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A ÚLTIMA CONFISSÃO / Morris West
A ÚLTIMA CONFISSÃO / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ÚLTIMA CONFISSÃO

 

Não faço qualquer reivindicação quanto à proveniência deste documento. Relativamente à autenticidade do seu conteúdo, posso afirmar que ele segue firmemente a linha histórica revelada nos documentos publicados sobre os julgamentos de Bruno em Veneza e em Roma, e pelas últimas pesquisas dos seus biógrafos e comentadores: Spampanato, Firpo, Mercati, Yates, Ciliberto e outros.

A figura de Bruno aqui descrita é o preciso retrato, ainda que nem sempre atraente, de um génio, nascido fora da época, entendendo-se dificilmente consigo próprio, vítima dos preconceitos da sua época, que no fim alcançou a dignidade de um mártir e um lugar duradouro na história da dissidência honesta.

Conheci-o pela primeira vez quando me encontrei diante da sua grande imagem de bronze no Campo del Fiori, em Roma, e li a dedicatória nela inscrita: A Giordano Bruno, do século que ele adivinhou, em Roma, no local onde foi queimado.

A publicação deste documento é o meu tributo à sua memória no quadrigentésimo aniversário da sua morte.

Morris West, Clareville 1999

 

 

A última confissão de Filippo Giordano Bruno, chamado o Nolano, escrita na sua cela em Roma no último mês da sua vida no ano de 1600

ROMA: A PRISÃO DO SANTO OFÍCIO 21 DE DEZEMBRO DE 1599

Conheço muito bem este lugar. Vivi aqui durante quase sete anos, desde que me extraditaram de Veneza - um dia triste de Inverno que ainda recordo nos meus ossos doloridos.

Na prisão perde-se a noção do tempo. Tenta-se a princípio medi-lo pela luz pálida que penetra através de uma janela alta e gradeada. Depois abandona-se o esforço. Para quê conspirar com os carcereiros, para nos atormentarmos a nós próprios?

No entanto, estou certo da data de hoje porque o tabelião a anunciou quando fui levado a comparecer perante a Congregação do Ofício da Santa Inquisição Romana e Universal.

Formam um conjunto impressionante: nove ilustríssimos e reverendíssimos cardeais, seis altos e reverendos clérigos - religiosos e regulares - e, claro, o tabelião, meticuloso anotador dos acontecimentos, que hoje são minutados sob o título: Visitação dos Encarcerados no Santo Ofício Romano. Eu sou apenas um dos prisioneiros; mas hoje dizem-me que sou o único objecto das atenções de todos aqueles senhores.

Primeiro convidam-me a identificar-me. Meu Deus! Quantas vezes já o fiz? Quantos tabeliões já o registaram em quantos documentos? O meu nome de família é Bruno. Nasci em 1548 na cidade de Nola, no reino de Nápoles. O nome do meu pai era Giovanni. O da minha mãe Fraulisa. O meu nome de baptismo é Filippo. Contudo, sou caracterizado em todos os documentos pelo meu nome religioso, Giordano. Fui ordenado padre, monge da Ordem dos Irmãos Pregadores, mestre em Teologia Sagrada.

Cada um destes títulos é autêntico. Cada um fornece um laço separado para me enforcarem. Já não pratico o meu ministério, portanto, sou acusado por causa da minha "vida solta e licenciosa". Fugi da minha Ordem, por isso sou "monge apóstata". Sou acusado de perverter a Divina ciência da teologia transformando-a numa autêntica heresia. Assim, eles podem ordenar a minha execução.

Hoje, o homem que se me dirige em nome dos inquisidores é o ilustre e reverendíssimo cardeal Roberto Bellarmino, um jesuíta de quem se diz que goza de grande favor aos olhos do pontífice. Ao contrário de alguns dos seus colegas, tem modos suaves e corteses - embora eu já esteja preso há demasiado tempo para poder confiar demasiado nele.

Aquilo que me diz é muito simples. Ele e os colegas concluíram as suas investigações sobre a minha vida, os meus escritos e as minhas opiniões. Não haverá mais interrogatórios. Logo a seguir ao Natal, a Congregação decidirá. Quando voltar a ser chamado será para ouvir o veredicto.

Entretanto - e isto é o âmago de uma maçã muito ácida -, eu deveria usar as próximas semanas para reconsiderar a minha posição com o maior cuidado. Bellarmino acentua a expressão com a precisão de um linguista. A palavra resipiscere quer dizer "repensar com sabedoria".

Sinto uma ira repentina crescer dentro de mim. O que tenho eu feito todos estes anos na prisão a não ser pensar e repensar, experimentar um argumento contra outro - mesmo quando o meu espírito estava aturdido pela febre e o meu corpo torturado pelas dores reumáticas? Consigo controlar-me e responder firmemente mas com respeito. Não tenho qualquer desejo nem sinto qualquer obrigação de reconsiderar o que quer que seja. Respondi a todas as questões que me foram apresentadas ao longo de meses e anos. Não compreendo o que esperam de mim agora.

O cardeal Bellarmino explica. Ele e os seus colegas compreendem o impedimento que eu sinto. Trata-se de um estado que não é invulgar durante o caminho difícil para o arrependimento e a iluminação espiritual. Por essa razão, pediram ao mestre-geral da minha Ordem e ao seu vigário que se encontrassem comigo em particular, na minha cela, e me ajudassem a ver a vaidade do meu estilo de vida e os erros doutrinais em que caí. Pergunta-me se estou preparado para os receber e discutir com eles abertamente.

Claro que estou preparado para falar - estou preparado para tudo o que possa adiar o dia fatal da decisão! No entanto, digo-lhe que não posso fazer qualquer promessa de mudança. Ele compreende isso. Louva mesmo a minha sinceridade. Depois, no mesmo tom brando, recorda-me que a minha liberdade, a minha vida e a minha salvação eterna dependem do resultado.

Que posso eu dizer? Sei que estou a dois passos do momento que sempre temi. Espremeram-me como uma laranja até deixarem apenas o caroço e a pele. Curvo a cabeça em silêncio e espero que me deixem ir embora. Para minha surpresa, oferecem-me algumas pequenas indulgências.

A partir de agora vou ficar sozinho na minha cela. Sinto-me grato por isso. Aprendi muitas vezes à minha custa que os companheiros de cela podem acabar por ser informadores, como esse desgraçado Celestino, o Capuchinho, que me caluniou para salvar a própria pele. Causou-me meses e meses de problemas com informações sobre as nossas conversas na cela e relatos dos meus gracejos blasfemos e licenciosos. Não lhe serviu de nada. Há três meses, levaram-no e queimaram-no por heresia no Campo del Fiori.

Portanto, a privacidade é um conforto; mas há ainda uma gota de fel na minha taça de vinho. Eu sei, e os inquisidores sabem, que a solidão gera medo, incerteza, dúvida e pesadelos de terror. Fico muito satisfeito quando Bellarmino me diz que me darão penas, tinta, papel e velas para ajudar a minha vista debilitada. Mas, mais uma vez, há um toque de amargor na minha taça. Não posso escrever sobre quaisquer assuntos não relacionados com o meu caso. Não posso possuir ou ler nenhum outro livro que não aquele que me foi fornecido: o breviário aprovado para uso especial da Ordem dos Irmãos Pregadores. À parte isso, terei que manter o meu espírito vivo com uma colheita diária de recordações.

Neste ponto, ganho coragem para exprimir algumas necessidades mais simples. O meu hábito é demasiado fino e está gasto. A minha cela é fria como um túmulo. As minhas articulações estão inchadas e doridas, as minhas mãos em sangue por causa das frieiras. Peço um hábito de lã e uma capa, luvas para as mãos e peúgas para mitigar o frio do pavimento de pedra.

Alguns dos inquisidores desaprovam claramente estes lenitivos. Bellarmino constrange-los rapidamente à aceitação. O tabelião é mandado emitir uma ordem de aquisição para o mestre do guarda-roupa. É fornecido dinheiro para que eu possa banhar-me e esfregar-me em água quente e pagar ao barbeiro para me aparar o cabelo e a barba.

Agradeço aos meus senhores as suas indulgências. Faço um pedido final para que a ordem seja despachada. Quando os ilustres visitantes tiverem partido, a vida da prisão retomará o seu ritmo costumeiro - as promessas alinhar-se-ão formando longos amanhãs como as contas de um rosário comprido.

Bellarmino aceita o apelo. Volta-se para os colegas e admoesta-os:

- Somos nós que controlamos este sítio e não o pessoal. Aquilo que ordenamos deve ser executado sem demora. E vós, irmão Bruno, devíeis também atender instantaneamente ao bem-estar da vossa alma. O tempo passa rapidamente e vós estais em perigo a todo o momento. Podeis ir agora.

O meu carcereiro acompanha-me à cela e fecha-me à chave. Atiro-me para cima da cama e fico ali encolhido como um feto, morto num útero escuro, condenado a nunca ver a luz do dia. Depois, devagarinho, a loucura do desespero cede o lugar a uma raiva fria e negra. A raiva é uma coisa boa. Prova que estou vivo e que ainda não me vergaram. Prenderam-me e meteram-me no redil; mas eu não sou nenhum carneiro. Hão-de saber que sou um lobo que ainda pode sacudir, rosnar e morder a mão de qualquer intruso.

A gente simples no meio de quem nasci tem um velho ditado: "Quando se entra numa vendetta há que abrir duas covas." Bom, foram eles que montaram uma vendetta contra mim. Fizeram de mim um vagabundo entre os letrados da Europa; caluniaram-me, privaram-me da liberdade; ameaçam a minha vida; procuram mesmo perseguir-me até à cadeira do julgamento do Todo-Poderoso. Eles têm todo o armamento, todo o poder.

As únicas armas que eu tenho são aquelas que me concederam hoje: canetas feitas de penas de ganso; tinta de fuligem e bílis, uma resma de papel em branco e o tempo de um mês. Que posso eu fazer com tão pouco? Em breve os meus inimigos irão destruir-me; mas também eles são mortais e hão-de morrer e ser enterrados quando chegar a altura. Pelo menos eu posso dar a mim mesmo o prazer de escrever os nossos epitáfios.

Uma inscrição já toma forma na minha cabeça: A Ultima Confissão de Filippo Giordano Bruno, chamado o Nolano, que agora se apresenta para o julgamento da história.

Que hei-de dizer neste escrito? Um epitáfio, ainda que breve, é um memorial. O que desejo eu acima de tudo que seja recordado sobre a minha pessoa? De que desejo eu convencer aqueles que, num futuro nebuloso, possam vir a lê-lo?

Não vou ter tempo, e de qualquer forma não tenho inclinação, para escrever uma crónica da minha vida ou uma defesa das minhas opiniões. Estas já foram mencionadas - e com que entediante repetição e detalhe, Santo Deus - nos registos das minhas inquisições em Veneza e aqui em Roma.

Preferiria dar a conhecer - de forma simples e aberta, como numa conversa ocasional de amigos - quem sou e a leitura que faço do destino que me trouxe até este momento. Esse destino estava escrito desde o início na palma da minha própria mão, embora me faltasse o espírito para o ler ou decifrar.

Não posso escrever isto tudo de um só fôlego, como uma oração ou um argumento filosófico. Já percorri esse caminho antes e ele não leva a parte alguma. Assim, o melhor que posso oferecer é o episódio, a alusão, pedaços e fragmentos de memória que podem revelar-se no final como um retrato em mosaico do verdadeiro Bruno que vive dentro de minha pele.

Por um momento, sinto uma ténue alegria com essa ideia. Depois assalta-me um novo terror: se for condenado, despojar-me-ão de todos os meus pertences excepto o hábito e entregar-me-ão acorrentado ao comandante da Nona Torre, que se encarregará de me entregar prontamente aos meus executores.

Que acontecerá então ao meu manuscrito? Como posso escondê-lo enquanto escrevo? Como poderei tirá-lo daqui e fazê-lo chegar a mãos seguras e amigas?

A única coisa em que consigo pensar neste momento é que, mesmo neste lugar estritamente confinado e rigorosamente guardado, tenho conseguido prestar pequenos favores a gente humilde: escrever um bilhete para um jovem apaixonado, uma carta pedindo protecção para um guarda analfabeto. Talvez um deles me possa agora ajudar. Tenho que confiar na sorte, uma vez que, sendo monge apóstata e acusado de heresia, não posso apelar para a Divina Providência. Oh, irmão Gior-dano! Escreveste com tanta confiança sobre um Universo infinito e sobre mundos plurais para além da nossa visão, e no entanto não consegues sequer controlar este ninho de ratos do teu próprio planeta.

 

23 DE DEZEMBRO

Levou dois dias, mas Bellarmino cumpriu a promessa. Esta manhã tenho autorização para tomar banho numa banheira com água tépida. Quando me dispo, consigo contar os ossos na minha caixa torácica e as rugas da minha barriga mirrada. Os músculos das pernas estão a desaparecer por falta de exercício. A minha pele, depois de tirada a sujidade, fica pálida e amarelada como a de uma galinha depenada.

A roupa velha é levada e uma outra atirada para cima da cama. Não é nova - Deus me livre! Está remendada e cosida, mas pelo menos é limpa e não tem o mau cheiro da prisão.

Um barbeiro vem aparar-me o cabelo e a barba. Ainda não o conhecia. É brusco e sem graça. Fala por grunhidos e rajadas em romanaccio, um dialecto ruidoso que soa áspero aos ouvidos de um sulista como eu, cuja linguagem é feita para cantar.

Pergunto o que aconteceu ao colega dele. Está doente. Tem a malária. Quando é que vai voltar? "Sabe-se lá! Deus é que arranja essas coisas."

Fico satisfeito por ver aquele bruto mal humorado pelas costas. Sinto a falta do outro, um napolitano como eu, alegre e falador. E, além disso, simpático. Às vezes dá-me uma peça de fruta ou um doce, e tem sempre algum escândalo obsceno para me animar o dia.

Sobre a minha mesa há três velas, uma numa palmatória, as outras duas, lado a lado, em cima da mesa. Avisaram-me de que não terei mais até à próxima visita dos inquisidores. Calculei cautelosamente como fazê-las durar. Se vos ris desta matemática infantil, deixai que vos recorde como a luz é preciosa, a alegria que proporciona, o terror quando nos é tirada.

De repente - e não com desagrado -, isto faz-me recordar os meus dias de estudante em Nápoles. Formávamos um bando desordeiro e turbulento. A maior parte de nós éramos pobres e ganhávamos o nosso dinheiro fazendo entregas para os lojistas. Pagávamos os nossos prazeres fazendo recados para as raparigas dos bordéis. Num dos relatórios da minha candidatura a noviço da Ordem chamaram-me postiglione per le puttane : o postilhão das prostitutas! Havia um duplo sentido nessa piada. O postilhão monta o cavalo da frente da equipagem. O segundo sentido era claro. Sugeria que eu montava também as raparigas.

Claro que o fazia. Eu era um rapazito de sangue quente e orgulhoso da minha virilidade recente. Ela parecia agradar também às raparigas. Diziam-me que era bom não estar com os velhotes que levavam uma hora para conseguir uma erecção. Recordo-me agora que o prazer era sempre medido pela luz da vela. A vela ao lado da cama de cada rapariga era marcada pelo dono do bordel: seis sessões por hora. Se alguém quisesse mais de dez minutos, ou se precisasse de tempo para entrar em acção, tinha de pagar.

Depois de se pagar, a rapariga acendia a vela. Quando a cera derretia até à linha que marcava o tempo previsto, a rapariga soprava a vela. A breve sessão de amor estava terminada. O cliente e o crédito chegavam ao fim.

Não havia discussão possível. Se alguém o fizesse, apanhava uma tareia e era atirado para a rua. Por isso existe uma frase na nossa língua: cortigiana a candeia, cortesã de vela. E isso, pensando melhor, era o que os inquisidores queriam fazer de mim, medindo a minha vida pela chama da vela e a cera derretida.

Ao lado das velas há uma pilha de papel em branco, um boião com tinta e uma dúzia de penas já cortadas para escrever. Eu prefiro cortar as minhas próprias penas ao jeito da forma e inclinação da minha caligrafia. No passado pedi um pequeno canivete, mas isso sempre me foi recusado. Não me é permitido possuir qualquer instrumento com o qual possa fazer mal a mim próprio ou aos outros.

Não tem importância. Estes pequenos favores já restabeleceram o meu respeito próprio e a minha pequena reserva de coragem. Portanto, agora estou preparado para me sentar, mergulhar a pena na tinta e começar a escrever a minha última confissão.

Meu pai, Giovanni, era um soldado ao serviço do vice-rei de Nápoles. Não me interpretem mal. Não era nenhum rufião por conta própria, vendendo-se a quem oferecesse mais para qualquer trabalho sujo como soldado. Pertencia a um corpo de elite, a uma entre dezasseis companhias, cada uma com setenta homens, que eram a espinha dorsal das forças de guarnição do duque de Alba. Havia condições rígidas para o alistamento: tinham de ser cavalheiros de nascimento, ter bom aspecto, boa saúde física, ser inteligentes e de valor comprovado. Eram bem pagos. Meu pai ganhava um salário de oitenta ducados por ano, com os quais tinha de prover dois cavalos e um tratador.

Durante a minha infância, ele ausentava-se por longos períodos em serviço nos Abruzos, na Puglia e nas áreas costeiras ameaçadas por invasões de corsários. No meu espírito, ele era uma figura heróica, um espírito livre, defrontando os inimigos do rei, viajando por um mundo do qual eu nada sabia. Nas suas raras visitas a casa, eu suplicava-lhe que me contasse histórias dessas campanhas, mas ele era um homem taciturno, sem o espírito de um contador de histórias. Por isso, eu inventava os seus feitos, dos quais me gabava perante os meus amigos.

A minha mãe sofria com as suas ausências e resmungava quando ele vinha a casa. Olhando para trás, não lhe posso levar a mal. Ela era, virtualmente, viúva e criou-me sozinha, embora vivesse no meio de uma vasta parentela. No final, começou a ser acometida por acessos de melancolia que tornavam a vida dela e a minha uma autêntica infelicidade doméstica.

Mesmo assim, não me faltou companhia nem diversão. A nossa casa fazia parte da propriedade da família Savalino. Era uma de nove residências, ocupadas por catorze famílias. Nós, os rapazes, aprendíamos a ler e a escrever e um pouco de aritmética com um padre local, Dom Gian Domenico. Quando não estávamos na escola, vagueávamos pela região, junto ao sopé da montanha chamada Cicada. Era um propriedade rica em azeitonas, nozes, carvalhos, choupos, alecrim, vinhas, elmos e murta.

Para além deste Éden estendia-se a cidade de Nápoles, e, mais além - o limite do mundo tal como eu o conhecia - o negro e sinistro cone do Vesúvio, com a sua pluma de fumo castanho e, à noite, o brilho intermitente do seu coração ígneo e pulsante.

O mistério e terror daquela montanha foi o princípio de todas as minhas posteriores interrogações sobre a natureza do mundo, do próprio Universo, do seu Criador e dos nossos destinos humanos. A destruição das cidades de Pompeia e Herculano ainda estava vívida no nosso folclore. Todos os pregadores a usavam como texto, falando dela como um acto de vingança Divina: Deus fazendo chover fogo sobre os habitantes dissolutos tal como fizera antes com Sodoma e Gomorra. Já nesse tempo esta afirmação crua ficou-me atravessada na garganta. Quando vivi em Nápoles como estudante, a ideia tornou-se ainda mais difícil de digerir. A nossa cidade era cristã, mas de maneira nenhuma mais virtuosa do que a velha Pompeia. Havia exactamente a mesma luxúria, vilania e violência que houvera entre os antigos.

Portanto, não me parecia haver uma boa razão para que o Vesúvio não fosse usado, uma vez mais, como um instrumento de castigo Divino. Todo o território em volta da baía de Nápoles, de Sorrento a Pozzuoli, era um terreno instável, que subia, e baixava, e deitava para o ar fumaças de advertência vindas dos fogos lá de baixo. Por vezes, depois de uma noite de bebedeira e pândega, eu sonhava que estava a sufocar com a poeira quente e os vapores nocivos.

Mesmo ao escrever estas palavras, o pesadelo apodera-se de mim novamente. Se os inquisidores me condenarem, vou morrer na fogueira, sufocado com o fumo da lenha enquanto as chamas se erguem para me consumir. Também a isto eles hão-de chamar uma vingança Divina, pois alegam estar a julgar-me em nome de Deus.

Como é que eu me julgo a mim mesmo? Esse é o cerne da questão. Já não me resta tempo para albergar ilusões; nenhuma ilusão merece que se morra por ela. Portanto, a questão alarga-se por si só: o que é ilusão, o que é realidade?

Uma realidade é que eu sou um filho do sol. Vim de uma costa onde crescem uvas e laranjas, onde o mar é quente e azul e as mulheres são quentes, também, e os homens são tão prontos no riso como na ira.

Falamos muito e discutimos aos berros. Mentimos com facilidade e encolhemos os ombros quando somos apanhados - o que é característico de um povo subjugado pelos seus conquistadores. No entanto, somos tão vaidosos como qualquer um dos "magníficos" espanhóis que se pavonearam nas nossas ruas como se elas lhes pertencessem - e na verdade pertenciam, uma vez que éramos governados de Espanha por um vice-rei espanhol. No entanto, a cidade sempre foi rebelde, uma pedra na bota da Itália.

Nos nossos tempos de estudantes todos andávamos armados. Havia muitas rixas na própria universidade, nas escadas, nos pátios, mesmo na Igreja de San Domenico. No fim, duras penas eram aplicadas aos perturbadores da paz: quatro elevações na corda para deslocar as omoplatas; e havia outros castigos para os reincidentes: para os nobres, a expulsão; para os plebeus, ser acorrentado aos remos nas galeras.

Tive a sorte de me manter afastado de desordens graves. Ficava muito mais feliz em me deitar com uma rapariga do que em ficar numa viela de punhal em punho contra os fanfarrões. Além disso, para um homem da minha condição, filho de soldado, sem título de nobreza nem grandes perspectivas de herança, estudar era a única via ascendente e a Igreja a porta que dava directamente para essa estrada.

Estudei Teologia com Mattia Gibbonis, Ambrogio da Nopoli e Giacomo Marotta - todos dominicanos. Li a metafísica com Agostino Manualdo e com Geronimo de Cardines, que era Agostinho. Todos eles eram monges e, como jardineiros assíduos orientando uma vinha numa latada, inclinaram o meu espírito em crescimento para a religião.

Eu não podia afirmar-me piedoso, mas os meus professores sabiam - ou julgavam saber - o que podia ser feito com jovens como eu: ambicioso de aprendizagens, mas sem recursos e vulnerável ao mundo turbulento que nos rodeava. A vida de um religioso regular oferecia não apenas segurança material mas um lugar na ordem estabelecida das coisas e a oportunidade de subir degrau a degrau à eminência e autoridade dentro da Ordem. Nem tudo isto me era claro na altura, mas essa noção foi infiltrada dentro de mim, lentamente, pelos meus mentores. Um dia talvez eu pudesse estar à altura de me candidatar à admissão na Ordem dos Irmãos Pregadores, na comunidade local de San Domenico.

Parecia-me que tinha pelo menos algumas das qualidades necessárias: era filho legítimo, bem educado, instruído na gramática, solteiro, livre de qualquer doença escondida. Os excessos da minha vida de estudante não constituíam impedimento. Podiam ser expurgados na confissão geral que precederia a minha entrada - e o mestre dos noviços havia de me guiar ou conduzir ao longo do caminho ascensional para a virtude.

Havia muito a recomendar essa ideia: a barriga cheia, uma vida de estudo e protecção, a possibilidade de sair antes de fazer os votos e ser ordenado sacerdote. Seria eu capaz de viver no celibato? Pensava que sim. A vida com a minha mãe não me criara qualquer interesse pelo casamento. Castidade era outra coisa completamente diferente; mas a tolerância da época, se não o ideal do fundador da Ordem, São Domingos, poderiam tornar a sua prática menos árdua. Além disso, eu já descobrira que o estudo aturado aliviava um pouco as ferroadas do desejo. Na verdade, uma das raparigas que eu frequentava - uma moreninha vivaça cuja mãe era mourisca - costumava dizer-me: "Sei sempre quando estás a estudar, Filippo. Puxas demasiado por nós e só temos metade do prazer!"

Mas porquê desperdiçar papel e a preciosa luz da vela com este tempo perdido? A quinze de Junho do ano de nosso Senhor de 1565, recebi a tonsura de clérigo menor e vesti o hábito de monge dominicano. Tomei também um novo nome, para simbolizar a minha nova identidade: Giordano.

Pronto, desta vez sei que acertei na data. Quando me interrogaram em Veneza há sete anos, enganei-me e o erro nunca foi corrigido. Como se isso tivesse a menor importância. A minha entrada para a religião foi o primeiro passo para a condenação com a qual os senhores inquisidores me ameaçam agora: para o meu corpo, a morte pelo fogo; para a minha alma, uma eternidade de tormento. Esta é a natureza da loucura que eles propagam: para fazer um homem reconhecer um Deus de amor, queimam-no!

Basta por agora. Reorganizo os meus papéis, pondo as folhas que escrevi por baixo das outras. Limpo os calamos e estendo-me na cama para me preparar para a visita do mestre-geral e do seu vigário.

Os dois formam um par curioso: o mestre-geral, alto, magro, com uns olhos penetrantes que brilham num rosto que poderia ter sido esculpido em madeira; o vigário, redondo e vermelho como uma maçã, mas atento e sempre deferente para com o mestre. A saudação deles é fria. Sentem-se nitidamente desconfortáveis no meu quarto estreito com um cheiro penetrante a pedra bolorenta, humidade do Tibre e urina velha. Mesmo o mestre-geral parece ter dificuldade em encontrar palavras para abrir o diálogo. Aguardo num silêncio respeitoso. Finalmente, ele fala.

- Sinto-me satisfeito, irmão Giordano, por estardes pronto a falar abertamente connosco. Sabeis que estamos aqui para vos ajudar... se no-lo permitirdes.

- Estou muito necessitado de ajuda, mestre. Posso fazer algumas perguntas primeiro?

- Com certeza.

- Nos termos da lei, ainda estou obrigado pelos meus votos, não é verdade?

- Estais, na verdade, tanto legal como moralmente.

- Portanto, ainda estou sob a jurisdição da Ordem, a vossa jurisdição, mestre.

- De um ponto de vista estritamente legal, passastes para a jurisdição dos inquisidores, mas eu continuo a ser o vosso superior religioso.

- Sendo assim, o que vedes em mim? Um irmão ou um inimigo? Não leva muito tempo a preparar a resposta, mas o tom dele é brando.

- Vejo-vos como um irmão que se afastou tempo de mais e para demasiado longe da casa do nosso Pai.

- E se eu voltar arrependido, receber-me-eis com alegria e matareis o vitelo gordo?

O vigário abre a boca para falar, mas o mestre-geral fá-lo calar com um gesto.

- Não sou vosso pai, sou vosso irmão. O nosso pai comum na Terra é Sua Santidade, que fala em nome do nosso Pai no Céu. Cabe-lhe a ele dizer se podereis ou não ser bem-vindo de volta à nossa casa. Só ele vos pode dispensar dos vossos votos solenes ou das censuras que impendem sobre vós neste momento.

- Eu sei, mestre-geral. Apresentei vários pedidos de clemência directamente a Sua Santidade. Garantem-me que eles foram entregues. Dizem-me também que Sua Santidade se recusou sequer a abri-los. Podeis dizer-me porquê?

- Sua Santidade decidiu na sua sabedoria que não vai intervir. Deixará a determinação do caso ao tribunal da Santíssima Inquisição.

- Resumindo, então, continuo prisioneiro na casa do nosso Pai. Não sou o filho pródigo que regressa, mas um banido para sempre.

- Isso ainda não está decidido, irmão. - Agora, finalmente, o vigário encontrou a voz, ligeira e aguda como a de um tenor castrado. - O tribunal ainda está a considerar o veredicto.

- Então, dizei-me, senhores, por favor, qual a finalidade desta conversa?

Olho de um para o outro. O vigário está a estudar as fendas no chão da minha cela. Os olhos do mestre estão velados como os de um falcão antes de ser liberto da peia. A sua voz tem agora um tom cortante.

- A nossa preocupação, irmão, não é o veredicto dos inquisidores. Esse será entregue na devida altura. A sentença será dada a conhecer. O Santo Pai aprovará o que quer que se faça. Estamos aqui como vossos irmãos, para vos ajudar ao arrependimento, oferecer-vos a absolvição e reconciliar-vos com a Igreja e com Deus. Se escolherdes encará-lo como deve ser, este é um momento de graça. Aconteça o que acontecer depois, aceitá-lo-eis como o ladrão na cruz aceitou morrer ao lado do Salvador e foi bem-vindo com ele no Paraíso. Compreendeis o que vos estou a dizer?

Se compreendo? Doce Cristo sofredor! Por um momento, a razão inclina-se para a loucura. Já ouvi tudo isto antes, e ainda sinto vómitos perante as reverentes hipocrisias.

Extra ecclesia nulla salus. Fora da Igreja não há salvação. Milhões de almas humanas feitas, dizem eles, à imagem de Deus, tombam todos os dias para a condenação como folhas levadas por um vento de Outono. As chaves do reino dos Céus estão nas mãos de um homem que se recusa a abrir a sua correspondência - para não falar em abrir o próprio coração. Não tenho qualquer esperança de chegar até ele. Os acessos de sua casa estão guardados pelos mastins de Deus, prontos a perseguir e dilacerar todos os intrusos. O mestre e o vigário observam-me atentamente, aguardando a minha resposta. Dou-a com toda a calma que consigo reunir.

- Estou grato pela vossa boa vontade, mestre-geral. Sinto-me tocado pela vossa preocupação com o bem-estar da minha alma. Não tenho a certeza até que ponto qualquer das duas me poderá ajudar, se os inquisidores me condenarem e Sua Santidade voltar a cara.

- Mas Deus nunca voltará a cara ao pecador arrependido. A Sua misericórdia é infinita.

- Então, por que encontro tão pouca na Sua Igreja?

- Isso é blasfémia! - O vigário é veemente no protesto e de repente toda a minha calma desaparece. Grito-lhe.

- Não, vigário! Não! Não! Não! Sois vós que cometeis as blasfémias... prender sem acusação, testemunhas sem nome, confissões extraídas por meio de tortura, condenação sem apelo. Como podemos acreditar no Deus que vós apresentais?

De repente, dou comigo a chorar: fortes soluços atormentados que parecem rasgar-me o peito. Enterro a cara nas mãos. Afasto-me violentamente quando o mestre-geral me coloca a mão no ombro. A voz dele ecoa distante, uma frase délfica vinda de uma gruta escura. ;

- Deixai correr as lágrimas, irmão. Deixai a graça de Deus fazer a sua cura em vós.

Quando levanto os olhos, já se foram. Quando esgoto o choro, sinto-me envergonhado por me terem visto neste estado. O surto de fúria negra que se segue é a verdadeira misericórdia. Ainda não estou subjugado. Ainda possuo um pequeno âmago de mim mesmo: Filippo Giordano Bruno, chamado o Nolano.

 

24 DE DEZEMBRO

Hoje é a véspera da Natividade: o dia do nascimento de nosso Senhor e salvador Jesus Cristo. A frase escorre-me suavemente da pena. É familiar e definitiva. Podia começar-se uma história com ela, ou fazer-se um sermão como os que eu costumava fazer quando era um jovem sacerdote recém-ordenado na Igreja de San Domenico em Nápoles. Isso foi há vinte e três anos atrás - quase um quarto de século.

Agora o significado das palavras mudou para mim. Como é que eu posso chamar a Jesus "meu Senhor" quando o seu vigário na Terra me rejeita e os seus servos me expulsam da sua casa? Como posso chamar-lhe "Salvador" quando o teor da condenação que pode vir a ser pronunciada contra mim ultrapassa as fronteiras do tempo e entra na eternidade? Tudo o que amarrares ou desligares na Terra será amarrado ou desligado no Céu.

Este, afirmam, é o poder das chaves dadas por Cristo a Pedro, transmitido ao longo dos séculos àqueles que seguem Pedro numa sucessão legal. Mas será verdadeiramente assim; ou tratar-se-á, como os gregos sempre afirmaram, de uma interpretação exagerada pelos romanos para apoiar a sua autoridade? Agora não tem importância. Seja o que for que eu diga, e mesmo aquilo que consideram que eu penso, será classificado de heresia.

Afasto-me destes desertos estéreis de argumentação e aqueço-me por momentos nos prados soalheiros da minha infância em Nola.

Hoje, em todas as igrejas do reino de Nápoles, estará a ser armado um presépio, o grupo de figuras que representam o Deus-menino dormindo numa manjedoura, com Maria e José e os pastores à volta, enquanto os animais, uma vaca, um burro, um carneiro, aquecem com a respiração o ar de Inverno. Algumas destas figuras são muito antigas, belamente esculpidas por artífices locais, amorosamente apresentadas a cada geração.

Mesmo eu, o céptico sem ilusões, o incrédulo com o crânio a estoirar de perguntas sem resposta, fico comovido com a simplicidade da cena. Aqui não faço ironia. Anseio pela paz que reside no abrigo humilde do estábulo.

Para nós, no sul, o ciclo do nascimento, morte e contínua renovação é um lugar-comum, mas ainda assim uma misteriosa maravilha. A mulher fértil é a figura de uma deusa, preciosa e sagrada. Nós tiranizamos as nossas mulheres e irmãs, mas também as honramos. As nossas avós tornam-se matriarcas, não toleram contradição. Mesmo nas mais sangrentas vendettas, as mulheres das famílias são intocáveis. O mesmo não acontece com aquelas que, por falta ou por defeito, são consideradas desonradas, porque perderam a virgindade fora do casamento.

Compreendo isto no mais fundo de mim mesmo. Compreendo também a doutrina da virgindade de Maria, que eles afirmam que eu rejeitei. A mãe virgem é uma das figuras mais antigas na lenda mediterrânica, mas há que aceitá-la e não discuti-la à maneira dos académicos. Ela não pode ser provada por meio de textos e silogismos.

Admito que caí nesta armadilha nalgumas das minhas disputas mais antigas: na minha conversa com Mocenigo, e nas conversas dissolutas com outros prisioneiros em Veneza. Na prisão, como no campo de batalha, a linguagem obscena é uma defesa contra a loucura. Na minha memória, eu estava a imitar os antiquados debates aristo-télicos - dos quais me tornei perigosamente satírico. O que foi contado à Inquisição, no entanto, era muito diferente, uma frase sem imaginação: é um disparate afirmar que uma virgem, sem um homem que a fecunde, pode gerar uma criança.

Como é que se refuta uma acusação destas, especialmente quando o acusador ainda não foi nomeado e é impossível confrontá-lo para ostrar a verdadeira coloração das palavras e da ocasião? Além disso, presunção dos inquisidores é sempre de que o acusado é culpado até prova em contrário. Por isso, eu apodreço na prisão enquanto a principal testemunha permanece em liberdade.

Medito de novo sobre as imagens do presépio: São José, que nos ensinaram ser o padrasto de Jesus. As nossas imagens mostram-no sempre como um homem mais velho, um protector, mas não um parceiro matrimonial de Maria. Verdade ou lenda? É verdade porque se diz que a Igreja sempre o ensinou. No entanto, o apóstolo João é sempre mencionado como o irmão do Senhor. Outros membros da família são também mencionados, mas não pelo nome. Os nossos mestres fizeram toda a espécie de acrobacias para explicar estas referências, e nós não nos sentimos encorajados a criar controvérsia em volta delas, mesmo num debate retórico. Um dos meus professores mais respeitados, Vincenzo Colle, chamado o Sarnês, pôs a questão claramente: "O dom da fé não inclui necessariamente o dom da certeza. É um acto de aceitação. Lembrai-vos sempre disto, irmão Giordano." Foi um bom conselho. Só desejava ter-lhe dado mais atenção.

Pensar em relações sexuais traz-me recordações dolorosas. Este vai ser o Natal mais desolador da minha vida. Dou comigo a ansiar pelo calor de um corpo de mulher na minha cama. Sou acusado - justamente, admito-o - de ser um monge fugitivo e um sacerdote devasso, mas há tantos de uma coisa e outra hoje em dia que não consigo compreender por que hei-de ser um candidato preferencial para a execução. Dos pontífices que têm reinado no meu tempo nem todos foram modelos de castidade.

Quando os inquisidores apresentaram estas acusações contra mim, não tive outra opção a não ser confessar-me culpado, oferecendo como defesa que a falta de castidade nesta época era, na pior das hipóteses, uma ofensa venial e que a minha fuga do convento fora provocada pelo medo. Em Nápoles, fui indiciado para julgamento sob a falsa imputação de heresia. Eu sabia como a Inquisição funcionava - nós, os dominicanos, é que somos escolhidos para a dirigir! Por isso, tive medo. Fugi.

Aprendi muita coisa muito depressa, nesses primeiros tempos de detenção em Veneza. A primeira lição foi não mostrar um rosto demasiado corajoso sob tortura. Isso apenas encorajava os que a ministravam a trabalhar com mais força no guincho. Por isso soltei gritos e brados com toda a força. A dor era a mesma, mas a duração, geralmente uma sessão de meia hora de strappado antes do interrogatório, não era indevidamente prolongada.

Fui mais lento a aprender a segunda lição: que os inquisidores eram mais brandos em relação às delinquências pessoais do que com quaisquer desacatos ou imputações contra a Igreja, os seus ministros ou as suas doutrinas. Eles compreendiam muito bem que eu, irmão Giordano, não era uma ameaça: era um zé-ninguém que podia ser esmagado como uma pulga. Mas as ideias são outra história. São como sementes de serpentária que os ventos sopram de um lado para o outro e que podem germinar a todo o momento, espalhando o seu odor fétido. Por isso me joeiraram, ano após ano, para separar o grão venenoso e queimá-lo.

Isto, estão a ver, foi ao mesmo tempo a minha vaidade e a minha simplicidade. Eu era um rapaz do campo nascido para um mundo novo, turbulento, sim, mas cheio de maravilhas. Estava cheio de perguntas sobre tudo. Disseram-me que me faltava a humildade para aprender com os grandes mestres. Talvez fosse verdade, mas a eles faltava-lhes a habilidade para me tocarem o coração e tirarem vantagem da minha curiosidade.

Os meus contactos com mulheres eram frequentes e, na sua maior parte, agradáveis, mas as minhas ligações eram sempre breves. Um homem como eu, sem estabilidade nem protecção, nunca era um pretendente bem-vindo à casa de qualquer pai. Clérigos e estudiosos viajavam sempre com pouca bagagem. Por mais conhecimentos que tivessem dentro da cabeça, nos sacos das suas selas pouco ouro havia. Assim, os meus amores eram, na sua maioria, cortesãs de vela ou raparigas de taberna, esposas ou viúvas infelizes, gratas por algum conforto em suas camas. Havia bastantes de todas elas para que eu pudesse gabar-me, dentro e fora da prisão, de que, embora não conseguisse igualar o número de amantes do rei Salomão, achava que não estava muito longe.

Foi a gabarolice que sempre me prejudicou. Em qualquer debate ou discussão, tenho sempre que levar a melhor. Em qualquer jogo de humor, tenho que dizer a última palavra em sátira ou invectiva. A necessidade que me trai é a de afirmar o verdadeiro Bruno, escondido, encoberto, reprimido pelo hábito que assumi com demasiada prontidão e com uma convicção demasiado fraca.

Na cama com uma mulher nunca precisei de gabarolices. Nunca pretendi provar nada perante ela, apenas sentir e dar prazer. No entanto, mesmo nisto, prejudiquei a minha causa. Não foi para me gabar, mas apenas por mera exuberância, que declarei: "A Igreja está errada ao declarar como pecado aquilo que serve os homens e as mulheres tão bem e tão agradavelmente."

Se apenas o tivesse expressado de maneira diferente - deixado de fora a Igreja e arranjado outra palavra para pecado - este aspecto nunca teria sido incluído na acusação formal. Mas eu era sacerdote e professor, encarregado de difundir a verdade do Evangelho, pura e sem contaminação. Era, além do mais, dominicano, um dos cães-de-fila de Deus, um inquisidor em embrião, nem mais, nem menos! Por isso me julgarão ainda com maior severidade. Que vão para o diabo, com todos os seus sistemas e silogismos.

