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A ÚLTIMA BATALHA / Margo Maguire
A ÚLTIMA BATALHA / Margo Maguire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ÚLTIMA BATALHA

 

                Costa Norte de Northumberland Final de outono, 1300.

   O ar estava parado, mas as ondas do mar do Norte quebravam com violência na praia, resultado da terrível tempestade daquela manhã. Nuvens escuras pairavam sobre os rochedos do norte e acima do Castelo Norwyck, prometendo mais chuva.

   Bartholomew Holton, conde de Norwyck, caminhava pela praia sem dar importância ao tempo. Sua silhueta alta e poderosa era vestida pelo traje de costume, túnica escura e meia-calça, embora ele ostentasse uma capa em deferência ao clima inclemente.

   O nobre não se importava com roupas ou com a moda, especialmente agora, quando as circunstâncias em Nor­wyck pesavam tanto sobre seus ombros. A morte inespe­rada de William, seu irmão mais velho, fizera dele um conde. Suas novas responsabilidades o desconsertavam, e a traição e subsequente morte de sua esposa atormen­tavam o coração e a mente do nobre.

   Felícia Holton cometera o inimaginável. Traíra o irmão mais velho de Bartholomew, enviando-o para os vizinhos escoceses ao norte, os bárbaros e brutais Armstrong.

   Quase um ano se passara desde que William, conde de Norwyck, morrera nas mãos de Lachann Armstrong, e a própria Felícia perdera a vida pouco depois ao dar à luz um Armstrong bastardo.

   Bartholomew continuou andando pela praia, deprimido e indiferente às maciças paredes de Norwyck erguidas tão próximas do oceano. Era dolorosa a saudade que sen­tia do irmão. Nunca sonhara ser senhor daquele lugar, porque Norwyck havia sido o legado de Will. William, alegre e justo, que parecia sempre saber o que era espe­rado dele, como lidar com cada situação. Ele tivera o res­peito de cada cavaleiro de Norwyck, incluindo o velho con­selheiro de seu pai, sir Walter.

   Depois de retornar das guerras na Escócia, o único de­sejo de Bartholomew havia sido retirar-se para a proprie­dade que lhe fora concedida pelo rei Edward, uma área enriquecida pelas terras que faziam parte do dote de Fe­lícia. Pensava apenas na vida que teria com sua doce Fe­lícia, nos filhos que em breve chegariam.

   Sim, Felícia. Sua mentirosa, assassina e leviana esposa. Bart chutou um pedaço dos destroços de um navio. A madeira levada à praia pelas ondas era escura, e um dia fora polida e brilhante, mas Bartholomew não deu aten­ção ao material e seguiu em frente, contornando outros destroços depositados na areia pelo mar, a mente tomada por amargas recordações.

   Um vento súbito sacudiu sua capa e ele a segurou abor­recido. Havia areia em seus sapatos, mas ele não se im­portava. Inclinando os ombros contra o vento, o conde prosseguia em sua caminhada solitária.

   Oito meses desde a morte de Felícia. Oito meses desde que soubera de sua traição. E ainda não sabia como ela conseguira atrair William para a armadilha de Armstrong. Ou por quê.

 Honestamente, não conhecia Felícia quando o contrato de compromisso e o casamento aconteceram. Ela tinha menos de dezessete anos, ele mal havia entrado na vida adulta. O casamento havia acontecido seis meses antes de Bart partir para a Escócia com os arqueiros do rei Edward e sua sagrada Cavalaria.

   E por dois longos anos, ele estivera longe de casa.

   Fora tolo o bastante para esperar que a esposa esti­vesse grávida quando partira para a guerra. Mas se en­ganara. Mesmo assim, não dera importância àquela pri­meira decepção. Pensara ter muitos anos para constituir uma família, e depois de seu retorno da Escócia, dedica­ra-se integralmente à tarefa de seduzir a esposa. Não havia sido nenhum sacrifício, pois Felícia era linda e cheia de encantos. Em semanas, ela engravidara.

   Mal soubera Bart que a semente fora plantada em sua ausência. O bebê, um menino nascido seis meses após seu retorno, fora a prova da mentira de Felícia. Suas odiosas palavras durante o doloroso e problemático parto só con­firmaram a traição.

   A ampla faixa de praia que corria adjacente ao Castelo Norwyck começou a se estreitar na medida em que Bart caminhava para o norte, e logo ele se viu forçado a andar por entre imponentes paredões rochosos e rasas piscinas naturais formadas pela maré, com as algas e a vegeta­ção local depositando-se como um tapete sobre a areia molhada.

   Ali também os destroços se faziam presentes, e por fim Bart prestou atenção aos pedaços de madeira. Eram mui­tos os objetos que reconhecia, coisas como pedaços de mesas, um baú fechado com alças de metal, duas colheres de pau, um barril selado.

   Consciente do significado dos destroços na praia, ele parou e olhou para o oceano. Um navio devia ter naufra­gado na tempestade. Era bastante comum que as embar­cações enfrentassem dificuldades ao navegarem por aque­las águas, mas apenas uma realmente afundara ali em todos os vinte e oito anos de Bartholomew.

   Era apenas um garoto, ainda um pré-adolescente, quando percorrera aquela mesma praia com o pai e William procurando por sobreviventes.

   Não encontraram nenhum. Encontraram muitos cor­pos, mas ninguém chegara à praia com vida. Presumia que aquele naufrágio tivesse as mesmas consequências.

   Bart quase agradecia aos céus pelo inesperado evento, porque finalmente conseguia distrair-se dos sombrios e dolorosos pensamentos que ocupavam muitas de suas ho­ras de vigília. Retomando a caminhada, encontrou o pri­meiro corpo, o de um homem cujas roupas, ou o que res­tava delas, estavam em frangalhos.

   Bart virou-o, verificou que ele estava morto, e seguiu em frente procurando por sobreviventes.

   O vento ganhava força e velocidade, e as ondas que­bravam na praia com violência ainda maior, mas Bar­tholomew seguia adiante, envolvido pela cena macabra que se descortinava a sua volta. Mais destroços e corpos podiam ser vistos entre as rochas e enroscados nas algas.

   Nenhuma vítima estava viva.

   E mesmo assim Bart andava, apesar da tempestade que se aproximava. Ia virando corpos e passando por cima dos fragmentos de vidas que se perderam. Quando retor­nasse ao castelo, enviaria um contingente de homens para o resgate e o enterro dos cadáveres. Orientaria o padre para que...

   Bartholomew parou de repente e esfregou os olhos para melhorar a visão. Uma onda de pavor o dominou quando ele viu um corpo de bruços na areia. Cabelos longos e escuros cobriam as costas estreitas, mas não escondiam o quadril pálido e feminino.

   Uma mulher.

   A raiva foi a primeira emoção a ser identificada. Uma mulher estivera a bordo daquele navio, e sentimentos con­flituosos travavam uma guerra surda dentro dele. O có­digo da Cavalaria regia sua conduta, e por isso era im­possível olhar para o corpo castigado e ferido sem sentir piedade. Nenhuma mulher devia ter fim tão violento e terrível.

   Mas fora vítima da traição de uma mulher, razão pela qual abrigava sentimentos amargos e forte ressentimento contra todo o chamado sexo frágil. Na verdade, seria ca­paz de apostar que ela fora, de alguma forma, a respon­sável pelo naufrágio.

   Aproximando-se lentamente, mal notava sua forma fe­minina, a cintura delgada que descia numa curva sinuosa para formar o quadril arredondado, as pernas longas e bem torneadas e os pés delicados. Via apenas os horríveis hematomas e os profundos cortes que maculavam a pele antes perfeita.

   Ajoelhou-se ao lado da desconhecida e tocou seu ombro, virando-a. Não sabia o que esperava encontrar, mas não antecipara o ataque de tosse e os espasmos violentos que oprimiram o peito delicado.

   Por Deus, a mulher estava viva!

   Bart posicionou-a de forma que ela pudesse expelir a água alojada em seus pulmões, mas a jovem permanecia inconsciente e sem movimentos. Sentindo o peso do corpo inerte em seus braços, removeu o que restava das roupas rasgadas e conseguiu cobri-la com seu manto.

   Depois olhou em volta. Havia mais corpos por ali, e a tempestade era iminente. Para que a mulher tivesse al­guma chance de sobrevivência, precisava levá-la rapida­mente a um abrigo. E o único abrigo naquela região era o Castelo Norwyck.

   Bartholomew pegou-a nos braços. A jovem era um peso imóvel envolto em seu manto úmido. Mas o conde tinha a força de um arqueiro e as pernas de um cavaleiro. Não era difícil carregá-la. Acolhendo-a junto ao peito para tor­nar mais fácil a caminhada, percorreu pela praia o cami­nho que conduzia a um dos portões do castelo.

   Servos e crianças estavam no grande hall quando Bar­tholomew chutou a pesada porta de carvalho e entrou carregando a desconhecida. Houve silêncio por uma fração de segundo, em seguida todos começaram a falar ao mesmo tempo fazendo perguntas aflitas.

— O que aconteceu?

— Quem está carregando?

— Ela está morta?

— Podemos vê-la?

   O conde caminhou até a mesa e, usando um dos pés, puxou uma cadeira, onde se sentou com sua carga inerte.

— Quietos, todos vocês — disse. Não só era o novo conde, como também o irmão mais velho e único guardião dos quatro irmãos mais novos. Eram meio-irmãos, na ver­dade, porque sua mãe falecera ainda muito jovem. O pai se casara novamente e formara uma segunda família.

   Os gêmeos, Henry e John, estavam com quatorze anos. Depois vinha Kathryn, com onze anos, uma menina que julgava ser a senhora do castelo. Eleanor era a caçula, uma criança de apenas seis anos, uma criatura bisbilhoteira e astuta como poucas de sua idade.

— Houve um naufrágio — ele disse. — Esta é a única sobrevivente que encontrei.

   Todos começaram a falar novamente, e Bart acenou para um lacaio.

— Mande uma criada preparar um aposento para ela, Rob — ordenou. — Depois reúna alguns homens e leve-os à praia antes da tempestade. Verifique se existem outros sobreviventes.

— Sim, meu senhor — respondeu o criado.

— Escutem, todos vocês — Bart elevou a voz para atrair a atenção dos irmãos. — Não sei nada sobre o naufrágio, exceto que a praia está totalmente coberta de destroços e cadáveres.

— Tem certeza de que ela está viva? — Henry indagou, lançando um olhar desconfiado para a mulher nos braços do irmão. . .

— Vamos ficar com ela?

   Bart olhou para a jovem inconsciente. A cabeça estava apoiada em seu peito, expondo o pescoço longo e pálido. Uma veia pulsava ali, muito depressa, sim, mas estável.

— Sim, ela está viva, e não, não vamos ficar com ela, Eleanor. Se a mulher sobreviver, nós a mandaremos de volta ao seu caminho.

   Gostaria de saber para onde ela se dirigia quando o navio naufragara. Para a Escócia, talvez. Não havia como saber ao certo enquanto ela hão recuperasse a cons­ciência.

— Ela é bonita — Eleanor comentou fascinada.

— Não vai se apaixonar por ela como aconteceu com Felícia, vai? — disparou Kathryn, os braços cruzados sobre o peito plano. Uma criança delicada, a menina tivera seu mundo abalado pelas mortes de William e da cunhada.

   Bart franziu a testa e respirou fundo com evidente ir­ritação, mas decidiu ignorar as palavras da irmã. Não tinha o menor interesse na aparência da desconhecida, nem se apaixonaria por ela. Não nesse século, pelo menos. Estava farto das mulheres. Passaria o título de conde pa­ra Henry, o mais velho dos gêmeos, que o deixaria de herança para seu primogênito.

   Recusando-se a olhar com mais atenção para a mulher em seus braços, Bart levantou-se e seguiu para a escada principal, com os irmãos e as irmãs seguindo seus passos. Estava chegando ao primeiro andar, quando duas criadas surgiram no primeiro degrau da escada que levava à torre leste.

— O aposento da torre está pronto, meu senhor — uma delas anunciou.

— Nenhum outro poderia servir, meu amo — comple­tou a outra, uma viúva chamada Rose, alguém de quem Bart se lembrava pela paciência demonstrada com suas irmãs. — Os quartos dos andares mais baixos ainda não estão disponíveis para outros hóspedes.

   O bispo de Alnwick e sua grandiosa entourage haviam deixado Norwyck recentemente, e os quartos que eram sempre reservados para os hóspedes ainda não estavam prontos para serem usados outra vez.

   Bartholomew não disse uma única palavra, mas seguiu Rose, cuja vela iluminava a escada circular de degraus de pedra até a mais bela câmara do castelo. Aquele era o lugar preferido da madrasta de Bart, um aposento cir­cular com quatro janelas altas e arredondadas na parte superior, cada uma delas voltada para uma direção. As crianças gostavam de ir até ali, e por isso as criadas man­tinham o lugar sempre fresco e limpo.

   Ao entrar, Bart viu que um recipiente de água limpa fora deixado ao lado da cama. As cortinas haviam sido puxadas e as cobertas foram removidas. Um grande lençol de linho fora deixado sobre os outros, presumivelmente para ser removido assim que seu manto imundo fosse retirado do corpo da desconhecida. Então ela estaria nua outra vez.

   Ele rangeu os dentes e se voltou para os irmãos.

— Fora daqui, todos vocês. Agora.

   As crianças protestaram, mas obedeceram, resmun­gando enquanto fechavam a porta do quarto. Bart deixou o corpo inerte sobre a cama. Devia ter ordenado que Rose ficasse para auxiliá-lo, mas ela deixara o aposento com seus irmãos, e era tarde demais para chamá-la de volta.

   Usando uma das velas, ele acendeu a lamparina dei­xada próxima da cama. Depois olhou para a sobrevivente.

   Seus cabelos estavam quase secos, uma massa emara­nhada e sem brilho de um tom mais claro do que havia parecido antes. Não eram negros, como imaginara, mas castanho-claros, e ele sentiu a boca seca ao afastá-los do rosto desprovido de cor.

   Pestanas escuras formavam longos crescentes sobre as faces altas. O nariz era reto e a boca era ampla, com lábios cheios que se encontravam entreabertos. O queixo delicado e marcado por uma pequenina cova central for­mava uma divisão delicada entre o rosto e o pescoço ele­gante. A pele era perfeita, fina e suave.

   Ela se encolheu e emitiu um gemido abafado, depois moveu uma mão. Preocupado, Bart afastou os cabelos que cobriam sua testa e viu um enorme ferimento em uma das têmporas, um corte coberto por grande quantidade de sangue ressecado.

   Era compreensível que ela estivesse inconsciente. O golpe que causara tal ferimento devia ter sido monstruo­so. Ele mergulhou um pano limpo no recipiente com água e começou a limpar o corte, movendo a mão com gentileza, consciente de que a menor pressão poderia causar intensa dor.

   A mulher gemeu e virou a cabeça, embora permane­cesse sem sentidos. Bartholomew prosseguiu com o pro­cedimento de limpeza. Imaginava que o corte tivesse de ser suturado, mas não conseguia deixar de pensar na horrível cicatriz que os pontos deixariam. A ferida estava fechada e limpa por hora. Se ela se mantivesse quieta, talvez não tivessem de costurá-la para garantir a cicatrização.

   Bart hesitou em abrir o manto que a cobria, lembran­do-se do que já havia visto na praia. Não se sentia dis­posto a sofrer o tipo de reação que a visão de seu corpo nu provocaria. No entanto, não desejava expô-la a mais ninguém. Nem mesmo a Rose.

   A mulher começou a tremer, e Bart praguejou. Não tinha outra alternativa se não remover o manto e colocá-la sob as cobertas. Precisava aquecê-la.

   Retardando o inevitável, ele se afastou da cama e foi acender o fogo com a lenha deixada preparada na lareira, abanando-o até que as chamas ganhassem força e come­çassem a espalhar seu calor envolvente pelo quarto. Por um instante, pensou em chamar Rose para lidar com a mulher inconsciente, mas descartou a idéia mais uma vez, recusando-se a considerar seus motivos com espírito crítico. Estalando os ossos dos dedos, olhou para o corpo sobre a cama.

   O manto endurecera pela ação do ar salgado do litoral, mas ele conseguiu abri-lo, deixando parte do tecido sob a desconhecida. A mulher tinha hematomas e ferimentos por toda parte. Usando um pano molhado para limpar a areia seca de sua pele, ele se obrigou a ignorar a exuberante abundância daquele corpo enquanto a tocava.

   A desconhecida tremia, e por isso ele trabalhou depres­sa. Gemendo, ela tentou se afastar das mãos que a toca­vam, mas estava fraca demais para realizar o ato tão simples. Por fim, ele a virou de lado, dobrou o manto sujo de areia sob seu corpo, apoiando-a novamente sobre suas costas para puxá-lo do outro lado.

   Havia terminado de cobri-la com a colcha da cama quando ouviu as batidas na porta.   Afastando o olhar do corpo inerte, foi ver quem o procurava.

— Bartie? — Eleanor chamou ansiosa ao entrar no quarto. — A dama vai ficar bem?

   Era impossível não sentir ternura pela menina de ca­belos vermelhos e brilhantes. Ela era a única que ainda o chamava de Bartie e não sofria nenhuma censura por isso.

— Não sei, Ellie — ele respondeu, seguindo-a até a cama. — Ela está muito ferida.

   Eleanor tocou os cabelos da desfalecida. Séria, mordeu o lábio revelando apreensão.

— Ela vai morrer aqui na torre de mamãe?

   Bart rangeu os dentes. Não havia considerado essa pos­sibilidade, mas agora era forçado a pensar em como a eventual ocorrência afetaria seus irmãos.

— Não, meu patinho — ele disse.. — Essa mulher não morrerá no Castelo Norwyck. Não se eu puder evitar.

   Eleanor olhou novamente para a desconhecida. Seus olhos eram pensativos, cheios de compreensão.

— Ela é linda. Acha que vai acordar depressa?

— Ellie, não tenho as respostas que gostaria de ouvir. — Bart afagou os cabelos da criança. Vira homens feridos com aquela mesma gravidade durante a campanha na Escócia. Alguns nunca haviam despertado, e pensar na morte iminente da dama de raros encantos não o agra­dava. — Vá procurar sir Walter, está bem? Diga a ele que ordeno que vá buscar a curandeira no vilarejo.

— Ela está começando a se mover um pouco mais — anunciou Alice Hoget, cujas mãos seguravam um cata­plasma frio sobre a testa da mulher. A noite caíra acom­panhada por uma terrível tempestade, e a vítima perma­necia inconsciente. Por quanto a situação poderia perdu­rar? Quanto tempo ela teria de passar em Norwyck?

— O que acha? — perguntou Bartholomew. Sentia-se possuído por uma estranha inquietação. Ele andava pelo quarto, enquanto Alice examinava a sobrevivente e fazia o que estava ao seu alcance, o que era muito pouco.

— O que penso é que ela sofreu um golpe na cabeça e foi jogada para fora do navio — a curandeira respondeu com suas maneiras francas. — É admirável que ela tenha chegado viva à praia. Essa mulher tem sorte por não ter se afogado.

   Maldição. Teria sido melhor se a houvesse deixado para morrer na praia. Assim enfrentaria menos problemas. E criaria menos problemas para a pobre mulher cujos feri­mentos acabariam por matá-la de qualquer maneira.

   No entanto, não fora capaz de abandoná-la aos elemen­tos. Embora já não se interessasse mais pela sorte e o destino das mulheres, a possibilidade de abandoná-la na praia nunca passara por sua cabeça.

— O que estou perguntando é... ela vai se recuperar?

— Bem, não houve nenhuma fratura de ossos, apenas o golpe na cabeça. — A velha curandeira pegou a lampa­rina e levantou uma pálpebra da enferma. — Veja — apontou — a parte escura de seus olhos se encolhem com a luz. Isso significa que logo ela estará recuperando a consciência.

— Como pode saber disso?

— Experiência — Alice respondeu enquanto recolhia seus pertences. — Já vi muitas pessoas sem sentidos por conta de golpes na cabeça. Não é incomum que um corpo permaneça nesse estado por um dia ou mais.

— Quer dizer que ela pode continuar como está por mais de um dia?

— Sim, meu senhor. E possível, embora ela dê sinais de recobrar a consciência em breve.

   Bart encarou a curandeira com evidente contrariedade, depois olhou para a mulher sobre a cama. Ignorando-o, Alice saiu do quarto levando suas coisas, deixando-o so­zinho com a desconhecida e seus pensamentos sombrios.

   Logo ele se cansou de andar pelo aposento e foi sen­tar-se em uma cadeira ao lado da cama. Quanto antes aquela mulher recuperasse a consciência, melhor seria. Então poderia mandá-la para onde quer que estivesse se dirigindo por ocasião do naufrágio. Era provável que a desconhecida estivesse a caminho dos portos do sul a bor­do do navio desviado do curso pela tempestade. Era bas­tante comum que isso ocorresse, embora as naus rara­mente naufragassem.

   Bart segurou uma das mãos femininas. As unhas ti­nham um formato arredondado e a pele era macia. Com mãos como aquelas, a mulher só podia ser uma lady. Seu rosto também tinha um desenho delicado, e estava certo de que logo alguém apareceria por ali procurando por ela.

   O distante e repentino badalar do sino da igreja colo­cou-o em pé num instante. Nenhum serviço acontecia àquela hora, e só havia uma razão para que o sino soasse: o vilarejo estava sendo atacado.

   Sem lançar sequer um último olhar para a mulher in­consciente, Bart deixou a câmara e desceu a escada aos saltos. No primeiro andar, encontrou um lacaio que fora enviado para chamá-lo.

— Meu lorde, homens de Armstrong estão atacando o vilarejo.

— Vá ao estábulo e ordene ao meu escudeiro que pre­pare minha montaria e uma armadura — Bart comandou. Os dois desceram ao hall juntos. — Estou indo para lá imediatamente.

   Eleanor chorava sentada à grande mesa do hall. John aroximou-se e colocou seus braços musculosos em torno dos pequeninos ombros. Kathryn permanecia corajosa e altiva ao lado da lareira. Estufando o peito, Henry apro­ximou-se do irmão mais velho ao vê-lo atravessar o salão.

— Vou com você — ele anunciou.

— Não — respondeu Bart. Seus irmãos teriam de ser enviados para um abrigo em alguma propriedade vizinha, mas as circunstâncias dos últimos anos impediram tal providência. Portanto, o treinamento pelo qual eles deve­riam ter passado jamais acontecera. Não mandaria os ga­rotos para uma batalha antes de tê-los bem preparados. — Fique aqui e defenda o castelo e suas irmãs. Os criados buscarão sua orientação.

— Mas, Bart...

— Esta é minha palavra final, Hal! — Ele encerrou a discussão, aproximando-se da porta principal. Ao alcan­çá-la, parou e olhou para o irmão mais novo. — Pretendo trazer comigo a cabeça de Lachann Armstrong. Providen­cie um mastro robusto no pátio para recebê-la.

 

   Uma esteira de luz cortou o céu anunciando o trovão que sacudiu a terra em torno de­les. Apenas os malditos Armstrong implementariam um ataque num tempo como aquele.     Eles haviam conseguido incendiar algumas casas e provocar a debandada de meio rebanho de gado para as montanhas antes que Bartholomew e seus cavaleiros frustrassem a empreitada, uma resposta cuja ferocidade havia rapidamente enviado os Armstrong de volta para suas terras.

   Enfrentando uma violenta tempestade, seus homens perseguiram os escoceses pelas colinas e por territórios lamacentos, mas os covardes Armstrong haviam conse­guido desaparecer em seus obscuros esconderijos. Bart enfrentara batalhas consideradas suficientes para toda uma vida, e gostaria de que os odiosos oponentes desis­tissem de seus métodos beligerantes.

   No entanto, desde a morte de William, o latifundiário escocês fizera da destruição de Norwyck sua missão pes­soal. Bart presumia que fosse uma forma de pagamento por sua participação e a de William nas recentes guerras escocesas.

   Para imensa decepção de Bartholomew, os escoceses haviam desaparecido por completo ao romper da autora.

   Não havia para ele outra alternativa se não retornar sem a cabeça do inimigo, embora houvesse conseguido deca­pitar um bom número de invasores.

   Não havia pensado uma única vez na mulher no apo­sento da torre, mas, ao desmontar diante dos degraus de pedra do castelo, imaginou rapidamente se ela já havia despertado de seu estupor.

   A luz na câmara era pálida, mas não era isso que tor­nava sua visão turva. Nada era claro, nem mesmo sua mão quando a estudava de perto. O que estava aconte­cendo? Qual era o problema com seus olhos?

— Oh! — alguém gritou. — Está acordada!

   Inglês. A mulher falara em inglês, e por alguma razão o som era estranho e nada familiar. Mesmo assim, enten­dia as palavras.

— Quer beber água? — ofereceu a desconhecida que se debruçava sobre ela. Podia distinguir cabelos claros e um vestido escuro, mas os traços do rosto não eram nítidos.

   Ela assentiu e bebeu água de uma caneca.

— Vou dizer a lorde Norwyck que você despertou — informou a criada.

— Lorde... Norwyck? — repetiu, testando as palavras em inglês.

— Sim — confirmou a voz. — Está no Castelo Norwyck. O próprio lorde Norwyck carregou-a da praia até aqui.

— Norwyck... carregou-me? — Engolindo em seco, fran­ziu a testa e teve de fechar os olhos para superar a onda de dor causada pelo gesto. Nada fazia sentido. Norwyck. Castelo Norwyck. Nada soava familiar.

— Sim, ele a trouxe nos braços. Quando a encontrou desacordada na praia.

   De repente a criada saiu, deixando-a sozinha com suas dúvidas e com seus pensamentos.

   Eram todos surpreendentemente vagos.

   Não conseguia imaginar uma razão pela qual pudesse ter sido encontrada desacordada na praia. Estivera... Onde?

   O estômago contraiu-se e deu um salto quando ela cons­tatou que não conseguia se lembrar de nada específico. Havia rostos, lugares estranhos, mas não podia nomeá-los. Sua memória se fora e a visão era pobre. O que faria?

   O pânico tomou-a de assalto. O coração batia depressa e a respiração era instável. Não conseguia recordar se­quer o próprio nome! Não sabia de onde viera, ou como chegara ali.

   Assustada, tentou levantar-se, mas sentiu uma onda de náusea ao apoiar os pés no chão. Mesmo assim, não podia ficar ali esperando que alguém cuidasse dela. Não condizia com sua natureza ser passiva, embora não soubesse como podia ter tanta certeza disso. Apenas não parecia correto permanecer deitada esperando por respostas.

   Uma tontura a fez hesitar, mas ela se afastou da cama apesar da sensação. Estava machucada, coberta de he­matomas e cheia de dores, com um calombo na testa e um corte na têmpora. Aquele parecia ser o pior de seus ferimentos. A visão turva também a alarmava, mas não tinha meios de saber se sempre tivera visão deficitária. Duvidava disso, já que a sensação era estranha para ela.

   Quase tão preocupante quanto os ferimentos era o fato de estar nua. Estava totalmente exposta, e não via uma única peça de roupa ao seu alcance. Apertando as pálpe­bras a fim de melhorar a visão, estendeu os braços para sentir os objetos que pudessem estar em seu caminho, e quase tropeçou em uma cadeira na tentativa de alcançar o que julgava ser um vestido pendurado no encosto.

   Era apenas um xale de lã.

   De repente ouviu o som de passos e vozes, mas não poderia retornar a cama a tempo de cobrir-se sem trope­çar em alguma coisa. Agarrando o xale, segurou-o diante do corpo nu um segundo antes de a porta ser aberta.

   Bart parou na soleira do aposento da torre, estendendo um braço para conter os irmãos e Eleanor, todos curiosos para verem a sobrevivente do naufrágio.

— Agora desçam. Irei buscá-los assim que... bem, assim que eu... — O que poderia dizer?

— Vamos, Bart — Henry protestou, empurrando-o com determinação. — Deixe-nos entrar.

— Não. — Intrigado, ele olhava para a mulher que o encarava com uma expressão vazia no rosto. Seu corpo fora parcialmente coberto, mas o xale de lã que ficava sempre sobre o encosto de uma cadeira não escondia as curvas femininas e suaves.

   Acordada, ela era intrigante. Não podia impedir que os olhos a examinassem com curiosidade, desde os deli­cados ossos dos ombros até a curva dos seios, do quadril arredondado que o xale não conseguia esconder aos tor­nozelos de formato perfeito.

   Os irmãos o empurravam impacientes. Quando final­mente conseguiu falar, ele ordenou que fossem embora.

— Desçam — disse com firmeza. — Irei encontrá-los em seguida. — Depois virou-se e fechou a porta, utilizan­do a tranca de madeira e ignorando as batidas persis­tentes que soavam no interior do quarto.

   Elas não tinham importância comparadas às batidas de seu coração, ao latejar do cérebro e de outra parte menos nobre de sua anatomia. A desconhecida era linda e graciosa, angelical e sedutora a ponto de ser perigosa.

   Desviando os olhos, ele praguejou em pensamento. Sa­bia que não devia deixar um corpo atraente interferir em seu raciocínio. Ela era uma mulher, nem mais nem me­nos. Totalmente capaz das mais diabólicas traições.

   Permitiria que a sobrevivente ficasse até que pudesse manter-se sobre os próprios pés. Então ela teria de partir.

— Envolva-se com o xale de maneira a cobrir-se de fato, se não se importa — disse com frieza enquanto ca­minhava na direção da hóspede.

   A mulher tentou manusear a pesada trama de lã en­quanto recuava, mas tropeçou. Bart adiantou-se e segu­rou-a a tempo de evitar a queda, erguendo-a nos braços.

   A pele nua era excitante. A desconhecida cobrira ape­nas a frente do corpo, e não muito bem, deixando as costas inteiramente nuas. Sentia o calor e a suavidade das for­mas em suas mãos.

   Seus olhos eram de um verde muito claro contornados por um círculo azul, e as pestanas eram escuras e longas. Não se lembrava de ter visto olhos como aqueles antes, mas eles também eram confusos, sem foco. A situação daquela criatura o tocava. Ter sobrevivido a um naufrágio no qual haviam perecido pessoas conhecidas, provavel­mente familiares e entes queridos... Era terrível.

   Endurecendo o coração contra a onda de piedade, ele a pôs na cama e cobriu-a com a colcha. O que quer que houvesse ocorrido, estava feito. E não tinha nada a ver com ele.   Permitiria que a mulher ficasse em Norwyck até que ela estivesse bem o bastante para viajar, e então a mandaria embora.

   Quando ela começou a tremer, Bart desviou o olhar.

— Meu lorde?

— Você está no Castelo Norwyck — ele informou sem se virar, mantendo as costas voltadas para a desconheci­da. — Seu navio naufragou em nossas águas.

— Meu... navio?

— Pelo que sabemos até agora, é a única sobrevivente. — Então Bart se virou para encará-la com firmeza. — Seu nome...?

   A mulher umedeceu os lábios.

— Eu... eu... não consigo lembrar — ela respondeu com simplicidade.

   Bartholomew olhou para aquela boca, incapaz de com­preender o significado da breve declaração. Oh, sim, en­tendera bem cada palavra por ela pronunciada, mas não conseguia tirar nenhum sentido delas.

— Não lembra?

— Não, meu lorde — afirmou. Fazia um grande esforço para não deixar tremer a voz, mas o esforço assumia a aparência de um truque manipulador. A falecida esposa de Bart sempre lançara mão dele com grande efeito. — Acordei sem saber quem sou ou de onde vim.

   A gargalhada do lorde soou fria, desprovida de humor. Como era possível que alguém não se lembrasse do pró­prio nome? Só um tolo acreditaria em tal tolice.

   Sério, caminhou até a janela do lado leste e olhou para o mar. Não queria encará-la agora, não quando ela ainda exibia aquele ar vulnerável e recitava mentiras ridículas.

— Então, não tem idéia de quem é ou de onde veio — disse. — O quê, exatamente, consegue recordar?

   Ela hesitou por tanto tempo, que Bart chegou a pensar em virar-se e encará-la, mas, antes que pudesse mover-se, a desconhecida murmurou:

— Lembro-me apenas de retalhos de situações... Um rosto... um jardim... crianças. Eu... eu...

   Bart encarou-a.

— Perdoe-me se considero sua história indigna de cre­dibilidade — disse com desprezo. Depois atravessou o aposento, voltando a encará-la apenas quando alcançou a porta! — Vai precisar de roupas. Enviarei uma criada com coisas adequadas ao seu porte. Na próxima vez em que a vir, espero que tenha uma história mais plausível para contar.

   Com essas palavras frias, o conde saiu.

   Ela se virou de costas para a porta e piscou para conter as lágrimas. Não só era incapaz de recordar coisas que tivessem um mínimo de conteúdo, como algo de muito sério a impedia de enxergar. A atitude do lorde era hostil, como se sua presença em Norwyck o ofendesse ou cau­sasse problemas e dificuldades.

   Pois bem, sairia dali o mais depressa possível. Encon­traria alguém que pudesse guiá-la até um lugar mais hos­pitaleiro, uma morada cujo mestre não fosse tão ameaça­dor. Assim que tivesse roupas para vestir, iria para bem longe de Norwyck.

   Se ao menos pudesse lembrar... Castigava o cérebro tentando localizar as imagens que por ele passavam, mas não conseguia uni-las num conjunto coerente. O rosto de uma mulher... crianças louras... um campo florido...

   Alguém entrou no quarto, e ela se virou para a forma nebulosa de uma criança. Uma criança com cabelos vermelhos e brilhantes, uma criatura muito diferente daque­las que sua mente invocava.

— Minha senhora... — a menina disse ao se aproximar da cama.

— Sim? — A voz soava fraca, tremula.

— Meu nome é Eleanor. Sou irmã de Bartholomew.

   Sua expressão devia ser confusa, porque a pequena ex­plicou prontamente:

— Bartholomew Holton, conde de Norwyck.

— Oh... — Bartholomew era o homem carrancudo que há pouco estivera com ela.

— Vim trazer... O que foi? — O tom infantil sugeria curiosidade e uma certa confusão.

— Meus olhos...

— Seus olhos são lindos, minha lady. — A menina pôs alguma coisa sobre a cama. — Tão claros e radiantes...

   Ela balançou a cabeça, provocando ondas de dor que se espalharam por toda a região até o pescoço. Deitada na cama, respirou fundo e engoliu uma onda de náusea.

— Não são tão claros, minha criança. Não consigo en­xergar.

— E cega? — perguntou a menina com evidente es­panto.

— Não exatamente, mas posso acabar perdendo a visão por completo. Tudo que vejo é nebuloso, turvo.

— Como quando esfrego meus olhos com força e volto a abri-los?

— É algo assim.

— Que coisa horrível — a pequena comentou penali­zada, pousando a mão rechonchuda no braço da hóspede. — Como consegue viver? Quero dizer, se é...

— Não sei. Não sei ao certo se sempre fui assim, ou se... Não. Essa enfermidade me causa sensações desco­nhecidas. Não creio que a tenha portado antes...

— Não entendo o que quer dizer, minha lady.

   Ela hesitou. Poderia uma criança... mesmo aquela criança, que parecia ser tão inteligente e astuta, com­preender sua situação?

— Eu... acho que perdi a memória.

   Silêncio. Durante o longo intervalo, podia sentir os olhos da menina atentos em seu rosto, como se estudassem sua expressão. Finalmente, a pequenina voltou a falar com espanto e admiração.

— Você perdeu a,.. Quer dizer que não consegue lem­brar de nada?

— De nada — ela confirmou num sussurro.

— O naufrágio levou suas lembranças?

— Suponho que sim, embora não disponha de meios para saber...

— Seu nome! Não sabe sequer como se chama? Era difícil conter as lágrimas.

— Não. Não sei quem sou ou de onde venho. — Não sabia nem se o inglês era seu idioma natal. Ele soava familiar aos seus ouvidos, mas de uma forma distante e estranha.

   Eleanor emitiu um som abafado e indecifrável, depois foi para o outro lado da cama.

— Não tem nenhuma recordação sobre seu passado? Nada? — Sua voz soava espantada, confusa e curiosa.

— Lembro-me de algumas cenas, de rostos sem nome... Coisas que não fazem sentido...

— Bem, como vamos chamá-la, então?

   Ela mordeu o lábio e sufocou o pânico que ameaçava dominá-la. Quem era? Tentou pensar em um nome que tivesse algum significado, mas era impossível. Nada pa­recia familiar, e tentar forçar a memória só intensificava a dor na cabeça.

— Não tenho a menor idéia.

— Nesse caso, teremos de criar um novo nome para você — a menina sugeriu com inesperado entusiasmo. — Quer usar o meu? Podemos chamá-la de Eleanor... Não. — O tom sugeria uma testa franzida. — Seria muito confuso. Duas pessoas com o mesmo nome neste castelo... Já sei! — De repente ela soava satisfeita, quase eufórica. — Vamos usar o nome da esposa do rei Edward. Marguerite!

— É um nome tão bom quanto outro qualquer... supo­nho. — E era verdade, embora esse nome também soasse desconhecido.

— Oh, eu esqueci — Eleanor suspirou. — Trouxe al­gumas roupas. Bartie havia mandado uma criada para ajudá-la, mas eu a dispensei e vim em seu lugar.

— Muito obrigada, lady Eleanor — Marguerite respon­deu, contagiada de certa forma pela exuberância da me­nina. — Diga-me, por acaso trouxe uma camisa ou algo que eu possa vestir agora? Presumo que tenha... perdido todas as minhas roupas, embora não consiga imaginar como isso aconteceu.

   Eleanor examinou as peças que deixara sobre a cama e selecionou algo longo e branco.

— Isto deve servir — decidiu. — Devo ajudá-la?

— Sim, por favor — Marguerite concordou sem hesitar. A simpatia e a amizade da criança eram surpreendentes, especialmente depois do comportamento antagônico de seu irmão, e sentia-se grata por ter encontrado ao menos uma pessoa bondosa no Castelo Norwyck. Não sabia se alguma vez sentira necessidade de amigos antes, mas nes­se momento precisava deles com desespero.

   Bart bebeu um gole da cerveja e sentou-se diante da lareira acesa no salão principal. Havia removido sua ar­madura, mas ainda usava a túnica e a meia ensopadas e sujas com que enfrentara a noite de batalha. A chuva continuava caindo inclemente, e ainda havia corpos enfi­leirados sob um encerado na praia. Enormes pilhas de entulho e bens valiosos permaneciam sob a guarda de seus homens junto ao mar, e uma mulher meio cega e sem memória jazia ferida no aposento da torre.

   Se pudesse acreditar nela...

   Duvidava de tudo que a mulher havia dito. A única qualidade digna de crédito naquela mulher era sua ima ginação. Quem poderia pensar em um conto tão improvável? Perder a memória!

   Ele balançou a cabeça e riu. A farsa não poderia se mantida por tanto tempo. Era provável que o navio no qual ela viajava fosse escocês, e por isso ela temia revelar sua identidade.

   Bart virou-se ao ouvir passos próximos. Era a joven Kathryn, que parecia sofrer mais do que todos a morte de Willíam e a traição de Felícia, ou o que ela compreendia dos fatos.

— Bartholomew — ela disse com tom grave — Eleanor está no aposento da torre.

— Eu disse a ela para ficar longe...

— Eu sei, mas desde quando ela ouve alguém? — Kathryn soava irritada. Jogando a longa trança loura para trás de um ombro, seguiu o irmão que já se encaminhava para a escada. — Por mais que eu fale, ela sempr faz o que bem entende.

— Eleanor ainda é uma criança, Kate — Bart respondeu, tentando demonstrar interesse pelas preocupaçõe da adolescente. No entanto, a única coisa em que pensava era que a irmã caçula estava no quarto da desconhecida A mulher podia ser uma assassina escocesa. Coisas estranhas haviam acontecido nos últimos meses, e não correria riscos com relação à segurança de Eleanor.

   Em pouco tempo ele alcançou a torre e abriu a porta do quarto onde instalara a sobrevivente do naufrágio.

— Bartie! — Eleanor gritou.

— O que foi que eu disse sobre você vir aqui?

   A mulher encolheu-se sob as cobertas, enquanto Ellie cruzava os braços sobre o peito e fincava os pés no chão. Havia aborrecimento no olhar que ela lançou para Kathryn, e até seus cachos vermelhos tremiam de raiva.

— Eu só estava ajudando lady Marguerite...

— Ah, então ela tem um nome, não é?

— Não. Nós combinamos que ela usaria o nome da rainha. Isto é, até que consiga lembrar de seu verdadeiro nome.

   Bartholomew encarou "Marguerite" Ela mantinha os lábios unidos e apertados, e pelo movimento das cobertas sobre seu peito, podia dizer que a respiração era ofegante.

— Saiam as duas — ordenou. — Eu mesmo ajudarei lady Marguerite.

— Mas, Bartie...

— Sem argumentos, ou vai passar a pão e água por uma semana — Bartie ameaçou com severidade, mesmo sabendo que o aviso não surtiria grande efeito. Ameaçava Eleanor com tanta frequência, que a promessa de castigos eram quase uma brincadeira entre eles.

— Lady Marguerite precisa da minha ajuda!

— Lamento, mas ela vai ter de sobreviver sem seu au­xílio. — Os olhos do conde buscaram os da bela dama sobre a cama. — Desta vez, ela terá de satisfazer-se com a minha ajuda.

 

   Marguerite já havia encaixado a cabeça na gola da camisola macia quando a porta se abrira e lorde Norwyck entrara como uma ventania anunciando tempestade.

   Escondida sob as cobertas, conseguira puxar a camiso­la até o meio das pernas. Assim, ao menos não se sentia tão vulnerável.

— Lady Marguerite, é?

— Eleanor sugeriu esse nome, uma vez que não consigo lembrar o meu.

— Entendo. Devemos chamá-la de alteza, ou minha senhora é o suficiente?

— É sempre tão cáustico, meu lorde? — ela indagou com altivez. — Ou tenho o imenso prazer de ser a única a provocar sua ira?

— Mentirosos em geral sempre têm esse tipo de efeito sobre o meu comportamento. Mesmo que sejam belas mentirosas.

   Gostaria de poder ver com nitidez os traços do nobre. Só podia dizer que ele era alto e tinha ombros largos, e que os cabelos eram escuros e abundantes. Sua voz era profunda, ressonante, seu sotaque era agradável, e havia uma surpreendente suavidade no tom quando ele falava com as irmãs.

   Ao contrário de quando falava com ela, momentos em que seu tom assumia sempre uma indiscutível rispidez.

   Um flash brilhante de luz cintilou em algum ponto de sua retina, ameaçando cegá-la. Fechando rapidamente os olhos, ela se encolheu em virtude da dor na cabeça. Uma forte onda de náusea brotou em seu estômago e subiu pela garganta, obrigando-a a engolir diversas vezes numa desesperada tentativa de não sofrer de novo o terrível cons­trangimento diante de lorde Norwyck.

— Por Deus, mulher! — ele exclamou, correndo a apa­nhar um recipiente sob a mesa-de-cabeceira. — Não tem sequer o bom senso de procurar uma bacia quando...

   Ela se virou e vomitou dentro da bacia, sem sequer tomar consciência da mão apoiada em sua testa, susten­tando-a com firmeza. Não imaginava que fosse possível sentir-se pior e ainda permanecer viva.

   Suprimindo um gemido, deixou-se cair sobre as almo­fadas da cama. De repente, uma compressa fria foi pres­sionada contra sua boca, enquanto outra esfriava sua tes­ta. Lágrimas transbordavam de seus olhos.

   O conde permanecia silencioso, e não fosse por seu to­que, Marguerite nem saberia que ele estava ali. Não que­ria receber nenhum conforto daquele homem ríspido e frio, mas o calor da mão sobre sua pele provocava arrepios embaraçosos. Quisera que ele não fosse tão duro quanto queria parecer.

— Mandarei uma ama vir ficar com você — lorde Nor­wyck anunciou. Sua voz era desprovida de emoção, e Mar­guerite sentiu-se satisfeita por também não ter demons­trado nenhum sentimento. Estava certa de que as lágri­mas haviam sido apenas resultado do esforço que fizera para vomitar, não um reflexo do medo e da impotência que experimentava. Não precisava da presença do conde ou de sua segurança para saber que sobreviveria.

   Quando ouviu os passos se retirando e o som da porta se fechando, quase conseguiu convencer-se de que se sentia aliviada.

   Cansado depois da longa noite de batalha e perseguição, Bartholomew deixou Marguerite na torre e retornou ao grande salão.

   Era insanidade permitir que sua aparente vulnerabilidade o afetasse. Ela era apenas uma mulher, uma mentirosa da pior espécie. E sabia tudo sobre se deixar envolver por uma mulher desonesta. Não era uma experiência que quisesse repetir.

   Depois de fechar o salão, ele seguiu para o estúdio um aposento acolhedor e confortável no extremo sul do castelo.

— Meu lorde. — Sir Walter Gray levantou-se ao vê-lo entrar.

— Não se incomode, sir Walter. — O cavaleiro de cabelos grisalhos parecia tão exausto quanto todos os outros que haviam lutado durante a noite inteira.

   Walter vivia em Norwyck há mais de trinta anos e havia servido como administrador das terras de seu pai. Eli era uma espécie de tio reverenciado por todos os filhos de Holton, alguém querido e confiável que ajudara a lidar com as questões relativas à propriedade depois da morte de seu pai, especialmente no período em que Will e Bart passaram lutando na Escócia. Sir Walter era o conselheiro mais próximo e confiável de Bartholomew.

— Os últimos homens voltaram da expedição ao norte

— Alguma notícia de Lachann ou de seu filho? — Bart perguntou, deixando-se cair numa cadeira na frente do velho amigo e cavaleiro. Walter balançou a cabeça.

— Eles vasculharam toda a extensão de terra dos Arms­trong, mas foram repelidos por arqueiros quando se apro­ximavam do castelo.

— Perdemos algum homem?

— Não dessa vez.

— Deve haver algum jeito de tomarmos o Castelo Braemar e prendermos Armstrong e seu filho bastardo.

— Se existe, ainda não o conhecemos. Aquele lugar é uma verdadeira fortaleza, e a propriedade é sempre muito bem guardada pelos melhores arqueiros escoceses.

   Bart fez um som ríspido.

— Por hoje não ha mais nada a fazer, meu lorde. Por que não vai para sua cama e descansa? Armstrong não é tolo para atacar-nos duas noites consecutivas.

— Sim, concordo com sua teoria. — O conde levantou-se. — Mas, na prática... Os métodos de Lachann têm sido muito imprevisíveis nos últimos anos. Ele não tem um comportamento convencional.

— É o mínimo que se pode dizer daquele homem, meu lorde — respondeu o cavaleiro.

   Bart sabia que o homem se culpava por não ter des­mascarado a mentira de Felícia. Afinal, o filho de Arms­trong, Dúghlas, a seduzira e engravidara enquanto ele estivera no comando do castelo. Mas Bartholomew não o culpava. O romance de Felícia fora conduzido no mais absoluto sigilo enquanto o cavaleiro se ocupava da pro­priedade e das crianças. Talvez houvesse começado antes mesmo de Bartholomew partir para a Escócia.

— De qualquer maneira, não creio que o canalha tenha intenção de voltar esta noite, meu lorde.

— Você pode estar certo, Walter, mas não confio em Armstrong, nem espero que ele se comporte de maneira razoável ou previsível.

   Contrariando todas as convenções, Armstrong corrom­pera Felícia. Ele enviara seu filho, Dúghlas, para sedu­zi-la. Depois, de alguma maneira, ele a convencera a con­duzir William até sua armadilha sem que uma única es­pada fosse erguida. O homem era diabólico.

— Providencie para que haja guardas em todos os por­tões — ordenou o conde. — Quero sentinelas nas colinas ao norte do vilarejo. Se os Armstrong vierem novamente, quero ser prevenido com muita antecedência.

— Sim, meu lorde. Cumprirei suas ordens imediata­mente, acredite.

— Vou descansar um pouco. Estarei dormindo em meus aposentos pelas próximas duas ou três horas. — Antes de sair do estúdio, ele parou e olhou para o conselheiro. — Mande alguém ir buscar Alice Hoget. Quero que ela venha dar uma olhada na mulher na torre... enquanto estou presente.

   Walter franziu a testa.

— Algum problema, meu lorde?

— Não sei. A desconhecida afirma que não consegue se lembrar de nada. Nenhum detalhe de seu passado, nenhum evento... nem mesmo seu nome.

   O cavaleiro não respondeu, e o conde continuou falando.

— Quero ouvir a opinião de Alice. Quero saber se tal coisa é realmente possível.

— Sim, meu lorde. É realmente muito estranho, em­bora já tenha ouvido relatos sobre fenômenos semelhan­tes. Descanse. Quando acordar, Alice estará aqui.

   Sonhos estranhos perturbaram o cochilo vespertino de Marguerite, e ela acordou cansada. Supunha que as ima­gens naqueles sonhos tivessem algum significado, mas não conseguia imaginar qual. Os rostos, os lugares... tudo era desconhecido para ela.

   As piores partes do sonho a despertaram. Experimen­tara a sensação de estar se afogando, como se a própria vida estivesse sendo espremida para fora de seu corpo.   Sentara-se na cama em pânico, o coração disparado, a cabeça latejando. E mesmo assim, não conseguia recordar nada do passado.

   A porta do quarto se abriu de repente para dar passa­gem a uma mulher idosa e murcha. Ao encará-la, Mar­guerite se deu conta de que a visão havia melhorado mui­to.   Podia ver a recém-chegada com nitidez quase absoluta.

— Bem, você parece estar melhor do que na última vez em que a vi.

— Então, já me conhece? — Sabia que a pergunta soava esperançosa, especialmente acompanhada pelo gesto im­pensado de levar a mão ao coração como se quisesse aquietá-lo.

— Não, minha lady. Só a vi uma única vez quando estava aqui mesmo, deitada nessa cama, porém incons­ciente. Sou Alice Hoget. Sou a curandeira desta região, embora não seja médica.

— Oh... — Os ombros de Marguerite caíram sob o peso da decepção. Lágrimas brotaram em seus olhos. Havia esperado, talvez até tolamente, por uma resposta imedia­ta para suas questões. Mas não a teria. Piscando, conteve as lágrimas e respirou fundo antes de notar uma figura alta e sombria parada na porta, atrás de Alice.

   Com o coração oprimido, identificou prontamente lorde Norwyck.

   Agora que podia enxergá-lo com maior clareza, sentía-se atônita diante de traços tão belos, embora seus encan­tos fossem mitigados pela expressão carrancuda que do­minava seu rosto.

   Seus olhos eram escuros, quase negros, emoldurados por sobrancelhas espessas e bem delineadas. O homem possuía uma mandíbula forte cujos músculos enrijecia naquele momento, sinal claro de sua desaprovação. Os lábios eram cheios, esculpidos, e o nariz era reto e aristocrático. Os cabelos negros alcançavam a altura dos ombros.

   Não havia suavidade em seus traços, mas Marguerite experimentara sua bondade, por mais que houvesse sido revestida pelo manto da frieza.

— Lorde Norwyck diz que você perdeu a memória. Incapaz de encontrar a voz naquele momento, Margue­rite apenas assentiu.

— Não se lembra de nada?

— Só de alguns rostos, de momentos de uma tempes­tade... — A voz soava tremula, e ela parou para tentar controlá-la. — E uma sensação estranha essa de... de sen­tir que existe uma memória escondida em algum lugar, mas que não consigo alcançá-la e trazê-la à tona.

— Sim, deve ser — a curandeira concordou com sim­patia. — Mas já ouvi falar dela... dessa enfermidade de perda da memória.

— Realmente? — Marguerite não conseguia disfarçar o entusiasmo, apesar da presença de lorde Norwyck. — Sabe se vai passar? Vou me lembrar de tudo? Em quanto tempo?

— Ei, ei, devagar — Alice a interrompeu com paciência espantosa. — Não tenho todas essas respostas. Sei pouco sobre esse mal que a está afligindo. Agora deite-se e dei­xe-me dar uma olhada no ferimento em sua testa.

   Marguerite atendeu ao pedido da mulher, mas de repente tomou consciência de seu estado quase vergonhoso. Eram poucas as roupas de que dispunha. Rápida, puxou as cobertas de forma a esconder-se sob elas.

— Lorde Norwyck também comentou alguma coisa so­bre não conseguir enxergar direito...

— Sim, eu estava com a visão turva, mas desde hoje à tarde, quando despertei de um cochilo, tenho enxergado bem melhor. — Era difícil ignorar a presença imponente do conde. — Ainda não recuperei completamente a visão, mas ela está bem melhor do que antes.

— Esse é um bom sinal — a curandeira anunciou. — Creio que em breve sua memória também deverá retornar.

— Oh, Alice, acredita mesmo nisso? — Marguerite agar­rou as mãos da idosa.

— Bem, não posso afirmar com certeza, mas digo que há esperança, pelo menos.

— É tudo que tenho pedido em minhas preces. Espe­rança.

   Alice soltou-se das mãos aflitas da jovem e tocou um de seus ombros. Depois virou-se para lorde Norwyck, que estava bem atrás dela.

— Não há mais nada que eu possa fazer, meu lorde — disse. — Será um prazer retornar caso haja alguma al­teração no quadro, mas espero que esses arranhões e he­matomas desapareçam por completo em quinze dias.

— E quanto à memória?

— Não tenho nada a prever nesse sentido, meu lorde — sorriu a curandeira. — Só o bom Deus poderá res­taurá-la.

   Bart acompanhou Alice até a porta e desceu metade da escada a seu lado.

— O que acha dela?

— Em que sentido, meu lorde?

— Acredita que ela está dizendo a verdade?

— Sobre a perda de memória? — Alice indagou. — Não posso opinar sobre isso. Ela parece sincera, e odiaria pen­sar que uma criatura tão delicada pode ser uma menti­rosa... — A mulher hesitou, e Bart soube que ela pensava em Felícia. — Mas não há como sabermos.

   Ela estava certa. A mulher parecia muito ingênua, mas as mentirosas mais hábeis eram capazes de enganar a todos. Quando retornou ao aposento da torre, ele encon­trou a criatura fora da cama.

— Oh! — ela exclamou espantada, virando-se da janela estreita e alta de onde se podia ver a praia e o mar. — Eu não sabia...

— O quê? — A mulher era dona de uma beleza incrível, Bart constatou, admirando os cabelos que caíam como uma cascata sobre seus ombros, emoldurando o rosto ilu­minado pelos olhos claros e luminosos. Seu corpo estava coberto por uma fina camisola de seda, mas o tecido ade­ria a cada curva, tornando-a ainda mais provocante do que se estivesse nua.

— Não sabia que tinha intenção de voltar.

— E que isso a obrigaria a prosseguir com seu jogo?

— Meu... jogo, senhor?

   Tinha de admitir que ela era convincente. Era com­preensível que Alice se houvesse deixado envolver pelo rosto encantador e pela história absurda. Endurecendo o coração contra os sentimentos inoportunos, aproximou-se dela.

— Conte-me tudo que lembra sobre a tempestade e o navio em que estava.

— Não me lembro de nada, meu lorde — ela respondeu. Mas hoje à tarde, quando cochilei, tive um sonho estra­nho. Sonhei que me afogava.

   O que revelava exatamente nada. O conde olhou para aqueles olhos verdes e tentou encontrar neles a verdade. Ela parecia ser apenas uma donzela inofensiva, mas sabia que não devia confiar nas aparências. Sua inocente Felícia o enganara e traíra William e sir Walter.

— Só isso? — Bartholomew insistiu com frieza.

— Não, meu lorde. Vi rostos... as mesmas faces que às vezes desfilam por minha mente quando estou acordada. No entanto, não tenho a menor idéia sobre quem são essas pessoas.

— O que é muito conveniente para você.

— Eu... não entendo por que desconfia tanto de mim, meu lorde — ela protestou, dando sinais de estar nervosa com a proximidade do conde. Bart aproximou-se ainda mais. Estava disposto a assustá-la para arrancar dela a verdade, se fosse necessário. — Não tenho nada a ganhar fingindo essa enfermidade.

— Não? — A distância entre eles era quase nenhuma.

— Então, não tem nenhuma ligação com Armstrong ou seu aliado, Carmag MacEwen? — A questão soou baixa, ameaçadora. O rosto estava a centímetros do dela. Mais uma polegada, e seu peito tocaria os seios macios.

— Esses nomes não têm nenhum significado para mim — a mulher sussurrou.

   Estava perto o bastante para beijá-la, e cada músculo e tendão de seu corpo o impeliam a abandonar a busca pela verdade e seguir os instintos. Bart inclinou a cabeça para o lado e para a frente, disposto a provar o sabor daqueles lábios. Seus olhos estavam semicerrados.

   A porta da câmara se abriu com um estrondo, permi­tindo a entrada de crianças curiosas e ruidosas. Bartho­lomew levantou a cabeça e, aparentando uma calma que não sentia, virou-se para encarar os intrusos, seus irmãos mais novos.

— Eleanor. Kate — começou, pronunciando cada nome com cuidado. Cruzando os braços sobre o peito, fez um enorme esforço para controlar a pulsação enquanto a ca­çula corria em sua direção. — Qual é o propósito dessa invasão?

— Ela não me ouve, Bartholomew — Kathryn queixou-se. Irritada, olhou para a menina que, a essa altura, agar­rava-se às pernas do irmão mais velho.

— Eu tentei detê-las, Bart — contou John. — Não que­ria que trouxessem a discussão até aqui.

— Onde está sua babá? — perguntou o conde.

— Não precisamos de uma babá! — protestou Kate, as mãos na cintura e o rosto sério. Ela se transformara em uma pequena tirana inflexível nos últimos meses, sempre recorrendo às lágrimas quando outros argumentos falha­vam. Bart esperava que ela recuasse e desfrutasse dos anos de infância e adolescência que ainda restavam, ago­ra que o pior já havia sido superado, mas era claro que teria de lidar com ela.                              

   Mas... como poderia enfrentar uma situação tão deli­cada? Kathryn podia ter se recuperado da morte do pai, mas Felícia e William também haviam falecido um ano mais tarde, e tantas perdas foram demais para a criança.

— Ellie — ele começou, obrigando a pequena a soltar-se de suas pernas. — Não pode ouvir sua irmã quando ela fala com você?

