um par de luvas de couro jogadas a cerca de 15 metros de distância, ao
lado de uma trilha desgastada que levava a outra pequena colina.
Me juntei a ela ao lado das luvas. Eu não tinha um recipiente para guardar evidências comigo, mas me inclinei para perto delas. Cheirei.
– Gasolina – eu disse.
– Tire suas luvas – disse ela.
– Por que?
– Entre no jogo. Tire-as e jogue-as no chão.
Enquanto eu tirava as luvas, Lien-hua me observava pensativa.
Quando as duas luvas estavam no chão, ela disse:
– Então ele tira uma luva, e depois a outra, assim como você fez. Percebe como cada luva caiu, uma de cada lado seu? É natural. Então ele estava caminhando aqui,
entre as luvas de couro, indo para o norte.
– Bom trabalho – eu disse. Então pensei na maneira como tirei as luvas. – E isso também quer dizer que ele tocou a parte de fora da segunda luva com as pontas dos
dedos e o dedão da mão sem luva enquanto a tirava. Se suas mãos estivessem suadas o suficiente por usar luvas ou pelo calor do fogo...
– Nós podemos ter digitais.
– Pegue o telefone – eu disse. – Peça para Aina trazer os criminalistas de volta.
Lien-hua pegou seu celular e enquanto falava com Aina, segui a trilha sobre a colina e descobri que ela terminava em uma longa ravina irregular, coberta de arbustos.
Eu estava olhando por cima da ravina quando Lien-hua juntou-se a mim novamente.
– Espero – ela disse, apreensiva, – que você não esteja pensando em fazer uma busca em tudo isso.
Acenei com a cabeça.
– Nós precisaríamos de mais olhos. Vamos deixar a equipe de Aina trabalhar na ravina.
Eu congelei.
Mais olhos. Um ponto cego.
Estamos procurando no lugar errado.
Eu estava começando a sentir as engrenagens trabalhando na cabeça.
– Lien-hua, o que é diferente nesse crime?
– O infrator. O acelerante.
– Sim, mas não o local. O local está certo. Então nosso incendiário em série não causou o incêndio da última noite.
Ela parecia surpresa por eu estar repetindo o que já havíamos concluído.
– Essa é a nossa teoria, sim.
Fatos. Fatos fazendo sentido.
– Porque outra pessoa causou.
– No que você está pensando, Pat? Onde você está indo com isso?
– De alguma maneira, os crimes estão ligados. Se conseguirmos encontrar o cara da noite passada, ele pode nos levar ao causador dos outros incêndios. É como você
disse, estamos procurando no lugar errado... Quais são algumas das razões que fazem certos crimes já iniciados não poderem ser concluídos?
– Bom, resistência da vítima, atividade policial, interrupções naturais. Não estou entendendo onde você quer...
– Certo – virei-me em direção à casa. – Interrupções naturais.
Ela se esforçou para me acompanhar. Ela era esperta e eu sabia que me acompanharia.
– Então – ela disse, – você acha que talvez o incendiário em série tenha sido interrompido pelo suicídio do fulano?
– Sim. E então alguma outra pessoa veio para terminar o trabalho – eu já estava descendo a colina, a essa altura. – Preciso conferir uma coisa.
Sim, sim, sim.
Saídas e entradas.
– Pat? – ela estava me seguindo. – Está tudo bem?
– Não, não está – eu disse. – A tigela está no caminho.
– Do que você está falando?
Corri ao redor da casa até a parte da frente.
– Você está com seu computador aí?
– Não, ficou no hotel. O que está acontecendo...
– Temos que ir. – Minha mente estava estalando, as peças encaixando--se nos lugares certos. Joguei minhas botas emprestadas, peguei meus calçados. – Agora.
– Pat, o que você viu? – ela me alcançou. Calçou os sapatos. – O cara deixou mais alguma coisa para trás?
– Sim.
Ela destrancou o carro e pulamos para dentro.
– O quê?
– Um mapa.
19
Mesmo sendo gentil e delicada, quando Lien-hua está com pressa, ela dirige como Jackie Chan depois de beber muito café.
Mas, admito, eu gosto.
Contanto que o carro tenha airbags.
Viramos a esquina voando e tive que me segurar no painel para evitar trombar na porta.
– Você precisa se explicar – disse ela. – O que você quer dizer com ele deixar um mapa? E por que estamos com pressa?
– Você tem um bloco de anotações?
– Deve ter um no banco de trás.
Agarrei seu bloco de anotações e comecei a calcular quantos algoritmos de perfil geográfico eu podia fazer à mão livre, mas equações algébricas nunca foram minha
especialidade. Eu realmente precisava do meu computador.
– Então, por que tanta pressa?
– Porque eu não sou tão inteligente quanto finjo ser. Eu preciso do meu computador antes que eu perca minha linha de raciocínio. Acho que posso conseguir uma foto
do primeiro incendiário.
– Como? O que está acontecendo?
– A tigela está no caminho.
– Por que você fica dizendo isso? O que isso quer dizer?
– Você conhece mapeamento cognitivo, certo?
– Claro. É como as pessoas visualizam seus ambientes. Todo mundo cria imagens mentais das estradas que pegam, as rotas por onde viajam, distâncias estimadas entre
pontos num mapa. Coisas do tipo.
– Certo. Mas os mapas mentais são distorcidos por...
– Barreiras e familiaridades. Sim, eu sei. Comportamentos, experiências passadas e a sensação de conforto em diferentes localidades distorcem nossas percepções de
distância e espaço. E nós superestimamos as distâncias entre dois pontos quando barreiras naturais ou feitas pelo homem aparecem – coisas como rios, montanhas, pontes,
shoppings.
– Uau. Eu não conseguiria ter dito melhor.
– Eu sei. Estava parafraseando você em seu livro. As palavras que você escolheu eram muito enfeitadas. Tive que mudá-las.
Limpei minha garganta suavemente.
– Meu ponto é que todos nós criamos mapas cognitivos sem ao menos estarmos cientes disso, mesmo aqueles que são incendiários em série. E estádios esportivos são
enormes barreiras mentais. Então, pela proximidade com os incêndios, o Petco Park mudaria o jeito do incendiário ver a cidade em sua mente e mudaria a dinâmica do
perfil geográfico.
– Então é isso a tigela?
– A grande tigela de salada, sim. Veja só, eles estavam servindo lombo de porco com manga e abacaxi e eu tive que pedir duas saladas... ah, esquece, é uma longa
história. Podemos ir mais rápido?
– Não sem comprar uma passagem de avião. Como você vai nos conseguir uma foto do incendiário?
– Já chego nisso. Escute, assim que você me deixar, preciso que ligue para Aina, veja se ela pode nos encontrar. Se não puder, peça a ela os códigos de acesso aos
vídeos feitos nas estações mais movimentadas da cidade – estávamos entrando no estacionamento do hotel. – Entendeu?
– Sim.
– Vou precisar procurar nos bancos de dados, não apenas ver as imagens ao vivo.
Lien-hua freou na entrada do hotel.
– OK, mas eu não tenho certeza se entendi...
– Te encontro no meu quarto assim que você tiver estacionado – pulei do carro.
Então, carregando o bloco de anotações dela, corri para o elevador, esperando que pudesse conseguir decifrar minhas anotações e fórmulas quando finalmente estivesse
com meu computador na minha frente.
Pegar Cassandra havia sido mais fácil que Creighton esperava. Ela mal havia resistido. E, assim que chegaram ao armazém e ela recobrou a consciência, ela se comportou
de modo exemplar.
Sim. A últimas duas horas haviam sido muito produtivas. Creighton quase tinha material suficiente para finalizar o vídeo. Então, tudo o que ele tinha que fazer era
concluir a edição e fazer a ligação que colocaria tudo para funcionar.
Ele mal podia esperar.
A antecipação da morte vindoura dela, e de sua própria, fez seus dedos tremerem de excitação.
20
No meu quarto de hotel, abri os arquivos de computador nos quais eu estava trabalhando ontem de manhã, quando eu tinha começado a comparar os dados geográficos e
demográficos com os horários e a progressão dos incêndios.
Eu estava no caminho certo, só havia errado, bem... o caminho.
Eu estava digitando minhas anotações quando Lien-hua bateu na porta.
– Está aberta – eu disse.
– Aina não pode vir – Lien-hua estava com seu computador. Ela sentou na beirada da cama e abriu seu laptop. – O cara que ligou para os bombeiros era uma pista falsa,
mas ela está ocupada avaliando os possíveis sistemas de ignição dos incêndios anteriores. Ela me deu os códigos.
– Ótimo. Vou precisar deles em um minuto – cliquei em um dos ícones na minha tela e um mapa apareceu, com cada um dos locais de incêndio marcados por uma pequena
chama piscante. – Vê a localização dos incêndios? – pressionei algumas teclas e uma série de linhas vermelhas apareceu circundando a cidade, destacando as ruas e
estradas de San Diego. Tracei uma delas com o dedo. – Estradas.
– Ah, é isso que as linhas são?
– Desculpa. Vou tentar parar de afirmar o óbvio. – Virei a tela para que ela pudesse ver. – Agora, se você olhar para a distribuição dos incêndios, o que você percebe?
Ela estudou o mapa cuidadosamente mas balançou a cabeça.
– Nada.
– Eu também não, até... – acessei as rotas de trolley e as sobrepus ao mapa dos locais dos incêndios. Mais algumas tecladas e meu programa de mapeamento calculou
as distâncias entre os incêndios e as estações de trolley mais próximas, e retornou os valores totais no canto inferior esquerdo da tela.
– Viu? Todos os incêndios ocorrem dentro de um raio de 200 metros de uma parada de trolley, normalmente da Linha Laranja ou da Linha Azul.
Ela deu um leve suspiro de quem entendeu.
– Ele está causando os incêndios e então pegando o trolley para ir embora.
– Eu acho que sim. Vamos checar os horários. Olhe o cronograma dos trolleys para mim e vou compará-lo com os horários dos incêndios.
Ela navegou até o site do transporte público de San Diego e leu os horários de chegada e de partida dos trolleys, e eu os digitei. Pressionei Enter.
Um cruzamento de linhas apareceu junto a um detalhado diagrama de horários do lado direito da tela.
– Os horários batem – eu disse.
Ela deu um assobio longo e suave.
– Então, com exceção do incêndio da noite passada, cada um dos outros incêndios foi reportado entre cinco minutos antes de uma partida programada de um trolley e
oito minutos após o trolley ter partido. Quanto demoraria para se andar 200 metros? – ela perguntou.
– Não sei. Talvez de três a cinco minutos. Nós também temos que considerar o tempo que demora para o incêndio se desenvolver, ser percebido e ser reportado. Nós
podemos arrumar alguns policiais para percorrer as distâncias para confirmar o tempo. Mas parece que ele não estacionou. Ele desembarcou.
– Então, se é assim que ele está fugindo... – Então ela entendeu. – Os códigos de acesso.
– Isso – eu disse. – Todas as estações de trolley são monitoradas por vídeo. Vamos ver se nosso incendiário é fotogênico.
21
Naveguei até o Arquivo Digital de Vídeos do transporte público da cidade e fiz o login com os códigos de acesso que Lien-hua conseguiu com Aina. Me incomodou saber
que o material mais antigo havia sido apagado, então apenas os últimos seis meses estavam disponíveis. Isso nos deixava com apenas oito incêndios, e eu não tinha
certeza se isso seria suficiente, mas baixei os vídeos das estações de trolley correspondentes à hora e aos locais desses oito incêndios e resolvi tentar. – Isso
me dá uma boa chance de experimentar um dos novos brinquedos que Terry está desenvolvendo – eu disse. – Você o conhece, né? Terry Manoji, meu amigo da NSA12..
– Nos conhecemos – disse ela friamente.
– Você não gosta dele?
– Ele me cantou uma vez, numa conferência. Disse que eu lembrava alguém que ele conhecia, “uma semelhança incrível”. Não é algo que se diz para uma garota.
– Pelo menos ele tem bom gosto.
Ela não sorriu.
– Não se preocupe. Ele me disse que está saindo com alguém. Ainda não a conheci, uma mulher da costa oeste. Enfim, ele me mandou esse novo programa que ele está
desenvolvendo. Observe. Chama-se ÍCARO.
– O que significa?
– Inventário de Características Avaliadas para Reconhecimento Objetivo. Ela balançou a cabeça.
– O governo economizaria milhões todo ano se não perdesse tanto tempo inventando acrônimos.
Abri o programa e acessei o menu do arquivo. Lien-hua não parecia muito impressionada.
– Parece um programa de reconhecimento facial.
– Está mais para reconhecimento de identidade – eu estava me animando. Era bom estar progredindo em um caso. Tudo que eu queria fazer era encontrar esse cara e então
eu poderia passar um tempo com Tessa.
E talvez um pouco com Lien-hua.
Quem sabe?
– Esse programa combina estruturas e características faciais, do mesmo que jeito que programas de reconhecimento facial normais, mas também avalia altura, peso,
passada, postura, comunicação não-verbal e padrões de movimento espacial. Até reconhecimento de voz, se tivermos o áudio. Além disso, ele amplifica o efeito Sagnac13.
para bloquear o rastreamento GPS da localização do usuário. É para operações de campo, ainda está em fase de testes. Esta é a única cópia, mas pelo que tenho visto
até agora...
Meu computador apitou e mostrou sete rostos em painéis separados na tela.
Porém, nenhum deles parecia em nada um com o outro.
Um homem parecia ser um transeunte, o outro, um executivo de negócios, o terceiro, um homem de jeans com uma saliente barriga de cerveja, e os quatro outros homens
pareciam singulares também. Barba, sem barba. Cabelos loiros ondulados, cabelos pretos. Todos tinham a altura similar, mas parava por aí.
– Primeira tentativa, pra fora – disse Lien-hua. – É uma pessoa diferente a cada vez.
– Eu... eu não entendo – murmurei.
– Talvez o programa não seja tudo o que parece ser.
Ou talvez eu tenha ponderado impropriamente a importância de alguns valores de característica significantes.
– Espere, deixe-me tentar uma coisa – digitei no teclado e acessei o índice de similaridade, alterando alguns valores.
Os mesmos homens apareceram.
Olhei no bloco de anotações, então digitei algumas alterações no
índice do ÍCARO e apertei Enter.
Novamente, os mesmos homens.
Eu estava pronto para me desfazer de toda a ideia, mas então percebi algo.
– Calma aí, Lien-hua – pressionei um botão e os vídeos começaram a rodar em câmera lenta, o contador de tempo piscando sob cada imagem. – Ali.
Ela estudou a tela.
– O quê?
Pressionei o botão de pausa, e então o Play novamente.
– Olhe.
– O que é?
– Só um segundo – ajustei a nitidez e a saturação das imagens para que ficassem menos granuladas, voltei para o começo e apertei Play novamente. Ela continuava confusa.
– Você quer que eu mostre isso no...
– Espere – ela estudou os vídeos cuidadosamente. – Entendi. Disfarces, certo?
– Sim.
– E supinação no pé esquerdo? – ela disse.
– Acho que é assim que se chama... quando ele dobra o pé para dentro quando anda?
– Sim – ela respondeu. – Isso é supinação. Quando o pé dobra para fora, é chamado pronação. – Então ela acrescentou – eu sofro de pronação.
– Não vou contar para ninguém, prometo.
– Que gentil – ela esticou o braço por cima do meu colo e apertou Enter para ver os vídeos novamente. – Sim – disse ela, – no caso dele é muito pronunciado. Talvez
de alguma lesão antiga. Tornozelo quebrado, ou algo do tipo.
– Espere um pouco – apontei para um dos vídeos na parte de baixo da tela. – Esse cara está mancando da perna esquerda, e esse não está.
– Você pode fingir que está mancando – ela disse, – mas você não pode fingir que seu pé dobra quando o levanta depois de dar um passo, ou talvez até possa, mas quase
ninguém pensaria nisso. – Lien-hua balançou a cabeça.
– Ufa. Você pode ficar surpreso, mas eu estou acompanhando tudo. Porém, eu preciso dizer, você está me falando que seu computador acha que é o mesmo cara por causa
do jeito que o pé dele se dobra quando ele anda?
– Pelo jeito que ele anda, pela relação espacial com outras pessoas nas estações, horários de chegada comparados com a distância entre as estações e os incêndios,
similaridades faciais, comprimento do braço, estrutura óssea...
– OK, entendi.
– Então – eu disse, – precisamos encontrar um cara que quebrou o tornozelo esquerdo, gosta de usar disfarces e mora – apontei para a zona de perigo – dentro desse
raio de dez quarteirões.
– Não tenho certeza se isso reduz muito a busca, Pat. Deve ter pelo menos umas oito mil...
– Experiência militar – murmurei. – Você disse que ele tinha experiência militar, certo?
– Sim, mas aqui é San Diego, metade das pessoas na cidade são empregadas pela Marinha ou trabalham como subcontratados do Departamento de Defesa.
– Mas quantos deles são profissionais em queimar edifícios? De repente, ela percebeu onde eu estava querendo chegar.
– Treinamento com explosivos – disse ela.
– Sim. A Ilha de Coronado. Onde está a Navy SEAL Amphibious Trai-ning Base, o único lugar na costa oeste onde o governo realmente treina alguém para explodir e botar
fogo em coisas e sair sem ser percebido. Estou imaginando se nosso cara pode ser um SEAL da Marinha.
A edição de vídeos sempre demora mais do que o esperado, e com a luz do sol atravessando as janelas, havia mais reflexo do que o normal.
Além disso, o computador de Creighton havia travado uma vez antes dele ter salvo algumas de suas alterações. Tudo aquilo o atrasou, mas ele tinha quase certeza de
que ainda conseguiria terminar a edição do vídeo a tempo.
Apenas mais alguns poucos ajustes e ele estaria pronto para ser enviado para Austin Hunter, ex-incendiário e futuro terrorista.
22
Lien-hua ligou para a base dos SEALs e, após terem verificado seus códigos de acesso, foi transferida para Leslie Helprin, uma suboficial de segunda classe que trabalhava
com a divisão de registros médicos. Acontece que a suboficial Helprin era boa no que fazia. Ela levou apenas alguns minutos para localizar os registros de todos
os SEALs da Marinha que haviam sido treinados em táticas diversionistas incendiárias e foram tratados por alguma lesão na perna ou no tornozelo esquerdo nos últimos
cinco anos.
Eu digitava enquanto Lien-hua relatava a informação para mim do telefone.
– Temos 12 nomes, Pat. Dez homens e duas mulheres, além de um SEAL que deixou o serviço no ano passado por dispensa honrosa.
– Bom, nosso incendiário não é uma mulher – eu disse.
– Como você sabe?
– Postura. Porte. Distribuição de peso no seu caminhar. Então isso nos deixa com dez. Onze se contarmos o cara que saiu ano passado. Peça para a suboficial Helprin
me enviar por e-mail as fotos de seus arquivos pessoais. Vamos ver se eles se encaixam com algum rosto dos vídeos.
Lien-hua falou ao telefone novamente e então balançou sua cabeça.
– Más notícias, eles não têm fotos nos arquivos.
– Como eles não têm fotos?
Lien-hua encaminhou a pergunta e me deu a resposta da de Helprin:
– Não nos arquivos médicos, apenas nos arquivos pessoais. Mas aí é um setor totalmente diferente.
Claro que era. Típica burocracia militar.
Nosso cara estava disfarçado, de qualquer jeito.
– OK, esqueça isso por enquanto, vamos retomar isso depois. Veja se ela pode nos arrumar... espere um pouco, um deles deixou o serviço ano passado?
– Sim.
– Quando?
Lien-hua encaminhou a pergunta e então disse:
– Fevereiro.
– Os incêndios começaram em abril. Eles têm o endereço? Talvez do lugar para onde enviam a comissão dele.
Lien-hua anotou um endereço e mostrou para mim. Coloquei-o no computador e localizei.
O homem morava a apenas dois quarteirões da zona de perigo. E seu nome era Austin Hunter.
Creighton Melice anexou o vídeo de Cassandra Lillo a um e-mail para Austin Hunter e pressionou Enviar.
No geral, Creighton achou que havia feito um trabalho incrível, mas ele duvidava que Hunter apreciaria o tempo que ele havia dispensado para que ficasse tudo certo.
Creighton abriu a porta que levava para a ala principal do armazém para dar uma olhada em Cassandra. Nada de diferente. Ela estava segura.
Ela não iria a lugar nenhum.
Então ele voltou para esperar a confirmação de que o e-mail havia chegado a seu destino. Enquanto ele esperava, afiou seu canivete de 15 centímetros. Ele precisava
estar afiado – muito afiado – caso Shade o pedisse para acionar o Plano B.
23
Eu precisava confirmar algumas das minhas suspeitas antes de ligar para Aina.
Entramos em contato com a divisão de recursos humanos da Marinha e eles enviaram por e-mail, para Lien-hua e para mim, uma cópia dos arquivos pessoais e dos registros
de serviço militar de Austin Hunter. Nós dois os abrimos em nossos computadores para que pudéssemos examiná-los ao mesmo tempo.
– Então – eu disse, – serviu por 14 anos, missões no Equador, África do Sul, Afeganistão e até duas incursões na Coreia do Norte. Táticas de distração. Vigilância
secreta. Passou dois anos como instrutor de SERE: sobrevivência, evasão, resgate e escape. O cara estava com tudo. Mas então, em um exercício de treinamento, ele
fraturou a fíbula esquerda e...
– Olhe isso – Lien-hua apontou para a tela. – Parágrafo 3. A Marinha cobriu os custos de sua cirurgia e fisioterapia, mas após se recuperar, eles o removeram da
Equipe 3 dos SEALs e deram a ele tarefas administrativas.
Balancei minha cabeça.
– O cara era um dos combatentes de elite mais bem treinados do mundo e eles o colocam num cubículo para enviar faxes e transferir ligações. Eles devem ter imaginado
que ele pediria baixa assim que sua comissão saísse.
– Foi o que fez – ela estava lendo junto comigo. – Acho que a Marinha não quer se preocupar com uma antiga lesão na perna de um SEAL interferindo em alguma missão
de espionagem em algum lugar. E, é claro, após sua dispensa honrosa, ele não era mais problema para eles. Como ele não havia cumprido 20 anos de serviço, ficou sem
aposentadoria.
– E como sua lesão na perna não era uma invalidez permanente, ficou sem cobertura médica também – eu disse. – Então após passar sua vida toda como SEAL, ele abandona
as forças especiais com nada além de uma porção de habilidades intransferíveis. Digo, que tipo de emprego você arruma depois disso? Vigia noturno? Guarda-costas?
Investigador particular, talvez?
Lien-hua havia colocado seu computador de lado e olhava introspectivamente para fora das portas deslizantes de vidro do quarto do hotel
– Não um cara com esse currículo.
– Mercenário? – eu disse. – Ou talvez trabalhar para alguma empresa de segurança privada no Oriente Médio. Pelo menos ele ainda poderia explodir coisas e atirar
com armas iradas sem ter alguém fazendo uma porção de perguntas irritantes.
– Você disse “iradas”?
– Eu ouvi Tessa falando isso uma vez – Então me lembrei do que Tessa havia falado para mim na noite anterior: a sensação é boa. É o que você faz. É do que você gosta.
– Ou talvez – eu disse para Lien-hua, – Você comece a queimar edifícios civis, porque você é quem você é, e é impossível evitar isso.
Ligamos para Aina e a atualizamos com tudo o que havíamos descoberto. Todas as evidências até agora eram circunstanciais, mas pelo menos já era um bom começo.
– Vamos mandar uma viatura até a casa de Hunter – disse Aina, – para conversar com ele. Bom trabalho.
– Ótimo – eu disse. – Avise-nos quando descobrir algo. Após encerrarmos a ligação, respirei fundo.
– Bom, parece que podemos fazer um intervalo agora.
– Ótimo – disse ela. – Preciso de um banho. E preciso me livrar dessas roupas enfumaçadas.
– Tá certo. Eu preciso encontrar Tessa às dez horas em ponto lá embaixo para tomarmos café-da-manhã. Por que não vem com a gente? Talvez tenhamos alguma notícia
sobre Hunter até lá.
Ela aceitou o convite, saiu para trocar de roupa e eu fui para o chuveiro. Mas ao invés de relaxar, fiquei imaginando qual seria a conexão de Hunter com o cara que
causou o incêndio de ontem a noite – ou se realmente havia sido outro incendiário mesmo.
Creighton olhou no relógio novamente.
9 da manhã.
Ok, deve ter dado tempo.
Ele pegou seu telefone e ligou para o número de celular de Austin Hunter. Shade havia encontrado um jeito de direcionar a chamada de modo que, para Hunter, ia parecer
que a chamada estava sendo feita do telefone de Cassandra, para garantir que Hunter atenderia.
Um homem atendeu.
– Cassandra? Onde você está? Você deveria ter me encontrado...
– Não é Cassandra. – Creighton não se importava em mascarar a voz. Não importaria no final.
– Quem é?
– Me escute com atenção...
– Onde está Cassandra? Me diz...
– Me interrompa novamente e eu garanto que você vai se arrepender.
– Você trabalha para Drake, não é? É isso?
– Já chegaremos aí – Creighton prestou atenção no nome: Drake. Poderia ser Shade? Talvez. Ele poderia tratar de tudo aquilo depois, mas não agora, ele deveria seguir
o roteiro. – Preste atenção, Austin. Você deveria se encontrar com Cassandra Lillo para o café-da-manhã três horas atrás, mas ela não apareceu. Você esperou por
35 minutos antes de ir embora do Cabrillo’s...
– Cadê ela? Eu juro por D...
– Sem blasfêmia. Eu fico impaciente quando as pessoas blasfemam. E quando eu fico impaciente, coisas ruins acontecem. Verifique seu e-mail. Imagino que você esteja
com um computador.
Creighton esperou enquanto Austin Hunter pegava seu laptop. Ele ouviu a musiquinha boba enquanto ele ligava, e então o aviso sonoro indicando que o e-mail havia
chegado.
– Assista ao vídeo, Austin.
Creighton aguardou. O vídeo tinha um minuto e 52 segundos. Ele viu o tempo passando em seu relógio. Por volta dos 40 segundos, ele ouviu uma engasgada. Em um minuto,
Hunter exclamou:
– Oh, meu D...
– Eu já avisei você sobre a blasfêmia. Não vou avisar de novo. – Creighton esperou até que tivesse certeza que o vídeo havia acabado, especialmente os últimos dez
segundos. – Agora, escute com muita atenção...
– Você está mexendo com o homem errado. Assim que encontrar você...
– Eu disse escute. Toda essa interrupção está me tirando a paciência. Outra pausa.
– Deixe-me falar com ela. Preciso saber se ela está viva.
Creighton já esperava esse pedido. Ele passou pela porta, andou até onde estava mantendo Cassandra e segurou o telefone contra o vidro.
– Austin quer falar com você – ele disse.
– Austin? – sua voz estava abafada mas audível. Ela estava soluçando.
– Cassandra, onde você está?
– Por favor – ela lutava para dizer as palavras. – Por favor, Austin. Ele vai me matar...
– Cassandra!
Creighton refez seus passos até o escritório da gerência do armazém enquanto Cassandra continuava gritando, então fechou a porta e o barulho sumiu.
– Na verdade eu falei que iria matá-la lentamente. Ela esqueceu dessa última parte.
– Onde ela está? Diz para mim onde ela está, seu... – dessa vez Austin parou por conta própria no meio da frase. Ele deve ter percebido que estava deixando o homem
do outro lado da linha nervoso.
Ótimo. Isso significava que ele finalmente estava pronto para ouvir nossas condições.
– Austin, você sabe de onde vem o termo deadline? É fascinante. Antes de querer dizer “o momento antes do qual algo deve ser terminado”, queria dizer “uma linha
sobre a qual você não deve passar” – Creighton nunca falaria coisas assim. Ele seria muito mais contundente. Mas por enquanto ele queria se manter bem visto por
Shade, e como ele percebeu que de algum jeito ele estaria ouvindo, Creighton recitou o roteiro de Shade palavra por palavra. – Ninguém que passa do limite sobrevive.
Você está entendendo o que estou falando?
– O que você quer de mim? Por que você está fazendo isso? É por causa de ontem à noite? – a mudança de tom indicou a Creighton que o sr. Hunter estava se tornando
um ouvinte muito melhor.
– Se você fizer o que eu pedir até às 20h, você verá Cassandra novamente. Agora, dê uma boa olhada nesse vídeo. Se você procurar a polícia, o FBI, qualquer um, você
pode imaginar o que vai acontecer com ela. Então, 20h é o seu deadline e o de Cassandra também. E entenda que, no nosso caso, faremos valer tanto um significado
desse termo quanto o outro.
Silêncio.
– Estaremos de olho em você. Saberemos se você tentar qualquer coisa. Entendeu?
– Sim. – Nenhum medo em sua voz. Apenas intenção. – O que você quer que eu faça?
Então, Creighton contou a ele tudo o que Shade havia escrito. Como as instruções eram específicas e incluíam horários e locais de encontros, demorou alguns minutos.
Hunter ouviu silenciosamente o tempo todo, e finalmente, quando Creighton havia terminado, Hunter disse:
– OK, eu faço. Mas não dá para ser feito até às 20h. Não é tempo suficiente. E preciso fazer o reconhecimento, vigilância, eu posso precisar de explosivos... Isso
é em uma área militar segura...
– É tempo suficiente. Você dará um jeito.
– Estou te falando...
– Tudo bem, então – Creighton disse severamente. – Ela morre agora – ele abriu a porta. – Vou segurar o telefone bem perto para que você escute os gritos dela.
– Não! – gritou Cassandra.
Creighton se aproximou dela.
– E vou fazer demorar muito tempo...
– Não, por favor – ela gritou
– OK – disse Austin.
– E vou te mandar o vídeo quando eu terminar...
– Ok! Ok. Escute. Eu vou fazer, tudo bem? Só deixe ela em paz. Me prometa que vai deixá-la em paz.
– Minha promessa é essa: faça o que deve fazer até às 20h ou eu mato Cassandra Lillo e gravo cada segundo do sofrimento dela e coloco na Internet para o mundo inteiro
ver – então Creighton desligou o telefone e voltou para o escritório da gerência do armazém.
Ele iria fazer o vídeo da morte dela de qualquer jeito, é claro, mas Hunter não precisava saber disso.
Sim, a coisas estavam funcionando.
Ele largou o celular e olhou para a porta. Cassandra estava bem do outro lado. Ele não podia pensar num bom motivo para deixá-la ali, sozinha.
Nenhum bom motivo.
Então Creighton foi passar um tempo agradável com a namorada de Austin enquanto a contagem regressiva para a morte dela oficialmente começava.
24
Tessa rolou na cama supostamente confortável do hotel.
Ah, claro.
Ela mal havia dormido desde que a agente Jiang a deixou na noite passada. E aquilo era uma outra história – toda a coisa com Patrick e a agente especial Lien-hua
Jiang. Tessa não sabia exatamente o que estava acontecendo entre os dois, mas ela tinha bastante certeza de que não gostava.
A luz do sol brilhou pelas frestas na cortina. Tessa gemeu e enrolou um travesseiro em torno de seu rosto, virou para o outro lado e tentou voltar a dormir.
Não deu certo.
Ela tentou por mais alguns minutos, mas não deu em nada. Finalmente, ela suspirou, pulou da cama, esfregou as mãos no rosto e cambaleou para o banheiro. Uma completa
zumbi.
Abriu as cortinas do chuveiro.
Abriu a água.
Registro no máximo.
Tessa gostava de banhos quentes. Muito quentes. Desde que era criança. E ela e sua mãe moraram em Minnessota por dois anos. Talvez tenha sido por causa disso – os
invernos frios e os lagos congelados sobre os quais sua mãe estava sempre avisando para não caminhar. Isso, ou as noites longas e amargamente frias quando o vento
atravessava as frestas sob a janela de seu quarto. Quem sabe?
Enquanto Tessa esperava que a água esquentasse, tirou o colar que Patrick havia dado a ela de aniversário e arrancou suas roupas. Assim que o fez, ela lembrou novamente
que praticamente todos os seus amigos tinham pelo menos uma tatuagem, mas ela não tinha nenhuma. Era até meio estranho, na verdade, o fato dela ainda não possuir
nenhuma.
Talvez nessa viagem. Seria legal voltar para Denver com uma tatuagem do sul da Califórnia.
Ela colocou a mão sob a água. Ai!
OK, não tão quente.
Tessa diminuiu alguns graus da temperatura da água escaldante e entrou debaixo do chuveiro. Por alguns minutos ela apenas ficou ali sem se mover, deixando a água
acordá-la gentilmente. A sensação era muito boa. Ela respirou fundo algumas vezes, relaxou, espalhou um pouco de sabonete líquido pelos ombros, descendo pelos braços
e sobre a série de marcas retas na parte interna de seu antebraço direito.
Ela havia feito essas cicatrizes nela mesma com um estilete e uma lâmina de barbear durante o ano passado, tentando arrumar um jeito de se livrar da dor e da tristeza
após sua mãe ter morrido. O sangue sempre a deixava com nojo, mas os cortes pareciam ter ajudado. Pelo menos um pouco.
Mas desde outubro, quando esse assassino em série psicótico que se chamava o Ilusionista havia tentado matá-la, todas as outras coisas em sua vida não pareciam tão
ruins. Então, ultimamente, pelos últimos dois meses, ela havia parado de se cortar – muito. Ela imaginava que Patrick soubesse que ela ainda se auto-flagelava às
vezes, mas ele não ligou muito para isso – o que era legal, pois se ele ligasse, ela provavelmente teria feito mais ainda.
E é claro, na parte interna de seu outro braço, ela tinha a cicatriz que o Ilusionista havia feito. Aquela cicatriz a incomodava porque trazia a ela lembranças daquele
dia.
Ela passava litros de creme hidratante na cicatriz todos os dias, como a fisioterapeuta havia dito a ela. Isso deveria ajudar a cicatriz a sumir, mas não funcionava.
A cicatriz continuava lá, e as lembranças também.
A água morna caía sobre a cabeça de Tessa. Ela espalhou xampu pelos cabelos e a água os enxaguou, deixando-os pingando em mechas retas e negras ao longo de sua nuca.
Lembranças. Lembranças.
Do assassino apertando o pano contra sua boca antes mesmo dela poder gritar...
De estar deitada amarrada enquanto ele a levava em direção à casa psicótica e louca que ele havia construído nas montanhas...
Ela passou os dedos pelo cabelo. Hora do condicionador. Lembranças.
Tudo voltou à cabeça dela, então, de uma só vez. O tremor de esperança quando ela finalmente havia conseguido se soltar, e a satisfação em golpear a coxa do homem
com a tesoura, e a confusão quando o mundo fora do para-brisa começou a rodar, derrapando, e tudo girava na velocidade errada em um círculo suave e largo, enquanto
ele perdia o controle e eles se dirigiam para o penhasco.
Neve.
Estava nevando naquele dia.
A morte, o gelo e o espaço tentando alcançá-la.
Agora, ela estava no chuveiro, a água quente caindo sobre sua cabeça. Neste momento, estava girando em direção ao fim do mundo, a neve caindo ao redor dela.
No banheiro.
No banco da frente.
Ficando pé. Caindo. Acordando. Sonhando.
De volta ao chuveiro, um cobertor de vapor envolvendo-a.
De volta ao penhasco, sentindo o impacto quando atravessaram o guard rail. E então ela estava caindo, afundando no dia sem fundo, a neve engolindo tudo no mundo.
Caindo.
E então.
Uma pancada abrupta. Batendo em uma árvore no meio do caminho para o desfiladeiro. Um momento estranho quando o tempo parou para tomar um fôlego, para sentir como
seria avançar para frente novamente.
Gemidos próximos a ela. O Ilusionista dando um sorriso escuro, arrancando a tesoura de sua perna. E então.
Então.
A voz de Patrick fluindo até ela.
Foi aí que o assassino a machucou, cortou seu braço. E ela estava sangrando. Sangrando. Desmaiando, olhando a neve que derretia deslizando pelo para-brisa quebrado.
O dia estava chorando por ela. E ela estava presa em um pesadelo, deslizando para longe. Caindo novamente, mas de um jeito diferente. Caindo para sempre.
Mas Patrick veio.
Ele veio por ela e a salvou. Como um pai faria, como um herói faria, ele arriscou sua vida para resgatá-la. Escalando, esticando a mão para ela, agarrando-a bem
a tempo.
Ela nunca havia pensado sobre ele desse jeito antes desse dia. Como um pai. Como um herói. Mas era verdade. Ele se importava com ela e ela se importava com ele e
eles eram uma família. Meio estranha. Meio atrapalhada, mas ainda uma família.
Mas era confuso.
Às vezes ela se sentia como uma garotinha que queria segurar a mão dele, chamá-lo de papai; às vezes ela se sentia como uma moça pronta para se mudar e viver por
conta própria.
Presa entre dois mundos. Escorregando. Caindo.
Tessa fechou o registro e ficou parada no vapor quente, deixando a
água escorrer do seu corpo, de suas lembranças, de suas cicatrizes. Após um momento ela saiu do box do chuveiro e enrolou uma grossa toalha em torno de si mesma.
E então teve toda aquela coisa bizarra de ontem à noite. Aquele mendigo louco havia mesmo se matado bem ali, sem mais nem menos, e se ela não tivesse fechado os
olhos, ela teria visto ele morrer.
Caindo de cabeça.
Caindo e morrendo.
Tessa viu sua silhueta no espelho, um fraco reflexo, distante e emba
çado, cercado de vapor e sonhos. Por um momento, mal parecia real. Apenas uma vaga silhueta de uma garota com os cabelos pretos ensopados, sem rosto, sem emoções,
com os cantos obscuros. Em um nevoeiro. Seu reflexo dava a ela a sensação de olhar pra um fantasma.
Um Espectro, ela pensou, lembrando-se da frase do poema de Edgar Allan Poe, "Dream-Land: Onde um Espectro, chamado Escuridão, em um trono negro senta-se então"...
Poe parecia realmente entender o funcionamento da dor, e Tessa tem caminhado pela dor junto do autor desde que sua mãe morreu, lendo seus poemas e histórias de novo
e de novo, deixando suas imagens sombrias a impregnarem – o corvo e o fosso e o barril e o coração batendo. Normalmente após ler alguma coisa uma ou duas vezes,
ela conseguia lembrar muito bem, e ela se lembrava de algumas estrofes de “Dream--Land”, palavra por palavra.
Lá o viajante encontra, pasmo,
Memórias cobertas do passado...
Formas encobertas que começam a suspirar
Enquanto pelo caminhante eles vão passar...
Formas vestidas de branco de amigos da antiga
Para a Terra e o Paraíso, em agonia
Seu reflexo.
Um fantasma na forma delgada de sua mãe.
Memórias cobertas do passado.
Um fantasma à espreita na terra dos sonhos.
Tessa estendeu seus dedos contra o espelho. Pareceu estar morno contra as pontas de seus dedos, mas frio também. Ela deslizou sua mão pelo vidro e seus olhos e testa
ficaram visíveis. Mas só até aí. O resto dela continuava um fantasma, enrolado em branco, perdido em algum lugar nos cachos enevoados do vapor morno e espesso.
Presa entre dois mundos. Escorregando. Caindo.
Um corvo que não podia voar.
E então, Tessa estalou o elástico contra seu pulso, e fez de novo e de novo até que sua pele estivesse vermelha e em carne viva.
Mas isso não a ajudou em nada a se sentir melhor.
E as gotas d’água começaram a escorregar pelo espelho, como se seu reflexo estivesse chorando por vê-la ali, parada, tão triste e sozinha do outro lado do espelho.
25
Quando me sentei no saguão do hotel esperando por Tessa, pensei sobre a morte do homem na noite anterior. Havia dito ao detetive Dunn que iria desvendar as circunstâncias
cercando a morte do fulano. Eu tinha intenção de manter minha promessa.
Usando o navegador de Internet do meu celular, fiz login nos arquivos de vídeos digitais da cidade e revi os vídeos das partidas dos trolleys, mas não encontrei
nenhuma imagem de alguém com uma bolsa esportiva preta subindo em um trolley. Então, os dois homens que entraram no Mustang já estavam no local quando o fulano cometeu
suicídio.
Fiz uma ligação para o Bureau para procurar a placa do Mustang. Também deixei uma mensagem de texto para o escritório do médico forense do Condado de San Diego para
ver se ele havia conseguido identificar o fulano da noite passada, e também marquei uma reunião com o tenente Graysmith, chefe da divisão de homicídios do Departamento
de Polícia de San Diego. Eu queria descobrir mais sobre o detetive Dunn e seu interesse na morte do fulano.
Olhei pelo saguão do hotel novamente.
Nada de Tessa.
Peguei uma maçã na fruteira do balcão de registro do hotel.
Ela gosta de dormir até tarde, mas como teríamos apenas alguns dias aqui em San Diego, ela havia concordado em acordar às 9h, e isso tinha sido há uma hora.
Depois de terminar a maçã, olhei as horas e percebi que eu estava acordado havia mais de cinco horas. Por isso estava com tanta fome. Levantei-me da cadeira de couro
do lounge e já estava a meio caminho do elevador quando ouvi fortes passadas atrás de mim e uma voz rosnada e firme que reconheci imediatamente.
– Bom-dia, Pat.
– Ralph? – me virei. O agente especial Ralph Hawkins veio desajeitado em minha direção. Cumprimentei-o com um tapa no ombro e parecia que eu estava batendo em um
saco de concreto. Ralph tinha começado a levantar peso novamente, e dava para perceber. – O que você está fazendo aqui? Eu não esperava vê-lo antes da semana que
vem. Pensei que você estivesse depondo no julgamento de Basque em Chicago.
– Está uma bagunça por lá – a voz de Ralph soava como o que esperaria ouvir de um homem que pode torcer uma frigideira em volta de um burrito com as próprias mãos.
– Um verdadeiro circo. – Ralph mexia os ombros para frente e para trás, provavelmente tentando se sentir confortável na camiseta que ele obviamente havia comprado
antes de ter voltado a puxar ferro ano passado. Ele não estava na mesma forma de quando era um Army Ranger14., 20 anos atrás, antes de ter entrado no FBI, mas estava
quase. – A defesa descobriu que um dos especialistas em DNA do estado, um cara chamado Hoyt, mentiu em seu currículo. Nunca frequentou a Ohio State. Atrapalhou mais
ainda nosso caso. Atrasou as coisas por pelo menos um mês.
Senti um resquício do calafrio que senti no matadouro. Mesmo sem esse tipo de atraso, julgamentos complicados como o de Basque normalmente levavam vários meses.
Isso arrastaria as coisas por mais tempo ainda, e durante todo esse tempo, Richard Basque ficaria fora da prisão de segurança máxima. Não era uma coisa sobre a qual
eu queria pensar.
Ralph tentou segurar um bocejo. Falhou.
– Noite longa?
– Embarquei tarde, e ainda perderam minha bagagem. Você acredita que esses... – Então Ralph preencheu o ar entre nós com um conjunto de palavrões criativos e profundos,
e eu fiquei feliz por Tessa ainda não ter chegado.
– Bom, mesmo assim, é bom te ver. Brineesha está bem?
– Eu sou um homem casado feliz, ela é uma mulher paciente. Estamos bem, Tony também, acabou de fazer 11. E Tessa?
– Espirituosa. Sarcástica. Cativante.
– Bom saber.
Meu estômago roncou, lembrando-me novamente o quanto eu estava com fome. Olhei além de Ralph para o hall dos elevadores. Então lembrei.
– Espere aí, você não respondeu minha pergunta. Por que você está em San Diego, afinal?
– Margaret tem algumas reuniões por aqui. Ela...
– Margaret Wellington está vindo para San Diego? – pelo menos naquele momento havia perdido meu apetite. Margaret e eu nos damos tão bem quanto duas piranhas em
um mesmo aquário.
– Provavelmente está em Los Angeles agora – disse Ralph, – mas ela virá pra cá ainda essa tarde. Ela está em algum tipo de comitê de defesa, ou algo assim. Aposto
que tem a ver com o fato de ser diretora-assistente--executiva, e como estou chefiando a NCAVC por enquanto, ela quer me informar de algumas mudanças na política.
Ralph, Lien-hua e eu, todos trabalhamos para o Centro Nacional de Análise de Crimes Violentos do FBI, e Ralph estava servindo como diretor interino da divisão enquanto
os recursos humanos procuravam por um substituto para Louis Chenault, que havia se aposentado no primeiro dia do ano.
– Você sabe como Margaret é – ele continuou. – Ela não quer esperar até semana que vem, e como meu depoimento foi adiado indefinidamente, ela decidiu me trazer pra
cá – ele alisou sua camiseta amassada pela viagem. – Na noite passada, a Delta me disse que minhas malas estavam em Minneapolis. Eu pareço estar em Minneapolis,
Minnessota, agora?
Percebi que ele estava se preparando para uma nova rodada de palavrões, então eu disse:
– Eu ainda não acredito que deram o cargo para Margaret.
Ele parou de passar a mão pela camiseta. O elevador atrás dele fez barulho.
– A mulher mais sedenta por poder que eu já conheci. Mas não se preocupe; ela não está aqui para te ver. Duvido até que vocês cheguem a se cruzar – quando as portas
do elevador começaram a se abrir, ele deixou um sorriso malicioso surgir em seu rosto. – Além disso, estar aqui na Califórnia me dá a chance de ficar de olho em
você e Lien-hua – uma piscada. – Manter as duas crianças na linha. Se é que você me entende.
– Não – disse uma voz vinda do elevador.
– Por que você não conta pra gente? – disse a outra voz. Primeira voz: Lien-hua.
Segunda voz: Tessa.
– Oh – a voz de Ralph se encolheu ao tamanho de um rato. – Bom dia, Lien-hua. Oi, Tessa.
Os braços de Lien-hua estavam cruzados.
– Olá, Ralph. Mas que surpresa.
Uma expressão indecifrável passou pelo rosto de Tessa.
– Bom ver você, tio Ralph.
Ralph deu um tapinha no ombro de Lien-hua e deu em Tessa um meio abraço.
– Melhor eu ir atrás das minhas malas – ele murmurou. – Divirtam-se vocês, meninos e meninas – então ele caminhou pelo silêncio desconfortável e me deixou sozinho
com as duas mulheres e suas quatro sobrancelhas erguidas.
Olhei de Lien-hua para Tessa.
– Ok – eu disse. – Então, quem está com fome? Eu sei que eu estou. Faminto. Vamos pegar a fila antes que acabe o quiche – então fui com pressa para o restaurante
do hotel, imaginando como eu havia chegado ao ponto da minha vida em que eu estava realmente preferindo comer quiche se fosse necessário.
Enquanto Creighton assistia Cassandra através das câmeras de vídeo, ele pensou em aranhas rastejando por seu rosto e nos vídeos que ele havia feito de mulheres através
dos anos, e pensou em Shade.
Creighton conheceu alguns personagens meio indecifráveis nos últimos dez anos, mas esse cara, Shade, era como um fantasma. Todas as vezes que Creighton pensou que
conseguiria vislumbrá-lo: nada. Mesmo Creighton não tendo ideia do que era sentir medo, ele suspeitava que o desconforto crescente que ele sentia sempre que falava
com Shade era próximo daquilo que outros humanos sentiam quando estavam com medo.
Algumas vezes nos últimos dois meses Creighton havia pensando em ir embora, apenas desaparecer nas sombras. Mas duas coisas o mantinham ali: ele sabia que Shade
o encontraria e que o Projeto Rukh realmente existia. Todos os documentos do Departamento de Defesa que Shade havia mandado para ele em relação ao projeto eram reais.
O dispositivo existia. E por tudo que Creighton conseguiu desvendar, o protótipo realmente fazia o que Shade dizia que faria.
Edifício B-14. Essa era a chave para tudo.
Liberdade ou dor?
Dor.
E quando Creighton lembrou-se daquela palavra, ele imaginou o encontro que teria com o agente do FBI no final da semana, e pensou novamente na conclusão que Shade
ofereceu.
Tudo se fechando em um círculo. Sim. Creighton era o homem perfeito para o trabalho, afinal.
Shade queria manter o mínimo de comunicação e Creighton não estava esperando ter notícias dele até às 15h, então, após deixar Cassandra sozinha de novo, Creighton
pegou um par de algemas e treinou como escapar delas caso fosse necessário nos próximos dias.
Sim. Ele era perfeito para o trabalho, afinal.
26
Na fila para o buffet do café-da-manhã, tentei o mais rápido que pude mudar a conversa de assunto em relação aos comentários de Ralph.
– Então, por que demoraram tanto para descer?
– Banho – disse Tessa.
– Estava no telefone com Aina – disse Lien-hua. Então ela abaixou a voz. – Ela me disse que Austin não estava em casa, mas o MAST conseguiu um mandado. Aina quer
falar com você. Ela pediu para você ligar assim que puder. Eles encontraram gasolina e um kit de maquiagem profissional em um cômodo extra.
Comecei a analisar as possibilidades. Gasolina? Pensei que havíamos eliminado isso como acelerante dos primeiros incêndios. A menos que... minha mente voltou para
casos anteriores de incêndio nos quais havia trabalhado no passado...
A menos que...
Vi Tessa pegar seu prato e lembrei-me que mesmo eu já tendo passado por uma manhã cheia, a última coisa que ela provavelmente lembraria era o lombo de porco mal
passado e o suicídio do fulano na noite passada.
O incendiário pode ter misturado a gasolina com algo que a fizesse queimar por mais tempo. Poderia ser isso.
Eu estava dividido. As maiores partes de quem eu sou estavam lutando uma com a outra novamente: a parte agente do FBI e a parte pai. Eu sabia que a parte pai deveria
ganhar, e eu queria que ganhasse, mas eu não sabia exatamente como isso deveria funcionar na vida real.
Tessa estava ocupada levantando as tampas de metal dos pratos para ver o que havia para o café-da-manhã.
Salsichas.
– Eca – daí, bacon. – Só pode ser brincadeira – e finalmente, hambúrgueres. – Pra mim, chega – e dirigiu-se para onde havia frutas e doces.
Bom, ela parecia estar agindo do jeito normal. Decidi que não seria problema retornar a ligação de Aina. Enchi uma tigela com aveia e digitei o número.
– Dr. Bowers. Gracias.
– O que você descobriu, Aina?
Enchi um prato de hash browns e me dirigi às garrafas de café.
– Nenhum sinal de Hunter – ela disse. – Mas parece que alguém invadiu seu apartamento. As gavetas de suas cômodas estavam desarrumadas, mas seu talão de cheques
estava à vista no balcão da cozinha, então não acho que tenha sido um roubo. E, apesar de seu telefone e laptop não estarem lá, ele deixou para trás os cabos.
– Chaves de carro?
– Nada.
– Então Hunter saiu com pressa.
– Sí. E você estava certo quanto às luvas. Levantamos uma parcial das digitais. Não eram de Hunter. Mas...
Ele teria tirado a primeira luva com sua mão dominante, e então deixado a impressão digital com a outra mão.
– Qual luva tinha a impressão?
– A esquerda. Mas preciso te contar... – Então, o incendiário da noite passada é mais provavelmente canhoto. Então ela terminou sua frase dizendo – era a impressão
de um dos nossos policiais.
– O quê? Ele contaminou a evidência?
– Sí.
Por que isso não me surpreendeu?
– Só um minuto – exasperado, equilibrei meu telefone no meu prato. Uma das funcionárias do restaurante estava parada ao lado das garrafas de café.
– Temos o orgulho de servir café Starbucks – me disse ela com um sorriso. Não falei em voz alta, mas pensei: Starbucks é para café o que o
McDonald’s é para churrasco.
A mulher ainda sorria para mim.
– Oh – eu disse a ela o mais educadamente que pude. – Na verdade estou procurando pelo suco.
– Está bem ali, senhor.
– Obrigado – fui até lá e peguei um copo de suco de laranja. Talvez mais tarde eu conseguisse encontrar uma xícara de café que tivesse sido torrado há menos de dois
meses.
Só um minuto.
Suco.
Sim.
Suco de laranja. Agarrei o telefone.
– Aina, verifique a geladeira de Hunter.
– A geladeira?
– Vale a tentativa.
Até eu encontrar minha mesa, ela havia terminado a procura.
– O sr. Hunter deve ser viciado em suco.
– Então, ele tem algo a mais – eu disse suavemente. – Peça para um dos seus policiais verificar a lixeira mais próxima de seu apartamento. Procure por caixas vazias
de sabão em pó.
– Suco de laranja concentrado e sabão em pó – ela disse. Dava para perceber a agitação em sua voz. – Claro. Eu deveria ter pensado nisso antes. Misture os dois com
gasolina de baixa octanagem, fazendo uma pasta. Queima quente o suficiente para envolver um cômodo inteiro...
– Mas lento o suficiente para manter o oxigênio necessário para o fogo se espalhar.
– Então você trabalhou em casos de incêndio antes – ela disse.
– Em alguns.
– Cá entre nós, deveríamos ter pensado nisso antes.
– Bom, não sei se teria feito muita diferença – bebi um pouco do meu suco. – Então, se ele está com o laptop e o celular, o que sobra pra gente? Alguma correspondência
aí? Endereços de retorno, cartões postais que possamos checar?
Ouvi ela mexendo em algumas cartas.
– Só contas. Isso seria muito fácil, de qualquer maneira.
– Ok, GPS. Rastreie seu celular ou seu carro.
– Tentamos. Nada. Modelos antigos.
– Ex-mulher, noiva, namorada? Alguém com quem ele possa ter ido se encontrar.
– Estamos trabalhando nisso. Ele tem uma foto na parede dele na praia com uma mulher jovem e atraente, vinte e tantos anos, equipamento de mergulho ao lado deles.
A mão dela está apoiada em sua coxa, então parece que são mais que amigos. Verificamos seus registros telefônicos, encontramos o número com mais ligações e mandamos
alguns carros para o local. Ela é uma pesquisadora de tubarões. Trabalha para o Sherrod Aquarium. Cassandra Lillo.
– Cassandra Lillo – murmurei. – O aquário, é? Ok. Me mande por e-mail tudo que você conseguir sobre ela e me ligue de volta se você encontrar as caixas de sabão.
Quando desliguei, percebi que Tessa, que havia ficado me observando cuidadosamente, mudou seu olhar em direção a dois garotos bonitos rindo em uma mesa próxima.
Durante os minutos seguintes comi em silêncio, mas então percebi que a camiseta de manga longa de Tessa estava com as mangas puxadas, deixando exposta uma marca
vermelha e inflamada em seus pulsos, sob suas pulseiras.
– O que aconteceu com seu pulso, Tessa?
Ela esticou as mangas de volta para o lugar.
– Nada.
Durante o ano passado, Tessa sofreu com problemas que envolviam o fato dela se cortar, e eu imaginei se talvez os estalos de elástico eram um jeito dela tentar parar
com o hábito, do mesmo jeito que fumantes começam a mascar chiclete ao invés de fumar. Mas ainda era um hábito ruim, e obviamente, como o pulso dela estava em carne
viva, ela estava levando isso longe demais.
– Você precisa parar de estalar tanto o elástico no seu pulso. Você está se machucando.
– Eu estou bem.
– Só estou dizendo...
– Eu estou bem!
Lien-hua, que estava comendo silenciosamente ao nosso lado, limpou a garganta suavemente.
– Alguém mais quer café? Estou indo buscar mais.
Tessa e eu balançamos a cabeça.
Lien-hua levantou-se e eu decidi que agora era uma boa hora para dizer a Tessa o que eu havia começado a considerar enquanto estava esperando no saguão.
– Ei, escuta. Eu estive pensando se talvez não devêssemos voltar para Denver.
– O quê? Por que?
– Bom, eu só achei que, depois de ontem à noite, depois que aquele cara, bem...
– Se matou? Eca. É, aquilo foi totalmente perturbador.
– Bom, pensei que se nós voltássemos para Denver, nós poderíamos, sei lá, lidar com isso juntos. Conversar sobre.
– Ele está morto, o que tem nisso para conversarmos?
– Eu sei. Mas aconteceu tão perto da gente.
– Como se pessoas não morressem em Denver. Além do mais, eu quero ficar.
– Você está certa, pessoas morrem todos os dias, mas... – minhas palavras se perderam quando percebi que Lien-hua parou ao lado de uma mesa. Uma mulher que devia
ser surda estava ansiosamente tentando comunicar-se com um dos gerentes do restaurante. Lien-hua estava entre os dois, interpretando. Ela observava os gestos rápidos
da mulher surda, então falava suavemente com o gerente, ouvia sua resposta e deixava seus próprios dedos agitarem-se habilmente em uma série de palavras para a mulher
surda. Um garoto com cabelo cor de areia, talvez de oito ou nove anos, sentava-se ao lado da mulher de aparência preocupada. Lien-hua havia mencionado para mim algumas
semanas atrás que um dos seus irmãos havia nascido surdo, assim como seu avô paterno, então não me surpreendeu que ela soubesse a linguagem de sinais, mas essa era
a primeira vez que ela a usava na minha frente.
– Patrick, olá! – Tessa estava balançando sua mão na frente do meu rosto. Ela não parecia feliz por Lien-hua ter tomado minha atenção.
– Desculpa, o que você estava dizendo?
Os olhos de Tessa viraram-se para Lien-hua e de volta para mim.
– Eu estava dizendo que eles precisam de você aqui. E além disso, nós só temos mais alguns dias, e o que eu vou ficar fazendo em casa? Estou bem aqui. Sério.
Os dois caras na mesa próxima tinham terminado de comer e agora estavam ocupados olhando para Tessa, quer dizer, até me virem olhando para eles. Eles pareciam pelo
menos três ou quatro anos mais velhos que ela. Me inclinei para perto dela.
– Tem certeza que você não quer ficar só para ficar olhando aqueles dois surfistas bonitinhos na mesa logo ali?
Ela propositalmente evitou olhar para eles.
– O quê? Eu não estava.
– Ah, claro. Eles estavam olhando pra você também.
Seus olhos brilharam e viraram-se em direção aos garotos.
– Eles estavam?
– Cuidado com esses caras mais velhos. Eles só trazem problema. Você está se distraindo, Pat. Decida se vai ficar aqui ou vai voltar para Denver.
– Então, sério, Raven – meu celular começou a tocar. – Você quer ficar?
– Sim – ela disse. Meu telefone tocou novamente. – Eu quero ficar aqui, ver a praia, o aquário. Os tubarões. Tudo isso – o telefone ainda tocava. Ela olhou para
o meu bolso. – Você não vai atender?
Peguei meu telefone.
– Dr. Bowers, é Aina. Encontramos as caixas, mas nenhuma namorada. Entramos em contato com o aquário. A srta. Lillo não apareceu para trabalhar hoje.
As chaves de Hunter não estavam em seu apartamento. Talvez eles tenham fugido juntos.
– Aina – eu disse, – isso é ótimo. Mas estou no meio de algo aqui.
– O carro dela ainda está no estacionamento do aquário. A expedição enviou uma equipe de criminalistas para dar uma olhada.
Ela disse essa última parte de propósito. Aposto que foi.
– Obrigado, Aina. – desliguei.
– Ok – disse para Tessa. – Eu não quero discutir com você aqui. Se você quer ficar, nós ficamos.
– Eu quero ficar.
– Tudo bem.
– Ótimo.
Lien-hua voltou com seu café, e perguntei para ela:
– Estava tudo certo lá?
Ela acenou com a cabeça.
– O garoto é alérgico a amendoins. A mãe dele o viu comendo um rolinho de canela com nozes e pecãs e ficou com medo de ter amendoins também. Mas o gerente garantiu
a ela que não havia nenhum.
– Que bom!
– Sim, com certeza – Tessa disse, olhando para o garoto. Ela era alérgica a amendoins, então sabia bem como era.
– Bom – eu realmente queria inspecionar o carro e o local de trabalho de Cassandra antes que os criminalistas chegassem lá. Se Hunter fosse o incendiário, era possível
que ela estivesse trabalhando com ele, e poderíamos juntar isso tudo se conseguíssemos localizá-la. Levantei-me. – Tessa. Acho que a agente Jiang e eu vamos verificar...
– Posso ir com vocês ao aquário? – Tessa perguntou.
Eu pisquei.
– Eu nunca disse que estávamos indo ao aquário.
– Mas vocês vão, e eu quero ir também, e não me diga que não é seguro ou coisa assim, porque se Austin Hunter for realmente o incendiário e ele estiver fugindo com
Cassandra, eles não ficariam no lugar onde ela trabalha; eles sairiam da cidade. Certo? Além disso, parece que vocês deveriam estar procurando ele em um Keva Juice15.
ou em uma lavanderia, não em um aquário.
Lien-hua e eu ficamos olhando para ela. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Lien-hua disse:
– Tessa, como você sabe tudo isso?
– Eu estava escutando vocês. Ele fala muito alto no telefone, e vocês deveriam saber que quando você cochicha alguma coisa só faz as pessoas próximas prestarem mais
atenção ainda – ela se afastou da mesa. – Que bom que vocês dois não são espiões.
– Mas você só ouviu a minha parte da conversa no telefone – eu disse.
– Eu deduzi o resto.
Esqueça a faculdade. Eu deveria mandá-la para a academia do FBI.
– Tubarões são legais, né? – ela disse. – Lembra? Então, posso ir? Alguma coisa não estava combinando.
– Calma aí, Tessa. Você está sempre pedindo para sair sozinha, fazer coisas sozinha, ser deixada sozinha. Mas sempre que estou trabalhando em um caso, você que ir
junto. Isso não faz sentido. Não é coerente.
– Eu sou uma garota adolescente. Estou isenta de ter que ser coerente. Olhei para Lien-hua, que deu de ombros.
– Ela está certa sobre uma coisa, eles não vão estar no aquário. Ah, isso ajudou muito.
– Então – disse Tessa. – Posso ir? A gente ia no aquário de qualquer jeito.
– Tá bom. Olha, você fica na parte pública enquanto verificamos o escritório de Cassandra. Fique perto das pessoas. Nada de ficar se esgueirando por lá. Você não
deve ficar sozinha nunca. Entendeu?
– Entendi – ela disse. – Sem problema.
27
Enquanto Tessa voltava para seu quarto para pegar sua bolsa, ela pensou na conversa que havia acabado de ter com Patrick. Por um lado, ele estava certo, não fazia
sentido – ela queria viver sua própria vida – mas ela também queria fazer parte disso: precisar dele, mas também ser livre. Era meio estranho, ou talvez fosse normal,
ela não sabia. Ela ainda estava tentando se acostumar com toda a ideia de ter um pai por perto.
Além disso, Patrick queria duas coisas, assim como ela queria. Ele queria trabalhar em seus casos mas também passar tempo com ela. As duas coisas eram importantes
para ele, ela sabia que eram. Então, qual era a diferença? Talvez ela e Patrick não fossem assim tão diferentes.
Ela pegou sua bolsa, pegou também o creme hidratante para passar em sua cicatriz e voltou para os elevadores.
No caminho para o carro, o médico forense retornou minha ligação, mas zombou quando perguntei sobre uma autópsia.
– Nós já sabemos como o fulano morreu: morreu de trolley. Além disso, não sobrou dele nem o suficiente para encher um saquinho ziploc, muito menos para fazer uma
autópsia.
Você tinha que tirar o chapéu para esses médicos forenses. Eles realmente sabiam como humanizar uma tragédia.
– Eu esperava que pudéssemos analisar isso melhor – eu disse. – Tem algo aqui que não se encaixa. Houve algum outro suicídio desse tipo recentemente?
– Bowers, essa é a sexta maior cidade do país. O que você acha? O cara não tinha carteira de habilitação, nem número de seguro social, nem passaporte, e portanto,
não tinha identidade. No que diz respeito ao sistema, ele não existe.
– E quanto a parentes?
– Ninguém apareceu para requerer o corpo, e ninguém vai. Essa é uma cidade de 1,3 milhão de residentes legais, além de cerca de 300 mil ilegais. O que você quer
que eu faça, entreviste cada um deles, tente encontrar algum parente? – ele pausou para tomar fôlego. – Preciso voltar para o trabalho.
Pensei que talvez pudesse falar com algum parente do fulano em seu velório, mas quando perguntei ao médico forense sobre a hora do enterro, ele disse:
– A menos que alguém venha requerer o... – pude perceber que ele estava procurando pela palavra certa, e não era corpo. – A menos que alguém venha requerer os restos,
haverá um enterro público na quinta--feira. Isso é tudo que sei. – E então, em um tom beirando a compaixão, ele acrescentou: – mas, por que esse cara importa tanto
pra você, afinal?
– Porque ele merece ser importante pra alguém – enfiei a mão no bolso e senti o dente do fulano, então o médico forense finalizou a ligação e Tessa chegou.
Tentando espantar a tragédia de seu suicídio da minha cabeça, entrei no carro ao lado de Tessa e nos dirigimos ao aquário, onde Lien-hua havia combinado de nos encontrar.
Exatamente às 11h56, Creighton Melice descobriu o celular de Randi em seu carro.
Ele decidiu mover o carro para umas oito quadras de distância do armazém, para que não houvesse como ligá-lo àquilo, ou aquilo a ele. Mas quando ele abriu a porta
do carro e viu um celular no painel, ele percebeu que era dela. Um nó apertado se formou em suas entranhas.
Onde estava o telefone que Shade havia dado para ele? Creighton procurou entre os assentos, depois debaixo deles e então atrás, mas o telefone não estava no carro.
Creighton se lembrava de Randi ter agarrado um celular quando ele a enxotou para fora do carro.
Ela levou o telefone errado.
Randi agora estava com o telefone para onde Shade iria ligar.
E naquele momento, apesar dele ser terminantemente contra blasfemar, foi exatamente o que Creighton Melice fez.
28
Ano passado, depois de Victor Drake ter contratado Geoff e Suricata e estar pensando sobre as duas últimas pessoas para sua equipe, ele havia cuidadosamente pesquisado
as responsabilidades de trabalho do dr. Octal Kurvetek no Texas Department of Criminal Justice. Durante o processo de investigação, Victor descobriu que o doutor
havia supervisionado a aplicação apropriada do coquetel de três drogas usadas em injeções letais na época: tiopentato de sódio, para induzir à inconsciência, brometo
de pancurônio, para induzir à paralisia, e cloreto de potássio, para causar parada cardíaca.
De 1986 a 2006, o dr. Kurvetek havia sido o supervisor médico presente em 219 das 369 execuções por injeção letal que aconteceram no estado do Texas. Sua experiência
no TDCJ e sua formação em neurofi-siologia faziam com que ele parecesse ideal para o emprego que Victor Drake estava tentando preencher. Então ele o contratou.
Só depois de seis meses na equipe que o dr. Kurvetek contou a Victor seu segredo.
– Era sempre mais satisfatório deixar os condenados permanecerem conscientes enquanto o brometo de pancurônio e o cloreto de potássio eram aplicados. Eu não fazia
isso todas as vezes, é claro. Só quando me dava vontade – ele parecia orgulhoso do que fazia. – É proibido pela oitava Emenda, é claro, que afirma que execuções
não podem incluir “a imposição desnecessária e injustificada de dor”. Mas eu não necessariamente concordo com essa disposição.
– E? – Victor havia dito, antecipando a resposta.
– Vamos dizer que aplicar essas duas drogas em uma pessoa consciente causaria... – os lábios do dr. Kurvetek se dobraram em um sorriso irônico – uma quantidade inconstitucional
de dor.
Em poucas palavras, a especialidade do dr. Kurvetek era a morte. Morte com dor.
E agora, Victor teria que contar com esse homem não apenas para reunir as descobertas da pesquisa do Projeto Rukh, mas também para cuidar do problemático Austin
Hunter. Victor não queria, mas finalmente digitou o número de Kurvetek.
– Você encontrou Hunter? – ele perguntou assim que o doutor atendeu o telefone.
– Não – Octal respondeu. – Geoff até checou o GPS de seu aparelho telefônico e também a utilização de seu cartão de crédito. Nada. É como se ele tivesse desaparecido.
Claro que ele desapareceu. Essa é a especialidade dele. Esse é um dos motivos pelo qual ele foi contratado, porque consegue desaparecer sem deixar traços.
– Tudo bem – disse Victor. – Preciso que você se foque nos resultados, me dê tudo que conseguir. Tenho uma reunião quinta-feira à tarde com o general e eu preciso
ter certeza que ele vai ficar convencido que o dispositivo está funcionando. Peça para Geoff e Suricata encontrarem Hunter.
E então finalizou a ligação antes que o dr. Kurvetek pudesse responder. Afinal, não era o doutor que mandava, era Victor.
Foi o que ele disse a si mesmo enquanto voltava ao trabalho de gerenciar seu vasto império biotecnológico.
29
Enquanto dirigia para o aquário, pedi a Tessa para ler para mim o panfleto do Sherrod Aquarium que ela havia encontrado no saguão do hotel.
– Você está brincando, né?
– Não. Vá em frente. Eu quero descobrir o máximo possível antes de chegar lá.
Ela reclamou por mais um ou dois minutos, mas acabou fazendo o que pedi.
– “Quando foi concluído em novembro de 2008, o Sherrod Aquarium era o maior e mais ambicioso complexo aquático do mundo. Com mais de quinhentas emocionantes exposições,
esse destino de férias de primeira classe promete experiências divertidas, educativas e memoráveis para toda a família. Também é respeitado no mundo inteiro como
um centro de ponta na pesquisa de tubarões...” – ela parou e murmurou: – Eu tenho mesmo que fazer isso?
– Eu sei que não é nenhum material que vale um Pulitzer. Vai, me divirta.
Um suspiro. Então:
– “Quando você chegar, visite A Odisseia de Poseidon, uma aventura interativa 4D que o deixará impressionado, e maravilhado!” – ela fez uma pausa. – Tem uma vírgula
a mais aqui que é desnecessária, por sinal – então ela continuou. – “E não perca a atração do maior aquário indoor do mundo. A exposição ‘Os Setes Mares Mortais’
contém mais de 25 milhões de litros d’água, assim como o maior tubarão-cabeça-chata em cativeiro do mundo. Prepare-se para ficar boquiaberto e abismado. Mas cuidado!
16 espécies de tubarão rondam suas águas mortais...” – Patrick, por favor?
– Termine de ler – eu disse. – Estamos quase lá.
Outro suspiro impaciente.
– Vou pular para o final. “Encabeçado pelo empreendedor e filantropo Victor Sherrod Drake, o Sherrod Aquarium é um símbolo de sua generosidade com as pessoas de...”
blá, blá, blá. Continua assim mais pra frente.
– OK – eu disse. – Está bom. Chegamos.
Ela largou o panfleto, olhou para cima e disse:
– Uau!
O Sherrod Aquarium espalhou-se à nossa frente. Os arquitetos fizeram um uso brilhante de vidro espelhado e pavilhões expansivos, criando uma sensação arejada de
exposição ao vento que fazia as três alas interligadas do maior aquário do mundo parecerem enormes barcos à vela de vidro sendo soprados para o mar. A luz do sol
e o céu dançavam através das laterais de vidro do edifício, fundindo o aquário completamente com o oceano que descansava logo além dele.
Um bosque ajardinado com enormes palmeiras e flores exóticas ficava estendido entre os três edifícios. Até o estacionamento havia sido bem planejado, com caminhos
sombreados, trilhas para caminhadas e pequenos playgrounds contendo centros de aprendizado interativo para crianças.
Peguei minha identificação e o guarda na entrada principal acenou para nós através do estacionamento de funcionários, onde encontramos Lien-hua já nos esperando.
– Como ela chegou primeiro que a gente? – perguntou Tessa.
– Pegue carona com ela da próxima vez – eu disse. – Você vai descobrir.
– Andei com ela ontem à noite.
– Ela devia estar se segurando. Vamos, é hora de ver os tubarões. Só me dê alguns minutos antes.
Tessa e Lien-hua foram pegar alguns passes no balcão da frente enquanto eu colocava um par de luvas de látex e me aproximava do carro de Cassandra. Ela havia estacionado
em um ângulo apressado entre dois dos postes de luz do estacionamento, e os dois criminalistas que estavam revirando o porta-malas haviam usado os postes de luz,
além do para--choque traseiro do carro de Cassandra, para definir a cena do crime.
Por que não? Afinal de contas, eles eram práticos.
Um dos criminalistas tinha o formato de uma pera, o outro me lembrava uma girafa. Descobri que o homem achatado e arredondado se chamava Ryman e o cara desengonçado
e de pescoço comprido, Collins. Depois de me identificar, peguei minha mini lanterna de led do meu cinto e me inclinei para dentro do carro.
– O que você está procurando? – Ryman me perguntou.
– Pistas – eu disse.
Silêncio.
Saí do carro e observei o estacionamento, reparando no local de entrada de funcionários a cerca de 20 metros dali, a câmera de vigilância apontada diretamente para
a porta e o caminho de serviço que dava a volta pela parte de trás do edifício. Baseado no ângulo do carro, supus que Cassandra havia entrado pelo caminho de serviço
ao invés da entrada principal.
Ajoelhei-me e olhei debaixo do carro e então, debaixo dos bancos. Cassandra mantinha o interior de seu veículo meticulosamente limpo, sem lixo, sem papéis espalhados.
Não encontrei nem mesmo areia no carpete, o que era especialmente surpreendente considerando que estávamos na cidade litorânea de San Diego.
– Então, você mexeu em algo?
– Não – Ryman respondeu.
A bolsa de Cassandra estava colocada no banco do passageiro. Uma mala estava no banco traseiro. Olhei em sua bolsa e então abri a mala. Uma pilha de roupas estava
espalhada dentro.
– Você mexeu nessas roupas ou encontrou-as assim?
– Eu disse que não mexemos em nada – Ryman parecia ser quem falava entre os dois.
– O carro estava trancado ou destrancado?
– Trancado. Tivemos que arrombar.
– Motor?
– Desligado.
– Faróis?
– Desligados.
Inspecionei o porta-luvas, então perguntei:
– Em qual estação o rádio está?
Após um silêncio brusco:
– O quê?
– A estação do rádio.
– Não sei.
Verifiquei. O seletor do rádio não estava pressionado. Apertei Eject, nenhum CD, e nenhum tocador de mp3 estava ligado a ele. Então, ela estava com o rádio desligado
quando chegou. Nenhuma música tocando.
Eles apenas se entreolharam.
– Por que isso importa? – perguntou Collins.
– Tudo importa.
Reparei na disposição dos controles de temperatura, o gênero musical predominante dos CDs colocados entre os assentos e a posição do assento do motorista e do volante.
Baseado na posição do assento, supus que Cassandra fosse alta para uma mulher. Não muito mais baixa do que eu: 1,80m, ou 1,83m.
Dei uma última olhada ao redor, agradeci aos criminalistas pela cooperação e me virei para ir embora.
– Você acabou? – ouvi Ryman dizer.
– Sim.
Dei uns seis passos e ouvi Collins sussurrar:
– Federal idiota.
Tudo bem, então.
Mesmo com a ansiedade que eu estava para entrar no aquário, imaginei que eu poderia perder mais um minuto. Então, me virei e os encarei:
– Cavalheiros. Quais são as suas opiniões quanto a isso? O que vocês acham que aconteceu aqui?
– Ela estava chegando no trabalho – disse Ryman. – Saiu do carro. Talvez alguém a tenha pego. Talvez ela tenha ido dar uma caminhada. Quem sabe? Provavelmente fugiu
com o namorado.
– Se Cassandra estivesse vindo trabalhar – perguntei, – ela teria estacionado torto, ocupando duas vagas ao invés de uma e deixado sua bolsa contendo sua maquiagem,
celular, carteira, vale refeição e crachá dentro do carro?
Ele hesitou:
– Provavelmente não.
– Ela estacionou com a intenção de rapidamente pegar algo ou entregar algo e não conseguiu voltar para o carro – eu disse.
– Talvez ela tenha sido pega assim que saiu do carro.
– Então as portas do carro estariam destrancadas. Se você sequestra uma mulher quando ela está saindo do carro, você não se preocupa em trancar as portas – apontei.
– Também, nós temos esses postes de luz muito próximos e nenhum outro carro por perto. Ela teria visto seu sequestrador se aproximando, mesmo que estivesse escuro
quando ela chegou.
Collins colocou as mãos na cintura.
– Como você sabe que ela chegou aqui no escuro?
– Pela disposição do aquecedor. De manhã bem cedo estava frio, mas a temperatura aumentou rapidamente com o nascer do sol. O aquecedor dela está no máximo. Se ela
tivesse chegado após o nascer do sol, ela teria ligado o ar condicionado, ou pelo menos teria desligado o aquecedor.
Os dois homens me olharam sem expressão.
Ok, chega. Essa lição poderia durar o dia todo. Hora de entrar. Minha suspeita era que, seja quem fosse que a encontrou – ou a sequestrou –, esperou até depois dela
ter entrado no aquário, para evitar ser pego pela câmera de segurança mirada para a entrada dos funcionários.
– Obrigado pelo bom trabalho, cavalheiros. Gostei especialmente de como vocês usaram os postes de luz para marcar a cena do crime. Muito inteligente.
– É – disse Ryman – Foi minha ideia.
– Não me surpreende.
Então.
Eu sabia de algo que não sabia antes: a mala bagunçada de Cassandra no banco de trás de seu carro impecavelmente limpo me disse que ela havia feito a mala com pressa
e saiu correndo – assim como parecia que Hunter havia feito. É provável que eles iriam se encontrar, talvez fugir juntos. Mas por que agora, depois de todos esses
incêndios? E por que a pressa? Será que a presença do detetive Dunn na noite passada teria algo a ver com o desaparecimento de Cassandra? E o que era tão importante
para ela que a fez parar aqui hoje de manhã cedo?
Muitas perguntas.
Peguei a bolsa com meu computador no meu carro e entrei no saguão do aquário.
Hora de conseguir algumas respostas.
30
Encontrei Lien-hua e Tessa admirando um enorme tanque de peixes tropicais que formava o fundo da bilheteria principal.
– Ok, Tessa, daqui pra frente você se vira sozinha.
Ela não desviou o olhar dos peixes.
– Tá bom.
À nossa esquerda, um caminho como um labirinto passava por uma série de pequenas exibições mostrando lulas, polvos e cavalos-marinhos. Uma passagem à direita desaparecia
em uma entrada escura que emitia uma música lúgubre e era guardada por um grande tanque com uma barracuda de aparência sinistra. Três outras passagens levavam a
atrações adicionais e exibições interativas oceanográficas e de biologia marinha em alas diferentes do aquário. Imaginei que eventualmente todas as passagens se
juntariam na grande exibição Os Sete Mares Mortais no lado oposto da instalação.
Apontei para uma lanchonete próxima, no centro do salão entre as diferentes alas.
– Tessa, me encontre ali naquela lanchonete em uma hora, tudo bem?
– Uma hora.
– Olhe no relógio, tá bom?
Ela olhou, e então, sem mais nenhuma palavra, partiu por conta própria.
Quando Tessa estava fora do raio de audição, Lien-hua leu minha mente e disse:
– Cassandra foi levada, não foi?
– Sim. Ela chegou quando ainda estava escuro, pensativa, planejando seu dia, deixou o carro com intenção de voltar, mas nunca voltou.
– Como você sabe que ela estava pensativa?
– É só uma teoria. Seu rádio e o tocador de CD estavam ambos desligados. Normalmente, pessoas dirigem sem música apenas quando: a) estão no telefone, mas provavelmente
era muito cedo para isso; b) quando estão conversando com alguém no carro, mas até onde sabemos, ela estava sozinha; ou c) quando precisam se concentrar em alguma
coisa. Aposto na C.
– Hum. Acredito que você esteja começando a criar um perfil, dr. Bowers.
– Não, não, não. Chama-se indução. É muito diferente. Completamente diferente.
– Aham – ela disse enquanto íamos encontrar o diretor do aquário.
Uma hora atrás, Creighton havia colhido algumas informações pessoais de Randi em seu celular e então destruiu o telefone com o calcanhar, deixando-o em pedaços.
Desde então, ele ficou no escritório da gerência do armazém considerando suas opções.
Era possível que Randi voltasse procurando por seu telefone. Ele duvidava que ela conseguiria encontrar o armazém, mas era possível. Então talvez ele devesse só
esperar e cuidar dela quando ela chegasse.
Mas como ainda era o meio do dia, ela poderia não vir sozinha, ou ter contado a algum amigo para onde estava indo. Em ambos os casos, provavelmente dariam falta
dela e então outras pessoas sairiam procurando por ela. Nada bom. Muitas situações ruins.
Antes de destruir o telefone dela, ele havia pego informações o sufi-ciente para encontrá-la, então ele poderia ir atrás dela. Talvez ele devesse fazer uma visitinha.
Isso era o que seus instintos falavam para ele fazer.
Encontrá-la.
Recuperar o telefone.
Ensinar a ela uma lição ou duas.
Sim, isso era o que seu instinto falava, mas sua mente disse a ele para não balançar o barco mais do que era necessário. Ele realmente não deveria deixar Cassandra
sozinha, e além disso, ele sabia que se Shade tivesse tentado ligar para o telefone que Randi pegou, Shade iria imediatamente descobrir sobre a troca e encontraria
outro jeito de contatá-lo, mas apenas se Creighton ficasse onde estivesse.
Então, ficar ou procurar?
Realmente, a melhor escolha era ficar. Confiar que Shade entraria em contato, mas ainda assim ficar de olho em Randi e só lidar com ela se elade alguma maneira encontrasse
o caminho de volta para o armazém.
Creighton observou Cassandra por um momento pelo monitor de vídeo. Então teve um ideia. Agora que ele havia finalizado o vídeo para Hunter, ele precisava de apenas
uma câmera apontada para ela.
O que queria dizer que ele poderia usar a outra câmera para outra coisa.
Sim. Se ele colocasse uma câmera para fora, ele poderia manter um olho em Cassandra e o outro na rua, para ver se Randi voltaria.
Quando começou a soltar os fios da câmera do lado esquerdo, Creighton admitiu para si mesmo que esperava que Randi voltasse para procurar seu telefone. Então, ele
poderia matar dois coelhos com uma cajadada só. Por assim dizer.
Uma homem magro de uns 45 anos conduziu Lien-hua e através de uma porta escrita “Área Restrita! Apenas Funcionários do Aquário!”.
– É aqui que nossos aquaristas trabalham – ele nos informou, orgulhoso. Como todo o resto dos funcionários, ele usava bermuda, uma camiseta polo do Sherrod Aquarium
e papetes. Bordado no bolso de sua camisa estava o nome Warren Leant e seu título: Gerente-diretor de Criação Animal. Ele tinha um rosto cansado e me fez pensar
em alguém que pega o elevador para seu apartamento ao invés de se exercitar indo pelas escadas.
– Por favor – ele se moveu para que o acompanhássemos. – A ala de criação animal é por aqui.
– Então, Pat – Lien-hua disse enquanto seguíamos Warren Leant pela entrada dos bastidores da atração A Odisseia de Poseidon 4D. – Lá nos elevadores, hoje de manhã,
sobre o que você e Ralph estavam falando?
– Sobre Margaret. Ela está na Costa Oeste.
– Mas estou enganada ou ouvi Ralph dizer que queria ficar de olho em você e em mim? O que isso quer dizer?
– Talvez ele ache que tem algo acontecendo entre nós – eu disse as palavras antes de perceber que havia feito mais do que só pensá-las.
Ops.
– Então? – ela disse suavemente. – Tem?
Felizmente, o sr. Leant interrompeu nossa conversa.
– Salas de necrópsia animal – ele gesticulou em direção a um corredor que levava a um conjunto de seis salas. – Vocês sabem o que são necrópsias?
Lien-hua e eu respondemos quase em uníssono:
– Autópsias em animais.
– Oh – ele parecia desolado. – Sim. Está certo. Tudo bem, estamos quase lá. Ele nos levou pelo corredor e senti a pressão da pergunta de Lien-hua se inclinando sobre
mim.
– Então? – ela repetiu. – Tem?
