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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÚLTIMA DELEGACIA - P.3 / Patricia Cornwell
A ÚLTIMA DELEGACIA - P.3 / Patricia Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A curiosidade sobre Jaime Berger chia na superfície dos pensamentos de Rose. Posso ver as perguntas surgindo em seus olhos. Mas ela não pergunta. Sabe muito bem como me sinto sobre o caso ser julgado em Nova York e não aqui, e que não quero falar sobre isso. “Acho que o doutor Chong e o doutor Fielding já estão no necrotério”, ela diz. “Ainda não vi a doutora Forbes.” Ocorre-me que mesmo que o caso de Mayo Brown vá adiante hoje — mesmo que os tribunais não fechem por causa da neve —, Righter não vai me ligar. Ele vai estipular meu relatório e convocar um toxicologista para depor, no máximo. Não há maneira de Righter me encarar depois que o chamei de covarde, especialmente porque a acusação é verdadeira e uma parte dele deve saber disso. Provavelmente ele vai encontrar um jeito de me evitar pelo resto de sua vida, e esse pensamento desagradável leva a outro quando cruzo o hall. O que tudo isso me pressagia? Empurro a porta do banheiro feminino e faço a transição dos tapetes e painéis civilizados para uma série de vestiários, um mundo de riscos biológicos, desolação e ataques violentos aos sentidos. No caminho, livramo-nos dos sapatos e da roupa, guardando-os em segurança em armários com chave verdeazulados. Mantenho um par Nike especial estacionado perto da porta que dá para a sala de autópsia. Os calçados jamais devem pisar outra vez o território dos vivos, e quando for hora de me livrar deles vou queimá-los.


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Ponho desajeitadamente o paletó, a calça e a blusa branca de seda em cabides, meu cotovelo esquerdo latejando. Luto para me enfiar em uma beca cirúrgica Mega Shield, que tem palas frontais e mangas resistentes a vírus, costuras seladas e uma gola hermeticamente fechada que é um elegante colarinho alto. Ponho os protetores de calçados, depois touca e máscara cirúrgicas. O toque final de minha proteção contra fluidos é um escudo para o rosto, para evitar que meus olhos sejam atingidos por salpicos que contenham horrores como hepatite ou HIV. Portas de aço inoxidável abrem-se automaticamente, e meus pés fazem som de papel sobre o piso de vinil cor da pele com acabamento em epóxi do setor de autópsia, onde há risco biológico. Médicos de azul pairam sobre cinco mesas de aço inoxidável brilhante presas a pias de aço, a água correndo, tubos sugando, as radiografias em caixas de luz formando uma galeria em branco-epreto de sombras em forma de órgãos, ossos opacos e pequenos fragmentos de bala brilhantes que, como lascas de metal soltas em aviões, quebram coisas, provocam vazamentos e interrompem o funcionamento de engrenagens vitais. De grampos dentro de gabinetes de segurança, pendem cartões de amostras de DNA que foram tingidos com sangue. Secando debaixo de uma coifa, parecemse estranhamente com bandeirinhas japonesas. De monitores de TV em circuito fechado instalados nos cantos, um motor de carro ruge alto no estacionamento, uma funerária que chega para entregar ou pegar uma encomenda. Esse é meu teatro. É onde atuo. Por mais que a média das pessoas possa achar indesejáveis os odores, as visões e os sons mórbidos que correm para me saudar, sinto-me abrupta e imensamente aliviada. Meu coração se exalta quando os médicos levantam os olhos para mim e me dão bom-dia com a cabeça. Estou em meu
elemento. Em casa. Um fedor acre de fumaça infecta a comprida sala de teto alto, e localizo o corpo nu, magro e coberto de fuligem em uma maca com rodízios coberta com lençol colocada fora do local de passagem. Sozinho, frio e calado, o homem morto espera sua vez. Espera por mim. Sou a última pessoa com quem ele jamais falará em uma linguagem que importa. O nome na etiqueta do dedo do pé, rabiscado com marcador permanente, é, lamentavelmente, John Do. Alguém não conseguiu soletrar Doe corretamente. Abro um pacote de luvas de látex e fico satisfeita por conseguir enfiar uma por cima do gesso, que também está protegido pela manga à prova de fluidos. Não estou usando a tipóia e por enquanto não precisarei recorrer à mão direita para fazer autópsias. Embora ser canhota em um mundo destro traga dificuldades, não deixa de ter vantagens. Muitos de nós são ambidestros ou pelo menos razoavelmente funcionais com ambos os lados. Meus doloridos ossos fraturados emitem lembretes de que nem tudo vai bem em meu mundo, não importa com que tenacidade eu enfrente minhas tarefas, quão intensamente me concentre no trabalho. Circulo devagar meu paciente, inclinando-me para perto, olhando. Uma seringa ainda está enfiada na curva de seu braço direito, e a parte superior de seu corpo está coberta por bolhas de queimaduras de segundo grau, cujas bordas têm coloração vermelho brilhante. A pele está raiada de preto com fuligem, que é espessa dentro do nariz e da boca. Ele me diz que estava vivo quando o fogo começou. Tinha de estar respirando, para inalar fumaça. Tinha de ter pressão arterial, para que fosse bombeado fluido para dentro de suas queimaduras, para que estas formassem bolhas e tivessem a borda vermelho brilhante. As circunstâncias de um incêndio provocado e a agulha em seu braço certamente poderiam sugerir suicídio. Mas no alto de sua coxa direita ele tem uma contusão que está inchada até o tamanho de uma tangerina e é roxa. Palpo-a. Enrijecida, dura como rocha. Parece recente. Como aconteceu? A agulha está em seu braço direito, indicando que, se ele próprio aplicou a injeção, muito provavelmente é canhoto, embora o braço direito seja mais musculoso que o esquerdo, o que sugere que ele é destro. Por que ele está nu? “Ainda não temos a identificação dele?”, ergo a voz em direção a Jack Fielding. “Nenhuma outra informação.” Ele encaixa uma lâmina nova em um bisturi. “O detetive deveria estar aqui.” “Foi encontrado despido?” “É.” Corro meus dedos enluvados pelo cabelo grosso, carbonizado, do homem morto para ver de que cor ele é. Não vai ficar da cor certa até o lavarmos, mas o pêlo do corpo e os pêlos púbicos são escuros. Ele está barbeado e tem as maçãs do rosto saltadas, o nariz fino e o maxilar quadrado. As queimaduras da testa e do queixo precisarão ser cobertas com maquiagem funerária antes que possamos divulgar uma foto dele para efeito de identificação, se for o caso. Ele está totalmente rígido, braços alinhados com os lados do corpo, dedos levemente curvados. O livor mortis, ou a migração do sangue para regiões pendentes do corpo devido à força da gravidade, também está estabilizado, causando uma
vermelhidão forte nas laterais das pernas e das nádegas, cuja parte de trás está esbranquiçada onde quer que tenham sido encostadas, na parede ou no chão, depois da morte. Seguro-o inclinado sobre um dos lados do corpo para verificar ferimentos nas costas e encontro abrasões lineares paralelas sobre a omoplata. Marcas de arrasto. Há uma queimadura entre os ossos do ombro e outra na base da nuca. Grudado a uma das queimaduras, há um fragmento de um material semelhante a plástico, estreito, com cerca de cinco centímetros de comprimento, branco e com um pequeno texto impresso em azul, como os que se podem ver na parte de trás de uma embalagem de produto comestível. Removo o fragmento com fórceps e seguro-o contra a lâmpada cirúrgica. O papel parece mais um plástico fino e flexível, material que associo com embalagem de balas ou salgadinhos. Decifro as palavras este produto e 9-4 EST, um número de telefone para ligações gratuitas e um endereço de website. O fragmento vai para dentro de um saco de evidências. “Jack?”, chamo, e começo a recolher formulários em branco e diagramas corporais, prendendo-os em uma prancheta. “Não posso acreditar que você vai trabalhar com esse gesso.” Ele caminha pela sala de autópsia, os bíceps salientes espremidos nas mangas pequenas de seu jaleco. Meu assistente talvez seja famoso por seu corpo, mas nenhuma quantidade de exercícios de levantamento de peso ou de creme de chocolate Myoplex com alto teor de proteína consegue impedi-lo de perder cabelo. É sinistro, mas nas últimas semanas seu cabelo castanho-claro começou a cair diante de nossos olhos, grudando na roupa dele ou sendo levado pelo ar, como se ele estivesse na muda. Ele faz cara feia ao ver o erro de grafia na etiqueta do dedo do pé. “O cara do serviço de remoção deve ser asiático. John Dooo.” “Quem é o detetive?”, pergunto. “Stanfield. Não conheço. Não fure sua luva senão você vai passar as próximas semanas usando um risco biológico.” Ele indica meu gesso coberto de látex. “Por falar nisso, o que você faria?” “Tiraria e poria um novo.” “Então talvez devamos ter gessos descartáveis aqui.” “Estou com vontade de tirar de qualquer jeito. O padrão de queimadura desse cara não está fazendo sentido para mim”, digo a ele. “Sabemos a que distância o corpo estava do fogo?” “A cerca de três metros da cama. Me disseram que a cama é a única coisa que queimou, e só parcialmente. Ele estava nu, sentado no chão, com as costas contra a parede.” “Eu me pergunto por que só a parte superior do corpo foi queimada.” Aponto queimaduras discretas do tamanho e do formato de moedas de prata de um dólar. “Braços, peito. Tem uma aqui no ombro esquerdo. E estas no rosto. E também há várias nas costas, que deveriam ter sido poupadas se ele estava encostado na parede. E as marcas de arrasto?” “Na minha opinião, quando os bombeiros chegaram lá arrastaram o corpo para o estacionamento. Uma coisa é certa, ele devia estar inconsciente ou incapacitado quando o incêndio começou”, diz Jack. “Não consigo imaginar um
motivo para alguém ficar lá sentado se queimando e aspirando fumaça. Obviamente é essa época de boas-festas.” Meu assistente exibe uma fadiga de ressaca que me leva a suspeitar que teve uma noite muito ruim. Imagino que ele e a ex-mulher tiveram uma de suas explosões. “Todo mundo se matando. Aquela mulher ali.” Ele aponta para o corpo na mesa 1, onde o dr. Chong está montado numa escada de mão, tirando fotos. “Morta no chão da cozinha, um travesseiro, um lençol. O vizinho ouviu um tiro. A mãe a encontrou. Há um bilhete. E atrás da porta número dois” — Jack olha para a mesa 2 — “uma morte num automóvel que a polícia estadual suspeita que é um suicídio. Ela tem ferimentos por todo o corpo. O carro foi cravado numa árvore.” “As roupas dela vieram?” “Sim.” “Vamos fazer radiografias dos pés dela e pedir ao laboratório que verifique a planta dos pés, para ver se ela estava freando ou acelerando quando bateu na árvore.” Sombreio áreas de um diagrama corporal, indicando fuligem. “E temos um diabético com um histórico de overdose”, Jack recita nossa lista de hóspedes da manhã. “Foi encontrado no quintal. A questão é drogas, álcool ou exposição ao tempo.” “Ou uma combinação de tudo isso.” “Certo. Mas entendo o que você está dizendo sobre as queimaduras.” Ele se inclina para olhar mais de perto, piscando muito, o que me lembra que usa lentes de contato. “E é estranho que todas elas tenham mais ou menos o mesmo tamanho e o mesmo formato. Quer que eu a ajude nisso?” “Obrigada. Eu dou um jeito. Como você está?” Ergo a vista da prancheta. Os olhos dele estão cansados, sua beleza infantil parece tensa. “Talvez possamos sair para tomar um café”, ele diz. “Um dia desses. E eu é que devo perguntar como você está.” Dou um tapinha em seu ombro para informá-lo de que estou bem. “Bem, na medida do possível, Jack”, acrescento. Começo o exame externo de John Doe com um PERK, ou kit de recuperação de evidências físicas. Trata-se de uma tarefa decididamente desagradável, que envolve limpar orifícios, cortar as unhas da mão e arrancar cabelos da cabeça e os pêlos púbicos e de outras áreas do corpo. Nós usamos o PERK em todos os corpos nos quais haja alguma razão para suspeitar de qualquer coisa que não seja morte natural, e sempre o uso num corpo que esteja nu, a menos que haja algum motivo aceitável para que a pessoa não estivesse vestida quando morreu — na banheira ou na mesa de operação, por exemplo. Normalmente, não poupo meus pacientes de indignidades. Não posso. Às vezes as evidências mais importantes se escondem nas cavidades mais escuras, mais delicadas, e estão grudadas debaixo das unhas e do cabelo. Ao violar os lugares mais íntimos desse homem, descubro cicatrizes de lacerações em seu ânus. Ele tem abrasões nos cantos da boca. Há fibras aderidas a sua língua e à parte interna de suas bochechas. Percorro cada centímetro dele com uma lente, e a história que ele conta se torna mais suspeita. Seus cotovelos e joelhos estão levemente escoriados e cobertos com poeira e fibras, que coleto ordinariamente pressionando-as com o
lado adesivo de post-its, os quais guardo em sacos plásticos selados. Sobre as proeminências de ambos os pulsos há abrasões marrom-avermelhadas ressecadas formando circunferências incompletas e diminutas lesões de pele. Extraio sangue das veias ilíacas e fluido vítreo dos olhos, e tubos de ensaio sobem pelo elevador para o laboratório de toxicologia do terceiro andar para testes imediatos de álcool e monóxido de carbono. Às dez e meia, estou rebatendo o tecido da incisão em Y quando noto um homem alto, mais velho, vindo em direção a minha estação de trabalho. Ele tem um rosto largo e cansado e se mantém a uma distância segura de minha mesa, e traz na mão um saco de papel marrom de supermercado, cujo topo está dobrado e selado com fita vermelha usada para identificar evidências. Tenho uma visão instantânea de minhas roupas ensacadas sobre minha mesa de jantar de eucalipto avermelhado. “Detetive Stanfield, suponho.” Suspendo uma aba de pele e a solto das costelas com pequenos e rápidos golpes de bisturi. “Bom dia.” Ele se retrai quando vê o corpo. “Bom, imagino que não para ele.” Stanfield não se preocupou em colocar um traje protetor sobre seu desajeitado terno de espinha-de-peixe. Não usa luvas nem protetores de sapato. Olha para meu volumoso braço esquerdo e se abstém de perguntar como o quebrei, o que me diz que ele já sabe. Lembro-me de que minha vida esteve em todos os noticiários, que me recuso terminantemente a acompanhar. Anna meio que me acusou de ser covarde, até onde uma psiquiatra está autorizada a acusar, e na verdade ela jamais usaria a palavra “covarde”. “Negação”, é o que ela diz. Não me importo. Permaneço longe dos jornais. Não vejo nem ouço nada que seja dito a meu respeito. “Desculpe ter demorado tanto, mas as estradas estão prestes a se tornar intransitáveis, senhora”, diz Stanfield. “Espero que a senhora tenha correntes para os pneus, porque eu não tinha e fiquei preso. Tive de chamar o reboque e depois esperar colocarem as correntes, e é por isso que não cheguei aqui antes. A senhora descobriu alguma coisa?” “A taxa de CO dele é de setenta e cinco por cento.” Em linguagem popular, monóxido de carbono. “Percebeu como o sangue é vermelho-cereja? Típico em níveis altos de CO.” Pego tesouras para costelas do carrinho cirúrgico. “A taxa de álcool é zero.” “Então foi o fogo que o pegou, certo?” “Sabemos que ele tinha uma agulha no braço, mas a causa da morte é envenenamento por monóxido de carbono. Infelizmente isso não diz muita coisa.” Corto as costelas. “Ele tem alargamento anal — evidência de atividade homossexual, em outras palavras — e seus pulsos foram amarrados em algum momento anterior à morte. Parece que foi amordaçado.” Indico as escoriações nos pulsos e nos cantos da boca. Os olhos de Stanfield se arregalam. “As escoriações nos pulsos não formaram casca”, prossigo. “Não parecem velhas, em outras palavras. E como ele tem fibras na boca, pode ter certeza de que foi amordaçado na hora da morte ou perto disso.” Seguro uma lente sobre a fossa anticubital, ou curva do braço, e mostro a Stanfield duas minúsculas manchas de sangue. “Locais de injeção recentes”, explico. “Mas o interessante é que ele não
tem nenhuma marca de agulha antiga que sugira um histórico de uso de drogas. Vou enviar um pedaço de fígado para verificar se há triadite — uma inflamação do sistema de suporte estrutural do duto da artéria e da veia biliares. E vamos ver o que retorna do exame toxicológico.” “Imagino que ele podia ter AIDS.” Essa é a coisa mais importante que vem à mente do detetive Stanfield. “Vamos fazer nele um teste de HIV”, retruco. Stanfield recua mais um passo quando removo a armadura óssea triangular de costelas. Isso é uma deixa para Laura Turkel, emprestada a nós pela unidade de registro de túmulos da Base Militar de Fort Lee, em Petersburg. Ela é muito atenciosa e prestativa, e quase me bate continência quando aparece de repente na extremidade da mesa. Turk , turca, como todos a chamam, sempre se refere a mim como “Chefe”. Imagino que para ela “Chefe” é um posto, e médica, não. “Tudo pronto para eu abrir o crânio, Chefe?” Sua pergunta é um anúncio que não exige resposta. Turk é como muitas mulheres das forças armadas que vêm aqui — duronas, ansiosas, com pressa de eclipsar os homens, que, para falar a verdade, costumam ser os melindrosos. “Aquela senhora na qual o doutor Chong está trabalhando”, Turk diz enquanto conecta a serra Stryker no carretel de fio suspenso, “ela deixou um testamento e até escreveu seu próprio obituário. Deixou todos os papéis do seguro em ordem, tudo. Encadernou tudo e deixou junto com sua aliança de casamento na mesa da cozinha antes de se deitar no lençol e dar um tiro na cabeça. A senhora pode imaginar? Triste, realmente triste.” “É muito triste.” Os órgãos formam um bloco brilhante quando os suspendo juntos e os ponho numa tábua de corte. “Se você vai ficar aqui, realmente deve se cobrir.” Dirijo-me a Stanfield. “Alguém lhe mostrou onde estavam as coisas no vestiário?” Ele olha inexpressivamente para os punhos de minhas mangas encharcadas de sangue, para o sangue salpicado na frente de minha beca. “Senhora, se não se importar, eu gostaria de lhe mostrar o que consegui”, ele diz. “Será que podemos sentar um minuto? Depois eu preciso ir embora antes que o tempo piore. Daqui a pouco vai ser preciso o trenó do Papai Noel para ir a qualquer lugar.” Turk pega um bisturi e faz uma incisão em torno da parte de trás da cabeça, de orelha a orelha. Ela rebate o couro cabeludo e o puxa para a frente, e o rosto fica frouxo, desmoronando em trágico protesto antes de ficar do avesso, como uma meia dobrada. A cúpula do crânio exposta cintila imaculadamente branca, e dou uma boa olhada nela. Nenhum hematoma. Nenhum entalhe ou fratura. O zunido da serra elétrica soa como um híbrido de serra de mesa com broca de dentista enquanto tiro minhas luvas e as ponho numa lata de lixo vermelha, para material de risco biológico. Peço a Stanfield que me siga até a longa bancada que corre por toda a extensão da parede oposta às estações de autópsia. Puxamos cadeiras. “Tenho de ser honesto com a senhora”, Stanfield começa, com um lento e negativo balançar de cabeça. “Não temos nenhuma pista que sirva de ponto de partida neste caso. A única coisa que posso lhe dizer é que esse homem” — ele indica o corpo na mesa — “se registrou no Fort James Motel and Campground
ontem, às três da tarde.” “Onde exatamente fica o Fort James Motel and Campground?” “Na rodovia Cinco Oeste, a não mais de dez minutos da faculdade William and Mary.” “Você falou com a recepcionista desse motel, o Fort James Motel?” “A moça da recepção, sim, senhora, falei.” Ele abre um envelope grande de papel kraft e saca dele um punhado de fotos Polaroid. “O nome dela é Bev Kiffin.” Ele o soletra para mim, tirando óculos de leitura de um bolso interno do casaco, suas mãos tremendo levemente quando ele folheia as páginas de um bloco de notas. “Ela disse que o jovem entrou e disse que queria um especial mil seiscentos e sete.” “Perdão. Um o quê?” Deponho a esferográfica sobre as anotações que estou tomando. “Cento e sessenta dólares e setenta centavos de segunda a sexta. São cinco noites. Mil seiscentos e sete. A tarifa normal é de quarenta e seis dólares por noite, o que é muito alto para um lugar como aquele, na minha opinião. Mas a senhora conhece as armadilhas para turistas.” “Mil seiscentos e sete? Como na data em que Jamestown foi fundada?” Parece estranho ouvir uma referência a Jamestown. Acabei de mencionar Jamestown a Anna na noite passada quando falava sobre Benton. Stanfield faz que sim com um forte aceno de cabeça. “Como em Jamestown. Mil seiscentos e sete. É a tarifa executiva, pelo menos é assim que a chamam. O total para a semana de trabalho, e deixe-me acrescentar, senhora, esse não é um motel muito bom, de jeito nenhum, senhora. Eu o chamaria de pulgueiro.” “Ele tem um histórico de crimes?” “Ah, não. Não, senhora. Nenhuma história de crime que eu saiba, absolutamente.” “Apenas deteriorado.” “Apenas deteriorado”, ele concorda enfaticamente. O detetive Stanfield tem um modo característico de falar com ênfase, como quem está acostumado a ensinar uma criança lenta, que precisa que palavras importantes sejam repetidas ou enfatizadas. Ele dispõe as fotografias bem alinhadas na bancada e eu olho para elas. “Foi você quem tirou?”, suponho. “Sim, senhora, eu mesmo.” Como o detetive, o que ele captou no filme é enfático e preciso: a porta com o número 14, a vista do quarto pelo vão da porta, a cama chamuscada, os danos causados pela fumaça nas cortinas e nas paredes. Há uma única cômoda e um local para pendurar roupas que não passa de uma vareta em uma área recuada bem atrás da porta. Noto que o colchão na cama tem vestígios de cobertor e lençóis brancos, nada mais. Pergunto a Stanfield se ele enviou a roupa de cama ao laboratório para examinar a presença de catalisadores. Ele responde que não havia nada na cama que pudesse ser examinado, apenas áreas queimadas do colchão, que ele pôs dentro de uma lata de tinta hermeticamente selada — “de acordo com os procedimentos” são suas palavras exatas, as palavras de alguém muito inexperiente no trabalho de investigação. Mas ele
concorda que é estranha a ausência de roupa de cama. “Elas estavam na cama quando ele se registrou?”, pergunto. “A senhora Kiffin diz que não o acompanhou ao quarto, mas é certo que a cama estava feita adequadamente, porque ela própria a arrumou depois que o último hóspede saiu, vários dias atrás”, ele responde, o que é bom. Pelo menos ele pensou em perguntar a ela sobre isso. “E a bagagem?”, pergunto. “A vítima tinha bagagem?” “Não encontrei nenhuma bagagem.” “E quando os bombeiros chegaram lá?” “Eles foram chamados às cinco e vinte e dois da tarde.” “Quem chamou?” “Alguém que passou de carro por lá, mas não se identificou. Viu a fumaça e ligou do telefone do carro. Nesta época do ano o motel não tem muito movimento, segundo a senhora Kiffin. Ela diz que cerca de três quartos dos apartamentos estavam vazios ontem, já que é quase Natal e o tempo está ruim e tal. A senhora pode ver olhando a cama, o fogo não ia para lugar nenhum.” Ele toca várias fotografias com um dedo grosso e áspero. “Já estava quase extinto quando os caminhões dos bombeiros chegaram lá. Eles só usaram extintores, não precisaram nem tirar as mangueiras, o que é bom para nós. Estas são as roupas dele.” Ele me mostra uma fotografia de uma pilha escura de roupas no chão, perto da porta do banheiro, que está aberta. Consigo ver uma calça, uma camiseta, um casaco e sapatos. A seguir olho uma fotografia tirada dentro do banheiro. Na pia há um balde de gelo de plástico cor de cobre, copos plásticos cobertos com celofane e um pequeno sabonete ainda na embalagem. Stanfield pesca em um bolso um canivete pequeno, abre a lâmina e corta a fita para evidências que sela o saco de papel que trouxe. “As roupas dele”, ele explica. “Pelo menos eu suponho que sejam dele.” “Espere”, digo. Levanto-me e cubro uma maca com um lençol limpo, calço luvas novas e pergunto a ele se foi recuperada uma carteira ou outros objetos pessoais. Ele me diz que não. Sinto cheiro de urina quando tiro as roupas do saco, preocupada com que, se alguma evidência minúscula for desprendida, ela caia no lençol. Examino uma cueca slip e uma calça de cashmere Giorgio Armani, ambas pretas, ambas encharcadas de urina. “Ele molhou as calças”, digo a Stanfield. Ele apenas balança a cabeça e dá de ombros, mas a dúvida atravessa seus olhos — talvez dúvida contaminada por medo. Nada disso está fazendo muito sentido, mas minha sensação é clara. Este homem pode ter se hospedado sozinho, mas em algum momento outra pessoa entrou no quadro, e estou imaginando se a vítima perdeu o controle da bexiga porque estava aterrorizada. “A senhora da recepção, senhora Kiffin, se lembra de ele estar vestido assim quando se registrou?”, pergunto enquanto viro os bolsos do avesso para ver se há algo neles. Não há. “Não perguntei a ela”, responde Stanfield. “Então ele não tem nada nos bolsos. Isso é meio incomum.” “Ninguém os examinou na cena do crime?”
“Bom, eu não ensaquei as roupas, para falar a verdade. Foi outro oficial que fez isso, mas tenho certeza de que ninguém examinou os bolsos, ou pelo menos não foram encontrados objetos pessoais, senão eu saberia e os teria comigo”, ele diz. “Bem, que tal você ligar imediatamente para a senhora Kiffin e ver se ela se lembra de ele estar usando esta roupa quando se registrou?” De modo polido, digo a Stanfield que faça o seu trabalho. “E quanto a um carro? Sabemos como ele chegou ao motel?” “Até agora não apareceu nenhum veículo.” “O modo como ele estava vestido é certamente incoerente com um motel barato, detetive Stanfield.” Desenho uma calça num formulário de diagrama de roupas. O casaco preto e a camiseta preta, assim como o cinto, os sapatos e as meias, são de grifes caras, e isso me faz pensar em Jean-Baptiste Chandonne, cujos pêlos finos como os de um bebê foram encontrados por todo o corpo em decomposição de Thomas quando ele apareceu no porto de Richmond no início deste mês. Comento com Stanfield a semelhança das roupas. A teoria mais aceita, explico a ele, é que Jean-Baptiste Chandonne assassinou o irmão, Thomas, provavelmente em Antuérpia, Bélgica, e trocou de roupa com ele antes de trancar o corpo em um contêiner de carga com destino a Richmond. “Porque a senhora encontrou todos aqueles cabelos sobre os quais tenho lido no jornal?” Stanfield está tentando entender o que seria difícil mesmo para o investigador mais experiente que tenha visto tudo. “Isso e os achados microscópicos que estão relacionados a diatomáceas — algas —, compatíveis com uma região do Sena perto da casa de Chandonne na Île de Saint-Louis, em Paris.” Continuo a falar. Stanfield está completamente perdido. “Olhe, o que posso lhe dizer, detetive Stanfield, é que esse homem” — refiro-me a Jean-Baptiste Chandonne — “tem uma doença congênita muito rara e supostamente ele costumava se banhar no Sena, talvez achando que isso podia curá-lo. Temos motivos para acreditar que as roupas que estavam no corpo de seu irmão eram originalmente de Jean Baptiste. Faz sentido?” Estou desenhando um cinto e observando pela marca no couro qual furo era mais usado. “Bom, para falar a verdade”, responde Stanfield, “não tenho ouvido falar sobre nada além desse caso estranho e desse tal de Lobisomem. Quer dizer, realmente é só disso que a gente fica sabendo quando liga a TV ou pega o jornal, e eu imagino que a senhora sabe disso, e a propósito, sinto muito mesmo pelo que aconteceu com a senhora e, para falar a verdade, não consigo nem imaginar como a senhora pode estar aqui ou pensar direito. Meu Deus!” Ele balança a cabeça. “Minha mulher disse que se uma coisa como essa aparecesse em nossa porta, ele não ia precisar fazer nada com ela. Ela morria no ato, de ataque cardíaco.” Capto uma centelha de suas apreensões a meu respeito. Ele está se perguntando se estou inteiramente racional neste momento, se eu poderia estar apenas projetando — se de algum modo tudo que experimento está contaminado por Jean-Baptiste Chandonne. Puxo o diagrama de roupas da prancheta e ponhoo junto com os papéis de John Doe enquanto Stanfield digita um número que lê
em seu bloco de anotações. Observo-o enfiar um dedo na orelha que está livre, apertando os olhos, como se eles estivessem sendo feridos pelo fato de Turk estar serrando mais um crânio. Posso ouvir o que ele diz. Ele desliga e volta para onde estou enquanto lê o display de seu pager. “Bem, temos boas e más notícias”, ele anuncia. “A moça, a senhora Kiffin, se lembra de ele estar muito bem vestido, com um terno preto. Essa é a boa notícia. A má notícia é que ela também se lembra de que ele tinha uma chave na mão, uma dessas com controle remoto que muitos carros novos caros têm.” “Mas não há nenhum carro”, respondo. “Não, senhora, nenhum carro. Nem chave”, ele diz. “Parece mesmo que, o que quer que ele tenha feito, teve ajuda de alguém. A senhora acha que talvez alguém o tenha drogado e depois tentado queimá-lo para esconder as provas?” “Acho que seria melhor considerarmos seriamente a possibilidade de homicídio.” Declaro o óbvio. “Precisamos tirar as impressões digitais dele e ver se coincidem com alguém no AFIS.” O AFIS — Automated Fingerprint Identification System, ou sistema automático de identificação de impressões digitais — permite que transfiramos impressões digitais escaneadas para um computador e as comparemos com aquelas que estão em uma base de dados que tem links para todos os estados. Se esse homem morto tiver um histórico de crimes neste país, ou se suas impressões digitais estiverem na base de dados por algum outro motivo, muito provavelmente obteremos uma coincidência. Calço um par de luvas novas, fazendo o possível para cobrir o gesso que envolve minha palma da mão e meu polegar esquerdos. Tirar impressões digitais de cadáveres requer uma ferramenta simples chamada colher. Trata-se de nada mais do que um apetrecho de metal curvo com formato muito semelhante ao de um tubo oco cortado longitudinalmente. Uma tira de papel branco é enfiada através de fendas que há na colher, de modo que a superfície do papel fique curvada para acomodar os contornos de dedos que perderam a flexibilidade ou não mais obedecem à vontade de seu dono. A cada impressão digital, a tira é avançada para o próximo quadrado limpo do papel. Não é um procedimento difícil. Nem exige grande inteligência. Mas quando digo a Stanfield onde estão as colheres, ele franze o cenho, como se eu tivesse falado com ele em uma língua estrangeira. Pergunto a ele se alguma vez já tirou impressões digitais de um cadáver. Ele admite que não. “Espere”, digo, e vou até o telefone e digito o ramal do laboratório de impressões digitais. Ninguém atende. Tento a telefonista. Sou informada de que todos faltaram hoje por causa do tempo. Pego de uma gaveta uma colher e uma carimbeira. Turk enxuga as mãos do morto e eu entinto seus dedos, pressionandoos um por vez contra a tira de papel curvo. “O que posso fazer, se você não tiver nenhuma objeção”, digo a Stanfield, “é ver se a prefeitura de Richmond põe isso no AFIS para o caso não ficar parado.” Pressiono um polegar dentro da colher enquanto Stanfield observa com uma expressão antipática. Ele é uma dessas pessoas que odeiam o necrotério e não conseguem sair dele tão depressa quanto gostariam. “Parece que não há ninguém no laboratório para nos ajudar agora, e
quanto mais cedo soubermos quem é esse cara, melhor”, explico. “E eu gostaria de mandar as impressões digitais e outras informações para a Interpol, para o caso de esse homem ter ligações internacionais.” “Tudo bem”, diz Stanfield, concordando mais uma vez com a cabeça enquanto dá uma olhada em seu relógio. “Você já lidou com a Interpol?”, pergunto. “Não posso dizer que já fiz isso, senhora. Eles são uma espécie de espiões, não são?” Bipo Marino para ver se ele pode ajudar. Ele chega quarenta e cinco minutos depois, quando Stanfield já foi embora há muito tempo e Turk está pondo os órgãos seccionados de John Doe numa sacola de plástico grosso que ela vai colocar na cavidade do corpo antes de costurar a incisão em Y. “Ei, Turk”, Marino a cumprimenta quando passa pelas portas de aço abertas. “Congelando sobras de novo?” Ela olha para ele com uma sobrancelha erguida e um meio sorriso. Marino gosta de Turk. Gosta tanto que é sempre grosseiro com ela. Turk não tem a aparência que se poderia imaginar por seu apelido. É pequena, tem uma beleza limpa e uma pele cor de creme, e seus cabelos louros compridos são puxados para trás e presos num vistoso rabo-de-cavalo. Ela enfia um barbante branco encerado numa agulha de sutura tamanho doze enquanto Marino continua a provocá-la. “Pode estar certa”, ele diz, “se algum dia eu me cortar, não vou procurar você para dar os pontos, Turk .” Ela ri, enfiando a comprida agulha angulada na carne e puxando o barbante. Marino está com cara de ressaca, os olhos injetados e inchados. Apesar de seus gracejos, ele está de mau humor. “Você esqueceu de dormir ontem?”, pergunto a ele. “Mais ou menos. É uma longa história.” Ele tenta me ignorar, observando Turk e estranhamente distraído e pouco à vontade. Desamarro minha beca e tiro o protetor de rosto, a máscara e a touca cirúrgica. “Veja com que rapidez vocês conseguem pôr isso no computador”, digo a ele, toda formal e não especialmente amistosa. Ele está guardando segredos de mim e estou chateada por sua pavoneada exibição de comportamento adolescente. “A situação aqui está bem ruim, Marino.” Ele deixa de prestar atenção em Turk e se concentra em mim. Fica sério. Abandona a encenação infantil. “Que tal você me contar o que está acontecendo enquanto eu fumo?”, ele diz, olhando-me nos olhos pela primeira vez em dias. Em meu prédio não é permitido fumar, o que não impede várias pessoas muito importantes de acender cigarros em suas salas quando estão cercadas de pessoas que não vão denunciá-las. No necrotério, não me importa quem peça. Não permito fumar, ponto. Não é que nossa clientela precise se preocupar por inalar fumaça de segunda mão, minha preocupação é com os vivos, que no necrotério não devem fazer nada que exija um contato entre as mãos e a boca. Não é permitido comer, beber ou fumar, e desestimulo o ato de mascar chicletes ou chupar balas ou drops. Nossa área para fumantes consiste em duas cadeiras ao lado de um cinzeiro de pé perto das máquinas de refrigerante, na baia do estacionamento. Nesta época do ano, não é um lugar confortável para se sentar,
mas oferece privacidade. O caso do condado de James City está fora da jurisdição de Marino, mas preciso contar a ele sobre as roupas. “Tenho um pressentimento”, resumo. Sentado na cadeira de plástico, pernas abertas, ele joga a cinza em direção ao cinzeiro. Não conseguimos ver nossos bafejos. “É, eu também não gosto disso”, ele responde. “É fato que pode ser coincidência, doutora. Mas outro fato é que a família Chandonne é apavorante. O que não sabemos é o que acontecerá agora que o patinho feio deles está preso nos Estados Unidos por assassinato — agora que ele conseguiu chamar tanta atenção para seu papai Chefão e tudo mais. Essas são pessoas ruins capazes de qualquer coisa, na minha opinião. Pode acreditar em mim, estou só começando a perceber como eles são realmente maus”, ele acrescenta de forma enigmática. “Não gosto do crime organizado, doutora. De jeito nenhum. Quando eu comecei, eles administravam tudo.” Seus olhos endurecem quando ele diz isso. “E ainda fazem isso, a única diferença é que não há mais nenhuma regra, nenhum respeito. Não sei que diabo esse cara estava fazendo perto de Jamestown, mas com certeza não era turismo. E Chandonne está a apenas uns cem quilômetros de distância, no hospital. Alguma coisa está acontecendo.” “Marino, vamos pôr imediatamente a Interpol nisso”, digo. Cabe à polícia relatar informações sobre pessoas à Interpol, e para fazer isso Marino terá de entrar em contato com o oficial de ligação na polícia estadual, que vai passar informações sobre o caso ao escritório central da Interpol nos Estados Unidos, em Washington. O que vamos pedir à Interpol é que emita um alerta internacional sobre nosso caso e pesquise a enorme base de dados de informações criminais em seu secretariado-geral, em Lyon. Os alertas são codificados por cores: o vermelho significa prisão imediata com provável extradição; o azul é para alguém que é procurado, mas cuja identidade não está absolutamente clara; o verde é um alerta sobre pessoas que provavelmente vão cometer crimes, transgressores habituais, como molestadores de crianças e pornógrafos; o amarelo é para pessoas desaparecidas; e o preto é para cadáveres não identificados, aqueles que muito provavelmente são fugitivos e também são codificados em vermelho. Meu caso será meu segundo alerta preto neste ano, depois daquele, poucas semanas atrás, quando o corpo em estado avançado de decomposição de Thomas Chandonne foi descoberto em um contêiner de carga no porto de Richmond. “Tudo bem, vamos passar à Interpol uma foto, as impressões digitais e seu relatório de autópsia”, Marino anota mentalmente. “Vou fazer isso assim que sair daqui. Só espero que Stanfield não ache que estou me aproveitando do trabalho dele.” Ele diz isso mais como um aviso. Marino não se importa de estar se aproveitando do trabalho de Stanfield, mas não quer confusão. “Ele não tem pistas, Marino.” “É uma pena, porque o condado de James City tem policiais muito bons”, ele responde. “O problema é que o cunhado de Stanfield é o deputado Matthew Dinwiddie, portanto Stanfield sempre conseguiu ser bem tratado aqui e tem tanto trabalho de investigação de homicídios quanto o ursinho Pooh. Mas eu imagino que ele pôs esse em sua lista de desejos e que Dimwit,* como o chamo, deve ter
paparicado o chefe para ele fazer isso.” “Veja o que consegue fazer”, digo. Ele acende outro cigarro, seus olhos perambulando pelo estacionamento, seus pensamentos quase palpáveis. Resisto a fumar. O desejo é terrível, e me odeio por ter retomado o hábito. De algum modo, sempre penso que consigo fumar só mais um, e sempre me engano. Marino e eu partilhamos um silêncio desajeitado. Finalmente, trago à tona o assunto do caso Chandonne e o que Righter me contou no domingo. “Você vai me contar o que está acontecendo?”, digo calmamente a Marino. “Suponho que ele foi liberado do hospital hoje de manhã cedo, e suponho que você estava lá. E suponho que você se encontrou com Berger.” Ele dá uma tragada no cigarro, ganhando tempo. “É, doutora, eu estava lá. Maldito zoológico.” Suas palavras são levadas pela fumaça. “Havia até repórteres da Europa.” Ele olha para mim, e sinto que há muita coisa que ele não vai me contar, o que me deprime profundamente. “Para mim, eles deviam prender babacas como ele no Triângulo das Bermudas e não deixar ninguém falar com eles nem tirar fotos deles”, ele continua. “Não é certo, só que neste caso o cara é tão feio que provavelmente criou problemas técnicos para todo mundo, quebrou um bocado de câmeras caras. Eles o trouxeram para fora em correntes suficientes para ancorar um navio de guerra, guiando-o como se ele estivesse totalmente cego. Ele tinha ataduras sobre os olhos, fingindo que estava sentindo dores, o tempo todo.” “Você falou com ele?” Isso é o que realmente quero saber. “O show não era meu”, ele responde estranhamente, olhando para o estacionamento, tensionando os músculos do maxilar. “Estão dizendo que ele talvez tenha de fazer transplante de córnea. Porra. Há todas essas pessoas no mundo que não podem se dar ao luxo nem de ter óculos, e esse merda desse peludo vai ganhar córneas novas. E imagino que os contribuintes vão bancar essa cirurgia corretiva, assim como pagamos todos esses médicos e enfermeiras e sabe Deus quem mais para tomar conta do traseiro dele.” Ele joga o cigarro no cinzeiro. “Acho bom eu me apressar.” Relutante, ele se levanta. Quer falar comigo, mas por alguma razão não fala. “Lucy e eu vamos tomar uma cerveja mais tarde. Ela disse que tem grandes novidades para mim.” “Vou deixar que ela mesma conte”, respondo. Ele me olha de lado. “Então você vai me deixar na dúvida, é isso?” Começo a dizer que ele é que é especialista nisso. “Nem uma pista? Quer dizer, é notícia boa ou ruim? Não me diga que ela está grávida”, ele acrescenta com ironia enquanto segura a porta para mim e saímos do estacionamento. Na sala de autópsia, Turk está lavando minha estação de trabalho com uma mangueira, a água respingando e as grelhas de aço tinindo alto enquanto ela passa a esponja na mesa. Quando me vê, grita acima do clamor que Rose está me procurando. Vou até o telefone. “Os tribunais estão fechados”, Rose me diz. “Mas o gabinete de Righter diz que ele planeja estipular seu depoimento de qualquer jeito. Portanto, não precisa se preocupar.” “Que choque.” Do que foi mesmo que Anna o chamou? Ein Mann alguma
coisa. Sem fibra. “E seu banco ligou. Um homem chamado Greenwood quer que você ligue para ele.” Minha secretária me passa um número. Sempre que meu banco me procura fico paranóica. Ou os investimentos afundaram ou minha conta está estourada porque o computador está em pane ou há algum outro problema. Localizo o sr. Greenwood no setor de contas pessoais. “Sinto muito”, diz ele com indiferença. “Essa mensagem foi um engano. Um mal-entendido, doutora Scarpetta. Sinto muito a senhora ter sido incomodada.” “Então ninguém precisa falar comigo. Nenhum problema?” Estou perplexa. Falo com o sr. Greenwood há anos e ele está agindo como se não me conhecesse. “Foi um engano”, ele repete no mesmo tom distante. “Peço desculpas mais uma vez. Tenha um bom dia.”
(*) Dimwit: obtuso. (N. T.)
9
Passo as horas seguintes em minha mesa, ditando o relatório da autópsia de John Doe, retornando ligações telefônicas e rubricando papéis, e saio do escritório no final da tarde, seguindo para oeste. A luz do sol é filtrada por aberturas nas nuvens, e rajadas de vento desprendem folhas que caem adejando como pássaros preguiçosos. Parou de nevar e a temperatura está subindo, o mundo pinga e chia com os sons molhados do tráfego. Conduzo o Lincoln Navigator prateado de Anna para a Three Chopt Road enquanto os noticiários no rádio falam sem parar sobre a remoção de JeanBaptiste Chandonne para fora da cidade. Dá-se destaque às ataduras sobre seus olhos e às queimaduras químicas. A história sobre eu tê-lo mutilado para salvar minha vida ganhou força. Os repórteres descobriram seu ângulo. A justiça é cega. A dra. Scarpetta executou a punição corporal clássica. “Cegar alguém, olha, pensem nisso”, diz um apresentador no ar. “Como era o nome daquele cara no Shakespeare? Lembram?, eles arrancaram os olhos dele. Rei Lear? Vocês viram o filme? O velho rei teve de pôr ovos crus ou algo do tipo nos buracos dos olhos para que não doesse muito. Uma coisa realmente brutal.” A calçada que leva às portas duplas da frente da igreja St. Bridget está coberta de sal e neve derretida, e há no máximo vinte carros no estacionamento. É como Marino previu. Não há muitos policiais, nem imprensa. O tempo talvez tenha mantido a multidão longe da velha igreja gótica de tijolos, mas o mais provável é que a própria morta seja responsável por isso. Eu, por exemplo, não estou aqui por respeito ou afeição, nem mesmo por uma sensação de perda. Desabotôo meu casaco e entro no nártex enquanto tento fugir da verdade incômoda: eu não conseguia suportar Diane Bray e só vim aqui por obrigação. Ela era uma oficial de polícia. Eu a conhecia. Foi minha paciente. Logo na entrada do nártex há uma grande fotografia dela numa mesa, e fico chocada de ver sua insolente beleza autocentrada, o gélido lampejo de crueldade em seus olhos que nenhuma câmera conseguiria disfarçar, não importa o ângulo, a iluminação ou as habilidades do fotógrafo. Diane Bray me odiava por razões que ainda não entendo completamente. Segundo dizem, ela era obcecada comigo e com meu poder e se concentrava em cada uma de minhas dimensões como eu própria nunca fiz. Suponho que eu não me veja do modo como ela me via, e demorei a perceber quando ela começou suas agressões, sua guerra incrivelmente intensa contra mim, que culminou com sua aspiração a ocupar um cargo de secretária estadual da Virgínia. Bray tinha calculado tudo. Ela pretendia transferir a divisão de legistas do Departamento de Saúde para a Segurança Pública, e então, se tudo corresse de acordo com o planejado, poderia dar um jeito de manobrar o governador para nomeá-la secretária da Segurança Pública. Feito isso, eu passaria a responder a ela, e ela poderia até ter o prazer de me demitir. Por quê? Continuo a buscar
motivos razoáveis e não consigo encontrar nenhum que me satisfaça inteiramente. Eu nunca tinha sequer ouvido falar de Bray antes de ela ingressar no Departamento de Polícia de Richmond, no ano passado. Mas ela certamente me conhecia e se mudou para minha bela cidade com tramas e esquemas prontos para me anular sadicamente, lentamente, por meio de uma série chocante de perturbações, calúnias, obstruções e humilhações profissionais, até que por fim arruinasse minha carreira, minha vida. Suponho que, em suas fantasias, o clímax de suas maquinações desalmadas teria sido eu abrir mão de meu cargo em desgraça, me suicidar e deixar um bilhete dizendo que a culpa era dela. Em vez disso, eu estou aqui. Ela, não. O fato de ter sido eu a pessoa que cuidou de seus restos brutalizados é uma ironia indescritível. Alguns policiais em uniforme de gala estão conversando, e, perto da porta do santuário, o chefe Rodney Harris está com o padre O’Connor. Também há civis, pessoas em roupas finas que não parecem familiares, e sinto pelo modo perdido e aéreo como eles olham em volta que não são daqui. Pego um missal e espero para falar com o chefe Harris e meu padre. “Sim, sim, eu entendo”, diz o padre O’Connor. Ele parece sereno em uma longa túnica creme, seus dedos entrelaçados na cintura. Percebo com uma pontada de culpa que não o vejo desde a Páscoa. “Bem, padre, não posso. Essa é a parte que não consigo aceitar”, Harris responde, seu escasso cabelo vermelho bem puxado para trás, o rosto flácido e desagradável. Ele é um homem baixo com um corpo mole que é geneticamente codificado para ser gordo, e parece um mascote da Pillsbury, o bonequinho de farinha, em uniforme de gala. Harris não é um homem atraente e se ofende com mulheres poderosas. Nunca entendi por que ele contratou Diane Bray, e só posso supor que não foi pelas razões certas. “Nem sempre conseguimos entender a vontade de Deus”, diz o padre O’Connor, e então me vê. “Doutora Scarpetta.” Ele sorri e toma minha mão nas suas. “Que bom que a senhora veio. A senhora tem estado em meus pensamentos e em minhas preces.” A pressão de seus dedos e a luz em seus olhos me transmitem que ele entende o que aconteceu comigo e se preocupa. “Como está seu braço? Gostaria que a senhora viesse me ver quando puder.” “Obrigada, padre.” Estendo a mão para o chefe Harris. “Sei que este é um momento difícil para seu departamento”, digo a ele. “E para o senhor pessoalmente.” “Muito, muito triste”, ele diz, desviando o olhar para outras pessoas enquanto me dá um aperto de mão brusco e superficial. A última vez que vi Harris foi na casa de Bray, quando ele entrou e foi confrontado pela visão estarrecedora de seu corpo. Aquele momento permanecerá eternamente entre mim e ele. Ele nunca deveria ter ido à cena do crime. Não havia nenhuma boa razão para que ele visse sua substituta tão completamente degradada, e sempre ficarei ressentida com ele por isso. Tenho uma aversão especial por pessoas que tratam cenas de crime de forma insensível e desrespeitosa, e o aparecimento de Harris na cena de Bray foi um jogo de poder e uma indulgência ao voyeurismo, e ele sabe que sei disso. Caminho para o santuário e sinto seus olhos em minhas costas. Do órgão vem num crescendo o
som de “Amazing grace”, e as pessoas andam pelo corredor central à procura de lugares nos bancos. Santos e cenas da crucificação fulguram em belos vitrais, e cruzes de mármore e de bronze lampejam. Sento-me num dos bancos, e momentos depois a procissão começa. Os estranhos vestidos com elegância que notei antes seguem o padre. Um jovem cruciferário leva a cruz, enquanto um homem de terno preto transporta a urna esmaltada em vermelho e dourado que contém as cinzas de Diane Bray. Um casal de idosos, de mãos dadas, enxuga de leve as lágrimas. Padre O’Connor cumprimenta todos, e fico sabendo que os pais e dois irmãos de Bray estão aqui. Vieram do norte de Nova York, de Delaware e de Washington, e amavam muito Diane. O serviço é simples. Não é longo. Padre O’Connor borrifa água benta sobre a urna. Ninguém além do chefe Harris profere nenhuma reflexão ou elogio, e o que ele diz é afetado e genérico. “Ela ingressou de bom grado em uma profissão cujo objetivo é ajudar os outros.” Ele está de pé, retesado, atrás do púlpito e lê suas anotações. “Sabendo a cada dia que estava se pondo em risco, pois essa é a vida da polícia. Aprendemos a olhar a morte de frente e não ter medo. Sabemos o que é estar sozinho e mesmo ser odiado, e ainda assim não temos medo. Sabemos o que é ser um pára-raios para o mal, para aqueles que estão neste planeta para tirar dos outros.” A madeira range quando as pessoas se mexem nos bancos. Enquanto ouve, padre O’Connor sorri gentilmente, com a cabeça inclinada. Desligo-me de Harris. Nunca compareci a uma cerimônia religiosa tão estéril e falsa, e me encolho por dentro, desalentada. A liturgia, as aclamações do evangelho, os cantos e as preces não transmitem nem música nem paixão, porque Diane Bray não amava ninguém, nem a si própria. Sua vida gananciosa e astuciosa mal deixou um sussurro. Todos saímos em silêncio, aventurando-nos na noite escura e fria para encontrar nossos carros e escapar. Ando energicamente com a cabeça curvada, como faço quando desejo evitar outras pessoas. Percebo sons, uma presença, e ao abrir a porta do carro me viro. Alguém me seguiu. “Doutora Scarpetta?” Os traços refinados da mulher são acentuados pelo brilho desigual das lâmpadas da rua, seus olhos profundamente sombreados, e ela usa um casaco comprido de vison. Uma sugestão de reconhecimento faísca em algum lugar no fundo de minha mente. “Eu não sabia que você estaria aqui, mas certamente estou contente”, ela acrescenta. Percebo seu sotaque de Nova York e sou sacudida pelo choque antes de compreender. “Sou Jaime Berger”, ela diz, estendendo uma mão enluvada. “Precisamos conversar.”
 
 
“Você estava na cerimônia?” Essas são as primeiras palavras que me saem da boca. Eu não a vi lá. Estou suficientemente paranóica para considerar que Jaime Berger nem entrou na igreja, ficou me esperando no estacionamento. “Você conhecia Diane Bray?”, pergunto a ela. “Estou conhecendo agora.” Berger levanta a gola do casaco, sua expiração visível no ar frio. Olha para o relógio e pressiona um botão. O mostrador luminescente brilha numa luz verde pálida. “Imagino que você não vai voltar para o escritório.”
“Eu não planejava fazer isso, mas posso”, digo sem entusiasmo. Ela quer conversar sobre os assassinatos de Kim Luong e Diane Bray. E, claro, também está interessada no corpo não identificado do porto — aquele que todos supomos seja do irmão de Chandonne, Thomas. Mas se esse caso algum dia chegar a um tribunal, ela acrescenta, não vai ser neste país. Esse é o modo que ela encontra de me contar que Thomas Chandonne é mais um almoço grátis. Jean-Baptiste assassinou o irmão e se safou. Subo para o banco do motorista do Navigator. “Você gosta de seu carro?”, ela faz o que parece uma pergunta sem sentido, imprópria para um momento como este. Já estou me sentindo testada. Intuo num instante que Berger não faz nada, não pergunta nada sem uma razão. Ela inspeciona o luxuoso utilitário esportivo que Anna está me deixando usar enquanto meu sedã permanece estranhamente proibido para mim. “É emprestado. Talvez seja melhor você me seguir, senhorita Berger”, digo. “Há partes da cidade nas quais você não ia gostar nada de se perder depois que escurecer.” “Estou pensando se você poderia localizar Pete Marino.” Ela aponta uma chave com controle remoto para seu veículo utilitário esportivo, um Mercedes ML430 branco com placas de Nova York, e os faróis se acendem quando as portas se destravam. “Talvez fosse bom todos nós conversarmos.” Dou partida no motor e tremo no escuro. A noite está úmida e água gelada goteja das árvores. O frio penetra por dentro de meu gesso e chega às fissuras de meu cotovelo fraturado, tomando espaços extremamente sensíveis onde vivem terminações nervosas e tutano, e eles começam a se queixar em latejos intensos. Localizo Marino pelo pager e me dou conta de que não sei o número do telefone do carro de Anna. Remexo em minha bolsa para encontrar o celular enquanto viro a direção com as pontas dos dedos do braço quebrado e fico de olho nos faróis do carro de Berger no retrovisor interno. Marino me liga de volta longos minutos depois. Conto a ele o que aconteceu e ele reage com um cinismo típico, mas por baixo dele há uma corrente de excitação, talvez raiva, talvez outra coisa. “É, bom, eu não acredito em coincidências”, ele diz bruscamente. “Apenas aconteceu de você ir ao culto em memória de Bray e por acaso Berger estar lá? Para início de conversa, por que diabo ela foi?” “Não sei por quê”, respondo. “Mas, se eu não conhecesse a cidade e os personagens envolvidos, ia querer ver quem se preocupava com Bray o suficiente para aparecer por lá. E também ia querer saber quem não se preocupava.” Tento ser lógica. “Ela não contou a você que ia? Quando você se encontrou com ela ontem à noite?” Estou exaltada. “Quero saber o que aconteceu nesse encontro.” “Não disse nada sobre isso”, ele responde. “Estava preocupada com outras coisas.” “Tais como? Ou isso é segredo?” Ele fica em silêncio por um longo momento. “Olhe, doutora”, diz finalmente, “esse caso não é meu. É de Nova York, e eu estou só fazendo o que me mandam. Se você quer saber das coisas, pergunte a ela, porque é desse jeito que ela quer que seja.” Sua voz está endurecida pelo ressentimento. “E eu estou no meio da adorável Mosby Court e tenho mais coisas para fazer do que pular
cada vez que ela estala seus elegantes dedos de cidade grande.” Mosby Court não é o bairro residencial principesco cujo nome sugere, mas um dos sete projetos residenciais de baixa renda da cidade. Todos são chamados courts e quatro têm o nome de virginianos de destaque: um ator, um educador, um próspero dono de tabacaria, um herói da Guerra de Secessão. Espero que Marino não esteja em Mosby Court porque houve outra morte. “Você não está me trazendo mais trabalho, está?”, pergunto. “Outro ‘assassinato de contravenção’.” Não rio desse código intolerante — esse rótulo cínico para um jovem negro atingido por vários tiros, provavelmente na rua, provavelmente por causa de drogas, provavelmente vestido com roupas de ginástica e tênis de basquete caros, e ninguém viu nada. “Encontro você na baia”, diz Marino, mal-humorado. “Em cinco ou dez minutos.” Parou de nevar completamente, e a temperatura permanece quente o bastante para evitar que a cidade feche de novo por causa do acúmulo de neve e sujeira. O centro está enfeitado para as festas, a silhueta dos edifícios orlada com luzes brancas, algumas queimadas. Em frente ao James Center, as pessoas encostaram os carros para explorar uma rena esplendorosa esculpida de luz, e na rua 9 o prédio da Assembléia irradia seu brilho como um ovo através dos ramos nus de árvores antigas, e a mansão amarelo-pálido vizinha a ele exibe sua elegância com velas em todas as janelas. Capto um vislumbre de casais em trajes de noite saindo de carros no estacionamento e me lembro com pânico que esta é a noite da festa de Natal do governador para os altos funcionários estaduais. Enviei meu RSVP há mais de um mês, confirmando que compareceria. Ó Deus. Não passará despercebido ao governador Mike Mitchel e a sua esposa, Edith, que não apareci, e o impulso para me desviar para o terreno da Assembléia é tão forte que aciono a luz de seta. Com a mesma prontidão a desligo. Não posso ir, nem mesmo por quinze minutos. O que eu faria com Jaime Berger? Levá-la comigo? Apresentá-la a todos? Sorrio com tristeza e balanço a cabeça dentro da cabine escura quando imagino os olhares que receberia, quando fantasio sobre o que aconteceria se a imprensa descobrisse. Como trabalhei para o governo durante toda a minha carreira, nunca subestimo o potencial para o mundano. O número de telefone da mansão do governo é público, e o auxílio à lista pode fazer a ligação automaticamente por um adicional de cinqüenta cents. Por um momento, falo com um funcionário executivo da unidade de proteção, e, antes que possa explicar a ele que quero apenas passar uma mensagem, o soldado me põe na espera. Um tom soa a intervalos regulares, como se o tempo de minha chamada estivesse sendo computado, e imagino se as ligações para a mansão são gravadas. Do outro lado da Broad Street, uma parte mais velha e mais lúgubre da cidade dá lugar ao novo império de tijolo e vidro da Biotech, da qual meu edifício é a âncora. Checo o retrovisor à procura do carro de Berger. Ela me segue obstinadamente, seus lábios se movendo em meu espelho. Está ao telefone, e tenho uma sensação incômoda quando a vejo dizer palavras que não entendo. “Kay?” A voz do governador Mitchell soa de repente no telefone viva-voz
do carro de Anna. Minha voz é de surpresa quando me apresso a dizer a ele que não esperava perturbá-lo, que sinto muitíssimo perder sua festa nesta noite. Ele não responde logo, e sua hesitação é um modo de dizer que estou cometendo um erro ao não comparecer. Mitchell é um homem que reconhece uma oportunidade e sabe como se apoderar dela. No seu modo de pensar, abrir mão de uma chance de passar ainda que apenas um momento com ele e outros líderes poderosos do estado é tolice, especialmente agora. Sim, justamente agora. “A promotora de Nova York está na cidade.” Não preciso dizer para quais casos. “Estou indo encontrá-la agora, governador. Espero que o senhor entenda.” “Acho que seria uma boa idéia eu e você também nos encontrarmos.” Ele é firme. “Eu pretendia falar com você reservadamente na festa.” Tenho a sensação de pisar em cacos de vidro, com medo de olhar porque posso descobrir que estou sangrando. “Quando for conveniente para o senhor, governador Mitchell”, respondo respeitosamente. “Por que você não dá uma parada na mansão quando for para casa?” “Provavelmente estarei livre em cerca de duas horas”, digo a ele. “Até lá, então, Kay. Transmita meus cumprimentos à senhorita Berger”, ele prossegue. “Quando eu era secretário de Justiça, tivemos um caso que envolveu o gabinete dela. Qualquer hora lhe conto sobre isso.” Na rua 4, a baia fechada onde os corpos são recebidos parece um iglu quadrado cinza anexado à lateral de meu edifício. Subo a rampa e paro na enorme porta da garagem, e me dou conta com grande frustração de que não tenho como entrar. O controle remoto está no meu carro, que está na garagem de minha casa, da qual fui banida. Teclo o número do atendente do necrotério fora do expediente. “Arnold?”, digo quando ele responde no sexto toque. “Você poderia por favor abrir a porta da baia?” “Ah, claro, senhora.” Ele parece grogue e confuso, como se eu o tivesse acordado. “Já estou indo, senhora. Seu controle não está funcionando?” Tento ser paciente. Arnold é uma dessas pessoas dominadas pela inércia. Ele luta contra a gravidade. A gravidade vence. Tenho de me lembrar o tempo todo que é inútil ficar zangada com ele. Pessoas muito motivadas não brigam pelo emprego dele. Berger parou atrás de mim e Marino está atrás dela, todos nós esperando que a porta suba, franqueando nossa entrada no reino dos mortos. Meu celular toca. “Bom, isto não é nada agradável”, diz Marino em meu ouvido. “Aparentemente ela e o governador se conhecem.” Vejo um furgão escuro entrar na rampa atrás do Crown Victoria azul-escuro de Marino. A porta da baia começa a subir emitindo ganidos, como se se lamentasse. “Muito bem. Você não acha que ele tem algo a ver com a transferência do Lobisomem para Nova York, acha?” “Não sei mais o que pensar”, confesso. A baia é grande o bastante para acomodar todos nós, e saímos ao mesmo tempo, o ronco dos motores e o fechar das portas amplificados pelo concreto. O ar frio atinge outra vez meu cotovelo fraturado, e fico desconcertada ao ver Marino de terno e gravata. “Você está ótimo”, comento secamente. Ele acende um cigarro, mirando com os olhos
apertados a figura envolta em vison de Berger quando ela se curva para dentro de seu Mercedes para pegar coisas no banco de trás. Dois homens de casaco comprido escuro abrem a porta de trás do furgão, expondo a maca e sua agourenta carga coberta. “Acredite se quiser”, Marino me diz, “eu ia dar uma passada na igreja, apesar de tudo, e esse cara decide ser assassinado.” Ele aponta para o cadáver na traseira do furgão. “Está parecendo que é um pouco mais complicado do que pensamos no início. Talvez mais do que um caso de renovação urbana.” Berger anda em nossa direção, sobrecarregada com livros, arquivos sanfonados e uma robusta maleta de couro. “Você veio preparada.” Marino olha para ela com cara de desânimo. O alumínio estala quando as pernas da maca se abrem. A porta traseira do furgão se fecha com um baque. “Fico realmente agradecida por vocês terem vindo tão depressa”, diz Berger. No clarão da baia iluminada, noto as belas linhas de seu rosto e seu pescoço, as tênues covas nas bochechas, que revelam sua idade. Numa olhada rápida, se estivesse maquiada para ser fotografada, ela poderia aparentar ter trinta e cinco anos. Suspeito que é alguns anos mais velha do que eu, deve estar perto dos cinqüenta. Os traços angulosos, o cabelo escuro curto e os dentes perfeitos compõem um retrato conhecido, e eu a ligo à especialista que vi na Court TV. Ela começa a se parecer com as fotos que baixei da internet quando usei ferramentas de busca para encontrá-la no ciberespaço, para poder me preparar para esta invasão do que parece ser uma galáxia alienígena. Marino não se oferece para ajudá-la a carregar nada. Ele a ignora do mesmo modo que faz comigo quando está irritado, ressentido ou enciumado. Destranco a porta que dá para a parte interna enquanto os atendentes empurram a maca em nossa direção, e reconheço os dois homens mas não consigo me lembrar de seus nomes. Um deles olha para Berger fascinado. “A senhora é aquela moça que estava na TV”, ele começa. “Minha nossa. A juíza.” “Lamento decepcioná-lo. Não sou juíza.” Berger olha para eles e sorri. “A senhora não é a juíza? Jura?” A maca atravessa rangendo o vão da porta. “Imagino que a senhora quer que ele fique no congelador”, um deles me diz. “Sim”, respondo. “Você sabe onde registrá-lo. Arnold está por aí em algum lugar.” “Sim, senhora, eu sei o que fazer.” Nenhum dos atendentes dá indicação alguma de que eu poderia ter acabado em seu furgão no fim de semana passado, se outra entrega tivesse mudado meu destino. Observo que as pessoas que trabalham para funerárias e serviços de remoção de corpos não ficam chocadas nem comovidas com muita coisa. Não me escapa que esses dois caras estão mais impressionados com a celebridade de Berger do que com o fato de sua legista-chefe ter a sorte de estar viva e ter uma imagem pública muito ruim ultimamente. “A senhora está preparada para o Natal?”, um deles me pergunta. “Nunca estou”, respondo. “Desejo que os senhores tenham um feliz Natal.” “Muito mais feliz do que o dele.” Apontando para o corpo ensacado, eles empurram a maca na direção da recepção do necrotério, onde preencherão uma
etiqueta de identificação a ser presa num dedo do pé e registrarão o mais novo paciente. Pressiono botões para abrir vários conjuntos de portas de aço inoxidável enquanto caminhamos sobre pisos desinfetados, passando por congeladores e pelas salas onde são feitas autópsias. Desodorizadores industriais atravancam o caminho, e Marino fala do caso de Mosby Court. Berger não pergunta nada, mas ele parece pensar que ela quer saber. Ou talvez esteja só se exibindo. “Primeiro, pareceu um tiro dado de um carro em movimento, já que ele estava na rua e tinha a cabeça ensangüentada. Mas devo dizer que agora estou me perguntando se ele não foi atropelado por um carro”, ele nos informa. Abro as portas que levam ao silêncio sombrio da ala administrativa enquanto ele conta a Berger todos os detalhes de um caso que ainda nem discutiu comigo. Conduzoos a minha sala de reuniões e tiramos os casacos. Berger veste calça de lã escura e um suéter preto grosso, que não acentua mas certamente não esconde seu volumoso busto. Ela tem a constituição esbelta e firme de uma atleta, e suas botas Vibram desgastadas sugerem que irá a qualquer lugar e fará qualquer coisa que o trabalho exigir. Ela puxa uma cadeira e começa a arrumar maleta, arquivos e livros sobre a mesa redonda de madeira. “Veja, ele tem queimaduras aqui e aqui.” Marino aponta para sua bochecha esquerda e seu pescoço e saca fotos Polaroid do bolso interno do paletó. Ele toma a decisão inteligente de passá-las primeiro para mim. “Por que um atropelado teria queimaduras?” Minha pergunta é uma refutação, e estou ficando incomodada. “Se ele fosse empurrado enquanto o carro estava em movimento, ou fosse queimado pelo cano do escapamento”, sugere Marino, sem certeza, sem realmente se importar. Ele tem outros assuntos em mente. “É improvável”, respondo num tom ameaçador. “Merda”, diz Marino, e começa a compreender quando nossos olhares se encontram. “Eu não olhei para ele, já estava num saco quando cheguei lá. Droga, só me orientei pelo que soube dos caras que estavam na cena. Merda”, diz de novo, olhando para Berger, seu rosto obscurecido por um misto de constrangimento e irritação. “Eles já tinham ensacado o corpo quando cheguei lá. Estúpidos como um saco de martelos, todos eles.” O homem que está nas Polaroids tem a pele clara, traços atraentes e cabelo curto encaracolado tingido de amarelo gema. Em sua orelha esquerda há uma pequena argola de ouro. Percebo instantaneamente que suas queimaduras não foram provocadas por um cano de escapamento, que deixaria marcas elípticas e não estas, perfeitamente redondas, do tamanho de moedas de prata de um dólar e empoladas. Ele estava vivo quando se queimou. Olho demoradamente para Marino. Ele faz a ligação e explode, balançando a cabeça. “Temos identificação?”, pergunto a ele. “Não temos nenhuma pista.” Ele alisa para trás o cabelo, que a esta altura de sua vida não passa de uma franja cinzenta grudada com gel no alto da ampla careca. Sua aparência ficaria muito melhor se ele rapasse a cabeça. “Ninguém na área diz que já o viu antes, e nenhum dos meus rapazes acha que ele se parece com alguém que costumávamos ver por lá na rua.” “Preciso olhar o corpo agora.” Levanto-me da mesa.
Marino empurra sua cadeira. Berger me observa com olhos azuis penetrantes. Ela parou de espalhar seus papéis. “Você se importa se eu for junto?”, pergunta. Eu me importo, mas ela está aqui. É uma profissional. Seria impensavelmente grosseiro de minha parte dar a entender que ela poderia não agir como tal ou sugerir que não confio nela. Ando até a porta ao lado para pegar o avental de laboratório em minha sala. “Imagino que você não tem como saber se é possível que esse cara fosse gay. Imagino que aquela não é uma área onde gays circulam ou ficam.” Interrogo Marino enquanto saímos da sala de reuniões. “Há prostituição masculina em Mosby Court?” “Agora que você falou, acho que ele tem essa aparência”, responde Marino. “Um dos policiais disse que ele é uma espécie de ‘bonitinho’, com aquele tipo de corpo sarado. E usava brinco. Mas, como eu disse, não vi o corpo.” “Acredito que você ganha o prêmio para estereótipos”, Berger comenta com ele. “E eu achei que meu pessoal era ruim.” “Ah, é? Que pessoal?” Marino está a um milímetro de cair matando sobre ela. “Do meu gabinete”, ela diz com um ar blasé. “A equipe de investigação.” “Ah, é? Você tem seus próprios policiais da polícia de Nova York? Que ótimo. Quantos?” “Cerca de cinqüenta.” “Eles trabalham em seu prédio?” Posso ouvir no tom dele. Berger o faz sentir-se completamente ameaçado. “Sim.” Ela não transmite isso com nenhuma espécie de condescendência ou arrogância, simplesmente relata os fatos. Marino se adianta a ela e devolve: “Bom, é um bocado de gente”. Os atendentes do serviço de remoção estão na recepção batendo papo com Arnold. Ele parece chocado quando me vê, como se o tivéssemos apanhado no meio de algo que não devia estar fazendo, mas esse é o jeito dele. É um homem tímido, quieto. Como uma mariposa que começou a adquirir a cor de seu ambiente, está pálido, sua pele tem um tom cinza doentio, e uma alergia crônica mantém seus olhos avermelhados e lacrimejando. O segundo John Doe do dia está no meio do saguão, fechado dentro de um saco felpudo cor de vinho bordado com o nome do serviço de remoção, Whitkin Brothers. De repente me lembro dos nomes dos atendentes. Claro, eles são os irmãos Whitkin. “Eu cuido dele.” Informo aos irmãos que eles não precisam levar o corpo para o congelador nem transferi-lo para outra maca. “Não custa nada para nós”, eles se apressam a dizer, nervosos, como se eu estivesse sugerindo que estão matando o tempo. “Está tudo bem. Primeiro preciso ficar um tempo com ele”, digo, e empurro a maca através da porta de aço dupla, e pego luvas e protetores para os sapatos. Gasto algum tempo nas tarefas necessárias de registrar John Doe no livro de autópsias, atribuir um número a ele e fotografá-lo. Sinto cheiro de urina.
 
