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A TRAVESSIA DAS FEITICEIRAS / Taisha Abelar
A TRAVESSIA DAS FEITICEIRAS / Taisha Abelar

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TRAVESSIA DAS FEITICEIRAS

 

Taisha Abelar é uma das três mulheres intencionalmente treinadas por alguns feiticeiros do México, sob a orientação de Dom Juan Matus.

Tenho escrito exaustivamente a respeito de meu próprio treinamento com Dom Juan, mas nunca escrevi nada sobre este grupo específico, do qual Taisha Abelar participa. Havia um acordo tácito, entre todos os que estavam sob a orientação de Dom Juan, de que nada deveria ser dito a respeito deles.

Durante mais de vinte anos mantivemos esse acordo. E conquanto trabalhássemos e vivêssemos em íntima proximidade, jamais comentamos nossas experiências pessoais. Na verdade, nunca houve oportunidade sequer de partilharmos nossas opiniões sobre aquilo que Dom Juan ou os feiticeiros de seu grupo faziam com cada um de nós especificamente.

Esta condição não se relacionava apenas com a presença de Dom Juan. Depois que ele e seu grupo deixaram o mundo, continuamos a respeitá-la, pois não desejávamos utilizar nossa energia para rever quaisquer acordos anteriores. Todos nosso tempo e energia disponíveis eram dedicados a corroborar para nós mesmos aquilo que Dom Juan tivera tanto trabalho para nos ensinar.

Dom Juan nos havia ensinado a feitiçaria como uma tarefa pragmática, por meio da qual qualquer um de nós pode perceber a energia diretamente. Afirmava ele que, para percebermos a energia dessa maneira, precisamos nos libertar da nossa capacidade de percepção normal. Libertar-se e perceber a energia diretamente constituíam uma tarefa que exigia tudo de nós.

O feiticeiro acredita que os parâmetros de nossa percepção normal nos foram impostos como parte de nossa socialização, não tão arbitrariamente, mas ainda assim formulados de maneira autoritária. Um dos aspectos desses parâmetros obrigatórios é um sistema de interpretação que transforma dados sensoriais em unidades significativas e converte a ordem social em uma estrutura de interpretação.

Nosso funcionamento normal dentro da ordem social exige uma aceitação cega e constante de todos os seus preceitos, e nenhum deles possibilita a percepção direta da energia. Dom Juan, por exemplo, afirmava ser possível perceber os seres humanos como campos de energia, semelhantes a enormes ovos luminosos, alvos e oblongos.

Se quisermos realizar a façanha de ampliar nossa percepção, precisaremos de energia interna. Assim, o problema de tornar a energia interna disponível para a realização dessa tarefa torna-se a questão básica para os estudiosos da feitiçaria.

Circunstâncias adequadas à nossa época e lugar possibilitaram que Taisha Abelar escrevesse hoje a respeito de seu treinamento, similar ao meu, embora ao mesmo tempo totalmente diferente. Ela demorou um longo tempo escrevendo porque, em primeiro lugar, tinha de lançar mão dos meios da feitiçaria para escrever. O próprio Dom Juan atribuiu-me a tarefa de escrever sobre seus conhecimentos de feitiçaria. E ele mesmo estabeleceu o tom dessa tarefa ao dizer; "Não escreva como um escritor, mas como um feiticeiro." Com isto ele queria dizer que eu tinha de escrever num estado de consciência expandida, chamado pelos feiticeiros de estado onírico. Taisha Abelar precisou de muitos anos para aperfeiçoar seu estado onírico para então transformá-lo no modo feiticeiro de escrever.

No mundo de Dom Juan, os feiticeiros, dependendo de seu temperamento básico, dividiam-se em duas facções complementares: sonhadores e rastejadores. Os sonhadores são os feiticeiros que possuem a capacidade inata de entrar em estados de consciência expandida controlando seus sonhos. Esta aptidão é transformada, com o treinamento, em uma arte: a arte do sonho. Os rastejadores, por outro lado, são os feiticeiros que possuem a capacidade inata de lidar com os fatos e adentrar em estados de consciência expandida manipulando e controlando seu próprio comportamento. Com o treinamento da feitiçaria, esta aptidão natural se transforma na arte de rastejar.

Embora todos no grupo de feiticeiros de Dom Juan possuíssem o conhecimento completo de ambas as artes, eles eram distribuídos em uma das facções. E Taisha Abelar foi colocada no grupo dos rastejadores e treinada por eles. Seu livro traz a marca de seu formidável treinamento como rastejadora.

                                                                                                  Carlos Castaneda

 
 

Dediquei minha vida à prática de rigorosa disciplina, a qual, na falta de um nome mais adequado, chamamos de feitiçaria. Também sou antropóloga e recebi meu Ph.D. neste campo de estudo. Menciono minhas duas áreas de especialidade nesta ordem porque meu envolvimento com a feitiçaria veio em primeiro lugar. De modo geral, uma pessoa se torna antropóloga e depois então realiza um trabalho de campo sobre determinado aspecto da cultura — por exemplo, estuda as práticas da feitiçaria. No meu caso, aconteceu o contrário: já estudava feitiçaria quando fui estudar antropologia.

Em fins da década de 1960, eu morava em Tucson, no Arizona, e conheci uma mexicana chamada Clara Grau, que me convidou a hospedar-me em sua casa no estado de Sonora, no México. Lá, ela fez o possível para introduzir-me em seu mundo, pois Clara Grau era feiticeira e fazia parte de um grupo coeso de dezesseis feiticeiros. Alguns deles eram índios yaqui; outros eram mexicanos das mais variadas origens, formações e idades, e de ambos os sexos. A maioria era de mulheres. Todos perseguiam com sinceridade o mesmo objetivo: romper as tendências e preconceitos perceptivos que nos aprisionam nos limites da vida cotidiana normal e nos impedem de entrar em outros mundos perceptíveis.

Para os feiticeiros, ultrapassar tais tendências perceptivas possibilita atravessar uma barreira e saltar para o inimaginável. Eles chamam este salto de "a travessia dos feiticeiros". Às vezes referem-se a ele como “o vôo abstrato”, pois este salto implica voar do lado concreto e físico para o lado da percepção expandida e das formas abstraías impessoais.

Esses feiticeiros se interessaram em ajudar-me a realizar esse vôo abstrato, para que eu pudesse participar de seus esforços básicos.

Para mim, o treinamento acadêmico tornou-se parte essencial de minha preparação para A Travessia das Feiticeiras. O líder do grupo de feiticeiros ao qual me associei, o nagual, como ele é chamado, é uma pessoa [1]profundamente interessada pelo conhecimento acadêmico formal. Assim, todos aqueles que se encontravam sob sua responsabilidade tinham de desenvolver a capacidade para o abstrato, o tipo de pensamento lúcido que só é obtido em uma universidade moderna.

Como mulher, eu tinha a obrigação ainda maior de cumprir esta condição. As mulheres, de maneira geral, são condicionadas desde a infância a depender de membros do sexo masculino de nossa sociedade para conceptualizar e iniciar as mudanças. Os feiticeiros, a cujo treinamento me submeti, tinham opiniões bastante definidas a este respeito. Consideravam indispensável que as mulheres desenvolvessem seu intelecto e ampliassem sua capacidade de análise e abstração, a fim de obterem uma melhor compreensão do mundo à sua volta.

Da mesma maneira, treinar o intelecto constitui um subterfúgio de boa fé dos feiticeiros. Mantendo deliberadamente a mente ocupada com a análise e o raciocínio, os feiticeiros ficam livres para explorar, sem obstáculos, outras áreas da percepção. Em outras palavras, enquanto o lado racional está ocupado com a formalidade das atividades acadêmicas, o lado energético ou não-racional, chamado pelos feiticeiros de “o duplo”, é mantido ocupado com o cumprimento das tarefas da feitiçaria. Dessa maneira, a mente analítica e desconfiada tem menos probabilidade de interferir ou mesmo perceber o que está acontecendo num nível não-racional.

O complemento de meu desenvolvimento acadêmico foi a ampliação de minha capacidade de percepção e consciência: juntas, essas duas características desenvolvem nosso ser total. Trabalhando juntas, como uma unidade, afastaram­me da vida “certinha”, para a qual eu havia nascido e fora socializada como mulher, e lançaram-me numa nova área, de maiores possibilidades perceptuais do que o universo normal me reservava.

Isto não significa que apenas meu compromisso com o mundo da feitiçaria foi o bastante para assegurar meu sucesso. A atração da vida cotidiana é tão forte e constante que, não obstante seus treinamentos mais assíduos, todos os profissionais encontram-se repetidas vezes mergulhados no mais abjeto terror, imbecilidade e condescendência, como se nada houvessem aprendido. Meus professores alertaram-me de que eu não era exceção. E que apenas a batalha implacável e contínua pode neutralizar a própria insistência, natural mas insensibilizante, em não mudar.

Após atenta análise de minhas metas finais, eu, juntamente com meus colegas, cheguei à conclusão de que preciso descrever meu treinamento, a fim de enfatizar para os buscadores do desconhecido a importância do desenvolvimento da capacidade de perceber mais do que nos possibilita nossa percepção normal. Esta percepção ampliada deve ser uma nova forma de percepção, moderada e pragmática. De forma alguma pode ser tão-somente uma continuação da maneira de perceber o mundo na vida cotidiana.

Os fatos por mim narrados aqui descrevem os estágios iniciais do treinamento de feitiçaria para um rastejante. Esta fase inclui a purificação da maneira habitual de pensar, agir e sentir, por meio de uma atividade tradicional da feitiçaria, a qual todos os neófitos devem realizar, chamada de “recapitulação”. Para complementar a recapitulação, ensinaram-me uma série de práticas, chamadas de “passagens da feitiçaria”, que inclui movimentos e respiração. Para que tais práticas ganhassem coerência, ministraram-me os fundamentos e explicações filosóficas associadas.

A finalidade de tudo que me ensinaram era a redistribuição de minha energia normal e sua ampliação, para que ela pudesse ser utilizada nas realizações perceptivas extraordinárias exigidas pelo treinamento da feitiçaria. A idéia subjacente ao treinamento é a seguinte: quando o padrão compulsivo de velhos hábitos, pensamentos, expectativas e sentimentos é eliminado por meio da recapitulação, a pessoa torna-se, indiscutivelmente, capaz de acumular energia suficiente para viver segundo os novos fundamentos lógicos proporcionados pela tradição da feitiçaria — e comprovar esses fundamentos, através da percepção direta de uma realidade diferente.

 

Caminhei até um local isolado, distante da estrada principal e das pessoas, para desenhar as sombras do amanhecer refletidas sobre as incomparáveis montanhas de lava que circundam o Gran Desierto, na região sul do Arizona. As rochas pontudas e escuras cintilavam, iluminadas pelos raios de sol em seus cimos. Enormes rochas porosas espalhavam-se à minha volta, resquícios do fluxo de lava de gigantesca erupção vulcânica. Acomodei-me sobre um amplo bloco de rocha e, esquecida de todo o resto, mergulhei em meu trabalho, como fazia freqüentemente naquele belo terreno escarpado. Eu havia terminado de esboçar os promontórios e depressões das montanhas distantes quando percebi uma mulher observando-me. Aborreceu-me tremendamente alguém perturbar minha solidão. Fiz tudo para ignorá-la, mas, quando ela se aproximou para contemplar meu trabalho, virei-me de frente para ela, exasperada.

Suas maçãs do rosto proeminentes e os cabelos negros na altura dos ombros conferiam-lhe um aspecto de eurasiana. Tinha a pele delicada e lisa, o que tornava difícil saber a sua idade; ela poderia ter entre trinta e cinqüenta anos. Devia ser uns cinco centímetros mais alta do que eu, ou seja, devia ter 1,70m; mas, com sua compleição pujante, parecia ter o dobro da minha altura. As calças de seda preta e o casaco oriental, entretanto, conferiam-lhe uma aparência bastante harmoniosa.

Percebi seus olhos, verdes e brilhantes. Foi esse brilho amigável que extinguiu minha raiva, e ouvi-me fazendo uma pergunta superficial à mulher:

— Você mora por aqui?

— Não — disse ela, aproximando-se mais alguns passos. — Estou a caminho do posto de controle da fronteira americana, em Sonoyta. Dei uma parada para esticar as pernas e acabei neste local ermo. Fiquei tão surpresa ao ver alguém aqui, tão longe de tudo, que não consegui me conter e acabei me intrometendo como fiz. Permita-me que me apresente. Meu nome é Clara Grau.

Ela estendeu a mão e nós nos cumprimentamos; sem a menor hesitação, contei-lhe que recebi o nome Taisha ao nascer, mas depois meus pais acharam que o nome não era suficientemente americano e passaram a chamar-me de Martha, nome de minha mãe. Eu detestei o nome e optei por Mary.

— Que interessante! — observou ela. — Você tem três nomes tão diferentes. Vou chamá-la de Taisha, pois é seu nome de nascença.

Apreciei a escolha. Fora o nome que eu havia escolhido. Conquanto a princípio houvesse concordado com meus pais que o nome era demasiado exótico, sentira tamanha aversão pelo nome Martha que acabei tornando Taisha meu nome secreto.

Com um tom de voz incisivo, que ela imediatamente dissimulou com um sorriso benevolente, Clara bombardeou-me com uma série de afirmações em forma de perguntas.

— Você não é do Arizona — iniciou ela.

Respondi com sinceridade, o que raramente fazia, pois estava acostumada a ser cautelosa com as pessoas, sobretudo desconhecidas.

— Vim para o Arizona há um ano, para trabalhar.

— Você não deve ter mais de vinte anos.

— Vou fazer vinte e um daqui a alguns meses.

— Você tem um leve sotaque. Não parece americana, mas não consigo identificar sua nacionalidade.

— Sou americana, mas morei na Alemanha quando criança — respondi. — Meu pai é americano e minha mãe, húngara. Saí de casa quando entrei para a universidade e nunca mais voltei, pois não queria mais nenhuma relação com minha família.

— Estou percebendo que você não se dava bem com eles?

— Não. Eu me sentia infeliz. Mal podia esperar para ir embora de casa. Ela sorriu e assentiu como se conhecesse o desejo de fuga.

— Você é casada? — indagou a mulher.

— Não. Não tenho ninguém no mundo — respondi com o toque de autopiedade que sempre sentia quando falava de mim.

Ela não fez nenhum comentário, mas falou com tranqüilidade e cuidado, como se quisesse sossegar-me e ao mesmo tempo comunicar o maior número de informações sobre si mesma de que fosse capaz a cada frase.

Enquanto ela falava, fui guardando os lápis de desenho na maleta, sem afastar os olhos dela. Não queria dar a impressão de que não estava ouvindo.

— Sou filha única e meus pais já morreram — disse ela. — A família de meu pai é mexicana, de Oaxaca. Mas a família de minha mãe é americana, com ascendência alemã. Eles são do interior do leste, mas agora moram em Phoenix. Estou voltando do casamento de um de meus primos.

— Também mora em Phoenix? — perguntei.

— Passei metade da minha vida no Arizona e a outra metade no México — replicou ela. — Mas nos últimos anos, meu lar tem sido o estado de Sonora, no México.

Corri o fecho de minha pasta. Conhecer e falar com esta mulher me deixara tão perturbada que percebi que não conseguiria mais trabalhar naquele dia.

— Também viajei para o Oriente — continuou ela, recuperando minha atenção. — Lá aprendi acupuntura e as artes marciais e curativas. Inclusive morei alguns anos em um templo budista.

— É mesmo? — Lancei-lhe um olhar de soslaio. Seus olhos eram de uma pessoa que meditava muito. Eram ardentes mas tranqüilos. — Tenho muito interesse pelo Oriente — comentei —, especialmente o Japão. Eu também estudei budismo e artes marciais.

— É mesmo? — exclamou ela, como eu.—Gostaria de poder lhe dizer qual é meu nome budista, mas nomes secretos só devem ser revelados em circunstâncias adequadas.

— Eu lhe disse meu nome secreto — falei, apertando as fitas de minha pasta.

— Sim, Taisha, você disse, e isto para mim é muito importante —replicou ela com uma seriedade exagerada.—Ainda assim, este momento é apenas para apresentações.

— Você veio de carro até aqui? — perguntei, procurando com os olhos o carro nas redondezas.

— Eu ia lhe fazer a mesma pergunta — disse ela.

— Deixei meu carro a meio quilômetro, numa estrada de terra ao sul daqui. E o seu carro, onde está?

— O seu carro é um Chevrolet branco? — perguntou ela, divertida.

— É.

— Bom, o meu carro está estacionado ao lado do seu. — Soltou uma risadinha, como se tivesse dito alguma coisa engraçada. Fiquei surpresa por achar sua risada tão irritante.

— Agora preciso ir — falei. — Foi muito agradável conhecer você. Adeus!

Comecei a andar em direção a meu carro, certa de que a mulher ficaria para trás, admirando a paisagem.

— Não vamos dizer adeus ainda — protestou ela. — Vou com você.

Caminhamos juntas. Ao lado de meus sessenta quilos, a mulher parecia uma enorme rocha. Sua cintura era arredondada e compacta. Ela transmitia a sensação de que poderia facilmente ter sido obesa, mas não era.

— Posso fazer uma pergunta pessoal, Sra. Grau? — indaguei, apenas para quebrar o silêncio incômodo. Ela parou de andar e olhou para mim.

— Não sou senhora de ninguém — falou bruscamente. — Sou Clara Grau. Pode me chamar de Clara e, sim, vá em frente e pergunte o que quiser.

— Estou vendo que você não aprecia o amor e o casamento — comentei, reagindo ao seu tom de voz. Ela me lançou momentaneamente um olhar feroz, mas suavizou-o imediatamente.

— Definitivamente não sou a favor da escravidão — disse.

— Mas não apenas para as mulheres. Bom, o que é que você ia me perguntar? Sua reação foi tão inesperada que esqueci o que ia perguntar e fiquei constrangida por estar olhando-a fixamente. — Por que fez toda essa caminhada até este lugar em particular? — perguntei apressadamente.

— Vim aqui porque é um lugar de energia. — Ela apontou as formações de lava a distância. — Outrora aquelas montanhas foram projetadas do coração da terra, como sangue. Sempre que venho ao Arizona, faço um desvio para passar por aqui. Este lugar irradia uma energia terrestre peculiar. Agora deixe-me fazer a mesma pergunta: por que você escolheu este lugar?

— Venho muito aqui. É meu local predileto para desenhar. — Eu não quis fazer uma brincadeira, mas ela desatou a rir.

— Este detalhe explica tudo! — exclamou, prosseguindo em tom mais sério. — Vou lhe pedir para fazer algo que você poderá considerar esquisito ou mesmo idiota, mas escute o que vou dizer até o fim. Gostaria de convidá-la para passar alguns dias em minha casa.

Levantei a mão para agradecer e recusar o convite, mas ela me pediu para reconsiderá-lo. Garantiu-me que nosso interesse mútuo pelo Oriente e pelas artes marciais proporcionaria uma troca de idéias séria.

— Onde exatamente você mora? — perguntei.

— Perto da cidade de Navojoa.

— Mas fica a mais de seiscentos quilômetros daqui.

— Sim, é bem longe. Mas é um lugar tão lindo e tranqüilo que tenho certeza de que você vai gostar. — Ficou em silêncio por um instante, como se aguardando minha resposta.—Além disso, tenho a sensação de que no momento você não tem nenhum compromisso, e tem tentado, sem o saber, encontrar algo para fazer. Bem, pode ser que isto seja exatamente o que você estava esperando.

Ela tinha razão, eu não tinha a menor idéia do que fazer com minha vida. Acabara de sair de um emprego de secretária para colocar meu trabalho com a arte em dia. Mas certamente não tinha a menor vontade de ser hóspede de alguém.

Olhei em torno, à procura de algo que pudesse me dar uma sugestão do que devia fazer. Nunca consegui explicar de onde eu havia tirado a idéia de que é possível receber ajuda ou dicas no ambiente circundante, mas em geral eu conseguia ajuda assim. Eu possuía uma técnica que parecia saída do nada, por meio da qual freqüentemente encontrava opções anteriormente desconhecidas para mim. Eu costumava deixar meus pensamentos livres e fixava os olhos no horizonte ao sul, embora não tivesse a menor idéia de por que sempre escolhia o sul. Após alguns minutos de silêncio, costumavam surgir insights que me ajudavam a decidir o que fazer ou como agir em determinada situação.

Fixei o olhar no horizonte sul enquanto caminhávamos, e de repente vislumbrei a melancolia de minha vida à minha frente como o deserto árido. Posso dizer com honestidade que, embora soubesse que toda a região sul do Arizona, uma parte da Califórnia e metade do estado de Sonora, no México, constituem o deserto de Sonora, nunca havia percebido antes como aquele deserto era solitário e desolado.

No momento seguinte sobreveio o impacto de perceber que minha vida era tão vazia e árida quanto aquele deserto. Eu havia rompido com minha família e não constituíra minha própria família. Sequer tinha perspectivas para o futuro. Não tinha trabalho. Vivia com uma pequena herança deixada pela tia cujo nome eu levava, mas o dinheiro havia acabado. Estava totalmente sozinha no mundo. A amplidão que se estendia à minha volta, árida e indiferente, fez aflorar em mim o sentimento avassalador de autocomiseração. Senti necessidade de um amigo, de alguém que pudesse romper com a solidão de minha vida.

Sabia que era uma tolice aceitar o convite de Clara e mergulhar em uma situação desconhecida, sobre a qual eu não tinha controle, mas algo em sua maneira direta e em sua vitalidade física despertou-me a curiosidade e o sentimento de respeito. Percebi que eu estava admirando e até mesmo invejando sua beleza e força. Achei-a uma mulher admirável e vigorosa, independente, autoconfiante, indiferente sem ser dura ou destituída de humor. Ela possuía exatamente as qualidades que eu sempre quisera para mim mesma. Mas, acima de tudo, sua presença parecia eliminar meu vazio. Ela tornava o espaço à sua volta cheio de energia, vibrante e pleno de infinitas possibilidades.

Por outro lado, eu tinha uma política inflexível de nunca aceitar convites para as casas das pessoas, e muito menos de alguém que eu acabara de conhecer no deserto. Eu possuía um pequeno apartamento em Tucson e, para mim, aceitar convites significava que eu teria de retribuir, coisa que eu não estava preparada para fazer. Por um instante, permaneci de pé imóvel, sem saber o que fazer.

— Por favor, aceite — estimulou-me Clara. — Significaria muito para mim.

— Está bem, acho que posso visitá-la — falei sem muita convicção, querendo dizer exatamente o contrário. Ela me olhou entusiasmada e imediatamente ocultei meu pânico com uma jovialidade que estava longe de sentir. — Vai me fazer bem mudar de ambiente — continuei. — Vai ser uma aventura!

Ela assentiu, concordando.

— Você não vai se arrepender — disse, com um ar confiante que ajudou a desfazer minhas dúvidas. — Podemos praticar artes marciais juntas. Ela fez alguns movimentos vigorosos com a mão, ao mesmo tempo graciosos e enérgicos. Pareceu-me uma incongruência aquela mulher ser tão ágil.

— Que tipo específico de arte marcial você estudou no Oriente? — perguntei, percebendo que ela adotava com facilidade a postura de um lutador.

— No Oriente, estudei todos os estilos mas nenhum em particular— replicou, esboçando um sorriso.—Quando estivermos em minha casa, eu os demonstrarei para você com prazer.

Percorremos o resto do caminho em silêncio. Quando chegamos ao local onde os carros estavam estacionados, guardei meu equipamento na mala do carro e esperei que Clara dissesse alguma coisa.

— Bem, vamos lá — disse ela. — Eu vou na frente. Você dirige rápida ou lentamente, Taisha?

— Eu rastejo.

— Eu também. A temporada na China me curou da pressa.

— Posso fazer uma pergunta sobre a China, Clara?

— Claro. Já disse que você pode perguntar o que quiser sem antes pedir permissão.

— Você deve ter estado na China antes da Segunda Guerra Mundial. Não é?

— Ah, sim. Estive lá há uma eternidade. Imagino que você nunca tenha visitado a China.

— Não. Estive apenas em Formosa e no Japão.

— É claro que as coisas eram diferentes antes da guerra — observou Clara. — A ligação com o passado ainda estava intacta. Agora tudo se rompeu.

Sem saber por que, tive medo de perguntar o que ela queria dizer com aquela afirmação; portanto indaguei quanto tempo levaria o trajeto até sua casa. Clara foi perturbadoramente vaga; disse-me apenas para estar preparada para uma árdua viagem. Suavizou o tom de voz e acrescentou que considerava minha coragem extremamente recompensadora.

— Ir de maneira tão desprendida com uma desconhecida — disse ela —, ou é uma tremenda tolice ou uma tremenda ousadia.

— Em geral sou muito cautelosa — expliquei —, mas desta vez estou agindo diferente.

Era verdade, e quanto mais eu pensava em minha atitude inexplicável, maior tornava-se meu mal-estar.

— Por favor, fale um pouco de você—pediu ela afavelmente. Como se desejando colocar-me à vontade, ela se aproximou e postou-se junto à porta de meu carro.

Novamente percebi-me revelando informações verdadeiras sobre mim mesma.

— Minha mãe é húngara, mas vem de uma antiga família austríaca — disse. — Ela conheceu meu pai na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, quando os dois trabalhavam em um hospital de campanha. Depois da guerra, eles se mudaram para os Estados Unidos e depois foram para a África do Sul.

— Por que foram para a África do Sul?

— Minha mãe queria ficar com seus parentes, que moravam lá.

— Você tem irmãos ou irmãs?

— Tenho dois irmãos, com um ano de diferença de idade. O mais velho tem vinte e seis anos.

Seus olhos estavam pousados em mim. E com uma facilidade sem precedentes, descarreguei sentimentos dolorosos que havia sufocado a vida inteira. Contei-lhe que havia crescido sozinha. Meus irmãos nunca prestaram atenção em mim porque eu era menina. Quando eu era pequena, eles costumavam me prender com uma corda a um poste, como um cachorro, enquanto eles corriam no pátio e jogavam futebol. Tudo o que eu podia fazer era esticar minha corda e observá-los divertindo-se. Quando fiquei mais velha, eu corria atrás deles. Mas naquela época ambos já tinham bicicletas e eu nunca conseguia alcançá-los. Quando eu reclamava com minha mãe, ela costumava responder que garotos sempre serão garotos e que eu devia brincar com bonecas e ajudar na casa.

— Sua mãe a criou segundo a maneira européia tradicional — disse ela.

— Sei disso. Mas não é muito consolador.

Depois que comecei, eu parecia não conseguir mais parar de falar de minha vida com aquela mulher. Contei que, enquanto meus irmãos viajavam e, mais tarde, foram estudar fora, eu tive de permanecer em casa. Queria ter aventuras como os garotos, mas, para minha mãe, as garotas tinham de aprender a fazer camas e passar roupas. Já é uma aventura cuidar de uma família, minha mãe costumava dizer. As mulheres nascem para obedecer. Eu já estava à beira das lágrimas quando contei a Clara que, desde que eu conseguia me lembrar, sempre tivera de servir a três senhores: meu pai e meus dois irmãos.

— Isto já parece muito — observou Clara.

— Foi horrível. Saí de casa para ficar o mais longe possível deles — prossegui. — E para ter aventuras também. Mas, até agora, não encontrei toda essa alegria e empolgação. Acho que simplesmente não fui criada para ser feliz e despreocupada.

Descrever minha vida para uma completa desconhecida deixou-me profundamente ansiosa. Parei de falar e olhei para Clara, aguardando uma reação que aliviasse minha ansiedade, ou a aumentasse a ponto de fazer-me mudar de idéia e desistir de ir com ela.

— Bem, parece que você só sabe fazer bem uma coisa, e isso você pode fazer ao máximo — disse ela. Pensei que ela ia dizer que eu podia desenhar ou pintar, mas, mortificada, ouvi-a acrescentar:

— Tudo que você sabe fazer é sentir pena de si mesma. Apertei a maçaneta da porta do carro com toda força.

— Não é verdade — protestei. — Quem é você para me dizer isto? Ela começou a rir e sacudiu a cabeça.

— Você e eu somos muito parecidas — disse. — Ensinaram-nos a ser passivas, subservientes, e a nos adaptar a situações, mas interiormente ficamos fervendo. Somos como um vulcão prestes a entrar em erupção, e o que nos deixa ainda mais frustradas é que não temos sonhos nem expectativas além de algum dia encontrar o homem certo, que nos arrancará de nosso sofrimento.

Ela me deixou sem palavras.

— E aí? Não tenho razão? Não tenho razão? — perguntou ela.

— Seja honesta, não tenho razão?

Cerrei os punhos, pronta para dizer-lhe umas verdades. Clara abriu um sorriso afetuoso, irradiando vitalidade e uma sensação de bem-estar que me fizeram sentir que não precisava mentir ou ocultar meus sentimentos dela.

— Sim, você me pegou — concordei.

Tive de admitir que a única coisa que dava sentido à minha existência melancólica, além da arte, era a vaga esperança de que algum dia eu ia conhecer um homem que me compreenderia e amaria como a pessoa especial que eu era.

— Talvez sua vida vá mudar para melhor — falou Clara com um tom promissor.

Ela entrou em seu carro e fez sinal com a mão para que eu a seguisse. Só então me dei conta de que ela não me havia perguntado se eu tinha passaporte, roupas ou dinheiro suficientes, ou se eu tinha outros compromissos. Isto não me assustou nem desencorajou. Sem saber por que, quando soltei o freio de mão e o carro começou a andar, tive certeza de que tomara a decisão certa. Talvez minha vida finalmente fosse mudar.

 

Após mais de três horas dirigindo continuamente, paramos para o almoço na cidade de Guaymas. Enquanto esperávamos a chegada da comida, olhei pela janela para a rua estreita que flanqueava a baía. Um grupo de meninos pobres brincava com uma bola; mais além, operários assentavam tijolos numa construção; outros estavam em seu intervalo do almoço, encostados em pilhas de sacos de cimento e bebericando sodas diretamente nas garrafas. Não pude deixar de pensar que no México tudo parecia extremamente ruidoso e poeirento.

— Neste restaurante eles servem uma sopa de tartaruga deliciosa — disse Clara, recuperando minha atenção.

Naquele momento, uma garçonete sorridente, com um dente de prata na frente, colocou duas tigelas de sopa na mesa. Educadamente, Clara trocou algumas palavras com ela em espanhol e em seguida a garçonete apressou-se a servir outros clientes.

— Nunca tomei sopa de tartaruga — falei, pegando a colher e examinando-a para ver se estava limpa.

— Você vai achar uma delícia — disse Clara, observando-me limpar minha colher com um guardanapo de papel. Relutantemente experimentei a sopa. Os pedaços de carne branca flutuando em um molho de tomate cremoso realmente estavam deliciosos. Tomei mais algumas colheradas da sopa e perguntei:

— Onde eles pegam as tartarugas? Clara apontou para a janela.

— Na baía.

Um homem de meia-idade, atraente, sentado na mesa ao lado da nossa, virou-se para mim e piscou. Seu gesto, pensei, era mais uma tentativa de ser engraçado do que uma insinuação de cunho sexual. Ele se debruçou em minha direção, como se estivéssemos falando com ele.

— A tartaruga que você está comendo era das grandes — disse em inglês com sotaque.

Clara olhou para mim e soergueu uma sobrancelha, como se não [2]estivesse acreditando na audácia do estranho.

— Esta tartaruga era grande o bastante para alimentar uma dúzia de pessoas famintas — prosseguiu o homem. — Eles pegam as tartarugas no mar. São precisos vários homens para puxar uma para o barco.

— Suponho que devem arpoá-las como às baleias — comentei. Habilmente o homem aproximou sua cadeira de nossa mesa.

— Não, acho que eles usam redes grandes — disse. — E aí eles dão uma paulada para deixá-las inconscientes antes de abrir-lhes a barriga. Dessa forma a carne não fica dura demais.

Meu apetite fugiu pela janela. A última coisa que eu queria era um desconhecido intrometido e insensível em nossa mesa. No entanto eu não sabia como resolver a situação.

— Já que estamos falando de comida, Guaymas é famosa por seu camarão grande — continuou o homem com um sorriso apaziguador. — Permitam-me pedir alguns para vocês.

— Eu já pedi — Clara falou friamente.

Nesse momento nossa garçonete voltou com um prato do maior camarão que eu já vira, suficiente para um banquete e, sem dúvida, muito mais do que Clara e eu poderíamos comer, por maior que fosse a nossa fome.

Nosso companheiro indesejável olhou para mim, esperando ser convidado para participar de nossa refeição. Se eu estivesse sozinha, ele teria conseguido grudar em mim contra a minha vontade. Mas Clara tinha outros planos e reagiu de maneira decidida. Levantou-se com agilidade felina e, próxima do homem, olhou-o bem nos olhos.

— Cai fora, seu chato! — gritou em espanhol. — Como se atreve a sentar em nossa mesa? Minha sobrinha não é nenhuma prostituta!

Seu olhar era tão intenso e seu tom de voz tão assustador que a sala parou. Todos os olhos voltaram-se para nossa mesa. O homem se encolheu de maneira tão deplorável que senti pena dele. Deslizou para fora da cadeira e saiu do restaurante quase rastejando.

— Eu sei que você foi ensinada a permitir que os homens recebam o melhor de você só porque são homens — falou Clara quando voltou a sentar­se. — Sempre foi simpática com os homens e eles sempre sugaram tudo que você tem. Não sabe que os homens sugam a energia das mulheres?

Eu estava constrangida demais para discutir com ela. Sentia todos os olhos na sala voltados para mim.

— Você se deixa intimidar por eles porque sente pena deles — continuou Clara. — Em seu íntimo, está louca para cuidar de um homem, qualquer um. Se aquele idiota fosse uma mulher, você nunca teria deixado que ela se sentasse à nossa mesa.

Meu apetite estava completamente perdido. Fiquei acabrunhada e pensativa.

— Estou vendo que toquei na ferida — disse Clara com um sorriso afetado.

— Você fez uma cena; foi grosseira — reprovei.

— Sem dúvida — replicou ela com uma risada. — Mas também quase o fiz morrer de susto. — Seu rosto estava tão franco e ela parecia tão feliz que acabei rindo, ao lembrar do susto que o homem levara.

— Eu sou como minha mãe — resmunguei. — Ela conseguiu me transformar num rato quando se trata de homens.

Mal externei esse pensamento, minha depressão desapareceu e voltei a sentir fome. Acabei com quase todo o prato de camarões.

— Não existe nenhum sentimento que se compare ao de começar uma nova viagem de estômago cheio — declarou Clara.

Uma pontada de medo fez o camarão pesar em meu estômago. Com toda a empolgação, não me ocorrera perguntar a Clara como era sua casa. Talvez fosse uma choupana como as que eu vira antes, atravessando as cidades mexicanas. Que tipo de alimento eu ia comer? Talvez aquela fosse minha última refeição decente. Será que eu ia poder beber água? Imaginei-me doente, com um grave problema intestinal. Não sabia como perguntar a Clara como seriam minhas acomodações sem parecer grosseira ou mal-agradecida. Clara olhava-me firmemente. Parecia sentir minha perturbação.

— O México é um lugar difícil — disse ela. — Você não pode se distrair nem um instante. Mas vai se acostumar. A região norte do país é ainda mais dura do que o resto. As pessoas vão para o norte em busca de trabalho ou lá fazem uma parada antes de cruzar a fronteira dos Estados Unidos. Elas vão de trem. Algumas ficam, outras vão para o interior em vagões de carga, para trabalhar em enormes empresas agrícolas de corporações particulares. Mas não há trabalho nem comida suficientes para todos, portanto a maioria vai como braceros para os Estados Unidos.

Sorvi a última gota de sopa. Sentir-me-ia culpada se deixasse algo no prato.

— Fale-me mais desta região, Clara.

— Todos os índios daqui são yaquis realocados em Sonora pelo governo mexicano.

— Você quer dizer que nem sempre eles moraram aqui?

— Esta é sua terra natal ancestral — explicou Clara. — Nas décadas de 1920 e 1930, porém, eles foram retirados e enviados, às dezenas de milhares, para o México central. Aí, em fins da década de 1940, foram trazidos de volta para o deserto de Sonora. — Clara colocou um pouco de água mineral em seu copo e depois no meu. — É difícil viver no deserto de Sonora — prosseguiu. — Como você viu enquanto dirigíamos, a terra aqui é árida e inóspita. No entanto, os índios não tiveram outra escolha senão estabelecer-se naquilo que outrora fora o rio yaqui. Lá, antigamente, os yaquis primitivos construíram suas cidades sagradas e nelas habitaram durante centenas de anos, até a chegada dos espanhóis.

— Nós vamos passar por essas cidades? — indaguei.

— Não. Não temos tempo. Quero chegar a Navojoa antes do anoitecer. Talvez algum dia possamos fazer uma visita a essas cidades sagradas.

— Por que essas cidades são sagradas?

— Porque, para os índios, a localização de cada cidade ao longo do rio corresponde simbolicamente a um local em seu universo mítico. Assim como as montanhas de lava no Arizona, esses são locais de poder. Os índios possuem uma mitologia extremamente elaborada. Acreditam poder entrar e sair do mundo dos sonhos em um momento. Sabe, o conceito de realidade deles não é igual ao nosso. Segundo os mitos dos yaquis, essas cidades também existem no outro mundo e eles recebem seu poder desse reino etérico. Eles se autodenominam o povo sem razão, para se diferenciarem de nós, o povo com razão.

— Que tipo de poder eles possuem? — perguntei.

— Sua magia, sua feitiçaria, seu conhecimento. Eles recebem tudo diretamente do mundo dos sonhos. E este mundo é descrito em suas lendas e histórias. Os índios yaquis possuem uma história oral rica e vasta.

Percorri com os olhos o restaurante cheio. Tentei perceber quantas daquelas pessoas sentadas nas mesas eram índias, se é que havia alguma, e quantas eram mexicanas. Alguns homens eram altos e magros, enquanto outros eram baixos e atarracados. Todos pareciam diferentes para mim, e secretamente sentia-me superior e nitidamente deslocada.

Clara terminou de comer os camarões, o feijão e o arroz. Eu já estava satisfeita mas, apesar de meus protestos, ela insistiu em pedir creme caramelado de sobremesa.

— É melhor você encher o estômago — recomendou ela com uma piscadela. — Você não sabe quando terá sua próxima refeição ou como ela será. Aqui no México nós sempre comemos tudo.

Eu sabia que ela estava me provocando, no entanto, senti a verdade de suas palavras. Eu tinha visto antes um burro morto, atropelado por um carro na estrada. Eu sabia que nas regiões rurais não há refrigeradores, portanto as pessoas comem a carne que encontram. Não pude deixar de pensar em qual seria minha próxima refeição. Silenciosamente decidi limitar minha estadia na casa de Clara a apenas alguns dias.

Em tom mais sério, Clara prosseguiu com suas explicações:

— As coisas foram de mal a pior para os índios aqui — disse. — Quando o governo construiu uma represa como parte de um projeto hidrelétrico, o curso do rio Yaqui foi modificado tão drasticamente que as pessoas tiveram de juntar suas coisas e estabelecer-se em outro lugar.

A dificuldade desse tipo de vida colidia com minha própria criação, na qual sempre houve comida e conforto suficientes. Fiquei pensando se vir ao México não seria a expressão de um profundo desejo meu de completa transformação. Toda a minha vida eu estivera buscando a aventura, mas agora que eu me achava em suas garras, o medo do desconhecido tomava conta de mim.

Provei um pouco do creme caramelado e tirei de minha mente aquela apreensão que brotara desde meu encontro com Clara no deserto do Arizona. Eu estava satisfeita com sua companhia. No momento, me encontrava bem­alimentada com camarões graúdos e sopa de tartaruga e, embora, como a própria Clara havia insinuado, esta pudesse ser minha última boa refeição, decidi que teria de confiar nela e permitir a continuidade da aventura.

Clara fez questão de pagar a conta. Enchemos o tanque dos carros e pegamos novamente a estrada. Após dirigirmos por várias horas mais, chegamos em Navojoa. Não paramos, mas a atravessamos, deixando a Rodovia Pan-Americana para entrar em uma estradinha de cascalho em direção ao leste. A tarde já ia pela metade. Eu não estava realmente cansada; na verdade, havia gostado do restante da viagem. Quanto mais nos aproximávamos do sul, mais uma sensação de felicidade e bem-estar substituía meu habitual estado de neurose e depressão.

Após mais de uma hora percorrendo uma estrada acidentada, Clara saiu da estrada e fez sinal para que eu a seguisse. Descemos por um terreno árido ao longo de um muro recoberto por uma buganvília em flor. Estacionamos em uma clareira de terra batida ao final do muro.

— Eu moro aqui — falou ela ao sair do carro. Aproximei-me de seu carro. Clara tinha uma aparência cansada e parecia ter-se tornado maior.

— Você parece tão revigorada quanto no início da viagem — comentou ela. — Ah, as maravilhas da juventude!

Do outro lado do muro, completamente oculta pelas árvores e arbustos densos, assomava uma grande casa com telhado de telhas, janelas fechadas e várias sacadas. Atordoada, segui Clara, que atravessou um portão de ferro forjado, um pátio de tijolos e uma porta de madeira maciça, chegando aos fundos da casa. O piso de lajotas de terracota do corredor frio e vazio acentuava a severidade das paredes caiadas e das vigas escuras de madeira natural do teto. Atravessamos o corredor e adentramos uma sala espaçosa.

As paredes brancas tinham como limite azulejos primorosamente pintados. Dois sofás de cor bege, imaculados, e quatro poltronas agrupavam-se em torno de uma mesinha de centro, de madeira maciça. Sobre a mesa havia algumas revistas abertas, em inglês e espanhol. Tive a impressão de que alguém acabara de lê-las, sentado em uma das poltronas, mas saíra apressadamente quando entramos pela porta dos fundos.

— O que está achando de minha casa? — perguntou Clara, abrindo um sorriso orgulhoso.

— É fantástica — falei. — Quem poderia imaginar que haveria uma casa como essa aqui no meio do deserto? — Então meu eu invejoso levantou a cabeça e fiquei profundamente constrangida. Era o tipo de casa que eu sempre sonhara possuir, conquanto soubesse que jamais teria condições de ter uma.

— Você não pode imaginar como está sendo precisa ao descrever este local como fantástico — falou ela. — Só posso lhe dizer, a respeito da casa, que ela é impregnada de poder, como aquelas montanhas de lava que vimos hoje de manhã. Um poder silencioso e intenso a permeia, semelhante a uma corrente elétrica percorrendo os fios.

Ao ouvir isto, aconteceu uma coisa inexplicável: minha inveja desapareceu. Desvaneceu-se por completo com a última palavra de Clara.

— Agora vou lhe mostrar seu quarto — anunciou ela. — E também vou estabelecer algumas regras básicas que você deverá observar enquanto for minha convidada. Qualquer parte da casa à direita e nos fundos dessa sala é sua, pode explorá-la e usá-la, incluindo os terrenos. Mas você não deve entrar nos quartos, exceto o seu, é claro. Você pode usar o que quiser em seu quarto. Pode inclusive quebrar objetos em acessos de raiva ou amá-los em explosões de afeto. Contudo, o lado esquerdo da casa não é acessível a você, sob nenhum aspecto, forma ou maneira. Portanto, fique longe dele.

Fiquei chocada com o estranho pedido, mas assegurei-lhe haver compreendido perfeitamente seus desejos, os quais seriam obedecidos. Mas, na verdade, eu considerei seus pedidos grosseiros e arbitrários. E quanto mais ela me alertava para não entrar em determinadas partes da casa, mais curiosa eu ficava para vê-las.

Clara aparentemente havia pensado em outra coisa, e acrescentou:

— Naturalmente você pode usar a sala; pode inclusive dormir aqui no sofá se estiver cansada demais ou com preguiça de ir para seu quarto. Entretanto, uma outra parte que você não pode usar é o terreno na frente da casa e também a porta principal. Ela está temporariamente trancada, portanto entre sempre pela porta dos fundos.

Clara não me deu tempo de responder. Conduziu-me por um comprido corredor, passando por diversas portas fechadas que eram quartos, ela explicou, portanto proibidos para mim, até chegarmos a um amplo quarto. A primeira coisa que percebi ao entrar foi a cama de casal de madeira desenhada, coberta por uma bela colcha de crochê em um tom amarelo-claro. Ao lado de uma janela na parede que dava para os fundos da casa, havia uma cristaleira de mogno entalhada a mão, totalmente repleta de objetos antigos, vasos e estatuetas de porcelana, caixas de esmalte cloasonado e minúsculas tigelas. Na parede oposta via-se um armário, combinando, que Clara abriu. Pendurados no interior estavam vestidos da moda, casacos, chapéus, sapatos, sombrinhas, bengalas, todos esses belos artigos aparentemente escolhidos com cuidado e bom gosto.

Antes que eu tivesse tempo de perguntar a Clara onde ela conseguira aquelas lindas roupas, ela fechou as portas.

— Sinta-se à vontade para usar o que quiser — disse. — Estas roupas são suas e este quarto é seu durante sua permanência nesta casa. — Então lançou um olhar por sobre o ombro, como se houvesse mais alguém no quarto, e acrescentou: — E quem sabe por quanto tempo será essa permanência?

Aparentemente ela se referia a uma visita prolongada. Senti as palmas das mãos úmidas quando lhe disse, desajeitada, que poderia ficar no máximo alguns dias. Clara garantiu que eu estaria perfeitamente segura com ela ali. Na verdade, mais segura do que em qualquer outro lugar. Ela acrescentou que seria uma tolice de minha parte recusar essa oportunidade de ampliar meus conhecimentos.

— Mas tenho que procurar emprego — falei à guisa de desculpa. — Não tenho dinheiro.

— Não se preocupe com dinheiro — disse ela.—Emprestarei o que você precisar, ou lhe darei. Isto não é problema.

 

Agradeci o oferecimento mas informei-lhe que eu fora criada acreditando que aceitar dinheiro de um estranho era completamente impróprio, por mais bem­intencionada que fosse a oferta.

Ela repeliu minha argumentação, dizendo:

— Acho que o problema, Taisha, é que você ficou zangada quando lhe pedi para não usar o lado esquerdo da casa nem a porta principal. Sei que você achou que eu estava sendo arbitrária e excessivamente reservada. Agora você não quer ficar, educadamente, mais do que um dia ou dois. Talvez ache inclusive que sou uma velha excêntrica com alguns morcegos de vigia!

— Não, não, Clara, não é isso. Tenho que pagar meu aluguel. Se não encontrar um emprego logo, não terei mais dinheiro, e aceitar dinheiro de outra pessoa está fora de questão para mim.

— Você quer dizer que não ficou ofendida com meu pedido para evitar certas partes da casa?

— Claro que não.

— Você não sentiu curiosidade em saber por que fiz tal pedido?

— Sim, fiquei curiosa.

— Bom, o motivo é que outras pessoas moram neste lado da casa.

— Seus parentes, Clara?

— Sim. Somos uma grande família. Na verdade há duas famílias vivendo aqui.

— E as duas são famílias grandes?

— São. Cada família possui oito membros, totalizando dezesseis pessoas.

— E todos vivem no lado esquerdo da casa, Clara?—Em toda minha vida nunca ouvira falar de uma situação tão estranha.

— Não. Apenas oito pessoas moram do lado esquerdo. As outras oito compõem minha família imediata e moram comigo do lado direito da casa. Você é minha convidada, portanto deve permanecer do lado direito. Ê muito importante que compreenda isto. Pode parecer estranho, mas não é incompreensível.

 

Admirou-me o poder de Clara sobre mim. Suas palavras tranqüilizavam minhas emoções, mas não acalmavam minha mente. Compreendi então que, para reagir inteligentemente em qualquer situação, eu precisava de uma conjunção de ambas: uma mente alarmada e emoções turbulentas. Caso contrário, eu permanecia passiva, aguardando o próximo impulso externo que me agitaria. Estar com Clara fizera-me compreender que, apesar de meus protestos em contrário, apesar de minha luta para ser diferente, independente, eu era incapaz de pensar claramente ou de tomar minhas próprias decisões.

Clara lançou-me um olhar singular, como se estivesse acompanhando meus pensamentos silenciosos. Tentei dissimular minha confusão, afirmando apressadamente:

— Sua casa é linda, Clara. É muito antiga?

— Claro — disse ela, mas não explicou se estava querendo dizer que era uma bela casa ou se era muito antiga. Com um sorriso, ela acrescentou: — Agora que você conheceu a casa, isto é, metade da casa, temos que cuidar de uma coisinha.

Apanhou uma lanterna de um dos gabinetes, e do armário retirou um casaquinho chinês acolchoado e um par de botas para caminhada. Disse-me que teria de colocá-los depois de fazermos uma refeição leve, pois íamos sair para um passeio.

— Mas acabamos de chegar — protestei. — Não vai escurecer daqui a pouco?

— Vai. Mas quero levá-la a um mirante nas colinas, de onde você pode ver toda a casa e os terrenos. É melhor ver a casa pela primeira vez neste horário do dia. Todos nós tivemos nossa primeira visão da casa ao entardecer.

— Aquém você está se referindo com 'nós'? — indaguei.

— Às dezesseis pessoas que moram aqui, naturalmente. Todos fazemos exatamente as mesmas coisas.

— Todos vocês têm as mesmas profissões? — perguntei sem conseguir ocultar minha surpresa.

— Santo Deus, não — exclamou ela, levando a mão ao rosto enquanto ria.

— Quero dizer que, o que quer que qualquer um de nós tenha de fazer obrigatoriamente, nós outros também temos de fazer. Cada um de nós teve em primeiro lugar que ver a casa e os terrenos ao entardecer, portanto este é o horário do dia em que você deve vê-los também.

— Por que você está me incluindo nisto, Clara?

— Digamos, por enquanto, que é porque você é minha convidada.

— Eu vou conhecer seus parentes depois?

— Você vai conhecer todos eles — asseverou. — No momento não há ninguém na casa além de nós duas e um cão de guarda.

— Eles estão viajando?

— Exatamente, todos partiram em uma viagem prolongada e eu estou aqui, cuidando da casa com o cachorro.

— Quando eles vão voltar?

— Daqui a muitas semanas, talvez até mesmo meses.

— Aonde eles foram?

— Estamos sempre nos movimentando. Às vezes permaneço meses fora e outra pessoa fica cuidando da propriedade.

Eu já ia perguntar novamente para onde eles tinham ido, mas ela respondeu minha pergunta.

— Foram todos para a Índia — disse.

— Os quinze? — indaguei, incrédula.

— Não é fantástico? Vai custar uma fortuna! — ela falou com um tom de voz caricaturando meus sentimentos interiores de inveja e não consegui me conter; desatei a rir. Então ocorreu-me a idéia de que não era seguro permanecer sozinha em uma casa tão vazia e afastada, tendo apenas Clara por companhia. — Estamos sozinhas mas não há o que temer nesta casa — falou ela com inusitada firmeza. — Exceto talvez o cachorro. Quando voltarmos de nossa caminhada, vou apresentá-la a ele. Você precisa estar bastante calma para conhecê-lo. Ele vê diretamente o seu interior, e atacará se sentir qualquer hostilidade ou que você está com medo.

— Mas estou com medo — deixei escapar. Eu já estava começando a tremer.

Eu detestava cães desde criança, quando um dos doberman pinschers de meu pai havia pulado sobre mim e me derrubado no chão. A cadela não chegou a me morder, apenas rosnou e mostrou-me seus dentes afiados. Gritei por socorro, mas eu estava aterrorizada demais para me mexer. Estava tão assustada que molhei as calças. Ainda lembro como meus irmãos zombaram de mim quando me viram, chamando-me de bebê que devia estar usando fraldas.

— Também não gosto de cachorro — disse Clara —, mas o nosso não é realmente um cachorro. Ele é outra coisa.

Ela havia despertado meu interesse, mas isso não dissipou meu pressentimento.

— Se quiser refrescar-se antes, eu a acompanharei até o anexo, no caso de o cão estar à espreita — disse ela.

Fiz que sim com a cabeça. Eu estava cansada e irritada; o impacto do longo percurso finalmente tomara conta de mim. Eu queria lavar o rosto, retirar a poeira da estrada e desembaraçar meus cabelos.

Clara conduziu-me através de um corredor diferente que levava aos fundos. A pouca distância da casa havia duas construções menores.

— Este é meu ginásio — disse ela, apontando uma delas. — Você também não deve entrar aí, exceto se eu a convidar algum dia.

— É aí que você pratica artes marciais?

— É — Clara falou secamente. — A outra casa é onde se encontra o banheiro. Vou esperar você na sala, onde poderemos comer alguns sanduíches. Mas não se preocupe em arrumar seus cabelos — disse ela, como se percebendo minha preocupação. — Aqui não temos espelhos. Espelhos são como relógios; registram a passagem do tempo. E o importante é invertê-lo. [3]

Eu quis perguntar o que queria dizer com inverter o tempo, mas ela me conduziu em direção ao anexo. Lá dentro, encontrei várias portas. Como Clara não havia estipulado nada em relação ao lado direito e esquerdo da casa, e como eu não sabia onde era o banheiro, explorei toda a casa. A um lado do corredor central havia seis pequenos compartimentos sanitários, cada qual com uma privada baixa, de madeira, cuja altura exigia que a pessoa ficasse agachada. O que os diferenciava dos outros era o fato de não terem o odor inconfundível de uma fossa séptica nem o mau cheiro forte de uma fossa para excrementos recoberta de limo. Eu ouvia a água correndo sob as privadas de madeira, mas não saberia dizer como nem de onde ela vinha.

Do outro lado do corredor, havia três cômodos idênticos, com belos ladrilhos. Cada um continha uma banheira antiga e um comprido baú com um cântaro com água e uma bacia de porcelana combinando. Não havia espelhos nesses cômodos, nem acessórios de aço inoxidável onde eu pudesse ver o meu reflexo. Na verdade, não havia nenhum tipo de encanamento.

Derramei água numa bacia, molhei o rosto e passei os dedos úmidos em meus cabelos emaranhados. Em vez de usar uma das toalhas alvas e macias, por medo de sujá-las, enxuguei as mãos com alguns panos que estavam em uma caixa sobre o baú. Respirei profundamente várias vezes e massageei meu pescoço tenso antes de sair para enfrentar novamente Clara.

Encontrei-a na sala, arrumando flores em um vaso chinês azul e branco. As revistas anteriormente abertas estavam empilhadas, e ao lado havia um prato de comida. Ela sorriu ao ver-me.

— Você tem o frescor de uma margarida — observou. — Coma um sanduíche. Logo chegará o entardecer. Não podemos perder tempo.

 

Devorei metade de um sanduíche de presunto, coloquei apressadamente o casaco e as botas que Clara me dera e saímos de casa, cada uma levando uma lanterna potente. As botas estavam apertadas demais, e meu calcanhar esquerdo estava sendo esfolado. Tive certeza de que ia crescer uma bolha ali. Mas fiquei satisfeita com o casaco, pois a tarde estava fria. Levantei a gola e abotoei-a no pescoço.

— Vamos percorrer os terrenos — disse Clara. — Quero que você veja esta casa a distância e ao entardecer. Vou lhe mostrar coisas das quais você se deverá lembrar, portanto preste atenção.

Enveredamos por uma trilha estreita. A distância, eu podia ver a silhueta recortada e sombria das montanhas orientais contra o céu púrpura. Quando comentei a aparência sinistra das montanhas, Clara retrucou que elas pareciam tão ameaçadoras porque sua essência etérica era milenar. Contou-me que tudo nas esferas visíveis e invisíveis possui uma essência etérica, e deve-se estar receptivo a esta essência para saber como proceder.

O que ela disse fez-me lembrar da tática de olhar para o horizonte ao sul a fim de obter insights e orientação. Antes que pudesse interpelá-la a respeito, ela continuou falando das montanhas e árvores, e da essência etérica das rochas. Pareceu-me que Clara havia interiorizado a cultura chinesa a ponto de falar por enigmas, assim como os iluminados eram retratados na literatura oriental. Percebi então que, em nível subjacente, eu fora condescendente com ela o dia inteiro. Era um sentimento estranho, pois Clara era a última pessoa que eu gostaria de tratar de maneira condescendente. Eu estava acostumada a agir assim com pessoas frágeis ou arrogantes, em meu trabalho ou na escola, mas Clara não era frágil nem arrogante.

— Este é o lugar — disse Clara, apontando para uma clareira num platô.

— Você poderá ver a casa de lá.

Deixamos a trilha e caminhamos até a área que ela apontara. De lá tínhamos uma visão emocionante do vale abaixo. Pude ver um conjunto de árvores altas e verdejantes, circundadas por regiões marrons mais escuras, mas não a casa em si, completamente camuflada pelas árvores e arbustos.

— O posicionamento da casa está perfeitamente de acordo com as quatro direções — disse Clara, apontando uma folhagem compacta. — Seu quarto fica no lado norte, e a parte proibida da casa fica no lado sul. A entrada principal fica a leste; a porta dos fundos e o pátio ficam a oeste.

Clara indicou com a mão onde ficava cada região, mas eu não consegui vê-las; só consegui distinguir a área verde escuro.

— É preciso ter visão de raio X para ver a casa — resmunguei. — Ela está totalmente oculta pelas árvores.

— E árvores muito importantes também — Clara falou amavelmente, ignorando meu mau humor. — Cada uma dessas árvores é um ser individual com um propósito definido na vida.

— Não é claro que todo ser vivo nesta terra tem um propósito definido?

— indaguei, irritada. Alguma coisa na maneira entusiasmada com que Clara estava exibindo sua propriedade aborrecia-me. O fato de que eu não estava conseguindo ver o que ela estava me mostrando deixou-me ainda mais irritada. Uma lufada forte de vento fez meu casaco inflar na cintura, e então ocorreu-me que minha irritação poderia ser fruto de pura inveja.

— Eu não queria parecer detalhista — desculpou-se Clara. — O que quis dizer foi que tudo e todos em minha casa existem com uma finalidade específica. E incluem-se aí as árvores, eu mesmo e, naturalmente, você também.

Eu queria mudar de assunto e então, na falta de coisa melhor a dizer, perguntei:

— Você comprou esta casa, Clara?

— Não. Nós a herdamos. Ela pertence à família há gerações, embora, devido às agitações que têm sacudido o México, a casa tenha sido destruída e reconstruída diversas vezes.

Percebi que me sentia mais à vontade quando fazia perguntas simples e diretas e Clara me oferecia respostas diretas. A discussão sobre essências etéricas fora tão abstrata que necessitei de uma pausa, falando de alguma coisa cotidiana. Entretanto, para minha contrariedade, Clara interrompeu nossa conversa trivial e retomou suas insinuações misteriosas.

— Aquela casa é a cópia de todas as ações das pessoas que a habitam — disse quase com reverência. — Sua melhor característica é estar oculta. Qualquer um pode vê-la, mas ninguém a vê. Tenha isto em mente. É muito importante!

Como eu poderia esquecer, pensei. Nos últimos vinte minutos eu estivera forçando os olhos para enxergar a casa na semi-obscuridade. Queria ter um binóculo para satisfazer minha curiosidade. Antes que eu pudesse fazer qualquer comentário, Clara começou a descer a colina. Eu teria preferido ficar mais algum tempo ali,! sozinha, para respirar o ar noturno refrescante. Mas tive medo de não conseguir encontrar o caminho de volta na escuridão. Fiz uma anotação mental para retornar àquele local durante o dia e determinar se era realmente possível ver a casa como dissera Clara.

No trajeto de volta, rapidamente estávamos na entrada dos fundos da propriedade. A escuridão era total; eu só conseguia ver a pequena área iluminada por nossas lanternas. Ela apontou lanterna para um banco de madeira e disse-me para sentar e tirar as botas e o casaco, que colocou na prateleira ao lado da porta.

Eu estava faminta. Não me lembrava de ter sentido tanta fome em toda minha vida, no entanto achei que seria uma descortesia perguntar diretamente a Clara se íamos jantar ou não. Talvez ela; esperasse que a farta refeição que fizéramos em Guaymas fosse suficiente para o dia inteiro. Contudo, a julgar pelo tamanho Clara, ela não devia recusar comida.

— Vamos até a cozinha ver o que encontramos para comer — ofereceu ela. — Mas antes vou lhe mostrar onde fica o gerador e como ligá-lo.

Conduziu-me, iluminando com a lanterna o caminho que circundava uma parede, até um galpão de tijolos e com um telhado de aço ondulado. O galpão abrigava um pequeno gerador a diesel. Eu sabia ligá-lo porque tinha morado numa casa no campo que possuía gerador similar, para o caso de faltar luz. Quando puxei a alavanca, percebi pela janela do galpão que em apenas um lado da casa e parte do corredor as luzes se acendiam; eles estavam iluminados e todo o resto permanecia mergulhado na escuridão.

— Por que você não coloca a eletricidade em toda a casa? — perguntei a Clara. — Não faz sentido deixar a maior parte da casa às escuras. — E impulsivamente, acrescentei: — Se quiser, posso instalar a eletricidade para você.

Ela me olhou surpresa.

— É mesmo? Tem certeza de que não colocaria fogo na casa?

— Tenho. Na minha casa costumavam dizer que eu era a maga dos fios. Trabalhei como aprendiz de eletricista durante algum tempo, até que o eletricista começou a se tornar atrevido para meu lado.

— O que você fez? — indagou Clara.

— Disse-lhe onde ele podia enfiar os fios e fui embora. Clara soltou uma risada gutural. Não percebi o que ela achara engraçado, se o fato de eu ter trabalhado como eletricista ou o atrevimento do homem comigo.

— Obrigada — falou Clara, depois de recuperar a voz. — Mas a eletricidade da casa foi instalada exatamente como eu queria. Usamos a eletricidade apenas onde ela é necessária.

Conjeturei que a eletricidade era mais necessária na cozinha, portanto essa devia ser a área da casa onde havia luz. Automaticamente dirigi-me para a área iluminada. Clara puxou-me pela manga para deter-me.

— Aonde vai? — perguntou.

— À cozinha — respondi.

— Está na direção errada — disse ela. — Aqui é o México rural; nem a cozinha nem o banheiro ficam dentro da casa. O que acha que temos? Geladeiras elétricas e fogões a gás?

Ela me conduziu pela lateral da casa, passou pelo ginásio até chegar a outra pequena construção que eu não havia visto antes, quase inteiramente oculta por árvores floridas. Na verdade, a cozinha era uma sala enorme com piso de lajotas de terracota, paredes recentemente caiadas e uma série de luzes acima. Alguém tivera bastante trabalho para instalar acessórios modernos, mas os utensílios pareciam ultrapassados — na verdade pareciam antiguidades. Do outro lado da sala havia um gigantesco fogão a lenha, de ferro, que, surpreendentemente, parecia estar aceso. Tinha uns trinta centímetros embaixo e um cano de escape que saía por um buraco no teto. Na outra extremidade do recinto, havia duas mesas compridas, estilo piquenique, com bancos de ambos os lados. E, ao lado, um cepo de açougueiro. A superfície de madeira parecia gasta, como se tivesse sofrido muitos cortes.

Cestos, potes de ferro, panelas e uma variedade de utensílios de cozinha estavam dependurados em ganchos estrategicamente colocados nas paredes. Todo o ambiente lembrava uma cozinha bem abastecida, rústica mas confortável, daquelas que se vêem em algumas revistas.

No fogão havia três panelas de barro com tampas. Clara convidou-me a sentar em uma das mesas. Foi até o fogão e, de costas para mim, ocupou-se mexendo e servindo a comida. Em poucos minutos ela colocou um prato de guisado de carne, arroz e feijão diante de mim.

— Quando você preparou toda essa comida? — perguntei, realmente curiosa, pois ela não tivera tempo para cozinhar.

— Eu só arrumei isto tudo e coloquei no fogão antes de sairmos — observou ela alegremente.

Ela está achando que eu sou boba? pensei. Aquela comida deve ter demorado horas para ficar pronta. Ela riu ante meu olhar incrédulo.

— Você tem razão — disse ela, como se quisesse deixar de fingir. — Temos um caseiro que às vezes prepara a comida para nós.

— O caseiro está aqui agora?

— Não, não. O caseiro deve ter vindo pela manhã, mas agora ele ja foi. Coma e não se preocupe com detalhes tão sem importância, como por exemplo de onde veio a comida.

Clara e sua casa eram cheias de surpresas, foi o pensamento que atravessou minha mente, mas eu estava demasiado cansada e faminta para perguntar mais alguma coisa ou refletir sobre qualquer coisa que não fosse imediata. Comi avidamente; o camarão graúdo que me havia deixado satisfeita no almoço já desaparecera e fora totalmente esquecido. Para uma pessoa exigente no que dizia respeito à alimentação, eu estava devorando a comida. Quando criança, eu sempre fora muito nervosa para relaxar e apreciar nossas refeições. Sempre ficava imaginando todos os pratos que teria de lavar depois. A cada vez que um de meus irmãos usava mais um prato ou uma colher desnecessariamente, eu me contraía. Tinha certeza de que eles usavam propositalmente o máximo de pratos que pudessem, só para que eu tivesse de lavar mais. Além disso, em todas as refeições, meu pai aproveitava a oportunidade para discutir com minha mãe. Ele sabia que sua educação a impedia de sair da mesa até todos acabarem de comer. Então ele despejava todas as suas reclamações e ressentimentos sobre ela.

Clara disse que eu não precisava lavar os pratos, embora eu tivesse oferecido ajuda. Fomos para a sala, um dos ambientes nos quais aparentemente ela não considerava a eletricidade necessária, pois estava totalmente escuro. Clara acendeu um lampião. Em toda a minha vida eu jamais vira uma luz como aquela. Era brilhante e soturna, mas ao mesmo tempo suave e branda. Havia sombras bruxuleantes em toda parte. Senti-me num mundo de sonhos, longe da realidade das luzes elétricas. Clara, a casa, a sala, tudo parecia pertencer a outro tempo, a um mundo diferente.

— Prometo que vou apresentá-la ao nosso cachorro — iniciou Clara, sentando-se no sofá. — Ele é um autêntico membro da casa. Você deve ter muito cuidado com o que sente ou diz perto dele.

Sentei-me ao lado dela.

— Ele é um cão sensível, neurótico? — perguntei, temendo o encontro.

— Sensível, sim. Neurótico, não. Acho realmente que esse cão é uma criatura extremamente evoluída, mas o fato de ser cão torna difícil, se não impossível, para esta pobre alma transcender a idéia da individualidade.

Soltei uma gargalhada, diante da idéia absurda de que um cão tivesse uma idéia de sua própria individualidade. Mostrei a Clara como sua idéia era disparatada.