Uma vez, em uma emboscada, nós quase nos beijamos, mas no último instante nós dois hesitamos e recuamos. Desde então, nunca mais falamos sobre aquela noite, mas
ela nos trouxe tanto uma intimidade subentendida quanto uma distância cuidadosa na nossa amizade. Mas agora, com a pergunta colocada de forma tão proeminente, então
eu disse:
– Quem dera se tivesse.
Lien-hua ficou quieta e eu não tinha certeza sobre como interpretar seu silêncio, mas então chegamos à instalação de criação animal e sabia que teríamos que terminar
essa conversa uma outra hora.
O forte cheiro de antissépticos misturado com o cheiro úmido de peixe morto nos recebeu quando entramos em uma antessala muito iluminada, anterior à área de trabalho.
Leant gesticulou em direção ao lado oposto.
– O escritório da srta. Lillo é logo após a piscina de aclimação dos tubarões. Você acha que aconteceu algo com ela? Quero dizer, seria ruim para o aquário. Não
que eu não esteja preocupado com ela, ou coisa do tipo, é só que eu gostaria de estar preparado para o pior. Por causa da imprensa. Você entende. Então, se houve
qualquer coisa que eu deva contar para o nosso conselho de administração...
– Agora – eu disse, – nossa principal preocupação é apenas encontrar e falar com a srta. Lillo, onde quer que ela esteja. Preciso acessar o material de sua câmera
de segurança referente à noite passada e a essa manhã. Vamos começar com 21h até 7h – imaginei que poderia convencer Ralph a enviar uma equipe de agentes do escritório
local do FBI de San Diego para analisar os vídeos, para ver se conseguíamos ter algum vislumbre de Cassandra ou do infrator. – E eu gostaria que você evacuasse seus
funcionários dessa ala, mas que os mantivesse aqui no aquário. Não quero que eles saiam, mas quero eles fora do caminho.
– Bom, veja bem, isso pode ser um pouco difícil. Nós já estamos atrasados na programação da alimentação dos tubarões, e oito dos nossos tubarões não são alimentados
desde a noite passada.
– Sr. Leant, com todo o respeito, estou mais preocupado em encontrar Cassandra do que com a hora em que seus peixes almoçam – eu disse.
– Sim, bem, eu realmente não vejo motivo para...
– Eu não estou pedindo.
– Isso é muito incomum.
Olhei para Lien-hua.
– Se não pudermos analisar essa área adequadamente, precisaremos fechar o aquário por quanto tempo? Dois, três dias? Isso é comum para você?
– Pelo menos três dias.
Warren abriu sua boca como se fosse responder, então a fechou silenciosamente, saiu para o lado e pegou seu walkie-talkie.
Eu sabia que a área de criação animal de um aquário desse tamanho deveria ser grande, mas eu não esperava que tivesse 15 metros de largura e 40 de comprimento. A
parede à nossa esquerda mostrava quatro escritórios e abria-se no segundo andar para incluir o acesso às torres de filtragem de água que erguiam-se de um nível inferior,
passava pelos escritórios e praticamente tocava o teto. Eles pareciam cones gigantes com costelas horizontais.
A parede à nossa direita possuía uma série de visores embutidos mostrando a exposição Os Sete Mares Mortais. Uma porta de vidro levava até um caminho que, como dava
para ver, permitia o acesso à superfície. A piscina de aclimação dos tubarões que Warren havia mencionado ficava do lado de um dos visores, a meio caminho da parede
oposta.
O teto da área de criação ficava a uma altura de quatro andares sobre nossas cabeças para acomodar um trilho suspenso que passava pelo centro da sala. Uma extremidade
do trilho terminava sobre a porta deslizante de metal da piscina de aclimação dos tubarões, que a separava da atração Os Sete Mares Mortais. A outra extremidade
do trilho parava abruptamente ao lado de uma porta de garagem dupla que imaginei levar para fora do aquário.
– Deve ser para transferir tubarões para dentro e para fora da exibição – disse Lien-hua.
Apoiei minha bolsa que continha o computador, aproximei-me da piscina de aclimatação e olhei para dentro. Dimensões: quatro metros de profundidade, cinco de largura
e cinco de comprimento. As laterais eram feitas de vidro grosso e reforçado, que parecia forte o suficiente para aguentar até um tubarão de meia tonelada. Supus
que o ralo de aço robusto localizado no fundo da piscina permitia aos aquaristas esvaziar e substituir a água, talvez após transferir um tubarão para dentro ou para
fora da exibição, ou deixar um tubarão doente em quarentena. Como a piscina estava vazia, imaginei que estivesse no meio desse processo.
Quando olhei para fora, vi que Lien-hua havia se aproximado das portas para a área de preparação de alimentos, à minha esquerda. Dois aquaristas usando facas finas
estavam limpando peixes para a próxima alimentação dos tubarões. Baldes de carne branca manchada de rosa com sangue estavam no chão, ao lado da pia. Lien-hua me
olhou e falou com suavidade suficiente para que apenas eu pudesse escutá-la.
– Você não acha...
Era uma possibilidade terrível.
– Teremos que verificar. Ver se existe alguma evidência de alguma alimentação não programada nessa manhã. É possível. Também precisaremos de um policial para entrevistar
esses dois.
– Eu faço a ligação.
Ela foi para o lado de um conjunto de cilindros de mergulho para ligar para a expedição e para o centro de controle de qualidade da água do aquário e Warren veio
na minha direção com uma jovem mulher hispânica em seu encalço. Ele ergueu o nariz como se estivesse me cheirando.
– Os funcionários vão esperar na sala de descanso. E eu certamente acredito que você fará tudo o que pode para que essa... inspeção aconteça o mais rápido possível.
– Você tem minha palavra.
– Sim, ótimo – o nariz ainda para cima. – Espero que me desculpem, mas tenho que mudar o texto nos televisores novamente para que nossos visitantes não fiquem desapontados
quando a alimentação que eles planejavam assistir não acontecer – ele gesticulou na direção da mulher com aparência nervosa ao seu lado. – Maria trabalha com Cassandra.
Ela vai mostrar o lugar. Se precisarem de mais alguma coisa, não hesitem em me chamar. Obviamente, eu gostaria de ajudar a resolver esse problema o mais rápido possível.
– Obviamente.
Ele foi chamar os aquaristas da área de preparação de alimentos; cumprimentei Maria e meu passeio guiado começou.
31
Graça e morte.
Essas foram as duas coisas nas quais Tessa pensou enquanto assistia aos tubarões patrulhando os Sete Mares Mortais. Ela havia visto tubarões na TV e em filmes e
em livros e tudo mais, mas não era nada comparado a observá-los deslizando a apenas alguns metros de distância de seu rosto, ali, do outro lado do vidro.
Tessa rapidamente identificou os inconfundíveis tubarões-martelo e os tubarões-cinza com seus dentes salientes de aparência feroz. Ela também reconheceu o tubarão-mako,
o tubarão-enfermeiro, o tubarão--limão, o tubarão-cabeça-chata e o tubarão-tigre. Ela viu uma porção de outras espécies, também, que ela não conseguia identificar.
E aquilo meio que a incomodou.
De dentro do caminho fechado por vidro que passava por baixo da exibição de seis metros de profundidade, os tubarões pareciam um bando de pássaros grandes e escuros
de 300 quilos – que por acaso tinham fileiras e fileiras de dentes afiados.
Tessa inclinou-se para mais perto, perto o suficiente para ver sua respiração embaçar o vidro. E ficando tão próxima, quase parecia que ela estava na água junto
com os tubarões enquanto eles deslizavam silenciosamente em torno dela com dentes perfeitamente afiados, rasgando seus corpos mortos e débeis.
Beleza silenciosa.
Fome primordial.
Graça e morte.
Tessa olhou para o relógio. Ela não estava muito preocupada com o prazo de uma hora que Patrick havia dado a ela, mas ela não gostaria de estar no túnel de vidro
durante a próxima alimentação dos tubarões, que estava programada para começar a qualquer momento, especialmente se eles fossem usar peixes vivos.
Eca. Nojento.
Ela subiu na esteira rolante do lado direito da passagem e estava no meio do caminho para a próxima exibição quando viu a mensagem aparecer em uma das TVs de plasma
montadas no teto, dizendo que a alimentação dos tubarões havia sido adiada.
Hum. Ótimo.
Mais tempo com os tubarões.
Ela saiu da esteira rolante e voltou para a maior exibição de tubarões do mundo. Dessa vez, ela levantou as duas mãos contra o vidro, seus braços estendidos como
asas, e imaginou que estava voando com os tubarões através de um céu vasto e cheio de água.
Um céu sem limites e sem restrições.
Mas, é claro, o tempo todo seus pés permaneceram plantados relutantemente no chão do aquário.
32
Maria rapidamente mostrou as estações de teste de qualidade da água, os tanques de quarentena para animais machucados ou doentes e a escada ao lado da piscina de
aclimatação dos tubarões que descia para uma pequena sala de observação em um nível inferior. Embora eu não tivesse certeza de como uma área de criação animal era,
nada parecia fora do normal.
Apontei para uma cesta de metal de uns dois metros de comprimento na plataforma perto da piscina de aclimatação.
– Isso é para transferir tubarões?
Maria acenou com a cabeça.
– Nós o chamamos de Berço. Alguns dos tubarões pesam mais de 400 quilos. Sem isso, não conseguiríamos colocá-los ou tirá-los da piscina de aclimatação – ela apontou
o dedo para o gancho de oito centímetros pendurado no cabo sobre o Berço, então guiou minha visão subindo pelo cabo, para além do local onde ele se enrolava em um
grande cilindro, até o painel de controle na parede. – É hidráulico – ela disse.
Reparei que uma prancha salva-vidas e um desfibrilador automatizado altamente sofisticado estavam pendurados na parede ao lado dos controles, prontamente disponíveis
caso algum dos mergulhadores precisasse ser resgatado. Ao lado deles havia um telefone.
Os olhos de Maria passearam incansavelmente pela sala em direção à porta.
– Cassandra está bem, certo? Nada de ruim aconteceu com ela, né?
– Até onde sabemos, Cassandra está bem – disse Lien-hua.
– Mas por que seu carro estaria aqui se ela está bem?
– Maria – Lien-hua disse gentilmente, – você pode me falar um pouco mais sobre o trabalho de Cassandra? O que exatamente ela faz aqui? Ela é uma educadora? – percebi
que Lien-hua havia discretamente colocado seu gravador de voz digital em seu bolso. Presumi que ela também havia apertado o botão de gravação.
– Não, isso é mais o que eu faço. Eu coordeno a programação dos guias de visitação. Cassandra é uma pesquisadora. Ela está sempre mergulhando com os tubarões – Maria
batia os dois primeiros dedos de cada mão rapidamente contra os dedões. – Na maioria das vezes, ela está estudando as ampolas de Lorenzini. Trabalho do governo.
Uma bolsa, eu acho. É algo legal para o aquário, ser um dos líderes no mundo no entendimento da habilidade dos tubarões em...
– Espere – eu disse. – Por favor, me desculpe. Você vai ter que voltar um minuto. As ampolas de quê?
– Lorenzini. São esses pequenos órgãos na cabeça e no focinho de um tubarão que podem sentir campos eletromagnéticos.
Lien-hua e eu trocamos olhares.
– Tubarões podem sentir campos magnéticos? – eu perguntei.
Maria acenou com a cabeça.
– As ampolas são cheias de uma substância gelatinosa que age como um semicondutor. – Ela parecia estar ficando mais relaxada agora que estava em seu papel de educadora.
Ela andou até um diagrama anatômico em tamanho real de um tubarão-limão que estava pendurado na parede e apontou para uma série de grandes poros na cabeça e no focinho
do tubarão. – Campos elétricos são produzidos sempre que um peixe nada através do campo magnético da Terra, e naturalmente quando músculos se contraem. Tubarões
podem localizar peixes sentindo essas pequenas cargas. Na verdade, tubarões conseguem até encontrar um linguado enterrado sob a areia, apenas pelos seus impulsos
elétricos.
– Eles podem mesmo sentir esses impulsos através de matéria, através da areia? – Lien-hua disse.
– Sim – disse Maria. – Outros animais cartilaginosos possuem os órgãos sensoriais também, mas os dos tubarões são disparado os mais avançados. Tubarões podem até
usar esses órgãos para nadar milhares de quilômetros e voltar para sua posição inicial exata no oceano usando o campo magnético da Terra para conduzir sua navegação.
Orientação geomagnética. Eletrorreceptores. Eu estava maravilhado. Eu nunca havia ouvido nada disso antes.
– Então um tubarão pode mesmo fazer isso? Identificar a localização de um peixe apenas pelos impulsos elétricos ou magnéticos criados pelas contrações musculares?
– Na verdade, seu sistema sensorial é tão preciso que ele pode até localizar uma presa paralisada. Então ela está mesmo bem? Cassandra está bem?
Lien-hua tinha muito mais tato do que eu, então deixei que ela respondesse a pergunta de Maria.
Reparei em uma porta com o nome de Cassandra e, com as palavras presa paralisada soando em minha cabeça, entrei no escritório.
33
Enquanto Tessa observava os tubarões, uma garota entusiasmada, educadora do aquário, conduzia um grupo de crianças. Todas as crianças usavam camisetas laranja que
diziam: “Terceira Série melhor do mundo!!!”. Tessa tentou se esgueirar através deles antes que enchessem o corredor, mas não teve sucesso.
Ótimo.
Com um discurso treinado, a garota do aquário gesticulou para as crianças pararem.
– Quantos de vocês sabem sentir cheiro? – sua voz era aguda e ágil, e para Tessa, parecia fazer mais eco do que a acústica do corredor permitia. Todas as crianças
levantaram as mãos. – E sentir o gosto de coisas como pizza ou cachorro quente... ou brócolis? – quando ouviram pizza e cachorro quente, as crianças sorriram, quando
ouviram brócolis, ficaram sem graça mas levantaram as mãos determinadamente. – E tocar e ouvir e ver? – mais mãos.
– Bem – ela continuou, – essas coisas são chamadas de sentidos. A maioria de nós possui cinco deles, porém, algumas pessoas podem não ter um ou dois. Bom, tubarões
pertencem a um grupo de peixes que não possuem ossos em seus corpos inteiros e são os únicos animais no planeta que têm um sexto sentido cientificamente provado!
Tubarões podem caçar peixes mesmo quando não podem vê-los ou farejá-los! O homem que descobriu essa habilidade única se chamava Stefano Lorenzini. Vamos dizer juntos:
Stefano Lorenzini. Não é um nome legal?
Tessa respirou irritada. A garota do aquário era muito irritante. Ela não só era muito animada como nem ao menos sabia os fatos direito. Lorenzini não descobriu
os sensores; foi Marcello Malpighi, 15 anos antes de Lorenzini começar a ganhar crédito por isso. Tessa teve vontade de corrigi-la, mas achou melhor não. Anos atrás,
na escola, em Minnessota, ela havia aprendido do pior jeito que é melhor manter a boca fechada quando você sabe mais do que o professor.
A garota do aquário continuou:
– Quando os tubarões movem sua cabeça para frente e para trás, eles não estão olhando através da água, mas, na verdade, estão sentindo onde os outros peixes estão.
Como se estivessem usando um detector de metais. Vamos todos fazer juntos! – a garota começou a mexer sua cabeça para frente e para trás como um tubarão usando seus
órgãos eletrossensoriais para procurar por comida, e as crianças a imitaram.
Tessa com certeza não.
Sobre eles e por toda a volta, os tubarões circulavam em seu espaço tridimensional. Nadando incessantemente. Se movendo, observando, sentindo incessantemente.
Graça e morte.
Tanto assustador quanto bonito.
A garota que não sabia quem era Marcello Malpighi tossiu algo que havia ficado preso em sua garganta, engoliu novamente e partiu para seu discurso de fechamento.
– Tubarões, os magníficos predadores das profundezas, perambulam pelos oceanos da terra há milhões e milhões de anos. E então – ela concluiu, – intocados pela natureza
e pelo tempo, os tubarões continuam sendo um dos milagres mais magníficos e duradouros do planeta.
Foi a gota d’água. Tessa não aguentava mais a garota do aquário. Primeiro, ela ensinou imprecisões históricas, e agora, inconsistências lógicas. Afinal, se todos
os tubarões fossem milagres, eles não poderiam pertencer à natureza, e se eles fossem da natureza, não poderia ser milagres. Não pode ser dos dois jeitos.
Hora de ir embora.
Mas enquanto Tessa foi passando pelas crianças em direção à próxima exibição, ela viu um tubarão-cabeça-chata virar-se repentinamente e nadar diretamente na direção
do vidro. Ele girou no último instante, partiu em direção a um peixe brilhante do tamanho de um gato grande e mordeu-o no meio.
Por toda a volta dela as crianças começaram a gritar e apontar. Alguns dos garotos da terceira série gritavam empolgados.
– Legal! Aquele tubarão comeu o peixe! – algumas das garotas da terceira série estavam reclamando de como aquilo era nojento.
Tessa ouviu a garota do aquário gaguejar algo sobre como os tubarões normalmente não atacam aquele tipo de peixe e que deve ter sido um erro alguém ter colocado
aquele peixe ali, e que realmente não havia nada com o que se preocupar porque tubarões são basicamente criaturas boas como todos os animais, porque apenas humanos
são realmente perigosos, mas Tessa percebeu que a voz dela não parecia mais tão animada quanto antes
A parte que sobrou do peixe contraiu-se de um jeito estranho enquanto afundava, até que um tubarão-tigre mergulhou para frente, engoliu o pedaço e virou-se novamente,
com os olhos vidrados, através da água. E enquanto isso, uma fina trilha de sangue boiava lentamente em direção à superfície da água, como a névoa de outono se enrolando
em uma brisa.
Graça.
E morte.
Parecia que Tessa estava sendo seguida por toda a parte por sangue.
Ela se apressou em passar as crianças e encontrou um banheiro onde poderia vomitar.
34
Examinei o escritório de Cassandra.
Gabinetes de arquivos. Prateleiras de livros lotadas. Equipamento de mergulho no chão. Escrivaninha baixa coberta de relatórios e descobertas de pesquisas. Nada
parecia fora do lugar.
Uma revista médica com as pontas das folhas dobradas estava sobre o gabinete de arquivos. Folheei as páginas que estavam marcadas. Cassandra parecia estar muito
interessada em uma nova tecnologia com a qual eu não estava familiarizado, chamada magnetoencefalografia. Dei uma olhada pelo artigo e descobri que a magnetoencefalografia,
também conhecida como MEG, é um meio para medir campos magnéticos causados pelos impulsos elétricos dos neurônios funcionando no cérebro.
Hum, exatamente como tubarões.
O artigo continha uma foto de uma máquina de MEG. O monstro de oito toneladas parecia um aparelho de ressonância magnética ou de tomografia computadorizada, mas
feita para escanear uma pessoa sentada. Estava localizada em uma câmara com paredes protetoras de vidro grosso. Aparentemente, existem no mundo apenas algumas dúzias
dessas máquinas de nove milhões de dólares. E de acordo com o artigo, quatro delas estavam localizadas aqui em San Diego. Isso era algo digno de se investigar.
Memorizei o número da edição, larguei a revista e toquei na barra de espaço no computador de Cassandra para ligar a tela do monitor. Uma pequena janela flutuava
no canto: “Bem-vinda, Cassandra Lillo. Você está logada na Rede da Fundação Drake. Hora do login: 5h03.”
Então, a Rede da Fundação Drake... isso explicaria porque Victor Drake foi tão elogiado no panfleto do aquário.
A menos que alguma outra pessoa soubesse a senha de Cassandra, ela deve ter chegado antes do amanhecer e acessado seu computador aproximadamente na mesma hora em
que eu estava correndo. Isso também confirmou a minha teoria de que ela não teria sido sequestrada perto do carro, mas provavelmente teria sido atacada dentro do
aquário.
Verifiquei o compartimento de CD para ver se ela transferiu algum arquivo.
Vazio.
Comecei a procurar em seu registro de arquivos para ver quais documentos ela poderia ter acessado essa manhã, e foi quando ouvi Lien-hua conversando com Maria fora
do escritório.
– Maria, você sabe algo sobre a família de Cassandra?
– Os pais dela são divorciados. A mãe dela morreu perto do Dia de Ação de Graças, assassinada, eu acho. O pai dela mora para o leste, em algum lugar, mas acho que
ele se casou novamente algumas vezes. Cassandra me disse uma vez que ela havia mantido o sobrenome de sua mãe. Ela nunca mencionou nenhum irmão ou irmã.
– E quanto ao namorado dela?
– Qual deles?
– Ela tem mais de um?
– Tem esse cara de New England com quem ela costumava sair, mas ultimamente é esse cara chamado Hunter. Não sei se esse é seu primeiro nome ou seu sobrenome. É como
ela o chamava. Eles se conheceram em uma festa na praia alguns meses atrás. Os dois estão envolvidos com triatlo.
Assim que encontrei uma pasta com arquivos criptografados, escutei Lien-hua perguntar:
– Maria, você sabe mais alguma coisa sobre o trabalho de Cassandra? Qualquer coisa. Talvez alguém que tivesse inveja da bolsa que ela recebia do governo. Alguém
no aquário que tivesse com raiva dela.
Maria ficou em silêncio por um momento, e então disse:
– Tem uma coisa que ela me disse uma vez, mas provavelmente não era nada.
Esse tipo de comentário sempre chamava minha atenção.
– Qualquer coisa que você puder nos contar pode ser útil – disse Lien-hua.
– Eu realmente não quero me meter em encrenca.
E esse é melhor ainda.
Eu poderia verificar esses arquivos mais tarde. Não queria perder o que Maria ia dizer. Fui até a porta a tempo de ouvir Lien-hua encorajá-la.
– Por favor, Maria. Nós só queremos falar com ela. Se ela estiver passando por qualquer tipo de perigo, você ia querer ajudá-la, certo?
Maria mordeu o lábio.
– Tudo bem, mas não fui eu que contei isso a vocês.
E esse é o comentário mais interessante de todos.
– Tudo bem – disse Lien-hua, – você não nos contou nada.
Maria respirou fundo e abaixou a voz, mesmo nós sendo as únicas pessoas na área de criação animal.
– Cassandra vai ao meu apartamento, às vezes. Nós saímos juntas, sabe? E quando ela bebe demais, ela... bem... uma noite ela me contou que estava ajudando a construir
algum tipo de arma secreta para o governo com sua pesquisa de tubarões.
Eu havia esperado algo um pouco mais útil. O comentário de Cassandra soava exatamente como algo que uma aquarista bêbada falaria.
– Uma arma secreta com tubarões? – eu disse.
– É, algum tipo de arma mortal de laser ou coisa parecida. Não sei. Tentei manter minha objetividade profissional, manter a mente aberta.
– Uma arma de laser – eu disse.
– Uma arma mortal de laser.
– Perdão, e ela estava construindo isso para o governo?
– Foi o que ela disse.
Fato. Ficção.
Ficção. Fato.
Às vezes é difícil separá-los. Mas nesse caso, seja no que for que Cassandra estava envolvida, tinha bastante certeza que não envolvia ajudar o governo a criar uma
arma mortal de laser com base em tubarões. Impaciente, verifiquei o centro de criação animal novamente enquanto Lien-hua educadamente perguntava à Maria algumas
questões de praxe sobre os comentários que Cassandra tinha feito enquanto estava bêbada. Fique na pista certa, Pat. Retorne ao básico. Hora. Local. Linhas de visão.
Entradas e saídas.
OK.
Então.
Se Cassandra realmente havia sido sequestrada, por que aqui? Por que essa manhã? Como seus agressores se aproximaram dela? Eles a atraíram? Surpreenderam? Pegaram-na
em uma armadilha? Como a controlaram? Com ameaças, força, algum objeto de contenção?
E se ela foi sequestrada enquanto estava na área de criação animal, como o infrator a tirou do aquário? A porta da frente e a entrada de funcionários estavam sendo
monitoradas por câmeras de segurança.
Olhei além de Maria para a piscina de aclimatação e para a escada ao lado dela.
A escada.
Ah.
Corri para além das duas mulheres, desci rapidamente os degraus e encontrei uma sala apertada que circulava a piscina de aclimatação. Uma porta aberta estava à minha
esquerda. Uma meia dúzia de roupas de mergulho, cintos de peso e reguladores encontravam-se pendurados em ganchos atrás da escada.
– O que foi, Pat? – perguntou Lien-hua.
– Só um minuto.
Peguei minha lanterna e iluminei a região escura além da porta. O cheiro estéril de desinfetantes e o som da vibração dos enormes motores de filtragem do aquário
preencheram o ar. Esse era aparentemente o caminho que passava além dos fracionadores de espuma do centro de controle de qualidade da água do aquário. Próximo dali,
vi as duas torres de filtragem que se erguiam até o teto da área de criação.
Minha luz revelou uma rede de caminhos fracamente iluminados que passavam por baixo do piso da área de criação animal indo para mais unidades de filtragem e o que
parecia ser uma vasta instalação de armazenamento de água na ala vizinha do aquário.
Se eu tivesse que tentar tirar alguém área de criação animal sem ser visto, esse seria um bom lugar para isso.
– Maria! – gritei para o alto da escada. – Alguma dessas passagens leva para alguma saída?
Sua voz retornou pelos degraus.
– Dá para chegar a uma saída de emergência na parte de trás, perto das lixeiras. Mas ninguém nunca anda por aí. É meio assustador ficar lá embaixo nos tanques de
filtragem. Todo mundo evita.
Assustador é bom. Assustador é muito bom. Eles sempre vão pelo assustador.
É isso. Ele veio por aqui.
Iluminei com a lanterna as paredes, procurando por marcas de arranhões, marcas riscadas de sapatos, outras impressões, quaisquer sinais de luta.
Nada.
Em seguida, procurei por fibras, roupas ou cabelo que pudessem ter ficado nos degraus de metal entrecruzado, mas não encontrei nada.
Finalmente, vasculhei o chão e descobri que finos grãos de areia cobriam o piso. Provavelmente algum tipo de resíduo lançado ao ar pelo sistema de filtragem à base
de areia.
De primeira, não notei nada estranho, mas quando me ajoelhei para inspecionar o chão mais cuidadosamente, encontrei duas faixas marcando a fina camada de areia,
começando na base da escada. Descobri num instante o que aquelas duas faixas significavam. Eu já havia visto isso antes, em uma praia na Carolina do Sul. Quando
você segura uma pessoa inconsciente por debaixo dos braços e a arrasta tirando da água, seus pés deixam uma marca na areia.
Ou, quando você a carrega de costas descendo uma escada indo para o centro de filtragem de água.
– Lien-hua – eu chamei. – Venha aqui. Maria, fique onde está – analisei as pegadas borradas ao lado das marcas de arrastamento e percebi que eram inutilizáveis.
Tirei minha .357 SIG P229 do coldre e ouvi os passos rápidos e leves de Lien-hua na escada.
– O que foi, Pat?
– Olhe – apontei a lanterna para as duas faixas que desapareciam nas catacumbas da instalação de filtragem. – Ele arrastou ela por aqui.
Ela pegou sua arma também.
– Você acha que ainda podem estar aqui?
– É possível – eu disse. – Vamos descobrir.
Com meu braço flexionado e minha arma preparada, conduzi Lien-hua à rede escura de passagens à nossa frente.
Quando o celular de Victor Drake tocou e ele viu o número de Warren Leant aparecer, ele xingou.
Warren Leant, aquele idiota gerente do aquário. Apenas o fato dele estar ligando não poderia ser bom. Definitivamente não.
Victor atendeu:
– O quê?
– Senhor Drake, é sobre Cassandra Lillo. Ela não apareceu para trabalhar essa manhã, e no começo eu pensei que não fosse nada, mas aí a polícia veio vasculhar o
carro dela e dois agentes do FBI apareceram e quiseram dar uma olhada. Você mandou que eu avisasse caso...
– Eu sei o que eu mandei – Victor vociferou.
Agentes do FBI?
Normalmente, alguém na posição de Warren Leant sequer teria esse número, mas Victor havia marcado duas dúzias dos seus pesquisadores em suas diversas companhias
e disse a seus supervisores para ligar para ele caso houvesse algum problema disciplinar ou de supervisão com esse pessoal. Afinal, Victor precisava manter controle
total sobre as pessoas envolvidas no Projeto Rukh.
– Então, o que você quer que eu faça? – perguntou Leant.
– Impeça-os. Não importa o que faça, não deixe-os examinar os arquivos dela.
Uma longa pausa.
– Hum, é um pouco tarde para isso, senhor. Eu já os levei para o escritório dela.
A cabeça de Victor parecia que ia explodir. Não, não, não, não. Chega da incompetência de Leant.
Victor desligou o telefone. Decididamente.
Cassandra Lillo. A mulher dos tubarões, a que estava pesquisando os mucopolissacarídeos. A bonitinha. Sim. Ele próprio a havia entrevistado. Mas o que havia com
ela? Havia algo a mais, algo a mais...
Hunter?
Sim.
Ele tinha ouvido Austin Hunter mencionar o nome dela uma vez. Que ele estava indo mergulhar com ela e que ele não estaria disponível para nenhuma tarefa pelas próximas
duas semanas. Sim, eles estavam saindo juntos.
Então, eles estavam nisso juntos. Ótimo.
Ah, esse dia só estava ficando cada vez melhor.
Victor pensou por um momento em mandar Geoff e Suricata para ensinar uma lição a Leant, mas então decidiu que havia chegado a hora de visitar pessoalmente o aquário
e descobrir em primeira mão o que estava acontecendo.
35
Lien-hua e eu rastejamos pela passagem e entramos na instalação de filtragem. A série de caminhos que serpenteava ao redor e entre as torres de filtragem e fracionadores
de espuma era iluminada apenas pelas fracas luzes de operação muito acima de nós e por algumas lâmpadas amarelas presas esporadicamente pelas paredes. O ar zumbia
com o baixo murmúrio dos motores filtrando e limpando os milhões de litros de água necessários ao aquário.
Algumas placas espalhadas apontavam para a área de criação animal, para a estação de purificação dos Sete Mares Mortais, para o centro de gerenciamento de água e
diversos outros locais nos bastidores. Mas não fosse por isso, os caminhos apontavam para todos os lados ao nosso redor, como um labirinto sombrio.
O lugar era realmente assustador, como Maria tinha dito.
Quando rodeamos a terceira torre, percebi um movimento atrás de um dos tanques de armazenamento de água cerca de oito metros à nossa frente.
Maria disse que ninguém nunca desce aqui.
– Pare – eu disse. – Coloque as mãos para cima.
Passos.
Levantei minha arma.
– Eu disse parado aí.
Então alguém surgiu no canto; levantei minha arma e olhei pela mira acima do cano.
Para Tessa.
– Não atire! – ela gritou. – O que você está fazendo apontando uma arma para minha cabeça?
Coloquei a arma para o lado. Meu coração martelando, minha mão tremendo.
– Tessa? O que você está fazendo aqui embaixo?
– Eu me perdi.
Coloquei minha arma de volta no coldre.
– Como você pode ter se perdido? Essa área é restrita.
A voz dela estava trêmula, imaginei que por causa da arma.
– Eu só estava procurando pelo banheiro das meninas. Como se eu fosse acreditar naquilo.
– Esse lugar é arrepiante, hein? – ela disse.
À minha esquerda, Lien-hua empurrou uma porta de saída. A luz ofuscante do sol arrastou-se para dentro da câmara.
– Pat, venha aqui.
Olhei para Tessa e passei por ela em direção à Lien-hua.
No lado de fora, uma rua passava além de um par de lixeiras enferrujadas a caminho da plataforma principal de entrega do serviço de alimentação, cerca de 40 metros
em direção ao edifício.
– O caminho de entrega – disse Lien-hua. – Se ele a arrastou descendo a escada, ele poderia ter um carro esperando aqui atrás e nunca precisaria ter passado pela
guarita.
Vi algo pequeno no chão ao lado da saída.
Um dardo.
Me inclinei para inspecioná-lo e ouvi Tessa vindo desajeitada em minha direção. – Para trás, Raven.
– Ela está morta? Cassandra está morta? – olhei para Tessa e vi que seu rosto estava vermelho. Escutei ela estalando o elástico contra seu pulso.
– Viu? – eu sentia minha raiva aumentando. – É por isso que não gosto que você venha junto comigo nessas coisas. E trate de parar já com essa coisa do elástico.
Estalo.
– Ela está morta, não está?
– Nós não sabemos onde ela está – eu disse com firmeza. – Não sabemos o que aconteceu com ela. Eu quase atirei em você, você está me ouvindo?
– Isso teria sido mesmo bem ruim.
– Sim, teria mesmo – dei meu celular para Lien-hua. – Vou levar Tessa de volta para dentro; você pode tirar algumas fotos? Do dardo. Da saída. Das passagens. – Lien-hua
aceitou o telefone, e eu peguei no braço de Tessa e a conduzi pela passagem fracamente iluminada e de volta pela escada.
Eu conseguia sentir minha arma, desconfortavelmente pesada no meu coldre de ombro.
Estava furioso com Tessa.
Furioso porque eu a amava.
Mas eu estava principalmente apavorado, porque havia acabado de ver o rosto da minha filha adotiva na frente do cano de uma armaenquanto meu dedo estava apoiado
sobre o gatilho.
Maria nos recebeu no topo da escada com uma expressão ansiosa e perplexa.
– De onde ela veio?
– Eu me perdi – disse Tessa inocentemente.
– Maria – eu disse, – você poderia por favor conduzir essa jovem até o balcão da entrada?
Tessa me olhou com uma independência feroz, mas também enxerguei uma leve sombra de medo.
– Pare de gritar comigo, está bem? Eu não sabia onde eu estava.
– Eu te falei para não ficar andando por aí – Tessa não deveria estar ali embaixo, mas ainda assim eu me odiava por estar gritando, por estar amedrontando-a. Isso
era a última coisa que queria fazer. Imagens do matadouro passaram pela minha cabeça. Aquele emaranhado de raiva e fúria. Surgindo, rolando, correndo por mim.
Percebi Lien-hua subindo a escada mas me dirigi a Tessa:
– A gente conversa em um minuto – ela apenas balançou a cabeça e saiu com Maria.
Apoiando uma mão delicada em meu ombro, Lien-hua falou suavemente, numa altura suficiente para apenas eu ouvir.
– Você está bem, Pat?
– Sim, estou bem – respirei lentamente. – Estou bem.
Ela deixou por isso mesmo.
– Então, boas notícias. Enquanto estava lá embaixo tirando as fotos, recebi uma ligação do centro de controle de água. Todos os testes de água estão limpos, nada
de sangue humano. Nada nos vídeos, também. Os tubarões não comeram Cassandra.
– As marcas de arrastamento também sustentam essa conclusão – eu disse.
– Vou informar a polícia sobre as marcas, pedir para eles verificarem a área de filtragem. Para ter certeza absoluta de que não tem ninguém lá embaixo. Talvez eles
consigam algumas impressões digitais nas portas.
– Eu preciso checar algumas coisas no escritório de Cassandra, então encontro você perto da entrada.
Sem mais palavras, ela saiu. Eu peguei minha bolsa com o computador e voltei para o escritório de Cassandra. Eu havia tido uma ideia mais cedo, enquanto vasculhava
seus arquivos.
Essa manhã eu tinha sugerido que Aina procurasse por um endereço de retorno nos envelopes de Hunter. Bem, talvez não tivéssemos um endereço de retorno em um envelope,
mas podemos ter algum em um e-mail.
36
Rapidamente, verifiquei os e-mails mais recentes de Cassandra, mas nenhuma das mensagens me deu alguma luz em relação a quem poderia ser o sequestrador ou o que
ela estaria fazendo no aquário tão cedo aquele dia.
Porém, encontrei um endereço do Gmail chamado “SEALHunter1”, que eu supus ser da conta de Hunter.
Continue com isso mais tarde. Termine aqui e vá falar com Tessa. Antes de partir, conectei meu computador ao de Cassandra para copiar os arquivos criptografados
que havia encontrado mais cedo. Talvez eu conseguisse alguém da divisão de crimes cibernéticos do FBI, ou Terry, para dar uma olhada neles, tentar achar algo de
útil. Assim que pressionei Enter, meu celular tocou. Ralph.
Antes que eu pudesse falar alguma coisa, ele gritou:
– Você ligou para o supervisor de Dunn na divisão de homicídios? Um cara chamado tenente Graysmith?
– Você não parece feliz.
– Bom, adivinha quem é parceiro de golfe do diretor P. T. Rodale do FBI.
– Você está brincando.
– Há uma hora, Graysmith ligou para Rodale para reclamar de um agente do FBI que estava se recusando a seguir o protocolo e estava interferindo em uma investigação
em andamento em San Diego. Há 20 minutos, Rodale ligou para Margaret. E há cinco minutos, adivinha quem me ligou.
– Desculpa, Ralph.
– O que está havendo aí, Pat?
– É o que estou tentando descobrir – o computador informava que terminaria de copiar os arquivos em um minuto. – Ligue para a tenente Aina Mendez, do MAST, e peça
para ela acertar as coisas com o tenente Graysmith. Ela pediu nossa ajuda nessa investigação de incêndio, e tudo que nós estamos fazendo até agora é ir atrás de
coisas relacionadas com os incêndios. Não sei porque o pessoal de Homicídios está envolvido nisso, porque, até onde sabemos, ninguém foi morto – terminei com os
arquivos e fechei meu computador.
– Bom, escute. Eu tenho que retornar a ligação do diretor Rodale antes das 15h, então preciso que você me atualize com essa coisa. Estou no escritório local do FBI
na Aero Drive. Sala 311. Venha e...
– Ralph, eu preciso resolver uma coisa com Tessa antes. É importante. Ralph é pai. Ele entendeu.
– Tudo bem. Mas lembre-se, preciso ligar para ele às 15h.
– Aliás, encontraram suas malas?
Uma tempestade de raiva nublou sua resposta monossilábica.
– Não.
– Eu ofereceria algumas das minhas camisas paar você, mas eu acho que elas podem ficar um pouco grandes no bíceps pra você.
– Ah, você é muito engraçado. Estou tentado a contar para você como eu me sinto em relação às companhias aéreas, mas você sabe o que minha mãe sempre diz.
– O quê?
– Se você não consegue pensar em nada bom para dizer, atire em algo e depois volte ao trabalho.
Pisquei. Eu havia conhecido a mãe de Ralph, e não estava certo se ele estava brincando.
– Ela não falou isso.
– Bom, deveria falar. Apareça aqui o mais cedo possível.
Encerramos a ligação, então dei mais uma olhada pelo escritório de Cassandra e voltei para o saguão principal para conversar com minha filha adotiva, o conselho
da mãe de Ralph perturbadoramente me lembrando do que havia acabado de acontecer na câmara de filtragem.
Encontrei Tessa me esperando ao lado do tanque com as barracudas. Ela recuou quando me viu se aproximando.
– Ei, escute – falei o mais delicadamente possível. – Me desculpe por ter ficado tão bravo. Você me entende, não é?
Silêncio.
– É que eu me preocupo demais com você. Você é a pessoa mais importante do mundo para mim. Eu te amo. Não quero que nada aconteça com você – pensei que ela iria
discutir comigo, ou fazer um comentário sarcástico do tipo “Oh, você tem o costume de sempre atirar nas pessoas que você ama?”, mas ela não o fez.
– Eu ia fazer o que você disse – não detectei nenhum traço de raiva na voz dela, somente um fio de solidão. – Em relação a não ficar andando por aí sozinha, ou sei
lá. Mas aí eu vi dois tubarões comerem um peixe, tipo, na minha frente, e eu meio que pirei. Saí procurando por você.
Ela veio procurando por mim.
Ela veio procurando.
– Escute, está acontecendo uma porção de coisas nesse caso, agora...
– Está tudo bem. Eu entendo. Sei que você provavelmente está bravo e tal, mas eu estava querendo passar um tempo sozinha hoje. Só pra relaxar. Se estiver tudo bem.
Ela perambula pelas portas dos fundos do aquário e agora quer que eu dê a ela mais liberdade? Sem chance.
– Eu acho que não, Tessa.
Ela me lançou uma pergunta vinda do nada.
– Você viu o jawfish16.?
– O quê?
– O jawfish – ela pontou para uma exibição próxima, logo após o tanque das barracudas. – Um jawfish macho carrega os óvulos em desenvolvimento de seus filhotes em
sua boca. Você sabia disso?
– Não, mas estou feliz por não ser um jawfish – ela havia me cortado, mudado de assunto. Pensei se ela estava realmente me escutando. Comecei a ficar mais irritado.
– Outros peixes fazem isso também – ela disse. – Como o aruanã. Mesmo após seus filhotes nascerem, o macho continua carregando os peixes jovens em sua boca, para
protegê-los enquanto crescem.
Ah.
Então isso não era uma conversa sobre peixes.
– Como ele faz para saber quando deve deixar os peixes jovens saírem? – perguntei.
Ela olhou para as barracudas, e daí para o jawfish.
– Quando eles estiverem grandes o suficiente para se virarem por conta própria, então ele os deixa ir embora. Eu acho que às vezes eles provavelmente vão onde não
deveriam, mas ele confia neles, mesmo eles não sendo perfeitos.
Senti minha garganta apertada.
– E os peixes jovens voltam?
– Talvez – ela disse. – Se o pai deles os fazem se sentir seguros. Suspirei.
– Você é boa, sabia disso? Você é muito boa – mais cedo, ela havia me convencido a trazê-la comigo, agora ela tinha quase conseguido me convencer a deixá-la ir embora
sozinha.
Ela sorriu suavemente.
– Então – eu disse. – Você quer sair da minha boca e dar uma nadada sozinha por aí por um tempo.
– Eu vou voltar.
– Aonde você vai?
– Não sei. Talvez passear no centro um pouco. Na verdade, eu preciso passar no hotel antes. Tudo bem?
– Espere um pouco. Deixe-me pensar sobre isso – tentei separar minha frustração dos meus sentimentos, minha confiança da minha hesitação, minha...
– Então?
– Quieta, estou pensando.
Ela esperou cerca de quatro segundos.
– Então?
– Ainda estou pensando.
– Você pensa devagar.
– Me insultar não vai ajudar no seu caso.
– Desculpa, não foi de propósito. Que tal assim: você pensa bem mais rápido do que a maioria dos homens da sua idade.
– Isso conta como insulto.
Faça ela se sentir segura. Esse é seu trabalho. Ela sempre vai se sentir segura para nadar de volta.
– Tudo bem, Tessa. Aproveite a tarde. Nós dois teremos um pouco de espaço. Mas se eu ligar para saber de você, não torne as coisas difíceis para mim.
– Contanto que você não ligue, tipo, a cada cinco minutos.
– Eu quero que saiba que você é mais importante pra mim do que o meu trabalho. Você sabe disso, né?
Ela ficou quieta por um momento, e então, sem nenhum sarcasmo ou desprezo, disse:
– Sim, eu sei disso.
– Eu faria qualquer coisa por você.
– OK, sei que você me ama, mas não vamos exagerar nessa coisa de pai carinhoso, certo?
Bom, de volta ao normal.
– E vamos jantar juntos – eu disse. – Vou pensar na hora e no lugar depois. Ela acenou com a cabeça:
– Pode ser.
Fomos em direção à porta.
– Então, conta pra mim. Você tinha preparado esse discurso do jawfish ou você inventou na hora?
– Sou muito boa em improvisos – ela disse. – Então, posso voltar para o hotel com a agente Jiang?
– A agente Jiang?
– É. Você que disse para eu ir. Lembra? Que eu deveria pegar carona com ela para ver como ela dirige.
– Tudo bem. Então de noite a gente se encontra para jantar – passamos pela bilheteria em frente ao peixe tropical. – Aliás, você já ouviu falar sobre as ampolas
de Lorenzini?
– Não. O que são?
– São órgãos eletrossensoriais encontrados na cabeça de um tubarão. Um pesquisador chamado Lorenzini os descobriu.
– Hum – ela disse. – Que coisa, não?
Enquanto saíamos, um homem vestindo um terno que custava mais do que eu ganhava em uma semana passou por nós, quase trombando comigo.
– Olhe por onde anda – ele resmungou.
Então Lien-hua encontrou-se com Tessa e comigo lá fora, na frente da escada, e enquanto elas iam embora, vi uma viatura cantando pneus e parando bem num local onde
era proibido estacionar.
O detetive Dunn saiu do carro e lançou uma bituca de cigarro na calçada. Nunca é um bom sinal ver um detetive de homicídios aparecer durante uma investigação de
pessoa desaparecida. Torci para que isso não quisesse dizer que o corpo de Cassandra havia sido encontrado.
Decidi que antes de ir ver Ralph, eu precisava conversar com o detetive Dunn.
37
No caminho de volta para o hotel, Lien-hua tentou maneirar na velocidade. Afinal, ensinar maus hábitos para Tessa não seria a melhor maneira de cultivar a amizade
de Pat.
Tessa estava sentada silenciosamente, olhando pela janela. Lien-hua achou que seria educado iniciar uma conversa, mas ela não queria que a filha adotiva de Patrick
sentisse que estava sendo analisada psicologicamente.
Comece com algo seguro.
– Então, Tessa, o que você achou do aquário? Não dos bastidores arrepiantes, mas dos peixes. Dos tubarões.
Tessa deu de ombros.
– Ah, eu gostei, mas vi dois tubarões comendo um peixe. Foi muito nojento. Eu não gosto de ver coisas morrendo.
Ah, ótimo assunto para puxar uma conversa.
– Bem, nós temos isso em comum, então. Eu também não gosto de ver coisas morrendo – mude de assunto, mude de assunto. – Eu ouvi Pat chamando você de Raven. É o seu
apelido?
– Só pra ele, pra mais ninguém.
– Você não gosta?
– Não, eu gosto. Mas não conte a ele. Eu nunca tive um apelido antes. Eu gosto de Raven – Tessa fez uma pausa. Olhou pela janela, para as nuvens. – Às vezes eu gostaria
de poder voar como eles. Hoje eu imaginei que estava voando com os tubarões.
– Enquanto eles nadavam sobre sua cabeça?
– Sim. Eu pensei que seria legal nadar com eles. Eu costumava nadar muito quando era pequena. Por um tempo eu até quis ser salva-vidas – ela virou o olhar para Lien-hua.
– Você nada?
– Não, eu nunca aprendi. Cá entre nós, eu sempre tive um certo medo de água.
– Medo de se afogar?
Lien-hua batucou com os dedos no volante do carro.
– Você está com fome, Tessa? Quer pegar algo para comer?
– Estou bem.
Lien-hua reparou na quilometragem. Mais nove minutos até o hotel.
– Então, agente Jiang, seu primeiro nome, Lien-hua, o que significa? Ótimo. Um assunto tranquilo de novo.
– Quer dizer “lótus”. Minha mãe era budista...
– Era? Por que, ela se converteu a alguma outra coisa?
– É que ela morreu, Tessa. Em um acidente de carro. Há três anos. Morte novamente. Por que essa conversa precisa que ficar voltando
para morte?
– Oh, me desculpe, eu não queria...
– Tudo bem.
Um silêncio tenso. Elas haviam ambas perdido suas mães prematuramente. Não temos uma relação de sangue, pensou Lien-hua, mas somos irmãs na tristeza.
Após alguns instantes, quando pareceu o tempo certo para continuar sua explicação, Lien-hua disse:
– Muitos budistas consideram a lótus a flor mais bonita do mundo. Ela cresce na lama, mas floresce pura e branca, sem ser manchada pelo solo. O Sutra do Lótus é
um dos textos budistas mais sagrados.
– Um sutra. Isso é um discurso, certo?
– Sim. Um ensinamento de Buda. No Sutra do Lótus, o lótus representa como os humanos vivem em um mundo corrupto, mas podem alcançar a iluminação e viver vidas não
corruptas, com felicidade e beleza absolutas, livre das ilusões da vida – Lien-hua parou por um momento. A frase seguinte lembrava a ela demais do incidente sobre
o qual ninguém na família dela falava. Era difícil dizer as palavras. – Então, quando eu nasci, me dar o nome de lótus parecia um bom jeito de honrar a fé da minha
mãe.
– Então você acredita nisso também? – perguntou Tessa. – Tudo isso sobre iluminação e felicidade e tudo mais.
Lien-hua quase perdeu a entrada, jogou o carro para a direita, se esgueirou entre uma SUV e uma minivan – ambas com bebês no banco de trás, ambas dirigidas por mulheres
falando ao celular – e caiu na Five.
– Desculpe por isso – Lien-hua disse.
– Não, não tem problema – disse Tessa. – Patrick estava certo.
– De qualquer maneira, para responder sua pergunta, bem... eu costumava acreditar nessas coisas, mas nesse trabalho... bem... acho que vi corrupção demais nas pessoas
para continuar acreditando nelas. Eu acredito que podemos viver vidas belas, Tessa, vidas maravilhosas, mas nós não estamos apenas enraizados nesse mundo, nós também
somos parte dele. Eu acho que nunca conseguiremos ser perfeitamente livres ou puros. Nós não conseguimos nos erguer acima de quem somos.
Após uma longa pausa que acabou ficando desconfortável, Tessa perguntou delicadamente:
– Alguma outra pessoa pode nos erguer?
A pergunta da garota a pegou desprevenida. Lien-hua procurou pelas palavras certas. Pela resposta certa. Não encontrou nenhuma.
– Não sei, Tessa. Acho que eu nunca havia pensado nisso dessa maneira.
Quando Lien-hua estava falando sobre como as pessoas são corruptas, mas também belas, Tessa pensou que, por um pequeno instante, ela soava como sua mãe.
Quando a mãe de Tessa havia descoberto que estava morrendo por causa do câncer de mama e que a quimioterapia não estava fazendo efeito, ela contou a Tessa que todo
mundo tem um tipo de câncer um dia. Tessa não tinha entendido o que ela queria dizer, mas então, sua mãe, que frequentava a igreja com muita fidelidade, explicou:
– Até Jesus sabia disso. Está escrito na Bíblia que ele não acreditava nas pessoas porque ele entendia a natureza humana. Ele sabia como a humanidade era de verdade.
– Isso está na Bíblia?
– Não a frase exata – sua mãe havia dito. – Mas está lá. Segundo capítulo de João, os últimos dois versículos. Nós temos câncer no coração, Tessa. O mal não penetra
na gente. Jesus disse isso também. Ele já está lá, em nossos corações; sempre procurando uma maneira de aparecer.
Corrupto.
Enraizado nesse mundo.
Assim como a agente Jiang disse.
E assim como a agente Jiang, a mãe de Tessa não acreditava que as pessoas podiam se tornar puras; porém, sua mãe acreditava que as pessoas pudessem ser purificadas,
removidas da sujeira quando elas encontravam Deus procurando por elas. Como sua mãe costumava dizer:
– Ninguém alcança a Luz sozinho, mas a Luz pode nos alcançar – da última vez que Tessa viu sua mãe, antes dela morrer, ela perguntou: – Então, mãe, o que Deus estava
fazendo quando você o encontrou?
E a resposta de sua mãe a deixou atordoada.
– Estava me balançando com as duas mãos, tentando me acordar.
Mas agora que Tessa pensou em sua mãe novamente, nas palavras dela, em sua morte, a sensação de que a agente Jiang era como sua mãe passou rapidamente.
A agente Jiang não era como sua mãe. Não, ela não era. Não mesmo. Tessa pegou o hidratante de dentro de sua bolsa e puxou a manga de sua camiseta.
– Então – ela disse. – É por isso que você entrou para a polícia? Para lutar contra a corrupção no mundo? – ela começou a massagear o hidratante sobre a cicatriz
que o assassino havia feito.
Lien-hua ficou em silêncio por um momento.
– Uma pessoa que eu conhecia foi morta. Uma pessoa muito próxima.
– Então, vingança?
– Talvez. Um pouco. Talvez para tentar fazer alguma diferença. Motivos não são assim tão fáceis de se apontar.
– É, é isso que Patrick diz.
– Tenho certeza que é.
Tessa espalhou um pouco mais de hidratante em sua mão e passou contra a cicatriz.
Esfregou.
Bom, aí está. Essa cicatriz aqui prova o quanto as pessoas são corruptas. O mau saindo do coração de alguém e me machucando para sempre.
Elas pararam no estacionamento do hotel e a agente Jiang disse:
– Dói perder aqueles que amamos, Tessa. Não é sempre que sabemos o que fazer em relação a isso. Então nós fazemos o que temos que fazer. Nós todos encontramos jeitos
diferentes de lidar com nossa dor e nossa perda.
Tessa parou de esfregar a cicatriz. Dor e perda. É, ela conhecia tudo sobre isso. A perda de sua mãe. A memória dolorosa de como ela ganhou sua cicatriz.
Tessa podia lidar com as cicatrizes que ela mesma havia feito enquanto tentava lidar com a perda de sua mãe. Essas eram problema dela, e não a incomodavam tanto.
Mas a cicatriz que o cara havia feito nela no último outono, aquela era diferente. Com aquela ela não queria ter mais nada a ver, nunca mais. E não importava o quão
forte ela a esfregava ou passava aquele hidratante idiota nela, ela nunca iria embora. Deveria ter percebido isso semanas atrás.
Se ela pudesse se livrar daquilo. Cobri-la. Nunca mais vê-la novamente.
Nós todos encontramos jeitos diferentes de lidar com nossa dor e nossa perda.
Tessa desceu a manga, fechou o frasco de creme e colocou-o em sua bolsa.
Tentar curar sua cicatriz não havia funcionado.
Talvez fosse hora de tentar um outro jeito de lidar com isso.
Um jeito de nunca ter que olhar para ela de novo.
Quando ela saiu do carro e a agente Jiang se despediu, Tessa pegou seu celular, acessou o mecanismo de busca no navegador da Internet e digitou as palavras-chave
“Estúdio de Tatuagem, San Diego, CA”.
38
Minha conversa com o detetive Dunn a respeito de Cassandra Lillo foi breve e direta. Ele me disse que o corpo de Cassandra não havia sido encontrado, mas se um corpo
fosse encontrado – dela ou de qualquer outro – estaria na jurisdição dele, não minha. Ponto.
Suas palavras me deixaram tanto aliviado quanto incomodado. Eu ainda não tinha nenhuma pista do porquê a Homicídios estava envolvido nisso e, a menos que o tenente
Graysmith tivesse mudado de ideia ou o detetive Dunn fizesse um transplante de personalidade nos próximos dias, eu não poderia contar com a ajuda deles para descobrir.
Também, nós não tínhamos nenhuma pista sólida sobre o paradeiro de Cassandra Lillo ou Austin Hunter. Nós nem sabíamos ao certo se eles haviam cometido – ou sido
vítimas de – um crime.
Depois da minha conversa com Dunn, verifiquei minha caixa de mensagens de voz. Duas mensagens.
Primeiro, a placa do Mustang foi identificada como pertencendo a ex--detento chamado Suricata Horan. Histórico de assalto, uma condenação por assassinato, preso
por um tempo no Novo México. Típico matador de aluguel. Imaginei que pudesse encontrá-lo, bater um papo, mas a esse ponto seria provavelmente uma perda de tempo.
Caras com esse tipo de ficha criminal quase nunca entregam as coisas a não ser que você tenha algo muito específico para eles. Mas anotei seu nome para me lembrar
enquanto o caso se desenrolasse.
Quando ouvi minha segunda mensagem, fiquei surpreso em ouvir uma antiga voz familiar: “Patrick, meu garoto, estou dando uma palestra na UCLA hoje e ouvi dizer que
você está por perto. Se você conseguir subir pra cá, talvez possamos nos encontrar para jantar. Por favor, não me traga um anel”.
O homem não precisava dizer quem era, reconheceria sua voz em qualquer lugar. Dr. Calvin Werjonic, PhD e doutor em Jurisprudência. Meu mentor.
Calvin havia sido pioneiro no campo da criminologia ambiental há mais de 40 anos. Mas computar e correlacionar todos os fatores que afetam aspectos espaciais e temporais
de um crime é tão complexo que apenas sistemas operacionais de computadores avançados podem lidar com os algoritmos em um período de tempo gerenciável e útil, então
apenas nas duas últimas décadas a tecnologia havia avançado a ponto de suas teorias sobre criação de perfis geográficos e investigação espacial poderem realmente
ser implementadas. Calvin é um homem brilhante, e gentil, uma lenda no campo da investigação criminal, e um amigo de longa data. Eu o havia visto semana passada
na CNN, e mesmo ele tendo mais de 70 anos, parecia lúcido e incisivo como nunca.
Eu apresentava seminários sobre criminologia no mundo inteiro, mas na presença do Dr. Calvin Werjonic, ainda me sinto como um estudante do ensino fundamental.
Sabia que não poderia ir até Los Angeles, não com esse caso ficando quente, mas enquanto me dirigia ao escritório local do FBI, retornei a ligação de Calvin e perguntei
se ele poderia passar por San Diego antes de retornar para seu escritório em Chicago.
– Calvin, seria ótimo vê-lo. Além disso, eu não ligaria de conversar sobre esse caso com você e... bom, conversar sobre o caso.
– Entendo – disse ele, pensativo. – Então você está com um problema pessoal sobre o qual gostaria de discutir e que é tão sensível que não quer nem mencionar pelo
telefone. Você esperava tocar no assunto despretensiosamente durante o curso de nossa conversa, sem dúvida.
Às vezes, ter amigos que são investigadores profissionais pode ser bem desagradável.
– Algo do tipo – respondi. – Então você acha que pode me encontrar aqui? E, para minha surpresa, ele aceitou.
– Sim, bem, eu acredito que posso, garoto. Vou alterar minhas conexões de voo e passar por aí antes de partir para Munique amanhã à noite. Nos encontramos de manhã
então – 10h30, no estacionamento ao lado do Alcazar Garden, no Balboa Park. Traga seus calçados de caminhar e um pouco daquele café que você gosta. Tenho 1,88m e
cabelos grisalhos. Estarei usando uma...
– Calvin, são detalhes suficientes. Estou certo de que vou reconhecer você.
– Sim, é claro. Tudo bem, garoto, te vejo lá.
Alguns minutos após terminar nossa conversa, cheguei para o encontro com Ralph no escritório local do FBI.
Você não saberia que o imponente edifício verde e marrom na Aero Drive era um edifício federal apenas olhando para ele. Não havia placa, apenas o número da rua e
as janelas escuras e espelhadas, câmeras de vídeo proeminentes e a cerca de segurança faziam-no parecer com qualquer um dos outros inúmeros complexos de escritórios
no corredor biotecnológico de San Diego.
Não, você nunca saberia que o número 9797 da Aero Drive era um escritório local do FBI a menos que alguém o dissesse.
Não há nada mais eficaz do que se esconder em plena vista.
Quando entrei na instalação, liguei para Terry. Se alguém poderia nos dar acesso à conta do Gmail de Austin Hunter, era ele.
– Ei, Terry, é o Pat.
– Oh, não.
– O quê?
– Sempre que você me liga quer dizer que estou prestes a fazer algo ilegal.
– Sim, mas você pode cobrir os seus rastros tão bem que nunca será pego.
Eu podia ouvi-lo digitando em seu teclado. Ele estava provavelmente na sede da NSA em Fort Meade, Maryland, porém era difícil dizer. Ele muitas vezes trabalhava
de um de seus locais remotos reservados.
– Escute – eu disse, – estava imaginando se você poderia invadir a conta do Gmail de alguém. Tenho o endereço aqui.
– É isso? Minha sobrinha de 13 anos poderia fazer isso pra você.
– É um caso importante, Terry. Acho que pode nos ajudar a rastrear uma mulher desaparecida.
Sem nenhum momento de hesitação:
– Pode falar.
Dei a ele o e-mail de Austin Hunter.
– A senha pode estar criptografada – expliquei. – Ela era uma SEAL da Marinha. Ele pode ter tomado precauções extras.
– Senhas foram feitas para serem quebradas. Os chineses têm toda uma divisão de hackers militares. Em junho de 2007 eles conseguiram invadir o banco de dados do
Departamento de Defesa e baixar programas de navegação de submarinos antes que pudessem desligar aquela parte do sistema.
– Eu nunca ouvi falar disso antes – eu disse.
– Isso é porque, de acordo com ambos os governos, chinês e americano, nada aconteceu – mais digitação no teclado. – Eu sou tão bom quanto os chineses. Fique na linha
– ele disse. – Isso só vai levar um minuto.
– Estou entrando no elevador – eu disse. Olhei para o meu relógio. Terry era rápido, vamos ver quão rápido. – Me ligue de volta em três minutos.
Victor Drake bateu a porta de seu escritório.
Ele havia acabado de sair de uma reunião inútil – completamente inútil – no aquário com aquele imbecil do Warren Leant. O homem não tinha noção, e em breve não teria
emprego.
A polícia estava por toda a parte naquele aquário. Por toda a parte.
Desde o começo do projeto, Victor havia exigido que os pesquisadores do Projeto Rukh mantivessem apenas cópias em papel de seus arquivos e não deixassem nada delicado
em seus computadores. Afinal, qualquer um com meio cérebro sabia como invadir um sistema hoje em dia, e em um projeto como esse, você não pode correr esses tipos
de riscos.
Felizmente, parecia que a srta. Lillo tinha seguido o protocolo e mantido apenas notas impressas, e tinha enviado elas pelo correio para o Edifício B-14. Porém,
enquanto os policiais idiotas estavam zanzando pelo nível inferior, Victor conseguiu se esgueirar para dentro e apagar o disco rígido da srta. Lillo só por precaução.
Victor avaliou sua situação. Ele ainda não possuía a informação reunida para o general, que deveria estar chegando em menos de 48 horas, e ele ainda não tinha nenhuma
ideia de onde estava Austin Hunter – ou para onde aquela biscate da Cassandra Lillo havia fugido.
Nada bom. Nada bom. Nada bom.
Ele precisava tomar o controle de toda a situação. Talvez encontrar-se com o dr. Kurvetek e aqueles dois gorilas, Geoff e Suricata. Descobrir o que fazer se Austin
Hunter ou Cassandra Lillo decidissem procurar as autoridades.
Victor pegou o telefone e, mesmo se sentindo incomodado por depender de outras pessoas para ajudar a resolver seu problema, ele digitou o número de Geoff.
Menos de um minuto e meio depois as portas do elevador se abriram e meu telefone tocou. Terry.
– O último e-mail que Hunter recebeu tem um anexo de vídeo – ele disse intensamente. – E... você precisa ver isso, Pat.
– Me conta.
– Você vai ter que assistir.
Entrei na sala 311 e fiz um sinal com o dedo para Ralph dizendo que sairia do telefone num momento.
– Terry...
– Estou mandando para você agora.
Eu estava ficando irritado, mas eu não queria perder tempo discutindo.
– Tudo bem, obrigado...
– E ouça, há muita conversa aí fora agora. Imagino que você não tenha ouvido nada, logo irá. Queria que fosse eu que contasse pra você. Ele voltou.
– Quem?
– Sebastian Taylor. Ele foi avistado semana passada em Washington. O comentário de Terry quase me fez esquecer sobre o vídeo. Taylor era o governador da Carolina
do Norte até alguns meses atrás. Antes disso, ele havia trabalhado oficialmente como um diplomata transcontinental para o departamento de Estado. Porém, em outubro,
Terry havia me ajudado a descobrir o outro trabalho não-tão-oficial de Sebastian Taylor com a CIA. Como resultado, revelei Taylor como um assassino e ele acabou
matando um homem a sangue frio, e quase conseguiu me matar também. Ele esteve foragido desde então.
– Alguma pista? – perguntei.
– Não, mas acredite em mim, estão procurando – ele fez uma pausa e depois continuou. – Assista ao vídeo, Pat. Encontre essa mulher. Faça isso rápido. Você só tem
até às 20h.
Seu tom de voz me deu calafrios.
– Terry, quando desligar, me ligue de volta para uma conferência em vídeo. Eu posso ter algumas perguntas para você depois de assistir a isso.
Finalizei a ligação e liguei a webcam do meu computador. Então me posicionei ao lado de Ralph e atualizei-o rapidamente sobre o caso do incendiário e o desaparecimento
de Cassandra. Ele acenou com a cabeça. Ouviu. Fez algumas anotações. Então contei para ele que Sebastian Taylor havia sido visto.
– Eu estava com um pressentimento de que ele apareceria novamente
– Ralph resmungou. – Só espero que ele apareça aqui em algum lugar perto de mim – Ralph levou um momento para redirecionar seus pensamentos. – Aliás, liguei para
Lien-hua. Ela está a caminho.
Acenei com a cabeça e então conectei meu computador à grande tela de alta definição na parede para que tanto Ralph quanto eu pudéssemos assistir ao vídeo.
Então o rosto de Terry apareceu na tela do meu computador.
– Prepare-se – ele disse. – É intenso.
Abri o anexo em vídeo no e-mail e pressionei Play.
39
O vídeo começou com um close em um olho humano. Castanho escuro. Injetados de sangue. Uma lágrima pendurada na ponta dos cílios. O rímel borrado me dizia que era
o olho de uma mulher, e parecia que ela havia chorado por um bom tempo.
A imagem se manteve nisso até a lágrima cair tristemente de seus cílios. Então a imagem lentamente se afastou para revelar o resto de seu rosto. Eu a reconheci imediatamente
pela foto que havia visto no crachá em sua bolsa.
– É Cassandra Lillo – cochichei para Ralph. – A mulher desaparecida.
Após um momento, Cassandra olhou para cima, para baixo, de um lado para o outro como se estivesse procurando por alguma coisa.
Outra lágrima caiu.
O único áudio era o som da respiração lenta e pesada de um homem. O câmera.
Meu coração disparou. Eu não gostava disso. Já sabia que o vídeo não teria um final agradável.
A imagem continuou a se afastar até os ombros de Cassandra aparecerem. Eu podia ver que ela estava de pé em frente à câmera, mas eu não sabia dizer onde. O fundo
estava desfocado. Ela estremeceu e um leve arrepio percorreu seu corpo. Duas alças de vestido estavam penduradas em seu ombro.
Senti o coração martelando em meu peito.
A respiração do câmera continuava se acelerando. A imagem se ampliou, e pude ver que Cassandra estava com um vestido de festa vermelho. Talvez de seda. Parecia caro.
Ela estava incrivelmente linda.
E com muito, muito medo.
Outro arrepio passou por ela. Ela tremeu.
O centro da imagem refletia um leve brilho, e agora percebi o por quê.
Ela estava de pé atrás de um painel de vidro.
Me inclinei para perto. A imagem se alargou.
Não, não apenas um painel de vidro. Cassandra estava dentro de um enorme tanque. Se ela tinha 1,80 m, o tanque deveria ter uns três metros de largura, altura e comprimento.
Oito canos, inseridos através de buracos no vidro, formavam a parte de cima do tanque, os espaços entre eles fornecendo o ar para a respiração dela.
A câmera se inclinou e o vídeo passou por seu corpo, até suas pernas, para mostrar que ela estava descalça e imersa em água até os joelhos. Havia algo em torno de
seu tornozelo.
A câmera parou para um closeup e eu vi que seu sequestrador havia prendido um grilhão em seu tornozelo esquerdo. Uma corrente ia da algema até um anel enferrujado
no fundo do tanque.
Meu coração batendo, batendo.
Cassandra chutava a corrente inutilmente. Seu tornozelo estava em carne viva de tanto chutar, mas ela parecia não se importar. O único som ainda era da respiração
do câmera; agora mais rápida, porém. Ela chutou novamente, mais forte. Sua respiração acelerou. Ele estava excitado com o que via. Nenhum som dos gritos de Cassandra.
Nenhum som de água espirrando ou da corrente.
Então, a câmera moveu-se para o canto superior do tanque onde um cano cinza estava derramando um fluxo fraco porém constante de água.
Não, não, não.
Ele vai afogá-la. Ele vai filmá-la enquanto ela morre.
Senti uma onda da mesma raiva fria e aterrorizante que eu havia sentido 13 anos atrás quando vi o que Richard Basque tinha feito com Sylvia Padilla no matadouro.
Angústia e terror me inundavam.
Do que humanos são capazes...
O que humanos fazem...
De repente, Cassandra fechou suas mãos em punhos desesperados, fechou os olhos apertados, jogou a cabeça para trás e gritou – mas para nós, seu horror de gelar o
sangue permaneceu silencioso, mudo, sobreposto pela respiração do câmera. Ver Cassandra ali de pé gritando com toda a força de seus pulmões, e ainda assim não fazendo
barulho nenhum, me deu calafrios. Era mais perturbador, mais arrasador do que se eu pudesse ouvi-la.
Meu coração arrebentava-se contra meu peito.
Ela gritou até ficar sem fôlego, e então deu outro berro silencioso novamente enquanto a câmera girava para o lado para revelar palavras em vermelho escuro, a cor
do sangue, rabiscadas no reboco cinza de uma parede próxima:
Liberdade ou dor?
Você decide.
20h
Finalmente a câmera voltou para Cassandra, uma última vez. Ela havia caído no chão do tanque e estava agora sentada tragicamente na água. Sua mãos cobriam seu rosto.
Seus ombros balançavam enquanto ela chorava. A água batia e voltava contra o vidro.
Então, o vídeo sumiu numa tela preta, e tudo que podíamos ouvir era o som do câmera respirando, até isso também sumir.
Então tudo ficou escuro, imóvel e silencioso.
Exceto pelo barulho ensurdecedor do sangue correndo, bombeando, gritando através do meu coração.
40
14h49
5 horas e 11 minutos até o limite de Cassandra
Ralph e eu nos sentamos em silêncio depois de assistir o vídeo. Terry olhava para mim silenciosamente na tela do computador. O tempo passou e passou novamente. O
silêncio na sala parecia de um solo sagrado, e nenhum de nós queria ser o primeiro a invadi-lo.
Ralph estava fechando e abrindo seus punhos.
– Terry, garanta que isso não será postado em nenhum lugar na Internet. Você conhece Angela Knight na nossa divisão de crimes cibernéticos?
– Sim, ela é boa.
– A melhor – Ralph olhou para seu relógio, sem dúvida pensando nas três horas de diferença para Quantico. Eu sabia que Angela trabalhava de noite, entrava às 17h.
– Ligue para ela – ele disse para Terry, – e passe para ela uma cópia disso. Faça ela varrer a Internet, procurar por qualquer postagem. Se isso estiver na Internet,
eu o quero derrubado. Agora.
– Ok – Terry começou a digitar em seu teclado. – Se estiver lá, nós tiraremos. Vamos também analisar o vídeo, a ressonância digital, o conteúdo. Tudo.
– Ótimo – eu disse. – Quando o e-mail foi enviado?
– Às 8h51 da manhã.
– Você sabe dizer de onde veio?
Eu vi Terry consultando algumas anotações feitas à mão ao lado de seu computador.
– Quem mandou isso sabe como esconder suas trilhas. Ele criou isso como um spam e o enviou através de um roteador de spam na Ucrânia. Desde a hora em que abri o
arquivo, coloquei meu computador para rastreá-lo – ele olhou para as anotações. – Até agora estamos entre 17 transferências em quatro países. Poderia levar de 10
a 12 horas para encontrar a fonte original.
Balancei minha cabeça.
– Nós não temos...
– Eu sei – disse ele. – Eu sei.
– Tudo bem – disse Ralph. – Continue nisso.
– Terry – eu disse, – tenho alguns arquivos criptografados para você do computador de Cassandra. Vou enviá-los. Veja o que você consegue decifrar.
– Feito.
Após encerrarmos a conversa e eu ter enviado a ele os arquivos, perguntei para Ralph:
– Você consegue dizer que tipo de construção é aquela onde está o tanque? Ele balançou a cabeça.
– Difícil dizer. Chão de concreto... praticamente qualquer porão na Califórnia, ou então, talvez, uma garagem. Poderia ser uma fábrica abandonada, uma sala de caldeiras
em algum lugar. Qualquer um das centenas de armazéns perto dos estaleiros.
– Tá certo – eu disse. – Então a menos que Austin Hunter tenha enviado esse vídeo para si mesmo, ele não é mais nosso suspeito principal pelo desaparecimento de
Cassandra.
– Exatamente – ele disse.
– Vamos assistir novamente. Mas dessa vez, olhe para tudo exceto Cassandra. Quem gravou esse vídeo estava se concentrando nela, distraído por ela. Dava para ouvir
pelo jeito que sua respiração mudava. Ele pode ter se descuidado, deixado algo aparecer no vídeo que possa nos ajudar a encontrá-la. Clique novamente em Play.
Estávamos no meio da segunda exibição quando Lien-hua chegou. Eu a vi de pé, congelada ao lado da porta. Quando o vídeo acabou, seus lábios se separaram como se
ela fosse dizer algo, mas não disse. Ela balançou a cabeça; seus olhos, intensos. Amedrontadoramente intensos. Não acho que Ralph tenha percebido. Mas eu sim.
– Essa é Cassandra? – perguntou ela.
Acenei com a cabeça.
Ela sentou-se ao meu lado.
– Passe novamente.
Passei.
E quando terminou, um momento de silêncio dominou a sala novamente.
Lien-hua pegou seu bloco de anotações.
– Certo, pelo menos temos o tempo ao nosso lado.
– Por que você diz isso?
– Depois de todo o trabalho construindo aquele tanque, sequestrando Cassandra, acorrentando ela dentro, é improvável que ela vá mudá-la de lugar. Se conseguirmos
encontrar onde ela estava quando ele fez o vídeo, nós encontramos onde ela está agora.
Suas palavras soaram corretas para mim.
– Ok – olhei para meu relógio. – São 15h01. Assumindo que 20h seja realmente o nosso limite, isso nos dá menos de cinco horas para encontrar Cassandra – coloquei
o cronômetro do meu relógio para disparar em quatro horas e meia.
– Lien-hua, o que você achou disso? – perguntou Ralph. – O que chamou sua atenção quando você viu o vídeo?
– Tudo é específico: os ângulos da câmera, o tempo das tomadas, o tanque. Tudo faz parte da fantasia dele. A câmera não treme. Não há hesitação. Ele já fez isso
antes. Cassandra não é sua primeira – essa era a praia dela. Criar perfis. E mesmo eu não querendo admitir, suas observações pareciam estar muito corretas.
– Tudo bem – disse Ralph, – antes de começarmos qualquer coisa, vou ligar para o departamento de polícia, ver que tipo de ajuda eles podem nos dar. Talvez a postura
do tenente Graysmith mude quando ele ver esse vídeo. Também preciso ligar para o diretor Rodale do FBI para informá--lo. Nos encontramos aqui de volta em cinco minutos
– eu estava feliz que Ralph estava aqui para tomar as rédeas, desse jeito eu podia me focar mais no caso do que em coordenar uma equipe.
Enquanto ele fazia suas ligações, eu saí da sala para beber água no bebedouro no fim do corredor, as palavras presa paralisada ecoando na minha cabeça novamente.
Shade ligou para Melice e havia começado a dar instruções quando uma voz de mulher disse:
– Quem é?
Fim da ligação.
Foi o primeiro erro de Shade.
E Shade jurou que seria o último.
Então Melice havia se livrado do telefone, ou o perdeu. Isso não deixava Shade feliz. Não, tudo estava num equilíbrio delicado demais para se cometer erros idiotas.
Talvez rastrear e eliminar a mulher? Sim. Isso poderia ser feito facilmente. Mas por outro lado, seria melhor se manter no plano por enquanto. Só ir atrás dela caso
necessário.
Não, Shade não havia dito o suficiente a ela para causar suspeitas. Não chegou nem perto.
Shade pressionou uma tecla do celular e uma foto, enviada por um amigo, preencheu a tela. Shade observou a mulher de 22 anos em um funeral, sua tristeza capturada
com claridade digital.
Óculos escuros. Cabelos pretos.
Lien-hua Jiang.
Muito tempo antes de se tornar agente-especial. Mesmo antes de ser detetive. As lágrima em seu rosto, congeladas no tempo.
Essa era a chave, a razão para tudo que estava prestes a acontecer. Shade arrumaria outro jeito de entrar em contato com Melice. Até lá, era só uma questão de observar
e esperar e manter o foco.
Sem cometer nenhum outro erro descuidado.
Após ter feito as ligações e todos termos voltado para a sala, Ralph disse:
– Tudo bem. Isso oficialmente passou de uma investigação de pessoa desaparecida para um sequestro. Está relacionado com a investigação dos incêndios, porém. Expliquei
para Rodale que vocês dois sabem mais sobre o que está acontecendo aqui do que qualquer outro, e que precisamos da ajuda de vocês para encontrar a srta. Lillo. Ele
deu luz verde para vocês. Então, vamos resolver isso, e vamos resolver direito.
– Ótimo – eu disse, feliz em estar oficialmente no caso.
– Ok, vamos assistir novamente – disse Lien-hua.
– Dessa vez – eu disse, – vamos ser mais específicos. Ralph, procure por imagens no vidro. Antes, quando assistimos, eu vi um brilho. Talvez você consiga ver alguma
coisa no primeiro plano, um reflexo do câmera.
Ele acenou com a cabeça. Sua mandíbula, cerrada.
– Lien-hua, concentre-se em Cassandra: o jeito que ela está piscando; pode ser código Morse? Ela está balbuciando algo? Suas mãos, ela está sinalizando de algum
modo? Procure por qualquer indicação de que ela esteja tentando passar alguma mensagem.
Ela acenou com a cabeça, colocou seu bloco de anotações à sua frente e pegou uma caneta.
– Vou me focar na corrente e no cano e na mensagem na parede – eu disse.
Então comecei a reproduzir o vídeo novamente.
Dentro do escritório do armazém, Creighton Melice olhou seu relógio. Shade deveria ter entrado em contato com ele há 15 minutos, às 15h, mas ele ainda não havia
tido notícia dele desde a ligação da noite passada, ordenando-o que pegasse Cassandra. É claro, Creighton não estava com seu telefone, mas ele tinha e-mail e Shade
já tinha utilizado esse meio antes. Creighton não gostava quando as coisas não saíam conforme o combinado.
Ele olhou para a transmissão do vídeo ao vivo do tanque.
A água estava na cintura de Cassandra agora. Ela não podia mais sentar-se para descansar. Então parecia que seria uma longa tarde para ela. Ele teria preferido filmar
tudo isso em transmissão em tempo real na Internet, mas Shade havia insistido que seria muito fácil rastrear o local se eles postassem assim na Internet.
Possivelmente.
Provavelmente.
Mesmo sendo irritante como era, Shade costumava estar certo.
Mas ainda assim, teria feito meu dia muito mais satisfatório.
Ele a viu pressionando as mãos inutilmente contra o vidro. Sim. Ele usaria o tanque uma última vez com a mulher que Shade havia lhe prometido, e então tudo teria
um fim glorioso.
Ela tomou fôlego, inclinou-se para dentro d’água e puxou a corrente com as duas mãos
Deixe-a puxar.
As outras haviam tentado a mesma coisa. Aquela corrente não quebraria.
41
15h18
4 horas e 42 minutos até o limite de Cassandra
Após rever o vídeo por 25 minutos, nós fizemos apenas quatro observações que pareciam potencialmente úteis.
Ralph percebeu que o vídeo havia sido editado em diversas partes – logo após o closeup no grilhão em volta do tornozelo de Cassandra, e então dez segundos antes
do fim, quando as palavras escritas à mão apareciam, bem antes da câmera voltar para a imagem final dela sentada na água.
– Esse doente levou tempo para filmar, editar e emendar o filme – ele disse.
– Ele é paciente – Lien-hua disse, ecoando meus pensamentos. – Tem autocontrole. Quando eu era detetive em Washington, trabalhei em um caso parecido de um homem
que filmava seus assassinatos. O cuidado que assassinos desse tipo tomam na gravação de seus vídeos mostra a seriedade de suas intenções. Nosso homem não quer apenas
chantagear Hunter, ele também quer matar Cassandra. E ele vai fazer isso.
Na terceira vez que assistimos, vi o corpo de Cassandra projetar uma leve sombra sobre a água para seu lado direito. O tamanho da sombra mudava após cada uma das
partes editadas do vídeo, o que levou a supor que a fonte de luz era natural, e não artificial, e a mudança no tamanho da sombra assinalava uma mudança de tempo
enquanto o sol subia no céu.
– Terry me disse que o vídeo foi enviado para Austin Hunter às 8h51 da manhã – eu disse. – Levando em conta a altura de Cassandra e suas sombras em relação à posição
do sol no céu...
– Isso daí não é uma garagem – disse Ralph.
– Não – eu disse. – A fonte de luz no local de filmagem precisaria ser mais forte. Janelas no segundo ou terceiro andar. Então ela provavelmente está num armazém
– Ralph ligou para o Departamento de Polícia de San Diego para que eles fizessem uma prospecção do distrito dos galpões da cidade, mas eu sabia que não haveria tempo
de verificar todos.
Além disso, não tínhamos muito mais com o que continuar.
O diretor Rodale do FBI notificou Ralph que ele iria pessoalmente realocar sete agentes do escritório local para nos ajudar a encontrar Cassandra, contanto que mantivéssemos
o tenente Graysmith bem informado.
Ralph aceitou, e nós aguardamos por 15 minutos para que ele pudesse sincronizar as descobertas do FBI com o Departamento de Polícia de San Diego. Lien-hua foi para
uma sala silenciosa para trabalhar na criação do perfil do sequestrador, e eu me dirigi à porta para tomar um pouco de ar fresco e ligar para Tessa para ver como
ela estava.
42
Tessa estava em um cybercafé no centro de San Diego, navegando na Internet e pensando no tipo de tatuagem que ela queria fazer quando Patrick ligou.
– Ei, Tessa, como você está?
– Bem – ela apoiou o telefone no ombro para que pudesse continuar digitando e clicando.
– O que você está fazendo?
– Só checando meu e-mail.
– Você está no hotel?
– Não. Estou num lugar com Internet aqui perto. Você iria gostar. Eles têm todos esses cafés de nomes estranhos da América Central – Tessa estava feliz em ver que
a cafeteria também tinha impressoras. Desse jeito ela poderia imprimir exatamente o que ela queria.
– Vou ter que conhecer – disse Patrick.
– Como está o caso?
Uma pausa.
– Honestamente, quanto mais avançamos, mais complicado fica.
– Bom, pelo menos fica mais interessante – Tessa achava que sabia qual desenho ela gostava mais, mas ela deu uma olhada em mais um site de Edgar Allan Poe só para
ter certeza.
– Essa não é exatamente a palavra que eu usaria. As vidas de pessoas estão em risco.
– Não, essa parte é horrível. É que, digo, a dor, isso que é interessante.
– Do que você está falando, Tessa?
Como dizer isso sem parecer insensível?...
– Assim: pense numa boa história. Só é interessante se algo der errado. Ninguém quer ler uma história sobre uma pessoa que sempre faz o que ela deveria e consegue
o que queria. Sendo assim, as histórias do Poe são interessantes porque todo tipo de coisa ruim acontece. Em “O poço e o pêndulo”, as coisas só pioram e pioram o
tempo todo até o final, por isso, é ótimo.
– Eu ficaria satisfeito com as coisas não ficando piores e piores.
– Não é que eu queira que as pessoas se machuquem... – ela rolava a tela pelos contos de Poe até seus poemas. Ela sabia o que estava procurando, mas a disposição
do site era ruim. Muito século XX. Difícil de encontrar coisas. – É só que quando você lê uma história, você quer se preocupar com o personagem principal. Você quer
imaginar se ele vai pegar os vilões, se ele vai ficar com a garota, se ele vai sobreviver no final do livro. Não é sempre que acontece, você sabe. Quanto mais perigo,
mais interessante é a história. Nós queremos que as coisas vão piorando – ela pensou sobre aquilo por um segundo. – Talvez gostemos tanto assim de histórias porque
existe algo em nós que só que ver os outros sofrendo.
Patrick respondeu lentamente.
– Isso é um pensamento muito perturbador. Espero que você não esteja certa – Ele tomou fôlego. – Me desculpa por ter que mudar de assunto, mas não tenho muito tempo.
Estava pensando, quando você quer se encontrar comigo para jantar?