— Não, Bartie! Não quero ouvi-la!

— Eleanor, Kathryn só quer o seu...

— Ela é briguenta! — Ellie gritou. — Kathryn pensa que é mamãe, ou papai, mas ela não manda em mim!

   A mais velha gritou e lançou-se contra a criança, mas John foi rápido o bastante para contê-la. Bartholomew empurrou Eleanor para trás dele.

— Kate, irei encontrá-la no quarto das crianças dentro de alguns momentos — disse, tentando evitar que a dis­cussão se estendesse diante de Marguerite. — John, pode acompanhá-la até lá?

— E claro que sim — o rapaz concordou, embora sua voz soasse estranha.

— Mas... — começou Kathryn.

— Já disse que vou falar com você lá em baixo — Bartie interrompeu com firmeza. John segurou o braço da irmã e levou-a para fora da câmara. — E você... — Ele se abai­xou para encarar Eleanor. — Vai ter de parar de criar tantos problemas para sua irmã. Ela só está tentando cuidar de você.

— Ela não precisa cuidar de mim — Ellie resmungou, olhando para o chão e fazendo força para não chorar. — Ela não é minha mãe nem minha babá. Além do mais, já sou uma menina crescida. Posso cuidar de mim mesma.

   A menina ainda nem havia alcançado a altura de sua cintura, mas julgava ser crescida. Bartholomew teria rido alto, se lady Marguerite não estivesse ali para testemu­nhar o momento de intimidade familiar.

   Segurando Eleanor pelos ombros, virou-a com delicade­za e levou-a até a porta. Quando a viu descer os primeiros degraus da escada, retornou ao aposento de Marguerite.

— Não pense que terminei com você.

   O conde seguiu as irmãs para fora do quarto e fechou a porta. Marguerite pegou o xale de lã e colocou-o sobre os ombros, depois deixou-se cair em uma cadeira diante da lareira. A confusão prevalecia em sua mente. Entre as imagens de pessoas e lugares vagamente familiares e a presença formidável de Bartholomew Holton, era incapaz de ordenar ou compreender os pensamentos com um mínimo de coerência.

   Sabia que devia temer o conde hostil. Tremia em sua presença e seu coração batia tão alto que talvez ele pu­desse ouvi-lo. No entanto, a reação não era de medo. Era de... fascinação.

   Sentia-se atraída pelo homem.

   Marguerite mordeu o lábio e franziu a testa. Havia sido vítima de sua animosidade desde que despertara para aquele pesadelo de dúvida e confusão, mas sabia que o homem não era mau ou cruel. Não em essência. Sua ati­tude com as irmãs fora prova disso. Por mais que ele tentasse disfarçar, os sentimentos de ternura pelas duas meninas apareciam nítidos cada vez que elas estavam presentes.

   A frieza e a hostilidade eram dirigidos apenas a ela. E não entendia por quê, Marguerite ajeitou as pernas sob o corpo, prometendo a si mesma que, enquanto não pudesse compreender me­lhor a situação e os motivos de Bartholomew Holton para tratá-la com tanta animosidade, não permitiria nenhum abrandamento de seu coração com relação ao nobre.

 

   A manhã chegou brilhante e ensolarada. Marguerite olhou através da janela de seu quarto e percebeu que sua visão estava completamente clara. Podia ver uma vasta extensão de praia e gaivotas voando sobre as ondas de espuma branca.

   Comovida, enviou aos céus uma prece rápida por sua visão ter sido restaurada. Se a memória também re­tornasse...

   Na parede oposta, outra janela se abria para um pátio. Marguerite atravessou a câmara e olhou para baixo, an­siosa para constatar se também ali podia ter uma visão nítida.

   Ela viu um grupo de cavaleiros de Norwyck em um campo de prática além do pátio, todos envolvidos em um treino de espada. Vários montavam cavalos garbosos, e um em particular se mantinha em um canto no extremo oposto do espaço delimitado. Seus movimentos eram po­derosos, porém ágeis, e ele atacava com rapidez e preci­são, recuando para evitar o revide.

   Marguerite soube no mesmo instante que aquele ho­mem, usando apenas uma túnica leve e molhada de suor, era Bartholomew Holton. Seus cabelos estavam presos por uma fita na altura da nuca, e ela sentia sem ver que sua expressão facial era determinada.

   Um tremor a sacudiu e ela se afastou da janela. Sua reação ao jovem lorde era inaceitável. O homem não gos­tava dela, e não fazia sentido que seu corpo se inflamasse por ele. Além do mais, era possível que existisse um ho­mem, talvez até um marido, esperando por ela em algum lugar. Podia inclusive ter filhos.

   Pensar nessa possibilidade a fez parar. Marguerite des­lizou as mãos pelo ventre, pelos seios rígidos. Teria um bebê crescido em seu útero e sido nutrido por seu leite?

   Não acreditava nisso, embora não pudesse afirmar na­da com completa certeza. As crianças cujos rostos surgiam em sua mente em momentos inesperados deviam ter alguma importância em sua vida. Quem eram elas? Por que as via cada vez que fechava os olhos?

   Em vez de refletir sobre um quebra-cabeça que só au­mentava sua confusão, Marguerite levou uma das mãos ao peito e voltou sua atenção para outras questões. Os olhos estudavam a mobília do aposento circular.

   A cama, já sabia, era confortável, forrada por lençóis finos e por macios cobertores de pura lã. Duas cadeiras flanqueavam um sofá estofado colocado perto da lareira, onde um fogo ardia acolhedor. Havia duas tapeçarias que agora ela podia ver com clareza, cenas coloridas e felizes que davam vida às frias paredes de pedra.

   Um banco formava conjunto com a mesa de higiene, e um pequeno espelho fora pendurado na parede acima dela.

   Dois baús fechados podiam ser vistos no extremo opos­to à cama, e uma rápida inspeção no primeiro deles re­velou vestidos, camisolas e meias... entre eles as peças que Eleanor levara ao quarto no dia anterior. No fundo estavam os sapatos, que Marguerite pegou para urn exa­me mais próximo. Quando tentou inserir os pés neles, descobriu uma coleção de jóias dentro dos calçados.

   Havia anéis e correntes de ouro, bem como uma varia­da coleção de pedras coloridas. Marguerite calculou o peso das peças utilizando a palma da mão. Eleanor devia tê-las colocado ali. A criança era bem-intencionada e estava an­siosa para agradar, e era jovem o bastante para não ter noção do valor daquelas jóias.

   Marguerite guardou o pequeno tesouro dentro de um pé de meia, depois colocou-a no fundo do baú. Cuidaria para que todo o ouro e as pedras fossem devolvidos ao seu lugar de direito assim que fosse possível. Tomada a decisão, ela abriu o segundo baú para verificar se não havia mais nada de valor dentro dele.

   Ali havia instrumentos musicais, e por alguma razão incompreensível, o conteúdo daquele baú parecia para ela mais valioso do que o ouro contido no primeiro. Cada instrumento fora criado para ser belo, desde a madeira po­lida até o acabamento cuidadoso. Marguerite deslizou os dedos pelas cordas de uma guitarra, tirando dela um som desafinado.

   Os instrumentos, os sons, as cordas, tudo parecia fa­miliar. Sabia que a guitarra necessitava de afinação, e aos poucos ela foi girando as hastes de maneira a produzir as notas perfeitas. Em seguida, quando dedilhou as cor­das novamente, reconheceu a clareza do som que produ­zia, embora tivesse a sensação de que ainda faltava algo.

   Marguerite não teve tempo para ponderar a questão, porque a porta do quarto se abriu e Eleanor entrou.

— Ei, esta é a guitarra de mamãe! — a criança excla­mou ao aproximar-se da cama.

— Oh! Era de sua mãe? Eu sinto muito. Vou devolvê-la agora mesmo ao...

— Não, não! Sabe tocar?

— Eu... não posso afirmar ao certo.

— Por que não tenta?

   Marguerite segurou o braço do instrumento com a mão esquerda e dedilhou as cordas com a direita, como havia feito antes de Eleanor entrar. Os dedos da mão esquerda iam pressionando diferentes cordas, fazendo soar notas diferenciadas na medida em que se moviam. Uma melo­dia agradável inundou o quarto.

   Sabia tocar!

   Quando Eleanor aplaudiu entusiasmada, ela olhou pa­ra a criança e, surpresa e fascinada, afagou o instrumento com reverência.

— Toque mais uma!

— Eu... Alguma coisa não... — Marguerite gaguejou, a testa franzida em sinal de inquietação. Estava confusa. Sentia-se inteiramente à vontade com o instrumento nas mãos, mas algo estava errado ali.

— Já sei! — Eleanor virou-se, abriu o baú e retirou dele um pequeno objeto. — Kathryn chama isto aqui de pie... pie...

— Plectro — Marguerite completou, embora não pu­desse dizer de onde havia tirado a palavra. Ela simples­mente surgira em sua boca.

— Sim, é isso. E quando Kathryn tenta tocar, o som que ela produz... — A menina torceu o nariz e balançou a cabeça.

   Marguerite sorriu, pegou o plectro da mão de Eleanor e começou a tocar utilizando a pequenina vara de marfim. O instrumento parecia ter adquirido uma súbita leveza, como se fosse mais natural tê-lo nas mãos, e ela sentia que devia ter tocado muitas vezes antes. Quando notou os calos nas pontas dos dedos da mão esquerda, não teve dúvida de que era uma música experiente.

— Eu esqueci — Eleanor levou a mão à testa. — Sir Walter mandou-me aqui para saber se está com fome. Sente-se disposta para descer e fazer o desjejum conosco no grande salão, ou prefere que uma criada traga uma bandeja ao quarto?

   Não sabia o que responder. Estivera fechada naquela torre desde que despertara sem memória. E sentia-se es­tranhamente constrangida quando pensava em deixar o refugio.

— Não creio que seu irmão...

— Bartie está no campo de prática com os cavaleiros — Eleanor cortou despreocupada. A menina abriu o baú contendo roupas e tocou um vestido confeccionado em te­cido verde. — Ele ficará fora por horas e horas.

   Marguerite deixou a guitarra sobre a cama e tomou o vestido da mão da criança.

— Fiquei encantada com esta adorável criação em ve­ludo. O contraste criado com a seda dourada e branca é simplesmente lindo. O vestido era de sua mãe? — per­guntou.

— Não. Pertencia à esposa de Bartie.

— Sua... esposa?

— Sim. — Eleanor desviou o rosto, mas não a tempo de esconder o brilho que as lágrimas colocavam em seus olhos. — Ela morreu na primavera passada.

   Então, essa era a razão da hostilidade do conde. Sua amada esposa falecera, e ali estava ela, Marguerite, uma invasora na torre que devia pertencido a lady Norwyck. Não era de espantar que o homem não se sentisse in­clinado a tratá-la com simpatia. Diante das últimas in­formações, não seria prudente usar as roupas de lady Norwyck.

— E provável que seu irmão fique perturbado por ver­me usando os vestidos que foram de sua pobre esposa.

— Por quê?

— Bem, ele pode se lembrar dela.

   Eleanor considerou a possibilidade por um instante. Depois balançou a cabeça.

— Não — respondeu com segurança. — Ele nunca a viu usando esse vestido.

   A expressão de Marguerite devia ter traído espanto e surpresa, porque a criança apressou-se em explicar:

— Este vestido foi confeccionado enquanto Bartie estava fora, lutando nas guerras escocesas. Quando ele voltou para casa, Felícia esperava um filho, e por isso não chegou a vesti-lo na presença do marido.

— Oh... Ela morreu... no parto?

— Sim, e o bebê também morreu com ela.

— Que coisa horrível! — Marguerite exclamou, incapaz de disfarçar o choque causado pela revelação da menina — Seu irmão deve ter ficado devastado.

— Oh, sim, ele ficou furioso! E jurou que, se um dia puder pôr as mãos no Armstrong bastardo que engravidou Felícia, não o deixará escapar com vida.

   Marguerite e Eleanor desceram a escada e viram que as outras crianças já se haviam sentado à mesa, onde tomavam o desjejum.

— Minha lady — John cumprimentou-a sorridente. Depois levantou-se, caminhou até o pé da escada e, tomando sua mão como um perfeito cavalheiro, acompanhou-a a a mesa. — Fico feliz por ter decidido juntar-se a nós.

— Obrigada, John — Marguerite respondeu, aliviada com o momento de normalidade naquele lugar tão estranho.

   Henry devorava a refeição, ignorando completamente sua presença. Kathryn também estava ali, mas parou de comer e pôs as mãos sobre as pernas. O desprazer pro­vocado pela presença da hóspede não podia ser mais claro. Sir Walter, quem quer que fosse ele, não fazia parte do grupo.

— Bom dia a todos — Marguerite cumprimentou-os com entusiasmo.

— Sente-se aqui, minha lady — John sugeriu. — A meu lado.

— Muito obrigada — ela sorriu, aceitando o assento oferecido pelo rapaz. Pelo canto dos olhos, notou que Kathryn suspirava com desdém.

— Estou a caminho do campo de prática — Henry anun­ciou em seguida, limpando a boca e pondo-se em pé.

— Mas... Bartholomew o proibiu de...

— Cale a boca, peste — o jovem interrompeu enquanto contornava a mesa. — Eu Faço o que quero.

   Kathryn mordeu o lábio para conter a resposta, mas Marguerite podia perceber que as palavras rudes do ir­mão, bem como o desrespeito demonstrado por sua atitu­de arrogante, não a agradavam.

— Temos pão e peixe — Eleanor contou, ignorando o irmão e oferecendo um prato cheio de comida à hóspede.

— E cidra — acrescentou John, enchendo uma caneca com a bebida.

— Muito obrigada aos dois — Marguerite respondeu sorridente antes de começar a comer. Estar ali sentada entre as crianças Holton era algo que parecia natural, correto. Era assim que devia ser, ela pensou, com as crian­ças a sua volta...

   Uma memória clara, porém fugaz, atravessou sua men­te, e ela viu três cabeças louras inclinadas sobre pratos, crianças comendo com apetite, felizes.

   A lembrança desapareceu antes de tomar forma, e Marguerite não conseguiu recapturá-la, apesar de todo o es­forço. Franzindo a testa, mordeu o lábio e sufocou um gemido de frustração.

— Minha senhora? — Eleanor chamou-a, pousando os dedos sobre seu braço. — Sente-se bem?

— O que é? Oh, sim... Não é nada. — Ela ofereceu um sorriso pálido. — Minha cabeça... ainda está um pouco dolorida, só isso.

— Talvez deva retornar ao leito — a menina sugeria preocupada.

— Já vou ficar bem. Creio que um pouco de ar fresco e exercício poderiam ser úteis. Penso em dar uma caminhada. — Talvez assim pudesse recapturar as lembranças que eram tão elusivas.

— O que acha de irmos ver Bartie? — Eleanor perguntou, imitando a adulta e levantando-se da mesa.

— É melhor deixarmos seu irmão em paz. — Duvidava de que o conde a recebesse com entusiasmo no campo de prática. Ele mal tolerava sua presença na torre. — Que tal a praia? Onde Bartholomew encontrou-me?

   Kathryn bateu com a mão aberta sobre a mesa.

— Bartholomew ficará zangado se saírem do castelo.

— Só queremos ir até a praia.

— Você sabe o que ele disse, Eleanor — a jovem insistiu zangada. Ela se dirigia à irmã, como se Marguerite nem houvesse falado. — Ninguém deve ultrapassar os muros de Norwyck. Não com a ameaça dos Armstrong pairando sobre nossas cabeças.

— Bem, nossos homens venceram os Armstrong no último ataque, não foi? — lembrou John.

— Sim, mas...

— Isso não importa, Kathryn — Marguerite intercedeu, odiando a idéia de angariar novas antipatias no cas­telo. — Caminharei pelo jardim, se for permitido. A adolescente encolheu os ombros.

— Imagino que o jardim esteja dentro dos limites — concordou rabugenta.

— Iremos com você — disse John, já se preparando para deixar a mesa.

— Oh, não! — Marguerite protestou. Precisava de so­lidão para tentar organizar os pensamentos. Cautelosa, afagou os cabelos ruivos de Eleanor e sorriu, falando para os dois de uma só vez.

— Gostaria de ir sozinha, ao menos hoje.

   Os dois irmãos se mostraram desapontados, mas acei­taram a recusa da hóspede com elegância.

— Quer que eu vá buscar um xale? — ofereceu a me­nina, recuperando o entusiasmo habitual.

   Marguerite sorriu.

— Sim, por favor. Você é adorável.

   Bartholomew entregou o escudo e a espada para o jo­vem pajem, enquanto seu escudeiro ia desamarrando a pesada armadura que cobria seu peito e removia o apa­rato. Depois ele se abaixou e tirou as proteções das pernas e todo o resto da armadura enquanto ouvia com atenção os argumentos de Henry.

— Mas, Bartholomew, já é hora de começar meu trei­namento — ele dizia. — Nunca me tornarei um cavaleiro se não me der seu consentimento.

   O ponto de vista do rapaz era válido, mas Bart preferia manter os irmãos em Norwyck, seguros e protegidos atrás das sólidas muralhas. Se os enviasse para fora do abrigo, eles estariam sujeitos a todo o tipo de perigos. Ali, pelo menos, poderia mantê-los protegidos. Em segurança.

   Bart entregou as últimas partes da armadura para o escudeiro e olhou para Henry.

— Vou considerar tudo que disse, Hal.

— Não é o bastante, Bart. Você sabe que estou pre­parado.

   O conde pousou um braço sobre os ombros do irmão e começou a caminhar.

— Está assim tão ansioso para deixar-nos?

— Não é isso. Mas como poderei me tornar um homem e ser útil e valente como você e Will sempre foram? Se não me deixar sair do castelo...

— Hal, eu ainda não disse nada. Não neguei seu pedi­do. Apenas disse que...

— Vai considerar o que eu disse. Sim, eu sei. Por favor, Bart — o menino suplicou. — Quero me tornar um cava­leiro como você. Como William. Quero voltar e lutar con­tra os malditos Armstrong. Talvez um dia eu traga a ca­beça de Lachann Armstrong para Norwyck.

— Talvez — Bart concordou em voz baixa. Depois de tudo que havia acontecido, esperava que os irmãos ficas­sem satisfeitos com a proteção oferecida pelas muralhas de Norwyck. Agora via que não era esse o caso. Pelo me­nos não com relação a Henry. John não dava sinais de desejar partir, mas era possível que o rapaz guardasse para si seus pensamentos e anseios. Ele sempre havia sido o menos falante dos gêmeos.

   O conde removeu o braço e continuou andando até al­cançar o primeiro corredor externo. O ar frio envolveu seu corpo suado, ultrapassando a barreira da túnica fina e das meias que eram quase como uma segunda pele. Esperava ansioso por um banho e pretendia barbear-se. Não queria pensar no irmão indo embora.

   Quando saíram do outro lado da passagem, já no jardim, ele viu uma mulher seguindo sem pressa para um dos portões, uma entrada pequena e escondida que dava passagem para a praia e era tão pouco usada, que quase a esquecera. A mulher era Marguerite.

— Vá em frente — ele disse a Henry. — Irei em seguida. Zangado por não ter obtido uma resposta definitiva, Henry não protestou, mas afastou-se com passos furiosos enquanto o conde caminhava na direção da hóspede. Ela usava um vestido verde e um xale de lã que a escondia do pescoço ao quadril. A cabeça estava descoberta, as tranças cor-de-mel eram mantidas presas em peque­nos e graciosos coques que realçavam o formato delicado do rosto.

   Bart censurou-se por ter começado a acreditar na história da mulher. Se fosse mesmo inocente, por que ela estaria tentando fugir de Norwyck? Aonde ia e quem pla­nejava encontrar? Ele acelerou a velocidade dos passos a fim de alcançá-la antes que ela passasse pelo portão.

— Aonde vai? — perguntou sem rodeios, agarrando-a pelo braço.

   Marguerite encolheu-se por conta da dor provocada pelo movimento brusco. O conde obrigou-a a girar sobre os calcanhares para encará-lo, sem dar importância ao seu desconforto. O cavalheirismo que fosse para o inferno. Não permitiria que ela o fizesse de tolo.

— Eu... só queria caminhar pelo jardim — a mulher respondeu assustada, livrando-se de sua mão.

   A hesitação momentânea a traiu. De fato, o elegante jardim de Norwyck estava localizado além do portão, an­tes da muralha e da praia, mas Bartholomew sabia que ela não teria gaguejado se dissesse a verdade.

— Não sei por que me dei ao trabalho de perguntar.

— Eu...

— Volte para a fortaleza, senhora — ele ordenou. —E não se aventure...

— Não! — Marguerite exclamou furiosa, cruzando os braços sobre o peito. — Não tenho nenhuma intenção de retornar antes de dar minha caminhada.

— Não tem o direito de desafiar...

— Nem meu lorde tem o direito de tentar fazer-me prisioneira — ela o interrompeu impaciente. O queixo tremia e a garganta estava oprimida, atraindo o olhar para o esforço realizado pelo pescoço delicado. Uma veia latejava do lado esquerdo, bem perto do queixo. — Não fiz nada de mau ao lorde ou aos seus, e gostaria de ser poupada de suas cruéis insinuações!

   Sem nenhuma hesitação, ela jogou a ponta do xale por cima de um ombro, virou-se e afastou-se.

   Bart deixou os braços caírem ao longo do corpo e ficou sem ação por um momento, vendo a mulher seguir na direção da alameda que a levaria ao jardim. Com as cos­tas eretas, ela mantinha a cabeça erguida, embora fosse evidente a dificuldade com que mantinha a postura alti­va. Marguerite não era tão confiante quanto desejava fazê-lo acreditar, e sua ousadia o intrigava.

   Bartholomew a seguiu.

   Rápido, logo conseguiu alcançá-la e, segurando seu bra­ço mais uma vez, virou-a. A respiração da mulher era ofegante, e seus olhos estavam mais escuros por conta da ira. As faces mostravam-se tingidas por um rubor intenso, e os lábios se entreabriram numa demonstração de sur­presa. Sem pensar em nada, Bart inclinou a cabeça e pres­sionou a boca contra a dela.

   Marguerite ficou chocada com o calor daqueles lábios e o som rouco que emergiu de sua garganta. De repente era invadida pelas próprias necessidades, por desejos inconfessáveis. Era como afogar-se outra vez.

   O beijo não foi um simples e suave roçar de lábios, mas um encontro poderoso que logo ganhou intensidade quando seu corpo tocou o dele. O calor a envolveu, enquanto o cheiro da pele masculina ameaçava intoxicá-la. Sua boca úmida, mais suave do que jamais poderia ter imaginado, especialmente em um homem tão duro e ríspido.

   Uma dor estranha se apossou da metade inferior de seu corpo, e a única maneira de aplacá-la era pressionando a pélvis contra a dele. Quando se moveu para pôr em prática essa idéia, ele se afastou de repente.

   Ainda aturdida, Marguerite não resistiu quando Bartholomew tomou sua mão e levou-a para um recanto mais afastado do jardim.

   Naquela época do ano, as árvores estavam quase sem nenhuma folha em seus galhos. Todas as flores haviam desaparecido, deixando um emaranhado de hastes ressequidas e espinhos escuros ao longo do caminho. O jardim era triste e desprovido de cores, mas Marguerite nem notava. A única sensação que sua mente registrava era o da mão calejada de Bartholomew sobre a sua.

   De repente ele parou ao lado de um enorme carvalho próximo da alameda. A única cor em seu rosto era o leve rubor que tingia suas faces. O homem parecia formidável, quando ele soltou sua mão, Marguerite recuou um passo causando uma colisão entre suas costas e a árvore.

   Ele a seguiu.

   Sem dizer nada, pressionou as duas mãos contra o tronco da árvore na altura de sua cabeça. Havia fogo em seus olhos e determinação em sua expressão. Sério, ele a estudava como se tirasse importantes conclusões do que via em sua boca, em seus olhos e em cada detalhe de se rosto.

   Marguerite tremia sob o olhar penetrante, alarmada com a atração que sentia pelo conde, embora já não o temesse como antes.

   Sem nenhum aviso, Bart se apoderou de seus lábios novamente.

   Cerrando os punhos, ela agarrou o tecido molhado da túnica e puxou-o para mais perto, tomando posse de seus lábios, dos dentes, da língua. Tremendo, sentiu as mãos deslizarem por seus ombros e descerem pelas costas até a linha da cintura, puxando-a de forma a promover um contato mais estreito entre os corpos.

   Marguerite soltou o tecido da túnica e deixou as mãos passearem pelo peito musculoso, enquanto o conde invadia seus sentidos com a sensual exploração que realizava em sua boca. O sabor daqueles lábios era tão másculo, potente, que sentia-se tonta, inebriada.

   Todos os nervos de seu corpo pareciam cantar. O sangue fervia nas veias e os ossos derretiam entre os braços muculosos. A falta de memória não fazia nenhuma diferença naquele momento, pois só o presente era importante.

   De repente Bartholomew recuou.

— Devo ter perdido a razão — disse. Segurando-a pelos pulsos, manteve-os em seu peito mesmo tendo se afastado.

   Marguerite engoliu em seco e olhou para o peito largo enquanto tentava recompor-se. Bartholomew Holton não era o único a sofrer daquele estranho tipo de loucura. Permitira-se sucumbir à atração que sentia pelo conde apesar de sua raiva, apesar de não saber nem quem e ou o que era.

   Deixando escapar um suspiro cansado, ela ergueu os olhos.

   Os dele, tão escuros e insondáveis, emanavam calor. A mandíbula estava tensa, apertada. Sua respiração não era estável como de costume.

   Sabia que também ofegava. O coração batia descom­passado, num momento acelerado, no outro ameaçando parar. Cada centímetro da pele parecia estar em brasa, e os mamilos formigavam causando intenso desconforto. Tentou aproximar-se de Bart, incapaz de conformar-se com o fim do ardente encontro.

   Depois de uma breve hesitação, o conde tomou-a nos braços e levou-a para outro ponto do jardim. Ele só parou quando alcançaram um pequeno abrigo de madeira es­condido atrás de arbustos frondosos e altos. Sem dizer nada, abriu a porta da minúscula choupana e puxou-a para dentro.

   Não havia janelas, de forma que a única luz no interior emanava da porta aberta. Bartholomew beijou-a nova­mente, um beijo rápido, porém profundo, depois virou-se, deixando-a tremula e com um crescente sentimento de incerteza.

   Atenta, viu quando ele acendeu uma lamparina e fe­chou a porta. Estar sozinha com o conde naquele refúgio isolado no extremo do jardim do castelo era tão assusta­dor quanto excitante. E ela sabia que não devia ficar.

   Bartholomew não confiava nela, nem acreditava em sua perda de memória. Não permitiria tais intimidades en­quanto ele mantivesse opinião tão negativa a seu respeito.

— Meu lorde... — começou, unindo as mãos diante do corpo em busca de um mínimo de firmeza. — Eu... — Mordendo o lábio, encarou-o enquanto ele se aproximava.

— Não pense, Marguerite — o conde murmurou, ro­çando os lábios em sua orelha. O alvo seguinte foi o pes­coço. — Apenas sinta...

   Sentir? Sentia até demais! Seu corpo estava tomado pelas sensações que ele conseguia provocar com um sim­ples toque, e sabia que estava a um passo de perder o controle mais uma vez. Então seria impossível voltar atrás...

— Meu lorde... — sussurrou desesperada. — Não pos­so... Isso seria impróprio...

— Eu a quero. — Ele removeu o xale que cobria seus ombros e soltou-o no chão.

— Eu... eu...

   As mãos tocaram seus seios, e Marguerite sentiu os mamilos rígidos numa resposta imediata. Só uma coisa poderia ser mais gloriosa: sentir aquelas mãos sobre a pele nua.

— Você também me quer.

   Era impossível negar a afirmação.

— E se... se eu tiver um marido, meu lorde? — indagou com voz tremula. — Ou um noivo? Um prometido?

   De repente as carícias sedutoras foram interrompidas, e Bartholomew ergueu o corpo e apoiou as mãos sobre seus ombros.                                        

— Você tem alguém? Marguerite corou.

— Não sei — respondeu, balançando a cabeça com um misto de tristeza e aflição. — Não acredito que alguém jamais me tenha tocado dessa maneira, mas não posso ter certeza de nada.

— Nesse caso, nada muda entre nós. Como pode trair um marido ou um amante, se nem se lembra dele?

— Não sei, meu lorde. — Tinha de ganhar tempo e aproveitar os preciosos minutos para tentar recompor-se. — Mas sei que não trairia um marido, se ele de fato existisse.

— Mas... Você... — Bartholomew virou-se, passando as mãos pela cabeça num gesto que expressava frustração. Ela o ouviu murmurar alguma coisa incompreensível, mas não conseguiu identificar as palavras. O conde caminhou até a porta e parou, passando os dedos por entre os ca­belos mais uma vez.

— Lamento muito, senhor, se...

— Eu a quero em minha cama — anunciou Bart, virando-se para encará-la mais uma vez.   Seus cabelos es­tavam em desalinho, e os olhos escuros eram uma ameaça para a paz de espírito de qualquer mulher. — Quero você nua e ardendo por mim. Procure-me quando decidir o que quer.

 

— Bartie! — Eleanor gritou ao ver o irmão na alameda do jardim.

— O que é? — ele resmungou. A menina conseguira pegá-lo desprevenido, o que era muito incomum.

— Está zangado?

— Não. — A voz soou mais ríspida do que pretendia.

— Mas parece...

— O que você quer?

— Vim procurar lady Marguerite — Eleanor explicou, abandonando a linha de questionamento. — Pensei que você estivesse no campo de prática.

— Lady Marguerite lhe disse que viria para cá? Ao jardim?

— Sim, para caminhar um pouco. Ela disse que o pas­seio a ajudaria a clarear as idéias.

   Como também seria útil um passeio fora das muralhas do castelo, ele pensou. O fato de Marguerite ter dito a Eleanor que pretendia ir ao jardim não tinha nenhum significado específico. Era bem provável que ela houvesse mentido sobre seu destino e sua intenção.

— Você a viu? — a criança indagou com tom espe­rançoso.

— Humm?

— Bartie! — Dessa vez o chamado traiu uma intensa irritação. — Está ouvindo o que eu digo? Perguntei se viu lady Marguerite no jardim.

— Sim, eu vi — ele confessou distraído. — Mas não creio que suas idéias estejam mais claras por causa disso.

   Deixando a irmã caçula no meio da alameda do jardim, ele retornou ao castelo.

   Marguerite levou um bom tempo para recuperar o equi­líbrio depois da partida de Bartholomew. Cobrindo os om­bros com o xale que encontrou no chão, ela deixou a cabana e fechou a porta. Depois ficou parada por alguns instantes, as mãos apoiadas na madeira rústica.

   Procure-me quando decidir o que quer, ele dissera, como se fosse certo e inquestionável que se tornaria sua amante.

   Um suspiro tremulo escapou de seu peito. Não podia negar a atração que existia entre eles. Ansiava pelos pra­zeres sensuais contidos nas promessas do conde, mas sa­bia que não poderia entregar-se a tais intimidades sem comprometer o coração.

   E sabia que Bartholomew Holton jamais faria o mes­mo. Ele guardava o coração como a mais feroz das senti­nelas nos portões do castelo.

   Nunca poderia ser para ele mais do que uma meretriz, alguém que cederia favores ao seu senhor em troca de abrigo e outros presentes que ele poderia ou não oferecer. E esse era um arranjo que devastaria seu espírito.

   O som de uma canção infantil interrompeu seus pen­samentos, e Marguerite virou-se para encontrar Eleanor que, cantando e saltitando, percorria a alameda que ter­minava na rústica cabana. Apressada, afastou-se da porta e foi ao encontro da menina.

— Sente-se melhor agora? — a pequena perguntou sorridente.

   Marguerite retribuiu o sorriso.

— Sim, obrigada. Especialmente agora que a vejo aqui para mostrar-me os mais belos recantos do jardim.

— Conheço um lugar muito melhor. — Os olhos de Eleanor cintilavam com entusiasmo. Ela tomou a mão de Marguerite e levou-a na direção oposta àquela de onde viera. — Quer ir ver os homens que estão construindo nossa muralha?

— Não, minha criança. Antes quero que me fale sobre as jóias que deixou nos sapatos dentro do baú.

— Jóias?

   Marguerite não conseguiu disfarçar a confusão causa­da por tal reação.

— Sim. Você bem sabia que eu acabaria por encontrar aqueles anéis e colares entre as roupas no baú.

— Ah, bem... Pensei que gostaria deles — Eleanor con­tou, dando sinais de entender que as negativas não a le­variam a nada.                                        

— Não é essa a questão — Marguerite respondeu en­quanto caminhava ao lado da menina. — De quem são aquelas jóias, e de onde as tirou?

— Não são jóias de Norwyck. Bartie as mantém em uma caixa em seus aposentos.

— Nesse caso, você deve levá-las de volta ao quarto de seu irmão assim que retornarmos ao castelo. Todas elas, ouviu bem?

— Muito bem — Eleanor demonstrava petulância, mas logo recobrou o entusiasmo de costume. — Agora podemos ir ver a construção da muralha?

   Bem-humorada, Marguerite decidiu atender ao pedido da criança e acompanhou-a com alegria. Vira muito pouco de Norwyck pelas janelas da torre do castelo e estava ansiosa para conhecer mais da propriedade.

— De que muralha está falando?

— Da que está sendo construída em torno do vilarejo.

— Eleanor ergueu a saia para saltar um galho caído de uma árvore. — Bartholomew diz que esse é o único meio de protegermos o vilarejo contra os Armstrong.

— Oh, sim, e é uma boa idéia.

— Ele ainda não encontrou uma maneira de impedir os Armstrong de roubarem o gado e os carneiros que ficam pastando nas montanhas. — A menina agora escalava os galhos da árvore com agilidade espantosa.

— Sim, mas manter o vilarejo em segurança é mais importante — Marguerite opinou, vendo a criança aco­modar-se em um galho muito alto e balançar as pernas como se estivesse sentada em uma cadeira. Onde estaria sua babá?

— Entendo que a segurança do vilarejo seja importan­te, mas nossa riqueza vem dos rebanhos.

— É muito bem informada para alguém da sua idade.

   Na verdade, aquela pequenina criatura era uma sur­preendente dicotomia entre o espírito travesso que do­mina todas as crianças e o espírito de compreensão que deveria ser comum a todos os adultos, e o resultado era uma astúcia que estava muito além do esperado para sua idade.

— Eu sei — Eleanor respondeu despreocupada, reto­mando a escalada para conquistar galhos ainda mais al­tos. — Um dia, quando crescer, serei a senhora de uma grande propriedade. Ada, minha babá, está sempre di­zendo que tenho de aprender tudo que for possível aqui em Norwyck antes de casar-me com um importante lorde.

   Era difícil conter o riso.

— Por que não desce daí e vem me contar se já tem alguém em mente?

— Ninguém — Ellie suspirou. — Mas Bartie vai en­contrar um marido adequado para mim. — Ela desceu da árvore com a mesma agilidade com que a havia escalado. Depois tomou a mão de sua acompanhante e continuou caminhando pela alameda. — Kathryn se casará primei­ro, é claro, mas Bartie encontrará um marido muito me­lhor para mim depois de ter aprendido com Kathryn.

   Rindo, Marguerite balançou a cabeça e pediu à menina para contar mais sobre as muralhas de Norwyck.

— Bartie afirma que todas as casas devem estar den­tro dessa muralha. E elas serão duas, se contarmos a parede interna. Uma cercando o castelo, outra cercando o vilarejo.

   Essa era uma vantagem inquestionável. Norwyck ti­nha condições de enfrentar um cerco prolongado, uma vez que contavam com uma fonte de água. A comida seria outro problema, mas se o vilarejo estocasse seus grãos e mantivesse galinhas e porcos em seus quintais, tudo es­taria resolvido.

   Marguerite não imaginava como armazenara tal conhe­cimento, mas não teve tempo para questioná-lo, pois logo chegaram ao local onde pedreiros construíam uma guari­ta usando enormes pedras recolhidas nas colinas e nos campos. Estava surpresa pela extensão do projeto de Bartholomew, mas sabia que fazia sentido defender Norwyck dessa maneira.

   Tinha a impressão de que o conde era um senhor pru­dente e vigilante, alguém, que trabalhava ativamente pela segurança e o bem-estar dos que viviam em seu domínio.

   Havia muita atividade por ali. A poeira era uma cons­tante e o som de ferramentas fazia um corpo para as vozes que soavam em todos os cantos. Homens empurravam carroças carregadas de pedras que seriam utilizadas na muralha e as descarregavam no chão perto dos pedreiros. Outros mantinham-se sobre escadas, assentando as pe­dras e espalhando a argamassa que as manteria unidas. Eleanor sentia um grande prazer em conduzi-la, mos­trando a obra e parando ocasionalmente para conversar com um ou outro trabalhador. Marguerite teve de afas­tá-la do perigo diversas vezes, mas a menina continuava escalando e correndo, saltando e testando seus limites. Depois de tropeçar em um balde de água, ela mergulhou o pé num monte de argamassa.

— Eleanor! — Marguerite gritou assustada. Embora não tivesse nenhuma autoridade sobre a menina, sabia que devia afastá-la da obra antes que ela causasse um desastre de sérias proporções.

   Um homem grandalhão e carrancudo vestindo uma tú­nica marrom de tecido grosseiro segurou Eleanor pelos braços antes que ela caísse na argamassa.

— Estou bastante impressionada com a muralha, Elea­nor — disse Marguerite, olhando com gratidão para o gi­gante que resgatara a criança. Depois segurou a mão dela e levou-a para longe dali. — Mas agora devemos retornar ao castelo.

— É isso mesmo — concordou o desconhecido, limpando o sapato de Ellie. — Seu irmão não a quer aqui, minha jovem e adorável senhora. Além disso, estamos enfren­tando alguns problemas.

   Exuberante, Eleanor escapou das mãos que a con­tinham.

— Minha senhora — o homem virou-se para Margue­rite — alguém foi chamar lorde Norwyck, e logo ele estara aqui. Seria melhor que o conde não encontrasse sua irmã nesta obra.

   Marguerite também não queria ser encontrada perto da construção. Silenciosa, ela assentiu para o homem e foi procurar Eleanor. Insistiria para que retornassem ao castelo antes da chegada de Bartholomew.

   Mas Eleanor encontrava imenso prazer na brincadeira, fugindo de Marguerite e tentando esconder-se atrás de pedras empilhadas de forma precária. Era grande a pos­sibilidade de que a pilha desabasse com os movimentos descuidados da criança. Era evidente que Eleanor não a obedeceria, e por isso tinha de pensar em algum jeito de atrai-la para longe dali.

— Aposto que posso vencê-la numa corrida de volta ao castelo — ela gritou. — Estou disposta até a permitir que saia na frente.

   Eleanor riu e deixou o esconderijo, o que fez com que Marguerite soltasse o ar que até então mantivera retido nos pulmões.

— Vou ganhar de você! — a menina anunciou excitada. Depois saiu correndo pelas ruas do vilarejo rumo ao cas­telo, sempre acompanhada pelo olhar atento de Mar­guerite.

— Tenho de admitir que é uma mulher muito esperta, minha lady — falou o homem corpulento atrás de Mar­guerite. — Lidou com a situação melhor do que qualquer outra pessoa.

   Marguerite virou-se para encará-lo e viu que Bartho­lomew havia chegado. O conde estava parado ao lado do desconhecido. Ele ainda usava a túnica suada e a meia-calça com que o vira antes, e mantinha-se silencioso e quieto observando-a. Era impossível saber há quanto tempo o nobre estava ali parado, porque ele nada dizia para revelar detalhes de sua chegada.

   Com uma rápida e graciosa mesura, ela se virou e par­tiu esperando que ninguém pudesse ouvir as batidas fre­néticas de seu coração.

   Bart teria de encontrar uma competente babá para as irmãs. Alguém que tivesse mais capacidade para gover­ná-las do que a pobre e velha Ada. A antiga babá da fa­mília desistira do emprego no ano anterior, e não podia permitir que Eleanor e Kathryn transformassem a vida de uma mulher idosa e cansada em um inferno.

   Enquanto ficava ali vendo Marguerite afastar-se, seus lábios distenderam-se num arremedo de sorriso. Ela li­dara com Ellie com a perspicácia de alguém experiente e capaz, melhor até do que ele mesmo jamais fizera, e ele havia sido o único que ainda mantivera algum controle sobre a criança desde a morte de William.

— Meu lorde? — Big Symon Michaelson chamou sua atenção para o problema que tinham em mãos.

— O que está acontecendo aqui?

— Bem... o almoxarife e o capataz estão a um passo de trocarem socos, senhor.

   Não era a primeira vez que os dois homens brigavam durante a construção da muralha. Darcet, o almoxarife de Norwyck, era um homem pequeno e rígido cujas opi­niões e críticas soavam sempre ríspidas aos ouvidos dos moradores, e o próprio Bart tivera diversas oportunidades para questionar sua competência. Por outro lado, o capa­taz conhecia a situação de cada família do vilarejo, e as­sim distribuía trabalho entre homens e mulheres com jus­tiça e generosidade.

   Até aquele momento, Bartholomew controlara a disputa mantendo os dois homens separados. Mas a construção da muralha era uma obra de grande importância, e não podia correr o risco de prejudicá-la por conta de desaven­ças e antipatias pessoais. Oh, como gostaria de poder ma­nipulá-los como Marguerite havia feito com Eleanor!

   Ele seguiu Big Symon até a guarita e passou cerca de uma hora solucionando a disputa a fim de atender às necessidades de todos, quando o que queria era voltar ao castelo, tomar um banho e pensar na melhor maneira de seduzir Marguerite e levá-la para sua cama. Desejava aquela mulher com uma intensidade que era desconheci­da para ele. Mesmo sem saber quem era ela, ou que men­tiras havia contado, sentia uma atração sem precedentes ou paralelo.

   Isso não significava que confiaria na mulher. Oferece­ria abrigo e alimento em Norwyck, mas para isso não tinha de acreditar em tudo que ela dizia. Marguerite era bela, provocante, e isso era suficiente.

 

   Durante todo o dia, Marguerite experimen­tou fragmentos de visões que não faziam sentido, imagens que a deixaram perturbada e inquieta. Por mais que tentasse, não conseguia lembrar quem eram aquelas crianças louras, nem localizar a mansão cercada por tantas flores. Não tinha dúvida de que essas imagens significavam alguma coisa, mas era incapaz de decifrá-las.

   Marguerite estava tão preocupada com esses lampejos de memória, que só depois da refeição noturna ela se lem­brou das jóias deixadas no baú do quarto da torre. Mas   Eleanor havia sido confinada ao quarto por tempo inde­terminado, castigo por ter fugido da babá Ada e causado tantos problemas no local da obra da muralha do vilarejo. Teria de esperar até que a criança fosse libertada de sua punição para então devolver as jóias ao quarto de Bartholomew.

   O jantar foi uma ocasião quieta, e Bartholomew não se juntou à família, uma vez que estava fora numa pa­trulha com um grupo de cavaleiros. Apenas John tentava conversar, enquanto Henry atacava a comida com vora­cidade. Kathryn desculpou-se e deixou a mesa assim que terminou de comer, e Marguerite imitou-a sentindo-se ner­vosa e sozinha.

   Ao entrar em seu aposento na torre, descobriu que um fogo já havia sido aceso na lareira. Pensou em sentar-se e apreciar a beleza do mar enquanto tentava entender os próprios pensamentos, mas a noite já caíra por completo, e a escuridão reinava absoluta além das janelas. Marguerite acendeu uma lamparina e sentou-se sozinha no centro do quarto, sentindo-se cercada pelo frio, apesar do fogo que ardia na lareira.

   Finalmente, ela se ajoelhou ao lado do baú onde escon­dera as jóias, retirando dele cada peça para admirá-las à luz das chamas. Era estranho tê-las em seu quarto, mas não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. Não de imediato. Cuidaria para que elas fossem devolvidas aos aposentos de Bartholomew o mais depressa possível.

   Marguerite guardou as preciosas peças, depois prepa­rou-se para dormir, ajoelhando-se antes de deitar-se e orando pelo retorno de sua memória. Depois rezou por Bartholomew, para que Deus o conduzisse em segurança de volta ao castelo ao fim da patrulha, e finalmente acres­centou os irmãos dele e todos os habitantes de Norwyck em suas preces.

   Então despiu-se, lavou-se, e estava prestes a soprar a lamparina e deitar-se, quando a porta se abriu e Bartho­lomew invadiu o aposento.

   Como sempre, ele se sentiu atingido em cheio pela be­leza daquela mulher. Despida como estava naquele mo­mento, ou coberta por roupas, ela o excitava como nenhu­ma outra jamais conseguira fazer antes.

— Meu senhor? — ela indagou com voz tremula.

   O conde aproximou-se, sem saber por que havia ido até lá, ainda cheirando a cavalo e suor, se já havia dito que ela deveria ir procurá-lo quando se sentisse preparada.

— Aconteceu alguma coisa?

— Minhas irmãs necessitam de cuidados e atenção — ele disse, cruzando as mãos às costas. A idéia acabara de tomar de assalto sua mente, talvez por ter percebido que precisava de uma razão, alguma desculpa para ter inva­dido sua intimidade daquela maneira. — Pensei que tal­vez você...

— Talvez eu...?

— Pudesse cuidar deles — o conde concluiu, dando mais um passo na direção da hóspede. — Só até eu encontrar uma babá apropriada.

— Mas este não é meu lugar, meu lorde. — Sua voz era baixa, ingenuamente sedutora. Marguerite pegou o xale e cobriu a nudez gloriosa de seus ombros.

   Bart engoliu em seco e aproximou-se um pouco mais. Sentia os dedos queimando, clamando pelo contato com aquele corpo, a boca queria provar a dela. Era um tipo de loucura que não podia compreender ou controlar.

— Assim que me lembrar do lugar de onde vim, o lugar ao qual pertenço, terei de deixar Norwyck.

— Recuperou alguma lembrança? Ela balançou a cabeça.

— Não, nenhuma que mereça consideração. Alguns ros­tos, uma mansão... mais nada.

— Então, pode ser que ainda leve algum tempo para lembrar quem é... e qual é o seu lugar. — Também podia fazer aquele jogo.

   Os olhos dela brilharam intensamente, e Bart pensou que talvez a mulher estivesse produzindo aquelas lágri­mas para enganá-lo, para conquistar sua simpatia e sua piedade.

   Ela não poderia saber que tal coisa era impossível.

— Eu... suponho que possa cuidar de Eleanor — res­pondeu Marguerite. Devagar, afastou-se dele caminhando para perto da lareira, sem se dar conta de que a luz do fogo delineava com nitidez suas pernas e quadris. Bart sentiu a boca seca. — Mas Kathryn não aceitará minha supervisão.

   Ele limpou a garganta.

— Vi como você lidou com Eleanor hoje. Não tenho dúvida de que encontrará um meio de lidar também com Kathryn.

— Sua confiança é lisonjeira, meu lorde.

   E sua aparente ingenuidade era irresistível. Seria tudo uma encenação? Teria ela sido enviada por Lachann Armstrong com algum propósito nefasto, talvez até sedu­zi-lo, como Felícia seduzira seu filho?

   A idéia quase o fez gargalhar. Se alguém em Norwyck estava prestes a ser seduzida, esse alguém era Marguerite. E depressa.

— Faria isso? — ele insistiu. — Cuidaria de minhas irmãs?

   Ela mordeu o lábio e hesitou por um segundo. Depois suspirou.

— Sim, meu lorde — respondeu. — Vou tentar.

— Tudo bem, meu lorde? — sir Walter indagou ao encontrar Bartholomew ao pé da escada do salão.

— Sim, Walter, está tudo bem. Hoje não encontramos invasores escondidos nas colinas.

— No entanto, esfriou bastante.

   Bart assentiu. Os pés e as mãos haviam estado ador­mecidos quando ele retornara ao pátio de Norwyck depois de sua patrulha. Mas a visita aos aposentos de lady Marguerite aquecera seu sangue de maneira significativa.

— Meu lorde... o jovem Henry pediu que eu intercedesse junto ao conde com relação a alguns detalhes de sua criação.

   Bartholomew massageou a nuca. Nunca havia imagi­nado que o irmão pediria a ajuda de sir Walter para re­solver seus assuntos.

— O maior desejo do rapaz é tornar-se um cavaleiro — continuou o conselheiro do castelo. — Deve haver al­guma propriedade para onde ele possa ir e servir de es­cudeiro, meu senhor. Em seu lugar, eu não tentaria retê-lo aqui por muito mais tempo.

— Não — suspirou Bart. — Eu sei que ele deve ir. E John também terá de partir em breve. Todavia, os últimos meses foram difíceis... para todos nós...

— Entendo, meu lorde. Não suporta a idéia de sepa­rar-se de seus irmãos.

   Não tentaria negar algo tão óbvio. Sentira necessidade da presença dos gêmeos para amenizar a dor da morte de William. Mas já era hora de deixá-los seguirem seus caminhos.

— É verdade — confessou com honestidade, servindo uma generosa dose de vinho aquecido e aromatizado em uma caneca de cerâmica. Depois de oferecer essa primeira dose a Walter, preparou outra para ele mesmo e sentou-se em uma das grandes e confortáveis poltronas diante da lareira. Tudo continuava funcionando em Norwyck, dife­rente e, ao mesmo tempo, muito semelhante ao que fora antes, antes da morte de Will e da traição de Felícia. As noites silenciosas no salão, as brincadeiras com os irmãos.

   E agora havia Marguerite.

— Ainda não tive oportunidade de conhecer a dama que você resgatou do naufrágio — Walter comentou.

— Pedi a ela para cuidar de Eleanor e Kathryn durante o tempo em que estiver aqui, até recuperar a memória.

   Walter franziu a testa como se não compreendesse as palavras de Bartholomew.

— Ela ainda não se lembra de nada?

— Não. E ainda quer me fazer crer que não sabe quem é, ou de onde vem.                                             Sir Walter coçou a cabeça.

— Já vi isso antes, meu lorde.

— O quê? Uma pancada na cabeça...

— Não, a perda de memória — respondeu o cavaleiro. — Quando ainda era um garoto, como seus irmãos gêmeos, um homem no vilarejo onde eu morava caiu de uma árvore quando colhia maçãs. Ele ficou inconsciente por conta do tombo, e quando recobrou os sentidos, não sabia quem era.

   Bart encarou-o sério e intrigado.

— E ele conseguiu recuperar as lembranças?

— Sim. Quero dizer, acho que sim. Ele deve ter se lem­brado. Não é? — O cavaleiro parecia assustado.

   Bart não sabia como responder. Mas o fato de Walter ter testemunhado o mesmo tipo de perda de memória so­frida por Marguerite dava credibilidade à história da mu­lher.   Mesmo assim... ter dito a verdade sobre sua falta de memória não era garantia de nada, não o obrigava a acreditar em todas as outras coisas que ela dizia. Mar­guerite era uma mulher e, portanto, capaz de todos os tipos de traição.

— Meu lorde... — Sir Walter parecia hesitante. — Já sabe que tive minhas dúvidas sobre lady Felícia por mui­tos meses depois de meu senhor e lorde William terem partido com o rei Edward para a Escócia.

— É inútil abordarmos esse assunto agora, Walter.

— Só quero que saiba que fiz o possível para controlar aquela criatura. Na minha opinião, e ela é a mesma desde que seu pai acertou o compromisso de noivado com o pai dela, aquela mulher não era digna de confiança. Ela teve muitas oportunidades para aliar-se aos escoceses durante o tempo em que esteve na França.

   Bartholomew havia considerado essa possibilidade de­zenas de vezes desde que Felícia morrera no parto. Jul­gava possível que ela houvesse iniciado sua ligação com Dúghlas Armstrong enquanto estava na França, bem an­tes de seu casamento.

   E essa era uma possibilidade digna de consideração, já que os Armstrong mantinham relações na França, e Felícia passara muitos anos por lá. Mas, como Bartholomew há muito deixara de falar com os Armstrong, não tinha meios de saber se Dúghlas também estivera na França nesse mesmo período.

   Os dois homens abandonaram o assunto e beberam o vinho em silêncio. Haviam discutido o assassinato de William e a traição de Felícia à exaustão. Não precisava ouvir seu mais fiel escudeiro falar novamente sobre suas sus­peitas para saber que a mulher com quem se casara nun­ca fora digna de sua confiança.

   E já havia jurado nunca mais cometer o mesmo erro.

   Estava se afogando. Tentava manter a cabeça fora da água, mas as ondas a submergiam e empurravam para o fundo.

— Marie! Tenez! — gritava um homem bem perto dali. Mal podia enxergá-lo ou discernir seus traços, porque ele estava ensopado e também era engolido repetidas vezes pelas gigantescas ondas do mar. Mas era um homem jo­vem e bonito com cabelos claros.

   Por muitas vezes tentara alcançá-lo, mas algo sempre a impedia de levar a façanha até o fim. Então, de repente, sentiu que ele segurava sua mão e a puxava em sua direção.

— lei! Prenez ma main!

   Tentava agarrar os dedos gelados, mas eles sempre es­corregavam.

— Minha lady!

   Um enorme peso ameaçava esmagar seu peito e ela lu­tava para levar o ar aos pulmões. O mastro se partira e desabara, e o mar a engolia! Debatendo-se, tentava vencer a força da água que a envolvia, que a puxava para baixo, enquanto se esforçava para gritar o nome do homem cuja mão acabara de soltar. Temia que seu coração explodisse de pavor. Não conseguia respirar, e o esforço ameaçava esgotar as poucas forças de que ainda dispunha.

— Marguerite!

   Ela abriu os olhos. Eleanor se debruçava sobre seu pei­to. Marguerite não se afogava, nem havia um homem jo­vem e louro segurando sua mão ou falando com ela... em francês. O que ele havia dito?

— Estava tendo um pesadelo — disse a menina. Confusa, Marguerite tentava recuperar as visões do navio naufragando. De alguma maneira, o sonho a aju­daria a reencontrar suas lembranças. Não tinha outros recursos.

   Outra voz soou no interior do quarto.

— Minha irmã ficou tão entusiasmada quando soube que ficaria sob seus cuidados, que não conseguiu esperar mais para vir vê-la — Bartholomew contou com tom seco. Ele se mantinha apoiado na porta, os braços cruzados sobre o peito.

   Ainda era difícil respirar e organizar as idéias. Primei­ro o sonho inquietante, agora o conde e sua irmã... Ele era tão alto e másculo, que seus olhos assumiam uma qualidade quase ameaçadora quando a estudavam da­quele jeito penetrante, firme. Sabia que ele quase não conseguira conter a urgência de tomá-la nos braços na noite anterior, e desde então não fora capaz de pensar em nada além da boca sobre a dela, das mãos acariciando seu corpo.

   O homem em seus sonhos jamais exercera efeito tão poderoso sobre seu controle emocional. Marguerite não tinha idéia de como sabia disso com tanta certeza, mas não havia nenhuma dúvida com relação a essa questão.

— O que faremos hoje? — Eleanor perguntou enquanto descia da cama. Marguerite puxou as cobertas até o quei­xo. — Será que pode me ensinar a tocar guitarra?

— Eu...

— Ou prefere levar-me ao jardim e observar-me en­quanto subo nas...

— Eleanor — Bartholomew censurou-a com tom sério. — Será que já esqueceu o período que passou confinada em seu quarto?

— Não! Oh, Bartie, não por favor! — A criança correu para o irmão a fim de implorar por misericórdia.

   Marguerite não conseguiu conter um sorriso pálido.

— Se vocês dois me derem licença por alguns momen­tos, irei encontrá-los no salão assim que terminar de ves­tir-me. Então decidiremos o que vamos fazer hoje.

   Ansiosa para fazer tudo que pudesse a fim de acelerar o processo, Eleanor passou por Bartholomew e desceu a escada com passos ágeis. O conde ainda se manteve onde estava por um instante, os olhos fixos nos dela. A pro­messa naquele olhar a fez tremer. E quando ele se virou e deixou a câmara, Marguerite respirou fundo e tentou controlar as batidas enlouquecidas de seu coração.

   Quando se deu conta da inutilidade do esforço, saiu da cama temendo ter de passar todo o dia vítima da tensão.

— O que está fazendo com isso? — Henry perguntou ao entrar no salão. Ele usava roupas velhas e exalava um cheiro que sugeria uma prolongava visita ao estábulo.

— Ela está tocando a guitarra que foi de mamãe — Eleanor respondeu sorrindo.

   Marguerite teria preferido levar a menina e sua música para um recanto mais isolado da propriedade, em vez de ficar ali e exibir-se, mas havia imaginado que a audição poderia cativar o interesse de Kathryn. Até então, a mais velha das irmãs fizera um grande esforço para evitá-la ao longo do dia. Mas, desde que começara a tocar a bela e antiga guitarra, Kathryn já havia entrado no salão duas vezes.

   Desde o início daquela manhã, Marguerite vira Bartholomew apenas de longe, e a distância entre eles fora motivo de alívio. Era horrível sentir-se tão tensa cada vez que ele se aproximava. Quanto mais longe se mantivesse do conde, menor seria a probabilidade de cair vítima de seus encantos.

— Sabe tocar guitarra?

— Parece que sim, Henry — Marguerite respondeu pa­ciente. — Embora não possa explicar como me lembrei da música.

— São os seus dedos que recordam a melodia — sugeriu com ingenuidade a menina.

   Marguerite ouviu um suspiro impaciente atrás dela, mas ignorou-o. Sabia que Kate reagia de maneira habi­tual ao comentário inocente da caçula.

— Por que não toca uma canção para nós? — pediu o rapaz.

   Marguerite segurou o instrumento na posição adequa­da. Fechando os olhos e esvaziando a mente de todos os pensamentos, usou o plectro para extrair uma nota das cordas afinadas. Depois começou a cantarolar.

   John acrescentou sua voz à dela, inserindo palavras e frases que iam enriquecendo a canção. Ao final, Eleanor aplaudiu entusiasmada.

— Mamãe costumava tocar essa canção para nós!

— Era uma composição bastante popular na Bretanha e na França — Bartholomew explicou ao afastar-se do corrimão da escada. Limpo e barbeado, ele nunca estivera tão belo ou atraente.