 
O setor de autópsia está brilhante e claro, vazio dos sons e visões habituais. A quietude é um alívio. Depois de todos esses anos, o clamor constante de água corrente nas pias de aço, de serras Stryker, de aço batendo em aço me deixa tensa e cansada. O necrotério pode ser surpreendentemente barulhento. Os mortos são enfáticos em suas exigências e em suas cores sangrentas, e este novo paciente vai resistir a mim. Já posso perceber. Ele está completamente rígido e não parece disposto a permitir que eu o dispa ou abra sua boca para olhar a língua ou os dentes, não sem luta. Abro o saco e sinto cheiro de urina. Puxo uma lâmpada cirúrgica para perto e palpo a cabeça dele, não sentindo nenhuma fratura. O sangue espalhado pelo maxilar e gotas na frente do casaco indicam que ele estava de pé quando sangrou. Dirijo a luz para as narinas. “Ele tinha um sangramento no nariz”, relato a Marino e Berger. “Por enquanto, não estou vendo nenhum ferimento na cabeça.” Começo a examinar as queimaduras com uma lupa enquanto Berger se aproxima para observar. Noto fibras e sujeira aderidas à pele empolada, e encontro abrasões nos cantos da boca e na parte interna das bochechas. Enrolo as mangas do casaco de seu agasalho de ginástica e olho os punhos. Marcas de faixas muito apertadas deixaram depressões pronunciadas na pele, e quando abro o casaco encontro duas queimaduras centradas diretamente no umbigo e no mamilo esquerdo. Berger está tão próxima que sua touca roça em mim. “Está muito frio para sair só com uma roupa de ginástica, sem uma camiseta ou outra roupa por baixo”, observo para Marino. “Os bolsos dele foram verificados na cena?” “Era melhor esperar para fazer isso aqui, onde você consegue ver o que tem algum valor”, ele responde. Enfio as mãos nos bolsos da calça e no casaco do agasalho e não encontro nada. Abaixo a calça e vejo que o short de corrida azul está encharcado de urina, e o cheiro de amônia envia um alerta para minha psique, e os pêlos de minha pele inteira se eriçam como sentinelas. Raramente a morte me apavora. Este homem, sim. Verifico o bolso interno do short e retiro uma chave de aço onde está gravado Não duplicar, e com marcador permanente está escrito o número 233. “Talvez um hotel, ou uma casa?”, pergunto em voz alta enquanto ponho a chave dentro de um saco de plástico transparente e sou picada por outras sensações paranóides. “Talvez um cofre.” Dois-três-três era o número da caixa postal de minha família quando eu era criança, em Miami. Eu não chegaria a dizer que 233 é meu número de sorte, mas é um número que usei muitas vezes para senhas e combinações de fechaduras, porque não é óbvio e consigo me lembrar dele. “Há alguma coisa que possa sugerir quem o matou?”, pergunta Berger. “Por enquanto, não. Imagino que ainda não demos sorte com o AFIS ou a Interpol, não é?”, digo a Marino. “Não temos nenhuma identificação, portanto, quem quer que seja o cara do motel, não está no AFIS. E nada da Interpol por enquanto, o que também não é necessariamente bom. Quando é óbvio, normalmente se sabe em uma hora”, diz ele. “Vamos tirar as impressões desse cara e enviar para o AFIS o mais rápido
possível.” Tento não parecer ansiosa. Com uma lupa verifico as mãos, frente e costas, para o caso de haver qualquer evidência residual que possa ser desprendida quando eu tirar as impressões digitais. Prendo as unhas com grampos e ponho-as em um envelope que rotulo e deixo numa bancada com o início da papelada, depois entinto as pontas dos dedos e Marino me ajuda com a colher. Tiro dois conjuntos de impressões. Berger está em silêncio e muito curiosa durante tudo isso, e sinto seu olhar perscrutador como o calor de uma lâmpada brilhante. Ela observa cada movimento meu, ouve todas as minhas perguntas e instruções. Não me concentro nela, mas estou ciente de sua atenção, e no fundo de minha consciência sei que essa mulher está fazendo avaliações das quais posso ou não gostar. Arrumo o lençol em volta do corpo e fecho o saco, acenando para que Berger e Marino me sigam enquanto empurro a maca na direção do congelador, encosto-a numa parede e abro a porta de aço inoxidável. O fedor de morte irrompe numa frente fria. Há poucos residentes esta noite, só seis, e verifico as etiquetas nos zíperes dos sacos, procurando o John Doe do motel. Quando o encontro, descubro seu rosto e aponto para as queimaduras e as escoriações na boca e em volta dos punhos. “Porra”, diz Marino. “Que diabo é isso? Algum assassino serial à solta amarrando pessoas e torturando-as com um secador de cabelos?” “Precisamos informar Stanfield imediatamente sobre isso”, repondo a ele, porque é evidente que a morte do John Doe do motel pode estar ligada ao corpo despejado em Mosby Court. Olho para Marino, lendo seus pensamentos. “Eu sei.” Ele não se esforça em disfarçar seu desdém por contar qualquer coisa a Stanfield. “Temos de contar a ele, Marino”, acrescento. Saímos do congelador e ele vai para o telefone de parede “limpo”. “Você consegue encontrar o caminho para a sala de reuniões?”, pergunto a Berger. “Com certeza.” Ela parece quase vidrada, talvez confusa enquanto pensamentos distantes aparecem em seus olhos. “Eu vou já para lá”, digo a ela. “Lamento a interrupção.” Ela hesita no vão da porta, desamarrando sua touca cirúrgica. “É estranho. Mas eu tive um caso há uns dois meses, uma mulher torturada com uma pistola de ar quente. As queimaduras eram muito semelhantes às desses dois casos.” Ela se inclina para tirar os protetores de sapato e deixa-os cair na lata de lixo. “Amordaçada, amarrada, e tinha queimaduras redondas no rosto e nos seios.” “E eles pegaram quem fez isso?”, logo pergunto, nada contente com o paralelo. “Um empreiteiro que estava trabalhando no prédio onde ela morava”, diz Berger, franzindo levemente o cenho. “A pistola de ar quente era para remover a pintura. O cara era realmente um horror, ruim mesmo — entrou no apartamento dela por volta das três da manhã, estuprou-a, estrangulou-a, enfim, fez o serviço completo, e quando saiu, várias horas depois, seu caminhão havia sido roubado. Bem-vindo a Nova York . Então a ficha cai, ele chama a polícia, e a cena seguinte é ele numa radiopatrulha, uma mochila no colo, dando uma declaração sobre o caminhão roubado, e ao mesmo tempo a empregada da vítima chega ao apartamento, encontra o corpo, começa a gritar histericamente e liga para o setor de emergência da polícia. O assassino está sentado bem ali no carro da
polícia quando os detetives chegam, e ele tenta correr. Uma pista. Descobre-se que o idiota tem corda de varal e uma pistola de ar quente na mochila.” “Falou-se muito desse caso na imprensa?” “Só na imprensa local. O Times, os tablóides.” “Esperemos que ele não tenha dado a idéia a mais alguém”, digo.
10
Espera-se que eu lide com qualquer visão, imagem, cheiro ou som sem me sobressaltar. Não estou autorizada a reagir ao horror como fazem as pessoas normais. Minha tarefa é reconstruir a dor sem senti-la eu própria, evocar o terror e não permitir que ele me siga até em casa. Espera-se que eu mergulhe na arte sádica de Jean-Baptiste Chandonne sem imaginar que sua próxima obra de mutilação deveria ser eu. Ele é um dos poucos assassinos que vi que se parece com o que faz, o monstro clássico. Mas não saltou das páginas de Mary Shelley. Chandonne é real. É hediondo, seu rosto formado de duas metades juntadas de forma desigual, um olho mais baixo que o outro, os dentes muito espaçados, pequenos e pontudos como os de um animal. Seu corpo inteiro é coberto por pêlos longos e descorados, finos como os de um bebê, mas são seus olhos que me perturbam mais. Vi o diabo naquele olhar, uma lascívia que parecia iluminar o ar quando ele forçou a entrada em minha casa e fechou a porta com um coice. Sua intuição e sua inteligência para o mal são palpáveis, e, embora eu resista a sentir sequer um sopro de piedade por ele, sei que o sofrimento que Chandonne causa a outros é uma projeção de sua própria desgraça, uma recriação transitória do pesadelo que ele suporta a cada batida de seu coração odioso. Encontrei Berger na sala de reuniões e agora ela me acompanha pelo corredor enquanto explico que Chandonne sofre de uma doença rara chamada hipertricose congênita. Ela ocorre só em uma de cada bilhão de pessoas, se se confiar em estatísticas desse tipo. Antes dele, eu só tinha encontrado um outro caso dessa cruel doença genética, quando era médica residente em Miami, fazendo estágio em pediatria, e uma mexicana deu à luz uma das piores deformidades da vida humana que já vi. A menininha era coberta de um cabelo cinza comprido que só poupava suas membranas mucosas, as palmas das mãos e as solas dos pés. Longos tufos se projetavam das narinas e das orelhas, e ela tinha três mamilos. Pessoas portadoras de hipertricose podem ser excessivamente sensíveis à luz e sofrem anomalias dos dentes e da genitália. Podem ter dedos a mais nas mãos e nos pés. Em séculos passados essas pessoas infelizes eram vendidas para parques de diversão ou cortes reais. Algumas eram acusadas de ser lobisomens. “Então você acha que há um significado no fato de ele morder suas vítimas nas palmas das mãos e nos pés?”, pergunta Berger. Sua voz é forte e modulada. Eu quase a chamaria de voz de televisão: grave e cristalina, que atrai a atenção. “Talvez porque essas são as únicas áreas de seu corpo que não são cobertas com cabelo? Bem, não sei”, ela reconsidera. “Mas eu teria de supor que há uma espécie de associação sexual, como, por exemplo, pessoas que têm fetiche por pés. Mas nunca vi um caso em que alguém mordesse mãos e pés.” Acendo as luzes da sala da frente e passo uma chave eletrônica sobre a fechadura da câmara à prova de fogo que chamamos de sala de evidências,
onde a porta e as paredes são reforçadas com aço e um sistema de computador registra o código de quem entra, e quando, e por quanto tempo a pessoa permanece no local. Raramente temos muita coisa em termos de objetos pessoais guardada aqui. Em geral a polícia leva esses itens para a sala de pertences ou nós os devolvemos às famílias. A razão pela qual insisti em que essa sala fosse construída é que encaro a realidade de que nenhum edifício é imune a vazamentos e preciso de um lugar seguro para guardar casos extremamente sensíveis. Numa parede preta há pesados gabinetes de aço. Abro um deles e retiro dois arquivos volumosos selados com fita grossa que rubriquei para que ninguém possa bisbilhotar sem meu conhecimento. Anoto os números dos casos de Kim Luong e Diane Bray no livro de registro ao lado da impressora, que acabou de imprimir meu código e o tempo. Berger e eu continuamos a falar enquanto seguimos pelo corredor de volta à sala de reuniões onde Marino nos espera, impaciente, tenso. “Por que você não pediu a um psicólogo forense que desse uma olhada nesses casos?”, Berger me pergunta quando passamos pelo vão da porta. Instalo os arquivos na mesa e olho para Marino. Ele não pode aceitar isso. Não é minha responsabilidade enviar casos para os especialistas em perfil psicológico. “Um psicólogo forense? Para quê?”, ele responde a Berger de uma maneira que só pode ser descrita como conflituosa. “O objetivo de traçar o perfil psicológico é delinear que tipo de criminoso fez a coisa. E nós já sabemos que tipo de criminoso ele é.” “Mas e o motivo? O significado, a emoção, o simbolismo? Esses tipos de análise. Eu gostaria de ouvir o que um psicólogo forense tem a dizer.” Ela não dá atenção a ele. “Especialmente sobre as mãos e os pés. É estranho.” Ainda está concentrada nesse detalhe. “Para mim, a maioria dos perfis psicológicos distorce a verdade”, segue Marino. “Não que eu não ache que há alguns caras que realmente têm o dom, mas a maioria só diz bobagem. Você pega um criminoso como Chandonne, que gosta de morder mãos e pés, e não precisa de nenhum especialista em perfis psicológicos do FBI para considerar que talvez essas partes tenham um significado para o cara. Como talvez ele ter alguma esquisitice nas próprias mãos e pés — ou, como neste caso, o oposto disso. Esses são os únicos lugares onde ele não tem cabelo, além da droga da boca dele e talvez do ânus.” “Eu posso entender que ele destrua o que odeia em si mesmo, que ele mutile aquelas áreas do corpo de suas vítimas, como o rosto.” Ela não se deixa intimidar por Marino. “Mas eu não sei. As mãos e os pés. Há algo mais aí.” Todos os gestos e inflexões de Berger repelem Marino. “É, mas a parte do frango de que ele mais gosta é a carne branca”, solta Marino. Ele e Berger agem como se fossem amantes brigando. “Esse é o negócio dele. Mulheres com tetas grandes. Ele deve pensar em alguma coisa ligada à mãe quando escolhe vítimas com certos tipos de corpo. Também não é preciso nenhum especialista do FBI para ligar os pontos.” Não digo nada, mas olho para Marino de um jeito que diz muito. Ele está agindo como um bobo insensível, aparentemente tão preocupado em combater
essa mulher que não consegue perceber o que está dizendo na minha frente. Ele sabe muito bem que Benton tinha um dom genuíno baseado na ciência e em uma base de dados significativa que o FBI construiu estudando e entrevistando milhares de criminosos violentos. E não gosto de ouvir referências aos tipos de corpo das vítimas, já que o meu também foi escolhido por Chandonne. “Sabe, eu não gosto da palavra ‘teta’.” Berger diz isso de modo prosaico, como se informasse ao garçom que não quer mais molho béarnaise. Ela olha serenamente para Marino. “Você sabe ao menos o que é teta, capitão?” Dessa vez ele fica sem palavras. “Pode ser manancial, fonte”, ela prossegue, mexendo em seus papéis, e a energia das mãos trai sua irritação. “Ou uma mamata, um negócio fácil. E até uma letra grega, que no caso se pronuncia com o ‘e’ aberto. Aliás, a origem da palavra é grega. Etimologia. E não estou falando do estudo de besouros. Isso seria com N — entomologia. Estou falando de palavras. Que podem ofender. E revidar a ofensa. Bolas, por exemplo, pode ser algo usado em jogos — tênis, futebol. Ou se referir ao cérebro muito limitado que há entre as pernas de homens que falam em tetas.” Ela pára e fica olhando para ele. “Agora que já cruzamos nossa barreira lingüística, podemos continuar?” Ela me dirige um olhar expectante. O rosto de Marino está da cor de um rabanete. “Você já tem cópias dos relatórios de autópsia?” Sei a resposta, mas de qualquer modo pergunto a ela. “Eu os li inúmeras vezes”, ela responde. Removo a fita das pastas e as empurro na direção dela, enquanto Marino estala os dedos e evita nos encarar. Berger tira de um envelope fotografias coloridas. “O que vocês podem me dizer?”, pergunta. “Kim Luong”, Marino começa num tom contido, fazendo-me lembrar de M. I. Calloway depois que ele insistiu em humilhá-la. Ele está fervilhando. “Uma asiática de trinta anos, trabalhava meio período numa loja de conveniência no West End chamada Quik Cary. Parece que Chandonne esperou até ela ficar sozinha na loja. Isso foi à noite.” “Quinta-feira, 9 de dezembro”, diz Berger, olhando uma foto do corpo de Luong, seminu e mutilado. “É. O alarme contra ladrões disparou às sete e dezesseis”, ele diz, e eu fico desconcertada. Sobre o que Marino e Berger conversaram ontem à noite, se não foi sobre isso? Supus que ele se encontrou com ela para tratar dos aspectos investigativos dos casos, mas agora parece claro que eles não discutiram os assassinatos de Luong e Bray. Berger franze o cenho, olhando outra fotografia. “Sete e dezesseis da noite? Isso foi quando ele entrou na loja ou quando saiu?” “Quando ele saiu. Por uma porta dos fundos onde há um sistema de alarme separado, que estava sempre ligado. Portanto, ele entrou na loja algum tempo antes disso, pela porta da frente, provavelmente logo depois de escurecer. Ele tinha uma arma, entrou, atirou nela quando ela estava sentada atrás do balcão. Então ele pendurou a placa de ‘fechado’, trancou a porta e a arrastou para o depósito para fazer o que queria com ela.” Marino está lacônico e bem
comportado, mas por baixo de tudo isso há uma mistura química que começo a reconhecer. Ele quer impressionar, depreciar e levar Jaime Berger para a cama, e tudo isso tem a ver com suas feridas dolorosas de solidão e insegurança, e com suas frustrações, e comigo. Quando o vejo lutando para esconder seu constrangimento atrás de um muro de indiferença, sinto pena. Se ao menos Marino não chamasse para si a infelicidade. Se ao menos ele não provocasse momentos desagradáveis como este. “Ela estava viva quando ele começou a bater nela e mordê-la?” Berger dirige essa pergunta a mim, enquanto olha vagarosamente outras fotografias. “Sim”, respondo. “Com base em quê?” “Havia reação do tecido aos ferimentos do rosto suficiente para sugerir que ela estava viva quando ele começou a bater nela. O que não conseguimos saber é se ela estava consciente. Ou, melhor, por quanto tempo ela ficou consciente”, digo. “Tenho videoteipes das cenas”, oferece Marino, num tom que sugere cansaço. “Eu quero tudo.” Berger deixa isso muito claro. “Pelo menos eu filmei as cenas de Luong e Diane. Não a do irmão, Thomas. Nós não o filmamos no contêiner de carga, o que é provavelmente uma sorte.” Marino boceja, o que torna sua representação mais ridícula e irritante. “Você foi a todas as cenas?”, Berger me pergunta. “Fui.” Ela olha outra fotografia. “Nunca mais vou comer queijo gorgonzola, não depois de ter passado um tempo me dedicando ao velho Thomas.” A hostilidade chega à superfície da pele de Marino. “Eu estava pensando em tomar um café”, digo a ele. “Você se importa?” “Me importo com o quê?” “Em pegar um bule.” Olho para ele de um jeito que sugere enfaticamente que ele me deixe sozinha com Berger por alguns minutos. “Não sei bem como funciona a máquina de café daqui.” A desculpa dele é estúpida. “Tenho certeza de que você vai descobrir”, respondo. “Estou vendo que vocês dois se dão muito bem”, observo com ironia quando Marino está no corredor e não pode nos ouvir. “Nós tivemos oportunidade de nos conhecer hoje de manhã, de manhã cedinho, devo acrescentar.” Berger levanta os olhos para mim. “No hospital, antes de Chandonne iniciar sua alegre viagem.” “Permita-me sugerir, senhorita Berger, que se você vai ficar mais algum tempo por aqui, deve começar dizendo a ele que se concentre na missão. Ele parece estar travando uma luta com você que é mais importante que qualquer outra coisa, e isso não ajuda em nada.” Ela continua a estudar as fotografias sem nenhuma expressão no rosto. “Meu Deus, é como se elas tivessem sido atacadas por um animal. Exatamente como Susan Pless, meu caso. Estas poderiam ser fotos do corpo dela. Estou quase
disposta a acreditar em lobisomens. Claro, existe a teoria no folclore de que a idéia de lobisomens pode ter se baseado em pessoas reais que sofriam de hipertricose.” Não sei ao certo se ela está tentando me mostrar quanto pesquisou, ou se está desviando do que acabei de dizer sobre Marino. Ela olha para mim. “Agradeço seu conselho. Sei que você sempre trabalhou com ele, portanto ele não pode ser totalmente ruim.” “E não é. Você não vai encontrar um detetive melhor.” “E me deixe adivinhar. Ele era detestável quando você o conheceu?” “Ele ainda é detestável”, respondo. Berger ri. “Marino e eu temos algumas questões que ainda não resolvemos. Evidentemente ele não está acostumado com promotores que lhe digam como vai funcionar um caso. Em Nova York é um pouco diferente”, ela me lembra. “Por exemplo, policiais não podem prender um acusado em um caso de homicídio sem a aprovação do promotor distrital. Nós administramos os casos lá, e francamente” — ela pega exames de laboratório — “funciona muito melhor. Marino acha extremamente necessário estar no comando, e ele protege demais você. E tem ciúme de qualquer pessoa que apareça em sua vida”, ela resume, passando os olhos pelos exames. “Nada de álcool, exceto no caso de Diane Bray. Zero-vírgula-zero-três. Não sugere que ela tomou uma ou duas cervejas e comeu pizza antes de o assassino aparecer?” Ela espalha fotografias pela mesa. “Acho que nunca vi alguém tão machucado. Uma fúria inacreditável. E luxúria, se é que se pode chamar isso de luxúria. Acho que não existe uma palavra para descrever o que ele poderia estar sentindo.” “A palavra é ‘maldade’.” “Suponho que vai demorar um pouco para sabermos sobre outras drogas.” “Vamos fazer testes para os suspeitos usuais. Mas isso leva semanas”, digo a ela. Ela espalha mais fotografias, escolhendo-as como se estivesse jogando paciência. “Como você se sente vendo isso, sabendo que poderia ter sido você?” “Eu não penso nisso”, respondo. “No que você pensa?” “No que os ferimentos me dizem.” “Que é o quê?” Pego uma fotografia de Kim Luong — segundo dizem, uma jovem alegre, maravilhosa, que estava trabalhando para poder cursar enfermagem. “O padrão do sangue”, descrevo. “Praticamente cada centímetro da pele exposta está coberto de manchas de sangue. Ele fez pintura com os dedos.” “Depois que elas estavam mortas.” “Presumivelmente. Nesta foto” — mostro a ela — “você pode ver claramente o ferimento do tiro na frente do pescoço dela. Atingiu a carótida e a medula. Ela devia estar paralisada do pescoço para baixo quando ele a arrastou para o depósito.” “E com uma hemorragia. Por causa do rompimento da carótida.” “Com toda certeza. Você pode ver o padrão de borrifo de sangue arterial nas prateleiras pelas quais ele passou ao arrastá-la.” Inclino-me para mais perto dela e mostro aquilo a que me refiro em várias fotografias. “Grandes áreas
salpicadas de sangue que começam a ficar mais baixas e mais fracas à medida que ela é arrastada para mais perto do depósito.” “Consciente?” Berger está fascinada e inflexível. “O ferimento na medula não foi imediatamente fatal.” “Quanto tempo ela pode ter sobrevivido, sangrando desse jeito?” “Minutos.” Encontro uma fotografia da autópsia que mostra a medula após ter sido removida do corpo e posta no centro de uma toalha verde, ao lado de uma régua de plástico branca, para dar uma idéia da escala. A medula lisa cor de creme tem uma contusão violenta roxo-azulada e uma parte rompida numa área relacionada ao ferimento do tiro, que penetrou no pescoço de Luong entre o quinto e o sexto discos cervicais. “Ela deve ter ficado instantaneamente paralisada”, explico, “mas a contusão significa que ela tinha pressão sangüínea, que o coração ainda estava bombeando, e de qualquer forma sabemos isso pelo borrifo de sangue na cena do crime. Portanto, sim. Ela provavelmente estava consciente quando ele a arrastou pelos pés pelo corredor até o depósito. O que não posso dizer é por quanto tempo ela ficou consciente.” “Ela teria conseguido ver o que ele estava fazendo e observar seu próprio sangue jorrando do pescoço enquanto sangrava até morrer?” A expressão de Berger é intensa, seus olhos incendiados por uma energia de alta voltagem. “De novo, depende de quanto tempo ela ficou consciente”, digo a ela. “Mas há uma possibilidade de ela ter ficado consciente durante todo o tempo em que ele a arrastou pelo corredor, até o depósito?” “Com certeza.” “Ela conseguia falar ou gritar?” “Talvez ela não conseguisse fazer nada.” “Mas, supondo que ninguém a ouviu gritar, isso não significaria que ela estava inconsciente?” “Não, não necessariamente”, respondo. “Se você levasse um tiro no pescoço e tivesse uma hemorragia e fosse arrastada...” “Especialmente se arrastada por alguém com a aparência dele.” “Sim. Você poderia ficar aterrorizada demais para gritar. Ele pode ter dito a ela para calar a boca, aliás.” “Bom.” Berger parece satisfeita. “Como você sabe que ele a arrastou pelos pés?” “O padrão de arrasto do sangue feito pelo cabelo comprido dela, e trilhas de sangue dos dedos dela acima da cabeça”, descrevo. “Se você está paralisada e sendo arrastada pelos tornozelos, por exemplo, seus braços vão se espalhar. Como quando se brinca de anjo na neve.” “O impulso humano não seria agarrar o pescoço e tentar parar o sangramento?”, pergunta Berger. “E ela não consegue. Está paralisada e acordada assistindo à própria morte e imaginando que diabo ele vai fazer com ela a seguir.” Ela faz uma pausa para causar impacto. Berger pensa no júri, e já posso dizer que não foi por acaso que ela conquistou sua incrível reputação. “Essas mulheres realmente sofreram”, ela acrescenta calmamente. “Com toda a certeza.” Minha blusa está encharcada e estou novamente fria.
“Você previu que teria o mesmo tratamento?” Ela olha para mim com um desafio nos olhos, como se me provocasse a explorar tudo que me passou pela cabeça quando Chandonne entrou em minha casa e tentou cobrir minha cabeça com seu casaco. “Você consegue se lembrar de alguma coisa que pensou?”, ela estimula. “O que você sentiu? Ou tudo aconteceu tão rápido...” “Rápido”, interrompo-a. “Sim, aconteceu rápido. Rápido e por uma eternidade. Quando estamos em pânico, lutando por nossa vida, nossos relógios internos param de funcionar. Esse não é um fato médico, só uma observação pessoal”, acrescento, tateando, tentando encontrar o caminho entre lembranças que não são completas. “Então minutos podem ter parecido horas para Kim Luong”, Berger deduz. “Chandonne ficou com você provavelmente só alguns minutos enquanto a perseguia pela sala. Quanto tempo pareceu durar?” Ela está totalmente concentrada nisso, os olhos cravados em mim. “Pareceu...” Luto para descrever o que senti. Não há base para comparação. “Um rodopio...” Minha voz some enquanto olho para o vazio, sem piscar, suando e aterrorizada. “Um rodopio?” Berger parece um pouco incrédula. “Você pode explicar o que quer dizer com isso, um rodopio?” “Como a realidade se distorcendo, se ondulando, como o vento encrespando a água, do modo como uma poça fica quando é atingida pelo vento, todos os seus sentidos de repente tão aguçados que o instinto de sobrevivência animal domina o cérebro. Você ouve o ar se movendo. Vê o ar se movendo. Tudo parece estar em câmara lenta, desmoronando sobre si mesmo, interminavelmente. Você vê tudo, cada detalhe do que está acontecendo, e percebe...” “Percebe?”, estimula Berger. “Sim, percebe”, continuo. “Percebe o cabelo nas mãos dele iluminado como filamentos, parecido com linhas de pescar, quase translúcido. Percebe que ele está quase feliz.” “Feliz? O que você quer dizer?”, pergunta Berger. “Ele estava rindo?” “Eu diria outra coisa. Não era bem um riso, era algo primitivo, a alegria, a luxúria, a fome enraivecida que se vê nos olhos de um animal prestes a ser alimentado com carne crua fresca.” Respiro fundo, olhando para a parede de minha sala de reuniões, para um calendário com uma cena de neve de Natal. Berger está rígida, com as mãos imóveis sobre a mesa. “O problema não é o que você observa, é o que você lembra”, prossigo, mais lúcida. “Acho que o choque disso tudo causa um erro de disco, e você não consegue se lembrar com o mesmo grau de atenção extrema aos detalhes. Talvez isso também seja sobrevivência. Talvez precisemos esquecer algumas coisas para não revivê-las. Esquecer faz parte da cura. Como a moça que corria no Central Park e foi arrastada por uma gangue, surrada, mordida, abandonada como morta. Por que ela ia querer se lembrar? E eu sei que você conhece bem o caso”, acrescento com ironia. O caso foi de Berger, claro. A promotora distrital assistente Berger se mexe na cadeira. “Mas você se lembra”, ela observa calmamente. “E você tinha visto o que Chandonne faz com
suas vítimas. ‘Lacerações severas no rosto’.” Ela começa a ler em voz alta o relatório da autópsia de Luong. “‘Extensas fraturas trituradas do osso parietal direito... fratura do osso frontal direito... chegando à linha média... hematoma subdural bilateral... rompimento da dura-máter acompanhado de hemorragia subaracnóide... fraturas com afundamento que levaram a parte interna do osso plano do crânio a penetrar no cérebro subjacente... fraturas com aspecto de casca de ovo... coagulação...’” “A coagulação sugere um tempo de sobrevivência de pelo menos seis minutos a partir do instante em que ocorreu o ferimento.” Volto a meu papel de intérprete dos mortos. “Um tempo enorme”, observa Berger, e posso imaginá-la fazendo um júri ficar em silêncio por seis minutos para mostrar a eles exatamente a duração. “Os ossos faciais esmagados, e aqui” — toco áreas de uma fotografia — “as roturas e os rasgos na pele feitos por uma espécie de ferramenta que deixou um padrão de ferimentos redondos e lineares.” “Uma surra de pistola.” “Neste caso, no caso de Luong, sim. No caso de Bray, ele usou um tipo incomum de martelo.” “Uma picareta de entalhar.” “Pelo que vejo, você fez a lição de casa.” “É um hábito esquisito que eu tenho”, ela diz. “Premeditação”, prossigo. “Ele trouxe suas armas para as cenas ou usou algo que encontrou quando chegou lá? E esta foto aqui” — pego outro horror — “mostra contusões nos nós dos dedos, de socos. Portanto ele também usou os punhos para bater nela, e desse ângulo podemos ver o suéter e o sutiã dela no chão. Parece que ele os arrancou com as mãos nuas.” “Com base em quê?” “No microscópio você pode ver que as fibras estão rasgadas e não cortadas”, respondo. Berger observa um diagrama corporal. “Acho que nunca vi tantas marcas de mordida feitas por um ser humano. Enlouquecido. Alguma razão para suspeitar que ele pudesse estar sob efeito de drogas quando cometeu esses assassinatos?” “Eu não teria como saber.” “E quando você se encontrou com ele?”, ela pergunta. “Quando ele a atacou no sábado, pouco depois da meia-noite. A propósito, ele tinha o mesmo tipo esquisito de martelo, pelo que entendo? Uma picareta de entalhar?” “ ‘Enlouquecido’ é uma boa palavra para descrevê-lo. Mas eu não teria nenhuma razão para saber se ele estava drogado.” Faço uma pausa. “Sim, ele estava com uma picareta de entalhar quando tentou me atacar.” “Tentou? Vamos expor os fatos.” Ela me encara. “Ele a atacou. Não tentou. Ele a atacou e você escapou. Você deu uma boa olhada na picareta?” “Bem pensado, já que estamos expondo os fatos. Era um tipo de ferramenta. Eu sei como é uma picareta de entalhar.” “Do que você se lembra? O rodopio”, ela se refere a minha estranha descrição. “Aqueles minutos intermináveis, os fios do cabelo nas mãos dele
iluminados como um filamento.” Visualizo um cabo preto espiralado. “Eu vi a espiral”, conto a ela da melhor forma que consigo. “Eu me lembro disso. É muito incomum. Uma picareta de entalhar tem um cabo que parece uma mola grossa, preta.” “Tem certeza? Foi isso que você viu quando ele a atacou?”, ela me pressiona. “Tenho uma vaga certeza.” “Seria útil se sua certeza fosse mais do que vaga”, ela responde. “Eu vi a ponta dela. Como um grande bico preto. Quando ele a levantou para me golpear. Sim, tenho certeza. Ele tinha uma picareta de entalhar.” Assumo uma atitude de desafio. “Era exatamente o que ele tinha.” “Eles coletaram o sangue de Chandonne no pronto-socorro”, Berger me informa. “Negativo para drogas e álcool.” Ela está me testando. Já sabia que o teste de Chandonne dera negativo para drogas e álcool, mas reteve esse detalhe por tempo suficiente para ouvir minhas impressões. Ela quer ver se consigo ser objetiva quando falo sobre meu caso. Quer ver se consigo me ater aos fatos. Ouço Marino no corredor. Ele entra com três xícaras de isopor fumegantes e as põe na mesa, empurrando um café preto na minha direção. “Não sei o que você toma, mas tem creme”, diz ele com rudeza a Berger. “E o seu realmente está cheio de creme e açúcar, porque de jeito nenhum eu ia querer fazer algo que pudesse me privar de minha nutrição.” “Qual a gravidade do dano que alguém sofreria se fosse atingido com formalina nos olhos?”, Berger me pergunta. “Depende da rapidez com que a pessoa fosse lavada”, respondo objetivamente, como se a indagação dela fosse teórica, e não uma alusão ao fato de eu ter mutilado outro ser humano. “Deve doer como o diabo. É um ácido, certo? Eu vi o que ele faz no tecido — transforma em borracha”, ela comenta. “Não literalmente.” “Claro que não literalmente”, ela concorda, com um traço de sorriso que sugere que eu deveria me descontrair um pouco, como se isso fosse possível. “Se você colocar tecido em uma suspensão de formalina por muito tempo, ou injetá-la — em embalsamamento, por exemplo”, explico, “nesse caso, sim, ela fixa o tecido, preserva-o indefinidamente.” Mas Berger tem pouco interesse na ciência da formalina. Não tenho certeza nem mesmo de que ela esteja interessada na extensão de qualquer dano permanente que o produto químico possa ter causado a Chandonne. Tenho a sensação de que ela está mais concentrada em como me sinto a respeito de causar a ele dor e provavelmente uma incapacitação. Ela não me pergunta. Apenas olha para mim. Estou começando a sentir o peso desses olhares. Os olhos dela são como mãos experientes palpando em busca de qualquer anomalia ou suscetibilidade. “Temos alguma idéia de quem vai ser o advogado dele?” Marino nos lembra de que está presente. Berger bebe seu café. “A pergunta de seis milhões de dólares.” “Então você não tem nenhuma pista”, diz Marino, desconfiado.
“Ah, eu tenho uma pista. Será alguém de quem você definitivamente não vai gostar.” “Ora”, ele retruca. “Isso é fácil de prever. Nunca conheci um advogado de quem eu gostasse.” “Pelo menos esse será um problema meu”, ela diz. “Não seu.” Ela o põe de novo em seu lugar. Eu também me irrito com isso. “Olhe”, digo a ela, “julgá-lo em Nova York é uma coisa que não me agrada.” “Eu entendo como você se sente.” “Eu tenho sérias dúvidas a esse respeito.” “Bem, eu conversei com seu amigo, o senhor Righter — o bastante para dizer a você exatamente o que ocorreria se vocês julgassem monsieur Chandonne aqui na Virgínia.” Agora ela está serena, é a especialista, apenas um pouco sardônica. “O tribunal recusaria a acusação de se passar por policial e reduziria a tentativa de assassinato para invasão de domicílio com intenção de cometer assassinato.” Ela faz uma pausa, esperando minha reação. “Ele na verdade não tocou em você. Esse é o problema.” “Na verdade, o problema teria sido se ele tivesse tocado”, respondo, recusando-me a mostrar que ela está realmente começando a me irritar. “Ele pode ter erguido aquela picareta para atingir você, mas não atingiu.” Seus olhos estão fixados nos meus. “Pelo que somos todos gratos.” “Você sabe o que dizem, seus direitos só são valorizados quando são transgredidos.” Pego meu café. “Righter teria feito uma moção para que todas as acusações fossem combinadas em um único julgamento, doutora Scarpetta. E então qual teria sido o seu papel? Testemunha especialista? Testemunha factual? Ou vítima? O conflito é claramente visível. Ou você testemunha como legista e o ataque a você é deixado completamente de fora, ou você é simplesmente uma vítima que sobreviveu e outra pessoa testemunha em seu caso. Ou pior” — ela pára para criar impacto — “Righter estipula seus relatórios. Ele parece ter o hábito de fazer isso, pelo que entendo.” “O cara tem a fibra de uma meia vazia”, diz Marino. “Mas a doutora está certa. Chandonne deve pagar pelo que tentou fazer com ela. E com toda a certeza ele devia pagar pelo que fez com as outras duas mulheres. E deve pegar pena de morte. Pelo menos aqui, nós o fritaríamos.” “Não se a doutora Scarpetta estivesse de alguma forma desacreditada como testemunha, capitão. Um bom advogado de defesa não demoraria para pintá-la como uma pessoa com conflito de interesses e jogaria muita tinta na água.” “Não importa. Tudo é discutível, certo?”, diz Marino. “Ele não está sendo julgado aqui e eu não nasci ontem. Ele nunca vai ser julgado aqui. Vocês vão trancá-lo, e nós, os insignificantes daqui, nunca teremos chance de ir ao tribunal.” “O que ele estava fazendo em Nova York dois anos atrás?”, pergunto. “Você tem alguma idéia sobre isso?” “Ah”, diz Marino, como se conhecesse detalhes que ainda não foram partilhados comigo. “Essa história é boa.”
“Seria possível que a família dele tivesse conexões em minha bela cidade?”, sugere Berger, com aparente desinteresse. “Mas que diabo, eles provavelmente têm uma porra dum apartamento de cobertura”, retruca Marino. “E Richmond?”, continua Berger. “Richmond não é um ponto de parada entre Nova York e Miami, pelo corredor de drogas da I-95?” “Ah, sim”, responde Marino. “Antes de o Projeto Exílio começar e processar aqueles parasitas que cumpriam pena em prisão federal se fossem apanhados com armas ou drogas. É, Richmond era um lugar realmente popular para fazer negócios. Então, se o cartel Chandonne está em Miami — e já sabemos disso, com base no trabalho secreto que Lucy estava fazendo lá — e se há uma grande conexão em Nova York, não é nenhuma surpresa que as armas e as drogas do cartel estivessem vindo parar em Richmond também.” “Estivessem?”, ela pergunta. “Talvez ainda estejam.” “Imagino que tudo isso vai manter o ATF ocupado por um bom tempo”, digo. “Ah”, Marino bufa outra vez. Há uma pausa tensa, então Berger diz: “Bem, já que vocês tocaram no assunto”. Seu jeito me diz que ela está prestes a me dar notícias que não vou apreciar. “Parece que o ATF tem um probleminha. Assim como o FBI e a polícia francesa. A esperança, obviamente, era usar a prisão de Chandonne como uma oportunidade para obter mandados de busca na casa da família dele em Paris e talvez encontrar evidências que pudessem ajudar a desmontar o cartel. Mas estamos tendo um pouco de dificuldade para colocar Jean-Baptiste dentro da casa da família. De fato, não temos nada para provar quem ele é. Nem carteira de motorista, nem passaporte, nem certidão de nascimento. Não existe sequer um registro desse homem bizarro. Só seu DNA, que é tão próximo do DNA do homem encontrado no porto daqui que podemos supor que eles provavelmente são parentes, provavelmente irmãos. Mas eu preciso de algo mais tangível do que isso para conseguir que o júri fique do meu lado.” “E não há a menor hipótese de a família dele se apresentar e reivindicar o Loup-garou”, diz Marino, num francês horrível. “Essa é a razão de não haver nenhum registro dele, certo? Os poderosos Chandonne não querem que o mundo saiba que eles têm um filho que é uma anomalia de traseiro peludo e que é um assassino serial.” “Espere um minuto”, eu os interrompo. “Ele não se identificou quando foi preso? De onde obtivemos o nome Chandonne, se não dele?” “Nós o obtivemos dele.” Marino esfrega o rosto com as mãos. “Merda. Mostre o teipe a ela”, ele dispara de repente para Berger. Não tenho idéia sobre de que teipe ele está falando, e Berger não está nada feliz por ele tê-lo mencionado. “A doutora tem o direito de saber”, ele diz. “O que temos aqui é uma nova versão de um acusado que tem um perfil de DNA, mas não tem nenhuma identidade.” Berger evita o assunto que Marino tentou introduzir. Que teipe?, penso, enquanto a paranóia aumenta. Que teipe? “Você está com ele?” Marino trata Berger com franca hostilidade, os dois
se enfrentando em um quadro vivo de raiva empedernida, olhando um para o outro por cima da mesa. O rosto dele se endurece. Ele agarra afrontosamente a maleta dela e a puxa para perto de si, como se planejasse se servir do que quer que haja dentro dela. Berger põe a mão em cima da maleta com um olhar atordoante. “Capitão”, ela adverte, num tom que pressagia o pior problema que ele jamais enfrentou. Marino retira a mão, seu rosto vermelho de fúria. Berger abre a maleta e me dá toda a sua atenção. “Eu tenho intenção de mostrar o teipe a você”, ela mede as palavras. “Apenas não ia fazer isso neste exato momento, mas podemos.” Ela está bastante controlada, mas consigo ver que está muito irritada quando tira um teipe de um envelope pardo. Levanta-se e o insere no aparelho de videocassete. “Alguém sabe como operar esta coisa?”
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Ligo a televisão e passo o controle remoto a Berger. “Doutora Scarpetta”, ela ignora completamente Marino, “antes de iniciarmos isto, vou lhe dar um pequeno resumo de como o gabinete do promotor distrital funciona em Manhattan. Como já mencionei, fazemos algumas coisas de forma muito diferente do que vocês estão acostumados a fazer aqui na Virgínia. Eu esperava lhe explicar tudo isso antes de sujeitá-la ao que vai ver agora. Você está familiarizada com nosso sistema de plantão para homicídios?” “Não”, respondo, e meus nervos se tensionam e começam a zunir. “Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, um promotor distrital assistente fica de plantão para o caso de ocorrer um homicídio ou a polícia localizar um acusado. Em Manhattan, os policiais não podem prender um acusado sem que o gabinete do promotor distrital autorize, como já expliquei. Isso serve para garantir que tudo — mandados de busca, por exemplo — seja executado de forma adequada. É comum que o promotor, o assistente, vá à cena do crime, e em uma situação em que um acusado é preso, se ele se dispuser a ser entrevistado pelo assistente, pulamos tudo isso. Capitão Marino”, ela se dirige a ele com frieza, “você começou no Departamento de Polícia de Nova York, mas deve ter sido antes de tudo isso ser implementado.” “Nunca tinha ouvido falar sobre isso até hoje”, ele resmunga, seu rosto ainda perigosamente vermelho. “E sobre processo vertical?” “Parece um ato sexual”, responde Marino. Berger finge que não ouviu a resposta. “Idéia de Morgenthau”, ela me diz. Robert Morgenthau é o promotor distrital de Manhattan há quase vinte e cinco anos. É uma lenda. É óbvio que Berger adora trabalhar para ele. Alguma coisa se acende lá no fundo de mim. Inveja? Não, talvez melancolia. Estou cansada. Tenho uma sensação crescente de impotência. Não tenho ninguém além de Marino, que é tudo menos inovador ou esclarecido. Marino não é uma lenda, e neste exato momento não adoro trabalhar com ele, e nem sequer quero tê-lo por perto. “O promotor assume o caso desde o início.” Berger começa a explicar o que é o processo vertical. “Então não precisamos lidar com três ou quatro pessoas que já entrevistaram nossas testemunhas ou a vítima. Se um caso é meu, por exemplo, posso literalmente começar na cena do crime e terminar no tribunal. Uma pureza que não pode absolutamente ser contestada. Se tiver sorte, interrogo o acusado antes que ele contrate um advogado — obviamente, nenhum advogado de defesa vai concordar com que seu cliente fale comigo.” Ela aciona o controle remoto. “Felizmente, peguei Chandonne antes de ele ter um advogado. Entrevistei-o várias vezes no hospital a partir das três da manhã de hoje, um horário um tanto desumano.” Dizer que estou chocada seria uma trivialização grosseira de minha reação
ao que ela acaba de revelar. Não é possível que Jean-Baptiste Chandonne tenha concordado em falar com alguém. “Evidentemente, você está um pouco surpresa.” O comentário de Berger me parece retórico, como se ela quisesse provar alguma coisa. “Pode-se dizer que sim”, respondo. “Talvez não tenha realmente lhe ocorrido que seu atacante é capaz de andar, falar, mascar chiclete, beber Pepsi? Talvez ele não lhe pareça plenamente humano?”, ela sugere. “Talvez você pense que ele é realmente um lobisomem.” Na verdade, não o vi quando ele falou de modo convincente do outro lado da porta da frente de minha casa. Polícia. Está tudo bem aí? Depois disso, ele foi um monstro. Sim, um monstro. Um monstro me atacando com uma ferramenta de ferro preto que parecia algo saído da Torre de Londres. Então ele começou a grunhir, gritar e ter um comportamento muito semelhante a sua aparência, que é hedionda e sobrenatural. Uma fera. Berger sorri com certo cansaço. “Agora você está prestes a ver nosso desafio, doutora Scarpetta. Chandonne não é louco. Não é sobrenatural. E nós não queremos que os jurados o enquadrem em um padrão diferente apenas porque ele tem uma doença infeliz. Mas também quero que eles o vejam agora, antes que ele esteja limpo e usando um terno de três peças. Penso que os jurados precisam avaliar plenamente o terror que as vítimas dele sentiram, você não acha?” Ela me olha nos olhos. “Isso pode ajudá-los a perceber que ninguém em sã consciência o teria convidado a entrar em casa.” “Por quê? Ele disse que eu o convidei?” Minha boca está seca. “Ele disse muitas coisas”, responde Berger. “O maior monte de asneiras que já ouvi”, diz Marino, enojado. “Mas eu soube disso no ato. Vou ao quarto dele na noite passada, certo? Digo a ele que a senhorita Berger quer entrevistá-lo, e ele me pergunta como ela é. Eu não digo uma palavra, finjo que concordo com o babaca. Digo a ele, ‘Bom, vamos dizer o seguinte, John. Para muitos caras é muito duro — sem querer fazer trocadilho — se concentrar quando ela está por perto, você entende o que estou dizendo, certo?’” John, penso, entorpecida. Marino o chama de John. “Testando, um, dois, três, um dois, três”, uma voz soa no teipe, e uma parede de concreto enche a tela. A câmera começa a focalizar uma mesa vazia e uma cadeira. Ao fundo, um telefone toca. “Ele quer saber se ela tem um belo corpo, e, senhorita Berger, espero que me desculpe por fazer referência a ele.” Marino destila sarcasmo, ainda furioso com ela por razões que ainda não consigo entender totalmente. “Mas estou só repetindo o que o merdinha disse. Então eu digo a ele, ‘Puxa, nem é certo eu comentar, mas, como eu disse, os caras nem conseguem pensar direito quando ela está por perto. Pelo menos os caras direitos não conseguem pensar direito’.” Sei muito bem que não foi isso o que Marino disse. Na verdade, duvido que Chandonne tenha perguntado como era Berger. O mais provável é que a sugestão de que ela tem uma aparência sexy tenha vindo de Marino, para convencer Chandonne a falar com ela, e quando me recordo do comentário grosseiro que Marino fez sobre Berger quando estávamos indo para o carro de Lucy, ontem à
noite, sinto uma onda de ressentimento, de raiva. Estou cheia dele e de seu machismo. Estou cheia de seu chauvinismo e de sua grosseria de macho. “Que diabo é isso?” Tenho a sensação de que estou dando um banho de água fria nele. “As partes do corpo feminino têm de entrar em toda conversa? Você acha possível, Marino, se concentrar neste caso sem ficar obcecado com o tamanho dos seios de uma mulher?” “Testando, um, dois, três, um, dois, três”, a voz do câmera soa de novo no teipe. O telefone pára de tocar. Ouve-se o arrastar de pés e vozes murmurando. “Vamos pô-lo sentado aqui, nesta mesa e nesta cadeira.” Reconheço a voz de Marino no teipe, e ao fundo alguém bate na porta. “A questão é que Chandonne falou.” Berger está olhando para mim, me palpando de novo com seus olhos, descobrindo minhas fraquezas, meus pontos sensíveis. “Ele falou muito comigo.” “Seja lá para que isso sirva.” Marino olha irritado para a tela da TV. Então é isso. Marino pode ter induzido Chandonne a falar com Berger, mas a verdade é que ele queria que Chandonne falasse com ele. A câmera é fixada e só vejo o que está diretamente diante dela. A barrigona de Marino entra no quadro quando ele puxa uma cadeira de madeira, e alguém de terno azul-escuro e gravata vermelha ajuda Marino a guiar Chandonne até a cadeira. Chandonne está vestido com uma roupa de hospital de mangas curtas, e fios de cabelo compridos e pálidos pendem de seus braços em emaranhados ondulados e macios da cor de mel. O cabelo se esparrama sobre a gola em V e sobe pelo pescoço em redemoinhos repulsivos. Ele se senta e sua cabeça entra na tela, coberta de ataduras desde o meio da testa até a ponta do nariz. Logo em volta das ataduras, a pele foi depilada e é branca como leite, como se nunca tivesse apanhado sol. “Posso tomar minha Pepsi, por favor?”, pergunta Chandonne. Nada lhe restringe os movimentos, nem sequer algemas. “Você quer que eu abra?”, diz Marino a ele. Nenhuma resposta. Berger passa diante da câmera e noto que está usando um terninho chocolate com ombreiras. Ela se senta diante de Chandonne. Só vejo a parte de trás de sua cabeça e de seus ombros. “Você quer outra bebida, John?”, Marino pergunta ao homem que tentou me matar. “Daqui a um minuto. Posso fumar?”, diz Chandonne. Sua voz é suave e tem forte sotaque francês. Ele é polido e calmo. Mantenho os olhos na tela da TV, minha concentração oscilando. Sinto outra vez distúrbios elétricos, estresse pós-traumático, meus nervos saltam como água batendo em graxa quente, e estou começando a ter outra dor de cabeça forte. O braço com manga azul-escura e punho branco entra na tela, pondo uma bebida e um maço de cigarros Camel diante de Chandonne, e reconheço o copo de papel alto azul e branco da lanchonete do hospital. Uma cadeira é arrastada para trás, e vejo o braço de manga azul acender um cigarro para Chandonne. “Senhor Chandonne.” A voz de Berger soa descontraída e segura, como se ela falasse todo dia com assassinos seriais mutantes. “Vou começar me apresentando. Sou Jaime Berger, promotora do gabinete do promotor distrital do
condado de Nova York . Em Manhattan.” Chandonne levanta uma das mãos e toca levemente nas ataduras. Os dorsos de seus dedos são cobertos de um pêlo claro felpudo, quase albino, incolor. Deve ter um centímetro de comprimento, como se até recentemente ele depilasse as costas das mãos. Tenho visões dessas mãos tentando me pegar. As unhas estão compridas e sujas, e pela primeira vez percebo os contornos de músculos potentes, não espessos e salientes como o de homens que se exercitam obsessivamente, mas desgastados e duros, o hábitat físico de alguém que, como um animal, usa o corpo para se alimentar, lutar e fugir, para sobreviver. Sua força parece contradizer nossa suposição de que ele teve uma vida muito sedentária e inútil, escondido no hôtel particulier de sua família, como são chamadas as elegantes residências da Île de Saint-Louis. “Você já conhece o capitão Marino”, diz Berger a Chandonne. “Também está presente o oficial Escudero, de meu gabinete — ele é o câmera. E o agente especial Jay Talley, do ATF.” Sinto que Berger me olha. Evito olhar. Abstenho-me de interromper para perguntar Por quê? Por que Jay está lá?. Ocorre-me que ela é exatamente o tipo de mulher por quem ele se sentiria atraído — intensamente. Tiro um lenço do bolso do casaco e enxugo o suor frio em minha sobrancelha. “Você sabe que isto está sendo gravado e não tem nenhuma objeção a isso”, Berger diz no teipe. “Sim.” Chandonne dá uma tragada no cigarro e um fiapo de fumo fica grudado na ponta de sua língua. “Senhor, vou lhe fazer algumas perguntas sobre a morte de Susan Pless, em 15 de dezembro de 1997.” Chandonne não reage. Pega a Pepsi e procura o canudo com seus lábios rosados e desiguais, enquanto Berger prossegue, fornecendo a ele o endereço da vítima no Upper East Side de Nova York. Ela diz que, antes de prosseguirem, quer informá-lo de seus direitos, embora ele já tenha sido informado sobre eles muitas vezes por sabe Deus quem. Chandonne ouve. Talvez seja minha imaginação, mas ele parece estar se divertindo. Aparentemente não está aflito e não se sente nem um pouco intimidado. Está calmo e cortês, suas horríveis mãos peludas pousadas em cima da mesa ou tocando as ataduras, como se para nos lembrar do que nós fizemos — eu fiz — a ele. “Tudo que você disser pode ser usado contra você no tribunal”, continua Berger. “Você entende? E seria útil se você dissesse sim ou não em vez de concordar com a cabeça.” “Eu entendo.” Ele coopera quase amavelmente. “Você tem o direito de consultar um advogado agora, antes de qualquer pergunta, ou de ter um advogado presente durante o interrogatório. Você entende?” “Sim.” “E se você não tiver um advogado ou não puder pagar um, terá direito a um gratuito. Você entende?” A isso, Chandonne pega de novo a Pepsi. Berger continua incansavelmente
a se certificar de que ele e o mundo saibam que este processo é legal e justo e de que Chandonne está completamente informado e falando com ela por vontade própria, livremente, sem nenhum tipo de pressão. “Agora que foi informado de seus direitos”, ela conclui sua abertura confiante e convincente, “você vai dizer a verdade sobre o que aconteceu?” “Eu sempre digo a verdade”, responde Chandonne, brandamente. “E esses direitos foram lidos diante do oficial Escudero, do capitão Marino e do agente especial Jay Talley. Você entendeu esses direitos?” “Sim.” “Por que não me conta com suas próprias palavras o que aconteceu a Susan Pless?”, diz Berger. “Ela era muito legal”, responde Chandonne, para minha surpresa. “Ainda me sinto mal pelo que aconteceu.” “É, aposto que se sente”, murmura sardonicamente Marino em minha sala de reuniões. Berger imediatamente aperta a tecla de pausa. “Capitão”, ela dispara, “sem editar.” O mau humor de Marino é como um gás venenoso. Berger aciona o controle remoto, e no teipe ela está perguntando a Chandonne como ele e Susan Pless se conheceram. Ele responde que se conheceram em um restaurante chamado Lumi, na rua 70, entre a Terceira Avenida e a Lexington. “O que você estava fazendo? Comendo lá, trabalhando lá?”, Berger prossegue. “Comendo lá, sozinho. Ela entrou, também sozinha. Eu bebia uma garrafa muito boa de vinho italiano. Um Massolino Barolo 1993. Ela era muito bonita.” Barolo é meu vinho italiano preferido. A garrafa que ele menciona é cara. Chandonne continua a contar sua história. Ele estava comendo antepasto — “Crostini di polenta con funghi trifolati e olio tartufato”, diz ele num italiano perfeito — quando percebeu uma estonteante afro-americana entrar sozinha no restaurante. O maître tratou-a como se ela fosse uma cliente importante e costumeira, e deu a ela uma mesa de canto. “Ela estava muito elegante”, diz Chandonne. “Evidentemente não era uma prostituta.” Ele pediu ao maître para perguntar a ela se queria sentar-se à sua mesa, e ela foi muito fácil. “O que você quer dizer com muito fácil ?”, pergunta Berger. Chandonne dá de ombros e pega de novo a Pepsi. Suga sem pressa o canudinho. “Acho que vou querer outra.” Ele levanta o copo e o braço com manga azul — o braço de Jay Talley — o pega. Chandonne tenta às cegas pegar o maço de cigarros, a mão peluda tateando sobre a mesa. “O que você quer dizer quando diz que Susan foi muito fácil ?”, Berger pergunta outra vez. “Não precisei fazer nada para persuadi-la a juntar-se a mim. Ela veio até minha mesa e se sentou. E tivemos uma ótima conversa.” Não reconheço a voz dele. “Sobre o que vocês conversaram?”, pergunta Berger. Chandonne toca de novo nas ataduras, e imagino esse homem hediondo
com seus longos pêlos sentado em um lugar público, comendo comida refinada, bebendo vinho fino e paquerando mulheres. Ocorre-me a idéia esquisita de que Chandonne pode ter suspeitado de que Berger me mostraria esse teipe. A comida e o vinho italianos serão algo que ele menciona por minha causa? Estará ele escarnecendo de mim? O que ele sabe a meu respeito? Nada, respondo. Não há motivo para ele saber nada sobre mim. Agora ele está dizendo a Berger que ele e Susan Pless discutiram política e música durante o jantar. Quando Berger pergunta se ele sabia como Susan ganhava a vida, ele responde que ela lhe contou que trabalhava numa estação de televisão. “Eu disse a ela, ‘então você é a famosa’, e ela riu”, diz Chandonne. “Você a tinha visto alguma vez na televisão?”, pergunta Berger. “Eu não assisto muito televisão.” Ele solta lentamente a fumaça. “Agora, é claro, eu não assisto nada. Não consigo ver.” “Apenas responda à pergunta, senhor. Não perguntei se você assiste muito televisão, mas se tinha visto alguma vez Susan na televisão.” Faço um esforço para reconhecer a voz dele enquanto o medo me pica a carne e minhas mãos começam a tremer. Sua voz é completamente desconhecida. Não se parece em nada com a voz que ouvi do outro lado de minha porta. Polícia. Senhora, recebemos um chamado a respeito de um elemento suspeito em sua propriedade. “Não me lembro de vê-la na televisão”, responde Chandonne. “O que aconteceu depois?”, pergunta Berger. “Nós comemos. Bebemos o vinho, e eu perguntei a ela se gostaria de ir a algum lugar tomar um pouco de champanhe.” “Algum lugar? Onde você estava hospedado?” “No Barbizon Hotel, mas não com meu nome verdadeiro. Eu tinha acabado de chegar de Paris e só ia ficar em Nova York alguns dias.” “Com que nome você se registrou?” “Não me lembro.” “Como você pagou?” “Em dinheiro.” “E por que você tinha ido a Nova York?” “Eu estava com muito medo.” Em minha sala de reuniões, Marino se mexe na cadeira e explode, com cara de nojo. Ele edita outra vez. “Segurem-se em suas cadeiras, pessoal. Agora vem a parte boa.” “Com medo?”, a voz de Berger soa no teipe. “Você estava com medo de quê?” “Essas pessoas que estão atrás de mim. Seu governo. Tudo tem a ver com isso.” Chandonne toca de novo nas ataduras, primeiro com uma mão, depois com a que segura o cigarro. A fumaça rodopia em volta de sua cabeça. “Porque eles estão me usando — têm me usado — para pegar minha família. Por causa de boatos inverídicos sobre minha família...” “Espere. Espere um minuto”, interrompe Berger. Pelo canto do olho vejo Marino balançando a cabeça com irritação. Ele se
recosta na cadeira e cruza os braços sobre a barriga inchada. “Você recebe o que pede”, ele murmura, e só posso supor que ele quer dizer que Berger jamais deveria ter entrevistado Chandonne. Foi um erro. O teipe vai prejudicar mais do que ajudar. “Capitão, por favor”, a Berger real nesta sala diz a Marino em um tom que transmite seriedade, enquanto sua voz no teipe pergunta a Chandonne: “Senhor, quem o está acusando?”. “FBI, Interpol. Talvez até a CIA. Não sei exatamente.” “É”, diz Marino com sarcasmo, levantando-se da mesa. “Ele não menciona o ATF porque ninguém nunca ouviu falar do ATF. Não está nem no corretor ortográfico.” O ódio de Marino por Talley, além do que está acontecendo com a carreira de Lucy, o levou a odiar tudo que tenha qualquer coisa a ver com o ATF. Dessa vez Berger não diz nada. Simplesmente o ignora. No teipe ela confronta Chandonne, sua natureza direta insistindo: “Senhor, preciso que entenda como é importante que diga a verdade agora. Você entende como é importante que seja absolutamente verdadeiro comigo?”. “Eu digo a verdade”, diz ele, com brandura e seriedade. “Sei que parece inacreditável. Parece incrível, mas tudo isso tem a ver com minha poderosa família. Todos na França os conhecem. Eles vivem há centenas de anos na Île de Saint-Louis e há boatos de que estão ligados ao crime organizado, como a máfia, o que não é absolutamente verdade. É aí que está a confusão. Eu nunca vivi com eles.” “Mas você faz parte dessa família poderosa. É filho deles?” “Sim.” “Você tem irmãos e irmãs?” “Eu tinha um irmão. Thomas.” “Tinha?” “Ele morreu. Você sabe disso. É por isso que estou aqui.” “Eu gostaria de voltar a isso. Mas vamos falar sobre sua família em Paris. Você está me dizendo que não mora com sua família e nunca morou com eles?” “Nunca.” “Por que isso? Por que nunca viveu com sua família?” “Eles nunca me quiseram. Quando eu era pequeno eles pagavam um casal sem filhos para cuidar de mim, assim ninguém saberia.” “Saberia o quê?” “Que sou filho de monsieur Thierry Chandonne.” “Por que seu pai não queria que as pessoas soubessem que você é filho dele?” “Você olha para mim e faz uma pergunta dessas?” A raiva tensiona sua boca. “Estou lhe fazendo uma pergunta. Por que seu pai não queria que as pessoas soubessem que você é filho dele?” “Ah, tudo bem. Vou fingir que você não nota minha aparência. Você é muito gentil de fingir que não percebe.” Há algo de escárnio em sua voz. “Eu tenho uma doença grave. Lamentavelmente, minha família tem vergonha de
mim.” “Onde vive esse casal? Essas pessoas que você diz que cuidaram de você?” “No Quai de l’Horloge, bem perto da Conciergerie.” “A prisão? Onde Maria Antonieta foi presa durante a Revolução Francesa?” “A Conciergerie é muito famosa, claro. Um lugar turístico. As pessoas parecem dar muita importância a prisões, câmaras de tortura e decapitações. Especialmente americanos. Nunca entendi isso. E vocês vão me matar. Os Estados Unidos vão me matar facilmente. Vocês matam todo mundo. É tudo parte do grande plano, da conspiração.” “Onde exatamente no Quai de l’Horloge? Eu pensava que todo aquele imenso quarteirão era o Palais de Justice e a Conciergerie.” Berger pronuncia francês como alguém que fala francês. “Sim, há alguns apartamentos, muito caros. Você está dizendo que sua família adotiva morava lá?” “Muito perto de lá.” “Qual é o nome desse casal?” “Olivier e Christine Chabaud. Infelizmente, os dois morreram, há muitos anos.” “O que eles faziam? Em que trabalhavam?” “Ele era boucher. Ela era coiffeureuse.” “Um açougueiro e uma cabeleireira?” O tom de Berger sugere que ela não acredita nele e sabe muito bem que ele está zombando dela e de todos nós. JeanBaptiste Chandonne é um açougueiro. E é coberto de cabelo. “Um açougueiro e uma cabeleireira, sim”, afirma Chandonne. “Você alguma vez viu sua família, os Chandonne, enquanto morava com essas outras pessoas perto da prisão?” “Uma vez ou outra, quando aparecia na casa. Sempre depois que estava escuro, para que as pessoas não me vissem.” “Para que as pessoas não o vissem? Por que você não queria que as pessoas o vissem?” “É como eu disse.” Ele bate a cinza às cegas. “Minha família não queria que as pessoas soubessem que eu sou filho deles. Isso geraria muitos problemas. Ele é muito, muito conhecido. Realmente não posso culpá-lo. Então eu ia tarde da noite, quando estava escuro e as ruas da Île de Saint-Louis estavam desertas, e às vezes eu pegava dinheiro e outras coisas deles.” “Eles deixavam você entrar na casa?” Berger está desesperada para colocá-lo dentro da casa da família, assim as autoridades podem ter uma causa provável para o mandado de busca. Já posso ver que Chandonne é um mestre do jogo. Sabe muito bem que ela quer colocá-lo dentro do incrível hôtel particulier dos Chandonne na Île de Saint-Louis, uma casa que vi com meus próprios olhos quando estive recentemente em Paris. Posso esperar a vida toda e jamais verei esse mandado de busca. “Sim. Mas eu não ficava muito tempo, e não entrava em todos os aposentos”, diz ele a Berger enquanto fuma calmamente. “Há muitos aposentos na casa de minha família nos quais nunca estive. Só a cozinha e... preciso
pensar... a cozinha e os aposentos dos empregados, e só dentro. Basicamente, como você vê, eu tive de me virar sozinho.” “Senhor, quando foi a última vez que visitou a casa de sua família?” “Ah, nenhuma vez ultimamente. Há dois anos, pelo menos. Eu realmente não me lembro.” “Você não se lembra? Se não sabe, apenas diga que não sabe. Não estou pedindo a você que adivinhe.” “Não sei. Mas não recentemente, disso tenho certeza.” Berger aciona o controle remoto e a imagem é congelada. “Você percebe o jogo dele, é claro”, ela me diz. “Primeiro, ele nos dá informações que não podemos confirmar. Pessoas que estão mortas. Dinheiro em um hotel onde ele se registrou com um nome falso do qual não consegue se lembrar. E agora, nenhuma base para o mandado de busca na casa de sua família, porque ele está dizendo que nunca viveu lá e mal entrou nela. E com certeza não recentemente. Nenhuma causa provável e que seja nova.” “Que inferno! Nenhuma causa provável, ponto”, acrescenta Marino. “Não a menos que consigamos testemunhas que o tenham visto entrar e sair da casa da família.”
12
Berger retorna ao teipe. Está perguntando a Chandonne: “Você está empregado, ou já esteve alguma vez?”. “Uma vez ou outra”, ele responde calmamente. “O que eu consigo encontrar.” “No entanto, você pôde se dar ao luxo de ficar em um hotel caro e comer em um restaurante caro de Nova York? E comprar uma boa garrafa de vinho italiano? Onde conseguiu dinheiro para tudo isso, senhor?” A isso, Chandonne hesita. Ele boceja, dando-nos uma visão chocante de seus dentes grotescos. Pequenos e pontudos, eles são bem espaçados e cinzentos. “Desculpe. Estou muito cansado. Não tenho muita força.” Ele toca de novo em suas ataduras. Berger lhe lembra que ele está falando porque quer. Ninguém o está forçando. Ela se oferece para parar, mas ele diz que vai continuar um pouco mais, talvez mais alguns minutos. “Estive na rua boa parte de minha vida quando não conseguia encontrar um trabalho”, ele diz. “Às vezes mendigo, mas na maioria das vezes encontro algum emprego. Lavar louça, varrer. Uma vez até dirigi uma motocrotte.” “E o que é isso?” “Um trottin’net. Uma dessas motocicletas verdes que há em Paris, que limpam as calçadas, sabe, com aspirador que recolhe cocô de cachorro.” “Você tem licença para dirigir?” “Não.” “Então, como você dirige um trottin’net ?” “Se for abaixo de cento e vinte e cinco cilindradas não é preciso licença, e as motocrottes só chegam a uns vinte quilômetros por hora.” Isso tudo é lorota. Mais uma vez, ele está zombando de nós. Marino se mexe na cadeira em minha sala de reuniões. “O babaca tem resposta para tudo, não é?” “Você consegue dinheiro de algum outro jeito?”, Berger está perguntando a Chandonne. “Bem, de mulheres, às vezes.” “E como você consegue dinheiro de mulheres?” “Se elas me derem. Admito que as mulheres são minha fraqueza. Adoro mulheres — a aparência delas, o cheiro, o tato, o gosto.” Ele, que afunda os dentes em mulheres que brutaliza e assassina, diz tudo isso em um tom gentil. Finge perfeita inocência. Começou a flexionar os dedos na mesa, como se eles estivessem duros, espalhando-os para um lado e para outro, lentamente, o pêlo brilhando. “Você gosta do gosto delas?” Berger está ficando mais agressiva. “É por isso que você as morde?”
“Eu não as mordo.” “Você não mordeu Susan?” “Não.” “Senhor, ela estava coberta de marcas de mordida.” “Eu não fiz aquilo. Eles fizeram. Sou seguido e são eles que matam. Eles matam minhas namoradas.” “Eles?” “Eu contei a você. Agentes do governo. FBI, Interpol. Para poderem pegar minha família.” “Se sua família teve tanto cuidado em escondê-lo do mundo, como essas pessoas — FBI, Interpol, o que for — sabem que você é um Chandonne?” “Elas devem ter me visto sair da casa algumas vezes, e me seguido. Ou talvez alguém tenha contado a elas.” “E você acha que faz pelo menos dois anos desde a última vez em que esteve na casa de sua família?”, ela tenta de novo. “Pelo menos.” “Há quanto tempo você acha que está sendo seguido?” “Muitos anos. Talvez há uns cinco anos. É difícil saber. Eles são muito inteligentes.” “E como você poderia ajudar essas pessoas a, aspas, pegar sua família ?”, pergunta Berger. “Se eles conseguirem me pintar como um assassino terrível, a polícia poderia entrar na casa de minha família. Eles não encontrariam nada. Minha família é inocente. É tudo política. Meu pai é muito poderoso politicamente. Além disso, eu não sei. Só posso dizer o que tem acontecido comigo, com minha vida, e é tudo uma conspiração para me trazer para este país e ser preso e depois condenado à morte. Porque vocês, americanos, matam pessoas mesmo quando elas são inocentes. Isso é sabido.” Sua declaração parece esgotá-lo, como se estivesse cansado de repeti-la. “Senhor, onde aprendeu a falar inglês?”, pergunta Berger. “Aprendi sozinho. E quando eu era mais jovem, meu pai me dava livros sempre que eu podia aparecer na casa. Eu lia muitos livros.” “Em inglês?” “Sim. Eu queria aprender inglês muito bem. Meu pai fala muitas línguas porque trabalha com transporte internacional e lida com muitos países estrangeiros.” “Inclusive este país? Os Estados Unidos?” “Sim.” O braço de Talley entra no quadro mais uma vez enquanto ele serve outra Pepsi. Chandonne enfia avidamente o canudinho entre os lábios e suga fazendo barulho. “Que tipo de livros você lia?”, continua Berger. “Muitas histórias e outros livros para me educar, porque eu mesmo tinha de me instruir, sabe? Nunca fui à escola.” “E onde estão esses livros agora?” “Ah, eu não saberia dizer. Perdidos. Porque às vezes não tenho casa e
perambulo muito. Sempre em movimento, olhando por cima do ombro por causa dessas pessoas que me seguem.” “Você sabe alguma outra língua além de francês e inglês?”, pergunta Berger. “Italiano. Um pouco de alemão.” Ele arrota calmamente. “E essas você também aprendeu sozinho?” “Eu encontro jornais em muitas línguas em Paris e também aprendi assim. Algumas vezes eu durmo deitado sobre jornais. Quando não tenho abrigo.” “Ele está me cortando o coração.” Marino não consegue se conter, enquanto Berger diz a Chandonne, no teipe, “Vamos voltar a Susan, à morte dela em 15 de dezembro, dois anos atrás, em Nova York. Conte-me sobre essa noite, a noite em que você diz que conheceu Susan no Lumi. O que exatamente aconteceu?” Chandonne suspira como se estivesse ficando mais cansado a cada segundo. Ele toca nas ataduras com freqüência, e percebo que suas mãos tremem. “Preciso comer alguma coisa”, diz ele. “Estou me sentindo débil, muito fraco.” Berger aciona o controle remoto e o quadro se congela e fica embaçado. “Nós paramos por cerca de uma hora”, ela me diz. “O tempo suficiente para ele comer alguma coisa e descansar.” “É, o cara com toda certeza conhece o sistema”, Marino me diz, como se eu ainda não tivesse percebido. “E a história desse casal que o criou é absurda. Ele está só protegendo sua família de mafiosos.” “Estava pensando se você conhece o restaurante Lumi”, me diz Berger. “Não que eu me lembre”, respondo. “Bem, é interessante. Quando começamos a investigar o assassinato de Susan, há dois anos, sabíamos que ela tinha jantado no Lumi na noite em que fora morta porque a pessoa que a serviu chamou a polícia assim que ouviu a notícia. O legista encontrou até vestígios da refeição no estômago dela, indicando que ela provavelmente tinha comido no máximo algumas horas antes de morrer.” “Ela estava sozinha no restaurante?”, pergunto. “Chegou sozinha e se reuniu a um homem que também estava sozinho, só que ele não era uma anomalia — definitivamente não. Foi descrito como alto, de ombros largos, bem vestido, com boa aparência. Claramente alguém para quem o dinheiro não era problema, ou pelo menos ele passava essa impressão.” “Você sabe o que ele pediu?”, pergunto. Berger passa os dedos pelo cabelo. É a primeira vez que a vejo perturbada. De fato, a palavra assombrada me vem à mente. “Ele pagou em dinheiro, mas o garçom se lembrava do que tinha servido a ela e a seu acompanhante. Ele comeu polenta e cogumelos e tomou uma garrafa de vinho, exatamente o que Chandonne descreveu no teipe. Susan comeu um antepasto de legumes grelhados com óleo de oliva, e cordeiro, o que, aliás, é coerente com o que havia em seu estômago.” “Cacete”, diz Marino. Evidentemente, essa parte é nova para ele. “Como diabo isso pôde acontecer? Seria preciso um bocado de efeitos especiais de Hollywood para transformar essa bola de pêlos horrorosa em um cara atraente
para as mulheres.” “A menos que não fosse ele”, digo. “Poderia ser o irmão dele, Thomas? E Jean-Baptiste poderia tê-lo seguido?” Mal posso acreditar no que disse. Chamei o monstro pelo nome. “Uma idéia muito lógica”, diz Berger. “Mas há outra coisa que não se ajusta ao cenário. O porteiro do apartamento de Susan se lembra de ela ter chegado com um homem que corresponde à descrição daquele que estava no Lumi. Isso foi por volta de nove da noite. O turno do porteiro ia até as sete da manhã seguinte, portanto ele estava lá quando o homem saiu, por volta das três e meia da manhã, horário em que Susan normalmente saía para o trabalho. Ela devia estar na estação de televisão por volta de quatro ou quatro e meia, porque o noticiário começa às cinco. Seu corpo foi encontrado por volta das sete da manhã, e, segundo o legista, Susan estava morta havia várias horas. O principal suspeito sempre foi o estranho com quem ela se encontrou no restaurante. De fato, não consigo ver como poderia ser outra pessoa além desse cara. Ele a mata. Passa algum tempo mutilando seu corpo. Sai às três e meia, e nunca mais se encontra nenhum vestígio dele. E, se ele não é culpado, por que não entrou em contato com a polícia quando ouviu a notícia do assassinato dela? E Deus sabe que a notícia foi divulgada em tudo quanto é lugar.” Tenho uma sensação estranha ao me dar conta de que soube desse caso quando ele aconteceu. De repente, estou me lembrando vagamente de detalhes que faziam parte das enormes e sensacionais histórias da época. É atordoante considerar que, quando ouvi falar de Susan dois anos atrás, não tive nenhuma idéia de que acabaria envolvida em seu caso, especialmente desta forma. “A menos que ele não seja de lá ou nem sequer deste país”, sugere Marinho. Berger faz um gesto de interrogação, com as palmas das mãos viradas para cima. Estou tentando calcular o alcance das evidências que ela apresentou e obtenho respostas que nem sequer começam a fazer sentido. “Se ela comeu entre sete e nove da noite, a comida deveria estar basicamente digerida às onze da noite”, observo. “Supondo que o legista esteja correto no tempo de morte que estimou, se ela morreu várias horas antes de seu corpo ser encontrado — digamos, à uma ou às duas da manhã —, então seu estômago devia estar vazio antes disso.” “A explicação foi estresse. Ela estava apavorada e sua digestão deve ter ficado lenta”, diz Berger. “Isso faz sentido quando se fala de um estranho escondido no armário e saltando em cima da pessoa quando ela chega em casa. Mas aparentemente Susan estava bem à vontade com esse homem, para convidá-lo a ir a seu apartamento”, proponho. “E estava bastante à vontade para não se preocupar se o porteiro o veria entrar e depois sair bem mais tarde. E quanto ao material vaginal coletado?” “Positivo para fluido seminal.” “Esse cara” — indico Chandonne — “não faz penetração vaginal, e não há nenhuma evidência de que ele ejacule”, lembro a Berger. “Não nos assassinatos de Paris, e certamente não nos daqui. As vítimas estão sempre vestidas da cintura
para baixo. Não têm ferimentos da cintura para baixo. Ele não parece nem de longe interessado nelas da cintura para baixo, exceto nos pés. Fiquei com a impressão de que Susan também estava vestida da cintura para baixo.” “Estava, com a calça do pijama. Mas ela tinha fluido seminal — possivelmente indicando sexo consensual, pelo menos no início. Certamente não depois disso, não quando se vê o que ele fez com ela”, responde Berger. “O DNA do fluido seminal coincide com o de Chandonne. Depois temos estranhos pêlos longos que com toda a certeza parecem os dele.” Ela acena com a cabeça para a televisão. “E vocês fizeram o teste do irmão, Thomas, certo? E o DNA dele não é idêntico ao de Jean-Baptiste, portanto não parece que Thomas deixou o fluido seminal.” “Os perfis de DNA deles são muito próximos, mas não idênticos”, concordo. “E não seriam mesmo, a menos que os irmãos fossem gêmeos idênticos, o que evidentemente não são.” “Como você tem certeza disso?”, pergunta Marino. “Se Thomas e Jean-Baptiste fossem gêmeos idênticos”, explico, “os dois teriam hipertricose congênita. Não apenas um deles.” “Então, como você explica isso?”, Berger me pergunta. “Uma correspondência genética em todos os casos, mas as descrições dos assassinos parecem indicar que eles não podem ser a mesma pessoa.” “Se o DNA no caso de Susan corresponde ao de Jean-Baptiste Chandonne, então só posso explicar isso concluindo que o homem que deixou o apartamento dela às três e meia da manhã não é o mesmo que a matou”, respondo. “Chandonne a matou. Mas o homem que as pessoas viram com ela não era Chandonne.” “Então talvez o lobisomem as trace de vez em quando, afinal”, acrescenta Marino. “Ou tente fazer isso e nós apenas não saibamos disso porque ele normalmente não deixa nenhum suco.” “E depois?”, Berger o desafia. “Veste de novo a calça nelas? Veste-as da cintura para baixo depois do ato?” “Ei, não estamos falando de alguém que faça as coisas do jeito normal. E quase me esqueci de lhe dizer.” Ele olha para mim. “Uma das enfermeiras deu uma espiada no que ele carrega. Não é cortado.” É o jargão de Marino para não circuncidado. “E é menor do que uma salsicha Viena.” Ele nos mostra com um gesto, mantendo o polegar e o indicador a uma distância de pouco mais de dois centímetros. “Não admira que o delinqüente esteja de péssimo humor o tempo inteiro.”
13
Com um clique do controle remoto, sou levada de volta à sala de interrogatório de concreto da ala forense da Faculdade de Medicina da Virgínia. De volta a Jean-Baptiste Chandonne, que quer que acreditemos que ele é capaz, de algum modo, de transformar sua aparência singularmente hedionda em uma aparência elegante quando está disposto a sair para jantar e paquerar uma mulher. Impossível. Seu torso com a cobertura de cabelo imaturo espiralado enche a tela da televisão enquanto ele é conduzido de volta a sua cadeira, e quando sua cabeça entra no quadro fico chocada ao descobrir que as ataduras foram removidas, e que seus olhos agora estão escondidos por óculos escuros de plástico Solar Shield, a pele em torno deles com um tom rosado de irritação. As sobrancelhas são compridas e confluentes, como se alguém tivesse tirado uma faixa de pêlo felpudo e colado no supercílio. O mesmo pêlo pálido felpudo lhe cobre a testa e as têmporas. Berger e eu estamos em minha sala de reuniões. Ainda nem são sete e meia, e Marino saiu, por duas razões: recebeu um chamado sobre uma possível identificação do corpo encontrado na rua em Mosby Court, e Berger o estimulou a não voltar. Disse que precisava ficar algum tempo sozinha comigo. Acho que ela também estava cheia dele, e não a culpo por isso. Marino deixou muito claro que discorda do modo como ela entrevistou Chandonne, e do simples fato de ela tê-lo feito. Não existe um investigador neste planeta que não gostaria de entrevistar um assassino anômalo tão notório. Acontece que a fera escolheu a bela, e Marino está simplesmente fervendo. Enquanto ouço Berger lembrar a Chandonne no teipe que ele entende seus direitos e concordou em continuar a falar com ela, sou tomada de modo mais convincente por uma certa realidade. Sou uma pequena criatura apanhada em uma rede, uma rede do mal tecida de fios que parece envolver todo o globo como linhas de latitude e longitude. A tentativa de Chandonne de me assassinar foi incidental a seus propósitos. Fui apenas um divertimento. Se ele imagina que estou assistindo à sua entrevista gravada, então ainda sou um divertimento. Nada mais. Ocorre-me que, se ele tivesse conseguido me estraçalhar, já estaria concentrado em alguma coisa nova e eu não seria nada além de um breve momento, uma polução noturna em sua vida odiosa e infernal. “E o detetive lhe deu algo para comer e beber, senhor, está certo?”, Berger pergunta a Chandonne. “Sim.” “E o que foi?” “Um hambúrguer e uma Pepsi.” “E batatas fritas?” “Batata! Batatas fritas.” Ele parece achar isso divertido. “Então você recebeu tudo de que precisava, está certo?”, ela pergunta. “Sim.”
“E a equipe do hospital removeu suas ataduras e lhe deu óculos especiais. Você está confortável?” “Sinto um pouco de dor.” “E lhe deram algum analgésico?” “Sim.” “Tylenol. Está certo?” “Sim, eu suponho. Dois comprimidos.” “E nada além disso. Nada que possa interferir em seu pensamento.” “Não, nada.” Seus óculos escuros estão fixos nela. “E ninguém o está forçando a falar comigo ou fez a você nenhuma promessa, está certo?” Os ombros dela se movem enquanto ela vira uma página no que eu suponho seja um bloco de memorandos. “Sim.” “Senhor, fiz alguma ameaça ou promessa para conseguir que você falasse comigo?” Isso prossegue indefinidamente enquanto Berger percorre sua lista de checagem. Ela está se certificando de que a representação final de Chandonne não terá nenhuma oportunidade de dizer que ele foi intimidado, abusado ou tratado injustamente de nenhuma forma. Ele está sentado quieto em sua cadeira, os braços dobrados um sobre o outro em um emaranhado de cabelo que se espalha sobre o topo da mesa e cai em grumos repulsivos, como barbas de milho sujas, das mangas curtas de sua camisa modelo hospitalar. Nada no modo como sua anatomia foi construída funciona. Ele me lembra antigos filmes pretensamente engraçados onde há meninos bobos na praia que enterram um ao outro na areia e pintam olhos na testa, fazendo a barba parecer cabelo da cabeça, ou usam óculos escuros atrás da cabeça, ou se ajoelham e põem sapatos nos joelhos para se transformarem em anões — e as pessoas sempre se viram para olhar essas criaturas anormais, porque acham divertido. Não há nada divertido em Chandonne. Não consigo nem sentir pena dele. Minha irritação se revolve como um grande tubarão bem abaixo da superfície de minha postura estóica. “Vamos voltar à noite em que você diz que conheceu Susan Pless”, diz Berger a ele no teipe. “No Lumi. Fica na esquina da rua 70 com a Lexington?” “Sim, sim.” “Você estava dizendo que vocês jantaram juntos e depois você perguntou a ela se gostaria de ir tomar um pouco de champanhe com você em algum lugar. Senhor, está ciente de que a descrição do cavalheiro que Susan conheceu e com quem jantou naquela noite não corresponde em nada à sua?” “Não tenho como saber.” “Mas você deve estar ciente de que tem uma doença grave que o leva a ter uma aparência muito diferente da das outras pessoas, e é difícil imaginar, portanto, que você poderia ser confundido com alguém que absolutamente não tem a sua doença. Hipertricose. Não é isso que você tem?” Capto a piscada quase imperceptível de Chandonne atrás dos óculos escuros. Berger tocou num ponto sensível. Os músculos do rosto dele estão tensos. Ele começa a flexionar os dedos outra vez. “É esse o nome de sua doença? Você sabe como ela é chamada?”, Berger
diz a ele. “Eu sei o que é”, responde Chandonne, em um tom mais tenso. “E você viveu com ela durante toda a sua vida?” Ele fica olhando para ela. “Por favor, responda à pergunta, senhor.” “É claro. Essa é uma pergunta estúpida. O que você acha? Que a gente pega isso como se pega um resfriado?” “Meu argumento é que você não se parece com outras pessoas, e portanto estou tendo muita dificuldade em imaginar que você poderia ser confundido com um homem descrito como de boa aparência e bonito, sem nenhum pêlo facial.” Ela pára. Está atiçando-o. Quer que ele perca o controle. “Alguém bem vestido em um terno caro.” Outra pausa. “Você não acaba de me contar que viveu praticamente como um sem-teto? Como aquele homem no Lumi poderia ser você, senhor?” “Eu usava um terno preto, uma camisa e uma gravata.” Ódio. A verdadeira natureza de Chandonne começou a brilhar através de seu manto de engano negro, como uma distante estrela fria. Espero que ele se jogue por cima da mesa a qualquer momento e esmague a garganta de Berger ou estoure a cabeça dela na parede antes que Marino ou qualquer outra pessoa consiga impedi-lo. Quase parei de respirar. Lembro-me de que Berger está viva e bem, sentada à mesa comigo dentro de minha sala de reuniões. É quinta-feira à noite. Em quatro horas, fará exatamente cinco dias que Chandonne invadiu minha casa e tentou me matar com uma picareta de entalhar. “Passei por períodos em que minha condição não era tão ruim como é agora.” Chandonne se controlou. Sua polidez volta. “O estresse a piora. Eu passei por muito estresse. Por causa deles.” “E quem são eles?” “Os agentes americanos que montaram uma cilada para mim. Quando comecei a perceber o que estava acontecendo, que eles estavam montando uma cilada para parecer que eu era um assassino, tornei-me um fugitivo. Minha saúde se deteriorou da pior maneira que já aconteceu, e quanto pior eu ficava, mais tinha de me esconder. Eu não tive sempre esta aparência.” Seus óculos escuros se desviam um pouco da câmera quando ele olha para Berger. “Quando conheci Susan, minha aparência era totalmente diferente. Eu podia me depilar. Podia conseguir empregos e me manter neles e até parecer bom. E às vezes tinha roupas e dinheiro, porque meu irmão me ajudava.” Berger pára o teipe e me diz: “Essa parte do estresse pode ser verdadeira?”. “O estresse tende a piorar tudo”, respondo. “Mas esse homem nunca teve uma aparência boa. Não importa o que ele diga.” “Você está falando de Thomas”, a voz de Berger continua no teipe. “Thomas lhe dava roupas, dinheiro, talvez outras coisas?” “Sim.” “Você diz que estava usando um terno preto no Lumi aquela noite. Thomas lhe deu o terno?” “Sim. Ele gostava de roupas muito finas. Nós tínhamos mais ou menos o
mesmo tamanho.” “E você jantou com Susan. E depois? O que aconteceu quando vocês terminaram de comer? Você pagou a conta?” “É claro. Eu sou um cavalheiro.” “De quanto foi a conta?” “Duzentos e vinte e um dólares, sem incluir a gorjeta.” Berger corrobora o que ele diz, enquanto na tela da TV está olhando bem para a frente: “E a conta foi exatamente essa. O homem pagou em dinheiro e deixou duas notas de vinte dólares na mesa”. Questiono Berger detalhadamente sobre quanto do restaurante, da conta, da gorjeta foi divulgado publicamente. “Alguma dessas coisas apareceu na imprensa?”, pergunto. “Não. Então, se não foi ele, como ele soube de quanto foi a conta?” A frustração permeia sua voz. No teipe, ela pergunta a Chandonne sobre a gorjeta. Ele afirma que deixou quarenta dólares. “Duas de vinte, eu acho”, ele diz. “E depois? Vocês saíram do restaurante?” “Nós decidimos tomar um drinque no apartamento dela”, diz ele.
14
Nesse ponto Chandonne dá muitos detalhes. Afirma que saiu do Lumi com Susan Pless. Estava muito frio, mas eles decidiram caminhar porque o apartamento dela ficava a apenas alguns quarteirões do restaurante. Ele descreve a lua e as nuvens em detalhes sensíveis, quase poéticos. O céu estava raiado de giz branco azulado e a lua, parcialmente obscurecida e cheia. Uma lua cheia sempre o excitou sexualmente, ele diz, porque o faz lembrar de uma barriga de grávida, de nádegas, de seios. Rajadas de vento açoitavam os altos prédios de apartamentos, e em dado momento ele tirou seu cachecol e o pôs em volta de Susan para aquecê-la. Ele afirma que usava uma capa longa de cashmere escuro, e eu me lembro de a legista-chefe da França, dra. Ruth Stvan, me contando sobre seu encontro com o homem que acreditamos fosse Chandonne. Visitei a dra. Stvan no Institut Médico-Légal há menos de duas semanas porque a Interpol me pediu para rever os casos de Paris com ela, e durante nossa conversa ela me contou sobre uma noite em que um homem foi a sua casa, fingindo que estava com problemas no carro. Ele pediu para usar o telefone, e ela se recordou de que ele usava um casaco longo escuro e parecia um cavalheiro. Mas a dra. Stvan disse algo mais quando estive com ela. Lembrou-se de que o homem tinha um cheiro de suor estranho, muito desagradável. Cheirava como um cachorro molhado. E ele a deixou intranqüila, muito intranqüila. Ela sentiu o mal. Ainda assim, talvez ela o tivesse deixado entrar ou, o mais provável, ele tivesse forçado a entrada, não fosse por um acontecimento milagroso. O marido da dra. Stvan é chef de um famoso restaurante de Paris chamado Le Dome. Ele estava em casa doente naquela noite e a chamou de outro aposento, querendo saber quem estava à porta. O estranho de casaco escuro fugiu. No dia seguinte foi entregue um bilhete à dra. Stvan. Estava datilografado em um pedaço de papel marrom rasgado e ensangüentado, e assinado Le Loup-garou. Ainda preciso realmente encarar minha negação do que devia ser óbvio. A dra. Stvan fez a autópsia das vítimas francesas de Chandonne e depois ele foi atrás dela. Eu fiz a autópsia de suas vítimas americanas e não tomei medidas sérias para evitar que ele me seguisse. Um importante denominador comum subjaz a essa negação: as pessoas tendem a acreditar que as coisas ruins só acontecem com os outros. “Você pode descrever como era o porteiro?”, Berger pergunta a Chandonne no teipe. “Um bigode fino. De uniforme”, diz Chandonne. “Ela o chamou de Juan.” “Espere um minuto”, digo. Berger pára o teipe outra vez. “Ele tinha cheiro de suor?”, pergunto a ela. “Quando você estava na sala com ele hoje de manhã.” Indico a televisão. “Quando você o entrevistou, ele tinha...” “Não brinque”, ela interrompe. “Tinha cheiro de cachorro sujo. Uma
mistura estranha de pêlo molhado e cheiro ruim de suor forte. Chegava a dar náuseas. Imagino que o hospital não deu um banho nele.” É um equívoco pensar que as pessoas são automaticamente banhadas no hospital. Em geral, só os ferimentos são lavados, a menos que a pessoa seja um paciente de longo prazo. “Quando o assassinato de Susan foi investigado há dois anos, alguém no Lumi mencionou cheiro de suor? Que o homem com quem ela estava cheirava mal?”, pergunto. “Não”, responde Berger. “De jeito nenhum. De novo, não consigo imaginar como essa pessoa poderia ser Chandonne. Mas ouça. Vai ficar mais estranho.” Durante os dez minutos seguintes assisto a Chandonne sugar mais Pepsi enquanto fuma e conta o incrível relato de sua suposta visita com Susan Pless ao apartamento dela. Ele descreve onde ela morava em detalhes surpreendentes, dos tapetes no chão de madeira aos estofados florais e aos abajures Tiffany falsos. Diz que não ficou impressionado com o gosto dela em arte, que ela tinha muitos pôsteres de exposições de museu bastante triviais e algumas gravuras de paisagens marinhas e de cavalos. Ela gostava de cavalos, ele diz. Contou a ele que tinha crescido na companhia de cavalos e sentia muito a falta deles. Berger bate na mesa em minha sala de reuniões toda vez que verifica o que ele está dizendo. Sim, a descrição que ele faz do interior do apartamento de Susan certamente leva a acreditar que ele esteve lá em algum momento. Sim, Susan cresceu na companhia de cavalos. Sim, sim, a tudo. “Não é possível!” Balanço a cabeça enquanto o medo me revira o estômago. Tenho medo de aonde isso vai levar. Resisto a pensar nisso. Mas uma parte de mim não consegue parar de pensar. Chandonne vai dizer que eu o convidei a entrar em minha casa. “E que horas são agora?”, Berger pergunta a ele no teipe. “Você disse que Susan abriu uma garrafa de vinho branco. Que hora era quando ela fez isso?” “Dez ou onze. Não me lembro. O vinho não era bom.” “Nesse momento, quanto você tinha bebido?” “Ah, metade de uma garrafa de vinho no restaurante. Não bebi muito do vinho que ela me serviu depois. Vinho californiano barato.” “Então você não estava bêbado.” “Eu nunca fico bêbado.” “Você estava pensando com clareza.” “É claro.” “Em sua opinião, Susan estava bêbada?” “Talvez só um pouco. Eu diria feliz, ela estava feliz. Então nós nos sentamos num sofá na sala de estar dela. Tem uma vista muito bonita, para o sudoeste. Da sala de estar pode-se ver o luminoso vermelho do hotel Essex House no parque.” “Tudo verdade”, Berger me diz enquanto bate outra vez na mesa. “E a taxa de álcool dela era zero-vírgula-onze”, ela acrescenta detalhes do exame pósmorte de Susan. “O que aconteceu então?”, ela está perguntando a Chandonne. “Nós nos damos as mãos. Ela põe meus dedos em sua boca, um após outro,
muito sexy. Começamos a nos beijar.” “Você sabe que hora era nesse momento?” “Eu não tinha nenhum motivo para ficar olhando para o meu relógio.” “Você estava usando relógio?” “Sim.” “Você ainda tem esse relógio?” “Não. Eles tornaram minha vida pior.” Ele cospe a palavra eles. A saliva é borrifada no ar toda vez que ele diz “eles”, com uma aversão que parece genuína. “Eu não tinha mais dinheiro. Penhorei o relógio há mais ou menos um ano.” “Eles? As mesmas pessoas a que você se refere o tempo todo? Agentes policiais?” “Agentes federais americanos.” “Voltemos a Susan”, Berger o dirige. “Eu sou tímido. Não sei quantos detalhes você quer que eu conte sobre esse momento.” Ele pega sua Pepsi e seus lábios envolvem o canudo como vermes cinzentos. Não consigo imaginar alguém querendo beijar esses lábios. Não consigo imaginar ninguém querendo tocar nesse homem. “Quero que você me conte tudo de que se lembra”, Berger diz a ele. “A verdade, senhor.” Chandonne põe a Pepsi na mesa, e fico levemente perturbada quando o braço de Talley entra de novo no quadro. Ele acende mais um Camel para Chandonne. Imagino se ocorre a Chandonne que Talley é um agente federal, que ele é uma das pessoas que Chandonne diz que o têm seguido e estão arruinando sua vida. “Sim, vou lhe contar. Não quero, mas estou tentando ser cooperativo.” Chandonne exala a fumaça. “Por favor, continue. Todos os detalhes de que você conseguir se lembrar.” “Nós nos beijamos por algum tempo e a coisa progrediu rapidamente.” Ele não diz nada mais. “O que você quer dizer com progrediu rapidamente?” Em geral, é suficiente alguém dizer que fez sexo e parar por aí. Em geral, o policial ou advogado que conduz a entrevista, ou o interrogatório direto ou para checagem de um testemunho contrário, não considera relevante pedir detalhes explícitos. Mas a violência sexual praticada contra Susan e todas as mulheres que acreditamos que Chandonne tenha assassinado torna importante o conhecimento dos detalhes, todos os detalhes do que pode ser a noção que ele tem de sexo. “Não sei se devo”, diz Chandonne, jogando com Berger outra vez. Ele quer ser persuadido. “Por quê?”, pergunta Berger. “Não quero falar sobre essas coisas, certamente não na presença de uma mulher.” “Seria melhor para todos nós se você me visse como uma promotora, e não como uma mulher”, Berger diz a ele. “Não consigo falar com você e não pensar mulher ”, ele diz brandamente. Sorri um pouco. “Você é muito bonita.”
“Você consegue me ver?” “Muito pouco, na verdade não. Mas posso dizer que você é bonita. Ouvi dizer que é.” “Senhor, peço que não faça mais nenhuma referência pessoal a mim. Estamos esclarecidos sobre isso?” Ele olha para ela e faz que sim com a cabeça. “Senhor, o que exatamente você fez depois que começou a beijar Susan? Você a tocou, a acariciou, tirou a roupa dela? Ela o tocou, o acariciou, tirou sua roupa? O quê? Você se lembra do que ela estava usando aquela noite?” “Calça de couro marrom. Eu a descreveria como da cor de chocolate belga. Era justa, mas não de um modo vulgar. Ela usava botas, botas de cano médio de couro marrom. E um top preto, uma espécie de body. De mangas compridas.” Ele olha para o teto. “Gola redonda, muito cavado. O tipo de top que é fechado com botões de pressão entre as pernas.” Ele faz um movimento de pressionar. Seus dedos, com o pêlo curto e claro, me lembram cactos, cavalinhas. “Um bodysuit”, Berger o ajuda. “Sim. Fiquei um pouco confuso no início quando tentei tocá-la e não consegui tirar o top.” “Você estava tentando pôr as mãos debaixo do top dela mas não conseguia porque era um bodysuit que estava abotoado entre as pernas dela?” “Sim, é isso.” “E qual foi a reação dela quando você tentou tirar o top?” “Ela riu com minha confusão e me gozou.” “Ela gozou de você?” “Oh, não com maldade. Ela achou que eu era divertido. Fez uma brincadeira. Disse alguma coisa sobre os franceses. Espera-se que sejamos amantes muito habilidosos, você sabe.” “Então ela sabia que você é da França.” “Mas é claro”, Chandonne responde de modo afável. “Ela falava francês?” “Não.” “Ela disse isso a você ou você só supôs?” “Eu perguntei no jantar se ela falava francês.” “Então ela o provocou, a respeito do bodysuit.” “Sim. Provocou. Ela escorregou minha mão por sua calça e me ajudou a abrir os botões. Eu me lembro que ela estava excitada e que fiquei um pouco surpreso de ela se excitar tão rapidamente.” “E você sabe que ela estava excitada porque...?” “Molhada”, diz Chandonne. “Ela estava muito molhada. Eu realmente não gosto de dizer tudo isso.” Seu rosto está animado. Ele adora dizer tudo isso. “É realmente necessário que eu continue a dar esses detalhes?” “Por favor, senhor. Tudo de que você conseguir se lembrar.” Berger é firme e fria. Chandonne poderia muito bem estar contando a ela sobre um relógio que ele desmontou.
“Começo a tocar nos seios dela e abro o sutiã.” “Você se lembra como era o sutiã dela?” “Era preto.” “As luzes estavam acesas?” “Não. Mas o sutiã tinha uma cor escura, acho que preto. Posso ter me enganado. Mas não era uma cor clara.” “Como você o tirou?” Chandonne pára de falar, seus óculos escuros cravados na câmera. “Apenas o abri atrás.” Ele faz com os dedos um movimento de abertura. “Você não o arrancou?” “É claro que não.” “Senhor, o sutiã dela estava rompido na frente. Literalmente rasgado em dois.” “Eu não fiz isso. Outra pessoa deve ter feito depois que eu saí.” “Está bem, vamos voltar ao momento em que você tirou o sutiã. Nesse momento a calça dela está desabotoada?” “Desabotoada, mas ela ainda não a tirou. Eu tiro o top. Sou muito oral, como você pode ver. Ela gostou muito disso. Foi difícil acalmá-la.” “Por favor, explique o que você quer dizer com ‘foi difícil acalmá-la’.” “Ela começou a me agarrar. Entre minhas pernas, tentando tirar minha calça, e eu não estava pronto. Ainda tinha muito a fazer.” “Muito a fazer? O que mais você tinha a fazer, senhor?” “Eu não estava pronto para acabar.” “O que você quer dizer com acabar? Acabar o sexo? Acabar o quê?” Acabar com a vida dela, penso. “Acabar de fazer amor”, ele responde. Odeio isso. Não consigo agüentar ouvir as fantasias dele, especialmente quando considero que ele talvez saiba que estou ouvindo, que ele está me sujeitando a elas, assim como está sujeitando Berger, e que Talley está ouvindo, sentado bem ali, assistindo. Talley não é muito diferente de Chandonne. Os dois odeiam secretamente as mulheres, não importa quanto as desejem. Não percebi a verdade a respeito de Talley até quando era muito tarde, até ele estar em minha cama em meu quarto de hotel em Paris. Imagino-o perto de Berger na pequena sala de entrevista do hospital. Quase posso ver o que passa pela mente dele enquanto Chandonne nos dá um relato de uma noite erótica que ele provavelmente nunca viveu em toda a sua existência. “Ela tinha um corpo adorável e eu queria apreciá-lo um pouco, mas ela era muito insistente. Não conseguia esperar.” Chandonne saboreia cada palavra. “Então nós fomos para o quarto. Ficamos na cama dela e tiramos as roupas e fizemos amor.” “Foi ela quem tirou as próprias roupas ou você fez tudo? Além de ajudar a desabotoar o bodysuit ?”, ela pergunta, com uma insinuação de sua descrença subjacente e esmagadora em relação à veracidade dele. “Eu tirei todas as roupas dela. E ela tirou as minhas”, ele diz. “Ela fez algum comentário sobre seu corpo?”, pergunta Berger. “Você
tinha depilado o corpo inteiro?” “Sim.” “E ela não percebeu?” “Eu estava muito liso. Ela não percebeu. Você deve entender, aconteceu muita coisa comigo desde então, por causa deles.” “O que aconteceu?” “Fui seguido e perseguido e machucado. Fui emboscado por alguns homens alguns meses depois da noite com Susan. Eles machucaram muito meu rosto. Cortaram meu lábio, esmagaram ossos aqui em meu rosto.” Ele toca nos óculos, indicando as órbitas dos olhos. “Tive muitos problemas dentários quando criança devido a minha condição, e por isso tive de ser submetido a muitos tratamentos. Coroas nos dentes da frente para que eles parecessem mais normais.” “Esse casal com quem você diz que ficou pagou por esse trabalho dentário?” “Minha família os ajudou com dinheiro.” “Você se depilava antes de ir ao dentista?” “Eu depilava aquelas áreas que apareceriam. Como meu rosto. Sempre, se eu saísse durante o dia. Quando me bateram, meus dentes da frente foram quebrados, minhas coroas foram quebradas, e no fim, bem, você pode ver como meus dentes estão agora.” “Onde isso ocorreu?” “Eu ainda estava em Nova York.” “Você recebeu tratamento médico ou contou esse ataque à polícia?”, pergunta Berger. “Ah, isso teria sido impossível. Os chefes dos órgãos policiais estão todos juntos nisso, é claro. Foram eles que fizeram isso comigo. Eu não podia relatar nada. Não recebi nenhum tratamento médico. Virei um nômade, sempre me escondendo. Arruinado.” “E o nome do seu dentista?” “Ah, isso faz muito tempo. Duvido que ele ainda esteja vivo. O nome dele era Corps. Maurice Corps. Seu consultório era na rue Cabanis, acho.” “Corps, como em corpo, cadáver?”, comento com Berger. “E Cabanis é uma brincadeira com cannabis, maconha?” Balanço a cabeça, enojada e pasma. “Então você e Susan fizeram sexo na cama dela.” Berger volta a isso no teipe. “Por favor, continue. Quanto tempo vocês ficaram na cama?” “Eu diria que até as três da manhã. Então ela me disse que eu tinha de ir embora porque ela precisava se aprontar para o trabalho. Portanto eu me vesti, e nós combinamos de nos ver outra vez naquela noite. Dissemos que nos encontraríamos às sete no L’Absinthe, um bistrô francês na vizinhança.” “Você diz que se vestiu. E ela? Estava vestida quando você saiu?” “Estava com um pijama de cetim. Ela o vestiu e me deu um beijo de despedida na porta.” “Então você desceu? Viu alguém?” “Juan, o porteiro. Saí e caminhei um pouco. Encontrei um café e tomei um café-da-manhã. Eu estava muito faminto.” Ele pára. “Neil’s. O nome é esse.
Fica bem em frente ao Lumi.” “Você se lembra do que comeu?” “Espresso.” “Você estava muito faminto, mas só tomou um espresso?” Berger deixa claro que se concentra na palavra “faminto” e que percebe que ele está zombando dela, enganando-a. A fome de Chandonne não era por café-damanhã. Ele estava saboreando a visão da violência, da destruição de carne e sangue, porque acabara de deixar para trás uma mulher que havia violentado até a morte e mordido. Não importa o que ele diga, é isso que ele fez. O desgraçado. O maldito desgraçado mentiroso. “Senhor, quando soube que Susan foi assassinada?”, Berger pergunta a ele. “Ela não apareceu para jantar naquela noite.” “Bem, suponho que não.” “Então no dia seguinte...” “Isso seria 15 ou 16 de dezembro?”, pergunta Berger, e ela está aumentando o ritmo, indicando a ele que está cheia de seu jogo. “Dezesseis”, ele diz. “Li sobre ela no jornal na manhã seguinte ao dia em que ela devia me encontrar no L’Absinthe.” Ele agora encena o ato de ficar triste com o que aconteceu. “Eu fiquei chocado.” Ele funga. “Obviamente, ela não apareceu no L’Absinthe na noite anterior. Mas você está dizendo que foi?” “Eu tomei um copo de vinho no bar e esperei. Por fim, saí.” “Você mencionou a alguém no restaurante que estava esperando por ela?” “Sim. Perguntei ao maître se ela havia aparecido e talvez deixado um recado para mim. Eles sabiam quem ela era pelo fato de ela estar na TV.” Berger o questiona detalhadamente sobre o maître, perguntando o nome dele, o que Chandonne estava usando naquela noite, quanto pagou pelo vinho e se foi em dinheiro, e quando ele perguntou sobre Susan, se deu seu nome. É claro que não. Ela gasta cinco minutos nisso. Diz a mim que a polícia havia contatado o bistrô e sabido que um homem havia aparecido e dito que estava esperando por Susan Pless. Tudo isso foi checado exaustivamente na época. É verdade. A descrição do modo como o homem estava vestido é idêntica à descrição de Chandonne de como estava vestido naquela noite. O homem pediu um copo de vinho tinto no bar e perguntou se Susan havia aparecido ou deixado um recado, e não deu seu nome. Esse homem também corresponde à descrição do homem que tinha estado no Lumi com Susan na noite anterior. “E você contou a alguém que tinha estado com ela na noite de seu assassinato?”, diz Berger no teipe. “Não. Como eu sabia o que acontecera, não podia dizer nada.” “E o que você sabia que acontecera?” “Eles tinham feito aquilo. Eles tinham feito aquilo com ela. Para me montar outra cilada.” “Outra?” “Eu tive mulheres em Paris antes disso. Eles também fizeram isso com elas.”
“Essas mulheres foram antes da morte de Susan?” “Talvez uma ou duas antes. Algumas depois também. A mesma coisa aconteceu com todas elas porque eu fui seguido. É por isso que me escondi cada vez mais, e o estresse e as dificuldades tornaram minha condição tão pior. Foi um pesadelo e eu não disse nada. Quem acreditaria em mim?” “Boa pergunta”, responde Berger, contundente. “Porque, sabe de uma coisa? Eu, por exemplo, não acredito em você, senhor. Você assassinou Susan, não foi, senhor?” “Não.” “Você a estuprou, não foi, senhor?” “Não.” “Você bateu nela e a mordeu, não foi, senhor?” “Não. É por isso que não contei nada a ninguém. Quem acreditaria em mim? Quem acreditaria que pessoas estão tentando me destruir só porque acham que meu pai é um criminoso, um chefão?” “Você nunca contou à polícia nem a ninguém que talvez tivesse sido a última pessoa a ver Susan viva porque a assassinou, não foi, senhor?” “Não contei a ninguém. Se tivesse contado, teria sido culpado pela morte dela, exatamente como você está me culpando. Voltei a Paris. Perambulei por lá. Esperava que eles me esquecessem, mas não esqueceram. Você pode ver que não esqueceram.” “Senhor, você está ciente de que Susan estava coberta de marcas e de que sua saliva foi encontrada nessas marcas, e de que o teste de DNA dela e do fluido seminal encontrado na vagina dela coincide com seu DNA?” Ele apenas fixa aquelas lentes escuras em Berger. “Você sabe o que é DNA, não sabe?” “Eu esperava que meu DNA aparecesse.” “Porque bateu nela.” “Nunca bati nela. Mas sou muito oral. Eu...” Ele pára. “Você o quê? O que você fez que pode explicar o fato de sua saliva estar nas marcas de mordida que você diz que não infligiu?” “Eu sou muito oral”, ele diz outra vez. “Chupo e lambo. O corpo inteiro.” “Onde especificamente? Você quer dizer literalmente cada centímetro do corpo?” “Sim. Todo ele. Adoro um corpo de mulher. Cada centímetro dele. Talvez porque eu não tenha... Talvez porque ele seja tão bonito, e beleza é algo que eu nunca posso ter, você entende. Então eu as adoro. Minhas mulheres. A carne delas.” “Você lambe e beija os pés delas, por exemplo?” “Sim.” “As solas dos pés?” “Todos os lugares.” “Você já mordeu os seios de uma mulher?” “Não. Ela tinha seios muito bonitos.” “Mas você os chupou, os lambeu?” “Obsessivamente.”
“Os seios são importantes para você?” “Ah, sim. Muito — não escondo isso.” “Você procura mulheres de seios grandes?” “Eu gosto de um tipo.” “Qual é exatamente seu tipo?” “Fartas.” Ele põe as mãos em concha sobre o peito e a tensão sexual resplandece em seu rosto enquanto ele descreve o tipo de mulher que o excita. Talvez seja minha imaginação, mas seus olhos brilham atrás dos óculos escuros. “Mas não gordas. Não gosto de mulheres gordas, não, não. Esbeltas na cintura e nos quadris, mas com seios fartos.” Ele põe de novo as mãos em concha, como se estivesse agarrando bolas de vôlei, e as veias ressaltam em seus braços e seus músculos se tensionam. “E Susan era seu tipo?” Berger é completamente inabalável. “No instante em que a vi no restaurante, fiquei atraído”, ele responde. “No Lumi?” “Sim.” “Foram encontrados cabelos no corpo dela”, diz então Berger. “Você está ciente de que um cabelo incomumente longo, semelhante ao de um bebê, coerente com seu cabelo incomum, semelhante ao de um bebê, foi encontrado no corpo dela? Como isso pode ter acontecido se você tinha se depilado? Você não acabou de me dizer que depilou o corpo inteiro?” “Eles plantam coisas. Tenho certeza disso.” “As mesmas pessoas que estão tentando pegá-lo?” “Sim.” “E onde eles conseguiriam seu cabelo?” “Houve um período, em Paris, há uns cinco anos, em que eu comecei a sentir que alguém estava atrás de mim”, ele diz. “Tive a sensação de que estava sendo observado, seguido. Não imaginava por quê. Mas quando eu era mais novo nem sempre depilava meu corpo. Minhas costas, você pode imaginar. É muito difícil de alcançar, é difícil depilar minhas costas, realmente impossível, então às vezes passavam-se muitos, muitos meses, e você sabe, quando eu era mais jovem, era mais tímido com as mulheres e raramente me aproximava delas. Então eu não pensava tanto em me depilar, apenas me escondia embaixo de calça comprida e mangas compridas e só depilava as mãos, o pescoço e o rosto.” Ele toca em sua bochecha. “Um dia eu cheguei em casa, no apartamento onde meus pais adotivos viviam...” “Seus pais adotivos ainda estavam vivos nesse momento? O casal que você mencionou? Que vivia perto da prisão?”, ela acrescenta com um traço de ironia. “Não. Mas eu ainda consegui viver lá por algum tempo. Não era caro e eu tinha trabalho, bicos. Chego em casa e percebo que alguém esteve lá. Era estranho. Não faltava nada exceto as cobertas de minha cama. Penso, bem, não foi tão ruim. Pelo menos, quem quer que seja só levou isso. Então aconteceu de novo várias outras vezes. Agora percebo que eram eles. Eles queriam meu cabelo. Foi por isso que levaram minhas cobertas. Porque eu perco muito cabelo, você entende?” Ele toca em emaranhados de cabelo no alto da cabeça. “Ele está sempre caindo se eu não depilar. Fica grudado em coisas quando está muito
comprido.” Ele levanta um braço para mostrar a ela, e o cabelo comprido flutua no ar. “Então você está dizendo que não tinha cabelo comprido quando encontrou Susan? Nem mesmo nas costas?” “De jeito nenhum. Se vocês encontraram cabelos compridos no corpo dela, eles foram postos lá, você entende o que estou dizendo? Ainda assim, admito que sou culpado pelo assassinato dela.”
15
“Por que você é culpado?”, pergunta Berger a Chandonne. “Por que você diria que a culpa pela morte de Susan é sua?” “Porque eles me seguiram”, ele responde. “Devem ter chegado logo depois que eu saí, e fizeram aquilo com ela.” “E eles o seguiram até Richmond também, senhor? Por que você veio para cá?” “Vim por causa de meu irmão.” “Explique isso”, retruca Berger. “Ouvi falar do corpo no porto, e me convenci de que era meu irmão, Thomas.” “De que seu irmão vivia?” “Ele trabalhava no negócio de transporte com meu pai. Era alguns anos mais velho. Thomas era bom para mim. Eu não o via muito, mas ele me dava suas roupas quando não as queria mais, e outras coisas, como lhe contei. E dinheiro. Sei que a última vez que o vi, uns dois meses atrás em Paris, ele estava apavorado com alguma coisa ruim que ia acontecer com ele.” “Onde em Paris foi esse encontro com Thomas?” “Faubourg Saint-Antoine. Ele adorava ir para onde estão os jovens artistas e os clubes noturnos, e nós nos encontramos em um beco de pedra. Cour des Trois Frères, onde ficam os artesãos, sabe, não muito longe do Sans Sanz e de Balanjo, e, é claro, do Bar Américain, onde podemos pagar uma garota para nos fazer companhia. Ele me deu dinheiro e disse que ia para a Bélgica, para Antuérpia, e depois para este país. Nunca mais eu soube dele, e depois chegou a notícia sobre o corpo.” “E onde você soube dessa notícia?” “Eu lhe disse que consigo muitos jornais. Recolho o que as pessoas jogam fora. E muitos turistas que não falam francês lêem a versão internacional do USA Today. Havia uma pequena história nele sobre o corpo encontrado aqui, e eu soube imediatamente que era meu irmão. Tive certeza. Por isso, vim para Richmond. Eu tinha de saber.” “Como você chegou aqui?” Chandonne suspira. Parece outra vez fatigado. Toca na pele inflamada, em carne viva, em torno do nariz. “Não quero dizer”, responde. “Por que não quer dizer?” “Tenho medo de que vocês usem isso contra mim.” “Senhor, preciso que você me fale a verdade.” “Sou um batedor de carteira. Peguei a carteira de um homem que deixou o casaco dobrado sobre um monumento no Père-Lachaise, o mais famoso cemitério de Paris, onde parte de minha família está enterrada. Uma concession à perpetuité ”, ele diz com orgulho. “Sujeito estúpido. Um americano. Era uma
carteira grande, do tipo em que as pessoas guardam passaportes e bilhetes aéreos. Fiz isso muitas vezes, lamento lhe dizer. Faz parte de viver na rua, e eu vivi na rua cada vez mais desde que eles começaram a me seguir.” “Essas mesmas pessoas outra vez. Agentes federais.” “Sim, sim. Agentes, juízes, todos. Imediatamente peguei o avião porque não queria dar ao homem tempo para informar a perda da carteira e depois alguém me parar no portão do aeroporto. Era um bilhete de volta, classe econômica, para Nova York.” “Você saiu de qual aeroporto, e quando?” “De Gaulle. Deve ter sido na quinta-feira passada.” “Dezesseis de dezembro?” “Sim. Cheguei de manhã cedo e peguei um trem para Richmond. Eu tinha setecentos dólares, por causa do que tinha pegado do sujeito.” “Você ainda tem a carteira e o passaporte?” “Não, nunca. Isso seria burrice. Joguei-os no lixo.” “No lixo, onde?” “Na estação de trem em Nova York . Não posso dizer exatamente onde. Tomei o trem...” “E durante suas viagens ninguém olhava para você? Você não estava depilado, senhor? Ninguém ficava olhando-o nem reagia a você?” “Escondi meu cabelo em uma rede debaixo de um chapéu. E estava de mangas compridas e com um colarinho alto.” Ele hesita. “Há outra coisa que faço quando estou com esta aparência, quando não cortei o cabelo. Uso uma máscara. O tipo de máscara que as pessoas põem no nariz e na boca quando têm alergias graves. E uso luvas de algodão pretas e óculos escuros grandes.” “Foi isso que você usou no avião e no trem?” “Sim. Funciona muito bem. As pessoas se afastam de mim, e eu, nesse caso, tive uma fileira inteira de assentos só para mim. Então, dormi.” “Você ainda tem a máscara, o chapéu, as luvas e os óculos?” Chandonne pára para pensar antes de responder. Ela lançou para ele uma bola curva e ele está em dúvida. “Talvez eu possa encontrá-los”, ele tergiversa. “O que você fez quando chegou a Richmond?”, pergunta Berger. “Saí do trem.” Durante alguns minutos ela o questiona sobre isso. Onde é a estação de trem? Ele tomou um táxi? Como se movimentou? O que exatamente pensou que faria a respeito do irmão? As respostas dele são lúcidas. Tudo o que ele descreve faz parecer plausível que possa ter estado onde afirma ter estado, como na estação da Amtrak na Staples Mill Road e em um táxi azul que o deixou numa espelunca, um motel na avenida Chamberlayne, onde ele pagou vinte dólares por um quarto, usando outra vez um nome falso e pagando em dinheiro. De lá, afirma que ligou para meu departamento para ter informações sobre o corpo não identificado que ele diz que é de seu irmão. “Pedi para falar com o legista, mas ninguém me ajudou”, ele está dizendo a Berger. “Com quem você falou?”, ela pergunta. “Era uma mulher. Talvez uma secretária.” “Essa secretária lhe deu o nome da pessoa?”
“Sim. Scarpetta. Então eu peço para falar com ele, e a secretária me diz que Scarpetta era uma mulher. Então eu disse, tudo bem. Posso falar com ela? E ela está ocupada. Não deixo meu nome nem número de telefone, é claro, porque tenho de continuar a tomar cuidado. Talvez esteja sendo seguido outra vez. Como posso saber? Então pego um jornal e leio sobre um assassinato aqui, uma moça numa loja morta uma semana antes, e fico chocado — aterrorizado. Eles estão aqui.” “As mesmas pessoas? Aquelas que você diz que o estão perseguindo?” “Eles estão aqui, você não vê? Eles mataram meu irmão e sabiam que eu viria encontrá-lo.” “Eles certamente são espantosos, não são, senhor? Têm de ser mesmo muito espantosos, para saber que você viria para Richmond, Virgínia, porque acabara de ler um USA Today jogado fora e soubera que tinha aparecido um corpo aqui, e que você suporia que é o de Thomas, e roubaria um passaporte e uma carteira e partiria para cá.” “Eles sabiam que eu viria. Eu amo meu irmão. Meu irmão é tudo que tenho na vida. É a única pessoa que sempre foi boa comigo. E eu preciso descobrir por causa do papai. Pobre papai.” “E quanto a sua mãe? Ela não ficaria perturbada ao saber que Thomas está morto?” “Ela bebe muito.” “Sua mãe é alcoólatra?” “Ela está sempre bebendo.” “Todos os dias?” “Todos os dias, o dia todo. E depois ela fica irritada ou chora muito.” “Você não vive com ela mas sabe que ela bebe todos os dias e o dia todo?” “Thomas me contava. A vida dela foi assim desde quando consigo me lembrar. Sempre me disseram que ela estava bêbada. Nas poucas vezes em que fui à casa, ela estava bêbada. Uma vez me disseram que minha doença poderia ter ocorrido porque ela estava bêbada quando ficou grávida de mim.” Berger olha para mim. “É possível?” “Síndrome alcoólica fetal?”, considero. “É provável que não. Geralmente haveria um sério retardamento do desenvolvimento mental e físico se a mãe fosse alcoólatra crônica, e mudanças cutâneas como hipertricose seriam o menor dos problemas da criança.” “Isso não significa que ele não acredite que ela é responsável por sua doença.” “Ele certamente pode acreditar nisso”, concordo com ela. “O que ajuda a explicar o ódio extremo que ele sente por mulheres.” “Tanto quanto qualquer coisa pode explicar esse tipo de ódio”, respondo. No teipe, Berger conduziu Chandonne de volta ao assunto de sua suposta ligação para o necrotério aqui em Richmond. “Então você tentou falar com a doutora Scarpetta ao telefone, mas não conseguiu. E depois?” “Então no dia seguinte, sexta-feira, ouço na TV em meu quarto do motel que outra mulher foi assassinada. Dessa vez uma policial. Eles interrompem a
programação para dar a notícia, sabe, e estou assistindo quando isso acontece, e em seguida as câmaras focalizam um grande carro preto chegando à cena e dizem que é a legista. É ela, Scarpetta. Então tenho a idéia de ir até lá imediatamente. Vou esperar até que ela esteja saindo da cena e abordá-la. Vou contar a ela o que preciso contar. Então pego um táxi.” Aqui sua notável memória falha. Ele não se lembra de nada sobre a empresa de táxi, nem sequer a cor do carro, só que o motorista era um “negro”. Provavelmente oito por cento dos motoristas de táxi em Richmond são negros. Chandonne afirma que enquanto é levado à cena — e ele sabe o endereço porque foi mencionado no noticiário — ouve outra notícia urgente. Desta vez o público está sendo advertido sobre o assassino, que ele talvez tenha uma doença estranha que o leva a ter uma aparência muito incomum. A descrição hipertricótica corresponde à de Chandonne. “Agora eu sei, com certeza”, ele prossegue. “Eles montaram a armadilha e o mundo inteiro acha que eu matei essas mulheres em Richmond. Então entro em pânico no banco traseiro do táxi, tentando imaginar o que fazer. Digo ao motorista, ‘Você conhece essa moça de quem estão falando? Scarpetta?’. Ele diz que todos na cidade a conhecem. Pergunto onde ela mora e digo que sou turista. Ele me leva para o bairro dela, mas não entramos porque há guardas e um portão. Mas sei o suficiente para encontrá-la. Saio do táxi a vários quarteirões de lá. Estou determinado a encontrá-la antes que seja tarde demais.” “Tarde demais para quê?”, pergunta Berger. “Antes que outra pessoa seja morta. Preciso voltar mais tarde nessa noite e de algum modo conseguir que ela abra a porta para que eu possa conversar com ela. Sabe, é claro que estou preocupado com que eles a matem antes. É o padrão deles, você entende. Eles fizeram isso em Paris, você sabe. Tentaram assassinar a legista de lá. Ela teve muita sorte.” “Senhor, vamos nos ater ao assunto do que aconteceu aqui em Richmond. Me diga o que aconteceu a seguir. Quando é isso, meio da manhã de sexta-feira, 17 de dezembro, sexta-feira passada? O que você fez depois que o táxi o deixou? O que fez no resto do dia?” “Perambulei. Encontrei uma casa abandonada à margem do rio e entrei nela, só para não ficar exposto ao tempo.” “Você sabe onde fica essa casa?” “Não posso lhe dizer, mas não é longe do bairro dela.” “Do bairro da doutora Scarpetta?” “Sim.” “Você poderia encontrar essa casa outra vez, essa onde você ficou, não poderia, senhor?” “Ela está em construção. É muito grande. Uma mansão na qual ninguém vive agora. Sei onde fica.” Berger me diz: “A casa onde eles pensam que ele estava o tempo inteiro em que esteve aqui?”. Concordo com a cabeça. Conheço a casa. Penso nas pobres pessoas a quem ela pertença e não consigo imaginá-las querendo morar lá outra vez. Chandonne diz que se escondeu na mansão abandonada até anoitecer. Várias
vezes naquela noite ele se aventurou, evitando o portão da guarda do meu condomínio, simplesmente seguindo o rio e trilhas que passam atrás dele. Ele afirma ter batido na minha porta no começo da noite e não ter tido resposta. Nesse ponto, Berger me pergunta a que horas cheguei em casa naquela noite. Digo que foi depois das oito. Eu tinha parado na Pleasant’s Hardware depois de sair do escritório. Queria dar uma olhada nas ferramentas porque estava perplexa com os estranhos ferimentos que encontrara no corpo de Diane Bray, e com as manchas de sangue deixadas no colchão quando o assassino depusera a ferramenta ensangüentada com a qual tinha batido nela. Foi durante essa busca na Pleasant’s Hardware que deparei com uma picareta de entalhar, e comprei uma e fui para casa, digo a Berger. Chandonne continua, e declara que começou a ficar com medo de ir me encontrar. Afirma que havia muitos carros de polícia cruzando o bairro, e que em certo momento, quando chegou a minha casa, mais tarde, havia duas radiopatrulhas estacionadas em frente. Foi por isso que meu alarme disparou — quando Chandonne forçou a porta de minha garagem para que a polícia viesse. Claro que ele diz a Berger que não foi ele quem disparou o alarme. Foram eles — devem ter sido eles, ele diz. Agora já é perto de meia-noite. Está nevando muito. Ele se esconde atrás das árvores perto da minha casa e espera até que a polícia saia. Diz que essa é sua última chance, ele precisa falar comigo. Acredita que eles estão na área e vão me matar. Então ele vai até a porta da frente da minha casa e bate. “Com o que você bateu?”, Berger pergunta a ele. “Eu me lembro que havia uma aldrava. Acho que a usei.” Ele toma o resto de sua Pepsi, e Marino, no teipe, pergunta-lhe se quer outra. Chandonne balança a cabeça e boceja. Está falando sobre ir até minha casa para estourar meus miolos, e o desgraçado boceja. “Por que você não tocou a campainha?”, Berger quer saber. Isso é importante. Minha campainha ativa o sistema de câmera. Se Chandonne tivesse tocado a campainha, eu teria conseguido vê-lo numa tela de vídeo dentro da casa. “Não sei”, ele responde. “Eu vi a aldrava e a usei.” “Você disse alguma coisa?” “No começo, não. Então ouvi uma mulher perguntar ‘Quem é?’.” “E o que você disse?” “Disse a ela meu nome. Disse que tinha informações sobre o corpo que ela estava tentando identificar e que por favor me deixasse falar com ela.” “Você disse seu nome a ela? Você se identificou como Jean-Baptiste Chandonne?” “Sim. Disse que tinha vindo de Paris e tentado falar com ela em seu escritório.” Ele boceja outra vez. “Então acontece a coisa mais surpreendente”, ele continua. “A porta se abre de repente e ela está lá. Diz para eu entrar, e quando faço isso ela bate a porta atrás de mim e não consigo acreditar. De repente ela tem um martelo e está tentando bater em mim.” “De repente ela tem um martelo? Onde ela o conseguiu? Ele simplesmente apareceu do nada?”
“Acredito que ela o pegou debaixo de uma mesa bem ao lado da porta. Não sei. Aconteceu muito rápido. Tento fugir dela. Corro até a sala, gritando que ela pare, e é aí que acontece o mais terrível. Foi rápido. Só me lembro que eu estava do outro lado do sofá, então algo me atingiu no rosto. Tive a sensação de que havia fogo líquido em meus olhos. Nunca senti algo tão, tão...” Ele funga outra vez. “A dor. Eu estava gritando e tentando tirar aquilo de meus olhos. Tentando sair da casa. Sabia que ela ia me matar e de repente me passou pela cabeça que ela é um deles. Eles. Finalmente eles me pegaram. Caí direto na armadilha! Estava planejado o tempo todo que ela pegasse o corpo de meu irmão porque ela é eles. Agora eu seria preso e eles finalmente teriam a oportunidade que querem, finalmente, finalmente.” “E o que eles querem?”, Berger pergunta a ele. “Diga-me outra vez, porque estou tendo muita dificuldade em entender essa parte, e mais ainda em acreditar.” “Eles querem meu pai!”, diz ele, com a primeira emoção que vi. “Pegar papai! Encontrar um motivo para pegá-lo, destruí-lo. Fazer parecer que meu pai tem um filho que é um assassino para que possam pegar minha família. Tudo isso durante anos! E eu sou um Chandonne e olhe só para mim! Olhe para mim! ” Ele estende os braços em uma pose de crucificação, o cabelo flutuando de seu corpo. Observo em choque quando ele tira os óculos escuros e a luz atinge seus olhos tenros, queimados. Olho fixo para aqueles olhos vermelhos, quimicamente queimados. Eles não parecem focalizar nada, e as lágrimas rolam pelo rosto dele. “Estou arruinado!”, ele grita. “Estou feio e cego e sendo acusado de crimes que não cometi! Vocês, americanos, querem executar um francês! Não é isso?! Para dar um exemplo!” Cadeiras se arrastam fazendo muito barulho, e Marino e Talley estão em cima dele, segurando-o em sua cadeira. “Eu não matei ninguém! Ela tentou me matar! Olhem o que ela fez comigo! ” E Berger está dizendo calmamente a ele: “Já estamos nisso há uma hora. Vamos parar agora. Já é suficiente. Acalme-se, acalme-se”. Quadros piscam e barras enchem a tela antes de ela assumir a cor azul brilhante de uma tarde perfeita. Berger desliga o videocassete. Permaneço num silêncio atônito. “Odeio lhe dizer.” Ela quebra o encanto aterrador que Chandonne lançou em minha pequena sala particular de reuniões. “Há alguns idiotas paranóides e antigoverno neste mundo que vão achar esse cara confiável. Esperemos que nenhum deles termine no júri. Basta um.”
16
“Jay Talley”, diz Berger, para minha surpresa. Agora que Chandonne sumiu de nosso meio com o simples acionamento de um controle remoto, essa promotora de Nova York não perde tempo em mudar seu foco intenso para mim. Voltamos a uma realidade pequena e amena — uma sala de reuniões com uma mesa de madeira redonda, estantes de madeira embutidas e uma tela de televisão vazia. Arquivos de casos e fotos sangrentas estão espalhados diante de nós, esquecidos, ignorados, porque Chandonne se apossou de tudo e todos durante as últimas duas horas. “Você quer falar, ou eu devo começar lhe contando o que sei?”, Berger me confronta. “Não sei ao certo o que você quer que eu fale.” Fico confusa, depois ofendida, depois furiosa de novo quando penso na presença de Talley na entrevista com Chandonne. Imagino Berger falando com Talley antes e depois de ela ter interrogado Chandonne e durante a parada que ele fez para descansar e comer alguma coisa. Berger passou horas com Talley e Marino. “Sendo mais específica”, acrescento, “o que isso tem a ver com seu caso de Nova York?” “Doutora Scarpetta.” Ela se recosta na cadeira. Tenho a sensação de que estive nesta sala com ela durante metade de minha vida, e estou atrasada. Estou irremediavelmente atrasada para o encontro com o governador. “Por mais difícil que seja para você”, diz Berger, “peço que confie em mim. Será que consegue?” “Não sei mais em quem confiar”, respondo com sinceridade. Ela sorri um pouco e suspira. “Isso é honesto. Bastante justo. Você não tem nenhuma razão para confiar em mim. Talvez não tenha nenhuma razão para confiar em ninguém. Mas você realmente não tem nenhuma razão factual para não confiar em mim como uma profissional cujo único propósito é fazer Chandonne pagar por seus crimes — se ele assassinou essas mulheres.” “Se?”, pergunto. “Temos de provar isso. E absolutamente nenhuma coisa que eu possa saber sobre o que aconteceu aqui nesses casos de Richmond é desprezível para mim. Garanto a você, não estou tentando ser voyeur nem violar sua privacidade. Mas preciso ter o contexto completo. Francamente, preciso saber com que diabo estou lidando, e minha dificuldade é que não sei quem são todos os personagens, nem o que eles são, nem se algum deles poderia de algum modo se sobrepor a meu caso em Nova York . Por exemplo, o hábito de Diane Bray de tomar remédios controlados de fato poderia ser um indicador de outra atividade ilegal, possivelmente ligada ao crime organizado, à família Chandonne? Ou possivelmente até ligada ao motivo pelo qual o corpo de Thomas acabou em Richmond?” “A propósito.” Estou presa a outro assunto, isto é, minha credibilidade. “Como Chandonne explica que havia duas picaretas de entalhar na minha casa? Sim, eu comprei uma na loja de ferramentas, como lhe contei. Então de onde
veio a outra, se ele não trouxe uma com ele? E se eu queria matá-lo, por que não usei a pistola? Minha Glock estava bem ali na mesa da sala de jantar.” Berger hesita e foge completamente de minhas perguntas. “Se eu não sei de toda a verdade, fica muito difícil saber o que é relevante para meu caso e o que não é.” “Entendo isso.” “Podemos começar pela situação de sua relação com Jay agora?” “Ele me levou de carro ao hospital.” Desisto. Evidentemente não sou eu quem vai fazer as perguntas nesta situação. “Quando quebrei o braço. Ele apareceu com a polícia, o ATF, e eu falei rapidamente com ele no sábado à tarde, enquanto a polícia ainda estava na minha casa.” “Você tem alguma idéia de por que ele achou necessário voar da França até aqui para auxiliar na caçada a Chandonne?” “Só posso supor que é porque ele está muito familiarizado com o caso.” “Ou foi uma desculpa para ver você?” “Quem tem de responder isso é ele.” “Você está se encontrando com ele?” “Não desde a tarde de sábado, como eu disse.” “Por que não? Você acha que o relacionamento acabou?” “Nunca achei que ele tivesse começado.” “Mas você dormiu com ele.” Ela ergue uma sobrancelha. “Então sou culpada de falta de critério.” “Ele é bonito, brilhante. E jovem. É mais provável que algumas pessoas condenem você por bom gosto. Ele é solteiro. Você também. Não é como se você cometesse adultério.” Ela faz uma pausa. Estará aludindo a Benton, ao fato de que eu fui culpada de adultério no passado? “Jay Talley tem muito dinheiro, não é?” Ela bate sua caneta com ponta porosa no bloco de memorandos, um metrônomo medindo os maus momentos que estou passando. “Da família dele, supostamente. Vou checar isso. E, a propósito, você deve saber que falei com ele, com Jay. Longamente.” “Suponho que você falou com o mundo inteiro. O que ainda não consegui descobrir é como você teve tempo para isso.” “Houve um pequeno intervalo na Faculdade de Medicina da Virgínia, no hospital da faculdade.” Imagino-a tomando café com Talley. Posso visualizar o olhar no rosto dele, sua postura. Pergunto-me se ela têm atração por ele. “Conversei com Talley e com Marino enquanto Chandonne tinha seus vários períodos de descanso e coisas do tipo.” As mãos dela repousam dobradas sobre um bloco de notas gravado com a insígnia de seu gabinete. Ela não fez nenhuma anotação, nem uma palavra o tempo inteiro em que estivemos nesta sala. Já está maquinando que a defesa fará reivindicações baseadas no precedente estabelecido no caso Rosário. A defesa tem direito de ver tudo que tenha sido anotado pela promotoria que possa prejudicar seu cliente. Portanto, não escreve nada. De vez em quando ela rabisca alguma coisa. Encheu duas páginas com garatujas desde que entrou em minha sala de reuniões. Um sinal de alerta aparece em minha mente. Ela está me tratando como testemunha. Eu não
deveria ser uma testemunha, não em seu caso de Nova York . “Estou com a impressão de que você está se perguntando se Jay está de alguma maneira envolvido...”, começo a dizer. Berger me interrompe, franzindo o cenho. “Vou revirar tudo”, diz ela. “É possível? Neste momento, estou prestes a acreditar que tudo é possível. Em que posição maravilhosa Talley estaria se estivesse em conluio com os Chandonne, certo? Interpol, ah, isso vem a calhar para um cartel do crime. Ele liga para você e a leva até a França, talvez com o propósito de ver o que você sabe sobre o incontrolável Jean-Baptiste. De repente, Talley está em Richmond para a caçada ao cara.” Ela cruza os braços e me penetra outra vez com aquele olhar. “Eu não gosto dele. Estou surpresa de que você tenha gostado.” “Olhe”, digo, com um traço de derrota na voz. “Jay e eu fomos íntimos em Paris por um período de vinte e quatro horas, no máximo.” “Vocês fizeram sexo. Discutiram em um restaurante naquela tarde e você explodiu, com ciúme porque ele estava olhando para outra mulher...” “O quê?”, explodo. “Ele disse isso ?” Ela me olha em silêncio. Seu tom não é diferente daquele que ela usou com Chandonne, um monstro terrível. Agora ela está entrevistando a mim, uma pessoa terrível. É assim que me sinto. “Não teve nada a ver com outra mulher”, respondo. “Que outra mulher? Eu certamente não tive ciúme. Ele estava agindo de um jeito muito agressivo e petulante e eu me enchi.” “O Café Runtz, na rue Favard. Você fez uma senhora cena.” Ela continua minha história, ou pelo menos a versão dela que Jay lhe forneceu. “Eu não fiz uma cena. Eu me levantei da mesa e saí, ponto.” “De lá você voltou ao hotel, pegou um táxi e foi para a Île de Saint-Louis, onde mora a família de Chandonne. Caminhou por lá até escurecer, olhando para a casa de Chandonne, depois pegou uma amostra de água do Sena.” O que ela acabou de dizer envia choques elétricos para todas as minhas células. O suor escorre em gotas grossas por baixo de minha blusa. Nunca contei a Jay o que fiz depois de deixá-lo no restaurante. Como Berger sabe de tudo isso? Como Jay soube, se foi ele quem contou a ela? Marino. Quanto Marino contou a ela? “Qual era seu verdadeiro propósito ao encontrar a casa de Chandonne? O que você achava que isso podia lhe dizer?”, pergunta Berger. “Se eu soubesse o que alguma coisa me diria, não precisaria investigar”, respondo. “Quanto à amostra de água, como você sabe pelos relatórios do laboratório, encontramos diatomáceas, ou algas microscópicas, na roupa do corpo não identificado do porto de Richmond — do corpo de Thomas. Eu queria uma amostra da água perto da casa de Chandonne para ver se havia alguma chance de o mesmo tipo de diatomácea estar presente naquela área do Sena. E estava. As diatomáceas de água doce eram coerentes com aquelas que encontrei no interior da roupa do corpo, do corpo de Thomas, e nada disso importa. Você não está acusando Jean-Baptiste pelo assassinato de seu suposto irmão, já que esse provavelmente aconteceu na Bélgica. Você já deixou isso claro.” “Mas a amostra de água é importante.” “Por quê?”
“Qualquer coisa que tenha acontecido me revela mais sobre o acusado e possivelmente leva ao motivo. E o mais importante, à identidade e à intenção.” Identidade e intenção. Essas palavras bramem em minha mente como um trem. Sou advogada. Sei o que elas significam. “Por que você pegou a amostra de água? Você coleta rotineiramente evidências que não estejam associadas de forma direta com um corpo? Em outras palavras, coletar amostras de água realmente não é da sua jurisdição, especialmente em um país estrangeiro. Por que você foi à França? Isso não é um pouco fora do comum para uma legista?” “A Interpol me convocou. Você mesma acabou de observar isso.” “Jay Talley a convocou, sendo mais específica.” “Ele representa a Interpol. Ele o responsável no ATF Pela ligação com a Interpol.” “Eu me pergunto por que realmente ele orquestrou sua ida até lá.” Ela faz uma pausa para permitir que um calafrio de medo atinja meu cérebro. Ocorreme que Jay pode ter me manipulado por motivos que não tenho certeza se consigo suportar imaginar. “Talley tem muitas camadas”, Berger acrescenta, enigmática. “Se Jean-Baptiste fosse julgado aqui, suponho que é mais provável que Talley seria usado pela defesa do que pela acusação. Possivelmente para desacreditá-la como testemunha.” O calor me sobe pelo pescoço. Meu rosto queima. O medo me atinge como uma granada, desfazendo qualquer esperança que eu tivesse de que algo desse tipo não acontecesse. “Deixe-me perguntar uma coisa a você.” Expresso inteiramente meu ultraje. É tudo que consigo fazer para manter a voz firme. “Há alguma coisa que você não saiba sobre a minha vida?” “Muita coisa.” “Por que tenho a sensação que sou a pessoa que está prestes a ser indiciada, senhorita Berger?” “Não sei. Por que você se sente assim?” “Estou tentando não tomar nada disso em termos pessoais. Mas está ficando mais difícil a cada minuto.” Berger não ri. A resolução faz seus olhos faiscarem e endurece seu tom. “Vai ficar muito pessoal. Recomendo vivamente que você não tome isso dessa maneira. Você sabe como funciona. A prática efetiva de um crime é incidental ao dano real que suas sensações causam. Jean-Baptiste Chandonne não deu um único soco em você no momento em que invadiu sua casa. É agora que ele começa a ferir você. Ele a feriu. Ele vai feri-la. Embora esteja preso, vai dar socos em você diariamente. Ele iniciou um processo cruel e mortal, a violação de Kay Scarpetta. Já começou. Sinto muito. É um fato da vida que você conhece muito bem.” Devolvo em silêncio seu olhar. Minha boca está seca. Meu coração parece bater fora do ritmo. “Não é justo, é?”, ela diz no tom cortante de uma promotora que sabe como desmontar seres humanos tão completamente como eu sei. “Mas estou certa de que seus pacientes não gostariam de ser despidos em sua mesa, com sua faca, de ter seus bolsos e orifícios explorados, se soubessem. E há, sim, um
bocado de coisas que não sei sobre sua vida. E, sim, você não vai gostar de minha sondagem. E, sim, você vai cooperar, se for a pessoa de quem ouvi falar. E, sim, droga, eu preciso desesperadamente de sua ajuda, senão este caso está completamente ferrado.” “Porque você vai tentar incluir as outras maldades praticadas por ele, não vai?” Ponho tudo para fora. “Baseada no caso Molineux.” Ela hesita. Seus olhos permanecem em mim e se acendem por um instante, como se eu tivesse acabado de dizer algo que a enche de alegria ou talvez de um novo respeito. Então, com a mesma rapidez, esses olhos me excluem outra vez, e ela diz: “Ainda não tenho certeza do que vou fazer”. Não acredito nela. Sou a única testemunha viva. A única. Ela tem toda a intenção de me incluir no caso — colocar em julgamento todos os crimes de Chandonne, todos magnificamente apresentados no reduzido contexto de uma pobre mulher que ele assassinou em Manhattan há dois anos. Chandonne é esperto. Mas talvez tenha cometido um erro fatal no videoteipe. Ele deu a Berger as armas de que ela precisa para apelar ao caso Molineux: identidade e intenção. Posso identificar Chandonne. Sei muito bem qual era sua intenção quando ele entrou à força em minha casa. Sou a única pessoa viva que pode se contrapor a suas mentiras. “Então agora nós martelamos minha credibilidade.” O trocadilho sem graça é deliberado. Ela está me golpeando exatamente como Chandonne fez, mas por uma razão muito diferente, é claro. Ela não quer me destruir. Quer ter certeza de que eu não seja destruída. “Por que você dormiu com Jay Talley?”, ela volta ao assunto. “Porque ele estava lá, droga!”, retruco. Ela irrompe em uma gargalhada, que a faz jogar-se contra as costas da cadeira. Não estou tentando ser divertida. Estou, se tanto, enojada. “Essa é a verdade banal, senhorita Berger”, acrescento. “Por favor, me chame de Jaime.” Ela suspira. “Nem sempre sei as respostas, mesmo as que deveria saber. Tais como por que tive meu momento com Jay. Mas tenho vergonha dele. Até alguns minutos atrás, eu me sentia culpada por isso, com muito medo de tê-lo usado, de tê-lo magoado. Mas pelo menos não saí por aí contando para as pessoas.” Para isso ela não tem resposta. “Eu devia ter percebido que ele mal saiu da puberdade”, continuo, enquanto minha indignação se mostra vivamente diante de nossos olhos. “Nada melhor do que os adolescentes que babavam por minha sobrinha no shopping ontem à noite. Hormônios ambulantes. Então Jay se gabou disso, estou certa, contou a todo mundo, inclusive a você. E devo acrescentar...” Paro. Engulo. A raiva parece um caroço em minha garganta. “Devo acrescentar que alguns detalhes não são da sua conta e nunca serão. Peço a você, senhorita Berger, por uma questão de cortesia profissional, que não vá a lugares que não são da sua alçada.” “Se pelo menos os outros respeitassem isso.” Faço questão de olhar outra vez para meu relógio. Mas não posso sair, não
antes de perguntar a ela o mais importante. “Você acredita que ele me atacou?” Ela sabe que dessa vez me refiro a Chandonne. “Há alguma razão pela qual eu não deveria acreditar?” “Obviamente, meu relato de testemunha ocular transforma todas as outras coisas que ele disse no absurdo que na verdade são”, respondo. “Não foram eles. Não havia nenhum eles. Só aquele filho-da-mãe desgraçado fingindo ser a polícia e me atacando com um martelo. Gostaria de saber como ele pretende explicar isso. Você perguntou a ele por que havia duas picaretas de entalhar na minha casa? Posso provar com o recibo da loja de ferramentas que só comprei uma.” Insisto nesse ponto. “Então, de onde veio a outra?” “Quero lhe perguntar uma coisa.” Outra vez, ela evita me responder. “Há alguma possibilidade de que você só tenha suposto que ele a estava atacando? De que você o tenha visto e entrado em pânico? Tem certeza de que ele tinha uma picareta de entalhar e estava atacando você com ela?” Olho fixo para ela. “Suposto que ele estava me atacando? Que explicação poderia haver para ele estar dentro da minha casa?” “Bem, você abriu a porta. Isso nós sabemos, certo?” “Você não está me perguntando se ele foi convidado, está?” Olho para ela em desafio, praticamente mordendo as bochechas. Minhas mãos tremem. Quando ela não responde, empurro minha cadeira para trás. “Não tenho de ficar sentada aqui agüentando isso. Passou do ridículo para o extremamente ridículo!” “Doutora Scarpetta, como você se sentiria se fosse sugerido publicamente que você, de fato, convidou Chandonne para entrar na sua casa e o atacou? Por razão nenhuma, a não ser, talvez, estar em pânico? Ou pior. Que você faz parte da conspiração, como ele declarou no teipe — você e Jay Talley. O que também ajuda a explicar por que você foi a Paris e dormiu com Talley, e depois encontrou a doutora Stvan e tirou evidências do necrotério.” “Como eu me sentiria? Não sei mais o que dizer.” “Você é a única testemunha, a única pessoa viva que sabe que o que Chandonne está dizendo não passa de mentiras e mais mentiras. Se você está dizendo a verdade, então este caso depende totalmente de você.” “Não sou testemunha no seu caso”, lembro a ela. “Não tive nada a ver com a investigação do assassinato de Susan Pless.” “Preciso de sua ajuda. E vai levar muito, muito tempo.” “Não vou ajudá-la. Não se você vai começar a questionar minha veracidade e minha condição mental.” “Na verdade, não questiono nenhuma delas. Mas a defesa vai questionar. A sério. De forma excruciante.” Ela está abrindo cuidadosamente seu caminho pelas bordas de uma realidade que ainda precisa partilhar comigo. O advogado da outra parte. Suspeito que ela sabe quem é. Ela sabe exatamente quem vai terminar o que Chandonne começou: meu desmantelamento, minha humilhação, para que o mundo inteiro veja. Meu coração bate em baques surdos. Sinto-me morta. Minha vida acabou de terminar bem diante de meus olhos. “Vou precisar que você vá a Nova York em algum momento”, Berger está dizendo. “Quanto antes melhor. E, a propósito, devo adverti-la para que seja muito, muito cuidadosa sobre com quem conversa neste momento. Não
recomendo, por exemplo, que você fale com ninguém sobre esses casos sem falar comigo primeiro.” Ela começa a arrumar sua papelada e seus livros. “Aconselho-a não ter nenhum contato direto com Talley.” Seus olhos encontram os meus enquanto ela fecha sua maleta. “Infelizmente, acho que vamos ter um presente de Natal do qual não vamos gostar.” Levantamos de nossas cadeiras e nos encaramos. “Quem?”, pergunto com voz cansada. “Você sabe quem vai representá-lo, não sabe? É por isso que ficou a noite toda com ele. Queria falar com ele antes que seu advogado fechasse a porta.” “Tudo verdade”, ela responde com um traço de irritação. “A questão é se eu fui enganada nessa história.” Olhamos uma para a outra por cima da superfície brilhante da mesa de madeira. “Acho uma coincidência um pouco excessiva que uma hora depois de minha última entrevista com Chandonne eu tenha sido informada de que ele tem advogado”, ela acrescenta. “Suspeito que ele já sabia quem era seu advogado e talvez, de fato, o tivesse contratado. Mas Chandonne e o saco de lixo a quem ele está ligado acreditariam que esse teipe” — ela bate em sua maleta — “só nos prejudicaria e o ajudaria.” “Porque os jurados ou acreditariam nele, ou pensariam que ele é paranóico e louco”, resumo. Ela assente. “Ah, claro. Eles vão tentar insanidade, se tudo mais falhar. E nós não queremos que o senhor Chandonne vá para Kirby, queremos?” Kirby é um famoso hospital psiquiátrico forense em Nova York. É onde Carrie Grethen ficou presa antes de fugir e assassinar Benton. Berger tocou em mais uma parte de minha história dolorosa. “Então você sabe sobre Carrie”, digo num tom de derrota enquanto saímos da sala de reuniões, que eu jamais verei da mesma forma. Ela também se tornou uma cena de crime. Meu mundo inteiro está virando uma. “Fiz algumas pesquisas a seu respeito”, diz Berger, quase se desculpando. “E você está certa, sei quem vai representar Chandonne, e não é uma boa notícia. Na verdade é uma coisa horrorosa.” Ela veste seu casaco de vison enquanto andamos pelo corredor. “Você já se encontrou alguma vez com o filho de Marino?” Paro e fico olhando para ela, estarrecida. “Não conheço ninguém que jamais tenha visto o filho dele”, respondo. “Vamos, vamos para sua festa. Eu explico enquanto caminhamos.” Berger carrega seus livros e arquivos, andando devagar sobre o carpete silencioso. “Rocco Marino, carinhosamente conhecido como ‘Rocky’, é um advogado de defesa criminalista excepcionalmente inescrupuloso que tem predileção por representar a máfia e outros que valha a pena de tirar de situações difíceis, por qualquer meio. É um exibido. Adora publicidade.” Ela ergue o olhar para mim. “Mais que tudo, ele adora machucar as pessoas. É o seu jeito de se sentir poderoso.” Apago as luzes do corredor, lançando-nos brevemente na escuridão enquanto nos aproximamos do primeiro conjunto de portas de aço inoxidável. “Há alguns anos — na faculdade de direito, me contaram”, ela continua, “Rocky mudou seu último nome para Caggiano. Uma última rejeição do pai que
ele despreza, suponho.” Hesito, encarando-a em meio a sombras profundas. Não quero que ela veja a expressão em meu rosto, que detecte minha sensação de completa ruína. Eu sempre soube que Marino odeia o filho. Cogitei muitas teorias sobre o motivo. Talvez Rocky seja gay ou drogadicto, ou simplesmente um fracassado. Certamente ficou claro que Rocky é uma espécie de anátema para o pai, e agora eu sei. Estou chocada pela ironia amarga, pela vergonha disso tudo. Meu Deus. “Rocky dito Caggiano soube do caso e se apresentou voluntariamente?”, pergunto. “Talvez. Pode ser também que os laços da família Chandonne com o crime organizado o tenham levado ao filho deles, ou talvez Rocky já estivesse ligado a eles. Pode ser uma combinação — ligações pessoais e ligações do próprio Rocky. Mas cheira um pouco a jogar pai e filho no Coliseu. Patricídio diante do mundo, se bem que indiretamente. Marino não necessariamente vai testemunhar no julgamento de Chandonne em Nova York, mas poderia acontecer, dependendo dos desdobramentos do caso.” Sei quais serão os desdobramentos. Está tudo claro para mim. Berger veio a Richmond com toda a intenção de inserir esses casos no de Nova York. Eu não ficarei surpresa se ela conseguir de algum modo incluir também os casos de Paris. “Mas de qualquer forma”, ela diz, “Chandonne sempre parecerá um caso de Marino. Policiais como ele se importam com o que acontece. E o fato de Rocky representar Chandonne me põe numa posição infeliz. Se o caso fosse em Richmond, eu iria ao juiz ex parte e apontaria o óbvio conflito de interesses. Provavelmente ele seria expulso da sala do juiz e advertido. Mas, no mínimo, eu posso conseguir que o juiz ou juíza requisite um advogado que atue em conjunto com o advogado principal na equipe de defesa do acusado, de modo que o filho não interrogue realmente o pai.” Pressiono um botão e outras portas de aço se abrem. “Mas eu criaria uma tempestade de protestos”, ela prossegue. “E talvez o tribunal decidisse em meu favor, ou, no mínimo, eu usaria a situação para obter a simpatia do júri, mostrar como Chandonne e seu advogado são maus.” “Não importa que desdobramentos seu caso tenha em Nova York, Marino não vai ser uma testemunha factual.” Percebo aonde ela quer chegar com aquilo. “Não no assassinato de Susan Pless. Portanto, você não vai ter nenhuma sorte ao tentar se livrar de Rocky.” “Exatamente. Não haverá nenhum conflito. Nada que eu possa fazer a respeito. E Rocky é venenoso.” Nossa conversa continua na baia, onde esperamos no frio por nossos carros. A dureza do concreto à nossa volta parece um símbolo das realidades que enfrentamos agora. A vida tornou-se dura e imperdoável. Não há nada à vista, nem uma saída. Não consigo imaginar como Marino vai se sentir quando descobrir que o próprio monstro que ele ajudou a prender será defendido por seu filho Rocky. “Evidentemente, Marino não sabe”, digo. “Talvez eu tenha sido negligente por ainda não ter contado a ele”, ela responde. “Mas ele já é um transtorno suficiente. Achei que devia esperar para
soltar essa bomba amanhã ou depois de amanhã. Você sabe que ele não gostou nada de eu ter entrevistado Chandonne”, ela acrescenta, com um lampejo de triunfo. “Eu notei.” “Eu tive um caso com Rocky há vários anos.” Ela destranca a porta de seu carro. Inclina-se para dentro para dar a partida e ligar o aquecimento. “Um homem rico em viagem de negócios em Nova York é atacado por um garoto com uma faca.” Ela se ergue e me encara. “O homem luta e consegue derrubar o garoto, bate a cabeça dele na calçada, fazendo-o desmaiar, mas não antes de ele esfaquear o homem no peito. O homem morre. O garoto é hospitalizado por algum tempo, mas se recupera. Rocky tentou transformar o caso em autodefesa, mas felizmente o júri não aceitou.” “Tenho certeza de que isso tornou o senhor Caggiano seu fã pelo resto da vida.” “O que eu não consegui evitar foi que ele representasse o garoto em uma ação civil, pedindo dez milhões por supostos danos emocionais permanentes, bláblá-blá. A família do homem assassinado acabou fazendo um acordo. Por quê? Porque simplesmente não conseguiam mais agüentar aquilo. Havia muita sujeira acontecendo nos bastidores — assédio, coisas estranhas. Eles foram assaltados. Um de seus carros foi roubado. O filhote de terrier deles foi envenenado. E assim por diante, e tudo isso, estou convencida, foi orquestrado por Rocky Marino Caggiano. Mas eu nunca consegui provar.” Ela entra em sua perua Mercedes. “O modus operandi dele é muito simples. Ele esconde tudo que consegue e põe todos em julgamento, exceto o acusado. E é também um péssimo perdedor.” Lembro-me de Marino me contar uma vez, anos atrás, que queria que Rocky morresse. “Então talvez isso seja parte da motivação dele?”, pergunto. “Vingança. Não apenas pegar o pai, mas pegar você? E fazer isso com toda a publicidade.” “Pode ser”, Berger me diz da cabine alta de sua perua. “Seja qual for o motivo dele, quero que você saiba que planejo protestar de qualquer maneira. Nem posso lhe dizer se vai funcionar, já que isso realmente não constitui uma violação ética. Cabe ao juiz.” Ela passa o cinto de segurança sobre o peito. “Como você vai passar a véspera de Natal, Kay?” Então agora sou Kay. Tenho de pensar um minuto. A véspera do Natal é amanhã. “Preciso dar continuidade a uns casos, aqueles com as queimaduras”, respondo. Ela assente com a cabeça. “É importante voltarmos às cenas dos crimes de Chandonne enquanto elas ainda existem.” Inclusive minha casa, penso. “Você poderia me encontrar amanhã à tarde?”, ela pergunta. “Qualquer tempo que você puder me conceder. Vou trabalhar no feriado. Mas não pretendo estragar o seu.” Tenho de rir da ironia. O feriado. Sim, Feliz Natal. Berger me deu um presente e nem sabe disso. Ela me ajudou a tomar uma decisão, uma decisão importante, talvez a mais importante da minha vida. Vou me demitir, e o governador vai ser o primeiro a saber. “Ligo para você quando acabar no
condado de James City”, digo a ela. “Podemos tentar às duas.” “Eu pego você”, ela diz.
17
São quase dez horas quando saio da rua 9 e entro na Capitol Square, passando pela estátua iluminada de George Washington montado em seu cavalo, e dou a volta no pórtico sul do edifício projetado por Thomas Jefferson, onde uma árvore iluminada de quatro metros de altura, decorada com bolas de vidro, assoma atrás de grossas colunas brancas. Lembro-me de que a festa do governador era informal, e não um jantar, e fico aliviada com os sinais de que seus convidados já saíram. Não encontro nenhum carro nos espaços destinados a legisladores e visitantes. A mansão executiva do começo do século XIX é de estuque amarelo-claro com remates e colunas brancos. Segundo a lenda, ela foi salva por uma brigada antiincêndio quando os habitantes de Richmond queimaram a própria cidade no final da Guerra de Secessão. Na tradição atenuada dos Natais da Virgínia, velas brilham, grinaldas de flores frescas pendem de todas as janelas e ramos de sempre-vivas decoram os portões de ferro pretos. Abaixo o vidro quando um guarda da assembléia estadual anda até meu carro. “Posso ajudá-la?”, ele pergunta com ar de suspeita. “Estou aqui para ver o governador Mitchell.” Já estive algumas vezes na mansão, mas não a esta hora nem num grande utilitário esportivo Lincoln. “Sou a doutora Scarpetta. Estou um pouco atrasada. Se for tarde demais, eu compreendo. Por favor, diga a ele que sinto muito.” O guarda se anima. “Não reconheci a senhora nesse carro. A senhora se livrou de seu Mercedes? Espere aqui só um minuto.” Ele pega o telefone dentro da cabine enquanto olho para a Capitol Square e sou tocada pela ambivalência, depois pela tristeza. Perdi esta cidade. Não posso voltar. Posso culpar Chandonne por isso, mas isso não é tudo, se eu for honesta comigo mesma. É hora de fazer a coisa mais difícil. Mudar. Lucy me encorajou, ou talvez tenha feito eu me ver no que me tornei, que é algo entrincheirado, estático, institucionalizado. Fui a legista-chefe da Virgínia por mais de uma década. Estou beirando os cinqüenta anos. Não gosto de minha única irmã. Minha mãe é uma pessoa difícil e sua saúde não é boa. Lucy está de mudança para Nova York. Benton morreu. Estou sozinha. “Feliz Natal, doutora Scarpetta.” O guarda se inclina para perto de minha janela e abaixa a voz. O nome em seu crachá de latão é Renquist. “Quero que a senhora saiba que eu tenho ódio do que aconteceu, mas estou contente por a senhora ter conseguido pegar aquele filho-da-mãe. A senhora realmente pensou rápido.” “Obrigada, oficial Renquist.” “A senhora não vai mais me ver por aqui depois do primeiro dia do ano”, ele continua. “Eles me transferiram para investigações à paisana.” “Espero que seja bom.” “Oh, sim, senhora.”
“Vamos sentir sua falta.” “Talvez eu a veja em um caso.” Espero que não. Se ele me vir em um caso, isso significará que mais alguém morreu. Ele me faz um aceno firme, guiando-me para os portões. “A senhora pode parar bem em frente.” Mudança. Sim, mudança. De repente, estou cercada por ela. Dentro de treze meses, o governador Mitchell terá ido embora também, e isso é perturbador. Gosto dele. Gosto especialmente de sua esposa, Edith. Na Virgínia, os governadores têm um limite de um mandato, e a cada quatro anos o mundo desmorona. Centenas de empregados são transferidos, demitidos e contratados. Números de telefone são mudados. Computadores são formatados. As descrições de funções não mais se aplicam, mesmo que as funções continuem a existir. Arquivos desaparecem ou são destruídos. Os menus da mansão são refeitos ou rasgados. A única constância é a equipe da própria mansão. Os mesmos presidiários fazem a jardinagem e pequenas tarefas externas, e as mesmas pessoas cozinham e limpam, ou, pelo menos, se forem trocadas, isso não tem nada a ver com política. Aaron, por exemplo, é o mordomo desde quando cheguei à Virgínia. É um afro-americano alto e bonito, e está esbelto e gracioso em um casaco branco longo e imaculado com uma gravata-borboleta preta. “Aaron, como vai?”, pergunto enquanto caminho para o hall de entrada, deslumbrante com sua iluminação de cristal que emite um brilho, candelabro a candelabro, através de arcadas circulares por todo o caminho até os fundos da casa. Entre os dois salões de baile está a árvore de Natal decorada com bolas vermelhas e luzes brancas. Paredes e frisos de gesso foram restaurados recentemente para o cinza-e-branco original e parecem cerâmica Wedgwood. Aaron pega meu casaco. Diz que está bem e contente de me ver, usando poucas palavras, porque é um mestre na arte de ser cortês sem fazer estardalhaço. Bem na entrada, de cada um dos lados, há duas salas de estar com tapetes de Bruxelas e antigüidades formidáveis. O papel de parede na sala dos homens tem uma borda greco-romana. O da sala das mulheres, uma borda floral. A psicologia dessas áreas é simples. Elas permitem que o governador receba convidados sem nunca realmente admiti-los na mansão. As pessoas têm direito a uma audiência na porta da frente e não devem ficar muito tempo. Aaron me guia por essas históricas salas impessoais até uma escada acarpetada em estilo Federal de estrelas pretas contra um fundo vermelho, que leva aos aposentos pessoais da primeira-família. Emerjo em uma área com piso de madeira de abeto e cadeiras e sofás acessíveis, onde Edith Mitchell espera por mim vestida com um terninho de seda vermelha esvoaçante. Ela me abraça e sinto um aroma levemente exótico. “Quando vamos jogar tênis de novo?”, ela pergunta secamente, olhando para meu gesso. “É um esporte implacável se você pára por um ano, está de braço quebrado e voltou a fumar”, digo. Minha referência ao ano passado não lhe escapa. Quem me conhece sabe que depois do assassinato de Benton me escondi num vórtice escuro de movimento frenético e perpétuo. Parei de ver os amigos. Não saí nem recebi as
pessoas. Raramente fiz exercícios. Só fiz trabalhar. Não vi nada que ocorria à minha volta. Não ouvi o que as pessoas me diziam. Não senti. A comida não tinha gosto. Raramente eu percebia como estava o tempo. Nas palavras de Anna, tornei-me privada de sentidos. Durante isso tudo, de algum modo, não cometi erros em meus casos. No máximo, fiquei mais obsessiva com eles. Mas meu absentismo como ser humano foi prejudicial no trabalho. Não fui uma boa administradora e isso começou a aparecer. Certamente, fui uma amiga imprestável para todos que conheço. “Como você está?”, ela pergunta, gentil. “Bem, na medida do possível.” “Por favor, sente-se. Mike está atendendo uma ligação”, Edith me conta. “Imagino que ele não falou o suficiente com as pessoas na festa.” Ela ri e rola os olhos como se estivesse falando de um menino travesso. Edith nunca assumiu realmente o papel de primeira-dama, não na tradição da comunidade da Virgínia, e, embora talvez tenha seus detratores, passou também a ser celebrada como uma mulher forte e moderna. Ela é uma arqueóloga historiadora que não desistiu da carreira quando o marido assumiu o governo e evita eventos oficiais que considera frívolos ou um desperdício de tempo. Mas é a parceira devotada do marido, e criou três filhos, que já estão crescidos ou na faculdade. Perto de completar cinqüenta anos, tem cabelo castanho-escuro, que usa cortado reto, na altura do pescoço, e escovado para trás. Em seus olhos, quase da cor de âmbar, pensamentos e perguntas se revolvem. Ela tem algo em mente. “Eu ia chamar você para conversar na festa. Kay, estou contente de você ter ligado. Obrigada por ter vindo. Você sabe que não é do meu feitio me intrometer em seus casos”, ela continua, “mas tenho de dizer que estou realmente perturbada por um que acabei de ler no jornal — o homem encontrado naquele motel horroroso perto de Jamestown. Mike e eu estamos muito preocupados, bem, obviamente por causa da ligação com Jamestown.” “Não sei de nenhuma ligação com Jamestown.” Estou desnorteada, e meu primeiro pensamento é que surgiu alguma informação que ela conhece e eu não. “Nenhuma ligação com a escavação arqueológica. Não que eu saiba.” “Percepções”, ela diz simplesmente. “No mínimo.” Jamestown é a paixão de Edith Mitchell. Sua profissão a levou ao sítio anos atrás, e então ela se tornou uma defensora dele em sua atual posição política. Desencavou buracos de postes e ossos humanos e procurou incansavelmente atrair o interesse de potenciais financiadores e da mídia. “Eu passo de carro por esse motel quase todas as vezes que vou lá, porque para ir ao centro da cidade é mais perto pegar a rodovia 5 em vez da 64.” Uma sombra passa por seu rosto. “Uma verdadeira pocilga. Não posso dizer que ficaria surpresa se algo de ruim acontecesse lá. Parece o tipo de lugar freqüentado por traficantes de drogas e prostitutas. Você foi à cena?” “Ainda não.” “Quer beber alguma coisa, Kay? Tenho um uísque muito bom que contrabandeei da Irlanda no mês passado. Sei que você gosta de uísque irlandês.” “Só se você for tomar um.”
Ela pega o fone e pede a Aaron que traga a garrafa de Black Bush e três copos. “O que está acontecendo em Jamestown atualmente?” O ar está carregado com uma pátina de fumaça de charuto que desperta minha frustrante fome de cigarros. “Acho que a última vez que estive lá foi há três ou quatro anos”, digo a ela. “Quando encontramos JR”, ela lembra. “Sim.” “Faz tanto tempo assim que você foi lá?” “Mil novecentos e noventa e seis, acho.” “Bem, você deve ir ver o que estamos fazendo. É surpreendente como a área do forte mudou, e os artefatos, centenas de milhares deles, como você provavelmente sabe pelo noticiário. Fizemos estudos isotópicos em alguns dos ossos, que acho que você julgaria interessantes, Kay. JR continua a ser nosso maior mistério. O perfil isotópico dele não era nada coerente com uma dieta de milho ou trigo, então não sabíamos o que concluir disso, exceto que talvez ele não fosse inglês. Portanto, enviamos um de seus dentes para um laboratório na Inglaterra, para um teste de DNA.” JR é a sigla para Jamestown Rediscovery, Redescobrimento de Jamestown. É o prefixo atribuído a todos os remanescentes descobertos na escavação, mas, neste caso, Edith se refere especificamente ao centésimo segundo remanescente, desenterrado na terceira camada, ou camada C, de solo. JR102C é um túmulo. Ele se tornou o túmulo mais celebrado da escavação porque pensa-se que o esqueleto dentro dele seria o de um jovem que chegou a Jamestown com John Smith em maio de 1607 e morreu com um tiro naquele outono. Diante da primeira sugestão de violência contra o ocupante do caixão violado, Edith e o principal arqueólogo me chamaram para ir ao sítio, onde, juntos, tiramos a sujeira de uma bala de mosquete calibre dezesseis de vinte e um tiros, que havia fraturado a tíbia e a girado cento e oitenta graus, de modo que o pé estava apontando para trás. O ferimento teria rasgado, se não rompido, a artéria poplítea atrás do joelho, e JR, como desde então ele se tornou afetuosamente conhecido, teria sangrado rapidamente até morrer. É claro que houve um grande interesse no que foi imediatamente apelidado de o primeiro assassinato na América, uma afirmação muito presunçosa, já que não podemos dizer com certeza que foi um assassinato ou que foi o primeiro, e o Novo Mundo ainda não era exatamente a América. Provamos, a partir de exames forenses, que JR recebeu um tiro de uma arma européia chamada arcabuz e que, com base no espalhamento do tiro, a arma foi disparada de uma distância de aproximadamente cinco metros. Ele não poderia provavelmente ter dado o tiro em si mesmo por acidente. Pode-se deduzir que um dos colonos seus companheiros seria o culpado, o que leva à noção não tão forçada de que o carma da América, tristemente, parece ser nos matarmos uns aos outros. “Tudo passou a ser feito em locais abrigados durante o inverno.” Edith tira o paletó e o coloca nas costas do sofá. “Catalogar artefatos, anotar as descobertas, todas as coisas que não podemos fazer enquanto trabalhamos no sítio. E, é claro, levantamento de fundos. Essa parte horrível da vida que tende a
cair em meu colo cada vez mais hoje em dia. O que me leva ao assunto que quero tratar com você. Recebi uma ligação telefônica muito perturbadora de um de nossos legisladores que leu sobre a morte no motel. Está alvoroçado, o que é uma infelicidade, porque ele vai terminar fazendo exatamente aquilo que disse que não quer, que é chamar a atenção para o caso.” “Alvoroçado a respeito do quê?”, estranho. “Houve poucas informações nos jornais.” A expressão de Edith se endurece. Quem quer que seja o legislador, ela obviamente o acha um inútil. “Ele é da área de Jamestown”, ela me diz. “Parece pensar que o caso talvez seja um crime de ódio, que a vítima era gay.” Há um leve soar de passos na escada acarpetada e Aaron aparece com uma bandeja, uma garrafa e três copos para uísque gravados com o selo do governo estadual. “Nem preciso dizer que uma coisa como essa poderia comprometer seriamente o que estamos fazendo lá.” Ela escolhe as palavras com cuidado enquanto Aaron serve o Black Bush. Uma porta ao lado da área de estar se abre e o governador emerge de seu escritório particular, envolto em uma corrente de fumaça de charuto, com o smoking e a gravata desabotoados. “Kay, me desculpe por fazê-la esperar”, ele diz ao me abraçar. “Tive de apagar uns incêndios. Talvez Edith tenha dado a pista a você.” “Ela estava começando a me contar”, respondo.
18
O governador Mitchell está visivelmente perturbado. Sua esposa se levanta para permitir que conversemos em particular, e eles dois falam rapidamente sobre o chamado que precisa ser feito para uma de suas filhas, então Edith me dá boa-noite e sai. O governador acende outro charuto. É um homem vigoroso, de boa aparência, com um corpo forte de ex-jogador de futebol e o cabelo branco como areia do Caribe. “Eu ia tentar falar com você amanhã, mas não sabia se você ia viajar no feriado”, ele começa. “Obrigado por vir.” O uísque aquece minha garganta a cada gole enquanto iniciamos uma conversa polida sobre os planos para o Natal e como estão indo as coisas no Instituto de Ciência e Medicina Forense da Virgínia. Cada vez que respiro, penso no detetive Stanfield. Aquele tonto. Ele obviamente divulgou informações sensíveis sobre o caso, e justamente para um maldito político, seu cunhado, o deputado Dinwiddie. O governador é um homem astuto. E o mais importante, ele começou sua carreira como promotor. Sabe como estou furiosa e por quê. “O deputado Dinwiddie tem tendência a cutucar casa de marimbondo”, o governador confirma quem é o criador de caso. Dinwiddie é um chato militante que nunca deixa o mundo esquecer que sua linhagem pode ser remontada, embora de forma muito indireta, ao chefe Powhatan, o pai de Pocahontas. “O detetive errou em contar qualquer coisa a Dinwiddie”, respondo. “E Dinwiddie errou em contar a vocês ou a qualquer outra pessoa. Esse é um caso criminal. Não tem nada a ver com o aniversário de quatrocentos anos de Jamestown. Nem com turismo ou política. Trata-se de um homem que foi muito provavelmente torturado e queimado em um quarto de motel.” “Nenhuma dúvida sobre isso”, responde Mitchell. “Mas há certas realidades que temos de considerar. Um crime de ódio que possa de qualquer forma parecer ligado a Jamestown seria catastrófico.” “Não sei de nenhuma ligação com Jamestown, além do fato de que a vítima se registrou em um motel da área de Jamestown que oferece um pacote especial chamado mil seiscentos e sete.” Estou ficando exasperada. “Com toda a publicidade que Jamestown já conseguiu, só essa informação é suficiente para atiçar as antenas da mídia.” Ele rola o charuto nos dedos e lentamente o leva aos lábios. “Projeta-se que a celebração de 2007 poderia acabar gerando um bilhão de dólares de receita para o estado. É nossa feira mundial, Kay. No ano que vem Jamestown vai ser comemorada em uma moeda, um quarto de dólar. Equipes de notícias têm ido às pencas para o local da escavação.” Ele se levanta para atiçar o fogo e sou levada de volta no tempo a seu antigo terno amarrotado e suas maneiras despojadas, a seu escritório abarrotado, atulhado de arquivos e livros no District Courts Building. Tivemos muitos casos juntos, alguns deles os marcos mais dolorosos de minha história, aqueles tipos de crimes cruéis, aleatórios, cujas vítimas ainda assombram minha mente: a
entregadora de jornais abduzida de sua rota, estuprada e deixada a morrer lentamente; a velha que recebeu um tiro gratuito enquanto estendia roupas no varal; as múltiplas pessoas mortas pelos irmãos Briley.* Mitchell e eu ficávamos angustiados com tantos atos de violência, e eu senti sua falta quando ele assumiu um cargo mais alto. O sucesso separa os amigos. A política, especialmente, é ruinosa para os relacionamentos, porque a própria natureza da política é recriar a pessoa. O Mike Mitchell que conheci foi substituído por um estadista que aprendeu a processar suas crenças impetuosas por meio de sub-rotinas seguras e meticulosamente calculadas. Ele tem um plano. Tem um plano para mim. “Tanto quanto você, não gosto de ver a mídia alimentando o frenesi”, digo a ele. Ele recoloca o atiçador no suporte de latão e fuma de costas para a lareira, seu rosto congestionado pelo calor. A madeira estala e chia. “O que podemos fazer com relação a isso, Kay?” “Diga a Dinwiddie para manter a boca fechada.” “O Senhor Manchete?” Ele dá um sorriso torto. “Que foi muito enfático ao observar que há quem pense que Jamestown foi palco do crime de ódio original — contra os nativos americanos?” “Bem, acho que também é muito odioso matar, escalpelar e deixar as pessoas sem comer até morrerem. Parece que sempre houve muito ódio desde o começo dos tempos. Não seria eu quem iria usar o termo ‘crime de ódio’, governador. Não está em nenhum formulário que eu preencha, em nenhum quadradinho que eu tique numa certidão de óbito. Como o senhor sabe muito bem, quem usa esse rótulo é a promotoria, ou os investigadores, não a legista.” “E qual é sua opinião?” Conto a ele sobre o segundo corpo encontrado em Richmond no final da tarde. Preocupa-me que as mortes estejam relacionadas. “Com base em quê?” Seu charuto queima em um cinzeiro. Ele esfrega o rosto e massageia as têmporas como se estivesse com dor de cabeça. “Eles devem ter sido amarrados”, respondo. “E há queimaduras.” “Queimaduras? Mas o primeiro cara estava num incêndio. Por que o segundo tem queimaduras?” “Suspeito de tortura.” “Gay?” “Nenhuma evidência disso na segunda vítima. Mas não podemos descartar.” “Sabemos quem ele é ou se é daqui?” “Por enquanto não. Nenhuma das vítimas tem objetos pessoais.” “O que sugere que alguém que está envolvido não quer que sejam identificados. Ou roubo. Ou as duas coisas.” “Possivelmente.” “Me conte mais sobre as queimaduras”, diz o governador. Descrevo-as. Menciono o caso que Berger teve em Nova York, e as ansiedades do governador se tornam mais palpáveis. A irritação aparece em seu rosto. “Esse tipo de especulação não pode sair desta sala”, ele diz. “A última coisa de que precisamos é mais uma ligação com Nova York . Só faltava essa!”
“Não há nenhuma evidência de uma ligação, a menos que alguém simplesmente tenha tirado a idéia do noticiário”, respondo. “Aliás, não posso dizer com certeza que uma pistola de ar quente foi usada nos casos aqui.” “Você não acha um pouco estranho que os assassinatos de Chandonne tenham uma ligação com Nova York? Então o julgamento é mudado para lá. Agora, de repente, temos dois assassinatos aqui que são semelhantes a outro em Nova York?” “E, é estranho. Governador, o que posso dizer com certeza é que não tenho nenhuma intenção de tornar os relatórios de autópsia um elemento importante para alimentar as agendas políticas de outras pessoas. Vou, como sempre, me ater aos fatos e evitar especular. Sugiro que pensemos em termos de administrar e não de suprimir.” “Droga. Vai ser um inferno”, ele murmura em meio a uma nuvem de fumaça. “Espero que não”, digo a ele. “E seu caso? O lobisomem francês, como algumas pessoas o estão chamando?” Mitchell finalmente chega a isso. “O que tudo isso vai fazer com você, humm?” Ele se senta outra vez e me lança um de seus olhares mais sérios. Bebo meu uísque, imaginando como contar a ele. Não há realmente nenhuma maneira graciosa de dizer. “O que vai fazer comigo?” Sorrio pesarosamente. “Deve ser horrível. Estou contente de você ter apanhado o filho-da-mãe.” Lágrimas brilham em seus olhos, e ele logo desvia o olhar. Mitchell é outra vez o promotor. Estamos à vontade. Somos velhos colegas, velhos amigos. Fico tocada, muito tocada, e ao mesmo tempo deprimida. O passado é passado. E Mitchell é o governador. Provavelmente vai para Washington. Eu sou a legista-chefe da Virgínia e ele é meu chefe. Estou prestes a contar a ele que tenho de renunciar a meu cargo de chefe. “Não acho que seja do meu interesse nem do interesse do governo que eu continue a ocupar meu cargo.” Pronto. Falei. Ele apenas me olha. “Vou apresentar isso mais formalmente, é claro, por escrito. Mas já tomei a decisão. Vou me demitir no dia 1o de janeiro. Claro que vou ficar enquanto o senhor precisar de mim, enquanto procura meu substituto.” Me pergunto se ele estava esperando por isso. Talvez esteja aliviado. Talvez esteja irritado. “Você não é covarde, Kay”, diz ele. “Isso é uma coisa que você nunca foi. Não deixe que idiotas a intimidem, droga.” “Não estou renunciando a minha profissão. Apenas mudando os limites. Ninguém está me intimidando.” “Ah, sim, limites”, observa o governador, recostando-se nas almofadas e me estudando. “Dá a impressão de que você vai começar a trabalhar para quem pagar mais.” “Por favor.” Nós dois temos a mesma aversão por especialistas cuja escolha de que lado representar se baseia em dinheiro, não em justiça. “Você sabe o que eu quero dizer.” Ele reacende seu charuto e olha para o vazio, já maquinando um novo plano. Posso ver sua mente funcionando.
“Vou trabalhar como contratada”, digo. “Mas nunca vou me vender. Na verdade, a primeira coisa que tenho a fazer não vai me render um tostão, Mike. O caso de Nova York . Tenho de ajudar e vai tomar boa parte do meu tempo.” “Tudo bem. Então é simples. Você vai trabalhar como contratada, Kay, e o governo estadual vai ser seu primeiro cliente. Vamos contratá-la como chefe interina até que haja uma melhor solução para a Virgínia. Espero que seus preços sejam razoáveis”, ele brinca. Isso não é absolutamente o que eu esperava ouvir. “Você parece surpresa”, ele observa. “E estou.” “Por quê?” “Talvez Buford Righter possa explicar”, começo a dizer, e minha indignação cresce de novo. “Temos duas mulheres assassinadas de forma horrenda nesta cidade e, não importa o motivo, não acho que seja certo que o assassino delas esteja agora em Nova York. Não posso evitar, Mike. Sinto que a culpa é minha. Sinto que comprometi os casos aqui porque Chandonne veio atrás de mim. Tenho a sensação de que me tornei um fardo.” “Ah, Buford”, Mitchell comenta num tom afável. “Bem, ele é um cara bastante bom, mas um promotor estadual repugnante, Kay. E não acho que deixar Nova York ficar com Chandonne seja uma idéia assim tão ruim, à luz das circunstâncias.” Suas palavras têm o peso de muitas considerações, e suspeito que o modo como os europeus reagiriam se a Virgínia executasse um francês não é a menor delas, e a Virgínia é conhecida pelo número de pessoas que condena à morte todos os anos. Faço autópsias de cada uma delas. Conheço muito bem as estatísticas. “Até eu ficaria um pouco confuso sobre como lidar com esse caso”, Mitchell acrescenta com uma pausa pensada. Tenho a sensação de que o céu está prestes a cair. Os segredos crepitam como eletricidade estática, mas não há sentido em tentar sondá-los. O governador Mitchell não será persuadido a fornecer nenhuma informação que não esteja disposto a dar. “Tente não tomar tudo isso como algo pessoal, Kay”, ele aconselha. “Eu apóio você. E vou continuar a fazê-lo. Trabalhei com você muito tempo e a conheço.” “Todos dizem para eu não tomar isso como coisa pessoal.” Sorrio um pouco. A sensação agourenta se reforça. Ele diz que vai continuar a me apoiar, como se estivesse sugerindo que há razões pelas quais não deveria fazê-lo. “Edith, meus filhos, minha equipe, todos me dizem a mesma coisa”, diz ele. “E eu ainda tomo as coisas pessoalmente. Apenas não deixo transparecer que faço isso.” “Então você não teve nada a ver com Berger — com essa notável mudança de foro, por assim dizer?”, tenho de perguntar. Ele afina a ponta da cinza, rolando lentamente o charuto, soltando baforadas, ganhando tempo. Ele teve algo a ver com isso. Teve tudo a ver com isso, estou convencida. “Ela é realmente boa, Kay.” Sua não-resposta é uma resposta. Aceito isso. Resisto a forçar a sondar. Apenas pergunto como exatamente ele a conheceu.
“Bem, você sabe que nós dois cursamos direito na Universidade da Virgínia”, diz ele. “Então, quando eu era secretário de Justiça, tive um caso. Você deve se lembrar, pois teve a ver com seu departamento. A socialite de Nova York que fez um enorme seguro de vida para o marido um mês antes de o assassinar em um hotel em Fairfax. Ela tentou apresentar a coisa como um suicídio a bala.” Eu me lembro muito bem. Depois ela moveu contra mim e ao meu escritório uma ação, acusando-nos de desonestidade, entre outras coisas, por supostamente fazer um conluio com a seguradora para falsificar registros de forma que nenhuma indenização lhe fosse paga. “Berger se envolveu porque acabou vindo à tona que o primeiro marido da mulher havia morrido em circunstâncias suspeitas em Nova York alguns anos antes”, diz Mitchell. “Parece que ele era um homem mais velho, com a saúde debilitada, e se afogou na banheira apenas um mês antes de a esposa fazer um enorme seguro de vida. O legista encontrou escoriações que poderiam indicar uma luta, e manteve o caso em suspenso por muito tempo, esperando que a investigação trouxesse algo conclusivo. Mas não trouxe. O gabinete do promotor distrital simplesmente não conseguiu provar o caso. Então a mulher também processa a legista de lá. Por calúnia, coação emocional, absurdos desse tipo. Eu tive inúmeras conversas com o pessoal de lá, principalmente o promotor distrital, mas também com Jaime. Comparando anotações.” “Suponho que os federais podem tentar fazer Chandonne se entusiasmar e denunciar sua família criminosa. Vamos fazer um trato”, digo. “E depois?” “Acho que você pode apostar nisso”, Mitchell replica solenemente. “Então é isso.” Agora sei. “Ele tem a garantia de não pegar a pena de morte? É esse o trato.” “Morgenthau não é conhecido por condenar as pessoas à morte”, diz ele. “Mas eu sou. Eu sou um macaco velho durão.” O governador acabou de me dar pistas sobre as negociações que ocorreram. Os federais trabalham com Chandonne. Em troca, Chandonne é julgado em Nova York, onde tem a garantia de que não receberá a pena de morte. Não importa o que aconteça, o governador Mitchell não parece mal. Não é mais problema dele. Não é mais problema da Virgínia. Não vamos provocar um incidente internacional enfiando uma agulha no braço de Chandonne. “É uma pena”, resumo. “Não que eu acredite em pena capital, Mike, mas é uma pena que a política tenha entrado nisso. Acabo de ouvir várias horas gravadas de mentiras de Chandonne. Ele não vai ajudar ninguém a pegar sua família. Nunca. E posso dizer mais uma coisa, se ele terminar em Kirby ou em Bellevue, vai conseguir um jeito de sair de lá. Vai matar de novo. Então, por um lado, estou contente de que haja uma excelente promotora no caso, e não Righter. Righter é um covarde. Mas, por outro lado, sinto que tenhamos perdido o controle sobre Chandonne.” Mitchell se inclina para a frente e apóia as mãos nos joelhos, uma posição que indica que nossa conversa terminou. Ele não vai discutir mais a questão comigo, e isso também diz muito. “Foi bom você ter vindo, Kay”, diz ele. E sustenta meu olhar. Essa é sua maneira de dizer “Não faça perguntas”.
(*) Os irmãos Linwood e James Briley foram executados na Virgínia em outubro de 1984 e abril de 1985, respectivamente. Linwood assassinou um discjóquei em 1979 durante uma bebedeira. Na mesma ocasião, James estuprou e matou uma mulher grávida de oito meses e o filho dela, de cinco anos. Em 1984, os irmãos Briley lideraram uma fuga de cinco prisioneiros condenados à morte, a maior da história dos Estados Unidos, mas foram recapturados dezenove dias depois. (N. T.)
19
Aaron me conduz de volta à escada e me dá um leve sorriso quando abre a porta da frente. O guarda acena para mim quando me dirijo para os portões. Tenho a sensação de fechamento, de finalidade, enquanto sigo para a Capitol Square, a mansão desaparecendo em meu retrovisor. Deixei alguma coisa. Acabo de sair de minha vida tal como a conheci até hoje, e descobri uma ruga de desconfiança em relação a um homem que sempre admirei tanto. Não, não acho que Mitchell tenha feito nada errado. Mas sei que ele não esteve francamente comigo, não por inteiro. Ele é diretamente responsável por Chandonne ter saído de nossa jurisdição, e a razão é política, não de justiça. Sinto isso. Estou certa disso. Mike Mitchell não é mais o promotor. É o governador. Por que eu deveria me surpreender? Que diabo eu esperava? O centro da cidade parece hostil e estranho enquanto sigo pela rua 8 para pegar a via expressa. Observo os rostos de pessoas que passam dirigindo por mim e fico maravilhada com o fato de que virtualmente nenhuma delas está presente no momento que ocupam. Elas dirigem e olham no espelho, pegam alguma coisa no assento ou mexem no rádio, ou falam ao telefone ou com seus passageiros. Não percebem a estranha que as observa. Vejo rostos com tanta clareza que sou capaz de determinar se eles são belos ou atraentes, se têm cicatrizes de acne ou dentes bons. Percebo que há pelo menos uma grande diferença entre assassinos e suas vítimas: os assassinos estão presentes. Eles vivem o momento por inteiro, observando seu entorno, intensamente conscientes de cada detalhe e de como ele pode beneficiá-los ou comprometê-los. Observam os estranhos. Fixam-se em um rosto e decidem seguir a pessoa até em casa. Imagino se é assim que os dois jovens, meus últimos pacientes, foram escolhidos. Me pergunto com que tipo de predador estou lidando aqui. Me pergunto qual é a verdadeira agenda do governador, para esperar para falar comigo esta noite, e por que ele e a primeira-dama perguntaram sobre o caso do condado de James City. Alguma coisa está acontecendo. Alguma coisa ruim. Ligo para o telefone da minha casa e há sete mensagens. Três são de Lucy. Ela não me diz o que quer, só que está me procurando. Tento falar com ela no celular, e quando ela responde sinto a tensão. Sinto que não está sozinha. “Está tudo bem?”, pergunto. Ela hesita. “Tia Kay, eu gostaria de levar Teun comigo.” “Teun está em Richmond?”, digo, surpresa. “Podemos estar na casa de Anna em uns quinze minutos”, diz Lucy. Os sinais chegam rápidos e fortes. Não posso identificar o que é que está batendo em meu subconsciente, tentando me fazer reconhecer uma verdade muito importante. Qual é ela, droga? Minha perturbação é tanta que estou sobressaltada e confusa. Um motorista atrás de mim toca a buzina e meu coração salta. Arfo. Percebo que o farol abriu. A lua está incompleta e encoberta por nuvens, o rio James é uma planície de escuridão embaixo da ponte Huguenot
quando passo em direção ao sul da cidade. Estaciono diante casa de Anna, atrás da Suburban de Lucy, e instantaneamente a porta da frente da casa se abre. Parece que Lucy e Teun acabaram de chegar. Elas e Anna estão no vestíbulo, sob o candelabro de cristal cintilante. Os olhos de McGovern encontram os meus e ela sorri de forma tranqüilizadora, como se para me fazer saber que eu ficarei bem. Ela cortou o cabelo curto e ainda é uma mulher muito atraente, esbelta e com jeito de garota numa legging preta e um casaco de couro comprido. Nós nos abraçamos, e me lembro de que ela é firme e controlada mas gentil. Estou contente, imensamente contente, de vê-la. “Entrem, entrem”, diz Anna. “Feliz Natal, quase. Não é engraçado?” Mas sua expressão é tudo menos engraçada. Seu rosto está carregado, os olhos cansados de preocupação e fadiga. Ela me pega olhando-a e tenta sorrir. Vamos todas para a cozinha ao mesmo tempo. Anna está perguntando sobre bebidas e salgadinhos. Todas comeram? Lucy e Teun querem passar a noite aqui? Ninguém deve ficar em um hotel na noite de Natal — isso seria um crime. Ela fala sem parar, e suas mãos estão trêmulas quando pega garrafas em um armário, enfileirando uísques e outras bebidas. Agora os sinais estão chegando tão rápido que mal ouço o que qualquer uma delas está dizendo. Então o momento de reconhecimento explode em minha psique. Eu o capto. A verdade me perpassa em uma corrente sacolejante enquanto Anna me serve um scotch. Eu disse a Berger que não tenho nenhum segredo profundo, obscuro. O que quis dizer é que sempre fui reservada. Não conto às pessoas nada que possa ser usado contra mim. Sou cuidadosa por natureza. Mas ultimamente tenho conversado com Anna. Passei horas explorando os recantos mais profundos de minha vida. Contei a ela coisas que nem sei ao certo se já sabia, e nunca paguei por essas sessões. Elas não estão protegidas pela confidencialidade que há entre médico e paciente. Rocky Caggiano poderia intimar Anna a depor, e quando olho para ela agora suponho que foi isso que ocorreu. Pego o copo de scotch dela, nossos olhares fixos uma na outra. “Aconteceu alguma coisa”, digo. Ela desvia o olhar. Imagino o cenário. Berger vai invalidar a intimação. É ridículo. Caggiano está me assediando, tentando me intimidar, pura e simplesmente, e isso não vai funcionar. Dane-se ele. Tenho tudo imaginado e resolvido, rápido assim, porque sou uma profissional em evitar qualquer verdade que impacte diretamente meu íntimo, meu bem-estar, meus sentimentos. “Me conte, Anna”, digo. O silêncio enche a cozinha. Lucy e McGovern pararam de falar. Lucy se aproxima e me abraça. “Nós estamos aqui para apoiá-la”, diz ela. “Pode apostar.” McGovern faz para mim um sinal de positivo. Seus esforços para me tranqüilizar deixam no ar uma onda de presságio enquanto elas desaparecem na sala de estar. Anna olha para mim, e é a primeira vez que vejo pelo menos uma sugestão de lágrimas em minha estóica amiga austríaca. “Fiz uma coisa terrível, Kay.” Ela pigarreia e, com o semblante inexpressivo, enche outro copo com gelo da geladeira. Deixa cair um cubo de gelo no chão e ele escorrega até atrás da lata de lixo. “Um auxiliar do xerife. Não pude acreditar quando a campainha de meu portão tocou hoje de manhã. E
lá está um auxiliar com uma intimação. Fazer isso comigo em casa é muito ruim. Sempre recebo intimações em meu consultório. Isso não é incomum, sou chamada como especialista para testemunhar de vez em quando, como você sabe. Não posso acreditar que ele fez isso comigo. Eu confiei nele.” Dúvida. A negação me estremece. O primeiro sopro de medo atinge meu sistema nervoso central. “Quem fez isso com você?”, digo. “Rocky?” “Quem?” Ela parece desconcertada. “Ah, meu Deus”, murmuro. “Ah, meu Deus.” Apóio-me no balcão. Isso não tem nada a ver com Chandonne. Não pode ser. Se Caggiano não intimou Anna, só há uma outra possibilidade, e não é Berger. Claro, a promotoria não teria nenhuma razão para falar com Anna. Penso no estranho telefonema de meu banco, na mensagem da AT&T, no comportamento de Righter e no olhar em seu rosto quando ele me viu na caminhonete de Marino no sábado à noite. Repasso a repentina necessidade do governador de me ver, seu jeito evasivo, até o humor azedo de Marino e o modo como ele tem me evitado, e considero mais uma vez a repentina perda de cabelo de Jack e seus temores de assumir a chefia. Tudo se encaixa e forma uma composição inacreditável. Estou com problemas. Querido Deus, estou com problemas sérios. Minhas mãos começam a tremer. Anna está divagando, gaguejando, tropeçando nas palavras como se tivesse recorrido involuntariamente à língua que aprendeu primeiro na vida, que não é inglês. Ela luta. Confirma o que agora sou forçada a suspeitar. Anna foi intimada por um grande júri especial. Um grande júri especial de Richmond está me investigando para ver se há evidências suficientes para me indiciar pelo assassinato de Diane Bray. Anna foi usada, ela diz. Montaram uma cilada para ela. “Quem montou a cilada? Righter? Buford está por trás disso?”, pergunto. Anna confirma com a cabeça. “Nunca vou perdoá-lo. Eu disse a ele”, ela jura. Vamos para a sala de estar, onde pego um telefone sem fio em um elegante suporte de teixo. “Você sabe que não precisa me contar tudo isso, Anna.” Tento o número da casa de Marino. Estou determinada a me manter notavelmente calma. “Tenho certeza de que Buford não ia gostar disso. Então talvez você não deva falar comigo.” “Eu não me importo com o que devo ou não contar. No momento em que recebi a intimação, Buford me ligou e explicou o que precisava de mim. Chamei Lucy imediatamente.” Anna continua a falar num inglês quebrado enquanto olha com uma expressão vazia para McGovern. Parece ocorrer a Anna que ela não tem a menor idéia de quem é McGovern ou de por que ela está em sua casa. “A que hora o auxiliar apareceu em sua casa com a intimação?”, pergunto a ela. O telefone de Marino cai direto no correio de voz. “Droga”, murmuro. Ele está ao telefone. Deixo uma mensagem pedindo que ligue para mim. É urgente. “Mais ou menos às dez da manhã de hoje”, responde Anna. “Interessante”, digo. “Mais ou menos na mesma hora em que Chandonne foi transferido para Nova York. E depois do serviço em memória de Bray, quando encontrei Berger pela primeira vez.” “Em sua mente, como tudo isso se liga?” McGovern está ouvindo
atentamente, com os olhos astutos e experientes cravados em mim. Ela foi uma das investigadoras de incêndios certificadas mais talentosas do ATF, antes de ser promovida à supervisão pelas mesmas pessoas que acabariam levando-a a se demitir. “Não sei ao certo”, respondo. “A não ser que Berger estava interessada em ver quem apareceria no serviço em memória de Bray. Agora estou me perguntando se ela queria ver se eu iria, e se isso pode indicar que ela sabe que estou sendo investigada e está me checando por conta própria.” O telefone de Anna toca. “Residência Zenner”, respondo. “O que está acontecendo?”, Marino diz em voz alta, acima do som da televisão. “Estou só começando a ter idéia”, respondo. Ele percebe instantaneamente pelo meu tom que não deve fazer perguntas, mas pegar sua caminhonete e vir para cá agora mesmo. Chegou a hora da verdade. Chega de jogos e segredos, digo a ele. Esperamos por ele em frente à lareira na sala de estar de Anna, onde há uma árvore coberta de lâmpadas brancas e festões e decorada com animais de vidro e frutas de madeira, cheia de presentes embaixo. Repasso em silêncio cada palavra que disse a Anna, tentando me lembrar do que ela certamente se lembrará quando Righter lhe perguntar, sob juramento, a meu respeito diante de jurados, também sob juramento, que vão decidir se devo ser julgada por assassinato. Meu coração é agarrado por dedos frios de medo bruto, mas pareço razoável quando falo. Por fora estou tranqüila quando Anna entra em detalhes sobre como caiu na cilada. Começou quando Righter entrou em contato com ela na terça-feira, 14 de dezembro. Ela gasta uns bons quinze minutos explicando que Righter ligou como amigo, um amigo preocupado. As pessoas estavam falando a meu respeito. Ele tinha ouvido coisas que achava que devia verificar, e sabia que eu e Anna éramos próximas. “Isso não está fazendo nenhum sentido”, diz Lucy. “Diane Bray não tinha nem sido assassinada ainda. Por que Righter estava falando com Anna tão cedo?” “Não consigo entender”, concorda Teun. “Alguma coisa realmente fede nisso.” Ela e Lucy estão sentadas no chão diante da lareira. Estou em minha cadeira de balanço usual, e Anna, no divã, sentada bem ereta. “Quando Righter ligou no dia 14, o que exatamente ele disse a você?”, pergunto a Anna. “Como ele iniciou a conversa?” Ela me olha nos olhos. “Havia preocupação com sua saúde mental. Essa foi a primeira coisa que ele disse.” Simplesmente concordo com a cabeça. Não estou ofendida. Embora seja verdade que oscilei muito depois que Benton foi assassinado, nunca estive mentalmente doente. Estou segura de minha sanidade e de minha capacidade de raciocinar e pensar. Só sou culpada de ter fugido da dor. “Sei que não lidei bem com a morte de Benton”, admito. “Como é que alguém consegue lidar bem com uma coisa dessas?”, diz Lucy. “Não, não. Não era isso que Buford queria dizer”, diz Anna. “Ele não
estava ligando por causa do modo como você administrava a dor, Kay. Estava ligando por causa de Diane Bray, de seu relacionamento com ela.” “Que relacionamento?” No mesmo instante me pergunto se Bray ligou para Righter — mais uma armadilha que ela montou para mim. “Eu mal a conhecia.” Os olhos de Anna estão fixos nos meus, a sombra do fogo oscilando em seu rosto. Fico de novo surpresa ao ver como ela parece velha, como se tivesse envelhecido dez anos em um dia. “Você tinha tido uma série de confrontos com ela. Você me contou isso”, ela replica. “Instigada por ela”, respondo no ato. “Nós não tínhamos um relacionamento pessoal. Nem sequer um relacionamento social.” “Acho que, quando você entra em guerra contra alguém, isso é pessoal. Mesmo pessoas que se odeiam têm um relacionamento pessoal, acho que você entende o que estou dizendo. Certamente, ela havia se tornado muito pessoal em relação a você, Kay. Lançando boatos. Mentindo a seu respeito. Criando uma coluna médica fictícia na internet como se fosse você que a escrevesse, fazendoa de boba e pondo você em dificuldade com o secretário de Segurança Pública e até com o governador.” “Acabo de falar com o governador. Não acho que esteja tendo nenhuma dificuldade com ele.” Digo isso e ao mesmo tempo acho curioso. Se Mitchell sabe que estou sendo investigada por um grande júri especial, e sei que deve saber, então por que ele não aceitou minha demissão e deu graças a Deus por se livrar de mim e da minha vida confusa? “Ela também pôs em risco a carreira de Marino porque ele é seu auxiliar”, continua Anna. O único pensamento que me ocorre é que Marino não gostaria nada de ser chamado de meu auxiliar. Como numa resposta à deixa, o interfone toca, anunciando que ele está no portão da frente. “Sabotando sua carreira, em outras palavras.” Anna se levanta. “Não está correto? Não foi isso que você me contou?” Ela pressiona um botão num console na parede, de repente energizada. A raiva expulsa sua depressão. “Sim? Quem é?”, diz com aspereza ao microfone. “Eu, meu bem.” Os sons rudes de Marino e de sua caminhonete enchem a sala. “Oh, se ele me chamar de meu bem outra vez eu vou matá-lo.” Anna ergue as mãos no ar. Vai até a porta, e então Marino entra na sala. Ele saiu de casa tão depressa que não se preocupou em pegar um casaco, usa só um agasalho de ginástica cinza e tênis. Fica embasbacado quando vê McGovern sentada ao pé da lareira, olhando para ele de sua posição indígena no chão. “Macacos me mordam!”, diz Marino. “Quem é vivo sempre aparece.” “Também acho muito bom ver você, Marino”, replica McGovern. “Alguém quer me contar que diabo está acontecendo?” Ele puxa uma poltrona para mais perto da lareira e se senta, olhando de um rosto para outro, tentando ler a situação, fingindo-se de tonto, como se já não soubesse. Acredito que ele sabe. Ah, sim, agora está claro por que ele tem agido de forma tão
estranha. Entramos no assunto. Anna continua a revelar o que aconteceu nos dias anteriores à chegada de Jaime Berger a Richmond. Berger continua a dominar, como se estivesse sentada aqui conosco. Não confio nela. E ao mesmo tempo sinto que minha vida pode muito bem estar nas mãos dela. Tento me lembrar de onde eu estava no dia 14 de dezembro, retrocedendo a partir de hoje, 23 de dezembro, até parar naquela terça-feira. Eu estava em Lyon, na França, no quartel-general da Interpol, onde me encontrei com Jay Talley pela primeira vez. Repasso aquele encontro, visualizando nós dois sozinhos em uma mesa na lanchonete da Interpol. Marinho teve uma antipatia instantânea por Jay e se retirou. Durante o almoço, contei a Jay sobre Diane Bray, sobre meus problemas com ela, e que ela estava fazendo tudo que podia para perseguir Marino, inclusive transferi-lo para o turno da noite. Como é que Jay a chamou? Lixo atômico de roupa justa. Aparentemente, eles tiveram umas rixas quando ela estava na polícia de Washington e ele foi alocado por um curto período no quartel-general do ATF. Ele parecia saber tudo sobre ela. Não pode ser coincidência que, no mesmo dia em que falei sobre ela com ele, Righter tenha ligado para Anna, perguntado-lhe sobre meu relacionamento com Bray e feito insinuações sobre minha saúde mental. “Eu não ia contar isso a você”, Anna continua, com a voz tensa. “Eu não devia contar isso a você, mas agora que evidentemente vou ser usada contra você...” “O que você quer dizer com usada contra ela ?”, Marino se intromete. “Originalmente eu esperava guiar você, ajudar a mitigar essas alegações sobre sua saúde mental”, Anna me diz. “Não acredito nisso. E se tivesse alguma dúvida, e talvez houvesse apenas uma leve dúvida, era porque eu não a vira por tanto tempo, então queria falar com você de qualquer forma, por preocupação. Você é minha amiga. Buford me garantiu que nada que eu pudesse descobrir era algo que ele planejasse usar. Nossas conversas deveriam permanecer privadas, a dele e a minha. Ele não disse nada, absolutamente nada, sobre acusar você.” “Righter?”, Marino franze o cenho. “Ele pediu a você para ser algum tipo de delatora?” Anna balança a cabeça. “Uma guia”, ela usa de novo essa palavra. “As porras daquelas pessoas. Aquele fracassado”, a raiva de Marino extravasa. “Ele precisava saber se Kay estava mentalmente perturbada. Certamente vocês podem entender por que ele precisava saber, se ela ia ser a principal testemunha dele. Sempre pensei que isso tinha a ver com você ser uma testemunha importante, não uma suspeita!” “Suspeita o cacete!”, Marino interrompe. Agora ele não finge nada. Sabe exatamente o que está acontecendo. “Marino, sei que você não devia me contar que estou sendo investigada por um grande júri especial pelo assassinato de Diane Bray”, digo a ele, calma. “Mas só por curiosidade, estou me perguntando, há quanto tempo você sabe? Por exemplo, quando você me tirou de casa no sábado à noite, já sabia, não sabia?
Foi por isso que você me observou como um falcão dentro da minha própria casa. Para que eu não fizesse algo indevido como jogar fora evidências, ou sabe Deus o quê? Foi por isso que você não me deixou dirigir meu carro, certo? Porque vocês precisam ver se há alguma evidência nele, talvez o sangue de Diane Bray? Fibras? Cabelo? Ou algo que me colocaria na casa dela na noite em que ela foi morta?” Meu tom é calmo, mas contundente. “Puta que pariu!”, Marino entra em erupção. “Eu sei que você não fez nada. Righter é um grande escroto, e eu disse isso a ele. Disse a ele todos os dias. O que você fez com ele, hem? Quer me contar por que diabo ele está fazendo isso com você?” “Quer saber de uma coisa?” Olho com dureza para ele. “Não vou ouvir mais uma vez que é tudo minha culpa. Não fiz nada com ele. Não sei o que o deixou nessa ridícula excitação, a menos que Jay esteja plantando coisas.” “Imagino que isso também não é sua culpa. Dormir com ele.” “Ele não está fazendo isso porque dormi com ele”, disparo de volta. “Se ele está fazendo alguma coisa, é porque eu só dormi com ele uma vez.” McGovern está de cara fechada, encostada na lareira. Ela diz: “O velho Jay. O Rei da Limpeza, o bonitinho. Engraçado, nunca tive uma sensação boa a respeito dele”. “Eu disse a Buford que com toda a certeza você não está mentalmente perturbada.” Anna contrai o maxilar e me dirige um olhar intenso. “Ele queria saber se eu achava que você era capaz de assisti-lo, e eu acho que você está equilibrada. Veja, ele mentiu. Isso supostamente tinha a ver com você assisti-lo no julgamento de Chandonne. Eu nunca imaginei. Não posso acreditar que Buford viria de repente me intimar desse jeito.” Ela põe a mão no peito, como se estivesse preocupada com o coração, e fecha os olhos brevemente. “Você está bem, Anna?” Começo a me levantar. Ela sacode a mão de um lado para outro. “Nunca mais ficarei bem outra vez. Eu nunca teria falado com você, Kay, se achasse que uma coisa dessas ia acontecer.” “Você gravou as conversas, fez anotações?”, pergunta McGovern. “É claro que não.” “Bom.” “Mas se me perguntarem...”, ela começa a dizer. “Eu entendo”, respondo. “Anna, eu entendo. O que está feito está feito.” É agora que devo contar a Marino as outras novidades. Enquanto estamos tratando de assuntos tão pavorosos, ele pode muito bem saber de tudo. “Seu filho, Rocky”, digo o nome dele e nada mais. Talvez eu esteja tentando saber se Marino também já sabe disso. Ele fica duro como pedra. “O que tem ele?” “Parece que ele vai representar Chandonne”, respondo. O rosto de Marino assume uma cor vermelha forte, de assombro. Por um momento, ninguém fala. Ele não sabe. Então Marino fala em um tom calmo e grave. “Ele seria capaz de fazer uma coisa dessas. Provavelmente tem algo a ver com o que está acontecendo com você, também, se isso for possível. Engraçado, eu meio que suspeitava que ele tinha algo a ver com o fato de Chandonne ter vindo para cá.”
“Por que você pensou isso?”, pergunta McGovern, surpresa. “Ele trabalha para a máfia, é por isso. Provavelmente conhece o Papaizão Chandonne lá em Paris e gostaria muito de me causar problemas aqui.” “Acho que é hora de você falar sobre Rocky”, digo a ele. “Você tem um bourbon nesta casa?”, Marino pergunta a Anna. Ela se levanta e sai da sala. “Tia Kay, você não pode mais ficar aqui”, Lucy me diz num tom de calma e urgência. “Você não pode mais falar com ela, Kay”, acrescenta McGovern. Não respondo. É claro que elas estão certas. Agora, além de tudo, perdi minha amiga. “Então, você contou alguma coisa a ela?”, Marino me diz, num tom acusador que já se tornou muito familiar. “Eu disse a ela que o mundo estava muito melhor sem Bray”, respondo. “Em outras palavras, eu basicamente disse que estou contente por ela ter morrido.” “Como todo mundo que a conheceu”, retruca Marino. “E eu terei muito prazer em dizer isso à porra do grande júri especial.” “É uma declaração que não ajuda, mas não significa que você assassinou ninguém”, diz McGovern. “Que não ajuda está certo”, murmura Marino. “Droga, espero que Anna não conte a Righter que você ficou contente por Bray ter sido estraçalhada”, ele me diz. “Isso é tão absurdo”, digo. “Bom”, replica Marino, “sim e não, doutora.” “Você não precisa falar comigo sobre isso”, digo a ele. “Não se ponha em uma posição ruim, Marino.” “Ah, foda-se!” Ele faz um gesto de dispensa. “Sei que você não matou aquela maldita vaca. Mas você precisa olhar isso de outro ponto de vista. Você tinha problemas com ela. Ela estava tentando demiti-la. Você tem agido de uma forma meio suspeita desde que Benton morreu, ou pelo menos é isso que as pessoas têm dito, certo? Você enfrenta Bray no estacionamento. A teoria é que você tinha ciúme dessa nova chefona da polícia. Ela estava fazendo você parecer má e se queixando de você. Então você a matou e disfarçou o fato para parecer que foi o mesmo cara que estraçalhou Kim Luong, e quem melhor do que você para fazer isso, certo? Quem seria mais capaz do assassinato perfeito do que você, certo? E você tinha acesso — a primeira olhada em todas as evidências. Podia ter batido nela até morrer e plantado cabelos do lobisomem no corpo dela, e até plantado material para que eles tivessem o DNA dele. E também não parece bom você ter tirado aquelas provas do necrotério de Paris e trazido para cá. Nem recolhido amostra de água. Odeio lhe dizer isso, mas Righter acha que você é maluca. E devo acrescentar que ele não gosta de você pessoalmente e nunca gostou, porque ele tem os colhões de uma soprano e não gosta de mulheres poderosas. Não gosta nem de Anna, para falar a verdade. A coisa de Berger é uma espécie de melhor vingança. Ele realmente a odeia.” Silêncio.
“Imagino que eles vão me intimar também”, diz Lucy.
20
“Righter acha que você também é doida”, diz Marino a minha sobrinha. “A única coisa em que estamos de acordo.” “Há alguma chance de Rocky estar envolvido com a família Chandonne?” McGovern olha para Marino. “No passado? Você fala sério quando diz que pensou nisso?” “É”, Marino bufa. “Rocky esteve envolvido com criminosos na maior parte de sua maldita vida. Mas eu sei detalhes sobre o que ele faz com a porra do tempo dele, dia a dia, mês a mês? Não. Não posso honestamente jurar isso. Só sei o que ele é. Escória. Ele nasceu ruim. Genética ruim. No que me diz respeito, ele não é meu filho.” “Bem, ele é seu filho”, digo a ele. “Não no meu livro. Ele herdou o lado ruim da minha família”, insiste Marino. “Em Nova Jersey, temos bons Marinos e maus Marinos. Eu tinha um tio que era da máfia e outro que era policial. Dois irmãos diferentes como o dia e a noite. E então, quando fiz catorze anos, o desprezível tio Louie matou meu outro tio — meu outro tio que era policial, também chamado Pete. Eu recebi meu nome por causa do tio Pete. Que levou um tiro quando estava no jardim da frente de casa, pegando a porra do jornal. Nunca conseguimos provar que foi tio Louie quem tinha feito aquilo, mas todos na família acreditavam nisso. E eu ainda acredito.” “Onde está seu tio Louie agora?”, Lucy pergunta, enquanto Anna volta com o uísque de Marino. “Eu soube que ele morreu há uns dois anos. Eu não me dava com ele. Nunca tive nada a ver com ele.” Ele pega o copo das mãos de Anna. “Mas Rocky é a imagem dele cuspida. Até se parecia com ele quando era novo, e desde que nasceu foi torto, desviado, apenas um pedaço de excremento vivo. Por que vocês acham que ele assumiu o nome Caggiano? Porque esse é o nome de solteira de minha mãe, e Rocky sabia que eu ia ficar realmente irritado se ele manchasse o nome de minha mãe. Há pessoas que não podem ser consertadas. Há algumas que simplesmente nascem ruins. Não me peçam para explicar, porque Doris e eu fizemos tudo que podíamos por esse garoto. Até tentamos mandá-lo para a escola militar, o que foi um erro. Ele acabou gostando, gostava de dar trote nos calouros, fazia coisas realmente ruins com outros garotos. Ninguém encostava nele, nem mesmo no primeiro dia. Ele era grande como eu e tão ruim que os outros garotos não ousavam tocar num fio de cabelo dele.” “Isso não está certo”, Anna murmura quando volta a se sentar no divã. “Qual é a motivação de Rocky para pegar esses casos?” Sei o que Berger disse. Mas quero saber o ponto de vista de Marino. “Provocar você?” “Ele vai chamar atenção. Um caso como esse vai criar um circo.” Marino não quer dizer o óbvio, que talvez Rocky queira humilhar, derrotar o pai. “Ele odeia você?”, McGovern pergunta a ele.
Marino bufa de novo e seu pager vibra. “O que acabou acontecendo com ele?”, pergunto. “Vocês o mandaram para a escola militar, e daí?” “Eu dei um pé na bunda dele. Disse que se ele não conseguia seguir as regras da casa, não ia viver sob o meu teto. Isso foi depois do primeiro ano dele na escola militar. Então, sabe o que o Rocky fez?” Marino lê o visor do pager e se levanta. “Ele se muda para Jersey, vai morar com o tio Louie, a porra da máfia. Depois ele tem a coragem de vir fazer a escola aqui, inclusive a faculdade de direito, William and Mary, portanto ele é esperto como o diabo.” “Ele passou no exame da Ordem dos Advogados na Virgínia?”, pergunto. “Aqui, fez de tudo por aqui. Não o vi por dezessete anos. Anna, você se importa de eu fazer uma ligação? Acho que não vou querer usar o celular nesta.” Ele olha de relance para mim enquanto sai da sala. “É Stanfield.” “E quanto à identificação sobre a qual ele ligou para você antes?”, pergunto. “Acho que é por isso que ele está me ligando”, diz Marino. “Mais uma realmente estranha, se for verdade.” Enquanto ele está ao telefone, Anna desaparece da sala. Suponho que tenha ido ao banheiro, mas ela não volta, e posso imaginar como se sente. Em vários sentidos, estou mais preocupada com ela do que comigo. Agora sei o suficiente sobre a vida dela para avaliar sua intensa vulnerabilidade e perceber os lugares terrivelmente áridos, cicatrizados, de sua paisagem emocional. “Isso não é justo”, começo a perder a compostura. “Não é justo com ninguém.” Tudo que se empilhou sobre mim começa a se desmanchar e rolar colina abaixo. “Alguém por favor quer me dizer como isso aconteceu? Será que eu fiz alguma coisa errada numa vida passada? Não mereço isso. Nenhum de nós merece.” Lucy e McGovern me ouvem desabafar. Elas parecem ter seus próprios planos e idéias, mas não estão inclinadas a apresentá-los imediatamente. “Bem, digam alguma coisa”, peço a elas. “Vão em frente e ponham tudo para fora.” Basicamente, falo isso em benefício de minha sobrinha. “Minha vida está arruinada. Não lidei com nada como deveria. Sinto muito.” As lágrimas ameaçam. “Agora quero um cigarro. Alguém tem um cigarro?” Marino tem, mas está na cozinha, ao telefone, e de jeito nenhum vou rastejar até lá e interrompê-lo por causa de um cigarro, como se realmente precisasse de um. “Sabem, o que me machuca mais é ser acusada da própria coisa que combato tanto. Não abuso do poder, droga. Eu nunca assassinaria ninguém a sangue-frio.” Falo sem parar. “Odeio a morte. Odeio assassinatos. Odeio cada coisa que vejo todo dia. E agora o mundo acha que eu fiz algo assim? Um grande júri especial acha que talvez eu tenha feito?” Deixo as perguntas no ar. Nem Lucy nem McGovern respondem. Marino fala alto. Sua voz é musculosa e grande como ele, e tende mais a empurrar do que a guiar, mais a confrontar do que a acompanhar. “Você tem certeza de que ela é namorada dele?”, ele diz ao telefone. Presumo que está falando com o detetive Stanfield. “E não só amiga? Me diga como você têm certeza disso. É, é. Sim, sim. O quê? Se entendi? Claro que não entendi. Não faz o menor sentido, Stanfield.” Marino caminha pela cozinha enquanto fala. Está
prestes a gritar com Stanfield. “Você sabe o que digo a pessoas como você, Stanfield?” Ele estoura. “Digo para elas saírem da porra do meu caminho. Não dou a mínima para quem a porra do seu cunhado é, entendeu? Nem que ele lamba meu saco, bote ele na cama e cante uma canção de ninar para ele.” Stanfield está obviamente tentando dizer alguma coisa, mas Marino não deixa. “Puxa”, McGovern murmura, chamando a minha atenção de volta para a sala, para minha difícil situação. “Ele é o investigador desses dois homens que foram provavelmente torturados e mortos? A pessoa com quem Marino está falando?”, ela pergunta. Olho de um modo estranho para ela enquanto sinto uma sensação mais estranha ainda. “Como você sabe sobre os dois homens que foram mortos?” Tateio tentando encontrar uma resposta que devo ter perdido. McGovern esteve em Nova York. Ainda não fiz a autópsia do segundo John Doe. Por que de repente todo mundo parece ser onisciente? Penso em Jaime Berger. Penso no governador Mitchell, no deputado Dinwiddie e em Anna. Um sopro forte de medo parece contaminar o ar como o cheiro de suor de Chandonne, e imagino que o sinto de novo, e meu sistema nervoso central tem uma reação involuntária. Começo a tremer como se tivesse bebido um bule de café forte ou meia dúzia desses espressos cubanos muito açucarados chamados coladas. Percebo que estou com mais medo do que já tive em toda a minha vida e começo a pensar o impensável: talvez Chandonne estivesse fornecendo um traço de verdade quando persistiu em sua declaração aparentemente absurda de que é vítima de uma enorme conspiração política. Estou paranóica, e isso é justificável. Tento argumentar comigo. Estou, afinal, sendo investigada pelo assassinato de uma policial corrupta que provavelmente estava envolvida com o crime organizado. Percebo que Lucy está falando comigo. Ela se levantou de seu lugar na frente da lareira e está puxando uma cadeira para perto de mim. Senta-se e se inclina em minha direção, tocando em meu braço bom, como se tentasse me acordar. “Tia Kay?”, ela diz. “Você está aqui, tia Kay? Está ouvindo?” Eu me concentro nela. Marino está dizendo a Stanfield que eles vão se encontrar amanhã de manhã. Parece mais uma ameaça. “Ele e eu nos encontramos no Phil’s para tomar uma cerveja”, diz Lucy. Ela olha para a cozinha e eu me lembro de Marino me contar hoje de manhã que ele e Lucy iam se ver à tarde porque ela tinha novidades para ele. “Sabemos sobre o cara do motel.” Agora ela se refere a McGovern, que está muito silenciosa ao pé da lareira, me olhando, esperando para ver como vou reagir quando Lucy me contar o resto. “Teun está aqui desde sábado”, diz então Lucy. “Quando liguei para você do Jefferson, lembra? Teun estava comigo. Pedi a ela para vir imediatamente para cá.” “Oh”, é tudo que consigo dizer. “Bem, isso é bom. Fiquei preocupada de pensar que você estava sozinha em um hotel.” As lágrimas me enchem os olhos. Estou constrangida e desvio o olhar de Lucy e McGovern. Devo ser forte. Sou a pessoa que sempre salvou minha sobrinha dos problemas, a maioria deles criado por ela própria. Sempre fui a portadora do archote que a guiou pelo caminho. Eu a pus na faculdade. Comprei livros para ela, seu primeiro computador, mandei-a para todos os cursos especiais que ela queria freqüentar, em todos os lugares do
país. Levei-a a Londres comigo no verão. Enfrentei qualquer pessoa que tentasse se opor a Lucy, inclusive sua mãe, que retribuiu meus esforços com nada além de abuso. “Você deve me respeitar”, digo a minha sobrinha enquanto enxugo as lágrimas com a palma da mão. “Como você vai me respeitar agora?” Ela se levanta outra vez e olha para mim. “Isso é um completo absurdo”, diz com sentimento, e agora Marino está voltando para a sala, com outro bourbon na mão. “Isso não tem nada a ver com eu respeitar você”, diz Lucy. “Porra. Ninguém nesta sala respeita menos você, tia Kay. Mas você precisa de ajuda. Pelo menos uma vez, você tem de permitir que outras pessoas a ajudem. Com toda certeza você não consegue lidar com isso sozinha, e talvez precise engolir um pouco o seu orgulho e nos deixar ajudar, sabe? Eu não tenho mais dez anos. Tenho vinte e oito, certo? Não sou virgem. Fui agente do FBI, agente do ATF e sou podre de rica. Eu poderia ser qualquer tipo de agente que quisesse.” Suas feridas se inflamam diante de meus olhos. Ela realmente se preocupa em ser posta em licença administrativa; claro que se preocupa. “E agora vou ser minha própria agente, fazer as coisas do meu jeito”, ela prossegue. “Eu me demiti esta noite”, digo a ela. Segue-se um silêncio atordoante. “O que você disse?”, Marino me pergunta, parado diante da lareira, bebendo. “Você fez o quê?” “Eu contei ao governador”, respondo, e uma calma inexplicável começa a tomar conta de mim. Parece bom considerar que fiz algo em vez de tudo ser feito a mim. Talvez me demitir do emprego me torne menos vítima, como se eu estivesse disposta a finalmente admitir que sou uma vítima. Suponho que sou, e a única reação inteligente é terminar o que Chandonne começou: terminar minha vida tal como a conheci até agora e começar tudo de novo. Que pensamento esquisito e chocante. Conto a Marino, McGovern e Lucy toda a minha conversa com Mike Mitchell. “Espere aí.” Marino está sentado na lareira. Já é perto de meia-noite e Anna está tão quieta que esqueci por um momento que ela está na casa. Talvez tenha ido dormir. “Isso significa que você não pode mais trabalhar nos casos?”, Marino me diz. “De jeito nenhum”, respondo. “Vou continuar como chefe interina até que o governador decida de outra forma.” Ninguém pergunta o que planejo fazer com o resto de minha vida. Realmente não faz sentido se preocupar com o futuro distante quando o presente está destruído. Sou grata por não me perguntarem e provavelmente estou enviando meus sinais costumeiros de que não quero que me perguntem. As pessoas sentem quando devem permanecer em silêncio, ou, no mínimo, eu desvio o interesse delas e elas nem sequer percebem que acabei de manipulá-las para não sondarem informações que prefiro não revelar. Torneime uma especialista nessa manobra desde muito jovem, quando não queria que minhas colegas de classe me perguntassem sobre meu pai, se ele estava doente, ou se ia algum dia melhorar, ou como é ver o pai da gente morrer. Fui condicionada a não contar, e também a não perguntar. Os últimos três anos da vida de meu pai foram passados em absoluta evitação por toda a minha família, inclusive ele, especialmente ele. Ele se parecia bastante com Marino, ambos machos italianos que parecem supor que seus corpos nunca os abandonarão, não
importa quão doentes ou fora de forma estejam. Visualizo meu pai enquanto Lucy, Marino e McGovern falam sobre o que planejam fazer ou já estão fazendo para me ajudar, inclusive checagem de informações que já estão fazendo e todos os tipos de coisas que A Última Delegacia tem a me oferecer. Realmente não ouço. As vozes deles podem muito bem ser um grasnar de corvos enquanto me lembro da grama grossa da Miami de minha infância, de cascas de percevejo morto e do limoeiro em meu pequeno quintal. Meu pai me ensinou a quebrar cocos na entrada para carros com um martelo e uma chave de fenda, e eu passava um tempo enorme tirando a polpuda e doce carne branca da concha dura e peluda, e ele se divertia muito observando meus esforços obsessivos. A carne do coco ia para a geladeira branca atarracada, e ninguém, inclusive eu, jamais a comia. Durante os escaldantes sábados do verão, meu pai de vez em quando surpreendia a mim e a minha irmã trazendo para casa dois blocos grandes de gelo do armazém da vizinhança. Nós tínhamos uma pequena piscina inflável que enchíamos com a mangueira, e eu e Dorothy sentávamos no gelo, sendo queimadas pelo sol enquanto congelávamos nossos traseiros. Pulávamos para dentro e para fora da piscina para descongelar, depois nos empoleirávamos de novo em nossos tronos frios e escorregadios, como princesas, e meu pai ria de nós na janela da sala, ria hilariamente e batia no vidro, enquanto Fats Waller tocava a toda no hi-fi. Meu pai era um homem bom. Quando se sentia mais ou menos bem ele era generoso, atencioso e cheio de humor e alegria. Antes de ser devastado pelo câncer, era bonito, de estatura média, louro e de ombros largos. Seu nome completo era Kay Marcellus Scarpetta III, e ele insistia em que seu primeiro filho tivesse seu nome, que estava na família desde Verona. Não importava que quem nascesse primeiro fosse eu, uma menina. Kay é um desses nomes que podem ser dados a qualquer gênero, mas minha mãe sempre me chamou de Katie. Em parte, segundo ela, era confuso ter dois Kays na casa. Depois, quando isso não era mais um problema porque eu era a única que restara, ela ainda me chamava de Katie, recusando-se a aceitar a morte de meu pai, a superá-la, e até hoje não superou. Ela não vai se separar dele. Meu pai morreu há mais de trinta anos, quando eu tinha doze, e minha mãe jamais saiu com outro homem. Ela ainda usa sua aliança de casamento. Ainda me chama de Katie.
* * *
 