Ela parou o cursor no meio de uma página.
– Hum... Poderia ser, tipo, tarde? Eu quero sair pra andar, talvez visitar o Balboa Park, ou algo assim – não era exatamente uma mentira. Ela realmente queria sair
para andar, e ela queria visitar o Balboa Park antes de ir embora de San Diego; só não era tudo que ela queria fazer.
– Balboa Park, é? É lá que vou me encontrar com o dr. Werjonic amanhã de manhã.
– O dr. Calvin Werjonic?
– Sim, como você sabia?
– Você escreveu sobre ele nos seus livros. Nas partes em que eu...
– Em que você não dormiu.
– Isso! Talvez eu possa ir junto. Se não tiver problema.
– Bom, nós vamos conversar sobre... – Patrick parou e então deve ter decidido mudar o que iria falar porque ele acabou aceitando o pedido dela. – Claro, seria muito
bom. Tenho certeza que ele gostaria de conhecer você. Então você vai sair para andar esse tarde, certo?
Ela decidiu a tatuagem que queria. Isso. Sim. Era perfeita, mesmo, por uma porção de motivos. Tessa colocou para imprimir e começou a juntar suas coisas.
– Sim – disse ela. – Ou talvez ir dar uma olhada em algumas coisas no centro. Então nós vamos jantar.
Silêncio. Um pouco longo demais.
– Ok. Pode ser. Te ligo mais tarde para decidirmos a hora.
– Ok.
– Divirta-se. E tome cuidado.
As amigas de Tessa haviam contado para ela que nos últimos anos, os estúdios de tatuagem estavam cheios de frescura em relação aos jovens precisarem da permissão
dos pais para fazerem tatuagens. A mãe de alguém deve ter ficado maluca e processou algum estúdio em algum lugar por seu filho ter chegado em casa todo tatuado.
Por causa disso, e como Tessa ainda não tinha 18, ela precisaria ir em um tipo específico de estúdio de tatuagem – o tipo que não pediria uma autorização dos pais;
o tipo de lugar que certamente não aceitaria cheque nem cartões de crédito. Então, a primeira coisa da qual ela precisava era dinheiro. Cerca de 200 dólares, provavelmente.
Ela parou em frente ao balcão. Esperou pelas impressões.
Ela havia juntado quase 200 dólares ajudando a editar os trabalhos escolares dos alunos de sua escola – três dólares a página para revisar os manuscritos. Não era
cola nem nada do tipo, ela apenas ajudava a deixar a escrita soando mais ou menos inteligente. Era impressionante como os garotos de sua sala eram péssimos escrevendo
– e como eles estavam dispostos a pagar para alguém consertar isso. De qualquer maneira, se ela se esforçasse nisso, ela provavelmente conseguiria recuperar o dinheiro
em duas ou três semanas.
Ok, então encontre um caixa eletrônico.
Ela pagou pela impressão, pelo café e pelo tempo no computador e saiu.
Uma hora atrás, quando ela havia entrado na cafeteria, ela tinha visto um banco a meio caminho do fim do quarteirão. Eles devem ter um caixa eletrônico. Ela partiu
para o banco e espiou entre dois arranha-céus a fina faixa do céu do Sul da Califórnia sobre ela. Então ela pegou seu caderno e escreveu: “Fios de chuvas futuras
arranham o céu enquanto o concreto surge de encontro aos meus pés”.
Sim, ela poderia lapidar as palavras depois, mas não estava ruim para um primeiro rascunho.
Tessa encontrou o caixa eletrônico, inseriu seu cartão, apertou alguns números e pegou seu dinheiro.
Ok, hora de cobrir um pouco do solo corrompido.
43
15h51
4 horas e 9 minutos até o limite de Cassandra
Após ligar para Tessa, voltei para a sala de conferência. Enquanto esperava a equipe se juntar, eu não conseguia deixar de pensar no vídeo.
Eu odiava admitir, mas esse vídeo não era tão único quanto eu gostaria que fosse. Vídeos de tortura e de abuso têm se tornado perturbadoramente populares entre pessoas
que acham legal ver outros sendo mutilados, estuprados ou mortos, e que não cansam dos sites pornográficos de tortura e da nova onda de filmes chocantes de terror
e violência explícitos.
Mas, nos dias de hoje, efeitos especiais não são suficientes. Agora, os espectadores querem ver a coisa de verdade.
E finalmente, a tecnologia havia avançado o suficiente para proporcionar isso a eles.
Com o clique de um mouse, você pode assistir imagens de terroristas decapitando reféns americanos, de crianças pequenas sendo sodomizadas em um porão de algum pedófilo,
de mulheres no norte da Índia sendo estupradas em grupo por bandidos dacoit, de prisioneiros políticos birmaneses sendo torturados e assassinados. A qualquer hora
do dia você pode assistir às coisas mais horríveis que os seres humanos fazem uns com os outros do conforto de sua sala de estar. Apenas ligue um computador, navegue
até seu site de compartilhamento de vídeos favorito e assista outros seres humanos sofrendo e morrendo.
Eu só podia torcer para que o vídeo de Cassandra não tivesse sido postado ainda.
Em 2006, depois da morte do Caçador de Crocodilos, Steve Irwin, o vídeo dele sendo morto pela raia foi roubado da instalação de armazenagem da polícia em Queensland,
Austrália, e foi postado na Internet. Em algumas horas, era o vídeo mais acessado em todos os maiores sites de vídeos e ficou assim por meses. Mesmo agora, dois
anos e meio depois, ainda recebe milhares de acessos todos os dias.
Eu me lembro de Ralph conversando comigo sobre tudo isso há alguns meses.
– Curiosidade do século XXI – ele disse com uma tristeza profunda.
– Todos querem dar uma olhada sobre a faixa amarela de cena do crime, ver se tem um corpo no acidente do outro lado da estrada. Costumava ser apenas de dentro do
seu carro. Agora é no seu computador, no seu cubículo, no seu celular.
Eu balancei minha cabeça.
– Já não existe dor demais no mundo? Mortes suficientes para satisfazer as pessoas?
– Acho que não – ele disse.
Não.
Acho que não mesmo.
Talvez Tessa estivesse certa. Talvez os humanos achem a dor interessante. Talvez exista algo em nós que queira ver outras pessoas sofrendo. Eu esperava que não,
mas as evidências da vida real me fizeram pensar que ela poderia estar certa.
Creighton Melice percebeu movimento no monitor de vídeo da câmera que ele havia montado na entrada do lado sul do armazém.
Um carro de polícia.
Ele pegou sua arma e observou o carro parando no estacionamento do armazém.
Um policial saiu do carro, e então, outra pessoa.
Randi.
O armazém tinha apenas algumas portas e a maioria delas estava acorrentada pelo lado de dentro.
Mas uma das portas não estava acorrentada.
Foi para essa porta que Creighton se dirigiu. Se Randi e o policial resolveram visitá-lo, ele iria dar a eles um pequeno presente de boas-vindas.
Uma equipe de sete agentes seguiu Ralph até a sala de conferência, e todos assistimos ao vídeo juntos.
Então Ralph levantou-se e começou a caminhar.
– Até o presente momento, essa é uma investigação conjunta com a polícia de San Diego. Blair, quero que trabalhe com eles. Vasculhe o passado de Cassandra. Família,
ex-namorados, colegas, a coisa toda – um dos agentes obedeceu Ralph com um aceno. – Hernandez, descubra quais empresas nacionais poderiam fabricar um tanque como
aquele, e se algum teria sido enviado para essa região – Eu não estava surpreso que Ralph havia aprendido os nomes dos agentes quando eles chegaram durante nossa
pausa. Ele nasceu para ser líder. Era natural.
Ele olhou para mim.
– O que você acha, Pat, começar com os últimos seis meses e ir rumando para trás? Procurar por empresas no sul da Califórnia e depois nos espalharmos? – mesmo ele
estando oficialmente no comando, nós havíamos trabalhado juntos em tantos casos que era rotina para ele me consultar.
– Sim – eu disse. – Boa ideia.
Blair e Hernandez concordaram. Levantaram-se. Saíram. Lien-hua andou até o quadro-branco.
– Não vamos nos esquecer do cenário geral aqui. Quando eu era pequena, meus pais uma vez levaram minha família para o Yosemite. Eu me sentei atrás do meu pai, que
estava dirigindo. Quando carros ou caminhões nos ultrapassavam, eles passavam bem na minha janela.
Os agentes recém-atribuídos ouviam intensamente. Eu não sabia onde Lien-hua queria chegar com isso, e parecia que eles não sabiam também.
– Sempre que uma carreta ultrapassava nosso carro e eu olhava pela janela, como a única coisa que eu via era o caminhão, não parecia que nosso carro estava viajando
a 90 ou 100 quilômetros por hora, mas sim que o caminhão estava parado...
– E seu carro estava andando para trás – exclamou Ralph.
– Certo.
– Então – eu disse, finalmente entendendo. – Ponto de referência. As coisas não são sempre o que elas aparentam.
– Certo. A perspectiva que você usa para abordar um problema. Isso afeta como você enxerga a situação.
– Ok – Ralph bateu as juntas dos dedos na mesa. – Talvez nós precisemos sair do carro e olhar para isso do acostamento.
– Sim – Lien-hua disse. – Ou subir na cabine do caminhão – ela pegou uma caneta hidrográfica. – Vamos imaginar que nós sequestramos Cassandra – ela olhou pela sala.
– Por que? Qual motivo possível nós teríamos?
Um dos agentes à minha direita disse:
– Resgate.
Lien-hua acenou com a cabeça e escreveu isso no quadro. Ralph deixou ela tomar o controle da reunião sem nenhuma objeção. Ele não era o tipo de cara que se sentia
intimidado com a competência de outra pessoa.
– O que mais? – Lien-hua perguntou.
– Para matá-la – uma agente feminina disse sombriamente. – Ou para abusar dela, ou torturá-la, ou estuprá-la.
Lien-hua escreveu a palavra “dano” no quadro.
– Acho que você está certa – ela disse. – Então. Duas categorias até agora: para causar dano à vítima ou se beneficiar do sequestro.
– Ou ambas – acrescentei. – Nesse caso, parece que o sequestrador de Cassandra quer torturá-la, mas ele também deu um tempo e uma escolha: “Liberdade ou dor? Você
decide”. Parece que se algo acontecesse antes da hora limite, isso poderia comprar a liberdade de Cassandra.
Lien-hua escreveu “ambos” no quadro.
– Alguma outra ideia?
Eu não queria ficar em evidência, mas queria ter certeza que nos manteríamos focados.
– As pessoas querem muitas coisas da vida – eu disse. – Dinheiro, amor, poder, sexo, respeito, fama, qualquer coisa. A lista é grande. Nós queremos ser felizes,
ficar confortáveis. Queremos sentido e aventura, mas também algum senso de segurança. Às vezes, nós queremos tudo isso ao mesmo tempo. Tentar descobrir os motivos
de alguém é como tentar seguir as raízes de uma árvore. Elas se misturam todas debaixo da superfície. Você não consegue arrancar uma delas sem desenraizar muitas
outras também.
Lien-hua largou a caneta hidrográfica.
– Mas Pat, todo mundo tem algo que importa para si mesmo mais do que todo o resto. Aquela coisa pela qual a pessoa morreria, ou pela qual arriscaria tudo.
Ralph apoiou seus dois braços fortes na mesa.
– É um jeito de controlar as pessoas – ele disse. – Se você conseguir descobrir a coisa que mais importa para alguém e prometer ajudá-lo a obter isso, ou ameaçar
tirar isso dele, ele vai fazer praticamente qualquer coisa para você: ir contra seus valores, sua moral, sua religião. Descubra essa coisa e você é dono dele – ele
batucou na mesa com seu punho. – Introdução às Técnicas de Interrogatório dos Army Rangers.
Lien-hua nos deu um aceno decisivo:
– Então, o e-mail foi enviado para Hunter. Alguém está tentando controlá-lo. E o que Austin Hunter quer?
– Cassandra – eu disse. As pessoas na sala concordaram. Nós estávamos nos entendendo. – Mas – acrescentei, – se Hunter é o nosso incendiário, o que ele queria quando
causou os outros incêndios?
Lien-hua olhou para mim com um sorriso discreto.
– Parece que você está tentando descobrir motivos, dr. Bowers.
– Só estou tentando cooperar.
Ralph estava fazendo anotações em um pedaço de papel, pensando em todos os caminhos da investigação que precisaríamos seguir. Ele acenou para um dos homens na sala.
– Peterson, verifique as contas bancárias de Hunter, veja se ele fez algum depósito grande próximo dos horários dos incêndios. Graham, Castillo, peçam para a tenente
Mendez levar vocês de volta ao apartamento de Hunter, vejam se tem alguma coisa lá que possa nos levar a ele. Solomon, descubra tudo que puder sobre esse dardo.
Encontre a marca, fabricante, distribuidor. E Mueller, analise os relatórios pessoais de Hunter e comece a pesquisar sobre os outros caras em sua equipe de SEALs.
Talvez haja alguma ligação que nós não percebemos. Vou trabalhar com o tenente Graysmith, peça a ele para enviar uma equipe para a casa de Cassandra – dava para
sentir uma urgência crescente em cada palavra que ele falava.
– Mas – disse Lien-hua, – a grande pergunta que ainda temos que responder é: se 20h é realmente o limite, o que determina se Cassandra será ou não libertada? Qual
o papel de Hunter nessa história?
– Ele é especialista em causar incêndios – informei.
– O que vocês acham? – Ralph estava se dirigindo a toda equipe. – “Queime um prédio e você tem Cassandra de volta.” Pra mim parece um resgate, uma compensação.
– Sim – disse Lien-hua pensativa. – Mas se ele causou outros incêndios antes, por que não só pedir a ele para causar esse... – mais uma vez ela estava fazendo o
fazia de melhor: mergulhar nos motivos das pessoas, pensar como elas pensam. Raciocinar como elas raciocinam. – Calma. Talvez esse seja um edifício que ele normalmente
não aceitaria queimar. Ele sempre tomou cuidado em causar incêndios que queimariam rápido. Sem fatalidades. Sem feridos.
Oh, não.
– Você acha que talvez seja um prédio cheio de pessoas? – perguntou nervosamente um agente, em sintonia com o meu pensamento.
– Não podemos descartar a ideia – Lien-hua disse. – Como Ralph já disse, se você ameaça tomar a única coisa que mais importa, uma pessoa irá abandonar seus valores,
tudo que ele valoriza.
No silêncio frio que seguiu sua declaração, decidi qual ângulo eu iria seguir. Levantei-me.
– Vou dar sequência nos vídeos do aquário, ver se conseguimos alguma imagem do sequestrador. Além disso, Cassandra estava trabalhando com um tipo de subsídio do
governo. Eu quero saber exatamente o que isso envolvia. Vou verificar os arquivos dela, ver se consigo descobrir por que ela foi ao aquário hoje de manhã. Talvez
isso nos mostre do que as pessoas que a levaram estão atrás.
– Vou assistir ao vídeo dela novamente – disse Lien-hua. – Tentar invadir a cabeça do nosso sequestrador.
– Tudo bem – disse Ralph. – E o departamento de polícia de San Diego está mandando uma dúzia de policiais para passar o pente fino nos galpões perto do estaleiro.
– Uma dúzia? – Lien-hua disse. – Só isso?
– É do que podiam dispor – e então disse: – Todo mundo tem um trabalho a fazer, então, vamos fazer.
Sem mais palavras, seguimos cada um em caminhos separados. Olhei no meu relógio. Nós tínhamos menos de quatro horas para encontrar Cassandra Lillo antes que ela
morresse no tanque.
44
Creighton olhou calmamente pela mira da arma apontada para a cabeça do policial que estava ao lado de Randi. A porta estava aberta em uma fresta apenas do tamanho
suficiente para ele observá-los, e matá-los, se fosse necessário. Tudo que ele precisava era de um bom motivo para puxar o gatilho.
Tanto Randi quanto o policial estavam a cerca de 20 metros de distância, facilmente dentro do alcance da arma, e Creighton podia ouvi-los conversando.
– Eu não sei – disse Randi. – Acho que me parece familiar. Mas é difícil ter certeza. Estava escuro.
– Esse é o sexto armazém que visitamos – o policial parecia exasperado.
– Olha, eu preciso ir. Eles precisam que façamos uma varredura nessa área para um outro caso e eu já estou atrasado. Vou deixar você na delegacia.
– Não, eu acho que deve ser esse. Tenho quase certeza.
– Você acha que pode ser; você tem quase certeza. Foi isso que você disse sobre o último. Olhe, não tem carro aqui. Nenhum telefone. Vá até o shopping, compre um
telefone novo e agradeça por nada pior ter acontecido com você na noite passada.
Randi protestou mais uma vez, mas o policial já havia começado a voltar para seu carro. Ela deu uma última olhada pelo estacionamento e então o seguiu.
Bom, provavelmente foi melhor assim.
Um pouco antes deles entrarem na viatura, Creighton ouviu o policial falar em seu rádio:
– Sim, aqui é o oficial Brandeiss. Não tem nada no lugar da antiga Lardner Manufacturer. Já conferi. Podemos ir.
Creighton esperou junto à porta até que os dois tivessem ido embora. Então, seja lá por qual motivo, os policiais estavam procurando algo no distrito dos galpões.
Alguma dica? Quem sabe? Mas agora não importava. O oficial Brandeiss havia acabado de reportar a área como limpa.
Obrigado, Randi, pensou Creighton enquanto voltava para ver a que altura a água havia subido no tanque. Agora ninguém mais vai perturbar Cassandra e a mim pelo resto
do dia.
45
A placa gramaticalmente incorreta e totalmente idiota fora do estúdio de tatuagem Dragon’s Tail dizia “Tatuages"! Feitas enquanto você espera”. Tessa balançou a
cabeça. Ela ficou por um momento tentado decidir se ela realmente queria seguir em frente com isso. Especialmente aqui.
Uma fumaça penetrante encontrou com ela na porta. Ela reconheceu o cheiro, e não era de cigarro. Uma música pesada pulsava através dela de dentro do estúdio. Uma
de suas bandas favoritas. DeathNail 13. Pelo menos isso era legal.
As palavras que Lien-hua havia dito mais cedo voltaram: Nós fazemos o que temos de fazer.
Ela entrou e um cara de cabelo oleoso atrás do balcão abaixou a música e apagou o que estava fumando. Ele usava uma camiseta que dizia: “Minas bêbadas me curtem”.
Tessa mal podia acreditar que iria confiar seu braço a alguém assim, especialmente quando ela viu seus olhos passearem por seu corpo, parando em todos os lugares
onde ela imaginava que um cara usando uma camiseta dessas olharia.
– Quer que eu compre uma câmera para você? – ela perguntou.
– Ahn?
– Para tirar uma foto. É isso que você quer? – ela mostrou o dedo do meio. – Tira uma foto disso, babaca.
Alguém escondido no meio das sombras no canto do lado esquerdo da sala riu. Ela não podia ver seu rosto, mas ela viu que ele estava usando bermuda e chinelos. Ele
acendeu um cigarro.
Ela analisou o lugar. Desenhos de rascunhos de tatuagens cobriam cada centímetro da parede. À direita, duas portas abertas conduziam às salas de tatuagem. Dentro
de cada uma delas, ela podia ver uma pia, uma bancada, agulhas e uma máquina de tatuagem esperando no canto.
– E então – grunhiu o cara atrás do balcão. – No que posso ajudar?
– Isso é um estúdio de tatuagem, né?
– Eu acho que você vai precisar da permissão dos seus pais. Você trouxe sua mamãe com você?
– Minha mãe morreu.
Um silêncio profundo.
– Sinto muito.
– É, claro.
Chega desse cara.
Ela olhou em volta no quarto sombrio e enfumaçado e viu que o cara no canto havia se inclinado. Ele parecia ter vinte e poucos anos. Cabelos cacheados, loiros, estilo
de surfista. Um pequeno soul patch17.. Olhos azuis brilhantes.
– A música que estava tocando – disse ela. – Quando eu entrei. É disso que você gosta? DeathNail 13?
– Sim. O último CD deles é animal – ele tinha uma voz memorável, fria, arejada.
– Qual faixa você gostou mais: “Terrible Plight” ou “Don’t Open Your Eyes”?
Ele deu uma tragada no cigarro. – “Terrible Plight”.
– Eu também – disse ela, e então continuou citando a letra da música: – “Currents of pain beneath the golden sky. Just can’t seem to find solid ground”18..
– “I’m always looking for a place to stand” – disse ele. – “Never finding the promiseland”19.. É, essa música é animal.
Ela tirou seus olhos dele. Não era fácil.
– Então – ela disse para o cara de cabelo oleoso que era atraente para garotas bêbadas. – Você pode me fazer uma tatuagem ou vou ter que ir em outro lugar? Eu tenho
dinheiro.
– Vamos ver.
Ela colocou o maço de notas de 20 na mesa. Ele o pegou e folheou.
– Satisfeito?
– Lachlan – disse o surfista. – Faça a tatuagem na menina.
– Não sei se é dinheiro o suficiente. Depende do que ela vai querer.
– É suficiente – ele deu outra lenta tragada. – Faça o que ela quiser. Você trabalha pra mim, e eu estou cansado de pagar você pra ficar sem fazer nada.
Lachlan murmurou algo em espanhol, procurou embaixo do balcão e tirou uma prancheta velha com uma formulário em branco.
– Então – disse ele, – você tem 18 anos ou mais, certo? Diga “certo”.
– Certo.
– Ótimo. Assine aqui. Está dizendo que se você morrer de infecção, não pode nos processar.
– Ah – disse Tessa, – e isso acontece com frequência? Pessoas mortas processando você.
O cara no canto riu uma riso bobo e Tessa lançou-lhe um sorriso. Ele apontou o cigarro para ela, mandando uma onda de fumaça em sua direção.
– Só assine – disse Lachlan.
Ela escreveu a data, suas informações de contato e então rabiscou um nome indecifrável na parte de baixo do formulário. Devolveu-o para ele. Sem nem olhar para aquilo,
Lachlan arrancou o papel da prancheta, abriu uma gaveta de arquivos e enfiou-o lá dentro.
Ela olhou para o cara loiro no canto.
– Obrigada.
– Pelo quê?
– Por me deixar fazer o que eu quiser.
Ele pareceu levar em consideração suas palavras por um momento.
– De nada. Meu nome é Riker.
– Esse é seu primeiro nome ou seu sobrenome?
– É como as pessoas me chamam. Como chamam você?
Ela pensou rápido. Ela não queria dar seu nome verdadeiro.
– Raven – pareceu como uma leve traição dizer isso, mas ela cobriu seu desconforto com um sorriso. – Gosto de Edgar Allan Poe.
– Legal. Bom, prazer em conhecê-la, Raven.
Oh, ele era tão bonitinho. E tinha pelo menos 20. E estava paquerando-a. Ela sentiu uma onda de excitação atravessá-la e tentou dar uma disfarçada ao responder.
– Prazer em conhecê-lo também, Riker.
Então ele inclinou novamente sua cadeira contra a parede.
Lachlan entrou na primeira sala e girou a cadeira ao lado da máquina de tatuagem para que ela ficasse de frente para Tessa.
– Então, onde você vai querer? Deixa eu adivinhar, no tornozelo. Nas costas? Muitas garotas estão fazendo nos pés ultimamente...
– No braço – ela puxou a manga.
Ele foi até ela e beliscou fraco seu bíceps, olhando para ele como um fazendeiro olharia a boca de um cavalo.
– Aqui na parte de baixo do braço – ele disse, – é um dos lugares mais dolorosos para se fazer. Um dos lugares mais sensíveis do corpo.
– Não se preocupe com isso.
Seus olhos pararam em sua cicatriz.
– Parece bastante recente. – É de alguns meses atrás.
– Ainda dói?
– Não, está bem. É nela que eu quero – ele ainda estava sentindo a pele em seu braço. Estava começando a assustá-la.
– Em volta da cicatriz?
– Não. Sobre ela. – Ela puxou seu braço.
– Cicatrizes não pegam cor muito bem.
Ela virou-se para Riker:
– Esse cara é bom mesmo?
Riker soltou um redemoinho de fumaça e se inclinou para a frente, tirando seu rosto das sombras novamente. Ele realmente tinha olhos lindos.
– Preciso ir para Los Angeles encontrar alguém melhor. Acredite em mim, ele é o cara. Só não ligue para o cheiro, você vai ficar bem.
– Muito engraçado – disse Lachlan. Então olhou para Tessa. – Está bem. Você quer cobrir sua cicatriz.
– De quantos jeitos diferentes eu preciso dizer a mesma coisa?
Ele andou até os conjuntos de agulhas espalhados através da bancada ao lado da pia.
– Tá bom, que seja. Então, o que você quer? Um lótus? Borboleta? Coração? Tribal...
– Eu quero um corvo – ela não só queria um corvo por causa do poema de Poe, mas principalmente por causa de Patrick, porque ela a chamava de sua pequena Raven às
vezes, e isso a fazia se sentir especial e amada e aceitada de um jeito particular. Como eles estavam tentando se aproximar um do outro, ela achou que seria legal
fazer um corvo. Ela não tinha certeza se ele ficaria feliz por ela ter feito uma tatuagem, mas ela tinha certeza que um corvo significaria muito para ele.
– Você quer um corvo? – disse Lachlan.
Ela chamou Riker e deixou o sarcasmo colorir suas palavras.
– Ele sempre ouve bem desse jeito? – era um jeito de flertar com ele, e estava bom.
– Ele está dando o melhor hoje.
Ela virou os olhos levemente.
– Ah, ótimo.
– Querem parar vocês dois? – disse Lachlan. – Eu preciso visualizar o que ela vai querer.
– Ok, aqui está o que quero – ela pegou a imagem que havia impresso na cafeteria e deu a ele.
Ele estudou-a.
– Parece uma gralha.
– É um corvo, ok? E eu quero na frente do meu braço com as penas de sua cauda contornando pela parte de trás para cobrir a cicatriz que um serial killer me fez depois
que eu o cortei com uma tesoura. Do tipo dessa aí que está em cima do balcão. É isso que eu quero. Você pode fazer a tatuagem ou vou ter que ir em outro lugar?
– Eu posso fazer, eu vou fazer. Calma – os olhos de Lachlan iam e voltavam de Tessa para a tesoura. Mas uma tatuagem desse tamanho, enrolada em torno do seu braço
assim, vai levar, não sei, talvez quatro ou cinco horas se você quiser bem feita.
– Por mim tudo bem. Eu quero ela bem feita.
– Você a quer preenchida, como nessa imagem? Com um pouco de reflexo em azul, talvez um brilho da luz do sol refletindo nas penas, as garras cinzas.
– Exatamente.
Lachlan deu de ombros, pegou uma lâmina e um pouco de creme de barbear e começou a depilar os pelos finos da área ao redor da cicatriz.
– Então, seja sincera comigo – ele disse, um pouco hesitante. – Você esfaqueou um serial killer?
– Sim.
– Por que?
– Por me fazer muitas perguntas idiotas.
A risada de Riker atravessou a sala e caiu em seu colo, e ela devolveu com um sorriso. Depois de alguns minutos, Lachlan começou a fazer o rascunho do corvo que
estava prestes a pousar no braço dela. E, enquanto Tessa começou a antever a primeira picada da primeira agulha, ela prometeu a si mesma não estremecer ou se encolher,
não importa o quanto doesse. Não com Riker assistindo.
46
17h21
2 horas e 39 minutos até o limite de Cassandra
Eu não conseguia acertar. A única imagem de Cassandra no vídeo de segurança do Sherrod Aquarium era dela entrando pela porta dos funcionários às 5h03 da manhã. Nenhuma
imagem de seu sequestrador.
Solomon passou pelo meu local de trabalho para me dizer que havia achado informações sobre o dardo.
– É um Sabre 11, coisa militar. Ele pode ter conseguido em mais de uma dúzia de lugares na cidade. Nenhuma digital.
– E o veneno?
– O departamento de exame toxicológico está saturado. Pode demorar alguns dias.
– Nós precisamos agora. Fique na cola deles e se eles não se apressarem, bote Ralph atrás deles.
Ele acenou com a cabeça, e estava prestes a sair, quando acrescentou:
– Ah, e a propósito, ainda não temos nada sólido sobre a família de Cassandra. Nós confirmamos a morte de sua mãe, encontrada estrangulada em um beco, mas não encontramos
nenhum registro de seu pai. Ele deve estar morto também. Não há como dizer.
Isso era tão típico.
– Obrigado.
Solomon partiu e eu retornei para minha pesquisa sobre o subsídio governamental de Cassandra, mas aquilo também não parecia levar a nenhum lugar útil. Tudo que encontrei
foram algumas referências a algo chamado Projeto Rukh e alguns arquivos em PDF com informações adicionais sobre tecnologia de magnetoencefalografia e mucopolissacarídeos,
a substância gelatinosa que age como um semicondutor nos órgãos eletrosensoriais do tubarão. Mas como isso estava relacionado ao caso? Um meio de melhorar a eficiência
de um MEG para uma nova geração de máquinas? Talvez a tentativa de descobrir como tubarões conseguem sentir e localizar peixes para achar um jeito de fazer isso
sinteticamente?
Possivelmente. Mas como isso poderia estar ligado ao sequestro, eu mal podia começar a imaginar. Para usar a analogia de Lien-hua, eu precisava sair do carro. Ou
pelo menos olhar por uma janela diferente.
Como o aquário pertencia à Drake Enterprises, pensei que talvez pudesse descobrir mais sobre o subsídio seguindo o dinheiro pelo caminho inverso.
O site da empresa mostrava uma foto proeminente do CEO, Victor Drake, e eu o reconheci como o homem que quase havia me derrubado quando estava saindo do aquário
mais cedo naquele mesmo dia. Mesmo nunca tendo ouvido falar sobre sua empresa antes dessa semana, ele aparentemente conseguiu construir uma das empresas de biotecnologia
mais importantes do país.
Mas como isso é relevante? Como isso está ligado?
Biotecnologia?
Pesquisa com tubarões?
Magnetoencefalografia?
Tudo isso parecia ter algo a ver com os incêndios e com o sumiço de Cassandra, mas exatamente o que?
Parecia que cada passo que eu dava em direção a obter mais pistas me distanciava do coração do caso. Olhei no relógio: 17h34. A cada momento que passava, as chances
de encontrar Cassandra viva estavam diminuindo e eu estava tenso, e então, quando o telefone tocou, eu tremi. Agarrei-o.
– Pat falando.
– Dr. Bowers, é Aina Mendez. O agente Hawkins nos contou que Hunter poderia ir atrás de um edifício habitado.
– É possível.
– Bom, por causa disso nós levamos o esquadrão antibomba até o apartamento dele. Encontraram traços de isótopos radioativos nas roupas de Hunter.
– O quê? – eu engasguei.
– Césio-137. É coisa feia. Está fraco, mas definitivamente presente. Pode ter vindo de algo inocente como uma visita a um laboratório químico de um hospital, ou
de alguém trabalhando em uma bomba de dispersão radiológica. A equipe está fazendo uma varredura mais extensa agora, mas achei que você deveria saber.
O caso passeava pela minha cabeça, os fatos se empilhando uns sobre os outros.
– Aina, peça para sua equipe verificar os locais dos incêndios, para ver se encontram algum traço de césio lá. Comece pelo de ontem à noite. Estou imaginando se
Hunter poderia ter adicionado alguma outra coisa sobre a qual não pensamos na pasta que usou como acelerante. E rápido. Nós não temos muito tempo.
– Mas nós já fizemos isso.
– Fizeram?
– Sí. San Diego é um dos portos marítimos e centros militares mais importantes do mundo, então o MAST regularmente faz varreduras pela cidade para procurar por isótopos
radioativos, para encontrar provas de qualquer atividade terrorista. No passado já identificamos traços de césio-137, mas na maioria das vezes era de instalações
de pesquisas médicas daqui.
– Cruze as informações dos relatórios.
Eu sabia que eu estava ficando tenso, e acho que ela podia perceber pela minha voz porque passou um tempo antes que ela dissesse:
– Tudo bem. Eu aviso se encontrarmos algo.
Finalizamos a ligação. Olhei para o relógio.
17h37.
Lien-hua Jiang assistiu ao vídeo de Cassandra diversas vezes, cada vez pausando em lugares diferentes. No final, ela abriu seu caderno e anotou: “Não é a morte que
mais o excita. É o poder, a sensação que tem em segurar a vida de outra pessoa em suas mãos. E ele quer fazer essa sensação durar o máximo de tempo possível.”
Ela parou. Sim. O terror de Cassandra continuaria por horas enquanto ela observava a água subindo lentamente em torno dela – sabendo o tempo todo que não poderia
escapar. E ele aproveitaria cada minuto do sofrimento dela. Lien-hua colocou sua caneta no papel novamente: “Uma vez que a vítima estiver morta, a emoção acaba,
então matar uma só vez não é o suficiente para ele. Ele quer passar pela experiência de novo e de novo. É por isso que ele está filmando a morte dela.”
Quando Lien-hua fechou seus olhos, ela viu o rosto de uma mulher olhando sem vida através da água. Um rosto pálido e sombreado pela morte. Ela já havia visto uma
vez um rosto como aquele flutuando na água.
Há muito tempo.
Ela abriu os olhos, voltou o vídeo do começo e começou a assistir novamente.
Senti o familiar aperto no coração: pai versus agente do FBI.
Eu precisava dar uma parada e ser um pai por alguns minutos. Tentei o número de Tessa. Sem resposta.
Claro.
Eu estava um pouco preocupado com ela, então pressionei alguns botões em meu celular para ver se conseguia encontrá-la. Então levantei--me para me esticar e limpar
minha cabeça. Andei duas vezes pela sala.
Quando me sentei e olhei para minha tela, o ícone do programa de conversa por vídeo estava piscando. Cliquei nele e o rosto de Terry apareceu.
– Aí está você, Pat. Boas notícias. O vídeo de Cassandra não está na Internet.
– Como você pode ter certeza? – perguntei.
– A equipe de Angela examinou a Internet com suas ferramentas mais avançadas de busca de imagens. Não precisamos mais nem digitar texto, é só escolher uma imagem
e pronto. É como reconhecimento facial mundial. A Internet está limpa.
– Ótimo. O que mais?
– Deciframos os arquivos criptografados. São, na maioria, pesquisas sobre tubarões, alguma coisa sobre a ampola de...
– Lorenzini – eu estava ficando impaciente. – Eu sei disso também. Algo mais?
O relógio na parede.
17h49.
– Bom, tem um tal de Projeto Rukh e um cara chamado dr. Osbourne. Procurei por ele. Ele trabalha para a Drake Enterprises. Primeira coisa que pensamos. Talvez o
sequestrador, certo? Demos uma checada nele, porém, ele está palestrando em uma convenção em Boston. Estava lá nos últimos três dias. Não volta pra cá até amanhã.
Pensei nos horários de voo e nos fusos-horários e percebi que ele não poderia ter voado para San Diego e depois de volta para Boston durante a noite para ter feito
parte do sequestro. Mas escrevi seu nome. Poderia checar isso depois.
– O que é o Projeto Rukh, Terry? Nós sabemos?
– Parece um projeto da DARPA, embora o pentágono seja muito discreto em relação a seus contratos de defesa, e meu informante seja irregular. Tudo que consegui descobrir
foi que a Drake Enterprises conseguiu o contrato.
Drake Enterprises de novo.
Então, Cassandra tinha um subsídio do governo, afinal.
Na minha cabeça, retomei algumas coisas que sabia sobre a DARPA: pesquisa teórica sobre armas – tecnologia que ainda está de 20 a 50 anos à nossa frente, às vezes
eles fornecem subcontratos de sistemas de armas para organizações civis. Mas por que um aquário? Por que uma empresa de biotecnologia?
– Terry – eu disse, – DARPA. Me conte tudo. Um resumo rápido.
– Eles estão com tudo, Pat. Se eu não estivesse aqui, estaria lá. A NASA surgiu a partir da DARPA, assim como os sistemas operacionais de computação moderna, inteligência
artificial, reconhecimento de voz... – ele devia ser mais fã da DARPA do que eu imaginei. Ele continuou com a lista:
– Hipertexto, realidade virtual, tecnologia a laser para sistemas de defesa espaciais, tecnologia submarina e a Internet, todos filhos da DARPA.
Por um instante eu tive vontade de dizer que achava que Al Gore havia inventado a Internet, mas isso não era hora para piadas.
– Então, o que você acha?
– A DARPA não terceiriza mais subcontratos de grandes projetos como jatos ou veículos blindados. Eles utilizam empresas privadas para desenvolver diversos itens
menores de alta tecnologia.
Pensei na minha conversa com Maria no aquário.
– E armas mortais de laser? – eu perguntei.
Silêncio.
– O que está havendo aqui, Pat? Isso não é só um caso de sequestro, né? Foi então que a porta abriu com uma batida e Ralph entrou.
– Hunter atacou – disse ele. – Aconteceu outro incêndio.
17h53
– Terry – eu disse, – continue procurando a ligação com a DARPA. Conversamos mais tarde. Preciso ir – fechei meu computador e direcionei minha atenção para Ralph.
– Vítimas?
– Não sabemos.
– Bomba radiológica?
– Não parece ser.
Guardei meu computador na bolsa e juntei minhas anotações.
– Como sabemos que é Hunter?
– Aina pode explicar quando chegarmos lá.
– E onde é?
– Você não vai acreditar: Ilha de Coronado. Um dos prédios da Navy SEAL Amphibious Training Base. Eles chamam de Edifício B-14.
Eu já estava a meio caminho da porta.
– Conte comigo.
O general Cole Biscayne caminhou até a janela e observou a noite. A luz amarelada da lua passeava pelas colinas que cercavam sua casa na Virgínia Ocidental.
Ele havia visto alguém lá fora, no jardim, semana passada, bem na borda da linha das árvores. Ele sabia que havia visto, apesar de não ter certeza absoluta, mesmo
com a polícia do exército que ele havia trazido para investigar a área não tendo encontrado nada. Ainda assim, Cole sabia que tinha visto alguém. E ele tinha a sensação
de saber quem era.
Sebastian Taylor.
Anos atrás eles haviam trabalhado juntos na CIA, quando Cole servia como chefe de uma equipe de agentes secretos na América do Sul. Ele havia treinado Sebastian.
Lapidou-o para ser um dos melhores de sua unidade. Mas desde que Taylor desapareceu, outubro passado, o ex-matador havia entrado em contato com o general duas vezes
e deixou bem claro que o culpava por sua queda. Cole havia feito tudo que podia para rastrear seu pupilo.
E falhou.
Cole olhou para o jardim novamente e não viu nada incomum, nada fora do normal.
Ele estava deixando a janela quando os cães começaram a latir.
47
18h06
1 hora e 54 minutos até o limite de Cassandra
Lien-hua, Ralph e eu paramos derrapando em frente ao enorme e bruxuleante incêndio que estava consumindo o Edifício B-14. O oceano se esticava como uma mancha opaca
de óleo no fundo.
Um grupo de militares, bombeiros e um punhado do que parecia ser uma equipe de segurança privada contratada corriam em torno do edifício que queimava. Felizmente,
a localização do incêndio na base impediu o ajuntamento de uma multidão de civis curiosos.
Rajadas ferozes de chamas estalavam e queimavam no edifício, e todo o ar ao nosso redor estava quente, com fuligem e cinzas. O calor inabalável das chamas nos mantinha
à distância, mas avistei a Unidade de Supressão de Incêndios da Marinha fazendo seu melhor para direcionar seus jatos d’água para as chamas que lambiam as janelas.
Eles miraram quatro mangueiras para o interior do prédio, mas como resposta, o fogo destruiu o telhado e rugiu em direção ao céu noturno.
Austin Hunter saiu do edifício bem a tempo.
Ele se agachou, esquadrinhou a área. Limpa.
Agora, saia dessa ilha e salve Cassandra.
O general Biscayne desceu as escadas e observou por entre as cortinas, o revólver que sempre mantinha sob seu travesseiro firme na sua mão.
Um carro em frente à sua garagem.
Um homem andando pelo caminho de pedra que vai até sua porta. Uniforme militar.
Não é Sebastian Taylor.
Mas quem?
Então Cole o reconheceu: sargento Bier, um de seus assistentes no Departamento de Defesa. Cole abaixou sua arma. Abriu a porta assim que o sargento Bier estava prestes
a bater.
O sargento viu a arma na mão de Cole e congelou.
– Você está bem, senhor?
– Sim, é claro. O que foi, sargento?
– O Projeto Rukh, senhor – o sargento manteve os olhos travados na arma do general. – Há um problema. Houve uma falha de segurança no Edifício B-14.
– O quê?
– Um incêndio. Me disseram para dar o recado pessoalmente. Acreditam que o incêndio foi intencional, senhor.
O general sentiu suas entranhas se apertarem.
Só podia ser Victor Drake. Só podia ser.
Então Drake queria brincar desse jeito, é? Para esconder seu fracasso em completar o projeto, ele decide queimar a instalação de pesquisa que os militares forneceram
a ele. Então ele poderia usar o incêndio como uma desculpa por não entregar o dispositivo.
Soava exatamente como algo que um bilionário egocêntrico e mimado faria. Ok. Você quer jogo duro; é hora de fazermos jogo duro.
– Entre em contato com os membros do comitê de supervisão – o general Biscayne disse ao se distanciar da porta, – e providencie um voo imediatamente para San Diego.
Parece que terei que me encontrar com o sr. Drake um dia antes do combinado.
48
18h24
1 hora e 36 minutos até o limite de Cassandra
O fim da tarde passou, a noite chegou.
Levei alguns minutos para localizar a tenente Mendez, mas finalmente a encontrei conversando com um dos agentes de ligação da base. Eles haviam desenrolado a planta
do edifício no capô de uma viatura da polícia do exército.
Corri até ela. Assim que cheguei, ela terminou de se informar com o suboficial-chefe sênior e então me fez um rápido resumo: nenhuma vítima que soubessem. A base
havia recebido uma ameaça anônima de bomba duas horas antes do incêndio. Eles evacuaram o Edifício B-14, vasculharam por explosivos, não encontraram nenhum e estavam
prestes a deixar o pessoal retornar quando os alarmes de incêndio foram disparados. Por causa da ameaça de bomba, houve uma certa confusão entre mandar o esquadrão
antibombas ou os bombeiros. Dez minutos depois, não importava mais. O prédio estava em chamas e tudo que eles podiam fazer era tentar controlar o fogo.
– Ele foi muito esperto – disse Aina. – Ele colocou todo mundo pra fora do prédio, e ainda criou confusão suficiente para dar tempo do fogo pegar.
– Você tem certeza que foi o nosso cara?
– Certeza absoluta – ela chamou minha atenção para a planta. – O fogo começou aqui, na ala leste, perto da central do ar-condicionado.
Imediatamente entendi por que ela pensou ser o nosso incendiário.
– Se encaixa no padrão.
– Sí.
Passei o dedo sobre a planta.
– Do mesmo jeito que os primeiros 14 incêndios, ele usou respiradouros e fluxos de ar para direcionar as chamas.
Aina seguiu minha linha de pensamento.
– Os principais respiradouros de ar-condicionado do prédio sopraram diretamente no fogo, alimentando-o com um fluxo de ar contínuo, aqui...
– Criando um lança-chamas gigante que soprou o fogo através dos dutos de ar do prédio. O Edifício B-14 não teve nem chance.
– Você pensa como um incendiário – sentenciou ela.
– Não – eu disse, me virando para encarar o fogo. – Se eu pensasse, eu saberia o motivo pelo qual ele escolheu esse edifício.
Creighton Melice pegou o celular novo que havia comprado havia meia hora. Hora de deixar o armazém e se encontrar com Hunter para fazer a troca.
Bem, para ser exato, para pegar o dispositivo. Não haveria nenhuma troca. Apenas a morte de um ex-SEAL.
Ele não queria se preocupar com a chance de Cassandra escapar de algum modo, então ele verificou duas vezes a segurança das chavetas que prendiam as barras de metal
no lugar na parte de cima do tanque. Os canos passavam por buracos perfurados no vidro, e como as chavetas que prendiam os canos estavam para o lado de fora, não
havia nenhum jeito dela sair, mesmo que ela conseguisse arrebentar a corrente.
– Até mais tarde, Cassandra – ele disse. – Espero que eu volte a tempo de dizer adeus.
A água estava na altura de seu peito. Cassandra gritou para ele, um grito mudo, oco, e cuspiu no vidro. Creighton esperou um momento para ver a saliva deslizar até
a água e então a deixou, trancou a porta do armazém atrás dele e caminhou para a noite fria de San Diego.
Enquanto Lien-hua foi falar com algum pessoal da base sobre a natureza da ameaça de bomba usada para evacuar o prédio, me encontrei com Aina e Ralph para tentar
estreitar as possibilidades de onde Hunter poderia estar escondido.
– Talvez ele esteja na multidão – disse Ralph.
– Pensamos nisso – disse Aina. – Estamos verificando cada um que está aqui.
– Não – eu disse. – Não esse cara. Ele vai embora. Lembra? O sistema de trolley. Ele gosta de desaparecer rápido, e sabe como fazer. Ele não vai ficar por aí. Além
disso, ele precisa chegar na costa. Ele quer salvar Cassandra.
Tentei descobrir quais seriam as melhores rotas de entrada e de saída. Como eu sairia da Ilha de Coronado?
Escolha óbvia: dirigindo. Tanto pela Coronado Bridge ou pela Silver Strand, a faixa estreita de terra que levava da ilha até a Imperial Beach. Aina parecia que lia
minha mente.
– Os militares estão tratando isso como terrorismo doméstico – ela disse. – Eles estão parando todo o tráfego que está deixando a ilha.
– Barcos? – perguntei a ela.
– Já estão verificando. Pegamos algumas pessoas para interrogar, embora pareça que não vai dar em nada.
Ouvi o som de um helicóptero e percebi que era um de notícias que estava pairando sobre a costa do continente. Hum. Era possível.
– Veja se houve algum tráfego aéreo na base na última hora. Especialmente de helicópteros.
– É sério, Pat? – disse Ralph. – Você acha que ele fugiu voando?
– Só estou tentando eliminar a possibilidade.
Aina falou em seu walkie-talkie.
– Nenhum tráfego aéreo – ela disse. – Não nas últimas duas horas.
– Então só sobrou uma opção – disse eu.
– Qual seria? – ela perguntou.
Apontei para o oceano escuro.
– Ele nadou.
Austin Hunter tirou sua mão da água e agarrou a borda do cais. Havia demorado mais do que ele imaginou para chegar na costa, mas ele sabia que esse incêndio chamaria
atenção demais para que ele pudesse sair da ilha de qualquer outra maneira.
Depois de se erguer para o cais, ele tirou seus pés-de-pato e arrancou sua máscara e seu snorkel. Normalmente ele teria usado um tanque de oxigênio e um rebreather20.
para eliminar as bolhas, mas essa noite ele precisou carregar algo com ele.
Em sua roupa de mergulho híbrida preta ele duvidava que alguém que estivesse passando por ali na hora pudesse vê-lo, mas ele precisava ter certeza. Ele deu uma rápida
olhada pela área.
Ok.
Limpo.
Austin olhou para seu relógio à prova d’água: 18h39.
Ele precisava se apressar; ele deveria ter voltado nove minutos atrás. A corda que estava amarrada em torno de sua cintura o puxou, dizendo a ele que o saco inflável
de um metro e meio contendo o dispositivo estava boiando à sua frente em direção à praia. Antes que ele pudesse bater em algum dos pilares do cais, ele puxou em
sua direção o saco à prova d’água que boiava e cuidadosamente o ergueu até o cais.
49
Passei um minuto estudando a água, avaliando o vento. As correntes.
– Ralph, qual você acha que é a distância daqui até a costa? Ele observou a distância.
– Acho que um quilômetro e meio ou dois.
– Você esteve nas forças especiais; quanto tempo um SEAL da Marinha demoraria para nadar essa distância?
– Um SEAL, com esse vento... talvez 35, 40 minutos – quando fui em direção a Aina, ouvi-o murmurando: – Um Ranger demoraria 35 – levei um momento para comparar o
tempo de nado com a hora da origem do incêndio.
– Ele está no continente – eu disse. – Aina, nós precisamos enviar um aviso para todas as unidades, fazer com que policiais comecem uma varredura da costa. Espere...
– enquanto eu olhava a linha costeira, vi o helicóptero novamente. Dessa vez eu podia ler o que estava escrito em sua lateral: Canal 11. – Eles estão filmando. Ralph,
veja se você consegue alguma coisa. Use seus contatos, se for preciso. Quero ver se eles pegaram nosso cara na câmera. – Vi Lien-hua vindo em nossa direção, encontrando
seu caminho entre a multidão.
– Talvez possamos pedir para a equipe do helicóptero ajudar a encontrá-lo – Aina sugeriu.
– Não é uma boa – eu disse. – Eu não confio na imprensa, e quanto mais controle eles tiverem, pior nós ficamos. Precisamos voar por nossa conta.
Lien-hua chegou, e enquanto Aina e Ralph faziam ligações, corri com ela em direção ao heliporto da base anfíbia.
O homem ao telefone havia sido bem claro que, caso o dispositivo não estivesse intacto, eles matariam Cassandra. Então, antes de entregá--lo, Austin decidiu dar
uma rápida olhada e se certificar que ele não havia sido danificado durante o nado através da baía.
Ele desviou do zíper para rasgar o saco à prova d’água e puxou a bolsa esportiva preta de dentro. Essa ele não rasgou, mas abriu o zíper cuidadosamente. O dispositivo
estava colocado em um invólucro de espuma, que ele gentilmente desembrulhou.
O dispositivo parecia um pouco com uma câmera de vídeo apoiada em um tripé extensor. O corpo da unidade tinha um foco de laser e uma antena parabólica do tamanho
da mão de Austin. Uma tela de vídeo de oito polegadas estava montada na frente e uma grande bateria removível com etiquetas de aviso de radiação pendurava-se na
parte de baixo. Se ele não soubesse, diria que era algum tipo de unidade de rastreamento a laser ou um dispositivo remoto de escuta, ou talvez um gerador de imagens
térmicas de alta tecnologia. Mas ele sabia; ele havia visto aqueles dois homens usando-o na noite anterior.
Austin pensou que essa coisa poderia ter algo a ver com a pesquisa que Cassandra estava fazendo, mas ele não tinha certeza. Uma vez ela havia mencionado um projeto
no qual estava trabalhando para o governo, mas ele não se meteu no assunto. Depois de 14 anos como um SEAL, ele sabia que manter segredos era sinônimo de manter
seu trabalho. Agora, ele desejava ter perguntado a ela mais sobre isso. De qualquer maneira, o dispositivo não parecia ter sofrido nenhum dano em sua viagem pela
baía. Não dava para ter certeza, mas parecia intacto. Ele enrolou a espuma em torno do dispositivo e fechou o zíper da bolsa esportiva.
Hora: 18h44.
Cassandra estaria morta em 76 minutos a menos que ele entregasse esse dispositivo.
Austin tirou sua faca de combate da bainha, cortou a corda de sua cintura e jogou seu equipamento de mergulho no oceano. Então, amarrou o dispositivo em suas costas
usando duas cordas elásticas como alças nos ombros e correu para o píer.
Bati minha mão contra o tapume de estuque do edifício de transporte aéreo.
Dois austeros policiais do exército bloquearam meu caminho.
– Desculpe-me, senhor – um deles disse, – ordens do almirante. Ralph apareceu ao meu lado.
– Aina enviou um alerta, eles estão vasculhando os estaleiros... – então ele viu a expressão no meu rosto. – Qual é o problema?
– Eles não vão nos arrumar uma aeronave – eu disse. – Nós estamos em uma base militar, não em solo civil, então disseram que eles mesmos vão cuidar disso.
– O quê? – ele olhou para os policiais do exército. – Deixe-me falar com o seu superior.
– Espere – disse Lien-hua. – O tempo não está mais do nosso lado. Encontrar a pessoa certa, agir pelos canais corretos, conseguir uma permissão, nós não temos tempo
para isso. O que o Canal 11 conseguiu?
Ralph balançou a cabeça.
– Não consegui nada – ele disse. – Eles estavam filmando o incêndio, e não a costa... – ele olhou em direção ao céu. – Mas o que...
Segui seu olhar. O helicóptero do noticiário havia mudado de direção e estava voltando, seguindo a praia da área continental.
– Ah não – eu disse. – Eles estão indo atrás de uma exclusiva. Eles vão assustá-lo. Ralph, você poderia...
– Eu cuido disso – ele resmungou, pegando seu telefone novamente. Antes de falar no telefone, porém, ele disse para Lien-hua e para mim: – Vocês dois, vão para o
continente. Agora.
Encontrar Hunter era a chave para encontrar Cassandra, e nós tínhamos apenas pouco mais de uma hora para fazer isso. Lien-hua e eu corremos para o carro.
Peguei a chave do carro, mas Lien-hua tomou-a da minha mão.
– Eu dirijo.
50
Até onde Austin Hunter sabia, ele nunca havia matado ninguém. Nunca eliminou nenhum alvo.
É assim que eles falam nas forças especiais – eliminar alvos. Seus amigos já haviam. Alguns deles tinham feito carreira nisso. Mas não Austin Hunter.
Como isso havia acontecido?
Como ele havia arrastado Cassandra para isso?
Ah, se eles a machucarem de algum jeito.
Se eles fizerem qualquer coisa com ela.
Foi por causa do incêndio da noite passada. Ele sabia que eles estavam fazendo isso porque ele não havia causado o incêndio da noite passada.
Austin havia investigado cada uma das localidades dos incêndios para ter certeza de que não havia ocupantes nos prédios. Todos estavam vazios. Nenhuma pessoa. Nenhuma
fatalidade. Nenhum alvo.
Após os primeiros seis incêndios, ele havia começado a pensar que Drake era apenas um piromaníaco rico que era covarde demais para causar seus incêndios por conta
própria. E foi isso que Austin disse a si mesmo pelos próximos oito incêndios.
Mas então veio a noite passada e tudo mudou.
Mais uma vez, Drake havia dito a ele para chegar na hora especificada
– isso era parte do acordo; ele não seria pago se chegasse mais cedo. Mas na noite passada, Austin havia tido um mau pressentimento depois de conversar com Drake.
O bilionário parecia irritado com alguma coisa, e Austin não queria fazer parte de nenhum serviço que desse errado. Então ele havia decidido chegar uma hora mais
cedo, para verificar as coisas.
E foi então que ele viu o que aqueles dois homens fizeram.
Naquele momento, Austin percebeu que ele havia se metido demais naquilo. Foi por causa daquilo que ele foi trazido para causar os incêndios.
E foi por isso que disseram a ele para não chegar mais cedo – para que ele não os vissem em ação.
Agora eles podiam culpá-lo por tudo.
Austin sacou que os homens de Drake viriam atrás dele, mas ele nunca imaginou que iriam atrás de Cassandra.
O helicóptero do noticiário girou na direção dele, e Austin disparou através de uma marina e escorregou para dentro de um vão entre duas construções. Ele precisava
evitar as linhas de visão do helicóptero, mas toda essa evasão estava atrasando-o, e ele não tinha tempo para isso.
Victor Drake estava por trás disso. Só podia ser.
Mas Drake mexeu com o cara errado.
Austin esperou por um momento até o helicóptero passar, então saiu pela rua e correu em direção ao ponto de encontro inicial.
Mais cedo, quando ele havia visto pela primeira vez o vídeo de Cassandra no tanque, ele pensou em ir atrás de Drake, fazer o que fosse preciso para que ele falasse,
mas teve medo de fazer isso e os capangas de Drake encontrarem e matarem Cassandra antes que ele pudesse salvá-la. E, é claro, Austin não poderia procurar as autoridades
porque os sequestradores certamente matariam Cassandra, e depois disso, Drake o entregaria por causar os incêndios.
Realmente Austin não tinha ferramentas de barganha – a não ser sua habilidade.
Então. Objetivos da missão: queimar o edifício, recuperar o dispositivo, salvar Cassandra.
Então quando tudo tivesse terminado: lidar com Drake.
Sim, até onde Austin Hunter sabia, ele nunca havia matado ninguém. Mas se eles machucarem Cassandra, se eles apenas tocarem nela, isso iria mudar.
Creighton Melice esperou ansiosamente perto do cais pela ligação de Shade. De acordo com o plano que Shade havia enviado para ele por e-mail, Hunter deveria ter
encontrado o celular preso com fita debaixo do banco do parque cerca de 20 minutos atrás. Shade deveria ligar para Hunter primeiro e então entrar em contato com
Melice para definir onde a troca seria feita. Mas até agora, nada. Creighton não gostava quando as coisas não saiam de acordo com o combinado.
Um pensamento surgiu em sua mente. Uma coceira estranha e desconfortável.
E se Hunter houvesse recuperado o dispositivo e tivesse decidido ficar com ele?
Não, ele não faria isso. Ele amava Cassandra. Essa era a chave para tudo – seu amor por ela. Ele não a deixaria sozinha quando chegasse o limite. Ele não era esse
tipo de homem.
Mas então, novamente, talvez Shade estivesse enganado. Talvez Hunter amasse outra coisa mais do que sua namorada.
Creighton decidiu dar a Shade mais cinco minutos e então, se ele não ligasse, iria retornar para o armazém e mudar para o Plano B.
19h05.
Austin ouviu o telefone tocar e correu os últimos 50 metros em velocidade máxima até o banco do parque, mas na hora que ele chegou, o telefone parou de tocar.
Ele procurou pelo banco, encontrou o telefone e o pegou.
Mas quando ele o abriu, tudo que ouviu foi o silêncio.
Não.
Tarde demais.
Eles haviam sido muito específicos sobre o horário, e ele estava atrasado. Não, ele não podia estar atrasado. Não podia. Ele bateu o punho com força contra o banco.
Talvez eles estivessem por ali, em algum lugar próximo. Ele olhou rapidamente em todas as direções.
Ninguém.
Não!
E foi então que ele ouviu as sirenes vindo em sua direção.
51
19h11
Apoiei minha mão contra o teto do carro enquanto Lien-hua derrapou em uma curva e pisou no freio parando na borda de um semicírculo de luzes piscantes. No meio da
rua, cercado por mais de uma dúzia de policiais, estava um único homem usando um dos novos coletes à prova de balas de Kevlar que imita uma roupa de mergulho. Ele
empunhava uma faca serrilhada de combate e estava girando em um círculo cauteloso para que os policiais não avançassem contra ele.
Austin Hunter.
Eles o haviam cercado.
E eu tive que supor que eles não sabiam sobre Cassandra.
Lien-hua e eu pulamos do carro e corremos para além da ambulância estacionada atrás de um das viaturas.
– Largue a faca! – um dos policiais gritou. – Mãos atrás da cabeça! Hunter começou a levantar as mãos lentamente, e então, num movimento como um relâmpago, sacou
uma Kimber Tactical Custom II .45 de um coldre pendurado em seu peito e mirou a arma para sua própria cabeça antes que qualquer um pudesse reagir.
Lá ele ficou. Faca numa mão, pistola na outra.
Esse cara era brilhante. Se ele tivesse mirado a arma em qualquer outro lugar – qualquer lugar mesmo – os policiais teriam atirado. E se ele se entregasse, seus
sequestradores pensariam que ele havia procurado as autoridades e indubitavelmente matariam Cassandra. O único jeito de salvar a si mesmo e sua namorada era ganhando
tempo, ameaçando tirar sua própria vida agora. Talvez conseguir fazer as autoridades ouvi-lo. Ajudá-lo.
– Largue a arma! – berrou um dos policiais. – Agora! Largue!
– Eles a pegaram – Hunter gritou. – Eles vão matá-la.
Peguei minha identificação, mostrei para um sargento que parecia ser o comandante da ação.
– Somos agentes federais – eu disse. – Afastem-se.
Hunter virou-se e olhou para mim, a arma ainda apontada para sua própria cabeça.
– Eles me obrigaram. Eu não queria fazer. Preciso encontrá-la. Ouvi outro policial gritar:
– Abaixe a arma!
– Eles vão matá-la – Hunter gritou.
– Relaxe, Austin – eu disse. – Estamos aqui para ajudar.
O sargento, cujo distintivo mostrava o nome “Newson”, estava hesitante. Algo que você não deve fazer numa situação dessas. Isso tudo estava desandando rápido, e
só havia um resultado em vista.
Pense rápido. Pense rápido.
– Largue a arma! – alguém berrou.
– Sargento Newson – eu disse, – o escritório local nos enviou – apontei para Lien-hua. – Ela é uma negociadora – não era bem verdade, mas ela era a melhor esperança
que tínhamos para domar a situação. – Deixe--a falar com ele, agora, antes que alguém fique com o dedo pesado.
– O escritório local do FBI enviou vocês? – Newson perguntou.
– O tenente Graysmith que fez o pedido – disse Lien-hua. Isso. Bem pensado, Lien-hua.
– Graysmith? – Então ele deu de ombros. – Ok. É problema dele, e não meu – ele parecia aliviado em passar o problema para nós. – Não atirem – ele gritou no sistema
de autofalantes de sua viatura. – Mantenham suas posições, mas não atirem.
– Tudo bem – eu disse para Lien-hua. – É com você.
No silêncio nervoso, Hunter avaliou Lien-hua, e então eu.
– Eu não queria machucar ninguém.
Ela lentamente colocou sua arma no chão.
– Eu sei.
– Eu só quero salvá-la. Não temos muito tempo. Ela morre às oito horas em ponto.
Ela andou na direção dele.
– Nós sabemos sobre Cassandra – ela disse. – Nós queremos ajudar. Você tem alguma ideia de onde ela possa estar? – Lien-hua havia sido sensata em falar sobre a situação
de Cassandra, e não a de Hunter, focando na única coisa que importava para ele.
Ele balançou a cabeça, a arma ainda mirada em sua têmpora.
– Eles vão matá-la. Drake vai matá-la.
Drake?
Victor Drake?
Lien-hua levantou as mãos, com as palmas para cima, e deu um passo delicado na direção dele.
– Como você vai entrar em contato com eles, Austin? Podemos entrar em contato com eles...
– Não. Tem que ser eu. Eles entraram em contato comigo. Eles estão observando. Eles vão matá-la.
– Largue a arma! – berrou um dos policiais.
– Quieto – Lien-hua gritou. Ela deu outro passo em direção a Hunter, suas mãos ainda abertas, mostrando que ela não era uma ameaça.
Ele moveu a arma para mais perto da cabeça.
– Pare. Fique aí.
Ela parou.
– Por favor, Austin. Nós queremos salvá-la. Nós sabemos que ela está em perigo. Nós vimos o vídeo.
Ele olhou para ela.
– Eu não os matei. Eu juro – sua voz falhou. – Eu nem sabia.
– Não. Você evacuou o prédio. Você os salvou. Ninguém foi morto – ela deu mais um pequeno passo.
– Não eles.
– Ninguém morreu no incêndio – ela disse. Deu mais um passou. E mais um.
– Não, não. É claro que não. Eu me certifiquei, em todos eles, eu me certifiquei. Em todos os 14 – ele virou-se para a direita para ver se algum dos policiais estava
se aproximando. – Mas eu não causei o incêndio da noite passada, e eu não tive nada a ver com aquele mendigo.
– Mendigo? – ela estava a um metro dele.
E então ele olhou além de Lien-hua, em minha direção.
– Os sequestradores dela querem. Eles disseram que podíamos trocar. Acabou...
E então Austin Hunter cometeu seu erro fatal.
Ele poderia ter sobrevivido se não tivesse apontado a faca para Lien-hua enquanto dizia aquela última palavra.
52
Assim que Austin apontou a faca em direção à Lien-hua, o tiroteio começou.
– Abaixem as armas! – eu gritei.
O corpo de Austin estremeceu incontrolavelmente quando as balas o atingiram.
– Abaixem as armas. Não atirem! – uma bala passou raspando pelo meu rosto e furou o para-brisa de uma das viaturas perto de mim, lançando estilhaços de vidro escuro
para dentro do veículo. Eu me abaixei. – Abaixem as armas! – me abaixei mais ainda. Corri para o meio dos tiros em direção a Lien-hua, que havia se jogado na calçada
e jazia imóvel no chão.
Um instante depois, o tiroteio parou, mas pelo número de tiros que Austin levou, mesmo o colete de Kevlar não poderia salvá-lo.
Mas minha atenção não estava focada nele. Me ajoelhei ao lado do corpo imóvel de Lien-hua, levando minha mão ao sangramento em seu pescoço.
– Tragam um paramédico aqui, agora!
Austin Hunter sabia que estava morrendo. Ele tentou apontar para o dispositivo. Tentou. Tentou. Era a única chance de Cassandra. Ele tentou mover sua mão mas não
conseguiu.
Quando sua consciência começou a escurecer, ele suavemente implorou para que Cassandra e a mulher negociadora que havia sido atingida e parecia estar morrendo –
ela também – ele implorou às duas que o perdoassem. Ele havia falhado com Cassandra. E era culpa dele que os policiais tivessem atirado na mulher asiática. Ele havia
demorado demais para chegar no ponto de encontro.
Demorado demais. E agora essas duas mulheres iriam morrer.
Temi pelo pior, toquei o ombro de Lien-hua com a mão trêmula, rezei para que estivesse tudo bem com ela.
Por favor, ó Deus, por favor.
– Lien-hua – pressionei minha mão contra o ferimento no pescoço dela para estancar o sangramento.
Ela se mexeu.
– Lien-hua, você está...
Então ela se virou para me encarar e abriu sua boca. Meu coração estava disparado.
– Eu acho... – ela murmurou – eu acho que estou bem.
– Você foi atingida. Seu pescoço está sangrando – me virei para os policiais ao meu lado. – Onde está o paramédico?
A última coisa que Austin Hunter viu antes da escuridão final dominar sua visão foi um homem andando em sua direção sorrindo, o mesmo homem que ele havia visto na
noite anterior mirando o dispositivo naquele mendigo.
E o cara que sorria era um policial.
Quando tirei minha mão, pude ver que o ferimento de Lien-hua não parecia grave ou fatal. Talvez a bala tivesse apenas passado de raspão.
Eu torcia por isso. Rezava por isso.
Enquanto os paramédicos a atendiam, olhei para Austin Hunter. Um fio de sangue escorria de sua boca entreaberta, e então Austin Hunter morreu.
53
Um dos policiais pisou na poça de sangue ao lado do corpo de Austin e chutou a arma de sua mão imóvel.
– Suicídio pela polícia – ele balbuciou. – Odeio quando isso acontece. Eu sabia que era procedimento de operação padrão usar força letal em uma situação como essa,
especialmente com um suspeito de terrorismo. E eu sabia que não era incomum em uma troca de tiros haver dúzias de cargas de munição disparadas, especialmente com
esse tanto de policiais. Isso é chamado de reação de estresse de sobrevivência, é o jeito como o seu corpo reage, especialmente se você tiver pouca experiência.
Você continua atirando. Mas ainda assim, eu odiei que isso tivesse acontecido. Odiei que Austin Hunter havia sido morto
Outra tragédia. Outra morte.
Verifiquei meu relógio.
19h16.
Em menos de 45 minutos, Cassandra iria se juntar a seu namorado.
Senti o ódio e a tristeza apertando o meu coração.
– Esse homem não estava tentando cometer suicídio! – eu explodi. – Ele queria viver.
Um paramédico inclinou-se sobre Lien-hua. Dois outros ajoelharam--se para atender Austin, mas nada poderia ser feito agora.
– Ele não queria viver – o policial disse. – Ele estava com uma arma na cabeça.
Tive vontade de arrebentar o idiota.
– Aquilo era para impedir vocês de matá-lo. Você não percebeu nem isso? Ele acabou de invadir a Navy SEAL Amphibious Training Base e colocar fogo em uma instalação
militar de segurança para salvar a mulher que ele ama. Um homem assim não se mata antes de terminar o trabalho.
– Você viu o cara – o policial respondeu. – Você ouviu o que ele disse: “Acabou!”. Esse foi seu jogo final.
Eu não acreditava em como o cara era estúpido. Li seu crachá.
– Escute aqui, oficial Rickman, ele não ia atirar em ninguém. Ele estava com medo. Ele estava tentando...
– Pat – Lien-hua chamou de onde estava sentada ao meu lado, sobre a calçada.
Me ajoelhei ao lado dela.
– O quê? Você está bem? – vi que o paramédico havia enrolado uma gaze em torno do pescoço dela.
– Precisamos nos concentrar em Cassandra agora – ela disse. – Por favor. Deixe isso. Não se enrole com essa coisa. Não vamos perdê-la também – Lien-hua começou a
levantar-se.
– Vai com calma – eu disse, colocando a mão em seu braço.
– Eu estou bem, de verdade. Foi só um arranhão.
– Lien-hua, eu acho que você deveria...
– Patrick. – Olhos de aço. Vontade de aço. – Pare com isso. Estou bem. Vamos encontrar Cassandra – sim, essa era a mulher que eu conhecia. Uma que nunca deixava
de me impressionar. Ofereci minha mão e ela me deixou ajudá-la a se levantar.
Olhei pelo chão ao redor. O policial que estava discutindo comigo havia saído dali, deixando na rua uma impressão de sangue com a sola de seu sapato.
Então o detetive Dunn apareceu e atravessou a rua. Ele observou o corpo de Austin Hunter.
– Quem atirou primeiro? – Dunn analisou o rosto de seus homens. Ninguém respondeu. – Quem deu o primeiro tiro? – ele rugiu.
Ninguém respondeu. Lien-hua pediu minhas luvas de látex, peguei um par do meu bolso e, após colocá-las, pegou a arma de Austin e ejetou o pente. Estava cheio.
– Ele não teve nem chance de disparar.
Ainda estava observando a pegada de sangue ao lado do corpo de Austin.
– Você já trabalhou em muitos incêndios, oficial Rickman? – perguntei.
– Ahn?
– Fogo. Incêndios. Você trabalhou no incêndio na manhã de hoje?
– Eu sou um policial, não um bombeiro – ele cuspiu as palavras.
– Hunter estava tentando nos dizer alguma coisa – Lien-hua disse para Dunn, interrompendo minha conversa com o oficial Geoff Rickman.
Dunn inclinou-se, sentiu o pulso de Austin. Desnecessário, mas simbólico.
– Esse homem podia ter nos ajudado a encontrar uma mulher desaparecida – ele disse. – E agora está morto.
Rickman balbuciou algo indecifrável enquanto voltava para sua viatura. Eu tinha algumas suspeitas sobre Rickman, mas elas ainda eram vagas e sem suporte, e agora
eu precisava mais me apoiar em evidências, e não em instinto. Precisávamos de algo sólido, e estávamos ficando sem tempo.
– Tudo bem – disse Dunn. – Nós resolvemos isso no quartel-general. Vamos limpar essa bagunça – ele olhou para um carro abandonado ao meu lado, e então, em um ataque
de fúria, chutou o pneu e arrancou uma pilha de multas de trânsito enfiada sob o limpador de para-brisa. Sua reação pode ter sido de uma feroz compaixão, ou talvez
raiva por não ter sido quem atirou primeiro. Era impossível dizer. – Tirem essa porcaria daqui. Levem para o pátio da polícia – então ele olhou para mim. – Vocês
dois convencem bem para uma dupla de agentes federais – não dava para dizer se suas palavras foram ditas com respeito ou desprezo.
– E você convence bem para um detetive de homicídios – disse Lien-hua.
– Isso é verdade – ele disse. – Isso é verdade.
– Detetive – eu disse, – mande alguns homens para falar com Victor Drake agora mesmo. Hunter mencionou seu nome. Ele pode saber de alguma coisa sobre o sequestro
de Cassandra.
Dunn não parecia feliz com isso, mas ele aceitou e foi embora.
Enquanto todo mundo andava pela cena, parecendo respirar um suspiro coletivo de alívio, pensei em Cassandra e nas últimas palavras de Austin Hunter: “Acabou”.
Eu só esperava que ele não estivesse certo.
Parei por um momento para ajoelhar ao lado de seu corpo. Não deveria ter terminado assim. Ele não precisava ter morrido essa noite.
– Me desculpe, Austin – cochichei, e eu realmente sentia muito. Sentia muito por ele ter morrido por nada. Sentia muito por ele ter sido coagido a cometer outro
crime. Sentia muito por não tê-lo encontrado mais cedo para que pudéssemos evitar isso. Sentia muito por muitas coisas.
Apesar do erros que Austin havia cometido, apesar das leis que ele havia desobedecido, ele havia servido fielmente nas forças especiais por 14 anos. Coloquei minha
mão em seu ombro em honra ao serviço que havia prestado para o país. Ele era como muitas pessoas que conheço – um herói em um aspecto da vida, falho e humano demais
em outros. No final, porém, ele havia morrido fazendo a coisa mais nobre de todas, tentando salvar a vida de outra pessoa. E embora eu não tenha tomado o mesmo caminho
que ele, respeitava o valor que ele parecia colocar na vida humana – evacuando o Edifício B-14 antes de começar o incêndio, planejando seus incêndios para evitar
fatalidades. Eu imaginava como eu reagiria se alguém me mandasse um vídeo daquele de Lien-hua acorrentada a um tanque. Eu podia apenas imaginar as coisas que eu
estaria disposto a fazer para salvá-la.
Quando estava me levantando para ir embora, vi a ponta de um telefone celular barato, pré-pago, enfiado sob a tira do seu coldre de ombro.
O que?
“Eles entraram em contato comigo”, ele havia dito. Deve ter sido por esse telefone!
Todo mundo havia me deixado sozinho com o corpo, então não havia ninguém por perto. Ninguém mais tinha visto o telefone.
Deslizei minha mão, peguei o telefone e escorreguei-o para meu bolso. Talvez, só talvez, isso poderia nos levar até Cassandra.
– Vou encontrá-la, Austin – eu disse, mesmo com o cadáver ao meu lado não podendo ouvir as palavras. – Vou salvar Cassandra, eu prometo.
Olhei para o meu relógio. Eu tinha apenas 40 minutos para manter minha promessa.
Então levantei-me para encontrar Lien-hua.
54
Durante um curto intervalo, enquanto Lachlan e Riker fumavam fora do estúdio, Tessa reparou na hora e mandou para Patrick uma mensagem de texto dizendo que não estava
se sentindo muito bem, o que era verdade, e que ela iria jantar sozinha e deitar cedo, mas que ela encontraria com ele de manhã para caminharem com o dr. W. às 10h30.
Então Lachlan voltou para a sala de tatuagem para terminar de pintar seu braço.
Ele alternava entre duas agulhas de tatuagem diferentes presas a duas máquinas diferentes. Ele usava a agulha fina com a máquina na velocidade máxima para fazer
os contornos, e então usava a agulha mais larga para colorir o corpo principal da tatuagem. Tudo que Tessa sabia era que a agulha mais larga machucava muito mais
que a agulha do contorno.
Ele havia posicionado um conjunto de tampinhas ao lado da pia, com uma cor diferente em cada uma delas.
Azul. Preto. Prateado. Cinza.
Enfiou a agulha na água. Então na tinta.
E aí novamente em sua pele.
Repetiu.
Quando ele começou da primeira vez, sempre que ele tocava com a agulha em sua pele, parecia um arranhão quente. Mas conforme ele foi trabalhando em seu braço, sua
pele deve ter começado a inchar ou ficar dormente porque ela não sentia a agulha mais, apenas um ponto de pressão no lugar.
– Agora – ele disse para ela, – preciso voltar e preencher o resto das cores nas penas do rabo. A pele na parte de dentro do seu braço não vai estar mais dormente.
Vai estar mais sensível do que antes, além da cicatriz... bom, prepare-se.
Ela acenou com a cabeça.
Então Lachlan começou a preencher com as cores, e ela percebeu que ele não estava mentindo sobre a delicadeza da pele.
Não, ele não estava. Nem um pouquinho.
Após um minuto ou dois de gravação em seu braço, Lachlan disse:
– Ei, olha só. Eu tenho um jogo para você. Esse normalmente leva uma meia hora para as pessoas resolverem. Deve distrair você até o fim.
– Eu gosto de jogos – ela disse, tentando soar casual.
– Eu também – disse Riker, que estava escolhendo uma nova lista de músicas na tela digital do aparelho de som.
– Ok – Lachlan disse. – Então, dois caras roubaram um banco e estavam tentando descobrir quanto cada um ia levar, certo? E o primeiro cara diz, “Ei, isso não é justo.
Você ficou com mais dinheiro do que eu”... você conhece essa, Riker?
– Não, continue.
– Ok, por que não vemos quem descobre essa primeiro, você ou a garota que esfaqueia assassinos em série.
– Beleza – ele disse.
– Acho que posso tentar – disse Tessa.
– Então – Lachlan continuou, – como eu estava dizendo, o primeiro cara diz, “Você tem muito mais que eu. Se eu te der uma dessas pilhas de dinheiro, você teria o
dobro do dinheiro que tenho”. Mas o outro cara está, tipo, “Meu, sente só, eu planejei o assalto, então pare de reclamar, é uma divisão justa. Além do mais, se eu
der uma das minhas pilhas, nós ficamos com a mesma quantidade”. Então, a pergunta é, quantas pilhas de dinheiro cada um deles...
– Entendi – disse Tessa.
– ...tem. – Lachlan olhou para ela. – Você não resolveu ainda. Não tem como.
– Por favor, me dê um pedaço de papel.
Lachlan pegou uma caneta e um pedaço amarelado de papel de uma gaveta e deu para Tessa. Ela escreveu algo no papel, então o dobrou no meio, deu para Riker e repousou
a caneta.
– Depois que você descobrir a resposta – ela disse, – olhe a minha. Então pergunte a Lachlan qual está certa.
– Você já ouviu essa antes – Lachlan disse.
– Por favor.
– Então nunca ouviu essa? – disse Riker.
– Não.
– Você resolveu rápido assim?
– Você terá que esperar até desdobrar esse papel para descobrir. Riker olhou para ela maliciosamente.
– Mas e se eu não descobrir até você terminar a tatuagem e ir embora? Tessa sentiu seu coração pulando como um coelho enquanto dizia as palavras:
– Então teremos que comparar nossas respostas na próxima vez que nos vermos.
– Combinado.
55
Com sua televisão ligada no noticiário do Canal 11, Victor Drake assistia o Edifício B-14 se tornando ruínas.
Hunter. Só podia ser Hunter.
Mas como ele poderia saber qual prédio queimar?
Talvez Hunter tenha seguido Geoff e o doutor na noite passada, após deixarem o local do incêndio e estarem retornando para devolver o dispositivo para a base.
Victor podia sentir uma enxaqueca chegando. Não qualquer enxaqueca, mas uma enorme. Meia hora atrás ele havia recebido uma mensagem dos comparsas de Biscayne dizendo
que a reunião do Comitê de Supervisão do Projeto Rukh havia sido remarcada de quinta-feira às 14 horas para amanhã de manhã, às 8 horas. Uma enxaqueca violenta.
Seu celular tocou. Ele atendeu.
– Sim?
A voz de Geoff.
– Hunter está morto.
Um brilho de esperança.
– O quê?
– Ele foi morto em uma trágica troca de tiros. Suicídio por policial. Sempre odeio ver isso.
Ah, isso poderia ser bom. Isso poderia ser muito bom.
– Certo, escute. Certifique-se que não exista nada em seu corpo que possa ligá-lo com o projeto. Entro em contato com você mais tarde. Precisaremos nos encontrar
novamente para limpar essa bagunça.
– Estou a caminho de sua casa agora.
– O quê?
– Como policial. Eles querem que alguém interrogue-o. Eu me candidatei. Então vamos treinar: você não tem nenhuma ligação com esse homem, Hunter, tem, sr. Drake?
Uma rápida pausa.
– Não, claro que não, policial.
– Bom, Quando meu parceiro e eu chegarmos aí, lembre-se disso.
– Bom trabalho, Geoff. Obrigado.
Uma pausa.
– Estou fazendo muitas horas extra para você essa semana.
– Vou dar 50 mil a mais pra você.
– Cem.
– O quê? – como esse subalterno ousava fazer demandas a Victor Drake? – Não.
– Eu não estou fazendo isso por motivos humanitários, Drake. Eu só ligo para uma coisa: dinheiro. Você me dá 100 mil em dinheiro amanhã e vou passar essa noite garantindo
que esse problema seja resolvido. Caso contrário, caio fora.
Victor sentiu seus dentes rangendo, sua cabeça girando, seus batimentos cardíacos ultrapassarem o teto. Ele odiava a si mesmo por dizer isso, por fazer isso, por
conceder isso, mas finalmente ele disse:
– Tudo bem. 100 mil. Mas só se você conseguir limpar isso tudo antes que o general chegue de manhã.
– Feito.
Lien-hua e eu tentamos rastrear quaisquer ligações feitas ou recebidas no telefone de Austin, mas descobrimos que ele era novíssimo. Nunca havia sido usado. Os sequestradores
devem ter deixado em algum lugar para Austin.
– Vamos torcer para que ele ainda estivesse esperando pela ligação – eu disse. Então, um momento depois, fiquei surpreso quando meu próprio telefone vibrou. Dei
uma rápida olhada para ver uma mensagem de Tessa cancelando o jantar. Fiquei um pouco desapontado mas também um pouco grato, pois não poderia sair daqui imediatamente,
de qualquer jeito.
– Ok – eu disse, – vamos esquecer o telefone por um minuto. Ele não serve de nada a menos que liguem para ele. O que mais nós temos?
– Alguns policiais estão indo falar com Drake, além disso... – Lien-hua pensou por um momento – Ralph tinha um agente verificando se o tanque havia sido enviado
para essa parte do país. Temos alguma informação dele?
Balancei a cabeça.
– Não que eu saiba.
Então o alarme do meu relógio disparou.
– O que significa? – perguntou Lien-hua.
– 30 minutos – eu disse. – Temos somente 30 minutos até Cassandra morrer.
– Vou ligar para Ralph – ela se distanciou para fazer a ligação e, enquanto fazia, tentei pensar em qualquer pista, qualquer uma mesmo, que eu poderia estar ignorando.
Qualquer coisa que pudesse nos levar até a localização de Cassandra.
Nada.
Nada veio à mente.
Segundos, minutos se passaram.
Nada, nada, nada, exceto a ideia da pegada de Rickman. Os padrões de impressão...
E foi nessa hora que o telefone de Austin tocou.
Abri o telefone e segurei-o em meu ouvido. Esperei. Esperei por seja quem fosse que estivesse do outro lado falar primeiro. O silêncio incomodava; talvez Austin
deveria iniciar a conversa.
Nada.
Comecei a temer que quem ligou pudesse desligar.
– Está feito – eu disse. Falei numa voz grave e esperei que não percebessem que eu não era Austin.
– Então, Austin – uma voz eletronicamente alterada, – você encontrou o telefone.
O sequestrador... e ele não sabe que Austin Hunter está morto.
– Sim.
– Nós não tínhamos certeza de que você encontraria. Você deveria ter feito o check-in há mais de uma hora.
Ele disse “nós”... Quantos eles são?
– Policiais por toda a parte.
Uma rápida pausa.
– Meu nome é Shade e tenho algumas instruções para você.
Shade? Um codinome... Por que ele está se apresentando agora?... Ele
não deve ter falado com Austin antes. Teste. Descubra.
– Deixe-me falar com o cara de antes. Eu não conheço você.
– Ele está ocupado com Cassandra. Quero agradecer a você pelo que fez. Mas agora é hora de você entregar o dispositivo.
Então, eles são pelo menos dois... Esse não conhece a voz de Hunter, não tinha falado com ele ainda... E existe um dispositivo... Que dispositivo?
Tentei pensar em algo, qualquer coisa para dizer em resposta, mas havia muito em risco, e pouca informação. Eu poderia falar muitas coisas erradas.
– Você está aí? – disse Shade.
– Sim.
– O combinado era: o edifício e o dispositivo pela garota. Então, você está com ele?
De que dispositivo ele estava falando?
– Sim, estou com ele – eu tinha que falar alguma coisa. – Onde você quer fazer a troca?
