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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TORTURA DO CIUME / Yvonne Whittal
A TORTURA DO CIUME / Yvonne Whittal

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

"Você me ama? Ama, mesmo?" A pergunta já estava se tomando uma obsessão para Paul. E uma angústia para Catherine. Será que já não havia dado provas suficientes ao marido de que o adorava? O que mais podia fazer para que ele acreditasse? Verdade que muitas pacientes pensam se apaixonar por seus médicos, confundindo gratidão com amor. Verdade também que devia muito a Paul: se não fosse por ele, ainda estaria presa a uma cadeira de rodas. Mas Catherine já o amava antes de ser operada; tinha visto nele primeiro o homem e, depois, o grande médico. Paul, no entanto, não acreditava. Desconfiava de todos os homens que se aproximavam dela. E acabaria arruinando a vida dos dois!

 

 

CAPÍTULO I

Era verão no Cabo, e, apesar do calor abrasador, a população da cidade estava muito aumentada por causa dos turistas que vinham aproveitar as férias. Cada vez
ficava mais difícil encontrar lugar num hotel ou acampamento.
As barracas em Cape Malays, com seu colorido berrante, atraíam enxames de turistas, ansiosos para comprarem as belas frutas e flores da época. Era dezembro, e
as vitrines se enfeitavam.
Os melhores vinhos eram trazidos das adegas, para serem servidos aos turistas, que jantavam lautamente, depois de passarem o dia deitados ao sol.
Da janela de um dos mais modernos edifícios do centro da cidade, um homem de meia-idade olhava o tráfego pesado do meio-dia, ignorando o alegre ir e vir da cidade,
lá embaixo. Acabara de ser informado de que sua única filha, Catherine, teria que passar o resto da vida numa cadeira de rodas, e aceitar isso não era absolutamente
fácil.
Ele se virou para o outro homem que estava na sala.
- Não há mesmo nada que possa ser feito por ela? - perguntou Charles Anderson, com um olhar de infinita tristeza.
O dr. David Marsden baixou os olhos para o relatório sobre a mesa e desnecessariamente rearrumou os papéis.
- Acredite em mim. Charles: fiz tudo o que podia para ajudá-la. Não há nada mais que eu possa fazer, mas... - O dr. Marsden calou-se a tempo. Tinha se lembrado
de algo, mas seria cruel fazer renascer esperanças que muito possivelmente seriam outra vez destruídas.
- Outra operação?
- É muito perigoso arriscar. Um nervo da coluna foi atingido e...
Continuou explicando os intrincados detalhes do ferimento, mas Charles já não o escutava mais. Seus pensamentos estavam na filha, que naquele instante o esperava
em casa, para saber o resultado das últimas radiografias e testes. Estava confiante em que finalmente haveria alguma coisa que pudessem fazer por ela, e sua impaciência
insistindo em que ele fosse depressa à cidade tinha alimentado a chama da esperança no coração do pai. Catherine garantia que ele não precisava se preocupar, pois
Sarah, sua empregada africana, tomaria muito bem conta dela. Sarah tinha sido uma verdadeira mãe, para a moça, desde a morte da sra. Anderson, muitos anos atrás.
O que ele diria à filha? Como ia encará-la, depois do veredicto de David Marsden? Os testes, os raios X, a terapia, as semanas obrigada a ficar deitada de costas...
Foi trazido ao presente por uma mão amiga que o sacudia ligeiramente.
- Está bem. Charles?
Olhou espantado para o jovem médico.
- Sim... sim... acho que sim. - Levantou-se. - Bem, então é isso! Agora devo falar com Catherine, e Deus sabe quanto isso vai me custar!
David era um homem de pouco mais de trinta anos. Amava sua profissão, mas em horas como essa desejava fazer uma coisa inteiramente diferente. Olhou preocupado
para Charles Anderson, saindo de seu consultório, os ombros curvados, os passos inseguros. Quando a porta se fechou atrás daquela figura patética, David amaldiçoou
sua falta de habilidade.
Charles guiava de volta para casa, desalentado. A viagem a Constantia não era longa, mas naquele dia parecia ainda mais curta.
Ou seria a ingrata tarefa de informar Catherine dos resultados finais lhe davam essa impressão?
Quando finalmente transpôs os portões da Mansão De Rust, sentia um vazio no estômago. Esperava de todo o coração que a filha tivesse seguido seu conselho e ido
para o quarto, descansar. Assim, teria tempo para se recuperar, antes de enfrentar a terrível provação.
Parou o carro sob a pérgula e olhou por alguns instantes para a maravilhosa buganvília vermelha, toda florida, que a cobria. Como ficava estupenda, nessa época
do ano!
Andou devagar até o terraço, o perfume suave das rosas envolvendo-o. Parou para admirar o enorme roseiral. Precisava recomendar a Joseph para tirar os botões murchos.
De manhã, levaria para Catherine um lindo buquê, com as rosas ainda molhadas de orvalho.
Joseph era seu jardineiro há muitos anos; quando a mãe de Catherine morreu, Joseph trouxe a mulher, Sarah, para tomar conta da menina.
Charles abriu a pesada porta de carvalho e suspirou, ao entrar, hesitante, no hall acarpetado. Não tinha o hábito de beber durante o dia, mas agora precisava de
uma boa dose de conhaque para se acalmar. Mal tinha tomado o primeiro gole, quando um ruído atrás dele o fez voltar-se.
Catherine estava entrando, manejando a cadeira de rodas com habilidade. Seus cabelos castanho-acobreados tinham sido cortados, depois do acidente, para que não
dessem muito trabalho, e agora formavam halo avermelhado em volta do rosto de anjo. Os olhos cinzentos e brilhantes, levemente puxados, o nariz fino e arrebitado,
a boca bem desenhada e rosada formavam um conjunto especialmente harmonioso. Mas, naquele momento, Charles Anderson só percebia o tormento que se refletia no rosto
perfeito.
Ela era uma moça muito atraente, mas eram seus olhos que chamavam atenção e envolviam a todos com sua magia. Ainda sorriu, esperançosa, e Charles teve a impressão
de que seu coração sangrava. Engoliu o resto da bebida de uma só vez e pôs o copo na bandeja.
- O que foi, papai? - O sorriso morreu em seus lábios.
- Cathy... - Procurava as palavras certas, mas não as encontrava. Desejava ardentemente ser de alguma maneira libertado da ingrata tarefa que tinha pela
frente. Mas não havia ninguém em quem se apoiar, nessa hora de sofrimento.
Catherine percebeu a aflição do pai e logo entendeu. O que quer que ele tivesse a lhe dizer, não era o que ela esperara.
- Não há mais nada que possam fazer por mim, não é? - perguntou, com uma vozinha controlada, sabendo o que havia atrás do silêncio dele.
Charles balançou a cabeça, concordando, e ajoelhou-se ao lado da cadeira da filha, apoiando a cabeça grisalha em seu colo. Cathy acariciou-lhe os cabelos com mãos
leves e encorajadoras. Mas para ela o futuro parecia subitamente incerto e sombrio, sabendo que teria que passar o resto da vida numa cadeira de rodas. Ainda tinha
seus livros, pensou, tentando se consolar. Mas isso nunca compensaria as pernas agora inúteis.
Charles levantou a cabeça e olhou-a com compaixão.
- Não se preocupe, papai. Não 6 o fim do mundo. Quem sabe, no futuro, alguém descobrirá alguma coisa nova? Talvez um novo tratamento. Ou uma operação. Quem sabe?
Charles segurou com força as mãos frias da filha.
Na manhã seguinte, em Johannesburg, o dr. Paul de Meillon tomava o café da manhã e lia o jornal em sua suíte do hotel. Tinha vindo à África do Sul para uma série
de conferências e deveria voar de volta à França naquele mesmo dia. Tinha sido uma viagem muito agradável, e estava resolvido a voltar para conhecer melhor aquele
belo país.
Paul jogou de lado o jornal e sentou-se, esfregando o queixo, pensativo, o café esquecido. Gostaria de ter conseguido localizar seu velho amigo David Marsden antes
de voltar; infelizmente nem fazia idéia de por onde começar a procurar. Não tinha havido tempo para muitas perguntas, e o jeito agora era tentar achar David numa
próxima viagem.
A campainha do telefone interrompeu seus pensamentos. Jogando o guardanapo na mesa, levantou-se e foi atender.
- De Meillon falando.
- Paul! Telefonei para todos os hotéis respeitáveis de Johannesburg, tentando descobrir você. Aqui é David Marsden, lembra-se de mim?
- David, mon ami! Que bom ouvir sua voz outra vez! Estava neste exato momento pensando em você. De onde está telefonando?
- Paul, também fico muito contente! Estou telefonando da Cidade do Cabo. Por que não me procurou?
- Não sabia seu endereço.
- Escute, vai ter que voltar para a França com muita urgência?
- Não. Posso adiar a partida.
- Ótimo! Tenho um caso muito interessante e adoraria que desse sua opinião - explicou David. - É um caso muito difícil, mas de sua especialidade, amigo velho.
Não poderia vir dar uma olhada?
- Significa ver você outra vez, mon ami; portanto, claro que irei!
- Ótimo! Quando posso esperá-lo? Hoje?
Paul de Meillon riu, bem-humorado.
- Logo que conseguir uma passagem para a Cidade do Cabo. Deixe seu número comigo que eu ligarei avisando.
Era de noitinha, quando o dr. Paul de Meillon chegou ao Malan Airport, na Cidade do Cabo. David Marsden lá estava para recebê-lo, e, depois das costumeiras formalidades,
os dois se encaminharam até onde David deixara o carro.
- Estou muito satisfeito por você ter conseguido ficar mais alguns dias. Paul. Posso fazer uma adivinhação maliciosa e dizer que a razão não foi o caso que tenho
para você, porém mais provavelmente, uma bela loira cheia de curvas nos lugares certos?
Paul deu uma gargalhada.
- Não desta vez, David. Foi uma viagem estritamente de negócios, e meu prazer pessoal não entrou, de maneira alguma.
- Mas tem que reconhecer que as mulheres sempre o acham irresistível.
- Que posso fazer, se elas imploram minha atenção? - respondeu Paul, no mesmo tom brincalhão. - Não, mon ami, você sabe muito bem que tenho pouco tempo para perder
com romances complicados. - Depois, olhando para o amigo: - Ainda não casou?
David Marsden encolheu os ombros, num gesto de desânimo.

- Ainda não encontrei a mulher certa.
Não demoraram a chegar ao luxuoso bloco de apartamentos. Pegando sua mala no banco de trás do carro, Paul seguiu o amigo. Desceram do elevador no sexto andar.
Naquela noite, enquanto tomavam café no terraço, sob um céu cheio de estrelas, Paul perguntou:
- O caso de que me falou no telefone... É um paciente seu?
- Sim, ela é minha paciente - respondeu David, com uma inflexão diferente na voz.
- Então é uma moça? Agora, estou muito interessado...
- Esperava que estivesse, mesmo. Foi por isso que me esforcei tanto até conseguir entrar em contato com você.
- Então, não vai se importar se eu examinar as radiografias e ler os relatórios, amanhã de manhã?
- Eu ficaria encantado, se fizesse isso. - Paul de Meillon era um brilhante neurocirurgião. Tinha uma sólida reputação, tendo realizado operações e conseguido
curas quase milagrosas. Tinha uma clínica na França, com fama internacional. - Pode usar meu consultório de manhã, enquanto eu estiver no hospital.
Quando David Marsden voltou, no dia seguinte, um pouco antes do almoço, encontrou o amigo andando de um lado para o outro, preocupado. David olhou-o, calado, por
algum tempo, percebendo o ar de indecisão do brilhante médico.
Paul parou e pôs em cima da escrivaninha o relatório que tinha nas mãos.
- Você pode internar essa moça por alguns dias? Gostaria de fazer mais alguns testes, antes de tomar uma decisão. - Ficou olhando para David, ansioso, as mãos
nos bolsos da calça. - Isso seria possível?
- Não só é possível, como será feito!
Catherine Anderson achava que mais testes seriam uma inutilidade e disse isso a David, quando ele foi visitá-la, naquele mesmo dia.
- Por que continuar com testes que só me deixam exausta e não adiantam nada?
- Tenho razão, agora, para pedir isso a você, Cathy - respondeu ele, sem querer ainda mencionar o nome de Paul. - Volte ao hospital e completaremos essa última
série de testes! Você vai?
A moça olhou para ele em silêncio, durante alguns instantes. A esperança tentou renascer, fracamente, em seu coração, mas ela a esmagou com determinação, temendo
mais uma decepção.
- Será mesmo a última vez? - perguntou, controlada. - Vou ser deixada em paz, depois desses testes, para me ajustar à minha nova vida?
David olhou-a, sério. Se a garota lhe desse o mínimo encorajamento, inválida ou não, ele a pediria em casamento imediatamente. De repente, percebeu que Catherine
o observava, intrigada.
- Estou esperando...
- Sim, Cathy; será a última vez.
Charles Anderson levou a filha para o hospital na manhã seguinte e ficou só o tempo necessário para vê-la instalada, indo depois para o escritório.
Sozinha e infeliz, Catherine aconchegou-se aos travesseiros, sem saber quanto tempo teria que ficar no hospital. O pai não estava nada animado com a idéia e tinha
dado sua opinião francamente:
- É como tentar escaldar um gato duas vezes.
Catherine concordava com ele. Suspirando, ela começou a folhear uma revista.
Quando Paul de Meillon entrou no quarto particular com David, algo o atingiu, ao olhar para a linda mocinha dormindo, muito branca entre os lençóis de linho. Seus
olhos percorreram o rosto delicado, as longas pestanas escuras, os cabelos cor de cobre, as mãos delicadas com dedos longos. Estava curioso de descobrir a cor dos
olhos dela e a olhava com tanta intensidade, que David comentou:
- E mesmo linda, não?
Imediatamente, Paul percebeu que havia algo mais do que admiração na voz do amigo.
Catherine estremeceu e abriu os olhos, encontrando David Marsden ao lado da cama. Mas não estava sozinho. A seu lado estava o homem mais atraente que ela jamais
tinha visto, e que a olhava intensamente, tão intensamente que ela corou. Alto, com ombros largos, mais parecia um artista de cinema e estava deslocado, num hospital.
- Gostaria de apresentar um grande amigo meu - disse David. - O dr. Paul de Meillon. Ele veio da França para uma série de conferências e decidiu ficar um pouco
mais. Paul, esta é Catherine Anderson, de quem já lhe falei tanto.
O francês aproximou-se e segurou a mão dela, que levou aos lábios.
- Estou encantado, mademoiselle.
- Como vai? - disse ela, quase sem fôlego. Sua voz quente e grave, o sotaque delicioso, tudo a deixava profundamente perturbada.
- Espero que não esteja muito aborrecida por ter sido trazida de volta ao hospital - disse ele, soltando sua mão.
Catherine poderia responder que não se importava; não depois de tê-lo conhecido. Mas apenas sorriu.
- David... o dr. Marsden insistiu demais, e não tive muita escolha.
- Prometo, mademoiselle Anderson, que sua estada aqui não será longa.
- O dr. de Meillon é neurocirurgião, Cathy. Ele está muito interessado em examinar a gravidade de seus ferimentos.
- Porquê?
Os dois homens se entreolharam, embaraçados com a pergunta, e imediatamente Catherine percebeu que escondiam alguma coisa dela. Ficou assustada. Percebendo isso,
David apertou sua mão, encorajador, antes de se virar para Paul.
- Talvez seja melhor dizer a verdade a ela.
- Talvez tenha razão, mon ami. Por que não vai visitar aquele seu paciente, enquanto explico tudo a mademoiselle Anderson? Eu o encontro mais tarde, no saguão.
- Está bem. - David deu uma piscada para Catherine. - Se precisar de ajuda, é só gritar por socorro. A sala da chefe das enfermeiras fica bem do outro lado do
corredor.
- Vai fazer com que mademoiselle Anderson pense que sou um monstro - protestou Paul, no mesmo tom de brincadeira.
- Lembre-se do que eu disse, Catherine - disse David, ainda rindo.
- Lembrarei.
Sozinha com o dr. Paul de Meillon, Catherine sentiu os olhos negros observando-a mais uma vez e ficou terrivelmente confusa. Medo?, pensou. Mas não, era uma sensação
que nunca experimentara. Nunca tinha achado difícil se comportar com naturalidade na companhia de um homem, mas Paul de Meillon a deixava insegura, não sabia por
quê. David havia dito, brincando, para gritar, se precisasse de socorro. Seria mesmo necessário?
- Não terá que pedir socorro a ninguém, mademoiselle - ele garantiu, como se lesse seus pensamentos. - Na verdade, sou inofensivo.
Catherine viu que havia uma sombra de zombaria nos olhos dele.
- Não estou com medo do senhor, dr. de Meillon. Só do que vai me dizer.
- O que tenho para lhe dizer não deve assustá-la - respondeu, sorrindo, enquanto puxava uma cadeira para mais perto da cama.
Ela o olhou disfarçadamente. Os cabelos castanhos estavam cortados bem curto, dando-lhe um ar de garoto. Tinha os traços firmes e orgulhosos, uma boca bem-feita
e sensual, e um olhar firme e obstinado, que não deixava dúvidas de que, no que se referia a seu trabalho, era perfeccionista, chegando talvez até a crueldade. E
isso era confirmado pelo maxilar forte. Mas ele agora sorria docemente, e ela se acalmou.
- Percebi que estava me estudando, mademoiselle - disse, com uma pitada de ironia bem-humorada. - Posso saber o veredicto?
O rosto já corado pela emoção ficou mais vermelho ainda, mas Catherine respondeu, sem hesitar:
- Acho que pode ser implacável, até desumano, se suas instruções não forem obedecidas. Mas concordo em que não há razão para temores.
- Merci, mademoiselle Anderson. Agora, está na hora de uma conversa muito séria. Durante os últimos dois anos, houve grandes progressos no campo da neurocirurgia.
Novos métodos foram desenvolvidos e, embora alguns tenham alcançado sucesso, outros ainda estão em estágio experimental.
- Está querendo dizer que pode fazer alguma coisa por mim?
- Não.
- Ah... - Suas esperanças desmoronaram, como um castelo de areia. - Eu pensei... que o senhor... que... - Não conseguiu terminar a frase, mordendo os lábios, que
tremiam.
Paul de Meillon inclinou-se para a frente.
- Não posso lhe dizer o que deseja ouvir, até fazer novos testes. É por isso que está aqui, e é também por isso que vou lhe pedir para não sonhar demais. Seja
paciente, e o tempo nos dirá.
Catherine voltou para casa, depois de alguns dias, e começou o torturante período de espera. O bom senso aconselhava que não aumentasse esperanças, mas era quase
impossível. Já estavam às vésperas do Natal e ainda não tinha recebido nenhuma comunicação de David ou do dr. de Meillon. O que teriam decidido? Quanto tempo mais
precisaria esperar? O pai também tinha começado a ficar apreensivo, mas, pelo menos, tinha o trabalho para distraí-lo.
Sentada na cadeira de rodas, olhando pela janela do quarto, ela via as luzes da árvore de Natal brilhando na janela da sala da casa em frente. Um dia, tinha sido
divertido enfeitar a árvore. Naquele ano, nem pensaram nisso! Nem se preocupara em comprar ura presente para o pai, até Sarah tocar no assunto, uma tarde.
- Srta. Cathy, não pode deixar passar o Natal sem dar um presente a seu pai. Seria muito triste!
Envergonhada, reconheceu que Sarah tinha razão.
- Mas não posso ir até a cidade. Estou presa a esta cadeira de rodas!...
- Eu farei isso pela senhorita. Irei até a cidade e comprarei alguma coisa para seu pai. Só me diga o que gostaria que fosse.
No dia seguinte, Sarah trouxe um gravador portátil que há meses Charles Anderson ameaçava comprar. Animadas, as duas embrulharam o presente e o enfeitaram com
uma bela fita, antes de o esconderem no armário de Catherine.
Suspirou, desanimada. Era um tempo de alegria, mas tinha a impressão de que seu coração era de chumbo, tanto que pesava no peito.
De repente, viu que um carro subia pelo caminho da casa. Rodou a cadeira mais para perto da janela, para descobrir quem seria o visitante inesperado. Para sua
surpresa, viu o dr. de Meillon descer do carro e caminhar até a porta de entrada. Rapidamente, guiou a cadeira para fora do quarto. Será que ele tinha novidades?,
pensou, tentando reprimir uma onda de esperança que ameaçava sufocá-la.
A campainha da porta de entrada soou no momento em que saía do quarto. Escondida, Catherine viu que o pai foi abrir a porta.
- Dr. de Meillon! Mas que agradável surpresa!
- Espero não ter chegado numa hora inconveniente.
- Meu caro amigo, não poderia ser mai& bem-vindo!
Os dois homens ficaram ainda algum tempo conversando no hall, enquanto Catherine tinha consciência das batidas surdas de seu coração. Que homem fascinante era
ele! Que olhos expressivos! Enquanto falava. Paul de Meillon gesticulava, e ela olhava, encantada, para as mãos fortes, de dedos longos e sensíveis.
Obviamente, ele se sentiu observado, pois virou-se e olhou para o corredor. Não tinha mais sentido continuar escondida, e Catherine rodou a cadeira para a frente.
- Boa noite, dr. de Meillon.
- Bon soir, mademoiselle. - Levou a mão dela aos lábios. - Está se sentindo bem?
- Sim, muito bem, obrigada - respondeu, perturbada.
- Bom. Tenho uma notícia para a senhorita e seu pai.
- Vamos então para a sala - sugeriu Charles, empurrando a cadeira da filha. - Ali podemos conversar com mais calma. Aceita um copo de vinho, dr. de Meillon? Ou
prefere um conhaque?
- Um copo de vinho, monsieur. - Paul sentou-se numa confortável poltrona. - Não sou um connoisseur, mas o vinho da Cidade do Cabo é realmente superior, mesmo para
um francês acostumado aos melhores vinhos!
- Ah, sim, tenho aqui um vinho da vinícola de Franschhoek. - Charles serviu a bebida em belos cálices de cristal. - É um dos melhores! Prove.
O dr. de Meillon tomou um gole.
- Magnifique! Nunca provei um vinho tão bom!
Satisfeito, Charles entregou outro cálice a Catherine.
- Feliz Natal, dr. de Meillon.
- Oui, monsieur, e mademoiselle. Feliz Natal!
Esvaziaram os copos e conversaram ainda durante algum tempo, até que um silêncio apreensivo caiu entre eles. Era como se quisessem adiar o inevitável mas tivessem
chegado ao limite. Foi Catherine quem falou sobre o assunto que preocupava os três. Pressentia a ansiedade do pai e a reserva do dr. de Meillon e sabia que era inútil
protelar aquilo ainda mais. Preparando-se para o pior, perguntou:
- Quais foram os resultados dos testes, dr. de Meillon?
Charles Anderson respirou penosamente, os dentes cerrados, enquanto os olhos negros do dr. de Meillon se fixavam na moça.
- Mademoiselle - começou, cuidadoso -, o que vou sugerir agora a ambos vai exigir que pensem algum tempo, antes de decidirem. Não quero que me respondam apressadamente.
- Parou um instante, até se certificar de que tinha a total atenção de pai e filha. - Posso fazer uma cirurgia, mas... e quero enfatizar isso... as chances de voltar
novamente a andar serão de cinqüenta por cento. Se a operação não der certo, poderá estar anulada qualquer chance futura para outra operação. É um risco.
- E se for um sucesso? - perguntou Catherine, com uma calma que a surpreendeu, pois sua cabeça rodava num turbilhão.
Houve um breve silêncio. Charles Anderson ofereceu a Paul um cigarro e pegou outro para si, mas suas mãos tremiam tanto que Paul teve que acendê-lo.
- Não sei o que dizer - falou Charles.
- Eu sei - disse Catherine, com voz baixa, mas determinada. - Se quer fazer a operação, dr. de Meillon, estou mais do que disposta a enfrentar o risco.
CAPÍTULO II