— Você tem razão — concedeu ela. — Eu não devia usar a palavra "individualidade". Deveria dizer, ele se perde sentindo-se importante.

Eu sabia que ela estava zombando de mim. Minha risada tornou-se mais cautelosa.

— Você pode rir, mas estou falando sério — disse Clara em tom mais baixo. — Você julgará por si mesma. — Inclinou-se e sua voz transformou-se num sussurro. — Nós o chamamos de sapo por trás, porque ele parece um enorme sapo. Mas não se atreva a chamá-lo assim pela frente; ele avançará em você e a fará em pedaços. Ora, se você não acredita em mim, ou se for suficientemente atrevida ou idiota para tentar fazer isso e o cão enlouquecer, só lhe restará uma coisa a fazer.

— O quê? — perguntei, novamente divertindo-me com ela, embora desta vez com um toque de apreensão genuína.

— Diga bem rápido que sou eu que pareço um sapo branco. Ele adora ouvir isto.

Eu não ia cair nos truques de Clara. Considerava-me muito esperta para acreditar em tamanha tolice.

— Provavelmente você treinou seu cão para reagir negativamente à palavra sapo — argumentei. — Tenho experiência com treinamento de cães. Certos cães não têm inteligência suficiente para saber o que as pessoas estão lhe dizendo. Muito menos para ofender-se com isso.

— Então vamos fazer o seguinte — propôs Clara. — Deixe-me apresentá-la a ele e então procuraremos fotografias de sapos em um livro de zoologia e faremos comentários a respeito. Aí, em determinado momento, você me dirá, muito delicadamente: Sem dúvida ele parece um sapo, e veremos o que acontece.

Antes que eu pudesse aceitar ou rejeitar sua proposta, Clara saiu por uma porta lateral e deixou-me sozinha. Tranqüilizei-me afirmando para mim mesma que eu tinha a situação sob controle e não permitiria que essa mulher me convencesse a acreditar em absurdos como um cão possuidor de uma consciência altamente evoluída.

Eu estava tentando mentalmente conferir segurança a mim mesma, para que eu me mostrasse mais firme, quando Clara voltou com o maior cão que eu já vira. Era um macho imponente, cujas patas largas tinham o tamanho de pires. O pêlo era preto e lustroso; seus olhos amarelos pareciam os de alguém mortalmente entediado com a vida. Suas orelhas eram arredondadas e o rosto protuberante e enrugado dos lados. Clara tinha razão, ele sem dúvida parecia um sapo gigantesco. O cão aproximou-se de mim e parou, olhando para Clara como se esperando que ela dissesse algo.

— Taisha, quero apresentar-lhe meu amigo Manfred. Manfred, esta é Taisha.

Senti-me estendendo minha mão e cumprimentando a pata do animal, mas Clara fez um movimento de cabeça dizendo não-faça-isto.

— Muito prazer em conhecê-lo, Manfred — falei, tentando não rir nem parecer amedrontada.

O cachorro aproximou-se mais e começou a cheirar a região entre minhas pernas. Enojada, dei um salto para trás. Neste instante ele girou e atingiu-me com o traseiro, bem por trás do joelho, fazendo-me perder o equilíbrio. Em seguida vi-me de joelhos e a fera lambendo minhas faces. Então, antes que eu pudesse me levantar ou mesmo afastar-me, o cão lambeu meu nariz.

Dei um salto e gritei. Clara estava rindo tanto que mal conseguia falar. Eu poderia jurar que Manfred também estava rindo. Ele estava tão alvoroçado que ficou atrás de Clara, olhando-me de soslaio e arranhando o chão com as patas.

Fiquei tão injuriada que gritei:

— Seu maldito cão fedorento com cara de sapo!

No mesmo instante o cão deu um salto e atingiu-me com a cabeça. Caí de costas no chão, o cão em cima de mim. Suas mandíbulas estavam a poucos centímetros do meu rosto. Vi a fúria em seus olhos amarelos. O odor fétido de sua respiração já era suficiente para fazer qualquer um vomitar, e eu estava perto demais. Quanto mais alto gritava, pedindo a Clara para tirar aquele maldito cachorro de cima de mim, mais ferozes tornavam-se os rosnados. Eu estava prestes a desmaiar de pavor, quando ouvi Clara gritar mais alto do que os rosnados do cão e meus gritos:

— Diga-lhe o que eu lhe falei, rápido.

Eu estava aterrorizada demais para falar. Exasperada, Clara tentou tirar o cachorro de cima de mim, puxando-o pelas orelhas, mas isto só serviu para enfurecer ainda mais a fera.

— Diga! Diga a ele o que eu lhe falei! — bradou Clara.

Em meu terror, não conseguia me lembrar do que eu deveria dizer. Finalmente, quando já ia desmaiar, ouvi minha voz esganiçada:

— Desculpe. É Clara que parece um sapo.

O cão prontamente parou de rosnar e saiu de cima de meu peito. Clara ajudou-me a levantar e conduziu-me até o sofá. O cão ficou ao nosso lado, como se estivesse ajudando-a. Clara fez-me beber um pouco de água morna, o que me deixou ainda mais enjoada. Mal consegui chegar ao anexo e vomitei.

Mais tarde, enquanto eu descansava na sala-de-estar, Clara sugeriu que eu folheasse o livro sobre sapos com Manfred, para que eu pudesse reiterar que era Clara quem parecia um sapo branco. Ela explicou que eu tinha de apagar qualquer confusão da mente de Manfred.

— Ser um cão o torna muito insignificante — continuou ela. — Pobre alma! Ele não quer ser assim, mas simplesmente não consegue evitar. Fica furioso sempre que sente que alguém está zombando dele.

Disse-lhe que, no estado em que me encontrava, eu não estava pronta para outras experiências com a psicologia canina. Mas Clara insistiu que eu representasse até o fim. Mal ela abriu o livro, Manfred aproximou-se para olhar as fotografias. Clara fez provocações e brincadeiras sobre como os sapos eram estranhos, como alguns eram horrorosos. Eu cumpri minha parte e representei. Disse a palavra sapo tantas vezes e tão alto quanto fui capaz no contexto de nosso diálogo absurdo. Mas Manfred não esboçou qualquer reação. Parecia tão entediado quanto da primeira vez em que pus os olhos nele.

Quando, como havíamos combinado, falei em voz alta que sem dúvida Clara parecia um sapo branco, Manfred imediatamente começou a abanar o rabo e deu sinais de verdadeira animação. Repeti a frase-chave diversas vezes, e quanto mais a repetia, mais excitado ficava o animal. Então tive um insight e disse que eu era um sapo magricela que queria ser como Clara. Diante disto, o cão saltou como se houvesse levado um choque elétrico. E quando Clara falou "você está indo um longe demais, Taisha", realmente achei que Manfred estava tão empolgado que não poderia mais se conter. Ele saiu correndo da sala.

Recostei-me no sofá, aturdida. Em meu íntimo, e não obstante todas as evidências circunstanciais em favor, continuava não acreditando que um cachorro pudesse reagir a um apelido pejorativo da maneira como Manfred reagira.

— Diga-me, Clara — indaguei —, qual é o truque? Como você treinou seu cachorro para reagir assim?

— O que você viu não é um truque. Manfred é misterioso, um ser desconhecido. Só existe um homem no mundo que pode chamá-lo de sapo ou sapinho sem despertar seu ódio. Você conhecerá esse homem um dia desses. Ele é o responsável pelo mistério de Manfred. Ele é, portanto, a única pessoa capaz de explicá-lo a você. — Clara pôs-se de pé bruscamente. — Você teve um longo dia — falou, estendendo-me o lampião. — Acho que está na hora de você ir deitar.

— Conduziu-me até o quarto que me destinara. — Você encontrará tudo que precisar aí dentro. O urinol está debaixo da cama, no caso de ficar com medo de ir até o anexo. Espero que fique à vontade.

Dando um tapinha em meu braço, ela desapareceu no corredor escuro. Eu não tinha a menor idéia de onde ficava seu quarto. Imaginei se poderia ser na ala da casa em que eu não tinha permissão de pôr os pés. Ela dissera boa-noite de uma forma tão estranha que, por um momento, simplesmente continuei de pé segurando a maçaneta da porta, imaginando todo tipo de coisa.

Entrei em meu quarto. O lampião lançava sombras em toda parte. No chão havia um apanhado de flores que estavam no vaso da sala e que Clara devia ter trazido e colocado na mesa. O baú de madeira entalhada era uma forma cinzenta tremeluzente; as colunas da cama eram linhas que se curvavam na parede como serpentes. Imediatamente compreendi por que a cristaleira estava repleta de estatuetas e objetos esmaltados. A luz do lampião os transformava inteiramente, criando um mundo de fantasia. O esmalte cloasonado e a porcelana não se adaptam bem à luz elétrica, foi o pensamento que me veio à mente.

Eu queria explorar o quarto, mas estava exausta. Coloquei o lampião sobre uma mesinha ao lado da cama e despi-me. No espaldar de uma cadeira havia uma camisola de musselina branca, que vesti. Ela parecia ser do meu tamanho, ao menos não estava arrastando no chão.

Entrei na cama macia e deitei-me com as costas apoiadas nos travesseiros. Não apaguei o lampião imediatamente; estava intrigada, contemplando as sombras surreais. Lembrei-me de que, quando criança, eu costumava fazer uma brincadeira na cama: contava quantos objetos formados pelas sombras eu conseguia reconhecer nas paredes de meu quarto.

A brisa, entrando pela janela entreaberta, fazia as sombras nas paredes tremular. Em minha exaustão, imaginei-me vendo formas de animais, árvores e pássaros voando. Então, em meio à luz cinzenta, avistei a silhueta indistinta do rosto de um cão, de olhos arredondados e focinho achatado e enrugado. Soube que era Manfred.

Sentimentos e perguntas estranhas passaram a inundar minha mente. De que maneira eu poderia organizar os acontecimentos do dia? Não conseguiria explicar nenhum deles satisfatoriamente. O mais impressionante era que eu tinha certeza de que minha última observação —que eu era um sapo magricela que queria ser igual a Clara — havia estabelecido um elo de empatia entre mim e Manfred. Também estava certa de que não podia considerá-lo um cão comum, e que deixara de sentir medo dele. Não obstante toda a minha descrença, ele parecia possuir uma inteligência especial, que o tornava consciente do que Clara e eu estávamos dizendo.

De súbito o vento abriu as cortinas, dissolvendo as sombras em uma série de nuvens tremeluzentes. O rosto do cão começou a fundir-se com as outras imagens na parede, que eu fantasiara como encantamentos que me ajudariam a enfrentar a noite.

É impressionante, pensei, como a mente pode projetar suas experiências em uma parede lisa, como se fosse uma câmera capaz de armazenar uma quantidade interminável de filme.

As sombras bruxulearam quando abaixei o pavio do lampião e o último fragmento de luz desapareceu do quarto, mergulhando-me na escuridão total. Não senti medo do escuro. Estar em uma cama desconhecida, numa casa desconhecida, não me perturbou. Mais cedo, Clara havia dito que aquele quarto era meu e, após um curto espaço de tempo ali, sentia-me completamente em casa. Tinha uma forte sensação de que estava protegida.

Contemplando a escuridão diante de mim, percebi que o ar do quarto tornara-se borbulhante. Lembrei-me do que Clara dissera sobre a casa possuir uma energia imperceptível, semelhante a uma corrente elétrica fluindo através de fios. Eu não havia me dado conta desse fato antes devido a toda a atividade do dia Mas agora, mergulhada no silêncio absoluto, ouvi nitidamente um zumbido suave. Então vi bolhas diminutas saltando pelo quarto em tremenda velocidade. Elas se chocavam freneticamente, produzindo um zumbido semelhante ao de milhares de abelhas. O quarto, toda a casa pareciam carregados por uma corrente elétrica sutil que inundava meu próprio ser.

 

— Dormiu bem? — perguntou Clara quando entrei na cozinha.

Ela estava se sentando à mesa para comer. Percebi que havia um prato na mesa para mim, embora na noite anterior ela não tivesse dito a que horas seria o desjejum.

— Dormi como uma pedra — respondi com sinceridade.

Ela me convidou para sentar e colocou algumas fatias de carne condimentada em meu prato. Contei-lhe como acordar em uma cama desconhecida sempre fora difícil para mim. Meu pai mudara freqüentemente de emprego, e a família tivera de mudar-se para onde quer que houvesse um cargo disponível. Eu temia o susto; matinal que era despertar desorientada em uma nova casa. Mas esse medo não se manifestara desta vez. Ao acordar, tivera a sensação de que o quarto e a cama sempre tinham sido meus. Clara ouviu atentamente e assentiu com a cabeça.

— É porque você está em harmonia com o dono do quarto disse — ela.

— De quem é o quarto? — perguntei, curiosa.

— Um dia você descobrirá — disse ela, servindo uma por generosa de arroz ao lado da carne em meu prato. Ofereceu-me um garfo. — Coma. Você vai precisar de todas as suas forças hoje.

Ela não me deixou falar até que eu terminasse de comer todo o conteúdo do prato.

— O que vamos fazer? — perguntei enquanto ela retirava-os.

— Nós não — ela me corrigiu. — Você vai para uma caverna iniciar sua recapitulação.

— Minha o quê, Clara?

— Ontem à noite eu lhe disse que tudo e todos nesta casa estão aqui por alguma razão, incluindo você.

— Por que estou aqui, Clara?

— Sua razão para estar aqui precisa ser-lhe explicada por etapas —disse ela. — No nível mais simples, você está aqui porque gosta daqui, independente do que possa pensar. Uma segunda razão, mais complexa, é que você está aqui para aprender e praticar um exercício fascinante, chamado recapitulação.

— Como é esse exercício? Em que consiste?

— Vou lhe explicar quando chegarmos à caverna.

— Por que não me conta agora?

— Tenha paciência comigo, Taisha. Não posso responder todas as suas perguntas neste momento, porque você ainda não possui energia suficiente para lidar com as respostas. Mais tarde, você mesma perceberá por que é tão difícil explicar certas coisas. Coloque suas botas de caminhada e vamos.

Saímos da casa e escalamos as colinas baixas na direção leste, seguindo a mesma trilha da noite anterior. Após uma curta caminhada, avistei a clareira plana no platô que pretendia revisitar. Sem esperar que Clara tomasse a iniciativa, dirigi-me para lá, pois estava ansiosa para descobrir se eu conseguiria ver a casa na luz do dia.

Perscrutei uma depressão em forma de tigela entre as colinas, recoberta de folhagem verdejante. Embora estivesse um dia claro e ensolarado, não consegui avistar nenhum sinal da casa. Uma coisa era evidente, havia mais árvores enormes do que me lembrava de ter visto à noite.

— Com certeza você pode reconhecer o anexo — disse Clara. — É aquele ponto avermelhado junto daquele conjunto de algarobeiras. Inadvertidamente sobressaltei-me, pois eu estivera tão absorvida na contemplação do vale que não ouvira Clara aproximar-se pela retaguarda.

Para ajudar a direcionar minha atenção, ela apontou para uma certa área nas árvores abaixo. Pensei em ser delicada e dizer-lhe que estava vendo, da mesma maneira como eu sempre concordara com as pessoas, mas não queria começar meu dia sendo condescendente com ela. Ademais, aquele vale secreto era tão belo que me tirava o fôlego. Contemplei-o tão intensamente que fiquei sonolenta; recostei-me em uma pedra e permiti que, o que quer que houvesse no vale, me arrebatasse. E ele me transportou. Senti-me numa área de piquenique, onde havia uma festa animada. Ouvi os risos das pessoas... Meu devaneio chegou ao fim quando Clara pôs-me de pé, segurando-me pelas axilas.

— Meu Deus, Taisha! — exclamou ela. — Você é mais estranha do que pensei. Por um momento achei que havia perdido você.

Senti vontade de contar-lhe meu sonho, pois tinha certeza de que havia cochilado por um instante. Mas ela não se mostrou interessada e começou a afastar-se Os passos de Clara eram firmes e resolutos, como se ela soubesse exatamente para onde estava indo. Eu, ao contrário, caminhava sem rumo atrás dela, tentando prosseguir sem tropeçar. Caminhamos em silêncio total. Após meia hora, chegamos a uma certa formação rochosa, pela qual eu tinha certeza de que já havia passado antes.

— Não estivemos aqui antes? — perguntei, rompendo o silêncio. Ela fez que sim com a cabeça.

— Estamos andando em círculos — admitiu. — Algo está seguindo você e, se não o despistarmos, ele nos seguirá até a caverna.

Virei-me para ver se havia alguém atrás de nós; só conseguia ver os arbustos e galhos de árvores retorcidos. Apressei-me a ficar ao lado de Clara e tropecei num toco. Assustada, soltei um grito e caí para frente. Com incrível rapidez, Clara segurou-me pelo braço e impediu-me de cair colocando sua perna à minha frente.

— Você não é muito boa em caminhada, não? — observou ela.

Contei-lhe que nunca tivera muita vida ao ar livre, que crescera acreditando que caminhadas e acampamentos eram coisas para gente do campo, para a gente simples da roça e não para pessoas urbanas e educadas. Caminhar pelos contrafortes das montanhas não era das experiências mais agradáveis para mim. E, excetuando a visão da propriedade, a paisagem que outras pessoas achariam empolgante deixava-me indiferente.

— Tudo bem — disse Clara. — Você não está aqui para ver a paisagem. Você precisará concentrar-se na trilha. E tomar cuidado com as cobras.

Houvesse ou não cobras nas redondezas, o aviso de Clara sem dúvida voltou minha atenção para o chão. Continuamos a caminhada e fui ficando cada vez mais ofegante. As botas que Clara me oferecera pareciam pesos em meus pés. Tinha dificuldade de levantar as coxas para colocar um pé diante do outro.

— Esta caminhada pela natureza é realmente necessária? — finalmente perguntei. Clara parou e olhou para mim.

— Antes que possamos falar de alguma coisa importante, você precisará no mínimo tomar consciência do que a cerca — disse ela. — Estou fazendo tudo para ajudá-la a fazer isto.

— Do que você está falando? — Meu habitual mau humor tomara conta de mim novamente.

— Estou me referindo a sua sucessão de sentimentos e pensamentos habituais, sua história pessoal — explicou Clara. — Tudo que a transforma naquilo que acredita ser, uma pessoa única e especial.

— O que há de errado com meus sentimentos e pensamentos habituais? — indaguei. Suas afirmativas incompreensíveis definitivamente estavam me aborrecendo.

— Esses sentimentos e pensamentos habituais são a origem de todos os seus problemas — declarou ela.

Quanto mais ela falava de maneira enigmática, maior se tornava minha frustração. Naquele momento, senti vontade de esmurrar-me por sucumbir ao convite daquela mulher para que eu passasse algum tempo com ela. Foi uma reação atrasada. Temores que me acometiam interiormente agora explodiam com todo ímpeto. Imaginei que ela poderia ser uma psicopata que a qualquer momento puxaria uma faca e acabaria comigo. Pensando melhor, como obviamente tinha prática nas artes marciais, ela não precisaria de uma faca. Um chute de sua perna musculosa poderia ser o fim para mim. Eu não era páreo para ela. Ela era mais velha do que eu, mas infinitamente mais forte. Vi-me acabando como mais um número de uma estatística, uma pessoa desaparecida de quem nunca mais se ouviria falar. Reduzi o ritmo deliberadamente, a fim de aumentar a distância entre nós.

— Não mergulhe nesse estado de espírito mórbido — disse Clara, definitivamente intrometendo-se em meus pensamentos. — Eu a trouxe até aqui apenas para ajudá-la a preparar-se para enfrentar a vida com um pouco mais de graça. Mas parece que só consegui deflagrar uma enxurrada de suspeitas e temores terríveis.

Senti-me sinceramente constrangida por nutrir pensamentos tão mórbidos. Era impressionante como ela estava absolutamente correta em relação ao meu turbilhão interior. Gostaria de conseguir desculpar-me e revelar-lhe o que me passava pela cabeça, mas eu não estava preparada para isso; sentir-me-ia ainda mais em desvantagem.

— Você tem um estranho poder de tranqüilizar a mente, Clara — falei em substituição. — Aprendeu a fazer isto no Oriente?

— Não é um grande feito — admitiu ela. — Não porque sua mente seja facilmente tranqüilizável, mas porque todos somos iguais. Para conhecê-la detalhadamente, basta conhecer a mim mesma. E isto, posso garantir-lhe, eu faço. Bem, vamos continuar a caminhada. Quero chegar à caverna antes de você sucumbir completamente.

— Explique-me de novo, Clara, o que vamos fazer nessa caverna? — perguntei, relutando em recomeçar a caminhar.

— Vou ensinar-lhe coisas inimagináveis.

— Que coisas inimagináveis?

— Logo você verá — disse ela, fitando-me com os olhos arregalados.

Ansiava por mais informações, mas antes que pudesse continuar o diálogo, ela já galgara metade da próxima elevação. Arrastei-me atrás dela por mais um quilômetro, até que finalmente sentamos junto a um regato. Lá, a folhagem das árvores era tão densa que mal conseguia ver o céu. Tirei as botas. Estava com uma bolha no calcanhar.

Clara pegou uma vareta pontuda e cutucou meus pés entre o dedão e o segundo dedo. Algo semelhante a uma corrente suave de eletricidade percorreu minhas panturrilhas e a parte interior das coxas. Então ela me colocou de quatro e, um pé de cada vez, virou minhas solas para cima e pressionou o ponto logo abaixo da protuberância de meu dedão. Gritei de dor.

— Não foi tão grave — falou com o tom de alguém que está acostumado a tratar de pessoas enfermas. — Os médicos chineses clássicos costumavam aplicar esta técnica para dar um choque e reanimar os fracos, ou para produzir um estado de atenção única. Mas hoje este conhecimento clássico está desaparecendo.

— Por quê, Clara?

— Porque a ênfase no materialismo levou o homem a afastar-se da busca esotérica.

— É isso que você queria dizer quando me falou, no deserto, que a linha com o passado foi cortada?

— Sim. Uma grande convulsão sempre produz profundas mudanças na formação energética das coisas. Mudanças que nem sempre são para melhor.

Ordenou-me que colocasse meus pés no regato e sentisse as rochas lisas no fundo. A água estava gelada e fez-me estremecer involuntariamente.

— Movimente os tornozelos no sentido horário — sugeriu ela. — Deixe a água corrente levar embora seu cansaço.

Após alguns minutos girando os tornozelos senti-me revigorada, mas meus pés estavam quase congelando.

— Agora tente sentir toda a tensão fluir para seus pés, e livre-se dela

estalando os tornozelos — disse Clara. — Assim, você também se livrará do frio. Continuei remexendo a água com os pés até ficarem entorpecidos.

— Acho que não está funcionando, Clara — falei, retirando os pés da água.

— É porque você não está direcionando a tensão para fora de seu corpo — disse ela. — A água corrente leva embora o cansaço, o frio, a doença e qualquer outra idéia indesejável, mas, para que isto aconteça, você precisa ter esta intenção. Caso contrário, vai mexer os pés até o regato secar e não terá resultado.

Ela acrescentou que, fazendo o exercício na cama, é preciso usar a imaginação para visualizar um rio em movimento.

— O que você quer dizer exatamente com "ter a intenção"? — perguntei, enxugando os pés com as mangas da jaqueta. Após esfregá-los vigorosamente, finalmente eles ficaram aquecidos.

— Intenção é o poder que sustenta o universo — disse ela. — É a força que tudo concentra. E faz o mundo acontecer. — Não conseguia crer que estava escutando cada palavra dita por ela. Definitivamente ocorrera alguma grande mudança, transformando minha habitual indiferença entediada na atenção mais extraordinária. Não que eu compreendesse o que Clara estava dizendo, porque eu não compreendia. O que me surpreendia era o fato de conseguir ouvi-la sem aborrecer-me ou distrair-me.

— Pode descrever essa força mais claramente? — pedi.

— Não existe realmente uma maneira de falar sobre ela, exceto metaforicamente — disse ela. Clara esfregou o solo com a sola do sapato, removendo as folhas secas. — Por baixo das folhas secas está o solo, a terra imensa. Intenção é o princípio subjacente a tudo.

Clara levou as mãos em concha à água e molhou o rosto. Novamente admirei sua pele lisa, sem rugas. Desta vez fiz um comentário sobre sua aparência juvenil.

— Minha aparência relaciona-se com a manutenção do equilíbrio de meu ser interior com o ambiente externo — disse ela, balançando as mãos para retirar a água. — Tudo que fazemos depende deste equilíbrio. Podemos ser jovens e vibrantes como este regato, ou velhos e sinistros como as montanhas de lava do Arizona. Depende de nós.

Surpreendi-me ao perguntar, como se acreditasse no que ela estava dizendo, se havia uma maneira de adquirir este equilíbrio. Ela assentiu com um movimento de cabeça.

— Claro que há — disse ela. — E você vai chegar lá, praticando o exercício único que vou ensinar-lhe: a recapitulação.

— Mal posso esperar para praticá-lo — falei entusiasmada, colocando as botas. Então, sem nenhuma razão, fiquei tão agitada que me coloquei de pé de um salto e falei: — Vamos continuar?

— Nós já chegamos — anunciou Clara, apontando para uma pequena caverna na encosta de uma colina.

Ao avistar a caverna, meu entusiasmo desapareceu. Havia algo de sinistro e agourento naquela fenda, mas ao mesmo tempo convidativo. Senti o nítido anseio de explorá-la, mas ao mesmo tempo tive medo do que poderia encontrar lá dentro.

Suspeitei de que estávamos nas proximidades da casa, pensamento que me tranqüilizou. Clara informou-me tratar-se de um local de poder, local que os antigos geomantes da China, os praticantes de feng-shui, sem dúvida teriam escolhido como o local para o templo.

— Aqui, os elementos água, madeira e ar estão em perfeita harmonia — disse ela. — Aqui a energia circula em abundância. Você perceberá o que estou querendo dizer quando entrar na caverna. Deverá utilizar a energia deste lugar incomparável para purificar-se.

— Está querendo dizer que tenho de permanecer aqui?

— Você não sabia que no Oriente ancestral os monges e estudiosos costumavam retirar-se em cavernas? — perguntou ela. — Estar cercado pela terra ajudava-os a meditar.

Ela me incentivou a rastejar para o interior da caverna. Corajosamente, entrei na caverna afastando de meu pensamento todas as imagens de morcegos e aranhas. Estava escuro e frio, e havia espaço apenas para uma pessoa. Clara disse para sentar-me de pernas cruzadas e recostar as costas na parede. Hesitei, sem querer sujar minha jaqueta, mas, quando me recostei, fiquei aliviada por poder repousar. Embora o teto estivesse próximo de minha cabeça e o solo pressionasse meu cóccix, o local não era claustrofóbico. Uma corrente de ar branda e quase imperceptível circulava na caverna. Senti-me revigorada, exatamente como Clara dissera. Estava prestes a tirar a jaqueta e sentar sobre ela quando Clara, agachando-se na entrada da caverna, falou.

— O ápice da arte especial que quero ensinar-lhe — começou ela — é chamado de vôo abstrato, e o meio para atingi-lo é chamado por nós de recapitulação. — Ela estendeu a mão para o interior da caverna e tocou o lado esquerdo e direito de minha testa. Quando crianças, podemos fazer isto facilmente, mas uma vez rompido o selo do corpo, devido aos excessos devastadores, somente uma manipulação especial da consciência, a vida correta e o celibato podem restaurar a energia perdida, energia necessária para que seja efetuada a mudança.

Compreendi perfeitamente tudo que ela disse. Senti inclusive essa consciência como uma corrente de energia capaz de passar de um lado da testa para outro. E visualizei a lacuna entre os dois pontos como um amplo espaço, um vácuo que impede a travessia.

Ela continuou a falar. Ouvi atentamente.

— O corpo deve ser tremendamente forte — disse ela — para que a consciência possa ser aguçada e fluida, a fim de saltar de um lado do abismo para o outro num piscar de olhos.

À medida que ela fazia suas afirmações, algo extraordinário ocorreu. Tive absoluta certeza de que eu ia ficar com Clara no México. O que eu queria sentir era que voltaria para o Arizona dentro de poucos dias, mas na realidade eu sentia que não ia voltar. Soube também que minha percepção não se limitava apenas à aceitação do que Clara tivera em mente desde o começo, mas incluía a constatação de que eu era incapaz de resistir a suas intenções, pois a força que me conduzia não era apenas dela.

— De agora em diante, você terá de levar uma vida na qual a consciência tem a maior prioridade — disse ela, como se soubesse que eu assumira o compromisso tácito de permanecer com ela. — Você deve evitar tudo que está enfraquecendo e prejudicando seu corpo ou sua mente. Além disso, é fundamental, a partir de agora, romper com todos os laços físicos e emocionais com o mundo.

— Por que isto é tão importante?

— Porque antes de mais nada você deve adquirir unidade. Clara explicou que somos convencidos de que existe em nós uma dualidade; a mente é a parte insubstancial em nós, e o corpo é a parte concreta. Esta divisão mantém nossa energia em estado de separação caótica e impede sua fusão.

— Ser dividido é nossa condição humana — admitiu ela. — Mas nossa divisão não está entre mente e corpo, mas entre o corpo, que abriga a mente ou individualidade, e o duplo, que é o receptáculo de nossa energia básica.

Ela disse que antes do nascimento, a dualidade imposta ao homem não existe, mas, a partir do nascimento, as duas partes são separadas pela força da intenção da espécie humana. Uma parte volta-se para fora e torna-se o corpo físico; a outra, interna, torna-se o duplo. Na morte, a parte mais pesada, o corpo retorna à terra para ser por ela absorvido, e a parte leve, o duplo, torna-se livre. Mas infelizmente, como o duplo nunca foi aperfeiçoado, ele experimenta a liberdade apenas por um instante, antes de dispersar-se pelo universo.

— Se morremos sem apagar nosso falso dualismo de corpo e mente, temos uma morte comum — disse ela.

— De que outra maneira podemos morrer?

Clara fitou-me com uma sobrancelha erguida. Em vez de responder minha pergunta, revelou, em tom confidencial, que mor remos porque a possibilidade de nossa transformação não entrou em nossa consciência. Ela ressaltou que esta transformação deve ser realizada durante nossa vida, e que o cumprimento dessa tarefa é a única verdadeira meta que o ser humano pode ter. Todas as outras realizações são transitórias, pois a morte dissolve todas no nada.

— O que traz esta transformação? — indaguei.

— Ela traz uma mudança total — explicou. — E ela é realizada pela recapitulação: a pedra angular da arte da liberdade. A arte que vou ensinar-lhe é chamada de arte da liberdade, arte esta infinitamente difícil de praticar, mas ainda mais difícil de explicar.

Clara disse que cada etapa que ela ia ensinar-me, ou cada tarefa que poderia pedir-me para realizar, por mais simples que pudesse parecer, constituía um passo em direção à realização do propósito máximo da arte da liberdade: o vôo abstrato.

— O que vou lhe mostrar em primeiro lugar são os movimentos simples que você tem de realizar diariamente — prosseguiu ela. — Considere-os sempre como parte indispensável de sua vida.

— Primeiro, vou lhe mostrar uma respiração que constitui um segredo há gerações. Esta respiração retrata as forças duais da criação e da destruição, da luz e das trevas, do ser e do não ser.

Ela me pediu para sair da caverna e, ajudando a movimentar-me suavemente, colocou-me sentada com a coluna curvada para diante e os joelhos junto ao peito, o mais alto que me fosse possível. Mantendo os pés no chão, eu tinha de envolver as pernas com os braços e entrelaçar firmemente as mãos na altura de meus joelhos ou, se quisesse, eu poderia segurar os cotovelos. Ela abaixou i cabeça com delicadeza, até meu queixo tocar o peito.

Precisei forçar os músculos de meus braços para manter os joelhos unidos. Meu peito estava contraído, assim como meu abdômen. Meu pescoço deu um estalido quando ela abaixou minha cabeça.

— Esta é uma respiração poderosa — disse Clara. — Ela pode colocá-la a nocaute ou fazê-la dormir Neste caso, retorne à casa quando acordar. Aliás, esta caverna fica bem atrás da casa. Siga o caminho e você chegará em dois minutos.

Clara orientou-me a realizar respirações curtas e superficiais. Expliquei­lhe que o pedido era redundante, pois essa era a única maneira de respirar naquela posição. Ela disse que bastava eu: relaxar apenas parcialmente a pressão dos braços que eu estava criando com as mãos para minha respiração voltar ao normal. Mas não era isto que ela queria. Queria que eu continuasse com a respiração superficial durante pelo menos dez minutos.

Permaneci nessa posição por talvez meia hora, todo o tempo respirando superficialmente como ela instruíra. Após as cãibras iniciais em meu estômago e pernas, a respiração pareceu suavizar minhas entranhas e dissolvê-las. Então, passado um período de tempo torturantemente longo, Clara me deu um empurrão que me, jogou de costas, deitada no chão, mas ela não me permitiu relaxar a pressão dos braços. Senti um alívio momentâneo quando minhas costas tocaram o chão, mas foi apenas quando ela me disse para soltar as mãos e esticar minhas pernas que senti a [4]completa liberação em meu abdômen e peito. A única maneira de descrever o que! senti é dizer que algo dentro de mim fora aberto por aquela respiração, fora dissolvido ou liberado. Como Clara previra, fiquei tão sonolenta que entrei novamente na caverna e adormeci.

Devo ter dormido por algumas horas na caverna e, a julgar pela posição em que estava deitada quando acordei, eu não havia movido um músculo. Achei que isto acontecera provavelmente porque não havia espaço na caverna para eu me virar e movimentar durante o sono, mas também podia ser que eu estivesse tão completamente relaxada que não tivesse sentido necessidade de me mexer.

Voltei para a casa seguindo a orientação de Clara. Ela estava no pátio, sentada numa cadeira de palha. Tive a impressão de que outra mulher estivera ali sentada com ela, e quando ela me ouviu aproximando-me, rapidamente levantou­se e foi embora.

— Ah, agora você está parecendo muito mais relaxada — disse Clara. — Essa respiração e a postura fazem maravilhas.

Clara explicou que realizando essa respiração regularmente, com tranqüilidade e propósito, pouco a pouco ela harmoniza nossa energia interna.

Antes que eu pudesse lhe contar como estava me sentindo revigorada, ela pediu para sentar-me, porque queria mostrar-me outro movimento corporal, fundamental para a eliminação do nosso falso dualismo. Pediu para sentar-me com a coluna ereta e os olhos levemente abaixados de modo a fitar a ponta do meu nariz

— Essa respiração deve ser realizada sem a limitação das roupas — começou ela. — Mas em vez de mandá-la ficar nua no pátio em plena luz do dia, vamos fazer uma exceção. Primeiro, inspire profundamente, fazendo o ar entrar como se você estivesse respirando pela vagina. Encolha o estômago e percorra ascendentemente a coluna com sua respiração, passando pelos rins, até um ponto entre as omoplatas. Retenha o ar aí por um instante e depois eleve-o ainda mais até a nuca, e depois vá até o topo da cabeça, no ponto entre as sobrancelhas.

Ela explicou que, após reter a respiração ali por um momento, eu devia expirar pelo nariz, conduzindo mentalmente o ar pela parte dianteira do corpo, primeiro até o ponto logo abaixo do umbigo, e depois até a vagina onde o ciclo tivera início.

Comecei a praticar o exercício respiratório. Clara colocou sua mão na base da minha coluna e depois traçou uma linha ascendente pelas minhas costas, até a cabeça, pressionando suavemente o ponto entre as sobrancelhas.

— Tente trazer a respiração até aqui — disse. — Mantenha os olhos entreabertos para que possa concentrar-se em seu nariz enquanto estiver circulando o ar pelas costas e até este ponto na cabeça; e também para que você possa usar seu olhar para conduzir o ar pela região dianteira de seu corpo, retornando-o até seus órgãos sexuais.

Clara explicou que a circulação da respiração dessa maneira cria um escudo impenetrável que impede que as influências externas nocivas rompam o campo energético do corpo; e também impede que a energia interna vital se disperse externamente. Ressaltou que a inspiração e a expiração devem ser inaudíveis, e que o exercício respiratório pode ser feito de pé, sentado ou deitado, embora no começo seja mais fácil realizá-lo sentada numa almofada ou numa cadeira — Agora — disse ela, aproximando sua cadeira da minha —, vamos falar daquilo que começamos a debater hoje pela manhã: a recapitulação.

Um calafrio percorreu-me. Expliquei-lhe que, embora não tivesse a menor idéia do que ela estava falando, sabia que seria alguma coisa colossal e não sabia se estava preparada para ouvir. Ela insistiu que eu estava nervosa porque um lado meu sentia que ela estava prestes a revelar talvez a técnica mais importante de auto-renovação. Pacientemente, explicou que a recapitulação é o ato de trazer de volta a energia que já despendemos em ações passadas. A recapitulação inclui recordar todas as pessoas que conhecemos, todos os lugares que vimos e todos os sentimentos que tivemos em toda nossa vida — começando pelo presente e voltando às lembranças mais antigas — para então purificá-las com a vassoura da respiração.

Ouvi intrigada, embora não pudesse deixar de sentir que suas palavras eram mais do que disparatadas para mim. Antes que eu pudesse fazer qualquer comentário, ela tomou firmemente meu queixo entre suas mãos e instruiu-me para inspirar pelo nariz quando ela virasse minha cabeça para a esquerda e expirasse quando ela virasse para a para a direita. Em seguida, eu devia virar a cabeça para a esquerda e a direita em um único movimento, sem respirar. Explicou ser esta uma misteriosa maneira de respirar e a chave para a recapitulação,pois á inspiração nos permite puxar a energia perdida de volta, e a expiração nos permite expelir a energia estranha e indesejável, acumulada em nós através da interação com nossos semelhantes.

— Para vivermos e interagirmos precisamos de energia — prosseguiu Clara. — Normalmente a energia despendida na vida nos é retirada para sempre. Não fosse a recapitulação, jamais teríamos a oportunidade de nos renovarmos. Recapitular nossas vidas e varrer nosso passado com a respiração funcionam como uma unidade.

Recordar todas as pessoas que conheci e tudo que senti na minha vida pareceu-me uma tarefa absurda e impossível.

— Isto pode demorar uma eternidade — falei, na esperança de que uma observação prática pudesse bloquear a linha de pensamentos irracionais de Clara.

— Sem dúvida — concordou ela. — Mas eu lhe garanto, Taisha, você tem tudo a ganhar fazendo isso, e nada a perder.

Respirei profundamente algumas vezes, movendo a cabeça da esquerda para a direita, imitando a maneira de respirar que ela me mostrara, a fim de apaziguá-la e mostrar-lhe que eu havia prestado atenção.

Com um sorriso torcido, ela me avisou que a recapitulação não é um exercício arbitrário ou extravagante.

— Quando fizer a recapitulação, tente sentir alguns filamentos longos distendendo-se, e que partem da parte média de seu corpo — explicou. — Alinhe então o movimento de giro de sua cabeça com o movimento desses filamentos impalpáveis. Eles são os condutores que trarão de volta a energia que você deixou para trás. Para recuperarmos nossa força e unidade, precisamos liberar nossa energia aprisionada no mundo e puxá-la de volta para nós.

Ela garantiu que, durante a recapitulação nós estendemos esses filamentos de energia preguiçosos através do espaço e do tempo, até as pessoas, locais e acontecimentos que vamos examinar. Como resultado, podemos retornar a cada momento de nossas vidas e agir como se realmente estivéssemos lá.

Esta possibilidade fez-me estremecer. Conquanto intelectualmente eu estivesse intrigada com o que Clara estava dizendo, eu não tinha a menor intenção de retornar ao meu passado desagradável, ainda que apenas mentalmente. No mínimo, eu me orgulhava de ter escapado de uma vida insuportável. Não queria retornar e reviver mentalmente todos os momentos que tentara esquecer com tanta dificuldade. Clara, contudo, parecia tão profundamente séria e sincera, explicando-me a técnica da recapitulação que, por um instante, deixei minhas objeções de lado e concentrei-me no que ela estava dizendo.

Perguntei-lhe se a ordem de recordação do passado é importante. Ela respondeu que o importante é revivenciar os acontecimentos e sentimentos com o máximo de detalhes, e varrê-los com a respiração, liberando assim a energia aprisionada.

— Este exercício é parte da tradição budista? — perguntei.

— Não — replicou solenemente. — É parte de outra tradição. Algum dia, dentro em breve, você descobrirá que tradição é esta.

 

Só voltei a ver Clara na manhã seguinte, no café da manhã. Na tarde anterior, no meio de nossa conversa no pátio, de súbito seu olhar se tornara vago e distante, como se ela tivesse entrevisto algo ou alguém ao lado da casa. Ela se levantou apressadamente e desculpou-se, deixando-me ali, pensando na importância de tudo que ela havia dito.

Quando nos sentamos para fazer nossa refeição matinal de carne em fatias e arroz, contei a Clara que, ao retornar da caverna na tarde anterior, eu havia confirmado o que ela dissera, que a caverna ficava a pouca distância da casa.

— Por que circulamos tanto para chegar lá, Clara? — indaguei. Clara pôs-se a rir.

— Eu estava tentando fazê-la tirar as botas, por isso passamos pelo regato

— respondeu ela.

— Por que eu tinha de tirar as botas? Por causa da minha bolha?

— Não foi a sua bolha — explicou enfaticamente. — Eu precisava pressionar pontos muito importantes nas solas de seus pés, para despertá-la da letargia de toda uma vida. Caso contrário, você nunca teria me ouvido.

— Você não está exagerando, Clara? Eu teria ouvido você mesmo se não tivesse tocado meus pés. Ela sacudiu a cabeça e ofereceu-me um sorriso inteligente.

— Todos nós fomos criados para viver em uma espécie de limbo, onde nada importa exceto as gratificações insignificantes e imediatas — disse ela. — E as mulheres são as mestras desse estado. Apenas quando recapitulamos podemos superar nossa formação. E por falar em recapitulação...

Clara percebeu a expressão atormentada em meu rosto e sol uma gargalhada.

— Tenho que voltar para a caverna, Clara? — interrompi antecipando aquilo que eu achava que ela ia me dizer. — Prefiro permanecer aqui com você. Se posar para mim, poderei fazer alguns desenhos seus e depois pintar seu retrato.

— Não, obrigada—respondeu ela, desinteressada. — O que vou fazer é dar-lhe algumas instruções preliminares sobre como proceder na recapitulação.

Quando terminamos de comer, Clara estendeu-me um bloco de anotações e um lápis. Achei que ela havia mudado de idéia e concordado em ter seu retrato. Entretanto, ela me ofereceu materiais dizendo que eu devia começar a fazer uma lista de todas as pessoas que havia conhecido, iniciando pelo presente e retrocedendo até minhas primeiras lembranças.

— Isto é impossível! — falei, com a voz entrecortada. Como vou conseguir lembrar de todas as pessoas com quem tive contato desde o primeiro dia?

Clara afastou os pratos, a fim de dar-me espaço para escreve.

— É difícil, é verdade, mas não é impossível — insistiu. — É parte necessária da recapitulação. A lista é uma matriz à qual mente pode fixar-se.

Explicou então que o estágio inicial da recapitulação compõe-se de duas coisas. A primeira é a lista, a segunda é criar a cena. Cria a cena consiste em visualizar todos os detalhes relativos aos acontecimentos que vão ser lembrados.

— Quando você tiver todos os elementos no lugar, use vassoura da respiração; o movimento de sua cabeça é como um leque que agita tudo nessa cena — explicou ela. — Se você lembrar de um quarto, por exemplo, respire nas paredes, no teto, na mobília, nas pessoas que visualizar. E não pare até ter absorvido a ultima poção de energia que você deixou para trás.i

— Como vou saber quando terei acabado? — perguntei.

— Seu corpo lhe dirá quando chegar o momento — assegurou-me ela. — Lembre-se, tenha a intenção de inspirar a energia que você deixou na cena que estiver recapitulando, e expirar a energia alheia lançada em você pelas pessoas.

Assoberbada com a tarefa de fazer a lista e iniciara recapitulação, eu mal conseguia pensar. Uma reação perversa e involuntária de minha mente consistia em ficar completamente vazia; em seguida aflorava uma avalanche de pensamentos, impedindo-me de saber por onde começar. Clara explicou que devemos iniciar a recapitulação concentrando nossa atenção, em primeiro lugar, em nossa atividade sexual passada.

— Por que é preciso começar por aí? — perguntei, desconfiada.

— Porque é aí que grande parte de nossa energia fica aprisionada — explicou Clara. — Por isso temos de liberar essas memórias em primeiro lugar!

— Não creio que meus encontros sexuais tenham sido tão importantes.

— Não importa. Você poderia estar olhando para o teto, mortalmente entediada, ou vendo estrelas cadentes ou fogos de artifício; ainda assim, alguém deixou sua energia dentro de você e foi embora com uma tonelada da sua energia.

Fiquei completamente desconcertada com essa afirmação. Retornar às minhas experiências sexuais agora pareceu-me repugnante.

— Já é ruim o bastante — observei — reviver minhas lembranças infantis.

Não vou ficar recordando o que aconteceu com os homens. Clara fitou-me com uma sobrancelha erguida.

— Além disso — argumentei —, provavelmente você espera que eu confie em você. Mas na verdade, Clara, creio que aquilo que fiz com os homens não interessa a ninguém.

Achei que havia sido explícita. Clara sacudiu a cabeça resolutamente e falou:

— Você quer que os homens de sua vida continuem a alimentar-se de sua energia? Você quer que esses homens se tornem mais fortes à medida que você for se tornando mais forte? Quer ser a fonte de energia desses homens pelo resto da vida? — Não — Acho que você não está entendendo a importância do ato sexual nem o alcance da recapitulação.

— Tem razão, Clara. Não compreendo a razão de seu pedido estranho. E o que significa essa história de os homens se tornarem mais fortes porque eu sou sua fonte de energia? Não sou a fonte nem a fornecedora de energia de ninguém. Isto eu lhe garanto.

Ela sorriu e disse que havia cometido um erro ao forçar um confronto de ideologias desta vez.

— Tenha paciência comigo — pediu ela. — Essa é a crença que escolhi e defendo. À medida que você for avançando em sua recapitulação, eu lhe contarei a origem dela. Basta dizer que é parte fundamental da arte que estou lhe ensinando.

— Se é tão importante quanto você afirma, Clara, talvez seja melhor falar­me dela agora — repliquei. — Antes de prosseguirmos com a recapitulação, gostaria de saber em que estou me metendo.

— Tudo bem, se insiste — assentiu ela com um movimento de cabeça. Clara serviu chá de camomila em nossas canecas e acrescentou uma colher de mel na sua.

Com a voz peremptória do mestre esclarecendo o neófito, ela explicou que as mulheres, mais do que os homens, são os verdadeiros sustentáculos da ordem social, e que, para cumprir este papel, elas foram educadas, uniformemente em todo o mundo, para estarem a serviço do homem.

— Não faz diferença se elas são criadas como escravas ou se são mimadas e amadas — observou ela. — A finalidade e o destino fundamental das mulheres continuam sendo os mesmos: nutrir, proteger e servir os homens.

Clara olhou para mim, creio que para avaliar se eu estava acompanhando seu argumento. Creio que estava, mas minha reação mais íntima era negar tudo que ela estava dizendo.

— Isto pode ser verdade em alguns casos — concedi —, mas não creio que você possa fazer tamanha generalização e incluir todas as mulheres. Clara discordou veementemente.

— O lado diabólico da posição servil das mulheres é que ele não parece ser simplesmente um ditame social — disse ela —, mas um imperativo biológico fundamental.

— Espere um momento, Clara — protestei. — Como você chegou a essas conclusões?

Ela explicou que cada espécie possui um imperativo biológico para perpetuar-se, e que a natureza proporciona instrumentos para assegurar a fusão das energias masculina e feminina da maneira mais eficiente. Disse que, na esfera humana, conquanto a função primordial da relação sexual seja a procriação, ela também tem uma função secundária e velada, que é assegurar o fluxo contínuo de energia das mulheres para os homens.

Clara enfatizou tanto a palavra "homens" que tive de perguntar:

— Por que você diz isto como se fosse uma avenida de mão única? O ato sexual não é uma troca uniforme de energia entre homem e mulher?

— Não. Negou ela enfaticamente. — Os homens deixam linhas energéticas específicas dentro do corpo das mulheres. Assemelham-se a tênias luminosas que se movimentam no interior do útero, sugando energia.

Isso me parece definitivamente sinistro — comentei ironicamente.

Ela prosseguiu com sua exposição em total seriedade. Elas são colocadas ali por uma razão ainda mais sinistra — falou, ignorando minha risada nervosa —, que é assegurar o suprimento constante de energia para o homem que depositou essas linhas energéticas. Estas, estabelecidas através da relação sexual, recolhem e roubam energia do corpo feminino, a fim de beneficiar o homem que as deixou ali.

Clara falou com tanta certeza que não consegui gracejar e tive de levá-la a sério.

— Não que eu aceite por um instante sequer o que você está dizendo, Clara — falei —, mas, só por curiosidade, como chegou a uma conclusão tão despropositada? Alguém lhe falou disso?

— Sim, meu mestre me falou a respeito. A princípio também não acreditei nele — admitiu ela —, mas ele também me ensinou a arte da liberdade, o que significa que aprendi a ver o fluxo da energia. Agora sei que estava certo, pois posso ver os filamentos semelhantes a vermes nos corpos femininos. Você, por exemplo, possui vários deles, todos ainda ativos.

— Digamos que seja verdade, Clara — concedi, inquieta. — Apenas para continuar com o debate, permita-me perguntar-lhe por que isto seria possível? Este fluxo de mão única da energia não seria uma injustiça com as mulheres?

— O mundo inteiro é injusto com as mulheres! — exclamou ela. — Mas o problema não é esse.

— Qual é o problema, Clara? Acho que não percebi.

— O imperativo da natureza é perpetuar nossa espécie. Para assegurar isto, as mulheres têm de carregar um fardo excessivo em seu nível energético básico. O que significa um fluxo de energia que sobrecarrega as mulheres.

— Mas você ainda não explicou por que deve ser assim — insisti, já começando a oscilar com a força de suas convicções.

— As mulheres são o alicerce para a perpetuação da espécie humana — replicou Clara. — Grande parte da energia provém delas, não apenas para gestar, dar à luz e nutrir sua prole, mas também para assegurar que o homem represente seu papel em todo esse processo.

Clara explicou que, teoricamente, esse processo assegura que a mulher alimente seu homem energeticamente através dos filamentos deixados por ele dentro do seu corpo, de modo que o homem se torna misteriosamente dependente da mulher em nível etérico. Isto fica claro na atitude evidente do homem que retorna repetidas vezes para a mesma mulher, a fim de manter sua fonte de sustento. Deste modo, disse Clara, a natureza possibilita aos homens, além do impulso imediato de gratificação sexual, estabelecer vínculos mais permanentes com as mulheres.

— Esses filamentos energéticos, deixados nos úteros das mulheres, também se fundem com a composição energética do filho, caso ocorra a concepção — acrescentou Clara. — Este pode ser o rudimento dos laços familiares, pois a energia do pai se funde com a do feto e permite ao homem sentir que o filho é seu. Estes são alguns fatos da vida que a mãe nunca conta à filha. As mulheres são criadas para serem facilmente seduzidas pelos homens, sem terem a menor idéia das conseqüências do ato sexual em termos do escoamento energético produzido em cada uma delas. Esta é minha opinião e é isto que não é justo.

Ouvindo Clara falar, tive de concordar que parte do que ela estava dizendo fazia sentido para mim num nível corporal profundo. Ela me incentivou a não apenas concordar ou discordar, mas a pensar sobre tudo aquilo e avaliar o que havia dito de maneira corajosa, sem preconceitos e inteligente.

— Já é suficientemente ruim um homem deixar linhas de energia dentro do corpo da mulher — prosseguiu Clara —, embora isto seja necessário para ter filhos e assegurar a sua sobrevivência. Mas ter linhas de energia de dez ou vinte homens dentro dela, sugando sua luminosidade, é mais do que alguém pode suportar. Não admira que as mulheres nunca possam levantar a cabeça.

— Uma mulher pode se livrar dessas linhas? — perguntei, cada vez mais convencida de que havia alguma verdade nas palavras de Clara.

— A mulher carrega esses vermes luminosos por sete anos — disse Clara — e depois desse tempo eles desaparecem ou enfraquecem. Contudo, o problema é que, quando os sete anos estão prestes a chegar ao fim, todo o exército de vermes, do primeiro homem ao último que a mulher teve, torna-se agitado de uma só vez, e a mulher é levada novamente a ter relações sexuais. Então todos os vermes revivem mais fortes do que nunca, para sugar a energia luminosa da mulher por mais sete anos. Na verdade, é um ciclo interminável.

— E se a mulher for celibatária? — indaguei. — Os vermes simplesmente morrem?

— Sim, se ela conseguir resistir ao sexo por sete anos. Mas é praticamente impossível permanecer celibatária em nossa época e século, a menos que se torne freira ou tenha dinheiro para sustentar-se. E mesmo assim ela continuará precisando de um fundamento lógico totalmente diferente.

— Por que, Clara?

— Porque não é apenas um imperativo biológico que as mulheres tenham relações sexuais, mas também uma injunção social.

Clara ofereceu-me então o exemplo mais confuso e perturbador. Disse que, como somos incapazes de ver o fluxo de energia, podemos perpetuar desnecessariamente padrões de comportamento ou interpretações emocionais associadas a este fluxo de energia invisível. Por exemplo, para a sociedade, exigir que as mulheres se casem ou pelo menos ofereçam-se aos homens é errado, assim como é errado as mulheres sentirem-se insatisfeitas se não tiverem o sêmen masculino dentro de si. É verdade que as linhas energéticas masculinas lhes conferem finalidade, deixa-as satisfeitas do ponto de vista de seus destinos biológicos: alimentar os homens e seus frutos. Mas os seres humanos são inteligentes o bastante para exigir mais de si mesmos do que simplesmente cumprir o imperativo da reprodução. Ela disse que, por exemplo, evoluir constitui igualmente um imperativo, até mesmo mais importante do que a reprodução e que, neste caso, a evolução envolve o despertar das mulheres para seu verdadeiro papel no esquema energético da reprodução. Finalmente, ela voltou sua argumentação para o nível pessoal e afirmou que eu havia sido criada, assim como todas as outras mulheres, por uma mãe que considerava sua função primordial orientar-me para encontrar um marido adequado, a fim de que eu não tivesse o estigma de solteirona. Realmente eu fora criada, como um animal, para ter sexo, não importa como minha mãe decidisse chamá-lo.

— Você, assim como todas as outras mulheres, foi iludida e forçada à submissão — continuou Clara. — E o lado triste da história é que você ficou aprisionada neste padrão, ainda que não pretenda ser mãe.

Suas afirmações eram tão perturbadoras que comecei a rir de puro nervosismo. Clara não estava nem um pouco transtornada.

— Talvez tudo isto seja verdade, Clara — falei, procurando não parecer condescendente. — De qualquer maneira, porém, de que maneira a lembrança do passado pode mudar alguma coisa? Não são águas passadas?

— Só posso lhe dizer que, para acordar, você tem de romper o círculo vicioso — contrapôs ela, os olhos verdes analisando-me com curiosidade.

Reafirmei que não acreditava em suas teorias sobre os imperativos biológicos diabólicos, ou machos vampiros sugando a energia das mulheres, e argumentei que simplesmente ficar sentada numa caverna recordando não ia mudar nada.

— Existem certas coisas sobre as quais simplesmente não quero pensar mais — falei asperamente, batendo com o punho na mesa da cozinha. Levantei­me, pronta para partir, e disse-lhe que não queria mais ouvir falar de recapitulação, lista de nomes ou quaisquer imperativos biológicos.

— Vamos fazer um trato — sugeriu Clara com o ar de um comerciante pronto para enganar o freguês. — Você é uma pessoa direita; gosta de ser honesta. Proponho, portanto, chegarmos a um acordo.

— Que tipo de acordo? — perguntei com uma ansiedade crescente. Ela arrancou uma folha de papel do bloco e estendeu-a a mim.

— Quero que você escreva e assine um documento afirmando que você vai tentar fazer o exercício de recapitulação por um mês apenas. Se depois de um mês você não perceber nenhum acréscimo de energia nem qualquer melhora na sua maneira de sentir em relação a si mesma ou à vida em geral, você estará livre para voltar para casa, onde quer que ela seja. Se acontecer isto, você poderá simplesmente descartar toda a experiência como o pedido bizarro de uma mulher excêntrica.

Sentei-me novamente para acalmar-me. Enquanto bebericava o chá, ocorreu-me a idéia de que isto era o mínimo que eu podia fazer após todo o trabalho que Clara tivera por minha causa. Ademais, era evidente que ela não ia liberar tão facilmente. Eu bem poderia fingir que estava recapitulando minhas lembranças. Afinal de contas, quem poderia saber se, na caverna, eu faria visualização e respiração, ou se simplesmente ia devanear ou tirar uma soneca?

— É só um mês — falou ela com sinceridade. — Você não estará desperdiçando a sua vida. Acredite em mim, estou realmente tentando ajudá-la.

— Sei disso — falei. — Mas por que está fazendo tudo isso por mim? Por que eu, Clara?

— Existe uma razão—replicou ela —, mas é tão artificial que não posso revelá-la agora. A única coisa que posso lhe dizer é que ajudando-a, estou cumprindo uma meta valiosa: estou pagando uma dívida. Você aceitaria o pagamento de uma dívida como o motivo?

Clara fitou-me com olhos tão esperançosos que peguei o lápis e escrevi o compromisso, escolhendo bem as palavras para que não! houvesse dúvidas em relação ao período de um mês. Ela barganhou a não-inclusão naquele mês do tempo que eu levaria para fazer a lista de nomes. Concordei e fiz um adendo nesse sentido; por fim, apesar de tudo, assinei o compromisso.

 

Foram necessárias algumas semanas de torturas mentais para fazer a lista. Odiei-me por ter deixado Clara convencer-me a não incluir aquele espaço de tempo no compromisso. Durante aqueles longos dias, trabalhei em absoluta solidão e silêncio. Encontrava Clara apenas no desjejum e no jantar, que comíamos na cozinha; contudo, mal nos falávamos. Ela rejeitava todas as minhas tentativas de conversa cordial, dizendo que voltaríamos a nos falar quando eu tivesse terminado minha lista. Quando a concluí, ela deixou sua costura de lado e imediatamente acompanhou-me até a caverna. Eram quatro horas da tarde e, segundo Clara, o início da manhã e o fim da tarde eram as horas mais propícias para iniciar um empreendimento tão amplo.

Na entrada da caverna ela me deu algumas instruções.

— Pegue a primeira pessoa da sua lista e trabalhe sua lembrança para recordar tudo que vivenciou com essa pessoa — disse Clara —, desde o momento em que vocês se conheceram até a última vez em que se encontraram. Ou, se você preferir, você pode trabalhar ao inverso, partindo da última vez que encontrou essa pessoa até o primeiro encontro.

De posse da lista, eu ia para a caverna todos os dias. A princípio a recapitulação foi bastante difícil. Eu não conseguia me concentrar, pois apavorava-me vasculhar o passado. Minha mente vagava" daquilo que eu considerava um fato traumático para o próximo, ou eu simplesmente repousava ou devaneava. Contudo, algum tempo depois, intrigou-me a clareza e os detalhes que minhas recordações iam adquirindo. Comecei inclusive a ser mais objetiva em relação a experiências que sempre considerara tabus.

Surpreendentemente, também me sentia cada vez mais forte e otimista. Às vezes, quando respirava, era como se a energia estivesse voltando para meu corpo, tornando meus músculos ativos e volumosos. Envolvi-me tanto com a recapitulação que não precisei de um mês inteiro para comprovar sua eficácia. Duas semanas após o início do período estipulado no documento, durante o jantar, pedi a Clara que encontrasse alguém para cancelar o aluguel de meu apartamento e colocar minhas coisas em um depósito. Clara já me fizera esta sugestão por diversas vezes antes, mas eu sempre recusara a oferta, pois não estava preparada para firmar tal compromisso. Clara encantou-se com meu pedido.

— Pedirei a uma de minhas primas para fazer isto — ofereceu-se ela. — Ela cuidará de tudo. Não quero que nenhuma preocupação perturbe a sua concentração.

— Já que está falando nisso, Clara, uma outra coisa está me preocupando.

Clara esperou que eu falasse. Expliquei-lhe que eu achava muito estranho nossas refeições estarem sempre prontas, embora nunca a tivesse visto cozinhando ou preparando alguma delas.

— É porque você nunca está em casa durante o dia — Clara falou simplesmente. — E à noite você se deita cedo.

Era verdade que eu passava a maior parte do tempo na caverna. Quando voltava para casa, fazia a refeição na cozinha e depois permanecia em meu quarto, pois as dimensões da casa me intimidavam. Ela era enorme. Não parecia abandonada, pois estava mobiliada, possuía livros e diversos objetos decorativos feitos de cerâmica, prata ou esmalte cloasonado. Todos os quartos eram limpos e sem poeira, como se uma empregada viesse regularmente arrumá-los. No entanto, a casa parecia vazia porque não havia pessoas. Por duas vezes Clara desaparecera em missões misteriosas, a respeito das quais recusara-se a dizer qualquer coisa; nessas ocasiões, o único outro ser vivente na casa além de mim era Manfred. E foram nessas ocasiões que Manfred e eu subíamos as colinas para contemplar a casa. Eu havia feito o reconhecimento da casa e dos terrenos de um ponto de observação que eu acreditava haver encontrado. Na ocasião não quis admitir que Manfred me havia conduzido até o local.

Em meu promontório particular, passava horas tentando perceber o posicionamento da casa. Clara havia mostrado que ela obedecia os pontos cardeais. Mas, quando verifiquei com um compasso, a casa parecia ter um alinhamento ligeiramente diferente. Os terrenos em volta da casa eram bastante inquietantes, pois desafiavam qualquer mapeamento correto que tentei projetar. De meu ponto de observação eu podia ver que os terrenos pareciam muito mais amplos do que quando medidos da própria casa. Clara me havia proibido de colocar os pés na área dianteira da casa — o leste —bem como no lado sul. Mas eu havia calculado, caminhando pela periferia da casa, que as duas áreas eram idênticas nos lados oeste e norte, aos quais eu tinha acesso. Contudo, vistas a distância, não eram realmente idênticas e não consegui explicar a discrepância.

Desisti de tentar definir a disposição da casa e dos terrenos e voltei minha atenção para outro problema misterioso: os parentes de Clara. Embora ela constantemente se referisse a eles de maneira evasiva, eu ainda não vira qualquer sinal deles.

— Quando seus parentes voltam da índia? — perguntei sem rodeios.

— Logo — respondeu ela. Pegou a tigela de arroz com uma mão e segurou-a à moda chinesa. Eu nunca a vira usando pauzinhos antes, e impressionou-me a incrível precisão com que ela os manipulava. — Por que você está tão preocupada com meus parentes? — perguntou.

— Para falar a verdade, Clara, não sei, mas estou muito curiosa sobre eles — falei. — Tenho sido acometida por sentimentos e idéias perturbadoras nessa casa enorme.

— Está querendo dizer que não gosta da casa?

— Ao contrário, adoro a casa. Só que ela é muito grande e assombrada.

— Que tipo de pensamentos e sentimentos a perturbam? — perguntou ela, pousando a tigela.

— Às vezes acho que vejo pessoas no corredor, ou ouço vozes. E tenho sempre a impressão de que alguém está me vigiando, mas quando olho em torno, não há ninguém.

— Nessa casa há mais coisas do que os olhos vêem — admitiu Clara —, mas isto não deve provocar medo ou preocupação. Há uma magia nesta casa, nos terrenos, nas montanhas circundantes. Por esta razão decidimos morar aqui. Na verdade, este é também o motivo que a levou a morar aqui, embora você não tenha a menor idéia de que esta é a razão de sua escolha. Mas é assim que deve ser. Você traz sua inocência para esta casa e a casa, com sua intenção, transforma-a em sabedoria.

— Tudo parece muito bonito, Clara, mas o que significa exatamente?

— Sempre falo com você na esperança de que me compreenda — falou com um toque de desapontamento. — Cada um de meus parentes, os quais, posso garantir-lhe, entrarão em contato com você mais cedo ou mais tarde, falará com você da mesma maneira. Assim, não pense que estamos falando tolices só porque você não nos compreende.

— Acredite-me, Clara, não penso assim realmente, e fico grata por você tentar me ajudar.

— É a recapitulação que está ajudando você e não eu — corrigiu-me Clara. — Você percebeu outras coisas estranhas na casa além do que já me contou?

Relatei a diferença entre minha avaliação visual da casa de meu ponto de observação e do chão. Ela riu tanto que chegou a ter um acesso de tosse.

— Tenho de ajustar meu comportamento a esta nova revelação — disse Clara, quando conseguiu voltar a falar.

— Pode me explicar por que os terrenos parecem desiguais e por que a bússola faz leituras diferentes quando estou aqui embaixo e quando estou no alto da colina? — perguntei.

— Claro que posso; mas não fará nenhum sentido para você. E mais, você poderá até mesmo ficar assustada.

— Tem a ver com a bússola, Clara? Ou comigo? Estou louca ou o quê?

— Tem a ver com você, é claro. É você quem está fazendo essas medições; mas você não está louca; é outra coisa.

— O que é, Clara? Diga-me. Tudo isto me dá calafrios. É como se eu estivesse num filme de ficção científica, onde nada é real e tudo pode acontecer. Odeio este estilo de filme!

Clara não parecia disposta a revelar mais coisa alguma. Em vez disso, perguntou:

— Você não gosta do inesperado?

Contei-lhe que meus parentes do sexo masculino haviam sido tão prejudiciais para mim que fiquei desgastada e, por uma questão de princípios, passei a odiar tudo aquilo de que eles gostavam. Eles assistiram ao Além da Imaginação na TV e deliraram. Para mim não passava de um programa manipulador e planejado.

— Vejamos como posso explicar — concordou Clara. — Em primeiro lugar, definitivamente esta não é uma casa de ficção científica. É, isto sim, uma casa de um desígnio extraordinário. Não posso explicar suas discrepâncias pela mesma razão por que não posso explicar-lhe ainda qual é esta intenção.

— Por favor, não fale por enigmas, Clara — implorei. — Não é apenas assustador, mas profundamente irritante.