Na escuridão da minha cela, chamo pelo nome, pelo rosto e pelo toque que recordo todas as mulheres que alguma vez conheci - e mesmo aquelas que não ousei conhecer, como as damas de honor da corte da rainha Isabel de Inglaterra, ou a esposa de Giovanni Mocenigo, jovem e bela, mas triste, que se tornara minha amiga durante a minha malfadada estada em casa dele. Todas elas desfilam na minha frente ao som de uma lenta pavana, uma visão de belas damas, possuídas por um tempo breve, perdidas há muito. Ainda conseguem agitar-me mas, satírico como sempre, pergunto a mim mesmo como faria, se por milagre uma delas entrasse na minha cela.

Estou ainda às voltas com esse pensamento quando Roma rompe num tumulto de sinos para assinalar a hora da meia-noite e anunciar o nascimento de Cristo.

 

25 DE DEZEMBRO FESTA DA NATIVIDADE

Antes do meio-dia, a porta da minha cela abre-se e o guarda introduz um visitante. É um homenzinho pequeno, cerca de uma mão travessa mais baixo do que eu - que sou um sulista de ossos pequenos. O homem é também pelo menos vinte anos mais velho. Tem o rosto sulcado e enrugado como a casca de uma maçã muito velha. O cabelo branco de neve é fino e espigado, mas os olhos são de um azul-pervinca e têm um brilho malicioso. Veste o hábito de São Domingos, que lhe cai em volta do corpo numa massa informe. Dirige-me a palavra em latim: o latim do nosso falar diário na escola, na sala de conferências e nas relações académicas. No entanto, o sotaque dele soa-me de maneira estranha enquanto se explica:

- Sou o irmão John. Se vos pareço estranho é porque eu sou estranho. O nosso padre-geral chama-me o seu homunculus Britannicus, o seu anão inglês, porque fui membro da comunidade dos Frades Negros, em Londres. Tive de sair à pressa porque estava a ser acossado pelos perseguidores de Sir Francis Walsingham. Isso foi pouco depois de terdes chegado e ficado a residir com o embaixador francês. Devo dizer que nessa altura vos invejava, irmão Giordano. Vivíeis em grande estilo enquanto eu andava escondido em casa de famílias de mercadores católicos que negociavam do outro lado do canal.

- Talvez me possais dizer, meu bom irmão John, o que vos traz hoje aqui?

- Neste ponto da minha carreira, que é mais certo que seja descendente do que ascendente, sou o esmoler do mestre-geral.

Abro a boca de espanto.

- Estou aqui preso há quase sete anos. Durante todo esse tempo nenhum dos meus irmãos me ofereceu um presente ou um conforto.

- Então, permiti-me que altere o hábito.

Dizendo isto, levanta o hábito, pondo a descoberto uma rede de pesca que lhe rodeia a cintura esquelética. A rede está cheia de maravilhas: um frasco de azeitonas de conserva, um belo queijo de cabra, uma grande linguiça camponesa, uma garrafa de vinho tinto, outra de um licor de fruta bem forte, um pão de trigo, duas laranjas, duas maçãs e um saco de amêndoas com açúcar. Tudo isto são tesouros mais preciosos do que diamantes, no entanto, largo a rir. Há qualquer coisa de gloriosamente cómico neste homenzinho meio anão que percorre Roma com uma despensa completa amarrada à cintura. Ele também se ri e começa a alijar a carga, sem parar de falar.

- Se eu trouxesse as coisas num cesto, teria de pagar tributo por todo o lado: à vigilância, aos guardas das portas, ao indivíduo que abre a vossa cela. Sabeis como são as coisas nesta cidade.

- Devia saber, mas não saio muito, como sabeis. Mas isto... isto é um milagre!

- Dizem-me, mexericos do tribunal, sem dúvida, que vós proclamais abertamente que todos os milagres eram truques de magia.

- Essa é uma parte do meu problema. Abro de mais a boca na companhia errada.

- Isso é uma verdade! Mas isto, caro irmão, é explicável por causas naturais, portanto, por definição, não pode ser um milagre.

- Explicai, então, as causas naturais.

- Para isso precisamos de estimular o cérebro.

Levantou novamente as saias e apareceu com mais uma garrafa, esta já aberta. Desta vez trata-se de grappa e é nitidamente para uso próprio contra o frio. Uma vez mais tenho uma visão cómica: o homenzinho a levantar o hábito para urinar num canto escuro da cidade, segurando o pénis com uma das mãos e despejando a bebida pela garganta abaixo com a outra. Faz-me lembrar o imperador Augusto e a alcunha que pôs ao poeta Horácio: peniculus meus, minha pequena pila. Sorrio perante a lembrança. O irmão John pede-me que lhe conte a piada. Não consigo recusar.

Com grande surpresa minha, ele também se ri. Pega na minha taça e serve-me uma porção generosa da bebida fortíssima. Depois diz-me:

- Não há nada mais agradável do que completar o círculo... servir uma boa bebida de um lado e ser capaz de mijar confortavelmente do outro. Um dom raro na minha idade, podeis crer! Mas há um pequeno problema.

- E podeis dizer-me qual é?

- Uma boa mulher passa... pior ainda, uma jovem inocente. Faz uma vénia e pede a bênção. Que é que eu faço? A minha mão esquerda segura a garrafa. A direita, a que dá a bênção, segura o membro flácido. Não é propriamente um espectáculo edificante!

Rimos juntos. Tento descobrir o que há por detrás daqueles brilhantes olhos azuis. Forço a pergunta.

- Quem enviou estes presentes e porquê?

- A primeira pergunta é fácil: o mestre-geral em pessoa.

- E a segunda?

- Isso requer alguma explicação. - Despeja a grappa pela goela abaixo. - Aconteceu ontem. O mestre e o seu vigário tinham regressado da visita que vos fizeram. Estavam a falar com três ou quatro membros do capítulo. Fostes discutido muito brevemente e posto de lado com um gesto. O mestre-geral disse: "Acho que o vergámos. Irei visitá-lo de novo depois da Epifania." A menção dessa festa levantou a questão muito mais importante dos donativos e prendas para os amigos da Ordem. Em Roma, pagam-se tributos a torto e a direito. Compete-me a mim velar para que ninguém seja esquecido, especialmente alguém que possa prejudicar-nos ou guardar-nos rancor. Eu tinha feito a leitura da minha lista. O mestre perguntou se havia alguém que tivéssemos esquecido. Então, e não sem uma certa malícia, perguntei: "Não deveríamos talvez arranjar uma pequena lembrança para o irmão Giordano?" Os outros largaram a rir. Eu pensei que iria

receber uma reprimenda, se não mesmo uma penitência do meu mestre. Em vez disso, ele voltou-se para os outros irmãos e admoestou-os: "O irmão John tem razão", disse. "Passámos bastante tempo ontem tentando persuadir o irmão Giordano a arrepender-se dos seus actos. Se um pequeno gesto de caridade o puder ajudar a realizar esse acto salvador, não devemos recusar-nos a fazê-lo. Ocupai-vos disso, irmão John. Comida e bebida para o dia festivo deverão alegrá-lo, segundo penso. Está magro como um pau de vassoura." Os outros irmãos ainda estavam a digerir a reprimenda. Por fim, um deles perguntou: "Significa isto um perdão pelos seus maus actos e heresias?" A resposta do mestre foi imediata e precisa. "No fórum do sacramento, sim. Perante a disposição correcta da sua alma, oferecemos-lhe a absolvição, a Eucaristia e a Extrema Unção. Depois, entregamo-lo, expurgado dos seus pecados, à autoridade civil que, em castigo dos seus crimes, o despachará para Deus. É essa a lei. Não há apelo possível a menos que o papa o decrete... o que neste momento ele não está na disposição de fazer."

E é assim que a minha sentença me é transmitida, um mês antes do veredicto formal. É-me oferecida com vinho e comida, como se eu fosse algum demónio enfurecido que devesse ser aplacado. No entanto, de repente, não há mais raiva em mim. Este homenzinho estranho com os seus olhos azuis e o seu latim coxo é um dos bons homens de Deus - se é que Deus ainda faz homens bons! Ele espera que eu diga alguma coisa. Digo-lhe que me apetece apanhar uma bebedeira, o que não faço há muitos anos. Proponho abrir uma das minhas garrafas e partilhar o pão e a linguiça com ele. Sacode a cabeça.

- Guardai-os, irmão. Não deveis beber tudo de uma vez. Ficareis com uma dor de cabeça, o que, com todos os vossos outros problemas, não vos faz falta nenhuma. Será também uma desculpa para os guardas vos roubarem a comida. Segui o meu conselho, saboreai um pouco de vinho cada dia. Fazei durar as coisas boas. Far-vos-ia sentir muito mal se eu dissesse uma prece por vós... muito breve, apenas um Pater e Ave?

- Sois um homem livre, irmão John. Rezai ou não, como vos aprouver. Na minha boca, neste momento, as palavras seriam uma blasfémia.

Ele estende o braço para segurar a minha mão tremente. Aperta-ma com uma força que me surpreende. Depois, tranquilamente, num tom cheio de intimidade, murmura as orações.

"Pater noster qui es in coelis..."

Cerro os lábios, mas não posso tapar os ouvidos. A voz do homem mais velho continua o seu murmúrio. A pressão na minha mão é forte mas reconfortante. Entrego o meu espírito às cadências familiares, como a uma canção sem palavras, mas a última linha da prece atinge-me com um golpe de martelo.

"... et ne nos inducas in tentationem" - e não nos induzais à tentação.

A minha tentação é agora uma certeza, escrita nas linhas da minha mão, e nunca será apagada. Quando o irmão John invoca a Virgem Maria, dou comigo a soltar um grito silencioso e desesperado pela minha própria mãe, morta há muito.

"Sancta Maria Mater Dei, ora pro nobis..." - Santa Maria, mãe de Deus, rezai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte.

A isso, pelo menos, eu posso dizer um fervoroso ámen. De que me pode servir, quem sabe? Quando a oração termina, eu agradeço ao homenzinho as suas dádivas, a sua companhia e, claro, mesmo as suas orações. Só nessa altura é que ouso fazer-lhe a pergunta.

- Dizei-me a verdade, irmão John, o que vos trouxe até mim? Ele hesita um momento, depois dá-me a resposta.

- Eles também me podem queimar vivo por aquilo que vos digo, irmão Giordano, mas odeio aquilo em que demasiados irmãos nossos se envolvem. Para preservar a fé, que é uma fórmula de palavras cobrindo um mistério, destruímos homens e mulheres. Vós sois meu irmão, talvez mais agora na vossa situação extrema do que podereis alguma vez acreditar. Deus vos guarde. Agora, escondei tudo isso antes de eu chamar o carcereiro!

Apresso-me a enterrar os tesouros que ele me trouxe debaixo do cobertor puxado para trás. Não é um verdadeiro esconderijo, mas eles agora estão tão seguros de mim que já deixaram de me revistar a cela. Mesmo assim, o irmão John pôs a mão diante do ralo da porta para tapar a vista a qualquer funcionário que passasse. Depois, quando vê que estou em segurança, bate na porta para chamar o carcereiro.

O seu último gesto é de bênção, as suas últimas palavras um apelo à coragem. "Sursum Corda. Ergamos os nossos corações." Depois desaparece e eu fico uma vez mais fechado com a minha solidão, tendo apenas os meus papéis e a miraculosa oferta de bebidas para me consolar.

O momento seguinte é estranho: uma calma gélida, uma luz fria de revelação como a luz do Sol sobre uma montanha gelada. Foi a minha própria língua que me pôs neste perigo. Os meus próprios pés que me trouxeram até esta prisão. Os termos da minha acusação foram escritos pelo meu próprio punho.

Quando ainda era bebé de peito, os meus pais e os meus padrinhos fizeram em meu nome afirmações de crença cristã e renunciaram em meu nome a Satanás e a todas as suas obras. O sacerdote despejou água sobre a minha cabeça e depois, sem o meu conhecimento ou consentimento pessoal, fui baptizado cristão. Tornei-me nesse mesmo momento súbdito da jurisdição da Igreja e dos seus plenos poderes no aqui e no além.

Mais tarde, quando entrei para a Ordem dos Irmãos Pregadores e fui ordenado padre, comprometi-me formalmente, por meio de votos solenes, a um sistema de leis, de crença e mesmo de linguagem completamente fechado. Esse fechamento foi formalizado por uma bula papal, publicada pelo papa Pio IV no final do Conselho de Trento, que proibia qualquer tentativa por quem quer que fosse, "de publicar sob qualquer forma, comentários, análises, anotações, observações ou qualquer espécie de interpretação de uma maneira geral, dos decretos do dito Conselho".

Eu tinha quinze anos quando esse decreto foi promulgado. Não fazia ideia - e como poderia fazer? - de quão duradouras e fortes seriam as suas consequências na minha própria vida. Sei-o agora, que Deus me ajude!

Estou amarrado, sem apelo, pelo código de leis canónicas e pelas constituições da minha Ordem. Exigem-me que subscreva não só as verdades primordiais do Evangelho, mas todas as interpretações da autoridade romana, todas as expressões feitas no latim intrincado dos teólogos. Dizem-me quais os livros que posso ler e os que estou proibido de ler ou de possuir. A história que me ensinaram está expurgada e muitas vezes falsificada. O modelo para todos os filósofos é Aristóteles. O professor da teologia mais pura é Aquino, embora no fim da sua vida ele tivesse rejeitado a própria obra com desprezo: "Tudo aquilo que escrevi é palha!" Nesta múltipla servidão, em breve me tornei inquieto e descontente.

Um mosteiro é um pequeno mundo especial, fechado por detrás de muros de pedra. Entre os seus habitantes podem encontrar-se alguns santos, outros que vivem numa rectidão simples e outros - mais do que a Igreja está disposta a admitir - que seriam capazes de vender as irmãs, roubar a caixa das esmolas ou sodomizar um acólito se a ocasião se apresentasse. Neste mundo especial não existem mulheres, apenas homens, que azedam com a própria semente e depois, como touros fechados na mesma pastagem, despejam a sua ira uns contra os outros.

A conduta da comunidade de San Domenico era tão escandalosa e violenta que fomos proibidos, sob pena de excomunhão, de discuti-la no exterior. Inevitavelmente, porque sou, por natureza, combativo e satírico, criei inimigos, e a sua inimizade exprimia-se através de delações oficiais ao prior. Estava determinado por lei que devíamos comunicar as delinquências dos irmãos. Especificamente, fui acusado de ter inclinações heréticas por depreciar o uso de medalhas da Virgem e dos santos como sendo uma prática primitiva e supersticiosa e, pior ainda, por estar de posse dos comentários de Erasmo de Roterdão sobre as obras de São João Crisóstomo e São Jerónimo. O acesso aos escritos de Erasmo era proibido. Escondi-os na latrina, onde foram descobertos mais tarde e relacionados comigo pelas citações que eu fizera em debates com colegas e com visitantes eruditos de outros conventos da Ordem. O ponto máximo foi quando o prior me disse que a Ordem ia instaurar um processo judicial contra mim. Era de mais. Senti-me como um Daniel muito pequenino numa caverna de leões enormes. Por isso fugi.

A princípio não tinha uma ideia clara sobre para onde devia ir ou o que devia fazer quando lá chegasse. Tudo o que sabia era que tinha de ir para um sítio o mais afastado possível de Nápoles, da jurisdição de Roma e dos latidos dos sempre presentes mastins de Deus, os meus próprios irmãos na religião.

Sei agora que fui insensato. Devia ter ficado e enfrentado os meus acusadores, mas uma vez na estrada entreguei-me a uma doce ilusão de liberdade. Não foi muito difícil sobreviver. Para a gente simples, eu era um homem santo porque usava o hábito da religião. Para os mais educados, laicos ou religiosos, era uma personagem que devia ser tratada com respeito e provida discretamente com dádivas e hospitalidade. Havia alguma ironia nessa ideia: a aura da Inquisição protegia o mesmo homem que ameaçava!

Em San Domenico deram pela minha falta, claro. Começaram as pesquisas, mas eu não parava um só dia, viajando pelo menos com tanta velocidade como qualquer correio.

Quando encontrava na estrada ou em hospedarias membros da minha própria Ordem, acorrentava a língua tagarela, escondia-me atrás de uma parede de mistério oficial durante o dia e ria-me sobre a almofada de noite.

Agora não me rio. O único sítio onde posso vaguear à vontade são as paisagens da minha memória. O único tribunal para o qual posso apelar é o fórum da minha consciência. Mas o gosto da liberdade ainda está na minha língua, a poeira de muitas estradas nas minhas botas. Vivi em muitos países: França, Inglaterra, Alemanha, Suíça. Fiz amigos nas altas esferas: nobres, príncipes e mesmo um rei. A minha voz foi ouvida em muitas salas de aprendizagem. Espero que os livros que escrevi me sobrevivam - nem mesmo a Santa Inquisição Romana os pode queimar a todos. A minha loucura é simples: um dia, confiante na amizade, tendo como patrono um nobre poderoso - e, sim, dentro da validade daquilo que tinha escrito e da sabedoria daqueles que podiam tê-lo lido - caminhei alegremente de regresso ao cativeiro.

Desde então, tenho explorado todos os atalhos no labirinto da lei procurando uma saída. Todos terminam numa parede branca.

Quando o irmão John me deixou, mergulhei imediatamente num poço negro de tristeza. Agora estava verdadeiramente destituído de esperança - até mesmo de raiva perante aquilo que encarava como uma traição judicial. Em Veneza, tinha feito uma retractação geral de todos os erros que pudesse ter cometido na fala ou na escrita. Esta retractação tinha sido feita mediante promessa de liberdade do tribunal local da Inquisição. Depois, os romanos tinham pedido a minha extradição, sob o pretexto de que o processo de Veneza era apenas uma parte dos casos que corriam em Nápoles.

Em Roma, muitas vezes ao longo dos anos, tinham-me oferecido o mesmo acordo: retractar-me e ficar livre. Agora tinham mudado uma vez mais de posição. Eu podia retractar-me e ser absolvido no fórum da consciência, mas, mesmo assim, estaria sujeito às penalidades da lei porque o papa não iria levantar as acusações contra mim. O meu destino já estava determinado. Tudo o que tinham a fazer era declará-lo formalmente num documento reconhecido.

De repente, um novo impulso se apoderou de mim. Ia tirar para fora a comida e o vinho e empanturrar-me até não poder mais, deixando os carcereiros ocupar-se do que restasse de Filippo Giordano Bruno, o Nolano. Só caí em mim quando já estava a pôr a comida em cima da mesa. Compreendi que aquela glutonaria disparatada seria a minha derrota máxima e a maior vitória para eles. Então, o mestre-geral poderia realmente proclamar que me tinha quebrado e que a minha vontade fraca era também prova da minha má-fé em toda a minha longa questão com os inquisidores. Eu não podia, eu não queria, entregar-lhes um triunfo tão fácil.

Então a furbizia, os ardis de rua da minha juventude napolitana, presenteou-me com uma pequena esperança. Em vez de encher a barriga com comida até ficar doente, porque não usá-la como suborno para ganhar os favores do meu carcereiro? Um dia, em breve, eu iria precisar de um correio para levar o meu último testamento para fora daquela prisão, antes que eu, o autor, fosse apagado do livro dos vivos.

Não tinha, como não tenho agora, qualquer certeza, mas uma jogada de probabilidades remotas parece melhor do que a dor de barriga de um glutão. Por isso, bato na porta e grito pelo carcereiro. Ele leva algum tempo a vir e pergunta com ar truculento o que quero. Digo-lhe que quero ter o prazer de lhe fazer uma pequena oferta para aquele dia de festa. Isto persuade-o a abrir a porta e a colocar um pé cauteloso dentro da minha cela.

Trata-se de um homem jovem, de queixo largo, olhar baço e bastante estúpido. Diz-me que está de guarda sozinho até ao pôr do Sol. Todos os seus colegas estão em casa com as famílias. Pede para ver o presente que eu tenho para ele. Arrasto-o para dentro e verifico se a porta ficou fechada atrás dele. Depois aponto para a comida e o vinho. Ele fica de boca aberta e pergunta como é que eu arranjei tudo aquilo. Explico. Digo-lhe que gostaria que ele partilhasse comigo e guardasse as sobras para ele. O homem não consegue entender por que é que sou tão generoso. Digo-lhe que presentemente tenho pouco apetite. Tenho mais necessidade de companhia do que de comida. É nítido que ele está pouco à vontade. Insisto com brandura: "Por favor, fazei-me essa gentileza. Estais sozinho. Eu estou sozinho. Quem é que vai saber?"

Levou um momento ou dois para compreender esta matemática. Finalmente, concorda. Empoleira-se no meu banco enquanto eu me ponho de pé para servir o vinho e lhe peço o canivete para cortar o pão e a linguiça. A fruta e as amêndoas com açúcar mantive-as escondidas debaixo do cobertor - pequenas guloseimas que não incitam à glutonaria nem à bebedeira.

Sirvo-me de uma porção cautelosa de bebida, mas encorajo o meu convidado a comer e a beber à vontade. Passado um bocado, ele começa a descontrair-se. Interrogo-o sobre a família. O pai morreu. Ele vive com a mãe e uma irmã solteira que, por não ter dote, é difícil de colocar no mercado do casamento. Ela não é feia, por isso a mãe está a tentar arranjar uma ligação com um lojista idoso, viúvo recente, que precisa de uma mulher, de preferência jovem, para olhar por ele e pela loja.

De um ponto de vista pessoal - ele está agora pronto para entrar em confidências - não seria capaz de apostar nas probabilidades da irmã. Há demasiada concorrência e um lojista próspero não tem necessidade de casar para ter a cama quente e a loja bem arranjadaIsso leva-me a perguntar-lhe qual a opinião do pessoal sobre o desenlace do meu caso. Ele sacode a cabeça.

- Nem mesmo o dinheiro. Isso é o melhor que alguém pode oferecer. A menos, claro - deita-me um olhar matreiro -, a menos que estes presentes signifiquem melhores notícias. Estão talvez a oferecer-vos um perdão em troca de um nome ou dois?

- Duvido, meu amigo.

- De qualquer forma, desejo-vos sorte.Esta linguiça é boa bom vinho também.

- Só vai o melhor para a mesa do mestre.

- Como é que conseguis estar tão alegre?

- Serviria de alguma coisa se chorasse todo o dia?

- Penso que não, mas não sentis medo?

- Às vezes.

- Já alguma vez vistes queimar alguém?

Faz a pergunta com uma certa inocência tola. Digo-lhe que não. Não é um espectáculo que eu procuraria como divertimento.

- Eu já vi uma vez. Aquele sujeito que partilhava a vossa cela, o frade barbudo, como é que ele se chamava?

- Irmão Celestino.

- Esse mesmo. Fui com o meu amigo, o Ambrogio. Queimaram Celestino à noite, no Campo del Fiori. A fogueira foi posta mesmo em frente da Embaixada Francesa. O embaixador fez um grande escarcéu. Disse que o barulho e o mau cheiro não o deixaram dormir, mas foi um espectáculo, uma festa.

Mesmo contra vontade, fascina-me ouvir a sua versão do acontecimento. Descreve-o como uma criança poderia descrever uma representação do Polichinelo numa feira.

- Primeiro há uma procissão da Torre Nona até ao Campo. Há uma guarda de soldados e um trombeteiro. O tipo que vai ser queimado é posto em cima de um burro. Amarram-lhe os pés debaixo da barriga do animal e as mãos por baixo do pescoço para ele não cair. Vestiram-no com um grande saco de lona pintado com diabos e as chamas do Inferno. Só se lhe vê a cabeça. Enfiam-lhe uma cunha de madeira na boca para ele não poder praguejar ou gritar... Antes de a procissão se pôr em marcha, os homens de misericórdia tomam os seus lugares ao lado do animal.

Homens de misericórdia? Aí está uma expressão que eu nunca ouvi. Pergunto-lhe quem são eles. Ele atrapalha-se com a palavra comprida e o título pouco usual. Venho a perceber que os homens de misericórdia são membros da Confraria de San Giovanni decollato: São João Decapitado. Acompanham a vítima até à fogueira, rezando, brandindo um crucifixo debaixo do nariz do condenado, pedindo-lhe que se arrependa antes de ser queimado na Terra e no Inferno. Fico fascinado e revoltado com esta mascarada bárbara. Pela primeira vez, apercebo-me de todo o horror da narrativa do Evangelho sobre a crucificação - Jesus pregado nu numa cruz, ao lado de duas outras vítimas, e atormentado pelos gracejos da multidão e o desafio dos crentes ortodoxos para que fizesse um milagre e se salvasse a si mesmo. O meu narrador é apanhado no clímax da sua própria história macabra.

- Quando chegam ao Campo, está tudo a postos. Os galhos e os toros de pinheiro estão empilhados em volta do poste, regados com petróleo para arderem melhor. Libertam o indivíduo do burro e despem-no, descascando-o como uma laranja. Os homens de misericórdia fazem uma última tentativa pela sua alma. Ele volta-lhes a cara. Então, é amarrado ao poste e os homens com as tochas acendem a fogueira. Eu espero a todo o momento que o tipo grite, mas ele não pode, claro, por causa da mordaça que tem na boca. Também não se podia mexer porque as amarras estão muito apertadas. O meu amigo Ambrogio disse que, se ele tivesse sorte, ficaria sufocado com o fumo antes de o fogo lhe tocar. Quem sabe? Nós estávamos entalados no meio da multidão e o fumo tornou-se muito espesso antes de as chamas se propagarem. Mas que raio! Para que estou eu a dizer-vos tudo isto? Pode acontecer-vos a vós e não vale a pena passardes por isso duas vezes, não é verdade? Dissestes que eu podia ficar com o resto do vinho e da comida?

- Por favor! Levai tudo com os meus cumprimentos.

- Sois um homem generoso.

Encolho os ombros e forço um sorriso, empilho a comida nos braços dele e seguro-lhe a porta para ele passar. Não consigo encontrar palavras para lhe dizer que, naquele momento, uma única dentada sufocar-me-ia.

Quando escurece, acendo uma das minhas preciosas velas, preparo o papel e tento deitar para fora os pesadelos que me vão na cabeça. Por mais que tente, não consigo livrar-me deles. Timor mortis conturbat me. O medo da morte aterroriza-me, e no entanto não é tanto o medo da morte, é a horrível palhaçada que a acompanha. Vão fazer de mim um palhaço antes de eu morrer...

Finalmente, o cansaço faz aquilo que o pensamento não consegue. Fico aqui sentado, fixando a luz da vela que põe reflexos bruxuleantes na folha branca, enquanto passo pelos lábios a pena de escrever.

A ideia de um homem a ser despido recorda-me de que ainda tenho a minha laranja. Sinto-me tentado a comê-la. Em vez disso, seguro-a nas mãos como uma esfera de ouro e compreendo por uma estranha inversão do raciocínio que é por isso que eles me querem matar.

A laranja é o seu modelo do Universo, uma esfera, completa, fechada, necessitando de um impulso inicial para entrar em movimento, tal como eu a faço rolar com o dedo em cima da mesa. Aquilo que eu vejo é diferente: um cosmo expandindo-se em infinidades de terras e sóis e galáxias de estrelas para além da nossa concepção. O Deus que o fez não é um malabarista de laranjas celestiais, espantando-nos com esferas em órbita. Ele está em todas as coisas, com todas as coisas, em nós e à nossa volta, de forma que é realmente n'Ele que vivemos e nos movemos e temos o nosso ser. Por que chamam a isto uma heresia? Por que hão-de estar decididos a queimar-me por causa disso?

Essa pergunta, tal como a minha laranja, vai ficar para outro dia. Antes de apagar a vela, inclino a cabeça e faço uma oração: "Oh, Deus, se Deus existe, concede-me por esta noite um sono sem pesadelos."

 

26 DE DEZEMBRO FESTA DE SANTO ESTÊVÃO, MÁRTIR

A minha prece por uma noite sem sonhos foi ouvida. Dormi até ser acordado pelo guarda, que me trouxe a refeição da manhã e me acompanhou quando fui despejar o balde no buraco do esgoto. Encontrei uma certa ironia no facto de o homem estar a gemer nas garras de uma ressaca que podia ter sido eu a apanhar. Havia mais um pequeno provento: ele não ia voltar a incomodar-me até à hora da próxima refeição. Podia escrever tranquilo. Podia olhar para trás, para os meus dias de liberdade, e não para a frente, para o meu curtíssimo futuro.

A jornada de Nápoles a Roma, em Fevereiro de 1576, levou-me cinco dias. Segui a rota histórica: Cápua, Gaeta, Terracina, Velletri. Uma vez em Roma, corri um grande risco. Procurei alojamento no Convento da Ordem em Santa Maria sopra Minerva. Tinha de saber se a notícia da minha fuga de Nápoles já tinha chegado à cidade. Era claro que não tinha, mas podia chegar de um dia para o outro. Inventei uma história sobre uma comissão especial do prior de Nápoles para preparar um estudo sobre a arte da memória.

No entanto, tratava-se de uma história demasiado frágil para se aguentar por muito tempo. Para tornar as coisas ainda piores, um dos irmãos envolveu-se numa rixa, matou um homem e atirou o corpo ao Tibre. Eu não tive nada a ver com o incidente, mas era um recém-chegado à cidade e, portanto, um alvo natural de suspeitas. Os riscos eram agora demasiado grandes. Mudei-me de novo, desta vez libertando-me do hábito, vestindo a roupa austera de um académico e fazendo-me acompanhar de uma espada e um punhal para protecção contra os rufiões na estrada.

Agora tinha de começar a viver com os meus próprios recursos, que na altura consistiam numa reserva muito pequena de dinheiro, uma porção de aprendizagens clericais e os meus próprios talentos, que ainda não tinham sido testados em nenhum mercado. Fui primeiro a Noli, um pequeno porto obscuro no território de Génova, a cidade que o grande Andrea Dória transformara numa república marítima de mercadores, banqueiros e marinheiros que, seguindo Cristóvão Colombo, abriram as vias marítimas e se tornaram agentes do comércio com o Novo Mundo. Aqui, a Espanha era o grande senhor e não Roma. Havia riqueza de sobra, mas pouca protecção para um intelectual obscuro como eu. Ganhei uma miséria a ensinar astronomia a certos cavalheiros e gramática a miúdos ranhosos. Não tardei a fazer-me de novo à estrada, dirigindo-me outra vez para leste, por Savona, Turim e através do vale do Pó até Veneza.

Aí conheci alguns frades dominicanos que me convenceram de que, uma vez que ainda não tinha sido excomungado, estaria mais seguro se voltasse a usar o hábito. Isto envolvia mais um estratagema. Disse ao prior provincial, Remígio Nannisi Fiorentino, que queria escrever e publicar um livro que se chamaria Os Sinais dos Tempos. Ele encorajou-me e pagou-me uma bolsa para trabalhar no projecto. Era um homem de sentimentos humanitários, um académico esclarecido, que se contentou em aceitar-me por aquilo que soube de mim à primeira vista - até que essa visão se modificou.

Mais uma vez, o meu temperamento de sulista foi a minha perdição. As pessoas ficavam perturbadas com as minhas perguntas incessantes e o meu constante debate. Recordavam-me de que estávamos numa cidade onde as denúncias secretas eram coisa comum: alguém introduzia um bilhete na Boca do Leão e não tardava que a Guarda nos viesse buscar para sermos interrogados. Podia-se mesmo acabar pendurado pelos tornozelos na Piazzetta. O prior Remígio era um homem sensato. Pôs dinheiro na minha bolsa e disse-me que eu precisava de viajar mais para observar mais sinais dos tempos. Assim, de novo me fiz à estrada, desta vez para oeste, em direcção a Pádua, Brescia, Bérgamo e pelo desfiladeiro do Monte Cenis até Chambéry, em França.

Quando olho para trás, para o homem que eu era nesses primeiros anos de fuga, não sinto muito orgulho nele. Era uma criatura instável, ora para cima, ora para baixo, rodando como um pião, olhando para trás, para a frente e em volta, tudo ao mesmo tempo. Era monge, padre, académico e joguete da sorte ao mesmo tempo. Usava o hábito de monge como um trajo para um baile de máscaras. Era um padre sem congregação, um letrado sem patrono que arranjara problemas com o mais poderoso e mais rico de todos eles: a Santa Igreja Católica e Apostólica Romana. Era um oportunista, despudorado nos seus estratagemas de sobrevivência, um fanfarrão sem nada de que se pudesse gabar, porque nada tinha realizado.

No entanto, havia outro Bruno de quem ainda me recordo com afeição, com respeito e com um sentimento de perdão para com as suas loucuras mais escandalosas. Este era ainda um jovem com a cabeça cheia de sonhos que se debatiam, gritando para serem libertados. Todas as vozes da época, velhas e novas, ecoavam dentro do seu crânio, embora não conseguisse atribuir-lhes palavras, e mesmo quando as encontrava elas pareciam-lhe inadequadas. Ansiava pela amizade, e no entanto era desastrado e irritadiço na sua prática. Desgastava rapidamente qualquer hospitalidade, sem perceber muito bem porquê. Havia uma inocência especial na sua convicção de que a verdade, tal como a pedra filosofal, tinha uma virtude própria que transformaria as impurezas em ouro e poria fim a todas as discussões. Amava as mulheres e as mulheres sentiam-se atraídas por ele, até descobrirem que estava tão apaixonado pelo conhecimento como por elas próprias, que, mesmo depois dos êxtases da cama, ele continuaria a procurar o fogo das estrelas nos céus distantes. Achavam-no inconstante - e no entanto a constância de uma família era a sua necessidade silenciosa. Tinha, contudo, a necessidade ainda maior de uma liberdade que nem começara a experimentar, uma liberdade do espírito para imaginar mesmo os impossíveis, para ser um fabulista do mais fabuloso de todos os mistérios: a própria Criação.

Após as trevas prolongadas da Idade Média, perante todas as confusões sangrentas da nossa época, todos nós olhávamos para trás, para uma idade de ouro de arte e letras, de leis e comportamento humano. Sabíamos que ela tinha existido, por causa dos fragmentos que nos ficaram, os quais cada vez mais nos estavam a ser restituídos por estudiosos gregos, árabes e judeus, e pelo patronato de príncipes iluminados como Cosimo di Mediei. Estávamos convencidos de que o processo poderia ser completado por uma espécie de renascer mágico. Mesmo a Igreja, fracturada e fragmentada por disputas doutrinais e dinásticas, podia ser reconstruída por um regresso às suas origens, a boa-nova pregada por Jesus nas margens do lago da Galileia.

Depois da dialéctica estéril da minha aprendizagem monástica em Nápoles, estava aberto a este sonho esperançoso. Lia avidamente todos os textos que encontrava: Lactâncio sobre os escritos do sábio antigo Hermes Trismegisto; os próprios textos, o Corpus Hermeticum e o Asclepius, traduzidos por Ficino, por ordem expressa de Cosimo di Mediei. Ele considerava esta tarefa mais importante do que a tradução de Platão por Ficino.

Para muitos académicos da nossa época - e estamos ainda na nossa época, mesmo que eu em breve me encontre fora dela! -, estes escritos continham a chave de todo o conhecimento, a teologia primitiva, a fonte original da sabedoria antiga, uma magia histórica que podia mudar o mundo, tal como o tinha mudado para os antigos.

O que seria mais natural, portanto, do que, quando comecei a escrever, a anotar o meu sistema de memória e as minhas visões de uma nova era, eu ter usado não apenas as convenções literárias de diálogos e disputas entre os deuses antigos, mas os vocabulários da astrologia, da adivinhação e do conhecimento oculto. Na minha opinião, não havia nada de presunçoso ou de herético nisso. Santo Agostinho e Lactâncio concordaram que Hermes tinha descoberto muitas verdades e tinha afirmado a excelência e a majestade do Logos, a palavra Divina.

A Igreja - especialmente a Igreja Romana - tem a sua linguagem própria e as suas próprias fórmulas de magia. O padre diz: "Isto é o meu corpo", e o pão transforma-se na carne de Cristo por um processo místico chamado transubstanciação. O padre diz: "Absolvo-te dos teus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo." Imediatamente a alma - seja ela o que for - é limpa de toda a iniquidade, desde que - umas vezes há uma condição, outras vezes não o penitente esteja disposto a arrepender-se e a mudar. O baptismo, por outro lado é pura magia - uma criança recém-nascida, um herdeiro do pecado de Adão e Eva, é transformada num filho do Cristo, herdeiro do reino dos Céus

Como vedes, quando usei a linguagem hermética pensei que estava em terreno seguro, com o apoio de autoridades reconhecidas- o suficiente, pelo menos, para dar crédito aos meus argumentos Ainda penso da mesma maneira, mas há mais de sete anos que travo um diálogo de surdos com os inquisidores - o que é tão útil como bater com a cabeça nos baluartes da própria fortaleza do papa, o Castelo de Sant'Angelo.

Os inquisidores reiteram as acusações de heresia; eu nego-as. Escrevo explicações que ninguém lê. Envio petições ao papa Ele também não as lê. Não espero que ele, ou eles, acreditem em mim. Digo apenas que tenho o direito de seguir o meu próprio caminho na busca da verdade. Eles não aceitam isso. Tenho de acreditar naquilo em que me mandam acreditar. Tenho de confessar nos termos por eles ditados. Se recusar, matam-me.

Hoje é o dia da festa de Santo Estêvão, o primeiro mártir da Cristandade, apedrejado por heresia pelos ortodoxos do seu tempo enquanto Saulo de Tarso, o zeloso perseguidor, segurava as Capas dos carrascos. Mais tarde, Saulo converteu-se milagrosamente na estrada para Damasco. Pergunto a mim mesmo se algum milagre fara mudar as opiniões dos inquisidores e de Sua Santidade o papa

O meu pensamento não pode ir mais longe que isto, portanto volto atrás, à minha primeira viagem a França: através dos Alpes até Chambéry, na Sabóia.

Recordo Chambéry como uma cidade pequena industriosa e bonita, onde fui recebido com cortesia. Contudo, não havia trabalho para mim ali e fui forçado, uma vez mais, a pedir hospitalidade à comunidade local da minha Ordem. Isto envolveu nova mudança de vestuário e outra série de ficções para explicar a minha presença. Não tenho orgulho nestes episódios; alego apenas que se tratava de um estratagema de sobrevivência.

Em breve me fiz de novo à estrada, desta vez para Genebra, onde um cavalheiro napolitano, o marquês de Viço, era conhecido por oferecer hospitalidade e apoio aos italianos que aderissem à fé protestante dos calvinistas.

De Viço recebeu-me calorosamente. Presenteou-me com roupas novas, dignas de um estudioso, e explicou que eu podia viver em Genebra em paz e segurança desde que mostrasse um respeito decente pela religião e pelas leis da cidade. Explicou o sistema de governo de Genebra através de assembleias e a colaboração estreita destas assembleias com o consistório religioso criado por João Calvino. Confesso que o ouvi com menos atenção do que a situação requeria. Como verdadeiro napolitano, tinha a convicção nata de que a maior parte das coisas se podiam resolver "por arranjinho".

De Viço, por exemplo, disse-me que não era necessário tornar-me membro formal da comunidade calvinista, embora pudesse assistir aos serviços e mesmo receber o sacramento. Seguindo o conselho dele, assinei o meu nome no livro do reitor na universidade, assisti a conferências e participei nos debates. Um dos professores era um certo Antoine de la Faye, um filósofo, erudito bíblico e, mais importante, amigo do reitor. Fiquei menos do que impressionado com o que ouvi nas sessões dele. Notei vinte erros numa única conferência. Fi-los publicar por um impressor local. Imediatamente, tanto o impressor como eu fomos presos por difamação. O impressor pôs as culpas em mim e pagou uma pequena multa. Eu insisti em lutar pela minha causa e defender os meus argumentos. Mais uma vez, fizera a leitura errada dos sinais dos tempos e da tolerância dos homens de Deus.

Apelei para o Consistório. Apresentei desculpas pelo meu ataque desvairado contra o erudito. Foi-me concedida clemência. Puseram-me em liberdade, mas sugeriram muito formalmente que me sentiria mais feliz e seguro noutro lugar. Como só tinham passado vinte e três anos desde que tinham queimado Michael Servetus por heresia, tive de concordar.

Deixei Genebra à pressa e dirigi-me para oeste, até Toulouse. Não sabia - como poderia saber? - que vinte anos mais tarde os acontecimentos de Genebra seriam invocados contra mim pelos inquisidores venezianos e romanos.