   Marguerite mal conseguiu sufocar um suspiro de pura fascinação.

— Sim, mas ela era uma das melodias favoritas de mamãe — lembrou John.

— É verdade — concordou o conde. — Vejo que ainda lembra como tocar uma guitarra, lady Marguerite.

— Sim — ela assentiu. A canção despertara uma forte e indecifrável emoção, uma espécie de nostalgia, doce e amarga ao mesmo tempo, e era difícil controlar a voz. — Sei tocar este instrumento.

— E toca... muito bem. — O elogio soava estranho em sua voz sempre tão seca. — Toque mais uma. — Ele se acomodou em uma cadeira diante da dela e pôs a irmã caçula sobre os joelhos.

   Surpresa com as palavras generosas de Bartholomew, Marguerite conseguiu continuar tocando, para encanto das crianças e muitos dos criados, que foram atraídos ao salão pelas notas harmoniosas. Kathryn entrava e saía demonstrando a eterna paciência no olhar, os traços duros e severos demais para alguém tão jovem.

   No entanto, havia ura brilho de interesse em seus olhos que fez Marguerite acreditar na possibilidade de cativa-Ia. Sabia que a menina queria fazer parte do grupo, mas era orgulhosa demais para participar de atividade considerada tão frívola. Além do mais, Marguerite era o centro de todas as atenções, e desde o primeiro dia Kate decidira não gostar dela.

   Marguerite atraiu o olhar do conde e inclinou levemente a cabeça na direção da jovem. Ele levou um momento para compreender sua intenção, mas finalmente entendeu o que a hóspede desejava.

— Kate, venha sentar-se aqui conosco — convidou.

— Não, Bartholomew — a menina respondeu com altivez. — Tenho trabalho a fazer e...

— Isso pode esperar. Por que não vem se sentar aqui ao meu lado, e mostra a lady Marguerite que também tem seus talentos com a guitarra?

— Acho que não, Bartholomew. — E ela saiu indignada como se a proposta fosse ofensiva.

   Marguerite tentou não deixar que a rejeição de Ka thryn piorasse sua disposição. Sem comentar o compor tamento da jovem, tocou outra canção, e outra. Por alguma razão, naquele dia tinha ainda menos "lembranças” como se o sonho daquela manhã houvesse sido chocante a ponto de espantar todas as visões para um canto obscuro da mente.

   De certa forma, não sentia falta dos lampejos. Tudo que eles faziam era confundi-la e perturbá-la ainda mais. A imagem daquelas crianças e o sentimento de que algo estava terrivelmente errado a perturbavam. E se fossem seus filhos? E se estivessem em casa, na adorável mansão cercada de flores, esperando notícias dela, enquanto ficava ali sentada no salão de Norwyck, entretendo outras crianças com sua música?

   A dor e a incerteza a tomaram de assalto com tão gran­de intensidade, que se sentia sufocar. A garganta estava oprimida. As mãos tremiam e já não podiam manejar as cordas do instrumento. Mordendo os lábios para impedir que também tremessem, ela se levantou, deixou a guitar­ra apoiada no encosto de uma cadeira e afastou-se do grupo.

— Eu... Eu... — Não sabia o que dizer, e por isso virou-se e saiu apressada. Não pensava em nenhum refugio específico, limitando-se a piscar para conter as lágrimas enquanto caminhava. Eventualmente, ela se viu cercada pela paz de uma pequena capela no extremo oposto do castelo.

   Havia vários bancos alinhados contra as paredes, e ela se sentou em um deles. Depois apoiou-se na parede fria de pedra e respirou fundo.

   Não sabia o que havia acontecido com ela. De repente a sensação de dor e perda tornara-se maior do que tudo, e não sabia por quê. Por quem estava sofrendo?

   Essa era uma pergunta para a qual não teria resposta enquanto não recuperasse a memória, e era pouco prová­vel que isso acontecesse em breve. Bartholomew a levara para o castelo há dias. Com exceção da visão, que se tor­nara clara novamente, não ocorrera nenhuma outra mu­dança em sua condição.

   Por que não conseguia lembrar?

   Era frustrante. As lembranças estavam bem ali, pró­ximas do limite da consciência, mas não conseguia apo­derar-se delas. Era como se escapassem de sua mão por entre os dedos, como tentar agarrar a areia fina de uma praia. Quanto maior era o esforço que fazia, mais longe se sentia das próprias recordações.

   Marguerite limpou as lágrimas que havia vertido qua­se sem perceber, e assustou-se ao ouvir os aplausos no fundo da capela.

— Excelente atuação! — Bartholomew exclamou, aproximando-se dela enquanto continuava aplaudindo debochado. — Digna dos melhores artistas de toda a In­glaterra.

   Ela decidiu que não dignificaria o insulto com uma res­posta. Pondo-se em pé, virou-se para que ele não visse a evidência de suas lágrimas. O conde zombaria de sua dor, e sabia que isso a faria sofrer ainda mais, especialmente agora, depois de vê-lo tratar as irmãs com tanta ternura.

   Era uma pena que o grande senhor de Norwyck não a tratasse com uma gota daquela mesma generosidade.

— O que é isso? — ele provocou. — Nenhuma resposta? Engolindo em seco, impôs à voz uma calma que estava longe de sentir. Depois virou-se para encará-lo.

— Meu lorde — começou, unindo as mãos para conter um tremor inoportuno. — Isso... não vai dar certo. Não posso ficar. Se houver um convento ou uma abadia perto daqui, ou um...

— Está dizendo que quer deixar Norwyck? Marguerite baixou os olhos.

— Eu... eu só gostaria de saber quem eu sou, de onde venho. Quero saber se as crianças cujo rosto vejo sempre que fecho os olhos são meus filhos. Quero saber se o ho­mem de cabelos claros por quem chamo em meus sonhos é meu marido.

— Que homem de cabelos claros? — Sabia que a voz soava ameaçadora, mas não podia controlar as emoções.

— Sonho que ele está se afogando — a mulher contou com a voz embargada. Rápida, virou-se para que ele não pudesse ver a emoção em seu rosto. Queria recompor-se e recuperar um mínimo de equilíbrio antes de voltar a falar. — Tentamos uma aproximação na água, mas, quan­do conseguimos nos tocar, nossas mãos são afastadas pela força da correnteza. Sei que ele se desespera para...

— Você não tem nenhum marido — ele a interrompeu bruscamente.

   A raiva tomou o lugar da aflição. Marguerite encarou-o com expressão de desafio.

— De fato, meu senhor. Diga-me, por misericórdia, que método utilizou para ter tanta certeza do que diz?

   O conde segurou-a pelos braços sem dar importâncias às mais básicas regras do cavalheirismo.

— Este método — disse. Depois beijou-a. Foi um beijo violento e desprovido de pudor, uma invasão que a deixou sem fôlego e colocou o fogo no lugar que o ar havia antes ocupado em seus pulmões.

   Não tinha vontade de resistir. Nem força para isso. As mãos encontraram a cintura musculosa e firme e a aca­riciaram, enquanto seu corpo todo tremia tomado por uma urgência que era estranha, porém familiar sempre que estava nos braços de Bartholomew.

   O corpo dele era sólido e rígido, e a excitação cresceu quando anulando a pequena distância que ainda existia entre eles, o conde exibiu orgulhoso a evidência de seu desejo. Ao mesmo tempo, a língua explorava sua boca como a espada de um conquistador destemido conquis­tando território inimigo. Mais chocante ainda era a ânsia com que ela correspondia.

   As mãos dele deslizavam por suas costas. Uma delas segurou sua nuca, enquanto a outra ia descendo devagar, passando da cintura ao quadril, pressionando-a contra seu membro rígido.

   Marguerite interrompeu o beijo e deixou escapar uma exclamação chocada. Aturdida, olhou nos olhos de Bartholomew, que continuava pressionando a pélvis contra a dela e descrevendo movimentos ousados que imitavam o ato sexual. Seu olhar era quente e sugeria uma vasta, experiência no assunto.

— Precisa de mais alguma prova de que não pertence a nenhum outro homem? — ele perguntou com voz rouca. Gemendo, deixou que ele prolongasse aquela doce tor­tura. Sentiu os lábios úmidos passeando por seu pescoço, espalhando beijos ardentes que iam aos poucos se apro­ximando de um seio.

— Eu quero você — o conde murmurou.

   Marguerite estremeceu, preocupada e muito assusta­da, porque também o queria. Mas quando as mãos dei­xaram sua cintura e subiram até tocarem seus seios, ela se afastou. Olhando em volta, lembrou apavorada que es­tavam em uma capela. Uma igreja!

   Não conseguia encontrar a voz para falar, e era melhor assim. Não sabia que palavras sairiam de sua boca.

   Estava dividida. Parte dela queria ficar, explorar aque­le corpo de todas as maneiras e descobrir um prazer que, pressentia, não encontraria ao lado de outro homem. A outra parte sabia que a realização de tal desejo era ímpossível. Não devia ficar.

   Caminhando devagar para não cair, uma vez que as pernas tremiam intensamente, foi se afastando dele.

   Ao ver que o conde tentava abraçá-la novamente, ela reagiu com firmeza.

— Isso tudo não é sensato ou correto, meu lorde — disse, recuando mais alguns passos.

— E quem disse que a sensatez e a correção são as mais valiosas das virtudes?

   Marguerite engoliu em seco. Não tinha resposta para isso. Só sabia que precisava de tempo e distância para determinar o que fazer.

 

   Vários dias se passaram, sem que Margue­rite estivesse sequer mais perto de desco­brir quem era. Ela e Eleanor ocupavam o tempo com a música e a costura. Juntas, davam longas caminhadas pelo jardim e disputavam jogos variados no pátio, sempre tomando o cuidado de se manterem afastadas dos empre­gados do castelo.

   O incidente com Bartholomew na capela não se repetiu, embora Marguerite sempre o visse pelos corredores ou no campo de prática. O conde se juntava à família para as refeições no salão sempre que era possível, e nessas oca­siões Marguerite sentia seu olhar quente e penetrante. Ele não voltou a procurá-la em seu quarto na torre, mas haviam sido muitas as noites de inquietação e insónia lembrando os olhares ardentes e os convites velados.

   Certa tarde, quando o sol brilhava forte sobre o castelo. Marguerite e Eleanor vestiram mantos mais grossos para um passeio pelo jardim. As duas já se dirigiam para lá quando Eleanor sugeriu uma mudança nos planos.

— Podemos ir visitar Big Symon? — a menina pediu-lhe.

— Só se prometer que vai ficar longe dos operários.

— Oh, sim! — ela gritou entusiasmada, segurando a mão de Marguerite. — Prometo que não vou me aproximar deles. Só quero ver a nova muralha e quanto os pe­dreiros já construíram desde aquele último dia em que estivemos lá.

   Seguiram uma alameda que cortava o jardim e deixa­ram a área restrita do castelo, caminhando até alcança­rem os limites do vilarejo. Homens fixavam pedras com argamassa, exatamente como haviam feito na última vi­sita das duas. Marguerite segurava a mão de Eleanor, mantendo-a bem afastada das carroças cheias de pedras e das pilhas que ocupavam boa parte do local.

   Não se sentia disposta para lidar com a iminência de acidentes graves.

   Enquanto caminhavam, sempre olhando para a mura­lha, os homens tiravam seus chapéus revelando respeito e retomavam o trabalho. Big Symon estava sobre o muro, e ele acenou com alegria e simpatia.

— Aí está você, minha pequenina senhora! — disse uma voz rouca atrás dele.

— Mestre Alrick! — Eleanor gritou encantada, revelan­do alegria por ver o homem idoso.   Seu rosto marcado por sulcos profundos era emoldurado por cabelos grisalhos e ralos, e os olhos pequenos brilhavam com inteligência.

— O que é isto? Agora usa fitas na orelha? — Rápido, mestre Alrick fez um movimento como se removesse a fita de uma das orelhas da menina. Ao vê-la, Eleanor gritou excitada, enquanto os olhos azuis do homem cin­tilavam astutos e divertidos.

— Mais uma!

— Lamento, mas não sei se conheço outro truque — ele respondeu. No entanto, enquanto falava, o homem re­tirava uma corda do bolso, passava-a em torno da cintura de Eleanor e a amarrava com firmeza. Ele olhou para Marguerite e piscou, depois encarou a criança. — Tente soltá-la — pediu.

   Eleanor puxou a corda, mas nada aconteceu.

— Ora, minha princesinha. Precisa se esforçar mais.

— Alrick tocou o nó, e ele se desfez como se nunca hou­vesse sido feito.

   Marguerite não saberia dizer como ele conseguira tal coisa, mas o truque encantara Eleanor, e era óbvio que o mestre, como a menina o chamava, sempre a entretivera com sua habilidade manual.

— Mais!

— Agora chega, minha pequena lady. — Alrick remo­veu o chapéu e inclinou-se com ar solene. — Preciso voltar ao trabalho, ou Symon me arrancará a pele do traseiro.

— Oh, mas...

— Agradecemos por seu precioso tempo, mestre Alrick — Marguerite interferiu, segurando a mão de Eleanor.

— E por nos ter impressionado com seu extraordinário talento.

   O homem repetiu a mesura.                  

— Foi um prazer, minha senhora. — E ele as deixou para ir se juntar aos outros trabalhadores.

— Já viu o suficiente? — Marguerite perguntou a Eleanor.

— Ainda não. Não podemos ir até o outro lado da mu­ralha? Quero ver o que os Armstrong encontrarão quando se aproximarem do vilarejo.

— Eleanor...

— Por favor, lady Marguerite! Não iremos muito longe. Só quero ver o outro lado do muro. Ainda é dia claro. O que pode acontecer?

   Tinha de concordar com os argumentos da criança. O castelo e o vilarejo estavam situados em terreno elevado, e os Armstrong dificilmente tentariam um ataque em ple­na luz do dia, com tantos homens de Norwyck trabalhan­do naquele local.

   Juntas, caminharam até a extremidade da muralha, depois a contornaram abandonando a área fechada. Mon­tanhas se estendiam até onde a vista podia alcançar, fun­dindo-se com outras colinas além do vale ao fundo da bucólica paisagem. Marguerite sabia que o mar do Norte estava à direita, no extremo do castelo, embora não pu­desse vê-lo de onde estavam.

   Era uma visão encantadora, e quando se afastaram um pouco colina abaixo e olharam para o castelo, ela ficou impressionada com sua grandiosidade majestosa. Nor­wyck era uma magnífica fortaleza.

— Veja! Lá está Bartie! — Eleanor gritou.

   Marguerite virou-se e viu cavaleiros no vale abaixo das montanhas. Montados em poderosos cavalos de guerra e ostentando trajes típicos e imponentes, eles levavam suas espadas nas bainhas. Um dos cavaleiros carregava o es­tandarte de Norwyck, um leão azul sobre fundo branco.

   Vários homens controlavam um rebanho bovino atrás da fileira de cavaleiros. Marguerite protegeu os olhos do sol com uma das mãos e viu que havia mais homens con­duzindo mais gado ao longe, atrás do primeiro grupo. Atenta, olhou para o primeiro cavaleiro do grupo e viu que ele já subia por uma trilha sinuosa que acompanhava a colina onde ficava o castelo. Eleanor estava certa. Bartholomew liderava aqueles homens.

   Tentou sufocar a excitação causada pela imagem glo­riosa e compôs-se. Até então conseguira disfarçar o efeito que o homem causava em suas emoções, e não tinha ne­nhuma intenção de permitir que ele descobrisse seu se­gredo agora.

— Ele é ainda mais belo do que William — Eleanor comentou encantada. — Espero que ele encontre para mim um marido como...

— Quem é William?

— Nosso irmão mais velho. Nunca falamos dele... pelo menos não em voz alta. Todos ficam muito tristes.

— Eu sinto muito — Marguerite lamentou, embora nem soubesse por quê. — O que aconteceu com ele?

— Os Armstrong o mataram quando Felícia o atraiu para fora do castelo.

— Felícia? — Era impossível esconder a curiosidade. — A esposa de Bartholomew?

— Ela mesma. Bartie ficou muito zangado com ela. Ele disse que Will jamais teria ido sozinho ao vale, a menos que Felícia houvesse dado sinais de precisar de sua ajuda.

   A explicação estava muito longe de ser clara, mas Mar­guerite não dispunha de tempo para fazer outras pergun­tas, porque Bartholomew e seus homens já se aproxima­vam da muralha. Todos pareciam cansados da batalha, e muitos vinham feridos. Bartholomew fez um sinal indi­cando que os cavaleiros deveriam seguir em frente, depois parou e desmontou perto da irmã e da hóspede.

   Ele estava sujo, os cabelos molhados de suor e desali­nhados. A túnica acentuava os contornos firmes do peito e dos ombros largos, revelando um corpo forte e propor­cional. O rosto estava marcado pela exaustão, mas a luz da vitória brilhava radiante em seus olhos.

— Bartie! — Eleanor exclamou, abraçando as pernas do irmão. — Foi invadir o domínio dos Armstrong?

— Só fomos buscar o que era nosso. O que estão fazendo tão longe do castelo? — ele perguntou, afastando-a com um misto de doçura e firmeza.

— Viemos ver a muralha — a menina respondeu, sentindo a disposição jovial por trás da aparente severidade. — Mas não nos afastamos muito.

— E não se afastem mesmo — disse o conde antes de tomar a irmã nos braços. — Não suporto a idéia de perder você, mesmo sendo uma encrenqueira e uma causadora de problemas.

— Ponha-me no chão, Bartie — Eleanor protestou es­perneando. — Você está sujo e suado.

   Ele riu, aquecendo o coração de Marguerite com o som rico e profundo. De repente ela percebia que era a pri­meira vez que ouvia seu riso. Na verdade, mal o vira sorrir desde que chegara ao castelo.

   E sentia medo. Aquele Bartholomew relaxado, diferen­te, tinha mais chances de seduzi-la do que o outro, sempre tão passional e duro.

— Não — ele respondeu, jogando a menina sobre um ombro. As pernas roliças envolveram seu pescoço e ela riu. — Agora vai ter de suportar o bruto que arrisca a vida e a pele por sua segurança! Não acha que estou certo, lady Marguerite? — O olhar debochado pedia sua aprovação.

— Eleanor não parece estar sofrendo muito com sua presença, meu lorde — ela opinou, ignorando o duplo sentido.

— Ah, mas por acaso ela aprecia as mais requintadas qualidades de seu lorde e protetor? — Segurando as ré­deas de sua poderosa montaria com uma das mãos, ele garantia a segurança da irmã apoiando suas costas com a outra.

— Talvez sim, meu senhor — respondeu Marguerite, caminhando ao lado deles — embora ainda não tenha encontrado uma maneira de expressar sua admiração.

— É claro que sei me expressar! — Eleanor interferiu rindo. Depois inclinou o corpo e pôs as mãos sobre os olhos do conde. — Você é um palerma, Bartie!

   A atitude da menina foi tão inesperada, que Marguerite não conseguiu conter uma gargalhada. Enquanto isso, Bartholomew resmungava fingindo indignação. Era uma faceta do conde que ela jamais imaginara existir, e foi preciso desviar os olhos para não ser totalmente hipnoti­zada pelo comportamento surpreendente e encantador.

   Ele era alegre e brincalhão com a irmã, e por um mo­mento Marguerite conseguiu ver o menino que ele devia ter sido antes da guerra, da traição e da tragédia que se abatera sobre Norwyck. Por um instante, pensou nas pa­lavras que Eleanor havia proferido antes da chegada do conde. O que Felícia havia feito exatamente?

   Não podia acreditar que a esposa de Bartholomew o houvesse traído com outro homem. E causado a morte de seu irmão.

   Que tipo de mulher faria tal coisa?

   Que tipo de idiota?

   Se as histórias contadas pelas crianças mereciam cré­dito, não era de espantar que o conde fosse sempre tão desconfiando, especialmente com relação às mulheres. Duvidava de que pudesse saber mais através de Eleanor, porque a menina sabia apenas o que escutara pelos cor­redores. Pela própria natureza das traições supostamente cometidas por Felícia, estava certa de que os adultos não falavam sobre o episódio com os pequenos.

   Mesmo assim, apesar de todo o cuidado que devia cer­car a história, Eleanor era observadora. Marguerite podia imaginá-la ouvindo atrás das portas, olhando pelos bura­cos das fechaduras ou escondida atrás de cortinas e mó­veis a fim de descobrir tudo que pudesse. Talvez pudesse descobrir um pouco mais através dela formulando as per­guntas certas.

   Um estalo estridente, um estrondo espantoso e o som de vozes masculinas em pânico interromperam sua refle­xão. Marguerite olhou para a muralha e viu, horrorizada, quando a última seção da construção desabava, espalhan­do pedras, argamassa, poeira e operários.

   Bartholomew agiu com rapidez impressionante. Depois de deixar Eleanor no chão, jogou as rédeas do cavalo para Marguerite.

— Amarre-o — ordenou antes de correr para os homens caídos.

   Eleanor seguiu o irmão, enquanto ela olhou em volta tentando encontrar uma árvore ou qualquer outro lugar onde pudesse atar as rédeas do animal. Concluída a ta­refa, ela foi procurar Eleanor.

   Não precisavam de outro desastre.

   Bart enviou um homem para chamar a curandeira, de­pois ajoelhou-se ao lado de Big Symon, cujo corpo jazia inerte e inconsciente no chão de terra. Sua perna se par­tira, e ele sofrera outros ferimentos de variados graus de gravidade.

— Meu lorde, devemos levá-lo para casa!

— Não, ele não deve ser movido de onde está. Não antes de ser examinado por Alice Hoget.

— Sim, essa é a atitude mais sensata a ser tomada, meu senhor — concordou outro homem.

   De repente uma forma suave e feminina surgiu a seu lado. Havia um manto espesso e macio em suas mãos. Ela cobriu Symon com o manto, alisando-o e prendendo as pontas sob seu corpo imóvel para mantê-lo aquecido.

   Bart encarou-a, mas ela mantinha os olhos fixos no ferido. Neles era possível ver o medo e a apreensão por seu estado. Suas mãos eram pequenas, delicadas, mas moviam-se com eficiência e segurança.

— Bartie? — A voz de Eleanor soou tremula, assusta­da. Seu rosto estava pálido e lágrimas brotavam dos olhos cheios de medo. — Ele está... morto?

— Não, Ellie — respondeu o conde, tomando-a nos bra­ços. — Mas está muito machucado. Alice virá e fará o que puder por ele. Depois nós... nós rezaremos para que ele se recupere.

   Também estava muito abalado. O trabalho de constru­ção da muralha progredia bem, sendo que o único proble­ma que haviam enfrentado até então fora com o forneci­mento de suprimentos. Symon tivera de enviar muitos homens para longe dali a fim de recolherem as pedras que compunham a parede, e recentemente ocorriam dis­cussões entre o almoxarife e o capataz sobre a mistura usada para formar a argamassa.

   Bart olhou para Marguerite e viu que ela limpava uma lágrima furtiva. De repente ela se levantou, respirou fun­do e foi se ajoelhar perto de outro homem ferido, um ope­rário cuja testa sangrava muito.

   Mantendo a calma, ela falava em voz baixa com o tra­balhador, pousando uma das mãos em seu braço e diri­gindo-se a alguém que a observava em silêncio. O homem assentiu e correu para providenciar um pano molhado, e ela limpou o sangue que jorrava do corte na testa daquele que continuava caído. O rapaz parecia surpreso com toda a atenção dispensada pela bela dama, mas a atitude firme de Marguerite impedia quaisquer constrangimentos.

   Seus cabelos, antes cobertos pelo capuz do manto, ago­ra estavam soltos. O tempo parecia ter parado enquanto Bart a via prender uma mecha cor de mel atrás da orelha.

   Não conseguia pensar em nada que não fosse provar o sabor de sua pele em torno daquela mesma orelha, sentir seu cheiro quando a excitasse com muitos beijos.

   Sufocando um gemido, tentou concentrar-se nos gemi­dos de dor que Symon emitia. Julgava ser um bom sinal o fato de seu velho amigo estar recuperando a consciência, embora a perna estivesse em péssimo estado. Alice sabe­ria o que fazer.

— Symon? — chamou-o.

— Eu... O que aconteceu? — indagou o grandalhão.

— A muralha desabou. Você e vários outros operários caíram.

   Symon tentou mover-se e gemeu de dor.

— Meu lorde, sinto algo pontiagudo enterrado em mi­nha perna. O que é?

— Não é nada, homem — Bart respondeu. — Você fraturou a perna na queda.

   A cor desapareceu de seu rosto, os lábios adquiriram um terrível tom azulado, e o conde antecipou o que acon­teceria em seguida.

— Ellie, vá ficar com lady Marguerite — disse, afastan­do-a do cenário impressionante.   Depois virou a cabeça de Symon para que o homem pudesse vomitar sem sufocar.

— Ai, ai, ai, Symon Michaelson — entoou uma voz fe­minina. — O que foi fazer com sua perna?

   Era Alice Hoget com sua inseparável sacola de ervas e poções. Bartholomew não podia estar mais feliz com a chegada de alguém.

   O pensamento atraiu seu olhar para o local onde Mar­guerite e Eleanor haviam estado até então. As duas de­sapareceram. Intrigado, olhou em volta e encontrou-as ao lado da pilha de entulho que antes fora a muralha de Norwyck.

   Marguerite caiu de joelhos e, como se estivesse possuí­da, começou a remover as pedras amontoadas sobre o solo. Ao mesmo tempo, ela gritou:

— Lorde Norwyck, há alguém aqui! Preciso de ajuda! Deixando Symon aos cuidados da competente Alice, ele correu para perto de Marguerite.

— É Alrick! — ela exclamou ao vê-lo ajoelhado a seu lado. — Ele está sob todo este entulho!

   O conde podia ver o homem agora que algumas pedras foram removidas. A maior parte dele ainda permanecia oculta sob as pedras e a argamassa, mas seus gemidos eram nítidos. Gritando para obter mais ajuda. Bartholomew também dedicou-se à tarefa de remover os escom­bros que ameaçavam sufocar o pobre homem. Eleanor chorava a seu lado.

— Seja forte, Alrick — o conde dizia enquanto traba­lhava. — Vamos tirá-lo daí...

   Outros se juntaram ao esforço de resgate e logo o ho­mem era libertado, embora seu corpo estivesse ferido e alquebrado sobre as pedras que cobriam o chão. Sua res­piração era arfante e difícil. Havia sangue, hematomas e cortes marcando sua pele, e ele estava inconsciente.

   Bart ergueu a cabeça e viu Marguerite chorando, abra­çando Eleanor e mantendo a menina aninhada em seu peito. O esforço para conter as lágrimas era tão grande, que seu queixo tremia.

— Vá buscar Alice Hoget, Matheus — o conde ordenou ao homem mais próximo.

   Alguns minutos mais tarde, a curandeira ajoelhou-se ao lado do nobre.

— Meu lorde — ela disse — a esposa de Symon está a caminho. Será que pode retardá-la por algum tempo? Sabe como a mulher é nervosa. Ela só causaria mais problemas neste momento. Prefiro mantê-la longe daqui até que os homens possam levar Symon para casa. Farei o que for possível por aqui, mas...

   Bartholomew assentiu. Olhou em volta e viu Marguerite ao lado das ruínas da muralha, conversando com outro ferido. Ela devia estar com frio, pois vestia apenas um vestido de tecido fino. Não seria possível que estives­se confortável naqueles trajes exposta ao ar gelado do inverno. Que idéia havia sido aquela de abrir mão de seu manto?

   O conde desviou os olhos depressa. Não se deixaria preocupar com o bem-estar de uma estranha. Se ela que­ria ofertar seu manto e todas as outras peças de roupa com que se cobria, que o fizesse.

   Um grupo de mulheres correu em sua direção. A esposa de Symon estava entre elas.

— Senhora Anne — ele a cumprimentou, tentando detê-la.

— Meu Symon... ele está muito ferido, meu lorde? — O rosto da pobre mulher estava congestionado, e os olhos vermelhos atestavam o pranto aflito. E ela ainda nem havia tomado conhecido do dano causado pelo acidente.

— Ele... sim, Symon foi ferido — Bart respondeu com honestidade. — Alguns homens o levarão para sua casa — acrescentou, tentando acalmá-la. — É melhor voltar para lá e certificar-se de que tudo esteja pronto para recebê-lo.

   A mulher não se mostrava capaz de compreender o que ele havia dito, mas outras a seguraram pelo braço e a levaram embora dali.

   As esposas dos operários cuidavam dos ferimentos so­fridos por seus maridos e pelos maridos de suas vizinhas. Havia baldes de água limpa e muitos panos com os quais elas iam limpando cortes e estancando sangramentos, enquanto outros panos eram utilizados como bandagens, o pior ferimento além dos de Symon e Alrick foi um braço quebrado, mas Marguerite providenciou uma tipóia e imobilizou o membro junto ao peito do homem ferido.

   Quando olhou para ela novamente, Bartie a viu distraída, esfregando as mãos nos braços numa tentativa de mantê-los aquecidos.

   Maldição!

   Devia ignorar o evidente sinal de desconforto. Em vez disso, foi até o local onde seu cavalo havia sido amarrado removeu um pacote de um dos balaios e retirou dele um cobertor. Depois de cobrir o corpo de Symon com ele, res­gatou o manto de Marguerite e foi devolvê-lo.

   Ela estava de costas e se assustou ao sentir que o man­to era colocado sobre seus ombros. Levou as mãos ao tecido temendo que ele caísse, mas só encontrou as mãos de Bartholomew. Por um momento, nenhum dos dois foi capaz de respirar, tomados que estavam pelo choque da reação imediata provocado pelo contato.

   Marguerite encostou-se em seu peito, e o conde sentiu o tremor que a sacudia. A excitação foi tão imediata quan­to incontrolável.

   Ela ainda se manteve imóvel por um momento antes de afastar-se e girar sobre os calcanhares para encará-lo.

— Isso... — Ela abriu os braços e olhou em volta. — Meu lorde, isso tudo é terrível. Como... Por quê, parte da muralha desabou?

   Bartholomew passou a mão na cabeça.

— Não sei — confessou com ar cansado. — Mas vou descobrir.

— Pobre Alrick. E Symon. Há algo mais que possamos fazer por eles? Sinto-me tão impotente!

— Não — o conde respondeu, embora não concordasse com a declarada impotência de sua hóspede. Havia sido ela quem descobrira Alrick sob os escombros, depois con­seguira confortar vários feridos antes da chegada de suas esposas.

   Com exceção de Alrick, Bart não sabia se havia gostado de vê-la tocando todos aqueles homens.

   Livrando-se da idéia tola, o conde voltou ao local do acidente procurando por seu almoxarife, Thom Darcet, e pelo capataz, Edwin Gayte. Os dois teriam de cooperar com sir Walter a fim de que fosse determinada a causa do desabamento. Porque Bartholomew pretendia concluir a construção daquela muralha sem mais contratempos. A barreira era a maior esperança de defesa de Norwyck contra os frequentes ataques de Lachann Armstrong.

   A única opção do conde, além dessa, era orquestrar sua própria ofensiva, o que seria algo que odiaria fazer. Tes­temunhara tantas batalhas sangrentas que gostaria de nunca mais ver uma delas enquanto vivesse.

 

   Eleanor seguia montada no grande cavalo de Bart, retornando ao castelo em grande estilo. Marguerite caminhava ao lado do conde, que con­duzia o animal pelas rédeas. Ele não havia dito nada des­de que acomodara a irmã sobre a sela, preferindo andar em silêncio, refletindo sobre o colapso da muralha e sobre os ferimentos dos homens que nela trabalhavam.

   Era evidente a importância que dava aos seus empre­gados. Como também era óbvio que considerava impor­tante a proteção que aquela muralha conferiria a seu povo.

   Marguerite lançava olhares furtivos na direção dele. Era impossível não sentir compaixão de um homem tão bravo. Norwyck havia sido palco de tantas tragédias nos últimos meses! A dor e a apreensão eram constantes em seu rosto marcado por experiências amargas.

   Bartholomew não era o líder militar cruel e insensível que a princípio imaginara. A impressão que tivera ao des­pertar em seu castelo fora enganada. Em vez disso, ele era um homem despojado, um irmão atento, um marido traído.

— Meu lorde! — chamou sir Walter, correndo em sua direção ao vê-lo penetrar na área restrita da fortaleza. Marguerite fora apresentada ao velho cavaleiro e até faIara rapidamente com ele em algumas poucas ocasiões. Walter inclinou-se diante dela e de Eleanor, depois diri­giu-se a Bartholomew. — O que aconteceu? Alguns ho­mens estão dizendo...

— O que eles dizem é verdade — Bart interrompeu, tirando a menina do cavalo e colocando-a no chão. — A última porção da muralha desabou, ferindo vários operá­rios. O mais atingido foi Alrick Stickle. Ele ficou soterrado sobre as pedras quando o muro desmoronou.

   O homem fez o sinal da cruz e disse alguma coisa em voz baixa, algo que Marguerite não conseguiu ouvir.

— Há algo que eu possa fazer? — perguntou.

— Sim. Quero que procure o almoxarife e o capataz e, juntos, verifiquem se podem determinar o que aconteceu de errado com a construção.

— Sim, meu lorde. Irei cuidar disso agora mesmo.

— E cuide para que a esposa de Alrick e a família de mestre Symon sejam bem amparadas. Não quero que eles sofram, mais do que já estão sofrendo. Envie provisões para as casas dos dois trabalhadores e providencie para que recebam toda a ajuda de que necessitarem.

— Cuidarei de tudo imediatamente, meu senhor — Walter concordou. Depois afagou os cabelos ruivos de Eleanor e inclinou-se para Marguerite. Quando partiu, o cavaleiro segurava as rédeas do cavalo do conde a fim de conduzi-lo ao estábulo.

— O que fez a muralha desabar, meu lorde? — Mar­guerite perguntou intrigada.

   O conde balançou a cabeça.

— Uma argamassa sem qualidade, talvez. Ou a ma­neira como as pedras foram colocadas, as maiores sobre as menores... Isso tornaria a parede instável.

— Mestre Darcet e mestre Gayte estavam sempre discutindo por causa da argamassa — Eleanor contou, ca­minhando entre os dois adultos e segurando uma das mãos de cada um deles. Seus olhos estavam vermelhos e ela ainda soluçava por ter chorado demais.

   Bartholomew levantou uma sobrancelha, e Marguerite detectou um leve encolher de ombros. Mesmo que os dois homens não concordassem sobre a mistura, não podia acreditar que um deles tentaria enfraquecer a muralha de forma intencional.

— Sir Walter saberá determinar qual foi o problema — Bartholomew opinou sério.

— Conte mais sobre o ataque, Bartie! — a menina pe­diu, mudando de assunto bruscamente. Soltando uma das mãos, ela limpou do rosto os últimos vestígios das lágri­mas. — Conseguiu recuperar todo o nosso gado?

— Sim. .

— Matou muitos Armstrong?

— Não.

— Foi comemorar com as prostitutas? Bartholomew parou de repente e olhou para a irmã

com ar severo, demonstrando censura e reprovação.

— O que foi que disse?

— Henry contou que... que depois de um ataque como esse, todos os cavaleiros... todos vão se deitar com as pros­titutas e que ele...

— Já chega! Nem mais uma palavra, Eleanor! Essa é uma conversa absolutamente imprópria para uma don­zela!

   Marguerite sentiu o rosto quente e viu que a criança baixava os olhos. Era a primeira vez que a via constran­gida. Bartholomew segurou a mão dela e retomou a ca­minhada para o castelo. Os músculos de sua mandíbula estavam tensos.

— Henry não devia falar com você sobre... Existem coi­sas que só...

   Ele compôs uma expressão de completa frustração e olhou para Marguerite, percebendo imediatamente seu engano.

— Os homens sempre fazem coisas que as mulheres devem ignorar, Eleanor — disse. — Porém, se eu tivesse um marido, e ele fosse celebrar com as prostitutas, não seria bem-vindo em minha... em nossos aposentos... por muito tempo.

   Bart viu Marguerite afastar-se e um sorriso ergueu os cantos de sua boca. O fogo daquela mulher aquecia seu corpo como nenhum outro. Era verdade que alguns ho­mens haviam ido comemorar o ataque nos braços de cer­tas mulheres, mas ele não fizera parte do grupo, porque não se interessara o bastante por nenhuma daquelas prostitutas.

   Só havia uma que queria com loucura.

— Lady Marguerite está zangada? — Eleanor quis saber.

— Não. Creio que não.

— Então, por que ela se foi daquela maneira? — a criança insistiu. — Ela parecia muito zangada.

— Acho que ela só queria expressar um ponto de vista. Eleanor ignorou o comentário do irmão, mas continuou olhando para o chão enquanto caminhavam, perdida nos próprios pensamentos.

— Acha que agora ela irá embora e... Ela vai falar com Dúghlas Armstrong como Felícia fez? — a menina final­mente perguntou depois de alguns minutos.

   Bart parou e olhou para a irmã. Como poderia respon­der a tal questão? Que homem podia prever as intenções e os pensamentos de uma mulher, ou o que ela faria? Jamais imaginara que Felícia seria capaz de traí-lo com outro enquanto estava longe lutando contra os escoceses, mas havia sido exatamente isso que ela fizera.

   Fora para a cama de Dúghlas Armstrong e concebera seu filho bastardo.

— Espero que não — respondeu, utilizando um tom calmo que não condizia com sua verdadeira condição in­terior. Marguerite havia desaparecido, mas ele mantinha os olhos fixos no ponto onde a vira pela última vez. Era bem provável que a mulher houvesse ido dar um passeio pelo jardim.

— Por que as pessoas chamam Felícia de "meretriz de Norwyck"?

   Bart parou novamente. Ouvira a expressão uma ou duas vezes, mas era terrível saber que a irmã também o escutara. Ele se abaixou diante da caçula da família.

— As pessoas estão sempre falando coisas que não de­viam falar.

— O que significa isso, Bartie?

   Mastigando o interior da boca, tentou encontrar uma maneira de esclarecer as dúvidas da menina sem chocá-la.

— Significa que ela era muito íntima de um homem que não era seu marido.

— O bastardo Armstrong?

— Eleanor, você precisa tomar mais cuidado com sua língua. — O conde levantou-se.   Passando a mão na cabe­ça, imaginou se as perguntas inconvenientes e estranhas de Eleanor algum dia cessariam. Juntos, retomaram a caminhada. — Certas palavras não devem ser pronuncia­das por uma jovem lady, e bastardo é uma delas.

— Henry será mandado para outro lugar? — Ela mu­dava de assunto rapidamente, como sempre fazia. Bart agradecia aos céus por não ter de continuar falando sobre o tópico anterior, embora esse também não fosse dos mais confortáveis.

   Ele respirou fundo.

— Estou considerando essa possibilidade.

— Está? E para onde ele vai? Para longe daqui?

— Talvez não muito longe. — A distância seria sufi­ciente para impedi-los de ver o irmão por anos seguidos.

   Eleanor continuou falando até chegarem ao castelo. Foi com alívio que Bartie deixou-a com Ada, a babá, e foi para o quarto tomar banho.

   E considerar a melhor maneira de convencer Marguerite a tratá-lo com um pouco mais de... generosidade.

   Ela se tornara distante e arisca depois daquela conver­sa cobre a comemoração dos cavaleiros com as mulheres, e a única suposição plausível era a de que ela ficara aborrecida ao imaginá-lo com outra mulher. O pensamento era intrigante.

   Talvez devesse mandar chamá-la para ajudá-lo com o banho.

   Nu, entrou na tina e continuou em pé enquanto remo­via do corpo toda a sujeira da batalha. Estava cansado, mas a pele revelava uma intensa sensibilidade quando a lavava. Pensou nas mãos de Marguerite tocando aqueles mesmos lugares que seus dedos massageavam com sabão, e não foi difícil imaginar qual seria sua reação a esse contato específico.

   Sacudido por um tremor, tentou canalizar os pensa­mentos para outras direções, mas o esforço era inútil.

   Tinha de aceitar a realidade. Não poderia descansar enquanto não a tivesse.

   Tinha de haver um jeito de atraí-la para sua cama. Embora ela o houvesse evitado nos dias anteriores ao ataque aos domínios dos Armstrong, já era hora de realizar algum progresso com a mulher. Sabia que ela não era indiferente a sua presença, e as respostas aos seus beijos eram prova disso. Talvez uma caneca de vinho durante o jantar daquela noite servisse para abrir caminho à se­dução.

   De qualquer forma, não estava disposto a esperar mui­to para tê-la. Não podia esperar. Estava perturbado pela lembrança da boca sob a dele, do toque das mãos delica­das em sua pele. Imagens do corpo sinuoso e macio o atormentavam a ponto de distraí-lo, e não permitiria mais que ela se mantivesse distante.

   Depois de remover todo o sabão do corpo, o conde bar­beou-se, penteou os cabelos e vestiu uma túnica e meias limpas. Quando deixou o quarto e seguiu para o salão, descobriu que sua família já se encontrava reunida para o jantar. E Marguerite estaria entre eles, sensível a sua presença, mas ainda hesitante quanto a viver plenamente esse encontro.

   O fogo ardia na enorme lareira do salão, todas as tochas das paredes haviam sido acesas, e a luz do candelabro sobre a mesa se espalhava por todo o ambiente. Alguns cavaleiros também estavam ali reunidos para comemora­rem a vitória na última batalha. A julgar pela animação dos homens, eles já haviam começado a beber ao sucesso da aventura da noite anterior.

   Bart sorriu. Havia sido uma aventura e tanto superar os Armstrong em seu próprio jogo. Os homens de Norwyck haviam recuperado até a última cabeça de gado roubada da propriedade sem ferir um único guarda escocês. Bart os julgara jovens demais para perderem a vida por causa de algumas vacas.

   E soubera que, por terem poupado os sentinelas, Lachann Armstrong ficaria ainda mais furioso. Ele não gos­taria de pensar no inimigo entrando em sua casa e recu­perando seus bens sem encontrar resistência alguma, sem que nenhuma gota de sangue fosse derramada.

   Confiante em outras vitórias naquela noite, Bartholomew aproximou-se das mesas adicionais que haviam sido montadas sobre cavaletes no salão e cumprimentou seus homens. Alguns deles propuseram brindes ao sucesso do grande senhor da guerra, outros o cumprimentaram com reverência e devoção.

   Quando os criados começaram a levar imensas traves­sas de comida para a sala, Bart foi ocupar seu lugar na plataforma onde sua família faria a refeição.

   Marguerite não estava entre eles.

   Olhou para as duas extremidades da mesa, mas não a viu em nenhum lugar. Virou-se, olhou em volta e exami­nou cada canto do imenso salão, mas não a viu em parte alguma.

— Nossa comida está esfriando, Bart — Henry protes­tou. — Venha sentar-se para que possamos começar a comer.

   Carrancudo, ele subiu à plataforma e tomou seu assen­to, permitindo que o capelão recitasse a prece. Quando todos começaram a comer, ele se virou para Eleanor.

— Onde está lady Marguerite? — indagou.

— Pensei que ela estivesse com você, Bartie.

   O conde debruçou-se sobre a mesa e falou com John.

— Sabe onde está lady Marguerite?

— Não, Bart.

   Então ele olhou para Kate à esquerda, embora duvi­dasse de que a jovem pudesse ter uma resposta para suas indagações.

— Kate, sabe por que lady Marguerite não está entre nós?

— E por que eu saberia, Bart? Não é da minha conta o que ela faz, ou para onde vai.

   A tensão já se apoderava de sua mandíbula. Não era nada daquilo que planejara para essa noite tão especial. Para onde ela poderia ter ido? Na última vez em que a vira, a mulher se dirigia para o castelo, talvez para o jardim da propriedade, mas a noite já havia caído e fazia frio lá fora. Certamente, a ira provocada pela discussão sobre as prostitutas não podia ter sido grande a ponto de Marguerite querer morrer congelada!

   Não. Ela devia ter levado uma bandeja para seus apo­sentos. Melhor assim. Quando terminassem de jantar, iria até a torre e deixaria a natureza seguir seu curso.

   Marguerite segurava o mais jovem dos sete filhos de Symon Michaelson e mexia o conteúdo do caldeirão pen­durado sobre em um gancho de ferro sobre o fogo. Havia comida suficiente para sua família e para as dos outros homens feridos, graças à cozinha do castelo.    

   Antes, estivera sentada com a esposa de Alrick, velan­do o sono do pobre homem, mas não vira nenhum sinal de progresso. Quando os vizinhos da mulher chegaram, Marguerite partira.

   Ali, o pobre Symon estava deitado com sua perna que­brada, dormindo profundamente, graças a uma poderosa poção administrada por Alice Hoget. A velha curandeira precisara da ajuda de vários homens para pôr a perna de Symon na posição correta, e depois conseguira imobilizá-la usando duas tábuas cortadas. Era um ferimento muito grave, pois a perna poderia ficar defeituosa, caso não fosse corretamente emendada, e isso tornaria difícil o trabalho do homem e a sobrevivência de sua família.

   A esposa de Symon andava de um lado para o outro, choramingando e torcendo o avental entre as mãos. Ela era totalmente inútil com relação aos cuidados com o en­fermo, e estava tão nervosa que mal se lembrava dos pró­prios filhos. Por sorte Marguerite aparecera em sua casa depois de ter ido visitar outras famílias, certas de que poderia ser útil em alguma coisa.

   As crianças estavam assustadas com o estado do pai. O comportamento aflito da mãe não as acalmava, mas Marguerite fazia tudo que estava ao seu alcance para amenizar seus temores. Distribuindo tarefas entre os pe­quenos, ela os distraiu da dor e do sofrimento que haviam testemunhado no rosto de Symon, e enquanto estavam todos ocupados, ela conseguiu pôr a refeição na mesa.

   A atividade era perfeitamente natural para ela.

   Cada criança recebeu uma tigela de sopa substanciosa e uma fatia de pão. Elas se sentaram em silêncio e come­ram, os mais velhos auxiliando os mais novos, enquanto   Marguerite aproximava-se da esposa de Symon e falava com ela em voz baixa.

— Anne — chamou-a. — Você precisa amamentar o bebê.

   O nariz dela estava vermelho e seus olhos haviam in­chado por conta do pranto.

— Não creio que possa, minha lady.

— E claro que pode — Marguerite persistiu com ener­gia, embora não soubesse nada sobre o assunto. Ela levou uma cadeira para perto da cama de Symon, convenceu Anne a sentar-se e pôs o bebê em seus braços. Depois ajudou-a a ajeitar o corpete do vestido de forma que a criança tivesse acesso a um seio.

   A atividade começou a acalmar a pobre mãe, e Mar­guerite ficou abaixada perto dela conversando com as crianças. Afagando os cabelos escuros do bebê, permitiu que ele segurasse seu dedo com a mão pequenina e re­chonchuda.

   Ao fazê-lo, soube com absoluta certeza que nunca havia experimentado tamanho grau de intimidade com um be­bê. As crianças cujos rostos desfilavam por sua mente por todos os dias não podiam ser seus filhos. Não, sabia que se lembraria de uma ligação tão forte como a de amamen­tar um bebê.

   A descoberta era ao mesmo tempo um alívio e uma decepção.

— Mãe? — A menor das crianças desceu do banco e parou ao lado de Marguerite.

   Anne olhou para a filha.

— O que é, Abby? — perguntou com tom choroso.

— Papai vai se levantar logo?

   Marguerite abraçou a menina. Não havia nada que pu­desse dizer sobre a condição de Symon sem mentir para ela. Piedosa, tomou a criança em seus braços. — Vamos rezar por seu pai, Abby, e Deus cuidará dele.

   Ela levou a menina de volta à mesa, onde os outros terminavam de comer. Juntos, retiraram os utensílios su­jos e limparam a cozinha.

— Alguém tem uma canção? — Marguerite perguntou às crianças, mantendo-se atenta a Anne e ao bebê.

   Seis assustados pares de olhos mantinham-se fixos em seu rosto, e seu coração quase se partiu diante daqueles olhares cheios de medo,

— Venham — disse. — Vamos preparar cada um de vocês para irem para a cama. —   Todos seguiram sem protestar até o armário onde ficavam guardados os cobertores e colchões de palha e a ajudaram a pegá-los. Espa­lhando-os no chão perto do fogo, Marguerite começou a cantar enquanto os punha em suas camas.

   Logo algumas palavras surgiram em sua mente, e ela as organizou numa doce melodia. As crianças a acompa­nhavam, uma voz de cada vez, até que todos cantaram juntos. Quando notou que Anne havia terminado de ama­mentar o bebê, Marguerite pegou-o de volta e sentou-se entre os outros pequenos para terminar a canção.

   Anne se mantinha sentada na mesma cadeira, mas não havia o que pudesse ser feito por ela naquele momento. Só queria acalmar as crianças e fazê-las dormir. Depois faria tudo que pudesse pela mãe delas.

   Ela começou outra canção.

   Lanquand li jorn son lonc en mai m'es beis douz chans d'auzels de loing...

   A pequena Abby saiu de baixo do cobertor e, com o polegar na boca, foi passando por cima dos irmãos e das irmãs para subir no colo de Marguerite, que ajeitou o bebê em um só braço para abrir espaço para a menina. Enquanto isso, ela continuava cantando.

   Et quando me suis partiz de lai remembra-m d'un amour de loing.

   As crianças eram todas morenas como seus pais, todas com profundos olhos castanhos que as tornavam muito diferentes daquelas de que Marguerite se "lembrava". Mas os sentimentos que provocavam eram os mesmos. Sentia-se calma e centrada ali entre os pequenos, embora sou­besse que aquele não era seu lugar.

   Continuou cantando em voz baixa, lamentando não ter a guitarra de Norwyck. Talvez no dia seguinte pudesse levá-la à casa dos Michaelson e tocá-la para as crianças.

   Anne certamente precisaria de ajuda com eles.

   Na verdade, não sabia se a esposa de Symon consegui­ria acalmar-se o bastante para cuidar dele. Seria preciso ter muita paciência e alguma habilidade para lidar com os ferimentos de seu marido nas próximas semanas. E mesmo assim, ele poderia ficar manco por conta da fratura.

   Marguerite olhou para as cinco crianças deitadas em suas camas e para os dois menores em seu colo. O que seria deles se o pai não pudesse mais trabalhar por seu sustento?

   Marguerite estava desaparecida há horas. Os cavalei­ros de Bartholomew espalharam-se para procurar por ela, vasculhando o pátio e o jardim, olhando todos os galpões dentro da área do castelo. Bart havia mandado um grupo até a praia e outro para as colinas, certo de que a mulher havia aproveitado a primeira oportunidade que tivera pa­ra fugir de Norwyck.

   A raiva provocada por sua atitude era intensa e pro­funda.

— Meu senhor — sir Walter cumprimentou-o ao entrar no pátio. O cavaleiro desmontou e fez a mesura habitual. — Alguma notícia?

— Nenhuma. — O tom era seco.

— Talvez ela esteja...

— Ela não é mais problema meu — Bart interrompeu, encerrando a discussão sobre Marguerite. Dentro de uma hora, encerraria a busca e mandaria buscar os homens nela empenhados. — Sabe alguma coisa sobre Alríck Stickle e os outros?

— O estado de Alrick é crítico, mas Symon Michaelson está se recuperando, meu lorde. — Se estava nervoso, Walter não demonstrava as emoções através do discurso. — Estava de saída para ir levar mantimentos e agasalhos para as famílias dos feridos.

   Só então Bartholomew notou os pacotes ao lado da montaria de seu mais velho cavaleiro.

— Eu cuido disso — decidiu, abaixando-se para pegar os dois volumes maiores. — Para quem são?

   Walter forneceu os nomes daqueles que seriam auxi­liados, e Bart acomodou os pacotes sobre seu cavalo. Quan­do terminou de ajeitá-los, ele montou.

— Meu lorde...

   Impaciente, o conde olhou para o cavaleiro.

— É possível que... Bem, creio que talvez tenha come­tido um erro de julgamento com lady Marguerite.

   Houve uma pausa mais prolongada antes de Bart res­ponder.

— Isso já não importa. Ela era uma estranha quando chegou, e ainda era uma estranha quando partiu. A única coisa que essa mulher levou de minha casa foi o afeto de Eleanor.

   Se sir Walter respondeu ao comentário, Bart não ouviu a resposta, porque já cavalgava para o vilarejo levando os pacotes, banindo da mente todo e qualquer pensamento relacionado a Marguerite. Não queria ouvir o que o amigo e conselheiro tinha a dizer a favor daquela mulher.

   Empenhado, Bartholomew parou diante da casa de ca­da operário ferido, distribuindo comida e agasalhos, en­trando para oferecer conforto e apoio às famílias. A se­nhora de um castelo era sempre a responsável por essas visitas, mas não havia nenhuma senhora em sua casa. Nem haveria enquanto Hal não tomasse alguma por es­posa. Suas irmãs poderiam cumprir o papel até lá, já que ambas se mostravam ansiosas para agirem como castelãs.

   Quando chegou à residência de Alrick, encontrou a es­posa do homem sentada ao lado de sua cama, e Alice Hoget se mantinha debruçada sobre ele. O sacerdote de Norwyck fazia companhia à curandeira.

   Alice olhou para Bart e balançou a cabeça, e naquele momento ele soube que Alrick não sobreviveria. Pensou em todos os anos que ele passara entretendo as crianças, até ele mesmo quando pequeno, e teve certeza de que sua presença jovial deixaria saudade.

   Bartholomew disse algumas palavras de conforto à es­posa de Alrick, depois pediu licença para retirar-se. Ainda tinha uma casa a visitar.

— Vai ver mestre Symon, meu lorde? — Alice pergun­tou, alcançando-o quando ele já se preparava para montar.

— Sim, estou a caminho da residência dos Michaelson. Tem alguma notícia dele?

— A perna foi imobilizada — a mulher respondeu com simplicidade. — E a esposa do pobre-coitado está mor­rendo de preocupação e tristeza. Tenho duas garotas que podem ir ajudá-la com as crianças, mas gostaria de ir até lá e examiná-lo antes de voltar para casa. Vai se incomo­dar com minha companhia, meu senhor?

— É claro que não.

   Bart lembrou-se da reação de Anne ao acidente com o marido e teve medo de que a mulher ainda não se hou­vesse recuperado do choque. Não poderia culpá-la por es­tar perturbada. Symon tinha muitos filhos, todos peque­nos. A perspectiva de um marido aleijado com tantas bo­cas para alimentar devia ser assustadora.

   Bart amarrou o cavalo em uma árvore na frente da casa dos Michaelson e seguiu Alice levando os pacotes destinados àquela família. Tudo era silêncio no interior da casa modesta e escura, mas o som de uma voz doce e feminina cantando uma canção de ninar lembrava um encantamento de fadas. Bart virou-se, fechou a porta con­tra uma rajada de vento gelado, e a canção foi interrom­pida. Ele se virou.

   Era Marguerite!

   Seus músculos ficaram tensos diante da inesperada visão. Lá estava ela, ilesa, sentada entre os filhos de Symon.

   Como se ele e seus homens não houvessem passado as últimas horas procurando por ela.

   Há quanto tempo ela estava ali? Tinha alguma idéia da preocupação que causara? De como fora procurada em vão? Estalando os dedos, fez um esforço consciente para não perder a calma. Não sabia se a esganava ou se a tomava nos braços e a apertava contra o peito de forma a nunca mais deixá-la desaparecer.

   Talvez pudesse fazer as duas coisas.

 

— Ah, foi bom ter ficado, minha lady. Alice disse a Marguerite en­quanto pegava a lamparina da mesa. — A sra. Anne não está em condição de cuidar nem dela mesma.

— Foi um prazer ajudar com as crianças. E como não havia nada a ser feito pela esposa de Alrick... — Sua voz era rica e clara, e causava sempre o mesmo tipo de reação, uma resposta que já se estava tornando conhecida de Bart. Necessidade... uma urgência pungente aliada a uma estranha sensação que ele não reconhecia.

   Ver seus lábios suaves beijando os cabelos escuros do bebê aninhado em seus braços causou uma espécie de dor ern seu peito. A visão das mãos delicadas afagando as costas da criança causou uma pontada mais forte do que se houvesse sido atingido por uma lança. Não era difícil imaginar Marguerite acalentando um filho seu.

   Cobrindo a boca com a mão, o conde virou-se.

   Que absurdo!

— Ah, Annie, minha menina — Alice chamou, ofere­cendo a Bartholomew uma oportuna chance de voltar sua atenção para outro lugar qualquer. — Sente-se, por favor. Está me deixando tonta andando de um lado para o outro.

   A sra. Anne sentou-se em uma cadeira ao lado da cama do marido e mastigou o canto da boca. As mãos torciam o avental com evidente nervosismo. Bart sentia-se per­turbado apenas por observá-la, embora fosse melhor do que torturar-se com as visões de Marguerite.

   Era irritante saber que sua raiva era mal direcionada. A mulher passara a noite ajudando as pessoas do vilarejo, seu povo, enquanto ele estava fora tentando provar um estúpido ponto de vista. Pretendia desaboná-la diante de todos assim que a encontrasse fugindo pelas colinas.

   Fora um idiota.

   E ainda a queria. Talvez até mais do que antes. A raiva perdia força esmagada pelos argumentos da razão, mas nada podia diminuir o desejo que sentia por ela.

   A casa era espaçosa, apesar de simples, mas a presença de sete crianças e três adultos tornava o lugar apertado. Evitando o olhar de Marguerite, o conde saltou por cima dos colchões dos pequenos e aproximou-se da cama de Symon.

   O homem estava dormindo, aparentemente sem ne­nhuma sensibilidade. A perna fraturada estava inchada e azul, e duas tábuas impediam qualquer movimento do membro. O quadro geral não parecia nada bom. Com uma careta de desgosto, Bart olhou para Alice.

— Isso vai mesmo cicatrizar?

   A curandeira ergueu uma sobrancelha e encolheu os ombros, dando sinais de não desejar discutir o assunto francamente diante da frágil esposa do enfermo.

— Quem pode prever como será a cicatrização de uma fratura? — ela respondeu. — O tempo vai dizer, meu lorde.

— Sim, mas você acha...? — Um olhar para a expressão ansiosa de Anne, e Bartholomew decidiu mudar a per­gunta. — Acha que ele vai se sentir melhor amanhã?