O zunzum da atividade do hospital embalava Catherine, deitada em sua cama. As festas de fim de ano tinham passado e a vida voltava ao normal. Suspirou, feliz.
Que maravilha estar novamente livre! Livre para ir aonde quisesse, como antes do acidente. O dr. Paul de Meillon, com seu cérebro prodigioso e suas mãos hábeis,
tinha realizado mais um milagre.
Catherine não podia deixar de sorrir, ao se lembrar da noite em que ele fora até sua casa para oferecer a opção de uma cirurgia em que teria chance de andar. Menos
de uma semana depois, era levada para a sala de operação.
- Ainda está em tempo para mudar de opinião - Paul de Meillon disse, momentos antes de o anestesista enfiar a agulha em seu braço.
- Eu rezei para ter uma oportunidade - respondeu, confiante. - E quero arriscar.
Os olhos negros de Paul brilhavam intensamente.
- Farei o melhor que puder.
- Eu sei.
Isso tinha sido há um mês. Com um tratamento auxiliar, o dr. de Meillon garantia que não havia razão para que ela não andasse. Ele viajara para a França, com a
promessa de voltar logo que pudesse. Tinha a intenção de acompanhar sua recuperação até o fim.
David Marsden continuava com o caso, na ausência do amigo, seguindo meticulosamente as instruções deixadas. Catherine riu muito, uma manhã, quando ele repreendeu
severamente uma enfermeira por ter esquecido de lhe fazer a massagem programada.
- Não gostaria que, na volta de Paul, nós tivéssemos negligenciado uma parte do tratamento prescrito.
Sim, pensou Catherine, Paul de Meillon não toleraria o menor deslize. Mas onde estaria agora? Tentou dormir um pouco. Será que ele voltaria mesmo, ou seus compromissos
o prenderiam na França? Afinal, David podia muito bem substituí-lo e não havia realmente mais necessidade de sua volta. Mas precisavam dele, sim! Ela precisava!
Mexendo-se na cama agitada, tentou afastar Paul do pensamento. Inúmeras vezes ela o surpreendera olhando-a com uma estranha expressão, mas imediatamente ele baixava
os olhos, escondendo o brilho de admiração que julgava ver neles. O que estaria pensando, nessas ocasiões? O que aquele homem tinha que a perturbava tanto?
O cansaço afinal a venceu, e ela dormiu até lhe trazerem o jantar.
- Está esperando visitas hoje, srta. Anderson? - perguntou a jovem enfermeira, quando voltou, mais tarde, para buscar a bandeja e esticar os lençóis.
- Esta noite, não. Meu pai foi a Johannesburg a negócios, e não estou esperando mais ninguém.
- Nem mesmo um namorado?
- Não.
- Que pena! Se ficar muito solitária, toque a campainha, que eu venho conversar um pouco.
- Não vai estar muito ocupada?
- As noites são geralmente bem quietas. Algumas vezes não temos muito que fazer, mas outras vezes... - rolou os olhos para o teto -... é uma loucura!
- Vamos esperar que hoje a noite seja calma.
- Amém - disse a enfermeira, desaparecendo em seguida.
Catherine pegou um livro e começou a ler. Felizmente, estava num quarto particular e, assim, tinha mais sossego.
- Uma pessoa para vê-la, sita. Anderson - anunciou a mesma enfermeira, um pouco depois.
A moça olhou surpresa para o rapaz que entrava no quarto.
- Ronnie! O que está fazendo aqui?
- Que maneira de receber um velho amigo, boneca! - disse ele, inclinando-se para beijá-la.
Nem sonhava ver Ronald Jansen outra vez. Não depois do que tinha acontecido. Continuava a usar roupas tão espalhafatosas como antes, pensou. Os cabelos louros,
lisos e compridos, estavam cortados impecavelmente. Se não fosse pela pequena cicatriz sobre o olho esquerdo, ele estaria exatamente igual. O rosto era fraco e sem
personalidade, e ela ficou estarrecida por um dia ter imaginado que o amava. Oh, sim, na aparência ele era um jovem Apoio, mas no íntimo não passava de um inseguro,
um egoísta que só pensava em si mesmo. E tinha provado isso, sem a menor dúvida.
- Por que está olhando assim para mim; boneca? Não fica feliz de me ver?
- Francamente, não! Pensei que, depois do que aconteceu, nunca mais veria você. Para ser sincera, era o que eu queria!
- Ainda zangada comigo por causa do acidente?
Zangada? Era só isso que esperava que ela sentisse por ele, o único responsável por estar numa cadeira de rodas? Como Ronnie era infantil e egoísta! Que diferença
de um homem como Paul de Meillon!
- Naquela noite de festa, você tinha bebido demais.
- Ora, Cathy, não vamos começar com isso outra vez.
- Implorei para que você me deixasse guiar. Mas sua reação foi se irritar. Para provar que estava sóbrio, dirigiu ainda mais depressa. Não era de surpreender que
perdesse o controle do carro; não conseguia nem mesmo controlar as próprias pernas,
- Está exagerando, boneca.
- Estou mesmo, Ronnie? Se eu não amparasse você, quando saímos daquela festa, teria rolado pelos degraus do terraço. Chama isso de exagero?
- Será que não aprecia o fato de eu ter andado quase três quilômetros para conseguir ajuda para você?
- Oh, sim, e agradeço. Mas não se preocupou em voltar para ter
certeza de que eu realmente tinha sido socorrida. E quando a polícia chegou na sua casa, pouco depois, você estava deitado, dormindo!
- Deve compreender, bonequinha. Quando cheguei em casa, naquela noite, eu me encontrava em tal estado de choque que minha mãe chamou um médico imediatamente para
costurar o corte no meu olho e depois insistiu para eu ir direto para a cama.
- Isso não é desculpa para ficar seis meses sem se interessar pela saúde de alguém que você dizia amar.
Ronnie mexeu-se, inquieto, na cadeira. Dava pra notar que estava abalado: as coisas não corriam como planejara. Se achava que podia voltar e recomeçar tudo de
onde tinha deixado, estava redondamente enganado! Há seis meses, Catherine era tão superficial como ele, mas, depois de tanto sofrimento, tinha descoberto que a
vida era mais do que badalar de festa em festa. Havia mudado muito, Ronnie, no entanto, continuava o mesmo garotão insensível.
- Sinto muito por não ter ido visitar você, Cathy. Andei ocupado.
- Sim, tenho certeza que sim - concordou, irônica. - Ocupado, dividindo seu tempo entre uma dúzia de garotas.
Ronnie pelos menos teve sensibilidade para ficar vermelho.
- Não é assim, Catherine. Boneca, vamos acabar com esta briguinha - pediu, recuperando o autocontrole e segurando o braço dela. - Você me ama, sabe que me ama.
- Seu,pretensioso! Saia já daqui e não volte nunca mais!
Ronnie ficou no mesmo lugar, rindo. Depois, abraçou-a e puxou-a para o peito.
- Não tente negar, bonequinha - murmurou, a boca muito próxima da dela. Você é louca por mim. Sempre foi!
Como tantas vezes no passado, ele tentava dobrá-la com beijos.
- Vá embora! Me deixe em paz! Ouviu dizer que eu ia andar de novo e achou que estava ansiosa para ter você de volta, não foi? Pois se enganou!
- Me beije, querida - insistiu Ronnie, ainda confiante. - E depois diga se não tenho razão.
Cathy sacudia a cabeça de um lado para o outro, num esforço para fugir dos lábios dele, mas foi inútil. O beijo apaixonado, que pretendia fazê-la ceder, só serviu
para deixá-la enojada.
- Diga agora que não me ama, Cathy.
- Eu odeio você! Se não sair deste quarto imediatamente, vou tocar a campainha e chamar a enfermeira!
- Não vai, não, boneca - disse Ronnie, segurando a mão dela. - Quero mais um beijinho.
- Não!
O quarto começou a rodar, o rosto de Ronnie se distorceu e se afastou dela.
- Oh, meu Deus, vou desmaiar!
Lutando contra a escuridão que ameaçava envolvê-la, escutou uma voz muito conhecida:
- Acho, monsieur, que já aborreceu minha paciente demais, para uma noite.
- Paul! - exclamou ela, antes de perder os sentidos.
Uma mão pesada segurou Ronnie pelos ombros, e ele foi puxado violentamente para trás. Quando se viu frente a frente com aquele homem alto e musculoso, seus olhos
se arregalaram, mas não perdeu a insolência.
- Quem é você? O que quer? Que direito tem de se meter?
O rosto de Paul de Meillon se endureceu, com uma raiva fria.
- Como médico de mademoiselle Anderson, tenho todo o direito. Está prejudicando a recuperação de minha paciente e, enquanto ela estiver sob meus cuidados, não
permitirei mais que a visite. Será que fui claro?
Ronnie olhou-o, desafiador, mas perdeu a pose, diante da violência nos olhos do dr. de Meillon, e resolveu ir embora.
Paul sentou-se na cadeira que o outro deixara vaga e, com cuidado, tomou o pulso de Catherine. Quem seria o jovem impertinente que tinha a temeridade de obrigar
Cathy a beijá-lo? Seu amante, talvez? Não! Era evidente que ela não queria nada com aquele cafajeste!
A moça entreabriu os olhos, ainda assustada.
- Ronnie...?
- Não tenha medo - respondeu Paul, com calma, soltando suas mãos. - Seu amiguinho já foi embora; eu cuidei disso.
- Ele não é meu amigo, dr. de Meillon.
- Você me chamou de Paul, há poucos minutos.
Catherine corou violentamente.
- Peço que me desculpe, dr. de Meillon. Realmente, não sei o que vai pensar de mim.
- Por favor! Preferia que me chamasse sempre de Paul. Teremos que passar muito tempo juntos, no futuro. Haverá ocasiões em que me odiará por coisas que a obrigarei
a fazer, portanto, é melhor começarmos a ficar amigos. Está bem, Catherine?
- Sempre permite que seus pacientes o tratem pelo primeiro nome, dr. de Me... Paul?
- Só os que têm cabelos que parecem fios de cobre - respondeu, segurando uma mecha dos cabelos de Cathy. - E ainda há outra condição: têm que ter olhos cheios
de mistério. - Passou os dedos pelo rosto corado. - Como vê, Catherine, você preenche as duas condições.
Estava brincando ou realmente flertando com ela? Ele tinha tanto magnetismo, que Cathy sentia-se atraída como uma mariposa é atraída para a luz. Mas essa enorme
atração por um homem que vira tão poucas vezes a assustava. Entretanto, sabia que muitas pacientes pensam estar apaixonadas por seus médicos, porque confundem gratidão
com amor.
- Está muito pensativa, chérie.
Estava pensando, dr. de Me... Paul - corrigiu depressa e viu que ele estava achando graça -, que deve estar brincando comigo, o que não é muito gentil de sua parte.
Paul ficou um instante em silêncio. O que Cathy diria, se ele confessasse que nenhuma outra mulher o havia atraído tanto? Que sua violência contra o tal Ronnie
tinha sido provocada por um profundo ciúme?
- Talvez tenha razão, chérie; não é justo eu brincar com você. Mas, quando peço que me chame de Paul, estou falando sério. Certo?
- Certo. - E sorriu adoravelmente para ele.
- Certo... o quê? - ele a provocou outra vez.
- Certo, Paul.
Paul de Meillon era o tipo de homem que dominava onde quer que estivesse. Em casa, com certeza, mandava na esposa. Nunca tinha perguntado se era casado, e subitamente
ficou alarmada. Precisava saber!
- Sua esposa não ficou aborrecida por ter voltado à África do Sul?
- Não tenho esposa, chérie, somente uma irmã que está na Inglaterra, estudando.
- Ah... - murmurou, visivelmente aliviada, o coração ingênuo em festa. - E seus pais? Ainda vivem?
- Minha mãe morreu logo após o nascimento de Adèle. Meu pai nunca se conformou e morreu alguns anos depois.
- Sinto muito.
- Obrigado. - Mudou abruptamente de assunto: - Esse rapaz... Ronnie, é um amigo especial?
- Foi, uma vez.
Catherine contou então a conversa que tinham tido um pouco antes de ele chegar e como havia ocorrido o acidente. Seus olhos transparentes e límpidos deixavam transparecer
toda a revolta que sentia.
- Agora me arrependo de não ter dado uma surra nele - disse Paul, quando ela terminou de contar. - O idiota podia ter matado você! Tantos jovens perdem a vida
por imprudência e bebedeira! Dieu... o fim é quase sempre trágico.
Quando ficava nervoso, o sotaque francês se tomava mais. forte, mas normalmente sua pronúncia era perfeita. Será que, como a irmã, ele também tinha estudado na
Inglaterra? Algum dia perguntaria.
- Está ficando cansada, petite. Acha que vai conseguir dormir ou prefere que eu chame a enfermeira para lhe dar um sedativo?
- Vou dormir. Obrigada, Paul. - Estendeu a mão, que ele apertou. - E obrigada por ter voltado.
- Pensou que eu não voltaria? - perguntou, surpreso.
- Não tinha certeza.
- Nunca quebro uma promessa, Catherine. Agora durma. De amanhã em diante, não vai ter muito tempo para descansar. Não vou lhe dar paz, até que esteja andando.
Lembre-se disso.
Paul falava sério, quando disse que ela teria pouco tempo para descansar nos dias seguintes. Programou rigorosos exercícios diários e a forçava a praticá-los,
sem piedade, até ficar completamente exausta. Mas sua recompensa era a emocionante sensação de formigamento, cada vez mais forte, que provava que suas pernas estavam
lentamente voltando à vida. Embora no fim de cada dia estivesse esgotada, dormia profundamente e acordava pronta para começar tudo de novo.
Quando Paul ordenou que andasse entre as barras pela primeira vez, olhou para ele, estarrecida.
- Não posso! Não pode fazer isso comigo!
- Mon Dieu! Será que perdi meu tempo? Se é assim, lavo minhas mãos e desisto de você! - Deu meia-volta e começou a se afastar como se pretendesse ir embora.
- Paul! Por favor, volte! - Ele parou e olhou para seu rostinho choroso. Cathy engoliu as lágrimas. - Sinto muito - falou, com os lábios trêmulos. - Vou fazer
tudo o que mandar.
No fim dessa sessão especial. Paul pegou-a no colo e, sem se importar com as enfermeiras e os fisioterapeutas presentes, carregou-a até sua cadeira, como se ela
fosse uma criança.
- Foi assim tão ruim? - perguntou, tirando um lenço do bolso e enxugando o suor da testa dela. - Foi, chérie?
Sempre que a olhava com tanta ternura e falava com tanto calor, Catherine tinha certeza de que seria capaz até de escalar o Everest sem nenhuma ajuda, se ele mandasse.
- Não. Não foi assim tão difícil.
Quando finalmente permitiram que voltasse para casa, ainda caminhava apoiada em uma bengala. Mas isso não alterou a alegria de Charles Anderson, ao ver a filha
de pé novamente. Chorou de emoção, quando foi buscá-la no hospital, naquela manhã, abraçando-a como se não quisesse mais soltá-la.
- Deus foi muito bom para nós - disse simplesmente, e Catherine sentia a mesma coisa.
Na Mansão de Rust, Sarah a esperava com uma verdadeira festa.
- É tão bom tê-la de novo em casa, srta. Cathy! Outro dia, estava dizendo a Joseph que a casa fica muito triste com o patrão no escritório e a senhorita no hospital.
Mas está tão bonita! Nem posso acreditar!
Ficou com as duas mãos unidas e levantadas contra o peito farto. Cathy estava contente de vê-la também.
- É muito bom estar de volta, Sarah, e espero que não me atormente como Paul fez comigo nas últimas semanas!
- Se está com tão boa aparência, depois de ter sido atormentada
- Charles interrompeu, rindo -, talvez devamos continuar fazendo o mesmo aqui em casa.
- O patrão tem razão. Está com as faces rosadas e não mais tão pálida, como andava. - Olhou para a jovem apoiada na bengala. - Emagreceu um pouco, srta. Cathy,
mas logo vamos deixá-la mais cheinha, como antes do acidente.
- Nem diga isso! Eu estava muito gorda, e você sabe. Portanto, Sarah, não me faça engordar outra vez, ou serei obrigada a fazer dieta semana sim, semana não.
A negra balançou a cabeça e voltou à cozinha, resmungando:
- Essas moças de hoje, sempre fazendo dieta... É tão pouco saudável!
No dia seguinte, Paul chegou a De Rust, num automóvel esporte vermelho. Catherine o esperava no terraço. Vestindo um temo de Unho creme, ele parecia ainda mais
bronzeado e extremamente másculo, e a moça pensou que ele levaria um susto, se soubesse o quanto a deixava perturbada. Paul subiu os degraus, indo ao encontro dela,
e depois olhou-a com atenção.
- Está muito bonita. Feliz por voltar para casa?
- Sim, Paul. Estou sendo tratada como uma princesa e ninguém ainda me obrigou a fazer nada.
- Então, algo terá que ser feito, urgentemente, para remediar isso - respondeu, bem-humorado.
- Aceita um pouco de chá?
- Para dizer a verdade, petite, vim convidar você para tomar chá comigo. Conhece algum 'lugar onde sirvam chá e bolinhos de creme? E que seja sossegado?
Catherine sorriu.
- Gosta de doces?
- Tenho que confessar que sim. Conhece algum lugar assim, Catherine? E iria comigo?
- Conheço. E gostaria muito de ir com você. - Seria a primeira vez que ficaria sozinha com Paul, sem enfermeiras entrando e saindo. - É melhor eu avisar Sarah,
para que não fique preocupada.
- Pode deixar, eu digo a ela.
Paul entrou na casa e voltou logo depois, avisando que tudo estava em ordem. Para surpresa de Cathy, ele se inclinou e a levantou nos braços.
"O que estaria planejando agora?", pensou, nervosa, quando ele desceu os degraus e a pôs de pé ao lado de uma parede de pedra.
- Apóie-se na parede. - Afastou-se alguns passos. - Agora, venha para mim.
Catherine ficou parada, petrificada.
- Você deve ser louco, se acha que posso andar sem bengala!
- Pois vai andar sem ela, hoje.
- Não posso! - gritou em pânico.
- Venha! - Abriu os braços. - Não vou deixar que caia ou se machuque.
Os olhos fixos nos dele, Cathy deu o primeiro passo, hesitante, depois outro, e mais outro, até cair, sem fôlego, nos braÇos de Paul.
- Eu andei! Andei sem a bengala! - dizia, chorando, agarrada a ele.
- Mas claro que sim, chéri! Acha que eu lhe pediria uma coisa impossível?
- Não. É que não pensei que pudesse.
- Tudo o que precisava era confiança em si mesma. Agora, vai se apoiar em meu braço e andar até o carro.
- Minha bengala...
- Não hoje, petite. Hoje, vai sair comigo e deixar a bengala em casa.
Catherine obedeceu, agarrando o braço dele e andando lentamente até o carro.
- Ainda não me disse aonde vamos - Paul lembrou, depois de ter dirigido por dois quarteirões.
- Espero que goste de flores, Paul, porque estou levando você para o jardim Botânico Kirstenbosch. É muito tranqüilo, e o salão de chá serve o mais delicioso bolinho
de creme que existe.
- Oui, os bolos de creme! Estou ansioso para conhecer o seu
jardim botânico. Nas poucas semanas que passei aqui, não tive tempo de conhecer atrações turísticas. E é uma coisa que quero fazer, em meus três últimos dias na
África do Sul.
Um pesado silêncio caiu entre eles, depois dessa revelação. Catherine tinha a impressão de que o coração sangrava, no peito. Ele partiria em três dias! Só uns
três miseráveis dias, e nunca mais o veria. Voltaria à França, à sua clínica, e ela seria depressa esquecida, embora ele continuasse a ser lembrado por ela, por
toda a vida!
- Está quieta demais, Cathy. Não se sente bem?
- Eu... eu não imaginava que você fosse embora tão cedo. Paul olhou para ela, rapidamente.
- Fiquei afastado da clínica muito tempo. Eles devem estar pensando que não tenho intenção de voltar.
- Sinto muito. Foi por minha causa que ficou tanto tempo.
- Não deve se desculpar. Fiquei por minha própria vontade. Seu caso me interessou tanto, que resolvi ficar.
Então, era isso que significava para ele? Só um caso, clínico interessante? Mais uma operação sensacional em sua fabulosa carreira? Que perfeita idiota tinha sido,
apaixonando-se por ele! O dia estava estragado, com a notícia de sua partida iminente.
O Kirstenbosch ficava nas encostas da Table Mountain. Acres de magníficos jardins, com caminhos por entre canteiros de flores. O dia estava quente e não havia
nuvens no céu, até os pássaros procuravam a sombra e se banhavam na lagoa entre as árvores.
Sentados num banco, Catherine e Paul olhavam seus trejeitos, rindo.
- Em seu país, nada é pequeno - comentou ele, acendendo um cigarro. - Em qualquer lado para onde se vá, há tanto espaço! Olhe só esses jardins e a variedade de
flores!
- Esta não é a melhor época para vir aqui. Em outubro, os jardins ficam maravilhosos.
- Já descansou, chérie? Podemos agora procurar os tais bolinhos?
Sentaram-se diante de uma janela, olhando para o Kirstenbosch, contra os flancos escuros da Table Montain. Paul pediu chá e doces, e, enquanto esperava, felicitou
Cathy pelo progresso daquela manhã.
- Você andou muito bem. De agora em diante, nada de bengala, compreende?
- Compreendi. - Franziu a testa, como se algo a preocupasse. - Paul, nunca poderei agradecer o bastante pelo que fez por mim. Quando sua conta chegar, será paga
com a maior satisfação.
- Não vai haver nenhuma conta.
- Mas...
- Para mim, foi uma experiência que eu nunca deixaria escapar. Foi uma espécie de desafio. - Sorriu para ela. - Já se esqueceu, petite, de que fui eu quem a procurei.
- Sim, mas certamente...
- Como pagamento, poderá me mostrar um pouco de seu país, antes que eu parta. Fará isso por mim?
- Está me pedindo muito pouco. - Olhou-o, com carinho. - Será um prazer mostrar a você as belezas de meu país, embora a Cidade do Cabo e seus arredores sejam só
uma pequena parte dele.
Um estremecimento sacudiu seu corpo frágil. Pelo menos passariam juntos os últimos dias dele na África. Era uma pequena consolação, mas durante toda a vida se
lembraria.
A viagem de volta foi rápida.
- Ligo para você amanhã, às nove - disse Paul, quando a deixou na porta de casa. - Deixo a excursão inteiramente a seu cargo.
Depois que ele partiu, Catherine caminhou devagar até seu quarto. Tinha sido uma manhã maravilhosa, e nos três dias seguintes ele seria só dela. Tinha que fazer
com que aqueles dias fossem memoráveis. Memoráveis, não apenas para Paul, mas para ela também!


CAPÍTULO III

Uma sensação familiar de excitação invadiu Catherine, quando o teleférico começou a subir suavemente em direção ao pico da Table Mountain. Num dia claro, podia-se
ver bem além dos limites da cidade.
Quando chegaram ao cume, Paul segurou-lhe o braço para saltarem, e amparou-a enquanto andavam pelo caminho irregular e seguiam os outros turistas, até um ponto
de onde teriam uma melhor visão do belo panorama. Soprava um ventinho frio, e ela estremeceu.
- Está com frio, chérie? -perguntou Paul, passando o braço em seus ombros.
- A queda brusca da temperatura me pegou desprevenida.
O calor protetor do corpo dele deixou-a nervosa. Seu coração começou a bater traiçoeiramente, é Catherine teve que se controlar para não ceder ao louco desejo
de aconchegar o rosto no peito largo e forte de Paul.
- A que altura estamos, Cathy?
- Mais ou menos mil metros acima do nível do mar.
Paul assobiou baixinho e depois apontou um ponto lá embaixo.
- Quantas árvores bem no meio da cidade! É um parque?
Intensamente perturbada com a proximidade dele, ela respondeu:
- É o Jardim Botânico Municipal. Eles têm uma grande variedade de árvores, orquídeas e samambaias, e também um jardim perfumado para cegos.
Sentia o hálito quente de Paul no rosto e fechou os olhos, ainda dominada pelo desejo de encostar o rosto no peito dele.
- Eu levo você até lá - prometeu, afastando-se um pouco.
Paul comprou um cartão-postal no salão de chá, antes de descerem e irem para o Jardim Botânico. Logo estavam alimentando os pombos com migalhas de pão.
- Olhando daqui para a montanha, ninguém poderia sequer imaginar que lá em cima existem aquelas rochas imensas.
- Às vezes, quando o sudoeste sopra, a neblina cobre o topo e desce pelas encostas - disse Catherine. - Nós a chamamos "a toalha da mesa''.
- Adèle iria adorar seu país. Talvez eu a traga aqui, algum dia.
- Sua irmã? Você a traria mesmo?
- Claro. Vocês duas iam se dar muito bem. São quase da mesma idade. Por falar nisso, qual é mesmo sua idade? Dezoito? Ou dezenove?
- Tenho vinte e dois anos - disse Catherine, com tanto orgulho que Paul teve que rir. Sentia-se aliviado por descobrir que ela não era tão jovem como aparentava.
- Minhas desculpas, chérie. Nunca teria adivinhado. Talvez por eu ser tão mais velho...
- Quantos anos você tem?
- Trinta e cinco. Treze anos mais que você. É uma vida, não?
- Não! A idade não significa nada, quando...
- Quando duas pessoas estão apaixonadas? Ia dizer isso, chérie?
- perguntou, rindo. - Mas nós não estamos apaixonados. Ou está apaixonada por mim, Catherine?
- Claro que não! - Mas um rubor intenso desmentiu as palavras.
- Todos os franceses são assim francos e diretos?
- Absolutamente. Não deve acreditar no que contam sobre os homens da França. Somos iguais aos outros.
Sentaram-se à sombra de um enorme carvalho, e os raios de sol se filtravam entre as folhas, formando sombras no tampo da mesa. Paul gostaria de prolongar um pouco
mais sua visita, mas tinha ficado mais do que planejara.
- Você fala perfeitamente o inglês - Catherine disse, num elogio. - Vai muito à Inglaterra?
- Minha mãe era inglesa. Fiz a universidade lá. Foi quando conheci David Marsden.
- Fica muitas vezes assim afastado da clínica, quando tem um paciente em outro país?
- Nem sempre. Isso foi como um período de férias que tirei. Mas a equipe é muito bem treinada e pode funcionar sem rainha presença.
Nos últimos dias da estadia de Paul, visitaram a cidade, e Paul se encantou com Groot Constantia, um excelente exemplo das antigas casas de estilo holandês, ainda
de pé. Ali havia morado um antigo governador do Cabo, o holandês Simon van der Stel.
- Depois da morte dele, em 1712 - contou Catherine, enquanto admirava a bela mobília da sala de estar -, a casa mudou de dono várias vezes, até se transformar
numa fazenda experimental. Foi danificada por um incêndio em 1925 e teve que ser cuidadosamente reconstituída.
- Como sabe tanto sobre isso?
- Venho muito aqui, e História sempre foi minha matéria preferida, na escola.
Durante todos os passeios, Paul se preocupava para que ela não se cansasse muito e parava para um descanso quando notava sinais de fadiga.
- Esse médico com nome francês - disse Sarah, enquanto preparava uma cesta para piquenique, na véspera da partida dele - quando vai voltar para o país dele?
- Amanhã, Sarah. Por quê?
- Estava só pensando, senhorita. Saiu com ele todos os dias, esta semana...
Cathy apoiou-se na bengala e ficou observando Sarah trabalhar. Reparou na expressão de crítica da criada e pressentiu que aquele comentário era o prenuncio para
outras perguntas perigosas.
- Está apaixonada por ele, não está? - perguntou a negra, enxugando as mãos no avental e olhando para Catherine com preocupação. - Não adianta negar, está escrito
em seu rosto.
- Sarah, eu não...
- Eu a criei desde que sua mãe morreu. Era tão pequenina que seu nariz alcançava o topo da mesa. Eu a conheço, srta. Cathy, conheço muito bem. Já esteve apaixonada
antes, mas desta vez está amando como uma mulher ama o homem de sua vida: com o coração, a mente e a alma. Mas quero que fique prevenida. Vai encontrar sofrimento
em seu caminho. Esse médico com um nome diferente é um homem que pensa com a cabeça, e não com o coração. Nunca acreditará que a senhorita, tão linda e tão jovem,
o ama. Vai sempre desconfiar de que tem só gratidão pelo que ele fez.
- Mas...
- Ele agora está muito doce e só tem olhos para a senhorita, mas pode se tomar um homem sem piedade, se imaginar que está sendo enganado. Eu o observei muito bem,
quando esteve aqui. E, srta. Cathy, Joseph concorda comigo.
Catherine sentiu as pernas trêmulas é teve que sentar-se na cadeira da cozinha.
- Por que está me dizendo todas essas coisas, Sarah?
A velha negra deu a volta na mesa e pôs a mão no ombro da moça, como se quisesse protegê-la.
- Vai ter que lutar por sua felicidade, srta. Cathy. Vai ter que ser paciente. Mas no fim encontrará o que mais deseja na vida: o amor e a confiança do homem que
escolheu.
Quando a campainha da porta tocou, Catherine foi depressa abrir e encontrou Paul com um belo ramo de rosas.
- Para a bela mademoiselle - disse ele, com uma ligeira curvatura, entregando as flores.
- Muito obrigada, são lindas. - Tirou um dos botões e o colocou na lapela do casaco dele.
Seus olhos se encontraram, e Paul percebeu que estava embaraçada. Sabia que Cathy não ficava indiferente às suas atenções; entretanto, o relacionamento deles tinha
sido muito breve para que pudesse ter certeza de que o que a moça sentia era apenas gratidão ou algo mais profundo.
Pouco depois, quando viajavam rumo ao campo, as palavras de Sarah vieram à mente de Catherine. Eram muito misteriosas e a deixavam assustada! Não queria que nada
estragasse a felicidade de estar ao lado de Paul. Pensaria no assunto quando estivesse sozinha.
Passaram a manhã passeando pelos vales do Franschhoek, visitando as adegas da região e os vinhedos. Finalmente, cansados e famintos, foram para as margens do rio
Eerste, para fazerem o piquenique. A tarde estava quente, e as cigarras cantavam, enquanto Catherine e Paul estendiam a manta debaixo de uma árvore enorme e copada.
Comeram em silêncio.
Depois, ela se deitou e desejou que o dia nunca mais acabasse. Na última semana tinham conversado sobre muitas coisas, mas não falaram sobre a partida próxima
dele. Era como se ambos quisessem evitar o assunto, embora estivessem sempre presente na mente de Catherine, atormentando-a sem parar. Nada seria igual outra vez.
Não, depois de ter conhecido um homem como Paul de Meillon.
- Conte alguma coisa sobre sua clínica - pediu, rolando de braços.
Paul colocou a xícara vazia na cesta e deitou-se ao lado dela. Apoiado num cotovelo, ele olhou para o rio, e naquele instante ela soube que seus pensamentos estavam
muito longe; não pertencia a essa parte da vida dele, para a qual voltaria no dia seguinte. Sem dúvida, depois de algumas semanas, seria completamente esquecida.
Sentiu uma intensa angústia.
- O que gostaria de saber, petite?
- Tudo o que quiser me contar.
- A clínica neurológica fica num bairro afastado de Paris. Aceitamos pacientes com vários tipos de problema. Alguns têm condições de serem operados, outros, não.
Minha casa fica perto da clínica, o que toma as coisas mais convenientes e práticas.
- Sua irmã mora com você?
- Durante as férias, sim. É seu lar. - Sorriu, feliz. - Mas ela vai voltar para ficar no fim do ano, quando terminar o curso secundário na Inglaterra. Resolveu
abrir uma butique em Paris. É louca por moda e roupas.
- Deve ser muito divertida. Ela tem dinheiro para começar um negócio desses?
- Uma boa parte de sua herança ficou a meus cuidados até que ela complete vinte e um anos. Acha estranho que situações assim ainda existam? Talvez me ache um pouco
antiquado.
- De jeito nenhum. Aqui na África do Sul, uma moça com menos de vinte e um anos precisa de autorização do pai ou tutor para casar.
- Ah! É assim? Adèle também não pode casar sem meu consentimento.
Havia uma tal intransigência na voz dele, que Catherine olhou-o, surpresa, notando uma certa dureza em seu rosto, geralmente calmo.
- É um irmão severo demais?
- Só quando preciso, chérie. Mas chega de falar em mim. Quero saber alguma coisa sobre você.
- Não há muito a dizer. Eu estava na universidade para tirar meu diploma em Literatura Inglesa. Se não fosse pelo acidente, teria terminado no fim do ano passado.
- Agora, pode voltar e terminar.
- Não sei - respondeu, um pouco nervosa. - Já fui por muito tempo uma carga para meu pai. Acho que está na hora de começar a ganhar para me sustentar.
- Mas seu pai é um homem rico, chérie. Tenho certeza de que ele não a considera uma... carga!
- Não sou esse tipo de pessoa, Paul. Tenho que fazer alguma coisa. Ou volto à faculdade, ou arranjo um emprego. Não gostaria de passar o resto da vida sem fazer
nada de útil, como a filha do milionário Charles Anderson. Quero ter minha própria personalidade.
Havia calor, nos olhos de Paul, e mais alguma coisa que ela não conseguiu definir. Gostaria de dizer que tudo o que queria era passar o resto da vida ao lado dele.
Mas Paul estava ansioso para voltar à França, para sua amada clínica. Era desesperador!
Como tinha sido tola, entregando seu coração com tanta facilidade! Principalmente porque ele não tinha o menor interesse por ela. Será que Paul se apaixonaria,
algum dia? Será que chegaria o dia em que apenas o trabalho não seria o bastante para ele? Em que o amor de uma mulher seria essencial para sua felicidade?
Esse pensamento a fez estremecer. A simples idéia de outra mulher em seus braços, recebendo seus beijos e seus carinhos, era dolorosa demais.
Voltaram à tardinha, quando os últimos raios de sol cobriam a montanha com uma luz dourada. Soprava uma brisa fresca e o suave perfume das flores enchia o ar,
tomando ainda mais nostálgico o momento da despedida.
Catherine ficaria radiante, se pudesse saber o que se passava no coração de Paul de Meillon, naquele instante. Ele nunca se sentira tão desesperado por se separar
de alguém. Sabia agora que amava a moça profundamente.
Poderia ter dito a ela, mas algo o impedira. Cathy era muito jovem e precisava de tempo. O sucesso espetacular da operação ainda estava muito vivo em sua memória
para que soubesse distinguir entre amor, gratidão e admiração. Admiração! Esta palavra o assustava terrivelmente. Talvez estivesse sendo cuidadoso demais, mas, aos
trinta e cinco anos, um homem não podia correr riscos ao escolher sua esposa!
Não, tinha que voltar à França e deixar que ela conhecesse outros homens mais jovens, por mais que esse pensamento fosse insuportável para ele, por mais que sofresse!
Em um ano, voltaria. Se ela ainda estivesse livre, então se comportaria como um homem apaixonado. Aí, ela não estaria mais influenciada por nada além da linguagem
de seu coração.
- Catherine, chérie - começou a dizer, tomando as mãos dela. - Abusei de sua hospitalidade. Ainda não está bastante forte para todos esses passeios, e deve ter
se cansado demais.
- Não, não! Adorei cada minuto. Depois de ficar seis meses numa cama ou numa cadeira de rodas, poder andar outra vez é a coisa mais maravilhosa do mundo. - Por
nada deste mundo confessaria que muitas vezes se sentira exausta. - Ainda não agradeci o bastante pelo que fez por mim. Se não fosse você...
- Outros fariam a mesma coisa, petite, se eu não tivesse aparecido por aqui - interrompeu ele, tenso.
- Quem, por exemplo? David Marsden? É nosso melhor neurocirurgião e nem ele teve coragem de arriscar aquela operação.
- Não julgue tão duramente meu colega, Catherine. Não é fácil, para um homem, operar a mulher que ama.
Ela arregalou os olhos.
- Não pode estar falando sério!
- Garanto que estou, chérie. Quando eu for embora, dê uma chance a ele.
- Mas eu não... -Catherine mordeu o lábio. Era inútil explicar a ele que não havia a menor chance de ela vir a se apaixonar por David, a não ser que estivesse
disposta a revelar tudo o que sentia.
- Fará isso por mim?
- Não posso prometer uma coisa dessas, Paul. O que sinto por David é só amizade. Para ser franca, não acredito que algum dia será diferente. Ele é meu médico,
apenas isso.
Paul levou as mãos dela aos lábios.
- Tome bem conta de você, chérie. Durante algum tempo, não se esforce demais. Tenho certeza de que não vai querer desfazer todo o meu trabalho. Promete?
- Prometo, Paul - respondeu, tentando manter a calma e não chorar. - Pretende voltar para nos ver?
- Talvez, chérie. Quem sabe?
A brisa agitou o lenço que ela usava no pescoço. Paul segurou a ponta, rapidamente.
- Posso guardar como lembrança?
Atônita com o pedido, ela ficou um instante incapaz de responder. Depois concordou, vendo-o guardar o lenço no bolso do casaco. Por que quereria uma lembrança
dela? Por que ia querer se lembra dela?
- Agora preciso ir, petite. Está um pouco tarde e ainda tenho que fazer as malas. - Mais uma vez, beijou as mãos dela. - Foi muito gentil em me mostrar um pouco
de seu belo país. Não me esquecerei.
Inesperadamente, baixou a cabeça e beijou-a nos lábios de leve. Cathy desejava de todo coração que a abraçasse, mas Paul recuou um passo.
- Dê um abraço em seu pai. Talvez algum dia você e eu nos encontraremos novamente. Adieu. - Virou-se e foi embora, deixando-a sozinha no terraço, arrasada.
Para Catherine, era o fim do mundo, mas, e para Paul de Meillon? Gostaria de saber. Não tinha a mínima idéia do que ele sentia. Com os olhos cheios de lágrimas,
viu o carro passar pelos portões e desaparecer.
De uma janela do andar superior, Sarah viu quando Catherine entrou em casa e, sacudindo a cabeça, murmurou:
- Aconteceu, e só o bom Deus sabe como tudo isso vai terminar. Minha pobre srta. Cathy!