– No mesmo lugar já combinado. Esteja lá em dez minutos. Oh, não. Oh, não.
– Não posso. Muitos policiais por lá.
Uma pausa. Shade deveria estar pensando no que eu havia dito. Talvez ele estivesse suspeitando. Pelo bem de Cassandra, esperava que não.
– Eu estou aqui agora – disse a pessoa que se chamava de Shade. – Não tem nenhum policial aqui. Você acabou de matar Cassandra Lillo, dr. Bowers.
56
19h39
A linha ficou muda.
Não, não, não.
Eu havia matado ela.
Como Shade sabia meu nome?
Eu havia matado Cassandra.
Virei, verifiquei as linhas de visão. Ele me viu? Shade estava aqui? Não vi nenhuma cortina se fechar, nenhum movimento, nenhum brilho de telescópio ou binóculos.
Ninguém na multidão de policiais estava no celular.
Tentei discar o número de volta, nada. Tentei ligar para Terry para tentar rastrear. Ocupado. Liguei para Angela Knight: ela iria trabalhar nisso, mas levaria algum
tempo – justamente o que não tínhamos.
– Pat – Lien-hua veio correndo em minha direção. – Acho que encontramos algo grande.
– O tanque. Encontraram o tanque?
Ela balançou a cabeça.
– Não – ela estava correndo em direção a seu carro agora, e eu corria para alcançá-la. – Tem um mulher chamada Randi que diz que um cara levou ela para um armazém
perto dos estaleiros na noite passada e começou a falar sobre como ele deveria pegar uma outra mulher. Os planos haviam mudado e era hora de pegá-la. Coisas do tipo.
Então ele deixou Randi lá.
Entramos no carro.
– Isso não é o bastante – eu disse. – Pode ser qualquer coisa. Lien-hua ligou o motor.
– De algum jeito, o Canal 11 descobriu sobre o desaparecimento de Cassandra e um policial desconhecido deu a eles o nome de Hunter. Alguns minutos atrás eles fizeram
um boletim rápido e listaram Austin Hunter e Cassandra Lillo como pessoas de interesse no ataque terrorista à base – eles estão chamando de ataque terrorista – e
pediram às pessoas para ligarem com alguma informação. – Ela deu ré no carro e então saiu pela rua.
– Eu não vejo ligação – a paisagem noturna de San Diego passava por nós em giros de luzes desfocadas, postes de luz e incansáveis palmeiras.
– Randi ligou para a delegacia e Ralph acompanhou-a. Aparentemente ela pegou o telefone errado e alguém chamado Shade ligou para ela essa tarde e mencionou o incêndio
no Edifício B-14 antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.
– O quê? Onde ela está?
– Shade é provavelmente um dos...
– Foi com ele que eu acabei de falar.
– Alguém ligou para o telefone? – ela engasgou. – Por que você não disse?
– Eu ia falar, eu só... escute, conto para você no caminho. Para onde estamos indo?
– Randi deu o endereço para Ralph. É perto dos estaleiros. Mas ela não está lá, ela está com medo.
Talvez, apenas talvez, nós pudéssemos salvar Cassandra.
– Dirija como nunca.
E em resposta, ela dirigiu.
57
19h56
Ralph nos aguardava em um estacionamento abandonado que se esticava entre dois armazéns desocupados.
– Esse é o endereço, mas eu não sei qual dos dois é o lugar – ele gritou enquanto eu e Lien-hua saíamos do carro. – Chamei o Departamento de Polícia de San Diego;
eles vão enviar algumas viaturas. Mas temos menos de cinco minutos, não podemos esperar – ele verificou as construções. – Poderia ser qualquer um dos dois, não tem
como dizer.
– Sim, tem sim, – eu disse. – Lembra do vídeo? Luz natural. Janelas do segundo ou terceiro andar. As sombras apareceram do lado direito de Cassandra, então, com
base na posição do sol na hora do dia...
Ralph apontou.
– Aquele só tem janelas no primeiro andar – nós três nos viramos para o armazém que sobrou, vimos as fileiras de janelas do terceiro andar e começamos a correr pelo
estacionamento.
Ralph sacou sua arma.
– Pat, você fica com o lado direito, Lien-hua, vá pela esquerda. Eu vou pela frente.
Nos separamos. Corri ao longo do lado oeste do armazém mas encontrei apenas uma porta de aço, e estava fechada com uma corrente. A construção coberta de grafites
ocupava praticamente um quarteirão inteiro, então não havia tempo pra voltar. Canos enferrujados e dutos de ar acinzentados saíam pela lateral do armazém em ângulos
estranhos, e eu não fazia a menor ideia de qual a função da maioria deles. Todas as janelas bem acima de mim estavam trincadas ou quebradas e me lembravam de grandes
olhos injetados.
Tempo, tempo, estamos ficando sem tempo.
Olhei para as janelas novamente. Elas estavam a mais ou menos oito metros de altura. Alguns canos serpenteavam para fora do armazém e acompanhavam sua lateral. Vi
que um dos dutos de ar acabava a um metro e meio do parapeito da janela.
Você consegue, Pat. É o único jeito de entrar.
Eu pulei, agarrei uma alça e me puxei para cima.
Uma pequena saliência à minha esquerda me deu apoio suficiente para que eu pudesse me arrastar pela parede, escorregar as pontas dos dedos entre duas tiras de metal,
me agarrar com a mão esquerda e então me balançar até um largo respiradouro. Centenas de milhares de flexões de braço dando resultado.
Apoio para as mãos. Apoio para os pés.
Agora, a meio caminho das janelas, analisei a parede acima de mim, procurando por apoios para os dedos, encontrando meu ritmo novamente. O tempo todo raspando meu
calçado contra o exterior áspero da construção e me segurando em beirais na parede com as pontas dos dedos. Suavizando meus movimentos. Dedos doloridos. Sinta o
ritmo. Apoio para os pés. A dança vertical.
Ali.
A janela
Olhei para dentro e avistei uma passarela que contornava o interior do armazém. A maioria do vidro quebrado da janela ainda estava pendurada na moldura, como grandes
dentes serrilhados. Soquei os cacos em forma de facas, saquei minha SIG e pulei para a passarela.
Olhei no meu relógio.
20h.
Além da mancha das luzes da cidade se infiltrando pelas janelas, o interior do armazém era uma profundidade escura se esticando à minha frente. Peguei minha minilanterna
de led e varri o salão cavernoso. Minha luz não alcançava a parede oposta, mas alcançou uma escada de metal a cerca de 30 metros dali que descia pela cavidade negra
do armazém.
No vídeo havia um chão de concreto; o tanque é no primeiro nível. Corri na direção da escada, tentando manter minha luz firme enquanto corria.
No topo da escada, minha luz iluminou um interruptor de tamanho industrial. Nós não tínhamos tempo sobrando para ficar andando sorrateiramente. Tínhamos que encontrar
Cassandra agora. Acionei o interruptor quando passei por ele e então voei descendo a escada três degraus de cada vez. Algumas lâmpadas fluorescentes no alto do teto
começaram a piscar se acendendo, mas não passaram disso, deixando um efeito sombrio semelhante a um estroboscópio.
Andar térreo.
A poeira cobria máquinas, ferramentas e correias de transporte quebradas preenchiam a seção principal do armazém. Eu não ouvi nem Lien-hua nem Ralph. Talvez eles
ainda estivessem fora do armazém.
Ou talvez tenham encontrado Cassandra.
– Olá – eu chamei. Verifiquei meu relógio.
20h02.
Ouvi um estalo enorme e imaginei que fosse o som de Ralph arrombando uma porta.
– Ralph?
– Sou eu! – disse Lien-hua. Apontei a luz em sua direção. Ela havia aberto a porta com um chute. – Conseguiu alguma coisa?
– Não – girei minha lanterna, mas a luz mal abriu espaço na escuridão. – Espere... – as lâmpadas fluorescentes piscaram. A luz fraca nos envolvia. Consegui ver algo,
um brilho de vidro. Comecei a atravessar o vazio. – Aqui – sim, sim. Eu realmente vi algo.
O tanque.
A luz piscava.
Eu havia encontrado.
Estava a 25 metros de distância, perto do canto do armazém. Vagamente, sob a luz hesitante, vi um corpo no tanque. Cassandra! Não dava para saber se ela estava viva
ou morta.
58
20h03
O tempo correu junto comigo através do armazém.
– Aqui! – eu gritei. – Por aqui.
Viva. A água até o pescoço. Buscando, buscando por ar.
Tropecei em algo, caí sobre uma peça de máquina abandonada. Bati no concreto.
Levantei-me.
Corri novamente.
Os outros também. Os outros corriam. Quem? Não podia ver.
– Estou vend-a – Lien-hua gritou.
O eco dos passos ao meu redor.
A luz piscante. A luz piscante.
Ouvi o barulho dos meus tênis. As batidas constantes das botas de Ralph. O caminhar fluido de Lien-hua.
Mas outros passos também. Uma quarta pessoa.
Então algo bateu contra o chão à minha esquerda e mirei minha lanterna em direção ao som. Vi uma figura disparando em direção ao outro lado do armazém escuro.
– Parado! De joelhos! – eu gritei. As luzes acima de mim piscavam, piscavam. – Agora! – a luz fraca dançando pelo interior do armazém.
Uma dança macabra.
– Pare!
Mas ele não parou. Eu precisava tomar uma decisão. Persegui-lo ou salvar Cassandra.
Escolha fácil.
Cassandra.
Escutei Ralph e Lien-hua.
– Ali! – eu gritei, apontei. – Ele está fugindo.
– Ele é meu – Ralph gritou enquanto Lien-hua pulava com a graça de uma corça sobre uma esteira de transporte e chegava ao meu lado.
A água saia de um cano que descia pela parede do armazém e atravessava o vão de um metro até o topo do tanque. A água não estava mais pingando. Os registros devem
ter sido totalmente abertos.
Cassandra Lillo batia e estapeava o vidro enquanto a água agitada alcançava seu queixo. Ela estava gritando, ainda gritando quando a água cobriu sua boca.
– Onde está o registro? – gritei para ela, empunhando minha SIG. – O registro? – Mas Cassandra estava muito ocupada tentando sobreviver.
Lien-hua bateu no vidro.
– Nós vamos tirar de você daí. Tenha calma.
A água borbulhava nos lábios de Cassandra.
– Pat – o desespero surgiu na voz de Lien-hua. – Você tem que parar a água.
Corri para a parte de trás do tanque, guardei a lanterna, pulei e agarrei o cano de água. Usei meu peso para balançar, com força, tentando soltar o cano da lateral
do armazém, mas ele estava muito firme. Firmei meus pés contra a parede e torci com toda a minha força.
Nada.
Puxei. Puxei.
Nada.
Cassandra puxou a corrente, tomou um pouco de ar. A corrente parecia frouxa, mas ela não percebeu.
– Relaxe! – eu gritei. – Você vai ficar bem.
Mas não ajudou. Ela estava entrando em pânico.
– Rápido, Pat – Lien-hua encontrou um cano de chumbo e bateu-o contra o vidro, mas apenas sinais fracos de rachaduras apareceram. – Nós vamos perdê-la.
Desci para o chão e com a lanterna na mão, procurei pela área ao redor do tanque. Minha lanterna salpicou as paredes de luz, mas eu não encontrei nenhuma maneira
de esvaziar o tanque.
O registro deve ficar fora do armazém.
Uma memória dos meus dias de ra?ing passou pela minha cabeça.
Uma vez, um homem que havia caído de um bote ficou com sua perna presa debaixo de um galho submerso. Sua cabeça estava a um metro abaixo da superfície, mas um amigo
meu e eu o mantivemos vivo, nadando até ele e passando o ar para ele boca-a-boca, até que ele pudesse ser resgatado 20 minutos depois. Se conseguisse entrar no tanque,
eu poderia fazer isso com Cassandra.
Mas quando analisei a parte de cima do tanque, vi que as barras de metal eram presas no lugar por pinos de metal grossos e encurvados. Eu nunca conseguiria removê-los
rápido o suficiente para salvá-la.
As luzes fluorescente acendiam e apagavam. Escuridão e luz. Escuridão e luz.
– Calma, Cassandra! – eu gritei. – Nós vamos tirar você daí! – Mas sua longa luta tinha a deixado exausta. Ela pressionou sua mão contra o vidro e abriu levemente
sua boca, mandando uma explosão de bolhas para a superfície, engolindo, engasgando com uma porção de água. Por um momento ela bateu no vidro com um punho desesperado,
mas então seu punho se abriu.
Seus dedos se desenrolaram na água. Agora, Pat. Agora. Ajude-a. Salve-a.
– Lien-hua – eu disse, – para trás. – Saquei minha arma, mirei em um ângulo que não acertaria Cassandra se meu plano realmente funcionasse, e comecei a esvaziar
o pente sobre as fraturas que Lien-hua havia causado no vidro. Assim que viu o que eu estava fazendo, ela seguiu o exemplo. As balas ricochetearam no vidro e voaram
para a escuridão psicodélica do armazém. Torci para que as balas não rebatessem de volta para nós, mas não tínhamos nem como saber e nem tempo para nos preocupar.
Luz e som piscaram e ecoaram, reverberando no ar vazio.
Lien-hua e eu atiramos pelo menos 16 vezes antes da teia crescente de rachaduras implodir e da água se espalhar pelo salão carregando o vidro estilhaçado com ela.
A força da água bateu contra nós, derrubando ambos enquanto o corpo mole de Cassandra veio ao chão ao nosso lado, em meio a uma tempestade de canos de metal reverberando.
Minha lanterna havia voado da minha mão e foi arrastada pelo chão, emitindo raios ondulados de luz pelo armazém. Olhei na direção de Cassandra e vi que Lien-hua
já estava ao seu lado.
– Ela ainda está viva, Pat. Chame uma ambulância.
Peguei meu telefone e disquei 911 enquanto Lien-hua se inclinava e sentia o pulso de Cassandra e sua respiração. A expedição me disse que uma ambulância já estava
a caminho, mas para economizar tempo a eles quando chegassem, relatei o máximo que pude sobre a condição de Cassandra e confirmei o endereço do armazém. Nesse meio
tempo, recuperei minha lanterna e vi que Lien-hua havia virado Cassandra de lado para ajudar a desobstruir sua respiração. Miraculosamente, Cassandra parecia estar
respirando razoavelmente bem por conta própria.
– Você vai ficar bem – Lien-hua disse a ela. – Acabou. Você está segura agora. Acabou.
Cassandra acenou com a cabeça debilmente, deixando Lien-hua abraçá-la, tranquilizá-la. Então me lembrei que Ralph estava perseguindo um suspeito – mas que havia
pelo menos duas pessoas envolvidas no sequestro. Shade e mais alguém. Iluminei o local ao nosso redor.
– Quantos eram? – perguntei para Cassandra. – Quantas pessoas estavam aqui?
Ela balançou a cabeça. Não sabia.
Varri o salão com a luz, procurando, procurando. Meu coração disparado. Por que estão demorando tanto?
Coloquei meu telefone ao lado de Lien-hua caso os paramédicos precisassem de mais informações.
– Vou dar uma olhada.
– Cuidado – disse Lien-hua.
Deslizei um novo pente em minha SIG e comecei a procurar nas dobras da escuridão latejante ao meu redor.
59
Eu tinha chegado na metade do caminho até a parede oposta do armazém quando ouvi passos à minha direita. Me abaixei. Posição de tiro. Meu coração martelando.
– Parado aí.
– Pat – a voz de Ralph retornou. – Eu o perdi. – Então Ralph deixou uma série de xingamentos preencher o ar.
– Encontramos Cassandra – eu disse. – Ela está bem.
Então percebi um vulto de movimento nas sombras. Virei minha lanterna. Vi um relance de pele clara.
Um rosto.
– Ei! – eu gritei. O cara levantou-se. Saiu em disparada. Mais para perto de Ralph do que de mim. Apontei minha lanterna. – Ralph, pegue-o!
Sem hesitar, Ralph explodiu em direção ao centro desarrumado do armazém. Corri em direção à porta mais próxima para bloquear a fuga do suspeito mas mantive minha
lanterna apontada para ele o máximo que pude.
De fora do armazém, o som das sirenes de ambulância e da polícia me disseram que os policiais e os paramédicos haviam finalmente chegado. Quando o suspeito se aproximou
da escada por onde eu havia descido mais cedo, ele agarrou uma ferramenta de algum tipo em uma bancada.
– Ralph, ele está armado.
O homem parou repentinamente, virou-se e desceu com um martelo na cabeça de Ralph. Ao invés de se esquivar, Ralph ergueu a mão, agarrou o martelo em pleno movimento
e arrancou-o da mão do homem. Atirou--o no meio da escuridão.
Isso teria me intimidado, mas não a esse cara. Inabalado, ele pulou para cima de Ralph e desencadeou uma terrível sequência de golpes de karatê no pescoço e peito
de Ralph que o deixou atordoado por um momento, mas Ralph acertou um gancho no maxilar do cara que o mandou tropeçando para trás, e então Ralph estava em cima dele,
derrubando-o sobre o concreto. Um instante depois, Ralph havia rolado o suspeito no chão e algemado suas mãos para trás.
Os policias e a equipe médica estavam passando por mim. Ralph ergueu o suspeito e os policiais do Departamento de Polícia de San Diego o cercaram.
– Bem na hora – Ralph disse sarcasticamente, entregando o cara a eles. Então ele massageou o pescoço no lugar onde o cara havia o acertado. – Que sujeito brincalhão.
Assim que Ralph se livrou dele, balancei minha cabeça.
– Ralph, por que você não sacou sua arma?
Ralph ergueu um imenso punho carnudo.
– Eu saquei.
Enquanto ele estava com a mão erguida, percebi que seu mindinho estava torto, deslocado, ou por socar o suspeito, ou por tê-lo derrubado ao chão. Apontei em direção
ao dedo e Ralph olhou para ele por um momento. Então ele o envolveu com sua outra mão, e com uma leve careta, puxou o dedo para frente e então para o lado, estalando
a junta de volta ao lugar.
– Do jeito que eu gosto – ele disse. – Rápido e limpo.
Acho que Ralph precisa arrumar um hobby. Talvez yoga. Ou um desses jardins de pedra japoneses. Isso, ou um bom terapeuta.
Então ele correu em direção a Cassandra e o tanque destruído, e eu percebi o detetive Dunn vindo em minha direção.
– O que nós temos? – ele perguntou.
– Tem pelo menos mais um – eu disse. – Poderia estar em qualquer lugar do armazém.
– Espalhem-se – Dunn ordenou a seus homens. – Cubram o espaço. Encontrem-no. – Imediatamente, os policiais se espalharam pelo armazém para cumprir as ordens.
Aproveitei o momento para recuperar o fôlego. Para me acalmar, para começar a processar o que havia acabado de acontecer. Austin Hunter estava morto. Cassandra Lillo
estava viva. Nós tínhamos um suspeito sob custódia. Sim, respire, respire.
Respire.
Tessa entrou em seu quarto do hotel com seu novo corvo secreto pousado em seu braço. Sua pele estava tão dolorida que parecia realmente que as garras da ave estavam
agarrando seu braço. Ela estremeceu enquanto fechava a porta.
Antes dela ter saído do estúdio, Riker havia dado a ela um frasco de sabonete antibacteriano pela metade para lavar seu corvo.
– Você pode colocar um pouco de creme hidratante também – ele disse.
– Mas não muito, senão vai desbotar a cor – então Lachlan havia enrolado o braço dela com gaze e disse a ela para esperar uma hora antes de removê-la.
Mas agora que estava em seu quarto, ela estava ansiosa para ver sua tatuagem, então ela cautelosamente puxou sua manga e tirou a gaze macia que a cobria.
Sua pele estava vermelha e inchada. E sensível. Muito sensível. Mas o corvo estava lindo.
Lachlan era bom, como Riker havia dito.
Tessa delicadamente lavou sua tatuagem. Então se encostou em uma pilha de travesseiros em sua cama, pegou seu caderno e começou a escrever sobre os profundos detalhes
azuis dos olhos de Riker.
Enquanto dois policiais começaram a ler para o suspeito seus direitos, alguém encontrou o controle principal das lâmpadas e as ligou. Uma enxurrada de luz fluorescente
tomou conta do lugar, o armazém surgiu à vista e pela primeira vez eu pude dar uma boa olhada no suspeito. Por volta de 30 anos, 1,78 m, 80 quilos. Cabelos castanho-claros,
olhos pretos que me lembravam das pedras pretas que você encontra no fundo de um lago do norte. Jeans, blusa de moletom, botas de couro. Um número de manchas e cicatrizes
em seu pescoço e face. Nenhuma joia, nem tatuagem e nem piercings visíveis. E forte como um puma, mesmo contra Ralph.
Então percebi que próximo à parede do armazém, ao lado dos estilhaços do tanque, poças d’água estavam escorrendo preguiçosamente pelo concreto, sentindo as ranhuras
do chão irregular. A água provavelmente havia ajudado a remover quaisquer traços de evidências no local, mas quebrar o vidro havia sido a única maneira de salvar
Cassandra.
Anos atrás, eu havia aprendido a arrombar fechaduras, então eu decidi ajudar Cassandra a se livrar do grilhão em seu tornozelo, mas quando olhei, vi que os paramédicos
já estavam trazendo-a em minha direção em uma maca. Talvez Ralph tenha ajudado a soltar a corrente para liberá-la.
Um dos paramédicos andando ao lado de Cassandra colocou uma máscara de oxigênio sobre sua boca. Os médicos teriam que atender Cassandra, é claro, mas parecia que
tínhamos chegado bem a tempo. Ela parecia estar consciente e reagindo. Lien-hua estava andando ao lado dela, segurando sua mão. Felizmente, Cassandra estava deitada
e não viu o suspeito parado a dez metros dali. Eu nem imagino qual seria a reação dela se ela tivesse olhado naquele momento.
Quando os paramédicos se aproximaram da porta, o suspeito falou alguma coisa para Lien-hua que eu não consegui ouvir. Ela parou. Virou-se.
– O que você disse? – ela soltou a mão de Cassandra e se aproximou dele. – Eu não consegui entender o que você disse. – Pensei que ele estivesse provocando ela,
então comecei a andar na direção dele para acabar com isso.
Mas ante que eu pudesse chegar lá, ele falou de novo e dessa vez eu escutei.
– Ela está com um vestido tão bonito – ele disse. – Tomara que não tenha estragado com a água. – Sem hesitar, Lien-hua passou por cima do martelo que estava no chão,
girou e acertou-o com um chute no abdômen, arrancando-o dos braços dos dois policiais ao lado dele, mandando-o cambaleando para o chão. Então ela partiu para cima
dele, sendo necessário que Ralph e eu a segurássemos. Ela lutou contra nós com uma força incrível que me assustou. Era a primeira vez que eu a via perder o controle.
O cara poderia processá-la ou dar queixa, mas não acho que ela ligava. A reação dela pareceu tanto com a minha quando Basque zombou da morte de Sylvia Padilla há
13 anos atrás que até me deu calafrios.
– Calma – sussurrei enquanto ela tentava se soltar. Eu sentia a tensão em seus músculos. – Calma – eu disse novamente. Finalmente ela começou a relaxar, e Ralph
e eu a soltamos, mas ficamos próximos dela, só para garantir.
Dunn mandou seus policiais levantarem o suspeito, e então ele o encarou de igual para igual.
– Não vejo a hora de levar você para a delegacia.
Mas o homem apenas olhou friamente para Dunn, como se o detetive fosse a presa, e ele, o predador.
– Me desculpe, detetive – ele lançou um olhar em direção a Lien-hua –, mas preferia dançar com a moça. Ela vai ser minha próxima namorada.
Dunn acertou em cheio o rosto do cara, e pensei que teríamos que segurá-lo também, mas felizmente ele recuou.
– Tirem esse verme daqui – então, em um momento de delicadeza incomum, o detetive foi até Cassandra, tirou o cabelo molhado de sua testa e disse: – Já acabou. Tudo
vai ficar bem.
Prestei atenção em tudo isso. Tudo mesmo.
Um dos policiais de Dunn retornou.
– O armazém está vazio.
– Procure de novo – eu disse. – Nós achamos que eram pelo menos dois sequestradores.
Dunn assistiu os paramédicos levando Cassandra embora.
– Tudo bem – ele disse, – vasculhem. Definam um perímetro. Vamos dar uma dura nesse cara para sabermos de seu parceiro assim que chegarmos na delegacia – todos os
policiais dirigiram-se a suas tarefas de procura, investigação e proteção do local.
– Conseguimos alguma coisa de Drake? – perguntei para o Detetive Dunn. Ele balançou a cabeça.
– Ele não sabe de nada. Vamos continuar averiguando isso amanhã. Eu queria conversar mais com o suspeito, descobrir a identidade de Shade, descobrir o que o dispositivo
realmente era e por que parte da exigência deles envolvia queimar o Edifício B-14. Tantas perguntas. E eu queria conversar com Cassandra também. Ouvir sua história
sobre o que aconteceu no Sherrod Aquarium, perguntar sobre sua pesquisa e descobrir o quanto ela sabia sobre os incêndios que Austin Hunter havia causado.
Mas agora não era hora para nada disso. A polícia precisava processar o suspeito, os médicos precisavam cuidar de Cassandra e os criminalistas precisavam definir
o perímetro da cena do crime, sem dúvida usando os parquímetros e as placas de “PARE” nas ruas ao redor do armazém para amarrar a fita de isolamento. Enquanto em
pensava em todas essas coisas, ouvi Ralph mencionar para Lien-hua que a diretora-executiva-assistente Margaret Wellington havia chegado na cidade e queria dar uma
passada no local. Ótimo.
Percebi que, apesar de tudo, não havia muito mais o que Ralph, Lien-hua e eu pudéssemos fazer ali, então demos os nossos depoimentos e preenchemos a papelada burocrática.
Indiquei o celular de Austin como evidência, e então, quando estávamos indo embora, Ralph disse para Lien-hua:
– Aposto que a sensação foi boa. Acertá-lo daquele jeito.
– Não – ela disse. – Não foi boa. Nada disso é bom. Nada mesmo. Suas palavras levaram minha mente de volta para Basque novamente.
Aquela noite inesquecível no matadouro. Como foi a sensação de acertá--lo, de passar do limite. E então, à luz das palavras de Lien-hua, tive um surto de vergonha,
porque, ao contrário dela, uma parte de mim havia gostado do flerte com a escuridão. Uma parte de mim havia imaginado como seria viver além do limite. E uma parte
de mim ainda imaginava, mesmo depois de todos esses anos.
Só depois que Lien-hua e eu saímos do armazém e estávamos entrando no carro que percebi que um pouco do sangue dela ainda estava na minha mão, desde quando eu havia
tentado estancar o sangramento do ferimento à bala em seu pescoço.
Coloquei a palma da minha mão aberta contra minha perna e deixei ela lá durante todo o caminho de volta para o hotel.
60
22h02
Tessa terminou seu poema sobre Riker, o cara que havia dito a Lachlan para fazer para ela o que ela quisesse. Então ela fechou seu caderno e pegou um livro de contos
franceses do século XIX que ela havia começado a ler.
Mas após apenas alguns minutos, seus olhos ficaram pesados e Tessa sentiu o sono vindo em uma queda de sonhos com corvos e tubarões e ondas escuras beijando a praia.
22h14
O avião com escolta militar do general Biscayne estabilizou voo para a aproximação final rumo à North Shore Naval Base na Ilha de Coronado. Ele percebeu que teria
o tempo exato para dirigir até a casa de sua irmã em Carmel Valley, e ainda ter sete horas de sono antes de retornar para a reunião do Comitê de Supervisão do Projeto
Rukh às 8 horas – a reunião na qual ele iria encerrar o contrato da DARPA com a Drake Enterprises.
22h26
De volta a seu quarto de hotel, Lien-hua Jiang olhou sob o curativo em seu pescoço. Felizmente o ferimento não parecia grave, e no geral ela sentia-se incrivelmente
bem, apesar da noite tensa.
Sua perna a incomodava, no entanto. Ela sentiu um estiramento dolorido em sua coxa direita desde a hora em que a água do tanque estilhaçado a havia derrubado, mas
foi só quando ela tirou o jeans para colocar uma calça de moletom que ela descobriu o enorme hematoma em sua coxa. Uma das barras de metal deve ter lhe acertado
quando caiu no chão, e com toda a adrenalina em seu corpo, ela não havia notado a gravidade da contusão até agora.
Gelo. Era isso que ela precisava. Fazer compressa de gelo na perna antes de ir para a cama. Ela pegou o balde de gelo, abriu a porta, e quase trombou com Pat Bowers,
que estava em seu caminho, sua mão na posição de bater na porta.
– Oi – ele disse, sua mão ainda erguida.
– Oi – ela disse com um sorriso. – Você está praticando tai chi?
– Ahn?
– Sua mão.
– Ah, claro – ele baixou sua mão. – Desculpa, eu... eu só queria ver como você estava. Queria saber se você está bem.
– Bem, obrigada. Estou indo pegar um pouco de gelo para uma contusão na minha perna – ela passou por ele, esperando que ele perguntasse se podia acompanhá-la.
– Posso acompanhar você?
Com toda certeza.
– Claro.
Eles andaram lado a lado.
O cabelo dela estava por cima do ferimento à bala em seu pescoço, e ela ficou surpresa quando ele gentilmente afastou seu cabelo para o lado.
– Seu pescoço vai ficar bem? – então sua mão se afastou.
– Acho que sim. A bala só pegou de raspão – eles chegaram até a máquina de gelo e ela colocou o balde sobre a bandeja, debaixo da saída de gelo.
– Deixe-me ajudá-la – ele pressionou o botão.
– Uau. Obrigada, Pat. Eu não acho que teria conseguido fazer isso sozinha.
– Sem problema – ele ficou envergonhado ao lado dela enquanto o gelo caía dentro do balde.
Pareceu demorar uma eternidade.
Então, quando a máquina desligou e o balde estava finalmente cheio, Pat tentou pegá-lo.
– Eu levo para você.
Porém, ela já havia alcançado o balde e a mão dele passou perto da dela enquanto ela pegava o balde.
– Eu sei que parece pesado, Pat, mas acho que consigo me virar – por um momento ela pensou que se essa noite fosse um filme, suas mãos teriam se tocado. Com certeza.
E de certo modo, ela gostaria que tivesse acontecido, mesmo isso sendo um tremendo clichê.
Enquanto ela seguia o caminho de volta para seu quarto, ela notou que estava andando mais devagar do que o necessário.
– Você esteve ótima hoje – Pat disse. – Muito boa. Falando com Hunter. Ajudando Cassandra. Nos mantendo focados em encontrá-la... – ela percebeu que ele estava escolhendo
as palavras certas, e isso era uma graça. – E durante a tarde também – ele continuou. – Na reunião... Muito minuciosa. Muito... profissional.
– Obrigada, dr. Bowers. Você foi muito profissional hoje, também. – Eles chegaram à porta. – Eu podia ver você encaixando as peças, quase como um criador de perfil.
Ele deixou um sorriso apontar no canto de sua boca.
– Lien-hua, venho até aqui para ver como você está e você me insulta – sua barba por fazer emprestava a seu rosto uma profunda masculinidade. – Que motivo você teria
para isso?
– Pensei que você não acreditasse em motivos.
– Ah, eu acredito neles. Só acho que, às vezes, nós temos mais de um nos influenciando ao mesmo tempo.
A pergunta implorou para ser perguntada, e então, tentando não prever a resposta, ela a lançou.
– Então, quais intenções você tinha quando veio até aqui, Pat? Em resposta, ele levantou sua mão como se fosse bater na porta.
– Você adivinhou antes. Tai chi. – Ele começou a mover-se lentamente, imitando movimentos de tai chi. – Benefícios para a saúde. Preciso me manter em forma.
– Bom, espero que funcione para você – ela disse. – E mais uma vez... – ela abriu sua mão direita, levantou os dedos até seu queixo e depois abaixou-se lentamente.
– Isso é linguagem de sinais, não é?
– Sim, significa “obrigada”.
Ele repetiu o sinal.
– Você precisa me ensinar mais um dia. Eu gostaria de aprender.
– Ok. Um dia – ela deslizou a chave na fechadura e abriu a porta. Ela queria que essa conversa continuasse. Ela queria convidá-lo para seu quarto mas, ao invés disso,
ela apenas disse o que deveria dizer para um colega de trabalho que havia demonstrado preocupação com seu bem--estar. – Boa noite, Pat. Te vejo de manhã. Fiquei
feliz de verdade por você ter vindo ver como eu estava.
Ele acenou levemente, batucou na porta com o dedo e disse:
– Ok, te vejo de manhã. Cuide dessa perna. E do pescoço também. Ela entrou em seu quarto, fechou a porta, ficou parada por um momento, contou até cinco e então abriu
a porta para ver se ele havia ido embora. Quando viu que sim, ela fechou novamente e foi cuidar de seu vaso de flores moribundas.
Aproximadamente dez minutos haviam se passado até ela notar que o gelo estava derretendo no balde e seu hematoma ainda estava latejando em sua perna.
Sou um idiota.
É só isso.
Um completo idiota.
Oh, você foi muito profissional hoje, Lien-hua. Vim aqui a essa hora da noite
para dizer a você quanto você foi profissional hoje. Olha, deixe-me ficar no corredor com meu punho levantado igual um mímico ruim por mais alguns minutos.
Eu realmente falei “Benefícios para a saúde. Preciso me manter em forma”? Eu falei isso, mesmo?
Alguém me dá um tiro.
Bom, pelo menos não disse o que eu estava realmente pensando quando ela disse que precisava colocar gelo na perna. Pelo menos não disse “eu posso fazer isso pra
você”. Pelo menos não falei isso.
Eu estive meio que esperando que ela me convidasse para entrar, só para conversar sobre o dia.
Sim, lógico – conversar sobre o dia.
Fica frio, Pat. Vai dormir.
Bati na porta de Tessa, mas ela não atendeu. Imaginei que ela estivesse ou dormindo, ou ouvindo seu iPod. Provavelmente ambos. Peguei meu telefone para ver se ela
havia me deixado outra mensagem mas ao invés disso, encontrei uma mensagem de voz: “Vejo você de manhã, Patrick. Só não fique todo ‘vamos começar o dia cedo!’ ou
coisa parecida. Isso enche o saco.”
Tudo bem então, amanhã nós poderíamos recuperar o atraso, e ela poderia me contar o que fez no resto do dia.
Embora, baseado em alguns telefonemas que havia feito mais cedo, durante a tarde, eu achava que já sabia. E ela não havia passado muito tempo na cafeteria que servia
café importado, ou andando pelo Balboa Park. Ao invés disso, ela havia passado cerca de cinco horas em um dos decadentes estúdios de tatuagem na Market Street.
Bem, eu poderia falar com ela sobre isso de manhã. Por enquanto, eu precisava dormir um pouco.
61
Creighton Melice estava deitado na cama em sua cela e permitiu-se relaxar, mergulhando no desconhecido. Ele sonhou com aranhas, como sempre fazia, mas essa noite,
com o fim tão próximo, as imagens pareciam tão reais para ele quanto o luar e o sangue.
E assim por diante. Agora, seu sonho.
Uma aranha do tamanho de um punho de um bebê arrasta-se pelo seu pescoço e através de seu rosto, esfregando suas patas contra seus lábios, suas bochechas, suas pálpebras,
o entalhe macio sob seu nariz. Em seu sonho, ele está paralisado, então ele pode ver seu corpo escuro parado em sua bochecha, mas ele não pode se mover, não pode
espantá-la. Isso o repele e o excita ao mesmo tempo, causando arrepios de prazer secreto em todo seu corpo.
A aranha recua e dá uma picada no meio de sua bochecha. Ele quer gritar mas não consegue emitir nenhum som; não consegue espantá-la. Ele sente a pressão, a ferida
aumentando, a sensação delicada que rasga enquanto ela cava sua bochecha e a pele se abre para receber seus ovos.
Ela deposita sua prole, então, numa queda úmida. E ele pode sentir os pequenos sacos úmidos sobre sua língua.
No calor de sua boca como um casulo, não iria demorar muito para os ovos eclodirem.
O tempo passa. Quanto? Um instante. Uma eternidade. Impossível dizer. Impossível saber.
E então eles eclodem.
É um sonho. É tudo um sonho.
Suas finas patas exploram sua língua. Alguns dos filhotes escorregam pela sua garganta, enquanto outros conseguem se espremer pelas passagens estreitas de suas narinas.
Algumas das pequeninas aranhas arrastam-se por sua boca, pernas ágeis andando sobre seus dentes, pelos lábios e então se espalhando para correr pelo seu rosto. Sempre
examinando, sempre sondando.
É claro, é só um sonho.
Apenas um sonho.
O resto dos filhotes penetra profundamente nele. Corpos úmidos deslizando, contorcendo-se contra o espaço apertado de sua garganta. Descendo. Descendo.
Um sonho. Um sonho.
Lá para baixo.
Profundamente. Profundamente.
Eles chegam em seu estômago. Eles ainda estão vivos.
Então ele os sente contorcendo-se dentro de si, e tem a sensação agitada de quando eles começam a trabalhar com suas pequenas mandíbulas para mastigar. Devorando-o
de dentro para fora.
E ele imagina como seria sentir isso, como deveria ser isso, o quanto deveria doer; mas ele percebe apenas texturas, leves e aeradas; apenas pressão, cega e dormente.
Então Creighton Melice acordou, feliz com seu sonho, e rolou para o lado. E ali, na solidão de sua cela, ele começou a revisar o plano de amanhã enquanto coçava
o pequeno ferimento em sua palma esquerda que nenhum dos policiais que haviam lhe prendido haviam se preocupado em verificar. Eles ficariam surpresos.
Todos ficariam.
62
Quarta-feira, 18 de fevereiro
7h10
Na manhã seguinte, após um rápido exercício na sala de ginástica do hotel e uma ducha ligeira, andei até a cafeteria sobre a qual Tessa havia me contado para comprar
um pouco do que ela chamava de “café com nome esquisito”.
O lugar possuía principalmente cafés da América do Sul, e eu peguei uma xícara de um café peruano do Vale Chanchamayo. As altas regiões dos Andes produzem um café
leve, aromático e levemente doce, perfeito para a manhã.
Eu podia sentir que a cafeteria havia torrado os grãos um pouco demais, mas eu estava me sentindo generoso e sequer mencionei isso para eles. Adicionei um pouco
de creme e mel, sem açúcar, como sempre, e saboreei o paraíso.
Como eu esperava ter alguma companhia para o café-da-manhã, peguei algumas xícaras extra para viagem.
Em seu caminho para a reunião do Comitê de Supervisão do Projeto Rukh, Victor Drake percebeu algo tão simples, tão óbvio, que ficou surpreendido por não ter pensado
nisso antes. Quem se importa por que Austin Hunter causou o incêndio? Não interessava. Ele estava morto. Ele não podia mais prejudicar a Drake Enterprises. E o incêndio
havia sido eficaz. Só isso importava.
Tudo havia sido destruído.
Tudo.
Sim, isso acabaria dando a ele uma vantagem, afinal. Ele poderia pegar os arquivos que sobraram com o dr. Osbourne e destruí-los assim que o doutor chegasse na cidade.
Sim, sim, sim. E por causa do incêndio, ele poderia se livrar do contrato graciosamente e não haveria inquérito do conselho administrativo e nenhuma reação pública.
Victor não podia evitar de se parabenizar por ser tão brilhante. Ele começou a cantarolar enquanto dirigia, pensando na cara que o general estaria em menos de uma
hora, quando ele explicaria com arrependimento sobre a infeliz situação.
Depois de deixar mensagens de texto para Ralph e Lien-hua, convidando-os a se juntarem a mim no café-da-manhã na varanda do restaurante do hotel, levei meu computador
até uma mesa vazia e peguei minhas anotações sobre esse caso. Uma porção de perguntas voou pela minha cabeça.
Era hora de fazê-las voarem organizadamente.
Primeiramente, antes de Austin Hunter morrer, ele admitiu para Lien-hua que ele havia causado os primeiros 14 incêndios, mas não aquele de segunda-feira à noite.
Certo, então isso resolvia um mistério, mas nos deixava com outro. A distribuição geográfica dos incêndios indicava que a mesma pessoa havia escolhido todas as localizações
dos incêndios, então digitei “Por que Austin não causou o incêndio da segunda-feira? Quem causou?” Pensei por um momento e adicionei “A morte do fulano tinha alguma
coisa a ver com os incêndios anteriores?”
Olhei para a praia. Uma pessoa distante passeando com o cachorro. Duas crianças procurando por conchas, andando atrás de sua mãe. Um casal mais velho andando de
mãos dadas. O oceano jazia além deles, ondulações suaves na superfície, correntes escuras abaixo. Bem acima do único oceano do mundo, um círculo de nuvens pacientes
enfeitava o céu, enquanto na ponta oriental da Ilha de Coronado, a fumaça dos restos do Edifício B-14 rumava para o sul, levada pela brisa matinal.
Edifício B-14.
Os sequestradores de Cassandra queriam que aquele prédio fosse queimado – por que? Adicionei mais três perguntas à minha lista: Qual a ligação deles com o Edifício
B-14? De qual dispositivo os sequestradores estavam atrás? Onde ele está agora?
Próximo dali, um par de gaivotas ansiosas saudou a manhã com sua conversa gritada, lembrando-me novamente do comentário de Tessa segunda-feira à noite sobre gritos
em matadouros. Lembrando-me novamente dos gritos úmidos de Sylvia Padilla...
Dos gritos silenciosos de Cassandra Lillo...
Da luta desesperada de Austin Hunter para salvar a vida dela...
O que mais Austin teria dito para Lien-hua na noite passada?
Ah, sim. Que ele não havia matado as pessoas. Mas quais pessoas?
Quem as matou? Onde estão os corpos? Onde foram mortos?
Muitas perguntas. Suspirei, mas adicionei a crescente lista de mistérios ao meu documento.
Minha mente vasculhava os fatos do caso, girando-os, segurando o complexo prisma da investigação contra a luz. Um enigma com muitos ângulos de intersecção.
Cassandra Lillo, pesquisadora de tubarões...
Austin Hunter, incendiário...
O fulano transeunte...
Victor Drake, bilionário...
Shade, sequestrador desconhecido que de algum jeito sabia meu nome... O que todos tinham em comum? O que os ligava?
Enquanto olhava a lista, percebi que havia pelo menos um caminho pelo qual ainda não havia caminhado.
Abri meu navegador de Internet, entrei no site da Drake Enterprises e um instante depois encontrei a pessoa que Terry havia mencionado, dr. Rigel Osbourne. Procurei
pelo seu currículo: bacharel em engenharia genética na UCLA, mestrado em microbiologia na Biola e dois doutorados, um em neuropatologia em Yale e o outro em engenharia
neuromórfica pela Texas University. Tendo passado pelo aprendizado acadêmico no nível de graduação – aulas noturnas, aprendizado à distância, estudos independentes,
tese, dissertação, tudo enquanto já trabalhava na polícia – eu sabia o quanto podia ser difícil atingir um grau avançado, então fiquei impressionado com as conquistas
acadêmicas de Osbourne. Mas como eu nunca havia ouvido falar de engenharia neuromórfica, eu também estava confuso.
Alguns cliques depois, encontrei uma enciclopédia científica online e descobri que engenheiros neuromórficos tentam usar computadores para imitar processos biológicos.
O último parágrafo do artigo dizia:
“Desde seu desenvolvimento nos anos 1980, a engenharia neuro-mórfica tem sido usada principalmente em pesquisas de inteligência artificial e no desenvolvimento de
sistemas robóticos avançados. Porém, mesmo que engenheiros neuromórficos historicamente tenham se focado em maneiras de reverter a engenharia de sistemas nervosos
biológicos e criar caminhos neurais artificiais, desde 2003 o mundo biotecnológico tem explorado muitas outras funções para esse campo que vem rapidamente se desenvolvendo.”
Muitas outras funções, é?
Voltei para meu documento do Word e digitei “O que acontece com armas mortais de laser?”.
Então verifiquei meu e-mail e encontrei um recado de Terry me dizendo que não havia descoberto mais nada sobre o subsídio governamental com o qual Cassandra estava
trabalhando ou sobre o contrato da DARPA com a Drake Enterprises. Angela Knight também havia me mandando um e-mail para avisar que a divisão de crimes cibernéticos
não havia conseguido a localização GPS de quem se referia a si mesmo como Shade. Não fiquei surpreso. Eu tinha um pressentimento que Shade não era um amador.
Finalmente, fiz uma lista com três objetivos para o dia: (1) conversar com o dr. Rigel Osbourne; (2) descobrir o que realmente aconteceu no Edifício B-14; (3) consultar
Aina sobre os isótopos radioativos encontrados no apartamento de Austin.
Honestamente, não estava me sentindo como um investigador que havia acabado de salvar a vida de uma mulher e prender um suspeito. Apesar do progresso nesse caso,
apesar do aparente desfecho, eu me sentia mais como um rato em um labirinto no qual alguém estava abrindo e fechando partes das paredes. Me levando constantemente
para um canto.
E eu tinha a sensação de que sabia quem era.
Shade.
Adicionei uma última pergunta: “Quem é Shade?”.
Estava debruçado sobre as anotações em meu computador, pensando no quanto as gaivotas estavam começando a me irritar, quando Ralph apareceu usando o mesmo conjunto
de roupas que havia usado ontem.
– Nada das malas, né?
Ele sentou-se ao meu lado.
– A caminho de Miami. Dá pra acreditar? Miami! – Então ele suspirou profundamente e me forneceu uma criativa descrição do que os carregadores de bagagem da companhia
aérea deveriam fazer com sua mala de alça retrátil. Eu nem tinha certeza se era anatomicamente possível fazer isso que ele recomendou, mas certamente me trouxe uma
imagem interessante à cabeça. – Além disso – ele adicionou, – tentei fazer café em meu quarto essa manhã. Estou te avisando, Pat, evite tudo que tiver “automático”
no nome. Não importa se for uma torradeira automática, forno de pizza automático ou um urinol automático. Não importa. Se eles não puderam inventar um nome melhor
do que isso, o produto deles não presta. Pode ter certeza disso.
Eu não estava muito a fim de conversar sobre urinóis automáticos.
– Toma aqui – ofereci a ele um copo do café peruano. – Esse é muito bom, mas eu acho que eles devem ter usado um torrador automático. – Após ele ter tomado um gole
proporcional ao seu tamanho, perguntei a ele se sabia como estava Cassandra.
– Conversei com os médicos. Ela está estável, mas me disseram que um terço das pessoas que sobrevivem a um quase-afogamento como esse acabam com problemas no sistema
nervoso, ou complicações nos pulmões e coração, então eles querem mantê-la no hospital hoje. Para monitorar a melhora.
– Talvez eu passe lá antes que ela saia – eu disse. – Ver se ela pode ajudar a desvendar algumas das minhas dúvidas sobre esse caso.
– É melhor se apressar. Os médicos falaram que ela não parece muito feliz de ficar lá.
Ralph tomou outro gole do café, acabando com o copo.
– Mais alguns exames marcados para essa manhã, daí provavelmente ela vai cair fora.
O jeito que ele falou aquilo “provavelmente ela vai cair fora” me lembrou da nossa teoria de que ela e Austin estariam tentando fugir da cidade às pressas ontem
de manhã.
– Ralph, você sabe se alguém contou para ela sobre a morte de Austin?
– Perguntei no hospital a mesma coisa, mas como Austin não tinha nenhuma identificação com ele na noite passada, eles disseram que estão esperando até que seu corpo
possa ser identificado antes de contarem para ela. É só uma formalidade, mas é o suficiente para empacar as coisas. E depois do que Cassandra passou ontem, eles
não querem que ela faça isso. Acho que eles estão tentando entrar em contato com algum membro da família em algum lugar no Arkansas. Ei, você já comeu?
– Só um pouco de aveia.
– Eu preciso de panquecas.
E antes que eu percebesse, estava na fila atrás de Ralph para tomar café-da-manhã novamente.
A menção de Ralph sobre a procura por um membro da família de Austin trouxe à mente uma questão que eu gostaria de perguntar a ele, mas esperei até estarmos com
os pratos empilhados de panquecas cobertas de xarope de bordo e voltando para a varanda. Então eu disse:
– Ralph, você se tornou pai dez anos antes que eu. Como você sabe o tanto de liberdade que deve dar a Tony?
– Ah, então Tessa fez algo estúpido?
– Saiu escondida para fazer uma tatuagem. Isso conta? – encontramos nossos lugares. – Só acho que não dá para confiar nela estando aqui em San Diego sem supervisão.
Ela está numa idade complicada. Ela pede por mais liberdade, e eu quero dar a ela, mas quando eu dou, ela quase sempre age de modo irresponsável.
Ralph atacou suas panquecas com gosto.
– Parece bem normal para uma adolescente.
– Eu sei que ela quer ficar em San Diego, mas eu não quero recompensá-la por fazer coisas pelas minhas costas. Então eu decidi hoje mais cedo mandá-la de volta para
Denver para ficar com meus pais por uns dois dias até que eu possa resolver as coisas aqui e voltar para casa.
– A coisa da liberdade, Pat, ninguém sabe a resposta para isso – Ralph não deixava que a comida em sua boca o impedisse de dizer seu conselho como pai. – É sempre
um jogo de equilíbrio entre confiar neles e deixá-los cometer erros. Eles vão passar dos limites, e você vai acabar pegando no pé deles. Ambos vão cometer erros,
garanto pra você. Você só tem que continuar amando-a e sendo paciente. Isso é tudo que eu sei. Cadê a manteiga?
Passei para ele a manteiga.
– Mais uma coisa.
Ele enfiou o garfo nas panquecas.
– O que é?
Eu não sabia bem como dizer isso.
– Ralph, alguma coisa aconteceu com Lien-hua. Algo no passado dela. Algumas vezes ela ameaçou falar para mim, mas quando eu vou atrás e pergunto a ela sobre isso,
ela recua. Você sabe o que é?
Sua mandíbula se contraiu.
– Não. Foi alguma coisa antes da gente se conhecer. Eu fiquei imaginando por um tempo, mas um dia eu resolvi esquecer isso e deixar ela ter os segredos dela. Pode
acreditar que tenho os meus também.
– Sim – eu disse, – todos temos.
Ele engoliu uma garfada cheia de panqueca e então pousou uma pata gigante em meu ombro.
– Pat, sei no que você está pensando. Você não deve fazer isso.
– Fazer o que?
– Investigá-la. Esqueça isso. Se você forçar, pode machucá-la. Eu sei que ela já se machucou antes. Não se intrometa. Ele merece mais que isso.
– Ralph, você sabe que não quero machucá-la. É a última coisa que faria...
– Bom dia, meninos – Lien-hua apareceu ao meu lado e colocou na mesa um prato cheio de frutas e uma tigela de iogurte salpicado com granola. – O que você estava
dizendo, Pat? Qual é a última coisa que você faria?
– Tomar iogurte – eu disse, olhando para o prato dela. – Se algum dia eu disse a você que quero iogurte, me interne. Isso e quiche. Certamente não estaria batendo
bem.
– Iogurte automático – murmurou Ralph.
– Benefícios para a saúde – ela disse timidamente. – A gente tem que manter a forma.
Passei para ela um copo de café e percebi que ela havia amarrado seu cabelo em um espesso rabo-de-cavalo, e havia colocado um curativo plástico sobre o ferimento
em seu pescoço. Acenei em direção ao pescoço dela.
– Como está hoje?
Ela puxou uma cadeira.
– Não dói muito – ela estava usando uma blusa justa de gola alta e bermuda bege. Não é o que ela usaria no escritório em Quantico, mas era bem típico para San Diego.
Quando ela se sentou, sua bermuda subiu o suficiente para que pudesse ver o hematoma profundo em sua coxa direita. Meus olhos queria ficar em sua perna, ou em sua
blusa de gola alta, mas os fiz olharem para o iogurte.
Ela fez uma careta quando se ajeitou em sua cadeira, e a aparência preocupada de Ralph me disse que ele havia reparado.
– Machuquei minha perna na noite passada – ela explicou. Então, ela esticou sua perna esguia em nossa direção. – Olha só pra isso!
Eu imaginei que, como ela havia me convidado para isso, era melhor fazer o que ela pediu. Olhei pensativo para sua perna.
– Uau, realmente, não está nada bom.
Ralph olhou para o hematoma, então para mim, e daí perguntou para Lien-hua:
– Como está?
– Está tudo bem – ela disse. – Estava bem rígido hoje de manhã, mas eu pratiquei um pouco de tai chi no corredor e ajudou bastante.
– No corredor? – Ralph disse.
– Esquece – eu murmurei e enfiei panqueca na minha boca.
O general Cole Biscayne escovou um punhado de fiapos de seu uniforme, deslizou seus óculos por cima do nariz e conferiu as horas: 8h09.
Ótimo. Ele gostava do fato de que eles teriam que esperar por ele antes de começar a reunião. Ele abriu as portas para a sala de conferência e viu que os outros
membros do Comitê de Supervisão do Projeto Rukh já estavam reunidos. Eles saudaram, apertaram a mão ou deram um leve aceno, dependendo do seu posto e de quão bem
conheciam o chefe da agência de desenvolvimento e pesquisa do Pentágono.
Ele fez sinal com um dedo para uma mulher de pé ao lado da porta.
– Suboficial Henley, as persianas.
– Sim, senhor – ela andou até a parede com as janelas e fechou a vista panorâmica do oceano e da linha de fumaça se inclinando para o céu. Então, ela deixou a sala.
Isso não era uma reunião para alguém do posto dela.
O general Biscayne preferiu ficar de pé enquanto os outros sentavam.
– Vamos direto ao assunto – ele observou a sala. Ninguém parecia feliz; a maioria parecia apavorada. Sentados à mesa estavam dois outros membros da DARPA, assim
como o almirante-comandante Norval Tumney da North Island Naval Air Station Base, a diretora-executiva-assistente para Investigações Criminais do FBI Margaret Wellington,
meia dúzia de outros oficiais de alto escalão de departamentos de defesa e agencias de inteligência, e Victor Drake, presidente e CEO da Drake Enterprises.
– Cavalheiros – disse o general Biscayne, e então com um aceno em direção à srta. Wellington, ele adicionou – e damas. A polícia prendeu e matou o incendiário do
ataque da noite passada. Ótimo. Tenho certeza que a investigação continuará por meses e eventualmente descobriremos tudo que precisamos saber sobre ele, mas por
enquanto, eis o que eu quero: que alguém, por favor, diga-me que a pesquisa do Projeto Rukh não foi comprometida antes da instalação ter sido destruída. Digam-me
que temos a confirmação de que o protótipo não foi roubado. Digam-me que eu voei todo o caminho pra cá em vão, que eu posso ficar tranquilo e então voltar para Washington,
encontrar-me com o presidente amanhã e informá-lo que nem a pesquisa e nem o dispositivo foram parar nas mãos erradas. Alguém me diz essas coisas e eu deixarei essa
sala como um homem feliz.
Ninguém se moveu, exceto por aqueles que evitaram contato visual com o general. Victor Drake começou a batucar com os dedos ritmicamente na mesa.
– Deixe-me ser claro – o ódio rondava as palavras do general. Ele levantou as persianas e apontou para a fumaça. – O Departamento de Defesa investiu cerca de três
bilhões de dólares nesse programa, e nós não estamos dispostos a deixar isso tudo virar fumaça porque um SEAL renegado tinha uma vingança para pagar.
Ainda nenhuma resposta do grupo.
O general Biscayne olhou diretamente para Victor Drake.
– Quão próximo estava o dispositivo de estar completamente operacional?
– Estava terminado, mas sinto dizer que isso não importa mais. Todos os arquivos, assim como o protótipo, foram destruídos no incêndio.
O general fechou as persianas novamente.
– Toda a pesquisa?
– Temo que sim. Nada pode ser salvo. Nós mantínhamos apenas cópias em papel da pesquisa para que fosse impossível que alguém invadisse o sistema de computadores
e roubasse as descobertas. Nesse ponto, porém, parece que fizemos a escolha errada.
– E o protótipo? Destruído? Você tem certeza?
– Sim. Nenhuma dúvida quanto a isso.
O general Biscayne considerou tudo isso por um momento. Se Victor estivesse por trás do incêndio – e só fazia sentido que ele estivesse – ele provavelmente havia
se certificado da destruição do dispositivo. Era a única maneira para encobrir seu fracasso, a única ação que fazia sentido. Então, talvez o incêndio tenha sido
uma coisa boa, afinal. O Departamento de Defesa poderia se livrar de seu contrato sem saída com a Drake Enterpri-ses, por a culpa do incêndio em terroristas, se
aproveitar da indignação pública e então usar o incidente como lobby para um aumento substancial no orçamento da segurança nacional para o próximo ano fiscal.
A diretora-executiva-assistente do FBI Margaret Wellington tossiu suavemente e então falou. Sua voz lembrava ao general o barulho de uma chave-catraca.
– General Biscayne, estamos todos cientes que este projeto é da maior importância para você e para o resto de sua equipe no Pentágono. Certo. Mas sou nova nesse
comitê e eu não fui adequadamente informada sobre o âmbito exato do Projeto Rukh. O modo como todas as partes da pesquisa se encaixam continua...
– Confidencial – ele a interrompeu. – E é assim por um motivo.
Ela ficou tensa, juntou as mãos à sua frente. Recusou-se a ser intimidada.
– Não me interrompa, general. Sou uma civil. Isso quer dizer que você trabalha para mim.
O silêncio abraçou a sala. Abraçou apertado, até que o almirante Nor-val Tumney, cujo nome o general achava que combinaria mais se fosse “Tummy” ou “Tubby”21., disse:
– A Marinha irá fazer tudo que estiver em seu poder para garantir que essa situação seja resolvida prontamente e profissionalmente.
– Eu sei que vai, Norv – disse o general Biscayne. – É a única maneira de salvar sua pele de uma corte marcial depois de deixar esse cara, Hunter, invadir a base
e queimar o B-14.
O rosto do almirante escureceu com desdém, mas o general Biscayne não ligou.
– Eu quero que as ruínas daquele prédio sejam analisadas com pinças. Se houver uma lasca de papel do tamanho da minha unha que sobreviveu ao fogo, quero que seja
encontrado. Estou sendo claro?
Todos, com exceção de Margaret, acenaram.
– E verifiquem se o protótipo foi destruído. Não preciso dizer a vocês que é melhor que ele não tenha caído em mãos erradas – ele apontou os olhos para Victor Drake.
– E Drake, qualquer papelada que você tiver guardado em algum escritório seu, eu quero tudo. Estamos encerrando isso. O Departamento de Defesa encerrou relações
com a Drake Enter-prises – então ele saiu pisando forte para além da mesa de conferência e estava a meio caminho da porta quando lançou a única palavra de volta
para a sala: – Dispensados.
63
Lien-hua, Ralph e eu deixamos a conversa do café-da-manhã tomar o rumo de esportes, clima, política e as tentativas de Ralph em derrotar seu filho no vídeo game
e a próxima viagem de Lien-hua para visitar seu irmão em Pequim, e foi bom deixar nossa amizade explorar outros temas além de assassinato, morte e sequestros. Entretanto,
rapidamente nossa conversa retornou para o caso, como de costume.
– Bem – disse Ralph; ele falava com ternura, com respeito pelos mortos, – com Austin Hunter morto, Cassandra no hospital e o suspeito da noite passada sob custódia
da polícia, acho que vocês dois podem ir pra casa. Margaret chegou na noite passada. Que sorte. Vou poder passar o dia com ela.
– Nós ainda temos uma porção de perguntas sem respostas sobre esse caso – disse Lien-hua. – Além disso, ainda temos que encontrar Shade.
– Lien-hua está certa – eu disse. – Estamos num ponto onde existem mais perguntas do que respostas, e temos que dar um jeito em algumas delas antes de fazermos as
malas – fechei a tela do meu computador. – Vou visitar Cassandra antes que Tessa acorde para nosso encontro com Calvin.
– Werjonic está aqui? – Ralph exclamou. Dr. Calvin Werjonic é um nome conhecido entre investigadores, especialmente aqueles que rastreiam infratores seriais.
– Vamos nos encontrar às 10h30.
– Bom, diga oi para o velho abutre por mim – Ralph acenou com profundo respeito. – Ele é um bom homem, esse Werjonic. O cara mais inteligente que já conheci.
Lien-hua levantou-se.
– Pat, acho que vou com você conversar com Cassandra. Com sorte isso pode dar uma luz nesse caso antes de encerrarmos as coisas.
Eu tinha uma sensação de que encerrar as coisas não estava na programação do dia, mas eu me levantei e disse:
– É um bom plano. Vamos.
64
Depois de tudo pelo que Cassandra passou, Lien-hua não queria que ela visse o hematoma em sua coxa, então ela se trocou e vestiu um jeans antes de sair do hotel.
Quando chegamos no hospital, os médicos de Cassandra nos disseram que a polícia não tinha conseguido entrar em contato com nenhum parente de Austin Hunter, mas que
ela estava se arrumando para ir embora e eles não queriam que ela fosse antes que alguém contasse para ela sobre a morte de Austin. Uma enfermeira de olhar severo
que estava de pé ao lado de uma maca nos informou que estava a caminho do quarto para dar a notícia para Cassandra.
Quando eu era detetive em Milwaukee, tinha que dar às pessoas esse tipo de notícia com muita frequência. Não é algo que me agrada, mas pelo menos é algo no qual
tenho experiência.
– Não – eu disse à enfermeira. – Eu faço isso. Estava lá. Eu sei das circunstâncias em torno do tiroteio.
Os médicos concordaram e a enfermeira pareceu aliviada enquanto nos conduzia ao quarto de Cassandra.
No caminho, Lien-hua tocou meu ombro delicadamente.
– Deixe-me contar para ela. Eu fui a última pessoa com quem Austin falou. Ela precisa saber que ele morreu pensando nela. Eu gostaria dar a ela a notícia. Eu sou
mulher. Vai ser melhor vindo de mim.
Talvez Lien-hua estivesse certa.
– Ok – eu disse. – Só me deixe perguntar algumas coisas para ela antes de você contar.
Alguns minutos depois batemos na porta de Cassandra e quando ela nos disse para entrar, vi que ela já estava juntando suas coisas para ir embora.
Maria, sua colega do aquário, estava ao seu lado e deve trazido para ela algumas roupas, pois havia uma bolsa de viagem perto do parapeito da janela e Cassandra
estava vestindo jeans, chinelos e uma blusa bege ao invés do vestido vermelho. O rosto de Maria mostrava uma mistura de ansiedade e alívio. Imaginei que ela estivesse
aliviada por Cassandra estar bem, e provavelmente ansiosa porque Lien-hua e eu havíamos aparecido.
Nos apresentamos para Cassandra, e enquanto o fazíamos, percebi que ela tinha cerca de 1,80m, exatamente como havia calculado. Perguntei a ela como estava se sentindo.
Ainda distraída com a arrumação, Cassandra disse:
– Passei 12 horas acorrentada no fundo de um tanque que estava enchendo d’água – sua voz era fria e distante, como se ela estivesse falando conosco de um outro lugar.
– Quase me afoguei. Como você acha que estou me sentindo?
– Cassandra – Lien-hua disse suavemente, – nós estávamos lá com você na noite passada. Você se lembra da gente?
Ela olhou para nós com atenção, pela primeira vez.
– Claro, eu... você quebrou o tanque, não foi?
Lien-hua acenou com a cabeça.
Com isso, Cassandra respirou fundo.
– Oh, obrigada. Me desculpem... eu não... eu não reconheci vocês de primeira. Pensei que vocês fossem só mais uma dupla de policiais. De verdade, obrigada por me
salvar.
– De nada – disse Lien-hua.
– De verdade.
– Cassandra – eu disse, – gostaria de saber se podemos conversar com você por alguns minutos. Não vamos demorar, eu prometo.
Ela jogou sua bata do hospital sobre a cama.
– Eu realmente preciso ir.
– Nós não teríamos vindo se não fosse importante – eu disse.
– Talvez depois. Em alguns dias. Talvez uma semana.
– Por favor – disse Lien-hua. – Será de grande ajuda no desenvolvimento do caso contra seus sequestradores.
Cassandra hesitou por um momento e então falou com Maria.
– Hum, você pode me pegar uma Coca ou algo do tipo? Nos dê alguns minutos, tudo bem? Obrigada.
Maria pareceu que estava prestes a falar algo, mas engoliu sua preocupação e saiu silenciosamente para o corredor. Fechei a porta atrás dela.
Assim que Maria havia saído, Cassandra disse suavemente:
– Então, vocês o pegaram, né? – sua garganta se contraiu, sua voz falhou. – Vocês pegaram o cara que me colocou lá, não pegaram?
– Nós prendemos um homem no armazém – eu disse. – Sim, ele está em custódia agora.
– Bom. Vocês o pegaram. Ele está na cadeia?
O homem que nós prendemos era inocente até que se provasse o contrário, mas não era isso o que Cassandra precisava ouvir no momento.
– A polícia vai falar com ele hoje, e estamos no processo de reunir mais evidências – expliquei. Por causa da notícia que precisávamos dar a ela sobre a morte de
Austin, decidi manter minhas perguntas mais focadas no sequestro do que no seu possível envolvimento nos primeiros incêndios. – Aquele homem, você já o havia visto
antes?
Ela balançou a cabeça.
– E por que você foi até o aquário tão cedo?
– Eu havia parado para pegar algumas coisas – ela parou para balançar a cabeça. – Acho que ele deve ter me drogado. Eu não me lembro direito. Um dos policiais me
disse que foi um dardo. O cara atirou em mim com um dardo. Dá pra acreditar nisso?
– Ele por acaso mencionou algum tipo de dispositivo? Ela pensou silenciosamente por um momento.
– Sim, eu acho que ele falou sobre alguma coisa quando estava no telefone com algum outro cara. Eles estavam falando sobre tirá-lo de um edifício. Não sei. Por que?
É algo importante? Você encontrou alguma coisa?
– Não, ainda estamos investigando isso – eu disse. – Você sabe do que se trata?
Ela balançou a cabeça e Lien-hua perguntou:
– O outro homem no telefone, sabe quem era? Ouviu algum nome? Ela pensou por um momento.
– Acho que ouvi o cara chamá-lo de Shay ou Dade. Algo desse tipo.
– Shade – eu disse.
– Isso. Talvez, eu não sei.
Hora de tratarmos dos detalhes.
– Você acha que o seu trabalho no Projeto Rukh pode ter algo a ver com o seu sequestro? Eles estão ligados?
Ela piscou, deixou os olhos rebaterem entre Lien-hua e eu.
– Como você sabe sobre isso?
– Enquanto estávamos procurando por você, encontramos algumas referências a isso em seu computador.
Ela mordeu o lábio.
– Eu não posso falar sobre isso. Direitos autorais, patentes, coisas do tipo. Mas eu não vejo como as coisas podem estar ligadas. Escute, eu só quero ir ver meu
namorado – ela pegou a bolsa de viagem e olhou para a porta, certamente procurando por Maria.
– Por favor – disse Lien-hua, – você pode nos contar alguma coisa sobre o projeto? Qualquer coisa.
– Você teria que falar com o dr. Osbourne para... – ela se segurou. Não completou a frase. – Me desculpem. Eu já falei demais. Eu posso perder meu emprego. Eu não
quero mais falar disso. Eu só quero sair daqui – ela olhou para seu relógio.
Lien-hua andou em direção à janela.
– Você reconheceria o homem que a atacou se você o visse novamente? Você poderia apontá-lo num reconhecimento?
Sua mandíbula endureceu.
– Eu reconheceria seu rosto em qualquer lugar. Eu nunca vou esquecer. Nunca. Mas eu não vou fazer nenhum reconhecimento. Eu nunca mais quero ver aquele rosto. Eu
só quero continuar com a minha vida.
Queria continuar interrogando-a e explicando a ela em termos certos que nós precisávamos dela para identificar seu sequestrador e testemunhar contra ele, mas por
causa da morte de Austin, eu sabia que não era a hora certa para isso. Eu tinha mais uma pergunta, e mesmo sabendo que poderia ser duro para ela, eu tinha que perguntar
– eu tinha que descobrir se ela sabia sobre o vídeo que seus sequestradores haviam enviado para Austin Hunter.
– Cassandra – eu disse, – você sabe o que o homem estava fazendo enquanto você estava no tanque?
– O que você quer dizer? Não. Ele só estava esperando que eu morresse. Eu o via saindo para conferir algumas vezes, mas na maioria das vezes ele só me deixava lá
sozinha – sua voz começou a tremer. – Eu só quero deixar essa coisa horrível para trás. Chega de perguntas – então ouvi a porta atrás de mim e percebi que Maria
havia voltado. Em suas mãos havia uma lata de Coca-Cola e a chave de um carro pendurada em seus dedos.
– Tem mais uma coisa que preciso te contar – Lien-hua disse. – Talvez você devesse sentar-se.
– Não. Estou indo embora. Eu deveria ter encontrado com meu namorado ontem para o café-da-manhã. Preciso encontrá-lo. Preciso falar com ele. Não consigo falar com
ele pelo telefone. Adeus. Obrigado novamente por me ajudar na noite passada. De verdade. Eu só... Eu não quero mais fazer isso. É muito recente.
Lien-hua e eu trocamos olhares e então dei a Maria alguns dólares.
– Você poderia pegar algo para a agente Jiang e para mim também? Estamos quase acabando. Só vai demorar mais alguns minutos – então me inclinei para perto de Maria
e cochichei: – nós não falamos nada sobre as coisas que você nos contou no aquário. Nós não falaremos. Não se preocupe – no começo ela hesitou, mas finalmente ela
pegou o dinheiro e foi para a máquina de refrigerantes novamente.
Cassandra assistiu sua amiga saindo do quarto.
– O que está acontecendo?
Lien-hua gentilmente conduziu Cassandra a sentar ao seu lado na cama.
– Você precisa saber que Austin Hunter queimou um prédio para atender às exigências dos seus sequestradores. Depois disso, a polícia o cercou.
– O quê? Eles prenderam Austin? – Cassandra afastou-se de Lien-hua e levantou-se bruscamente. – Por que vocês não me disseram? Onde ele está?
– Na verdade eles não o prenderam. Os policiais pensaram que ele era uma ameaça, pensaram que ele iria me machucar.
– Você? – uma escuridão densa baixou sobre a conversa. – Por que você? Lien-hua permaneceu sentada e falou suavemente, pacientemente, como uma mãe faria.
– Eu estava conversando com ele, tentando descobrir se havia algo que ele pudesse fazer para nos ajudar a encontrar você – Lien-hua parou para encontrar as palavras
certas, mas não existem palavras certas para contar a alguém que a pessoa mais importante de sua vida estava morta. – Você tem que entender, a polícia pensou que
minha vida poderia estar em perigo. Austin tinha uma arma em sua mão e estava apontando uma faca para mim.
Eu podia ver que Cassandra estava lentamente chegando à conclusão inevitável, lentamente se agarrando ao que Lien-hua dizia nas entrelinhas.
– Ele morreu? – sua voz partiu ao meio enquanto falava. – É isso que você está me dizendo, não é? Que Austin está morto?
Lien-hua respondeu levantando-se e envolvendo Cassandra em seus braços.
Receber uma notícia como essa é arrasador, angustiante. Se você está ali com a pessoa quando ela ouve a notícia, você quer confortá-la, abraçá--la e dizer a ela
que as coisas vão ficar tudo bem, mas durante todo o tempo, bem lá no fundo, você sabe que não importa o que você fale, será sempre vazio e banal. Conforto não vem
de palavras numa hora como essa. Na maioria das vezes, vem do silêncio.
Eu vi um copo d’água em uma bandeja e pensei em pegá-lo para Cassandra, mas percebi o quanto seria ridículo. Isso não ajudaria em nada.
Ela estava tremendo quando Lien-hua e eu a ajudamos a sentar-se na cama do hospital novamente.
– Ele amava você – Lien-hua disse. – A única coisa que importava para ele no final era salvar você e amo você mais que tudo no mundo.
Lágrimas delicadas começaram a brotas nos olhos de Cassandra. Seu queixo tremia.
– Ele fez isso... – Lien-hua sentou-se ao lado dela, um braço sobre seus ombros. – O cara que me sequestrou... – ela continuou. – É culpa dele. Eu quero ele morto
– então sua voz cresceu em dor e volume. – Eu quero ele morto. Quero ele morto!
Ela repetiu a frase de novo e de novo, as palavras reverberando nas paredes claras do quarto do hospital enquanto Lien-hua a abraçava ternamente e a deixava chorar
e lamentar-se e tremer em seu ombro.
Lien-hua e eu esperamos até dois orientadores do hospital chegarem e Maria voltar para o quarto, então, com os três ali para consolá-la, Lien--hua fechou a porta
e saímos para o corredor.
Acho que Lien-hua teria gostado de ficar e ajudar, mas Cassandra precisava enfrentar sua tristeza com pessoas que estariam por perto para ajudá-la a longo prazo,
não com uma dupla de agentes federais que iria embora da cidade na mesma semana.
Enquanto dirigíamos de volta para o hotel, o encontro com Cassandra pesou sobre mim, mas lembrei a mim mesmo que ela estava recebendo a ajuda que precisava e não
havia mais nada que Lien-hua e eu pudéssemos fazer por ela. Parte da vida é reconhecer a dor e a tristeza das pessoas, mas sem deixar que isso tome conta do seu
coração. Apesar de ser sempre noite nas profundezas, as ondas ainda refletem o dia.
A vida é tão assustadora quanto bonita.
É ambas as coisas.
Um tempo depois, eu havia começado a colocar a dor em perspectiva.
Embrulhei os momentos que havia passado com Cassandra e os coloquei de lado para que eu pudesse lidar com eles um por um quando a hora certa chegasse. Fiz uma rápida
ligação para Ralph perguntando se ele havia descoberto mais alguma coisa sobre Victor Drake e sua possível conexão com o sequestro, mas não. Ele prometeu verificar
isso, no entanto, e retornaria para mim após sua reunião com Margaret.
Então, após deixar Lien-hua no escritório local do FBI, busquei Tessa no hotel para apresentá-la ao dr. Calvin Werjonic.
65
Tessa e eu compramos mais alguns copos do café peruano no caminho para o Balboa Park e então estacionamos na área ao lado do Alcazar Garden para esperar por Calvin.
Estávamos um pouco adiantados, então caminhamos pelo Palm Canyon nas proximidades e no caminho Tessa me informou que o Balboa Park é o maior parque cultural urbano
dos Estados Unidos.
– Existe mais de uma dúzia de museus e arenas de apresentações aqui, além do Zoológico de San Diego.
Ela parecia anormalmente acordada e animada hoje, e imaginei se ela não estava doente. Eu nunca havia pensado que colocaria as palavras Tessa e animada juntas na
mesma frase, a menos que o termo "des"– aparecesse entre elas. Decidi tentar encaixar uma conversa, para ver como ela reagia.
– Sabe, Raven – apontei para seu esmalte preto recém-retocado, – eu gosto dessa cor em você. Não gostava muito de preto, mas acho que está me conquistando.
– Obrigada, mas preto não é uma cor. É a ausência de todas as cores.
– Ah, é? Bom, agora eu peguei você. Olhe numa caixa de giz de cera. Preto com certeza é uma cor. Está escrito no giz de cera.
– Uau, em um giz de cera. Quer saber? Acho que você está certo, Patrick. Acho que preto é uma cor, afinal – havia sarcasmo em sua voz, mas era de leve. Zombaria
descafeinada. – Ou seja, apesar do que as leis da física dizem sobre o preto não refletir ondas de luz, se uma caixa de giz de cera diz que preto é uma cor, nós
provavelmente deveríamos revisar nosso entendimento de como a luz viaja pelo espaço.
Bem, acho que ela estava se sentindo bem, afinal de contas. Animada e irônica. Uma combinação perigosa.
Enquanto eu pensava em como poderia defender o giz de cera, uma mulher com um carrinho de bebê se aproximou e eu coloquei minha mão gentilmente no braço de Tessa
para guiá-la para fora da calçada, mas assim que toquei em seu braço, ela fez uma careta e se afastou.
– Me desculpe, você está bem? – depois de tocá-la eu percebi que havia segurado no braço que Sevren Adkins, o serial killers que chamava a si mesmo de o Ilusionista,
havia cortado no último outono. Mas aquela cicatriz havia praticamente sarado desde então. Queria dar a ela a chance de me contar por conta própria. – Machuquei
sua cicatriz?
– Tudo bem, não, não foi nada, mesmo. Eu só... Eu devo ter dormido em cima do meu braço ou algo assim. Só isso.
Ela rapidamente mudou de assunto e perguntou o que havia acontecido com o caso na noite passada, e eu não conseguia pensar em nenhum bom motivo para convidá-la a
olhar por cima da fita policial para a dor de alguém, então, ao invés de contar para ela sobre a morte de Austin Hunter e o quase afogamento de Cassandra, eu apenas
disse a ela que Cassandra estava bem e que tínhamos sob custódia um suspeito relacionado ao sequestro.
– E o incendiário? – perguntou ele.
– Ele foi parado pela polícia – eu disse. – Ele não causar outro incêndio tão cedo.
– Então o seu caso acabou? Vamos poder passear hoje?
– Teremos que ver isso – o voo dela para Denver só partiria às 14h26. Queria esperar o máximo possível antes de contar a ela que iria mandá-la para casa.
– Então, acabei não perguntando para você – eu disse, – como foi a carona com Lien-hua ontem? Ela furou todos os faróis vermelhos ou dirigiu como uma mortal?
– Ela dirigiu do mesmo jeito que fez quando me levou de volta para o hotel segunda-feira à noite. Super normal – e então, enquanto tomava um gole do café, Tessa
perguntou: – então, o que está rolando entre vocês dois?
– O que você quer dizer com “rolando”?
– Ah, não se faça de inocente. Eu percebi o jeito que vocês olham um para o outro. Além disso, ela foi a primeira pessoa em quem você pensou para ligar depois que
aquele cara pulou na frente do trolley e você precisava de alguém para me buscar. O que está havendo entre vocês dois?
– Nada. Nada está havendo...
– Ah, claro. Você mente muito mal. Além do mais, sempre que uma pessoa diz “nada” é porque tem alguma coisa, mas ela está com medo de admitir.
– Eu não tenho medo de admitir nada...
– Então, o que está rolando?
Talvez uma abordagem um pouco diferente.
– Está bem. Eu não posso dizer o que ela sente por mim, mas eu gosto de trabalhar com ela, eu a respeito, eu não acharia ruim conhecê-la um pouco melhor...
– Você pensa nela o tempo todo, quando fica sozinho com ela, você se sente mais vivo do que em qualquer outra situação da sua vida, sempre que ela fala com você,
seus batimentos aceleram e...
– Está bem. Tá bem. Chega. Então, talvez possa ser alguma coisa, mas na verdade não é nada.
Escolhemos um caminho que levava de volta ao estacionamento.
– Bom, você está saindo com ela? E não comece com “nós temos trabalhado juntos muito ultimamente”, ou algo assim, porque isso é totalmente diferente. Além disso,
ela já tentou essa comigo.
– O quê? Você falou com ela sobre isso? Você está brincando, né?
– Talvez sim, talvez não – ela disse evasivamente. – Mas esse não é o ponto. Agora estou falando com você, e você está fugindo da minha pergunta.
Parte de mim desejava que Lien-hua estivesse aqui para que eu pudesse ter certeza de que estaríamos em sintonia naquilo que eu estava falando. Por outro lado, eu
estava feliz por ela não estar ouvindo isso.
– Tessa, a gente pode discutir isso depois?
Ela parou e virou-se para que ficasse diretamente de frente para mim.
– Não. Agora está bom.
Desde a morte de Christie, Tessa e eu nunca havíamos conversado sobre a ideia de eu voltar a namorar. E como meu relacionamento com Lien-hua não havia progredido
a ponto de ser relevante, eu nunca havia tocado no assunto.
– Então – Tessa insistiu. – Você está saindo com ela? E por favor, não diga “mais ou menos”. Como se você estivesse mais ou menos saindo com ela.
– Qual o problema em dizer “mais ou menos”?
– É uma desculpa. Muito ruim. Para pessoas que estão com medo de se comprometer.
– Ah.
– Então?
– Então, é assim, Tessa... veja bem... é... é complicado.
– É complicado? – ela apoiou as mãos na cintura. – Uma pergunta que exige uma resposta como sim ou não é muito complicada para você, dr. Bowers? Você está saindo
com a agente Jiang: sim ou não?
Bem nessa hora, meu telefone tocou, e Tessa olhou para o meu bolso.
– Você deve estar brincando. Você mesmo que ligou, de algum jeito, né? Apertou algum botão aí, não foi?
– Eu sou bom – eu disse. – Mas não tão bom assim.
Olhei para ver quem era. Lien-hua.
– Então, quem é? – Tessa espiou a tela do meu celular. – Ah, não pode ser.
– Acho que preciso atender, tudo bem?
Tessa cruzou os braços, inclinou a cabeça de um jeito adolescente e ficou olhando.
– Oi, Lien-hua – enquanto eu falava, segurei o telefone apertado contra minha orelha para que Tessa não pudesse ouvir.
– Pat, precisamos que você volte.
– O que houve?
– O suspeito não quer falar com a polícia, mas pediu para falar comigo. Pelo nome.
Eu sabia que Tessa era boa em escutar conversas, então me afastei e falei mais baixo. Até onde eu podia me lembrar, ninguém havia mencionado o nome de Lien-hua enquanto
estávamos na presença do suspeito no armazém.
– Como ele sabia quem você é?
– Não temos certeza. Margaret está falando com os advogados dele agora. Ralph vai se encontrar com ela em alguns minutos. Eles querem você aqui por volta do meio-dia.
– Eu não consigo chegar até essa hora. Eu preciso... – eu podia ver Tessa se esforçando para conseguir ouvir. Mudei o que eu ia falar caso ela me escutasse. – Eu
preciso cuidar de algumas coisas. Só consigo chegar lá depois das 13h.
– Ok. Ligo se souber de mais alguma coisa.
– Ok, até mais tarde.
Quando desliguei, Tessa perguntou desconfiadamente:
– Do que vocês estavam falando?
O caso havia acabado de ficar um pouco mais complexo, mas eu não poderia dar detalhes para Tessa.
– Acho que essa investigação vai tomar um pouco do meu tempo hoje. Não vou conseguir ir embora até amanhã à tarde, pelo menos.
Suas sobrancelhas se ergueram.
– Mas eu achei que iríamos ficar até sexta-feira, não?
– Esse era o plano – antes de entrar naquela conversa, termine essa.
– De qualquer maneira, onde estávamos? Ah, sim. Eu estava prestes a fazer você prometer não falar com a agente Jiang sobre esse papo de “estamos saindo juntos”.
– Não. Você estava prestes a me dizer se vocês estão saindo ou não. Mas eu faço a promessa de você me der uma resposta séria.
Organizei meus pensamentos.
– Tessa, escute, que tal assim: se a agente Jiang e eu algum dia decidirmos ir de nada para alguma coisa que seja mais do que qualquer coisa, eu aviso você.
– Você não achou que eu entenderia, mas eu entendi.
– Eu acredito. Agora, prometa.
– Eu prometo.
– Você promete o que?
Ela suspirou, respirou fundo e disse:
– Eu prometo não contar à agente Jiang o quanto você gosta dela e o quanto você gostaria de sair com ela. Que tal?
Esfreguei minha testa enquanto um taxi parava e um cavalheiro alto e esguio descia pela porta de trás. Ele deu algumas notas para o motorista e se virou para nossa
direção.
Dr. Calvin Werjonic havia chegado.
66
Calvin não poderia ter escolhido uma vestimenta mais incomum para visitar San Diego. Ele estava enrolado por um casaco londrino da grossura de um wafer – eu raramente
via ele vestindo outra coisa – e usava um chapéu amassado que havia saído de moda há uns 40 anos.