— Não. E provável que ele se sinta pior.

   Um grito súbito e agudo rompeu a quietude do quarto. Bart virou-se e viu que o bebê nos braços de Marguerite agitava-se. Ela tentava acalmá-lo, mas seus movimentos eram contidos pela menina encolhida em seu colo. A me­nos que se livrasse da criança mais velha, ela não seria capaz de confortar o bebê.

   Alice estava ocupada. Séria, ela examinava a região sob as pálpebras de Symon, enquanto Anne segurava os próprios braços e, ansiosa, acompanhava de perto cada movimento da curandeira.

   Incapaz de pensar em outra alternativa, Bart passou mais uma vez por cima das crianças e ajoelhou-se diante de Marguerite. Sem dizer nada, tomou nos braços a me­nina e, sem querer, tocou na perna de Marguerite.

   Um arrepio súbito a percorreu, e seus olhos se fecha­ram. Nesse momento, Bartholomew não teve dúvidas de que em breve estaria com ela, tocando seu corpo como só um homem pode tocar uma mulher. E ambos conheceriam um prazer sem precedentes.

   Engolindo em seco, o conde voltou a atenção para a filha de Symon. Cuidadoso, levou-a para o único colchão vazio e acomodou-a, cobrindo-a com a manta de lã. A me­nina ainda estava inserindo o polegar na boca quando ele ouviu Marguerite levantando-se para, andando de um la­do para o outro, cantar para o bebê.

   Ela se movia tentando acalmar a criança, mas também era clara sua intenção de manter-se bem longe dele. E mesmo distante, a canção penetrava em seus ouvidos com clareza, tornando possível a identificação de algumas pa­lavras em francês.

— Deixe-me pegá-lo, minha lady — Alice sugeriu, afas­tando-se da cama de Symon. — Parece exausta, se me permite dizer.

— Oh, mas eu...

— Vejo círculos escuros em torno de seus olhos, e aca­bou de sair da cama depois de recuperar-se de um nau­frágio. — Firme, Alice tomou o bebê de seus braços. — Leve-a de volta ao castelo, meu lorde. Esta noite lady Marguerite precisa de sua própria cama. As filhas de Judith Atwood estão a caminho para ajudarem Alice. Não há mais nada que possam fazer por aqui antes do amanhecer.                                          

   A velha curandeira estava certa. O que quer que Mar­guerite houvesse feito desde que o deixara, a atividade a esgotara. Bart fitou-a e sentiu uma ternura que o inco­modou. Ela desviou o olhar com timidez graciosa.

— Agora vão — Alice insistiu. — Tudo está tão bem quanto é possível por aqui.

   Bartholomew estendeu a mão por cima de várias crian­ças adormecidas, oferecendo ajuda a Marguerite.

— Minha lady? — disse, surpreendendo-se com o tom carrancudo da voz. Sabia que se enganara sobre suas in­tenções, mas ainda não havia superado os sentimentos negativos provocados por sua presença misteriosa.

   Marguerite hesitou um instante, mas aceitou a mão estendida e saltou por cima dos colchões. Em poucos se­gundos os dois chegaram à porta. Bart viu o manto pen­durado em um cabide próximo da saída, e estava prestes a ajudá-la a vesti-lo, quando alguém bateu. Esperando ver as filhas da sra. Atwood, ele se espantou ao constatar que era o cavaleiro que deixara no comando do grupo que procurava por Marguerite.

— Meu lorde — ele cumprimentou respeitoso, apon­tando para o animal amarrado na árvore próxima da re­sidência. Vi seu cavalo e achei melhor vir encontrá-lo, em vez de esperar. Eu... — O rapaz notou a presença de Mar­guerite. — Minha lady! Então a encontrou, senhor?

— Sim, Duncan, eu a encontrei aqui há poucos minutos — o conde respondeu seco. Depois colocou a mão nas cos­tas de Marguerite e levou-a para fora da casa, para o cavalo, antes que ela pudesse questionar o espanto e o alívio do cavaleiro.

   Bart montou e estendeu a mão para a mulher. Duncan improvisou um degrau unindo as mãos. Assim que ela se acomodou sobre Pégasus, Bart aninhou-a entre suas per­nas e passou os braços em torno de seu corpo a fim de tomar as rédeas.

   Um pálido raio de luz cortou o céu, e logo eles ouviram o distante retumbar de um trovão.

   Bart olhou para seu cavaleiro.

— Reúna os homens, Duncan. Há uma tempestade se aproximando daqui, e o frio é cada vez mais intenso. E melhor que ninguém fique fora do castelo em uma noite como essa.

— Sim, meu senhor — o rapaz concordou apressado.

— Vou cuidar disso imediatamente.

   Bart partiu na direção do castelo, enquanto Duncan montava e seguia para as colinas. Ao sentir que um tre­mor sacudia o corpo de Marguerite, ele a puxou para mais perto a fim de envolvê-la com seu calor. Ela exalava um suave perfume floral, uma fragrância totalmente femini­na. Inebriado, o conde respirou fundo.

— Meu lorde — ela começou, virando o rosto para en­cará-lo — estava... pensou que eu tivesse fugido?

— Confesso que considerei essa possibilidade.

— Mas... por que eu deixaria o castelo? — ela pergun­tou confusa, puxando o manto de forma a aquecer-se. — Para onde iria?

   De fato. Essa era a questão principal.

— Se deixasse Norwyck, para onde iria, minha lady? — ele indagou em voz baixa. A cabeça dela estava aco­modava sob seu queixo, e uma lateral do corpo tentador repousava contra seu peito.

— Meu senhor — Marguerite suspirou frustrada, fi­tando-o mais uma vez — ainda não tenho nenhuma lem­brança sobre quem sou, ou de onde vim, embora tenha quase certeza de que devo ser francesa.

   Bart não respondeu. Se ela já sabia que era francesa, de quanto tempo ainda precisaria para lembrar todo o resto? Quanto mais até que a visse partindo de Norwyck?

— Quando canto, as canções francesas me vêm à mente com incrível facilidade, e as palavras são familiares aos meus ouvidos.

— Seu inglês é perfeito.  

— Mas não sinto o idioma com a mesma naturalidade com que sinto o francês.            

   Era melhor não discutir. Talvez ela fosse francesa, em­bora a possibilidade não o confortasse. Os escoceses pos­suíam fortes alianças com os franceses, e ela bem podia ser uma aliada dos Armstrong e dos MacEwen, seus maio­res inimigos.

   Marguerite tremeu novamente e encolheu-se. Seu cor­po sofria os efeitos da fadiga. Bart passou um braço em torno de sua cintura e soube que Alice mais uma vez acertara em cheio em seu diagnóstico. A mulher estava exausta.

   Era bem provável que ela houvesse retornado ao vila­rejo naquela tarde, depois de deixá-lo com Eleanor. Deus sabia que tipo de tarefas havia desempenhado na casa de Symon. E era possível até que também houvesse ajudado nas casas de outros homens feridos.

   Não a pressionaria para que se entregasse naquela noi­te. No entanto, não tinha nenhuma intenção de desper­diçar aquela excelente oportunidade de tocá-la.

   Marguerite deixou-se aconchegar entre os braços de Bartholomew. A noite era fria e sentia-se congelada. O calor de seu corpo másculo a envolvia, provocando nela uma sensação de conforto e segurança. Ele ainda não con­fiava nela, mas isso não parecia ter importância. Não essa noite. O conde se preocupara com ela, tanto que mandara homens em seu encalço.

   Sentira sua ira antes, quando o vira entrar na casa de Symon, e embora não a houvesse compreendido, também sentira que a emoção perdera intensidade por alguma ra­zão. Pensando bem, o homem tinha o direito de não acre­ditar nela. Afinal, Felícia cometera contra ele a pior das traições, o adultério com um inimigo! Só um santo a perdoaria e voltaria a confiar novamente.

   Sem pressa, cavalgaram pelas colinas entre o castelo e o vilarejo. O capuz escorregara de sua cabeça, e Marguerite sentia o hálito de Bartholomew na orelha e no pescoço, espalhando um calor que sugeria um fogo intenso correndo por suas veias. Chegaram ao portão principal do castelo, e Bart guiou o animal até um amplo estábulo perto do pátio.

— Eu mesmo cuido de Pégasus, rapazes — ele disse aos dois cavalariços que se levantaram ao ouvirem ruídos do lado de fora. — Mas os cavaleiros logo estarão retornado das colinas, e as montarias vão precisar de cuidados.

   Sem soltá-la, o conde entrou no estábulo escuro e des­montou perto de uma baia vazia. Em pouco tempo, ele acendeu uma tocha, iluminando toda a área em torno da baia.

— Desça — ele disse, erguendo as mãos para segurá-la pela cintura.

   Seus olhos escuros queimavam, e Marguerite tremeu ao identificar a promessa sensual contida neles. Ela res­pirou fundo, colocou as mãos em seus ombros e deixou-se escorregar para os braços que a esperavam.

   Bartholomew não a soltou quando seus pés tocaram o chão, mantendo as mãos em sua cintura. Inclinando a cabeça, pousou os lábios nos dela numa carícia muito suave.

   Um instante depois as mãos se afastaram de seu corpo. Os lábios já não estavam sobre os dela.

— Só vou precisar de alguns minutos — ele avisou, levando a montaria para dentro da baia.

   Mais abalada do que gostaria de admitir depois do beijo inocente, Marguerite o seguiu e observou enquanto ele removia os arreios e a sela do animal. Em seguida o conde retirou a manta e entregou-a a Marguerite como se nada houvesse ocorrido entre eles.            

— Pode pendurá-la em um daqueles pregos? — pediu, indicando a parede no fundo do estábulo, onde dezenas de pregos sustentavam mantas, arreios e selas.

   Marguerite atendeu ao pedido sem protestar, enquanto Bartholomew escovava o pelo do cavalo e massageava seu pescoço e as patas.

— Quer ajudar-me aqui? — ele perguntou, jogando um pano em sua direção. —       Terminaremos mais depressa se você cuidar do outro lado.

   Sem se mover, ela apreciou por um instante os movi­mentos ágeis com que ele esfregava um ombro, o peito e o flanco do poderoso garanhão. Depois olhou para o pano em sua mão e aproximou-se do animal. A tarefa não despertava nenhuma sensação de familiaridade, o que a le­vou a deduzir que nunca a executara antes.

   Mesmo assim, o movimento era relaxante, e de repente surpreendeu-se imaginando como seria ter alguém massageando sua pele daquela maneira, removendo os nós de seus músculos exaustos. Era uma fantasia tola, e de­via ter rido alto da idéia, porque Bartholomew encarou-a intrigado.

— O que foi?

— Não foi nada, meu lorde — ela respondeu, dedican­do-se ao cavalo com empenho e atenção.

   Os olhos escuros do conde a estudavam.

— Você riu — ele comentou. — Gostaria de saber o que pode ter sido tão engraçado.

   Um rubor tingiu seu rosto, resultado do constrangi­mento causado por sua tolice. Não queria que Bartholo­mew pensasse que estivera rindo dele.

— Achei divertido pensar que seu cavalo recebe mais atenção do que muitas pessoas, meu lorde.

— É só isso? Está com inveja do tratamento dedicado a Peg?

— Não, meu lorde. — Ela não conteve um sorriso. — E claro que não.

   Quieto, Bart parecia imerso nos próprios pensamentos enquanto concluía o trabalho com o cavalo. Ao final, ele guardou todo o equipamento, segurou o braço de Marguerite e levou-a para fora do estábulo. Seu corpo estava rígido e tenso ao lado do dela, e Marguerite imaginou se ele a beijaria novamente.

   Caminharam em silêncio, e quando entraram no cas­telo, ele parou para encará-la ao pé da escada.

   O hall estava quase escuro, e a voz profunda e rouca de Bartholomew penetrou os recessos mais profundos de sua resistência.

— Durma bem, minha lady — ele murmurou.

   Marguerite ficou onde estava, paralisada, desejando muito mais do que um beijo ou um abraço, ansiando pelos braços fortes em torno de seu corpo, carregando-a para a torre e cumprindo todas as ameaças que via estampadas em seus olhos cada vez que o fitava.

   Em vez disso, o conde executou uma rápida mesura e virou-se. Segundos depois ele desaparecia na escuridão do hall, deixando-a com a incômoda sensação de estar sozinha e vazia.

   Restringindo o impulso de chamá-lo, ela girou sobre os calcanhares, pegou uma vela e subiu a escada para a tor­re. Como sempre, Rose já havia providenciado um fogo na lareira de seus aposentos e preparado a cama para a noite. Mesmo assim, embora o quarto fosse aconchegante e quente, a solidão era ainda mais intensa ali, longe de toda e qualquer possibilidade de companhia.

   Soltando os laços do vestido, Marguerite despiu-o, sus­pirando ao sentar-se no banco perto da mesa do lavatório. Um retumbar distante atraiu sua atenção para a janela. Um relâmpago distante cortou o céu. O vento entoava uma canção lúgubre em torno da torre.

   A tempestade ainda estava muito longe sobre o mar, e ela não se sentia ameaçada.   Ainda não. Sabia que a torre se mantivera erguida e forte por muitos anos, en­frentando muitas tempestades. Essa seria apenas mais uma.

   Mesmo assim, sentia-se inquieta, nervosa. Tinha de descobrir qual era seu lugar, porque era claro que não poderia permanecer ali em Norwyck, no castelo de Bar­tholomew Holton, por muito mais tempo. Marguerite levantou-se e percorreu toda a distância do aposento por duas ou três vezes, ida e volta. Tentara lembrar alguma coisa, fizera um enorme esforço nesse sentido, mas tudo que conseguira fora aumentar sua frustração.

   Os rostos das crianças louras ainda surgiam em sua mente com frequência, mas nunca por um período de tem­po que permitisse distinguir seus traços ou recordar seus nomes.   Uma delas, uma menina pequena, era... era...

   Um nome emergiu em sua mente. Cosette! O nome da menor era Cosette!

   Marguerite sentou-se no banco do lavatório e levou a mão ao peito, como se assim pudesse controlar as batidas frenéticas do coração. Estava certa, então. Cosette era um nome de origem francesa, sinal de que devia mesmo viver na França. Era isso! Estivera viajando da França para a Inglaterra quando o navio naufragara e ela quase morrera.     Havia estado com um homem de cabelos claros chamado... chamado...

   Ela deixou escapar um suspiro frustrado. Por que não conseguia lembrar mais nada?

   Concentrou-se em Cosette. Invocando o rosto da menina com facilidade, ela pôde ver seu sorriso alegre e des­cuidado. Podia praticamente ouvir sua voz cantando uma simples e doce canção francesa.

   Mas, além dessas lembranças, não havia mais nada.

   Marguerite não sabia há quanto tempo se esforçava para recuperar suas recordações, mas eventualmente lim­pou as lágrimas frustradas e virou-se para o pequeno es­pelho sobre o lavatório. Removendo os pentes dos cabelos, balançou a cabeça de forma a soltar as madeixas que caí­ram sobre seus ombros e pelas costas.

   Era inútil continuar pensando em Cosette ou no ho­mem com quem viajara a bordo do navio naufragado. Não havia nenhum meio de forçar as lembranças. Deus sabia que tentara muitas vezes, sempre sem nenhum resultado. Usando uma escova, começou a desembaraçar os cabelos enquanto conduzia os pensamentos em outra direção.

   Pensou em mestre Symon, em sua condição lamentável e na ameaça que pairava sobre sua família. Esperava que ele se recuperasse bem da fratura na perna e que pudesse retornar ao tra...

   Um som a assustou e ela derrubou a escova. Quando se virou, viu que Bartholomew estava parado na porta, envolto em sombras.

   Ele não disse nada, mas caminhou em sua direção, os passos lentos e deliberados, os olhos fixos nos dela.

   Com gentileza surpreendente, o conde tocou seu ombro, virou-a para o espelho e, abaixando-se, recolheu a escova do chão. Depois começou a escovar seus cabelos. A sen­sação era gloriosa, e Marguerite fechou os olhos e inclinou a cabeça para a frente de forma a facilitar o acesso. Depois de cada escovada, os dedos de Bart seguiam pelo mesmo caminho afagando seus cabelos, desde o alto da cabeça até a nuca, e a carícia tornava-se mais ousada a cada repetição.

   Ele inseriu uma das mãos sob sua camisa e empurrou-a até removê-la de seu ombro, deixando-o nu e exposto ao seu toque, aos seus beijos.

 

   Marguerite abriu os olhos ao sentir o contato dos lábios quentes com sua pele. Ao olhar para o espelho, viu seu reflexo junto do de Bartholomew. Ele ergueu a cabeça nesse instante e os olhos se encontraram através do espelho. Uma das mãos empur­rava a camisa para baixo do outro ombro.

   O tecido escorregou enquanto os dois se mantinham ali parados, fascinados pela imagem.

   Apenas a porção superior da curva dos seios podia ser vista, e embora soubesse que não devia permitir que ele a tocasse daquela maneira, ou que a visse descomposta, Marguerite não tinha forças para detê-lo. Os dedos massageavam seus ombros espalhando deliciosas ondas de calor que faziam derreter sua resistência.

   Ela inclinou a cabeça para trás e sentiu os polegares exercendo pressão sobre sua coluna, enquanto as mãos comprimiam os músculos dos ombros nus e das costas. Bartholomew ia executando aquele estranho encanta­mento, arrancando de seu peito gemidos de prazer.

   As mãos foram descendo e se apoderaram de seus seios, abaixando a camisa além do limite da decência. — Você é linda — ele sussurrou. Marguerite engoliu em seco, observando o reflexo do espelho. Os olhos do conde deixaram os dela e acariciaram seus seios nus revelando um desejo contagiante e, ao mes­mo tempo, assustador. As mãos os sustentavam com re­verência. De repente os dedos começaram a acariciar os mamilos túrgidos, e ela prendeu o ar nos pulmões, temen­do explodir de prazer.

   Um trovão explodiu muito mais próximo do castelo, mas nenhum dos dois deu importância ao som. Bartholomew beijava seus ombros, passando daí ao pescoço. Marguerite estremeceu ao ouvi-lo gemer. A cabeça pen­deu para trás mais uma vez e ela fechou os olhos.

— Tão macia...

   De repente os braços estavam em suas costas e sob seus joelhos, tirando-a do banco, levando-a para a cama. Enquanto a transportava, o conde apoderou-se de sua bo­ca num beijo ardente.

   Com gentileza inesperada, ele a colocou sobre a cama. Desesperada por seu toque, Marguerite abriu os braços, mas Bart esquivou-se? mudando de posição para puxar as cobertas até seu queixo.

— Durma bem, minha lady — ele disse, deslizando um dedo por seu rosto até tocar a região sensível sob um olho. — Quando voltar a sua cama, quero encontrá-la descan­sada. Exigirei muito de você.

   A tempestade continuou por toda a noite e até o início da manhã, mas não foi esse o motivo do sono agitado de Marguerite. Bartholomew era a causa.

   O efeito do conde sobre seu organismo era poderoso.

   O quarto estava gelado quando ela deixou a cama. Co­brindo os ombros com xale, ela foi alimentar o fogo antes de vestir-se para iniciar mais um dia. Ainda chovia, e o dia era cinzento e feio. No entanto, quando olhou pela janela e viu Bartholomew no campo de prática, foi como se toda a paisagem se alterasse num toque de mágica.

   Ele era o mais alto dentre os homens do grupo, e cer­tamente o mais forte, embora soubesse que aquelas mãos e aqueles braços também podiam ser gentis. Uma onda de calor invadiu seu rosto quando ela lembrou como havia sido beijada pelo conde, como ele a tocara e sussurrara em sue ouvido antes de colocã-la na cama.

   Nada disso devia ter acontecido, mas era impotente contra os avanços de Bartholomew Holton. Além da in­crível atração existente entre eles, a consideração, a ad­miração e o respeito por ele cresciam na medida em que ia ouvindo mais coisas sobre seu comportamento. A ca­maradagem com seus cavaleiros, a preocupação com mes­tre Symon e outros operários feridos, o profundo amor pelos irmãos mais novos, todas essas coisas só a atraíam mais e mais.

   Quando à desconfiança demonstrada pelo conde, Marguerite era capaz de entendê-la, agora que sabia sobre a traição de sua finada esposa. Nenhum homem confiaria facilmente em outra mulher depois de ter sido vítima de um golpe como o que havia sido desferido por Felícia. Apesar de todo o tamanho e poder, ele era apenas um ser humano, alguém vulnerável à dor imposta por aqueles a quem amava.

   Quando Bartholomew deixou o campo, Marguerite afastou-se da janela, Ela se lavou e vestiu, e mais tarde seguiu para o salão. Só alguns criados estavam por lá, e a mesa central estava vazia, com exceção de alguns can­delabros. Devia ser tarde.

— Viu lady Eleanor? — ela perguntou a Rose, a serva que varria as cinzas da lareira.

— Não, minha senhora — a mulher respondeu. — Não vejo ninguém da família há algum tempo... exceto lady Kathryn. Ela foi por ali.

   Seguindo a direção apontada pela criada, Marguerite atravessou o salão e entrou em um corredor escuro. Ali havia vários aposentos, a julgar pelo grande número de portas fechadas. Ela parou e ouviu, sem saber ao certo se queria realmente encontrar Kathryn. A menina era sempre muito mal-humorada, e jamais havia demonstra­do qualquer interesse em sua amizade.

   Mesmo assim, Kathryn devia estar com Eleanor, e ha­via prometido a Bartholomew que cuidaria da caçula dos Holton.

   Quieta, Marguerite ouviu os sons abafados e distantes de uma melodia. Bem, não era exatamente uma melodia, porque as notas eram dissonantes e desagradáveis. Mas o som era tirado de um instrumento musical, uma gui­tarra, se não estava enganada.

   Curiosa, percorreu o corredor com os ouvidos aguçados, seguindo os sons até identificar o lugar de onde brotavam. Sem fazer ruído, abriu a porta para uma câmara com muitas janelas, um espaço impressionante onde Kathryn se concentrava completamente na guitarra em suas mãos. Sentada ao lado de uma das janelas, ela tocava compe­netrada.

   Hesitante, tocava várias notas sem seguir a escala, ma­nejando as cordas sem extrair delas qualquer coisa que pudesse ser chamada de música.

   Marguerite voltou ao corredor e bateu na porta, depois entrou. Kathryn levantou a cabeça, claramente embara­çada por ter sido surpreendida tocando a guitarra que fora de sua mãe.

— Bom dia, Kathryn. Estou procurando por Eleanor. Sabe onde ela está?

— Eu... não. — A jovem deixou a guitarra de lado e afastou-se dela.

   Marguerite olhou para o instrumento e para a menina. Sabia que, se não estivesse parada na porta, ela já teria saído do aposento correndo.

— Há uma lira no baú do quarto da torre — comentou. — Sua mãe também a tocava?

   Kathryn mantinha os olhos baixos.

— Ela tocava qualquer coisa com cordas.

— Ah, então era uma mulher talentosa. — Marguerite deu alguns passos para o interior do aposento. — Gostaria de saber mais sobre sua mãe.

   A jovem olhou para ela por alguns instantes, depois desviou o olhar e voltou ao assento próximo da janela.

— Não há muito a dizer. Ela morreu um ano antes de meu pai, e...

— E? — Marguerite incentivou-a.

— E ela havia começado a me ensinar a tocar quando...quando adoeceu.

   Não sabia o que esperava conseguir com seu compor­tamento, mas aproximou-se ainda mais e disse:

— Conte-me mais sobre sua mãe. Ela cantava? Kathryn engoliu em seco.

— Sim — respondeu com um fio de voz. Depois enca­rou-a desafiante. — Nunca ouvi ninguém tocar tão bem ou cantar com voz tão doce.

   Era melhor ignorar o insulto velado. Tomaria as pala­vras da menina pelo que eram, uma expressão da dor causada pela perda da mãe. Podia imaginar como a vida havia sido difícil para Kathryn depois da morte de lady Norwyck. Na época, seus dois irmãos mais velhos luta­vam na Escócia, outros dois, também maiores, ainda eram apenas   adolescentes, e a única irmã era um bebê. Era bem provável que o pai nem houvesse percebido a exten­são de sua dor.

— Fale-me sobre ela — insistiu, sentando-se na cadeira mais próxima daquela que Kathryn ocupara ao lado da janela. — Imagino que sua mãe tenha sido uma mulher muito bela.

— Ela era linda! — A jovem voltou ao seu lugar. En­quanto falava, pegou a guitarra e, distraída, tocou as cor­das do instrumento. — E ela me deixava acompanhá-la a todos os lugares. Eu estava presente quando mamãe planejava as refeições com o cozinheiro, quando ela dava ordens para que os suprimentos fossem providenciados...

   Enquanto lembrava da mãe, Kathryn assumiu uma ex­pressão distante e sonhadora, e Marguerite imaginou se havia sido correto encorajá-la a invocar lembranças tão tristes.

   Não havia nada a fazer se não ouvir, e ela deu à menina total atenção. Pensar em possuir recordações tão doloro­sas a amedrontava. E se eventualmente descobrisse que havia perdido o marido no naufrágio do navio? E se aque­las crianças fossem de fato seus filhos? Onde estariam agora? Poderia vê-los novamente?

   Caitir Armstrong. O nome brotou em sua mente en­quanto Kathryn falava, mas Marguerite não encontrou significado para ele. Por que conheceria uma mulher do clã Armstrong? E por que seu nome haveria de surgir em seus pensamentos de maneira tão repentina?

— ...e ela prometeu... que me ensinaria a tocar sua guitarra — a menina concluía. — Isso foi antes... de ma­mãe morrer.

   Marguerite piscou várias vezes para superar o estra­nho torpor e prestar atenção à jovem diante dela, o ser humano que precisava de sua atenção com desespero.

— Bem... receio não ter o mesmo talento com que sua mãe foi abençoada, mas ficaria honrada se quisesse aprender comigo.

   Quando Kathryn não respondeu, Marguerite ajoelhou-se diante dela e guiou seus dedos para que eles se posi­cionassem sobre as cordas certas.

— Agora, pressione-as — disse. A menina seguiu a orientação.

— Deslize os dedos da mão direita sobre as cordas. Kathryn obedeceu, e um som harmonioso emanou do instrumento. Marguerite deu novas instruções sobre o po­sicionamento dos dedos, e Kathryn seguiu todas as orien­tações como uma boa aprendiz. Algum tempo depois, ela já conseguia tocar uma canção simples e curta.

   Kathryn evitava fitá-la, e Marguerite sentiu que o or­gulho da criança seria o obstáculo mais difícil de ser su­perado no relacionamento com ela. Seria melhor agir com calma e sem pressa.

— Você aprende depressa — elogiou-a, levantando-se para sair. Estava certa de que havia um limite para a tolerância de Kathryn, e não queria correr o risco de ul­trapassá-lo, — Sua mãe teria ficado orgulhosa de você.

   Ela não respondeu, mantendo os olhos baixos enquanto continuava praticando o que acabara de aprender. Mar­guerite seguiu para a porta.

— Tome cuidado para não machucar a ponta dos dedos. Vai levar algum tempo até que eles se acostumem com a pressão exercida sobre as cordas.

   Notando que ela não dava nenhum sinal sequer de ter ouvido suas palavras, Marguerite deixou o aposento e fe­chou a porta. Assim que pisou no corredor, Eleanor a viu e escapou de Ada, a babá, como um animalzinho de estimação superdesenvolvido. A pobre babá não sabia o que fazer com a criança de espírito determinado.

— Lady Marguerite! — a menina chamou-a. — Estive procurando por você em todos os cantos do castelo!

   Bart lavou o barro do corpo e vestiu uma túnica limpa. Não conseguia parar de pensar em Marguerite dando ins­truções a Kathryn sobre como tocar a guitarra.

   Era difícil de acreditar que alguém conseguira chegar tão perto de sua irmã. Kathryn se mostrara rabugenta e difícil desde seu retorno da Escócia, e nem ele mesmo sabia como lidar com seu humor oscilante. Sua única es­perança era casá-la em breve.

   Acabara de ver as duas juntas em seu estúdio pouco antes, mas permanecera quieto, preferindo observá-las sem ser notado. Ainda estava espantado.

   Marguerite era uma mulher incomum. Não conseguia imaginar Felícia ou qualquer outra dama dedicando tem­po e paciência ao convívio com Kathryn, uma criatura de temperamento enfadonho, nem julgara a esposa particu­larmente tolerante com seus outros irmãos.

   E ela nunca recebera seu toque com o entusiasmo de­monstrado por Marguerite na noite anterior.

   Pensando na resposta de Marguerite, Bart sentiu o cor­po reagir exatamente como quando a tocara. Seu sangue queimava por ela. A carne ardia. Nem todo o exercício físico no campo de prática havia sido suficiente para apa­gar a imagem do olhar sensual enquanto havia acariciado seus seios nus, e essa lembrança o atormentava.

   Nenhuma mulher jamais olhara para ele daquele jeito.

   Enquanto amarrava os cordões da túnica, jurou nunca mais deixar-se cegar pela luxúria, como acontecera com Felícia. Marguerite era linda e passional, e eventualmente a levaria para a cama. Mas nunca confiaria nela, nem ofereceria àquela mulher qualquer coisa além de prazer.

   E quando ela soubesse de onde viera, se é que já não sabia, mandaria a hóspede embora sem arrependimentos ou lamentos, sem cobranças ou ressentimentos. Tinha de ser assim.

   Até lá, enviaria cartas a vários lordes vizinhos e ten­taria encontrar um lugar onde Henry pudesse ser treina­do. O rapaz havia passado um pouco da idade de começar a aprender, mas conhecia alguns homens cujas proprie­dades não ficavam muito distantes dali, senhores que po­deriam aceitar um garoto da idade de Henry. Confortável nas roupas limpas, o conde deixou o quarto e seguiu para o salão.

   Eleanor estava lá com Marguerite, e as duas disputa­vam um jogo tolo com um barbante e se mantinham sen­tadas no chão ao lado da lareira.

— Bartie! — a criança exclamou ao vê-lo.

   Ele atravessou o salão e juntou-se a elas. Marguerite mantinha os olhos no barbante, que de alguma forma se enroscava nos dedos de Eleanor formando um desenho complicado. Depois de pensar um pouco, ela usou as duas mãos para transferir o fio dos dedos da menina para os dela.

   Só então levantou a cabeça para fitá-lo.

— Veja só o que lady Marguerite me ensinou!

— Estou vendo — o conde respondeu para a irmã. — E como lady Marguerite conseguiu se lembrar de uma brincadeira tão complexa?

   A mulher encolheu os ombros, como se quisesse indicar que suas palavras não a afetavam, mas os lábios aperta­dos sugeriam o contrário.

   Seria melhor manter os comentários cáusticos para si mesmo. Afinal, se queria seduzi-la, não podia atacá-la, nem mesmo verbalmente. Por que se importava com sua ausência de memória, com quem era e o lugar de onde vinha, ou com a possibilidade de ela estar ocultando in­formações intencionalmente?

— Bartie, não sei como ela se lembrou e nem quero saber — Eleanor protestou. — Esta é uma ótima diversão para os dias de chuva.

   Tinha de concordar com a irmã.

— É, parece ser bem divertido.

— Meu lorde, tem alguma notícia de mestre Alrick e mestre Symon? Sabe se eles estão melhores esta manhã? — perguntou Marguerite.

— Visitei Alrick ao romper da aurora. — O conde ba­lançou a cabeça com desânimo. — Ele não está melhor do que ontem.

   Uma expressão confusa dominou os traços de Mar­guerite.

— E mestre Symon?

— Está acordado e gritando de dor, mas pelo menos recuperou a consciência.

— Anne está mais calma?

— Não. A pobre mulher continua aflita e chorando, mas os vizinhos se uniram para ajudá-la.

   Marguerite assentiu. O movimento fez com que uma mecha de cabelos escorregasse para a frente do ombro. Bart lembrou-se de como havia sido maravilhoso afagá-los. E ela reagira intensamente à carícia singela, uma informação que guardara com cuidado a fim de torná-la ainda mais suscetível quando finalmente a tivesse em sua cama.

   Marguerite vestia um vestido azul e simples que es­condia seus atributos mais tentadores, mas fazia seus olhos brilharem como a cor do céu numa manhã de prima­vera. Sentia os dedos ardendo com a ânsia de desfazer aqueles laços e sentir novamente o peso de seus seios, como fizera na noite anterior.

   Os mamilos se haviam enrijecido tão rapidamente! O ar morno de sua respiração ofegante fora um poderoso afrodisíaco. Fora com grande dificuldade que deixara o aposento da torre e descera a escada, porque o corpo cla­mara por ficar e juntar-se ao dela na cama. Podia bem imaginar como ela responderia quando a tocasse com maior intimidade, quando seus corpos se juntassem em um só.

   Marguerite continuou brincando com Eleanor, e Bart notou que seus olhos pareciam distraídos, distantes. Es­taria ela entregue aos mesmos pensamentos que o ator­mentaram durante toda a noite? As idéias que o perse­guiram e torturaram naquela manhã?

— Bart! — Henry chamou-o ao entrar no salão. — Es­tava procurando por você.

— É mesmo? — O conde olhou para o mais sério de seus irmãos.

— Podemos conversar? Em seu estúdio? — ele acres­centou, lançando um olhar significativo para a irmã ca­çula e para lady Marguerite.

— É claro que sim. — Relutante, Bartholomew afas­tou-se da mais tentadora visão de Norwyck. Sabia que a imagem em seda azul o acompanharia até que a visse novamente.

 

   Finalmente começara a ver. Imagens de al­guma vida passada desfilavam por sua mente durante todo o dia, mas a realidade invadia seu mundo cada vez que estava prestes a lembrar.

   Seria necessário deixar o castelo e todos que nele ha­bitavam a fim de concentrar-se o bastante para recuperar suas lembranças. Precisava de um lugar quieto onde não fosse interrompida.

   Marguerite sentia que, se fosse até a praia, a visão do mar poderia estimular as recordações. Mas, se deixasse a proteção das muralhas novamente, Bartholomew teria motivos para acusá-la de tentar fugir.

   Não tinha escolha se não informá-lo sobre suas inten­ções. Foi procurá-lo no estúdio, mas não o encontrou e seguiu buscando o conde em vários outros aposentos sem sucesso. Talvez ele houvesse saído. Contando com essa possibilidade, seguiu para o estábulo. Em vez de Bartho­lomew, ela encontrou sir Walter.

— Gostaria de caminhar um pouco — disse sem ro­deios. — Mas não consigo encontrar lorde Norwyck, e sei que ele não aprovaria se eu deixasse o castelo sem uma companhia.

— Tem razão, ele não aprovaria.

— Bem, estava imaginando... Quero dizer, tinha espe­ranças de... Sir Walter, preciso me afastar do castelo por algum tempo. Sinto que poderei lembrar... alguma coisa se sair daqui e afastar-me de todos, se for olhar o mar.

— O mar? Onde lorde Norwyck a encontrou, você quer dizer?

— Exatamente.

— Eu a levarei até aquela parte da praia, minha lady — Walter decidiu. — Se puder esperar até que eu troque algumas palavras com o responsável pelo estábulo...

— Não, sir Walter, não se incomode comigo. Se puder indicar um cavalariço para acompanhar-me, estou certa de que...

— Por favor, minha senhora — o velho cavaleiro a in­terrompeu. — Seria uma honra acompanhá-la e zelar por sua segurança.

   Marguerite não queria causar problemas e dar traba­lho para um membro tão importante da brigada de lorde Norwyck, mas se essa era a única maneira de escapar do confinamento no castelo, então esperaria por ele. Tinha a sensação de que todas as lembranças voltariam assim que pudesse ver a água e sentir o cheiro do mar, talvez sentir o frio e a umidade em sua pele. Não, não pretendia mergulhar no oceano, mas sabia que a proximidade, o contato com o ar da praia, a ajudariam a lembrar.

   Sir Walter retornou do galpão usando pesado manto.

— Está pronta, minha lady?

— Se tem certeza de que não vou afastá-lo de coisas mais importantes...

— E evidente que não.

— Nesse caso, aprecio sua companhia.

— Eu sei disso, minha lady. Posso ver toda a apreciação em seus adoráveis olhos — respondeu o cavaleiro de cabelos grisalhos. — E imagino como deve estar perturbada com sua perda de memória.

   Marguerite corou ao ouvir o elogio e sentiu-se surpresa por ele ter compreendido a dificuldade de sua situação. Aceitando o braço do cavaleiro, ela caminhou até um ve­lho portão enferrujado que, presumia, os levaria ao mar.

— Não, minha lady — Walter anunciou rindo. — De­vemos contornar esta área do castelo e alcançarmos o por­tão principal para a praia. Este está fechado pela ferru­gem há muitos anos.

— Ah, se lorde Norwyck fosse compreensivo e prestativo como você, sir Walter! Nós nos daríamos muito melhor. O homem riu.

— Nosso Bartholomew não tem tido uma vida muito fácil desde que retornou da guerra.

— Ouvi algumas informações de Eleanor, mas ela nun­ca me contou a história completa.

— Ninguém de nós a conhece — Walter revelou, se­guindo em frente pelo caminho acidentado. Ele a ampa­rava sempre que o solo se tornava mais difícil. — Nunca confiei em Felícia. Desde o dia em que ela chegou em Norwyck, senti que ela não era digna de confiança. Mas o pai de Bart insistiu no noivado. A moça trazia com ela uma bela propriedade, e como Bart era o segundo filho...

— Entendo. Propriedades são sempre importantes nes­sas circunstâncias.

— Exatamente. Pois bem, eles estavam casados havia meio ano quando Bart e Will foram convocados pelo rei para se juntarem às suas forças na Escócia. Tenho certeza de que o conde esperava que a esposa estivesse grávida por ocasião de sua partida, mas não foi isso que aconteceu.

   Surpresa com a própria reação à idéia de outra mulher gerando um filho de Bartholomew, Marguerite guardou os pensamentos para si mesma, deixando que o cavaleiro prosseguisse com o interessante relato.

— A companhia de Will foi a primeira a chegar, embora Bart o tivesse seguido de perto e aparecido por aqui pou­cos dias depois do irmão. O jovem estava ansioso para voltar aos braços de sua Felícia.

— Eleanor contou que Felícia atraiu William para fora do castelo e que Armstrong o matou.

— Bem, sabemos que houve uma armadilha. E também sabemos que foi Felícia quem atraiu Will para o outeiro onde ele foi morto por uma flecha de Armstrong. Mas não sabíamos que ela havia tido um importante papel nessa armadilha. Só descobrimos tudo quando ela já agonizava no leito do parto. Muitas verdades foram reveladas na­quele dia.

— Oh... — Marguerite murmurou.

— É isso mesmo. Imagino que já tenha ouvido alguma coisa sobre o verdadeiro pai daquela criança. O bebê não era filho de Bart.

— Sim, eu sei.

— A parteira afirmou que o bebê havia nascido no tem­po certo — ele continuou. — No entanto, Felícia deu à luz apenas seis meses depois de Bart ter retornado da Escócia. A criança nasceu morta.

   Marguerite permaneceu em silêncio. A magnitude da traição de Felícia era espantosa, e ela não conseguia nem imaginar o que Bart havia sentido.

— Foi o filho de Armstrong, Dúghlas, quem plantou a semente daquele bebê no ventre de Felícia — Walter re­velou. — Para tornar a traição completa.

   Dúghlas Armstrong. Quem era ele? Alguém que conhe­cia? Quem quer que fosse, Marguerite sabia que só um homem vil e inescrupuloso seduziria a esposa de outro homem. Só um covarde atrairia o irmão de um homem para um lugar onde ele pudesse ser encurralado e morto.

— Aqui estamos, minha lady — Walter abriu os braços. — Vou me sentar aqui, nesta rocha, e manter meus olhos bem abertos enquanto você caminha pela praia.

— Obrigada, sir Walter — ela respondeu com um sor­riso pálido. — Não irei muito longe.

— Tome cuidado com as ondas. E mantenha o manto bem fechado sobre o peito. A tempestade ainda não se afastou muito daqui. É bem provável que tenhamos mais chuva.

   Marguerite assentiu e desceu a encosta até a orla do mar. As ondas eram fortes, e ela se manteve longe delas, parando de tempos em tempos para fechar os olhos e en­cher os pulmões com o ar salgado. O vento castigava seu corpo e fazia dançar as pontas do manto.

   Caitir Armstrong. Que relação ela poderia ter com os inimigos de Bartholomew, os Armstrong? Certamente, o fato desse nome ser familiar não era uma simples coincidência. Quem era Caitir?

   E por que o nome Armstrong parecia fazer vibrar cor­das tão familiares em seu ser? Conhecia Lachann... e Dúghlas? Seria possível que houvesse conhecido homens tão desprezíveis e não se lembrasse deles?

   Ela se virou e caminhou pela praia, mantendo-se na linha de visão de Walter enquanto seguia para o sul. A violência das ondas era familiar, assustadora. Teria sido assim quando seu navio naufragara? Frio e chuvoso, com ondas poderosas ameaçando tudo e todos?

   Ela parou e fechou os olhos, tentando recapturar as lembranças, por mais dolorosas que fossem.

   A visão de uma lanterna balançando invadiu sua men­te Estava pendurada no convés do navio, que era sacu­dido pela tempestade. Raios cortavam o céu escuro e tro­vões pareciam chacoalhar a terra, e Marguerite podia qua­se experimentar a sensação de estar caindo. O ferimento em sua perna doía com a recordação.

   Havia homens em todas as partes, jogando cordas, amarrando-as à balaustrada. Mas nada podia evitar que o navio afundasse.

   Um homem chamou-a.

— Marie!

— Alain! — ela respondeu. — Je ne peux plus m'acerocher!

   Alain. Era esse o nome do homem, e ela o chamara em francês. Seria ele... Teria realmente um marido, embora o coração e a alma estivessem repletos com Bartholomew?   Chocada com a admissão dos sentimentos pelo conde, Marguerite balançou a cabeça e voltou a caminhar. Tinha de lembrar mais do que aquilo. Talvez, se pensasse nas crianças, em Cosette, pudesse provocar novas recordações. Invocando o rosto da menina de cachos dourados, tentou pensar em tudo que dissesse respeito a ela.

   Era pequena... não tinha mais do que dois ou três anos de idade, com brilhantes caracóis louros e sardas sobre o nariz. Era uma criança feliz, ela pensou, porque sempre a via sorrindo. E ela...

   Marie. Marguerite parou tomada por um frio súbito. O homem, Alain, a chamara de Marie. Ela engoliu em seco. Era esse seu nome? Seria uma mulher francesa que... Genevieve. Gaspar.

   Os nomes iam surgindo um após o outro, rapidamente, causando uma tontura que quase a levou ao chão. Recuperando-se com algum esforço, ela seguiu em frente, sem dar importância às ondas gigantescas e ao vento.

   Cinco pessoas, nomes familiares, embora distantes, dançavam uma espécie de ciranda em sua memória. Mar­guerite tentava dar significado às imagens. Era evidente que essas pessoas eram importantes em sua vida, ou não teria lembrado seus nomes e rostos, As crianças...

— Aonde vai? — A voz ríspida a assustou, Bartholomew segurou seu braço e virou-a para que o encarasse, mas ela estava sem fala.

— Deixou um homem velho e cansado sentado no frio, esperando por você, cuidando de sua segurança enquanto satisfaz um capricho...

— Não é um capricho! — ela protestou, puxando o braço para soltar-se. — Há um propósito em minha saída...

— Encontrar um dos Armstrong?

   Num movimento rápido, ela ergueu a mão para esbo­feteá-lo, mas foi contida antes de desferir o golpe.

— Como ousa insinuar que sou como Felícia?

— Você?

— Sim, eu sei sobre a perfídia, o adultério — ela dis­parou. — Todos falam sobre a esposa que se transformou na prostituta de Norwyck.

   Bartholomew soltou seu pulso como se houvesse sido atingido por um golpe mortal. Estreitando os olhos, talvez houvesse falado, se Marguerite desse a ele uma oportu­nidade.

— Não tenho absolutamente nada em comum com sua finada esposa, Bartholomew — ela disse, erguendo a voz para ser ouvida acima do ruído do vento. — Nem fiz qual­quer coisa que possa ter coagido sir Walter a acompa­nhar-me até aqui. Eu... Eu...

   De repente, ela se virou para esconder as lágrimas que já ardiam em seus olhos. Correndo pela praia na direção sul, enxugou o rosto e seguiu a linha do mar, fazendo um enorme esforço para canalizar os pensamentos e a energia para a recuperação das lembranças.

   Mas era inútil. Sua concentração fora arruinada. Bartholomew a arruinara.

   Bartholomew pressionava a mandíbula com tanta for­ça, que era de espantar que não quebrasse nenhum dente. Enquanto a via correr pela praia, sentia o sangue ferver e a pele arder, apesar do ar frio. Poucas vezes na vida sentira uma fúria tão intensa. E recentemente esse pa­recia ser seu destino, ser afetado pelas mulheres que fa­ziam parte de sua vida.

   Quando ela se tornou apenas um ponto escuro contra o céu turbulento, o conde se virou e iniciou a caminhada de volta ao portão do castelo. Marguerite também era apenas um ponto escuro em sua mente, ele pensava zan­gado, uma mulher que nunca dizia ou fazia aquilo que dela era esperado, conduzindo-o ao erro mais vezes do que desejava contar.

   Teria errado também sobre a presença de sir Walter na praia? Bart odiava admitir que era possível. Se Walter a houvesse surpreendido deixando as muralhas do castelo sozinha, certamente a seguiria, no mínimo, com ou sem o consentimento de sua hóspede.

   Irritado, ele chutou uma concha em seu caminho e con­tinuou andando, mas o forte estrondo de um trovão assustou-o, obrigando-o a parar.

   Ele se virou e olhou para o extremo sul da praia, mas Marguerite já havia contornado a curva do continente e desaparecido de seu campo de visão. O vento soprava mais forte, carregando a areia, fazendo seus olhos lacrimeja­rem, prejudicando a respiração. Logo a tempestade esta­ria sobre eles. Talvez Marguerite também percebesse a aproximação do temporal e fosse buscar abrigo.

   Sem pensar, ele voltou sobre os próprios passos e pas­sou a caminhar com mais velocidade. Já se havia enga­nado sobre ela antes, e era possível que houvesse come­tido outro erro hoje ao julgar suas intenções. Embora não se sentisse mais inclinado do que antes a confiar naquela mulher, não desejava vê-la ferida pela tempestade. Mar­guerite podia ser tragada pelo mar, esmagada por uma árvore em queda, talvez até atingida por um raio...

   Bartholomew corria pela areia fofa seguindo as pega­das já apagadas. Ela não podia ter ido muito longe em tão pouco tempo, o que indicava que poderia alcançá-la antes do início da chuva. Um relâmpago cortou o céu so­bre o mar, e quando o trovão explodiu, Bart conseguiu ver o temporal movendo-se para a praia. Jogando o manto para trás dos ombros, continuou correndo.

   Seguindo a curva do continente, finalmente a viu mui­tos metros adiante de onde estava, ainda correndo. Esta­vam longe das muralhas do castelo, e só a floresta densa e ameaçadora se estendia daquele ponto para o sul. Se ela continuasse caminhando, onde encontraria abrigo?

   O conde diminuiu a distância entre eles quando outro relâmpago iluminou a paisagem, esse mais próximo do que o anterior. Grandes gotas de chuva começaram a cair, e ele soube que em pouco tempo seriam pegos pelo aguaceiro.

— Marguerite! — gritou, tentando erguer a voz acima do estrondo das ondas, e dos trovões.

   Seus passos tornaram-se hesitantes e ela parou, virando-se para encará-lo. Uma infinidade de emoções passou por seu rosto.

— Pare! — ele pediu, esquecendo a raiva por um mo­mento. — Marguerite, pare de correr! Precisamos encon­trar abrigo!

   Ele a alcançou e segurou-a pelo braço, depois levou-a para a floresta que ficava em terreno mais elevado, além da faixa do litoral. Só podia esperar que se mantivessem seguros e relativamente secos ao abrigo das árvores.

   O vento sacudia seus mantos e a chuva caía pesada enquanto corriam por uma área rochosa ocupada por ar­bustos esparsos. Rápidos, logo alcançaram a porção onde as árvores eram mais frondosas, seguindo por um cami­nho demarcado por trepadeiras e vegetação rasteira. Sem­pre segurando a mão de Marguerite, Bartholomew ia pe­netrando na floresta impelido pela esperança de encon­trar um ponto onde as copas das árvores se fechassem de forma a oferecer abrigo.

— Ali! — ele disse.

   Um relâmpago cortou o céu bem perto deles e Mar­guerite gritou assustada. Bart agarrou sua mão com mais força e continuou andando. A pouca luminosidade que poderia haver ali era reduzida pelo efeito da tempestade, dificultando a tarefa de encontrar abrigo adequado. Além do mais, não explorava aquele território há anos, desde que viajara para a Escócia com o rei Edward.

   Ainda pensava nisso, quando tropeçou em alguma coi­sa. Não sabia se o obstáculo era uma raiz, vegetação ou um galho caído, pois as sombras eram mais intensas na­quela região. O vento já não os atingia com a mesma força de antes. Um relâmpago ajudou-o a constatar que esta­vam ao lado das ruínas de uma cabana. Bart empurrou a porta, derrubando-a das dobradiças, e empurrou Mar­guerite para dentro.

— Que lugar é este?

— Não sei... — O conde olhou em volta. — Deve ser a cabana do velho Jakin.

   Apenas uma pequena porção do telhado permanecia intacta, e duas das paredes haviam desmoronado. Mesmo assim, a estrutura restante era suficiente para protegê-los do temporal. Bart levantou a porta e encostou-a no batente apodrecido, esperando que ela se mantivesse er­guida contra o vento.

— Quem é o velho Jakin? — Marguerite perguntou tremendo.

   Bartholomew abriu o manto e, sem removê-lo, agasa­lhou-a com o espesso tecido de lã, promovendo um contato entre os corpos.

— Ele era um velho recluso. Meu pai permitia que ele pescasse e caçasse pequenos animais nesta região.

— Por que ele não ia viver no vilarejo? — ela indagou, os dentes batendo de frio e o corpo todo tremendo.

   Sentiu as mãos dela em sua cintura e soube que a in­tenção do gesto era apenas assegurar equilíbrio e obter um pouco mais de calor.

— Ele não tinha muito juízo — respondeu o conde, lembrando-se vagamente do velho, mas muito mais preo­cupado com a proximidade de Marguerite. Cercando-a com os braços, puxou-a para mais perto ainda. — O homem não tinha família, e passava todo o tempo resmungando, falando sozinho, gritando coisas estranhas. Ninguém o queria por perto.

— Isso é muito triste.

— Suponho que pudesse ter sido, mas ele também não queria a companhia de ninguém.

   Respirando fundo, ele sentiu o cheiro da chuva nos ca­belos dela. Por alguma razão, soubera com antecedência que ela julgaria a história de Jakin muito triste. Marguerite era dona de uma compaixão incomum.

   Um relâmpago iluminou a floresta. O trovão explodiu uma fração de segundo depois, seguido de perto por um estrondo ainda mais violento.

   Bart procurou um recanto mais seguro no interior do que restava da cabana.

— O que foi isso? — ela gemeu.

— O relâmpago deve ter atingido uma árvore perto daqui.

   A excitação ameaçava dominá-lo. Um desejo intenso e incontrolãvel causava um desconforto que era difícil de esconder, levando em conta a posição em que estavam.       Quando ela suspirou, foi como se o destino houvesse pla­nejado aquela última meia hora para levá-los até ali. Sen­tia-se arrependido por suas palavras ríspidas e gostaria de nunca tê-las pronunciado.

   Bartholomew pressionou os lábios contra sua testa e deslizou as mãos pelas costas delicadas. Mal podia vê-la nas sombras da cabana, mas, quando ela inclinou a ca­beça, ele identificou a dúvida e o espanto em seus olhos. Marguerite tremeu e moveu as mãos em sua cintura, co­mo se tentasse tomar uma decisão muito difícil.

   Bart beijou-a e pressionou a pélvis contra a dela, su­primindo um gemido causado pelo prazer intenso do contato. Ouvia a respiração ofegante da mulher em seus bra­ços e prolongou o beijo, tornando-o mais íntimo.

   As paredes pareciam vibrar com a força do temporal, mas Bart não se incomodava com isso. A resposta de Mar­guerite ao beijo era mais forte do que tudo. Entreabrindo os lábios para recebê-lo, ela gemeu baixinho e moveu as mãos para afagar seu peito.

   O contato o enlouqueceu de desejo. O sabor de sua boca o enfeitiçava. O cheiro de sua pele o inflamava.

   Bart começou a mover-se, promovendo uma pálida imi­tação do ato sexual pelo qual estava obcecado. Marguerite imitava os movimentos, a princípio com certa timidez, depois com uma ousadia que o incendiava, reproduzindo cada gesto como se também estivesse dominada pela ne­cessidade incontrolável de tê-lo de maneira completa.

   O conde afastou os lábios dos dela e gemeu, depois olhou em volta procurando por um lugar onde pudesse deitá-la.

   Era inútil. Estavam cercados pela relva molhada, pela terra úmida que os deixaria imundos. Não havia nenhu­ma superfície intacta.

— Marguerite — ele gemeu em agonia.

   Um grito sufocado escapou de seu peito quando, acari­ciando sua cintura, ele tocou a porção inferior de seus seios com os polegares.

— Eu a tomaria agora — Bartholomew confessou com voz rouca.

   O som suave e feminino que foi produzido por sua gar­ganta o fez tremer. Era difícil manter o controle, soltá-la e colocar alguns centímetros de distância entre eles.

— No entanto, este lugar não serve de palco para o desejo de um homem por uma mulher.

   Ela não respondeu. Escapando do abrigo proporcionado por seu manto, cobriu a boca com a ponta dos dedos. De costas para ela, o conde olhou para a tempestade a fim de conter o ímpeto de tomá-la nos braços novamente.

   Ainda chovia, mas o pior do temporal já havia passado. Uma luz nebulosa e esverdeada tingia toda a floresta além das ruínas da cabana, e ele soube que logo poderiam partir.

— Esta noite, minha lady ele anunciou, virando-se para encará-la mais uma vez. Estará esperando por mim em seu aposento na torre. E eu irei me juntar a você para realizar nosso desejo.

 

   O fogo ardia e estalava no aposento do quarto, e Rose havia preparado uma tina de água quente. Depois a criada se retirara e a deixara sozinha para banhar-se.

   Ainda batendo os dentes de frio, Marguerite entrou na tina e encolheu-se sob a água, submergindo até onde per­mitia o espaço limitado. Em poucos momentos, a água quente começou a aquecer seus ossos gelados. Os tremo­res cessaram, mas foram substituídos pelo caos que rei­nava em seu coração...

   Temia estar apaixonada por Bartholomew Holton.

   Não era apenas o efeito de seus beijos que a perturba­va. Também não estava impressionada apenas com o ca­lor de seu toque, embora tais técnicas de persuasão fossem poderosas. Não. Sua honestidade e integridade, a compaixão que nem ele mesmo percebia ter, todas as ca­racterísticas do conde eram fatores a serem levados em conta. Admirava seu desejo de fazer o que era correto para os irmãos e pelas pessoas de Norwyck, mesmo en­quanto ainda sofria com a perda do irmão e com a terrível traição da esposa.

   Quando ele entrasse em seu quarto mais tarde, e não duvidava de sua promessa de ir procurá-la, não teria forças para rejeitá-lo. Sabia que não teria a energia neces­sária para mandá-lo embora.

   Quem quer que fosse Alain, Marguerite estava certa de que não era mulher dele. Não sentia essa ligação na alma, como deveria ser, caso possuísse um marido. Não conseguia imaginar por que ele havia estado a bordo do navio no qual ela também viajara... a menos que os sonhos invocando as imagens do naufrágio fossem apenas isso. Sonhos.

   Rose deixara uma bandeja com seu jantar sobre a mesa do quarto, mas Marguerite não tinha fome. O estômago estava perturbado, resultado da ansiedade gerada pela iminente chegada de Bartholomew. Ele havia deixado cla­ras suas intenções, e não tinha nenhum desejo de desapontá-lo.

   Pelo contrário. Sentia por ele uma atração tão forte quanto a que via refletida em seus olhos.

   Com a cabeça apoiada nos joelhos, deixou-se envolver pelo calor da água. O interlúdio na cabana em ruínas servira para demonstrar como era impotente contra Bar­tholomew, contra sentimentos que cresciam em seu peito despertados pelo conde.

   De repente uma corrente de ar mais frio invadiu o quarto, e ela soube que a porta havia sido aberta. Sem olhar, reconheceu o som dos passos de Bartholomew.

   Marguerite levantou a cabeça a tempo de vê-lo atra­vessando o aposento em sua direção. Bart vestia uma tú­nica negra e meias escuras. Nenhum ornamento embele­zava o traje simples e sóbrio, mas os cabelos e os olhos escuros o tornavam mais atraente do que nunca.

— Já comeu? — ele perguntou.

   Marguerite balançou a cabeça.

— Não, meu lorde. — A voz soava estranha aos seus ouvidos.

   Ele se dirigiu à mesa onde a criada deixara a bandeja e ergueu a tampa que cobria um prato, liberando uma fragrância irresistível. Mas todos os sentidos de Marguerite estavam voltados para a presença máscula em seu quarto. Não tinha nenhum interesse pela comida, porque era ele quem ocupava todos os seus pensamentos.

   Carregando o prato e uma colher, ele se aproximou da banheira e colocou-se de joelhos. Depois encheu a colher com uma porção de comida e aproximou-a de sua boca.   Marguerite aceitou o bocado, confusa com o comporta­mento incomum.

   Bartholomew repetiu o gesto algumas vezes, alimen­tando-a com a sopa saborosa e nutritiva. Seus olhos iam ganhando tons mais escuros e profundos. Uma gota de sopa escorreu por seu queixo, e ele se debruçou sobre a banheira para lamber a mistura do canto de sua boca.

   Um arrepio a sacudiu, e ela viu os músculos do pescoço poderoso enrijecidos pelo ato de engolir em seco.