Agora, tarde de mais, estou convencido da loucura de ter entrado em disputa com qualquer Estado ou religião estabelecida. As novas ideias são uma ameaça à estabilidade. Portanto, têm de ser suprimidas. O erro não tem direito de existir. Aqueles que o propagam têm de ser destruídos. Nenhum argumento neste mundo pode prevalecer contra o exercício do poder absoluto.

Por que é que eu continuo a tentar? O que espero deste trabalho solitário e sub-reptício na minha cela? A questão foi-me posta muitas vezes por pessoas diferentes. Todas elas perguntavam: "Por que lutais? Por que não dar-lhes aquilo que eles querem: retractação, submissão, uma demonstração de obediência sensata? É uma formalidade de que necessitam. Dai-lha. Depois podeis regressar em paz ao jardim do vosso mosteiro e continuar a acreditar no que quiserdes."

Mas eu também tenho as minhas próprias perguntas. O que restará de mim para viver no jardim do meu convento? Quem verei quando olhar um espelho? Um querubim de sorriso vazio sem cérebro na cabeça oca? Como poderei suportar isso? Como perdoar a mim mesmo as mentiras que teria de dizer para chegar a este feliz estado?

Oh, eu já disse mentiras antes! Escondi verdades desconfortáveis, tal como, há tantos anos, escondi as obras do mestre Erasmo na latrina em San Domenico. Posso viver com essas falhas, posso mesmo esperar que me sejam perdoadas, porque as reconheço por aquilo que são: os truques de uma raposa acossada para despistar os cães.

Mas há tempos mais felizes para recordar. A minha estada em Toulouse, a antiga capital do Languedoque, é um deles. Depois do massacre do Dia de São Bartolomeu em Paris, houve ataques contra comunidades protestantes um pouco por todo o reino. No entanto, na altura em que eu cheguei a Toulouse, a cidade estava relativamente calma. Instalei-me na casa de Berthe Maupin, viúva de um advogado, uma mulher graciosa e agradável que me tinha sido recomendada por um cavalheiro com quem viajei de Lyon. Foi este mesmo cavalheiro que me deu a boa notícia de que os professores da universidade eram eleitos pelos estudantes e que não era exigida qualquer profissão pública de fé ou participação no sacramento.

Comecei, como fizera nos outros sítios, por reunir um pequeno grupo de alunos interessados com quem trabalhava particularmente. Depois, à medida que a minha reputação crescia - e ela crescia depressa - pedia para ser examinado para o grau de Mestre de Teologia. Uma vez conferido o grau, requeria uma cadeira para a qual era imediatamente eleito.

Ainda sinto orgulho nessa nomeação. Consegui-a por mérito, sem protecção. Dei, segundo creio, boa paga pela minha bolsa. Leccionei dois cursos; um sobre de Anima, de Aristóteles, e o outro sobre a Arte da Memória. Cada um destes cursos foi por mim transformado num livro, que me trouxe mais algum dinheiro e certamente ajudou a consolidar a minha reputação como filósofo.

Que me lembre, não arranjei inimigos em Toulouse. As minhas lições atraíam muitos estudantes. Os meus feitos de memória espantavam-nos. Entre os meus pares fiz um pequeno grupo de amigos, alguns dos quais me foram úteis mais tarde em Paris. A viúva Maupin foi bondosa para comigo e eu gosto de pensar que fui bom para ela. Tinha uma herança confortável deixada pelo marido e não tinha nem necessidade nem esperanças de riqueza por parte de um académico sem posses. Eu era mais novo e mais forte do que o homem que ela perdera. Ela alimentava-me bem, lavava-me a roupa e engomava-me as calças. Satisfazíamo-nos mutuamente na cama. Vivíamos tranquilamente e com discrição enquanto eu trabalhava nas minhas conferências e nos meus livros. Sorrio ao pensar em como a nossa existência doméstica era regular, quase conventual, na realidade.

Pergunto também a mim mesmo como poderia ter sido a minha vida se eu tivesse investido numa carreira naquela universidade de província. O casamento poderia ter apresentado um problema, claro. Berthe era católica - e eu era um padre renegado e um monge sob votos solenes dos quais só o papa me poderia dispensar. Portanto, sob todos os aspectos, uma concubinagem discreta era a melhor situação para ambos. Podíamos ter continuado assim, placidamente, por muitos anos. Berthe estava disposta. Eu era o indivíduo com o diabinho da ambição a sussurar-lhe constantemente ao ouvido, a instigá-lo ad altiora : a coisas maiores e melhores.

Para subir mais alto, precisava de um empurrão que o chanceler e a Faculdade de Toulouse não me podiam dar. Primeiro tinha de ir até Paris. Para me estabelecer ali, precisava de me apresentar como um filósofo original e ousado.

Assim, como parte da minha preparação, pensei numa série de conferências sobre os Atributos Divinos, tal como eram tratados por São Tomás de Aquino. Publicitá-los-ia na cidade com a ajuda de um impressor que fizesse e distribuísse os avisos. Há sempre público, em todas as cidades, para mágicos, malabaristas e adivinhos.

As conferências estabeleceriam a minha ortodoxia, numa capital onde a ortodoxia tinha sido confirmada pelo sangue derramado. Ao mesmo tempo, iria delineando um trabalho sobre magia natural e um sistema de memória do qual eu próprio sou um expoente hábil e um exemplo. Posso afirmar que tenho de facto a memória de um mago que, através das imagens antigas que aprendeu e apreendeu, alcançou um enorme poder pessoal. Esperava que a minha explicação desse poder pudesse conquistar a atenção da corte e, na realidade, do próprio rei, que, segundo se dizia, era dedicado às artes liberais mas vivia inquieto e receoso com os fantasmas do seu passado recente.

A minha Berthe não percebia nem se interessava pela minha filosofia, mas entendia a minha necessidade de progredir. Não discutimos por causa da minha decisão. Chorámos juntos e Berthe advertiu-me amigavelmente: "É fácil, meu amor, recolher os ovos das nossas próprias galinhas, mas as águias fazem os ninhos em lugares altos e perigosos e são aves hostis. Por isso, toma cuidado, meu amor. Vou sentir a tua falta. Escreves-me de vez em quando?"

Prometi que sim, mas nunca o fiz. É essa a maldição do vagabundo: ele não pode olhar para trás. Por mais confortável que fosse a cama que partilhou, está sempre solitário na estrada.

 

27 DE DEZEMBRO

Hoje estou tomado de uma tristeza invernosa, uma melancolia sufocante. Se lhe cedo, vai deixar-me deitado na cama com os olhos postos nas pedras cinzentas do tecto. Tenho de me forçar a lavar-me, a engolir o pão duro do pequeno-almoço, a sentar-me para escrever. A nuvem da tristeza dissipa-se enquanto revivo as memórias da minha primeira estada em Paris, que são das mais felizes da minha vida.

Tinha-me preparado bem para esta ocasião. Estava cansado da vida errante de vagabundo letrado. O tempo que passei com Berthe ensinara-me o valor da tranquilidade doméstica. Tinha gasto pouco dinheiro em Toulouse, por isso tinha algum na bolsa, o suficiente para comprar um cavalo e pagar as despesas da viagem e alojamento enquanto procurava um patrocínio em Paris.

Tinha cartas de apresentação de um colega para três impressores de Paris e para dois membros da faculdade da Sorbonne, onde o meu colega estudara. Resumindo, estava numa posição mais vantajosa do que alguma vez estivera nas minhas deambulações, mas sabia que tinha de começar a trabalhar o mais depressa possível.

Por um acaso feliz, todos os impressores para quem eu tinha cartas ficavam na Rua Saint-Jean de Latran, perto do Colégio de Cambrai. Um deles era Egidius Gilles, junto ao sinal das Três Cruzes, o segundo Egidius Gorbin, cuja tabuleta anunciava "Esperança", e Guillaume Giuliano, que era sobrinho de Gorbin.

Decidi dividir o meu trabalho entre os três, o que incentivaria a competição entre eles, levando o meu crédito um pouco mais além. Os impressores precisam de autores que mantenham as suas máquinas ocupadas e lhes dêem material para vender aos livreiros e para vender nas feiras. Todos eles estavam ansiosos por me apresentar aos seus clientes como uma nova e distinta figura nas suas listas, de forma que fui convidado a falar em vários encontros de académicos e nobres. Mais depressa do que eu ousara esperar, estabeleceu-se um canal de ligação entre mim e a corte do rei Henrique III.

O enviado veneziano, Giovanni Moro, foi altamente generoso no apoio que me deu e ensinou-me os hábitos da vida na corte. O meu querido e dedicado amigo, Jean Regnault, apresentou-me a Henry de Angoulême, grão-prior do reino, tenente-general e almirante da Frota. A estes nobres e outros como eles tive a oportunidade de demonstrar em detalhe o meu sistema de memória, um grande avanço sobre o que tinha sido criado por Raymond Lull.

Pedi-lhes que me pusessem à prova, tanto na retenção como na recuperação, em assuntos de sua escolha: história, geografia, astronomia e mitologias antigas. Confesso que, em todas as minhas actuações, usei pequenos truques de mistificação, como representar de máscara ou à maneira de um adivinho de feira. Há uma criança em todos nós que se deleita com a ilusão.

Não desencorajei os rumores nem o debate sobre se a arte que eu demonstrava era natural ou mágica, embora tivesse o maior cuidado em não afirmar - a não ser por um exagero retórico - que ela continha elementos de magia antiga. Na atmosfera de discussão e suspeita criada pelas guerras religiosas, a última coisa de que eu precisava era de mais uma acusação de heresia!

Finalmente, recebi uma convocatória real para comparecer na corte, para demonstrar o meu sistema. Como parte da minha demonstração, fiz notar que um homem com a memória bem treinada era o correio mais seguro para mensagens importantes. Não havia documentos que pudessem ser roubados ou copiados. Tudo o que o mensageiro precisava era de uma marca de identidade. De certa forma, ele estaria imune até mesmo à tortura, uma vez que a dor iria confundir os símbolos cuidadosamente elaborados para ajudar a lembrança. Esta, admito-o, era uma afirmação não testada, mas na altura a ideia pareceu-me razoável.

Depois, Sua Majestade submeteu-me a um teste pensado por ele. Tinha mandado preparar um documento relativamente longo contendo instruções diplomáticas e militares relativas a uma operação fictícia na Flandres. Perguntou-me de quanto tempo precisava para o gravar na memória. Pedi cinco minutos, mas, após três minutos de leitura, enrolei o pergaminho e devolvi-lho. Recitei-o, então, palavra por palavra e pedi que me testassem quanto a pormenores através de perguntas de Sua Majestade e de outros.

Na situação miserável em que me encontro, ainda recordo essa ocasião como um momento de triunfo. Fiz honra à confiança dos meus nobres amigos. Sua Majestade ficou muito impressionada. Ordenou que me arranjassem um lugar de professor no Colégio de França e disse-me claramente que iria considerar que outros usos poderiam ser encontrados para as minhas singulares capacidades.

Dentro de pouco tempo, já eu tinha completado três trabalhos, todos baseados na arte da mnemónica: A Arquitectura nos Livros de Raymond Lull, As Sombras das Ideias e A Canção de Circe. Olhando para trás, agora, reconheço que eles eram mais importantes para a minha carreira do que para a posteridade. Mesmo naquela época eu pretendia fugir desta área um tanto estéril do jardim da filosofia. Tratava-se, naquele tempo, de um fenómeno, mas de pouco significado para a sabedoria e o conhecimento. Sentia a necessidade de uma mudança do pedantismo para a comédia da vida real. Voltei o espírito para outros mestres - Bibbiena, Ariosto, Aretino - e decidi que tinha experiência e habilidade literária suficientes para os igualar. Escrevi uma peça! Era uma comédia a que chamei O Fabricante de Velas.

Aqui sentado, frio e solitário na minha cela, olhando para a minha fraca provisão de velas, recordo a ousadia com que apresentei o meu prólogo do Fabricante de Velas.

"Deveis imaginar-vos na realíssima cidade de Nápoles... Ides vislumbrar aldrabões, patifes e carteiristas... mulheres viris, homens efeminados... Vereis pouca beleza, nada de bom... Que os Céus vos acudam!"

Sendo uma sátira sobre a vida dos monges e as carreiras dos pedantes, era, como dizem, tirado da vida real. Como peça de teatro, teve êxito e foi falada por toda a cidade de Paris. Como episódio na minha carreira multifacetada foi, em retrospectiva, um mau auspício. Arranjou-me tantos inimigos como amigos, e foi usada contra mim desde o início dos meus julgamentos em Veneza e em Roma.

Tenho de admitir que a minha vida em Paris me deu muito prazer, mas não aumentou a minha crença na bondade dos seres humanos. Conservei o meu posto no Colégio de França porque tinha sido um presente do rei, mas a Sorbonne estava-me interdita, porque aí eram os domínios da Igreja que se defendia desesperadamente da penetração dos suspeitos de heresia como eu. O sucesso da minha comédia fazia aumentar o risco. Teologia dúbia é uma coisa. Pode-se entrar em debate ou suprimi-la. Uma sátira popular é outra história. É impossível calar o riso trocista da multidão, por isso há que soltar os cães ao homem que o provocou.

De momento, no entanto, os seus latidos mal se ouviam por detrás do aplauso dos meus admiradores e das reacções ansiosas dos estudantes, que acorriam numerosos à minhas lições. Eu deixara bem claro desde o início que eles eram livres de fazer as perguntas que quisessem e mesmo apresentá-las nos termos mais contenciosos.

- Um académico - disse-lhes -, um verdadeiro académico é alguém que está apaixonado pelo saber. Deve estar disposto a vender a camisa que traz no corpo por uma pequena verdade, um pequeno lampejo de luz das estrelas para iluminar o mistério do mundo e de tudo o que fica para além dele. Criar definições e compor fórmulas não é conhecimento. E pedanteria e não vou aceitar isso de vós aqui nesta sala. A linguagem, meus amigos, é o mais sedutor e o mais traiçoeiro dos dons, porque todas as linguagens são construídas por homens e mulheres. E é apenas a capacidade de as construir que podemos afirmar ter recebido do Criador. Desde o tempo dos gregos que estamos ébrios de eloquência. Construímos uma gaiola de palavras e enfiámos o Criador dentro dela, como os rapazes prendem um grilo ou um gafanhoto para o fazer cantar uma canção em particular! Mas quando o cantor está prisioneiro acabaram-se as canções, há o silêncio de um deus que morre num compartimento acanhado e escuro...

Eles compreendiam isto. Pelo menos, eu achava que compreendiam. Lia-o nos seus olhos. Ouvia-o nas suas exclamações de surpresa e encantamento, que me elevavam em voos de uma especulação mais ousada. Esta era a liberdade pela qual sempre ansiara: expressar as minhas opiniões e deixar que os outros as aprovassem ou refutassem. Não me importava que fosse de uma maneira ou de outra, desde que não ficassem ali sentados como embalagens vazias, estupidamente à espera que algum despenseiro erudito as enchesse de vinho fraco, prestes a transformar-se em vinagre.

Tive o cuidado, no entanto, de arranjar uma reserva de tempo para estudos mais particulares. Procurei aqueles que eram - ou que afirmavam ser - adeptos da prática da alquimia, que trata de transformações que podem realizar-se no interior da própria matéria: como, por exemplo, os metais comuns que podem ser transformados em ouro e prata. Diz-se e escreve-se muito disparate sobre esta arte secreta. Muitos dos que pretendem praticá-la são os mais desprezíveis dos charlatães.

Contudo, encontrei uma figura autêntica. O nome dele era Dom Miguel Maravilloso, que se apresentava a si próprio como espanhol mas que descendia mais provavelmente de uma velha família mourisca que se convertera do Islão nos tempos primitivos e depois fugira para o exílio.

Este Maravilloso era um indivíduo alto e moreno, com pouco mais de sessenta anos, um sorriso que raramente se mostrava e olhos que liam segredos por detrás dos rostos dos outros homens. Granjeara uma alta reputação e vivia bem como armeiro, vendendo belas espadas e punhais à nobreza na escola de esgrima que ele próprio fundara. As suas armas de aço embutido a ouro e prata eram altamente apreciadas entre a nobreza que frequentava a sua escola.

Eu não tinha dinheiro para comprar os artigos dele, mas consegui captar-lhe o interesse através do meu conhecimento das artes herméticas, entre as quais o forjar do metal é a mais antiga e a mais misteriosa. Ele abriu-se comigo, cuidadosamente a princípio e depois com a liberdade de um amigo. Recordo como se tivesse sido ontem a nossa conversa mais reveladora.

- ... aprendi as minhas artes com o meu pai, ele, por sua vez, com o pai dele, e assim por diante até ao passado sombrio que nos leva a Alexandria e Cartago. Eles ensinaram-me mais do que a arte, ensinaram-me a magia que a rodeia e a linguagem que o exprime.

- Quando dizeis magia, Dom Miguel, a que vos referis? Magia branca, magia negra, feitiços, encantamentos?

Ele riu-se e sacudiu a cabeça.

- Não, mestre Giordano! Não, duas vezes não! Aquilo a que eu chamo magia não é o que eu faço mas o que acontece quando eu o faço.

- Tendes de me explicar tudo isso.

- Sabeis como se tempera o aço fino, aquecendo-o primeiro e depois mergulhando-o em água?

- Conheço a teoria, é tudo. Não sei fazê-lo, nem explicá-lo.

- Pois bem, é exactamente isso! Eu sou chefe armeiro, melhor do que a maioria dos que há nesta cidade. Qualquer homem pode fazer aquilo que eu faço, usar os mesmos elementos e produzir uma lâmina que em nada é melhor do que o machado de um talhante. O que é que me torna diferente? Que é que existe na minha herança que me confere o julgamento de um mestre? Essa é a magia. Tudo o mais é ritual. Enumerai os quatro elementos.

- Terra, ar, fogo e água.

- Precisamente. Uso-os a todos na minha forja... o metal arrancado da terra, o ar no fole, o fogo na minha fornalha, a água no meu barril. Mas o que acontece no interior da lâmina que eu fabrico? Não sei. Anseio por saber, mas um dia, em qualquer momento mágico, alguém há-de receber esse conhecimento. Pensai! Os antigos afirmavam que a arte de trabalhar o metal foi aprendida com Vulcano labutando com os ciclopes na sua forja, no fundo do vulcão de Etna. É uma lenda. O mistério está em quem ensinou aos homens que, em vez de machados de pedra, os podiam fazer em bronze. Quem lhes ensinou a fazer o ferro e forjar o aço? Quem lhes ensinou a fundir a areia em vidro? Acredito que todo esse conhecimento surge em momentos de meditação inspirada. Aqueles que fazem as descobertas são os verdadeiros mágicos. Nós, artífices, somos os adeptos que herdámos os seus segredos. Guardamos o conhecimento para nós, escondemo-lo num entaramelado de encantamentos, porque sabemos que isso nos dá poder. Agora, mestre Giordano, achais que podeis explicar isso aos vossos alunos? Ousais proclamá-lo nos vossos escritos?

- Isso é um desafio, meu amigo?

- Uma advertência, talvez. Eu fabrico um excelente florete que pode matar um homem ou com o qual eu próprio posso vir a ser morto. Por isso faço uma bainha com a qual protejo a lâmina e me protejo a mim mesmo. Estes são tempos difíceis. Aquilo que ensinais, aquilo que escreveis, são armas que se podem virar contra vós.

- Portanto, uma linguagem cautelosa são a bainha na qual me escondo?

- Até estardes suficientemente irritado, ou suficientemente ousado, ou talvez suficientemente louco para desembainhardes a espada, despirdes a retórica e contardes a verdade nua e crua. Essa é a primeira lição que ensino aos meus alunos. Nunca suscitar a luta. Nunca ameaçar outro homem a menos que se esteja preparado para o matar ou ser morto.

- Por que estais tão preocupado comigo?

- Por que me dou ao trabalho de falar convosco? - Ele riu-se de novo. - Talvez porque sois um homem com sombras no seu passado, tal como eu. Esses, pelo menos, são os rumores que ouvi. Ouvi também que sonhais e falais de um futuro novo. Eu faço o mesmo quando estou feliz no meu laboratório. Pergunto a mim mesmo que segredos poderemos aprender com o amanhã. Pergunto a mim mesmo o que os viajantes poderão trazer de lugares distantes... como Cathay e as Novas índias. O problema é que os nossos futuros podem ser uma ameaça para outros que sentem um receio mortal da mudança.

- De que outra forma pode a mudança ser feita se não formos nós a provocá-la?

- Da mesma maneira que eu forjo o aço: em privado e apenas para aqueles que lhe dão o devido valor.

Foi depois desta conversa que lhe perguntei se o podia visitar na forja e no laboratório. Ele sorriu e sacudiu a cabeça.

- Não iríeis aprender nada, mestre Giordano. Uma forja é uma forja, um ferreiro é um ferreiro. Quanto ao meu laboratório, tudo o que poderíeis ganhar era uma dor de cabeça por causa dos vapores, manchas nas mãos e na roupa por causa das diversas soluções. Eu podia provocar cheiros e explosões para vós e destilar uma solução colorida no meu alambique. Mas tudo isto não passaria de truques de prestidigitação. Esses não respondem às verdadeiras questões: o que faz o aço mudar de cor, por que é que alguns metais se combinam uns com os outros, qual é a diferença entre uma árvore viva e o carvão que provém dela? Nós dois avançamos por caminhos diferentes para a mesma verdade. Quem sabe se eu não poderei um dia provar no meu laboratório aquilo que vós conjecturais no silêncio de uma noite mágica? Mas tende cuidado, mestre Giordano. Pensai bem! Esta é uma época de loucura. Queimam-se donzelas e mulheres idosas por bruxaria. Que é que poderão fazer connosco quando descobrirem que sabemos tão pouco?

Não ouvi nem prestei atenção à advertência. Voava demasiado alto, um falcão nas asas do vento.

Passava muito tempo na corte. Sua Majestade sentia-se bem na companhia de académicos e filósofos, com quem passava duas a três horas por dia em leituras e discussões. Escolheu-me para ser um dos seus leitores, uma posição que suscitou algumas invejas, mas também me pôs algum dinheiro na algibeira. Mais do que isso, estive durante algum tempo desesperadamente apaixonado.

Egidius Gorbin, o impressor em casa de quem me hospedara, era um homem de uma caridade singular. Dedicara tempo e dinheiro a olhar pelos filhos de membros da Corporação dos Impressores que tinham ficado órfãos pela morte de ambos os progenitores ou que se encontravam em dificuldades pela perda de quem os sustentava. Arranjava-lhes lares de adopção e, quando cresciam, colocava os rapazes como aprendizes e providenciava para que as raparigas fossem treinadas nas artes domésticas, que lhes pudessem garantir um casamento razoável entre o pessoal da Corporação.

As raparigas eram ensinadas em casa de Mademoiselle Françoise Solanges. Uma tarde, enquanto bebíamos um copo de vinho, Egidius Gorbin pediu-me um pequeno favor: estaria eu disposto a visitar Mademoiselle Solanges e conversar com as jovens? A ideia não me dava grande satisfação. Achava que já passara a minha fase de mestre-escola mal pago e não tinha qualquer experiência de uma sala de aula cheia de rapariguinhas. Gorbin insistiu com o seu modo calmo. Gostaria de ser simpático para a senhora. Talvez eu me interessasse pelo cuidado especial que ela dispensava às suas pupilas. De qualquer forma, seria uma mudança das discussões de sala de aulas e das intrigas da corte. Não consegui encontrar uma boa razão para recusar e, assim, uma manhã cedo, apresentei-me em casa de Françoise Solanges, uma residência discreta numa das ruas por detrás do Colégio de França.

Mesmo no meio da miséria e desolação do meu estado actual, encontro uma alegria vibrante na recordação desse primeiro encontro com Françoise Solanges. Fiquei impressionado com a sua beleza física: cabelo arruivado, olhos verdes, uma pele que se assemelhava ao mármore mais puro e uma figura escondida, mas de alguma forma mais abertamente acentuada pelo vestido discreto e pelo corpete de renda camponesa. O sorriso, tal como o cumprimento que me fez, era cândido e aberto - uma mudança agradável em relação à coqueteria e à perfídia das damas da corte. Ao meu olhar fascinado, ela aparecia como que banhada em calma, como a Lua sobre as águas de um lago. No entanto, senti uma onda repentina de desejo por ela, um desejo que não ousei revelar de imediato mas que, como qualquer libertino esperançoso, sonhava confessar um dia.

As alunas tinham entre cinco e doze anos. Era evidente que a adoravam. Tratavam-na como uma irmã mais velha, ansiosas pela sua atenção e pelo conforto da sua presença, do seu toque. Não havia nada de mesquinho na afeição que ela lhes prodigalizava. Rezei em silêncio para que me dispensasse também alguma a mim.

Perguntei-lhe o que achava que eu tinha para oferecer às jovens alunas. A resposta dela surpreendeu-me.

- Quero que as façais sonhar. Dizem-me que o fizestes com os vossos alunos em Toulouse e em Paris. Quero que lhes mostreis um jardim no qual as minhas jovens possam caminhar pelo resto das suas vidas.

- E o que vos faz pensar que eu posso fazer isso, mademoiselle?

- Egidius Gorbin garante-me que podeis. Fala das vossas prodigiosas capacidades de memória. Há rumores de que sois um adepto da magia negra.

- Acreditais nisso?

- Não. Acredito em Monsieur Gorbin. Ele chama-vos um sonhador. Agora que vos conheço, acho que é um nome apropriado. Gostaria de levar as minhas jovens a dar um passeio nas nuvens, mostrar-lhes o azul que fica do outro lado e as estrelas para lá do azul.

- E isso é importante para as jovens?

- É importante para todos nós, mestre Bruno. As mulheres não menos que os homens precisam de um futuro no qual invistam as suas esperanças.

- Sempre pensei que as esperanças delas se baseassem no casamento e nos filhos.

Riu-se ao ouvir aquilo e, enquanto escrevo, recordo que o riso dela era como o som de sinos de prata. O nosso primeiro momento de intimidade terminou ali. Conduziu-me ao salão onde as rapariguitas nos aguardavam, com os olhos muito abertos, sussurrando e soltando risinhos perante o indivíduo baixo e moreno, com a toga de mestre, e que, pela primeira vez na vida, não sabia o que dizer a mulheres. Depois, repentinamente, como o mudo do Evangelho, soltou-se-me o freio da língua e comecei a contar-lhes a história da minha infância em Nola, dos bosques e florestas do Monte Cicada e das criaturas míticas que aí habitavam, ninfas, e sátiros, e centauros, e Pan, que tocava flauta, e Apolo, que fazia música na sua lira. Depois convidei-as a viajar comigo numa grande nuvem de fumo do Vesúvio e a passar por cima das nuvens para um mundo infinito de estrelas e terras por descobrir.

Não lhes falei do alto de uma cátedra, mas andei pelo meio delas, ajoelhando-me em certas alturas, agachando-me no chão e atraindo-as para um círculo à minha volta, algumas vezes falando afectadamente como um actor numa commedia de l'arte. Estava rodeado pela sua feminilidade fresca - um fauno num campo de asfódelos, mas também ele uma criança, revivendo horas inocentes no meio dos seus companheiros de folguedo. Sei que fui feliz naquele dia. Sei que as crianças também o foram e, depois, na privacidade da sua sala, Françoise Solanges segurou-me as mãos por um momento e disse-me:

- Haveis-me feito caminhar convosco nas nuvens, mestre Bruno. Não sei como vos agradecer por terdes vindo.

- Gostaria de voltar.

- Espero que o façais, sempre que estiverdes disposto a isso.

- E, pela minha parte, mademoiselle, espero que possamos algumas vezes passear juntos... só nós dois, numa nuvem particular.

Ela sorriu-me de um modo estranho e esquivo e sacudiu a cabeça.

- Não me parece que seja uma boa ideia.

- Por que não? Estais comprometida? Receais o escândalo?

- Nem uma coisa nem outra.

- Desagrado-vos então?

- Pelo contrário, sinto-me honrada com o vosso pedido.

- Então, qual é o problema?

- O problema, caro mestre Bruno, é que não há lugar na minha vida para um homem, mesmo tão atraente como vós. Há um lugar para a amizade, uma amizade de coração, mas para mais do que isso não. A minha vida está completa. Gasto a minha feminilidade com as minhas jovens, para fazer delas mulheres. Elas, por sua vez, retribuem-me com a sua juventude e o seu amor.

- E isso é-lhe suficiente? Para todo o sempre?

- Quando deixar de ser suficiente, tenho mais um passo a dar.

- E qual é?

- Quando nos conhecermos um pouco melhor, mestre Bruno, e confesso que espero bem que sim... então, dir-vos-ei.

E fui obrigado a contentar-me com aquilo, mas nos dias e semanas que se seguiram atormentou-me o desejo por aquela mulher, fui acometido por acessos de ciúme e suspeita. No entanto, não ousava arriscar qualquer palavra ou gesto que pudessem levá-la a cortar comigo.

Duas vezes por semana, no mínimo, ia a casa dela. Fazia jogos de memória com as pequenas, lia-lhes lendas e poemas, instruía-as nas regras elementares da retórica. A sua atitude e entusiasmo abriram-me os olhos monacais para os talentos das mulheres - pouco considerados no nosso mundo de homens. Recompensou-me também com uma sensação de ligação familiar que há muito estava ausente da minha vida errante.

No final de cada sessão, bebia um copo de vinho e tinha uma conversa particular com Françoise. A minha paixão por ela tornava-se mais forte, mas ela oferecia-me apenas um afecto sereno e fraternal que me fazia sentir excluído e frustrado. Chegou um dia em que não consegui conter-me por mais tempo. Sentei-me ao lado dela, apertei-lhe as mãos nas minhas e dei-lhe a conhecer o meu amor e o meu desejo numa torrente de palavras ardentes.

Ela não se afastou de mim; mas também não cedeu. Tinha lágrimas nos olhos, mas ficou sentada, imóvel e calma, como que a ganhar forças para me condenar pela minha loucura. Em vez disso, admoestou-me com uma gentileza única.

- Meu querido amigo... e podeis acreditar que sois para mim um amigo muito, muito querido... disse-vos desde o início que não há lugar para um homem na minha vida. Eu não sou como as outras mulheres. As minhas necessidades e os meus dons também são diferentes.

- Diferentes, como? Dizei-mo, por favor! Ajudai-me a compreender.

- Se vo-lo disser, querido mestre Bruno, estarei pondo a minha vida nas vossas mãos.

- Eu já pus o meu coração nas vossas.

Ela sacudiu a cabeça, desesperada com a minha falta de compreensão. Depois levantou os braços para abrir o fecho da corrente de prata que trazia ao pescoço e na qual trazia um pendente, invisível no meio dos seios. Não me mostrou logo o pendente, manteve-o uns instantes escondido na mão fechada, hesitante em o expor. Finalmente, abriu a mão e apresentou-me o objecto: um aro de ouro antigo com uma saliência no centro, como a protuberância de um escudo e, irradiando do centro, quatro raios, como os raios de uma roda, excepto que os espaços entre eles não eram iguais. Dois estavam muito afastados, os outros fechavam um segmento mais curto do aro.

Soube imediatamente o que era. Tinha-o visto em ilustrações de documentos da minha Ordem dos Frades Pregadores datados do século XIII. Tinham-me esclarecido sobre o seu significado. Tinham-me mostrado objectos semelhantes como curiosidade durante a minha recente estada em Toulouse: uma moeda, um medalhão, uma estranha cruz com uma ave empoleirada nela.

Eram os símbolos da seita dos Cátaros, que tinham representado em tempos a fé prevalecente em todo o Languedoque, antes de os seus seguidores serem massacrados como hereges numa série de cruzadas militares organizadas pelo papa Inocêncio III. Depois disso, foram perseguidos quase até à extinção pelos inquisidores da minha própria Ordem. As suas doutrinas, consideradas heréticas e destruidoras da ordem social, derivavam dos antigos ensinamentos dos maniqueístas, segundo os quais o mundo era um campo de batalha entre duas divindades opostas, o Criador do Bem e o Criador do Mal, espírito de um lado, matéria do outro. Apesar da santidade de muitos dos seus crentes, era considerada como uma doutrina falsa e perniciosa, que devia ser extirpada onde quer que aparecesse.

Fiquei espantado por Françoise ter confiado em mim àquele ponto. Mesmo naquele tempo, em França, três séculos depois, a simples posse de um talismã podia levá-la a ser julgada por heresia e traição. O massacre dos Huguenotes na Noite de S. Bartolomeu era ainda uma recordação recente, e as guerras religiosas estavam longe de ter terminado.

Françoise tinha os olhos postos em mim, aguardando a minha reacção. Dei comigo a perguntar, gaguejando, uma coisa muito simples: o que representava para ela esse símbolo? A resposta foi dada calmamente:

- Significa que eu sou uma cátara. A minha família é oriunda de Albi, que foi, desde os tempos mais recuados, uma cidade do nosso povo. Tínhamos os nossos próprios sacerdotes, os nossos rituais, a nossa moeda. Muitas das famílias mais nobres do Languedoque eram crentes. As nossas tradições vêm de há mais séculos atrás, dos sábios da Pérsia, que acreditavam na oposição eterna entre o bem e o mal, o espírito e a matéria.

Fez uma pausa, sorrindo, e estendeu o braço para me tocar na mão.

- Mas por que estou eu a explicar-vos tudo isto? Já o sabeis. Os frades da vossa Ordem perseguiram os exércitos para converter aqueles dos nossos que tinham escapado aos massacres. A minha família foi uma das que sobreviveu e transmitiu as nossas tradições de geração em geração. Quando a minha mãe morreu, eu prometi-lhe que um dia tomaria o sacramento a que chamamos "Consolação". Quando o tomamos, juntamo-nos às fileiras dos "Seres Perfeitos", que renunciam ao casamento e a toda a relação carnal para viver a vida do espírito. Por razões óbvias, a maioria da nossa gente decidiu retardar o acto para uma fase mais adiantada das suas vidas, para poderem viver normalmente como os seus vizinhos e mesmo parecerem identificar-se com eles... como eu faço aqui.

Ia perguntar-lhe por que decidira, ainda tão jovem, aceitar a disciplina ascética dos Seres Perfeitos, mas ela antecipou-se.

- Deveis saber, meu querido amigo, que sempre me senti mais feliz na companhia das mulheres do que no meio dos homens. Mesmo em criança, quando ouvia as narrativas dos maus velhos tempos, costumava ter pesadelos nos quais era empalada na lança ou na espada de um homem de armadura. Vivendo como vivo agora, não tenho pesadelos. Sou como a mais velha de uma família de irmãs que se amam. As mais jovens são como se fossem minhas filhas. Não me sinto privada, mas enriquecida. Não sou fria. Não sou incapaz de amar. Na verdade, querido mestre Bruno, posso dizer com toda a verdade que vos amo; mas não posso oferecer-vos o que as outras mulheres oferecem. Não o menosprezo. Simplesmente não posso retribuir-vos da forma que gostaríeis.

De repente, toda a minha irritação desapareceu e dei comigo a chorar baixinho. Ela veio ajoelhar a meu lado, abraçando-me num gesto protector, consolando-me como a uma criança.

- Por favor, por favor, querido irmão. Não choreis. Não compreendeis aquilo que vos disse? Aquilo que vos mostrei é a prova de que vos amo. Tendes a minha vida e a minha felicidade nas vossas mãos. Perdoai-me por aquilo que não posso dar-vos.

Não havia nada a perdoar. Disse-lhe isso mesmo. Ela não me envergonhara, como algumas mulheres podem envergonhar um homem através da rejeição ou do ridículo. Ela tinha-me dignificado para além de tudo o que eu merecia. Supliquei-lhe que perdoasse a minha intrusão na sua vida secreta e que compreendesse que, nas circunstâncias especiais em que vivia, eu poderia representar um risco para ela, porque também eu era um homem em situação de risco. Antes de me ir embora, beijámo-nos pela primeira e última vez, e no entanto a sua presença na minha vida ainda é suficientemente importante para que a registe neste documento, que pode muito bem vir a ser o meu obituário.

A firmeza dela nas suas próprias crenças deu-me coragem para ser firme nas minhas. Ensinou-me que o direito de acreditar é mais importante do que a própria crença em si, que a liberdade de estar errado é a mais difícil de defender. Através dela, compreendi que o último reduto na última fortaleza é aquele onde reside a nossa identidade, o nosso eu único. Desistir disso é incorrer na suprema condenação: o nada. Esta é a rendição que me irão pedir a mim muito em breve. Penso nela para me dar força na hora da provação.

Guardei o seu segredo como lhe prometera. Disso dependia a vida dela. A minha própria honra esfarrapada estava empenhada nisso. Agora estou absolvido da minha promessa porque Françoise Solanges morreu há anos, vítima de uma epidemia que se abateu sobre Paris pouco depois da minha partida para Inglaterra. Egidius Gobin enviou-me a notícia por carta ao cuidado do meu anfitrião, o embaixador de França em Londres. Ofereci uma missa particular em casa dele pelo descanso da doce alma de Françoise Solanges.

Recordar aquele requiem é como se ela estivesse sentada perto de mim, na minha cela, uma figura saída das brumas da história como Safo no meio das mulheres em Lesbos. Pergunto a mim mesmo como é que Deus a poderá ter julgado sem ser com gentileza e como irá Ele julgar os meus íntegros acusadores, que afirmam que o erro não tem o direito de existir e que é melhor queimar pessoas do que permitir que respirem o mais ligeiro vapor de erro para o ar.

É tarde. Tenho de pensar em poupar a minha vela. Basta de recordações, tristes ou agradáveis. Estou desesperado por dormir.

 

29 DE DEZEMBRO

Ontem não escrevi nada. Passei o dia enroscado na cama, tentando dormir, mas caindo em pesadelos dos quais acordava sufocando com a própria língua, como se tivesse morrido e ido para o Inferno, sendo depois brutalmente ressuscitado.

O projecto que empreendera, o de escrever um comentário sobre os meus tempos passados, parecia um exercício de futilidade. Quem iria ler essas páginas uma vez que as cinzas do seu autor estivessem espalhadas aos quatro ventos? Quem iria escutar a voz de um fantasma pálido numa praça vazia à meia-noite? E onde estaria eu, Filippo Giordano Bruno, chamado o Nolano, despachado por decreto desta vida para uma outra?

Era o pensamento de esse outro mundo que me reduzia a uma letargia destruidora. Que iria entrar nele em breve era coisa certa. Mas de que modo, de que forma? Em que novo movimento ou progressão? Para que fim? Ou em que interminável travessia do infinito? E quem, ou que divindade, iria determinar as consequências?

A Santa Madre Igreja, na qual passara a minha vida, ensinara-me que o momento da morte era um momento de julgamento privado e de prestação de contas entre a criatura e o Criador. Ensinou-me mais, que ela própria era o único mediador verdadeiro naquele julgamento; que só ela, na pessoa do seu pontífice, possuía o poder total até ao limiar da outra vida.

Portanto, segundo este raciocínio, se ela me rejeita, fico sem amigo ou advogado perante o julgamento do Todo-Poderoso. As palavras rituais da excomunhão formal são-me familiares desde os meus primeiros dias na Ordem que, não cesso de o recordar a mim mesmo, está há séculos mandatada pela Santa Sé para expurgar os hereges:

Nós vos declaramos um herege impenitente, tendo portanto incorrido em todas as censuras e punições eclesiásticas do Cânone Sagrado, das leis e das constituições, tanto gerais como particulares... E por este meio ordenamos e mandamos que sejais, de facto, destituído de todas as vossas ordens eclesiásticas, maiores e menores, nas quais fostes ordenado, segundo a Lei do Cânone Sagrado; e que deveis ser afastado e nós vos afastamos do nosso foro eclesiástico e da nossa Santa e Imaculada Igreja, de cuja misericórdia vos tornastes indigno.

É uma declaração monstruosa, da qual toda a crença abdica, contra a qual a própria razão se revolta e o coração humano endurece numa rejeição total. Não posso acreditar que o Criador trate a sua própria obra como os inquisidores me tratam a mim em Seu nome. Os rostos que me fitam da sua tribuna são máscaras destituídas de todo e qualquer sentimento de humanidade, os seus olhos estão vazios de comiseração. Eu sou o bode expiatório, carregado com todos os seus pecados, que vão levar para o deserto para morrer, enquanto eles se regozijam com a sua própria rectidão.