– Patrick, meu garoto! – considerando todas as longas conversas e madrugadas que passamos juntos, um aperto de mão não me parecia sufi-ciente, mas sabia que Calvin
não gostava de abraços. Ele apertou minha mão calorosamente. – É muito bom ver você. E essa deve ser a adorável Tessa Ellis.
– Olá.
– Patrick me contou tudo sobre você.
– Aposto que sim. Ele não me falou muito sobre você, mas eu li sobre você nos dois livros dele.
– Hum... eu dormi lendo essas partes.
– Essas foram as únicas partes que me mantiveram acordada.
– Aham – dei a ele um copo de café. – Você parece bem, Calvin.
– Seu padrasto é um péssimo mentiroso, Tessa.
– Ah, tudo bem. Eu compenso por ele.
– E como compensa – falei sarcasticamente.
Calvin respirou fundo o ar de San Diego e me deu uma boa olhada.
– Então, Patrick, você está bastante em forma. Ainda fazendo flexões?
– Ah, sim, claro – ele levantou o copo até a boca, tomou um gole. Esperei por uma reação.
– O que você acha desse café? Bom, né?
– Um pouco amargo para o meu gosto, eu acho – ele abriu a tampa, derramou o café na sarjeta e jogou o copo em uma lixeira próxima. – Venham comigo – ele começou
a andar pela trilha num passo acelerado.
Tessa viu minha cara quando olhei para a trágica mancha de café na sarjeta.
– Não chore, Patrick. Vai me deixar envergonhada.
– Venham, venham – disse Calvin, que já estava 20 metros à nossa frente. – Eu não tenho o dia todo.
Calvin levou alguns minutos para se inteirar de cada uma de nossas vidas, e então Tessa o interrogou sobre alguns de seus casos. Ela queria tantos detalhes quanto
fosse possível contanto que ele ficasse longe de mencionar sangue ou cadáveres. Então ele tomou um tempo para perguntar a ela sobre o melhor site para baixar toques
de celular, quais eram os vídeos mais assistidos do YouTube essa semana e quantos amigos ela tinha no Facebook.
Após cerca de 15 minutos, perguntei a Tessa se ela não ligaria se Cal-vin e eu discutíssemos alguns casos que envolvessem sangue e tiroteios. Imediatamente ela se
ofereceu para nos aguardar mais à frente no SDAI Museum of the Living Artist, e quando ela se foi, Calvin disse suavemente:
– Garota esperta, ela.
– Você nem imagina.
Então Calvin me informou sobre alguns de seus trabalhos atuais de consultoria com a Geospacial-Intelligence Agency22., uma agência pouco conhecida que fornece inteligência
geoespacial para o departamento de defesa. A NGIA enfatiza o uso militar de inteligência geoespacial, mas através dos anos Calvin e eu trabalhamos para encontrar
meios de integrar sua GEOINT23. na polícia. No entanto, ano passado eu saí de cena quando eles começaram a pressionar por uma cyber-estrutura internacional que incluiria
um conjunto integrado global de vídeos entre nossos satélites espiões, empresas privadas e a GEOINT de nossos aliados.
Calvin e eu nunca havíamos discutido cara a cara essa situação.
– Mas Patrick – ele disse com sinceridade, – mesmo agora, o Departamento de Defesa está projetando a próxima geração de satélites. Ao integrar a tecnologia atual
aos sistemas de satélites, poderemos usar um zoom suficiente para ler textos de um documento, números em uma tela de celular, até verificar identidades por meio
de varredura de retina. E com mira a laser, estão falando em...
– Calvin, por favor – eu não quis parecer impaciente, mas eu já tinha ouvido isso tudo. – O pessoal da polícia precisa de motivos para parar um carro, grampear um
telefone, entrar numa casa, procurar por um suspeito ou até mesmo seguir uma pessoa até sua casa. Com vídeos globais, tudo isso não serviria pra nada, o governo
poderia seguir qualquer um, em qualquer lugar, a qualquer hora. Sem privacidade. Nós temos direito de vivermos nossas vidas sem ter alguém olhando por cima de nossos
ombros a cada minuto do dia. Deveríamos usar a tecnologia para encontrar os culpados e não para monitorar os inocentes.
– Mas pense nisso, garoto. Um crime acontece, vamos dizer, por exemplo, que uma criança é sequestrada. Nós revemos o vídeo global na hora e no lugar do crime, então
seguimos o infrator a partir da cena do crime, usamos rastreamento ao vivo e o localizamos em questão de minutos. Este é o auge da criminologia ambiental. É nessa
direção que estamos trabalhando há décadas. Isso vai revolucionar o processo investigativo.
– Nós prendemos voyeurs e xeretas, mas agora a NGIA está propondo criar uma enorme webcam para agências de inteligência por todo o mundo para que eles possam xeretar
na vida de pessoas inocentes. Eu ainda digo que não está certo. Talvez possamos discutir isso uma outra hora. Eu sei que você precisa pegar seu voo...
– Sim, sim, claro – ele movimentou uma mão magra contra o ar como se estivesse apagando as palavras que havíamos acabado de dizer um para o outro. – Por favor, me
perdoe. Seu caso. Me conte sobre sua investigação.
Calvin apertou o passo, e eu resumi o caso, mudando os nomes e alguns detalhes para que eu não revelasse informações que pudessem comprometer nossa investigação.
Calvin escutou astutamente, acenando com a cabeça às vezes para mostrar que estava acompanhando o que eu dizia, e então, no final, ele perguntou:
– Patrick, você explorou a ligação do incêndio de segunda à noite com a morte do fulano?
– Até agora tudo que tenho é a ligação entre hora e lugar.
– Hum. Eu sei que você normalmente não se mete com motivos, mas a agente Jiang avaliou a motivação do seu incendiário nos incêndios anteriores?
– Ralph mandou uma das agentes de campo dar uma olhada nos registros bancários do incendiário. Ela descobriu que o homem havia feito depósitos de 25 mil dólares
numa diferença de poucos dias para cada um dos incêndios anteriores. Então, se você está querendo saber o motivo, parece que ele fez por dinheiro.
– Sim, mas dinheiro de quem?
– Nós não sabemos.
– E de qualquer maneira, não era isso que os sequestradores queriam dele no final.
– Aparentemente não.
– Obviamente, você vai precisar encontrar seu elusivo dr. O.
– Ele ainda está fora da cidade. Está na minha lista para hoje mais tarde.
– Sim, é claro. E Shade, o que você sabe desse elemento?
– Não muito. Ele pode ser o homem que prendemos, mas eu duvido. Shade me disse no telefone que ele estava no ponto de encontro, e parece pouco provável que fosse
o armazém. Seja quem for Shade, ele sabe como ocultar sua localização GPS e ele me conhece. Ele me identificou positivamente durante nossa breve conversa pelo telefone,
então acho que ele pode ser alguém de um caso anterior, eu talvez até um conhecido meu.
– Pode ser – Calvin andou em completo silêncio ao meu lado por alguns minutos e então disse: – é um caso complicado, certamente, mas eu tenho confiança que você
conseguirá resolvê-lo, garoto. Eu certamente irei considerar tudo o que você me contou, e se eu tiver alguma recomendação investigativa adicional, entrarei em contato
imediatamente. Um conselho... – então ele começou a falar comigo como se eu ainda fosse um estudante de doutorado na Simon Fraser University, e ele ainda fosse meu
professor. – Patrick, lembre-se, o diabo não está nos detalhes, mas em como os detalhes se relacionam. Às vezes você precisa parar de olhar para os fatos e começar
a olhar para os espaços entre eles. Uma pessoa não pode entender adequadamente o movimento dos planetas em um sistema solar até que ela tenha identificado em torno
do que eles orbitam.
Eu estava refletindo sobre seus comentários quando ele acrescentou:
– E agora para o problema pessoal sobre o qual você estava reticente em mencionar ao telefone.
Eu sabia que ele seria capaz de dizer se eu estivesse escondendo alguma coisa dele, então eu nem tentei.
– Calvin, às vezes meu trabalho me deixa completamente esgotado. O potencial humano para o mal é, bem... é impressionante.
Ele entendeu as entrelinhas.
– Mas é o seu potencial pessoal para o mal que mais o perturba.
– Sim.
– Todos nós somos capazes do impensável, Patrick.
– Eu sei. Talvez eu saiba disso bem demais.
Paramos sob a sombra de uma grande palmeira, e Calvin disse:
– Eu acredito que quanto mais profundamente conscientes de nossa fragilidade humana nós formos, menos vulneráveis seremos ao nossos instintos básicos.
– São esses instintos básicos que mais me assustam. Não apenas a inclinação que temos para o mal, mas...
– O prazer sutil que eles proporcionam.
– Sim.
Ele contemplou minhas palavras por alguns instantes.
– Então, colocando em termos de alpinistas, como nós sabemos que não vamos escorregar da escarpa quando estamos todos vivendo na beira do precipício?
– Sim – eu disse. – E como sabemos que não vamos empurrar mais alguém do topo?
Andamos de volta para a luz do dia e continuamos pela trilha.
– A resposta simples, Patrick, como você já deduziu, é que não sabemos. Nós nunca temos certeza se vamos pular ou empurrar alguém. Mas essa não é uma resposta satisfatória
porque nós todos queremos pensar que somos diferentes, que nunca faríamos essas coisas. E ainda assim a beirada está ao nosso alcance. Nietzsche escreveu “qualquer
um que enfrente monstros deveria tomar cuidado para que no processo não se torne um monstro também. E quando você olha por muito tempo para o abismo, o abismo também
olha para você.” Você olhou por muito tempo para o abismo, garoto. E você percebeu o quanto ele é sedutor.
Pensei por um momento.
– Você está certo, Calvin, exceto que eu não enfrento monstros e nem você. Nós perseguimos infratores que são tão humanos quanto a gente. Assassinos, estupradores,
pedófilos... eles fazem coisas monstruosas e suas ações os fazem mais culpados que outros, mas não menos humanos. Quanto mais você procura o que faz “deles” pessoas
diferentes de “nós”, mais você descobre que, no fundo, somos todos iguais. Infratores não são mais monstros do que nós somos.
– Então, talvez – Calvin disse com uma aceitação perturbadora, – todos nós sejamos monstros.
Era bem o que eu precisava ouvir.
– É um grande estímulo falar com você, Calvin. Se algum dia o dr.
Phil se aposentar, você deveria concorrer à vaga dele.
– Vou me lembrar disso.
Tessa nos esperava do outro lado do estacionamento do Museum of the Living Artists, no Casa del Rey Moro Garden.
– Por que demoraram tanto?
– Acho que ainda estamos um pouco atordoados por esse caso – Calvin disse.
– Pensei que estava quase resolvido.
– Alguns enigmas remanescentes, por assim dizer – ele respondeu.
– Bem, acho que o problema de vocês é que precisam começar a pensar mais como Dupin.
– Dupin? – eu disse.
E então Tessa ensinou ao dr. Werjonic e a mim como investigar um crime que, ao que parecia, não poderia sequer ter ocorrido.
67
– Dupin – Tessa repetiu. – Vocês nunca leram Os Assassinatos da Rua Morgue?
– Provavelmente... Há muito tempo – eu disse. – Talvez quando eu tinha sua idade.
– Isso seria há muito tempo atrás – ela murmurou.
A verdade era que eu me lembrava de ler alguma coisa de Poe quando era mais jovem, mas eu nunca havia me interessado muito por ele. Agora, suspeitava que me arrependeria
disso.
– Tessa – eu disse, – quem é Dupin?
– Monsieur C. Auguste Dupin. Poe o criou. Escreveu três histórias sobre ele. Na primeira, Os Assassinatos da Rua Morgue, duas pessoas são mortas, uma mulher e sua
filha. Mas, no entanto, elas não estão em um necrotério24.. É o nome de uma rua. De qualquer forma, o detetive é esse cara chamado Dupin, mas ele não é realmente
um detetive, está mais para um criador de perfis ou algo assim.
– Hum, um criador de perfis – Calvin murmurou.
– Sim – ela disse. – E ele acaba resolvendo o crime.
– Ah, lá vamos nós – eu disse. – Já dá para dizer que é ficção. Tessa balançou a cabeça.
– Se Lien-hua estivesse aqui, ela te daria um chute por dizer isso.
– Provavelmente – comentou Calvin, que havia escolhido nos levar para o norte pelo caminho que passava pelo Edifício Botânico. – Mas fico triste em dizer, querida,
que esse tal de Dupin parece ser uma cópia fajuta do inimitável Sherlock Holmes.
– Holmes? – Tessa recuou. – Nem tentem começar com esse papo. Sir Arthur Conan Doyle, se é que posso mesmo chamá-lo de Sir, copiou Poe descaradamente. Os Assassinatos
da Rua Morgue foi escrito em 1841, Doyle não era nem nascido até 1859. E daí, em 1885 quando Doyle decidiu começar a escrever histórias de detetive, ele fez Holmes
como uma completa cópia carbono de Dupin. Holmes pensa como Dupin. Age como ele. Fala como ele. Se relaciona com a polícia local exatamente da mesma maneira. E Watson
é totalmente baseado no cara que narra os casos de Dupin – ela estava ficando irritada de verdade. Essa paixão toda caía bem nela. – E daí, apesar de tudo isso,
na primeira história de Holmes, Um Estudo em Vermelho, Doyle cometeu a afronta de fazer sua pseudocriação Sherlock Holmes desrespeitar Dupin chamando ele de “um
sujeito muito inferior”. Doyle é um lixo. Poe detona!
Calvin, um conhecedor de histórias de detetive do outro lado do Atlântico, limpou sua garganta levemente.
– Você acabou de dizer “afronta”, querida?
– Você vai se acostumar – eu disse a ele. Então encarei Tessa. – Não é que eu não ache tudo isso muito interessante, mas como isso se relaciona ao fato da gente
resolver o caso?
– Calma. Estou chegando lá. Isso é o que Dupin faz no livro... – ela contou nos dedos todas as técnicas investigativas de Dupin, uma de cada vez. – Ele observa os
fatos, coleta evidência física, analisa os padrões de ferimentos, analisa amostras de cabelo, faz uma autópsia preliminar, avalia os depoimentos das testemunhas,
interroga os suspeitos e então consegue que um marinheiro confesse seu envolvimento no incidente.
– Parece com você, Patrick – disse Calvin, – nos seus melhores dias. Um corredor passou por nós, seguindo pela trilha, as palmeiras à sua direita, os cactos à esquerda.
– Na verdade – Tessa disse, olhando para mim, – Dupin era meio como você.
– Como assim?
– Ele visitava a cena – isso era muito importante para ele – e ele estudava como o assassino havia entrado e saído do lugar.
– Ótimo – eu disse. – Rotas de entrada e saída.
– Ele as chamava de ingresso e egresso, mas tanto faz. E ele também sempre conseguia irritar as autoridades locais.
– Parece o meu tipo de cara – a trilha começou a dar a volta em seu longo e tortuoso circuito de volta ao Alcazar Garden, fazendo a curva em torno do perímetro do
Zoológico de San Diego. Dentro eu podia ouvir o barulho dos pássaros e o rugido de algum grande felino das selvas.
– Toda essa coisa de entrada e saída foi, na verdade, o que o ajudou a desvendar o caso. Veja, parece com um assalto, mas Dupin considera outras opções. Ao invés
de apenas procurar por evidências que confirmam uma teoria, como a polícia faz, ele experimenta ideias diferentes que nem parecem fazer sentido.
– A marca de um verdadeiro investigador – disse Calvin.
– E não é apenas isso. Então, Dupin pensa no tamanho, tipo de corpo e habilidades especiais do assassino. Quem poderia cometer esse crime, certo? E então ele usa
isso para diminuir a lista de suspeitos pois ele sabe que o assassina precisa ser muito forte, extraordinariamente forte, para causar o tipo de lesões que a vítima
possuía, mas também, o assassino precisava ser muito ágil.
Enquanto falava, Tessa ficava mais e mais animada, como uma contadora de histórias natural. Eu nunca a havia visto tão animada com alguma coisa, e eu não queria
pará-la. Talvez tenha sido o jeito dela de me mostrar que eu não estava inovando tanto, visto que Poe criou Dupin aproximadamente 150 anos antes de nascer, mas sejam
quais eram seus motivos, era bom vê-la tão entusiasmada com alguma coisa. Deixei que ela continuasse.
– E quando Dupin analisou a lesão no pescoço da garota morta, ele até construiu um tipo de tubo para ver qual seria o tamanho da mão de alguém teria que ter para
causar as contusões.
– Reconstrução do crime – murmurou Calvin. – Esse cara deveria dar aulas na Scotland Yard.
Tessa acenou com o dedo contra o ar em sua frente.
– Mas, tem uma coisa, o ferimento não havia sido feito por uma mão humana.
Imaginei que Poe havia criado algum tipo de monstro fictício para cometer os crimes. Uma solução fácil para o problema.
– Então, o que causou as lesões?
– Bom, ao invés de ficar apenas olhando para o acontecido, Dupin se focou no que havia acontecido que era único naquele caso específico.
– Quanto mais único é um crime, mais fácil é de resolver – eu murmurei, citando uma máxima que eu compartilhava em meus seminários com frequência. Eu achava que
eu tinha inventado. Talvez tenha sido Poe.
– Mas isso não havia sido um crime – disse Tessa.
– Eu pensei que duas pessoas foram assassinadas.
– Não, duas pessoas foram mortas.
– Só um momento, querida – disse Calvin. – Acho que você ainda tem que explicar as lesões.
– O assassino que fez.
Eu ainda não tinha entendido.
– Ok, calma. Então o marinheiro fez?
– Não, o macaco fez.
– Macaco? – Calvin e eu exclamamos.
– Sim, um orangotango de Borneu que estava tentando barbear as pessoas e acidentalmente quase cortou suas cabeças fora com uma lâmina afiada – ela balançou a cabeça
suavemente. – Essa parte da história não é muito boa.
– Mas e o marinheiro? – perguntou Calvin.
– Ele era dono do orangotango que fugiu.
– Você está brincando, né? – eu disse. – Um orangotango que estava tentando barbear as vítimas? – não me lembrava de ter lido aquilo.
– Ei, você tem que dar uma colher de chá para Poe. Para sua informação, Os Assassinatos da Rua Morgue foi o primeira história de detetive impressa, o primeiro mistério
de ambiente fechado, a primeira história de ficção criminal e o primeiro exemplo de criação de perfil a aparecer na literatura. Com apenas uma história, Poe criou
quatro gêneros de literatura que ainda existem hoje. Que ainda são populares hoje.
– Bom, nesse caso – Calvin disse, – considere a colher de chá dada. Tessa passou sobre um amontoado de mato seco que havia sido soprado para o caminho.
– Isso. – ela disse. – E o mais legal é que Dupin realmente usou o fato de que parecia impossível desvendar o caso. Por mais impossível que parecesse, ele ocorreu,
então deve ter sido possível. Mas a polícia cometeu o erro de de nier ce qui est, et d’expliquer ce qui n’est pas. Mas Dupin não.
Eu olhei para ela.
– Você não pode estar falando sério. Quando você começou a falar francês? Ela ficou na defensiva. Envergonhada. Embaraçada.
– Eu estou só aprendendo. Por que? Pronunciei algo errado?
– Não – disse Calvin. – Acho que não.
Suspirei.
– Você pode traduzir para mim? Meu francês está um pouco enferrujado.
– De nier ce qui est, et d’expliquer ce qui n’est pas – ela disse novamente.
– “Ignorar o que é e explicar o que não é”. Os policiais viram um assalto e dois assassinatos em um quarto trancado. Mas no final, não havia assalto, nem assassinato,
nem crime, nem motivo, e o quarto não estava trancado.
Eu nunca havia visto Calvin tão confuso como estava agora.
– Querida, acho que você vai ter que me explicar isso.
– O macaco não roubou nada, então, nenhum assalto; ele não tinha um motivo, a menos que você considere tentar barbear alguém; e ele não assassinou as pessoas. As
matou, com certeza, mas ele não era humano, então não foi um assassinato, e por isso também não foi nenhum crime. E o quarto não estava trancado quando o macaco
escalou até lá, acontece que a janela travou fechada quando ele trombou nela, enquanto egressava – essa palavra existe, por sinal, mas não me lembro se Poe a usa
mesmo. De qualquer maneira, é isso.
Calvin sorria para ela com admiração.
– Muito bem, querida. Muito bem mesmo.
– Nada foi o que parecia ser – eu disse suavemente.
– Exato – ela disse. – E bem no final da história, Dupin está falando sobre o idiota do detetive de polícia e diz: “Estou satisfeito em tê-lo derrotado em seu próprio
castelo”. Eu gosto dessa parte.
– Derrotado no próprio castelo... – Calvin murmurou. – tenho que lembrar disso. Poderia ser um ótimo título para meu próximo livro.
Quando nos aproximamos do Alcazar Garden, eu podia ver que o táxi de Calvin havia retornado e já estava esperando por ele. Ele olhou para seu relógio e anunciou:
– Eu realmente preciso tomar meu caminho. Tessa, querida, foi um prazer. Estou ansioso para minha próxima aula de literatura americana.
– Leia mais Poe – ela disse. – O Mistério de Maria Roget e A Carta Roubada, as outras histórias de Dupin. Você vai gostar.
Ele deu um tapinha no ombro dela, e então agarrou meu cotovelo com a mão.
– Boa sorte com esse caso, garoto. Lembre-se: acredite na evidência aonde quer que ela o leve. Continue refutando suas teorias até que você descubra a verdade.
– Obrigado – eu disse. – Foi ótimo vê-lo.
Então, fizemos nossa despedida apressada, Calvin foi embora, e eu percebi que era hora de confrontar Tessa sobre sua tatuagem.
Lien-hua observou Margaret Wellington andando para lá e para cá no andar da sala de conferência. Margaret havia pedido a ela para informá-la sobre o caso há 30 minutos,
compartilhar o perfil preliminar dos seques-tradores e explicar como seu pé foi parar no abdômen do suspeito na noite passada no armazém enquanto ele ainda estava
de pé. Foi por causa da explicação de Lien-hua que Margaret começou a andar.
O silêncio na sala foi finalmente quebrado quando Ralph entrou pela porta e anunciou que os criminalistas estavam analisando o armazém e o apartamento do suspeito.
O nome do cara é Neville Lewis. A polícia ainda não havia ouvido uma palavra sobre ele. A ficha dele é limpa, mas até agora ainda não havíamos conseguido encontrar
nenhuma pessoa que pudesse atestar por ele.
– Você testou as impressões digitais dele pelo AFIS? – perguntou Margaret. Ralph acenou com a cabeça.
– Não conseguimos nada. Até onde posso dizer, ele nunca sequer atravessou a rua fora da faixa e nem trapaceou com seus impostos.
– Espere – disse Lien-hua. – Um homem que construiu sua própria câmara de tortura e estava envolvido nesse sequestro sofisticado não tem antecedentes?
– Não faz sentido, não é mesmo?
Lien-hua balançou sua cabeça.
– Bom – disse Margaret, – eu costumo confiar no Automated Fingerprint Identification System25. mais do que na intuição, agente Jiang. O AFIS não mente.
Lien-hua considerou a informação.
– Vamos dizer que os registros dele foram falsificados. Quão bom alguém teria que ser para implantar um pacote de identificação eletrônica como esse, bom o suficiente
para enganar o AFIS?
– Bom – disse Ralph. – Muito bom.
– E quanto ao programa de proteção à testemunha? – Lien-hua olhava de Ralph para Margaret. – É possível que o Sr. Lewis esteja no programa?
Ralph deixou a pergunta para Margaret com um dar de ombros.
– Bem – ela disse, – eu duvido, mas vou dar uma olhada nisso. Enquanto isso, agente Hawkins, descubra com a Marinha se eles localizaram alguma evidência adicional
no lugar do incêndio da noite passada. Se você tiver qualquer problema, fale para eles que você está trabalhando direto para mim.
– Eu não terei nenhum problema.
– E agente Jiang... – Margaret deu um sorriso inócuo. – Eu gostaria de saber dos eventos da noite passada mais uma vez. Só para meu registro.
68
Depois de Tessa e eu termos deixado o Balboa Park, retornamos para o hotel e eu a convidei para dar uma caminhada pela praia. Obviamente ela não iria mencionar sua
tatuagem, então eu teria que fazer. O dia estava ensolarado, mas meu humor havia se nublado.
– Então, Tessa, me conte sobre sua tarde ontem, depois que deixamos o aquário.
– Sei lá. Andei por aí por um tempo. Visitei algumas lojas e tal.
– Pensei que você odiava fazer compras.
– Bom, eu odeio, mas eu estava curiosa, sabe, explorando o centro da cidade.
Dei a ela uma chance de dizer mais, mas ela não aproveitou.
– E quanto a ontem a noite? Onde você jantou?
– Eu comi aqui no hotel e então fiquei escrevendo um pouco, li alguma coisa e fui pra cama.
Eu esperei, desejando que ela me contasse. Eu queria ouvir dela.
– Então isso foi tudo o que você fez?
– O que é isso? É tipo, um interrogatório? – a voz dela estava ficando ranzinza. – Eu falei para você, foi isso.
Respirei fundo, tenso.
– Posso pelo menos ver a tatuagem?
Confusão assombrou seu rosto.
– O quê?
– A tatuagem no seu braço. Eu gostaria de vê-la – senti minha raiva aumentando, não muito por ela ter feito uma tatuagem, eu estava esperando por isso há meses,
mas eu estava ficando cheio das suas meias--verdades, evasões e desobediências. – Você colocou piercing no nariz sem me pedir. Você colocou piercing na sobrancelha
sem me pedir. E agora você faz uma tatuagem, que é, aliás, ilegal nesse estado a não ser que você tenha 18 anos. E você não só não me pediu, agora mesmo você mentiu
para mim.
– Eu não menti pra você!
– Você me disse que só saiu para andar.
Seus olhos brilharam com determinação. Independência.
– Ah, entendi. Era uma armadilha, né? Sua perguntinhas simpáticas sobre o que eu fiz ontem. Como eu sou idiota, pensei que você estava realmente interessado na minha
vida. Bom, eu não vou cometer esse erro novamente.
– Pare com isso, Tessa. Não foi uma armadilha. Eu estava te dando a oportunidade de me contar a verdade. De ser sincera comigo.
– Ah, uma oportunidade. É assim que você chama isso? E como você sabe que eu fui num estúdio de tatuagem?
– Eu estava preocupado com você depois do que aconteceu no aquário...
– Tinha dito que aqueles tubarões comeram o peixe e saí procurando por você! Por que você não acredita em mim? Tudo que sabia era que você estava na parte de trás
em algum lugar, e eu estava com medo.
– Então eu decidi ver como você estava – eu continuei. – Monitorar onde você estava.
– Me monitorar? Dá licença! Eu tenho dois anos de idade? – ela parou para se reagrupar. Para recuperar o fôlego. Ela só precisou de um momento. – Ah! – então, ela
bateu com sua bolsa do meu lado, espalhando seus objetos pessoais pela areia. – Você mandou me seguirem!
– Não, Tessa. Eu não mandei seguirem você. Nada desse tipo – me inclinei para ajudá-la a pegar suas coisas, mas ela me empurrou.
– Ah, você não mandou me seguirem? Então como você... – enquanto ela recolocava as coisas de volta em sua bolsa, sua mão pousou sobre seu celular. – Ah... Você não
fez isso... Diz pra mim que não... Sim, você fez... você rastreou meu celular. O GPS!
– Eu queria ter certeza que você estava bem.
– Você não confiou em mim. Eu não acredito em você!
– Confiar em você? Por que eu deveria confiar em você? Você anda pelos lugares que eu especificamente falei para você não ir. Você sai escondida para fazer uma tatuagem.
Você não me diz onde está. Não retorna as minhas ligações. Eu me preocupo com você. Você não entende? Você é responsabilidade minha.
– Não sou responsabilidade sua! – ela pegou sua bolsa. – Eu sou da minha própria responsabilidade, ok? Eu cresci sem ter nenhum pai em volta para me dizer o que
fazer ou onde ir ou se eu podia ou não colocar um piercing no nariz, ou fazer uma tatuagem, ou qualquer coisa. Eu me virei bem sem um pai antes, e eu posso me virar
bem sem...
– Nem pense em dizer isso. Não diga isso, Tessa. Pensei que estávamos tentando reconstruir uma família aqui, e uma família depende de confiança.
– Mas você não confia em mim!
– Porque você não fez por merecer.
O ar estava elétrico entre nós. Ela segurou sua manga e puxou até o ombro.
– Você quer ver minha tatuagem? Ok, aqui está. Fiz um corvo, ok? Fiz um corvo porque você às vezes me chama de Raven e eu gosto, porque faz me sentir especial. Ou
pelo menos fazia. Mas agora, quer saber? – suas palavras estavam cheias com tantos tipos de dor. – Gostaria de ter feito outra coisa.
Meu coração parecia que ia explodir e murchar ao mesmo tempo.
– Tessa, vou mandar você de volta para Denver essa tarde – as palavras pareciam ácido contra meus dentes.
– O quê?
– Eu já falei com meus pais. Eles vão pegar você no aeroporto. Vou voltar para casa no fim de semana, e então vamos lidar com isso. Não posso ir hoje. Eu iria se
pudesse, mas tenho que completar minhas obrigações nesse caso, e não posso fazer isso com você aqui em San Diego se eu não puder confiar em você.
– Ah, é? – ela jogou sua bolsa por sobre o ombro e travou sua mandíbula. – Quer saber? Estou feliz por você querer que eu volte para Denver porque prefiro ir pra
lá do que passar mais um minuto aqui com você – então ela virou-se e saiu correndo.
E meu coração quebrou em cacos.
E eu fiquei grato por ela não ter se virado.
Porque assim ela não pode ver a lágrima escorregando pelo meu rosto.
69
Victor Drake estacionou seu Jaguar em frente à decadente academia de boxe onde Suricata e Geoff normalmente treinavam. Era hora de dissolver a equipe, mas primeiro,
ele precisava ter certeza que todos os trabalhos haviam sido satisfatoriamente realizados.
Toda essa parte da cidade o deixava com nojo. Não era para pessoas como ele, e ele mal acreditava que estava ali. E se alguém o visse?
Mas então, novamente, como ninguém esperaria que um homem de sua estatura aparecesse aqui, era menos provável que alguém o reconhecesse. Ele não havia trazido o
dinheiro com ele, é claro. Ele não iria dirigir até o meio do Barrio Logan com 250 mil dólares em dinheiro no porta-malas do carro.
Victor trancou seu carro e então deslizou para dentro do prédio encrostado. O lugar era como ele esperava que fosse: escuro, grosseiro e cheio de sons bárbaros de
homens enormes esmurrando uns aos outros. Que lugar maravilhoso para passar o tempo livro.
Geoff e o dr. Kurvetek já estavam lá, esperando por ele ao lado de um grande saco de pancadas. Suricata estava terminando de golpear o rosto de um homem 20 quilos
mais pesado que ele. Victor sempre soube que Suricata era bom com facas, mas ele nunca havia visto Suricata lutar boxe antes. Ela perturbadoramente impressionante.
– Você está com o dinheiro? – perguntou Geoff.
– Não seja ridículo. Não. Não comigo.
Um lapso de irritação.
– Pensei que você ia trazer.
– Vou dá-lo para você, ok? Mas primeiro eu quero saber se consegue manter os policiais longe de mim e me dizer onde está o dispositivo.
– Os policiais não vão te incomodar. Eu cuidei disso – Geoff disse. – E Hunter não tinha nada com ele quando foi morto. Procurei por toda a área, no píer, tudo.
Não estava lá. Já era. E verifiquei o corpo dele. Não há nada que possa ligá-lo com a gente.
Nessa altura, Suricata havia se juntado a eles. Victor deu a ele uma rápida olhada. O homem estava ofegante. Transpirando. E seu cheiro era revoltante. Nada de novo.
O dr. Kurvetek espiou Victor pelo ar tomado pelo suor.
– Parece que o dispositivo foi realmente destruído no incêndio. Hunter não sabia nada sobre ele. Por que ele o teria removido? Tudo acabou com a morte dele.
– Sim – rosnou Suricata. – Agora, e o dinheiro?
– Hoje a noite – Victor disse. – Estarei com ele em minha casa. Com tudo. Estejam lá às 20h30. Então darei para vocês. Mas por enquanto, enterrem todas as evidências,
os relatórios, façam o que for preciso para ligar tudo a Hunter. Sem cometer enganos – e então, antes que os três homens que Victor aprendeu a desprezar pudessem
responder ou se opor, ele caminhou para além deles e removeu-se daquele lugar imundo.
Ele teria o dinheiro deles essa noite. Sim. Afinal, ele era um homem de palavra. Mas então, assim que esse pesadelo acabasse, ele sairia de férias até que a poeira
baixasse novamente.
Ele esgotou seu frasco de comprimidos, pegou seu celular e ligou para seu agente de viagens. Então dirigiu o mais rápido que podia para longe daquela parte da cidade
onde ele nunca deveria ter se aventurado em primeiro lugar.
Eu estava parado no corredor em frente ao quarto de Tessa esperando ela fazer suas malas quando Ralph me ligou. Atendi, esperando que ele pudesse me encorajar e
dizer que eu estava fazendo a coisa certa ao mandar Tessa para casa, mas antes que eu pudesse tocar no assunto, ele disse:
– Pat. Mais nada sobre Drake. Ele parece limpo.
– O que mais?
– Margaret está assumindo o caso. Repentinamente ela ficou muito interessada nele. Temos uma reunião na central da polícia às 14h, e ela insiste que você esteja
lá.
A diretora-executiva-assistente Margaret Wellington era a última pessoa que eu queria ver agora. Ela não acredita em criminologia ambiental ou investigação geoespacial
e tenta me descreditar e cortar fundos para o meu trabalho sempre que pode. Não é necessário dizer que nós não nos juntamos para jogar Scrabble nos finais de semana.
Ter que lidar com ela me deixaria no limite.
– Escute, Ralph. Diga a ela que vou me atrasar, se conseguir ir. Diga isso para ela, ok?
Ele processou aquilo por um momento.
– Não se saiu muito bem com Tessa, ok?
– Não muito bem. Estamos indo para o aeroporto em alguns minutos. Ela parou, provavelmente para colocar na balança o que eu havia acabado de dizer contra as consequências
de não aparecer em uma das reuniões de Margaret.
– Tudo bem. Eu te dou cobertura. E se você não conseguir ir na reunião, eu digo a Margaret que você está a meu serviço.
– Obrigado. E, ei, me diga se estou fazendo a coisa certa com Tessa.
– Você está fazendo a coisa certa, Pat.
– Obrigado, Ralph.
– Eu acho.
E antes que eu pudesse falar qualquer outra coisa, a porta de Tessa se abriu e ela passou por mim, carregando suas malas arrumadas às pressas. Após ter dado quatro
passos, ela falou por cima do ombro:
– Pode me levar para o aeroporto agora, Patrick. Estou muito pronta para cair fora daqui.
Ralph e eu encerramos a ligação e conduzi minha enteada e seu corvo ilegal para o carro.
70
12h39
Nem Tessa nem eu falamos muito no caminho para o aeroporto. Tenho certeza que nós dois tínhamos coisas que queríamos falar, precisávamos falar – eu sei que tínhamos
– mas a conversa nunca começou.
Estacionamos. Descarreguei as coisas dela. Entramos, sempre em silêncio.
Finalmente, no balcão de passagens eu disse:
– Tessa, você sabe que eu te amo e quero o melhor para você. Silêncio.
– Estarei em casa nos próximos dias. Vamos resolver isso tudo, então.
– Ok – ela disse. E isso foi tudo.
Depois que ela pegou seu bilhete de embarque, andei com ela até o posto da segurança, embora ela tenha feito questão de sempre estar alguns passos à minha frente
durante todo o caminho. A fila estava pequena, e antes que ela pudesse entrar, parei na frente dela e disse:
– Tchau, Tessa.
Eu não achei que ela fosse responder, mas ela respondeu. Ela disse uma única palavra, simples:
– Tchau. – Então passou por mim e foi mostrar sua carteira de habilitação e passagem de embarque para o agente da segurança.
As palavras “até logo” não vieram até meus lábios. Eu queria que viessem, mas não vieram. Eu não podia ficar lá assistindo ela ir embora daquele jeito. Eu não podia.
Então no final, sem dizer nenhuma outra palavra, voltei para o carro.
Tessa colocou sua bolsa na esteira de transporte, esvaziou seus bolsos e esperou pelo cara da segurança com sua cara entediada acenar para ela passar através do
detector de metal idiota. Ela havia evitado contato visual com Patrick para que ele não visse que ela estava prestes a chorar. Ela não queria que ele soubesse o
quanto doía.
Doía pelo que ela havia feito.
Doía pelo que ele havia dito.
Ele não confiava nela. Ela queria que ele confiasse, mas ele não confiava. E pelo menos parte disso era por culpa dela.
O cara da segurança acenou para ela passar. Do jeito que o dia dela estava, ela esperou que o alarme fosse tocar. Isso seria brilhante.
Mas não tocou.
Felizmente.
Mas então, assim que ela chegou ao outro lado, um outro funcionário pegou sua bolsa, revirou-a e pegou o sabonete antibacteriano para sua tatuagem porque ele disse
que não tinha 100ml ou menos e além disso não havia sido colocado em uma sacola plástica de 20cm, então ele jogou o sabonete no lixo e tudo isso a fez pensar na
tatuagem de novo, e em Riker e Patrick e no que havia acabado de acontecer entre eles, e no quanto ela queria ficar sozinha, sozinha, sozinha.
Tessa pegou sua bolsa das mãos do cara da segurança e passou por ele até o portão. Ela escapou para o banheiro, trancou-se em uma das cabines, pegou seu caderno
e deixou as palavras que estavam furiosas dentro dela sangrarem sobre a página:
no compartimento da
infinita dor no coração,
coloquei minha dor emplumada.
Então ela enfiou seu caderno de volta em sua bolsa e estalou elásticos contra seu pulso até que todos que ela tinha se quebrassem. E então, Tessa Bernice Ellis começou
a chorar onde ninguém mais poderia ver, trancada dentro das divisórias de aço brilhante de uma cabine de banheiro.
71
Foi difícil para mim, sair do aeroporto.
Depois de deixar Tessa, fiquei sentado no estacionamento por uns 15 minutos, pensando se eu deveria voltar lá pra dentro para tentar conversar com ela um pouco mais.
Mas finalmente percebi que estava fazendo a coisa mais difícil, mas a melhor. Se voltasse lá, ela não aprenderia a lição. Eu precisava ser duro e manter minha decisão.
Nesse último ano aprendi que ser um pai é um trabalho muito mais difícil do que prender serial killers. Muito mais difícil.
E sentando ali no estacionamento comecei a perceber mais uma coisa: às vezes, quando você é pai, seu amor tem que ser duro e desconfortável, e tem que doer para
provar que é real e que vai durar para sempre. Amor que é muito tímido para doer não é amor de verdade.
Entretanto, quando eu deixava o aeroporto, eu percebi que ainda não estava pronto para me encontrar com Margaret. Então decidi fazer o que faço de melhor – ao invés
de ir para a central da polícia, dirigi de volta para o local da morte de Austin Hunter para dar uma olhada.
Quando cheguei, estacionei no mesmo lugar onde Lien-hua e eu havíamos estacionado na noite anterior quando corremos pra cá para tentar encontrar – e então salvar
– Austin Hunter. Saí do carro e visualmente fiz uma varredura da área, verificando linhas de visão, comparando a cena agora com o que ela parecia na noite passada.
Por que aqui? Por que Hunter morreu aqui?
Fechei meus olhos e vi a imagem das ruas de San Diego, as artérias da cidade, se cruzando, se ligando. Eu conhecia o mapa cognitivo da cidade de Hunter melhor que
qualquer um, e agora, apesar das minhas tendências naturais, tentei invadir sua mente, para pensar como ele pensou.
Mas eu não conseguia.
Tentei estratificar as localidades dos incêndios, e o endereço de seu apartamento, e as estações de trolley que ele havia usado para deixar as cenas dos crimes;
então adicionei as condições do vento da noite passada e o lugar mais provável para onde ele viria na praia depois de nadar através da baía...
Mas não importa o quanto eu tentava, eu não conseguia descobrir por que Austin Hunter havia deixado a polícia o encurralar onde o fizeram. Ele era muito esperto
para cair numa armadilha no meio de uma rua por acaso. Esse homem havia passado dois anos ensinando táticas de sobrevivência e evasão para SEALs da Marinha, e esse
local não parecia fazer nenhum sentido. Sabia que ele não os teria levado para o ponto de encontro, disso eu tinha certeza. Então, por que aqui?
Abri meus olhos e analisei a área novamente.
O dispositivo. Ele não teria saído do Edifício B-14 sem o dispositivo. Mas ele não tinha nenhum tipo de dispositivo com ele, exceto pelo telefone, quando a polícia
o cercou. Nós poderíamos certamente analisá-lo, mas quando eu o usei, não parecia haver nada incomum com ele. Eu não podia pensar que todo esse alarde era por causa
de um celular pré-pago.
Austin era um profissional.
Um profissional.
Eu não sabia o que o dispositivo era, ou exatamente o que ele fazia, mas se Austin estava indo roubá-lo, o dispositivo deveria ser móvel e, se tamanho de uma máquina
de MEG fosse algum parâmetro, o dispositivo teria que ser pelo menos grande o suficiente para ser facilmente visto.
Então, se Austin estava com ele, onde ele o teria escondido?
Um lugar onde ele estaria seguro.
Um lugar onde ele pudesse pegá-lo depois.
Logo antes de ser morto, ele havia apontado sua faca para Lien-hua. Andei até o lugar onde eu estava; criei a imagem de onde Austin e Lien-hua estavam.
– Acabou – ele havia dito, mas eu não acho que ele estava falando de sua vida, e eu não acho que ele estivesse ameaçando Lien-hua.
Acabou.
O que acabou?
Olhei para a extensão vazia do meio-fio ao meu lado. Um carro estivera ali na noite passada. O carro com as multas de estacionamento, aquele que Dunn chutou.
Aquele que ele havia ordenado que levassem para o pátio.
Acabou... Acabou...
Será que Austin estava falando do dispositivo? O dispositivo acabou... Austin apontou. Ele apontou.
Oh.
O dispositivo acabou ficando... ali.
Austin o colocou no carro.
Era hora de fazer uma visita ao pátio da polícia.
Quando Tessa finalmente saiu do banheiro e andou até o portão de embarque, ela ouviu a moça de cabelo armado da companhia aérea que estava trabalhando no Portão
4 anunciar que sua hora de partida havia sido adiada por causa de problemas mecânicos.
Ótimo. Ótimo mesmo.
Tessa pegou seu celular e encostou-se em uma das cadeiras do aeroporto, ergonomicamente desenhadas para causar problemas permanentes nas costas. Ela tentou não pensar
em como eram estúpidas as regras da segurança sobre sabonete, o quanto estúpida toda essa viagem tinha sido ou em quanto seu braço tatuado estava doendo. Ou seu
pulso onde havia estalado os elásticos.
Ou qualquer outra parte do seu corpo, como, especialmente, talvez, seu coração.
Então, um pouco disso tudo era culpa dela. E daí? Patrick também não estava sendo justo. Ele não estava. Não estava mesmo.
Ela pegou o telefone, deu uma olhada em seus e-mails, e estava enviando mensagens de texto para alguns amigos para dizer a eles que estava voltando dois dias antes
quando uma mulher de cabelos brancos sentada na cadeira ao lado dela disse:
– Boa tarde, querida.
Tessa não quis ser grosseira.
– Oi.
– Você está indo para Denver também?
Não. Estou sentada na frente desse droga de portão a toa...
– Hum, sim.
– Estava pensando... – a mulher tinha rugas delicadas em volta dos olhos e um grande sorriso de avó. – Estava pensando se você não ligaria se eu deixasse minha bolsa
e minha mala aqui. Se você não ligaria de cuidar delas por alguns minutos – Tessa viu uma bengala encostada ao lado da perna da mulher. – Seria um trabalho e tanto
levá-las e trazê-las de volta do banheiro.
– Claro, sem problema.
A mulher sorriu para ela.
– Obrigada. É muito gentil da sua parte.
Então a senhora, que estava começando a lembrar a Tessa de sua professora da segunda série, levantou-se lentamente. E, usando a bengala para se equilibrar, ela deixou
sua bolsa e sua mala de bordo ao lado da cadeira de Tessa e andou cuidadosamente em direção ao banheiro.
No pátio da polícia, descobri que uma câmera de vídeo havia sido descoberta no porta-malas do carro abandonado e levada para a sala de evidências na central da polícia.
Eu tinha a sensação de que era muito mais que uma câmera de vídeo.
Quando cheguei na polícia, levei meu laptop comigo até o segundo andar, passei em frente à enfermaria e encontrei a sala 211: a sala de evidências.
Na maioria das delegacias de polícia, todos chamam esse local de “a sala de evidências” ao invés de “salas”, mas quase sempre, a “sala” consistia em um conjunto
como um labirinto de salas estreitas, lotadas de prateleiras que tinham empilhadas caixas rotuladas por ano, por caso, por tipo de crime.
O policial encarregado da sala de evidência, um homem de barba chamado Riley Kernigan, que parecia estar servindo seus últimos dias na polícia antes de se aposentar,
abaixou seu jornal e me cumprimentou com um sorriso lânguido.
Enquanto ele olhava desanimadamente para meu distintivo do FBI, perguntei a ele se eu poderia ver o registro de entrada da câmera de vídeo.
– Claro – ele disse. – Mas está vazio. Você é o primeiro cara interessado nessa coisa.
– Posso ver a câmera então?
– Câmera, claro – ele disse, com um tom de sarcasmo. – Vou te mostrar a câmera de vídeo – obviamente Kernigan também não acreditava que era uma câmera. Ele levantou-se
e me conduziu através de dois estreitos corredores até a sala de armazenamento para casos em andamento. Vi o dispositivo sobre uma mesa ao lado de uma grande bolsa
esportiva. Imaginei que Kernigan havia desempacotado o dispositivo quando deu entrada nele.
O dispositivo que os caras do pátio pensaram ser uma câmera de vídeo não parecia com nenhuma câmera que eu já havia visto. Ele tinha uma tela digital, mira a laser,
adesivos indicando radioatividade. Eu não sabia como ele funcionava, ou o que fazia, mas alguém achou que era importante o suficiente para matar por ele, e isso
era suficiente para mim.
O oficial Kernigan ficou ao meu lado, olhou para o dispositivo, e então balançou a cabeça.
– É a coisa mais maluca que já vi.
Os fatos do caso estavam dobrando-se sobre eles mesmos com um grande origami. Eu só queria poder saber qual seria o formato final.
– Posso ficar aqui por alguns minutos? – perguntei a ele.
– Fique quanto tempo quiser. Fique a tarde toda, se precisar – ele deu uma última olhada no dispositivo e jogou seu jornal sobre a mesa ao lado dele. – Só que eu
saio às 17h30. Troca de turno. Esteja pronto até lá porque eu preciso trancar aqui. Me faça um favor e coloque-o de volta na bolsa quando terminar.
– Tudo bem, obrigado.
Então ele voltou para sua mesa.
Eu precisava tomar uma decisão. Esse dispositivo foi roubado de uma base militar segura, mas, até onde todos sabiam, ele tinha sido destruído no incêndio. A única
pessoa que sabia que isso havia sido tirado da base era Austin Hunter, e ele estava morto.
Ninguém mais havia entrado para dar uma olhada nele, mas eu sabia que muitas pessoas estariam procurando por essa coisa. Mais provavelmente os militares, talvez
pessoas da Drake Enterprises.
Talvez os homens de segunda-feira a noite.
E Shade, seja lá quem fosse
Seria bom ver quem virá procurando por ele primeiro...
Coloquei meu laptop no canto da sala, liguei a webcam e abri o grava-dor digital de vídeos do computador. Mesmo após a tela ser desligada, a câmera embutida continuaria
gravando. Com a quantidade de bateria e de memória no meu computador, daria para gravar de seis a oito horas de vídeo se fosse necessário. Eu não achava que algum
visitante suspeitaria de um computador no canto da sala, nem perceberiam a minúscula luz que indicava que a câmera estava ligada.
Antes de desligar a tela, mudei as configurações do sistema para me permitir acessar o disco rígido remotamente através da Internet. Desse modo, eu poderia executar
qualquer um dos meus programas mesmo se eu não pudesse recuperar o computador da sala de evidências até a noite.
Então, para que não perdêssemos o rastro do dispositivo novamente, decidi escondê-lo em plena vista... por assim dizer.
Usando luvas de látex, eu cuidadosamente o embrulhei no jornal que o oficial Kernigan havia descartado ao meu lado e então o deslizei para trás de uma caixa empoeirada
de um caso de roubo de carro de 1984. Eu precisava colocar algo de volta na bolsa esportiva preta, mas eu não queria comprometer as provas de outros casos, então
dei uma procurada pelas gavetas e no armário de custódia da sala de evidência, encontrei um rolo de fita adesiva e coloquei-o no lugar.
72
Uns 15 minutos depois, quando cheguei na sala de conferência do terceiro andar, eu tinha quase certeza que a reunião das 14h de Margaret já teria começado, mas algo
os atrasou e eles ainda estavam esperando para começar.
Ah, eu estava radiante.
O detetive Dunn estava sentado à mesa, junto com Lien-hua, dois agentes da reunião de ontem e a tenente Aina Mendez, que provavelmente tinha vindo por causa da conexão
entre o sequestro de Cassandra e o incêndio na base. O oficial Geoff Rickman estava no canto conversando com um homem usando um distintivo de tenente. Suspeitei
que pudesse ser Graysmith.
Sentei-me e alguns instantes depois Ralph entrou e acomodou-se na cadeira ao meu lado.
– Bem – ele disse silenciosamente, – como foi com Tessa?
– Tão bem quanto eu esperava.
– Ela está no aeroporto?
– Sim – olhei para meu relógio. – Na verdade, ela provavelmente está embarcando agora. Ela tem uma conexão em Los Angeles, então ela não vai chegar em Denver até
pelo menos 19h. Acho que vou conversar com ela, então.
– As malas dela provavelmente vão parar na Europa.
– Talvez.
– Boa sorte com isso tudo. Me informe se acontecer algo.
– Informarei.
Percebi que o oficial Rickman usava seu relógio no pulso direito, e quando ele se sentou, pegou sua caneta com sua mão esquerda. A luva de couro descartada no local
do incêndio era de uma pessoa canhota... Aina mencionou que as impressões digitais de um policial haviam sido encontradas nela... Vi os olhos de Ralph virarem em
direção à porta, e então ouvi Margaret entrar, seus saltos fazendo barulho sobre as conversas silenciosas ocorrendo na sala toda. Eu teria que voltar a pensar em
Rickman depois.
Margaret escolheu olhar para mim enquanto as pessoas à nossa volta tomassem seus lugares.
– Dr. Bowers – ela disse, seus dentes reluzindo, – o diretor Rodale me contou sobre sua delicadeza ao lidar com o Departamento de Polícia de San Diego. Parabéns.
Você manteve sua reputação completamente intacta.
– Obrigado, Margaret. Eu tenho ouvido uns podcasts de autoajuda. É bom saber que estão fazendo efeito. Se você quiser que eu te passe o link, é só falar.
Ela deu um suspiro apertado, olhou para o relógio na parede e então caminhou para a ponta da mesa. Limpou a garganta.
– Temos muito o que fazer, e não temos muito tempo – ela parou e observou a sala como uma bibliotecária irritada até que todos tivessem parado de arrumar seus papéis
e estivessem prestando atenção nela. – Até agora a única coisa ligando Neville Lewis ao sequestro de Cassandra Lillo é sua presença nas proximidades do crime. Mas
como vocês sabem, isso não é o suficiente. Para conseguirmos uma condenação precisaremos ou de um testemunho ocular indiscutível, uma confissão ou uma evidência
física irrefutável.
– Cassandra não quer depor – Lien-hua disse. – Ela não quer nem fazer o reconhecimento. Ela ficou muito traumatizada. Não estou convencida que ela vai mudar de ideia.
– Sem Cassandra nós não temos testemunha ocular – rosnou o detetive Dunn.
– Espere, talvez tenhamos – eu disse. – Vamos trazer a mulher que nos levou até o armazém. Randi. Vamos conversar com ela.
Ralph falou:
– Nós estávamos tentando encontrá-la. Surpresa, surpresa, ela parece ter desaparecido.
– Certo – disse Margaret impacientemente, – vamos trabalhar nisso, mas por enquanto vamos falar sobre confissão. O sr. Lewis diz que tem medo de falar com a polícia.
Dunn sorriu.
– Claro que tem. Ele sabe que se falar com a gente vamos descobrir a verdade e mandá-lo para uma prisão cheia de caras que estão sempre ansiosos para ter novos colegas
com quem brincar.
– Não, detetive – disse Margaret – você não me entendeu. Os advogados dele dizem que ele não confia na polícia por sua segurança, que após estar sob custódia deles
no armazém, eles falharam em protegê-lo – ela olhou para Lien-hua. Algo aconteceu entre elas. – Eles disseram que após ele estar algemado e terem lido seus direitos,
um dos agentes federais o agrediu. Os advogados trouxeram um médico que disse que ele estava com uma costela lesionada.
Ralph se inclinou, e ouvi ele sussurrar para Lien-hua:
– Aquele foi um ótimo chute mesmo.
Não acho que Margaret escutou seu comentário, mas ela limpou sua garganta mais uma vez mesmo assim.
– Com todo o respeito pelo Departamento de Polícia de San Diego, até agora todos os esforços em fazer Lewis falar foram improdutivos. Porém, em troca de não prestar
queixa contra a agente Jiang ou entrar com uma ação civil contra o FBI ou o Departamento de Polícia de San Diego, os advogados do sr. Lewis nos informaram essa manhã
que ele falaria, mas apenas com a agente Jiang. Ele pediu por ela pelo nome.
Era isso que Lien-hua havia me dito no telefone enquanto eu estava no Balboa Park conversando com Tessa, mas não tinha feito sentido.
– Como ele conhece Lien-hua pelo nome? – perguntei.
– Bom, eu só estou especulando... – Margaret soprou o ar por entre os dentes, fazendo o som de uma máquina vazando vapor. – Talvez seus advogados tenham dito o nome
dela enquanto estavam encorajando-o a prestar queixa contra ela por agressão. Agora, se pudermos voltar para o motivo de estarmos aqui, precisamos fazer uma decisão:
vamos aceitar a oferta ou não?
– Isso é fácil – Lien-hua disse. – Aceitamos. Eu falo com ele. Vou descobrir o que precisamos saber...
– Com licença – disse o detetive Dunn. – Nós prendemos esse cara em nossa jurisdição. Isso é um assunto para a polícia local. Vamos cuidar disso por nossa conta.
– Acho que não é tão local quanto parece – Margaret disse. – Conte a eles sobre os DVDs, detetive Dunn.
Ele ficou calado. Não respondeu.
– Continue – disse Margaret. – Conte a eles que seus criminalistas encontraram sete DVDs na sala dos fundos do armazém, cada um com um vídeo de outras mulheres usando
vestido de festa vermelho sendo afogadas no tanque.
Ouvi os murmúrios chocados ondulando pela sala.
Os olhos de Margaret saíram de Dunn e ela dirigiu-se ao grupo como um todo novamente.
– Até agora pudemos identificar mulheres de três estados diferentes, com base em registros de pessoas desaparecidas desde novembro. Estamos trabalhando para identificar
as outra quatro mulheres, mas isso inequivocamente não é assunto da polícia local. É uma questão federal. E por isso que o FBI assumiu a jurisdição do caso.
Sete assassinatos desde novembro daria uma média de um assassinato a cada uma ou duas semanas, um número impressionantemente alto. Normalmente, assassinos em série
têm um período de arrefecimento entre os crimes. Mas não sempre. Jeffrey Dahmer, que matou 17 pessoas, Gary Ridgway, que matou pelo menos 48, e o empresário de Chicago
do século XIX Herman Webster Mudgett, que pode ter matado mais de 200, todos tinham uma média de uma vítima ou mais por semana durante certos meses de sua carreira
criminal. Eu estava pensando nessas estatísticas sombrias quando percebi que as mãos de Dunn, que haviam estado repousadas sobre a mesa, estavam agora fechadas em
punhos tensos.
– Margaret – eu disse, – os vídeos foram colocados na Internet?
– Eu estava chegando nisso, dr. Bowers – ela disse laconicamente. – A resposta é sim. A divisão de crimes cibernéticos está removendo os links, fechando os sites,
mas temo que mais de 400 mil pessoas já assistiram essas mulheres morrendo.
Curiosidade do século XXI. Só de pensar nisso eu me sentia mal.
– Os criminalistas encontraram DNA, impressões digitais, qualquer evidência física ligando Lewis ao crime?
Margaret balançou a cabeça firmemente.
– A água do tanque que você estourou lavou qualquer evidência da área cercando a cena do crime. Dá pra imaginar? E o sr. Lewis foi esperto o suficiente para não
deixar impressões digitais nas caixas dos DVDs e eu nas câmeras. Tentamos reconhecimento de voz no vídeo de Cassandra, mas não obtivemos resultado pois o único áudio
era uma respiração pesada. Nesse momento, para termos nosso caso, precisamos da confissão desse homem.
– Então está combinado – Lien-hua disse. – Eu faço isso.
– Então não vai acontecer aqui na central da polícia – Dunn disse, – a menos que possamos ter um observador, no caso eu, presente.
– Muito bem – disse Margaret. – Levaremos Lewis para o escritório local do FBI.
O tenente, quem supus ser Graysmith, finalmente falou.
– Não tenho certeza se o diretor Rodale do FBI apreciaria o jeito com o qual essa investigação está sendo conduzida, diretora-executiva-assistente Wellington. –
Ele encheu as palavras diretora e assistente de sarcasmo.
Hum. Talvez eu possa aprender a gostar desse cara, afinal.
– Eu gostaria de ter algumas coisas esclarecidas... – ele continuou – ...uma vez que o assunto certamente surgirá no fim de semana quando o diretor Rodale e eu estivermos
em Phoenix. Só para esclarecer, explique para mim, por que não podemos ter um dos nossos detetives presente no interrogatório de um suspeito que vive em nossa cidade,
mata em nossa cidade e foi preso em nossa cidade? Estou um pouco confuso com essa parte do acordo que você está arrumando com os advogados do suspeito, e eu quero
saber de tudo direito quando o diretor Rodale me pedir para inteirá-lo do caso.
Margaret deu às palavras do tenente Graysmith um momento de deliberação silenciosa, batucou na mesa duas vezes com seu dedo indicador, e disse:
– Tudo bem, Dunn, você assiste. Lien-hua interroga. E nós prendemos esse cara. Vou providenciar que os advogados dele arrumem os papeis renunciando a seus direitos
de prestar qualquer queixa.
Ela olhou em seu relógio.
– O interrogatório vai começar pontualmente às 15h35, em exatamente 50 minutos a partir de agora. Nesse meio tempo, eu quero todos nessa sala levantando todas as
informações que puderem sobre o sr. Neville Lewis para que nossa interrogadora possa estar preparada. Essa reunião está encerada – e então, enquanto as pessoas levantavam-se
de suas cadeiras, Margaret acrescentou: – Agente Jiang, eu gostaria que você ficasse só por mais um momento.
73
Enquanto eu esperava do lado de fora por Lien-hua, pedi a Aina para ficar na cola do oficial Geoff Rickman.
– Eu acho que ele estava no incêndio – eu disse.
– Rickman? Mas dr. Bowers, eu já falei com ele. As impressões dele estavam na luva.
– Eu sabia! Então foi ele. Ele estava lá.
– Não – ela disse. – Ele não estava designado para o incêndio, mas ele recebeu as luvas dos dois criminalistas e levou-as para a sala de evidências. O oficial Rickman
disse que cometeu um erro e tocou a luva. Ele pediu desculpas.
Tenho certeza que sim.
– Ele pisou no sangue de Austin ontem, Aina, e as marcas de seu sapato era iguais uma das pegadas deixadas no corredor. Se ele não estava designado para o incêndio,
é possível que ele seja uma das pessoas responsáveis por causá-lo.
– Você memorizou as pegadas na fuligem? – É claro.
Ela parou por um momento.
– Bom – ela disse, – vou ver o que mais consigo descobrir.
– Obrigado.
Ela desapareceu pelo corredor e quando eu estava considerando as implicações para o caso se Rickman realmente fosse o incendiário de segunda-feira à noite, a porta
ao meu lado abriu com uma batida e Lien--hua entrou irritada no corredor.
– O que foi, Lien-hua? O que Margaret disse?
Ela virou-se, seus olhos estreitos, seus lábios apertados.
– Margaret disse que mesmo se Lewis não prestar queixa, não muda o que eu fiz. Ela disse que não pode ter uma agente em campo que não pode se controlar. Ela me disse
que depois do interrogatório vai me colocar em tarefas administrativas. Indefinidamente.
– O quê? Você não pode estar falando sério.
Lien-hua afastou-se.
– Vou me preparar para o interrogatório, Pat. Preciso de um tempo sozinha.
Margaret não estava lá na noite passada. Ela não viu como as coisas aconteceram.
Pensei de volta no Sherrod Aquarium e na agenda de alimentação dos tubarões. Imaginei quanto tempo eles levariam para devorar uma mulher magra de 47 anos.
O voo de Tessa deveria ter partido há meia hora, e durante todo o tempo que ela ficou esperando ela imaginou quanto demoraria para Patrick ligar monitorando-a mais
uma vez.
Ela imaginava que quando ele fizesse isso, ele provavelmente ia pedir desculpa para Deus e o mundo por ter mandado ela para casa.
Ótimo.
Ele deveria.
Ela pegou o celular e deixou em seu colo.
Nos últimos 15 minutos, a senhora com jeito de avó havia ido ao banheiro mais duas vezes, e Tessa se sentiu mal por ela. A mulher parecia pálida e enjoada, então
Tessa não se surpreendeu quando, novamente, após apenas alguns minutos depois de ter sentado, ela pediu a Tessa se ela não ligaria de cuidar de suas malas só mais
uma vez.
– Posso fazer algo para ajudá-la? – Tessa perguntou.
A mulher balançou a cabeça.
– É muito gentil da sua parte perguntar. Apenas as malas, querida.
Acho que algo que comi não está concordando comigo. Não estou acostumada com essa coisa de aeroporto, sabe? Volto em alguns minutos – então ela olhou preocupadamente
pela janela em direção à pista. – Você não acha que vão começar o embarque?
Tessa viu que o agente de embarque estava fielmente ganhando seu salário lendo um livro com um cara sem camisa na capa.
– Não parece. Prometo que vou buscar você se começarem.
– Você é um amor. Obrigada.
Então a mulher tomou a direção do banheiro novamente, e Tessa olhou pela janela para os grandes aviões pousados na pista.
Um instante depois, quando o telefone de Tessa tocou e ela viu que era um número desconhecido, ela pensou que era provavelmente um dos amigos de Patrick do FBI.
Então, ele está com medo de me ligar. Ha. Ela levou um momento para lembrar algumas das expressões que havia ouvido o tio Ralph usar diversas vezes e então atendeu
à ligação.
– Quem é?
– Alô, Raven? – ela pensou que era Patrick, visto que ele era o único que a chamava de Raven, mas a voz não estava certa. – É você? – a voz disse.
Oh, oh, sim.
Aquela voz.
O cara bonito do estúdio de tatuagem.
Tessa ficou nervosa. Não conseguia nem pensar.
– Riker? Como você arrumou meu número?
– Seu formulário de permissão. Você o escreveu para mim. Olá, Tessa! Às vezes você é tão profunda!
– Então – ele disse, – o que está fazendo?
Ela se endireitou na cadeira lisa de plástico do aeroporto.
– Nada. E você?
– Estou de boa – ele demorou um pouco antes de continuar. – Tentando resolver uma charada.
– Ainda não descobriu, né?
– Não, não, não o do assaltante de banco. Um outro.
– Qual?
– Um de cabelos pretos. Um com um sorriso esperto. Um com uma tatuagem de corvo.
Um arrepio atravessou seu corpo.
– É, eu ouvi falar que esses desse tipo são muito difíceis de desvendar. – Ótimo, eu adoro um desafio.
Ela se mexeu na cadeira tentando se sentir confortável, mas não era humanamente possível.
– Então, o que você descobriu até agora? Colocou alguma peça no lugar?
– Acho que preciso pesquisar um pouco mais, primeiro. Juntar mais informações... – ele então acrescentou: – talvez dar uma olhada no quebra--cabeça de novo.
Ela não tinha muita certeza se tinha gostado do jeito que ele falou aquilo. Mas talvez tivesse. Ela não desligou.
– Vou numa balada hoje à noite – ele disse. – Por que você não vem me ajudar com o quebra-cabeça?
Ela olhou para o aeroporto.
– Acho que não posso ir.
– Oh, me dispensando, é?
– Não, não é isso – era excitante, tão excitante, ter um cara, um cara mais velho interessado nela. – Acredite em mim, se eu pudesse, eu iria.
Riker demorou algum tempo para responder. E quando ele finalmente falou, pareceu para Tessa que ele estava lendo:
– Então essa ave negra sedutora transformou minha tristeza em sorriso, pelo decoro grave e severo do rosto que usava.
Ah, cara.
– “O Corvo” – ela disse. – Do Poe. Você procurou.
– Sim. Como eu disse, estou tentando resolver um quebra-cabeça.
– Então esse é o seu trecho favorito?
– Talvez. Eu teria que passar um pouco mais de tempo com a ave negra para saber. Tem outra parte que eu gosto também. Espere um pouco... Aqui: “E o balançar incerto,
triste e sedoso de cada cortina púrpura me tocava – enchia-me com terrores fantásticos nunca antes sentidos”. Eu gosto dessa frase: “terrores fantásticos nunca sentidos”.
– Sim.
– E você? Qual sua parte favorita?
Tessa não precisou nem pensar. Ela havia lido o poema pela primeira vez logo após a morte de sua mãe.
– “Avidamente ansiei pelo amanhã; a busca para encontrar em meus livros o fim para a tristeza foi vã...”
Ele esperou.
– Acabou? Não parece com o fim de uma frase.
Fim de uma frase, é?
– Por um longo tempo pareceu que fosse – Tessa viu a senhora com jeito de avó surgir do banheiro e começar a retornar cuidadosamente para seu acento. – Teremos que
ver.
Nós fazemos o que temos que fazer. Fim para a tristeza.
Riker interrompeu seus pensamentos.
– Ei, vamos, saia comigo. Eu quero ver como está sua tatuagem. Ela podia perceber que o cara estava completamente na dela.
– Bom... – ela disse. Essa vovó confia em você. Aquele casal vizinho em Denver de quem você cuida do gato, eles confiam em você. Até os outros garotos na escola
confiam em você quando você edita as coisas deles... Todo mundo confia em você.
Exceto Patrick. Não. Não ele. Não mesmo.
Uma enxurrada de advertências leves passaram pela cabeça de Tessa, mas ela a ignorou.
– Talvez eu possa me encontrar com você, afinal. Mas não essa noite. Agora. Durante a tarde.
– Cero. Onde você está?
Invente algo. Não conte a ele. Pegue um ônibus.
– No Hyatt, aquele perto do aeroporto. Encontro no lobby. Em meia hora – a mulher idosa estava a 10 metros de Tessa, que desejou que ela não precisasse usar aquela
bengala.
– No Hyatt do aeroporto – Riker disse. – Mas eu preciso de um pouco de tempo. Vamos combinar 15h45. Eu consigo chegar lá essa hora.
– Ah, e me traga um pouco mais daquele sabonete para minha tatuagem.
– Levo um frasco inteiro.
– Ok, vejo você lá.
– Não vejo a hora, Raven.
– Eu também – ela segurou o telefone em sua mão por um longo e doce momento antes de finalmente fechá-lo e colocá-lo no modo silencioso.
– Obrigada, querida – disse a mulher com cara de professora da segunda série enquanto se sentava na cadeira.
– De nada – Tessa fingiu que abaixou para mexer em sua bolsa e discretamente deslizou seu telefone para a bolsa da mulher. Para caso Patrick decidisse monitorá-la
novamente.
Então Tessa pegou sua bolsa e passou voltando pela segurança até a área de onde saíam os ônibus dos hotéis.
74
Desde que havia deixado a reunião com Margaret, aproximadamente meia hora atrás, fiquei sentado em um cubículo isolado assistindo mulheres morrendo.
Eu havia pedido cópias dos sete DVDs e, usando um dos computadores da delegacia de polícia, acessei meu laptop. Então, joguei os vídeos das mulheres no ÍCARO e usei-o
para rodá-los simultaneamente na tela, do mesmo jeito que havia feito com os vídeos das estações de trolley no dia anterior.
Qualquer um desses vídeos poderia dar a Lien-hua alguma evidência tangível para usar no interrogatório, então me forcei a assistir, apesar de ser angustiante e profundamente
perturbador.
O mais curto dos vídeos tinha cerca de três minutos, e o mais longo, mais de uma hora, então eu sabia que não teria tempo de assistir a todos eles até o fim, mas
ao rodar os vídeos com o dobro da velocidade normal, eu poderia procurar por similaridades em como foram filmados, nos ângulos de câmera, nas reações das mulheres.
Descobri que todas as mulheres estavam vestidas com o mesmo tipo de vestido. Todas estavam acorrentadas ao fundo do tanque, apesar das correntes parecerem mais curtas
do que a que foi usada em Cassandra. Todas estavam descalças. Todas estavam apavoradas. Lewis não moveu a câmera para outras partes do armazém, mas preferia filmar
do mesmo lugar. Alguns dos vídeos haviam sido editados em inúmeros pontos, do mesmo que o vídeo de Cassandra, e alguns incluíam imagens aceleradas para incluir a
medonha conclusão final, mas o que mais me chamou atenção foi a resiliência das mulheres. Todas elas estavam com os corpos virados de lado para a câmera, na direção
da porta do armazém, encarando a liberdade. Sempre olhando para a liberdade. E claro, ao final de cada um desses vídeos, todas as mulheres morreram.
Durante todo o tempo assistindo, eu estava lutando contra um turbilhão profundo de ódio e frustração com Margaret, com Tessa, comigo mesmo. Afinal, não importa o
que alguém está fazendo, tem sempre muita coisa acontecendo sob a superfície das nossas vidas. Talvez seja melhor que não possamos desligar nossos sentimentos e
nossos sonhos e nossos arrependimentos e uma parte da nossa vida quando estamos tentando nos concentrar em outra, mas certamente faria a vida ser mais fácil se pudéssemos.
Finalmente, faltando apenas 15 minutos para o interrogatório, percebi que estava procurando pelo óbvio: o tanque não havia sido construído apenas para Cassandra,
mas tinha sido usado em pelo menos sete mortes. Isso significava que ele havia estado lá desde novembro. Então seja quem fosse o dono do armazém, seria uma pessoa
com quem deveríamos falar.
Abri um navegador de Internet e comecei a procurar por livros de planimetria e registros da cidade.
Mas com o tempo passando, cheguei em uma série de ruas sem saída. A propriedade pertencia a Richardson and Kirk, Inc., uma empresa com sede em Austin, Texas.
Que era subsidiária da Briesen Industries, localizada em Detroit, Michigan.
Que pertencia a um conglomerado manufatureiro multinacional com sede na Alemanha.
Que parecia não nos ajudar nem um pouco em nada.
Pelo menos descobri que a Richardson and Kirk Inc. comprou o armazém dia 2 de novembro – sete meses após os incêndios terem começado, e nove dias antes da primeira
mulher desaparecer.
Por fim, com apenas cinco minutos faltando para começar o interrogatório, eu estava reunindo minhas anotações quando escutei os passos pesados de Ralph vindo pelo
corredor. Sua forma fez sombra na passagem da porta.
– Margaret descobriu algo no nosso cara – ele disse. – Parece coisa grande. Venha.
Encontramos Lien-hua, Margaret e o tenente Graysmith todos reunidos no escritório do tenente, e Margaret foi direto ao assunto.
– Eu não quero atrasar o interrogatório, mas temos uma nova informação que acredito ser útil.
Esperamos. Ela olhou para cada um de nós nos olhos, saboreando o poder que sua longa pausa tinha sobre a conversa.
– Segui a sugestão da agente Jiang sobre uma possível conexão entre nosso suspeito e o programa de proteção à testemunha. Nenhuma conexão. Não fiquei surpresa. Porém,
pedi à divisão de crimes cibernéticos que fizessem uma busca facial na Internet usando as fotos da prisão do sr. Neville, e 15 minutos atrás descobrimos que seu
nome não é Neville Lewis. Seu nome verdadeiro é Creighton Melice. Histórico de agressão, ataque com arma letal.
Ela deslizou uma pasta de arquivo para Lien-hua, que começou a folheá-la. Margaret continuou:
– Após pagar fiança em novembro por uma acusação de assassinato em segundo grau em Washington, ele não apareceu no julgamento, e a única testemunha foi encontra
morta mais tarde no banco de trás de um carro, amarrada, amordaçada e estrangulada. O médico forense concluiu que ela havia sido torturada antes de morrer. Sem suspeitos.
Percebi que Lien-hua colocou seu gravador digital de áudio sobre a mesa e apertou Record.
– Nosso homem, Creighton Melice, tem um problema – disse Margaret.
– Isso será importante monitorarmos através do interrogatório.
– Que problema é esse? – o tenente Graysmith perguntou.
– Ele não sente dor.
Ralph inclinou-se para frente.
– O quê?
– Isso é possível? – perguntou Graysmith.
Ela apontou para a pasta.
– É extremamente raro, mas sim. É possível. Ele tem insensibilidade congênita à dor com anidrose, ou CIPA26.. Os neurônios sensoriais que registram dor não se desenvolvem.
É tão raro que só foram registrados 98 casos nos Estados Unidos. Creighton Melice é o número 94. Aparentemente, é muito raro alguém com CIPA sobreviver até a vida
adulta. E os que conseguem raramente o fazem ilesos – fraturas ósseas, queimaduras, infecções que não são tratadas – ela consultou suas anotações novamente. – Ano
passado, na Dakota do Sul, um bebê com os dentes nascendo arrancou à dentadas dois dedos da mão antes que sua mãe percebesse. Três anos atrás, um garoto de oito
anos no Paquistão tentou lavar o rosto com água fervendo. Recentemente, um bebê de 13 meses de idade da Escócia quebrou o tornozelo e ficou correndo pela sala de
emergência com seu pé batendo de lado no chão, rindo, enquanto esperava para ser atendido por um médico...
– Ok, é suficiente – Graysmith disse. – Entendemos a situação.
Eu fiquei impressionado por Margaret e sua equipe terem conseguido encontrar tantas informações sobre Melice e sua condição em menos de 20 minutos.
Ela continuou:
– Ninguém realmente entende o que causa isso, mas o gene responsável por isso foi identificado como... – ela olhou para baixo mais uma vez.
– TrkA1. Aparentemente, mutações desse gene bloqueiam o crescimento das extremidades dos nervos.
– Ele não consegue sentir coisa nenhuma mesmo? – Graysmith perguntou. – Ou ele nasceu com apenas quatro sentidos?
Margaret folheou até a terceira página de suas anotações.
– Parece que pessoas com CIPA podem sentir diferentes texturas e pressão em suas peles, mas é só isso. E eles não demonstram mudança de pressão sanguínea, de batimentos
cardíacos ou de respiração quando expostos a estímulos de dor. Eles podem passar por cirurgias, incluindo amputações, sem anestesia.
– Insensibilidade congênita à dor com anidrose – eu murmurei. – É congênita, então as pessoas nascem com ela, e ela têm a tendência de aparecer em certas famílias.
– E anidrose significa que você não pode suar – Lien-hua acrescentou. – Então, a condição deve desabilitar a capacidade do corpo de sentir temperatura.
– Está correta, agente Jiang, – disse Margaret. Parecia que doía nela dizer isso, afirmar que Lien-hua estava certa. – Pessoas com CIPA não sentem estímulos quentes
ou frios. Então, não que você fosse fazer isso... – ela parou... parou... parou... e finalmente concluiu – mas não seria vantagem nenhuma ameaçar o sr. Melice durante
seu interrogatório. O homem que você está prestes a interrogar nunca sentiu dor em sua vida toda.
– Apenas causou – Ralph murmurou.
– E isso quer dizer que ele não sentiu nada quando Lien-hua o chutou – eu disse. Enquanto considerava qual o significado, se realmente tivesse algum, disso tudo,
a porta se abriu e Dunn se inclinou para a sala. – Ele está pronto.
Lien-hua pegou seu bloco de anotações e seu gravador digital de voz.
– Eu também.
75
Pensei que antes de Lien-hua começar o interrogatório, ela deveria saber que eu havia encontrado o dispositivo. Eu não sabia que o assunto ia surgir, mas queria
que ela estivesse armada com o máximo de informação possível. Então, enquanto Lien-hua e eu seguíamos o detetive Dunn até a sala de interrogatório, diminuí meu passo
um pouco até ter certeza que ele não pudesse me ouvir, e então, sussurrando, contei a ela sobre o dispositivo.
– Eu não sei o que ele faz, mas está em um lugar seguro – eu disse. – Ainda está na sala de evidência. Podemos cuidar disso mais tarde. Eu só queria que você soubesse.
– Ótimo. Obrigada.
Assim que entramos no elevador, Dunn disse:
– Deixei a sala preparada para você. Vamos interrogá-lo na sala 411.
– Na verdade, não. Não vamos interrogá-lo – Lien-hua disse. – Eu irei.
– Eu só vou me sentar no fundo e observar...
– Vou entrar sozinha – Lien-hua disse.
Dunn cruzou seus braços grossos como sucuris contra o peito.
– O acordo era que podia observar.
– Você pode fazer isso de trás do espelho falso. Vou entrar sozinha.
– Na noite passada você atacou o homem – disse Dunn.
– Se você está preocupado com a segurança dele, posso garantir a você que ele vai estar em ótima forma quando você o enviar para os prisioneiros que, como você mesmo
disse, “estão sempre ansiosos para ter novos colegas para brincar”.
A porta do elevador abriu; ela deu um passo à frente. Dunn recusou--se a dar passagem. Eu estava pronto para agir, mas Lien-hua o mediu:
– Talvez você tenha entendido mal, detetive. Eu não estou pedindo sua permissão. Estou pedindo sua cooperação. Se eu a tiver, você pode ficar e assistir. Se não,
vou entrar em contato com o tenente Graysmith para remover você desse caso. O que você prefere?
Ele cerrou os dentes por um momento e então finalmente cedeu.
– Tudo bem. Certo. Mas não me importa se você é uma agente do FBI ou o presidente dos Estados Unidos, se as coisa ficarem ruins eu vou entrar.
Ele bateu os pés indo para a sala de observação, e eu fiquei com Lien--hua por um momento. Eu queria entrar na sala com ela, ficar ao lado dela, protegê-la. Talvez
eu seja antiquado desse jeito, mas eu queria matar um dragão por ela, mesmo sabendo que ela podia matar dragões tão bem quanto qualquer um.
– Você tem certeza que não quer ninguém lá dentro com você?
– Está tudo bem – uma fúria seca havia tomado sua voz. Eu sabia que era dirigida a mim.
– É por causa das sete mulheres?
Lien-hua tem um rosto fino e cativante, mas agora os músculos em sua mandíbula estavam contraídos, trazendo uma intensidade a ela que eu nunca havia visto antes.
– Ele filmou suas mortes.
– Eu sei.
– Colocou-as na Internet.
– É por isso que...
– Vou ficar bem. Sério.
– Eu só queria...
– Chega, Patrick! – ela deu um passo para trás, seus braços longos tensos.
– Chega. Por favor. Às vezes, você não sabe quando parar. Você passa dos limites. Isso cria paredes entre nós, ok? Não faça isso. Não comigo. Eu vou ficar bem. Agora,
por favor, me dê licença – antes que eu pudesse responder, ela passou por mim e me deixou rodando no turbilhão de suas palavras.
Eu achava que deveria me desculpar, mas eu não sabia se tinha feito algo de errado.
No período de apenas algumas horas eu tinha conseguido fazer tanto Tessa quanto Lien-hua, as duas mulheres que mais importavam para mim, virarem as costas com raiva
de mim e irem embora.
Finalmente, quando eu percebi que não iria pedir desculpas e nem ir atrás dela, me encaminhei para juntar-me ao detetive Dunn na sala de observação no fim do corredor.
Tessa não tinha um espelho, então estava usando o reflexo curvo de uma lâmpada no lobby do Hyatt para retocar sua sombra. Riker chegaria em alguns minutos e ela
queria ter certeza que estava com boa aparência...
– Oi – Riker apareceu, surpreendendo-a. Ele deve ter entrado por uma das portas laterais ao invés da porta giratória na entrada principal do hotel.
Ela reparou que ele estava usando jeans e uma camisa de algodão para fora da calça. Ela tirou do rosto uma mecha de cabelos que havia caído em frente ao seu olho
e guardou a maquiagem.
– Oi.
Ele sorria e segurava um frasco inteiro de sabonete antibacteriano enquanto ela se levantava.
– Isso aqui está bom?
– Eu realmente espero que sim – ela aceitou o frasco, guardou em sua bolsa. Ele mal cabia lá.
Ele olhava para ela e sorria alegremente.
– Então, o corvo está pronto para voar?
– Posso dizer que sim.
Eles andaram juntos em direção à porta.
– Minha moto está lá atrás. Não tem estacionamento para motos. Uma moto. Isso era muito legal.
– Qual moto você tem?
– Uma Honda... não é uma Harley, mas elas duram para sempre – ele abriu a porta para ela. – Então, você tem que me dizer. Aquele poema do Poe, é por isso que te
chamam de Raven?
Uma chama branca alimentada por arrependimento e raiva e um tipo estranho de saudade queimou dentro dela.
– Costumava ser um tipo de apelido.
– Seus amigos da faculdade que inventaram?
Agora um rubor apoderou-se de seu rosto. Então ele realmente acreditava que ela tinha 18. Ele pensava que eu estava na faculdade!
– Não. Alguém em quem eu confiava.
Ele a conduziu até sua moto.
– Ai. Só podia ser um cara. Típico dos perdedores na SDSU27.. Foi lá que ele entrou?
– Eu estudo em Denver – era verdade, só não era a verdade completa.
– Estou apenas visitando San Diego.
– Que legal – Riker guardou a bolsa de Tessa, subiu em sua moto e ela subiu atrás dele. – Então – ele disse, – pronta pra passear?
– Estou pronta pra passear – Tessa colocou seus braços com firmeza na cintura dele, ele deu a partida na moto e se distanciaram do meio-fio.
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No decorrer dos anos, Lien-hua havia visto algumas coisas horríveis, impensáveis. E ela sempre havia mantido a calma, mantido sua sanidade intacta. Mas hoje ela
não tinha certeza se conseguiria.
Desde que soube dos DVDs ela pensava sobre o acidente que ninguém na família dela falava a respeito.
Inocência ferida.
Mantenha o foco, Lien-hua. Não se distraia.
O arranjo nunca mais seria o mesma.
Ela parou, encostou-se contra a parede logo antes da curva para a sala de interrogatório e tentou se recompor.
Por que Pat não podia parar de tentar protegê-la?
Ok. Certo. Era lisonjeiro, mas estava começando a alterar sua perspectiva, a ocultar seu objetivo. Ela precisava se concentrar e não deixar seus sentimentos por
ele distraí-la.
Eu não preciso de proteção. Eu posso fazer isso sozinha.
Ela levou um momento para tirar Pat da cabeça e colocar seus pensamentos em ordem. Então virou a curva e sinalizou para os dois policiais de guarda fora da sala
de interrogatório.
Eles destrancaram a porta e ela entrou.
Eu abri a porta da sala de observação.