CAPÍTULO IV

As festas de Sue Grainger eram experiências que não se deviam perder. Catherine chegou cedo, como Sue sugeriu. Tinham muito que conversar, depois dos meses em
que Cathy ficara fora de circulação. Mais do que isso. Sue estava ansiosa para mostrar à amiga seu novo apartamento.
Agora, a sala já estava cheia de gente.
Num canto perto da porta que dava para o terraço, Catherine sentia-se cada vez mais impaciente. E pensar que há menos de um ano adorava festas assim!
A música estridente tocava tão alto, que sua cabeça parecia que ia estourar. Casais agarrados se arrastavam pela sala em penumbra, num arremedo de dança.
- Olhem só quem está aqui!
Catherine ergueu o olhar, surpresa, e encontrou Ronnie Jansen à sua frente, o inevitável copo de bebida na mão.
- Como vai, Ronnie?
- "Como vai, Ronnie?" - ele repetiu, imitando-a e rindo. - Parece até que a gente se encontra todos os dias.
- O que esperava que eu dissesse? Que felicidade encontrar você por aqui?
- Não exatamente. Mas não podia pelo menos ser um pouco mais original?
- Eu devia saber que você viria; nunca faltava às festas de Sue.
- Foi por isso que veio, hoje?
- Continua pretensioso como sempre, não é?
- O que aconteceu com seu guarda-costas?
- Guarda-costas? - perguntou, sem entender, a princípio, mas logo se lembrou. - Está falando do dr. de Meillon?
- Quem mais?
- Ele voltou para a França - respondeu, tensa.
- Que pena! Então, a menininha está completamente sozinha esta noite? - Riu de um jeito desagradável e tentou abraçá-la, mas ela se livrou. - Está bem! Não pode
me culpar por tentar, não é? Não precisa fugir de mim como se eu tivesse uma doença contagiosa. Entendi o recado, doçura, e não vou mais aborrecer você. Quem quer
uma geladeira como namorada?
Depois disso, ele foi para o outro lado da sala e Catherine suspirou, aliviada. Tentou imaginar Paul de Meillon numa festa daquelas. Sem a menor dúvida, ele detestaria.
Sim, e era exatamente essa sua sensação, naquele instante: mal-estar! Como podia já ter achado graça nessas festas barulhentas? Chegou a abençoar o acidente, que
tinha posto um fim a esse tipo de vida. Não devia ter vindo, pensou. Mas Sue insistira tanto, e o pai acreditava que ela se animaria um pouco. Desde a partida de
Paul, estava infeliz e insatisfeita. A inutilidade de seu amor a deprimia, deixando-a indiferente e incapaz de decidir o que fazer no futuro.
Sua dor de cabeça começou a aumentar, com o barulho e a agitação na sala. Na primeira oportunidade, procurou Sue, deu uma desculpa e foi embora respirando aliviada
o ar frio e refrescante da noite, enquanto guiava para casa.
Quando chegou a De Rust, tinha resolvido nunca mais comparecer às festas de Sue. A amizade das duas estava no fim: a diferença de temperamentos era grande demais.
- Voltou cedo para casa - disse o pai, quando a viu entrar.
- Estou com uma dorzinha de cabeça. - Inclinando-se, beijou-o na testa.
Charles Anderson pôs o livro que lia de lado e olhou atentamente para a filha.
- Está preocupada com alguma coisa?
Catherine tirou os sapatos e depois serviu-se de um suco de frutas.
- Nada me preocupa, papai. É que de repente percebi que amadureci e já não acho graça nas festas de Sue, como em muitas outras coisas que antes me agradavam. -
Sentou-se numa poltrona diante dele. - Como passou a noite?
- A reunião terminou cedo. Fiquei a maior parte do tempo aqui, lendo. - Acendeu um cigarro. - David Marsden telefonou, quando você estava fora.
- Ah... Ele disse o que queria?
- Não. Só disse para eu lhe dar o recado de que gostaria de convidar você para almoçar com ele, amanhã. Se tiver outro compromisso, é para telefonar. Se não, deve
encontrá-lo no Restaurante Cabana a uma da tarde.
Catherine não entendia a razão do estranho convite. Ela e David tinham se tomado bons amigos durante as últimas semanas, e, embora ele deixasse óbvio que desejava
mais do que uma simples amizade, nunca a forçava a nada.
- Você tem saído com David, ultimamente - comentou o pai.
- É.
- Existe... quero dizer...
A frase, embora incompleta, era bastante eloqüente, e Catherine riu de sua atrapalhação.
- Não, papai, não existe absolutamente nada. Gosto muito de David como amigo, mas é só.
- E ele sente a mesma coisa por você?
Ela hesitou antes de responder:
- David está apaixonado por mim. Mas sabe que não sinto a mesma coisa e aceita isso.
- Acha que está agindo certo com ele, saindo sempre em sua companhia?
Catherine arregalou os olhos.
- Acha então que devo recusar os convites dele?
Charles Anderson mexeu-se desconfortavelmente na poltrona.
- Não disse isso, Catiiy. Você tem saído muito pouco, ultimamente, e não posso culpá-la por sair algumas vezes com ele. O que estou querendo dizer é que não é
fácil para um sujeito apaixonado sair com uma mulher que não corresponde a seus sentimentos.
Ela pensou algum tempo.
- Tem razão, papai. Não é mesmo justo, mas será difícil convencer David de que é para o bem dele. - Suspirou, desanimada, e se levantou. - Vou me deitar, agora,
estou exausta. Boa noite, papai.
Charles ainda ficou acordado por um longo tempo, pensando. Estava preocupado com Catherine. Parecia muito diferente nos últimos tempos, sem nenhuma alegria de
viver. Não sabia o motivo de uma mudança tão grande, mas estava resolvido a descobrir.
Quando Catherine chegou ao Restaurante Cabana, no dia seguinte, a uma da tarde, David já a esperava. Levou-a para uma mesa de canto e pediu bebidas.
- Você me disse, há algum tempo, que tinha feito um requerimento para voltar à universidade e terminar o último ano - disse ele, enquanto bebiam os aperitivos.
- Ainda quer voltar?
- Sim, David, quero.
- Ontem à noite, estive com o deão da universidade e ele me contou que seu pedido foi aceito.
Pela primeira vez em semanas, Catherine ficou emocionada. Finalmente, teria possibilidade de fazer algo útil. Precisaria estudar muito, mas isso era bom, porque
talvez a ajudasse a esquecer. Esquecer que conhecia um homem chamado Paul de Meillon.
- Cathy, se não quiser, não precisa voltar para a universidade.
- Não está sugerindo que eu passe o resto da vida sem fazer absolutamente nada, está?
David inclinou-se para ela e pegou sua mão.
- Poderia casar comigo. Sabe que eu a amo, não sabe?
Por alguns momentos, eles se olharam nos olhos. Os dele eram apaixonados; os dela, pesarosos.
- Sei, sim, David. Mas...
- Com o tempo, poderia aprender a me amar.
Catherine sorriu, descrente. Que bom se fosse assim fácil! David não era um homem sem atrativos, com seus cabelos loiros e olhos verdes, mas entre ambos existia
a figura morena do médico francês.
- Não adiantaria, querido. Eu não... eu não posso... - Sua voz sumiu, e ela ficou calada.
- Ama outro?
Catherine não respondeu logo.
- Sim, amo. Sinto muito.
- Alguém que eu conheça?
- Sim.
- Não... não Paul de Meillon! - Vendo a verdade nos olhos enevoados de Cathy, soltou a mão dela e se recostou na cadeira, com uma expressão de desgosto. - Então
é ele! Devia ter imaginado!
- Sinto muito, David.
Ele esvaziou seu copo e, durante algum tempo, os dois comeram em silêncio.
- Mas pelo menos você reconhece que é inútil amar Paul - disse David, com um traço amargo na voz. - Ele é casado com a profissão. Sempre foi e sempre será.
Não tinha meios de saber o quanto estava enganado. Nem Catherine. Ela estava sem apetite, mas, por causa de David, tentava comer alguma coisa.
- Sei disso muito bem. Desde o primeiro instante em que vi Paul soube que não há lugar para uma mulher em sua vida.
- Mas então por quê, em nome de Deus...?!
- Por que fiz uma coisa tão tola como me apaixonar por ele? - Sorriu, amargurada. - Não sei, David. Não procurei nada disso, simplesmente aconteceu. É algo que
está agora em meu coração, e nada no mundo pode arrancá-lo daqui.
As lágrimas pesavam em seus longos cílios escuros.
David segurou a mão dela e apertou-a, carinhoso.
- Sinto muito, Cathy. Não queria fazer você chorar.
- Ora, estou mesmo fazendo papel de boba. Com o tempo isso vai passar, tenho certeza.
- E Paul sabe?
- Não! E nunca deve saber! - respondeu, muito aflita.
- Não se preocupe, não serei eu que direi a ele. Além disso, nós nos correspondemos raramente e sempre escrevemos sobre assuntos profissionais. Por favor, Cathy,
lembre-se de que estarei sempre à sua espera. Ainda podemos ser amigos, não podemos?
Ela sorriu.
- Sim, meu querido, podemos continuar amigos. E muito obrigada pelo excelente almoço.
O ano passou com surpreendente velocidade para Catherine. Uma vez de volta à universidade, não havia tempo para pensar em seus problemas, sendo imediatamente envolvida
pela intensa atividade, inteiramente voltada para os estudos. Conseguiu até mesmo um emprego durante as férias. Não que precisasse de dinheiro, pois Charles Anderson
era um homem rico, mas precisava se manter ocupada.
Quando recebeu seu diploma, o pai e David estavam presentes. Foi um dia alegre, e depois da cerimônia os três jantaram num luxuoso restaurante para comemorar.
- Tenho uma surpresa para você, Cathy - disse o pai, quando tomavam o café. - Mas tem que esperar até chegar em casa.
- O que é, papai? - Olhou para David: - Você sabe qual é a surpresa?
- Sei - confessou ele, rindo. - Mas não pense nem por um momento que vou contar o que é.
- Acho que vocês dois estão sendo muito malvados.
- Sim, somos dois monstros - respondeu o pai, sorrindo. - Mas a surpresa tem que esperar até estarmos em casa. Você também está convidado, David - acrescentou
Charles, piscando para o outro.
Mais tarde, voltando para casa, Catherine mal podia controlar a curiosidade. Qualquer que fosse a surpresa, era certo que tinha sido tramada pelo pai e David,
juntos. Os dois estavam se portando como crianças, guardando um segredo e sem conseguir conter o riso.
- Muito bem - disse Charles Anderson, dramaticamente, quando já estavam instalados na suntuosa sala de estar da Mansão De Rust. - Agora, a surpresa que lhe prometi,
Cathy.
Foi até a antiga escrivaninha de estilo vitoriano e pegou um envelope que entregou à filha.
Trêmula, ela segurou por um instante o envelope pesado, tentando adivinhar o que teria dentro. Depois, com um movimento rápido, abriu-o e arregalou os olhos ao
descobrir o que era.
- Mas são duas passagens para uma viagem internacional!
- Isso mesmo. Para mim, será uma combinação de negócios e férias, mas para você será somente umas belas férias.
Por um louco momento ela se lembrou de Paul, depois, afastando as recordações, atirou-se no pescoço do pai e beijou-o, agradecida.
- Ah, papai, você é um amor! Sempre quis ir à Europa, e agora, de uma hora para outra...
David, que tinha ficado calado, deu um passo à frente e pôs a mão no ombro dela.
- Seu pai e eu achamos que você bem merece essas férias, mais do que qualquer outro presente. Você se esforçou demais no último ano. - Beijou-a suavemente no rosto.
- Espero que os dois aproveitem muito.
- Foram muito bons, pensando em mim, e quero que saibam que estou muito feliz. Eu... eu... - calou-se, porque, se dissesse mais uma palavra, ia chorar.
Charles limpou a garganta, também emocionado.
- Precisa começar logo a fazer as malas, meu bem. Não temos muito tempo.
- Acredita que fiquei tão zonza que nem vi a data da partida? - disse ela, sorrindo.
- Partiremos depois de amanhã. Dezembro não é a melhor época para se ir à Europa; leve suas roupas mais quentes.
- Céus! Vou ter mesmo que correr! E suas roupas, papai?
- Não se preocupe comigo. Sarah já começou a tratar disso, escondido de você.
- Seu danadinho! - Abraçou-o mais uma vez.
- Que países vão visitar? - perguntou David.
Catherine olhou para o pai.
- Bem - respondeu o velho -, começaremos pela Itália; depois. Suíça, onde passaremos o Natal. De lá iremos à Alemanha, França,
Espanha e, finalmente, Inglaterra. Talvez não seja bem nessa ordem, pois tenho alguns compromissos de negócio, mas visitaremos o maior número possível de países.
- Quanto tempo pretende demorar? - David olhou de relance para Catherine e ela percebeu que ele não estava tão feliz assim com aquela viagem, apesar de fingir
maravilhosamente bem.
- Uns dois meses, mais ou menos.
Novamente o olhar de David procurou o dela, ansioso, e Catherine desejou amar aquele homem de todo o coração, a ponto de poder casar com ele.
- Está na hora de ir - disse ele, levantando-se. - Foi um dia longo e cansativo para você, Cathy, e sugiro que vá dormir agora mesmo, porque amanhã será igualmente
cansativo, por causa dos preparativos para a viagem.
- Tem razão. - Vou fazer o que meu médico manda.
- Isso mesmo - respondeu David.
Os três se dirigiram para a porta.
- Vamos ver você novamente, antes de embarcarmos? - perguntou Charles.
- Claro. Vou me despedir no aeroporto.
- Ótimo. Boa noite, então - disse Charles, e deixou os dois sozinhos no terraço.
Ficaram olhando um para o outro, com pena de se separarem. Subitamente, David deu ura passo à frente e segurou o rosto de Catherine.
- Cathy, vamos ficar noivos antes de você embarcar?
A súbita sugestão pegou-a desprevenida. Por um momento, não soube o que responder. Mas depois suspirou, desanimada.
- David, meu querido, sabe que gosto demais de você... mas como amigo. Eu não suportaria ficar noiva agora e mais tarde romper o noivado.
- Mas, Cathy...
- É melhor esperarmos até eu voltar da viagem. Talvez, então, quem sabe...
David largou-a e Cathy se afastou dele, apoiando a cabeça numa das colunas de pedra.
- Ainda está apaixonada por Paul?
- Sinceramente, não sei. Dez meses é muito tempo, e aconteceu tanta coisa desde que ele foi embora!
- Então, por que não ficamos noivos?
Catherine sentiu que suas palavras tinham dado a ele novas esperanças e sabia que tinha a obrigação de destruí-las.
- David, não tenho certeza de nada. Nos últimos meses, tentei analisar meus sentimentos e imaginei se o que senti não foi uma grande admiração e uma profunda gratidão,
que confundi com amor. Sinceramente, não sei! A única coisa que sei é que eu o amava, naquela época... desesperadamente! A faculdade não me deixou muito tempo livre
para pensar sobre meus problemas. O que vou sentir, quando tomar a ver Paul, se algum dia voltar a vê-lo, realmente não sei. Pode ser como encontrar outra vez um
velho amigo. - Riu, insegura. - Por que estamos falando nisso? Nunca mais verei Paul. Em primeiro lugar, ele nem sabe que vamos para a França; em segundo, com toda
a certeza, não pretendo correr atrás dele.
- Cathy, quero que me prometa uma coisa. Se encontrar Paul e descobrir que nada restou do que sentia por ele, vai pensar seriamente na minha proposta de casamento?
- David, eu...
- Vai? - insistiu, segurando-a pelos ombros.
Afinal, que mal havia em fazer a promessa?
- Sim, David. Mas, por favor... por favor, não fique com muitas esperanças.
David beijou-a de leve nos lábios.
- Estarei aqui, esperando por você, Cathy. Esperando confiante.
Antes que Catherine pudesse responder, ele já tinha se virado e caminhava a passos largos em direção ao carro. Ela ficou no mesmo lugar por um longo tempo, pensativa.
Será que estava sendo uma grande tola em não aceitar o pedido de casamento de David? Sabia que teria uma vida de luxo como sua esposa, mas... seria isso justo com
ele? Será que o amor dele bastaria para dois? E por quanto tempo David se sentiria feliz, com uma esposa que não o amava? No entanto, gostava muito dele. Sim, tinha
uma profunda afeição por David Marsden. Será que conseguiria amá-lo?
Suspirou, desanimada, e entrou. Estava exausta, excitada e preocupada, tudo ao mesmo tempo. Tinha acontecido tanta coisa naquele dia! A emoção de receber o diploma,
a alegria com a viagem e, agora, a tristeza de magoar David. Era demais para ela!
Trancou a porta e apagou a luz do hall. O dia seguinte seria uma correria, pensou, mas também seria divertido.
Catherine passeava pelos Champs Elysées, em Paris, com intensa emoção. Era janeiro e inverno, mas nem o frio conseguia diminuir a fascinação que sentia. Tinham
visitado diversos países, e adorara a todos. Agora, estava sem destino, pois o pai tinha compromissos sérios naquela tarde; podia passear, aproveitando a bela tarde
fria e ensolarada.
Levantou a gola do casaco. A sua frente estava o Arco do Triunfo e, um pouco à esquerda, a Torre Eiffel, dominando a cidade. Suspirou, pensou, olhando as pessoas
à sua volta. Para os outros, era uma cidade como qualquer outra, mas para ela parecia quase irreal em sua beleza. Uma cidade única!
Olhou as horas, percebendo que o trânsito estava ficando mais intenso, e resolveu tomar um táxi até o hotel, a fim de não se atrasar para o jantar.
Na recepção, a informaram de que o pai ainda não tinha voltado; portanto, não precisava se apressar. Tomou um banho demorado, vestiu um conjunto de lã, fez a maquilagem
e foi até a janela, admirar a Torre Eiffel iluminada, à distância.
Até agora, as férias tinham sido maravilhosas, apesar de ainda estar um pouco perturbada com o comportamento de David no aeroporto. Ele chegou atrasado, depois
de o vôo já ter sido anunciado, e ali, na frente de todo mundo e do pai dela, abraçou-a com força e beijou-a apaixonadamente, quase desesperadamente. Cathy ficou
tão constrangida que não soube o que fazer ou dizer. Por sorte, o vôo foi anunciado outra vez e, apressados, ela e o pai embarcaram, seguindo diretamente para a
Itália.
Da Itália, viajaram para a Suíça e Alemanha. De lá, resolveram ir para a França e, finalmente, para a Inglaterra, antes de voltarem para a Afica do Sul.
A campainha do telefone interrompeu seus pensamentos. Pensando ser chamada do pai, correu para atender.
- Quarto 209.
- Salut, chérie. E bem-vinda a Paris.
Catherine ficou muda por um momento e quase deixou cair o aparelho, ao ouvir aquela voz grave e quente.
- Paul! - exclamou, afinal, encostando-se na parede e sentindo o coração começar a bater forte, enquanto parecia estar flutuando.
- Estou surpreso por ter reconhecido minha voz depois de tanto tempo!
- Não sei de mais ninguém em Paris que teria a audácia de me chamar de chérie - brincou, aliviada por ele não poder ver seu rosto nem as mãos trêmulas. - De onde
está ligando?
- Do bar de seu hotel. Encontrei seu pai por acaso, esta tarde, em casa de monsieur Berton, e ele me convidou para jantar com vocês.
- Ah... - Atônita, ao perceber o efeito devastador que a voz dele lhe causava, Catherine não sabia o que dizer.
- Ele me mandou dizer que é para você descer em cinco minutos - continuou Paul.
- Diga a ele para esticar esses cinco minutos para dez. Se achar ruim, lembre-o das vezes em que eu o esperei - respondeu, olhando para o vestido de lã e pensando
em algo mais sedutor para usar.
- Direi, chérie. Au revoir. - E desligou.
Por alguns segundos, Catherine ficou olhando para o telefone, sem ação. Paul estava ali, naquele mesmo hotel! Pensava que nunca mais o veria e tinha conseguido
se convencer de que o que sentira por ele era uma profunda gratidão. Entretanto, ah estava ela, vibrante, só com o som da sua voz, e os sentimentos que ela julgava
mortos e enterrados surgiam bem vivos e fortes.
Correu ao armário e escolheu um vestido cinza-escuro, de veludo, com mangas compridas e um profundo decote nas costas. Trocou depressa de roupa e depois olhou-se
no espelho. O modelo, comprado em Paris, era sofisticadíssimo e lhe dava a confiança de que precisava. Retocou a maquilagem, ajeitou os cabelos, que agora estavam
longos, e, pegando o casaco de peles e a bolsa, saiu do quarto.
Quando tomou o elevador para ir até o térreo, sentiu que seu pulso
estava perigosamente rápido. Será que era medo de encontrar Paul outra vez?
Alguns minutos depois, ela entrava no bar. Viu o pai e, depois... Paul. Alto, moreno, impressionantemente sedutor num temo escuro. Ele logo se adiantou para ela,
um sorriso iluminando o rosto bonito, e beijou sua mão.
- Está muito linda, chérie. Muito mais linda do que eu me lembrava.
- Está exagerando, Paul, mas muito obrigada.
- Não estou exagerando, Catherine, é a pura verdade. Vamos - disse, levando-a até o bar -, sente-se enquanto peço uma bebida, antes de irmos para o restaurante.
-Catherine deu um beijo no pai e sentou-se.
- Quanto tempo pretendem ficar na França? - perguntou Paul a Charles, depois de ter feito os pedidos.
- Não tenho certeza. Alguns dias, talvez. Tudo vai depender de Cathy.
- Já viram muita coisa da cidade?
- Eu não vi quase nada - respondeu ela. - Chegamos ontem. Só deu tempo de olhar vitrines e fazer umas compras.
- Então permita-me ser seu guia. Dos dois, naturalmente - acrescentou, virando-se para Charles.
- Ah, estou muito velho para ficar me cansando por aí. Mas leve Catherine, que ela vai adorar.
- Não se importa, monsieur?
- Claro que não.
Mais tarde, quando tomavam Ucor, Paul levantou-se e estendeu a mão para a moça.
- Venha, chérie, os músicos estão inspirados esta noite.
Catherine escondeu o nervosismo atrás de um sorriso, quando o seguiu até a pista. Vários casais dançavam aquela música romântica, e Paul guiou-a entre eles com
habilidade. Era um ótimo dançarino. Logo a magia da noite os envolvia, e Catherine tinha a impressão de estar flutuando.
- Não falou muito, chérie - disse ele, baixinho, os lábios roçando sua orelha. - Embora eu ache seu silêncio perturbador, estou curioso de saber os pensamentos
que se escondem em sua cabecinha.
- Nada de interessante. Isso eu garanto.
Ele levaria um susto, se adivinhasse o efeito devastador que tinha sobre seu pobre coração.
- Deixe que eu mesmo julgue.
- Eu... eu... - Ela perdeu o compasso e mordeu o lábio. - Sinto muito.
- Venha, vamos respirar um pouco de ar puro e conversar. Estou vendo que seu pai está numa animada conversa com a dama da mesa ao lado da nossa; assim, não sentirá
nossa falta por alguns minutos.
Paul levou-a até o terraço, e lá fora estava bastante frio. Catherine estremeceu.
- Pronto - disse ele, tirando o paletó e colocando-o sobre seus ombros. - Estou acostumado com essa temperatura - acrescentou, quando ela tentou protestar.
O calor do corpo dele ainda aquecia o casaco e ela ficou emocionada como se ele a tivesse tocado.
- O que fez nos últimos meses? - perguntou Paul, enquanto se sentavam num banco de pedra.
As luzes de Paris cintilavam, causando em Cathy a mesma sensação de magia que sentira naquela tarde. Havia alguma coisa na cidade que tocava sua alma.
- Voltei à universidade e consegui meu diploma.
- Ah... - Acendeu um cigarro. - Calculei que faria isso.
Os botões perolados da camisa de seda brilhavam na luz incerta que vinha do restaurante. Ele pegou a mão dela e a examinou detidamente.
- Vejo que não está usando um anel de noivado. Então, meu caro amigo David não conseguiu convencê-la a casar com ele?
Catherine baixou o olhar.
- Somos só bons amigos.
- Mas, com certeza, David pediu para você casar com ele.
Cathy evitou aqueles olhos negros. Eram muito perspicazes, e havia uma verdade que não queria deixar que ele descobrisse.
- Sim, pediu. Mas...
- Você não o ama?
- Não.
- É uma pena - comentou baixinho, mas havia em sua voz algo que desmentia as palavras; era evidente que não sentia nenhuma pena.
- Sua irmã Adèle - perguntou Cathy, mudando de assunto - abriu mesmo a butique como planejava?
- Então, ainda se lembra! Sim, já inaugurou. E vai indo muito bem. Precisa conhecê-la.
- Teria um grande prazer.
- Bon!
A música parou e os dois entraram.
- Monsieur Anderson - disse Paul, logo que chegaram à mesa -, peço mil desculpas, mas tenho que fazer uma visita a um paciente recém-operado, e minha clínica fica
longe daqui. Obrigado por me convidar para jantar, foi muito agradável. - Virou-se para Catherine, sorrindo: - Telefono, assim que tiver um momento livre. Bonne
nuit, chérie, monsieur.
Os dois lhe deram boa-noite e, fazendo uma ligeira reverência, ele se foi. Para Catherine, era como se de repente a noite tivesse perdido o encanto, Pegando o
casaco e a bolsa, sugeriu ao pai que também fossem embora.
- Vou me deitar, papai. Até amanhã.
- Até amanhã. - Pensativo, olhou a filha que se afastava.
O destino tinha feito com que o caminho de Paul de Meillon e o dela se cruzassem novamente, e Charles estava ao mesmo tempo esperançoso e assustado, temendo pela
felicidade de Catherine.