Às vezes, em dias negros como este, penso na hipótese do suicídio. Não seria muito difícil cortar uma veia do pulso à hora de deitar e adormecer até encontrar a paz eterna. Por outro lado, podia escolher o caminho que os cátaros chamam endura e deixar-me morrer de fome. Receio, no entanto, ter deixado esta solução para demasiado tarde. Podia jejuar quarenta dias e mesmo assim sobreviver para ser queimado.

Esta é a espinha que tenho cravada na garganta. Por assassinato ou violação, executa-se um homem. Seja! Olho por olho, dente por dente. Mas por uma ideia? Uma coisa intangível? Uma opinião defendida em particular ou proferida em público? A opção é intolerável: professai as nossas crenças ou calai-vos para sempre!

O que eu quero dizer, neste meu último testamento, é que sei aquilo que sou, aquilo que fui e aquilo que julgam que sou: sacerdote falhado, monge fugitivo, mago com uma caixa cheia de truques de ilusionismo, fanfarrão, prevaricador, aspirante a portador de archote calcorreando a sua própria escuridão, tagarela no diálogo, viperino no debate. Tudo isto. E mais, se conseguirem arranjar palavras!

No entanto, há mais alguma coisa. Tenho conhecido muitas mulheres e amado muito poucas, mas estou apaixonado pelo conhecimento e pela verdade. Deus sabe que rezo pouco, mas há uma prece que eu faço: dai-me luz, dai-me olhos para a ver, dai-me coragem para testemunhar a visão. Ámen.

E nesse "Ámen" terminou o meu longo e árido dia. Caí no sono da exaustão e acordei renovado para continuar este testemunho.

Em França, sentira-me de início feliz e ocupado. As minhas aulas tinham uma boa frequência. Atraía estudantes e discípulos. Escrevia regularmente, quatro trabalhos em latim sobre vários aspectos da Arte da Memória: Ars memoriae, De umbris idearum, Cantus circaeus, De compendiosa architectura et complemento artis Lullii. A acrescentar a estes, produzi a minha comédia de maior sucesso, desta vez em italiano: II Candelaio.

Tudo isto constituía um volume de trabalho respeitável. A reputação que me granjeou foi bem merecida. Desmentiu acusações posteriores de que eu era um vagabundo dissoluto, um clérigo inclinado apenas à luxúria. Para falar verdade, não tinha tempo nem energia para uma vida dessas.

Era aquilo que sempre quisera ser. Um estudioso, um filósofo respeitado, publicamente reconhecido pelos seus trabalhos. Ia regularmente à corte na minha capacidade de leitor real. Usufruía dos favores de Sua Majestade. Tinha as minhas amizades entre os nobres do seu séquito, assim como entre os intelectuais e os impressores. Tinha amigas do sexo feminino que me recebiam com prontidão e havia sempre a minha estranha e frustrante inclinação por Françoise Solanges.

Esse era, se o quiserdes designar como tal, um dos painéis do díptico. O outro era escuro e turbulento. Os católicos e os protestantes (em França chamados huguenotes) estavam num estado de guerra esporádica.

O rei, apesar de toda a sua gentileza para comigo e, deixai-me que o diga abertamente, dos meus louvores excessivamente diplomáticos a seu respeito, nunca conseguiu controlar totalmente a situação. Havia rixas e tumultos em Paris e noutras cidades. Havia motins na própria universidade, o que me fazia lembrar os meus tempos de estudante em Nápoles. Havia também actos de violência individuais, vendettas que datavam de dez anos antes dos primeiros massacres. Havia assassinos à solta nas cidades, contratados para ajustar velhas contas.

Havia perigo para mim também. Tinha rivais e inimigos. Afinal, eu era um estrangeiro, um homem com uma nuvem sobre o seu carácter, um académico litigioso, impaciente com tolos e pedantes, faltando-lhe a discrição para levar uma vida tranquila numa situação complicada. Turbilhões e correntes formavam-se à minha volta como se teriam formado em volta do ramo de uma árvore caído e encalhado no meio da corrente num rio veloz.

Havia muitas razões e eu próprio não era a menor de todas elas. Havia raivas em mim que eu ainda mal começara a reconhecer, quanto mais a controlar. A minha ambição de fama - e a minha necessidade de criar um lugar duradouro na minha existência insegura - tornavam-me agressivo e muitas vezes indiscreto. Tinha sido instruído em absolutos - legais, teológicos, filosóficos. Quando as minhas convicções mudavam, como mudaram, eu continuava a ter um temperamento absolutista. Defendia a minha própria colina contra todos os recém-chegados, embora uma discussão tranquila e algum compromisso me pudessem ter levado a possuir o mesmo território com paz e segurança.

Durante algum tempo, consegui viver dentro do meu próprio mundo, ignorar as tempestades que se erguiam no exterior e iludir-me - uma ilusão alimentada pelo treino monástico - com a ideia de que pertencia a uma casta privilegiada, responsável apenas pelos seus próprios códigos e perante os seus próprios tribunais. O facto de eu ter tentado colocar-me fora da comunidade era de certo modo irrelevante. As suas autoridades defendiam que eu ainda estava ligado e podia ser reclamado pela lei. Assim mesmo, a minha vida interior estava sujeita a correntes de constrangimento, enquanto os meus amigos continuavam a sua gentil persuasão de que eu devia mudar-me, de preferência para o domínio de um príncipe protestante, onde, em teoria, pelo menos, a minha filosofia aberrante não seria transformada numa ameaça à ordem pública.

A primeira vista, era um conselho acertado, mas em Genebra, por exemplo, eu descobrira que os calvinistas eram exactamente tão intolerantes como os católicos. No entanto, havia um consenso geral de que, para uma pessoa como eu, a Inglaterra oferecia o abrigo mais seguro. Tratava-se de um reino insular. A rainha era chefe da Igreja e do Estado. Os éditos da Inquisição Romana não corriam ali. Os estrangeiros com conhecimentos ou habilidades manuais, como os tecelões flamengos, eram bem-vindos. A rainha Elisabeth era favorável aos italianos e falava mesmo a nossa língua. A Universidade de Oxford estava na primeira linha das instituições de aprendizagem. No final das contas, decidi que não tinha nada a perder, e talvez muito a ganhar, em atravessar o Canal.

Primeiro, despedi-me de Sua Majestade, dizendo, a gracejar, que a minha partida tiraria uma pedra dos seus sapatos reais, sugerindo em seguida que talvez lhe pudesse oferecer algum serviço em Inglaterra em retribuição dos seus amáveis favores para comigo. Ele gostou da ideia e prometeu dar-me instruções. Deu-me permissão para abandonar a sua corte e solicitou ao embaixador britânico, Sir Henry Cobham, que me fornecesse um laisser-passer para o reino da rainha Elisabeth. O embaixador não fez qualquer objecção, mas deixou bem claro que tinha algumas reservas quanto aos meus ensinamentos e à minha fé papista que, embora me cause grandes problemas, não posso nem quero renegar. Tenho a certeza de que ele escreveu nos mesmos termos ao seu mestre em Londres, Sir Francis Walsingham, informando-o da minha chegada.

Sua Majestade concedeu-me então a maior prova do seu favor: uma carta de recomendação para o seu próprio embaixador em Inglaterra, Sua Excelência Michel de Castelnau, Senhor de Mauvissière, Con-cressault e Joinville. Fez-me uma oferta em dinheiro e garantiu-me que, se alguma vez resolvesse voltar, seria bem-vindo ao seu reino.

Não parti imediatamente, fiz uma série de visitas a todos os meus amigos e estive presente aos jantares que organizaram em minha honra. Também trabalhei longamente e a desoras para preparar uma carta para o vice-chanceler de Oxford, solicitando-lhe que me recebesse e me permitisse fazer uma comunicação à faculdade e aos seus membros. Também me pus a preparar outro trabalho sobre a memória para publicação em Inglaterra: Triginta sigillorum explicatio - uma explicação dos Trinta Selos. Este era um caminho que eu conhecia bem, mas pensei que poderia conter algumas surpresas para os respeitáveis doutores de Oxford.

Finalmente, após um último e carinhoso encontro com Françoise Solanges e a sua pequena família, deixei Paris e segui para Calais, onde embarquei para Inglaterra. Fizemos uma boa travessia, com vento a favor, e ainda recordo a minha excitação quando o timoneiro estendeu o braço e apontou para os rochedos de calcário branco, as fronteiras daquela terra que se colocara fora do alcance de Roma e de todos os seus aliados europeus. Recordo-me do meu pensamento irónico de que seria mais fácil para mim ser católico aqui do que sob os contrafortes do Castelo de Sant'Angelo, em Roma.

Estava-se em Abril, quando cheguei. A Primavera irrompia por toda a parte e o meu percurso até Londres foi um compêndio de prazeres para a vista e para o espírito. Eu sou um homem de humores, tristes e alegres, alternando de forma inesperada. Sentia-me isolado, tanto pelas minhas actividades de estudo como pela minha falta de conhecimento da língua local. O inglês não é uma língua fácil de entender. As tavernas e as estalagens não são os melhores locais para o aprender. No entanto, fiz um esforço para meter conversa com qualquer viajante que quisesse falar comigo.

Há muitas tribos e dialectos entre os ingleses, tal como acontece em Itália. Num primeiro contacto, os ingleses podem ser lacónicos e fechados, desconfiados e complacentes para com os estrangeiros, mas nos copos e nas amizades sabem ser abertos e calorosos. As suas mulheres, pelo menos aquelas que conheci, sorriam prontamente e eram de uma coqueteria aberta com estrangeiros como eu. Calculei que as suas vidas nem sempre fossem muito fáceis com os valorosos senhores da terra e com os jovens cavalheiros, bebedores e cavaleiros acérrimos, a quem eram oferecidas e a quem já tinham sido vendidas no mercado matrimonial.

Em Londres, fui acolhido com efusiva generosidade pelo embaixador, Michel de Castelnau. Era um homem bem-parecido, na casa dos sessenta, com um sorriso cativante e um talento para a amizade raro no exercício dúbio da diplomacia. Propôs-me que me alojasse na sua casa e, quando vacilei, não querendo causar-lhe incómodo, ele insistiu.

- Mestre Bruno, esse é o desejo do rei e a minha satisfação. A minha mulher dá-vos as boas-vindas. Os meus filhos beneficiarão da vossa instrução, os meus amigos sentir-se-ão enriquecidos com a vossa companhia. Eu próprio vos apresentarei a Sua Majestade e aos seus ministros. Ela vê-me com bons olhos, mas a sua real prima, Mary, rainha dos escoceses, é madrinha da nossa filha. A minha mulher é sua parente e eu assumi o compromisso de a ajudar de todas as formas que eu puder. Não faço segredo disso, mas também não faço conspirações, portanto, os nobres de Inglaterra sentem-se honrados em se sentar à minha mesa. Este país é, provavelmente, o local mais calmo da Europa, neste momento. Sua Majestade é popular entre o povo. Mesmo os seus súbditos católicos - ou a maior parte deles, pelo menos - são leais à Coroa e desconfiam de Roma e dos espanhóis.

- E como será que vou ser olhado pelos eruditos de Inglaterra? Ele atirou a cabeça para trás e riu com vontade.

- Como hei-de dizer, mestre Bruno? Fui soldado durante metade da minha vida e cortesão o resto do tempo. Tenho muitos amigos que são intelectuais, mas eu não vivo no seu mundo. Na minha opinião, os ingleses são tão ciosos da sua intelectualidade como da sua soberania insular. Dizem-me que ireis falar em Oxford.

- Se me convidarem, sim.

- Arranja-se um convite. Lorde Leicester é o chanceler. O sobrinho dele, Sir Philip Sidney, é meu amigo. Conhecê-lo-eis em breve. Agora, permiti que vos apresente à minha família. O vosso compatriota, John Florio, é o tutor da minha filha.

Fui feliz naquela casa. Tinha um quarto sossegado onde podia trabalhar e escrevi prolificamente e com energia. Quando precisava de tomar ar, podia descer Water Lane até ao rio Tamisa e observar o movimento dos barcos e o voo das gaivotas.

Castelnau introduziu-me na corte. Fui apresentado a Sua Majestade, que me acolheu graciosamente e falou comigo em italiano. Conheci também o seu ministro, Sir Francis Walsingham, que me fez uma saudação cordial e depois me arrastou para uma longa conversa sobre a minha vida, as minhas experiências em Nápoles sob os espanhóis e as minhas opiniões sobre as guerras religiosas em França. Ficou visivelmente impressionado com o que lhe contei e fez uma proposta discretamente velada em como lhe seria agradável uma troca regular de informações semelhantes. Disse-lhe, salvaguardando sempre as minhas obrigações tanto em dever como em amizade para com o meu anfitrião, Castelnau, que teria todo o prazer em lhe ser agradável. Na altura não vi que houvesse algum conflito nisto. Eu também não passava de um visitante no seu país. A continuação da minha estada dependia da boa vontade dele e da de Sua Majestade.

Oxford acabou por se revelar um pequeno episódio amargo na minha estada em Inglaterra. Os doutores e os estudiosos não ficaram lá muito satisfeitos quando eu pus em causa o seu apego obstinado a Aristóteles e sugeri que considerassem os méritos de outros filósofos: Pitágoras, Parménides, Anaxágoras. Não fiz segredo do meu espanto ao saber que mestres e estudantes eram multados em cinco xelins por cada erro na sua interpretação do Organon de Aristóteles e que a persistência nesses erros levaria à expulsão.

Enquanto escrevo estas palavras, sou confrontado com uma amarga ironia: uma multa e mesmo a expulsão eram pequenos castigos para opiniões desviantes. As minhas podem bem vir a custar-me a vida!

Houve outras razões, e estas mais simples, para que eu não tivesse conseguido impressionar os superiores de Oxford. Eu era obviamente estrangeiro. Até o meu aspecto físico me traía. Era pequeno e escuro, um homem mediterrânico. A minha fala era diferente, até mesmo em latim, a língua corrente dos eruditos. A minha assistência riu-se quando pronunciei circulo à italiana, como "chirculo".

Mesmo assim, a minha visita foi largamente proveitosa. O meu livro vendeu-se bem. O meu nome foi falado no estrangeiro. Fui reconhecido como um formidável oponente no debate. Houve, em todos os meus argumentos, uma paixão que tocou até mesmo os fleumáticos ingleses.

Também Castelnau era um homem apaixonado. Amava a mulher, adorava os filhos e deleitava os amigos, um dos quais ainda me orgulho de ter sido. Admirava-lhe a tolerância e a curiosidade. Estava sempre preparado para abrir o espírito para abranger uma ideia diferente. Foi ele que sugeriu uma solução para os meus problemas com a Igreja e com a minha Ordem.

- Não discutais teologia com eles, meu amigo. Perdereis inevitavelmente. Os romanos sempre foram juristas natos. Enquadram tudo, mesmo o mistério supremo, no contexto da lei, e depois usam a lei para conseguir a submissão. Portanto, vós estais num beco sem saída. Tendes de sair dele, arranjar outro caminho.

- Gostaria que Vossa Excelência mo indicasse.

- Inclinai-vos um pouco. Dobrai as costas, se não conseguis dobrar o espírito. Admiti que não fostes feito para ser monge. Pedi perdão pelos vossos erros num estado para o qual sabeis agora que não éreis verdadeiramente talhado. Depois, pedi que vos libertem dos votos, que vos permitam desempenhar um papel mais simples: o de padre-estudioso sob a jurisdição de um bispo simpatizante. Tenho a certeza de que conseguiríamos encontrar um em França.

- Tudo isto, Excelência, é baseado numa suposição.

- Qual?

- A de que eles querem verdadeiramente encontrar um caminho para mim e não transformar-me num caso exemplar.

- Tendes uma certa razão, meu amigo, mas, perdendo ou ganhando, deveis jogar as cartas que tendes.

- É uma jogada fraca, Excelência.

- Mesmo assim é suficiente para que possais continuar a jogar. Ora pensai. Aqui em Inglaterra estais fora do alcance de Roma. Tendes a protecção diplomática da França numa família católica. Podeis viver em segurança, se fordes discreto. Por outro lado, podíeis, se o desejásseis, tornar-vos protestante, como fez o vosso colega John Florio. Eu próprio, como católico, não posso recomendá-lo, e a minha querida esposa certamente não aprovaria. Poderíeis mesmo, a longo prazo, arranjar um lugar de capelão na Igreja de Inglaterra... e mesmo casar, se estivésseis nessa disposição, o que por vezes me parece que estais.

- Eu estou sempre com disposição para as mulheres, senhor. O casamento, receio-o bem, deixar-me-ia tão manietado como a vida no convento.

Ele riu-se com gosto e acrescentou um comentário que eu havia de recordar muito mais tarde.

- O casamento também é um negócio dispendioso, meu amigo, a menos que a noiva tenha um dote decente.

- E os escritores e os estudiosos não são bem pagos! Portanto, ao que parece, eu precisaria de uma noiva rica e de um patrono generoso.

- A noiva tendes de ser vós a encontrá-la.

- E o patrono?

- Sois um homem difícil de entender, meu caro Bruno. - Sorriu com uma certa tristeza ao dizer estas palavras. - Eu, por mim, acho-vos uma companhia extremamente agradável, mas as vossas opiniões não são facilmente compreendidas e, por essa razão, não sois popular por toda a parte. O patronato é um favor dos ricos e poderosos. E eles geralmente não gostam de ter indivíduos carrancudos à sua volta.

Foi este comentário que me instigou a falar-lhe da sugestão de Walsingham, de me tornar uma espécie de fornecedor de informações políticas. Castelnau franziu a testa e sacudiu tristemente a cabeça.

- Todos eles o fazem, mestre Bruno. Não! Para ser verdadeiro, todos nós o fazemos, os que estamos nesta posição. Vivemos de informações. É como se andássemos ao trapo, juntando tiras e bocadinhos de tecido deitados fora, para fazer mantas de retalhos. Quem visita quem? E quando e porquê? Como é que este de repente tem a bolsa cheia, quando ontem não tinha um tostão para mandar cantar um cego? Quem goza do favor da rainha e quem foi posto de lado? Não existe uma única casa de diplomata no mundo que não tenha o seu próprio Judas a vender informações a pessoas como Walsingham.

- Quereis dizer que tendes um Judas nesta casa, Excelência?

- Claro. Embora não possa prová-lo.

- Mas porquê conservá-lo aqui?

- Porque se não for ele será um outro. E, se o confrontardes, ele dará a mesma resposta de Judas: "Eu não, Senhor! Nunca! Como pudestes pensar que eu vos venderia por trinta moedas de prata?" Mas podeis acreditar que o preço é geralmente inferior a trinta moedas de prata. Eu sei, porque também eu pago por aquilo que vem até mim.

- O que desejaríeis então que eu dissesse a Sir Francis Walsingham?

- O que lhe haveis dito quando ele abordou a questão pela primeira vez?

- Dei-lhe uma resposta que espero tenha a aprovação de Vossa Excelência. Disse-lhe que teria muito prazer em lhe ser agradável, salvaguardando sempre as minhas obrigações, deveres e amizade para com o meu anfitrião: Vós mesmo, Excelência.

- E nada mais foi dito?

- Nada, nem nessa ocasião nem depois.

- Sabeis que as coisas não vão ficar por aí.

- Provavelmente, não. Portanto, como devo responder se me forem feitas perguntas, digamos, acerca das actividades nesta casa?

- Seja o que for que lhes disserdes, meu amigo, eles não vão acreditar e hão-de controlá-lo através de outras informações. Se disserdes "sim", eles ouvirão "não". Se confessardes a vossa ignorância, eles deduzirão conhecimento. Se vos recusardes a responder, eles partirão do princípio de que se trata de uma aceitação traiçoeira.

- Tudo isso se assemelha muito ao meu convento em Nápoles, Excelência!

- Precisamente, mestre Bruno.

- Mas porquê?

- Porque estão em causa as mesmas questões: poder, preferências, ganância por riqueza em terras, casamentos dinásticos e todas as intrigas que geram, e qual é o Deus verdadeiro, pois não existe poder a não ser em Deus e naqueles que são ordenados por Deus e, portanto, por quem quer que o possua! Vós sabeis tudo isto, Bruno. Por que hei-de eu ler os vossos sermões?

- Porque sois um homem de bom coração, Excelência, e eu sou afortunado em gozar da vossa amizade. Infelizmente, tenho um temperamento impulsivo e falo de mais, mas nunca trairei a vossa confiança.

E estava a ser sincero em cada palavra que disse, mas não fui capaz de afastar a infecção de desconfiança que se seguiu à nossa conversa. Se havia espiões naquela casa, onde é que uma pessoa podia estar em segurança? Foi esta sensação de desconforto que me fez aproximar ainda mais do círculo de amigos em que Castelnau me introduzira.

O primeiro e mais simpático de todos era Giovanni Florio, que, apesar do nome e da origem italiana, tinha nascido em Inglaterra e fora empregado por Castelnau como secretário particular e tutor da filha. Na altura em que o conheci, ele já tinha publicado uma tradução das Viagens de Jacques Cartier, de Ramusio, e uma gramática anglo-italiana chamada Florio his Firste Fruites, cujos diálogos cheios de vivacidade se destinavam à prática da língua.

Ele, tal como eu, era um indivíduo falador e teimoso. Apelidava-se a si mesmo de "resoluto John Florio". Tal como eu, não lhe faltavam detractores, mas era generoso para comigo - muitíssimo generoso na partilha das suas amizades.

Tanto ele como Castelnau enriqueciam a minha vida com amigos que me impeliam em frente, por vezes com elogios, mas sempre com novos desafios à excelência. O principal destes amigos, que sempre hei-de lembrar como o paradigma do perfeito cavalheiro, era Sir Philip Sidney. Na sua curta vida - foi morto numa batalha naval quando tinha apenas trinta e dois anos de idade - viveu muitas vidas e embelezou-as a todas. Foi cortesão, poeta, estadista, soldado, amigo e patrono das artes. Tinha viajado muito na Europa e falava muito bem o francês e o italiano. Mas antes do mais, no entanto, tinha uma graça e um encanto que acalmavam mesmo o meu espírito turbulento. Merecia respeito, mas também o oferecia - e isto ainda recordo com apreço.

No entanto, era o poeta dentro dele que mais me atraía. Neste lugar, onde há muitos anos não me é dado ver nem a Lua nem as estrelas, ainda recordo passagens dos seus poemas:

Com que passos tristes, ó Lua, te elevas nos céus, Tão silenciosa e com uma tão pálida face!

E essa outra única linha que resumia de forma tão concisa o que me estava a acontecer, sem que eu o soubesse:

"Louco!", disse-me a minha musa. "Contempla o teu coração e escreve!"

Este outro eu, tal como a musa de Sidney, instigava-me a contemplar o meu coração, examinar o meu próprio espírito, aceitar como autêntica a minha experiência de Deus no Seu universo tal como eu a entendia. Ainda me era possível reconciliar este novo eu com o antigo. Não conseguia ainda definir a visão que se me apresentava ou que eu pensava ver. Portanto, continuei laboriosamente a enquadrá-la em palavras.

Em Londres, com a assistência de Sidney e do próprio Castelnau, encontrara um impressor que publicasse os meus trabalhos, um homem chamado Clarlewood. No entanto, em vez de seguir a prática usual de usar o seu próprio cunho na encadernação e na folha de rosto, segui o conselho dos meus amigos - e na verdade do próprio Char-lewood - e apresentei as obras, sete ao todo, como tendo sido impressas em Veneza ou Paris.

Foram-me apresentadas duas razões para esta prática: um cunho estrangeiro vender-se-ia melhor do que um nacional e o editor inglês evitaria as atenções indesejáveis dos censores. Este pequeno estratagema, francamente inofensivo, assumiu grande importância no meu julgamento em Veneza. Primeiro afirmou-se que eu era um mentiroso comprovado cuja defesa não tinha qualquer valor e depois que eu era um homem corrupto, que faria qualquer coisa por dinheiro.

Em termos relativos, o estratagema era um pequeno defeito. De facto, tornou-se mais uma acha para alimentar o fogo em que me queimarão! De que servem os relativos e os absolutos na lei e na teologia?

A minha estada em Inglaterra foi o período mais feliz e mais produtivo da minha vida. Há outros, muitos outros, que enriqueceram a minha vida, mas a lista é demasiado longa para ser transcrita aqui. Afinal, estou a escrever uma apologia pessoal e não a história de uma época tumultuada e sangrenta, mas mesmo assim pronta a abrir-se no esplendor das flores primaveris nascidas num campo de batalha. O catálogo das minhas obras foi enriquecendo regularmente, cada vez com mais vigor, à medida que eu escrevia na minha própria língua: A Ceia de Quarta-feira de Cinzas, Da Causa, Princípio e Unidade, Do Universo e Mundos Infinitos, A Expulsão da Besta Triunfante.

Não tenho tempo nem vontade para as descrever aqui, mas estão publicadas com o resto das minhas obras. Nem todas serão queimadas quando me queimarem a mim. Outras gerações hão-de lê-las e julgá-las muito depois de eu ter sido apagado do planeta. Há momentos em que penso nisto como uma vingança: os inquisidores sendo obrigados para sempre a perseguirem as minhas ideias como fogos-fátuos num pântano. Há um provérbio que diz: "A vingança é um prato saboroso para os deuses." Eu prefiro dizer que a verdade executa a sua própria vingança e que ninguém a pode enterrar tão fundo que ela não volte a surgir, confirmada em glória.

 

30 DE DEZEMBRO

Ao começar a escrever hoje, recordo-me que faz agora catorze anos que a minha estada em Inglaterra foi abruptamente interrompida no ano de 1585. Foi assim que tudo se passou.

Numa manhã cinzenta de princípio de Inverno, estava a escrever no meu quarto na embaixada. Não havia nada que me atraísse no exterior. As nuvens vogavam baixas, caía uma chuva fina, um cheiro desagradável vinha dos bancos de lama que a maré deixava a descoberto ao longo do rio Tamisa. Por isso, estava contente, sentado à minha secretária, delineando nas suas linhas gerais um novo trabalho sobre a Física de Aristóteles. John Florio entrou. Trazia notícias perturbadoras - o embaixador tinha sido chamado para França. O seu sucessor chegaria no espaço de um mês. A nossa casa ia ser desfeita. Todos tínhamos de tomar novas disposições para os nossos futuros.

Perguntei - com uma certa irritação, confesso - por que é que não tinha sido o próprio embaixador a informar-me. Florio, com mais paciência do que lhe era habitual, deu-me a explicação.

- Os despachos de Paris chegaram há apenas uma hora. Sua Excelência foi dar a notícia à mulher. Ela está adoentada, como sabeis, e está de novo grávida. Esta mudança vai trazer-lhe muitas dificuldades. Mas ainda há outras preocupações. Sua Excelência está com grandes problemas financeiros. Os fundos que tem a receber não chegaram de Paris; nem serão pagos, penso eu, enquanto ele não voltar e falar com o rei. Mais ainda, Sua Excelência, ao longo dos anos, enviou grandes somas em dinheiro a Mary, rainha dos escoceses. Há agora poucas esperanças de que esse dinheiro possa ou venha a ser pago. Portanto, sede paciente, meu amigo. Sua Excelência expli-car-se-á na devida altura.

- Quando ele se for embora, não haverá mais nada para mim aqui. Fico completamente desprotegido. É tempo de me ir embora. Espero poder voltar para França com ele.

- Por que não propor-lhe isso mesmo? Eu não posso ir com ele. Este é o meu país. Nasci aqui. Tenho de encontrar outra colocação em Inglaterra. Vós poderíeis talvez ajudá-lo na viagem, mas teríeis de pagar a vossa passagem e instalar-vos em Paris.

- Eu posso fazer isso.

Disse-o com toda a confiança, mas os meus fundos estavam muito em baixo e as minhas esperanças não eram muitas. Mais uma vez ia ter de me tornar um académico errante, apregoando a minha mercadoria como qualquer vendedor de feira, curvando-me, economizando, bajulando para arranjar protecção. Não sei porquê, veio-me à ideia um texto da escritura. E o Senhor pôs uma marca em Caim. E Caim afastou-se da presença do Senhor e habitou na terra de Nod, a Leste do Paraíso.

Em mim também havia uma marca. Se Sua Santidade o papa era o vigário de Deus, então, na verdade, eu tinha saído da Sua presença. Naquele sombrio momento de Inverno em Londres, desejei, desesperadamente, voltar para ela. Ao deixar a pátria, tinha rompido as minhas raízes. Elas não se tinham aclimatado em terra alheia, por melhor que fosse o alimento prometido. Por isso, em todas as situações e sem que conseguisse defini-lo, eu sofria de uma sensação de impermanência, de perda, de alienação. Nos dias que se seguiram, quando tinha oportunidades de levar uma conversa tranquila com Castelnau, ele repetia o seu conselho, que curvasse a cabeça em submissão e fizesse as pazes com Roma. A estrada para Roma levar-me-ia a casa.

Alma generosa como era, Castelnau arranjou-me cartas de recomendação: uma dele próprio; a outra do embaixador espanhol para o núncio apostólico em Paris, Sua Excelência Girolamo Ragazzoni, que era também bispo de Bergamo. As cartas não só explicavam as minhas circunstâncias especiais como faziam calorosas recomendações quanto ao meu carácter e futura utilidade para a Igreja, se o meu problema actual pudesse ser resolvido. A armadura era demasiado leve para um homem sob um cerco tão apertado, mas era o melhor que Castelnau podia oferecer na sua posição actual. Também ele tinha os seus problemas. Na viagem de Londres, graças à cumplicidade de um criado, todos os seus valores foram roubados, mesmo os presentes reais. Regressou sem um tostão e teve que deitar mãos à tarefa de refazer a sua situação.

Assim, em Paris os nossos caminhos divergiram ainda mais. Castelnau recomeçou o beija-mão na corte e foi nomeado para um posto de comando no Exército. Eu arranjei um alojamento barato numa área conhecida perto do Colégio de Cambrai e reatei velhas amizades. Françoise Solanges estava morta, mas os meus amigos impressores continuavam florescentes, apesar dos problemas.

No entanto, vivi com dificuldades nos meses que se seguiram. Publiquei três pequenos volumes sobre a Física de Aristóteles e um trabalho sobre a Matemática, de Fabrizio Mordente, um compatriota de Salerno que inventara a bússola de oito pontos e escrevera um trabalho de grande exactidão chamado Bússola e Régua. O irmão, Gaspari, servira com o meu pai na milícia. Mais tarde, Fabrizio e eu voltámos a encontrar-nos em Praga, onde ele era astrónomo imperial.

Perguntei a mim mesmo muitas vezes ao longo dos anos por que razão estes meus amigos conseguiam alcançar posições proeminentes - ou, no caso de serem nobres pelo nascimento, as gozavam sem qualquer esforço, como Sidney em Inglaterra - enquanto eu, que tinha muito mais para oferecer do que eles, era constantemente frustrado nas minhas ambições e vencido por um destino obstinado e maligno. Levei muito tempo a perceber que o problema estava em mim mesmo e não em qualquer combinação de estrelas. Eu era como um cavalo que via apenas em frente, sempre desconfortável quando aparelhado e por vezes enfurecido quando me impediam de avançar.

O meu pupilo, John Hennequin, tinha anotado cento e vinte afirmações contra as opiniões de Aristóteles e dos seus seguidores sobre a natureza e o mundo. Publiquei essas afirmações e organizei um debate no Colégio de Cambrai. Hennequin defendeu as suas afirmações, mas foi ultrapassado no debate por um jovem e brilhante advogado, Raoul Callier.

Fui convidado a fazer frente a Callier - mas recusei porque a hora já ia adiantada. Por esta razão fui escarnecido pela assembleia. Pediram-me que voltasse no dia seguinte. Declinei novamente. Disse-lhes que estava preparado para ceder a vitória. A troça foi mais barulhenta e mais tumultuosa. Nessa altura tive a certeza de que o clima de opinião académica e pública tinha mudado. Tanto o vento como a maré estavam contra mim.

Um destino ainda pior se abateu sobre mim numa tarde de Inverno, quando apresentei as minhas cartas de recomendação e dei a conhecer a minha posição ao núncio apostólico, Ragazzoni, na presença do seu assistente, o jesuíta Spagnolo. A minha petição era simples: que as censuras contra mim fossem retiradas e me admitissem de novo aos sacramentos e à prática do sacerdócio - não na minha Ordem, mas no ministério secular. Sua Excelência foi muito cortês. Ouviu-me sem qualquer comentário, mas não me criou muitas esperanças. Disse-me que a sua intervenção seria despropositada e inútil. Quando lhe perguntei porquê, disse:

- Irmão Giordano, há certas realidades que tendes de aceitar. Desde Abril que um novo pontífice se senta no trono de Pedro: Sua Santidade, o papa Sisto V. Tal como vós, ele é membro de uma Ordem antiga, a dos franciscanos. Infelizmente para vós, ele serviu como inquisidor... foi nem mais nem menos que o grande inquisidor de Veneza! Ele não é, permiti que o diga com todo o respeito, um homem com uma disposição branda. Já iniciou um duro regime de expurgação em Itália. Impôs a pena de morte por banditismo, incesto, negociação de empréstimos, aborto, sodomia e mesmo adultério. Não poupa nem aqueles que lhe estão próximos. Portanto, irmão Giordano, não estamos a falar de um pastor gentil que conduz o seu rebanho ou procura os cordeiros tresmalhados para os conduzir a casa sobre os ombros. Este é um homem com um malho nas mãos, joeirando o grão na eira! Digo-vo-lo, sem rodeios, não há esperança para vós a não ser que aceiteis a submissão total. Regressai à vossa Ordem, pedi perdão, aceitai a penitência que vos for imposta, deixai que os vossos superiores intercedam por vós junto do santo padre. Estais preparado para isso?

Disse-lhe que não estava. Que não tinha senão recordações desagradáveis da vida na Ordem. Sua Excelência encolheu os ombros e abriu as mãos macias num gesto de pesar e censura pela minha loucura.

- Nesse caso, lamento, não posso fazer nada por vós, irmão Giordano.

A entrevista tinha terminado. Fui afastado para a escuridão dos condenados. Passei o resto dessa noite num bordel.

Não foi a minha primeira visita a uma casa dessas - nem, graças a Deus, a última. Na minha opinião, se o meu ministério estava suspenso, o mesmo acontecia com o meu sempre precário compromisso de castidade. A casa era uma que eu tinha frequentado, por vezes sozinho, por vezes com amigos, nos meus tempos mais prósperos de leitor na corte do rei. Agora, era um prazer muito dispendioso.

Lembro-me bem da mulher. Chamavam-lhe La petite guenon, a macaquinha, porque ela era experiente, brincalhona e hábil em pequenas partidas. Eu estava desesperado por enterrar o meu desgosto no corpo dela e, após os primeiros momentos bravios, ficámos abraçados, acordando e adormecendo, durante uma longa noite.

Sete anos de vida de prisão e de dieta de prisão tiraram-me as forças e abrandaram-me o desejo. Dante tinha razão quando escreveu: Não há maior desgosto do que recordar tempos felizes na desgraça. No entanto, ainda me lembro daquela noite, não pelo prazer - quanto tempo perdura a recordação do êxtase sexual? - mas pelo estranho e mágico momento de revelação que experimentei às primeiras horas da manhã.

As circunstâncias eram triviais e mesmo sórdidas. Afastei-me da mulher que dormia a meu lado e levantei-me para ir urinar no bacio. Antes de voltar a meter-me na cama, fiquei nu diante da janela, olhando para o céu límpido de Inverno, cheio de estrelas fulgurantes.

De repente, compreendi aquilo que precisava de dizer, aquilo que tinha andado a tentar dizer todos aqueles anos, em latim, em italiano, por escrito e oralmente, mas que nunca conseguira articular na sua totalidade.

Foi um momento arquimediano em que o meu espírito gritou: "Eureka. Descobri." Foi um momento bíblico, também, quando ouvi uma voz que dizia: "Abre a boca", e a minha língua hesitante encontrou de repente a eloquência.

Eu já não estava - e a humanidade já não estava - encerrado nos círculos fechados do universo de Ptolomeu ou de Copérnico. Também não estávamos no centro desse universo. Não éramos um sistema único, éramos a parte mais pequena de uma vasta criação, que se expandia até ao infinito. O nosso mundo era apenas um de mundos sem conta, cada um em movimento na sua própria órbita. Foi a amplitude desta visão que finalmente tornou inteligível a noção de Deus, que nos tornou inteligíveis para nós mesmos e fez os terrores das nossas vidas toleráveis.

Não sei quanto tempo ali fiquei, mas de repente comecei a tremer, de frio, sim, mas também com o choque da experiência. Voltei para a cama. A mulher mexeu-se, voltou-se para mim e abraçámo-nos de novo.

Isto, parecia-me, era o toque final da revelação. Não estávamos separados. Nada no cosmo estava separado ou desligado. Nada podia cair das mãos do Criador que o fizera, que o inspirava, que estava imanente em todas as suas partes. Pela primeira vez em anos, disse uma prece verdadeira. "Dai-me memória para conservar este momento. Dai-me palavras para o contar."

Quando, de manhã cedo, regressei a casa, continuava em transe. Sabia aquilo que queria conseguir, mas também sabia que precisava de um tempo de calma, libertação das preocupações financeiras, uma certa distância dos tumultos que surgiam de novo em França. Pergunta imediata: onde encontrar todas essas coisas de imediato?

Era evidente que eu tinha de olhar para leste e para norte, para os centros de aprendizagem da Alemanha, onde os reformadores tinham tomado uma posição forte e eruditos como Philipp Melanchthon faziam reviver o estudo das fontes originais em hebreu e grego.

Fui primeiro para Marburg-sobre-o-Lahn porque aí Philip, o Magnífico, fundara, em 1527, a primeira universidade protestante e, dois anos mais tarde, o mesmo príncipe alemão convidara Lutero e Zwingli e Melanchthon para conduzir um colóquio sobre os artigos essenciais da fé que podiam constituir uma confissão comum para os reformistas da Alemanha e da Suíça.

O clima, portanto, parecia auspicioso - um príncipe iluminado, uma universidade nova, uma erudição esclarecida, mesmo em assuntos controversos. Portanto, lá fui eu para Marburgo, armado com as minhas obras já publicadas, um currículo cuidadosamente preparado sobre a minha carreira e uma mão-cheia de esperanças.

A recepção pareceu-me suficientemente calorosa. A 25 de Julho de 1586, fui matriculado. Paguei a minha propina e fui inscrito no livro de registo da universidade como "Jordanus Nolan, um napolitano, doutor em Teologia Romana, admitido com o acordo da faculdade."

Sempre suspeitei que foi a frase "Teologia Romana" que provocou o problema. Quando, como passo seguinte, pedi formalmente autorização para ensinar Filosofia em público, o reitor recusou sem mais preâmbulos. Recusou também dar-me as suas razões, dizendo que, fossem elas quais fossem, a faculdade estava de acordo com tudo.

Fiquei ofendido e furioso com esta mentira evidente. Fui então a casa do reitor e acusei-o de cometer um acto contrário a toda a justiça e às práticas comuns em todas as universidades. Ele recusou-se a continuar a discutir o assunto. Devolveu-me a propina e eu vi-me uma vez mais na estrada, desta vez a caminho do norte, para Wittemberg, onde Martinho Lutero tinha pregado as suas noventa e cinco teses na porta da Schlosskirche e onde mais tarde ele e o seu amigo e advogado, Melanchthon, foram enterrados lado a lado.

Houve também um outro bom presságio. O meu velho amigo e compatriota, o jurista Alberico Gentilis, encontrava-se lá. Arranjou-me maneira de dar lições particulares a algumas pessoas importantes. Em resultado disso, fui contratado para ensinar na universidade por um período de dois anos.

Até aqui, tudo bem, mas toda a rosa tem os seus espinhos, e aquilo que mais me incomodava era a minha incompetência na língua alemã e o meu pouco conhecimento dos hábitos e costumes locais. Na verdade, todos conhecíamos o latim, a língua comum dos escolásticos, mas em questões de alojamento e diversão a língua comum é a melhor. Eu estava, portanto, sempre dois passos atrás tanto da história como do desenvolvimento actual do movimento da Reforma que Martinho Lutero lançara na Alemanha. Não podia aperceber-me da força da sua escrita e pregação vernáculas. Uma coisa, no entanto, eu entendia claramente: que ele tinha confrontado o papa, o imperador e os rebeldes dentro da sua própria facção e que sobrevivera a todos, ainda que sob excomunhão, proscrição e mesmo ameaça de assassinato.