Talvez eu estivesse bravo com Lien-hua, talvez com Tessa, talvez comigo mesmo. Não dava pra saber. Eu só sabia que nunca deveria ter me permitido sentir algo por
Lien-hua. Esse era o problema. Isso fazia ficar mais difícil ser objetivo. Mais difícil se afastar e ver as coisas com mais clareza.
O detetive Dunn já estava sentado à mesa, de frente para o espelho falso, ocupado com uma pilha de anotações e pastas de arquivo.
Eu não estava com paciência para falar com ele, então só olhei para Creighton Melice pelo vidro. Lien-hua havia acabado de entrar na sala e Melice estava olhando
friamente para ela. Seus olhos vidrados acompanhando cada passo dela. Eu podia vê-lo, mas ele não podia me ver.
Todo mundo sabe o que acontece com os espelhos falsos – aquele espelho grande na parede é na verdade uma janela para o pessoal da polícia, mas ainda assim, é surpreendentemente
efetivo em fazer com que os suspeitos falem. As pessoas tendem a esquecer que outras estão observando quando estão ocupadas observando elas mesmas.
Melice estava sentado, seus tornozelos acorrentados juntos, seus pulsos algemados e presos à mesa por uma corrente curta.
Uma coleção de mapas como fotos de cenas de crime estava pendurada na parede à esquerda de Lien-hua. Ela pegou uma cadeira no canto da sala e a arrastou até a mesa
para que pudesse sentar encarando Melice.
O detetive Dunn levantou-se abruptamente, andou até o espelho falso.
– Preciso dizer que não estou me sentindo confortável com isso.
– A agente Jiang sabe se cuidar.
– Não estou falando disso.
– Ah – andei até ele. Apoiei meu braço contra o vidro. – O que exatamente você quer dizer?
Ele olhou para mim.
– Ela é uma mulher.
– Ah, cara. Ele estava forçando muito a barra. Muito mesmo.
– Sim, ela é, detetive. E é melhor você tomar cuidado com suas próximas palavras. Estou avisando como amigo porque eu sou um cara legal, mas tenho meus limites.
Agora, por favor, prossiga.
Ele gesticulou em direção à sala de interrogatório.
– Esse cara, Melice, ele manipula mulheres. As seduz, as tortura, as mata. Ele vai se sentir mais poderoso, mais no controle, com ela lá dentro. Eu não quero ele
brincando com ela.
– Você não conhece a agente Jiang.
– Você está certo – ele disse. – Eu não conheço. E é com isso que estou preocupado.
Lien-hua sentou-se do outro lado do vidro, pegou seu bloco de anotações e começou o interrogatório.
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Buracos negros.
Foi nisso que Lien-hua pensou quando olhou por cima da mesa para as profundezas negras dos olhos de Creighton Melice. Ela procurou neles uma indicação para seus
sentimentos, seu estado mental, mas eles continuaram sem emoção e neutros. Ao olhar para ele, ela reparou que ele tinha um curativo de gaze enrolado em sua mão esquerda.
Possivelmente ele havia se lesionado na noite anterior, em sua luta com Ralph. O médico que examinou suas costelas mais cedo deve ter tratado de sua mão.
Tudo que acontecia na sala era gravado por uma câmera de vídeo do outro lado do espelho falso, mas Lien-hua descobriu com os anos que a presença visível de um dispositivo
de gravação ajudava a abalar as pessoas. Às vezes ela deixava seu gravador para trás por causa disso. Hoje, ela o colocou diretamente à sua frente. Bem fora do alcance
dele.
Melice olhou para o gravador digital repousado entre eles na mesa, e então olhou de volta para ela. Ele sorria. Ainda não havia falado.
Você está aqui por um motivo, Lien-hua. Para descobrir o que ele sabe sobre os assassinatos. Mantenha-se nos trilhos.
Ela pressionou Record.
– Sou a agente-especial Jiang, do FBI.
– Eu sei quem é você, Lien-hua. Eu requisitei você.
– Bem, ótimo, então podemos economizar tempo com advogados e apresentações. Porque eu também sei quem você é.
– Disso eu duvido – ele sorriu discretamente. – Como você provavelmente ouviu falar, eu decidi não prestar queixa contra você por me agredir. Alguns centímetros
para o lado e você teria me quebrado algumas costelas, talvez perfurado meu pulmão. Não foi um chute ruim para uma garota – a voz dele parecia escorrer de sua boca,
como se estivesse saindo de uma ferida aberta para Lien-hua.
Ela o ignorou e falou para o gravador digital.
– A data é 18 de fevereiro de 2009. Hora: 15h53. Estou interrogando Neville Worchester Lewis. Sr. Lewis, eu gostaria de confirmar que você está aqui sob sua própria
vontade, que você não sofreu nenhuma pressão ou coerção de nenhuma maneira, e que você escolheu não ter conselho legal presente. Todas essas afirmações são verdadeiras?
– São verdadeiras. Leram para mim meus direitos, e eu sei que qualquer coisa que eu disser pode e será usada, blá, blá, blá... toda essa porcaria. Vamos começar
logo.
Lien-hua encostou-se na cadeira.
– Ela vai ficar bem, Neville. Encontramos ela a tempo. Você fracassou. Ele fez cara de confuso.
– Eu fracassei? Ah. Entendo. Bem, eu não tenho certeza do que você quer dizer com isso, agente-especial Jiang. Meus advogados me contaram essa manhã que sete mulheres
foram mortas. Que trágico. Elas foram todas encontradas, então? Os corpos, eu digo – ele parou, esperou, mas ela se recusou a responder. – Agente Jiang, um jogador
de beisebol que rebate 35% das bolas lançadas é um fenômeno. Se eu realmente acertei sete em oito tentativas rebatendo, eu teria uma média de rebatimento de 87,5%;
sem contar as rebatidas que conseguia na segunda divisão. Eu não seria um fracasso, eu seria uma das maiores estrelas do campeonato.
Eu queria arrebentar esse cara, acabar com ele agora mesmo.
– Nós precisamos descobrir como ele sabe o nome dela – eu disse, pensando alto. – Ver se ele tem alguma conexão com o Bureau.
– Me desculpe – disse Dunn. – Estou aqui apenas para observar. Frustração.
Aumentando, aumentando.
Observei através do vidro. Lien-hua não parecia ter sido afetada em nada com os comentários sobre média de rebatimento de Creighton Melice. Ela apenas anotou algo
em seu bloco de anotações, virou-o para que ele não pudesse ver o que ela tinha escrito e então se levantou.
A imagem de Cassandra no tanque surgiu na cabeça de Lien-hua, mas ela a embrulhou com a capa do seu profissionalismo, cruzou os braços e encostou contra a parede.
– Neville, diga-me o que você sabe sobre Cassandra Lillo. Silêncio.
– Onde você a conheceu?
Silêncio.
– Você gostaria de entregar seu cúmplice agora, ou esperar até nós o pegarmos e ele colocar toda a culpa em você?
Silêncio novamente.
– Você é Shade, Neville? Ou Shade é outra pessoa?
Ele sorriu.
– Essa eu vou responder.
Ela esperou.
Cada sílaba era uma lenta batida:
– Eu não sei quem é Shade.
Lien-hua aproximou-se da mesa e olhou diretamente em seus olhos congelantes. – Ah, eu acho que você sabe.
Eu vi Lien-hua andar até a mesa, apertar Pause no gravador digital e então se inclinar para perto dele e dizer:
– Deixe-me explicar uma coisa para você, Neville. Só para esclarecer. Eu conheço esse jogo melhor que você e, portanto, você não vai vencer. Você não está mais no
controle. Eu estou. E eu sou uma mulher.
Oh, bela fala, Lien-hua.
É disso que estou falando.
Percebi que a bochecha esquerda de Melice tremeu. Ele não pode suportar a ideia de uma mulher tendo controle sobre ele. Lindo.
Ela baixou o dedo e apertou Record de novo.
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Lien-hua viu Creighton Melice forçar um sorriso, mas o escárnio escondia-se sob suas palavras.
– Boa jogada, agente Jiang. Boa jogada. Eles ensinaram isso para você na Academia? Jogadas clássicas de poder e técnicas de intimidação? Deixe--me adivinhar: faça
o que for possível para manter o suspeito falando; ameace-o, jogue com seu ego, apazigue, finja interesse, torne-se o que ele mais desejar para ganhar sua confiança,
um amigo, um confidente, um admirador, uma figura materna, uma sedutora... como estou indo?
Ela deixou o brilho de um sorriso passar por seu rosto.
– Acho que fizemos o mesmo curso.
Movimento, contramovimento.
Um curto silêncio de Melice. Sim, ela havia acertado algo ali. Talvez ele tenha feito aulas de ciência criminal. Talvez ele fosse da polícia. Fiz uma anotação para
checar isso depois.
Ela virou seu bloco de anotações para cima, escreveu alguma coisa. Eu não conseguia ver o que ela estava escrevendo, e nem ela mesma, visto que ela mantinha os olhos
fixados em Melice o tempo todo.
Percebi ele olhando além dela, para as fotos das cenas de crime que Dunn havia pendurado na parede. Eu não gosto desses tipos de artifícios.
A ideia é fazer o suspeito pensar que as autoridades têm montanhas de evidências contra ele. O problema é que, às vezes, quando pessoas inocentes veem o conjunto
de evidências, elas ficam tão nervosas que começam a confessar coisas que nunca fizeram. O medo com frequência leva as pessoas a fazerem e dizerem coisas das quais
vão se arrepender depois.
Melice pareceu ter lido minha mente através do vidro.
– Essas fotos são para me deixar nervoso, agente Jiang? Para que eu confesse? Desculpe dizer, mas não estou interessado em confessar nenhum dos meus pecados hoje.
Eu não sou católico... – ele deixou um sorriso malicioso brincar em seus lábios. – E você não parece um padre.
– Você costuma confessar seus pecados, Neville?
– Apenas para Deus.
– Então, você acredita em Deus?
– Sim.
– E acredita em pecado?
Uma pausa.
– Você sabe o que o Senhor disse para Caim, agente Jiang?
– O que o Senhor disse?
– O Senhor disse a ele que o pecado estava batendo à porta dele. Que ele desejava possuir Caim, mas Caim deveria dominá-lo.
– E ele fez isso?
– Não. O pecado dominou Caim. O primogênito de nossa raça matou o segundo. Um belo legado.
Sem perder a chance, Lien-hua disse:
– É isso que aconteceu com você, Neville? O pecado dominou você?
Foi por isso que você matou as mulheres? – ele se recusou a responder. Ela esperou, esperou, e finalmente disse: – Neville, porque você não quis um advogado aqui
hoje?
– Talvez tenha algo que eu queira contar para você que eu não queira que meus advogados saibam.
– Estou ouvindo.
– Chegue mais perto.
Ela nem hesitou. Andou até ele, colocou as duas mãos sobre a mesa e se inclinou de modo que seu ouvido ficava ao lado dos lábios dele.
Dunn levantou-se e andou até o espelho falso.
– O que ela está fazendo?
– Ela está fazendo ele falar É para isso que mandamos ela lá pra dentro.
Lien-hua podia sentir o cheiro ácido do hálito de Melice.
– Afogamento – ele disse, sua voz rouca e baixa – é um jeito terrível para se morrer, você não acha, agente Jiang?
Os pensamentos dela saíram dali.
A imagem de Cassandra no tanque.
O tecido daquele vestido de festa vermelho flutuando em torno dela como uma estranha fumaça vermelha, envolvendo-a com uma estranha mistura de beleza e morte.
Uma roupa de alta costura e elegante.
Cassandra engasgando com a água. Lutando para respirar.
E então não era mais o rosto de Cassandra, mas o dela. Olhando para cima, pálido e sem vida dentro d’água. Um reflexo morto dela mesma.
Lien-hua espantou o pensamento para longe. Espantou para longe.
– É por esse motivo que você faz isso, Neville? – ela sussurrou. – Porque você acha que afogamento é um jeito terrível de morrer?
Eles estavam cochichando um para o outro. Eu não conseguia ouvir o que estavam dizendo, mas imaginei que perguntaria para Lien-hua sobre isso depois. Eles conversaram
por alguns minutos e então Melice sorriu e Lien-hua se afastou.
– Eu tenho uma ideia – ele disse. – Você está interessada no modo que um assassino pensa. Por que não fazemos um pequeno jogo? Você me faz perguntas sobre os assassinatos
e eu te conto o que eu acho que deve ter passado pela cabeça do assassino. Tudo hipoteticamente, é claro; vamos dizer que vou dar os meus melhores palpites.
Eu já havia visto isso antes. Não é incomum para assassinos confessarem em terceira pessoa, recontando os eventos como se eles fossem observadores do crime, e não
participantes. Distanciar-se verbalmente do crime parecia facilitar para eles confessarem.
Então Melice olhou diretamente para o espelho falso.
– O que todos vocês acham disso? Parece divertido?
Ele sabia que estávamos assistindo e ele parecia gostar da atenção.
Esse cara não se abalaria facilmente.
– Tudo bem, Neville – ela disse, – me conte como é. Eu já conversei com dúzias de assassinos. Vamos ver se você consegue fazer tão bem quanto eles, se consegue articular
a experiência de modo eloquente o suficiente para que eu sinta o que um assassino sente.
Um lento sorriso cresceu no rosto de Melice. Ele pegou um cigarro e começou a acariciá-lo em suas mãos enfaixadas. Eu não teria dado a ele o maço, mas o detetive
Dunn aparentemente tinha uma estratégia diferente.
– Oh, eu acho que você me interpretou mal – ele massageou a mesa com sua mão enfaixada. – Eu não quero que você se sinta como o assassino. Quero que você se sinta
como a vítima.
– Vou fazer o meu melhor.
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Lien-hua esperou enquanto Melice lambia seu cigarro. Ele não tinha como acendê-lo, e ela não iria se oferecer para isso.
Faça-o falar sobre o que ele gosta, e ele vai lhe contar o que fez.
– Então – ela disse – me conte. O assassino. O que ele mais gosta? Vamos começar com isso.
– Eu apostaria que, mais do que qualquer coisa, o assassino gosta dos momentos que levam até o final. Assistindo suas vítimas. Seguindo-as. Espreitando-as, e então
agindo como se fosse um encontro por acaso quando eles finalmente se conhecem. Para ele, isso seria muito divertido.
– Como ele as escolhe?
– Ele prefere quando elas o escolhem.
O detetive Dunn e eu escutamos enquanto Melice contava suas histórias “hipotéticas” elaboradas sobre um assassino estar no lugar certo e na hora certa para encontrar
novas “namoradas”.
Eu continuava dizendo a mim mesmo que ele era inocente até que fosse provado o contrário, mas era difícil de acreditar. Tudo que ele disse era consistente com as
confissões de outros assassinos predadores que eu havia encontrado. Eles estão sempre à procura de potenciais vítimas, sempre andando, vendo quem eles podem atrair.
Enquanto ele falava eu não pude deixar de perceber que Melice estava sendo cuidadoso em deixar suas observações vagas o suficiente para serem interpretadas de jeitos
diferentes. Ele na verdade não confessava nada, mas formulava tudo em termos do que um assassino poderia pensar ou poderia fazer. Ele era bom nesse jogo.
Mas eu estava confiando no fato de Lien-hua ser melhor.
Ouvi a porta atrás de mim abrir e reconheci os passos pesados de Ralph.
– O que nós sabemos? – mantive meus olhos colados em Lien-hua e Melice.
Escutei Ralph jogar uma pilha de papéis sobre a mesa ao meu lado.
– Boas e más notícias. A caligrafia na parede do armazém não bate com a de Melice. Com base no estilo dele escrever, os analistas dizem que ele não teria feito aquelas
formas se tivesse pintado as palavras.
– Essa é a notícia boa ou a má?
– Ambas. Boa; isso confirma que houve outro sequestrador. Má; o segundo cara ainda está solto. Agora, os relatórios dos criminalistas. Você não vai gostar disso.
Os canos de metal, o computador na sala dos fundos, as câmeras, o lugar inteiro está limpo. Não há impressões digitais desse psicopata, apenas algumas parciais no
teclado, mas não são de Melice. Nós as processamos com o AFIS e não conseguimos nada.
Por que aquilo não me surpreendia?
– Os criminalistas estão no apartamento dele, agora – Ralph continuou. – Mas por enquanto, zero.
Um pensamento veio à minha cabeça. A ideia parecia completamente improvável mas ainda assim, possível.
– Talvez não tenha sido ele – eu disse suavemente.
– O quê? – disse Dunn.
– Talvez ele estivesse apenas passando, ouviu os tiros que Lien-hua e eu demos, e veio correndo para ver se alguém tinha se machucado
– Você está brincando, né? – ele disse.
– Vamos ter cuidado com o que presumimos – eu falei. – As coisas não são sempre o que parecem.
– Eu não caio nessa – Dunn disse. – Melice disse a Lien-hua que sua média era 87,5% e agora ele está contando a ela tudo sobre como é matar mulheres.
– Estou com Dunn nessa, Pat – disse Ralph. – Acho que esse é o nosso homem. Mas vamos ver o que mais os criminalistas vão encontrar.
Meu telefone tremeu e, quando verifiquei, vi uma mensagem de texto da companhia aérea notificando que o voo de Tessa estava atrasado. Como eu havia comprado a passagem,
eles estavam usando o meu número de telefone ao invés do dela. O voo dela deveria ter partido há 90 minutos e só agora eles estavam me mandando a mensagem. Muito
útil.
Balancei minha cabeça. Então deixei uma rápida mensagem de voz para meus pais, avisando a eles para olharem os horários dos voos antes de sair para o aeroporto,
e então, quando estava guardando meu telefone novamente, percebi que Melice estava coçando uma ferida úmida debaixo do curativo em sua mão esquerda.
– Vocês dois viram isso? – perguntei para Dunn.
– O quê? – perguntou Ralph.
– Por que você acha que ele está cutucando a mão daquele jeito? Dunn fingiu que estava pensando seriamente naquilo, mas seu sarcasmo era evidente.
– Não sei... vamos ver... porque está coçando?
– Estou ficando cansado do seu comportamento, detetive – eu disse, e estava pronto para dizer muito mais, mas antes que eu pudesse, Ralph me perguntou:
– O que você esta achando, Pat? Sobre a coceira.
– Margaret disse que pessoas com CIPA só podem sentir pressão e texturas, certo?
– Isso mesmo – Ralph disse.
– Bom, eles sentem coceira?
Ele ficou em silêncio por um momento.
– Eu não sei – ele olhou para Melice através do espelho. – Parece que sim.
– Precisamos descobrir – eu disse, me inclinando em direção ao vidro, quero saber com certeza por que ele está coçando aquela mão.
– O que há de errado com você, Bowers? – rosnou Dunn. – Talvez isso... talvez aquilo... não podemos ter certeza sobre isso... você tem toneladas de evidências na
sua cara, mas você questiona tudo.
– Obrigado – eu disse.
Ralph deu a volta na mesa.
– Vou arrumar alguém para confirmar essa coisa da coceira. Olhei através do vidro.
– Estarei bem aqui.
Lien-hua sentiu o toque do suor morno debaixo do braço. O quarto estava muito quente. A polícia provavelmente deve ter aumentado o aquecedor para fazer Melice se
sentir desconfortável, sem nem perceber que não sentia nem calor nem frio. Ela podia sentir gotículas de umidade quente se formando logo acima de suas sobrancelhas,
e ela esperava que ele não visse isso como um sinal de que ele estava ganhando dela.
– E então – Melice continuou, – após ele encontrar a moça, ele arruma uma maneira de ficar sozinho com ela. Talvez um café, talvez um jantar, talvez um quarto de
hotel. Quem sabe? E então acontece, ou não, e ele está preparado para as duas coisas.
– Como ele as coloca em seu carro?
– Talvez ele apenas as convide, talvez ele as force. Eu diria que ele gosta mais quando as mulheres entram por conta própria.
Flores. Ela pensou em flores completamente desabrochadas.
– Então é culpa dela se ela se machucar?
Pétalas, danificadas e murchas. Repousando secas e frágeis na mesa.
– Você vê? Seu problema, agente Jiang, é que você está pensando como uma criadora de perfil e não como uma assassina. Não tem a ver com essas coisas, falha ou culpa
ou pena. Tem a ver com controle. Tudo tem a ver com controle – ele rolou o cigarro entre os dedos. – Como você acha que um punhado de sequestradores tomou aqueles
aviões cheios de gente no 11 de setembro?
– Eles ameaçaram as pessoas à bordo. Ameaçaram machucá-las se eles não colaborassem – ela sabia que essa não era a razão, claro, mas ela queria ver como ele responderia.
– Aí. Viu? Você não entende as pessoas tão bem quanto você acha. Os sequestradores não ameaçaram os passageiros. Eles os tranquilizaram.
– Como você sabe?
– Porque eles foram bem-sucedidos – ele parou por tempo suficiente para coçar sua mão. – O jeito de controlar os apavorados é dar a eles esperança. Então é isso
que o seu assassino faria. Meu pai esteve no exército, e um de seus instrutores de treinamento costumava dizer “Sempre deixe uma rota de fuga para seu inimigo. Nunca
o encurrale. Até um rato vai lutar bravamente quando estiver preso em um canto.”
Ele riu disso; talvez estivesse caçoando do que havia dito. Era difícil dizer.
– Seu assassino saberia disso – Melice continuou. – Ele saberia que dar às pessoas uma rota de fuga é o melhor jeito de pegá-las de vez. Conduza-os lentamente, deixando
como isca a esperança, até que no final eles estejam numa posição em que vão achar que o canto é um lugar seguro. Então, você tira toda a esperança. Para o assassino,
esse momento seria o melhor momento de todos. Assim como foi para aqueles sequestradores quando eles acertaram os prédios.
Enquanto Melice falava em usar a esperança como isca para as pessoas, eu podia ver que ele havia baixado um pouco sua guarda. Lien-hua provavelmente sabia que isso
aconteceria. Ela conseguiu que ele falasse sobre as coisas que mais gosta – sequestrar, dominar e matar jovens. Ele estava se abrindo. Aproveitando a atenção dos
holofotes.
Ouvi Dunn folheando alguns papéis.
– O pai dele não esteve no exército,– ele disse. – Ele está enganando ela.
– Não – eu disse. – Eu acho que ela está enganando ele.
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Por mais nojo que Melice havia feito ela sentir, Lien-hua não podia evitar de concordar com a maioria do que ele falou. Ele entendia as pessoas, seus motivos, como
rastejar para além de suas defesas e se aproveitas delas. Após menos de uma hora sozinha com ele, ela podia ver que ele era um expert no assunto.
– Então – Melice continuou – a mulher faz a escolha, e então ele pega essa escolha e torce em torno dela, dominando-a com os próprios erros dela. Ver o olhar no
rosto de uma mulher quando ela percebe que não pode escapar, nunca irá escapar, e que ela poderia ter evitado isso, mas que ela mesma causou tudo aquilo para ela
por confiar em alguém que ela não deveria nunca ter confiado... bom, esse é o momento mais delicioso de todos – e então ele acrescentou – ... para um assassino.
Lien-hua tentou se distanciar das palavras congelantes de Melice. Tentou voltar para a objetividade clínica, mas ela era um ser humano. Ela era uma mulher, assim
como as mulheres que ele havia atraído, torturado e assassinado. E pelo trabalho dela como criadora de perfis, sempre tentando ver o mundo através dos olhos dos
outros, ela podia imaginar com clareza perturbadora como deve ter sido para aquelas mulheres. Ela sentiu como se aquilo estivesse acontecendo com ela: a profunda
e última morte da esperança enquanto as algemas frias se fechavam em torno de seus pulsos, as cordas apertadas em torno de seus tornozelos, a mordaça abafando seus
gritos.
– E então, o momento em que você percebe que não vai conseguir escapar. Que não importa o quanto você lute, nunca conseguirá quebrar aquelas correntes, escapar dessas
amarras, manter a cabeça acima do nível da água.
Ela sentiu isso tudo.
Experimentou isso tudo.
Impotente. Você pode gritar. Sim. E você grita. Mas ninguém além do seu assassino vai ouvir você novamente. E até seus gritos vão só dar mais prazer a ele. Porque
a essa hora, ninguém vai chegar para te salvar.
O vaso está caindo.
Despedaçando-se no chão.
Ela sentiu sua garganta travar. Ela estremeceu. Torceu para que Melice não tivesse visto.
Mas o breve brilho de satisfação em seus olhos disseram que ele havia visto. Ele juntou suas mãos como num aplauso em câmera lenta.
– Sim – ele disse. – Você entendeu. Exatamente. Assim mesmo. Para ele, esse momento é melhor do que aquele em que ela para de ter espasmos. Porque no final, depois
que tudo acabar, aquela expressão nos olhos dela quando ela percebe que não tem saída, o momento quando a esperança morre para sempre, é a esse momento que ele se
segura e saboreia. É isso que o faz voltar e fazer de novo. Essa expressão nos olhos dela – ele lambeu seus lábios e disse as palavras seguintes de um jeito doce,
como um amante cochichando através de um travesseiro. – Esta expressão em seus olhos, agente Jiang. Exatamente esta expressão nos seus olhos.
Lien-hua deixou um momento passar, utilizou-o para enterrar seus pensamentos, seus sentimentos.
– Então, essa é a sua confissão?
– Essa é a minha conjectura – seus olhos deslizaram para o relógio na parede. – E agora eu gostaria de voltar para minha cela.
Lien-hua sentiu a lesão que havia feito na perna ontem tensionar-se. Ela mudou sua perna de apoio para aliviar a pressão, tremeu um pouco, e então encostou-se contra
a parede.
– Sua mão, deve estar doendo muito – ela apontou para os curativos sujos de sangue.
– Sim. E dói onde você me chutou.
– Não, não dói.
– É claro que dói.
– Não minta para mim, Creighton.
Uma piscada a mais.
– Meu nome é Neville.
– Seu nome é Creighton Prescott Melice. Nascido em 9 de setembro de 1977 de Leonard e Isabelle Melice em Wichita, Kansas. Você frequentou a Escola Elementar Carver
George Washington. Tem dois irmãos mais novos chamados Trenton e Isaac. Você começou a frequentar a Uni-versity of Michigan em 1995. Você quer que eu continue? Disse
logo que entrei aqui que eu sabia quem você era.
Silêncio. Seus olhos se estreitando.
– Você matou a testemunha ocular em Washington também? Torturou--a e então largou o corpo dela no banco de trás daquele carro?
Em uma explosão repentina de ódio, Melice deu um puxão na corrente que prendia sua algema à mesa. Ela ressoou, mas continuou presa.
– Você não tem ideia de com que está lidando aqui.
– Então me diga, com o que estou lidando, Creighton? Ele se recusou a olhar para ela.
– Está com você, não está? – ela perguntou.
– O quê?
– O dispositivo. Você sabe. Hunter deu a você, não deu? Sua boca se encolheu a uma fina linha.
– Há um minuto eu vi você mudar o apoio da perna, agente Jiang. Pressão nos quadris, talvez? Ou talvez relaxando os músculos da sua perna para ficar mais confortável?
Isso não acontece comigo. Sem dores musculares, sem desconforto, sem tensão nas minhas juntas. Nada disso. Nunca estive confortável nem desconfortável em toda minha
vida. Eu nunca gritei. Nunca chorei. Nunca tive calor ou frio. Apenas existi.
Um fogo surgiu em seus olhos, e aumentou enquanto ele continuou:
– Eles contaram sobre minha irmã Mirabelle? Ou ainda não descobriram sobre isso? Ela tinha CIPA também. E quando ela tinha 11 anos ela acordou paralisada. Veja só,
nossos corpos não nos dizem quando nos mover. Por isso não rolamos da cama quando dormimos. Eu tive que treinar para fazer isso. Mirabelle morreu naquela mesma cama
dois anos depois. Como você sabe, a maioria de nós morre jovem. Eu acho que sou um dos sortudos. Se você escolher olhar para isso desse modo.
Lien-hua percebeu seu motivo. Agarrou-se a ele.
– Você sonha com dor, não é Creighton? Aposto que sim. Aposto que você fantasia sobre a dor, sobre finalmente ser completamente humano.
Ótimo, Lien-hua.
Muito bom.
O lábio de Melice estremeceu, seus olhos deslocaram-se. Ele não respondeu.
– O que ela está tentando fazer lá dentro? – Dunn perguntou.
– O trabalho dela.
A voz de Melice ficou tensa.
– É claro que sonho com dor. Toda a minha vida eu sonhei com dor, torcendo para sentir essa coisa que faz as pessoas chorarem e gritarem e implorarem por piedade.
Eu vivo somente para isso: pela esperança de um dia sofrer antes de morrer.
– A esperança como isca – ela disse. – Você é o ratinho no canto, não é, Creighton? Shade colocou você lá, não foi? E um dia ele vai levar essa esperança embora.
Melice esticou seu braço o máximo que sua algema permitiu.
– Me machuque. Se conseguir arrumar um jeito de fazer isso, me deixe sentir o que é sofrer. Sim, eu sonho com dor. Algumas pessoas chamam CIPA de inferno indolor
– então ele acrescentou. – Quem não sonharia em fugir disso?
Ela não se moveu.
– Bem, se você não consegue pensar em um jeito – ele disse, – que tal se eu tentar?
E então, Creighton Melice levantou sua mão esquerda até sua boca, cerrou os dentes em torno de seu mindinho e arrancou-o com uma mordida.
81
Mandei minha cadeira para o chão quando corri para a porta, empurrando Dunn para o corredor.
Então, dei a volta até a sala 411.
Dois policiais estavam de guarda fora da sala de interrogatório.
– Abram a porta – eu disse.
Olhares confusos.
– Agora! – Finalmente, um dos policiais, um homem forte com marcas de espinha no rosto pegou uma chave, brigou com a fechadura e assim que a porta estava aberta,
entrei empurrando os dois. Lien-hua havia tirado uma de suas meias e a enrolou em volta da mão esquerda de Melice para estancar o sangramento. Ótimo tempo de reação.
Muito rápido.
– Você está bem? – perguntei a ela.
– Sim.
Dunn entrou na sala. Olhou para o sangue vivo espalhado pelo chão
– Olha essa bagunça.
Então, antes que eu pudesse impedi-lo, Dunn agarrou Melice pelos cabelos, puxou sua cabeça para trás e bateu seu rosto contra a mesa. Então Dunn inclinou-se para
perto dele e caçoou: – Uma pena que você não pode me processar, canalha.
– Afaste-se, detetive – eu disse.
Ele olhou para mim, e depois para Melice.
– Afaste-se.
Finalmente ele se afastou, lentamente, e ordenou aos dois homens que estavam de guarda na porta:
– Tirem esse monte de lixo daqui. Levem-no para a enfermaria. Melice, com o rosto sangrando, apenas olhou para ele.
– Desculpe-me, detetive, foi um boa tentativa, mas não senti nada. Decepcionante quando você quer machucar alguém e não consegue, não é mesmo?
– Aguarde – disse Dunn. – Seu dia está chegando.
Um dos policias que estava de guarda destravou a algema de Melice da mesa e colocou-o de pé. O outro policial pegou cuidadosamente alguma coisa de cima da mesa.
– Pode ser que eles consigam recolocar no lugar – ele disse. Os olhos de Dunn estavam na lata de lixo no canto da sala.
– Me dê isso.
Eu podia ver para onde isso estava indo.
– Não – eu disse para o policial. – Leve com você. Dê para o médico, veja o que ele pode fazer.
A raiva de Dunn mirou-se em mim.
– Se ele quisesse continuar com o dedo, ele tão teria o arrancado com uma mordida.
– Podem ir – eu disse para os policiais. – Cuidem dele.
Eles conduziram Melice em direção à porta e Dunn deu um chute na perna de metal da mesa e saiu apressado da sala. Coloquei minha mão no ombro de Lien-hua.
– Tem certeza que está bem?
Ela acenou com a cabeça.
Quando os policiais levavam Melice pelo corredor, ouvi um tumulto e o vi tentando lutar contra eles por um momento e então se soltar das mãos deles. Corri para ajudá-los
a contê-lo, mas quando cheguei lá, eles já tinham conseguido segurá-lo e estavam arrastando-o de volta para o corredor.
– Só mais uma pergunta, Lien-hua – Melice falou enquanto era levado. – Você já está se sentindo como uma vítima?
– Desculpe – ela disse calmamente. – Ainda não.
– Espere um tempo – ele disse, suas palavras ecoando pelo corredor.
– Você sentirá.
Então a porta se fechou e seus passos começaram a soar distantes no corredor.
Olhei para ela para ver sua reação. As engrenagens na cabeça dela pareciam estar girando. Ela estreitou os olhos e balbuciou diversas palavras diferentes enquanto
olhava para a mesa cinzenta agora salpicada com gotas frescas do sangue de Melice.
– Por favor, me dê alguns minutos, ok? Só preciso de um tempo para pensar. Novamente eu queria ficar com ela, mas suas palavras de antes ecoaram na minha cabeça:
“Você passa dos limites. Isso cria paredes entre nós, ok? Não faça isso. Não comigo”.
– Claro – eu disse, e saí para o corredor onde vi Dunn conversando com os policiais que levavam Melice para a enfermaria. E alguns pensamentos próprios começaram
a se formar na minha cabeça.
Durante todo o interrogatório, Lien-hua sabia que Melice estava tentando mexer com ela. E mesmo ela não querendo admitir para si mesma, ele havia conseguido. Pelo
menos um pouco. Assassinos sabem como mexer com a cabeça de alguém, e eles normalmente são melhores psicanalistas do que os médicos que o Estado contrata para analisá-los.
Lien-hua só não queria considerar a possibilidade de Melice ser melhor que ela.
Ela deu mais uma olhada pela sala, então pegou seu gravador e o bloco de anotações e folheou até a última página.
Na maioria das vezes, ela estava observado Melice enquanto fazia as anotações, e mal havia olhado para o papel. E, mesmo sendo verdade que ela havia escrito algumas
palavras na página, não foi isso que chamou sua atenção. Ao invés disso, no centro da página, cercado por uma porção de palavras sombrias e frases abreviadas, Lien-hua
havia feito um desenho. Sem nem perceber, ela havia desenhado uma tesoura cortando o topo de um crisântemo.
Ela segurou a caderneta contra o peito e foi juntar-se a Pat.
82
Creighton descobriu que não era fácil andar com os pés acorrentados juntos e suas mão algemadas à sua frente, e tropeçou um pouco enquanto os dois policiais o conduziam
para o elevador. Bom, pelo menos ele não teria que aguentar ficar preso assim por muito tempo. Ele estaria livre em breve, em apenas alguns minutos, na verdade.
E quando ele morresse essa noite, vai ter valido a pena perder o dedo. Tudo vai ter valido a pena.
Ele se livrou da meia de Lien-hua no elevador e observou o sangue da sua mão pingar e criar formas brilhantes no chão de ladrilhos.
Sua pequena reunião com ela havia sido boa. Sim, muito boa. Apesar do fato dos federais terem de algum modo descoberto sua verdadeira identidade, as coisas ainda
tinham terminado do jeito que Shade havia planejado.
O elevador balançou ao parar, as portas se abriram e os três homens começaram sua longa caminhada até a sala no final do corredor.
Creighton pode perceber que havia mexido com alguma coisa dentro da agente-especial Lien-hua Jiang. Ele gostava muito daquilo. Fez com que ele sentisse um formigamento,
uma promessa, um arrepio convidativo. Ele havia tocado naquela coisinha secreta escondida no passado dela, no fundo de sua psique. E tocar sua dor daquele jeito
teve um sabor doce para ele. Doce e forte.
A flor-de-lótus havia começado a se abrir, como Shade disse que iria. Lien-hua havia tentado esconder, elas sempre tentam, mas dá para ver nos olhos dela. Os olhos
nunca traem. Dentro de cada mulher existe uma garotinha necessitada querendo se sentir bonita, amada, segura. Exponha ela a suas imperfeições, brinque com seu desejo
de se sentir amada, bagunce com seu senso de segurança, e você traz aquela garotinha necessitada à superfície.
E durante a investigação, os olhos da agente Jiang haviam contado para ele como era frágil a garota dentro dela e, é claro, Creighton já sabia o por quê. Na verdade
essa foi uma das razões pela qual Shade havia escolhido ele.
Provavelmente a principal razão.
Eles chegaram à porta da enfermaria e um dos policiais rosnou para Creighton parar. Então ele parou.
Creighton Prescott Melice ficou parado e submisso entre os dois homens que ele estava prestes a matar.
83
Tessa nunca havia andado de motocicleta antes, e com o vento soprando pelos seus cabelos, realmente parecia que ela estava voando. Após passar a última hora passeando
pelo litoral com seus braços presos em volta da cintura de Riker, tudo parecia bem no mundo.
E agora que eles haviam parado para ver o pôr-do-sol, ela desceu da motocicleta e o seguiu em direção à praia. Para um lugar especial que ele conhecia.
Ela estava com um garoto.
Estava por conta própria.
E não havia como Patrick saber dela.
Ela era um corvo abrindo as asas, e a sensação era muito, muito boa. Tessa andou com Riker até uma parte deserta da praia, e lá, em uma pedaço de areia seca perto
de uma pedreira cinzenta, eles se sentaram juntos para assistir o sol afundar-se no mar. Tessa queria deitar apoiada em Riker, deixar sua força dar apoio a ela,
mas ela resistiu e apenas sentou-se perto dele.
– Então – ela disse, – você conseguiu resolver o quebra-cabeça de Lachlan? Ele deu um tapinha em seu bolso.
– Estou com a resposta bem aqui.
– Vamos vê-la.
Ele sacou duas folhas de papel, sua folha junto com a folha amarelada onda ela havia escrito sua resposta.
– Então, lembre-se, são dois caras – ele disse. – Se o primeiro cara der uma pilha do seu dinheiro para o segundo cara, então ele fica com metade do que tem o segundo
cara, mas se o segundo cara der para o primeiro cara uma de suas pilhas, então eles ficam com a mesma quantidade.
– Desdobre o papel – disse Tessa. – Veja o que eu escrevi. Riker abriu-o em sua mão.
– Cinco e sete.
– Certo – ela disse. – Se o cara com cinco pilhas der para o outro cara uma, eles ficam com quatro e oito, e se o cara com sete der para o primeiro cara uma de suas
pilhas, os dois ficam com seis.
– E você descobriu isso na hora?
No horizonte, nuvens recortadas ficavam escuras, dando as boas-vindas à noite.
– Sim – ela estava um pouco envergonhada, porque admitir que ela havia desvendado o quebra-cabeça tão rápido fazia Riker parecer meio burro. – Vamos ver sua resposta.
O que você escreveu?
O sol estava cada vez mais baixo, uma pequena fatia de melão contra a base do céu.
Riker segurou o papel, mas assim que Tessa foi pegá-lo, ele o tirou do caminho. Ela tentou novamente, ele rolou de costas. Ela se inclinou sobre ele para agarrar
o papel, e finalmente, quando seus rostos estavam a apenas centímetros um do outro, ele soltou.
– Desdobre – ele disse suavemente. Tessa sentiu o cheiro atraente de sua colônia misturado com o ar do oceano.
O sol era apenas uma lasca...
Ela alisou o papel amassado contra o peito dele e leu o que ele havia escrito: “Você”. O coração dela tremeu.
...e então o sol era um ponto...
– Essa é a minha resposta – ele disse. – Você – Tessa se sentiu desejada, amada.
...e então o sol se foi, engolido pelas ondas.
Ela deitou ao lado dele até que os dedos frios da noite se fechassem em volta deles, então Riker pegou o braço de Tessa e a ajudou a se levantar.
– Vamos. Ainda tenho muita coisa para te mostrar essa noite.
84
Quando Lien-hua e eu retornamos para a sala de conferência para encontrarmos Margaret e informarmos sobre o interrogatório de Melice, nós a encontramos sentada à
cabeceira da enorme mesa esperando por nós.
Mesmo antes de puxarmos nossas cadeiras, Margaret disse:
– Agente Jiang, me fale sobre esse homem – sua voz estava anormalmente fria e reservada. Após o que havia acabado de acontecer na sala de interrogatório, seu tom
regular me surpreendeu. – Do ponto de vista de uma criadora de perfis, para o que estamos olhando?
– É uma junção incrível de fatores – Lien-hua respondeu enquanto sentávamos. – Um psicopata com CIPA. Ele não sente dor em seu corpo e não sente dor no coração.
Esse é um homem que nunca sentiu desconforto ou culpa ou pena ou sofrimento de nenhum tipo, seja mental ou psicológico – enquanto ela falava, pensei na chance astronomicamente
minúscula de um psicopata sofrer de CIPA, mas então me lembrei dos comentários de Tessa sobre como Dupin abordou seu caso: por mais impossível que pareça, ocorreu,
então deve ter sido possível.
Lien-hua prosseguiu:
– Psicopatas não sentem empatia ou compaixão e nunca desenvolvem relacionamentos íntimos o suficiente para sentir mágoa. Ao invés disso, eles apenas olham para outras
pessoas como objetos para serem usados e então descartados quando eles não mais se beneficiam disso. Com frequência eles se viciam em controlar pessoas, e quando
ficam obcecados com algo, sua obsessão pode durar décadas.
Ouvi as palavras de Lien-hua com carinho e imaginei como seria, como disse Melice, viver em um “inferno indolor”. Quão diferente isso seria de um “paraíso sem alegria”?
Talvez nem um pouco diferente.
– E quanto ao interrogatório? – perguntou Margaret. – As coisas que ele te falou.
– Um exemplo clássico de “afasia semântica” – Lien-hua disse. – Ou seja, usar as palavras que seu ouvinte quer ouvir. É um jeito de manipular pessoas. Criminosos
de carreira são experts nisso. Ele só ligam para eles mesmos, em exercer poder. Então é difícil dizer o quanto do que ele falou que pode ser considerado uma confissão.
Eu precisaria falar mais com ele. Mas eu posso dizer isso: ele conhece a mente de um assassino. E ele gosta de fantasiar sobre a morte.
– Ou talvez – eu disse – ele só goste de assistir pessoas fazendo a única coisa que ele não pode: sofrer nas mãos de outros.
Então Margaret cruzou os braços e olhou indo e voltando de Lien-hua para mim.
– Agora – ela disse friamente, – digam-me o que vocês dois sabem sobre o Projeto Rukh.
85
O que? De onde essa pergunta veio?
– Projeto Rukh? – eu disse. – O que você sabe sobre o Projeto Rukh?
– Sou eu que faço as perguntas, dr. Bowers – Margaret disse com a voz recortada. – Responda-as por gentileza ou abstenha-se de participar da conversa.
Ok.
Um instante antes eu teria considerado mencionar que eu havia encontrado o dispositivo, mas como ela estava agindo com suas “Mar-garetices”, decidi guardar a informação
para mim por enquanto. O dispositivo estava seguro, e até que eu soubesse mais, parecia uma boa ideia manter sua localização como segredo, então, ao invés disso,
contei a ela os fatos incompletos que eu havia descoberto sobre a pesquisa de tubarões de Cassandra, os estudos de engenharia neuromórfica do dr. Osbourne e a possível
conexão com a tecnologia MEG.
– Existe um dispositivo – ela disse. – Você sabe algo sobre um dispositivo?
– Shade mencionou alguma coisa assim – eu respondi. – Acredito que era do Edifício B-14, mas eu não sei qual sua função. Você sabe?
– Ele foi destruído no incêndio?
– Se você não se importar que eu pergunte, Margaret...
– Eu me importo que você pergunte.
Lien-hua segurou suas mãos.
– Ajude-nos com isso, Margaret. O que estamos procurando?
Margaret fechou as mãos, olhou para o seu relógio, e então para meu completo espanto, falou com verdadeira franqueza.
– A maioria do que me foi dito é confidencial, é claro, e apenas para os olhos de pessoas acima de suas posições, mas, como eu acho que isso pode ter alguma relevância
para o caso, posso contar para vocês que a Drake Enterprises foi contratada para desenvolver um dispositivo que usaria imagens eletromagnéticas para encontrar corpos
sob entulho ou em construções onde a imagem térmica não consegue alcançar.
Localização sensorial eletromagnética, assim como os tubarões fazem com peixes enterrados.
Lembrando dos avisos de radiação no dispositivo e da indicação de isótopos radioativos encontrada no apartamento de Hunter, eu disse:
– Ele usa radiação? Isótopos radioativos?
Os olhos de Margaret tornaram-se inquisitivos. Talvez desconfiados.
– Usa. Césio-137. É encontrado em certos dispositivos médicos e medidores que são usados no tratamento do câncer, mas também é usado para medir a espessura de materiais:
metal, pedra, até papel. É isso que permite que o dispositivo a “veja através” (seu tom de voz colocou aspas nas duas últimas palavras) de materiais para encontrar
os sinais eletromagnéticos.
– Espere – era Lien-hua. – Ele pode ver através de construções?
– Ele não pode exatamente ver através da matéria – Margaret explicou, – mas pode sentir a localização dos impulsos eletromagnéticos de espasmos musculares e atividade
cerebral de pessoas que estiverem soterradas por entulho.
– Faz sentido – eu disse. – Lembra-se? Tubarões podem localizar presas enterradas na areia. As imagens térmicas são similares, mas isso simplesmente registra impulsos
magnéticos ou elétricos ao invés do calor. Utilizando engenharia neuromórfica poderia ser possível imitar o sexto sentido dos tubarões.
O suspiro impaciente de Margaret era o jeito dela de pedir outra chance para falar.
– Me falaram que o propósito do Projeto Rukh era desenvolver um dispositivo que poderia ser usado para encontrar terroristas em cavernas, mineradores em desmoronamentos,
esquiadores em avalanches, e assim por diante. Depois que as torres caíram no 11 de setembro e o governo teve que recorrer a dar batidas em canos de metal para encontrar
sobreviventes, eles começaram a procurar por métodos mais eficientes de encontrar sobreviventes escombros ou detritos.
Eu comparava o que ela estava dizendo com os fatos do caso. As peças não estavam se encaixando aqui.
– Não, isso não é grande o suficiente – eu disse. – Tem que ser algo a mais. Ele tem que ter outra utilidade.
Margaret de inclinou para a frente.
– Dr. Bowers, você pode ficar surpreso em me ouvir dizendo isso, mas nesse caso, eu concordo com você plenamente.
Logo em seguida, uma batida na porta. Ralph.
– Entre, agente Hawkins – Margaret disse. – E feche a porta.
86
Assim que Ralph entrou e fechou a porta, Margaret disse:
– Eu acredito que o Edifício B-14 foi incendiado para mascarar o roubo do dispositivo que a Drake Enterprises estava contratada para desenvolver.
– Terroristas? – perguntou Ralph.
– Não – ela disse. – Eu acho que pode ser alguém relacionado à pesquisa, alguém do governo ou da comunidade de inteligência, ou possivelmente...
– Detetive Dunn – disse Lien-hua.
Todos os três viraram na direção dela.
– Dunn? – perguntou Ralph.
– Estive pensando – Lien-hua folheou seu bloco de anotações, leu algumas coisas. – Detetive Dunn estava na cena do suicídio segunda--feira à noite. Ele apareceu
no Sherrod Aquarium, local do sequestro de Cassandra. Ele estava no armazém, e ele se preocupou em falar com Cassandra antes dos paramédicos a levarem. Ele preparou
a sala para Melice e exigiu que estivesse presente durante o interrogatório.
– Ele ficou alguma vez a sós com Melice? – perguntou Ralph.
– Eu o vi, a apenas alguns minutos atrás – eu disse. – Conversando no corredor com Melice e os dois policias que o estavam levando para a enfermaria – um pensamento
começou a passar, como um abutre, pela minha cabeça. – Espere... Melice pediu especificamente pelo FBI, pediu por Lien-hua pelo nome, e aceitou não ter um advogado
presente?
– Isso mesmo – disse Margaret. – Agora, se pudermos voltar para...
– Espere um minuto, Margaret...
– Dr. Bowers, devo relembrá-lo que eu...
– Claro – eu disse. – Amanhã – quando Margaret abriu sua boca para responder, meus pensamentos voltaram para a noite anterior, e antes que ela pudesse me dar uma
bronca, eu disse: – Ralph, no armazém, Lien-hua e eu estávamos perto do tanque, você estava cuidando no lado norte. Aquela porta que Lien-hua abriu com um chute
estava entre nós. Melice podia ter saído, podia ter escapado pela porta, mas ele não foi. Ele ficou lá. Por que ele não fugiu?
– Você acha que Melice queria ser pego? – Lien-hua perguntou.
– Talvez – eu disse. – Seus advogados sumiram até essa tarde. Por que? Melice escolheu quando o interrogatório iria terminar mordendo seu dedo...
Hora, local. Hora, local.
Me levantei, tomei a direção da porta.
– A enfermaria, Ralph. Ele queria ir pra lá.
– Por que?
Psicopatas só ligam para eles mesmos... exercendo poder.
– Eles teriam que tirar sua algema para cuidar do seu dedo – eu disse.
– Ele planejou isso o tempo todo – no final do interrogatório, Melice olhou para o seu relógio... Olhei na direção de Ralph. – Pessoas com CIPA sentem coceira? Você
descobriu?
– Eles não têm coceira – Ralph me viu abrir a porta e levantou-se também. – O que está...
– Vamos – saí correndo pelo corredor. – Mudança de turno, 17h30. Ele vai tentar escapar...
E foi quando o alarme da central de polícia começou a ecoar pelos corredores.
87
Corri pelas escadas até o segundo andar, dei uma rápida olhada pela porta da enfermaria e vi que, mesmo tento um policial atingido, cinco pessoas já haviam vindo
ajudar. Mas não era ali que eu esperava encontrar Melice, no entanto. Não, ele tinha outro destino em mente.
Corri para a sala de evidências, saquei minha SIG e abri a porta com um chute.
– Riley? – eu disse. Ninguém no balcão. – Você está aqui? Nenhuma resposta.
– Creighton, você não vai conseguir sair do prédio – eu gritei. – Eu sei o que você procura.
No meio do barulho do alerta de intrusos, fiz uma varredura pela série de salas apertadas. como fui instruído na Academia, deixando minha arma me conduzir a cada
curva.
Corra pelas paredes, cuidado com as curvas.
Limpo.
A qualquer momento alguém pode atirar em você, te atrapalhar, te atacar. Não saber o que há depois da curva é a coisa mais apavorante de todas.
Coração batendo. Coração batendo.
A última sala. Entrei, verifiquei-a. Vi meu computador no canto, a bolsa esportiva desaparecida. Nenhuma outra pessoa.
Limpo.
Então um momento para respirar.
Então, Melice não estava lá. Nem Kernigan.
Como Melice sabia que o dispositivo estava aqui.
Shade deve ter contado a ele.
Shade. Shade.
Dunn? Kernigan? O médico de Melice? Bom, seja quem fosse Shade, se Melice conseguiu fugir, os dois iam ficar um pouco surpresos quando abrissem aquela bolsa esportiva.
Afinal, antes de sair da sala de evidências hoje mais cedo, deixei meu cartão embrulhado com minha adorável engenhoca improvisada, junto com um bilhete escrito na
parte de trás do cartão: “Se esse aqui não funcionar, me ligue e eu deixo você brincar com o meu”. Eu tinha a sensação que não demoraria muito para que ou Shade
ou Melice entrassem em contato comigo.
O jogo estava começando a virar.
Eu vi a fita adesiva que havia usado ainda repousada no balcão. Espere.
O armário de custódia. Mais uma porta.
Apontei minha arma e me aproximei do armário.
– Creighton? Você está aí? Saia daí.
Nenhuma resposta.
Meu coração batendo e minha arma preparada, abri a porta. Dentro, encontrei o oficial Kernigan vivo mas inconsciente. Seu uniforme havia sumido.
Melice está vestido como um policial.
Mesmo com as roupas não servindo direito, mesmo com seu rosto e mão sangrando, Melice ainda podia ser capaz de escapar na confusão. Corri para o corredor e puxei
uma sargento para o lado.
– Não deixe ninguém sair do prédio. Melice está com uniforme de policial. Dê o aviso pelo sistema de som do prédio. Faça isso agora! – ela olhou confusa para mim
por um momento. – Vá! – eu disse, e finalmente ela se apressou.
Corri de volta para ajudar o oficial Kernigan e descobri que ele havia tomado uma coronhada. Provavelmente tinha uma concussão, mas parecia que ele iria ficar bem.
Ele estava se mexendo, então eu o ajudei a sentar-se e se apoiar contra a porta.
– Você vai ficar bem, Riley – eu disse a ele. Ele acenou com a cabeça. Depois de me certificar que ele podia ficar sentado sozinho, verifiquei que o dispositivo
verdadeiro ainda estava escondido em segurança atrás de 25 anos de evidências, então localizei um policial que havia sido treinado como paramédico e o pedi para
cuidar do oficial Kernigan.
Antes de deixar a sala de evidências, fui até os formulários de entrada para ver se alguém tinha passado por lá para dar uma olhada na “câmera de vídeo” depois que
eu havia saído de lá. Depois da sugestão de Lien-hua de que Dunn poderia ser Shade, imaginei se eu não poderia encontrar seu nome lá.
Mas não encontrei.
Encontrei o de Margaret.
E os fatos do caso começaram a girar novamente. Recuperei meu computador. Eu poderia verificar o vídeo em alguns minutos para ver se Margaret sabia mais sobre o
dispositivo do que estava dizendo. Mas primeiro, eu precisava parar na enfermaria para ver o tamanho da dor que Melice tinha conseguido causar.
88
O corredor do segundo andar da central de polícia estava cheio de policiais apressados, gritos do que iria acontecer com Melice quando colocassem as mãos nele e
o choro incessante do alarme de intrusos.
Encontrei a sala de exames transbordando com oficiais de polícia, agentes do FBI e pessoal médico, então, ao invés de tumultuar mais, fiquei ao lado da porta e analisei
a cena. Um dos policiais caídos parecia ter sido esfaqueado no pescoço, e como os paramédicos não estava cuidando dele, percebi que, tragicamente, seus ferimentos
foram fatais. O outro homem estava tendo lapsos de consciência e inconsciência e tinha um grosso curativo com uma mancha já aumentando sobre ela enrolada sobre seu
olho esquerdo.
Só após a sirene ter parado que ouvi o aviso dizendo que o suspeito estava vestindo um uniforme de polícia, mas eu suspeitava que o aviso tinha vindo tarde demais.
Muito tempo havia passado, e a fuga de Melice tinha sido muito bem planejada.
Vi Graysmith e me aproximei dele.
– O que sabemos sobre Melice?
– Estamos fazendo uma varredura no prédio – ele disse entre dentes cerrados. – Armamos um perímetro de seis quarteirões.
– Vídeo? – eu perguntei.
– Não, não nas salas de exame. Por motivos de privacidade. – sua voz se encheu de determinação. – Isso é assunto da polícia agora. Ele matou um dos meus homens.
Nós assumimos a partir daqui.
– Não – eu disse. – Estamos todos no mesmo time, tenente. Eu não ligo para quem ganhar o crédito, vamos só pegar esse cara. Assim que o tivermos, vou pedir a Ralph
para fazer tudo o que puder para te dar custódia total.
Ele hesitou.
– Confie em mim – eu disse. – Eu cumpro minhas promessas. Após um momento, ele acenou de modo rígido para mim.
– Tudo bem.
Ele começou a ir embora, mas eu o chamei de volta.
– Só um segundo. Você pode me dizer por que Dunn estava no local do suicídio do fulano na outra noite? Isso pode nos ajudar. É uma peça que ainda não encaixa.
Graysmith respirou cautelosamente, então disse suavemente:
– Nós tivemos muitos suicídios suspeitos perto dos trolleys no ano passado. Eu comecei a imaginar se não havia alguém lá fora que gostava de lançar mendigos para
a morte. Eu queria que Dunn desse uma olhada nisso – a explicação de Graysmith não solucionava todas as minhas perguntas, mas, considerando as circunstâncias, parecia
plausível. Então ele acrescentou: – Agora, vamos pegar esse maluco.
Ele saiu para encontrar Margaret para coordenar a busca por Melice, e os olhos de Ralph me encontraram onde eu estava, no meio da sala.
– Pat, o que você acha? – ele chegou perto de mim. – Melice esperou até chegar aqui porque era mais fácil de fugir? Menos segurança?
– Provavelmente – diminuí minha voz. – Além disso, é bem ao lado da sala de evidências. Melice roubou o dispositivo, ou pelo menos pensa que roubou. Mas eu fiquei
com o real. Escute, ele sabia que estaria lá. E eu acho que ele sabia que a troca de turno era às 17h30.
– Alguém disse a ele – rosnou Ralph.
Pensei em Dunn falando com os policiais que estavam levando Melice para a enfermaria, e então no interesse repentino de Margaret no dispositivo.
– Sim. Alguém disse.
Enquanto Ralph e eu conversávamos, uma porção dos policiais passou por nós, deixando a sala para juntarem-se à busca de Melice, então eu poderia me aproximar do
policial morto e analisar o ferimento em seu pescoço.
– Alguém sabe com o que ele foi esfaqueado?
– Um pedaço de metal – alguém disse. – Um tipo de canivete. Parkers nos disse isso bem antes de desmaiar – presumi que Parkers fosse o homem com o rosto golpeado.
– Certo – falou Dunn. – Ele estava algemado. Onde arrumou o canivete? Examinei o pescoço do policial morto mais de perto. Uma fina ponta de metal aparecia no ferimento,
mas ela não havia atravessado todo o pescoço do homem. Usando minha mão, medi o diâmetro do seu pescoço... cerca de 15 centímetros. Então, comparei com o tamanho
da minha mão... cerda de 10 centímetros.
– Eu acho – disse eu, – que Melice deveria já estar com ele, escondido em sua mão, provavelmente embutido na junta metacarpofalangeana. Era isso que ele estava cutucando.
Ele não estava se coçando, ele estava rasgando sua pele, tirando-a de dentro. Nós não percebemos. E agora esse homem está morto.
– Quem inspecionou esse cara? – os punhos de Ralph se fecharam. – Quem o avaliou?
O detetive Dunn respirou fundo.
– Fui eu. Eu avaliei Melice – então ele olhou para os dois policiais, um morto, um gravemente feriado. – Vou ser o cara que vai matá-lo – então o detetive Dunn saiu
apressado da sala.
Poderia Dunn ser Shade, afinal? E Margaret? Graysmith?
Mais evidências, menos conjecturas.
Elimine suas teorias, não tento prová-las, tente descartá-las uma por uma. Eu não sabia em quem confiar, mas percebi que enquanto eu tivesse o dispositivo, Shade
viria procurar por mim.
– Ralph, encontre-me em cinco minutos na área de trabalho onde eu estava mais cedo.
Ele aceitou, e fui me preparar.
Eu tinha gravado mais de três horas de vídeo, mas felizmente o tocador de mídia do meu laptop me permitia deslizar o cursos pelo módulo de controle para rapidamente
fazer uma varredura pelo vídeo, até que cheguei na imagem de uma pessoa vestida em roupas civis. Naquele ponto, rodei o vídeo em velocidade normal e vi as luzes
na sala piscando e então uma pessoa andando cuidadosamente pela escuridão.
Como a pessoa estava iluminada por trás e andando pelo escuro, eu não conseguia ver o rosto. Inacreditável. Shade era esperto. Muito esperto. Ele tinha esse mérito.
Ele deu apenas três passos dentro da sala, então voltou um pouco para trás e para esquerda, mantendo seu rosto nas sombras o tempo todo. Seja quem fosse, ele estava
provavelmente apenas verificando a presença do dispositivo. Olhei a hora no marcador do vídeo: 14h58, a hora em que estávamos todos cada um por si pesquisando sobre
Melice. Qualquer um poderia ter vindo aqui.
Espere. Qualquer um não. Eu destaquei o material de vídeo, abri o ÍCARO e o analisei.
Distribuição de peso, passada, postura.
Homem.
Isso eliminava Margaret. Outra pessoa deve ter assinado o nome dela
no registro de entrada.
Fiz uma ligação para a sala de evidências para ver se o oficial Kernigan poderia identificar a pessoa, mas alguém atendeu e me disse que Riley Kernigan havia desmaiado
novamente e tinha sido levado para o hospital.
Tudo bem, então. Eu sabia o que eu precisava verificar. Era hora de decifrar o Projeto Rukh. Fiz uma ligação, e então, antes que eu pudesse fechar meu computador,
Ralph chegou.
– Eles precisam de você aqui na central agora? – eu perguntei. Ele balançou a cabeça.
– Margaret pode chefiar as equipes do FBI, Graysmith vai coordenar a polícia. O que você precisa?
– Eu quero descobrir o que esse dispositivo realmente faz. E existe uma pessoa que eu acredito que possa ser capaz de nos ajudar.
– Quem seria? Drake?
– Não. Dr. Rigel Osbourne
– Ele não estava em uma conferência ou algo do tipo?
– Ele voltou – eu disse. – Um operador de telemarketing acabou de ligar para a casa dele. Ele atendeu.
Ralph sorriu.
– O que você estava vendendo?
– Malas.
– Isso não tem graça nenhuma.
– Vamos fazer uma visitinha ao doutor.
89
Vinte minutos após escapar da custódia da polícia, Creighton Melice dobrou a esquina com o carro que havia roubado de um traficante de crack a duas quadras da central
de polícia e cruzou a India Street. Shade havia dado a ele a hora e o lugar do encontro após sua fuga, e parecia que as coisas estavam no horário certo.
A fuga havia acontecido exatamente como planejado.
Ter inserido o canivete de 15 centímetros em sua mão na noite passada no armazém tinha sido fácil. Ele o havia posicionado contra a base de seu dedo do meio da mão
esquerda o pressionando. Entrou direitinho. Do mesmo jeito que introduzir um termômetro de forno em um peru.
Claro, tirá-lo de lá significava ter que tirar uma camada de pele de sua palma da mão durante o interrogatório. Para qualquer outra pessoa teria sido doloroso, mas
claro que ele não sentiu. Ele não sentiu nada. Então, no caminho para a sala de exame, ele usou o canivete para abrir a fechadura de sua algema, e quando eles chegaram
e o policial com marca de espinhas no rosto estava no telefone ligando para o médico, Creighton simplesmente agarrou o cabelo do cara com uma mão e enterrou o canivete
inteiro em seu pescoço com a outra.
Ele entrou limpo e suave. Do mesmo jeito que inserindo um termômetro de forno em um peru.
Então ele bateu com a algema no rosto do outro policial. O cara berrou de dor e, baseado em sua reação, Creighton imaginou que ter seu olho esmagado até virar uma
pasta deveria ser uma experiência dolorosa. Ele tomou nota daquilo enquanto batia com a algema nele de novo e de novo, mandando ele girando para a parede.
Naquele ponto, porém, ele percebeu que teria que se apressar, então ele havia decidido não perder tempo matando o cara, mas ao invés disso agarrou as chaves de suas
correntes no tornozelo, destravou os grilhões, pegou uma nova arma e andou casualmente e confiantemente até a sala de evidências.
Creighton parou o carro dentro da oficina mecânica. Um momento depois ele havia baixado e trancado a porta da oficina. Ele passou a mão por uma bancada próxima,
derrubando as ferramentas, peças de carro descartadas e uma pilha de estopa engraxada no chão. Então ele pegou a bolsa esportiva preta do banco de trás do carro
e cuidadosamente colocou-a no centro da área que havia acabado de limpar.
Seus dedos estavam tremendo.
Era agora. O momento que ele esteve esperando.
Essa noite, depois que tivessem acabado com a mulher, Shade usaria o dispositivo nele e ele finalmente sentiria dor. Finalmente entenderia o que é sofrer. Como é
ser um ser humano.
Creighton fechou seus olhos e deixou sua mente devanear em suas fantasias elaboradas de dor. As aranhas eram só o começo. Ele pensou em lâminas e gritos, na carne
macia rasgada tão facilmente, e em ossos estilhaçados espetando a carne. Ele sonhava em finalmente sentir aquele fantasma esquivo chamado dor.
Antes de Creighton abrir o zíper da bolsa, ele ouviu um rápido zunido de ar e viu a madeira da bancada explodir a menos de 3 centímetros de sua mão.
– Não vire-se – disse a voz eletronicamente alterada atrás dele. – Abra a bolsa.
– Não me diga o que fazer – Creighton rosnou. Um momento tenso passou onde nenhum deles falou, e então, finalmente, Creighton abriu o zíper da bolsa, desembrulhou
a espuma, então olhou para um tripé feito de três cabos de esfregão com um rádio, uma lata de solvente e uma cafeteira quebrada, tudo preso junto com fita adesiva.
Ele sentiu seus dentes travarem. – Não – moerem. Triturarem. – Não. Não!
– Pegue-o – disse a voz.
Creighton não apenas o pegou, ele agarrou o dispositivo falso e bateu, bateu, bateu contra a bancada até que sobrou apenas um conjunto destruído de peças quebradas.
– Então – disse Shade. – Alguém resolveu ser criativo com a gente. Creighton pegou um cartão de visita que havia caído no chão, leu para si mesmo, então disse:
– É de um agente federal. Bowers. Ele está com o dispositivo verdadeiro. Ele está nos provocando.
– Eu conheço o agente Bowers – Shade disse. – Eu cuido dele. Você precisa sair daqui rápido e ser discreto. Ligo para você em uma hora. Não se preocupe, nós vamos
pegar o dispositivo verdadeiro. Confie em mim.
Creighton Melice mirou o canto da oficina com seus olhos. Ele não podia ver Shade.
Sombras, sempre nas sombras.
Creighton não queria mais brincar dessas brincadeiras idiotas. Ele estava farto.
– Antes, você disse para não confiar em você.
– E agora, estou dizendo a você para confiar em mim. Siga minhas instruções ou você não vai conseguir o que você quer quando isso acabar.
Creighton ainda tinha a arma do policial.
Cuide desse canalha. Agora.
Ele sacou a arma, mas assim que o fez, Shade mandou uma bala através de sua mão direita, lançando a arma barulhentamente para o chão.
– Cuidado, Creighton – disse Shade. – Eu preferia que você continuasse vivo e me ajudasse, mas eu estou preparado para lidar com a minha decepção se você preferir
que isso não aconteça.
– Estou cansado de toda essa porcaria de espionagem – Creighton ficou tenso, pronto para uma luta, o sangue pingando da carne destruída de seus ferimentos que ele
não sentia em cada uma de suas mãos. – Mostre-me o seu rosto. Me mate se você quiser, mas eu acho que eu consigo fazer algum dano em você primeiro. Se nós vamos
fazer isso, se vamos acabar com isso essa noite, deixe-me ver o seu rosto. É isso ou eu paro por aqui.
E então, após um pequeno instante, as sombras se dividiram e uma figura surgiu delas, e Creighton ficou congelado, observando, sua mandíbula pendurada. Realmente
era a última pessoa que Creighton poderia esperar.
– Nós acabaremos com isso essa noite – a voz não estava mais alterada. Finalmente, finalmente saindo à luz. – Nós acabaremos com isso juntos.
90
Ralph e eu carregávamos cada um uma enorme sacola de amarrar que encontramos na academia da central de polícia até nosso carros. Eu estava com o dispositivo verdadeiro,
a sacola de Ralph estava cheia apenas para parecer com a minha.
Caso alguém estivesse nos observando, cada um de nós tomou um caminho diferente para a casa do dr. Rigel Osbourne, e após termos certeza de que não estávamos sendo
seguidos, carregamos nossas sacolas até a porta.
– Como você quer fazer com isso? – perguntei para ele.
– Cassandra Lillo está morta. Qualquer pessoa ligada a seu sequestro será julgada por homicídio – ele bateu na porta. – Improvise.
– Você mandou uma viatura para a casa de Cassandra? – ouvi passos do outro lado da porta. – É possível que Melice vá atrás dela, para terminar o que começou.
– Já fiz isso – ele disse.
Um instante depois, a porta se abriu e o dr. Rigel Osbourne olhou para nós por uma fresta.
– Sim?
Ralph colocou uma mão na porta e a empurrou, jogando o dr.
Osbourne para o lado.
– FBI – Ralph disse com uma rápida mostra de seu distintivo. – Você não se importa se entrarmos, Rigel? Só precisamos fazer algumas perguntas para você – Ralph e
eu colocamos as sacolas de academia no chão, e eu fechei a porta atrás de nós.
– Quem são vocês? – os olhos de Osbourne tinham espasmos. Seu lábio inferior parecia que era usado para ser mastigado. – O que querem saber?
– Sobre uma pessoa que pesquisa tubarões – eu disse.
– E que morreu – disse Ralph ameaçadoramente.
O rosto de Osbourne ficou pálido.
– Eu não sei nada sobre nenhuma pesquisadora de tubarões morta – ele umedeceu os lábios várias vezes e começou a olhar para a porta. Nem Ralph, nem eu falamos. –
Como... como ela morreu?
– Nós não falamos que a pessoa era uma mulher – eu disse. Esse cara obviamente não estava acostumado com interrogatórios. Eu esperei que isso pudesse nos ajudar
a encontrar tudo que precisamos.
Ralph se ocupou em abrir uma das sacolas e remover o dispositivo.
– É uma infração federal mentir para um agente do FBI.
Osbourne estava observando Ralph pegar o dispositivo e sentar no sofá.
– Eu só presumi, quer dizer... eu não sabia. Onde você arrumou isso?
– Doutor Osbourne – eu disse, – estamos aqui para descobrir tudo que você sabe sobre esse dispositivo. Nós não temos muito tempo, e nenhum de nós está de bom humor
– então eu acenei com a cabeça na direção de Ralph e falei mais baixo. – Especialmente ele.
O dr. Osbourne balançou a cabeça.
– Ele me disse que havia sido destruído. Ele me disse...
– Quem te disse? – perguntou Ralph.
– Victor Drake. Seria Drake, Shade?
– Eu vou pegá-lo – disse Ralph.
– Espere – puxei ele de lado e cochichei: – Precisamos saber tudo o que pudermos sobre Drake antes. Vamos terminar com o Osbourne, então vamos falar com Drake. Você
sabe como funciona: quanto mais provas tivermos quando chegarmos lá, mas evidência teremos quando formos embora.
Ralph considerou aquilo, então acenou com a cabeça e disse para Osbourne:
– Tudo bem. Fale. Essa é sua única chance. E se eu não gostar do que ouvir, levo você como cúmplice do assassinato.
– Assassinato! Eu não... Eu não sei...
– Escuta aqui – eu disse, – vamos devagar. Comece pelo começo. Conte-nos tudo que você sabe.
O general Cole Biscayne parou na entrada da garagem da casa de praia de sua irmã e suspirou.
Desde a reunião do Comitê de Supervisão do Projeto Rukh, mais cedo, ele havia recebido ligações do Departamento de Estado, do Pentágono, e até da Casa Branca, querendo
saber se o protótipo havia sido mesmo destruído. Afinal, o incêndio havia consumido completamente o Edifício B-14, nada foi encontrado na cena ou na costa, e os
relatórios de polícia confirmaram que o incendiário não possuía o dispositivo com ele quando ele ameaçou a agente federal e foi subsequentemente impedido por meio
de força letal de atacá-la. Então, parecia que o desenvolvimento dos satélites poderia ser atrasado, mas a longo prazo as coisas iriam dar certo.
A irmã de Cole, Beverly, estava trabalhando até tarde mas havia dito a ele para se sentir em casa, pegar o que quisesse da geladeira e que ela o veria perto das
22h. Ele estava feliz pelo espaço. Havia sido um dia longo, tedioso e estressante. Ele precisava de um tempo para relaxar e descontrair.
Aquela noite havia esfriado e o casaco do general chamava atenção quando ele saiu do carro. Por hábito, ele olhou para as sombras que permeavam a casa, lembrando-se
da forma que havia visto fora de sua casa em New England.
Mas não havia ninguém nas sombras. Claro que não havia ninguém lá. Todo esse problema com Sebastian Taylor havia ficado fora das proporções. Taylor estava fugindo
há quase quatro meses. Se ele fosse fazer alguma coisa, já teria feito.
E então, o general Cole Biscayne tranquilizou-se com esses pensamentos enquanto andava pelo caminho de pedras até a casa de sua irmã e inseria a chave na fechadura.
91
O dr. Osbourne havia engolido toda a saliva de sua boca, então, antes dele poder começar a nos contar o que sabia, ele serviu-se de um copo d’água, virou-o em um
grande gole, soltou o copo e disse:
– Eu nunca me encontrei com a mulher dos tubarões, Cassandra Lillo. Juro. Tudo que fiz foi usar algumas de suas descobertas. Não temos permissão para encontrar uns
aos outros.
– Quem não tem permissão para encontrar uns aos outros? – Ralph perguntou.
Silêncio total. O dr. Osbourne já havia nos contado mais do que deveria. Sua mão estava tremendo.
– Tudo que sei é que cada um de nós tem uma pessoa para a qual se reportar. Uma pessoa para contato. Nós passamos adiante nossa pesquisa para ele; ele passa adiante
para outra pessoa – o dr. Osbourne mudava seu olhar nervoso de Ralph para mim para Ralph novamente. – Não tem nada de ilegal nisso.
Parecia um jeito bastante incomum e ineficiente de se fazer pesquisas, mas não era sem precedentes. Na II Guerra Mundial apenas algumas poucas pessoas selecionadas
sabia exatamente o que estava sendo desenvolvido no Oak Ridge National Laboratory em Oak Ridge, Tennessee, ou seja, as peças e o combustível para uma bomba atômica.
Só quando a bomba estava completa que a equipe descobriu o que eles havia construído. Então é possível que Osbourne seja inocente, apenas mais um peão.
Eu imaginei que tipo de arma exigiria esse tipo de segredo hoje em dia, mas decidi por enquanto me focar no processo, e não no produto.
– Então – eu disse, – Cassandra mandou para você as descobertas dela. Para quem você mandou as suas descobertas?
– Um homem chamado Kurvetek. Dr. Octal Kurvetek.
– O que você sabe sobre ele?
– Nada, exceto que ele trabalha junto com Victor Drake.
– E você trabalhava a partir do Edifício B-14? – eu disse. Osbourne confirmou.
– Escute com atenção – eu disse. – Eu quero que você me diga o que acontecia no Edifício B-14. Por que alguém colocaria fogo nele?
– É lá que reuníamos todas as descobertas, mantínhamos todos os arquivos, toda a pesquisa – ele se aproximou do dispositivo. – E essa coisa. O protótipo. Nós mantínhamos
tudo registrado em papel, para que ninguém pudesse invadir o sistema. O governo estava preocupado com os chineses.
Em minha cabeça tentei juntar os fragmentos de informação que havia juntado até então, mas eles ainda estavam desordenados.
– Esse protótipo – eu disse, – ele faz mais do que apenas sentir impulsos eletromagnéticos neurais, não é?
Ele acenou com a cabeça nervosamente mas não disse nada.
– Eu sugeriria que você fosse um pouco mais proativo – Ralph disse para o dr. Osbourne, que esfregou os dedos ansiosamente uns nos outros em resposta.
– Conte para nós sobre a ligação com a tecnologia MEG – eu disse. Ele olhou para Ralph, que estava se inclinando para frente, sua camisa esticada contra seus músculos
no pescoço. Os olhos do dr. Osbourne estremeceram quando ele continuou:
– O dispositivo usa os mesmos princípios básicos da magnetoencefalografia, ou como você disse, tecnologia MEG. Uma máquina de MEG é muito grande para ser usada em
campo, e um paciente precisa sentar abaixo dela sem se mover por algumas horas. Ela também precisa de temperaturas criogênicas e uma sala blindada para bloquear
outras interferências...
– Então é aí que entram os tubarões – eu disse, pensando alto e interrompendo inadvertidamente o dr. Osbourne. – Tubarões não precisam de nada disso. Eles conseguem
identificar os sinais instantaneamente, na hora, usando a substância parecida com gelatina em seus órgãos eletrossensoriais.
– Mucopolissacarídeos – ele disse com um aceno.
– Meu ponto é: tubarões não precisam de temperaturas criogênicas ou dispositivos blindados. E eles fazem isso a longas distâncias.
– Exatamente – disse o dr. Osbourne. – Então, combinando um dispositivo de mira guiado por laser com a engenharia neuromórfica e biogenética desenvolvida a partir
da pesquisa eletrossensorial em tubarões, e incluindo a tecnologia de magnetoencefalografia, nós criamos uma versão inorgânica dos receptores e caminhos neurais
das ampolas de Lorenzini dos tubarões.
Surpreendentemente, eu estava compreendendo o que ele estava dizendo. Mas havia mais, tinha que haver mais.
– E quanto ao césio-137?
– Esse foi um dos nossos problemas – ele andou e apontou para o dispositivo. – Vê essa parte removível? – ele levou um momento para deslizar a unidade de césio-137
da parte de baixo do dispositivo. – Nós não éramos capazes de descobrir como impedir que quantidades mínimas escapassem; apenas durante o uso, você entende. Estamos
perfeitamente seguros agora – ele recolocou o césio-137.
– Ok – eu disse. – Eu sei que quando os neurônios em nossos cérebros disparam sinapses, eles criam impulsos eletromagnéticos mínimos. É isso que o MEG registra.
Mas como tudo isso se encaixa?
– Com os recentes avanços no entendimento de como sinais hemodinâmicos e eletrofisiológicos se relacionam um com o outro...
Ralph colocou suas enormes mãos na cintura e ficou como um sargento instrutor.
– Ele está enrolando a gente, Pat – quanto mais irritado Ralph aparentava, mais Osbourne parecia se abrir. Ralph deve ter percebido isso e estava entrando na jogada,
ou ele estava realmente ficando incomodado. Difícil dizer.
– Fale pra nós sobre os sinais cerebrais – eu disse para o dr. Osbourne. Ele esfregou os dedos nervosamente e se afastou discretamente de Ralph.
– Sinais hemodinâmicos e eletrofisiológicos são diferentes processos dentro do cérebro, jeitos diferentes de responder a estímulos. Estudando a correlação espacial
e temporal dos dois processos diferentes, nós podemos entender melhor quais impulsos neurais se relacionam com quais tarefas cognitivas.
– Espere um minuto – eu olhei para o dispositivo repousado no tapete da sala de estar do dr. Osbourne. – Você não está dizendo que essa máquina pode ler as mentes
das pessoas?
– Não, não, não. Nada tão específico.
– Então de jeito nenhum? Nem mesmo falando de um modo geral?
– Não – ele parou, no entanto, e seus olhos passearam pela parede oposta. Eu tive que acreditar que ele estava pelo menos considerando a possibilidade. – Teoricamente,
eu acho... essa linha de pesquisa pode explorar a possibilidade, mas isso ainda precisaria de décadas – pensei na DARPA e em sua pesquisa sobre sistemas de armas
teóricas do futuro. Eu senti como se estivesse lentamente vendo todos os fios sendo tecidos juntos, mas eu esperava estar errado.
Ralph franziu a testa.
– Mas você está dizendo que isso pode mapear o jeito que alguém pensa.
– Esse é um jeito de dizer, sim, identificando padrões neurais específicos. Mapeando a assinatura neural individual de uma pessoa, o governo
poderia identificar alguém pela única coisa que ninguém poderia esconder, ou mascarar ou disfarçar: suas ondas cerebrais.
Ralph deve ter compartilhado dos meus pensamentos.
– A polícia poderia usar isso ao invés de reconhecimento facial – ele disse. – Instalar isso em qualquer lugar.
Um pensamento tenso começou a coçar no fundo da minha cabeça: e se esse dispositivo pudesse ser instalado na próxima geração de satélites da National Geospatial-Intelligence
Agency? A NGIA seria capaz de mapear os padrões neurais das pessoas, e como a tecnologia poderia “enxergar através” de construções ou detritos, ela poderia localizar
e identificar alguém tanto dentro de algum lugar, ou fora, ou escondendo-se em uma caverna. Era o projeto de vídeo global de Calvin levado ao extremo.
O toque do telefone de Ralph me trouxe de volta para a conversa. Ele olhou para o número e foi para outro cômodo para atender a chamada.
E então a última martelada caiu em minha cabeça. Ainda seria teórico, é claro, mas se algum dia se tornasse possível...
Lembrei do que Tessa havia dito.
Pense como Dupin.
Por mais impossível que pareça, ocorreu, então deve ter sido possível. Eu tinha que levar isso em conta.
– Rigel – eu disse, optando por familiaridade e esperando que isso o mantivesse pensando, – o dispositivo poderia ser calibrado para fazer mais do que simplesmente
identificar e mapear o padrão de impulsos neurais?
Ele ergueu suas sobrancelhas.
– O que você quer dizer?
– Ele poderia ser usado para afetar esses sinais neurais? Alterá-los? Perturbá-los de algum jeito? – ele balançou a cabeça. Com mais urgência, reformulei minha pergunta.
– Pense. Existe algum jeito de esse dispositivo ser usado para identificar uma pessoa pela assinatura neural individual de sua atividade cerebral, e então de algum
jeito perturbasse essa atividade?
– Você quer dizer causar um acidente vascular cerebral?
– Sim, causar na pessoa um derrame. Ou talvez causar outros danos cerebrais irreversíveis que possam afetar o comportamento.
– Não consigo ver como... – ele balançou a cabeça. – Não.
– Tem certeza?
– Absoluta. Eu não consigo pensar em nenhum jeito em que você pudesse...
Ralph voltou para a sala.
– Talvez com o césio-137? – eu disse. – Ou talvez com a mira a laser? Não digo que seja possível agora, mas seria teoricamente possível? Você é PhD em neuropatologia.
Seria possível?
– Não, claro que não. Você precisaria... – ele olhou para o vazio por um longo momento, e então, finalmente, seus olhos tremeram, e seu rosto ficou pálido. – Oh...
Era isso. Era tudo que eu precisava ouvir.
– Ralph, precisamos tirar o dr. Osbourne daqui.
– O quê? Por que?
– Essa é minha casa – o dr. Osbourne exclamou. – Vou ficar aqui...
– É para sua segurança. Eles virão atrás de você. Você sabe demais.
Escute, você tem alguma parte da sua pesquisa aqui, ou você mandou tudo para o Edifício B-14?
– Eu tinha alguns arquivos comigo na conferência. Eu estava...
– Onde estão?
– Sr. Drake – ele estava gaguejando agora. – Ele passou aqui cerca de 30 minutos antes de vocês chegarem. Dei tudo a ele. Oh, não... eu não acredito que eu...
Fiz um sinal para Ralph.
– Leve Rigel para o escritório local, coloque alguns agentes para protegê-lo, então vá atrás de Drake e esse cara, Kurvetek. Descubra quem são os outros pesquisadores.
Precisamos levar todos para custódia de proteção. Mas mantenha isso o mais discreto possível. Nós ainda não sabemos quem está envolvido, e pode ser alguém no Bureau,
ou talvez no departamento de polícia.
– Você acha que Drake pode ser Shade? – Ralph disse.
Agarrei o dispositivo, coloquei-o de volta na grande sacola de academia.
– Não. Eu tenho outra pessoa na cabeça. Só leve o dr. Osbourne para o escritório local, garanta que ele vai ficar seguro. Daí vá procurar Drake. Peça para Margaret
ajudar você, ela é a única em quem podemos confiar.
– Margaret?
– Ela não é Shade.
– Você não está fazendo muito...
– Confie em mim, Ralph.
– Onde você vai?
– Encontrar Lien-hua – amarrei a sacola com o dispositivo dentro e carreguei-a até a porta. – Melice pediu por ela pelo nome. Eles a conhecem. Ela não está segura.
No caminho, saindo pela porta, meu telefone tocou. Uma voz eletronicamente alterada disse:
– Você tem algo que eu quero, dr. Bowers.
– Shade – eu respondi. – Eu estava esperando sua ligação.
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– Eu posso garantir para você – disse Shade, – que não sou o único procurando por isso.
– Ótimo. Vamos nos encontrar. Você leva alguns dos seus amigos; eu levo alguns dos meus. Nós fazemos uma festa – dei a partida no motor e saí pela rua.
– Dr. Bowers, por favor. Eu não quero machucar você.
– Oh, você vê? Isso não foi muito esperto, ameaçar um agente federal. Depois que eu pegar você, isso não vai ficar muito bem no seu julgamento.