CAPÍTULO V

Na noite seguinte, quando a campainha do telefone soou na suíte de Catherine, ela instintivamente soube que era Paul e correu para atender.
- Espero não estar telefonando numa hora inconveniente. Acabei de voltar da clínica.
- De jeito nenhum. Estava lendo um pouco, porque é muito cedo para dormir.
- Já tem algum plano para amanhã?
- Não, ainda não - respondeu ela, o coração aos pulos.
- Bon! Consegui arranjar as coisas para ficar livre amanhã. - Hesitou um momento. - Posso ligar de manhã para passarmos o dia passeando?
- Sim! - respondeu, depressa, depressa demais! - Seria maravilhoso. Paul!
Do outro lado da linha, ele sorriu, ao perceber a ansiedade na voz dela, sem saber como faria para passar as horas que faltavam até vê-la outra vez.
- O que fez hoje, Cathy?
- Papai e eu fomos de ônibus até uma cidadezinha, no campo. Voltamos agora à noite, um pouco antes do jantar.
- Então, deve estar muito cansada, e eu a estou impedindo de ir dormir.
- Não! - Não queria que ele desligasse. Era um paraíso escutar sua voz, e ela saboreava cada instante. - Não estou nada cansada. Com certeza, ainda vou ficar horas
acordada!
- É muito amável, chérie, mas não quero cansá-la mais. Ligo amanhã, às oito. Bonne nuit, chérie.
- Boa noite. Paul.
Nos arredores de Paris, sentado em sua biblioteca. Paul ficou subitamente sombrio. Tinha que ter cuidado. Catherine era excepcionalmente linda e encantadora, ainda
com a inocência da juventude. Era evidente que a moça não conhecia o amor, e ele precisava manter o autocontrole para não precipitar as coisas. Tinha um medo enorme
de que, se a pedisse em casamento, ela aceitasse só por gratidão. Mas ele queria muito mais do que gratidão da mulher que adorava, e queria, portanto, estar mais
certo dos sentimentos dela, antes que fosse dominado pela paixão.
Acendeu um cigarro. Os últimos dez meses não tinham sido fáceis para ele. Sabia que David Marsden estava apaixonado por Catherine, e a cada dia temia receber a
notícia de que os dois iam casar. Mas era um risco que tinha que correr. A chegada inesperada de Catherine a Paris economizara mais uma viagem à África do Sul, que
já estava planejando. O propósito dessa viagem era visitar a moça e descobrir em definitivo se havia alguma esperança para ele.
Paul franziu a testa. Estava longe de ser um homem paciente, mas seu temor de que a decisão de Catherine pudesse ser influenciada pela gratidão dava-lhe coragem
para continuar com os planos. Seria insuportável, se, no fim de tudo, descobrisse que ela não o amava!
Seu encontro, na véspera, com Charles Anderson não havia sido uma coincidência, como os fez acreditar. Tinha um cliente que conhecia Charles e, por acaso, ficou
sabendo de sua viagem a Paris. Paul arranjou um motivo para procurá-lo naquele mesmo dia. A inesperada descoberta de que Catherine acompanhava o pai foi uma surpresa
mais do que agradável.
Esmagou o resto do cigarro no cinzeiro e foi escolher um livro na estante. Se não conseguisse dormir, leria alguma coisa.
Na manhã seguinte, Catherine acordou com um bom pressentimento. Nem mesmo o tempo nublado conseguiu abater seu estado de espírito. Cantarolando baixinho, tomou
banho e se vestiu com cuidado, feliz com a perspectiva de passar um dia inteiro em companhia de Paul,
Escolheu um vestido de jérsei de lã bordo, que combinava maravilhosamente bem com a cor acobreada de seus cabelos e acentuava o cinzento límpido dos olhos. Tomou
café rapidamente e desceu, ansiosa.
Paul estava entrando no hotel, quando ela saiu do elevador. Ao vê-lo, Catherine sentiu o coração disparar.
Um belo Bentley branco estava estacionado na entrada e ele não perdeu tempo para acomodá-la. Olhou-a por um instante, antes de dar a partida, um sorriso nos lábios.
- Espero que esteja preparada, chérie. Vai ser um dia muito cansativo.
Quase sem fôlego, de tanta emoção, Catherine concordou, movendo a cabeça.
Paul tinha razão sobre o dia exaustivo, pois a levou para conhecer o Louvre, Notre-Dame e os jardins do Luxemburgo. Passearam num bote, no Bois de Boulogne, e
depois atravessaram a cidade para visitar o Jardim zoológico, onde ela ficou entusiasmada com os cisnes.
- Você é encantadora, minha menina - disse Paul, rindo, ao sentarem-se num banco. - Nessas poucas horas, eu a fiz conhecer as maravilhas de Paris, e aqui está
você, toda interessada na cena de alguns cisnes nadando! Você me ofendeu, ma petite!
- Oh, Paul, sinto muito! Vi tantos lugares lindos, hoje, e tantas obras de arte impressionantes, que meu cérebro não consegue absorver mais nada. A quietude desses
cisnes era um contraste tão grande com o que eu vi, que me impressionou. Por favor, me perdoe!
Levantou os olhos para ele, e o belo e sofisticado Paul de Meillon sentiu o coração bater com mais força. Dieu, como ela era linda! E estava tão perto! Só precisava
abaixar a cabeça para provar a doçura daqueles lábios de mel. Ciei! Em que loucura estava pensando? Não queria assustá-la. Com todas as forças, conseguiu controlar
as emoções.
Catherine sentiu que algo estava para acontecer. Naqueles rápidos segundos, quando seus olhares se encontraram, parecia que tinham se olhado durante horas, tão
forte era o magnetismo que os atraía um para o outro. Os olhos negros dele pareciam feitos de fogo. Mas então tudo se desvaneceu. Ela baixou o olhar e ele se ocupou
acendendo outro cigarro.
- Estava brincando, chérie; não fique assim assustada.
- Pensei mesmo que estivesse zangado comigo. Paul pegou a mão dela e levou-a aos lábios.
- Nunca poderia ficar zangado com você, ma três chère.
- Ma três chêre... Por que está me chamando assim?
- Quem sabe, algum dia eu lhe conto - respondeu ele, sorrindo. Jogou o cigarro no chão e o apagou com o salto do sapato. - Quanto tempo ainda pretende ficar na
França? - perguntou, subitamente.
- Não sei - respondeu ela, hesitante. - Estamos pensando em partir no fim da semana.
- Tão depressa?
- Por que pergunta?
Ele se virou para ela, colocando o braço ao longo do encosto do banco, atrás dela. Sua expressão estava calma e pensativa, e Catherine esperou, ansiosa.
- Você e seu pai não gostariam de ficar mais tempo, agora como
meus hóspedes?
O oferecimento era tão inesperado, que por um momento ela hão soube o que responder.
- Eu... eu não sei... Terei que conversar com meu pai, antes de lhe dar uma resposta.
- Não será melhor eu mesmo falar com ele?
- Paul, tem certeza de que não será inconveniente para você?
- Ma petite, eu não os convidaria, se fosse assim.
- Nesse caso, eu adoraria - murmurou, pensativa.
- Tenho certeza que sim. Significaria que poderiam ficar mais tempo do que planejaram e teriam oportunidade de conhecer melhor meu país, e muito melhor acomodados,
em minha casa.
- Sim, "E também verei você mais vezes", pensou ela.
- Vamos conversar melhor, depois que eu falar com seu pai - sugeriu ele, mas Catherine sabia que o pai faria sua vontade.
Quando chegaram ao hotel, encontraram Charles Anderson na suíte, escrevendo cartas. Paul não perdeu tempo e repetiu o convite. Charles pareceu surpreso, pousou
a caneta e ouviu com atenção.
- Minha casa fica num subúrbio de Paris, e lá é muito mais sossegado. Deixarei meu carro à sua disposição, para poderem sair quando quiserem.
- É muita amabilidade sua, dr. de Meillon, mas não queremos incomodar - respondeu Charles.
- Monsieur, minha irmã e eu ficamos fora de casa o dia todo. Seria só à noite que todos nos encontraríamos. E tenho certeza de que não acharia desagradável ter
que me aceitar como seu anfitrião, durante essas poucas horas.
- Claro que não - disse Charles, rindo. - De jeito algum eu me aborreceria, sendo seu hóspede.
- Então...?
- Catherine? - Mas, quando olhou para a filha, a resposta estava clara em seu rosto.
- Seria... muito bom - disse ela. Virou-se para Paul. - Acho uma grande gentileza sua.
Paul não tinha feito o convite por gentileza: precisava de mais tempo com Catherine. Na casa dele, seria mais fácil vê-la, sem os convites formais que, de outro
modo, seria obrigado a fazer.
- Dr. de Meillon, aceitamos agradecidos - disse Charles, e foi visível o alívio de Paul.
Combinaram que ele telefonaria na tarde do dia seguinte, pois Charles ainda tinha alguns compromissos profissionais. Depois, beijando as pontas dos dedos de Catherine,
Paul se despediu.
Se ela tivesse pedido para prolongar mais a estada em Paris, Charles concordaria, mesmo sem o convite de Paul. Percebera que a moça havia revivido, na companhia
do francês, e descobrira, afinal, a razão da infelicidade dela nos últimos meses.
Se o romance fosse adiante, a estada na própria casa de Paul daria a Charles a oportunidade de conhecer melhor o tipo de vida e o caráter de Paul de Meillon.
As horas se arrastaram para Catherine, até Paul telefonar. O pai tinha passado a maior parte do dia trabalhando, enquanto ela arrumara as malas e pagara a conta.
Quando Paul chegou finalmente, estava muito nervosa, e mal se falaram enquanto ele guiava através da cidade. Charles, ao contrário, estava muito conversador.
Ao chegarem ao Château de Bonheur, como Paul contara que sua casa se chamava, ela estava bem mais calma e podia apreciar tudo com muito interesse. O carro passou
pelos imponentes portões de ferro trabalhado e subiu pela alameda de castanheiros. A casa era impressionante, com pilares de mármore na entrada e vários balcões
no andar superior. Era o tipo de casa em que se espera encontrar um mordomo na porta, mas aü era a França, e mordomos estavam fora de moda.
Assim que o carro parou, a pesada porta de madeira maciça se abriu e uma moça apareceu para recebê-los.
- Venha conhecer nossos hóspedes, Adèle.
Desde o primeiro instante, Catherine sentiu uma grande simpatia pela irmã de Paul. Não se parecia com ele; embora seus cabelos fossem também castanhos, e os olhos
negros, tinha um rosto miúdo e traços muito delicados.
- Paul já me falou tanto de você que esperava ansiosa pela sua chegada - disse ela num inglês perfeito, com leve sotaque. - Vou mostrar seus quartos.
Carregados de malas e maletas, entraram e subiram a escadaria de madeira, com balaustrada toda entalhada.
- Paul mostrará ao senhor o quarto, monsieur Anderson - disse Adèle. - Venha, Catherine, o seu é deste lado.
Seguiram para a direita do largo corredor, todo coberto por um carpete grosso e macio, que abafava o som dos passos.
- Aqui é a sua suíte. - Abriu a porta e colocou a mala no chão, ao lado da cama. - É face norte e dá para o roseiral. Durante o verão, fica todo colorido. De manhã,
a gente acorda e logo sente o perfume das rosas. O banheiro é naquela porta. Ficará com total privacidade.
Virou-se para olhar Catherine, que estava imóvel, apreciando o luxo da enorme cama com dossel e altas colunas. O quarto era mobiliado
com muito gosto, todo lilás e branco. As cortinas de voile transparente se abriam para um balcão.
- Gosta?
- Se gosto? Não encontro palavras para o que estou achando! Você escolheu este quarto para mim, Adèle?
- Sim, fui eu.
Catherine pegou a mão da moça e a apertou.
- Obrigada, foi muita bondade.
- Não demore muito, Adèle - chamou Paul, do corredor. - Monsieur Anderson e eu estaremos esperando por vocês duas na sala.
- Descemos num minuto, monfrère.
- Château de Bonheur... - murmurou Catherine. - O que significa?
- Castelo da Felicidade. Foi meu avô que o batizou assim, quando trouxe para cá a noiva, que também se chamava Adèle.
- Que romântico! Quantos quartos existem na casa?
- Quinze.
- Todos têm banheiros privativos?
- Meu Deus, não! Só alguns. Mas Paul disse que você era uma hóspede muito especial, e então...
- Costumam ter sempre hóspedes?
- Não sempre - respondeu ela, com uma ponta de tristeza. - Paul é muito retraído. - Depois, olhando as malas: - Quer que eu a ajude a desfazer as malas?
- Não há necessidade, obrigada. Acho melhor descermos, que os dois estão à nossa espera.
- Oui. Mas antes... - Adèle hesitou, parecendo um pouco sem jeito. - Desculpe a minha indiscrição, mas existe alguma coisa entre você e Paul?
- Por que está perguntando?
- Meu irmão nunca convidou uma mulher para se hospedar aqui. Nem mesmo acompanhada pelo pai, como você.
- Seu irmão me operou enquanto esteve na África do Sul, e nós nos encontrávamos constantemente, mas não há mais nada - respondeu Catherine, aliviada porque pelo
menos isso era verdade.
Realmente, não existia nada além de amizade entre Paul e ela, por mais que desejasse que houvesse.
- É melhor irmos - disse Adèle, afinal. - Paul não gosta de esperar.
Catherine seguiu-a pelo corredor, onde retratos dos ancestrais dos de Meillon olhavam para ela. Adèle levou-a para um salão aquecido e acolhedor. A lareira estava
acesa, mas a sala tinha um calor que não vinha só do fogo. Era um lugar confortável e acolhedor, onde uma pessoa podia relaxar e se recuperar dos problemas do dia.
- Chegaram, afinal - disse Paul.
- Sinto muito ter deixado você esperando. Paul - desculpou-se Catherine.
- Não faz mal. O que prefere beber, chérie? Um Dubonnet, talvez?
- Eu adoraria, obrigada.
- Para você o Pemod de sempre, Adèle?
- Merci, Paul.
- Depois do jantar, mostrarei a casa para você, Catherine - disse Paul, entregando o cálice a ela. - Foi meu avô quem mandou construir. Depois, foi o lar de meu
pai, e agora é o meu. - Havia um intenso orgulho em sua voz. - Temos aqui quartos demais, que ficam fechados a maior parte do tempo, mas eu nunca trocaria o Château
de Bonheur por algo menor.
- Não o critico por isso, dr. de Meillon - disse Charles. - Tem uma magnífica casa!
- Obrigado, monsieur. Mas, por favor, me chame de Paul.
- Está bem, Paul. Diga-me, aquele quadro ali é...
- É um portrait de maman - respondeu Adèle. - Foi pintado por um artista aleijado que se refugiou aqui durante a guerra. É muito bom, não acha?
- Sim, muito natural. E você é muito parecida com sua mãe, minha cara.
- Merci, monsieur, é muita bondade sua. Não cheguei a conhecer minha mãe. Ela morreu pouco depois que nasci. Em minha vida, sempre houve meu pai e Paul. E agora...
apenas Paul.
Catherine notou uma leve vacilação no final daquela frase e teve curiosidade de saber mais sobre Adèle.
- Paul me contou que sua butique vai muito bem - disse Charles, mudando de assunto
- Oh, sim.
Charles Anderson tinha muita simpatia e era comum as pessoas acabarem falando de si próprias. Crivou Adèle de perguntas, a que ela respondeu com boa vontade, encantada
por ele mostrar tanto interesse.
O olhar de Catherine encontrou o de Paul e seu coração vibrou. Teria que se controlar mais no futuro, decidiu. Ele parecia muito à vontade, ali sentado na poltrona
de couro, ao lado da lareira, bebendo seu conhaque. Entretanto, apesar da calma exterior, Catherine sentia uma tensão em seu olhar.
Seus olhares se cruzaram outra vez, e dessa vez ele sorriu e ergueu ligeiramente o copo, numa saudação muda. Catherine retribuiu o sorriso, e depois, vendo que
ele continuava a olhar para ela, corou e procurou prestar atenção à conversa do pai e Adèle.
Engolindo o resto da bebida, Paul teve um gesto de impaciência. Que beleza estava Catherine, sentada ali, muito ereta, os reflexos do fogo em seus cabelos avermelhados!
As mãos, segurando o copo apoiado no colo, eram finas e delicadas, com as unhas, de um rosa suave. Como eram macias! Lembrou-se de quando as segurava para levá-las
aos lábios. E que perfume suave, tão feminino, tão envolvente, emanava daquele corpo jovem e fresco!
Libertou-se daquele devaneio, levantando-se bruscamente. - Vamos, já está na hora do jantar - disse, fazendo com que Catherine lhe desse o braço.
Apesar de viverem sob o mesmo teto, Catherine raramente ficava sozinha com Paul. Durante o dia, ela e o pai faziam longos passeios num carro alugado; Charles não
aceitara a oferta de Paul para ficar com o carro dele. Passavam as noites juntos, ou conversando sobre o que tinham visto, ou pedindo sugestões a Paul sobre o passeio
do dia seguinte.
Só duas semanas depois da chegada ao Château de Bonhem-, Catherine e Paul tiveram alguns momentos a sós: Charles tinha ido se deitar logo após o jantar, e Adèle
precisou sair para estudar com sua costureira-chefe as novas coleções de primavera.
Paul colocou um disco, e, durante algum tempo, os dois ficaram escutando em silêncio os agradáveis acordes do Humoresque, de Dvorak. Era repousante ficar ali sentada,
ouvindo a bela melodia, embora estivesse muito consciente da proximidade dele. Era incrível o magnetismo que exercia sobre ela! O desejo de fugir e o de ficar eram
igualmente fortes, e Catherine sentia-se como numa armadilha.
- Está muito calada, chérie - comentou Paul, quando o disco terminou. - Gostou da música que escolhi?
- Oh, sim! Gostei muito. Você também gosta dos clássicos?
Ele encolheu os ombros e acendeu um cigarro, esticando as pernas compridas em direção ao fogo da lareira.
- Depende de meu estado de espírito. Mas devo lhe confessar, chérie, que não aprecio muito isso que chamam de música moderna.
Catherine sorriu.
- Posso entender. Algumas delas são mesmo terríveis!
"Será que sou eu falando?", pensou. A moça que costumava adorar música pop e que não perdia festas? E que, quanto mais animada e barulhenta a festa, melhor para
ela?
- Parece preocupada, chérie. Está pensando em algo desagradável, talvez?
- Não - respondeu, hesitante. Seria impossível explicar a Paul o quanto havia mudado por causa dele.
- Viu tudo que queria ver de meu país durante essas duas semanas?
- Vi muita coisa. Só sinto não ter tempo para conhecer o sul da França.
- E por que não? - perguntou ele, subitamente alerta. - Não está pensando em voltar para a África do Sul, está?
- Estamos pensando em partir nos próximos dias. Assim, parece que o sul da França não será explorado pelos Anderson - completou com um sorriso, tentando disfarçar
a dor que sentia.
- Poderia ir até a Cote d'Azur, chérie. Quem sabe?
- Quem sabe...?
Houve algum tempo de silêncio, cada um mergulhado em pensamentos. Foi Paul quem falou primeiro:
- Devo partir para Grasse amanhã de manhã. Um colega meu quer que eu examine um paciente dele. - Inclinou-se para a frente, e havia uma entonação desesperada em
sua voz, que Catherine nunca tinha ouvi do antes, ao continuar: - Não ficarei fora mais de três dias. Prometa, chérie, que não partirão até eu voltar. Prometa, ma
três chère.
Outra vez! Ma três chère. Por que ele a chamava assim? Será que devia perguntar a Adèle?
- Então? - Paul insistiu, visivelmente impaciente.
- Prometo, Paul: não partiremos até você voltar.
Charles Anderson concordou prontamente com a filha para adiarem a partida até a volta de Paul. Mais uma vez, a separação se aproximava, e agora Catherine sabia
que não agüentaria a dor.
Durante a ausência de Paul, ela sentiu uma saudade louca. Tentou fingir que ele estava na clínica e que à noite voltaria, mas essa farsa só durava até a hora do
jantar, quando então a realidade não podia mais ser negada. .
Na segunda noite, Catherine foi dar um passeio pelo jardim. A volta dele era uma questão de horas, e sentia-se como uma criança na véspera de uma festa. O vento
gelado fustigava seu rosto e, pela primeira vez, lembrou-se de David Marsden, que estava à sua espera na Cidade do Cabo. Ela lhe enviara alguns cartões-postais,
mas não teve disposição para escrever uma carta. As novidades podiam esperar.
David a amava e queria casar com ela, mas... seus pensamentos voltavam para Paul. Seria tão mais difícil dizer adeus pela segunda vez, e mais difícil ainda esquecer.
Seu amor era inútil, mas era eterno. Eterno! Sentiu lágrimas escorrerem pelo rosto, e as secou, antes de voltar para a casa.
No pátio, parou um instante e olhou, nostálgica, para o caminho que subia da estrada. Ah, que bom se já fosse o dia seguinte e visse o carro dele subindo pela
alameda!
Suspirou e virou-se, ficando imediatamente imóvel. À sua frente estava Paul; os braços estendidos, um sorriso nos lábios. Sem hesitação, ela correu para ele e
enterrou o rosto contra o peito largo.
- Paul! Paul! Quando chegou? Como não escutei seu carro?
- Cheguei há poucos minutos - respondeu ele, sorrindo, afastando-a um pouco para olhar para ela. - Deixei o carro do lado de fora e vim andando. Foi por isso que
não me escutou. Não foi uma bela surpresa, chérie?
- Foi sim. Paul! Nós só esperávamos você anuuihã de manhã.
- Dei um jeito de voltar antes e... aqui estou.
Catherine libertou-se dos braços dele, levemente embaraçada. O
que Paul pensaria de seu comportamento?
- Venha, chérie. Vamos até a biblioteca. Trouxe um presente para você e quero ver se gosta.
- Oh, não. Paul! - exclamou, tímida, mas ele não se importou com seus protestos, e os dois entraram na casa.
Só tinha estado na biblioteca de Paul uma vez, no dia em que chegara. Mais uma vez, ela se impressionou com o bom gosto da decoração e com a grande quantidade
de livros, alinhados nas prateleiras. Ele era evidentemente um amante de poesia, pois ela viu Livros de Keats e Milton.
Paul tirou da maleta um pequeno pacote, luxuosamente feito.
- Para você, chérie.
Por um instante, Cathy não o abriu. Mas, sentindo a ansiedade de Paul, tirou a fita e rasgou o papel, e logo tinha nas mãos um frasco de perfume. Tirou a tampa
e sentiu a fragrância delicada.
- Não devia ter feito isso! Mas foi maravilhoso que tivesse se lembrado de mim!
- Grasse é conhecida por seus perfumes - explicou ele. E depois, levemente inseguro: - Gostou, mesmo?
- Se gostei? Adorei! - Uma sombra de tristeza passou por seus olhos. - Cada vez que eu o usar, me lembrarei de você. Muito obrigada. Paul.
- Vai partir logo? - perguntou ele, olhando-a intensamente.
- Sim. - Colocou o perfume em cima da mesa e foi até a janela. - Reservamos passagem para Londres para depois de amanhã.
Os castanheiros da alameda pareciam gigantes ondulando ao vento. A serenidade da casa de Paul e a magnificência dos jardins eram coisas de que jamais se esqueceria.
Ao longe cintilavam as luzes de
Paris, e Catherine tinha certeza de que ninguém podia visitar a bela e vibrante cidade sem se apaixonar por ela.
Mas, quando Paul segurou sua cintura, ela não viu mais nada. Sentiu o corpo inteiro pulsar e teve a impressão de que se derreteria com o calor daquelas mãos.
- Mon coeur - sussurrou ele, angustiado. - Não posso deixar que vá!
Ela se virou, os olhos muito abertos, implorantes. No instante seguinte, sentiu-se esmagada contra ele e sufocada por um beijo ardente e apaixonado que parecia
reclamar sua alma.
Ele a beijou outra vez, e mais outra, e outra, murmurando palavras que ela não entendia, mas que, mesmo assim, revelavam paixão. Nunca, em nenhum momento, Catherine
desconfiara dessa paixão que agora explodia em carícias, como se ele quisesse senti-la toda para guardá-la na memória.
Com os braços envolvendo o pescoço dele, ela se entregou, vibrando, beijando-o também, até pensar que não poderiam mais parar.
Mas, de repente. Paul afastou-a, e tão inesperadamente que teve que se encostar na parede para não cair.
- Desculpe, chérie. Perdão! Eu não tinha esse direito, nenhum direito! - Passou a mão pelo rosto e se afastou dela, mas não antes que Catherine visse o brilho
atormentado nos olhos expressivos e um ríctus de desespero na boca sensual, que a beijara tão apaixonadamente, segundos antes.
Zonza, ela não conseguiu se mover por alguns instantes. Depois, correu para ele e agarrou seu braço, obrigando-o a olhar para ela.
- Paul! O que aconteceu? Como pode dizer que não devia ter me beijado?
- Porque não devia mesmo, chérie - insistiu, teimoso, com uma calma que a enfureceu.
Desnorteada pelo comportamento estranho de Paul, ela esqueceu o orgulho, não se preocupando em escolher as palavras.
- Se está me pedindo que acredite que tem o hábito de andar por aí, beijando toda mulher que encontra, e que logo se arrepende - gritou, os olhos cheios de lágrimas
-, saiba que não acredito!
- Catherine, você está muito nervosa e abalada. Afinal, o que é um beijo?
- Mas não foi só "um beijo"! Você me beijou como se... como se gostasse de mim, e certamente percebeu, pela maneira como retribuí, que eu... eu...
- Chérie - interrompeu, determinado a pôr um fim àquela discussão -, você é muito jovem e muito impressionável. Se outro homem a tivesse beijado como a beijei
agora há pouco, reagiria da mesma maneira.
- Tolice! - protestou, os olhos ainda cheios de lágrimas, mas reunindo todas as forças para manter o autocontrole. Sabia que estava lutando por sua felicidade.
- Não seja tão descrente! Não queira desprezar o amor que tenho para lhe dar. Sim, eu o amo. Sem dúvida, acha que estou sendo inconseqüente, talvez atrevida, mas
o tempo está se esgotando, e acho que pelo menos desta vez temos que ser francos.
A luz que brilhava nos olhos dela o encantava, mas ele se enfureceu ainda mais, para enfrentá-la. Conheciam-se muito superficialmente. Como podia ter certeza do
amor dela? Precisavam de mais tempo, pensou. Quem sabe, a solução seria seguir com ela para a África do Sul. Lá, pelo menos, não precisava dividir seu tempo entre
Catherine e a clínica.
- Você não me ama, Cathy - disse, com a voz perfeitamente controlada, fria e tensa. - O que sente por mim é admiração e gratidão. Está grata pelo que fiz por você.
Percebi isso logo depois da operação, ainda na Cidade do Cabo. Embora eu goste disso, quero muito mais de minha esposa do que gratidão.
Catherine vacilou; via agora que seria quase impossível provar alguma coisa a ele. Entretanto, havia ainda uma pergunta por fazer.
- Você me ama. Paul?
- Bon Dieu! Não tem o direito de perguntar isso!
- Acho que tenho, meu amor - respondeu ela, o coração disparado. - Se a resposta for "não", então não falaremos mais no assunto. Voltarei para casa dentro de dois
dias, e nunca mais nos veremos.
Paul olhou-a por um instante. Nos olhos límpidos brilhava uma luz. Seria amor? Seria seu medo completamente sem fundamento? Ela logo
partiria e talvez nunca mais a visse. Será que teria forças para suportar a separação definitiva?
Continuou impenetrável, e Catherine se afastou. Tinha lutado e perdido, e seu coração sangrava de dor. Quando chegou à porta, ele barrou seu caminho.
- Realmente me ama, chérie?
- Sim.
- Não é só gratidão?
- Não, não! Mil vezes não!
- Adorada! - Sem saber como, estava outra vez nos braços dele, e seus lábios se entreabriram. - Sou louco por você, Cathy!
- Paul? Por que sempre me chamava de ma três chère? Ele riu e beijou-a novamente, antes de responder:
- Quer dizer que é meu amor, minha querida, minha vida.
- Quando descobriu que me amava?
- No exato momento em que você abriu os olhos naquela cama de hospital. Eles me fascinaram.
- Não consigo acreditar que você me ama mesmo.
Então, ele tirou do bolso interno do paletó um lenço que ela reconheceu logo. Era o mesmo que tinha pedido para guardar como recordação.
- Acha que eu carregaria isso sempre comigo, se não a amasse?
- Oh, Paul!
- E você, mignone? Quando soube?
- Acho que tive certeza naquele dia em que você chegou ao meu quarto no instante em que Ronnie estava me atormentando. Por que perdeu tanto tempo, meu amor?
- Não perderemos mais tempo, minha querida. Agora mesmo, vou pedir permissão a seu pai para nos casarmos o mais depressa possível. - Olhou-a, sério, e depois acariciou
os fartos cabelos cor de cobre. - Vai ficar muito triste, se não se casar em seu país?
- Querido! Não importa onde vou casar; a única coisa que quero é ficar sempre ao seu lado.
Palavras insensatas, pois o futuro é sempre um mistério que vai se revelando dia a dia.