Familiarizei-me com os vinte e oito artigos da Confissão de Augsburgo, da qual Philipp Melanchthon era o principal autor e cujo objectivo era demonstrar que as doutrinas de Lutero não eram de forma alguma a negação dos princípios fundamentais da fé cristã. Admirei a clareza e a tolerância da exposição. Eu próprio não teria tido dificuldade em subscrevê-la - embora sentisse que tínhamos de chegar muito mais longe e ir mais além para abraçar a maravilha ilimitada do testemunho escrito na própria terra e no céu nocturno.

No entanto, confesso que ensinei em Wittemberg com maior prudência e menos controvérsia por causa da liberdade e respeito que me foram concedidos. O meu amigo Gentilis sugerira com a maior sensatez que as minhas lições deviam ter em conta as novas correntes do pensamento alemão e a distância que a teologia tinha percorrido desde os dogmas dedutivos de Aristóteles. As minhas audiências, privadas e públicas, incluíam filhos de casas nobres, académicos, professores e doutores. Recebiam-me de braços abertos e honravam-me como amigo e colega.

Os trabalhos que escrevi nesta época de contentamento eram de carácter amplamente académico, já que eu tinha um círculo de leitores garantido e que as minhas lições eram preparadas com um cuidado e uma subtileza especiais. No entanto, todos os dias pensava no projecto que se me apresentara naquela noite de Inverno no quarto de La petite guenon em Paris. Era uma coisa que eu não podia forçar; tinha de crescer como uma árvore frondosa, no seu próprio tempo.

Em Wittenberg, encontrei alojamento na casa de um tal Wolf Springer, professor de Matemática reformado que continuava a ensinar um pequeno grupo de estudantes dos graus mais adiantados. Era um indivíduo corpulento e balofo que comia de mais e bebia em excesso, mas cujo cérebro continuava aguçado. Trabalhava num pequeno gabinete na universidade, de forma que só nos encontrávamos ao jantar e depois para uma partida de xadrez, jogo em que ele era mestre e eu um aluno muito fraco. A minha cabeça andava sempre nas nuvens da especulação, enquanto a dele estava concentrada na matemática do jogo. Logo que me punha em cheque, pegava na vela e ia para a cama, deixando-me sozinho à procura de uma forma de sair da armadilha em que ele me metera.

Springer era viúvo, mas tinha a casa entregue a uma filha solteira, Greta, uma jovem atraente mas lacónica que lhe mantinha a casa impecável e a mesa farta e que exigia do pai e de mim uma servidão não totalmente desagradável. Ela era também uma hábil costureira e conhecedora na feitura de luvas. Enquanto estávamos mergulhados no nosso jogo da noite, ela sentava-se, envolta pela luz do candeeiro, cosendo placidamente, ouvindo a nossa conversa e soltando ocasionalmente uma ou outra exclamação intencional. Instruída pelo pai, escrevia com perfeição em caligrafia gótica, lia fluentemente o alemão e o latim e fazia as suas contas com tanta exactidão como um banqueiro.

Interrogava-me sobre a minha carreira. Eu descrevia-lha com prazer - na sua maior parte, pelo menos - com detalhes coloridos. Não se mostrava muito impressionada. O que mais a interessava era a minha vida na corte em Paris e em Londres: aquilo que as mulheres usavam, como conduziam a sua vida social, como geriam a vida de casadas e os casos amorosos. A filosofia entediava-a, disse-me. A religião era uma questão de boas maneiras e de costume social. Era como a matemática do pai, a expressão de uma criação ordenada. Não conseguia entender por que havia tantos problemas e lutas por causa de fórmulas e expressões de crença. Tornou bem claro que não admitiria qualquer discussão religiosa em sua casa. Disse-lhe que não tinha nada a temer da minha parte.

Estas conversas sucintas e um tanto dispersas estenderam-se por várias noites depois de o pai se ter retirado para a cama. Por fim, ela tornou às perguntas mais pessoais.

- Não há mulheres na vossa vida, mestre Bruno?

- Já houve. Neste momento, não há nenhuma.

- Não vos sentis demasiado só?

- Todos nos sentimos sós, por vezes. Para os que levam uma vida errante, como eu, é difícil manter uma ligação.

- Quereis dizer que é fácil para os que não saem de casa, como eu? Havia um toque de irritação na voz dela que me surpreendeu. E eu precisava tanto de uma briga como da Peste Negra. Tentei acalmá-la.

- Por favor! Não havia segundas intenções nas minhas palavras. Sou um recém-chegado a vossa casa. Haveis-me feito uma pergunta simples, tentei responder-vos. Falemos de vós.

- Não há nada a dizer. Sou aquilo que vedes, uma filha obediente, senhora da casa que a minha mãe me deixou.

- E na qual Giordano Bruno, um homem de um país distante, tem a felicidade de se albergar e ser bem tratado.

Ela sorriu. O momento difícil tinha passado. Dei-lhe as boas-noites e fui para o meu quarto. Deixei-a sozinha à luz do candeeiro medindo um pedaço de couro fino sobre o molde de papel de uma luva.

As partidas que a memória nos prega são, por vezes, muito estranhas. Quando estava a preparar-me para me deitar nessa noite, dei comigo a pensar nos meus tempos de rapaz em Nola, nas florestas e nas vinhas do Monte Cicada e no vulto escuro e distante do Vesúvio que marcava os limites do meu mundo. No âmago do meu pensamento havia uma ideia única: o Monte Cicada era o meu lugar. Eu pertencia-lhe. Os deuses do meu lar encontravam-se ali. Era por isso que, onde quer que me instalasse, me inscrevia como "Giordano Bruno, o Nolano". Foi por isso que senti um curioso dramatismo no comentário de Greta Springer: "Sou aquilo que vedes, uma filha obediente, senhora da casa que a minha mãe me deixou."

Eu, pelo contrário, não tinha qualquer herança nem família, porque no dia em que pronunciara os votos renunciara a ambos. Tornara-me pobre para Cristo. Tinha sido adoptado na irmandade dos escolhidos que iriam pregar ao mundo a sua mensagem.

Agora, segundo todos os termos do acordo, a minha situação era crítica. Não podia, não ousava, voltar ao passado. O meu presente era instável, o meu destino um grande ponto de interrogação. Vesti a camisa-de-noite, apaguei a vela e enrosquei-me à procura de calor debaixo das cobertas. Fiquei assim deitado muito tempo, desassossegado no meio da escuridão, contemplando a luz das estrelas através da janela da mansarda.

A minha breve discussão com Greta Springer tinha definido com maior justeza o meu dilema pessoal. Ela era a filha solteira, a destinada pela sorte e pelo hábito a ocupar-se do progenitor idoso.

Tornara-se justamente a proprietária da casa, mas era evidente que a herança dependia de ela continuar a residir ali e a tomar conta de um pai ainda vigoroso do ponto de vista da saúde e activo na profissão.

Era, portanto, natural que me visse como um potencial parceiro matrimonial. Eu era o académico da casa, estabelecido do outro lado do corredor, mesmo em frente ao quarto dela. O pai via-me com bons olhos, e também para ele seria útil ter-me como genro residente para garantir a estabilidade da casa. A situação oferecia-me também uma série de benefícios. Se eu decidisse juntar-me à comunidade luterana, poderia ignorar as censuras de Roma, contrair um casamento válido e, sob o patronato do eleitor Augustus, conseguir residência permanente no país.

Sabia que uma palavra minha decidiria tudo: noivado, casamento, conversão, uma vida nova e estável. Na minha actual situação de perigo, pergunto a mim mesmo por que não a pronunciei!

Na altura, tinha toda uma lista de respostas prontas. Ainda era jovem. A minha sorte estava finalmente em fase ascendente. Os tempos estavam a mudar. A própria Roma havia de mudar. Eu era o Nolano, um homem do sul. Não conseguia imaginar-me vivendo para sempre sob as nuvens cinzentas das terras do norte, caminhando ajuizadamente para a igreja todos os domingos, de braço dado com a minha mulher, tirando o chapéu de académico à austera congregação luterana. Não me imaginava a moldar as minhas palavras a um ritmo novo. Não iria cortar os meus pensamentos por uma nova medida para uma nova audiência, tão crítica e tão problemática como a antiga. Tinha poucos motivos para amar os romanos, mas compreendia muito bem o que Erasmo queria dizer quando anunciou: Continuarei nesta Igreja até encontrar uma melhor. Ao que eu tinha acrescentado uma variante minha: "Esta é a pele com que nasci. Não posso, não quero, mudar de cor como um camaleão para tomar a cor das folhas."

Além de tudo isto, era forçado a admitir que tinha tão pouco talento para o casamento como para a vida conventual. Um filósofo é, por natureza, um espírito vagabundo. Os gramáticos, os juristas e os teólogos estão ligados por informações, definições e dogmas.

Apesar de todas as acusações que me fizeram, eu não sou nenhum heresiarca, sedento de poder sobre os seus seguidores. Não sou um Dr. Fausto que vendeu a alma ao Diabo em troca do conhecimento. Sou, na pior das hipóteses, um peregrino desnorteado, à procura de um chapéu que impeça o sol de lhe queimar os miolos. O problema foi - e continua a ser - que todos os fabricantes de chapéus querem pôr o seu tipo de chapéu na minha cabeça, quer ele me sirva, quer não. Depois, insulto final, cada um espera que eu use também a sua própria cocarda!

Todo o meu treino na Ordem dos Frades Pregadores e na vida intelectual que ela fomentava parecia dirigido à submissão do meu eu primordial e, por fim, à sua extinção num acto de imolação suicida.

Aquilo que queriam produzir era servos leais de uma instituição directamente ligada a Roma, para além da jurisdição dos bispos provinciais cujas lealdades, sendo locais, eram sempre suspeitas. A própria Ordem beneficiava dessa ligação. Era protegida, enriquecida e dotada de imensas delegações de poder, a menor das quais não seria a da própria Inquisição. Neste processo de forte controlo não havia lugar para indivíduos errantes como eu. No entanto, não queriam deixar-me sair; mantinham-me lá dentro para acabarem por me destruir.

Tudo isto está muito longe da conversa nocturna que tive com Greta Springer, em Wittenberg, há tantos anos. No entanto, é tudo parte da mesma história. Não queria pôr novas grilhetas em mim próprio, mas também não queria envergonhá-la. Gostaria de pensar que isso me pode trazer algum pequeno crédito no dia do julgamento final.

Nesta solidão em que agora vivo, em que tenho vivido desde há sete anos, cheguei pelo menos a uma conclusão firme. O primeiro dom que nos é dado e o último que abandonamos é o nosso eu, a essência que distingue cada um de nós de todos os outros, essa vida que é unicamente nossa. Na minha cela, há apenas esse eu e o Criador que lhe deu o ser. Não pedi essa dádiva. Recebi-a, com ou sem vontade, e ainda estou a pagar a dívida, mês após mês, dolorosamente. No final, vou ter que devolver a dádiva, diminuída, desfigurada, mas, mesmo assim, espero, apresentando ainda a marca bem legível do Criador. Fragmentos dos versos que escrevi há anos soam uma vez mais na minha cabeça.

Havia em mim

Aquilo que os séculos vindoiros

Não poderão negar: Que não receei morrer,

Que preferi uma morte corajosa a uma

Vida sem combate.

Eia! Eia! Eia! Palavras corajosas, irmão Giordano, enquanto a chama da vela ainda arde e tu ficas aí encolhido no pequeno círculo de luz. Mas quando apagas a vela e a escuridão salta de todos os cantos e a pobre criatura enlouquecida, três celas mais adiante, começa aos gritos, que é que acontece?

Não teriam a filha solteira, e o pai matemático, e os impassíveis cidadãos de Wittenberg sido uma escolha melhor? Agora é tarde de mais. O dedo em movimento escreveu na parede: Mene Mene Tequel Ufarsin. Os dias da minha vida estão contados e quase no fim. Os inquisidores pesaram-me nas suas balanças e acharam-me em falta. O pequeno reino que construí, a pequena pilha de livros, panfletos e poemas, será queimado em frente da basílica de S. Pedro e as minhas cinzas reunidas à pazada e lançadas ao Tibre. Ainda bem que não tenho agora mulher que me pertença, caso contrário ela ficaria reduzida à mendicidade pelo crime de me ter amado. Ainda bem que não fiz nenhum filho - pelo menos que eu saiba -, pois ninguém terá que chorar por mim.

Quando queimam uma pessoa desta maneira, não nos deixam sequer uma moeda para pagar o barqueiro. É-se apagado do livro dos vivos. Aquele pequeno eu, a criança que vagabundeou pelas encostas verdejantes do Monte Cicada será entregue aos cuidados do Deus que o criou. Na pior das hipóteses, Ele tem de ser menos assustador do que aqueles que ordenam as coisas em Seu nome.

Blasfemei muitas vezes, mas nunca contra Aquele que disse: Deixai vir a mim as criancinhas; a elas pertence o reino dos Céus.

 

31 DE DEZEMBRO

É a véspera de Ano Novo. Amanhã será capodanno e o princípio de um novo século, o décimo sétimo daquilo que temos o prazer de chamar a Era Cristã. Lá fora, segundo me diz o meu carcereiro, está um frio de morte, com um vento gelado a descer ululante dos Apeninos. Os pastores, que todos os Invernos descem dos Abruzos para apascentar os seus rebanhos na Campagna, reúnem os carneiros e os cães nos ângulos de velhas paredes e nas reentrâncias de caves arruinadas. Normalmente, avançam pelas ruas nesta época, tocando as suas gaitas-de-foles para ganhar dinheiro para o vinho. Hoje, os seus dedos e instrumentos estão gelados.

Dentro da prisão faz sempre frio, mas pelo menos estamos livres do vento. Ouvimos-lhe o uivo como um sussurro fantasmagórico, como o lamento de uma alma perdida. Depois de ter despejado o balde e comido a magra refeição, sinto-me tentado a voltar para a cama, puxar o cobertor para cima da cabeça e hibernar como um urso. Na verdade, já algumas vezes me comparei a um desses ursos dançarinos que vi nas feiras campestres da Alemanha. O pobre animal tem uma argola no focinho e na argola há um aguilhão, de forma que cada vez que o dono puxa a corda, o animal dança, não de alegria mas de dor.

É assim que a minha vida tem decorrido nos últimos anos. Cada sessão com os inquisidores, em si mesmas um tormento repetitivo, é precedida de uma violenta chamada de atenção para o strappado, que continua a ser um elemento activo de todos os interrogatórios. A minha lúgubre consolação, na situação em que me encontro, é saber que o meu próximo encontro não será com o torturador, mas com o executor.

Portanto, digo para mim mesmo que não sou um animal de feira mas um homem. Aconchego o cobertor em volta dos ombros, sento-me à minha mesa e retomo a narrativa desarticulada da minha vida e trabalhos.

Há séculos que se reconhece que os académicos, os artistas e os poetas têm que viver debaixo do patronato dos ricos e dos poderosos. Nos nossos dias, o patrono mais rico e mais poderoso é a Igreja. Depois da Igreja, nas suas várias ordens e graus, vêm os reis, príncipes e nobres, e mais tarde esses mercadores prósperos e os aventureiros afortunados a quem a própria riqueza tornou nobres.

Há uma consequência que advém daqui: se se quer partilhar a refeição do patrono há que encontrar um lugar à mesa, de preferência acima do sal e não abaixo. Em Wittenberg, durante quase dois anos, fui convidado à mesa de alguém. Ganhei dinheiro e respeito, e o mais importante foi que tive tempo livre e o espírito livre para estudar e escrever.

Esquecera-me, no entanto, que quando um patrono morre, o seu sucessor muda a lista dos clientes e os lugares à mesa também mudam. Foi exactamente isso que me aconteceu em Wittenberg.

O eleitor Augusto da Saxónia era um homem idoso, um luterano de profissão e por simpatia. Quando ele morreu, em 1586, o poder no campo protestante passou para o zelota calvinista John Casimir, que efectivamente dominava o novo eleitor Christian I. Muito em breve, Casimir e Christian começaram a afastar os elementos estrangeiros ou suspeitos da Igreja e da universidade. Como é natural, o meu nome era dos primeiros na lista. Eu era um ultramontano, nascido e criado do lado errado dos Alpes. Fui intimado a escolher entre uma saída honrosa ou conturbada. Escolhi a primeira e pedi permissão para assinalar a ocasião com um discurso circunstancial de louvor e agradecimento ao reitor, à faculdade e aos distintos membros da universidade que me tinham acolhido, um estrangeiro entre eles.

Era uma situação que convinha a todos. Os meus agradecimentos foram genuínos. Os meus amigos ficaram satisfeitos. Ninguém se sentiu vexado. A minha reputação pessoal foi exaltada. Engoli a tristeza e a raiva, mas celebrei-as num pequeno epigrama do Eclesiastes, que dediquei e autografei para alguns amigos:

O que é? O que foi. O que foi? O que é: Não há nada de novo debaixo do sol.

De novo me fiz à estrada. Desta vez dirigi-me para leste, para a cidade imperial de Praga, na Boémia, onde o meu amigo Fabrizio Mordente era astrónomo imperial e matemático do imperador Rudolfo II. Sabia que ele me ia receber muito bem e que poderia apresentar-me a um círculo de cavalheiros que estariam preparados, como tinham estado noutros lugares, para me pagar por lições particulares e por exemplares das minhas obras. Mesmo assim, já era tarde de mais para mim. Estava-se em 1588. Eu tinha quarenta anos de idade, e ainda assim continuava como Caim, vagueando nas terras a leste do Paraíso.

Por mais estranho que pareça, não era a viagem em si que me cansava. Deleitava-me com a novidade dos lugares, a variedade dos homens e mulheres ao longo das estradas da Europa, a tagarelice dos carreteiros e dos moços de estrebaria e o quente cheiro a cerveja das tabernas e estações de mala-posta. Desenvolvi uma espécie de língua franca que me permitia falar com eles. As velhas aptidões para o comércio com desconhecidos, que aprendera nas ruelas e nos becos de Nápoles, reavivaram-se na minha memória. Na estrada nunca me aborrecia. E não era difícil encontrar uma mulher, criada de servir ou matrona em viagem, para me aquecer a cama e agradecer-me de manhã a minha companhia. Eu sentia-me grato por aquela pausa na solidão e continuava a aprender em todos os momentos, encaixando os fragmentos de um novo conhecimento no enquadramento de uma filosofia ousada, para além das categorias e dos silogismos dos estudiosos.

Este era o trabalho que ainda andava a escrever na minha cabeça enquanto preparava as minhas ofertas mais prosaicas: um tratado sobre a Medicina Lulliana, um comentário sobre a Física de Aristóteles, os Princípios e Elementos da Geometria. Estes eram panfletos rescritos e reestruturados a partir de trabalhos anteriores, mas eram ao mesmo tempo os meus passaportes para o meio académico e as minhas petições de patronato imperial.

Em Praga, uma bela cidade, Fabrizio Mordente recebeu-me calorosamente e instalou-me em casa dele até eu arranjar um sítio só para mim. Ele era, tal como eu, um homem do sul. O dialecto de Salerno não é muito diferente do napolitano e foi um prazer muito especial falar livremente na língua da nossa terra-natal. A mulher de Mordente tocava bastante bem alaúde e à noite, depois do jantar, cantávamos velhas canções da beira-mar e do campo: "Sto core mio, Villanella ch'aWacqua va, Michekmma..." Estas pequenas situações domésticas encheram-me de alegria a princípio, mas deixaram-me uma persistente sensação de perda, a melancolia que o exílio nunca perde completamente.

Fabrizio Mordente compreendia muito bem essa emoção e compreendia também os riscos especiais inerentes à minha posição. Explicava-os de uma forma bem humorada.

- Meu amigo, ninguém discute com matemáticos ou geómetras. Por um lado, porque não sabem ler as nossas equações e, por outro, porque não sabem medir um pedaço de terra ou construir uma torre de igreja sem a nossa ajuda. Não levantam objecções quando vamos buscar aos árabes a nossa álgebra, aos gregos os nossos símbolos e as nossas observações estelares aos persas. Também ninguém discute com um médico. Se o paciente sobrevive, ele faz maravilhas, mete o dinheiro ao bolso e fica com o crédito. Se o paciente morre, foi Deus que o chamou não o médico que o deixou morrer. Mas o vosso caso, meu caro Giordano, é muito, muito diferente. Em primeiro lugar, estais a lidar com invisíveis, intangíveis. Não se pode medir uma ideia. Não se pode pesá-la como a farinha dentro de um saco. Quando a pões em palavras, essas mesmas palavras significam coisas diferentes para diferentes pessoas. O seu significado é tão diferente como o são um maço de pedra e um machado de aço fino. E o mais perigoso de tudo, meu amigo, é que vós sois um homem eloquente. Conseguis comover as pessoas, agitá-las como o fogo nas veias.

- Isso é uma coisa má, Fabrizio? É isso crime?

- Não. Mas é um talento perigoso. Pensai um pouco: um simples discurso pode derrubar um império, um simples hino pode dividir uma Igreja. Que é que as pessoas preferem ouvir: o cantochão dos claustros ou o hino de Martinho Lutero: O nosso Deus é uma fortaleza poderosa?

- Mas eu não prego nem a revolta nem a reforma. Apenas peço liberdade para pensar e para explicar.

- Para aqueles que governam, as ideias são perigosas e podem ameaçar fazer tombar o trono.

- Estais a dizer-me que não sou bem-vindo aqui a Praga?

- Nesta casa sois sempre bem-vindo. Quanto ao resto, já falei de vós ao meu amigo Gian Maria della Lama, que é o médico particular do imperador. É igualmente um napolitano, portanto, estareis à vontade com ele. Vai receber-vos com toda a cortesia como meu amigo e apresentar-vos ao imperador como um distinto académico. Oferecer-lhe-eis a dedicatória dos novos trabalhos que trouxestes como um tributo a Sua Majestade Imperial. Segundo Della Lama, Sua Majestade aceitará a oferta, uma vez que os livros são tratados técnicos e não contêm matérias controversas.

- E depois?

- Sua Majestade far-vos-á uma oferta para reconhecer a vossa amabilidade.

- Que espécie de oferta devo esperar?

- Tenho a certeza de que será generosa.

- Um posto na universidade, uma bolsa como residente?

- Infelizmente, não. A universidade é uma instituição católica, Sua Majestade é um príncipe católico. Dar-vos-á dinheiro, com grandes cumprimentos, claro, e recomendar-vos-á que saboreeis a vossa breve estada nesta maravilhosa cidade.

- Que quer dizer "breve", Fabrizio?

- Nunca mais de seis meses. De preferência, menos.

- Santo Deus! Que hei-de fazer a seguir? Para onde vou?

- Tendes tempo para pensar nisso. Falai com Della Lama, ele também tem os seus problemas com Roma, mas tem-lhes sobrevivido muito bem. Uma coisa sei eu que vos vai dizer. A coisa mais proveitosa aqui é a bella figura: um certo estilo, hem?

Mordente tinha razão, claro. Cabia-me a mim construir um triunfo sobre a minha decepção. Não podia apresentar-me como um académico miserável, mendigando um novo posto. Pelo contrário, eu era um académico ilustre, gozando um período de estudo tranquilo ao mesmo tempo que dava os retoques finais numa obra-prima. Começava a aprender, embora demasiado tarde, que a ambição podia ser alcançada fingindo desprezá-la, e que a reputação podia encontrar um fundamento mais seguro num cuidadoso anonimato.

Gian Maria della Lama recomendou-me discrição e revelou-me a natureza da sua experiência pessoal. A sua nomeação como médico imperial tinha suscitado grandes invejas, não apenas na sua profissão mas na Cúria Romana. Afinal, o homem que tratava o corpo imperial estava mais próximo dele do que qualquer dos seus conselheiros na Igreja ou no Estado. As invejas geraram rumores maliciosos que foram transmitidos à Inquisição e ao próprio pontífice.

- Em parte, culpa minha - admitiu francamente Della Lama. - Abri demasiado a boca na companhia errada. Disse que a Igreja canoniza os seus próprios santos, inventa os seus próprios hereges e autentica os seus próprios milagres. A única coisa que não pode fazer é inventar a sua própria medicina, por muito que gostasse de o fazer. Podeis imaginar, mestre Bruno, o que eles fizeram daí! Fui imediatamente denunciado por suspeita de heresia. Sua Santidade, o papa Sisto, que é, como sabeis, um furioso cão de guarda da fé, escreveu uma carta ao imperador dizendo-lhe que só os bons católicos deviam ser admitidos na intimidade do leito da doença imperial. Felizmente para mim, o imperador recusou vergar-se, mas avisou-me de que nem o pontífice nem os inquisidores conseguiriam facilmente esquecer ou perdoar. Concedeu-me residência permanente na Boémia e sugeriu que me mantivesse longe de Itália. Comprei uma pequena propriedade mesmo à saída da cidade e sou agora cidadão deste país.

Esta confissão encorajou-me a abrir-lhe o meu coração e ele aconselhou-me cautelosamente.

- Depois de o imperador vos ter recebido e de vos ter mostrado o seu favor, não frequenteis a corte, nem vos torneis de forma alguma uma figura pública. Isso irá agradar ao imperador. Ele próprio dará a saber que a presença de um tão grande homem de erudição honra a cidade e que o vosso desejo de solidão estudiosa deve ser respeitado.

- Podeis sugerir-me onde encontrar essa solidão estudiosa?

- Sereis bem-vindo à minha villa. Há um casal que se ocupa e vela por mim. Ela controla o pessoal, ele trata da terra. Dar-vos-iam todo o conforto. Há uma boa biblioteca e um estábulo com cavalos razoáveis se desejardes montar. Há bastante espaço e, quando eu e a minha família lá formos, o que é muito raro, actualmente, teremos o prazer da vossa companhia. Bom, o que me dizeis?

O que podia eu dizer a não ser os meus agradecimentos, que foram redobrados quando o imperador aceitou a dedicatória dos meus trabalhos e me fez uma oferta generosíssima - uma bolsa com trezentos táleres, mais do que suficiente para me manter durante um ano. Também sugeriu, caso eu estivesse interessado, que o seu nobre vizinho o duque Julius de Brunswick, acabava de fundar uma nova academia em Helmstedt à qual dera o seu próprio nome: a Academia Juliana. Era evidente que queriam construir uma faculdade forte. Sua Majestade teria todo o prazer em me recomendar ao duque Julius. Se eu decidisse escrever para a academia, ele enviaria a minha carta por correio imperial - o que não era um pequeno favor, considerando que o correio normal era de um preço ruinoso e nem sempre pontual ou fiável.

Era uma resposta, ainda que temporária, a todos os meus problemas: um retiro tranquilo, cama e mesa de graça; a oportunidade de me dedicar à obra-prima cujos ritmos sonoros começavam já a ecoar-me na cabeça.

A Primavera tinha já chegado quando me instalei no campo e, sob o olhar vigilante da castelã, dispus os meus livros e manuscritos ao pé de uma janela que abria sobre pomares em flor e, mais além, colinas verdejantes. Durante uma breve hora de magia, foi-me possível pensar que estava de regresso à minha infância no Monte Cicada.

Quando a inspiração afrouxava, voltava-me para um pequeno compêndio de trabalhos sobre magia natural, matemática e malévola. Estes, pensava, constituiriam um acompanhamento adequado para a carta que tencionava escrever ao reitor da nova Academia Juliana em Helmstedt. O que eu não sabia na altura era que estas obras haviam de figurar em posteriores acusações contra mim. Um homem que lidava com magia era justamente chamado mago, um mágico. Um mago era, no espírito popular ou no espírito de qualquer um a quem conviesse afirmá-lo, um traficante de magia negra e de mistérios proibidos. Isto foi o que o meu patrono traidor, Mocenigo, quis comprar-me mais tarde: a chave do mistério. Como eu não lha vendesse, porque não podia, ele por sua vez vendeu-me à Inquisição.

Naquele momento, no entanto, no meu refúgio campestre, sentia-me feliz. A minha mente estava clara. O meu corpo andava bem alimentado com a comida do campo. Finalmente estava livre daquela preocupação insidiosa, desesperada, com o dia de amanhã. Escrevia livremente. Os primeiros rascunhos de De monade e De Immenso empilhavam-se na minha secretária. Fiz poucas rasuras. A prosa e o verso brotavam fluentemente, arrastando consigo os meus pensamentos, vivos como peixes em águas límpidas.

A divina essência está toda em tudo. Enche todas as coisas, Penetra todas as coisas.

Esta é a vida das vidas, a alma das almas. Há dois princípios Activos de movimento. Um finito, movendo-se com o tempo. O outro infinito, que é a natureza da Alma do Mundo, da Divindade, Que está por toda a parte e em todas as coisas.

Já não precisava dos truques e artifícios da composição literária, das metáforas elaboradas, das mitologias modernas. O que eu procurava agora era a clareza e a exactidão na expressão de vastas simplicidades e das infinidades escondidas numa partícula de poeira ou num grão de areia.

Ansiava por um momento em que pudesse abdicar do passado e do presente e dedicar-me, livre como uma águia, aos ventos superiores do pensamento especulativo. Pensava que, se tivesse um lugar como este, uma pequena quinta para me alimentar e alguns serviços para me apoiar, me poderia tornar o filósofo de uma nova era. Se pudesse libertar-me da tirania do patronato e subsistir com o lucro dos meus livros e o produto da minha pequena propriedade, poderia, assim julgava, causar surpresa ao mundo.

Foi este surto de euforia que me levou a uma decisão fatal. Faria mais uma excursão à vida académica. Seguiria o conselho do imperador, escrevendo para Helmstedt, e pediria ao reitor que me matriculasse e me permitisse ensinar até ter completado a minha obra-prima. Depois, devia ir para Francoforte, publicar a obra e em seguida tomar um novo rumo, que me fora sugerido por Mordente: arranjar um banqueiro que me financiasse a aquisição de uma pequena propriedade rendível e depois fazer um acordo com uma editora como a Wechel e Fische de Francoforte, para dar continuidade às minhas obras e ao meu rendimento. Quanto mais pensava nisso, mais me parecia possível, mas precisava de dar dois passos: entrar em Helmstedt e voltar a sair. Uma recomendação imperial quanto aos meus conhecimentos era demasiado valiosa para ser desperdiçada e um ano de salário académico serviria para poupar o meu pequeno capital para a grande aventura que tinha à minha frente.

Como eu o sonhei, como o planeei, assim aconteceu. Nos princípios do Outono de 1588 fiz as minhas despedidas de Praga e viajei para Helmstedt, onde, a 13 de Janeiro de 1589, fui matriculado na Academia Juliana, que, na altura da minha entrada, tinha cinco mil estudantes e mais de cinquenta mestres.

Foi-me dito que em devido tempo considerariam entregar-me um posto de ensino. Entretanto, instalei-me, reuni à minha volta um pequeno grupo de discípulos pagantes e continuei com a etapa seguinte dos meus trabalhos em curso, De immenso. Este, por uma ironia amarga, é, com toda a certeza, o trabalho com base no qual me vão acusar de heresia, visto que ele trata uma noção por agora impensável - um Universo infinito e uma pluralidade de mundos, criados e mantidos em existência por uma Divindade imanente. No entanto, em Helmstedt, graças a Deus, eu não tinha nenhuma tabela para ler o futuro, embora não pudesse escapar completamente às controvérsias do presente. Em Maio, o duque Julius morreu. Os obséquios foram celebrados com toda a pompa - e uma sinceridade bem evidente - na capela da fortaleza. Não tive qualquer participação nestes acontecimentos, a não ser como espectador; mas sete semanas mais tarde, ao terminar o período de luto oficial, ofereci-me para fazer a habitual Oração de Consolação que encerraria as cerimónias. A minha oferta foi aceite. Investi tempo e cuidado e, na realidade, bastante emoção na preparação desse texto. Devia muito à generosidade deste bom homem e à maneira como me acolhera nesta cidade. Falei sem reserva:

"Vim até aqui para concretizar nobres aspirações e estudos, que valorizei tanto mais porquanto no meu próprio país tinha estado exposto à bocarra voraz do lobo romano, forçado a um culto doentio e supersticioso, oprimido pela violência da tirania. Aqui, em Helmstedt, fui, como que por milagre, restituído à vida. Senti-me um cidadão livre, seguro no conforto de milhares de cortesias e honras."

A oração agradou de tal forma ao duque Henry Julius que ele me fez uma oferta de oitenta scudi e garantiu-me a sua protecção pessoal contra os meus adversários, entre os quais, o que não deixa de ser irónico, se encontrava um tal Gilbert Voet, pastor e superintendente da Igreja em Helmstedt.

Este indivíduo arrogante chamara a si a aplicação de um julgamento público numa disputa privada, excomungando-me da assembleia luterana, da qual eu nunca fizera formalmente parte. Voet era um daqueles indivíduos litigiosos e seguros de si que se encontram em todas as seitas religiosas. No entanto, a intervenção do duque silenciou-o, embora não suprimisse a animosidade nem o zelo com o qual continuou a conspirar contra mim.

Estes dois acontecimentos, a melhoria da minha fortuna pessoal e a inevitável fricção religiosa, fortaleceram a minha intenção de concluir todos os meus trabalhos em curso e usá-los como base para uma nova carreira independente.

Para esse fim, contratei um secretário, um jovem graduado da universidade chamado Jerome Besler, filho do pastor protestante de Sprottau, na Silésia. Era um indivíduo estudioso, discreto e trabalhador. Podia ditar-lhe, em vez de ter de empreender sempre a tarefa ingrata de escrever, e a sua companhia leal foi importante para mim nesse ano crítico e atarefado.

A Besler ditei as versões finais dos meus trabalhos sobre magia e outro volume sobre as Origens e Elementos das Coisas e as Suas Causas. Igualmente com ele, discuti e fiz alterações críticas constantes aos três trabalhos-chave: De monade, De immenso e De universo et mondi.

Este foi o trabalho em que me senti mais feliz, o mais perto que um homem pode chegar de um acto de criação divina: tirar alguma coisa do nada, ou, talvez com um pouco menos de presunção, impor uma ordem criativa a uma massa confusa de ideias e imaginações.

Estava cansado de argumentos e disputas, e de todos os pretensos torneios dos académicos, nos quais ostentam as suas habilidades como galos de combate perante um público de ignorantes. Ansiava então por aquilo que tenho agora em excessiva abundância: tempo livre para a solidão e a contemplação.

O dia está quase terminado e estou precisamente a acender a vela quando a porta da cela se abre bruscamente e o guarda faz entrar o meu amigo, irmão John, o esmoler, o hommunculus Britannicus que serve o mestre-geral. Os seus olhinhos azuis brilham cheios de bom humor. Apresso-me a abraçá-lo e saúdo-o com um prazer que quase me deixa em lágrimas.

- Irmão John! Que surpresa maravilhosa. Não esperava voltar a ver-vos. Que vos traz aqui?

- Os meus dois pés e a indulgência do mestre-geral, a quem fiz algumas humildes observações.

- Tais como?

- Amanhã é um dia festivo, o princípio de um novo ano. É uma altura apropriada para visitar os doentes e encarcerados. Vós sois ainda como Jacob, lutando com o anjo negro e saindo magoado dessa luta. Os vossos irmãos deveriam estar aqui para vos ajudar... um de nós, pelo menos!

- E como foi que o mestre-geral reagiu a esse pequeno sermão?

- Melhor do que eu esperava. Na verdade, envia-vos uma dádiva pessoal, um rosário que ele próprio benzeu. Pede-vos que o recordeis quando recitardes os Pais-Nossos e as Ave-Marias.

- O que não deixarei de fazer. Dizei-lhe isso.

- Eu digo. Entretanto, trouxe-vos as dádivas dos pobres... vinho e linguiça. Uma garrafa para partilhar e outra para guardar.

Levanta a saia do hábito e mostra-me os presentes, escondidos, como antes, no saco de rede de pesca que lhe rodeia a cintura. Entre eles há um saca-rolhas, um molho de penas de pato e, maravilha das maravilhas, um pequeno canivete, o primeiro que tenho desde que fui encarcerado. O irmão John alerta-me.

- Escondei o canivete. Da última vez que aqui estive vi que escrevíeis. Um escriba deve poder talhar as suas próprias penas... mesmo que os outros lhe mutilem as ideias!

Enquanto espalha os presentes que trouxe em cima da minha mesa e destapa a garrafa que vamos partilhar, pergunto a mim mesmo até que ponto posso confiar neste homem e quanto estou preparado para apostar nele. Sofri antes quando os inquisidores me juntaram com informadores para me levar a cometer indiscrições. Mas, de alguma forma, não consigo ver neste homenzinho um espião ou um provocatore. Além disso, o que estou eu na verdade a arriscar? A minha vida já foi confiscada. A minha memória, à qual eu dou tanto valor, o que é? No pior dos casos, uma indulgência; no melhor, um frágil refém dos destinos dos séculos, as devastações de muitos amanhãs.

Enquanto bebemos a primeira garrafa e mastigamos fatias de linguiça campestre, pergunto-lhe:

- Irmão John, estaríeis disposto a receber a minha confissão?

- Mais do que disposto, irmão Giordano.

- Sob o sigilo de confissão?

- Não há outra forma...

- Mesmo que no fim acheis que não podeis dar-me a absolvição?

- Que vos leva a pensar que a recusaria?

- A maneira, ou mesmo a ocasião em que a confissão é feita. Talvez por eu ter sido expulso da Igreja, talvez por causa da maneira deficiente em que eu possa fazê-la.

Dirige-me um longo olhar perscrutador, depois um sorriso luminoso e sacode a cabeça.

- A expulsão, todos os anátemas, são pragas que nós, os justos, atraímos sobre nós próprios. Eu sou vosso irmão, não vosso juiz. Absolvo-vos como espero ser absolvido, em nome de Deus... mas eu não sou Deus para negar ou oferecer misericórdia. Quanto ao modo, podeis fazer um único sinal ou recitar todos os salmos penitenciais, isso não faz diferença. Quereis fazê-lo agora? - sorri de novo. - Não podíamos estar mais à vontade.

Então, como eu ainda hesito, ele desafia-me gentilmente.

- É-vos difícil confiar em mim. É isso?

- Podeis chamar-lhe uma infecção prisional. Sinto dificuldade em confiar em quem quer que seja. Mas suplico-vos que não tomeis isto como um insulto.

- E vós não tomareis como um insulto que eu recuse persuadir-vos a confiar?

- Claro que não.

- Portanto, onde estamos nós, irmão Giordano? Num beco sem saída?

- É o que parece.

- Deixai-me então tentar encaminhar-nos a ambos daqui para fora, salvaguardando sempre o vosso direito de guardar silêncio e entregar a vossa causa unicamente a Deus.

- Sim, estou de acordo.

- Então, comecemos por mim, irmão John, o esmoler, o homenzinho que transporta as suas ofertas em volta da cinta. Fui sempre o mais fraco da ninhada, pequeno e mal feito. Em rapaz, faziam troça de mim e levavam-me sempre a melhor, mas fui um aluno razoável para os Frades Negros. Quando cresci, o convento pareceu-me um lugar aceitável. Oferecia segurança, amor fraternal, a protecção e dignidade do hábito sagrado de São Domingos. Não me decepcionei. Encontrei todas estas coisas e senti-me, como me sinto ainda, agradecido. Mas, como todas as pessoas que foram maltratadas, tornei-me céptico, sem conseguir nunca acreditar verdadeiramente que pudesse agarrar a minha boa sorte. Ainda sou um céptico, mas tenho um talento que vós nunca haveis adquirido, o talento do silêncio e da acomodação. Nem sempre me sinto orgulhoso dele, mas a maior parte do tempo sim, porque se trata de um talento de sobrevivência - e a primeira condição para a salvação em si é que sobrevivamos para a alcançar. Portanto, como vedes, neste aspecto somos muito semelhantes; excepto que vós sois mais lento a aprender a arte de aguentar em silêncio.

- Estais absolutamente certo, irmão John, absolutamente certo!