— Para você compreender esta questão delicada, tenho de falar em rodeios — disse Clara. — Deixe-me, portanto, primeiro falar-lhe do homem que foi o responsável direto pela minha presença nesta casa, e indiretamente responsável por minha relação com você. Ele se chamava Mian e foi o ser mais extraordinário que já conheci. Ele me encontrou um dia em que eu me havia perdido naquelas montanhas no Arizona e trouxe-me para esta casa.

— Espere um instante, Clara, você disse que esta casa pertencia a sua família há muitas gerações — lembrei.

— Cinco gerações, para ser exata — replicou ela.

— Como você pode fazer duas afirmativas contraditórias com tamanha indiferença?

— Eu não estou me contradizendo. É você quem está interpretando as coisas sem o fundamento correto. A verdade é que esta casa pertence a minha família há várias gerações. Mas minha família é uma família abstrata. É uma família da mesma maneira que esta casa é uma casa e Manfred é um cachorro. Mas você já sabe que Manfred não é um cão de verdade; nem tampouco esta casa é real, como qualquer outra casa. Entende o que quero dizer?

Eu não estava com paciência para os enigmas de Clara. Permaneci sentada em silêncio por algum tempo, na esperança de que ela mudasse de assunto. Então senti-me culpada por ficar me remoendo e ser tão irascível.

— Não, não entendo o que você quer dizer — falei finalmente.

— Para compreender tudo isto, você tem de mudar — explicou Clara pacientemente. — Mas é exatamente por isso que você está aqui: para mudar. E mudar significa que você será capaz de realizar o vôo abstrato, quando então tudo ficará claro para você.

Ante minha ansiedade desesperada, ela explicou que este vôo inimaginável era simbolizado pelo movimento do lado direito da testa para o esquerdo, mas na verdade ele significava trazer a parte etérica em nós, o duplo, para nossa consciência cotidiana.

— Como já lhe expliquei — prosseguiu ela —, o dualismo mente-corpo constitui uma falsa dicotomia. A verdadeira divisão existe entre o corpo físico, que abriga a mente, e o corpo etérico ou duplo, que abriga nossa energia. O vôo abstrato acontece quando trazemos nosso duplo para relacionar-se com nossa vida diária. Em outras palavras, no momento em que nosso corpo físico se torna totalmente consciente de sua contraparte etérica energética, nós atravessamos o abstrato, uma esfera de consciência completamente diferente.

— Se isto significa que eu tenho de mudar primeiro, tenho sérias dúvidas se algum dia conseguirei fazer a travessia — falei. — Tudo parece tão profundamente arraigado em mim que me sinto imobilizada para toda a vida.

Clara colocou um pouco de água em minha xícara, pousou o cântaro de cerâmica e olhou-me firmemente.

— Existe uma maneira de mudar — sugeriu. — E no momento você está envolvida até os olhos com essa maneira. Chama-se recapitulação.

Ela assegurou que uma recapitulação completa e profunda nos permite tomar consciência daquilo que queremos mudar, possibilitando-nos ver nossas vidas sem ilusão. Ela nos proporciona uma pausa momentânea, na qual podemos optar por aceitar nosso comportamento habitual ou modificá-lo, tendo a intenção de eliminá-lo antes que ele nos aprisione por completo.

— E como você tem a intenção de eliminar algo? — perguntei. — Você simplesmente diz "Fora Satã!"?

Clara soltou uma gargalhada e bebericou a água.

— Para mudarmos, precisamos satisfazer três condições — disse. — [5]Primeiro temos que anunciar em voz alta nossa decisão de mudar, para que a intenção nos ouça. Segundo, temos que direcionar nossa percepção por determinado período de tempo, não podemos simplesmente começar alguma coisa e abandoná-la tão logo nos sentimos desencorajados. Terceiro, temos de visualizar o resultado de nossos atos com uma sensação de completo desapego. Isto significa que não podemos nos envolver com a idéia de sucesso ou fracasso. Siga estas três etapas e você poderá mudar quaisquer sentimentos e desejos em você — assegurou Clara

— Não sei, Clara — falei com ceticismo. — Parece muito simples do jeito como você fala.

Não que eu não quisesse acreditar nela; simplesmente eu sempre fora prática e, de um ponto de vista prático, a tarefa de modificar meu comportamento parecia tremenda, apesar do programa de três etapas.

Terminamos a refeição em total silêncio. O único som na cozinha era o constante gotejar da água ao passar pelo filtro de calcário, o que me suscitava a imagem concreta do gradual processo de purificação da recapitulação. De súbito, uma onda de otimismo inundou-me. Talvez fosse possível mudar, purificar-se, gota a gota, pensamento a pensamento, assim como a água passando através do filtro

Acima de nós, as luzes brilhantes lançavam sombras misteriosas na toalha de mesa branca. Clara pousou os pauzinhos e recurvou os dedos como se estivesse formando imagens de sombra na toalha. Fiquei esperando que a qualquer momento ela fizesse um coelho ou uma tartaruga.

— O que você está fazendo? — perguntei, quebrando o silêncio.

— Esta é uma forma de comunicação — explicou. — Não com as pessoas, mas com essa força que chamamos de intenção.

Ela esticou os dedos mínimo e indicador, fez um círculo tocando o polegar e as pontas dos dois dedos restantes. Disse-me que era um sinal para atrair a atenção dessa força e permitir sua entrada no corpo através das linhas de energia que terminam e começam nas pontas dos dedos.

— A energia passa através dos dedos indicador e mínimo, se forem esticados como antenas — explicou ela, mostrando-me o gesto novamente. — A energia fica então aprisionada e é mantida no círculo formado pelos outros três dedos.

Disse também que, nessa posição específica da mão, podemos atrair energia suficiente para o corpo, a fim de curá-lo ou fortalecê-lo, ou ainda modificar nosso estado de espírito e hábitos.

— Vamos para a sala, onde estaremos mais à vontade — disse Clara. — Não sei para você, mas este banco está começando a machucar meu traseiro.

Clara se levantou e atravessamos o pátio as escuras, a porta dos fundos e o corredor da casa principal, até chegarmos à sala. Para minha surpresa, o lampião já tinha sido aceso e Manfred dormia enroscado junto a uma poltrona. Clara acomodou-se nessa poltrona, que eu sempre considerara a sua favorita. Pegou um bordado no qual estava trabalhando e cuidadosamente acrescentou mais alguns pontos, passando a agulha através do tecido e puxando-a com delicado movimento circular de sua mão, os olhos fixos, concentrados em seu trabalho.

Para mim era tão fora do comum ver aquela mulher forte bordando que dei uma olhada para ver se conseguia vislumbrar o trabalho. Clara percebeu meu interesse e estendeu o bordado para que eu pudesse vê -lo. Era uma fronha com um bordado de borboletas pousadas sobre flores coloridas. Muito berrante para meu gosto.

Clara sorriu como se estivesse sentindo minha opinião crítica ao seu trabalho.

— Você poderá dizer que meu trabalho é belíssimo ou que estou perdendo meu tempo — disse, dando outro ponto —, mas isto não afetaria minha serenidade interior. Esta atitude é chamada de "conhecimento do próprio valor". — Fez uma pergunta retórica que ela mesma respondeu: — E para você, qual é o meu valor? Absolutamente zero.

Disse-lhe que, na minha opinião, ela era magnífica, na verdade uma pessoa verdadeiramente inspiradora. Como ela podia dizer que não tinha valor?

— É muito simples — explicou Clara. — Enquanto as forças positivas e negativas se encontram em equilíbrio, elas anulam-se reciprocamente, o que significa que meu valor é zero. Significa também que não posso perturbar-me quando alguém me critica, nem tampouco ficar satisfeita quando alguém me elogia. — Clara levantou a agulha e, apesar da pouca luminosidade, enfiou nela o fio, com rapidez. — Os sábios chineses da antiguidade costumavam dizer que, para conhecer o seu valor, você tem de deslizar através do olho do dragão — explicou, unindo as duas pontas da linha.

Continuou dizendo que esses sábios estavam convencidos de que o desconhecido ilimitado era protegido por um enorme dragão, cuja pele irradiava um brilho ofuscante. Acreditavam eles que os buscadores destemidos que ousam aproximar-se do dragão ficam estupefatos ante sua luminosidade ofuscante, a força de sua cauda, a qual, com a mais leve vibração, esmaga tudo que estiver em seu caminho e, ante seu hálito ardente, que transforma em cinzas tudo que estiver a seu alcance. Mas eles também acreditavam existir uma maneira de passar por esse dragão inacessível. Eles tinham certeza de que, fundindo-se com a intenção do dragão, era possível tornar-se invisível e atravessar o olho do dragão.

— O que significa isto, Clara? — indaguei

— Significa que, por meio da recapitulação, podemos nos esvaziar de pensamentos e desejos, os quais, para aqueles videntes ancestrais, significavam tornar-se um com a intenção do dragão, por conseguinte, invisível.

Peguei uma almofada bordada, outra amostra do trabalho de Clara, e coloquei-a nas costas. Respirei profundamente algumas vezes para clarear minha mente. Eu queria compreender o que ela estava dizendo. Mas sua insistência em utilizar metáforas chinesas tornava tudo muito mais confuso para mim. Contudo, havia tal força em tudo que ela dizia que senti o quanto eu estaria perdendo se não tentasse pelo menos compreendê-la.

Olhando Clara a bordar fez-me lembrar repentinamente de minha mãe. Talvez tenha sido esta lembrança que me levou a uma tristeza monumental, a uma saudade indizível; ou talvez por ter ouvido o que Clara dissera; ou simplesmente pelo fato de estar em sua bela casa, misteriosa e vazia, sob a luminosidade sobrenatural do lampião. Lágrimas brotaram de meus olhos e comecei a chorar. Clara levantou-se da cadeira imediatamente e ficou a meu lado. Sussurrou tão alto em meu ouvido que mais pareceu gritar:

— Não se atreva a entregar-se mais uma vez à autopiedade nesta casa. Se fizer isso, esta casa a rejeitará; ela a expulsará como se cospe um caroço de azeitona.

Sua advertência exerceu o efeito desejado sobre mim. Minha tristeza desapareceu instantaneamente. Enxuguei os olhos e Clara continuou a falar como se nada tivesse acontecido.

— A arte do vazio era a técnica praticada pelos sábios chineses que desejavam atravessar o olho do dragão — explicou, sentando-se novamente. — Hoje, chamamos esta técnica de arte da liberdade. Consideramos esta expressão melhor, pois esta arte realmente conduz a uma esfera abstrata, onde a humanidade não é importante.

— Você quer dizer que é uma esfera inumana, Clara? Clara pousou o bordado no colo e fitou-me.

— O que quero dizer é que praticamente tudo que ouvimos falar a respeito dessa esfera, de sábios e videntes que a buscaram, apresenta laivos das inquietações humanas. Mas nós, que praticamos a arte da liberdade, descobrimos com a experiência direta que este retrato é incorreto. Em nossa experiência, tudo que é humano nessa esfera é tão destituído de importância que se perde na amplidão.

— Espere um instante, Clara. E o grupo de personagens lendários chamados de chineses imortais? Eles não alcançaram a liberdade da maneira que você está falando?

— Não da maneira que estamos falando — disse Clara. — Para nós, liberdade é libertar-se da humanidade. Os chineses imortais ficaram aprisionados em seus mitos da imortalidade, da sabedoria, da liberação, do retorno à terra para conduzir outras pessoas ao longo do caminho. Eles eram estudiosos, músicos, possuidores de poderes naturais. Eram justos e excêntricos, assim como os deuses gregos clássicos. Até mesmo o nirvana é um estado humano, no qual o êxtase é a libertação da carne.

Clara havia conseguido deixar-me completamente desorientada. Disse-lhe que, durante toda minha vida, eu fora acusada de falta de calor humano e compreensão. Na verdade, haviam-me dito que eu era a criatura mais fria que alguém poderia conhecer. Agora Clara estava dizendo que liberdade é livrar-se da compaixão humana. E eu sempre pensara que me faltava alguma coisa fundamental, por não possuir essa compaixão.

Eu estava prestes a me entregar outra vez à autopiedade, mas Clara veio de novo em meu auxílio.

— Libertar-se da humanidade não significa algo tão idiota como não possuir calor humano ou compaixão — disse.

— Mesmo assim, a liberdade como você a descreve é inconcebível para

mim, Clara — insisti. — Não sei se eu ia querer uma parte dela. — Tenho certeza de que quero cada parte dela — ela redargüiu. — Embora minha mente tampouco possa concebê-la, acredite, ela existe! E acredite também que um dia você estará dizendo a alguém tudo que estou lhe falando agora. Talvez você utilize até as mesmas palavras. — Ela me deu uma piscadela como se tivesse certeza de que isto ia acontecer. — À medida que você der continuidade à recapitulação, a entrada na esfera onde a humanidade não é importante lhe irá aparecer. Este será o convite para você atravessar o olho do dragão. É o que chamamos de vôo abstrato. Na verdade ele implica a travessia de enorme abismo para chegar a uma esfera que não pode ser descrita porque o homem não é a sua medida.

Fiquei paralisada de medo. Não ousava levar Clara na brincadeira, pois ela sempre falava sério. A idéia de perder minha humanidade, tal como ela era, e saltar num abismo era mais do que assustadora. Eu estava prestes a perguntar se ela sabia quando a entrada iria aparecer-me, mas ela continuou com sua explicação:

— A verdade é que a entrada está diante de nós o tempo todo — disse Clara—, mas apenas aqueles cujas mentes são silenciosas e cujos corações estão em paz podem ver ou sentir sua presença.

Explicou que a palavra entrada não era metafórica, pois real mente se afigurava vez por outra como uma porta lisa, uma caverna negra, uma luz estonteante ou qualquer coisa concebível, até mesmo o olho de um dragão. Explicou que, neste sentido, as metáforas dos sábios da China ancestral não eram tão despropositadas.

— Outra coisa que os antigos buscadores chineses acreditavam era que a invisibilidade é o corolário da obtenção de uma tranqüila indiferença — prosseguiu ela.

— O que é uma tranqüila indiferença, Clara?

Em vez de responder diretamente minha pergunta, ela perguntou se eu já vira os olhos de galos brigando.

— Nunca vi uma briga de galos na minha vida — respondi. Clara explicou que a expressão dos olhos de um galo de briga não é encontrada nos olhos de pessoas ou animais comuns, pois estes refletem calor, compaixão, raiva, medo.

— Os olhos de um galo de briga não possuem nada disso — informou-me Clara. — Ao contrário, eles refletem uma indiferença indescritível, também encontrada nos olhos de seres que fizeram a grande travessia. Pois, em vez de olhar para fora, para o mundo, eles se voltam para dentro, para contemplar aquilo que ainda não está presente. O olho que contempla o interior é imóvel. Ele reflete não as inquietações e temores humanos, mas a amplidão. Aqueles que viram o ilimitado atestaram que o ilimitado retribui o olhar com uma fria e inflexível indiferença.

 

Uma tarde, pouco antes do anoitecer, Clara e eu estávamos fazendo o pitoresco caminho da caverna até a casa quando ela sugeriu que nos sentássemos e descansássemos à sombra de algumas árvores. Estávamos observando as sombras formadas pelas árvores no solo quando de repente uma lufada de vento fez as árvores balançarem. As folhas lançaram um brilho tremeluzente, numa oscilação de luz e trevas, formando ondulações nos desenhos no solo. Quando o vento amainou, as folhas se imobilizaram novamente, assim como as sombras.

— A mente é como essas sombras — falou Clara com suavidade. — Quando nossa respiração está uniforme, nossas mentes silenciam. Se ela variar, a mente oscilará como folhas agitadas pelo vento.

Tentei perceber se minha respiração estava uniforme ou irregular, mas sinceramente não consegui.

— Se sua respiração estiver agitada, sua mente ficará inquieta — prosseguiu Clara. — Para aquietar a mente, o melhor é começar aquietando sua respiração.

Ela me disse para manter as costas eretas e concentrar-me na minha respiração até esta tornar-se suave e ritmada, como a de um bebê.

Argumentei que uma pessoa fisicamente ativa, como nós, que acabáramos de escalar as colinas, não pode ter a respiração suave como a de um bebê, que simplesmente fica deitado sem fazer nada.

— Além disso — completei —, não sei como o bebê respira, não conheci muitos bebês e, quando estive em contato com eles, não prestei atenção à respiração.

Clara aproximou-se mais e levou uma mão às minhas costas e a outra ao meu peito. Para minha consternação, ela pressionou até meu peito ficar tão apertado que pensei sufocar. Tentei afastar-me, mas ela me manteve na mesma posição com uma pressão férrea.

Para compensar, meu estômago começou a dilatar-se e contrair-se ritmadamente, à medida que o ar entrava em meu corpo.

— Assim respiram os bebês — disse ela. — Lembre-se da sensação de seu estômago dilatando para que possa reproduzi-la, esteja você andando, fazendo exercícios ou deitada sem fazer nada.

Provavelmente você não vai acreditar, mas somos tão civilizados que temos de reaprender a respirar corretamente. — Retirou as mãos de meu peito e costas. — Agora deixe a respiração ascender até preencher seu peito — orientou-­me. — Mas não deixe que ela encha sua cabeça.

— É impossível o ar entrar na minha cabeça — falei rindo.

— Não me entenda tão literalmente — censurou-me ela. — Quando digo ar, na verdade estou falando da energia proveniente da respiração, que entra no abdômen, no peito e depois na cabeça.

Tive de rir diante da seriedade de Clara. Preparei-me para outra série de metáforas chinesas. Ela sorriu e deu uma piscadela.

— Minha seriedade é comparável ao meu tamanho — disse com uma risadinha. — Nós, pessoas grandes, sempre somos mais sérias do que as pequenas e joviais. Não é, Taisha?

Eu não sabia por que ela me incluíra ao falar de pessoas grandes. Eu era pelo menos cinco centímetros mais baixa do que ela e pesava uns dezesseis quilos menos. Não gostei nem um pouco de ser chamada de grande, e muito menos de sua insinuação de que eu era excessivamente séria. Mas nada contei porque sabia que ela transformaria aquilo num debate e me diria para fazer uma profunda recapitulação sobre o tema do meu tamanho.

Clara contemplou-me como se quisesse avaliar minha reação ao que acabara de dizer. Sorri e fingi não estar nem um pouco perturbada. Ao ver-me atenta, ela ficou novamente séria e continuou a explicar que nosso bem-estar emocional está diretamente ligado ao fluxo ritmado de nossa respiração.

A respiração de uma pessoa preocupada — disse ela, aproximando-se mais — é rápida e superficial, e localiza-se no peito ou na cabeça. A respiração de uma pessoa relaxada vai até o abdômen. "Tentei levar minha respiração até o estômago para que Clara não desconfiasse que eu estava preocupada. Mas ela sorriu com esperteza e acrescentou:

— As pessoas grandes têm mais dificuldade de respirar pelo abdômen, pois seu centro de gravidade é um pouco mais alto. Portanto, é ainda mais importante permanecerem calmas e ir turbáveis.

Continuou explicando que o corpo divide-se em três compartimentos energéticos principais: o abdômen, o peito e a cabeça. Tocou meu estômago, logo abaixo do umbigo, e em seguida meu plexo solar e o centro da testa. Explicou que esses três pontos são os centros fundamentais dos três compartimentos. Quanto mais relaxados a mente e o corpo, mais ar a pessoa pode levar a cada uma dessas três divisões do corpo.

— Os bebês inspiram uma grande quantidade de ar para seu tamanho — disse Clara. — Entretanto, à medida que crescemos, nós nos tornamos contraídos, especialmente em torno dos pulmões, e recebemos menos ar.

Clara respirou profundamente antes de continuar.

— Como as emoções estão diretamente relacionadas com a respiração — disse —, uma boa maneira de nos acalmarmos é através da sua regulação. Por exemplo, podemos nos exercitar para absorvemos mais energia, alongando deliberadamente cada respiração.

Ficou de pé e pediu-me para observar sua sombra atentamente. Percebi que ela estava perfeitamente imóvel. Então ela me pediu para levantar-me e contemplar minha própria sombra. Não pude deixar de detectar um leve tremor, como a sombra das árvores com suas folhas fustigadas pelo vento.

— Por que minha sombra está oscilando? — perguntei. — Pensei que estava totalmente imóvel.

— Sua sombra oscila porque a brisa das emoções está soprando através de você — replicou Clara. — Você está mais serena do que quando iniciou a recapitulação, mas ainda há muita agitação em seu íntimo.

Ela sugeriu que eu sustentasse meu corpo na perna esquerda com a perna direita levantada e dobrada na altura dos joelhos. Cambaleei ao tentar manter o equilíbrio. Admirou-me a maneira. como ela ficava de pé sobre uma perna com a mesma facilidade com que ficava de pé sobre as duas, e sua sombra permanecia absolutamente imóvel.

— Parece que você tem dificuldade de manter o equilíbrio — observou Clara, abaixando a perna e levantando a outra. — Isto significa que seus pensamentos e sentimentos não estão em paz, nem tampouco sua respiração. Levantei a outra perna e tentei realizar o exercício novamente.

Desta vez meu equilíbrio estava melhor, mas ao ver como a sombra de Clara se mantinha imóvel senti uma súbita pontada de inveja e tive de abaixar a perna para não cair.

— Sempre que temos um pensamento — explicou Clara, abaixando novamente a perna —, nossa energia movimenta-se na direção desse pensamento. Os pensamentos assemelham-se a batedores; eles fazem o corpo percorrer determinado trajeto. Veja minha sombra agora — ordenou ela. — Mas procure não considerá-la simplesmente como minha sombra. Tente ver a essência da Clara, mostrada por sua sombra-imagem.

Tensionei-me imediatamente. Estava sendo colocada à prova e meu desempenho seria avaliado. Meus sentimentos competitivos infantis, a necessidade de superar meus irmãos, afloraram.

— Não fique tensa — falou Clara duramente. — Isto não é uma competição, é apenas um prazer. Está entendendo? Um prazer!

Eu fora inteiramente condicionada a reagir às palavras. A palavra "prazer" mergulhou-me em completa confusão e finalmente deixou-me em pânico. Ela não estava utilizando a palavra corretamente, era tudo que eu conseguia pensar. Ela devia estar querendo dizer outra coisa. Mas Clara repetiu a palavra diversas vezes, como se quisesse que ela me penetrasse.

Mantive os olhos em sua sombra. Tive a impressão de que era bela, serena, cheia de poder. Não era simplesmente uma região escura: parecia possuir profundidade, inteligência e vitalidade. Então, repentinamente pensei ver a sombra de Clara movimentar-se independente de qualquer movimento do seu corpo. O movimento fora tão incrivelmente rápido que quase passara despercebido. Esperei, contendo a respiração, olhando para a sombra, concentrando ali toda a minha atenção. E aconteceu de novo, e desta vez certamente eu estava preparada. A sombra estremeceu e depois alongou-se, como se seus ombros e peito de súbito houvessem inflado. A sombra parecia ter vida.

Soltei um grito assustado e dei um salto. Exclamei que sua sombra estava viva. Estava prestes a sair correndo, aterrorizada ante a possibilidade de a sombra sair correndo atrás de mim, mas Clara segurou-me pelo ombro.

Quando me acalmei o bastante para voltar a falar, disse-lhe o que tinha visto, todo o tempo sem olhar para o chão, temendo ver novamente a sombra sinistra de Clara.

— Ver o movimento das sombras significa que evidentemente você liberou uma grande porção de energia com sua recapitulação — observou Clara.

— Tem certeza de que não imaginei isso tudo, Clara? — indaguei, na esperança de que ela dissesse que sim.

— Foi sua intenção que provocou o movimento — falou ela, peremptória.— Mas você não acha que a recapitulação também transtorna a mente? — perguntei. — Devo estar muito perturbada para ver sombras movendo­ se sozinhas.

— Não. A finalidade da recapitulação é romper com pressupostos básicos, que aceitamos ao longo de nossas vidas — explicou Clara pacientemente. — Enquanto não forem rompidos não poderemos impedir que o poder da recordação obscureça nossa percepção.

— O que você está querendo dizer exatamente com poder da recordação, Clara?

— O mundo é uma enorme tela de lembranças; se determinadas pressuposições são rompidas — explicou ela —, o poder da recordação não apenas é controlado, mas até mesmo cancelado.

Eu não entendia o que ela estava dizendo e ressentia-me pelo fato de ela ser tão obscura.

— Provavelmente foi o vento que agitou o cascalho onde sua sombra estava projetada — falei, tentando oferecer uma explicação razoável. Clara sacudiu a cabeça.

— Experimente olhar atentamente de novo e verifique para ter certeza — sugeriu.

Nada no mundo me faria olhar novamente para a sombra de Clara.

— Você insiste em que as sombras das pessoas não se movem sozinhas — disse Clara — porque é isto que a sua capacidade de recordação lhe diz. Você se lembra de tê-las visto movimentando-se?

— Não. Claro que não.

— Exatamente. Mas o que lhe aconteceu agora mesmo é que, sua capacidade habitual de recordação foi momentaneamente interrompida e você viu minha sombra mexer-se. — Meneou o dedo em minha direção e soltou uma risadinha. — E não foi o vento movimentando o cascalho — afirmou.

Então ela ocultou o rosto com o braço, como se fosse uma criança tímida. Pareceu-me estranho que, mesmo sendo uma mulher adulta, nunca parecesse ridícula quando fazia aqueles gestos infantis.

— Tenho notícias para você — continuou Clara. — Você viu sombras movendo-se quando era criança, mas você ainda não era racional, portanto não havia nenhum problema em ver as sombras se mexendo. À medida que você foi crescendo, sua energia passou a ser utilizada pelas obrigações sociais e você esqueceu que vira as sombras movimentando-se, e passou a lembrar-se apenas daquilo que considerava permitido.

Eu estava tentando avaliar o alcance daquilo que Clara estava me dizendo quando de repente me lembrei de que, quando criança, eu costumava ver sombras retorcendo-se e recurvando-se nas calçadas, sobretudo em dias claros e quentes. Sempre achara que elas estavam tentando libertar-se das pessoas a quem pertenciam. Aterrorizava-me ver as sombras enroscando-se para dar uma olhadela para trás. Sempre parecera estranho que os adultos não se dessem conta das cambalhotas de suas sombras.

Quando contei isto a Clara, ela concluiu que meu terror era produto do conflito entre o que eu realmente via e o que já me haviam dito ser possível e permitido ver.

— Acho que não estou te entendendo, Clara — falei.

— Tente imaginar-se como um depósito gigantesco de lembranças — sugeriu ela. — Nesse depósito, outra pessoa, que não você, armazenou sentimentos, idéias, diálogos mentais e padrões de comportamento. Como o depósito é seu, você pode entrar e fazer uma vistoria, sempre que quiser, e usar o que encontrar lá. O problema é que você não tem voz ativa sobre o inventário, pois ele já estava definido antes de você tomar posse do depósito. Assim, você fica drasticamente limitada na escolha dos itens.

Ela acrescentou que nossas vidas parecem manter uma sucessão temporal ininterrupta porque, em nossos depósitos, o inventário nunca muda. Ressaltou que, se o depósito não for esvaziado, não poderemos saber quem realmente somos.

Impressionada com minhas recordações e com as explicações de Clara, sentei-me numa grande rocha. Pelo canto do olho, vi minha sombra e senti uma onda de pânico ao me perguntar: "E se minha sombra não se sentar como eu fiz?"

— Não posso suportar isto, Clara — falei, colocando-me de pé de um salto. — Vamos voltar para casa. Clara ordenou que eu ficasse onde estava.

— Aquiete sua mente — disse, olhando-me fixamente — e o corpo também se tranqüilizará; caso contrário, você vai explodir. Clara levou a mão esquerda até a parte dianteira de seu corpo, repousando o punho logo acima do umbigo, a palma em posição oblíqua, os dedos unidos, apontando para o solo. Disse-me para, colocar minha mão na mesma posição e fitar a ponta do meu dedo médio. Olhei além do nariz, o que me forçou a entrecruzar ligeiramente os olhos enquanto olhava para baixo. Ela explicou que olhar fixamente desta maneira coloca nossa percepção fora de nós mesmos e no solo, diminuindo assim nossa agitação interior.

Sugeriu então que eu inspirasse profundamente, direcionando-me para o solo e com a intenção de colher dele uma centelha de energia, como uma gota de cola, em meu dedo médio. Em seguida, ordenou-me que girasse a mão para cima, até tocar o esterno com meu polegar. Eu deveria fixar a ponta do dedo médio e contar até sete, e em seguida transferir minha consciência imediatamente para a testa, para o ponto entre os olhos e logo acima do nariz. Esta mudança, explicou, deve ser acompanhada pela intenção de transferir a centelha de energia do dedo médio para aquele ponto entre os olhos. Realizada a transferência, uma luz surge na tela escura por trás dos olhos fechados. Ela explicou que podemos enviar esse ponto energético luminoso para qualquer parte de nosso corpo, a fim de neutralizar a dor, a enfermidade, a apreensão ou o medo.

Ela moveu então sua mão e pressionou suavemente meu plexo solar

— Se precisar de uma rápida onda de energia, como está precisando agora, realize a respiração de poder que vou lhe mostrar e garanto que se sentirá recarregada.

Observei Clara realizar uma série de inspirações e expirações curtas pelo nariz, em rápida sucessão, vibrando o diafragma. Imitei-a e, após umas vinte respirações, contraindo e relaxando meu diafragma, senti o calor percorrendo meu corpo.

— Vamos ficar sentadas aqui fazendo a respiração de poder e contemplando a luz por trás dos olhos — disse ela — até você não sentir mais medo.

— Eu não estava tão assustada assim — menti.

— Você não está se vendo — retorquiu Clara. — De onde estou sentada, vi uma pessoa prestes a desmaiar.

Ela estava absolutamente certa. Jamais eu havia sentido um pavor tão completo como quando vi a sombra de Clara alongar-se. Lembranças perdidas haviam aflorado de profundezas tão esquecidas que, por um ou dois segundos, eu havia realmente me sentido como uma criança novamente. Posicionei a palma de minha mão obliquamente e fitei a ponta do dedo como Clara havia recomendado. Mantive os olhos fixos e depois transferi a atenção para o centro da testa. Não vi nenhuma luz, mas pouco a pouco fui me acalmando.

Já estava quase escuro. Eu podia ver a silhueta de Clara delineada a meu lado. Sua voz era tranqüilizadora. Ela disse:

— Vamos ficar mais um pouco aqui, para que essa centelha de energia possa acomodar-se em seu corpo.

— Você aprendeu esta técnica na China, Clara? — perguntei. Ela sacudiu a cabeça negativamente.

— Eu lhe contei que tive um mestre aqui no México — disse ela, acrescentando respeitosamente: — Meu mestre foi um homem extraordinário que dedicou sua vida a aprender e depois ensinar-nos a arte da liberdade.

— Mas esse método de respiração não tem uma origem oriental?

Ela pareceu refletir antes de responder. Pensei que sua hesitação se devia ao desejo de manter segredo.

— Onde seu mestre aprendeu isso? — insisti. — Ele também esteve na China?

— Ele aprendeu tudo que sabia com seu mestre — Clara falou evasivamente.

Quando lhe pedi para contar mais sobre seu mestre e o que lhe havia ensinado, Clara pediu desculpas por não poder discutir mais o tema no momento.

— Para que você possa compreender — explicou — precisa adquirir um tipo de energia especial, que no momento você não possui. — Deu um tapinha em minha mão. — Não apresse as coisas — aconselhou, indulgentemente. — Pretendemos ensinar-lhe tudo que sabemos. Então, por que a pressa?

— Fico tão intrigada quando você diz "nós", Clara, porque tenho a impressão de que existem outras pessoas na casa e começo a ver e ouvir coisas que minha razão afirma não poderem ser verdadeiras.

Clara riu tanto que achei que ela ia cair da rocha em que estava sentada. Sua explosão repentina e exagerada contrariou-me ainda mais do que a recusa em falar-me de seu mestre.

— Você não sabe como seu dilema é engraçado para mim — disse ela, à guisa de explicação. — Ele me prova que, assim como quando você viu as sombras movendo-se, você está liberando sua energia. Está começando a esvaziar seu depósito. Quanto mais itens de seu inventário você eliminar, mais você abrirá espaço para outras coisas.

— O quê, por exemplo? — indaguei, ainda aborrecida. — Ver sombras se mexerem e ouvir vozes?

— Talvez — disse ela, vagamente. — Ou você poderá até mesmo ver as pessoas a quem as sombras e vozes pertencem.

Quis saber a quais pessoas ela estava se referindo, mas Clara recusou-se a dizer mais qualquer coisa. Subitamente, ficou de pé e anunciou que queria voltar para a casa e ligar o gerador antes que ficasse escuro demais.

 

Não vi Clara durante três dias; alguma missão misteriosa a manteve longe. Era seu hábito, agora, sem uma palavra de aviso, deixar-me sozinha na casa durante dias seguidos, apenas com Manfred como companhia; e, embora eu tivesse a casa toda para mim, nunca ousava aventurar-me além da sala, de meu quarto, do ginásio de Clara, da cozinha e, naturalmente, do anexo. Havia alguma coisa na casa e nos terrenos de Clara, especialmente quando ela estava fora, que me enchia de um medo irracional. O resultado era que, quando estava sozinha, eu mantinha uma rotina rígida, que achava tranqüilizante.

Costumava acordar por volta de nove horas, tomava o café na cozinha utilizando uma chapa elétrica, pois ainda não sabia acender o fogão a lenha, depois ia para a caverna realizar a recapitulação, ou fazia uma longa caminhada com Manfred. Retornava no final da tarde e praticava movimentos de kung fu no ginásio de artes marciais de Clara. Era uma grande sala, com um teto abobadado, um piso de madeira envernizada e uma prateleira laqueada de preto, na qual havia uma variedade de armas marciais. Na parede em frente à porta havia um estrado coberto com uma esteira de palha. Certa vez perguntei a Clara para que servia o estrado. Ela respondeu que era ali que ela meditava.

Eu nunca tinha visto Clara meditando, pois sempre que ela ia para o ginásio, sozinha, trancava a porta. Todas as vezes que lhe perguntei que tipo de meditação ela praticava, Clara recusava-se a explicar. A única coisa que descobri é que ela chamava a meditação de "sonho".

Clara me permitira livre acesso ao seu ginásio sempre que ela não o estivesse utilizando. Quando eu estava sozinha na casa, gravitava até aquela sala, encontrando ali alívio emocional, porquanto o ambiente era impregnado com a presença e o poder de Clara. Ali ela me ensinou o estilo de kung f u mais curioso. Eu nunca tivera interesse pelas artes marciais chinesas porque meus professores de karatê japoneses sempre haviam insistido que seus movimentos eram demasiado elaborados e pesados para terem algum valor prático. Eles haviam criticado sistematicamente os estilos chineses e enaltecido os seus, afirmando que, embora o karatê tivesse suas raízes nos estilos chineses, suas formas e utilizações haviam sido totalmente alteradas e aperfeiçoadas no Japão. Como não conhecia as artes marciais, acreditei em meus professores e descartei inteiramente todos os outros estilos. Não sabia, por conseguinte, o que fazer com o estilo kung fu de Clara. Não obstante meu desconhecimento, uma coisa era evidente: ela era indiscutivelmente mestra no kung fu.

Após trabalhar durante aproximadamente uma hora no ginásio de Clara, eu mudava de roupa e ia comer na cozinha. Invariavelmente minha refeição estava pronta, a mesa posta, mas eu sempre estava tão faminta após os exercícios que simplesmente engolia o que estivesse pronto sem especular a respeito de sua origem.

 

Clara me havia dito, quando a questionei, que o caseiro viria até a casa preparar minhas refeições quando ela estivesse fora. Ele também lavava as roupas, pois eu encontrava minhas roupas cuidadosamente dobradas em uma pilha na porta de meu quarto; eu só precisava passá-las.

Certa noite, após uma sessão de exercícios mais intensa, sob o olhar crítico de Manfred, que rosnava vez por outra, senti um acúmulo de energia tão grande que decidi mudar minha rotina e voltar à caverna na escuridão para continuar com a recapitulação. Saí tão apressada que me esqueci de levar minha lanterna. Estava uma noite nublada, entretanto, apesar da escuridão total, não tropecei em nada ao longo do caminho. Cheguei à caverna e iniciei a recapitulação, visualizando e respirando as lembranças de todos os meus instrutores de karatê e de todas as apresentações e torneios de que eu participara. Passei grande parte da noite lá, mas, quando terminei, senti-me totalmente purificada dos preconceitos que eu herdara de meus professores como parte de meu treinamento.

No dia seguinte Clara ainda não havia retornado, portanto fui para a caverna um pouco mais tarde do que o habitual. Na volta para casa, como exercício deliberado, tentei percorrer o mesmo caminho de sempre, só que desta vez de olhos fechados, para simular a escuridão. Queria verificar se eu conseguia caminhar sem tropeçar, pois só mais tarde me havia ocorrido como fora incomum percorrer todo o caminho até a caverna, na noite anterior, sem tropeçar. Caminhando em plena luz do dia, mas com os olhos fechados, tropecei diversas vezes em tocos e pedras, e feri a perna.

Eu estava sentada no chão da sala, colocando ataduras em meu machucado, quando Clara entrou inesperadamente.

— O que aconteceu com você? — perguntou, surpresa. — Você e o cachorro brigaram?

No mesmo instante, Manfred entrou na sala. Tive certeza de que ele havia entendido o que Clara dissera. Soltou um latido rouco, como se estivesse ofendido. Clara postou-se diante dele, inclinou-se ligeiramente a partir da cintura, como o estudante oriental se inclina para seu mestre, e apresentou a desculpa bilíngüe mais enrolada. Ela disse: "Sinto profundamente, meu caro señor, por ter falado de maneira tão leviana de seu comportamento irrepreensível e de seus modos excelentes e, acima de tudo, de sua superior ponderação, que faz de você um señor entre señores, el más ilustre entre todos ellos" — um senhor entre senhores, o mais ilustre de todos eles.

Eu estava inteiramente perplexa. Achei que Clara havia enlouquecido durante a ausência de três dias. Nunca a ouvira falando assim antes. Senti vontade de rir, mas sua expressão séria me fez conter o riso.

Ela já ia iniciar outra série de desculpas quando Manfred bocejou, fitou-a entediado, virou-se e saiu da sala. Clara sentou-se na poltrona, o corpo trêmulo com as risadas abafadas.

— Quando ele fica ofendido, a única maneira de livrar-se dele é entediá-lo mortalmente com desculpas — confidenciou.

Esperava que Clara me contasse onde estivera nos últimos três dias. Aguardei um instante, no caso de ela tocar no tema de sua ausência, o que não fez. Disse-lhe que, enquanto ela estivera fora, Manfred viera todos os dias visitar­me na caverna da recapitulação. Era como se ele fosse lá de tempos em tempos, a fim de verificar se estava tudo bem.

Novamente desejei que Clara dissesse algo a respeito de sua viagem, mas ela falou, sem demonstrar surpresa.

— Sim, ele é muito solícito e extremamente atencioso com as pessoas. Portanto, ele espera o mesmo tratamento das pessoas e, se ele desconfia que não está recebendo esse tratamento, fica furioso. Quando fica assim, é extremamente perigoso. Lembra-se daquela noite em que ele quase arrancou sua cabeça quando você o chamou de sapo?

Eu queria mudar de assunto. Não gostava de pensar em Manfred como um cão furioso. Nos últimos meses, ele se tornara mais um amigo do que uma fera. Era tão amigo que a certeza ocasional de que ele era o único que realmente me compreendia havia tomado conta de mim.

— Você não me contou o que aconteceu com suas pernas — lembrou-me Clara.

Falei-lhe de minha tentativa frustrada de caminhar de olhos fechados. Expliquei que eu não tivera dificuldade em caminhar na escuridão na noite anterior.

Ela examinou os arranhões e vergões em minhas pernas e deu um tapinha na minha cabeça como se eu fosse Manfred.

— Ontem à noite, você não tinha a intenção de andar — explicou.—Você estava decidida a chegar até a caverna, portanto, seus pés automaticamente a levaram até lá. Hoje à tarde, você estava tentando conscientemente repetir a caminhada da noite passada, mas falhou completamente porque sua mente interferiu. — Ela refletiu por um instante e acrescentou: — Ou talvez você não estivesse ouvindo a voz do espírito que poderia tê-la conduzido em segurança.

Ela franziu os lábios em uma expressão infantil de impaciência quando lhe falei que não ouvira vozes mas que, às vezes, julgara ouvir na casa estranhos sussurros, embora estivesse convencida de que era apenas o vento soprando no corredor vazio.

— Nós combinamos que você não ia considerar nada do que digo literalmente, a menos que eu lhe fale antecipadamente para fazê-lo — lembrou­me Clara duramente. — Esvaziando seu depósito, você está modificando seu inventário. Agora há espaço para alguma coisa nova, como, por exemplo, andar no escuro. Portanto, achei que talvez também houvesse espaço para a voz do espírito.

Eu estava me esforçando tanto para entender o que Clara dizia que minha testa devia estar franzida. Clara sentou-se em sua cadeira favorita e pacientemente começou a explicar o que estava querendo dizer.

— Antes de você vir para esta casa, seu inventário não tinha nada a respeito de cães que são mais do que cães. Mas aí você conheceu Manfred e esse encontro forçou-a a modificar essa parte de seu inventário. — Sacudiu a mão como uma italiana e perguntou: — Capisce?

— Você quer dizer que Manfred é a voz do espírito? — perguntei,

aturdida. Clara riu tanto que mal conseguiu falar.

— Não, não é exatamente isto que estou querendo dizer. É alguma coisa mais abstrata — murmurou. Sugeriu que eu fosse pegar minha esteira no armário.

— Vamos para o pátio sentar debaixo da árvore — disse, pegando um pouco de ungüento em um armário. — O entardecer é a melhor hora para ouvir a voz do espírito.

Desenrolei minha esteira sob a árvore enorme, coberta de frutos verdes semelhantes a pêssegos. Clara massageou minha pele ferida com o ungüento. Doeu muito, mas procurei não estremecer. Quando ela terminou, percebi que o maior vergão havia praticamente desaparecido. Ela se recostou no tronco grosso da árvore.

— Tudo tem uma forma — começou —, mas, além da forma externa, existe uma consciência interna que tudo rege. Esta consciência silenciosa é o espírito. É uma força oniabrangente que se manifesta de maneiras diferentes em coisas diferentes. Esta energia comunica-se conosco

Disse-me para relaxar e respirar profundamente, pois ia mostrar-me como exercitar minha audição interior.

— Pois é com o ouvido interior — explicou — que se consegue discernir os convites do espírito. Quando respirar, permita que energia saia por suas orelhas.

— Como posso fazer isto? — indaguei.

— Quando expirar, fixe a atenção nas aberturas de suas orelhas e use sua intenção e concentração para direcionar o fluxo da respiração Ela verificou minhas tentativas durante algum tempo, corrigindo-me:

— Expire pelo nariz com a boca fechada e a ponta da língua tocando o palato — disse. — Expire sem fazer ruído.

Após algumas tentativas, pude sentir minhas orelhas estalarem e os seios nasais se desobstruírem. Orientou então para esfregar as palmas das mãos até ficarem quentes e colocá-las nas orelhas com as pontas dos dedos quase se tocando na nuca Fiz o que ela mandou. Clara sugeriu que eu massageasse minhas orelhas com uma suave pressão circular. Então, ainda cobrindo as orelhas e com os dedos indicadores cruzados sobre os dedos médios, eu devia dar pancadinhas leves em cada orelha, estalando os dedos indicadores ao mesmo tempo. Fazendo isto,ouvi um som semelhante a um sino abafado reverberando dentro de minha cabeça. Repeti os tapinhas dezoito vezes, como ela havia instruído. Quando retirei as mãos, percebi que podia ouvir nitidamente os sons mais indistintos na vegetação circundante, enquanto antes tudo parecera indiferenciado e abafado.

— Agora, com os ouvidos limpos, talvez você consiga ouvir a voz do espírito — disse Clara. — Mas não espere um grito da copa das árvores. Aquilo que chamamos de voz do espírito é antes de tudo um sentimento. Ou pode ser uma idéia que subitamente surge na sua cabeça. Às vezes pode ser um anseio de ir a um lugar vagamente familiar, ou um anseio de fazer alguma coisa também vagamente familiar.

Talvez o poder da sugestão de Clara me tenha feito ouvir um suave murmúrio à minha volta. Comecei a prestar mais atenção a ele, e o murmúrio transformou-se em vozes humanas falando a distância. Pude perceber o riso cristalino de uma mulher e a voz de um homem, um barítono suave cantando. Ouvi os sons como se o vento os estivesse trazendo até mim em jorros. Esforcei­me para perceber o que as vozes diziam e, quanto mais ouvia o vento, mais entusiasmada eu ficava Uma energia efervescente dentro de mim me fez ficar de pé de um salto. Estava tão feliz que sentia vontade de brincar, dançar, correr como uma criança. E sem me dar conta do que estava fazendo, comecei a cantar e a saltar e rodopiar pelo pátio como uma bailarina, até ficar completamente exausta.

Quando finalmente me sentei ao lado de Clara, eu estava transpirando, mas não era um suor físico saudável. Mais parecia o suor frio da exaustão. Clara também estava ofegante de tanto rir de minhas cambalhotas. Eu havia conseguido fazer papel de idiota, saltando e cabriolando pelo pátio.

— Não sei o que me deu — falei, incapaz de explicar.

— Descreva o que aconteceu — falou Clara com seriedade. Quando me recusei, constrangida, ela acrescentou: — Caso contrário, serei forçada a considerá-la um tanto... bem, amalucada, se é que entende o que quero dizer.

Disse-lhe que tinha ouvido os risos e o canto mais assustadores, e que na verdade eles me haviam feito dançar.

— Acha que estou enlouquecendo? — perguntei, apreensiva.

— Se eu fosse você, não me preocuparia com isso — disse ela. — Seus movimentos foram uma reação natural ao ouvir a voz do espírito.

— Não era uma voz; eram muitas vozes — corrigi.

— Lá vem você de novo, a Srta. Perfeita da mente literal — zombou ela.

Clara explicou que a mente literal é um item bastante importante em nosso inventário, e que precisamos tomar consciência dela para superá-la. A voz do espírito é uma abstração que nada tem a ver com vozes, e, no entanto, às vezes podemos ouvir vozes. Ela explicou que, no meu caso, como eu fora criada como católica devota, minha própria idéia de readaptação de meu inventário seria transformar o espírito em uma espécie de anjo da guarda; um homem protetor e bondoso que zelaria por mim.

— Mas o espírito não é guardião de ninguém — prosseguiu ela. — Ele é uma força abstrata, nem boa nem má. Uma força que não tem qualquer interesse por nós, mas que mesmo assim responde ao nosso poder. Não às nossas preces, veja bem, mas ao nosso poder. Lembre-se disto na próxima vez que quiser orar e pedir perdão!

— Mas o espírito não é bondoso e clemente? — indaguei, alarmada.

Clara afirmou que, mais cedo ou mais tarde, eu deixaria de lado todas as minhas preconcepções em relação a bem e mal, Deus e religião, e pensaria apenas em termos de um inventário totalmente novo.

— Você quer dizer que bem e mal não existem? — perguntei, já com a enxurrada de argumentos lógicos e banais pronta a respeito do livre-arbítrio e da existência do mal, que eu havia aprendido ao longo de meus anos de educação católica.

Antes que eu pudesse começar a apresentar minhas alegações, Clara falou:

— É aí que meus companheiros e eu diferimos da ordem estabelecida. Eu já lhe disse que, para nós, liberdade é libertar-se da humanidade. E isto inclui Deus, o bem e o mal, os santos, a Virgem e o Espírito Santo. Acreditamos que um inventário não-humano é a única liberdade possível para os seres humanos. Se nossos depósitos vão continuar repletos de desejos, sentimentos, idéias e objetos de nosso inventário humano, onde estará nossa liberdade? Percebe o que estou querendo dizer?

Eu a compreendia, embora não tão claramente como gostaria, em parte porque eu ainda resistia à idéia de renunciar à minha humanidade, e também porque eu ainda não recapitulara todas as preconcepções religiosas que me haviam sido oferecidas pelo sistema de ensino católico. Também estava acostumada a jamais pensar no que quer que não me dissesse respeito diretamente.

Enquanto eu tentava encontrar falhas em seu raciocínio, Clara arrancou­me de minhas especulações mentais com um tapinha em minhas costelas. Disse que ia me mostrar outro exercício para interromper pensamentos e sentir as linhas energéticas. Caso contrário, eu continuaria fazendo o que sempre fizera: deixar­me enfeitiçar pela idéia de mim mesma.

Clara pediu-me para sentar de pernas cruzadas e inclinar-me para o lado ao inspirar, primeiro para o lado direito, depois para o esquerdo, e sentir como eu estava sendo puxada por uma linha horizontal que saía da abertura de minhas orelhas. Explicou que, curiosamente, a linha não oscilava com o movimento do corpo, mas permanecia perfeitamente horizontal, e que este era um dos mistérios descobertos por ela e seus companheiros.

— Inclinar-se desta maneira — explicou ela — movimenta nossa consciência para o lado, ela que normalmente está sempre direcionada para a frente.

Ordenou que eu relaxasse os músculos da mandíbula, mastigando e engolindo saliva por três vezes.

— Para que serve isto? — perguntei, engolindo com esforço.

— Mastigar e engolir leva uma parte da energia alojada na cabeça para o estômago, reduzindo a carga do cérebro — explicou com uma risadinha. — Em seu caso, você deve realizar esse exercício com freqüência.

Eu queria me levantar e caminhar, pois minhas pernas estavam ficando dormentes, mas Clara exigiu que eu permanecesse sentada por mais algum tempo e praticasse o exercício.

Inclinei-me para os dois lados, fazendo todo o possível para sentir aquela linha horizontal indefinível, mas foi inútil. Contudo, consegui interromper a habitual avalanche de meus pensamentos. Uma hora deve ter-se passado, durante a qual permaneci sentada em completo silêncio, sem pensar nada. À nossa volta, eu podia ouvir o cricri dos grilos e o farfalhar das folhas, mas nenhuma voz foi trazida pela brisa. Por um momento ouvi os latidos de Manfred, provenientes de sua casinha ao lado da casa. Então, como se impelida por uma ordem inaudível, os pensamentos voltaram para minha mente. Tomei consciência de sua completa ausência e de como o silêncio fora total e pleno de paz.

Os movimentos de meu corpo inquieto devem ter servido de sinal para Clara, pois ela voltou a falar.

— A voz do espírito não provém de parte alguma — continuou. — Ela provém das profundezas do silêncio, da esfera do não-ser. Esta voz só pode ser ouvida quando estamos absolutamente silenciosos e equilibrados.

Explicou que as duas forças contrárias que nos movem, masculino e feminino, positivo e negativo, luz e trevas, precisam ser mantidas em equilíbrio para que seja criada uma abertura na energia que nos envolve; uma abertura através da qual nossa consciência possa esgueirar-se. Através dessa abertura na energia que nos cerca o espírito pode manifestar-se.

— Nós estamos em busca do equilíbrio — prosseguiu. — Mas equilíbrio não significa apenas uma porção igual de cada força. Significa também que, à medida que as porções são igualadas, a nova combinação harmoniosa ganha impulso e começa a movimentar-se por si mesma.

Senti Clara perscrutar meu rosto na penumbra em busca de sinais de compreensão. Nada encontrando, ela disse, quase friamente:

— Nós não somos tão inteligentes, não é?

Senti todo meu corpo tensionar-se com a observação. Disse-lhe que, em toda minha vida, ninguém jamais me acusara de não ser inteligente. Meus pais e meus professores sempre me haviam elogiado por ser uma das alunas brilhantes da sala. Quando se tratava de boletins escolares, eu quase adoecia de tanto estudar para ter notas melhores do que meus irmãos.

Clara suspirou, ouvindo pacientemente minha cansativa reafirmação de minha inteligência. Antes que eu tivesse esgotado os argumentos para convencê­-la de que estava errada, ela concedeu:

— Sim, você é inteligente, mas tudo que disse refere-se apenas à vida cotidiana. Mais do que inteligente, você é estudiosa, esforçada e esperta. Concorda?

Tive de concordar com ela, mesmo sem querer, porque a razão me dizia que, se eu tivesse sido verdadeiramente inteligente como afirmava, não teria precisado quase matar-me de tanto estudar.

— Para ser inteligente em meu mundo — explicou Clara —, você deve ser capaz de concentrar-se, de fixar sua atenção em qualquer coisa concreta, bem como em qualquer manifestação abstrata.

De que tipo de manifestação abstrata você está falando, Clara? — indaguei.

— Uma abertura no campo energético que nos cerca é uma manifestação abstrata — disse ela. — Mas não espere senti-la ou vê-la da mesma maneira como sente e vê o mundo concreto. Algo mais acontece.

Clara insistiu em que, para fixarmos nossa atenção em qualquer manifestação abstrata, precisamos fundir o que é conhecido e o que é desconhecido em uma mistura espontânea. Desse modo, podemos concentrar nosso raciocínio e ao mesmo tempo ser indiferente a ele.

Clara pediu-me então para ficar de pé e caminhar.

— Agora que está escuro, tente andar sem olhar para o chão — sugeriu ela. — Não como um exercício consciente, mas como uma feitiçaria não-fazendo.

Queria pedir-lhe para explicar o que ela estava querendo dizer com uma feitiçaria não-fazendo, mas sabia que, se ela explicasse, eu estaria pensando conscientemente sobre sua explicação e avaliando meu desempenho de acordo com este novo conceito, ainda que sem saber ao certo o que significava. Lembrei-me, contudo, de que ela usara o termo "não-fazendo" antes e, não obstante minha relutância em fazer perguntas, continuei tentando lembrar do que ela havia dito a esse respeito. Para mim, o conhecimento, ainda que mínimo e falho, era melhor do que nada, pois me proporcionava uma sensação de controle, enquanto que a ausência de conhecimento fazia com que eu me sentisse inteiramente vulnerável.

— Não-fazendo é uma expressão que nós recebemos de nossa tradição da feitiçaria — prosseguiu Clara, obviamente consciente de minha necessidade de explicações. — Refere-se a tudo que não está incluído no inventário que nos foi impingido. Quando nos enredamos com algum item de nosso inventário imposto, estamos fazendo; tudo que não é parte desse inventário é não-fazendo.

Qualquer que fosse o relaxamento que eu havia alcançado, ele desapareceu abruptamente com a afirmação que ela acabara de fazer.

— O que você quis dizer, Clara, ao referir-se à sua tradição como feitiçaria? — inquiri.

— Você percebe cada detalhe quando quer, Taisha. Não admira que suas orelhas sejam tão grandes — falou com uma risada, mas não me respondeu prontamente.

Fiquei olhando para ela, aguardando a resposta. Finalmente, ela disse:

— Eu ainda não ia lhe falar sobre isso, mas como deixei escapar, quero dizer apenas que a arte da liberdade é produto da intenção dos feiticeiros.

— De que feiticeiros você está falando?

— Existiram e ainda existem pessoas aqui no México que sei dedicam a questões fundamentais. Minha família mágica e eu chamamos essas [1]pessoas de feiticeiros. Herdamos delas todas as idéias que estou apresentando a você. Você já conhece a recapitulação. Não-fazendo é outra dessas idéias.

— Mas quem são essas pessoas, Clara?

— Você saberá tudo que há para saber dentro em breve assegurou-me ela. — Por enquanto, vamos apenas praticar um dos não-fazendo.

Explicou que não-fazendo naquele momento específico seria, por exemplo, forçar-me a confiar no espírito irrestritamente, deixando de lado minha mente precavida.

— Não finja apenas confiar, nutrindo dúvidas em seu íntimo — alertou-me. — Somente quando suas forças positivas e negativa estiverem em perfeita harmonia você será capaz de sentir ou ver a abertura na energia que a envolve, ou andar de olhos fechados e ter confiança no sucesso.

Respirei profundamente algumas vezes e comecei a andar sem olhar para o chão, mas com as mãos esticadas à minha frente, caso me chocasse em alguma coisa. Continuei tropeçando durante algum tempo, e em determinado momento tropecei num vaso de plantas e teria caído se Clara não tivesse segurado meu braço. Pouco a pouco, comecei a tropeçar cada vez menos, até conseguir andar tranqüilamente. Era como se meus pés pudessem ver claramente o pátio e soubessem onde pisar e não pisar.

 

Certa tarde, enquanto eu fazia a recapitulação na caverna, adormeci. Ao acordar, encontrei um par de cristais lindamente polidos no chão a meu lado. Por um instante ponderei se devia ou não tocá-los, pois pareciam bastante agourentos. Tinham cerca de 10 centímetros de comprimento e eram perfeitamente translúcidos. As pontas haviam sido transformadas em pontas afiadas, e eles pareciam reluzir com luz própria. Quando vi Clara aproximando­se da caverna, coloquei cuidadosamente os cristais na palma de minha mão e saí de gatinhas da caverna para mostrá-los a ela.

— Sim, são lindos — assentiu como se os reconhecesse.

— De onde vieram? — indaguei.

— Eles foram deixados para você por alguém que a estava observando muito atentamente — disse ela, depositando no solo um pacote que estava carregando.

— Não vi ninguém deixar os cristais.

— Essa pessoa veio enquanto você estava cochilando. Eu lhe avisei para não adormecer durante a recapitulação.

— Quem veio enquanto eu cochilava? Um de seus parentes? —perguntei excitada. Pousei os cristais frágeis sobre uma pilha de folhas e calcei os sapatos. Clara tinha me alertado para nunca ficar de sapatos enquanto estivesse recapitulando, pois, comprimindo os pés, a circulação energética é interrompida.

— Se eu dissesse quem deixou os cristais, não faria nenhum sentido para você, ou poderia até mesmo assustá-la — alegou ela.

— Experimente. Depois de ver sua sombra se mexendo, creio que alguma coisa possa assustar-me.

— Está bem, se você insiste — disse ela, abrindo o pacote. — A pessoa que está observando você é um mestre feiticeiro, e existem poucos iguais a ele nesta terra.

— Você quer dizer um feiticeiro de verdade? Que faz maldades?

— Estou falando de um feiticeiro de verdade, mas não de, alguém que faz maldades. Ele é um ser que dá forma e modela a percepção da mesma maneira como você poderia pintar um quadro com seus pincéis. Mas isto não significa que ele é arbitrário. Quando manipula a percepção com sua intenção, seu comportamento é impecável.

Clara comparou-o aos mestre pintores chineses, os quais, contava-se, pintavam dragões tão reais que, quando colocavam os alunos para dar o toque final, os dragões voavam imediatamente do muro ou da tela onde haviam sido pintados. Clara explicou que quando um feiticeiro consumado está pronto para deixar o mundo, tudo que ele precisa fazer é manipular a percepção, ter a intenção de uma porta, atravessá-la e desaparecer.

A profunda paixão que sua voz irradiava deixou-me inquieta. Sentei-me em uma grande rocha plana, segurando os cristais, tentando compreender quem poderia ser o mestre feiticeiro. Desde o dia de minha chegada, eu não havia falado com ninguém, exceto Clara e Manfred, simplesmente porque não havia mais ninguém nas redondezas. Tampouco havia o menor sinal do caseiro que Clara mencionara. Estava prestes a observar que ela e Manfred eram os únicos seres que eu vira desde minha chegada, quando me lembrei de que eu tinha visto outra pessoa: um homem que parecia ter surgido do nada certa manhã em que eu estava desenhando um punhado de árvores nas proximidades da caverna. Ele estava de cócoras em uma clareira a cerca de 300 metros de onde eu estava. O frio fez-me estremecer e também concentrar a atenção no casaco de couro verde do homem. Ele usava calças bege e o típico chapéu de palha de abas largas da região norte do México. Não conseguia discernir seus traços, pois o chapéu estava derreado sobre o rosto, mas ele parecia musculoso e ágil.

Ele estava olhando para o lado; observei-o cruzar os braços sobre o peito. Então ele se virou de costas para mim e, para minha completa surpresa, levou as mãos às costas, onde as pontas dos dedos se tocaram. Por fim, ficou de pé e foi embora, desaparecendo nos arbustos.

Rapidamente desenhei sua postura de cócoras, depois deixei o desenho de lado e tentei imitar o que ele fizera, mas por mais que tentasse esticar os braços e contorcer os ombros, não consegui encostar os dedos pelas costas. Continuei de cócoras com os braços envolvendo-me. Um segundo depois, eu havia deixado de tremer e me sentia aquecida e confortável, apesar do frio.

— Então você já o viu — observou Clara, quando lhe falei do homem.

— É o mestre feiticeiro?

Clara assentiu e retirou do pacote um tamale que ela havia trazido como minha refeição.

— Ele é extremamente ágil — disse. — Para ele não é nada deslocar as articulações dos ombros e depois recolocá-las no lugar. Se você continuar com sua recapitulação e armazenar energia suficiente, ele poderá ensinar-lhe sua arte. Quando você o viu, ele apenas lhe mostrou como combater o frio com uma postura específica: ficar de cócoras com os braços em torno do peito.­

— É algum tipo de ioga? — Clara deu de ombros.

— Talvez seus caminhos voltem a se cruzar, e ele responderá a esta pergunta pessoalmente. Enquanto isso, tenho certeza de que estes cristais vão ajudá-la a clarear as coisas dentro de você.

— O que você quer dizer exatamente com isso, Clara?

— Que aspecto de sua vida você estava recapitulando antes de adormecer? — indagou ela, ignorando minha pergunta.

Contei a Clara que eu estava lembrando de como odiava fazer tarefas de casa. Parecia demorar uma eternidade o ato de lavar os pratos. O que tornava tudo ainda pior era que, o tempo todo, eu podia ver meus irmãos jogando bola, pela janela da cozinha. Eu os invejava porque não tinham de fazer o serviço de casa e odiava minha mãe por me obrigar àquilo. Sentia ímpetos de quebrar todos os seus pratos preciosos, mas é claro que não podia fazer isso.

— Como está se sentindo agora, recapitulando tudo isso?

— Sinto vontade de dar um bofetão em cada um deles, inclusive em minha mãe. Não posso perdoá-la.

— Talvez os cristais a ajudem a recanalizar sua intenção e sua energia aprisionada — sugeriu Clara delicadamente. Conduzida por estranho impulso, deslizei os cristais entre meus dedos médio e indicador. Os cristais encaixaram bem, como se estivessem colados a minhas mãos.

— Vejo que você já sabe como segurá-los — observou ela. — O mestre feiticeiro instruiu-me que, se eu percebesse que você consegue segurá-los corretamente sozinha, eu deveria mostrar-lhe um movimento indispensável, que você poderá fazer com esses cristais.

— Que tipo de movimento?

— Um movimento de poder — disse ela. — Darei mais explicações a respeito de sua origem e propósito depois. Por enquanto, deixe-me apenas mostrar-lhe como se faz.

Ela me pediu para pressionar firmemente os cristais entre os dedos indicador e médio. Ajudando-me por trás, delicadamente ela me fez esticar os braços à frente, na altura dos ombros, e girou-os no sentido anti-horário. Fez-me iniciar grandes círculos que foram se tornando cada vez menores, até que o movimento foi interrompido e os cristais se tornaram dois pontos voltados para a distância; suas linhas imaginárias convergiam para um ponto no horizonte.

— Quando fizer os círculos, mantenha as palmas frente a frente — corrigiu-me ela. — E sempre comece com grandes círculos uniformes. Desse modo, você ganhará energia, a qual poderá direcionar para tudo que quiser influenciar, seja um objeto, um pensamento ou um sentimento.

— De que maneira apontar os cristais poderá afetá-los? — perguntei.

— Movimentar os cristais e apontá-los como eu lhe mostrei, retira energia das coisas — explicou. — O efeito é o mesmo que estourar uma bomba. É exatamente o que você quer fazer neste estágio de seu treinamento. Portanto, nunca, em hipótese alguma, gire os braços no sentido horário enquanto estiver segurando os cristais.

— O que aconteceria se eu girasse os cristais nessa direção?

— Não apenas você faria uma bomba, como acenderia o estopim e causaria uma explosão gigantesca. O movimento no sentido horário destina-se a carregar as coisas, a concentrar energia para qualquer empreendimento. Deixaremos esse movimento para outra ocasião, quando você estiver mais forte.

— Mas não é disso que preciso agora, Clara? De energia? Sinto-me tão exaurida.

— Claro que você precisa de energia — concordou ela —, mas neste momento você deve obtê-la demolindo sua tolerância e despropósitos. Você pode utilizar uma grande quantidade de energia simplesmente não fazendo as coisas às quais está acostumada, como reclamar ou sentir pena de si mesma e preocupar-se com as coisas que não podem ser modificadas. Explodir essas preocupações irá proporcionar-lhe uma energia positiva e nutriente, a qual ajudará a harmonizá-la e curá-la. Por outro lado, a energia que você obteria movendo os cristais no sentido horário é um tipo de energia virulenta, uma explosão devastadora que você não será capaz de suportar no momento. Prometa-me, portanto, que você não tentará fazer isso em hipótese alguma.

— Eu prometo, Clara. Mas me parece bastante tentador.

— O mestre feiticeiro que lhe deu esses cristais está observando seus progressos — avisou ela. — Portanto, você não deve utilizá-los mal.

— Por que este mestre feiticeiro está interessado em me observar? — Havia um quê de curiosidade mórbida em minha pergunta. Eu estava inquieta, no entanto sentia-me lisonjeada com o fato de um homem se dar ao trabalho de observar-me, ainda que a distância.

— Ele tem planos para você — replicou Clara casualmente.

Imediatamente coloquei-me em alerta. Crispei os punhos e levantei-me de um salto, indignada.

— Não seja tola e vá logo partindo para a conclusão errada — disse Clara, aborrecida. — Eu lhe garanto, ninguém está querendo comer você. Você realmente está precisando recapitular seus encontros sexuais profundamente, Taisha, para que possa libertar-se de suas desconfianças absurdas.

O tom de sua voz, destituída de qualquer sentimento, e a escolha de palavras vulgares de certa forma foram sensatas. Sentei-me novamente e resmunguei uma desculpa. Ela levou o dedo aos lábios.

— Nós não estamos envolvidas com atividades prosaicas -tranqüilizou-me ela. — Quanto antes você entender isto, melhor. Quando falo de planos, refiro­me a planos sublimes; atividades para um espírito ousado. Apesar do que você possa pensar, você é muito ousada. Veja onde você está agora. Todos os dias você permanece horas sozinha em uma caverna, recapitulando sua vida. É preciso coragem para isto.

Confessei que sempre que pensava em como eu a havia seguido e estava morando em sua casa como se fosse a coisa mais i do mundo, eu ficava completamente assustada.

— Isto sempre me deixou desconcertada — disse ela —, entanto, nunca lhe perguntei abertamente o que a fez acompanhar-me de tão bom grado. Eu mesma não teria feito isso.