CAPÍTULO VI

Charles Anderson mais uma vez adiou a partida, em vista do casamento da filha. Não foi nenhuma surpresa para ele, pois há algum tempo suspeitava de que Paul de
Meillon tinha conquistado o coração de Cathy. Durante as poucas semanas que tinham passado no Château de Bonheur, Charles tinha tido a oportunidade de conhecer melhor
o futuro genro e gostara muito.
Catherine e Paul casaram discretamente, alguns dias depois. Charles, Adèle e um casal amigo de Paul foram as testemunhas. O sol surgiu, no meio das nuvens, como
uma bênção silenciosa, quando saíam da igreja. Foram para a casa do noivo, onde havia um almoço preparado para comemorar o acontecimento. Adèle ficara radiante por
poder arranjar em sua butique um belo vestido de noiva para a cunhada, e mais encantada ainda com a esposa escolhida pelo irmão, que ela aprovava de todo o coração.
Foi com emoções conflitantes que Catherine se despediu do pai, naquele mesmo dia, um pouco mais tarde. Embora chorosa com a partida dele, ainda estava assustada,
ao pensar que tinha conseguido afinal ser a esposa de Paul de Meillon. Na mão esquerda, a pesada aliança brilhava. Era inacreditável que só há poucos dias ele a
tivesse pedido em casamento. A pressa com que providenciaram tudo não deixou a nenhum dos dois tempo para sentir alguma dúvida.
Quando o avião de Charles Anderson sumiu no céu, saíram do aeroporto e viajaram para o sul, para a lua-de-mel. Estavam finalmente casados e não haveria mais separações,
pensava Catherine, admirando o belo anel e pensando na felicidade que a esperava.
Alguns quilômetros fora de Paris, Paul parou o carro e tirou a gravata e o casaco. Quando sentou outra vez ao volante, inclinou-se para a esposa e beijou-a longamente.
- Finalmente, sozinhos! Os últimos dias foram exaustivos para nós dois, mon coeur. Agora, vamos poder descansar e aproveitar a companhia um do outro.
- Que maravilha!
- Não está arrependida, querida?
- Não, a não ser que você se tome um tirano malvado - provocou, os olhos brilhando.
- Vou chicotear você todos os dias - ameaçou ele, no mesmo tom. - E, se não me obedecer, vou acorrentar você nos calabouços do Château de Bonheur. Tome cuidado!
- Você me deixa morta de medo! Terei medo de você pelo resto de meus dias.
- Devia, mesmo.
Como era gostoso falar tolices de vez em quando; provocar e ser provocada; amar e ser amada! Esse era o Paul que ela ainda não conhecia bem e que esperava ardentemente
conhecer.
- Eu te amo, Catherine - murmurou Paul, roçando os lábios pelo rosto dela. - Mas se não te largar agora e voltar a guiar, vou acabar amando você aqui mesmo, e
nossa chegada a Cannes será adiada.
Catherine corou e Paul sorriu, feliz, dando um beijo na ponta do nariz dela.
A Cote d'Azur era tudo o que Paul tinha dito e mais ainda! De um colorido rico e quente, mais parecia um quadro. A villa dele ficava no alto de uma colina e dava
para uma praia estreita, onde todos os dias tomavam banho no mar azul e depois se secavam na areia dourada.
- Uma pessoa não pode vir a Cannes e não conhecer um dos cassinos - disse Paul, uma noite. Assim, Catherine conheceu os lugares onde verdadeiras fortunas eram
jogadas e perdidas diariamente. Paul ficou ao lado dela, observando-a jogar na roleta. Teve tanta sorte que dobrou seu dinheiro, rapidamente.
- Sorte de principiante - brincou ela, quando um dos empregados do cassino a encorajou a continuar.
- Mas terá sorte outra vez - o homem insistiu, segurando seu braço. - Uma dama tão bela não pode perder.
Nesse instante, Paul falou, a voz dura e fria: - Acho que minha mulher já jogou bastante, monsieur. Catherine sorriu para ele, enquanto o homem encolhia os ombros
e se afastava.
- Acho que já vimos o bastante por esta noite, mon amour. Provou sua sorte na roleta e provou também que tem um encanto fatal.
- Não seja bobo! Não fui eu que encantei aquele homem, mas o dinheiro que ganhei.
- Não vamos discutir por isso, ma petite - disse ele, enquanto a envolvia no enorme xale. - Acho que já é tempo de levar minha mulher para casa, antes que seja
roubada bem debaixo do meu nariz.
- Paul de Meillon, você é um louco e um encanto.
- Quando chegarmos à villa, quero que repita isso. E se esforce para que seus olhos brilhem de amor, porque não gosto de ser chamado de louco e de encanto ao mesmo
tempo.
- Pretende me chicotear, meu adorado marido? - perguntou ela.
- Vai depender inteiramente de você, mon amour.
Quando chegaram, ela repetiu aquelas palavras, e logo foi envolvida pelos braços dele e carregada escada acima até o quarto, onde o riso se transformou em juras
de amor.
Ficaram na Cote d'Azur tempo bastante para assistirem ao carnaval de Nice, que, como Paul explicou pacientemente, acontecia todos os anos, em fevereiro. Catherine
não esperava uma festa tão imponente. Havia arranjos de flores estupendos, fogos de artifício de uma beleza de tirar o fôlego, música, um desfile de carros alegóricos
e enormes figuras de papier-mâché.
Paul, que já assistira à festa muitas vezes, observava, encantado, as reações de Catherine, caçoando de sua alegria quase infantil.
- Você parece uma criança que saiu para fazer um piquenique no domingo - disse ele, rindo.
- Sinto muito, Paul, que você ache tudo isso aborrecido, mas para mim é muito excitante.
A animação aumentou no meio da multidão, quando mais alguns carros desfilaram, e Catherine percebeu que estava sendo arrastada pela multidão para longe de Paul.
- Aqui! - gritou ele, segurando a mão dela com força. - É melhor se agarrar a mim, chérie, ou vamos acabar nos separando. Depois vai ser praticamente impossível
nos acharmos outra vez, no meio dessa confusão.
Abriram caminho e chegaram a um barzinho onde se sentaram sob um toldo. Paul pediu dois refrescos, e dali apreciaram confortavelmente o desfile.
- Divertiu-se, mon coeur? Ainda não está arrependida de ter casado comigo e deixado seu pai voltar sozinho?
Catherine olhou para ele, o sorriso sendo substituído por uma expressão doce.
- Não me arrependi nem um só instante, meu amor. Amo você, Paul, mais do que pensei que pudesse amar alguém.
Nenhum homem resiste a uma declaração dessas, e Paul era humano. Segurou a cabeça dela e fez com que ficasse mais perto; depois, beijou os lábios com paixão.
- Tome seu refresco, querida. Ainda quero mostrar muita coisa a você. O dia está lindo. Assim, podemos fazer calmamente a viagem de volta, para você apreciar o
Mediterrâneo.
Foi realmente uma viagem encantadora. Paravam de tempos em tempos, para que ela admirasse a bela vista. À esquerda estava o mar, brilhando, muito azul, ao sol.
À direita, o verde profundo e aveludado da vegetação: laranjeiras, eucaliptos, mimosas em flor como um buquê de noiva. E, à frente, as rochas avermelhadas do Esterel,
contrastando com o céu sem nuvens.
- Oh, Paul! Mas como tudo isso é lindo! Algum dia, voltaremos, não é?
- Minha villa estará sempre a seu dispor. E os criados estão sempre preparados para minha chegada imprevista.
- Você fala tanto que meu país é lindo - comentou ele, naquela mesma noite, enquanto admiravam a Lua pratear o mar -, mas o seu também me encantou.
- Existe uma beleza clássica na Europa que me fascina - disse ela, arrumando o jarro cheio de mimosas que Paul havia colhido para ela durante a viagem de volta.
- É completamente diferente da beleza ainda rude de meu país e não pode ser comparada. A gente se acostuma com o que vê sempre e não entende quando os outros mostram
entusiasmo. Só quando vemos tudo novamente, através dos olhos de um estranho, reparamos nas montanhas majestosas, nos vales verdes, nos vinhedos, nas velhas fazendas.
Mesmo a terra plana de minha região tem sua beleza própria.
- Quero que saiba que nunca impedirei que visite seu pai quando sentir saudade. É só me dizer quando quer partir, e providenciarei tudo para que vá.
Ela olhou para ele e sorriu com ternura.
- Meu lugar é a seu lado. Paul, e não tenho nenhuma intenção de ficar pulando daqui para a África do Sul e vice-versa, sem mais nem menos.
- Mon amour! - Abraçou-a com paixão. - Não mereço um amor como o seu!
Catherine levantou o rosto para ele e estremeceu de prazer, como fazia sempre que a beijava. As mãos dele a acariciavam, deixando um rasto de fogo onde a tocavam,
o que a assustava um pouco.
- Paul, amo você tanto! Tanto!
Com uma exclamação abafada, ele a suspendeu nos braços. Aquelas duas semanas passariam como um relâmpago e ficariam na memória de ambos como se fossem um sonho.
- Está muito quieta, Cathy - comentou Paul, quando viajavam perto das colinas de Grasse, no dia seguinte. O ar era intensamente perfumado com o aroma dos lírios,
cravos, mimosas. - Está contente de voltar a Paris comigo?
Tinha percebido o silêncio dela logo depois de deixarem Cannes e aquilo o perturbava. Sensível a qualquer mudança de humor da esposa, envolvido na teia do medo
que tinha de perdê-la, também ficou em silêncio, até que a angústia o obrigou a falar.
- Não consigo me livrar da terrível sensação de que nossa felicidade é como uma bolha de sabão que pode estourar a qualquer momento - respondeu ela, ainda preocupada.
Paul parou o carro no alto de uma colina, de onde podiam apreciar o vale. Estava sério, quando a encarou.
- Arrependida de nosso casamento?
Catherine estremeceu involuntariamente. Paul insistira nessa pergunta, durante as duas semanas de casamento. Será que a incerteza que sentia quanto ao amor dela
podia ser a causa desse temor mórbido que a perturbava?
O medo em seu coração estava claramente visível nos olhos cinzentos, quando ela segurou o rosto dele.
- Paul, meu querido, eu amo você. Por favor, nunca se esqueça disso, não importa o que aconteça entre nós.
Ele percebeu sua angustia. Que tolo era, por duvidar do amor dela! De sua sinceridade. Será que Cathy não havia lhe dado provas suficientes, durante aquelas duas
maravilhosas semanas em Cannes?
Nos minutos seguintes, eles se esqueceram da bela paisagem que os cercava e, nos braços um do outro, renovaram seu imenso amor.
Adèle os recebeu alegremente, e até Greta, a governanta, saiu da cozinha para demonstrar seu contentamento com a volta de monsieur le docteur e madame.
O Château de Bonheur tinha sofrido uma pequena mudança durante a ausência deles. Seguindo as instruções de Paul, o quarto principal, que não era ocupado há muitos
anos, tinha sido reaberto e todo redecorado em vários tons de rosa.
A magnífica cama de colunas de madeira entalhada, com seu dossel de rendas, pertencia à família de Meillon há várias gerações. Paul contou. Catherine olhou tudo
aquilo, fascinada. Ao lado do dormitório havia uma saleta, que podia ser usada como quarto de vestir. Havia ainda um diva, uma cômoda e uma poltrona.
- Gosta, mon coeur?
- Mandou fazer tudo isso para mim?
- Mas é claro.
- Paul! - Atirou-se no pescoço dele e beijou-o. - É absolutamente lindo e eu te adoro por isso!
Adèle estava ao lado, assistindo àquela demonstração de afeição com uma expressão pensativa. Mas o irmão e a esposa não notaram nada, pois estavam ocupados demais
um com o outro.
Para afastar a solidão quando Paul ia trabalhar, Catherine passava a maior parte do tempo ao ar livre, no jardim, ou supervisionando o jantar. Mas isso não era
necessário, pois Greta era muito bem treinada, assim como o resto dos empregados.
Chegou uma carta de seu pai. Tinha feito uma ótima viagem de volta à África do Sul e sentia muita saudade dela. Mas ficava consolado, sabendo que estava protegida
por Paul e que seria muito bem cuidada. No fim da carta havia um recado de Sarah, desejando toda a felicidade aos dois, e também que fossem abençoados com muitos
filhos.
Catherine achou graça. Era típico dos negros acharem que os filhos uniam o casal e completavam sua felicidade.
Havia ainda uma carta de David Marsden dirigida a ambos.
"Meus queridos amigos," escrevia ele, "não foi surpresa para mim o casamento de vocês. Sempre soube que seu coração pertencia a Paul, Cathy, mas tolamente esperei
que o esquecesse. Talvez eu nunca devesse ter permitido que você fizesse essa viagem, pois, no dia em que partiu, soube que a tinha perdido.
"Paul, meu amigo, o melhor ganhou. Desejo sinceramente a maior felicidade a ambos. Tome conta de Cathy, pois gosto muito dela. Senão, terá que enfrentar David
Marsden em pessoa."
Paul se divertiu, quando leu esse trecho, porque David era um pouco mais baixo e mais franzino do que ele.
"Espero, no futuro, me encontrar com vocês, ou em alguma viagem minha à Europa, ou nas que fizerem à África do Sul. Um abraço, David."
Paul jogou a carta no colo de Catherine e abraçou-a.
- Voltaremos sempre a seu país, mon coeur. Não quero separar você de seu pai e ainda quero conhecer melhor a Cidade do Cabo.
Catherine sorriu e aconchegou-se mais a ele.
- Acho que já é tempo de meus colegas serem apresentados à minha linda esposa - comentou Paul. - Convidarei alguns para jantar na sexta-feira, se acha que está
bem.
- Mas claro que sim - respondeu ela, prontamente, apesar de sentir um frio no estômago. - Quantas pessoas está pensando em convidar?
- Estou pensando em falar com os Dunbury, que você já conheceu no nosso casamento, e os Chilton. Os dois casais são ingleses, assim, você não terá problemas com
o francês. - Paul ficou pensativo, antes de continuar: - Talvez eu convide também Félix de Clergé. É nosso patologista.
Catherine engoliu em seco, e mais uma vez garantiu a ele que tudo daria certo. Afinal de contas, Greta era uma excelente cozinheira e cobriria suas falhas.
A noite do jantar chegou depressa. Catherine estava muito nervosa, pois era a primeira vez que recebia os amigos de Paul, e tudo devia estar perfeito. Adèle caçoava
de seu nervosismo, mas ajudou em tudo que pôde.
Greta trabalhava no Château de Bonheur desde que Adèle era criança.. Durante esse tempo. Paul entregava inteiramente em suas mãos a tarefa de preparar as reuniões,
sempre que tinha convidados, e nunca se desapontara.
- Madame não precisa se preocupar - disse ela a Catherine, naquela manhã. - Tudo sairá como deseja.
- Sinto muito, Greta, não duvido nem por um segundo de sua capacidade.
- Compreendo. Madame está nervosa.
Paul não quis um jantar americano, e assim a imponente sala de jantar, com sua longa mesa, tinha sido preparada.
- Tem certeza de que não me esqueci de nada, Adèle? - perguntou Catherine, muito agitada, examinando a mesa lindamente decorada, com a toalha de linho, as pratas,
os cristais, as porcelanas.
- Mas claro que não! Tudo está indo maravilhosamente bem. Màgnifique!
- Mas, e o jantar?
- Chérie, você deu as ordens a Greta, não deu?
- Dei, sim, mas...
- Então, pare de se preocupar com tudo - aconselhou Adèle,
dando-lhe um abraço confortador. - Venha. Paul vai chegar logo e ainda nem começamos a nos arrumar. - Olhou para Catherine, curiosa. - O que vai vestir?
- Pensei no vestido azul - respondeu, novamente traindo sua hesitação. - É simples, confortável e do comprimento certo.
Adèle ficou pensativa.
- Oui, acho que é a escolha certa. Acentua sua elegância e dá a você um ar... etéreo.
- Céus! - Catherine riu. - Não sei se gosto da idéia de parecer etérea!
- Angelical, então - corrigiu a outra, rindo também. - Vai parecer um anjo, e todos a acharão linda.
- Ah, querida, não acredito que Paul goste disso - Catherine brincou, e as duas se separaram.
Paul chegou um pouco depois, quando ela se penteava. Ainda com a mão na maçaneta, ele parou e a olhou por alguns instantes. Encontrando seu olhar pelo espelho,
Catherine sentiu o coração dispa]-ar. Ainda não se acostumara ao ardor apaixonado do olhar do marido. A felicidade que ambos compartilhavam era muito recente; muito
inacreditável. E, nos momentos de mais intensa felicidade, era assaltada pelo temor de tudo escapar por entre seus dedos.
Paul riu dela, quando falou a ele desse medo, numa noite em que estava em seus braços, a cabeça apoiada no peito forte. Embora tivesse tentado afastar essas dúvidas,
elas voltavam sempre.
Agora, quando Paul se aproximou, o terrível pressentimento a invadiu outra vez. Será que eles se sentiriam sempre assim um com o outro? Será que o amor dela seria
bastante forte para convencer Paul de que seu casamento não tinha sido um erro?
Ele a tomou nos braços e todos esses pensamentos foram afastados, pela paixão do beijo intenso e prolongado.
- Nossos convidados vão chegar logo - ela balbuciou, entre os beijos.
- Ah, sim, os convidados - disse ele, soltando-a. - Não está nervosa, está? - perguntou, algum tempo depois, enquanto dava o nó na gravata e ela acabava de se
pintar.
- Um pouquinho. Mas sempre fico, quando tenho que conhecer gente nova.
- Mas não há necessidade. Os Dunbury são pessoas ótimas, como já sabe, e também os Chilton. Félix de Clergé é um pouco... bem, falaremos sobre ele depois.
- Agora você me deixou curiosa.
Mas Paul continuou teimosamente calado e, levantando o queixo dela com um dedo, deu-lhe um beijo de leve.
- Está na hora de descermos para esperar nossos convidados. - Abriu a porta, afastando-se para deixá-la passar.
Conhecer os amigos de Paul não foi um sofrimento tão grande como Catherine imaginara, e, depois de tomarem um cálice de xerez, o jantar foi servido.
Durante o jantar, ela foi se sentindo cada vez mais à vontade. Observando como todos pareciam satisfeitos, percebeu que tinha se preocupado sem necessidade. Como
no dia do casamento, achou o dr. Dunbury agradável e sereno, enquanto a esposa, Susan, era tímida e sincera, e Catherine simpatizou imediatamente com ela. Por outro
lado, os Chilton eram conversadores e barulhentos. Eileen Chilton, sentada à direita de Catherine, mantinha a conversa sempre movimentada, com seus comentários espirituosos,
fazendo com que todos rissem. Apesar da aparência descontraída da mulher, Cathy sentiu por ela uma imediata desconfiança. Tinha que tomar cuidado com Eileen Chilton.
Adèle, sentada à frente de Félix de Clergé, parecia incapaz de se concentrar na conversa. Seu olhar estava constantemente sobre o belo rapaz, e os olhos dele também
procuravam sempre os dela e pareciam sorrir discretamente.
Se havia alguma coisa entre aqueles dois, pensou Catherine, então Paul, sentado à cabeceira da mesa, parecia completamente alheio ao fato. Ao mesmo tempo, ficou
surpresa por Adèle não ter comentado nada, quando soubera que Félix estava entre os convidados. Será que estava tão mergulhada na própria felicidade que não via
mais nada à sua volta?
Mas Eileen Chilton fez um comentário para Catherine, e por algum tempo ela se esqueceu do comportamento estranho de Adèle e Félix.
- Deve se sentir muito só neste casarão, quando Paul está na clínica - disse ela. - Já fez alguns amigos?
- Não me sinto particularmente sozinha - respondeu, com cuidado. - Passo muito tempo no jardim e leio bastante.
- E sai também?
- Vou à cidade quando preciso comprar alguma coisa. Eileen gesticulou, agitando a mão cheia de anéis.
- Precisa ir à nossa casa, qualquer dia desses.
- Muito obrigada. - Mas, intimamente, resolveu que aquele era um convite que não pretendia aceitar.
- Então, nasceu na África do Sul? - perguntou Susan Dunbury.
- Nasci - disse Catherine, aliviada por poder encerrar a conversa com Eileen.
- Meu irmão é engenheiro civil em Johannesburg - continuou Susan. - Não acredito que...
- Catherine vem da Cidade do Cabo - interrompeu Paul. - Tenho certeza de que não conhece muita gente em Johannesburg.
- Cidade do Cabo? - perguntou Eileen, surpresa. - Vocês se conheceram lá?
Cathy olhou para o marido e percebeu que ele estava tenso. Não parecia satisfeito com o rumo da conversa.
- Sim, nós nos conhecemos na Cidade do Cabo - respondeu, com uma ponta de apreensão.
- Não sabia que também tinha feito conferências na Cidade do Cabo, Paul - disse a mulher, olhando para ele.
- E não fiz. Fui até lá visitar um velho colega de faculdade e ele me apresentou a Catherine. - Colocou o guardanapo na mesa e se levantou. - Vamos voltar ao salão
e tomar o café?
Todos concordaram e a conversa tomou outro rumo.
Por que Paul ficara tão agitado? Catherine pensava, enquanto servia o café, momentos depois. Por que tinha receio de mencionar que ela havia sido sua paciente?
Será que ainda não estava convencido do profundo amor que sentia por ela?
Susan sentou-se ao lado dela no sofá.
- Sempre digo as coisas erradas nos momentos errados - comentou, baixinho.
Catherine sorriu para ela, amavelmente. Aquela mulher morena e elegante, com traços delicados como os de uma porcelana de Dresden e gênio tão tranqüilo, era uma
amiga em potencial, muito mais do que a agitada Eileen Chilton, que naquele instante dava uma gargalhada depois de contar alguma piada.
- Você não disse nada que mereça um pedido de desculpas, Susan. Não há nenhum segredo na maneira como Paul e eu nos conhecemos. Talvez algum dia eu lhe diga, e
então julgará por si mesma.
Satisfeita, a outra se acalmou e acabou de tomar o café.
O resto da noite passou agradavelmente para Cathy. Num certo momento, Félix se aproximou dela e lhe ofereceu um pouco de vinho, que ela recusou. Ele então perguntou
se a vida na França era muito diferente da que levava em seu país.
- Não, de jeito nenhum.
- Paris se ilumina à noite, para os turistas.
- Talvez - respondeu ela, sorrindo. - Mas, em meu país, o turista não precisa esperar a noite para se divertir.
- Você é uma sul-africana apaixonada?
- É o lugar onde eu nasci, monsieur de Clergé. É muito natural, não acha?
- Meu comentário não significava um insulto, madame. Peço que me desculpe - disse ele, inclinando-se ligeiramente.
Catherine riu.
- Não precisa se desculpar, monsieur. Gostaria imensamente de lhe falar sobre meu país, algum dia.
Félix de Clergé tinha um encanto muito especial, e Catherine estava certa de que muitas mulheres o consideravam extremamente atraente. Ele fez mais algumas perguntas,
a que ela respondeu com simplicidade, mas de repente percebeu que estavam sendo vigiados pelos outros. Félix também notou isso e voltou à sua poltrona, ficando algum
tempo com os olhos fixos no tapete. Catherine não compreendia por que todos tinham ficado tão interessados na rápida conversa dos dois.
Um pouco irritada virou-se para Susan Dunbury, disposta a esquecer aquele incidente intrigante.
Os Dunbury foram os primeiros a sair; depois os Chilton e Félix. Adèle ajudou a levar os copos e os cinzeiros sujos para a cozinha, antes de ir apressadamente
para o quarto. Quando Catherine voltou finalmente à sala, encontrou Paul fumando um último cigarro.
Ele estava pensativo,. olhando as brasas da lareira. Os acontecimentos daquela noite voltaram imediatamente à cabeça de Catherine. Embora desejasse fazer algumas
perguntas, sabia instintivamente que não era nem a hora nem o lugar.
- O dr. de Clergé vem aqui muitas vezes?
- Raramente, quando temos necessidade de discutir algum teste de laboratório.
- Ele parece muito amável.
- Sim, se você aprecia esse tipo de charme - respondeu Paul, irritado, atirando o cigarro na lareira e olhando para ela com desconfiança.
- Bem, isso não me interessa muito. Só me interesso por um certo homem chamado Paul de Meillon, e ele tem todo o charme necessário.
Paul abraçou-a pela cintura e puxou-a para mais perto, enquanto com a outra mão a fazia erguer o rosto para ele. Havia uma angústia em seus olhos que a surpreendeu.
- Você me ama, Catherine?
Outra vez! Aquela pergunta estava se tomando uma obsessão. A insegurança dele começava a contagiá-la, e novamente aquele medo de que sua felicidade terminasse
a fez estremecer.
- Por que duvida tanto de mim?
Paul a soltou, de repente. Depois de algumas semanas adormecido, o demônio da dúvida reaparecia, como uma serpente destilando veneno.
- Não pode negar que achou Félix atraente.
- Mas é claro que ele é muito atraente. Uma mulher precisaria ser cega para não perceber. Ele é encantador, atencioso... extremamente francês. Tenho certeza de
que as mulheres o acham irresistível, embora eu não acredite que um homem como ele me atrairia particularmente.
- É conhecido pelos casos que tem. Um dom-juan! - Paul acendeu outro cigarro e começou a andar pela sala. - Já teve tantas mulheres que perdeu a conta. Não pode
deixar uma bela mulher em paz, aparentemente, elas não conseguem resistir. Você é linda, Catherine. E muito atraente. Do que estava conversando tão animados?
Era uma cena de ciúme? Ou mera curiosidade?
- Não conversamos sobre nada em particular. Ele me perguntou se eu gostava de Paris e se sentia falta do clima quente da África do Sul. E me perguntou se eu era
enfermeira. Quando contei que tinha me formado em Literatura, pareceu interessado. Obviamente, pretendia perguntar outras coisas, mas deve ter percebido que vocês
todos estavam nos observando, a censura clara em todos os rostos, e então pediu licença e voltou à cadeira dele.
Havia ressentimento em seu coração, e, por uma razão indefinível, sentiu a necessidade de defender Félix de Clergé... algo de que se arrependeria em breve.
- Félix foi amável e encantador. Nem por um instante me deu a impressão de querer flertar comigo. Muito pelo contrário. Achei-o até um pouco retraído.
- Félix? Retraído? Mon Dieu! Você deve estar louca! - Paul jogou mais um cigarro na lareira. - Félix nunca se retraiu em relação às mulheres, mas talvez esteja
usando uma nova tática, e parece óbvio que teve sucesso com você. Bonne nuit!
Depois da última frase, dita por cima do ombro. Paul saiu da sala, deixando Catherine intrigada. O que o tinha feito convidar Félix de Clergé, se claramente não
gostava dele?
Tinham tido a primeira briga, pensou, triste, sentando-se na poltrona e olhando para as brasas na lareira. Era a primeira, mas não seria a última, concluiu com
pessimismo.