Lucy e McGovern discutem planos até depois da meia-noite. Não desistiram de tentar me incluir em suas conversas, e não parecem mais sequer notar que em minha mente eu fugi para o passado, olhando para o fogo, massageando de forma ausente minha mão esquerda endurecida e enfiando um dedo debaixo do gesso para coçar minha carne infeliz e com fome de ar. Por fim, Marino boceja como um urso e se levanta. Ele está levemente tonto por causa do bourbon e tem um desagradável cheiro de cigarro, e me olha com uma maciez nos olhos que eu poderia chamar de amor triste, se estivesse disposta a aceitar seus verdadeiros sentimentos por mim. “Venha”, ele me diz. “Me leve
até a caminhonete, doutora.” É seu modo de pedir um acordo entre nós. Marino não é bruto. Está se sentindo mal por causa do modo como tem me tratado desde que quase fui assassinada, e nunca me viu tão distante e tão estranhamente quieta. A noite é fria e calma e as estrelas estão tímidas atrás de nuvens vagas. Da entrada para carros da casa de Anna, capto o brilho de suas muitas velas nas janelas e sou lembrada de que amanhã é véspera de Natal, o último Natal do século XX. As chaves perturbam a paz quando Marino destranca a caminhonete e hesita, constrangido, antes de abrir a porta. “Temos muito a fazer. Encontro você no necrotério amanhã cedo.” Não é isso o que ele realmente quer me dizer. Ele olha para o céu escuro e suspira. “Merda, doutora. Olhe, já faz algum tempo que eu sei, certo? Agora você já sabe disso. Eu sabia o que aquele filho-da-puta do Righter pretendia e tive de deixar a coisa correr.” “Quando você ia me contar?” Não pergunto isso de forma acusadora, simplesmente por curiosidade. Ele dá de ombros. “Estou contente por Anna ter tocado no assunto primeiro. Sei que você não matou Diane Bray, pelo amor de Deus. Mas eu não a culparia se você tivesse feito isso, para falar a verdade. Ela era a maior vaca que já nasceu. No meu livro, se você tivesse feito isso com ela, teria sido em autodefesa.” “Bem, não teria sido.” Encaro a possibilidade a sério. “Não teria sido, Marino. E eu não a matei.” Olho detidamente para sua forma avantajada à luz de lâmpadas de carruagens e luzes de festas nas árvores. “Você nunca pensou realmente...?” Não concluo a pergunta. Talvez na verdade não queira saber a resposta. “Diabo, não tenho certeza do que andei pensando ultimamente”, ele diz. “Essa é a verdade. Mas o que eu vou fazer, doutora?” “Fazer? Sobre o quê?” Não sei o que ele quer dizer. Ele dá de ombros e fica travado. Não posso acreditar. Marino está prestes a chorar. “Se você se demitir.” Sua voz se eleva, e ele pigarreia e procura seus Lucky Strikes. Põe as mãos em concha em volta da minha e acende um cigarro para mim, sua pele áspera contra a minha, os pêlos das costas de seus punhos sussurrando em meu queixo. Ele fuma olhando para o vazio, magoado. “Então o que vai acontecer? Eu vou ter de ir à porra do necrotério e você não vai mais estar lá? Diabo, eu não iria àquele buraco fedorento nem a metade das vezes que vou se não fosse por você estar lá, doutora. Você é a única coisa que dá alguma vida àquela espelunca, sem brincadeira.” Eu o abraço. Não chego nem até seu peito, e sua barriga separa a batida de nossos corações. Ele ergueu suas próprias barreiras nesta vida, e sou dominada por uma imensurável compaixão e necessidade dele. Bato em seu peito largo e informo: “Nós estivemos juntos por muito tempo, Marino. Você ainda não se livrou de mim”
21
Os dentes têm suas próprias histórias para contar. Os hábitos dentários de uma pessoa muitas vezes revelam mais sobre ela do que as jóias ou as roupas de estilistas e podem identificá-la excluindo todas as outras, desde que haja registros pre mortem para comparação. Os dentes me contam sobre a higiene da pessoa, sussurram segredos sobre o uso de drogas, antibióticos na infância, doenças, ferimentos e a importância que a aparência tem para ela. Confessam se seu dentista era um vigarista e cobrou do plano de saúde por um trabalho que nunca foi feito. E me dizem, aliás, se o dentista era competente. Marino me encontra no necrotério na manhã seguinte, antes de o dia clarear. Ele tem na mão as fichas dentárias de um homem de vinte e dois anos, do condado de James City, que saiu para correr ontem perto do campus da William and Mary e não voltou para casa. Seu nome é Mitch Barbosa. A William and Mary fica a apenas alguns quilômetros do Fort James Motel, e quando Marino falou com Stanfield ontem à noite e recebeu essa última informação, meu primeiro pensamento foi “Que estranho”. O astuto advogado filho de Marino, Rocky, estudou na William and Mary. A vida nos oferece mais uma coincidência sinistra. São seis e quarenta e cinco quando empurro o corpo da sala de raios X para minha estação de trabalho na sala de autópsia. Mais uma vez ela está em silêncio. É véspera de Natal e todas as repartições estaduais estão fechadas. Marino está trajado para me assistir, e não espero que nenhuma outra pessoa viva — exceto o dentista forense — apareça aqui agora. A função de Marino será me ajudar a despir o corpo duro e relutante, erguê-lo da mesa de autópsia e colocá-lo nela de volta. Eu nunca permitiria que ele me assistisse em nenhum procedimento médico — não que ele não tenha se oferecido. Nunca pedi nem pedirei a ele para fazer anotações, porque o modo como ele massacra palavras e termos médicos é impressionante. “Segure-o dos dois lados”, oriento Marino. “Bom. Assim mesmo.” Marino agarra os dois lados da cabeça do morto, tentando mantê-lo parado enquanto enfio um cinzel fino na lateral da boca, passando-o entre os molares para forçar a abertura das mandíbulas. O aço arranha o esmalte. Tomo cuidado para não cortar os lábios, mas é inevitável que eu lasque a superfície dos dentes de trás. “É muito bom que as pessoas estejam mortas quando você faz esse tipo de maldade com elas”, diz Marino. “Aposto que você vai ficar contente quando tiver de novo duas mãos.” “Nem me lembre.” Estou tão cheia do meu gesso que pensei em cortá-lo eu mesma com a serra Stryker. As mandíbulas do morto cedem e se abrem, e eu ligo a lâmpada cirúrgica e encho com luz branca o interior de sua boca. Há fibras na língua, e eu as coleto. Marino me ajuda a quebrar o rigor mortis nos braços para que possamos tirar o
blusão e a camisa, e depois tiro sapatos e meias, e finalmente a calça do agasalho de ginástica e o short de corrida. Aplico nele o PERK e não encontro nenhuma evidência de ferimentos no ânus, nada por enquanto que sugira atividade homossexual. O pager de Marino soa. É Stanfield outra vez. Marino não disse uma palavra sobre Rocky esta manhã, mas o espectro dele paira na sala. Rocky está no ar, e o efeito disso sobre seu pai é sutil mas profundo. Uma angústia pesada e sem remédio se irradia de Marino como calor do corpo. Eu devia estar preocupada com o que Rocky me reserva, mas só consigo pensar no que vai acontecer com Marino. Agora que meu paciente está nu diante de mim, capto todo o quadro de quem ele era fisicamente. Mede um metro e setenta de altura e pesa sessenta e seis quilos. Tem pernas musculosas mas pouco desenvolvimento muscular na parte superior do corpo, o que é coerente com um corredor. Não tem tatuagens, é circuncidado e, como sugerem as unhas das mãos e dos pés muito bem-feitas e o rosto bem barbeado, obviamente cuidava da aparência. Por enquanto, não encontro nenhuma evidência de ferimento externo. E as radiografias não revelam nenhum projétil, nenhuma fratura. Ele tem cicatrizes antigas nos joelhos e no cotovelo esquerdo, mas nada recente, exceto as abrasões por ter sido amarrado e amordaçado. O que aconteceu com você? Por que você morreu? Ele permanece em silêncio. Só Marino está falando, em um tom alto e rude, para disfarçar sua perturbação. Ele acha que Stanfield é um bobalhão e o trata como tal. Marino está mais impaciente, mais insultuoso do que o normal. “É, bem, é claro que seria bom se soubéssemos disso”, Marino destila sarcasmo no telefone de parede. “A morte não tira férias”, ele acrescenta um instante depois. “Avise que estou chegando e eles vão me deixar entrar.” Depois: “É, é, é. É a temporada. E Stanford? Mantenha a boca fechada, certo? Entendeu isso? Eu li sobre o caso na porra do jornal mais uma vez... Oh, claro, bom, talvez você ainda não tenha lido o jornal de Richmond. Eu vou recortar o artigo desta manhã para você. Toda essa merda de Jamestown, de crime de ódio. Mais um pio e eu vou perder as estribeiras. Você nunca me viu perder as estribeiras e tenho certeza de que não vai querer ver”. Marino pega luvas novas quando volta para a maca, sua beca adejando em volta das pernas. “Bom, está ficando cada vez mais excêntrico, doutora. Supondo que esse cara seja nosso corredor desaparecido, parece que estamos lidando com um motorista de caminhão comum. Nenhum antecedente. Nenhum problema. Morava em um condomínio com a namorada, que o identificou por foto. Foi com ela que Stanfield falou ontem à noite, aparentemente, mas ela não atendeu o telefone hoje até agora.” Ele me olha confuso, sem saber ao certo quanto já me contou. “Vamos pô-lo na mesa”, digo. Ponho a maca paralela à mesa de autópsia. Marino pega os pés, eu seguro um braço e nós empurramos. O corpo bate contra o aço e o sangue escorre do nariz. Abro a água e ela tamborila na pia de aço, as radiografias da cabeça do morto brilhando em caixas de luz na parede, revelando ossos perfeitamente preservados, os diferentes ângulos do crânio e o zíper do casaco do agasalho de ginástica caído de cada um dos lados das costelas graciosamente curvadas. A
campainha soa na baia enquanto passo um bisturi de ombro a ombro, depois desço até a pélvis, fazendo um pequeno desvio em volta do umbigo. Observo a imagem do dr. Sam Terry na TV de circuito fechado e empurro um botão com o cotovelo para abrir a porta da baia. Ele é um de nossos odontologistas, ou dentistas forenses, que teve a má sorte de estar de plantão na véspera do Natal. “Estou pensando que deveríamos ir até lá fazer uma visita a ela enquanto estamos na área”, continua Marino. “Peguei o endereço dela, da namorada. Do condomínio onde eles vivem.” Ele olha para o corpo. “Viviam, suponho.” “Você acha que Stanfield consegue manter a boca fechada?” Rebato tecido cortando em staccato com o bisturi, segurando desajeitadamente o fórceps com as pontas dos dedos enluvados de minha mão esquerda, presa no gesso. “Acho. Diz que vai nos encontrar no motel, que eles não estão sendo muito amistosos, reclamando que é véspera de Natal e que não querem mais nenhuma atenção porque essa história já atrapalhou os negócios por lá. Cerca de dez cancelamentos porque as pessoas ouviram falar do caso no noticiário. Tudo isso é bobagem. A maioria das pessoas que ficam naquela espelunca provavelmente não sabe merda nenhuma nem se importa com o que aconteceu aqui.” O dr. Terry entra, com sua gasta maleta preta de dentista na mão, uma beca cirúrgica nova desamarrada nas costas e esvoaçando enquanto ele se dirige ao balcão. É nosso odontologista mais jovem e tem quase dois metros de altura. Diz a lenda que ele poderia ter feito carreira na NBA, mas quis continuar sua formação. A verdade, e ele mesmo conta isso se for perguntado, é que ele era um pivô medíocre na Universidade Estadual da Virgínia, e que o único “tiro” bom que ele já conseguiu foi dado com arma de fogo, que ele só é bom de rebote com mulheres, e que só foi para a odontologia porque não conseguiu ingressar na faculdade de medicina. Terry queria desesperadamente ser patologista forense. O que ele está fazendo, basicamente como voluntário, é o mais próximo que jamais vai conseguir chegar disso. “Obrigada, obrigada”, digo enquanto ele começa a arrumar sua papelada em uma prancheta. “Você é um homem bom por vir nos ajudar nesta manhã, Sam.” Ele dá um sorriso largo, depois vira a cabeça para Marino e diz com seu mais exagerado sotaque de New Jersey: “Como cê tá, Marino?”. “Você já viu Como o Grinch roubou o Natal ? Porque, se não viu, basta ficar um tempo comigo. Estou a fim de tomar de volta os brinquedos das crianças e bater no traseiro das mamães delas quando for subir a chaminé.” “Não tente subir em nenhuma chaminé. Com certeza você vai ficar entalado.” “E você poderia olhar para fora do topo de uma chaminé e ainda ficar com os pés na lareira. Você continua crescendo?” “Não tanto quanto você, cara. Quanto você está pesando agora?” Terry manuseia as fichas dentárias que Marino trouxe. “Bem, isso não vai demorar. Ele tem um segundo pré-molar maxilar girado para a direita, expondo a superfície distal e lingual. Eeee... muitas restaurações. O que diz que esse cara” — ele levanta as fichas — “e o cara que vocês têm são exatamente a mesma pessoa.” “O que você achou de os Rams derrotarem Louisville?”, Marino grita
acima do tamborilar da água corrente. “Você estava lá?” “Não, nem você, Terry, e é por isso que eles ganharam.” “Provavelmente é verdade.” Pego uma faca cirúrgica do carrinho quando o telefone toca. “Sam, você se importa de atender?”, pergunto. Ele anda até o canto, pega o fone e anuncia: “Necrotério”. Corto através das junções de cartilagens costocondrais, removendo um triângulo de costelas esternais e para-esternais. “Espere”, diz Terry à pessoa que está ao telefone. “Doutora Scarpetta? Você pode falar com Benton Wesley?” A sala se torna um vácuo que suga toda luz e todo som. Eu congelo, vidrada, atônita, a faca cirúrgica de aço pousada em minha mão direita ensangüentada e enluvada. “Que porra é essa?”, Marino explode. Ele caminha até Terry e tira o fone da mão dele. “Quem diabo está falando?”, ele grita no bocal. “Merda.” Marino põe o fone de volta na base. Obviamente, a pessoa desligou. Terry parece chocado. Ele não tem a mínima idéia do que aconteceu. Não me conhece há muito tempo. Não há nenhum motivo para ele saber sobre Benton, a menos que alguém mais tenha lhe contado, e aparentemente ninguém contou. “O que exatamente a pessoa lhe disse?”, Marino pergunta a ele. “Espero não ter feito nada errado.” “Não, não”, consigo dizer. “Você não fez”, tranqüilizo-o. “Um homem”, ele responde. “Só disse que queria falar com você e que o nome dele era Benton Wesley.” Marino pega de novo o fone, e pragueja e se enfurece porque não há identificador de chamadas. Nunca precisamos de um identificador no necrotério. Ele pressiona várias teclas e ouve. Anota um número e o digita. “É. Quem é?”, ele pergunta a quem quer que tenha atendido. “Onde? O.k. Você viu mais alguém usando esse telefone há apenas um minuto? Esse em que você está falando. É, é. É, bom, não acredito em você, seu babaca.” Marino repõe o fone com força na base. “Você acha que é a mesma pessoa que acabou de ligar?”, Terry pergunta a ele, confuso. “O que você fez, apertou estrela-seis-nove?” “Um telefone público. No posto Texaco de Midlothian Turnpike. Supostamente. Não sei se é a mesma pessoa que ligou. Como era a voz dele?”, Marino crava o olhar em Terry. “Ele me pareceu meio jovem. Acho. Não sei. Quem é Benton Wesley?” “Ele está morto.” Pego o bisturi, deixo cair a ponta numa tábua de cortar, ponho uma lâmina nova e jogo a velha em um contêiner de plástico verde brilhante, para material de risco biológico. “Era um amigo. Um amigo íntimo.” “Algum delinqüente fazendo uma piada mórbida. Como alguém saberia o número daqui?” Marino está perturbado. Furioso. Quer descobrir quem ligou e bater nele. E está considerando a possibilidade de que seu filho maléfico possa estar por trás disso. Posso ler nos olhos dele. Ele está pensando em Rocky. “Na seção dos órgãos do governo estadual, na lista telefônica.” Começo a cortar vasos sangüíneos, rompendo a carótida na parte de baixo do ápex, depois
descendo até as artérias ilíacas e as veias da pélvis. “Não me diga que está escrito necrotério na maldita lista telefônica.” Marino começa outra vez sua velha rotina. Está me culpando. “Acho que está listado em informações sobre funerais.” Corto o fino músculo chato do diafragma, soltando o bloco de órgãos, liberando-o da coluna vertebral. Pulmões, fígado, coração, rins e baço emitem diferentes tons de vermelho quando ponho o bloco na tábua de cortar e lavo o sangue devagar com água fria da mangueira. Percebo hemorragias petequiais, áreas escuras de sangramento não maiores do que furos de alfinete, espalhadas sobre o coração e os pulmões. Associo isso com pessoas que tiveram dificuldade de respirar na hora da morte ou pouco antes dela. Terry leva sua maleta preta para minha estação de trabalho e a põe sobre o carrinho cirúrgico. Tira dela um espelho dentário e examina o interior da boca do morto. Trabalhamos em silêncio, sob a intensa pressão do que acaba de acontecer. Pego uma faca maior e corto secções de órgãos, fatiando o coração. As artérias coronárias estão abertas e limpas, o ventrículo esquerdo tem um centímetro de largura, as válvulas estão normais. Além de pequenos veios de gordura na aorta, o coração e os vasos são saudáveis. A única coisa errada com ele é a óbvia: parou de funcionar. Por alguma razão, o coração desse homem parou. Não encontro explicação em nenhum lugar onde olhe. “Como eu disse, este é fácil”, diz Terry, enquanto faz anotações em um gráfico. Sua voz é nervosa. Ele desejaria nunca ter atendido o telefone. “É o nosso cara?”, pergunto a ele. “Com certeza.” As artérias carótidas correm como trilhos no pescoço. Entre elas estão a língua e os músculos do pescoço, que dobro para baixo e retiro para que possa examiná-los detalhadamente na tábua de cortar. Não há hemorragias no tecido profundo. O pequeno e frágil osso hióide em forma de U está intacto. Ele não foi estrangulado. Quando rebato o couro cabeludo, não encontro nenhuma contusão ou fratura embaixo. Ligo uma serra Stryker na tomada do carretel de fio suspenso e percebo que preciso de mais de uma mão. Terry me ajuda a firmar a cabeça enquanto penetro o crânio com a lâmina semicircular, que vibra e geme. O pó de osso quente se espalha pelo ar, e o topo do crânio se destaca com um som macio de sucção, revelando o horizonte convoluto do cérebro. Num exame grosseiro, não há nada de errado com ele. Fatias com aspecto de ágata cor de creme e bordas cinzentas franzidas brilham enquanto as lavo na tábua de cortar. Vou guardar o cérebro e o coração para estudos especiais, fixando-os em formalina e enviando-os à Faculdade de Medicina da Virgínia. Meu diagnóstico esta manhã é de exclusão. Não tendo encontrado nenhuma causa patológica óbvia da morte, fico com aquela que se baseia em sussurros. Pequenas hemorragias no coração e nos pulmões e queimaduras de abrasões de amarração sugerem que Mitch Barbosa morreu de arritmia induzida por estresse. Também postulo que em algum momento ele prendeu a respiração ou suas vias aéreas foram obstruídas — ou por alguma razão sua respiração foi comprometida a ponto de ele ter sido parcialmente asfixiado. Talvez a responsável tenha sido a mordaça, que teria ficado encharcada de saliva. Seja
qual for a verdade, estou obtendo um quadro que é simples e horripilante e exige demonstração. Terry e Marino estão disponíveis. Primeiro corto vários pedaços do barbante branco grosso que usamos rotineiramente para suturar incisões em Y. Digo a Marino para enrolar as mangas de sua beca cirúrgica e levantar as mãos. Amarro um segmento de barbante em volta de um pulso e um segundo em volta do outro, não muito apertados mas justos. Instruo-o a manter os braços no ar e oriento Terry a segurar as pontas do barbante e puxar para cima. Terry é alto o suficiente para fazer isso sem precisar de uma cadeira ou um banquinho. Os barbantes imediatamente afundam na pele do lado de baixo dos pulsos de Marino e são angulados para cima em direção aos nós. Tentamos isso em diferentes posições, com variações dos braços muito próximos e espalhados em estilo de crucificação. É claro que os pés de Marino permanecem firmes no chão. Em nenhum caso ele está pendurado ou mesmo oscilando. “O peso de um corpo sobre braços esticados interfere na exalação”, explico. “A pessoa consegue inalar, mas é difícil exalar porque os músculos intercostais estão comprometidos. Se isso acontecesse por um período de tempo suficiente, levaria à asfixia. Some-se a isso o choque da dor da tortura, o medo e o pânico, e a pessoa poderia certamente sofrer uma arritmia.” “E o sangramento no nariz?” Marino estica os pulsos e eu examino os sulcos que o barbante deixou em sua pele. Eles são ondulados para cima de forma semelhante aos do morto. “Aumento da pressão intracraniana”, digo. “Quando se prende a respiração, pode haver sangramentos no nariz. Na ausência de ferimento, esse é um bom palpite.” “Minha pergunta é: alguém pretendia matá-lo?”, diz Terry. “A maioria das pessoas não amarra alguém e o tortura e depois o deixa ir embora para contar a história”, respondo. “Vou deixar em suspenso a causa e a maneira por enquanto, até que vejamos o que a toxicologia tem a dizer.” Meu olhar encontra o de Marino. “Mas creio que é melhor você tratar isso como homicídio, e um homicídio muito horroroso.” Contemplamos essa possibilidade enquanto vamos para o condado de James City. Marino queria pegar sua caminhonete, e eu sugeri que seguíssemos para oeste pela rodovia 5, ao longo do rio, passando pelo condado de Charles City, onde fazendas do século XVII se espalham a partir da estrada em vastos campos incultos que levam às impressionantes mansões de tijolo com construções anexas de Sherwood Forest, Westover, Berkeley, Shirley e Belle Air. Não há nenhum ônibus de turismo à vista, nenhum caminhão de carga, nem trabalho de manutanção na estrada, e as lojas estão fechadas. É véspera de Natal. O sol brilha através de arcos infindáveis de velhas árvores, sombras salpicam o pavimento, e numa placa o Urso Smokey pede ajuda, em uma parte graciosa do mundo onde dois homens morreram barbaramente. Não parece que algo tão hediondo poderia acontecer aqui, até chegarmos ao Fort James Motel and Campground. Escondido no bosque à margem da rodovia 5, ele é uma confusão de cabanas, trailers e construções enferrujadas e com a pintura descascada, o que me faz lembrar do complexo de Hogans’s Alley, uma área de
treinamento na academia do FBI: fachadas construídas com material barato onde pessoas de reputação duvidosa estão prestes a ser apanhadas pela lei. O escritório da administração fica numa pequena casa com estrutura de madeira dominada por pinheiros cerrados que atapetaram de folhas marrons o teto e a terra. Na frente, máquinas de refrigerante e de gelo brilham em meio a arbustos não podados. Bicicletas de criança gastas repousam sobre folhas, e velhos balanços e gangorras não inspiram confiança. Uma cachorra mestiça com a barriga arqueada de prenhez crônica se ergue e olha para nós da varanda inclinada. “Pensei que Stanfield ia nos encontrar aqui.” Abro minha porta. “Imagine.” Marino salta da caminhonete, seus olhos se movendo por todos os lugares. Um véu de fumaça sai da chaminé e é carregado quase horizontalmente pelo vento, e através de uma janela capto luzes de Natal vistosas e piscantes. Sinto que nos olham. Uma cortina se move, e o som abafado de uma televisão vem do fundo da casa, enquanto esperamos na varanda e a cachorra fareja minha mão e me lambe. Marino anuncia nossa chegada batendo com o punho na porta, e finalmente grita: “Alguém em casa? Ei!”. Ele bate com mais força. “Polícia!” “Estou indo, estou indo”, diz, impaciente, uma mulher. Um rosto duro e cansado enche o vão da porta aberta, a corrente contra ladrão ainda presa e esticada. “Você é a senhora Kiffin?”, Marino pergunta a ela. “Quem é você?”, ela pergunta de volta. “Capitão Marino, Departamento de Polícia de Richmond. Esta é a doutora Scarpetta.” “Para que você trouxe uma médica?” Franzindo o cenho, ela olha para mim de sua fresta sombreada. Há uma agitação a seus pés, e uma criança olha para nós e sorri com cara de levada. “Zack, volte para dentro.” Pequenos braços nus e mãos com unhas sujas abraçam os joelhos da mamãe. Ela o sacode. “Vai!” Ele a solta e vai embora. “Vamos precisar que você nos mostre o quarto onde houve o incêndio”, Marino diz a ela. “O detetive Stanfield do condado de James City devia estar aqui. Você o viu?” “Ninguém da polícia esteve aqui hoje.” Ela bate a porta e a corrente contra ladrão tilinta quando ela a remove, depois a porta se abre de novo, totalmente dessa vez, e ela sai para a varanda, enfiando os braços nas mangas de um casaco de lenhador xadrez vermelho, com um chaveiro balançando na mão. Ela grita para dentro da casa: “Cês todos ficam! Zack, não mexa na massa de biscoito! Eu já volto”. Ela fecha a porta. “Nunca vi ninguém gostar tanto de massa de biscoito como esse garoto”, ela nos conta enquanto descemos a escada. “Às vezes eu compro a pré-pronta em rolo, e um dia pego Zack comendo uma, o papel tirado como casca de banana. Já tinha comido metade dela quando o peguei. Eu disse a ele, sabe o que tem nisso? Ovos podres, é isso que tem.” Bev Kiffin provavelmente não tem mais de quarenta e cinco anos, e sua beleza é dura e vulgar como cafés de paradas de caminhão e lanchonetes que
ficam abertas de madrugada. O cabelo é tingido de louro bem claro e encaracolado como o de um poodle, suas covinhas são profundas, seu talhe está bem avançado a caminho da matronice. Ela tem um ar defensivo e obstinado que associo a pessoas acostumadas a ser usadas e ter problemas. Eu também diria que ela é astuta. Estou propensa a desconfiar de cada palavra que ela diz. “Não quero problemas aqui”, ela nos informa. “Como se eu já não tivesse o bastante acontecendo, especialmente nesta época do ano”, diz enquanto caminha. “Todas essas pessoas que têm vindo aqui, de manhã, ao meio-dia e à noite, para ficar olhando embasbacadas e tirar fotos.” “Que pessoas?”, pergunta Marino. “Só pessoas em carros, parando na entrada dos carros, olhando. Algumas delas saindo e espiando em volta. A noite passada eu acordei quando alguém entrou com o carro. Eram duas da manhã.” Marino acende um cigarro. Seguimos Kiffin através da sombra de pinheiros por uma trilha com vegetação crescida coberta de neve revolvida e passamos por velhos trailers que parecem barcos sem condições de navegar. Perto de uma mesa de piquenique há um amontoado de pertences que à primeira vista parece lixo de um acampamento que alguém não limpou. Mas então vejo o inesperado: uma estranha coleção de brinquedos, bonecas, livros de cartolina, lençóis, dois travesseiros, um cobertor, um carrinho de bebê duplo — coisas que estão encharcadas e sujas não porque sejam imprestáveis e tenham sido deliberadamente jogadas fora, mas porque foram expostas inadvertidamente aos elementos. Espalhados por toda parte há pedaços de embalagens de plástico que instantaneamente ligo ao fragmento que encontrei aderido às costas queimadas da primeira vítima. São brancos, azuis e laranja brilhante e estão rasgados em tiras estreitas, como se quem fez isso tivesse um hábito nervoso de despedaçar coisas. “Alguém com certeza saiu com pressa”, comenta Marino. Kiffin me observa. “Será que saíram sem pagar a conta?”, diz Marino. “Ah, não.” Ela parece ter pressa de ir para o pequeno motel vistoso que aparece entre as árvores à frente. “Eles pagaram adiantado, como todo mundo. Uma família com dois garotos que ficou numa barraca, e de repente eles se mandaram. Não sei por que deixaram tudo isso. Uma parte, como o carrinho de bebê, é muito boa. É claro que depois nevou em tudo.” Uma rajada de vento espalha vários pedaços de embalagem como confetes. Chego mais perto e cutuco com o pé um travesseiro, virando-o. Um odor ácido pungente sobe até minhas narinas quando me agacho e olho mais de perto. Aderido ao lado de baixo do travesseiro há cabelo — longo, claro, muito fino, sem pigmentação. Meu coração emite um baque surdo, como a batida repentina e inesperada de um bumbo. Afasto com o dedo os pedaços de embalagem. O material plastificado é flexível mas duro, portanto não se rasga facilmente, a menos que se comece numa borda ranhurada onde a embalagem foi colada a quente. Alguns dos fragmentos são grandes e facilmente reconhecíveis como provenientes de embalagens de barras de amendoim caramelado PayDay. Posso até divisar o endereço do website da Hershey’s
Chocolate. Mais cabelo no lençol, curto, escuro, pêlo púbico. E mais vários cabelos longos e claros. “Barrinhas PayDay”, digo a Marino. Olho para Kiffin enquanto abro minha sacola. “Sabe de alguém por aqui que come muitas barrinhas PayDay e rasga as embalagens?” “Bom, não veio da minha casa.” Como se a tivéssemos acusado, ou talvez Zack e seus doces dentinhos. Não levo minha maleta de cena do crime para cenas onde não há corpos. Mas sempre tenho um kit de emergência em minha sacola, um saco de freezer grosso cheio de luvas descartáveis, sacos para evidências, cotonetes, um frasquinho de água destilada e kits de resíduo de disparo (GSR), entre outros itens. Removo a tampa de um kit GSR. Não é nada além de uma tirinha de plástico transparente com a ponta colante, e eu a uso para coletar três fios de cabelo do travesseiro e duas do cobertor. Guardo tudo, selado, dentro de um pequeno saco para evidências de plástico transparente. “Desculpe eu perguntar”, Kiffin me diz. “Para que você está fazendo isso?” “Acho que vou simplesmente ensacar todo esse lixo, esta área inteira, e levar para o laboratório.” Marino está de repente contido, calmo como um jogador de pôquer experiente. Ele sabe como lidar com Kiffin, e agora ela precisa ser manejada, porque ele também sabe muito bem que pessoas hipertricóticas têm um singular cabelo fino, sem pigmentos e rudimentar, como o de um bebê. Só que cabelo de bebê não tem quinze ou dezesseis centímetros, como o cabelo que Chandonne espalhou em suas cenas de crime. É possível que Jean-Baptiste Chandonne tenha estado neste acampamento. “Você administra este lugar sozinha?”, Marino pergunta a Kiffin. “Totalmente.” “Quando a família que estava na barraca saiu? O tempo não está muito bom para acampar.” “Eles estiveram aqui pouco antes de nevar. No final da semana passada.” “Você descobriu por que eles saíram tão depressa?”, Marino continua a sondar em seu tom calmo. “Não ouvi nada deles, nem uma palavra.” “Vamos precisar dar uma olhada melhor em tudo que eles deixaram.” Kiffin sopra em suas mãos nuas para aquecê-las e se abraça, virando-se de costas para o vento. Ela olha para sua casa e quase se pode vê-la contemplando que tipo de problema a vida reserva a ela e a sua família desta vez. Marino me faz sinal para segui-lo. “Espere aqui”, diz ele a Kiffin. “Já voltamos. Vou só pegar uma coisa na minha caminhonete. Não toque em nada, certo?” Ela nos observa enquanto andamos. Marino e eu falamos em voz baixa. Horas antes de Chandonne aparecer na porta da frente da minha casa, Marino tinha saído com a equipe de resposta para procurá-lo, e eles descobriram onde ele estava escondido em Richmond, numa mansão que passava por uma grande reforma à beira do rio James, muito perto do meu bairro. Como ele raramente saía durante o dia, supomos, seus movimentos não foram detectados quando ele se escondeu na casa e se serviu do que havia lá. Até este momento, nunca
ocorreu a nenhum de nós que Chandonne poderia ter estado em algum outro lugar. “Você acha que ele assustou quem estava na barraca para poder usá-la?” Marino destranca a caminhonete e procura na parte de trás da cabine, onde eu sei, por exemplo, que ele mantém uma espingarda de repetição. “Porque eu tenho de lhe contar, doutora. Uma coisa que percebemos quando entramos naquela casa à margem do rio James foi embalagens de junk food por todos os lugares. Um monte de embalagens de barrinhas.” Ele pega uma caixa de ferramentas vermelha e fecha a porta da caminhonete. “Como se ele tivesse realmente tara por açúcar.” “Você se lembra de que tipo de junk food ?” Eu me lembro de todas as Pepsis que Chandonne tomou enquanto Berger o entrevistava. “Barrinhas de cereais. Não me lembro se eram PayDays. Mas eram doces. Amendoins. Esses sacos pequenos de amendoins Planter’s, e, agora que estou pensando nisso, as embalagens estavam todas rasgadas.” “Minha nossa”, murmuro, e um calafrio me percorre até a medula. “Me pergunto se ele pode ser diabético.” Tento ser clínica, retomar meu equilíbrio. O medo volta como um bando de morcegos. “Que diabo ele estava fazendo aqui?”, diz Marino, e fica olhando na direção de Kiffin, ao longe, certificando-se de que ela não está mexendo em nada em uma área de acampamento que agora passou a fazer parte de uma cena de crime. “E como ele chegou aqui? Talvez ele tivesse um carro.” “Havia algum carro na casa onde ele estava escondido?”, pergunto, enquanto Kiffin observa nossa volta, uma figura solitária envolta em xadrez vermelho, sua respiração emergindo em exalações enfumaçadas. “As pessoas que são donas da mansão não mantinham nenhum carro lá enquanto a obra estava sendo feita”, diz Marino, num tom que Kiffin não pode ouvir. “Talvez ele tenha roubado algum e estacionado em um lugar que não seria notado. Apenas supus que o delinqüente nem sequer sabia dirigir, vendo como ele vivia na masmorra na casa de sua família em Paris.” “Sim. Mais suposições”, murmuro, lembrando-me da afirmação de Chandonne de que dirigia uma dessas motocicletas verdes para limpar as calçadas de Paris, duvidando da história mas agora nem tanto. Voltamos à mesa de piquenique, e Marino deposita a caixa de ferramentas e a abre. Ele tira luvas de trabalho de couro e as calça, depois abre vários sacos de lixo de cinqüenta galões e os segura abertos. Enchemos três sacos, e ele corta um quarto e cobre o carrinho de criança com pedaços de plástico preto e os cola com fita adesiva. Enquanto faz isso, ele explica a Kiffin que é possível que alguém tenha assustado a família que estava na barraca. Sugere que talvez um estranho tenha se apossado deste local, mesmo que apenas por uma noite. Em algum momento ela percebeu alguma coisa fora do comum, por exemplo, um veículo desconhecido na área antes do sábado passado? Ele diz tudo isso como se jamais tivesse lhe ocorrido que ela esconderia a verdade. É claro que sabemos que Chandonne não poderia ter estado aqui depois do sábado. Ele está preso desde então. Kiffin não ajuda. Afirma que não percebeu
nada fora do normal, exceto que no começo de uma manhã ela saiu para pegar lenha para a lareira e notou que a barraca não estava mais lá, mas os pertences da família ainda estavam, ou pelo menos parte deles. Ela não pode jurar, mas, quanto mais Marino a cutuca, mais ela acredita que notou o desaparecimento da barraca por volta de oito da manhã, na sexta-feira passada. Chandonne assassinou Diane Bray na quinta à noite. Será que depois disso ele fugiu para o condado de Jamestown para se esconder? Imagino-o aparecendo na barraca, um casal e seus filhos pequenos lá dentro. Uma olhada para ele, e é crível que eles teriam pulado no carro e saído às pressas sem se preocupar em levar nada. Guardamos os sacos de lixo na traseira da caminhonete. Mais uma vez, Kiffin espera nossa volta, as mãos nos bolsos do casaco, o rosto rosado de frio. O motel fica bem à frente, depois dos pinheiros, uma pequena estrutura branca em formato de caixa, com dois andares e portas pintadas da cor de sempre-vivas. Atrás do motel há mais bosques, depois um riacho que deságua no rio James. “Quantas pessoas há aqui agora?”, Marino pergunta à mulher que dirige essa horrível armadilha para turistas. “Agora? Umas treze, a não ser que mais alguém tenha saído. Muitas pessoas apenas deixam a chave no quarto e só sei que elas foram embora quando vou limpar. Sabe, eu deixei meus cigarros na casa”, diz ela a Marino sem olhar para ele. “Você se importa?” Marino põe a caixa de ferramentas no chão. Saca um cigarro do maço e o acende para ela. O lábio superior de Kiffin fica enrugado como papel crepom quando ela suga a fumaça, inalando profundamente e soprando com um lado da boca. Minha ânsia de fumar é atiçada. Meu cotovelo fraturado se queixa do frio. Não consigo parar de pensar sobre a família na barraca e o horror que deve ter sentido — se for verdade que Chandonne apareceu e que a família existe. Se ele veio direto para cá depois de assassinar Bray, o que aconteceu com suas roupas? Ele devia estar coberto de sangue. Deixou a casa de Bray e veio para cá coberto de sangue e aterrorizou estranhos para saírem da barraca, e ninguém chamou a polícia nem contou nada a ninguém? “Quantas pessoas estavam aqui anteontem, quando começou o incêndio?” Marino pega a caixa de ferramentas e começamos a andar de novo. “Eu sei quantas entraram.” Ela é vaga. “Não sei quem estava aqui. Tinham entrado onze, inclusive ele.” “Inclusive o homem que morreu no incêndio?” É minha vez de fazer perguntas. Kiffin olha para mim. “É isso.” “Me conte sobre a entrada dele”, Marino diz a ela enquanto caminhamos, paramos para olhar em volta e depois continuamos. “Você o viu chegar de carro como nós acabamos de fazer? Me parece que os carros simplesmente param bem na frente de sua casa.” Ela começa a balançar a cabeça. “Não, senhor. Não vi nenhum carro. Houve uma batida na porta e eu a abri. Disse a ele para ir para a porta ao lado, para o escritório, que eu o encontraria lá. Ele tinha boa aparência, bem vestido, não parecia o que normalmente hospedo, isso é claro como o dia.” “Ele lhe disse seu nome?”, pergunta Marino.
“Pagou em dinheiro.” “Então, se uma pessoa paga em dinheiro, você não pede a ela que preencha nada.” “Pode, se quiser. Não precisa. Tenho um bloco de registro que a pessoa pode preencher e então eu destaco o recibo. Ele disse que não precisava de recibo.” “Ele tinha algum sotaque?” “Parecia que ele não era destas bandas.” “Você pode localizar de onde ele parecia ser? Do Norte? Talvez estrangeiro?” Marino insiste enquanto paramos outra vez embaixo dos pinheiros. Ela olha em volta, pensando e fumando enquanto a seguimos ao longo de uma trilha enlameada que leva ao estacionamento do motel. “Não do interior do Sul”, ela conclui. “Mas ele não parecia ser de um país estrangeiro. Sabe, ele não falou muito. Só disse o que tinha de dizer. Fiquei com a impressão, sabe, de que ele estava com pressa e um pouco nervoso, e com certeza ele não era de falar muito.” Isso parece totalmente fabricado. Na verdade, o tom de voz dela muda. “Alguém fica nesses trailers?”, pergunta então Marino. “Eu os alugo. As pessoas não vêm em seus próprios trailers agora. Está fora da temporada de acampamento.” “Alguém os está alugando agora?” “Não. Ninguém.” Na frente do motel, uma cadeira com o estofamento rasgado foi colocada perto de uma máquina de Coca-Cola e de um telefone público. Há vários carros no estacionamento, americanos, não novos. Um Granada, um LTD, um Firebird. Não há nenhum sinal de quem possa ser o dono deles. “Quem vem para cá nesta época do ano?”, pergunto. “Uma mistura”, Kiffin prossegue enquanto cruzamos o estacionamento em direção à extremidade sul do edifício. Examino o asfalto molhado. “Gente com problemas. Tem muito disso nesta época do ano. Pessoas aborrecidas com besteiras, e uma ou outra sai de casa e precisa de um lugar para ficar. Ou pessoas que dirigem longas distâncias para visitar a família e precisam de um lugar para passar a noite. Ou quando o rio transborda, como aconteceu há alguns meses, algumas pessoas vêm aqui porque eu permito animais de estimação. E também hospedo turistas.” “Pessoas que vêm ver Williamsburg e Jamestown?”, pergunto. “Muitas pessoas vêm aqui para ver Jamestown. Isso aumentou muito desde que começaram a cavar os túmulos lá. As pessoas são muito engraçadas.”
22
O quarto 17 fica bem no final do térreo. A fita de cena do crime amarelo brilhante está atravessada ao longo da porta. O lugar é distante, na borda do bosque cerrado que esconde o motel da rodovia 5. Estou especialmente interessada em qualquer vegetação ou restos que haja no asfalto diretamente em frente à porta, onde os bombeiros teriam arrastado o corpo. Noto sujeira, pedaços de folhas mortas e pontas de cigarro. Estou me perguntando se o fragmento de embalagem de barrinha doce que encontrei aderido às costas do homem morto veio de dentro do quarto ou de fora, do estacionamento. Se veio de dentro do quarto, isso pode significar que o assassino o trouxe para cá, ou poderia significar que o assassino caminhou pelo local de acampamento abandonado ou próximo dele em algum momento antes do assassinato, a menos que o pedaço de papel estivesse dentro do quarto por algum tempo, talvez trazido pela própria Kiffin quando veio limpá-lo depois de o último hóspede ter saído. Evidências são enganosas. É preciso sempre considerar sua origem e não tirar conclusões com base em onde elas terminaram. Fibras em um corpo, por exemplo, podem ter sido transferidas do assassino, que as pegou de um tapete onde elas foram depositadas originalmente por alguém que as levou para dentro de uma casa, depois que um terceiro indivíduo as deixou num assento de carro. “Ele pediu um quarto específico?”, pergunto a Kiffin enquanto ela procura as chaves no chaveiro. “Disse que queria algo reservado. O 17 não tinha ninguém de nenhum dos lados nem em cima, então foi por isso que dei a ele. O que aconteceu com seu braço?” “Escorreguei no gelo.” “Ah, isso é muito ruim. Você tem de usar o gesso muito tempo?” “Não muito mais.” “Você sentiu que podia haver mais alguém com ele?”, Marino pergunta a ela. “Não vi mais ninguém.” Ela fala concisamente com Marino, mas é amistosa comigo. Sinto seu olhar em meu rosto com freqüência e tenho a sensação degradante de que ela viu minha foto nos jornais ou na televisão. “Que tipo de médica você disse que era?”, ela me pergunta. “Sou legista.” “Ah.” Ela se anima. “Como o Quincy. Eu adorava aquele seriado. Você se lembra daquele episódio em que ele conseguia dizer tudo sobre uma pessoa só a partir de um osso?” Ela vira a chave na fechadura e abre a porta, e o ar se torna ácido com o fedor sujo do incêndio. “Eu achava aquilo a coisa mais impressionante. Raça, gênero, até o que a pessoa fazia para viver e a altura dela, e exatamente quando e como ela tinha morrido, e tudo só de um osso.” A porta se abre para um cenário escuro e sujo como uma mina de carvão. “Nem posso
dizer quanto isso vai me custar”, Kiffin diz enquanto passamos por ela e entramos no quarto. “O seguro jamais vai cobrir uma coisa como esta. Nunca cobre. Malditas companhias de seguros.” “Vou precisar que você espere do lado de fora”, Marino diz a ela. A única luz é a que entra pela porta aberta, e visualizo a forma da cama de casal. No centro dela há uma cratera onde o colchão queimou até as molas. Marino acende uma lanterna e um longo facho de luz se move pelo quarto, começando pelo closet bem à direita de onde estou, perto da porta. Dois cabides de arame pendem de um varão de madeira. O banheiro fica logo à esquerda da porta, e na parede oposta à cama há um armário. Em cima dele há algo, um livro. Está aberto. Marino caminha para mais perto para iluminar as páginas. “Bíblia de Gideão”, ele diz. A luz se move para a extremidade do quarto, onde há duas cadeiras e uma pequena mesa, depois uma janela e uma porta dos fundos. Marino abre as cortinas e a pálida luz do sol banha o quarto. O único dano provocado pelo fogo que consigo ver está na cama, que queimou e produziu muita fumaça densa. Tudo dentro do quarto está coberto de fuligem, e esse é um presente forense inesperado. “O quarto inteiro foi defumado”, digo em voz alta, maravilhada. “É?” Marino move a lanterna enquanto pego meu celular. Não vejo nenhum evidência de que Stanfield tenha tentado buscar impressões digitais latentes aqui, e não o culpo por isso. A maioria dos investigadores suporia que a fuligem intensa e os danos provocados pela fumaça apagariam impressões digitais, quando de fato o oposto é verdade. O calor e a fuligem tendem a processar impressões latentes, e há um velho método de laboratório chamado defumação usado em objetos não porosos, como metais brilhantes, que tendem a ter um efeito de Teflon quando são aplicados talcos tradicionais. Impressões latentes são de fato transferidas para um objeto porque as superfícies dos sulcos de fricção de dedos e palmas da mão contêm resíduos oleosos. São esses resíduos que terminam em alguma superfície: uma maçaneta, um copo de vidro, o vidro de uma janela. O calor amacia os resíduos, e a fumaça e a fuligem então aderem a eles. Durante o resfriamento os resíduos se tornam fixos ou firmes e a fuligem pode ser gentilmente escovada como talco. Antes que existissem o fumigamento com Super Glue e as fontes de luz alternada, não era incomum conseguir impressões queimando pastilhas alcatroadas, cânfora e magnésio. É bem possível que por baixo da pátina de fuligem neste quarto haja uma galáxia de impressões digitais latentes que já foram processadas para nós. Ligo para a casa do chefe da seção de impressões digitais, Neils Vander, e explico a situação, e ele diz que vai nos encontrar no motel em duas horas. Marino tem outras preocupações, sua atenção está fixada em um ponto acima da cama, que ele focaliza com a lanterna. “Puta merda”, ele murmura. “Doutora, você viu isso?” Ele ilumina dois parafusos com olhais chamuscados, atarrachados no teto de gesso acartonado a uma distância de cerca de noventa centímetros um do outro. “Ei!”, ele chama Kiffin. Ela entra no quarto e olha para onde ele está iluminando. “Você tem alguma idéia de por que esses olhais estão no teto?”, ele pergunta a ela.
Ela tem uma expressão estranha no rosto, e sua voz sobe uma nota, do modo como ela faz quando está sendo evasiva, acho. “Nunca os vi antes. Não imagino como isso aconteceu”, declara. “Quando foi a última vez que você esteve neste quarto?”, Marino pergunta a ela. “Uns dois dias antes de ele se registrar. Quando o limpei depois que a última pessoa saiu, quer dizer, a última pessoa antes dele.” “Então os olhais não estavam aqui?” “Se estavam, não notei.” “Senhora Kiffin, espere lá fora para o caso de termos mais perguntas.” Marino e eu calçamos luvas. Ele abre bem os dedos, e a borracha se estica e estala. A janela ao lado da porta dos fundos dá para uma piscina que está cheia de água suja. Do outro lado da cama há uma pequena televisão Zenith num suporte, com um aviso colado lembrando aos hóspedes para desligarem a TV antes de saírem. O quarto é bem como Stanfield descreveu, mas ele não mencionou a Bíblia de Gideão aberta em cima do armário, nem que à direita da cama, perto do chão, há uma tomada elétrica com dois fios desligados sobre o tapete ao lado dela, uma para o abajur do criado-mudo, a outra para o rádiorelógio. O relógio é antigo. Não é digital. Quando foi desligado, os ponteiros pararam em três e doze da tarde. Marino diz a Kiffin para entrar de novo no quarto. “A que hora você disse que ele entrou?”, ele pergunta. “Ah, perto das três.” Ela está bem embaixo do vão da porta, olhando inexpressivamente para o relógio. “Parece que ele entrou e desligou o relógio e o abajur, não é? Isso é meio estranho, a menos que talvez ele fosse ligar outra coisa e precisasse da tomada. Alguns desses executivos têm esses laptops.” “Você notou se ele tinha um?”, Marino olha para ela. “Não notei que ele tinha nada além do que parecia uma chave de carro e a carteira.” “Você não disse nada sobre uma carteira. Você viu uma carteira?” “Ele a tirou para me pagar. Couro preto, é o que eu lembro. Parecia cara, como tudo o mais que ele tinha. Talvez fosse pele de jacaré ou algo do tipo”, ela aumenta sua história. “Quanto ele pagou em dinheiro e em que tipo de nota?” “Uma nota de cem e quatro de vinte. Ele disse para eu ficar com o troco. O total foi cento e sessenta dólares e setenta centavos.” “Ah, sim. O especial mil seiscentos e sete”, diz Marino numa voz monótona. Ele não gosta de Kiffin. Certamente não confia nem um pouco nela, mas guarda isso para si, manipulando-a como a uma mão de cartas. Se eu não o conhecesse tão bem, até a mim ele enganaria. “Você tem alguma escada aqui?”, ele diz então. Ela hesita. “Bom, acho que sim.” Sai outra vez, e a porta fica aberta. Marino se abaixa para dar uma olhada mais de perto na tomada e nos fios desligados. “Você acha que eles ligaram a pistola de ar quente aqui?” Ele pondera isso em voz alta. “É possível. Se tiver sido uma pistola de ar quente”, lembro a ele. “Eu usei uma para descongelar os encanamentos e para tirar o gelo da
escada da frente de minha casa. Funciona como uma mágica.” Ele olha embaixo da cama com a lanterna. “Nunca tive um caso em que uma delas fosse usada numa pessoa. Porra. Ele deve ter sido amordaçado muito bem para ninguém ouvir nada. Imagino por que eles desligaram as duas coisas, o abajur e o relógio.” “Talvez assim o disjuntor não fosse acionado.” “Numa espelunca como esta, é, talvez. Uma pistola de ar quente provavelmente tem a mesma voltagem de um secador de cabelo. Cento e vinte, cento e vinte e cinco. E um secador de cabelo provavelmente apagaria as luzes numa pocilga como esta.” Vou até o armário e olho para a Bíblia. Está aberta nos capítulos 16 e 17 do Eclesiastes, e as páginas expostas estão cobertas de fuligem, a área do armário sob a Bíblia poupada, indicando que esta era a posição em que ela estava quando o incêndio começou. A questão é se a Bíblia foi aberta assim antes de a vítima entrar, ou, aliás, se estava mesmo no quarto. Meus olhos vagueiam pelas linhas e param no primeiro versículo do capítulo 7. Leio para Marino. Melhor é o bom nome que o melhor ungüento, e o dia da morte do que o dia do nascimento. Digo a ele que essa parte do Eclesiastes é sobre a vaidade. “Meio que bate com essa coisa esquisita, não é?”, ele comenta. De fora vem o som de alumínio raspando, e Kiffin retorna com um surto de ar invernal. Marino pega dela uma escada torta, salpicada de tinta, e a abre. Ele sobe e ilumina os olhais com a lanterna. “Caramba, acho que preciso de óculos novos. Não consigo enxergar nada”, ele diz enquanto seguro a escada. “Quer que eu olhe?”, me ofereço. “Sirva-se.” Ele desce. Pego uma pequena lupa em minha sacola e subo. Ele me passa a lanterna e eu examino os parafusos. Não consigo ver nenhuma fibra. Se há alguma, não vamos conseguir coletá-la aqui. O problema é como preservar um tipo de evidência sem arruinar outro, e há três tipos possíveis de evidência que poderiam estar associados a parafusos com olhal: impressões digitais, fibras e marcas de ferramenta. Se removermos a fuligem para procurar impressões latentes, talvez percamos fibras que poderiam corresponder à tira que pode ter sido enfiada nos parafusos com olhal, os quais também não podemos desparafusar sem correr o risco de introduzir novas marcas de ferramenta, supondo que usemos uma ferramenta como um alicate. A maior ameaça é inadvertidamente erradicar qualquer impressão possível. De fato, as condições e a luz são tão ruins que não deveríamos examinar nada aqui. Tenho uma idéia. “Me dê alguns sacos”, digo a Marino. “E uma fita.” Ele me entrega dois sacos pequenos de plástico transparente. Ponho um deles em volta de cada um dos parafusos e o fecho cuidadosamente com fita, tomando cuidado para não tocar em nenhuma parte do olhal nem do forro. Desço enquanto Marino abre a caixa de ferramentas. “Odeio lhe dizer”, ele se dirige a Kiffin, que se movimenta perto da porta, com as mãos bem enfiadas nos bolsos para se manter aquecida, “mas vou ter de cortar um pedaço do forro.” “Acho que isso não vai fazer muita diferença a esta altura”, ela diz com
resignação, ou será indiferença? “Pode cortar.” Ainda me pergunto por que o fogo não produziu chamas. Estou realmente encafifada com isso. Pergunto a Kiffin que tipo de roupa de cama e protetor de colchão estava na cama. “Bom, eles são verdes”, ela diz, aparentemente segura sobre isso. “A colcha era verde-escura, mais ou menos da cor das portas. Não sabemos o que aconteceu com os lençóis. Eles eram brancos.” “Você tem alguma idéia sobre do que eles eram feitos?”, pergunto. “Tenho certeza que a colcha era de poliéster.” Poliéster é tão combustível que tento sempre me lembrar de não usar materiais sintéticos quando viajo de avião. Se o avião cair e pegar fogo, a última coisa que quero ter encostada em minha pele é poliéster. Seria o mesmo que me encharcar de gasolina. Se havia uma colcha de poliéster quando o incêndio começou, é mais do que provável que o quarto inteiro teria pegado fogo, e depressa. “Onde você comprou os colchões?”, pergunto a ela. Ela hesita. Não quer me contar. “Bom”, finalmente diz o que penso ser a verdade, “os novos são muito caros. Eu uso de segunda mão, quando consigo.” “De onde?” “Bom, daquela prisão que eles fecharam em Richmond há alguns anos”, diz ela. “Spring Street?” “Essa mesmo. Mas eu não peguei nada em que eu mesma não dormiria.” Ela defende seu padrão de cama bem equipada. “Peguei os mais novos que eles tinham.” Isso talvez explique por que o colchão só ficou chamuscado e de fato não pegou fogo. Em hospitais e prisões, os colchões recebem um tratamento com retardante de chamas. Isso também sugere que quem quer que tenha posto fogo não teria tido nenhuma razão para saber que estava tentando queimar um colchão tratado com retardante de chama. E, é claro, o bom senso diria que essa pessoa também não ficou por aqui tempo suficiente para saber se o fogo se alastraria. “Senhora Kiffin”, digo, “há uma Bíblia em todos os quartos?” “A única coisa que o pessoal não rouba.” Ela evita minha pergunta, assumindo outra vez um tom de voz suspeito. “Você sabe por que esta aqui está aberta no Eclesiastes?” “Eu não saio por aí abrindo as Bíblias. Apenas as deixo no armário. Eu não a abri.” Ela hesita, então anuncia: “Ele deve ter sido assassinado, senão não estaria todo mundo se dando a todo esse trabalho”. “Temos de olhar todas as possibilidades”, observa Marino, enquanto sobe outra vez na escada, segurando uma pequena serra de metal que é útil em cenas como esta, porque seus dentes são reforçados e não são angulados. Elas conseguem cortar elementos in situ, no local, tais como molduras de janelas, rodapés, canos ou, neste caso, vigas. “O negócio tem estado difícil”, diz a sra. Kiffin. “Tenho de me virar sozinha, porque meu marido fica o tempo todo na estrada.” “O que seu marido faz?”, pergunto. “É motorista de caminhão da Overland Transfer.”
Marino começa a arrancar chapas do forro em volta de onde estão presos os parafusos com olhal. “Imagino que ele não fique muito em casa”, digo. O lábio inferior dela treme quase imperceptivelmente e seus olhos brilham de medo. “Não preciso de um assassinato. Ah, meu Deus, isso vai me causar um baita problema.” “Doutora, você se importa de segurar a lanterna para mim?” Marino não reage à súbita necessidade que ela tem de simpatia. “Um assassinato machuca muitas pessoas.” Aponto a luz da lanterna para o teto, meu braço bom firmando outra vez a escada. “É um fato triste e injusto, senhora Kiffin.” Marino começa a serrar, e o pó da madeira cai. “Nunca ninguém morreu aqui”, ela continua a se queixar. “É a pior coisa que pode acontecer com um lugar.” “Ei”, Marino graceja com ela, por cima do barulho da serra, “você provavelmente vai conseguir clientes por causa da publicidade.” Ela olha de forma lúgubre para ele. “Por mim, esses tipos podem ficar bem longe daqui.”
 