— Meus pais e irmãos sempre me disseram que sou louca admiti. — Suponho que o motivo deve ser este. Alguma estranha emoção está armazenada dentro de mim e, por causa dela,: acabo fazendo coisas esquisitas.

— Como o quê, por exemplo? — Seus olhos cintilantes estimulavam-me a confiar nela.

Hesitei. Eu poderia pensar em dezenas de coisas, em cada acontecimento traumático que constituía um marco indicando um momento de mudança em minha vida — sempre para pior. Eu nunca havia falado sobre essas catástrofes, embora estivesse dolorosamente consciente delas e, nos últimos meses de recapitulação intensiva, muitas delas se haviam tornado ainda mais tocantes vivas.

— Às vezes eu faço umas besteiras — falei, sem querer entrar em detalhes.

— O que quer dizer com besteiras? — insistiu Clara. Após alguma insistência de sua parte, dei-lhe um exemplo e relatei-lhe uma experiência que eu tivera há pouco tempo no Japão, onde fora participar de uma competição internacional de karatê. Lá, no Budokan de Tóquio, eu havia me desmoralizado diante dezenas de milhares de pessoas.

— Dezenas de milhares de pessoas? — repetiu ela. — Você não está exagerando um pouco?

— De jeito nenhum! — exclamei. — O Budokan é o maior auditório da

cidade, e estava lotado! — Recordando o incidente, senti minhas mãos crisparem-se e o pescoço tensionar-se. Não queria continuar. — Não é melhor não mexer em casa de marimbondos? — sugeri. — Além do mais, já recapitulei minhas experiências do karatê.

— É importante falar sobre sua experiência — insistiu Clara. — Talvez você não a tenha visualizado claramente ou respirado nessa experiência completamente. Parece que ela ainda tem algum poder sobre você. Olhe para você: está com um suor nervoso.

Para apaziguá-la, descrevi como meu professor de karatê certa vez deixara escapar que considerava as mulheres inferiores aos cães. Para ele, as mulheres não tinham lugar no mundo do karatê, sobretudo nas competições. Naquela ocasião, no Budokan, ele queria que apenas os alunos do sexo masculino se apresentassem. Disse-lhe que eu não fora até o Japão só para ficar de lado e assistir a toda a equipe masculina competindo. Ele mandou que eu tivesse mais respeito, mas eu, ao contrário, fiquei tão furiosa que fiz uma coisa desastrosa.

— O que exatamente você fez? — inquiriu Clara. Contei-lhe que eu tinha ficado tão enraivecida que subi na plataforma central, arranquei o gongo do mestre-de-cerimônias, eu mesma soei o gongo e anunciei formalmente meu nome e o nome do exercício de karatê que ia demonstrar.

— E você foi tremendamente aplaudida? — indagou Clara, com um sorriso largo.

— Minha apresentação foi um fiasco — falei, à beira das lágrimas. — No meio da longa seqüência de movimentos, minha mente ficou vazia. Esqueci do que vinha em seguida. Tudo que via era um mar de rostos olhando para mim reprovadoramente. Não sei como consegui fazer o resto do exercício e deixei o palco em estado de choque. Fazer tudo com minhas próprias mãos e estragar o programa como eu fiz já foi péssimo, mas esquecer meu exercício diante de milhares de espectadores foi o insulto máximo à Federação do Karatê. Envergonhei a mim mesma, meus mestres e suponho que as mulheres em geral.

— O que aconteceu depois? — perguntou Clara, tentando conter uma risadinha.

— Fui expulsa da escola, falou-se em cancelar minha faixa preta e nunca mais voltei a praticar karatê.

 

Clara explodiu em risadas. Eu, ao contrário, estava tão emocionada com minha experiência vergonhosa que comecei a chorar. Além disso, eu estava duplamente constrangida por ter revelado o incidente a Clara.

Clara sacudiu-me pelos ombros para me dar um susto.

— Faça a respiração de varredura — disse. — Inspire agora. Movi a cabeça da direita para a esquerda, inspirando a energia que ainda estava irremediavelmente presa no auditório. Quando virei a cabeça novamente para a direita, expirei todo o constrangimento e autopiedade que havia tomado conta de mim. Movimentei a cabeça repetidamente, realizando uma respiração de varredura após a outra, até que todo o turbilhão emocional foi liberado. Então virei a cabeça da direita para a esquerda e voltei sem respirar, rompendo dessa maneira todos os laços com aquele momento específico de meu passado. Quando terminei, Clara examinou meu corpo e disse:

— Você está vulnerável porque se sente importante — declarou, estendendo-me um lenço bordado para que eu assoasse o nariz. — Toda a vergonha foi causada por sua noção equivocada de valor pessoal. Aí, fazendo uma apresentação sofrível, como aconteceu, você acrescentou outro insulto a seu orgulho já ferido. — Clara ficou em silêncio por um instante, dando-me tempo para recuperar o controle. — Por que deixou de praticar karatê? — perguntou finalmente.

— Simplesmente cansei-me dele e de toda a hipocrisia — retruquei. Ela sacudiu a cabeça.

— Não. Você desistiu porque ninguém prestou atenção em você depois de seu fracasso, e você não teve o reconhecimento que acreditava merecer.

Com toda sinceridade, tive de admitir que Clara tinha razão.

Eu acreditara merecer o reconhecimento. Todas as vezes que cometera um de meus atos loucos e impulsivos, fora para valorizar minha auto-imagem ou para competir com alguém, a fim de provar que eu era melhor. Um sentimento de tristeza e depressão envolveu-me. Eu sabia que, apesar de toda a respiração e recapitulação, não havia esperança para mim.

— Seu inventário está mudando muito natural e harmoniosamente — disse Clara, dando um tapinha na minha cabeça. — Não se preocupe demais. Simplesmente concentre-se na recapitulação, e todo o resto virá por si mesmo.

— Talvez eu precise de um terapeuta — falei. — Se bem que não é a recapitulação uma espécie de psicoterapia?

— De jeito algum — discordou Clara. — As pessoas que criaram a recapitulação viveram há centenas, senão milhares, de anos. Você não deve, portanto, considerar este milenar processo de renovação como uma psicanálise moderna.

— Por que não? — insisti. — Você tem de admitir que retroceder às lembranças infantis e enfatizar o ato sexual assemelha-se aos interesses dos psicanalistas, sobretudo aqueles de formação freudiana.

Clara foi inflexível. Insistiu em que a recapitulação é um ato mágico no qual a respiração e a intenção representam um papel fundamental.

— Respirar concentra energia e promove sua circulação — explicou. — Ela é então conduzida pela intenção preestabelecida da recapitulação, que é libertar-nos de nossas amarras biológicas e sociais. A intenção da recapitulação é uma dádiva que nos é concedida por aqueles videntes da antiguidade que criaram esse método e transmitiram-no a seus ancestrais. Cada pessoa que realiza a recapitulação precisa acrescentar sua própria intenção, mas esta intenção é simplesmente o desejo ou necessidade de fazer a recapitulação. A intenção de seu resultado final, que é a liberdade total, foi estabelecida pelos videntes da antiguidade. E como foi estabelecida independentemente de nós, constitui uma dádiva inestimável.

Clara explicou que a recapitulação revela-nos uma faceta crucial de nosso ser: a possibilidade de, por um instante, pouco antes de mergulharmos em qualquer ato, avaliar acuradamente seu resultado, nossas chances, motivações e expectativas. Este conhecimento nunca é conveniente ou satisfatório para nós, por isso nós o suprimimos imediatamente.

— O que quer dizer com isso, Clara?

— Quero dizer que, por uma fração de segundo, você soube que seria um erro fatal entrar no palco do auditório e destruir apresentação, mas imediatamente você sufocou essa certeza por diversas razões. Soube, também, por um momento, que havia parado de praticar karatê porque ficara ofendida por não ter recebido elogios nem reconhecimento. Mas prontamente encobriu essa. percepção com outra explicação, que a valorizasse mais: estava:esta farta da hipocrisia das pessoas.

Clara afirmou que esse momento de conhecimento direto foi chamado de "o vidente" pelas pessoas que formularam pela primeira vez a recapitulação, pois ele nos permite ver diretamente as coisas com olhos límpidos. No entanto, não obstante a clareza e precisão das avaliações do vidente, nunca prestamos atenção a ele, nem lhe damos a oportunidade de se fazer ouvido. Com a contínua; repressão, paralisamos seu crescimento e o impedimos de desenvolver todo seu potencial.

— Ao final, o vidente dentro de nós se enche de amargura e ódio — prosseguiu Clara. — Os sábios da antiguidade que inventaram a recapitulação acreditavam que, como nunca paramos de reprimir o vidente, ele finalmente nos destrói. Mas esses sábios também nos asseguraram que, por meio da recapitulação, podemos permitir ao vidente crescer e desenvolver-se como deveria ocorrer originalmente.

— Nunca percebi o que era realmente a recapitulação — comentei.

— A finalidade da recapitulação é assegurar ao vidente a liberdade de ver — lembrou-me Clara. — Dando-lhe espaço, podemos deliberadamente transformar o vidente em uma força que é ao mesmo tempo misteriosa e eficaz, uma força que eventualmente nos conduzirá até a liberdade, em vez de nos matar. Por esta razão peço-lhe sempre para relatar o que descobriu através de sua recapitulação. Você deve trazer o vidente até a superfície e dar-lhe ai oportunidade de falar e dizer o que está vendo.

Não tive dificuldade em compreender ou concordar com ela. Sabia perfeitamente bem que existe algo dentro de mim que sempre sabe o que é o quê. Sempre soube que eu reprimia sua capacidade de aconselhamento, pois o que ele me diz em geral é contrário àquilo que espero ou quero ouvir.

Um insight momentâneo que partilhei com Clara foi de que a única ocasião em que invoquei a orientação do vidente foi quando contemplei o horizonte sul e busquei seu auxílio deliberadamente, embora jamais tivesse conseguido explicar por que fizera aquilo.

— Algum dia tudo isso lhe será explicado — prometeu ela. Mas pela sua risada, deduzi que ela não queria falar mais sobre o assunto.

Clara sugeriu que eu retornasse à caverna para mais algumas horas, e depois voltasse para casa e tirasse um cochilo antes do jantar.

— Vou mandar Manfred ir buscá-la — ofereceu ela. Recusei o oferecimento. Eu não conseguiria voltar para a caverna naquele dia, estava exausta demais. Revelar meus momentos constrangedores e rechaçar seus ataques pessoais deixara-me emocionalmente esgotada. Por um instante, minha atenção voltou-se para a luz refletida por um dos cristais. Concentrar minha atenção nos cristais tranqüilizou-me. Perguntei a Clara se ela sabia por que motivo o mestre feiticeiro me dera os cristais. Ela replicou que ele não me dera realmente os cristais, mas na verdade ele os recuperara para meu benefício.

— Ele os encontrou em uma caverna nas montanhas. Alguém deve tê-los deixado lá há séculos — falou rispidamente.

O tom de voz impaciente me fez pensar que ela não queria falar do mestre feiticeiro, portanto, perguntei:

— O que mais você sabe a respeito desses cristais? Levantei uma das pedras em direção à luz do sol para ver como era transparente.

— A utilização dos cristais era dominada pelos feiticeiros do México antigo — explicou Clara.—São armas usadas para destruir um inimigo.

Levei tamanho choque ao ouvir isto que quase deixei cair um dos cristais. Tentei dá-los a Clara para que os segurasse, mas ela se recusou a tocá-los.

— Uma vez que você tenha segurado cristais como estes, você não pode passá-los adiante — repreendeu-me ela. — Não é certo; na verdade é perigoso. Estes cristais devem ser tratados com infinito cuidado. São uma dádiva de poder.

— Sinto muito, eu não queria ser desrespeitosa, só fiquei assustada quando você disse que eram usados como armas.

— Antigamente eles eram, mas atualmente não — esclareceu ela. — Nós perdemos o conhecimento para transformá-los em armas.

— Esse conhecimento existia no México antigo?

— Certamente que sim! É parte de nossa tradição — declarou ela.—Assim como na China, onde havia crenças antigas tão fortes que eles as transformaram em lendas, aqui no México também temos nossas crenças e lendas.

— Mas como é que ninguém conhece profundamente o que acontecia no México antigo, se todos conhecem as crenças e práticas da China antiga?

— Aqui no México havia duas culturas que entraram em choque: a dos espanhóis e a dos índios — explicou Clara. — Sabemos tudo da Espanha antiga, mas não do México antigo, simplesmente porque os espanhóis foram os vitoriosos e tentaram eliminar as tradições indígenas. Mas apesar de seus esforços sistemáticos e incansáveis, eles não obtiveram sucesso total.

— Quais eram as práticas associadas aos cristais? — indaguei.

— Acredita-se que os feiticeiros de épocas antigas costumavam reter a imagem mental de seu inimigo quando se encontravam em estado de concentração profunda e direcionada, estado incomparável, praticamente impossível de alcançar e certamente impossível de descrever. Nesse estado de consciência física e mental, eles manipulavam essa imagem, até encontrarem seu centro energético.

— O que esses feiticeiros faziam com a imagem do inimigo? — perguntei, impulsionada por uma curiosidade mórbida.

— Eles costumavam procurar uma abertura, localizada em geral na região do coração, semelhante a um vórtice diminuto, em torno da qual circula a energia. Tão logo a encontravam, eles apontavam seus cristais em forma de dardo para lá.

Quando ela disse que os cristais eram apontados para a imagem de um inimigo, comecei a tremer. Apesar de meu desconforto, sentia-me compelida a perguntar a Clara o que acontecia à pessoa cuja imagem era manipulada pelos feiticeiros.

— Seu corpo podia encolher — esclareceu ela. — Ou talvez a pessoa tivesse um acidente. Acreditava-se que os próprios feiticeiros nunca sabiam exatamente o que ia acontecer, embora pudessem ter certeza do sucesso na destruição do inimigo, caso sua intenção e poder fossem suficientemente intensos.

Mais do que nunca eu queria largar os cristais, contudo, diante do que Clara havia dito, não ousei profaná-los. Fiquei pensando por que cargas-d'água alguém quisera dá-los para mim.

— Armas mágicas eram terrivelmente importantes antigamente — continuou Clara. — Armas como os cristais tornaram-se uma extensão do próprio corpo do feiticeiro. Elas eram cheias de energia capaz de ser canalizada e projetada externamente, através de espaço e tempo. Contudo, a arma definitiva não é um dardo de cristal, uma espada ou mesmo uma arma, mas o corpo humano. Pois ele pode ser transformado em instrumento capaz de reunir, armazenar e direcionar energia.

— Podemos considerar o corpo como um organismo biológico ou como fonte de poder — prosseguiu Clara. — Tudo depende do estado do inventário em nosso depósito; o corpo pode ser duro e rígido ou suave e flexível. Se nosso depósito está vazio, o próprio corpo está vazio, e a energia do infinito pode fluir através dele.

Clara reiterou que para nos esvaziarmos temos de mergulhar em um estado de recapitulação profunda e permitir que a energia flua através de nós livremente. Apenas na quietude, ressaltou ela, podemos conceder ao vidente pleno domínio, ou a energia impessoal do universo pode transformar-se na própria força pessoal da intenção.

— Quando nos esvaziamos suficientemente de nosso inventário obsoleto e obstaculizante — continuou ela —, recebemos a energia, que se acumula naturalmente; quando uma quantidade suficiente se aglutina, ela se transforma em poder. Qualquer coisa pode anunciar sua presença: um ruído alto, uma voz suave, um pensamento que não é nosso, uma onda inesperada de vigor e bem­estar.

Clara enfatizou que, em última análise, não faz diferença se o poder desce sobre nós em estado de vigília ou em estado onírico; ele é igualmente válido em ambos os casos, sendo o último, contudo, mais impalpável e poderoso.

— Aquilo que experimentamos na vigília, em termos de poder, deve ser colocado em prática nos sonhos — explicou —, e todo poder que vivenciamos nos sonhos deve ser usado enquanto estamos acordados. O que realmente importa é estarmos conscientes, estejamos nós acordados ou adormecidos — repetiu ela, fitando-me. — O que importa é estar consciente.

Clara manteve silêncio por um instante e por fim disse-me algo que considerei completamente irracional:

— Estar consciente do tempo, por exemplo, pode fazer a vida de um homem durar centenas de anos.

— Isto é um absurdo — falei. — Como um homem pode viver tanto?

— A consciência do tempo constitui um estado de consciência especial, o qual nos impede de envelhecer rapidamente e morrer em algumas décadas — explicou Clara. — Existe a crença, transmitida pelos antigos feiticeiros, de que, se fôssemos capazes de usar nossos corpos como armas ou, para falar em termos modernos, se pudéssemos esvaziar nossos depósitos, seríamos capazes de escapulir do mundo e perambular por toda parte.

— Aonde iríamos? — perguntei.

Clara fitou-me surpresa, como se eu devesse conhecer a resposta.

— À esfera do não-ser, ao mundo das sombras — respondeu. — Acredita­se que, uma vez esvaziado nosso depósito, nós nos tornaríamos tão leves que poderíamos flutuar no vácuo e nada perturbaria nosso vôo. Poderíamos então retornar a este mundo, renovados e jovens.

Mudei de posição na pedra desconfortável que deixara meu cóccix dormente.

— Mas isto é apenas uma crença, não é, Clara? — indaguei.

— Uma lenda transmitida desde a antiguidade.

— Neste momento é apenas uma crença — reconheceu Clara.

— Mas sabe-se que os momentos, assim como todas as coisas, mudam. Hoje mais do que nunca, o homem está precisando renovar-se e experimentar o vazio e a liberdade.

Por um instante fiquei pensando qual seria a sensação de ser etéreo como uma nuvem e flutuar sem nada para deter minhas idas e vindas. Então mais uma vez retrocedi mentalmente à terra e senti-me na obrigação de dizer:

— Toda essa conversa de estar consciente do tempo e passar para o mundo das sombras, Clara, é impossível de ser aceita ou compreendida. Não faz parte de minha tradição ou, como você diz, não faz parte do inventário em meu depósito.

— Não, não faz — concordou. — Isto é feitiçaria!

— Está querendo dizer que a feitiçaria ainda existe e é praticada nos dias de hoje? — perguntei. Subitamente, Clara se pôs de pé e pegou seu pacote. — Não me pergunte mais nada sobre isto — falou categoricamente. — Mais tarde você descobrirá tudo o que quer saber, mas com alguém mais capaz de explicar-lhe essas coisas do que eu.

 

Clara estava sentada na cadeira de palhinha na extremidade do pátio, escovando seus cabelos negros e sedosos. Em seguida, ela os arrumou com os dedos até tudo estar no lugar. Quando terminou de pentear-se, levou a palma da mão esquerda à testa e tocou-a em movimento circular. Levou então a mão até o topo da cabeça, desceu pela nuca, após o que sacudiu os punhos e dedos no ar. Repetiu o movimento e a seqüência algumas vezes mais.

Eu observava seus movimentos fascinada. Eles nada tinham de descuidados ou casuais. Ela os realizava com profunda concentração, como se estivesse envolvida em uma tarefa importantíssima

— O que você está fazendo? — perguntei, quebrando o silêncio. — Algum tipo de massagem facial?

Clara ergueu os olhos para mim, sentada em uma cadeira combinando e imitando seus movimentos.

— Este movimento circular impede a formação de rugas testa — explicou. — Pode parecer uma massagem facial para você mas não é. São passes da feitiçaria, movimentos das mãos que se destinam a reunir energia para uma finalidade específica.

— E qual é essa finalidade específica? — perguntei,sacudindo os pulsos como ela fizera.

— A finalidade desses passes de feitiçaria é manter a aparência jovem, impedindo a formação de rugas — disse ela. — A finalidade foi definida antecipadamente, não por mim nem por você, mas pelo próprio poder.

Tive de admitir que, fosse o que fosse que Clara estava fazer funcionava. Ela possuía uma pele maravilhosa, que realçava seus olhos verdes e seus cabelos escuros. Eu sempre achara que sua aparência de juventude era conseqüência de seus genes indígenas. Jamais havia desconfiado que ela a cultivava deliberadamente, por meio de movimentos específicos.

— Toda reunião de energia como no caso desses passes de feitiçaria, nós a chamamos de poder. — continuou Clara. — Lembre-se disto, Taisha: poder é quando a energia se aglutina, seja por si só ou obedecendo ao comando de alguém. Você ouvirá falar muito mais de puder, não apenas de mim, mas dos outros também. Eles devem estar voltando a qualquer momento.

Embora Clara falasse sempre de seus parentes, a essa altura eu já havia perdido todas as esperanças de algum dia conhecê-los. Sua referência ao poder era outra coisa. Eu nunca havia entendido o que ela queria dizer com poder.

— Vou lhe mostrar alguns passes de feitiçaria que você deverás realizar todos os dias de sua vida, a partir de agora — anunciou.

Soltei um suspiro contrafeito. Havia tantas coisas que ela me mandara fazer em todos os dias de minha vida; respiração, recapitulação, exercícios de kung fu, longas caminhadas. Se eu fizesse uma lista de tudo que ela me tinha dito, o dia não teria horas suficientes para metade das tarefas.

— Pelo amor de Deus, não considere minhas palavras tão literalmente — disse Clara, percebendo o aborrecimento em meu rosto. — Estou enfiando tudo que posso em seu cérebro pequenino porque quero que conheça todas essas coisas. Conhecimento concentra energia, portanto conhecimento é poder. Para que a feitiçaria funcione, devemos saber o que estamos fazendo quando pretendemos um resultado, não a finalidade, veja bem, mas o resultado do ato de feitiçaria. Se pretendêssemos a finalidade de nossas feitiçarias", estaríamos criando feitiçaria, e você e eu não temos tanto poder.

— Acho que não estou entendendo, Clara — falei, aproximando mais minha cadeira. — Não temos tanto poder para quê?

— Estou querendo dizer que, mesmo nós duas, não podemos concentrar a energia descomunal que seria necessária para criar uma nova finalidade. Mas, individualmente, sem dúvida podemos concentrar energia suficiente para pretender o resultado desses passes de feitiçaria: nenhuma ruga para nós. Isto é tudo que podemos fazer, pois sua finalidade, manter-nos jovens e com uma aparência jovem, já está estabelecida.

— É como a recapitulação, cujo resultado final foi pretendido antecipadamente pelos feiticeiros antigos? — perguntei.

— Exatamente — disse Clara. — A intenção de todo ato de feitiçaria já está definida. Tudo que precisamos fazer é associar nossa consciência a ela.

Ela colocou sua cadeira na minha frente, de modo que nossos joelhos quase se tocavam. Então, esfregou vigorosamente cada polegar na palma da mão oposta e colocou-os no cavalete de seu nariz. Movimentou-os para cima com toques leves e uniformes até as sobrancelhas e as têmporas.

— Este passe impede o desenvolvimento de sulcos entre as sobrancelhas — explicou.

Depois de esfregar rapidamente os dedos indicadores, como dois pauzinhos friccionados para produzir fogo, ela os posicionou verticalmente de cada lado do nariz e movimentou-os suavemente para os lados, percorrendo as bochechas diversas vezes.

— Isto é para limpar as cavidades nasais — disse ela, obstruindo deliberadamente as passagens nasais. — Em vez de colocar o dedo no nariz, faça esse movimento.

Não gostei da alusão à limpeza do nariz, mas tentei fazer o movimento e de fato meus sinos nasais se abriram como ela dissera.

O próximo movimento é para impedir fiquem flácidas — disse ela.

Clara esfregou rapidamente as palmas das mãos e, com toques firmes e prolongados, deslizou-as sobre cada bochecha até as têmporas. Repetiu esse movimento seis ou sete vezes, sempre com toques ascendentes, lentos e uniformes.

Percebi que seu rosto estava corado, mas ainda não chegara o momento de parar. Colocou a borda interna da mão, o polegar dobrado sobre a palma, acima do lábio superior e esfregou-o de um lado a outro com movimento vigoroso, semelhante a uma serra.

Explicou que o ponto de união entre o nariz e o lábio superior, quando vigorosamente esfregado, estimula o fluxo da energia em jorros uniformes e suaves. Contudo, se forem necessários jorros maiores de energia, eles podem ser obtidos com um pequeno beliscão no centro da gengiva superior, logo abaixo do lábio superior e do septo nasal.

— Se você ficar sonolenta na caverna durante a recapitulação, esfregue este ponto vigorosamente e ele a reanimará temporariamente — disse ela.

Esfreguei o lábio superior e senti meu nariz e ouvidos desobstruírem. Experimentei também uma leve sensação de dormência em meu palato, a qual durou alguns segundos, mas deixou-me sem respiração. Tive a sensação de estar prestes a descobrir algo que estivera velado.

Em seguida, Clara deslizou os dedos indicadores lateralmente sob o queixo, novamente com um movimento rápido de um lado para outro, semelhante a uma serra. Explicou que a estimulação do ponto sob o queixo produz uma atenção tranqüila. Acrescentou que também podemos ativar este ponto repousando o queixo em uma mesa baixa, sentados no chão.

Segui sua sugestão. Coloquei minha almofada no chão e sentei-me sobre ela, repousando o queixo sobre um engradado de madeira que chegava exatamente à altura de meu rosto. Inclinando-me para diante, pressionei ligeiramente aquele ponto do queixo que Clara havia indicado. Alguns momentos depois, senti meu corpo tranqüilizar-se; uma sensação de formigamento percorreu minhas costas ascendentemente, entrando pela cabeça; minha respiração tornou-se mais profunda e ritmada.

— Outra maneira de despertar o centro debaixo do queixo — continuou Clara — consiste em deitar de bruços com as mãos fechadas, uma sobre a outra, sob o queixo.

Recomendou que, ao fazer o exercício com os punhos, eu os tensionasse para criar uma pressão sob o queixo, e depois relaxasse para liberar a pressão. Tensionar e relaxar os punhos, disse ela, produz um movimento de pulsação que envia pequenos fluxos de energia para um centro vital diretamente conectado com a base da língua. Ressaltou que esse exercício deve ser realizado com cuidado, caso contrário, é possível desenvolver uma inflamação na garganta.

Voltei a sentar-me na cadeira de palhinha.

— Este conjunto de passes de feitiçaria que lhe mostrei — prosseguiu Clara — deve ser praticado diariamente, até deixarem de ser movimentos de massagem e se tornarem o que realmente são:passes de feitiçaria. Observe-me — ordenou ela.

Eu a vi repetir os movimentos que me havia mostrado, só que desta vez ela estava fazendo os dedos e mãos dançarem. Suas mãos pareciam penetrar profundamente a pele de seu rosto; em outros momentos, eles percorriam seu rosto suavemente, como se estivessem deslizando pela superfície da pele, movendo-se com rapidez que quase desapareciam. A observação de seus delicados movimentos deixou-me hipnotizada.

— Esses movimentos nunca estiveram em seu inventário — disse ela soltando uma risada, quando terminou. — Isto é feitiçaria. Ela exige uma intenção diferente da intenção da vida cotidiana. Com todas as tensões que assomam ao rosto, certamente necessitamos de uma intenção diferente se quisermos relaxar os músculos e harmonizar os centros aí localizados.

Clara afirmou que todas as nossas emoções deixam traços em nosso rosto, mais do que em qualquer outra parte do corpo. Temos, portanto, de liberar a tensão acumulada, utilizando os passes de feitiçaria e sua intenção concomitante.

Ela olhou para num por um instante e observou.

— Vejo pela tensão em seu rosto que você tem pensado sobre sua recapitulação. Não deixe de fazer seus passes antes de deitar-se esta noite, para remover essas rugas na sua testa.

Admiti que estivera preocupada com minha recapitulação.

— O problema é que você está passando tempo demais na caverna —falou Clara com uma piscadela. — Não quero que se transforme numa bat-girl. Acho que agora você já reuniu energia suficiente para começar a aprender outras coisas.

Ela saltou da cadeira como se impulsionada por uma mola. . Era uma incoerência tão grande ver uma mulher tão poderosa saltar com tanta agilidade que tive de rir. Levantei-me mais lentamente, como se tivesse o dobro de seu tamanho.

Ela olhou para mim e sacudiu a cabeça.

— Você está rígida demais — observou. — precisa fazer alguns exercícios físicos especiais para abrir seus centros vitais.

Fomos buscar os casacos e botas nas prateleiras ao lado da porta dos fundos da casa. Ela me estendeu um chapéu de palha de abas largas e conduziu­me até uma clareira a curta distância do anexo da cozinha.

O sol brilhava com todo seu ímpeto; estava um dia extraordinariamente quente. Clara disse-me para colocar o casaco. Apontou para uma área com uma cerca de arame, onde o solo apresentava sulcos e diversas fileiras paralelas de pequenas plantas.

— Quem limpou o terreno e colocou todas as plantas? — perguntei, surpresa, pois não havia visto Clara trabalhando ali. — Parece um projeto enorme. Foi você que fez?

— Não. Outra pessoa veio e fez para mim.

— Mas quando? Estou aqui diariamente e não vi ninguém.

— Isto não é mistério — disse Clara. — A pessoa trabalhava nessa horta quando você estava na caverna

Sua explicação não me satisfez. O jardim estava tão bem organizado que parecia ter exigido mais de uma pessoa para realizá-lo. Antes que eu pudesse insistir mais, Clara anunciou:

— De agora em diante, você cuidará deste jardim. Considere esta a sua nova tarefa.

Tentei não demonstrar minha decepção por receber mais uma tarefa que exigiria atenção diária. Eu pensara que Clara queria dizer, com exercícios físicos, que eu ia praticar uma nova forma de arte marcial, de preferência alguma que utilizasse uma arma chinesa clássica, como a espada de folha larga ou a vara comprida. Percebendo minha expressão decepcionada, Clara garantiu-me que cultivar um jardim seria bom para mim. Eu teria uma atividade física e tomaria o sol de que necessitava para minha saúde e o bem-estar. Mostrou também que, há mais de seis meses, eu não fizera nada mais do que concentrar-me em incidentes de minha vida. Voltar-me para alguma coisa fora de mim mesma evitaria que eu me tornasse egocêntrica Fiquei chocada ao perceber que havia se passado metade do ano. Para mim, parecia que ainda ontem eu havia entrado na casa de Clara e minha vida havia mudado tão drasticamente que nada permanecera igual.

— A maioria das pessoas só sabe cuidar de si mesma — disse Clara, arrancando-me de minhas reflexões. — Embora não saibam fazê-lo muito bem. Devido a essa ênfase exagerada, a personalidade torna-se distorcida, cheia de exigências abusivas.

Caminhamos até um portão de madeira, à entrada do jardim.

— Trabalhar neste jardim lhe dará um tipo de energia especial que você não pode obter com a recapitulação, com a respiração ou com a prática de kung fu — disse Clara.

— Que tipo de energia é esta?

— A energia da terra respondeu ela, os olhos tão verdes quanto as novas plantas. — Ela complementa a energia do sol. Talvez você a sinta entrando por suas mãos, quando trabalhar o solo. Ou ela pode começar a fluir por suas pernas, quando você agachar no solo.

Eu nunca havia trabalhado em um jardim antes, e não sabia ao certo o que fazer. Pedi-lhe para definir minhas tarefas. Ela fitou-me por um instante, como se estivesse analisando se havia escolhido i pessoa certa para a tarefa.

— O solo ainda está úmido com a chuva de ontem — explicou abaixando­se para tocar o solo. — Mas quando estiver seco, você terá de pegar baldes de água no regato. Ou, se for bastante esperta poderá criar um sistema de irrigação.

— Posso fazer isso — afirmei confiante. — Vou construir uma bomba de água elétrica como a que vi em uma casa de campo e a ligarei ao gerador. Aí não precisarei carregar baldes colina acima.

— Não importa como você fará isso, contanto que as plantas sejam regadas. Além disso, você terá de alimentar as plantas a cada duas semanas com aquele monte de composto no final do jardim. E arrancar todas as ervas daninhas. Elas se espalham rapidamente por aqui. E manter o portão [2] fechado para que não entrem coelhos.

— Não tem problema — garanti sem entusiasmo.

— Ótimo. Pode começar agora.

Ela apontou um balde e disse-me para enchê-lo de composto e misturá-lo ao solo em torno de cada planta. Quando voltei com o balde cheio daquilo que eu esperava que não fosse estrume, ela me deu um instrumento para afofar a terra, avisando-me para não cavar muito próximo dos brotos.

Concentrei-me em minha tarefa e uma sensação de bem-estar e uma estranha paz foram tomando conta de mim. A terra estava fresca e suave em meus dedos. Pela primeira vez desde que eu tinha visto a casa de Clara, senti-me verdadeiramente à vontade, segura e protegida.

— A energia da terra é nutriente — observou ela, como se estivesse percebendo minha mudança de humor. — Você está suficientemente vazia, após sua recapitulação, de modo que uma parte dela já está entrando sorrateiramente em seu corpo. Você está se sentindo à vontade porque sabe que a terra é a mãe de todas as coisas. — Ela percorreu as fileiras de plantas com as mãos. — Tudo vem da terra. A terra nos sustenta e nutre; e, quando morremos, nossos corpos retornam a ela. — Ela fez uma rápida pausa e, acrescentou: — A menos, é claro, que consigamos realizar a grande travessia.

— Você está querendo dizer que existe uma chance de não morrermos? — indaguei. — Clara, francamente, você não está exagerando?

— Temos uma chance de alcançar a liberdade — falou com suavidade —, mas depende de cada um de nós agarrá-la e transformá-la em realidade.

Ela explicou que, armazenando energia, podemos dissolver nossas pré­concepções em relação ao mundo e ao corpo, criando espaço em nosso depósito para outras possibilidades. A chance de não morrer é uma dessas possibilidades. Acrescentou que a melhor explicação para esta alternativa extravagante foi oferecida pelos sábios da China antiga. Eles afirmaram ser possível para a consciência pessoal, ou te, unir-se intencionalmente com a consciência oniabrangente, ou tao. Então, quando sobrevêm a morte, a consciência individual não se dispersa, como na morte comum, mas expande-se e une-se ao todo maior.

Acrescentou que a recapitulação no cenário de uma caverna semelhante a um casulo havia me permitido reunir e armazenar energia. Agora eu precisava utilizar essa energia para fortalecer meu elo com a força abstrata chamada de espírito.

— Por isso você tem de cultivar o jardim e absorver sua energia, assim como a energia do sol — disse ela. — O sol lança sua energia sobre a terra e faz as coisas crescerem. Se você permitir que a luz do sol entre em seu corpo, sua energia também florescerá. Clara pediu-me para lavar as mãos num balde de água e sentar-me em um tronco na clareira ao lado do jardim, pois ia me mostrar como eu deveria começar a direcionar minha atenção para o sol. Explicou que eu devia estar sempre usando o chapéu de abas largas para proteger minha cabeça e meu rosto.Alertou-me também para nunca fazer nenhum dos passes respiratórios que ela ia me mostrar durante mais do que poucos minutos de cada vez.

— Por que são chamados de passes respiratórios? — inquiri. — Porque a intenção atual desses passes é transmitir energia da respiração para a área onde você depositar sua atenção. Pode ser um órgão de nosso corpo, um canal de energia ou mesmo um pensamento ou uma lembrança, como no caso da recapitulação. O que importa é que a energia seja transmitida, cumprindo assim a intenção estabelecida anteriormente; o resultado é pura magia, pois é como se houvesse brotado do nada. Por isso chamamos esses movimentos e respirações de passes de feitiçaria.

Clara instruiu-me para voltar o rosto para o sol, de olhos fechados, e depois respirar profundamente pela boca e puxar o calor e a luz do sol para meu estômago. Eu teria de reter o ar durante o máximo de tempo de que fosse capaz, depois engolir e, finalmente, expirar o ar que restasse.

Finja que você é um girassol — brincou ela. — Mantenha o rosto sempre voltado para o sol quando respirar. A luz do sol confere poder à respiração. Inspire grandes bocados de ar e encha totalmente seus pulmões. Faça isto três vezes.

Explicou que, nesse exercício, a energia do sol dissemina-se automaticamente por todo o corpo. Mas podemos enviar deliberadamente os raios curativos do sol para qualquer área, tocando o ponto par a onde queremos que a energia se direcione, ou simplesmente utilizando a mente para direcionar a energia para esse ponto.

— Na verdade, quando tiver praticado bastante essa respiração, você não precisará mais usar as mãos — prosseguiu ela. — Você poderá simplesmente visualizar os raios de sol irradiando diretamente uma região específica de seu corpo.

Sugeriu que eu repetisse por três vezes a mesma respiração, mas desta vez respirando pelo nariz e visualizando a luz fluindo pelas minhas costas, energizando assim os canais ao longo de minha coluna. Desse modo, os raios de sol inundariam todo o meu corpo.

— Se você quiser ir além da respiração pelo nariz ou pela boca — disse Clara —, você pode respirar diretamente com o estômago, o peito ou as costas. Você pode inclusive fazer a energia ascender ao longo do corpo, através das solas dos pés.

Pediu-me para me concentrar na região inferior do abdômen, no ponto logo abaixo de meu umbigo, e respirar relaxadamente até que eu conseguisse sentir a formação de um vínculo entre meu corpo e o sol.

À medida que eu ia inspirando, sob a orientação de Clara, podia sentir o interior de meu estômago tornando-me mais quente e cheio de luz. Algum tempo depois, Clara pediu-me para praticar a respiração em outras áreas. Ela tocou o ponto na minha testa, entre os olhos. Quando concentrei minha atenção nesse ponto, minha cabeça foi inundada por uma luminosidade amarela. Clara recomendou que eu absorvesse o máximo da vitalidade solar de que fosse capaz, retendo a respiração, e em seguida girasse os olhos no sentido horário antes de expirar. Segui suas instruções e a luminosidade amarela intensificou-se.

— Agora fique de pé e tente respirar com suas costas — disse ela, ajudando-me a tirar meu casaco.

Voltei as costas para o sol e tentei concentrar minha atenção nos diversos centros que ela ia indicando através do toque. Um deles situava-se entre minhas omoplatas, o outro, na nuca. À medida que eu respirava, visualizando o sol nas minhas costas, fui sentindo o calor subindo e descendo pela minha coluna e, depois, afluindo até a cabeça. Fiquei tão tonta que quase perdi o equilíbrio.

— Por hoje chega — disse Clara, estendendo-me o casaco. Sentei-me, sentindo-me atordoada como se estivesse alegremente embriagada.

— A luz do sol é puro poder — disse Clara. — Afinal de contas, é a concentração energética máxima que existe.

Explicou que uma linha energética invisível sai diretamente do topo da cabeça, ascendendo até a esfera do não-ser. Ou ela pode fluir da esfera do não­ser, entrando em nós através de uma abertura exatamente no centro do topo da cabeça.

— Se quiser, você pode chamá-la de linha da vida, a qual nos une a uma consciência maior — disse ela. — O sol, se usado adequadamente, impregna essa linha e a leva a entrar em ação. Por isso a coroa da cabeça deve estar sempre protegida.

Clara disse que antes de voltar para casa, ela ia me mostrar outro passe de feitiçaria poderoso, envolvendo uma série de movimentos corporais. Explicou que ele tinha de ser realizado com um só movimento, com força, precisão e graça, mas sem tensão.

— Não posso insistir suficientemente para que você pratique todos os passes que lhe ensinei — disse ela. — Eles são os companheiros indispensáveis da recapitulação. Este fez milagres comigo. Observe-me atentamente. Veja se você consegue ver meu duplo.

— Seu o quê? — indaguei em pânico. Eu temia perder alguma coisa fundamental ou não saber o que fazer, mesmo se visse o duplo.

— Observe meu duplo — repetiu, pronunciando as palavras com cuidado.

— É como uma exposição dupla. Você dispõe de energia suficiente para unir sua intenção à minha quanto ao resultado desse passe de feitiçaria.

— Mas diga-me mais uma vez, Clara, qual é o resultado?

— O duplo. O corpo etérico. A contraparte do corpo físico, o qual, como a essa altura você já deve saber, ou pelo menos desconfiar, não é uma mera projeção da mente.

Ela foi até uma área de solo plano e postou-se com os pés unidos, e os braços ao lado do corpo.

— Clara, espere um momento. Tenho certeza de que não tenho energia suficiente para ver aquilo a que você está se referindo, pois não consigo sequer compreendê-lo conceptualmente.

— Não importa se você compreende conceptualmente. Simplesmente observe com atenção, talvez eu tenha poder suficiente para nós duas termos a intenção de meu duplo.

 

Com o movimento mais ágil que eu já a vira realizar, Clara levou os braços acima da cabeça, as palmas tocando-se em um gesto de oração. Então ela arqueou o corpo para trás, formando um elegante arco com os braços esticados para trás, quase até o chão.

Inclinou rapidamente o corpo para a esquerda, e imediatamente acabou curvando-se para frente, quase tocando o solo. E antes que eu pudesse sequer abrir a boca, surpresa, ela havia deslizado para trás e arqueado o corpo graciosamente para trás.

Clara deslizou para frente e para trás por mais duas vezes, como se quisesse me dar a oportunidade de ver seus movimentos inacreditavelmente rápidos e graciosos, ou talvez seu duplo. Em determinado ponto de seu movimento, eu a vi como uma forma indistinta, como se ela fosse uma fotografia em tamanho natural com dupla exposição. Por uma fração de segundo, havia duas Claras movimentando-se, uma um milésimo de segundo atrás da outra.

Fiquei inteiramente perplexa com o que vi, embora, após refletir a respeito, eu pudesse explicar como uma ilusão ótica criada pela velocidade do movimento de Clara. Contudo, em um nível corporal, eu sabia que meus olhos tinham visto algo inconcebível; eu tivera energia suficiente para suspender minhas habituais expectativas dos sentidos e permitir a entrada de outra possibilidade.

Clara interrompeu sua bela acrobacia e veio postar-se a meu lado, nem um pouco ofegante. Explicou que aquele passe de feitiçaria permite ao corpo unir-se com seu duplo na esfera do não-ser, cuja entrada paira acima da cabeça e ligeiramente atrás dela.

— Inclinando-nos para trás com os braços esticados, nós criamos uma ponte — disse Clara —, e como o corpo e o duplo assemelham-se a duas extremidades de um arco-íris, podemos ter a intenção de que eles se unam.

— Existe um momento específico para eu praticar esse passe? — perguntei.

— Esse é o passo de feitiçaria do entardecer — respondeu ela.

— Mas você precisa dispor de muita energia e estar perfeitamente calma para realizá-lo. O entardecer ajuda-a a tranqüilizar-se e lhe dá uma nova carga de energia. Por isso o final do dia é a melhor hora para praticá-lo.

— Devo tentar agora? — indaguei. Quando ela olhou para mim com expressão de dúvida, garanti que havia praticado ginástica quando criança e estava ansiosa para experimentar.

— A questão não é se você praticou ginástica na infância, mas se você está calma agora — replicou Clara.

Afirmei estar tão calma quanto eu seria capaz de estar. Clara soltou uma risada incrédula, mas disse-me para ir em frente e tentar. Ela ficaria observando para ter certeza de que eu não ia quebrar nada, torcendo-me com muita força.

Plantei os pés no solo, flexionei os joelhos e lentamente comecei a realizar minha melhor torção para trás. Mas, quando passei de um determinado ponto, a gravidade agiu e caí desajeitadamente no chão.

— Você está longe de estar calma — concluiu Clara amavelmente, ajudando-me a levantar. — O que a está preocupando, Taisha?

Em vez de revelar a Clara o que estava em minha mente perguntei se poderia tentar o movimento de novo. Mas na segunda vez tive mais dificuldade do que antes. Tive certeza de que minhas inquietações mentais e emocionais me haviam feito perder o equilíbrio. Eu sabia que as exigências da personalidade, como Clara dissera, eram realmente abusivas; tomavam toda minha atenção. Eu não via solução, exceto confessar a Clara o que estava em minha mente. Contei­lhe que o que mais estava me incomodando era o fato de que aparentemente eu havia estacionado em minha recapitulação.

— O que está causando isso? — perguntou Clara. Admiti que tinha relação com minha família.

— Agora não tenho a menor dúvida de que eles não gostam de mim — falei com tristeza. — Não que eu não desconfiasse disso o tempo todo, porque eu desconfiava, e isso costumava enfurecer-me. Mas agora, revendo meu passado, não consigo ficar irritada como antes e, portanto, não sei o que fazer.

Clara fitou-me criticamente, jogando a cabeça para trás a fim de avaliar­me.

— O que fazer? — perguntou. — Você fez o trabalho descobriu que eles não gostavam de você. Ótimo! Não vejo qual o problema.

Seu tom autoritário aborreceu-me. Eu esperava, senão por um pouco de compaixão, ao menos por compreensão e um comentário inteligente.

— O problema — falei enfaticamente, à beira das lágrimas — é que estou empacada. Sei que preciso ir mais fundo do que tenho ido, mas não consigo. Só consigo pensar que eles não gostavam de mim, enquanto eu os amava.

— Espere aí. Você não disse que os odiava? Lembro-me perfeitamente...

— Sim, eu disse isso, mas na época eu não sabia o que estava dizendo. Na verdade eu os amava, inclusive meus irmãos. Mais tarde aprendi a desprezá-los, mas isso foi muito tempo depois. Não quando criança. Quando criança, eu queria que eles me dessem atenção e brincassem comigo.

— Acho que estou entendendo o que você está querendo dizer — Clara

fez um gesto compreensivo. — Vamos sentar e discutir isso. Sentamo-nos novamente no tronco.

— Pelo que estou percebendo, seu problema provém de uma promessa que você fez quando criança. Você fez uma promessa quando criança, não fez, Taisha? — perguntou ela, fitando-me bem nos olhos.

— Não me lembro de ter feito promessas — respondi com sinceridade.

Em tom amigável, Clara sugeriu que talvez eu não me lembrasse porque era muito nova quando fizera a promessa, ou porque se tratou antes de um sentimento do que de uma promessa realmente pronunciada em palavras. Clara explicou que, quando criança, freqüentemente fazemos promessas e depois ficamos presos a elas, embora não consigamos mais nos lembrar de que as fizemos.

— Tais compromissos impulsivos podem custar-nos a liberdade — disse Clara. — Às vezes somos limitados pela devoção infantil desarrazoada ou por votos de amor eterno e imortal.

Ela disse que existem momentos na vida de cada pessoa, sobretudo na tenra infância, nos quais queremos tanto alguma coisa que automaticamente fixamos toda nossa intenção nesse alvo que, uma vez fixado, permanece o mesmo até realizarmos nosso desejo. Explicou melhor, afirmando que votos, juramentos e promessas aprisionam nossa intenção de tal modo que, a partir deles, nossos atos, sentimentos e pensamentos são sistematicamente direcionados para a realização ou manutenção desses compromissos, não importa se lembramos ou não que os fizemos.

Ela me aconselhou a rever, durante a recapitulação, todas as promessas que eu já tinha feito em minha vida, especialmente aquelas feitas às pressas, fruto do desconhecimento ou de julgamento errôneo, pois, a menos que eu retirasse minha intenção das mesmas, esta intenção jamais poderia surgir para expressar­se livremente no presente.

Tentei pensar no que ela estava dizendo, mas minha mente estava muito confusa. De súbito, lembrei-me de uma cena do início de minha infância. Eu devia ter seis anos. Queria aninhar-me em minha mãe, mas ela me afastou dizendo que eu já estava muito grande para isso e mandou-me ir para o quarto. No entanto, o mais novo de meus irmãos, quatro anos mais velho do que eu e preferido de minha mãe, estava sempre no seu colo. Nesse momento jurei que nunca mais amaria ou me aproximaria de nenhum deles. E a partir daquele dia, aparentemente mantive minha promessa, permanecendo sempre distante deles.

— Se é verdade que eles não amavam você — disse Clara —, seu destino era não ser amada por sua família. Aceite isso! Ademais, que diferença poderia fazer agora se eles amaram você ou não?

Ainda fazia diferença, mas não disse isso a Clara.

— Eu também tive um problema muito parecido com o seu — prosseguiu Clara. — Sempre me achei uma garota infeliz, gorducha, sem amigos, mas, através da recapitulação, descobri que minha mãe me engordara deliberadamente desde o dia de meu nascimento. Ela achava que uma menina gorda e sem graça jamais deixaria o lar, e ela queria que eu ficasse a vida inteira na casa, como uma empregada.

Fiquei horrorizada. Era a primeira vez que Clara me revelava algo de seu passado.

— Busquei o aconselhamento de meu professor, que definitivamente foi o melhor professor que já existiu, em relação a esse problema—prosseguiu ela. — E ele me disse: "Clara, sinto muito por você, mas você está perdendo seu tempo, porque o que passou, passou; o agora é agora. E agora só há tempo para a liberdade. Você percebe, eu sentia sinceramente que minha mãe houvesse me arruinado para a vida; eu era gorda e não conseguia parar de comer. Demorei muito para compreender o significado de "o que passou, passou; o agora é agora. E agora só há tempo para a liberdade".

Clara guardou silêncio por um momento, como que permitindo que o impacto de suas palavras diminuísse dentro de mim.

— Você só tem tempo para lutar pela liberdade, Taisha — falou, cutucando-me. — O agora é agora.

 

Escurecia, e eu estava cada vez mais apreensiva com a conclusão de minha tarefa. Clara me pedira para retirar as folhas na clareira atrás da casa, e também para carregar algumas pedras do regato e fazer uma borda em ambos os lados do caminho que se estende da horta até os fundos do pátio. Eu já recolhera as folhas e apressadamente estava alinhando as pedras do rio ao longo do caminho quando Clara saiu da casa para verificar meus progressos.

— Você está colocando as pedras de qualquer jeito — observou ela, correndo os olhos pelo caminho. — E ainda não recolhe as folhas. O que você ficou fazendo a tarde inteira, devaneando novamente?

Para minha consternação, uma lufada de vento inoportuna espalhou as pilhas bem arrumadas que eu formara antes que tivesse tempo de colocar as folhas em um cesto.

— O caminho está me parecendo bastante bom — falei, na defensiva. — Quanto as folhas, bem, o que posso fazer se o vento espalhou tudo?

— Quando se visa a forma perfeita, "bastante bom" não é suficientemente bom — interrompeu Clara. — Você já devia sabe que a forma externa de qualquer coisa que fazemos na verdade é uma expressão de nosso estado interior

Disse-lhe que eu não entendia como arrumar pedras pesadas poderia significar algo além de trabalho duro.

— Isto porque você faz tudo querendo apenas acabar — redargüiu ela. Aproximou-se da fila de pedras que eu havia alinhado e sacudiu a cabeça. — Parece que você jogou essas pedras sem atentar para seu posicionamento correto.

— Está escurecendo e o tempo estava acabando — expliquei. Eu não estava com disposição para uma discussão prolongada sobre estética ou composição. Ademais, eu achava que já entendia mais do que Clara sobre o tema composição, devido a minhas aulas de arte.

 

— Posicionar as pedras é como praticar kung fu — disse Clara. — O que importa é a maneira como fazemos as coisas, e não a rapidez ou a quantidade. Sacudi as mãos para relaxar meus dedos entorpecidos.

— Você quer dizer que carregar pedras é parte do treinamento das artes marciais? — indaguei, surpresa.

— O que você acha que é o kung fu? — perguntou ela. Suspeitei que ela estava me fazendo uma pergunta traiçoeira, portanto deliberei um instante antes de encontrar a resposta certa.

— É um conjunto de técnicas de luta das artes marciais — respondi,

confiante. Clara sacudiu a cabeça.

— Taisha é mestra em apresentar respostas pragmáticas — falou com uma risada.

Ela se sentou em uma das cadeiras de vime na extremidade do pátio, de onde tínhamos uma boa visão do caminho. Desabei na cadeira ao lado da sua. Quando eu já estava confortavelmente acomodada, com meus pés apoiados na borda de um enorme vaso de cerâmica, Clara começou a explicar que o termo "kung fu" provém da justaposição de dois caracteres chineses; um deles significa "trabalho realizado ao longo de um período de tempo", o outro significa "homem". Quando esses dois caracteres são combinados, o termo refere-se ao empenho do homem para aperfeiçoar-se através de constantes esforços. Clara afirmou que não importa se praticamos exercícios formais, arrumamos pedras ou catamos folhas; o importante é que sempre expressamos nosso estado interior através de nossos atos.

— Aperfeiçoar, portanto, nossos atos é aperfeiçoar a nós mesmos — disse Clara. — Este é o verdadeiro significado do kung fu.

— Continuo não percebendo a relação entre trabalho de jardinagem e a prática do kung fu — insisti.

— Então, deixe-me explicar melhor — replicou Clara, com um tom de paciência exagerado. — Eu lhe pedi para transportar as pedras do regato para que subir a trilha da colina com excesso de peso desenvolvesse sua resistência interna. Nós não estamos interessados apenas em desenvolver músculos, mas sim em cultivar a energia interna. Além disso, todos os passes respiratórios que lhe ensinei até agora, e que você deve estar praticando diariamente, destinam-se a aumentar sua resistência interna.

Ela me fez sentir culpada. Pela maneira como Clara olhou para mim quando falou que eu devia estar praticando os exercícios respiratórios diariamente, percebi que ela sabia que eu não os estava praticando religiosamente.

— O que você tem aprendido aqui, comigo, pode ser considerado na China um kung fu interno, ou nei kung — continuou Clara. — O kung fu interno utiliza o controle da respiração e a circulação da energia para fortalecer o corpo e aumentar a saúde, enquanto que as artes marciais externas, como as formas de karatê que você aprendeu com seus mestres japoneses e algumas formas que eu lhe ensinei, concentram-se no desenvolvimento de músculos e rápidas respostas corporais, nas quais a energia é liberada e direcionada para fora de nós.

Clara explicou que o kung fu interno era praticado pelos monges na China, muito antes de eles desenvolverem os estilos externos ou duros estilos de luta que são popularmente conhecidos como kung fu atualmente.

— Mas compreenda uma coisa — prosseguiu Clara. — Não importa se você está aprendendo artes marciais ou a disciplina que tenho lhe ensinado, a finalidade de seu treinamento é aperfeiçoar seu ser interior, de modo que ele possa transcender sua forma externa, a fim de realizar o vôo abstrato.

O desânimo tomou conta de mim como uma nuvem sombria. Senti minha velha sensação de fracasso envolver-me. Ainda que eu fizesse os passes respiratórios como Clara recomendara, eu sentia que jamais seria capaz de vencer no que quer que eu desejasse. Eu sequer sabia o que significava a grande travessia, muito menos concebê-la como uma possibilidade pragmática.

— Você tem sido muito paciente em todos esses meses — disse Clara, dando-me um tapinha nas costas como se estivesse sentindo minha necessidade de encorajamento. — Você nunca me pressionou com relação a minhas constantes insinuações de que estou lhe ensinando a feitiçaria como uma disciplina formal.

Entrevi a oportunidade perfeita para fazer a pergunta que estivera em minha mente desde a primeira vez que ela usara a palavra:

— Por que você chama esta disciplina formal de feitiçaria? Clara fitou­me. A expressão de seu rosto era a personificação da seriedade.

— É difícil dizer. Minha relutância em discutir esse assunto é porque eu não quero dar o nome errado e afugentá-la — replicou. — Mas creio que agora é o momento de falarmos sobre isso. Entretanto, em primeiro lugar quero lhe contar mais alguma coisa a respeito do povo do México antigo.

Clara inclinou-se em minha direção e, em voz baixa, disse que o povo do México pré-hispânico era bastante parecido, sob muitos aspectos, com os chineses antigos. Talvez porque ambos possivelmente tiveram as mesmas origens, eles partilharam uma visão de mundo semelhante. Os índios ancestrais do México, contudo, levaram uma pequena vantagem, disse ela, pois o mundo em que viveram estava em transição. Isto os tornava extremamente ecléticos e curiosos em relação a cada aspecto da existência. Eles queriam compreender o universo, a vida, a morte e a extensão das possibilidades do homem no que se refere à consciência e à percepção. O grande desejo de conhecimento levou-os a desenvolver práticas que lhes possibilitaram alcançar níveis inimagináveis de consciência. Eles fizeram descrições detalhadas de suas práticas e definiram as esferas reveladas por essas práticas. Eles transmitiram essa tradição de geração a geração, sempre envolvida em segredo.

Quase sem fôlego de excitação ou talvez assombro, Clara concluiu sua exposição sobre esses indígenas ancestrais dizendo que eles eram realmente feiticeiros. Ela cravou em mim seus olhos arregalados; ao entardecer, suas pupilas pareciam enormes. Confiou-me que seu mestre mais importante, um índio mexicano possuía o conhecimento completo dessas práticas milenares, e; ensinara a ela.

— Você está me ensinando essas práticas, Clara? — perguntei tão excitada quanto ela. — Você disse que os cristais eram usados como armas, pelos antigos feiticeiros, e os passes de feitiçaria ganhavam poder com a intenção deles, e que a recapitulação também fora criada na antiguidade. Isto significa que estou aprendendo feitiçaria?

— Isto é parcialmente verdadeiro — disse Clara. — Mas, por enquanto, é melhor não se concentrar no fato de que essas práticas são feitiçaria.

— Por que não?

— Porque estamos interessadas em algo além dos rituais; encantamentos anômalos e esotéricos daqueles feiticeiros da antiguidade. Sabe, nós acreditamos que suas práticas bizarras e busca obsessiva de poder resultaram apenas no maior desenvolvimento do ser. Isto é um beco sem saída, pois nunca conduz à liberdade total. Que é exatamente o que nós estamos buscando. O perigo é que a pessoa pode ser facilmente influenciada pelo ânimo desses feiticeiros.

— Eu não me deixaria influenciar — garanti.

— No momento, realmente não posso dizer-lhe mais nada-falou ela, exasperada. — Mas você descobrirá mais à medida que for avançando.

Senti-me traída e protestei veementemente. Acusei-a de brincar deliberadamente com minha mente e meus sentimentos, fazendo-me oscilar com fragmentos de informações que acendiam curiosidade e com promessas de que tudo ia esclarecer-se em algum momento futuro e difuso.

Clara ignorou completamente meus protestos. Era como se eu não tivesse dito uma palavra. Pôs-se de pé, aproximou-se da pilha de pedras e pegou uma delas como se fosse de espuma. Após deliberar por um instante para que lado deveria virá-la, colocou a pedra na beira do caminho. Então dispôs mais duas pedras tamanho de bolas de futebol americano de ambos os lados. Quando! ficou satisfeita com a arrumação, deu um passo atrás para avaliar o efeito. Tive de admitir que o caminho do jardim, com as pedras cinzentas e lisas que ela escolhera e as folhas verdes recortadas das plantas formavam a composição bastante harmoniosa.

— A graça com que você manipula as coisas é o que importa —lembrou­me Clara enquanto escolhia outra pedra. — Seu estado interior reflete-se pela maneira como você se movimenta, fala, come ou dispõe as pedras. Não importa o que você faz, contanto que concentre energia com suas ações e a transforme em poder. Durante algum tempo, Clara contemplou o caminho como se estivesse ponderando onde colocar a próxima pedra que tinha nas mãos. Quando encontrou um lugar adequado, colocou-a delicadamente no solo e lhe deu um tapinha afetuoso.

— Como artista, você deve saber que as pedras devem ser colocadas onde fiquem em equilíbrio — explicou — e não onde for mais fácil jogá-las. Naturalmente, se você estivesse impregnada de poder, poderia jogá-las de qualquer maneira e o resultado seria a própria beleza. Essa compreensão é a verdadeira finalidade do exercício de arrumação das pedras.

Pelo tom da voz de Clara e a disposição feia e extravagante de minhas pedras, percebi que havia falhado mais uma vez em minha tarefa. Fiquei profundamente desanimada.

— Clara, eu não sou artista — confessei. — Sou apenas uma estudante. Na verdade, uma ex-estudante. Deixei a escola de arte há um ano. Gosto de fingir que sou artista, mas isso é tudo. Na verdade, não sou nada.

— Todos nós nada somos — lembrou-me Clara.

— Eu sei, mas você é um nada poderoso e misterioso, enquanto eu sou um nada insignificante, tolo e inadequado. Não sei sequer arrumar um punhado de pedras bobas. Não há...

Clara levou a mão à minha boca.

— Não diga mais nada — avisou. — Estou lhe dizendo mais uma vez. Cuidado com o que você diz em voz alta nesta casa. Especialmente ao entardecer!

Já estava quase escuro e a quietude era total, chegando a ser sinistra. Os pássaros estavam silenciosos. Tudo silenciara; até mesmo o vento, tão irritante antes, enquanto eu tentava recolher as folhas, havia amainado.

— Este é o momento de não-sombras — sussurrou Clara. Vamos sentar debaixo desta árvore, no escuro, e descobrir se você consegue convocar o mundo das sombras.

— Espere aí, Clara — falei com um sussurro tão alto que mais parecia um guincho. — O que você vai fazer comigo? — Ondas de nervosismo provocavam câimbras em meu estômago e, apesar do frio, minha testa estava transpirando.

Clara perguntou diretamente se eu estava praticando os passes respiratórios e de feitiçaria que ela me havia ensinado. Mais do que tudo, eu queria dizer a ela que sim, no entanto, teria sido mentira. Na verdade, eu praticara muito pouco, apenas para esquecê-los, pois a recapitulação tomava toda minha energia disponível e não me deixava tempo livre para mais nada. À noite, eu estava cansada demais para fazer alguma coisa e simplesmente ia deitar.

— Você não tem praticado com regularidade, senão não estaria nesse estado deplorável agora — disse Clara, inclinando-se minha direção.—Você está tremendo como uma folha. A respiração e os passes que ensinei guardam um segredo que os torna valiosos.

— Qual é? — gaguejei.

Clara me deu um tapinha na cabeça.

— Eles têm de ser praticados todos os dias, caso contrário, são inúteis. Você não pensaria em ficar sem comer ou beber água, não é? Os exercícios que ensinei são ainda mais importantes do que o alimento e a água.

Ela conseguira o que queria. Jurei, em silêncio, que todas; noites, antes de ir deitar-me, eu faria os exercícios, e novamente ao acordar pela manhã, antes de ir para a caverna.

— O corpo humano possui um sistema de energia extra que entra em ação quando estamos sob tensão — explicou Clara. — E a tensão acontece sempre que fazemos alguma coisa em excesso. Como, por exemplo, preocupar-se excessivamente consigo mesma e com seu desempenho, como você está fazendo agora. Por isso um dos preceitos fundamentais da arte da liberdade é evitar os excessos. Ela disse que os movimentos que estava me ensinando,não importa se ela os chamava de respirações ou passes de feitiçaria, eram fundamentais porque atuavam diretamente no sistema de reserva. Por essa razão eles podem ser chamados de passes indispensáveis, pois permitem que a energia suplementar entre e percorra nossos trajetos de reserva. Então, quando somos convocados a agir, em vez de ficarmos depauperados devido ao estresse, nós nos tornamos mais fortes e dotados de energia excedente para tarefas extraordinárias.

— Agora, antes de convocarmos o mundo das sombras, vou lhe mostrar mais dois passes de feitiçaria indispensáveis, que combinam respiração e movimentos — prosseguiu Clara. — Pratique-os diariamente e não apenas você não ficará doente nem cansada, como também terá bastante energia suplementar para sua pretensão.

— Para minha o quê?

— Sua pretensão — repetiu Clara. — Para pretender o resultado de qualquer coisa que desejar. Lembra-se? — Ela me segurou pelos ombros e girou­me, de modo a colocar-me de frente para o norte. — Este movimento é particularmente importante para você, Taisha, porque seus pulmões estão enfraquecidos de tanto chorar. Uma vida sentindo pena de si mesma sem dúvida afetou seus pulmões.

A afirmação de Clara sacudiu-me e fez-me prestar atenção.Observei-a flexionar os joelhos e tornozelos e assumir uma postura de arte marcial chamada "cavalo reto", pois simula a posição de um cavaleiro montado em um cavalo, as pernas separadas no comprimento dos ombros e levemente flexionadas. O dedo indicador de sua mão esquerda apontava para baixo, enquanto seus outros dedos estavam dobrados na segunda articulação. Ela começou a inspirar e suave mas firmemente girou a cabeça para a direita tanto quanto possível, e girou a articulação do ombro esquerdo acima da cabeça, formando um circulo completo, passando pelas costas e terminando com a palma da mão esquerda sobre o cóccix. Simultaneamente, envolveu a cintura com o braço direito e pousou o punho direito sobre as costas da mão esquerda, pressionando-a contra o pulso esquerdo flexionado.

Utilizando o punho direito, ela levantou o braço esquerdo ao longo da coluna vertebral, o cotovelo esquerdo em ângulo agudo, e concluiu a inspiração. Contou até sete, retendo a respiração, e depois liberou a tensão no braço esquerdo, abaixou-o novamente até o cóccix e girou a articulação do ombro, passando sobre a cabeça, pela frente, até terminar com a palma da mão sobre o esquerda sobre o púbis. Simultaneamente, ela envolveu a cintura com o braço direito e colocou o punho sobre as costas da mão esquerda, levantando o braço esquerdo até o abdômen, concluindo a expiração.

— Faça este movimento uma vez com o braço esquerdo e outra vez com o direito — disse ela. — Desse modo, você harmonizará seus dois lados.

Como demonstração, ela repetiu os mesmos movimentos alternando os braços, desta vez girando a cabeça para a esquerda.

— Agora tente você, Taisha — sugeriu ela, colocando-se de lado a fim de dar-me espaço para girar o braço para trás.

Imitei seus movimentos. Ao girar meu braço esquerdo para trás senti uma tensão dolorosa ao longo da parte inferior de meu braço esticado, desde o dedo até a axila.

— Relaxe e deixe a energia da respiração fluir através de seu braço e sair pela ponta de seu dedo indicador — disse ela. Mantenha-o esticado e os outros dedos dobrados. Desse modo, você liberará qualquer bloqueio da energia ao longo dos trajetos em seu braço.

A dor tornou-se ainda mais intensa quando ergui meu braço flexionado ao longo das costas. Clara percebeu minha expressão aflita.

— Não force demais — avisou — ou você distenderá tendões. E gire um pouco mais os ombros quando forçar.

Após realizar o movimento com o braço direito, senti um ardor nos músculos de minha coxa, devido à posição com os joelhos e tornozelos flexionados. Conquanto eu permanecesse de pé na mesma posição todos os dias, ao praticar kung fu, minhas pernas pareciam vibrar como se uma corrente elétrica as estivesse percorrendo. Clara sugeriu que eu ficasse de pé e sacudisse um pouco as pernas para liberar a tensão.