   Sem dizer nada, Bartholomew retomou o processo de alimentá-la, mantendo os olhos fixos em seus lábios, en­quanto Marguerite acompanhava fascinada os movimen­tos de tensão e relaxamento de vários músculos de seu rosto. Pousando a mão sobre a dele, levou-a à boca, fe­chando os olhos e suspirando de prazer por poder final­mente tocá-lo.

 Um gemido escapou do peito do conde.

— Marguerite, você não tem idéia do que faz comigo — ele murmurou.

— Oh, sim, eu tenho, meu lorde. — A resposta soou tão provocante quanto o olhar lançado em sua direção. — Porque tem o mesmo efeito sobre mim.

   Ele deixou o prato sobre a mesa e pegou uma toalha de linho.

— Levante-se — disse.

   Ela hesitou. Exibir-se totalmente nua diante de Bartholomew era impróprio, indecente e proibido, mas muito excitante. Ele a esperava segurando a toalha aberta. O aposento estava mergulhado nas sombras, com exceção do fogo ardendo na lareira, e um calor confortável domi­nara o ambiente.

   Ela se levantou.

— Por Deus... — O conde sussurrou.

   Marguerite notou que ele era sacudido por um violento tremor.

   Hipnotizada, saiu da banheira para os braços que a esperavam. Ele a envolveu com a toalha e, aproveitando uma rápida inclinação de sua cabeça, beijou-a no pescoço, provocando arrepios que a percorreram dos cabelos até os pés.

   Os braços estavam imobilizados pela toalha, e Bartholomew não se mostrava disposto a soltá-la. Em vez disso, tocava sua pele com a ponta da língua explorando toda a nuca e uma lateral do pescoço, a ponta da orelha e a cavidade interna, lambendo, beijando e acariciando a pele sensível. Podia sentir seu hálito quente e ouvir seus ge­midos roucos.

   As mãos dele também começaram a se mover, afagando os ombros nus e parte do pescoço. Devagar, descendo pela parte da frente do corpo, os dedos a tocavam através do tecido. Marguerite sentiu os mamilos túrgidos e apoiou a cabeça no peito másculo e largo. Como gostaria de poder tocá-lo com liberdade!

— Você é tão macia — ele murmurou. — Tão deliciosa... Agora ele esfregava a toalha sobre sua pele para secá-Ia, desnudando seu corpo centímetro a centímetro. Logo Marguerite sentiu que os braços estavam livres, pois à toalha já havia sido removida até a altura dos quadris. Deslizando os dedos pelo veludo macio da túnica negra, soltou os laços que a mantinham fechada.

   Não sabia se já havia visto o peito de um homem antes, mas estava certa de que nenhum outro poderia competir com Bartholomew. Havia uma fileira de pelos escuros marcando o centro e se espalhando nas duas direções, quase ocultando os mamilos rígidos que ela acariciava com ousadia. Pressionando os lábios contra os músculos firmes, ela se moveu de forma a tocar com a língua os dois pontos de extrema sensibilidade.

   Ele gemeu e agarrou a barra da túnica, tirando-a por sobre a cabeça. De repente seu corpo parecia ainda maior, totalmente despido. O desenho do peito era bem definido, esculpido em músculos sólidos. Seus ombros eram largos e os braços, peludos. Marguerite não teve forças para re­sistir. Não negaria a si mesma o prazer de tocá-lo com a mesma intimidade com que fora acariciada.

   Devagar, traçou o contorno firme de um braço, depois deslizou os dedos pelo abdome firme, notando que ele prendia o fôlego ao ser afagado daquela maneira. Era ex­citante descobrir-se dona de tão grande poder, e estava disposta a tirar vantagem das armas de que dispunha.

   Inclinando a cabeça, foi deixando uma trilha molhada de beijos desde o pescoço até o umbigo.

   Condescendente, Marguerite ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o na boca, recebendo com alegria a invasão da língua e pressionando os seios contra seu peito. Nun­ca seus sentidos haviam estado tão repletos de uma só pessoa.

   Rápido, ele a surpreendeu erguendo-a nos braços. Bartholomew carregou-a para a cama e colocou-a em pé ao lado dela, deixando a toalha cair ao chão. Removendo os pentes que mantinham presos seus cabelos, ele ia beijan­do a ponta da orelha, o pescoço e um lado do rosto.

— Você foi feita para dar prazer a um homem, Marguerite.

   Estava completamente nua, mas o calor do corpo mas­culino a aquecia. Pressionando os dedos contra a metade inferior de suas costas, ela o puxava para mais perto, não em busca de calor, mas desejando experimentar nova­mente as delicadas sensações causadas pelos músculos rígidos contra seus seios.

   Se havia mesmo sido feita para dar prazer a um ho­mem, então ele fora criado para deliciar uma mulher. Mas nunca faria tal comentário em voz alta.

   Depois de espalhar seus cabelos sobre os ombros e as costas, ele a encarou e pediu:

— Beije-me.

   Marguerite atendeu ao pedido sem nenhuma hesitação, provocando-o com a língua, mordendo seus lábios, desli­zando os dedos contra a pele nua das costas largas. Sentia os movimentos com que ele removia a meia de tecido gros­so e colante, desnudando a metade inferior do corpo.

Então ele a deitou sobre a cama, acomodou-se sobre seu corpo e entrelaçou as pernas nas suas.

— Quero sentir que está se abrindo para mim — sus­surrou, depositando beijos sensuais e eróticos em seu pes­coço, nos seios e no ventre, depois abaixo dele, em uma região onde nenhuma mulher tinha o direito de ser bei­jada, despertando sensações que ela jamais imaginara po­der sentir. Agarrando suas mãos, o conde levou-a acima da cabeça e encarou-a, queimando-a com a promessa se­xual contida em seus olhos.

   Marguerite não conseguia imaginar-se vivendo tão gran­de intimidade com outro homem. Não com Alain. Nem com qualquer outro além de Bartholomew. Só ele tinha o poder de despertá-la, provocá-la, inflamá-la.

   Mais uma vez, o conde abaixou a cabeça, e ela prendeu o fôlego. Se antes sentira calor, agora estava queimando. O prazer crescia a cada contato, cada carícia, e todas as fibras de seu corpo respondiam àquelas mãos. Movia-se contra ele, desesperada para aplacar a fome selvagem que induzia cada movimento.

   Ondas de prazer intenso a percorriam, amenizando a tensão, arrancando de seu peito gritos incontroláveis.

   Bartholomew moveu-se depressa, e antes que seus gri­tos perdessem a força, ele a cobriu com o corpo e posicio­nou-se entre suas pernas. Apoderando-se de sua boca, ele a penetrou com um movimento firme e habilidoso.

   Contendo-se por um instante, buscou os olhos de Mar­guerite, atónito com a barreira que encontrara e vencera.

   Marguerite estava perplexa com o poder das emoções que a invadiam. Não conseguia falar, mas movia os qua­dris devagar, aumentando a estranha e deliciosa pressão dentro dela. Bartholomew murmurou alguma coisa incom­preensível e também se moveu, iniciando uma dança que foi ganhando intensidade e velocidade a cada segundo.

   A tensão aumentava na medida em que ele acelerava o ritmo dos movimentos, e Marguerite sentiu que logo explodiria novamente em espasmos maravilhosos. Não conseguia desviar os olhos dos dele. As pernas o enlaça­vam e forçavam um contato ainda maior entre os corpos.

   De repente, ela teve de fechar os olhos para não enlou­quecer sob a força das sensações que brotavam em seu peito. O corpo de Bartholomew sofreu uma violenta contração, e ele emitiu um grito de prazer que era quase animal.

   Por alguns momentos, permaneceram quietos e ofegan­tes, esperando que os corpos recuperassem a normalida­de. Bartholomew foi o primeiro a mover-se, erguendo a cabeça para encará-la.

   Marguerite sentiu o coração transbordar de amor. A união física não poderia tê-la tocado mais profundamente. De alguma forma, o conde penetrara em sua alma com a mesma facilidade com que ingressara em seu corpo. To­cando seu rosto, traçou uma linha imaginária entre a face e o canto da boca.

   Bartholomew beijou seus dedos, e ela teve medo de ou­vir o coração explodir.

   Não conseguia imaginar amor maior por outro homem. Mesmo que recuperasse a memória e lembrasse o passa­do, jamais deixaria Norwyck. Não suportaria separar-se de Bartholomew.

   Ele se deitou a seu lado, puxando-a sobre o peito. Não disse nada, mas seus olhos tinham uma expressão que ela jamais vira antes. Havia neles um brilho intenso, lu­minoso.

   Saboreando o momento em silêncio, ela acomodou a cabeça sob seu queixo e apoiou uma perna sobre as dele, movendo o pé como se o acariciasse.

   Bartholomew puxou-a para mais perto, obrigando-a a deter o movimento que já o excitava novamente.

   Era maravilhoso saber que agora ele não teria mais motivos para desconfiar dela. Duas pessoas jamais pode­riam compartilhar de tão grande paixão sem que houves­se total confiança e absoluta lealdade entre elas. Ele sa­beria se tentasse enganá-lo.

— Devia ter mencionado seu estado virginal.

   O coração de Marguerite parou de bater. Ele ainda acre­ditava que guardava segredos, que tinha a intenção de enganá-lo. A opinião de lorde Norwyck não mudara.

   Bart a sentiu rígida. Sabia que o comentário ríspido demonstrava falta de confiança, mas não se sentia pre­parado para acreditar na honestidade de Marguerite só porque ela sacrificara a virgindade no altar de seu prazer. Sua esposa havia feito o mesmo na consumação do ma­trimônio, e durante todo o tempo seu coração estivera comprometido com Dúghlas Armstrong.

   Mas Marguerite havia sido inocente no ato de amor. A maneira como reagira às suas carícias fora muito dife­rente da resposta de Felícia.

   Silenciosa, ela escapou de seu abraço e sentou-se, se­gurando o lençol de linho contra o corpo nu. Estendendo um braço para o chão, pegou a toalha de banho e enro­lou-se com ela antes de deixar a cama.

— Você... — Sua voz tremia, os músculos da garganta rígidos numa tentativa aflita de conter o pranto. — Com­preendo que tenha sofrido a mais dura das traições, meu lorde — disse, mantendo os olhos brilhantes em algum ponto acima da cabeça dele.

   Os dedos agarraram o linho da toalha, e ela não se dava conta de que o tecido cobria apenas seus seios. O restante do corpo permanecia exposto, e ela secava dis­traída um traço de umidade que escorria por sua perna. O linho estava manchado de vermelho quando ela con­cluiu a tarefa, mas Marguerite não notou.

   Bart sentia-se como se houvesse recebido um coice vio­lento. Pior, como se a houvesse atingido com um golpe de morte.

— Juro por minha alma, não vim aqui para traí-lo, ou... — Seu rosto era riscado por linhas que se iam tor­nando mais profundas e próximas, e uma lágrima escor­reu pela face direita. — Ou para prejudicar Norwyck de alguma maneira.

   Uma parte tola e ingênua de seu ser exigia que acre­ditasse nela. Seu lado racional recusava-se a ser engana­do novamente. Bartholomew levantou-se da cama.

— Marguerite — disse — nossas diferenças, sejam elas quais forem, não interferem... nisso.

   Uma ruga surgiu entre suas sobrancelhas. Usando dois dedos, ele tocou seu queixo e a fez erguer a cabeça para fitá-lo.

— Aprecio seu toque — disse, deixando a mão deslizar por seu pescoço. — Como você aprecia o meu. — Tomando uma das mãos delicadas, colocou-a sobre seu peito, sufocando um tremor ao ouvi-la gemer baixinho.

   Ouvindo sua respiração instável, beijou-a nos lábios com uma suavidade que só a deixou ainda mais ofegante. Ainda a desejava com desespero. Estivera em seu corpo momentos antes, vertendo sua seiva e sentindo o mais intenso prazer que já havia experimentado, mas precisa­va dela mais uma vez. Beijou-a novamente, e sentiu que seus lábios se entreabriam para recebê-lo.

   Os braços a enlaçaram pela cintura e ele a puxou con­tra o corpo nu, acomodando a ereção entre suas pernas ao levantá-la do chão.

— Eu quero você, Marguerite — disse, levando-a de volta para a cama. — Você é minha.

 

   Um rosto gordo e vermelho iluminado por pequeninos olhos azuis a estudava carrancudo. O homem era quase careca, mas alguns fios ver­melhos se mantinham em pé no alto da cabeça. Veias rosadas e finas traçavam desenhos complexos sobre seu nariz.

— Vai voltar para a Escócia como seu pai ordenou.

— Non!

— Sim, Mairi Armstrong — o homem insistiu amea­çador. Erguendo uma das mãos, ele a esbofeteou com vio­lência. — Você vai. E vai se casar e conhecer um homem no dia seguinte a sua chegada...

   Marguerite gritou e sentou-se na cama, confusa e as­sustada.

   Estava completamente nua e coberta de suor. O cora­ção batia descompassado dentro do peito e a respiração era ofegante. Engolindo o medo, virou-se e viu que estava sozinha na cama. Bartholomew partira.

   Reconhecia o homem em seu sonho. Ele era Carmag MacEwen. Aquele a quem fora prometida.

   Marguerite... Não, seu nome era Mairi, enterrou o rosto entre as mãos e foi tomada de assalto pelas recordações. Carmag fora procurá-la na França meses antes, na casa de Caitir e seu marido, Alain. Ele viajara com o propósito de acompanhá-la até a Escócia onde se casariam. Na épo­ca, Alain conseguira demovê-lo de tal intenção, mas só temporariamente.

   Com o medo e o desespero dominando o coração, even­tualmente deixara o lar que havia dividido com a prima, Caitir, e embarcara no navio para a Escócia, a terra que não via há anos. Alain a acompanhara.

   Alain! O amado de Caitir se afogara!

   Os olhos de Mairi se encheram de lágrimas. Uma onda de náusea subiu por sua garganta. Alain estava morto. Caitir estava viúva. E agora seus filhos não tinham mais pai.     Tudo porque ele a acompanhara na viagem para a Escócia a bordo de um navio que fora surpreendido por uma tempestade.

   O pesar era insuportável. Se houvesse aceito seu des­tino e viajado com Carmag quando ele fora buscá-la, Alain não teria sido forçado a levá-la até a fortaleza de seu pai na Escócia. Estaria em casa com a esposa e os filhos, vivo, não enterrado no fundo do mar.

   Mairi enxugou as lágrimas que molhavam seu rosto e deixou a cama. Sentia-se diferente... Não. Diferente era pouco. Passara por uma mudança drástica, não só por causa das lembranças que conseguira recuperar, mas pelo amor que conhecera nos braços de Bartholomew durante toda a noite. O que sentia por ele era indescritível, apesar de ter ficado claro que ele não correspondia aos seus sen­timentos.

   Para Bartholomew, Mairi era apenas um recipiente de sua luxúria.

   Ela se deixou cair ao lado do baú onde guardava as roupas emprestadas. Não tinha outra alternativa se não ir imediatamente ao encontro do pai, para sua fortaleza, o Castelo Braemar. Teria de encarar Lachann, e seu ir­mão, Dúghlas, sabendo que seus parentes haviam lança­do mão dos meios mais baixos possíveis para ganharem uma guerra contra o inimigo, Bartholomew Holton.

   Seria obrigada a desposar Carmag MacEwen, o mais poderoso aliado de seu pai, o guerreiro rude e repugnante que fazia seu estômago revoltar-se cada vez que pensava no inevitável contato físico.

   Mairi cobriu a boca com dedos tremulos e lutou contra as lágrimas. O que Bartholomew faria quando soubesse a verdade sobre sua identidade? Acreditaria no pior, sem dúvida. Julgaria que durante todo o tempo soubera ser a filha de Lachann Armstrong. Acreditaria que seria capaz de usar o naufrágio do navio e sua estranha recuperação contra ele.

   Não havia nada que pudesse dizer ou fazer para con­vencê-lo do contrário.

   Talvez fosse melhor não dizer nada sobre a recuperação da memória.

   Mairie vestiu uma camisa e enfiou a mão no baú pro­curando por meias de lã. As mãos encontraram algo es­tranho, e ela pegou o pé de meia que continha as jóias esquecidas em seu quarto. Apoiada sobre os calcanhares, deixou escapar um suspiro cansado. Tinha de devolver o tesouro aos aposentos de Bartholomew antes que ele per­cebesse a falta das jóias. O conde certamente a acusaria de roubo assim que descobrisse que era filha de Lachann Armstrong.

   Não conte a ele, aconselhou uma voz fraca no fundo de sua mente.

   Beirando o desespero, Mairi apoiou a cabeça na beirada do baú. Podia deixar de revelar a verdade? Podia perma­necer em Norwyck como lady Marguerite?

   Alain estava morto. E sua teimosia era a maior res­ponsável pela morte do amado de sua prima. Teria pere­cido com ele, mas, graças a um milagre, sobrevivera.

   Que razões teria Lachann para acreditar que ela so­brevivera ao naufrágio? Não. Ele a julgava morta, certa­mente. Havia pouca ou nenhuma comunicação entre Norwyck e os Armstrong, com exceção dos ataques ocasionais, e Mairi duvidava de que os dois senhores trocassem no­tícias sobre suas propriedades.

   E Carmag MacEwen... preferia morrer a casar-se com o bruto. Se ficasse em Norwyck, então...

   A porta do quarto se abriu de repente e Eleanor entrou com seu entusiasmo habitual.

— Esteve dormindo durante todo esse tempo? — ela perguntou espantada. — Há horas que estou esperando por você!

   Mairi removeu a meia com as jóias de dentro do baú e levantou-a de forma a exibi-la para a menina, mas Elea­nor ignorou-a e aproximou-se.

— Bart disse que ontem à noite você não se sentiu bem e que devíamos deixá-la descansar. O que está sentindo, Marguerite? Adoeceu? Seus olhos parecem estranhos.

— Não há nada de errado comigo, Eleanor — respon­deu Mairi, passando as mãos pelos olhos. — Está vendo isto aqui?

— Sim — disse a criança, tomando a meia do baú onde fora deixada segundos antes. — São as jóias de Norwyck.

— Devemos devolvê-las aos aposentos de seu irmão. Hoje. Esta manhã, ouviu bem?

— A manhã está chegando ao fim — Eleanor protestou. — Você dormiu demais, e eu quero ir brincar no vilarejo, mas Ada insiste em dizer que não posso sair!

— Talvez mais tarde, Eleanor. — Depois de escolher um vestido no interior da arca, ela se levantou. — Leve essa meia para o quarto de Bartholomew e coloque as jóias de volta no lugar de onde as tirou. Irei encontrá-la no salão assim que terminar de vestir-me.

— Mas...

— Faça o que estou dizendo, Eleanor — ela insistiu com mais rispidez do que pretendia.

   A menina esticou o lábio inferior, mas foi ignorada. Fingindo não notar a contrariedade na postura da peque­na, Mairi foi lavar o rosto e as mãos no lavatório, despe­jando a água de uma jarra dentro da bacia. Quando ter­minou de enchê-la, Eleanor já havia saído.

— Oh! — A pequena Eleanor assustou-se com a pre­sença do irmão no estúdio, e seu rosto ficou tão vermelho quanto seus cabelos. Ela carregava alguma coisa escon­dida sob a saia e quase derrubou o misterioso volume.

— Oh? — Bartholomew perguntou, levantando-se e contornando a mesa a tempo de agarrá-la antes que se virasse e corresse. A regra que proibia a entrada de crian­ças no estúdio não era nova. Ellie sabia que estava des­respeitando uma norma importante. Bart queria saber o que a levara a ultrapassar um limite tão claro. — O que tem aí? — perguntou, apontando para o estranho volume sob sua saia.

— Eu... não é nada, Bartie!

   Ellie tentou fugir, mas Bartie a segurou com determi­nação. No esforço para escapar, ela acabou derrubando vários objetos que se chocaram contra o chão produzindo um estranho ruído.

— O que é isso? — A curiosidade crescia. Bartholomew abaixou-se e, chocado, viu as jóias que deveriam estar trancadas no armário em seu quarto espalhadas pelo chão, protegidas pela saia de sua irmã. — Eleanor!

   Lágrimas corriam pelo rosto da menina. Ela mordia o lábio e torcia as mãos.

— Eu... vim buscar a chave na sua gaveta...

   A pequena transgressora sabia onde ele guardava a chave do armário?

— Com que propósito? — indagou severo. Ela chorava sem sequer tentar conter-se.

— Para... devolver as jóias... ao lugar onde... onde as encontrei — soluçou.

   Não se deixaria comover pelas lágrimas abundantes.

— E por que as tirou de lá?

— Para dá-las a lady Marguerite! — O choro era cada vez mais abundante e estridente.

— O quê?

   Eleanor assentiu e respirou fundo, fingindo uma ten­tativa de controle que seria digna das grandes atrizes.

— Dei as jóias a ela porque queria convencê-la a ficar em Norwyck. Pensei que assim...

— Deu as jóias de Norwyck a lady Marguerite para persuadi-a a ficar aqui?

   Enquanto movia a cabeça em sentido afirmativo, Elea­nor continuava chorando e soluçando. Bart ignorou-a por um momento, recolhendo todas as preciosas peças que haviam caído no chão. Resgatou todas as jóias, os brace­letes, os broches e os colares que eram usados por todas as senhoras de Norwyck há séculos, e trancou-as no ar­mário de livros. Elas ficariam lá até que pensasse em outro lugar mais seguro.

— Queria que lady Marguerite ficasse impressionada com as jóias, mas ela me obrigou a devolvê-las.

— Já chega, Eleanor. — Impaciente, segurou-a pelos braços tomando o cuidado para não machucá-la. — Quero que vá para seu quarto e fique lá até que eu diga que pode sair.

— Mas, Bartie...

— Não discuta comigo, Eleanor. Você se comportou de maneira tola e irresponsável, e dessa vez sofrerá as con­sequências.

— Mas eu...

— Precisa aprender a ter um pouco mais de juízo, mi­nha jovem dama, e sua primeira lição será permanecer confinada no quarto até que eu dê ordens para deixá-lo. Agora vá.

— Mas...

— E sinta-se grata por eu não mantê-la a pão e água durante todo o tempo do castigo.

   Eleanor virou-se e correu para fora do estúdio, esca­pando por pouco de uma colisão com sir Walter. O velho cavaleiro ergueu uma sobrancelha, mas entrou e começou a falar com tom grave, deixando Bart sem tempo para refletir sobre a atitude da irmã caçula.

   E sobre a reação de Marguerite.

   Bart tivera uma manhã espetacular, e sentia-se dis­posto para passar toda a tarde trabalhando com seus ca­valeiros. Mas à noite... Para aquela noite, seus planos incluíam a mulher mais sensual e quente que já havia conhecido.

   Estava suado e sujo depois dos exercícios no campo de treinamento. Enquanto o velho cavaleiro falava, ele re­moveu o cinturão onde levava sua espada e deixou-o sobre a mesa.

— Já concluí minha investigação sobre o acidente, meu lorde. Tom Darcet deu ordens para que os homens misturassem muita água na argamassa. Isso enfraqueceu a muralha, que acabou desmoronando por essa razão.

   Massageando a nuca, Bart começou a andar de um lado para o outro da sala, entre a janela e a mesa de trabalho. A última em que queria pensar era o desastre com a mu­ralha. Não enquanto a bela Marguerite dormia nua e sa­tisfeita na cama que compartilharam.

— Tem certeza disso? Walter assentiu.

— Edwin Gayte esteve doente por alguns dias antes do acidente, lorde. E Darcet estava no comando. Interro­guei os homens que estavam assentando as pedras. Todos afirmaram que a argamassa estava muito mole e aguada.

— E por que não consertaram a textura da massa? Darcet não passa o tempo todo vigiando seus movimentos. Eles podem bem enganá-lo, se for melhor para todos.

— Eles fizeram o que foi possível enquanto Darcet não estava por perto, senhor.

   Bart teria de dispensar o homem. Não havia outra al­ternativa. Ele já havia cometido muitos erros ao longo dos anos, mas esse fora o pior de todos.

— Tem todo o direito e causas justas para mandá-lo embora, meu lorde — opinou sir Walter. — Seus métodos condenáveis não trouxeram nenhum bem aos senhores de Norwyck nesses últimos anos.

— Mas meu pai o manteve aqui.

— É verdade. Quando sua mãe adoeceu, ele deixou qua­se todos os problemas da propriedade nas mãos de Darcet. Muitas vezes ele foi prevenido sobre a necessidade de to­mar cuidado.

   Bartholomew expeliu o ar com força, resultado da frus­tração que o atormentava. A tarefa seria desagradável, e não estava ansioso por ela.

— Devo dar a notícia a ele, meu lorde?

— Não — respondeu o conde, acomodando-se na cadei­ra confortável diante da mesa.   Não delegaria dever tão desagradável a seu mais leal cavaleiro. — Mande alguém ir chamá-lo, e eu mesmo resolverei o problema. Agora.

— Muito bem, meu lorde — Walter elogiou-o antes de se virar para sair. — A propósito... Lady Marguerite... Como ela está depois de ter sido surpreendida pela tem­pestade?

   Bart encarou o velho amigo e conselheiro.

— Muito bem.

— Lamento se estou falando mais do que devo, meu lorde, mas espero que reconheça que essa dama nada tem em comum com sua falecida esposa.

— Esse é realmente um assunto que não lhe diz res­peito, Walter — Bartholomew respondeu com tom severo.

— Eu sei que não, senhor. Mas depois de ter passado as duas últimas gerações cuidando de sua família e ze­lando pelo bem-estar de todos aqui, gostaria de apontar que lady Marguerite nunca deu motivos para desconfiar dela. Ela tem sido honesta e...

— E Felícia não era? — A pergunta soou cáustica. — Desde o início percebeu sua duplicidade, suas falhas de caráter?

— Não, meu lorde — Walter devolveu com tom calmo. — Não posso dizer que tenha visto tudo com nitidez des­de o início. Mas não confiei nela quando a vi chegar em Norwyck. E sabia que ela estava escondendo alguma coi­sa durante aqueles meses que antecederam sua volta ao castelo.

   Bart levantou-se e caminhou até a janela. As mãos es­tavam unidas às costas.

— Ah, bem, a percepção tardia do que devia ter sido feito não é um total desperdício, meu caro Walter.

— Não, senhor, não é.

   Ao ouvir a porta se fechando, Bart virou-se e soltou o ar que mantivera retido nos pulmões. Era evidente que sir Walter sabia sobre sua ligação com Marguerite e não a aprovava, embora não compreendesse a origem e a cau­sa do interesse do cavaleiro. Não tinha a menor intenção de desposar outra mulher, e Walter sabia disso.

   Henry seria o próximo conde de Norwyck, porque Bart já tivera sua cota de vida conjugal nessa encarnação.

   Mesmo assim, era intrigante considerar a reação de Marguerite diante da questão das jóias. Por que ela não as mantivera em seu poder? Provavelmente, porque es­tava interessada em prêmio muito mais valioso do que um mero punhado de jóias?

   Mairi entrou no salão no mesmo instante em que sir Walter aproximava-se da porta.

— Ah, minha lady — ele disse ao vê-la, inclinando-se em sinal de respeito. — Espero que esteja bem depois de ter sido ensopada pela chuva de ontem.

   Mairi assentiu. Os olhos do cavaleiro eram bondosos, mas astutos. Poderia ele enxergar além de suas mentiras? Saberia de alguma forma que recuperara a memória? Po­deria detectar seu sofrimento?

— Sim, sir Walter, estou muito bem. Teve notícias dos homens feridos na queda da muralha? Mestre Alrick e os outros estão se recuperando? — indagou, esperando que a mudança de assunto o distraísse.

— Nada mudou — ele respondeu, repetindo a mesura respeitosa.

   Ah, mas tudo havia mudado, Mairi pensou. No entanto, ela assentiu e viu o cavaleiro pedir licença para sair.

   Alain estava morto.

   Ela era filha de Lachann Armstrong.

   E teria de se casar com Carmag MacEwen, caso o pai a encontrasse.

   Fechando os olhos, preparou-se para enfrentar a dor que ameaçava devorá-la sempre que pensava em Alain. Não podia demonstrar os sentimentos, ou alguém notaria e estranharia sua inexplicável tristeza. Não, precisava continuar como antes, como se nada houvesse mudado.

   Mairi olhou em volta. Eleanor não estava no salão, o que a levou a pensar em que tipo de travessura ela po­deria estar metida. Caminhando sem pressa, passou pela lareira e seguiu em frente pelo corredor com a intenção de encontrá-la. Talvez a menina estivesse no estúdio de Bartholomew.

   Abrindo a porta do aposento, chamou:

— Eleanor?

   Havia muitos recantos no castelo onde uma criança poderia se esconder, e ela estivera bastante perturbada quando deixara o quarto na torre. Era bem possível que quisesse criar problemas para Mairi, a responsável por sua contrariedade. Mas foi Bartholomew quem emergiu de uma das cadeiras ao lado do fogo.

   Ele se levantou e foi recebê-la na porta.

   Vê-lo era o suficiente para ficar com a boca seca. Ele vestia uma camisa simples de linho presa à cintura por uma tira de couro. Uma fina camada de suor cobria seu rosto, e havia manchas de barro em suas roupas. Bar­tholomew parecia ainda maior e mais poderoso, e era im­possível decifrar sua expressão.

   Sem dizer nada, o conde a enlaçou pela cintura e ti­rou-a do chão, cobrindo sua boca com a dele.

   Foi um beijo voraz, como se não houvessem passado a maior parte da noite juntos.   Lábios, dentes e língua a dominavam, provocando e excitando. Seu cheiro a envol­via. Os braços a estreitavam.

   Quando Bart finalmente encerrou o beijo, outros cobri­ram seu rosto e pescoço. Mairi protestou ofegante.

— Meu lorde, isso é inadmissível! Eu...

— Quero você, Marguerite — ele murmurou. — Sem­pre. Em qualquer lugar — acrescentou, afrouxando o abraço para fitá-la. — Mas devo aceitar seus protestos. Por enquanto...

— Obrigada, meu...

— Mas só depois de prová-la mais uma vez — ele con­cluiu, beijando-a novamente.

   Um ruído soou atrás de Mairi e ela se assustou, afas­tando-se de um salto, embaraçada por estar nos braços do conde.

   O homem que acabara de entrar tossiu constrangido.

— Meu lorde, mandou um criado chamar-me?

— Sim, Darcet — Bartholomew confirmou depois de soltá-la. — Entre.

   De olhos baixos, Mairi deixou o aposento. Agitada, re­tornou ao salão procurando por Eleanor, mas a criança não estava em parte alguma. Ela procurou na cozinha e na despensa, mas nenhum dos criados a vira.

— Talvez possa encontrá-la no solar com a irmã — sugeriu uma delas.

   Mairi esperava que ela estivesse certa. Retornando ao salão, encontrou Henry e John voltando do campo de trei­namento.

— Minha lady! — gritou John, enquanto Henry se limitava a cumprimentá-la com uma rápida inclinação do corpo. — Sente-se bem? Ontem à noite ficamos preo­cupados...

— Eu estou muito bem — ela cortou com um movimen­to afirmativo de cabeça. O que mais os rapazes teriam pensado na noite anterior? — Obrigada por perguntar, John.

— Bart contou que estava resfriada por causa do tem­poral...

— Obrigada por sua preocupação, John, mas asseguro que estou bem. Sabem onde posso encontrar Eleanor?

— Aquela pestinha deve estar metida em alguma con­fusão — opinou Henry.

— Receio que possa estar certo.

— Quer que eu a ajude a procurar? — John ofereceu.

— Não quero dar trabalho a ninguém.

— Não é trabalho nenhum. Não concorda comigo, Hal? — ele indagou entusiasmado.

— Talvez não para você, meu caro — disse o outro. — Eu tenho outros planos.

— Muito bem, minha lady — John olhou contrariado para o outro garoto. — Iremos apenas nós dois.

   Henry dirigiu-se à escada, e Mairi e John o seguiram.

— Estou ouvindo música? — o rapaz perguntou intri­gado quando começaram a subir.

   Mairi aguçou os ouvidos. Havia realmente música ema­nando do final da galeria. O som lembrava o de uma gui­tarra, e eram as notas que ela havia ensinado a Kathryn. Talvez Eleanor estivesse lá.

   Abriram a porta e entraram, assustando Kathryn. Rá­pida, a menina deixou o instrumento de lado, demons­trando grande infelicidade por ter sido surpreendida com ele.

— Eu... eu...

— Kate, sabe onde está Eleanor? — John indagou.

— Não — ela respondeu com o cenho franzido. — Já procuraram no quarto? Não a vejo desde que tomamos o desjejum.

— Vou ver se ela está no quarto — anunciou o rapaz. — Se estiver, quer que eu diga a ela para ir ao seu en­contro?

— Não, John — Mairi decidiu enquanto se virava para sair. — A menos que ela esteja fazendo alguma traves­sura.

— Veremos o que ela está arrumando desta vez. Mairi não entendia a perturbação de Kathryn por ter sido surpreendida tocando a guitarra que fora de sua mãe. Era quase como se alguém a houvesse encontrado come­tendo algum grave delito.

   A música não devia ser considerada uma atividade proibida. Agora sabia que tocar era algo que fazia parte dela como seus braços e pernas. Aprendera a tocar a lira quando era pouco mais velha que Eleanor, e com o tempo fora dominando bem todos os instrumentos de corda, em­bora o alaúde fosse seu favorito.

   A reação de Kathryn ao ser surpreendida tocando podia ter sido provocada pela noção de que, de alguma forma, ela negligenciava seus "deveres", tarefas que ela conside­rava sérias e importantes.

— Sua música soa adorável — disse, tentando deixá-la mais à vontade. — Quer aprender um pouco mais?

   Kate parecia incerta entre correr para longe dali ou permanecer no aposento.

— Não — resolveu. — Devo ir à cozinha e providenciar para que...

— Acabei de vir de lá, Kathryn. — Sentando-se, ela pegou a guitarra. — O cozinheiro tem tudo sob controle. Por que não fica aqui comigo?

   Apertando os lábios num gesto que traía aborrecimen­to, a menina encarou-a.

   Mairi ignorou a provocação.

— Que instrumento sua mãe preferia? A lira ou a gui­tarra? — ela quis saber, dedilhando as cordas daquele que repousava sobre suas pernas.

— Guitarra.

— Ah, e você também parece se dar muito com ela! Tornou-se muito habilidosa em pouco tempo.

   A expressão da jovem ganhou uma certa suavidade.

— São muitas as cordas e notas. — Mairi apontou a almofada a seu lado. — Sente-se aqui, e eu lhe mostro.

   Era como se a jovem não conseguisse recusar o convite. Ainda em silêncio, como se a situação a aborrecesse, ela foi se acomodar ao lado da hóspede.

   Mairi entregou-lhe a guitarra e passou a mostrar novas posições e acordes. Ela ajudava Kathryn a colocar os de­dos nos locais exatos e pressionar as cordas na medida certa de forma a dar harmonia à música.

— Você possui um dom natural, Kathryn — disse, feliz por poder ocupar-se com outra coisa além dos próprios pensamentos. — Tenho certeza de que seu talento teria feito a felicidade de sua mãe.

   A jovem permanecia em silêncio e séria.

— Assim que dominar a guitarra — Mairi continuou inabalável — tentaremos a lira.

   Ela começou a deixar o instrumento de lado.

— Não, lady Marguerite. Não tenho tempo para isso.

— Imagino que possa encontrar o tempo necessário pa­ra aprender.

   Aparentemente dividida entre a raiva e o desejo de tomar novas lições, ela se levantou de repente, deixando a guitarra sobre o assento.

— Fala comigo sobre minha mãe, mas nunca a conhe­ceu — disparou, demonstrando que a ira havia vencido. — Como pode saber o que a teria feito feliz?

— Eu sei que...

— Minha mãe era muito mais bonita do que você e tinha um talento muito maior do que o seu.

— Certamente está dizendo a verda...

— E eu tenho muito trabalho aqui no castelo — ela prosseguiu — coisas que Bartholomew confiou a mim e que espera que eu faça... — Seu queixo tremia e ela torcia o tecido do vestido com mãos nervosas.

— É claro que sim. Kathryn — Mairi concordou. — Seu irmão sabe que você se esforça muito e aprecia tudo que faz.

   Mas a expressão da menina era fechada e desconfiada. Mairi tocou a manga de seu vestido, mas Kate afastou-se e correu para fora do solar, deixando a hóspede sozinha e confusa.

   Pouco havia de certo no mundo. Triste e desanimada, Mairi permaneceu sentada com os dedos entrelaçados so­bre as pernas. Em silêncio, formulou uma prece por kath­ryn, uma criança perturbada que ainda sofria com os re­centes eventos que haviam devastado sua família. Pis­cando para conter as lágrimas, continuou orando por ela e por Alain, cuja perda também seria devastadora para Caitir e seus filhos.

   E também rezou por ela mesma, para que Deus com­preendesse e perdoasse sua mentira.

   A porta do solar se abriu e Bartholomew entrou. Ele parecia zangado.

— Meu lorde! — Mairi levantou-se assustada, compon­do-se rapidamente. — Aconteceu alguma coisa?

— É Alrick. Acabei de receber a notícia de que ele mor­reu há pouco.

   Lágrimas encheram seus olhos novamente, e podia sen­tir a garganta queimando. Ela cobriu a boca com dedos tremulos.

   Bartholomew cruzou as mãos às costas e caminhou pelo aposento, enquanto Mairi se esforçava para controlar a dor. Agora que conhecia o destino de Alain, tinha os ner­vos e as emoções à flor da pele.

— O acidente com a muralha foi causado por meu al­moxarife — o conde anunciou.

— Como, meu lorde? — ela perguntou, dando à voz toda a firmeza de que era capaz.         Uma coisa era demons­trar tristeza por um pobre camponês que havia perdido a vida.   Outra, totalmente imprópria, era uma dama cho­rando demais por um homem desconhecido.

   Bart aproximou-se dela.

— Com uma argamassa fraca. O tolo pensou que eco­nomizaria material mandando os homens acrescentarem mais água à mistura.

— Mas certamente ele...

— Ele foi um tolo! Sir Walter deu ao sujeito instruções claras, mas, como um idiota, ele decidiu desobedecê-las.

— Eu sinto muito, meu lorde — ela lamentou, pousan­do a mão sobre seu braço. — Imagino que seja muito di­fícil para você.

   Sua compaixão e ternura foram evidentes desde o iní­cio, mas tornaram-se especialmente claras depois do aci­dente com a muralha, quando ele se dedicara a cuidar das famílias dos feridos e garantir a sobrevivência de mu­lheres e crianças.

— Esse tipo de perda não é mais difícil para mim do que para outros nobres — ele respondeu, cruzando os bra­ços sobre o peito. — Não gosto de perder minha gente de forma tão desnecessária.

   Mairi ergueu-se nas pontas dos pés e beijou-o rapida­mente nos lábios antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa.

— Precisa dar a notícia a Eleanor, meu lorde — disse, surpresa com o próprio comportamento. — Alrick era um de seus favoritos, e ela certamente ficará muito pertur­bada com sua morte.

— Tem razão — ele concordou, segurando sua mão.

 

   Bartholomew viu a dor estampada no rosto de Marguerite e soube que ela era dona de um coração generoso. Caso contrário, por que estaria tão perturbada com a morte de um homem que mal co­nhecera?

   Ou a perda da inocência a afetara mais do que pudera antecipar? Por isso ela estava tão exposta, tão vulnerável? Como um homem podia saber o que ocorria na mente feminina?

   Ela confortara Eleanor, que fora beneficiada por uma suspensão do castigo, e Bart se sentira grato por sua va­liosa ajuda. Se Marguerite pudesse exercer algum efeito sobre Kathryn... A menina se mostrava teimosa e difícil desde a morte de Will, e Bart não soubera o que fazer, além de deixá-la brincar de ser a castelã, uma imitação clara dos gestos da mãe.

   Esperava que em algum momento ela se cansasse da brincadeira, e rezava para que isso acontecesse antes de Henry casar-se e levar a esposa para morar em Norwyck.

   Naquela noite Marguerite jantou com a família, e de­pois tocou a lira enquanto todos se reuniam a sua volta. Todos, menos Kathryn, que escolheu um canto distante para costurar. Ela só estava presente porque Bart insistiu para que ficasse e integrasse o grupo.

   Todos, exceto Kathryn e Henry, cantavam acompa­nhando a melodia. Até os criados que removiam os pratos e os restos de comida da mesa acompanhavam a canção enquanto trabalhavam.

   Henry abandonou sua cadeira e abaixou-se ao lado de Bartholomew. Sir Walter olhou para o rapaz.

— Já enviou as cartas, Bart? — ele perguntou.

— Sim, Henry — o lorde respondeu com um suspiro paciente. — Em algumas semanas saberemos de quem você será escudeiro... embora possa sempre permanecer em Norwyck como meu escudeiro.

   Henry franziu a testa.

— Não, Bart. Isso não daria certo. E melhor sair de casa e ir servir um senhor que não seja parente. Foi como você e Will aprenderam tudo.

   Embora não gostasse da idéia, Bart não podia discutir. Todas as gerações de Holton haviam sido treinadas da mesma maneira, bem como outros nobres da família.

   John fez uma careta para Eleanor, que riu. Kathryn também sorriu, apesar do esforço para parecer austera e grave, e até os olhos de Marguerite pareceram menos tris­tes por um instante. Bart sentiu-se tocado pela ternura e pela imensa compaixão daquela mulher.

   Mas sufocou o sentimento. Seria absurdo nutrir mais do que uma simples e básica cortesia por ela. Não quando sua identidade ainda era um mistério, e não enquanto não entendesse seu objetivo em devolver as valiosas jóias de Norwyck. Sabia de que terríveis traições as mulheres eram capazes, e ainda não conseguira decifrar a mente de Marguerite.

   Sim, ela era sua amante. Nem mais e nem menos.

   Com o passar do tempo, Ada apareceu para levar Elea­nor e Kathryn para a cama. Bart notou que a mais velha de suas irmãs não escondia a insatisfação com a situação, embora não protestasse em voz alta. Ela seguiu a babá como fazia todas as noites, e quando os rapazes também se foram, Marguerite e ele ficaram sozinhos no salão.

   Ela estava nervosa.

   Bart conteve um sorriso ao vê-la tomar a lira e levan­tar-se para deixar o aposento.   Rápido, ele a seguiu, tomou o instrumento de suas mãos e passou um braço em torno de sua cintura para acompanhá-la pela escada.

   Tinha toda a intenção de passar também aquela noite em sua cama, e apesar de detestar a idéia de impor sua presença a uma mulher, sabia que tal gesto não seria necessário. Cada vez que a encontrara ao longo do dia, Marguerite respondera ao toque de suas mãos como se também o desejasse com ardor.

   No primeiro andar, puxou-a de encontro ao corpo de forma a pressionar o peito contra as costas macias. Aca­riciando seu estômago, depositou um beijo sedutor em sua nuca.

   A excitação o dominava incontrolável. Era difícil conter o ímpeto de jogá-la, sobre um ombro, levá-la para a cama mais próxima e possui-la como um bárbaro, mas não a submeteria a tal tratamento indigno.

   Deixando a lira no piso de pedras, Bartholomew girou-a entre os braços, tomou a vela de sua mão e deixou-a sobre uma mesa próxima. Depois beijou-a. Ela emitiu um som rouco que era o eco de sua ânsia, e segundos depois abriu os lábios para sua carícia úmida.

   Um tremor sacudiu o corpo de Bart, e ele a apertou entre os braços. Inclinando a cabeça para mudar o ângulo do beijo, deslizou uma das mãos por suas costas para pressioná-la contra sua ereção.

   Silencioso, fez uma rápida prece agradecendo à natureza pelo instinto que a obrigava a se mover contra ele, torturando-o, levando-o a um tal nível de necessidade co­mo jamais julgara ser possível atingir. Sem interromper o contato entre as bocas, empurrou-a contra a parede e prosseguiu com as carícias.

— Seus aposentos novamente, minha lady? Ou prefere os meus? — murmurou, beijando sua orelha.

   Marguerite suspirou.

— Que seja — disse Bart. — O seu. — Segurando a mão dela, pegou a vela e continuou subindo a escada, certo de que a distância tornava-se maior a cada degrau que subia.

   Um estrondo assustador os deteve antes que alcanças­sem o quarto da torre.

— O que foi isso, meu lorde? — Marguerite perguntou.

— Não sei, mas o barulho veio do quarto infantil. — Sem soltar a mão dela, Bart virou-se e seguiu apressado para o quarto das crianças.

   Eleanor chorava ao lado da cama, agarrada à babá, cujo rosto estava pálido e transtornado. Kathryn mantinha-se em pé com os braços cruzados sobre o peito. Um vaso de argila jazia em cacos no chão. Bart não tinha a menor dúvida sobre quem o destruíra.

   Só esperava que ela não o houvesse arremessado contra a irmã ou a criada.

— O que aconteceu? — perguntou, impondo à voz uma calma que estava longe de sentir.

Eleanor soluçou. Ada guardou silêncio.

— Eu joguei o vaso — Kathryn respondeu desafiante. — Atirei o vaso contra a parede e o destruí.

   Bart passou por cima dos cacos e aproximou-se de Ka­thryn. Seu rosto estava molhado pelas lágrimas e o queixo tremia, embora ela não desse nenhum outro sinal de nervosismo.

— Por que fez isso, Kate?

— Não preciso de uma babá e não quero dormir no quarto infantil! — ela gritou.

— Muito bem — Bart respirou fundo, tentando não perder o controle. Depois olhou para Ada em busca de alguma pista de como proceder, mas a expressão da mu­lher mesclava choque e desdém. Olhou para Marguerite, e foi seu ar franco e piedoso que o encheu de coragem. — Onde gostaria de dormir?

— Ficarei com o quarto que pertenceu a mamãe e papai — a menina falou.

— Por mim, pode ir dormir no quarto que foi deles. Mas quero que compreenda que esse gesto foi impróprio e...

— Você não é meu pai, Bart — ela interrompeu com tom estridente. — Meu pai está morto!

   O conde não sabia o que fazer. A menina se comportava como uma criatura irracional, e era evidente que não ti­nha intenção de ouvir a voz da razão.

— Sim, Kathryn — disse uma voz feminina atrás dele. — E você tem cuidado de seus irmãos e de sua irmã exatamente como seus pais teriam desejado que fizesse.

   Marguerite passou por cima dos cacos do vaso e apro­ximou-se da menina, cujo queixo tremia mais do que antes.

— Na verdade, creio que se saiu muito melhor do que sua mãe teria imaginado — continuou. — Nenhuma outra família poderia ter tido mais atenção e cuidados melhores do que os que você proporcionou aos seus, especialmente depois da morte de William. E de Felícia.

   Bart a viu abrir os braços e amparar sua irmã. Kathryn dissolveu-se em lágrimas, chorando alto como uma crian­ça pequena.

— Eu a odeio! — ela gritava. — Odeio!

— Eu sei, meu bem. — Marguerite afagava suas costas. Lágrimas também rolavam de seus olhos, e mais uma vez o conde sentiu-se impotente. — É horrível sentir-se traído por alguém a quem amamos.

— Ela era minha irmã, minha amiga! Finalmente, Bartholomew entendia qual era o problema com ela.

   A jovem Kate perdera a mãe quase quatro anos antes. Quando Felícia fora levada a Norwyck, pouco depois dis­so, ela se apegara à mulher como um animalzinho aban­donado e triste. Não era de estranhar que seu comporta­mento houvesse se tornado tão difícil nos últimos meses. Ansiosa, a menina havia esperado pelo retorno dos irmãos mais velhos, vivendo para o momento em que seria tia pela primeira vez. Felícia traíra sua confiança, e a dor dessa traição ainda era intensa e insuportável.

   Bart franziu a testa e balançou a cabeça enquanto via Marguerite confortando a menina. O dano causado por sua finada esposa nunca teria um fim?

   Desanimado, aproximou-se de Eleanor e tomou-a nos braços. Depois levou-a para fora do quarto e fez um gesto para a babá, indicando que ela deveria fazer o mesmo... Então fechou a porta e deixou Marguerite sozinha para cuidar de Kathryn como fosse possível.

   Os soluços silenciaram. As lágrimas finalmente seca­ram. Kathryn adormecera.

   Deitada na cama do quarto infantil, ela ainda estava encolhida nos braços de Mairi. A pobre criança precisava de alguém que compreendesse a dor contida por tanto tempo.

   Mairi puxou o cobertor sobre elas para amenizar o frio do aposento e fechou os olhos.   Talvez a própria dor a aju­dasse a entender a de Kathryn.

   De alguma maneira, teria de enfrentar os próximos dias sabendo que seu egoísmo e a demora em voltar à Escócia tornaram necessária a companhia de Alain na trágica via­gem de navio. Se houvesse acompanhado Carmag MacEwen meses antes, Alain ainda estaria na França com sua esposa e seus filhos.

   No entanto, se houvesse viajado na primavera anterior, não teria sido vítima da tempestade e jamais teria conhe­cido Bartholomew Holton. Já estaria casada com Carmag, talvez até grávida de um filho dele.

   A idéia provocou um tremor de repulsa.

   Mesmo que nunca mais visse Caitir novamente, sabia que não podia permitir que o pai tomasse conhecimento de sua presença em Norwyck. Sabia como era importante para Lachann Armstrong casar sua filha com o aliado MacEwen.

   E Mairi sabia que jamais poderia fazer tal coisa. O homem era repugnante para ela.

   Quando Carmag fora buscá-la, meses antes, conseguira surpreendê-la sozinha certa tarde. Ainda lembrava o lá­bio partido, o olho roxo e os hematomas que Carmag dei­xara em suas pernas antes de Alain e seu irmão terem conseguido dominar o bruto escocês.

   Alain prometera informar Lachann sobre o indigno tra­tamento dispensado por seu prometido, mas Carmag rira da ingenuidade do francês. Lachann não se importava com quem a filha se casaria, desde que o casamento se­lasse uma aliança útil e poderosa.

   Carmag, o selvagem, podia fazer o que bem entendesse com a mulher que seria sua propriedade. E impunemente.

   Mairi estremeceu novamente. Gentil, afagou os cabelos de Kathryn e abraçou-a como teria feito com um dos filhos de Caitir. Muitas foram as vezes em que um deles preci­sara de conforto, e sempre haviam procurado por Mairi para ampará-los.

   A irmã de Bartholomew precisava de uma amiga. Ela necessitava de paciência e compreensão, e Mairi estava disposta a suprir essas necessidades. Porque tinha todo o tempo do mundo.

   Permaneceria em Norwyck como lady Marguerite, e nunca, jamais deixaria Lachann Armstrong saber que es­tava viva.

 

— Gostaria de ir comigo ao vilarejo, Kathryn? — Mairi perguntou. A menina estivera quieta e reservada naquela manhã, e Mairi não podia dizer se sua atitude era resultado do constrangimento por conta do incidente da noite anterior, ou se ela apenas revertera ao comportamento fechado e pouco amistoso de antes.

— Eu quero ir! — Eleanor gritou.

— Silêncio, peste! — Henry censurou-a, deixando a xí­cara sobre a mesa. — Você não foi convidada.

— É claro que pôde ir, Eleanor — disse Mairi. — É muito oportuno e positivo que as mulheres do castelo vi­sitem os feridos e espalhem a fartura do lorde entre seu povo.

— Eu vou — decidiu Kathryn.

— Ótimo. Talvez possa ajudar-me a reunir os bens que serão necessários no vilarejo.

   Uma hora mais tarde, Marguerite e as meninas des­ciam a escada do castelo seguidas por diversos lacaios carregados de pacotes. Sir Walter as esperava no primeiro degrau.

— Bom dia, minhas adoráveis senhoras — ele disse com uma mesura. — O que temos aqui?

— Basicamente comida, sir Walter — Eleanor respon­deu, abraçando as pernas do velho cavaleiro. — É para o vilarejo!

   Walter afagou os cachos vermelhos da criança e olhou para Mairi. Ela julgou ter visto aprovação em seus olhos, e de repente sentiu-se encabulada. E também se sentia uma grande mentirosa.

— Ah, bem, essa é a atitude mais justa e correta — ele opinou. Depois piscou e passou por elas para subir ao castelo.

   As três caminharam por entre os galpões e passaram pelo portão principal da fortaleza, tomando o caminho das casas humildes onde residiam os homens feridos. Parando em cada uma das casas, iam deixando comida e conver­sando por alguns minutos com todos os moradores. Quan­do chegaram ao chalé de Alrick Stickle, elas permanece­ram por um período mais prolongado, ajudando a costurar a mortalha do defunto.

   Eventualmente, conseguiram chegar à casa de Symon Michaelson. Annie ainda estava muito nervosa e enfren­tava grandes dificuldades para lidar com a situação. Sy­mon estava mais desperto do que na última vez em que Mairi o vira, embora ainda estivesse pálido e suando, às vezes gemendo de dor.

   Os dois garotos mais velhos estavam fora, perto da mu­ralha, fazendo o que era possível para auxiliarem no tra­balho de empilhar as pedras que haviam desmoronado.

   Eleanor ficou brincando com duas filhas do casal do lado de fora da casa, enquanto Kathryn e Mairi ajudavam a cuidar dos menores. Com tantos filhos fora, o espaço parecia mais amplo, e foi com satisfação que Mairi viu Kathryn se dedicando com competência às tarefas que precisavam ser cumpridas.

— Bom dia a todos — Alice Hoget cumprimentou ao abrir a porta e entrar. — Como vai mestre Symon neste belo dia?

   A curandeira aproximou-se do homem ferido e deixou sua sacola no chão. Depois tocou a testa de Symon e ba­lançou a cabeça.

— Está com febre, Symon, e vou ter de fazer o que for necessário para baixá-la.

— Faça o que tem de ser feito. — ele resmungou.

— Annie, preciso de água quente e de alguns panos limpos.

   Dirigida por instruções claras, a esposa do enfermo apressou-se em cumprir a tarefa.

— Minha senhora — Alice falou com Mairi — por que não pede ajuda à mocinha e leva as crianças lá para fora? Elas precisam de ar fresco.

   Mairi considerou a idéia muito boa. Ela e Kathryn ves­tiram os mantos, agasalharam os três filhos menores do casal e saíram.

— Vamos caminhar até a muralha? — Mairi sugeriu, segurando a mão da menina de dois anos e apoiando o bebê sobre um ombro. Kathryn concordou, cuidando do menino que era um pouco mais velho do que a garota aos cuidados de Mairi. Todos exigiam atenção constante e vigilância.

   Kathryn não havia dito nada sobre sua explosão na noite anterior, nem comentou o apoio oferecido pela hós­pede do castelo. Mesmo assim, ela mudara. Havia nela uma nova suavidade.

— Lady Marguerite! — Eleanor chamou. — Aonde vai?

— Vamos dar um passeio até a muralha. Quer ir conosco?

— Não! Estamos brincando aqui. Posso ficar?

— Sim — Mairi respondeu, notando que algumas mu­lheres cuidavam de seus filhos perto dali. Elas estariam atentas a todas as crianças, como era comum nos pequenos vilarejos. — Se precisar de nós, estaremos na muralha.

   Ela e Kathryn caminharam lado a lado pelo caminho de pedras. Não se haviam distanciado muito das casas modestas quando ouviram o som de cavalos atrás delas.

   Bartholomew era o primeiro homem de uma fila única de imponentes cavaleiros. Sua bela montaria estava co­berta pelo azul e branco de Norwyck, e ele mesmo caval­gava coberto de malha com a espada embainhada na la­teral do corpo.

   Alto e orgulhoso sobre a sela, ele era a imagem do poder e da virilidade, Mairi pensou.       Seus olhos escuros encon­traram os dela e ele parou, erguendo o braço para deter todo o grupo que o seguia.

   Segundos depois ele desmontou.

— Aconteceu alguma coisa, meu lorde? — Mairi per­guntou, apesar da inquietação. Não o via desde que su­cumbira mais uma vez ao seu poder de sedução no pri­meiro andar do castelo, e não sabia o que esperar agora. Ele a tomaria nos braços e beijaria ali, diante de sua irmã e dos moradores do vilarejo?

   Sabia que seu comportamento permitia tais liberdades. Aceitara-o em sua cama, e em seu coração... e estava de­terminada a perpetuar uma mentira a fim de não ter de separar-se do conde.

   Bartholomew balançou a cabeça, os olhos fixos nos dela.

— Não. Isto é apenas uma patrulha. Decidi acompa­nhar o grupo porque há muito não saía para inspecionar os arredores do castelo.

   Sabia que ele passaria todo o dia e boa parte da noite longe dela a fim de participar da patrulha, e a descoberta causou um intenso desapontamento. Estava envergonha­da, mas nem por isso deixaria de admitir que esperava recebê-lo em seu quarto naquela noite.     Apertando o bebê contra o peito, suprimiu seus desejos censuráveis.

— Quando vai voltar? — perguntou Kathryn.

   Ele hesitou um instante antes de responder, e Mairi sentiu o olhar penetrante do conde.

— Talvez amanhã. Sir Walter passará a noite no cas­telo, caso necessitem de alguma coisa... Mandarei notícias sobre nossa localização e sobre quando devemos retornar.

— Vai combater os Armstrong?

— Confesso que seria um prazer encontrar Lachann ou Dúghlas, mas não... Duvido que haja alguma batalha esta noite.

   Os olhos escuros buscaram os de Mairi mais uma vez, e ela sentiu o rosto quente por conta do comentário de duplo sentido.

— Então, por que tem de ir? — a menina insistiu.

— Para manter os Armstrong em situação de desequi­líbrio. E para impedi-los de se sentirem seguros a ponto de acamparem em nossas colinas. Realizamos patrulhas em intervalos breves e regulares para proteger nossa ter­ra, nosso vilarejo.

   Mairi não conseguia imaginar o pai e o irmão enfren­tando Bartholomew Holton e seus cavaleiros numa bata­lha. Embora não visse a família há muitos anos, não se lembrava deles como especialmente poderosos, nem acre­ditava que os guerreiros de seu pai fossem numerosos ou donos de habilidades especiais.

   Algo devia ter mudado naqueles últimos dez anos, ou Bartholomew não estaria construindo uma muralha para garantir a segurança de seu vilarejo. Nem estaria acom­panhando seus cavaleiros em patrulhas regulares.