 
Pelas fotos que Stanfield me mostrou, reconheço a área da parede onde o corpo foi encostado e tenho uma idéia geral de onde a roupa foi encontrada. Imagino a vítima nua na cama, com os braços esticados por uma corda passada pelos olhais dos parafusos. Ele poderia estar de joelhos ou até sentado — só parcialmente içado. Mas a posição de crucificação e a mordaça o impediriam de respirar. Está arquejando, lutando para respirar, seu coração palpitando furiosamente de pânico e dor enquanto ele observa alguém ligar a pistola de ar quente na tomada, enquanto ouve o ar soprando quando ela é acionada. Nunca consegui entender o desejo humano de torturar. Conheço a dinâmica, sei que ela tem tudo a ver com controle, o abuso final do poder. Mas não consigo compreender que alguém obtenha satisfação, compensação, e certamente não prazer sexual, de causar dor a qualquer criatura viva. Meu sistema nervoso central se eletriza e se agita, minha pulsação dá socos. Estou suando por baixo do casaco, embora dentro do quarto esteja tão frio que podemos ver nossa respiração. “Senhora Kiffin”, digo enquanto Marino trabalha com a serra, “cinco dias — um pacote executivo? Nesta época do ano?” Paro e vejo a confusão no rosto dela. Ela não está dentro de minha mente. Não vê o que vejo. Não consegue nem começar a imaginar o que estou reconstruindo enquanto estou aqui neste motel barato com seus colchões de prisão de segunda mão. “Por que ele pediria um quarto para cinco dias na semana do Natal?”, quero saber. “Ele disse alguma coisa que possa ter lhe dado uma pista do motivo pelo qual ele estava aqui, do que estava fazendo, de onde era? Além de sua observação de que ele não parecia daqui?” “Eu não pergunto.” Ela observa Marino trabalhando. “Talvez eu devesse. Algumas pessoas falam muito e contam à gente mais do que a gente quer saber. Algumas não querem que a gente se meta nos assuntos delas.”
“Que impressão você teve dele?”, continuo a cutucá-la. “Bom, Mister Peanut não gostou dele.” “Quem diabo é o senhor Peanut?” Marino desce com uma placa do forro presa por um parafuso com olhal a um pedaço de viga de dez centímetros. “Nossa cachorra. Vocês provavelmente a viram quando chegaram. Sei que o nome é engraçado para uma fêmea que já teve tantos filhotes como aquela, mas foi Zack quem pôs. Mister Peanut começou a latir assim que aquele homem apareceu na porta. Nem chegou perto dele, ficou com o pêlo das costas todo arrepiado.” “É possível que sua cachorra estivesse latindo e incomodada porque havia outra pessoa aqui? Alguém que você não viu?”, sugiro. “Pode ser.” Uma segunda placa cai do forro, e a escada se sacode enquanto Marino desce. Ele volta a sua caixa de ferramentas para pegar um rolo de papel para freezer e fita para proteger evidências e começa a embrulhar as placas em pacotes bem-feitos, enquanto eu entro no banheiro e o ilumino com a lanterna. Tudo é branco institucional, o topo do balcão manchado de queimaduras amareladas, provavelmente dos cigarros acesos esquecidos pelos hóspedes enquanto se barbeiam, se maquiam ou ajeitam o cabelo. Vejo mais uma coisa que Stanfield não notou. Um pedaço de fio dental balança dentro da privada. Está preso entre a borda do vaso e o assento. Recolho-o com a mão enluvada. Tem cerca de trinta centímetros, boa parte molhada com a água do vaso, e no meio é vermelho-claro, como se alguém o tivesse passado entre os dentes e as gengivas tivessem sangrado. Como este último achado não está perfeitamente seco, não o guardo em plástico. Coloco-o num quadrado de papel para freezer que dobro em forma de envelope. Provavelmente temos DNA. A questão é: de quem? Marino e eu voltamos à caminhonete à uma e meia, e Mister Peanut sai correndo da casa quando Kiffin dá um puxão na porta da frente para entrar. A cachorra nos segue, latindo. Observo no retrovisor interno quando Kiffin grita com ela. “Venha já para cá!” Ela bate as mãos, irritada. “Venha já!” “Algum babaca faz um intervalo na tortura para passar fio dental?”, começa Marino. “De que diabo estamos tratando aqui? Ou o mais provável é que estivesse pendurado na privada desde o último Natal.” Mister Peanut agora está bem junto à minha porta, a caminhonete dando solavancos no chão sem calçamento que leva através dos bosques à rodovia 5. “Venha já aqui!”, Kiffin berra enquanto desce a escada, batendo palmas com as mãos. “Cachorra danada”, Marino se queixa. “Pare!” Tenho medo de passarmos por cima do pobre animal. Marino mete o pé no freio e a caminhonete dá uma guinada e pára. Mister Peanut pula latindo, sua cabeça aparecendo e sumindo em minha janela. “O que é isso?” Estou desconcertada. A cachorra mal se interessou por nós quando chegamos, faz apenas algumas horas. “Volte aqui!” Kiffin está vindo para cima da cachorra. Atrás dela, um garoto enche o vão da porta, não o que vimos antes, mas um da altura de Kiffin. Saio da caminhonete e Mister Peanut começa a balançar o rabo. Focinha
minha mão. A pobre criatura está suja e cheira mal. Pego-a pela coleira e a empurro na direção de sua família, mas ela não quer sair de perto da caminhonete. “Vamos”, digo a ela. “Vamos levá-la para casa antes que você seja atropelada.” Kiffin chega, lívida. Ela bate com força na cabeça da cachorra. Mister Peanut bale como uma ovelha ferida, o rabo entre as pernas, agachada. “Aprenda a obedecer, está ouvindo?” Kiffin balança o dedo furiosamente para a cachorra. “Para dentro de casa!” Mister Peanut se move furtivamente atrás de mim. “Já!” A cachorra fica atrás de mim, pressionando o corpo trêmulo contra minhas pernas. A pessoa que vi no vão da porta sumiu, mas Zack apareceu na varanda. Está usando um jeans e uma camiseta grandes demais. “Vem cá, Peanut”, ele grita, estalando os dedos. Parece tão apavorado quanto a cachorra. “Zack! Não me obrigue a dizer a você outra vez para manter esse traseiro em casa!”, a mãe de Zack grita com ele. Crueldade. É só sairmos, e a cachorra vai apanhar. E talvez a criança também. Bev Kiffin é uma mulher frustrada e descontrolada. A vida a fez sentirse impotente, e por baixo da pele ela cozinha com mágoa e raiva a injustiça de tudo. Ou talvez ela seja apenas totalmente má, e talvez Mister Peanut esteja correndo atrás da caminhonete porque quer que a levemos, que a salvemos. Essa fantasia se instala em minha mente. “Senhora Kiffin”, digo com a voz calma da autoridade — aquela voz fria que reservo para momentos em que pretendo assustar muito alguém. “Não toque de novo em Mister Peanut, a menos que seja com bondade. Tenho uma coisa especial em relação a pessoas que maltratam animais.” Seu rosto assume um tom sombrio e a raiva cintila. Olho fixo para as pupilas dela. “Há leis contra crueldade com animais, senhora Kiffin”, digo. “E bater em Mister Peanut na frente de seus filhos não é um bom exemplo.” Insinuo que vi uma segunda criança da qual até agora ela não nos falou. Ela se afasta de mim, vira-se e caminha em direção à casa. Mister Peanut fica sentada, olhando para mim. “Vá para casa”, digo a ela, com o coração partido. “Vá, querida. Você precisa ir para casa.” Zack desce os degraus e corre até nós. Pega a cachorra pela coleira, faz cócegas nas orelhas dela, fala com ela. “Seja boazinha, não vá deixar a mamãe louca, Mister Peanut. Por favor”, ele diz, olhando para mim. “Ela só não gosta de ver você levar o carrinho de bebê dela.” Fico chocada, mas não demonstro. Abaixo-me e afago Mister Peanut, tentando ignorar que seu fedor almiscarado ativa outra vez lembranças de Chandonne. A náusea me vira o estômago e me faz salivar. “O carrinho de bebê é dela?”, pergunto a Zack. “Quando ela tem filhotes, eu levo eles para passear nele”, ele me diz. “Por que ele estava na mesa de piquenique, Zack?”, pergunto. “Eu pensei que uns campistas o tinham deixado lá.” Ele balanca a cabeça, afagando Mister Peanut. “Hum, hum. É de Mister
Peanut, não é, Mister Peanut? Eu tenho de ir embora.” Ele se levanta, olhando furtivamente para a porta aberta da casa. “Sabe de uma coisa.” Também me levanto. “Precisamos olhar o carrinho de Mister Peanut, mas quando tivermos terminado prometo que vou trazê-lo de volta.” “Tudo bem.” Ele arrasta a cachorra atrás de si, meio correndo, meio puxando. Olho fixo para eles quando entram na casa e fecham a porta. Fico parada no meio da estrada suja à sombra de pinheiros desgastados, com as mãos no bolso, observando, porque não tenho dúvida de que Bev Kiffin está me observando. Costuma-se chamar isso de significar, tornar sua presença conhecida. Minha missão aqui ainda não terminou. Vou voltar.
23
Seguimos para leste pela rodovia 5. Estou preocupada com o horário. Mesmo que num passe de mágica eu pudesse fazer o helicóptero de Lucy aparecer, nunca chegaria à casa de Anna às duas da tarde. Pego minha carteira e encontro o cartão onde Berger escreveu seu número de telefone. Não há resposta no hotel dela, e deixo uma mensagem para ela me pegar às seis da tarde. Marino está em silêncio quando guardo o celular em minha sacola. Ele olha fixo para a frente, sua caminhonete rugindo alto na estrada estreita e sinuosa. Está processando o que acabei de lhe contar sobre o carrinho de bebê. É claro que Bev Kiffin mentiu para nós. “Tudo aquilo lá, uau”, ele diz finalmente, balançando a cabeça. “Tive uma sensação arrepiante. Como se houvesse um monte de olhos observando tudo que estávamos fazendo. Como se aquele lugar tivesse uma vida própria sobre a qual ninguém sabe nada.” “Ela sabe”, respondo. “Ela sabe de alguma coisa. Isso é óbvio, Marino. Ela fez questão de nos dizer que o carrinho de bebê foi deixado pelas pessoas que abandonaram o acampamento. Contou isso sem fazer nem uma pausa. Queria que acreditássemos nisso. Por quê?” “Essas pessoas não existem, quem quer que supostamente estivesse naquela barraca. Se os cabelos forem de Chandonne, vou ter de pensar que ela o deixou ficar lá, e é por isso que ela se comportou de um jeito tão suspeito.” A visão de Chandonne aparecendo na recepção do hotel e pedindo um lugar para passar a noite provoca um curto-circuito em minha imaginação. Não consigo imaginar isso. Le Loup-garou, como ele se chama, não correria esse risco. Seu modus operandi, pelo que sabemos, não era aparecer na porta de alguém, a menos que ele pretendesse assassinar e dar marretadas nessa pessoa. Pelo que sabemos. Pelo que sabemos, fico pensando. A verdade é que sabemos menos do que sabíamos há duas semanas. “Temos de recomeçar tudo”, digo a Marino. “Definimos alguém sem informações, e agora o que acontece? Cometemos o erro de traçar um perfil dele e depois acreditar em nossa projeção. Bem, há dimensões nele que nos escaparam completamente e, embora ele esteja preso, não está.” Marino saca seus cigarros. “Você entende o que estou dizendo?”, continuo. “Em nossa arrogância, concluímos como ele é. Baseamos isso em evidências científicas e acabamos com o que, na verdade, é uma suposição. Uma caricatura. Ele não é um lobisomem. É um ser humano, e não importa quão mau seja, tem muitas facetas, e agora nós as estamos descobrindo. Diabo, era óbvio no teipe. Por que demoramos tanto a perceber? Não quero que Vander vá àquele motel sozinho.” “Boa sacada.” Marino pega o telefone. “Vou ao motel com ele e você pode levar minha caminhonete para Richmond.” “Havia alguém no vão da porta”, digo. “Você o viu? Ele era grande.”
“Não”, diz ele. “Não vi ninguém. Só o garotinho, como é o nome dele? Zack. E a cachorra.” “Eu vi outra pessoa”, insisto. “Vou verificar isso. Você tem o número do telefone do Vander?” Dou a ele e ele liga. Vander já está a caminho, e sua mulher dá a Marino o número de seu telefone celular. Olho pela janela para empreendimentos residenciais arborizados com grandes casas em estilo colonial situadas longe das ruas. Elegantes decorações de Natal brilham através das árvores. “É, há alguma merda estranha por lá”, Marino está dizendo a Vander ao telefone. “Então o seu criado aqui vai ser seu guarda-costas.” Ele encerra a ligação e nós ficamos em silêncio por um momento. A noite passada parece encher o espaço troante entre nós na caminhonete. “Há quanto tempo você sabe?” Finalmente pergunto outra vez a Marino, nada satisfeita com o que ele me contou na entrada para carros da casa de Anna quando o acompanhei até caminhonete depois da meia-noite. “Quando exatamente Righter lhe contou que estava instigando uma investigação especial do grande júri, e que motivo ele tinha para isso?” “Você ainda não tinha nem terminado a autópsia dela.” Marino acende um cigarro. “Bray ainda estava em sua mesa, para ser mais exato. Highter liga para mim e diz que não quer você envolvida com o exame post-mortem dela, e eu digo a ele: ‘E o que você quer que eu faça? Entre no necrotério e mande ela soltar o bisturi e pôr as mãos para o alto?’. Aquele pateta de merda.” Marino expele a fumaça enquanto meu desânimo se desdobra em uma forma assustadora dentro de meu cérebro. “Foi por isso também que ele não pediu sua permissão para ir bisbilhotar em sua casa”, acrescenta Marino. A parte da bisbilhotice, pelo menos, eu já tinha imaginado. “Ele queria ver se os policiais encontravam alguma coisa.” Ele faz uma pausa para bater a cinza. “Como uma picadeira de entalhar. Especialmente uma que talvez tivesse o sangue de Bray.” “Aquela com que ele tentou me atacar pode muito bem ter o sangue dela”, replico de forma razoável, calma, enquanto sou tomada aos poucos pela ansiedade. “O problema é que a picareta de entalhar com o sangue dela foi encontrada em sua casa”, Marino me lembra desse fato. “Claro que foi. Ele a levou para minha casa para poder usá-la em mim.” “É, e ela tem o sangue de Bray”, Marino continua. “Eles já fizeram exame de DNA. Nunca vi os laboratórios trabalharem tão rápido como agora, e você pode imaginar por quê. O governador está acompanhando tudo que acontece — para o caso de sua legista-chefe acabar se revelando uma assassina sanguinária.” Ele dá uma tragada e olha para mim. “E tem mais uma coisa, doutora. Não sei se Berger mencionou isso a você. Mas sabe a picadeira de entalhar que você diz que comprou na loja de ferramentas? Não foi encontrada.” “O quê?” Fico incrédula, depois furiosa. “Então, a única que estava na sua casa é a que tem sangue de Bray. Uma única picareta. Encontrada na sua casa. E tem sangue de Bray.” Ele expõe seu argumento, não sem alguma relutância.
“Você sabe por que eu comprei aquela picareta”, respondo, como se minha discussão fosse com ele. “Eu queria ver se ela correspondia ao padrão dos ferimentos dela. E ela estava definitivamente na minha casa. Se não estava lá quando vocês mexeram em tudo, então ou vocês não perceberam, ou alguém a pegou.” “Você se lembra do último lugar em que a pôs?” “Eu a usei na cozinha, num frango, para ver que aspecto teriam os ferimentos, e também que tipo de padrão o cabo espiralado produziria se eu pusesse algo nele e o pressionasse contra papel.” “É, sim, nós encontramos frango esmagado no lixo. E uma fronha manchada com molho de churrasco, como se talvez você tivesse embrulhado o cabo nela.” Ele não acha uma experiência como essa estranha. Sabe que faço muitas pesquisas incomuns quando estou tentando imaginar o que aconteceu com alguém. “Mas nenhuma picareta de entalhar. Não encontramos. Nem com molho de churrasco nem sem”, prossegue Marino. “Então eu me pergunto se o babaca do Talley a surrupiou. Talvez você deva falar com Lucy e Teun para botarem a organização secreta delas em cima dele e ver o que descobrem, certo? A primeira grande investigação da Última Delegacia. Para começar, eu gostaria de fazer uma checagem do crédito do desgraçado para ver onde ele consegue todo aquele dinheiro.” Fico olhando para meu relógio, controlando o tempo. O bairro onde Mitch Barbosa morava fica a dez minutos do Fort James Motel. As elegantes casas revestidas com ripas cinza-acastanhadas são novas, e não há nenhuma vegetação, apenas terra nua salpicada de grama muito nova e manchada de neve. Reconheço carros policiais sem marcas de identificação no estacionamento quando entramos, três Ford Crown Victoria e um Chevrolet Lumina estacionados em fila. Não me escapa nem a Marino que dois deles têm placa de Washington. “Que merda”, diz Marino. “Sinto o cheiro dos federais. Puxa vida”, ele me diz quando estacionamos, “isso não é bom.” Percebo um detalhe curioso quando seguimos pelo caminho de tijolos para a casa onde Barbosa vivia com sua suposta namorada. Através de uma janela no andar de cima vejo uma vara de pescar. Está apoiada no vidro, e não sei o que me parece fora de lugar, exceto que esta não é a época do ano em que se pesca, assim como não é a época de acampar. Mais uma vez, penso nas pessoas misteriosas, se não míticas, que fugiram do acampamento, deixando para trás muitas de suas posses. Volto à mentira de Bev Kiffin e sinto que estou mergulhando num espaço aéreo perigoso, onde há forças que não consigo ver nem entender movendo-se em velocidades incríveis. Marino e eu esperamos na porta da frente da casa D, e ele toca outra vez a campainha. O detetive Stanfield responde e nos saúda distraído, olhando para todos os cantos. A tensão entre ele e Marino é como uma parede. “Desculpe eu não ter ido ao motel”, ele anuncia, lacônico, quando se afasta para permitir que entremos. “Surgiu uma coisa. Vocês vão saber em um minuto”, ele promete. Está usando uma calça de veludo cotelê cinza e um suéter de malha grossa, e não me encara. Não sei se ele faz isso porque sabe como me sinto a respeito de ele
ter vazado informações para seu cunhado, o deputado Dinwiddie, ou se há algum outro motivo. Ocorre-me que talvez ele saiba que estou sendo investigada por assassinato. Tento não pensar sobre essa realidade. Não adianta nada eu me preocupar agora. “Estão todos lá em cima”, diz ele, e nós o seguimos. “Todos, quem?”, pergunta Marino. Caminhamos fazendo um ruído surdo no tapete. Stanfield continua a andar. Não se vira nem quando responde, “ATF e FBI”. Percebo fotos emolduradas dispostas na parede à esquerda da escada e paro um momento para examiná-las, reconhecendo Mitch Barbosa rindo com pessoas aparentemente bêbadas em um bar e com a cabeça para fora da janela da cabine de um caminhão de transportes. Em uma das fotos, ele está tomando sol de sunga numa praia tropical, talvez o Havaí. Tem na mão um drinque, brindando à pessoa que está atrás da câmera. Várias outras fotos são com uma bela mulher, talvez a namorada com quem ele vive, imagino. Na metade da escada há um patamar e a janela na qual está encostada a vara de pescar. Paro, e uma sensação estranha sussurra de leve em minha carne quando examino, sem tocar, uma vara de fibra de vidro Shakespeare e um molinete Shimano. Um anzol e pesos estão presos na linha, e no tapete ao lado do cabo da vara está uma pequena caixa de apetrechos de pescar de plástico azul. Ao lado, como se tivessem sido postas ali quando alguém entrou na casa, há duas garrafas de cerveja Rolling Rock vazias, um pacote fechado de charutos Tiparillo e dinheiro trocado. Marino se vira para ver o que estou fazendo. Junto-me a ele no alto da escada e entramos em uma área de estar muito iluminada, decorada de forma atraente com mobília moderna simples e tapetes indianos. “Qual foi a última vez que você foi pescar?”, pergunto a Marino. “Não em água doce”, ele responde. “Não por aqui ultimamente.” “Exatamente.” Sou interceptada por uma percepção de que conheço uma das três pessoas que estão perto da ampla janela da sala. Meu coração salta quando a cabeça escura familiar se vira para mim e de repente dou de cara com Jay Talley. Ele não sorri, e seu olhar é agudo, como se seus olhos tivessem pontas de flecha. Marino emite um ruído pouco audível que parece o gemido de um filhote de animal primitivo. É seu jeito de me informar que Jay é a última pessoa que ele quer ver. Outro homem, de terno e gravata, é jovem e parece hispânico e, quando deposita sua xícara de café na mesa de centro, seu casaco se abre e revela um coldre de ombro com uma pistola de alto calibre. A terceira pessoa é uma mulher. Não tem a aparência devastada e confusa de uma pessoa cujo namorado acaba de ser morto. Está perturbada, sim. Mas suas emoções estão bem contidas por baixo da superfície, e reconheço o brilho em seus olhos e a rigidez de seu maxilar. Vi isso em Lucy, em Marino e em outros que ficam mais do que consternados quando algo de ruim acontece a uma pessoa com quem eles se importam. Policiais. Policiais ficam ofendidos e entram em um modo olho por olho quando algo acontece a um dos seus. A namorada de Mitch Barbosa, logo suspeito, é policial, provavelmente secreta. Em questão de minutos, o cenário mudou dramaticamente. “Este é Bunk Pruett, FBI”, Stanfield faz as apresentações. “Jay Talley, ATF.” Jay aperta minha mão como se não nos conhecêssemos. “E Jilison
McIntyre.” O aperto de mão dela é frio mas firme. “A senhorita McIntyre é do ATF.” Pegamos cadeiras e as dispomos de forma que todos possamos olhar uns para os outros e conversar. O ar está pesado. Impregnado de irritação. Reconheço o clima. Já o vi muitas vezes quando um policial é morto. Agora que já montou o cenário, Stanfield se esconde atrás de uma cortina de silêncio taciturno. Bunk Pruett assume o comando, no estilo típico do FBI. “Doutora Scarpetta, capitão Marino”, ele começa. “Quero começar dizendo o óbvio. Este é um assunto muito, muito delicado e sigiloso. Para ser honesto, odeio contar qualquer coisa sobre o que está acontecendo, mas vocês têm de saber com o que estão lidando.” Os músculos de sua mandíbula se contraem. “Mitch Barbosa é — era — um agente secreto do FBI, que trabalhava em uma grande investigação nesta área, a qual agora evidentemente temos de desmontar, pelo menos em certa medida.” “Drogas e armas”, diz Jay, olhando de Marino para mim.
24
“A Interpol está envolvida?” Não entendo por que Jay Talley está aqui. Não faz nem duas semanas ele estava trabalhando na França. “Bem, vocês devem saber”, diz Jay com um laivo de sarcasmo, ou talvez eu é que imagine isso. “O caso não identificado sobre o qual vocês acabaram de contatar a Interpol, o cara que morreu no motel na estrada? Temos uma idéia de quem ele pode ser. Portanto, sim, a Interpol está envolvida. Agora estamos. Podem apostar.” “Eu não sabia que tínhamos conseguido uma resposta da Interpol.” Marino mal tenta ser civilizado com Jay. “Então você está me dizendo que o cara do motel é algum tipo de fugitivo internacional, talvez?” “Sim”, responde Jay. “Rosso Matos, vinte e oito anos, natural da Colômbia. Visto pela última vez em Los Angeles. Também conhecido como Gato, porque é um sujeito muito quieto quando entra e sai dos lugares, matando. Essa é sua especialidade. Eliminar pessoas, um assassino profissional. Matos é famoso por gostar de roupas muito caras, carros — e de homens jovens. Imagino que tenho de falar dele usando o passado.” Jay faz uma pausa. Ninguém reage além de olhar para ele. “O que nenhum de nós entende é o que ele estava fazendo aqui na Virgínia”, acrescenta Jay. “Qual é exatamente a operação aqui?”, Marino pergunta a Jilison McIntyre. “Começou há quatro meses, com um cara em alta velocidade na rodovia 5, a apenas alguns quilômetros daqui. Um policial de James City o pára.” Ela olha para Stanfield. “Verifica os antecedentes dele e descobre que é um criminoso condenado. Além disso, o policial percebe o cabo de uma arma comprida saindo de debaixo de um cobertor no banco de trás, que revela ser um MAK-90 com o número de série raspado. Nossos laboratórios em Rockville conseguiram recuperar o número de série e descobriram que a arma fazia parte de um carregamento da China — embarcado regularmente para Richmond. Como vocês sabem, o MAK-90 é um substituto popular do rifle de assalto AK-47, que vale de mil a dois mil dólares no mercado. O pessoal do crime organizado adora o MAK, feito na China, embarcado com regularidade para portos em Richmond, Norfolk , legalmente, em caixotes cuidadosamente identificados. Outros MAKS estão sendo contrabandeados da Ásia para cá com heroína, em todos os tipos de caixotes, identificados como todo tipo de coisa, de produtos eletrônicos a tapetes orientais.” Em uma voz séria que só ocasionalmente revela a tensão que sente, McIntyre descreve uma rede de contrabando que, além de portos da área, envolve a transportadora do condado de James City onde Barbosa trabalhava disfarçado como motorista, e ela, como sua namorada. Ele conseguiu para ela um emprego no escritório da empresa, onde conhecimentos de embarque e faturas eram falsificados para disfarçar uma operação muito lucrativa que
também envolve cigarros enviados da Virgínia para Nova York e outros destinos no Nordeste. Algumas armas são vendidas através de um comerciante clandestino de armas nesta área, mas muitas delas terminam em vendas ilegais em exposições de armas, e todos nós sabemos quantas exposições de armas há na Virgínia, diz McIntyre. “Qual é o nome da transportadora?”, pergunta Marino. “Overland.” Os olhos de Marino me fuzilam. Ele corre os dedos por seu cabelo ralo. “Que merda”, ele diz a todos. “É para eles que o marido de Bev Kiffin trabalha. Que merda.” “A senhora que é proprietária e administradora do Fort James Motel”, Stanfield explica aos outros. “A Overland é uma empresa grande e nem todos estão envolvidos em atividade ilegal”, Pruett se apressa a ser objetivo. “E é isso o que torna a coisa tão difícil. A empresa e a maioria das pessoas que trabalham nela são legais. Portanto, pode-se examinar os caminhões o dia inteiro e nunca encontrar nada quente em nenhum deles. Então, no dia seguinte, um carregamento de papelaria, televisores, o que for, sai, e escondidos nas caixas há rifles de assalto e drogas.” “Você acha que alguém armou para o Mitch?”, pergunta Marino a Pruett. “E os bandidos decidiram dar um fim nele?” “Se foi isso, então por que o Matos também está morto?” Quem fala é Jay. “E parece que Matos morreu primeiro, certo?” Ele olha para mim. “Ele foi encontrado morto em circunstâncias realmente estranhas, num motel de beira da estrada. Então, no dia seguinte o corpo de Mitch é despejado em Richmond. Além disso, Matos é um peso pesado. Não entendo qual seria o interesse dele aqui — mesmo que alguém lá tivesse armado para Mitch, não se manda um assassino profissional como Matos. Ele é reservado para presas graúdas em organizações criminosas poderosas, caras difíceis de pegar porque são cercados por seus próprios assassinos fortemente armados.” “Para quem Matos trabalha?”, pergunta Marino. “Nós sabemos isso?” “Para quem pagar”, responde Pruett. “Ele cobre o mapa todo”, acrescenta Jay. “América do Sul, Europa, este país. Não está associado com nenhuma rede ou cartel, é um operador solitário. Se você quiser dar cabo de alguém, contrate Matos.” “Então alguém o contratou para vir aqui”, concluo. “Temos de supor isso”, replica Jay. “Não acho que ele estava na área para visitar Jamestown nem as decorações de Natal em Williamsburg.” “Também sabemos que ele não matou Mitch Barbosa”, acrescenta Marino. “Matos já estava morto e na mesa da doutora antes de Mitch sair para correr.” Todos assentem com a cabeça. Stanfield está cutucando uma unha. Parece perdido no espaço, extremamente constrangido. Fica o tempo todo enxugando o suor das sobrancelhas e passando os dedos na calça. Marino pede a Jilison que nos conte exatamente o que aconteceu. “Mitch gosta de correr ao meio-dia, antes do almoço”, ela começa. “Ele saiu perto do meio-dia e não voltou. Isso foi ontem. Eu saí de carro à procura
dele por volta das duas e, como ainda não havia nenhum sinal dele, liguei para a polícia e, é claro, para nosso pessoal. ATF e FBI. Outros agentes vieram e também começaram a procurar. Nada. Sabemos que ele foi visto na área da faculdade de direito.” “Marshall-Wythe?”, pergunto, fazendo anotações. “Certo, na William and Mary. Mitch costumava fazer sempre o mesmo trajeto, saía daqui, seguia pela rodovia 5, depois pegava a Francis Street, ia até a South Henry e voltava. Normalmente cerca de uma hora.” “Você se lembra do que ele estava usando e do que poderia ter levado?”, pergunto a ela. “Um agasalho de ginástica vermelho e um colete. Ele estava com um colete por cima do agasalho. É..., cinza, North Face. E sua capanga. Ele nunca ia a nenhum lugar sem ela.” “Ele tinha uma arma nela?”, supõe Marino. Ela faz que sim com a cabeça, engolindo, o rosto estóico. “Pistola, dinheiro, telefone celular. Chaves da casa.” “Ele não estava usando o colete quando seu corpo foi encontrado”, Marino informa a ela. “Nem capanga. Descreva a chave.” “Chaves”, ela o corrige. “Ele põe a chave daqui, da casa, e a chave do carro em um chaveiro de aço.” “Como é a chave da casa?”, pergunto, e sinto Jay me olhando. “Apenas uma chave de latão. Uma chave normal.” “Ele tinha uma chave de aço inoxidável no bolso do short de corrida”, digo. “Tinha o número 233 escrito com tinta permanente.” A agente McIntyre fanze o cenho. Ela não sabe nada sobre isso. “Bem, isso é realmente estranho. Não tenho a menor idéia de para que seria essa chave”, ela responde. “Então temos de imaginar que ele a pegou em algum lugar”, diz Marino. “Ele foi amarrado, amordaçado, torturado, depois levado para Richmond e jogado na rua em um de nossos adoráveis projetos, Mosby Court.” “Área de alta intensidade de tráfico de drogas?”, Pruett pergunta a ele. “Ah, claro. Os projetos são ótimos para o desenvolvimento econômico. Armas e drogas. Pode apostar.” Marino conhece seu território. “Mas outra coisa boa em lugares como Mosby Court é que as pessoas não vêem nada. Se você quer jogar um corpo, não importa se cinqüenta pessoas estiverem por ali. Elas ficam temporariamente cegas e com amnésia.” “Alguém que conhecia Richmond, então”, Stanfield finalmente dá uma opinião. Os olhos de McIntyre estão arregalados. Ela tem uma expressão aflita no rosto. “Eu não sabia sobre a tortura”, ela me diz. Sua resolução profissional balança como uma árvore prestes a cair. Descrevo as queimaduras de Barbosa e também entro em detalhes sobre as de Matos. Falo sobre as evidências de amarração e mordaça, e então Marino fala sobre os parafusos com olhal no teto do motel. Todos captam o quadro. Todos podem visualizar o que foi feito com esses homens. Temos de suspeitar que a mesma pessoa, ou pessoas, está envolvida nessas mortes. Mas isso nem
sequer começa a nos dizer quem ou por quê. Não sabemos onde pegaram Barbosa, mas eu tenho uma idéia. “Quando você voltar lá com Vander”, digo a Marino, “talvez deva verificar os outros quartos, ver se algum deles tem parafusos com olhal no teto.” “Vou fazer isso. Tenho de voltar lá de qualquer maneira.” Ele olha para seu relógio. “Hoje?”, Jay pergunta a ele. “É.” “Você tem alguma razão para pensar que Mitch foi drogado como o primeiro cara?”, Pruett me pergunta. “Não encontrei nenhuma marca de agulha”, respondo. “Mas vamos ver o que aparece nos resultados do exame toxicológico dele.” “Meu Deus”, murmura McIntyre. “E os dois fizeram xixi na calça?”, diz Stanfield. “Isso não acontece quando as pessoas morrem? Elas perdem o controle da bexiga e fazem xixi na calça? Apenas uma coisa natural, em outras palavras?” “Não posso dizer que perder urina seja raro. Mas o primeiro homem, Matos, tirou a roupa. Ele estava nu. Parece que ele fez xixi na calça e depois se despiu.” “Então isso foi antes de ele ser queimado”, diz Stanfield. “Eu suponho que sim. Ele não foi queimado vestido”, respondo. “É bem possível que as duas vítimas tenham perdido o controle da bexiga devido ao medo, ao pânico. Se alguém fica bastante assustado, faz xixi na calça.” “Meu Deus”, McIntyre murmura de novo. “E se a pessoa vê algum babaca pondo parafusos com olhal no teto e ligando uma pistola de ar quente, isso é suficiente para apavorar completamente a pessoa”, Marino ilustra com abundância. “A pessoa sabe muito bem o que está prestes a acontecer com ela.” “Meu Deus!”, explode McIntyre. Silêncio. “Por que porra alguém faria uma coisa dessas com Mitch? E não é que ele não tomasse cuidado, ele não entrava simplesmente no carro de alguém, nem se aproximava de um estranho que tentasse pará-lo na estrada.” Stanfield diz: “Me faz pensar no Vietnã, o jeito como eles faziam coisas com prisioneiros de guerra, os torturavam para fazê-los falar”. Fazer alguém falar pode certamente ser uma razão para a tortura, reajo ao que Stanfield acabou de dizer. “Mas também é um surto de poder. Algumas pessoas torturam porque ficam excitadas com isso.” “Você acha que é esse o caso aqui?”, Pruett me pergunta. “Não tenho como saber.” Então digo a McIntyre: “Notei uma vara de pescar quando estava subindo”. A reação dela é uma piscada de confusão. Então ela percebe do que estou falando. “Ah, claro. Mitch gosta de pescar.” “Por aqui?” “Um riacho perto do College Landing Park.” Olho para Marino. Esse riacho fica na borda da área de acampamento
arborizada no motel Fort James. “Mitch mencionou a você alguma vez o motel ao lado desse riacho?”, Marino pergunta a ela. “Só sei que ele gostava de pescar lá.” “Ele conhecia a senhora que administra a espelunca? Bev Kiffin? E o marido dela? Talvez vocês dois o conheçam, já que ele trabalha na Overland?”, continua Marino. “Bem, eu sei que Mitch costumava falar com os garotos dela. Ela tem dois meninos e às vezes eles saíam para pescar quando Mitch estava pescando. Ele dizia que sentia pena deles porque o pai nunca estava em casa. Mas não conheço ninguém chamado Kiffin na transportadora, e sou eu que faço a contabilidade.” “Você pode verificar isso?”, diz Jay. “Talvez o sobrenome dele seja diferente do dela.” “É.” Ela assente com a cabeça. “Você se lembra da última vez que Mitch foi pescar?”, pergunta Marino. “Pouco antes de nevar”, ela responde. “Até então o tempo estava muito bom.” “Reparei que há algum dinheiro trocado, duas garrafas de cerveja e charutos no patamar”, digo. “Bem ao lado da vara de pescar.” “Você tem certeza de que ele não foi pescar lá desde que começou a nevar?”, Marino capta meu pensamento. A expressão nos olhos dela deixa evidente que ela não tem certeza. Imagino quanto ela sabe realmente sobre seu suposto namorado. “Alguma coisa ilegal acontecendo no motel de que você e Mitch saibam?”, pergunta Marino. McIntyre começa a balançar a cabeça. “Ele nunca mencionou nada sobre isso. Nada desse tipo. A única ligação dele com o lugar era pescar e ser amável com os garotos, ocasionalmente, quando ele os via.” “Só se eles apareciam quando ele estava pescando?”, Marino continua a pressionar. “Alguma razão para pensar que Mitch pode ter alguma vez ido à casa para falar com eles?” Ela hesita. “Mitch é um cara generoso?” “Ah, sim”, diz ela. “Muito. Ele poderia ter ido até lá. Não sei. Ele realmente gosta de garotos. Gostava deles.” Ela começa a chorar de novo e ao mesmo tempo está prestes a explodir de raiva. “Como ele se identificava para as pessoas de lá? Dizia que era motorista de caminhão? O que ele dizia sobre você? Você não devia ser uma executiva? Vocês dois não eram realmente namorado e namorada. Isso era apenas parte da fachada, certo?” Marino está de olho em alguma coisa. Está inclinado para a frente, os braços envolvendo os joelhos, olhando intensamente para Jilison McIntyre. Quando ele fica assim, dispara perguntas com tanta rapidez que as pessoas muitas vezes não têm tempo de responder. Então ficam confusas e dizem alguma coisa da qual depois se arrependem. Ela faz isso neste exato momento. “Ei, eu não sou uma suspeita”, ela diz a ele, irritada. “E sobre nosso
relacionamento, não sei aonde que você quer chegar. Era profissional. Mas a gente não pode evitar de se aproximar de alguém quando vive na mesma casa e age como se estivesse envolvida, faz as pessoas pensarem que você está.” “Mas vocês não estavam envolvidos”, diz Marino. “Ou pelo menos ele não estava com você. Vocês estavam fazendo um trabalho, certo? Quer dizer, se ele quisesse dar atenção a uma mulher solitária com dois garotos legais, podia fazer isso.” Marino se recosta na cadeira. A sala está tão silenciosa que parece zunir. “O problema é que Mitch não devia ter feito isso. Era perigoso, muito estúpido, considerando a situação dele. Ele era um desses caras que têm dificuldade de manter a calça no corpo?” Ela não responde. As lágrimas caem. “Sabem de uma coisa, pessoal?” Marino varre a sala com os olhos. “Pode ser simplesmente que Mitch tenha se metido em alguma coisa que não tem nada a ver com a operação secreta de vocês aqui. Lugar errado, hora errada. Pegou alguma coisa que ele com toda certeza não estava pescando.” “Você tem alguma idéia de onde Mitch estava às três da tarde de quartafeira, quando Matos se registrou no motel e o incêndio começou?” Stanfield está montando as peças. “Ele estava aqui ou em outro lugar?” “Não, ele não estava aqui”, ela mal pronuncia as palavras, enxugando os olhos com o lenço. “Tinha saído. Não sei para onde.” Marino explode, revoltado. Ele não precisa dizer nada. Parceiros que atuam disfarçados devem saber o paradeiro um do outro, e se a agente McIntyre nem sempre sabia onde o agente especial Barbosa estava, então ele estava fazendo alguma coisa que talvez não fosse pertinente à investigação deles. “Sei que você não quer nem pensar nisso, Jilison”, continua Marino num tom mais suave, “mas Mitch foi torturado e assassinado, certo? Quer dizer, o cara foi amedrontado até morrer. Literalmente. Não importa o que alguém estivesse fazendo com ele, foi tão horroroso que ele teve uma porra de um ataque do coração. Fez xixi na calça. Foi levado para algum lugar e amarrado, amordaçado, e depois enfiaram uma chave esquisita no bolso dele, plantada, para quê? Por quê? Ele estava metido em alguma coisa sobre a qual devemos saber, Jilison? Ele estava pescando mais do que peixes naquele riacho ao lado do acampamento?” As lágrimas rolam pelo rosto de McIntyre. Ela as enxuga com força com o lenço e funga alto. “Ele gostava de beber e de mulheres”, ela mal pronuncia. “Certo?” “Ele saía à noite, circulava pelos bares, esse tipo de coisa?”, pergunta Pruett. Ela faz que sim com a cabeça. “Fazia parte de seu disfarce. Você viu...” Seus olhos pulam para mim. “Você o viu. O cabelo tingido, o brinco na orelha, todo o resto. Mitch fazia o papel de uma espécie de, bem, um cara galinha, e ele gostava de mulheres. Ele nunca fingiu ser, é... fiel a mim, a sua pretensa namorada. Fazia parte de sua cobertura. Mas também era ele. É. Eu me preocupava com isso, certo? Mas o Mitch era assim. Ele era um bom agente. Não acho que tenha feito nada desonesto, se é isso que você está perguntando. Mas ele também não me contava tudo. Se ele descobriu alguma coisa no
acampamento, por exemplo, pode ter começado a fuçar. Pode ser.” “Sem informá-la”, confirma Marino. Ela assente outra vez. “E eu também estava fora, fazendo meu trabalho. Eu não ficava aqui a cada minuto esperando por ele. Trabalhava no escritório da Overland. Embora só meio período. Então nem sempre sabíamos o que o outro estava fazendo a cada hora do dia.” “Vou lhe dizer uma coisa”, decide Marino. “Mitch tropeçou em alguma coisa. E eu estou me perguntando se ele não estava no motel perto da hora em que Matos apareceu, e talvez, não importa o que Matos estivesse fazendo, Mitch tenha tido o azar de ser visto na área. Talvez seja simples assim. Alguém acha que ele viu alguma coisa, soube de alguma coisa, e então ele é apanhado e submetido ao tratamento.” Ninguém discute. A teoria de Marino, na verdade, é a única até agora que faz sentido. “O que nos leva de volta ao que Matos estava fazendo lá”, comenta Pruett. Olho para Stanfield. Ele se afastou da conversa. Seu rosto está lívido. Ele é uma pilha de nervos. Seus olhos me encaram e logo se desviam. Ele passa a língua nos lábios e tosse várias vezes. “Detetive Stanfield”, sinto-me compelida a dizer a ele diante de todos. “Pelo amor de Deus, não conte nada disso a seu cunhado.” A raiva cintila em seus olhos. Eu o humilhei e não dou a mínima. “Por favor”, acrescento. “Quer saber a verdade?”, ele retruca irritado. “Não quero ter nada a ver com isso.” Lentamente, ele se põe de pé e olha em volta da sala, piscando, seus olhos vidrados. “Não sei qual o objetivo disso, mas não quero ter nenhuma participação — quer dizer, nenhuma participação nisso. Vocês federais já estão nisso até o pescoço, então podem ficar com isso para vocês. Eu estou fora.” Ele balança a cabeça. “Vocês me ouviram, certo, eu estou fora.” Para nosso espanto, o detetive Stanfield desaba. Cai tão pesadamente que a sala treme. Eu me levanto de um pulo. Graças a Deus, ele está respirando. Seu pulso está acelerado, mas ele não está tendo um ataque cardíaco nem nada que ponha em risco a vida. Simplesmente desmaiou. Examino sua cabeça para ter certeza de que ele não se feriu. Ele está bem. Volta a si. Marino e eu o ajudamos a ficar de pé e o levamos até o sofá. Faço com que se deite e ponho vários comprimidos em sua boca. Acima de tudo, ele está envergonhado, e muito. “Detetive Stanfield, você é diabético?”, pergunto. “Você tem alguma doença cardíaca?” “Se você conseguir uma Coca ou algo do tipo, seria bom”, diz ele, com a voz fraca. Levanto-me e vou para a cozinha. “Vou ver o que consigo”, digo, como se morasse aqui. Dentro da geladeira, pego suco de laranja. Encontro manteiga de amendoim em um armário e pego uma grande colherada. É quando estou procurando toalhas de papel que percebo um frasco de remédio controlado ao lado do forno elétrico. O nome de Mitch Barbosa está na etiqueta. Ele estava tomando o antidepressivo Prozac. Quando volto à sala, digo algo sobre isso a McIntyre e ela nos conta que Barbosa passou a tomar Prozac há vários meses porque estava sofrendo de ansiedade e depressão, que ele atribuía ao trabalho sob
disfarce, ao estresse, ela acrescenta. “Isso é interessante”, é só o que Marino tem a dizer. “Você disse que vai voltar ao motel quando sair daqui?”, Jay pergunta a Marino. “É, Vander vai ver se damos sorte com as impressões.” “Impressões?”, murmura Stanfield de seu leito de doente. “Porra, Stanfield”, Marino explode, exasperado. “Eles ensinaram a você alguma coisa na escola de detetives? Ou você pulou vários anos por causa de seu maldito cunhado?” “Ele é mesmo um maldito cunhado, se você quer saber a verdade.” Ele diz isso de um modo tão deplorável e com tanta franqueza que todos riem. Stanfield se anima um pouco. Levanta o corpo, encostando-se nos travesseiros. “E você está certa.” Ele olha para mim. “Eu não devia ter contado a ele nada sobre este caso. E não vou contar mais nada a ele, nem uma palavra, porque para ele é tudo politicagem. Não fui eu quem puxou toda essa coisa de Jamestown, assim você fica sabendo.” Pruett franze o cenho. “Que coisa de Jamestown?” “Ah, você sabe, a escavação lá e a grande celebração que o estado está planejando. Bom, o fato é que, para falar a verdade, Dinwiddie tem tanto sangue índio quanto eu. Toda essa merda sobre ele ser descendente do chefe Powhatan. Aahh!” Os olhos de Stanfield dançam, com um ressentimento que eu duvido que ele raramente expresse. Ele provavelmente odeia o cunhado. “Mitch tem sangue índio”, McIntyre diz melancolicamente. “Ele é meio nativo americano.” “Bem, pelo amor de Deus, esperemos que os jornais não descubram isso”, Marino murmura para Stanfield, sem acreditar nem por um segundo que Stanfield vá manter a boca fechada. “Temos um gay e agora um índio. Puxa vida, puxa vida.” Marino balança a cabeça. “Temos de manter isso fora da política, fora de circulação, e falo sério.” Ele olha bem para Stanfield, depois para Jay. “Porque, sabem de uma coisa? Não podemos falar sobre o que achamos que está realmente acontecendo, podemos? Sobre a grande operação secreta. Sobre Mitch ser um agente secreto do FBI. E que, talvez de algum jeito excêntrico, Chandonne esteja todo enrolado em seja qual for a merda que está acontecendo aqui. Então, se as pessoas forem todas apanhadas nessa merda de crime de ódio, como ficamos se não podemos contar a verdade?” “Não concordo”, Jay diz a ele. “Não estou pronto para dizer qual o motivo desses assassinatos. Não estou preparado para aceitar, por exemplo, que Matos e agora Barbosa não estão relacionados com contrabando de armas. Penso sem dúvida que os assassinatos deles estão ligados.” Ninguém discorda. Os modus operandi são semelhantes demais para que as mortes não estejam relacionadas, e de fato foram cometidas pela mesma pessoa, ou pessoas. “E também não estou preparado para ignorar totalmente a idéia de que eles são crimes de ódio”, continua Jay. “Um gay. Um americano nativo.” Ele dá de ombros. “A tortura é uma coisa muito odiosa. Algum ferimento na genitália
deles?” Ele se vira para mim. “Não.” Sustento seu olhar. É estranho pensar que fomos íntimos, olhar para seus lábios cheios e suas mãos graciosas e me lembrar do toque deles. Quando andamos pelas ruas de Paris, as pessoas se viravam para olhar para ele. “Humm”, diz ele. “Acho isso interessante e talvez importante. Não sou psiquiatra forense, é claro, mas parece que em crimes de ódio os perpetradores raramente ferem os genitais das vítimas.” Marino olha para ele de um jeito incrível, sua boca aberta numa expressão gritante de desdém. “Porque você pega algum tipo caipira homofóbico, e a última coisa da qual ele vai chegar perto são os genitais do cara”, acrescenta Jay. “Bom, se você realmente perder tempo com essa teoria”, Marino diz a ele num tom ácido, “então vamos ligar isso a Chandonne. Ele também nunca se aproximou dos genitais de suas vítimas. Porra, ele nem sequer tirou a calça delas, só bateu e mordeu violentamente o rosto e os seios delas. A única coisa que ele fez abaixo da cintura foi tirar os sapatos e as meias delas e morder os pés. E por quê? O cara tem medo da genitália feminina porque a dele é tão deformada quanto o resto do corpo dele.” Marino observa os rostos em volta. “Uma coisa boa de o desgraçado estar preso é que conseguimos descobrir como é o resto dele. Certo? E adivinhem? Ele não tem pau. Ou vamos dizer que o que ele tem eu não chamaria de pau.” Agora Stanfield está sentado ereto no sofá, os olhos arregalados de espanto. “Vou com você ao motel”, diz Jay a Marino. Marino se levanta e olha pela janela. “Eu me pergunto onde diabo está o Vander”, diz. Ele consegue falar com Vander no telefone celular, e nós saímos alguns minutos depois para encontrá-lo no estacionamento. Jay caminha comigo. Sinto a energia de seu desejo de falar comigo, de, de alguma maneira, chegar a um consenso. Nesse sentido, ele parece o estereótipo de uma mulher. Quer caminhar, resolver as coisas, ter proximidade ou retomar nossa ligação para então poder dar de novo uma de difícil. Eu, por outro lado, não quero nada disso. “Kay, você me dá um minuto?”, ele diz no estacionamento. Paro e olho para ele enquanto abotôo meu casaco. Percebo Marino olhando em nossa direção enquanto pega os sacos de lixo e o carrinho de bebê na traseira de sua caminhonete e os põe no carro de Vander. “Sei que isso é esquisito, mas existe alguma maneira de tornarmos isso mais fácil? Para começar, temos de trabalhar juntos”, diz Jay. “Talvez você devesse ter pensado nisso antes de contar cada detalhe a Jaime Berger, Jay”, respondo. “Aquilo não foi contra você.” Seu olhar é intenso. “Certo.” “Ela me fez perguntas, compreensivelmente. Está apenas fazendo o trabalho dela.” Não acredito nele. Esse é meu problema fundamental com Jay Talley. Não confio nele e queria nunca ter confiado. “Bem, isso é curioso”, comento. “Porque parece que as pessoas começaram a fazer perguntas a meu respeito
antes mesmo de Diane Bray ter sido assassinada. Na verdade, os questionamentos começaram bem na época em que eu estava com você na França.” Sua expressão se torna sombria. A raiva surge antes que ele consiga escondê-la. “Você é paranóica, Kay”, diz ele. “Você está certo”, respondo. “Você está absolutamente certo, Jay.”
25
Nunca dirigi a caminhonete Dodge com cabine dupla de Marino, e se as circunstâncias não fossem tão tensas provavelmente eu acharia o cenário cômico. Não sou grande, mal chego a um metro e sessenta e cinco, sou esguia, e não há em mim nada de excêntrico ou extremado. Uso jeans, mas não hoje. Suponho que me visto como uma chefe ou advogada respeitável, e normalmente estou com um tailleur ou uma calça de flanela e blazer, a menos que esteja trabalhando em uma cena de crime. Meu corte de cabelo é curto e convencional, uso maquiagem leve e, além de meu anel com sinete e do relógio, dificilmente uso jóias. Não tenho nenhuma tatuagem. Minha aparência não é a de alguém que sairia por aí fazendo estardalhaço em uma enorme caminhonete de macho azulescura com pintura personalizada de faixas, acabamentos cromados, pára-lamas, sistema computadorizado de diagnóstico do motor, e antenas grandes e potentes para o rádio de faixa do cidadão e o radiotransmissor e receptor da polícia. Pego a 64 Oeste para voltar a Richmond porque é mais rápido, e presto muita atenção ao dirigir porque é difícil eu controlar um carro deste tamanho com apenas um braço. Nunca passei uma véspera de Natal como esta e estou cada vez mais deprimida ao pensar nisso. Normalmente, a esta altura eu já abasteci a geladeira e o freezer, preparei molhos e sopas e decorei a casa. Sintome totalmente sem-teto e estrangeira enquanto dirijo pela rodovia interestadual, e me ocorre que não sei onde vou dormir hoje. Imagino que na casa de Anna, mas temo o esfriamento necessário entre nós. Nem sequer a vi esta manhã, e uma desalentadora sensação de solidão se abate sobre mim e parece me empurrar para baixo no banco. Localizo Lucy pelo pager. “Tenho de voltar para minha casa amanhã”, digo a ela ao telefone. “Talvez você devesse ficar no hotel com Teun e comigo”, ela sugere. “Que tal você e Teun ficarem comigo?” É muito difícil para mim expressar uma necessidade, e eu preciso delas. Preciso mesmo. Por muitas razões. “Quando você quer que cheguemos lá?” “Vamos comemorar o Natal juntas de manhã.” “Cedo.” Lucy nunca ficou na cama depois das seis na manhã de Natal. “Vou me levantar e vou para casa”, digo a ela. Vinte e quatro de dezembro. Os dias se tornaram curtíssimos, e levará algum tempo até que a luz surja e leve embora meu humor pesado e ansioso. Já está escuro quando passo pelo centro de Richmond, e quando chego à casa de Anna, às cinco para seis, encontro Berger esperando por mim em seu utilitário esportivo Mercedes, os faróis penetrando na noite. O carro de Anna se foi. Ela não está em casa. Não sei por que isso me perturba tão completamente, a menos que seja pelo fato de eu suspeitar que de algum modo ela sabe que Berger vai se encontrar comigo e preferiu não estar aqui. Considerar essa possibilidade me faz lembrar que Anna conversou com pessoas e pode um dia ser forçada a revelar o
que lhe contei durante meus momentos mais vulneráveis em sua casa. Berger desce do carro enquanto abro a porta da caminhonete e, se ela está surpresa com meu meio de transporte, não dá nenhum sinal disso. “Você precisa pegar alguma coisa na casa antes de irmos?”, ela pergunta. “Me dê apenas um minuto”, digo a ela. “A doutora Zenner estava aqui quando você chegou?” Sinto-a endurecer um pouco. “Cheguei aqui apenas alguns minutos antes de você.” Um subterfúgio, penso enquanto subo a escada da frente. Destranco a porta e desligo o alarme contra ladrões. O vestíbulo está escuro, o grande candelabro e as luzes da árvore de Natal, apagados. Escrevo um bilhete para Anna agradecendo por sua amizade e hospitalidade. Preciso voltar para minha casa amanhã e agora sei que ela vai entender por que devo fazer isso. Acima de tudo, quero que acredite que não estou chateada com ela, que percebo que ela foi tão vitimizada pelas circunstâncias quanto eu. Digo circunstâncias porque não estou mais certa de quem está ameaçando Anna e ordenando que ela divulgue confidências a meu respeito. Rocky Caggiano talvez seja o próximo da fila, a menos que eu seja indiciada. Se isso acontecer, não cumprirei papel algum no julgamento de Chandonne, de jeito nenhum. Deixo o bilhete na cama Biedermeier impecavelmente arrumada de Anna. Depois entro no carro de Berger e começo a contar a ela sobre meu dia no condado de James City, sobre o acampamento abandonado e os cabelos longos e claros. Ela me ouve com toda a atenção, dirigindo, sabendo aonde está indo como se tivesse passado a vida toda em Richmond. “Podemos provar que os cabelos são de Chandonne?”, pergunta ela por fim. “Supondo que não haja raízes, como sempre. E não havia raízes naqueles que foram encontrados nas cenas de crime, certo? Suas cenas de crime. Luong e Bray.” “Nenhuma raiz”, digo, exasperada pela referência a minhas cenas de crime. Elas não são minhas, protesto em silêncio. “Foi ele quem deixou aqueles cabelos, portanto não há raízes”, digo a Berger. “Mas podemos obter DNA mitocondrial das hastes. Portanto, sim, podemos saber definitivamente se os cabelos do acampamento são dele.” “Explique, por favor”, diz ela. “Não sou especialista em DNA mitocondrial. Nem em cabelo, aliás, especialmente o tipo de cabelo que ele tem.” O tema do DNA é difícil. Explicar a vida humana no nível molecular diz à maioria das pessoas muito mais do que elas conseguem entender ou se preocupam em saber. Policiais e promotores adoram o que o DNA pode fazer. E odeiam falar dele cientificamente. Poucos deles o entendem. A velha piada é que a maioria das pessoas não consegue nem soletrar DNA. Explico que DNA nuclear é o que obtemos quando estão presentes células com núcleos, como no caso de sangue, tecido, fluido seminal e raízes de cabelo. O DNA nuclear é herdado igualmente dos dois pais, portanto, se tivermos o DNA nuclear de alguém, temos, em certo sentido, tudo sobre ele, e podemos comparar seu perfil
de DNA com qualquer outra amostra biológica que essa mesma pessoa deixou, digamos, em outra cena de crime. “Podemos simplesmente comparar os cabelos do acampamento com os que ele deixou nas cenas de assassinato?”, pergunta Berger. “Não com sucesso”, respondo. “Examinar características microscópicas nesse caso não vai nos dizer muita coisa, porque os cabelos não são pigmentados. O máximo que conseguiremos dizer é que suas morfologias são similares ou coerentes uma com a outra.” “O que não é conclusivo para um júri”, ela pensa em voz alta. “Nem um pouco.” “De qualquer forma, se não fizermos uma comparação microscópica, a defesa vai levantar isso”, considera Berger. “Ele vai dizer: Por que vocês não fizeram ?”. “Bem, podemos comparar microscopicamente os cabelos, se você quiser.” “Os do corpo de Susan Pless e os dos seus casos.” “Se você quiser”, repito. “Explique as hastes de cabelo. Como o DNA funciona com elas?” Digo a ela que o DNA mitocondrial é encontrado nas paredes, e não nos núcleos das células, o que quer dizer que o DNA mitocondrial é o DNA antropológico do cabelo, das unhas, dos dentes e dos ossos. O DNA mitocondrial são as moléculas que constituem nossa matéria fundamental, explico. A utilidade limitada se deve ao fato de que ele é herdado só pela linhagem feminina. Faço uma analogia com o ovo. Pense no DNA mitocondrial como a clara do ovo, enquanto o DNA nuclear é a gema. Não se pode comparar uma com outra. Mas, se se tiver o DNA do sangue, tem-se o ovo inteiro e pode-se comparar mitocôndrias com mitocôndrias — clara de ovo com clara de ovo. Temos sangue porque temos Chandonne. Ele teve de tirar uma amostra de sangue quando estava no hospital. Temos seu perfil de DNA completo e podemos comparar o DNA mitocondrial de cabelos desconhecidos com o DNA mitocondrial de sua amostra de sangue. Berger ouve sem me interromper. Ela captou o que estou dizendo e parece entender. Como sempre, não faz nenhuma anotação. Ela pergunta: “Ele deixou cabelo em sua casa?”. “Não tenho certeza do que a polícia encontrou.” “Do jeito que ele parece perder cabelo, eu pensaria que ele deixou cabelo em sua casa ou certamente na neve em seu jardim quando estava se debatendo.” “E estaria certa”, concordo com ela. “Andei lendo sobre lobisomens.” Berger pula para o tópico seguinte. “Aparentemente, houve pessoas que realmente achavam que eram lobisomens ou tentaram todos os tipos de coisas bizarras para se transformarem em lobisomens. Bruxaria, magia negra. Culto a Satã. Morder. Beber sangue. Você acha possível que Chandonne realmente acredite que é um loup-garou ? Um lobisomem? E que talvez até queira ser um?” “E, portanto, não é culpado por causa da insanidade”, respondo, e supus o tempo inteiro que essa seria a defesa dele.
“Havia uma condessa húngara no começo do século XVII, Elizabeth Bathory-Nadasdy, também conhecida como a Condessa Sangrenta”, continua Berger. “Ela supostamente torturou e matou cerca de seiscentas jovens mulheres. Banhava-se no sangue delas, acreditando que ele a manteria jovem e preservaria sua beleza. Você conhece o caso?” “Vagamente.” “Diz a história que essa condessa mantinha jovens em sua masmorra, engordava-as, sangrava-as e se banhava no sangue delas, e depois obrigava outras prisioneiras a lamber todo o sangue de seu corpo. Supostamente porque as toalhas lhe machucavam a pele. Esfregando o sangue na pele, por todo o corpo”, ela pondera. “Relatos disso deixaram fora o óbvio. Eu diria que havia um componente sexual”, ela acrescenta secamente. “Assassinatos por luxúria. Mesmo que quem os perpetra acredite verdadeiramente nos poderes mágicos do sangue, trata-se de poder e sexo. É só disso que se trata, quer a pessoa seja uma bela condessa ou alguma anomalia genética que foi criada na Île de Saint-Louis.” Viramos na Canterbury Road, entrando no rico bairro arborizado de Windsor Farms, em cujo extremo morava Diane Bray, numa propriedade separada por um muro da barulhenta via expressa para o centro. “Eu daria meu braço direito para saber o que há na biblioteca dos Chandonne”, diz Berger. “Ou, melhor, que tipo de coisa Chandonne andou lendo ao longo dos anos — além das histórias e de outros materiais eruditos que ele diz que o pai lhe deu, blá-blá-blá. Por exemplo, ele sabe sobre a Condessa Sangrenta? Será que ele esfregava o sangue por todo o corpo esperando que isso o curasse magicamente de sua doença?” “Acreditamos que ele se banhava no Sena e depois aqui no rio James”, respondo. “Possivelmente por essa razão. Para ser curado magicamente.” “Uma espécie de coisa bíblica.” “Talvez.” “Talvez ele leia a Bíblia também”, ela sugere. “Será que foi influenciado pelo assassino serial francês Gilles Garnier, que matava garotos e os comia e ladrava para a lua? Houve muitos dos chamados lobisomens na França durante a Idade Média. Umas trinta pessoas acusadas disso, você pode imaginar?” Berger andou fazendo muita pesquisa. Isso é evidente. “E há outra idéia esquisita”, ela continua. “No folclore dos lobisomens, acreditava-se que, se alguém fosse mordido por um lobisomem, viraria um. É possível que Chandonne estivesse tentando tornar suas vítimas lobisomens? Talvez assim ele pudesse encontrar uma noiva de Frankenstein, uma companheira exatamente igual a ele?” Essas considerações incomuns começam a formar uma composição que é muito mais trivial e prosaica do que poderia parecer. Berger está simplesmente antecipando o que a defesa vai fazer no caso dela, e um artifício óbvio é desviar o júri da natureza hedionda dos crimes preocupando-os com a deformidade física, a suposta doença mental e a inequívoca bizarrice de Chandonne. Se se puder apresentar com sucesso o argumento de que ele acredita que é uma criatura paranormal, um lobisomem, um monstro, então é altamente improvável que o júri o considere culpado e o sentencie a prisão perpétua. Ocorre-me que algumas pessoas podem até ter pena dele.
“A defesa ‘bala de prata’.” Berger alude à superstição de que só uma bala de prata é capaz de matar o lobisomem. “Temos uma montanha de evidências, mas a promotoria no caso O. J. Simpson também tinha. A bala de prata da defesa será que Chandonne é insano e digno de pena.”
 