CAPÍTULO VII

Paul já tinha saído, quando Catherine acordou, na manhã seguinte. Automaticamente, procurou pelo costumeiro bilhetinho na mesinha-de-cabeceira; nada encontrando,
levantou-se, tomou banho e se vestiu, tentando afastar a depressão que ameaçava dominá-la. Não fazia a mínima idéia da hora em que Paul fora se deitar, na véspera.
Ficara acordada muito tempo, esperando por ele, até não conseguir mais lutar contra o sono. Se ao menos tivesse tido chance de falar com o marido naquela manhã,
estaria menos nervosa e agitada.
Adèie estava à mesa, quando Catherine entrou na sala.
- Paul já saiu. E tenho que me apressar, porque já estou atrasada.
- Você conhece bem Félix de Clergé? - perguntou Catherine, com naturalidade, enquanto se servia de café.
Imediatamente, a expressão de Adèle mudou.
- Não muito bem... Por quê?
- Estava pensando...
Um silêncio embaraçado surgiu entre ambas e continuou até Adèle terminar o café e se levantar, apressada.
Catherine percebeu que a pressa da cunhada não era só porque estava atrasada. E, em sua mente, nasceu a dúvida: com certeza. Adèle conhecia Félix muito mais do
que queria deixar transparecer, mas a razão era um mistério para ela.
Talvez Paul fosse contra a amizade da irmã com um homem que considerava um dom-juan. Teve pena de Adèle, a quem já dedicava uma grande afeição. Que situação terrível
devia ser a da moça e Félix! Será que ele era mesmo o conquistador que Paul dizia? Se fosse, o que restaria para Adèle, senão sofrimento?
Susan Dunbury telefonou mais tarde, naquela manhã.
- Vou à cidade hoje à tarde e pensei que talvez você gostasse de ir comigo. Poderia ensinar a você onde comprar mais barato, já que ainda não conhece Paris muito
bem.
Catherine aceitou o convite, agradecida. Seria pelo menos uma coisa para fazer, e também uma distração temporária de seus problemas.
- Passo por aí, lá pelas duas horas - disse Susan, e desligou.
Catherine passou o resto da manhã escrevendo cartas, uma delas para o pai. Mas teve o cuidado de não mencionar sua pequena discussão com Paul, procurando falar
só de coisas alegres.
Paul não voltou para casa na hora do almoço, nem Catherine o esperava. Geralmente, comia qualquer coisa na própria clínica e, muitas vezes, quando estava operando,
nem almoçava. A princípio, isso a preocupava, mas era o modo dele trabalhar. Uma xícara de café e alguns sanduíches bastavam, ele havia dito, e o assunto ficara
encerrado.
Apesar de tudo, ela teve esperança de que, pelo menos uma vez, ele viesse para casa na hora do almoço, nem que fosse para derrubar a barreira que começara a se
levantar entre os dois.
Pontual, Susan Dunbury chegou um pouco antes das duas, e Catherine afastou as preocupações, concentrando a atenção nas compras que ia fazer com a amiga. Susan
levou-a a lugares aonde nunca iria sozinha e, embora não pretendesse comprar nada, voltou para casa com um belo vestido muito caro.
- Bem que eu gostaria de poder usar uma roupa assim - comentou Susan, quando Catherine colocou o vestido e se olhou no espelho. - Sou magra demais, e seria um
desperdício usar essa maravilha num feixe de ossos.
Cathy olhou para amiga. Apesar dos comentários nada lisonjeiros de si mesma, Susan podia vestir qualquer coisa e sempre ficaria elegante.
- Vamos, Catherine, faça uma loucura e compre!
Ela comprou, antecipando os comentários de Paul, quando a visse com o vestido.
Já passava das cinco, quando Susan a deixou em casa. O telefone estava tocando, no hall. Deixando o pacote numa cadeira, ela correu para atender. Era Paul.
- Onde você estava? - perguntou ele, com desconfiança. - Faz mais de meia hora que estou ligando.
- Fui fazer compras com Susan Dunbury e acabei de chegar. - explicou, contrariada. Em seu consultório, na clínica. Paul continuou desconfiando. Tinha passado uma
noite infernal e um dia mais infernal ainda. Quando um dos empregados lhe disse que Catherine não estava em casa, começou a imaginar uma porção de situações nas
quais ela poderia estar envolvida. Sabia que Félix de Clergé estava no laboratório e tinha estado lá durante toda a tarde. Mas havia outros, pensou, desesperado,
que na certa só esperavam por um sorriso dela. Dieu! Segurou com mais força o telefone. Estava ficando maluco, permitindo que o ciúme perturbasse tanto assim seu
senso comum!
- Paul? - chamou Catherine. Havia algo errado, ela podia sentir isso mesmo à distância.
- Hoje vou chegar mais tarde - disse ele, afinal. - Tenho que começar uma operação de urgência dentro de alguns minutos. Não espere por mim.
- Vou deixar seu jantar no forno.
- Merci.
- Paul? Não está zangado comigo por alguma coisa, está?
- Agora não é hora para conversar sobre isso - disse, áspero, e bateu o telefone.
Catherine franziu a testa. Mas não teve mais tempo para pensar no comportamento estranho do marido, pois Adèle chegou naquele instante e seu entusiasmo com a loja
afastou as preocupações da cunhada.
Depois do jantar," Catherine andou desanimada pela casa. Havia muito para fazer, mas estava tão agitada que não conseguia se concentrar em nada. Adèle subira a
fim de rever os esboços de alguns modelos para a coleção de primavera. Então, escutou o ruído do motor de um carro, subindo a alameda.
Curiosa de saber quem apareceria àquela hora para uma visita, Catherine já estava a caminho da porta, quando a campainha tocou.
- Monsieur de Clergé! Entre, por favor.
- Merci, madame. Espero não estar incomodando.
- Absolutamente - respondeu, sorrindo, mas intrigada com a visita inesperada.
Nesse instante, os olhos escuros de Félix se iluminaram.
- Bon soir, Adèle.
Catherine virou-se e viu a cunhada de pé na escada, apoiada no corrimão. Estava muito nervosa, e seu olhar ia de Félix para Catherine.
- Como vai? O que faz aqui?
Félix sorriu.
- Sabia que Paul se atrasaria hoje, na clínica; portanto, vim falar com madame de Meillon. Espero que ela possa me ajudar.
- Ajudá-lo? - perguntou Catherine, atônita. - Não compreendo.
- Não acho que Félix tenha realmente qualquer coisa para discutir com você, Cathy - interrompeu Adèle, adiantando-se e dando um olhar cheio de significado a Félix.
- Quem sabe ele mudou de idéia. Não é mesmo, Félix?
Por alguns momentos, a atmosfera ficou tensa, as duas vontades se enfrentando numa batalha silenciosa. Félix falou, afinal:
- Não, Adèle. Não mudei de idéia, chérie.
- Escutem, vocês dois - protestou Catherine. - Não podemos ficar aqui na porta, discutindo. Entre, Félix. Posso chamá-lo assim, não? Venham até a sala para podermos
conversar mais confortavelmente.
- Cathy - insistiu Adèle, muito nervosa -, não seria melhor se...
- Adèle! Não sou uma completa idiota. Existe alguma coisa e sei disso. Percebi ontem à noite e agora estou ainda mais certa. Deixe que
Félix me diga o que é. Depois, se puder ajudar, eu o farei com o maior prazer.
- Merci, madame. A senhora é muito compreensiva.
- Por favor, antes de começarmos, me chame de Catherine.
- Merci, Catherine. Assim ficará mais fácil.
- Então? - insistiu ela, quando o silêncio se prolongou.
- Não sei bem como começar - confessou o rapaz, procurando a cigarreira e acendendo uma cigarrilha com as mãos trêmulas.
- Pelo começo é o melhor jeito - disse ela, sorrindo encorajadoramente.
- Sim, pelo começo. Está informada de que não tenho boa reputação?
- Foi o que meu marido me disse.
- Ah! - Sorriu, amargurado, o que fez com que ela sentisse uma grande compaixão. - Eu já imaginava. Catherine, não vou procurar desculpas, mas, se você puder nos
ajudar... me ajudar, então acho que terei que lhe contar alguma coisa sobre mim. - Hesitou um instante, olhando para Adèle, sentada ao lado de Catherine, muito inquieta.
- Não sei quem é meu pai. Nunca o conheci. Ele abandonou minha mãe quando eu era ainda bebê, e depois minha mãe teve vários amantes. Acabou se transformando numa...
- Pareceu ter dificuldade em dizer a palavra certa.
- Prostituta? - completou Catherine, com calma.
- Oui. Foi dessa maneira que conseguiu dinheiro para ela e para minha educação. Fui mandado para um colégio interno no sul da França, e, embora passasse as férias
com minha mãe, ela estava sempre muito ocupada com seus homens para prestar atenção a mim. Quando tinha algum tempo, era só para insistir em que se deve tirar da
vida tudo o que se pode, e que eu nunca devia me envolver com essa mentira chamada amor. Amor, ela dizia, era simplesmente uma outra palavra com que se chama o desejo.
Félix olhou para a cinza da cigarrilha e, naquele momento, Catherine sentiu uma imensa pena dele. Que ambiente terrível para uma criança crescer!
- Acreditei nisso durante muito tempo - continuou Félix. - Quando cresci, comecei a levar minha vida como ela levava a dela.
Tive muitas mulheres; de algumas, nem me lembro dos nomes. Talvez, se eu as visse outra vez, nem as reconheceria. Tirei da vida tudo o que pude e achava que estava
certo. As mulheres gostavam de mim e não pediam muito, de modo que eu pensava que estava satisfeito. Até que... que conheci Adèle.
- Félix, por favor! - interrompeu a moça, muito agitada. - Não vai adiantar nada!
- Adèle, eu preciso falar! Sabe tão bem como eu que não podemos continuar desse jeito. Não vai nos levar a lugar algum!
Adèle se calou, com má vontade, e ele continuou:
- No instante em que conheci Adèle, aqui no Château de Bonheur, descobri o que eu não acreditava que existisse. Descobri o amor. Amo Adèle, e ela, apesar
de minha fama, também me ama. Não preciso mais das outras mulheres e nunca mais vou precisar. A única coisa que quero é que Adèle seja minha. Eu a respeito e quero
cuidar dela. Dieu! Juro que nunca a farei sofrer! Não quero flertar com ela, não a quero como amante. Minhas intenções são honradas. Eu a quero como esposa! - Félix
esmagou a cigarrilha no cinzeiro. - E a única coisa que impede nossa felicidade é...
- Paul? - sugeriu Catherine, quando o rapaz hesitou.
- Oui... Adèle prefere que deixemos o tempo passar. Tem certeza de que Paul acabará percebendo que não sou mais o gigolô que fui, e assim não será contra nosso
casamento.
- E você não acredita que vai ser assim? - perguntou Catherine.
- Non. Acho que não vai funcionar. Quando um homem tem uma reputação, ela o persegue pelo resto da vida. Digo que preciso falar com Paul, mas Adèle não quer. O
que nos aconselha, Catherine?
Ela pensou um instante, lembrando-se egoisticamente de seus próprios problemas. Se Félix se aproximasse de Paul e contasse o que estava acontecendo, certamente
ele o ouviria, pois Paul não era um homem rude por natureza. Ela mesmo não conhecera o quanto ele podia ser delicado e compreensivo? Não tinha sido, ele que a salvara
de passar o resto da vida numa cadeira de rodas?
Olhou para Adèle, que torcia as mãos, os belos olhos negros torturados, e depois para Félix, esperando ansioso por uma resposta. Ele também estava desesperado,
mas não havia nenhuma dúvida de que amava Adèle profundamente. Paul não podia ser tão cego a ponto de não ver a verdade nos olhos do rapaz.
- Acho que você tem razão, Félix. Deve falar com Paul. Ele não é um homem intransigente e compreenderá, com certeza.
- Não! Paul não compreenderá! Eu sei, eu sei! - gritou Adèle, levantando-se e andando agitada pela sala, como se não conseguisse mais ficar parada. - Ele nunca
fez segredo do que pensa sobre Félix. No passado, sempre criticou meus amigos. Ninguém era bom o bastante. - Olhou para os dois, implorando: - Oh, Cathy, entenda,
por favor! Paul não tem sido cruel. É um irmão maravilhoso, mas é protetor demais, crítico demais. Se nunca aprovou nenhum dos rapazes com quem saí, não vejo como
vai aprovar Félix.
- Mas Paul não sabe, não tem idéia das circunstâncias...
- Não, não, não! - gritou Adèle, quase histérica. - Paul não pode saber! Ainda não! - Agarrou o braço de Catherine, a angústia contorcendo o rosto. - Pelo amor
de Deus, Gathy! Félix... quero um pouco mais de tempo; Deixem que Paul veja por si mesmo como você mudou. E, logo que eu perceber alguma mudança na atitude dele,
eu mesma lhe direi toda a verdade. Por favor!...
Catherine olhou interrogativamente para Félix, que encolheu os ombros, vencido. Ele e ela sabiam que as coisas não seriam assim tão fáceis como Adèle imaginava.
- Muito bem então, querida - disse Catherine. - Se tem tanta certeza, não há mais nada que nós dois possamos fazer.
- E vai guardar segredo?
- Sim, guardarei segredo.
- Oh, Cathy, você é maravilhosa!
- Sinto muito, Félix.
- Eu também sinto. Mas posso esperar. Posso esperar para sempre por ela, se for preciso.
Catherine aconchegou-se numa poltrona, em frente à lareira, com um livro no colo. Tinha tentado ler, mas estava preocupada demais com Félix e Adèle para conseguir
se concentrar em alguma coisa. Quando Paul finalmente chegou em casa, estava tão frio, que ela não teve jeito de se atirar em seus braços; aquilo a feriu mais do
que ele poderia imaginar.
- Deve estar cansado - disse, ao ver como ele se sentava pesadamente na poltrona à sua frente. - Greta deixou seu jantar no forno. Quer agora ou mais tarde?
- Mais tarde - respondeu, acendendo um cigarro. - Primeiro, quero que me conte o que fez o dia inteiro.
- Não muita coisa. Foi um dia longo e triste, sem você - disse ela, numa tentativa de quebrar o gelo. - Você saiu, esta manhã, antes de eu acordar...
- Sim, saí. Teve alguma visita?
- Não.
Era a primeira vez que mentia para Paul. Como gostaria de contar a ele toda a verdade!
- Então, subitamente, deu para fumar cigarrilhas? - comentou, cínico.
- Oh! - Que idiota tinha sido, esquecendo-se de limpar o cinzeiro! - Bem... sim, tivemos uma visita, um pouco depois do jantar.
- Félix de Clergé?
- Foi.
- E não ia me contar?
Os olhos de Paul, febris e implacáveis, a observavam, cheios de raiva, e Catherine quase perdeu o fôlego.
- Eu... não achei que fosse importante.
- É, mesmo? - Paul levantou-se e atirou o cigarro na lareira. - Um homem como Félix, que tem a reputação de seduzir todas as mulheres que encontra, visita você
durante minha ausência e você não acha importante mencionar o fato!
- Paul, por favor! - protestou, pondo o livro de lado e ficando também de pé. Estava agora tão zangada quanto ele. - Félix veio até aqui s' para... para agradecer
o excelente jantar de ontem.
Mais uma mentira, pensou, aflita.
- Isso não tomaria mais do que alguns minutos, não o bastante para fumar uma cigarrilha inteira - disse, com fria violência.
Catherine sentiu-se como se estivesse sendo interrogada por um inquisidor da Idade Média.
- Pode ser que você já tenha caído na conversa dele.
- Você está sendo ridículo!
- Estou? - Paul chegou perto dela. Tão perto, que ela podia sentir o corpo dele inteiro vibrado de ódio. A boca estava contorcida, e, por um breve instante, Catherine
teve a impressão de que ia esbofeteá-la. Fechou os olhos, esperando, e nesse instante compreendeu a enormidade do sacrifício que a promessa feita a Adèle iria exigir
dela. Uma promessa de silêncio, feita num instante de fraqueza. E que agora estava prejudicando seu casamento de uma maneira como nunca imaginara.
Paul recuou subitamente, como se não suportasse a proximidade dela.
- Não levou muito tempo para se cansar de mim, não é? E Félix é
um amante tão experiente e suave, não? Ou ainda não sabe?
- Paul! - Arregalou os olhos, sem acreditar no que ouvia.
A gravidade daquelas palavras a deixou trêmula e sem fala. O que tinha feito para merecer uma desfeita dessas? E, mais importante, o que acontecera ao homem terno
e compreensivo com quem havia casado? Esse estranho grosseiro e frio não era o marido que conhecia e amava, e ele a assustava. Ela fez um gesto de socorro para ele,
mas Paul deu meia-volta e saiu da sala, dizendo:
- Tenho muito trabalho, agora.
- Seu jantar...
- Dê para os cachorros. Não estou com fome. E, Catherine - voltou-se para ela, o rosto frio e distante -, não quero ser incomodado.
As mãos de Catherine caíram ao longo do corpo, enquanto o via sair. Era compreensível que Paul desconfiasse de Félix, mas será que não tinha a mínima confiança
nela? Se pelo menos pudesse contar a verdade a ele!... Mas seus lábios estavam selados.
- Cathy? - Ela levantou a cabeça, quando Adèle entrou aflita na sala, momentos mais tarde. - Você não disse a Paul? Manteve promessa?
- Não disse a Paul.
- Oh merci, chérie, merci! E onde está mon frère, agora?
- Na biblioteca, e não quer ser incomodado.
- Você teve problemas? - perguntou Adèle, percebendo afinal a fisionomia desfeita da cunhada.
Catherine virou-se para o fogo, escondendo a angústia.
- Infelizmente, Paul descobriu que Félix esteve aqui. Tivemos uma discussão, foi isso. - Que modéstia chamar o que tinha acontecido de "uma discussão"!
- Paul está aborrecido?
- Aborrecido? - Olhou para Adèle, controlando um começo de histeria. - Não, Paul não está exatamente aborrecido. Não gostou da idéia de Félíx ter estado aqui sem
ele estar em casa.
- Quem sabe, está cansado? Não se preocupe. Quando Paul fica assim, o melhor é deixá-lo em paz. Terá esquecido tudo de manhã, você vai ver.
- Espero que sim - disse Catherine, sem grande convicção.
- Que razão você deu para a visita de Félix?
- Disse que ele veio agradecer o jantar de ontem.
- Cathy, você é uma grande amiga e uma cunhada muito querida! Obrigada. - Adèle beijou-a antes de ir embora. - Boa noite, chérie.
Catherine sentiu um nó na garganta. Pela primeira vez, Paul não foi dormir no quarto. Ela o escutou, mais tarde, no quarto ao lado, andando de um lado para outro,
até afinal se deitar no divã.
Ficou acordada, sem conseguir dormir. As lágrimas ensoparam o travesseiro, enquanto se virava na cama de sãs sossegada, até de madrugada, quando finalmente a exaustão
a fez dormir.

CAPÍTULO VIII

Era primavera em Paris. Havia algo no ar que dava novas forças a todos. As árvores estavam cheias de brotos tenros, e o perfume suave das laranjeiras em flor saturava
o ar.
Catherine percebia tudo isso, mas em seu coração havia inverno. Desde aquela noite fatídica, em que descobrira que Félix a havia visitado no Château de Bonheur,
Paul mantinha uma atitude fria e distante.
Incansavelmente, ela tentara derrubar o muro de reserva que ele erguera entre ambos, mas sem resultado. Seus esforços eram recebidos com desconfiança, e a única
coisa que conseguia era aumentar sempre mais a distância entre eles e a dolorosa certeza de que a bolha de sabão que havia sido sua felicidade arrebentara depressa
demais.
Susan Dunbury tinha se tornado uma grande amiga de Catherine, durante esses tempos difíceis, e foi para Susan que ela se voltou para pedir conselho.
- Tem que falar com Paul - Susan lhe aconselhou, certa tarde, quando as duas tomavam chá juntas. - Não pode deixar que essa situação continue indefinidamente.
- Como posso falar num assunto tão delicado, quando mal me dá a chance de ficar sozinha com ele? Passa quase o tempo todo na clínica e, quando está em casa, se
tranca na biblioteca até tarde da noite. E também... eu prometi a Adèle.
- Bobagem! Adèle não podia lhe pedir uma promessa dessas. Será que ela não vê o que está causando ao seu casamento?
- Não contei nada a ela.
Susan sacudiu a cabeça, preocupada.
- Cathy, você é uma pessoa muito leal, mas sua lealdade deve ser primeiro para seu marido e, depois, para a irmã dele.
- Eu sei, mas Adèle estava tão aterrorizada com a idéia de Paul vir a saber, que não tive outra saída senão prometer guardar segredo.
- Espere só, até eu falar com Adèle. Ela também tem muito que ouvir!
Catherine riu, nervosa.
- Sinto muito aborrecer você com problemas, Susan. Não é justo.
- Bobagem! Afinal, somos amigas.
Naquela tarde, no caminho de volta para o Château de Bonheur, Catherine decidiu falar com Paul quando ele voltasse do congresso médico a que comparecia na semana
seguinte. Ele a informara, quase indiferente, que ficaria fora três ou quatro dias, e agora estava satisfeita por ter alguns dias sozinha, para poder pensar cuidadosamente
como falar com ele. Esperava que estivesse mais receptivo, depois de voltar de Londres, e não tão arrogante e frio como nos últimos tempos.
Quanto mais se aproximava a data da partida de Paul, mais ansiosa ela ficava, tentando melhorar o clima entre ambos. Seria inútil falar com ele antes do congresso,
pois estava muito taciturno. Quebrar a promessa feita a Adèle não ia ser fácil, mas, como Susan havia dito, sua lealdade era primeiro para com o marido. Assim que
ele soubesse a verdade, perceberia que seu ciúme era infundado e saberia resolver o problema de Adèle e Félix muito melhor do que ela.
Adèle também não estava feliz com a situação, Catherine percebia. Como qualquer outra moça, gostaria de poder namorar abertamente o homem que amava; entretanto,
o medo da reação de Paul era maior do que o desejo de revelar ao irmão seu amor. Mas a ansiedade em que vivia permanentemente estava tendo conseqüências, e Catherine
notava que a cunhada estava cada dia mais pálida e calada.
Na véspera de sua partida para a Inglaterra, Paul surpreendeu Catherine, entrando no quarto de ambos, pela primeira vez, em semanas. Ficou por um instante parado
na porta, os olhos brilhando febrilmente.
Ela parou de escovar os cabelos e baixou o olhar, não querendo que ele percebesse seu embaraço.
- Queria me dizer alguma coisa. Paul? - perguntou, quando o silêncio se tomou insuportável.
Ele estremeceu. Estivera olhando para ela fixamente, sem perceber, pensando que nunca lhe havia parecido tão desejável como naquele instante. A camisola branca
de cetim e rendas revelava o busto suave, os quadris redondos, a cintura marcada, e seu coração começou a bater loucamente, quando se lembrou da maciez do corpo
dela em seus braços.
- Paul? - murmurou Catherine, lutando contra o medo que estava sentindo dele.
- Eu... eu vou partir amanhã, antes do café. Achei que tinha que lhe dizer.
- Ah... - Ultimamente, ele não se importava mais de informá-la sobre sua vida; então, por que agora?
Havia uma forte tensão no ar, que Catherine não sabia explicar. Depois de dar seu recado. Paul devia sair, mas ficou olhando para ela, com aquele jeito inseguro
e torturado. Havia agora uma força magnética atraindo-os, mas nenhum dos dois dava o primeiro passo.
Foi Catherine quem, involuntariamente, quebrou o gelo. Deu um passo à frente e deixou cair a escova.
- Paul...
Ele não precisava de mais encorajamento, pois no instante seguinte ela estava em seus braços, sendo beijada e apertada. Paul afastou as alças finas da camisola,
enquanto a beijava avidamente.
- Oh, Paul, Paul, meu amor... - murmurou, sentindo outra vez o despertar do desejo. Entregou-se sem reservas, feliz e esperançosa de que aquelas semanas de sofrimento
tivessem afinal chegado ao fim.
De repente, ele a ergueu nos braços e a levou até a cama.
A brisa soprava entre os castanheiros. Depois, só houve silêncio.
Catherine acordou, no dia seguinte, sentindo-se maravilhosamente bem. Espreguiçou-se gostosamente e, depois, virou a cabeça à procura de Paul, mas ele já tinha
partido. Com um sorriso, esticou o braço para pegar um bilhete deixado sobre o travesseiro dele.
Quando começou a ler, sua expressão mudou. Pálida e trêmula, sentou-se e leu mais uma vez aquele bilhete inacreditável:
"Catherine, minhas desculpas pela noite de ontem. Você estava diabolicamente atraente e eu não resisti. Afinal, sou humano. Mas não acontecerá outra vez. Paul."
Ela ficou olhando para o papel, aflita. Paul tinha escrito que não resistira! Se fosse outra mulher, ele teria reagido da mesma maneira? Será que precisava de
uma mulher? Uma mulher qualquer? E, como era ela que estava à mão, ele a usara?
Esse pensamento feriu sua alma e ela sentiu-se envergonhada. Que tola havia sido, pensando que Paul queria se reconciliar! Que ingênua, achando que ele, finalmente,
reconhecera o erro de sua desconfiança!
Olhou em volta, desesperada. Como agüentaria passar esses dias, até a volta de Paul? Agora, ás paredes do Château de Bonheur pareciam as de uma prisão. Castelo
de Felicidade! Que ironia, aquele nome; sua felicidade tinha sido curta demais, naquela casa tão linda.
Uma hora depois, quando desceu, Adèle a chamou:
- Não vai tomar café, Cathy?
- Não estou com fome.
- Não posso convencê-la a tomar nem uma xícara de café? Catherine hesitou, mas depois cedeu.
- Está acontecendo alguma coisa? - perguntou a cunhada, ao ver que ela tremia ao apanhar o bule para se servir.
- Estou com dor de cabeça. Pensei que um passeio pelo jardim poderia me ajudar.
- Paul me chamou, esta manhã, e me pediu para levá-lo ao aeroporto. Deixou isto para você.
Adèle pôs o molho de chaves^^a mesa.
- As chaves do Bentley?
- Oui. Paul disse para você não se preocupar. Ele tomará um táxi na volta do aeroporto.
- Está bem... Isso seria parte de seu pedido de desculpas? Deixar com ela as chaves do Bentley? Subitamente, sentiu uma onda de revolta. Como tinha coragem de
tratá-la assim?
- Você sabe guiar o Bentley, não sabe? - perguntou Adèle, sem entender por que a cunhada parecia tão irritada.
- Sim, já guiei algumas vezes. Mas quase sempre pego o ônibus.
- Devia pedir a Paul para lhe dar um carro como o meu.
- Talvez eu peça.
- Q que vai fazer hoje?
- Oh... ainda não pensei nisso. Não há quase nada para fazer, na casa; os empregados são tão eficientes... Poderia supervisionar o jantar, mas será só para nós
duas, e vou dizer a Greta para não fazer nada muito complicado.
- Não vou jantar com você hoje, Cathy. Felix me convidou.
- Ah...
Quando o gato vai passear, os ratos fazem a festa, pensou Catherine, com amargura.
- Sinto muito - disse Adèle.
- Não se preocupe. Vou comer alguma coisa leve, me deitar e ler um pouco.
- Pode ir com a gente.-
- Não seja tola - respondeu, irritada, mas logo se acalmou. - Há um velho ditado inglês que diz: "Dois é bom; três é uma multidão". Eu nunca sonharia estragar
os poucos momentos em que podem ficar sozinhos.
- Preciso ir, agora - disse Adèle, vestindo o casaco e pegando a bolsa. - Aproveite bem o dia.
Aproveitar o dia! Aquelas palavras ficaram ecoando na mente de Catherine muito depois de a cunhada ter saído. Aproveitar o dia! Sim, pensou ela, perigosamente
perto de explodir em lágrimas, certamente aproveitaria seu dia, e os próximos dias também, depois do incrível bilhete de Paul!
Sentindo-se profundamente desesperada, pegou as chaves do carro e correu escada acima para refazer a pintura e apanhar a bolsa. Um dia no campo lhe faria bem,
pensou, enquanto penteava os cabelos com impaciência. Por que não? Não havia ninguém para impedi-la,
Ninguém que se importasse com ela, "Castelo de Felicidade"!...
Pegando a primeira estrada que encontrou, Catherine guiou sem se preocupar com seu destino. Não tinha medo de se perder, pois havia sinalização em pontos estratégicos,
que não podia deixar de notar. Mas era uma viagem solitária, e não estava com disposição de apreciar os belos campos, que reviviam depois do longo inverno. Depois
de um rápido almoço numa cidadezinha, resolveu voltar para casa. Era melhor sentir-se sozinha num ambiente familiar do que ser alvo dos olhares curiosos de estranhos.
Naquela noite, Catherine se virava na cama, sem conseguir dormir, na imensa cama vazia. Nunca em sua vida se sentira tão só como agora, sem nada, a não ser seus
infelizes pensamentos como companhia. Os empregados já tinham há muito voltado para suas casas, deixando um silêncio opressivo.
Passava das onze horas, quando escutou um carro subindo a alameda e, depois de alguns minutos, as vozes abafadas de Félix e Adèle lá embaixo. Então, ouviu a porta
da entrada sendo cuidadosamente trancada e as luzes dos faróis do carro passaram por sua janela, voltando pelo mesmo caminho por onde vieram.
Pouco depois, Adèle batia de leve na porta do quarto.
- Catherine, está acordada?
- Entre, Adèle - disse, acendendo o abajur.
- Não estava dormindo?
- Não. Venha, sente-se aqui e me conte como foi sua noite.
- Oh, Cathy! Foi uma noite divina! Félix me levou a um pequeno restaurante, depois dançamos um pouco e conversamos, conversamos, conversamos.
Como devia ser raro poderem ficar juntos assim, pensou Catherine, com pena.
- Paul não costuma viajar muito. Como se encontram, quando ele está em Paris?
-Há um pequeno café que pertence a uns amigos de Felix. São um casal de velhos e não vão abrir a boca. Algumas vezes vamos almoçar lá, ou então tomar uma xícara
de café na cozinha.
Cathy sorriu.
- Por falar nisso, vamos até a cozinha esquentar um pouco de leite?
- Oui, seria ótimo.
Afinal, o dia terminou agradavelmente, as duas sentadas à mesa da cozinha, tomando leite quente. Ficaram tão distraídas, conversando, que, quando o relógio bateu
a uma da manhã, olharam espantadas uma para a outra.
- Você precisa ir para a cama, Adèle, ou não vai conseguir se levantar amanhã de manhã.
- Não quero que esta noite termine.
- Eu sei, minha querida - disse Catherine, beijando afetuosamente a cunhada -, mas está na hora de ir para a cama.
- Bonne nuit, Cathy.
- Bonne nuit.
Na noite anterior à volta de Paul, Félix apareceu para ver Adèle. Catherine deixou-os juntos na sala, enquanto ficava no quarto levantando a bainha de um de seus
vestidos longos. Um pouco mais tarde, quando ia até a lavanderia, passar a ferro a barra, surpreendeu-se, escutando vozes alteradas na sala. Evidentemente, Adèle
e Félix estavam discutindo, mas Catherine não entendia uma só palavra, pois falavam em francês.
Ao chegar ao hall, a porta da sala se abriu e Adèle passou por ela correndo, o rosto molhado em lágrimas.
- O que aconteceu? - Catherine perguntou a Félix, quando escutou que a porta do quarto de Adèle se fechou com estrondo.
O rapaz, com as mãos nos bolsos e os ombros curvados, explicou:
- É sempre a mesma discussão. Eu gostaria de falar com Paul, mas ela recusa. O que posso fazer?
Era uma situação delicada, que afetava não só as vidas dos dois, mas também a de Catherine. Não podia dizer a ele de sua intenção de contar tudo a Paul quando
voltasse, pois não sabia quando teria a oportunidade, ou se o marido a escutaria.
- Dê-lhe tempo, Félix.
- Tempo? Tempo? Já houve tempo demais desperdiçado!
- Eu sei, mas...
- Catherine, não podemos continuar assim!
- Concordo com você, Félix: não podem continuar assim - disse uma voz muito sua conhecida, atrás dela.
Catherine virou-se, os olhos arregalados, e encontrou Paul de pé na porta.
- Paul, não esperava você tão cedo! -- De todas as palavras que poderia dizer, escolhera as mais erradas!
- Não, tenho certeza de que não. Que lamentável, eu vir atrapalhar esse agradável tetê-à-tetê, voltando tm inesperadamente.
- Paul, não é o que você... - Catherine e Félix começaram a falar ao mesmo tempo, e pararam juntos, olhando um para o outro.
- Talvez seja melhor você sair, Félix - disse ela.
- Mas eu...
- Por favor, Félix, vá.
- Sim, Félix - repetiu Paul, com sarcasmo. - Por favor, vá para que eu possa conversar com minha... mulher. Vou falar com ela em particular e sem interrupção.
Vá, antes que eu perca a paciência e jogue você na rua!
Félix olhou angustiado para Catherine, mas ela mais uma vez fez um gesto aflito, pedindo que saísse, e ele não teve outro jeito, senão obedecer. Só não queria
que fosse maltratada, porque nunca tinha visto Paul tão fora de si.
Paul fechou a porta e apoiou as costas contra ela, os braços cruzados no peito largo. 0 silêncio era opressivo, e Catherine estremeceu involuntariamente. Tinha
que permanecer calma, repetia a si mesma, ou a situação degeneraria para sempre.
Olhando para o vestido de noite que ela segurava. Paul comentou:
- Parece que você ia sair.
- Não, eu...
- Como ousa?! Em nome de Deus, como ousa?! Como se atreve a levar adiante seu... seu caso, dentro de minha própria casa?
- Mas, Paul, eu...
- Deve ter ficado muito feliz com minha viagem: teria o caminho livre para se encontrar com seu amante.
- Você não sabe o que está dizendo! - Ela tentava manter a calma, lutando com todas as forças para não se deixar intimidar por seu ódio. - Sei que, encontrando
Félix aqui, parece que...
- Acha mesmo que não vejo o que está acontecendo debaixo de meu nariz? Acha que sou um imbecil?
- Paul, sei o que está pensando, mas...
- Pois eu lhe digo, Catherine - interrompeu ele, aos berros, fazendo com que sentisse um calafrio pela espinha. - Pensei que podia confiar em você, mas parece
que não posso. Sei que não devia ter casado cora você, mas, com muita esperteza... - Deu uma risada cínica. - Sim, com muita esperteza, você me fez acreditar que
me amava. Eu me deixei convencer, porque, pela primeira vez, permiti que o coração governasse a cabeça. Mas não demorou muito para que se cansasse de mim, não é?
Não é?
Ele a pegou pelo ombro e a sacudiu brutalmente. O vestido de noite caiu no chão.
- Por favor. Paul, deixe-me explicar - implorou, as lágrimas brilhando nos olhos.
- Explicar? - Soltou-a com desprezo. - O que há para explicar? Mentiras! É só isso que vou conseguir de você, mentiras! Mas tenho uma coisa para lhe dizer: não
vou lhe dar o divórcio, para que possa se atirar nos braços de Félix. Você é casada comigo e vai continuar casada. E, mais uma coisa: não traga os seus casos sórdidos
para dentro de casa. No futuro, seja um pouco mais discreta.
Aquelas últimas palavras provocaram a fúria de Catherine.
- Não tem o direito de falar assim comigo!
- Tenho o direito de falar com minha esposa infiel da maneira que eu quiser.
- Infiel? Imagino que não lhe ocorreu que possa estar enganado.
Paul deu uma gargalhada.
- Félix não é o tipo de homem que visita uma mulher só para conversar sobre o tempo.
- Você não conhece os fatos e se recusa a me dar a oportunidade de explicar.
- Não quero escutar mais mentiras.
- Droga, Paul! É Adèle que Félix ama, e foi a ela que ele veio ver!
Furiosa e levada pelo desespero, tinha revelado a verdade, não como havia planejado. Desprezava-se por permitir que Paul a deixasse tão fora de si, mas agora não
podia recuar. As palavras já tinham sido pronunciadas e estavam tendo resultado.
Paul encarou-a calado, os lábios lívidos. Se ela o tivesse atingido fisicamente, o resultado não seria diferente. O desejo ridículo de confortá-lo em seus braços
tomou conta dela, um desejo de abrandar o golpe que ela mesmo havia desferido.
- Você está mentido!
No momento seguinte, ele já tinha dado meia-volta e aberto a porta. Atravessou o hall com passos largos e subiu a escada de dois em dois degraus. Se Catherine
estivesse falando a verdade, saberia com Adèle, naquele mesmo momento.
A porta de Adèle estava fechada. Sem se importar de bater, ele a abriu violentamente, quase tirando-a dos gonzos, e parou, respirando pesadamente, enquanto Adèle
se sentava na cama, o rosto revelando o pavor que sentia do irmão.
- É verdade? - perguntou ele, em francês. - É verdade que você e Félix estão apaixonados e que ele veio visitar você, e não Catherine? Não minta para mim, Adèle,
já houve mentiras demais nesta casa. Agora, quero a verdade.
A moça estava em pânico. Só agora percebia o grande mal que causara, ao arrancar aquela promessa de Catherine. E Cathy, a boa e leal Cathy, tinha mantido a promessa,
apesar da infelicidade que ela lhe trouxera. Adèle tinha ouvido a discussão dos dois na sala. Pelo bem de Catherine, devia contar a verdade. Mas o olhar desvairado
do irmão a assustava. Não havia possibilidade de convencê-lo, quando estava irritado assim.
- Sinto muito, monfrère, mas não é verdade.
Catherine esperava na sala, tranqüila. Adèle nunca a perdoaria, tinha certeza disso, mas não pretendia contar a ele daquela maneira. Por que Félix tivera que aparecer
lá naquela noite? Se ao menos... Que pensamento inútil!
Quando Paul finalmente voltou, seu rosto estava lívido. Seu sofrimento era tão grande como o dela, Cathy sabia, mas agora poderia ajudá-lo.
- Então, você mentiu outra vez!
O coração de Catherine deu um salto no peito e ela teve que se apoiar numa cadeira para não cair.
- Você é uma sem-vergonha - disse ele, implacável. - Nunca pensei que fosse capaz de uma coisa dessas. Que tivesse a audácia de envolver minha irmã em seus casos
sórdidos! Isso é mais do que eu poderia imaginar. Como a desprezo!
- Paul, não! - Mas ele já saía da sala. - Paul, por favor, espere!
- Não quero ouvir mais nada!
- Aonde você vai?
- Sair daqui! - berrou, batendo a porta atrás de si.
Tonta, Catherine ficou imóvel. "Oh, Deus, o que posso fazer? A quem posso recorrer para me ajudar?"
- Cathy?
Ela se virou como um autômato e encontrou Adèle de camisola, com os braços cruzados sobre o peito.
- Cathy, me perdoe! - Correu para a cunhada, soluçando. - Por favor, me perdoe!
- Sou eu que devo pedir perdão - disse, tentando consolar a mocinha. - Quebrei minha promessa, mas eu pretendia falar cora Paul com toda calma, não da maneira
como fiz. Deixei que ele me irritasse e estraguei tudo. Receio que o fato de encontrar Félix aqui fez com que ficasse fora de si e...
- Não explique, eu compreendo.
- O que vamos fazer agora? - perguntou Catherine, olhando para a outra, desamparada.
- Direi tudo a Paul. Quando ele não estiver tão zangado, direi a verdade a ele. Só me dê tempo para pensar no que vou dizer.
Sim, Paul acreditaria na irmã. Não havia razão para desconfiar dela, e assim ele a escutaria, compreensivo.
Sentiu uma dor imensa no peito. Como gostaria de poder chorar, agora. A quem poderia procurar para ajudá-la? Susan Dunbury? Não, não podia incomodar a amiga com
seus problemas.
A predição da velha Sarah, naquela manhã em que Paul fora buscá-la para irem até Franschhoek, voltou-lhe subitamente à memória. Catherine se lembrava de cada palavra:
"Você tem uma dor de cabeça à sua frente. Ele é um homem que pensa com a cabeça, e não com o coração, Nunca acreditará que você o ama realmente e não está só agradecida
por tudo o que fez por você."
Mas Sarah também a tinha aconselhado:
"Seja paciente."
Catherine suspirou. Teria que aprender a ser paciente, não importava quantas dificuldades encontrasse em seu caminho.