   Carmag MacEwen devia ser a causa dessa mudança. Era a aliança entre os Armstrong e os MacEwen que con­feria a seu pai a confiança de que ele precisava para ata­car Norwyck. Mairi lembrou algo que Carmag dissera me­ses antes. O fanfarrão mencionara acampamentos, ou... o quê? Não conseguia lembrar com exatidão o que ele havia dito.

   Era assustador pensar em seu pai reunindo poder. Ele havia sido um pai ausente e negligente, e um marido cruel. Mairi lembrava-se da mãe, Teàrlag, pálida e frágil como um rato, cujo maior ato de coragem e desafio havia sido tirar a única filha da Escócia e levá-la para longe de La­chann. Na época, Mairi tivera quase a mesma idade de Kathryn e ficara muito feliz por partir, esperando inclu­sive nunca mais ter de ver Lachann Armstrong, embora houvesse sofrido com a falta da mãe no primeiro ano.

   Ao erguer a cabeça, ela encontrou o olhar de Bartholomew.

— Pode cuidar de minhas irmãs enquanto eu estiver fora? — ele perguntou. Seus olhos sugeriam uma mensa­gem mais íntima e pessoal, mas as palavras não seriam pronunciadas. Não naquele momento.

— Sim, meu lorde — ela afirmou, o coração transbor­dando com uma emoção que prometia apenas sofrimento para o futuro. — E claro que sim.

   No instante seguinte o grupo de cavaleiros partiu.

   Mairi e Kathryn ficaram paradas vendo-os desaparecer além da muralha e colina abaixo. Mairi esperava que o rubor em seu rosto fosse interpretado como uma reação ao ar gelado, não à conversa com o conde.

   Logo que chegaram ao muro, elas encontraram os filhos de Symon que, com outros homens e garotos, removiam argamassa das pedras caídas no chão e as empilhavam com cuidado.

— Acha que eles vão conseguir terminar a muralha? — perguntou Kathryn.

— Estou certa disso. Não vejo motivo algum para que o trabalho não seja concluído. Além do mais, a idéia é excelente. Assim o vilarejo estará melhor protegido contra os ataques escoceses.

— Sim, é que Bartholomew diz. Os animais ficarão do lado de fora para pastarem e... Mairi riu.

— Está falando como sua irmã — ela disse. — Eleanor comentou recentemente sua preocupação com os rebanhos.

— Mas é uma preocupação legítima. Tem de haver um meio de protegermos os carneiros, ou Norwyck perderá sua riqueza. Quando for uma esposa, pensarei numa so­lução para esse problema.

— Tem razão. — Mairi tocou o rosto da menina num gesto de carinho. — Seu marido poderá contar sempre com você, com seus conselhos sensatos e úteis. O homem que seu irmão escolher para desposá-la terá muita sorte.

   Caminharam em silêncio por mais algum tempo, e de­pois Kathryn perguntou:

— Se não conseguir lembrar quem é, lady Marguerite, Bart também encontrará um marido para você?

   Felizmente tinha um alto poder de recuperação, ou te­ria tropeçado e caído, tal a intensidade da surpresa pro­vocada pela questão. Não havia pensado em nada que não fosse esconder sua presença em Norwyck do pai e de seus aliados. As consequências da intimidade que vivera com o conde ainda não haviam sido consideradas.

   E preferia não pensar nisso agora.

   Bartholomew seguia no comando do grupo e tentava banir da mente todos os pensamentos relacionados a Mar­guerite. Imagens o atormentavam. Ainda a via com o bebê aninhado no peito, sua cabeça acomodada entre os seios, os lábios acariciando os cabelos finos da criança.

   Passara a noite lamentando o fato de tê-la deixado com Kathryn. Embora soubesse que Kate necessitava de todo o conforto que Marguerite pudesse proporcionar, não sa­bia ao certo se suas necessidades haviam sido menores ou menos intensas e urgentes. Podia praticamente sentir o sabor de sua boca, a maciez de seu corpo, a suavidade da pele sob suas mãos.

   De alguma forma, sobreviveria a mais uma noite sem ela, mas quando retornasse ao castelo, não haveria im­pedimento para seu prazer. Dedicaria toda a atenção a Marguerite e às horas que passaria com ela no quarto da torre:

— Meu lorde — disse um dos cavaleiros — é aqui que nos separamos?

   Bart observou a extensão de terra diante dele. O ter­reno era cheio de depressões e aclives nos quais os esco­ceses poderiam se esconder e esperar para atacar.

— Sim — decidiu. — Leve vinte homens com você e siga para o oeste na direção do vale. Eu irei com outros vinte para o norte. Gilbert, para a costa com o restante do grupo.

— Sim, meu senhor.

— Mesmo que não vejam ninguém, quero relatos com­pletos de qualquer coisa incomum. Marcas de fogueiras, rastros de cavalos...

   Os cavaleiros assentiram e partiram, cada um levando seu contingente na direção indicada pelo lorde. Bart seguiu para o norte, mantendo-se atento a qualquer sinal dos Armstrong e seus aliados invasores.

   O dia foi longo e passou devagar, e por isso foi neces­sário um grande esforço para manter os pensamentos con­centrados na tarefa, não em marguerite ou nas lembran­ças dela com o bebê. Pensar nisso provocava uma sensa­ção estranha e incômoda quê ele se recusava a examinar com um olhar mais crítico.

   Em vez disso, descobriu que os pensamentos se volta­vam para a única noite que haviam passado juntos, em sua paixão sem limites pela mulher que seguia hospeda­da em seu castelo, mesmo sendo uma desconhecida. As respostas de Marguerite haviam superado todas as ex­pectativas que pudesse ter, e sabia que os próximos me­ses seriam mais satisfatórios do que todos os outros que vivera antes, desde que pudesse passá-los na cama de sua hóspede.

   Ficara surpreso por encontrá-la com suas irmãs no vi­larejo, oferecendo conforto à viúva de Alrick e apoio às famílias dos outros operários feridos. Suas atitudes eram exatamente as mesmas que sua mãe e sua madrasta te­riam tomado.

   Não podia duvidar de que ela era uma lady nascida em berço nobre, pois tal atividade fazia parte de seu re­pertório diário e era executada com simplicidade e de­senvoltura.

   Mas... de onde ela viera? A quem pertencia? Não era casada com nenhum outro homem, disso ele estava certo. Seria filha de algum nobre francês, como ela mesma imaginava? Ou irmã de algum nobre inglês? Talvez perten­cesse a uma família escocesa, mas só teria respostas quan­do ela recuperasse a memória.

   Podia desfrutar dela como bem entendesse. E era essa sua intenção.

— Alto! — o conde gritou de repente. Depois desmontou e jogou as rédeas de Pégasus para um dos homens. Sério, andou um pouco pelo local estudando o solo. Os rastros deixados por cavalos eram evidentes. Não deviam ser mui­tos. Meia dúzia, possivelmente. Mas também havia sinais de um fogo recente.

   Gostaria de saber o que pretendiam os homens de Armstrong, pois eles eram os únicos que se aventuraram dentro dos limites de Norwyck a cavalo. Bart olhou em volta, reconhecendo a região montanhosa. Ele e seus co­mandados não estavam muito distantes da fronteira com as terras do inimigo, mas havia uma demarcação clara que era mantida e respeitada há séculos, uma linha que separava as duas propriedades. Os cavaleiros que haviam visitado o lado de Norwyck deviam saber que estavam ultrapassando o limite.

   Mas... com que propósito? Não acontecera nenhum ata­que nos últimos dias. O que esses homens esperavam con­seguir?

   A patrulha seguiu ao longo de todo o perímetro de suas terras. Bartholomew precisava pensar e decidir se aqueles vestígios eram suficientes para justificar um ataque ao vilarejo vizinho. Até então, evitara tomar qualquer atitude que não fosse motivada pela defesa de sua propriedade.

   Seus métodos não tinham base na covardia, mas no desejo de evitar novas guerras. Testemunhara muitas mortes e destruição, e não queria envolver seus homens em novos confrontos, a menos que fosse absolutamente necessário.

   Sua estratégia de defesa possuía dois componentes básicos. Construiria a muralha para deter os ataques dos Armstrong e patrulharia as fronteiras com frequência su­ficiente para impedir que Lachann se sentisse seguro e confiante.

   Os escoceses nunca saberiam quando era seguro atacar.

 

   Criados passaram a tarde preparando o novo quarto de Kathryn, e depois Mairi e Eleanor a ajudaram a transportar seus objetos pessoais do dormitório infantil para os novos aposentos. A noite chegou, e elas jantaram com Henry, John e sir Walter, mas   Bartholomew não voltou.

   Quando chegou a hora de ir dormir, Kathryn relutou em ir para o quarto sozinha. Henry começou a zombar dela por ter saído cedo demais do dormitório infantil, e John se esforçou para conter um sorriso superior. Mas Mairi não permitiu que os irmãos debochassem dela. Ka­thryn tomara para si todas as responsabilidades do cas­telo e precisaria de ajuda para livrar-se delas.

   Lançando um olhar de censura para os garotos, Mairi sugeriu:

— O que acha de Eleanor e eu irmos com você até seu novo quarto, Kathryn?

   A menina ficou muito satisfeita com a sugestão, mas o orgulho a impediu de aceitá-la prontamente.

— Por favor, Kate! — suplicou Eleanor. — Quero vê-la em sua nova cama e experimentar seu novo colchão!

— Talvez eu possa ser convencida a contar uma histó­ria enquanto você se prepara para dormir.

— Oh, sim! — Eleanor gritou.

   Kathryn aceitou a proposta de Mairi fingindo desin­teresse.

   Primeiro foram ao quarto infantil para que Eleanor mudasse de roupa. Colocando um cobertor sobre os om­bros da criança para protegê-la contra o frio do corredor, Mairi levou-a ao quarto da irmã mais velha, imaginando onde poderia ser o aposento de Bartholomew. Certamente bem perto dali.

   O fogo no quarto de Kathryn ardia sem muita intensi­dade, e Mairi alimentou-o, fazendo-o brilhar forte en­quanto as duas meninas iam juntas para a cama. Sorrin­do, ela as cobriu com pesados cobertores de lã antes de sentar-se na beirada do colchão.

— Vou contar uma história que... — Ela parou. Não podia mencionar que havia escutado aquele mesmo conto da mãe quando era criança, e por isso recomeçou: — Era uma vez uma grande foca cinzenta que vivia no mar do Norte... — Enquanto as meninas Holton se preparavam para dormir, ela repetiu a história que tantas vezes havia contado para os filhos de Caitir. — E assim o pescador solitário de Isle of May encontrou seu verdadeiro amor.

   Eleanor já havia adormecido quando ela concluiu o con­to. Kate tinha as pálpebras pesadas, também, mas resis­tia ao sono.

— Eleanor dormiu — ela sussurrou.

— Eu já notei — respondeu Mairi. — Vai se incomodar se ela ficar aqui com você?

— Não. Estamos acostumadas a dividir a cama.

— Se não se importa mesmo... Kathryn bocejou.

— Eu não me importo. Desde que seja só por esta noite... Sorrindo, ela acariciou o rosto da jovem e levantou-se.

— Boa noite, Kathryn.

— Boa noite. — Ela se virou de lado e puxou o cobertor até o ombro.

Quando saiu do quarto, Mairi encontrou sir Walter es­perando do lado de fora.                                  

— Minha lady — ele disse. — Vim procurá-la.

— Quer falar comigo? — ela indagou assustada. Walter diria que descobrira sua mentira e contaria a Bartholomew que ela era uma Armstrong. Uma inimiga.

   Ele segurou seu braço e a levou ao solar no final do corredor. Quando entraram na sala espaçosa de janelas altas, o cavaleiro acendeu as velas de um candelabro que deixou sobre uma mesa perto do fogo.

— Lorde Norwyck mandou notícias. Ele informa que não retornará ao castelo esta noite e manda instruções específicas para que minha lady seja avisada.

   Mairi corou, compreendendo como a mensagem de Bartholomew devia soar aos ouvidos do velho cavaleiro, em­bora se sentisse aliviada por seu segredo ainda estar seguro.

— Obrigada, sir Walter. Eu teria ficado apreensiva sem notícias.

— Sim — Walter respondeu distraído, aproximando-se da lareira. Ele pegou uma palha, ateou fogo nela com uma das velas e aproximou-a da lenha ali depositada. Momen­tos depois as chamas ardiam alaranjadas e acolhedoras. Então ele se levantou para encará-la.

— Minha lady — começou. Havia uma ruga profunda entre suas sobrancelhas. — A história que contou às crianças... Sobre a foca de Isle of May... Não é um conto escocês?

   Mairi engoliu em seco, mas não conseguiu respirar. Estava tão enredada nas próprias mentiras que morreria sufocada por elas.

— Acalme-se, minha senhora — o cavaleiro sugeriu com tom bondoso. — Não pretendo acusá-la de nada. No entanto, apreciaria se fosse franca comigo.

   Ela se deixou cair numa cadeira ao lado do fogo. Depois respirou fundo e começou a falar bem devagar.

— Minha memória retornou, sir Walter. Já sei quem sou, de onde vim...

— E...

— Venho da França. Vivi com minha prima naquele país durante os últimos dez anos. Estava voltando para casa a fim de casar-me quando a tempestade nos pegou de surpresa e afundou nosso navio... matando Alain, o marido de minha prima.

   Sir Walter balançou a cabeça com expressão sombria.

— Que coisa terrível. Por isso estava sempre tão triste. Por que não nos contou antes?

   Mairi hesitou.

— Porque só me lembrei de tudo ontem de manhã. A tempestade, o naufrágio, o tempo que passei no mar...

— A que família pertence, então?

   Ela encarou o cavaleiro com os olhos cheios de lágri­mas, tentando antecipar o que aconteceria se contasse tudo a ele. Seria expulsa? Ou ele relataria toda a história a Bartholomew?

   Ou compreenderia seus sentimentos por Carmag MacEwen e Lachann Armstrong e a deixaria ficar?

— Sou Mairi Armstrong — disse. — Filha de Lachann, irmã de Dúghlas, prometida a Carmag MacEwen.

   A revelação deixou o homem sem fala por um instante, pálido e perplexo.

— Armstrong — ele repetiu depois de alguns segundos. — MacEwen! — exclamou. — Aquele bicho de cebola? Ia se casar com ele?

— Sim — ela confirmou com voz tremula. — Meu pai decidiu que desejava uma aliança com MacEwen, e por isso ofereceu... minha mão...

— O homem é a personificação da pestilência! Não é de espantar que Armstrong se tenha tornado tão atrevido. Com um aliado como MacEwen, ele deve dispor de muitos homens e armas.

   Mairi permaneceu em silêncio, porque não sabia nada sobre a guerra. Só sabia que estava disposta a dizer e fazer tudo que fosse necessário para convencer sir Walter a guardar seu segredo.

— Foi mesmo prometida a MacEwen? — O cavaleiro puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dela.

   Mairi assentiu lutando contra as lágrimas.

— Agora entendo que queria preservar seu segredo. Não posso culpá-la por isso. O que vai fazer?

— Eu... não pretendia fazer nada — ela murmurou, fitando-o com uma súplica desesperada nos olhos. — Gos­taria de ficar aqui em Norwyck como lady Marguerite...

— E quanto a lorde Norwyck? Não vai dizer nada a ele?

— Oh, não! Ele não pode saber! Seu ódio pelos Arms­trong é muito profundo. Bartholomew não confia em mim, e se algum dia souber quem realmente sou, certamente pensará o pior. Ele acreditará que planejei tudo com a intenção de enganá-lo...

   Walter resmungou alguma coisa e passou a mão pelo queixo, um gesto que traía frustração. Em pé, andou de um lado para o outro do solar enquanto refletia, deixando a jovem escocesa quieta e apreensiva. Tudo dependia da decisão do velho cavaleiro. Todo seu futuro estava nas mãos daquele homem.

— Jamais me casarei com Carmag MacEwen — Mairi anunciou com veemência, embora não alterasse o tom de voz. — Prefiro a morte a tornar-me esposa desse homem.

   Walter assentiu e virou-se para a janela.

— Acaba de colocar-me em uma posição bastante incô­moda, minha senhora.

— Sinto muito. Não devia ter dito nada.

   O cavaleiro balançou a cabeça e continuou olhando pela janela por mais alguns minutos antes de virar-se e voltar para perto do fogo.

— Fez muito desde que chegou ao castelo, minha lady — ele disse. — Conseguiu dominar Eleanor, ofereceu con­forto e apoio à jovem Kathryn, deu confiança a John... sim, o rapaz era um desastre, até receber a atenção que merecia e de que precisava. E   Bartholomew? Transfor­mou o desespero que antes havia em seus olhos em algo novo e diferente.

   Incrédula, Mairi deixou escapar o ar que estivera re­tendo nos pulmões.

— Sim, é verdade — Walter garantiu animado. — Re­centemente, tenho visto a esperança cintilar naqueles olhos.

— Ele certamente me entregará a MacEwen para não ter de olhar para mim depois de descobrir quem sou, sir Walter — ela opinou com amargura enquanto se levan­tava da cadeira. Nervosa, começou a andar pelo solar.

— Eu não teria tanta certeza, mocinha — disse o ho­mem de cabelos grisalhos.

— Ah, mas eu estou certa do que digo, sir Walter. Se lorde Norwyck descobrir que o enganei, ele não hesitará em me expulsar do castelo. E terá motivos justos para agir de tal forma.

— Minha lady...

— Não sou menos mentirosa do que foi Felícia.

— Há um mundo de diferenças entre você e elá. E nun­ca mais pense em tecer comparações como a que acaba de fazer, porque me recusarei a ouvi-las.

   Mairi abaixou a cabeça em sinal de concordância.

— Seu pai não romperia o compromisso a seu pedido?

— Não. Já tentei essa solução. Só existem duas alter­nativas para mim, sir Walter.   MacEwen... ou a morte. Se não pelas mãos de meu pai, pelas minhas.

   O cavaleiro respirou fundo.

— Guardarei seu segredo, Mairi Armstrong, porque fez muito neste castelo e de nada adiantaria desmascará-la agora. Mas esteja prevenida: sou capaz de tudo por esta família. Se algum dia descobrir que você...

— Sir Walter... — Lágrimas de gratidão cintilavam em seus olhos. — Já deve ter percebido que me afeiçoei muito aos Holton, não é?

— Sim, eu notei. Seus sentimentos por Bart estão es­tampados em seus olhos.

   Mairi baixou o olhar constrangida.

— Sir, se soubesse que minha presença poderia pôr em perigo a vida de um dos habitantes deste castelo, eu dei­xaria Norwyck imediatamente.

— Sim, eu sei. — Walter passou um braço sobre seus om­bros. — Eu sei, minha lady.

— Não tenho intenção de fazer minha presença conhe­cida de meu pai. — Um ruído abafado assustou-a e atraiu sua atenção. Ela olhou em volta.

— São os ratos — disse o cavaleiro. — Temos de trazer alguns gatos para dentro do castelo a fim de nos livrarmos deles.

   Mairi fechou os olhos, sem saber se o barulho havia sido mesmo produzido por ratos. E se fosse uma das meninas?

   O homem pôs a mão sobre sua cabeça como teria feito com uma criança.

— Está cansada, minha lady. Vejo a exaustão em seu rosto. Vá para sua cama. E que Deus esteja com você.

     A manhã chegou trazendo um vento gelado. Mairi e as meninas ficaram dentro do castelo, tocando guitarra, jo­gando e costurando delicadas toalhas de linho para a ca­pela.   Mairi não sabia onde estavam os irmãos de Bartholomew, mas estava certa de que eles não haviam saído com a patrulha. Era provável que estivessem no campo de treinamento, como era de hábito dos dois rapazes.

   Kathryn se mostrava sombria, uma reminiscência dos dias passados, quando ela recusava a ajuda de Mairi para tocar a guitarra.

   Não podia esperar que a menina passasse por uma transformação milagrosa, mas era difícil vê-la regredir e retomar a teimosia de antes depois de terem progredido tanto.

   Eleanor estava inquieta, como sempre, mas conseguira permanecer sentada por intervalos mais longos enquanto trabalhavam nas toalhas do altar da capela.

   Mairi se preocupava com Bartholomew. Teriam os ho­mens de Norwyck se envolvido em mais uma batalha? E se ele estivesse ferido? Quando voltaria para casa?

   Não havia como saciar seu desejo por respostas. O tem­po passava devagar, mas finalmente desceram ao salão para o jantar. John e Henry só apareceram na hora do jantar acompanhados por sir Walter, e a presença do trio serviu para reduzir sua apreensão.

— Encontraram sinais de acampamento nas monta­nhas — Henry contou.                                  

— E mais sinais ao norte — acrescentou John. — E no litoral.

— Mas não encontraram nenhum Armstrong — Walter concluiu, notando o pânico nos olhos de Mairi.

— Acampamentos tão próximos do castelo? — Kathryn perguntou assustada. O medo tornava seus olhos ainda mais escuros.

— Eles... — Henry começou. Mas John o interrompeu.

— Não, Kate — ele acalmou a irmã. — Não eram tão próximos quanto está imaginando. Não há nenhum perigo para o vilarejo ou para o castelo.

— Por que eles fazem acampamentos?

— Não sabemos — respondeu Henry.

— Só temos notícias deles por um dos homens de Bart. Ele esteve aqui ontem à noite.                       — E por que Bartie não voltou para casa? — quis saber Eleanor. Seu lábio inferior tornou-se saliente de uma ma­neira que era cada vez mais familiar para Mairi, embora sentisse algo muito parecido com a tristeza demonstrada pela pequena. Onde estaria Bartholomew? E quando vol­taria para casa? — A noite foi muito fria.

— É verdade — Henry concordou rindo. — Foi gelada.

— E fica feliz com isso? — estranhou Kathryn.

— Os homens vivem dessa maneira — o rapaz explicou, dedicando-se com apetite ao jantar. — Cavalgam durante todo o dia, enfrentam o inimigo, dormem fora de casa... — Ele parou de comer para suspirar com ar sonhador. — Não é verdade, sir Walter?

   O cavaleiro conteve o riso.

— E quase como está dizendo, Hal.

— Quando parte para o seu treinamento? — Kathryn perguntou curiosa.

— Ainda não sei, Kate. Logo, espero. Barth enviou car­tas para todos os lordes de Northumberland.

— Não se preocupe, Kate — John comentou rindo. — Logo estaremos livres dele.

   Brincalhão, Henry jogou um pedaço de pão na cabeça do irmão, e as crianças riram e brincaram até o final da refeição, quando se separaram.

   Na hora de ir para a cama, Walter e os garotos desa­pareceram, e Ada surgiu no solar para levar Eleanor para dormir.

— Não! — protestou a menina. — Quero ficar com Ka­te! Por favor, deixe-me ir dormir no quarto dela!

— Eleanor...

— Tudo bem, Ada Kathryn interrompeu com um suspiro entediado. — Pode passar mais esta noite comigo mas amanhã terá de voltar para sua cama no dormitório infantil, ouviu bem, Eleanor?

   A criança aplaudiu com alegria.

— Lady Marguerite, pode contar outra história esta noite?

— Sim — ela concordou. Mas não seria outro conto escocês. Pensaria em alguma coisa diferente para entre­ter as meninas.

— Essa é uma proposta conveniente, minha lady? — A babá perguntou preocupada.

— Sim, Ada, cuidarei das meninas esta noite. Obriga­da. — A criada inclinou-se e saiu. Mairi virou-se para as meninas. — Bem, agora vamos guardar nossas costuras esta na hora de se prepararem para irem para a cama.

   Em pouco tempo, Mairi acomodava as duas irmãs na espaçosa cama do quarto de Kathryn. O fogo ardia intenso na lareira, e ela abriu espaço para acomodar-se também

com as crianças.

— Já ouviram a história de Pégasus? — perguntou.

— Vai falar sobre o cavalo de Bartie? — Eleanor es­pantou-se.

— Não. Refiro-me ao primeiro Pégasus, um cavalo com asas.

   As meninas balançaram as cabeças, e Mairi começou a relatar o conto do cavalo grego, um mito que era rela­tada em todas as partes do mundo há muitas centenas de anos. Enquanto ela falava sobre o cavalo com asas e seu cavaleiro, Belerofonte, os pensamentos se voltavam para Bartholomew cavalgando pelas colinas de Norwyck. Quando ele estaria em casa?

   As meninas logo adormeceram, e Mairi retornou ao so­lar. Não havia ninguém no aposento, nem os irmãos de Bart, nem sir Walter. Antes tivesse escolhido o mito grego na noite anterior! Então não teria posto o adorável cava­leiro na delicada posição de ter de mentir para Bartholo­mew sobre sua identidade.

   Mairi estava inquieta. Agitada demais para dormir, tentou costurar por algum tempo, mas logo abandonou a agulha e começou a andar pelo solar. Bartholomew retor­naria em breve, certamente. A conversa sobre os acam­pamentos Armstrong tão próximos dali a preocupara, e ainda tentava lembrar o que aquele fanfarrão, Carmag, havia dito sobre suas incursões por território britânico.

   Há meses, quando Carmag fora procurá-la na França, o bruto se gabara de suas conquistas e de inúmeras vi­tórias contra lordes ingleses, e sobre como ele e Lachann haviam enriquecido com os rebanhos e os bens tomados dos inimigos sob suas barbas.   Esperava que, caso o esco­cês Carmag tivesse mesmo um acampamento nas colinas, Bartholomew não passasse por ele. Queria vê-lo voltando a Norwyck inteiro, saudável e sem ferimentos deixados pela batalha.

   Era assustador pensar em como passara a precisar de­le, em como se importava com ele e sua família, especial­mente agora, quando poderia prejudicá-los com suas men­tiras.   Mas não tinha escolha. A verdade causaria proble­mas ainda maiores.

   Estava começando a chover, e Mairi viu as gotas gela­das caindo nas vidraças com força espantosa. Bartholo­mew e seus homens teriam de buscar abrigo contra aquele tempo inclemente, talvez até montando um acampamen­to. Nesse caso, não retornariam naquela noite, o que a deixaria nervosa e aflita por mais tempo.

   Respirando fundo, forçou-se a interromper a agitada ca­minhada pelo aposento e sentou-se, tomando a guitarra que havia pertencido à mãe das meninas. Girou os pregos para afiná-la, depois começou a tocar, esperando que a música a acalmasse. Ignorando o som da chuva e do vento, tentou esvaziar os pensamentos e não pensar nos perigos a que Bartholomew e seus cavaleiros estavam expostos.

   Depois de manipular algumas cordas, escolheu uma melodia que exigia toda sua concentração, uma peça com­plexa que aprendera com um músico francês em visita a sua cidade muitos meses atrás. Debruçada sobre o ins­trumento, moveu os dedos com habilidade e rapidez pelas cordas, parando e retomando o trecho sempre que cometia algum erro. O que acontecia com frequência.

   Não conseguia tirar Bartholomew de seus pensamen­tos. Mesmo assim, dedicava-se a produzir sua música com persistência ainda maior que antes, até não poder mais.

   Então deixou a guitarra sobre a cadeira e levantou-se. Naquele instante a porta se abriu.

   Bartholomew!

   Mairi emitiu uma exclamação de espanto ao vê-lo en­trar no aposento, chutando a porta para fechá-la. Ele abriu as presilhas do colete da armadura e deixou-o cair no chão, provocando um ruído metálico. A camisa de linho estava suja e molhada, como seus cabelos e seu rosto. Sua aparência era ameaçadora, perigosa, e Mairi recuou um passo enquanto ele se aproximava.

   Seus olhos ardiam ainda mais escuros, e ele a encarava enquanto atravessava o aposento com passos lentos, de­terminados. Ao parar diante dela, praticamente encurralando-a contra a parede, Bartholomew ergueu uma das mãos e tocou seu queixo.

— Não tenho pensado em nada que não seja você — disse, o tom soando zangado aos ouvidos de Mairi. — Du­rante todo o tempo em que percorri as colinas procurando pelo inimigo, tudo que via era seu rosto em minha mente. Sentia suas pernas nuas em torno de meu corpo, seus seios em minhas mãos. Então ele a beijou.

 

   Bart roçou sua boca com os lábios, quase incapaz de conter-se, temendo esmagá-la com a intensidade de sua ânsia.

   Não devia se importar com ela.

   Entrara no solar com o firme propósito de deitá-la dian­te da lareira e saciar seu desejo.     Mas, quando vira o medo em seus olhos, sentira que o instinto se tornava mais brando, menos urgente. Queria tê-la como antes, desejan­do-o, excitada e relaxada. Por isso conteve-se, tocando ape­nas seu rosto com as pontas dos dedos, beijando seus lá­bios com ternura.

   E esperou por algum sinal de que ela o queria tanto quanto a desejava.

   Mairi conteve o fôlego e abriu os olhos. De repente, ela o enlaçou com os braços e beijou-o com ferocidade espan­tosa, pressionando o corpo contra suas roupas sujas e en­sopadas, sem dar nenhuma importância ao prejuízo que causava às próprias vestes.

   Bart não pensou duas vezes. Puxou-a contra o peito, segurando sua cabeça, inserindo a língua entre seus lá­bios. Ela correspondeu de pronto, e o calor de sua boca o fez pensar no calor que encontraria quando a despisse e mergulhasse em sua feminilidade.

   Marguerite abaixou as mãos. Empurrando sua túnica para cima, ela tocou a pele de seu abdômen, do peito e dos mamilos. Sem interromper o beijo, usou o polegar e o in­dicador para massageá-los.

   Bart ouviu o próprio gemido aflito. Tinha de penetrá-la. Agora!

   Rápido, tomou-a nos braços e levou-a para a frente da lareira, onde a guitarra ocupava todo o espaço de um as­sento duplo. Colocando-a no chão, mudou o instrumento de lugar, despiu a túnica, removeu o restante das roupas e aproximou-se novamente dela.

   Marguerite tremia, mas isso não o impediu de levantar seu vestido, desnudando suas pernas. Por um momento o conde hesitou, mas ela tocou sua nuca e puxou-o em sua direção, tomando sua boca num beijo devastador.

   Um gemido rouco brotou de seu peito quando a língua encontrou a dele, como se ela estivesse esperando por aquele momento há dias. Emoções profundas, variadas e intensas o preenchiam por completo, e ele moveu a cabeça de forma a poder fitá-la.

   Nenhum dos dois disse nada. Quando os olhos se en­contraram, Bartholomew penetrou-a com um movimento firme e seguro, fechando os olhos para melhor desfrutar do prazer da união.

   Quando ele começou a se mover, Marguerite acompa­nhou seu ritmo. Por maior que houvesse sido o frio que sentira há pouco, de repente queimava com um frenesi que nunca havia experimentado antes. Os músculos so­friam com a tensão e ele se deliciava com as sensações que o corpo feminino proporcionava. Tomou seus lábios novamente para mais um beijo, engolindo seus gritos de prazer, derramando gota a gota em seu interior todo o prazer que o dominava no momento do êxtase.

   Tremendo, apertou-a entre os braços, aninhando-a até sentir que seu coração retomava o ritmo normal e a res­piração ganhava profundidade. Jamais conhecera tal emo­ção, nem se sentira tão íntimo de outra pessoa. Nem mes­mo com a própria esposa.

   Era perigoso demais pensar nisso.

   De qualquer maneira, sua falta de controle o assusta­va. Fora procurá-la movido pelo desejo de possui-la, mas nunca se imaginara fazendo amor com uma mulher da­quela maneira, no chão do solar, diante da lareira, cor­rendo o risco de ser surpreendido por um dos criados, pelos irmãos... Mas, diante da recepção calorosa e das evidências do desejo de Marguerite por ele, não fora capaz de controlar-se.

   Apoiado nos cotovelos, encarou-a e viu o torpor em seus olhos. Ela estava confusa, perplexa, e saber que sua reação ao ato era tão intensa quanto a dele só tornava a situação ainda pior. Não queria sentir-se ligado a ela. Não queria laços além daqueles que os uniam na cama.

   A maneira como Marguerite se insinuava em sua fa­mília, no vilarejo, era incidental.   Sabia que ela não estava mais interessada em seus irmãos ou nas condições do vi­larejo do que Felícia estivera.

   O conde levantou-se. Sem dizer nada, ela também er­gueu o corpo e ajeitou a saia. Não erguia a cabeça nem tentava encará-lo, mas Bart não queria que ela ficasse nervosa. Por isso segurou a mão dela, puxando-a para colocá-la em pé. Sem soltá-la, beijou-a nos lábios e levou-a para a porta.

— Venha comigo — disse em voz baixa.

   Ela não respondeu, seguindo-o para fora do solar e pelo corredor que conduzia aos aposentos do conde.

   Mairi sentiu o calor no rosto quando o seguiu através da porta... a porta que havia sido esquecida destrancada. Qualquer pessoa poderia ter entrado e surpreendido o ato de intimidade.

   Mal podia acreditar nos próprios atos. Praticamente o agarrara ao vê-lo entrar no solar. Mais tarde, quando pa­rasse para refletir sobre os momentos que passaram jun­tos, certamente ficaria aborrecido com seu comportamen­to indecente.

   Engolindo o constrangimento, Mairi se deixou levar pa­ra o quarto no final do corredor, além do dormitório de Kathryn e do aposento infantil. Já havia decidido que seria sua companheira, sua mulher, e faria de tudo para desempenhar o papel a contento. Afinal, planejava pas­sar o resto de seus dias em Norwyck, escondida de Lachann Armstrong.   Não pensaria nas consequências ago­ra, porque o presente era glorioso e queria vivê-lo com intensidade.

   Quando entraram no quarto, Mairi logo compreendeu que aquele era o domínio de Bartholomew. Havia uma cama espaçosa sobre uma plataforma cercada por pesa­das cortinas vermelhas. Havia um fogo aconchegante na lareira, e velas deixadas sobre as mesas iluminavam todo o aposento. Uma tina com água quente fora deixada dian­te da lareira.

   Ele se virou e encarou-a, inclinando a cabeça para bei­já-la nos lábios.

— Vai me servir? — perguntou entre beijos.

   Bartholomew despiu as roupas que vestira rapidamen­te antes de deixar o solar e exibiu-se nu e glorioso diante de seus olhos espantados. A visão quase a impediu de respirar.

   Ele era lindo. Mairi fez um esforço consciente para acalmar o coração diante do peito largo e amplo, do abdômen musculoso e das pernas firmes. Em silêncio, viu quando ele entrou na tina para banhar-se.

   Ousada, colocou-se atrás dele e tocou seus ombros. De­pois pegou o pano limpo que fora deixado ao lado da tina e, usando o sabão, começou a esfregar suas costas.

   Bartholomew suspirou e inclinou-se para a frente, fa­cilitando o acesso. Afastando os cabelos negros e brilhan­tes, ela esfregou sua nuca e a parte da frente do pescoço.   Deliciando-se com o tratamento, o conde ia mudando de posição na medida em que ela também ia passando de uma parte a outra de seu corpo. Era como se ele desse àquela mulher a possibilidade de assumir o controle da situação.

   O corpo de Bartholomew a intrigava. Não podia deixar de admirar a carne firme sobre os músculos definidos, saboreando as diferenças entre eles.

   Finalmente, deixando o pano dentro da água quente, usou as mãos para lavá-lo, tocando-o sem reservas ou constrangimento, até que ele agarrou seus pulsos e le­vantou-se. Saindo da banheira sem se importar com a água escorrendo pelo chão, Bart tomou-a nos braços.

   Ele a beijou com ardor, como se não houvessem feito amor momentos antes. Mairi respondia ansiosa.

— Desta vez não teremos pressa — Bartholomew sus­surrou, tomando sua mão para levá-la até a cama. Depois de afastar as cobertas, ele a fitou com a paixão estampada nos olhos. — Permita-me — disse.

   Dedicando-se a um verdadeiro assalto de sensualidade, ele deslizou as mãos pelo corpete do vestido que a cobria, detendo-se sobre os seios enquanto ia soltando as fitas que mantinham unidas as duas metades do traje. Ao vê-lo aberto, ele deslizou o tecido lentamente por seus braços, tocando-a nos ombros e em todos os lugares por onde os dedos iam deslizando.

   Mairi fechou os olhos e estremeceu de prazer. O vestido caiu no chão, e enquanto ficava ali diante dele usando apenas uma fina camisa, ouviu a voz rouca elogiar:

— Você é linda...

   As palavras, ainda mais do que os beijos, faziam com que se sentisse desejável e bela. A camisa também foi remo­vida de seu corpo, e finalmente o conde deitou-a sobre a cama, expondo sua nudez para com ela deleitar-se.

— Gostaria de tê-la à luz do dia. Assim poderia vê-la melhor.

— Oh, mas...

— Não há necessidade de segredos entre nós, Marguerite — ele murmurou, inclinando-se para beijar um de seus seios.

   Bartholomew sugava um mamilo como se dele sorvesse a seiva da vida, e era difícil sufocar os gritos de prazer que brotavam de seu peito. Oh, nada poderia ser mais maravilhoso!

— Pensei que esse dia nunca chegaria ao fim — o conde dizia, levantando a cabeça para fitar seus olhos.

   Mairi havia experimentado a mesma sensação, mas não tinha forças para falar. Não conseguia nem pensar en­quanto Bart a seduzia novamente. Fizeram amor deva­gar, e ele tocou cada parte de seu corpo com um misto de provocação e reverência. E cada toque alcançava também seu coração... sua alma.

   Ele havia sido tão cuidadoso que Mairi podia quase acreditar que era mais para ele do que uma conveniência, um amante a ser usada... e descartada quando ele se cansasse.

   Ainda estava escuro quando Bart acordou ouvindo ba­rulhos em seu quarto. O fogo queimava fraco, mas podia ver Marguerite perto da cama, vestindo-se apressada.

— O que está fazendo? — perguntou.

— Preciso retornar aos meus aposentos, meu lorde — ela explicou sem se deter.

— Por quê?

   A questão a fez parar.

— Senhor, não seria apropriado que suas irmãs me encontrassem aqui.

— Minhas irmãs nunca entram em meu quarto — ele disse. Em seguida se deu conta de que estava enganado. Eleanor não só havia entrado em seus aposentos, como tirara dali as valiosas jóias de Norwyck. Para isso, ela abrira uma caixa que mantinha trancada a chave.

— Os criados, então — insistiu Marguerite. — Seria horrível se Rose encontrasse minha cama vazia. — Ela ergueu os braços para segurar os cabelos enquanto enfia­va os pés nos sapatos, e o movimento criou em torno dela uma aura de vulnerabilidade. Bart não gostava do que sentia diante da impressionante visão.

— Isso não é problema dela. Nem de qualquer outra pessoa — o conde apontou com tom ríspido, levantando-se da cama para ir vestir o pesado robe que deixava sempre no encosto de uma cadeira.

— Mesmo assim, senhor, devo ir. Isso tudo é impró­prio... Quero dizer, eu não deveria...   Agitada, mordeu o lábio inferior e tentou encontrar uma maneira menos em­baraçosa de dizer que não queria ser encontrada nua em sua cama.

   Bartholomew quase sentiu a culpa que Walter tentara provocar nele com relação a Marguerite. Era bem prová­vel que ela fosse uma dama de origem nobre, alguém de uma renomada casa da França. E a deflorara sem consi­derar as eventuais consequências.

— Venha — disse, disposto a banir da mente todas as questões que não queria levar em conta. Segurando uma vela, segurou o braço de Marguerite e levou-a para fora do quarto, ao corredor gelado.

   Rápidos, subiram a escada para o quarto na torre, onde Bart reacendeu o fogo. Marguerite permanecia em pé, atenta aos seus movimentos, incapaz de compreender suas intenções.

— Dispa-se — ele ordenou. — E vá para a cama. Irei aquecê-la assim que o fogo estiver queimando como é con­veniente.

— Não, meu lorde.

— Sim, minha lady — ele persistiu, divertindo-se com seu constrangimento. — Se não quer passar a noite em minha cama, então ficaremos aqui, na sua.

— Mas meu se...

— Partirei antes que os criados deixem seus aposentos, Marguerite — ele explicou enquanto abanava as chamas. Não revelaria como detestava a idéia de passar o resto da noite sozinho em sua cama, porque isso seria o mesmo que confessar a necessidade que o surpreendia por sua intensidade. Queria tê-la a seu lado não só pelo alívio que seu corpo podia proporcionar, mas por algo mais. Sua pre­sença, poder abraçá-la... Isso era o bastante.

 

   Nas semanas desde que Bart fizera de Marguerite sua amante, havia um crescente sentimento de calma no castelo e também no vilarejo. Os homens retomaram o trabalho de construção da muralha sob a supervisão de Edwin Fayte, e não houve nenhum outro contratempo. Todos os feridos no acidente se ha­viam recuperado, exceto Symon, cuja perna ainda perma­necia imobilizada, e outro operário, cujo braço também fora quebrado.

   Os cavaleiros de Norwyck não encontraram nada em suas patrulhas regulares, com exceção de um vago sinal depois de uma forte chuva há algumas semanas, o de um homem viajando a pé pelas cercanias de Norwyck na direção do castelo Bramear. Por que um inglês iria para a fortaleza de Armstrong era algo difícil de entender, mas Bartholomew manteve a informação arquivada nos reces­sos de sua mente.

   Recentemente fora dominado por uma certa tendência para a complacência, e preocupava-se por pensar que di­vidir a cama com Marguerite poderia acabar por torná-lo mole demais. Assim, exercitava os cavaleiros, e ele mes­mo, de maneira incansável.   Praticavam sem misericórdia no campo de treinamento todas as manhãs, sempre usando espadas, escudos e lanças, e patrulhas eram realizadas todas as noites. Construiria uma presença tão forte de Norwyck nas colinas, que os Armstrong jamais teriam coragem de atacá-los.

   Bart ergueu os olhos da mesa ao ouvir a porta do es­túdio se abrindo.

— Ah, mas que surpresa! — Sir Walter entrou sorri­dente. — Está sentado!

   Bart ignorou o comentário e apontou para a folha de pergaminho que estivera lendo.

— Esta é uma carta de Bitterlee.

— Para Henry? O conde assentiu.

— Sim, meu caro Walter. Lorde Bitterlee aceitou meu irmão como seu escudeiro e promete treiná-lo dentro das mais rigorosas tradições da Cavalaria.

   Walter cruzou as mãos às costas e caminhou até o outro lado da sala.

— Desta vez o garoto vai mesmo nos deixar — comen­tou. — E quanto a John?                                  

— John vai ficar. Ele será meu escudeiro.

   Walter fez um breve movimento afirmativo com a ca­beça, como se não tivesse certeza de que essa fosse a me­lhor decisão, mas não quisesse contrariar seu senhor.

— Resta apenas determinar quando Hal deixará Nor­wyck — disse Bartholomew.

— Pretende escoltá-lo pessoalmente?

— Eu gostaria muito de ir, mas não...

— Tudo tem estado quieto nas últimas semanas — o cavaleiro cortou. — Estamos no inverno. Armstrong deve estar trancado em seu castelo, sentado ao lado do fogo, onde permanecerá até a primavera.

   O conde balançou a cabeça.

— Não acredito nisso. E você também não devia pensar dessa maneira, Walter. Armstrong atacará assim que pen­sar que relaxamos a vigilância.

— E assim, continuamos esperando. Por que não ata­camos?

— Não quero perder mais homens do que o necessário. Assim que a muralha estiver concluída, teremos melhores condições de defender o vilarejo e o castelo. Por conseguinte, perderemos poucos homens.

— Sim, eu sei. Mas é evidente que nunca vai pegar Lachann ou Dúghlas se continuar aqui esperando por eles.

— Já tomei minha decisão, Walter, e assim será. Pelo menos até a primavera. Talvez então tenha um plano di­ferente. Por enquanto, não desejo travar uma guerra con­tra os escoceses.

— E quanto a Henry? Também vai esperar até a pri­mavera para levá-lo à propriedade de lorde Bitterlee?

— É possível. — Bartholomew franziu a testa. — Em­bora Hal esteja ansioso para partir.

— É difícil deixá-lo ir — o cavaleiro indicou com ar compreensivo. — Mas o conde de Bitterlee é um homem bom e justo. Ele se casou recentemente, não?

— Sim.

— Algo que também deve levar em consideração. — Havia um tom estranho, quase ríspido no tom do velho cavaleiro, uma nota que Bart não ouvia desde que era apenas um garoto.

   O conde encarou-o sério.

— Não, Walter. Isso é algo que nunca mais voltarei a considerar.

— Lady Marguerite seria uma excelente esposa, meu lorde.

— Minha decisão não tem qualquer relação com ela.

— Prefere manter a pobre dama como sua prostituta particular? Como sua amante?

   Bartholomew levantou-se com tanta violência, que a cadeira caiu.

— Então, temos mesmo uma nova prostituta de Norwyck? — Walter acrescentou com sarcasmo intencional.

 O conde tinha a mandíbula tensa e uma veia pulsava em seu pescoço. Ele cerrou as mãos com força.

— Nunca mais, velho — disse em voz baixa, porém ameaçadora. — Nunca mais use esses termos para refe­rir-se a lady Marguerite. — Ele se aproximou do cavaleiro como se desejasse agredi-lo, mas o respeito pelo antigo conselheiro da família o fez mudar de idéia.

   Walter não recuou nem se deixou intimidar.

— O que mais devemos pensar, meu lorde? Os criados... até seus irmãos perceberam seus... seus recentes hábitos noturnos.

— Ninguém deve pensar coisa alguma! Esse assunto não é da conta de ninguém aqui!

— Se é o que pensa, meu lorde... — Sir Walter incli­nou-se e caminhou para a porta. — Desculpe-me por apon­tar o que já devia saber.

   Sozinho, Bartholomew permaneceu em pé e sem fala. Depois virou-se e, furioso, chutou a cadeira que havia der­rubado. O que existia entre ele e Marguerite não era da conta de ninguém. Ninguém!

   Pegou a carta de Bitterlee mais uma vez, mas jogou-a sobre a mesa sem ler a mensagem.

   Não se casaria novamente. Não importava o que Walter e os outros diziam sobre sua ligação com Marguerite. Ela jamais se tornaria sua esposa.

   Chocada, Marguerite girou sobre os calcanhares e cor­reu para longe do estúdio de Bartholomew Estava erguen­do a mão para bater na porta quando ouvira as vozes alteradas. Sem dúvida, não devia ter ouvido aquela con­versa entre Bart e sir Walter, e nem fora capaz de ouvi-la inteiramente. Mas o que escutara havia sido o suficiente.

   Era a nova prostituta de Norwyck.

   Com o coração na garganta, puxou o xale sobre os om­bros e desapareceu além da primeira porta que viu. Fazia muito frio, mas Mairi nem notava, pois correra através de todo o corredor e dos galpões para o desolado jardim de inverno. Continuou andando até encontrar a cabana, o lugar onde Bartholomew quase a seduzira certa vez, num passado que agora parecia muito distante.

   Manejando a tranca da porta, conseguiu removê-la, de­pois empurrou-a e entrou, chorando abertamente agora que se encontrava abrigada de olhares curiosos e pergun­tas inoportunas.

   Eram lágrimas tolas, bem sabia. Mas doía saber que não passava de uma prostituta para Bartholomew, de uma mulher que ele usava de acordo com sua conveniên­cia. E doía ainda mais tomar consciência de que todos em Norwyck sabiam disso.

   Qualquer que houvesse sido o propósito de sua ida ao estúdio de Bartholomew, já nem podia lembrar qual fora o assunto. Estava totalmente entregue ao sofrimento e ao arrependimento, especialmente porque não havia al­ternativa para seu presente curso de ação.

   Se voltasse para o Castelo Braemar, logo estaria casa­da com Carmag MacEwen. Se contasse a Bartholomew que era Mairi Armstrong, era bem provável que ele a usasse como refém na troca por Dúghlas. Bart odiava seu amor e não hesitaria em matá-lo e exterminar Lachann por seus lamentáveis e detestáveis erros relacionados a Norwyck.                                                        

   No final, isso provocaria uma guerra muito pior do que todas as rixas por fronteiras nas quais lorde Norwyck já estivera envolvido. Muitos homens seriam feridos e mor­tos se Lachann e Carmag unissem forças, e Mairi não podia prevenir Bartholomew sem revelar sua identidade.

   Não. Sua única alternativa era ficar e assumir o papel de prostituta do conde. E ouvir a expressão da boca de sir Walter havia sido tão doloroso quanto uma bofetada.

   A ausência de uma negativa por parte de Bart doera ainda mais.

   Esgotadas as lágrimas, ela limpou o rosto com a ponta do xale. Voltaria ao que estivera fazendo antes de ouvir a conversa entre Bartholomew e seu mais velho cavaleiro. De cabeça baixa, abriu a porta da cabana e saiu. Eleanor aproximava-se de mãos dadas com o irmão mais velho.

   Era tarde demais para tentar esconder-se no interior da cabana, porque a menina já a vira e corria em sua direção.

— Lady Marguerite!

   Rápida, Mairi virou-se e tentou apagar das faces os últimos vestígios das lágrimas, odiando a idéia de ter de explicá-las.

— Devia ter ido buscar Bartie para... O que aconteceu? Esteve chorando? — a criança indagou apreensiva.

— Não é nada. — Era difícil, mas precisava sorrir a fim de convencê-la. Não tinha forças para encarar Bar­tholomew, que também se aproximara e a observava pa­rado atrás da irmã.

— Estava chorando!

— Não, Eleanor. É só uma poeira que entrou no meu olho.

— Deixe-me ver — disse o conde, dando alguns passos em sua direção. Ele flexionou os joelhos e tocou seu rosto, virando-o para a luz.

   Mairi sofreu um violento tremor provocado pelo contato e recuou.

— Não é nada — insistiu, fugindo apressada pelo ca­minho que levava ao castelo. — Não íamos ao vilarejo? — perguntou, lembrando o que a levara ao estúdio de lorde Norwyck.

   Algo estava errado ali. Bart aprendera a conhecer o rosto de Marguerite e interpretar suas expressões tão bem quanto as dele próprio, mas aquela... jamais a vira antes. E não gostava do que via.

   Ela estivera chorando, e não queria que ninguém sou­besse disso. A constatação o aborrecia mais do que gos­taria de admitir. Não que acreditasse estar sendo vítima de uma mentira. Também não suspeitava de que ela guar­dasse algum segredo obscuro e perigoso. Sabia que não era nada disso. Marguerite não tivera contato com nin­guém além dos criados e alguns morados do vilarejo, e isso o levava a crer que seu objetivo em Norwyck era tão inofensivo quanto ela afirmava.

   Mas algo a perturbara. E o instinto dentro dele des­pertava um estranho sentimento de proteção. Queria destruir o que quer que houvesse causado aquelas lá­grimas.

   Pensou em levá-la de volta ao castelo e ao quarto da torre, onde compartilhavam tantas horas agradáveis.

— Bartie, quer ir conosco ao vilarejo? — Eleanor con­vidou, caminhando ao lado dele e segurando sua mão.

— O que vai fazer lá? — ele quis saber.

— A mãe de Tildy teve bebê ontem à noite, e eu quero ir conhecê-lo.

— O que a faz pensar que posso estar interessado em ir ver o mais novo bebê do moleiro?

— Não pensei que quisesse ir ver a criança. Mas lady Marguerite disse que talvez você pudesse ser convencido a caminhar conosco até o vilarejo.

— Ah... — ele exclamou, tomado por um prazer absurdo e instantâneo. Então, ela pensava em meios de buscar sua companhia?

   Eleanor soltou a mão do irmão e correu até uma grande rocha na beirada de um pequeno lago. Ela saltou sobre a pedra, passando para outra e para uma terceira, manten­do os braços abertos para manter o equilíbrio. Um passo em falso e ela cairia na água gelada.

— Por isso ela devia ter ido procurá-lo no estúdio — a menina dizia enquanto saltava de uma rocha para outra. — Mas ela estava no jardim!                        

— Eleanor, desça daí! — Mairi ordenou com firmeza. Bartie aproximou-se da irmã e segurou-a pela cintura antes que pudesse acontecer um acidente. Segurando a mão dela, levou-a para longe do lago.

— Às vezes acho que Hal tem razão quando a chama de peste — disse.

   Ellie pôs o lábio inferior para a frente fingindo-se de ofendida, mas a encenação não durou muito. Logo ela ria e falava sem parar, impedindo Bartholomew de questio­nar Marguerite.

   Por que ela não fora procurá-lo no estúdio, como havia combinado com Eleanor? Se realmente queria sua com­panhia no passeio ao vilarejo, então...

   Por Deus! E se ela houvesse escutado sua conversa com Walter?

   Tentou lembrar o exato conteúdo da discussão com o velho cavaleiro, mas era impossível. Lembrava apenas de que Walter a chamara de prostituta de Norwyck,

   Chegaram ao casebre do moleiro e entraram. A amiga de Eleanor ficou muito alegre com sua presença, e o res­tante da família apressou-se em tornar o ambiente mais apresentável e digno de receber o senhor daquela região. Era para eles uma honra apresentar o filho mais caçula ao conde.

   Inquieto, Bart viu Marguerite acalmá-los, brincar com as crianças maiores e elogiar a beleza do recém-nascido. Aos seus olhos, a criatura era apenas um pequeno pacote avermelhado que gritava sempre que era tirado dos bra­ços da mãe.

   Mas Marguerite pegou-o e, suportando seus gritos, em­balou-o até fazê-lo silenciar.

   Seus olhos tinham uma expressão extraordinária, e ele se descobriu massageando o peito e desejando poder es­murrar alguma coisa. Sir Walter não devia ter dito coisas tão horríveis. Não quando sabia que a conversa podia ser ouvida.

— Meu lorde, sua presença honra minha casa — o mo­leiro disse com humildade. — Sirva uma caneca de cer­veja para o conde, rapaz — ele ordenou ao filho mais velho.

   Bart aceitou a oferta, embora não quisesse beber nada nem esvaziar os estoques do trabalhador. Mas uma recu­sa teria sido ofensiva à hospitalidade do pobre homem.

— É um belo...

— Menino, meu lorde — o moleiro disse com alegria e orgulho. — Mais um homem em nossa família.

— Bem, minhas congratulações, meu caro. — Bart er­gueu a caneca num brinde rápido antes de beber a cerveja.

— Deixe-me vê-lo — Eleanor sussurrou, aproximando-se de Marguerite e puxando seu braço para que ela abai­xasse o bebê.

   Marguerite sentou-se em um banco perto de uma mesa rústica e inclinou-se para a menina. O xale que cobria seus cabelos escorregou até os ombros, revelando a bri­lhante massa de caracóis que lembrava um manto de pura seda. Os dedos delicados puxaram o cobertor que envolvia o bebê até o queixo, exibindo o rosto avermelhado para os olhos curiosos de Eleanor.

   Bartie assistia à cena transfixado. Marguerite sorria, murmurando palavras doces que pareciam ser compreen­didas pelo pequenino.

— Ele tem uma covinha no queixo — notou Ellie.

— Sim, eu já vi — Marguerite confirmou. Bart viu o movimento em sua garganta quando ela engoliu em seco, e teve a impressão de que ela choraria outra vez, embora não compreendesse por que algo tão simples pudesse cau­sar emoção tão forte. — Olhe só os dedinhos...

   Os olhos de Bartholomew seguiram as mãos dela. Cui­dadosa, ela erguia as mãos do bebê e exibia diante de seu olhar surpreso uma miniatura perfeita de dedos e unhas. De repente soube que milagre era aquele, algo que jamais notara antes.

   Marguerite virou-se de repente, mas não antes de Bart ter visto uma lágrima correndo por seu rosto.

— Venha, vamos brincar — Tildy sugeriu, segurando a mão de Eleanor e puxando-a para longe do bebê. — Podemos ver Willie sempre que quisermos.

— Willie? — Bart repetiu. — Deu ao seu filho o nome de meu irmão? — indagou, encarando o moleiro sem dis­farçar a surpresa.

— Ah... Sim, meu lorde — o homem respondeu cons­trangido. — Espero que não esteja ofendido...

— Não! É claro que não estou ofendido. — Mas estava perturbado. Muito perturbado. Era demais para um só dia. Primeiro as lágrimas de Marguerite, agora a home­nagem a Will. — É bom saber que ainda se lembram de meu irmão.

— Ele foi um bom homem, meu lorde.

   Bart assentiu, sentindo a perda mais uma vez. Will teria sido muito melhor na posição de senhor de Norwyck. O título e as responsabilidades não haviam feito parte de seus planos quando ele partira para lutar na Escócia três anos atrás. Seu maior desejo havia sido retornar para a esposa assim que concluísse seus serviços pelo rei Edward, e depois construir um lar na mansão que fizera parte do dote de Felícia. Sonhara criar muitos filhos e filhas, como seu pai havia feito.

   Como viúvo de Felícia, Bart ainda era proprietário dos bens obtidos através do casamento, embora não tivesse nenhum interesse em visitar tais propriedades. As casas estavam fechadas e entregues ao abandono, embora os terrenos ainda recebessem os cuidados dos camponeses, que tiravam daquela terra seu sustento. Talvez doasse a maior mansão a Marguerite quando se cansasse dela.

   O problema era que não conseguia acreditar que esse dia chegaria.

   Mairi jurou nunca mais permitir que Bartholomew vis­se suas lágrimas. O que não seria difícil, porque pretendia viver até o último de seus dias sem chorar novamente.

   Embora não tivesse escolha com relação ao seu destino imediato, a vida poderia ser muito pior. Se houvesse sido levada pelo mar alguns quilômetros ao norte do ponto da praia onde fora encontrada, certamente já se teria torna­do esposa de Carmag MacEwen, o grande proprietário de terras.

   Estava deitada ao lado de Bartholomew, e ele dormia depois de tê-la amado com imensa gentileza. Era como se seus sentimentos por ela houvessem mudado. Sabia que ele jamais falaria de amor, mas faria tudo que estivesse aos eu alcance para garantir a satisfação do conde. Ja­mais daria a ele motivos para desprezá-la ou descartá-la, nem demonstraria sofrimento ou pesar pela posição que ocupava em sua vida.

   Faria de tudo para que ele a apreciasse na cama. De forma que nunca pudesse desejar outra. Havia aprendido muito com o conde naquelas últimas semanas, e agora sabia mais sobre as necessidades de um homem, sobre o que uma mulher pode fazer para saciá-las.   Ele também revelara as delícias de seu próprio corpo, e era incansável em excitá-la para depois satisfazê-la.