 
A casa de Diane Bray é uma construção branca retangular com teto empenado e telhado de duas águas, e, embora a polícia tenha protegido e limpado a cena, a propriedade não retomou seu funcionamento normal. Nem mesmo Berger pode entrar sem permissão do proprietário, ou, neste caso, da pessoa que tem a custódia. Paramos na entrada para carros e esperamos que Eric Bray, o irmão, apareça com a chave. “Talvez você o tenha visto no serviço memorial.” Berger me lembra que Eric Bray era o homem que carregava a urna contendo as cinzas da irmã. “Diga-me como você acha que Chandonne conseguiu que uma policial experiente abrisse a porta.” A atenção de Berger flui de monstros na França medieval para a carnificina muito real que está diante de nossos olhos. “Isso está um pouco além dos meus limites, senhorita Berger. Talvez seja melhor se você restringir suas perguntas aos corpos e a minhas conclusões.” “Não há limites agora, só perguntas.” “Isso porque você supõe que talvez eu nunca vá ao tribunal, pelo menos não em Nova York , porque estou contaminada?” Vou adiante e abro essa porta. “Na verdade, eles não ficam muito mais contaminados do que eu estou neste exato minuto.” Faço uma pausa para ver se ela sabe. Quando não diz nada, eu a confronto. “Righter deu a você alguma pista de que talvez eu não lhe seja muito útil? De que estou sendo investigada por um grande júri porque ele tem uma noção ridícula de que eu tive algo a ver com a morte de Bray?” “Ele me deu mais do que uma pista”, ela responde calmamente enquanto olha fixo para a escura casa de Bray. “Marino e eu também conversamos sobre isso.” “Chega de procedimentos secretos”, digo com sarcasmo. “Bem, a regra é que nada que ocorra dentro da sala do grande júri pode ser discutido. Por enquanto, nada aconteceu. A única coisa que está acontecendo é que Righter está usando um grande júri especial como uma ferramenta para obter acesso a tudo que ele pode. A seu respeito. Suas contas de telefone. Suas informações bancárias. O que as pessoas têm a dizer. Você sabe como funciona. Tenho certeza de que você teve sua cota de testemunhos em audiências do grande júri.” Ela diz tudo isso como se fosse rotina. Minha indignação cresce e extravasa em palavras. “Sabe, eu tenho sentimentos”, digo. “Talvez indiciamento por assassinato seja um assunto cotidiano para você, mas não é para mim. Minha integridade é a única coisa que tenho que não posso me dar ao luxo de perder. É tudo para mim, e logo eu ser acusada de um crime como esse. Logo eu! Mesmo considerar que eu faria a própria coisa que combato a cada minuto de minha vida? Nunca. Não abuso do poder. Nunca. Não machuco deliberadamente as
pessoas. Nunca. E não consigo enfrentar com indiferença esse absurdo, senhorita Berger. Nada pior poderia acontecer comigo. Nada.” “Você aceita uma recomendação?” Ela olha para mim. “Estou sempre aberta a sugestões.” “Primeiro, a mídia vai descobrir. Sabe o que eu faria? Eu me anteciparia a eles e convocaria uma entrevista coletiva. Logo. A boa notícia é que você não foi demitida. Não perdeu o apoio das pessoas que têm poder de decisão sobre sua vida profissional. Um senhor milagre. Os políticos normalmente são muito rápidos para se proteger, mas o governador tem você em alta conta. Ele não acredita que você matou Diane Bray. Se ele fizer uma declaração nesse sentido, você vai ficar bem, desde que o grande júri especial não apareça com uma denúncia real, um indiciamento.” “Você discutiu alguma dessas coisas com o governador Mitchell?”, pergunto a ela. “Nós tivemos contato no passado. Nos conhecemos. Trabalhamos em um caso juntos quando ele era secretário de Justiça.” “Sim, eu sei disso.” E não foi isso que perguntei. Silêncio. Ela olha para casa de Bray. Não há luzes dentro da casa, e eu observo que o modus operandi de Chandonne era tirar a lâmpada da varanda ou desligar os fios, e quando sua vítima abria a porta ele estava escondido pela escuridão. “Eu gostaria de sua opinião”, diz ela então. “Estou certa de que você tem uma. Você é uma investigadora muito observadora e experimentada.” Ela diz isso num tom firme e afiado. “Você também sabe o que Chandonne lhe fez — está intimamente familiarizada com o modus operandi dele de uma forma que ninguém mais está.” Sua referência ao ataque de Chandonne a mim é chocante. Embora Berger esteja simplesmente fazendo seu trabalho, fico ofendida com sua objetividade rude. Também fico perturbada por suas evasivas. Estou ressentida por ser ela quem decide o que vamos discutir, e quando, e por quanto tempo. Não posso evitar. Sou humana. Quero que ela demonstre pelo menos uma sugestão de compaixão para comigo e o que passei. “Alguém ligou para o necrotério hoje de manhã e se identificou como Benton Wesley.” Jogo isso para ela. “Você já teve informações sobre Rocky Marino Caggiano? O que ele está preparando?” Minha voz é aguçada pela raiva e pelo medo. “Não vamos ouvir falar dele por algum tempo”, ela diz, como se soubesse. “Não é o estilo dele. Mas certamente não me surpreenderia se ele estivesse praticando seus velhos truques. Assediar. Ferir. Aterrorizar. Tocar nos pontos sensíveis como um aviso, no mínimo. Meu palpite é que você não vai ter contato direto com ele e nem sequer receber um sopro dele até perto do julgamento. Se é que você vai mesmo vê-lo. Ele é assim, o filho-da-mãe. O tempo inteiro nos bastidores.” Ficamos caladas por um momento. Ela está esperando que eu abra a guarda. “Minha opinião ou especulação, tudo bem”, digo finalmente. “É isso que você quer? Ótimo.”
“É o que eu quero. Você seria uma ótima ‘cadeira adicional’.” Ela faz referência a uma segunda promotora distrital que atuaria em conjunto com ela, seria sua parceira durante um julgamento. Ou ela acaba de me fazer um elogio ou está sendo irônica. “Diane Bray tinha uma amiga que aparecia com muita freqüência.” Dou o primeiro passo para fora dos limites. Começo a deduzir. “Detetive Anderson. Ela era obcecada por Bray. Bray a seduzia a sério, ao que parece. Acho que é possível que Chandonne tenha vigiado Bray e reunido informações. Ele observava Anderson entrar e sair. Na noite do assassinato, ele esperou até Anderson sair da casa” — olho para a casa — “e imediatamente foi até lá, tirou a lâmpada da varanda, depois bateu na porta. Bray supôs que era Anderson voltando para reiniciar a discussão ou fazer as pazes ou o que fosse.” “Porque elas tinham brigado. Elas brigavam muito”, Berger completa a narrativa. “Tudo indica que era um relacionamento tempestuoso”, continuo a penetrar em espaço aéreo restrito. Não pretendo entrar nessa parte de uma investigação, mas continuo. “Anderson tinha se exaltado e voltado no passado”, acrescentou. “Você esteve na entrevista com Anderson depois que o corpo foi encontrado.” Berger sabe disso. Alguém contou a ela. Marino, provavelmente. “Sim, estive.” “E a história do que aconteceu naquela noite enquanto Anderson estava comendo pizza e tomando cerveja na casa de Bray?” “Elas discutiram — isso de acordo com Anderson. Então Anderson saiu irritada e logo depois há uma batida na porta. O mesmo padrão de batida que Anderson sempre dava. Ele imitou o modo como ela batia, assim como imitou a polícia quando foi a minha casa.” “Mostre.” Berger olha para mim. Bato no console entre os bancos da frente. Três vezes, forte. “Era assim que Anderson sempre batia na porta? Ela não usava a campainha?”, pergunta Berger. “Você conviveu com policiais o suficiente para saber que eles dificilmente tocam campainhas. Estão acostumados a bairros onde as campainhas não funcionam, quando existem.” “É interessante que Anderson não tenha voltado”, ela observa. “E se ela tivesse voltado? Você acha que de alguma maneira Chandonne sabia que ela não ia voltar aquela noite?” “Também me perguntei isso.” “Talvez apenas alguma coisa que ele tenha sentido na postura dela quando ela saiu? Ou talvez ele estivesse tão fora de controle que não conseguiu parar”, pondera Berger. “Talvez seu desejo fosse mais forte do que o medo que pudesse ser interrompido.” “Ele pode ter observado uma outra coisa importante”, digo. “Anderson não tinha a chave da casa de Bray. Bray sempre a recebia.” “Sim, mas a porta não estava trancada quando Anderson voltou na manhã seguinte e encontrou o corpo, certo?”
“Não significa que não estava trancada quando ele estava dentro atacando Bray. Ele pôs uma placa de ‘fechado’ e trancou a loja de conveniência enquanto estava matando Kim Luong.” “Mas não sabemos com certeza se ele trancou a porta quando entrou na casa de Bray”, reitera Berger. “Eu certamente não tenho certeza.” “E talvez ele não tenha trancado.” Berger está interessada nisso. “Ele talvez tenha conseguido entrar e a caçada começa. A porta fica destrancada o tempo inteiro enquanto ele está mutilando o corpo dela na cama.” “Isso sugeriria que ele estava fora de controle e se arriscando muito”, observo. “Humm. Não quero ir por esse caminho do fora de controle.” Berger parece falar consigo mesma. “Fora de controle não é exatamente a mesma coisa que insano”, lembro a ela. “Todas as pessoas que matam, a não ser em autodefesa, estão fora de controle.” “Ah. Touché.” Ela assente com a cabeça. “Então Bray abre a porta, e a luz está apagada e lá está ele no escuro.” “Ele fez isso também com a doutora Stvan em Paris”, conto a Berger. “Estavam sendo assassinadas mulheres lá, o mesmo modus operandi, e em vários casos Chandonne deixou bilhetes nas cenas de crime.” “É daí que vem o nome Loup-garou”, aparteia Berger. “Ele também escreveu esse nome em uma caixa dentro do contêiner do cargueiro onde o corpo foi encontrado — o corpo de seu irmão, Thomas. Mas sim”, digo, “ele aparentemente começou a deixar bilhetes referindo-se a si mesmo como lobisomem quando começou a assassinar por lá, em Paris. Uma noite, ele apareceu na porta da casa da doutora Stvan, sem saber que o marido dela estava doente em casa. Ele trabalha à noite como chef, mas nessa ocasião ele estava em casa inesperadamente, graças a Deus. A doutora Stvan abre a porta e, quando Chandonne ouve o marido dela chamar de outro aposento, ele foge.” “Ela deu uma boa olhada nele?” “Acho que não.” Recordo o que a dra. Stvan me contou. “Estava escuro. A impressão dela é que ele estava bem vestido, com um casaco escuro comprido, um cachecol, com as mãos nos bolsos. Ele falava bem, como um cavalheiro, usando o estratagema de que seu carro havia quebrado e ele precisava de um telefone. Então ele percebeu que ela não estava sozinha e saiu correndo em disparada.” “Mais alguma coisa que ela se lembrava dele?” “O cheiro. Ele tinha um cheiro almiscarado, como o de um cachorro molhado.” A esse comentário, Berger faz um som estranho. Estou começando a me familiarizar com seus maneirismos sutis, e quando um detalhe é especialmente estranho ou nojento, ela suga o lado de dentro da bochecha e emite um guincho abafado irritante, como um pássaro. “Então ele tenta pegar a legista-chefe lá, e
depois a daqui. Você”, ela acrescenta para dar ênfase. “Por quê?” Ela se virou um pouco no banco e está apoiando um cotovelo na direção, de frente para mim.” “Por quê?”, repito, como se essa fosse uma pergunta que não posso responder — como se fosse uma pergunta que ela não deveria me fazer. “Talvez alguém deva me dizer isso.” Mais uma vez, sinto crescer o calor da raiva. “Premeditação”, ela responde. “Pessoas insanas não planejam seus crimes com esse tipo de deliberação. Escolher a legista-chefe de Paris e depois a daqui. Ambas mulheres. Ambas fizeram a autópsia de suas vítimas e, portanto, de um jeito perverso, são íntimas dele. Talvez mais íntimas dele do que uma amante, porque, em certo sentido, vocês assistiram. Vocês viram onde ele tocou e mordeu. Puseram suas mãos no mesmo corpo em que ele pôs. Em certo sentido, vocês o viram fazer amor com essas mulheres, pois é assim que Jean-Baptiste Chandonne faz amor com uma mulher.” “Um pensamento revoltante.” Considero a interpretação psicológica dela pessoalmente ofensiva. “Um padrão. Um plano. Nem um pouco aleatório. Então é importante que entendamos os padrões dele, Kay. E que façamos isso sem repugnância nem reação pessoal.” Ela faz uma pausa. “Você deve olhar para ele de forma desapaixonada. Não pode se entregar ao ódio.” “É difícil não odiar alguém como ele”, digo honestamente. “E quando realmente estamos ofendidos com uma pessoa e sentimos ódio por ela, também é difícil darmos a essa pessoa nosso tempo e nossa atenção, interessarmo-nos por ela como se ela merecesse ser entendida. Temos de nos interessar por Chandonne. Intensamente. Preciso que você se interesse por ele mais do que se interessou por qualquer pessoa em sua vida.” Não discordo do que Berger diz. Sei que ela está apontando uma verdade importante. Mas resisto desesperadamente a me interessar por Chandonne. “Sempre me orientei pelas vítimas”, digo a Berger. “Nunca gastei meu tempo tentando entrar na alma e na mente dos babacas que praticaram o crime.” “E também nunca esteve envolvida em um caso como este”, ela contrapõe. “Nunca foi suspeita em um assassinato. Posso ajudá-la a resolver sua situação difícil. E preciso que você me ajude a resolver a minha. Me ajude a entrar na mente de Chandonne, em seu coração. Preciso que você não o odeie.” Fico em silêncio. Não quero dar a Chandonne nada além do que ele já me tomou. Sinto lágrimas de frustração e fúria e pisco para escondê-las. “Como você pode me ajudar?”, pergunto a Berger. “Você não tem jurisdição aqui. O caso de Diane Bray não é seu. Você pode incluí-la em sua moção Molineaux no assassinato de Susan Pless, mas eu estou sozinha quando se trata de um grande júri especial de Richmond. Especialmente quando certas pessoas estão tentando fazer parecer que eu a matei, matei Bray. Que eu estou louca.” Respiro profundamente. Meu coração se acelera. “A chave para você limpar seu nome é a mesma que serve para mim”, diz ela. “Susan Pless. Como você poderia ter tido algo a ver com essa morte? Como você poderia ter falsificado essa evidência?” Ela espera minha resposta, como se eu tivesse uma. Esse pensamento me
entorpece. É claro que eu não tive nada a ver com assassinato de Susan Pless. “Minha pergunta é esta”, continua Berger. “Se o DNA do caso de Susan coincidir com o de seus casos aqui e possivelmente com o DNA dos casos de Paris, isso não significa que tem de ser a mesma pessoa que matou todas elas?” “Imagino que os jurados não precisem ter certeza absoluta disso. Eles só precisam de uma causa provável”, respondo, fazendo o papel de advogado do diabo em meu próprio dilema. “A picareta de entalhar com sangue de Bray — encontrada na minha casa. E um recibo mostrando que comprei uma picareta de entalhar. E a picareta de entalhar que realmente comprei sumiu. Todos os tipos de evidência à mostra, como uma pistola fumegante, senhorita Berger, você não acha?” Ela toca em meu ombro. “Me responda uma coisa”, ela diz. “Você fez isso?” “Não”, respondo. “Não, não fiz.” “Bom. Porque não posso admitir que você tenha feito isso”, diz ela. “Preciso de você. Elas precisam de você.” Ela olha para a casa fria e vazia além de nosso pára-brisa, indicando as outras vítimas de Chandonne, aquelas que não sobreviveram. Elas precisam de mim. “Tudo bem.” Ela nos leva de volta ao motivo pelo qual estamos esperando nesta entrada para carros. Diane Bray. “Então ele entra pela porta da frente. Não há nenhum sinal de luta e ele não a ataca até eles chegarem à outra extremidade da casa, ao quarto dela. Não parece que ela tenha tentado fugir ou se defender de nenhum modo. Ela não tentou pegar sua arma? Ela é uma policial. Onde está a arma dela?” “Sei que quando ele forçou a entrada na minha casa”, respondo, “ele tentou jogar seu casaco sobre minha cabeça.” Estou tentando fazer o que ela quer. Ajo como se estivesse falando sobre outra pessoa. “Então talvez ele prenda Bray com um casaco ou alguma outra coisa que ele jogou sobre a cabeça dela, e a obrigue a ir para o quarto.” “Talvez. A polícia não encontrou a arma de Bray. Não que eu saiba”, respondo. “É. O que será que ele fez com ela?”, Berger reflete. Faróis brilham no retrovisor e eu me viro. Uma perua sobe lentamente a entrada para carros. “Também faltava dinheiro na casa”, acrescento. Dois mil e quinhentos dólares, dinheiro de droga que Anderson tinha acabado de trazer naquela noite. Segundo ela, Anderson.” A perua pára atrás de nós. “Da venda de remédios controlados, se Anderson estiver dizendo a verdade.” “Você acha que ela estava dizendo a verdade?”, pergunta Berger. “Toda a verdade? Não sei”, respondo. “Então talvez Chandonne tenha pegado o dinheiro e também a arma dela. A menos que Anderson tenha pegado o dinheiro quando voltou à casa na manhã seguinte e encontrou o corpo. Mas depois de ver o que estava no quarto, francamente, é difícil para mim imaginá-la fazendo qualquer coisa além de correr bem depressa.” “Baseada nas fotos que você mostrou, eu tenderia a concordar”, diz Berger. Nós saímos. Não consigo ver Eric Bray o suficiente para reconhecê-lo,
mas minha vaga impressão é de um homem atraente, bem vestido, com idade próxima à de sua irmã morta, talvez uns quarenta anos. Ele entrega a Berger uma chave presa numa etiqueta de papel kraft. “O código do alarme está anotado aí”, diz ele. “Vou esperar aqui.” “Realmente sinto muito lhe causar todo este problema.” Berger pega uma câmera fotográfica e uma pasta sanfonada no banco de trás. “Especialmente na véspera do Natal.” “Eu sei que vocês têm de fazer seu trabalho”, diz ele, num tom baixo, monocórdico. “Você esteve lá dentro?” Ele hesita e olha para a casa. “Não consigo fazer isso.” Sua voz se eleva com emoção e ele começa a chorar. Balança a cabeça e volta para dentro do carro. “Não sei como nenhum de nós... Bem”, ele pigarreia, falando conosco através da porta do carro aberta, com a luz interna ligada, o alarme disparado. “Como vamos entrar e lidar com as coisas dela.” Ele olha para mim, e Berger nos apresenta. Não tenho dúvida de que ele já sabe muito bem quem sou eu. “Há empresas de limpeza na área”, digo a ele delicadamente. “Sugiro que você contrate uma delas, que peça que eles entrem antes que você ou qualquer outra pessoa da família o faça. A Service Master, por exemplo.” Passei por isso muitas vezes com famílias cujos entes queridos morreram violentamente dentro de casa. Ninguém deveria ser obrigado a entrar e lidar com o sangue e o cérebro de seus amados espalhados por todos os lugares. “Eles podem simplesmente entrar sem nós?”, ele me pergunta. “O pessoal da limpeza pode?” “Deixe uma chave em uma caixa com chave na porta. Sim, eles vão entrar e cuidar das coisas sem a presença de vocês”, respondo. “Eles dão garantia e têm seguro.” “Quero fazer isso. E depois quero vender este lugar”, ele diz a Berger. “Se vocês não precisarem mais dele.” “Eu lhe informo”, ela responde. “Mas é claro que você tem o direito de fazer o que quiser com a propriedade, senhor Bray.” “Bem, não sei quem vai comprá-la depois do que aconteceu”, ele murmura. Berger e eu ficamos caladas. Provavelmente ele está certo. A maioria das pessoas não quer uma casa onde alguém foi assassinado. “Já falei com um corretor”, ele continua, em uma voz baixa que encobre sua raiva. “Eles disseram que não poderiam pegá-la. Pediram desculpas e tal, mas não queriam representar a propriedade. Não sei o que fazer.” Ele olha para a casa escura e sem vida. “Sabem, nós não éramos realmente próximos a Diane, ninguém da família era. Ela não era o que eu chamaria de realmente interessada na família ou nos amigos. Basicamente se interessava por ela própria, e sei que não deveria dizer isso. Mas, honestamente, esta é a verdade.” “Você a via com muita freqüência?”, Berger pergunta a ele. Ele balança a cabeça, negando. “Imagino que eu a conhecia melhor porque tínhamos só dois anos de diferença. Nós todos sabemos que ela tinha mais dinheiro do que conseguíamos entender. Ela apareceu na minha casa no Dia de
Ação de Graças com um Jaguar novinho em folha.” Ele sorri com amargura e balança de novo a cabeça. “Foi quando eu soube com certeza que ela estava em alguma coisa sobre a qual provavelmente eu não queria saber nada. Não estou surpreso, realmente.” Ele aspira o ar de forma profunda, calma. “De fato, não estou surpreso que tenha terminado assim.” “Você sabia do envolvimento dela com drogas?” Berger passa o arquivo para o outro braço. Estou ficando resfriada de ficar parada aqui, e a casa escura nos atrai como um buraco negro. “A polícia disse algumas coisas. Francamente, Diane nunca falou sobre o que fazia e nós não perguntamos. Que eu saiba, ela nem sequer deixou um testamento. Então agora também temos de tratar disso”, Eric Bray nos conta. “E do que fazer com as coisas dela.” Ele olha para nós do banco do motorista e a escuridão não consegue esconder sua infelicidade. “Realmente não sei o que fazer.” Há coisas demais em torno de uma morte violenta. Essas são dificuldades que ninguém vê nos filmes nem lê nos jornais: as pessoas que ficam para trás e as preocupações dolorosas que elas têm de agüentar. Dou a Eric Bray meu cartão e digo a ele para ligar para meu escritório se tiver qualquer outra pergunta. Informo, como de rotina, que o instituto tem um livreto, um excelente recurso chamado O que fazer quando a polícia sai, escrito por Bill Jenkins, cujo filho pequeno foi assassinado durante o assalto estúpido de um restaurante de fastfood há uns dois anos. “O livro vai responder a muitas de suas perguntas”, acrescento. “Sinto muito. Uma morte violenta acaba vitimando muitas pessoas. Essa é a infeliz realidade.” “Sim, senhora, isso é mais do que certo”, ele diz. “E, sim, eu gostaria de ler qualquer coisa que você conseguisse. Não sei o que esperar, o que fazer com nada disso”, ele se repete. “Estou aqui se vocês tiverem alguma pergunta. Vou ficar aqui mesmo, dentro do carro.” Ele fecha a porta. Sinto um aperto no peito. Sou tocada pela dor dele, mas não consigo sentir pena de sua irmã assassinada. Se tanto, o retrato que ele pinta me faz gostar ainda menos dela. Ela não era decente nem com os próprios parentes. Berger não diz nada enquanto subimos a escada da frente, e sinto seu escrutínio interminável. Ela está interessada em cada reação minha. Pode notar que ainda estou ressentida com Diane e com o que ela tentou fazer com a minha vida. Não faço nenhum esforço para esconder isso. Para que me preocupar a esta altura? Berger está olhando para a luz da varanda, fracamente iluminada pelos faróis do carro de Eric Bray. É uma luminária simples de vidro, pequena e em forma de globo, que deveria estar presa no suporte por parafusos. A polícia encontrou o globo de vidro na grama perto de uma árvore de buxo onde Chandonne aparentemente a jogou. Portanto, ele só precisou tirar a lâmpada, que “devia estar quente”, digo a Berger. “Então meu palpite é que ele a cobriu com algo para proteger os dedos. Talvez tenha usado o casaco.” “Nenhuma impressão digital nele”, diz ela. “Nem impressões digitais de
Chandonne, segundo Marino.” Isso é novidade para mim. “Mas isso não me surpreende, supondo que ele tenha coberto a lâmpada para não queimar os dedos”, ela acrescenta. “E quanto ao globo?” “Nenhuma impressão. Não dele.” Berger enfia a chave na fechadura. “Mas talvez ele também tivesse as mãos cobertas quando o tirou. Imagino como ele alcançou a luz. É muito alto.” Ela abre a porta e o alarme começa a tocar. “Acha que ele subiu em alguma coisa?” Ela vai até o teclado dentro da casa e digita o código. “Talvez ele tenha subido na grade”, sugiro, de repente a especialista no comportamento de Chandonne e não gostando nada do papel. “E na sua casa?” “Ele pode ter feito isso”, respondo. “Subido na grade e se firmado na parede ou no forro da varanda.” “Nenhuma impressão no suporte nem na lâmpada da sua casa, caso você não saiba”, ela me conta. “Não dele, de qualquer forma.” Relógios tiquetaqueiam na sala de estar, e eu me lembro de como fiquei surpresa quando entrei na casa de Diane Bray pela primeira vez, depois de ela ter sido morta, e descobri sua coleção de relógios perfeitamente sincronizados e suas antigüidades inglesas, grandiosas mas frias. “Dinheiro.” Berger pára na sala de estar e olha em volta para o sofá com braços em voluta, a estante giratória, o console de ébano. “Ah, sim, de fato. Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Policiais não vivem assim.” “Drogas”, comento. “Não brinque.” Os olhos de Berger se movem por todos os lugares. “Usuária e traficante. Só que ela usava outras pessoas como mulas. Inclusive Anderson. Inclusive seu ex-supervisor do necrotério, que roubava remédios controlados que você supunha que estavam sendo jogados fora na pia do necrotério. Chuck do quê?” Ela toca em tapeçarias cor de damasco dourado e olha para os dosséis. “Teia de aranha”, ela observa. “Poeira que não apareceu durante os últimos dias. Há outras histórias sobre ela.” “Deve haver”, replico. “Vender remédios controlados na rua não pode explicar tudo isso e um Jaguar novo.” “O que me leva à pergunta que tenho feito a todos que ficarem quietos o tempo suficiente para que eu fale com eles.” Berger caminha para a cozinha. “Por que Diane Bray se mudou para Richmond?” Não tenho resposta. “Não pelo trabalho, não importa o que ela dissesse. Não foi por isso. De jeito nenhum.” Berger abre a porta da geladeira. Há muito pouco dentro: cereal Grape-Nuts, tangerinas, mostarda, maionese Miracle Whip. O prazo de validade do leite com 2% de gordura expirou ontem. “Muito interessante”, diz Berger. “Não acho que essa senhora ficava em casa.” Ela abre um armário e examina latas de sopa Campbell’s e uma caixa de bolachas salgadas. Há três vidros de azeitonas gourmet. “Martínis?, me pergunto. Ela bebia muito?” “Não na noite em que morreu”, lembro a ela. “Está certo. Nível alcoólico de zero-vírgula-três.” Berger abre outro
armário, e mais outro, até encontrar onde Bray guardava a bebida. “Uma garrafa de vodca. Uma de scotch. Dois cabernets argentinos. Não é o bar de alguém que bebesse muito. Provavelmente era vaidosa demais com a aparência para arruiná-la com bebida. As pílulas pelo menos não engordam. Quando você chegou à cena, foi a primeira vez que esteve na casa dela — nesta casa?”, pergunta Berger. “Sim.” “Mas sua casa fica a apenas alguns quarteirões daqui.” “Eu tinha visto esta casa de passagem. Da rua. Mas nunca tinha entrado nela. Nós não éramos amigas.” “Mas ela queria fazer amizade com você.” “Disseram-me que ela queria almoçar ou algo assim. Para me conhecer”, digo. “Marino.” “Foi o que Marino me disse”, confirmo, me acostumando às perguntas dela. “Você acha que ela tinha interesse sexual em você?” Berger pergunta isso muito casualmente enquanto abre a porta de um armário. Lá dentro há copos e louça. “Há muitas indicações de que ela jogava dos dois lados.” “Já me perguntaram isso antes. Não sei.” “Você teria ficado incomodada se ela estivesse?” “Teria me sentido constrangida. Provavelmente”, admito. “Ela saía muito para comer?” “Entendo que ela fazia isso.” Estou percebendo que Berger faz perguntas para as quais suspeito que ela já tem uma resposta. Ela quer ouvir o que tenho a dizer e pesar minhas percepções contra as de outras pessoas. Parte do que ela explora ecoa o que Anna me perguntou durante nossas confissões ao pé da lareira. Imagino se é remotamente possível que Berger também tenha conversado com Anna. “Me faz lembrar de uma loja que é uma fachada para algum negócio ilegal”, Berger diz enquanto verifica o que está embaixo da pia: alguns removedores e várias esponjas secas. “Não se preocupe”, ela parece ler minha mente. “Não vou deixar ninguém lhe perguntar isso no tribunal, sobre sua vida sexual e coisas do tipo. Nem nada sobre a vida pessoal dela. Percebo que essa não deve ser sua área de especialização.” “Não deve ser?” Parece um comentário esquisito. “O problema é que parte do que você sabe não é de ouvir dizer, são informações que você obteve diretamente dela. Ela lhe contou” — Berger abre uma gaveta — “que comia sozinha fora de casa com freqüência, no bar na Buckhead’s.” “Foi o que ela me contou.” “Na noite em que você a encontrou lá no estacionamento e a enfrentou.” “Na noite em que tentei provar que ela estava em conluio com meu assistente no necrotério, Chuck .” “E ela estava.” “Infelizmente, com certeza estava”, replico.
“E você a enfrentou.” “Enfrentei.” “Bem, o velho Chuck está preso onde devia estar.” Berger sai da cozinha. “E se isso não é coisa que você ouviu dizer”, ela volta a esse tópico, “então Rocky Caggiano vai lhe perguntar e eu não posso objetar. Ou posso, mas isso não vai me levar a nada. Você precisa perceber isso. E como isso lhe faz parecer.” “Neste instante, estou mais preocupada com como tudo me faz parecer para um grande júri especial”, respondo a ela, incisiva. Ela pára no corredor. No final dele, o quarto principal está atrás de uma porta descuidadamente entreaberta, aumentando o ambiente de negligência e indiferença que torna este lugar desagradavelmente frio. Berger me olha nos olhos. “Não conheço você pessoalmente”, diz. “Ninguém que estiver sentado naquele grande júri especial vai conhecer você pessoalmente. É sua palavra contra a de uma policial assassinada, dizendo que foi ela que a assediou e não o contrário, e que você não teve nada a ver com o assassinato dela — embora você pareça pensar que o mundo ficou melhor sem ela.” “Você soube disso por Anna ou por Righter?”, pergunto com amargura. Ela começa a andar pelo corredor. “Logo, logo, doutora Kay Scarpetta, você vai ganhar uma pele grossa”, ela diz. “Essa vai ser minha missão.”
26
Sangue é vida. Comporta-se como uma criatura viva. Quando o sistema circulatório é rompido, o vaso sangüíneo se contrai em pânico, tornando-se menor na tentativa de diminuir o fluxo de sangue que passa por ele e sai pelo rasgo ou corte. Plaquetas se reúnem imediatamente para fechar o buraco. Há treze fatores de coagulação, e juntos eles instigam sua química a interromper a perda de sangue. Sempre pensei que o sangue é vermelho brilhante também por uma razão. Ela é a cor do alarme, da emergência, do perigo e da tensão. Se o sangue fosse um fluido claro como o suor, poderíamos não perceber quando estamos feridos ou alguma outra pessoa está. O vermelho brilhante anuncia a importância do sangue, é a sirene que soa quando a maior de todas as violações ocorreu: quando outra pessoa mutilou ou tirou uma vida. O sangue de Diane Bray grita em pingos e gotículas, salpicos e manchas. Ele tagarela sobre quem fez o quê, como e, em alguns casos, por quê. A gravidade de uma batida afeta a velocidade e o volume do sangue que é lançado no ar. O sangue jogado pelo movimento de retorno de uma arma conta o número de golpes, que neste caso foi de pelo menos cinqüenta e seis. Isso é o cálculo mais preciso que podemos fazer, porque alguns salpicos de sangue cobrem outros, e decidir quantos poderiam estar acumulados em cima de cada um deles é como imaginar quantas vezes um martelo bateu num prego para enfiá-lo em uma árvore. O número de golpes mapeados neste quarto é coerente com o que o corpo de Bray me contou. Mas, de novo, tantas fraturas se sobrepuseram e tantos ossos foram completamente esmagados que eu também perco a conta. Lascívia e raiva inacreditáveis. Não houve nenhuma tentativa de limpar o que aconteceu no quarto principal, e o que Berger e eu encontramos contrasta profundamente com a calma e a esterilidade do resto da casa. Primeiro, há o que parece ser uma enorme rede rosa brilhante tecida por técnicos de cena do crime, que usaram um método chamado encordoamento para descobrir as trajetórias das gotículas de sangue que estão em todos os lugares. O objetivo é determinar distância, velocidade e ângulo, fazer surgir por meio de um modelo matemático a posição exata do corpo de Bray quando cada golpe foi desferido. O resultado parece um estranho projeto de arte moderna, uma esquisita geometria fúcsia que leva o olho a paredes, teto, piso, mobília antiga e os quatro espelhos ornados onde Bray antes admirava sua beleza sensual e espetacular. As poças de sangue coagulado no piso estão agora endurecidas e grossas como melaço seco, e o aspecto da cama king size onde o corpo de Bray foi tão cruelmente exposto sugere que alguém despejou latas de tinta preta por todo o colchão. Berger olha e sinto sua reação. Ela fica em silêncio enquanto absorve o que é horrivelmente, verdadeiramente incompreensível. Ela parece carregada com uma energia peculiar que só pessoas, sobretudo mulheres, que combatem a
violência profissionalmente podem de fato entender. “Onde está a roupa de cama?” Berger abre a pasta sanfonada. “Foi enviada ao laboratório?” “Não a encontramos”, respondo, e me lembro do quarto de motel no acampamento. Aquelas roupas de cama também não foram encontradas. Chandonne afirma que roupas de cama desapareceram de seu apartamento em Paris, lembro-me de ele dizer. “Removida antes ou depois de ela ser morta?” Berger tira fotos de um envelope. “Antes. Isso é aparente pelo sangue transferido para o colchão nu.” Entro no quarto, afastando cordões que apontam de forma acusadora para o crime de Chandonne, como longos dedos magros. Mostro a Berger manchas paralelas incomuns no colchão, as faixas ensangüentadas transferidas pelo cabo espiralado da picareta de entalhar quando Chandonne a depositou no colchão, entre os golpes ou depois deles. A princípio Berger não vê o padrão. Fica olhando, com o cenho levemente franzido, enquanto decifro um caos de nódoas escuras que são marcas de mão e manchas onde acredito que os joelhos de Chandonne possam ter estado enquanto ele estava escarranchando o corpo e encenando suas fantasias sexuais horripilantes. “Esses padrões não teriam sido transferidos para o colchão se houvesse roupa de cama no momento do ataque”, explico. Berger estuda uma foto de Bray de costas, estatelada no meio do colchão, com a calça de veludo preto e cinto, mas sem sapatos e meias, nua da cintura para cima, um relógio de ouro esmagado em seu pulso esquerdo. Um anel de ouro na mão direita machucada está cravado no osso do dedo. “Então, ou não havia roupa de cama, ou ele a removeu por algum motivo”, acrescento. “Estou tentando visualizar isso.” Berger examina o colchão. “Ele está na casa. Está forçando-a a seguir pelo corredor, até esta área, até o quarto. Não há sinal de luta — nenhuma evidência de que ele a feriu até eles chegarem aqui, e então, bum! Tudo vira um inferno. Minha pergunta é esta: ele a traz até aqui e então diz: ‘Ei, espere um segundo enquanto tiro a roupa de cama’? Ele pára para fazer isso?” “No momento em que ele a pôs na cama, duvido seriamente que ela estivesse falando ou em condições de correr. Se você olhar aqui, e aqui, e aqui, e aqui.” Refiro-me a segmentos de cordão colados a gotículas de sangue que começam na entrada do quarto. “Sangue lançado pelo movimento da arma — neste caso, a picareta de entalhar.” Berger segue o trajeto do cordão rosa brilhante e tenta correlacionar o que ele indica com o que está vendo nas fotos. “Diga-me a verdade”, ela diz. “Você realmente dá muito crédito a encordoamento? Conheço policiais que acham que isso é bobagem e uma enorme perda de tempo.” “Não, se a pessoa souber o que está fazendo e seguir fielmente a ciência.” “E qual é a ciência?” Explico a ela que 91% do sangue é água. Ele adere à física do líquido, e é afetado pelo movimento e pela gravidade. Uma gota de sangue típica cai a 7,65 metros por segundo. O diâmetro da mancha aumenta com o aumento da distância do gotejamento. Sangue pingando sobre sangue produz uma coroa de
salpicos em volta da poça original. Sangue borrifado produz salpicos alongados e estreitos em volta de uma mancha central, e à medida que o sangue seca ele passa de vermelho brilhante para marrom-avermelhado, para marrom e para preto. Conheço especialistas que passaram a carreira toda fixando conta-gotas de sangue em suportes, usando fios de prumo, espremendo, gotejando, derramando ou projetando sangue em uma variedade de superfícies, de uma variedade de ângulos e alturas, e andando sobre poças, pisando forte, dando tapas, fazendo experiências. Depois, é claro, há a matemática, a geometria das retas e a trigonometria para determinar o ponto de origem. O sangue no quarto de Diane Bray, à primeira vista, é um videoteipe do que aconteceu, mas não num formato legível, a menos que usemos a ciência, a experiência e o raciocínio dedutivo para entendê-lo. Berger também quer que eu use minha intuição. Mais uma vez, ela quer que eu ultrapasse meus limites clínicos. Sigo dezenas de pedaços de cordão que ligam manchas na parede e na moldura da porta e convergem para um ponto no meio do ar. Já que não se pode colar fita no ar, os técnicos de cena do crime moveram para cá um cabide antigo do vestíbulo e colaram o cordão a cerca de um metro e meio da base, para determinar o ponto de origem. Mostro a Berger onde Bray provavelmente estava quando Chandonne deu o primeiro golpe. “Ela estava há quase um metro da porta”, digo. “Você vê esta área vazia aqui?” Aponto para um espaço na parede onde não há sangue, apenas borrifos formando uma aura em volta dele. “O corpo dela, ou dele, impediu o sangue de atingir essa parte da parede. Ela estava de pé. Ou ele. E, se ele estava de pé, podemos supor que ela estava, porque ninguém se levanta e bate em alguém que está no chão.” Fico bem ereta e mostro a ela. “Não, a menos que a pessoa tenha braços com um metro e oitenta de comprimento. Além disso, o ponto de origem está a mais de um metro e meio do chão, sugerindo que é aí que os golpes estavam se ligando ao alvo. O corpo dela. Muito provavelmente, a cabeça dela.” Movo-me quase um metro para perto da cama. “Agora ela está caída.” Aponto manchas e gotas no chão. Explico que as manchas produzidas de um ângulo de noventa graus são redondas. Se, por exemplo, a pessoa estivesse apoiada nas mãos e nos joelhos e o sangue caísse direto no chão do rosto dela, essas gotas seriam redondas. Muitas gotas no chão são redondas. Algumas estão espalhadas. Cobrem uma área de aproximadamente sessenta centímetros. Por um breve momento, Bray ficou apoiada nas mãos e nos joelhos, talvez tentando rastejar enquanto ele continuava a golpear. “Ele chutou ou pisou?”, pergunta Berger. “Nada do que encontrei me diria isso.” É uma boa pergunta. Pisadas e chutes acrescentariam outras nuances às emoções do crime. “As mãos são mais pessoais que os pés”, observa Berger. “Essa foi a minha experiência em assassinatos por luxúria. Raramente vejo chutes e pisadas.” Ando pelo quarto, apontando mais sangue lançado e salpicos satélites, depois me movo até uma poça de sangue endurecido a quase um metro da cama. “Ela sangrou aqui”, digo a Berger. “Talvez seja este o lugar onde ele arrancou a blusa e o sutiã dela.”
Berger procura entre as fotos e encontra aquela que mostra a blusa de cetim verde e o sutiã preto de Bray no chão, a aproximadamente um metro da cama. “A esta distância da cama começamos a encontrar tecido do cérebro.” Continuo a decifrar os hieróglifos sangrentos. “Ele pôs o corpo dela na cama”, intercala Berger. “Ou a forçou a ir para a cama. A questão é: ela ainda está consciente quando ele a põe na cama?” “Eu realmente não acho.” Aponto para minúsculos pedaços de tecido escurecido aderidos à cabeceira, às paredes, ao abajur, ao teto sobre a cama. “O tecido do cérebro. Ela não sabe mais o que está acontecendo. Mas é só uma opinião”, proponho. “Ainda viva?” “Ela ainda está sangrando.” Indico áreas pretas densas do colchão. “Isso não é uma opinião. É um fato. Ela ainda tem pressão sangüínea, mas é muito improvável que esteja consciente.” “Graças a Deus.” Berger pega a câmera e começa a tirar fotos. Posso notar que ela tem prática e foi bem treinada. Ela sai do quarto e começa a tirar fotos quando volta, recriando o que acabei de lhe mostrar e captando tudo em filme. “Vou pedir a Escudero que venha aqui e grave tudo”, ela me informa. “Os policiais gravaram um vídeo.” “Eu sei”, ela retruca, enquanto o flash dispara repetidas vezes. Ela não se importa. Berger é perfeccionista. Quer fazer as coisas do jeito dela. “Eu adoraria fazer uma gravação com você explicando tudo, mas não posso fazer isso.” Não pode mesmo, a menos que queira que o advogado da outra parte tenha acesso à fita. Baseada na completa ausência de anotações, estou certa de que ela não quer que Rocky Caggiano tenha acesso a uma única palavra — escrita ou falada — além do que está em meus relatórios-padrão. O cuidado dela é extremo. Sou anuviada por suspeitas que tenho muita dificuldade de levar a sério. Realmente, ainda não me convenci de que qualquer pessoa poderia seriamente pensar que assassinei a mulher cujo sangue está a toda nossa volta e sob nossos pés.
 