CAPÍTULO IX

Paul trabalhou febrilmente, em seu consultório na clínica, na hora seguinte. Havia uma porção de relatórios para conferir, e, tendo ficado fora três dias, o trabalho
estava acumulado.
Naquela noite, ao sair de casa, sentia-se furioso. Sempre se orgulhara de ser um bom juiz do caráter das pessoas, mas tinha falhado miseravelmente no caso de Catherine.
Devia ter percebido que ela era muito jovem e impressionável, como ele temia, e incapaz de distinguir entre amor e gratidão. Como odiava a palavra "gratidão"!
Tinha deixado que ela o convencesse de seu amor, numa ocasião em que suas próprias emoções dominavam o raciocínio, e agora se desprezava por isso. Era previsível
que ela se sentisse atraída por um homem como Félix, que estava sempre à disposição de uma bela mulher farta do marido.
Jogou a caneta na mesa e se levantou. Era impossível trabalhar com esses pensamentos atormentando-o. Há anos que sabia das aventuras amorosas de Félix; mesmo assim,
Catherine tinha esperado que ele acreditasse que não havia nada entre os dois. Claro que estavam tendo um caso! Por que outra razão Félix iria até lá?
Mas nunca pensara que ela fosse tão baixa a ponto de sugerir que era por Adèle que Félix estava apaixonado. Adèle não era o tipo de mulher que atrairia um homem
como Félix. Mas... nem Catherine, bon Dieu! Não sabia mais o que pensar. O pensamento de Catherine nos braços de outro homem dava-lhe o desejo de matar.
' 'Ela é minha! Ela é minha e continuará minha!''
Era muito tarde quando Paul chegou finalmente em casa. Encontrou a luz da sala ainda acesa e, no chão, ao lado da cadeira, o vestido de Cathy. Pegou-o e ficou
olhando para ele por um instante. Então, angustiado, afundou o rosto na fazenda macia, sentindo o leve perfume que tinha ficado na roupa. O mesmo perfume que ele
havia trazido para ela de Grasse e que lhe dera no dia em que a havia pedido em casamento.
Um brilho de metal chamou sua atenção. Examinando melhor o vestido, descobriu uma agulha presa à barra, ainda enfiada na linha. Será que ela estava trabalhando
no vestido? Era evidente agora que não pretendia usá-lo. E Félix? Poderia ser puramente platônica aquela visita?
"Não podemos continuar assim!", tinha ouvido Félix dizer, ao entrar na sala. O que aquilo podia significar, senão que ele e Catherine não podiam continuar se encontrando
secretamente? Adèle? Não, disse a si mesmo com teimosia; apesar das afirmações de Catherine, não acreditava que a irmã estivesse envolvida com Félix. Afinal, já
estava deitada, quando ele chegara. E quem a conheceria melhor do que ele mesmo?
Tentava, sem sucesso, encontrar uma desculpa para Catherine, qualquer outra explicação para a presença de Félix em sua casa. Mas não podia pensar em nenhuma.
Deixou o vestido cair na poltrona e saiu da sala, apagando a luz.
No dia seguinte falaria com Félix e exigiria toda a verdade. Mas o que esperava ouvir?, pensou, desesperado, ao entrar no quarto. Félix simplesmente negaria tudo.
E que provas tinha da traição? Se ele os estivesse surpreendido se beijando, isso alteraria tudo. Não, talvez fosse melhor esperar e ter certeza, antes de fazer
alguma coisa. Será que não estava também com medo de saber a verdade?
Catherine começou a fazer o serviço de casa, para espanto dos empregados. Até mesmo Greta pareceu surpresa, quando, uma manhã, a patroa entrou na cozinha e quis
ajudá-la a descascar batatas e planejar o jantar.
- Não está se sentindo bem, madame?
- Greta, se eu não fizer alguma coisa, acho que ficarei maluca, nesta casa imensa, sem ter ninguém com quem falar, a não ser os retratos dos ancestrais de monsieur
de Meillon!
O tom de desespero em sua voz não escapou aos ouvidos sensíveis da mulher. Embora nem sonhasse em espionar a vida de madame, não podia deixar de notar que algo
a fazia infeliz.
Uma manhã, enquanto tomava uma xícara de chá na cozinha, em companhia de Greta, o telefone tocou:
- Eu atendo, madame - disse a cozinheira, indo até o hall. Voltou logo depois: - É para a senhora. É o dr. Félix, da clínica.
Cheia de apreensão, Catherine foi atender.
- Alô, Félix. - Olhou apreensiva por cima do ombro, como se temesse que Paul estivesse na porta.
- Bonjour, Catherine. Sinto muito incomodar. Estive muito preocupado com você, estes dias, e preciso lhe falar. Não poderia almoçar comigo, hoje?
- Não sei - respondeu, com medo das conseqüências.
- Por favor, Catherine. O telefone... Não posso conversar aqui! - Parecia muito abalado.
- Está bem, Félix. Onde e a que horas?
Ele deu o nome de um restaurante perto da Étoile.
- Meio-dia e meia, está bem para você?
- Sim, Félix, estarei lá.
Exatamente ao meio-dia, ela entrou no restaurante, e o cheiro de comida lhe deu uma sensação de náusea. "São meus nervos", pensou. Não tinha conseguido tomar o
café da manhã e talvez não conseguisse almoçar agora.
Félix aproximou-se.
- Por aqui - disse, sem preâmbulos, guiando-a até uma mesa no fundo da sala. - O que quer comer? - perguntou, entregando o menu a ela.
- Peça você, Félix. Mas gostaria de alguma coisa leve.
Ele fez o pedido e, quando o garçom se afastou, inclinou se para ela.
- Estava muito preocupado com você. Paul parecia tão furioso, naquela noite, que tive receio de que batesse em você.
Catherine sorriu, amargurada.
- Não precisa se preocupar. Paul não me bateu.
- Minha presença na casa trouxe complicações? Ela começou a torcer a alça da bolsa.
- Claro que não - respondeu, sem olhar para ele. - Por que teria?
- Ora, Catherine, você sabe muito bem que tenho... péssima fama. E Paul também sabe. Ele não ficou pensando que... bem, que nós... Sabe o que quero dizer.
Ela sentiu que corava violentamente, e Félix logo entendeu a razão.
- Bem que imaginei - disse, amargurado, os punhos fechados sobre a mesa. - Já é tempo de Paul e eu termos uma longa conversa. E, desta vez, não deixarei que Adèle
me impeça.
- Não, não deve fazer isso! Adèle me prometeu que falaria com Paul logo que surgisse uma oportunidade. Não faça nada impulsivamente. Ainda não... não até que...
Como explicar a ele a situação em sua casa? Nunca poderia falar sobre a fria indiferença e os silêncios explosivos de Paul. O marido mal ficava em casa, agora,
e, quando ficava, era para se trancar na biblioteca e lá passar a noite toda. Também Adèle não conseguia se aproximar dele, pois estava de tão mau humor que ela
não tinha coragem de lhe fazer as difíceis confidencias.
- Vou dar a ela mais esta chance - concordou Félix. - Mas, se Adèle não agir, eu...
Ele se calou, empalidecendo subitamente, ao ver alguém atrás de Catherine que se aproximava. O medo tomou conta dela. Paul!, pensou logo. Mas não era. Vindo na
direção deles, lá estava Eileen Chilton. Cathy não a via desde o jantar no Château de Bonheur, e certamente aquele era o momento mais errado para encontrá-la novamente.
- Catherine, meu bem! Faz séculos que não nos vemos, Você também, Félix. Como vão?
- Muito bem - respondeu ele, tenso.
- Nunca pensei que encontraria vocês dois almoçando juntos! - continuou Eileen, maldosa. Era evidente que estava morta de curiosidade. - Então, ficaram amigos?
A insinuação, aparentemente inocente, enojou Catherine.
- Você parece se esquecer, Eileen - disse Félix, sem hesitação, dirigindo a ela seu mais encantador sorriso -, de que madame de Meillon é casada com um colega
meu. Assim como você. E isso não impediu que eu almoçasse com você também, impediu? E no passado
nós almoçamos muitas vezes juntos, não é mesmo?
Eileen ficou vermelha como um tomate, e não havia dúvida de que existia ódio em seu olhar.
- Bem, não quero mais interromper seu almoço - disse, recuperando o autocontrole. - Mas, Catherine, tome cuidado, Félix é um menino muito levado. Ou será que já
sabe? Adeuzinho...
Os dois a viram se afastar e sair do restaurante com um passo ligeiro, deixando a malícia daquele comentário no ar.
- Essa mulher é uma cobra! - exclamou Félix, irritado. - Sempre detestei mulheres que correm atrás de um homem, e Eileen Chilton me perseguiu até que tive que
ser grosseiro com ela. Mon Dieu!
- Acha que... que ela vai comentar? Vai falar que nos viu juntos?
- Não tenho a menor dúvida que sim. Eileen nunca perde a chance de comentar a vida dos outros.
- Eu sabia que nunca deveria ter vindo!
- Agora é tarde demais. Só podemos esperar que, por milagre, ela fique calada. Ah, aqui está nosso almoço.
Catherine teve um forte enjôo, quando chegou em casa, naquela tarde. Cada vez a náusea ficava mais forte, nas últimas semanas, e só podia atribuir isso à pressão
emocional que estava sofrendo.
Quando Susan chegou, no dia seguinte, ao Château de Bonheur, encontrou-a sentada no jardim, pálida e fraca.
- Você está com uma péssima aparência! - comentou a amiga, muito preocupada.
- Não estou me sentindo nada bem. Achei que melhoraria se me sentasse aqui fora e tomasse um pouco de sol. Estou com tanto frio!
Susan observou-a atentamente.
- Foi ao médico?
- É só um enjôo de nervoso. Vai passar logo.
- Imagino que não pensou na hipótese de estar grávida.
- Grávida?! Não, nem pensei nisso...
- Você é uma mulher casada, e essas coisas costumam acontecer. Catherine sentia-se terrivelmente confusa. Parecia impossível. No entanto... Ultimamente, andava
tão preocupada com seu desentendimento com Paul que nem uma só vez pensara nessa hipótese. Olhou para Susan, insegura.
- Acha mesmo que... ?
- Nunca acho uma coisa dessas, minha querida. Para isso, existem os médicos. Vá buscar seu casaco e vamos agora mesmo ver meu médico.
O velho médico de Susan não precisou de muitos exames para descobrir a causa do mal-estar de Catherine. Foi com emoções confusas que ela encontrou a amiga, que
ficara à sua espera, no carro.
- Então? - perguntou Susan, quando Catherine sentou-se ao lado dela, olhando fixamente para a frente.
- Você tinha razão: vou mesmo ter uma criança.
- Oh, querida, estou tão contente! Imagine como Paul vai ficar... - Calou-se, quando Catherine escondeu o rosto nas mãos trêmulas. Passando o braço pelos ombros
da moça, Susan perguntou: - O que há? Eu disse alguma coisa que não devia?
- Não. É só que... Oh, Susan, o que vou fazer?
- Fazer? Não há nada que você possa fazer a não ser permitir que a natureza siga seu curso.
Enquanto iam para casa, Catherine pensava se as novidades mudariam a atitude de Paul com ela. Será que agora escutaria com mais paciência suas explicações? Ou
a idéia de se tomar pai seria odiosa para ele?
- Você me faria um favor, Susan? - pediu, ao chegarem ao Château de Bonheur. - Não diga a ninguém ainda. Nem mesmo a seu marido.
- Não quer que Paul saiba? Quer fazer uma surpresa a ele?
- Sim - mentiu, agarrando-se a essa idéia. - Quero fazer uma surpresa a ele.
- Muito bem, Cathy, pode contar com meu silêncio.
Muito tempo depois de Susan partir, Catherine continuava no mesmo lugar, receosa de entrar em casa e enfrentar olhares curiosos dos empregados. Só entrou quando
teve certeza de que não ia explodir em lágrimas.
Naquela noite, Paul voltou mais cedo do que de hábito. Catherine ouviu seus passos familiares subindo a escada, e esperou, com a respiração presa, até ele chegar
à porta do quarto. Com o coração disparado, ouviu-o bater de leve, antes de entrar.
- Não está se sentindo bem? - perguntou ele, notando, pela primeira vez suas olheiras e sua palidez.
- Eu... eu estou bem, obrigada.
- John Dunbury veio até meu consultório, esta tarde.
- Ah... é? - Será que Susan não tinha guardado o segredo?
- Sexta-feira é aniversário de casamento deles, e fomos convidados para jantar.
- Ah... Você aceitou?
- Disse a ele que perguntaria antes a você.
Uma noite fora suportando a indiferença fria e a polidez forçada de Paul era demais para ela.
- Temos que ir? - perguntou, aflita.
- Não podemos recusar. - Quando ela silenciosamente balançou a cabeça, concordando, continuou: - Pode telefonar a Susan, confirmando?
Depois do jantar, assim que Paul se trancou na biblioteca, Catherine discou o número de Susan.
- Cathy! Como está passando, querida?
- Melhor, obrigada. - E depois de leve hesitação: - Parece que fomos convidados para jantar com vocês, na sexta-feira, não é?
- Céus, é mesmo! Foi por isso que estive em sua casa, esta manhã. Mas, quando a vi tão abatida, esqueci completamente. Sou mesmo muito distraída. Por sorte, eu
tinha pedido a John para falar com Paul na clínica. - Depois de um breve silêncio: - Vocês vêm, não é?
- Claro.
- Ótimo!
- A que horas?
- Sete horas é muito cedo para você?
- Para nós está muito bem. Assim, Paul terá tempo para trocar de roupa. Só espero que não aconteça nada na clínica para que ele não se atrase.
Catherine escolheu o belo vestido verde-mar, que havia comprado com Stisan. Felizmente, Paul chegou cedo em casa, e não precisariam correr para chegarem a tempo
à casa dos Dunbury.
Caprichou mais do que normalmente na maquilagem, para tentar esconder as olheiras, e o resultado foi surpreendente. Não podia dizer nada quanto à magreza, pensou,
olhando-se no grande espelho do quarto. Pegando o agasalho e a bolsa, desceu a escada, ao encontro de Paul, que já a esperava lá embaixo.
- Quer tomar alguma coisa, antes de sair? - sugeriu ele, mas sem olhar pára ela. - Estamos adiantados.
- Sim, por favor - respondeu, aflita, pensando se ele ao menos lhe diria que estava bonita.
Observou-o disfarçadamente, enquanto o marido preparava as bebidas. Como gostava do formato da nuca dele e dos cabelos castanhos! E daqueles ombros largos e atléticos!
Um simples olhar de Paul fazia com que seu sangue corresse mais depressa. E também, como estava acontecendo ultimamente, a deixava gelada e trêmula.
- Sua bebida - disse ele, entregando-lhe o cálice.
Por um breve instante, seu olhar prendeu o dela.
Paul sentira o impacto da beleza de Cathy como se tivesse recebido um golpe. Mas uma vez tinha sido vencido pela mesma beleza e não queria que acontecesse novamente.
Havia jurado nunca mais tocar nela.
- Termine logo - disse, seco, tomando um gole de seu copo.
O coração de Catherine começou a bater mais devagar, dolorosamente devagar.
Quando chegaram à casa dos Dunbury, havia mais dois carros estacionados do lado de fora; um era dos Chilton, percebeu Cathy apreensiva; o outro, de um casal francês,
com um sobrenome difícil para ela pronunciar.
- Me chame de Mignon - disse a mulherzinha miúda e morena, falando inglês com um forte sotaque. - Meu marido é Louis.
Catherine sorriu.
- Minha querida! - exclamou Eileen, num tom ligeiramente desagradável. - Posso dizer que você está mesmo sensacional? Não concorda, Paul?
- Sim - respondeu ele, contrafeito.
- Quer vir comigo guardar o casaco no quarto? - sugeriu Susan, livrando-a da outra.
- Trouxe um presentinho para você - disse Catherine, quando as duas ficaram sozinhas. Feliz aniversário!
- Ora, não devia ter se incomodado...
- Abra.
Susan abriu o pacote. Dentro havia uma pequena peça de prata que ela havia admirado durante um dos passeios que as duas tinham feito pela cidade.
- Oh, Cathy. Isso é caríssimo, e você é um encanto! Nem sei como agradecer!
- Não precisa. Sou eu que agradeço por tanto apoio e amizade. Agora, vamos voltar para junto dos outros, antes que pensem que a anfitriã fugiu.
Louis e Mignon, com o tal sobrenome que Catherine não sabia pronunciar, moravam perto do Dunbury. Eram um casal extremamente simpático e conversavam animadamente
o tempo todo. Catherine estava satisfeita com isso; assim, os outros não notariam a tensão entre Paul e ela.
A única pessoa que a perturbava era Eileen Chilton. Não levou muito tempo para que percebesse que a outra estava se preparando para o grande momento, quando, dramaticamente,
soltaria a bomba. Seus olhares maliciosos e as indiretas que para os outros nada significavam enchiam Catherine de um terrível pressentimento. Tensa, incapaz de
tomar parte da conversa, esperava o terrível momento.
- Mais salada, Cathy? - ofereceu Susan.
- Não, obrigada. Seu jantar estava realmente maravilhoso.
- Espere até provar a sobremesa - disse John. - Nunca vi uma
coisa igual. Nós todos sobrevivemos até agora, mas não posso garantir nada, depois da sobremesa.
- Esses homens! - Susan riu. - Eles simplesmente não reconhecem que preparar uma refeição é uma arte.
- Depois desta noite, eu não nego, querida. Mas você realmente caprichou na sobremesa.
Todos riam, e até mesmo Catherine sentia o gelo se derreter em seu coração. Paul também parecia mais descontraído.
O ambiente estava agradável, apesar do perigo que pairava sobre sua cabeça. E houve risos, quando, triunfante, Susan entrou com o prato de sobremesa. Era um sorvete,
muito bem decorado com frutas, e não tão assustador como John ameaçara.
Mais tarde, quando tomava café na sala, Cathy teve novamente um pressentimento de desastre. Sabia que tinha que evitar a qualquer custo a indiscrição de Eileen,
mas não havia jeito.
De repente, a conversa morreu e a sala ficou em silêncio. E então, o que ela temera a noite toda aconteceu.
- Servem um ótimo almoço num pequeno restaurante perto da Étoile - começou Eileen, olhando para ela, maldosa.
Foi um comentário feito na hora exata, a conversa ainda girando era tomo dos ótimos pratos servidos, e portanto soou perfeitamente natural. Só Catherine, sentada
muito tensa, sabia o que Eileen pretendia.
Ignorando o olhar de súplica de Cathy, ela continuou, imperturbável:
- Catherine pode confirmar. Eu a encontrei almoçando lá, há alguns dias.
Susan pareceu preocupada, ao notar a palidez e o olhar de imenso desespero da amiga. Estava a ponto de falar alguma coisa, mas Eileen foi mais rápida. Com a atenção
geral focalizada nela, não tinha intenção de deixar passar a oportunidade de causar sensação.
- Acho que você devia tomar mais conta de sua mulher, Paul - disse, olhando para ele, satisfeita de ser o centro das atenções. - Não devia permitir que ela almoçasse
com um homem tão perigoso como Félix.
Catherine sentia o sangue lhe pulsar nas têmporas, e aquele latejar tomou-se tão intenso que pensou que ia ficar louca. A única coisa que via agora, à sua frente,
era o brilho intenso dos olhos negros de Paul.
Aquilo era o fim de seu casamento. Só tinha mais um trunfo, e se falhasse...
No instante seguinte, em que ninguém encontrava o que dizer, Louis e Mignon se entreolharam e rapidamente mudaram de assunto; John tossiu, Susan ofereceu mais
café e Harold Chilton se remexeu na poltrona, embaraçado, lançando um olhar de reprovação à mulher, que se manteve totalmente indiferente.
Eileen tinha feito muito bem o seu trabalho. Se a situação fosse diferente, seu comentário teria causado uma meia dúzia de frases maliciosas, e nada mais.
Depois disso, a conversa se tomou forçada, e, quando Paul teve uma chance, aproximou-se de Catherine e cochichou:
- Você, que sabe mentir tão bem, arranje alguma mentira agora para podermos ir embora.
Lívida, Cathy disse a Susan e John que não estava se sentindo muito bem. O que não era uma mentira.
- O que aconteceu? - perguntou a amiga, quando as duas ficaram sozinhas por alguns instantes, no quarto.
- Não posso explicar agora, mas realmente estou me sentindo muito mal.
- Não contou ainda a Paul? Sobre o bebê, quero dizer.
- Ainda não.
- Minha querida, está esperando o quê?
O que estava esperando?, pensava ela, enquanto voltavam para casa. Esperar por um momento de ternura seria inútil. O silêncio dentro daquele carro era angustiante,
mas, como nem ela nem Paul conseguiam falar, a situação continuou. Só depois de entrarem em casa, Catherine decidiu jogar seu último trunfo.
Seguindo Paul até a biblioteca, fechou a porta atrás dela e o enfrentou, trêmula.
- Paul, eu gostaria de explicar.
- Explicar? - reagiu, brutal. - O que há para explicar? A menos que pretenda me contar mais mentiras.
Ao ver a fúria que havia naqueles olhos antigamente tão doces, Cathy estremeceu.
- Félix me convidou para almoçar porque estava preocupado comigo. Desconfiou de que a presença dele aqui, naquele dia, tinha me trazido problemas.
Paul deu uma risada. Era um som assustador, e ela sentiu um arrepio de medo.
- Félix nunca, em toda a vida, se preocupou com as conseqüências de seus casos. Tente outra, Catherine; quem sabe, vou acreditar.
Ela ficou em silêncio algum tempo, parada diante dele. Paul estava inacessível; não se deixaria convencer de modo algum.
- Tenho uma razão muito importante para pedir que me deixe explicar.
- E qual é?
- Vou ter um filho.
Se Paul não desconfiasse tanto dela, teria percebido como Catherine estava angustiada. Mas, dominado pelo ciúme, teve a reação mais violenta possível: com palavras
cruéis, feriu impiedosamente a pessoa que mais amava no mundo.
- Quem é o pai?
A pergunta atingiu Catherine como um soco, e ela vacilou um instante sob seu impacto. Mas logo se equilibrou e o rosto pálido subitamente foi invadido com um calor
febril, tingindo as faces.
- Apesar de todas as evidências estarem contra mim - disse, com dificuldade -, você não pode acreditar que eu... que Félix...
Não conseguiu mais falar, os olhos cheios de lágrimas e os lábios tremendo convulsivamente.
- Não tenho nenhuma intenção de aceitar uma criança que nem sei se é minha.
Catherine olhou para ele, sem acreditar no que ouvira. Depois, teve que se apoiar numa poltrona, pois seu corpo tremia incontrolavelmente.
- Eu poderia perdoar qualquer coisa de você. Paul - conseguiu dizer, afinal. - Mas nunca o perdoarei por isso!
Muito depois de Catherine ter saído. Paul continuava imóvel, olhando a porta sem ver nada. Sentia agora um intenso arrependimento, que fazia seus ombros se curvarem
como sob um imenso peso. O demônio do ciúme o havia transformado num verdadeiro monstro. Apesar de todas as evidências, como dissera Catherine, sabia que ela não
seria capaz das coisas de que a acusara. Mas não tinha conseguido se controlar.
Passou a mão pelos olhos, como se quisesse apagar a imagem de dor do rosto da esposa, quando ele lhe tinha feito a odiosa pergunta. A expressão angustiada dos
olhos dela nunca se apagaria de sua memória.
Mas Félix pagaria por isso, decidiu. E saiu de casa, guiando feito um louco.
Lá em cima, em seu quarto, Catherine escutou Paul sair. Também precisava tomar uma decisão rápida. As acusações do marido tinham sido o insulto final, tomando
o casamento deles sem sentido. Sua vida se transformara completamente, nos últimos meses: de ura começo feliz, num pesadelo permanente. Tinha certeza, agora, de
que nada alteraria a situação e não queria criar o filho num ambiente de ódio e desconfianças.
Descendo rapidamente a escada, procurou na lista telefônica o número que queria. Com mãos trêmulas, discou.
- Peço desculpas por ligar tão tarde, mas gostaria de reservar um lugar no próximo vôo para a África do Sul.
- Un moment, madame. - E depois de um silêncio que para ela pareceu de horas: - Madame está com sorte. Houve um cancelamento para o vôo direto para a Cidade do
Cabo, que sai hoje, às dez e meia.
Aquilo daria a ela menos de uma hora para fazer as malas, mas estava decidida a não ficar nem mais uma noite naquela casa.
- Por favor, reserve o lugar para mim.
Catherine subiu para fazer as malas. Agora, tinha receio de não conseguir sair antes da volta de Paul. Não queria mais olhar para ele, depois de ter rejeitado
o filho de ambos. Pois aquela rejeição destruíra tudo o que tinha existido de lindo e puro entre eles, deixando apenas as cinzas da desconfiança e da amargura.