- Por favor. Deixai-me continuar. Há outros, como o nosso mestre-geral, como muitos outros na Igreja, que têm um talento oposto: o talento da crença. Chamam-lhe "o dom da fé" como se se tratasse de uma guloseima dada como prémio aos meninos bonzinhos. São afortunados! São-lhes dadas premissas seguras, eles tiram conclusões seguras, depois fecham as persianas e dizem: "A nossa luz é suficiente para a estrada do Paraíso." Dai-lhes um archote que eles pegam fogo ao mundo e chamam-lhe Cristandade... sem olhar a quem é queimado.

- Se a Inquisição vos ouvisse neste momento, irmão John, seríeis vós a arder!

- Mas não está ninguém aqui, irmão Giordano, excepto vós, eu mesmo e Deus, que é a nossa testemunha silenciosa.

- E que pensa Ele disso?

- Disse-o há séculos daqueles que o mataram. "Pai, perdoa-lhes, que não sabem o que fazem." Passai-me a garrafa, por favor, e servi-vos também. Uma é para beber e a outra para guardar. Estais lembrado?

Foi nessa altura, enquanto ainda estava sóbrio, que decidi confiar nele. Dei um golpe na serapilheira do catre, tirei de lá as páginas do meu manuscrito e coloquei-as em cima da mesa diante dele.

- Aí está a minha confissão, irmão, sob sigilo, como me haveis prometido. Ainda não está acabada, mas há-de está-lo antes que me matem.

Passa em revista as páginas, rapidamente, parando de vez em quando para pesar uma passagem que lhe merece especial atenção. Depois pergunta:

- Que quereis que faça com isto?

- Levai-o daqui para fora. Arranjai-lhe um lugar seguro, de onde possa um dia emergir para a luz.

- Que torna isso tão importante para vós?

- Não quero ser apagado da história sem uma palavra escrita em minha defesa.

- É um pedido razoável. Como pretendeis entregar-mo?

- Sereis vós a levá-lo, pois pedirei que venhais receber a minha última confissão. Isso, penso, não me irão recusar, embora vós, meu irmão, sejais livre de recusar tanto o serviço como o sacramento.

- Terei todo o prazer em vos oferecer ambos, irmão Bruno. Vou começar a trabalhar tranquilamente o mestre-geral. Ele há-de ficar satisfeito quando eu lhe disser que vós estais, pelo menos, no caminho da salvação. Creio que irá fomentar as minhas visitas. Acho que ele já está a sentir-se culpado deste triste e longo caso.

- Mas não vai fazer qualquer esforço para me salvar?

- Isso seria esperar demasiado. Ele é o chefe de uma grande e poderosa Ordem, mas o poder só lhe vem por delegação. Ele não vai defrontar o pontífice ou a Cúria. Não podeis levar-lho demasiadamente a mal. Ele é mais prisioneiro do que vós próprio.

- Esperais que eu acredite nisso, irmão John?

- Sei que não parece possível, mas não é essa a melhor razão do mundo para o tornar credível? Servi-vos de mais vinho. A verdade está no vinho, certo?

Antes de ele sair, o manuscrito é cautelosamente guardado no colchão de palha, juntamente com o meu canivete e os aparos. Estou confortavelmente embriagado; suficientemente confortável para aceitar a bênção que o irmão John murmura sobre mim e assinala com uma cruz na minha fronte:

- Deus vos conserve a coragem, irmão! Deus vos conserve a coragem!

 

1 DE JANEIRO DE 1600

A noite passada dormi profundamente. Mas sonhei com um monte de confusões. Estava de regresso a Francoforte, na grande feira anual, onde me propusera começar uma nova carreira ou pelo menos reinventar a antiga. A feira já estava em actividade, apinhada de visitantes por toda a parte.

Havia mercadorias do mundo inteiro: peles da Rússia, sedas de Itália, tecidos e jóias de França, ferro-forjado da Alemanha, corais do Mediterrâneo, pérolas do Oriente, especiarias trazidas por comerciantes holandeses das índias.

Havia mercadores de todos os países, cambistas negociando em todas as moedas da Europa e do Levante. Havia montanhas de livros, velhos e novos, e o homem que detinha a posição mais alta era o próprio Wechel, o deão dos editores, fabricante de obras-primas em tipografia e encadernação, que servia de anfitrião a todos os europeus amantes do livro.

Era Wechel que eu procurava no meu sonho, mas ele estava sempre do outro lado da rua e comecei a recear nunca chegar a encontrá-lo. As pessoas que passavam a meu lado no meio da multidão pareciam ou indiferentes, ou hostis, ou, de alguma forma um tanto estranha, receosas da minha pessoa. Quando falava com elas, voltavam-se abruptamente e faziam o sinal contra o mau-olhado. Todo o sonho reflectia as frustrações que se seguiram à minha chegada a Francoforte com o meu secretário Besler.

De facto, Besler recebera-me com toda a simpatia e oferecera-me alojamento em sua casa enquanto as minhas obras estavam a ser preparadas para publicação. No entanto, a autorização para a minha estada na cidade tinha sido adiada pelo Senado, e eu não me arriscava a desagradar-lhes assumindo uma residência não autorizada. Por isso, deixei os meus trabalhos nas mãos competentes de Wechel e retirei-me para Zurique, onde ainda tinha amigos e me podia manter com lições particulares.

Essa contrariedade acentuou a instabilidade essencial da minha existência e reforçou ainda mais a determinação de remodelar a minha vida. No entanto, essa mesma determinação tornou-me vulnerável a outra ilusão: a de poder talvez remediar a minha posição com a Igreja e retomar uma vida normal como académico, fora das tiranias da vida conventual.

Quando regressei a Francoforte, o admirável Wechel tinha-me conseguido a autorização de permanência e a autorização para imprimir as minhas obras. Arranjara-me alojamento no convento carmelita que vivia de oferecer hospitalidade a visitantes. Ao mesmo tempo, ao que parece, davam informações à Inquisição sobre os seus hóspedes. Mais tarde, fui interrogado em Veneza com base num relatório do prior, que dizia como eu me ocupava "a dar lições a estudantes hereges, a publicar ideias quiméricas e a espalhar novidades".

Na altura eu não tinha maneira de saber que fora denunciado. É um dos terrores do sistema que uma pessoa só possa tentar adivinhar a identidade dos seus acusadores, mas nunca confrontá-los para examinar a qualidade dos seus argumentos.

Em Francoforte estabeleci um relacionamento agradável com dois livreiros venezianos, Gianbattista Ciotti e Giacomo Britano. Ciotti já tinha estabelecido a prestigiada editora Minerva e possuía uma longa lista de clientes da nobreza veneziana. Entre estes, havia um certo Giovanni Mocenigo, um dos Savi, um conselheiro da República, sobrinho de um antigo Doge.

Ele tinha lido algumas das minhas obras e feito perguntas a meu respeito a Ciotti, por cujo intermédio me fez chegar uma carta, convidando-me a ir a Veneza, instalar-me em sua casa e ensinar-lhe os segredos da memória e da magia. Estava ainda a estudar esta proposta quando uma segunda carta me foi entregue por outra via. Esta era ainda mais persuasiva: seria recebido com as honras devidas a um grande académico e em termos financeiros que não poderiam deixar de me satisfazer; gozaria dos favores e da protecção de uma das mais respeitadas famílias da Sereníssima. E assim por diante!

Não tinha quaisquer razões para duvidar da sinceridade da oferta. Sabia o suficiente acerca da política veneziana para compreender que a República era governada por uma poderosa e reservada oligarquia de famílias nobres, cujos nomes voltavam constantemente à lista dos Doges. Os próprios romanos mostravam respeito e deferência aos venezianos, receando que eles um dia pudessem sentir-se tentados a tornar-se protestantes para garantir a independência da Sereníssima República. Era como se uma porta dourada se tivesse aberto diante de mim. Por outro lado, muitos dos meus amigos ficaram preocupados com o risco. Itália seria, para sempre, território hostil. Os venezianos eram negociantes capazes de vender a própria mãe por um ducado! Era loucura meter a cabeça na boca do lobo. Obstinado como sempre, não lhes dei ouvidos. Recebi avidamente o isco e aceitei o convite de Mocenigo para me tornar seu professor residente.

Com dinheiro na algibeira e uma promessa firme de Mocenigo, não tinha pressa de chegar. Veneza no Verão é uma cidade fétida. Aqueles que têm meios para isso retiram-se para as montanhas para escapar ao calor e ao mau cheiro. Por isso, viajei lentamente e com prazer através das terras altas das Dolomitas e cheguei a Veneza em Agosto de 1591. Mocenigo e a família ainda estavam fora, por isso fiquei apenas alguns dias, depois atravessei as lagoas para a cidade de Pádua, onde devia encontrar-me com o meu secretário Besler.

Ele tinha trabalho a fazer para o qual aquela cidade era o local mais indicado. A sua universidade era a mais famosa da Europa, especialmente no tocante às faculdades de Direito e Humanidades. Havia lá excelentes bibliotecas e clubes hospitaleiros mantidos por uma vasta população de estudantes estrangeiros - alemães, húngaros, boémios -, cada um com a sua própria "companhia" e as insígnias nacionais. As autoridades venezianas encorajavam-nos e protegiam-nos porque traziam riqueza para a província e abriam novas oportunidades de negócio.

O patriarca de Veneza tinha uma visão diferente. A presença de comunidades protestantes só podia contribuir para espalhar a heresia. Os conselheiros da Sereníssima República ignoravam a ameaça. Negociariam com o próprio Diabo, se isso lhes trouxesse algum lucro. Eram fiéis à sua divisa: "Primeiro os venezianos, depois os cristãos."

No entanto, sob esta aparência de branda acomodação, havia uma forte corrente de tensão e desconforto entre Roma e Veneza. Os romanos receavam uma deserção em massa como a que ocorrera na Alemanha e em Inglaterra. Os venezianos tinham as suas próprias desconfianças. "Quem vai jantar com o papa", diziam, "leva uma colher comprida e mantém livre o braço do lado da espada."

Por que será que agora, quando já é tarde de mais, recordo estas coisas com tanta clareza? Nesses dias eu caminhava como um lunático, sem me preocupar minimamente com a diferença entre um luterano, um calvinista, um hussita ou um bogomil. As minhas preocupações estavam então com o infinito, o espírito que informava todas as coisas. Agora a minha visão está limitada a quatro paredes e a um futuro sobre o qual é inútil especular, porque em breve o conhecerei.

O meu primeiro encontro com Giovanni Mocenigo foi no palácio deste, perto de San Samuele. Era mais novo do que eu uns dez anos, bem-parecido e elegante no trajar, casado com uma jovem de origem nobre a quem parecia manter constantemente grávida. Ele foi eloquente nas suas boas-vindas, embora um tanto ansioso de mais por me impressionar com a vastidão do seu saber. Fiquei com a sensação de que se tratava de um homem com pouco talento e ligações elevadas, além de uma necessidade de confirmar a boa opinião que fazia de si próprio e o respeito que a sua imagem exigia. Durante as nossas conversas iniciais, notei-lhe um certo tom peremptório que me deixou tão inseguro acerca dele como ele acerca de si próprio. Primeiro houve alguma discussão quanto aos meus honorários. A quantia era generosa, mas ele franziu a testa quando eu lhe disse que desejava ser pago mensalmente e adiantado.

- Porquê isso, mestre Bruno? Eu prefiro pagar depois do serviço feito, embora não tivesse objecções a que recebesse pequenos adiantamentos por conta dos ganhos futuros.

- Com todo o respeito, Sr. Mocenigo, na relação para a qual me convidastes, a de professor e aluno, o serviço é prestado todos os dias, durante todo o dia. Este não é um ponto que eu estarei disposto a discutir.

- Seja, então - concordou ele com relutância. - Agora, quanto às questões domésticas. Eu tenho filhos, como sabeis, e a minha mulher está grávida de novo, portanto, tenho de fazer a pergunta. Tendes sífilis?

- Não, senhor.

- Alguma doença pulmonar? Febre infecciosa?

- Nada.

- Bebeis?

- Com prazer, mas moderadamente. Não se pode estudar com o cérebro toldado.

- Sois conflituoso?

- Acho que não. Posso entusiasmar-me a debater questões de princípio, mas não sou, nem nunca fui, desordeiro em locais públicos. Falo com suavidade e sou pacífico.

- Óptimo! Nós, os Mocenigo, temos um nome a defender.

- E eu, senhor, tenho certos hábitos de civilidade que prezo.

- Mantendes relações com mulheres?

- Sempre que posso e quando a ocasião se me oferece. Olhou-me de lado com um sorriso malicioso e declarou:

- Sei que fostes monge, mestre Bruno. E sei que haveis renunciado aos votos. Quantas mulheres tivestes?

Dei-lhe uma resposta indirecta, encolhendo os ombros.

- O suficiente para me satisfazer.

- Muito bem! - Mais uma vez ele era o nobre a condescender com o homem comum. - Sou tolerante com os vícios privados, mas não quero as minhas criadas de barriga inchada nem os pajens com o traseiro dorido. Há casas em Veneza onde se podem satisfazer toda a espécie de gostos. Portanto, guardai as vossas brincadeiras para o exterior!

- Sou hóspede em vossa casa, Sr. Mocenigo. Respeito-vos da mesma forma que espero que me respeiteis a mim.

Ele percebeu que tinha ido longe de mais e o pedido de desculpas foi imediato, ainda que de má vontade.

- Por favor! Não pretendi faltar-vos ao respeito. Só que... entre cavalheiros...

Estava aflito por encontrar palavras para concluir a frase. Deu-me prazer deixá-lo assim perdido uns instantes, a balançar ao vento. Abruptamente, ele mudou de assunto.

- Vamos a questões práticas. Gosto de uma vida ordenada e imagino que vós também. Depois da primeira refeição e até ao meio-dia, estudaremos juntos. As tardes e as noites são vossas, mas o meu assistente tem de saber como fazer-vos apresentar no espaço de uma hora. Há amigos que quero que conheçais; assembleias de cavalheiros nas quais desejo apresentar-vos.

- Estarei à vossa disposição, senhor.

- Há, no entanto, uma reserva.

- Qual?

- Respeitareis as confidências que trocarmos como mestre e aluno. Não contareis a nenhum homem ou mulher os segredos que partilharmos. Tendes segredos, não é verdade? Doutrinas de poder, artes antigas?

- Há anos que escrevo e lecciono sobre tais assuntos. Ensinei as disciplinas da memória e as artes da magia natural, tanto antigas como modernas. Mas, espero que me compreendais, Sr. Mocenigo, o professor é aquele que dá a conhecer, não o que esconde. O conhecimento é como o ar que todos respiramos. Não podemos pô-lo numa garrafa e rolhá-lo como o vinho para uso exclusivo.

A mudança que se operou nele foi assustadora. Todo o seu corpo se contraiu. O olhar toldou-se-lhe. Pareceu recolher-se no interior da própria pele e depois emergir, lento e silencioso como uma víbora pronta a atacar. A voz dele era baixa e sibilante.

- Que me ofereceis então a mim, o homem que vos paga?

- A aprendizagem de toda uma vida. Muito ou pouco é toda a riqueza que possuo. O uso que fareis dela só a vós diz respeito. Mas deixai-me acrescentar uma ideia. Vim aqui a convite vosso. Até este momento não vos causei qualquer despesa. O mais que vos posso custar é o pagamento de um mês. Não seria sensato que nos experimentássemos um ao outro... vós para descobrirdes o que posso ensinar-vos, eu para testar a rapidez com que aprendeis?

Mais uma vez ele mudou como um camaleão diante dos meus olhos. Riu-se e deu-me uma pancada amigável no ombro.

- Sois ousado, mestre Bruno, um tanto mordaz, mas ousado, sim. Isso agrada-me! Não há dúvida de que devíamos avaliar-nos mutuamente e com justiça. Por que não começamos por dar um passeio nesta minha cidade, a Noiva do Mar, Imperatriz do Adriático e de todos os mares a leste de Rodes e Askelon.

Enquanto caminhávamos e conversávamos, confesso que simpatizei com ele. Tinha um orgulho enorme na sua cidade, no seu vastíssimo comércio, na beleza dos seus edifícios e das suas mulheres, na arte dos seus construtores de navios que, segundo afirmava, todos os dias faziam sair uma galera do estaleiro. Notei o respeito com que era saudado no Rialto, a cordialidade das suas próprias saudações e a formalidade com que me apresentou: "O mais erudito filósofo, Dr. Filippo Giordano Bruno, que, após uma estada nas cortes reais da Europa, me fez a honra de entrar em minha casa como professor residente."

Claro que me senti lisonjeado. Mesmo assim, não conseguia libertar-me da recordação das suas extraordinárias transformações. Havia nele uma malícia profunda; havia também uma crueldade de espírito, como se a vida o tivesse enganado, privando-o das suas justas recompensas. Ao longo dos anos, depois de ele me ter traído, fiz muitas vezes a mim mesmo a pergunta que, Deus sabe, devia ter feito no início: "Por que razão uma pessoa a quem nada faltava em termos de nascimento, dinheiro ou respeito público, havia de trair um homem que viera apenas para lhe ensinar sabedoria?"

A verdadeira resposta ainda me escapa: talvez porque tivesse pensado apropriar-se de mim e, tendo falhado, decidisse destruir-me; talvez - e, olhando para trás, parece-me ser isto o mais provável - ele fosse um desastrado, um diletante que aspirava à eminência como os seus antepassados, mas a quem faltava o talento ou a energia para o conseguir.

Esta, creio, foi a razão pela qual pediu que lhe ensinasse, antes de mais, os segredos das artes mágicas. Via-as como caminhos mais curtos e rápidos para o poder, como presentes de Midas transformando tudo em ouro. A princípio os seus pedidos eram abjectos, depois irados, quando as minhas explicações cautelosas não conseguiam satisfazê-lo.

- Vede, mestre Bruno! Estamos nos meus aposentos privados! Estamos em absoluto segredo. Portanto, dizei-me sem rodeios. Tendes as fórmulas herméticas? Conheceis a Cabala? Sabeis recitar os nomes do poder, as invocações certas? Sabeis desenhar os quadrados mágicos, o pentagrama? Praticais a alquimia? Sabeis preparar poções amorosas e afastar o mau-olhado?

- E se soubesse, Sr. Mocenigo?

- Fazei-me também um adepto!

- Com que finalidade?

- Por que precisais de perguntar? Não sois estúpido. Vou dizê-lo uma única vez, apenas uma. Eu, Giovanni Mocenigo, estou interessado num alto empreendimento para mim próprio e para os meus filhos. Em dois séculos, os Mocenigo produziram quatro Doges. Tenho, portanto, muita coisa em jogo. Se conseguirdes pôr poder nas minhas mãos, também vós tereis poder com que nunca sonhastes. Sede agora o meu tutor nas artes mágicas e tornar-vos-eis meu camareiro, favorito do meu coração fora do alcance de Roma, da malícia caprichosa de qualquer homem. Aí está. Conheceis a minha verdade. Contai-me a vossa!

Acabava de se mostrar vulnerável. Tornara-se, portanto, perigoso. Respondi-lhe com brandura e com todo o respeito que consegui.

- Senhor, eu podia ensinar-vos as coisas que me pedis. Dai-me frascos, álcool e alambiques, e eu podia ser o mais prolífico alquimista da Europa. Mas transformar o chumbo em ouro? Nenhum homem jamais o conseguiu. Nenhum consegue. Magia? Dai-me giz e bússolas, um gato para me acompanhar, livros bolorentos escritos numa linguagem incompreensível, porei os cabelos em pé na tonsura de um clérigo... São truques de feira praticados por malandrins para fazer tremer os tolos!

Sabia que ele estava furioso comigo, mas conteve-se com receio que pudesse haver outros segredos que eu lhe estivesse a esconder. Tentei apaziguá-lo falando-lhe do meu encontro em Paris com Dom Miguel Maravilloso, que era ao mesmo tempo ferreiro e alquimista. Ele escutou atentamente, parecendo compreender o significado; mas, mesmo assim, voltou obstinadamente à mesma questão.

- Dizei-me sem rodeios, mestre Bruno, sabeis lançar encantamentos nas pessoas?

- Sei, e vós também o sabeis.

- Dizei-me como.

- É fácil. Caminhai pela cidade. Tomai um ar solene, emproado como um pombo. Lançai um boato sobre um homem qualquer, de posição elevada ou simples. Preveja a sua morte, a devassidão da mulher dele, uma traição dos amigos. No espaço de um dia ele estará a encolher-se com medo da ponta de punhais-fantasma, a jejuar com medo de ser envenenado!

Ele percebeu rapidamente a ideia. A fúria acalmou. Os olhos brilharam-lhe maliciosamente divertidos, mas insistiu ainda.

- É isto que faz um mago?

- O mago cria-se a si próprio. O ignorante confirma-o no seu papel.

- Como assim?

- Que outra coisa é a magia a não ser o aproveitamento de nervos tensos e medos secretos? Poções amorosas? Meio ducado compra as cantáridas suficientes para fazer um eunuco ficar de pé como um poste ou para fazer cócegas na virilha de todas as freiras daqui a Vicenza. Misturai-o com sangue de morcego, ou bálsamo, balbuciai-lhe alguns disparates em cima, qual é a diferença?

No instante seguinte ele estava de pé, com o punhal desembainhado a picar-me a garganta.

- E este é o somatório da vossa sabedoria, mestre Bruno! É por isto que eu vos pago em ouro sonante?

- Não, senhor! - Afastei o punhal com um gesto de desprezo. - Esta é a loucura contra a qual desejo proteger-vos, a loucura da ignorância e da superstição. Tendes que as expulsar antes de poderdes começar a ganhar sabedoria. E ainda uma palavra, Sr. Mocenigo: é mais fácil desembaraçar-vos delas por meio do riso do que com ameaças. Se desejais que me vá embora, então dizei-o. Se me quereis aqui, então respeitai a aprendizagem que vos ofereço... uma aprendizagem difícil de alcançar.

Era um momento arriscado e eu sabia-o. O homem era um tirano mesquinho, mais louco do que parecia, dividido entre a fúria e a razão. No mesmo instante senti-me de regresso aos meus tempos de estudante em Nápoles, quando era preciso ter o pé lesto para sobreviver. Felizmente, Mocenigo era um cobarde. Definhava rapidamente no calor de uma disputa e mudava com a mesma rapidez para a figura de um jovem sorridente cheio de pedidos de desculpa. Meteu o punhal na bainha e depois estendeu-me a mão.

- Perdoai-me, mestre Bruno. Tenho muito que aprender convosco, incluindo as regras do civismo. Desejo que fiqueis e continueis a instruir-me.

- Muito bem. Desejais continuar agora?

- Não, não! Recomecemos amanhã e concentremo-nos nas artes da memória, que são menos controversas do que as da magia.

- Como desejardes. Vou aproveitar a ocasião para ver um pouco a cidade.

- Óptimo! Ide até ao gueto. É um sítio exótico, e algumas das mulheres judias são de uma beleza arrebatadora. Talvez vos interesse visitar o estúdio do nosso grande mestre pintor, Jacopo Robusti, chamado o Tintoretto (1). Ele já está velho, mas os filhos, Domenico e Marco, mantêm o estúdio em actividade.

Agora passava-me a mão pelo pêlo como se eu fosse um gato, na esperança de me fazer ronronar de novo. Eu detestei aquilo porque sabia que ele começava a odiar-me; no entanto, estávamos amarrados um ao outro como gémeos deformados num parto monstruoso.

A partir desse dia comecei a pensar em como me poderia libertar e regressar à Alemanha. Mal conseguia imaginar como é que Mocenigo podia tentar acertar as contas entre nós, mas com certeza que ia tentar, e todos os subtis mecanismos da República estavam à sua disposição. Nem mesmo o Doge podia deslocar-se sem autorização. Enviariam assassinos para matar qualquer artífice que traísse os segredos da sua fabricação de vidro. As denúncias anónimas eram encorajadas. Havia um pequeno exército de informadores pagos. Eu era um estrangeiro, ali. Estava também afogado em problemas com a Igreja. Era demasiado conhecido para me esconder com facilidade. Qualquer cidadão num dia qualquer podia denunciar-me com um bilhete anónimo, introduzido na Bocca èlkhità, e depois disso, num dia qualquer, a Guarda da cidade podia apanhar-me como um camarão numa rede. O que foi exactamente o que fizeram no fim, mas havia ainda uma longa abertura antes de começarem a tocar a ópera. Mocenigo cumpriu a promessa de me apresentarem várias reuniões de cavalheiros dedicados às letras e à filosofia. Receberam-me com cortesia e pareceram impressionados com a minha eloquência, a subtileza dos meus raciocínios e as minhas habilidades nas artes da memória, que se divertiram a testar de várias formas. Ciotti, o livreiro, estava sempre presente, porque era assim que encontrava um mercado para os seus livros. Havia sempre também a presença de clérigos, prelados em vários graus. Alguns deles eram-me favoráveis, outros não, mas as regras da civilidade da ocasião eram sempre observadas. Eu nunca tinha bem a certeza se Mocenigo me estava a usar para fazer sobressair a sua própria reputação ou para comprometer a minha, tornando-me ainda mais dependente da sua boa vontade.

Um encontro que ele encenou com algum cuidado, em sua própria casa, foi o que se deu com o inquisidor-geral de Veneza, o prior Gabrielli, um dominicano, claro. A saudação dele foi fria, e no princípio o nosso diálogo foi mais um interrogatório do que uma conversa. Ga-brielli perguntou:

- O vosso nome outra vez, para eu ouvir melhor.

- Filippo Giordano Bruno, chamado o Nolano.

- Ah, sim! Nota-se o sotaque do sul. Ouvem-se também ecos de velhas histórias, questões ainda por resolver, apostasia dos votos, uma existência libertina, suspeitas de heresia...

- São ecos, como dizeis, senhor; ecos, boatos e suspeitas, nenhum deles foi provado.

- Certo. Mas sois ousado, irmão Giordano, com o vosso caso ainda em aberto, colocar-vos desta maneira ao alcance das nossas averiguações.

- Senhor, com o maior respeito, estou aqui porque acredito na justiça da minha causa, na caridade da Igreja, na nobre casa que me dá protecção.

- Compreendeis que não tendes autorização para ensinar publicamente, nem pregar na Igreja ou dar os sacramentos.

- Não procuro isso, senhor. Sou, neste momento, um filósofo residente com o seu patrono.

Mocenigo foi rápido no seu apoio.

- E eu, meu caro prior, sou o garante do meu hóspede. O Concílio aprovou a sua estada. O patriarca não tem quaisquer objecções. Acredito que todos podemos beneficiar com a presença de mestre Bruno na nossa cidade.

- Acredito que possamos, meu amigo. - Para minha surpresa Gabrielli descontraiu-se e sorriu. - Deixai que vos diga, irmão Giordano, que vos ouvi falar e vos achei muitíssimo eloquente e persuasivo. Não posso ignorar o escândalo da vossa vida de vagabundagem, assim como não posso esconder as nossas preocupações quanto à ortodoxia das obras que haveis publicado. No entanto, uma vez que o Sr. Mocenigo aqui presente oferece a protecção do seu nome e da sua casa, considero-me, de momento, satisfeito.

- Fico feliz por ouvir isso, senhor.

- Agora, se mo permitis, preciso de falar em particular com Mocenigo...

Enquanto os dois saíam juntos da sala, eu senti um repentino estremecimento de medo. Foi, como dizem os alemães, como se um ganso tivesse passado por cima do meu túmulo. Ali havia demasiadas sfumature, demasiados cambiantes de significado e de ênfase para que eu pudesse decifrá-los num só momento. Mantive uma aparência destemida, como sempre, mas confesso que me sentia como Sócrates a olhar para os atenienses que despejavam a cicuta na sua taça.

Era o princípio da noite. O meu tempo, de qualquer forma, pertencia-me. Deixei uma mensagem com o criado e saí para ir divertir-me na cidade. Escolhi um local ruidoso, uma simples taverna perto do arsenal onde se juntavam os marinheiros, os construtores de navios e os remadores das galeras. Indivíduos grandes e desajeitados com omoplatas de touro e sedes gigantescas. Todas as nações do Mediterrâneo estavam ali, homens livres e cativos, núbios e cipriotas, corfiotas, líbios e coptas do delta do Nilo. Era a babel das línguas e uma amálgama de cores e trajos. As mulheres eram de baixa condição mas vistosas e tagarelas como periquitos. Vinham à procura de bebidas e companhia, e prometiam para depois um utópico paraíso de deleites. Eu tinha aprendido na minha vida errante a escolher cedo uma companheira e a entreter-me com ela num canto recatado, longe dos desordeiros e predadores. Na maior parte dos casos, as raparigas ficavam contentes com este sistema. Permitia-lhes descansar um bocado e poupava-lhes o trabalho de andarem a oferecer os seus encantos a ébrios grosseiros de algibeiras vazias.

Sentia-me à vontade em lugares como este. Sempre me sentira, desde os meus tempos de estudante em Nápoles. Compreendia o gergo, o jargão dos meios baixos. Se alguém começava uma canção, eu sabia cantar razoavelmente bem. Sabia dedilhar um bandolim emprestado ou arquitectar um conto de viajante à altura dos marinheiros. À medida que envelhecia, comecei a encontrar outra recompensa muito especial nestas excursões. Não tinha que debater nada. Não havia nada para discutir; esta era uma vida sem ornamento, sem fingimento. Ali não havia moralistas de má catadura a fazer juízos de valor porque uma rapariga estava a remexer nas algibeiras de um homem enquanto ele lhe metia a mão por baixo das saias. Não havia silogismos gastos sobre a natureza e as relações do género humano. Aquilo era a vida na floresta natural, muitas vezes breve, muitas vezes brutal e perigosa, mas sempre cheia de energia e por vezes com um toque de especial beleza, como os malcheirosos canais de Veneza, calmos sob a luz da madrugada, dourados em pleno Verão.

Era esta continuidade essencial e a riqueza de experiências que eu tentara exprimir, anos antes, nos meus diálogos Da Causo, Princípio e Unidade.

"Deliciamo-nos com a cor, não com uma única cor, mas com uma unidade que as envolve a todas. Deliciamo-nos com o som; não com uma única nota, mas com a harmonia de muitas..."

Para falar verdade, sentia mais harmonia na animação ruidosa de uma taverna do cais do que em qualquer retiro de sabedoria da Europa.

Era ainda cedo quando regressei da minha excursão. Vinha sóbrio, mas bebera a quantidade de álcool suficiente para me soltar a língua, e tivera êxito suficiente nos meus galanteios para me tornar imprudente. Quando entrei, fiquei surpreendido ao encontrar Mocenigo ainda sentado à mesa do jantar com dois convidados. Um era o prior Gabrielli, o inquisidor, o outro foi apresentado como Sua Excelência, o novo núncio apostólico da República, reverendíssimo Ludovico Taverna, bispo de Lodi. Saudei-os e pedi licença para me retirar. Mocenigo insistiu em que eu ficasse. Serviu-me um copo de vinho, que levei aos lábios mas não bebi. Depois puxou-me para a conversa, como um coelho para uma armadilha.

- Mestre Bruno, os meus convidados e eu gostaríamos de ter a vossa opinião sobre algumas questões.

- Hesito em dá-la, senhor, em tão distinta companhia.

- Ora! Sois demasiado modesto. Haveis viajado muito, não é verdade?

- Demasiado, senhor. Estou muito feliz por me encontrar finalmente em casa.

Vi o olhar trocado pelo inquisidor e pelo núncio, mas não lhe prestei muita atenção. Acabava de sair de um mundo muito mais simples. Mocenigo continuou a encorajar-me.

- Nas vossas viagens encontrastes os altamente colocados e os de baixa condição.

- É verdade. Fui leitor do rei de França. Fui recebido pelo imperador de Praga e pela rainha de Inglaterra. Ensinei em Wittemberg, Helmstedt e Oxford... Mas, sim, também vivi com gente baixa, com charlatães itinerantes e negociantes de cavalos. De que outra forma se pode conhecer a condição humana? De que outra forma se pode ganhar o direito de falar nela?

- Mmm! - O núncio apostólico conseguiu finalmente usar a voz, uma voz incisiva e enfática como o estalar de ramos na fogueira. - Quer dizer que algumas vezes andastes em más companhias, mestre Bruno.

- Companhia de outros seres humanos, Excelência. Nunca me outorguei o direito de julgar os outros.

- Mas esse direito... esse dever, aliás, não vos foi conferido por altura da vossa ordenação: ouvir as confissões, conceder ou recusar a absolvição?

- Mas eu, senhor, declinei o exercício desse direito por tê-lo visto muitas vezes usado indevidamente.

Mocenigo interveio rapidamente e com brandura.

- Tenho a certeza, mestre Bruno, que Sua Excelência não pretendia menosprezar-vos. Procuramos a vossa opinião sobre um assunto mais vasto. Como muito bem sabeis, a rebelião anda no ar, cisma, heresia e ameaças de novas guerras religiosas. O que motiva a gente simples em Londres, Francoforte, Wittenberg, Veneza...?

Olhei de um para o outro, tentando ler-lhes no rosto, mas eles eram impenetráveis como máscaras de Carnaval. Pois bem! Eles iam ter a minha resposta, tão simples como me fosse possível.

- O que motiva a gente simples? Bah! A fome é capaz de provocar um motim, mas se se distribuir pão e cebolas ela morre antes do pôr do Sol. Luxúria? Esse também é um elemento perturbador. Já vi um indivíduo com um golpe que lhe ia do peito ao umbigo por causa de uma prostituta de taverna! Mas quando me falais de rebelião, heresia, alarmes de guerra, isso é uma história completamente diferente.

- Então contai-a, meu amigo! - Agora era o inquisidor que falava. - Nós, que estamos sentados sobre o barril de pólvora, gostaríamos de saber o que é que acende o rastilho.

- Vós próprio haveis pronunciado a palavra mágica, senhor. Acender! Esse é o encantamento de magia que abre a porta do amanhã. Acendemos a luz e esta espalha-se lentamente, por Deus!, ela chega ao bobo e ao limpa-chaminés, ao mais ínfimo dos servos.

- Não entendo. - O prior parecia chocado. - Trata-se de alguma revelação nova e fantasiosa?

- Nova para eles, senhor, mas fantasiosa, não. Não e não! - De repente, eu próprio pegara fogo. Afastei-me abruptamente da mesa e pus-me a caminhar de um lado para o outro, declamando como um orador. - Vede! Aqui, na prateleira do meu senhor, há velhos mapas que mostram que o mundo é plano e que acaba logo a seguir às colunas de Hércules, onde dragões que cospem fogo devoram os pobres marinheiros. Não existem dragões! Vós sabei-lo e eu também o sei. A oeste estão as terras douradas encontradas por Cristóvão Colombo, a sul e a leste as rotas marítimas para as índias e para a China distante. Isso é luz! Depois vem Copérnico e a seguir os céus abrem-se para um universo infinito de sóis e luas e terras por descobrir.

- Sedutoras novidades! - disse o núncio.

- Uma doutrina perigosa! - disse o prior.

- Continuai, por favor - disse Mocenigo.

Eu estava agora em pleno voo, nem a queda de um raio me teria feito parar.

- Pois serão novidades, senhor. Sedutoras, sim, e mesmo perigosas! Mas despertam o espírito dos homens para duvidar e questionar. Perguntam quem foi que desenhou os dragões nos mapas: cartógrafos ou charlatães? Quem diz que o papa vê toda a Criação, assim que é eleito? Quem diz que um rei governa por um direito que lhe é dado por Deus? Não há nenhum rei em Veneza. Será que Deus concede um direito em Espanha e outro diferente aqui? A gente simples interroga os cavalheiros. As suas perguntas provocam a tempestade e o maremoto vem a seguir.

- Isto é sedição! - O núncio estava fora de si.

- Um momento, senhor! - Isto era um outro Mocenigo, um que eu ainda não conhecia. Falava bruscamente e com autoridade. O mais maravilhoso era que parecia falar em minha defesa.

- Sois um convidado à minha mesa, Excelência, mestre Bruno é membro da minha casa. Aqui não existe sedição. Mestre Bruno limitou-se a responder com verdade à pergunta que lhe fiz. Podemos discordar dele, mas não insultar a sua probidade.

- Sou censurado - admitiu o núncio com altivez. - Peço desculpa pela minha falta de maneiras, a vós e a mestre Bruno.

O prior sacudiu a cabeça decepcionado. Como inquisidor não fazia concessões tão facilmente. Eu curvei-me perante o núncio.

- Obrigado, Excelência. Não me sinto ofendido. Sei que estamos perante questões controversas, mas elas não nos tocam a todos. Agora, peço a Vossas Excelências que me desculpeis.

Saí nessa altura, com a devida firmeza, pensei, mas com a lentidão suficiente para ouvir uma breve troca de palavras em tom abafado entre o núncio e Mocenigo.

- Esse homem só pode causar problemas, e no entanto albergai-lo em vossa casa.

- Vós sois novo aqui, Excelência. - Mocenigo foi breve. - Sois um emissário à procura de amigos. Não deveríeis perguntar antes de mais a causa e a razão das coisas?

Não ouvi o resto, mas aquilo confirmava o que o próprio Mocenigo me dissera: que ele estava empenhado num jogo de alta política entre Roma e Veneza. Eu era nada mais do que um peão que podia ser retirado do tabuleiro com um simples gesto.

Visto de onde me encontro neste momento, tudo isso parece claro como a água de uma fonte, mas não foi tão claro naquela altura. Mocenigo era uma figura demasiado inteligente por um lado e demasiado instável por outro para que conseguisse entendê-lo com exactidão. Tinha tanta dificuldade em decifrá-lo como tivera com os meus primeiros estudos dos mistérios egípcios.

Por exemplo, depois deste episódio, os seus estudos diários comigo tornaram-se mais intensos e mais pormenorizados. Tomava notas copiosamente e fazia-me toda a espécie de perguntas, algumas subtis e orientadas, outras irrelevantes e mesmo grosseiras. Perguntou-me, por exemplo, como é que eu encarava os milagres de Cristo, a cura dos doentes, a multiplicação dos pães e dos peixes, Lázaro erguendo-se dos mortos.

Respondi-lhe à maneira de um debate académico. Fiz-lhe notar que os Evangelhos foram escritos muito depois da morte de Jesus e que eram destinados a servir de manual e de lembrança para uso dos fiéis. Havia muitas discrepâncias nas narrativas. Lembro-me de ter comentado ousadamente que, uma vez que os judeus consideravam os porcos animais impuros, o mergulho dos porcos em Gadara parecia mais uma piada do que um milagre. Também disse, recordo-me, que a forma como Jesus tratava Maria Madalena era o testemunho da sua tolerância em questões de sexo. Perdoou-lhe "porque ela tinha amado muito". A Igreja, por outro lado, transformara em pecado mortal aquilo que, afinal, o próprio Deus tinha planeado e que servia muito bem e de forma muito agradável homens e mulheres!

Mocenigo riu-se e tomou nota, como se se tratasse de uma boa piada para partilhar com os amigos. Tomou outra vez nota quando citei o meu próprio caso e afirmei que a Igreja subvertia a mensagem do Evangelho quando governava pelo medo e não pelo amor.

Sei agora que fui um tolo confiante, ditando a um traidor os termos da minha própria acusação. Nessa altura, eu ainda acreditava que o dever de um instrutor honesto era tratar de todas as questões e partilhar todas as opiniões com os seus alunos. Quando vi, finalmente, o perigo em que me encontrava, era tarde de mais para fugir.

Disse a Mocenigo que precisava de fazer uma visita a Francoforte para tratar com Wechel assuntos relacionados com as minhas publicações. Ele recusou-se a deixar-me ir, dizendo que ainda não havia terminado o meu contrato. Respondi-lhe que a minha ausência seria breve e que, como homem de honra, não deixaria de cumprir o meu dever para com ele. Recusou de novo. Desta vez ameaçou-me com uma detenção forçada. Disse-lhe que não tinha o direito de me reter contra minha vontade. Despejou mais uma chuva de ameaças sobre a minha cabeça e afastou-se.

Nessa noite, muito tarde, veio ao meu quarto acompanhado pelo criado Bartolo e por cinco ou seis barqueiros dos canais de Veneza. Arrancaram-me da cama e fecharam-me num gabinete. Na manhã seguinte, apareceu com um capitão da Guarda e outros homens, que me levaram para uma arrecadação do piso inferior, onde me mantiveram durante alguns dias.

Aí, às três da manhã, fui formalmente detido por um capitão Matteo d'Avanzo, sob as ordens do Conselho dos Dez. Fui levado para a prisão da Santa Inquisição para aguardar julgamento sobre acusações ainda não especificadas.