 
Berger e eu terminamos com o quarto. A seguir exploramos outras áreas da casa, às quais dei pouca atenção quando estava trabalhando na cena. Examinei o armário de remédios no quarto principal. Sempre faço isso. O que as pessoas guardam para aliviar desconfortos corporais conta uma bela história. Sei quem tem dor de cabeça ou problemas mentais ou é obcecado com a saúde. Sei que os remédios preferidos de Bray, por exemplo, eram Valium e Ativan. Encontrei centenas de comprimidos que ela tinha posto em frascos de Nuprin e Tylenol PM. Ela também tinha uma pequena quantidade de BuSpar. Bray gostava de sedativos. Ansiava por alívio. Berger e eu exploramos um quarto de hóspedes no corredor. É um local no qual nunca entrei, e, como seria de esperar, está desocupado. Não tem sequer mobília, mas está amontoado com caixas que Bray aparentemente nunca abriu. “Você não tem a sensação de que ela não planejava ficar muito tempo
aqui?” Berger está começando a falar comigo como se eu fizesse parte de sua equipe de promotores, fosse sua segunda no tribunal. “Porque eu tenho. E ninguém assume um cargo importante num departamento de polícia sem imaginar que vai ficar nele por pelo menos alguns anos. Mesmo que o trabalho seja apenas um degrau.” Olho dentro do banheiro e percebo que não há papel higiênico, nem toalhas, nem sequer sabonete. Mas o que encontro dentro do armário de remédios me surpreende. “Ex-Lax”, anuncio. “Pelo menos uma dúzia de caixas.” Berger aparece no vão da porta. “Bem, isso é uma novidade”, diz ela. “Talvez nossa amiga vaidosa tivesse um distúrbio alimentar.” Não é incomum que pessoas que sofrem de bulimia usem laxantes para se purgarem depois de comer ou beber demais. Levanto o assento da privada e encontro evidências de vômito espalhadas na parte de dentro e na borda do vaso. A cor é avermelhada. Bray deve ter comido pizza antes de morrer, e me lembro de que ela tinha muito poucos restos no estômago: vestígios de carne moída e verdura. “Se uma pessoa vomitou depois de comer e morreu cerca de meia hora mais tarde, você esperaria que o estômago dela estivesse totalmente vazio?” Berger acompanha o que estou montando. “Ainda haveria vestígios de comida presos no revestimento do estômago.” Abaixo o assento da privada. “Um estômago não fica totalmente vazio nem limpo, a menos que a pessoa tenha bebido enormes quantidades de água e vomitado. Como quando se faz uma lavagem ou uma infusão repetida de água para expelir um veneno, digamos.” Outra parte do roteiro surge diante de meus olhos. Este quarto era o segredo sujo e vergonhoso de Bray. Ele está isolado do fluxo regular da casa e ninguém além de Bray jamais esteve aqui, então não havia medo de que ele fosse descoberto, e sei o suficiente sobre distúrbios alimentares e vícios para estar bem consciente da necessidade desesperada que a pessoa tem de esconder dos outros seus rituais vergonhosos. Bray estava determinada a que ninguém jamais tivesse sequer o mais leve indício de que ela se entupia de comida e vomitava, e talvez o problema dela explique por que mantinha tão pouca comida na casa. Talvez os remédios ajudassem a controlar a ansiedade, que é uma parte inevitável de qualquer compulsão. “Talvez esta seja uma das razões pelas quais ela mandou Anderson sair tão depressa depois de comer”, conjectura Berger. “Bray queria se livrar da comida e queria privacidade.” “Essa seria pelo menos uma razão”, retruco. “Pessoas que sofrem dessa doença são tão dominadas pelo impulso que ele tende a se sobrepor a qualquer outra coisa que esteja acontecendo. Então, sim, talvez ela quisesse ficar sozinha para cuidar de seu problema. E talvez ela estivesse aqui neste banheiro quando Chandonne apareceu.” “O que aumentava sua vulnerabilidade.” Berger tira fotos do Ex-Lax dentro do armário de remédios. “Sim. Ela teria ficado alarmada e paranóica se estivesse no meio de seu ritual. E seu primeiro pensamento teria sido sobre o que estava fazendo — não
sobre qualquer perigo iminente.” “Distraída.” Berger se inclina e fotografa o vaso sanitário. “Extremamente distraída.” “Então ela corre para terminar o que está fazendo, vomitando”, reconstrói Berger. “Ela sai correndo daqui, fecha a porta e vai para a porta da frente. Está supondo que é Anderson quem está lá fora batendo três vezes. É bem possível que Bray estivesse desconcertada e ofendida, e pode ter começado a falar com irritação, quando abre a porta e...” Berger recua no corredor, com um esgar na boca. “Ela está morta.” Ela deixa este cenário cheio de possibilidades enquanto procuramos a lavanderia. Ela sabe que posso relatar a distração e o horror apavorante e repentino de abrir a porta da casa e ver Chandonne surgir de repente do escuro como uma criatura saída do inferno. Berger abre as portas do armário do corredor, depois encontra uma porta que leva ao porão. A área da lavanderia é aqui, e sinto-me estranhamente perturbada e nervosa enquanto caminhamos sob a luz agressiva de lâmpadas nuas que são acendidas por cordões de puxar. Nunca estive nesta parte da casa. Nunca vi o Jaguar vermelho brilhante do qual tanto ouvi falar. Ele está absurdamente fora de lugar neste espaço escuro, apinhado e desolador. O carro é magnificamente vistoso e um símbolo exato do poder que Bray adorava e ostentava tanto. Recordo-me do que Anderson disse, irritada, sobre ser o “office-boy” de Bray. Duvido seriamente que a própria Bray jamais tenha levado o carro para lavar. A garagem do porão tem a aparência que imagino que tinha quando Bray comprou a casa: um espaço de concreto escuro e empoeirado congelado no tempo. Não há nenhum sinal de melhoramentos. Ferramentas pendem de um painel com ganchos e há um cortador de grama velho e enferrujado. Pneus de reserva estão encostados numa parede. A lavadora e a secadora de roupa não são novas, e, embora eu esteja certa de que a polícia as verificou, não vejo nenhum sinal disso. As duas estão cheias. Quando quer que Bray tenha lavado roupa pela última vez, ela não se preocupou em esvaziar a lavadora nem a secadora, e lingerie, jeans e toalhas estão irremediavelmente amarfanhados e têm um cheiro acre. Meias, mais toalhas e roupas de trabalho que estão na lavadora não foram sequer molhadas. Pego uma camiseta de corrida Speedo. “Ela freqüentava uma academia?”, pergunto. “Boa pergunta. Vaidosa e obsessiva como ela era, suspeito que fazia alguma coisa para se manter em forma.” Berger mexe nas roupas da lavadora e pega uma calcinha manchada de sangue no cavalo. “Por falar em lavar a roupa suja de alguém”, ela comenta com pesar, “até eu me sinto às vezes como uma voyeur. Então talvez ela tivesse menstruado recentemente. Não que isso necessariamente tenha algo a ver com o preço do chá na China.” “Poderia ter”, retruco. “Depende de como isso afetava o humor dela. A TPM certamente piorava o distúrbio alimentar dela, e as alterações de humor não ajudariam o relacionamento instável dela com Anderson.” “É muito assombroso pensar nas coisas comuns, mundanas que podem levar a uma catástrofe.” Berger põe a calcinha de volta na máquina. “Eu tive um caso uma vez. Um homem precisa urinar e decide parar na Bleecker Street e se
aliviar num beco. Ele não consegue ver o que está fazendo até que outro carro passa e ilumina o beco apenas o suficiente para que o pobre sujeito perceba que está urinando sobre um cadáver ensangüentado. O cara tem um ataque do coração. Um pouco depois, um policial investiga o carro, que está parado em local proibido, entra no beco e encontra um hispânico morto com várias facadas. Ao lado dele há um homem mais velho morto com o zíper da calça aberto e o pênis para fora.” Berger vai até uma pia e lava as mãos, sacudindo-as para secarem. “Demorou um pouco para eu entender esse”, ela diz.
27
Terminamos na casa de Bray às nove e meia e, embora eu esteja cansada, seria impossível sequer pensar em dormir. Estou excessivamente energizada. Minha mente está acesa como uma enorme cidade à noite, e estou quase com febre. Eu nunca admitiria para ninguém quanto de fato gosto de trabalhar com Berger. Ela não deixa escapar nada. E guarda ainda mais coisas para si mesma. Ela despertou meu interesse. Provei o fruto proibido de ultrapassar meus limites burocráticos e gosto disso. Estou flexionando músculos que raramente uso, porque ela não está limitando minhas áreas de especialização, não restringe seu território nem é insegura. Talvez eu também queira que ela me respeite. Ela me encontrou em meu nível mais baixo, quando estou sendo acusada. Berger devolve a chave da casa a Eric Bray, que não tem perguntas para nós. Ele não parece nem curioso, só quer ir embora. “Como você está se sentindo?”, Berger me pergunta quando saímos. “Firme?” “Firme”, afirmo. Ela acende uma luz no teto do carro e olha furtivamente para um post-it no painel. Digita um número no telefone do carro, colocando-o no viva-voz. Sua mensagem gravada soa, e ela digita um código para ver quantas mensagens há. Oito. Então ela pega o fone para que eu não possa ouvi-las. Isso parece estranho. Haveria alguma razão para que quisesse que eu soubesse quantas mensagens ela tem? Estou só com meus pensamentos nos minutos seguintes, enquanto ela dirige pelo meu bairro, o fone grudado na orelha. Ouve as mensagens rapidamente, e suspeito que temos o mesmo hábito impaciente. Se alguém deixa uma mensagem muito longa, tendo a apagá-la antes que termine. Berger, aposto, faz a mesma coisa. Seguimos pela Sulgrave Road, atravessando o centro de Windsor Farms, passando pela Virginia House e pelo Agecroft Hall — antigas mansões Tudor que foram desmontadas e encaixotadas na Inglaterra e embarcadas para cá por moradores ricos de Richmond, em uma época em que esta parte da cidade era uma enorme propriedade. Aproximamo-nos da guarita da guarda para entrar em Lockgreen, meu bairro. Rita sai da cabine e sei instantaneamente por sua expressão tranqüila que ela já viu este utilitário Mercedes e sua motorista antes. “Oi”, diz Berger a ela. “Estou com a doutora Scarpetta.” Rita se inclina e seu rosto brilha na janela aberta. Está feliz de me ver. “Bem-vinda de volta”, ela diz com um sinal de alívio. “A senhora vai ficar em casa de vez, espero? Não parece certo a senhora não estar aqui. Parece muito quieto ultimamente.” “Volto para casa amanhã de manhã.” Sinto uma ambivalência, até medo, quando me ouço dizer as palavras. “Feliz Natal, Rita. Parece que todos nós vamos trabalhar hoje à noite.” “A gente tem que fazer o que tem que fazer.”
A culpa me pica o coração enquanto seguimos em frente. Este será o primeiro Natal em que não me lembrei dos guardas. Normalmente, faço pão para eles ou mando comida para quem quer que tenha a triste sorte de estar sentado naquela pequena guarita quando deveria estar em casa com a família. Fico em silêncio. Berger sente que estou incomodada. “É muito importante que você me conte o que está sentindo”, ela diz com calma. “Sei que é completamente contra sua natureza e viola todas as regras que você estabeleceu em sua vida.” Seguimos pela rua em direção ao rio. “Entendo isso muito bem.” “O assassinato torna todos egoístas”, digo a ela. “Não brinque.” “Ele causa uma raiva e uma dor insuportáveis”, continuo. “As pessoas só pensam em si mesmas. Fiz muitas análises estatísticas com a base de dados de nosso computador, e um dia estou tentando consultar o caso de uma mulher que foi estuprada e assassinada. Encontro três casos com o mesmo sobrenome e descubro o resto de sua família: o irmão, que morreu de overdose de drogas alguns anos após o assassinato, depois o pai, que cometeu suicídio vários anos depois disso, a mãe, que morreu em um acidente de carro. Começamos um estudo ambicioso no instituto, fazendo uma análise do que acontece com as pessoas que sobrevivem. Elas se divorciam. Tornam-se consumidoras abusivas de remédios controlados. São tratadas por doenças mentais. Perdem o emprego. Mudam-se.” “A violência com certeza envenena a água do lago”, Berger responde de forma um tanto banal. “Estou cansada de ser egoísta. É isso que estou sentindo”, digo. “Véspera de Natal, e o que eu fiz por qualquer pessoa? Nem mesmo por Rita. Lá está ela trabalhando até depois da meia-noite, tem vários empregos porque tem filhos. Bem, odeio isso. Ele feriu tantas pessoas. E continua a ferir. Tivemos dois assassinatos excêntricos que acredito que estão relacionados. Tortura. Ligações internacionais. Armas, drogas. O desaparecimento de roupas de cama.” Olho para Berger. “Quando esse inferno vai acabar?” Ela vira na entrada de minha casa, sem fingir que não sabe exatamente qual delas é. “A realidade é que não vai acabar tão cedo”, ela me responde. Como a casa de Bray, a minha está completamente às escuras. Alguém apagou todas as luzes, inclusive os holofotes que estão escondidos educadamente em árvores ou em beiradas e direcionados para o chão para que não iluminem minha propriedade como um estádio de beisebol e ofendam completamente meus vizinhos. Não me sinto bem-vinda. Fico apavorada ao entrar em casa e encarar o que Chandonne e a polícia fizeram com meu mundo particular. Permaneço sentada por um momento e olho para fora pela janela do carro enquanto meu coração desfalece. Raiva. Dor. Estou profundamente ofendida. “O que você está sentindo?”, pergunta Berger enquanto olha para fora. “O que estou sentindo?”, repito amargamente. “Chega de Più si prende e peggio si mangia.” Saio e fecho com raiva a porta do carro. Numa tradução livre, o provérbio italiano significa quanto mais se paga, pior se come. A vida rural italiana deve ser simples e agradável. Deve ser
descomplicada. A melhor comida é feita de ingredientes frescos, e as pessoas não saem correndo da mesa nem se preocupam com assuntos que realmente não são importantes. Para meus vizinhos, minha robusta casa é uma fortaleza com todos os sistemas de segurança conhecidos pela humanidade. Para mim, o que construí foi uma casa colonica, uma casa de fazenda graciosamente antiquada em tons variados de pedra cinza-creme, com persianas marrons que aquecem como os pensamentos tranqüilizadores e gentis das pessoas de que descendo. Apenas gostaria de ter posto em minha casa um telhado de coppi, telhas de terracota curvadas, em vez de ardósia, mas não queria as costas de um dragão vermelho em cima de pedra rústica. Se não consegui razoavelmente encontrar materiais antigos, pelo menos escolhi aqueles que combinam com a terra. A essência do que sou está arruinada. A beleza e a segurança simples de minha vida estão maculadas. Tremo por dentro. Minha visão é borrada por lágrimas enquanto subo a escada da frente e páro embaixo da lâmpada que Chandonne retirou. O ar da noite mordisca, e as nuvens absorveram a lua. Parece que vai nevar outra vez. Pisco e respiro várias vezes o ar frio, em um esforço para me acalmar e abafar a emoção que me domina. Berger, pelo menos, teve a boa vontade de me dar um momento de paz. Ela volta quando enfio minha chave na fechadura. Entro no vestíbulo escuro e frio e digito o código do alarme, quando uma consciência eriça o pêlo de minha nuca. Acendo as luzes e olho de relance para a chave de aço Medeco em minha mão, e meu pulso se acelera. Isto é loucura. Não pode ser. De jeito nenhum. Berger está entrando calmamente pela porta atrás de mim. Ela observa as paredes de estuque e os tetos abobadados. Os quadros estão deslocados. Os belos tapetes persas estão dobrados, bagunçados e sujos. Nada foi reposto no lugar original. Parece insolente que ninguém tenha se preocupado em limpar o talco e a lama trazida para dentro, mas não é por isso que tenho uma expressão no rosto que chama a atenção de Berger. “O que foi?”, diz ela, as mãos postas para abrir o casaco de pele. “Preciso dar um rápido telefonema”, digo a ela.
 
 
Não conto a Berger o que estou pensando. Não deixo transparecer o que temo. Não divulgo que, quando saí da casa para usar meu telefone celular reservadamente, liguei para Marino e pedi a ele que viesse já para cá. “Está tudo bem?”, pergunta Berger quando volto e fecho a porta da frente. Não respondo. É claro que não está tudo bem. “Onde você quer que eu comece?” Lembro-a de que temos trabalho a fazer. Ela quer que eu reconstrua exatamente o que aconteceu na noite em que Chandonne tentou me matar, e nós entramos na sala grande. Começo com o sofá modulado de algodão branco em frente à lareira. Eu estava sentada lá na última sexta-feira à noite, olhando contas, com o som da televisão abaixado. Periodicamente, havia uma interrupção para uma notícia urgente, advertindo o público sobre o assassino serial que se autodenomina Le Loup-garou. Havia sido dada uma informação sobre sua suposta doença genética, sua extrema
deformidade, e quando me lembro daquela noite parece quase absurdo imaginar um âncora muito sério de uma emissora local falando sobre um homem que tem cerca de um metro e oitenta de altura, dentes esquisitos e o corpo coberto de cabelo longo e fino, como de um bebê. As pessoas foram advertidas a não abrir a porta se não tivessem certeza de quem estava lá. “Mais ou menos às onze”, digo a Berger, “mudei para a NBC, acho, para ver as últimas notícias, e momentos depois meu alarme contra ladrões disparou. A área da garagem tinha sido violada, de acordo com o visor no teclado, e quando o serviço ligou eu disse a eles que era melhor mandarem a polícia, porque eu não tinha idéia do motivo pelo qual a coisa tinha disparado.” “Então sua garagem tem um sistema de alarme”, repete Berger. “Por que a garagem? Por que você acha que ele tentou invadi-la?” “Para acionar deliberadamente o alarme, assim a polícia viria”, repito minha crença. “Eles vêm. Saem. Então ele aparece. Ele personifica a polícia, e eu abro a porta. Não importa o que qualquer pessoa diga ou o que eu vi no teipe quando você o entrevistou, ele falava inglês, inglês perfeito. Não tinha nenhum sotaque.” “Não parecia o homem no videoteipe”, ela concorda. “Não. Certamente não.” “Então você não reconheceu a voz dele naquele teipe.” “Não reconheci”, digo. “Você não acha que ele estava realmente tentando entrar na sua garagem, então. Acha que isso foi só para disparar o alarme.” Berger sonda, como sempre não anotando nada. “Duvido disso. Acho que ele estava tentando fazer exatamente o que eu disse.” “E como você supõe que ele sabia que sua garagem tinha um sistema de alarme?”, indaga Berger. “É muito incomum. A maioria das casas não tem sistema de alarme na garagem.” “Não sei se ele sabia nem como sabia.” “Ele podia ter tentado uma porta dos fundos, por exemplo, e ter certeza de que o alarme seria disparado, supondo que você o tivesse ligado. E eu acredito plenamente que ele sabia que você o teria ligado. Podemos supor que ele sabe que você é uma mulher muito preocupada com segurança, especialmente considerando os assassinatos que acontecem por aqui.” “Eu não tenho nenhuma pista do que se passava na mente dele”, digo, bastante concisa. Berger anda. Pára em frente à lareira de pedra. A lareira está vazia e escura e faz minha casa parecer desabitada e desleixada como a de Bray. Berger aponta um dedo para mim, “Você sabe o que ele pensa”, ela me confronta. “Assim como ele estava reunindo informações sobre você e sentindo como você pensa e quais são seus padrões, você estava fazendo a mesma coisa com ele. Você leu sobre ele nos ferimentos dos corpos. Estava se comunicando com ele através de suas vítimas, através das cenas de crime, através de tudo que você ficou sabendo na França.”
28
Meu sofá branco em estilo italiano tradicional está manchado de rosa de formalina. Há pegadas numa almofada, provavelmente deixadas por mim quando pulei por cima do sofá para escapar de Chandonne. Jamais me sentarei de novo nesse sofá, e mal posso esperar que o levem embora. Acomodo-me na beirada de uma cadeira vizinha, da mesma cor do sofá. “Preciso conhecê-lo para desmontá-lo no tribunal”, continua Berger, seus olhos refletindo o fogo interior. “Só posso conhecê-lo por meio de você. Você deve fazer essa apresentação, Kay. Leve-me a ele. Mostre-o a mim.” Ela se senta na lareira e ergue as mãos num gesto teatral. “Quem é Jean-Baptiste Chandonne? Por que sua garagem? Por quê? O que há de especial na sua garagem? O quê?” Penso por um momento “Não posso começar dizendo o que poderia ser especial nela para ele.” “Tudo bem. Então, o que há de especial nela para você?” “É onde guardo minhas roupas de cena do crime.” Começo a tentar imaginar o que poderia ser especial em minha garagem. “E uma lavadora e uma secadora de roupa industriais. Nunca uso roupas de cena do crime dentro de casa, então lá é meu quarto de vestir, lá na garagem.” Alguma coisa brilha nos olhos de Berger, um reconhecimento, uma conexão. Ela se levanta. “Me mostre”, diz ela. Acendo as luzes da cozinha quando passamos em direção ao quarto de despejo, onde há uma porta que leva à garagem. “Seu vestiário doméstico”, comenta Berger. Acendo as luzes e sinto um aperto no coração quando percebo que a garagem está vazia. Meu Mercedes se foi. “Onde diabo está meu carro?”, pergunto. Examino as paredes dos armários, o baú de cedro especialmente ventilado, suprimentos para jardinagem bem organizados, as ferramentas previsíveis, um nicho para a lavadora e a secadora e uma grande pia de aço. “Ninguém disse nada sobre levar meu carro a lugar nenhum.” Lanço um olhar acusador para Berger e sou sacudida por uma desconfiança instantânea. Mas ou ela é uma grande atriz, ou não tem nenhuma pista. Ando até o meio da garagem e olho em volta, como se pudesse encontrar alguma coisa que vai me dizer o que aconteceu com meu carro. Digo a Berger que meu Mercedes sedã preto estava aqui no sábado passado, no dia em que me mudei para a casa de Anna. Não vi o carro desde então. Não estive aqui desde então. “Mas você esteve”, acrescento. “Meu carro estava aqui da última vez que você veio? Quantas vezes você esteve aqui?”, pergunto a ela. Ela também está andando. Agacha-se diante da porta da garagem e examina as raspaduras na faixa de borracha, onde acreditamos que Chandonne usou algum tipo de ferramenta para levantar a porta. “Você poderia abrir a porta, por favor?” Berger é inflexível.
Pressiono um botão na parede e a porta sobe fazendo barulho. A temperatura dentro da garagem cai instantaneamente. “Não, seu carro não estava aqui quando eu vim.” Berger se levanta. “Nunca o vi. Considerando as circunstâncias, suspeito que você sabe onde ele está”, ela acrescenta. A noite enche o amplo espaço vazio, e caminho para onde Berger está. “Provavelmente apreendido”, digo. “Minha nossa.” Ela assente. “Vamos descobrir a razão disso.” Ela se vira para mim e há algo em seus olhos que nunca vi antes. Dúvida. Berger está constrangida. Talvez eu esteja condicionada por minha vontade, mas sinto que ela se sente mal por minha causa. “E o que faço agora?”, murmuro, olhando para minha garagem como se nunca a tivesse visto antes. “O que devo dirigir?” “Seu alarme disparou por volta das onze da noite na sexta-feira”, Berger retoma seu tom profissional. É outra vez firme e indireta. Volta a nossa missão de retraçar os passos de Chandonne. “Os policiais chegam. Você os traz até aqui e encontra a porta aberta uns vinte centímetros.” Obviamente, ela viu o relatório da tentativa de arrombar e entrar. “Estava nevando e você encontrou pegadas do outro lado da porta.” Ela caminha para fora e eu a sigo. “As pegadas estavam cobertas com poeira de neve, mas você pôde notar que elas passavam pela lateral da casa, até a rua.” Ficamos na entrada de carros no ar frio, ambas sem casacos. Olho para o céu escuro e alguns flocos de neve tocam friamente meu rosto. Começou de novo. O inverno se tornou um hemofílico. Parece que não pode parar de se precipitar. As luzes da casa do meu vizinho brilham através de magnólias e árvores nuas, e imagino quanta paz de espírito restou às pessoas de Lockgreen. Chandonne também causou danos à vida delas. Eu não ficaria surpresa se algumas pessoas se mudassem. “Você consegue se lembrar de onde estavam as pegadas?”, pergunta Berger. Mostro a ela. Sigo pela entrada para carros dando a volta na lateral da casa e atravesso o jardim, direto para a rua. “Que rumo ele tomou?” Berger olha para um lado e para outro da rua escura e vazia. “Não sei”, respondo. “A neve estava revolvida, tinha começado a nevar de novo. Não conseguimos saber que rumo ele tomou. Mas eu também não fiquei aqui olhando. Imagino que você vai ter de perguntar à polícia.” Penso em Marino. Gostaria que ele corresse e chegasse aqui, e me lembro do motivo pelo qual o chamei. O medo e o desnorteamento fazem minha espinha estalar. Olho as casas dos meus vizinhos. Aprendi a ler onde moro e posso dizer, pelas janelas iluminadas, pelos carros nas entradas e pelos jornais entregues, quando as pessoas estão em casa, o que realmente não é muito freqüente. Uma grande parcela da população daqui viaja para passar o inverno na Flórida e os meses quentes do verão na água, em algum lugar. Ocorre-me que nunca tive realmente amigos no bairro, só pessoas que acenam quando nos cruzamos de carro. Berger volta à garagem, abraçando-se para manter o calor, a umidade de
sua exalação se condensando em baforadas brancas. Lembro-me de Lucy quando criança vindo de Miami me visitar. A única ocasião em que ela se expunha ao frio era em Richmond, e ela enrolava folhas de caderno e ficava lá fora no pátio, fingindo fumar, batendo cinzas imaginárias, sem saber que eu a observava de uma janela. “Vamos retroceder”, Berger está dizendo. “Para segunda-feira, 16 de dezembro. O dia em que o corpo foi encontrado no contêiner no porto de Richmond. O corpo que acreditamos que era Thomas Chandonne, supostamente assassinado por seu irmão, Jean-Baptiste. Conte-me exatamente o que aconteceu naquela segunda-feira.” “Eu fui notificada sobre o corpo”, começo. “Por quem?” “Marino. Então, alguns minutos depois, meu legista assistente, Jack Fielding, ligou. Eu disse que compareceria à cena”, começo. “Mas você não precisava”, ela interrompe. “Você é a chefe. Temos um corpo em decomposição, asqueroso e fedorento, em uma manhã incomumente quente. Você poderia ter deixado, é..., Fielding ou alguma outra pessoa ir até lá.” “Poderia.” “Por que não fez isso?” “Era evidente que ia ser um caso complicado. O navio tinha vindo da Bélgica e tínhamos de considerar a possibilidade de que o corpo também viesse da Bélgica, o que criava dificuldades internacionais. Tendo a assumir os casos difíceis, aqueles que vão ter muita publicidade.” “Por que você gosta de publicidade?” “Porque não gosto.” Estamos dentro da garagem agora, nós duas completamente congeladas. Fecho a porta. “E talvez você quisesse pegar esse caso porque tinha tido uma manhã perturbadora?” Berger caminha até o grande baú de cedro. “Você se importa?” Digo a ela para ficar à vontade, enquanto fico outra vez maravilhada com os detalhes que ela parece saber a meu respeito. Segunda-feira negra. Naquela manhã, o senador Frank Lord, presidente da Comissão de Justiça e um velho e querido amigo, veio me ver. Estava de posse de uma carta que Benton havia escrito para mim. Eu não sabia nada sobre essa carta. Jamais me ocorreria que, enquanto Benton estava de férias no lago Michigan alguns anos antes, ele havia escrito uma carta para mim e instruído o senador Lord a entregá-la no caso de ele — Benton — morrer. Lembro-me de reconhecer a grafia quando o senador me entregou a carta. Jamais esquecerei o choque. Fiquei arrasada. O luto finalmente me pegou e tomou minha alma, e era isso precisamente o que Benton tinha pretendido. Até o fim, ele foi um especialista em perfis psicológicos brilhante. Sabia exatamente como eu reagiria se algo acontecesse com ele, e estava me forçando a sair de minha negação por meio do trabalho. “Como você sabe sobre a carta?”, pergunto, entorpecida, a Berger. Ela está olhando dentro do baú para macacões, botas de borracha, calças impermeáveis, luvas de couro grosso, ceroulas, meias, tênis. “Por favor, me agüente”, ela diz num tom quase gentil. “Apenas responda às minhas perguntas
por enquanto. Vou responder às suas depois.” Isso não me satisfaz. “Que importância tem a carta?” “Não estou certa. Mas vamos começar com o estado de espírito.” Ela deixa isso penetrar em mim. Meu estado de espírito é o centro do alvo de Caggiano, caso eu acabe indo a Nova York. Mais imediatamente, é o que todas as outras pessoas parecem estar questionando. “Vamos supor que, se eu souber de alguma coisa, o advogado da outra parte também sabe”, ela acrescenta. Faço que sim com a cabeça. “Você recebe essa carta inesperadamente. De Benton.” Ela pára de falar e a emoção cintila em seu rosto. “Deixe-me dizer apenas...” Ela desvia o olhar de mim. “Isso também teria me abalado, totalmente. Sinto muito pelo que você passou.” Ela olha para mim. Outro artifício para me fazer confiar nela, criar laços com ela? “Benton está lembrando você, um ano depois de sua morte, de que você provavelmente não lidou com a perda dele. Você correu com todas as forças do medo.” “Você não pode ter visto a carta.” Estou pasma e indignada. “Está trancada em um cofre. Como você sabe o que ela diz?” “Você a mostrou a outras pessoas”, ela responde razoavelmente. Percebo, com o pouco de objetividade que me restou, que se Berger não conversou com todos que me cercam, inclusive Lucy e Marino, vai conversar. É seu dever. Ela seria boba e negligente se não fizesse isso. “Seis de dezembro”, ela retoma. “Ele escreveu a carta no dia 6 de dezembro de 1996 e instruiu o senador Lord a entregá-la a você no dia 6 de dezembro seguinte à morte dele. Por que essa data era especial para Benton?” Eu hesito. “Pele grossa, Kay”, ela lembra. Pele grossa.” “Não sei exatamente o significado do dia 6 de dezembro — exceto que Benton mencionou na carta que sabia que o Natal é difícil para mim”, respondo. “Ele queria que eu lesse a carta perto do Natal.” “O Natal é difícil para você?” “Não é difícil para todo mundo?” Berger fica em silêncio. Então pergunta: “Quando o seu relacionamento íntimo com ele começou?”. “No outono. Há alguns anos.” “Tudo bem. No outono, há alguns anos. Foi quando você começou seu relacionamento sexual com ele.” Ela diz isso como se eu estivesse evitando a realidade. “Quando ele ainda estava casado. Quando seu caso com ele começou.” “Está certo.” “Tudo bem. No último dia 6 de dezembro, você recebe a carta e mais tarde naquela manhã comparece à cena no porto de Richmond. Então você voltou para cá. Conte-me exatamente qual é sua rotina quando você vem direto para casa de uma cena de crime.” “Minhas roupas de cena estavam ensacadas, duplamente ensacadas, no porta-malas do meu carro”, explico. “Um macacão e tênis.” Fico olhando para o
espaço vazio onde meu carro deveria estar. “O macacão foi para a máquina de lavar, os tênis para uma pia de água fervente com desinfetante.” Mostro a ela os tênis. Eles ainda estão na prateleira onde os coloquei para secar há mais de duas semanas. “E depois?” Berger caminha até a máquina de lavar e a secadora. “Depois eu tirei a roupa”, digo a ela. “Tirei tudo e pus na máquina de lavar, liguei e fui para dentro de casa.” “Nua.” “Sim. Fui para meu quarto, para o chuveiro, sem parar. É como eu me desinfeto quando venho direto para casa de uma cena”, concluo. Berger está fascinada. Ela tem uma teoria se desenvolvendo e, seja qual for, estou me sentindo cada vez mais constrangida e exposta. “Estou só imaginando”, ela reflete. “Estou só imaginando se de alguma maneira ele sabia.” “De alguma maneira sabia? E eu realmente gostaria de entrar, se você não se importa”, digo. “Estou congelando.” “De alguma maneira sabia sua rotina”, ela persiste. “Se ele estava interessado em sua garagem por causa de sua rotina. Era mais do que disparar o alarme. Talvez ele estivesse realmente tentando entrar. A garagem é onde você tira as roupas ligadas à morte — nesse caso, roupas maculadas por uma morte que ele causou. Você estava nua e vulnerável, mesmo que por pouco tempo.” Ela me segue para dentro da casa e eu fecho a porta do quarto de despejo. “Ele poderia ter uma verdadeira fantasia sexual sobre isso.” “Não consigo ver como ele poderia saber algo sobre minha rotina.” Resisto à hipótese que ela levantou. “Ele não testemunhou o que eu fiz naquele dia.” Ela levanta uma sobrancelha enquanto me olha. “Você pode dizer isso com certeza? Alguma possibilidade de ele tê-la seguido até em casa? Sabemos que ele estava no porto em algum momento, porque foi assim que ele chegou a Richmond — a bordo do Sirius, onde ele se cobriu com um uniforme branco, depilou áreas visíveis do corpo e ficou na cozinha a maior parte do tempo, trabalhando como cozinheiro e evitando encontrar outras pessoas. Não é essa a teoria? Eu certamente não acredito no que ele disse quando o entrevistei — que ele roubou um passaporte e uma carteira e viajou pela classe econômica.” “A teoria é que ele chegou ao mesmo tempo que o corpo de seu irmão apareceu”, respondo. “Então Jean-Baptiste, como era um cara cuidadoso, provavelmente andou pelo navio e observou todos vocês por ali quando o corpo foi encontrado. O maior espetáculo da terra. Esses babacas adoram nos observar trabalhando em seus crimes.” “Como ele poderia ter me seguido?” Volto a esse pensamento ultrajante. “Como? Ele tinha um carro?” “Talvez tivesse”, diz ela. “Estou quase considerando a possibilidade de Chandonne não ser a criatura solitária e desgraçada que simplesmente veio parar em sua cidade porque era conveniente ou mesmo aleatório. Não tenho mais certeza de quais são as ligações dele, e estou começando a me perguntar se talvez ele poderia fazer parte de um grande esquema que tem a ver com os
negócios da família. Talvez até com a própria Bray, já que ela estava claramente envolvida no submundo do crime. E agora temos outros assassinatos, uma das vítimas claramente envolvida com crime organizado. Um assassino. E um agente secreto do FBI trabalhando em um caso de contrabando de armas. E os cabelos no acampamento que talvez sejam de Chandonne. Tudo isso está se combinando em algo mais do que um homem que matou o irmão, tomou o lugar dele em um navio com destino a Richmond — tudo para sair de Paris porque seu hábito asqueroso de assassinar e mutilar mulheres estava ficando cada vez mais inconveniente para sua poderosa família de criminosos. Então ele começa a matar aqui porque não consegue se controlar? Bem.” Berger se recosta no balcão da cozinha. “Há coincidências demais. E como ele foi ao acampamento, se não tinha um carro? Supondo que se conclua que aqueles cabelos são dele”, ela repete. Sento-me à mesa. Não há janelas na minha garagem, mas há pequenas janelas na porta da garagem. Considero a possibilidade de que Chandonne tenha me seguido até em casa e me espiado através da porta da garagem enquanto eu estava me limpando e me despindo. Talvez ele também tivesse tido ajuda para encontrar a casa abandonada no rio. Talvez Berger esteja certa. Talvez ele não esteja sozinho e nunca tenha estado. É mais de meia-noite, quase Natal, e Marino ainda não está aqui, e a postura de Berger me diz que ela pode continuar até o amanhecer. “O alarme dispara”, ela retoma. “Os policiais vêm e vão embora. Você volta à sala grande.” Ela faz sinal para que eu a siga até lá. “Onde você estava sentada?” “No sofá.” “Certo. Televisão ligada, olhando contas, e por volta de meia-noite o que acontece?” “Há uma batida na porta da frente”, respondo. “Descreva a batida.” “Uma pancada com alguma coisa dura.” Tento me lembrar de cada detalhe. “Como uma lanterna ou um bastão tático. Do modo como a polícia bate. Eu me levanto e pergunto quem é. Ou acho que pergunto. Não estou certa, mas uma voz masculina se identifica como polícia. Ele diz que um ladrão foi localizado em minha propriedade e pergunta se está tudo bem.” “Isso faz sentido porque sabemos que o ladrão esteve aqui mais ou menos uma hora antes, quando alguém tentou forçar a porta de sua garagem.” “Exatamente.” Faço que sim com a cabeça. “Desligo o alarme e abro a porta, e lá está ele”, acrescento, como se estivesse falando sobre nada mais ameaçador do que crianças pedindo doces no dia de Halloween. “Me mostre”, diz Berger.
 
 
Caminho pela sala grande, passo pela sala de jantar e pelo hall de entrada. Abro a porta, e o simples ato de recriar um cenário que quase me custou a vida provoca uma reação visceral. Sinto enjôo. Minhas mãos começam a tremer. A luz da minha varanda da frente ainda está apagada porque a polícia removeu a
lâmpada e o suporte e os enviou ao laboratório para que fossem processadas impressões digitais. Ninguém os substituiu. Fios expostos pendem do teto. Berger está esperando pacientemente que eu continue. “Ele entra depressa”, digo. “E dá um coice na porta atrás dele.” Fecho a porta. “Ele segura um casaco preto e tenta colocá-lo sobre minha cabeça.” “Estava com ou sem o casaco quando entrou?” “Com. Estava tirando-o quando passou pela porta.” Fico parada. “E tentou tocar em mim.” “Tentou tocar em você?” Berger franze o cenho. “Com a picareta de entalhar?” “Com a mão. Ele esticou a mão e tocou em minha bochecha, ou tentou tocar.” “Você ficou parada enquanto ele fez isso? Apenas ficou parada?” “Tudo aconteceu muito rápido”, digo. “Muito rápido”, repito. “Não tenho certeza. Só sei que ele tentou fazer isso e estava tirando o casaco e tentando jogálo sobre minha cabeça. E eu corri.” “E a picareta de entalhar?” “Ele estava com ela. Não tenho certeza. Ou a tirou. Mas sei que ele estava com ela quando me perseguiu até a sala grande.” “No início ele não estava com ela? Não estava com a picareta de entalhar no início? Você tem certeza?” Ela me pressiona sobre esse ponto. Tento me lembrar, visualizar a cena. “Não, não no início”, concluo. “Primeiro ele tentou me tocar com a mão. Depois me cobrir. E depois sacou a picareta de entalhar.” “Você pode mostrar o que fez depois?”, ela pergunta. “Correr?” “Sim, correr.” “Não do mesmo jeito”, digo. “Eu teria de ter o mesmo surto de adrenalina, o mesmo pânico, para correr daquele jeito.” “Kay, encene para mim, por favor.” Saio do hall de entrada, passo pela sala de jantar e volto à sala grande. Bem à frente está a mesinha amarela de eucalipto que descobri numa loja maravilhosa em Katonah, Nova York. Como era o nome? Antipodes? A bela madeira clara brilha como mel e tento não notar o talco que a cobre completamente, ou talvez alguém tenha deixado nela um copo de café do 7Eleven. “O frasco de formalina estava aqui, neste canto da mesa”, digo a Berger. “E estava aí porque...?” “Por causa da tatuagem que estava nele. A tatuagem que eu tinha removido das costas do corpo que acreditamos que fosse de Thomas Chandonne.” “A defesa vai querer saber por que você trouxe pele humana para casa, Kay.” “É claro, todo mundo tem me perguntado isso.” Sinto um acesso de contrariedade. “A tatuagem é importante e suscitou muitas perguntas porque simplesmente não conseguimos imaginar o que ela era. Não só o corpo estava muito decomposto, tornando muito difícil até mesmo ver a tatuagem, mas depois
ficou claro que era uma tatuagem para esconder alguma coisa. Uma tatuagem encobrindo outra, e era crucial, especialmente, que determinássemos como era a tatuagem original.” “Dois pontos dourados que foram cobertos com uma coruja”, diz Berger. “Cada membro do cartel Chandonne tem dois pontos tatuados no corpo.” “Foi o que a Interpol me disse, sim”, digo, e agora já aceitei que ela e Jay Talley passaram muito tempo produtivo juntos. “O irmão Thomas estava extorquindo a família, tinha seu próprio negócio lateral, desviava navios, falsificava conhecimentos de embarque, administrava suas próprias armas e drogas. E a teoria é que a família descobriu. Ele mudou sua tatuagem para uma coruja e começou a usar apelidos porque sabia que a família o mataria se o encontrasse”, recito o que me disseram, o que Jay me disse em Lyon. “Interessante.” Ela toca os lábios com um dedo, olhando em volta. “E parece que a família o matou. O outro filho fez isso. O frasco de formalina. Por que você o trouxe para casa? Me diga outra vez.” “Não foi realmente algo deliberado. Eu fui para um salão de tatuagem em Petersburg para que a tatuagem do corpo fosse olhada por alguém que era especialista, um artista tatuador. Vim direto para casa de lá e deixei a tatuagem em meu escritório aqui. Foi só por acaso que na noite em que ele veio aqui...” “Jean-Baptiste Chandonne.” “Sim. Na noite em que ele veio aqui eu tinha trazido o frasco para cá, para a sala grande, e estava olhando para ele enquanto fazia outras coisas. Eu o guardo. Ele força a entrada em minha casa e eu corro. Agora ele tem a picareta de entalhar e a levanta para me atingir. Foi só um reflexo de pânico eu ver o frasco e pegá-lo. Pulo por cima do encosto do sofá, desenrosco a tampa e jogo a formalina no rosto dele.” “É um reflexo porque você sabe muito bem como a formalina é cáustica.” “Não se pode cheirá-la o dia todo e não saber. Aceita-se em minha profissão que a exposição à formalina é um perigo crônico, e todos nós tememos ser salpicados”, explico, percebendo como minha história pode soar para um grande júri especial. Forjada. Inacreditável. Grotescamente bizarra. “Você alguma vez já deixou cair formalina nos olhos?”, Berger me pergunta. “Alguma vez já se salpicou com formalina?” “Não, graças a Deus.” “Então você jogou a formalina no rosto dele. E depois?” “Saí correndo da casa. No caminho, peguei minha pistola Glock na mesa da sala de jantar, onde a tinha deixado antes. Saio, escorrego nos degraus e fraturo o braço.” Levanto meu gesso. “E o que ele fez?” “Ele veio atrás de mim.” “Instantaneamente?” “Parece que sim.” Berger anda em volta do encosto do sofá e pára na área assoalhada de carvalho francês antigo, onde a formalina comeu o acabamento. Ela segue as áreas mais claras da madeira de lei. A formalina aparentemente salpicou até a
entrada da cozinha. Isso é algo que não percebi até este momento. Só me lembro dos gritos e gemidos dele, de medo, enquanto ele punha a mão nos olhos. Berger fica parada no vão da porta, olhando para minha cozinha. Vou até onde ela está, imaginando o que chamou sua atenção. “Tenho de mudar de assunto e dizer que acho que nunca vi uma cozinha como esta”, ela comenta. A cozinha é o coração da minha casa. Caldeirões e panelas de cobre brilham como ouro em prateleiras em volta do enorme fogão Thirode, que fica no centro e inclui duas grelhas, um compartimento para banho-maria, uma chapa de ferro, duas chapas elétricas, queimadores a gás, uma chapa para carne e um queimador gigante para os enormes caldeirões de sopa que adoro fazer. Os eletrodomésticos são de aço inoxidável, inclusive a geladeira e o freezer SubZero. Prateleiras de temperos forram as paredes, e há um balcão do tamanho de uma cama de solteiro. O piso de carvalho é simples, e há um refrigerador de vinho vertical em um canto e uma mesinha encostada na janela que oferece uma vista distante de uma curva rochosa no rio James. “Industrial”, Berger murmura enquanto anda por uma cozinha que, sim, devo admitir, me enche de orgulho. “Alguém que vem aqui para trabalhar, mas adora as coisas boas da vida. Ouvi dizer que você é uma excelente cozinheira.” “Adoro cozinhar”, digo a ela. “Tira minha cabeça de qualquer outra coisa.” “Onde você consegue seu dinheiro?”, ela pergunta com ousadia. “Sou esperta com ele”, respondo friamente, jamais disposta a discutir sobre dinheiro. “Tive sorte com investimentos ao longo dos anos, muita sorte.” “Você é uma mulher de negócios esperta”, diz Berger. “Tento ser. E quando Benton morreu, deixou sua casa em Hilton Head para mim.” Faço uma pausa. “Eu a vendi, não podia mais ficar lá.” Outra pausa. “Consegui seiscentos e tantos mil por ela.” “Entendo. E o que é isso?” Ela aponta para a sanduicheira Milano Italian. Eu explico. “Bem, quando tudo isto terminar, você vai ter de cozinhar para mim algum dia”, ela diz com muita presunção. “Há boatos de que você faz comida italiana. Sua especialidade.” “Sim. Principalmente italiana.” Não há nenhum boato. Berger me conhece mais do que eu. “Você supõe que ele pode ter vindo aqui e tentado lavar o rosto na pia?”, ela pergunta então. “Não faço a menor idéia. Só posso lhe dizer que saí correndo e caí, e quando olhei para cima ele estava cambaleando atrás de mim. Ele desceu os degraus, ainda gritando, caiu no chão e começou a esfregar neve no rosto.” “Tentando lavar a formalina dos olhos. Ela é muito oleosa, não é? Difícil de lavar?” “Não seria fácil”, respondo. “Seria preciso grande quantidade de água quente.” “E você não ofereceu isso a ele? Não fez nenhum esforço para ajudá-lo?” Olho para Berger. “Calma aí”, digo. “Que diabo você teria feito?” A raiva me pica. “Espera-se que eu brinque de médica depois que o filho-da-mãe
acabou de tentar estourar meus miolos?” “Isso vai ser perguntado”, Berger responde pragmaticamente. “Mas não. Eu também não o teria ajudado, e isso é em off. Então ele está no seu jardim.” “Esqueci de dizer que apertei o alarme de pânico quando saí correndo da casa”, lembro. “Você pegou a formalina. Pegou sua pistola. Apertou o alarme de pânico. Você teve uma baita presença de espírito, não teve?”, ela comenta. “De qualquer maneira, você e Chandonne estão no jardim. Lucy aparece e você tem de falar com ela para convencê-la a não atirar na cabeça dele à queima-roupa. O ATF e todos os policiais aparecem. Fim da história.” “Bem que eu queria que fosse o fim da história”, digo. “A picareta de entalhar”, Berger volta a isso. “Agora você sabe como era a arma porque foi a uma loja de ferramentas e procurou até encontrar algo que poderia ter um padrão semelhante ao que encontrou no corpo de Bray?” “Eu tinha mais em que me basear do que você pode pensar”, respondo. “Eu sabia que Bray havia sido atingida por alguma coisa que tinha duas superfícies diferentes. Uma muito pontuda, outra mais quadrada. As áreas mais destruídas do crânio dela mostravam claramente a forma do que a atingira, e depois havia o padrão no colchão, que eu sabia que fora formado quando ele depositara alguma coisa ensangüentada. Que muito provavelmente era a arma. Um martelo ou algum tipo de picareta, mas incomum. A gente procura. Pergunta às pessoas.” “E então é claro que, quando ele veio a sua casa, estava com uma picareta de entalhar dentro do casaco ou seja lá o que for e tentou usá-la em você.” Ela diz isso sem paixão, objetivamente. “Sim.” “Então havia duas picaretas de entalhar na sua casa. A que você comprou na loja de ferramentas quando Bray já havia sido assassinada. E uma segunda, a que ele trouxe.” “Sim.” Estou chocada pelo que ela acabou de indicar. “Bom Deus”, murmuro. “Está certo. Comprei a picareta quando ela já estava morta, não antes.” Estou tão confusa pelo que aconteceu, pelos dias, por tudo. “O que estou pensando? A data no recibo...” Minha voz some. Lembro-me de ter pago em dinheiro na loja de ferramentas. Cinco dólares, algo assim. Não tenho recibo, estou certa disso, e sinto o sangue fugir de meu rosto. Berger soube o tempo todo o que eu esqueci: que eu não comprei a picareta antes de Bray ser morta, e sim no dia seguinte. Mas não posso provar isso. A menos que o funcionário que me atendeu na loja de ferramentas possa apresentar a fita da máquina registradora e jurar que sou a pessoa que comprou a picareta, não há nenhuma prova. “E agora uma delas sumiu. A picareta de entalhar que você comprou sumiu”, Berger está dizendo enquanto minha mente gira. Digo a ela que não sei o que a polícia encontrou. “Mas você estava aqui quando eles vasculharam sua casa. Você não estava em casa quando a polícia veio?”, ela me pergunta. “Eu mostrei a eles tudo que queriam ver. Respondi às perguntas deles. Estava aqui no sábado e saí no começo da noite, mas não posso dizer que vi tudo
que eles fizeram ou no que tocaram, eles não tinham terminado quando saí. Francamente, não sei nem por quanto tempo eles estiveram na minha casa, nem quantas vezes.” Sou tocada pela raiva enquanto explico tudo isso, e Berger percebe. “Cristo, eu não tinha uma picareta de entalhar quando Bray foi assassinada. Fiquei confusa porque comprei uma no dia em que o corpo dela foi encontrado, não no dia em que ela morreu. Ela foi assassinada na noite anterior, e o corpo foi encontrado no dia seguinte.” Agora estou divagando. “Para que exatamente é usada uma picareta de entalhar?”, pergunta Berger. “E a propósito, odeio dizer isso, mas não importa quando você diga que comprou a picareta, Kay, ainda permanece o problema de que aquela — a única — encontrada na sua casa tinha sangue de Bray.” “Elas são usadas em alvenaria. Há muitas construções em ardósia nesta área. E em pedra.” “Então provavelmente ela é usada por telhadores? E a teoria é que Chandonne encontrou uma picareta de entalhar na casa que invadira. O lugar em construção onde ele estava?” Berger é incansável. “Acredito que a teoria é essa”, respondo. “Sua casa é feita de pedra e tem teto de ardósia”, diz ela. “Você acompanhou o trabalho de perto quando ela foi construída? Porque você parece ser o tipo de pessoa que faria isso. Uma perfeccionista.” “Se você está construindo, é boba se não acompanhar o trabalho.” “Estou só imaginando se você poderia alguma vez ter visto uma picareta de entalhar enquanto sua casa estava sendo construída. Talvez no local da construção, no cinto de ferramentas de um operário?” “Não que eu me lembre. Mas não tenho certeza.” “E você nunca teve uma antes de ir às compras na Pleasant’s Hardware na noite do dia 17 de dezembro — exatamente duas semanas atrás e quase vinte e quatro horas depois da morte de Bray?” “Não antes dessa noite. Não, nunca tive uma antes, não que eu saiba”, digo a ela. “Que hora era quando você comprou a picareta de entalhar?”, Berger pergunta enquanto ouço o som ensurdecedor da caminhonete de Marino estacionando na frente da minha casa. “Por volta das sete. Não sei exatamente. Talvez entre seis e meia e sete, naquela sexta-feira, na noite de 17 de dezembro”, respondo. Não estou mais pensando com clareza. Berger está me esgotando e não consigo imaginar como qualquer mentira poderia resistir muito a ela. O problema é saber o que é mentira e o que não é, e não estou convencida de que ela acredite em mim. “E você foi para casa imediatamente depois de sair da loja de ferramentas?”, ela continua. “Diga-me o que fez no resto da noite.” A campainha toca. Olho para o Aiphone na parede da sala grande e vejo o rosto de Marino assomando na tela de vídeo. Berger acabou de fazer a pergunta. Ela acabou de testar a química que estou certa de que Righter vai usar para acabar com minha vida. Ela quer saber meu álibi. Quer saber onde eu estava no momento exato em que Bray foi assassinada na noite de terça-feira, 16 de dezembro. “Eu tinha acabado de chegar de Paris naquela manhã”, respondo. “Fiz
pequenas tarefas, cheguei em casa por volta das seis da tarde. Mais tarde, por volta das dez, fui até a Faculdade de Medicina da Virgínia para dar uma olhada em Jo — ex-namorada de Lucy, aquela que foi baleada com ela em Miami. Eu queria ver se poderia ajudar naquela situação, porque os pais dela estavam interferindo.” A campainha toca outra vez. “E queria saber onde estava Lucy, e Jo me contou que Lucy estava em um bar em Greenwich Village.” Começo a andar em direção à porta. Berger fica olhando para mim. “Em Nova York. Lucy estava em Nova York . Voltei para casa e liguei para ela. Ela estava bêbada.” Marino toca a campainha outra vez e bate na porta. “Então, para responder a essa pergunta, senhorita Berger, eu não tenho nenhum álibi para onde eu estava entre seis e mais ou menos sete e meia naquela noite de terça-feira, porque ou eu estava em casa ou no carro — sozinha, absolutamente sozinha. Ninguém me viu. Ninguém falou comigo. Não tenho nenhuma testemunha do fato de que onde eu não estava entre sete e meia e dez e meia era na casa de Diane Bray, batendo nela até matá-la com uma maldita picareta de entalhar.” Abro a porta. Posso sentir o calor dos olhos de Berger em minhas costas. Marino olha como se estivesse prestes a desmontar. Não posso dizer se ele está furioso ou morto de medo. Talvez as duas coisas. “Qual é o problema?”, ele pergunta, seus olhos indo de mim para ela. “Que merda está acontecendo?” “Desculpe ter feito você esperar no frio”, digo a Marino. “Por favor, entre.”
29
Marino levou bastante tempo para chegar aqui porque tinha parado na sala de pertences da central de polícia. Eu havia pedido a ele que pegasse a chave de aço inoxidável que encontrei no bolso do short de corrida de Mitch Barbosa. Marino nos conta que passou um bom tempo fuçando dentro da pequena sala atrás de uma tela de arame onde prateleiras Spacesaver estão apinhadas de sacos com código de barra, alguns dos quais contêm itens que a polícia tirou de minha casa no sábado passado. Já estive na sala de pertences. Consigo visualizá-la. Telefones celulares tocam dentro daquele sacos. Pagers soam quando pessoas desavisadas insistem em ligar para conhecidos que estão presos ou mortos. Há também geladeiras trancadas para guardar os PERKS, ou kits de recuperação de evidências físicas, e qualquer outra evidência que possa ser perecível — como a carne de frango crua que soquei com a picareta de entalhar. “Agora, por que você socou frango cru com uma picareta de entalhar?” Berger quer mais esclarecimentos sobre essa parte de minha história um tanto estranha. “Para ver se havia alguma correlação entre os ferimentos provocados e aqueles que havia no corpo de Bray”, respondo. “Bem, o frango ainda está dentro da geladeira de evidências”, diz Marino. “Devo dizer que você com certeza bateu nele com toda a força.” “Descreva em detalhes exatamente o que você fez com o frango”, Berger me estimula, como se eu estivesse no banco de testemunhas. Estou de frente para ela e Marino no corredor de entrada e explico que coloquei peitos de frango cru numa tábua de cortar e bati neles com cada lado e borda da picareta de entalhar para perceber o padrão dos ferimentos. Tanto aqueles causados pela extremidade rombuda quanto os causados pela extremidade pontuda tinham tamanho e configuração idênticos aos dos ferimentos no corpo de Bray, em particular os das áreas esmagadas nas cartilagens e no crânio, que são excelentes para reter a forma — ou marca de ferramenta — do que as tenha penetrado. Depois abri uma fronha branca, explico. Banhei o cabo espiralado da picareta de entalhar em molho de churrasco. Que tipo de molho de churrasco?, Berger, é claro, quer saber. Recordo-me de que era um molho de churrasco Smokey Pig que eu tinha afinado até a consistência de sangue, e depois pressionei o cabo coberto de molho contra o tecido para ver que aspecto teria o padrão de transferência. Obtive as mesmas estrias que foram deixadas no sangue encontrado no colchão de Bray. A fronha com as impressões de molho de churrasco, diz Marino, foi mandada para o laboratório de DNA. Observo que isso é uma perda de tempo. Não fazemos teste para tomates. Não quero fazer graça, mas estou suficientemente frustrada para emitir uma faísca de sarcasmo. O único resultado que o laboratório de DNA vai obter da fronha, garanto, é não humano. Marino anda de um lado para outro.
Estou ferrada, ele diz, porque a picareta de entalhar que comprei e com a qual fiz todos esses testes sumiu. Ele não conseguiu encontrá-la. Procurou por ela em todos os lugares. Não está na listagem de evidências do computador. Evidentemente não foi levada à sala de evidências, nem recolhida por técnicos forenses e enviada ao laboratório mediante recibo. Sumiu. E eu não tenho nenhum recibo da compra. Agora tenho certeza disso. “Eu contei a você, do telefone do meu carro, que a tinha comprado”, lembro a ele. “É.” Ele se lembra de eu ter lhe telefonado do carro depois que saí da loja da Pleasant’s Hardware, em algum momento entre seis e meia e sete. Contei a ele que achava que o que tinha sido usado em Bray era uma picareta de entalhar. Disse que tinha comprado uma. Mas, ele observa, isso não significa que não comprei uma ferramenta assim depois do assassinato de Bray, para fabricar um álibi. “Sabe, para fazer parecer que você não possuía uma ou nem mesmo sabia com o que ela tinha sido morta até depois de o fato ocorrer.” “De que lado você está?”, digo a ele. “Você acredita nesse absurdo do Righter? Tenha dó! Não consigo mais agüentar isso.” “Isso não tem nada a ver com lado, doutora”, responde Marino, num tom áspero, enquanto Berger observa. Voltamos ao fato de que há só uma picareta: a que tem o sangue de Bray, encontrada na minha casa. Especificamente, na sala grande, sobre o tapete persa, a exatos quarenta e cinco centímetros à direita da mesa de centro de eucalipto avermelhado. A picareta de Chandonne, não a minha, continuo a dizer enquanto imagino sacos de papel marrom barato com o número de comprovante e um código de barra que representa Scarpetta — eu —, atrás da tela de arame em prateleiras Spacesaver. Apóio-me na parede do corredor de entrada e sinto tontura. É como se eu estivesse tendo uma experiência extracorpórea, olhando para mim mesma de cima, depois que algo terrível e derradeiro aconteceu. Minha ruína. Minha destruição. Estou morta como outras pessoas cujos sacos de papel marrom acabam naquela sala de evidências. Não estou morta, mas talvez seja pior ser acusada. Odeio sequer sugerir o próximo estágio de minha ruína. Isso seria excessivo. “Marino”, digo, “experimente a chave na minha porta.” Ele hesita, franzindo o cenho. Então tira o saco de provas de plástico transparente do bolso interno de seu velho casaco de couro desgastado. O vento frio bate na casa quando ele abre a porta da frente e enfia — com facilidade — a chave de aço na fechadura, e vira a chave, e a lingüeta sai e entra. “O número que está escrito nela”, digo calmamente a Marino e a Berger. “Dois-três-três. É o código do meu alarme contra ladrão.” “O quê?” Berger, pelo menos uma vez, está quase sem fala. Nós três entramos na sala grande. Dessa vez eu me empoleiro na lareira fria, como Cinderela. Berger e Marino evitam sentar no sofá arruinado, mas ficam perto de mim, me olhando, esperando uma possível explicação. Só há uma, e penso que ela é muito óbvia. “A polícia e só Deus sabe quem mais entraram e saíram da minha casa desde sábado”, começo. “Uma gaveta na cozinha. Nela há chaves de tudo. Minha casa, meu carro, meu escritório,
armários de arquivo, qualquer coisa. Então, não seria difícil alguém ter acesso a uma chave reserva da casa, e vocês tinham o código do meu alarme contra ladrão, certo?” Olho para Marino. “Quer dizer, vocês não estavam deixando minha casa desarmada depois que saíam. E o alarme estava ligado quando entramos pouco tempo atrás.” “Precisamos de uma lista de todos que estiveram dentro desta casa”, decide Berger, resoluta. “Posso lhe dizer o nome de todos de que tenho conhecimento”, responde Marino. “Mas não estive aqui todas as vezes em que alguém esteve. Então não posso dizer que sei quem são todos.” Suspiro e me recosto na lareira. Começo a nomear policiais que vi com meus próprios olhos, inclusive Jay Talley. Inclusive Marino. “E Righter esteve aqui”, acrescento. “Como eu estive”, retruca Berger. “Mas eu certamente não entrei sozinha. Não tinha nenhuma idéia de qual era seu código.” “Quem abriu a porta para você?”, pergunto. A resposta dela é olhar para Marino. Incomoda-me que ele não tenha me contado que foi o guia turístico de Berger. É irracional eu me sentir irritada. Afinal, quem melhor do que Marino? Em quem confio mais do que nele? Marino está visivelmente agitado. Ele se levanta e atravessa o vão da porta que leva à cozinha. Ouço-o abrir a gaveta onde guardo as chaves, depois ele abre a geladeira. “Bem, eu estava com você quando você encontrou essa chave no bolso de Mitch Barbosa”, Berger começa a pensar em voz alta. “Você não poderia tê-la posto lá, não poderia tê-la plantado.” Ela está elaborando isso. “Porque você não estava na cena. E não tocou no corpo desacompanhada. Quer dizer, Marino e eu estávamos lá quando você abriu o saco.” Ela explode de frustração. “E Marino?” “Ele não faria isso”, corto-a, fazendo com a mão um gesto de fastio. “De jeito nenhum. Certo, ele tinha acesso, mas de jeito nenhum. E, com base no relato que ele fez da cena do crime, ele não viu o corpo de Mitch Barbosa. Ele já estava sendo posto na ambulância quando Marino apareceu em Mosby Court.” “Então ou um dos policiais na cena fez isso...” “Ou, o que é mais provável”, termino o pensamento dela, “a chave foi colocada no bolso de Barbosa quando ele foi morto. Na cena do crime. Não quando ele foi despejado.” Marino volta tomando uma garrafa de cerveja Spaten, que Lucy deve ter comprado. Não me lembro de tê-la comprado. Nada na minha casa parece mais me pertencer, e a história de Anna me vem à mente. Estou começando a entender o modo como ela deve ter se sentido quando os nazistas ocuparam a casa de sua família. Eu me dou conta, de repente, de que as pessoas podem ser empurradas para além da raiva, das lágrimas, do protesto, até do luto. Finalmente, apenas mergulhamos num pântano escuro de aceitação. O que é, é. E o que era é passado. “Não posso mais viver aqui”, conto a Berger e Marino. “Você tem esse direito”, Marino dispara de volta, no tom agressivo e irritado que parece usar como a própria pele ultimamente. “Olhe”, digo a ele, “pare de rosnar para mim, Marino. Todos nós estamos
frustrados e esgotados. Não entendo o que está acontecendo, mas é claro que alguém ligado a nós também está envolvido no assassinato dessas duas últimas vítimas, esses homens que foram torturados, e imagino que quem plantou minha chave no corpo de Barbosa ou quer me implicar também nesses crimes, ou, o que é mais provável, está me mandando um aviso.” “Acho que é um aviso”, diz Marino. E por onde anda Rocky ultimamente?, quase pergunto a ele. “Seu querido filho Rocky”, Berger diz por mim. Marino toma um gole de cerveja e enxuga a boca com as costas da mão. Não reage. Berger olha para seu relógio e depois para nós. “Bem”, diz ela. “Feliz Natal, espero.”
30
A casa de Anna está escura e silenciosa quando entro, perto das três da manhã. Ela deixou gentilmente uma luz acesa no corredor e uma na cozinha perto de um copo de cristal e da garrafa de Glenmorangie, para o caso de eu precisar de um sedativo. Neste momento eu declino. Uma parte de mim gostaria que Anna estivesse acordada. Estou meio tentada a ficar por aqui na esperança de que ela apareça e se sente comigo. Fiquei estranhamente viciada em nossas sessões, mesmo que agora eu devesse desejar que elas nunca tivessem acontecido. Vou para a ala de hóspedes e começo a pensar sobre transferência, e me pergunto se estou tendo essa experiência com Anna. Ou talvez eu apenas me sinta solitária e melancólica porque é Natal e eu estou bem desperta e arrasada na casa de outra pessoa, depois de ter passado o dia inteiro investigando mortes violentas, inclusive uma que sou acusada de ter cometido. Anna deixou um bilhete na minha cama. Pego o elegante envelope creme e posso dizer, pelo peso e pela grossura, que ela escreveu algo longo. Deixo minhas roupas numa pilha no chão do banheiro e imagino a feiúra que deve estar impregnada no próprio tecido, por causa de onde estive e do que fiz nas últimas vinte horas. Não me dou conta, até sair do chuveiro, que as roupas carregam o cheiro do incêndio do quarto de motel. Enrolo-as em uma toalha para que possa esquecê-las até que sejam levadas para a tinturaria. Uso um dos grossos robes de dormir de Anna e estou irritável quando pego outra vez a carta. Abro-a e desdobro seis páginas duras de papel com marca-d’água. Começo a ler, convencendo-me a não ir muito depressa. Anna é cautelosa e quer que eu assimile cada palavra, porque não desperdiça palavras.
 
Querida Kay, Como sou uma criança da guerra, aprendi que a verdade nem sempre é o correto, o bom ou o melhor. Se a SS batesse na porta de alguém e perguntasse se havia judeus na casa, a pessoa não contava a verdade caso estivesse escondendo judeus. Quando membros da Totenkopf SS ocuparam a casa de minha família na Áustria, eu não podia dizer a verdade sobre como eu os odiava. Quando o comandante da SS de Mauthausen vinha para minha cama tantas noites e me perguntava se eu gostava do que ele fazia comigo, eu não dizia a verdade a ele. Ele contava piadas vis e sibilava em meu ouvido, imitando o som dos judeus sendo cremados, e eu ria porque tinha medo. Às vezes ele estava muito bêbado quando voltava do campo, e uma vez ele se gabou de ter matado um garoto de doze anos de Langenstein, um povoado vizinho, durante uma operação de caça da SS. Mais tarde eu soube que isso não era verdade, que o Leitstelle — chefe da Staatspolizei em Linz — é que tinha
atirado no garoto, mas acreditei no que ele me disse na época e meu medo foi indescritível. Eu também era uma criança civil. Ninguém estava seguro. (Em 1945, esse mesmo comandante morreu em Gusen e seu corpo foi exposto ao público durante dias. Eu o vi e cuspi. Essa era a verdade sobre como eu me sentia — uma verdade que eu não poderia dizer antes!) Portanto, a verdade é relativa. Depende do momento. Depende do que é seguro. A verdade é um luxo dos privilegiados, de pessoas que têm muita comida e não são obrigadas a se esconder porque são judeus. A verdade pode destruir, e portanto nem sempre é sabio ou mesmo saudável ser verdadeiro. Uma coisa estranha para uma psiquiatra admitir, não é? Dou essa lição a você por uma razão, Kay. Depois que ler minha carta, deve destruí-la e jamais admitir que ela existiu. Conheço-a bem. Uma pequena ação secreta como essa será difícil para você. Se lhe perguntarem, você não deve dizer nada sobre o que estou lhe contando aqui. Minha vida neste país seria arruinada se se soubesse que minha família alimentou e abrigou a ss, não importa que nossos corações não estivessem nisso. Era para sobreviver. Também penso que você ficaria muito prejudicada se as pessoas soubessem que sua melhor amiga é uma simpatizante dos nazistas, como estou certa de que seria chamada. E, oh, que coisa terrível de ser chamada, especialmente quando alguém os odeia como eu. Eu sou judia. Meu pai era um homem previdente e muito consciente do que Hitler pretendia fazer. No final dos anos 1930, meu pai usou suas ligações bancárias e políticas e sua riqueza para obter identidades totalmente novas para nós. Ele mudou nosso nome para Zenner e nos transferiu da Polônia para a Áustria quando eu era jovem demais para saber muita coisa. Então você pode dizer que eu vivi uma mentira desde quando consigo me lembrar. Talvez isso a ajude a entender por que não quero ser interrogada num procedimento legal e por que vou evitar isso se puder. Mas Kay, o motivo real desta longa carta não é contar minha história. Por fim, falo com você sobre Benton. Estou bem certa de que você sabe que por algum tempo ele foi meu paciente. Há cerca de três anos, ele veio me ver em meu consultório. Estava deprimido e enfrentava muitas dificuldades relacionadas ao trabalho sobre as quais não podia falar com ninguém, inclusive você. Ele disse que ao longo de sua carreira no FBI tinha visto o pior do pior — os atos mais aberrantes que se pode imaginar, e, embora fosse assombrado por eles e sofresse de várias maneiras por causa dessa exposição ao que chamava de “mal”, nunca sentira realmente medo. A maioria daquelas pessoas más não estava interessada nele, ele disse. Não queriam causar
lhe nenhum dano pessoal, e de fato apreciavam a atenção que ele dava a elas quando as entrevistava na prisão. Quanto aos muitos casos que ajudou a polícia a resolver, de novo, ele não corria perigo pessoal. Estupradores e assassinos seriais não estavam interessados nele. Mas então começaram a acontecer com ele coisas estranhas, alguns meses antes de ele vir me ver. Eu gostaria de poder me lembrar melhor, Kay, mas houve fatos incomuns. Telefonemas. Ligações que não podiam ser rastreadas porque eram feitas através de satélite (imagino que ele queria dizer telefones celulares). Ele recebia correspondência esquisita que fazia referências terríveis a você. Houve ameaças a você, de novo não rastreadas. Estava claro para Benton que quem escrevia as cartas sabia de alguma coisa pessoal sobre você. É claro que ele suspeitava muito de Carrie Grethen. Ele dizia: “Ainda não ouvimos a última palavra dessa mulher”. Mas, na época, ele não via como ela poderia estar dando os telefonemas e enviando a correspondência, porque ainda estava presa em Nova York — em Kirby. Vou resumir seis meses de conversas com Benton dizendo que ele tinha uma premonição muito forte de que sua morte era iminente. Depois ele sofreu de depressão, ansiedade, paranóia e começou a lutar com o álcool. Dizia que escondia de você as bebedeiras e que os problemas dele estavam deteriorando o relacionamento com você. Como ouvi uma parte do que você me contou durante nossas conversas, Kay, posso entender que o comportamento dele em casa mudou. Agora talvez você compreenda algumas das razões para isso. Eu queria receitar a Benton um antidepressivo leve, mas ele não me deixou. Ele se preocupava constantemente com o que ocorreria com você e Lucy se algo acontecesse com ele. Chorou abertamente ao falar disso em meu consultório. Fui eu quem sugeriu que ele escrevesse a carta que o senador Lord lhe entregou há várias semanas. Eu disse a Benton: “Imagine que você está morto e tem uma última chance de dizer alguma coisa a Kay”. Foi o que ele fez. Ele lhe disse as palavras que você leu na carta. Durante nossas sessões, sugeri a ele repetidas vezes que talvez ele soubesse mais sobre quem o estava assediando e que talvez a negação o estivesse impedindo de enfrentar a verdade. Ele hesitava. Lembro-me muito bem de que eu sentia que ele possuía informações que não podia ou não queria contar. Agora estou começando a achar que talvez eu saiba. Cheguei à conclusão de que o que começou a acontecer com Benton há vários anos e o que está acontecendo agora com você têm ligação com o filho mafioso de Marino. Rocky está envolvido com criminosos muito poderosos e odeia o pai. Ele odiaria qualquer pessoa que tivesse importância para o pai. Pode ser coincidência que Benton recebesse cartas
ameaçadoras e fosse assassinado, e depois esse assassino terrível, Chandonne, em Richmond, e agora o terrível filho de Marino seja o advogado de Chandonne? Essa estrada tortuosa não leva, pelo menos, a uma conclusão pavorosa que pretende arrasar tudo que há de bom na vida de Marino? Em meu consultório, Benton se referia com freqüência a um arquivo aud. Nele, guardava todas as cartas estranhas e ameaçadoras e outros registros de comunicações e incidentes que tinha começado a receber. Durante meses, achei que ele estava dizendo arquivo Áudio, como se se referisse a gravações feitas pela polícia. Mas um dia fiz menção a seu arquivo Áudio e ele me corrigiu e disse que o arquivo era na verdade seu arquivo A-U-D, que ele pronunciava aud. Então perguntei o que significava AUD, e ele disse A Última Delegacia. Perguntei-lhe o que ele queria dizer com isso e seus olhos se encheram de lágrimas. Suas palavras exatas foram estas: “A Última Delegacia é onde vou terminar, Anna. É lá que vou terminar”. Você não pode imaginar o que senti quando Lucy mencionou que esse é também o nome da empresa de consultoria de investigações na qual ela vai agora trabalhar em Nova York . Quando fiquei tão perturbada na noite passada, não era simplesmente por causa da intimação entregue em minha casa. O que aconteceu foi o seguinte: recebi a intimação. Liguei para Lucy porque achava que ela deveria saber o que estava acontecendo com você. Ela disse que sua “nova chefe” (Teun McGovern) estava na cidade e mencionou A Última Delegacia. Fiquei chocada. Ainda estou chocada e não entendo o que tudo isso significa. Será que Lucy sabe sobre o arquivo de Benton? De novo, isso pode ser coincidência, Kay? Apenas aconteceu de ela pensar no mesmo nome que Benton deu a seu arquivo secreto? Todas essas ligações podem ser coincidências? Agora há uma coisa chamada A Última Delegacia, que está localizada em Nova York, e Lucy vai se mudar para Nova York, o julgamento de Chandonne foi transferido para Nova York porque ele matou em Nova York há dois anos enquanto Carrie Grethen ainda estava presa em Nova York , e o antigo parceiro de assassinato de Carrie, Temple Gault, foi morto (por você) em Nova York , e Marino começou sua carreira na polícia em Nova York. E Rocky mora em Nova York . Vou encerrar lhe contando que me sinto muito mal sobre qualquer contribuição que eu possa ter dado para tornar pior sua situação atual, embora você deva ter certeza de que não pretendo dizer nada que possa ser distorcido. Nunca. Sou velha demais para isso. Amanhã, no dia de Natal, vou partir para minha casa em Hilton Head, onde ficarei até que
seja bom eu voltar para Richmond. Faço isso por várias razões. Não pretendo tornar fácil para Buford nem para ninguém mais me encontrar. E o mais importante, você precisa de um lugar para ficar. Não volte para sua casa, Kay. Sua amiga devotada, Anna
 
Leio e releio. Sinto náuseas ao imaginar Anna crescendo no ar envenenado de Mauthausen e sabendo o que acontecia lá. Sinto a pena mais profunda por ela ter passado a vida inteira ouvindo referências a judeus e piadas ruins a respeito de judeus e descobrindo mais sobre as atrocidades cometidas contra judeus, o tempo inteiro sabendo que é judia. Não importa como ela racionalize isso, o que seu pai fez foi covarde e errado. Suspeito que ele também sabia que Anna estava sendo estuprada pelo comandante da SS que ele abrigava e alimentava, e o pai de Anna também não fez nada a esse respeito. Coisa nenhuma. Percebo que são quase cinco da manhã. Minhas pálpebras estão pesadas, meus nervos zumbem. Não faz sentido tentar dormir. Levanto-me e vou para a cozinha fazer café. Fico algum tempo sentada diante da janela escura, olhando para um rio que não consigo ver e contemplando tudo que Anna me revelou. Muita coisa sobre os últimos anos de Benton agora faz sentido. Penso nos dias em que ele reclamava de dor de cabeça de tensão, e eu pensava que ele parecia estar de ressaca, e agora suspeito que provavelmente estava. Estava cada vez mais deprimido, distante e frustrado. Em certo sentido, entendo ele não ter me contado sobre as cartas, os telefonemas, o arquivo Aud, como ele o chamava. Mas não concordo com ele. Ele devia ter me contado. Não me recordo de ter visto um arquivo desse tipo quando olhei os pertences de Benton depois de sua morte. Mas há muita coisa daquela época de que não me lembro. Era como se eu estivesse vivendo debaixo da terra, movendo-me sempre pesadamente e muito devagar, e incapaz de saber aonde estava indo ou onde estivera. Depois da morte de Benton, Anna me ajudou a separar seus pertences. Ela limpou os armários e olhou as gavetas dele enquanto eu entrava e saía dos quartos como um inseto enlouquecido, num momento ajudando, no seguinte me lamentando e chorando. Me pergunto se ela deparou com aquele arquivo. Sei que tenho de encontrá-lo, se ele ainda existir. A primeira luz da manhã chega com um toque de azul-escuro enquanto preparo o café para Anna e o levo para seu quarto. Encosto o ouvido na porta para ver se ouço algum sinal de que ela está acordada. Tudo está quieto. Abro em silêncio a porta do quarto, entro e ponho o café sobre a mesa oval ao lado da cama dela. Anna gosta de iluminação noturna. Sua suíte é iluminada como uma passarela, com luzes em praticamente todos os receptáculos. Quando notei isso pela primeira vez, achei esquisito. Agora começo a entender. Talvez ela associe a escuridão completa com ficar sozinha e aterrorizada em seu quarto, esperando que o nazista bêbado e fedorento entre e subjugue seu corpo jovem. Não é de estranhar que ela tenha passado a vida lidando com pessoas avariadas. Ela entende pessoas avariadas. É uma estudiosa de suas próprias tragédias passadas
tanto quanto disse que eu sou das minhas. “Anna?”, sussurro. Vejo-a agitar-se. “Anna? Sou eu. Trouxe café para você.” Ela se senta, apertando os olhos, seu cabelo branco no rosto, colado em alguns lugares. Feliz Natal, começo a dizer. Em vez disso, digo “Boas férias”. “Todos estes anos eu celebro o Natal enquanto secretamente sou judia.” Ela estende a mão para pegar o café. “Não sou conhecida por uma disposição doce de manhã cedo”, diz ela. Aperto sua mão, e no escuro ela parece de repente muito velha e delicada. “Li sua carta. Não sei bem o que dizer, mas não posso destruí-la, e nós precisamos falar sobre ela”, digo. Por um instante ela pára. Penso captar alívio em seu silêncio. Então ela se mostra teimosa de novo e faz um gesto de dispensa, como se com um mero gesto pudesse descartar toda a sua história e o que me contou sobre minha própria vida. As luzes noturnas emitem sombras exageradas e profundas da mobília Biedermeier, de abajures antigos e de pinturas a óleo, em seu amplo e magnífico quarto. As cortinas de seda grossa estão puxadas. “Eu provavelmente não devia ter escrito nada daquilo para você”, ela diz com firmeza. “Eu gostaria que você tivesse escrito antes, Anna.” Ela bebe o café e puxa as cobertas para os ombros. “O que aconteceu quando você era criança não é sua culpa”, digo a ela. “As escolhas eram feitas por seu pai, não por você. Ele a protegeu em certo sentido, mas não a protegeu absolutamente. Talvez não houvesse escolha.” Ela balança a cabeça. “Você não sabe. Você não pode saber.” Não vou discutir isso com ela. “Não há monstros que possam ser comparados a eles. Minha família não tinha escolha. Meu pai bebia muito. Ficava bêbado a maior parte do tempo, e eles bebiam com ele. Até hoje não consigo cheirar aguardente.” Ela pega a xícara de café com as duas mãos. “Todos eles ficavam bêbados, isso não tinha importância. Quando o Reichminister Speer e sua comitiva visitaram as instalações em Gusen e Ebensee, eles vieram para nosso Schloss, oh, sim, nosso lindo castelinho. Meus pais fizeram um banquete suntuoso com músicos de Viena e o melhor champanhe e a melhor comida, e todos ficaram bêbados. Eu me lembro que me escondi em meu quarto, com muito medo do que viria a seguir. Me escondi debaixo da cama a noite toda e ouvi passos em meu quarto várias vezes, e numa delas alguém puxou as cobertas e praguejou. Fiquei no chão debaixo da cama a noite toda, sonhando com a música e com um dos jovens que tirava notas tão doces de seu violino. Ele olhou para mim muitas vezes e me fez corar, e, enquanto fiquei escondida debaixo da cama até tarde daquela noite, pensei nele. Ninguém que produzia tal beleza podia ser indelicado. Pensei nele a noite toda.” “O violinista de Viena?”, pergunto. “Aquele que você depois...?” “Não, não.” Anna balança a cabeça nas sombras. “Isso foi muitos anos antes de Rudi. Mas acho que foi aí que me apaixonei por Rudi, antecipadamente, sem nunca tê-lo encontrado. Eu via os músicos em seus fraques pretos e ficava
hipnotizada pela mágica que eles faziam, e queria que me roubassem do horror. Imaginava-me flutuando nas notas deles em um lugar puro. Por um momento, fui levada de volta à Áustria antes da pedreira e do crematório, quando a vida era simples, as pessoas eram decentes e divertidas e tinham jardins perfeitos e muito orgulho de suas casas. Em dias ensolarados de verão pendurávamos nossos edredons de pena de ganso nas janelas para serem ventilados pelo ar mais doce que já aspirei. E brincávamos nos campos ondulantes de grama que pareciam levar direto para o céu, enquanto meu pai caçava javali nos bosques e minha mãe costurava e cozinhava.” Ela pára, seu rosto tocado por uma tristeza doce. “Quem diria que um quarteto de cordas pudesse transformar a mais pavorosa das noites. E então, mais tarde, meu pensamento mágico me leva para os braços de um homem com um violino, um americano. E aqui estou eu. Estou aqui. Escapei. Mas nunca escapei, Kay.”
 
 
A madrugada começa a iluminar as cortinas, tornando-as cor de mel. Digo a Anna que estou contente de ela estar aqui. Agradeço por ela ter conversado com Benton e por finalmente me contar. Em certos sentidos o quadro é mais completo por causa do que entendo agora. Em outros, não é. Mal consigo delinear com nitidez a progressão de humores e mudanças que antecedeu o assassinato de Benton, mas agora sei que, mais ou menos na época em que ele estava vendo Anna, Carrie Grethen estava procurando um novo parceiro para substituir Temple Gault. Carrie tinha trabalhado em computadores antes. Era brilhante e incrivelmente manipuladora, e conseguiu abrir caminho para ter acesso a um computador no Kirby, o hospital psiquiátrico forense. Era assim que ela lançava sua rede para o mundo lá fora. Ela se ligou a um novo parceiro — outro assassino psicopata, chamado Newton Joyce. Fez isso por meio da internet, e ele a ajudou a fugir de Kirby. “Talvez ela também tenha conhecido algumas outras pessoas pela internet”, sugere Anna. “O filho de Marino, Rocky?”, digo. “Estou pensando nisso.” “Anna, você tem idéia do que aconteceu com o arquivo de Benton? O arquivo Aud, como ele o chamava?” “Eu nunca o vi.” Ela se senta ereta, decidindo que é hora de sair da cama, e as cobertas lhe envolvem a cintura. Seus braços nus parecem penosamente finos e enrugados, como se alguém tivesse extraído o ar deles. Seus seios se movimentam, caídos e flácidos, embaixo da seda escura. “Quando eu ajudei você a separar as roupas e outros pertences pessoais dele, não vi nenhum arquivo. Mas eu não toquei no escritório dele.” Eu me lembro de muito pouco. “Não.” Ela empurra as cobertas e põe os pés no chão. “Eu não faria isso. Não era uma coisa em que eu mexeria. Os arquivos profissionais dele.” Agora ela está de pé e veste um robe. “Eu simplesmente supus que você os teria olhado.” Ela olha para mim. “Você olhou, não é? E o escritório dele em Quantico? Ele já estava aposentado, então eu suponho que ele também já o havia
esvaziado.” “Ele foi esvaziado, sim.” Andamos pelo corredor até a cozinha. “Arquivos de casos teriam ficado lá. Ao contrário de alguns de seus compatriotas que se demitem do FBI, Benton não acreditava que os casos em que trabalhava pertenciam a ele”, acrescento com pesar. “Então sei que ele não tirou nenhum arquivo de caso de Quantico quando se demitiu. O que não sei é se ele teria deixado o arquivo Aud com o FBI. Se isso aconteceu, nunca o verei.” “O arquivo era dele”, observa Anna. “Correspondência para ele. Quando falava disso comigo, nunca se referia ao que estava acontecendo com ele como assunto do FBI. Parecia considerar as ameaças, os telefonemas estranhos, como algo pessoal, e que eu saiba nunca compartilhou essas coisas com outros agentes. Ele estava muito paranóico, principalmente porque algumas das ameaças envolviam você. Fui levada a acreditar que sou a única pessoa a quem ele contou. Sei disso. Eu disse a ele muitas vezes que achava que ele devia contar ao FBI.” Ela balança a cabeça. “Ele não contaria”, ela diz de novo. Jogo o filtro de café no lixo e sinto uma picada de ressentimento antigo. Benton escondeu muita coisa de mim. “Uma pena”, respondo. “Talvez, se ele tivesse contado a alguns dos outros agentes, nada disso tivesse acontecido.” “Você quer mais café?” Sou lembrada de que não fui dormir ontem à noite. “Acho que é melhor”, respondo. “Um café vienense”, diz Anna, abrindo a geladeira e escolhendo um saco de café. “Já que estou sentindo nostalgia pela Áustria hoje.” Ela diz isso com uma ponta de sarcasmo, como se estivesse se repreendendo em silêncio por divulgar detalhes de seu passado. Despeja grãos no moedor e por um momento a cozinha se enche de barulho. “Benton se desiludiu com o FBI no fim”, penso em voz alta. “Não tenho certeza se ele continuava a confiar nas pessoas que o rodeavam. Competição. Ele era o chefe da unidade e sabia que todos iam brigar por seu cargo assim que mencionasse que estava pronto para se aposentar. Como eu o conhecia, sei que ele lidava com seus problemas em total isolamento — do mesmo modo como lidava com seus casos. Se não fosse por outra coisa, Benton era um mestre da discrição.” Estou avaliando todas as possibilidades. Onde Benton teria guardado o arquivo? Onde ele poderia estar? Ele tinha sua própria sala na minha casa, onde guardava seus pertences e ligava seu laptop. Tinha gavetas para arquivos. Mas eu as examinei e nunca vi nada sequer semelhante ao que Anna descreveu. Então penso em outra coisa. Quando Benton foi assassinado em Filadélfia, ele estava num hotel. Vários sacos de seus pertences pessoais me foram devolvidos, inclusive sua pasta, que eu abri. Examinei-a como a polícia tinha feito. Sei que não vi nada parecido com um arquivo Aud, mas, se é verdade que Benton suspeitava que Carrie Grethen podia ter alguma coisa a ver com os telefonemas e os bilhetes esquisitos que estava recebendo, ele não poderia ter levado consigo o arquivo Aud quando estava trabalhando em casos novos possivelmente ligados a ela? Não poderia ter levado o arquivo para Filadélfia? Vou até o telefone e ligo para Marino. “Feliz Natal”, digo. “Sou eu.” “O quê?”, ele explode, meio adormecido. “Ah, merda. Que horas são?”
“Passa um pouco das sete.” “Sete!” Gemido. “Diabo, o Papai Noel ainda nem passou. Por que você está me ligando tão cedo?” “Marino, isto é importante. Quando a polícia examinou os pertences pessoais de Benton no quarto de hotel em Filadélfia, você também os viu?” Um bocejo grande, e ele explode em voz alta. “Diabo, preciso parar de ficar acordado até tão tarde. Meus pulmões estão me matando, preciso parar de fumar. Eu e alguns dos rapazes e o Wild Turkey fizemos uma farra ontem à noite.” Outro bocejo. “Espere. Estou despertando. Me deixe mudar de canal. Num momento é Natal, no seguinte você está me perguntando sobre Filadélfia?” “Isso mesmo. As coisas que vocês encontraram no quarto de hotel de Benton.” “Sim. Diabo, sim, eu examinei.” “Você pegou alguma coisa? Alguma coisa, por exemplo, que pudesse estar na pasta dele? Um arquivo, por exemplo, que pudesse ter cartas dentro?” “Ele tinha alguns arquivos lá. Por que você quer saber?” Estou ficando animada. Minhas sinapses estão disparando, clareando minha mente e bombeando energia para minhas células. “Onde esses arquivos estão agora?”, pergunto. “É, eu me lembro de umas cartas. Coisas esquisitas que eu achava que devia olhar com atenção. Depois Lucy explodiu Carrie e Joyce, transformandoos em isca de peixe, e acho que se pode dizer que isso excepcionalmente resolveu o caso. Merda. Ainda não consigo acreditar que ela tinha uma porra dum AR-15 no maldito helicóptero e...” “Onde estão os arquivos?”, pergunto de novo, sem conseguir conter a urgência em minha voz. Meu coração está acelerado. “Preciso ver o arquivo que tinha as cartas esquisitas. Benton o chamava de seu arquivo Aud. A-U-D. Como em A Última Delegacia. Talvez seja daí que Lucy tenha tirado a idéia do nome.” “A Última Delegacia. Você está falando de onde Lucy vai trabalhar — o lugar de McGovern em Nova York? Que diabo isso tem a ver com o arquivo na pasta de Benton?” “Boa pergunta”, digo a ele. “Tudo bem. Está em algum lugar. Vou encontrá-lo e vou para aí.” Anna voltou para seu quarto, e eu me ocupo pensando em nosso jantar de Natal enquanto espero que Lucy e McGovern cheguem. Começo a tirar comida da geladeira enquanto repasso o que Lucy me contou sobre a nova empresa de McGovern em Nova York. Lucy disse que o nome A Última Delegacia começou como uma brincadeira. Aonde você vai quando não há nenhum lugar para ir. E, na carta, Anna disse que Benton lhe contou que A Última Delegacia é onde ele terminaria. Mensagem cifrada. Enigmas. Benton acreditava que seu futuro estava de alguma forma ligado ao que ele estava guardando naquele arquivo. A Última Delegacia era a morte, considero então. Onde Benton ia terminar. Ele ia terminar morto. Era isso que ele queria dizer? Onde mais ele poderia ter terminado? Dias atrás, prometi a Anna que faria o jantar de Natal se ela não se
importasse em ter em sua cozinha uma italiana que não chega perto de um peru nem do que as pessoas enfiam em perus na época das festas. Anna fez um corajoso esforço de compra. Tem até azeite de oliva prensado a frio e mozarela de búfala fresca. Encho um panelão com água e volto ao quarto de Anna para dizer que ela não pode ir para Hilton Head ou qualquer outro lugar antes de ter comido uma pequena cucina Scarpetta e provado um pouco de vinho. Este é um dia familiar, digo enquanto ela escova os dentes. Não me preocupo com grandes júris especiais, nem com promotores, nem com qualquer outra coisa até depois do jantar. Por que ela não faz alguma coisa austríaca? Ela quase cospe a pasta de dente. Nunca, diz ela. Se nós duas ficássemos na cozinha ao mesmo tempo, acabaríamos nos matando. Por algum tempo, o humor parece melhorar na casa. Lucy e McGovern aparecem por volta das nove e empilham presentes debaixo da árvore. Começo a bater ovos e farinha, junto-os com os dedos numa tábua de cortar de madeira. Quando a massa adquire a consistência certa, embrulho-a em plástico e começo a procurar a máquina manual de macarrão que Anna afirma ter em algum lugar, enquanto pulo de um pensamento a outro, mal ouvindo o que Lucy e McGovern falam. “Não é que eu não consiga voar quando não há condições de vôo visual.” Lucy está explicando alguma coisa sobre seu novo helicóptero, que aparentemente foi entregue em Nova York. “Tenho meu controle por instrumentos. Mas não estou interessada em ter um helicóptero monomotor controlado por instrumentos, porque, só com um motor, vou querer ver o solo o tempo inteiro. Então não quero estar voando acima das nuvens em dias ruins.” “Parece perigoso”, comenta McGovern. “Não é nem um pouco. O motor dessas coisas nunca pára, mas vale a pena sempre considerar o pior cenário.” Começo a amassar a massa. É minha parte favorita da feitura de macarrão, e sempre evito usar processadores porque o calor do toque humano dá uma textura à massa fresca que é diferente de tudo que lâminas de aço agitadas podem conseguir. Entro num ritmo, empurrando, dobrando, dando meia-volta, pressionando firme com a parte de baixo de minha mão boa, enquanto também penso nos piores cenários. O que Benton pode ter pensado que seria o pior cenário para ele? Se estava pensando que sua metafórica Última Delegacia era onde ele terminaria, qual teria sido o pior cenário? É nesse momento que deduzo que ele não queria dizer morte quando dizia que terminaria na Última Delegacia. Não. Benton certamente sabia que há coisas muito piores do que a morte. “Eu dei algumas aulas a ela. Uma espécie de curso rápido. As pessoas que usam as mãos têm uma vantagem”, Lucy está dizendo a McGovern, falando a meu respeito. É onde vou terminar. As palavras de Benton cintilam em minha mente. “Certo. Porque exige coordenação.” “Tem de ser capaz de usar as duas mãos e os dois pés ao mesmo tempo. E, ao contrário de um avião, um helicóptero é intrinsecamente instável.” “É o que estou dizendo. Eles são perigosos.”
É onde vou terminar, Anna. “Não são, Teun. Você pode perder o motor a trezentos metros e pousá-lo. O ar mantém as lâminas girando. Já ouviu falar de auto-rotação? Você aterrissa em um estacionamento ou no quintal de alguém. Não pode fazer isso com avião.” O que você quis dizer , Benton? Droga, o que você quis dizer? Amasso e amasso, sempre virando a bola de massa na mesma direção, no sentido horário, porque estou usando a mão direita, evitando o gesso. “Pensei que você tinha dito que nunca se perde um motor. Quero um pouco de gemada. Marino vai fazer sua famosa gemada hoje?”, diz McGovern. “É a especialidade de ano-novo dele.” “O quê? É contra a lei gemada no Natal? Não sei como ela consegue fazer isso.” “Teimosia, é assim que ela faz.” “Não brinque. E nós aqui paradas sem fazer nada.” “Ela não vai deixar você ajudar. Ninguém toca na massa dela. Pode confiar em mim. Tia Kay, isso não está machucando seu cotovelo?” Meus olhos entram em foco quando olho para cima. Estou amassando com a mão direita e com as pontas dos dedos da esquerda. Olho para o relógio acima da pia e percebo que perdi a noção do tempo e estou amassando há quase dez minutos. “Meu Deus, em que mundo você está?” A animação de Lucy desaba quando ela me olha no rosto. “Não deixe tudo isso comê-la viva. Vai ficar tudo bem.” Ela acha que estou preocupada com o grande júri especial, quando, ironicamente, não estou nem pensando nele hoje. “Teun e eu vamos ajudá-la, estamos ajudando. O que você acha que estivemos fazendo nos últimos dias? Temos um plano sobre o qual queremos conversar com você.” “Depois da gemada”, diz McGovern com um sorriso gentil. “Benton falou alguma vez com você sobre A Última Delegacia?” Ponho para fora, quase acusando no modo feroz como olho para elas duas, depois percebendo por suas expressões confusas que elas não sabem a que estou me referindo. “Você quer dizer o que estamos fazendo agora?” Lucy franze o cenho. “O escritório em Nova York? Ele não poderia ter sabido sobre isso, a menos que você tivesse mencionado a ele que estava pensando em montar um negócio próprio.” Ela diz isso a McGovern. Divido a massa em partes menores e começo a amassar outra vez. “Sempre pensei em trabalhar por conta própria”, responde McGovern. “Mas nunca disse nada a Benton. Nós éramos totalmente consumidos pelos casos lá na Pensilvânia.” “O eufemismo do século”, Lucy acrescenta lugubremente. “Certo.” McGovern suspira e balança a cabeça. “Se Benton não tinha nenhuma pista sobre a empresa particular que vocês
planejavam iniciar”, digo então, “é possível que ele tenha ouvido vocês mencionarem A Última Delegacia — o conceito, a coisa sobre a qual você diz que costumavam brincar? Estou tentando imaginar por que ele daria esse nome a um arquivo.” “Que arquivo?”, pergunta Lucy. “Marino o está trazendo.” Termino de sovar uma parte da massa e embrulho-a bem apertada em plástico. “Estava na pasta de Benton em Filadélfia.” Explico a elas o que Anna me contou na carta, e Lucy ajuda a esclarecer pelo menos um ponto. Ela tem certeza de que mencionou a Benton a filosofia de A Última Delegacia. Ela parece se lembrar de que estava no carro com ele um dia e perguntou sobre a consultoria privada que ele tinha começado a dar depois de sua aposentadoria. Ele contou que estava tudo bem, mas era difícil administrar a logística de tocar o próprio negócio, que ele sentia falta de ter uma secretária e mais alguém para atender o telefone, esse tipo de coisa. Lucy respondeu melancolicamente que talvez todos nós devêssemos nos juntar e formar nossa própria empresa. Foi nesse momento que ela usou a expressão A Última Delegacia — uma espécie de “nossa liga”, ela diz que contou a ele. Abro panos de prato limpos e secos sobre a bancada. “Ele tinha alguma idéia de que você podia estar falando sério sobre realmente fazer isso um dia?”, pergunto. “Eu disse a ele que, se algum dia conseguisse dinheiro suficiente, ia me demitir da porra do governo”, responde Lucy. “Bem.” Encaixo rolos na máquina de macarrão e regulo para a abertura mais larga. “Qualquer pessoa que a conheça imaginaria que era só questão de tempo até você conseguir dinheiro fazendo alguma coisa. Benton sempre dizia que você era independente demais para permanecer para sempre numa burocracia. Ele não ficaria nem um pouco surpreso com o que está acontecendo com você, Lucy.” “De fato, já tinha começado a acontecer com você desde o início”, McGovern observa para minha sobrinha. “E é por isso que você não durou no FBI.” Lucy não se sente insultada. Ela pelo menos admite que cometeu erros antes, e o pior deles foi seu caso com Carrie Grethen. Não culpa mais o FBI por ter se afastado dela até ela finalmente se demitir. Achato um pedaço de massa com a palma da mão e enfio na máquina. “Estou me perguntando se Benton usou seu conceito como o nome do arquivo misterioso porque de algum modo sabia que A Última Delegacia — quer dizer, nós — investigaria um dia o caso dele”, proponho. “Que nós somos onde ele terminaria, porque o que quer que estivesse começando com aquelas cartas atormentadoras e todo o resto não ia parar, mesmo com a morte dele.” Enfio a massa de volta na máquina repetidas vezes até ter uma tira perfeita de macarrão para estender sobre uma toalha. “Ele sabia. De alguma forma ele sabia.” “De alguma forma ele sabia de tudo.” O rosto de Lucy é tocado por uma tristeza profunda. Benton está na cozinha. Nós o sentimos enquanto faço massa para o Natal e conversamos sobre o modo como a mente dele trabalhava. Ele era muito
intuitivo. Sempre pensava muito adiante de onde estava. Posso imaginá-lo projetando-se no futuro depois de sua morte e imaginando como poderíamos reagir a tudo, inclusive a um arquivo que poderíamos encontrar em sua pasta. Benton certamente saberia que, se alguma coisa acontecesse com ele — e está claro que ele temia que algo acontecesse —, eu com toda a certeza examinaria sua pasta, o que fiz. O que ele talvez não tenha previsto é que Marino examinaria a pasta primeiro e removeria um arquivo sobre o qual eu não saberia nada até agora. Ao meio-dia, Anna está com o carro pronto para ir para a praia e as bancadas de sua cozinha estão cobertas de lasanha. O molho de tomate ferve no fogão. O parmesão Reggiano e o queijo Asagio estão ralados em tigelas, e mozarela fresca descansa numa toalha e perde um pouco de sua umidade. A casa cheira a alho e fumaça de lenha, e as luzes de Natal brilham enquanto a fumaça sobe da chaminés, e quando Marino chega com seu barulho e sua falta de jeito típicos, encontra mais felicidade do que viu em qualquer uma de nós por muito tempo. Ele está usando jeans e uma camisa de brim e carrega presentes e uma garrafa de uísque de milho Virginia Lightning. Capto a borda de uma pasta de arquivos destacando-se atrás de pacotes embrulhados em uma sacola, e meu coração salta. “Ho! Ho! Ho!”, ele berra. “Feliz da porra do Natal!” É sua fala-padrão natalina, mas ele não a diz com o coração. Tenho a sensação de que ele não passou as últimas horas simplesmente procurando o arquivo Aud. Ele o examinou. “Preciso de uma bebida”, ele anuncia à casa.
31
Na cozinha, regulo o forno e cozinho a massa. Misturo os queijos ralados com ricota e começo a distribuí-los junto com molho de carne em camadas entre as fatias numa travessa funda. Anna recheia tâmaras com cream cheese e enche uma tigela com nozes salgadas, enquanto Marino, Lucy e McGovern tomam cerveja e vinho ou inventam alguma poção de festa, que no caso de Marino é um Bloody Mary temperado feito com o uísque que ele trouxe. Ele está com um ar misterioso e se embebedando rapidamente. O arquivo Aud é um buraco negro, ainda no saco de presentes, ironicamente debaixo da árvore de Natal. Marino sabe o que há naquele arquivo, mas não pergunto a ele. Ninguém pergunta. Lucy começa a pegar ingredientes para fazer cookies com pedaços de chocolate e duas tortas — uma de manteiga de amendoim, a outra de limão —, como se estivéssemos alimentando uma cidade inteira. McGovern abre um borgonha tinto Chambertin Grand Cru enquanto Anna põe a mesa, e o arquivo exerce sua atração em silêncio e com grande força. É como se todos tivéssemos feito um acordo tácito de pelo menos fazer um brinde e jantar antes de começar a falar sobre assassinato. “Alguém mais quer um Bloody?” Marino fala alto e perambula pela cozinha sem fazer nada de útil. “Ei, doutora, que tal eu preparar uma jarra?” Ele abre a geladeira, pega um punhado de sucos Spicy Hot V8 e começa a abrir as latinhas. Imagino quanto Marino teve de beber antes de chegar aqui e a segurança se destaca de minha raiva. Para começar, sinto-me insultada por ele ter posto o arquivo debaixo da árvore, como se pretendesse fazer uma piada sem graça, mórbida. O que está sugerindo? Que é meu presente de Natal? Ou é tão insensível que nem sequer lhe ocorreu que quando, sem nenhuma cerimônia, ele enfiou o saco debaixo da árvore o arquivo estava nele? Ele passa por mim me dando um encontrão e começa a espremer metades de limão no espremedor elétrico, jogando as cascas na pia. “Bem, imagino que ninguém vai me ajudar, então só vou fazer para mim”, ele murmura. “Ei!”, ele grita como se não estivéssemos todos no mesmo aposento. “Alguém pensou em comprar raiz-forte?” Anna olha para mim. Um mau humor coletivo começa a se instalar. A cozinha parece ficar mais escura e mais fria, e minha raiva me atiça. Vou explodir com Marino a qualquer momento, e estou tentando com todas as forças me conter. É Natal, digo a mim mesma. Marino pega uma colher de pau comprida e mexe com estardalhaço o Bloody Mary, ao mesmo tempo que derrama na jarra uma quantidade assustadora de uísque. “Argh.” Lucy balança a cabeça. “Pelo menos use Grey Goose.” “Não há nada que me faça beber vodca francesa.” A colher estala quando ele mexe, depois ele a põe na borda da jarra. “Vinho francês, vodca francesa. Ei. O que houve com as coisas italianas?” Ele exagera o sotaque italiano novaiorquino. “O que aconteceu c’os vizinho ?”
“Não há nada de italiano nessa merda que você está preparando”, Lucy diz a ele enquanto pega uma cerveja da geladeira. “Se você beber tudo isso, tia Kay vai levá-lo com ela para o trabalho amanhã. Só que você vai estar dentro de um saco.” Marino entorna um copo de seu perigoso preparado. “Isso me lembra”, diz ele, para ninguém em particular, “que se eu morrer, ela não vai me cortar.” Como se eu não estivesse bem aqui. “Esse é o trato.” Ele enche outro copo, e a essa altura todos nós paramos o que estávamos fazendo. Olhamos para ele. “Já faz dez anos que isso está me incomodando.” Outro gole. “Porra, essa coisa esquenta até os dedos dos pés. Não quero que ela me jogue em uma daquelas malditas mesas de aço e me corte como se eu fosse um peixe da porra do mercado. Eu, hem! Fiz um trato com as garotas da frente.” Uma referência a minhas secretárias na sala da frente. “Nada de distribuir minhas fotos. Não pensem que não sei o que acontece por lá. Elas comparam tamanhos de pinto.” Ele entorna meio copo e enxuga a boca com as costas da mão. “Ouvi dizer que elas fazem isso. Especialmente Cli-ta.” Ele faz uma brincadeira obscena com o nome de Cleta. Marino parte outra vez para a jarra e eu estendo minha mão para impedilo, enquanto minha raiva extravasa em um exército de palavras ásperas. “Chega. Que diabo deu em você? Como ousa vir aqui bêbado e ficar ainda mais bêbado? Vá dormir para ver se cura essa bebedeira, Marino. Tenho certeza de que Anna tem uma cama de reserva. Você não vai dirigir para lugar nenhum, e nenhuma de nós está disposta a agüentá-lo neste momento.” Ele me lança um olhar de desafio e de troça quando levanta outra vez o copo. “Pelo menos estou sendo honesto”, ele retruca. “Vocês não podem fingir que a única coisa que querem é um dia bom, só porque estamos na porra do Natal. Bom, e daí? Lucy se demitiu para não ser mandada embora porque é uma homossexual metida a sabichona.” “Não, Marino”, Lucy o adverte. “McGovern se demitiu, e não sei qual é a dela.” Ele aponta o dedo para Teun, insinuando que ela tem a mesma preferência de Lucy. “Anna tem de sair da porra da casa dela porque você está aqui e está sendo investigada por assassinato, e agora você se demite do emprego. Não me surpreendo nem um pouco, e vamos ver se o governador mantém você. Consultora privada. Sim.” Ele enrola as palavras e cambaleia no meio da cozinha, seu rosto borrado de vermelho. “Duvido muito. Então imaginem quem sobrou? Eu, eu mesmo e eu próprio.” Ele põe o copo com força na bancada e sai da cozinha, esbarrando numa parede, batendo numa pintura torta, tropeçando em direção à sala. “Meu Deus.” McGovern expira o ar longamente. “Caipira desgraçado”, diz Lucy. “O arquivo.” Anna olha na direção de Marino. “É esse o problema dele.”
 