CAPÍTULO X

Paul não teve paciência para esperar o elevador do prédio onde Félix morava. Subiu pela escada até o terceiro andar e tocou com impaciência a campainha. Se Félix
não tivesse aberto a porta logo, Paul a derrubaria a pontapés. O outro logo percebeu que ele estava completamente desnorteado e se afastou para que entrasse.
- Boa noite, mon ami. A que devo o prazer dessa visita?
- Feche a porta.
Felix obedeceu e seguiu Paul até o luxuoso living. Não estava absolutamente satisfeito com aquela visita, pois desconfiava de que tinha algo a ver com seu relacionamento
com Adèle, e também com Catherine.
Paul foi direto ao ponto:
- Você está tendo um caso com minha mulher?
- Não.
- Mentiroso!
O soco de Paul veio com uma rapidez de relâmpago, e no instante seguinte Félix estava estendido no chão, com uma poltrona virada por cima dele. Apalpou o queixo
no lugar atingido, mas, percebendo que tudo estava em ordem, sorriu.
- Sabe de uma coisa? Faz muito tempo que um marido zangado me derrubou assim. Mas, desta vez, isso é desnecessário, mon ami.
- Fique de pé e me enfrente. Esta noite vou saber a verdade, nem que tenha que moer você de pancadas!
Félix ficou de pé, mas suas mãos continuaram caídas.
- Paul, nós dois sabemos que não podemos nos envolver numa briga dessas. Vamos nos sentar e conversar como duas pessoas sensatas. Se quer mesmo saber a verdade,
eu conto.
A calma com que o outro falava intrigou Paul. Reconhecendo a lógica das palavras de Félix, acalmou-se e aceitou um copo de conhaque.
- Você tem uma esposa completamente fiel - disse Félix, entregando-lhe a bebida. - A lealdade dela é tão grande que se estendeu a mim e a Adèle.
- Adèle? O que Adèle tem a ver com isso?
- Tudo.
Paul ficou imediatamente alerta. Uma vez, Catherine tinha tentado envolver sua irmã, e agora Félix fazia a mesma coisa. Não permitiria que o nome de Adèle fosse
arrastado na lama.
- Explique-se.
Enquanto tomavam o conhaque, Félix fez exatamente isso: contou sobre sua infância, sua vida desregrada, seu amor por Adèle, e o medo que a moça sentia de Paul
não o considerar um marido adequado para ela. Contou também que Adèle o fizera prometer não falar com Paul, quando ele, Félix, quisera tomar público o relacionamento
dos dois. Finalmente, esclareceu o papel de Catherine em tudo aquilo.
- Como pode ver, mon ami, só tenho admiração e respeito por sua mulher, e suas suspeitas são totalmente infundadas.
Paul caiu num silêncio arrependido e confuso. Que terríveis acusações tinha feito a Catherine, naquelas últimas semanas! Há menos de uma hora, ela lhe contara
que ia ter um filho... um filho dele... e ele lhe fizera a maior ofensa que poderia fazer, perguntando quem era o pai! Por que permitira que seu louco ciúme e sua
insegurança arruinassem sua vida? Como seu intenso amor por ela acabara destruindo o bom senso?
Olhou para Félix, sentado à sua frente, esperando pelo veredicto. Não havia nada além de honestidade e franqueza, no rosto daquele homem que ele acusara de dom-juan.
Todos nós não somos, às vezes, muito tolos e inconseqüentes? Ele não tinha sido, há poucos minutos, o maior tolo de todos?
- Não me aceita como cunhado, Paul? - perguntou Félix, afinal, com uma ponta de angústia.
- Dou minha permissão para que fiquem noivos, mas... Adèle é ainda muito jovem e peço que espere pelo menos um ano antes de casar com ela. Durante esse ano, você
provará sua sinceridade e eu me sentirei satisfeito.
- Merci, Paul. - Félix estendeu-lhe a mão.
Paul cumprimentou o futuro cunhado e saiu logo depois. Tinha pressa de voltar para Catherine e reparar seus erros. Não queria perder nem mais um minuto.
Quando chegou, o Château estava às escuras, a não ser pela luz do quarto da esposa. Então, ela ainda estava acordada, pensou, mais animado. Subiu a escada de dois
em dois degraus e bateu na porta do quarto.
- Catherine?
Quando não recebeu resposta, pela primeira vez sentiu medo. Abrindo a porta, entrou apressado no quarto.
A cama estava intacta, e o vestido de seda verde-mar, pendurado num cabide, na porta do armário. O suave perfume dela enchia o ar, e ele então percebeu que seu
material de maquilagem não estava mais na penteadeira. Confirmando suas suspeitas, abriu as gavetas e descobriu que estavam vazias.
Correu para baixo e procurou o passaporte de Catherine, na gaveta de sua escrivaninha. Não o encontrou. Era evidente que Cathy pretendia abandoná-lo e voltar para
a África do Sul. Sem perda de tempo, saiu de casa e guiou até o aeroporto, em alta velocidade.
O Aeroporto de Orly estava excepcionalmente movimentado, para aquela hora da noite. Abrindo caminho apressadamente e atraindo alguns olhares zangados. Paul chegou
ao balcão.
- Há uma madame de Meillon no vôo para a África do Sul?
- Out, monsieur. No vôo das dez e meia.
O ponteiro maior marcava exatamente a meia hora.
- Em que direção? - perguntou, aflito.
O homem apontou para o portão dos passageiros.
- Mas chegou tarde demais, monsieur - avisou, inutilmente, enquanto Paul sumia de sua vista.
Tinha que alcançar Catherine antes de o avião partir! Tinha que impedir que o abandonasse! Quando chegou ao portão, o Boeing estava rodando suavemente para a pista
de decolagem. Tarde demais! Em algum lugar, dentro daquele avião, estava sua adorada Catherine, e pela primeira vez percebeu como a tinha tomado infeliz, a ponto
de ela tomar uma decisão tão drástica. Não ia ser fácil convencê-la de seu arrependimento; mas tentaria até o fim. A vida sem Cathy era impossível!
Paul não dormiu, naquela noite. Antes de sair do aeroporto, comprara uma passagem para o primeiro vôo da manhã para a Cidade do Cabo. Sua mala já Êstava pronta.
Andou pelo quarto, fumando um cigarro atrás do outro, enquanto se recriminava pelo comportamento vergonhoso.
Quando o dia começou a raiar, escreveu um bilhete para Adèle:
"Catherine partiu para a África do Sul ontem à noite. Quando você ler esta carta, também estarei a caminho. Minha intenção é trazê-la de volta, se ela me perdoar
pelo que fiz. Quando eu voltar, nós dois teremos uma conversa muito séria. Se quiser saber sobre o que, procure Félix. Paul."
Antes de sair, deixou o bilhete na mesa do café, onde tinha certeza de que Adèle o veria. O táxi já estava à espera, e ele falou rapidamente com a clínica, avisando
que ficaria fora alguns dias.
Foi um vôo cansativo, pois o avião fez várias escalas pelo caminho. Quando aterrissaram no Aeroporto Jan Smuts, em Johannesburg, os passageiros foram avisados
de que teriam que esperar uma hora pelo vôo para a Cidade do Cabo. Ao chegar afinal a seu destino, à tarde, Paul tomou o ônibus da companhia de aviação até a cidade
e depois alugou um carro para ir a Constantia.
Sarah, a empregada negra, abriu a porta, e seus olhos se arregalaram.
- Bonjour, Sarah. Onde está Catherine?
- Eu... ela não está aqui - disse a mulher, quando Paul forçou a entrada.
- Então, onde está?
- Não sei, senhor.
Com os olhos pregados no chão, ela ficou ali, parada. Não era seu hábito mentir, e ficava ainda mais difícil sob o olhar penetrante de Paul.
- É muito importante que eu fale com ela, Sarah. Diga onde está.
A negra suspirou, aflita, e encolheu os ombros. Não conseguia mesmo mentir.
- A sra. Cathy chegou hoje, muito cedo, e partiu novamente, para a casa da praia em Gideon's Bay. E me fez prometer não contar ao sr. Charles ou a outra pessoa
qualquer que ela estava aqui. Agora, quebrei minha promessa...
- Não se preocupe, sei que ela a perdoará.
Pediu que explicasse como poderia chegar a Gideon's Bay, e ela o fez, agora mais animada.
- Está acontecendo alguma coisa, sr. Paul?
- Um mal-entendido. Guarde segredo, Sarah, e espere amanhã por nós. Se tudo der certo, ficaremos alguns dias por aqui.
Sarah o viu afastar-se, balançando devagar a cabeça. Um mal-entendido! Ah! Ela não era nenhuma boba!
Usando uma calça velha e uma camisa que achara numa d^s gavetas, em seu velho quarto, Catherine se ocupou em ventilar e limpar um pouco a casa de praia. As lágrimas
há muito tinham secado, e resolveu manter-se ocupada até se acalmar e poder pensar no que fazer.
Tinha tomado o trem até Gideon's Bay naquela manhã e depois conseguira uma carona na carroça que ia buscar correspondência na cidade. Tudo ainda era muito primitivo,
em Gideon's Bay, e os moradores queriam que continuasse assim.
A paz daquele lugarejo era como um bálsamo para sua alma torturada. Precisava de tempo para pensar no futuro... um futuro sem Paul.
"Não tenho nenhuma intenção de aceitar uma criança que nem sei se é minha", ele havia dito, e ela estremeceu novamente, lembrando-se daquelas palavras cruéis,
que atingiram o mais íntimo de sua alma. Depois delas, Catharine só queria uma coisa: fugir do homem a quem um dia entregara o coração.
Não duvidava de que, quando ele soubesse a verdade pelos lábios de Adèle, perceberia seu imenso erro. Mas seria tarde demais, pois o mal já estava feito.
À tardinha, depois de um rápido lanche, foi dar uma volta pela praia deserta. Sentia-se extremamente cansada, pois dormira muito pouco durante o vôo; mesmo assim,
estava agitada demais para se deitar e descansar. Subiu numas rochas, até chegar num ponto de onde pudesse apreciar as ondas quebrando na praia cheia de pedras.
Era perigoso nadar nesse ponto da costa, mas era o paraíso dos pescadores.
Os pensamentos de Catherine estavam tão turbulentos quanto as águas do mar, lá embaixo, batendo violentamente nas rochas e levantando uma fina garoa que chegava
até lá em cima, umedecendo seu rosto e seus braços.
Paul tinha muito pouca fé nela, se acreditava que era capaz de fazer as coisas de que a acusava. Como seu pai reagiria, quando ela lhe contasse? Enfrentá-lo neste
instante era impossível. Precisava de tempo para cuidar de seu orgulho ferido, tempo para se acostumar com o imenso vazio no coração. Não adiantaria nada explodir
em lágrimas, quando lhe contasse suas razões para voltar para casa. Admitir que seu casamento havia sido um desastre não era um motivo de orgulho. Mas teria o bebê...
o filho de Paul, por mais que ele não acreditasse nela.
"Não tenho nenhuma intenção de aceitar uma criança que nem sei se é minha.'' A acusação ecoava em sua mente torturada.
Nunca pediria a ajuda dele, nem que fosse o último homem da terra! Educar sozinha uma criança não seria uma tarefa fácil, sabia, mas aquele era seu filho. Seu
filho! E tudo o que sobrara de um maravilhoso sonho.
As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto já úmido pela espuma do mar. A maré estava em alta, e as águas, cada vez mais agitadas. Mas Catherine estava indiferente
a tudo, mergulhada em sua dor.
Um movimento na praia chamou sua atenção. Paul se aproximava, vestindo ainda o temo cinza com que viajara. Depois, ele foi subindo pelas pedras.
Estava tão ferida, que nem mesmo a chegada dele a abalava, e isso lhe dava a medida do vazio que sentia. Quando o marido finalmente parou junto dela, Catherine
não sentia nada além de uma vaga curiosidade. O que ele ia fazer? Espancá-la? Implorar? Ou simplesmente carregá-la de volta para a França, para que continuassem
aquele casamento sem sentido, só por causa de sua reputação e de seu orgulho?
Não! Todo o seu ser rejeitava essa idéia. Nada no mundo a faria voltar a viver com ele!
- Está se molhando, Catherine. Quer ficar doente?
Que típico!, pensou, beirando a histeria. Sempre o médico antes e depois o homem.
- Teria importância?
O rosto de Paul revelou seu temor. Não esperava nenhuma recepção alegre, mas o gelo com que ela o recebeu era assustador. Até aquele instante, tinha certeza de
que a levaria de volta, mas agora não estava tão confiante. Não ia ser fácil derrubar a muralha de defesa que ela erguera naquele curto espaço de tempo, desde sua
última briga.
Estendeu a mão para ajudá-la, mas ela a ignorou e levantou-se sozinha. Em silêncio, os dois desceram pelas pedras e andaram pela areia, até o chalé, na beira da
praia. O Sol tinha se escondido, e Catherine sentiu um arrepio de frio. Estava realmente molhada... e gelada.
Entrou na casa e Paul a seguiu, em silêncio, fechando a porta.
- Tome um banho quente, chérie, e vista uma roupa mais confortável.
Catherine deu meia-volta e o encarou, feroz.
- Quer, por favor, parar de me dizer o que fazer e o que não fazer?
Paul nunca a vira tão linda como naquele instante, com os olhos cinzentos brilhando de raiva, as pernas ligeiramente afastadas e as mãos nos quadris. Aquele ar
desafiador o excitou e teve que se controlar penosamente para não agarrá-la. Dieu! Como ansiava sentir a maciez de seu corpo novamente, os lábios doces e trêmulos
sobre os dele!
Paul encolheu os ombros e, sem uma palavra, entrou na salinha. Momentos depois, escutou o barulho da água do chuveiro, e sorriu.
Procurando no armário, encontrou uma garrafa de vinho. Serviu-se e sentou-se confortavelmente. Se conhecia Catherine, ela o faria esperar. Armou-se de paciência.
Dieu, como estava cansado! Fechou os olhos por um momento. Não tinha conseguido dormir, na véspera, e durante o vôo não parava de
pensar em Catherine e na própria estupidez, fazendo com que ela fugisse, ferida e horrorizada.
Devia ter cochilado, porque, quando abriu os olhos outra vez, a sala estava escura. Escutou barulho na cozinha. Bebendo o resto do vinho, atravessou o corredor
e encontrou Catherine em frente ao fogão de gás, num vestido quente de lã, com um avental amarado na cintura.
- O que está fazendo?
- Preparando alguma coisa para o jantar - respondeu ela, sem se voltar. - Calculo que vá ficar.
- Estou convidado?
- Parece que não tenho muita escolha, tenho? Mas devo avisar que a comida é pouca. Não esperava visitas.
Paul se aproximou e, surpreendentemente, ajudou-a a preparar a omelete.
- Estou notando um leve sarcasmo em sua voz, chérie - disse ele. - Não combina com você.
- Não esperava que eu me atirasse em seus braços, esperava?
- Paul tirou a frigideira do fogo, com uma expressão magoada.
- Não.
Ficaram num silêncio desagradável durante toda a refeição. Catherine tentou comer alguma coisa, mas era inútil. Afastou o prato e ficou vendo Paul devorar a refeição
como se não tivesse nenhuma preocupação na vida.
- Não está com fome? - perguntou ele.
- Não.
Paul encolheu os ombros, num gesto muito familiar, e continuou comendo sem tentar conversar com ela.
Depois, quando se ofereceu para lavar os pratos, Cathy recusou e mandou que fosse para a saleta, dizendo que levaria o café, assim que arrumasse a cozinha.
A presença dele era perturbadora, e ela não queria prolongar o silêncio desagradável entre os dois. Sozinha, podia pensar, mas, com Paul por perto, seus pensamentos
se tornavam confusos.
- Não perdeu muito tempo para me seguir, não foi? - disse ela, quando trouxe o café.
- Não acha que foi muito impulsiva?
Catherine pensou um instante. Quando respondeu, teve dificuldade para controlar o tremor da voz:
- Você... naquelas circunstâncias... acha mesmo que fui muito impulsiva? Não faria o mesmo, se estivesse em meu lugar?
- Sou homem, e os homens reagem de maneira diferente.
- É claro! Você reagiria diferentemente! É frio como um pedaço de gelo, é cruel, sem emoções, incapaz de se comportar irracionalmente.
Paul estava lívido.
- São palavras duras, chérie, e sabe que tudo isso não é verdade.
- Sei? Sei, mesmo?
- Catherine, há uma coisa que preciso explicar.
- Não há mais nada a explicar - interrompeu, ficando de pé e andando pela sala, para tentar encontrar alívio para seu intenso sofrimento. - Desde que voltamos
a Paris, depois de nossa lua-de-mel, você mudou - continuou ela, parando sua caminhada e olhando para ele. - Tomou-se frio e indiferente, se agarrando em qualquer
desculpa que nos afastasse um do outro. Começou na noite em que demos aquele jantar. Naquela mesma noite, você abandonou nosso quarto e foi dormir no quarto de vestir,
e eu me tomei nada além de mais uma empregada em sua casa.
- Não é verdade!
- É sim! Eu estava me esquecendo da noite em que você entrou em meu quarto para me avisar de sua partida para o congresso em Londres. Pelo menos, se portou como
um ser humano! - Deu uma risada. - Pensei que, afinal, ainda precisava de mim e que, apesar de tudo, me amava. Acreditei, como uma idiota, que as coisas entre nós
melhorariam. Mas na manhã seguinte encontrei aquele seu incrível bilhete e percebi que você só tinha precisado de uma mulher. Qualquer mulher! E eu estava ali, bem
à mão. Ah, meu Deus! Como estive à mão, tantas vezes!
As lágrimas escorreram pelo rosto angustiado, enquanto os soluços sacudiam seu corpo. Paul tinha a impressão de estar em choque. Só agora percebia como a havia
ferido com aquele comportamento insensível. Pela milésima vez, se amaldiçoou por ter agido como um perfeito imbecil.
- Tentei compreender as razões de seu comportamento - continuou Catherine, recuperando um pouco o controle. - Eu o perdoei, porque você não conhecia a verdade
e porque eu sabia que tinha receio de que eu tivesse casado por gratidão. Mas não posso perdoá-lo por pensar que vou ter o filho de outro homem.
Paul estava de pé, agora. A única coisa que queria era abraçá-la e implorar seu perdão.
- Não encoste a mão em mim! - gritou Catherine, recuando, quando percebeu o que ele pretendia.
Aceitando a vontade dela, ele deixou os braços caírem ao longo do corpo. Tinha que ir com extremo cuidado, pois o futuro de ambos dependia disso.
- Quando saí, ontem à noite, fui direto à casa de Félix - disse ele, e foi recompensado com um rápido brilho de interesse nos olhos de Cathy. - Não foi um encontro
agradável, mas agora sei toda a verdade.
- Foi por isso que me seguiu tão depressa?
Aquelas palavras o atingiram duramente, mas sabia que as merecia.
- Eu teria vindo da mesma maneira.
- Teria, mesmo? Duvido!
Mais uma vez, seus lábios se entreabriram num sorriso cínico, que não combinava com ela. Olhou para ele, pensativa. Deveria acreditar nele? Tantas perguntas se
cruzavam em sua mente, c, entre elas, quantas dúvidas apareciam agora!
- Por que não me contou tudo, desde o princípio? Se fizesse isso, nada teria acontecido.
- Teria, sim, não importam as circunstâncias. Além disso, eu tinha prometido a Adèle guardar segredo.
- Por quê?
- Adèle tinha medo do que você poderia fazer. Mas já sabe tudo isso, Félix deve ter lhe contado.
O tique-taque do relógio, na prateleira, se fez ouvir, no silêncio profundo que se seguiu. Foi quando Catherine percebeu como os ombros de Paul estavam curvados,
como se carregassem uma carga insuportável. Por um instante, sentiu pena dele, mas logo se revoltou. Ele não a fizera sofrer também?
- Será que sou uma pessoa tão pouco compreensiva que nem você nem Adèle poderiam me contar todos esses problemas? - perguntou, ressentido, acendendo um cigarro
e sentando-se novamente. Por algum tempo, fumou em silêncio, e depois tomou a perguntar: - Sou, Chérie?
Agora era Catherine que sentia remorso pelo sofrimento dele. Andou até a janela e olhou para a escuridão lá fora.
- Não, Paul, não posso dizer que não seja compreensivo. Uma vez, quando precisei desesperadamente de você, recebi uma profunda compreensão. Eu não me esqueci.
Depois disso, novamente caiu o silêncio entre eles, mas era como se a tensão tivesse desparecido. Agora, estavam mais calmos para pensarem com clareza.
- Por que me seguiu? - ela perguntou, ainda sem olhar para ele.
Paul logo estava a seu lado. Tão perto, que ela sentia o cheiro da colônia e o leve aroma de tabaco que ele sempre tinha. Seu coração traiçoeiro começou a bater
depressa.
- Vim para levar você de volta comigo - respondeu, provocando nela o desejo louco de fugir antes que fosse tarde demais.
- Simples assim? Fez essa longa viagem para me levar de volta para a França? Pois sinto muito, porque não tenho intenção de voltar.
As mãos de Paul caíram pesadas nos ombros dela e a obrigaram a se virar e encará-lo de frente.
- Acho que não fui bastante claro. Eu estou pedindo... Não! Estou implorando para que volte comigo. - Havia uma súplica sincera em seus olhos, um toque de desespero
nos dedos que pressionavam seus ombros. - Dieu, Catherine, não consigo me perdoar pelo sofrimento que causei a você e me desprezo pelo que disse ontem à noite sobre...
sobre a criança. Me arrependi no mesmo instante em que você saiu daquela biblioteca, mas estava zangado demais... e, sim, eu era muito orgulhoso para seguir você
e pedir perdão. Mon coeur, não vai me perdoar?
Ele a envolveu nos braços, mas ela logo se libertou dele, os olhos brilhando como os de um animalzinho assustado.
- Não! Como vou saber se não vai começar a duvidar de mira outra vez, no futuro? Não agüentaria sofrer outra vez tudo o que sofri:
- Chérie, você tem minha palavra...
- Não, Paul - interrompeu, a voz ligeiramente insegura. - Estou agradecida pelo fato de você ter se arrependido e aceito suas desculpas, mas... você sempre terá
um dúvida, bem no fundo do coração, de que casei com você por gratidão, e nada mais. E então, acontecendo qualquer coisinha, se tornará ciumento e desconfiado, e
nos encontraremos no inferno em que estávamos nos últimos tempos.
Percebendo o significado das palavras dela. Paul sentiu-se profundamente desamparado. Não havia nenhum jeito de provar que seu antigo ciúme não existia mais, e,
se Catherine não voltasse para ele, nunca poderia provar que estava falando a verdade.
- Chérie, a fronteira que separa a gratidão do amor é tão frágil, que uma pode ser confundida com o outro. Você foi minha paciente e a seus olhos eu fiz um milagre
com a ajuda de Deus. Você poderia facilmente ser influenciada pelo sucesso da operação. Não pode me culpar inteiramente por duvidar de você. E, conhecendo Félix
como sempre conheci, isso só serviu para aumentar minha insegurança. - Paul estava achando difícil continuar. - Agora vejo que nunca devia ter duvidado de você,
pois tudo foi culpa de meu ciúme e de meus receios. - Hesitou um pouco, antes de continuar: - Só desejo sua felicidade, chérie. Se quiser que eu vá embora, eu irei.
A decisão é sua.
As palavras dele aumentavam o enorme sofrimento de Catherine. Então, estava preparado para voltar à França sozinho, se ela decidisse terminar o casamento? Os longos
anos de solidão que teria à frente, durante os quais teria apenas o filho para dar todo o amor, a fizeram estremecer. Sentiu a garganta apertada, a emoção não a
deixou falar. Tomando seu silêncio como recusa, ele se virou lentamente e caminhou para a porta, vencido.
- Paul...
Sua voz era um simples sussurro, mas no silêncio da noite de outono ele a escutou. Virou-se depressa e, no mesmo instante, ela estava em seus braços.
Ficaram agarrados como se não suportassem a idéia de se afastarem. Os lábios apaixonados e os abraços temos diziam mais do que as palavras poderiam dizer. Beijaram-se
longamente. Quando o tormento da paixão diminuiu, ele a fez sentar-se a seu lado, no sofá, a cabeça apoiada em seu ombro.
- Mignonne, eu a amo desesperadamente. Juro que a compensarei por toda a infelicidade que a fiz sofrer.
- Oh, Paul, querido! Amo você com todas as minhas forças, e nunca mais deve duvidar de mim!
- Perdão, chérie.
Mas ela pôs um dedo nos lábios do marido.
- Chega de pedir perdão, meu amor. Afinal, eu também tive culpa. Devia ter contado o segredo a você, desde o começo. Oh, quase me esqueci! O que decidiu sobre
Adèle e Félix?
Paul explicou rapidamente.
- Não quis falar com Adèle antes dê partir. Ela certamente terá muito que me explicar.
- Não - disse Catherine, sacudindo a cabeça. - Vamos esquecer tudo, agora. Estamos novamente unidos, e é isso que importa.
- Você é muito generosa, mon coeur, e espero que Adèle reconheça isso.
Só bem mais tarde, Catherine disse ao apaixonado marido que precisava arrumar o quarto de casal para os dois.
- Mas por quê? - perguntou ele, sem entender.
- Eu não esperava que você aparecesse por aqui e arrumei minha cama no antigo quarto de solteira.
- Não me incomodo de dormir com você numa cama de solteiro, por uma noite - disse Paul, abraçando-a mais. - De manhã, voltaremos para a Cidade do Cabo e contaremos
a seu pai que ele vai ser avô. E, quem sabe, ficaremos alguns dias, antes de voltarmos a Paris.
- Oh, Paul, seria maravilhoso! Seria um paraíso!
- O paraíso está aqui, mon coeur.
Beijou-a novamente, com paixão, e Catherine soube que era, verdade. O paraíso era realmente o lugar onde os dois ficavam juntos.

 

 

 

 

                                                                  Yvonne Whittal

 

 

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