   Bartholomew estendeu o braço em sua direção.

— Ainda acordada? — murmurou, beijando seu rosto.

— Humm...

— Venha aqui — disse, puxando-a sobre seu peito. — Deixe-me sentir seu sabor.

   Ela se virou para encará-lo, enchendo os pulmões com seu cheiro enquanto os lábios buscavam os dela. Aprecia­va aquela proximidade que sempre encontravam depois das primeiras horas de sono, momentos nos quais Bart a beijava e abraçava, acariciando seus cabelos até fazê-la adormecer novamente.

   Os sentimentos por ele ganhavam força e intensidade dia após dia, alimentados pela rotina diária. Adorava ob­servá-lo quando ele cumpria suas tarefas, quando treina­va os cavaleiros e cuidava da família, quando garantia a segurança do vilarejo e o bem-estar de seus moradores. Ele era um homem responsável e zeloso, embora prefe­risse fazer todos em Norwyck acreditarem que era duro e frio.

   Quando Mairi acordou na manhã seguinte, ele já se havia levantado, como era de hábito. Sabia que ele trei­nava todos os dias antecipando a batalha que eventual­mente teria de travar contra os Armstrong. Sir Walter o convencera a reunir mais cavaleiros, esperando que a ba­talha ocorresse em breve, mesmo que Bartholomew não a desejasse.

 Mairi permaneceu no aconchego da cama por mais al­guns minutos, sabendo que o chão estaria frio quando se levantasse, apesar de Bart ter alimentado o fogo na la­reira antes de sair. Quando finalmente reuniu coragem para deixar o calor dos cobertores, ela teve de sentar-se novamente para não cair. Estava tonta como havia acon­tecido depois do naufrágio. E enjoada.

   Erguendo um braço, tocou a região da testa onde so­frera o ferimento, mas só encontrou um leve inchaço dei­xado pelo corte e pelo hematoma que marcara sua pele semanas antes. Não era essa a causa de sua náusea.

   Engolindo em seco várias vezes e respirando fundo, ten­tou superar o mal-estar, mas acabou tendo de correr para a bacia, onde vomitou. A tontura persistia, e Mairi sen­tou-se no chão frio, confusa com seu estado. O que estaria acontecendo?

   Então ela compreendeu tudo. Vira Caitir suportar aqueles mesmos sintomas quatro vezes, uma para cada filho e mais uma para o bebê que sua filha perdera.

   Estava grávida.

   Por mais assustadora que fosse a situação, era mara­vilhoso saber que carregava no ventre um fruto de seu amor por Bartholomew.

 

   Bart parou na porta do solar e viu Marguerite debruçada sobre a lira. Ela cantaro­lava enquanto manejava as cordas. Insatisfeita com o som que produzia, tentava novamente, mudando as notas de forma a obter a melodia desejada.

   Não podia ver seu rosto, porque os cabelos o escondiam, mas sabia que havia uma ruga entre suas sobrancelhas. Vira essa mesma expressão antes sempre que ela estava compenetrada buscando a perfeição, ou quando trabalha­va com afinco em alguma coisa qualquer.

   Também vira expressões de humor, sofrimento e prazer em seu rosto. E admirara cada uma delas.

   Recentemente passara a ponderar sobre o que aconte­ceria quando ela lembrasse o próprio nome e de onde vie­ra. Imaginava se ela deixaria Norwyck. Se o deixaria.

   Nada no castelo seria como antes.

   Rápido, tratou de endurecer o coração contra sentimen­tos tão ternos. Não havia lugar para eles em sua vida. E há muito decidira manter Marguerite relegada a sua ca­ma.   Ternura, ou o amor cantado pelos menes­tréis, eram coisas que não cabiam em sua vida, e preten­dia manter tal situação inalterada.

   Era mais difícil manter a resolução durante à noite, quando ela buscava o calor de seu corpo e se deixava abra­çar, quando a envolvia com os braços e entrelaçava as pernas nas dela. Mas nesses momentos estava sonolento, inconsciente, o que o tornava inimputável por suas estra­nhas ações.                                                      

— Meu lorde! — ela exclamou, levantando a cabeça e notando sua presença. — Assustou-me!

— Não foi essa minha intenção. — A voz soava mais fria do que pretendia.

— Ainda é cedo — Marguerite comentou, deixando a lira no chão a seus pés. — Não imaginei que já estivesse de volta.

— Hal e John ainda estão no campo de treinamento — ele disse, aproximando-se com ar determinado. — Minhas irmãs foram ao estábulo com sir Walter a fim de conhe­cerem o novo potro.

— Ah... Notei que o castelo estava quieto demais.

— Tem planos para esta tarde? Pretende desenvolver alguma atividade com minhas irmãs?

— Não, meu senhor.

— Nesse caso, venha cavalgar comigo. — Ele estendeu a mão reforçando o convite. — Iremos até a praia. O dia está claro e ensolarado, embora frio, e daqui em diante o inverno se tornará mais e mais rigoroso, impossibilitando esses passeios.

   Ela se levantou.

— Seria...

   Diante do conde, a mulher perdeu a cor e teria caído, não fosse a prontidão com que ele a amparou e deitou-a sobre um divã. Preocupado, friccionou seus pulsos e bateu em suas faces, tentando trazê-la de volta à consciência. Apesar da decisão de não sentir nenhuma ternura por ela, foi tomado pelo pânico diante da total ausência de reações, e estava prestes a chamar um lacaio para man­dar buscar Alice Hoget no vilarejo, quando Marguerite abriu os olhos.

— O que...

— Você desmaiou — ele disse. Intrigado, passou a mão na cabeça. Depois tocou-a na testa, no pescoço e no rosto.

— Isso é absurdo, meu lorde — ela protestou, moven­do-se para sentar-se. — Eu nunca desmaiei!

— Como pode saber? — Se não tinha memória, era impossível que tivesse tanta certeza do que dizia.

— Eu... não sou do tipo que costuma desmaiar. E sa­beria se fosse.

— Fique quieta e repouse, está bem? — O súbito mal-estar o alarmava. Marguerite podia negar o desmaio, mas vira com os próprios olhos quando ela empalidecera e caí­ra. Não havia como enganar-se.

— Eu me levantei muito depressa, senhor. E... hoje não almocei. Estou com fome.

— Se é só isso... Marguerite sentou-se.

— Garanto que é só isso, Bartholomew. Estou muito bem. Vou comer alguma coisa, e depois sairemos para cavalgar.

   Aceitando sua mão, ela se levantou, mais devagar des­sa vez, e saiu do solar em sua companhia. Parecia estar bem, mas era pavoroso pensar que Marguerite podia cair vítima de alguma enfermidade. Ainda havia uma intensa palidez em seu rosto, mas ela se movia com o vigor usual.

   Bartholomew tentou livrar-se da preocupação. Talvez fosse apenas a fome o motivo do desmaio. Ou talvez ele a estivesse impedindo de dormir o suficiente à noite.

   Qualquer que fosse a causa, ficaria atento até ter cer­teza de que ela não estava doente.

   Foram até a cozinha, onde Bartholomew deu ordens ao cozinheiro para que Marguerite fosse alimentada. Quan­do a refeição foi servida, ele levou a bandeja ao seu estú­dio, onde se sentaram juntos à mesa perto da lareira. Bart insistiu para que ela comesse tudo que havia no prato.

— Não sou nenhuma inválida, meu lorde — Marguerite protestou irritada. — Posso cuidar de mim mesma.

   Seu comportamento o intrigava. Só a vira impaciente e nervosa uma vez antes, mas hoje ela não só desmaiara, como o tratava como se quisesse esganá-lo com as pró­prias mãos. A cor voltara ao seu rosto, e ela estava ainda mais linda do que nunca, com um brilho nos olhos e na pele que não podia ser atribuído apenas à luz do sol pe­netrando pelas janelas estreitas.

— Por favor, não se ofenda com minha pergunta, lady Marguerite, mas sente-se bem o bastante para ir cavalgar?

— Sim — ela respondeu altiva. — Estou ótima.

   Mairi não deixava os limites da propriedade há dias, e Bartholomew não podia ter escolhido dia melhor para a cavalgada. Apesar do frio, não havia vento e o sol bri­lhava forte sobre um mar sem ondas.

   Ela seguia sentada sobre Pégasus, entre as pernas de Bart. Sabia que se comportava com uma megera desde o episódio do desmaio, mas havia ficado chocada e assus­tada com a própria impotência. E se a gravidez a incapa­citasse? Já havia decidido não revelar nada a Bartholo­mew, pelo menos enquanto ele não notasse as mudanças em seu corpo e não tivesse outra alternativa se não con­fessar.

   Porque uma amante grávida seria inútil para ele.

   Ouvira com os próprios ouvidos quando ele havia anunciado não ter nenhuma intenção de casar-se outra vez, e estava certa de que o conde nunca pensaria em unir-se a uma sobrevivente de um naufrágio que nem nome pos­suía. Não. Se algum dia mudasse de idéia e contraísse novo matrimônio, seria apenas com o propósito de aumen­tar suas propriedades. Nunca para dar seu nome a um pobre bastardo.

   Apoiando as costas contra o peito musculoso do conde, ela baniu da mente os pensamentos desanimadores. O dia era lindo e sempre amara a liberdade dos espaços abertos. Cavalgar entre os braços de Bartholomew era quase a realização de um sonho.   Sentia-se corajosa e dis­posta à aventura enquanto atravessavam a faixa de areia branca.

— Quer voltar à choupana do velho Jakin? — Bart perguntou com tom sugestivo.

   O hálito morno em sua nuca causava arrepios, e a ideia de voltar à velha cabana a excitava. Mas ainda se sentia um pouco cruel, dominada pelo ímpeto de contrariá-lo.

— Não, meu lorde — disse com tom bem-humorado, virando-se para que ele pudesse ouvi-la. — Quero ver algo novo.

   Habilidoso, Bart conduziu o animal pela praia num ga­lope frenético que era ao mesmo tempo assustador e es­timulante. Com o mar à direita e árvores frondosas à esquerda, eles sentiam o vento no rosto e viam as impo­nentes muralhas de Norwyck erguendo-se à frente de on­de estavam. A torre era o ponto mais alto do castelo, e Mairi podia ver as janelas de seu quarto refletindo a luz do sol. Era ali que sempre ficava observando o mar no qual Alain perdera a vida.

   Bartholomew estreitou os braços em torno de seu corpo e inclinou-se para a frente, incitando o cavalo a continuar galopando. Seguiram por alguns quilômetros que pare­ciam intermináveis, como se a areia e o oceano se esten­dessem até o infinito, e quando ele reduziu a velocidade perto de uma encosta rochosa, Mairi imaginou se ainda estavam nos domínios de Norwyck.

   Virou-se para questioná-lo, mas ele engoliu a pergunta com um beijo. De repente soltou-a, desmontou e segurou-a pela cintura para tirá-la de cima de Pégasus. Enquanto a descia lentamente, sempre promovendo um contato ín­timo e sensual entre os corpos, ele a ia beijando sem pres­sa, despertando sensações que Mairi jamais imaginara poder experimentar.

   As mãos femininas acariciavam seu peito, arrancando gemidos de prazer de sua garganta. O som rouco a exci­tava, incentivando-a a seguir os impulsos mais ousados. Atrevida, ela inseriu as mãos sob a túnica e foi descendo lentamente até encontrar o volume rígido e pulsante de sua intimidade.

   Bartholomew gemeu. Depois de permitir que o afagas­se por alguns instantes, segurou seu pulso e devolveu seus dedos ao peito musculoso, indicando que não se sen­tia capaz de suportar o desejo que ela provocava.

   Gratificada pelo sucesso, ansiosa para provocá-lo ainda mais, Mairi soltou-se e correu pela praia na direção da encosta, rindo e divertindo-se como uma criança.

   Bartholomew não esperava essa atitude, e por isso ela teve uma boa vantagem. Mesmo assim, quando se dispôs a persegui-la, o conde alcançou-a em minutos com passos largos e poderosos. Mairi estava sem fôlego quando ele a agarrou pela cintura e puxou-a contra o peito, girando para amenizar o impacto da queda com o próprio corpo.   Rindo, ela se viu deitada sobre o conde, fitando o rosto confuso e intrigado. Com movimentos insinuantes, acari­ciou o corpo totalmente excitado e encontrou grande pra­zer em sua reação.

— Marguerite...

   Ao ver os olhos profundos, escuros e cheios de promes­sas sensuais, ela sentiu que o riso morria em sua gargan­ta. Prolongando o momento de intimidade, afagou os ca­belos que caíam sobre sua testa e beijou-o no rosto. Depois beijou seus lábios. Sentia-se plena e cheia de vida nesse momento, com o conhecimento de que levava no ventre um filho dele.

— E uma pena que o tempo esteja frio demais para maiores intimidades, meu lorde.

   Ele riu.

— Isso é o que você pensa, minha lady. — Aproveitando o momento de confusão, ele a ergueu e levantou-se, le­vando-a até um grupo de árvores que formavam uma es­pécie de abrigo natural. Estendendo seu manto no chão, Bart sentou-se com as costas apoiadas em um tronco.

— Venha — chamou-a. — Sente-se aqui.

   Ela aceitou o convite e acomodou-se a seu lado no man­to, mas o conde segurou-a pelos braços e guiou-a sobre seu corpo de forma que o cavalgasse. A boca apoderou-se da dela num beijo ardente, e ele deslizou as mãos sob seu vestido.

   Mairi logo compreendeu sua intenção ao sentir que o conde manejava as amarras das próprias ceroulas. Ele a ergueu alguns centímetros, e quando a acomodou nova­mente sobre seu membro rígido, penetrou-a sem nenhu­ma dificuldade. Um som de prazer brotou de seu peito, e ela começou a se mover. Bart fechou os olhos e jogou a cabeça para trás.

— Marguerite... — sussurrou.

— Sim, meu lorde — ela respondeu com fervor, sem interromper os movimentos.

   Se lorde Norwyck descobrisse sua gravidez amanhã e a expulsasse do castelo, pelo menos teria na memória o dia de hoje.

   Bartholomew atravessou um dos galpões rumo ao cam­po de treinamento. Pela primeira vez desde que se lem­brava, relutara em deixar a cama.

   Ainda era muito cedo, e Marguerite continuava em seu quarto na torre, dormindo profundamente. E com bons motivos.

   Bart respirou fundo. Ainda podia sentir a fragrância tentadora de seu corpo excitado. Podia sentir a suavidade da pele sob suas mãos calejadas. Os suspiros de prazer que ela emitira ainda ecoavam em seus ouvidos.

   Ela se mostrara insaciável na noite anterior. O interlúdio na praia levava a mais horas de sexo criativo e ma­ravilhoso no quarto da torre. E ainda tinha a sensação de que não se fartara dela.

   Algum dia se cansaria?

   Havia alguma maneira de ligar-se a ela para sempre?

   Não gostava de admitir tal coisa, mas sentia por Mar­guerite o que jamais sentira por nenhuma outra mulher. Ela era honesta e verdadeira. Sem memória, também era inteiramente manipulável. Desde que chegara em Nor­wyck, Marguerite não tivera liberdade para deixar a pro­priedade ou envolver-se em algum plano, como Felícia havia feito.

   Mesmo assim, sentia na alma que ela era honrada e virtuosa, e que as qualidades persistiriam mesmo que ela soubesse seu nome. Cada palavra que pronunciava, cada atitude que tomava atestavam sua honra. Ela havia encantado John, amenizado o sofrimento de Kathryn e do­minado Eleanor melhor do que qualquer outra pessoa. Até Henry a respeitava.

   Sir Walter queria vê-lo casado com ela. O velho senhor não perdia uma oportunidade de tentar convencê-lo da adequação dessa união. Tão empenhado estava o cavalei­ro, que chegara a tentar envergonhá-lo chamando Marguerite de prostituta de Norwyck.

   Pois bem, talvez o velho amigo e conselheiro estivesse mais próximo do sucesso do que podia imaginar.

— Meu lorde — chamou sir Duncan, o encarregado de manter a ordem e a disciplina entre seus comandados.

   Bart abandonou os pensamentos e parou para ouvi-lo.

— Existem relatos no vilarejo dando conta de que al­guns animais foram roubados.

— Relatos confirmados?

— Sir Walter foi até lá com o capataz, e os dois estão interrogando os homens.

— Seguiremos para o vilarejo assim que sua compa­nhia e a de sir Stephan estiverem prontas. — A calmaria se prolongara por semanas. Não existira nenhum sinal de ofensa contra Norwyck, e Bartholomew ficara preocu­pado. Agora sabia por quê.

   Chegaram ao estábulo, onde Pégasus já havia sido pre­parado para partir. Bart montou.

— Digam aos homens que devem estar armados para a batalha, mas deixem um contingente considerável aqui para que o castelo seja protegido. Estarei esperando no portão oeste.

   O conde olhou para a torre e viu um movimento na janela. Era Marguerite. Ela vestia algo simples e branco, e os cabelos soltos caíam cintilantes sobre um seio. De onde estava, não podia discernir muito, mas via a mão delicada pressionada contra o vidro.

   Uma estranha sensação desabrochou em seu peito, co­mo se os pulmões estivessem cheios demais. Ergueu a mão como se pudesse tocar a dela. Respirando fundo, fez uma rápida mesura e partiu na direção do portão oeste.

   A ligação que havia sentido entre eles era impressio­nante. Havia sido como se um cordão invisível os unisse, ligando almas, corações e mentes. Quando retornasse ao castelo, verificaria qual era a opinião de Marguerite sobre o casamento.

   Um grupo de homens se reunia em torno de sir Walter e do capataz Edwin Gayte, e todos falavam ao mesmo tempo. Estavam zangados e preocupados com a perda de seus animais. Com a chegada de lorde Norwyck, todos silenciaram.

   Ele se manteve sobre o cavalo.

— E então, sir Walter? — perguntou. — Qual é sua conclusão?

— Meu senhor, pelo que ouvi aqui, vários animais de­sapareceram de nossos campos ao sul.

   Um músculo na mandíbula do conde sofreu uma contração involuntária.

— Quantos animais?

— Oito vacas, meu senhor. E doze carneiros.

— Até agora... — acrescentou Walter. — Alguns ho­mens do vilarejo ainda não retornaram para anunciar o resultado de suas contagens.

— Um contingente permanecerá aqui para proteger Norwyck enquanto estivermos fora — decidiu Bart. — Sir Walter ficará no comando.

   Era evidente que Armstrong conhecia os pontos mais vulneráveis de Norwyck. O gado era necessário para o fornecimento de leite e do queijo, mas a perna dos car­neiros representava a perda de sua valiosa lã. Uma mu­ralha em torno do vilarejo não protegeria o gado, portanto Bart não tinha outra alternativa se não demonstrar sua superioridade numa batalha. Tinha muitos cavaleiros a seu serviço, mais do que Armstrong jamais poderia so­nhar reunir. Lachann seria obrigado a pensar duas vezes antes de atacar Norwyck novamente, qualquer que fosse a forma do ataque.

   Companhias de cavaleiros montados chegaram ao vi­larejo, e Bart cravou os calcanhares nos flancos do ani­mal, levando-a para além da muralha inacabada.

   Seguia na direção do vale, para Braemar.

   O sol se erguera completamente quando alcançaram a parte mais baixa do vale, e foi ali que os homens de Norwyck encontraram os animais mortos. Dez vacas no total. Quatorze carneiros. Cada um deles com uma flecha no peito.

   Bart sentia-se enojado. Os bastardos Armstrong nem se haviam dado ao trabalho de remover a lã da carne ensanguentada. Para eles a matança daqueles animais era apenas um exercício, um método arrogante de de­monstrar desprezo por Norwyck.

   Bartholomew não sabia o que causava um ódio tão in­tenso dos Armstrong por Norwyck, mas não permitiria que essa última ofensa passasse sem retaliação. Havia esperado que uma defesa superior mostrasse ao inimigo a futilidade de seus ataques, mas sua estratégia falhara. Sentindo uma raiva maior do que jamais havia experi­mentado, reuniu os homens em fileiras atrás dele e seguiu para o Castelo Braemar com a firme intenção de promo­ver uma batalha decisiva. Como Norwyck nunca havia atacado os escoceses em sua fortaleza, a ação seria inesperada. Além do mais, os cavaleiros de Armstrong esta­riam exaustos depois do trabalho covarde daquela noite, e Norwyck saberia fazer uso dessa vantagem.

   Cavalgaram sem descanso por cerca de uma hora, de­pois pararam para dar água aos cavalos. Quando retoma­ram a cavalgada, restava ainda uma hora para que al­cançassem o vale arborizado logo abaixo de Braemar. Seus homens buscaram cobertura no bosque exuberante.

— Meu lorde? — Sir Stephan adiantou-se. Escoceses armados com espadas e arqueiros atentos patrulhavam toda a área em torno do castelo. Cabanas dilapidadas cobriam a parte mais baixa da encosta, o que tornava impossível atacar sem ferir mulheres e crianças. Boa parte do solo na base da colina era pantanoso e inadequado para ser percorrido sobre montaria, pelo me­nos para um exército montado. Considerados todos os fatores, um ataque direto ao castelo estava fora de questão.

— Eles esperam por nós — Bart concluiu. — Mande alguns homens explorarem o terreno abaixo do castelo. Mas oriente-os para que sejam cuidadosos. Deve haver homens de Armstrong espalhados por todas as partes.

— Sim, meu lorde — Stephan murmurou.

— Duncan — chamou Bartholomew. — O resto dos homens deve permanecer aqui, mas em prontidão para o caso de atacarmos ou sermos atacados.

— Sim, meu lorde.

   Sério, Bartholomew conduziu Pégasus para a parte mais fechada do bosque, onde amarrou o cavalo. Depois começou a caminhar enquanto considerava seu plano.

   Era evidente que não seria possível vencer uma bata­lha naquele mesmo dia. Tinha muitos cavaleiros à sua disposição, e a possibilidade de obter ainda mais reforços se pedisse ajuda. Mas, com os cinquenta homens com que contava de imediato, não poderia atacar Braemar e sair vitorioso. Armstrong tinha um exército muito maior do que ele imaginara.

   Não. Antes conheceria as fraquezas do inimigo, depois firmaria um plano que já havia começado a tomar forma em sua mente. Até lá, faria tudo que fosse necessário para proteger o povo e os rebanhos de Norwyck.

   E passaria mais uma noite nos braços de Marguerite antes de ir para a batalha.

 

   A mentira de Mairi pesava em seu coração. Atingira um grau de intimidade com Bartholomew que tornava ainda mais dolorosa a omissão da verdade.

   Talvez devesse dizer a ele que era filha de Lachann Armstrong e enfrentar as consequências.

   Ela olhou pela janela e viu Bartholomew no pátio, sen­tado orgulhoso sobre Pégasus. Sabia o que Norwyck rep­resentava para ele e como as traições do passado o afetaram.   Compreendia a profundidade de seu ódio pelos Armstrong.

   Poderia o conde tolerar seu nome? Ele demonstraria a mesma bondade e consideração depois de saber que era filha de Lachann Armstrong? Havia algum meio de ga­rantir que ele entendesse que não o traíra nem mentira desde o início?

   Mairi não duvidada da simpatia de Bartholomew por ela, mas não sabia se o sentimento era profundo o bastante para sobrepujar a antipatia despertada por sua família.

   E não sabia se era corajosa o bastante para descobrir.

   Batidas na porta atraíram sua atenção para o interior do quarto.

— Entre — ela disse.

   Eleanor abriu a porta e entrou. A excitação conferia um brilho intenso aos seus olhos.

— Bartie está partindo para a batalha!

— O quê? — Mairi murmurou. Tonta novamente, sen­tou-se em uma cadeira e abaixou a cabeça antes de des­maiar.

— Os Armstrong roubaram nossos animais, e agora Bartie está reunindo seus homens para ir ao Castelo Braemar!

— Como sabe disso, Eleanor?

— Hal me contou. Ele foi ao campo de treinamento como sempre faz, mas os homens estavam todos no galpão das armas, afiando suas espadas e reparando suas arma­duras,                              

— E onde está Henry agora? — Se o encontrasse, po­deria obter informações mais claras.

— Bartie não permitiu que ele acompanhasse os ho­mens que vão a Braemar, e agora ele está se preparando para juntar-se ao contingente que ficará aqui.

   Mairi engoliu em seco e levantou a cabeça devagar.

— Sente-se bem? — Eleanor perguntou, parando para observá-la de perto. — Seu rosto não tem cor, Marguerite.

— Eu... eu só... Essa conversa sobre batalha deixou-me muito nervosa. É só isso.

— Oh, sim. — Eleanor voltou a perambular pelo apo­sento, mas parou ao lado da cama e fitou-a com curio­sidade.

   Mairi ainda não se dera ao trabalho de arrumá-la, mas a criança não parecia entender o significado dos lençóis amassados e dos cobertores emaranhados.

— Não gosto quando Bartie sai do castelo.

— Seus outros irmãos ainda estarão aqui — Mairi apontou, tentando acalmar a menina e também acalmar-se. — E imagino que sir Walter também deva ficar. Eleanor assentiu.

— Não quer descer e fazer seu desjejum comigo e com Kate?

   A última coisa que Mairi queria naquele momento era comer, mas concordou em ir encontrar as meninas no sa­lão depois de lavar-se e vestir-se.

   Todos estavam nervosos naquele dia, esperando notí­cias de Bartholomew. Havia pouca informação disponí­vel, e tudo que se sabia era que Bartie e duas grandes companhias de cavaleiros haviam partido para o Castelo Braemar.

   Mairi sabia que era para isso que ele e seus homens treinavam todos os dias, mas quando pensava em todos os horríveis relatos que ouvira sobre guerras e confrontos, preocupava-se ainda mais. As horas passavam devagar, e à noite todos estavam irritados. Eleanor e Kathryn eram as mais nervosas, discutindo e trocando provocações à mesa do jantar.

— Não quero bacalhau! — a caçula gritou, empurrando o prato que continha seu jantar.

— Você não precisa comer, Ellie — Mairi respondeu, respirando fundo a fim de manter a calma. Era inútil forçar a menina a comer, porque sabia que o nervosismo prejudicava o apetite. — Venha comigo. Se John e Kate nos derem licença, iremos à capela rezar um pouco.

   Quando deixaram o salão, Mairi sentiu uma certa sa­tisfação por ter evitado mais um confronto entre os ir­mãos. Estava ansiosa demais. Se seu pai e Carmag ha­viam realmente unido forças, provavelmente poderiam su­perar Bartholomew e seus cavaleiros.

   E ela devia ter prevenido o conde.

   Entraram na capela e acenderam algumas velas, de­pois ajoelharam-se diante do altar.   Mairi baixou a cabeça e orou pedindo perdão por sua mentira. Também implo­rou para que   Bart retornasse em segurança ao castelo.

   Quando levantou o olhar, viu que Kathryn também se juntara a elas.

— Quando eu for uma esposa — a menina começou pensativa — acha que será mais fácil esperar meu ma­rido retornar de uma batalha do que é agora, quando es­pero por bartie?

— Não, Kathryn. Duvido que seja. — Ela se levantou e deu um passo na direção da jovem.

   Kathryn recuou.

— O que foi? — Mairi perguntou surpresa.

   A menina não disse nada, mas continuou olhando para ela com curiosidade. Era uma expressão que havia visto com frequência em seu rosto nos últimos dias, desde que ela se tornara mais arisca e retomara a conduta reserva­da de antes. Mas não atribuíra nenhum significado espe­cial à mudança.

— A música poderá distrair nossos pensamentos de seu irmão e de tudo que está ocorrendo em Braemar — sugeriu, levando as duas irmãs para o estúdio do conde, onde Kathryn fez uma única tentativa desinteressada de tocar a guitarra, enquanto Eleanor choramingava.

   Quando sentiu que não poderia mais suportar aquela situação, Mairi anunciou que era hora de todas se prepa­rarem para dormir.

   Uma discussão surgiu quando Kathryn recusou-se a aceitar a companhia de Eleanor em sua cama. Mairi ten­tou ficar fora do confronto, mas foi impossível. Os gritos das duas meninas abalavam seus nervos já tão irritados, e pela primeira vez ela desejou que a babá surgisse para perguntar o que estava acontecendo ali.

— Por favor, Kathryn — pediu. — Se deixar Eleanor dormir com você, contarei mais uma história.

— Não quero ouvir outra história! Já tenho idade su­ficiente para não ter de dividir minha cama com um bebê!

— Sim, eu sei disso, mas...

— E também tenho idade suficiente para merecer ouvir a verdade. Devia ter me contado que é filha de Armstrong! — ela gritou descontrolada.

— Bartie! — A irmã caçula do conde correu para os braços do adulto como uma flecha.     Ele nem sentiu o im­pacto do corpo pequenino se atirando contra suas pernas, pois ainda estava sob o efeito das palavras de Kathryn.

   Filha de Armstrong?

   Um olhar para o rosto culpado de Marguerite, e ele soube que a acusação era verdadeira.

— Está retornando vitorioso, Bartie? — Eleanor quis saber. — Trouxe a cabeça de Armstrong numa estaca?

   Ele afastou a criança de suas pernas sem desviar os olhos dos de Marguerite.

— Para a cama, meninas — ordenou em voz baixa, porém firme. — Não houve nenhuma batalha.

— Oh, mas...

— Façam o que estou mandando. Agora. — Era sur­preendente que soasse firme, quando sua alma parecia tremer.

   As irmãs sentiram a tensão e foram dormir sem pro­testar. Bartholomew segurou o braço de Marguerite e le­vou-a para o solar.

— Explique-se.

   Com as mãos torcendo o tecido do vestido, Mairi virou-se de costas para ele, sem forças para sustentar o olhar penetrante.

   Todos os músculos do corpo de Bart estavam rígidos. O sangue esfriara nas veias, como havia acontecido no dia em que tomara conhecimento da traição de Felícia.

   Com calma e controle surpreendentes, voltou a falar, mas as palavras foram pronunciadas por entre os dentes.

— Já disse para explicar-se.

— Meu lorde... Eu não... não recuperei minha memória de imediato...

   Não sabia se acreditava nisso.                                  

— Mas agora a tem novamente? Ela assentiu.

— E o que Kathryn disse... É mesmo filha de Lachann Armstrong?

   Naquele momento a mulher virou-se para encará-lo.

— Sim. Sou Mairi Armstrong.

   Tinha de endurecer o coração contra as lágrimas em seus olhos, contra a angústia estampada em seu rosto. Ela o enganara com facilidade, com a mesma habilidade com que manuseava os instrumentos musicais. Quase o convencera a ignorar seus instintos e admitir sentimentos de ternura por ela.

   Estivera muito próximo de acreditar que a mulher era digna de sua confiança, mas agora sabia que quase co­metera um erro grave.

— Vivi na França com minha prima desde que era uma menina — ela continuou. —   Recentemente, meu pai man­dou buscar-me. O marido de minha prima, um homem ainda jovem, estava comigo a bordo do navio quando... — Ela engoliu em seco e fez um grande esforço para manter a compostura. — Quando naufragamos. Ele... se afogou.

   Ao ver uma lágrima solitária escorrendo por seu rosto, Bartholomew teve a sensação de que os pulmões explodi­riam. Mas dirigiu-se determinado até a janela para conter o ímpeto de tomá-la nos braços e confortá-la. Não come­teria tamanha tolice.

— Não me lembrei de Alain até... bem, até alguns dias depois de meus ferimentos terem cicatrizado.

— E de sua identidade? Quando lembrou seu nome?

— No mesmo momento, meu lorde.

   A tensão endurecia seus músculos. A raiva oprimia seu peito. Ela mentira! Sempre soubera que não devia confiar nela, mas baixara a guarda como um idiota descuidado.     Antes que pudesse fazer ou dizer alguma imprudência, o conde retirou-se do solar. Não se deteve enquanto não passou pelas portas do castelo e atravessou o pátio para o estábulo.

   Dispensando os pajens, seguiu para a baia de Pégasus, onde o animal batia as patas no chão tomado por uma intensa agitação.

— Calma — Bart disse em voz baixa, usando um co­mando que poderia valer para ele mesmo. O cavalo sentiu seu nervosismo e tentou recuar. — Devagar, amigo — ele insistiu, usando um pano limpo para massageá-lo.

   Tentou pensar no que Mairi Armstrong havia conse­guido em Norwyck, que informações poderia passar para sua família. Não havia nada que ela pudesse ter desco­berto sobre seus cavaleiros, exceto quantos eram. Jamais discutira com ela seus planos de guerra, o que significava que não corria perigo nesse sentido.

   Ela podia ter percebido que não possuía navios para realizar um ataque por mar. Ou podia ter descoberto o tamanho de seus estoques, quanto tempo poderiam su­portar em caso de cerco ao vilarejo.

   Talvez ela o houvesse seduzido como o irmão havia seduzido Felícia, pelo simples propósito de concluir o que Lachann e Dúghlas haviam começado. Para destrui-lo.

   Bart jogou o pano longe e olhou para a escuridão do estábulo. Permitira-se confiar nela, mesmo com todos os instintos exigindo o contrário. Sempre soubera que não devia acreditar numa mulher.

— Aí está você, rapaz — disse sir Walter.

   Bart deu as costas ao velho cavaleiro e continuou massageando os cavalos com as mãos nuas.

— Deve estar pensando que ela o traiu, como Felícia. O que mais deveria pensar? — Ela não é como Felícia, e você devia saber disso, meu lorde.

— Não é? — Bartholomew reagiu com sarcasmo. — E o que sabe sobre esse assunto?

— Sei que a moça o ama, Bart.

   O conde emitiu um som que era meio um gemido, meio um suspiro.

— Perdoe-me se não acredito em suas palavras, meu velho. Você não sabe nada sobre essa questão.

— Oh, mas eu sei. Mairi me contou quem era há algum tempo, e explicou por que não poderia revelar sua iden­tidade a meu senhor.

   Lorde Norwyck suspirou impaciente. Mais mentiras.

— Ela foi prometida a Carmag MacEwen — Walter revelou. — Se voltar ao Castelo Braemar, o pai a forçará a desposar aquele homem.

— Já chega! — Bart exclamou furioso. — Você me traiu, exatamente como aquela maldita mulher Armstrong! Nunca me procurou para dizer o que sabia sobre ela! — Ele se virou para deixar o galpão e atravessou o pátio com passos determinados, parando apenas ao entrar no alojamento que acomodava os cavaleiros visitantes. Dormiria ali naquela noite e em todas as outras, até que livrasse Norwyck da ameaça dos escoceses.

   Em silêncio, pegou um cobertor da pilha deixada perto da porta, enrolou-se nele e deitou-se no chão. Havia sido um dia longo e difícil, e não teria dificuldades para pegar no sono.

   Mas não conseguia adormecer. Fazia um grande esfor­ço para não pensar em Margue... Não, em Mairi Armstrong e em sua mentira, para concentrar-se na ofensiva contra Braemar. Os homens estavam prontos. Os animais mortos pelos comandados de Armstrong haviam sido pos­tos em carroças e levados de volta ao vilarejo. Embora não houvessem planejado a matança, pelo menos os mo­radores poderiam aproveitar a carne como alimento. Ha­veria também couro e lã para todo o inverno.

   Os suprimentos para a guerra seriam postos na carroça na manhã seguinte. Considerando a possibilidade de Mai­ri ter enviado informações para o pai em Braemar, sabia que tinha de agir depressa. Pensou em quantos homens deixaria cuidando da defesa de Norwyck, e decidiu quais companhias levaria para os densos bosques em Braemar.

   Possuía um número suficiente de homens, mesmo que MacEwen se houvesse unido às forças de Armstrong.

   De repente ele lembrou uma conversa recente que ti­vera com sir Walter, quando o velho cavaleiro havia re­comendado que enviasse alguém ao conde de Bitterlee e a outros senhores da região de Northumberland com um pedido de mais homens. Era evidente que Walter já sabia sobre a aliança entre Armstrong e MacEwen.

   Quantos homens MacEwen levaria para aquela bata­lha? Já havia visto mais gente em Braemar do que ante­cipara. O clã MacEwen era enorme, e Carmag controlava uma grande porção de terra a leste da região ocupada por Armstrong, na direção do mar. Se pudesse pôr seu plano em prática no dia seguinte, ou no dia depois dele, no má­ximo, impediria que Armstrong solicitasse ainda mais re­forços ao aliado.

   MacEwen. Lembrava-se do homem de Falkirk. Ele era um escocês corpulento com mãos do tamanho de bigornas. Coberto com peles primitivas e lã rústica, o gigante lutara como um bárbaro sanguinário e enlouquecido, e se mos­trara mais cruel do que todos os outros escoceses que o conde já havia enfrentado.

   O nariz de MacEwen era redondo e vermelho, e seus olhos pequeninos e quase desprovidos de cor saltavam das órbitas no rosto horrendo e ameaçador. Ele era duro, repugnante e implacável.

   E seria o marido de Mairi Armstrong?

   Bart sentiu-se nauseado com a idéia. Se MacEwen era realmente seu prometido, não poderia culpá-la por ter tentado evitar o casamento. Mas mentir para ele?

   Isso era imperdoável.

 

   Mairi forçou-se a sair da cama na manhã seguinte, depois de uma noite de pouco sono. Havia virado de um lado para o outro, levantado e caminhado pelo quarto, voltado à cama para, mais uma vez, mover-se agitada.

   Não podia culpar Bart pela antipatia por ela. Engana­ra-o, e mentira intencionalmente para servir propósitos próprios. Teria sido melhor dizer a ele quem era e aceitar as consequências.

   Ele não retornou ao castelo durante todo o dia, e Mairi passou boa parte do tempo vendo os homens que carre­gavam suprimentos para as carroças estacionadas no am­plo pátio.

   Eleanor não se afastava muito dela, mas Kathryn per­manecia distante e fria. Mairi não conseguia entender como a menina descobrira seu segredo, a menos que a houvesse escutado divulgando sua identidade a sir Walter. Essa era uma forte possibilidade.

— Por que não disse antes seu verdadeiro nome, lady Mairi? — perguntou Eleanor.

   Mairi torcia as mãos.

— Foi um erro, Eleanor — disse. — Devia ter contado tudo a Bartholomew assim que recuperei a memória. Mas tive medo de que ele me enviasse para o castelo de meu pai.

— E você não gosta dele?

   Ela fechou os olhos e balançou a cabeça.

— Deus certamente vai me castigar por esse pensa­mento, mas meu pai não pôs os olhos em mim durante mais de dez anos. Ele só se importa com suas preciosas alianças... e com a guerra.

— Mas acho que isso é o que os pais devem fazer — opinou Kathryn. — Criar alianças sólidas e úteis através do casamento das filhas.

   Era impossível argumentar, porque Kathryn estava correta. Isso era exatamente o que os pais faziam, e todas as filhas aceitavam tal destino com alegria e obediência. Ou a maioria delas. Sabia que também teria concordado com um marido imposto, desde que o homem em questão não fosse Carmag MacEwen.

   Mas agora que conhecia Bartholomew Holton e espe­rava um filho dele, o casamento com o bruto era impos­sível. Jamais aceitaria a escolha paterna, embora ainda não soubesse como poderia evitá-la. Bartholomew devia estar disposto a mandá-la para o Castelo Braemar e, com a mesma certeza, ela se recusaria a ir. Talvez houvesse um convento próximo onde pudesse esconder-se até o filho nascer.

   Ou poderia encontrar um meio de voltar à casa de Caitir na França. Seu pai jamais saberia que havia estado tão perto dele.

   Kathryn e Eleanor eram jovens demais para compreen­der sua aversão ao casamento arranjado por seu pai, pois passavam todos os dias de suas vidas preparando-se para serem as esposas dos homens que o irmão escolheria para elas. Seus sentimentos com relação ao assunto estavam muito além da capacidade de compreensão das meninas.

   Henry juntou-se a elas depois do jantar. Não disse nada sobre os planos de Bartholomew, ou porque os homens carregavam tantos suprimentos. Tudo que ele revelou foi que Bart havia dado ordens para que as irmãs e a hóspede permanecessem no castelo, protegidas pelas muralhas in­ternas, até que ele retornasse.

   Henry não era menos amistoso do que de costume, mas Mairi teve a impressão de que ele a olhava com mais curiosidade do que antes. John não falara com ela desde que sua identidade fora revelada, um sinal de que se sen­tia tão traído quanto o conde.

   Na hora de dormir, Kathryn recusou-se a aceitar Eleanor em sua cama. Dessa vez ela foi inflexível. Em lágri­mas, a caçula foi levada para o dormitório infantil, onde Mairi cantou doces e suaves canções de ninar até fazê-la adormecer.

   Tão cansada quanto a criança e com o coração apertado e o espírito triste, Mairi subiu a escada da torre e foi recolher-se em seu quarto. Sem a presença de Bartholo­mew, o aposento parecia mais frio do que nunca.

— Mairi! Mairi! Ela desapareceu!

   Mairi acordou de repente. O fogo se apagara na lareira, mas uma vela sobre a mesa próxima da cama iluminava o rosto perturbado de Kathryn.

— Ellie sumiu!

   Ignorando a súbita e intensa onda de tontura, ela se levantou da cama e pôs os pés no chão.

— Sumiu? O que quer dizer com sumiu?

— Eu... acordei e senti medo de ficar sozinha em meu novo quarto — a menina explicou, notando que Mairi ves­tia-se rapidamente. — Então fui para o dormitório infan­til para dormir com Ellie, mas não a encontrei lá.

— Você olhou...

— Não! Ela sumiu! — Kathryn gritou, agarrando as mãos da adulta. Precisa vir comigo e ver com seus próprios olhos!

   Levando uma vela, Mairi seguiu Kate pela escada e através do corredor que levava ao aposento infantil. Quan­do abriu a porta, viu a cama de Eleanor vazia, exatamente como a jovem descrevera.

   No meio dos lençóis havia uma faca com o cabo crave­jado de pedras preciosas. A lâmina fora enterrada no col­chão.

   Kathryn gritou apavorada e cobriu a boca com a mão.

— Eles a levaram! Os Armstrong roubaram minha irmã!

   Tremula, Mairi passou um braço sobre os ombros da menina e tentou acalmá-la. Tinha de encontrar Bartholomew. Embora soubesse que ele não tinha nenhum in­teresse em vê-la, sabia que ele não se negaria a cuidar de assunto tão grave.

— Venha — disse, conduzindo Kathryn para fora do quarto. — Temos de encontrar seu irmão.

   Reuniram os criados, e um lacaio foi designado para sair em busca de lorde Norwyck enquanto elas esperavam no aposento infantil. Mairi não sabia o que fazer para confortar a jovem, mas também não se sentia muito me­lhor. E era a única culpada por todo aquele sofrimento. De alguma maneira, devia ter protegido Eleanor. Bartholomew confiara a menina aos seus cuidados, e ela o desapontara. Mais uma vez.

   Em pouco tempo ouviram passos e vozes no corredor, e logo depois Bart surgiu na porta.

   Ele cheirava a ar frio, fumaça da fogueira e cavalos, e Mairi podia sentir o calor que emanava de seu corpo viril. Dentre todas as vezes em que sentira necessidade de ser abraçada por ele, em nenhum momento essa urgência ha­via sido tão grande. Sem sequer olhar em sua direção, ele caminhou até a cama, tocou os lençóis e removeu a faca do colchão.

   Sir Walter entrou no quarto.

— Os Armstrong levaram Eleanor — Bart informou com tom seco, exibindo a faca que segurava em uma das mãos.

   Walter balançou a cabeça e olhou para Mairi.

— O que aconteceu aqui, minha lady?

— Eu lhe digo o que aconteceu aqui — explodiu o conde. — Um bastardo escocês entrou no meu castelo e levou minha irmã! — Ele prendeu a faca à cintura. — E eu vou buscá-la de volta!

   Angústia era pouco para descrever o que Bart sentiu ao ver a faca cravada na pequena cama de Eleanor. Jurou para si mesmo que a resgataria e teria sua revanche o mais depressa possível. Naquela noite.

— Vasculhem o castelo — ordenou. Depois passou a mão na cabeça enquanto considerava todas as possibili­dades. — Quero Norwyck virada de cabeça para baixo. Explorem cada milímetro dentro das muralhas, cada casa do vilarejo...

   Tinha pouca ou nenhuma esperança de encontrá-la ali. Não podia haver dúvida de que o bastardo que a roubara a tirara de Norwyck e a levava para Braemar. E era exatamente esse o caminho que Bartholomew seguiria. Ca­valgaria até o Castelo Braemar e exigiria que Eleanor fosse libertada. Se Armstrong se negasse a soltá-la...

   Não. Não podia agir de maneira precipitada, porque a vida de sua irmã caçula estava em jogo, e Armstrong ti­nha uma grande vantagem. Mas só por algum tempo.

   Forçando-se a exibir uma calma que estava longe de sentir, Bart resolveu seguir adiante com o plano de em­boscar Lachann Armstrong e seus homens, porque sabia que essa era uma atitude necessária para quebrar a aliança Armstrong-MacEwen e diminuir drasticamente o número de homens que o inimigo tinha em seu comando. Bart teria uma posição muito melhor para negociar.

   E agora possuía uma ferramenta adicional em suas mãos. Também tinha uma refém.

   Não tinha dúvida de que Lachann desejaria sua filha de volta, sã e salva. Caso contrário, seus planos de casar Mairi com Carmag não se concretizariam. Armstrong ficaria chocado quando descobrisse que seu esforço para tirar Eleanor da fortaleza havia sido em vão.

   A satisfação que sentia era pequena, pois não conse­guia deixar de pensar em tudo que a irmã suportava na­quele momento.

— Maldição! — explodiu. Ellie era pequena e frágil. Ficaria apavorada. Nunca fora tratada com rispidez por ninguém, e não saberia determinar se os raptores preten­diam matá-la ou mantê-la viva. Se Armstrong causasse algum mal à menina...

— Meu senhor — chamou sir Walter — devemos mu­dar de estratégia?

— Não — Bart respondeu. Olhou para Mairi pela pri­meira vez desde que entrara no quarto e sentiu a dor que viu refletida em seu rosto molhado pelas lágrimas. Cír­culos escuros marcavam a área em volta de seus olhos, e ela parecia menor, mais frágil, mesmo mantendo os braços em torno de Kathryn para confortá-la.

   Quando ela levantou a cabeça e encontrou seu olhar, Bart viu a apreensão, o medo e o sofrimento. Ela estava mesmo horrorizada com o rapto de Eleanor.

   O conde entendia claramente que, para trazer a irmã de volta, teria de trocar Mairi por ela. E, naquele momen­to, não sabia se estava disposto a concretizar a troca.

   Durante o resto do dia, enquanto os homens trabalha­vam preparando a partida, não conseguiu pensar em mais nada. Como poderia usar Mairi Armstrong contra Lachann?

   Mantê-la refém havia sido a opção mais lógica até aque­le momento. Se Lachann tivesse de preocupar-se com a segurança da filha cada vez que atacasse Norwyck, os ataques cessariam, e Bart poderia mantê-la no castelo por tempo indefinido. Mas, com o rapto de Eleanor, teria de fazer uma troca e abrir mão de Mairi.

   Ele estalou os dedos e olhou em volta.

   Em que confusão estava metido! A única solução era pôr em prática o plano de levar os cavaleiros de Norwyck até o bosque sob Braemar, onde eles ficariam escondidos esperando por um momento oportuno para o ataque. Dis­punha de homens e suprimentos suficientes para esperar até mais do que uma semana. Em pouco tempo veriam um grande pelotão de homens da coligação Armstrong-MacEwen deixando a proteção das muralhas rumo ao seu castelo.

   Se sua estratégia funcionasse, seria capaz de dizimar a maior parte do exército de   Armstrong e resgatar Elea­nor sem nenhum arranhão.

   Só agora percebia como havia sido grande a esperança de poder ficar também com Mairi.

   Olhando para ela, pequena e vulnerável, tão preocupa­da com o bem-estar de Kathryn, sentia-se incapaz de pen­sar. Tinha a garganta seca, e de repente era como se o ar parado do quarto pudesse sufocá-lo. Aflito, deixou o aposento e atravessou a galeria que levava à escada para o salão.

   E se as palavras de sir Walter fossem verdadeiras? Se Armstrong pretendia mesmo casar a filha com Carmag MacEwen, era compreensível que ela houvesse evitado o retorno a Braemar e o matrimônio. Por outro lado, Mairi não podia simplesmente anunciar diante de todos os ha­bitantes de Norwyck que era filha de seu mais odiado inimigo. Ela fora vítima de uma terrível armadilha do destino.

   Bart saiu do castelo e respirou fundo. Eleanor sumira, e teria de trocar Mairi por sua irmã caçula. Seu mais confiável conselheiro sonegara uma informação importan­te por mais tempo do que era considerado correto, e as vidas de centenas de cavaleiros estavam em suas mãos.

   Nunca haveria um fim para o sofrimento que Lachann Armstrong podia causar?

   Quando os homens começaram a revistar o castelo e o vilarejo, Bart seguiu para o alojamento dos cavaleiros. Os homens estavam prontos. Muitos permaneciam quie­tos, quase solenes, esperando o final da noite que ante­cedia o momento da partida. Alguns rezavam, outros be­biam e conversavam em voz baixa, relembrando outras batalhas.

   Bart sabia que não conseguiria dormir. Esperava que Eleanor fosse encontrada, sã e salva, em algum recanto dentro das muralhas do castelo. Mas sabia que essa era uma possibilidade muito pequena. Quase nula.

   Quando juntou-se ao grupo, não havia dúvidas em sua mente de que a irmã estava a caminho de Braemar.

   Assim que acomodou Kathryn em sua cama no quarto da torre, Mairi começou a andar pelo aposento. Tinha de haver alguma coisa que pudesse fazer para recuperar Eleanor.

   Bartholomew mandaria notícias a Braemar, e a men­sagem daria conta da presença da filha de Armstrong em Norwyck. Essa seria a melhor maneira de garantir a se­gurança da menina.

   Eventualmente, a troca seria feita, e sabia que Bar­tholomew a entregaria a Lachann para reaver a irmã. E era assim que devia ser.

   Mas e se Eleanor conseguisse fugir de seus raptores?

   E se Mairi pudesse provar sua lealdade a Norwyck e seu amor pelo senhor do castelo?

   Percorria a distância entre a cama e a lareira várias vezes, como se ali pudesse encontrar alguma solução. Pre­cisava pensar! Tinha de haver um meio de mostrar a Bartholomew o que sentia por ele. Não era só o casamento com Carmag que a repugnava.   Não. Sentia um amor tão profundo por Bartholomew Holton que não poderia ja­mais entregar-se a outro, mesmo que fosse o homem mais belo e gentil de toda a Bretanha.

   O fato de seu pai ter escolhido Carmag MacEwen, um homem que possuía vários navios para...

   Era isso! Há meses, Carmag se havia gabado sobre seus navios, sobre como poderia levar muitos deles pela costa para atacar os lordes ingleses e pegá-los de surpresa.

   Talvez houvesse sido esse o meio pelo qual Eleanor fora tirada de Norwyck. A menina podia ter sido levada em segredo para um navio ancorado no litoral, depois escon­dida em alguma caverna na praia.

   Lachann jamais teria levado a criança pelo vilarejo num caminho direto para Braemar. Inteligente, valera-se dos recursos de seu aliado para executar sua covarde tarefa.

   Tinha de lembrar tudo que Carmag havia divulgado sobre suas terras e seus bens. Ele se havia gabado du­rante todo o tempo que passara na França. Devia ter dito algo que pudesse ser útil nesse momento de grande urgência.

   Mairi olhou para Kathryn, que dormia profundamente. Pelo menos ela estaria segura naquela noite, com um guarda vigiando a entrada da torre. Nenhum invasor ima­ginaria que a outra irmã do conde dormia no aposento mais alto do castelo, e ninguém passaria pelo guarda.

   Torcendo as mãos com evidente nervosismo, uma reação frustrada à incapacidade de agir com presteza, Mairi fez uma prece pedindo pela segurança de Eleanor. Não queria acreditar que Lachann faria mal a uma criança, mas lembrava-sê muito bem de seu pai.     Ele era um patife frio e egoísta que não pensava em nada além dos próprios desejos.

   Temia que, ao receber a notícia de sua presença em Norwyck, ele fosse odioso o bastante para tentar desmas­carar um suposto blefe de Bartholomew ferindo a menina.   Mairi não tinha ilusões, sabia que o pai não preservaria a integridade física de Eleanor a fim de garantir a segu­rança de sua filha.

   Como a julgava morta no naufrágio, era bem provável que seu pai já houvesse pensado em outro meio de con­vencer MacEwen a aliar-se ao clã Armstrong.

   Não dispunha de tempo para descobrir quais eram os planos de seu pai. Depois de certificar-se de que Kathryn realmente dormia, ela deixou o quarto da torre. O guarda ao pé da escada tentou retê-la.

— Minha lady, tenho ordens para mantê-la aqui na torre.

— Sim, eu sei disso, Raulf, mas acabei de lembrar algo importante que lorde Norwyck precisa saber. Tenho de encontrar um lacaio e pedir que ele vá buscar o conde imediatamente.

   Um olhar indeciso passou pelo rosto do guarda, e Mairi tirou proveito de sua hesitação.

— Só um de nós pode ir. Você deve ficar aqui e zelar pela segurança de lady Kathryn.

   Raulf concordou com seu plano, e ela se afastou apres­sada antes que o obediente comandado de Bart mudasse de idéia e a impedisse de sair.

   Não podia revelar seu plano a ninguém. Nem mesmo ao conde. Era muito arriscado, perigoso, e o fracasso seria certo se um dos cavaleiros de Norwyck a seguisse. Ao mesmo tempo, essa era sua única chance de provar que era leal e de resgatar Eleanor das mãos cruéis de seu pai.

   Silenciosa, desceu a escada para o salão, atravessou o espaço escuro e cavernoso e passou pela porta mais pró­xima da capela, chegando ao pátio externo. Havia mantos nos cabides perto da saída, e ela pegou um deles antes de sair.

   Caminhando apressada, percorreu a distância até o por­tão nos fundos da propriedade, grata por ser noite de lua cheia, mas preocupada por alguém poder vê-la e reconhe­cê-la ao luar. Havia homens em todas as partes do castelo, cavaleiros que reviravam todos os recantos de Norwyck em busca de algum rastro deixado por Eleanor e seus raptores.

   Mantendo a cabeça baixa e coberta pelo capuz do man­to, Mairi abriu o portão e encolheu-se ao ouvir o rangido das dobradiças enferrujadas, rezando para o barulho do metal não alertasse ninguém para sua presença. Passan­do pela pequena abertura, afastou-se apressada das mu­ralhas de Norwyck.

 

 O caminho era bem iluminado pela lua, mas havia um vento gelado soprando do mar.   Mairi fechou o manto em torno do corpo e caminhou ra­pidamente pela areia. Seguia pela curva da praia em direção ao norte, para as cavernas nas quais Carmag MacEwen escondia seus barcos. Se ao menos conseguisse chegar até lá na­quela noite, seu plano teria maiores chances de sucesso.

   Nada a deteve enquanto caminhava para o norte pela praia ampla, nem o vento, nem os estranhos e assusta­dores sons da noite. Resistia corajosa ao medo e conti­nuava em frente, andando por mais de uma hora. Quando passou pelo local onde ela e Bartholomew haviam feito amor, não se deixou comover ou retardar pelas recorda­ções daquela bela tarde, persistindo em sua caminhada. Eventualmente alcançou uma subida inclinada, uma área de terreno mais sólido onde a praia dava lugar a uma escarpa rochosa.

   Não havia outra alternativa se não subir.

   Na metade da escalada ela teve de parar e sentar-se para descansar. Encolhida perto de um patamar, recupe­rou o fôlego e deixou os músculos relaxarem. E pensou se aquele era o caminho que Eleanor havia percorrido.

   Era possível que estivesse enganada. Talvez Lachann houvesse conseguido levar a criança pelo vilarejo e além das muralhas de Norwyck sem ser notado. Sua audácia não deveria surpreendê-la, porque esse parecia ser seu método agora: confundir o oponente atacando nos momen­tos mais inesperados e das formas mais estranhas.

   Mairi estava tão cansada que não sabia se poderia con­tinuar. Olhou para o céu e viu que não havia uma única nuvem, e a lua ainda era alta. Muitas horas ainda se sucederiam até o novo amanhecer.

   Tinha de seguir em frente.

   Levantando-se, retomou a escalada da encosta até fi­nalmente alcançar seu topo.

   As pernas estavam exaustas e doloridas. E as mãos estavam arranhadas e cortadas por ter se agarrado às pedras durante a subida. Ignorando os pequenos ferimen­tos, continuou andando consciente de que, se MacEwen havia mesmo levado Eleanor para uma das cavernas da região, teria de encontrá-la antes do amanhecer. Não que­ria que MacEwen e seus homens a vissem antes que pu­desse determinar onde estava a criança e como poderia libertá-la...

   Mairi caminhou ao longo do patamar por algum tempo, mantendo-se longe da encosta, atenta ao mar em busca de algum sinal de barcos ou ancoradouros improvisados. O oceano podia ser visto com clareza, pois a luz brilhava radiante sobre ele.

   Mas a praia era uma incógnita àquela distância.

   Mais do que cansada, não sabia que distância ainda conseguiria percorrer, e temia que as cavernas de Mac­Ewen houvessem ficado para trás, muitos metros abaixo em algum ponto da encosta que havia escalado. E se hou­vesse passado por elas? Se houvesse perdido a chance de resgatar Eleanor?

   Algo chamou sua atenção na paisagem nebulosa e es­cura, uma luminosidade alaranjada. Uma fogueira?

   Uma onda de energia a invadiu de repente, e ela seguiu em frente com velocidade espantosa, esperando encontrar seu objetivo. Que outra razão haveria para que homens montassem acampamento sobre a praia de Norwyck?

   De fato, um acampamento rústico havia sido montado em torno da fogueira, e um abrigo fora criado com cober­tores estendidos sobre galhos mais baixos de algumas árvores. Esperava que Eleanor estivesse sob aquela cober­tura. Não que os cobertores representassem muita proteção contra o vento, mas a tenda era melhor do que nada.     Puxando o capuz para cobrir todo o rosto, ela contornou o acampamento e aproximou-se da área voltada para o continente, onde a vegetação era mais alta e fechada. Não contava com uma excelente cobertura, mas esperava que o esconderijo fosse seguro o bastante.