 
Marino está em coma alcoólico no sofá da sala. Nada o desperta. Ele não se mexe, mas seu ronco nos alerta de que está vivo, só não tem consciência do que está ocorrendo na casa de Anna. A lasanha está pronta e aquecida no forno,
e uma torta de limão esfria dentro da geladeira. Anna partiu para a viagem de oito horas até Hilton Head, apesar de meus protestos. Fiz tudo que podia para encorajá-la a ficar, mas ela sentiu que devia ir. Já é meio da tarde. Lucy, McGovern e eu ficamos sentadas durante horas à mesa de jantar, os talheres tirados do caminho, os presentes ainda fechados debaixo da árvore, o arquivo Aud aberto diante de nós. Benton era meticuloso. Ele selou cada item em plástico transparente, e manchas roxas em alguns dos envelopes e cartas indicam que foi usada nihidrina para processar impressões digitais latentes. Os carimbos do correio são de Manhattan, todos com os mesmos três primeiros dígitos de um código postal, 100. Não é possível saber que agência enviou as cartas. Um prefixo de três dígitos só indica a cidade e que a correspondência não foi enviada por meio de uma máquina de postagem doméstica ou comercial, ou de alguma agência rural. Nesses casos, o carimbo teria cinco dígitos. Há um índice no começo do arquivo Aud e ele lista um total de sesenta e três itens com datas que vão da primavera de 1996 (cerca de seis meses antes de Benton escrever a carta que quis que me fosse entregue depois de sua morte) ao outono de 1998 (apenas alguns dias antes de Carrie Grethen fugir de Kirby). O primeiro item tem a etiqueta Prova 1, como se fosse uma evidência física a ser apresentada a um júri. É uma carta postada em Nova York no dia 15 de maio de 1996, não assinada e impressa por meio de computador numa fonte WordPerfect floreada e difícil de ler que Lucy identifica como “Ransom”.
 
Caro Benton, Sou o presidente do Fã-Clube dos Feios e você foi escolhido para ser nosso membro honorário! Adivinhe por quê? Os membros conseguem ficar feios de graça! Você não está animado? Aguarde notícias...
 
Essa carta foi seguida por cinco outras, todas num intervalo de algumas semanas entre si, todas fazendo as mesmas referências a um Fã-Clube dos Feios e a Benton se tornar o mais novo membro. O papel era simples, a mesma fonte Ransom, nenhuma assinatura, o mesmo código postal de Nova York, claramente o mesmo autor para todas. E muito esperto, até que essa pessoa enviou a sexta carta e cometeu um erro, muito óbvio para um olho investigativo, e é por isso que estou surpresa de Benton não tê-lo percebido. Na parte de trás do envelope totalmente branco há impressões de escrita que são perceptíveis quando inclino o envelope e o ilumino de diferentes ângulos. Pego um par de luvas de látex em minha bolsa e calço-as enquanto ando pela cozinha à procura de uma lanterna. Anna mantém uma na bancada, ao lado da torradeira. De volta à sala, tiro o envelope de sua capa de plástico, levanto-o pelos cantos e ilumino o papel obliquamente com a lanterna. Capto a sombra da palavra serrilhada Agente do Correio e fica claro instantaneamente para mim o que o autor desta carta fez. “Franklin D.” Decifro outras palavras. “Há uma agência de correio Franklin D. Roosevelt em Nova York? Porque definitivamente aqui está escrito N
Y, N-Y.” “Sim. A agência do meu bairro”, diz McGovern, arregalando os olhos. Ela vem para meu lado da mesa para olhar mais de perto. “Tive casos em que as pessoas tentaram criar álibis”, digo, pondo a lanterna em diferentes ângulos. “Um álibi velho e batido é que a pessoa estava num lugar diferente, muito distante, no momento do assassinato e portanto não poderia tê-lo cometido. Um modo fácil de fazer isso é enviar correspondência de algum lugar remoto no momento ou perto do momento em que o assassinato acontece, fazendo assim parecer que o assassino não poderia ser a pessoa porque ela não poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo.” “Terceira Avenida”, diz McGovern. “É onde fica a agência Franklin D. Roosevelt.” “Temos parte de um endereço; uma parte está escondida pela aba. Novealguma coisa. Três A-V. Sim, Terceira Avenida. O que se faz é endereçar a carta, colocar o selo apropriado, depois pô-la dentro de outro envelope endereçado ao agente da agência do correio de onde você quer que ela seja enviada. O agente é obrigado a enviar a carta por você, com o carimbo do correio daquela cidade. Então o que essa pessoa fez foi pôr essa carta dentro de outro envelope, e quando endereçou o envelope externo, as impressões do que escreveu foram deixadas no envelope que está embaixo.” Lucy também veio para trás de mim e está inclinada bem perto para ver. “O bairro de Susan Pless”, diz ela. Não só isso, mas a carta, que é de longe a mais vil, está datada de 5 de dezembro de 1997 — o dia em que Susan Pless foi assassinada.
 
Ei, Benton, Como vai, garoto prestes a ficar feio? Apenas especulando, tem alguma idéia de como é olhar no espelho e querer cometer suicídio? Não? Logo vai ter. Loooogoooo. Vou trinchar você como um peru de Natal e a mesma coisa vale para a Xoxotona que você fodeu quando tirou uma folga de tentar entender pessoas como eu & você. Nem posso lhe dizer como vou gostar de usar minha grande lâmina para abrir as costuras dela. Quid pro quo, certo? Quando você vai aprender a cuidar de seus próprios assuntos?
 
Imagino Benton recebendo essas missivas doentias e grosseiras. Imagino-o em seu quarto na minha casa, sentado à escrivaninha com o laptop aberto e ligado no modem, sua pasta ao lado, café ao alcance da mão. Suas anotações indicam que ele determinou que a fonte era Ransom e depois pensou no significado. Obter a liberdade pagando um preço. Resgatar . Livrar-se do pecado, leio suas garatujas. Eu devia estar no corredor em meu estúdio ou na cozinha no mesmo momento em que ele lia esta carta e procurava “ransom” no dicionário, e ele nunca me disse uma palavra. Lucy sugere que Benton não teria querido me sobrecarregar, e nada de útil resultaria se eu ficasse sabendo. Eu não poderia ter
feito nada a respeito, ela acrescenta. “Cactos, lírios, tulipas”, McGovern percorre páginas do arquivo. “Então alguém estava enviando anonimamente arranjos de flores para ele em Quantico.” Começo a remexer dezenas de notas de mensagens nas quais está escrito simplesmente “desligado” e a data e a hora. As chamadas foram feitas para a linha direta dele na Unidade de Ciência Comportamental, todas designadas como fora de área pelo identificador de chamadas, o que significa que provavelmente foram feitas de um telefone celular. A única observação de Benton era pausas na linha antes de desligar. McGovern nos informa que pedidos de flores foram feitos a um florista na avenida Lexington que Benton aparentemente checou, e Lucy liga para o auxílio à lista para ver se esse mesmo florista ainda está funcionando. Está. “Ele faz uma anotação aqui sobre pagamento.” É muito difícil para mim olhar a grafia pequena e emaranhada de Benton. “Correio. Os pedidos foram feitos por correio. Dinheiro, ele escreveu a palavra ‘dinheiro’. Então, parece que a pessoa enviou o dinheiro e um pedido por escrito.” Volto ao índice. Realmente, as provas 51 a 55 são os pedidos recebidos pelo florista. Vou para essas páginas. “Geradas por computador e não assinadas. Um pequeno arranjo de tulipas por vinte e cinco dólares com instruções para ser enviado ao endereço de Benton em Quantico. Um cacto pequeno por vinte e cinco dólares, e assim por diante, envelopes com o carimbo do correio de Nova York.” “Provavelmente a mesma coisa”, diz Lucy. “Eles foram enviados por um agente do correio de Nova York. A questão é: onde eles foram postados originalmente?” Não podemos saber sem os envelopes externos, que certamente devem ter sido jogados no lixo no momento em que os empregados da agência do correio os abriram. Mesmo que tivéssemos esses envelopes, é muito improvável que o remetente tenha escrito o endereço para devolução. O máximo que poderíamos esperar seria um carimbo de correio. “Suponho que o florista simplesmente imaginou que estava lidando com algum maluco que não acredita em cartão de crédito”, comenta McGovern. “Ou alguém que estava tendo um caso.” “Ou alguém internado.” Estou, é claro, pensando em Carrie Grethen. Posso imaginá-la enviando comunicados de Kirby. Ao colocar as cartas dentro de outro envelope endereçado a um agente do correio, no mínimo ela evitava que o pessoal do hospital visse para quem ela estava enviando as cartas, fosse para um florista ou diretamente para Benton. Usar uma agência do correio de Nova York também faz sentido. Ela teria tido acesso a várias agências por meio da lista telefônica, e no meu íntimo não acho que Carrie estivesse preocupada com o fato de alguém supor que a correspondência tivesse origem na mesma cidade em que ela estava encarcerada. Ela simplesmente não queria alertar o pessoal de Kirby, e era também a pessoa mais manipuladora deste planeta. Tudo que ela fazia tinha uma razão. Ela estava tão ocupada traçando o perfil de Benton quanto ele traçando o dela.
“Se é Carrie”, observa McGovern sombriamente, “então temos de imaginar se ela de alguma forma tinha pelo menos conhecimento de Chandonne e de suas mortes.” “Ela se excitaria com isso”, respondo com raiva, e me afasto da mesa. “Ela saberia muito bem que, ao escrever uma carta para Benton datada do mesmo dia do assassinato de Susan, isso o deixaria extremamente irritado. Ele faria essa ligação, com certeza.” “E escolher uma agência do correio situada no bairro de Susan”, acrescenta Lucy. Especulamos, postulamos e continuamos até o final da tarde, quando decidimos que é hora do jantar de Natal. Depois de acordar Marino, contamos a ele o que descobrimos e continuamos a falar enquanto comemos salada, cebolas e tomates temperados com vinagre de vinho tinto doce e azeite de oliva prensado a frio. Marino engole a comida com sofreguidão, como se não comesse há dias, enchendo a boca de lasanha enquanto debatemos, especulamos e levantamos a questão: se Carrie Grethen era a pessoa que atormentava Benton e tinha alguma ligação com a família Chandonne, o assassinato de Benton foi mais do que um simples ato de psicopatia? Sua morte foi um ato do crime organizado disfarçado para parecer pessoal, insensível, louco, sendo Carrie a lugar-tenente que estava mais do que ansiosa para levá-lo a cabo? “Em outras palavras”, Marino me diz de boca cheia, “a morte dele foi como aquilo de que você está sendo acusada.” A mesa fica em silêncio. Nenhuma de nós capta exatamente o que ele quis dizer, mas então percebo. “Você está dizendo que havia um motivo real para o assassinato dele, mas que o crime foi disfarçado para parecer um assassinato serial?” Ele dá de ombros. “Exatamente como você ser acusada do assassinato de Bray e disfarçar isso para parecer que quem o praticou foi o lobisomem.” “Talvez por isso a Interpol esteja tão agitada e preocupada”, considera Lucy. Marino se serve do excelente vinho francês, que ele entorna como se fosse Gatorade. “É, a Interpol. Talvez Benton tenha se complicado de alguma maneira com o cartel e...” “Por causa de Chandonne”, interrompo, enquanto meu foco se concentra e penso que estou numa trilha que pode levar à verdade. Jaime Berger foi nossa hóspede de Natal não convidada. Ela obscureceu meus pensamentos a tarde inteira. Não consigo parar de pensar sobre uma das primeiras coisas que ela perguntou quando nos encontramos em minha sala de reuniões. Ela quis saber se alguém tinha feito o perfil dos assassinatos de Chandonne em Richmond. Ela levantou isso muito depressa, e portanto acredita claramente que a elaboração de perfis é importante. Certamente, ela teria pedido a alguém que traçasse o perfil do assassinato de Susan Pless, e suspeito cada vez mais que Benton pode muito bem ter sabido do caso. Levanto da mesa. “Por favor, sinta-se em casa”, digo em voz alta a Berger, e tenho a uma sensação crescente de desespero enquanto procuro na bolsa o cartão dela. Nele está o número do telefone de sua casa, e eu ligo da
cozinha de Anna, onde ninguém pode ouvir o que digo. Uma parte de mim está constrangida. Também estou com medo e enlouquecida. Se estiver errada, vou parecer boba. Se estiver certa, então ela deveria ter sido mais franca comigo, droga, maldita Berger. “Alô?”, uma mulher responde. “Senhorita Berger?”, digo. “Espere um pouco.” A pessoa grita: “Mãe! Para você!”. Assim que Berger atende, digo: “O que mais eu não sei a seu respeito? Porque está ficando muito claro que eu não sei muita coisa”. “Oh, Jill.” Ela deve estar falando da pessoa que atendeu o telefone. “Na verdade, eles são do primeiro casamento de Greg. Dois adolescentes. E hoje eu os venderia pela primeira oferta. Não, eu pagaria a alguém para levá-los.” “Não, não pagaria!”, diz Jill ao fundo, e ri. “Deixe-me ir para um lugar mais calmo.” Berger fala enquanto se move para alguma outra área, de onde quer que ela viva com o marido e dois filhos dos quais nunca me falou, mesmo depois de todas as horas que passamos juntas. Meu ressentimento ferve. “O que está acontecendo, Kay?” “Você conheceu Benton?”, pergunto diretamente. Nada. “Você está aí?”, falo outra vez. “Estou aqui”, diz ela, num tom calmo e sério. “Estou pensando qual a melhor maneira de lhe responder...” “Por que não começar com a verdade? Pelo menos uma vez.” “Eu sempre lhe disse a verdade”, ela responde. “Isso é ridículo. Já ouvi até os melhores entre vocês mentirem quando estão tentando manipular alguém. Sugerindo detectores de mentira, uma agulhona de soro da verdade para que as pessoas confessem, e há também mentira por omissão. Toda a verdade. Eu exijo. Pelo amor de Deus, Benton teve algo a ver com o caso de Susan Pless?” “Sim”, responde Berger. “Absolutamente sim, Kay.” “Fale comigo, senhorita Berger. Acabo de passar a tarde inteira olhando cartas e outras coisas estranhas que ele recebeu antes de ser assassinado. Elas foram processadas por uma agência de correio situada no bairro de Susan.” Uma pausa. “Eu tinha me encontrado com Benton várias vezes, e meu escritório certamente se valeu dos serviços que a Unidade de Ciência Comportamental tem a oferecer. Na época, pelo menos. Na verdade temos um psiquiatra forense que usamos agora, alguém daqui de Nova York. Eu tinha trabalhado com Benton em outros casos ao longo dos anos, meu argumento era esse. E, no momento em que soube da morte de Susan e fui para a cena do crime, liguei para ele e pedi que fosse até lá. Nós examinamos o apartamento dela, exatamente como você e eu examinamos as cenas de crime em Richmond.” “Ele alguma vez mencionou que estava recebendo correspondência e telefonemas estranhos e outras coisas? E que possivelmente havia uma ligação entre quem estava fazendo isso e quem assassinou Susan Pless?” “Eu entendo”, é tudo que ela diz.
“Entende? Que diabo você entende?” “Entendo que você sabe”, ela me responde. “A questão é: como?” Conto a ela sobre o arquivo Aud. Informo-a de que parece que Benton mandou verificar os documentos em busca de impressões digitais e estou me perguntando quem fez isso e onde, e quais podem ter sido os resultados. Ela não tem nenhuma idéia, mas diz que deveríamos submeter qualquer impressão latente ao sistema automático de identificação de impressões digitais, conhecido como AFIS. “Há selos de postagem nos envelopes”, informo a ela. “Ele não os removeu e teria de ter feito isso se quisesse verificar a existência de DNA.” Foi só nos últimos anos que a análise de DNA se tornou sofisticada o suficiente, devido à reação de polimerase em cadeia, ou PCR, para que valesse a pena analisar saliva, e talvez quem colou os selos de postagem nos envelopes tenha feito isso lambendo-os. Não tenho certeza de que mesmo Carrie soubesse, na época, que o ato de lamber um selo poderia nos fornecer sua identidade. Eu teria sabido. Se Benton tivesse me mostrado essas cartas, eu teria recomendado que ele mandasse examinar os selos. Talvez tivéssemos obtido resultados. Talvez ele não tivesse sido morto. “Na época muitas pessoas, mesmo as que trabalham em órgãos policiais, simplesmente não pensavam em coisas como essa.” Berger ainda está falando sobre os selos. “Parece que a única coisa que os policiais fazem hoje em dia é perseguir as pessoas para pegar suas xícaras de café ou toalhas com suor, lenços de papel, pontas de cigarro. É impressionante.” Tenho um pensamento incrível. O que ela está dizendo me trouxe à mente um caso na Inglaterra no qual um homem foi falsamente acusado de um roubo por causa de uma coincidência na Base Nacional de Dados de DNA sediada em Birmingham. O advogado do homem exigiu que fosse feito um novo teste do DNA recuperado do crime, dessa vez usando dez loci, ou localizações, em vez das seis padrão que haviam sido empregadas. Loci, ou alelos, são simplesmente localizações específicas no mapa genético de uma pessoa. Alguns alelos são mais comuns que outros, portanto, quanto menos comuns eles forem e quanto mais localizações forem usadas, maiores são as chances de uma coincidência — que não é literalmente uma coincidência, mas sim uma probabilidade estatística que torna quase impossível acreditar que o suspeito não cometeu o crime. No caso inglês, o suposto ladrão foi excluído depois de refeito o teste com loci adicionais. Havia uma chance de um em trinta e sete milhões de haver uma falsa coincidência, e com certeza ela aconteceu. “Quando vocês testaram o DNA do caso de Susan, usaram STR?”, pergunto a Berger. STR é a mais nova tecnologia para traçar perfis de DNA. O que ela significa é que amplificamos o DNA com PCR e olhamos para pares de base repetidos muito discriminadores chamados Short Tandem Repeats, ou Repetições Seqüenciais Curtas. Tipicamente, o que se exige das bases de dados de DNR hoje em dia é que sejam usados pelo menos treze amostras ou loci, tornando assim extremamente improvável que haja uma falsa coincidência. “Sei que os laboratórios de vocês estão muito avançados”, diz Berger. “Eles
fazem PCR há anos.” “É tudo PCR, a menos que o laboratório ainda esteja fazendo a velha análise do polimorfismo de fragmentos de restrição enzimática, que é muito confiável, mas exige um tempo interminável”, respondo. “Em 1997, a questão era quantas amostras — ou loci — eram usadas. Muitas vezes, na primeira varredura de uma amostra, o laboratório talvez não fizesse dez, treze ou quinze loci. Isso é muito caro. Se só quatro loci foram feitos no caso de Susan, por exemplo, poderia surgir uma exceção incomum. Estou supondo que o departamento do legista ainda tem o material extraído guardado no freezer deles.” “Que tipo de exceção esquisita?” “Se estivermos lidando com irmãos. E um deles tiver deixado o fluido seminal, e o outro, o cabelo e a saliva.” “Mas você testou o DNA de Thomas, certo? E ele era similar ao de JeanBaptiste, mas não o mesmo?” Não posso acreditar. Berger está ficando agitada. “Nós também fizemos isso há alguns dias com treze loci, não quatro ou seis”, respondo. “Estou supondo que os perfis tinham grande quantidade dos mesmos alelos, mas também alguns diferentes. Quanto mais amostras se faz, mais surgem diferenças. Especialmente em populações fechadas. E quando se pensa na família Chandonne, a população deles é provavelmente muito fechada, pessoas que viveram na Île de Saint-Louis durante centenas de anos e que com toda a probabilidade se casaram com parentes. Em alguns casos, endogamia — casamento entre primos, o que pode também explicar a deformidade congênita de Jean-Baptiste Chandonne. Quanto mais as pessoas fazem casamentos endogâmicos, mais aumentam as chances de ocorrerem defeitos genéticos.” “Precisamos fazer um novo teste do fluido seminal do caso de Susan”, Berger decide. “Seu laboratório faria isso de qualquer forma, já que ele está sendo acusado de assassinato”, respondo. “Mas talvez você queira estimulá-los a tornar isso uma prioridade.” “Meu Deus, esperemos que não acabe se revelando que é outra pessoa”, ela diz, frustrada. “Minha nossa, vai ser horrível se o DNA não coincidir quando eles fizerem o novo teste. Isso realmente arruinaria meu caso.” Ela está certa. Com certeza arruinaria. Mesmo Berger pode ter muita dificuldade em fazer um júri acreditar que Chandonne matou Susan se seu DNA não coincidir com o DNA do fluido seminal recuperado do corpo dela. “Vou pedir a Marino que submeta os selos e qualquer impressão latente ao laboratório de Richmond”, diz ela então. “E Kay, tenho de pedir a você que não olhe nada naquele arquivo a menos que seja na presença de uma testemunha; não olhe mais nada. Falo isso porque é melhor que você própria não apresente nenhuma evidência.” “Entendo.” Outro lembrete de que estou sob suspeita de assassinato. “Para sua própria proteção”, ela acrescenta. “Senhorita Berger, se você sabia sobre as cartas, sobre o que estava acontecendo com Benton, então o que pensou quando ele foi assassinado?”
“Além do choque e do pesar óbvios? Que ele foi morto por quem o estava atormentando. Sim, foi a primeira coisa que me veio à mente. No entanto, quando ficou claro quem eram os assassinos dele e depois eles foram mortos, não parecia haver mais nada a ser buscado.” “E se Carrie Grethen escreveu aquelas cartas, escreveu a pior delas, parece, no próprio dia em que Susan foi morta.” Silêncio. “Acho que devemos considerar que podia haver uma ligação.” Sou firme nesse ponto. “Susan pode ter sido a primeira vítima de Chandonne neste país, e quando Benton começou a investigar ele talvez tenha chegado muito perto de outras coisas que apontam para o cartel. Carrie estava viva em Nova York quando Chandonne foi para aí e matou Susan.” “E talvez Benton fosse um crime encomendado?” Berger parece estar em dúvida. “Mais do que talvez”, respondo. “Eu conhecia Benton e o modo como ele pensava. Para começar, por que ele carregava o arquivo Aud em sua pasta — por que o levou para Filadélfia, se não tinha nenhuma razão para pensar que o material esquisito guardado nele estava ligado ao que Carrie e seu cúmplice estavam fazendo? Matando pessoas e cortando o rosto delas. Tornando-as feias. E os bilhetes que Benton estava recebendo deixavam claro que ele ia se tornar feio, e com toda certeza ele estava...” “Preciso de uma cópia desse arquivo”, Berger me dispensa. É óbvio pelo seu tom que ela de repente quer desligar o telefone. “Tenho um fax aqui em casa.” Ela me dá o número.
 
 
Vou para o estúdio de Anna e passo a meia hora seguinte copiando todo o arquivo Aud, porque não posso colocar documentos laminados no aparelho de fax. Marino acabou com o borgonha e está de novo dormindo no sofá quando volto para a sala de estar, onde Lucy e McGovern estão sentadas em frente à lareira conversando, continuando a pintar cenários que só estão ficando piores quanto mais elas são influenciadas pelo álcool. O Natal corre para longe de nós. Finalmente nos reunimos para abrir os presentes às dez e meia, e Marino, grogue, brinca de Papai Noel, entregando caixas e tentando ser festivo. Mas seu humor só piorou, e qualquer tentativa de fazer graça soa mordaz. Às onze, o telefone de Anna toca. É Berger. “Quid pro quo? ”, ela começa, referindo-se à carta datada de 5 de dezembro de 1997. “Quantas pessoas não versadas em termos jurídicos usam essa expressão? É só uma idéia louca, mas fico pensando se há uma maneira de obtermos o DNA de Rocky Caggiano. Podemos também revirar tudo e não supor com tanta rapidez que Carrie escreveu essas cartas. Talvez tenha escrito. Mas talvez não.” Não consigo me concentrar quando volto aos presentes de Natal debaixo da árvore. Tento sorrir e finjo estar muito agradecida, mas não engano ninguém. Lucy me dá um relógio Breitling de aço inoxidável chamado B52, e o presente
de Marino para mim é um cupom para um ano de lenha para lareira que ele vai entregar e empilhar pessoalmente. Lucy adora o colar Whirly-Girls que mandei fazer para ela e Marino adora a jaqueta de couro que ganhou de Lucy e de mim. Anna ficaria satisfeita com um vaso de vidro artístico que encontrei para ela, mas está em algum lugar da rodovia I-95, é claro. Todos fazem tudo rápido porque as perguntas pairam pesadas no ar. Enquanto juntamos fitas amarrotadas e papel rasgado, indico a Marino com um gesto que preciso conversar em particular com ele. Sentamos na cozinha. Ele esteve em algum estágio de bebedeira o dia todo, e posso dizer que é provável que esteja se embebedando regularmente. Há uma razão para isso. “Você não pode beber desse jeito”, digo a ele enquanto sirvo para cada um de nós um copo d’água. “Isso não ajuda em nada.” “Nunca ajudou, nunca vai ajudar.” Ele esfrega o rosto. “Isso não parece fazer a mínima diferença quando estou me sentindo um merda. Neste momento, tudo é uma merda.” Seus olhos anuviados e injetados encontram os meus. Parece que Marino está outra vez prestes a chorar. “Você poderia, por algum motivo, ter alguma coisa que possa nos dar o DNA de Rocky?”, vou logo perguntando. Ele se encolhe como se eu tivesse batido nele. “O que Berger contou a você quando ligou? Era isso? Ela ligou por causa de Rocky?” “Ela está apenas seguindo a lista”, respondo. “Qualquer pessoa ligada a nós ou a Benton que possa ter um vínculo com o crime organizado. E certamente se pensa em Rocky.” Conto a ele o que Berger revelou sobre Benton e o caso de Susan Pless. “Mas ele estava recebendo aquela merda excêntrica antes de Susan ser assassinada”, ele diz. “Então, por que alguém o estaria aporrinhando se ele ainda não estava metendo o nariz em nada? Por que Rocky faria isso, por exemplo? E eu suponho que é isso que você está pensando, que talvez Rocky estivesse mandando para ele aquela merda esquisita?” Não tenho resposta. Não sei. “Bom, imagino que você vai ter de pegar DNA de mim e de Doris, porque não tenho nada de Rocky. Nem sequer cabelo. Você pode fazer isso, certo? Se você pegar o DNA da mãe e do pai, pode comparar alguma coisa, como saliva?” “Poderíamos obter uma árvore genealógica e pelo menos saber se seu filho pode ser descartado como um contribuinte do DNA nos selos.” “Tudo bem.” Ele explode. “Se é isso que você quer fazer. E, já que a Anna se mandou, será que posso fumar aqui?” “Eu não ousaria”, respondo. “E impressões digitais de Rocky?” “Esqueça isso. Além do mais, não me pareceu que Benton teve sorte com as impressões. Quer dizer, pode-se dizer que ele testou as cartas para ver se encontrava impressões e que isso parece ser o fim dessa coisa. E eu sei que você não quer ouvir isso, doutora, mas talvez seja melhor ter certeza do motivo pelo qual está se metendo em tudo isso. Não saia numa caça às bruxas porque quer punir o idiota que talvez tenha enviado aquela merda para Benton e talvez tenha algo a ver com a morte dele. Não vale a pena. Especialmente se você está pensando que foi Carrie. Ela está morta. Deixe-a apodrecer.”
“Vale a pena”, digo. “Se eu puder saber com certeza quem enviou aquelas cartas a ele, para mim vale a pena.” “Sei. Ele disse que A Última Delegacia era onde ele ia terminar. Bom, parece que terminou”, reflete Marino. “Nós somos A Última Delegacia e estamos trabalhando no caso dele. Isso já não é alguma coisa?” “Você acha que ele levou aquele arquivo para Filadélfia porque queria ter certeza de que você ou eu o pegaríamos?” “Supondo que algo acontecesse com ele?” Concordo com a cabeça. “Talvez”, ele diz. “Ele estava preocupado de não viver mais muito tempo e queria que encontrássemos aquele arquivo se algo acontecesse com ele. Mas também é estranho. Benton não diz muita coisa no arquivo, quase como se soubesse que outras pessoas poderiam vê-lo e não quisesse que houvesse nada nele que pudesse ser visto pela pessoa errada. Você não acha interessante que não haja nenhum nome nele? Se Benton tinha suspeitos em mente, por que nunca mencionou ninguém?” “O arquivo é críptico”, concordo. “Então quem ele temia que visse o arquivo? Os policiais? Porque se alguma coisa acontecesse com ele, ele sabia que os policiais iam olhar tudo que ele tinha. E olharam. Os policiais de Filadélfia examinaram tudo que ele tinha no quarto de hotel e depois me entregaram. E ele também imaginaria que você ia ver essa coisa em algum momento. E talvez Lucy também.” “Acho que a questão é que ele não podia ter certeza de quem veria o arquivo. Então ele tomou cuidado, ponto. E Benton era conhecido por ser cuidadoso.” “Sem falar”, continua Marino, “que ele estava lá ajudando o ATF. Então ele pode ter pensado que o ATF veria o arquivo, certo? O ATF de Lucy. McGovern era do ATF e chefiava a equipe de resposta que trabalhou nos incêndios que Carrie e o babaca ajudante dela estavam provocando, para disfarçar o fato de que tinham o hobbyzinho asqueroso de cortar o rosto das pessoas, certo?” Marino aperta os olhos. “Talley é do ATF”, diz ele. “Talvez devêssemos pegar o DNA dele, daquele filho-da-puta. Ruim demais.” Ele me olha daquele jeito outra vez. Acho que Marino jamais vai me perdoar por eu ter dormido com Jay Talley. “Você provavelmente tinha a porra do DNA dele, sem trocadilho. Em Paris. Será que você não tem alguma mancha que esqueceu de lavar?” “Cale a boca, Marino”, digo delicadamente. “Estou ficando com síndrome de abstinência.” Ele se levanta e vai até o armário de bebidas. Agora é hora de bourbon. Ele despeja Booker’s num copo e volta para a mesa. “Não seria muito interessante se ficasse claro que Talley está envolvido em tudo, de cabo a rabo? Talvez fosse por isso que ele quisesse que você fosse à Interpol. Ele queria sondar para ver se você sabia o que Benton sabia? Porque sabe de uma coisa? Talvez, quando Benton estava investigando o assassinato de Susan, ele tenha começado a perceber alguma merda que o estava levando para perto demais de uma verdade que Talley não pode se dar ao luxo de permitir que ninguém saiba.”
“Do que você está falando?” Lucy está na cozinha. Não a ouvi entrar. “Acho que é um trabalho para você.” Marino olha para ela com seus olhos inchados enquanto entorna o bourbon. “Por que você e Teun não investigam Talley e descobrem se ele está metido em alguma sujeira? Porque acredito de todo o coração que eles estão metidos em tudo quanto é sujeira. E a propósito”, agora para mim, “no caso de você não saber, ele é um dos caras que levaram Chandonne para Nova York . Isso não é interessante? Ele acompanha a entrevista de Berger. Passa seis horas no carro com o cara. Ora, eles provavelmente estão tomando uma cerveja agora — ou talvez já tenham tomado.” Lucy olha para fora pela janela da cozinha, com as mãos nos bolsos do jeans, obviamente desconcertada por Marino e constrangida por ele. Ele está suando e é desrespeitoso, e num momento está cheio de ódio e despeito, e no minuto seguinte está tristonho. “Sabe o que eu não consigo agüentar?”, Marino insiste. “Não consigo agüentar maus policiais que se livram de tudo porque todo mundo é covarde demais para ir em cima deles. E ninguém que tocar em Talley, nem tentar, porque ele fala todas essas línguas e foi para Harvard e é um cara maravilhoso e poderoso...” “Você realmente não sabe do que está falando”, diz Lucy a Marino, e agora McGovern está na cozinha. “Você está errado. Jay não é inatingível e você não é a única pessoa neste planeta que tem dúvidas sobre ele.” “Sérias dúvidas”, ecoa McGovern. Marino se levanta e se encosta na bancada. “Posso lhe contar o que sabemos até agora”, Lucy me diz. Ela está relutante e cheia de dedos porque ninguém, realmente, tem muita certeza do que sinto por Jay. “Não me agrada muito fazer isso, porque não há nada definitivo. Mas até agora não está cheirando nada bem.” Ela olha para mim como se esperasse uma deixa. “Bom”, digo a ela. “Vamos ouvir.” “É. Sou todo ouvidos”, responde Marino. “Pesquisei o nome dele em um monte de bases de dados. Nenhum registro em tribunais criminais ou civis, nenhuma penhora nem julgamento etcetera. Não que eu esperasse que ele fosse um criminoso sexual, um pai caloteiro ou ausente, ou um procurado ou coisa do tipo, e não há nenhuma evidência de que o FBI, a CIA ou mesmo o ATF tenha um arquivo sobre ele em seus sistemas de dados. Mas uma simples pesquisa em registros de propriedade levantou um alerta. Antes de mais nada, ele tem um apartamento num condomínio em Nova York onde certamente hospedou alguns amigos — inclusive gente de alto escalão dos órgãos policiais”, ela diz a Marino e a mim. “Um lugar de mais de três milhões de dólares cheio de antigüidades, no Central Park . Jay andou se gabando de que a casa é dele. Bom, não é. Está registrada no nome de uma empresa.” “Não é incomum pessoas ricas terem propriedades registradas em nomes de empresas, por motivos de privacidade e também para proteger ativos de litígio”, observo. “Eu sei. Mas essa empresa não é dele”, retruca Lucy. “A menos que ele seja dono de uma empresa de transporte aéreo.”
“Meio esquisito, certo?”, acrescenta McGovern. “Considerando a quantidade de empresas de transporte em que a família Chandonne está envolvida. Então, talvez haja uma ligação. Mas é meio cedo para dizer.” “Para mim não é nenhuma surpresa”, murmura Marino, mas seus olhos se acendem. “É, eu me lembro muito bem de ele bancar o ricaço de Harvard, certo, doutora? Você se lembra, eu fiquei imaginando por que ele estava de repente num Learjet, e depois nós estamos no Concorde indo para a França. Eu sabia que a Interpol não pagava nada daquela merda.” “Ele nunca devia ter se gabado daquela casa”, observa Lucy. “Obviamente ele tem o mesmo calcanhar-de-aquiles que outros babacas têm: ego.” Ela olha para mim. “Ele queria impressioná-la, então põe você num vôo supersônico — diz que ganhou as passagens porque elas eram para a polícia. E com certeza sabemos que as companhias aéreas às vezes fazem esse tipo de coisa. Mas também estamos verificando isso, para ver quem fez as reservas e qual foi a história.” “Minha grande pergunta”, McGovern continua, “é obviamente se aquela casa pode ser da família Chandonne. E dá para imaginar quantas camadas vai ser preciso remover para chegar até eles.” “Diabo, eles provavelmente são donos da porra do prédio inteiro”, diz Marino. “E de mais metade de Manhattan.” “E quanto a funcionários de empresas?”, pergunto. “Algum nome interessante?” “Conseguimos nomes, mas até agora eles não significam nada de importante”, responde Lucy. “Esses casos envolvendo papéis levam muito tempo. Nós os examinamos e depois tudo e todos que estão ligados a eles, e a coisa continua infindavelmente.” “E onde se encaixam Mitch Barbosa e Rosso Matos?”, pergunto. “Ou não se encaixam? Porque alguém retirou uma chave da minha casa e pôs no bolso de Barbosa. Você acha que foi Jay?” Marino bufa e toma um gole de bourbon. “Tem meu voto”, ele retruca. “Isso e o roubo de sua picareta de entalhar. Não posso pensar em nenhuma pessoa que fizesse isso. Conheço cada um dos caras que foram lá, na sua casa. A menos que Righter tivesse feito isso, e ele é covarde demais, e eu realmente não acho que ele seja desonesto.” Não é que a sombra de Jay não tenha passado por nossos pensamentos várias vezes antes. Sabemos que ele estava na minha casa. Sabemos que ele está com raiva de mim. Todos nós temos questionamentos consideráveis sobre o caráter dele, mas se ele plantou a chave ou a roubou da minha casa e a passou para outra pessoa, então isso o implica diretamente no homicídio com tortura de Barbosa, e muito provavelmente também no de Matos. “Onde está Jay agora? Alguém sabe?” Olho para o rosto de cada um deles. “Bom, ele estava em Nova York. Isso foi na quarta-feira. Depois nós o vimos ontem à tarde no condado de James City. Não tenho nenhuma idéia de onde ele possa estar neste exato minuto”, responde Marino. “Há algumas outras coisas que você talvez queira saber.” Lucy se dirige a mim. “Uma em particular é realmente esquisita, mas eu ainda não consigo saber
do que se trata. Na pesquisa de crédito, encontrei dois Jay Talley com endereços diferentes e números da previdência social diferentes. Um Jay Talley obteve seu número da previdência em Phoenix entre 1960 e 1961. Não poderia ser Jay, a menos que ele tenha mais de quarenta anos, e ele tem o quê? Não é muito mais velho do que eu. Trinta e poucos, no máximo? Um segundo Jay Talley que encontrei obteve seu número da previdência social entre 1936 e 1937. Nenhuma data de nascimento, mas ele teria de ser um dos primeiros que obtiveram o número, logo depois da lei de previdência social de 1935, então sabe Deus que idade esse Jay Talley já tinha quando obteve o número. Ele tinha de estar pelo menos com setenta anos, e com certeza ele anda muito e usa caixas postais em vez de endereços físicos. Ele também comprou muitos carros, às vezes trocando de carro duas vezes por ano.” “Talley alguma vez lhe disse onde nasceu?”, Marino me pergunta. “Ele disse que passou a maior parte da infância em Paris e que depois sua família se mudou para Los Angeles”, respondo. “Você estava na lanchonete quando ele disse isso. Na Interpol.” “Nenhum registro de nenhum dos dois ter vivido em Los Angeles algum dia”, diz Lucy. “E por falar em Interpol”, diz Marino, “eles não o checaram antes de deixá-lo trabalhar lá?” “É óbvio que devem ter checado, mas não extensamente”, responde Lucy. “Ele é um agente do ATF. Supõe-se que esteja limpo.” “E quanto a um nome do meio?”, pergunta Marino. “Sabemos o dele?” “Ele não tem. Nada nos registros pessoais dele no ATF.” McGovern dá um sorriso torto. “E nem o Jay Talley que obteve o número de previdência antes do dilúvio. Só isso já é incomum. A maioria das pessoas tem nomes do meio. No arquivo dele na central consta que ele nasceu em Paris e viveu lá até os seis anos. Mas depois disso supostamente se mudou para Nova York com seu pai francês e sua mãe americana, e não há nenhuma menção a Los Angeles. No formulário que preencheu para o ATF, afirma ter estudado em Harvard, mas quando procuramos a confirmação disso descobrimos que não existe registro de nenhum Jay Talley que tenha freqüentado Harvard.” “Puta que pariu”, exclama Marino. “As pessoas não verificam nada quando olham esses formulários? Apenas acreditam quando alguém diz que foi para Harvard ou foi bolsista Rhodes ou disputou a prova de salto com vara nas Olimpíadas? E contratam a pessoa e dão a ela um distintivo e uma arma?” “Bem, não vou dar à corregedoria o alerta de que talvez devessem checálo um pouco mais detalhadamente”, diz McGovern. “Temos de tomar cuidado para que ninguém dê uma informação secreta a ele primeiro, e é difícil dizer quem são os amigos dele na central.” Marino ergue os braços e se espreguiça. Estala o pescoço. “Estou de novo com fome”, ele diz.
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O quarto de hóspedes da casa de Anna tem vista para o rio, e nos últimos dias improvisei uma escrivaninha na frente da janela. Isso exigiu uma mesinha, que cobri com uma toalha para não arranhar o acabamento acetinado, e da biblioteca roubei uma cadeira giratória inglesa de couro verde-maçã. A princípio, fiquei desanimada por ter esquecido de pegar meu laptop, mas descobri um consolo inesperado ao escrever com caneta-tinteiro e deixar os pensamentos fluírem através de meus dedos e cintilarem em tinta preta. Minha grafia é horrorosa, e a idéia de que ela tem alguma coisa a ver com o fato de eu ser médica provavelmente é verdadeira. Há dias em que tenho de assinar o nome ou as iniciais quinhentas vezes, e suponho que garatujar descrições grosseiras e medidas com a mão calçada em luvas ensangüentadas também cobrou seu preço. Desenvolvi um ritual na casa de Anna. Todas as manhãs, vou para a cozinha e me sirvo uma xícara do café que foi programado para ser filtrado exatamente às cinco e meia. Volto para o quarto, fecho a porta e sento junto à janela, escrevendo diante de um quadrado de vidro de completa escuridão. Em minha primeira manhã aqui, fiquei esboçando aulas que estou programada para dar na escola de investigação de morte, vizinha ao instituto. Mas as fatalidades do transporte, a asfixia e a radiologia forense saíram completamente de minha cabeça quando a vida no rio foi tocada pela primeira luz do dia. Nesta manhã assisti fielmente ao espetáculo outra vez. Às seis e meia, a escuridão se transformou em um cinza da cor de carvão, e em poucos minutos pude visualizar as silhuetas de plátanos e carvalhos desfolhados, e depois as planícies escuras se transformaram em água e terra. Na maioria das manhãs o rio é mais quente que o ar, e um nevoeiro se desloca sobre a superfície do James. Neste exato momento ele parece o rio Estige, e quase espero que surja um homem lúgubre e fantasmagórico, vestido em trapos e empurrando com uma vara seu bote através de véus de neblina. Não espero ver animais até perto das oito horas, e eles se tornaram um enorme conforto para mim. Apaixonei-me pelos gansos selvagens que se reúnem junto ao cais de Anna em um coro de grasnados. Esquilos fazem suas tarefas subindo e descendo das árvores, as caudas enroladas como penachos de fumaça. Pássaros pairam diante de minha janela e me olham nos olhos como se quisessem saber o que estou espionando. Veados correm em bosques de inverno na margem oposta do rio e falcões de rabo vermelho fazem investidas em busca de presas. Em momentos raros e privilegiados sou agraciada com águias carecas. Suas enormes asas, seus capacetes e culotes brancos as tornam inconfundíveis, e sou confortada porque as águias voam alto e sozinhas, e vejo que elas não têm a mesma agenda que outros pássaros. Observo-as circulando ou se empoleirando brevemente em árvores, nunca permanecendo em um lugar por muito tempo e partindo de repente, e fico a imaginar, como Emerson, se acabo de receber um
sinal. Descobri que a natureza é gentil. O resto do que vivo atualmente não é. É segunda-feira, 17 de janeiro, e continuo exilada na casa de Anna. Ou pelo menos é assim que me vejo. O tempo passou devagar, de forma quase estagnada, como a água além de minha janela. As correntes de minha vida estão se movendo em certa direção, quase imperceptível, e não há nenhuma possibilidade de mudança da rota de seu progresso inevitável. Os feriados passaram e meu gesso foi substituído por ataduras Ace e uma tala. Estou dirigindo um carro alugado porque meu Mercedes está retido para outras investigações, na Hull Street and Commerce Road, no depósito de carros apreendidos, que não tem vigilância policial vinte e quatro horas por dia nem cão de guarda. Na véspera do ano-novo, alguém quebrou uma janela do meu carro e roubou o radiotransmissor, o rádio AM-FM, o CD player e sabe Deus o que mais. Já basta para a cadeia de evidências, eu disse a Marino. Há novos desdobramentos no caso Chandonne. Como eu suspeitava, quando o fluido seminal do caso de Susan Pless foi originalmente testado em 1997, só foram usadas quatro amostras. O escritório do legista de Nova York ainda usa quatro amostras para a primeira varredura, porque elas são feitas internamente e portanto é mais econômico recorrer primeiro a elas. O material congelado foi retestado usando quinze loci, e o resultado obtido foi uma nãocoincidência. Jean-Baptiste Chandonne não foi o doador do fluido seminal, nem seu irmão, Thomas. Mas há tantos alelos em comum, os perfis de DNA são tão incrivelmente próximos, que só podemos supor que há um terceiro irmão, e foi esse irmão que fez sexo com Susan. Ficamos desnorteados. Berger está enlouquecida. “O DNA contou a verdade e nos ferrou”, ela me disse ao telefone. A dentição de Chandonne coincide com as marcas de mordida, e sua saliva e seu cabelo estavam no corpo ensangüentado, mas ele não fez sexo vaginal com Susan Pless pouco antes de ela morrer. Talvez isso não seja suficiente para um júri nesta época de DNA. Um grande júri de Nova York terá de decidir se é suficiente para um indiciamento, e achei incrivelmente irônico quando Berger disse isso. Parece que não é preciso muita coisa para me acusar de assassinato, nada mais do que boatos e a suposta intenção, e o fato de que realizei experimentos com uma picareta de entalhar e molho de churrasco. Durante semanas, esperei pela intimação. Ela chegou ontem, e o auxiliar do xerife estava em seu bom humor costumeiro quando apareceu em meu escritório, sem perceber, suponho, que o caso desta vez me envolve como acusada e não como testemunha especializada. Fui convocada a aparecer na sala 302 do John Marshall Courts Building para testemunhar diante do grande júri especial. A audiência está marcada para as duas da tarde de terça-feira, 1o de fevereiro. Alguns minutos depois das sete, estou dentro do closet, olhando tailleurs e blusas enquanto repasso tudo que preciso fazer hoje. Já sei por Jack Fielding que temos seis casos e que dois dos médicos estão no tribunal. Também tenho às dez horas uma conversa telefônica com o governador Mitchell. Escolho um terninho preto com listras azuis e uma blusa azul com punhos para abotoaduras. Vou até a cozinha pegar outra xícara de café e uma tigela da granola com alto teor de
proteína que Lucy trouxe. Sou obrigada a sorrir quando praticamente quebro os dentes ao morder o saudável e crocante presente de Lucy. Minha sobrinha está determinada a me fazer emergir de minha vida morna como uma perfeita fênix. Lavo a louça e termino de me vestir, e quando me dirijo à porta o pager toca. O número de Marino aparece no visor, seguido pelo número de emergência da polícia. Na entrada para carros da casa de Anna está a última mudança de minha vida — o carro alugado. É um Ford Explorer azul-escuro que cheira a cigarros antigos e sempre vai cheirar assim, a menos que eu faça o que Marino sugeriu e coloque um desodorizador no painel. Conecto meu telefone celular no acendedor e ligo para ele. “Onde você está?”, ele logo pergunta. “Saindo da entrada para carros.” Ligo o aquecedor e os portões de Anna se abrem para me dar passagem. Não parei nem para pegar o jornal, que Marino em seguida me diz que preciso ver, porque é claro que eu ainda não o li, senão teria ligado para ele imediatamente. “Tarde demais”, digo a ele. “Já estou na Cherokee.” Enrijeço-me como um garotinho flexionando os músculos do estômago quando ousa deixar alguém socá-lo na barriga. “Então me conte. O que há no jornal?” Suponho que a investigação do grande júri especial tenha vazado para a imprensa, e estou certa. Dirijo pela Cherokee enquanto o clima de inverno recente continua a se dissolver em gotas e poças, e a neve derretida escorrega pegajosa dos telhados. “Legista-chefe Suspeita de Assassinato Horripilante ”, Marino lê a principal manchete da primeira página. “Também tem um retrato seu”, ele acrescenta. “Parece a foto que aquela vaca tirou na frente da sua casa. A moça que caiu no gelo, lembra? Mostra você entrando em minha caminhonete. Aliás, minha caminhonete está muito bem. Você, nem tanto...” “Me conte apenas o que diz”, interrompo. Ele lê os destaques enquanto percorro as curvas fechadas da Cherokee Road. Um grande júri especial de Richmond está me investigando no assassinato da chefe de polícia interina Diane Bray, diz o jornal. A revelação é descrita como espantosa e bizarra e deixou a polícia local chocada. Embora o promotor estadual Buford Righter tenha se recusado a comentar, fontes anônimas dizem que Righter ordenou a investigação com grande tristeza depois que se apresentaram testemunhas com declarações e a polícia obteve evidências que eram impossíveis de ignorar. Outras fontes não identificadas afirmam que eu estava num choque acalorado com Bray, que acreditava que eu era incompetente e não mais estava apta a ser legista-chefe da Virgínia. Bray estava tentando me tirar do cargo e, antes de ser assassinada, disse a pessoas que em várias ocasiões eu a havia enfrentado, intimidado e ameaçado. Fontes dizem que há indicadores apontando para a possibilidade de eu ter encenado o assassinato de Bray para que ele se parecesse com o brutal assassinato de Kim Luong etc. etc. etc. Agora estou na Huguenot Road bem na hora do rush. Digo a Marino para parar. Já ouvi o suficiente.
“Continua indefinidamente”, diz ele. “Estou certa que sim.” “Eles devem ter trabalhado nisso durante os feriados, porque tem todo tipo de merda sobre você e seu histórico.” Ouço páginas virando. “A mesma coisa sobre Benton e a morte dele, e Lucy. Há uma grande barra lateral com todas as suas informações principais, onde você estudou. Cornell, Georgetown, Hopkins. As fotos de dentro são boas. Tem até uma de nós dois em uma cena de crime. Merda, é a cena de crime de Bray.” “E sobre Lucy?”, pergunto. Mas Marino está enfeitiçado pela publicidade, pelo que devem ser fotos enormes que mostram ele e eu juntos. “Nunca vi nada desse tipo.” Mais páginas virando. “Simplesmente não acaba, doutora. Até agora contei cinco matérias. Eles devem ter posto toda a porra da equipe de jornalistas trabalhando nisso sem que sequer desconfiássemos. Há inclusive uma foto aérea da sua casa...” “E sobre Lucy?”, pergunto com mais ênfase. “O que diz sobre Lucy?” “Bom, é surpreendente, há até uma foto sua e de Bray no estacionamento na cena de Luong, na loja de conveniência. Vocês duas parecem se odiar visceralmente...” “Marino!”, levanto a voz. É a única coisa que posso fazer para me concentrar na direção. “Chega, está bem!” Uma pausa, depois: “Desculpe, doutora. Porra, sei que é horrível, mas não tive chance de olhar muita coisa além da primeira página antes de falar com você. Eu não tinha idéia. Desculpe. Mas é que nunca vi nada desse tipo, a não ser quando alguém realmente famoso morre de repente”. As lágrimas me ardem nos olhos. Não comento a ironia do que ele acaba de dizer. Sinto-me como se tivesse morrido. “Deixe eu olhar essa coisa sobre Lucy”, Marino está dizendo. “É bem o que seria de se esperar. Ela é sua sobrinha, mas você sempre foi mais como a mãe dela, é formada com toda essa merda de distinção na Universidade da Virgínia, o acidente de carro sob efeito de álcool, o fato de que ela é gay, pilota helicóptero, FBI, ATF, e vai, vai, vai. E que ela quase atirou em Chandonne no jardim da sua casa. Imagino que essa é a porra da questão.” Marino volta a seu estado de irritação. Tanto quanto ele provoca Lucy, não gosta nada que outra pessoa faça isso. “Não diz que ela está em licença administrativa nem que você está escondida na casa de Anna. Pelo menos alguma coisa aqueles babacas não descobriram.” Avanço para mais perto da West Cary Street. “Onde você está?”, pergunto. “Na central. Já estou indo encontrá-la”, ele responde. “Porque você vai ter uma senhora recepção.” Ele se refere à imprensa. “Pensei que talvez você gostasse de ter companhia. Além disso, tenho algumas coisas para olhar com você. Também pensei que poderíamos tentar um pequeno truque, doutora. Vou chegar em seu escritório primeiro e esconder meu carro. Você pára em frente, na Jackson Street, em vez de ir para o estacionamento da rua 4, desce e entra, e eu estaciono seu carro. Informação dos policiais — há cerca de trinta repórteres, fotógrafos, pessoal de TV acampados no seu estacionamento, esperando que você apareça.”
Começo a concordar com ele e depois volto atrás. Não, digo. Não vou começar a brincadeira de me esconder, me esquivar e levantar pastas ou meu casaco para esconder o rosto das câmaras como se eu fosse uma chefona do crime. Absolutamente não. Digo a Marino que o encontrarei em meu escritório, mas vou estacionar como sempre e lidar com a mídia. Por um lado, minha teimosia começou a agir. Por outro, não vejo o que tenho a perder chegando ao meu trabalho como sempre e simplesmente dizendo a verdade, e a maldita verdade é que não matei Diane Bray. Nunca sequer pensei nisso, embora certamente tivesse mais aversão por ela do que por qualquer outra pessoa que conheci em minha vida. Na rua 9, paro em um farol vermelho e visto meu casaco. Observo-me no retrovisor interno para ter certeza de que estou razoavelmente composta. Retoco o batom e passo os dedos no cabelo. Ligo o rádio, abraçando-me à espera das primeiras notícias. Antecipo que as estações locais vão interromper muitas vezes a programação para lembrar a todos que sou o primeiro escândalo do novo milênio. “... Então, devo dizer isso, Jim. Quer dizer, estamos falando de alguém que poderia praticar o assassinato perfeito...” “Não brinque. Sabe, uma vez eu a entrevistei...” Mudo para outra estação, depois outra, enquanto sou ridicularizada e degradada ou simplesmente exposta, porque alguém vazou para a mídia o que se supõe seja o procedimento legal mais secreto e sagrado. Imagino quem violou esse código de silêncio, e, o que é ainda mais triste, vários nomes me vêm à mente. Não confio em Righter. Não confio em ninguém que ele tenha contatado para obter informações telefônicas ou bancárias. Mas tenho outro suspeito em mente — Jay Talley — e estou apostando que ele também foi intimado. Componho-me quando entro no estacionamento e vejo as vans das TVS e das rádios enfileiradas na rua 4 e dezenas de pessoas esperando por mim com câmeras, microfones e blocos de anotação.
 
 
Nenhum dos repórteres nota meu Explorer azul-escuro porque eles não estão esperando, e é nesse momento que percebo que cometi um sério erro tático. Faz dias que estou dirigindo um carro alugado, e não me ocorreu até agora que poderiam me perguntar por quê. Entro na vaga reservada para mim ao lado da porta da frente e sou avistada. Eles caminham na minha direção como caçadores atrás de presa grande, e me esforço para assumir meu papel. Sou a chefe. Sou reservada, equilibrada e não tenho medo. Não fiz nada de errado. Desço do carro e pego com calma minha maleta e uma pilha de pastas no banco de trás. Meu cotovelo dói embaixo de camadas de tecidos elastificados, e câmaras disparam, e microfones apontam para mim como armas sendo engatilhadas e encontrando seu alvo. “Doutora Scarpetta? A senhora pode fazer um comentário sobre...?” “Doutora Scarpetta...?” “Quando a senhora descobriu que um grande júri especial a está investigando?”
“É verdade que a senhora e Diane Bray estavam tendo desavenças...?” “Onde está seu carro?” “A senhora pode confirmar que foi basicamente expulsa de sua casa e agora não tem nem sequer seu carro?” “A senhora vai se demitir?” Viro-me de frente para eles na passagem lateral. Fico em silêncio mas firme enquanto espero que eles se aquietem. Quando percebem que pretendo responder a suas perguntas, vejo olhares surpresos, e o tom agressivo deles logo se desfaz. Reconheço muitos rostos, mas não consigo me lembrar dos nomes. Estou segura de que sempre soube os nomes dos verdadeiros soldados da mídia, que reúnem as informações nos bastidores. Lembro-me de que estão apenas fazendo seu trabalho e que não há nenhuma razão para que eu encare nada disso em termos pessoais. Tudo bem, nada pessoal. Rude, desumano, impróprio, insensível e basicamente impreciso, mas não pessoal. “Não preparei nenhuma declaração”, começo a dizer. “Onde a senhora estava na noite em que Diane Bray foi assassinada?” “Por favor”, interrompo-os. “Como vocês, eu soube recentemente que há um grande júri especial investigando o assassinato dela, e peço-lhes que respeitem a confidencialidade de um procedimento como esse, que é muito necessária. Por favor, entendam que não tenho liberdade para discutir isso com vocês.” “Mas a senhora...?” “Não é verdade que a senhora não está dirigindo seu carro porque ele está com a polícia?” Perguntas e acusações rompem o ar da manhã como uma granada enquanto caminho para meu prédio. Não tenho mais nada a dizer. Sou a chefe. Estou equilibrada e calma e não tenho medo. Não fiz nada de errado. Há um repórter de quem me lembro, pois como poderia esquecer um afro-americano alto, com cabelo branco e feições marcantes cujo nome é Washington George? Ele usa um casaco impermeável comprido e me segue enquanto tento abrir a porta de vidro que leva ao interior do prédio. “Posso lhe perguntar só uma coisa?”, diz ele. “A senhora se lembra de mim? Minha pergunta não é essa.” Um sorriso. “Eu sou Washington George. Trabalho para a Associated Press.” “Eu me lembro de você.” “Por favor, deixe-me ajudá-la nisso.” Ele segura a porta e nós entramos no saguão, onde a guarda de segurança olha para mim, e agora já conheço esse olhar. Minha notoriedade se reflete nos olhos das pessoas. Meu coração se acelera. “Bom dia, Jeff”, digo quando passo pela mesa dele. Um aceno de cabeça. Passo meu cartão de identificação de plástico sobre o olho eletrônico e a porta que leva à minha ala do prédio se abre. Washington George ainda está comigo, está dizendo alguma coisa sobre uma informação que ele acha que preciso saber, mas não estou ouvindo. Uma mulher está sentada em minha área de recepção. Está encolhida em uma cadeira e parece triste e pequena em meio a granito polido e tijolos de vidro. Este não é um bom lugar para se estar. Sempre
tenho pena de qualquer pessoa que se encontra em minha área de recepção. “Já foi atendida?”, pergunto a ela. Ela está vestida com saia preta e sapatos de enfermeira, com uma capa de chuva escura bem apertada em volta do corpo. Segura a carteira como se alguém pudesse roubá-la. “Estou só esperando”, diz ela com a voz abafada. “A senhora está aqui para ver quem?” “Bem, não sei ao certo”, ela balbucia, seus olhos nadando em lágrimas. Ela prende os soluços e o nariz começa a escorrer. “É sobre meu garoto. A senhora acha que eu poderia vê-lo? Não entendo o que vocês estão fazendo com ele aqui.” Seu queixo treme e ela enxuga o nariz com as costas da mão. “Preciso apenas vê-lo.” Fielding me deixou uma mensagem sobre os casos de hoje, e sei que um deles é um adolescente que supostamente se enforcou. Qual era o nome? White?, pergunto a ela, e ela assente com a cabeça. Benny, ela me dá o primeiro nome dele. Presumo que ela seja a sra. White, e ela assente outra vez e explica que ela e o filho mudaram o último nome para White depois que ela se casou outra vez, há alguns anos. Digo a ela para vir comigo — e agora ela está chorando muito —, e nós descobriremos o que está acontecendo com Benny. Seja lá o que Washington George tem a me contar, vai ter de esperar. “Acho que a senhora não vai querer que isso espere”, ele responde. “Tudo bem, tudo bem. Venha comigo e eu falo com você assim que puder.” Estou dizendo isso enquanto entramos em meu escritório com outra passagem de meu cartão de identificação. Cleta está digitando informações sobre casos em nosso computador, e cora instantaneamente quando me vê. “Bom dia”, ela tenta assumir seu ar alegre costumeiro. Mas seu olho tem aquele olhar, o olhar que passei a odiar e temer. Posso imaginar o que minha equipe tem conversado nesta manhã, e não me escapa que o jornal está dobrado no alto da escrivaninha de Cleta e que ela tentou cobri-lo com seu suéter. Cleta ganhou peso nos feriados e tem círculos escuros debaixo dos olhos. Estou tornando todo mundo infeliz. “Quem está cuidando de Benny White?”, pergunto a ela. “Acho que o doutor Fielding.” Ela olha para a sra. White e se levanta de sua estação de trabalho. “Posso guardar sua capa? Quer um café?” Digo a Cleta para levar a sra. White para minha sala de reuniões e que Washington George pode esperar na biblioteca médica. Encontro minha secretária, Rose. Fico tão aliviada de vê-la que esqueço meus problemas, e ela, ao me olhar, também não os reflete para mim daquele jeito dissimulado, curioso, constrangido. Rose é simplesmente Rose. No máximo, o desastre a torna mais formal do que de costume. Ela me olha nos olhos e trocamos um aperto de mãos. “Estou tão enojada que poderia vomitar sangue”, ela diz quando apareço na porta de sua sala. “A estupidez mais ridícula que já ouvi em toda a minha vida.” Ela pega seu exemplar do jornal e o sacode para mim como se eu fosse um cachorro desobediente. “Não deixe isso incomodá-la, doutora Scarpetta.” Como se fosse simples assim. “Mais merda de galinha do que o Kentucky Fried, aquele maldito Buford Righter. Ele não consegue aparecer e dizer isso na sua cara, não é? Então você tem de descobrir desse jeito?” Ela sacode o jornal de novo.
“Rose, Jack está no necrotério?”, pergunto. “Ah, meu Deus, trabalhando naquele pobre garoto.” Rose pára de falar sobre mim e sua indignação se transforma em pena. “Senhor, Senhor. Você o viu?” “Acabo de chegar...” “Parece um menininho do coro. Lindo, de olhos azuis. Senhor, Senhor. Se ele fosse meu filho...” Interrompo Rose pondo um dedo nos lábios quando ouço Cleta vindo pelo corredor com a pobre mãe do garoto. Balbucio a mãe dele para Rose e ela pára de falar. Seus olhos se demoram nos meus. Ela está inquieta e muito tensa hoje, e se vestiu toda de preto, com o cabelo puxado para trás e preso, fazendo-me lembrar de American Gothic, de Grant Wood. “Estou bem”, digo calmamente a ela. “Bem, não acredito nisso.” Seus olhos ficam marejados e ela se ocupa nervosamente com papéis. Jean-Baptiste Chandonne dizimou toda a minha equipe. Todos que me conhecem e dependem de mim estão desalentados, desnorteados. Eles não confiam mais em mim completamente e no íntimo se angustiam, preocupados com o que vai acontecer com suas vidas e seus empregos. Sou lembrada do meu pior momento na escola, quando tinha doze anos — precoce, como Lucy. A mais jovem da minha classe. Meu pai morreu naquele ano letivo no dia 23 de dezembro, e a única coisa boa que consigo encontrar no fato de ele ter esperado até dois dias antes do Natal é que pelo menos os vizinhos estavam relaxando do trabalho, a maioria em casa, cozinhando e assando bolos. Na boa tradição italiana católica, a vida de meu pai foi celebrada com abundância. Durante vários dias, nossa casa ficou cheia de risadas, lágrimas, comida, bebida e canções. Quando voltei à escola depois do ano-novo, tornei-me ainda mais incansável em minhas conquistas e explorações cerebrais. Obter notas perfeitas nos exames não era mais suficiente. Eu estava desesperada por atenção, desesperada para agradar, e implorava às freiras por projetos especiais, qualquer projeto, não importava o quê. Finalmente, eu ficava andando pela escola a tarde inteira, batendo apagadores nos degraus da escada, ajudando as professoras a dar notas, organizando os boletins. Fiquei muito boa no uso de tesouras e grampeadores. Quando havia necessidade de cortar letras do alfabeto ou números e montá-los exatamente em palavras, frases, calendários, as freiras me procuravam. Martha era uma menina da minha classe de matemática que se sentava na minha frente e nunca falava. Ela se virava muito para olhar para mim, fria mais curiosa, sempre tentando captar as notas circuladas em vermelho no alto da minha lição de casa e das minhas provas, com a esperança de ter tirado notas mais altas do que eu. Um dia, depois de uma prova de álgebra especialmente difícil, notei que irmã Teresa caminhava em minha direção decididamente irritada. Ela esperou até que eu estivesse limpando outra vez os apagadores, agachada nos degraus de estuque, batendo, criando nuvens de poeira de giz no sol tropical de inverno, e eu olhei para cima. Lá estava ela em seu hábito, enorme
como um gigante, um pássaro antártico de cara feia usando um crucifixo. Alguém tinha me acusado de colar na prova de álgebra e, embora irmã Teresa não identificasse a fonte dessa mentira, eu não tinha dúvida da culpada: Martha. A única maneira de eu provar minha inocência era fazer outra vez a prova e tirar outra nota perfeita. Irmã Teresa passou a me observar de perto depois disso. Eu nunca ousava levantar os olhos do que estivesse fazendo em minha carteira. Alguns dias se passaram. Eu estava esvaziando cestos de lixo, só nós duas na classe, e ela me disse que eu devia rezar constantemente para que Deus me mantivesse livre do pecado. Eu devia agradecer a nosso Pai Celestial pelos grandes dons que tenho e pedir que Ele me mantivesse honesta, porque eu era tão inteligente que poderia dar um jeito de escapar de muitas coisas. Deus sabe tudo, disse irmã Tereza. Eu não posso enganar Deus. Protestei dizendo que era honesta e que não tentava enganar Deus, e que ela mesmo podia perguntar a Deus. Comecei a chorar. “Eu não colo”, soluçei. “Quero meu pai.” Quando eu estava na Johns Hopkins, no primeiro ano da faculdade de medicina, escrevi a irmã Teresa uma carta e contei aquele incidente deturpado e injusto. Reiterei minha inocência, ainda incomodada, ainda furiosa por ter sido falsamente acusada e por as freiras não terem me defendido e nunca mais estarem seguras a meu respeito depois daquilo. Enquanto estou na sala de Rose agora, mais de vinte anos depois, penso sobre o que Jaime Berger disse na primeira vez em que nos encontramos. Ela jurou que a dor tinha apenas começado. Claro que ela estava certa. “Antes de todos saírem hoje”, digo a minha secretária, “eu gostaria de conversar com eles. Por favor, informe a todos sobre isso, Rose. Vamos ver como o dia caminha e encontrar um tempo. Vou verificar o que houve com Benny White. Por favor, certifique-se de que a mãe dele esteja bem, eu logo voltarei para falar com ela.” Sigo pelo corredor, passando pela sala de espera, e encontro Washington George na biblioteca médica. “Só tenho um minuto”, digo a ele com ar distraído. Ele está olhando livros numa prateleira, sua agenda a seu lado como uma pistola que ele poderia usar. “Ouvi um boato”, diz ele. “Se você souber que é verdade, talvez consiga verificar. Se não souber, bom, talvez deva saber. Buford Righter não vai ser o promotor em sua audiência no grande júri especial.” “Não sei nada sobre isso”, respondo, disfarçando a indignação que sempre sinto quando a imprensa conhece detalhes antes de mim. “Mas nós trabalhamos em muitos caso juntos”, acrescento. “Eu não esperaria que ele quisesse lidar com isso.” “Suponho que sim, e o que entendo é que um promotor especial foi indicado. É nisso que quero chegar. Você sabe disso?” Ele tenta ler meu rosto. “Não.” Também estou tentando ler o rosto dele, esperando captar um prenúncio que possa evitar que eu sofra um ataque violento. “Ninguém sugeriu à senhora que Jaime Berger foi indicada para obter seu indiciamento, doutora Scarpetta?” Ele me olha nos olhos. “Pelo que entendo, essa é uma das razões pelas quais ela veio para cá. A senhora examinou os casos de Luong e Bray com ela e tudo mais, mas eu ouvi de uma fonte muito boa que isso é uma armação. Suponho que a senhora diria que ela tem atuado secretamente.
Righter montou isso antes de Chandonne supostamente ter aparecido em sua casa. Entendo que Berger está atuando há semanas.” A única coisa que consigo dizer é “Supostamente?”. Estou chocada. “Bem”, diz Washington George, “suponho por sua reação que a senhora não foi informada de nada disso.” “Imagino que você não pode me dizer quem é sua fonte confiável”, respondo. “Não.” Ele ri um pouco, um tanto constrangido. “Então a senhora não pode confirmar?” “É claro que não posso”, digo enquanto me recomponho. “Olhe, vou continuar cavando, mas quero que saiba que gosto da senhora e que a senhora sempre foi bastante legal comigo.” Ele continua. Mal ouço o que ele diz. Só consigo pensar em Berger passando horas comigo no escuro, no carro dela, na minha casa, na casa de Bray, e o tempo todo ela estava fazendo anotações mentais para usar contra mim na audiência do grande júri especial. Meu Deus, não é de surpreender que ela saiba tantas coisas sobre minha vida. Provavelmente examinou minhas ligações telefônicas, informações bancárias, extratos de cartão de crédito, e entrevistou todos que me conhecem. “Washington”, digo, “estou com a mãe de uma pobre pessoa que acabou de morrer e não posso mais ficar aqui falando com você.” Saio andando. Não me importa que ele pense que sou grosseira. Passo pelo banheiro de mulheres, e no vestiário ponho um avental de laboratório e protetores de papel nos sapatos. A sala de autópsia está cheia de sons, todas as mesas ocupadas com os infelizes. Jack Fielding está manchado de sangue. Ele já abriu o filho da sra. White e está inserindo uma seringa com uma agulha tamanho 14 na aorta para extrair sangue. Jack me lança um olhar frenético e apavorado quando ando até sua mesa. As notícias da manhã estão por todo o seu rosto. “Mais tarde.” Levando a mão antes que ele consiga fazer qualquer pergunta. “A mãe dele está no meu escritório.” Indico o corpo. “Merda”, diz Fielding. “Merda é a única coisa que tenho a dizer sobre toda essa porra de mundo.” “Ela quer vê-lo.” Pego um pano de uma bolsa que está sobre uma maca e enxugo o rosto delicadamente bonito do garoto. Seu cabelo é da cor de feno e, exceto pelo rosto congestionado, sua pele é rosada. Ele tem uma penugem sobre o lábio superior e os primeiros sinais de pêlos púbicos, seus hormônios apenas começando a despertar, preparando-se para uma vida adulta que não estava destinado a ter. Há um sulco estreito e escuro em volta do pescoço, que sobe em ângulo até a orelha direita, onde a corda foi amarrada. No mais, seu corpo jovem e forte não tem nenhuma evidência de violência, nenhuma sugestão de que ele teria qualquer razão no mundo para não viver. Suicídios podem ser muito desafiadores. Ao contrário da crença popular, as pessoas raramente deixam bilhetes. Elas nem sempre falam sobre seus sentimentos na vida e às vezes seus corpos mortos também não têm muito a dizer. “Maldição”, murmura Jack. “O que sabemos sobre isso?”, pergunto a ele.
“Só que tinha começado a agir de maneira estranha na escola por volta da época do Natal.” Jack pega a mangueira e lava a cavidade do peito até ela ficar brilhante como a parte interna de uma tulipa. “O pai dele morreu de câncer do pulmão há alguns anos.” A água bate. “Aquele maldito Stanfield, puta que pariu. O que há por lá? Algo especial? Três porras de casos dele em quatro semanas.” Jack lava o bloco de órgãos. Eles brilham em tons fortes na tábua de cortar, esperando para serem violados pela última vez. “Ele aparece o tempo todo, como a porra dum indesejável.” Jack pega uma faca cirúrgica grande do carrinho. “Então esse garoto vai à igreja ontem, volta para casa e se enforca no bosque.” Quanto mais Jack Fielding usa a palavra “porra”, mais perturbado ele fica. Está extremamente perturbado. “E Stanfield?”, pergunto de forma melancólica. “Eu achava que ele estava se demitindo.” “Eu gostaria que estivesse. O cara é um idiota. Liga para falar desse caso, e adivinhe o quê? Aparentemente, ele foi para a cena. O garoto está pendurado em uma árvore e Stanfield corta a corda para soltá-lo.” Sinto que sei o que vem a seguir. “Ele corta o nó.” Eu estava certa. “Ele tirou fotos primeiro, espero.” “Estão lá.” Ele aponta com a cabeça para o balcão do outro lado da sala. Vou olhar as fotos. São dolorosas. Parece que Benny nem parou em casa para trocar de roupa quando veio da igreja, mas foi direto para o bosque, jogou uma corda de náilon por cima do galho de uma árvore, deu um laço em uma ponta e passou a outra por ele. Então fez outro laço com um nó de correr simples e o pôs sobre a cabeça. Nas fotos, ele está vestido com um terno azul-marinho e uma camisa branca. No chão há uma gravata de listras vermelhas e azuis, ou deslocada pela corda ou porque talvez ele a tenha tirado antes. Ele está de joelhos, os braços pendendo ao lado do corpo, a cabeça caída, uma posição típica de suicídio por enforcamento. Não tenho muitos casos em que as pessoas ficam totalmente suspensas, com os pés fora do chão. A questão é pressionar suficientemente os vasos sangüíneos do pescoço para que o sangue oxigenado que chega ao cérebro não seja suficiente. Bastam dois quilos de pressão para comprimir as veias jugulares, e um pouco mais que o dobro disso para fechar as carótidas. O peso da cabeça contra o nariz é suficiente. A inconsciência é rápida. A morte chega em minutos. “Vamos fazer isso.” Volto para onde Jack está. “Cubra-o. Vamos pôr algumas folhas plastificadas sobre ele para que o sangue não extravase. E vamos dar à mãe dele a oportunidade de vê-lo antes que você faça qualquer outra coisa com ele.” Ele respira profundamente e joga o bisturi de volta no carrinho. “Vou falar com ela e ver o que mais podemos descobrir.” Saio. “Avise Rose quando você estiver pronto. Obrigada, Jack.” Paro para olhá-lo nos olhos. “Vamos conversar depois? Nunca tomamos aquele café. Nem nos desejamos Feliz Natal.” Encontro a sra. White na minha sala de reuniões. Ela parou de chorar e está num espaço profundo e deprimido, com um olhar parado, sem vida. Ela mal
me focaliza quando entro e fecho a porta. Conto a ela que acabo de ver Benny e que vou permitir que ela o veja em alguns minutos. Seus olhos se enchem de lágrimas outra vez, e ela quer saber se ele sofreu. Digo-lhe que ele logo deve ter ficado inconsciente. Ela quer saber se ele morreu porque não conseguiu respirar. Respondo que não sabemos todas as respostas agora, mas é improvável que suas vias aéreas tenham sido obstruídas. Benny talvez tenha morrido de danos cerebrais causados por hipóxia, mas estou mais inclinada a suspeitar que a compressão dos vasos sangüíneos causou uma resposta vasovagal. Em outras palavras, seu coração parou de bater e ele morreu. Quando menciono que ele estava ajoelhado, ela sugere que talvez estivesse rezando para que o Senhor o levasse para casa. Talvez, respondo. Ele podia muito bem estar rezando. Conforto a sra. White da melhor forma que consigo. Ela me informa que um caçador estava procurando um veado no qual atirara antes e encontrou o corpo de seu filho. Benny não podia estar morto havia muito tempo porque tinha desaparecido depois da missa, por volta de meio-dia e meia, e a polícia foi à casa dela por volta das cinco da tarde. Contaram-lhe que o caçador tinha encontrado Benny mais ou menos às duas horas. Então pelo menos ele não ficou lá sozinho muito tempo, ela insiste em dizer. E foi bom ele ter seu Novo Testamento no bolso do paletó, porque nele estavam escritos o nome e o endereço dele. Foi assim que a polícia descobriu quem era e localizou sua família. “Senhora White”, digo, “estava acontecendo alguma coisa com Benny ultimamente? Como foi na igreja ontem de manhã? Estava acontecendo algo que a senhora saiba?” “Bem, ele anda rabugento.” Agora ela está mais calma. Fala sobre Benny como se ele estivesse sentado na área de recepção esperando por ela. “Ele vai fazer doze anos no mês que vem, e a senhora sabe como é essa fase.” “O que a senhora quer dizer com ‘rabugento’?” “Ele ia muito para seu quarto e fechava a porta. Fica lá ouvindo música com os fones de ouvido. Anda meio insolente de vez em quando, e ele não costumava ser assim. Fiquei preocupada.” Sua voz se contrai. Ela pisca, lembrando-se de repente de onde está e do porquê. “Eu só não sei por que teve de fazer uma coisa dessas!” As lágrimas parecem jorrar de seus olhos. “Sei que há uns garotos na igreja com quem ele tem tido muitos problemas. Eles o provocam muito, o chamam de bonitinho.” “Alguém o provocou ontem?”, pergunto. “Isso pode muito bem ter acontecido. Eles todos estão na escola dominical juntos. E houve muitas conversas, sabe, sobre aquelas mortes na área.” Ela faz outra pausa. Não quer continuar por um caminho que leva a um assunto que para ela é estranho e aberrante. “Os dois homens mortos antes do Natal?” “Sim, sim. Aqueles que dizem que foram amaldiçoados, porque não foi assim que a América começou, sabe. Com pessoas fazendo coisas desse tipo.” “Amaldiçoados? Quem diz que eles foram amaldiçoados?” “É o que se fala. Há muita conversa”, ela continua, respirando fundo. “E Jamestown fica bem ao lado da estrada. Sempre ouvi histórias sobre pessoas
vendo fantasmas de John Smith e Pocahontas e tudo mais. Então esses homens são assassinados bem perto dali, perto da ilha de Jamestown, e há toda essa conversa sobre eles serem, bem, a senhora sabe. Serem anormais, e é por isso que alguém os matou, suponho. Ou pelo menos é o que ouvi dizer.” “A senhora e Benny conversaram sobre tudo isso?” Meu coração fica mais pesado a cada momento. “Um pouco. Quer dizer, todo mundo tem falado sobre aqueles homens mortos e queimados e torturados. As pessoas têm fechado a porta das casas mais do que o normal. Foi meio assustador, tenho de admitir. Então Benny e eu discutimos isso, sim, discutimos. Para lhe dizer a verdade, ele ficou muito mais rabugento desde que tudo isso aconteceu. Então talvez seja isso que o perturbou.” Silêncio. Ela olha para a mesa. Não consegue decidir qual tempo verbal usar quando fala sobre o filho morto. “Isso e o fato de os outros garotos o chamarem de bonitinho. Benny odiava isso, e eu não o culpo. Sempre digo a ele, Espere só até você crescer e ficar mais bonito do que todos os outros. E as garotas fazerem fila. Isso vai dar uma lição a eles.” Ela sorri um pouco e começa a chorar outra vez. “Ele realmente é muito sensível a isso. E a senhora sabe como as crianças conseguem provocar.” “É possível que ele tenha sido provocado ontem na igreja?”, tento adivinhar. “A senhora acha que talvez os garotos tenham feito comentários sobre os chamados crimes de ódio, sobre gays, e talvez sugerido...?” “Bem”, ela deixa escapar. “Bem, sim. Sobre maldições contra pessoas que são anormais e más. A Bíblia é muito clara. ‘Deus os abandonou às paixões infames’”, ela cita. “Alguma possibilidade de que Benny estivesse preocupado com sua sexualidade, senhora White?” Meu tom é muito gentil, mas firme. “Isso é muito normal em garotos que estão entrando na adolescência. Muita confusão sobre identidade sexual, esse tipo de coisa. Especialmente hoje em dia. O mundo é um lugar complicado, muito mais complicado do que era antes.” O telefone toca. “Com licença, é só um minuto.” Jack está na linha. Benny está pronto para ser visto. “E Marino está aqui procurando você. Diz que tem uma informação importante.” “Diga a ele onde estou.” Desligo. “Benny me perguntou se fizeram aquelas coisas horríveis com aqueles homens porque eles são... Ele usou a palavra esquisitos”, diz a senhora White. “Eu disse que podia muito bem ter sido um castigo de Deus.” “Como ele reagiu a isso?”, pergunto a ela. “Não me lembro de ele ter dito nada.” “Quando foi isso?” “Faz umas três semanas. Logo depois que descobriram aquele segundo corpo e saíram todas as notícias dizendo que eram crimes de ódio.” Imagino se Stanfield tem alguma idéia de quanto dano causou ao vazar detalhes da investigação para seu maldito cunhado. A sra. White está falando com nervosismo, e seu pavor aumenta a cada passo que ela dá pelo corredor. Acompanho-a até a frente do escritório e através de uma porta que nos leva à
pequena sala de observação. Lá há um sofá e uma mesa. Na parede há uma pintura de um sossegado campo inglês. Do lado oposto à área de sentar há uma parede de vidro. Ela está coberta por uma cortina. Do outro lado está a geladeira, onde se pode entrar. “Por que a senhora não se senta e se acomoda?”, digo à sra. White, e toco em seu ombro. Ela está tensa, assustada, seus olhos cravados na cortina fechada. Ela se senta na beira do sofá, as mãos apertadas com força no colo. Abro a cortina e Benny está coberto de azul, um lençol azul enfiado debaixo do queixo para esconder a marca da faixa. Seu cabelo molhado está penteado para trás, os olhos estão fechados. A mãe está congelada na beira do sofá. Nem parece respirar. Olha para o vazio, sem compreender. Franze o cenho. “Como é que o rosto dele ficou assim tão vermelho?”, ela pergunta, num tom quase de acusação. “A corda evitou que o sangue voltasse para seu coração”, explico. “Então o rosto dele está congestionado.” Ela se levanta e vai para mais perto da janela. “Oh, meu bebê”, ela sussurra. “Meu filhinho querido. Você está no paraíso agora. Nos braços de Jesus no paraíso. Olhe, o cabelo dele está todo molhado, como se tivesse acabado de ser batizado. Vocês devem ter dado um banho nele. Só preciso saber que ele não sofreu.” Não posso dizer isso a ela. Imagino que, quando ele apertou o laço em volta do pescoço, o rugido da pressão em sua cabeça foi muito assustador. Ele tinha iniciado o processo de terminar com sua vida, e ficou desperto e alerta durante tempo suficiente para que sentisse a morte chegar. Sim, ele sofreu. “Não muito”, é o que digo. “Ele não sofreu muito, senhora White.” Ela cobre o rosto com as mãos e chora. Puxo a cortina e guio-a para a saída. “O que vocês vão fazer com ele agora?”, ela pergunta enquanto me segue inexpressivamente. “Vamos terminar de examiná-lo e fazer alguns testes, apenas para ver se há mais alguma coisa que precisamos saber.” Ela faz que sim com a cabeça. “A senhora gostaria de se sentar um pouco? Podemos lhe servir alguma coisa?” “Não, não. Só quero ir embora.” “Sinto muito por seu filho, senhora White. Nem posso lhe dizer o quanto sinto. Se a senhora tiver alguma pergunta, ligue para mim. Se eu não estiver disponível, alguém aqui vai ajudá-la. Vai ser difícil, e a senhora vai passar por muitas coisas. Então por favor ligue, se pudermos ajudar.” Ela pára no saguão e aperta minha mão. Olha intensamente para mim. “A senhora tem certeza de que alguém não fez isso com ele? Como sabemos com certeza que foi ele quem fez?” “Agora, não há nada que nos faça pensar que outra pessoa fez isso”, garanto a ela. “Mas vamos investigar todas as possibilidades. Ainda não terminamos. Alguns dos testes demoram semanas.” “Vocês não vão mantê-lo aqui durante semanas!”
“Não, ele vai estar pronto para sair em algumas horas. A funerária pode vir buscá-lo.” Estamos na sala da frente, e eu a acompanho por uma porta de vidro, de volta ao saguão. Ela hesita, como se não estivesse muito certa do que fazer. “Obrigada”, diz. “A senhora foi muito gentil.” Não é muito freqüente me agradecerem. Meus pensamentos estão tão pesados quando volto a minha sala que quase esbarro em Marino antes de percebê-lo. Ele está esperando por mim logo depois da porta e tem papéis na mão, e seu rosto irradia animação. “Você não vai acreditar nisto”, diz ele. “Estou a ponto de acreditar em qualquer coisa”, respondo penosamente enquanto quase caio na grande cadeira de couro atrás de minha escrivaninha atulhada. Suspiro. Espero que Marino tenha vindo me contar que Jaime Berger é a promotora especial. “Se for sobre Berger, já sei”, digo. “Um repórter da Associated Press me contou que ela foi indicada para me indiciar. Ainda não decidi se isso é bom ou ruim. Diabo, não consigo decidir nem se me importo com isso.” Marino tem uma expressão confusa no rosto. “Não brinque. Ela? Como ela vai fazer isso? Ela foi aprovada no exame da ordem na Virgínia?” “Não é preciso”, respondo. “Ela pode aparecer pro hac vice.” Essa expressão significa para esta ocasião específica, e explico a ele que, a pedido de um júri especial, o tribunal pode conceder a um advogado de fora do estado uma permissão especial para participar de um caso, mesmo que a pessoa não tenha licença para praticar a advocacia na Virgínia. “E Righter?”, pergunta Marino. “O que ele vai fazer durante tudo isso?” “Alguém no gabinete do promotor estadual vai ter de trabalhar com ela. Meu palpite é que ele vai ser o segundo e deixar o questionamento para ela.” “Tivemos uma mudança esquisita no caso do Fort James Motel.” Ele me conta as novidades. “Vander tem trabalhado muito nas impressões que obteve dentro do quarto, e você não vai acreditar”, ele diz outra vez. “Adivinhe quem apareceu? Diane Bray. Não estou brincando com você. Uma perfeita impressão latente ao lado do interruptor de luz logo que se entra no quarto — a maldita impressão digital latente de Bray. É claro que temos as impressões do cara morto, mas nenhuma outra coincidência com nenhuma outra pessoa, exceto Bev Kiffin, como seria de se esperar. As impressões dela estão na Bíblia de Gideão, por exemplo, mas as dele não, nem as de Matos. Isso também é interessante. Parece que Kiffin talvez seja a pessoa que abriu a Bíblia naquela página.” “Eclesiastes”, lembro a ele. “É. Uma impressão latente nas páginas abertas, impressão digital de Kiffin. E lembre-se, ela disse que não tinha aberto a Bíblia, então perguntei a ela por telefone e ela continua dizendo que não abriu. Portanto, estou suspeitando muito do envolvimento dela, especialmente porque sabemos que Bray esteve naquele mesmo quarto antes do cara que foi morto lá. O que Bray estava fazendo naquele motel? Você pode me dizer?” “Talvez a venda de remédios que ela fazia a tenha levado até lá”, respondo. “Não consigo pensar em outro motivo. Certamente, um motel não é o
tipo de lugar onde se esperaria que ela estivesse.” “Bingo.” Marino aponta um dedo para mim como uma pistola. “E o marido de Kiffin supostamente trabalha para a mesma transportadora na qual Barbosa trabalhava, certo? Embora ainda não tenhamos encontrado nenhum registro de alguém chamado Kiffin que dirija um caminhão nem nada do tipo — não conseguimos sequer localizá-lo em nenhum lugar, o que tenho de admitir que é estranho. E sabemos que a Overland faz contrabando de remédios e armas, certo? Talvez faça mais sentido se ficar claro que Chandonne é a pessoa que deixou aqueles cabelos no acampamento. Talvez estejamos falando do cartel de sua família, hem? Talvez seja isso que o tenha trazido a Richmond — os negócios da família. E quando ele estava na área, simplesmente não conseguiu controlar seu hábito de estraçalhar mulheres.” “Também pode ajudar a explicar o que Matos estava fazendo aqui”, acrescento. “Não brinque. Talvez ele e Jean-Baptiste fossem colegas. Talvez alguém da família tenha enviado Matos à Virgínia para farejar o menino Johnny, tirá-lo de circulação para que ele não cantasse para ninguém nada a respeito dos negócios de sua família.” Há infinitas possibilidades. “O que nada disso explica é por que Matos foi assassinado e quem o matou. Nem por que Barbosa foi morto”, observo. “Não, mas sinto que estamos ficando quentes”, responde Marino. “Eu sinto uma comichão e acho que, se a coçarmos, podemos encontrar Talley. Talvez seja ele o elo perdido em tudo isso.” “Bem, ele aparentemente conheceu Bray em Washington”, digo. “E ele tem vivido na mesma cidade onde a família Chandonne tem sua sede.” “E ele também sempre consegue estar na cena quando Jean-Baptiste está”, acrescenta Marino. “E eu acho que vi o babaca outro dia. Parei num farol vermelho e lá está uma grande motocicleta preta Honda na faixa ao lado da minha. Não o reconheci de início porque ele estava com um capacete com um visor escuro cobrindo o rosto, mas ele estava olhando para a minha caminhonete. Estou bem certo de que era Talley, e ele olhou para o outro lado bem rápido. Babaca.” Rose me chama pelo interfone para dizer que o governador está ligando para nossa conversa por telefone das dez horas. Aceno para que Marino feche a porta da sala e espero na linha por Mitchell. Mais uma vez a realidade se intromete. Sou levada de volta a meus apuros e a sua ampla difusão. Tenho a sensação de que sei exatamente o que o governador tem em mente. “Kay?” Mike Mitchell está sério. “Fiquei muito chateado ao ver jornal hoje de manhã.” “Eu também não estou feliz com ele”, informo. “Eu a apóio e vou continuar a apoiá-la”, ele diz, talvez para me aliviar do que planeja me informar, que não pode ser bom. Não respondo. Também suspeito que ele sabe sobre Berger e provavelmente teve algo a ver com o fato de ela ser indicada promotora especial. Não falo nisso. Não faz sentido. “Acho que à luz de suas atuais circunstâncias”, ele prossegue, “é melhor que você abra mão de suas obrigações até que esse assunto seja resolvido. E, Kay, não é porque eu acredite em nenhuma palavra disso.” Isso também não é o mesmo que ele
dizer que acha que sou inocente. “Mas até as coisas se acalmarem, creio que não seria prudente você continuar a dirigir o sistema de medicina legal do estado.” “Você está me demitindo, Mike?”, pergunto à queima-roupa. “Não, não”, ele responde depressa, e seu tom é gentil. “Vamos só deixar passar a audiência do grande júri especial, e a partir daí veremos o que fazer. Não desisti de você nem de sua idéia de ser uma contratada. Vamos apenas esperar que isso acabe”, ele diz outra vez. “É claro que farei o que você quiser”, digo a ele com todo o devido respeito. “Mas devo dizer que não acho que interesse ao estado que eu me retire de casos em andamento que ainda precisam de minha atenção.” “Kay, isso não é possível.” Ele é um político. “Estamos falando de duas semanas, supondo que sua audiência acabe bem.” “Meu Deus”, retruco. “Tem de acabar.” “Estou certo de que vai.” Saio do telefone e olho para Marino. “Bem, é isso.” Começo a jogar coisas em minha maleta. “Espero que eles não troquem as fechaduras depois que eu sair.” “Realmente, o que ele podia fazer? Quando a gente pensa nisso, doutora, o que ele podia fazer?” Marino se resigna a essa inevitabilidade. “Eu apenas gostaria de saber quem vazou a história para a mídia.” Fecho a maleta e travo as fechaduras. “Você foi intimado, Marino?”, pergunto. “Nada é confidencial. Você pode muito bem me contar.” “Você sabia que eu seria.” Ele tem uma expressão dolorosa no rosto. “Não deixe os desgraçados pegarem você, doutora. Não desista.” Levanto minha maleta e abro a porta da sala. “Vou fazer tudo menos desistir. De fato, tenho muitas coisas a fazer.” Sua expressão pergunta: o quê? Acabei de receber ordens do governador para não fazer nada. “Mike é um bom sujeito”, diz Marino. “Mas não o pressione. Não dê a ele um motivo para demiti-la. Por que você não vai para algum lugar por alguns dias? Talvez ver Lucy em Nova York. Ela não foi para Nova York? Ela e Teun? Apenas fique fora daqui até a audiência. Eu gostaria que você fizesse isso para eu não ter de me preocupar com você a cada minuto. Não gosto nem de você estar lá na casa de Anna totalmente só.” Respiro fundo e tento esconder minha fúria e minha mágoa. Marino está certo. Não faz sentido eu incomodar o governador e piorar as coisas. Mas agora me sinto, acima de qualquer outra coisa, expulsa da cidade, e não ouvi uma palavra de Anna, e isso também me machuca. Estou quase chorando, e me recuso a chorar em meu escritório. Desvio os olhos de Marino, mas ele capta meus sentimentos. “Ei”, diz ele, “você tem todo o direito de não se sentir bem. Tudo isso é péssimo, doutora.” Atravesso o corredor e pego um atalho pelo banheiro feminino, a caminho do necrotério. Turk está costurando Benny White e Jack está sentado preenchendo papéis no balcão. Puxo uma cadeira para perto de meu assistente e colho vários cabelos caídos dele. “Você tem de parar de perder cabelo”, digo, tentando esconder minha perturbação. “Você vai me contar por que seu cabelo
cai o tempo todo?” Tenho pensado em perguntar a ele há semanas. Como sempre, muita coisa aconteceu e Jack e eu não conversamos. “Basta você ler o jornal”, ele diz, depondo a caneta. “Isso vai lhe dizer por que meu cabelo está caindo.” Seus olhos estão pesados. Faço que sim com a cabeça e entendo o que ele quer dizer. É o que eu esperava. Jack sabe há muito tempo que estou com sérios problemas. Talvez Righter tenha entrado em contato com ele semanas atrás e começado a pescar, assim como fez com Anna. Pergunto a Jack se é esse o caso e ele admite que é. Diz que foi um fracasso. Ele odeia política e administração, e não quer meu cargo nem nunca vai querer. “Você me faz parecer bom”, ele diz. “Sempre fez, doutora Scarpetta. Eles podem pensar que eu devo ser indicado chefe. Então o que vou fazer? Não sei.” Ele corre os dedos pelo cabelo e perde mais alguns fios. “Só quero que tudo volte ao normal.” “Acredite, eu também”, digo, quando o telefone toca e Turk o atende. “Isso me lembra uma coisa”, diz Jack. “Temos recebido ligações estranhas aqui. Eu lhe contei isso?” “Eu estava aqui quando recebemos uma”, respondo. “Alguém afirmando ser Benton.” “Que coisa doentia”, ele diz, enojado. “É a única ligação de que estou informada”, acrescento. “Doutora Scarpetta?”, grita Turk. “Você pode atender? É Paul.” Vou até o telefone. “Como vai, Paul?”, pergunto a Paul Monty, o diretor estadual dos laboratórios forenses. “Primeiro, quero que você saiba que todos neste maldito edifício estão torcendo por você, Kay”, ele diz. “Absurdo. Eu li todo aquele absurdo e praticamente cuspi meu café. E nós estamos trabalhando muito.” Ela fala dos testes de evidências. Deve haver uma ordem igualitária na elaboração de evidências — como é correto, nenhuma vítima deve ser mais importante que outra e ser passada para a frente da fila. Mas há também um código tácito, da mesma forma que nos filmes policiais. As pessoas cuidam dos seus. É um fato. “Obtivemos alguns resultados interessantes que eu queria lhe passar pessoalmente”, continua Paul Monty. “Os cabelos do acampamento — aqueles que você suspeita que são de Chandonne? Bem, o DNA coincide. O mais interessante é que uma comparação de fibras mostra que a roupa de cama de algodão do acampamento coincide com fibras coletadas do colchão no quarto de Diane Bray.” Forma-se um cenário. Chandonne tirou a roupa de cama de Diane Bray depois de assassiná-la e fugiu para o acampamento. Talvez tenha dormido sobre elas. Ou talvez simplesmente as tenha jogado fora. Mas, seja qual for o caso, podemos definitivamente colocar Chandonne no Fort James Motel. Paul não tem nada mais a relatar no momento. “E o fio dental que encontrei na privada?”, pergunto. “No quarto onde Matos foi morto?” “Nenhuma coincidência nele. O DNA não é de Chandonne, nem de Bray, nem de nenhum dos suspeitos costumeiros”, ele diz. “Talvez algum hóspede
anterior do motel? Pode ser que não esteja relacionado.” Volto ao balcão, onde Jack continua a me contar sobre os telefonemas estranhos. Ele diz que houve vários. “Eu atendi um deles, e a pessoa, um cara, perguntou por você, diz que é Benton e desliga”, conta Jack . “Turk atendeu na segunda vez. O cara diz para dizer a você que ele ligou e que vai se atrasar uma hora para o jantar, identificase como Benton e desliga. Então acrescente isso à mistura. Não admira que eu esteja ficando careca.” “Por que você não me contou?” Pego, distraída, fotos Polaroid do corpo de Benny White na maca antes de ser despido. “Achei que você já tinha merda suficiente. Devia ter lhe contado. Eu errei.” A vista desse garoto vestido com sua melhor roupa de domingo e dentro de um saco aberto em cima de uma maca é muito incongruente. Sinto-me bastante entristecida quando noto que a calça dele é um pouco curta e que suas meias não combinam exatamente, uma preta, a outra azul. Sinto-me pior. “Você encontrou alguma coisa inesperada nele?” Já falei bastante sobre meus problemas. Na verdade, eles não parecem muito importantes quando olho para fotos de Benny e penso em sua mãe na sala de observação. “Sim, uma coisa me deixou encafifado”, diz Jack . “A história é que ele voltou para casa da igreja e não entrou em casa. Sai do carro e vai para o estábulo, dizendo que está bem e que está tentando encontrar seu canivete — acha que talvez esteja em sua caixa de apetrechos de pesca e que se esqueceu de tirá-lo quando voltou para casa da pescaria recentemente. Ele não volta para casa. Em outras palavras, ele não almoçou no domingo. Mas esse rapazinho tem o estômago cheio.” “Você pode dizer o que talvez ele tenha comido?”, pergunto. “Sim. Pipoca, por exemplo. E parece que comeu cachorro-quente. Então eu ligo para a casa dele e falo com seu padrasto. Pergunto se Benny pode ter comido alguma coisa na igreja, e ele me diz que não. O padrasto não tem nenhuma idéia sobre de onde veio a comida”, responde Jack . “Isso é muito estranho”, comento. “Então ele volta para casa da igreja e sai para se enforcar, mas primeiro pára em algum lugar para comer pipoca e cachorro-quente?” Levanto-me do balcão. “Alguma coisa está errada nesse quadro.” “Se não fosse pelo conteúdo gástrico, eu diria que é claramente um suicídio.” Jack permanece sentado, olhando para mim. “Eu poderia matar Stanfield por ele ter cortado o nó. Aquele trapalhão.” “Talvez devêssemos dar uma olhada no local onde Benny foi enforcado”, decido. “Ir à cena.” “Eles vivem em uma fazenda no condado de James City”, diz Jack. “Bem ao lado do rio, e aparentemente o bosque onde ele foi enforcado fica na borda do campo, a cerca de um quilômetro e meio da casa.” “Vamos”, digo a ele. “Talvez Lucy possa nos dar uma carona.”
 