Clara enfatizou que, nesse passe de feitiçaria, a rotação impulsão dos braços para cima, em conjunção com a respiração, movimentam a energia para os órgãos do peito, vitalizando-os. Esse movimento massageia centros profundos e básicos, os quais raramente são ativados. Girar a cabeça massageia as glândulas do pescoço e também abre passagens energéticas para a nuca. Ela explicou que esses centros, se despertados e nutridos pela energia da respiração, podem revelar mistérios que estão além de tudo que se possa imaginar.

— Para o próximo passe de feitiçaria — disse Clara — fique de pé com os pés unidos e olhe para a frente, como se estivesse diante de uma porta que você vai abrir.

Clara pediu-me para levantar as mãos até a altura dos olhos e dobrar os dedos como se eu os estivesse inserindo nas alças de portas de correr que se abrem em par.

— O que você vai abrir é uma fenda nas linhas de energia do mundo — explicou. — Imagine essas linhas como cordões verticais rígidos que formam uma tela à sua frente. Agora, agarre um punhado de fibras e separe-as com toda sua vontade. Afaste-as até que a abertura esteja grande o suficiente para você entrar.

Ela me contou que, uma vez realizado o buraco, eu deveria dar um passo à frente com a perna esquerda e depois, rapidamente, usando o pé esquerdo como eixo, dar um giro de 180 graus no sentido anti-horário, ficando de frente para o lado de onde eu viera. Girando dessa maneira, as linhas energéticas que eu havia separado me envolveriam.

Para retornar, disse ela, eu tinha de abrir novamente as linhas, afastando­as como fizera anteriormente e depois saindo com o pé direito e girando rapidamente 180 graus no sentido horário, logo após dar o passo. Dessa maneira, eu teria me desenredado e novamente estaria de frente para o lado onde iniciara o passe de feitiçaria.

— Este é o mais poderoso e misterioso de todos os passes de feitiçaria — alertou Clara. — Com ele podemos abrir portas para mundos diferentes, contanto, naturalmente, que tenhamos armazenado um excedente de energia interna e sejamos capazes de realizar a intenção do passe.

Seu tom de voz e sua expressão graves deixaram-me inquieta. Eu não sabia o que esperar se conseguisse abrir aquela porta invisível. Com um tom brusco, ela me apresentou então as instruções finais:

— Quando você entrar, seu corpo terá de sentir-se firme, pesado, cheio de tensão; mas, quando estiver dentro e girar, você deverá sentir-se leve e aérea, como se estivesse flutuando. Expire fortemente, lançando seu corpo para adiante, através da abertura, e em seguida inspire lenta e profundamente, enchendo totalmente os pulmões com a energia proveniente dessa tela.

Pratiquei o passe diversas vezes enquanto Clara observava. Mas era como se eu estivesse apenas realizando os movimentos externos; eu não conseguia sentir as fibras energéticas que formavam a tela de que Clara estava falando.

— Você não está abrindo suficientemente a porta — corrigiu-me Clara. — Use sua energia interna e não apenas os músculos de, seu braço. Expire o ar estagnado e encolha o estômago ao lançar-se para a frente. Quando estiver lá dentro, respire quantas vezes puder, mas fique atenta. Não permaneça mais tempo do que o necessário.

Reuni toda minha força e agarrei o ar. Clara permaneceu de pé atrás de mim, segurou meus antebraços e deu-lhe um forte empurrão lateral. Instantaneamente senti como se portas de correr tivessem sem sido abertas. Expirando fortemente, atravessei a porta, ou melhor, Clara havia me dado um empurrão por trás, impulsionando-me. Lembro-me de girar e respirar profundamente, mas, por um momento, temi não saber quando sair. Clara sentiu isto e me avisou quando parar de respirar e quando sair.

— A medida que você for praticando esse passe de feitiçaria sozinha — disse Clara —, você aprenderá a fazê-lo com perfeição? Mas tome cuidado. Todo tipo de coisa pode acontecer quando você atravessa essa abertura. Lembre-se, você deve ser cautelosa e ao mesmo tempo ousada.

— Como vou saber o que é o quê? — indaguei. Clara deu de ombros.

— Durante algum tempo você não saberá. Infelizmente, adquirimos a prudência depois de levarmos um susto.

Ela acrescentou que cautela sem covardia depende de nossa capacidade de controlar nossa energia interna e desviá-la para canais de reserva, a fim de que ela esteja disponível quando precisarmos dela para ações extraordinárias.

— Com suficiente energia interna, qualquer coisa pode ser realizada — disse Clara —, mas precisamos armazená-la e refiná-la. Assim, vamos praticar alguns passes de feitiçaria que você aprendeu e vamos ver se você consegue ser cautelosa sem ser covarde, e convocar o mundo das sombras.

Senti uma onda de energia que começou como pequenos círculos no meu estômago. A princípio pensei que fosse medo, mas meu corpo não parecia assustado. Era como se uma força impessoal, desprovida de desejos ou sentimentos, estivesse em atividade dentro de mim, movimentando-se de dentro para fora. Ao ascender, a região superior de minhas costas fazia um movimento brusco e involuntário.

Clara foi até o centro do pátio; eu a segui. Ela começou a fazer alguns passes de feitiçaria, diminuindo o ritmo para que eu pudesse segui-la.

— Feche os olhos — sussurrou. — Quando está de olhos fechados, é mais fácil usar as linhas energéticas que já estão aí para manter seu equilíbrio.

Cerrei os olhos e comecei a mexer-me em harmonia com Clara. Não tive dificuldade em seguir suas pistas para mudar de posição; no entanto, foi difícil manter o equilíbrio. Sabia que a dificuldade se devia à minha tentativa excessiva de realizar os movimentos corretamente. Como na ocasião em que eu havia tentado andar de olhos fechados e tropeçara sucessivas vezes porque queria desesperadamente ser bem-sucedida. Pouco a pouco, porém, meu desejo de sobressair diminuiu e meu corpo tornou-se mais ágil e sutil. Continuei movimentando-me e fiquei tão relaxada que eu parecia não ter ossos nem articulações. Se levantava os braços acima da cabeça, parecia que eu os havia erguido até a copa das árvores. Se flexionava os joelhos e diminuía meu peso, uma onda de energia percorria-me a partir dos pés. Eu parecia ter criado raízes. Linhas saíam desde as solas de meus pés até o seio da terra, conferindo-me uma estabilidade sem precedentes. Gradativamente, o limite entre meu corpo e o ambiente dissolveu-se. A cada passe realizado por mim, meu corpo parecia fundir-se e incorporar-se com a escuridão, até passar a mover-se e respirar por si só.

Eu podia ouvir Clara respirando a meu lado, realizando os mesmos passes. De olhos fechados, sentia sua forma e suas posturas. Em determinado momento, aconteceu uma coisa ainda mais estranha. Senti uma luz acendendo dentro da minha testa. Mas ao olhar para cima, percebi que a luz não estava realmente dentro de mim. Ela vinha da copa das árvores, como se um enorme painel de luzes elétricas tivesse sido aceso no meio da noite, iluminando um estádio ao ar livre. Não foi difícil divisar Clara e tudo que havia no pátio, e o que estava em volta.

A luz tinha a mais estranha das colorações; eu não conseguia concluir se era rósea ou cor de pêssego, ou se tinha um tom vermelho-acastanhado. Em determinados pontos ela parecia mudar; seu brilho dependia de para onde eu olhava.

— Não mexa a cabeça — disse Clara, fitando-me curiosa. — E continue de olhos fechados. Concentre-se apenas em sua respiração.

Eu não sabia por que ela me dissera para continuar de olhos fechados, ao ver que eles estavam arregalados. Eu estava tentando definir a coloração da luz, pois ela parecia mudar a cada movimento da minha cabeça. E sua intensidade oscilava, dependendo da intensidade de meu olhar. Envolvi-me tanto com o brilho que me circundava que perdi o ritmo das respirações. Então, tão repentinamente como acendera, a luz apagou novamente e mergulhei em total escuridão.

— Vamos para a cozinha esquentar um pouco de ensopado — disse Clara, cutucando-me.

Eu hesitei. Estava me sentindo desorientada, deslocada. Meu corpo estava tão pesado que achei que precisava sentar-me.

— Pode abrir os olhos agora — falou Clara.

Não me lembrava de ter sentido tanta dificuldade para abrir os olhos como naquele momento. Aparentemente demorei uma eternidade para abri-los, porque, tão logo os abria, eles se fechavam novamente. Este abrir e fechar pareceu durar muito tempo até que senti Clara sacudindo-me os ombros.

— Taisha, abra os olhos! — ordenou ela. — Não se atreva a desmaiar. Está ouvindo?

Sacudi a cabeça para desanuviá-la e meus olhos se arregalaram. Eles haviam permanecido cerrados o tempo todo. Estava totalmente escuro, mas a luz do luar que atravessava a folhagem foi suficiente para que eu avistasse a silhueta de Clara. Estávamos sentadas debaixo da árvore, nas duas cadeiras de vime no pátio.

— Como cheguei aqui? — perguntei, aturdida.

— Você caminhou até aqui e sentou — explicou Clara com simplicidade.

— Mas o que aconteceu? Há um instante havia luz. Eu podia ver tudo claramente.

— O que aconteceu foi que você entrou no mundo das sombras — disse Clara em tom congratulatório. — Pude sentir, pelo ritmo de sua respiração, que você estava lá. Mas não quis assustá-la, pedindo-lhe para contemplar a sua sombra. Se você tivesse olhado, teria percebido que...

Imediatamente entendi o que Clara estava insinuando.

— Não havia sombras — exclamei com voz entrecortada. — Havia luz,

mas nada tinha sombra. Clara assentiu.

— Esta noite você descobriu uma coisa realmente valiosa, Taisha. Nos mundos externos a este, não existem sombras!

 

Após mais de oito meses praticando fielmente a recapitulação, tornei-me capaz de praticar o dia inteiro sem aborrecer-me ou distrair-me. Um dia, enquanto eu visualizava os prédios onde fizera o último ano da escola, as salas de aula, os professores que tivera, fiquei tão envolvida percorrendo os corredores entre as mesas e vendo onde meus colegas de classe se sentavam que acabei falando sozinha.

— Se você falar sozinha, não poderá respirar corretamente — ouvi uma voz de homem dizer.

O susto foi tamanho que bati com a cabeça na parede da caverna. Abri os olhos. A imagem da sala de aula desapareceu quando me virei para perscrutar a entrada da caverna. Delineado contra a claridade da abertura, vi um homem de cócoras. Imediatamente soube tratar-se do mestre feiticeiro, do homem que certa vez eu tinha visto nas colinas. Ele estava usando o mesmo blusão de couro verde e as mesmas calças, mas desta vez pude ver seu perfil: tinha um nariz proeminente e uma testa levemente abaulada. [3]

— Não olhe fixamente — ouvi o mestre feiticeiro dizer. Sua voz era grave e ribombava como uma torrente sobre os seixos. — Se quiser aprender mais sobre a respiração, permaneça muito tranqüila e recupere seu equilíbrio.

Continuei respirando profundamente, até sua presença deixar de assustar­me, e senti-me aliviada porque finalmente estava conhecendo o mestre. Ele se sentou de pernas cruzadas na entrada da caverna e inclinou-se como Clara sempre fazia.

— Seus movimentos são muito bruscos — murmurou baixinho. — Respire assim.

Ele inspirou profundamente, girando suavemente a cabeça para a esquerda. Então expirou até o fim, girando bem suave a cabeça para a direita. Por último, ele girou a cabeça do ombro direito até o esquerdo e de volta para o direito sem respirar, voltando depois ao centro. Copiei seus movimentos, inspirando e expirando o mais profundo possível.

— É assim — disse ele. — Quando expirar, jogue fora todos os pensamentos e sentimentos que estiver revendo. Não fique apenas girando a cabeça com os músculos do pescoço. Conduza-a com as linhas de energia invisíveis de seu abdômen. Estimular essas linhas a sair é uma das tarefas da recapitulação.

Explicou que bem abaixo do umbigo havia um centro de poder, fundamental e que todos os movimentos do corpo, incluindo a respiração, tinham de envolver esse ponto energético. Sugeriu que eu sincronizasse o ritmo de minha respiração com o movimento da A cabeça, de modo que juntos eles estimulassem as linhas energéticas invisíveis de meu abdômen a ampliarem-se rumo ao infinito.

— Essas linhas fazem parte de meu corpo ou devo imaginá-las? — perguntei. Ele mudou de posição no solo antes de responder.

— Essas linhas invisíveis são parte de seu corpo sutil, seu duplo — explicou. — Quanto mais energia você estimula com a manipulação dessas linhas, mais forte se torna seu duplo.

— O que eu quero saber é o seguinte: elas são reais ou apenas imaginárias?

— Quando ocorre a expansão da percepção, nada é real e nada é imaginário — disse ele. — Existe apenas a percepção. Feche os olhos e descubra por si mesma.

Eu não queria fechar os olhos. Queria ver o que ele estava fazendo, no caso de ele fazer qualquer movimento brusco. Mas meu corpo ficou lasso e pesado, e meus olhos começaram a fechar, não obstante meus esforços para mantê-los abertos.

— O que é o duplo?—consegui perguntar antes de mergulhar em uma letargia sonolenta.

— Esta é uma boa pergunta. Significa que um lado seu ainda está alerta e ouvindo.

Senti-o respirando profundamente e inflando seu peito.

— O corpo físico é um revestimento, um recipiente, se você preferir — falou ele depois de expirar lentamente. — Concentrando-se em sua respiração, você pode fazer com que o corpo sólido se dissolva, restando apenas a parte sutil, etérea.

Ele se corrigiu, explicando que o corpo físico não se dissolve, mas, mudando a direção de nossa consciência, começamos a perceber que ele nunca foi sólido. Esta percepção é a inversão exata daquilo que aconteceu durante nosso amadurecimento. Quando crianças, tínhamos plena consciência de nosso duplo; à medida que fomos crescendo, aprendemos a valorizar cada vez mais o lado físico e menos nosso ser etéreo. Adultos, somos totalmente inconscientes da existência de nosso lado sutil.

— O corpo sutil é uma massa de energia — explicou. — Temos consciência apenas de seu revestimento externo e sólido. Nós nos tornamos conscientes de nosso lado etérico permitindo que nossa intenção volte até ele.

Ressaltou que nosso corpo físico está inseparavelmente ligado à sua contraparte etérea, mas que este elo tem sido toldado por nossos pensamentos e sentimentos. Para transferir a percepção de nossa aparência concreta para sua contraparte fluida, precisamos em primeiro lugar dissolver a barreira que separa os dois aspectos de nosso ser.

Eu queria perguntar como isto podia ser feito, mas foi impossível expressar meus pensamentos.

— A recapitulação ajuda a dissolver nossas preconcepções — respondeu­me — mas é preciso habilidade e concentração para alcançar o duplo. Neste momento você está utilizando sua parte etérica até certo ponto. Você está meio adormecida, mas alguma parte sua está desperta e alerta, pode ouvir-me e sentir minha presença.

Ele me alertou para o perigo considerável de liberar a energia aprisionada dentro de nós, pois o duplo é vulnerável e pode prejudicar-se facilmente durante

o processo de mudança de nossa percepção para ele.

— Você pode, inadvertidamente, criar uma abertura na rede etérica e perder grandes quantidades de energia — avisou ele. — Energia preciosa, necessária para a manutenção de um certo nível de clareza e controle em sua vida.

— O que é a rede etérica? — murmurei, como se estivesse falando durante o sono.

— A rede etérica é a luminosidade que envolve o corpo físico — explicou. — Esta rede de energia é feita em pedaços durante a vida cotidiana. Grandes porções se perdem ou se entrelaçam nas faixas de energia de outras pessoas. Se uma pessoa perde excessivamente a força vital, ela adoece ou morre.

Sua voz me havia tranqüilizado tão completamente que eu estava respirando pelo abdômen, como se estivesse mergulhada em sono profundo. Eu me recostara na parede da caverna, mas não estava sentindo o incômodo da parede áspera.

— A respiração atua nos níveis físico e etérico — explicou ele.

— Ela repara qualquer dano existente na rede etérica e a mantém forte e maleável.

Eu queria perguntar algo a respeito de minha recapitulação, mas não consegui formular as palavras; elas pareciam demasiado distantes. Sem que eu fizesse a pergunta, mais uma vez ele ofereceu a resposta:

— É isto que você tem feito nos últimos meses com sua recapitulação. Você está retirando filamentos de energia de sua rede etérica, os quais se perderam ou emaranharam em conseqüência de sua vida cotidiana. Concentrando-se nessa interação, você está trazendo de volta tudo que dispersou ao longo de 20 anos e em milhares de lugares.

Eu queria saber se o duplo tinha uma forma ou cor específica. Eu estava pensando nas auras. Ele não respondeu. Após um longo silêncio, forcei-me a abrir os olhos e vi que estava sozinha na caverna. Esforcei-me para ver além da escuridão a luz da abertura da caverna onde eu vira pela primeira vez seu perfil na entrada. Desconfiei que ele saíra sorrateiramente e estava me esperando nas proximidades, para então ir embora. Quando olhei, um fragmento de luz brilhante surgiu, pairando a cerca de 70 centímetros de mim. A ilusão surpreendeu-me, mas ao mesmo tempo fascinou-me tão profundamente que não consegui desviar os olhos. Tive a certeza irracional de que a luz estava viva, consciente e percebendo minha atenção voltada para ela. De súbito, a esfera cintilante expandiu-se até o dobro de seu tamanho e foi circundada por um anel de cor púrpura intensa.

Assustada, fechei os olhos firmemente, na esperança de que a luz desaparecesse, para que eu pudesse sair da caverna sem passar através dela. Meu coração batia descompassado em meu peito e eu suava. Minha garganta estava seca e apertada. Reduzi o ritmo de minha respiração. Quando abri os olhos, a luz havia desaparecido. Fiquei tentada a explicar o acontecimento como um sonho, pois freqüentemente eu cochilava durante a recapitulação. Mas a lembrança do mestre feiticeiro e de suas palavras era tão viva que eu tinha praticamente certeza de que tudo aquilo fora real.

Cautelosamente, rastejei para fora da caverna, calcei os sapatos e tomei o atalho para casa. Clara estava de pé ao lado da porta da sala, como se estivesse esperando por mim. Ofegante, falei abruptamente que ou eu tinha acabado de falar com o mestre feiticeiro ou eu tivera o mais real dos sonhos com ele. Ela sorriu e apontou a poltrona com um movimento de seu queixo. Fiquei boquiaberta. Lá estava ele, o mesmo homem que estivera comigo na caverna poucos minutos antes, só que usando roupas diferentes. Agora ele vestia um cardigã cinza, uma camisa e calças feitas sob medida.

Era muito mais velho do que eu pensara, mas também muito mais vigoroso. Impossível definir sua idade; ele poderia ter 40 ou 70 anos. Aparentava ser extremamente forte, nem magro nem corpulento. Era moreno e parecia indiano. Tinha o nariz proeminente, a boca bem delineada, o queixo quadrado e olhos negros cintilantes, com a mesma expressão intensa que eu vira na caverna. Todos esses traços eram acentuados por cabelos brancos curtos, cheios e brilhantes. O impressionante em seus cabelos era que não o envelheciam, como acontece em geral com cabelos brancos. Lembrei-me de como meu pai envelheceu quando seus cabelos ficaram prateados e de como ele os disfarçava com tinturas e chapéus; tudo inútil, pois a velhice estava em seu rosto, em suas mãos, em todo seu corpo.

— Taisha, quero apresentá-la ao Sr. John Michael Abelar — disse Clara. O homem pôs-se de pé educadamente e estendeu a mão.

— Muito prazer em conhecê-la, Taisha — falou em inglês perfeito, dando um forte aperto em minha mão.

Eu queria perguntar o que ele estava fazendo ali e como mudara de roupa tão rápido, e se ele realmente estivera na caverna ou não. Uma dúzia de outras perguntas atravessou meu pensamento, mas estava chocada e intimidada demais para externar qualquer uma delas. Fingi estar calma e nem um pouco abalada como realmente eu estava. Fiz um comentário sobre seu inglês perfeito e com a clareza com que ele se expressara ao falar comigo na caverna.

— Bondade sua — falou ele com um sorriso afável. — Mas eu tinha que falar bem inglês. Sou um índio yaqui. Nasci no Arizona.

— Mora no México, Sr. Abelar? — perguntei, desajeitada.

— Sim, moro nesta casa. Moro aqui com Clara.

Ele olhou para Clara de uma maneira que só poderia descrever como profundo afeto. Eu não sabia o que dizer. Sentia-me acanhada, inibida, por alguma razão desconhecida.

— Nós não somos marido e mulher — disse Clara, como se quisesse colocar-me à vontade, e os dois começaram a rir.

Ao invés de amenizar a situação, os risos deixaram-me ainda mais constrangida. Então, para minha consternação, reconheci a emoção que eu estava sentindo: era puro ciúme. Tomada de inexplicável impulso possessivo, senti que ele me pertencia. Tentei ocultar meu constrangimento, fazendo rapidamente algumas perguntas superficiais.

— Mora no México há muito tempo?

— Sim — disse ele.

— Está pensando em voltar para os Estados Unidos?

Ele me olhou fixamente, com seus olhos intensos, em seguida sorriu e disse, encantador:

— Esses detalhes não são importantes, Taisha. Por que você não me faz perguntas a respeito do tema que discutimos na caverna? Algo não ficou claro?

Seguindo a sugestão de Clara, nós nos sentamos; Clara e eu no sofá, e o Sr. Abelar na poltrona de orelhas. Perguntei se ele poderia falar mais um pouco sobre o duplo. O conceito interessava-me profundamente.

— Algumas pessoas são mestras do duplo—começou ele. — Podem não apenas concentrar sua percepção no duplo, mas também estimulá-lo a agir. A maioria das pessoas, contudo, mal tem consciência da existência do lado etérico.

— O que faz o duplo? — perguntei.

— Tudo que quisermos que faça; ele pode saltar sobre as árvores ou voar, ou tornar-se grande ou pequeno, ou assumir a forma de um animal. Pode tomar consciência dos pensamentos das pessoas, ou tornar-se um pensamento e percorrer num segundo as maiores distâncias.

— Ele pode inclusive agir como a própria pessoa — interpôs-se Clara, olhando diretamente para mim.—Se souber usá-lo, você poderá surgir diante de alguém e falar-lhe como se estivesse realmente presente.

O Sr. Abelar assentiu.

— Na caverna, você conseguiu perceber minha presença com seu duplo. E somente quando sua razão despertou é que você duvidou se a experiência tinha sido real.

— Ainda estou duvidando—falei.—Você realmente estava lá?

— É claro—replicou ele com uma piscadela.—Tanto quanto estou realmente aqui.

Por um instante fiquei pensando se eu estaria sozinha agora, Mas minha razão garantiu-me ser impossível. Apenas para ter certeza, toquei a mesa; ela era sólida.

— Como você fez isso? — perguntei, recostando-me no sofá. O Sr. Abelar permaneceu em silêncio por um instante, como se estivesse escolhendo as palavras.

— Saí de meu corpo físico e permiti que meu duplo assumisse o comando — explicou. — Se nossa consciência está vinculada ao duplo, nós não somos influenciados pelas leis do mundo físico; somos governados pelas forças etéricas. Contudo, enquanto a consciência se mantém vinculada ao corpo físico, nossos movimentos são limitados pela gravidade e outras forças.

Eu ainda não havia entendido se isto queria dizer que ele podia estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ele pareceu sentir minha dúvida. — Clara me disse que você se interessa pelas artes marciais — disse o Sr. Abelar. — A diferença entre o homem comum e o especialista em kung fu é que este último aprendeu a controlar seu corpo sutil.

— Meus professores de karatê costumavam falar a mesma coisa — comentei. — Insistiam em que as artes marciais exercitavam o lado sutil do corpo, mas eu nunca consegui entender o que eles queriam dizer.

— O que provavelmente eles queriam dizer era que, quando um profissional ataca, ele atinge pontos vulneráveis do corpo sutil de seu inimigo — explicou ele. — Não é o poder do corpo físico que é destrutivo, mas a abertura que ele faz no corpo etérico do inimigo. Por essa abertura ele pode arremessar uma força capaz de rasgar a rede etérica, causando grandes danos. Uma pessoa pode receber o que na ocasião pode parecer apenas um golpe suave, mas horas ou talvez dias depois, essa pessoa pode morrer com o golpe.

— Exatamente — concordou Clara. — Não se deixe enganar por movimentos externos ou pelo que você vê. Não é o que você vê que importa.

Eu tinha ouvido histórias similares de meus mestres de karatê. Quando eu perguntava como esses feitos eram realizados, eles não conseguiam me dar uma explicação coerente. Na época eu pensara que, por serem japoneses, meus professores não conseguiam expressar tais sutilezas de pensamento em inglês. Agora o Sr. Abelar estava explicando algo similar e, conquanto seu domínio do inglês fosse perfeito, eu ainda não conseguia entender o que ele queria dizer com corpo sutil ou duplo, nem tampouco como entrar em contato com seus poderes misteriosos.

Fiquei pensando se o Sr. Abelar era um artista marcial, mas antes que pudesse perguntar-lhe, ele prosseguiu:

— A verdadeira arte marcial, como Clara a descreveu para mim, com seu aprendizado na China, dedica-se ao controle do corpo sutil. E o duplo é controlado não por nosso intelecto, mas por nossa intenção. Não existe uma maneira de pensar a respeito dele ou compreendê-lo racionalmente. Ele tem de ser sentido, pois está interligado a algumas linhas luminosas de energia que cruzam o universo. — Ele tocou a própria cabeça e apontou para o alto — Por exemplo, uma linha de energia que parte do topo da cabeça confere ao duplo sua meta e direção. Essa linha eleva e atrai o duplo para onde quer que ele vá. Se quer que ele ascenda basta ter intenção. Se quer que ele mergulhe no solo basta ter a intenção de descer. Tão simples como estou lhe dizendo.

Neste momento Clara me perguntou se eu lembrava o que ela me dissera no jardim, no dia em que fizemos os exercícios respiratórios ao sol; como a coroa da cabeça sempre necessitava de proteção. Respondi que me lembrava muito claramente — pois desde então eu temia sair de casa sem chapéu. Então ela mel perguntou se eu seria capaz de entender o que o Sr. Abelar estava dizendo. Assegurei que eu não tinha dificuldade em entendê-lo embora não compreendesse os conceitos. Paradoxalmente, o que ele estava dizendo afigurava-se-me incompreensível, mas ao mesmo tempo era familiar e crível. Clara assentiu e disse que acontecia porque ele estava se dirigindo diretamente a um lado meu que não era racional e tinha a capacidade de captar as coisas diretamente, sobretudo se um feiticeiro lhe falasse diretamente.

Clara tinha razão. Havia algo no Sr. Abelar que me deixava ainda mais à vontade do que dissera Clara. Não eram seus modos educados e sua fala macia, mas algo na intensidade de seus olhos que me forçava a ouvir e seguir suas explicações, apesar de, racionalmente, elas parecerem absurdas. Ouvi a mim mesma fazer perguntas como se soubesse do que eu estava falando.

— Serei capaz de algum dia alcançar meu corpo sutil? — perguntei.

— A questão, Taisha, é: você quer alcançá-lo?

Por um instante eu hesitei. Com minha recapitulação, descobrira que sou complacente e covarde, e que minha primeira reação é evitar tudo que seja incômodo ou assustador. Mas eu também tinha uma enorme curiosidade de vivenciar coisas incomuns e, como Clara certa vez me dissera, eu possuía uma certa ousadia inconseqüente.

— Tenho muita curiosidade a respeito do duplo — falei — portanto, quero muito entrar em contato com ele.

— Qualquer que seja o preço?

— Sim, exceto vender meu corpo — falei, pouco convincente. Ao ouvirem isso, ambos riram tanto que pensei que teriam uma convulsão bem ali no chão. Eu não pretendera fazer graça, pois na verdade eu não sabia ao certo que planos secretos eles tinham para mim. Como se seguisse o rumo de meus pensamentos, o Sr. Abelar disse que estava na hora de me familiarizar com certas premissas de seu mundo. Aprumou-se e assumiu um ar de seriedade.

— Os envolvimentos de homens e mulheres não são mais nossa preocupação — disse ele. — Isto significa que não estamos interessados na moralidade, na imoralidade ou mesmo na amoralidade do homem. Toda nossa energia é concentrada na exploração de novos caminhos.

— Pode me dar um exemplo de um novo caminho, Sr. Abelar? — pedi.

— Certamente. Que tal a tarefa com a qual você está envolvida, a recapitulação? Estou falando com você agora porque, por meio da recapitulação, você armazenou energia suficiente para romper determinados limites físicos. Você percebeu, ainda que apenas por um instante, coisas inconcebíveis que não fazem parte de seu inventário normal, para usar a terminologia de Clara.

— Meu inventário normal é bem estranho — alertei-o. — Estou começando a perceber, com a recapitulação do passado, que eu era maluca. Na verdade, ainda sou. Prova disso é que estou aqui e não sei dizer se estou acordada ou sonhando.

Ouvindo isso, os dois caíram na gargalhada novamente, como se estivessem assistindo a um programa humorístico e o comediante tivesse acabado de contar uma piada.

— Sei muito bem o quanto você é maluca—falou o Sr. Abelar, decidido. — Mas não porque você está aqui conosco. Mais do que maluca, você é indulgente. No entanto, desde o dia em que veio para cá, ao contrário do que poderia pensar, você não tem sido tão condescendente quanto no passado. Assim, com toda justiça, diria que algumas coisas que Clara me contou que você fez, como entrar naquilo que chamamos de mundo das sombras, não foi indulgência nem loucura. Foi um novo caminho; alguma coisa sem nome e inimaginável do ponto de vista do mundo normal.

Seguiu-se um longo silêncio, que me deixou irrequieta e inquieta. Eu queria dizer algo para quebrar o silêncio, mas não consegui pensar em nada. E o pior era que o Sr. Abelar não parava de me lançar olhares de soslaio. Por fim, ele sussurrou alguma coisa para Clara e ambos riram baixinho, o que me irritou profundamente, pois, para minha mente, não havia dúvida de que estavam rindo de mim.

— Talvez seja melhor eu ir para meu quarto—falei, levantando-me.

— Sente-se, ainda não acabamos — disse Clara.

— Você não imagina o quanto apreciamos ter você aqui conosco — falou o Sr. Abelar repentinamente. — Nós a achamos divertida porque você é muito excêntrica. Logo você conhecerá outro membro de nosso grupo, uma pessoa tão excêntrica quanto você, só que muito mais velha. Ver você nos faz lembrar dele quando jovem. Por isso estamos rindo. Por favor, perdoe-nos.

Detestava que rissem de mim, mas o pedido de desculpas foi tão sincero que eu o aceitei. O Sr. Abelar voltou a falar do duplo como se nada mais tivesse sido dito.

— À medida que vamos abandonando nossas idéias do corpo físico, pouco a pouco ou de uma só vez — disse ele —, a percepção começa a transferir-se para nosso lado sutil. Para facilitar transferência, nosso lado físico deve permanecer absolutamente tranqüilo, em suspenso, como se estivesse mergulhado em sono profundo. A dificuldade está em convencer nosso corpo físico à cooperar, pois raramente ele se dispõe a abandonar o controle.

— Então como abandono meu corpo físico? — indaguei.

— Você o engana — disse ele. — Você deixa seu corpo sentir-se como se estivesse profundamente adormecido; deliberadamente você o aquieta afastando sua consciência dele. Quando seu corpo e sua mente estão em repouso, seu duplo despeita e assume o comando.

— Acho que não estou entendendo — falei.

— Não banque o advogado do diabo conosco, Taisha — retorquiu Clara.

— Você já deve ter feito isso na caverna. Para que: você tenha percebido o nagual, você tem que ter usado seu duplo. Você estava dormindo e no entanto estava consciente ao mesmo tempo. O que chamou minha atenção na afirmação de Clara foi a maneira como ela havia falado do Sr. Abelar. Ela o havia chamado de "o nagual". Perguntei o que significava a palavra.

— John Michael Abelar é o nagual — anunciou ela orgulhosamente. — Ele é meu guia; a fonte de minha vida e bem-estar. Ele não é meu homem, até onde vai a imaginação, no entanto, é o amor da minha vida. Quando ele for tudo isso para você, aí então ele será o nagual também para você. Enquanto isso, ele é o Sr. Abelar, ou mesmo John Michael.

O Sr. Abelar riu, como se tudo que Clara tivesse dito fosse apenas uma brincadeira, mas Clara sustentou meu olhar tempo suficiente para fazer-me perceber que ela estava falando cada palavra a sério.

O silêncio que se seguiu foi finalmente rompido pelo Sr. Abelar:

— Para ativar o corpo sutil, em primeiro lugar você tem de abrir certos centros físicos que funcionam como portais. Quando todos os portais se abrem, seu duplo pode emergir de sua capa protetora. Caso contrário, ele permanecerá eternamente encerrado em sua carapaça externa.

Ele pediu a Clara para pegar uma esteira no armário, estendeu-a no chão e pediu-me para deitar de costas, os braços ao lado.

— O que vai fazer comigo? — perguntei, desconfiada.

— Não é o que você está pensando — retrucou ele. Clara deu uma risadinha.

— Taisha realmente é desconfiada com os homens — explicou ao Sr. Abelar.

— Isto não lhe tem feito nenhum bem — replicou ele, deixando-me profundamente constrangida. Então, olhando para mim, explicou que ia me mostrar um método simples de mudança de consciência de meu corpo físico para a rede etérica que o envolve. — Deite-se e feche os olhos, mas não adormeça — ordenou ele.

Constrangida, fiz o que ele pediu, sentindo-me estranhamente! vulnerável, deitada ali à sua frente. Ele se ajoelhou a meu lado e falou-me com voz suave:

— Imagine linhas saindo pelos lados de seu corpo, começando pelos pés.

— E se eu não conseguir imaginá-las?

— Se você quiser, com certeza vai conseguir. Use toda sua força para ter a intenção de que as linhas existam.

Ele explicou que não se tratava realmente de imaginar as linhas, mas sim de um misterioso ato, que consistia em puxá-las da região lateral do corpo, iniciando pelos dedões dos pés e continuando até o topo da cabeça. Ele afirmou que eu também deveria sentir linhas emanando das solas de meus pés e descendo e envolvendo todo meu corpo, até a nuca; e também outras linhas, que se irradiavam da minha testa e subiam e desciam ao longo da parte dianteira de meu corpo, até meus pés, formando assim uma rede ou casulo de energia luminosa.

— Pratique isto até você conseguir abandonar seu corpo físico e concentrar a atenção, quando quiser, em sua rede luminosa — disse ele. — No final, você conseguirá concentrar e manter essa rede com um único pensamento.

Tentei relaxar. A voz do Sr. Abelar era tranqüilizadora, hipnotizante; às vezes parecia vir de muito perto, e outras vezes de longe.

Ele explicou que se em alguma parte de meu corpo a rede estivesse rígida, fosse difícil alongar as linhas ou as linhas estivessem emaranhadas, significaria que aquele local estava fraco ou ferido. — Você pode curar essas regiões permitindo que o duplo amplie a rede etérica — falou ele. — Como posso fazer isso?

Tendo a intenção, mas não com seus pensamentos. Pretenda com sua intenção, que é a camada abaixo de seus pensamentos. Ouça atentamente, procure-a sob seus pensamentos, longe deles. A intenção está tão distante dos pensamentos que não podemos falar sobre ela; não podemos sequer senti-la. Mas certamente podemos usá-la.

Eu não conseguia sequer conceber como poderia pretender com minha intenção. O Sr. Abelar disse que eu não deveria ter muita dificuldade em lançar minha rede, pois, nos últimos meses, sem saber, eu estivera projetando essas linhas etéricas durante minha recapitulação. Sugeriu que eu começasse concentrando-me na respiração. Passado um tempo que pareceu horas, durante o qual devo ter cochilado uma ou duas vezes, finalmente pude sentir um intenso calor formigante nos pés e na cabeça. O calor expandiu-se, formando um anel que envolveu todo meu corpo.

Com voz suave, o Sr. Abelar lembrou-me que eu deveria concentrar minha atenção no calor fora de meu corpo e tentar alongá-lo, lançando-o de dentro para fora e permitindo que se expandisse.

Concentrei-me na minha respiração, até desparecer toda a tensão de meu corpo. À medida que fui relaxando, deixei que o calor formigante encontrasse seu próprio caminho; ele não avançou para fora nem se expandiu, mas sim contraiu­se, até que eu me senti deitada em um balão gigantesco, flutuando no espaço. Por um momento fui tomada pelo pânico; minha respiração parou e senti-me sufocar momentaneamente. Mas então alguma coisa fora de mim mesma assumiu o comando e começou a respirar por mim. Ondas de energia tranqüilizante envolveram-me, expandindo-se e contraindo-se até que tudo escureceu e não mais consegui concentrar minha consciência em nada.

 

Despertei ouvindo Clara mandando-me sentar. Demorei um longo tempo para reagir, primeiro porque estava completamente desorientada e, em segundo lugar, porque minhas pernas estavam entorpecidas. Percebendo minha dificuldade, Clara segurou-me debaixo dos braços, puxou-me para a frente e, em seguida, colocou algumas almofadas nas minhas costas, para que eu me mantivesse sentada sem sua ajuda. Eu estava na minha cama e usava minha camisola. Pela luminosidade, concluí que a tarde já chegava ao fim.

— O que aconteceu? —murmurei. — Eu dormi a noite toda?

— Dormiu — replicou Clara. — Fiquei preocupada. Você mergulhou na extremidade profunda e caiu em um limbo perceptual. Ninguém conseguia chegar até você. Então decidimos deixá-la dormir até se curar.

Inclinei-me para diante e esfreguei as pernas até que a sensação de formigamento desapareceu. Eu ainda estava me sentindo grogue e estranhamente debilitada.

— Você tem que falar comigo até voltar a ser você — ordene Clara com seu tom mais autoritário. — Esta é uma daquelas ocasiões em que falar faz bem a você.

— Não sinto vontade de falar — aleguei, caindo de novo sobre os travesseiros. Eu começara a suar frio e meus membros estava flácidos e vacilantes. — O Sr. Abelar fez alguma coisa comigo?

— Não enquanto eu estava olhando — replicou Clara, sorrindo do jovialmente com a própria brincadeira. Segurou minhas entre as suas e esfregou­as, tentando reanimar-me.

Eu não estava com disposição para brincadeiras.

— O que aconteceu realmente, Clara? — exigi. — Não me lembro de

nada. Ela se acomodou na borda da cama.

— Seu primeiro encontro com o nagual foi demais para você — explicou Clara. — Você está fraca demais; foi isso que aconteceu. Mas não quero que você se concentre nisso, porque você se desencoraja com muita facilidade. Além disso, não quero que fique imaginando coisas, como costuma fazer, e tire conclusões erradas.

— Como não sei o que está acontecendo, como vou imaginar coisas? — falei, batendo os dentes.

— Tenho certeza de que você encontraria uma maneira — suspirou Clara.

— Você é excepcionalmente propensa a tirar conclusões. Infelizmente, conclusões erradas. E não importa se você não sabe o que está acontecendo. Você sempre imagina que sabe.

Tive de admitir que odiava situações ambíguas. Elas sempre me colocavam em desvantagem. Queria saber o que estava acontecendo para que pudesse lidar com eventualidades.

— Sua mãe ensinou-a a ser uma mulher perfeita — continuou Clara — Observando o ambiente, as mulheres perfeitas aprendem tudo que precisam saber, sobretudo quando há um homem em jogo. Elas podem antever seus desejos mais sutis. Elas estão sempre conscientes das mudanças de estado de espírito no homem, pois acreditam que essas mudanças são causadas por alguma coisa que elas fizeram ou disseram. Sentem, por conseguinte, que cabe a elas satisfazer seu homem.

Tive de admitir, para minha contrariedade, que Clara tinha razão, pois eu mesma me vira, em minha recapitulação, agindo dessa maneira repetidas vezes. Eu fora muito bem treinada. Bastava apenas um olhar, um suspiro ou determinada entonação da voz de meu pai e eu sabia exatamente o que ele estava pensando ou sentindo. O mesmo acontecia com meus irmãos. Eles me faziam saltar ante a mais leve das pistas. E, o que era pior, eu só precisava imaginar que um homem não gostava de mim para me curvar e agradá-lo.

Clara pressionou delicadamente minha cintura para chamar minha atenção.

— Se você e eu estivéssemos sozinhas ontem à noite, você não teria desmaiado tão dramaticamente — falou ela com um sorriso irritante.

— O que você está insinuando, Clara? Que eu achei o Sr. Abelar atraente?

— Exatamente. Quando há um homem por perto, você sofre uma transformação imediata. Torna-se uma mulher capaz de fazer qualquer coisa para ter a atenção de um homem, incluindo desmaiar.

— Peço o direito de discordar de você — falei. — Eu não estava tentando bajular o Sr. Abelar, de jeito nenhum.

— Pense um pouco! Não tente simplesmente defender-se — sugeriu Clara. — Eu não a estou atacando. Estou apenas lhe mostrando o que eu mesma costumava sentir e fazer.

Bem em meu íntimo eu sabia do que Clara estava falando. O Sr. Abelar possuía um charme tremendamente carismático que, apesar de sua idade, o tornava profundamente atraente aos meus olhos. No entanto, decidi não admitir isso, nem para mim mesma nem para Clara. Para meu alívio, ela não insistiu no assunto.

— Compreendo-a tão bem porque eu também tive meu John Michael Abelar — continuou. — Ele era o nagual Julian Grau, o ser mais belo e gentil que já existiu. Era charmoso, brincalhão e engraçado; uma pessoa realmente inesquecível. Todos o adoravam, inclusive John Michael e o resto da minha família. Todos beijávamos o chão em que ele pisava.

Ouvindo Clara maravilhada com seu mestre, ocorreu-me que ela havia passado tempo demais no Oriente. Sempre me perturbara a adoração obscena que os alunos do mundo do karatê devotavam a seu mestre ou sensei. Eles também literalmente beijavam o chão que seu mestre pisava, tocando o chão com a cabeça, em sinal de respeito, sempre que o mestre entrava na sala. Eu não disse isso a Clara, mas senti que ela também se curvava para reverenciar seu mestre.

— O nagual Julian nos ensinou tudo que sabemos — prosseguiu ela, sem dar atenção aos meus julgamentos. — Ele dedicou sua vida a nos conduzir até a liberdade. Instruiu especialmente o nagual John Michael Abelar com os ensinamentos que o qualificaram a tornar-se o novo nagual.

— Clara, você está querendo dizer que os naguais são como reis? — perguntei, querendo que ela percebesse o perigo e o exagero de tamanha veneração.

— Não. De forma alguma. Os naguais são destituídos de qualquer vaidade — contrapôs ela. — E é precisamente por este motivo que nós podemos adorá­-los.

— O que estou querendo dizer, Clara, é o seguinte: eles herdam seu posto? — corrigi-me rapidamente.

— Ah, sim! Certamente eles herdam seu posto; mas não como reis. Reis são filhos de reis. Um nagual, por outro lado, tem de ser escolhido pelo espírito, pois, a menos que o espírito o escolha, ele não poderá erigir-se como líder. Para começar, um nagual é uma pessoa dotada de extraordinária energia. Mas apenas quando lhe é transmitida a lei dos naguais é que ele realmente pode tornar-se um nagual.

Acompanhei a explicação de Clara, mas sentia-me inexplicavelmente constrangida com a mesma. Pensando melhor, percebi que o que me incomodava era que o espírito é o encarregado de fazer a seleção.

— De que maneira o espírito decide quem será o eleito? — perguntei.

Clara sacudiu a cabeça.

— Isto, minha cara Taisha, é um mistério além dos mistérios — falou suavemente. — Tudo que um nagual pode fazer é cumprir as ordens do espírito ou fracassar miseravelmente.

Pensei no Sr. Abelar e tentei imaginar que ordem o espírito tivera em mente para ele. Lembrei-me também de que Clara dissera que um dia ele poderia ser um nagual para mim.

— Aliás, onde está o Sr. Abelar? — perguntei, tentando parecer indiferente.

— Partiu ontem à noite, quando percebeu que você estava fora de combate.

— Ele vai voltar?

— Certamente. Ele mora aqui.

— Onde, Clara? No lado esquerdo da casa?

— Sim. No momento ele está lá. Não neste exato momento — corrigiu-se ela —, mas atualmente. Em outras ocasiões, ele mora comigo no lado direito da casa. Eu cuido dele.

Senti uma pontada de ciúme tão forte que fui tomada por uma onda de energia.

— Você disse que ele não era seu marido, não foi, Clara? — perguntei, contraindo um lado de minha boca por pura perturbação.

Clara soltou uma gargalhada tão forte que rolou para trás na cama, ofegante.

— O nagual John Michael Abelar transcendeu todos os aspectos da masculinidade — assegurou ela, voltando a sentar-se.

— O que você está querendo dizer, Clara?

— Estou querendo dizer que ele não é mais um ser humano. Mas não posso explicar tudo isso a você, pois me falta sutileza, e a você falta a facilidade para me compreender. Na minha opinião, minha incapacidade de explicar as coisas a você é a razão pela qual o nagual lhe deu aqueles cristais.

— Que incapacidade, Clara? Você fala perfeitamente bem.

— Então é você que não entende perfeitamente bem.

— Isto é idiotice, Clara.

— Então por que não consigo transmitir-lhe aquilo que somos e aquilo que temos em mente para você? Respirei profundamente várias vezes para acalmar meu nervosismo.

— O que você tem em mente para mim, Clara?—perguntei, mais uma vez tomada pelo pânico.

— Para mim é muito difícil explicar — começou ela. — Definitivamente, você e eu pertencemos à mesma tradição. Você é parte integrante daquilo que somos. Portanto, nós nos sentimos compelidos a ministrar-lhe ensinamentos.

— Aquém você está se referindo quando diz "nós"? Está se referindo a você e ao Sr. Abelar?

Clara fez silêncio por um instante, como se estivesse concedendo a si mesma tempo para responder corretamente.

— Como já lhe disse, nós somos mais do que dois — disse ela. — Na verdade, eu não sou realmente sua mestra. Nem tampouco o nagual John Michael. É uma outra pessoa.

— Espera aí, Clara. Você está me confundindo novamente. Quem é essa outra pessoa a quem você está se referindo?

— Outra mulher como você, só que mais velha e infinitamente mais poderosa. Eu sou simplesmente sua escudeira. Estou encarregada de preparar você, de fazê-la armazenar energia suficiente, através da recapitulação, para que você possa conhecer essa outra pessoa. E, creia-me, a presença dessa mulher é muito mais arrasadora do que a do nagual.

— Não compreendo o que você está tentando me dizer, Clara. Está querendo dizer que ela é perigosa e vai me fazer mal?

— Este é o problema quando tento responder a suas perguntas — disse Clara. — Você fica confusa porque você e eu temos apenas uma conexão superficial. Você me faz uma pergunta, esperando uma resposta clara que a satisfaça, e eu lhe dou uma resposta que me satisfaz e mergulha você em confusão. Recomendo que não faça perguntas ou aceite minhas respostas sem ficar demasiado transtornada.

Eu queria saber mais sobre os planos do Sr. Abelar e daquela outra mulher para mim; portanto, esperando fazer com que Clara contasse tudo, prometi que, dali em diante, eu avaliaria todas as suas respostas com a devida atenção, mas sem pânico nem agitação.

— Está bem. Vamos ver como você vai receber isto — experimentou Clara. — Vou lhe contar o que o nagual lhe disse a seu próprio respeito ontem à noite, antes de você desmaiar. Mas como não sou homem, sem dúvida você vai reagir comigo diferentemente de como reagiu quando o nagual falou com você. Talvez até você me ouça.

— Mas não me lembro de ele ter-me falado alguma coisa depois que adormeci na esteira — protestei.

Ela fez uma pausa e perscrutou meu rosto, imagino que em busca de alguma centelha de reconhecimento. Sacudiu a cabeça, indicando que nada havia encontrado, embora eu tentasse parecer tão calma e atenta quanto possível, chegando até mesmo a sorrir para tranqüilizá-la.

— Ele lhe falou sobre todas as coisas que habitam esta casa — começou Clara. — Contou-lhe que todos são feiticeiros, incluindo Manfred. À menção do nome de Manfred, algo dentro de mim fez um clique.

— Eu sabia — disparei sem pensar. Eu achava a idéia de Manfred ser um feiticeiro perfeitamente crível; no entanto, não tinha a menor idéia de por quê. Disse a Clara que, em algum momento, eu já deveria ter acalentado aquela idéia, embora ainda não soubesse exatamente o que é um feiticeiro.

— Claro que sabe — tranqüilizou-me Clara com um sorriso largo.

— Mas estou lhe dizendo que não sei. Clara fitou-me perplexa.

— Tem certeza de que não se lembra do nagual explicando isso a você?

— Não, realmente não me lembro.

— Um feiticeiro, para nós, é alguém que, através da disciplina e da perseverança, pode romper os limites da percepção natural — explicou Clara com uma expressão formal.

— Bem, isto não toma as coisas mais claras — aleguei. — Como Manfred pode fazer tudo isso? Ela parecia gostar de minha confusão.

— Creio que mais uma vez está havendo um mal-entendido, Taisha. Não estou falando apenas de Manfred. Você ainda não entendeu que todos nós nesta casa somos feiticeiros. Não apenas o nagual, Manfred e eu mesma, mas os outros 14 que você ainda não encontrou. Somos todos feiticeiros, todos seres abstratos. Se você quer considerar a feitiçaria como alguma coisa concreta, envolvendo rituais e poções mágicas, só posso lhe dizer que existem feiticeiros concretos assim, mas você não os encontrará nesta casa.

Evidentemente nós estávamos seguindo linhas de pensamento diferentes. Eu estava falando de Manfred e ela estava falando das pessoas que eu ainda não vira. Só então, depois que ela me revelou diretamente, foi que me ocorreu que Clara, o Sr. Abelar e as outras pessoas indefiníveis, às quais eles sempre aludiam, eram todos feiticeiros. Em vez de fazer mais perguntas, lembrei-me do conselho de Clara e achei melhor permanecer em silêncio.

Ela seguiu explicando que os feiticeiros abstratos buscam a liberdade acentuando sua capacidade de percepção, enquanto os feiticeiros concretos, semelhantes aos tradicionais que viviam no México antigo, buscam o poder e a gratificação pessoal através do aumento da sua vaidade.

— O que há de errado em buscar a gratificação pessoal? — perguntei, bebendo um copo de água na mesa lateral.

— Taisha fica ao lado dos feiticeiros concretos — falou ela com uma expressão preocupada. —Não admira que o nagual tenha lhe dado aqueles dardos de cristal.

Apesar da minha promessa de ficar calma, à simples menção dos cristais, ondas de nervosismo percorreram todo meu corpo. Meu estômago retorceu-se de uma tal maneira que tive certeza de que estava com uma cólica intestinal.

— Para mim é praticamente impossível explicar-lhe o que fazemos e ainda mais difícil por que o fazemos — disse Clara. — Você tem de fazer essas perguntas à sua mestra.

— Minha mestra?

— Você não está me ouvindo, Taisha. Já lhe disse que você tem uma mestra. Você ainda não a conhece porque não dispõe da energia necessária. O encontro com ela requer dez vezes mais energia do que o encontro com o nagual, e você ainda não se recuperou deste encontro. Está esverdeada e lívida.

— Acho que estou doente — falei, sentindo-me novamente tonta. Clara sacudiu a cabeça.

— Você está com um caso grave de indulgência — interpôs ela, antes de prosseguir. — O nagual também pode explicar qualquer coisa que você perguntar. O único problema é que você acha que ele é um homem e, se ele conversar com você durante mais do que uns poucos minutos, pode ter certeza, você vai recair em seu modelo feminino. Por isso sua mestra tem de ser uma mulher.

— Você não está exagerando com essa história de masculino-feminino? — falei — tentando sair da cama.

Sentia-me fraca e minhas pernas tremiam. O quarto começou a girar e quase desmaiei. Clara me agarrou pelo braço na hora H.

— Logo veremos se estou exagerando — disse ela. — Vamos lá para fora sentar à sombra de uma árvore. Talvez o ar puro ajude a reanimá-la. Clara me ajudou a colocar o comprido casaco e as calças e conduziu-me como a uma inválida para fora do quarto até o pátio dos fundos.

Sentamo-nos em esteiras de palha, debaixo da enorme árvore que dava sombra para quase todo o pátio. Certa vez, eu havia perguntado a Clara se podia comer os frutos da árvore. Ela me fez calar e falou:

— Coma, mas não fale sobre isso. — Fiz o que ela me disse, mas desde então senti-me culpada, como se houvesse insultado a árvore.

Permanecemos sentadas em silêncio, ouvindo o vento sacudir as folhas. Estava fresco e tranqüilo ali fora, e senti-me relaxada e à vontade de novo. Algum tempo depois, Manfred surgiu da lateral da casa, onde ele tinha um quarto com uma porta de vaivém, para que pudesse entrar e sair quando quisesse. Ele veio até mim e pôs-se a lamber minha mão. Contemplei seus olhos sentimentais e percebi que éramos muito amigos. Como se recebendo um convite silencioso, ele se acomodou em meu colo confortavelmente. Acariciei seu pêlo sedoso e macio e senti o mais profundo afeto por ele. Tomada de inexplicável compaixão, inclinei­me e abracei-o. Quando me dei conta, eu estava chorando, pois sentia muita pena dele.

— Onde estão seus cristais? — exigiu Clara. Seu tom de voz áspero trouxe-me de volta à realidade.

— Em meu quarto — respondi, soltando Manfred para enxugar meus olhos na manga de meu casaco.

Ele percebeu o olhar insistente e desaprovador de Clara, saltou do meu colo e foi sentar-se em uma árvore próxima.

— Você deve tê-los consigo em todos os momentos — fuzilou ela. —Como já sabe, armas como aqueles cristais não têm nenhuma relação com a guerra ou a paz. Você pode ser tão pacífica e amorosa; quanto quiser e, mesmo assim, precisar de armas. Na verdade, você está precisando delas neste momento, para combater seus inimigos?

— Eu não tenho inimigos, Clara — funguei. — Ninguém" sequer sabe

que estou viva. Clara inclinou-se em minha direção.

— O nagual lhe deu aqueles cristais para ajudá-la a destruir seus inimigos

— falou ela suavemente. — Se estivesse com eles agora, você poderia utilizá-los em seus passes de feitiçaria e isto iria ajudá-la a dissipar sua autopiedade importuna.

— Eu não estava com pena de mim mesma, Clara — justifiquei, defensiva.

— Estava com pena do pobre Manfred. — Clara riu e sacudiu a cabeça.

— Não há razão para sentir pena do pobre Manfred. Não importa em que forma ele está, ele é um guerreiro. Por outro lado, a autopiedade está dentro de você e expressa-se de diferentes maneiras. Neste momento você a está chamando de "pena de Manfred".

Meus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez porque, juntamente com minha insegurança, eu de fato possuía um poço sem fundo de pena centrada totalmente em mim mesma. Eu já realizara recapitulação suficiente para perceber que eu havia aprendido essa reação com minha mãe, que sentira pena de si mesma todos os dias de sua vida. Como eu nunca conheci qualquer outra expressão pessoal em minha mãe, foi assim que aprendi a sentir-me.

— Você deve segurar as armas de cristal entre seus dedos e fazer seus passes de feitiçaria no âmago de seus inimigos impalpáveis, tais como a vaidade, que se oculta em você sob a forma de autopiedade, indignação moral ou tristeza cheia de razões — prosseguiu Clara.

Olhei para ela consternada. Clara continuou acusando-me de fraca, de sucumbir à menor pressão. Entretanto, o que mais doeu foi quando ela me disse que meus meses de recapitulação não tinham sentido; não passavam de devaneios superficiais, pois tudo que eu fizera fora entregar-me a reminiscências nostálgicas de minha personalidade maravilhosa ou mergulhar na autopiedade, recordando meus momentos não tão maravilhosos.

Eu não conseguia entender por que ela estava me atacando tão ferozmente. Meus ouvidos zumbiam e senti uma onda de fúria. Comecei a chorar incontrolavelmente, odiando-me por ter dado a Clara a oportunidade de destruir­me emocionalmente. Ouvia suas palavras como se viessem de muito longe. Ela dizia:

— ...presunção, falta de objetivo, ambição desmedida, sensualidade reprimida, covardia; a lista dos inimigos que tentam impedir seu vôo para a liberdade é interminável e você deve combatê-los incansavelmente.

Ela pediu que eu me acalmasse. Explicou que estava apenas tentando mostrar-me que nossas atitudes e sentimentos eram nossos verdadeiros inimigos, tão nocivos e perigosos quanto qualquer bandido armado até os dentes que poderíamos encontrar na estrada.

— O nagual lhe deu aqueles cristais para concentrar sua energia — disse ela. — Eles são extraordinários para concentrar nossa atenção e fixá-la. É uma qualidade dos cristais de quartzo em geral e a intenção específica desses cristais em particular. Para conseguir isto, tudo que você tem de fazer é realizar seus passes de feitiçaria com eles.

Quem me dera estar com os cristais naquele momento; em vez disto, contemplei os olhos brilhantes e compassivos de Manfred. Ocorreu-me a idéia de que eles refletiam a luz assim como os cristais de quartzo. Por um instante, seus olhos sustentaram meu olhar e, contemplando-os, uma certeza irracional aflorou em minha mente. Soube que Manfred era um feiticeiro da tradição antiga, o espírito de um feiticeiro que de alguma maneira ficara aprisionado no corpo de um cão. No instante em que me ocorreu essa idéia, Manfred soltou um latido agudo, como se confirmando.

Fiquei pensando também se não fora Manfred que havia encontrado os cristais para mim na caverna, ou que conduzira o nagual até eles, da mesma maneira como ele me havia conduzido até meu mirante predileto nas colinas, de onde se viam a casa e os terrenos.

— Certa vez você me perguntou como era possível que eu soubesse tanto a respeito dos cristais — disse Clara, interrompendo minhas especulações. — Na época não lhe pude dizer, porque você ainda não havia encontrado o nagual. Mas agora que você já foi apresentada a ele, posso lhe dizer que... — Ela respirou profundamente e inclinou-se em minha direção. — ...nós somos feiticeiros da mesma tradição dos feiticeiros da Antiguidade. Herdamos todos os seus rituais e encantamentos esotéricos, mas, embora saibamos usá-los, não estamos interessados em fazê-los funcionar.

— Manfred é um antigo feiticeiro! — exclamei, genuinamente surpresa, mas esquecendo-me de que não havia contado a Clara minhas especulações mentais.

Clara fitou-me como se estivesse questionando minha sanidade e, por fim, desatou a rir tanto que a conversa foi interrompida. Ouvi Manfred latindo como se também estivesse rindo. E o mais estranho é que eu poderia jurar que ou a risada de Clara estava produzindo um eco ou havia alguém escondido a um canto da casa e que também estava rindo.

Senti-me uma completa imbecil. Clara não quis ouvir os detalhes acerca da reflexão da luz nos olhos de Manfred.

— Eu lhe disse que você é lenta e não é tão inteligente como pensa, e você não acreditou em mim — censurou-me. — Mas não se preocupe, nenhum de nós é tão inteligente quanto pensa. Somos todos macacos arrogantes, obtusos e estúpidos.

Ela me deu uma pancadinha na cabeça à guisa de demonstração. Não me agradava ser chamada de macaco estúpido, mas eu ainda estava tão empolgada com minha descoberta que deixei passar a observação.

— O nagual tem inúmeras outras razões para lhe dar aqueles cristais — continuou Clara —, mas ele terá de explicá-las pessoalmente a você. A única coisa que sei, com certeza, é que você terá de fazer uma bolsinha para eles.

— Que tipo de bolsinha?

— Um revestimento feito com qualquer material que considerar adequado. Pode usar camurça, feltro, algum tecido acolchoado ou mesmo madeira, se quiser.

— Que tipo de bolsinha você fez para os seus, Clara?

— Eu não tenho cristais — disse ela —, mas eu os utilizei uma vez, na juventude.

— Você fala como se fosse velha. Quanto mais vejo você, mais jovem você parece.

— É porque faço muitos passes de feitiçaria para criar essa ilusão — replicou ela, rindo com espontaneidade infantil. — Os feiticeiros criam ilusões. Veja só o Manfred.

À menção de seu nome, Manfred mostrou a cabeça por detrás da árvore e olhou-nos atentamente. Tive a estranha impressão de que ele sabia que estávamos falando dele e não queria perder uma só palavra.

— O que tem o Manfred? — perguntei, falando mais baixo automaticamente.

— Qualquer um poderia jurar que ele é um cachorro — sussurrou Clara.

— Mas trata-se de seu poder de criar uma ilusão. — Ela me cutucou e lançou-me uma piscadela cúmplice. — Está vendo, Taisha, você está absolutamente certa. Manfred não é um cachorro.

Não sei dizer se ela estava me persuadindo a concordar com ela por causa de Manfred, pois agora ele estava sentado sem a menor dúvida ouvindo cada palavra que dizíamos, ou se ela realmente estava querendo dizer que Manfred não era um cão. Antes que eu pudesse descobrir do que se tratava, um som estridente no interior da casa fez com que Clara e Manfred se levantassem de um salto e corressem naquela direção. Fiz menção de segui-los, mas Clara virou-se e ordenou rispidamente:

— Fique onde está. Voltarei em um instante.

Ela correu para a casa com Manfred em seus calcanhares.

Passaram-se semanas, depois meses. Eu não estava realmente prestando atenção nas datas e no passar do tempo. Manfred e eu vivíamos em perfeita harmonia. Clara deixara de insultar-me, ou talvez eu tivesse parado de me sentir insultada. Todo meu tempo era dedicado à recapitulação e à prática do kung fu com Clara e Manfred, que, com seus 50 quilos de ossos e músculos, constituía um adversário extremamente perigoso. Eu estava certa de que uma cabeçada sua equivalia a um murro de um boxeador.

Uma coisa que me preocupava era a contradição que me parecia difícil de resolver. Embora Clara afirmasse que minha energia indubitavelmente se encontrava em ampliação, pois agora eu podia manter diálogos com Manfred, eu acreditava justamente no contrário: pouco a pouco, eu estava atravessando a extremidade mais profunda.

Sempre que Manfred e eu estávamos sozinhos, um elo de indescritível afeição tomava conta de mim. Eu realmente adorava Manfred. E este sentimento de amor cego criou uma ponte entre nós, de modo que às vezes ele conseguia transmitir seus pensamentos e sentimentos para mim. Eu sabia que os sentimentos de Manfred eram simples e diretos como os de uma criança. Ele sentia felicidade, mal-estar, orgulho de qualquer realização e medo de tudo, que instantaneamente se transformava em cólera. Mas as características de Manfred que eu considerava mais admiráveis eram sua coragem e seu potencial para a compaixão. Eu sentia que ele realmente lamentava que Clara parecesse um sapo. No que se refere à coragem, Manfred era inigualável. Possuía a coragem de uma consciência evoluída com a percepção de sua prisão. A meu ver, Manfred era incompreensivelmente solitário. E ninguém pode suportar essa solidão imposta, como ele o fazia, sem possuir uma coragem incomparável.

Uma tarde, ao retornar da caverna, sentei-me para repousar à sombra da árvore. Manfred aproximou-se, deitou sobre minhas pernas e imediatamente adormeceu. Seus roncos e o peso cálido de seu corpo em meu colo deixaram-me sonolenta. Devo ter adormecido, pois, repentinamente, despertei de um sonho no qual eu estava discutindo com minha mãe acerca das vantagens de não guardar os talheres depois de lavá-los. O Sr. Abelar encarava-me com seus olhos frios e profundos. Seu olhar, a postura de seu corpo, seus traços extremamente marcados e sua concentração deram-me a impressão geral de que ele era uma águia. Ele me encheu de admiração e medo.

— O que aconteceu? — perguntei. A temperatura e a luminosidade haviam mudado. Já era quase noite; as sombras do entardecer haviam caído sobre o pátio.

— O que aconteceu é que Manfred tomou conta de você e está usando sua energia como um demônio — falou ele com um largo sorriso. — Ele fez o mesmo comigo. Parece haver uma verdadeira comunicação entre vocês dois. Tente chamá-lo de sapito e vamos ver se ele ficará furioso.

— Não, não posso fazer isso — falei, acariciando a cabeça de Manfred. — Ele é lindo e solitário, e não lembra em nada um s-a-p-o. Achei um absurdo ter realmente soletrado a palavra, mas algo em mim não queria arriscar-se a ofender Manfred.

— Os sapos também são lindos e solitários — alegou o Sr. Abelar, os olhos brilhantes.

Compelida por repentina curiosidade, inclinei-me para Manfred e sussurrei em seu ouvido — Sapito — irradiando apenas os melhores sentimentos. Manfred bocejou, como se estivesse entediado com minha empatia.

O Sr. Abelar riu.

— Vamos entrar na casa — disse — antes que Manfred esgote toda a sua energia. Além do mais, aqui está mais quente.

Retirei Manfred de meu colo e segui o Sr. Abelar até o interior da casa. Sentei-me muito formalmente na sala, completamente constrangida por estar sozinha com um homem em uma casa vazia e escura. Ele acendeu o lampião, sentou-se no sofá, a uma distância respeitável, e falou:

— Compreendo que você queira me fazer algumas perguntas. Este é um bom momento, portanto, vá em frente e pergunte.

Por um instante fez-se um branco em minha mente. Defrontar-me tão diretamente com seu olhar intenso me fez perder a serenidade. Finalmente, perguntei:

— O que aconteceu comigo na noite em que o conheci, Sr. Abelar? Clara não se achou capaz de explicar-me adequadamente, e não me lembro de muita coisa daquela noite.

— Seu duplo assumiu o comando — falou ele de maneira prosaica. — E você perdeu o controle de sua personalidade cotidiana.

— O que quer dizer com perdi o controle ? — indaguei, apreensiva. — Fiz alguma coisa que não devia?

— Nada que você não pudesse contar a sua mãe. — Ele soltou uma risadinha. Seus olhos brilhavam, maliciosos. — Sério, Taisha, tudo que você fez foi lançar sua rede luminosa o mais longe que foi capaz. Você aprendeu a repousar naquela rede invisível, que na verdade é parte de você. Algum dia, quando tiver maiores conhecimentos, você poderá começar a usar essas linhas para mover e alertar as coisas.

— O duplo fica dentro ou fora do corpo físico? — perguntei. — Naquela noite, pareceu-me que, por um instante, alguma coisa nitidamente externa a mim havia assumido o comando.