Shade ignorou o que eu havia dito.
– Você precisa entender que isso vai muito além do que poderia imaginar. O único jeito de proteger você mesmo e as pessoas que você gosta é me entregando o dispositivo.
Vou dar para você uma hora e um lugar. Se você fizer o que estou dizendo, nunca mais vai ouvir falar de mim ou do meu pessoal novamente. Mas se você me fizer ir
pegar, não vai terminar bem para você.
– Pode vir – eu disse.
E então desliguei o telefone.
Clichê ou não, com certeza foi muito bom dizer isso.
As coisas estavam começando a ficar interessantes.
O general Cole Biscayne se cansou do reality show idiota que estava assistindo e desligou a televisão de sua irmã. No instante em que o volume sumiu, ele ouviu uma
voz atrás dele, e não era sua irmã falando.
– Faz bastante tempo, Cole.
E essa foi a última coisa que Cole Biscayne ouviu, porque Sebastian Taylor, o assassino que Cole havia treinado havia mais de trinta anos, o homem que havia sido
governador da Carolina do Norte e estava agora na lista dos mais procurados do FBI, disparou a Glock que estava segurando, a bala na parte de trás da cabeça do general
saiu pelo olho direito, e o cadáver fresco do general Cole Biscayne caiu para frente sobre o exuberante tapete cor de limão da sala de estar de sua irmã Beverly
Sebastian Taylor guardou sua arma.
Pronto.
Isso finalmente havia sido resolvido. A irmã do general o encontraria mais tarde quando chegasse em casa. Uma pena ele ter feito tanta bagunça no lugar.
Agora era hora de visitar Cassandra Lillo e resolver mais uma parte do negócio.
Liguei para Lien-hua e descobri que ela havia voltado para o hotel. Disse a ela para me esperar lá, e então disquei o número de Tessa mas só consegui a caixa postal.
Deixei uma mensagem para ela me ligar assim que pudesse.
Eu não estava querendo checar a localização de Tessa novamente, mas se Shade estava ameaçando as pessoas de quem gostava, eu precisava descobrir onde ela estava.
Então, mesmo sabendo que ela me odiaria por fazer isso, liguei para a divisão de crimes cibernéticos e pedi a eles para verificar o GPS do telefone dela, e após
alguns minutos na espera, descobri que ela ainda estava a 33 mil pés de altura, a 45 minutos de Denver. Ótimo. Eu estava realmente feliz pelo voo dela ter atrasado.
Tessa estava segura.
As principais vias da cidade estavam travadas e o trânsito só estava piorando, então deixei a rodovia para trás e comecei a fazer meu caminho pelas ruelas de San
Diego.
Liguei para meus pais e descobri que já estavam no aeroporto.
– Escute – falei para o meu pai, – vou mandar alguns policiais encontrarem vocês aí. Vá com eles até que as coisas fiquem mais calmas aqui. Vou tentar ir para casa
amanhã – ele concordou, nós desligamos e enquanto cruzava um farol amarelo, liguei para meu amigo tenente Kurt Mason, do Departamento de Polícia de Denver, e expliquei
o que estava acontecendo.
– Kurt, mande dois policiais se encontrarem com Tessa e meus pais, Mar-tha e Conor, no aeroporto. Volto assim que puder, provavelmente em um dia ou dois. Vou cuidar
de tudo quando chegar aí. Por favor, me garanta que Tessa e meus pais ficarão seguros até então. Se por algum motivo eles não tiverem no aeroporto, mande uma viatura
para a casa deles.
– Você tem minha palavra, Pat. Eu mesmo vou buscá-los.
– Obrigado.
Estava quase no hotel. Estaria com Lien-hua em questão de minutos.
Ao se aproximarem do clube, Riker colocou o braço em volta da cintura de Tessa. Seus músculos firmes se flexionaram ao lado dela, e era muito bom estar tão perto
de um garoto. Ela não se afastou.
A sensação era boa.
Muito boa.
Ela imaginou se era assim que se sentia uma jovem ave, quando deixava o ninho. Independente e livre, abrindo as asas contra o vento.
Excitante.
Muito excitante.
A emoção de andar no limite do proibido.
Na porta, uma montanha de homem com uma cabeça como um bloco de cimento levantou a mão. Sua voz parecia ter acabado de sair de um túnel do metrô.
– Identidades.
Riker pegou algo do bolso, se inclinou e deslizou para a mão do homem grande. Tessa teve o vislumbre de um papel verde. O homem fechou o punho sobre as notas e gesticulou
para entrarem.
Agora dentro.
– Obrigada – ela cochichou.
– Sem problema.
A música pulsante ocupava o ar, pulsava e ecoava por toda a volta de Riker e dela enquanto eles andavam por um corredor escuro. De cada lado, as sombras ocultavam
amantes impacientes agarrando-se sob a luz piscante cíclica.
Alguns dos caras acenavam na direção de Riker das reentrâncias do salão quando ele e Tessa caminharam para a pista de dança. Então Riker falou com ela, aumentando
a voz o suficiente para ser ouvido acima do barulho da música.
– Eles me conhecem aqui. Venho aqui muito.
A música eletrônica pulsava pelo ar, através das paredes, vibrava pelo chão. Tessa adorou. Adorou tudo.
– Esse lugar é animal – ela disse.
– É uma das minhas baladas favoritas.
Ela viu alguns caras estilo surfista, mas a maioria das pessoas no lugar parecia ter um toque mais escuro. Por um lado, Tessa sentiu-se em casa. Por outro, ela se
sentiu insegura. Então Riker pegou em sua mão e a levou para a pista de dança, para o turbilhão de corpos suados, dançando, vestidos em couro. Tessa havia estado
em baladas antes, mas nunca uma como essa. Nunca uma tão intensa.
Excitante.
Muito excitante.
A batida do trance rolou sobre ela e através dela. Parecia fluir por suas veias. Ela viu Riker fechar os olhos e se entregar à música, seu corpo inteiro encontrando
os ritmos condutores da canção. Ela queria sentir seus braços em volta dela novamente, então ela deslizou para perto dele. Deixou a lateral de sua perna tocar a
dele.
Suas pálpebras se separaram, ele sorriu de um jeito maroto. Puxou ela para perto.
Excitante.
Muito excitante.
Tessa tremeu. Talvez fosse o toque dele.
Mas talvez fosse o eco distante da voz de sua mãe naquele dia no lago congelado em Minnesota. Aquele aviso, fraco com os anos, dizendo a ela para voltar, para parar
de perambular para tão longe sobre o gelo.
Tessa fechou os olhos para as luzes de laser, ignorou os avisos abafados de sua infância, e dançou no tempo da música que pulsava sob sua pele.
93
Eu precisava ter certeza de que tanto Lien-hua quanto o dispositivo estavam seguros, mas também queria desmascarar Shade. Cheguei à conclusão de que poderia me usar
como isca, mas não se Lien-hua e eu estivéssemos no escritório local do FBI ou na central de polícia. Além disso, eu ainda não tinha tanta certeza em quem confiar.
Após considerar minhas opções, decidi que faria sentido para Lien--hua e eu encontrarmos um lugar para descansar e nos reagrupar por algumas horas onde pudéssemos
esperar ter notícias de Ralph sobre Victor Drake, e também ver se Shade iria entrar em contato comigo novamente. Afinal, eu o havia convidado para vir atrás e imaginei
que ele estava morrendo de vontade de aceitar o convite.
Então depois de Lien-hua e eu comprarmos uma comida, encontramos um hotel na beira da praia na periferia de San Diego chamado Surfside Inn.
Junto com as pequenas malas de roupa que cada um carregava, ela trouxe a comida e eu carreguei a sacola de academia contendo o dispositivo.
No balcão da frente, fizemos check in com nomes falsos.
– Um quarto? – perguntou o homem atrás do balcão.
– Sim – olhei para Lien-hua e cochichei de modo que só ela podia me ouvir. – Por razões de segurança.
– Ah, entendo – ela cochichou de volta. – Então você precisa que eu proteja você?
– Não foi isso que eu quis...
Ela virou para o homem atrás do balcão de registro.
– Pode ser uma suíte com dois quartos?
– Sim, senhora.
Alguns instantes mais tarde, ele deu para cada um de nós uma chave do quarto e quando a segui para o elevador:
– Motivos de segurança? Essa eu nunca tinha ouvido antes.
– O que eu posso fazer? Sou um cara que se preocupa com a segurança – ouvi ela murmurar algo sobre segundas intenções, e alguns momentos depois as portas se abriram
e nós saímos para encontrar o quarto 524.
Uma vez dentro da suíte, Lien-hua e eu levamos alguns minutos procurando por intrusos ou dispositivos de escuta – segurança nunca é demais. Então nos sentamos para
terminar de comer.
– Estou feliz que Tessa não esteja aqui – eu murmurei, depois de engolir uma mordida de cheeseburger. – Às vezes é bom comer alguma coisa que nunca teve raízes ou
folhas e não me sentir culpado por isso.
Lien-hua tomou um gole de sua Coca Cola light e atacou sua salada caesar de frango enquanto eu comecei a resumir para ela a visita ao dr. Osbourne. Eu não sou um
fã de dossiês, então tentei fazer o meu resumo o mais curto possível, mas antes que eu pudesse começar a explicar as ligações entre os diferentes ramos da pesquisa
científica, Lien-hua disse:
– Espere. Eu ainda estou confusa sobre como o dispositivo foi parar na central de polícia. Dunn por acaso acabou chutando o carro que o continha e então ordenou
que aquele carro fosse levado para o pátio da polícia? Isso não parece muito conveniente?
– Sabe, eu estive pensando na mesma coisa. Vamos checar a placa, ver a quem pertencia aquele carro.
Peguei meu laptop, mas Lien-hua segurou meu braço para me impedir.
– Tem certeza que você deveria usar isso? E se Shade for capaz de rastrear o uso do seu computador? – ela recolheu sua mão do meu braço.
– Impossível – eu disse. – Lembra do ÍCARO? Foi desenvolvido para operações em campo. Ele mascara a localização do usuário. Só vou usá-lo para acessar a Internet
– pressionei algumas teclas. – Vamos descobrir que é o dono daquele carro.
Usando o número de acesso da minha identificação federal, fiz login nos arquivos da polícia e procurei pelos registros do pátio; e um momento depois, Lien-hua apontou
com o dedo para a tela.
– É o carro de Austin Hunter!
– Inacreditável – eu disse. – Ele estava um passo à nossa frente o tempo todo.
Apertei mais algumas teclas.
– As multas de estacionamento são reais. Ele tomou todas elas desde que deixou os SEALs. Ele deve ter guardado todas e as deixado no carro para que chamasse atenção.
Ela pensou por um momento.
– Então, Hunter deveria saber que se ele fosse pego, o carro seria eventualmente levado para o pátio por causa das multas de estacionamento. O dispositivo seria
confiscado e armazenado seguramente na central da polícia e ele ainda teria uma moeda de troca para salvar Cassandra. Simples mas elegante.
– Acontece que a impaciência de Dunn ajudou a acelerar o processo.
– Muito impressionante.
A menção de Austin trouxe um clima sombrio para o quarto, e só depois de nos dedicarmos à nossa refeição silenciosamente por uns momentos é que pareceu certo voltarmos
aos negócios.
Finalmente, continuei minha explicação sobre mapeamento neural, rastreamento de identidade e as possibilidades tecnológicas de indução de dano cerebral ou de causar
a alguém um derrame com o dispositivo. Eu terminei dizendo:
– Eu sei que à primeira vista essa coisa toda parece inacreditável, como uma coisa de filmes de ficção, mas...
Lien-hua espantou meu ceticismo.
– Pat, telefones celulares eram ficção científica há 30 anos atrás. Tocadores de mp3 também, DVDs, laptops, bombas teleguiadas, aviões--espiões, fotografia digital...
a lista é grande.
– É verdade – pensando em suas palavras, percebi que praticamente toda a tecnologia de que eu precisava para realizar meu trabalho havia sido inventada durante a
minha vida.
– Mesmo uma década atrás – ela continuou, – quem imaginaria que poderíamos implantar eletrodos no cérebro de pessoas com deficiências físicas que os permitiriam
digitar, simplesmente pensando nas letras?
– O que é impossível hoje é lugar-comum amanhã – murmurei. Tentei imaginar quais tipos de avanços tecnológicos, médicos e bélicos nós veríamos pelos próximos 30
anos, mas era muito incompreensível até para imaginar.
– Além do mais – ela acrescentou, – se o que o dr. Osbourne contou for verdade, a tecnologia para esse dispositivo existe há anos.
– Só precisou de alguém para juntar tudo – eu disse. – Para fazer a ligação.
– Sim – ela disse lentamente. – Eu estou quase surpresa por ninguém ter tentado criar algo assim antes.
Nossa conversa me levou de volta ao pensamento perturbador que eu havia tido na casa do dr. Osbourne, mas na pressa de encontrar Lien-hua e ir para um lugar longe
da atenção, eu não havia tido a chance de pensar nisso.
– Lien-hua, o que é a coisa mais difícil de se fazer em um assassinato? Sem nem hesitar:
– Se livrar do corpo.
– Certo. Então, e se você não tiver um corpo.
– Como você poderia não ter um corpo?
– Não matando alguém.
Ela tomou um pequeno gole de sua coca.
– Não tenho certeza se estou entendendo.
Naveguei até os arquivos online do San Diego Union-Tribune.
– Lembra quando Hunter disse que ele não matou as pessoas?
– Sim.
– Estive pensando nisso. De quem ele estava falando? Quais pessoas? Eu imaginei que, como ele era o incendiário, as mortes sobre as quais ele estava falando deveriam
estar relacionadas aos incêndios, certo? – enquanto eu falava, eu encontrei o que estava procurando. As páginas de obituário de 22 de abril de 2008.
– Faz sentido, sim – ela se aproximou para ver a tela melhor. – Então, o que estamos procurando aqui?
– O primeiro incêndio foi reportado às 2h31 da manhã de 22 de abril de 2008 – apontei para um dos obituários. – E olhe, uma mulher não identificada foi encontrada
morta naquela noite na Euclid Avenue, a um quarteirão do incêndio.
– E isso prova o que?
– Nada. Mas vamos ver se existe um padrão – naveguei pelos obituários até a data do próximo incêndio, o de Chula Vista. – Óbitos por suicídio e mortes naturais não
necessariamente informam o local, mas eles devem informar a hora da morte... E aqui está... – eu li em voz alta: – “17 de maio, um homem não identificado morreu
de causas naturais entre 21h e 22h”; isso foi uma hora antes do incêndio daquela noite ter sido reportado.
Rolei a tela até a data do incêndio seguinte.
– E aqui, em 16 de junho, René Gonzalez morreu aproximadamente às 23h, duas horas antes de um incêndio ter sido suprimido na mesma rua. E... – naveguei até outra
data – aqui nós temos uma fulana em primeiro de agosto à 1h da manhã, 90 minutos antes do incêndio...
– Você decorou as datas, horas e locais de todos os incêndios?
– É mais fácil assim, aí eu não tenho que ficar procurando as coisas.
Então, viu? – continuei rolando a tela. – Aqui é um suicídio, a três quadras do incêndio.
Agora que eu sabia pelo quê estava procurando, foi mais rápido, então rolei pelas outras páginas de obituário, resumindo enquanto lia.
– Outro derrame... dois suicídios... e mais duas outras mortes não identificadas – terminei de rolar pelas datas dos incêndios e então disse: – Não acontece em todos
os incêndios, mas existem incidentes o suficiente para estabelecer uma correlação forte.
A voz de Lien-hua tornou-se um lamento suave, e ela disse as palavras que eu estava pensando, as palavras que eu esperava que não fossem verdadeiras:
– Eles estavam testando o dispositivo em moradores de rua.
– Sim, acho que estavam.
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Eu odiava ter que admitir, mas todas as evidências até agora me diziam que estávamos certos.
– Então, utilizar o dispositivo em alguém causa ou um derrame ou danos cerebrais severos suficientes para fazer com que a pessoa considere o suicídio.
– Provavelmente no córtex frontal – ela sugeriu. – Inibição de controle, produção de linguagem, julgamento. Destrua isso e não somos mais do que animais.
– E você se lembra? Hunter escolhia lugares próximos a paradas de trolley para que ele pudesse fugir. Então, se os homens de Drake estavam testando o dispositivo
nas proximidades, isso explicaria por que Graysmith e Dunn perceberam a alta taxa de mortes suspeitas entre mendigos próximos aos trilhos do trolley.
– Não matar alguém – Lien-hua murmurou. – Deixar que ele morra de causas naturais. Pense em San Diego, Pat: um centro de biotecnologia com centenas de milhares de
imigrantes não documentados. Qual cidade seria melhor para testar isso? Aqui você tem todos os cientistas que precisa, todos os recursos tecnológicos e biotécnicos
que precisa...
– E todas as cobaias – eu acrescentei. – Pessoas das quais nunca dariam falta: imigrantes, transeuntes, os mendigos – era terrível dizer, mas eu sabia que era verdade.
– O sistema não se importa se alguns vagantes ou imigrantes ilegais acabarem mortos. Os indigentes não saem nos jornais. Para o sistema, eles não existem.
– E com a alta taxa de doença mental nas populações de rua, quem iria reparar se o teste apenas causasse um leve dano cerebral? – ela parou.
– Esse dispositivo seria a arma perfeita para um assassino.
– Espere – eu disse, olhando para o dispositivo mortal repousado ao nosso lado. – Pense grande, Lien-hua. Nós já podemos usar lasers de satélites para rastreamento
e direcionamento, e em breve seremos capazes de fazer uma varredura de retina com os satélites de defesa. Se o governo pudesse instalar essa tecnologia na próxima
geração de satélites, eles teriam a habilidade de rastrear pessoas, seja por vídeo global ou por padrões neurais de sinapses, e então, a qualquer hora que eles quisessem,
causar à pessoa danos cerebrais permanentes ou um derrame e não deixar nenhum traço de evidência de nenhum tipo na cena do crime. Sem assassinato. Sem crime. A pessoa
teria morrido de...
– Causas naturais.
– Sim.
Um longo silêncio. Então Lien-hua disse:
– Se o que estamos falando for realmente possível, isso inclinaria a balança do poder mundial. Praticamente todas as medidas de segurança atuais se tornariam inúteis.
Guarda-costas, fechaduras, sistemas de segurança, vidro blindado, colete à prova de balas, tudo inútil. Um governo poderia assassinar qualquer um, a qualquer hora,
por qualquer motivo, e nunca ser envolvido.
Ficamos ambos em silêncio novamente. Eu não tinha certeza se queria explorar mais ainda as possibilidades. Parecia que quanto mais fazia, mais perturbadoras as possibilidades
se tornavam.
– Mas Pat, eu ainda estou pensando... por que você acha que Shade queria queimar o Edifício B-14? Por que não só roubar o dispositivo?
– A pesquisa. O governo poderia fazer outro dispositivo. Os arquivos todos viraram fumaça. Por isso eu queria o dr. Osbourne e os outros pesquisadores em custódia
de proteção. Agora que os arquivos e o dispositivo se foram, imaginei que Shade pudesse ir atrás dos pesquisadores.
Ambos refletimos sobre tudo isso por algum momento, e então ela disse:
– Mas por que os outros incêndios? Qual é a ligação?
Para ser sincero, mesmo com todas as peças do quebra-cabeça que eu já havia conseguido encaixar, eu não conseguia ver um motivo para os incêndios anteriores.
– Não sei. Parece que chamaria mais atenção para a cena do que apenas deixar a vítima morrer. Não faz sentido. Essa parte ainda é um mistério para mim.
Discutimos diferentes possibilidades, mas nenhum de nós conseguia desembaraçar mais fios do caso com base nesses fatos. Havia muito para se processar, para pensar.
E mesmo que a maioria do que Lien-hua e eu discutimos fosse apenas uma hipótese em desenvolvimento, eu sentia que estávamos no caminho certo. Afinal, a morte do
fulano seguia o padrão: dano cerebral, suicídio, e então o incêndio.
Pensei novamente em Dupin e no orangotango da história de Poe. Eu não me lembrava da frase em francês que Tessa havia dito, mas eu lembrava a tradução: ignorando
o que é e explicando o que não é. Precisávamos explicar o que aconteceu, por mais impossível que podia parecer. E a teoria em desenvolvimento que estávamos explorando
fazia exatamente isso.
Lien-hua levantou-se.
– Eu preciso deixar tudo isso ser digerido. Vejo você daqui a pouco. Vou tomar um banho.
Assim que ela entrou no banheiro, comecei a pensar novamente em como Shade e Melice descobriram que o dispositivo estava na central da polícia. Usando o ÍCARO para
mascarar a origem da minha ligação, e usando o microfone interno do meu computador, liguei para Angela Knight.
– Você pode verificar se alguém acessou as imagens do satélite do tiroteio com Hunter? – eu disse. – Usando imagem térmica de infravermelho poderia ser possível
ver Hunter escondendo o dispositivo. Vou mandar a localização exata da rua por e-mail para você.
– Vou checar – ela respondeu. – Retorno assim que eu puder. Enquanto eu esperava pela resposta, entrei em contato com Ralph.
Seu telefone estava desligado, mas deixei a ele uma breve mensagem resumindo o que Lien-hua e eu havíamos discutido. Então liguei para Graysmith: ainda nenhum sinal
de Melice, no entanto, eles encontraram um carro que ele havia roubado e as sobras da minha pequena criação em uma oficina mecânica na India Street. Tentei ligar
para Tessa novamente, sem resposta. Deixei outra mensagem.
Assim que havia feito tudo, Angela tinha me mandado um e-mail explicando que Terry Manoji era o único que havia logado na rede. “Ele deve ter tido a mesma ideia
que você, Pat”, ela escreveu.
Outro beco sem saída. Suspirei.
Tanto Lien-hua quanto eu estávamos quase sem parar nisso desde ontem de manhã, e eu podia sentir o estresse e a fadiga me dominando, então fui até o outro banheiro
da suíte para tomar um banho, e isso me deu a chance de pensar sobre as coisas.
Lien-hua estava segura, Tessa estava segura e, embora Shade e Melice ainda estivessem soltos, o FBI e o Departamento de Polícia de San Diego estavam na cola de Melice,
Osbourne estava a caminho da custódia de proteção e em breve Ralph estaria a caminho de falar com Victor Drake.
Naquele momento, pelo menos, parecia que Lien-hua e eu havíamos entrado no olho do furacão. Por toda nossa volta os ventos estavam rodando, mas nós havíamos encontrado
um breve momento de ar calmo. Talvez fosse apenas a calma que precede a tempestade.
Cerca de 15 minutos mais tarde, Lien-hua e eu nos encontrávamos na sala de estar da suíte. Limpos. Frescos. Começando a relaxar.
Eu havia colocado meu típico jeans e uma camiseta, ela também estava usando jeans e um moletom.
– Então, Pat – ela disse, sentando-se numa poltrona, – estou impressionada com o seu trabalho. Muito minucioso. Muito profissional.
– Você também. Muito profissional. Aliás, como está a perna?
– Boa. E seu braço, onde o cara mordeu?
– Bem. Seu pescoço?
– Meu pescoço está bem também – ela disse.
– Isso é bom.
– Sim.
– Estou feliz por estarmos bem – eu disse.
– Certo.
– Bom.
Brilhante, Pat. Você é um conversador sensacional.
O momento caiu no silêncio, o tipo de silêncio que pede a você para mudar de direção numa conversa.
– Então – eu disse, – acho que Ralph vai ligar em breve.
– Sim.
– E até lá, parece que nós temos algum tempo para...
– Tempo para que?
– Nós mesmos – eu mal podia acreditar que havia falado aquilo, mal podia acreditar que eu havia deixado aquilo escapar, mas havia, e na hora pareceu bom e eu não
me arrependi.
Só nós dois.
– Acho que preciso de um pouco de ar fresco – ela disse, levantando--se da poltrona para abrir a porta deslizante da varanda.
– Deixa comigo – passei por ela, abri a porta de vidro e deixei a fria noite de San Diego entrar.
Ouvi ela falar atrás de mim.
– Uau. Obrigada, Pat. Eu não acho que teria conseguido fazer isso por minha conta.
Eu me virei a tempo de vê-la soltar seu rabo-de-cavalo e deixar os cabelos caírem sobre os ombros como uma cachoeira que me convidava.
– Sem problema – um toque do perfume dela me envolveu. Andei até a porta aberta. – Quer que eu abra as cortinas também?
Ela parecia que estava prestes a responder, mas então encolheu sua mão com o punho solto e acenou para mim.
– Linguagem de sinais?
Ela acenou com a mão novamente.
– E isso quer dizer “sim”?
Mais um aceno com a mão. Empurrei as cortinas.
Apesar de ser fevereiro, a brisa que era soprada em mim tinha gosto de um doce sonho de verão. Eu sinalizei “sim” de volta para ela.
– Por favor, me ensine mais alguns sinais, acho bom eu conhecê-los.
– Leva um tempo para aprender.
– Não se menospreze, Lien-hua. Tenho certeza que você é uma professora muito boa – andei e sentei na beirada do sofá. – Pelo menos me ensine o alfabeto. Talvez eu
possa soletrar com as mãos e me comunicar com pessoas que são deficientes auditivas. Se algum dia eu precisar.
Ela olhou pelas portas abertas em direção ao mar, e então de volta para mim.
– É tão difícil quanto aprender uma língua estrangeira.
– A Tessa é boa em línguas estrangeiras. Ela sabe latim. E está aprendendo francês. Talvez esteja no sangue.
Isso provocou um leve sorriso.
– Ela é sua enteada, Pat.
– Ah, é. Acho que você me pegou nessa. Então, como é? – eu mexi meus dedos rapidamente no ar, inventando minha própria linguagem indecifrável.
– Não está muito bom.
– Viu? – eu disse. – Eu preciso de ajuda.
– Engraçado. Margaret me disse exatamente a mesma coisa semana passada.
– Isso sim, eu acredito.
Finalmente Lien-hua suspirou e sentou-se na outra ponta do sofá.
– Ok, Pat, preste atenção. “A” é assim – ela lentamente dobrou seus dedos para formar a letra A em linguagem de sinais.
Eu imitei seu gesto.
– Daí, B.
De novo, eu fiz como ela fez.
– C.
Eu repeti o C.
Então ela me mostrou o D, daí o E, e todo o resto, cada vez esperando o suficiente para que eu repetisse o sinal. Após termos feito todo o alfabeto, ela disse:
– Ok, agora você tenta. Veja quantas você consegue lembrar.
Eu consegui fazer até o Q antes de me perder.
Ela fez de novo o alfabeto para mim, mas dessa vez eu só consegui repetir até o M.
– Viu? Eu disse que não era fácil.
– Me ajuda. Eu sou um bom aluno.
Ela me olhou gentilmente.
– O melhor jeito para aprender é fechando os olhos.
– Sério?
– Sim. Feche os olhos.
Fechei meus olhos e esperei ela mandar eu começar. Eu não podia entender como isso ajudaria, mas enquanto isso me intrigava, ouvi o som suave do movimento quando
ela deslizou para perto de mim no sofá.
E então, senti sua mão calorosa sobre a minha. Os dedos dela gentilmente, cuidadosamente modelando os meus para formar a próxima letra.
– N – ela disse, e então as próximas: – O... P... – uma letra de cada vez, seus dedos guiavam os meus através do restante do alfabeto.
– Vamos começar do começo de novo – eu disse, meus olhos ainda fechados. – Acho que ainda não decorei direito.
Sem nenhuma palavra, Lien-hua conduziu meus dedos lentamente pelo alfabeto inteiro. Cada letra que ela formava fazia o resto do mundo recuar para cada vez mais longe.
E cada vez que nossos dedos flexionavam e se dobravam juntos, meu coração acelerava. E quando havíamos acabado, abri meus olhos.
– Feche-os novamente – ela disse delicadamente.
Eu não que discordar, então fiz como ela pediu.
Com meus olhos fechados, meus outros sentidos pareciam mais agu
çados. Eu conseguia ouvir as ondas suaves batendo contra a costa cinco andares abaixo de nós, e o farfalhar macio das folhas de palmeiras ao vento. Por toda a minha
volta, eu sentia o cheiro onipresente da primavera de San Diego girando, colorindo, cobrindo a noite. E é claro, com meu tato, eu podia sentir os dedos sábios de
Lien-hua guiando e ensinando os meus.
Após termos terminado o alfabeto, ela disse:
– Continue com os olhos fechados – ela me fez acenar com a mão. – Isso é “olá”.
– Essa é fácil – acenei para ela.
– Muito bom – ouvi um sorriso através de suas palavras. – Espero que esteja decorando isso.
– É um pouco difícil. Vou fazer o melhor que posso.
– E isso é “Como vai você?” – senti seus dedos, cheios de confiança, cheios de graça, deslizarem sobre os meus. Repeti as palavras fazendo o gesto sozinho.
– Isso é “por favor” – ela me conduziu pelo sinal. Eu o repeti, e então ela parou por um longo momento, sua mão descansando sobre a minha. Ouvi sua respiração suave
ao meu lado e senti o cheiro de seu xampu, um cheiro vivo de flores do campo. Eu podia quase sentir as batidas do coração dela, surgindo do meio da escuridão dos
meus olhos fechados.
– Isso – ela disse, – é o sinal para “chegue mais perto” – sua voz havia diminuído para um sussurro.
– Chegue mais perto – eu disse, e sinalizei. A mão de Lien-hua continuou sobre a minha. Um toque discreto de vento soprou contra minha bochecha e as batidas ansiosas
do meu coração causaram arrepios nas minhas costas.
– E isso – ela disse – é “estou aqui para você” – ela deixou seus dedos me ensinarem.
– Estou aqui para você – eu disse com palavras e com os dedos. Ela não tirou mais suas mãos das minhas.
– Preciso de você – ela disse, e gastou o tempo me ensinando o sinal.
– Eu preciso de você – repeti com minha boca e com minha mão. Seus dedos dobravam-se levemente em torno dos meus, sem soltar, embora agora ela tenha parado de me
ensinar a linguagem de sinais. Ela colocou sua outra mão gentilmente contra meus olhos fechados.
– Não abra – ela disse. – Ainda não – o sentimento por ela que eu vinha tentando calar por meses ressurgiu, me dominou e se tornou uma melodia incansável me prendendo
mais e mais ao momento.
– Segunda à noite, depois que trouxe Tessa de volta para o hotel e vi você no corredor... – sua voz era um carinho fresco que me acalmava e me excitava. Uma de suas
mãos em minha mão, a outra sobre os meus olhos.
– Era isso que queria dizer para você, Pat, mas não conseguir encontrar as palavras. Eu queria dizer: “Preciso de você”.
Meu coração estava em chamas. O mundo se tornou um mar de alegria e maravilhas e promessas novas como o amanhecer.
– Preciso de você – sussurrei as palavras, e então acrescentei mais duas: – Chegue mais perto.
Eu disse as palavras e as sinalizei.
– Chegue mais perto – eu repeti novamente.
E novamente.
E ela veio.
E foi quando escutei a batida na porta.
Victor Drake havia acabado de imprimir a passagem de embarque do seu voo para as Filipinas e estava ocupado triturando papéis quando os três homens chegaram em sua
casa. Victor odiava a palavra capangas. Ele odiava a ideia de usar capangas. E mais ainda, ele odiava ter que dar dinheiro para seus capangas. Mas era exatamente
isso que ele estava prestes a fazer.
Ele viu seus carros passarem através do monitor de vídeo das câmeras de vigilância do portão da frente, então ele desceu as escadas para receber seus capangas em
sua casa.
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Quando ouvimos a batida, Lien-hua e eu pulamos do sofá, sacamos nossas armas e nos aproximamos da porta que saía para o corredor.
Agora, estávamos cobrindo os dois lados da porta. Eu silenciosamente contei até três com meus dedos, então abri a porta, agarrei a pessoa que estava fora, puxei
para dentro do quarto e a coloquei no chão imobilizado antes que a porta batesse contra a parede.
– Ei! – o cara gritou. – Sou só eu. Sou só eu.
Aliviei a pressão, guardei minha SIG, vi Lien-hua fazer o mesmo.
– De quem é o envelope?
– Eu não sei. Um mendigo que trouxe, disse que alguém deu a ele 50 paus para entregar para mim. É isso. É tudo que sei. Agora, por favor.
Peguei o envelope e me afastei.
– Ele falou para você o quarto? Ele falou para qual quarto entregar? O homem da recepção levantou-se, balançando a cabeça.
– Não. Apenas falou da moça oriental e do cara que precisava se barbear. Só isso. Eu juro.
Meu nome estava impresso na frente do envelope.
– Tá certo – peguei algum dinheiro no meu bolso e dei para ele. – Nós preferimos não ser perturbados.
– Vou me lembrar disso – ele murmurou enquanto voltava pela porta e ia embora esfregando seus pulsos.
Fechei e tranquei a porta.
– Alguém sabe que estamos aqui, Lien-hua, mas parece que não sabem em qual quarto.
– Shade.
Acenei com a cabeça.
– Provavelmente. Ele pode ter seguido o porteiro; vamos ficar ligados, de qualquer jeito.
Ela olhou para o envelope.
– Você acha que devemos abri-lo?
– Não, mas eu nem sempre faço o que deveria – cuidadosamente, levei-o para o banheiro e segurei-o sobre a pia, no caso de haver pó ou veneno dentro. Mas parecia
apenas algumas folhas de papel.
Soltei o colchete de metal, abri o envelope e um pedaço de papel e uma foto do tanque estilhaçado no armazém deslizaram de dentro. No pedaço de papel estava escrito
“Você não percebeu uma coisa, dr. Bowers”. Estava assinado “Shade”. A letra de mão parecia ser a mesma das palavras na parede do armazém.
Enquanto olhava para a foto dos escombros do tanque, pensei em algo.
– Lien-hua, na sala de interrogatório, Melice sussurrou algo para você. O que ele disse?
– Ele me perguntou se eu achava que afogamento era um jeito terrível de morrer – ela ficou em silêncio por um momento e então acrescentou: – A verdade é que alguém
próximo de mim se afogou há muito tempo, e eu tive a sensação de que Melice sabia disso e por isso me fez essa pergunta.
– O que você disse para ele?
– Eu perguntei se foi por causa disso que ele afogou as mulheres. Porque ele achava que seria um jeito terrível de morrer – então ela olhou para mim. – Por que?
No que você está pensando?
– Estou achando que as coisas não são o que parecem ser – guardei a fotografia no bolso. – Preciso voltar ao armazém.
– O quê?
– Acho que sei quem Shade pode ser.
– Quem é?
– Preciso confirmar antes.
Ela começou a amarrar os cabelos novamente.
– Vou também.
– Não, não. Você tem que ficar aqui com o dispositivo.
– Você não pode ir sozinho, Pat.
– Lien-hua, eu ainda não sei em quem posso confiar no departamento de polícia ou mesmo no FBI. Se Melice e Shade virem uma grande equipe chegando, eles vão desaparecer
e isso vai continuar. Eles podem ir atrás de Tessa. Eu não posso deixar isso acontecer.
– Mas pode ser uma armadilha.
– Claro que é uma armadilha, por isso que nós dois não podemos ir pra lá, e por isso que não devemos mesmo levar o dispositivo. Você precisa ficar aqui com ele.
Além do mais, se um deles estiver no armazém e o outro vier aqui, podemos pegar os dois. Dividir e conquistar. Eu vou ficar bem. Isso vai acabar. E vai acabar hoje.
– Mas Pat...
– Shiii – toquei com o dedo levemente em seus lábios. – Isso é linguagem de sinais para “vejo você daqui a pouco, não se preocupe comigo, conversamos quando voltar”.
Ela parecia que ia brigar comigo, mas no final repetiu meu sinal recém--inventado e pressionou seu dedo contra meus lábios. Então ela me deu um beijo rápido no rosto.
Apenas no rosto, foi só isso. Mas era um beijo, e parecia íntimo, familiar e natural. E me deu coragem e afiou minha determinação.
– Vejo você mais tarde – eu disse.
– Estarei aqui – então ela acrescentou: – Não se preocupe. Eu sei me cuidar.
– Eu sei que você sabe.
Fui até o quarto mais próximo da suíte e olhei para o dispositivo uma última vez. Eu pensei que talvez fosse melhor se Lien-hua e eu não deixássemos todos os nossos
ovos em uma só cesta, então eu removi o césio-137 da parte de baixo do dispositivo do mesmo jeito que o dr. Osbourne havia me mostrado, deslizei o dispositivo e
meu celular de volta para a sacola de academia e, levando apenas o unidade de césio-137 comigo, saí para encontrar Shade.
No escritório de sua casa, perto de sua biblioteca, Victor estava entregando as malas de dinheiro para Geoff e o dr. Kurvetek quando um homem do tamanho de um zagueiro
da NFL arrombou a porta e mirou uma arma para sua cabeça.
– FBI – disse o cara. – Calem a boca. Deitados. E talvez eu não atire em vocês.
Victor jogou-se ao chão enquanto os dois capangas na sala apenas olharam para o agente.
– Eu disse deitados – o grandalhão rosnou, mirando sua arma em Geoff. Então, de sua posição sobre o tapete, Victor viu Suricata, que havia ido ao banheiro alguns
minutos atrás, pegar uma faca longa de sua jaqueta e dar mais um passo silencioso na direção das costas do agente do FBI. Mas Victor deve ter olhado por tempo demais
para Suricata, pois o agente percebeu os olhos de Victor e virou-se para encarar seu agressor.
Suricata foi rápido, derrubando a arma do agente e atacando com a faca, empurrando-o de costas para a sala. O dr. Kurvetek se aproveitou do breve tumulto e correu
por eles até o corredor. Enquanto isso, Geoff levantou-se, sacando uma arma.
Victor queria fugir, mas ele realmente tinha que triturar o resto daqueles papéis. É claro, seus capangas poderiam parar esse cara, e ele poderia triturar os papéis
em alguns minutos. Dois contra um.
Ele decidiu esperar.
Suricata levantou sua adaga de 25 centímetros feita sob encomenda e partiu para cima do agente do FBI.
– Sou Suricata. É importante saber o nome do homem que vai matar você.
– Ah, bom, nesse caso, sou Ralph – o cara disse. – Vamos dançar? Suricata girou a faca em sua mão, jogou-a para o ar, então a agarrou de volta e fintou na direção
do agente do FBI chamado Ralph. Geoff estava mirando sua arma, mas com Suricata e Ralph se movimentando e virando, ele parecia não conseguir disparar um tiro certo
no agente. Suricata espetou com a faca em Ralph, e por um instante parecia que ela se enterraria no peito do agente, mas Ralph girou para longe da lâmina e disparou
um punho massivo na barriga de Suricata, pegando-o de surpresa. Mais dois golpes no estômago, um nas costas, e Suricata estava no chão.
– Parado aí – disse Geoff, mirando com cuidado em Ralph e sorrindo.
– Hum... homicídio por policial. Sempre odeio ver isso...
Mas uma mulher de olhar intenso saiu da biblioteca e o cortou no meio da frase:
– Largue sua arma, oficial Rickman. – Victor a reconheceu da reunião do Comitê de Supervisão do Projeto Rukh. Outra agente do FBI.
Geoff hesitou e a mulher continuou:
– Não me tente. Eu não gosto de policiais corruptos, e atirar em você economizaria muito dinheiro dos contribuintes. Largue agora.
Geoff fez contato visual com ela, lentamente baixou sua arma e Victor começou a deslizar pela parede em direção à porta enquanto Ralph algemava Suricata e a mulher
algemava Geoff.
Victor estava quase na biblioteca. Ele ainda poderia escapar.
– Por que demorou tanto, Margaret? – disse Ralph.
– Eu queria que você se divertisse um pouco primeiro, agente Hawkins.
– Bom, tem uma primeira vez pra tudo. Obrigado. Algum dia devolvo o favor – Ralph pegou a faca. – Que beleza. Precisava de uma faca nova.
Margaret viu Victor ao lado da porta.
– Indo para algum lugar?
Victor congelou.
– Não, não. Só queria agradecer. Esses dois homens invadiram minha casa e estavam prestes a...
– Ajudar você a terminar de triturar esses papéis? – ela gesticulou em direção à pilha de papéis da pesquisa ao lado do triturador. Victor observou ela começar a
folhear os arquivos. Então ela disse: – Acho que teremos que confiscar isso como evidência.
Ralph pegou a passagem de embarque da mesa de Victor.
– Filipinas, é? Ouvi falar que é um lugar legal. E não tem tratados de extradição com os Estados Unidos. Que conveniente.
E naquele momento, Victor Drake desejou, e como desejou, que ele não tivesse usado seu frasco de comprimidos.
Uma música acabou, ou pelo menos Tessa achou que acabou, e outra começou. Era difícil dizer. Cada música se misturava naturalmente com a seguinte.
A música e as pessoas dançando tornavam quase impossível conversar, então, eventualmente, quando Riker sinalizou para ela para segui-lo, ela agarrou-se em seus dedos
e o deixou conduzi-la por um mar de pessoas até um bar localizado do outro lado da curva, além de onde a banda estava tocando. O bar era longe o suficiente da pista
de dança para que as pessoas pudessem fazer seus pedidos para o barman e serem ouvidos.
Riker puxou uma cadeira.
– O que você quer? – ele perguntou a Tessa.
Por um momento, Tessa pensou em pedir uma bebida. Não seria sua primeira, mas ela não gostava do jeito que o álcool atrapalhava o pensamento dela, fazia a realidade
ficar estranha. Não, ela não queria isso. Não essa noite.
Essa noite ela queria saborear cada momento.
Ela balançou a cabeça.
– Vamos – ele sinalizou com um dedo para o barman e apontou para uma cerveja. – Eu pago.
– Eu não quero nada – ela disse novamente.
Ele olhou para ela com os olhos ardentes. As luzes do lugar piscavam, dançavam sobre eles.
– Corvos não bebem? – então ele colocou as mãos nos antebraços dela, gentilmente. Tão gentilmente. Um toque leve. Um sorriso cativante.
– A noite está só começando – ele disse.
A garotinha dentro dela sentiu-se correndo sobre o gelo.
Ele ligava para ela. Ligava mesmo. Sua ternura era a prova. Ela podia confiar nele. Ficaria tudo bem. Ele iria abraçá-la essa noite e ela iria abraçá-lo e seu coração
teria um lugar seguro para ficar.
– Tudo bem – ela disse finalmente, quando o longo momento trêmulo passou. – Mas só uma.
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O armazém pairava em minha frente como um imenso caixão na noite. Shade ou Melice estavam provavelmente me esperando. Talvez ambos.
Mas eu sei cuidar muito bem de mim mesmo quando preciso, e eu sabia que se eles estivesse aqui, seria minha melhor chance de pegá-los.
Vigilante e cuidadoso, saí do meu carro e me inclinei por baixo da fita de cena do crime. Então saquei minha SIG e minha lanterna de ` e me aproximei do grande caixão
negro.
Os criminalistas haviam acorrentando a porta do armazém, mas não demorei para arrombar a fechadura. Abri a porta, entrei no vazio empoeirado e analisei a cena. Bem
acima de mim, as janelas quebradas deixavam apenas lascas da luz da cidade entrarem no lugar.
Nenhum sinal de Shade ou Melice.
Com minha lanterna, localizei a janela por onde havia entrado após ter escalado a parede externa. Então passei a luz pela parede para encontrar a escada por onde
havia descido.
Percebendo... o que eu não estava percebendo?
Movi a luz em direção à área onde eu havia visto Melice pela primeira vez. Ralph estava à sua esquerda... o tanque com Cassandra estava na outra
extremidade do armazém.
Mexendo a lanterna como uma sabre gigante, andei cuidadosamente para frente. Eu podia ouvir o som fraco de goteiras em algum lugar. O ar solitário ao meu redor pegava
o som e brincava com ele, aumentando-o, fazendo as inocentes gotas d’água soarem como a batida molhada do coração do prédio. Tirando isso, completo silêncio.
Nenhum sinal de Shade ou Melice.
Após um momento, encontrei os restos do tanque onde Cassandra havia ficado presa por mais de 12 horas. Pisei sobre os restos e entrei onde era o tanque, ficando
onde ela havia ficado. Foi aqui onde ela gritou. Onde ela chorou.
O anel enferrujado ao lado do meu pé.
Pingando água delicadamente.
As filmadoras usadas para gravar a mulher ficavam escondidas na parede a cerca de quatro metros de distância. Iluminei a área com minha lanterna.
Os ângulos das câmeras em todos os oito vídeos eram iguais, então as câmeras foram montadas no mesmo lugar todas as vezes. Eu li no relatório dos criminalistas que
Melice havia usado duas câmeras, uma das quais ele havia movido após filmar Cassandra. Andei até a sala onde as câmeras estavam localizadas, garanti que ninguém
estava escondido para me surpreender, então encontrei a posição original das câmeras. Ambas foram colocadas em reentrâncias escuras na parede e não eram visíveis
de dentro do tanque.
Apenas dois pequenos buracos em uma parede cheia de sombras.
A quatro metros de distância.
Agucei minha audição para escutar qualquer indício de movimento, mas não ouvi nada. Se Shade ou Melice estivessem aqui, até agora haviam estado mortalmente imóveis.
Janelas, altas e do lado esquerdo... o brilho das janelas...
Tem algo que você não está percebendo, Pat. Pense.
A corrente repousava ao lado do meu pé, ainda presa ao anel de metal.
O último elo da corrente estava torto, aberto, arranhado. Acho que Ralph deve ter usado alguma ferramenta para abri-lo. Analisei a corrente, contei o número de elos.
Me abaixei, mirei o feixe de luz no lugar onde o anel de metal estava preso no fundo do tanque. Então virei e me deparei com a inscrição na parede.
Lembrando da água espalhando-se a partir do tanque pelo salão, deixei minha lanterna seguir as rachaduras no chão irregular se espalhando para longe do tanque.
O que eu não estava percebendo?
Pensei no suicídio do fulano, nos incêndios, no sequestro, na morte de Austin Hunter.
Mais uma vez, eu imaginei o que faria se alguém estivesse ameaçando machucar Lien-hua. Mesmo antes de ter a mão dela sobre a minha, mesmo antes de sentir nossos
dedos se entrelaçando ou de receber seu beijo delicado, teria feito qualquer coisa para salvá-la.
Qualquer coisa.
Enquanto me deixava pensar nela, os últimos dois dias se tornaram mais vívidos para mim, mais coloridos pelos meus sentimentos. Apontei a luz para o lugar no chão
onde ela tinham se inclinado para ajudar Cassandra.
Até onde eu sabia, Cassandra era a única a ter sobrevivido a esse tanque. Outras sete mulheres havia morrido bem aqui onde eu estava – todas nos últimos quatro meses;
começando por volta da mesma época em que o Ilusionista atacou Tessa, da mesma época em que Sebastian Taylor desapareceu. Na mesma época que Lien-hua veio para San
Diego pela primeira vez para criar o perfil do incendiário.
Motivos. Pingando água. Ecoando.
Minuciosa. Profissional.
Lien-hua encontrou a porta de saída no aquário.
Foi ela também que encontrou as luvas no lugar do incêndio de segunda-feira.
Mirei minha lanterna para a corrente, agora quebrada, novamente. Melice pediu por Lien-hua por nome. Ela foi quem tentou propor que Dunn seria Shade.
Fato. Ficção.
Ficção. Fato.
Alguém tinha que ter contado para Melice sobre o dispositivo. Você contou para Lien-hua que o dispositivo estava na sala de evidências. Ela cochichou algo para Melice
durante o interrogatório.
O bilhete de Shade dizia “Você não percebeu uma coisa, dr. Bowers”. Eu não percebi uma coisa.
Não, não, não.
Foi Lien-hua que se ofereceu para contar a Cassandra sobre a morte de Hunter. Ela abraçou Cassandra. Deixou-a chorar em seu ombro.
Psicopatas apenas veem outras pessoas como objetos para serem usados e então descartados...
Tudo que eu sabia sobre o caso estava começando a desmoronar.
Foi Lien-hua que rapidamente fez um curativo na mão de Melice com sua meia. Tão rapidamente. Era ali que ele tinha escondido o canivete, na mão que ela enrolou...
Não houve roubo, nem assassinato, nem crime, nem motivo, o quarto não estava trancado.
Agarrei a corrente. Puxei-a.
O quarto não estava trancado.
A testemunha ocular do julgamento de Melice em Washington foi assassinada... Lien-hua conhece Washington. Ela era detetive lá... O que Osbourne havia dito? O governo
estava preocupado com os chineses... Ela é chinesa. Ela está planejando uma viagem para Pequim.
Derrotando-o em seu próprio castelo.
Cada pensamento era uma traição contra meus sentimentos, contra meu mundo, contra tudo em que cheguei a acreditar sobre a mulher que me disse que precisava de mim.
Afasia semântica... usar as palavras que seus ouvintes querem ouvir. É um jeito de manipular pessoas.
Lien-hua foi quem nos levou para o armazém, em nas duas vezes em que Shade havia me ligado, Lien-hua não estava ao meu lado, não estava à vista. A realidade começou
a desmoronar.
Não, não poderia ser.
Sim, poderia.
Nada era como parecia.
Disparei em direção à porta com um pensamento rasgando minha mente: Lien-hua era Shade e eu havia acabado de deixá-la sozinha com o dispositivo.
Creighton Melice colocou a sacola de roupa sobre a mesa de recepção no Surfside Inn.
– Com licença – ele disse para o homem trabalhando atrás do balcão. Após receber atenção, Creighton mostrou o distintivo do FBI que Shade havia dado a ele no Blue
Lizard Lounge, em novembro. – Estou procurando por duas pessoas que deram entrada aqui mais cedo hoje. Eles são suspeitos do atentado terrorista de ontem na base
naval. Imagino que tenha ouvido falar sobre isso.
O aceno nervoso do homem disse tudo.
– Tudo bem, então. Você os reconheceria. Uma oriental muito bonita e um homem que...
– Sim, eu conheço eles. Estão no quarto 524. O cara quase arrancou meu braço.
– É ele mesmo. Quarto 524, entendi. Vamos trazer um dos nossos homens para vigiar o balcão da frente enquanto eu subo lá. Preciso que você espere na sala dos fundos
e tranque a porta. Nos dê pelo menos 30 minutos. Estou sendo claro?
Mais acenos com a cabeça, então o homem afastou-se do balcão e, massageando seu pulso, desapareceu na sala dos fundos enquanto Creighton pegava a sacola de roupa,
entrava no elevador e apertava o 5.
Lien-hua fechou as cortinas e levou o dispositivo para o quarto da suíte. Ela deixou sua mente caminhar devagar por tudo que tinha acontecido nos últimos dois dias.
Cada momento se tornou mais uma flor, e em seu coração ela as colocou em um vaso e começou a organizá-las de um jeito que absorvia toda a luz que ela já tinha visto.
Ela desamarrou a sacola de academia.
Era isso que ela queria, não era?
Um recomeço? Uma chance de se apaixonar novamente?
Ela tirou o dispositivo de dentro. Apenas para vê-lo. Apenas para dar uma olhada.
Nos braços de Pat ela se sentiu mais forte e mais fraca do que havia sentido em anos. Isso era uma coisa boa ou ruim? Quem saberia? Sentimentos fazem isso, distorcem
e alteram nossos motivos, nossos sonhos. Ela ouviu a porta do quarto do hotel se abrir.
Um tremido de excitação e apreensão tomou conta dela. Ela pegou a arma caso não fosse quem ela estava esperando.
– Olá? – ela chamou. – É você?
97
Derrapei dobrando uma esquina e então afundei o pé no acelerador novamente.
Talvez eu estivesse errado. Talvez não fosse Lien-hua.
Eu tinha que estar errado. Sim. Eu tinha.
Um bom investigador não procura por evidências que provem sua teoria,
mas sim que as refutem.
E eu nunca tinha querido me refutar mais do que queria naquela hora. Eu precisava confiar nas evidências.
Evidências. Sim. Não conjectura. Eu estava desconfiando de Lien-hua apenas por causa das circunstâncias, eventos que podiam ser lidos de formas diferentes.
Confie nas evidências, não importa onde elas o leve.
Meus pensamentos retornaram ao começo, afunilando horas e horas de investigação em apenas alguns breves segundos.
Eu tinha que estar errado. Eu tinha.
As correntes. As câmeras. Os ângulos. Os vídeos.
Pontos cegos.
A sala de evidências.
Espere. A pessoa que foi conferir o dispositivo na sala de evidência era um homem. Não uma mulher.
Não era uma mulher. Não era Margaret. Não era Lien-hua. Mas eu precisava mais que isso. Precisava mais.
Você não percebeu uma coisa, dr. Bowers.
É, não percebi.
A escrita à mão no envelope, na parede. Eu havia visto a caligrafia de Lien-hua centenas de vezes, e mesmo que análise de caligrafia não seja minha especialidade,
dava pra ver que a letra não era dela. E os analistas já haviam determinado que não era de Melice. Então, a menos que existisse outro sequestrador do qual não soubéssemos...
Não apenas a caligrafia, o vídeo.
E então, tudo sobre o caso se revelou novamente. Todos os fatos começaram a ser montados em uma nova ordem. Minha cabeça estava finalmente se esclarecendo.
Os registros do AFIS foram alterados.
As imagens térmicas do satélite mostraram Hunter escondendo o dispositivo no carro. Foi assim que Shade soube que a polícia possuía o dispositivo.
Terry mencionou que Sebastian Taylor havia sido visto.
Dobra após dobra, meus preconceitos se revelaram.
Origami mental.
Dupin. Pense como Dupin.
O vídeo de Cassandra no tanque tinha exatamente um minuto e 52 segundos.
Ontem, Calvin me disse para parar de olhar pra os fatos e começar a olhar para os espaços entre eles. “Uma pessoa não pode entender adequadamente o movimento dos
planetas”, ele havia dito, “até que tenha identificado ao redor do que eles orbitam”.
Então, em torno do que tudo orbitava?
Do vídeo.
Sim. Essa era a chave para tudo. O vídeo de um minuto e 52 segundos de Cassandra no tanque.
E em um momento cristalizado, a forma final do caso se tornou clara. Não, Lien-hua não era Shade, afinal. Eu estava errado, estava errado. Graças a Deus estava errado.
Não, ela não era Shade.
Mas um antigo amigo meu era.
Nenhuma resposta vindo do outro quarto.
Lien-hua chamou de novo:
– Pat? É você?
Nenhuma resposta.
Ela segurou a arma firme, abaixou-se. Tentou escutar algum movimento.
– Pat?
Nenhuma resposta, exceto pelo clique de uma porta se fechando Para chegar na sala principal da suíte ela precisaria passar por mais um quarto. Ela deslizou para
dentro dele, certificou-se que o quarto estava vazio. Rapidamente verificou o armário.
Vazio.
Banheiro. Chuveiro.
Nada.
Debaixo da cama.
Vazio.
Agora para a sala principal da suíte.
Ela espiou pela curva e viu Creighton Melice parado calmamente ao lado da mesa.
– No chão! – ela gritou. – De joelhos!
Ele estava segurando seu vaso de flores moribundas. Ambas as mãos enroladas em gazes cheias de sangue e destruídas, os ferimentos espalhando sangue contra o vidro.
– Bonitas flores – ele colocou o vaso ao lado do bloco de anotações.
– Eu disse de...
Mas antes que Lien-hua pudesse terminar sua frase, o dardo acertou sua nuca.
Alguém mais. Tem mais alguém no quarto. Shade.
A mão de Lien-hua involuntariamente moveu-se para seu pescoço e ela arrancou o dardo enquanto se virava para ver se conseguia identificar o outro atacante, mas o
revoar da cortina disse a ela que a pessoa havia desaparecido na varanda. Quando Lien-hua virou-se de volta para Creighton Melice, ele estava em cima dela para se
vingar, arrancando a arma de sua mão, mandando-a girando para o chão. Então ele a acertou com um gancho estilizado e as costas da mão.
Ele havia estudado artes marciais.
Mas ela conhecia o tipo: Choy Li Fut28..
E conhecendo-o, era possível combatê-lo. Ela se inclinou contra seu soco e usou a força do impulso contra ele, empurrando-o para trás, então torceu seu braço até
suas costas. Ele conseguiu se soltar, mas só depois dela ter martelado sua lateral com dois socos brutais alternados que teriam deixado a maioria dos homens de joelhos.
Ele sequer piscou, apenas recuou e acertou com o ombro em seu rosto. Ela trombou em seu vaso, arremessou e o viu se despedaçar na parede.
Ele não sente dor. Você vai ter que nocauteá-lo.
Seu campo de visão começou a ficar embaçado.
O dardo. Ela havia sido drogada.
O mundo inteiro tombou para o lado, os sons e as cores ganharam vida, o tempo começou a se esticar e então envolvê-la, ela não tinha mais certeza do que era real.
Então Melice agarrou o braço dela, empurrou-a contra a parede e puxou-a para trás pelos cabelos para arrebentar sua cabeça no espelho pendurado do lado do armário,
mas ela o sentiu atrás dela, do seu lado esquerdo. Seria um chute difícil, mas ela já havia feito antes. Ela chutou, a perna subindo verticalmente, e arrebentou
seu pé no rosto dele. Ela ouviu o barulho do impacto, nenhum grito de dor, mas a mão que a segurava enfraqueceu e ela conseguiu se soltar.
Ele cambaleou para trás, ela o encarou, chutou uma vez a lateral de seu joelho esquerdo e quando ele se dobrou, ela encaixou outro chute em sua cabeça, então ela
sentiu suas pernas enfraquecendo, sua força se esvaindo.
– Não resista, Lien-hua – ele disse, se recuperando do chute e se preparando para atacá-la novamente. – É melhor se você se entregar. Só mais alguns segundos e você
ficará como eu. Não vai sentir nada.
Ela deu dois passos rápidos, chutou, acertou seu queixo, arremessou--o longe.
Os pensamentos dela tropeçavam uns nos outros, procurando por um lugar para ficar de pé, mas não encontrou posição. Lien-hua foi para cima dele, deu-lhe um chute
frontal no abdômen, um chute giratório nas costelas, e ele caiu.
Ainda consciente, no entanto.
E agora ele estava levantando.
Se você conseguir pegar sua arma, se conseguir, pelo menos, pegar a arma. Mas uma fraqueza sufocante tomou conta dela. O mundo à sua volta se tornou um círculo louco
e nebuloso por um momento duradouro que era, de algum modo, tanto mais devagar quanto mais rápido que o tempo real. Então, apesar de todos os esforços para continuar
de pé, ela começou a ir para o chão.
Melice ficou de pé, recuperando a arma dela e guardando-a em seu cinto.
– Está sentindo, não está? Está dominando tudo. Aposto que você está imaginando o que vamos fazer com você quando você finalmente desmaiar.
As pernas de Lien-hua pareciam estar derretendo e ela caiu no tapete. Ela piscou, tentando se concentrar. O sedativo paralisante estava tomando conta dela com rapidez.
Ela não podia se mover. Muito fraca. Impotente. Melice andou até ela, parou ao seu lado. Inclinou-se para perto.
– Você já está se sentindo como uma vítima? Caso não esteja, você vai se sentir. Eu tenho uma noite incrível planejada para você.
Ele andou para fora de seu campo de visão e Lien-hua tentou ficar de pé, mas tudo que ela podia fazer era girar sua cabeça para o lado. Ela viu Melice se abaixar
sobre uma cadeira no canto da sala e tirar algo de uma sacola de roupa.
– Ela está quase pronta, Shade – disse Melice.
Então, uma sombra pairou sobre Lien-hua enquanto alguém se aproximava e parava ao lado dela.
O mundo estava sendo engolido por um torpor faminto avassalador. Mas antes que o sono cinzento a cobrisse, ela viu Melice virar-se e andar em sua direção.
Um vestido de festa de seda vermelha estava nas mãos dele.
98
Tessa e Riker conversaram por um tempo no bar, então dançaram um pouco mais, voltaram para o bar, e dançaram de novo. O tempo não era nada ali. Só os momentos importavam.
Momentos compartilhados.
E então, Tessa não tinha a mínima ideia de quanto tempo tinham passado na balada quando Riker subiu com ela por uma escada de madeira localizada no meio do prédio.
Ela descobriu que precisava usar o corrimão para manter o equilíbrio. Ela havia bebido apenas alguns drinks, mas ainda assim, o mundo parecia estar levemente torto
para o lado.
A cada passo, ela podia sentir a música pulsando pelo chão, mas mais distante agora. O topo da escada era um outro mundo.
Ele chegaram a um corredor cheio de portas, bem acima da agitação da balada.
Agora a sós e não mais sob o feitiço retumbante da música, Riker sorriu. – É mais tranquilo aqui, né? Assim dá pra gente conversar. Por um momento ela ficou com
medo dele levá-la para um dos quartos, mas ele apenas sentou no topo da escada e bateu no chão ao lado dele. Ela juntou-se a ele.
– Então, se você estuda em Denver – ele disse, – o que você está fazendo aqui em San Diego?
A música. O mundo. Tudo estava levemente torto. Um pouco fora do equilíbrio.
– Hum, apenas visitando uns amigos da SDSU.
– Ah. Bom, você deveria ter me contado. Eles poderiam ter vindo também.
O coração dela estava pulando.
Batendo.
A música pulsante surgindo pelo ar. Ela estava sozinha com um garoto. Um garoto mais velho. Um garoto bonito que gostava dela.
Ela deixou seu olhar passar pelo queixo dele, pelas bochechas. Até que seus olhos encontraram os dele.
– Talvez eu não quisesse mais ninguém por perto.
Então ela fechou os olhos e o beijou profundamente, e enquanto o fazia, no fundo da sua cabeça, bem abaixo da emoção do momento, umagarotinha sentiu o gelo rachar
sob seus pés.
Corri em disparada pelo lobby do hotel. Muita gente esperando o elevador. Voei pelas escadas.
Quinto andar.
Então pelo corredor. Saquei minha arma. Quarto 5244. Peguei a chave, deslizei pela fechadura.
– Lien-hua? – a arma pronta.
Porta aberta.
Um vaso quebrado no chão e flores mortas espalhadas pelo tapete
úmido. Um dardo de Sabre 11 de uso exclusivo do exército ao lado delas.
– Lien-hua!
Vasculhei a suíte inteira. Vazia.
Eles estavam com ela e estavam com o dispositivo.
Não!
Peguei o telefone do quarto.
Mais cedo durante o dia, quando estava na sala de evidências, eu não havia pensando em colocar nenhum tipo de dispositivo de rastreamento na sacola com a minha engenhoca.
Mas agora, liguei para Angela Knight para que ela rastreasse o GPS do meu celular, que eu havia deixado na sacola de academia.
Que nunca digam que não aprendo com meus erros.
Ela me disse que levaria apenas alguns minutos, então me colocou na espera antes que eu pudesse falar para ela que não tinha alguns minutos.
Enquanto esperava, tive um pensamento perturbador. Me lembrei do vídeo que Melice fez de Cassandra. E se ele fez um de Lien-hua? Abri meu computador para ver se
Shade ou Melice haviam me enviado alguma coisa por e-mail. Não encontrei nada além de uma mensagem de Calvin:
Não consegui encontrar você pelo celular, garoto, mas você mencionou que isótopos radioativos foram encontrados no apartamento do incendiário. Fiquei me perguntando
que os incêndios nunca foram destinados a encobrir um crime, mas talvez a fumaça tenha sido. Ligue para mim.
– Calvin
A fumaça?
Pensei no dispositivo, nos incêndios, em suas localidades. Por que lá?
Por que naquela hora?
Que tal isso: os homens de Drake iriam testar o dispositivo, emitindo quantidades rastreáveis de césio-137. E depois que eles tivessem ido embora, Hunter chegaria.
Por isso ele não sabia sobre os testes... Mas como os homens de Drake haviam usado o dispositivo, quando Hunter chegava no local do incêndio, ele ficava exposto
temporariamente ao césio-137, e foi por isso que o MAST encontrou traços de radiação em seu apartamento...
A fumaça.
Sim, é claro.
A fumaça espalharia a radiação para que o MAST não conseguisse identificar os testes durante a varredura em busca de radioatividade que faziam pela cidade.
Sim. Finalmente conseguia ver. Os incêndios não eram causados para distrair, a fumaça é que servia para dispersar. Fazia sentido. Encaixava. Mas naquele momento
eu não estava ligando.
Tudo que me importava era Lien-hua.
E Angela estava demorando muito, demorando demais para me ajudar.
Lien-hua balançou a cabeça. Tudo estava embaçado, escuro. O mundo estava oculto em um sonho enevoado. Seu quarto de hotel. Ele lembrou disso. Melice. O dardo. E
agora, ela estava deitada de lado, isso ela conseguia perceber.
Mas não estava em uma cama. Não. Em outro lugar. Um lugar duro e frio. Ela avaliou rapidamente seu corpo, movendo seus membros levemente. Nada parecia quebrado.
Ela não estava amarrada. Isso era bom. Mas onde ela estava?
Ela balançou a cabeça de novo, tentando clarear sem pensamento. Abriu uma pálpebra pesada. Tudo embaçado.
Piscou duas vezes.
Não, não era uma cama. Ela não estava em uma cama; era concreto. Ela deslizou uma mão cansada por sua perna mas não sentiu o tecido do jeans. Ao invés disso, ela
sentiu a delicadeza da seda do vestido de festa.
Os dois olhos abertos.
Ela viu o que estava vestindo. Elegante e vermelho.
A cabeça de Lien-hua ainda latejava. Tonta. Muito tonta.
Ela esticou as mãos para frente e quando começou a se sentar ela sentiu uma argola fria presa em seu tornozelo esquerdo e então ouviu o som de uma fechadura se travando.
Enquanto esperava por alguma informação sobre a localização do meu celular, reparei no bloco de anotações de Lien-hua sobre a mesa, com um marca-página no final.
Folheei o bloco e vi que ela havia desenhado uma flor sendo cortada de seu caule.
Abaixo ela havia escrito “17 de junho de 1999”.
A data não significava nada para mim, e antes que eu pudesse pensar mais sobre isso, ouvi a voz urgente de Angela do outro lado da linha.
– Conseguimos, Pat. Seu celular está no Sherrod Aquarium.
Lien-hua virou-se e viu Creighton Melice ajoelhado ao lado de seus pés descalços. E num terrível instante ela percebeu onde estava: na piscina de aclimatação dos
tubarões, vazia, no Sherrod Aquarium, seu tornozelo agora acorrentado ao ralo. A tontura estava diminuindo. Sua cabeça estava melhorando. Ela ficou de pé.
Melice levantou-se e sorriu.
– Afogamento é um jeito terrível de morrer, você não acha, agente Jiang?
Apesar de Lien-hua ainda estar, de certo modo, desorientada, seus instintos dominaram, e com anos de velocidade treinada, ela saltou na direção dele, usando a corrente
para acrescentar alguns centímetros ao alcance de sua perna. No ar, ela mirou o pé direito na mandíbula dele, alcançou a extensão máxima, e acertou, com força, fazendo
com que ele fosse lançado na parede de vidro da piscina enquanto a corrente a puxou de volta para o chão. Seu tornozelo latejava de dor, mas ela estava de pé novamente
em segundos. Braços erguidos, pronta para lutar. Melice levantou-se e balançou a cabeça. Suas pernas estavam moles. Não havia sido um dos melhores chutes de Lien-hua,
mas também não tinha sido o pior.
Ela se abaixou em posição de prontidão.
– Venha aqui, Creighton Melice, e vou fazer você desejar poder lutar como uma garota.
Quando Tessa beijou Riker, ela sentiu um formigamento quente surgindo, engolindo qualquer incerteza que ela possa ter tido sobre a direção em que suas escolhas estavam
levando-a aquela noite.
Abaixo dela, em outro mundo, a música pulsava, batendo como um coração distante.
Excitante. Muito excitante.
Durante os últimos minutos, uma meia dúzia de casais haviam passado por eles indo para ou voltando de um dos quartos no corredor.
Finalmente, Riker afastou-se dos lábios de Tessa apenas a uma distância suficiente para falar com ela. Ele segurou-a perto, muito perto.
– Parece que estamos meio no caminho aqui na escada – suas palavras continham tanto uma promessa quanto um convite. – Sem privacidade. Venha, vamos pegar um quarto.
Excitante.
Tão excitante.
A doçura dos beijos dele superou sua hesitação, e ela se levantou, pegou a mão dele e o seguiu até um quarto no final do corredor.
99
Os pensamentos de Lien-hua ainda estavam anuviados, mas ela se manteve em pé e esperou para ver se Melice a enfrentaria.
– Você tem tanto medo assim de mim, Creighton? Está com medo de uma garota acorrentada? Talvez agora eu não bata tanto em você quanto bati no hotel, mas duvido.
Você não chega nem perto de ser tão bom quanto pensa.
Com o canto dos olhos, ela viu um tripé na beirada da plataforma acima dela. Por um momento ela pensou que seria o dispositivo, mas então ela viu que era uma filmadora.
Isso não era nada bom. Definitivamente não era bom.
– Eu não quero brigar com você – Melice disse. – Eu quero observá-la. Ver como você se vira em comparação com as outras. E essa noite o mundo inteiro estará assistindo.
Tem muitas pessoas lá fora com o meu gosto por entretenimento. Uma agente do FBI? No maior aquário do mundo? Vamos conseguir pelo menos 80 mil acessos até amanhã.
Talvez 100 mil.
Lien-hua puxou o pé com a corrente.
– Assim que é bom. Continue. Quanto mais você lutar, melhor será o vídeo – ele começou a subir a escada que saía da piscina, deixando marcas de sangue de suas mãos
machucadas em cada degrau. – Você destruiu meu tanque no armazém, mas esse deve servir bem, você não acha? Desculpa dizer, mas não vai ser uma transmissão ao vivo.
Eu não quero que sejamos interrompidos por nenhum policial – quando chegou
à plataforma, ele olhou pela área de criação animal. – Meio irônico, não é? Estarmos de volta ao lugar onde tudo começou ontem de manhã.
O pavor escorria pelo estômago de Lien-hua. Seja corajosa. Você precisa ser corajosa.
– Onde está Shade? Ainda com medo de mostrar o rosto? – ela perguntou.
– Shade está cuidando de algumas coisas que faltam.
Ela se preocupou que Melice estivesse falando de Pat, mas ela não queria parecer fraca ou com medo, então ela não deixou sua preocupação transparecer. Melice olhou
para seu relógio e então continuou:
– Ele estará aqui em meia hora. É uma pena que vocês dois não terão a chance de se conhecerem. A filmagem já terá terminado quando ele chegar.
Então ela entendeu. Ela compreendeu o motivo primário de Melice.
– Dor. Shade vai matar você com o dispositivo. Vai fazer você sentir dor.
– Ah, sim – ele olhou para o lado, sobre a plataforma. – Já está preparado e esperando por mim – então ele deixou seus olhos passearem de volta em direção à piscina
de aclimatação e passarem sobre o corpo de Lien-hua. – Você está bonita nesse vestido, por sinal. Tenho certeza que os espectadores vão apreciar que você se mantém
em forma.
Lien-hua olhou ao redor, tentando pensar em um modo de escapar, mas não viu nenhuma opção viável.
Afogamento não. Por favor, não. Qualquer coisa menos afogamento. Melice posicionou a câmera.
– Agora, você vai ter que me ajudar um pouco aqui. Eu não tenho certeza a velocidade com que a piscina vai encher. Eu provavelmente vou ter que filmar algumas vezes,
tirar um pouco da água, e então encher a piscina de novo, para conseguir todas a imagens que preciso. Então, faça o seu melhor para segurar a respiração e você pode
durar duas ou três tomadas.
Então, Creighton Melice saiu de vista, girou um registro em algum lugar e a piscina de aclimatação dos tubarões de quatro metros de profundidade começou a encher-se
de água.
100
Parei derrapando na porta de saída pouco usada, próxima das duas lixeira enferrujadas, saltei do carro e encontrei a porta trancada. Eu seria capaz de arrombá-la,
mas eu não queria perder tempo. Atirei na fechadura e deslizei para dentro do prédio.
O rosto de Melice apareceu ao lado da câmera de vídeo.
– Você está começando a sentir, não está, Lien-hua? Aquilo que conversamos na sala de interrogatório. A porta para a esperança começando a se fechar. Você vai puxar
essa corrente até seu tornozelo ficar em carne viva, você vai tentar arrebentar o fecho, talvez tentar abrir a trava de algum jeito. Mas durante todo o tempo a água
vai continuar subindo e então, finalmente, choque de realidade!, você não vai escapar. Você vai morrer aqui mesmo, essa noite, enquanto eu assisto.
Água em seus joelhos. A piscina estava enchendo mais rápido do que ela havia pensado.
Melice continuou:
– Não fique chateada. Lembre-se que nos próximos meses você vai fornecer entretenimento para centenas de milhares de espectadores ávidos – então ele acrescentou:
– Quem sabe você não consegue chegar a 1 milhão de downloads até o verão?
Tessa reparou no quarto. Chão de madeira. Paredes de gesso. Uma cama tamanho queen-size empurrada para o canto, coberta por um emaranhado de lençóis sujos e amarrotados.
Na parede oposta, cortinas azuis desbotadas em frente a uma janela estreita. O lugar cheirava como o quarto dos fundos de um bar, e o único sopro de ar vinha de
um pequeno ventilador que oscilava ao lado da porta do banheiro.
Sem lâmpada no teto. Apenas uma pequena luminária ao lado da cama. Riker foi até ela e a desligou, e agora a única luz no quarto vinha da aura amarela que subia
pela janela e repousava com expectativa sobre os lençóis.
Então Riker foi até ela, pegou em sua mão e, dizendo palavras suaves e confortantes, conduziu Tessa em direção à cama.
Corri através do labirinto estonteante de tanques de filtragem. Eu não sabia se Lien-hua já estaria morta; eu só podia rezar para que ela estivesse vida. Quando
o prendemos, Melice havia dito que ela seria sua próxima namorada, e sabia muito bem o que ele fazia com elas. Por isso estava indo na direção da piscina de aclimatação
dos tubarões. Parecia o lugar lógico pra onde ele a traria. E eu estava perto. Só mais algumas curvas e eu estaria lá.
O coração de Tessa tremia com satisfação e medo. O vento do ventilador soprava pelas cortinas, elas ondulavam levemente e Tessa pensou que na luz fraca, as cortinas
azuladas pareciam púrpuras. E com esse pensamento, Poe sussurrou para ela, suas palavras viajando por séculos, surgindo do túmulo: “E o balançar incerto, triste
e sedoso de cada cortina púrpura me tocava – enchia-me com terrores fantásticos nunca antes sentidos”.
Terrores fantásticos.
Nunca antes sentidos.
Tessa nunca havia ficado com um cara. Não desse jeito. Era uma coisa sobre a qual sua mãe havia sempre sido enfática, e desde que ela morreu, com exceção de duas
vezes que foram por um triz, Tessa havia honrado a vontade dela. Não. Não era para acontecer desse jeito.
Terrores nunca antes sentidos.
– Então, eu estava pensando... – Riker disse.
– Não – ela se afastou dele, mas tropeçou um pouco. Sem equilíbrio. Tudo estava sem equilíbrio. – Não. Eu preciso ir.
– Nós acabamos de chegar.
Ela se afastou mais.
– Eu preciso ir. Preciso ir embora.
Riker veio em sua direção e agarrou seu antebraço.
– Ei, ei, ei, Raven. Não tão rápido – seu aperto era mais forte do que precisava ser.
– Disse não. Agora, solte o meu braço.
Não, isso não pode estar acontecendo. Ele a segurou.
– Solte!
Ele soltou lentamente, mas ficou com os braços flexionados pronto para agarrá-la novamente.
– Estive pensando que era hora de fazermos uma troca. Terrores nunca antes sentidos.
– Que tipo de troca? – ela procurou por um elástico em seu pulso. Não achou nenhum.
Ele deixou um sorriso passar por seu rosto, mas não era realmente um sorriso.
– Você não acha mesmo que deixaria você fazer uma tatuagem como essa, cinco horas de trabalho, por 180 dólares. Lachlan é o melhor da região. Você usou uns 700 dólares
em tinta e tempo.
Mesmo que fraca, a música estava batendo por trás de suas palavras. Uma batida de coração negra.
– Você disse a ele para fazer – Tessa estava se esgueirando na direção da porta. – Para fazer o que eu quisesse.
– Está certo. Eu disse. Dei a você o que você queria, e agora é hora de você dar pra mim o que eu quero. E ao que me parece, tenho direito a algumas horas com você.
O estômago dela se encheu de gelo. Ela correu para a porta mas foi lenta demais. Riker acertou-a com a porta e a fechou com uma pancada de seu braço forte. Ela começou
a se afastar dele, na direção da janela.
Ela a única coisa na qual ela podia pensar em fazer.
Pular.
101
Passei pelas roupas de mergulho penduradas atrás da escada e vi Lien-hua acorrentada ao fundo da piscina de aclimatação dos tubarões, a água no meio de suas coxas.
Quando ela me viu, coloquei o dedo nos lábios avisando a ela para manter segredo sobre a minha chegada, e então com a outra mão, soletrei para ela com os dedos:
– Quantos são?
Com a mão escondida atrás da perna, ela soletrou de volta para mim:
– Um, talvez dois.
Eu podia ouvir a voz de Creighton Melice.
– Você sente saudade da sua irmã, Lien-hua?
Irmã?
– O que você disse? – ela falou para Melice, sua voz, fria, inflexível.
– Armas? – perguntei com meus dedos.
– Pistola. Dardos. Dispositivo – ela assinalou para mim enquanto olhava para ele.
– Sua irmã. Chu-hua. Você sente falta dela? Sinto falta de Mirabelle, mas deve ser diferente para você. Ouvi falar que gêmeas idênticas têm uma ligação especial.
Lien-hua nunca mencionou uma irmã gêmea.
– Quando uma gêmea sente dor – Melice disse, – às vezes a outra sente também. É o que dizem. Quando uma morre, a outra sente como se metade de sua vida tivesse acabado.
É verdade? Ouvi falar que é. Eu sempre me perguntei – comecei a subir os degraus.
Eliminar a maior ameaça primeiro.
Melice ou Shade?
– Então, agente Lien-hua Jiang, – Melice continuou – como se sente sabendo que está prestes a morrer do mesmo jeito que ela morreu?
No momento em que Creighton Melice mencionou o nome de Chu--hua, tudo voltou. As memórias, o pesar, as imagens terríveis gravadas na cabeça de Lien-hua, tudo veio
gritando para ela do passado, encontraram o momento certo e explodiram dentro dela.
Chu-hua virada de bruços na piscina... Talvez ela ainda estivesse viva... Ela deveria estar... Talvez Lien-hua pudesse ter salvo ela se pelo menos tivesse tentado.
Se pelo menos ela soubesse nadar. Se pelo menos ela não tivesse medo da água.
Lien-hua deslizou as pontas dos dedos entre as barras de metal da grelha do ralo e puxou até o metal começar a penetrar sua pele, mas a grelha nem se mexeu.
– Você nunca acreditou que fosse um acidente, não é? – Melice prosseguiu. – Isso é o que os policiais disseram para você, mas você não acreditou.
Ele estava certo, e ela odiava que ele estivesse certo. Foi por isso que ela virou uma detetive, então uma criadora de perfis, para dar aos outros o que negaram
a ela: a verdade.
Pat, você precisa se apressar.
– É uma pena que não tenhamos tempo para eu mostrar para você a filmagem – Melice disse. – Ela foi meu primeiro vídeo caseiro. Minha primeira namorada de verdade.
Creighton sorriu. Sim. Shade, seu amigo, seu fã, realmente esteve acompanhando sua carreira, realmente havia encontrado as postagens do blog.
Realmente o havia escolhido por uma razão.
Era tudo tão perfeito.
Um círculo completo.
– Eu não havia pensado na corrente naquela época – ele disse para Lien-hua. – No entanto, é muito melhor desse jeito, você não acha?
Os eventos seguintes aconteceram numa questão de segundos.
Tessa recuou até a janela. Tentou abri-la.
Trancada.
Riker apenas observava. Então ele foi até ela, rápido, agarrou seus dois ombros e a jogou contra a parede.
– Não, não, não – Tessa se sentiu enjoada, cansada. Por que ela tomou aqueles drinks? Era difícil se concentrar, saber o que fazer. Ela tentou acertar uma joelhada
na virilha dele, mas ele deveria estar esperando, pois virou a sua perna para o lado e tudo que ela acertou foi sua coxa.
Riker deslizou sua mão dos ombros dela até os braços e apertou com sua mão direita a tatuagem recém-feita. Um surto de dor criou ondas de luz que passavam pelos
seus olhos. Ela queria gritar, precisava gritar, mas se recusou a emitir qualquer som. Recusou-se a dar a ele a satisfação de fazê-la chorar. Ele apertou mais forte
e uma lágrima se formou no canto do seu olho, mas Tessa não fez careta.
– Esperava conseguir isso do jeito fácil – sua voz era grave e cheia de malícia. – Mas não precisa ser. A escolha é sua.
Pense rápido, pense rápido, pense rápido.
– Eu preciso me preparar.
– Você parece pronta pra mim.
Invente, Tessa. Invente.
– Não, é sério. Eu só preciso de um minuto no banheiro, ok?
– Não precisa, não.
– Cale a boca. Preciso. É coisa de mulher; me solta.
Ela não tinha certeza se ele faria, mas finalmente ele a soltou lentamente. Ainda bem. A dor gritante em seu braço começou a se calar.
– Tá certo. Cinco minutos. Fique pronta logo. Mas se você não voltar em cinco minutos, vou entrar. E aí não vou ser tão gentil.
Tessa pegou sua bolsa, passou por ele e bateu a porta do banheiro. Aqui ela poderia ficar segura.
Aqui ela iria ficar segura.
Ela procurou a fechadura da porta mas descobriu que a maçaneta não tinha tranca. Ela olhou em volta. Nenhuma janela. Nenhuma outra porta. Nenhuma saída.
E então um calafrio, bruto e profundo.
“Eles me conhecem aqui”, Riker havia dito a ela logo que chegaram. “Eu venho sempre aqui”.
– Oh, não, por favor, Deus, não – ela sussurrou, e enquanto falava as palavras, elas viraram uma oração aterradora. – Eu não sou a primeira.
Agora no topo da escada.
Vá para a ameaça maior. Procure por uma arma.
Com um movimento suave dei um passo à frente sobre a plataforma e mirei a arma em Melice.
– Mãos para o lado onde eu as possa ver, fique de joelhos – eu não vi nenhuma arma nas mãos dele, mas a oito metros de distância eu vi o dispositivo de assassinato
mais perfeito do mundo mirado para a minha cabeça. A parte removível de césio-137 estava em meu carro, mas eu não tinha certeza; o dispositivo poderia funcionar
mesmo assim.
Tem uma pessoa, talvez duas.
Elimine a ameaça maior primeiro
Meti três balas nele, despedaçando o dispositivo e lançando-o cambaleante para um dos tanques de quarentena, onde um chiado fumegante da água me mostrou que ele
não havia sido projetado para ser à prova d’água.
– Não! – Melice berrou. Levantei minha arma na direção dele, mas vi que era tarde demais. Ele sacou uma arma e atirou, uma bala entrou rasgando em minha coxa esquerda
e o impacto me derrubou da escada, tropeçando, girando, cambaleando, batendo lá embaixo.
– Raven, estou esperando – Riker gritou. Havia fogo em sua voz. – Três minutos.
Tessa precisava bolar um plano.
Mas ela não tinha a mínima ideia de como escapar.
Olhei para o teto, tentando recuperar a sanidade e mentalmente me separar da dor subindo pela minha perna.
Havia sido atingido, a água estava na altura da cintura de Lien-hua. Precisava salvá-la e precisava ser rápido.