 
Do hangar em Nova York até a HeloAir em Richmond é um vôo de duas horas, e Lucy ficou mais do que feliz de poder mostrar o veículo de sua nova empresa. O plano é simples. Ela vai pegar Jack e eu e nos deixar na fazenda, depois nós três vamos verificar o local onde Benny White supostamente se matou. Também quero ver o quarto dele. Em seguida, vamos deixar Jack em Richmond e eu volto com Lucy para Nova York , onde vou ficar até a audiência do grande júri especial. Isso tudo está planejado para amanhã de manhã, e o detetive Stanfield não tem interesse em nos encontrar na cena. “Para quê?”, são as primeiras palavras que lhe saem da boca. “Para que vocês precisam ir lá?” Quase menciono o conteúdo gástrico que não faz sentido. Chego perto de perguntar se havia alguma coisa que Stanfield tenha observado da qual suspeitasse. Mas me contenho. Alguma coisa me pára. “Se você puder apenas me dar as indicações para chegar à casa deles”, digo a ele. Ele descreve onde a família de Benny mora, bem ao lado da rodovia 5, eu não tenho como errar porque há uma pequena loja no cruzamento, e eu preciso virar à esquerda nessa loja. Ele me dá marcos que não serão fáceis de ver do ar. Finalmente extraio dele que a fazenda fica a pouco mais de um quilômetro da barca perto de Jamestown, e é nesse momento que me dou conta pela primeira vez de que a fazenda de Benny White fica muito perto do Fort James Motel and Campground. “Ah, sim”, diz Stanfield quando lhe pergunto sobre isso. “Ele estava bem ali, na mesma área dos outros. Era isso que tinha deixado o garoto tão perturbado, segundo a mãe dele.” “A que distância a fazenda fica do motel?”, pergunto. “Logo do outro lado do riacho que há nela. Não é bem uma fazenda.” “Detetive Stanfield, há alguma possibilidade de que Benny conhecesse os filhos de Bev Kiffin, os dois garotos dela? Entendo que Benny gostava de pescar.” Visualizo a vara de pescar encostada na janela no andar de cima da casa de Mitch Barbosa. “Olhe, eu sei da história de ele supostamente pegar seu canivete na caixa de apetrechos, mas não acho que foi isso que ele fez. Acho que ele só queria dar uma desculpa para se afastar de todos”, responde Stanfield. “Sabemos onde ele conseguiu a corda?” Desconsidero as irritantes suposições de Stanfield. “O padrasto dele diz que há todos os tipos de corda no estábulo”, responde Stanfield. “Bom, eles chamam aquilo de estábulo, mas é onde eles guardam lixo. Perguntei a ele o que havia lá, e ele disse que era só lixo. Sabe, tive um pressentimento de que Benny talvez tenha encontrado Barbosa lá, pescando, e sabemos que Barbosa tratava bem os garotos. Isso com certeza ajudaria a explicar o que aconteceu. E a mãe dele disse que o garoto andava tendo pesadelos e estava muito perturbado pelas mortes. Morto de medo, como ela disse. Agora o que você deve fazer é ir direto para o riacho. Você vai ver o estábulo na margem do campo, e depois o bosque bem à direita. Há uma trilha com vegetação crescida, e o lugar onde ele se enforcou fica uns cinco metros adiante nessa trilha, onde há uma plataforma para caçar veados. É impossível
você não vê-la. Eu não subi nela, na plataforma, para cortar a corda, só cortei a extremidade que estava em volta do pescoço dele. Então ela ainda deve estar exatamente ali. A corda deve estar bem ali onde estava.” Abstenho-me de demonstrar minha completa aversão ao trabalho desleixado de Stanfield. Não sondo mais nada nem sugiro a ele que devia fazer exatamente o que ameaçou: demitir-se. Ligo para a sra. White para informá-la de meus planos. A voz dela é baixa e magoada. Ela está atordoada e aparentemente não consegue entender que queremos pousar um helicóptero em sua fazenda. “Precisamos de uma clareira, um campo plano, uma área onde não haja linhas telefônicas nem muitas árvores”, explico. “Nós não temos uma pista.” Ela diz isso várias vezes. Por fim, passa o telefone ao marido. O nome dele é Marcus. Ele me conta que eles têm um campo de soja entre a casa e a rodovia 5, e que há também um silo pintado de verde-escuro. Não há nenhum outro silo nessa área, nenhum pintado de verde-escuro, acrescenta. Ele concorda que pousemos nesse campo. O resto do meu dia é longo. Trabalho no escritório e reúno minha equipe antes de eles irem para casa. Explico o que está acontecendo em minha vida e asseguro a cada um deles que seu emprego não corre risco. Também deixo claro que não fiz nada de errado e estou confiante em que meu nome será limpado. Não conto a eles que me demiti. Eles já sofreram abalos suficientes e não precisam de um terremoto. Não embalo itens do escritório nem levo nada além da minha maleta, como se tudo estivesse bem e eu fosse ver todos na manhã seguinte, como sempre. Agora são nove da noite. Estou na cozinha de Anna, mordiscando uma fatia grossa de queijo cheddar e bebendo uma taça de vinho tinto, relaxada, indisposta a anuviar meu pensamento e simplesmente achando quase impossível engolir comida sólida. Perdi peso. Não sei quanto. Não tenho apetite e desenvolvi uma rotina deplorável de sair da casa periodicamente para fumar. A cada meia hora mais ou menos, tento falar com Marino, sem sucesso. E fico pensando sobre o arquivo Aud. Ele mal saiu de minha mente desde que o olhei no dia de Natal. O telefone toca perto da meia-noite, e suponho que seja Marino finalmente retornando meu recado enviado pelo pager. “Scarpetta”, respondo. “É Jaime”, a voz característica e confiante de Berger soa na linha. Paro, surpresa. Mas então me lembro: Berger parece não ter nenhuma hesitação em falar com pessoas que ela pretende mandar para a prisão, não importa o horário. “Estive falando com Marino pelo telefone”, ela começa. “Então entendo que você sabe da minha situação. Ou suponho que deva dizer nossa situação. E na verdade você deve se sentir bem com ela, Kay. Não quero lhe dar lições, mas me permita lhe dizer uma coisa. Apenas fale com os jurados do mesmo modo como falou comigo. E tente não se preocupar.” “Acho que estou além da preocupação”, respondo. “Estou ligando principalmente para lhe passar algumas informações. Temos o DNA dos selos. Os selos das cartas do arquivo Aud”, ela me informa, como se estivesse de novo lendo minha mente. Então agora os laboratórios de Richmond estão tratando diretamente com ela, penso. “Parece que Diane Bray
estava em todos os lugares, Kay. No mínimo ela lambeu aqueles selos, e só posso supor que ela escreveu as cartas e foi suficientemente esperta para não deixar suas impressões nelas. As impressões que foram deixadas em várias das cartas são de Benton, provavelmente de quando ele as abriu antes de perceber o que eram. Suponho que ele sabia que as impressões eram dele. Não sei por que ele não fez uma anotação sobre isso. Estou só me perguntando se Benton alguma vez mencionou Bray a você. Alguma razão para pensar que eles se conheciam?” “Não me lembro de ele tê-la mencionado”, respondo. Meus pensamentos estão travados. Não posso acreditar no que Berger acaba de dizer. “Bem, certamente ele poderia tê-la conhecido”, continua Berger. “Ela estava em Washington. Ele estava a alguns quilômetros de lá, em Quantico. Não sei. Mas o fato de ela mandar essas coisas para ele me deixa desconcertada, imagino se ela queria que as cartas fossem postadas em Nova York para que ele acreditasse que a correspondência excêntrica era de Carrie Grethen.” “E sabemos que ele seguiu esse raciocínio”, lembro a ela. “Então também temos de imaginar se Bray possivelmente — apenas possivelmente — teve algo a ver com o assassinato dele”, Berger acrescenta o toque final. Surge em minha mente a idéia de que ela está outra vez me testando. O que ela espera? Que eu deixe escapar algo incriminador. Bom. Bray teve o que lhe estava reservado ou Ela teve o que merecia. Ao mesmo tempo, não sei. Talvez seja a voz de minha paranóia e não a realidade. Talvez Berger esteja simplesmente dizendo o que tem em mente, nada mais. “Imagino que ela nunca mencionou Benton a você”, diz Berger. “Não que eu me recorde”, respondo. “Não me lembro de Bray jamais ter dito uma palavra sobre Benton.” “O que não consigo entender”, continua Berger, “é a coisa de Chandonne. Se considerarmos que Jean-Baptiste Chandonne conhecia Bray — digamos, que eles estavam juntos nos negócios —, então por que ele a mataria? E do modo como a matou? Isso me parece incoerente. Não se encaixa direito. O que você acha?” “Talvez você devesse me informar sobre meus direitos antes de me perguntar o que acho do assassino de Bray”, digo. “Ou talvez você devesse guardar suas perguntas para a audiência.” “Você não foi detida”, ela responde, e não consigo acreditar no que ouço. Ela parece sorrir. Eu a diverti. “Você não precisa ser informada de seus direitos.” Ela volta a ficar séria. “Não estou jogando com você, Kay. Estou pedindo sua ajuda. Você devia estar muito contente de ser eu quem vai estar naquela sala interrogando testemunhas, e não Righter.” “Apenas lamento que qualquer pessoa vá estar naquela sala. Ninguém deveria estar. Não na minha opinião”, digo a ela. “Bem, há duas peças-chave que temos de imaginar.” Ela está impenetrável e tem mais a me contar. “O fluido seminal no caso de Susan Pless não é de Chandonne. E agora temos essa novíssima informação sobre Diane Bray. É só instinto. Mas acho que Chandonne não conhecia Diane Bray. Não
pessoalmente. De jeito nenhum. Acho que todas as vítimas dele são pessoas que ele só conhecia à distância. Ele observava e seguia e fantasiava. E essa, a propósito, era também a opinião de Benton, quando ele traçou o perfil do caso de Susan.” “Na opinião dele a pessoa que a assassinou também deixou o fluido seminal?”, pergunto. “Ele nunca achou que houvesse mais de uma pessoa envolvida”, Berger concede. “Até seus casos em Richmond, ainda estávamos procurando aquele cara bem-vestido e de boa aparência que jantou com ela no Lumi. Certamente não estávamos procurando um autoproclamado lobisomem com uma doença genética, naquele momento não estávamos.”
 
 
Imagine se eu conseguiria dormir bem depois de tudo isso. Não consigo. Acordo e durmo outra vez o tempo inteiro, de vez em quando pegando o rádiorelógio para verificar o horário. As horas avançam imperceptível e pesadamente, como geleiras. Sonho que estou em casa e tenho um filhote, uma adorável fêmea de labrador retriever com orelhas longas e pesadas e pés enormes, e o rosto mais doce que se pode imaginar. Ela me lembra os animais de pelúcia Gund na FAO Schwarz, a adorável loja em Nova York onde eu costumava comprar surpresas para Lucy quando ela era criança. No meu sonho, essa ficção lacerada que teço em meu estado de semiconsciência, estou brincando com a cachorrinha, fazendo cócegas nela, e ela está me lambendo, balançando o rabo furiosamente. Então de algum modo estou entrando outra vez na minha casa, e está escuro e frio e não sinto ninguém em casa, nenhuma vida, silêncio absoluto. Chamo a cachorrinha — não consigo me lembrar do nome dela — e a procuro freneticamente em todos os lugares. Acordo no quarto de hóspedes de Anna, chorando, soluçando, simplesmente gritando.
33
A manhã chega e a névoa paira como fumaça enquanto voamos baixo sobre as árvores. Lucy e eu estamos sozinhas em sua nova máquina porque Jack acordou com dores e tremores. Ele ficou em casa, e suspeito que sua doença seja auto-induzida. Acho que está de ressaca, e temo que a tensão insuportável que levei para o departamento tenha estimulado nele maus hábitos. Ele estava perfeitamente satisfeito com sua vida. Agora tudo mudou. O Bell 407 é preto com faixas brilhantes. Tem cheiro de carro novo e se movimenta com a força suave de seda grossa enquanto vamos para leste, a dois mil e quinhentos metros acima do solo. Estou preocupada com o mapa regional que está em meu colo, tentando casar traçados de redes elétricas, estradas e trilhos de ferrovias com aqueles sobre os quais passamos. Não é que não saibamos exatamente onde estamos, porque o helicóptero de Lucy tem equipamentos de navegação suficientes para pilotar o Concorde. Mas sempre que me sinto como estou me sentindo agora tendo a ser obsessiva com uma tarefa, qualquer tarefa. “Duas antenas a mais ou menos uma hora.” Mostro a ela no mapa. “Cento e cinqüenta metros acima do nível do mar. Não devem interferir, mas não consigo vê-las ainda.” “Estou olhando”, diz ela. As antenas devem estar bem abaixo do horizonte, o que significa que não são um perigo mesmo que cheguemos perto. Mas tenho uma fobia especial por obstruções, e há mais delas surgindo o tempo todo neste mundo de comunicação constante. O controle de tráfego aéreo de Richmond se anuncia pelo ar, dizendonos que o serviço de radar terminou e que podemos adotar um código de condições de vôo visual. Mudo a freqüência do transponder para 200 enquanto mal distingo as antenas alguns quilômetros adiante. Elas não têm luzes estroboscópicas de alta intensidade e não são nada mais que linhas retas fantasmáticas em meio à grossa névoa cinza. Aponto para elas. “Já as vi”, responde Lucy. “Odeio essas coisas.” Ela pressiona o cíclico para a direita, fazendo uma curva bem para o norte das antenas, não querendo nenhum contato com elas, pois os pesados cabos de aço são como francoatiradores. Ele pegam a gente primeiro. “O governador vai ficar chateado se descobrir que você está fazendo isso?”, a pergunta de Lucy soa dentro de meu fone de ouvido. “Ele me disse para tirar férias do trabalho”, respondo. “Estou fora do departamento.” “Então você vai para Nova York comigo”, diz ela. “Você pode ficar em meu apartamento. Fico realmente contente por você sair do emprego, desistir de ser chefe, começar a trabalhar por conta própria. Quem sabe você acaba em Nova York trabalhando com Teun e comigo?” Não quero magoar seus sentimentos. Não conto a ela que não estou
contente. Quero ficar aqui. Quero ficar na minha casa e trabalhar no meu emprego como sempre, e isso nunca mais será possível. Sinto-me como uma fugitiva, digo a minha sobrinha, cuja atenção está fora da cabine, seus olhos jamais se desviando do que ela está fazendo. Falar com alguém que está pilotando um helicóptero é como estar ao telefone. A pessoa realmente não nos vê. Não há nenhum gesto nem toque. O sol está ficando mais forte e a névoa mais fina, quanto mais voamos para leste. Abaixo de nós, riachos cintilam como entranhas da terra, e o rio James brilha, branco como neve. Descemos mais e mais, passando sobre Susan Constant, Godspeed e Discovery, réplicas em tamanho real dos navios que trouxeram cento e quatro homens e garotos para a Virgínia em 1607. Ao longe, vejo o obelisco projetando-se entre as árvores da ilha de Jamestown, onde arqueólogos estão fazendo, a partir dos mortos, o levantamento da primeira colônia inglesa na América. Uma barca leva lentamente carros pela água em direção a Surry. “Estou vendo um silo verde a nove horas”, observa Lucy. “Você acha que é ele?” Sigo os olhos dela na direção de uma pequena fazenda que dá para um riacho. Do outro lado da estreita faixa de água barrenta, telhados e velhos trailers destacando-se de grossos pinheiros tornam-se o Fort James Motel and Campground. Lucy circula a fazenda a cento e cinqüenta metros de altura, certificando-se de que não há nenhum risco, como linhas de transmissão. Ela calcula o tamanho da área e parece satisfeita quando abaixa o coletivo e diminui a velocidade para sessenta nós. Começamos nossa aproximação de uma clareira entre os bosques e da casinha de tijolo onde Benny White passou seus curtos doze anos. A grama morta redemoinha enquanto Lucy pousa o helicóptero com suavidade, sentindo sutilmente o solo, assegurando-se de que ele é plano. A sra. White sai da casa. Olha para nós, uma mão protegendo os olhos do sol, e então um homem alto de terno se junta a ela. Eles ficam na varanda enquanto aguardamos o desligamento de dois minutos. Quando descemos e caminhamos para a casa, percebo que os pais de Benny se vestiram para nos receber. Parece que eles acabaram de sair da igreja. “Nunca pensei que uma coisa como essa aterrissaria em minha fazenda.” O sr. White olha para o helicóptero com uma expressão pesada no rosto. “Entre”, diz a sra. White. “Posso servir café ou alguma outra coisa para vocês?” Conversamos sobre nosso vôo, falamos de trivialidades, e a ansiedade é intensa. Os White sabem que estou aqui porque devo estar imaginando cenários agourentos sobre o que realmente aconteceu com seu filho. Parecem supor que Lucy faz parte da investigação e quando falam se dirigem a nós duas. A casa é muito limpa e mobiliada de forma agradável, com cadeiras grandes e confortáveis, tapetes trançados e luminárias de latão. O piso é de tábuas de pinho largas, e as paredes de madeira são pintadas de branco e cheias de aquarelas com cenas da Guerra de Secessão. Ao lado da lareira na sala de estar há prateleiras que estão cheias de balas de canhão, balas Minié, um kit de cozinha de rancho, garrafas antigas e todo tipo de artefatos que provavelmente são da Guerra de Secessão. Quando o sr. White nota meu interesse, explica que é um
colecionador. Ele é um caçador de tesouros e esquadrinha a área com um detector de metais quando não está ocupado no escritório. Ele é contador. Sua fazenda não é produtiva, mas está na família há mais de cem anos, ele conta a Lucy e a mim. “Suponho que eu seja apenas um fanático por história”, ele prossegue. “Encontrei até alguns botões da Revolução Americana. A gente nunca sabe o que vai encontrar por aqui.” Estamos na cozinha e a sra. White está pegando um copo d’água para Lucy. “E Benny?”, pergunto. “Ele tinha interesse em caçar tesouros?” “Ah, claro que tinha”, responde sua mãe. “É claro que ele estava sempre esperando encontrar um verdadeiro tesouro. Como ouro.” Ela começou a aceitar a morte do filho e fala dele no passado. “Sabe, a velha história de os confederados esconderem todo aquele ouro que nunca foi encontrado. Bem, Benny achava que ia encontrá-lo”, diz o sr. White, segurando um copo d’água como se não tivesse certeza do que fazer com ele. Ele o põe no balcão sem beber uma gota. “Ele adorava sair, aquele gostava mesmo. Sempre pensei que era muito ruim não trabalharmos mais na fazenda porque acho que ele realmente teria gostado disso.” “Especialmente animais”, acrescenta a sra. White. “Aquele garoto adorava os animais mais do que qualquer pessoa que já conheci. Tinha um coração muito bom.” Ela começa a chorar. “Se um passarinho voava pela janela, ele saía correndo da casa e tentava encontrá-lo, e depois vinha histérico se a pobre coisinha tivesse quebrado o pescoço, que é o que normalmente acontece.” O padrasto de Benny olha para fora da janela, com uma expressão de dor no rosto. A mãe fica em silêncio. Ela está lutando para se manter inteira. “Benny comeu alguma coisa antes de morrer”, digo a eles. “Acho que o doutor Fielding deve ter perguntado a vocês sobre isso para saber se ele possivelmente comeu alguma coisa na igreja.” O sr. White balança a cabeça, ainda olhando para fora. “Não, senhora. Eles não servem comida na igreja, a não ser nas ceias de quarta-feira à noite. Se Benny comeu alguma coisa, com certeza não sei onde foi.” “Ele não comeu aqui”, acrescenta a sra. White com ênfase. “Eu preparei uma peça de carne assada para o almoço de domingo, e, bem, ele não almoçou. Carne assada era um de seus pratos favoritos.” “Ele tinha pipoca e cachorro-quente no estômago”, digo. “Parece que ele os comeu não muito tempo antes de morrer.” Procuro ter certeza de que entendem a esquisitice disso e que o fato exige uma explicação. Os dois têm expressões de desconcerto. Seus olhos se acendem de fascinação e confusão. Dizem que não têm nenhuma idéia concreta de onde Benny teria conseguido essas porcarias, como eles chamam. Lucy pergunta sobre vizinhos, se talvez Benny poderia ter parado na casa de alguém antes de ir para o bosque. De novo, não conseguem imaginá-lo fazendo uma coisa dessas, não na hora do almoço, e os vizinhos são principalmente idosos e nunca dariam a Benny uma refeição ou mesmo salgadinhos sem ligar para seus pais primeiro
para ter certeza de que isso era correto. “Eles não iam estragar o almoço dele sem nos perguntar.” A sra. White tem certeza disso. “Vocês se importariam se eu visse o quarto dele?”, digo então. “Às vezes eu sinto melhor como era um paciente se posso ver onde ele passava o tempo sozinho.” Os White parecem um pouco incertos. “Bem, imagino que não tem problema”, decide o padrasto. Eles nos levam por um corredor até os fundos da casa, e no caminho passamos por um quarto de dormir à esquerda que parece um quarto de menina, com cortinas rosa-claro e uma colcha rosa. Há cartazes de cavalos nas paredes, e a sra. White explica que esse é o quarto de Lori. Ela é a irmã mais nova de Benny e neste momento está na casa da avó em Williamsburg. Ela ainda não voltou para a escola e não vai voltar até o enterro, que é amanhã. Embora não digam, acho que pensaram que não era uma boa idéia a criança estar aqui quando a legista aparecesse vinda do céu e começasse a fazer perguntas sobre a morte violenta de seu irmão. O quarto de Benny é uma coleção de animais de pelúcia: dragões, ursos, pássaros, esquilos, felpudos e doces, muitos deles cômicos. Há dezenas. Seus pais e Lucy ficam junto à porta, sem entrar, enquanto entro e paro no meio do quarto, olhando em volta, deixando que o ambiente fale comigo. Pendurados na parede, há quadros brilhantes feitos com Magic Marker, mais uma vez de animais. Eles mostram imaginação e uma grande dose de talento. Benny era um artista. O sr. White me conta da porta que Benny adorava levar seu bloco de desenhos para fora e desenhar árvores, pássaros, tudo que via. Ele também sempre desenhava quadros para dar de presente às pessoas. O sr. White continua a falar enquanto sua mulher chora em silêncio, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Estou olhando para um desenho na parede à direita da cômoda. O quadro colorido e imaginativo retrata um homem em um pequeno bote. Ele usa um chapéu de aba larga e está pescando, a vara inclinada como se ele estivesse tendo sorte. Benny desenhou um sol brilhante e algumas nuvens, e ao fundo, na praia, há um prédio quadrado com muitas janelas e portas. “Esse é o riacho atrás de sua fazenda?”, pergunto. “Isso mesmo”, diz o sr. White, pondo um braço em volta da mulher. “Está tudo bem, querida”, fica dizendo a ela, engolindo forte, como se também ele pudesse começar a chorar. “Benny gostava de pescar?”, a voz de Lucy vem do corredor. “Estou só imaginando, porque algumas pessoas que gostam muito de animais não gostam de pescar. Ou então soltam os peixes.” “Isso é interessante”, digo. “Tudo bem se eu olhar dentro do armário?”, pergunto aos White. “Vá em frente”, diz o sr. White sem hesitação. “Não, Benny não gostava de pegar nada. A verdade é que ele só gostava de sair no bote ou encontrar um lugar para ficar na praia. Na maior parte do tempo ficava lá sentado, desenhando.” “Então este deve ser o senhor.” Olho de volta para o quadro do homem no bote.
“Não, acho que deve ser o pai dele”, responde melancolicamente o sr. White. “O pai dele costumava sair no bote com ele. A verdade é que eu não saía no bote.” Ele faz uma pausa. “Bem, não sei nadar, então não me sinto muito à vontade na água.” “Benny era um pouco tímido com seus desenhos”, diz a sra. White, com voz trêmula. “Acho que ele gostava de levar a vara de pescar porque, bem, a senhora sabe, ele achava que ela o fazia parecer igual aos outros garotos. Acho que ele nem se preocupava em levar isca. Não consigo imaginá-lo matando nem uma minhoca, muito menos um peixe.” “Pão”, diz o sr. White. “Ele pegava pão, como se fosse enrolá-lo em bolas. Eu costumava dizer-lhe que ele não ia pegar nada muito grande se só usasse pão como isca.” Olho ternos, camisas e camisetas em cabides, e sapatos enfileirados no piso. As roupas são conservadoras e parecem ter sido escolhidas pelos pais. Apoiada no fundo do armário há uma espingarda de chumbo, e o sr. White diz que Benny atirava em alvos e latas. Não, ele nunca usava a espingarda em pássaros ou nada parecido. É claro que não. Ele não conseguia nem pegar um peixe, repetem os pais. Sobre a escrivaninha há uma pilha de livros escolares e uma caixa de pincéis Magic Markers. Em cima desta há um caderno de desenhos, e eu pergunto aos pais de Benny se eles o olharam. Dizem que nunca fizeram isso. Tudo bem se eu olhar? Eles fazem que sim com a cabeça. Fico parada diante da escrivaninha. Não me sento nem ajo de nenhuma maneira como se me sentisse em casa no quarto do filho morto deles. Sou respeitosa com o caderno de desenhos e viro as páginas com cuidado, olhando desenhos meticulosos a lápis. O primeiro é um cavalo em um pasto e é surpreendentemente bom. É seguido por vários esboços de falcões pousados em uma árvore desfolhada, com água no fundo. Benny desenhou uma velha cerca quebrada. Desenhou várias cenas de neve. O caderno está cheio até a metade, e todos os esboços são coerentes entre si, até que chego ao último. Então o humor e o tema decididamente mudam. Há uma cena noturna de um cemitério, uma lua cheia atrás de árvores nuas iluminando fracamente lápides inclinadas. Depois olho para uma mão, uma mão musculosa com o punho fechado, e então encontro a cachorra. Ela é gorda e tosca, suas tetas estão à mostra e seu pêlo está eriçado, e ela está agachada, como se se sentisse ameaçada. Olho para os White. “Benny alguma vez falou sobre a cachorra dos Kiffin?”, pergunto a eles. “Uma cachorra chamada Mister Peanut?” O padrasto assume uma expressão peculiar, e seus olhos brilham de lágrimas. Ele suspira. “Lori é alérgica”, diz ele, como se isso respondesse à minha pergunta. “Ele estava sempre se queixando do modo como eles tratavam aquela cachorra”, ajuda a sra. White. “Benny queria saber se podíamos ficar com Mister Peanut. Ele queria a cachorra e dizia que achava que os Kiffin abririam mão dela, mas nós não podíamos.” “Por causa de Lori”, infiro. “Ela também era uma cachorra velha”, acrescenta a sra. White.
“Era?”, pergunto. “Bem, é realmente triste”, diz ela. “Logo depois do Natal, Mister Peanut não parecia estar se sentindo bem. Benny disse que a pobre cachorra estava tremendo e se lambendo muito, como se estivesse sentindo dor, a senhora sabe. Então há mais ou menos uma semana ela deve ter ido embora para morrer, a senhora sabe como os animais fazem isso. Benny saía para procurar Mister Peanut todos os dias. Aquilo me cortava o coração. Aquele garoto realmente adorava aquela cachorra”, acrescenta a sra. White. “Acho que essa era a principal razão para ele ir lá — brincar com Mister Peanut —, e ele procurou por ela em todos os lugares.” “Foi quando o comportamento dele começou a mudar?”, sugiro. “Depois que Mister Peanut desapareceu?” “Foi mais ou menos nessa época”, responde o sr. White, e nenhum deles parece suportar entrar no quarto de Benny. Ficam segurando o vão da porta como se estivessem sustentando as paredes. “A senhora não acha que ele fez uma coisa daquelas por causa de uma cachorra, acha?” Ele está quase deplorável quando pergunta.
 
 
Uns quinze minutos depois, seguimos juntas na direção do bosque, deixando os pais na casa. Eles não foram à plataforma de caça onde Benny estava enforcado. O sr. White me contou que sabia da plataforma e a viu muitas vezes quando estava fora com seu detector de metais, mas nem ele nem a mulher conseguem ir até lá neste momento. Pergunto-lhes se acham que outras pessoas conheciam o lugar onde Benny morreu — preocupa-me que curiosos possam ter perambulado por lá, mas os pais acham que ninguém sabe exatamente onde o corpo de Benny foi encontrado. A menos que o detetive tenha contado às pessoas por lá, acrescenta o sr. White. O campo onde aterrissamos fica entre a casa e o riacho, um pedaço de terra inculta que parece não ter visto um arado em muitos anos. A leste, há quilômetros de bosques, um silo quase na praia, acumulando ferrugem e escuro como um farol grosso e cansado, que parece olhar por cima da água para o Fort James Motel and Campground. Quando imagino Benny visitando os Kiffin, pergunto-me como ele chegava lá. Não há ponte sobre o riacho, que tem cerca de trinta metros de largura e não tem nenhum escoadouro. Lucy e eu seguimos a trilha através do bosque, olhando em todos os lugares onde pisamos. Há linha de pescar emaranhada presa nas árvores perto da água, e noto alguns cartuchos de espingarda velhos e latas de refrigerante. Não caminhamos mais do que cinco minutos quando deparamos com o esconderijo de caça. Parece uma casa de árvore decapitada que alguém montou às pressas, com degraus de madeira pregados no tronco. Uma corda de náilon amarelo esgarçada pende de uma viga e é agitada por uma brisa leve que sopra da água e sussurra através das árvores. Paramos e ficamos em silêncio enquanto olhamos em volta. Não vejo nenhum lixo — nem sacos nem embalagens de pipoca, e nenhum sinal de que Benny poderia ter comido aqui. Chego mais perto da corda. Stanfield a cortou a cerca de um metro do solo, e, como Lucy é mais atlética do que eu, sugiro que
ela suba na plataforma e remova a corda com cuidado. Pelo menos podemos dar uma olhada no nó na outra ponta. Primeiro tiro fotos. Testamos os degraus pregados na árvore, e eles parecem suficientemente firmes. Lucy está usando um casaco grosso almofadado que não parece atrapalhar quando ela sobe, e ela toma cuidado quando chega à plataforma, empurrando e batendo em tábuas para ter certeza de que podem suportar seu peso. “Parece bem firme”, ela me informa. Pego um rolo de fita de evidências e ela abre um canivete Buck Tool. Uma coisa que sei dos agentes do ATF É que eles carregam seus kits de ferramentas portáteis, que incluem lâminas, chaves de fenda, alicates, tesouras. Pode ser que precisem deles em cenas de incêndio, se não for por outro motivo, para tirar pregos das solas das botas reforçadas com aço. Os agentes do ATF se sujam. Enfrentam todos os tipos de riscos. Lucy corta a corda acima do nó e cola as pontas juntas. “Apenas um nó direito duplo”, diz ela, deixando cair a corda e a fita para mim. “Apenas um bom nó de escoteiro, e a ponta está derretida. Quem cortou a ponta derreteu-a para que ela não se desfizesse.” Isso me deixa um pouco surpresa. Eu não esperava que alguém se preocupasse com um detalhe desses se estivesse cortando uma corda para se enforcar com ela. “Atípico”, comento com Lucy quando ela desce. “Sabe de uma coisa?, vou ser ousada e dar uma olhada.” “Mas tome cuidado, tia Kay. Há alguns pregos enferrujados para fora. E cuidado com lascas”, diz ela. Imagino se Benny poderia ter adotado essa velha plataforma como um forte na árvore. Aperto tábuas cinzentas desgastadas, uma depois da outra, e subo, grata por estar usando calça cáqui e botas de meio cano. Dentro do esconderijo de caça há um banco onde o caçador pode se sentar enquanto espera que um cervo desavisado apareça. Testo o banco empurrando-o, e ele parece bom, então me sento. Benny era só alguns centímetros mais alto do que eu, portanto agora tenho a visão que ele tinha, supondo que ele tenha vindo aqui. Tenho uma forte sensação de que ele fez isso. Alguém esteve aqui. Senão, o piso da plataforma estaria coberto de folhas mortas, e não está. “Você notou como está limpo aqui em cima?”, digo a Lucy. “Provavelmente ainda está sendo usado por caçadores”, ela responde. “Um caçador vai se preocupar em varrer as folhas às cinco da manhã?” Deste ponto de vista, tenho uma visão abrangente da água e consigo ver os fundos do motel e sua piscina escura e lodosa. A fumaça sai da chaminé da casa de Kiffin. Visualizo Benny sentado aqui espionando a vida enquanto desenhava e talvez fugisse da tristeza que devia sentir desde a morte do pai. Posso imaginar muito bem, pois me lembro de minha própria vida de criança. O esconderijo seria um lugar perfeito para um garoto solitário e criativo, e a apenas alguns metros da beira da água há um grande carvalho com o tronco coberto de kudzu, como se estivesse usando polainas. Consigo imaginar um falcão de rabo vermelho sentado num galho lá no alto. “Acho que talvez ele tenha desenhado aquela árvore daqui”, digo a Lucy. “Ele tinha uma visão muito boa do acampamento.” “Imagino se ele viu alguma coisa”, Lucy joga para mim.
“Não brinque”, respondo sombriamente. “E alguém podia estar olhando de volta”, acrescento. “Nesta época do ano, sem folhas nas árvores, talvez ele fosse visível aqui. Especialmente se alguém tivesse um binóculo e tivesse algum motivo para estar olhando para cá.” No mesmo momento em que digo isso, ocorre que alguém pode estar olhando para nós agora. Sinto um calafrio enquanto desço. “Você está com sua pistola na mochila, não está?”, digo a Lucy quando ponho os pés no chão. “Eu gostaria de seguir essa trilha e ver aonde ela leva.” Pego a corda, enrolo-a e ponho-a dentro de um saco plástico, que depois enfio em um bolso do casaco. A fita de evidências está dentro de minha sacola. Lucy e eu seguimos pela trilha. Encontramos mais cartuchos de espingarda e até uma flecha da temporada de arco-e-flecha. Entramos mais fundo no bosque, a trilha dando voltas em torno do riacho, nenhum som, a não ser o de árvores gemendo quando há uma rajada de vento, ou o estalar de galhos sob nossos pés. Quero ver se a trilha nos leva até o outro lado do riacho, e ela faz isso mesmo. É uma caminhada de apenas quinze minutos até o Fort James Motel, e terminamos no bosque entre o motel e a rodovia 5. Benny certamente pode ter vindo até aqui depois da igreja. Há meia dúzia de carros no estacionamento do motel, alguns deles alugados, e uma grande motocicleta Honda estacionada perto da máquina de Coca. Lucy eu andamos em direção à casa de Kiffin. Aponto para o acampamento onde encontramos a roupa de cama e o carrinho de bebê, e sinto uma mistura de raiva e tristeza ao pensar em Mister Peanut. Não confio na história de a cachorra supostamente ter saído para morrer. Preocupa-me que Bev Kiffin tenha feito alguma coisa cruel, talvez até envenenado a cachorra, e pretendo perguntar a ela o que aconteceu, além de várias outras coisas. Não me interessa como ela vai reagir. A partir de hoje, estou encalhada, sem cargo, suspensa de minha profissão. Não posso saber com certeza se jamais voltarei a exercer a medicina legal. Posso ser demitida e ficar marcada para sempre. Diabo, posso terminar na prisão. Sinto que nos olham enquanto subimos os degraus da varanda da frente da casa de Kiffin. “Este lugar dá arrepios”, Lucy sussurra. Um rosto aparece atrás da cortina e sai de nossa vista quando o filho mais velho de Bev Kiffin me pega olhando para ele. Toco a campainha e o garoto abre a porta, o mesmo que vi quando estive aqui. Ele é alto e pesado e tem um rosto cruel, marcado pela acne. Não consigo dizer sua idade, mas imagino que tenha doze, talvez catorze anos. “Você é a moça que esteve aqui outro dia”, ele me diz com um olhar duro. “Isso mesmo”, respondo. “Você pode dizer a sua mãe que a doutora Scarpetta está aqui e precisa falar com ela?” Ele sorri como se soubesse um segredo maldoso que acha engraçado. Reprime uma risada. “Ela não está aqui agora. Está ocupada.” Os olhos dele se endurecem e olham na direção do motel. “Como é seu nome?”, Lucy pergunta a ele. “Sonny.” “Sonny, o que aconteceu com Mister Peanut?”, pergunto casualmente.
“Aquela cachorra idiota”, diz ele. “Imaginamos que alguém a tenha roubado.” Acho impossível acreditar que alguém teria roubado aquela cachorra velha e esgotada, e ela não era amistosa com estranhos. No máximo, eu esperaria que ela tivesse sido atropelada por um carro. “Ah, é? Isso é muito ruim”, Lucy responde a Sonny. “Por que você acha que alguém a roubou?” Sonny é apanhado de surpresa pela pergunta. Seu olhar é inexpressivo e ele começa a contar várias mentiras, interrompendo-se o tempo todo. “É..., apareceu um carro aqui de noite. Eu o ouvi, sabe, e uma porta se fechou e ela estava latindo, então foi isso. Ela foi embora. Zack chora o tempo todo por causa disso.” “Quando ela desapareceu?”, quero saber. “Ah, não sei.” Ele dá de ombros. “Na semana passada.” “Bem, Benny também ficou muito chateado com isso”, comento, observando a reação dele. De novo aquele olhar frio. “Os garotos na escola chamavam ele de maricas. Ele era mesmo maricas. Foi por isso que ele se matou. Todo mundo diz isso”, responde Sonny, com uma dureza assombrosa. “Pensei que vocês dois eram amigos.” Lucy está ficando agressiva com ele. “Ele me irritava”, responde Sonny. “Sempre vinha aqui brincar com aquela maldita cachorra. Ele não era meu amigo. Era amigo de Zack e de Mister Peanut. Eu não ando com nenhum maricas.” Um motor de motocicleta ruge estrondosamente. O rosto de Zack aparece na janela à direita da porta da frente, e ele está chorando. “Benny veio aqui no último domingo?”, pergunto logo a Sonny. “Depois da igreja? Lá pelo meio-dia e meia, uma hora. Ele comeu cachorro-quente com você?” Sonny é de novo apanhado de surpresa. Ele não esperava esse detalhe sobre os cachorros-quentes e agora está numa enrascada. Sua curiosidade é maior do que sua enganação, e ele diz: “Como você sabe que nós comemos cachorro-quente?”. Ele franze o cenho enquanto a motocicleta que vimos há alguns minutos ronca pela trilha suja que leva do motel à casa de Kiffin. Quem quer que esteja nela vem bem em nossa direção, vestido com roupa de couro vermelho e preta, o rosto obscurecido por um capacete escuro com um visor tingido. Mas há algo familiar na pessoa. A percepção me deixa atordoada. Jay Talley pára e desce da motocicleta, jogando rapidamente uma perna por cima da grande sela. “Sonny, entre na casa”, ordena Jay. “Agora.” Ele diz isso com frieza, como se conhecesse muito bem o garoto. Sonny volta para dentro da casa e a porta se fecha. Zack sumiu da janela. Jay tira o capacete. “O que você está fazendo aqui?”, Lucy pergunta a ele, e ao longe vejo Bev Kiffin caminhando em nossa direção, segurando uma espingarda, vindo do motel, onde posso supor que ela estava com Jay. Sinais de alerta pipocam em
todos os lugares dentro de minha cabeça, e nem Lucy nem eu fazemos a ligação com suficiente rapidez. Jay está abrindo o zíper de sua grossa jaqueta de couro e quase instantaneamente ele tem uma pistola na mão, uma pistola preta descansando a seu lado. “Porra”, diz Lucy. “Pelo amor de Deus, Jay.” “Eu realmente preferia que você não tivesse vindo aqui”, ele me diz num tom frio e calmo. “Eu realmente preferia que você não tivesse.” Ele aponta a pistola na direção do motel. “Venha. Vamos ter uma conversinha.” Correr. Mas não há nenhum lugar para correr. Se eu correr, ele pode atirar em Lucy. Pode atirar em mim pelas costas. Ele levanta a pistola e aponta para o peito de Lucy enquanto solta a mochila dela. Com certeza ele sabe o que há dentro dela. Então pega minha sacola e me revista, certificando-se de que explora meu corpo intimamente, para me degradar, para me pôr no meu lugar, para se deleitar com a fúria que dança no rosto de Lucy enquanto ela é obrigada a assistir. “Não”, digo calmamente a ele. “Jay, pode parar agora.” Ele sorri, e uma fúria sombria cintila em um rosto que poderia ser grego. Poderia ser italiano. Poderia ser francês. Bev Kiffin nos alcança e aperta os olhos quando olha para mim. Ela usa o mesmo casaco de lenhador vermelho que estava usando na semana passada, e seu cabelo está desgrenhado como se ela acabasse de sair da cama. “Ora, ora”, diz ela. “Algumas pessoas nunca entendem a mensagem de que não são bem-vindas, não é?” Ela desvia os olhos de mim e olha fixo para Jay. Sem que me digam, sei que eles dormiram juntos, e cada palavra que Jay já me disse vira fábula. Agora entendo por que a agente Jilison McIntyre ficou perplexa quando eu disse que o marido de Bev Kiffin era motorista da Overland. McIntyre trabalhava disfarçada. Era ela que fazia a contabilidade da empresa. Saberia se houvesse um empregado chamado Kiffin. A única ligação com aquela transportadora infestada de criminosos era a própria Bev Kiffin, e o contrabando de armas e remédios que acontece lá está ligado ao cartel Chandonne. Respostas. Eu as tenho, e agora é tarde demais. Lucy vem para perto de mim, seu rosto duro como concreto. Ela não demonstra nenhuma reação enquanto caminhamos sob a ameaça de uma pistola, passando por trailers enferrujados que suspeito que estão desocupados por uma razão. “Laboratórios de droga”, digo a Jay. “Vocês estão fazendo drogas sintéticas aqui também? Ou talvez apenas estocando rifles de assalto e outras coisas que terminam na rua matando pessoas?” “Kay, cale a boca”, ele diz gentilmente. “Bev, você cuida dela.” Ele indica Lucy. “Encontre um bom quarto para ela e certifique-se de que ela está confortável.” Bev Kiffin ri um pouco. Ela bate na parte de trás da perna de Lucy com a espingarda. Agora estamos no motel, e vejo carros estacionados e não encontro nenhum sinal de outro ser humano. Benton surge em flashes em minha mente. Meu coração se acelera e a percepção me invade o cérebro. Bonnie e Clyde. Costumávamos nos referir a Carrie Grethen e Newton Joyce como Bonnie e Clyde. O casal assassino. O tempo inteiro estivemos tão certos de que eles eram os responsáveis pelo assassinato de Benton. Mas nunca soubemos com certeza
com quem Benton ia se encontrar naquela tarde em Filadélfia. Por que ele foi sozinho e não contou a nenhum de nós? Ele era mais esperto que isso. Nunca teria concordado em encontrar Carrie Grethen, ou Newton Joyce, ou mesmo um estranho com alguma informação, porque nunca teria confiado em um estranho com alguma suposta informação quando estava na cidade tentando encontrar uma assassina serial ardilosa e má como Carrie. Paro no estacionamento enquanto Kiffin abre a porta e espera que Lucy siga na frente dela para um dos quartos. Quarto 14. Lucy não olha para mim, e a porta se fecha atrás dela e de Kiffin. “Você matou Benton, não matou, Jay?” Declaro isso como um fato. Ele põe uma mão em minhas costas, a pistola apontada e me tocando enquanto ele pára atrás de mim e diz para eu abrir a porta. Entramos no quarto 15, o mesmo que Kiffin me mostrou quando eu quis ver que tipo de colchão e roupa de cama ela usava nesta espelunca. “Você e Bray”, digo a Jay. “Foi por isso que ela enviou cartas de Nova York , tentando fazer parecer que elas eram de Carrie, para fazer Benton supor que eram escritas lá de onde ela estava presa, em Kirby.” Jay fecha a porta e faz um gesto com a pistola, quase aborrecido, como se eu fosse cansativa e ele não estivesse gostando disso. “Sente-se.” Meus olhos miram o teto, procurando parafusos com olhal. Pergunto-me onde está a pistola de ar quente e se ela faz parte de meu destino. Fico parada onde estou, perto da cômoda com sua Bíblia de Gideão, mas esta não está aberta em nenhum capítulo especial sobre vaidade ou qualquer outra coisa. “Só queria saber se dormi com a pessoa que matou Benton.” Olho direto para Jay. “Você vai me matar? Vá em frente. Mas você já fez isso quando o matou. Então eu imagino que você pode me matar duas vezes, Jay.” É estranho, não sinto medo, só resignação. Minha dor, minha angústia é por causa de minha sobrinha, e espero que o som de uma espingarda sacuda estas paredes. “Você não pode deixá-la fora disso?”, pergunto de qualquer forma, e Jay sabe que falo de Lucy. “Eu não matei Benton”, diz ele, e tem o rosto lívido de pessoas que se adiantam e atiram num presidente. Pálido, sem nenhuma expressão, um zumbi. “Carrie e o amigo babaca dela fizeram aquilo. Eu dei o telefonema.” “Telefonema?” “Liguei para ele para marcar o encontro. Isso não foi difícil. Eu sou um agente”, ele gosta de me lembrar. “Carrie administrou tudo de lá. Carrie e aquele gângster assassino com quem ela se enganchou.” “Então você armou uma cilada para ele”, digo, simplesmente. “Provavelmente também ajudou Carrie a fugir.” “Ela não precisou de muita ajuda. Um pouco”, ele responde sem nenhuma inflexão na voz. “Ela era como muitas pessoas neste negócio. Pegam as mercadorias e ferram um cérebro que já está ferrado. Ela começou a agir por conta própria. Anos atrás. Se vocês não tivessem resolvido o problema, nós teríamos. Porque ela estava no fim de sua vida útil.” “Envolvida nos negócios da família, Jay?” Alfineto-o com os olhos. A pistola está a seu lado e ele se recosta na porta. Não tem medo de mim. Sou como uma corda de arco muito esticada, prestes a arrebentar, esperando,
ouvindo qualquer som no quarto ao lado. “Todas essas mulheres assassinadas — com quantas delas você dormiu primeiro? Como Susan Pless.” Balanço a cabeça. “Eu só quero saber se você ajudou Chandonne ou ele o seguiu e se serviu do que você deixou para trás?” Os olhos de Jay me olham mais intensamente. Sondei a verdade. “Sabe, você é muito jovem para ser Jay Talley, seja lá quem fosse ele”, digo depois. “Jay Talley sem nenhum nome do meio. E você não estudou em Harvard, e duvido que jamais tenha morado em Los Angeles, não quando criança. Ele é seu irmão, não é, Jay? Aquela horrível deformidade que se autodenomina lobisomem? Ele é seu irmão, e o DNA de vocês é tão próximo que numa varredura de rotina vocês poderiam ser gêmeos idênticos. Você sabe que seu DNA é o mesmo que o dele numa varredura de rotina? Usando-se quatro amostras, vocês dois são exatamente o mesmo.” A raiva pisca. O belo e vaidoso Jay jamais gostaria de pensar que seu DNA fosse sequer similar ao de alguém tão feio e hediondo como Jean-Baptiste Chandonne. “E o corpo no contêiner do cargueiro. Aquele que você nos ajudou a acreditar que é do irmão — Thomas. O DNA dele também tinha muitos pontos em comum, mas não tantos quanto o seu — do fluido seminal que você deixou no corpo de Susan Pless antes de ela ser brutalizada. Thomas é um parente? Não é irmão? O quê? Um primo? Você também o matou? Você o afogou em Antuérpia ou foi Jean-Baptiste que fez isso? Então você me atraiu para a Interpol, não porque precisasse de minha ajuda no caso, mas porque queria ver o que eu sabia. Queria ter certeza de que não sei o que Benton provavelmente estava começando a imaginar: que você é um Chandonne”, digo, e Jay não reage. “Você provavelmente planeja os negócios para seu pai, e é por isso que entrou num órgão policial, para ser um babaca disfarçado, um espião. Sabe Deus quantos negócios você desviou — conhecendo tudo que os mocinhos estão fazendo e depois voltando tudo contra eles nas costas deles.” Balanço a cabeça. “Deixe Lucy ir embora”, digo a ele. “Eu farei o que você quiser. Apenas a deixe ir embora.” “Não posso.” Ele nem sequer começa a discutir o que acabei de dizer. Jay olha para a parede, como se pudesse ver através dela. Posso dizer que está imaginando o que está acontecendo no quarto ao lado, por que está tudo tão quieto. Meus nervos ficam mais tensos. Por favor, Deus, por favor, Deus. Por favor. Pelo menos faça com que seja rápido. Não permita que ela sofra. Jay tranca a fechadura e prende a corrente contra ladrões. “Tire as roupas”, diz ele, não mais usando meu nome. É mais fácil matar pessoas que foram despersonalizadas. “Não se preocupe”, ele acrescenta bizarramente. “Não vou fazer nada. Apenas tenho de fazer parecer que foi outra coisa.” Olho para o teto. Ele sabe no que estou pensando. Está pálido e suando quando abre uma gaveta da cômoda e tira de lá vários parafusos com olhal e uma pistola de ar quente, uma pistola de ar quente vermelha. “Por quê?”, pergunto a ele. “Por que eles?” Refiro-me aos dois homens que agora acredito que Jay assassinou.
“Você vai aparafusar estes no teto por mim”, ele me diz. “Lá naquela viga. Agora suba na cama e faça isso e não tente nada.” Ele põe os parafusos sobre a cama e acena com a cabeça para que eu os pegue e faça o que ele ordena. “É o que se torna necessário quando as pessoas se metem onde não deviam.” Ele pega um pedaço de pano e corda na gaveta. Fico parada onde estou, apenas olhando para ele. Os parafusos brilham como peltre na cama. “Matos veio aqui para encontrar Jean-Baptiste e foi preciso um pouco de persuasão para saber exatamente o que ele tinha em mente e quem dera a ordem a ele, que não foi o que você pensa.” Jay tira a jaqueta de couro e a estende sobre uma cadeira. “Não a família, mas um primeiro-tenente que não quer que Jean-Baptiste comece a falar e arruíne uma coisa que é boa para muitas pessoas. Uma coisa na família...” “Sua família, Jay”, lembro a ele de sua família e que o conheço pelo nome. “É.” Ele me encara. “É, porra, minha família. Nós cuidamos uns dos outros. Não importa o que a pessoa faça, família é família. Jean-Baptiste é um problema, quer dizer, qualquer pessoa pode olhar para ele e ver isso, e entender por que ele tem seu problema.” Não digo nada. “É claro que nós não aprovamos”, prossegue Jay, como se estivesse falando de um garoto que está atirando nas lâmpadas da rua ou bebendo cerveja demais. “Mas ele tem nosso sangue, e ninguém toca em nosso sangue.” “Alguém tocou em Thomas”, respondo, e ainda não peguei os parafusos nem subi na cama. Não tenho nenhuma intenção de ajudá-lo a me atormentar. “Você quer saber a verdade? Aquilo foi um acidente. Thomas não sabia nadar. Ele tropeçou em uma corda e caiu do tombadilho, ou algo do tipo”, ele me diz. “Eu não estava lá. Ele se afogou. Jean-Baptiste queria levar o corpo dele para bem longe do estaleiro, longe de outras coisas que aconteciam lá, e não queria que o identificassem.” “Bobagem”, respondo. “Me desculpe, mas Jean-Baptiste deixou um bilhete com o corpo. Bon Voyage Le Loup-garou. Alguém faz isso quando não quer chamar a atenção para alguma coisa? Eu não acho. Talvez seja melhor você verificar de novo a história do seu irmão. Talvez sua família tome conta da família. Talvez Jean-Baptiste seja uma exceção. Parece que ele não toma conta da família coisa nenhuma.” “Thomas era um primo.” Como se isso reduzisse o crime. “Levante-se e faça o que eu digo.” Ele indica os parafusos, e está começando a ficar com raiva, muita raiva. “Não”, eu me recuso. “Faça o que você tem de fazer, Jay”, e digo o tempo todo o nome dele. Eu o conheço. Não vou deixá-lo fazer isso comigo sem dizer o nome dele e olhar para ele no olho. “Não vou ajudá-lo a me matar, Jay.” Um baque soa no quarto ao lado, como se alguma coisa tivesse se virado ou caído no chão, e depois há uma explosão e meu coração cambaleia. As lágrimas me fazem engasgar e me enchem os olhos. Jay se encolhe e então seu rosto fica impassível. “Sente-se”, ele me diz. Quando não faço isso, ele chega
mais perto e me empurra na cama enquanto choro. Choro por Lucy. “Seu filho-da-puta desgraçado”, exclamo. “Você também matou aquele garoto? Você levou Benny e o enforcou, um garoto de doze anos?” “Ele não devia ter vindo aqui. Mitch também não devia. Eu conhecia Mitch. Ele me viu. Não havia nada que eu pudesse fazer.” Jay fica em cima de mim como se não soubesse ao certo o que fazer. “Então você matou o garoto.” Enxugo os olhos com as costas das mãos. A confusão pisca nos olhos de Jay. Ele tem um problema com o garoto. O resto de nós não o incomoda, mas o garoto sim. “Como você pôde ficar parado lá vendo ele se enforcar? Um garoto? Um garoto vestido com seu terno de domingo.” Jay levanta a mão e me dá um tapa no rosto. Acontece tão rápido que no começo nem sinto. Minha boca e meu nariz ficam entorpecidos e começam a picar, e alguma coisa molhada pinga. O sangue pinga em meu colo. Deixo-o cair enquanto tremo toda e olho fixo para Jay. Agora é mais fácil para ele. Ele começou o processo. Ele me empurra contra a cama e abre bem meus braços e pernas, segurando os braços com seus joelhos, e meu cotovelo fraturado grita enquanto ele força minhas mãos acima de minha cabeça e luta para amarrá-las com a corda. O tempo todo ele está rosnando sobre Diane Bray. Está zombando de mim, me contando que ela conhecia Benton, e Benton nunca me contou que Bray tinha uma coisa por ele? Porque se Benton tivesse sido um pouco mais legal com ela, talvez ela o tivesse deixado em paz. Talvez ela tivesse me deixado em paz. Minha cabeça martela. Mal entendo o que ele diz. Eu realmente pensava que Benton teve um caso apenas comigo? Fui estúpida a ponto de pensar que Benton traía sua mulher, mas nunca me traiu? Que porra de estúpida sou eu? Jay se levanta para pegar a pistola de ar quente. As pessoas fazem o que fazem, ele diz. Benton teve alguma coisa com Bray em Washington, e depois, quando ele se livrou dela, e fez isso muito rápido, esse crédito é dele, ela não ia deixar passar. Não Diane Bray. Jay está tentando me amordaçar e fico balançando a cabeça de um lado para outro. Meu nariz está sangrando. Não vou conseguir respirar. Bray pegou Benton de jeito, tudo bem, e era em parte por isso que ela queria se mudar para Richmond, para ter certeza de que também arruinaria minha vida. “Um senhor preço a pagar por trepar com alguém algumas vezes.” Jay sai da cama outra vez. Está suando, seu rosto está pálido. Luto para respirar pelo nariz, e meu coração está batendo como uma metralhadora enquanto meu corpo inteiro começa a entrar em pânico. Tento me convencer a me acalmar. Hiperventilar só vai tornar mais difícil minha respiração. Pânico. Tento inalar e o sangue está pingando do fundo de minha garganta, e tusso e gaguejo enquanto meu coração explode contra as costelas, como punhos tentando derrubar uma porta. Bate, bate, bate, e a imagem do quarto fica granulada e não consigo mais me mexer.
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Duas semanas depois
 
Aqueles que se reuniram em minha honra são pessoas comuns. Estão sentados quietos, até reverentes, quase em choque. Não é possível que não tenham sabido de tudo que esteve no noticiário. Seria preciso que alguém vivesse no interior da África para não saber o que aconteceu nas últimas semanas, especialmente o que aconteceu no condado de James City numa pocilga que é uma armadilha para turistas e que se revelou como o olho de uma tempestade monstruosa de corrupção e mal. Tudo parecia muito quieto naquele acampamento arruinado e cheio de mato. Não consigo imaginar como muitas pessoas ficaram em barracas ou no motel e não tinham nenhuma idéia da violência que acontecia em volta. Como um furacão que é levado para o mar, as forças violentas fugiram. Pelo que sabemos, Bev Kiffin não morreu. Nem Jay Talley. Ironicamente, agora ele é considerado um alerta vermelho pela Interpol: as mesmas pessoas com quem ele trabalhava antes o estão perseguindo numa ação furiosa e diversificada. Kiffin também é um alerta vermelho. A suposição é que Jay Talley e Kiffin fugiram dos Estados Unidos e estão escondidos em algum lugar no exterior. Jaime Berger está de pé diante de mim. Estou na tribuna das testemunhas, de frente para um júri de três mulheres e cinco homens. Dois são brancos, cinco são afro-americanos, um é asiático. As raças de todas as vítimas de Chandonne estão representadas, embora isso não tenha sido deliberado por ninguém, tenho certeza. Mas parece justo, e estou contente. A porta de vidro da sala do tribunal foi coberta com papel marrom para garantir que os curiosos, a mídia, não consigam olhar o que acontece aqui dentro. Jurados, testemunhas e eu entramos no tribunal por uma rampa no subsolo, da mesma forma que os prisioneiros são escoltados para seus julgamentos. O segredo gela o ar e os jurados olham para mim como se eu fosse um fantasma. Meu rosto está amarelo-esverdeado de velhas contusões, meu braço esquerdo está outra vez engessado e ainda tenho queimaduras de corda em volta dos pulsos. Só estou viva porque Lucy estava usando um protetor para o corpo. Eu não tinha idéia disso. Quando ela me pegou no helicóptero, usava um colete à prova de bala debaixo da jaqueta acolchoada. Berger está me perguntando sobre a noite em que Diane Bray foi assassinada. É como se eu fosse uma casa onde há uma música diferente tocando em cada aposento. Estou respondendo às perguntas dela, e no entanto estou pensando em outras coisas, outras imagens me vêm à mente e ouço outros sons em diferentes áreas de minha psique. De alguma forma consigo me concentrar em meu testemunho. A fita da caixa registradora da picareta de entalhar que comprei é mencionada. Então Berger lê o relatório do laboratório que foi passado ao tribunal para registro, assim como o protocolo de autópsia, o exame toxicológico e todos os outros relatórios. Berger descreve a picareta de
entalhar aos jurados e me pede que explique como as superfícies da picareta estão correlacionadas com os horrendos ferimentos de Bray. Isso demora um pouco, e olho para os rostos daqueles que estão aqui para me julgar. As expressões variam de passivas a intrigadas, a horrorizadas. Uma mulher fica visivelmente enjoada quando descrevo áreas esmagadas do crânio e um globo ocular que estava praticamente arrancado, ou pendendo da órbita. Berger observa que, de acordo com o relatório do laboratório, a picareta de entalhar recuperada na minha casa estava enferrujada. Ela me pergunta se a picareta que comprei da loja de ferramentas depois do assassinato de Bray estava enferrujada. Digo que não. “Uma ferramenta como essa poderia enferrujar em apenas algumas semanas?”, ela me pergunta. “Na sua opinião, doutora Scarpetta, o sangue na picareta de entalhar foi a causa de a picareta estar nesta condição — na condição da que foi recuperada de sua casa, aquela que a senhora diz que Chandonne levou com ele quando a atacou?” “Na minha opinião, não”, respondo, sabendo que é do meu interesse responder assim. Mas não importa. Eu diria a verdade mesmo que não fosse do meu interesse. “Por um lado, a polícia deve, como um procedimento de rotina, ter certeza de que a picareta está seca quando ela é colocada em um saco de evidências”, acrescento. “E os cientistas que receberam a picareta de entalhar para exame dizem que ela estava enferrujada, certo? O que quero dizer é que estou lendo este relatório do laboratório corretamente, não estou?” Ela sorri ligeiramente. Está vestida com um terno preto com faixas azul-claras, e anda em pequenas passadas enquanto desenvolve o caso. “Eu não sei o que os laboratórios disseram”, respondo. “Não vi esses relatórios.” “É claro que não. A senhora está fora do trabalho há mais ou menos dez dias. E, humm, este relatório só foi apresentado anteontem.” Ela olha para a data datilografada nele. “Mas ele diz que a picareta de entalhar na qual há sangue de Bray estava enferrujada. Parecia velha, e acredito que o funcionário da Pleasant’s Hardware Store afirma que a picareta que a senhora comprou na noite de 17 de dezembro — quase vinte e quatro horas depois do assassinato de Bray — certamente não parecia velha. Era novinha em folha. Correto?” Mais uma vez, não posso dizer o que o funcionário da loja declarou, lembro a Berger da tribuna enquanto os jurados captam cada palavra, cada gesto. Fui excluída de todos os depoimentos das testemunhas. Berger está simplesmente me fazendo perguntas que não posso responder para que possa contar aos jurados o que quer que eles saibam. O que é traiçoeiro e maravilhoso em qualquer procedimento de grande júri é que o advogado de defesa não está presente e não há juiz — ninguém para objetar às perguntas de Berger. Ela pode me perguntar qualquer coisa, e faz isso, porque, em um dos raros exemplos neste planeta, uma promotora está tentando mostrar que a acusada é inocente. Berger pergunta a que horas cheguei em casa de Paris e saí para fazer compras no supermercado. Ela menciona minha ida ao hospital para visitar Jo naquela noite, e a conversa por telefone com Lucy depois disso. A janela se
estreita. Fica mais e mais apertada. Quando tive tempo para ir correndo à casa de Bray, bater nela até ela morrer, plantar evidências e encenar o crime? E por que eu me preocuparia em comprar uma picareta de entalhar quase vinte e quatro horas depois do fato, a menos que fosse com o propósito que declarei o tempo todo: realizar testes? Ela deixa essas questões pairarem, enquanto Buford Righter está sentado na mesa da promotoria e estuda anotações em um bloco de memorandos. Ele evita olhar para mim o máximo que consegue. Respondo a Berger ponto por ponto. Fica cada vez mais difícil eu falar. A parte interna da minha boca foi escoriada pela mordaça, e depois os ferimentos ficaram ulcerados. Não tive feridas bucais desde quando era criança e tinha esquecido como elas são dolorosas. Quando minha língua ulcerada bate em meus dentes enquanto falo, parece que tenho um defeito de fala. Sinto-me fraca e esgotada. Meu braço esquerdo lateja, outra vez engessado porque foi novamente ferido quando Jay puxou meus braços com força acima de minha cabeça e os amarrou à cabeceira da cama. “Percebo que a senhora está tendo alguma dificuldade para falar.” Berger faz uma pausa para observar isso. “Doutora Scarpetta, sei que isto está fora do tema.” Nada está fora do tema para Jaime Berger. Ela tem uma razão para cada respiro, cada passo que dá, cada expressão em seu rosto — tudo, absolutamente tudo. “Mas podemos fazer uma pequena digressão?” Ela pára de andar e põe as palmas das mãos para cima, contraindo os ombros. “Penso que seria instrutivo se a senhora contasse ao júri o que lhe aconteceu na semana passada. Sei que o júri deve estar se perguntando por que a senhora está machucada e tendo dificuldade de falar.” Ela enfia as mãos nos bolsos da calça e pacientemente me estimula a contar minha história. Desculpo-me por não estar em minha melhor forma no momento, e os jurados riem. Conto-lhes sobre Benny e seus rostos se afligem. Os olhos de um homem se enchem de lágrimas quando descrevo os desenhos do garoto que me levaram à plataforma de caça onde acredito que Benny passava grande parte de seu tempo observando o mundo e registrando-o em imagens em seus cadernos de desenhos. Expresso meus temores de que o jovem Benny talvez tenha deparado com criminosos. Seu conteúdo gástrico, explico, não pôde ser explicado pelo que sabemos sobre as últimas horas de sua vida. “E às vezes pedófilos — molestadores de crianças — atraem crianças com doces, comida, algo que as seduza. A senhora teve casos como esse, doutora Scarpetta?”, Berger me pergunta. “Sim”, respondo. “Infelizmente.” “A senhora poderia nos dar um exemplo de um caso em que uma criança foi atraída por comida ou doces?” “Há alguns anos recebemos o corpo de um garoto de oito anos”, apresento um caso de minha experiência pessoal. “Na autópsia, determinei que ele tinha sido asfixiado quando o perpetrador forçou o garoto, uma criança de oito anos, a praticar sexo oral. Recuperei goma do estômago da criança, um chumaço bem grande de chiclete. Depois ficou claro que um vizinho adulto tinha dado quatro tabletes de chiclete ao garoto, Dentyne, e esse homem de fato confessou o assassinato.”
“Portanto a senhora tinha bons motivos, baseada em seus anos de experiência, para ficar preocupada quando encontrou pipoca e cachorro-quente no estômago de Benny White”, declara Berger. “Está correto. Eu fiquei muito preocupada”, respondo. “Por favor, continue, doutora Scarpetta”, diz Berger. “O que aconteceu quando a senhora saiu da plataforma de caça e seguiu a trilha através do bosque?”
 
 
Há uma jurada sentada na fileira da frente das cadeiras reservadas ao júri, a segunda a partir da esquerda, que me lembra minha mãe. Ela está acima do peso e deve ter perto de setenta anos, no mínimo, e usa um vestido desalinhado, azul com estampa floral. Não tira os olhos de mim, e sorrio para ela. Ela parece ser uma mulher gentil, com muito bom senso, e estou muito contente de minha mãe não estar aqui, de estar em Miami. Acho que ela não tem nenhuma idéia do que está acontecendo em minha vida. Não lhe contei. A saúde de minha mãe é fraca e ela não precisa se preocupar comigo. Fico olhando para a jurada com vestido de estampa floral enquanto descrevo o que aconteceu no Fort James Motel. Berger sugere que eu dê informações circunstanciais sobre Jay Talley, como nos conhecemos e nos tornamos íntimos em Paris. Na sugestão e nas conclusões de Berger estão tramados acontecimentos inexplicáveis que transpiraram depois que Chandonne me atacou: o desaparecimento da picareta de entalhar que comprei para fins de pesquisa; a chave da minha casa achada no bolso de Mitch Barbosa — um agente secreto do FBI que foi torturado e assassinado e que eu nunca encontrara. Berger pergunta se Jay esteve alguma vez na minha casa, e é claro que esteve. Portanto ele teria tido acesso a evidências. Sim, confirmo. E teria sido do interesse de Jay me incriminar e confundir a questão da culpa de seu irmão, certo? Berger pára de andar outra vez, fixando os olhos em mim. Não estou certa de poder responder à pergunta. Ela volta a andar. Quando ele me atacou no quarto de motel e me amordaçou, eu arranhei seus braços, não foi? “Sei que lutei com ele”, respondo. “E quando terminou, eu tinha sangue debaixo das unhas das mãos. E pele.” “Não sua pele? Você pode ter se arranhado durante a luta?” “Não.” Ela volta a sua mesa e mexe na papelada, procurando outro relatório de análise laboratorial. Buford Righter está fechado, sentado rigidamente, tenso. O exame de DNA feito no material encontrado em minhas unhas não coincide com meu DNA. Coincide com o DNA da pessoa que ejaculou dentro da vagina de Susan Pless. “E essa pessoa teria sido Jay Talley”, diz Berger, balançando a cabeça, andando outra vez. “Portanto, temos um agente policial federal que fez sexo com uma mulhar imediatamente antes de ela ser brutalmente assassinada. O DNA desse homem também é tão semelhante ao DNA de Jean-Baptiste Chandonne que podemos concluir quase com certeza que Jay Talley é um
parente próximo, muito provavelmente um irmão de Jean-Baptiste Chandonne.” Ela dá alguns passos, com um dedo nos lábios. “Sabemos que o verdadeiro nome de Jay Talley não é Jay Talley. Ele é uma mentira viva. Ele bateu na senhora, doutora Scarpetta?” “Sim. Ele deu um tapa no meu rosto.” “Ele a amarrou à cama e aparentemente pretendia torturá-la com uma pistola de ar quente?” “Essa foi minha impressão.” “Ele ordenou que a senhora se despisse, amarrou-a e amordaçou-a, e claramente ia matá-la?” “Sim. Ele deixou claro que ia me matar.” “Por que ele não a matou, doutora Scarpetta?” Berger diz isso como se não acreditasse em mim. Mas é uma encenação. Ela acredita em mim. Agora ela acredita. Olho para a jurada que me lembra minha mãe. Explico que eu estava tendo uma terrível dificuldade de respirar depois que Jay me amarrou e me amordaçou. Estava em pânico e comecei a hiperventilar, o que significa, explico, que estava respirando tão rápido e tão superficialmente que não conseguia inalar oxigênio suficiente. Meu nariz estava sangrando e inchado e a mordaça me impedia de respirar pela boca. Fiquei inconsciente e, quando recuperei os sentidos, Lucy estava no quarto. Fui desamarrada, a mordaça removida, e Jay Talley e Bev Kiffin tinham ido embora. “Agora já ouvimos o testemunho de Lucy”, diz Berger, movendo-se pensativa na direção dos jurados. “Portanto, sabemos pelo testemunho dela o que aconteceu depois que você desmaiou. O que ela lhe contou quando você recobrou os sentidos, doutora Scarpetta?” Em um julgamento, eu dizer o que Lucy disse constituiria um rumor. Mais uma vez, Berger consegue se livrar de praticamente qualquer coisa neste procedimento singularmente privado. “Ela me contou que tinha usado um colete à prova de balas, é..., um protetor para o corpo”, respondo à pergunta. “Lucy disse que houve uma conversa no quarto...” “Entre Lucy e Bev Kiffin”, esclarece Berger. “Sim. Lucy disse que estava encostada na parede e Bev Kiffin estava com a espingarda apontada para ela. E ela atirou e o colete de Lucy absorveu o tiro, e, embora ela estivesse muito ferida, estava bem, e tirou a espingarda da senhora Kiffin e saiu correndo do quarto.” “Porque sua primeira preocupação nesse momento era com a senhora. Ela não ficou lá para dominar Bev Kiffin porque a prioridade de Lucy era a senhora.” “Sim. Ela me disse que começou a bater nas portas. Ela não sabia em que quarto eu estava, então correu para os fundos do motel porque há janelas nos fundos que dão para a piscina. Ela encontrou meu quarto, me viu na cama e quebrou a janela com a coronha da espingarda e entrou. Ele tinha ido embora. Aparentemente, ele e Bev Kiffin saíram pela frente e pegaram a motocicleta dele e fugiram. Lucy diz que se lembra de ter ouvido uma motocicleta enquanto estava tentando me reanimar.”
“A senhora teve informações de Jay Talley desde então?” Berger pára e me olha nos olhos. “Não”, digo, e pela primeira vez neste longo dia a raiva desperta. “E quanto a Bev Kiffin? A senhora tem alguma idéia de onde ela está?” “Não. Nenhuma idéia.” “Portanto eles são fugitivos. Ela deixa para trás dois filhos. E uma cachorra — a cachorra da família. A cachorra da qual Benny White tanto gostava. Talvez até o motivo de ele ter ido ao motel depois da igreja. Corrija-me se minha memória me trair. Mas Sonny Kiffin, o filho, não disse alguma coisa sobre provocar Benny? Alguma coisa sobre Benny ter ido à casa dos Kiffin antes da igreja para ver se Mister Peanut tinha sido encontrada? Que a cachorra tinha, aspas, apenas saído para nadar e que se Benny voltasse mais tarde ele poderia ver Mister Peanut? Sonny não disse ao detetive Marino tudo isso depois do fato, depois de Jay Talley e Bev Kiffin terem tentado matar a senhora e sua sobrinha e depois fugido?” “Não sei de primeira mão o que Sonny contou a Pete Marino”, respondo — não que Berger queira realmente que eu responda. Ela só quer que o júri ouça a pergunta. Meus olhos ficam embaçados quando penso naquela cachorra velha e deplorável e no que sei com certeza que aconteceu com ela. “A cachorra não tinha saído para nadar — não voluntariamente —, está certo, doutora Scarpetta? A senhora e Lucy não encontraram Mister Peanut enquanto esperavam a chegada da polícia no acampamento?”, continua Berger. “Sim.” As lágrimas jorram.
 
 
Mister Peanut estava atrás do motel, no fundo da piscina. Tinha tijolos amarrados nas patas traseiras. A jurada de vestido florido começa a chorar. Outra jurada ofega e põe uma mão sobre os olhos. Olhares de indignação e mesmo de ódio passam de rosto a rosto, e Berger deixa o momento, este momento horrível e doloroso, ficar na sala. A imagem cruel de Mister Peanut é uma demonstração imaginada para a sala do tribunal que é vívida e insuportável, e Berger não a afasta. Silêncio. “Como alguém poderia fazer uma coisa como essa!”, a jurada de vestido florido exclama enquanto fecha sua carteira e enxuga os olhos. “Que pessoas malvadas!” “Filhos-da-mãe é o que eles são.” “Graças a Deus. O bom Senhor estava cuidando da senhora, Ele com certeza estava.” Um jurado balança a cabeça, dirigindo a mim esse comentário. Berger dá três passos. Seu olhar percorre o júri. Ela olha um bom tempo para mim. “Obrigada, doutora Scarpetta”, ela diz calmamente. “Com certeza há algumas pessoas más e horríveis lá”, ela gentilmente diz em benefício do júri. “Agradeço à senhora por passar este tempo conosco quando todos sabemos que a senhora está com dores e tem vivido um inferno. É isso mesmo.” Ela volta a olhar para o júri. “Inferno.” Todos balançam a cabeça. “O inferno, está certo”, a jurada com vestido florido me diz, como se eu
não soubesse. “A senhora com certeza passou por ele. Quero fazer uma pergunta. Podemos perguntar, não é?” “Por favor”, responde Berger. “Sei o que acho”, a jurada de vestido florido comenta para mim. “Mas sabe de uma coisa? Vou lhe dizer algo. Do jeito como foi criada, se uma pessoa não diz a verdade, leva palmadas no traseiro, e falo de palmadas fortes.” Ela projeta o queixo para a frente, numa justa indignação. “Nunca soube de pessoas fazerem as coisas de que vocês todos falaram aqui. Acho que nunca mais vou conseguir dormir. Eu estou falando sério.” “De alguma forma eu consigo entender”, respondo. “Então eu vou dizer logo o que quero dizer.” Ela olha para mim, seus braços apertando a grande carteira verde. “A senhora fez aquilo? A senhora matou a moça da polícia?” “Não, senhora”, digo com a mesma força com que sempre disse tudo em minha vida. “Não matei.” Esperamos uma reação. Todos estão sentados muito quietos, sem falar, sem perguntas. Os jurados estão satisfeitos. Jaime Berger vai para sua mesa e pega papéis. Ela os arruma e bate com eles na mesa para alinhá-los. Deixa as coisas se assentarem antes de olhar para cima. Encara cada um dos jurados, depois olha para mim. “Não tenho mais perguntas”, diz. “Senhoras e senhores.” Ela vai para bem perto da grade, inclinando-se na direção do júri como se estivesse olhando para um grande navio, e na verdade está. A senhora com vestido florido e seus colegas são minha passagem para sair de águas revoltas e perigosas. “Sou uma caçadora da verdade profissional”, Berger se descreve em palavras que nunca ouvi um promotor usar. “Minha missão — sempre — é encontrar a verdade e honrá-la. Foi por isso que me pediram para vir a Richmond — para revelar a verdade certa, absoluta. Todos vocês ouviram que a justiça é cega.” Ela espera, reconhecendo acenos de cabeça. “O bem, a justiça cega no sentido de que deve ser extremamente não partidária, imparcial, perfeitamente justa com todas as pessoas. Mas” — ela percorre com o olhar os rostos dos jurados — “não somos cegos à verdade, somos? Vimos o que se passou dentro desta sala. Posso dizer que vocês entenderam o que se passou dentro desta sala e que vocês não são cegos. Vocês teriam de ser cegos para não verem o que é tão aparente. Esta mulher” — ela se vira para mim e me aponta — “doutora Kay Scarpetta, não merece mais nossos questionamentos, nossas dúvidas, nossa sondagem dolorosa. Em sã consciência, não posso permitir isso.” Berger faz uma pausa. Os jurados estão como que petrificados e praticamente não piscam enquanto olho para ela. “Senhoras e senhores, agradeço a vocês por sua decência, seu tempo, seu desejo de fazer o que é certo. Vocês podem voltar para seus empregos agora, para suas casas e suas famílias. Estão dispensados. Não há caso. Caso dispensado. Bom dia.” A senhora de vestido florido sorri e suspira. Os jurados começam a bater palmas. Buford Righter olha para suas mãos, cruzadas em cima da mesa. Ponhome de pé e a sala roda quando abro a porta de vai-e-vem e saio da tribuna das testemunhas.
MINUTOS DEPOIS
Sinto-me como se estivesse saindo de um blecaute e evito contato visual com repórteres e outros que esperam além da porta de vidro coberta de papel que me escondeu do mundo exterior e agora me devolve a ele. Berger me acompanha até a pequena sala de testemunhas vizinha, e Marino, Lucy e Anna levantam-se instantaneamente, esperando apreensivos e animados. Eles intuem o que aconteceu, eu simplesmente balanço a cabeça confirmando e consigo dizer: “Bem, está tudo bem. Jaime foi magistral”. Finalmente chamo Berger pelo primeiro nome enquanto me dou conta vagamente de que, embora tenha estado dentro desta sala de testemunhas vezes sem conta na última década, esperando explicar a morte a jurados, nunca imaginei que um dia estaria neste tribunal para me explicar. Lucy me agarra, levantando-me do chão, eu tremo por causa do braço ferido e ao mesmo tempo rio. Abraço Anna. Abraço Marino. Berger espera no vão da porta, por uma vez sem se intrometer. Também a abraço. Ela começa a enfiar pastas e blocos em sua pasta e veste o casaco. “Estou fora daqui”, ela anuncia, toda séria outra vez, mas eu detecto seu entusiasmo. Puxa, ela está orgulhosa de si e tem mesmo de estar. “Não sei como lhe agradecer”, digo a ela com o coração cheio de gratidão e respeito. “Não sei nem o que dizer, Jaime.” “Amém a isso”, exclama Lucy. Minha sobrinha está usando um elegante terno preto e parece uma linda advogada ou médica, o que quer que ela queira ser. Posso dizer pelo modo como seus olhos se fixam em Berger que Lucy reconhece a mulher atraente e impressionante que Berger é. Lucy não pára de olhar para ela e parabenizá-la. Minha sobrinha é efusiva. Na verdade, ela está flertando. Está flertando com minha promotora especial. “Tenho de voltar para Nova York”, Berger me diz. “Lembra do meu grande caso lá?”, ela me recorda secamente de Susan Pless. “Bem, há trabalho a ser feito. Quando você pode aparecer para tratarmos do caso de Susan?” Berger fala sério, acho. “Vá”, diz Marino, em seu terno azul-marinho amarrotado, com uma gravata vermelha que é um pouco curta. A tristeza atravessa seu rosto. “Vá para Nova York, doutora. Vá agora. Com certeza você não vai querer estar aqui por algum tempo. Deixe a agitação se acalmar.” Não respondo, mas ele está certo. Estou quase sem fala no momento. “Você gosta de helicópteros?”, Lucy pergunta a Berger. “Ninguém jamais me poria naquela coisa”, Anna começa a falar. “Não existe nenhuma lei da física que explique que uma dessas coisas seja capaz de voar. Nenhuma.” “É, e também não existe nenhuma lei da física que explique por que as abelhas conseguem voar”, Lucy responde bem-humorada. “Coisas gordas com asas miudinhas. Blllbbllbllblll.” Ela imita uma abelha voando, os dois braços
enlouquecidos, atordoados. “Caramba, você está de novo tomando remédio?” Marino rola os olhos para minha sobrinha. Lucy põe o braço em volta de mim e caminhamos para fora da sala de testemunhas. Berger já foi para o elevador, sozinha, com sua pasta debaixo do braço. A seta de descida se acende e a porta se abre. Pessoas de aparência um tanto desagradável saem, chegando para seu dia de julgamento ou para ver alguma outra pessoa ir para o inferno. Berger segura as portas para Marino, Lucy, Anna e eu. Há repórteres perambulando por ali, mas eles nem se incomodam em tentar se aproximar de mim, pois deixo claro balançando a cabeça que não tenho nada a comentar e quero que me deixem em paz. A imprensa não sabe o que acaba de acontecer no procedimento do grande júri especial. O mundo não sabe. Não foi permitida a presença de jornalistas dentro da sala do tribunal, mesmo que eles obviamente saibam que eu estava programada para aparecer hoje. Vazamentos. Haverá mais, estou certa. Não importa, mas percebo que Marino é sábio em sugerir que eu saia da cidade, pelo menos por algum tempo. Meu humor desce lentamente, assim como o elevador. Paramos com um tranco no térreo. Encaro a realidade e tomo uma decisão. “Eu vou”, digo calmamente a Jaime Berger enquanto saímos do elevador. “Vamos pegar o helicóptero e ir para Nova York. Eu ficaria honrada de ajudá-la como puder. É minha vez, senhorita Berger.” Berger pára no saguão cheio e barulhento e muda sua pasta gorda e surrada para o outro braço. Uma das tiras de couro se soltou. Ela me olha nos olhos. “Jaime”, ela me lembra. “Vejo você no tribunal, Kay”, ela diz.

 

 

                                                                  Patricia Cornwell

 

 

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