Assim começou uma longa agonia que tem consumido os últimos oito anos da minha vida. Deixai-me acrescentar uma nota de rodapé. Nunca estive encarcerado com conforto. Ao contrário de certos cativos nobres da história, nunca me foi permitido o apoio de companheiros fiéis, de uma conversa civilizada, de ler ou escrever à vontade.

Desde o início, tudo ficou reduzido ao mínimo tolerável: à comida suficiente para me impedir de morrer à fome; ao calor suficiente para eu não morrer gelado; papel e luz suficientes para tomar as notas importantes para a minha causa. Nada de remédios contra as febres da prisão; nenhum advogado para me aconselhar contra os inimigos sem rosto e sem nome que me assediavam.

Assim, enquanto reúno os fragmentos desta crónica dos meus anos de existência de bicho, não deveis reprovar-me se escrevo com menos eloquência ou menos exactidão do que fazia em tempos. Fui um prodígio nas artes da memória. Agora peno para recordar detalhes e ordenar cronologias, embora, por mais estranho que pareça, consiga recordar e recitar diálogos como um velho actor, o que, afinal, talvez seja aquilo que eu sou.

Há momentos, como depois do julgamento do irmão John, em que me sinto disposto a rezar, mas os formulários dos meus anos monásticos tornaram-se-me desagradáveis. Portanto, invento as minhas próprias fórmulas, assim:

Caso vos tenhais esquecido de mim, Senhor, eu sou Giordano Bruno, filósofo barato e antigo padre, mágico por reputação e herege por imputação, fomentador de sedição, fanfarrão, lunático, dançando a sua jiga no alto de uma montanha à espera do fogo das estrelas... Oremus, rezamos. Oh, Deus, se é que existe um Deus, oh, Cristo, se é que não te mataram para sempre lá no teu Calvário, oh, Mãe de Cristo, que viste aquilo que os homens podiam fazer àquele que ouvia uma música diferente! Inclina-te para mim. Sê terna. Sou um louco, um comediante cujo público são os cegos, os surdos-murdos. Ou talvez seja o contrário... eu sou o doente e eles têm vergonha da minha enfermidade. E, no entanto, eu tenho visões, grito uma espécie de louvor, sinto no meu pulso tambores de apocalipse. As visões podem ser falsas. Não sei. O louvor pode ser uma blasfémia, não é essa a minha intenção. Os tambores? Oh, Deus, sois vós que fazeis bater o meu coração; sussurrai uma vez que seja: "Tranquiliza-te, estás em casa e em segurança!"

Pronto! Disse-o e escrevi-o: a prece da minha alma, o desejo do meu coração. Mas ao deitar-me para descansar, fica a mesma pergunta sem resposta. Onde é a casa do vagabundo irmão Giordano? Onde é que ele irá parar no final da sua última jornada?

 

2 DE JANEIRO

Deixai-me anotar como um marco a data em que fui levado da prisão à presença dos inquisidores do Tribunal de Veneza. Foi o vigésimo sexto dia de Maio de 1592. Apenas alguns meses antes, um novo pontífice, Ippolito Aldobrandini, Clemente VIII, tinha sido eleito para o trono de Pedro. Era ainda muito cedo para saber o que, se alguma coisa, eu podia esperar da sua clemência e sabedoria. De momento, os venezianos tinham-me fechado como um pássaro numa gaiola. Esta prisão da Inquisição ficava apenas a alguns metros dos aposentos do inquisidor-chefe e dos magistrados do Conselho dos Dez. Para os alcançar, o prisioneiro tinha de passar pela sinistra sala de interrogatório para a qual seria enviado caso não conseguisse satisfazer os inquisidores.

A primeira vez em que me vi perante o tribunal percebi que estava numa situação difícil: enterrado até às axilas em areias movediças e enfrentando a cavalaria pesada. O presidente do tribunal era o patriarca de Veneza em pessoa, primaz de todos os bispos da República, Sua Excelência o reverendíssimo Lorenzo Prioli. A seu lado estava o núncio papal, Ludovico Taverna, que eu conhecera em casa de Mocenigo. O prior Gabrielli já eu conhecia como inquisidor-chefe. Tomasso Morosini, descendente de uma antiga família, representava a magistratura, e com ele estava um tal Luigi Foscari, mais um nome histórico em Veneza. A assembleia era completada pelo anotador, um guarda e eu próprio, maltrapilho e malcheiroso depois dos dias passados nas celas. Havia método, claro, naquela humilhação. Mesmo nas melhores circunstâncias era difícil manter a firmeza e a dignidade perante todos aqueles grandes e o poder que representavam.

O patriarca começou a sessão invocando o Espírito Santo, a quem pediu luz e sabedoria nas deliberações. Pela minha parte, eu tinha poucas esperanças de que a prece fosse ouvida. Estavam ali em conflito tantos interesses diversos. O juiz municipal pediu-me que declarasse o meu nome, idade, filiação e local de nascimento. Depois, o prior Gabrielli, o inquisidor, dirigiu-se-me em termos formais.

- Filippo Giordano Bruno, presbítero, sacerdote regular da Ordem dos Irmãos Pregadores, fostes convocado a vir aqui para responder a certas denúncias relativas aos vossos trabalhos públicos, às vossas palestras e às opiniões que haveis exprimido em privado e em público.

Decidi que tinha de intervir imediatamente ou perder toda e qualquer pequena vantagem de que dispunha. Fiz uma pergunta simples.

- Pergunto-vos com o maior respeito, senhor, por que é que sou condenado?

- Condenado? - Parecia verdadeiramente chocado. - Por enquanto não fostes condenado por nada. Estamos aqui simplesmente para vos interrogar sobre acusações feitas contra vós.

- Por quem?

- Não estais autorizado a sabê-lo.

- Eles ameaçam a minha vida e eu não estou autorizado a saber os seus nomes? Como poderei enfrentá-los?

- Somos nós quem os pomos à prova, tal como fazemos convosco.

- Mas eu estou prisioneiro, enquanto eles andam em liberdade. Mesmo que proveis que são mentirosos perjuros, eu não deixo de ser a sua vítima. É isto justiça?

- É o método empregado pela lei.

- E eu não tenho recurso contra esta lei adulterada?

- Nenhum. Somos os servos daquilo que existe até que uma sabedoria posterior o modifique. O juiz vai ler as acusações.

- Por favor, há uma outra questão.

- Apresentai-a.

- A minha cela é húmida, a minha comida está a um passo de me deixar morrer de fome. Sou atormentado por dores reumáticas. Visto que ainda não sou um criminoso, posso ter o benefício de uma cadeira? Fez-se um silêncio de gelo na sala. Era como se eu tivesse pronunciado uma obscenidade. Todos olharam para o patriarca. Ele acenou para o guarda com ar impaciente.

- Tragam uma cadeira para o homem! Ele não pode ficar de pé todo o dia como uma cegonha enquanto analisamos o caso. Agora, podemos continuar com o que temos a fazer?

Trouxeram a cadeira. Sentei-me. Era uma pequena vitória, mas deu-me coragem. O anotador pegou nos papéis e começou a ler o libelo acusatório.

- Nolano é acusado, em primeiro lugar, de defender opiniões contrárias à nossa santa fé, de ter discursado contra a fé e os seus ministros. Defende opiniões erróneas sobre a Trindade, a Divinidade de Cristo e a Encarnação. Defende opiniões erróneas sobre o próprio Cristo, a santa Missa e a transubstanciação. Afirma que o Universo é infinito e eterno. Acredita na transmigração das almas mesmo entre humanos e animais. Não acredita na Virgindade de Maria, a Mãe de Jesus. Pratica as artes da adivinhação e da magia. Tem-se entregue aos pecados da carne. Tem vivido entre hereges e adoptado as suas doutrinas e maneiras. Estas são as linhas gerais do documento; os detalhes são ainda mais escandalosos. Nolano afirmou, por exemplo, que os milagres de Cristo eram truques de magia; que os sacerdotes e os monges eram asnos que os vendiam a outros asnos; que a Igreja corrompe a mensagem do Evangelho e procura converter pelo medo e não pelo amor; que o homem deve usar a sua liberdade para chegar até Deus.

Fez uma pausa para respirar. Não consegui deixar de comentar num tom de desprezo:

- Meus senhores, o catálogo é extenso.

- Com os erros mais vis - disse o núncio.

- Demasiados para um só homem, Excelência!

Morosini, o assessor dos magistrados, interveio com um comentário breve:

- Este documento peca por falta de seriedade. Vê-se claramente que foi escrito à pressa e com raiva.

- Obrigado, senhor. - Sentia-me grato pela intervenção. - E gostaria de acrescentar que esta denúncia entra em contradição. Primeiro, afirma que sou um herege, rejeitando a essência da fé, ao mesmo tempo que afirmo um amor apostólico, uma necessidade de me aproximar de Deus em liberdade. Que é que ele pretende, este inimigo sem nome? Lançar uma moeda e fazê-la cair ao mesmo tempo em caras e coroas?

O patriarca inclinou-se para a frente e falou directamente comigo.

- Devemos entender que negais as acusações aqui contidas?

Era uma proposta tentadora, mas eu não a aceitei. Precisava de uma base mais ampla para a minha defesa. Disse:

- Não, Eminência. Nego o significado e a conclusão do todo. Afirmo que há uma intenção maldosa do informador, uma subversão das minhas palavras.

- Podeis explicar isso, por favor?

- Vede, senhor! Quatro de nós aqui somos clérigos, professores treinados no argumento e na discussão. Os outros são juristas familiarizados com a lógica da lei. Sabeis como fomos ensinados no sistema do pro e contra. Um dia levantamo-nos no meio do debate e dizemos: "Deus não existe! Refutai-me!" Noutro dia afirmamos o contrário. É este o método, honroso e aprovado desde Aristóteles a São Tomás de Aquino. E isso faz de nós hereges? Claro que não! Mas qualquer ignorante ou tolo que ouvisse as nossas conversas podia interpretá-las mal e condenar-nos à fogueira por isso.

O patriarca fez um sinal de assentimento e deu uma indicação ao anotador:

- Anotai que o acusado não nega as palavras formais que lhe são imputadas. Não nega a acusação de heresia e afirma que há má intenção por parte do informador.

Mais uma vez Morosini contribuiu com o seu comentário pessoal:

- Como assessor em nome da República, peço um novo interrogatório do dito informador.

- Assim se fará - disse o prior Gabrielli, depois voltou-se novamente para mim. - Agora, irmão Giordano, protestais e não sem razão contra o testemunho anónimo. Compreendemos a objecção, embora não possamos admiti-la. Baseemo-nos, portanto, em provas mais evidentes: o relato da vossa vida e os livros que apresentam o vosso nome na primeira página. Concordais com isso?

- Da melhor vontade, senhor. Mas com a condição de eu poder continuar a interpretar as minhas próprias palavras e a minha pessoa.

- A interpretação é necessária? - Quem falou foi Taverna, o núncio, hostil e cheio de desprezo.

- Sempre, Excelência! Sempre! Um exemplo simples: vós andais a passear no rio del Palazzo. Sentis, de repente, que precisais de satisfazer uma necessidade natural. Levantais a túnica e expondes, com vossa licença, uma parte púbica. Uma jovem que vai a passar grita: "Que indecência!" Vós afirmais uma necessidade simples: urinar ou rebentar! O acto ainda precisa de uma explicação!

Todos riram e, por breves momentos, pensei que os tinha do meu lado. O momento passou rapidamente e o interrogatório recomeçou.

Se alguém que possa ter lido estas memórias perguntar por que razão eu, na situação extrema em que me encontro, faço reviver estes velhos dramas, deixai que vos explique que eles ainda estão tão presentes no meu espírito como no dia em que ocorreram. Esta foi a primeira batalha que travei com os Tronos, Dominações e Principados da Igreja e do Estado secular.

Nunca antes e nunca depois foi o caminho tão evidente, o inimigo tão visível, a esperança na vitória e na vingança tão ousada. Considerando o que eu tinha em jogo, considerando que as probabilidades eram contra mim, havia um certo desafio épico. Uma vez, em Paris, na escola de esgrima, tinha visto Miguel Maravilloso, o mestre, enfrentar três espadachins ao mesmo tempo e desarmá-los em dois minutos. A minha luta seria muito mais prolongada, mas nesse dia, faz tanto tempo, eu acreditava realmente que poderia ganhá-la.

O prior encaminhou-me com mão firme através da sua descrição.

- ... Comecemos com o livro aberto da vossa vida: tendes agora quarenta e dois anos de idade. Fizestes os vossos estudos em Nápoles. Haveis estudado Lógica, Filosofia e Humanidades.

- Precisamente. E tive bons professores: Theofilo da Vairano, Vincenzo Colle il Sarnese. Lembro-os com grande afeição.

- Aos dezassete anos, tornastes-vos noviço no priorado de San Do-menico. Nos registos presentes sois descrito como "um estudante ávido, com uma memória prodigiosa, uma língua capciosa e nada fácil de dobrar à disciplina".

Não consegui resistir a uma pequena piada à minha custa.

- Se quereis imputar-nos a nossa juventude, senhor, a maior parte de nós vai parar ao cadafalso!

Isso provocou alguns risos e o prior quase se enganou na leitura.

- Nessa altura fizestes os votos. Prometestes solenemente viver em pobreza, em castidade e em obediente sujeição às regras da Ordem. Certo?

- É verdade.

- Fostes ordenado sacerdote. -Fui.

- E depois rompestes os votos, fugindo do convento e do sacerdócio. Sim ou não?

- Sim.

Nessa altura, ele fez uma pausa, para deixar o tribunal digerir as minhas confirmações. A pergunta seguinte foi feita por Tomasso Morosini, assessor dos magistrados. Perguntou-me do modo mais suave:

- Por que fizestes isso, mestre Bruno?

- Porquê? É uma velha história, senhor. Permiti que a reconstitua para vós. Presumo que nunca fostes monge?

- Nunca! Graças a Deus, tanto a Igreja como eu fomos poupados a essa experiência.

- Deixai então que a descreva. Um mosteiro, senhor, é um mundo muito pequeno, encerrado em muros de pedra. Há poucos santos... muito poucos! Há alguns que vivem numa bondade simples. Há outros que, dentro da Igreja ou fora dela, venderiam as irmãs por um bolo de pastelaria. Primeiro fui acusado de impiedade. Recusei-me a usar medalhas dos santos em cacho à volta do pescoço como as uvas de Baco. Preferia os símbolos do nosso fundador: o rosário e o crucifixo.

- Mas também esses haveis abandonado mais tarde?

- Por favor, senhor, deixai-me acabar primeiro. Noutra ocasião, e foi então que o assunto se tornou grave para mim, encontrei um irmão monge remexendo os meus papéis, farejando a heresia como um porco fareja as trufas. Na altura, eu andava a ler e a tomar notas sobre o mundo do mestre Erasmo de Roterdão. Era proibido ler os seus livros excepto com autorização. Eu escondi os meus volumes numa latrina, onde foram descobertos mais tarde.

"Deduziu-se imediatamente a existência de culpa: fui citado para julgamento pelo mestre-geral em Roma. Eu sabia o que isso significava. Nós, os irmãos pregadores, somos nós próprios inquisidores. Na altura, eu não tinha, como não tenho agora, qualquer resposta para a malícia e a conspiração. Por isso fugi.

Do breve silêncio que se seguiu à minha confissão, destacou-se a voz seca de Taverna, o núncio.

- A escritura tem uma palavra a dizer sobre isso, não é verdade? O culpado foge quando ninguém o persegue.

Senti-me sufocar de raiva e voltei-me para ele.

- Não me julgueis com textos e aforismos! A verdadeira justiça é exercida de modo bem diferente!

- Sois insolente, mestre Bruno!

- Na verdade, senhor? Sentai-vos aqui e senti a lâmina da espada no pescoço. Deixai-me bombardear-vos com excertos das Sagradas Escrituras. Vereis se vos agrada!

O patriarca interveio firmemente para abafar a disputa.

- Temos de nos controlar! Isto é um tribunal, não um campo de batalha. Deveis admitir, mestre Bruno, que esta vossa fuga tem uma cor de culpabilidade.

- Eu sei, Eminência. Nunca o neguei.

- Se tivésseis tido a coragem de enfrentar aqueles que vos acusavam e confiado na amorosa bondade da nossa Santa Madre Igreja, não estaríeis agora numa situação de perigo.

- Eminência, com vinte e cinco anos, rebelde e assustado, a nossa Madre Igreja parecia-me gigantesca, indiferente aos seus filhos e a todas as suas misérias.

- Mas era e continua a ser vossa mãe.

- E eu, seu filho, ainda lhe acho os seios secos, as mãos pouco carinhosas. Por favor, Eminência, posso pôr-me de pé e esticar um pouco os membros doridos?

- À vontade. Não somos carcereiros mas sim inquisidores judiciais à procura de uma verdade comum.

Ainda estava a tentar erguer-me quando Taverna lançou a sua armadilha.

- Irmão Bruno, isto é uma verdade: fostes para Zurique onde vos tornastes calvinista, um renegado em busca de necessidades falsas e estranhas.

- Não, senhor! - Pelo menos agora estava de pé diante dele. - Eu era uma alma perturbada que tentava encontrar um chapéu que lhe cobrisse o cérebro fervilhante!

- E haveis encontrado?

- Não! Este demónio inquieto que trago às costas não me permitiu essa paz. Briguei com esses suíços sisudos e passei algum tempo na cadeia.

Taverna conseguira ganhar um ponto. Como qualquer bom jogador, esforçou-se por manter a vantagem.

- Ao que parece, irmão, não sois nem peixe nem carne. No meio dos hereges sois ortodoxo. Com os fiéis sois mais incrédulo que Júlia, a Apóstata.

Ficou à espera da minha resposta. Eu sabia que não tinha nada a ganhar com este tipo de discussão. Tentei outro. Perguntei-lhe:

- Excelência, alguma vez tivestes um filho?

- Como ousais atribuir-me...

- Não atribuo nada, Excelência. É um dado adquirido que, no nosso tempo, alguns clérigos, mesmo em postos superiores, têm descendência que reconhecem de várias formas e mantêm com os seus benefícios eclesiásticos. Aceito sem questionar que nunca tenhais tido um filho. Eu também não tenho. Mas, se tivéssemos, não ficaríamos a vê-lo tactear o caminho da infância para a idade adulta, pondo à prova as próprias forças contra este estranho mundo novo? Não sentiríamos pena dele e não estenderíamos uma mão paternal para o ajudar a subir da escuridão para a luz?

- Se amamos, tentamos. Mas quando ele chegasse à idade adulta, conseguiríamos protegê-lo de todas as suas loucuras?

- Repito as vossas próprias palavras, Excelência: se amamos, tentamos. Portanto, ponho-vos a questão a vós e a todos estes cavalheiros. A Igreja é a nossa mãe comum. Como é que me vedes, senhores? Como um filho, um irmão ou um inimigo?

Ele atacou de novo, rápido como uma víbora.

- Não sabemos. Esse é o nosso problema! Um herege não pode ter nada a ver com Cristo, nem com a assembleia dos seus santos. Notamos, como vedes, em todas as vossas andanças, em Inglaterra, Alemanha, França, esta circunstância curiosa. Os vossos amigos são, na sua maioria, da raça dos rebeldes: luteranos, huguenotes, calvinistas, hussitas e waldensianos. As vossas palestras e discussões, tal como nos foram denunciadas, todas parecem rejeitar as linhas clássicas do argumento cristão. Não podeis levar-nos a mal se algumas vezes farejamos um lobo sob a pele do cordeiro!

O patriarca ergueu a mão num gesto moderador.

- Apesar disso, desejamos tratar-vos com caridade.

- Todos vós? Vós, prior? Vós, Sr. Morosini? Vós, Excelência? Foi Morosini quem respondeu com uma ironia cortante.

- Uma palavra para os avisados, irmão Bruno! Não aposteis a vossa vida nos nossos sentimentos cristãos. Convencei-nos!

- Santo nome de Deus, como?

- Sede paciente. - O prior estava agora a meu lado, com as notas na mão. - Respondei às questões conforme vos forem postas. Podeis ter a certeza de que, no final, chegaremos a uma base comum de verdade. Agora sentai-vos, irmão, e continuemos.

Esta nova disposição de doce racionalidade era ainda mais perigosa do que a anterior. A primeira pergunta foi enganosamente simples.

- Portanto, irmão Giordano, estamos de acordo quanto aos vossos livros serem de vós mesmo. Nada contra?

- Nada, excepto...

Taverna abateu a mão com força sobre o tampo da mesa.

- Sempre excepções! Nunca uma resposta directa! Morosini sorriu e encolheu os ombros.

- O homem é um filósofo! Necessita de uma definição dos termos.

- Vamos então definir. - Gabrielli estava demasiado calmo para me deixar tranquilo. - O que precisais saber, irmão, antes de prosseguirmos?

- Prior, tal como eu, sois dominicano? -Sim.

- Aprendemos a mesma teologia? -Sim.

- Os nossos mestres disseram que a especulação livre é permitida em todos os assuntos, excepto na substância da fé. Concordais?

- Sim.

- Portanto, quando discorro nos meus livros sobre a natureza e a ordem natural, quer esteja certo ou errado, estou fora de culpa, certo?

- Certo. Mas basta um passo para além do natural no campo da fé para cairdes sob a alçada da lei.

- A lei de quem? Antes de eu aceder piedosamente a deixar-me matar de acordo com o vosso código, poderíamos, por favor, examiná-lo juntos?

- Meu Deus! - Taverna estava de pé, agora protestando vigorosamente junto do patriarca. - Este indivíduo é um malabarista, tecendo uma teia de sofismas legalistas só para nos distrair!

- Eu, Sr. Núncio? - Levantei-me com dificuldade para poder olhá-lo bem de frente. - Deixai-me mostrar-vos o que eu sou! Um homem sem um único advogado ou amigo no tribunal. Dormi mal por causa dos ratos e da humidade que tenho na cela. Não preparei o meu caso. Vós e apenas vós é que vistes os documentos. Além disso, não tenho nenhuma vela na cela para poder ler. Estou diante de vós, cinco juizes, um escrivão e um guarda armado. Atrás de vós, o que há? A majestade de Veneza e do seu Império, o poder de Roma e todos os príncipes que a apoiam, todo o exército dos ortodoxos. Suplico-vos, portanto, dai-me ao menos tempo para defender a minha vida! Ou, então, acabai com esta comédia ignóbil e queimai-me agora!

Houve um silêncio prolongado na sala. Ninguém estava preparado para responder ao desafio que eu lançara. Finalmente, o patriarca ergueu-se no seu lugar e deu a conhecer a sua decisão.

- O irmão Bruno definiu bem a sua posição. Insisto com os meus colegas para que se abstenham de pressionar o acusado e respeitem o seu direito de argumentação. Continuai, por favor.

Gabrielli consultou as notas e depois dirigiu-me a palavra.

- Haveis solicitado um esclarecimento sobre a lei. Vamos pô-lo da seguinte forma: o nosso Salvador, Jesus Cristo, desceu à Terra, Deus em carne e osso, e deu-nos a todos uma revelação da verdade eterna. Deixou a Pedro e aos seus sucessores as chaves do Céu, autoridade para pregar, interpretar e desenvolver o código moral implícito na verdade. Esse é o direito de Pedro, detido pelo pontífice reinante. Nós outros, bispos e sacerdotes, podemos usar o direito apenas por delegação legal. Estais esclarecido, irmão?

- Não, senhor. A vossa resposta deixa em aberto toda a questão da continuidade apostólica e do poder papal. Este é o rochedo sobre o qual a Europa cristã encalhou. Tivemos um concílio, o de Trento. As suas decisões cortaram a Europa como um queijo. A partir daí, passámos a ser forçosamente católicos e não crentes. A Europa, no seu âmago, é cristã. Quanto tempo pode durar essa divisão perigosa? A resposta depende de uma questão ainda mais subtil: quais são os limites do poder? Posto em termos filosóficos: até que ponto o absoluto é absoluto, no máximo ou no mínimo? Quem diz com certeza aquilo que é uma questão de fé e o que é especulação aceitável?

Tenho de prestar homenagem ao homem. Eu colocara-o num dilema, mas ele não fugiu à questão. Defendeu-se dando-me uma resposta cuidadosamente calculada.

- Os limites são definidos de tempos a tempos por documentos papais, pelos concílios e pela palavra comum da Igreja.

- Mas os limites mudam. Portanto, aquilo que me leva hoje à fogueira pode amanhã fazer de mim um santo e doutor da Igreja. Estais a ver o meu problema! Na sua última ceia com os discípulos, Cristo abençoou o pão e o vinho e partilhou-os à mesa. Ele disse: "Tomai e comei. Isto é o Meu corpo. Isto é o Meu sangue." Foi um acto de mistério. Ele não o explicou. Na família cristã, esse acto é repetido e partilhado com alegria e esperança. Agora pusemos-lhe um nome, como uma etiqueta de farmácia: transubstanciação. O próprio Cristo nunca tinha usado a palavra, nem ouvido falar nela. Paulo teria sufocado ao dizê-la! Eu sou acusado, anonimamente, de práticas de magia. De que espécie de magia? Magia natural? Magia matemática? Necromancia? Ajudai-me, Sr. Prior! Ajudai a administração da justiça neste local.

- Não posso, irmão, porque a questão não é relevante. Haveis pedido um esclarecimento sobre a lei. Já o tendes. Não vou prolongar o argumento até ao absurdo.

Era inteligente e experimentado. Estava livre do dilema. Contornara-o e já estava pronto para novo assalto. Só me restava segui-lo. Pegou em dois volumes que estavam em cima da mesa e exibiu-os perante mim e o tribunal.

- Estes são dois dos vossos títulos: Dos Mundos Infinitos e Da Causa, Princípio e Unidade. Foram escritos por vós.

- Foram, sim.

- Uma coisa curiosa: as inscrições nas primeiras páginas dizem "Impresso em Veneza". Estes livros não foram realmente impressos em Inglaterra?

- Foram.

Tentei não mostrar até que ponto ficara chocado. Tinham ido mais fundo do que eu julgava.

- Quer dizer que vós e o vosso impressor haveis colaborado numa mentira?

- Se pondes a questão nesses termos, sim.

- De que outra maneira poderia pô-la?

- Poderíeis talvez notar, com uma certa tolerância, que se tratou de um estratagema comercial, bastante comum e aconselhado pelos meus editores.

- Para obter melhores lucros.

- Evidentemente.

- Isso não faz de vós um indivíduo venal?

- Denota, sim, um homem pobre, Sr. Prior. A erudição não é uma estrada para a riqueza.

- Também o mostra como mentiroso! - disse Taverna.

- Uma mentira insignificante. - Morosini aliviou a acusação. - Nenhum de nós, creio eu, desejaria que ele fosse enforcado por isso.

- Claro que não! - Taverna não insistiu na questão. - Devemos, no entanto, usar de cautela quanto à sua credibilidade.

Era evidente que a revelação lamentável me fizera perder muito terreno. Perguntava a mim mesmo para onde é que o inquisidor me conduziria a seguir. Ele ergueu no ar o volume Dos Mundos Infinitos.

- Nesta obra, afirmais que o Universo se estende para lá da nossa visão até ao infinito. O nosso mundo é apenas um de muitos. Estou certo no que digo?

- Estais, sim.

- Então, não estaremos nós a entrar na heresia? Não é o infinito um atributo de Deus e unicamente de Deus?

- Não há aqui qualquer contradição. Haveis de notar que eu digo que o Criador infinito é co-extensivo com a sua infinita Criação.

- Dizeis mais! - Procurou uma passagem que já tinha marcada. - Dizeis: "Aquilo a que chamamos o Criador é esse espírito que nos anima a todos." Já passastes do natural para a fé. Estais em conflito.

- Não era isso que eu pretendia.

- Mas foi isso que escrevestes. Os vossos livros, dissestes, são a vossa pessoa.

Perdera mais um ponto. Precisava de concentrar-me e reorganizar os meus argumentos, mas o inquisidor não me deu descanso. Entregou-me o livro e ordenou-me:

- Por favor, lede a passagem que eu marquei. Normalmente sou um leitor fluente e mesmo eloquente. Desta vez tinha a boca seca e engasgava-me. Até a mim, o seu autor, o texto parecia oco como um odre.

"A alma, a anima, sendo um surto de energia eterna, continua após a morte do corpo para ir animar outro, seja humano ou animal..."

Fechei o livro e devolvi-o ao prior. Ele colocou-o deliberadamente sobre a mesa, depois recolheu-se em silêncio enquanto os outros, igualmente silenciosos, aguardavam a sua conclusão final.

- Irmão Bruno, neste vosso livro temos duas afirmações; ambas são em si mesmas heréticas. A Igreja sempre tem ensinado que Deus, um ser eterno e infinito, é infinitamente maior do que a sua própria criação, e que, embora a sustenha, permanece separado dela. Seguidamente, a Igreja sempre ensinou que as almas humanas não migram para outros corpos. Portanto, ao que parece, pelo menos duas das acusações feitas contra vós são bem fundadas.

Este era o momento que Taverna aguardava. Uma imputação formal de heresia a partir das minhas próprias obras. Recostou-se na cadeira, sardónico e triunfante, como se toda a acção contra mim estivesse assim completa.

- Creio, meus senhores, que vamos descobrir ao longo do interrogatório do irmão Bruno, que a denúncia feita contra ele é um relato verdadeiro de detalhes, escrito por um homem honesto, tão chocado como nós próprios perante as opiniões deste filósofo original. Que dizeis, irmão? Mais vale confessar agora do que abusar da paciência e credibilidade deste tribunal.

Agora tinham-me empurrado contra a parede. Precisava de todo o meu espírito e de toda a minha força para atacar o adversário.

- Não vou confessar, senhor! Reitero a minha primeira pretensão... liberdade para investigar, defender e exprimir opiniões sobre qualquer assunto da ordem natural. Afirmo ainda que tudo o que escrevi ou disse se coaduna em substância com o acto de fé. Dai-me papel, penas e tinta, dai-me os meus livros, uma cópia da acusação feita contra mim, tempo e alguma luz dentro da cela, e eu provarei a minha ortodoxia, ponto por ponto. Erros pode haver, mas erros de expressão, não de intenção. Estes terei muito prazer em retirar e excluir de todas as edições futuras.

- Aí está uma concessão tortuosa. - Taverna foi implacável. - "Eu estou absolutamente certo", diz ele, "mas, se estiver errado, mudo tudo da noite para o dia." Este indivíduo vai entreter-nos aqui ano após ano com os seus truques de prestidigitação. Dai-lhe papel suficiente que ele vai escrever e escrever até nos ver a todos no túmulo!

- Ele tem o direito de responder ou não tem? - Pela primeira vez ouvimos a voz de Foscari, o inquisidor, que até ali se mantivera silencioso. Tinha um aspecto velho e doente, e a sua voz era fraca, mas para mim foi como o anjo Gabriel anunciando a possibilidade da salvação. - Temos o dever de ouvir as respostas dele e ele tem a obrigação de se retractar quando convencido do erro. É isso que propõe. Por que não aceitar?

- Porque eu não confio nele. Muda como um cata-vento. É um mentiroso confesso!

- Mesmo assim - Foscari era um homem persistente -, temos uma incumbência clara: estudo lúcido, veredicto imparcial, uma sentença adequada aos erros comprovados.

Ao que o patriarca acrescentou uma nota de misericórdia salvadora.

- Devemos ter também uma preocupação misericordiosa para com a alma imortal deste nosso perturbado irmão. Proponho que adiemos esta sessão para uma altura conveniente para todos. Concordámos em ouvir novas declarações do nosso informador. Que se cumpra. O anotador voltará a convocar-nos. O guarda pode fazer retirar o prisioneiro. Os meus agradecimentos a todos, cavalheiros.

Quando me reconduzia à minha cela, o guarda, um decente camponês das regiões pantanosas perto de Roverna, disse-me alegremente:

- Foi por pouco, irmãozinho. Da maneira que as coisas iam pensei que acabassem convosco antes do sol-posto. Aquele núncio é feroz! Para a próxima tomai cuidado com ele.

Olhando para trás agora, através do abismo dos anos, vejo Taverna não tanto com um inimigo mas como um protótipo de tudo aquilo que achei repugnante na vida conventual e na própria Igreja. Como bispo, tinha sido investido no ofício pastoral para cuidar das almas. No entanto, nas suas mãos, o báculo transformara-se numa espada. O pastor tornara-se um agente da força política, desprezando as pessoas de quem estava longe de mais há tempo de mais.

Fiz-lhe uma pergunta clara. O que era eu para ele: filho, irmão ou inimigo? Ele declinara responder, inventando uma outra categoria: o herege que não tinha lugar junto de Cristo ou da sua família. Politicamente, a definição servia muito bem. Não havia esperança de cura. O membro doente tinha de ser cirurgicamente afastado. Qualquer argumento sobre o tratamento era inútil e mesmo perigoso. A doença podia espalhar-se e destruir o corpo todo.

Todos os painéis de inquisidores que enfrentei ao longo dos sete anos seguintes, continham, pelo menos uma e às vezes mais, réplicas de Taverna: pragmáticos, peremptórios, impiedosos e profundamente divididos no seu próprio íntimo. Abriam os braços à Madalena arrependida, os corações ao filho pródigo, mas para o pesquisador confuso, para o peregrino na estrada escura que gritava por luz eram impiedosos.

O problema, o mistério, é que eles estão sempre ali; sempre estiveram e sempre hão-de estar, até ao fim do mundo. Ámen! Estas excursões ao reino da memória estão a ser mais penosas do que eu esperava. Desculpai-me, meus senhores. Minhas senhoras, agora não posso fazer outra coisa senão sonhar convosco. Boa noite.

 

3 DE JANEIRO

Esta manhã, ao fazer a ronda da manhã, o meu carcereiro, o mal humorado, diz-me que estou inscrito para um banho e para ser barbeado antes de o mestre-geral me visitar dentro de três dias, na Epifania.

Pensando dizer um gracejo, peço que desta vez a água da banheira esteja aquecida. Ele amaldiçoa-me sem rodeios. Que direito tenho eu de me queixar do que quer que seja? Em breve me sentirei grato até por uma gota de água fria. Vão-me assar como um leitão no espeto e eu hei-de arder para sempre no Inferno.

A simples rudeza do indivíduo choca-me profundamente. Não consigo sequer irritar-me contra ele. No entanto, quando puxo do papel e começo a afiar a pena, tenho as mãos a tremer e o espírito tumultuado.

Para me acalmar, começo um pequeno jogo privado que aprendi na escola em Nápoles. Numa folha do meu precioso papel, faço uma série de pequenos esboços eróticos: homens e mulheres em várias posições de acoplamento sexual. Eles representam as recordações das minhas escapadas juvenis como postiglione per leputtane e das minhas visitas posteriores como cliente a várias casas de prostituição na Europa.

Eu tenho alguma habilidade para o desenho e uma forte memória visual, por isso os desenhos jorram vigorosamente da minha pena.

As recordações voltam em catadupa e, com elas, as ferroadas de uma luxúria que eu julgava morta e em cinzas há muito. Começo a pensar que os desenhos resultariam bem como ilustrações de Os Sonetos Lascivos de Pietro Aretino.

Chamaram-lhe o flagelo dos príncipes por causa das suas habilidades como satírico e - diziam os boatos - chantagista. Nunca o conheci. Tinha apenas sete anos quando ele nasceu e era já muito mais velho quando me defrontei com os seus escritos. Enquanto trabalho nos meus pequenos desenhos indecentes, penso em como me teria agradado a sua companhia.

A meio da manhã, o nevoeiro negro começa a afastar-se de mim. Ponho de lado os meus esboços, colocando-os debaixo do colchão com a página completa do meu manuscrito. Depois ponho-me de novo a escrever. Imediatamente me encontro de regresso a Veneza, enfrentando o tribunal da Santíssima Inquisição.

Andaram a reunir todas as provas e todas as testemunhas que conseguiram arranjar e confrontavam-me com tudo isso numa série de interrogatórios cerrados. A táctica deles tinha-se modificado também. Já não me conduziam através de uma descrição pré-elaborada; atacavam-me por todos os lados, procurando encurralar-me como cães de caça atrás de uma raposa. O prior leu-me uma passagem de um depoimento:

- Nolano disse estas coisas: "Cristo é um pobre tipo que seduziu as pessoas com os seus truques de magia. Ele receava a morte e tentou fugir-lhe." Recordais estas palavras, irmão?

- Talvez conseguisse, se me dissésseis quem foi o informador que as relatou e a ocasião em que eu as teria pronunciado.

- Sabeis que não podemos fazê-lo.

- Portanto, pedis-me que responda a uma acusação de um indivíduo sem nome sobre uma conversa tida numa ocasião não especificada. Francamente, senhor! É de mais! Não posso responder.

- Não podeis ou não quereis? - A pergunta veio de Taverna, atento e mordaz como sempre.

- Não deve! - Morosini continuava a ser aparentemente o meu defensor. Voltou-se para o patriarca. - Eminência, todos lemos o testemunho sobre o qual se baseia a pergunta. Para alguns de nós, ele é altamente suspeito. Não podemos esperar que mestre Bruno nos entregue uma espada para o matarmos com ela!

- Concordo. - O patriarca pertencia à cidade tanto quanto à Igreja.

O anotador fez uma pergunta cautelosa.

- Como é que devo anotar isto, Eminência? O patriarca reflectiu um momento.

- O acusado afirmou que sem mais informações, as quais o tribunal não está disposto a dar-lhe, não podia responder à pergunta. O nosso colega, o núncio apostólico, considerou isto como uma recusa. O Sr. Morosini tomou um posição oposta, com a qual concordo. Agora, por favor, podemos continuar.

Pausas como esta eram raras. Eu estava a ficar cansado sob a pressão e no final do dia fui entregue ao horror húmido de uma cela de prisão em Veneza e à companhia de outros desafortunados que me venderiam por mais uma colherada áepolenta. Não tinha medo deles. Deveria ter tido porque, por puro desafio, me tornei incauto na maneira de falar com eles.

O prior Gabrielli levantou uma questão que mostrava até que ponto as redes tinham sido espalhadas.

- Vou ler-vos um texto. Escreveste-lo no vosso livro Da Causa, Princípio e Unidade. Falais dessa tal Elizabeth, de Inglaterra, que usurpou o trono, assassinou o herdeiro legítimo e de forma blasfema se auto-intitulou chefe da Igreja, protectora da Fé. Dizeis o seguinte: "Louvo-a, a divina Elizabeth, uma rainha no título e na dignidade, cuja presença espalha uma luz brilhante sobre todo o mundo, a quem nenhum príncipe pode exceder em conhecimentos, arte ou generosidade." As palavras são vossas?

- São.

- Essa senhora é uma herege, uma perseguidora da Igreja.

- Deixai-me dizer que nunca estive em posição de a questionar sobre questões de doutrina e que ela nunca me perseguiu, embora soubesse que eu era católico. Não peço a este tribunal que concorde com o que eu escrevi, apenas que considere alguns factos como atenuante: eu passava muito tempo na corte... a corte da rainha. Era hóspede do embaixador de França, um cavalheiro católico, totalmente leal à fé. Ele nunca transformou, e espero que também não o façais, um elogio cortês num teste de ortodoxia. Quanto ao epíteto "divina", trata-se apenas de uma maneira de falar na corte de uma mulher. Uma pregadeira, um anel, uma fita, tudo isso é "divino"! A própria rainha não pode merecer menos.

Houve um riso abafado por toda a sala. O patriarca avançou para reprimi-lo com uma reprimenda.

- Meu bom irmão, parece-me que éreis mais cortesão do que cristão.

- É verdade e lamento-o.

- Tenho a certeza que sim. - Taverna estava de novo ao ataque. - Sabeis melhor que ninguém que, nos primórdios da Igreja, o teste da fé implicava a recusa de chamar Divino ao imperador.

- Em Londres não ligavam muito a isso. Além de que a minha fé era conhecida e nunca foi posta de lado.

- Qual era a vossa fé, irmão, quando estáveis aqui na prisão? Haveis declarado a outro prisioneiro: "Cristo, Nosso Senhor, cometeu um pecado mortal ao ir contra a vontade de seu Pai. No jardim rezou: 'Pai, afasta de mim este cálice.'" Haveis dito isto?

- Disse mais. Ele relatou menos. Ao fazê-lo, mentiu.

- Podeis explicar isso, irmão?