Verifiquei meu ferimento. A bala havia entrado pela frente e saído pela lateral do meu quadríceps. Não acertou o osso. Não acertou a artéria femoral. Nunca tinha
acreditado em sorte, mas naquele momento eu fiquei tentado a começar. Eu poderia ser capaz de andar, mas isso seria arriscado e muito dolorido. Pressionei uma mão
no ferimento de entrada e a outra no ferimento de saída. Você precisa encontrar um jeito de controlar esse sangramento.
– Não – Melice estava furioso na plataforma. Imaginei ele acariciando o dispositivo destruído. – Não. Não. Não!
Ótimo. Então ele podia sentir dor, afinal – a dor de ter toda sua esperança arrancada. Imaginava se sentir dor ia ser tudo o que Melice sonhava que seria, mas pelos
seus gritos furiosos, parecia que a dor da esperança massacrada não era exatamente um sonho realizado.
Nunca foi dor que ele queria, mas a liberdade de um inferno indolor.
– Você está morto, Bowers!
Minha arma. Onde estava minha arma? Ela tinha caído. Sim. Mas onde? Você derrubou quando deu um pulo para trás. Quando você bateu do lado da escada.
Poderia estar na plataforma, eu esperava que não. Espiei a escada pela curva caso Melice ou Shade decidissem descer para acabar comigo. Olhei ao redor procurando
minha SIG.
Nada.
Então olhei através do vidro para Lien-hua e a vi puxando a grelha do ralo e percebi que minha arma estava caída no fundo da piscina de aclimatação. Uma SIG atira
mesmo debaixo d’água, mas ela estava muito longe. Ela não conseguiria alcançá-la.
– Ei, Bowers – as palavras de Melice cortavam como lâminas. – Estou indo atrás de você e vou te matar lentamente, mas primeiro eu quero que você assista ela morrendo.
Essa é a sua recompensa.
Arma. Preciso de uma arma.
Se pelo menos tivesse chamado reforços antes de sair do hotel!
Avalie a situação: eu não tinha telefone, nem arma, a água estaria acima da cabeça de Lien-hua numa questão de minutos e eu tinha sido atingido. Antes de mais nada,
eu precisava controlar o sangramento.
Procurei em volta e vi as roupas de mergulho penduradas atrás da escada. Neoprene é à prova d’água, vai tampar os ferimentos.
Se tivesse um cinto de peso com as roupas de mergulho eu poderia ter uma chance.
O mais rápido que pude, usando uma mão, eu me arrastei em volta da escada. A cada momento, rajadas profundas de dor atingiam minha perna. Mas eu continuei me movendo.
Eu precisava.
Depois de descartar quatro roupas de mergulho, finalmente encontrei um cinto de peso de neoprene pendurado em um gancho. Tirei os pesos do cinto e o enrolei em volta
da minha coxa, não tão apertado a ponto de ser um torniquete, mas firme o suficiente para agir como um curativo de pressão. O sangramento diminuiu. Eu conseguia
pensar de novo.
Analisei as opções na minha cabeça. Nenhuma delas era boa. Melice tem a posição estratégica. Mesmo que você consiga subir as escadas, ele vai atirar em você na hora.
Se você tentar chegar no carro para pedir ajuda, vai demorar muito, Lien-hua vai se afogar.
Do outro lado do vidro, Lien-hua soletrou com os dedos:
– Rápido – e então fez o sinal para “eu preciso de você”.
– Estou indo – sinalizei.
Fiquei de pé e com minha perna se rebelando contra cada passo, caminhei pela passagem para a torre do fracionador de espuma que se erguia para além dos escritórios
na plataforma acima de mim.
Acesso. Existia acesso para a área de criação.
Então agarrei a beirada estriada da torre e com minha perna esquerda pendurada como um peso morto, comecei a escalar.
– Dois minutos – gritou Riker.
Tessa procurou pelo banheiro. Papel higiênico. Privada. Uma única lâmpada no centro do cômodo. Nenhum espelho, por que não havia um espelho? Deveria ter um espelho!
Caixa de toalhas de papel. Desentupidor de pia. Toalha de banho dobrada sobre um toalheiro. Ela olhou debaixo da pia procurando por algum tipo de produto de limpeza
que ela pudesse jogar na cara dele. Nada.
A tampa da privada de cerâmica?
Ela verificou de novo – um modelo montado no chão. Sem tampa. Espere. Toalheiro.
Sim, talvez
Ela jogou fora a toalha, agarrou a barra do toalheiro. Puxou com força. Mas era muito firme. Deveria estar chumbada nos apoios.
Vamos. Vamos. Deve ter alguma coisa. Tem que ter.
Ela poderia, talvez, bater nele com o desentupidor, mas ela não era forte o suficiente para machucá-lo, então aquilo só ia deixar ele mais irritado.
Tessa esvaziou sua bolsa na pia. Ela tinha que encontrar algo ali que ela pudesse usar como arma. Tinha que ter!
Então: um toco de lápis, seu caderno, um pacote de chiclete, um pendrive, o grande frasco de sabonete antibacteriano de Riker, seu iPod, algum batom e rímel, sua
carteira, trocados, um pequeno frasco do hidratante que ela vinha passando em sua cicatriz, um dicionário de bolso.
Ela ouviu movimentos do outro lado da porta. Talvez ele estivesse vindo pegá-la.
– Eu não estou ouvindo você se aprontar.
Tessa esticou a mão e deu descarga.
– Só um minuto! – ela tentou fazer sua voz soar confiante. Isso não pode estar acontecendo. Não pode ser.
Mas era.
Escalei com os dedos pegando fogo e ódio no meu coração. Eu podia sentir o emaranhado entre ódio e medo, a luta constante. As correntes escuras surgindo, chamando
meu nome.
Qualquer coisa para salvar Lien-hua. Qualquer coisa.
Prometendo salvá-la a qualquer custo, escalei.
102
Lien-hua chutou com toda a sua força mas apenas conseguiu enterrar o grilhão em seu tendão de Aquiles e sentir a dor se arrastando por sua perna. A grelha do ralo
não se mexeu, a corrente não se quebrou. Não iria se quebrar. De jeito nenhum se quebraria.
Você vai morrer. Bem aqui. Agora. Nas mãos do mesmo homem que matou Chu-hua.
Esperança fugaz.
Fugaz.
Talvez ela não quisesse viver. Talvez fosse melhor se ela morresse. Liberdade ou dor?
Dor.
Morte.
As duas flores. Lien-hua, o lótus. Chu-hua, o crisântemo. Ambas cortadas de seus caules pelo mesmo homem.
Ontem Lien-hua tinha dito a Tessa que ela havia visto muito corrupção para acreditar em pureza, em iluminação. E era verdade.
Nós não podemos nos erguer acima de quem somos.
– Sinto muito por não ter te salvado – ela sussurrou para a memória espectral de sua irmã enquanto a água subia acima de seu peito. – Eu estava com medo, medo da
água.
Pétalas danificadas.
Os arranjos nunca serão os mesmos.
Não, nós não podemos nos erguer acima de nós mesmos.
Mas o que Tessa havia perguntado a ela? O que ela tinha dito? Alguém pode nos erguer?
Naquele momento, a pergunta trouxe sua própria resposta, e bem no fundo do seu coração ferido, Lien-hua rezou, gritou para o Deus que ela não tinha certeza se estava
lá. Implorou a ele para erguê-la de seu passado, dela mesma, do arrependimento dolorido que ela vinha carregando desde 17 de junho de 1999, quando ela encontrou
sua irmã gêmea boiando de bruços na piscina de sua família.
– Tudo bem. Acabou – gritou Riker. – Eu quero brincar com o meu corvo agora – e então ele ousou citar Poe – “Apenas isso, e nada mais”.
– Estou saindo. Só um minuto!
Sabão. Desentupidor. Toalha.
Sim, sim. Era a única coisa em que Tessa conseguia pensar. Ela agarrou o desentupidor e abriu a torneira.
Eu estava a meio caminho do alto da torre; vi Melice uns quatro metros abaixo de mim. Medi qual a distância que eu deveria pular e, confiando na minha perna boa,
me virei no pequeno beiral de modo que ficasse de frente para ele.
E saltei.
Creighton Melice sentiu o impacto, a pressão de um peso repentino derrubando-o ao chão.
Quando ele tocou a plataforma, ele sabia que era Bowers. De algum modo, era Bowers. A força derrubou a arma de Melice e ela foi deslizando pela plataforma e parou
fora do alcance, em uma das janelas de observação da exibição os Sete Mares Mortais.
Creighton rolou e ficou livre.
Ele rolou e ficou livre. Ele era rápido. Correu para a área de preparação de alimentos e me levantei desengonçado, dolorido. Minha perna esquerda latejava com uma
dor quase insuportável, e o chão estava escorregadio, deixando mais difícil ainda para se levantar. Com o ferimento, eu não seria capaz de persegui-lo. Olhei na
direção da piscina de aclimatação dos tubarões. A água estava na altura do queixo de Lien-hua.
Ar. Precisava conseguir ar para ela.
Os tanques de ar estavam perto da parede.
Parti na direção deles assim que Melice saiu da área de preparação de alimentos empunhando uma das longas e finas facas de limpar peixes.
Eu teria que passar por ele para salvar a vida de Lien-hua.
Lien-hua puxou o ar demoradamente. Seria uma questão de segundos, agora.
Segundos até que ela se juntasse a sua irmã.
Ela se esticou para a superfície mais uma vez.
Mas já não a alcançava mais.
Tessa terminou de se aprontar, enfiou a toalha ensopada de água em sua bolsa, e bateu com ela na lâmpada. Estilhaçou-a. Então ela se encolheu para o canto. Riker
abriu a porta e bloqueou a passagem.
– Essa enrolação vai custar caro – ameaçou ele. Ela não respondeu. Ela o viu dar um passo e colocar as mãos na fivela do cinto. – É hora de voltar para o ninho,
pequena Raven.
Disse o corvo, “Nunca mais”.
– Estou pronta – ela disse. – Venha me pegar.
103
– Ah, eu vou adorar isso – disse Melice, erguendo a faca, suas duas mãos pingando sangue por causa de seus ferimentos terríveis.
A água estava subindo rápido. Rápido.
– Onde está o registro da água da piscina, Creighton? – minha perna estava ficando adormecida. Era difícil até de ficar em pé. – Me ajude a tirá-la dali.
Um homem tem uma faca, uma mulher está morrendo. Basque. Melice.
Melice. Basque.
– Infelizmente já quebrei o registro – Melice moveu-se em direção à área de preparação de alimentos. – Mas coloquei-a no máximo antes de quebrá--la – ele sorriu
na direção da piscina de aclimatação dos tubarões. – Ah, essa é a melhor parte, bem agora, quando a água sobe acima da cabeça dela. Eu sempre volto e assisto de
novo e de novo – daí ele sorriu para mim. – Então, Bowers, o que vai ser? Parar o vilão ou salvar a mocinha em perigo?
Você tem que passar por ele para chegar aos tanques de ar.
– Ambos – eu disse, e corri na direção dele o mais rápido que minha perna dolorida permitiu.
Riker entrou no banheiro escuro e por um momento Tessa se perguntou se ele seria capaz de ver o que ela havia feito. Mas então ele deu mais um passo e ela ouviu
um grito assustado assim que seu rosto colidiu com o desentupidor que ela havia grudado na parede, e então ela ouviu a pancada bem-vinda de quando ele perdeu o equilíbrio
na água com sabonete líquido que ele havia dado para ela que estava espalhada por todo o chão.
Enquanto Riker tentava se levantar, ela girou sua bolsa, com o peso da toalha molhada, direto na cabeça dele, esmagando seu rosto no azulejo. Então ela plantou um
pé nas costas dele, saltou por cima de suas pernas e correu para a porta.
Desviei de um golpe da faca e ataquei Melice, empurrando-o na direção da parede, mas ele agarrou meu braço e me jogou no chão. Ele era incrivelmente forte e, com
o chão molhado e liso, ele tinha sido capaz de me lançar até o meio da área de criação. Me levantei mancando e ofeguei:
– O tanque já estava construído quando você chegou em San Diego, não estava?
Uma breve hesitação.
– Como você sabia?
Segure a respiração, Lien-hua. Segure a respiração. Estou chegando.
– E Shade estava lá, né? Na central da polícia. Ele fez seus advogados contarem para você sobre o dispositivo.
– Nada disso importa agora – ele veio para o meu lado com a faca. Veio rápido.
Tentei lutar com ele, mas com a minha perna ferida, perdi o equilíbrio. Ele chutou forte com sua bota de bico de aço em cima do meu ferimento à bala. A dor era incapacitante.
Tentei me levantar, ele me chutou novamente, dessa vez na barriga. Enquanto eu lutava para me apoiar com os joelhos e as mãos, ele apertou com o pé na minha lateral,
me girando de bruços. Chutou minha coxa ferida novamente.
Quando comecei a desmaiar, tonto por causa da dor, ele agarrou meu pulso e me arrastou em direção à piscina de aclimatação.
– Bem, olhe só. Acho que você demorou muito para salvá-la.
Virei minha cabeça para o lado e vi os belos olhos de Lien-hua, morrendo, olhando para mim abaixo da superfície da água.
Sem oxigênio ela tem talvez quatro minutos, no máximo, antes de sofrer danos cerebrais. É só isso. Você tem que levar ar para ela.
Tentei me livrar de Melice para ir atrás da arma dentro da piscina, mas seu agarrão era forte. Ele deu uma boa olhada em sua faca e então para a porta que levava
pelo caminho em torno da exibição os Sete Mares Mortais.
Então ele me puxou para longe da piscina e me arrastou na direção dos Sete Mares Mortais.
– Eu acho, agente Bowers, que é hora de comer.
Para Lien-hua, ar era uma lembrança. Não importava o quanto ela tentava, não conseguia alcançar a superfície.
Ela sabia que tinha dado seu último suspiro. Seu último, para sempre. Fique calma. Fique calma. Você vai usar menos ar.
Mas era difícil ficar calma, muito difícil. Uma rajada de ar escapou de sua boca e subiu em forma de bolhas na direção da superfície da água que subia continuamente.
Tessa decidiu não perder nenhum tempo tentando abrir as outras portas no corredor. Ela não precisava se esconder. Precisava sair daquele lugar.
Descendo as escadas, então para o bar.
Mas quando ela gritou por socorro, suas palavras foram recebidas apenas com olhares desinteressados e o ritmo triturante da música. Pelo canto dos olhos, ela viu
Riker despencando pela escada atrás dela. Ela se espremeu pela multidão de pessoas e se moveu o mais rápido que pôde em direção a alguma porta de saída.
Tentei girar para me libertar, mas novamente, Melice parou, chutou minha perna ferida e então me rebocou pela porta que levava ao caminho em torno dos Sete Mares
Mortais. Senti a lanterna de led na bainha pendurada no meu cinto espetando as minhas costas.
Ele segurava meu pulso esquerdo, mas eu tinha minha mão direita livre. Duas vezes eu tentei segurá-lo mas falhei.
Tinha que me soltar. Agora. Mais alguns segundos e seria tarde demais. Espere. Minha lanterna. Meu cinto.
Derrube-o no chão. Você precisa derrubá-lo no chão.
Enquanto me carregava, suas costas estavam viradas, então poderia desafivelar meu cinto e tirá-lo dos meus jeans sem que ele percebesse. Enrolei o cinto na forma
de um laço e quando ele parou perto da borda da água, girei para o lado, joguei o laço para minha outra mão e o agarrei.
Puxei.
Com força.
Como ele estava segurando aquele pulso, a força o desequilibrou e ele caiu no chão ao meu lado. Rolei, me arrastei na direção dele e o soquei com força no rosto.
Mas ele ainda tinha a faca em sua mão direita.
Eu agarrei seu pulso e estava prendendo-o ao chão quando ele soltou seu outro braço, passou-o através de seu corpo e enfiou a palma da mão na lâmina da faca até
o cabo. Então ele fechou a mão com força para prender a lâmina no lugar, soltou sua mão direita do cabo e com a faca enfiada através de sua mão jorrando sangue,
ele golpeou com a lâmina na direção do meu rosto. Me empurrei para trás e ele por muito pouco não cortou o meu pescoço.
– Você não pode me machucar, agente Bowers – ele sibilou. – Você só pode me matar ou morrer tentando.
Quando ele me golpeou com a faca novamente, me virei para o lado, enrolei o cinto em torno da lâmina e do cabo e segurei firme. Agora eu tinha controle de seu braço
e da faca.
– Como você preferir – eu disse.
Seu rosto ficou chocado. Agarrei o cinto e rolei na direção da água, puxando-o comigo. Na borda, eu soltei o cinto e deixei o impulso lançá--lo aos Sete Mares Mortais.
Melice tentou sair da água, mas o sangue de suas mãos chamaram a atenção de meia dúzia de tubarões-martelo. O tubarão maior fez uma curva na direção dele, virou
os olhos para trás e antes que eu pudesse ao menos considerar arrastar Melice para a plataforma e algemá-lo, o tubarão usou suas ampolas de Lorenzini para localizar
sua presa e então enterrou seus dentes tortos no abdômen macio de Melice e o arrastou para debaixo d’água.
Uma rajada de ar e sangue espumoso agitaram a superfície da água. Então o tubarão disparou, levando Melice para as profundezas do tanque dos Sete Mares Mortais,
onde um frenesi de outros tubarões estava esperando para ser alimentado.
Desviei o olhar para não ver aquela cena.
Creighton Melice finalmente realizou seu desejo. Ele não estava mais preso em um inferno indolor.
Lien-hua. Você tem que salvar Lien-hua.
Levantei-me e disparei na direção da área de criação. A piscina de aclimatação estava a 10 metros de distância e praticamente transbordando. Não havia tempo para
sair procurando pela válvula de escape e sabia que os tanques de ar estavam muito longe para que eu chegasse até eles a tempo.
Precisaria eu mesmo levar ar para ela.
104
Com o número de pessoas no lugar, Tessa não conseguia chegar até uma porta de saída, então ela tomou o rumo da parede e fez a melhor coisa que podia.
Um alarme de incêndio.
A água estava mais calma agora, e Lien-hua tentou relaxar e usar menos do precioso oxigênio. O sangue saía do corte circular em torno do grilhão e boiava suavemente
na direção do rosto dela. Seu corpo balançava na água.
Sem ar, ela sabia o que aconteceria em seguida. Em alguns momentos seu coração iria parar de bater e seu sangue iria parar de fluir e sua consciência iria falhar
e diminuir e então numa questão de três a quatro minutos, seu cérebro iria se juntar ao resto do corpo na morte.
Ela sabia dessas coisas, percebeu-as em um intenso momento.
Ela olhou para cima, pela água.
A superfície estava fora de alcance.
Para sempre fora de alcance.
Quando as últimas bolhas de ar subiram da boca de Lien-hua, seus lábios formaram uma última palavra. A única palavra que ainda importava para ela.
Pat.
Então, na última escuridão vagante, ela viu alguém mergulhar na água e Lien-hua Jiang percebeu que ainda podia mover os dedos, então ela os moveu.
Nadei até ela. Desesperadamente. Freneticamente.
Ela havia parado de lutar contra a corrente. Com minha mão no ombro dela, me puxei até seu rosto e a vi piscar. Sim, ela estava consciente. Pressionei meus lábios
contra os dela e dei a ela todo o meu ar, então nadei até a superfície para buscar mais.
Tendo levado a ela um pouco de oxigênio, eu havia conseguido dar a ela mais tempo.
Ótimo, ótimo.
De volta a ela. Passei a ela mais um pouco de ar. Então subi para a superfície novamente. Estava nadando muito devagar, no entanto, pois minha perna estava atrapalhando.
Você consegue. Você pode salvá-la.
Dei para ela meu oxigênio de novo, meus pulmões queimando. Mas eu não estava dando a ela oxigênio suficiente. Sabia que não estava. Não estava sendo rápido o suficiente.
De volta para a superfície.
Na minha quarta viagem para baixo, vi que ela estava movendo os dedos. Linguagem de sinais. Três letras. Sinalizando, o que ela estava sinalizando? Ela estava fraca,
as letras, indistintas.
Dei ar para ela, então alcancei sua mão, senti seus dedos, fechei os olhos. Flutuei ao lado dela. Lembrei. Lembrei.
D... A... E... D... Será que ela estava confusa? Ela estava sinalizando “dead”29.? Por que ela sinalizaria “dead”? ...D... A... e então seus dedos pararam de se
mover. Sua boca se abriu levemente, uma última bolha de ar escapou, e mesmo eu a chacoalhando, ela não respondia. Inconsciente. Sem reação.
Não havia mais tempo. Tinha que tirá-la da água e tinha que ser agora. Nadei até a superfície, engoli mais ar, então nadei para baixo e tentei arrancar a corrente,
mas não consegui. Não havia tempo para arrombar a fechadura.
Espere. A arma.
Com meu ar quase acabando, peguei a SIG no fundo da piscina, mirei na corrente e atirei – um som ensurdecedor –, mas sob a água a velocidade da bala não era suficiente
para quebrar o elo onde tinha mirado. Esvaziei o pente, mas a corrente era muito grossa.
Com meus ouvidos zunindo, larguei a SIG inútil, então puxei a grelha do ralo até ficar sem ar. Mas não adiantou nada. A corrente aguentou.
Tomei impulso para a superfície e quando minha cabeça saiu da água eu vi o trilho bem acima da piscina e o cabo pendurado nela.
E eu soube finalmente como poderia libertar Lien-hua. Eu só não sabia se iria conseguir fazer isso rápido o suficiente.
Tessa havia conseguido chegar no alarme de incêndios, mas não a uma porta.
De primeira, ninguém no lugar parecia ter percebido o barulho do alarme ou as luzes piscantes de emergência. Talvez pensassem que fazia parte do show. Então ela
viu Riker empurrando as pessoas no meio da multidão. Seus olhos a encontraram. Ela tentou atravessar a massa de pessoas até uma porta. Não conseguiu.
De repente as luzes do salão acenderam e as pessoas começaram a gritar e a empurrar na direção das portas, levadas pela incontrolável força do pânico. Mas não havia
portas suficientes. Tessa ficou espremida contra a parede e a onda de pessoas levou Riker para longe dela. Mas agora ela não estava pensando tanto nele, mas sim
em como seria culpa dela se alguém fosse pisoteado por essa manada descontrolada de pessoas.
Agora fora da água, bati com a mão contra o botão de soltura do cabo, peguei o gancho de metal preso na ponta, puxei, para garantir que o cabo estava solto, e mergulhei
na piscina. Se esse cabo podia erguer um tubarão de 450 quilos, ele poderia levantar um dreno de metal.
O corpo mole e inconsciente de Lien-hua boiava ao meu lado; seu rosto, pálido. Seus olhos se abriram. Sem enxergar. Sem piscar.
Dois minutos. Talvez dois minutos.
Prendi o gancho do cabo no primeiro elo da corrente, peguei impulso no fundo, nadei para a superfície. Saí cambaleando para fora da água e sobre o painel de controle
hidráulico. Puxei a alavanca e ouvi o motor funcionar.
O ferimento à bala na minha perna rugia de dor, mas eu ignorei. Vamos. Vamos.
Quando o motor começou a girar e o cabo começou a se enrolar no cilindro de transporte, peguei meu telefone, liguei 911 e disse à expedição que houve um afogamento
no Sherrod Aquarium – mas isso foi tudo que tive tempo de dizer, porque então o cabo se esticou e eu escutei um som de rachadura abafado quando o cabo arrancou a
grelha do ralo inteira do fundo da piscina.
Parei o mecanismo, pulei na água, soltei o cabo e, carregando no colo o corpo de Lien-hua, nadei para a beira da piscina do melhor jeito que pude com minha perna
inútil. Eu sabia que havia uma prancha salva--vidas pendurada na parede, mas eu não achava que era capaz de usar aquilo sozinho, então decidi tentar levantá-la por
minha conta.
Mas com o peso do dreno que ainda estava acorrentado ao tornozelo dela, tudo que eu conseguia fazer era me segurar na beira da piscina enquanto apoiava seu corpo
mole. Mesmo tendo empurrado e levantado seu corpo furiosamente, fracassei duas vezes em tentar deslizá-la para a borda da piscina e sobre a plataforma. Finalmente,
na última tentativa desesperada, consegui.
Saindo da água, me ajoelhei ao lado dela e vi seu rosto, pálido e frio, a cor da morte já caindo sobre seus lábios.
Não, não, não.
Balancei-a, gritei seu nome, balancei-a mais, gritei para ela acordar, para ficar bem, mas ela não respondia. Sua cabeça pendeu para o lado. Sua língua azulada visível,
seu rosto pálido pela falta de oxigênio. Balancei-a novamente, ainda não respondia.
Isso não está acontecendo. Não pode estar acontecendo.
O treinamento de RCP30. que eu havia feito como guia de ra?ing e depois refeito como agente federal me dominou, e eu dobrei a cabeça dela para trás e levantei seu
queixo para abrir suas vias respiratórias. Senti sua respiração com meu rosto, observei seu peito para ver se estava se movendo. Sem respiração. Apliquei RCP duas
vezes, bem forte, então procurei pelo pulso.
Vias aéreas respirando, circulação.
Sem pulso.
Sem respiração, sem pulso, acabou.
Não pode ser. Não é. Não é.
Nós vivemos vidas curtas, difíceis e brutais e então morremos antes de realizarmos nossos sonhos.
Não, não agora. Por favor, Lien-hua.
Tantas coisas que eu queria dizer para ela. Tanta vida que eu queria viver com ela. Tanta.
Eu precisava manter o oxigênio circulando pelo corpo dela. Ouvi uma voz na minha cabeça, Comece com cinco compressões no peito. Cruzei as mãos, pressionei sobre
o esterno dela. Conte-os: Um.
Me inclinei para frente. Senti a pele do seu peito sob minhas mãos. Dois.
Ela havia tentado me dizer alguma coisa, se comunicar comigo. Sinalizou “D... A... E...”, mas eu não entendi. O que ela estava tentando me dizer? D... A... E...
D...
Três.
Embaralhei as letras na minha cabeça. Desembaralhei. Rearrangei-as:
ADE... EDDE... ADD... DEA...
Quatro.
Ah... DEA.
Cinco.
DEA: Desfibrilador externo automatizado.
Lien-hua sabia que estava prestes a morrer. Ela estava me dizendo para trazê-la de volta. A única maneira de trazê-la de volta.
O desfibrilador estava pendurado na parede ao lado da prancha salva-vidas. Manquei até ele, puxei-o para baixo, peguei os eletrodos do desfibrilador e me abaixei
ao lado dela. O vestido que Melice havia colocado em Lien-hua tinha apenas tiras finas, então deslizei uma para o lado, coloquei um eletrodo sobre seu coração, e
coloquei o outro eletrodo na outra lateral do seu peito, debaixo do braço, para que a corrente passasse por todo o corpo e fosse mais eficaz. Durante todo o tempo,
dentro de mim, eu estava gritando uma oração, estranha e simples, uma oração de duas palavras. Por favor. Por favor.
As palavras de Tessa de ontem sobre leitores gostarem de dor e sobre os personagens nem sempre sobreviverem no fim da história me assombravam. “Mas nem sempre acontece,
sabe?”, ela havia dito. E ela estava certa.
Por favor.
O desfibrilador é automático – ele deve checar por pulso, e então dar o choque – mas eu sabia que não podíamos esperar. Apertei o botão alternativo para causar o
choque manualmente. O desfibrilador zumbiu, o corpo de Lien-hua arqueou-se, balançou. Caiu.
Novamente chequei suas vias aéreas, sua respiração, procurei pelo pulso. Nada de respiração. Nada de pulso. Olhos vidrados. Abertos. Olhando para mim. Um olhar vazio
e fixado.
Não, não, não, não.
Quatro minutos. Danos cerebrais após quatro minutos sem oxigênio.
Irreversível.
Apliquei RCP mais duas vezes.
Verifiquei o pulso.
Nada. Eu precisava fazer o sangue circular.
Começando as compressões. Um.
Dessa vez, quando pressionei seu esterno, senti um estalo e soube que eu havia quebrado uma de suas costelas, talvez mais de uma. Mas eu tinha que continuar.
Dois.
Ouvi o osso quebrado raspar e estalar quando pressionei novamente.
Quase sempre se quebra a costela de alguém quando se faz RCP, mas você precisa fazer a compressão com força. Você tem que ir fundo.
Três.
Tentei ignorar o som horrível quando pressionei. Mas ela poderia viver com uma costela quebrada. Ela não poderia viver sem oxigênio.
Quatro.
“Crack”.
Outra costela. Mas sabia que ela me perdoaria; sabia que ela entenderia. Se pelo menos ela sobrevivesse.
Cinco.
Vi que o desfibrilador havia recarregado. Pressionei o botão. Outro choque. Seu corpo mole estremeceu. Tentei ouvir sua respiração de novo.
Nada, sem ar. Ainda não estava respirando.
Já deveria ter passado quatro minutos agora... Já deveria ter passado... Apliquei RCP mais duas vezes, seus lábios frios e secos contra os meus. A água estava fria,
talvez tenha desacelerado seu metabolismo, talvez desse a ela mais tempo.
Senti seu pulso.
Não, a água não estava tão fria assim. Não estava fria o suficiente.
– Vamos, vamos – eu sussurrei. Ela ficou apagada por muito tempo. Por favor, por favor, não morra. Por que cheguei a desconfiar de você, Lien-hua? Eu não acredito
que cheguei a pensar que você era Shade. Me desculpe. Me desculpe.
Então. Espere. Aí. Fraco. Um batimento. Fraco. Um batimento.
Sim. Sim.
Inconsciente. Quase morta.
Mas viva.
Viva.
Apliquei RCP mais duas vezes e seu corpo tremeu, sua cabeça pendeu para trás e ela cuspiu um bocado de água turva junto com bile. Rapidamente virei-a de lado para
ajudar a liberar suas vias aéreas. Ela tremia em meus braços. Mais tosse, mais água turva. Sim, sim.
Viva. Ela estava viva. Graças a Deus ela estava viva. Pálida, mas respirando. Sua cor retornando.
E então ouvi passos atrás de mim.
E eu sabia quem era.
Shade.
Sem me virar, falei seu nome:
– Deixe-me salvá-la, Terry. Me mate se você quiser, mas primeiro...
– Afaste-se, Pat – disse meu amigo da NSA, Terry Manoji. – Afaste-se agora. Atiro bem. Afaste-se antes que eu conte até três ou vou atirar em você, na base da nuca.
105
Tessa procurou ao redor. Não viu Riker. Felizmente, não viu Riker. A multidão estava diminuindo. Não parecia que alguém havia se machucado. Parecia que havia conseguido
escapar.
– Um, disse Terry.
Lien-hua estava deitada de lado, seus olhos estavam abertos. Eu vi sua garganta tremer, e então ela cuspiu outro bocado de água. Era uma incerteza. Seu coração poderia
parar novamente a qualquer instante. Seus olhos tocaram os meus. Coloquei um dedo contra seus lábios, dizendo a ela sem palavras Vejo você daqui a pouco, não se
preocupe comigo, conversaremos mais quando voltar. Um aceno fraco. Ela entendeu.
– Dois. Afaste-se, Pat.
Afaste-se ou ele vai matar tanto você quanto Lien-hua. Sua única
esperança de salvá-la é se mantendo vivo pelo maior tempo possível. Faça o que ele manda.
– Três...
– Espere! Me escute, Terry – me afastei de costas delicadamente. Encarei-o. – Faça o que você quiser comigo. Mas ela pode morrer aqui. Você precisa me deixar ajudá-la.
– Mais longe.
– Terry...
Ele apontou sua arma.
– Agora.
Recuei um pouco mais. Lien-hua rolou com o corpo mole e apoiou as costas, de modo que ela poderia aspirar a água ou vomitar a qualquer momento.
Terry passou por mim de modo que agora Lien-hua estava deitada entre nós dois.
– Mais longe, Pat. É minha vez de ficar com ela – ele acenou com a arma para eu me distanciar e eu me afastei até ele ficar fora do meu alcance. – Eu sinto muito
por ter que ser assim, Pat. Mas nós avisamos que as coisas não terminariam bem para você se você se recusasse a nos dar o dispositivo.
A respiração de Lien-hua estava fraca, seu peito se movendo apenas levemente. O desfibrilador estava a alguns metros de mim.
Terry olhou para além de mim para os pedaços do dispositivo no qual eu havia atirado.
– Você me custou muito dinheiro com isso, Pat. Você deveria ter dado ele para mim. Você deveria ter escutado.
Eu podia ouvir Lien-hua tossindo, engolindo o ar. Eu queria fazer alguma coisa, fazer algo por ela, mas se eu tentasse, Terry me mataria na hora.
– Por que, Terry? – eu disse, o desespero crescendo. – Por que você está fazendo isso? – ele manteve a arma mirada em mim com uma mão, acariciou o rosto de Lien-hua
com a outra.
– Estamos em um impasse, Pat. Gostemos ou não, todo mundo vai ter armas nucleares. É uma questão de tempo. Mas é um paradoxo. Ninguém quer usá-las porque então todos
irão usar. O mundo precisa de uma nova arma, uma que vai balançar as escalas de poder novamente.
Ele queria dizer o mundo, ele estava falando de algum lugar em particular. Então entendi o que ele estava dizendo.
– Quem, Terry? Os chineses?
Lien-hua ainda estava respirando fraco, sem profundidade.
– Eles estão nos ultrapassando. Até mesmo passando a DARPA – ele sorriu. – E tenho que dizer, eles pagam muito melhor que a NSA.
Eu mal podia acreditar.
– Faz quanto tempo?
– Dois anos agora. É impressionante como o governo americano é ingênuo. Ele se ajoelhou, esticou a mão e lentamente removeu o eletrodo do desfibrilador do peito
de Lien-hua.
– Você não vai precisar mais disso, Lien-hua; como Pat diria, eu tenho mais de um motivo aqui essa noite.
Lien-hua observou impotente enquanto Terry removia o eletrodo do desfibrilador. A fraqueza obscurecia tudo. Ele se sentiu forte o suficiente para se mexer, mas não
forte o suficiente para lutar.
Então ela pensou no desfibrilador. Talvez ela não tivesse mesmo que lutar com Terry.
Enquanto removia o outro eletrodo, Terry olhou demoradamente para Lien-hua e então me perguntou:
– Como você sabia que era eu, Pat? Você disse meu nome antes de virar. Se eu continuasse conversando ele não iria matar nenhum de nós.
– O pacote de identidade de Melice, para começar. Apenas poucas pessoas poderiam hackear o AFIS e removê-las. Essa foi minha primeira pista.
– Isso não é muito.
– Não, mas então eu percebi que quando você assistiu ao vídeo pela primeira vez, você levou apenas um minuto e 30 segundos. Eu sei, lembro de olhar no meu relógio
quando você me ligou de volta. Mas o vídeo tinha um minuto e 52 segundos, e as palavras na parede não apareciam até os últimos dez segundos. Ainda assim, quando
você me ligou, me disse do limite, mas você não deveria saber disso, a menos que...
– Eu já tivesse visto o vídeo antes.
– Certo. Ou, a menos que você mesmo tivesse escrito as palavras, o que você realmente fez. Eu vi suas anotações escritas à mão durante a conferência de vídeo e eu
não percebi de primeira, mas são iguais às letras do envelope e do escrito na parede.
Ele apenas acenou levemente como resposta.
Vi os dedos de Lien-hua falando comigo, soletrando DEA novamente.
Terry estava olhando para mim; ele não a viu sinalizando.
– Então quando Angela me informou que você era o único que poderia acessar as imagens do satélite da morte de Hunter, as peças se encaixaram. Foi assim que você
encontrou o dispositivo no carro.
– Muito bem. Mas você se esqueceu do fato de que rastreei você até o novo hotel pelo ÍCARO. Lembra-se? Eu o criei. Só eu tenho outra cópia. Estava monitorando você
o tempo todo.
– Eu imaginei – mantenha-o falando. Mantenha-o falando. – Mas por que você simplesmente não pegou o dispositivo da sala de evidências? Por que esperar Melice para
roubá-lo?
– Não fazia parte do plano. Eu só fui enviado para confirmar que estava lá. O quê?
Enviado? Enviado por quem?
– O que você quer dizer com “enviado”?
Ele ignorou minha pergunta.
– Você sempre foi bom no seu trabalho. É uma pena que tenha que morrer.
– Quem enviou você, Terry? – andei na direção dele, mas ele levantou a arma novamente. – Não faça isso, Pat – então ele olhou para os olhos de Lien-hua. – Tenho
observado você, Lien-hua, desde que sua irmã morreu. Desde o dia em que te vi no velório dela. Eu a amava, sabe, mesmo que nunca tenhamos nos encontrado.
Obviamente ele não iria responder minha pergunta, mas ele iria machucar Lien-hua. Eu tinha que impedi-lo. Tentei me aproximar, mas ele deu um tiro de aviso no chão
ao meu lado. Congelei.
– Eu a observei – ele continuou. – A segui, planejei uma vida com ela. Um dia nós ficaríamos juntos. Um dia.
Eu estava chocado que ele pudesse estar assim tão aficionado por uma pessoa por dez anos, mas então me lembrei de Lien-hua dizendo que quando alguém fica obcecado
por algo, pode durar décadas.
– Oh, você é igualzinha ela – ele disse para Lien-hua. Então sua voz endureceu. – Eu dei a chance de você ficar comigo, mas você me recusou.
Continue falando. Devagar. Os paramédicos estão a caminho.
– Mas Terry – eu disse – se você estava apaixonado por Chu-hua e Melice a matou, por que você trabalharia com ele?
– Por mais de nove anos eu procurei pelo assassino dela. Eu só descobri que havia sido ele há seis meses, quando estava procurando na Internet por uma pessoa desaparecida.
Tropecei em seu blog. Você não vê, Pat? Era perfeito. O dispositivo era o único jeito que eu tinha de realmente machucá-lo. Apenas matá-lo não teria sido suficiente.
Ele não teria sentido nada.
Enquanto ele estava distraído falando comigo, Lien-hua estava lentamente tentando alcançar os eletrodos do desfibrilador.
– Mas – ele disse, – aquele dispositivo teria conseguido. Pesquisei sobre ele. Mesmo com a mutação TrkA1, Creighton teria finalmente sentido a dor que queria. Eu
teria dado a ele uma quantidade de dor que poucos humanos já experimentaram. E então eu o mataria, mas só depois de ter feito ele sofrer o tanto que merecia.
Aqui estava um homem em quem eu confiava, um amigo que pensava que conhecia.
– Mas você deixou ele afogar essas outras mulheres, Terry. Como pode?
– Eu tinha que mantê-lo feliz até que a hora certa chegasse com Hunter, e Lien-hua fosse chamada para trabalhar nesse caso. Hora e local, Pat. Você sabe disso. É
sempre sobre hora e local.
Terry esticou-se, tirou o cabelo de Lien-hua de seus olhos, mas manteve a arma apontada para mim.
– Você teve sua chance, Lien-hua. Se não posso ter você, ninguém mais pode. Só um pequeno beijo e você vai voltar para a água. Eu diria que você ainda está muito
fraca para nadar – ele se inclinou sobre ela. – Tchau, Chu-hua.
Exatamente antes de seus lábios tocarem os dela, ele fechou os olhos por um instante, e foi nessa hora. Lien-hua sussurrou “tchau” e com as mãos fracas, mas certeiras,
levantou os eletrodos do desfibrilador. Eu mergulhei na direção do DEA. Ela grudou os eletrodos nas têmporas de Terry, seus olhos se arregalaram, um momento de confusão
cruzou seu rosto e eu pressionei o botão no desfibrilador.
Uma engasgada sem ar subiu pela garganta de Terry quando a descarga atravessou seu lobo frontal. Eu não sabia que tipo de dano essa corrente faria, mas pelo jeito
que seu corpo estremeceu e convulsionou, o desfibrilador pareceu ser mais eficaz do que eu imaginava.
Quando cheguei ao lado de Lien-hua, o corpo de Terry Manoji havia deslizado para trás e escorregado para dentro da piscina de aclimatação, arrastando com ele o DEA,
lançando para cima uma chuva de faíscas. E foi quando as sirenes de ambulâncias puderam ser ouvidas através das paredes.
Abracei Lien-hua até dois policiais e uma equipe de paramédicos entrarem pela porta. Imediatamente, um dos paramédicos me chamou, perguntando se eu era o dr. Bowers.
– A Expedição disse que você estaria aqui – ele me entregou um celular. – A tenente Mendez. Ela precisa falar com você.
Confuso, peguei o telefone enquanto a equipe médica se inclinava sobre Lien-hua.
– Aina, o que foi?
– Alguns minutos atrás – ela disse, – alarmes de incêndio foram disparados em uma danceteria, a Future Relic.
– Eu não entendo – tentei não deixar a dor da minha perna ter reflexo na minha voz. – Do que se trata isso?
– Estou no local, dr. Bowers. Sua enteada está aqui.
– O quê? Tessa? Como? Ele deveria estar em Denver.
– Ela está aqui, dr. Bowers.
Eu estava chocado com a impossibilidade do que eu estava ouvindo.
– Ela está bem?
– Sí. Ela está bem, mas, por favor, preciso contar uma coisa para você.
Ela está bem, mas um garoto tentou atacá-la, tentou atacá-la sexualmente. Ela conseguiu escapar.
Senti os arrepios que qualquer pai sentiria depois de ouvir essas palavras.
– Ela está aí? – minha voz estalou. – Deixe-me falar com ela. Então, a voz de Tessa.
– Patrick...
– Tessa, ele encostou em você? Me conta. Ele tocou em você?
– Não. Eu estou bem. Eu fugi. Mas estou com medo. Eu preciso de você. Olhei para Lien-hua. Os paramédicos estavam com ela. Ela estava segura.
– Estou indo. Chego aí em breve.
– Me desculpe, Patrick. Eu...
– Não se desculpe. Estou indo.
Gritei para os policiais presentes:
– O Future Relic. A danceteria. Podem me levar lá rápido? Um dos homem acenou para mim.
– Eu cuido disso. É perto do Horton Grand Theatre, onde estava passando Triple Espresso.
Tessa e eu finalizamos a ligação.
Com meu ferimento, os paramédicos estavam inflexíveis para que eu ficasse com eles, mas Tessa precisava de mim e nada iria me parar. Finalmente, quando viram que
eu iria de qualquer jeito, um dos paramédicos fez um curativo apressado e me deu duas muletas da ambulância.
– Você ainda tem que ir para o hospital o mais rápido possível – ele disse. Eu garanti a ele que iria.
Antes de partir, eu disse para Lien-hua que a veria no hospital e ela acenou por baixo da máscara de oxigênio. Eu a beijei delicadamente no rosto. Então, quando
ia de muletas na direção da porta, ouvi um dos paramédicos dizer:
– Ele ainda está vivo. Rápido, vamos tirá-lo da água.
Então, Terry havia sobrevivido.
Bom, eu poderia lidar com isso depois.
A caminho da Future Relic, senti o puxão da correnteza novamente. Durante todo o caminho para lá, imaginei todos os tipos de coisas que eu gostaria de fazer com
o garoto que havia tentado molestar minha enteada. E depois de 15 anos vendo as coisas mais hediondas que um ser humano pode fazer para o outro, eu tinha muitas
imagens entre as quais escolher.
Quando você olha por muito tempo para o abismo, o abismo também olha para você.
Eu imaginei com mínimos detalhes como eu o faria sofrer e então pensei em como eu justificaria tudo isso na minha cabeça quando eu terminasse. O judiciário provavelmente
ficaria do meu lado também, pelo menos até certo ponto, mas mesmo que eles não ficassem, eu daria um jeito de viver comigo mesmo.
Não poderia deixá-lo escapar assim.
Não poderia.
Quando chegamos, ainda não tinha certeza de como iria reagir quando o visse, mas assim que saí do carro, os pensamento mudaram dele para Tessa. Ela me viu, veio
correndo, pulou em meus braços e eu a abracei. Abracei-a com o amor intenso e o orgulho e os sonhos e as decepções e o fogo de um pai. Ela me disse que estava arrependida
de ter perdido o voo, e eu disse a ela que conversaríamos sobre isso depois; ela me contou que havia brigado com o cara, e eu disse a ela que estava orgulhoso dela,
e então por um momento ficamos ambos em silêncio, e eventualmente ela parou de tremer e deu um passo para trás.
Ela apontou para o camburão da polícia onde estava o cara que tentou atacá-la.
– É ele logo ali.
– Pode me dar um segundo?
– Sim.
Só então o detetive Dunn veio atrás de mim. Eu estava prestes a perguntar o que ele estava fazendo ali quando ele soltou:
– Ouvi seu nome na expedição, pensei que eu pudesse ajudar – Dunn se inclinou para perto e apontou para o suspeito. – Você quer que te dê alguns minutinhos com ele?
Eu sabia o que ele queria dizer.
– Sim, quero.
Dunn saiu de lado, eu caminhei até o garoto sentado no carro. Ele olhou para mim pela janela em uma mistura de provocação e medo. Senti a tensão aumentando em meus
ombros, nos meus braços.
Ele ia estuprar Tessa. Você precisa fazê-lo pagar.
Tensão. Tensão.
Lembrei-me de Melice falando de Caim e o aviso do Senhor sobre o pecado rastejando ao lado dele, querendo possuí-lo. E parado, ali, eu podia senti-lo rastejando
ao meu lado também. Faz parte do que somos, parte do dilema humano, mas nós temos que dominá-lo.
Eu tentei. Juro, tentei mesmo.
Mas eu não consegui.
Não depois do que esse cara tentou fazer com Tessa.
Estiquei o braço na direção da porta.
A sensação é boa, não é?
Sim, é.
Você não é como eles, é?
Sim, acho que sou.
Meus dedos encontraram a maçaneta.
Christie costumava dizer que não podemos alcançar a Luz por nossa conta, mas a Luz pode nos alcançar. Assim que abri a porta do carro, pensei nisso, e naquilo que
Calvin havia me dito, que talvez todos sejamos monstros.
Ele estava certo. Nós somos. Nenhum de nós atravessa o abismo sem espiar dentro dele. Sem pisar dentro dele.
O espaço escuro dentro do carro disse meu nome e eu sabia que iria matar esse garoto, essa noite, agora, com minhas próprias mãos. Eu não podia dizer não, não por
minha conta. Não hoje.
Entrei no carro e olhei para ele, acuado no banco de trás, entregue a mim. Senti ódio.
Medo.
Horror.
Não só por causa das escolhas dele, seu abismo, mas por causa do meu. E naquele momento meu coração gritou por coragem, gritou para a
única coisa capaz de trazer luz para um abismo tão profundo quanto eu. Somos todos monstros, todos nós, mas fomos feitos para ser muito mais. E quando estiquei o
braço para o garoto e vi seus olhos trêmulos, tomei uma decisão.
Eu me inclinei para trás, saí do carro e fechei a porta. Dunn estava parado por perto, pronto para bloquear a visão pela janela do carro. Quando ele me viu saindo,
ele me olhou com cara de dúvida.
– Eu tenho uma ideia melhor, detetive – eu disse. – Vamos fichá-lo. Processá-lo...
Um sorriso passou pelo rosto de Dunn.
– E mandá-lo para a cadeia cheia de caras que estão sempre ansiosos para ter novos amigos com quem brincar.
– Está ótimo.
106
Quinta-feira, 19 de fevereiro
9h30
Quarto de hospital de Lien-hua.
Eu estava impressionado com o quanto ela estava bem para alguém que havia morrido na noite anterior. Fraca, cansada, mas se recuperando.
Agora ela dormia e eu estava sentado ao lado dela.
Ralph e Tessa haviam saído para tomar café-da-manhã e resolver algumas coisas 20 minutos antes, me deixando sozinho com Lien-hua. Antes deles partirem, Tessa e eu
concordamos em esperar até voltarmos para Denver para conversar sobre sua escapada do voo. Nós dois sabíamos que ela não deveria ter feito isso, mas depois do que
ela havia passado na noite passada, castigá-la não era prioridade na minha lista de coisas a fazer.
Mais cedo havíamos descoberto que a bagagem de Ralph tinha chegado ontem, tarde da noite – com o dobro de partes do que deveria ter chegado. A maioria das suas roupas
estavam arruinadas ou faltando, então ele havia comprado uma camisa havaiana da loja de souvenires do hotel e estava vestindo-a com orgulho quando chegou ao hospital.
– Eu gosto desse estilo – ele anunciou, mexendo seus ombros para frente e para trás. – Má dá uma sensação insular.
– Parece que um arco-íris vomitou em você – Tessa disse.
– Ótimo – ele resmungou, desolado. – Agora vou pensar em vômito toda vez que usar essa camisa. Obrigado por isso.
– De nada.
Decidi intervir.
– Talvez você possa ajudar Ralph a escolher um terno – eu disse. – Para o funeral dessa tarde.
Tessa olhou para a camisa dele novamente.
– Bom, é evidente que ele poderia receber alguns conselhos de moda.
– Você simplesmente não aprecia o bom gosto – Ralph murmurou. Então eles saíram e Lien-hua dormiu e eu deixei meus pensamentos perambularem de volta para o caso.
Terry era um dos meus melhores amigos nos últimos três anos. Ele era uma das poucas pessoas em quem eu realmente confiava, uma das poucas pessoas que sabiam o quanto
Richard Basque me incomodou, me assombrou. Na verdade, Terry me conhecia melhor do que praticamente qualquer um. Mas agora eu percebi que eu não o conhecia. Não
mesmo.
Ouvi Lien-hua se mexer.
– Pat – era um alívio ouvi-la falar.
– Shiii – eu disse. – Os médicos me disseram que você deveria descansar.
– Um pouco de água – sua voz era fraca mas decidida. – Por favor. Levei um copo até seus lábios, e após beber um pouco, ela segurou minha mão. Então ela falou de
novo, suas palavras intensas e urgentes, mas também suaves:
– Obrigada por ontem a noite. Por tudo o que você fez.
Ela estava impressionantemente coerente para quem havia acabado de acordar. Talvez ela estivesse acordada por um tempo mas eu não tinha percebido.
– De nada – eu disse.
Um leve sorriso.
– Eu sempre quis duas costelas quebradas.
Bom, pelo menos seu humor estava se recuperando também.
– Não há de quê.
Ela suspirou de leve.
– Sério, eu queria arrumar um jeito... – ela tomou um ar – de agradecê--lo. Eu não sei o que dizer.
– Talvez possamos descobrir um jeito que não precise de palavras – eu disse. E não estava necessariamente pensando em linguagem de sinais.
Aquilo provocou um sorriso.
– Estou falando sério.
– Eu também. Sempre que precisar de alguém para fazer respiração boca-a-boca novamente, me avise.
Outro sorriso, lindo em sua delicadeza.
– Ok, eu aviso – ela parou. – Margaret passou por aqui mais cedo.
– Margaret Wellington? Não acredito.
– Ela me trouxe um cartão...
– Incrível.
– E então me disse que ainda estou suspensa.
– O quê? Não. Eu não vou deixar isso acontecer – fui pegar meu celular mas Lien-hua me impediu com um apertão de sua mão e uma balançada de sua cabeça. – Deixe isso
por enquanto. Está tudo bem. Isso vai me dar uma chance de visitar Redmond.
Lien-hua havia nascido em Redmond, Washington. Me perguntei se era onde sua irmã estava enterrada.
– Chu-hua?
Ela acenou com a cabeça.
– Acho que finalmente estou pronta. Preciso preparar um novo arranjo de flores para o túmulo dela. Uma que pegue um pouco mais de luz.
Então ela pediu mais um gole d’água, e depois de ter dado a ela, percebi que havia mais uma coisa que eu precisava dizer, mas eu não tinha muita certeza como fazer.
Finalmente, decidi ser sincero com ela e abrir o jogo.
– Escute, preciso contar uma coisa. Por um curto período, pensei que você pudesse ser Shade – segurei sua mão carinhosamente. – Me desculpe.
Imaginei se ela ficaria brava ou decepcionada comigo, e quando demorou para responder, percebi que provavelmente estava, mas no final ela sussurrou:
– Não peça desculpa. Você só estava procurando a verdade.
– Eu sei, mas...
– Está tudo bem. É quem você é. É o que você faz.
Ei, espere um minuto.
– Sabe, isso é quase que exatamente a mesma coisa que Tessa me disse um dia desses? Vocês duas andaram trocando anotações?
Ela sorriu astutamente.
– Talvez nós duas pensemos parecido.
– Isso me dá medo – eu gostei que ela ainda estava segurando minha mão. – Então, ainda amigos?
Ela sinalizou “sim” para mim com a mão que segurava a minha. E eu sinalizei de volta “obrigado”.
– Ok – eu disse. – Agora, você precisa descansar.
– Espere. Só mais uma coisa. No quarto... no quarto do hotel... quando ensinei o alfabeto, você lembrava das letras, né? Da primeira vez.
– Sim.
– Mas você parou no Q, depois no M. Por que?
– Honestamente? – eu perguntei.
– Honestamente.
– Eu queria que a aula durasse o máximo possível.
– Hum – ela disse delicadamente enquanto fechava os olhos e relaxava em seu travesseiro. – Segunda intenções.
– Exato.
Segurei sua mão e observei-a voltar a dormir e desejei que eu pudesse fazer o mesmo. Descansar. Dormir. Relaxar. Mas cansado como estava, e com o tanto que o ferimento
à bala na minha perna estava me incomodando, algo mais estava na minha mente. As palavras de Terry: “Eu só fui enviado para confirmar que estava lá”.
Quem o mandou para a sala de evidências, Terry?
Se pelo menos ele não estivesse em coma eu poderia ter perguntado a ele.
Mas ele estava em coma. E de acordo com os médicos, ele não acordaria tão cedo, se é que acordaria.
Alguns minutos após Lien-hua ter dormido, Ralph e Tessa chegaram. Tessa foi sentar-se com Lien-hua e eu caminhei para o corredor pra conversar com Ralph sobre o
caso.
Quando estávamos sozinhos, perguntei a ele sobre os pesquisadores do Projeto Rukh.
– Todos estão bem?
– Sim, acabei de falar com Margaret. Estão todos a salvo. Sendo interrogados enquanto conversamos. Exceto por um cara, Kurvetek. Osbourne falou dele. Não conseguimos
encontrá-lo ainda.
Deixei aquilo ser digerido.
– E, por acaso, Margaret me disse por que é chamado Projeto Rukh. Eu não queria nem pensar em Margaret, mas estava curioso com o nome, então mordi a isca.
– Por que?
– Acontece que rukh é uma palavra persa. Quando o xadrez foi inventado, era o nome da peça que nós chamamos de torre. Costumava querer dizer “carro de guerra” ou
“herói”, e mais tarde, quando o xadrez chegou na Europa, a peça mudou para parecer uma torre de cerco. A ideia era a mesma, porém, usando seu rukh, você poderia
passar pela defesa do seu inimigo e então derrotá-lo antes dele perceber o que o atingiu.
– E isso é exatamente o que o dispositivo faz.
– Certo.
– Passando por suas defesas, pegando-os despercebidos – eu disse. – Talvez eles devessem tê-lo chamado de Ralph.
– Gentileza sua dizer isso – ele secou as últimas gotas de seu refrigerante extra grande. – Ah sim, eu quase me esqueci. Graysmith e Dunn estão investigando outro
homicídio: general Cole Biscayne foi atingido na cabeça na noite passada. Nenhuma pista ainda, até onde sei. E uma boa notícia, pelo menos. Aquela garota, Randi,
ela estava apenas se escondendo na casa de uma amiga, com medo dos “terroristas”. Ela está bem.
– Ótimo. E quanto ao dispositivo?
– Você tem uma boa mira, Pat. Está destruído. E, apesar da maioria dos arquivos terem sumido, Margaret está analisando os que Drake não conseguiu destruir.
– Aposto que ela está. E Cassandra?
– Ela está bem. Passou a noite passada e essa manhã em um esconderijo. Acho que ela vai tirar umas férias para se recuperar. Até onde soube, eles levaram ela até
o aquário para que pudesse se despedir dos amigos e de um cara chamado Warren Leant.
Comecei a extrair as últimas informações do caso. E eu não gostei para onde apontavam.
– Ela está no aquário? Com Leant?
Ele encolheu os ombros.
– Acho que sim.
– Ralph, mande os agentes ficarem com ela.
– Por que? Melice está morto, Terry está em coma...
– Não. Confie em mim. Não deixem que a larguem sozinha com ele.
– Por que não?
– Um ponto cego. Vamos.
Ele ligou para os agentes, me inclinei para o quarto de Lien-hua e disse a Tessa que eu voltaria em uma hora, e então Ralph e eu rumamos para o carro.
107
Warren Leant nos encontrou na porta do Sherrod Aquarium, e eu educadamente pedi que nos levasse até a área de criação animal.
– Está tudo bem?
– Veremos – eu disse.
Alguns instantes depois entramos na área de criação, e ele perguntou se não nos importaríamos de nos apressarmos.
– Eu tenho uma reunião do conselho de administração. Um homem foi devorado por tubarões aqui na noite passada e isso virou o pesadelo para as relações públicas.
Tenho certeza que vocês entenderão. A reunião é em meia hora.
– Talvez você se atrase – observei a piscina onde Lien-hua havia se afogado olhando para a superfície, lutando para se libertar. – Eu gostaria de dar uma olhada
por um minuto. Ralph, você pode aguardar com o sr. Leant?
– Com certeza.
Sussurrei algo para Ralph e então os dois saíram juntos enquanto eu fazia uma varredura na sala. Os criminalistas haviam passado a noite analisando o local, e a
única pessoa que permitiram vir aqui foi Cassandra, e eu reparei que ela estava esvaziando seu escritório. No caminho para o aquário, Ralph havia me dito que os
dois agentes de campo que a estavam protegendo ainda estavam com ela, mas eu não os vi na sala.
Cassandra me reconheceu e repousou a caixa que estava carregando.
– Preciso de um tempo longe – ela explicou. – Um pouco de espaço. Essa história toda, é demais pra mim.
Concordei. Entendi.
– Você está bem? – ela perguntou, vendo as muletas.
– Eu vou ficar. E você?
– Acho que sim. Assim que tudo isso ficar pra trás.
– Pode demorar um pouco – eu disse. – Porque você cometeu um erro. Ou talvez dois.
Apenas um indício de espanto em seus olhos. Apenas um indício.
– Do que você está falando?
– Você olhou para a câmera, Cassandra. Nenhuma das outras mulheres olhou.
O dedo indicador direito dela ficou inquieto sobre sua perna.
– Que câmera?
– Cassandra, por favor – me inclinei instável sobre as muletas. – De onde você estava no tanque, não era possível ver as filmadoras. Eu sei, eu verifiquei. Todas
as outras mulheres viraram-se para a liberdade, mas você ficou virada para a parede de trás do armazém. Você me disse ontem que não sabia o que Melice estava fazendo
enquanto estava no tanque. Mas você sabia. Você facilitou para ele fazer o filme olhando para uma câmera e então para a outra. Você sabia onde estavam porque você
as colocou lá.
– Eu não faço ideia do que você está falando – mas seus olhos a traíram.
– Eu supus que Shade fosse uma pessoa ao invés de duas. Isso que me intrigou, mas agora entendo. Você, ou talvez Terry, trocou as correntes. Foi simples assim. Eu
contei os elos. As outras mulheres tinham uma corrente mais curta. Você tem 1,80m, e a corrente no seu tornozelo era longa o suficiente para você alcançar a superfície,
mesmo quando o tanque estivesse cheio. Você deu um bom show, no entanto, se sufocando na água daquele jeito, mas imagino que depois de tantos anos praticando mergulho
e triatlo, você consegue segurar a respiração muito bem também. Talvez dois, três minutos? Bastante tempo, mesmo enquanto estávamos lá tentando quebrar o tanque.
Então me diga, foi você que comprou o armazém ou foi Terry?
– Você é louco.
Cassandra olhou além de mim para a porta. Achei que talvez ela fosse me empurrar e tentar fugir. De muletas, sabia que eu não poderia nem correr e nem me defender.
Onde estão esses agentes?
Antes que pudesse tentar fazer alguma coisa, eu continuei:
– Acho que a segurança da base era muito forte para você tentar entrar no Edifício B-14. Por isso você e Terry não puderam roubar o dispositivo por conta própria.
Então, quem encontrou Austin? Foi o Terry? Ou você? De qualquer jeito, você seduziu Austin, ganhou a confiança dele, o amor dele, e o resto é história.
– Por que eu me deixaria ser sequestrada? – ela começou a andar na direção da escada ao lado da piscina de aclimatação.
Dei dois passos fracos com minhas muletas em direção a ela.
– Então, me responda uma coisa – ela disse. – Por que eu ficaria naquele tanque por 12 horas?
Eu a observei cuidadosamente.
– Para conseguir a coisa que mais importa a você.
– E o que seria?
– Eu não faço ideia, não trabalho com motivos – então ela disparou na direção da escada ao lado da piscina, mas Ralph surgiu pela escada onde eu o havia enviado
com Warren Leant. Os dois agentes o seguiam de perto.
Cassandra cometeu o erro de tentar empurrar Ralph de volta para a escada mas ele agarrou os dois braços dela, girou-a e colocou-a no chão e a algemou antes que ela
percebesse o que tinha acontecido.
Projeto Ralph.
Ela lutou inutilmente contra ele por um momento, então quando ele a colocou de pé, ela me olhou maliciosamente, uma escuridão macabra rondando seu rosto.
– Você ainda não entende – sua voz, que havia estado normal e relaxada há apenas alguns minutos, agora soltava faíscas entre nós. – Você não faz ideia do que planejamos,
agente Bowers. Não faz ideia.
– Você está certa – eu disse. – Não faço. Eu sou apenas um investigador, não um leitor de mentes. Leve-a embora, Ralph – comecei a mancar na direção da porta. –
Minha perna está começando a doer e eu gostaria de tomar outro copo de café.
108
Crepúsculo
Tessa e eu iríamos voltar para Denver na manhã seguinte, então, após o funeral, nós decidimos visitar a praia mais uma vez para assistir o pôr--do-sol no oceano.
Com minhas muletas, eu não podia andar na areia, então encontramos um caminho que levava a um banco do lado da praia em Mission Bay. Parecia que havia tanto para
conversarmos, mas não teria problema também se não falássemos nada.
Sabendo o quanto Tessa odiava cadáveres, eu fiquei surpreso que ela havia decidido ir ao funeral no começo dessa tarde.
– Você não precisava ter ido hoje, você sabe – eu disse a ela quando nos sentamos.
– Eu estava lá quando aconteceu. Queria ir – ela mexeu na areia com o pé. – Você já conheceu algum homem vivo chamado Fulano?
– Ainda não. Apenas mortos.
Um momento se passou.
– José Lopez – ela disse. – É bom saber o nome dele.
Pensei de volta no funeral. Fiquei feliz que o legista estava errado; José tinha uma família. Quinze transeuntes e sete mulheres fizeram fila com a gente para passar
ao lado do caixão fechado. Alguns estavam chorando. Alguns estavam quietos e reflexivos. Alguns estavam bêbados. Alguns estavam drogados. Mas todos eles nos agradeceram
por termos ido e então ou nos abraçaram ou apertaram nossas mãos. Pensei que talvez fossem nos pedir dinheiro, especialmente porque Ralph estava vestindo um terno
novo que Tessa havia ajudado a escolher, mas nenhum deles pediu.
Coloquei minha mão no bolso do casaco e senti o dente que eu ainda carregava comigo.
– Sim – eu não conseguia espantar a tristeza da minha voz, os pensamentos do caso em minha cabeça. – É bom saber o nome dele.
Ela deve ter percebido que meus pensamentos estavam começando a me distrair novamente.
– Você está bem?
– Sim. E eu estou sendo um pai agora, de verdade. Mas é que existe uma outra parte de mim, a parte do FBI, que ainda...
– Está tudo bem. Eu sei que você não pode desligar.
– Estou tentando, Tessa...
– Não-não-não-não – ela disse. – Essa parte não. Não a parte do FBI. A parte pai. Essa é a parte que você não consegue desligar. Eu não entendia antes. Mas agora
entendo. Acho que finalmente entendi.
Tessa nem sempre fala a coisa certa, mas quando fala, ela acerta em cheio. Me inclinei e beijei-a na testa.
– Obrigado por dizer isso, Tessa. – É sincero.
– Eu sei.
Então, silêncio, enquanto olhávamos para o oceano que se esticava à nossa frente e assistíamos o sol caminhar em direção ao horizonte. Finalmente, eu disse:
– Tessa, lembra-se quando estávamos conversando sobre a agente Jiang?
– Aham.
– E eu disse que contaria para você se decidíssemos passar para algo que fosse um pouquinho mais do que nada?
– Aham.
– Bom, acho que decidimos.
– Já estava na hora.
Olhei para ela.
– Mas eu não tinha certeza se você gostava dela.
– Ela está me ganhando – ela disse. – E além disso, ela é boa para você. Uma influência que te equilibra – o céu começou a ficar rosa acinzentado sobre nós. – Às
vezes – ela acrescentou, – ela até me lembra a minha mãe.
Assistimos as ondas quebrarem e depois voltarem para o oceano. A batida de coração regular do mundo, com correntes mortais e ondas suaves. A delicadeza faz tão parte
do oceano quanto a ferocidade.
O oceano é tão terrível quanto calmo.
Tanto em paz consigo mesmo quanto em guerra. Assustador e bonito
Assim somos todos nós.
– Patrick? – Tessa disse, interrompendo meus pensamentos.
– Sim?
– Faz quase exatamente um ano que a mamãe morreu.
– Eu sei.
O sol descansou hesitante no horizonte, ocupando o momento entre o dia e a noite.
– Às vezes dói quando eu penso nela – Tessa murmurou. – E às vezes não.
– Comigo acontece a mesma coisa.
Um pausa, e ela se virou para me olhar.
– Algum dia isso fico mais fácil?
Observei uma gaivota circular e mergulhar, circular e mergulhar na direção da água que parecia tinta.
– Eu não tenho certeza – eu disse. – Mas fica diferente.
Alguns suaves momentos se passaram, então Tessa olhou para outro lado, na direção do céu e do mar e da linha tênue entre eles.
– Posso contar com você? – ela perguntou silenciosamente.
– Sempre – coloquei meu braço ao redor do ombro dela e ela apoiou a cabeça contra o meu peito, e juntos assistimos o sol desaparecer no oceano.
Para que ele pudesse surgir novamente um momento depois, do lado oposto do mar.
EPÍLOGO
Dezenove minutos depois
O verdadeiro Shade, o mentor de tudo, bateu outra foto instantânea de Patrick Bowers sentado ao lado de sua enteada, e então sorriu.
Sim, Terry estava em coma.
Sim, Cassandra estava presa.
Sim, o dispositivo havia sido destruído, mas ainda assim, Shade sorria. Afinal, ninguém além da filha do seu primeiro porém malfadado casamento sabia sobre ele,
portanto ninguém viria atrás dele. E sua filha nunca o entregaria; afinal, ela sabia que ele pagaria sua fiança e a ajudaria a escapar, assim como havia feito com
Melice.
Sua câmera expeliu a fotografia. Ele bateu outra.
Então Shade, aquele que havia atirado na garrafa na mão de Melice... aquele que havia identificado a voz do agente Bowers no telefone... aquele que havia ficado
parado e invisível enquanto sua filha saía das sombras ao lado dele para fazer Melice pensar que ela era Shade... aquele que havia apresentado ela pela primeira
vez ao agente da NSA, Terry Manoji... aquele que havia dito a Terry para atirar em Bowers na base da nuca... aquele que havia planejado tudo desde o começo, e tão
cuidadosamente coordenou o trabalho de seus dois protegidos, agora encontrou um novo inimigo, dedicou sua atenção a um novo alvo: o agente especial Patrick Bowers.
Shade pegou a foto da câmera.
Clique. Outra foto.
Ele poderia ter matado Bowers a qualquer hora. Sim, é claro. Mesmo naquela hora. Mas nos últimos quatro meses, Terry havia sido muito útil informando a ele sobre
o passado de Bowers, e Shade acreditava que teria um castigo melhor do que a morte para o agente Bowers: o medo.
Fazê-lo viver com medo.
Assim que a última foto foi impressa, ele rabiscou um bilhete, “Ainda estou aqui. – Shade”. Então ele abriu o envelope, deslizou o bilhete e asfotos para dentro
e o fechou.
Sim. Deixe Bowers viver com medo. E Shade já sabia o melhor jeito para fazer isso. Terry havia contado a ele o segredo mês passado.
Deixe Bowers enfrentar o passado. Deixe-o enfrentar sua imagem espelhada – Richard Devin Basque.
Shade checou duas vezes o endereço de Denver e colocou a carta na caixa de correio ao lado do estacionamento do Mission Bay. Não seria difícil fazer Basque ser declarado
como inocente no fiasco do julgamento em Chicago. Comprar alguns jurados. Dificilmente seria um desafio. Então ele entregaria o agente Bowers para Basque e o deixaria
fazer o que ele faz melhor.
“Mande ver”, né, Bowers?
Tudo bem. Se você insiste.
Então, o assassino, ex-CIA, Sebastian Taylor sorriu, acendeu um cigarro e caminhou sob o luar macabro até seu carro, pensando no medo.
O melhor castigo de todos.
AGRADECIMENTOS
Agradecimentos especiais para Robert Bess, tenente Andy Mills, Courtney Thompson, Sonya Haskins, Rhonda Bier, Sarah Bender, Tri-nity, Ariel e Eden Huhn, dra. Debbie
LeCraw, Pam Johnson, George Hill, Lonnie Hull DuPont, Pamela Harty, Jennifer Leep, David Lehman, David Beeson, Shawn Scullin, Cat Hoort, Kristin Kornoelje, Michelle
Cox, Al Gansky, Lucyah Della Valle, Janice, Frank, Roger e a equipe do Ripley’s Aquarium of the Smokies e um grande agradecimento para o dr. Todd Huhn, Chris Haskins
e o dr. John-Paul Abner por me ouvirem e por todas as críticas e acréscimos úteis. Vocês três são máquinas de ideias.
E finalmente, para Liesl. Sua paciência e incentivo significam o mundo para mim. Este não é meu livro, é nosso.
Você não sabe como o treinador de tigres faz? Ele não ousa dar ao tigre nenhuma coisa viva para comer, com medo que ele possa conhecer o gosto da fúria ao matá-la.
Ele não ousa dar a ele nenhuma coisa inteira para comer, com medo que ela possa conhecer o gosto da fúria ao despedaçá-la.
Ele mede o estado do apetite do tigre e compreende completamente sua disposição feroz. Tigres são de uma raça diferente dos homens... os homens que acabam mortos
são os que vão contra eles.
- Chuang Tzu, filósofo chinês, 352 a.C.
1
Quinta-feira, 15 de maio
Mina de Bearcroft
Montanhas Rochosas, 65 quilômetros a oeste de Denver
17h19
O cheiro triste e maturado da morte emanava da entrada da mina abandonada.
Alguns agentes do FBI acostumam-se com esse cheiro em momentos como esse, e depois de um tempo, ele se torna parte da rotina diária.
Isso não aconteceu comigo.
Minha lanterna emitia um feixe estreito de luz através da escuridão, mas iluminava o suficiente para mostrar que a mulher ainda estava vestida, sem sinais de abuso
sexual. Dez velas grossas a cercavam, suas chamas dançando e lambendo o ar empoeirado, dando ao túnel uma sensação fantasmagórica e transcendental.
Ela estava a cerca de 10 metros de distância e deitada como se estivesse dormindo, com as mãos no peito. E em suas mãos estava o motivo pelo qual eu havia sido chamado.
Um coração humano em lenta decomposição.
Nenhum sinal da segunda vítima.
E as velas tremeluziam ao redor dela no escuro.
Parte dos meus deveres no escritório local do FBI de Denver inclui trabalhar com o Departamento de Polícia de Denver em uma força--tarefa conjunta que investiga
os infratores criminosos mais violentos da região metropolitana de Denver, ajudando a analisar evidências e sugerir estratégias de investigação. Como esse crime
parecia estar ligado a outro duplo homicídio no dia anterior, em Littleton, o tenente Kurt Mason pediu minha ajuda.
Porém, alguns oficiais da força policial local tendem a ser territorialistas, e no momento em que pisei fora do helicóptero da força-tarefa, percebi o quanto os
quatro homens da perícia ficaram animados por eu estar lá. Provavelmente não faria diferença informar que Kurt queria que eu analisasse a cena com ele antes de me
conduzirem ao túnel.
A mina mal tinha altura suficiente para que eu ficasse de pé, e era estreita, de modo que eu podia tocar os dois lados ao mesmo tempo. A cada 5 ou 10 metros, grossas
vigas escoravam as paredes e o teto, evitando desmoronamentos.
Um trilho enferrujado que havia sido usado por mineradores para conduzir vagonetes de minério pela mina corria pelo chão e desaparecia na escuridão em algum lugar
além do corpo da mulher.
Enquanto dava alguns passos para dentro do túnel, verifiquei se meus tênis deixavam pegadas, mas vi que o chão era muito duro. Então, era improvável que também tivéssemos
impressões de pegadas do assassino.
A cada passo, a temperatura diminuía, se aproximando dos 5°C. A hora da morte ainda era desconhecida, mas o ar frio teria tornado a decomposição mais lenta e ajudado
a preservar o corpo. A mulher poderia estar lá há dois ou três dias.
Uma das velas se apagou.
Por que você a trouxe aqui? Por que hoje? Por que essa mina? De quem é aquele coração nas mãos dela?
A voz de um dos membros da perícia cortou o silêncio escuro.
- Sim, o agente especial Bowers entrou. Ele não está com pressa.
- Eu espero que não - era o tenente Mason, e eu fiquei feliz por ele estar ali. Ele esteve no telefone desde que eu havia chegado, e agora eu parei e esperei que
ele se juntasse a mim.
Um feixe de luz passou por mim quando ele ligou sua lanterna e logo depois ele estava ao meu lado.
- Obrigado por aparecer, Pat - ele falou em voz baixa, um pequeno gesto de respeito com a morta. - Eu sei que você está partindo para lecionar na Academia semana
que vem. Eu espero que...
- Vou dar consultoria de Quântico, se for preciso.
Ele fez um pequeno aceno com a cabeça.
Com 41 anos de idade, óculos estilosos de aro fino e olhos rápidos e inteligentes, Kurt parecia mais um banqueiro de investimentos do que um detetive experiente,
mas ele era um dos melhores investigadores de homicídios que eu já havia conhecido.
Havia sido um ano difícil para ele, porém, e isso estava estampado em seu rosto. Cinco anos atrás, enquanto ele e sua esposa Cheryl tinham saído juntos, a filha
de 15 meses deles, Hannah, se afogou na banheira enquanto a babá estava na sala de estar mandando uma mensagem de texto para um amigo. Kurt e eu havíamos nos conhecido
há apenas alguns meses, quando sua filha morreu, mas eu havia recentemente perdido minha esposa, e de certo modo, a noção de tragédia compartilhada tinha aprofundado
nossa amizade.
Silenciosamente, colocamos luvas de látex. Começamos a andar em direção ao corpo da mulher.
- O nome dela é Heather Fain - sua voz soava solitária e oca dentro do túnel. - Acabei de ficar sabendo. Desapareceu de seu apartamento em Aurora na segunda-feira.
Ninguém viu o namorado dela desde então, um cara chamado Chris Arlington. Estávamos de olho nele... até... - sua voz foi sumindo. Estava observando o coração.
Olhei para o corpo de Heather, ainda a 5 metros de distância e deixei seu nome caminhar em minha mente.
Heather.
Heather Fain.
Isso não era apenas um cadáver, eram os restos mortais trágicos de uma jovem mulher que tinha um namorado, sonhos e uma vida em Aurora, Colorado. Uma jovem mulher
com paixões, esperanças e angústias.
Até essa semana.
A tristeza me penetrou como uma faca.
O comentário de Kurt me fez pensar que ele poderia ter um motivo para acreditar que aquele era o coração de Chris Arlington.
- Nós sabemos a identidade da segunda vítima? - perguntei. - Se é ou não de Chris.
- Ainda não - um nervosismo tomou conta de sua voz. - E eu sei o que você está pensando, Pat: não suponha, examine. Não se preocupe. Vou examinar.
- Eu sei.
- Temos que começar de algum lugar.
Focalizei o feixe de luz no coração.
- Sim, temos mesmo.
Juntos, nos aproximamos no corpo.
2
As velas emitiam um cheiro de baunilha que se misturava com o cheiro de carne em decomposição e o forte odor de enxofre vindo das profundezas da mina. Imaginei se
as velas eram o jeito que o assassino encontrou para mascarar o cheiro do corpo quando este começasse a se decompor; imaginei onde ele poderia tê-las comprado, e
há quanto tempo estavam queimando.
Detalhes.
Tempo.
- Eu devo te contar - Kurt disse, - o capitão Terrell não está feliz que isso está nas mãos da força-tarefa. Ele quer que fique totalmente com a polícia local.
- Obrigado por avisar - mesmo a 3 metros de distância eu podia ver as veias carnudas e intrincadas do coração. - A gente resolve isso depois.
Chegamos ao corpo de Heather.
Caucasiana. Por volta de 25 anos, corpo mediano, cabelo castanho empoeirado. Batom fresco. Imaginei-a viva, se mexendo, respirando, rindo. Baseado na estrutura óssea
do rosto dela, ela devia ter um sorriso tímido e adorável.
Sua pele estava marcada e manchada, e houve certa atividade de insetos, mas a temperatura baixa fez com que fosse mínima.
Analisei por um momento o coração, preto avermelhado e preso nas mãos dela. Parecia muito escuro, e terrível, apoiado em seu peito.
Então minha visão direcionou-se para as velas. Através dos anos eu descobri que ter um entendimento claro do local e da relação de tempo de um crime é o ponto mais
importante para se começar uma investigação. Olhei meu relógio e então assoprei as cinco velas em volta das pernas dela.
- Anote 17h28.
Kurt escreveu os números em sua caderneta.
- Fluxo de cera?
- Sim - mais tarde, faríamos com que os técnicos forenses queimassem velas dessa marca nessa altitude e nessa temperatura e comparassem a taxa de derretimento e
a quantidade do fluxo de cera para determinar por quanto tempo essas velas ficaram queimando. Isso nos diria quando foi a última vez que o assassino esteve ali.
Eu não precisava dizer nada disso para Kurt; nós estávamos na mesma frequência.
Analisei a posição do corpo em relação ao modo que o túnel se curvava para a esquerda seguindo o veio mineral que penetrava a montanha. Parecia que o corpo de Heather
não havia sido colocado a esmo na mina. O assassino havia centralizado o corpo entre duas vigas de suporte.
Ele queria que a víssemos assim que entrássemos na mina. Ele a emoldurou. Como uma foto.
- Só mais alguns minutos - Kurt disse, tirando-me dos meus pensamentos. - Então terei que deixar os caras da perícia entrarem.
Me inclinei sobre o corpo.
Os olhos dela estavam fechados.
Nenhuma tatuagem visível.
Nenhuma roupa rasgada, nenhum sinal de luta. Calça preta, botas de couro marrom, uma blusa florida amarela e laranja com uma manchaescura de sangue que havia escorrido
do coração.
Empurrei uma mecha de cabelo que cobria sua orelha esquerda e vi que ela era furada em três lugares, mas ela não usava nenhum brinco. Verifiquei a outra orelha.
Nenhuma joia.
- Vamos descobrir se ela estava usando brincos no dia em que foi sequestrada. Se ela estava, verifique sobre outros casos de assassinos que levam brincos como troféus de seus assassinatos.
Ele escreveu em sua caderneta.
- Kurt, além de você, quantos policiais estiveram aqui?
- Apenas dois - ele apontou sua luz na direção de um túnel em uma interseção que levava para o leste. - Verifiquei os túneis antes deles chegarem aqui. Está limpo.
Nenhum outro corpo.
Pingava água em algum lugar fora da vista no fundo da mina. Ecos molhados rastejando em minha direção.
- Nós sabemos quem é o dono dessa mina?
Ele balançou a cabeça.
- Aqui em cima, os direitos sobre os minérios mudam muito de mãos. São herdados, revendidos. É difícil rastrear. Jameson está trabalhando nisso.
Voltei minha atenção totalmente para Heather novamente. Nenhuma contusão em sua face, nem sangue em seu cabelo, nem marcas em seu pescoço. Como ele te matou, Heather?
Segurou um travesseiro contra seu rosto? Te afogou? Te envenenou?
- Vamos fazer um exame toxicológico.
- O médico forense está a caminho pra dar continuidade à investigação. A vela ao lado do ombro direito dela piscou.
Movimentei meu feixe de luz para além do coração e o direcionei para as leves dobras e rugas de sua roupa.

 

 

 

 

1. N. do E.: Em inglês, shade quer dizer sombra.
2. N. do E.: Darfur é uma região do Sudão que vive um conflito de décadas, considerado um verdadeiro desastre humanitário.
3. N. do T.: Escolas anuais, ou year-round schools, são escolas onde os alunos estudam por dez meses intercalados por diversos recessos de uma ou duas semanas espalhados
pelo ano, somando dois meses, ao contrário das escolas tradicionais onde o recesso de férias é feito de uma vez só.
4. N. do T.: O National Center for the Analysis of Violent Crime (Centro Nacional para Análise de Crimes Violentos) é um departamento do FBI especializado em crimes
violentos.
5. N. do T.: Em português, Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa.
6. N. do E.: Raven, em inglês, quer dizer “corvo”.
7. N. do T.: Autoestrada que atravessa San Diego de norte a sul, da divisa com o Canadá, atravessando toda a costa oeste, até a divisa com o México.
8. N. do T.: Equipe de Combate a Incêndios Metropolitanos de San Diego.
9. N. do T.: Departamento de Justiça Criminal do Texas.
10. N. do T.: Base de Treinamento Anfíbio dos SEALs da Marinha, uma instalação da Marinha dos EUA que serve como base de operações e treinamento e tem uma população
de 5 mil militares e 7 mil estudantes e reservistas.
11. N. do E.: Pluma de fogo é o efeito gerado a partir do movimentos dos gases, que faz com que haja uma corrente ascendente.
12. N. do T.: National Security Agency (Agência de Segurança Nacional), agência responsável pela análise de comunicações estrangeiras e pela proteção das comunicações
e sistemas de informação dos EUA.
13. N. do E.: Efeito produzido através da manipulação de raios de luz, usado para diversos fins.
14. N. do E.: Grupo de elite do exército dos EUA.
15. N. do T.: Rede norteamericana especializada em sucos de fruta.
16. N. do E.: Jawfish são peixes pequenos e prognatas, que têm o corpo alongado e a cabeça, os olhos e a boca proporcionalmente bem maiores.
17. N. do T.: Um estilo de barba onde os fios encontram-se logo abaixo do lábio inferior e acima do queixo.
18. N. do T.: “Correntes de dor sob o céu dourado. Parece não conseguir encontrar uma base sólida”
19. N. do T.: “Estou sempre procurando um lugar para ficar, nunca encontrando a terra prometida”.
20. N. do T.: Aparelho que possibilita que o mergulhador inspire novamente o gás expirado, economizando oxigênio e diminuindo as bolhas de ar expelidas.
21. N. do T.: Tummy e Tubby, sonoramente parecidos com Tumney, podem ser traduzidos por “Barrigudo” ou “Rechonchudo”.
22. N. do T.: Agência de Inteligência Geoespacial Nacional.
23. N. do T.: GEOINT é a abreviação de Geospacial Inteligence, ou Inteligência Geoespacial.
24. N. do T.: Morgue é o termo em inglês para necrotério, além de ser o nome da rua do conto de Poe.
25. N. do T.: Sistema Automatizado de Identificação de Impressões Digitais.
26. N. do T.: Congenital Insentivity to Pain with Anhidrosis.
27. N. do T.: San Diego State University, ou Universidade Estadual de San Diego.
28. N. do E.: Estilo de Kung Fu inventado no século 19.
29. N. do E.: Morto.
30. N. do E.: Ressucitação cardiopulmonar.

 

 

                                                   Steven James         

 

 

 

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