   Vários cavalos haviam sido amarrados bem perto dali, sinal de que os homens pretendiam cavalgar para oeste, para o Castelo Braemar. Eles não navegariam para a fortaleza de MacEwen ao norte. Quatro homens dormiam em volta da fogueira, e um quinto elemento permanecia sentado montando guarda. Naquele momento ele olhava para as rochas sobre a praia.

   Com a voz baixa e contando com a cobertura das ondas que quebravam com estrondo na praia, ela falou com os animais na medida em que se aproximava. Tremendo de medo e ansiedade, parou para afagar cada um deles co­mo Bartholomew costumava fazer com Pégasus, pois sabia que assim eles ficariam calmos e não delatariam sua presença.

   Então, escondida pelas sombras, afastou-se dos cava­los. Sabia que não conseguiria esgueirar-se para baixo do abrigo improvisado sem chamar a atenção do sentinela, o que significava que teria de lidar com ele de alguma maneira.

   Um golpe na cabeça seria a solução mais rápida e prá­tica, e ela olhou em volta de uma possível arma para atacá-lo. Sem se deixar dominar pelo pânico, aproximou-se do sujeito pelas costas e desferiu uma violenta pedrada contra a base de seu crânio. Rápida, amenizou a queda do corpo inerte e deixou-o deitado no chão. Depois voltou para a escuridão e esperou para ver se algum outro ho­mem acordaria.

   Depois de alguns minutos de silêncio, ela correu para o abrigo formado por cobertores. Era ainda mais escuro sob a tenda, e ela teve de levantar um dos cobertores para poder ver o que havia lá dentro. O movimento fez com que Eleanor se sentasse assustada.

   Mairi teve a presença de espírito de saltar e colocar uma das mãos sobre a boca da criança, impedindo-a de gritar. Inclinada, murmurou em seu ouvido:

— Eleanor, fique quieta! Sou eu, Marguerite. — Era melhor usar o nome que já se tornara mais familiar.

   Sentindo a menina relaxar em seus braços, soltou-a e removeu a mão que tampava sua boca.

— Venha, vamos sair daqui, Ellie! — sussurrou. — Ve­nha depressa.

   Sem pronunciar mais nenhuma palavra, as duas dei­xaram o abrigo. Mairi levou Eleanor para longe do acam­pamento, andando sem parar até certificar-se de que ha­viam percorrido uma boa distância.

— Como me encontrou? — a menina perguntou intri­gada.

— Depois de todos os recantos de Norwyck terem sido revistados sem que ninguém encontrasse sequer um sinal de sua presença, lembrei-me de uma certa conversa sobre navios e cavernas, e pensei que talvez Carmag MacEwen a houvesse tirado do castelo, em vez de Lachann.

— Tentei lutar com eles, mas foi impossível. Mairi abaixou-se para abraçá-la.

— Tive tanto medo, lady Mar... quero dizer, lady Mairi. Mordi um deles e depois eu... não me lembro do que acon­teceu depois disso. Quando percebi, estava fora do castelo e um dos homens me carregava pela praia.

— Eu sei, meu amor — Mairi concordou com tom doce enquanto se levantava. — Logo estará em segurança ou­tra vez. Só precisamos descer até a praia sem sermos pegas. — Ela desamarrou o manto e tirou-o dos ombros. — Sei que é muito grande para você, mas quero que se mantenha coberta.

— Estou com muito frio — a menina confessou, dei­xando-se envolver pelo manto. — Desde que fui tirada de Norwyck, é como se houvesse água gelada em meus ossos.

— Se andarmos depressa, logo estaremos em casa. Mas existe uma região íngreme e difícil perto daqui, e teremos de descer com muito cuidado.

— Eu sei. Já subi aquela encosta. O homem me pôs no chão e me fez subir andando, apesar de eu ter muita dor de cabeça, muito sono e frio.

— Sei que está muito cansada, Eleanor, mas a cami­nhada será mais fácil depois de passarmos por essa des­cida. Estará novamente em sua cama em Norwyck antes que perceba que saiu dela. Então poderá contar sobre sua aventura aos seus irmãos e...

   Haviam dado alguns poucos passos quando ouviram vozes.

— Ellie, corra! Corra para Norwyck! Esconda-se, se for preciso, mas não se deixe pegar!

   Coberta pelo manto escuro, Eleanor desapareceu na noite, mas Mairi era presa fácil em seu vestido amarelo. Correu para o continente, mas sabia que os homens a seguiam.     Conseguiu fugir por algum tempo, dando a Elea­nor a chance de esconder-se ou afastar-se o bastante para não ser pega, mas a fadiga a venceu e ela caiu.

   Um de seus perseguidores agarrou-a pelo tornozelo.

— O quê? — o homem exclamou ao ver seu rosto. Era óbvio que ele esperava encontrar a criança que tivera ca­tiva até pouco antes. — Quem é você?

— Sou Mairi Armstrong. — A resposta soou altiva. — E exijo que tire as mãos de mim.

— Onde está a menina?

   Mairi empurrou-o, obrigando-o a soltá-la, e encolheu os ombros.

— Bem, é melhor assim — o homem decidiu, obrigan­do-a a levantar-se sem usar de nenhuma delicadeza. — Fomos mandados para levá-la de volta à fortaleza de Carmag MacEwen. Como não a encontramos em Norwyck, pegamos a menina...

— Está mentindo! Ninguém sabia que eu estava viva!

— Seu pai e Carmag MacEwen souberam de sua pre­sença em Norwyck há pouco mais de uma semana — ele revelou, empurrando-a de volta ao acampamento. —Ago­ra ande!

   Mairi manteve-se em silêncio enquanto marchava na frente de seu captor. Como o pai poderia ter descoberto que estava viva e em Norwyck? Quando chegaram perto do abrigo improvisado, o escocês empurrou-a para baixo dos cobertores.

— É melhor dormir, minha lady. Quando amanhecer, começaremos uma longa cavalgada.

   Pouco tempo depois dos primeiros raios de luz anun­ciarem a chegada do novo dia, Bart e seus cavaleiros mon­taram e partiram rumo ao portão do castelo. Naquele dia exigiriam a devolução de sua irmã.

   E não negociaria com a vida de Mairi.

   Mairi Armstrong era sua e permaneceria em Norwyck. Seria sua lady, e que Armstrong e seus cavaleiros fossem para o inferno. Gostava dela, mais do que gostaria de admitir, e não podia imaginar a própria vida longe de Mairi.

   Finalmente compreendera que ela não tivera outra al­ternativa se não esconder a verdadeira identidade, mas não aceitaria mais mentiras entre eles. Promoveria um confronto no qual revelariam todos os segredos, e depois insistiria em um juramento solene. Não haveria mais ne­nhuma mentira entre eles, pois em breve seriam marido e mulher.

   Passaram pelo portão a caminho do limite da proprie­dade a oeste, onde a muralha ainda não havia sido con­cluída. Estavam começando a descer a encosta para o vale, quando Bart tomou consciência de uma comoção atrás dele e virou-se. Sir Walter aproximava-se galopando entre as fileiras de cavaleiros.

— Meu lorde! — ele chamava.

   Intrigado, o conde parou para esperá-lo. Eram muitas as más notícias acumuladas nos últimos dias, e não se sentia ansioso por ouvir mais uma delas.

— Eleanor voltou! — o cavaleiro e conselheiro anunciou em voz alta.

   Um murmúrio percorreu o grupo de cavaleiros e mo­radores do vilarejo reunidos para apreciarem a partida da companhia.

— Onde? Como? — Bart indagou confuso. Não ter mais de barganhar com a vida de Mairi era uma bênção que preferia aceitar com cautela.

— Venha comigo — disse Walter. — Precisa ouvir o que ela tem a dizer.

— Não — o conde respondeu com firmeza. — Agora, mais do que nunca, quero enfrentar Armstrong por sua audácia em ter raptado minha irmã. Os homens estão preparados e...

— Meu lorde, lady Mairi se foi.

— O que disse, Walter?

— Ela foi levada pelos homens de Carmag MacEwen. Precisa vir comigo e ouvir o que Eleanor tem a dizer.

   A confusão de Bartholomew tornou-se ainda maior de­pois das palavras do cavaleiro.   Estava alarmado. Não con­seguia imaginar como Mairi havia sido levada por MacE­wen estando sob a vigilância de um guarda na torre do castelo. E Kathryn estivera com ela!

   Bart deu algumas ordens rápidas para sir Duncan e sir Stephan, que cavalgavam ao lado dele, depois afas­tou-se das fileiras, permitindo que passassem e seguis­sem em frente para o campo de batalha. Montariam acampamento nos limites do Castelo Braemar, conforme o planejado, e se juntariam aos homens que já estavam lá.

— Onde Eleanor foi encontrada? — Bart perguntou depois de afastar-se de seus cavaleiros.

— Na praia, no portão posterior da propriedade. Ela estava envolta pelo manto de Mairi e chorava pedindo para entrar.

— E onde ela estivera antes de voltar?

— Aparentemente, os homens de MacEwen consegui­ram entrar no castelo, talvez pelo portão posterior, e a levaram. Com toda a atividade no pátio ontem à noite, quando eram feitos os preparativos para o ataque à for­taleza dos Armstrong, não foi difícil para eles passarem despercebidos.

— Por Deus!

— É isso mesmo, meu lorde. De algum jeito, eles to­maram conhecimento de que Mairi havia sobrevivido ao naufrágio e foram enviados até aqui com a missão de cap­turá-la.

— Para levarem-na de volta ao Castelo Braemar? Walter balançou a cabeça.

— Não sei, meu senhor. É possível que Eleanor tenha mais a dizer. Converse com sua irmã.

— Ela está bem?

— Sim, apesar de exausta e machucada nos joelhos e nas mãos.

   Deixaram os cavalos perto da principal escada do cas­telo, e Bart subiu pulando os degraus. Percorreu todo o caminho através do salão e para o quarto infantil, onde Eleanor estava deitada em sua cama. Kathryn estava lá com a babá, Ada, e com Rose, a criada que nos últimos tempos servia Mairi.

— Bartie! — a menina exclamou ao vê-lo. Sentada na cama, abriu os braços esperando pelo irmão, que se apro­ximou e abraçou-a.

— Acalme-se, minha pequena — ele disse. Mantendo-a aninhada em seu peito. Aquela criança era mais valiosa para ele do que jamais percebera. Depois de ter estado tão perto de perdê-la, compreendera o quanto precisava dela em sua vida. E agora perdera Mairi.

— Tive tanto medo, Bartie...

— Sim, eu sei, mas agora está em casa, em segurança.

— Mas os escoceses levaram Mairi — Eleanor comentou, começando a chorar novamente. — Ela me cobriu com seu manto e me fez correr, mas eles a pegaram!

— O pai dela vai obrigá-Ia a se casar com MacEwen? — Kathryn indagou. Ela não parecia melhor do que na noite anterior, pois tinha os olhos vermelhos e inchados de chorar. Linhas de preocupação marcavam seu rosto pálido e jovem.

— O que sabe disso, Kate?

— Ouvi Mairi dizer a sir Walter que só havia deixado a França porque o pai exigiu que voltasse. Para casar-se com Carmag MacEwen.

— Ele é tão horrível assim, Bartie? — Eleanor indagou.

— Kathryn disse que ele é pavoroso! Bartholomew fez a irmã deitar-se novamente e sentou-se ao lado dela. Depois olhou para Kate.

— Conte-me tudo o que aconteceu ontem à noite, depois que a deixei.

   Kathryn também estava sentada na beirada da cama da irmã.

— Fomos para o quarto da torre, como você ordenou que fizéssemos — ela explicou. — Eu me deitei na cama de Mairi, mas ela disse que não conseguiria dormir. Fi­quei acordada por algum tempo, observando sua inquie­tação. Ela andava de um lado para o outro...

   Podia imaginar o corpo de Mairi rígido de tensão e seus passos firmes diante da lareira.

— Suponho que acabei adormecendo, porque, quando acordei, Mairi havia desaparecido.

— Raulf estava guardando a torre, meu lorde — sir Walter contou. — Lady Mairi disse a ele que precisava encontrá-lo, e que ele precisava manter-se em seu posto garantindo a segurança de lady Kathryn.

— E foi então que ela escapou — o conde concluiu. — Onde lady Mairi a encontrou, Ellie?

— Em algum lugar que eu não conheço. Nunca estive lá antes. Fique bem alto em terras escocesas, sobre o mar...

— Lembra se subiu por uma encosta muito inclinada?

— Sim — a menina confirmou. — Um deles me carre­gou enquanto percorríamos a praia, mas depois ele me pôs no chão e me fez subir uma encosta muito difícil. Minhas mãos doíam, porque eu tinha de agarrar-me às pedras.

— Deve ser o paredão na fronteira norte — imaginou sir Walter.

— Quando chegamos ao topo — Eleanor continuou com os olhos cheios de lágrimas — ainda andamos por muito tempo, e eu senti medo.

   Bartholomew segurou a mão da irmã e tentou ser pa­ciente. Sabia que ela havia vivido uma terrível experiên­cia, mas estava ansioso para ouvir sobre Mairi e como ela encontrara sua irmã. Queria saber o que teria de fazer para tê-la de volta.

— Depois de um tempo, chegamos a um lugar onde eles deixavam seus cavalos, e um dos homens avisou que ficaríamos no acampamento até o amanhecer.

— Que ousadia! — Walter reagiu indignado, comovido pelo medo nos olhos da criança.

— Eles estenderam cobertores sobre galhos de árvores e me obrigaram a deitar sob eles. Acabei dormindo.

   Mais lágrimas retardaram o fim da história, e a essa altura Kathryn também chorava.

— Acordei quando Mairi levantou um dos cobertores. Ela me levou para longe do acampamento e corremos mui­to, tanto quanto podíamos, sempre na direção de Norwyck. Os homens estavam atrás de nós. Mairi me cobriu com seu manto e disse que eu devia continuar correndo ou me esconder.

   Walter interferiu novamente.

— Essa é nossa menina!

   Ada mantinha uma das mãos sobre o peito, e os olhos de Rose eram grandes e assustados, como se ela não pu­desse acreditar na situação de sua senhora.

— Segui em frente sozinha, mas ouvi passos muito pró­ximos. Encolhi-me sob uma árvore e cobri-me com o man­to. Eles passaram por mim e nem me viram no escuro, mas ouvi quando pegaram Mairi.

   Kathryn soluçou. A babá deixou escapar um grito de medo e espanto.

— O homem disse que estavam mesmo procurando por ela, não por mim — Eleanor continuou. — Só fui levada do castelo porque eles não conseguiram encontrá-la.

— E agora ela vai ter de se casar com o MacEwen! — Kathryn chorava. — Ele é um homem horrível, e lady Mairi morrerá antes de desposá-lo!

   A proclamação da jovem provocou um silêncio profun­do. O medo crescia no peito de Bartholomew.

— Explique-se, Kate — o conde pediu em voz baixa, tentando manter a calma.

— Lady Mairi disse que morreria pelas mãos do pai, caso se negasse a aceitar as bodas com MacEwen — ela contou abalada. Depois olhou para sir Walter, como se o velho cavaleiro pudesse confirmar suas palavras. — E também disse que morreria pelas próprias mãos, caso fos­se obrigada a se casar com o escocês.

— Para quem ouve atrás das portas, mocinha, você é muito atenta — Walter opinou com tom triste.

   Mas Bart nem ouviu o comentário. Sentia-se atordoado com a idéia de que Mairi estava sendo levada para o Castelo Braemar, para as impiedosas mãos de seu pai. A perspectiva do casamento daquela com quem se deitara nas últimas noites o enfurecia.   Eleanor começou a chorar no­vamente, e Bart tocou o ombro de sir Walter, conduzin­do-o para fora do quarto.

— Mairi disse mesmo aquilo? — perguntou. — Ela afir­mou que o pai tiraria sua vida, caso se negasse a desposar MacEwen?

   O cavaleiro assentiu.

— Meu lorde, ela o ama profundamente — acrescentou. — Esse casamento será... — De cabeça baixa, o homem parecia procurar pelas palavras mais adequadas. — Lachann terá de obrigá-la a ceder.

— Não se eu puder impedi-lo — anunciou Bartholomew.

   Walter encarou-o.

— Irei buscá-la de volta antes da realização das núp­cias.

— Assim é que se fala — aprovou o homem de cabelos grisalhos. O sorriso em seus lábios sugeria carinho e ad­miração. — Sabia que acabaria ouvindo a voz da razão, meu lorde. Lady Mairi nunca desejou enganá-lo, mas, como já deve ter compreendido, ela não teve outra alter­nativa se não mentir.

   A porta do quarto infantil se abriu, e Rose saiu silen­ciosa. Ela poderia ter se afastado pelo corredor sem cha­mar a atenção dos dois homens, mas, de olhos baixos, aproximou-se deles.

— Meu senhor — chamou encabulada.

— Sim? — Bart respondeu gentil. Raramente tinha oportunidade de falar com alguma das criadas, e sabia que ela tivera de lançar mão de grande coragem para abordá-lo.

— O que lady Kathryn disse... — a mulher começou gaguejando. — Sobre lady Marguerite... ou lady Mairi... — Ela levantou a cabeça para fitar os dois homens e mor­deu o lábio. Era claro que tinha algo a dizer, mas, por alguma razão, sentia-se constrangida com isso. — Senhor, podemos conversar em particular?

— Com licença, sir Walter — o conde solicitou curioso. Não queria perder tempo. Seus homens já haviam partido para o Castelo Braemar, e queria juntar-se ao contingen­te.

   Apressado, conduziu Rose pelo corredor até o solar e, depois de entrarem, fechou a porta.

— O que tem a dizer sobre lady Mairi?

— Ela jamais faria mal a si mesma, meu senhor — Rose revelou. — Não agora...

— Continue.

— Bem — a criada ainda hesitava, torcendo as mãos com nervosismo. — Eu... não estou totalmente certa disso, meu lorde, porque a lady se esforçou muito para ocultar os sinais, mas, se não estou enganada, lady Mairi espera um filho.

   O pavor que antes se restringia ao peito de Bartholomew espalhou-se pelo corpo todo, ameaçando sua capaci­dade de ação e seu poder de raciocínio. Ele apoiou uma das mãos sobre o console da lareira, temendo cair.

   Mairi... esperava um filho dele?

   Era muito fácil acreditar nessa possibilidade. Supu­nha ter visto alguns dos sinais, embora não os houvesse reconhecido. E agora ela era prisioneira de MacEwen. Mairi e seu filho estavam nas mãos dos odiosos e temí­veis escoceses.

   Bart venceu o nó que se formara em sua garganta.

— Obrigado por compartilhado suas impressões, Rose — disse, dirigindo-se à porta.

— Vai trazê-la de volta, não vai, meu lorde?

— Sim — ele respondeu ao abrir a porta. — Esteja certa disso.

   Mataria Carmag MacEwen com as próprias mãos, se fosse necessário, mas não permitiria que ele tocasse num fio de cabelo de Mairi.

 

   Embora seus captores a houvessem tratado bem durante a longa jornada, Mairi sen­tia-se perto do desespero. Estava exausta, mas o medo e a apreensão a mantinham ereta sobre a sela.

   Estava destinada a se casar com Carmag. Não poderia cumprir o juramento de pôr fim à própria vida, caso fosse forçada a desposá-lo, pois para isso teria de matar tam­bém o filho que esperava. A criança que já amava tanto quanto amava o homem que a pusera em seu ventre.

   Esperava que Eleanor houvesse conseguido chegar em Norwyck sã e salva. Sabia que ela não se perderia, pois tinha o mar para guiá-la, mas outras calamidades pode­riam ter ocorrido. Um animal selvagem, uma queda do precipício...

   Engolindo em seco e forçando-se a acreditar no melhor, ela considerou a situação que a esperava.

   Cavalgavam para o continente, para o noroeste, rumo às terras dos Armstrong. Sabia que Carmag a aguardava em Braemar. Em pouco tempo teria de se casar com o chefe do clã MacEwen. Sentia náuseas cada vez que pen­sava no homem, mas não tinha outra alternativa se não enfrentar e aceitar seu desagradável destino.

   Não. Precisava manter a esperança. Tinha de haver uma saída, um jeito de escapar desse casamento. Se con­seguisse pensar em alguma coisa que a tornasse inacei­tável para Carmag...

   Sabia que a gravidez não seria o bastante. Muitas mu­lheres se casavam esperando filhos de outros homens, e Carmag era do tipo que não se importava com isso. Na verdade, julgava-o perverso o suficiente para apreciar a idéia de criar um filho de Norwyck e fazer dele inimigo do próprio pai.

— Não estamos muito longe, minha lady — disse um dos homens. Respeitosos, eles a tratavam com cortesia desde que a capturaram, mas Mairi sabia que os escoceses jamais negociariam sua liberdade. Pelo contrário. Usa­riam de força para arrastá-la até o castelo, se fosse ne­cessário.

   Gostaria de saber qual seria a reação de Bartholomew ao seu desaparecimento. Eleanor seria capaz de explicar o que acontecera? Saberia esclarecer que ela não deixara Norwyck por vontade própria? Não queria que ele pen­sasse que o abandonara, como Felícia fizera.

— Lá está, minha lady... — O homem apontou quando terminaram de subir uma escada. — Braemar.

   Não havia muros em torno do castelo, e a fortaleza não era grande ou impressionante como Norwyck. Mas, de onde estava, Mairi podia constatar que Braemar era fácil de defender por sua posição no alto de uma colina sobre um vale.

   O lugar era primitivo e aparentemente frio, como lem­brava.

   Um de seus captores jogou um cobertor sobre seus om­bros, talvez notando o tremor que a sacudia. Mairi ajei­tou-o e tentou não pensar no que a esperava.

   Durante os dez anos que passara na França, não tivera nenhuma comunicação com Braemar, não até Carmag chegar para levá-la de volta e fazer dela sua esposa. Des­de o naufrágio, tivera notícias do pai e do irmão, mas nunca ouvira falar na mãe. Não sabia nem se ela ainda estava viva.

   Engolindo em seco, conteve as lágrimas ao pensar na pobre Teàrlag destinada a um casamento infeliz. Era hor­rível pensar que o mesmo destino a esperava.

   Muitos casebres ocupavam o espaço da colina até o cas­telo de seu pai. Uma igreja fora erguida perto do vilarejo, mas o telhado de sapé precisava-de reparos urgentes. Se o clã Armstrong era tão destituído, se precisavam tanto de provisões e gêneros, porque seu pai abandonara os ani­mais que roubara de Norwyck? Por que não os levara para o castelo depois de tê-los matado?

   Por orgulho. Lachann jamais deixaria Bartholomew sa­ber que seu clã vivia na pobreza. Matara os animais para expressar sua suposta força escocesa sobre o lorde britâ­nico, e não daria nenhum sinal de fraqueza ou fracasso.

   Enquanto percorria o terreno pantanoso de Braemar, Mairi não conseguia reconhecer os morados que via ou os lugares que notava à beira do caminho. Nada era fami­liar, nem mesmo o castelo onde passara os primeiros dez anos de sua vida. Vários soldados armados com arcos guardavam o perímetro da fortaleza dilapidada e escura.

   Estava começando a chover, e ela desmontou diante da escada de madeira. Estava subindo os degraus estreitos, quando alguém abriu a porta do castelo. O momento que tanto havia temido finalmente chegara. Carmag MacEwen a esperava acompanhado por seu pai, Lachann.

   O escocês estava seminu, sem uma túnica ou a camisa, e a visão de seu corpo era repugnante.

— Esposa! — ele gritou.

   Mairi não respondeu. Altiva, parou lamentando não ter uma arma para usar contra ele.

   Não tinha dúvida de que o homem tentaria tomá-la à força, como fizera na França, e dessa vez não haveria ninguém para detê-lo.

— Mairi Armstrong! — ele gritou novamente, descendo a escada para ir ao seu encontro.

   Mairi olhou para Lachann, que permanecia imóvel.

   Os cavaleiros se mantinham vigilantes, e pessoas do clã Armstrong observavam a cena de suas casas. MacEwen estendia as mãos para tocá-la. Sem aviso prévio, se­gurou-a pelos braços, levantou-a do chão e pressionou a boca contra a dela.

   Mairi balançava as pernas e mantinha os lábios bem apertados, impedindo a invasão da língua que tentava abrir caminho à força.

   De repente ele a pôs no chão e emitiu uma gargalhada que congelou seus ossos.

— Ainda vamos abrir essa sua boca francesa e trans­formá-la numa verdadeira escocesa, Mairi Armstrong!

— Já chega, MacEwen — disse um homem, distrain­do-se e permitindo que Mairi se afastasse dois ou três passos. — Não vê que a está deixando apavorada?

   O homem era um clérigo. E parecia ser o único que se importava com sua situação, o único com coragem sufi­ciente para enfrentar Carmag. Os habitantes se afasta­vam assustados, e seu pai permanecia parado na porta, acompanhando a tudo com curiosidade.

— Vamos nos casar esta noite — o escocês anunciou. — Cuide dos preparativos, padre Murray.

— Não, MacEwen. Algumas coisas exigem tempo e...

— Todas as coisas podem ir para o inferno! Armstrong me deu a filha, e agora a mulher é minha, com ou sem votos!

   Padre Murray aproximou-se e encarou MacEwen.

— As leis da igreja serão cumpridas — disse.

— Não! Essa mulher vai se casar ainda hoje, porque é assim que eu quero que seja. Se não proclamar a união, eu mesmo a levarei para o quarto e...

— Chega! — Lachann gritou com autoridade. — Ela passará a noite com a mãe, e amanhã estará pronta para o casamento. Leve-a até Teàrlag, padre Murray, e faça o que tem de ser feito.

   Aliviada, Mairi acompanhou o religioso em silêncio, to­mada pela esperança de que o homem pudesse ajudá-la.

   O interior do castelo era escuro e úmido, e Mairi quase tropeçou em um par de cães que cochilavam na porta. Assim que os olhos se ajustaram, ela viu uma grande e sólida mesa de madeira no centro do salão, e havia restos de comida sobre ela.

   Alguns criados se moviam pelo aposento, olhando-a com desconfiança.

— Cavalgou durante toda a noite? — perguntou o pa­dre, severo.

— Não, meu senhor. Dormi por algumas horas antes de iniciarmos a jornada esta manhã.

— Humm. — Estavam subindo uma escada. — Os apo­sentos de sua mãe ficam no fundo do castelo, onde há boa luz e ela pode enxergar bem.

— Ela está... bem?

— Não, mas creio que vê-la fará para ela o efeito de um forte bálsamo.

— O que a incomoda?

— Além de todo o sofrimento causado pelo marido e pelo filho? Ela sente dores nas juntas... dores que a impedem de se movimentar como gostaria. Tem uma tosse que a enfraquece.

   Em silêncio, subiram ao terceiro andar, onde pararam diante de uma porta de madeira. O padre estendeu a mão para abri-la.

— Posso protegê-la durante algum tempo, menina — ele disse. — Mas, uma vez realizado o casamento, nada mais poderei fazer para ajudá-la.

— Sou grata por tudo que fez, padre Murray.

   Tinha de haver um meio de escapar. Só precisava es­capar do sombrio castelo e viajar para o leste, na direção do mar. Uma vez no litoral, seguiria a linha do oceano até Norwyck.

— Tenho enfrentado os Armstrong há muitos anos, e afirmo que nenhum dos dois lados conseguiu realizar grandes progressos. Seus familiares venceram tantas ba­talhas quantas foram as lutas vencidas pela santa Madre Igreja.      

   Mairi assentiu distraída enquanto o sacerdote abria a porta. A luz que penetrava por uma janela deixava ver a poeira acumulada sobre todas as superfícies. Havia uma certa negligência no aposento, exceto por uma pequena área em torno da lareira.

   Teàrlag estava sentada em uma cadeira próxima do fogo. Seus cabelos estavam cobertos parcialmente por um véu branco, e de repente ela se virou e sorriu. Lágrimas brotaram de seus olhos e, deixando a agulha e o bordado sobre os joelhos, a mulher abriu os braços para recebê-la. Ela era pequena e frágil, e um de seus olhos era opaco por conta da cegueira. A pele era quase transparente.

— Mairi...

   Lembrava-se daquela voz como se a houvesse escutado no dia anterior.

— Mãe! — Emocionada, atirou-se nos braços abertos e beijou o rosto de Teàrlag, incapaz de expressar a emoção que a dominava.

— Jamais pensei que a veria novamente, filha. O ma­rido de sua prima disse que... que você estava morta. Afo­gada.

— O marido... Alain? Alain esteve aqui?

— Sim. Foi trazido à praia no meio de uma forte tem­pestade. Os homens de MacEwen o encontraram e trou­xeram para cá. Alain retornou à França depois de alguns dias. Quando ele partiu, ainda a julgávamos morta.

— Não, mãe. Também fui levada pelo mar até a praia, porém ao sul.

— Sim, seu pai soube disso recentemente. Um dos ho­mens de lorde Norwyck, alguém por nome Darcet, procu­rou por Lachann trazendo notícias do inimigo.

   Mairi não conhecia nenhum Darcet, mas julgava im­possível que alguém de Norwyck fosse a Braemar com a intenção de trair o conde. Talvez Lachann houvesse en­viado o tal homem a Norwyck, plantando-o no castelo pa­ra obter valiosas informações.

— Senti sua falta durante todos esses anos, minha fi­lha. Deve ter sido difícil para você. Uma menina precisa da mãe enquanto está crescendo e...

— Também senti sua falta, mãe. — E estava dizendo a verdade. Tivera uma vida tranquila e feliz com Caitir na França, mas nada era capaz de suprir a ausência de uma mãe terna e zelosa.

— Foi para o seu bem, Mairi. Seu pai é... Não quis que ele a transformasse em uma Armstrong, como fez com seu irmão. A única coisa que podia fazer era afastá-la daqui.

— Eu entendo, e asseguro que fui muito feliz com Caitir. Não senti falta de nada, exceto de você.

— Ah, sempre foi uma filha adorável e obediente. Diz essas palavras para consolar-me, mas sei que poderia ter feito muito para ajudá-la durante todos esses anos.

— Não, minha mãe. Não sofri nenhuma carência ou necessidade.

   Teàrlag afagou os cabelos da filha. Mairi pensou em contar sobre a gravidez, mas mudou de idéia. Sabia que a mulher estava emocionada e apreensiva, e não queria sobrecarregá-la com seus problemas. Talvez mais tarde...

— Não sei se vou suportar vê-la casada com Carmag.

— Não pretendo desposá-lo, minha mãe.

— O quê? — Havia medo em seus olhos. — Mairi, se desafiar seu pai e o poderoso senhor de terras...

— Escute, mãe. — Ela baixou a voz. — Parto esta noite. Conheço o caminho de volta a Norwyck, e Bartholomew Holton é um senhor bom e justo. Ele nos acolherá e...

— Não, criança. Meus joelhos, minha bacia... Não posso viajar. Mal consigo descer a escada quando tenho de ir ao salão por algum motivo. Minha presença só serviria para retê-la.                                                  

— Roubaremos um cavalo ou...

— Impossível.

— Encontraremos uma carroça para carregá-la!

   De repente a porta se abriu e Lachann entrou. Sem dizer nada, aproximou-se das duas mulheres com os bra­ços cruzados sobre o peito.

— Então, passou os últimos meses servindo o tal Nor­wyck como uma prostituta qualquer.

   As palavras foram seguidas por uma bofetada, e Mairi sentiu a dor do golpe até o fundo da alma. Mas não pendeu.

— Carmag não se incomoda com isso. Uma noiva vir­gem é um castigo para um homem de sangue quente como ele.

Mairi engoliu em seco e guardou silêncio. Lachann riu, certo de que a filha não desacataria suas ordens. Naquela noite, ela partiria de Braemar levando sua mãe.

   Mais tarde caminharia pela propriedade a fim de des­cobrir onde o pai guardava suas montarias e onde os ca­valeiros dormiam. Levaria cobertores, couros para trans­portar água e um pouco de comida, se pudesse encontrar o depósito das provisões. Se não, ela e Teàrlag viajariam sem nada. Afinal, a jornada até Norwyck não era tão longa.

   Se Bartholomew não a odiasse por sua mentira! Espe­rava que Eleanor o houvesse feito compreender que não deixara Norwyck por vontade própria. Ele precisava acre­ditar que não estava envolvida nas sórdidas armações do pai e do irmão.

— A cerimônia será breve — Lachann anunciou en­quanto se dirigia à porta do quarto. — Carmag a despo­sará, passará a noite em sua cama, e depois partiremos para o Castelo MacEwen antes que a semente do homem tenha secado em suas coxas.

   Com essas palavras cruas, o escocês saiu e bateu a porta com violência.

— Oh, Mairi! — Teàrlag gritou. — Ele a trancou aqui dentro!

 

   Os homens de Norwyck estavam quietos na base da colina. Haviam penetrado em território Armstrong, e a situação era perigosa. Atacar de imediato seria provocar uma chuva de flechas sobre suas cabeças.

   Por outro lado, esperar significava dar a Armstrong tempo suficiente para descobrir sua localização e organi­zar um ataque.

   Bartholomew sabia que sua estratégia era pouco tra­dicional e até um pouco covarde. Cavaleiros deviam ir ao encontro da batalha abertamente, não esconder-se do ini­migo até que o momento fosse oportuno.        

   Mas tinha muito a perder.

   A vida de Mairi, seu amor, o filho que ela esperava... Não arriscaria tudo em nome da honra. Iria embora ven­cedor, e para isso usaria todos os métodos necessários e disponíveis.

— Meu senhor — disse Duncan, — ontem não havia tanta atividade no vilarejo.

   Bart olhou por entre as árvores do bosque onde se es­condiam, mas não viu nada de significativo.

— O que quer dizer?

— Não sei ao certo, senhor, porque não podemos ver muito daqui, mas enviei homens para espionarem o ini­migo.

— É tudo que podemos fazer por enquanto. Um passo em falso, e trairemos nossa posição.

   O conde olhou para a colina. Não havia dúvida de que a atividade era intensa na área em torno do castelo. Ar­queiros ainda patrulhavam a região, mas o restante dos homens trabalhava em outras coisas. Talvez estivessem construindo uma catapulta.

   A fumaça sobre o vilarejo indicava a presença de mais fogueiras do que de costume. O que estariam fazendo? Forjando metal, consertando armaduras?

   Também havia mulheres em meio à movimentação incomum, e Bart pensou que talvez Armstrong houvesse encontrado uma utilidade para elas na batalha.

   Então, uma possibilidade invadiu sua mente com a força de um relâmpago.

— Há alguma chance de que lady Mairi tenha sido trazida para cá sem nosso conhecimento, Duncan?

— Sim, meu lorde, é possível. Havia muita névoa esta manhã, antes de começar a chover. Talvez não a tenha­mos visto.

   Maldição! Se Mairi já estivesse ali...

— MacEwen ainda está em Braemar, Duncan?

— É o que sabemos dele, meu lorde.

   Se Armstrong havia conseguido levar Mairi para o cas­telo, e se Carmag estava lá, nada mais impediria o casa­mento. Nada... exceto Bartholomew Holton e todas as for­ças que pudesse reunir.

   Ele olhou mais uma vez para o vilarejo e para o dila­pidado castelo escocês. Fogueiras, mulheres em franca ati­vidade, luzes na igreja... Não havia dúvida de que aquela gente se preparava para um casamento.

— Assim que seus homens voltarem, mande-os até mim — ordenou.

— Sim, meu lorde.                                          

   Mairi permanecia sentada e quieta no solar de sua mãe. Teàrlag se mostrava nervosa, sobressaltando-se a cada ruído, os olhos atentos à porta. Mairi tentou distrai-la falando sobre os anos que passara na França, sobre a estranheza de Alain ter sido levado pela maré justamente até a praia próxima do castelo escocês.

— Pensei que ele houvesse morrido — comentou.

— Sim, e ele pensou o mesmo sobre você. Foi uma tem­pestade terrível a que afundou seu navio.

— É verdade, mãe.

— Confesso que cheguei a me sentir feliz... Oh, minha filha, teria sido melhor do que vê-la casada com MacEwen!

   Mairi entendia o desespero da mãe. Se tivesse uma filha, talvez também a preferisse morta do que casada com um homem como Carmag.

   Preocupada, afagou o rosto materno e tentou sorrir, apesar da tristeza.

— Tudo vai dar certo — prometeu em voz baixa.

   A porta se abriu e um homem jovem e belo entrou sem pedir licença. Mairi soube de imediato que aquele era Dúghlas, seu irmão. Ela se levantou.

   O rapaz riu e contornou-a enquanto realizava um exa­me insolente.

— Você se transformou numa bela mulher — disse. — Quando a vi partindo daqui há dez anos, nunca pensei que pudesse mudar tanto. Onde está seu amante inglês? Não veio resgatá-la?

— E por que viria? — ela respondeu com falsa calma e um rápido encolher de ombros. — Agora que sabe quem sou eu...

— Foi muita esperta fingindo ter perdido a memória. Viveu bem nessas últimas semanas, não?

   Por mais que ele fingisse ser gentil, Mairi sabia que o irmão era vil, baixo e mentiroso como o pai. Só estava ali para provocá-la, para criar uma discussão e sentir o pra­zer de constatar que podia afetá-la de alguma maneira.

   Mas não aceitaria as provocações.

— Deixe sua irmã em paz, Dúghlas.

   A gargalhada provocou um arrepio que Mairi tentou disfarçar. Era claro que seu irmão não tinha respeito ou consideração pela mãe. Sendo assim, não podia nem devia esperar nada dele.

— A esposa de Norwyck comentou que o marido havia retornado da Escócia farto da guerra — ele continuou sorrindo, os olhos iluminados pelo brilho do ódio. — Ela garantiu que o homem nunca mais pegaria em armas contra os escoceses.

   Não sabia se o que ele dizia era verdade. Bartholomew estivera relutante em lutar contra o clã Armstrong, mas havia imaginado que ele esperava pelo melhor momento. Vira o conde praticar todos os dias no campo de treina­mento com os cavaleiros de Norwyck. Por que ele se es­forçaria tanto, se não tivesse boas razões para tal?

   E o homem que estivera com Lachann para falar de sua presença em Norwyck também devia ter mencionado o grande número de cavaleiros a serviço do lorde inglês.

— Sim, ele odeia a idéia de ir para a batalha — disse. — Bartholomew treina com seus homens todos os dias, mas espera nunca ter de usar todo esse treinamento.

— Eu sei. Lachann o tem testado.

   Era verdade. Seu pai fizera tudo que estava ao seu alcance para provocar Bartholomew, sem nunca obter os resultados desejados. Mais algumas palavras bem colo­cadas, e talvez pudesse convencer o irmão sobre a falta de preparo dos homens de Norwyck e sobre a covardia daquele que os comandava. Bartholomew jamais tentaria tirá-la do Castelo Braemar, mas não daria ao pai e ao irmão nenhuma informação que pudesse ajudá-los.

   Pelo contrário. Faria de tudo para confundi-los e atra­palhá-los.

— Lorde Norwyck ainda está muito abalado por conta da perda da esposa e do irmão.

   Dúghlas sorriu com ar diabólico.

— Ah, esse foi um de meus melhores trabalhos. Felícia já era uma vadia quando a conheci, há muitos anos, ainda na França. Não foi difícil seduzi-la enquanto Norwyck estava fora.

   Enojada com o relato detalhado que o irmão oferecia sobre seu envolvimento com a esposa do lorde inglês, Mairi assustou-se ao ouvir a voz de padre Murray na porta.

— Não quer fazer sua confissão antes das bodas? — ele perguntou.

— Sim, padre, por favor.

— Fora daqui, Murray! — Dúghlas gritou furioso. — Ainda não terminei com ela!

— Perdoe-me, Dúghlas — o religioso respondeu com ar sarcástico. Depois olhou para a jovem. — Mandará al­guém me buscar quando estiver pronta?

— Sim, padre. — Talvez, quando falasse com ele longe do irmão e da mãe, pudesse convencê-lo a ajudá-la a sair de Braemar levando Teàrlag.

   Padre Murray deixou o solar, e as duas mulheres tive­ram de continuar ouvindo o que Dúghlas tinha a dizer.

— Quantos homens Norwyck tem sob seu comando?

— Não sei — ela respondeu com sinceridade.

— Ele treina arqueiros? Espadachins?

— Não posso afirmar que alguma vez o tenha visto com arqueiros. — E esperava que Deus a perdoasse por estar mentindo mais uma vez.

— Fale-me sobre a muralha que o conde está cons­truindo.

   Não havia mal algum em discutir uma defesa tão óbvia, e Mairi decidiu aumentar um pouco os fatos.

— A muralha está quase pronta. Houve um acidente enquanto eu estava lá. Parte da parede desmoronou, mas eles já a repararam e estão bem perto do fim da obra.

— E Norwyck acredita que pode nos deter com isso?

— Existem mais duas muralhas internas e depósitos como vocês jamais viram. Os ingleses podem suportar um cerco fechado por muito tempo, porque têm provisões. E como lorde Norwyck deseja evitar a batalha a qualquer preço...

   A porta se abriu novamente. Lachann Armstrong en­trou. Parecia diferente, mais zangado, mais explosivo, e Mairi soube que teria de tomar muito cuidado ao lidar com o pai.

   Ele se aproximava devagar, ameaçador, como um pre­dador que se prepara para dominar a presa. De repente o homem atingiu o rosto da filha com uma violenta bofe­tada.   O golpe a derrubou no chão coberto por palha, e ela ficou ali, caída, com o lábio cortado sangrando.

— Não ouse olhar para mim com esse ar de desprezo. O que fizemos não foi mais do que   Norwyck mereceu. Es­queceu que tem responsabilidades com seu clã, mulher?

   Mairi continuou quieta, embora se levantasse devagar. Lembranças da imprevisível brutalidade do pai retorna­vam de repente, depois de anos de relativa paz e calma na casa de Caitir. O coração doía pela mãe, uma mulher dócil que tivera de viver durante anos com um marido cruel e violento. Não era de estranhar que ela estivesse assustada e nervosa.

   Mairi afastou-se do homem esperando poder evitar no­vas agressões.                                  

— Você partirá para o castelo de MacEwen logo depois do casamento, e Braemar será melhor sem você! E já de­cidi que sua mãe a acompanhará.

   Mairi não demonstrou nenhuma emoção ao ouvir a no­tícia, mas sentiu uma mistura de alívio e apreensão por saber que Teàrlag também seria mandada para a forta­leza de Carmag. Não sabia o que a esperava lá, mas es­tava certa de que o futuro seria desagradável. No mí­nimo. Preferia que a mãe não tivesse de testemunhar seu sofrimento.

   Depois da saída de Lachann, Dúghlas prosseguiu com o interrogatório, mas Mairi não tinha mais nada a dizer. Ofereceu as respostas que acreditava serem mais adequa­das para aplacarem a curiosidade do irmão e manteve os olhos fixos na janela suja. Lá fora, todo o clã Ármstrong estava envolvido nos preparativos para o grandioso ban­quete de casamento no dia seguinte.

 

   Uma leve neblina pairava sobre a colina naquela manhã. Não era a névoa densa que Bartholomew esperava para encobrir seus movimen­tos, mas não podia mais esperar.

   Antes do amanhecer, enviara companhias de cavaleiros em todas as direções para garantir o cerco ao castelo. Arqueiros rnantinham-se na frente de cada grupo, e espadachins seguiam logo atrás sobre poderosos cavalos. Com os cavaleiros tão espalhados, era impossível dar o sinal para o ataque, e assim haviam decidido que seus homens agiriam com base em outras pistas. Quando che­gassem ao castelo, dariam início ao ataque, e os sons da batalha seriam o sinal combinado para que todos os ou­tros entrassem em ação.

   Era um plano perfeito. Venceria Lachann Armstrong e impediria que Carmag MacEwen se casasse com Mairi. Mairi era sua, e nenhum outro homem jamais a tocaria.

   Bart esperava escondido entre as árvores, atento a qualquer ruído que pudesse indicar que o momento che­gara. O primeiro som que ouviu foi o da música produzida por gaitas-de-fole. Ao ouvi-lo, o conde decidiu não esperar mais.

   Mairi nunca gostara do som das gaitas-de-fole. Considerava a música lúgubre mais do que adequada para acompanhar sua entrada na igreja do vilarejo, onde se casaria com Carmag MacEwen.

   Não conseguira escapar. Padre Murray não obtivera permissão para retornar aos aposentos de Teàrlag, e não havia mais ninguém a quem pudesse recorrer.

   Estava tremendo. Talvez fosse o frio da manhã cinzen­ta. Tentou não pensar em Carmag esperando por ela no altar, mas tremeu ainda mais ao lembrar a sensação da boca gordurosa sobre a dela. O ataque do dia anterior não havia sido nada comparado ao que aconteceria depois da cerimônia.

   Dúghlas segurou seu braço na porta do templo. Não havia no gesto a ternura de um irmão, mas a força vio­lenta de um captor conduzindo seu prisioneiro ao destino final.  Homens de Armstrong comiam e bebiam perto das mesas armadas perto da igreja.     Embora levassem suas espadas nas bainhas presas ao corpo, eles não pareciam prontos para uma batalha.

   Seriam aqueles os mesmos homens que invadiam as terras do pacífico vizinho ao sul?     Esperava que Dúghlas houvesse acreditado em sua história sobre a relutância de   Bartholomew com relação à guerra. O excesso de con­fiança provocaria um certo descuido, e assim Bart teria uma boa vantagem quando ele decidisse reagir às declarações de guerra de Lachann.

   Se Carmag estivesse entre os homens de Armstrong quando Norwyck atacasse... Ah, a idéia de tornar-se viúva era mais do que agradável.

   Dúghlas a levava para o interior da igreja. As gaitas soavam tristes e estridentes. Habitantes do vilarejo ob­servavam sua passagem com desconfiança, e as poucas crianças que via eram quietas. Nenhuma delas corria e gritava, como era comum nos pequenos. Em vez disso, agarravam-se às saias de suas mães e mantinham-se quietos, ariscos como os adultos.

   A impressão de que as coisas não iam bem em Braemar era cada vez mais forte, e Mairi desejou encontrar um jeito de usar essa informação para impedir seu casamento com Carmag. Infelizmente, não conseguia pensar em nada. Era uma imprestável. Não conseguia saber nem se o esforço para salvar Eleanor Holton havia surtido algum efeito.

   Padre Murray a esperava na porta da igreja, no alto da escada. Ele parecia não vê-la, porque olhava furioso para a direita, para uma intensa comoção.

— Atreve-se a vir embriagado à casa do Senhor, Car­mag MacEwen? E para formular os votos sagrados que o unirão para sempre a uma mulher?

   Dúghlas riu ao ver o escocês cambaleando em sua direção. A túnica suja estava rasgada na manga, e o restante das roupas não estava em estado melhor. A ceroula fora esquecida aberta, oferecendo um espetáculo indecente.

   Mairi desviou os olhos tomada por uma intensa repul­sa. Padre Murray desceu a escada e empurrou o escocês com firmeza, impedindo-o de entrar no templo sagrado naqueles trajes.

   Naquele momento, Lachann Armstrong surgiu em meio à névoa que pairava sobre a paisagem. Mairi encolheu-se ao vê-lo, e o homem sorriu, como se sentisse prazer em detectar o medo nos olhos da filha.

— Onde está MacEwen? — ele perguntou.

— O padre levou-o daqui. O homem não estava apre­sentável — Dúghlas contou rindo.

   Lachann cuspiu no chão. Depois olhou para Mairi.

— Então, seu amante saxão não veio salvá-la do casa­mento com outro homem.

   E como Bartholomew poderia salvá-la?

— Não, pai — ela respondeu, reforçando a mentira so­bre o medo de Bartholomew. — Lorde Norwyck não quer lutar. Ele está construindo uma muralha para proteger-se de seus ataques.

   A gargalhada feroz a fez estremecer. Era horrível pen­sar que tinha o sangue desse homem correndo nas veias. Mas pelo menos podia ter a esperança de que a confiança provocada por suas falsas revelações o levariam à derrota. E salvariam a vida de Bartholomew.

   Bart decidiu que era hora. O sol estava alto e seus cavaleiros já deviam estar posicionados em torno do Cas­telo Braemar. O som lúgubre das gaitas descia a colina, encobrindo o ruído dos cavalos. Os homens envolvidos no trabalho de patrulhar a propriedade não eram tantos quanto no dia anterior. Não encontraria circunstâncias mais oportunas.

   Erguendo o braço, ele deu o sinal esperado por todos. Com disciplina e agilidade, os grupos foram se deslocando para Braemar empunhando armas letais. O conde seguia na frente.

   Estavam no meio da encosta e ainda não haviam en­contrado nenhuma resistência. Bart mal podia acreditar na própria sorte. Otimista, seguiu em frente liderando o primeiro pelotão, esperando pelo momento oportuno para repetir o sinal que poria em movimento as outras com­panhias.

   De repente, uma chuva de flechas caiu sobre o grupo. Bart baixou o visor da armadura e seguiu em frente, ansioso para encontrar Mairi e levá-la de volta em seguran­ça. A confusão entre os escoceses era prova de que o ata­que os pegara de surpresa. O plano era um sucesso!

   Continuou cavalgando para o castelo, onde esperava rever Mairi, mas foi atacado por um cavaleiro armado com uma espada. Como o inimigo estava sem armadura, não foi difícil derrubá-lo da montaria e continuar no ga­lope frenético que o conduziria ao objetivo.   Mais homens armados iam surgindo em seu caminho.

   Bartholomew os enfrentava com coragem e habilidade, certo de que seus cavaleiros também lutavam contra o odioso inimigo com empenho e determinação.

   O grupo ia ganhando terreno, subindo a colina. A certa altura, Bartholomew desmontou e seguiu a pé pela trilha de pedregulhos, temendo que a montaria perdesse o equi­líbrio e o derrubasse.          

   O grito de uma mulher ecoou em meio à cacofonia da luta.

   Era a voz de Mairi.

   Não sabia como podia ter tanta certeza de que era ela, mas seu coração reagiu ao grito. Seguindo-o, logo encon­trou-se diante da igreja do vilarejo. Sabia que a encon­traria lá dentro, talvez proferindo os votos sagrados.

   Usando a espada para abrir caminho, finalmente subiu a escada para o templo. Dúghlas   Armstrong lutava contra um espadachim, impedindo-o de entrar na igreja.

— Chegou tarde demais, bastardo saxão! Ela já se casou!

   Matar Dúghlas era menos importante do que encontrar Mairi. Depois de tantos meses planejando e treinando pa­ra o ataque a Braemar e a vingança contra os escoceses, só conseguia pensar em tirar Mairi daquele inferno e levá-la de volta a Norwyck.

   Rápido, subiu a escada deixando Dúghlas entregue ao seu destino. Sabia que seus homens eram habilidosos. Um deles daria conta do bastardo.

— Não! — Uma voz forte e masculina gritou. — Não vai haver nenhum casamento no meio de uma batalha!

   Bart entrou na igreja e a viu.

   Ela estava pálida e muito assustada. Um horrível ver­gão podia ser visto em seu queixo. O lábio inferior san­grava. Mairi se mantinha altiva, embora Lachann a se­gurasse pelos cabelos, e MacEwen se mantivesse agarra­do a sua cintura.

   Sentia-se orgulhoso de sua força, da coragem com que se impunha diante dos dois homens, mas sentia também uma fúria cega causada pelo tratamento indigno. Carmag a tocava como se tivesse direitos sobre Mairi, e os eviden­tes sinais de abuso em seu rosto inflamavam seu sangue. Tiraria sua amada dali imediatamente.

   Ou morreria tentando.

— Armstrong! — o padre protestou. — Está envergo­nhando a casa do Se...

— Eu acabaria com essa sua coragem agora, Murray! — Lachann investiu contra o sacerdote empunhando a espada. — Mas preciso de você para realizar o casamento. E é o que vai fazer! Agora!

   Armstrong encostou a espada no pescoço do clérigo, que ficou quieto.

   MacEwen parecia estar desarmado, mas Bart não ti­nha certeza disso. Não via nenhuma espada, mas um ver­dadeiro guerreiro era capaz de defender-se usando o que encontrasse em seu caminho, e Carmag era um guerreiro.

   Qualquer que fosse a ação, teria de ser rápida, porque logo sua presença seria descoberta. Munido de um banco de madeira, arremessou-o contra o extremo oposto da igre­ja, assustando o padre e os dois homens que o ameaça­vam. Por um instante, eles soltaram Mairi certos de que teriam de lutar por suas vidas, e ela aproveitou a oportunidade para correr.

   Bart empunhou a espada e saltou diante de Lachann Armstrong. O velho reagiu assustado, como se não pu­desse acreditar no que via.

— Norwyck!

— Exatamente. Vim buscar Mairi.

— E sua vingança, imagino! — Lachann atacou, mas Bart esquivou-se do golpe.

— Não. Só quero sua filha.

   Um barulho surdo chamou sua atenção. Bartholomew olhou para trás e viu que Mairi havia atacado Carmag com um banco de madeira à fim de impedir que ele aju­dasse Lachann.

— Fique fora disso, Mairi — avisou, preocupado com sua segurança.

   Mudando de posição, preparou-se para lutar contra os dois escoceses. Carmag havia tirado uma pequena adaga de dentro das roupas, mas não conseguia avançar, porque o padre gesticulava diante dele exigindo que todos fossem lutar fora do templo sagrado.

— Mairi — Bart gritou, ignorando o nervosismo do clé­rigo — esconda-se até que...

   Armstrong atacou, e Carmag conseguiu enfiar a adaga sob o braço esquerdo de Bartholomew.

   Furioso, ele reagiu e desferiu um golpe fatal contra Lachann Armstrong, ferindo-o no peito. Sem se importar com o sangue que escorria de seu braço, removeu a espada do peito do inimigo e investiu contra o segundo atacante.

— Vá embora agora, MacEwen — disse ameaçador. — Leve seus homens de volta para suas terras, e pouparei sua vida.

— Ah! Você é o ferido aqui, Norwyck!

— Mas é você quem está diante da morte, MacEwen. Os olhos do escocês estudavam o ambiente, avaliando as possibilidades e pesando as circunstâncias, enquanto Bart esperava por sua decisão. Ou por seu movimento.

   E ele foi rápido. MacEwen saltou para a frente e Mairi gritou. Bartholomew desviou a adaga com a lâmina de sua espada e cravou-a no coração do escocês. O homem caiu sem vida, e Mairi correu para os braços de seu amado e salvador.

— Você está bem, amor? — ele perguntou.

— Sim, mas... Oh, você está ferido!

— Sim, estou. Cuidaremos do ferimento em instantes. Antes... — Ele soltou a espada. — Preciso tê-la em meus braços.

— Acabou — o padre suspirou exausto. — Termina aqui o desastroso período de seu pai no comando dessas terras. Quando Dúghlas for o chefe...

— Dúghlas Armstrong jamais será senhor de alguma coisa, padre — Bart protestou. — Ou já teria invadido sua igreja enquanto eu lutava contra o pai dele.

   Intrigado, o religioso encarou-o por alguns segundos com as sobrancelhas unidas. Depois encolheu os ombros.

— Vou sair e espalhar a notícia sobre a morte de Lachann Armstrong. Assim, talvez algumas vidas possam ser poupadas.

— Faça isso, padre.

   Assim que ficaram sozinhos, Mairi perguntou ansiosa:

— Eleanor conseguiu voltar ao castelo?

— Graças a você, minha amada.

— Sua... amada?

— Essas últimas horas longe de você foram as mais longas de minha vida. Nunca mais se atreva a me deixar.

— Mas, meu lorde... Sou filha de Lachann Armstrong e...

— Eu sei disso. Mas de hoje em diante será esposa de Bartholomew Holton.

   Divertindo-se com o espanto causado por sua declara­ção, ele a beijou nos lábios e depositou dezenas de beijos em seu rosto machucado.

— Seja minha esposa, Mairi. Eu a amo com toda a força de minha alma. Minha vida nunca será completa sem você.

— Oh, Bartholomew... Será uma grande honra tornar-me sua esposa. Nunca pensei... jamais imaginei que esse dia pudesse chegar!

— Nunca duvide de meu amor por você, Mairi. Saiba que estarei sempre pronto a defendê-la e protegê-la de todos os perigos.                      

— Oh, Bartholomew, eu o amo tanto!

   A porta da igreja se abriu, e um homem jovem e belo como Dúghlas aproximou-se cauteloso, embora seus pas­sos sugerissem autoridade e dignidade. Ele estava desarmado e parecia familiar.

— Mairi Armstrong? — indagou.  

— Sim, sou eu. E você é... Primo Aonghas?

— Há quantos anos não nos vemos, minha prima! Re­centemente, o clã Armstrong tem enfrentado muitas di­ficuldades. Lachann era... Bem, dizer que ele era impru­dente seria bondade. O clã só deseja a paz entre nós.

— Trata-se de um desejo razoável — concordou Bart.

   Aonghas era a resposta para suas preces por paz. — Quem assumirá o comando, agora que Lachann está morto?

— Eu sou o novo líder do clã.

— Bem, parece que finalmente fizeram uma boa esco­lha. Creio que vamos nos dar muito bem, rapaz. Vá em frente, Aonghas, e anuncie diante de seu povo o início de uma nova era. Iremos encontrá-lo num momento.

   Quando o rapaz saiu, Bart beijou a mulher que amava com paixão.

— Uma nova era também começa para Norwyck, Mairi. Com o nosso amor, com o filho que está esperando... e com todos os outros que virão... haverá paz e prosperida­de. As guerras chegaram ao fim.

— Sabia sobre o bebê?

— Sim, minha amada. Mas só soube sobre a criança depois de ter descoberto em mim um grande amor por você. É como se em sua vida estivesse a minha. E, de hoje em diante, nunca mais duvidarei de suas palavras.

   Juntos, os dois deixaram a igreja e foram ajudar Aon­ghas a inaugurar uma era de paz entre seus povos.

 

                                                                                Margo Maguire  

 

                      

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