— Dentro e fora — respondeu o Sr. Abelar. — Situa-se ao mesmo tempo dentro e fora do corpo físico. Como poderei explicar? Para comandá-lo, a parte externa que flutua livremente precisa estar ligada à energia armazenada no interior do corpo físico. A força externa é convocada e mantida por uma concentração inalterável, enquanto a energia interna é liberada com a abertura de alguns portais misteriosos dentro e fora do corpo. Quando os dois lados se fundem, a força que é produzida permite a realização de feitos inconcebíveis.

— Onde ficam esses portais misteriosos de que você está falando? — perguntei, incapaz de encará-lo diretamente.

— Alguns situam-se próximos à pele, outros nas profundezas do corpo — replicou o Sr. Abelar. — Existem sete portais principais. Quando estão fechados, nossa energia interna permanece retida no interior do corpo físico. A presença do duplo dentro de nós é tão sutil que podemos passar a vida inteira sem sequer tomarmos conhecimento de sua existência. Contudo, se alguém quiser liberá-lo, os portais deverão ser abertos, o que é feito por meio da recapitulação e dos exercícios respiratórios que Clara lhe ensinou.

O Sr. Abelar prometeu que ele mesmo me levaria a abrir deliberadamente o primeiro portal, depois que eu realizasse com sucesso o vôo abstrato. Enfatizou que para abrir os portais é necessária uma completa mudança de atitude, pois nossa idéia preconcebida de que somos sólidos mantém o duplo aprisionado, e não alguma estrutura física do corpo em si.

— Você não poderia descrever a localização dos portais, para que eu mesma possa abri-los? Ele olhou para mim e sacudiu a cabeça.

— Manipular fortuitamente o poder que existe além dos portais é uma tolice e um perigo — alertou-me. — O duplo deve liberado gradativa e harmoniosamente. Contudo, um dos pré-requisitos é o celibato.

— Por que o celibato é importante? — indaguei.

— Clara não lhe falou dos vermes luminosos deixados homem no interior do corpo da mulher?

— Falou — aquiesci, constrangida e pouco à vontade. — devo confessar que não acreditei realmente nela.

— Foi um erro — retorquiu ele, contrariado. — Pois, sem uma recapitulação completa em primeiro lugar, você estaria literalmente abrindo uma lata de vermes. E fazer sexo só colocaria mais lenha na fogueira. — Ele soltou uma boa gargalhada, fazendo com que eu me sentisse ridícula. — Falando sério, o armazenamento da energia sexual constitui o primeiro passo da jornada rumo ao corpo etérico, à consciência e à liberdade total.

Neste momento Clara entrou na sala, vestindo um cafetã branco esvoaçante que a fazia parecer um enorme sapo. Tentei conter o riso provocado por uma idéia tão irreverente e imediatamente lancei um olhar para o Sr. Abelar, que, eu poderia jurar, estava pensando a mesma coisa. Clara sentou-se na poltrona e sorriu para nós dois, constrangidos, no sofá.

— Você já tocou no assunto dos portais? — perguntou ela ao Sr. Abelar.

— Será por isso que as pernas de Taisha estão fechadas com tanta força? O Sr. Abelar assentiu com a cabeça, completamente sério.

— Eu já ia falar sobre a existência de um enorme portal nos órgãos sexuais. Mas não creio que ela esteja entendendo do que estou falando. Ela ainda tem algumas concepções errôneas nesta área.

— Sem dúvida — concordou Clara, com uma piscadela em minha direção.

Os dois explodiram em gargalhadas ao mesmo tempo, deixando-me totalmente desorientada. Ofendi-me porque estavam rindo e falando de mim como se eu não estivesse na sala. Já ia dizer-lhes que eles não me compreendiam, quando Clara voltou a falar, dessa vez dirigindo-se a mim.

— Você entende por que estamos lhe recomendando o celibato? — perguntou ela.

— Para realizar a jornada rumo à liberdade — repeti as palavras do Sr. Abelar.

Audaciosamente, perguntei a Clara se ela e o Sr. Abelar eram celibatários ou se estavam apenas recomendando um comportamento que eles mesmos não estavam preparados para praticar.

— Já lhe disse que não somos marido e mulher — replicou Clara, nem um pouco perturbada. — Somos feiticeiros interessados em poder, em concentrar energia, e não em perdê-la.

Voltei-me para o Sr. Abelar e perguntei se ele era realmente feiticeiro e o que isso significava. Ele não me deu resposta, mas olhou para Clara, como se pedindo permissão para divulgar alguma coisa. Clara fez que sim com um movimento de cabeça quase imperceptível.

— Não me sinto à vontade com a palavra "feiticeiro" — disse ele —, pois tem uma conotação de crenças e ações que não são parte do que fazemos.

— O que exatamente vocês fazem? — inquiri. — Clara disse que só você poderia me contar.

O Sr. Abelar empertigou-se e lançou-me um olhar assustador que me fez prestar atenção.

— Somos um grupo de 16 pessoas, incluindo eu mesmo, e um ser: Manfred — começou ele, formalmente. — Dez dos componentes são mulheres. Todos nós fazemos a mesma coisa: dedicamos nossas vidas a desenvolver nosso duplo. Utilizamos nossos corpos etéricos e desafiamos inúmeras leis naturais do mundo físico. Ora, se isto é ser um feiticeiro, então todos nós somos feiticeiros. Se isto não é ser feiticeiro, então não somos. Assim as coisas ficam mais claras?

— Já que você está me ensinando o que é o duplo, eu também vou ser uma feiticeira? — perguntei.

— Não sei — replicou, perscrutando-me com curiosidade. — Tudo depende de você. Sempre depende de cada um de nós individualmente cumprir ou malograr nosso destino.

— Mas Clara disse que todos estão nesta casa por uma razão. Por que fui escolhida? — insisti. — Por que exatamente eu?

— Eis uma questão de difícil resposta — disse o Sr. Abelar, sorrindo. — Digamos que somos forçados a incluí-la. Lembra-se daquela noite, há cerca de cinco anos, em que você se viu em uma situação comprometedora com um rapaz?

Imediatamente comecei a espirrar, minha reação habitual quando me sentia ameaçada. Durante minha recapitulação, eu havia lembrado repetidamente de situações comprometedoras. Desde os 14 anos, eu tivera obsessão por meninos e correra atrás deles agressivamente, como correra atrás de meus irmãos na infância. Eu queria desesperadamente ser amada por alguém, pois sabia que minha família não gostava de mim. Entretanto, eu acabava sempre assustando meus supostos pretendentes antes que eles pudessem se aproximar demais. Minha impetuosidade fazia todos pensarem que eu era uma jovem promíscua, capaz de qualquer coisa. Conseqüentemente, eu tinha a pior reputação que se possa imaginar, apesar de jamais ter feito metade das coisas que meus amigos e minha família atribuíam a mim.

— Você foi agarrada no balcão do bar em que trabalhava, no quiosque de um drive-in na Califórnia. Lembra-se? — disse o Sr. Abelar.

Como eu poderia esquecer? Sem dúvida aquela fora uma das piores experiências da minha vida. E, por ser tão difícil, eu havia protelado a recapitulação profunda, permanecendo sempre no limiar da lembrança. Naquela época, eu trabalhava nas férias de verão da escola vendendo cachorros-quentes e refrigerantes em um drive-in. Quando o verão já chegava ao fim, Kenny, o gerente, disse que me amava. Até aquele momento, eu me mostrara indiferente a ele, pois estava de olho no patrão, bonito e rico. Infelizmente, ele estava interessado em Rita, minha nêmesis ruiva, que tinha 19 anos e era linda. Todas as noites, tão logo o filme tinha início, ela deslizava sorrateiramente para o escritório do patrão e fechava a porta. Quando ela saía, pouco antes do intervalo, seu uniforme xadrez rosa e branco estava amassado e seus cabelos, emaranhados e despenteados. Eu invejava intensamente toda a atenção que Rita estava recebendo. E, o que piorou as coisas, ela foi promovida e transferiu-se para a caixa registradora, enquanto eu tive de continuar a servir pipocas e refrigerantes no balcão.

Quando Kenny me disse que eu era linda e desejável, comecei a olhá-lo de maneira diferente. Tolerei o fato de que ele tinha acne, bebia cerveja na garrafa, ouvia música caipira, usava botas e falava com um forte sotaque texano. De súbito achei-o másculo e afetuoso, e tudo que me importava era que seus pais eram católicos e não sabiam que ele fumava marijuana. Eu estava começando a me apaixonar por ele, e não queria que detalhes pessoais atrapalhassem.

Quando lhe contei que eu teria de parar de trabalhar no final da semana, porque minha família ia passar as férias na Alemanha e eu tinha de ir com eles, Kenny ficou furioso. Acusou meus pais de tentar deliberadamente separar-nos. Tomou minha mão e jurou que não podia viver sem mim. Propôs-me casamento, mas eu ainda nem completara 16 anos, portanto disse-lhe que teríamos de esperar. Ele me abraçou apaixonadamente e disse que pelo menos tínhamos de fazer sexo. Eu não entendi se ele estava querendo dizer antes de minha partida para a Alemanha ou naquele momento, mas concordei inteiramente com ele e achei melhor que fosse naquele momento. Tínhamos cerca de 20 minutos até o filme terminar; assim, retirei os pãezinhos de cima da mesa e comecei a tirar minhas roupas.

Ele estava assustado. Tremia como um menino, embora tivesse 22 anos. Nós nos abraçamos e beijamos, mas, antes que pudesse acontecer algo mais, fomos interrompidos por um velho que irrompeu bruscamente na sala. Ao ver­nos em situação tão comprometedora, ele agarrou uma vassoura, me deu uma pancada nas costas com a palha e perseguiu-me, parcialmente despida, até o salão de entrada, onde fui vista por todas as pessoas que estavam na lanchonete. Todos caíram na gargalhada e zombaram de mim. E, o pior de tudo, reconheci dois professores da escola. Eles ficaram tão chocados ao ver-me quanto eu ao vê-los. Um dos professores relatou o incidente ao diretor, que por sua vez informou meus pais. Quando os mexericos chegaram ao fim, eu me tornei alvo de chacota da escola. Durante anos odiei aquele velho horrível que se atribuíra o papel de juiz da minha moral. Pensei que ele realmente destruíra minha vida, pois nunca mais me deixaram rever Kenny.

— Eu era esse homem — disse o Sr. Abelar, como se estivesse acompanhando meus pensamentos.

Naquele momento, todo o impacto da lembrança de minha humilhação pública atingiu-me. E ter o responsável por tudo bem na minha frente era mais do que eu poderia suportar. Comecei a chorar de pura frustração. O pior era que o Sr. Abelar não parecia lamentar realmente o que tinha feito.

— Tenho procurado por você desde aquela noite — disse o Sr. Abelar, com um sorriso largo e malicioso.

Percebi todo tipo de nuances sexuais excêntricas em seu olhar e em suas palavras. Meu coração estava prestes a explodir de ódio e medo. Então soube que Clara me trouxera para o México por razões funestas, ditadas por alguma maquinação secreta que os dois haviam tramado desde o começo, incluindo sexo anômalo em profusão. Nem por um instante acreditei na alegação de celibato.

— O que pretendem fazer comigo? — perguntei, a voz vacilante de medo.

Clara fitou-me intrigada e em seguida desatou a rir, como se tivesse entendido tudo que estivera passando pela minha mente. O Sr. Abelar fez a mesma pergunta a Clara, imitando minha voz vacilante.

— O que pretendem fazer comigo? — E juntou-se a Clara com sua risada sonora, que ecoou pela casa. Ouvi os uivos de Manfred em seu quarto; ele também parecia estar rindo. Eu estava me sentindo mais do que infeliz: estava arrasada. Levantei-me para ir embora, mas o Sr. Abelar empurrou-me de volta para o sofá.

— Vergonha e vaidade são companheiras terríveis — falou com seriedade. — Você não recapitulou esse incidente, caso contrário não estaria neste estado agora.—Então, suavizando seu olhar feroz até quase transformá-lo em um olhar de bondade, ele acrescentou: — Clara e eu não queremos lhe fazer nada. Você já fez mais do que o suficiente a si própria. Naquela noite eu estava procurando o banheiro e abri a porta de empregados por engano. Como um nagual jamais comete um erro negligente como esse, porquanto sempre está consciente do que faz, tive de supor que eu estava destinado a encontrar você e que você tinha um significado especial para mim. Vendo-a ali, semidesnuda, prestes a entregar-se a um homem fraco que poderia ter destruído sua vida, agi de maneira muito específica e bati em você com a vassoura.

— O que você conseguiu foi transformar-me em alvo de risos de minha família e de meus amigos — gritei.

— Talvez. Mas eu também agarrei seu corpo etérico e amarrei uma linha energética em torno dele — disse ele. — A partir daquele dia, eu sempre sabia onde você estava; no entanto, demorei cinco anos para tê-la em posição de ouvir o que tenho a dizer.

Pela primeira vez, o que ele estava; dizendo foi registrado. Olhei-o incrédula. — Você está querendo dizer que sabia onde eu estava o tempo todo? — perguntei.

— Tenho acompanhado cada passo seu — anunciou ele com firmeza.

— Está querendo dizer que esteve me espionando? — As implicações do que ele estava afirmando lentamente afloravam à superfície.

— Sim, de certo modo — admitiu.

— Clara também sabia que eu morava no Arizona?

— Naturalmente. Todos sabíamos onde você estava.

— Então não foi por acaso que Clara me encontrou no deserto naquele dia

— falei, a voz entrecortada. Voltei-me para Clara, furiosa: — Você sabia que eu estava lá, não é? Clara assentiu.

— Admito que sim. Você ia àquele local com tanta regularidade que não foi difícil segui-la.

— Mas você me falou que havia acabado de chegar ali — gritei. — Você mentiu para mim; convenceu-me a vir para o México com você. E tem mentido para mim desde então, rindo às minhas costas, sabe Deus por que razão. — Todas as minhas dúvidas e desconfianças, que não haviam sido expressas durante meses, finalmente afloraram e explodiram. — Tudo não passou de uma brincadeira para você — bradei —, para ver como sou idiota e ingênua.

O Sr. Abelar lançou-me um olhar feroz, o que não me impediu de encará­lo da mesma maneira. Ele deu um tapinha na minha cabeça para tranqüilizar-me.

— Você está totalmente errada, senhorita — falou com severidade. — Tudo isto não tem sido uma brincadeira para nós. É verdade que rimos bastante de suas idiotices, mas nenhum de nossos atos é mentira ou truque. Eles são profundamente sérios; na verdade, são uma questão de vida ou morte para nós.

Ele estava tão sério e tão cheio de autoridade que grande parte de minha raiva se dissipou, deixando em seu lugar uma grande perplexidade.

— O que Clara queria comigo? — perguntei, olhando para o Sr. Abelar.

— Confiei a Clara a mais delicada das missões: trazê-la para casa — explicou ele. — E ela conseguiu. Você a seguiu, obedecendo seu próprio impulso interior. É extremamente difícil fazê-la aceitar um convite de alguém, mas, de uma completa estranha, é praticamente impossível. No entanto, ela conseguiu. Foi uma proeza magistral! Só posso sentir admiração e externar elogios para um trabalho tão bem-feito.

Clara pôs-se de pé e fez uma reverência graciosa.

— Deixando as brincadeiras de lado — disse ela, assumindo uma expressão solene e sentando-se novamente —, o nagual tem razão: foi a coisa mais difícil que fiz na minha vida. Por um momento, naquela ocasião, pensei que você ia permitir que sua natureza desconfiada levasse a melhor e que você me mandaria dar o fora. Precisei inclusive mentir e dizer-lhe que tenho um nome budista secreto.

— Você não tem?

— Não. Meu anseio pela liberdade queimou todos os segredos dentro de mim.

— Mas ainda não entendi como Clara soube onde encontrar-me — insisti, olhando para o Sr. Abelar. — Como ela sabia que eu estava no Arizona naquela época específica?

— Por meio de seu duplo — replicou o Sr. Abelar, como se fosse a coisa mais óbvia.

Tão logo ele pronunciou essas palavras, minha mente desanuviou-se e compreendi exatamente o que ele estava querendo dizer. De fato, eu sabia ser essa a única maneira possível de não me perderem de vista.

— Atei uma linha energética em seu corpo etérico na noite em que entrei precipitadamente no drive-in — explicou ele. — Como o duplo é composto de pura energia, não é tão difícil marcá-lo. Eu senti, dadas as [1]circunstâncias de nosso encontro, que isso era o mínimo que eu poderia fazer por você. Como uma forma de proteção.

O Sr. Abelar fitou-me, esperando que eu fizesse outra pergunta. Mas minha mente estava entretida, tentando recordar mais detalhes do que havia acontecido naquela noite em que ele entrara desaba-lado naquela sala.

— Você não vai perguntar como eu a marquei? — disse ele, os olhos cravados em mim.

Um estampido soou em meus ouvidos, a sala tornou-se energizada e tudo ficou claro. Eu não precisava perguntar ao Sr. Abelar como ele tinha feito aquilo, pois eu já sabia.

— Você me marcou quando me atingiu com a vassoura! — exclamei. Estava perfeitamente claro, mas, quando eu pensava nisso, não fazia sentido algum, pois não explicava nada.

O Sr. Abelar assentiu, satisfeito porque eu mesma havia chegado àquela compreensão.

— Exatamente. Eu marquei você quando acertei a parte superior de suas costas com a vassoura, perseguindo-a porta afora. Deixei uma energia específica em seu interior. E essa energia está alojada em você desde aquela noite.

Clara aproximou-se e esquadrinhou-me minuciosamente.

— Você não percebeu, Taisha, que seu ombro esquerdo é mais. alto do que o direito?

Eu já havia percebido que uma de minhas omoplatas era mais saltada do que a outra, deixando meu pescoço e ombros tensos.

— Achei que tinha nascido assim — falei.

— Ninguém nasce com a marca do nagual — riu Clara. — A energia do nagual está alojada por trás de sua omoplata esquerda Pense nisso; seus ombros desalinharam-se depois que o nagual; bateu em você com a vassoura.

Tive de admitir que fora aproximadamente na época de meu trabalho de verão no drive-in que minha mãe havia percebido pela primeira vez que havia algum problema nas minhas costas. Ela, experimentava um vestido que estava costurando para mim percebeu que ele não caía bem. Ficou espantada ao descobrir quê a falha não era do vestido, mas de minhas omoplatas; uma era definitivamente mais protuberante do que a outra. No dia seguinte, ela pediu ao médico da família para examinar minhas costas; ele concluiu que minha coluna era ligeiramente curvada para um lado. —Diagnosticou meu problema como escoliose congênita, mas garantiu a minha mãe que a curvatura era tão pequena que não deveríamos nos preocupar com ela.

— Que bom que o nagual não deixou energia demais em você —brincou Clara —, senão você estaria corcunda.

Voltei-me para o Sr. Abelar. Sentia os músculos de minha costas tensos, como costumavam ficar quando eu estava nervosa.

— Agora que me enrolou, quais são suas intenções? — perguntei.

O Sr. Abelar aproximou-se um passo. Fixou seus olhos frios em mim.

— Tudo que quis, desde o dia em que a encontrei, foi fazer a mesma coisa que fiz por você naquela noite — replicou ele solenemente —, abrir a porta e persegui-la Desta vez, quero abrir a porta do mundo cotidiano e persegui-la até a liberdade.

Suas palavras e o tom de sua voz deflagraram uma abundância de sentimentos. Porquanto, até onde conseguia me lembrar, eu sempre estivera procurando, olhando pelas janelas, perscrutando as ruas, como se algo ou alguém estivesse na esquina esperando por mim. Sempre tivera premonições, sonhos de fuga, embora não soubesse o porquê. Foi este sentimento que me compeliu a seguir Clara para um destino desconhecido. E foi também o que me impediu de partir, não obstante a impossibilidade de minhas tarefas. Sustentando o olhar do Sr. Abelar, fui tomada por uma onda de bem-estar indescritível. Percebi que finalmente havia encontrado o que estivera procurando. Seguindo um impulso da mais pura afeição, inclinei-me e beijei-lhe a mão. E das profundezas ignoradas de meu ser, saiu um murmúrio sem qualquer significado racional, mas tão-somente emocional.

— Você é o nagual para mim também — afirmei.

Os olhos do nagual brilhavam; ele estava feliz porque finalmente havíamos chegado a um acordo. Ele despenteou meus cabelos com um gesto afetuoso, e todos os meus temores e frustrações acumulados explodiram em uma torrente de lágrimas angustiadas.

Clara levantou-se e estendeu-me um lenço.

— A única maneira de tirá-la dessa tristeza é deixá-la irritada ou fazê-la pensar — disse ela — Vou fazer as duas coisas dizendo-lhe o seguinte: não apenas eu sabia onde encontrá-la no deserto, mas você se lembra daquele apartamentinho quente e abafado, do qual você me pediu para retirar suas coisas? Bem, meu primo é o proprietário do prédio.

Olhei para Clara, estarrecida, incapaz de balbuciar uma palavra sequer. A risada de Clara e do Sr. Abelar pareceu uma explosão gigantesca, reverberando dentro da minha cabeça. Eu não poderia ter ficado mais surpresa com qualquer coisa que eles tivessem dito ou revelado. Saindo de meu entorpecimento inicial, em vez de ficar furiosa por ter sido manipulada, senti-me tomada de profunda reverência, ante a incrível precisão de seus atos e da amplitude do controle de Clara e do nagual, controle este que finalmente percebi não significar um controle sobre mim, mas sobre eles mesmos.

 

Um dia, vários meses depois de conhecer o Sr. Abelar, em vez de enviar­me à caverna para recapitular, Clara pediu-me para fazer-lhe companhia enquanto ela trabalhava no pátio. Junto à horta, para além do pátio nos fundos da casa, observei Clara arrumar meticulosamente folhas em um pilha. No alto da pilha, ela dispôs cuidadosamente algumas folhas marrons secas em forma elíptica.

— O que você está fazendo? — perguntei, aproximando-me para olhar melhor.

Eu estava me sentindo tensa e melancólica, pois havia passado a manhã inteira na caverna recapitulando as lembranças de meu pai. Eu sempre pensara nele como um ogro arrogante e pretensioso. Perceber que na verdade ele era um homem triste e derrotado, alquebrado pela guerra e tendo suas ambições frustradas me havia deixado emocionalmente esgotada.

— Estou fazendo um ninho para você se sentar — respondeu Clara. —Você deve chocar como uma galinha choca um ovo. Quero que esteja descansada, pois talvez tenhamos uma visita hoje à tarde.

— E quem é? — indaguei casualmente.

Há meses Clara prometia apresentar-me aos outros membros do grupo do nagual — seus parentes misteriosos que finalmente haviam retornado da índia — mas nunca o fizera. Todas as vezes que eu demonstrara o desejo de conhecê-los, ela sempre dissera que em primeiro lugar eu precisava me purificar com uma recapitulação mais completa, pois em meu estado atual eu não estava pronta para conhecer ninguém. Eu acreditei nela. Quanto mais examinava as recordações de meu passado mais eu sentia necessidade de purificação.

— Você não respondeu a minha pergunta, Clara — insisti, mal-humorada.

— Quem vai chegar?

— Não interessa quem é — disse ela, estendendo-me um punhado de folhas secas cor de cobre. — Coloque essas folhas no seu umbigo e amarre-as com sua faixa de recapitulação.

— Deixei minha faixa na caverna — expliquei.

— Espero que você a esteja usando adequadamente — comentou ela. — A faixa nos sustenta enquanto recapitulamos. Você deve envolver seu estômago com ela e amarrar uma ponta à estaca que eu coloquei no chão da caverna. Desse modo, você não cairá e baterá com a cabeça se cochilar ou se o seu duplo decidir acordar.

— Devo ir buscá-la?

Ela fez um ruído com a língua, exasperada.

— Não, não temos tempo. Nosso visitante deve chegar a qualquer momento e quero que você esteja relaxada e na melhor forma. Pode usar minha faixa.

Clara correu até o interior da casa e voltou logo depois com uma faixa de tecido cor de açafrão. Era realmente lindo. Havia um desenho quase imperceptível e, à luz do sol, a faixa de seda reluzia, passando do tom dourado­escuro para o âmbar suave.

— Se alguma parte de seu corpo estiver machucada ou dolorida, envolva esta faixa em torno dela — explicou Clara. — Isto irá ajudá-la a recuperar-se. Essa faixa possui algum poder, pois fiz anos de recapitulação com ela. Um dia você poderá dizer o mesmo sobre sua faixa.

— Por que você não pode me dizer quem vem nos visitar? — pressionei.

— Você sabe que detesto surpresas. É o nagual?

— Não, é outra pessoa — disse ela —, mas igualmente poderosa, se não mais. Quando conhecê-la, você precisará estar tranqüila e desprovida de pensamentos ou não se beneficiará com a sua presença.

Com exagerada solenidade, Clara afirmou que naquele dia, por uma questão de princípio, eu teria de usar todos os passes de feitiçaria que ela me havia ensinado, não porque alguém ia colocar-me à prova para ter certeza de que eu sabia os passes, mas porque eu havia chegado a uma encruzilhada e precisava começar a mover-me numa nova direção.

— Espera aí, Clara, não me assuste com essa conversa de mudança — pedi. — Tenho pavor de novas direções.

— Assustá-la é a última coisa que tenho em mente — tranqüilizou-me Clara. — Só que eu mesma estou um pouco preocupada. Você está com seus cristais?

Desabotoei minha veste e mostrei-lhe o coldre duplo de couro que eu havia feito, com sua própria ajuda, para guardar os dois cristais de quartzo. Eles ficavam presos debaixo de cada braço, como duas facas em sua bainha e, completando, havia uma aba sobreposta e presa por um colchete.

— Pegue-os e deixe-os prontos — orientou-me ela. — E use-os para reorganizar sua energia. Não espere que ela lhe diga para fazer isto. Faça quando sentir vontade e sempre que sentir necessidade de uma nova carga energética.

Pelas instruções de Clara, foi fácil deduzir duas coisas: aquele seria um encontro sério e nossa convidada misteriosa era mulher.

— Ela é uma de suas parentas? — indaguei.

— É, sim — respondeu Clara com um sorriso frio. — Esta pessoa é minha parenta, membro de nosso grupo. Agora relaxe e não faça mais perguntas.

Eu queria saber onde estavam os parentes de Clara. Era impossível que estivessem na casa, pois eu teria deparado com eles ou pelo menos veria sinais de sua presença. O fato de não ter visto ninguém havia transformado minha curiosidade em obsessão. Imaginei que os parentes de Clara estavam se escondendo de mim propositalmente, e até mesmo me espionando. Esta idéia deixou-me furiosa e ao mesmo tempo mais decidida a vê-los. A origem de minha inquietação era o sentimento indiscutível de que eu estava sempre sendo observada.

Tentei deliberadamente atrair alguém, deixando um de meus lápis de desenho pela casa, para ver se alguém o pegava, ou deixando uma revista aberta em determinada página e verificando depois se a página mudara. Na cozinha, examinei cuidadosamente os pratos, em busca de vestígios de uso. Cheguei até mesmo a alisar o cascalho do caminho que conduzia à porta dos fundos, para voltar mais tarde e buscar pegadas ou rastos desconhecidos. Não obstante todos os meus esforços de detetive, os únicos sinais que vi foram os de Clara, Manfred e os meus. Se houvesse uma pessoa se escondendo de mim, eu tinha certeza de que teria percebido. Mas parecia não haver ninguém na casa, apesar de minha certeza da existência de outras presenças.

— Perdoe-me, Clara, mas tenho de fazer-lhe uma pergunta — explodi finalmente —, porque está me deixando louca. Onde seus parentes estão hospedados?

Clara fitou-me surpresa.

— Esta é a casa deles. Eles estão aqui, é claro.

— Mas onde exatamente? — exigi saber. Eu estava prestes a confessar que havia deixado armadilhas, mas decidi não dizer nada.

— Ah! Estou entendendo o que você quer dizer — exclamou ela — Você não encontrou sinais deles, apesar de seus esforços para bancar a detetive. Mas não há nenhum mistério nisso. Você nunca os viu porque eles estão do lado esquerdo da casa.

— Eles nunca saem?

— Saem, mas eles evitam o lado direito porque você está aqui e eles não querem incomodá-la. Eles sabem o quanto você valoriza sua privacidade.

— Mas não aparecerem nunca? Isto não é levar a idéia de privacidade um pouco longe demais?

— De maneira alguma — discordou Clara. — Você necessita de absoluta solidão para concentrar-se em sua recapitulação. Quando eu disse que você terá uma visita hoje, quis dizer que um de meus parentes virá do lado esquerdo da casa até onde estamos e conhecerá você. Ela estava ansiosa para conversar com você, mas teve de esperar até que você tivesse se purificado, pelo menos um mínimo. Eu disse a você que conhecê-la é ainda mais intenso do que conhecer o nagual. Precisa de suficiente poder armazenado; caso contrário, irá para a extremidade mais distante, como aconteceu com o nagual.

Clara ajudou-me a colocar as folhas em meu estômago e amarrá-las com o tecido.

— Estas folhas e esta faixa amortecerão as investidas da mulher —disse Clara. Em seguida, olhou para mim e acrescentou suavemente: — E outros golpes também. Portanto, haja o que houver, não as tire.

— O que vai acontecer comigo? — perguntei, colocando nervosamente

mais folhas. Clara deu de ombros.

— Isto vai depender de seu poder — explicou, dando um nó no tecido com um puxão firme. — Mas, pela sua aparência, só Deus sabe.

Com os dedos tremendo, voltei a abotoar a blusa e enfiei-a dentro de minhas calças largas. Eu estava inchada com a larga faixa cor de açafrão na cintura. As folhas pareciam um travesseiro frágil e irregular, recobrindo meu abdômen. Mas, pouco a pouco, meu estômago inquieto parou de tremer, tornou­se aquecido e senti todo meu corpo relaxar.

— Agora sente sobre a pilha de folhas e faça como as galinhas — ordenou

Clara. Devo ter-lhe lançado um olhar de surpresa, pois ela me perguntou:

— Como acha que as galinhas chocam?

— Realmente não sei, Clara

— Uma galinha permanece quieta e ouve os ovos sob ela, direcionando toda sua atenção para eles. Ela ouve e não permite qualquer oscilação de sua concentração. Dessa maneira resoluta, ela tem a intenção de que os pintos saiam da casca. Os animais têm este tipo de escuta silenciosa naturalmente, mas os seres humanos esqueceram-se dela e, portanto, devemos cultivá-la.

Clara acomodou-se em uma grande rocha cinza-clara, de frente para mim. A pedra tinha uma depressão natural e lembrava uma poltrona.

— Agora cochile como uma galinha e ouça com seu ouvido interior enquanto eu falo. Concentre-se no calor em seu útero e não permita que sua atenção oscile. Tome consciência dos sons à sua volta, mas não permita que sua mente os acompanhe.

— Tenho mesmo de sentar aqui assim, Clara? Quero dizer, não seria melhor se eu simplesmente tirasse uma soneca retemperadora?

— Temo que não. Como já disse, a presença de nossa visita é extremamente forte. Se você não reunir energia, afundará lamentavelmente. Acredite em mim, ela não é suave como eu. Ela é mais parecida com o nagual, dura e implacável.

— Por que ela exige tanto?

— Ela não pode evitar. Está tão afastada dos seres humanos e suas preocupações que sua energia pode desintegrá-la totalmente. Agora não há diferença entre seu corpo físico e seu duplo etérico. O que quero dizer é que ela é uma mestra feiticeira.

Clara perscrutou-me com o olhar e fez um comentário sobre os círculos escuros sob meus olhos.

— Você tem lido à noite sob a luz do lampião, não tem? — repreendeu­me. — Por que acha que não temos eletricidade nos quartos?

Disse-lhe que eu não havia lido uma única página desde o dia em que chegara em sua casa, pois a recapitulação e todas as outras coisas que ela me pedira para fazer não me deixavam tempo para mais nada.

— Aliás, eu não sou particularmente fã da leitura — admiti.

— Mesmo assim, de vez em quando folheio os livros em suas estantes dos corredores. — Eu não disse a Clara que na verdade eu ficava pelos corredores bisbilhotando, a fim de perceber se algum dos livros fora retirado pelos parentes.

Ela riu e disse:

— Alguns membros de minha família são leitores ávidos. Eu não.

— Mas você não lê por prazer, Clara?

— Eu não. Leio para obter informações. Mas alguns dos outros lêem por prazer. — Então como é que eu nunca percebi a falta de nenhum dos livros? — perguntei, tentando parecer casual. Clara deu uma risadinha.

— Eles têm sua própria biblioteca no lado esquerdo da casa — explicou, perguntando-me em seguida: — Você não lê por prazer, Taisha?

— Infelizmente, eu também só leio para obter informações — falei.

Disse a Clara que, para mim, a alegria da leitura fora cortada pela raiz na escola primária. Um dos amigos de meu pai, dono de uma firma de distribuição de livros, costumava me dar caixas de livros esgotados. Meu pai fazia uma triagem e me dava os livros literários, os quais ele me mandava ler, além dos exercícios de casa regulares. Eu sempre entendera que tinha de ler cada palavra. E, mais, eu achava que tinha de terminar cada livro antes de começar o seguinte. Para mim foi uma completa surpresa quando descobri, mais tarde, que algumas pessoas iniciam vários livros ao mesmo tempo e vão e voltam, lendo de acordo com a sua disposição.

Clara fitou-me e sacudiu a cabeça como se eu fosse uma causa perdida.

— Crianças fazem coisas estranhas quando estão sob pressão — disse. — Agora sei por que você se tornou tão compulsiva. Aposto que, se tentar se lembrar daquelas histórias agora, ficará chocada com o que vai encontrar. Quando crianças, nunca podemos questionar o que nos é apresentado, assim como você não questionou a obrigação de ler um livro de ponta a ponta. Todos os membros de minha família já discutiram seriamente sobre o que se faz com as crianças.

— Tornei-me obcecada para conhecer sua família, Clara.

— Isto é muito natural. Falo muito deles.

— Não é só isso, Clara — expliquei. — É antes uma sensação física. Não sei por quê, mas não consigo parar de pensar neles. Chego a sonhar com eles.

Tão logo disse isso, algo se organizou em minha mente. Bruscamente, fiz uma pergunta a Clara. Se ela sabia quem eu era, e se seu primo, meu senhorio, me conhecia, de repente ocorreu-me perguntar a Clara se eu também conhecia seus outros parentes.

— Naturalmente, todos eles conhecem você — falou Clara como se fosse a coisa mais evidente, mas não respondeu a minha pergunta.

Eu não tinha a menor idéia de quem poderiam ser eles.

— Quero fazer-lhe uma pergunta bem direta, Clara. Eu os conheço? —

insisti.

— Essas perguntas são todas irrespondíveis, Taisha. Acho melhor não fazê-las.

Fiquei emburrada. Levantei-me de meu assento de folhas, mas Clara delicadamente empurrou-me de volta.

— Está bem, está bem, Srta. Bisbilhoteira — disse ela. — Se isso vai fazer você ficar onde está, eu vou falar. Você conhece todos eles, mas com certeza não se lembra de tê-los conhecido. Mesmo que qualquer um de meus parentes estivesse de pé bem a sua frente, aposto que você não o reconheceria de jeito nenhum. Mas ao mesmo tempo, você sentirá uma tremenda agitação. Está satisfeita agora?

Sua resposta não me satisfez nem um pouquinho. Na verdade, convenceu­me de que ela estava deliberadamente me deixando desorientada, me enganando, brincando com as palavras.

— Você deve gostar de me atormentar, Clara — falei, revoltada.

Clara soltou uma gargalhada sonora.

— Não estou brincando com você — assegurou-me. — Explicar o que somos e o que fazemos é a coisa mais difícil do mundo. Gostaria de poder tornar as coisas mais claras, mas não posso. Portanto, é inútil ficar insistindo em explicações que não existem.

Mudei de posição, pois estava mal-acomodada. Minhas pernas estavam dormentes. Clara sugeriu que eu me deitasse de bruços e repousasse a cabeça no braço direito, flexionado no cotovelo. Fiz o que ela havia sugerido e achei a posição confortável. O chão e as folhas pareciam manter-me enraizada, enquanto minha mente continuava alerta. Clara inclinou-se e acariciou minha cabeça afetuosamente. Então, olhou-me de uma maneira tão estranha que agarrei sua mão por um instante e apertei-a.

— Agora tenho que ir, Taisha — falou ela com suavidade, soltando a mão —, mas descanse sabendo que voltarei a vê-la. — Seus olhos verdes tinham pontinhos de luz âmbar. E seu brilho foi a última coisa que vi.

Acordei com uma pessoa cutucando minhas costas com um galho. Uma mulher estranha estava de pé diante de mim. Era alta, magra e extraordinária. Seus traços eram primorosamente definidos: boca pequena, dentes uniformes, nariz perfeito, rosto oval, pele nórdica, branca, delicada e quase translúcida, cabelos grisalhos cacheados e lustrosos. Quando ela sorriu, achei que era uma adolescente, irradiando sensualidade e ousadia. Quando estava séria, parecia uma mulher européia, madura e elegante. Vestia com elegância e na moda, especialmente seus sapatos, que eu nunca vira nos Estados Unidos, onde mulheres bem-vestidas usando sapatos confortáveis sempre pareciam matronas.

A mulher era ao mesmo tempo mais velha e mais jovem do que Clara; era definitivamente mais velha cronologicamente, mas tinha uma aparência muito mais jovem. E possuía alguma coisa que eu só poderia chamar de vitalidade interior. Clara, em contraste, ainda parecia encontrar-se em um estágio de formação, enquanto aquele ser parecia um produto acabado. Eu sabia que alguma coisa profundamente diferente, talvez tão diferente quanto um membro de outra espécie, estava me examinando com genuína curiosidade.

Sentei-me e apresentei-me rapidamente. Ela retribuiu calorosamente.

— Chamo-me Nelida Abelar — falou em inglês. — Moro aqui com o resto de meus companheiros. Você já conhece dois deles, Clara e o nagual, John Michael. Logo conhecerá o restante de nós.

Ela falava com uma leve modulação na voz, que era encantadora e tão familiar que eu não conseguia afastar o olhar dela. Então riu, creio que devido aos músculos de meu rosto, que estavam congelados em um sorriso por causa da surpresa. O som de sua risada também era vagamente familiar; tive a impressão de que já ouvira aquela risada antes. Ocorreu-me que já tinha visto aquela mulher em outra ocasião, embora não soubesse onde. Quanto mais a olhava, mais me convencia de que já a encontrara antes, mas havia esquecido quando.

— Algum problema, querida? — indagou ela, solícita. — Está com a sensação de que já nos conhecemos?

— Sim, sim — exclamei, excitada, pois senti que estava prestes a me lembrar de onde a vira.

— Mais cedo ou mais tarde você se lembrará—falou ela com um tom de voz tranqüilizador que me fez compreender que não havia pressa. — A respiração purificadora que você realiza durante a recapitulação acabará permitindo-lhe recordar tudo que já fez, incluindo seus sonhos. Aí você saberá onde e quando nos encontramos.

Senti-me constrangida por olhá-la fixamente e por ter sido pega desprevenida. Levantei-me e enfrentei-a, não de maneira desafiadora, mas com respeito.

— Quem é você? — perguntei, aturdida.

— Já lhe disse quem sou. — Ela sorriu. — Bem, se quer saber se sou uma espécie de personagem, você ficará desapontada. Sou apenas um dos componentes do grupo de pessoas que buscam a liberdade. Como conheceu o nagual, o próximo passo para você era encontrar-se comigo, porque sou responsável por você.

Ao ouvir que ela era responsável por mim, senti uma pontada de medo. Durante toda a minha vida, eu havia lutado para obter minha independência, com o máximo de empenho de que fora capaz.

— Não quero que ninguém seja responsável por mim — falei. — Lutei muito pela minha independência para cair agora sob o domínio de alguém.

Pensei que ela iria ofender-se, mas Nelida sorriu e deu um tapinha em meu ombro.

— Jamais quis dizer isto — explicou. — Ninguém quer sujeitá-la. O nagual tem uma explicação sobre sua personalidade indisciplinada. Ele realmente acredita que você possui um espírito lutador. Na verdade, ele acha que você é incontestavelmente louca; mas no sentido positivo.

Ela disse que o nagual justificava minha loucura explicando que eu fora concebida em condições incomuns e desesperadoras Então Nelida relatou-me fatos da história de meus pais que ninguém, exceto meus pais, sabia. Revelou-me que, antes de minha concepção, durante o período em que meus pais moraram e trabalharam na África do Sul, meu pai foi preso por motivos que ele nunca revelara. Eu sempre havia fantasiado que ele não estiver realmente na prisão, mas em um campo de detenção político. Nelida: disse que meu pai salvara a vida de um guarda. Mais tarde, guarda ajudou meu pai a fugir, virando as costas em um momento crucial.

— Com os perseguidores em seu encalço — continuou Nelida —, ele foi ver a esposa, para ficar com ela pela última vez na terra. Estava certo de que seria capturado e morto. Durante uma apaixonada relação de vida ou morte, sua mãe ficou grávida de você. O profundo medo e o amor à vida que seu pai estava sentindo foram então transmitidos para você. Conseqüentemente, você nasceu inquieta, indisciplinada e cheia de amor à vida.

Eu mal conseguia ouvir as palavras de Nelida. Estava tão aturdida com as revelações que meus ouvidos zumbiam e meus joelhos tremiam. Precisei apoiar­me no tronco de uma árvore para não cair. Antes que eu pudesse falar, ela prosseguiu:

— Sua mãe era muito infeliz e secretamente desprezava seu pai porque ele gastou toda a herança de sua família para pagar seus erros, quaisquer que tenham sido eles. O dinheiro acabou e eles tiveram de deixar a África do Sul antes de você nascer.

— Como você pode saber de coisas sobre meus pais das quais nem eu mesma tinha conhecimento? — perguntei.

Nelida sorriu.

— Sei dessas coisas porque sou responsável por você — replicou ela.

Novamente senti uma pontada de medo percorrer-me, fazendo-me estremecer. Temi que, se ela conhecia os segredos de meus pais, também deveria saber de algumas coisas a meu respeito. Eu sempre me sentira segura, escondida em minha fortaleza subjetiva inexpugnável. Deixara-me tranqüilizar por uma falsa segurança, certa de que meus pensamentos e sentimentos e atos não importariam enquanto eu os mantivesse ocultos, enquanto ninguém mais tivesse conhecimento deles. Mas agora era evidente que aquela mulher tinha acesso ao meu eu interior. Precisava desesperadamente reafirmar minha posição.

— Se eu sou alguma coisa — falei em tom desafiador —, sou minha própria pessoa. Ninguém é responsável por mim. E ninguém vai me dominar.

Nelida riu de minha explosão. Despenteou meus cabelos como o nagual havia feito, com um gesto ao mesmo tempo tranqüilizador e profundamente familiar.

— Ninguém está tentando dominá-la, Taishika — falou em tom amigável. Sua delicadeza serviu para dissipar minha raiva. — Disse-lhe todas essas coisas porque preciso prepará-la para uma manobra bastante específica.

Ouvi-a com atenção, pois senti, pelo tom de sua voz, que ela estava prestes a revelar-me alguma coisa espantosa.

— Clara conduziu-a até seu estado atual de uma maneira muito eficiente e artística. Você ficará eternamente grata a Clara. Agora que concluiu sua tarefa, ela se foi. E o mais triste é que você nem mesmo agradeceu-lhe o carinho e a bondade.

 

Um sentimento terrível e indizível invadiu-me:

— Espere um minuto — murmurei. — Clara foi embora?

— Foi.

— Mas ela vai voltar, não vai? — perguntei. Nelida sacudiu a cabeça.

— Não. Como já lhe disse, seu trabalho está terminado. Naquele momento, tive o único sentimento verdadeiro que jamais sentira em toda minha vida. Comparado a ele, nada do que eu havia sentido era real; nem minha raiva nem meus acessos de ira, nem minhas explosões de afeto, nem mesmo minha autopiedade eram verdadeiros quando comparados à dor excruciante que senti naquele instante, tão forte que me deixou entorpecida. Eu queria chorar, mas não conseguia. Então eu soube que a verdadeira dor não verte lágrimas.

— E Manfred? Foi embora também? — perguntei.

— Também. O trabalho como seu guardião também chegou ao fim.

— E o nagual? Vou vê-lo de novo?

— No mundo dos feiticeiros tudo é possível — disse Nelida, tocando minha mão. — Mas uma coisa é certa: não é um mundo garantido. Nele, temos de expressar nossos agradecimentos agora, pois não existe amanhã.

Fitei-a estupidamente, totalmente desorientada. Ela retribuiu meu olhar e sussurrou

— O futuro não existe. É tempo de você perceber isto. E quando concluir sua recapitulação e apagar completamente o passado, tudo que restará é o presente. Então você saberá que o presente é apenas um instante, nada mais.

Nelida acariciou suavemente minhas costas e disse-me para respirar. O sofrimento era tão grande que minha respiração fora interrompida.

— Algum dia eu serei diferente? Há uma chance para mim? — perguntei, suplicante.

Sem me dar resposta, Nelida virou-se e caminhou em direção a casa. Quando chegou à porta dos fundos, fez sinal, com o dedo indicador em forma de gancho, para que eu a seguisse.

Eu queria correr atrás dela, mas não conseguia mexer-me. Comecei a choramingar e então emiti o lamento mais estranho que já saíra de mim, um som que não era exatamente humano. Compreendi então por que Clara havia amarrado a faixa protetora em meu abdômen — para proteger-me desse golpe. Deitei-me de bruços sobre a pilha de folhas e lancei sobre elas o grito animal que estava me sufocando. Aquilo não aliviou minha angústia. Peguei meus cristais, posicionei-os em meus dedos e girei os braços em círculos cada vez menores, no sentido anti-horário. Apontei os cristais para a minha indolência, para a minha covardia e para minha autopiedade inútil.

 

Nelida esperava-me pacientemente junto à porta. Demorei horas para tranqüilizar-me. A tarde chegava ao fim. Entrei com ela na casa. No corredor, na entrada da sala, ela estacou tão bruscamente que quase colidimos.

— Como Clara lhe disse, moro no lado esquerdo da casa — falou ela, voltando-se para olhar-me. — E vou levá-la até lá. Mas primeiro vamos entrar na sala e sentar durante algum tempo, para que você possa recuperar o fôlego.

Eu estava ofegante e meu coração batia perturbadoramente acelerado.

— Estou em boas condições físicas — garanti. — Praticava kung fu com Clara todos os dias. Mas neste momento não estou me sentindo muito bem.

— Não se preocupe com a falta de fôlego — tranqüilizou-me Nelida. — A energia de meu corpo a está pressionando. Esta pressão. suplementar é que está fazendo seu coração bater mais rápido. Quando você se acostumar com minha energia, ela deixará de incomodá-la.

Nelida tomou minha mão e levou-me até uma almofada chão, na qual me sentei com as costas apoiadas na parte dianteira do sofá.

— Quando estiver agitada como agora, apóie as costas num móvel. Ou dobre os braços para trás, pressionando as mãos no alto dos rins.

Permanecer sentada no chão com as costas apoiadas daquela maneira exerceu um efeito definitivamente relaxante em mim. Em poucos instantes, eu estava respirando normalmente e meu estômago não estava mais apertado.

Observei Nelida caminhando à minha frente.

— Bem, vamos deixar claro uma coisa de uma vez por todas — falou ela, prosseguindo com seu passo relaxado e tranqüilo. — Quando digo que sou responsável por você, estou querendo dizer que estou encarregada de sua liberdade última. Portanto, não me fale mais sobre essa tolice de luta pela independência. Não estou interessada em sua luta extravagante contra sua família. Embora você tenha lutado com eles a vida inteira, sua batalha não tinha finalidade nem direção. Está na hora de conceder à sua força natural e ímpeto compulsivo uma causa valiosa.

Seus passos, percebi, não eram de nervosismo, mas pareciam antes uma maneira de atrair minha atenção, pois me haviam colocado completamente à vontade e ao mesmo tempo mantinham-me atenta.

Perguntei-lhe mais uma vez se voltaria a ver Clara e Manfred. Nelida lançou-me um olhar implacável que me deu calafrios.

— Não, você não os verá — disse ela. — Pelo menos não neste mundo. Ambos foram impecáveis ao prepará-la para o grande vôo. Você só voltará a encontrá-los se conseguir realizar com sucesso o despertar do duplo e a travessia para o abstrato. Caso contrário, eles se tornarão lembranças, a respeito das quais você falará por algum tempo, ou guardará para si, até ir esquecendo-as pouco a pouco.

Eu jurei a Nelida que jamais esqueceria Clara ou Manfred; que eles sempre seriam parte de mim, ainda que nunca mais voltasse a vê-los. E, embora algo em mim soubesse que seria assim, eu não poderia suportar uma separação tão definitiva. Queria chorar, como fizera com tanta facilidade durante toda minha vida, mas de alguma maneira meu passe de feitiçaria com os cristais havia funcionado; o choro saíra de mim. Agora que eu realmente precisava chorar, não conseguia. Eu estava vazia por dentro. Estava como sempre fora: fria. Só que agora eu não fingia mais. Lembro-me do que Clara me dissera que frieza não é crueldade nem insensibilidade, mas sim um desapego absoluto. Finalmente eu entendia o significado de ausência de piedade.

— Não se concentre em sua perda — disse Nelida, sentindo meu estado de espírito. — Pelo menos por enquanto. Vamos tratar de maneiras úteis de concentrar energia para tentar o inevitável: o vôo abstrato. Agora você sabe que pertence a nós, a mim em particular. Hoje você deverá tentar vir ao meu lado da casa.

Nelida tirou os sapatos e sentou-se numa poltrona em frente a mim. Com movimento gracioso, levou os joelhos ao peito e colocou os pés no assento da poltrona. Puxou a saia por sobre as pernas, de modo que apenas os tornozelos e os pés permaneciam à mostra.

— Agora procure deixar de lado a timidez, o julgamento e a perversão — sugeriu ela. Então, antes que eu pudesse responder, ela levantou a saia e afastou as pernas.

— Olhe para minha vagina — ordenou. — O buraco entre as pernas de uma mulher é a abertura energética do útero, um órgão que é ao mesmo tempo poderoso e rico.

Para meu horror, Nelida não estava usando calcinhas. Pude ver perfeitamente sua vagina. Eu queria desviar o olhar, mas estava hipnotizada. Só conseguia olhar fixamente, a boca meio aberta. Ela não tinha pêlos e seu abdômen e pernas eram rijos e lisos, sem rugas nem gorduras.

— Como não estou no mundo como mulher, meu útero adquiriu um humor diferente do humor de uma mulher comum e indisciplinada — disse Nelida, sem o menor sinal de constrangimento. — Dessa forma, simplesmente você não deve me considerar pejorativamente.

Ela de fato era linda, e senti uma pontada de pura inveja. Eu tinha no mínimo um terço da sua idade e não teria tão bela aparência naquela posição. Na verdade, eu jamais sonharia em deixar alguém me ver despida. Eu sempre usava roupões de banho compridos, como se tivesse algo a esconder. Recordando minha própria timidez, desviei o olhar delicadamente, mas não sem antes dar uma olhada no que só poderia chamar de total energia — a região em torno da vagina parecia irradiar uma força que me deixava tonta cada vez que a contemplava.

Fechei os olhos, sem me importar com o que ela iria pensar de mim. A risada de Nelida pareceu-me uma cascata de água, suave e borbulhante.

— Agora você está perfeitamente relaxada — disse ela. — Olhe novamente para mim e respire profundamente algumas vezes para recarregar-se.

— Espere só um momento, Nelida — pedi, tomada de um medo repentino, não de olhar para a sua vagina, mas do que eu havia acabado de perceber. Mostrar-me sua nudez produzira alguma coisa inconcebível para mim: tranqüilizara minha angústia e fizera-me abandonar todo meu puritanismo. Em um instante, eu havia me tornado extraordinariamente familiarizada com Nelida. Gaguejando lamentavelmente, contei-lhe o que havia acabado de perceber.

— É exatamente o que a energia proveniente do útero deve realizar — alegrou-se Nelida. — Agora você deve realmente olhar para mim e respirar profundamente. Depois poderá analisar as coisas do seu coração.

Fiz o que ela disse, sem sentir nenhuma vergonha. Respirar em sua energia fez-me sentir estranhamente revigorada, como se houvesse se formado um elo entre nós, o qual não precisava de palavras.

— Você pode realizar maravilhas controlando e fazendo circular a energia do útero — disse Nelida, puxando novamente a saia, por sobre as pernas.

Nelida explicou que a principal função do útero é a reprodução, com a finalidade de perpetuar nossa espécie. Contudo, sem que as mulheres o saibam, o útero também possui funções secundárias, sutis e sofisticadas. E nós, ela e eu, disse Nelida, estávamos interessadas no desenvolvimento destas últimas.

Fiquei tão feliz por ela ter-me incluído em sua afirmação que realmente senti um formigamento no estômago. Ouvi atentamente suas explicações de que a função secundária mais importante do útero é servir de guia para duplo. Enquanto os homens precisam recorrer a uma mistura de raciocínio e intenção para conduzir seus duplos, as mulheres têm o útero à sua disposição, poderosa fonte de energia, abundante em atributos e funções misteriosos, todos eles destinados a proteger e nutrir o duplo.

— Naturalmente tudo isso é possível se você se libertar de toda a energia obstrutora que os homens deixaram em seu interior — disse ela. — Uma completa recapitulação de toda sua atividade sexual cumprirá essa tarefa.

Ela ressaltou que a utilização do útero constitui método extremamente poderoso e direto de alcançar o duplo. Lembrou-me do passe de feitiçaria que eu havia aprendido, no qual respira-se diretamente com a abertura da vagina.

— O útero é a maneira das fêmeas sentirem coisas e regularem seus corpos — explicou. —- Através dele, as mulheres podem gerar e armazenar poder em seus duplos para construir ou destruir, ou para se tornarem unas com tudo que as cerca.

Novamente senti um formigamento no abdômen, uma vibração leve que desta vez difundiu-se para minha genitália e parte interior das coxas.

— Outra maneira de alcançar o duplo, também chamado de outro, afora a utilização da energia do útero, é através do movimento — continuou Nelida. — Por esta razão Clara ensinou-lhe os passes de feitiçaria. Existem dois passes que você terá de usar hoje, a fim de preparar-se adequadamente para o que está por vir.

Ela foi até o armário, pegou uma esteira de palha, desenrolou-a no chão e disse-me para me deitar. Já deitada de costas, ela me pediu para flexionar um pouco os joelhos, cruzar os braços sobre o peito, girar uma vez para o lado direito e depois para o esquerdo. Fez-me repetir esse movimento sete vezes. Enquanto eu me virava, tinha de curvar lentamente a coluna vertebral na altura dos ombros.

Em seguida ela me pediu para sentar-me de pernas cruzadas mais uma vez, recostando no sofá, enquanto ela foi se sentar na poltrona. Lenta e suavemente, ela inspirou pelo nariz. Então, girou delicadamente o braço e a mão esquerdos para fora e para cima, como se estivesse cavando um buraco no ar com a mão. Ela inseriu a mão nele, pegou alguma coisa e retirou-a, dando-me a impressão total de uma longa corda sendo retirada de um buraco no ar. Por fim, ela repetiu os mesmos movimentos com a mão e o braço direitos.

Enquanto ela realizava seu passe de feitiçaria, reconheci que aquele movimento tinha a mesma natureza dos que Clara me havia ensinado, mas ao mesmo tempo eram diferentes, mais leves, mais delicados, mais energéticos. Os passes de feitiçaria de Clara assemelhavam-se aos movimentos das artes marciais; eram graciosos e plenos de força interior. Os passes de Nelida eram sombrios, ameaçadores e, no entanto, era agradável contemplá-los; eles irradiavam uma energia nervosa, mas não eram agitados.

Executando o passe, o rosto de Nelida irradiava beleza. Seus traços eram simétricos, perfeitos. Observando seus movimentos primorosos, realizados com total alheamento e desapego, lembrei-me do que Clara dissera a respeito de Nelida ser destituída de piedade.

— Este passe visa ao armazenamento de energia da vastidão que existe além de tudo que vemos — informou ela. — Experimente fazer um buraco e coloque" a mão além da fachada de formas visíveis, colhendo a energia que nos sustenta. Faça o movimento.

Tentei imitar seus movimentos graciosos e rápidos, mas senti-me rígida e desajeitada em comparação a Nelida. Não conseguia sentir minha mão entrando em um buraco e colhendo energia, nem mesmo com todo o esforço da imaginação. Contudo, quando terminei o passe, senti-me forte e irradiando energia.

— Não é preciso muito para comunicar-se com o corpo etérico ou alcançá-lo — prosseguiu Nelida. — Além de usar o útero e o movimento, o som é uma maneira poderosa de atrair a atenção desse corpo etérico.

Ela explicou que, direcionando sistematicamente as palavras para nossa fonte de consciência — o duplo —, se pode receber uma manifestação dessa fonte.

— Conquanto que tenhamos energia suficiente, é claro — acrescentou ela.

— Se tivermos, bastam apenas algumas palavras selecionadas ou um som sustentado para abrir algo indizível diante de nós — Exatamente como podemos direcionar essas palavras para o duplo? — indaguei. Nelida abriu os braços em um gesto amplo.

— O duplo é quase infinito — disse. — Assim como o corpo físico mantém comunicação com outros corpos físicos, o duplo está em comunicação com a força vital universal.

Nelida ficou de pé repentinamente.

— Nós fizemos nossos passes de feitiçaria e também conversamos bastante — falou. — Agora, vamos ver se podemos agir. Quero que você fique de pé diante da porta que conduz ao lado esquerdo da casa. Quero que você permaneça totalmente silenciosa, mas, profundamente consciente de tudo que está à sua volta.

 

Eu a segui pelo corredor ate a porta que sempre estivera fechada. Clara explicara que ela permanecia fechada mesmo quando todos os membros da família se encontravam na casa. Como ela me fizera prometer que jamais, em hipótese alguma, eu tentaria abri-la, por maior que fosse a minha curiosidade, eu nunca havia prestado muita atenção a ela.

Olhando-a agora, eu não consegui perceber nada de extraordinário; era simplesmente uma porta de madeira comum, igual a todas as outras da casa. Nelida abriu-a cuidadosamente. Havia um corredor, igual ao corredor do lado direito, conduzindo ao outro lado da casa.

— Quero que você repita uma palavra — disse Nelida, postando-se logo atrás de mim. — A palavra é "intenção". Quero que você intenção três ou quatro vezes, ou até mais, mas trazendo a palavra das profundezas de seu ser.

— Das profundezas do meu ser?

— Permita que a palavra exploda de seu abdômen e brilhe. Na verdade, você deve gritar a palavra "intenção" com toda sua força.

Eu hesitei. Detestava gritar e não gostava quando as pessoas levantavam a voz comigo. Quando criança, eu havia aprendido que era falta de educação gritar, e odiava ouvir meus pais discutindo em voz alta.

— Não seja tímida — disse Nelida. — Grite o mais alto que puder e quantas vezes forem necessárias.

— Como vou saber quando parar?

— Você vai parar quando algo acontecer ou quando eu lhe mandar parar porque não aconteceu nada. Faça! Agora!

Pronunciei a palavra "intenção"; minha voz soou hesitante, fraca, insegura. Até para meus ouvidos faltou convicção. Mas continuei repetindo-a, cada vez mais fortemente. Minha voz não se tornou grave, mas estridente e alta, até quase engasgar-me, com um grito de arrepiar os cabelos que não foi lançado por mim. No entanto, eu já o tinha ouvido antes. Era o mesmo ruído agudo que eu ouvira no dia em que Clara e Manfred haviam entrado em casa precipitadamente, deixando-me debaixo da árvore. Comecei a tremer e fiquei tão zonza que afundei ali mesmo e recostei-me no batente da porta.

— Não se mexa! — ordenou Nelida, mas era tarde demais. Eu já estava caída no chão. — Você fez muito mal em se mexer, quando deveria ter permanecido no mesmo lugar — falou Nelida asperamente, mas acrescentou um sorriso ao perceber que eu estava prestes a desmaiar. Agachou-se a meu lado e esfregou minhas mãos e pescoço para reavivar-me.

— Para que você me fez gritar? — murmurei, empertigando-me contra a porta.

— Estávamos tentando atrair a atenção do seu duplo — explicou Nelida. — Aparentemente, existem dois níveis da consciência universal: o nível do visível, da ordem, de tudo que pode ser pensado e nomeado e o nível de energia não­manifesta, o qual cria e sustenta todas as coisas. Como nós confiamos na linguagem e no raciocínio, é o nível do visível que consideramos como realidade. Ele parece ter uma ordem, é estável e previsível. Contudo, na realidade, ele é ilusório, temporário e está sempre mudando. Aquilo que julgamos ser a realidade permanente é tão-somente a aparência superficial de uma força insondável

Eu estava me sentindo tão entorpecida que mal conseguia acompanhar as palavras de Nelida. Bocejei diversas vezes para inspirar mais ar. Nelida riu quando arregalei os olhos exageradamente, para dar-lhe a impressão de que estava prestando total atenção.

— Aquilo que você e eu queremos fazer com todos esses gritos — prosseguiu ela — é atrair a atenção, não da realidade visível, mas sim da invisível, da força que é a origem de sua existência, de uma força que, assim esperamos, irá transportá-la através do abismo.

Eu queria ouvir o que ela estava dizendo, mas uma estranha idéia distraía minha atenção. Pouco antes de desabar no chão, eu tinha vislumbrado uma rara imagem. Eu havia percebido que o ar do corredor atrás daquela porta estava borbulhando, exatamente como na escuridão do meu quarto na primeira noite em que eu havia dormido na casa.

Enquanto Nelida continuava falando, eu me virei para contemplar novamente o corredor, mas ela se postou na minha frente, bloqueando minha visão. Ela se abaixou e pegou uma folha enquanto eu estava gritando, deve ter saído do fardo protetor que Clara havia amarrado em torno de minha cintura.

— Talvez esta folha ajude a clarear as coisas — sugeriu ela estendendo a folha para que eu a visse. Nelida falava com rapidez como se soubesse que minha atenção estava oscilante; ela queria que minha mente absorvesse o máximo que pudesse antes de divagar novamente. — A textura desta folha é seca e quebradiça, sua forma é plana e arredondada, sua cor é marrom com um toque carmesim. Podemos reconhecê-la como uma folha graças aos nos sos sentidos, nossos instrumentos de percepção e a nossos pensamentos, que dão nome às coisas. Sem eles, a folha é energia pura, indiferenciada e abstrata. A mesma energia etérica e irreal que flui através desta folha flui através de tudo e tudo sustenta. Nós, assim como tudo mais, somos reais sob um aspecto e apenas aparência sob outro.

Ela depositou cuidadosamente a folha de novo no chão, como se ela fosse tão frágil que poderia se desfazer ao mais leve toque, Nelida fez silêncio por um instante, como se aguardando que minha mente assimilasse o que ela dissera, mas minha atenção novamente fora atraída para a porta aberta no corredor, onde filamentos de luz atravessando uma grande janela no fim do mesmo. Vislumbrei homens e mulheres, isto é, três ou quatro pessoas, que, por um momento, colocaram a cabeça através das portas que se abriam para o corredor. Todas pareciam ter sido despertas imediatamente por meus gritos e haviam colocado a cabeça para fora de seus quartos a fim de ver o que significava todo aquele tumulto.

— Sem dúvida você é indisciplinada — vociferou Nelida. O nível de sua atenção é curto demais.

Tentei contar a Nelida o que tinha visto, mas ela me reprimiu com um olhar. Senti um calafrio percorrer minha espinha até pescoço e acabei estremecendo involuntariamente. Então, sentada ali, confusa e indefesa, o pensamento mais bizarro ocorreu. Nelida me parecia familiar porque eu a vira em um sonho... verdade, eu a vira não apenas em um sonho, mas em uma série de sonhos recorrentes, e as pessoas no corredor...

— Não permita que sua mente vá além desse ponto! — gritou Nelida. — Não se atreva, está me ouvindo? Não se atreva a divagar! Quero toda sua atenção aqui comigo.

Ela me colocou de pé e ordenou que eu me concentrasse. Fiz o possível, pois definitivamente ela me intimidava. Eu sempre me orgulhara por acreditar que ninguém poderia dominar-me; no entanto, um olhar daquela mulher conseguia interromper meus pensamentos e encher-me de respeito e pavor ao mesmo tempo.

Nelida deu uma batidinha firme no topo da minha cabeça com os nós dos dedos, a qual deixou-me sóbria com a mesma facilidade com que seus gritos haviam me perturbado.

— Estou falando pelos cotovelos porque Clara me garantiu que falar é a melhor maneira de deixar você relaxada e atrair seu interesse — disse ela. — Quero você pronta para atravessar esta porta, custe o que custar.

Disse-lhe que eu tinha certeza de que a vira em meus sonhos. Mas aquilo não era tudo; tinha a impressão de que as pessoas que haviam mostrado a cabeça no corredor também me eram conhecidas.

Quando as mencionei, Nelida deu um passo atrás e perscrutou-me como se estivesse buscando marcas em meu corpo. Ela manteve silêncio por um instante, talvez avaliando se deveria divulgar alguma coisa.

— Nós somos um grupo de feiticeiros, como o nagual e Clara já lhe disseram. Somos uma linhagem, mas não uma linhagem familiar. Nesta casa existem dois ramos dessa linhagem, cada qual com oito membros. Os membros do ramo de Clara são o Graus e os de meu ramo são os Abelars. Nossa origem se perde no tempo. Nós nos contamos por gerações. Eu sou membro da geração no poder, o que significa que posso ensinar o que meu grupo sabe a alguém que seja como eu. Neste caso, você. Você é uma Abelar.

Nelida postou-se atrás de mim e virou-me na direção do corredor.

— Agora chega de falar. Fique de frente para o corredor e grite novamente a palavra "intenção". Acho que você está pronta para encontrar todos nós pessoalmente.

Gritei "intenção" por três vezes. Desta vez minha voz não ficou esganiçada, mas soou alta, além das paredes da casa. No terceiro grito, o ar do corredor começou a sibilar. Bilhões de minúsculas bolhas faiscaram e cintilaram como se tivessem sido todas elas acesas ao mesmo tempo. Ouvi um zumbido baixinho que me fez lembrar o som abafado de um gerador. Seu zumbido hipnótico atraiu-me para o interior, atravessando o limiar onde Nelida e eu estivéramos de pé. Meus ouvidos estavam obstruídos e precisei engolir várias vezes para desobstruí-los. Por fim o zumbido parou e percebi-me no meio de um corredor que era exatamente igual ao corredor do lado direito da casa, onde ficava meu quarto. Só que este corredor estava cheio de pessoas. Todas saíram de seus quartos e ficaram me olhando como se eu tivesse vindo de outro planeta, materializando-me bem diante de seus olhos.