- Facilmente. O que eu disse foi: "Poderia pensar-se que Cristo cometeu um pecado mortal... Poderia pensar-se que ele se recusou a fazer a vontade do Pai", e acrescentei: "No fim, ele curvou-se à vontade do Pai."

- Por que havemos de acreditar na vossa versão?

- Por que haveis de acreditar na outra, a menos que estejais de antemão decidido a condenar-me!

- Haveis negado que o Inferno existe como lugar de castigo, castigo eterno?

- Expressei dúvidas pela maneira como isso é ensinado. Acho difícil, confesso que ainda acho difícil, compreender por que razão o Criador desperdiçaria o seu poder infinito para criar um sepulcro. Mas recordo a Vossa Excelência que uma dúvida sincera não é de forma alguma uma heresia. Não haveis aprendido isto em teologia?

- Não é verdade que afirmastes que Moisés era um mágico engenhoso, versado nas artes da magia com as quais venceu os mágicos do faraó?

- Por favor! Por favor! Por favor! - Morosini estava de pé, apelando para o patriarca. - Eminência, não será possível termos um pouco de senso comum? Eu não represento o acusado, Deus bem o sabe, mas envergonha-me vê-lo bombardeado com acusações como um camponês no tronco!

O patriarca estava nitidamente perturbado. Não pretendia criar um inimigo no emissário de Roma. Esperou um longo momento antes de apresentar uma réplica hesitante.

- Talvez, Sr. Morosini, gostásseis de explicar mais detalhadamente a vossa objecção. Deveis compreender que foram apresentadas acusações e que é necessário que lhes seja dada resposta.

- Com todo o respeito, Eminência, eu compreendo isso; mas deixai que me explique com uma parábola.

- Tendes a nossa permissão. Desde que a parábola não seja demasiado longa.

- É muito curta. Vós conheceis, todos os venezianos conhecem, a pequena viela a um ou dois passos de San Marco. Chamam-lhe a Rua das Bonecas, onde fazem máscaras de Carnaval e fantoches para as crianças.

- Espero que isto seja relevante. - Taverna não estava satisfeito.

- Paciência, senhor! - Morosini sorria. Eu próprio estava intrigado com a parábola. - Para fazer um fantoche, começam com um manequim de madeira... sem cara, sem olhos, apenas membros, tronco e cabeça. São todos parecidos. Depois, o fabricante de fantoches começa a pintar. Algumas pinceladas e aí está um arlequim. A boca para cima está a rir. A boca para baixo está triste. Uma mudança na roupa, uma madeixa de cabelo, e ele é uma ela, uma senhora das mais finas. Vedes o nosso Bruno aqui sentado. Ouvistes os seus argumentos. É, sem sombra de dúvida, um homem inteligente, um intelectual de fama. Mas este outro Bruno, o Bruno do boato, do relato anónimo, da conversa maliciosa que confirmámos por nós mesmos neste tribunal, este outro Bruno é uma invenção, um boneco saltitão, para lá da realidade. Nenhum homem vivo se lhe pode igualar... seja ele santo ou satânico, tão herege como Ário ou santo tão grandioso como o nosso Santo António de Pádua! Aqui termina a minha parábola,, senhores!

Ele fizera mais por mim do que eu ousara esperar, embora não conseguisse perceber porquê. Conseguira reduzir o tribunal ao silêncio. Fiquei sentado no meio da sala como num lago escuro com a água até ao pescoço. Taverna, o núncio, ergueu-se no seu lugar. Estava calmo e surpreendentemente contido. Sorriu e ergueu as mãos num gesto de rendição.

- Deixai-me dizer primeiro com toda a deferência que o Sr. Morosini nos prestou a todos um serviço. Aqui há confusão. Há contradição. Talvez não tenhamos tratado o assunto com a perícia devida. Assim, temos de agir rapidamente para remediar o caso.

- Qual é a forma de agir que Vossa Excelência sugere? - O patriarca estava ansioso por uma solução.

- Ponde Bruno à Prova!

Foi preciso um momento para que o choque se fizesse sentir. Eu fui o último a aperceber-me do horror da situação. Taverna pedia que eu fosse submetido a tortura para obter uma confissão. Senti-me de repente tonto e nauseado. Escondi o rosto nas mãos. O guarda agarrou-me pelos ombros e endireitou-me à força.

O prior protestava:

- Não! Não vou consentir! A intenção da lei é clara. O tribunal não exporá à tortura nenhum homem que não tenha manifestado obstinação e desprezo.

- E eu digo, senhor, que, com base na sua actuação aqui, Giordano Bruno é um mentiroso que nos despreza a todos.

- Discordo - disse o taciturno Foscari. - Ele não se recusou a responder, portanto, não é contumaz. A única mentira que provámos até agora contra ele foi a atribuição dos seus livros a um editor veneziano, e sobre esse ponto ele admitiu a verdade perante nós.

- Tomo nota da discordância. - O núncio era implacável. - O anotador deverá anotá-la também e acrescentar aquilo que vou dizer. Como núncio papal da Sereníssima República, represento o chefe da Igreja Universal, Sua Santidade o papa Clemente. Com isto, a minha patente em nome de Deus, pretendo que Giordano Bruno seja imediatamente posto à Prova. Agora, senhores, o que me dizeis?

Foi Morosini quem respondeu primeiro.

- Um pequeno detalhe, Excelência.

- E qual é?

- Os instrumentos de morte e tortura estão à disposição da República e não da Igreja. Aqui em Veneza não, senhor!

Taverna corou numa ira repentina.

- Recusais-mo, então?

- Ainda não. Aguardo um pedido formal e cortês de Roma, através da vossa pessoa, e dirigido à República, que neste tribunal sou eu próprio.

Recordo-me claramente daquele estranho momento de suspensão, durante o qual eu estive mais atento à habilidade dos dois duelistas do que ao meu próprio destino dependente dos resultados. Taverna, o diplomata, replicou com um formalismo gélido:

- Sr. Morosini, solicito, formalmente e com profundo respeito, a vossa cooperação para levar a cabo o trabalho desta Santíssima Inquisição.

Morosini demorou algum tempo. Podia dar-se a esse luxo. O meu tempo estava a fugir. Ouvi-o entregar-me como um cesto de peixe no mercado.

- Para auxiliar a fé e para melhor cimentar a amizade entre Roma e Veneza, dou o meu consentimento.

Nessa altura devo ter desmaiado. Não me recordo de mais nada até ao momento em que acordei e dei comigo a ser arrastado por dois guardas, de regresso à cela, para onde fui atirado como um saco de milho.

Na manhã seguinte, entregaram-me aos torturadores para a minha primeira experiência de dor. Esticaram-me na roda até eu poder jurar que tinham separado todas as articulações do meu corpo. Não vou alongar-me neste assunto. Histórias de tormentos humanos são um lugar-comum, e para mim ainda hão-de vir coisas muito piores antes do dia da minha libertação deste mundo doente.

Registarei simplesmente que, quando acordei na minha cela, agonizante com as dores, tremendo de febre, Morosini estava inclinado sobre mim, tocando-me com o pé. Ouvi-o troçar-me, mas a falta de luz não me permitiu ver-lhe a cara.

- Pobre homem! Tão inchado com as suas belas filosofias. Nem sequer consegue ver como está o tempo! A trovoada ruge-lhe aos ouvidos e ele continua a querer ouvir os rouxinóis! Acordai, mestre Bruno. Acordai!

Tentei voltar-me, mas cada movimento era uma tortura. Perguntei:

- Quem sois?

- Um amigo. - Ergueu a lanterna para eu poder ver-lhe o rosto.

- Deus me livre de tais amigos!

- Não pode. Tal como vós, ele é prisioneiro dos teólogos e dos inquisidores. Eu sou o único que pode ajudar-vos agora.

- Vós! Vendestes-me aos torturadores!

- Não vendi. Emprestei. - Estava de novo a troçar de mim. - Para vos ensinar, meu amigo, uma sabedoria necessária.

- Dai-me água, pelo amor de Deus. Estou a arder.

Havia um balde de madeira com água. Com uma concha que estava ali perto, Morosini tomou a água e aproximou-a dos meus lábios. Bebi com sofreguidão e caí para trás, exausto pelo esforço.

Morosini perguntou:

- Conseguis ouvir-me e compreender?

- Eu compreendo, senhor. Acreditar é que é difícil.

- Eu gosto de vós, Bruno. - Céus! Ele era tão suave, tão fria e desprezivelmente suave. - Sois um homem de coragem, mas nenhum homem tem coragem suficiente para aguentar a última volta da roda, o último puxão da roldana.

- Ide-vos!

- Sabeis quem vos denunciou?

- Mocenigo.

- Mais, meu amigo. Temos depoimentos e cartas e insinuações verbais de todos os lados. Irmão Celestino, o Capuchinho, Graziano, o Napolitano, outros amigos de prisão com quem gracejastes e troçastes da fé. Há volumes de pequenas traições, o suficiente para queimar uma dúzia de Brunos!

Disse-lhe que estava enojado deste mundo nojento. Ele riu-se e encolheu os ombros.

- Não vão deixar-vos sair dele tão facilmente. Vão pisar-vos, irmão, que nem uvas numa dorna. Vão curtir a vossa pele, pendurá-la na parede e dizer: "Olhai! Este era outro heresiarca, outro Ário, outro Lutero!"

- Heresiarca! Meu Deus. Como é que eles sonham com tais fantasias?

- Eles não sonham, meu amigo. São os mais pragmáticos dos homens, tal como eu.

- Que pretendeis?

- Enganar Mocenigo, cuspir-lhe nos olhos astutos. Sabeis, meu pequeno Sócrates, por que é que Mocenigo vos traiu?

- Ele queria que eu lhe ensinasse magia. Eu não podia, não queria baixar-me à charlatanice. Ele pensou que eu o enganava.

- Oh, meu Deus! A inocência dos académicos! Vede! Vós fostes um presente dos céus para Mocenigo. Ele quer o chapéu de Doge, o que nunca vai conseguir. Procura o apoio de Roma. Pensa que o pode comprar convosco, um brilhante novo herege.

- E vós?

- Eu quero que confesseis amanhã. Não assumindo a culpa, mas pelo menos um bocadinho! Apenas o erro e a ignorância. Assinai qualquer abjuração que eles ditem.

- E o que acontece depois?

- Depois pertenceis a Veneza, não a Roma. Somos nós que ditamos a sentença. Uma pena modesta num convento agradável, onde o vinho seja bom e os livros numerosos. Quando vos tiverem esquecido, dentro de um ou dois anos, dar-vos-emos dinheiro, um salvo-conduto e um cavalo e ireis de volta para a Alemanha.

- Gostaria de poder acreditar em metade de tudo isso.

- A menos que eu consiga convencer-vos, estais perdido. Haverá mais deste tratamento de violência até que consigam quebrar-vos... no corpo e no espírito.

- Dai-me um grão de esperança.

- É fácil, não é? Deixai-os queimar todas as páginas que alguma vez escrevestes; podereis sempre voltar a escrever, se estiverdes vivo! Morto, eles vão espalhar as vossas cinzas ao vento. E quem vai ouvir os gemidos do vosso fantasma à meia-noite? Escutai. Eu conto-vos uma verdade simples. Aqui, estamos todos em coligação. Roma fez o voto de esmagar a heresia. Veneza comprometeu-se a ser a Sereníssima República até ao dia do Juízo Final. Eu quero-vos em liberdade para contrariar a astúcia deste nosso núncio e lançar o mau-olhado sobre Moncenigo. Onde é que isto acaba? Jogamos com cartas de tarot. Quem fica com o Enforcado está marcado para morrer. Lamentamo-lo, mas deixamo-lo ir porque todos nós somos animais da selva que querem viver. Então, irmão Bruno?

- Mais água, pelo amor de Deus!

Ele deitou-me mais água pela garganta abaixo e depois retirou um pequeno frasquito de estanho da algibeira e destapou-o. Num momento de loucura pensei que podia ser veneno, mas ele dirigiu-me aquele sorriso irónico e distorcido e tranquilizou-me.

- Não vos preocupeis! É um preparado para vos ajudar a dormir. Foi feito pelo meu farmacêutico. Podeis sonhar com aquilo que vos propus. Se concordardes, mandarei que vos lavem e vos deixem mais confortável antes de enfrentardes o tribunal para fazer a vossa retractação.

Uma pergunta estranha e irrelevante aflorou-me aos lábios. Era como se outro homem estivesse a pronunciar os meus pensamentos confusos.

- Porquê, Sr. Morosini, por que me haveis roubado a minha raiva?

- Para vos devolver a vossa vida, irmão Bruno.

- Não tenho a certeza se a quero. Pergunto a mim mesmo... Claro que a queria. Naquele local, depois de ter provado pela primeira vez a tortura prolongada, queria-a desesperadamente. Quando o soporífero começou a fazer efeito, senti o alívio, a euforia e a confiança suficientes para me entregar à sugestão proposta por Morosini: não admitir uma culpa específica, mas abjurar de uma maneira geral os erros nos quais pudesse ter incorrido, uma expressão de penitência pelos meus maus actos pessoais.

Sim, disse a Morosini, podia envergar o trajo do penitente, mesmo com mais alguma cinza espalhada por cima da cabeça. Ele disse-me, pelo menos penso que me disse, que se ocuparia do resto. Não o ouvi sair. Não ouvi bater a porta da cela. Andava misericordiosamente a flutuar numa terra-de-ninguém, na orla distante do tempo.

Mais um acto deste drama tinha de ser representado. Alguns dias depois, ainda tremente e a coxear mas lavado e barbeado, fui levado de novo perante os inquisidores. Ficaram, penso eu, um pouco chocados com o meu aspecto, mas era nítido que Morosini os preparara para o meu acto de contrição.

Desta vez, o prior Gabrielli foi gentil comigo. Perguntou-me:

- Giordano Bruno, sois um homem honesto?

Confesso que a pergunta me fez sorrir. Parecia uma forma estranha de começar. Respondi com todo o humor de que me senti capaz.

- Sim, senhor, de uma maneira geral sou. Às vezes, só de uma maneira, outra vezes de forma mais geral. De qualquer forma, acho que sou essencialmente honesto.

- Assim, pergunto-vos, preocupado com o vosso corpo doente e a vossa alma perturbada, estais disposto a retractar-vos dos vossos erros?

Já estava suficientemente refeito para ser cauteloso. Estes homens eram mestres em dividir e subdividir, cortavam em dois cada cabelo da lei. Formulei a minha resposta com um cuidado deliberado.

- De uma maneira geral, senhor, e em abono da verdade, posso admitir erros de escrita e de discurso. Mas, se me confrontais com detalhes, sem um texto, sem força para argumentar, poderia vir a admitir monstruosidades. Isso não farei.

- Estaríeis vós disposto, em tempo de penitência, a penitência seria imposta mas acompanhada de clemência, estaríeis disposto, numa tranquilidade lúcida, a examinar todos os vossos textos, compará-los, reflectir e finalmente abjurar todos os detalhes que pudessem apresentar-se como falsos à doutrina apostólica?

- Sim, prometo, mas reservando-me ainda assim o direito do académico ao argumento.

- O que, dada a boa vontade do académico, nenhum de nós iria negar. Estais todos de acordo, Excelências?

Não ouvi quaisquer palavras, apenas um sussurro como o de um vento ligeiro soprando por cima da mesa. O patriarca ergueu a mão numa ordem de chamamento:

- Aproximai-vos da mesa, irmão.

Quando me levantei, as pernas cederam debaixo de mim. O guarda ergueu-me, conduziu-me até à mesa e forçou-me, não sem uma certa gentileza, a ajoelhar. Tive de me apoiar de encontro à borda da mesa.

O patriarca falou de novo.

- Não há formulário. Falai como se vos dirigísseis a Deus. Fechei os olhos e rezei a um Deus ausente para que me enviasse as palavras. Elas vieram lentas e dolorosas.

- Senhor, perscrutei, com toda a sinceridade, o meu coração e a minha consciência. Sei que dei motivos de escândalo com a minha vida pessoal e levantei suspeitas de tendências heréticas nos meus escritos e discursos. Estou pronto a reformar a minha vida, remediar o escândalo, rejeitar as heresias que nutri e as opiniões erróneas que, se forem contrárias à fé, rejeito de todo o coração.

"Pelos meus pecados e erros, peço humildemente o perdão do meu Deus e o vosso, meus irmãos e superiores. Aceito de boa vontade o castigo que determinardes para mim e peço... peço...

Foi nessa altura que me faltaram as palavras. Caí por terra, com o rosto enterrado nas mãos, soluçando incontrolavelmente. O guarda ajudou-me a pôr-me de pé e reconduziu-me à minha cadeira. Ainda não parara de soluçar quando Taverna, o núncio, se levantou, voltando-se para a assembleia.

- Foi uma cena comovente, talvez um sinal esperançoso de regeneração. Mas Roma não vai ficar satisfeita. Ainda lá existem acusações pendentes contra este homem, assim como em Nápoles. Portanto, tenho de informar a Igreja de Veneza e a República de que o Santo Ofício pede a extradição do irmão Giordano Bruno para enfrentar novo julgamento em Roma.

Fiquei tão chocado que parei de chorar e entrei num estado de terror paralisante. Morosini pôs-se imediatamente de pé, protestando.

- Não podeis fazer isto, senhor! Este tribunal já encerrou o caso.

- Eu não faço nada! - Este foi o momento de vitória de Taverna. - Eu sou o servo e mensageiro de Sua Santidade, tal como vós servis a Sereníssima República. Não devemos lutar entre nós. Os nossos senhores que travem a sua luta, sim? Eles hão-de entender-se. Agora, se Sua Eminência me der permissão, desejo a todos um bom dia.

Foi um dia de negro desespero. Traído uma vez mais, perdera toda a esperança. Não tinha desejo de lutar. Faltava-me a energia até mesmo para falar. Quando me levaram de volta para a prisão, eu era um farrapo. Tive de me apoiar no ombro dos guardas para chegar à cela. Quando me ofereceram comida, fui acometido de vómitos só de olhar para ela. A única coisa que conseguia conservar no estômago era água. Quando tentei dormir fui acometido de dores, tremendo com sintomas de febre. Quando dormia, intermitentemente, assaltavam-me pesadelos de demónios zombeteiros. Gritei a pedir socorro, mas nenhum som saiu dos meus lábios e nenhum socorro se apresentou.

No entanto, estranhamente, a minha condição de prisioneiro melhorou. Fui mudado para uma cela mais alta e mais seca, com uma pequena janela gradeada através da qual via um retalho de céu e onde apareciam todos os dias um casal de pombos que ficavam a descansar e a pavonear-se no parapeito. Alguns dias depois de me ter mudado, fui chamado à presença do director da prisão. Ele tinha uma mensagem e um conselho para mim.

- Há certos senhores nobres que lamentam muito o caminho que as coisas tomaram para vós. Lamentam que certas promessas que vos fizeram não tenham sido cumpridas. Estão a trabalhar para impedir a vossa extradição para Roma, ou pelo menos retardá-la o mais possível. Pediram-me que fizesse certas melhorias nas vossas condições aqui. Como deveis ter notado, já comecei a mudar as coisas para vós.

- Notei e estou-vos grato, senhor.

- Então, aceitai o meu conselho. Escolhei as vossas companhias na prisão com o maior cuidado. Cumpri imediatamente as ordens dos guardas. E controlai a vossa língua. Segundo todas as informações, fostes, no passado, demasiado falador para o vosso próprio bem.

Depois disto, o meu estado de espírito começou a melhorar. Não era apenas a melhoria nas condições, mas o facto de ter agora um intervalo nítido nos interrogatórios e na ameaça constante de tortura. Para todos os efeitos, os venezianos já não tinham mais nada a resolver a meu respeito. O meu encontro com os romanos estava, pelo menos, a ser adiado e a minha saúde começava a melhorar. Segui o conselho do director e procurei os prisioneiros que tinham menos probabilidades de me comprometer.

Um deles era um nostròmo, contramestre de uma das grandes galeras que faziam o comércio ao longo da costa da Dalmácia e a leste até Chipre. Uma noite tinha-se embriagado e entrara numa desordem com a Guarda, durante a qual pronunciara algumas blasfémias, designadamente que os muçulmanos administravam melhor a justiça do que os chamados cristãos. A rixa custara-lhe uma multa e a blasfémia uma entrevista desconfortável com a Inquisição. Disse-lhe que eu próprio tinha os meus problemas com o Santo Ofício e que ambos devíamos manter-nos o mais longe possível desse assunto. Depois disso, tornámo-nos amigos e ele distraía-me durante horas com histórias da sua vida de viagens.

Ele tinha a nítida percepção da realidade política característica de um homem prático. O Adriático pertencia aos venezianos, que não acreditavam no comércio livre. De Veneza, controlavam o norte; da sua fortaleza de Corfu, controlavam a entrada sul do golfo Adriático. Exigiam e obrigavam violentamente que toda a mercadoria entrada ou saída do Adriático aportasse primeiro a Veneza. Nenhum navio mercante podia navegar para Creta, Corfu ou para as cidades da Dalmácia sem pagar uma taxa que garantia a chegada das suas mercadorias em primeiro lugar às docas de Veneza. As infracções eram rapidamente punidas. As minas de sal de Trieste foram demolidas. As galeras venezianas assediavam os navios de cereais que forneciam a república mercantil de Ragusa, que era, ao mesmo tempo, vassala dos turcos e protegida pelo papado.

Mas, segundo me informou o meu amigo marinheiro, o sistema era "uma rede cheia de buracos". As mercadorias eram constantemente roubadas nos rios e nas estradas da Dalmácia e nos portos mais pequenos, onde os grandes navios de Veneza não podiam entrar. Ferro de Trieste era vendido em Itália, lã e vinho iam da Apúlia para Kador e os assaltantes corsários tiravam o seu quinhão de tudo isso. Ele próprio tivera que nadar para salvar a vida, quando uma galera na qual servia fora atacada por doze galeotas turcas em frente de Valora.

Por outro lado, ele tinha ganho o suficiente para comprar duas mulheres, irmãs, no mercado de escravos de Trieste. No preciso momento em que ele falava, aguardavam-no em casa para lhe dar as boas-vindas - aguardavam e trabalhavam, claro, conservando as camas quentes e a caixa do dinheiro cheia até que ele saísse daqueles apuros. O posto que ocupara estava ainda à sua disposição. Bons marinheiros eram difíceis de encontrar e os mercadores proprietários do navio já tinham feito uma petição para que o libertassem mais depressa.

Quando lhe perguntei que espécie de trabalho faziam as suas mulheres, ele sorriu e disse:

- Aquilo que as mulheres sabem fazer melhor, claro, mas trabalham em minha casa, não nas ruas. Os meus amigos das galeras são os seus melhores clientes e elas mantêm-se afastadas dos arruaceiros. Tenho de pagar tributo à Guarda, claro. Nada fica por pagar na Sereníssima, mas o sistema foi-me bastante favorável até que eu falei de mais e disse que o Islão era uma religião de convivência mais fácil do que o cristianismo. Não concordais comigo?

Eu tinha sido prevenido para não entrar neste campo, portanto limitei-me a sorrir e murmurei uma banalidade: i gusti son gusti, cada um tem os seus gostos. Também isso podia ser traduzido como heresia, mas eu ainda podia ter dito muito mais: que não se ensina um homem a amar Deus esticando-o na roda e que não se justifica a roda dizendo à vítima que Cristo também sofreu açoites e a crucificação.

Por que será que recordo este momento longínquo naquele que será certamente o meu depoimento final? Uma das razões é que ele me deu o mesmo prazer que gozava na juventude, quando me sentava debaixo de um carvalho trocando histórias com um companheiro de classe. Outra é que ele me ajudou a libertar o espírito do emaranhado que acumulara ao longo dos anos: as mitologias elaboradas, as emperradas convenções literárias, os vocabulários de teólogos e filósofos.

Estou tão cansado de tudo isto! Se Deus fala a todos nós, deve fazê-lo na nossa língua materna. Quantos de nós conhecem outra? Se Ele alguma vez Se mostra, é nas maravilhas do dia-a-dia, no bater das asas de um pássaro, no desabrochar de uma flor, no rosto de um bebé adormecido. Não é muito difícil acreditar na ressurreição quando, da "pequena morte" do acto de amor, nasce uma criança e quando a mesma criança é alimentada com o grão que nasce das bocas dos mortos esquecidos.

Quanto ao resto, o que é? Bah! Uma ladainha adulterada, gestos sem sentido para distrair a assistência e fazê-los acreditar nos truques dos prestidigitadores. Esta é uma das acusações por que serei morto. Segundo eles, afirmei que os milagres de Cristo eram truques de prestidigitação. De facto, o que disse era completamente diferente: "Jesus não necessitava de truques de prestidigitação. Ele próprio era a mensagem e o milagre. Aqueles que relatavam a sua vida sentiam a necessidade de a embelezar com maravilhas. Estavam enganados."

Que importância tem isso agora? Quando eu estiver morto, a mentira tornar-se-á uma lenda para justificar a injustiça. O falatório há-de continuar. Os charlatães farão a sua magia nas praças nos dias de mercado. O verdadeiro milagre continuará todos os dias, despercebido, excepto por aqueles raros que recebem a graça de o ver e pelos muitos que, como eu, o vêem e louvam, mas têm de se ausentar cedo de mais desse prazer.

Um último pensamento antes de dormir. Amanhã vou ser barbeado e banhado. Não haverá tempo para escrever, com pessoas a entrar e a sair todo o tempo o risco de ser descoberto é demasiado grande. Rezo para que a água do banho esteja quente.

 

4 DE JANEIRO

O banho e a visita do barbeiro foram adiados para amanhã, véspera daEpifania. É isto o que nos fazem na prisão: acenam-nos com pequenas esperanças e depois, quando estendemos a mão para as agarrar, afastam-nas. É mais uma crueldade mesquinha, recordar ao urso dançarino que o dono segura a corda que provoca a dor. Não há nada a fazer a não ser fingir indiferença, o que neste caso não é difícil. Sei que eles vão ter de me preparar antes da visita do mestre-geral, e assim tenho mais um dia para continuar esta crónica.

Nos últimos meses da minha estada na prisão de Veneza, não fazia bem ideia do que se passava no exterior. Sabia que os romanos me tinham reclamado e que os venezianos estavam a resistir ao pedido como uma afronta à sua soberania. Eu era simplesmente o volano, o volante no seu jogo de política. O papa Clemente VIII, Ippolito Aldo-brandini, já estava há quase um ano no trono, mas era um negociador obstinado e formidável, a quem mais valia manter como amigo do que transformar em inimigo.

Assim, por uma maioria de votos do Senado em Janeiro de 1593, os venezianos decidiram entregar-me ao Santo Ofício em Roma. Fui posto num navio que me transportou para o porto Adriático de Ancona. Daí, fui transportado por terra através dos Apeninos.

Deixei a prisão algemado, mas a bordo do navio as algemas foram-me retiradas e quando viajámos por terra para Roma ainda estava livre delas. Uma viagem de Inverno através dos Apeninos era longa e difícil. Passámos muito tempo a rebocar e a empurrar o pesado veículo para fora de atoleiros e montes de neve. Os meus guardas eram bastante amáveis. Partilhámos o abrigo e a comida, o vinho e a tagarelice nas estalagens ao longo do caminho. Mas logo que chegámos a Roma fui algemado de novo e entregue ao director da prisão da Santa Inquisição. Ele fez-me um acolhimento gelado, leu-me as regras decretadas pelo Santo Ofício para a conduta dos detidos. Nada de conversas de dia ou de noite, entre celas, nada devia ser lido ou escrito que não tivesse uma relação directa com o julgamento. Nenhuma troca de mensagens ou cartas; ausência de medicamentos e de ajuda legal. se um prisioneiro se mostrasse relutante em cooperar, uma punção designadamente por meio de tortura, podia ser infligida por ordem do director por qualquer quebra de disciplina. Podia também ser infligida por sentença do tribunal se o prisioneiro se recusasse a responder com total abertura a todas as perguntas que lhe fossem feitas, mesmo aquelas que pudessem revelar novas falhas ou inculpar outros. Todos os meses o tribunal receberia uma lista dos prisioneiros e do progresso dos casos contra eles.

Depois dessa oração de boas-vindas, fui enfiado numa cela escura e tristonha algures nas entranhas do edifício. Ao longo dos anos vim a saber que esse mesmo edifício fora em tempos o palácio de um certo cardeal Pucci, que se encontrava perto da Basílica de São Pedro e mesmo ao lado do quartel da cavalaria ligeira. No andar superior ficavam os gabinetes da própria Inquisição. Os pisos inferiores os estábulos e adegas, que eram divisões subterrâneas, foram convertidos em celas. No que dizia respeito a nós, prisioneiros, era como se estivéssemos a viver em cavernas na Lua. A minha primeira cela, eu sei, ficava abaixo do nível do Tibre e a humidade escorria pelas paredes.

No entanto, sendo um optimista incurável - ou talvez antes um fantasista incurável - disse para mim mesmo que estava agora a viver nos domínios do próprio papa e que, mais tarde ou mais cedo poderia apelar directamente para ele. Este, julgava eu, era o juiz de direito, de facto e de jure. Se toda a restante justiça falhasse, para onde me viraria a não ser para o sucessor de Pedro, investido por Cristo com a plenitude do poder: ligar, desligar, fazer e desfazer coisas, recolher as almas perdidas nos caminhos e desvios e conduzi-las à salvação.

Eu sabia, claro, que antes de conseguir chegar ao pontífice, teria de ser uma vez mais triturado entre as mós da Inquisição. O processo romano ia ser mais demorado do que o veneziano. Havia muito mais a percorrer, muito mais depoimentos a recolher. No entanto, eu acreditava que, se conseguisse aguentar o tempo suficiente perante o tribunal e manter-me fora das mãos dos torturadores, me encontraria um dia na presença do vigário de Cristo e receberia tanto a sua absolvição da censura como a sua afirmação pessoal da minha ortodoxia.

Agora o meu sonho transformou-se num fruto do mar Morto, poeira e cinzas na minha boca. Os meus apelos chegaram ao papa. Ele recusou-se a lê-los. Permanece um pequeno vestígio, como a última folha de Outono vogando com o vento do Inverno.

No dia da Epifania, que celebra a vinda dos Magos em visita ao Menino Jesus, o mestre-geral da minha Ordem virá visitar-me em particular. A sua posição a meu respeito é dúbia. Eu fugi à jurisdição da Ordem, mas ainda estou sujeito a ela. Pedi muitas vezes para ser libertado dos meus votos, para poder entrar de novo na família da Igreja como um simples sacerdote. Essa libertação tem de ser concedida judicialmente pelo Santo Pai, mas normalmente seria concedida sem problema por insistência do mestre-geral. Este recusou-se a apoiar a minha petição. Ainda me considera membro da Ordem. Por isso, por mais pródigo que eu seja, continuo a ser filho da casa. Tenho direito à caridade da família e à justiça natural.

O mestre-geral é um homem muito inteligente. Conhece este argumento tão bem como eu, mas é prisioneiro de uma outra armadilha. Ordens religiosas grandes e antigas como a dos Frades Pregadores e dos Franciscanos são, na realidade, as legiões do pontífice. São móveis, podem ser enviadas para qualquer parte do mundo. São directamente responsáveis perante a Santa Sé e não perante os bispos locais. São as tropas de choque da Igreja Imperial e, ao mesmo tempo que são respeitadas, são igualmente temidas pelas autoridades provinciais, cujo poder limitam ou retiram.

Os chefes destas Ordens religiosas, os comandantes das legiões, são, portanto, homens de poder; mas o seu poder também é limitado, pois são eleitos por votação secreta dos membros da Ordem para um período de tempo limitado, e estão obrigados de qualquer forma a obedecer à Santa Sé. No caso dos Frades Pregadores, as suas funções incluem há séculos o controlo da Inquisição.

Portanto, o meu problema é fácil de definir. Se o mestre-geral interceder por mim junto do papa, tenho uma hipótese. Se não, estou perdido.

Vedes agora como é importante esta simples questão do banho e do barbear. Não quero apresentar-me ao meu pai espiritual como um maltrapilho saído da valeta. Preciso mais do seu respeito do que da sua piedade. Quero que ele me recomende a Sua Santidade como um académico de substância, aberto ao conselho sensato e à correcção. Não quero ser empurrado com desprezo para uma eternidade duvidosa.

Não é despido de significado que em todas as cerimónias de excomunhão a palavra "degradar" seja repetida várias vezes e um clérigo de alta patente seja escolhido e remunerado com dois scudi para executar o acto de degradação.

Não posso escrever mais hoje. A contemplação do meu estado miserável reduziu-me a uma melancolia tão profunda que penso na hipótese de abrir o pulso como Petronius Arbiter e deslizar tranquilamente para o esquecimento. No entanto, ao contrário de Petrónio, não terei nem o som de música nem as falas gentis de amigos. Ainda tenho tempo para escolher uma ocasião melhor - além disso, quem sabe para que pesadelos eu poderia acordar.

 

Bruno tinha agora cinquenta e dois anos. Embora o seu corpo tivesse sido torturado e enfraquecido pelos longos e dolorosos anos de encarceramento, ele mantinha-se firme na sua determinação. Sabia no mais fundo de si mesmo que não voltara as costas a Deus; ainda acreditava que aquilo que defendia não estava em oposição com Deus, mas apenas questionava alguns pontos aceites. Pediu repetidamente que lhe dessem a oportunidade de explicar as suas convicções e filosofias, o que lhe foi sempre negado. A frustração de Bruno aumentou quando lhe negaram a possibilidade de articular as suas opiniões perante os inquisidores papais. A 20 de Janeiro de 1600, Bruno foi uma vez mais levado perante os inquisidores, desta vez na presença do papa Clemente VIII. Todas as anteriores petições dirigidas ao papa tinham falhado: Clemente recusara simplesmente lê-las ou torná-las em consideração. Não há dúvidas de que o papa ordenou que o julgamento fosse terminado e a sentença pronunciada. Bruno já fora traído antes com a promessa de liberdade em troca da retractação e assim acabou por aceitar a futilidade da sua procura da verdade. Compreendeu que os inquisidores e a Igreja se sentiam ameaçados com as suas perguntas e observações e que nenhum homem estaria preparado para lhe considerar os esclarecimentos. A realidade e a brutalidade da sua escolha era nítida. Recusou-se a abjurar. Decidiu tomar a opção de dissidente, o que lhe custou a vida. A heresia era punível com a morte pelo fogo no poste.

A 9 de Fevereiro, o tabelião da Inquisição, Flaminio Adriano, leu em voz alta a sentença perante Bruno e a assembleia então reunida. Depois de mencionar os principais acontecimentos da vida de Bruno e de enumerar oito afirmações heréticas, a sentença foi lida como se segue:

Tendo evocado o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua gloriosíssima Mãe Maria, sempre Virgem, na causa das atrás mencionadas causas trazidas perante este Santo Ofício entre, por um lado, o procurador fiscal do dito Santo Ofício, e por outro lado, vós mesmo, o acima citado Giordano Bruno, trazido a julgamento e considerado culpado, impenitente, obstinado e pertinaz; nesta nossa sentença, determinada pelo Conselho e opinião dos nossos conselheiros, os reverendo padres, mestres na Sagrada Teologia e doutores em ambas as leis, nós por este meio, nestes documentos, publicamos, anunciamos, pronunciamos, condenamos e declaramos que vós, irmão Giordano Bruno, sois um herege impenitente e portanto incorrestes em todas as censuras eclesiásticas e sofrimentos do Santo Cânone, das leis e constituições, tanto gerais como particulares, impostas a tais impenitentes confessos, hereges pertinazes e obstinados, pelas quais, como tal, nós vos degradamos verbalmente e declaramos que tendes de ser degradado.

E por este meio ordenamos e mandamos que sejais efectivamente degradado de todas as vossas ordens eclesiásticas, tanto maiores como menores, nas quais fostes ordenado segundo a Lei Sagrada do Cânone; e que vós tendes de ser afastado, e nós vos afastamos do nosso fórum eclesiástico e da nossa santa e Imaculada Igreja, de cuja misericórdia vos tornastes indigno.

E ordenamos e mandamos que sejais entregue ao Tribunal Secular, para que possais ser punido com o castigo que mereceis, embora rezemos seriamente para que ele possa mitigar o rigor das leis relativas aos sofrimentos da vossa pessoa, para que não fiqueis em perigo de morte ou de mutilação dos vossos membros.

Além disto, condenamos, reprovamos e proibimos todos os vossos livros anteriormente mencionados e os vossos outros livros e escritos, como heréticos e erróneos, contendo muitas heresias e erros. Ordenamos que todos aqueles que tenham chegado, ou possam chegar no futuro, às mãos do Santo Ofício, sejam publicamente destruídos e queimados na Praça de São Pedro, diante dos degraus, e que os mesmos sejam colocados no índex dos Livros Proibidos.

E tal como mandámos, assim se fará.

E assim dizemos, pronunciamos, sentenciamos, declaramos, degradamos, mandamos e ordenamos, afastamos e entregamos, e rezamos deste e de todos os outros métodos e formas que razoavelmente podemos e devemos.

Assim nós nos pronunciamos, os inquisidores cardeais-gerais, cujos nomes subscrevem este documento.

Bruno ouviu a sentença, olhou de frente os inquisidores e respondeu:

- Neste momento, meus senhores, talvez o vosso receio em pronunciar o julgamento sobre mim seja maior do que o meu em recebê-lo.

Nesse dia ele foi degradado, entregue ao governador de Roma e encarcerado na Tor di Nona, uma das prisões senatoriais na margem esquerda do Tibre, não muito longe de Ponte Sisto e Mole Adriane. A prisão que albergou os mais temíveis criminosos de Roma.

É interessante notar que um dos homens que assinaram o documento da condenação de Bruno foi o cardeal Roberto Bellarmino, conhecido pelos seus contemporâneos como o mais brando dos homens, e no entanto ele tomou parte nos julgamentos tanto de Bruno como de Galileu. Bellarmino foi canonizado em 1930.

Foram concedidos a Bruno mais oito dias para se retractar, mas ele permaneceu obstinado na sua decisão. A 17 de Fevereiro de 1600, uma delegação de monges e sacerdotes de SanfOrsola foram às seis horas da manhã à Tor di Nona. De novo pediram a Bruno que abjurasse; ele voltou a recusar. Bruno foi então despido da cintura para cima, coberto com outra vestimenta com chamas pintadas e levado para o local da sua execução no Campo del Fiori. Aí foi despido, e amarrado nu a um poste, e queimado vivo. Os monges que o acompanhavam cantaram litanias durante todo o tempo.

Há relatos contraditórios dos momentos finais de Bruno. Alguns contam que foi amordaçado para o impedir de proferir mais heresias. Segundo um passante, Bruno teria dito que morria como mártir e de boa vontade, e que, com todo aquele fumo, a sua alma certamente teria ido para o Céu. Segundo outro, ele "praguejava e não queria escutar ninguém". Kaspar Shoppe, de Breslau, contemporâneo de Bruno, que esteve presente à leitura da sentença e à sua morte, relata assim a cena da morte: "Quando a imagem de Cristo lhe foi apresentada, ele recuou e recusou-a com ar furioso."

É bem possível que Bruno tenha escrito inadvertidamente o próprio epitáfio numa das suas obras em latim, De monade, publicada em Francoforte, em Junho de 1590. Os seus escritos caracterizavam-se muitas vezes pelo imaginário mitológico e pelo uso de pseudónimos. O galo aparece como uma das figuras em De monade, e Bruno pôs as seguintes palavras na sua boca:

Lutei muito, pensei que podia ganhar, mas o destino e a natureza reprimiram os meus estudos e os meus esforços. Mas já é qualquer coisa estar no campo de batalha, porque ganhar depende muito da sorte. Mas eu fiz tudo o que podia e não creio que alguém da geração vindoira o vá negar. Não tive medo da morte, nunca cedi a ninguém, escolhi uma morte corajosa em vez de uma vida de cobardia.

A 9 de Junho de 1889, no preciso local do Campo del Fiori onde Bruno morreu, representantes da faculdade e estudantes da Universidade de Roma descerraram uma estátua de Bruno executada por um escultor, Ettore Ferrari. Uma medalha foi cunhada para comemorar o acontecimento; na sua inscrição pode ler-se: A Giordano Bruno, do século que ele adivinhou, em Roma, no local onde foi queimado.

 

                                                                                            Morris West  

 

                      

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