Entre eles, ao final do corredor, avistei Clara, com um sorriso exultante, de braços abertos, convidando-me a vir abraçá-la. Então vi Manfred, arranhando

o chão com a pata. Estava tão feliz em ver-me quanto Clara. Corri em direção a eles, mas, em vez de sentir meus passos no piso de madeira, senti-me catapultada no ar. Para minha agonia, passei voando por Clara e Manfred e todas as outras pessoas no corredor. Eu não tinha controle sobre meus movimentos; tudo que conseguia fazer era gritar os nomes de Clara e Manfred, angustiada, ao passar por eles, indo além do corredor, da casa, das árvores e das colinas, até chegar a uma luz ofuscante e, finalmente, a um silêncio absolutamente negro.

 

Eu estava sonhando que cavava o solo do jardim quando uma dor aguda em meu pescoço despertou-me. Sem abrir os olhos, procurei os travesseiros às apalpadelas para apoiar o pescoço na superfície macia e confortável. Mas minhas mãos buscaram em vão. Não consegui encontrar os travesseiros; não consegui sequer sentir o colchão. Comecei a oscilar, como se tivesse comido ou bebido demais na noite anterior e estivesse sentindo os efeitos incômodos da indigestão. Fui abrindo os olhos gradativamente. Em vez de ver o teto ou as paredes, vi galhos e folhas verdes. Quando tentei me levantar, tudo à minha volta começou a se mexer. Percebi que eu não estava em minha cama; estava suspensa no ar, em uma espécie de arreio de couro, e era eu quem estava oscilando e não o mundo à minha volta. Tive certeza de que não se tratava de sonho. Enquanto meus sentidos tentavam colocar ordem no caos, percebi que estava içada com roldanas no galho mais alto de uma árvore.

Não haver nada sob meus pés produziu em mim um pavor físico da altura. Eu nunca estivera no alto de uma árvore em toda minha vida. Comecei a gritar por socorro. Ninguém veio em meu auxílio, portanto continuei gritando até perder a voz. Exausta, fiquei pendurada ali, como uma carcaça flácida. O terror físico me fizera perder o controle de minhas funções excretórias. Eu estava toda suja. Mas os gritos haviam eliminado meus medos. Olhei em torno e lentamente comecei a avaliar minha situação.

Percebi que meus braços e pernas estavam livres e, quando virei a cabeça para o lado, vi o que estava me mantendo suspensa.

Correias de couro marrom grossas circundavam minha cintura, peito e pernas. Em torno do tronco da árvore havia outra correia, que eu poderia alcançar se esticasse os braços. Aquela correia tinha a extremidade de uma corda e uma roldana acopladas a ela. Percebi então que tudo que eu tinha de fazer para libertar-me era soltar a corda e abaixar-me. Foi necessário um grande esforço para alcançar a corda e depois abaixar-me, pois meus braços e mãos estavam tremendo. Contudo, quando caí deitada no solo, consegui a duras penas soltar as correias em torno de meu corpo e libertar-me do arreio.

Corri até a casa chamando por Clara. Tinha uma vaga lembrança de que não poderia encontrá-la, mas era antes um sentimento do que uma certeza consciente. Automaticamente comecei a procurá-la, mas Clara não estava em parte alguma, nem tampouco Manfred. Então percebi que, de alguma maneira, tudo havia mudado, mas não sabia o quê, quando ou mesmo por que as coisas estavam diferentes do habitual. Só sabia que alguma coisa se partira irremediavelmente. [2]

Mergulhei em um longo monólogo interior. Falei para mim mesma como desejava que Clara não tivesse partido em uma de suas viagens misteriosas exatamente quando eu mais precisava dela. Em seguida, ponderei que poderia haver outra explicação para a sua ausência. Ela poderia estar me evitando deliberadamente, ou visitando seus parentes no lado esquerdo da casa. Lembrei­me então do encontro com Nelida e corri até a porta do corredor no lado esquerdo e tentei abri-la, ignorando o aviso de Clara de que jamais deveria forçar aquela porta. Verifiquei que estava trancada. Chamei por ela através da porta algumas vezes, chutei-a furiosa e finalmente fui para meu quarto. Para minha consternação, aquela porta também estava trancada. Freneticamente, tentei abrir as portas dos outros quartos no corredor. Todos estavam trancados, exceto um, que era uma espécie de despensa ou quarto de despejo. Nunca entrara ali, obedecendo as instruções específicas de Clara. Mas aquela porta sempre permanecera entreaberta, e todas as vezes que passava por ali, eu dava uma olhada.

Desta vez entrei, pedindo a Clara e Nelida que aparecessem. O quarto estava escuro, mas repleto com a coleção de objetos mais estranhos que eu já vira. Na verdade, ele estava tão abarrotado com esculturas grotescas, caixas e baús que mal havia espaço para circular. Um pouco de luz filtrava-se através de uma linda janela com vitrais, na parede traseira. Era uma luminosidade suave, que produzia sombras estranhas em todos os objetos do quarto. Fez-me pensar que assim deveria ser um quarto de armazenamento de transatlânticos elegantes mas desativados que haviam cruzado o mundo. De repente o piso sob meus pés começou a oscilar e ranger e os objetos à minha volta pareceram movimentar-se. Soltei um grito involuntário e corri para fora do quarto. Meu coração batia tão forte e alto que precisei de vários minutos e várias respirações profundas para tranqüilizá-lo.

No corredor, percebi que o grande closet, em frente ao quarto de despejo, estava aberto e todas as minhas roupas se encontravam ali, bem arrumadas em cabides ou dobradas nas prateleiras. Presa na manga da jaqueta que Clara me dera no meu primeiro dia na casa havia um bilhete para mim: "Taisha, o fato de você estar lendo este bilhete me diz que conseguiu sair da árvore. Por favor, siga minhas instruções ao pé da letra. Não volte para seu antigo quarto, pois ele está trancado. De agora em diante, você vai dormir em seu arreio ou na casa na árvore. Todos partimos em uma longa viagem. A casa inteira está sob seus cuidados. Faça o melhor que puder!" Estava assinado "Nelida".

Atordoada, fiquei olhando para o bilhete por um longo tempo, relendo-o diversas vezes. O que Nelida queria dizer com "a casa inteira está sob seus cuidados"? O que eu devia fazer ali, completamente sozinha? A idéia de dormir naquele arreio horrível, pendurada como um pedaço de carne, provocou-me um sentimento sinistro,

Eu queria que as lágrimas corressem de meus olhos. Queria sentir pena de mim mesma porque tinham me deixado sozinha e furiosa porque eles haviam partido sem me avisar, mas não consegui fazer nada disso. Fiquei andando de um lado para outro, tentando ganhar forças para um acesso de cólera. Novamente, falhei completamente. Era como se algo dentro de mim tivesse sido desligado, tornando-me indiferente e incapaz de expressar minhas emoções habituais. Mas eu realmente estava me sentindo abandonada. Meu corpo começou a tremer como sempre acontecia antes de eu começar a chorar. Contudo, o que aflorou em seguida não foi um dilúvio de lágrimas, mas uma série de recordações e visões oníricas.

Eu estava dependurada naquele arreio, olhando para baixo. Havia pessoas postadas ao pé da árvore, rindo e batendo palmas. Gritavam para tentar chamar minha atenção. Então todas produziram um som em uníssono, semelhante ao rugido de um leão, e foram embora. Eu sabia que era um sonho, mas sabia também que o encontro com Nelida definitivamente não fora um sonho. Eu tinha seu bilhete em minhas mãos como prova. Eu não tinha certeza do porquê e de quanto tempo eu havia permanecido pendurada na árvore. A julgar pelo estado de minhas roupas e pela intensidade de minha fome, eu deveria ter permanecido ali durante dias. Mas como acordei ali?

Agarrei algumas de minhas roupas e fui até o anexo lavar-me e trocar-me. Novamente limpa, ocorreu-me que eu não havia olhado na cozinha. Tinha a esperança persistente de que talvez Clara estivesse lá, comendo, e não tivesse ouvido meu chamado. Abri a porta, mas a cozinha estava deserta. Procurei algum alimento, e encontrei uma panela com meu ensopado favo rito no fogão; queria desesperadamente acreditar que Clara havia deixado a comida para mim. Provei­a e engasguei com um soluço sem lágrimas. Os vegetais estavam cortados finos, não em pedaços, e quase não havia carne. Percebi que não fora Clara quem fizera

o ensopado e que ela havia partido. A princípio não quis comer o ensopado, mas eu estava terrivelmente faminta. Peguei minha tigela na prateleira e enchi-a até a borda.

Só depois de comer e avaliar minha atual situação foi que me ocorreu ter esquecido de verificar um outro lugar. Corri até a caverna, com a vaga esperança de encontrar Clara ou o nagual ali. Mas não encontrei ninguém; nem mesmo Manfred. A solidão da caverna e das colinas produziu uma tristeza tão grande em mim que eu teria dado tudo no mundo para conseguir chorar. Engatinhei para dentro da caverna, sentindo o desespero de uma muda que no dia anterior conseguia falar. Quis morrer ali, naquele mesmo instante, mas acabei adormecendo.

Ao acordar, voltei para a casa. Agora que todos partiram, pensei, eu também posso partir. Fui até o local onde meu carro estava estacionado. Clara o dirigira freqüentemente e fizera a manutenção em uma oficina na cidade. Liguei o automóvel para carregar a bateria e, para minha surpresa, ele estava funcionando perfeitamente. Após colocar algumas de minhas coisas numa maleta de viagem, fui até a porta dos fundos, quando de repente uma forte pontada de culpa fez-me parar. Reli o bilhete de Nelida, no qual ela me havia pedido para cuidar da casa. Eu não podia simplesmente abandoná-la. Ela me pedira para fazer o melhor que pudesse. Senti que eles me haviam confiado uma tarefa especial e eu tinha de ficar, ainda que apenas para descobrir qual era a tarefa. Recoloquei minhas coisas no armário e deitei-me no sofá para fazer uma avaliação de mim mesma.

Os gritos que eu dera tinham definitivamente inflamado minhas cordas vocais. Minha garganta estava doendo muito; entretanto, eu parecia estar em boas condições físicas. O choque, o medo e a autopiedade haviam passado e tudo que restara fora a certeza de que alguma coisa monumental havia acontecido comigo no corredor do lado esquerdo da casa. Contudo, por mais que tentasse, não conseguia lembrar o que acontecera depois que eu havia atravessado a soleira.

Afora essas preocupações fundamentais, eu também tinha um problema grave e imediato: não sabia acender o fogão a lenha. Clara havia mostrado várias vezes como acendê-lo, mas eu simplesmente não conseguia pegar o jeito, talvez porque jamais esperara precisar fazê-lo sozinha. Ocorreu-me a solução de manter

o fogo aceso, alimentando-o a noite inteira.

Corri até a cozinha para colocar mais lenha no fogo, antes que ele apagasse. Também fervi mais água e lavei minha tigela com um pouco dela. O restante da água coloquei no filtro de calcário, que parecia um cone invertido e grosso. O enorme recipiente ficava sobre uma prateleira de ferro batido bastante firme e, gota a gota, filtrei a água fervida. Abri a torneira da água filtrada e enchi duas canecas de água. Bebi a água fresca e deliciosa e decidi voltar para a casa. Talvez Clara ou Nelida tivessem deixado outros bilhetes, explicando melhor o que eu tinha a fazer.

Procurei as chaves das portas dos quartos. Em um gabinete do corredor, encontrei um molho de chaves com nomes diferentes em cada uma delas. Escolhi uma que tinha o nome de Nelida; fiquei surpresa ao constatar que a chave abria meu quarto. Peguei depois; a chave com o nome de Clara e experimentei-a em portas diferentes, até encontrar a fechadura em que ela encaixava. Girei a chave e a; porta abriu, mas no momento de entrar no quarto e bisbilhotar, não consegui. Senti que, embora tivesse partido, ela ainda tinha direito à sua privacidade.

Fechei novamente a porta, tranquei-a e recoloquei as chaves onde encontrara. Voltei para a sala e sentei-me no chão, apoiando as costas no sofá como Nelida me havia sugerido fazer quando estivesse tensa. Definitivamente aquela posição ajudava a acalmar meus nervos. Pensei novamente em entrar no carro e ir embora. Mas na verdade eu não tinha vontade de partir. Decidi aceitar o desafio e permanecer na casa enquanto eles tivessem fora, ainda que fosse para sempre.

Como não tinha nada de especial para fazer, pensei em tentar ler. Eu havia recapitulado minhas experiências negativas iniciais com os livros e pensei que poderia colocar-me à prova para verificar se minha atitude em relação aos livros havia mudado. Fui dar uma olhada nas prateleiras de livros e descobri que a maioria dos livros era em alemão, alguns em inglês e alguns poucos em espanhol. Fiz uma rápida pesquisa e percebi que a maioria dos livros em alemão tratavam de botânica; havia também alguns sobre zoologia, geologia, geografia e oceanografia. Em outra prateleira, fora do alcance da visão, havia uma coleção de livros de astronomia, em inglês. Os livros em espanhol, em uma prateleira separada, eram de literatura, romance e poesia.

Decidi ler em primeiro lugar os livros sobre astronomia, o assunto sempre me fascinara. Escolhi um livro fino, com várias fotografias, e pus-me a folheá-lo. Mas logo ele me fez adormecer.

Quando acordei, a casa estava mergulhada na escuridão e tive de ir tateando meu caminho, em meio as trevas, até a porta dos fundos. A caminho do galpão onde ficava o gerador, percebi uma luz na cozinha Compreendi que alguém já deveria ter ligado gerador. Entusiasmada com a possibilidade de Clara ter voltado, corri até a cozinha. Ao me aproximar, ouvi um canto baixinho em espanhol. Não era Clara. Era uma voz de homem, mas não do nagual. Continuei avançando, profundamente apreensiva. Antes de chegar à porta, um homem colocou a cabeça para fora e, ao ver-me, soltou um grito. Eu gritei ao mesmo tempo. Aparentemente eu o havia assustado tanto quanto ele me deixara apavorada. Ele assomou à porta e, por um instante, permanecemos ali de pé nos olhando.

Ele era esguio mas não magro, rijo e musculoso. Tinha a minha altura, ou talvez fosse três centímetros mais alto do que eu. Vestia um macacão de mecânico, semelhante aqueles usados por empregados de posto de gasolina. Sua pele era levemente rosada. Os cabelos eram grisalhos. Tinha o nariz e o queixo pontudos, as maçãs do rosto salientes e a boca pequena. Seus olhos assemelhavam-se aos de um pássaro, escuros e redondos, mas ao mesmo tempo brilhantes e vivazes. Mal consegui distinguir a parte branca de seus olhos. Olhando para ele, tive a impressão de que não estava contemplando um velho, mas um garoto que ficara enrugado devido a alguma doença desconhecida. Ele parecia ao mesmo tempo jovem e velho, encantador e ao mesmo tempo inquietante. Consegui pedir-lhe, com o melhor espanhol que havia aprendido na escola, para fazer o favor de me explicar quem ele era e o porquê de sua presença naquela casa.

Ele me fitou com curiosidade.

— Eu falo inglês — disse com leve sotaque. — Moro há anos no Arizona com os parentes de Clara. Chamo-me Emilito; sou o caseiro. E você deve ser a moradora da árvore.

— Como?

— Você é Taisha, não é? — perguntou ele, dando alguns passos em minha direção. Movimentava-se com agilidade e desenvoltura.

— Sou. Mas o que você disse a respeito de ser moradora da árvore?

— Nelida me contou que você mora na árvore grande que fica perto da porta principal da casa É verdade?

Assenti automaticamente e só então me dei conta de uma coisa tão óbvia que apenas um macaco estúpido teria deixado de perceber: a árvore situava-se na parte da frente da casa, a área leste proibida; a região dos terrenos que eu só podia ver de meu ponto de observação nas colinas. Essa revelação provocou-me uma onda de excitação, pois percebi também que agora eu estava livre para explorar o terreno que sempre me fora proibido.

Meu prazer foi interrompido quando Emilito sacudiu a cabeça, como se lamentando por mim.

— O que você fez, pobre garota? — perguntou, dando um tapinha delicado em meu ombro.

— Não fiz nada — respondi, dando um passo atrás. A dedução clara era de que eu tinha feito algo errado, por isso fora pendurada na árvore, como forma de punição.

— Ora, ora, não quis me intrometer — sorriu ele. — Você não precisa discutir comigo. Não sou ninguém importante. Sou apenas o caseiro, um empregado. Não sou um deles.

— Não me interessa quem você é — retorqui. — Estou lhe dizendo que não fiz nada.

— Bem, se você não quer falar nada sobre isto, não há problema para mim — disse ele virando de costas para entrar novamente na cozinha.

— Não há nada a dizer — gritei, desejando dar a última palavra. Eu não tinha dificuldade em gritar com ele, algo que não me atreveria a fazer se ele fosse jovem e bonito. Surpreendi-me novamente ao gritar. —Não me cause dificuldades. Eu sou a chefe. Nelida pediu-me para cuidar desta casa. Ela disse isto em seu bilhete.

Ele deu um salto, com se tivesse sido atingido por um raio.

— Você é muito estranha — murmurou. Então pigarreou para limpar a garganta e bradou: — Não ouse aproximar-se mais. Posso; ser velho, mas sou bastante durão. Trabalhar aqui não inclui arriscar meu pescoço ou ser insultado por idiotas. Vou embora.

Eu não sabia o que estava acontecendo comigo.

— Espere um minuto — pedi, em tom de desculpas. — Não quis levantar a voz, mas estou muito nervosa. Clara e Nelida deixaram-me aqui sem qualquer aviso ou explicação.

— Bom, eu também não queria gritar—disse ele, no me tom de desculpas que eu havia usado. — Só estava tentando entender por que elas penduraram você antes de partir. Por isso perguntei se você tinha feito alguma coisa errada, Eu não quis ser intrometido.

— Mas eu lhe garanto, senhor, não fiz nada, acredite em mim.

— Por que então você está morando na árvore? Estas pessoas são extremamente sérias. Não fariam isto a você sem motivo. Além do mais, é evidente que você é uma delas. Se Nelida lhe deixa bilhetes dizendo para cuidar da casa, você tem de ser companheira dela. Ela não dedica o tempo a qualquer um.

— A verdade é que não sei por que me deixaram na árvore. Eu estava com Nelida no lado esquerdo da casa, e de repente acordei com o pescoço inclinado e pendurada nesta árvore. Fiquei aterrorizada.

Recordando minha angústia ao encontrar-me sozinha, sem ninguém nas proximidades, não consegui conter a agitação. Comecei a tremer e a suar bem na frente daquele homem estranho.

— Você estava no lado esquerdo da casa? — arregalou ele os olhos; a surpresa em seu rosto parecia genuína.

— Por um momento eu estive lá, mas então tudo escureceu — expliquei.

— E o que você viu?

— Vi pessoas no corredor. Muitas pessoas.

— Quantas você acha?

— O corredor estava cheio de gente. Talvez vinte ou trinta pessoas.

— Quantas, hem? Que estranho!

— Por que isto é estranho, senhor?

— Porque não havia tantas pessoas na casa inteira. Havia apenas dez pessoas aqui naquele momento. Eu sei porque sou o caseiro.

— O que significa tudo isto?

— Macacos me mordam se eu sei! Mas, para mim, parece haver alguma coisa muito errada com você.

Senti um nó no estômago e uma conhecida nuvem de desgraça desabar sobre mim, exatamente a mesma sensação que tive na infância, no consultório do médico, quando eles descobriram que eu estava com mononucleose. Eu não tinha a menor idéia do que era, mas soube que eu estava liquidada; e pela expressão assustada nos rostos de todos, eles pareciam saber a mesma coisa. Quando iam me dar uma injeção de penicilina, gritei tanto que desmaiei.

— Ora, ora — o caseiro falou delicadamente. — Não adianta ficar tão aborrecida. Eu não quis ferir seus sentimentos. Deixe-me contar-lhe o que sei sobre o arreio. Talvez as coisas fiquem mais claras para você. Eles usam o arreio quando a pessoa que estão tratando está... bem... com um parafuso frouxo. Se é que você entende o que estou querendo dizer.

— O que o senhor está querendo dizer?

— Pode me chamar de Emilito — falou com um sorriso — mas, por favor, não me chame de "senhor". Pode se referir a mim como caseiro, assim como todo mundo se refere a John Michael Abelar como o nagual. Bem, vamos para a cozinha sentar à mesa, onde poderemos conversar mais à vontade.

Acompanhei-o até a cozinha e sentei-me. Ele colocou um pouco da água, que estava esquentando no fogão, em minha caneca e trouxe-a para mim.

— Bem, voltemos ao arreio — começou ele, sentando-se no banco à minha frente. — Presume-se que ele cura doenças mentais. E eles costumam colocar as pessoas no arreio depois que elas enlouquecem na extremidade profunda

— Mas eu não estou louca — protestei. — Se você ou quem quer que seja vai insinuar que estou, eu vou embora.

— Mas você deve estar louca — ponderou ele.

— Chega. Vou voltar para a casa. — Fiquei de pé, pronta para partir. O caseiro me deteve.

— Espere, Taisha. Não quis dizer que você está louca. Pode haver outra explicação — disse em tom conciliador. — Essas pessoas são muito bem­intencionadas. Provavelmente elas acham que você deve reforçar seu poder mental enquanto elas estiverem fora, e não curá-la de uma doença mental. Por isso elas a colocaram no arreio. Eu errei ao chegar depressa demais a conclusões erradas. Por favor, aceite minhas desculpas.

Eu estava mais do que disposta a esquecer o que havia passado, e sentei­me novamente à mesa. Ademais, eu precisava manter boas relações com o caseiro, pois, evidentemente, ele sabia acender o fogão. E eu não tinha energia para continuar sentindo-me ofendida. Neste ponto, senti que ele tinha razão. Eu estava louca. Simplesmente não queria que o caseiro soubesse.

— Você mora perto daqui, Emilito? — perguntei, tentando parecer à vontade.

— Moro aqui na casa. Meu quarto fica em frente ao seu closet.

— Quer dizer que você mora naquele quarto de despejo cheio de esculturas e outras coisas? — surpreendi-me. — E como você sabe onde fica meu closet?

— Clara me disse — replicou ele com um sorriso.

— Mas se você mora aqui, como é que eu nunca o vi?

— Ah, é porque você e eu obviamente temos horários diferentes. Para falar a verdade, eu também nunca a tinha visto.

— Como isso é possível, Emilito? Estou aqui há mais de um ano.

— E eu estou aqui há 40 anos, com intervalos.

Ambos caímos na gargalhada ante o absurdo do que estávamos dizendo. O mais estranho é que, em nível muito profundo, eu sabia ser a presença dele que freqüentemente eu sentira na casa.

— Eu sei, Emilito, que você tem me observado — falei bruscamente. — Não negue e não pergunte como sei. E mais, sei também que você sabia quem eu era quando me viu do lado de fora da porta da cozinha. Não é?

Emilito suspirou e assentiu.

— Você tem razão, Taisha. Eu de fato reconheci você. Mas mesmo assim você realmente me assustou.

— Mas como você me reconheceu?

— Tenho observado você de meu quarto. Mas não fique zangada. Nunca pensei que você ia sentir que eu a estava observando. Peço-lhe humildemente desculpas se a deixei inquieta.

Eu queria perguntar por que ele estivera me observando. Esperava que ele dissesse que me achava bonita ou pelo menos interessante, mas ele interrompeu nossa conversa dizendo que já estava tarde e ele se sentia na obrigação de me ajudar a içar-me até a árvore.

— Permita-me fazer uma sugestão — disse ele. — Durma na casa da árvore e não no arreio. É uma experiência emocionante. Eu também ocupei outrora aquela casa na árvore por um tempo prolongado, embora há muito tempo.

Antes de sairmos, Emilito serviu-me uma tigela de deliciosa sopa e uma pilha com quatro tortilhas. Comemos em completo silêncio. Tentei puxar conversa, mas ele disse que conversar durante a refeição prejudicava a digestão. Contei-lhe que Clara e eu sempre conversávamos muito durante as refeições. — O corpo dela e o meu não são nem um pouco parecidos — murmurou ele. — Ela é feita de ferro, portanto pode fazer o que quiser com seu corpo. Eu não posso correr riscos, com meu corpinho franzino. E você também não pode.

Gostei de ter sido incluída nos corpos franzinos, embora esperasse que ele estivesse querendo dizer que eu era frágil e não franzina.

Após o jantar, ele me conduziu, solícito, através da casa até a porta da frente. Eu nunca estivera naquela parte da casa e reduzi deliberadamente o passo, tentando ver o máximo que pudesse. Avistei uma enorme sala de jantar com uma comprida mesa de banquetes e um gabinete chinês repleto de copos de cristal, copos de champanha e pratos. Ao lado da sala de jantar havia um escritório. Ao passar, entrevi uma mesa de mogno maciço e estantes repletas de livros em uma das paredes. Em outra sala, as luzes estavam acesas, mas não consegui ver o interior, pois a porta estava apenas entreaberta. Ouvi vozes abafadas na sala.

— Quem está ali dentro, Emilito?—perguntei entusiasmada.

— Ninguém — disse ele. — O que você ouviu foi o vento. Ele prega peças curiosas nos ouvidos das pessoas quando sopra através das venezianas.

Lancei-lhe um olhar "você-está-brincando", e ele abriu a porta elegantemente para que eu verificasse o interior. Ele tinha razão; a sala estava vazia. Era mais uma sala de estar, semelhante àquela do lado direito da casa. Contudo, olhando com mais atenção, percebi algo estranho nas sombras do piso. Um arrepio percorreu-me, pois eu sabia que as sombras não correspondiam à realidade. Eu poderia jurar que elas estavam agitadas, tremeluzentes, dançando, mas não havia brisa nem movimento na sala.

Sussurrando, contei a Emilito o que havia percebido. Ele soltou uma risada e deu um tapinha nas minhas costas.

— Você está falando exatamente como a Clara — observou. —Mas isto é bom. Eu ficaria preocupado se você estivesse falando como Nelida. Você sabe que ela tem poder na vulva?

A forma como ele falou, seu tom de voz e o olhar curioso e assombrado como o de um pássaro me pareceram tão divertidos que comecei a rir, sem conseguir parar. Minhas gargalhadas morreram tão repentinamente como haviam começado, como se algo dentro de mim tivesse sido desligado. Aquilo me preocupou. E também preocupou Emilito, pois ele me olhou desconfiado, como se estivesse questionando minha sanidade mental.

Ele abriu a porta principal e conduziu-me até a árvore. Ajudou-me a colocar o arreio e mostrou-me como usar as roldanas para içar-me até uma posição sentada. Deu-me uma pequena lanterna e eu icei a mim mesma. Dos galhos superiores, eu podia ver vagamente uma casa de madeira na árvore, próxima ao local em que acordara pela primeira vez com o arreio; eu não a avistara antes porque estava demasiado apavorada e devido à folhagem que a circundava.

Do chão, o caseiro iluminou diretamente a casa com a lanterna e gritou:

— Dentro da casa há uma lanterna naval, Taisha, mas não use por muito tempo. E pela manhã, antes de descer, desligue a bateria.

Ele manteve a lanterna apontada até que eu engatinhasse até uma pequena plataforma diante da casa na árvore e terminasse de soltar as correias.

— Boa noite. Agora vou embora — gritou ele. — Bons sonhos. Pensei tê-lo ouvido rindo ao afastar o facho de luz e dirigir-se para a casa principal. Entrei na casa usando minha própria lanterna, mais fraca, e procurei o que ele havia chamado de lanterna naval. Era uma enorme luz, fixada a uma prateleira; no chão havia uma grande bateria quadrada em uma caixa fixada pelas bordas. Liguei-a à luz, que acendeu.

A casa compunha-se de uma sala minúscula com um pequeno estrado elevado que servia de cama e mesa baixa. Havia um saco de dormir enrolado em cima da cama. A casa tinha janelas em todas as paredes, com venezianas presas por dobradiças que podiam ser abertas com varetas grossas dispostas no chão. A um canto da sala, havia um urinol encaixado no interior de um cesto com uma tampa presa a um lado. Após esse exame superficial do ambiente, apaguei a lanterna grande e entrei no saco de dormir.

Estava totalmente escuro. Eu podia ouvir os grilos e o ruído do regato a distância. Nas proximidades, o vento farfalhava as folhas e ondulava suavemente toda a casa. Ouvindo os sons, temores desconhecidos começaram a penetrar em minha consciência e fui tomada por sensações físicas que nunca sentira antes. A escuridão total distorcia e mascarava os sons e movimentos de maneira tão completa que eu sentia como se estivessem saindo do interior de meu corpo. A cada oscilação da casa, as solas de meus pés formigavam. Sempre que a casa estalava, a parte interna de meus joelhos contraía-se e minha nuca estalava a cada ruído dos galhos.

Por fim, o medo entrou em meu corpo na forma de tremor em meus dedos dos pés. A vibração subiu até meus pés e depois tomou minhas pernas, até que toda a região inferior de meu corpo tremia descontroladamente. Fiquei entorpecida e desorientada. Não sabia onde estavam a porta nem a lanterna. Comecei a sentir a casa inclinando-se. A princípio o movimento fora imperceptível, mas tornou-se cada vez mais forte, até parecer que o chão estava com uma inclinação de 45 graus. Soltei um berro ao sentir o estrado inclinar cada vez mais. A idéia de descer da árvore deixou-me petrificada. Estava certa de que morreria ao cair dela. Por outro lado, a sensação de inclinação era tão forte que tive certeza de que deslizaria do estrado e cairia pela porta. Em determinado momento, a inclinação tornou-se tão acentuada que me senti de pé e não deitada.

Eu soltava um grito a cada movimento brusco, agarrando-me a uma das traves laterais para não deslizar. A casa inteira parecia estar se desintegrando. O movimento deixou-me nauseada. A oscilação e os rangidos tornaram-se tão intensos que achei que aquela seria minha última noite na terra. Quando eu já havia perdido toda esperança de sair sã e salva, uma coisa inconcebível veio em meu auxílio. Uma luz jorrou de dentro de mim, saindo por todas as aberturas de meu corpo. Era um fluido luminoso compacto que me fixou ao estrado, recobrindo-me como uma armadura reluzente, pressionando minha laringe e sufocando meus gritos, mas ao mesmo tempo abrindo meu peito, permitindo-me respirar com mais facilidade. Essa luz acalmou minha náusea e interrompeu o tremor de minhas pernas, iluminando todo o ambiente, de modo que pude ver a porta a pouca distância. Aquecendo-me nessa luminosidade, fui ficando mais calma. Todos os meus temores e inquietações desapareceram até que nada mais importava. Permaneci deitada, totalmente silenciosa e tranqüila, até o amanhecer. Completamente renovada, desci até o chão e fui para a cozinha preparar meu café da manhã.

 

Encontrei um prato de tamales sobre a mesa da cozinha. Compreendi que Emilito os havia preparado para mim, mas ele não estava nas redondezas. Coloquei um pouco de água em minha caneca e comi todos os tamales, na esperança de que o caseiro já tivesse tomado o café da manhã.

Depois de lavar o prato, fui trabalhar na horta, mas logo me cansei. Preparei um ninho de folhas para mim debaixo de uma árvore, da maneira como Clara me havia mostrado, e sentei-me sobre ele para descansar. Durante algum tempo observei os ramos oscilantes da árvore sobre mim. E o movimento daqueles galhos levou-me de volta à minha infância. Devia estar com quatro ou cinco anos; segurava um punhado de ramos de salgueiro. Eu não estava exatamente recordando; eu estava realmente lá. Eu estava balançando, os pés mal tocando o chão. Eu estava me balançando; soltava gritinhos de prazer enquanto meus irmãos se revezavam para me empurrar. Então eles saltavam para agarrar os galhos mais altos, juntavam os joelhos, balançavam-se de um lado para outro, abaixando os pés apenas para dar impulso.

Quando terminou, respirei em todas as imagens que estava revivendo; a alegria, as risadas, os sons, os sentimentos que nutria por meus irmãos. Afastei o passado com um movimento de minha cabeça. Pouco a pouco minhas pálpebras foram ficando pesadas. Acomodei-me em meu ninho de folhas e mergulhei em sono profundo.

Fui despertada por uma forte pressão em minhas costelas. O caseiro estava me cutucando com uma bengala.

— Acorde, a tarde já vai avançada — falou ele. — Você não dormiu bem ontem à noite na casa da árvore?

Quando abri os olhos, um raio de luz iluminou a copa da árvore, conferindo-lhe tons alaranjados. O rosto do caseiro também se iluminou com um fulgor estranho que o tornava sinistro. Ele estava usando o mesmo macacão azul do dia anterior, e havia três garrafas dependuradas em seu cinturão. Sentei-me e observei-o retirar cuidadosamente a rolha da maior delas, levá-la à boca e dar um gole, estalando os lábios com satisfação.

— Você não dormiu bem ontem à noite? — voltou ele a perguntar, olhando-me com curiosidade.

— Está brincando? — gemi. — Posso dizer com toda sinceridade que foi uma das piores noites da minha vida.

Uma torrente de reclamações chorosas começaram a jorrar de dentro de mim. Parei, horrorizada, ao perceber que estava falando como minha mãe. Sempre que eu lhe perguntava se ela havia dormido bem, mamãe apresentava um discurso de descontentamento semelhante. Eu a detestara por isso, e pensar que eu estava fazendo a mesma coisa!

— Por favor, Emilito, perdoe-me por meu desabafo banal — falei. — É verdade que não preguei o olho, mas estou bem.

— Ouvi você gritando como uma banshee* — arriscou ele. — Achei que, ou você estava tendo um pesadelo ou estava caindo da árvore.

— Eu achei que estava caindo da árvore — afirmei, desejando um pouco de solidariedade. — Quase morri de medo. Mas aí aconteceu uma coisa estranha e consegui atravessar a noite.

— Que coisa estranha aconteceu? — perguntou ele, curioso, sentando-se no chão a uma distância segura de mim.

Não vi razão para ocultar-lhe a história, portanto, descrevi todos os acontecimentos da noite com o maior número de detalhes, culminando com a luz que viera salvar-me. Emilito ouviu com verdadeiro interesse, assentindo nas ocasiões apropriadas, como se compreendesse os sentimentos que eu estava descrevendo.

— Fico contente em saber que você é tão habilidosa — falou ele. — Eu realmente não esperava que você conseguisse suportar a noite. Pensei que fosse desmaiar. E tudo isso mostra que você não. está tão mal quanto disseram que estava.

— Quem disse que eu estava mal?

— Nelida e o nagual. Eles me deixaram instruções específicas para não interferir em sua cura. Por isso não fui ajudá-la ontem à noite, embora tenha ficado profundamente tentado... pelo menos para ter um pouco de paz e silêncio.

Ele deu outro gole em sua garrafa.

— Quer dar um gole? — perguntou ele oferecendo-me a garrafa.

— O que tem aí dentro? — perguntei, imaginando se seria bebida alcoólica. Nesse caso, eu não me incomodaria de bebericar um pouco.

Ele hesitou por um instante e por fim virou a garrafa para baixo, sacudindo-a.

— Está vazia — zombei. — Você estava tentando me pregar uma peça. Ele sacudiu a cabeça.

— Ela só parece vazia — retorquiu. — Mas está cheia até a borda com a mais estranha de todas as bebidas. Bom, você quer experimentar ou não?

— Não sei — respondi. Por um instante fiquei pensando se ele estaria brincando comigo. Olhando para Emilito, com seu macacão azul bem passado e as garrafas presas ao cinto, tive a impressão de que havia fugido de algum manicômio.

Ele deu de ombros e fitou-me de olhos espantados. Observei-o recolocar a rolha na garrafa e prendê-la a seu cinto com uma tira de couro fina.

— Está bem, deixe-me dar um gole — falei, impelida pela curiosidade e o repentino desejo de descobrir qual era seu jogo.

Ele abriu a garrafa novamente e estendeu-a para mim. Sacudi-a e verifiquei seu interior. Estava realmente vazia Mas quando a levei aos lábios, tive uma sensação oral totalmente desconhecida. O que quer que estivesse fluindo para minha boca era de algum modo um líquido, mas não se parecia em nada com água Assemelhava-se mais a uma pressão seca, quase amarga, que me sufocou por um instante e por fim encheu minha garganta e todo meu corpo com um calor fresco.

Ocorreu-me que a garrafa tinha um pó fino que havia entrado em minha boca. Para saber se era verdade, sacudi-a sobre a palma de minha mão, mas não saiu nada.

— Não há nada na garrafa que os olhos possam ver — explicou o caseiro, observando minha surpresa.

Dei outro gole imaginário e fui sacolejada dos pés à cabeça. Alguma coisa elétrica percorreu todo meu corpo, fazendo meus dedos dos pés formigarem. O formigamento subiu para minhas pernas, passou pela coluna como um raio e, quando chegou à cabeça, quase desmaiei.

Vi o caseiro saltar sem parar, rindo como um garoto. Agarrei-me ao solo para firmar-me com as mãos. Quando já havia recuperado um pouco do equilíbrio, interpelei-o furiosa.

— Que diabos tem nessa garrafa? — exigi saber.

— Aquilo que é chamado de "intenção" — falou ele com seriedade. — Clara lhe falou um pouco a respeito. Agora cabe a mim falar mais um pouco.

— O que quer dizer com agora cabe a mim, Emilito?

— Quero dizer que eu sou seu novo professor. Clara realizou parte desse trabalho e eu devo fazer o resto.

Minha primeira reação foi simplesmente de descrença. Ele mesmo havia dito que era apenas um empregado e não fazia parte do grupo. Evidentemente era uma brincadeira e eu não ia mais cair em nenhum de seus truques.

— Você está apenas pegando no meu pé, Emilito — falei, forçando um sorriso.

— Agora estou — disse ele, dando um salto e realmente puxando meu pé.

Antes que eu pudesse me levantar, ele comemorou a própria piada segurando novamente o meu pé. Estava tão entusiasmado que ficou saltando de cócoras como um coelho, rindo alegremente.

— Você não gosta que seu professor pegue no seu pé? — falou ele, dando uma risadinha.

Eu não gostava que ele me tocasse e ponto final. Principalmente meu pé. Mas eu também não gostava que Clara me tocasse. Comecei a brincar com o porquê da minha aversão a ser tocada. Não obstante a recapitulação de todos os meus encontros com as pessoas, meu sentimento com relação ao contato físico continuava tão forte quanto antes. Guardei esse problema para análise futura, pois o caseiro havia se sentado e estava começando a explicar algo que exigia toda minha atenção.

— Eu sou seu professor — ouvi-o dizer. — Além de Clara, Nelida e o nagual, você tem a mim para orientá-la.

— Você não passa de um monte de desinformação, isto é o que você é — disparei. — Você mesmo me disse que é apenas um caseiro contratado. Então, que história é essa de que é meu professor?

— É verdade. Sou realmente seu outro professor — falou-me com seriedade.

— O que você poderia ensinar-me? — gritei, totalmente desgostosa com tal perspectiva.

— O que tenho a ensinar-lhe chama-se "rastejar com o duplo" — anunciou ele, piscando como um pássaro.

— Onde estão Clara e Nelida? — interpelei-o.

— Elas foram embora. Nelida disse isso no bilhete, não disse?

— Sei que foram embora, mas exatamente para onde foram?

— Ah, elas foram para a Índia — falou ele com um sorriso largo que parecia ocultar o desejo incontrolável de cair na gargalhada.

— Então vão demorar meses para voltar—observei, sentindo-me infeliz.

— Certo. Você e eu estamos sozinhos. Nem mesmo o cachorro está aqui. Você tem, portanto, duas opções. Pode juntar suas coisas e ir embora ou ficar aqui comigo e trabalhar. Eu não a aconselho a escolher a primeira opção, pois você não tem para onde ir.

— Eu não tenho a menor intenção de partir — informei a Emilito. — Nelida encarregou-me de tomar conta da casa e é o que vou fazer.

— Ótimo. Fico satisfeito porque você decidiu seguir a intenção dos feiticeiros — disse ele.

Como para Emilito devia ser óbvio que eu não havia entendido, ele explicou que a intenção dos feiticeiros difere da maioria das pessoas, pois os feiticeiros aprenderam a concentrar sua atenção com força e precisão infinitamente maiores.

— Se você é meu professor, pode me dar um exemplo concreto para ilustrar o que está querendo dizer? — pedi, os olhos cravados em Emilito.

Ele pensou por um momento, olhando em torno. Seu rosto iluminou-se e ele apontou para a casa.

— Esta casa é um bom exemplo — disse. — É o resultado da intenção de incontáveis feiticeiros que acumularam energia e a congregaram em um único fim ao longo de muitas gerações. Agora esta casa deixou de ser apenas uma estrutura física, para ser também um fantástico campo energético. A casa em si poderia ser destruída 10 vezes, e já o foi, mas a essência da intenção dos feiticeiros permanece intacta, pois é indestrutível.

— O que acontece quando os feiticeiros querem partir? — perguntei. — O poder deles fica aprisionado aqui para sempre?

— Se o espírito lhes diz para partir — disse Emilito —, eles são capazes de retirar a intenção do local onde está a casa no momento e colocá-la em outra parte.

— Tenho de concordar que a casa realmente é fantasmagórica — aquiesci e contei-lhe como ela resistira a minhas avaliações e cálculos minuciosos.

— O que torna essa casa fantasmagórica não é a disposição dos quartos, das paredes ou dos pátios — observou o caseiro —, mas a intenção de gerações de feiticeiros que está depositada aqui. Em outras palavras, o mistério desta casa é a história de incontáveis feiticeiros cuja intenção promoveu a sua construção. Eles não apenas tiveram a intenção, percebe, mas construíram-na pessoalmente, tijolo por tijolo. Até você contribuiu com sua intenção e seu trabalho para a casa.

— Qual seria minha contribuição? — perguntei, sinceramente surpresa com a afirmação de Emilito. — Você não pode estar se referindo àquele caminho torto que fiz no jardim.

— Ninguém em sã consciência poderia chamar aquilo de contribuição — riu ele. — Não, você deu algumas outras contribuições. Emilito observou que, no nível mundano de tijolos e estruturas, ele considerava como minha contribuição a cuidadosa fiação elétrica, os encanamentos e a proteção de cimento da bomba de água que eu havia instalado para bombear água do regato para a colina, chegando até a horta.

— No nível de fluxo energético mais etérico — prosseguiu ele —, posso lhe dizer, com toda sinceridade, que uma de suas contribuições é que nunca antes eu tinha testemunhado alguém nesta casa fundir sua intenção com Manfred.

Neste momento algo me veio à mente.

— É você que pode chamá-lo de "sapo" livremente? — perguntei.—Uma vez Clara me disse que alguém podia fazer isso.

O rosto do caseiro iluminou-se e ele fez que sim com um movimento da cabeça.

— Sou eu, sim. Eu encontrei Manfred quando ainda era filhote. Ele tinha sido abandonado ou fugira, talvez de algum trailer que passava pela região. Quando o encontrei, ele estava quase morto.

— Onde você o encontrou? — perguntei.

— Na Rodovia 8, a cerca de 90 quilômetros de Gila Bend, no Arizona. Eu tinha parado no acostamento para ir ao matinho e realmente fiz xixi no cãozinho. Ele estava deitado, quase morto de desidratação. O que mais me impressionou é que ele não havia corrido para a rodovia, como poderia ter feito facilmente. E, é claro, que ele estava deitado exatamente no local onde fui fazer xixi.

— E aí, o que aconteceu? — perguntei. Eu estava tão solidária com as dificuldades que o pobre Manfred havia passado que esqueci toda minha raiva do caseiro.

— Trouxe Manfred para casa e coloquei-o na água, mas não permiti que bebesse — explicou o caseiro. — Em seguida ofereci-o à intenção dos feiticeiros.

Emilito disse que cabia à intenção dos feiticeiros decidir não apenas se Manfred ia viver ou morrer, mas se ele seria um cão ou outra coisa. E ele viveu e transformou-se em algo mais do que um cão.

— O mesmo aconteceu com você. Talvez por isso vocês dois tenham se dado tão bem. O nagual encontrou-a espiritualmente desidratada, pronta para destruir a própria vida. Como ele estava no drive-in com Nelida, cabia a eles oferecê-la à intenção dos feiticeiros, e foi o que fizeram.

— Como eles me ofereceram à intenção dos feiticeiros? — perguntei.

— Eles não lhe contaram isso? — indagou ele, surpreso. Pensei por um instante antes de responder.

— Acho que não.

— O nagual e Nelida convocaram a intenção em voz alta, sem dúvida ali mesmo na lanchonete, e anunciaram que estavam colocando suas vidas à sua disposição, sem hesitação nem arrependimentos, sem reter nada. E os dois souberam imediatamente que não poderiam levá-la com eles naquele momento, mas teriam de segui-la aonde você fosse. Então agora você pode dizer que a intenção dos feiticeiros envolveu-a. A invocação do nagual e de Nelida funcionou. Veja onde você está!

Ele olhou para mim, a fim de verificar se eu estava acompanhando sua argumentação. Retribuí o olhar, pedindo silenciosamente uma elucidação mais precisa a respeito da intenção dos feiticeiros. Ele passou para um tom mais pessoal e disse que, caso tomasse tudo que eu dissera a Clara sobre mim como exemplo de intenção, ele iria concluir que minha intenção é de derrota total. Eu sempre tivera a intenção de ser uma fracassada louca e desesperada.

— Clara me transmitiu tudo que você contou a ela sobre si — falou, dando um pequeno estalido com a língua. — Por exemplo, eu diria que você saltou para aquela arena no Japão não para demonstrar sua habilidade nas artes marciais, mas para provar ao mundo que sua intenção é perder.

Ele investiu contra mim, afirmando que tudo que eu fizera fora maculado pela derrota. Portanto, a coisa mais importante que eu tinha a fazer agora era estabelecer uma nova intenção. Explicou que esta nova intenção era chamada de intenção dos feiticeiros porque não se tratava simplesmente da intenção de fazer alguma coisa nova, mas da intenção de juntar-se a algo já estabelecido: uma intenção que vem ao nosso encontro através de milhares de anos de faina­humana.

Explicou ainda que, nesta intenção dos feiticeiros, não havia lugar para a derrota, pois os feiticeiros têm um único caminho aberto para eles: a vitória em tudo que fizerem. Entretanto, para alcançar esta visão tão clara e poderosa, os feiticeiros têm de recompor todo seu ser, o que exige compreensão e poder. A compreensão provém da recapitulação de suas vidas, e o poder é obtido dos seus atos impecáveis.

Emilito olhou para mim e fechou sua garrafa. Explicou que nela ele havia armazenado seus sentimentos impecáveis, e que havia me concedido esta intenção dos feiticeiros para que eu bebesse e neutralizasse minha atitude derrotista, preparando-me para suas instruções. Disse outra coisa ainda, mas não consegui prestar atenção; sua voz começou a deixar-me sonolenta. Meu corpo ficou pesado repentinamente. Concentrando-me em seu rosto, vi apenas uma névoa esbranquiçada, como a bruma ao entardecer. Ouvi-o pedir-me para deitar­me e retirar minha rede etérica, relaxando gradualmente meus músculos.

Compreendi o que ele queria que eu fizesse e automaticamente segui suas instruções. Deitei-me e comecei a transferir minha percepção de meus pés para cima, passando pelos tornozelos, pernas, joelhos, coxas, abdômen e costas. Então relaxei meus braços, ombros, pescoço e cabeça. Transferindo minha consciência para as diversas partes de meu corpo, senti-me cada vez mais sonolenta e pesada.

Por fim, o caseiro ordenou que eu fizesse pequenos círculos no sentido anti-horário com meus olhos, girando-os para baixo e para cima na minha cabeça. Continuei relaxando, até que minha respiração tornou-se lenta e ritmada, expandindo-se e contraindo-se por si mesma. Eu estava me concentrando nas ondas tranqüilizadoras de minha respiração, quando ele sussurrou que eu devia transferir minha consciência de minha testa para um ponto mais elevado que ­pudesse e fizesse uma pequena abertura aí.

— Que tipo de abertura? — murmurei.

— Simplesmente uma abertura. Um buraco.

— Um buraco em quê?

— Um buraco no nada no qual sua rede está suspensa — replicou ele. — Se você puder levar sua consciência para fora de seu corpo, perceberá que a escuridão a envolve por completo. Tente perfurar essa escuridão; faça um buraco nessa escuridão.

— Acho que não consigo — falei, retesando-me.

— Claro que consegue — assegurou-me ele. — Lembre-se, os feiticeiros nunca são derrotados, só podem vencer.

Ele se inclinou em minha direção e explicou, com um sussurro, que, depois de fazer a abertura, eu deveria enrolar meu corpo como um pergaminho e deixar-me catapultar ao longo de uma linha que se estendia do topo da minha cabeça até a escuridão.

— Mas estou deitada — protestei debilmente. — O topo da minha cabeça está quase tocando o chão. Não tenho de ficar em pé?

— A escuridão está em torno de nós — explicou ele. —, Mesmo se estivermos de ponta-cabeça, ela continuará.

Ele mudou o tom de sua voz, tornando-a exigente e dura e ordenando que eu me concentrasse no buraco que acabara de fazer e deixasse meus pensamentos e sentimentos fluírem através da abertura. Novamente meus músculos se enrijeceram, pois eu não tinha feito nenhum buraco. O caseiro pediu-me para relaxar, entregar-me e agir e sentir como se eu tivesse feito o buraco.

— Jogue fora tudo que está dentro de você — disse ele. — Deixe que seus pensamentos, sentimentos e lembranças fluam para fora.

Relaxei e liberei a tensão de meu corpo. Senti uma onda de energia percorrer-me. Eu estava sendo virada de dentro para fora; tudo estava sendo puxado pelo topo da minha cabeça, percorrendo uma linha, como uma cascata invertida. Ao termo dessa linha, senti uma abertura.

— Permita-se ir ainda mais fundo — sussurrou ele em meu ouvido. — Ofereça todo seu ser ao nada.

Fiz o possível para seguir suas sugestões. Todos os pensamentos que surgiam em minha mente imediatamente juntavam-se à cascata no topo da minha cabeça. Ouvi vagamente o caseiro dizendo que, se eu quisesse me mexer, bastava dar a ordem a mim mesma e a linha me puxaria para onde eu quisesse ir. Antes que eu pudesse dar o comando, senti uma pressão suave mas persistente em meu lado esquerdo. Relaxei e permiti que a sensação continuasse, A princípio, apenas minha cabeça parecia estar sendo puxada para a esquerda, depois o resto do corpo lentamente girou para a esquerda. Senti-me caindo para o lado, no entanto, percebi que meu corpo não havia se mexido realmente. Ouvi um ruído surdo por trás de meu pescoço e vi a abertura aumentar. Eu queria rastejar para o interior, esgueirar-me pela abertura e desaparecer. Senti uma profunda agitação em meu íntimo; minha consciência começou a percorrer a linha no topo da minha cabeça, deslizando pela abertura.

Senti-me no interior de uma caverna gigantesca. Suas paredes aveludadas me envolveram; estava escuro. Minha atenção foi atraída por um ponto luminoso que acendia e apagava como um vaga-lume, aparecendo e desaparecendo sempre que eu me concentrava nele. Por fim, a área à minha frente foi iluminada por uma luz intensa Então, gradativamente, tudo escureceu de novo. Minha respiração pareceu cessar por completo e nem pensamentos nem imagens perturbaram a escuridão. Deixei de sentir meu corpo. Meu último pensamento foi de que eu tinha me dissolvido.

Senti um estalido abafado. Meus pensamentos retornaram de uma só vez, desmoronando sobre mim como uma montanha de entulho, e com eles veio a consciência do chão duro, da rigidez de meu corpo e de algum inseto picando meu tornozelo. Abri os olhos e olhei em volta; o caseiro havia tirado meus sapatos e minhas meias e estava massageando as solas de meus pés com uma vareta para reanimar-me. Eu queria contar-lhe o que havia acontecido, mas ele sacudiu a cabeça.

— Não fale nem se mexa até estar novamente sólida — avisou-me. Pediu­me para fechar os olhos e respirar com o abdômen.

Permaneci deitada no chão até sentir que havia recuperado minhas forças; então me sentei, recostando-me no tronco de uma árvore.

— Você abriu uma fenda na escuridão e seu duplo deslizou para a esquerda e entrou por ela — disse o caseiro, antes que eu pudesse perguntar alguma coisa,

— Senti uma força poderosa puxando-me — admiti. — E vi uma luz intensa.

— Essa força era seu duplo saindo — explicou ele, como se soubesse exatamente do que eu estava falando. — E a luz era o olho do duplo. Como você está fazendo a recapitulação há mais de um ano, também está, ao mesmo tempo, lançando suas linhas de energia e agora elas estão começando a se movimentar sozinhas. Mas, como você ainda está envolvida com a fala e o pensamento, essas linhas de energia não se movem com tanta facilidade e tão completamente como algum dia se moverão.

Eu não tinha a menor idéia do que Emilito queria dizer quando falou que eu estava lançando linhas de energia durante a recapitulação. Pedi-lhe para explicar.

— O que há para explicar? — indagou ele. — É uma questão de energia; quanto mais energia você recupera através da recapitulação, mais fácil se torna para essa energia recuperada nutrir seu duplo. Enviar energia para o duplo é aquilo que chamamos de lançar linhas de energia. Alguém capaz de ver a energia irá percebê-la como linhas saindo do corpo físico.

— Mas o que significa isto para alguém como eu, que não vê a energia?

— Quanto maior sua energia — explicou ele —, maior sua capacidade de perceber coisas extraordinárias.

— Acho que comigo está acontecendo o seguinte: quanto maior minha energia se torna, mais louca eu fico — anunciei sem querer fazer brincadeira.

— Não fale mal de si mesma de maneira tão casual — observou ele. — A percepção é o mistério máximo, pois é totalmente inexplicável. Os feiticeiros, como seres humanos, são criaturas perceptivas, mas o que percebem não é bom nem mau; tudo é apenas percepção. Se os seres humanos, através da disciplina, podem perceber mais do que habitualmente lhes é permitido, isto significa mais poder para eles. Entende o que quero dizer?

Ele se recusou a dizer mais alguma coisa. Ao contrário, conduziu-me através da casa até a porta dianteira e depois até minha árvore. Apontou para os galhos superiores e afirmou que, como aquela árvore especificamente tinha uma casa, ela estava equipada com um pára-raios.

— Nesta região, os raios são repentinos e perigosos — explicou. — Acontecem tempestades de raios mesmo sem uma gota de chuva, portanto, quando chover ou quando houver muitas nuvens cúmulos-nimbos no céu, vá para a casa na árvore.

— Quando houver muitas o quê? — repeti.

Emilito soltou uma risada e deu-me um tapinha delicado nas costas.

— Quando o nagual Julian me colocou numa casa de árvore, disse-me a mesma coisa, mas naquela época eu não me atrevi a perguntar o que ele estava querendo dizer. E ele também não explicou. Descobri, muito depois, [3]que ele se referia a nuvens de tempestade.

Ele riu ante minha expressão de desalento.

— Há perigo de um raio atingir a árvore? — perguntei.

— Bem, haver há, mas sua árvore é segura. Agora, vá para lá enquanto ainda há luz.

Antes que eu me içasse, ele me deu um saco de nozes partidas mas na casca. Explicou que, se eu tinha de ser uma habitante da árvore, deveria alimentar-me como um esquilo, pequenas porções de cada vez e nada à noite.

Para mim estava ótimo, expliquei-lhe, pois eu nunca gostara realmente de comer.

— Você gosta de fazer coco? — perguntou com uma risadinha. — Espero que não, pois o pior de viver numa casa de árvore é quando você tem de evacuar. O excremento humano é difícil de lidar. Minha filosofia é que, quanto menos você tiver para evacuar, melhor para você.

Ele achou suas afirmações tão engraçadas que se curvou de tanto rir. Ainda rindo, virou-se e deixou-me pensando em sua filosofia.

 

Naquela noite choveu, com trovões e raios. Não tenho palavras para explicar como foi permanecer numa casa de árvore enquanto raios e mais raios riscavam o céu e caíam nas árvores à minha volta. Meu medo era indescritível. Gritei ainda mais alto do que na primeira noite, quando senti minha cama-estrado virando. Era um pavor animal que me paralisava. A única idéia que tive foi de que sou uma covarde natural e, quando a tensão é grande demais, eu sempre desmaio.

Só recobrei a consciência por volta de meio-dia da manhã seguinte. Quando desci, encontrei Emilito à minha espera, sentado em um galho baixo com os pés quase tocando o chão.

— Você parece um morcego vindo do inferno — comentou ele. — O que aconteceu ontem à noite?

— Quase morri de medo — falei. Eu não ia me fingir de durona ou de corajosa. Estava me sentindo exatamente como devia estar minha aparência, um farrapo humano.

Expliquei-lhe que, pela primeira vez na vida, eu sentira pena dos soldados na batalha; eu tinha sentido o mesmo medo que eles deviam experimentar com as bombas explodindo à sua volta.

— Discordo — falou ele. — Seu medo ontem à noite era ainda maior. O que estava atirando em você não era humano, portanto, no nível do duplo, era um medo gigantesco.

— Por favor, Emilito, explique o que está querendo dizer com isto.

— Seu duplo está prestes a tornar-se consciente, portanto, em condições de estresse, como ontem à noite, ele se torna parcialmente consciente, mas também completamente aterrorizado. Ele não está acostumado a perceber o mundo. Seu corpo e sua mente estão habituados, mas seu duplo não.

Eu estava certa de que, se estivesse preparada para a tempestade, teria relaxado e, se meu medo e meus pensamentos sobre ela não tivessem interferido, alguma força dentro de mim teria saído completamente de meu corpo e talvez teria até mesmo ficado de pé, caminhado ou descido da árvore. O que mais me assustou foi a sensação de estar encurralada, aprisionada dentro de meu corpo.

— Quando entramos na escuridão absoluta, onde não existem distrações — disse o caseiro —, o duplo assume o comando. Ele amplia seus membros etéricos, abre seus olhos luminosos e vê o que está em volta. Às vezes, essa experiência pode ser ainda mais assustadora do que aquilo que você sentiu ontem à noite.

— O duplo não pode ser tão assustador — garanti. — Estou pronta para ele.

— Você ainda não está pronta para nada — redargüiu ele. — Posso apostar que seus gritos, ontem à noite, podiam ter sido ouvidos até em Tucson.

Seu comentário deixou-me aborrecida. Havia algo nele que não me agradava, mas não conseguia definir o que era. Talvez porque ele tinha uma aparência muito estranha. Não era másculo; parecia uma mera sombra de um homem, no entanto, era sutilmente forte. Mas o que realmente me incomodava era o fato de que ele não me deixara intimidá-lo, o que irritava profundamente meu lado competitivo. Tomada de um acesso de raiva, perguntei, agressivamente:

— Como você se atreve a me contradizer cada vez que digo alguma coisa de que você não gosta? — Mal pronunciei essas palavras, arrependi-me e desculpei-me insistentemente por minha agressividade. — Não sei por que fico tão irritada com você — acabei confessando.

— Não se sinta mal — disse ele. — É porque você sente algo em mim que não pode explicar. Como você mesma colocou, não sou másculo.

— Eu não disse isso — protestei.

Pela expressão em seu rosto, era evidente que ele não acreditou em mim.

— Claro que disse — insistiu. — Você disse isso ao meu duplo há um segundo. Meu duplo nunca comete erros ou interpreta mal as coisas.

Meu nervosismo e constrangimento chegaram ao auge. Eu não sabia o que dizer. Meu rosto estava vermelho e meu corpo tremia. Não conseguia entender o que havia ocasionado uma reação tão exagerada de minha parte. A voz do caseiro interrompeu meus pensamentos.

— Você está reagindo assim porque seu duplo está percebendo o meu duplo — disse ele. — Seu corpo físico está assustado porque seus portais estão se abrindo e novas percepções estão aflorando. Se você acha que está se sentindo mal agora, imagine como vai se sentir pior quando todos os portais estiverem abertos.

Falou de maneira tão convincente que fiquei pensando se ele estaria certo

— Animais e crianças — continuou ele — não têm dificuldade em perceber o duplo e freqüentemente são perturbados por ele.

Mencionei que os animais não gostavam muito de mim e que, com exceção de Manfred, a recíproca era verdadeira.

— Os animais não gostam de você — esclareceu ele — porque alguns portais de seu corpo nunca foram completamente fechados e seu duplo está lutando para sair. Prepare-se. Agora que você está direcionando deliberadamente sua intenção para isso, eles vão se abrir. Qualquer dia desses seu duplo vai despertar de uma só vez e você poderá se ver no pátio sem ter caminhado.

Tive de rir, em grande parte devido ao nervosismo e ao absurdo que ele estava sugerindo.

— E quanto às crianças, especialmente os bebês? — perguntou ele. — Elas não gritam quando você as pega no colo? Em geral sim, mas eu não disse ao caseiro.

— Os bebês gostam de mim — menti, sabendo muito bem que, nas poucas ocasiões em que estivera com bebês, eles começaram a chorar assim que me aproximei. Eu sempre dissera a mim mesma que isto acontecia porque eu não tinha instinto materno.

O caseiro sacudiu a cabeça, incrédulo. Desafiei-o a explicar como os animais e as crianças podiam sentir o duplo, se eu mesma não sabia que ele existia em mim. Na verdade, até Clara e o nagual falarem a respeito, eu nunca tinha ouvido falar em tal coisa. Tampouco havia conhecido alguém que tivesse conhecimento do duplo. Ele discordou, afirmando que aquilo que os animais e as crianças sentem nada tem a ver com conhecimento, mas com o fato de que eles possuem o equipamento para sentir: seus portais abertos. Ele acrescentou que esses portais estão permanentemente receptivos aos animais, mas que os seres humanos fecham os seus Assim que começam a falar e a pensar, e seu lado racional assume o comando.

Até então eu concedera total atenção ao caseiro porque Clara me tinha dito que, quem quer que estivesse conversando comigo e o que quer que estivesse dizendo, o exercício consistia em ouvir. Entretanto, quanto mais eu ouvia Emilito, mais irritada ficava, até que percebi a mim mesma lutando com uma fúria genuína.

— Não acredito em nada disso — falei. — Afinal de contas, por que você afirma ser meu professor? Você ainda não deixou isto claro. O caseiro deu uma risada.

— Certamente não me ofereci como voluntário para o posto — brincou.

— Então quem o designou?

Após uma pausa pensativa, ele disse:

— É uma longa cadeia de circunstâncias. O primeiro elo dessa corrente foi estabelecido quando o nagual encontrou você nua e com as pernas para o ar — explodiu em gargalhadas estridentes como o piar de um pássaro.

Fiquei profundamente magoada com seu senso de humor ofensivo.

— Vá direto ao ponto, Emilito, e diga-me o que está acontecendo — gritei.

— Sinto muito, achei que você ia gostar de ouvir um relato de seus feitos, mas percebo que errei. Nós, por outro lado, nos divertimos imensamente com nossas extravagâncias. Durante anos rimos dos problemas e dificuldades que John Michael herdou por ter entrado no lugar errado e encontrado uma garota nua, quando tudo que queria era fazer xixi. — Ele se curvou de tanto rir.

Eu não estava achando a menor graça. Minha fúria era tão descomunal que sentia vontade de avançar sobre ele, esmurrá-lo e chutá-lo. Emilito olhou para mim e recuou, sem dúvida sentindo que eu estava prestes a explodir.

— Você não acha engraçado que John Michael tenha passado pelo inferno com o problema que herdou, só porque queria fazer xixi? O nagual e eu temos isso em comum: enquanto eu encontrei apenas um filhote semimorto, ele encontrou uma garota completamente maluca. E ambos nos tornamos responsáveis por eles para o resto de nossas vidas. Vendo o que havia acontecido conosco, os membros de nosso grupo ficaram tão assustados que juraram nunca mais urinar antes de verificarem repetidamente o lugar. — Continuou a rir tanto que precisou tomar cuidado para não engasgar.

Percebendo que eu não estava rindo, ele silenciou.

— Bem... vamos continuar — falou, recompondo-se. — Uma vez estabelecido o primeiro elo, quando ele a encontrou de pernas para o ar, o dever do nagual era marcá-la, o que ele fez imediatamente. A partir daí ele tinha de segui-la. Ele usou Clara e Nelida para ajudá-lo. Na primeira vez que ele e Nelida foram visitá-la, era verão e você havia concluído o segundo grau e trabalhava como supervisora em um balneário nas montanhas.

— É verdade que ele me encontrou através de um canal de energia? — perguntei, tentando não parecer condescendente.

— Certamente. Ele havia marcado seu duplo com um pouco de sua própria energia, assim ele poderia seguir seus movimentos.

— Não me lembro de tê-lo visto — argumentei.

— É porque você sempre achou que estava tendo sonhos recorrentes. Mas na verdade os dois foram vê-la pessoalmente. E continuaram a visitá-la em muitas ocasiões ao longo dos anos, sobretudo Nelida. Finalmente, quando você foi morar no Arizona, seguindo a sugestão dela, todos nós tivemos a oportunidade de visitá-la.

— Espera aí, isto está ficando estranho demais. Como pude seguir a sugestão de Nelida se nem me lembro de tê-la encontrado?

— Acredite em mim, ela insistia em que você fosse morar no Arizona, e você foi, mas é claro que você pensou estar decidindo sozinha.

À medida que o caseiro falava, minha mente recordava aquele período de minha vida. Lembrei-me de ter achado que deveria ir para o Arizona. Usei a técnica de contemplar o horizonte meridional para decidir aonde ir procurar emprego e recebi uma forte sensação de que deveria rumar para Tucson. Tive inclusive um sonho no qual alguém me dizia que eu devia trabalhar numa livraria. Eu não apreciava os livros e achei estranho trabalhar com eles, mas, quando cheguei a Tucson, fui diretamente a uma livraria que exibia uma placa "Precisa-se de Funcionária". Consegui o emprego, que consistia em datilografar formulários, cuidar da caixa registradora e colocar os livros nas estantes.

— Quem quer que fosse visitá-la — prosseguiu Emilito — sempre entrava em contato com seu duplo, por isso você tem apenas uma vaga lembrança de nós, com exceção de Nelida. Você a conhece como a palma de sua mão.

Tantas pessoas entravam na livraria, mas lembrei-me vagamente de uma bela mulher, elegantemente vestida, que entrou na livraria certa vez e falou-me amigavelmente, o que era raro, pois mais ninguém prestava atenção em mim. Poderia muito bem ter sido Nelida.

Num nível profundo, tudo que Emilito havia dito fazia sentido. Mas para minha mente racional, parecia um disparate tão grande que eu teria de estar louca para acreditar nele.

— O que você está dizendo é uma bela porcaria — falei, mais defensiva do que pretendera.

Minha reação dura não o deixou nem um pouco perturbado. Ele alongou os braços sobre a cabeça e girou-os em círculo.

— Se o que eu disse é realmente uma bela porcaria, eu a desafio a explicar o que está acontecendo com você — sugeriu com um sorriso largo. — E não tente bancar a garotinha comigo e chorar e enrubescer. Ouvi minha voz esganiçada gritar:

— Você é um merda, seu maldito... — E minha fúria veemente acabou aí.

Mal podia crer que estivesse vociferando obscenidades. Imediatamente desculpei-me, explicando que eu não estava acostumada a gritar ou usar palavrões. Garanti ter sido criada de maneira civilizada, por uma mãe bem­educada que jamais sonharia em levantar a voz.

O caseiro desatou a rir e ergueu a mão para interromper-me.

— Chega de desculpas — pediu. — E o seu duplo que está falando. Ele é sempre direto e vai logo ao que interessa e, como você permitiu que ele se expressasse, seu duplo está cheio de ódio e amargura.

Emilito explicou que, no momento, meu duplo estava profundamente inseguro porque fora bombardeado por raios e trovões, mas especialmente devido aos acontecimentos de cinco dias atrás, quando Nelida me havia empurrado para o corredor do lado esquerdo, para que eu pudesse iniciar a travessia dos feiticeiros.

— Há cinco dias! — exclamei. — Você quer dizer que fiquei dois dias e duas noites pendurada na árvore?

— Você permaneceu ali exatamente dois dias e três noites — anunciou ele com um sorriso malévolo. — Nós nos revezamos para subir até lá e ver se você estava bem. Você estava desacordada, mas estava bem, portanto, nós a deixamos sozinha.

— Mas por que fui amarrada daquele jeito?

— Você falhou completamente na realização de uma manobra que chamamos de vôo abstrato ou travessia dos feiticeiros. A tentativa esgotou suas reservas de energia.

Ele esclareceu que na verdade não fora uma falha minha, mas sim uma tentativa prematura que havia acabado em total fiasco.

— O que teria acontecido se eu tivesse sido bem-sucedida? — perguntei.

Ele garantiu que o sucesso não teria me colocado em posição mais vantajosa, mas que teria servido como ponto de partida, uma espécie de isca ou atrativo que teria demarcado cuidadosamente o território para uma ocasião futura, na qual eu teria de realizar o vôo final sozinha.

— Agora você está utilizando a energia de todos nós — prosseguiu. — Todos nós nos sentimos compelidos a ajudá-la. Na verdade, você está usando a energia de todos os feiticeiros que nos precederam e viveram outrora neste casa. Você está vivendo da magia desses feiticeiros. É exatamente como se você estivesse deitada sobre um tapete mágico que a está levando a locais incríveis, locais que existem apenas no caminho do tapete mágico.

— Mas continuo sem entender por que estou aqui — insisti. — É só porque o nagual John Michael Abelar cometeu um erro e me encontrou?

— Não, não é tão simples assim — disse, olhando-me de frente. — Na verdade, John Michael não é realmente o seu nagual. Existe um novo nagual e uma nova era. Você é membro do grupo do novo nagual.

— O que você está dizendo, Emilito? Que novo grupo? Quem decide isto?

— O poder, o espírito, essa força ilimitada decide tudo isso. Para nós, a prova de que você pertence à nova era é sua total semelhança com Nelida. Na juventude, ela era exatamente como você é hoje; a tal ponto que ela também consumiu toda sua reserva energética quando fez sua primeira tentativa de vôo abstraio. E, assim como você, ela quase morreu.

— Você quer dizer que eu poderia ter realmente morrido durante a tentativa, Emilito?

— Certamente. Não porque o vôo dos feiticeiros seja tão perigoso, mas porque você é muito instável. Outra pessoa realizando a mesma coisa poderia simplesmente ter uma dor de barriga Mas não você. Você, como Nelida, tem de exagerar tudo, por isso você quase morreu. Depois disso, a única maneira de recuperá-la foi deixá-la no topo da árvore, longe do chão, durante o tempo necessário para você recobrar os sentidos. Não podíamos fazer mais nada.

Embora parecesse inacreditável, o que havia acontecido pouco a pouco começou a fazer sentido para mim. Algo saíra terrivelmente errado durante meu encontro com Nelida. Algo em mim saíra do controle.

— Ontem permiti que você bebesse de minha garrafa de intenção para descobrir se o seu duplo ainda está instável — explicou Emilito. — E está! A única maneira de reforçá-lo é através da atividade. E, quer você goste ou não, eu sou o único que pode conduzir seu duplo até essa atividade. Por essa razão sou seu professor. Ou melhor, sou o professor do seu duplo.

— O que você acha que aconteceu comigo? — perguntei, ainda sem saber o que exatamente dera errado.

— Você quer dizer o que não aconteceu — corrigiu-me ele. — Você deveria cruzar o abismo suave e harmoniosamente e despertar com seu duplo plenamente consciente no corredor esquerdo.

Ele prosseguiu com uma explicação complicada do que esperavam que tivesse acontecido. Sob a orientação de Nelida, eu deveria transferir minha consciência do corpo para o duplo e vice-versa. Esta mudança deveria eliminar todas as barreiras naturais, desenvolvidas ao longo da vida, barreiras que separam o corpo físico do duplo. O plano dos feiticeiros, disse ele, consistia em permitir que eu me familiarizasse com todos eles pessoalmente, pois meu duplo já os conhecia. Contudo, devido à minha loucura, eu não atravessei suave e harmoniosamente o abismo. Em outras palavras, a consciência adquirida por meu duplo não tinha nenhuma relação com a consciência cotidiana de meu corpo, o que resultou na sensação de que eu estava voando e não podia parar. Todas as minhas reservas de energia se esgotaram irrestritamente e meu duplo ficou furioso.

— Lamento ter de lhe dizer isto, Emilito, mas não estou entendendo o que você está explicando — admiti.

— A travessia dos feiticeiros consiste na mudança de consciência da vida cotidiana, que o corpo possui, para o duplo — replicou ele.—Ouça com atenção: A consciência da vida cotidiana é o que queremos transferir do corpo para o duplo. A consciência da vida cotidiana!

— Mas o que significa isso, Emilito?

— Significa que estamos buscando a moderação, a sobriedade, o controle. Não estamos interessados na loucura e nos resultados confusos.

— Mas o que isto significa no meu caso? — insisti.

— Você se entregou aos excessos e não mudou a consciência de sua vida cotidiana para o seu duplo.

— O que eu fiz?

— Você impregnou seu duplo com uma consciência desconhecida e incontrolável.

— Independente do que você está dizendo, Emilito, é impossível para mim acreditar em tudo isto — confessei. — Na verdade, é realmente inconcebível.

— É natural que seja inconcebível — concordou ele. — Mas se você está buscando alguma coisa concebível, não precisa ficar aqui sentada, agarrando-se a suas dúvidas, gritando comigo. Para você, algo concebível é ficar nua de pernas para o ar.

Ele abriu um sorriso lascivo que me provocou calafrios. Mas antes que eu pudesse me defender, Emilito alterou a expressão de seu rosto para uma total seriedade.

— Ampliar o duplo delicada e harmoniosamente e transferir para ele nossa consciência da vida cotidiana é algo sem paralelo — explicou com suavidade. — Fazer isto é algo inconcebível. Agora vamos fazer uma coisa totalmente concebível. Vamos tomar o café da manhã.

 

Minha terceira noite na casa da árvore foi como um acampamento. Simplesmente entrei em meu saco de dormir, mergulhei em sono profundo e acordei ao amanhecer. Descer da árvore também foi mais fácil. Eu tinha aprendido a lidar com as cordas e roldanas sem tensionar as costas e os ombros.

— Este é o último dia de sua fase de transição — anunciou Emilito após terminarmos a refeição matinal. — Você tem muito trabalho a fazer. Mas, como está se esforçando bastante, não será muito difícil.

— O que você quer dizer com fase de transição?

— A sua transição é de seis dias, desde a última vez em que falou com Clara até agora. Não se esqueça, você passou seis noites na árvore, três delas inconsciente e as outras três consciente. Os feiticeiros sempre contam ns acontecimentos de três em três.

— Eu também tenho de fazer as coisas de três em três? — perguntei.

— Certamente. Você é herdeira de Nelida, não é? Você é a continuação da linha de Nelida. — Ele abriu um sorriso matreiro e acrescentou: — Mas por enquanto você tem de fazer tudo que eu fizer. Lembre-se, durante o tempo necessário, eu serei seu guia.

Ouvindo Emilito falar, engoli em seco. Embora tivesse sentido uma ponta de orgulho sempre que Nelida me incluíra em alguma de suas afirmações, não gostava nem um pouco quando o caseiro me associava a ela.

Observando meu incômodo, ele assegurou que forças que se encontram além do controle de quem quer que seja nos haviam colocado juntos para realizar uma tarefa específica. Tínhamos, portanto, de ser fiéis à lei, pois desta maneira as coisas eram realizadas na tradição da feitiçaria.

— Clara preparou seu lado físico, ensinando-lhe a recapitulação e entreabrindo seus portais com os passes de feitiçaria — explicou. — Meu trabalho consiste em ajudá-la a solidificar seu duplo e depois ensiná-la a "rastejar".

Ele garantiu que mais ninguém poderia ensinar-me a rastejar com o duplo, exceto ele próprio.

— Você pode explicar o que é rastejar com o duplo? — pedi.

— Claro. Mas não seria oportuno falar disso, porque rastejar significa fazer, e não falar a respeito. Ademais, você já sabe o que isso significa, pois já fez.

— Onde e quando eu fiz isso?

— Na primeira noite em que você dormiu na casa da árvore — disse Emilito —, quando estava prestes a morrer de pavor. Nessa ocasião, seu raciocínio estava obliterado e você não sabia lidar com a situação, portanto as circunstâncias forçaram-na a depender de seu duplo. Foi seu duplo que veio em seu auxílio. Ele atravessou os portais que seu medo havia escancarado. Eu chamo a isto rastejar com o duplo.

— O nagual e Nelida são os mestres do duplo, e lhe darão os toques finais — prosseguiu Emilito —, contanto que eu faça o trabalho pesado. Portanto, cabe a mim prepará-la para eles, assim como coube a Clara prepará-la para mim. E a menos que você esteja pronta, eles não poderão fazer nada com você.

— Por que Clara não pode continuar sendo minha professora? — perguntei, tomando um gole de água.

Ele olhou para mim e piscou como um pássaro.

— A lei manda ter dois professores — disse Emilito. — Todos nós tivemos dois professores, inclusive eu. Mas meu último professor foi um nagual; isto também é uma lei.

Emilito explicou que o nagual Julian Grau não era apenas seu professor, mas professor de cada um dos 16 membros da casa. O nagual Julian, juntamente com seu próprio professor, outro nagual chamado Elias Abelar, havia encontrado cada um deles e os ajudara em seu caminho para a liberdade.

— Por que os nomes Grau e Abelar se repetem?

— São nomes de poder — explicou Emilito. — Cada geração de feiticeiros usa esses nomes, E o nome de cada nagual obedece alternadamente à lei. Isto significa que John Michael Abelar herdou o nome de Elias Abelar, mas o novo nagual, aquele que virá depois de John Michael Abelar, herdará o nome Grau de Julian Grau. Esta é a lei para os naguais.

— Por que Nelida disse que eu sou uma Abelar?

— Porque você é igual a ela. E a lei afirma que você herdará seu último ou primeiro nome ou, se quiser, pode herdar os dois nomes. Ela mesma herdou os dois nomes de sua predecessora.

— Quem definiu essa lei e por que ela é seguida? — perguntei.

— A lei é um código que os feiticeiros impedem de tornar-se arbitrário ou estapafúrdio. Eles têm de se manter fiéis aos preceitos estabelecidos para eles, pois foram criados pelo próprio espírito. Foi o que me disseram e não tenho razão para duvidar.

Emilito afirmou que seu outro mestre era uma mulher chamada Talía. Descreveu-a como a mulher mais extraordinária que alguém poderia imaginar sobre a face da terra.

— Acho que Nelida é o ser mais extraordinário que já conheci — deixei escapar, mas controlei-me para não dizer mais nada. Caso contrário, eu teria parecido Emilito, completamente tomado de absoluta devoção.

Emilito inclinou-se sobre a mesa da cozinha e, com ar de um conspirador prestes a revelar um segredo, falou:

— Concordo com você. Mas espere até Nelida realmente tomar conta de você; aí você vai amá-la como se não houvesse amanhã.

Suas palavras não me surpreenderam, pois ele havia definido corretamente algo que eu já sentia: eu amava Nelida como se a conhecesse por toda a eternidade. Como se ela fosse a mãe que eu nunca tivera realmente. Disse a Emilito que, para mim, ela era o ser mais bondoso, belo e impecável que já encontrara, embora até poucos dias antes nem mesmo soubesse de sua existência.

— Mas é claro que você a conhecia — protestou Emilito. — Todos nós fomos ver você e Nelida visitou-a muito mais vezes do que qualquer um de nós. Quando você chegou com Clara, Nelida já lhe havia ensinado uma infinidade de coisas.

— O que acha que ela me ensinou? — perguntei, inquieta. Ele coçou o alto da cabeça por um instante.

— Ela lhe ensinou, por exemplo, a pedir conselho ao seu duplo — explicou.

— Você diz que eu fiz isso na minha primeira noite na casa da árvore. Mas eu não sei o que fiz.

— Claro que sabe. Você sempre fez isso. E a sua técnica de relaxar e contemplar o horizonte meridional para pedir aconselhamento?

Mal ele disse isso, algo clareou em minha mente. Eu me havia esquecido completamente de alguns sonhos que tivera ao longo dos anos, nos quais uma senhora bela e misteriosa costumava falar comigo e deixava presentes em minha mesa-de-cabeceira. Certa vez sonhei que ela deixara um anel de opala e, em outra ocasião, um bracelete de ouro com um amuleto diminuto em forma de coração. Às vezes ela se sentava na beira de minha cama e me dizia coisas que, ao despertar, eu começava a fazer, como por exemplo contemplar o horizonte meridional ou usar certas cores, ou ainda pentear os cabelos de determinada maneira, mais graciosa.

Quando eu me sentia triste ou solitária, ela me tranqüilizava, consolava e sussurrava palavras delicadas em meu ouvido. Aquilo que recordo mais vivamente foi o momento em que ela disse que me amava como eu era. Usou exatamente essas palavras: "Eu a amo como você é." Ela massageava minhas costas, onde eu estava tensa, ou acariciava meus cabelos. Percebi que por causa dela eu não queria que minha mãe me tocasse. Não queria que ninguém me tocasse, exceto aquela senhora. Quando eu acordava após um desses sonhos, minha sensação era de que nada no mundo importava, contanto que aquela senhora me tivesse em seu coração.

Eu sempre considerara tudo isso como sonhos fantasiosos. Havia estudado em colégios católicos e achava inclusive que se tratava da Virgem Maria ou de alguma santa que me aparecia. Eu havia aprendido que todas as coisas boas provêm dessas senhoras

Em certa ocasião, cheguei a pensar que ela era minha fada madrinha, mas nunca, nem mesmo com toda a imaginação, achei que aquele ser realmente existisse.

— Não era a Virgem nem uma santa, sua boba — riu Emilito. — Era a nossa Nelida. E ela realmente lhe deu aquelas jóias. Você vai encontrá-las na caixa sob o estrado na casa da árvore. Elas lhe foram dadas por sua antecessora; agora Nelida está dando-as a você.

— Quer dizer que o anel de opala realmente existe? — perguntei boquiaberta. Emilito assentiu com a cabeça.

— Vá ver com seus próprios olhos. Nelida pediu-me para dizer a você...

Antes que ele pudesse concluir a frase, eu já safra correndo da cozinha, em direção à entrada da casa. Velozmente, icei-me até a casa da árvore. Lá, em uma caixa de seda escondida debaixo do estrado, havia belíssimas jóias. Reconheci o anel de opala e o bracelete com o amuleto de ouro. Havia outros anéis, um relógio de ouro e um colar de diamantes. Peguei o bracelete de ouro com o coração e coloquei-o em meu braço; pela primeira vez, desde que Clara havia partido, percebi que meus olhos estavam cheios de lágrimas. Mas não eram lágrimas de autopiedade ou de tristeza, mas sim de pura alegria e emoção. Pois agora eu não tinha dúvidas de que a linda senhora não fora apenas um sonho.

Gritei o nome de Nelida e agradeci-lhe a plenos pulmões todos os seus favores. Prometi mudar, ser diferente e fazer tudo que Emilito dissesse, qualquer coisa, contanto que eu pudesse vê-la e conversar novamente com ela.

Quando desci da árvore, encontrei Emilito de pé ao lado da porta da cozinha. Mostrei-lhe o bracelete e os anéis e perguntei como era possível que eu tivesse visto as mesmas jóias anos antes, em meus sonhos.

— Os feiticeiros são seres extremamente misteriosos — disse Emilito —, pois na maior parte do tempo eles agem a partir da energia de seu duplo. Nelida é uma grande rastejadora. Ela rasteja nos sonhos. Seu poder é tão inigualável que ela pode não apenas transportar-se, mas também levar coisas com ela. Assim Nelida pôde visitá-la. E por isso seu nome é Abelar. Abelar, para nós, significa rastejadora. E Grau significa sonhadora. Todos os feiticeiros nesta casa são sonhadores ou rastejadores.

— Qual é a diferença, Emilito?

— Os rastejadores planejam e executam seus planos; cooperam, inventam e modificam as coisas, seja quando estão acordados ou em sonhos. Os sonhadores avançam sem planos ou pensamentos; saltam para a realidade do mundo ou para a realidade dos sonhos.

— Tudo isto é incompreensível para mim, Emilito — confessei, contemplando o anel de opala à luz do dia.

— Estou orientando-a para que tudo se torne compreensível — replicou Emilito. — E, para ajudar-me a orientá-la, você tem de fazer o que lhe digo: tudo que eu disser, fizer ou recomendar é a réplica exata daquilo que meus dois professores me disseram ou é alguma coisa baseada no que eles disseram. — Emilito aproximou-se de mim. — Talvez você não acredite — sussurrou ele —, mas você e eu somos basicamente iguais.

— Como, Emilito?

— Ambos somos um pouco loucos — falou ele com a expressão mais séria. — Preste muita atenção e lembre-se disto: para que você e eu sejamos sãos, temos de trabalhar como demônios para harmonizar não o corpo ou a mente, mas o duplo.

Percebi que não adiantava discordar ou concordar com ele. Mas quando me sentei novamente à mesa da cozinha, perguntei a Emilito:

— Como podemos ter certeza de que estamos harmonizando o duplo?

— Abrindo nossos portais — replicou ele. — O primeiro portal fica na sola do pé, na base do dedão.

Estendeu o braço por sob ã mesa, segurou meu pé esquerdo e, com um movimento incrivelmente rápido, retirou meu sapato e minha meia. Em seguida, usando o dedo indicador e o polegar como um torno, pressionou a protuberância arredondada em meu dedão, na sola de meu pé, e a articulação do dedão, no peito de meu pé. A dor aguda e a surpresa fizeram-me gritar. Puxei o pé com tanta força que bati com o joelho debaixo da mesa. Pus-me de pé aos gritos.

— Que diabos você pensa que está fazendo?

Ele ignorou minha explosão de raiva e falou:

— Estou indicando os portais para você, de acordo com a lei; portanto, preste atenção. — Emilito ficou de pé e veio para meu lado da mesa. — O segundo portal é a área que inclui as panturrilhas e a parte interior do joelho. explicou, inclinando-se e tocando minhas pernas. — O terceiro situa-se nos órgãos sexuais e no cóccix.

Antes que eu pudesse me afastar, ele colocou suas mãos quentes em minha virilha e levantou-me um pouco, apertando-me com firmeza. Lutei para soltar-me, mas ele agarrou a parte inferior de minhas costas.

— O quarto e mais importante fica na região dos rins — indicou. Sem atentar para meu constrangimento, ele me recolocou na cadeira. Levou as mãos às minhas costas. Encolhi-me mas, por Nelida, permiti que ele me tocasse. — O quinto ponto situa-se entre as omoplatas — falou ele. — O sexto na base do crânio. E o sétimo no topo da cabeça. — Para definir o último ponto, ele pressionou o topo da minha cabeça com os nós dos dedos.

Emilito voltou para seu lado da mesa e sentou-se.

— Se nosso primeiro ou nosso segundo centro estiver aberto, nós transmitimos um certo tipo de força que as pessoas podem considerar intolerável — prosseguiu. — For outro lado, se o terceiro e quarto portais não estiverem tão fechados como deveriam, transmitimos determinada força que as pessoas acharão extremamente atraente.

Eu sabia que os centros inferiores do caseiro estavam totalmente abertos, pois achei-o tão detestável e intolerável quanto alguém podia ser. Em parte por brincadeira e em parte por culpa de sentir tais coisas a respeito dele, admiti que as pessoas não ficavam à vontade comigo. Eu sempre atribuíra isto a uma falta de encanto social, que eu me sentia na obrigação de compensar sendo duplamente adaptável.

— É natural — disse ele, concordando. — Seus portais dos pés e panturrilhas estiveram parcialmente abertos a vida inteira. Outra conseqüência desses centros inferiores estarem abertos é que você tem dificuldade de caminhar.

— Espere um momento — pedi. — Não há nada errado na minha forma de andar. Eu pratico artes marciais. Clara me disse que meus movimentos são suaves e graciosos. Ouvindo isto, ele desatou a rir.

— Você pode praticar o que quiser — retorquiu — e continuará arrastando os pés quando andar. Você tem o modo de caminhar de um velho.

Emilito era pior do que Clara. Ela ao menos tinha a delicadeza de rir comigo e não de mim. Ele não tinha absolutamente nenhuma compaixão por meus sentimentos. Censurava-me como crianças mais velhas censuram as mais novas e mais fracas, que não têm como defender-se.

— Você não ficou ofendida, não é? — perguntou, avaliando-me.

— Eu, ofendida? Claro que não. — Eu estava fervendo.

— Ótimo. Clara me garantiu que você se livrou da maior parte de sua autopiedade e vaidade através da recapitulação. Recapitular sua vida, especialmente sua vida sexual, abriu ainda mais alguns de seus portais. O estalido que você vai ouvir em seu pescoço será o momento em que seus lados direito e esquerdo vão se separar, O que vai deixar um abismo bem no meio de seu corpo, onde a energia ascende até o pescoço local onde o som é ouvido. Ouvir este estalido significa que seu duplo está prestes a tornar-se consciente:

— O que devo fazer quando ouvir esse som ?

— Saber o que fazer não é tão importante, pois podemos fazer mito pouca coisa — explicou. — Podemos permanecer sentados de olhos fechados ou podemos levantar e nos movimentar. O importante é saber que somos limitados. pois nosso corpo físico controla nossa consciência Mas se pudermos alterar isto, de modo que nosso duplo passe a controlar nossa consciência, poderemos fazer praticamente tudo o que imaginarmos — Ele se levantou e se aproximou de mim.

— Bem, você não vai mais me enrolar para falar das coisas, da maneira como fez com Clara e Nelida — avisou. — Você só pode aprender algo sobre o duplo praticando. E estou falando com você porque sua fase de transição ainda não terminou. Emilito pegou-me pelo braço e, sem dizer mais nada, praticamente arrastou-me até os fundos da casa, onde posicionou-me debaixo de uma árvore com o topo da cabeça a poucos centímetros de um galho baixo e grosso. Explicou que ia ver se eu conseguia projetar meu duplo novamente, desta vez plenamente consciente, com o auxílio da árvore.

Tive sérias dúvidas se eu seria capaz de projetar alguma coisa, e disse isso a ele. Mas Emilito insistiu que, se eu tivesse a intenção, meu duplo faria pressão de meu interior e se expandiria além dos limites de meu corpo físico.

— O que devo fazer exatamente? — perguntei, na esperança de que me mostrasse um procedimento que fosse parte da lei dos feiticeiros.

Emilito pediu-me para fechar os olhos e concentrar-me na minha respiração. À medida que fosse relaxando, eu devia ter a intenção de fluir ascendentemente, até conseguir tocar os galhos mais altos, com um sentimento proveniente do portal no topo da minha cabeça. Explicou que isto seria relativamente fácil para mim, pois eu estaria utilizando o apoio de minha amiga árvore. Prosseguiu dizendo que a energia da árvore formaria uma matriz para a expansão de minha consciência.

Após algum tempo concentrando-me na minha respiração, senti uma energia vibrando e ascendendo pela coluna vertebral, tentando abrir o topo da minha cabeça. Então algo aconteceu dentro de mim. A cada inspiração, uma linha se alongava até o topo da árvore; quando eu expirava, a linha era novamente puxada para meu corpo. A sensação de alcançar o topo da árvore tornou-se mais intensa a cada respiração, até que realmente acreditei que meu corpo estava se expandindo, tornando-se tão alto e volumoso quanto a árvore.

Em determinado momento, profunda afeição e compaixão pela árvore envolveram-me; nesse exato instante, algo ascendeu em movimento ondulante pelas minhas costas e atravessou o topo da minha cabeça, e eu me percebi contemplando o mundo dos galhos mais altos. Esta sensação perdurou apenas um instante, interrompida pela voz do caseiro, mandando-me descer e fluir novamente para dentro de meu corpo. Senti algo semelhante a uma cascata, uma efervescência fluindo para baixo, entrando pelo topo da minha cabeça e inundando meu corpo com um calor familiar.

— Você não deve permanecer misturada com a árvore por tempo demais — disse-me ele quando abri os olhos. Senti uma vontade fortíssima de abraçar a árvore, mas o caseiro puxou-me pelo braço até uma grande rocha a alguma distância, onde nos sentamos. Explicou que, com o auxílio de uma força externa, neste caso unindo minha consciência à da árvore, é possível promover facilmente a expansão do duplo. Contudo, por ser fácil, corremos o risco de permanecer unidos à árvore por tempo demais e, nesse caso, podemos extrair a energia vital de que a árvore necessita para manter-se forte e saudável. Ou podemos deixar parte de nossa energia para trás, tornando-nos emocionalmente apegados à árvore.

— Uma pessoa pode fundir-se com qualquer coisa — explicou ele. — Se aquilo ou aquele que com que você se fundir estiver forte, sua energia será ampliada, como acontecia sempre que você se fundia ao mago, Manfred. Contudo se estiver doente ou fraco,permaneça longe. Em ambos os casos, você deve fazer o exercício com moderação pois, assim como tudo na vida, ele é uma faca de dois gumes. A energia exterior é sempre diferente da nossa, freqüentemente oposta.

Ouvi com atenção o que o caseiro dizia. Algo me chamou a atenção.

— Diga-me, Emilito, por que você chamou Manfred de mago?

— Essa é nossa maneira de reconhecer nossa singularidade. Manfred, para nós, só pode ser um mago. Ele é mais do que um feiticeiro. Ele seria um feiticeiro se tivesse vivido entre seu grupo. Ele vive entre seres humanos, feiticeiros humanos ainda por cima, em igualdade de condições. Somente um mago consumado poderia realizar tal façanha.

Perguntei-lhe se voltaria a ver Manfred; o caseiro cruzou os dedos indicadores sobre os lábios de maneira tão exagerada que fiquei em silêncio e não o pressionei mais por uma resposta.

Emilito pegou um galho e desenhou uma forma ovalada no solo macio. Em seguida, acrescentou uma linha horizontal que a atravessava ao meio. Apontando os dois lados, ele explicou que o duplo divide-se em uma parte inferior e outra superior que correspondem, aproximadamente, no corpo físico, ao abdômen e ao tórax. Duas correntes energéticas diferentes circulam nessas regiões. Na área inferior, circula a energia original que possuíamos quando ainda nos encontrávamos no útero. Na área superior, circula a energia do pensamento. Esta energia adentra o corpo por ocasião do nascimento, ao primeiro alento. Emilito explicou que a energia do pensamento é ampliada através da experiência e ascende até a cabeça A energia original mergulha na região genital. Em geral, ao longo da vida essas duas energias se separam no duplo, provocando fraqueza e desequilíbrio no corpo físico.

Ele traçou outra linha, desta vez a partir do centro da elipse, dividindo-a longitudinalmente em duas partes, o que corresponde, afirmou ele, aos lados direito e esquerdo do corpo. Esses dois lados também possuem dois padrões específicos de circulação energética. No lado direito, a energia sobe pela região dianteira do duplo e desce pela região posterior. No lado esquerdo, a energia desce pela região dianteira do duplo e sobe pela região posterior.

Explicou que muitas pessoas, quando tentam ver o duplo, cometem o erro de aplicar ao duplo as leis do corpo físico, exercitando-o, por exemplo, como se fosse feito de músculos e ossos. Emilito assegurou-me de que não é possível condicionar o duplo através de exercícios físicos.

— A maneira mais fácil de solucionar esse problema é separar os dois — explicou o caseiro. — Somente quando estão incontestavelmente separados, a consciência pode fluir de um para o outro. É isso que os feiticeiros fazem. Assim, podemos dispensar a tolice de rituais, sortilégios e técnicas respiratórias elaboradas que supostamente os unificam.

— Mas e as respirações e passes de feitiçaria que Clara me ensinou? Também são uma tolice?

— Não. Ela lhe ensinou apenas coisas que poderiam ajudá-la a separar seu corpo e seu duplo. Portanto, todas são úteis para nossa meta.

Explicou ainda que possivelmente nosso maior engano, enquanto homens, é acreditar que nossa saúde e bem-estar se encontram na esfera do corpo, quando na verdade o controle de nossas vidas se encontra na esfera do duplo. Esta falácia provém do fato de que o corpo controla nossa consciência. Emilito acrescentou que, em geral, nossa consciência é colocada na energia que circula no lado direito do duplo, o que resulta em nossa capacidade de pensar e raciocinar e lidar eficientemente com idéias e pessoas. Às vezes, acidentalmente, embora com mais freqüência, como resultado da prática, a consciência pode transferir-se para a energia que circula no lado esquerdo do duplo, resultando em um tipo de pensamento que não é tão direcionado para as realizações intelectuais ou para o trato com as pessoas.

— Quando a consciência é levada constantemente para o lado esquerdo do duplo, este é despertado e emerge — prosseguiu o caseiro — e o indivíduo torna­se capaz de realizar feitos inconcebíveis. Isto não deve surpreender, pois o duplo é nossa fonte de energia. O corpo físico é simplesmente o recipiente onde a energia é depositada.

Perguntei-lhe se algumas pessoas podem concentrar sua consciência em ambos os lados do duplo, de acordo com sua vontade. Ele assentiu

— Os feiticeiros podem fazer isso. No dia em que conseguir fazer isso, você será uma feiticeira.

Afirmou que algumas pessoas podem transferir sua consciência para o lado direito ou esquerdo do duplo, após concluírem com sucesso o vôo abstrato, simplesmente manipulando o fluxo de sua respiração. Estas pessoas podem praticar feitiçaria ou artes marciais assim como são capazes de manipular intrincados constructos acadêmicos. Ressaltou que o impulso de transferir a consciência regularmente para a esquerda constitui uma armadilha infinitamente mais fatal do que os atrativos da vida cotidiana, devido ao mistério e poder a ele inerentes.

— A verdadeira esperança para nós está no centro — explicou ele, tocando minha testa e o centro de meu peito —, pois no muro que divide os dois lados do duplo existe uma porta secreta, que se abre para um terceiro compartimento, estreito e secreto. Apenas quando esta porta se abre é que se torna possível experimentar a verdadeira liberdade. Emilito segurou meu braço e retirou-me da pedra.

— Seu momento de transição está se aproximando — disse, apressando­me a voltar para a casa. — Não há mais tempo para explicações. Deixaremos a fase de transição para trás com um tremendo estrondo. Venha, vamos para meu quarto.

Fiquei paralisada. Eu não estava mais me sentindo apenas desconfortável. Estava me sentindo ameaçada. Por mais excêntrico que pudesse ser Emilito e por mais que tivéssemos conversado sobre o duplo etérico, ele continuava sendo um homem, e a lembrança de sua mão tocando minha região íntima na cozinha ainda estava muito viva. Sabia que tampouco fora um toque impessoal, meramente demonstrativo; sentira nitidamente sua luxúria quando ele me tocou.

O caseiro perscrutou-me com olhos frios.

— Que diabos você está querendo dizer com sentiu minha luxúria quando a toquei?

Fiquei olhando para ele, estupefata. Emilito traduzira literalmente meu pensamento. Uma onda de vergonha percorreu-me, seguida de um calafrio que tomou conta de meu corpo. Balbuciei algumas desculpas insatisfatórias. Disse­lhe que costumava fantasiar que eu era tão linda que todos os homens me achavam irresistível.

— Recapitular significa queimar tudo isso — disse ele. — Você não fez um trabalho completo. Esta sem dúvida é a razão de seu enlouquecimento durante a tentativa de realizar a travessia dos feiticeiros.

Emilito virou as costas e afastou-se da casa.

— Ainda não chegou o momento de mostrar-lhe o que eu tinha em mente — disse ele. — Não. Você precisa trabalhar muito mais, para limpar seu aro. Muito mais. E a partir de agora, precisará ser duplamente cuidadosa, também; precisará correr duas vezes mais, pois não poderá mais errar.

 

Meu período de transição terminou naquele instante, quando Emilito censurou-me por interpretar mal seus pensamentos. A partir daí, ele abandonou seu extravagante ar de moleque e tornou-se um feitor exigente. Acabaram-se as explicações detalhadas sobre o duplo ou outros aspectos da feitiçaria; portanto, era o fim do consolo da compreensão intelectual. Havia apenas trabalho, pragmático e exigente. Todos os dias, ao longo de meses, de manhã até a noite, eu permanecia envolvida com atividades até que, exausta, ia dormir na casa da árvore.

Além de continuar a praticar kung fu e a trabalhar no jardim, eu fora encarregada de preparar o almoço e o jantar. O caseiro explicou-me como se acendia o fogão e ensinou-me a preparar os pratos mais simples, coisa que minha mãe tentara fazer sem sucesso. Como eu tinha outras tarefas, em geral colocava todos os ingredientes em uma panela para cozinhar no fogão e voltava mais tarde, quando já estava na hora de comer. Após várias semanas fazendo o mesmo ensopado, obtive um sabor perfeito. Emilito disse que eu havia me tornado, se não uma cozinheira razoável, pelo menos alguém que cozinhava algo comestível. Tomei isto como um elogio, pois nada do que eu cozinhara em toda minha vida, de bolo-inglês a bolo de carne, fora comestível.

Nós fazíamos nossas refeições em completo silêncio, que ele quebrava quando queria dizer-me algo. Entretanto, se eu queria conversar, ele dava um tapinha em seu estômago, para lembrar-me de sua digestão delicada.

A maior parte de meu tempo ainda era dedicado à recapitulação. O caseiro pedira-me para repassar os mesmos acontecimentos e pessoas que eu já recapitulara antes, só que desta vez eu ia fazer a recapitulação na casa da árvore. Subir na árvore todos os dias fez-me perder o medo inicial de altura. Eu gostava de ficar ao ar livre, sobretudo ao entardecer, momento do dia que eu destinava a esta tarefa em particular. Sob a supervisão de Clara, eu realizara a recapitulação em uma caverna escura. O sentimento daquela recapitulação fora pesado, rude, sombrio e freqüentemente aterrorizante. Minha recapitulação sob a orientação de Emilito, na casa da árvore, caracterizava-se por um novo ânimo. Era leve, etéreo, transparente. Lembrava-me de coisas com uma clareza sem precedentes. Com o acréscimo de energia, ou devido à distância do solo, eu conseguia lembrar-me de muito mais detalhes. Tudo era mais vívido e nítido, menos carregado de autopiedade, mau humor, medo ou arrependimento, o que caracterizara minha recapitulação anterior.

Clara me pedira para escrever no chão os nomes de cada pessoa que havia conhecido em minha vida e depois apagá-los com a mão antes de respirar nas lembranças associadas a essa pessoa. Emilito, por outro lado, pedira-me para escrever os nomes das pessoas nas folhas secas e depois queimá-las, após concluir a respiração de tudo que me lembrava a respeito delas. Ele havia me dado um dispositivo especial para incinerar as folhas, um cubo de metal de aproximadamente 30 centímetros, com buracos bem definidos, redondos e pequenos, em todos os lados. Metade de um dos lados do cubo era de vidro, assemelhando-se a uma pequena janela. Havia um pino no centro da parte interior da tampa. No lado com a janela, havia uma alavanca, onde se adaptava um fósforo que podia ser acendido por fora, depois de fechada a tampa.

— Para evitar um incêndio — explicou Emilito —, você tem de perfurar a folha seca com o pino da tampa, de modo que, ao fechar a tampa, ele ficará suspenso no meio do cubo. Então dê uma olhada no interior da caixa, pela janelinha de vidro, e usando a manivela, acenda o fósforo sob a folha até que ela se reduza a cinzas.

Enquanto eu contemplava as chamas consumindo cada folha, eu atraía a energia do fogo com meus olhos, sempre tomando o cuidado de não inspirar a fumaça. Emilito disse-me para colocar as cinzas das folhas em uma urna de metal e os fósforos usados em um saco de papel. Cada um dos fósforos representava o invólucro da pessoa cujo nome fora escrito na folha seca que se desintegrara com aquele fósforo em particular. Quando a urna estivesse cheia, eu deveria esvaziá­-la do alto da árvore, deixando o vento espalhar as cinzas em todas as direções. Recebi instruções para descer a pilha de fósforos queimados colocados no saco de papel em uma corda separada e Emilito, segurando o saco com um par de pinças, o colocaria em uma cesta especial que sempre usava para essa finalidade. Ele tinha o cuidado de nunca tocar os fósforos nem o saco. Eu imaginava que ele os enterrava nas colinas, ou talvez os lançasse no regato para que a água os desintegrasse. Desfazer-se dos fósforos, ele me havia assegurado, consistia no ato final de todo o processo de rompimento dos laços com o mundo.

Após cerca de três meses recapitulando todas as tardes, Emilito alterou abruptamente meu horário de trabalho.

— Estou cansado de comer seu ensopado — disse ele uma manhã, enquanto içava um pouco do alimento que havia preparado para mim.

Fiquei radiante, não apenas porque eu teria um tempo extra para permanecer na casa da árvore, mas porque realmente gostava de comer o alimento preparado por outra pessoa.

Na primeira vez que provei os pratos de Emilito, tive total certeza de que Clara jamais havia cozinhado a comida que me servia. O verdadeiro cozinheiro sempre fora Emilito. Seus pratos tinham um sabor especial, que sempre tornava qualquer coisa que ele cozinhasse uma delícia.

Todas as manhãs, por volta de sete horas, Emilito postava-se ao pé da árvore, pronto para içar o desjejum que ele colocava em um cesto. Após tomar o café da manhã na casa da árvore, em geral eu retomava minha recapitulação que, agora que eu estava livre do terror de descobrir alguma coisa desagradável, tornara-se mais do nunca uma aventura empolgante de análise e insight. Pois, à medida que eu inspirava em meu passado, mais leve e livre me sentia.

Rompendo com elos antigos e passados, comecei a formar novos vínculos. Neste caso, meus novos elos eram com o ser incomparável que estava me orientando. Emilito, embora se mostrasse severo e determinado, a fim de que eu trabalhasse duro, em essência era leve como uma pluma. A princípio surpreendeu-me que ele e Clara afirmassem que eu me parecia com eles. Contudo, analisando melhor o assunto, tive de concordar que eu era tão séria quanto Clara e tão amalucada, se não insana, quanto Emilito.

Quando me habituei com sua esquisitice, não encontrei diferença entre Emilito e Clara ou o nagual ou mesmo Manfred. Meus sentimentos pelos quatro tornaram-se semelhantes, de modo que comecei a sentir afeição por Emilito e, muito naturalmente, um dia passei a gostar de chamá-lo de Emilito. Em nosso primeiro encontro, o caseiro me tinha dito que seu nome era Emilito — diminutivo espanhol de Emílio. Pareceu-me ridículo chamar um homem adulto de "pequeno Emílio", o que fiz com relutância. Mas à medida que fui conhecendo-o melhor, não concebia chamá-lo de outra maneira.

Sempre que pensava nos quatro, eles se fundiam em minha mente. Nunca, porém, conseguia fundi-los com Nelida. Para mim ela era especial; para mim ela estaria eternamente à parte e acima de todos, embora eu a tivesse visto uma única vez na vida real. Senti que no dia em que havia posto meus olhos nela, o elo que já existia entre nós fora formalizado. Um único encontro na consciência cotidiana, por mais fugaz, fora suficiente para criar aquele vínculo indestrutível e eterno.

Um dia, depois de almoçarmos na cozinha, Emilito estendeu-me um pacote. Apertando-o contra o peito, senti que era de Nelida. Procurei o endereço do remetente, mas não havia. Junto com o pacote havia um cartão com o desenho de uma mulher com os lábios franzidos em um beijo. Dentro estavam as seguintes palavras, escritas com a letra de Nelida: "Beije a árvore." Rasguei o pacote e encontrei um par de sapatos de couro macio, de cano até os tornozelos e com cadarços na frente. As solas tinham travas de borracha.

Mostrei os sapatos a Emilito. Não conseguia imaginar para que serviam.

— Estes são seus sapatos para subir em árvores — disse Emilito, reconhecendo-os. — Nelida sabia que você tinha afinidade com as árvores, apesar de seu medo de cair. As travas são feitas de borracha para que você não fira a casca da árvore.

A chegada do pacote era, aparentemente, o sinal para Emilito apresentar­me instruções detalhadas sobre a escalada das árvores. Até então, eu só usara o arreio para içar-me até a casa da árvore. E às vezes eu cochilava ou dormia no próprio, como se estivesse deitada presa por correias a uma maca. Mas eu nunca escalara realmente a árvore, exceto um galho muito baixo, no qual me dependurara, apoiando os pés em outro.

— Agora é chegado o momento de descobrir de que você é feita — falou ele em tom sério. — Sua nova tarefa não será difícil, mas, se você não dedicar toda sua atenção a ela, poderá ser fatal. Você precisa aplicar toda a sua energia recentemente armazenada para aprender o que tenho a lhe mostrar.

Ele me pediu para esperá-lo junto ao pequeno bosque de árvores altas na frente da casa. Momentos depois, Emilito foi ao meu encontro carregando uma caixa comprida e chata, que ele abriu, retirando de seu interior diversos cintos de segurança e metros de corda para escalar pedras. Colocou um cinto na minha cintura e prendeu outro cinto, mais comprido, ao primeiro, utilizando os ganchos de segurança de montanhismo. Emilito prendeu um cinto similar na sua cintura, mostrou-me como escalar uma árvore, prendendo o cinto mais comprido no tronco da árvore e utilizando-o como apoio para escalar o tronco. Ele fez a escalada com movimentos rápidos e precisos; ao longo da subida ele foi laçando o tronco com as cordas, tornando sua posição mais firme. O resultado final foi uma rede de cordas que possibilitavam a movimentação com segurança em torno da árvore, de um lado a outro. O caseiro desceu com a mesma agilidade com que galgara a árvore.

— Verifique se todas as cordas e nós estão firmes — aconselhou. —Você não pode cometer grandes erros aqui. Pequenos erros são remediáveis; os grandes são fatais.

— Meu Deus, devo fazer o que você acabou de mostrar? — perguntei, realmente atônita.

Eu deixara de sentir medo de altura, só que simplesmente não me sentia com paciência para amarrar todos os ganchos e cordas nos lugares certos. Eu precisara de um bom tempo apenas para me habituar a subir e descer da árvore com o arreio.

Emilito soltou uma risada satisfeita.

— Este é um verdadeiro desafio — admitiu. — Mas quando você pegar o jeito, tenho certeza de que vai concordar que vale a pena. Vai entender, então, o que estou querendo dizer.

Estendeu-me uma corda e pacientemente mostrou-me como fazer e desfazer os nós; como usar minha corda para escalada passando dentro de um tubo de borracha a fim de proteger a casca da árvore; como passar a corda em tomo de um galho, criando uma nova linha para escalada; como posicionar os pés, a fim de manter o equilíbrio; e como evitar prejudicar os ninhos dos pássaros durante a escalada.

Ao longo dos três meses seguintes, trabalhei sob supervisão constante de Emilito, restringindo-me aos galhos mais baixos. Quando adquiri um controle razoável sobre o equipamento, calos suficientes nas mãos para não precisar mais usar luvas e maleabilidade e harmonia em meus movimentos, Emilito permitiu que eu me aventurasse nos galhos mais altos. Pratiquei escrupulosamente nos galhos mais altos as mesmas manobras que havia aprendido nos mais baixos. E um dia, sem qualquer dificuldade, cheguei ao topo da árvore que estava escalando. Nesse dia, Emilito presenteou-me com algo que ele considerava o presente mais significativo que ele poderia me dar. Era um conjunto de três macacões verdes de camuflagem na selva e bonés combinando, evidentemente comprados em alguma loja de sobras do exército nos Estados Unidos.

Vestindo o uniforme para selva, passei a morar no bosquete de árvores altas na frente da casa. Descia apenas para ir ao banheiro e, ocasionalmente, para fazer uma refeição com Emilito. Eu escalava qualquer árvore que desejasse, contanto que fosse suficientemente alta. Recusava-me a escalar apenas algumas árvores, as muito antigas, que considerariam minha presença uma intromissão, ou as jovens demais, que não tinham força suficiente para tolerar minhas cordas e meus movimentos.

Eu preferia as árvores jovens e vigorosas, pois deixavam-me feliz e otimista. No entanto, algumas árvores mais velhas também eram desejáveis, pois tinham muito mais a contar. Contudo, a única árvore em que Emilito me permitia passar a noite era aquela com a casa da árvore, pois tinha um pára-raio. Eu dormia em minha cama ou presa ao arreio de couro ou mesmo, vez por outra, simplesmente presa pelas correias a um galho de minha própria escolha.

Alguns de meus galhos prediletos eram grossos e sem protuberâncias. Eu deitava de bruços e, repousando a cabeça em um pequeno travesseiro que levava comigo, abraçava o galho com braços e pernas, mantendo um equilíbrio precário mas divertido. Naturalmente, eu sempre amarrava uma corda na minha cintura e num galho mais alto, caso perdesse o equilíbrio durante o sono.

O sentimento que eu passara a sentir pelas árvores estava além das palavras. Eu tinha certeza de minha capacidade de assimilar seu humor, saber sua idade, seus insights e o que sentiam. Podia comunicar-me diretamente com uma árvore, através de uma sensação proveniente do âmago de meu corpo. Freqüentemente a comunicação tinha início com um transbordamento de puro afeto, quase tão intenso quanto o que sentira por Manfred, afeto este que brotava de mim sempre de maneira inesperada e espontânea. Então, eu podia sentir as raízes da árvore entrando na terra. Eu sabia se elas precisavam de água e quais raízes se estendiam na direção da fonte de água subterrânea. Podia sentir como era viver buscando a luz, aguardando-a, desejando-a, ou como era sentir o calor,

o frio ou ser devastada pelos raios e tempestades. Aprendi o que significava nunca ser capaz de deslocar-se de seu ponto de destino, o que significava ser silenciosa, sentir através da casca, das raízes e absorver a luz através das folhas. Eu sabia, sem sombra de dúvida, que as árvores sentem dor; e sabia também que, uma vez iniciada a comunicação, as árvores se derramam, afetuosas.

Sentada sobre um galho robusto, as costas apoiadas no tronco da árvore, minha recapitulação assumiu um tom completamente diferente. Eu conseguia recordar os menores detalhes das experiências de minha vida, sem medo de qualquer envolvimento emocional inferior. Eu ria a plenos pulmões de coisas que outrora tinham sido traumas profundos para mim. Minhas obsessões não mais despertavam autopiedade. Enxergava tudo sob uma perspectiva diferente, não como a pessoa urbana que sempre fora, mas como a habitante de árvore despreocupada e livre que eu me tornara.

Uma noite, enquanto ainda estávamos comendo um guisado de coelho que eu fizera, Emilito surpreendeu-me, conversando animadamente. Pediu-me para permanecer sentada depois do jantar, pois tinha algo a dizer-me. Aquilo me pareceu tão extraordinário que fiquei empolgada com a expectativa. Os únicos seres com quem eu havia conversado nos últimos meses eram as árvores e os pássaros. Preparei-me para alguma coisa monumental.

— Você está morando na árvore há mais de seis meses — Emilito começou a falar. — Está na hora de descobrirmos o que você tem feito lá em cima. Vamos entrar na casa. Tenho algo a lhe mostrar.

— O que você tem para me mostrar, Emilito? — perguntei, lembrando-me da ocasião em que ele quisera me mostrar algo em seu quarto e eu me recusara a segui-lo.

O nome Emilito combinava perfeitamente com ele, que se tornara muito querido para mim, exatamente como Manfred. Um dos insights sublimes que eu recebera, empoleirada nos galhos altos de uma árvore, mostrava que Emilito não era realmente humano. Se ele um dia fora um ser humano e a recapitulação eliminara tudo aquilo, eu podia apenas especular. Sua qualidade não-humana constituía uma barreira que impedia a qualquer pessoa chegar até ele para uma troca subjetiva. Nenhuma pessoa comum conseguiria penetrar no que Emilito pensava, sentia ou testemunhava. Mas, se assim desejasse, Emilito podia chegar até qualquer um de nós e partilhar conosco de nossos estados subjetivos. Sua não-humanidade era algo que eu sentira desde a primeira vez que o encontrara na porta da cozinha. Agora eu conseguia me sentir à vontade com ele; e, embora ainda me sentisse separada por aquela barreira, conseguia maravilhar-me com suas realizações.

Como Emilito não me deu resposta, tornei a perguntar o que ele ia me mostrar.

— O que tenho a lhe mostrar é de importância máxima — disse ele. —Mas como você vai encarar isso dependerá de você. Dependerá de você ter adquirido silêncio e o equilíbrio das árvores.

Atravessamos o pátio às escuras apressadamente e entramos na casa. Eu o segui através do corredor, até chegarmos à porta de seu quarto. Fiquei duplamente nervosa ao vê-lo postado diante da porta por um longo momento, respirando profundamente como se estivesse se preparando para o que estava por vir.

— Muito bem, vamos entrar — falou ele, puxando delicadamente a manga de minha blusa. — Uma palavra de alerta. Não olhe fixamente para nada neste quarto. Olhe tudo que quiser, mas superficialmente, apenas passando uma vista d'olhos.

Ele abriu a porta e entramos em seu quarto extravagante. Morar nas árvores fizera-me esquecer por completo a primeira vez em que entrara naquele quarto, no dia em que Nelida e Clara haviam partido. Agora lá estava eu de novo, surpresa com os objetos bizarros que enchiam o quarto. As primeiras coisas que vi foram quatro luminárias, uma no centro de cada parede. Não consegui sequer começar a conceber que tipo de luminária seriam aquelas. O quarto e tudo que continha eram iluminados por uma estranha luz âmbar suave. Eu conhecia suficientemente o equipamento elétrico para saber que nenhuma lâmpada comum, ainda que circundada por um abajur feito do tecido mais estranho, poderia irradiar aquele tipo de luminosidade.

Senti Emilito segurando meu braço para ajudar-me a ultrapassar uma cerca de trinta centímetros que separava uma pequena área quadrada no canto sudoeste do quarto.

— Bem-vinda à minha caverna — falou ele com um sorriso largo ao entrarmos na área delimitada.

Naquele quadrado havia uma mesa comprida, meio oculta por uma cortina preta e uma fila de quatro cadeiras com um desenho fora do comum. Cada cadeira tinha um espaldar alto e ovalado que se recurvava em torno do assento e, em vez de pernas, uma base redonda, aparentemente sólida. As quatro cadeiras estavam de frente para a parede.

— Não fixe o olhar — lembrou-me o caseiro, ajudando-me a sentar em uma das cadeiras.

Percebi que elas eram feitas de algum tipo de material plástico. O assento arredondado era acolchoado, embora eu não soubesse dizer como; era duro como madeira, mas possuía uma elasticidade que cedia a cada vez que eu me movimentava no assento. E também girava quando eu me movia lateralmente. O espaldar ovalado, que parecia envolver minhas costas, também era acolchoado, conquanto igualmente duro. Todas as cadeiras tinham um tom azul-celeste.

O caseiro sentou-se na cadeira ao lado da minha. Girou sua cadeira, colocando-a de frente para o centro do quarto e, com uma voz estranhamente distorcida, pediu-me para girar também. Ao fazer o que ele me pedira, soltei um grito gutural. O quarto que eu havia cruzado há um instante havia desaparecido. Em lugar dele, eu contemplava uma amplo espaço vazio, com uma luminosidade cor de pêssego. Agora o quarto se havia ampliado até o espaço aparentemente infinito, bem diante de meus olhos. O horizonte que eu descortinava era negro­azeviche. Sufoquei outro grito, pois tive a sensação de um buraco na boca do estômago. Senti o chão desaparecendo sob meus pés e eu estava sendo puxada para aquele espaço. Não mais sentia a cadeira giratória sob mim, embora ainda estivesse sentada nela.

Ouvi Emilito dizer "vamos girar de volta", mas eu não tinha forças para fazer a cadeira girar. Ele deve ter feito isso por mim, pois, de súbito, percebi-me novamente olhando para o canto do quarto.

— Incrível, não é? — perguntou o caseiro, sorrindo.

Eu não consegui pronunciar uma única palavra, nem tampouco fazer perguntas que eu sabia não terem respostas. Passado um ou dois minutos, Emilito fez minha cadeira girar mais uma vez, a fim de proporcionar-me outra visão do infinito. A imensidão daquele espaço afigurou-se-me tão aterrorizante que fechei os olhos. Sentido girando a cadeira mais uma vez.

— Agora saia da cadeira — pediu ele. Obedeci automaticamente e fiquei de pé, tremendo involuntariamente, tentando recuperar a voz. Ele me virou para colocar-me de frente para o quarto.

Tomada de pavor, recusei-me, teimosa ou sabiamente, a abrir os olhos. O caseiro bateu com os nós dos dedos no topo da minha cabeça, o que fez meus olhos abrirem. Para meu alívio, o quarto não era o espaço negro infinito, mas tinha a mesma aparência de quando eu havia entrado. Esquecendo-me de suas advertências para apenas dar uma olhada rápida nas coisas, fixei meus olhos em cada um daqueles objetos não-identificáveis.

— Por favor, Emilito, diga-me, o que significa tudo isso? — perguntei.

— Eu sou apenas o caseiro — disse Emilito. — Tudo isso está sob meus cuidados.—Ele percorreu o quarto com um gesto de sua mão. — Não tenho a menor idéia do que seja isso. Na verdade, nenhum de nós sabe o que é isso. Herdamos isso juntamente com a casa de meu professor, o nagual Julian, que por sua vez a herdou de seu professor, o nagual Elias, que também a herdou.

— Parece os bastidores de um teatro — falei. — Mas isso é uma ilusão, não é, Emilito?

— Isso é feitiçaria! Você pode perceber agora, pois liberou uma quantidade suficiente de energia para expandir sua percepção. A tragédia é que a maior parte de nossa energia fica aprisionada com inquietações tolas. A recapitulação é a chave. Ela libera essa energia aprisionada e voilà! Você vê o infinito bem diante de seus olhos.

Soltei uma risada quando Emilito disse voilà, palavra tão incongruente quanto inesperada. O riso aliviou parte de minha tensão.

— Mas tudo isso é real, Emilito, ou estou sonhando? — foi tudo que consegui dizer.

— Você está sonhando, mas tudo isso é real. Tão real que pode matar-nos, desintegrando-nos.

Racionalmente, eu não podia explicar o que estava vendo; portanto, não podia acreditar nem duvidar de minha percepção. Meu dilema era insuperável, assim como meu pânico. O caseiro aproximou-se de mim.

— A feitiçaria vai além dos gatos pretos e pessoas nuas dançando num cemitério à meia-noite, fazendo bruxarias para outras pessoas — sussurrou ele. — A feitiçaria é fria, abstrata, impessoal. Por isso nós chamamos o ato de sua percepção de travessia dos feiticeiros, ou vôo para o abstrato. Para resistir à sua atração aterradora, precisamos ser fortes e determinados; ela não serve para os tímidos ou fracos. Era isso que o nagual Julian costumava dizer.

Meu interesse era tamanho que me forçou a ouvir com uma concentração inigualável cada palavra que Emilito estava dizendo; durante todo o tempo, meus olhos estavam cravados nos objetos do quarto. Cheguei à conclusão de que nenhum deles era real. No entanto, como obviamente eu os estava percebendo, comecei a ponderar se eu também não era real ou se eu os estava inventando. Não que eles fossem indescritíveis; simplesmente eram irreconhecíveis para a minha mente.

— Agora, prepare-se para o vôo dos feiticeiros — disse Emilito. — Agarre-se a mim como se disso dependesse a sua vida. Agarre meu cinto se você precisar ou monte em minhas costas. Faça qualquer coisa, mas não solte.

Antes que eu pudesse perguntar o que ele pretendia fazer em seguida, Emilito movimentou-me em torno da cadeira e fez-me sentar de frente para a parede. Em seguida, girou a cadeira 90 graus, de modo que novamente eu fiquei de frente para o centro do quarto naquele espaço infinito aterrorizante. Ele ajudou a levantar-me, segurando-me pela cintura, e fez-me dar alguns passos para o infinito.

Para mim era quase impossível andar; minhas pernas pareciam pesar uma tonelada. Senti o caseiro empurrando-me e levantando-me. De repente, uma força descomunal sugou-me e eu não estava mais andando, mas sim deslizando no espaço. O caseiro deslizava ao meu lado. Lembrei-me de seu aviso e agarrei-me ao seu cinto; na hora exata, pois nesse momento outra onda de energia fez-me acelerar ao máximo. Gritei para que ele me detivesse. Emilito colocou-me rapidamente em suas costas e agarrei-me a ele como se disso dependesse minha vida. Fechei os olhos com força, mas de nada adiantou. Eu via a mesma vastidão à minha frente, de olhos fechados ou abertos. Nós estávamos pairando em algo que não era o ar; tampouco estávamos pairando sobre a terra. Meu maior medo era que uma explosão monumental de energia me fizesse soltar as costas do caseiro. Eu lutei com todas as minhas forças para agarrar-me e manter minha posição e minha concentração.

Tudo terminou tão abruptamente como começara. Fui sacudida por outra rajada de energia e percebi-me molhada de suor, de pé ao lado da cadeira azul. Meu corpo tremia incontrolavelmente. Eu estava ofegante e sequiosa por um pouco de ar. Meus cabelos caíam sobre meu rosto, úmidos e emaranhados. O caseiro empurrou-me para o assento e girou-me de frente para a parede. [4]

— Não se atreva a fazer xixi nas calças enquanto estiver sentada nesta cadeira — avisou-me ele asperamente.

Eu estava além das funções do corpo. Fora esvaziada de tudo, inclusive do medo. Ele fora sugado de mim enquanto eu pairava naquele espaço infinito.

— Você é capaz de perceber como eu — disse Emilito. — Mas você ainda não tem controle no mundo novo que está percebendo. Este controle vem com uma vida de disciplina e armazenamento de poder.

— Nunca conseguirei explicar isto a mim mesma — falei, e eu mesma girei a cadeira, colocando-me de frente para o centro do quarto, para dar mais uma olhada naquele infinito róseo. Agora os objetos que via no quarto eram diminutos, semelhantes a peças de xadrez em um tabuleiro. Precisei procurá-los deliberadamente para percebê-los. Por outro lado, aquele espaço frio e impressionante encheu minha alma de implacável terror. Lembrei-me do que Clara dissera a respeito dos videntes que o haviam buscado; como eles haviam olhado fixamente para aquela imensidão e como esta retribuíra o olhar, com uma indiferença fria e inflexível. Clara nunca me dissera que ela mesma contemplara aquele infinito, mas agora eu sabia que ela o fizera. Entretanto, de que me adiantaria saber naquele momento? Eu teria apenas soltado uma gargalhada ou a teria considerado fantasiosa. Agora era minha vez de olhar o infinito sem esperança de compreender aquilo que estava contemplando. Emilito tinha razão, seria necessário toda uma vida de disciplina e armazenamento de poder para eu compreender que estou contemplando o ilimitado.

— Agora vamos olhar para o outro lado do infinito — sugeriu Emilito, girando minha cadeira delicadamente e colocando-a de frente para a parede. Cerimoniosamente, levantou a cortina preta, enquanto eu olhava, apática, tentando controlar meus dentes, que batiam.

Por trás da cortina havia uma mesa azul, comprida e estreita, sem pernas, que parecia presa à parede, embora eu não pudesse ver dobradiças ou suportes sustentando-a.

— Apóie os antebraços sobre a mesa e repouse a cabeça em seus punhos, colocando-os sob o queixo como Clara lhe mostrou — ordenou ele. — Pressione seu queixo. Sustente a cabeça com suavidade e não fique tensa. Agora nós precisamos de suavidade. Segui suas instruções. Imediatamente uma pequena janela se abriu na parede preta, a cerca de 15 centímetros de meu nariz. O caseiro estava sentado à minha direita, aparentemente também olhando através de outra pequena janela.

— Olhe dentro — ordenou ele. — O que você vê?

Eu estava olhando para a casa. Vi a porta da frente e a sala de jantar no lado esquerdo da casa, a qual eu apenas vislumbrara rapidamente quando passara por ela com Emilito, na primeira vez em que usara a entrada principal. A sala estava iluminada e cheia de pessoas que riam e conversavam em espanhol. Algumas estavam servindo-se no bufe, repleto de pratos tentadores, lindamente dispostos em travessas de prata. Vi o nagual e depois Clara. Ela estava radiante e feliz. Tocava violão e cantava em dueto com outra mulher, que poderia facilmente ser sua irmã, grande como Clara, mas com a pele morena. Ela não possuía os olhos verdes intensos de Clara. Seus olhos eram intensos, mas escuros e sinistros. Então vi Nelida dançando sozinha ao som de uma melodia belíssima. De alguma maneira, ela estava diferente do que eu me lembrava, embora não pudesse definir qual era a diferença.

Fiquei observando-os durante algum tempo, encantada, como se eu tivesse morrido e ido para céu; a cena era tão etérea, tão feliz, tão distante das preocupações cotidianas. Contudo, fui subitamente arrancada de minha alegria, quando vi uma segunda Nelida entrando na sala de jantar por uma porta lateral. Não conseguia acreditar em meus olhos; elas eram duas! Virei-me para o caseiro e confrontei-o com uma pergunta silenciosa.

— A que está dançando é Florinda — explicou ele. — Ela e Nelida são exatamente iguais, só que Nelida tem uma aparência um pouco mais delicada. — Lançou-me um olhar e piscou. — Embora bem mais implacável.

Contei as pessoas na sala. Além do nagual, havia 14 pessoas; nove mulheres e cinco homens. Havia duas Nelidas; Clara e sua irmã morena; e cinco outras mulheres desconhecidas para mim. Três sem dúvida eram velhas, contudo, assim como Clara, Nelida, o nagual e Emilito, tinham uma idade indeterminada. As duas outras mulheres eram apenas alguns anos mais velhas do que eu, talvez na metade entre os 20 e os 30 anos.

Quatro homens eram mais velhos e tinham uma aparência tão ardente quanto o nagual, mas um deles era jovem e moreno; era baixo e parecia muito forte. Os cabelos eram negros e encacheados. Ele gesticulava com animação enquanto falava, o rosto irradiando energia, profundamente expressivo. Havia algo nele que o destacava dos demais. Meu coração deu um salto e senti-me instantaneamente atraída por ele.

— Aquele é o novo nagual — disse o caseiro.

Enquanto contemplávamos o salão, ele explicou que todo nagual confere à sua feitiçaria um temperamento e uma experiência particulares. O nagual John Michael Abelar, sendo índio yaqui, trouxera para seu grupo o patos dos Yaquis como marca característica de todos os seus atos. Sua feitiçaria, disse Emilito, era impregnada com o temperamento melancólico daqueles índios. E todos eles, incluindo eu mesma, deviam, segundo a lei, familiarizar-se com os yaquis, acompanhando seus altos e baixos.

— Esta perspectiva valerá para você, até que o novo nagual assuma o comando — falou ele no meu ouvido. — Então você terá de se embeber no seu temperamento e experiências. Esta é a lei. Você terá de ir para a universidade. Ele está se dedicando à atividade acadêmica.

— Quando isso acontecerá? — sussurrei.

— Quando todos os membros de meu grupo, juntos, defrontarem esse infinito no quarto atrás de nós e permitirem que ele nos dissolva — replicou Emilito baixinho.

Uma onda da cansaço e desespero começava a envolver-me. A tensão da tentativa de compreender o inconcebível fora demais.

— Este quarto, do qual eu sou o guardião, constitui a intenção acumulada e a amplitude dos temperamentos de todos os naguais que precederam John Michael Abelar — falou ele em meu ouvido. — Não existe uma maneira na terra que me permita explicar o que é este quarto. Para mim, assim como para você, ele é incompreensível.

Desviei os olhos da sala de jantar, com as suas pessoas empolgadas, e olhei para Emilito. Sentia vontade de chorar, pois finalmente compreendera que Emilito era tão solitário quanto Manfred; um ser capaz de uma consciência inconcebível, no entanto sobrecarregado pela solidão que essa consciência acarreta. Meu desejo de chorar, contudo, foi momentâneo, pois compreendi que a tristeza é uma emoção inferior, quando em seu lugar eu podia sentir admiração.

— O novo nagual cuidará de você — disse Emilito, atraindo minha atenção de volta para sala de jantar. — Ele é seu último mestre, aquele que a conduzirá até a liberdade. Ele tem muitos nomes, um para cada uma das diferentes facetas da feitiçaria a que ele se dedica. Para a feitiçaria do infinito, seu nome é Dilas Grau. Um dia você se encontrará com ele e com os outros. Você não conseguiu no dia em que esteve com Nelida no corredor esquerdo, nem tampouco agora, aqui comigo. Mas você fará a travessia em breve. Eles estão esperando por você.

Indizível anseio tomou conta de mim. Eu queria atravessar aquele orifício de observação e sair na sala para estar com eles. Naquele local havia calor e afeto. E eles estavam esperando por mim.

 

                                                                                Taisha Abelar  

 

                      

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